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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REDIMIDA / P. C. Cast e Kristin Cast
REDIMIDA / P. C. Cast e Kristin Cast

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Nunca me senti tão sombria assim.
Nem mesmo quando fui estilhaçada e presa no Mundo do Além e minha alma começou a se fragmentar. Naquela época, eu estava quebrada, destruída e prestes a me perder para sempre. Eu me sentia sombria por dentro, mas as pessoas que mais me amavam foram faróis lindos e brilhantes de esperança, e eu fui capaz de encontrar força em sua luz. Consegui sair da escuridão.
Desta vez, eu não tinha nenhuma esperança. Não conseguia encontrar uma luz. Eu merecia continuar perdida, despedaçada. Desta vez, eu não merecia ser salva.
O Detetive Marx me levou para a delegacia do condado de Tulsa em vez de me jogar numa cela com o resto dos criminosos presos há pouco tempo. Na viagem aparentemente interminável da Morada da Noite até o grande prédio de pedra marrom do Departamento de Polícia da First Street ele conversou comigo, explicando que tinha feito uma ligação e mexido uns pauzinhos para que eu ficasse em uma cela especial até que o meu advogado tomasse as devidas providências sobre minha acusação, e então eu poderia ser solta sob fiança. Ele alternava o olhar entre a estrada e o meu reflexo no espelho retrovisor. Meu olhar encontrou o dele. Não precisei de mais do que um olhar de relance para ler a expressão em seu rosto.
Ele sabia que eu não tinha a menor chance de conseguir sair sob fiança.
– Eu não preciso de um advogado – disse eu. – E não quero fiança.
– Zoey, você não está pensando direito. Espere um pouco. Acredite em mim, você vai precisar de um advogado. E, se puder sair sob fiança, será o melhor para você.
– Mas não seria o melhor para Tulsa. Ninguém vai deixar um monstro à solta. – Minha voz soou estável e indiferente, mas por dentro eu estava gritando.
– Você não é um monstro – assegurou-me Marx.
– Você viu aqueles dois homens que eu matei?

 

 

 


 

 

 


Ele me lançou um olhar pelo retrovisor de novo e assentiu. Eu podia ver que seus lábios estavam pressionados, formando uma linha, como se estivesse se segurando para não dizer algo. Por algum motivo, seu olhar ainda era bondoso. Eu não conseguia retribuir aquele olhar.

Olhando pela janela, eu disse:

– Então, você sabe o que eu sou. Você pode me chamar de monstro, de assassina, de vampira novata e perigosa... É tudo a mesma coisa. Eu mereço ser presa. Eu mereço o que vai acontecer comigo.

Então, ele desistiu de conversar, e eu fiquei satisfeita.

Uma cerca de ferro preta cercava o estacionamento da delegacia de polícia, e Marx seguiu até um portão nos fundos onde precisava esperar para ser identificado antes de um enorme portão se abrir. Então, ele estacionou e me conduziu, algemada, por uma porta nos fundos e por uma grande e agitada sala toda dividida em cubículos. Quando entramos, policiais conversavam e telefones tocavam. Assim que perceberam que Marx estava comigo, foi como se tudo tivesse sido desligado. As conversas cessaram e todos nos fitaram como idiotas.

Fixei o olhar em um ponto na parede bem na minha frente e me concentrei para não permitir que os gritos dentro de mim ecoassem.

Tivemos de atravessar toda a sala. Então passamos por uma porta que levava a uma daquelas salas como as do seriado Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais , em que a incrível Mariska Hargitay interroga os bandidos.

Fiquei sobressaltada ao perceber que o que eu fizera me transformara em um dos bandidos.

Havia uma porta no canto da sala que levava a um pequeno corredor. Marx virou à esquerda e parou para passar seu crachá de identificação, e uma porta de aço muito grossa se abriu. Do outro lado, o corredor logo acabava. Havia outra porta de metal à nossa direita, que estava aberta. A parte de baixo era sólida, mas, na altura dos ombros, as grades começavam. Grades pretas e grossas. Foi onde o Detetive Marx parou. Olhei para dentro. O lugar era uma tumba. De repente, senti dificuldade para respirar, e meus olhos desviaram do lugar horrível para encontrar o rosto familiar de Marx.

– Com o poder que você tem, imagino que consiga fugir daqui – ele falou baixinho, como se alguém pudesse estar nos escutando.

– Eu deixei a pedra da vidência na Morada da Noite. Foi isso que me deu o poder para matar aqueles dois homens.

– Então, você não os matou sozinha?

– Eu fiquei furiosa e despejei toda a minha fúria neles. A pedra da vidência só me deu o estímulo. Detetive Marx, a culpa foi minha. Ponto final.

Tentei soar durona e certa do que estava falando, mas a minha voz saiu suave e trêmula.

– Você consegue fugir daqui, Zoey?

– Para ser honesta, eu não sei, mas prometo que não vou tentar. – Respirei fundo e soltei todo o ar de uma vez, dizendo a ele a mais absoluta verdade. – Por causa do que eu fiz, meu lugar é aqui, e independentemente do que aconteça comigo, eu mereço.

– Bem, eu prometo que ninguém vai conseguir incomodá-la aqui. Você estará segura – garantiu ele, gentil. – Eu mesmo me certifiquei disso. Então, o que vier a acontecer, não será porque levou uma surra de linchadores.

– Obrigada.

Minha voz estava fraca, mas consegui pronunciar as palavras.

Ele tirou de mim as algemas.

Eu não tinha conseguido me mexer ainda.

– Você precisa entrar na cela agora.

Consegui fazer com que meus pés se mexessem. Quando eu estava dentro da cela, virei-me e, pouco antes de ele fechar a porta, eu disse:

– Não quero ver ninguém. Especialmente se for da Morada da Noite.

– Tem certeza?

– Tenho.

– Você entende o que está dizendo, não entende? – perguntou ele.

Eu assenti.

– Eu sei o que acontece com uma novata que não fica perto de vampiros.

– Então, basicamente, você está dando a sua própria sentença.

Ele não formulou como uma pergunta, mas eu respondi mesmo assim.

– O que eu estou fazendo é me responsabilizar pelos meus atos.

Ele hesitou, e pareceu que havia mais alguma coisa que desejava dizer, mas Marx apenas deu de ombros, suspirou e concordou:

– Certo, então. Boa sorte, Zoey. Sinto muito que as coisas tenham chegado a esse ponto.

A porta se fechou como que selando um caixão.

Não havia janela, nenhuma luz exterior exceto a do corredor que espreitava por entre as barras da porta. No fundo da cela havia uma cama: um colchão fino em cima de placa de alguma coisa dura grudada na parede. Havia um vaso sanitário de alumínio saindo do meio de uma parede paralela, não muito longe da cama. Não tinha tampa. O chão era de concreto preto. As paredes eram cinza. Sentindo-me como se estivesse em um pesadelo, andei até a cama.

Seis passos. Esse era o comprimento da cela. Seis passos.

Fui até a parede lateral e caminhei pela cela. Cinco passos. Tinha cinco passos de largura.

Eu estava certa. Se não contasse a distância para o teto, eu estava trancada em uma tumba do tamanho de um caixão.

Sentei-me na cama, puxei os joelhos até embaixo do queixo e abracei-os. Meu corpo tremia, tremia e tremia.

Eu ia morrer.

Eu não consegui me lembrar se Oklahoma tinha pena de morte. Como se eu tivesse realmente prestado atenção às aulas de História enquanto o Treinador Fitz passava um filme atrás do outro. Mas, de qualquer forma, isso não importava. Eu deixara a Morada da Noite. Sozinha. Sem nenhum vampiro. Nem mesmo o Detetive Marx sabia o que isso significava. Era só uma questão de tempo até meu corpo começar a rejeitar a Transformação.

Como se eu tivesse rebobinado um filme em minha mente, imagens de novatas morrendo apareceram na tela dos meus olhos fechados: Elliot, Stevie, Rae, Stark, Erin...

Apertei meus olhos ainda mais.

Acontece rápido. Rápido mesmo , prometi para mim mesma.

Então, outra cena de morte surgiu nas minhas lembranças. Dois homens – mendigos, insolentes, mas vivos, até que não consegui controlar o meu temperamento. Eu me lembrava de como atirara a minha raiva contra eles... de como eles bateram contra o paredão de pedra ao lado da pequena gruta de Woodward Park... de como ficaram deitados lá, dobrados, quebrados...

Mas eles estavam se mexendo! Eu não achei que os tivesse matado! Não tinha a intenção de matá-los! Fora realmente um terrível acidente! Minha mente gritava.

– Não! – falei com firmeza para a parte egoísta de mim que queria inventar desculpas e fugir das consequências. – As pessoas têm convulsões quando estão morrendo. Eles estão mortos porque eu os matei. Não vai compensar o que fiz, mas mereço morrer.

Eu me encolhi embaixo do áspero cobertor cinza e fitei a parede. Ignorei a bandeja com o jantar que enfiaram por uma abertura na porta. Eu não estava com fome, mas independentemente do que houvesse na bandeja, definitivamente não me apeteceria.

E, por alguma razão, a refeição ruim fez com que eu me lembrasse da última vez em que senti um cheiro maravilhoso de comida: o psaguetti [*] da Morada da Noite, cercada de amigos.

Mas eu estava estressada demais com o problema Aurox/Heath/Stark e nem apreciei o psaguetti de verdade. Assim como não apreciei os meus amigos. Nem Stark. Não mesmo.

Eu não tinha parado para pensar como era sortuda por dois caras tão incríveis me amarem. Em vez disso, eu ficara irada e frustrada.

Pensei em Aphrodite. Lembrei-me de como ela falou com Shaylin sobre me vigiar. Lembrei-me de como entrei furiosa e despejei o poder da minha fúria acumulada através da pedra da vidência.

A lembrança fez com que eu me encolhesse de vergonha.

Aphrodite estava absolutamente certa. Eu precisava ser vigiada. Ela sequer teve a chance de conversar comigo. E, quando tentou, droga, eu não fui nem um pouco razoável.

Eu me encolhi de novo quando me lembrei de como cheguei perto de despejar a minha raiva contra Aphrodite.

– Aiminhadeusa ! Se eu tivesse feito isso, teria matado a minha amiga – disse para as palmas das minhas mãos enquanto cobria o rosto de vergonha.

Não importava que a pedra da vidência, de alguma forma, mesmo sem eu pedir, tivesse aumentado meus poderes. Tive muitos avisos. Todas aquelas vezes em que me irritava e a pedra ficava cada vez mais quente. Por que não parei e refleti sobre o que estava acontecendo? Por que não pedi a ajuda de alguém? Cheguei a pedir conselhos a Lenobia sobre namorados. Conselho sobre namorados! Devia ter perguntado sobre como controlar raiva!

Mas eu não pedia ajuda para nada, exceto para a única coisa em que a minha visão afunilada estava focada: em mim mesma.

Eu era uma vadia egocêntrica.

Eu merecia estar onde estava. Eu merecia as consequências.

As luzes do corredor se apagaram. Não fazia ideia de que horas eram. Parecia ter se passado anos, e não apenas meses, desde que eu fora humana – uma adolescente normal que tinha que ir para a cama muito cedo nos dias de aula.

Eu desejava, com todas as minhas forças, poder chamar o Super­-Homem e pedir que ele voasse na direção contrária em volta da Terra para fazer o tempo voltar para ontem. Então, eu estaria em casa, na Morada da Noite, com meus amigos. Eu me jogaria nos braços de Stark e diria a ele o quanto o amo e sou grata por tê-lo. Diria que sinto muito pela confusão com Aurox/Heath, e que sairíamos dessa – nós, as duas pessoas e meia envolvidas –, mas que eu desfrutaria de todo o amor que me cercava, independentemente de qualquer coisa. Depois, me livraria da maldita pedra da vidência, procuraria Aphrodite e entregaria a ela para que fosse mantida em segurança, como se ela fosse o meu Frodo.

Mas era tarde demais para desejos. Voltar no tempo era só uma fantasia. O Super-Homem não era real.

Não dormi. Era noite, e a noite se tornara o meu dia. Neste momento, eu deveria estar na escola com meus amigos, vivendo a minha vida, tendo um “dia” normal (para mim), em vez de estar aqui, encolhida. Eu deveria ter sido mais esperta. Mais forte. Deveria ter sido qualquer coisa, menos uma pirralha egoísta.

Horas depois, ouvi a portinhola se abrir de novo, e quando me virei, vi que alguém levara a minha bandeja intocada. Bom. Talvez o cheiro também fosse embora.

Eu precisava fazer xixi, mas não queria. Não queria usar o vaso sem tampa que saía da parede no meio da cela. Olhei para os cantos das paredes, no ponto de encontro com o teto. Câmeras.

Era legal guardas verem prisioneiros fazerem xixi?

As regras regulares se aplicavam a mim? Quero dizer, eu nunca ouvira falar de um novato ou vampiro ser julgado por um tribunal humano nem ir para uma prisão humana.

Não preciso me preocupar com isso. Vou me afogar no meu próprio sangue antes de ir a julgamento.

Por mais estranho que possa parecer, esse pensamento era um conforto, e quando a luz do corredor se acendeu, caí num sono agitado e sem sonho.

Para mim, pareceu que dez segundos depois, a portinhola se abriu de novo e outra bandeja de alumínio foi empurrada para dentro da minha cela. O barulho me fez acordar assustada, mas ainda estava grogue, ainda tentando voltar a dormir – até que o cheiro de ovos e bacon me deixou com água na boca. Há quanto tempo eu não comia? Nossa, me sentia péssima. Ainda sem enxergar direito, andei os seis passos até a porta, pegando a bandeja e levando com cuidado para a minha cama desarrumada.

Os ovos estavam mexidos e supermolhados. O bacon, duro como um pedaço de pau. Havia café, uma caixa de leite e uma torrada pura.

Eu daria praticamente qualquer coisa por uma tigela de cereal Count Chocula e uma lata de refrigerante.

Dei uma garfada nos ovos, mas estavam tão salgados que quase engasguei.

Mas, em vez engasgar, comecei a tossir. Naquela tosse terrível, senti alguma coisa metálica, pegajosa, quente e estranhamente maravilhosa.

Era o meu próprio sangue.

O medo tomou conta de mim, deixando-me fraca, tonta e nauseada. Está acontecendo tão rápido? Eu não estou pronta! Não estou pronta!

Tentando limpar a minha garganta, tentando respirar, cuspi os ovos, ignorei o tingimento rosado no amarelo gorduroso, coloquei a bandeja no chão e me encolhi na cama, passando os braços em volta de mim mesma e esperando por mais tosse e sangue – muito mais sangue. Minhas mãos estavam tremendo quando enxuguei meus lábios.

Eu estava com tanto medo!

Não fique , disse para mim mesma enquanto tentava prender uma tosse terrível. Logo você verá Nyx. E Jack. E talvez até Dragon e Anastasia.

E mamãe!

Mãe... de repente, desejei a presença de minha mãe com todas as forças do meu ser.

– Eu gostaria de não estar sozinha – sussurrei com uma voz grave, a boca grudada no colchão fino e duro.

Escutei a porta se abrindo, mas não me virei. Não queria ver a expressão horrorizada de um estranho. Fechei os olhos bem apertados e tentei fingir que estava na fazenda de lavanda da Vovó, dormindo no meu quarto lá. Tentei fingir que o cheiro dos ovos com bacon era da comida dela, e que a minha tosse era apenas uma gripe que me impedia de ir à escola.

E eu estava fazendo isso! Ah, obrigada, Nyx! De repente, juro que consegui sentir os aromas que sempre se espalhavam na casa da Vovó, lavanda e capim. Isso me deu a coragem para falar logo, antes que a minha voz ficasse sufocada pelo sangue, para quem quer que estivesse ali:

– Tudo bem. Isso é o que acontece com alguns novatos. Por favor, vá embora e me deixe em paz.

– Ah, Zoey Passarinha, minha preciosa u-we-tsi-a-ge-ya , a esta altura você já deveria saber que eu nunca vou deixá-la sozinha.

[*] Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)


2

Zoey

Achei que ela fosse parte da minha alucinação agonizante, parada ali na porta da cela, usando uma camisa de linho roxa e jeans gastos, com uma cesta de piquenique pendurada no braço. Mas assim que me virei para encará-la, ela correu até mim, sentando-se na beirada da cama e me envolvendo em seus braços e nos cheiros da minha infância.

– Vovó! Eu sinto muito! Sinto muito! – Soluçava em seu ombro.

– Shhh, u-we-tsi-a-ge-ya , estou aqui. – Ela passava a mão em círculos nas minhas costas.

A minha tosse amenizou temporariamente, então eu disse logo:

– Eu sei que estou sendo egoísta, mas estou tão feliz que esteja aqui. Eu não quero morrer sozinha.

Vovó se afastou de mim o suficiente para me pegar pelos ombros e me sacudir.

– Zoey Redbird, você não vai morrer.

Lágrimas escorreram pelo meu rosto. Eu as ignorei e enxuguei o canto da minha boca, estendendo meus dedos trêmulos para que ela pudesse ver o sangue.

Ela mal olhou para a prova que eu estava tentando lhe mostrar. Em vez disso, abriu a cesta de piquenique, tirou um guardanapo xadrez vermelho e branco e começou a enxugar as minhas lágrimas e meu nariz, exatamente como fazia quando eu era apenas uma menininha.

– Vovó, eu sei que você me ama mais do que qualquer pessoa no mundo – comecei, tentando (sem sucesso) não chorar. – Mas você não pode impedir que meu corpo rejeite a Transformação.

– Você está certa, u-we-tsi-a-ge-ya , eu não posso. Mas eles podem. – Ela apontou para a porta atrás de mim.

Virei-me e vi Thanatos e Lenobia, Stevie Rae, Darius e Stark – meu Stark –, todos apertados na porta. Stevie Rae estava chorando tão alto que não sei como não havia escutado antes.

Stark também estava chorando, mas em silêncio.

– Mas eu disse para não virem atrás de mim! Eu disse que mereço enfrentar as consequências. – Chorava tanto quanto Stevie Rae agora.

– Então, viva e enfrente as consequências! E eu estarei bem aqui, o mais perto possível de você para passar pela coisa toda! – Stark atirou as palavras em mim.

– Eu não posso. Já comecei a rejeitar a Transformação – contei soluçando.

– Menina, a sua avó falou a verdade. A não ser que a rejeição do seu corpo já esteja determinada, nossa presença vai impedi-la – afirmou Thanatos.

– Você não vai morrer! Eu não vou deixar! – gritou Stark aos prantos, e começou a entrar na minha cela.

– Espere aí, rapaz! Eu disse que só um de cada vez pode entrar na cela. – Um cara com uniforme policial veio de trás do meu grupo de amigos e se colocou entre eles e a minha cela. – O Detetive Marx me disse que eu deveria permitir a entrada de vocês, vampiros, no prédio se aparecessem, mas não vou quebrar as regras e deixar mais de um visitante por vez. A avó é da família. O resto de vocês pode esperar na sala de interrogatório. – Ele lançou um olhar sério para a minha avó. – A senhora tem quinze minutos. – Então, bateu a porta.

– Quinze minutos. – Vovó emitiu um ruído de descontentamento. – Isso não é uma visita apropriada. Esse é o tempo de cozinhar um ovo. Que rapaz sem coração. Bem, não vou ficar aqui perdendo tempo. Zoey Passarinha, assoe o nariz e fique de pé. Você precisa de uma boa defumação. Ah, os cavalheiros que revistaram a cesta fizeram uma bagunça.

Ela já estava mexendo dentro da cesta de piquenique sem fundo, por isso precisei segurar suas mãos nas minhas para que parasse e prestasse a atenção em mim.

– Vovó, eu amo você. Você sabe, não sabe?

– Claro, u-we-tsi-a-ge-ya. E eu amo você, de todo o coração. É por isso que preciso te defumar. Gostaria que tivesse uma banheira aqui, ou mesmo uma pia, para ajudar ainda mais na purificação. Mas a defumação vai ter que ser o suficiente. Trabalhei a noite toda e finalmente escolhi defumar você com essa concha de ostra que nós duas pegamos quando seguimos o Rio Mississipi até o Golfo no verão em que você completou dez anos. Lembra?

– Claro que lembro, Vovó, mas...

– Bom. Moí e misturei sálvia, cedro e lavanda. Combinados, eles formam um poderoso defumador para purificação emocional e física. – Ela estava derramando as ervas secas de uma bolsinha de veludo preta para a concha de ostra. – Eu também trouxe uma pena de águia e minha peça favorita de turquesa. Sei que eles podem tentar tirar de você, mas vamos tentar esconder dentro do colchão. Vai servir para protegê-la enquanto...

– Vovó, por favor, pare – interrompi. Encontrando o seu olhar sem nem piscar, eu disse: – Eu matei aqueles dois homens. Não mereço ser purificada nem protegida. Mereço o que estava acontecendo comigo antes de todos vocês aparecerem.

Minha intenção não era ser tão fria, mas minhas palavras fizeram com que ela hesitasse. Então, suavizei a minha voz, mas não a minha decisão.

– Os vampiros podem ter evitado que me afogasse no meu próprio sangue, mas isso não muda o fato de que eu fiz uma coisa terrível, uma coisa pela qual preciso ser punida.

Ela parou de preparar a minha defumação e seus olhos penetrantes encontraram os meus.

– Diga-me, u-we-tsi-a-ge-ya , por que você matou aqueles homens?

Balancei a cabeça e afastei o cabelo despenteado do meu rosto.

– Eu não sabia que os tinha matado até o Detetive Marx aparecer na Morada da Noite. Eu só sabia que eles tinham me enfurecido. Estavam perambulando por Woodward Park atrás de pessoas, principalmente garotas, amedrontando-as para que lhes dessem dinheiro. – Parei e meneei a cabeça de novo. – Mas isso não torna o que eu fiz aceitável. Quando dessem conta do que eu era, me deixariam em paz.

– E iam seguir até encontrar outra vítima.

– Provavelmente, mas não iam matar. Eles eram mendigos, não serial killers.

– Então, me conte o que aconteceu. Como você os matou?

– Descontei minha raiva neles. Da mesma forma que tinha feito com Shaylin mais cedo, atirando-a no chão. Só que eu fiquei ainda mais furiosa no parque. De algum jeito, a pedra da vidência exacerbou os meus sentimentos e me deu o poder de atacar todos eles.

– Mas você não matou Shaylin – considerou Vovó, sendo lógica. – Eu vi a menina na Morada da Noite um pouco antes de vir para cá. Ela me pareceu bem viva.

– Não, eu não a matei. Não dessa vez. Quem sabe o que poderia ter acontecido se eu não tivesse ido embora e seguido para o parque, e descontado a minha fúria naqueles dois homens? Vovó, eu estava descontrolada. Eu era um monstro.

– Zoey, você fez uma coisa monstruosa. Mas isso não faz de você um monstro. Você se entregou. Desistiu da pedra da vidência. Permitiu que a prendessem. Esses não são os atos de um monstro.

– Mas, Vovó, eu matei dois homens! – Senti meus olhos marejarem de novo.

– E agora você vai ter que enfrentar as consequências dos seus atos. Mas isso não significa que você deva desistir e causar ainda mais sofrimento para as pessoas que amam você.

Mordi meus lábios.

– Meu intuito é assumir minhas responsabilidades para não machucar mais ninguém, principalmente as pessoas que eu amo.

– Zoey Passarinha, não sei por que essa coisa terrível aconteceu. Eu não acredito que você seja uma assassina. – Ela ergueu a mão para que não a interrompesse quando tentei falar. – Sim, eu tenho consciência de que os dois homens estão mortos, e que você parece ser responsável pela morte deles. Ainda assim, você mesma admite que a pedra da vidência teve um papel decisivo no acidente, o que significa que a magia antiga está em ação.

– É verdade, eu estava usando a pedra – admiti.

– Ou ela estava usando você – contradisse ela.

– De qualquer forma, os resultados são os mesmos.

– Para os dois homens. Mas não necessariamente para você, u-we-tsi-a-ge-ya. Agora, fique de pé na minha frente. Você precisa que a sua mente seja clareada e seu espírito purificado para que possa analisar exatamente o que a trouxe para esta cela. Veja, não estou aqui para ajudá-la a se esconder do que fez. Estou aqui para que possa verdadeiramente encarar o que aconteceu.

Como sempre, Vovó era a voz da razão e do amor incondicional. Fiquei de pé e me permiti o breve conforto de vê-la pegar a concha com uma das mãos enquanto, com a outra, colocava um pequeno pedaço arredondado de carvão em cima da mistura de ervas e acendia. Conforme faiscava, ela disse:

– Respire fundo três vezes, u-we-tsi-a-ge-ya . E, a cada vez que o fizer, solte a energia tóxica que anuvia a sua mente e escurece o seu espírito. Visualize, Zoey Passarinha. Qual é a cor?

– Um verde asqueroso – respondi, pensando na coisa nojenta que saiu do meu nariz da última vez em que tive sinusite.

– Excelente. Expire e visualize que está se livrando disso junto com a sua respiração.

O carvão parara de faiscar e estava ficando cinza nas beiradas. Vovó pegou a bolsinha de veludo preta e começou a salpicar as ervas sobre o carvão dizendo:

– Eu lhe agradeço, espírito da sálvia branca, por sua força, sua pureza, seu poder. – Uma fumaça branca começou a subir da concha de ostra. – Eu agradeço a você, espírito do cedro, por sua divina natureza, por sua capacidade de criar uma ponte entre este Mundo e o Mundo do Além.

Mais fumaça subia, e eu inspirava e expirava.

– E, como sempre, agradeço ao espírito da lavanda, por sua natureza apaziguadora, por sua capacidade de nos permitir liberar a nossa raiva e alcançar a paz. – Então, Vovó começou a andar em volta de mim em sentido horário, batendo os seus pés em um ritmo pulsante, ancestral, que parecia eletrificar a fumaça aromatizada e impulsioná-la para dentro do meu corpo, conforme ela abanava em volta de mim com a pena de águia. Sem perder um passo de sua dança, a voz de Vovó se pareou aos seus movimentos, ecoando através do sangue dela para o meu. – Saia o que é tóxico, que é verde como bile. Entre a fumaça doce, prateada e pura.

Concentrei-me enquanto ela se movia à minha volta, entrando no ritual com a mesma facilidade que fizera por toda a minha infância.

– Inale a cura. Inale a purificação. Inale a calma. A bile verde embora irá. Substituída pela prata e pela claridade – cantava Vovó.

Levantei as mãos, guiando a fumaça em volta da minha cabeça, concentrando-me na purificação prateada.

– O-s-da – continuou Vovó, repetindo logo depois em nossa língua: – Bom, você está recuperando o seu centro.

Entrei em um estado sonolento, de transe, levada pela fumaça e pelo canto da Vovó. Pisquei, como se estivesse emergindo de um mergulho profundo, e meus olhos se arregalaram de surpresa. Claramente visível através da fumaça havia uma luz prateada brilhante que, como uma bolha, nos envolvia, a mim e a Vovó.

– Isso é o que você está projetando agora, Zoey Passarinha. Isso tomou o lugar das Trevas que estavam dentro de você.

Respirei fundo de novo, sentindo uma leveza surpreendente em meu peito. O aperto terrível que estivera ali desde que comecei a tossir sumiu. A sensação de desespero que estava dentro de mim também desapareceu...

Por quanto tempo? , perguntei-me. Agora que tinha ido embora, eu percebia o quanto aquilo era opressor.

Vovó tinha parado na minha frente. Colocou a concha de ostra entre nossos pés e segurou as minhas mãos.

– Eu não sei de tudo. Não tenho as respostas que você procura. Não posso fazer nada além de purificar e curar a sua mente e o seu espírito. Não posso tirá-la deste lugar nem mudar o passado que a trouxe para cá. Só posso amá-la e lembrá-la desta regrinha segundo a qual tentei viver a minha vida: não posso controlar os outros. Só posso controlar a mim mesma e as minhas reações aos outros. E, quando tudo o mais dá errado, eu escolho a bondade. Mostro compaixão. Então, se fiz escolhas ruins, pelo menos não causei danos ao meu espírito.

– Eu fracassei nisso, Vovó.

– Fracassei... isso é passado, e você deve deixar esse fracasso no passado, que é onde ele deve ficar. Aprenda com os seus erros e siga em frente. Não fracasse de novo, u-we-tsi-a-ge-ya. Isso significa que se você precisar enfrentar o julgamento e for para a prisão por causa dessa coisa terrível que aconteceu, então você fará isso falando a verdade e agindo com compaixão, assim como faria uma Grande Sacerdotisa da sua Deusa.

– Eu deveria afastar as pessoas que me amam. – Não disse isso como uma pergunta, mas Vovó me respondeu mesmo assim.

– Afastar as pessoas que a amam e se interessam verdadeiramente por você seria a ação infantil, e não de uma Grande Sacerdotisa.

– Vó, você acha que Nyx ainda quer que eu seja uma Grande Sacerdotisa?

Vovó sorriu.

– Acho, mas a minha opinião não é importante. O que você acha da sua Deusa, Zoey? Você acha que ela é tão volúvel que a amaria e depois a descartaria tão facilmente?

– Não estou questionando Nyx, e sim a mim mesma – admiti.

– Então, deve olhar para si mesma. Manter-se firme no seu centro. – Ela pegou a pedra turquesa que retirara da cesta de piquenique mais cedo e colocou-a em minha mão. – Você usou a pedra da vidência para concentrar seus poderes, querendo ou não. Agora, acredito que tenha que encontrar um foco dentro de você. Assim como a turquesa tem seu próprio poder protetor, você deve encontrar o seu próprio, dentro de si. Desta vez, não procure raiva, Zoey Passarinha. Procure compaixão e amor.

– Sempre amor – terminei por ela, pegando a pedra na minha mão e sentindo a sua maciez.

– Segure-se ao seu verdadeiro eu como está segurando esta pedra, e lembre-se de que sempre vou acreditar que você é mais forte, mais sábia e mais bondosa do que pensa ser.

Coloquei os braços em volta dela e abracei-a com força.

– Eu amo você, Vovó. Sempre amarei.

– Assim como eu sempre amarei você.

– Acabou o tempo! – A voz do guarda fez com que eu, relutantemente, soltasse Vovó. – Ei, o que está acontecendo aqui? O que vocês estavam queimando?

Vovó virou-se para ele, sorriu, e com sua voz mais doce, disse:

– Nada com o que você precise se preocupar, querido. Apenas um pouco de limpeza e purificação. Você gosta de biscoitos com gotas de chocolate? Tenho um ingrediente secreto que faz com que os meus fiquem irresistíveis, e, por acaso, tenho uma dúzia aqui na minha cesta. – Dando um tapinha no braço dele, ela acompanhou-o pela porta, levantando um prato de papel cheio de biscoitos de sua cesta mágica e piscando para mim por sobre o ombro. – Agora, querido, por que não arranja um café para acompanhar esses biscoitos enquanto chama o jovem e generoso vampiro chamado Stark para entrar e visitar a minha neta?

Stark!

Sentei-me na cama, endireitando minhas roupas nervosamente e tentando pentear o meu cabelo superdoido com os dedos. E, então, ele estava na porta, e me esqueci da aparência. Eu me esqueci de tudo, exceto de como estava feliz em vê-lo.

– Posso entrar? – perguntou ele, hesitante.

Assenti.

Não esperei que ele desse aqueles seis passos até mim. Não podia esperar nem mais um segundo. Assim que ele se aproximou, atirei-me em seus braços e enterrei meu rosto em seu ombro.

– Eu sinto muito! Não me odeie... por favor, não me odeie!

– Como eu poderia odiar você? – Ele me abraçou com tanta força que era difícil respirar, mas não liguei. – Você é a minha rainha, a minha Grande Sacerdotisa e meu amor... meu único amor. – Ele se afastou de mim apenas o suficiente para me olhar diretamente nos olhos. – Você não pode se suicidar. Eu não conseguiria sobreviver a isso, Zoey. Juro que não.

Havia círculos escuros embaixo de seus olhos, e suas tatuagens vermelhas de vampiro pareciam especialmente brilhantes contra a pele anormalmente pálida. Parecia que ele tinha envelhecido uma década em um dia.

Odiei vê-lo com aparência cansada e doentia. Odiei ser a causa disso.

Encontrei seu olhar e falei com toda gentileza e compaixão dentro de mim:

– Isso foi um erro. Não o cometerei de novo. Desculpe-me ter feito você passar por tudo isso. – Apontei para a cela.

Ele tocou meu rosto com gentileza, quase reverência.

– Para onde você for, eu vou. Nós fizemos um juramento para esta vida e além, Zoey Redbird. E tudo isso é suportável se tivermos um ao outro. Nós ainda temos um ao outro?

– Temos sim.

Eu o beijei, longa e apaixonadamente. Achei que eu o estivesse confortando, mas percebi que seu toque, seu beijo e seu amor é que estavam me confortando.

Foi naquele momento que realmente compreendi o quanto amo Stark.

– Está vendo? – perguntou ele, cobrindo meu rosto de beijos e enxugando as lágrimas que escorriam. – Está tudo melhor agora. Tudo vai ficar bem.

Eu não quis falar para ele que não tinha tanta certeza de que algum dia as coisas voltariam a ficar bem. Isso não seria compaixão. Em vez disso, levei-o até a minha cama estreita e dura. Nós nos sentamos e eu me aconcheguei nele, repousando em seu braço.

– Nós vamos nos revezar para ficar aqui de modo que você não volte a rejeitar a Transformação. De hoje em diante, sempre haverá um vampiro do lado de fora desta porta – Stark começou a explicar baixinho enquanto me abraçava bem apertado. – Vão colocar uma cama portátil no corredor.

– Mesmo? Você vai ficar assim tão perto de mim?

– Vou, o Detetive Marx fez com que permitissem que eu ficasse. Ele é um cara muito legal. Ele disse ao chefe de polícia que não permitir que um vampiro fique com você seria a mesma coisa que dar uma lâmina de barbear a um prisioneiro humano e depois fazer vista grossa para o que ele fizesse depois. Ele disse que isso era desumano e que, ao se entregar, você tinha os mesmos direitos que qualquer outro humano.

– Isso foi legal da parte dele. – De repente, percebi que horas deviam ser, meio-dia pelo menos. – Espere, você não devia estar aqui. Está claro lá fora. – Sentei-me e comecei a procurar queimaduras em seu corpo.

Ele sorriu.

– Estou bem. Stevie Rae também. Viemos para cá na parte de trás da van da escola, aquela sem janelas.

Assenti e sorri.

– A van de Chester the Molester. [*]

– Isso, é assim que eu me locomovo agora. – O sorriso dele ficou presunçoso. – Marx deixou que estacionássemos na garagem coberta ao lado da delegacia. Nenhum raio de sol tocou em nós.

– Tome cuidado, ok?

Ele ergueu as sobrancelhas.

– É sério isso? Você está me mandando tomar cuidado?

– Estou pedindo, na verdade – corrigi, lembrando-me de ser generosa.

Ele riu e me abraçou.

– Zoey Redbird, você está toda desarrumada, mas continua linda, e eu amo você.

– Eu também amo você.

Logo ele me soltou e seu rosto assumiu uma expressão mais séria.

– Tudo bem, quero que você me conte tudo. Já sei que você ficou furiosa com dois humanos e lançou algum tipo de poder neles, mas eu preciso de detalhes.

– Stark, será que não podemos simplesmente... – comecei, não querendo desperdiçar um segundo do meu tempo com ele para falar do terrível erro que cometi.

Ele me cortou.

– Não podemos simplesmente ignorar. Zoey, você pode ser um monte de coisas, mas assassina não é uma delas.

– Joguei dois caras contra o muro, e eles estão mortos. Isso me torna uma assassina, Stark.

– Veja bem, acho que eu tenho um problema com isso. Acho que isso torna a sua pedra da vidência uma assassina. Foi por isso que você a entregou para Aphrodite, não foi? Porque foi o que canalizou a sua fúria para aqueles dois caras.

Estava prestes a abrir a boca para tentar explicar para ele o que eu mesma não compreendia, mas o som de passos no corredor me interrompeu. O guarda, com rosto vermelho e olhos arregalados, apareceu na porta.

– Vamos, vamos! Saia. Agora! – ordenou ele para Stark, apontando freneticamente para ele. – Um dos seus vampiros pode ficar, mas tem que ser aqui no corredor. O resto de vocês tem que dar o fora daqui... voltar para o lugar de vocês.

– Espere, não faz nem cinco minutos, muito menos quinze – argumentou Stark.

– Não posso fazer nada a respeito. Tem alguma coisa acontecendo no presídio. Uma emergência no centro da cidade.

Segui Stark até a porta, sentindo como se um cubo de gelo estivesse descendo pela minha espinha.

– Onde no centro da cidade? O que está acontecendo? – perguntei.

– Está um inferno no Mayo Hotel, e eles precisam de todos os policiais da cidade lá.

A porta da cela se fechou, permitindo que eu e Stark nos víssemos por entre as grades.

– Neferet – disse Stark.

– Ah, droga – respondi, concordando.

[*] “Chester the Molester” era uma tirinha de autoria de Dwaine B. Tinsley e publicada pela revista Hustler por 13 anos. A história gira em torno de um homem, Chester, interessado em molestar sexualmente mulheres e adolescentes. (N.T.)


3

Neferet

Era o meio da manhã de um domingo preguiçoso quando Neferet ordenou aos seus filamentos de Trevas que se abrissem para que pudesse ser levada da espessa nuvem de sangue e morte para a calçada em frente ao Mayo. Ela endireitou seu terninho Armani e jogou o cabelo castanho para trás. Neferet estava pronta para seu retorno triunfal à cobertura que a esperava com seus mármores, pedras e veludos no topo do prédio. Abriu a porta vintage de latão e vidro e parou assim que a atravessou, suspirando feliz para o vasto salão de baile que se abria à sua frente, resplandecente com seu mármore branco, colunas estatuárias, ornamentos grandiosos da década de 1920, e uma escadaria dupla que se curvava até a pista de dança com a graça do sorriso satisfeito de uma deusa.

Suas sobrancelhas castanhas se arquearam. Seu olhar cor de esmeralda se tornou mais penetrante. Neferet observou à sua volta com interesse renovado.

– Este realmente é um prédio requintado o suficiente para ser o templo de uma deusa. – Neferet sorriu. – Meu templo. Minha casa.

– Srta. Neferet! É realmente a senhora? Estávamos tão preocupados que alguma coisa tivesse acontecido quando destruíram a sua cobertura.

Neferet desviou o olhar do grande salão para a jovem que sorria para ela por trás do balcão da recepção.

– Meu templo. Minha casa. Meus súditos . – Ela sabia o que deveria fazer. Por que demorara tanto para pensar nisso? Possivelmente porque nunca absorvera tantas mortes ao mesmo tempo como acontecera poucos momentos antes de chegar ao Mayo. Assim como suas fiéis gavinhas, Neferet estava pulsando com poder, e esse poder tornava seu pensamento focado e claro.

– Isso, é exatamente assim que deve ser. Todos os humanos neste prédio devem me adorar.

– Desculpe-me, madame. Não entendi o que quis dizer.

– Ah, você vai entender. Em breve, entenderá. – O sorriso radiante da recepcionista começara a se apagar. Com um movimento sobrenatural, Neferet deslizou até ela. Viu o nome da garota no crachá dourado. – Sim, minha querida Kylee. Logo você me entenderá completamente. Mas, primeiro, você vai me dizer quantos hóspedes há neste momento no hotel.

– Sinto muito, madame – desculpou-se Kylee, parecendo totalmente constrangida. – Não posso fornecer essa informação. Talvez se a senhorita me disser do que precisa...

Neferet se inclinou, passando a mão pelo lindo balcão de mármore, interrompendo-a e capturando o olhar da garota.

– Você não me questionará. Você jamais me questionará. Fará exatamente o que eu mandar.

– Eu... Eu sinto muito, madame. Não quis ofendê-la, mas as informações sobre os hóspedes do hotel são confidenciais. Nós... Nós temos muito cuidado com a nossa p-política de privacidade – gaguejou ela, as mãos trêmulas de nervoso enquanto agarrava a corrente de ouro com um crucifixo junto ao pescoço.

Mesmo se Neferet não fosse vidente, perceberia a extensão do medo da garota – o que não impressionava a Deusa nem um pouco.

– Excelente! Agora que você vai seguir as minhas ordens, espero que seja ainda mais cuidadosa com privacidade, a minha privacidade.

– Desculpe, madame, a senhora está dizendo que comprou o Mayo Hotel? – A confusão de Kylee se intensificava junto com seu medo.

– Ah, muito melhor do que isso, e muito mais permanente. Decidi transformar este prédio encantador no meu primeiro Templo. Mas eu já não ordenei que você nunca me questionasse? – Neferet suspirou e emitiu um som de desaprovação. – Kylee, você vai ter que se esforçar mais no futuro. Mas não precisa preocupar essa sua cabecinha loura. Sou uma deusa bondosa. Pretendo lhe oferecer a ajuda de que precisar para que seja minha súdita perfeita.

Enquanto Kylee arfava como um peixe fora d’água, Neferet virou-se de costas para ela e encarou o mar de gavinhas que, embora não fossem vistas pela idiota da Kylee, espalhavam-se pelo piso de mármore e subiam carinhosamente por suas pernas.

– Filhos, vocês se alimentaram muito bem. Agora, está na hora de me pagarem pela minha generosidade. – Eles se retorceram, excitados, um ninho de víboras, e Neferet sorriu carinhosamente para elas. – Sim, eu lhes dei a minha palavra. Que foi só o começo do nosso banquete. Mas vocês precisam trabalhar em troca de comida. Eu me recuso a ter filhos vagabundos. – Ela deu uma gargalhada afetada. – Agora, um de vocês deve possuir esta humana. Não! Não a matem. – Neferet esclareceu, quando uma dúzia de gavinhas começou a se arrastar exaltadamente na direção de Kylee. – Sigam a minha mente até a dela. Usem minha trilha até seus pensamentos e desejos mais profundos, e fiquem lá, envolvam sua vontade e apertem. Mas não o suficiente para matá-la ou roubar o que se passa por sua razão. Não quero um Templo cheio de idiotas. Quero um Templo cheio de súditos obedientes. Possuam-na para que eu tenha certeza de sua obediência!

Neferet se virou para encarar a garota, cujo rosto perdera a cor de forma tão drástica que seus olhos castanhos pareciam hematomas.

– Srta. Neferet, por favor, não me machuque! – implorou ela, começando a chorar.

– Kylee, minha querida, minha primeira súdita humana, isso é realmente para o seu bem. O livre-arbítrio é um fardo terrível. Eu tinha livre-arbítrio quando era uma garota, pouco mais nova do que você; ainda assim, estava presa a uma vida de abuso que eu não tinha escolhido. É muito comum isso acontecer com humanos. Olhe para si própria: o emprego subalterno, a roupa precária. Você não quer mais da vida?

– Q-quero – respondeu Kylee.

– Bem, então temos um trato. Se eu tirar o seu livre-arbítrio, também vou afastar de você os terrores inesperados que a vida pode trazer. – Neferet fitou dentro dos olhos arregalados da garota e perfurou sua mente. Estava concentrada demais em Kylee para baixar o olhar, mas sabia que uma fiel e forte gavinha a obedecera e estava subindo pelo corpo da garota. Embora não conseguisse ver o que estava rastejando por suas pernas, Kylee certamente podia sentir. Abriu a boca e começou a gritar. – Acabem com o terror dela e entrem nela! – ordenou Neferet, e a gavinha entrou pela boca aberta.

Kylee começou a engasgar convulsivamente, e apenas o domínio de Neferet em sua mente evitou que desmaiasse.

– Tão humana. Tão fraca – murmurou a Deusa enquanto sondava a mente da garota, sentindo a familiar presença das Trevas seguindo. Quando encontrou o centro da vontade de Kylee, sua alma, sua consciência, Neferet ordenou: – Envolvam-na! – Com seu sentido extra, presente que recebera de outra Deusa mais de um século antes, Neferet testemunhou as Trevas aprisionarem a vontade de Kylee.

A garota caiu, seu corpo se contorcendo em espasmos.

– Lembrem-se bem da trilha que acabei de mostrar para vocês, filhos. Kylee é apenas a primeira de muitas. – Neferet bateu uma palma. – Levante-se, Kylee. Arrume-se, minha querida. A sua vida acaba de se tornar muito mais , e eu tenho outras ordens que você deve cumprir.

Kylee ficou de pé, como se fosse uma marionete manipulada por cordas.

– Isso, assim está muito melhor. Agora, me diga quantos hóspedes há no hotel, e lembre-se, nada mais daqueles gritos irritantes.

– Sim, madame – respondeu Kylee de forma instantânea e mecânica.

O sorriso de Neferet voltou. Ela estava transbordando poder! Os humanos deviam adorá-la – com a débil força de vontade deles e mentes facilmente manipuláveis, não tinham a menor chance.

– E pare de me chamar de madame. Quero que me chame de Deusa.

– Sim, Deusa – repetiu Kylee automaticamente, sua voz totalmente desprovida de emoção. Então, começou a digitar no teclado enquanto fitava, sem expressão, a tela do computador. – No momento, temos 72 hóspedes, Deusa.

– Muito bem, Kylee. E quantos moradores há?

– Cinquenta.

Com um dedo longo, Neferet levantou o queixo de Kylee para que ela a fitasse de novo.

– Cinquenta o quê?

Kylee estremeceu, tal qual um cavalo espantando insetos, mas seu olhar permaneceu aberto, inexpressivo, e ela se corrigiu imediatamente, dizendo:

– Cinquenta, Deusa.

– Muito bem, Kylee. Vou me recolher à minha cobertura. Lembre-se, este prédio agora é o meu Templo, e eu insisto em proteger a minha privacidade, assim como meu divino corpo. Entendeu?

– Sim, Deusa.

– Você compreende que isso significa que, se alguém vier me procurar, você dirá que tem certeza absoluta de que eu não estou aqui, e o mandará embora?

– Compreendo, Deusa.

– Kylee, você foi muito útil. Vou permitir que tenha uma vida longa o suficiente para me adorar adequadamente.

– Obrigada, Deusa.

– De nada, querida.

Neferet começou a deslizar na direção do elevador. Levantou a mão, chamando.

– Venham, meus filhos. Tenho a sensação de que vamos precisar redecorar.

Inchadas e pulsando com o sangue com o qual tinham acabado de se alimentar, as gavinhas das Trevas seguiram ansiosamente sua ama.

– Exatamente como pensei. Deixaram em ruínas! Isso é inaceitável. – Neferet andou em volta das cadeiras reviradas dos tapetes manchados da sala de estar que costumava ser uma cobertura meticulosa e luxuosamente decorada. – Sangue velho! Esta sala está fedendo a sangue. Limpem! – mandou ela. As gavinhas obedeceram, embora mais lentamente do que quando a refeição que ela oferecia era fresca. – Não sejam tão exigentes. Parte desse sangue é de Kalona. Mesmo velho, sangue imortal tem poder. – Isso pareceu animar as gavinhas e elas passaram a rastejar com mais entusiasmo.

Enquanto trabalhavam, Neferet dirigiu-se até a adega, apenas para encontrá-la vazia. Não restava uma garrafa sequer do escuro e caro cabernet que ela tanto adorava.

–Isso é o que acontece quando não estou aqui para ficar de olho naqueles humanos preguiçosos. Eles negligenciam suas tarefas. Estou sem vinho, e minha cobertura mais parece um matadouro!

O olhar irritado de Neferet foi de encontro à grande quantidade espalhada de poeira turquesa, vinda da jaula das Trevas, na qual suas gavinhas prenderam a entediantemente teimosa Sylvia Redbird.

– E aquilo! Sumam com aquele pó azul horrível. Macula toda a beleza do piso de ônix, ainda mais do que aqueles tapetes persas manchados.

Várias gavinhas tentaram obedecer à sua ordem, mas se esquivaram assustadas das partículas azuis, como se estas ainda tivessem o poder de afastá-las. A mais ousada delas seguiu pela pedra empoeirada, então estremeceu e se contraiu, sua carne escorregadia e emborrachada soltando fumaça e um líquido escuro e fétido. Neferet franziu a testa, acenando para a gavinha. Com uma unha afiada, ela perfurou a pele da palma de sua mão.

– Venha, alimente-se de mim e cure-se – murmurou ela, apreciando o toque gelado e doloroso da boca da gavinha, acariciando-a enquanto ela se alimentava, estremecendo sob seu toque.

– Isso nunca vai dar certo. Arrumar a bagunça deixada por humanos é muita humilhação para meus leais filhos. Súditos humanos devem limpar bagunças humanas, é disso que preciso, cumprindo as minhas ordens, facilitando o meu trabalho. E, felizmente, temos mais de cem deles sob este mesmo teto. Todos eles, exceto a tão útil Kylee, ainda não sabem o quanto ficarão assoberbados em breve. Hum... qual seria a melhor maneira de iniciar meus novos súditos?

Neferet sacudiu o braço para afastar a gavinha faminta.

– Não seja tão gulosa. Já está curada.

A gavinha se afastou. Neferet passou a mão pelo seu longo e esbelto pescoço, pensando. Precisava avaliar o melhor passo a dar, e precisava agir rápido.

Não deixara ninguém vivo na Church Boston Avenue, apenas centenas de corpos mutilados e sem sangue.

– As autoridades irão primeiro para a Morada da Noite, é claro. Thanatos insistirá que ninguém do seu rebanho impecável faria uma coisa daquelas. A velha vai jogar a culpa em mim. Acreditando nela ou não, mesmo a incompetente polícia local acabará vindo me procurar aqui. – Neferet tamborilou suas unhas longas e pontiagudas no balcão de mármore preto de sua adega vazia. Não tinha muito tempo ao seu dispor, a não ser que optasse por se esconder.

– Não, nunca mais vou me esconder. Sou uma Deusa, uma imortal, com o dom de comandar as Trevas. Nyx nunca me compreendeu. Kalona nunca me compreendeu. Ninguém jamais me compreendeu. Mas agora eu vou obrigá-los a me entender. Vou fazê-los entenderem! Os moradores de Tulsa é que devem se esconder de mim, e não o contrário.

Ela tinha de ser rápida e decisiva, antes que a polícia chegasse e tentasse, sem sucesso, prendê-la – ou antes que o seu banquete na igreja chegasse aos noticiários e começasse a assustar os hóspedes do Mayo Hotel: os seus futuros súditos.

Neferet encontrou um controle remoto e ligou a enorme televisão de tela plana que, por sorte, tinha saído intacta da batalha. Sintonizou no canal local, colocou no mudo e começou a andar de um lado para o outro, pensando em voz alta e mantendo os olhos grudados na tela.

– É uma pena que eu não possa enjaular os seres humanos como eu fiz com aquela velha e soltá-los quando eu precisasse de sua adoração ou de seus serviços. Isso seria tão mais fácil para eles e, o mais importante no final das contas, para mim. Eu apostaria muito no fato de que nenhum deles resistiria tanto quanto Sylvia Redbird. Os humanos comuns nunca poderiam entrar ou sair da jaula das Trevas criadas por vocês, meus queridos. E, pelo que vi até agora, os meus humanos são excessivamente normais. – Neferet parou abruptamente. – Os meus súditos são humanos normais. E eu me tornei tão mais do que uma humana comum ou uma vampira.

Distraída, Neferet acariciou uma gavinha que se enrolara em seu braço.

– É uma pena que eu não possa enjaular os humanos aqui. Eu os estaria protegendo, permitindo que eles troquem o tédio de suas vidas pela satisfação de me adorar, assim como fiz com Kylee. – Ela acariciava a gavinha, enquanto esta estremecia de prazer. – Eu não preciso enjaulá-los. Eu preciso tratá-los com carinho!

Abrindo os braços, ela sorriu para os seus servos das Trevas, que eram perfeitamente lindos e aterrorizantes.

– Tenho uma resposta para o nosso dilema, meus filhos! A jaula que criamos para aprisionar Redbird era fraca, uma tentativa patética de aprisionamento. Aprendi tantas coisas desde aquela noite! Consegui tanto poder... Nós conseguimos tanto poder. Não vamos enjaular as pessoas, como se eu fosse uma carcereira em vez de uma deusa. Meus filhos, vamos cobrir todas as paredes do meu Templo com as suas tramas mágicas e invioláveis para que os meus novos súditos possam me adorar sem qualquer empecilho. E isso será apenas o começo. À medida que eu absorver cada vez mais poder, por que não encapsular toda a cidade? Eu sei disso agora... Conheço o meu destino. Começo o meu reinado como Deusa das Trevas ao tornar Tulsa o meu Olimpo! Só que isso não será apenas um mito fraco contado como histórias banais de crianças para crianças. Isso será realidade: o Mundo das Trevas do Além veio para a Terra! E, nesse mundo, não haverá inocentes sendo abusados por predadores. Todos estarão sob a minha proteção. Eu tenho o destino deles nas minhas mãos, e eles só precisam se preocupar com o meu bem-estar. Ah, como eles vão me adorar!

Em volta dela, as gavinhas se contorceram em resposta à animação dela. Ela sorriu e acariciou as que estavam mais próximas.

– Sim, sim, eu sei. Será glorioso, mas o que preciso primeiro, meus filhos, é do serviço de quarto. Vamos convocar os meus novos servos. Alguns deles vão limpar e arrumar os meus aposentos da maneira correta. Outros vão reabastecer a adega. Todos vão me obedecer sem me questionar. Preparem-se. Chegou a hora de Neferet, a Deusa das Trevas!

Foi mais fácil do que ela mesma imaginara. Os humanos não eram apenas ridiculamente fáceis de serem controlados, mas também tão indefesos contra a infestação de uma única gavinha das Trevas quanto a pequena Kylee. Ela estava absolutamente certa. Eles precisavam dela para comandar a vida deles, assim como um bebê precisa da mãe.

O único problema no seu plano era que Neferet não tinha acesso a um número infinito de gavinhas. Apenas as mais leais, as suas verdadeiras filhas, continuaram ao seu lado depois que fora despedaçada.

Por um breve instante, considerou chamar mais filamentos de Trevas, mas logo rejeitou tal pensamento. Ela não recompensaria a traição – e os filamentos que a abandonaram no momento da necessidade a traíram no nível mais profundo.

Neferet tomou um gole do seu cabernet favorito em uma taça de cristal e andou pela cobertura, contando os humanos que se dedicavam à limpeza e à arrumação da bagunça que Zoey e seus amigos tinham deixado para trás. Seis. Havia quatro mulheres da equipe de limpeza e dois homens do serviço de quarto. Neferet sorriu. Na verdade, eles não passavam de garotos – ambos louros e ansiosos por atender aos seus pedidos de serviço de quarto. Saindo do seu elevador, suas expressões denunciaram os seus pensamentos de forma tão clara que ela nem precisou esquadrinhar suas mentes. Eles a desejavam. Muito. Obviamente esperavam que ela quisesse um pouco de sangue e sexo com vinho. Tolos! Agora eles se moviam mecanicamente, atendendo aos comandos que ela dava sem reclamar, sem preocupações e sem olhares galanteadores irritantes. Estavam exatamente como ela preferia os seus homens humanos: silenciosos, obedientes e jovens.

– Cavalheiros, a vida é gloriosa, não acham?

As duas cabeças louras se voltaram para ela.

– Sim, Deusa – responderam em uníssono, como sempre.

Neferet sorriu.

– Como costumo dizer, o livre-arbítrio é um peso terrível. Não precisam agradecer por eu ter aliviado vocês de tal peso. – Então, ela ordenou: – Voltem ao trabalho.

– Obrigado, Deusa. Sim, Deusa – repetiram eles, obedecendo-a.

Então, ela já tinha usado seis filamentos. Não, sete, contando a pequena Kylee, da recepção. Neferet lançou um olhar contemplativo para o ninho de gavinhas onde elas se reuniram para absorver o que restara do sangue seco de Kalona. Quantas havia? Tentou contar, mas era impossível. Elas se moviam muito e com rapidez, além de se fundirem umas às outras e depois se separarem quando desejassem. Parecia haver muitas delas, porém. E todas tinham crescido, engordado e estavam mais fortes depois de terem se fartado.

Eu preciso me certificar de que continuem bem alimentadas. Elas não podem definhar – pois isso significaria que o meu absoluto poder sobre os humanos também enfraqueceria.

Resoluta, Neferet discou zero para falar com a recepcionista.

– Recepção, como posso ajudá-la, Neferet? – respondeu a voz insolente de Kylee ao primeiro toque.

– Kylee, quando eu ligar, o modo correto de atender ao telefone é dizendo “Como posso servi-la, minha Deusa?”.

A voz de Kylee ficou sem expressão ou emoção e ela repetiu:

– Como posso servi-la, minha Deusa?

– Muito bem, Kylee. Você com certeza aprende rápido. Eu preciso saber quantos funcionários estão trabalhando aqui no meu Templo hoje.

– Seis faxineiras, dois carregadores, quatro membros do serviço de quarto e eu. Rachel deveria estar aqui na recepção comigo, mas está de licença médica.

– Pobre Rachel. Mas isso me deixa com treze funcionários ao meu dispor. É claro que isso não inclui o restaurante. Ele está aberto hoje?

– Está. Nós abrimos para o brunch até as duas horas da tarde aos domingos.

Kylee fez uma pausa para contar:

– O chef, um ajudante de cozinha, o bartender , que também é o gerente, e três garçonetes.

– Totalizando vinte. Eis o que quero de você, Kylee. Feche o restaurante imediatamente, mas não permita que os funcionários vão embora. Diga a eles que houve uma mudança na gerência do hotel e que o novo dono pediu uma reunião de funcionários.

– Farei como me pede, Deusa, mas os Snyder não são donos do restaurante.

– Quem são os Snyder?

– A família que comprou e reformou o Mayo em 2001. Eles são os donos do prédio.

– Corrigindo, Kylee, querida, eles eram os donos do prédio que era conhecido como Mayo Hotel. Eu controlo o Templo em que ele se tornou. Não importa. Isso logo ficará claro. Tudo de que preciso é que você reúna todos os funcionários do restaurante e do hotel e peça-lhes que venham até a cobertura daqui a trinta minutos. Depois, eu vou mudar o título da reunião de funcionários para o que ela realmente é: uma oportunidade de adorar a sua Deusa. Isso não soa muito mais agradável do que reunião de funcionários?

– Sim, Deusa – respondeu Kylee.

– Excelente. Vejo você e o resto dos meus súditos daqui a meia hora.

– Deusa, eu não posso deixar a recepção sozinha. O que acontecerá se alguém quiser se hospedar ou deixar o hotel?

– A resposta é simples, Kylee. Tranque as portas para que ninguém possa entrar ou sair do meu Templo. Tranque tudo e venha até mim com as chaves.

– Sim, Deusa.

Neferet teria de encontrar outro lugar para receber os súditos. A sua cobertura era íntima demais para tantos humanos. No entanto, teria de se virar por um tempo. Ela se posicionou diante das portas de vidro colorido que haviam sido quebradas e agora foram substituídas pelos garotos louros. Ela desligara as luzes elétricas berrantes e ordenara que as faxineiras trouxessem velas para os seus aposentos. Castiçais, suportes e velas de promessa cobriam a prateleira de granito, a cornija da lareira, a mesa de centro de mármore no estilo art déco e a grande mesa de jantar de madeira. Ela também ordenara que as lanternas que ficavam ao lado das portas tivessem as lâmpadas fortes retiradas e fossem substituídas por luzes bruxuleantes e quentes de velas brancas. Ela fez uma observação mental para pedir que um dos seus servos fosse comprar mais velas – muitas e muitas velas.

O olhar de Neferet passeou pela cobertura, e ela ficou satisfeita. Tudo parecia tão melhor, e estava apreciando a sua segunda garrafa de cabernet, pensando em quanto apreciaria mais tarde, quando um – ou uma – entre seus súditos se oferecesse para misturar o próprio sangue no vinho.

Neferet tinha se vestido com esmero, satisfeita ao ver que suas roupas ficaram intactas enquanto estivera ausente. Escolheu um vestido de seda dourada que se ajustava ao corpo como se acariciasse a sua pele. Como sempre, Neferet deixou o cabelo ruivo solto, em ondas brilhantes que desciam pelas costas até a cintura. Não usou nenhum adorno com um símbolo de qualquer outra deusa. Jamais voltaria a usar imagens adornadas em prata – ela arrancara o último daqueles filamentos de si.

Tinha um novo símbolo, no qual vinha pensando cuidadosamente, e mal podia esperar até que um dos seus súditos fosse encomendar a peça na joalheria de Moody e a “surpreendesse” com um rubi de seis quilates no formato de uma lágrima perfeita. Ela seria efusiva nos agradecimentos e sempre o usaria preso a uma grossa gargantilha de ouro.

Seria realmente bom ser a Deusa das Trevas – A Deusa de Tulsa –, a Deusa do Caos.

Ouviu o barulho do elevador.

– Meus filhos, venham até mim! – Os filamentos de Trevas se apressaram em sua direção, cercando-a, pousando sobre os seus pés descalços com um frescor reconfortante. – Ah, e súditos, vocês podem voltar à minha presença – disse ela por sobre os ombros na direção do local para onde ordenara que aguardassem até que tivessem novas ordens.

Eles passaram por ela no instante em que as portas do elevador se abriram e Kylee levou o restante dos funcionários para a cobertura.

– Bem-vindos! – Neferet ergueu a taça e os braços. – Vocês são abençoados por estarem diante de mim.

A maior parte do grupo pareceu confusa. Duas mulheres, vestidas como garçonetes, murmuraram perguntas uma para a outra. Os olhos afiados de Neferet as notou. Um dos homens, o que usava um chapéu idiota de chef, perguntou:

– Você poderia nos dizer o que está acontecendo aqui? Tivemos que fechar o restaurante e obrigar os nossos clientes a ir embora, mesmo que eles ainda não tivessem terminando o seu brunch. Posso afirmar para você que, com certeza, temos alguns ex- clientes muito putos da vida.

– Qual é o seu nome? – quis saber Neferet, mantendo o tom de voz agradável.

– Tony Witherby, mas a maioria das pessoas me chama de chef.

– Bem, Tony, eu não sou a maioria das pessoas. Veja bem, a maioria das pessoas me chama de Deusa.

Ele soltou uma gargalhada debochada.

– Você só pode estar brincando, né? Tipo, eu estou vendo as suas tatuagens e sei que você é uma vampira e tudo o mais, mas vampiras não são deusas.

Neferet ficou satisfeita ao ver Kylee se afastar do chef como se não quisesse ser contaminada por sua desobediência. Kylee estava realmente se tornando uma excelente súdita.

Neferet não desperdiçou sequer um olhar para o chef. Em vez disso, sorriu para os seus filhos alvoroçados.

– Tão ansiosos – comentou ela em um tom leve de reprovação. Ela se abaixou para acariciar uma gavinha particularmente precoce que se enrolara por sua perna quase na altura de sua coxa. – Você vai ser perfeita.

– Tudo bem, você vai ter que nos dizer o que está acontecendo ou eu vou ligar para o dono do restaurante – ameaçou o chef. Quando ela continuou a ignorá-lo, ele começou a gritar: – Isso é realmente ridíc...

– Pegue-o! – comandou Neferet para a gavinha. – E permitam que a vejam.

A gavinha ficou visível enquanto voava na direção do chef. Ela era tão grande que rapidamente o envolveu pela cintura grossa, movendo-se rapidamente para cima.

– Que merda é essa?! Solte-me! – gritou o chef, jogando-se para trás e batendo na gavinha com ambas as mãos, impotente.

Neferet achou que ele parecia uma menininha com medo de aranha.

Um homem bonito e negro vestido como mensageiro se aproximou para ajudar o chef.

– Fique onde está ou o seu destino será o mesmo do dele! – avisou Neferet.

O homem parou onde estava.

– Nããããão!

Os gritos do chef beiravam à histeria, e Neferet ficou aliviada ao ver que bem nesse momento a gavinha subiu pelo pescoço dele e invadiu sua boca, fazendo com que se abrisse de uma maneira quase impossível. Isso causou a rachadura e o sangramento dos cantos dos lábios, antes que todo o grosso comprimento do filamento desaparecesse dentro do corpo do humano. O chef caiu do chão.

– É tão deprimente quando um homem adulto age como uma menininha assustada, vocês não acham?

Os humanos que ainda não tinham sido possuídos por seus filhos olharam para ela com um misto de horror e descrença. Outra mulher, uma das faxineiras que não atendera ao chamado anterior de Neferet, estava rezando em espanhol, agarrada ao crucifixo pendurado em uma gargantilha de prata de aparência barata. Todo o grupo, exceto pelo equivocado Tony, estava se afastando, como um rebanho, na direção das portas do elevador.

– Nada disso – declarou Neferet com voz suave. – Vocês não podem partir antes de receber minha permissão.

– Você também vai nos matar? – perguntou uma das mulheres, segurando a mão da amiga e tremendo de forma espasmódica.

– Matar vocês? É claro que não. Tony não está morto. – Ela dirigiu-se então ao chef caído no chão. – Tony, meu querido, levante-se e diga para os outros que você está perfeitamente bem.

De forma estranha, Tony se levantou, virou-se para Neferet. Então, sem expressão no seu rosto rosado e manchado de sangue, declarou:

– Estou perfeitamente bem.

– Você se esqueceu de dizer uma coisinha – disse Neferet.

O corpo de Tony se retorceu em espasmos como se ele tivesse levado um choque por dentro, e ele se apressou a repetir:

– Estou perfeitamente bem, Deusa.

– Viram só? É exatamente como eu disse. Qual é o seu nome, querida? – perguntou ela para a mulher trêmula.

– Elinor.

– Que nome adorável. Não se veem mais nomes como esse hoje em dia, o que é uma pena. Para onde todas as Elinors e Elisabeths, Gertrudes, Gladys e Phyllis foram? Não, não precisa me responder. Elas foram substituídas por Haileys, Kaylees, Madisons e Jordans. Eu odeio nomes modernos. Sabe, Elinor, eu preciso agradecê-la. O seu nome de bom gosto fez com que eu tomasse uma decisão sobre vocês, meus novos súditos. Vou renomear qualquer um de vocês que possua um nome muito chamativo. – Neferet lançou um olhar para Kylee. – Exceto você, Kylee. Eu gosto muito do seu crachá dourado para mudar o seu nome.

– Deusa? – sussurrou Elinor em tom de pergunta.

– Pois não, minha querida.

– Nós agora estamos trabalhando para a senhora?

– Ah, é muito melhor do que isso. Vocês vão me adorar agora. Vocês vinte serão as primeiras testemunhas do meu reinado como Deusa das Trevas. Cada um de vocês terá um papel especial e muito importante para cumprir enquanto me adoram e atendem a cada uma das minhas necessidades. Vocês vão me oferecer presentes e sacrifícios e, em troca, tirarei o exaustivo livre-arbítrio que obviamente tem lhes reprimido e deprimido a vida. Por que outro motivo vocês estariam trabalhando em tarefas tão servis e sem sentido?

– Eu não estou entendendo o que está acontecendo – choramingou Elinor.

– Logo... logo a sua confusão acabará. Não se preocupe, doce Elinor, só dói um pouquinho. – Neferet ergueu o braço. – Meus filhos... – começou ela.

– Espere! – O mensageiro que quis ajudar Tony deu um passo para a frente e lançou um olhar inflexível para Neferet. – A senhora disse que se tentássemos ajudar o chef, nosso destino seria o mesmo do dele. Eu não ajudei. Ninguém mais ajudou. Então, de acordo com a sua própria palavra, não vai mandar essas coisas rastejantes nos atacar.

– E qual é o seu nome?

– Judson. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Deusa.

– Judson é um nome antigo do sul, sabia?

– Não, eu... Eu, não. Eu não sabia. – Ele fez outra pausa. – Deusa.

– Bem, é isso então. Eu também não vou trocar o seu nome. E quanto ao que eu disse antes? Eu menti. Peguem-nos! – Ordenou.

Felizmente, os seus filhos tinham antecipado os seus desejos e moveram-se rapidamente, de modo que os gritos irritantes logo cessaram.


4

Neferet

Neferet liberou seus novos súditos, cada qual tendo iniciado sua adoração por meio da possessão de um de seus filhos, e ordenou-lhes que chamassem os hóspedes e residentes do hotel e os reunissem no grande salão do hotel.

Decidira que deveria estabelecer o lugar das oferendas no salão principal, o qual era cercado por colunas de mármore, tinha pé-direito alto e o teto ornado com lindos candelabros no estilo art déco , e escadaria dupla e ampla em curva com balaústres de ferro forjado que contavam com uma grande plataforma entre o térreo – onde os súditos ficariam – e o passeio superior, onde apenas os seus adoradores mais próximos, aqueles que cuidavam dos seus desejos, seriam permitidos. Os outros ficariam presos nos próprios quartos ou no porão, o qual Kylee fora gentil em lhes mostrar. Ou, se eles provassem ser um estorvo excessivo e ela não quisesse gastar uma gavinha para possuí-los, eles se tornariam alimento para seus filhos.

É claro que ela só se alimentaria dos súditos que despertassem o seu interesse.

Kylee recebera a tarefa de encontrar uma cadeira que servisse de trono até que pudesse encomendar um que fosse entalhado para ela.

– Você precisa encontrar um artesão talentoso para criar exatamente o que eu quero. A madeira deve ser tingida de sangue vermelho profundo de búfalo – orientou ela, enquanto escolhia a colocação com cuidado. – E eu não quero nada daqueles assentos duros e pobres ao gosto dos velhos do Conselho Supremo. Almofadas de veludo dourado. É sobre elas que vou me sentar.

Neferet permitiu que duas das faxineiras mais atraentes a envolvessem num vestido luxuoso em tom púrpura real, e tinha acabado de decidir que não usaria sapato – ficaria descalça, como condiz a uma Deusa recém-nascida. Retornou à sua sala para encher novamente a taça de vinho, irritada por não haver lá nenhum humano ansioso por ajudá-la. Ela já estava esperando, impacientemente, que convidados e residentes estivessem rodeados por seus servos obedientes para que pudesse fazer a sua entrada triunfante no salão.

– Até mesmo para uma Deusa, é tão difícil encontrar empregados de qualidade. Mas eu vou deixar esse erro passar. Eles são só vinte. Devem estar bem ocupados reunindo os humanos no meu salão de oferendas. Mas vou deixar passar somente esta vez.

Estava bebericando o líquido vermelho, apreciando o sabor do sangue do bonito mensageiro que tinha tão graciosamente oferecido um pedaço da sua carne para dar mais sabor ao seu vinho, quando a televisão chamou a sua atenção. Havia uma legenda de notícias na parte inferior da imagem onde se lia ASSASSINATOS EM TULSA, e a âncora, Chera Kimiko, estava falando com uma expressão sombria.

Encantada, Neferet apertou o botão de mudo na televisão, esperando reviver os detalhes deliciosos do seu banquete. No entanto, em vez da Church Boston Avenue, a tela mostrou uma imagem do Woodward Park, em um estado terrível de desgaste. Então, a câmera mudou, e as sobrancelhas de Neferet se ergueram enquanto se concentravam em um paredão de pedra ao lado de uma gruta que, até recentemente, fora o seu santuário. Ela aumentou o volume, impaciente, a tempo de ouvir Kimiko dizendo de forma tão séria:

– Este é o local onde ocorreu o terrível assassinato de dois homens, cujos corpos foram descobertos por bombeiros na manhã de ontem. Conforme informamos anteriormente, a violenta tempestade que criou ventos de quase 120 km/hora foi acompanhada por raios mortais. Os raios que caem sobre a região de Tulsa já foram responsáveis por cinco mortes hoje, além de dez pessoas hospitalizadas em estado grave. Mas a morte desses dois homens aparentemente não tem relação com as tempestades. Adam Paluka está ao vivo com o detetive Kevin Marx e vamos até ele para mais detalhes. Adam?

A cena mudou do parque destruído pela tempestade para um detetive sentado atrás de uma mesa em um escritório de aparência comum. Neferet o reconheceu como o policial que fora irritantemente compreensivo com Zoey Redbird no passado. Ela fez uma careta enquanto assistia à entrevista.

– Detetive Marx, o senhor poderia nos explicar essas duas mortes adicionais em Woodward Park, e responder se o senhor realmente excluiu a possibilidade de as mortes terem sido caudadas pela tempestade?

– Os corpos dos dois homens, ambos na casa dos quarenta anos, foram descobertos na manhã de ontem. A causa da morte foi a mesma para os dois homens: contusão e hemorragia.

Neferet sorriu, decidindo que aquele era um excelente aquecimento para a carnificina que eles logo descobririam.

– E é verdade que o senhor prendeu alguém que confessou ter cometido os crimes?

Neferet ergueu as sobrancelhas.

– Confessou os assassinatos? Está presa? Isso é impossível.

– Sim, é muito triste ter de informar que uma jovem novata, a quem conheço pessoalmente, se apresentou por livre e espontânea vontade para confessar que assassinou os dois homens.

– Uma novata! – explodiu Neferet levantando-se da chaise e gritando com a tela da televisão.

– O senhor pode informar o nome de tal novata?

– Zoey Redbird .

Neferet gritou, pegou um dos abajures elétricos que tinha tirado da tomada e o atirou contra o aparelho de televisão.

– Aquela garota tola e fraca acredita que matou aqueles dois homens? Eu os encontrei a poucos metros do meu santuário, e seu sangue serviu para me alimentar para que pudesse ir ao grande banquete na Boston Avenue Church. Zoey Redbird matando dois homens adultos? Que grande bobagem! Ela não tem o ímpeto necessário para matar ninguém! E realmente confessou o assassinato? Aquela garota é uma idiota ainda maior do que eu imaginei.

Neferet jogou a cabeça para trás e sua gargalhada debochada ecoou pela cobertura.

Neferet assumira a sua posição no meio da graciosa escadaria dupla do salão principal do Mayo Hotel. Adorava a ironia de estar no mesmo lugar onde tantos humanos iludidos fizeram seus votos matrimoniais.

– Um pacote de macarrão tem validade maior do que a maioria dos casamentos humanos, sabia?

Ela sorriu para a multidão reunida sobre o piso de mármore preto e branco. Havia ordenado que diminuíssem as luzes e que grandes candelabros fossem posicionados e acesos em cada um dos lados. Sabia que sua beleza era divina, complementada pelo brilho de seu vestido à carícia da luz das velas.

Ordenou que metade dos seus vinte súditos a cercasse, embora sem entrar na plataforma em que se encontrava. Os outros dez humanos possuídos estavam posicionados na entrada do seu Templo. Ela dera a eles apenas uma ordem: ninguém poderia entrar ou sair.

Seus filhos das Trevas se contorciam à sua volta, invisíveis para os humanos que a olhavam boquiabertos, mas reconfortantes para ela com sua avidez familiar.

– Ah, vocês estão certos em não responder. Essa pergunta realmente não é uma forma digna de uma Deusa se dirigir pela primeira vez aos seus escolhidos. Permitam que eu comece de novo.

Neferet se posicionou na frente do seu trono, abriu os braços em um gesto amplo e começou:

– Atenção! Eu sou Neferet, a Deusa das Trevas, a Rainha de Tsi Sgili. Transformei este hotel no meu Templo das Trevas, e vocês, poucos afortunados, serão meus súditos fiéis, os meus escolhidos. Em troca, recompensarei sua adoração removendo as preocupações do mundo comum de vocês. Não mais precisarão trabalhar em empregos sem sentido. Não precisarão voltar para casamentos tediosos nem para filhos mal-agradecidos. De hoje em diante, até a sua morte, seu único objetivo será me adorar. Regozijem-se, humanos!

Seu discurso foi seguido por um longo momento de silêncio absoluto e, então, a multidão começou a se agitar nervosamente, aos sussurros.

Neferet aguardou pelo que sabia que viria a seguir, e isso manteve o sorriso no seu rosto. Gostava muito de ensinar lições de vida aos humanos.

Conforme previsto, Neferet não precisou esperar muito tempo. Uma mulher deu um passo à frente. Era alta e tinha cabelo castanho – devia estar no final da meia-idade, embora estivesse bem conservada e parecesse estar em forma, como uma mulher que se exercita diligentemente para se manter jovem. Usava um vestido de bom gosto e corte meticuloso em um tom bonito de verde-esmeralda.

– Onde você comprou esse vestido adorável? – perguntou Neferet à humana antes que ela tivesse a chance de dizer qualquer coisa.

A mulher piscou, obviamente surpresa com a pergunta, mas respondeu:

– É um Halston. Comprei na Miss Jackson’s.

– Kylee – chamou Neferet, olhando para o lugar em que a garota se encontrava aos pés da escadaria, com uma aparência serena de um robô. – Anote. Vou precisar que você vá até a Miss Jackson’s e escolha diversos vestidos para mim. Certifique-se de incluir modelos Halston.

– Sim, Deusa – entoou Kylee, sem emoção.

Neferet franziu o cenho, olhando para Kylee. Será que realmente queria que aquela garota escolhesse os seus trajes? Ela não devia ter mais do que vinte anos e se o seu corte de cabelo fosse uma indicação do seu senso de moda, seria realmente um desastre...

– Tudo bem, você tem que explicar o que realmente está acontecendo aqui. Eu não tenho tempo para isso. – Recuperando-se da sua surpresa, a mulher com o vestido verde-esmeralda interrompeu os pensamentos de Neferet, batendo com o pé no chão para demonstrar sua impaciência. – Eu tenho um jantar marcado no Summit Club, e pegar um avião para Nova York logo em seguida.

– Já expliquei a situação para vocês – disse Neferet. – Agora eu sou a sua Deusa. Você não vai jantar no Summit Club nem vai voltar para Nova York. A não ser que eu mande que você faça alguma coisa para mim. O seu único trabalho é me adorar. Em troca, eu acabarei com as suas angústias e preocupações mundanas. Qual é o tamanho desse vestido? Trinta e oito ou quarenta?

– Sério? Essa é uma piada de muito mau gosto. Frank Snyder está por trás disso, não é? Frank? – A mulher ignorou Neferet e chamou pelo homem, procurando ao seu redor, como se esperasse que ele fosse aparecer. – Ela está vestida como uma diva de cinema. Deixe-me adivinhar: ela vai cantar “Smoke gets in your eyes” pelo meu aniversário, não é? Como é que você encontrou uma vampira para contratar? Ou será que essas tatuagens foram pintadas?

A mulher girara em torno de si e novamente encarava Neferet, olhando para ela como se estivesse considerando apagar suas tatuagens.

Neferet se deu conta de que sua paciência chegara ao fim.

– Escolhidos, permitam que esta seja uma lição para vocês. Eu não sou uma piada. Eu sou a sua Deusa. Poderosa, possessiva, imortal e onisciente. Eu sou praticamente destituída de paciência, nunca aturo tolos. – Neferet se inclinou para a frente e pousou a mão no balaústre de ferro. Encontrou o olhar da mulher e invadiu a sua mente desprotegida. – Então, o seu nome é Nancy, e hoje é o seu aniversário. – O sorriso de Neferet era felino. – E você está fazendo cinquenta e três anos, embora diga aos amigos que tem quarenta e cinco.

O corpo da mulher estremeceu e ela arfou, chocada com a violação, mas impotente para resistir.

– Como você sabe disso? E como se atreve?

Neferet fez um som alto de admoestação, meneando a cabeça.

– Uma vida de tantas privações em nome da beleza. Será que ninguém lhe explicou que, não importa o que faça, você é humana e os humanos envelhecem? Nancy, você deveria ter comido mais massa, bebido mais vinho, dormido com o filho caçula do seu vizinho mais do que duas vezes e deixado o seu odioso marido quando ele teve o primeiro caso vinte anos atrás. E, Nancy, eu sei dessas coisas porque eu sou uma Deusa. Eu me atrevo a dizer essas coisas porque eu sou a sua Deusa, embora você, obviamente, não me mereça.

As pessoas em volta de Nancy se mexeram, como se quisessem se afastar dela, mas ainda estavam com expressões pasmadas e confusas de descrença em seus rostos bovinos.

– Seria inteligente se afastarem de Nancy. Eu sei que o meu Templo conta com instalações de lavanderia, mas não há motivo para mancharem desnecessariamente as suas roupas. – As pessoas mais próximas de Nancy se afastaram mais dela. Neferet sorriu, encorajando-os enquanto pegava uma das gavinhas que envolviam os seus pés descalços. Era satisfatoriamente pesada e grossa, e a sua pele gelada e emborrachada pulsava contra o seu corpo enquanto envolvia o seu braço. – Mate Nancy. Faça-a sofrer. Ela encheu a própria vida de sofrimento, então o sofrimento na morte deve ser um conforto para ela. – Neferet disse aquilo com carinho para seu filho. – Permita que seja visto.

Ela atirou a criatura em Nancy. A entidade tornou-se visível no ar. A multidão arfou e exclamou, mas logo começou a gritar quando a gavinha se enrolou no pescoço de Nancy e começou lentamente a cortar sua carne até arrancar a cabeça da mulher.

A multidão se descongelou e, gritando em pânico, seguiu em direção à saída.

– Eu não lhes dei permissão para sair! – Cheia de poder imortal, a voz de Neferet ecoou pelo amplo salão. – Meus filhos, permitam que meu povo veja vocês.

O ninho de Trevas ao seu redor se ondulou e se tornou visível, mas poucas pessoas notaram. Estavam ocupadas demais olhando, horrorizadas, para as cabeças negras das gavinhas, que haviam possuído a equipe e que, ao comando de Neferet, tornaram-se visíveis dentro das bocas escancaradas de cada um dos humanos robôs que guardavam as saídas.

Neferet fez outra nota mental – ela tinha de se certificar de recompensar os filhos que se ofereceram para a tediosa tarefa de possuir a equipe. Eles estavam sendo tão obedientes e compreensivos. Um outro banquete logo teria de ser providenciado para eles.

Sentiu um feixe de poder deslizar pelo seu corpo e voltou sua atenção para Nancy, cuja cabeça já estava separada do corpo. Havia tanto sangue, porém, que a gavinha não conseguia se alimentar rápido o suficiente. Neferet suspirou. O piso de mármore reluzente ia ficar manchado. Será que tinha de fazer tudo?

– Alimentem-se dela rapidamente! – ordenou aos filhos mais próximos. – Não tolerarei bagunça no meu Templo. – Então, suspirou mais uma vez e voltou sua atenção para o público em pânico. – Vocês estão começando muito mal! – exclamou ela. – Em troca de uma vida repleta de um novo objetivo, tudo o que peço em troca é a sua obediência e adoração. Nancy não me deu nada disso e vejam o que aconteceu com ela. Que isso sirva de lição para cada um de vocês.

– O que são essas criaturas? – perguntou um homem baixo e gordo, obviamente tentando controlar o medo enquanto acariciava o braço de uma mulher igualmente baixa e gorda e que enterrara o rosto no seu casaco enquanto soluçava.

– Estes são os meus filhos, formados por Trevas, e leais somente a mim.

– Por que eles estão dentro da boca daquelas pessoas? – quis saber ele.

– Porque aquelas pessoas fazem parte da minha equipe de trabalho e elas também devem ser leais apenas a mim. A possessão é muito mais eficiente do que cortar as suas cabeças. Agora, vocês viram como tudo será muito mais simples se vocês fizerem o que eu mandar?

– Mas isso é loucura! – gritou um homem no fundo do salão. – Você não pode esperar que nós fiquemos aqui e a adoremos, não é? Nós temos as nossas vidas, nossas famílias. Pessoas que sentirão a nossa falta.

– Tenho certeza de que sentirão mesmo, mas como eles são pessoas , e não imortais, isso não me preocupa. Mas se vocês forem muito, muito, mas muito bons mesmo, eu talvez lhes dê permissão para trazer a suas famílias para se juntarem a vocês.

– Você não pode fazer isso – disse uma mulher aos soluços. – A polícia vai nos salvar.

Neferet deu uma gargalhada.

– Ah, eu espero que sim. Estou ansiosa por este confronto. Garanto a vocês que o Departamento de Polícia de Tulsa não sairá vitorioso.

– E agora? O que nós vamos fazer? Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! – berrou outra mulher.

– Façam com que ela se cale! – ordenou a Deusa, e uma gavinha voou em direção à mulher, envolvendo seu rosto e tapando sua boca. Ela caiu no chão enquanto se contorcia.

Neferet soltou um longo suspiro de alívio quando não apenas os gritos da mulher cessaram, mas todo o grupo em pânico também se calou. Ela passou a mão pelo vestido perfeitamente ajustado ao seu corpo e, usando um tom calmo para os súditos apavorados, falou:

– Vocês devem aprender estas lições agora. – Ela fez um gesto com os dedos longos como se estivesse marcando itens em uma lista. – Eu não tolero histeria. Não tolero deslealdade. Também não sou muito chegada a homens brancos de meia-idade. Agora, eu preciso de sessenta voluntários para resolver negócios muito importantes na cobertura.

Ninguém se mexeu. Ninguém a olhou nos olhos. Neferet suspirou novamente e acrescentou:

– Eu não vou usar nenhum dos voluntários como alimento.

Uma jovem ergueu a mão trêmula.

– Sim, querida. Qual é a sua pergunta? – concedeu a Deusa.

– Você vai dizer para essas cobras entrarem nas nossas bocas?

Neferet sorriu docemente para a garota.

– Não, eu não vou fazer isso.

– Ent... Então, eu sou uma voluntária.

– Muito bem! – elogiou Neferet. – E qual é o seu nome?

– Staci.

– Não, eu vou chamá-la Gladys, que é um nome muito mais digno, você não acha?

A jovem logo concordou com a cabeça.

– Então, Gladys, fique do lado esquerdo do salão de oferendas. Agora, eu quero mais cinquenta e nove pessoas tão entusiasmadas quanto Gladys para se juntarem a ela.

Quando ninguém mais se mexeu, Neferet usou um tom de raiva e gritou:

– Agora!

Como se tivessem sido atingidos por um chicote, um grupo de humanos se sobressaltou e se juntou à primeira voluntária.

– Kylee, conte quantos humanos há e me informe quando houver sessenta.

Cada vez mais impaciente, Neferet esperou. Por fim, Kylee declarou:

– Temos sessenta voluntários, Deusa.

– Muito bem. Seja uma fofa, Kylee, e leve-os até a minha cobertura. Faça com que esperem na varanda pelas minhas ordens. Ah, e abra várias caixas de champanhe. Seja generosa. Meus voluntários devem ser recompensados.

Parecendo confusos, mas aliviados, os sessenta humanos entraram nos elevadores. Neferet voltou a sua atenção para os adoradores restantes. Eles a olhavam como se esperassem que uma guilhotina estivesse prestes a descer sobre as suas cabeças.

– Seria muito mais fácil usar a possessão em todos vocês. Instruir humanos dos tempos modernos a como adorar uma Deusa será uma tarefa extremamente tediosa – murmurou ela para si mesma, enquanto batia com os dedos no balaústre.

Uma mulher que estava próxima o suficiente para ouvi-la deu vários passos em direção à escadaria e, então, atraindo o olhar da Deusa, fez uma reverência profunda e elegante. Neferet ergueu as sobrancelhas. Analisou a mulher que se mantinha em reverência, com a cabeça respeitosamente curvada. Era mais velha do que Nancy, mas não muito. E embora estivesse bem-vestida, com um terninho bem cortado e caro, parecia ter a própria idade.

– Pode se levantar – permitiu Neferet por fim.

– Eu agradeço, Deusa. Será que a senhora me daria permissão para que eu me apresentasse?

– Vá em frente – concedeu, bastante intrigada.

– Eu sou Lynette Witherspoon, dona da Everlasting Expressions. Gostaria de lhe oferecer os meus serviços.

– Lynette. Sim, o seu nome não me ofende. Você pode mantê-lo. E o que é exatamente a Everlasting Expressions?

– É a minha empresa. Ofereço serviços de planejamento de eventos, coordenação e decoração para uma clientela seleta – explicou a súdita.

Neferet apreciou o orgulho e a confiança na sua voz.

– E o que você propõe para mim?

– Tudo – respondeu Lynette com voz firme. Ela olhou em volta do salão para as pessoas reunidas atrás dela, antes de lançar um olhar sincero para Neferet. – Creio que a adoração de uma Deusa seja um evento constante da maior importância, que deve ser dirigido com bom gosto e sem percalços. Se me der a sua permissão, garanto que a sua adoração será uma sucessão de eventos espetaculares.

– Interessante... – refletiu a Deusa. – Lynette, você não se importa se eu vislumbrar suas reais intenções, não é? – Embora tenha dito aquilo em tom de pergunta, Neferet não esperou pela resposta da súdita. No entanto, invadiu a mente da mulher de maneira mais gentil do que fizera com Nancy.

O que descobriu lhe fez sorrir.

– Lynette, você é uma oportunista.

– S-sou – confirmou ela, um pouco trêmula, depois que a Deusa saiu da sua mente.

– E você odeia os homens. – O sorriso dela se abriu mais.

– Eu não tenho poderes, então posso apenas imaginar, mas acredito que a senhora compreenda esse ódio – respondeu a mulher.

– Eu gosto de você, Lynette. Permitirei que gerencie o planejamento da minha adoração.

Lynette fez outra reverência profunda.

– Eu lhe agradeço, Deusa.

– E qual será a sua primeira ação? – Neferet sentia uma curiosidade quase incontrolável sobre as intenções daquela humana incomum.

– Bem – começou ela, batendo com a mão no seu coque e analisando as pessoas que estavam em silêncio atrás dela –, todos os eventos começam com duas coisas: roupas adequadas e decoração correta.

– Só tenho uma exigência: deslumbre-me – ordenou a Deusa.

– Sim, Deusa – respondeu a mulher em tom respeitoso.

– E quanto a vocês, meus súditos – disse Neferet, dirigindo-se para o seu rebanho –, façam tudo o que Lynette mandar. – Neferet dirigiu o olhar para Lynette e acrescentou: – Desde que ela não mande que tentem sair do meu Templo.

– Eu não pensaria uma coisa dessas, Deusa – apressou-se a humana em responder.

– Ah, minha querida, você pensou nisso. Você só se deu conta de como isso seria imprudente.

Lynette curvou a cabeça.

– Touché , Deusa.

– Agora, deixarei vocês, meus súditos, nas mãos capazes de Lynette. Vou para a minha cobertura me preparar para...

A saída de Neferet foi interrompida pelo mensageiro alto, Judson, chamando de seu posto em frente das portas fechadas e acorrentadas do Mayo Hotel.

– Deusa! A polícia está aqui!


5

Lynette

– Socorro! Polícia! Ela está nos mantendo presos aqui! – Uma garota que Lynette reconheceu como sendo a dama de honra do casamento espetacularmente caro da noite anterior começou a gritar, desvencilhando-se da equipe possuída, esmurrando o grosso vidro das portas dianteiras.

– Por que será que eu sempre tenho que fazer tudo? Equipe, todos vocês, exceto Judson, levem esses humanos para o porão!

A voz de Neferet estava cheia de veneno, e a equipe do hotel reagiu como se tivesse levado um choque elétrico. Começaram a reunir o grupo de pessoas aterrorizadas em direção à saída de emergência. A vampira flutuou pela escadaria e pelo piso do salão, passando tão próxima de Lynette que o vestido púrpura encostou nos seus pés. Lynette se afastou, tentando se esconder nas sombras e evitar ser levada com o resto do rebanho, mas Neferet falou com ela:

– Você, venha comigo. Eu não quero que você perca o evento que eu estou planejando.

– Como desejar, Deusa.

Lynette se empertigou, controlou o medo e seguiu a vampira. Não importava o que acontecesse, ela não ia terminar seus dias como aqueles pobres otários da equipe do hotel com aquelas cobras nojentas da vampira saindo pela boca. E também não faria nada idiota para acabar tendo a cabeça decepada. Ela sobrevivera a uma mãe alcoólatra e abusiva e à infância pobre para construir um império para si. Tinha dinheiro e status social. Dirigia uma Mercedes-Benz S-Class e era proprietária de uma casa de quase seiscentos metros quadrados em Eight Acres, o condomínio mais caro e exclusivo no centro de Tulsa. Passava as férias na França e só viajava de primeira classe. Ela poderia muito bem sobreviver a uma vampira doida com delírios de imortalidade e sedenta por poder, e ainda encontraria uma maneira de sair lucrando com a situação.

Neferet chegou até a garota que berrava.

– Você não é uma súdita adequada! – Com uma força sobrenatural, ela agarrou um punhado do cabelo louro tingido da garota e puxou sua cabeça para trás até que Lynette tivesse certeza de que o pescoço se partiria. Então, apontou para a boca aberta da garota. – Possuam-na!

Lynette queria afastar o olhar, mas não conseguiu. A cobra negra mergulhou na boca da dama de honra. Os olhos dela se reviraram de forma que só dava para ver a parte branca, o corpo totalmente inerte. Ela só não caiu no chão porque Neferet a segurava pelos cabelos.

– O seu nome será Mabel. Quando eu mandar, você virá de boa vontade até mim – rosnou a Deusa, erguendo o rosto da garota inconsciente até que ficasse a um dedo de distância do dela.

Um ligeiro piscar de olhos. Como se a vampira tivesse ligado um botão, o terror no rosto da garota desapareceu, deixando apenas uma expressão vidrada, mas atenta, em seus olhos.

– Sim, Deusa – entoou ela sem qualquer emoção.

Aquelas cobras horríveis têm total controle de quem quer que possuam , pensou Lynette. Não a mim , prometeu para si mesma. Não farão isso comigo. Eu prefiro morrer a terminar assim!

Neferet soltou a garota. Ela cambaleou como se estivesse desequilibrada, mas conseguiu manter-se de pé. A vampira passou a mão pelo cabelo perfeito e tirou alguma migalha invisível do seu ombro. Então, encarou Lynette.

– Você sabe o que vai acontecer se me decepcionar e acabar não se mostrando uma súdita adequada.

Lynette não afastou o olhar dos olhos verdes-esmeralda de Neferet. Mergulhou em uma reverência profunda que a vampira tanto apreciara antes.

– Eu não a decepcionarei, Deusa.

Sentiu o deslizar doentio de Neferet entrando em sua mente e concentrou os pensamentos nos fatos – ela não tinha a menor intenção de fazer qualquer coisa que levasse a vampira a se voltar contra ela.

– Logo, logo, você acreditará que eu sou uma Deusa, e que o seu destino é me servir. – Antes que Lynette tivesse a chance de comentar, Neferet virou de costas, ordenando: – Judson, desacorrente a porta da frente. Lynette, venha comigo. Meus filhos, não permitam que sejam vistos, mas prestem atenção em mim!

Com um som que trazia à mente de Lynette a recordação de antigas fortunas e opulência, as portas duplas e austeras de latão e de vidro se abriram e Neferet saiu, com Lynette logo atrás, tão perto que conseguia sentir o frio horripilante que emanava das cobras invisíveis.

Havia dois carros do Departamento de Polícia de Tulsa e um carro de passeio parados na pequena entrada circular diretamente em frente ao hotel. Quatro policiais uniformizados conversavam com um homem alto de roupas comuns que estava, obviamente, no comando, o que significava que ele era algum tipo de detetive. Com o aparecimento de Neferet, o grupo rapidamente voltou sua atenção para a bonita vampira. O detetive fez sinal com a cabeça para os outros, que deram alguns passos para trás e se posicionaram atrás dele, enquanto, com a expressão séria, começou a se aproximar de Neferet.

– Não, eu quero que você permaneça perto dos carros – declarou Neferet.

Ela estava próxima às portas, em pé sob o toldo de ferro, marca registrada da entrada do Mayo. Deu um pequeno passo para o lado e envolveu o ombro de Lynette com o braço e a empurrou. Lynette não precisava ser vidente para compreender o que a vampira queria que fizesse. Sem hesitar, deu um passo para a frente e se colocou entre Neferet e a polícia. A mão de Neferet se manteve em seu ombro, e ela sentia as unhas duras e afiadas da vampira pressionadas contra a pele do seu pescoço, bem acima da artéria que ali pulsava forte e rápido.

Lynette ficou completamente parada.

O homem alto hesitou apenas por um momento, embora aquele instante tenha parecido durar uma eternidade para Lynette. Então, os policiais deram vários passos para trás.

– Isso, assim está bem melhor. – Lynette detectou o sorriso na voz de Neferet. – Agora podemos conversar de maneira mais educada. Detetive Marx, que gentil da sua parte vir me visitar. Está uma tarde adorável, não acha? É como se a tempestade de ontem tivesse limpado a cidade.

Neferet falava em um tom afável, mantendo a mão descansando sobre o ombro de Lynette.

– Neferet, eu tenho que fazer algumas perguntas a você. Será que não prefere vir para a delegacia comigo em vez de ser interrogada aqui?

O suspiro de Neferet demonstrou uma decepção exagerada.

– Então, não podemos ser corteses um com o outro socialmente?

– Você sabe muito bem que, em circunstâncias normais, não tenho o menor problema com cortesia. Nós dois já trabalhamos juntos de forma amigável antes. Mas o que aconteceu ontem em Tulsa foi bem além do normal, e eu não tenho tempo para cortesia. – Ele fez uma pausa antes de gesticular em direção à Lynette. – E acho bem irônico você estar reclamando sobre questões de cortesia quando tem uma refém bem diante de si.

A pressão da unha de Neferet sumiu imediatamente, e a vampira afastou a mão do pescoço de Lynette, fazendo um carinho íntimo em seu rosto.

– Detetive, você não poderia estar mais enganado. Lynette, você é minha refém?

– Não, Deusa – respondeu ela, meneando a cabeça e esforçando-se para agir como se aquilo fosse algo corriqueiro, servir como escudo-humano de uma vampira psicótica. – Eu sou uma súdita por livre e espontânea vontade.

– Aí está. Viu? Está tudo bem. Lynette só está aqui porque ela me adora. Mas por que você, detetive Marx, está aqui? As perguntas que o trazem têm a ver com Woodward Park ou com a Boston Avenue Church?

Lynette viu os olhos do detetive se estreitarem.

– O que você sabe sobre Boston Avenue Church?

Neferet deu uma gargalhada.

– Tudo! Pode perguntar qualquer coisa. Você quer saber por quanto tempo aquele projeto de pastor gritou antes de eu matá-lo? Ou por que a esposa do conselheiro estava sem o seu lindo terninho branco Armani, o qual, coincidentemente, era do meu tamanho, quando você encontrou o seu corpo drenado e sem vida do lado de fora do seu santuário? Veja bem, é muito difícil remover manchas de sangue de um tecido de qualidade.

Enquanto a vampira falava, Lynette observava a mudança nos policiais. Primeiro, os seus rostos denunciaram que eles estavam em choque e, depois, sacaram suas armas, enojados e zangados.

A arma do detetive apontou para o seu ombro direito.

– Lynette – disse ele. – Caminhe diretamente para nós e mantenha as mãos onde possamos vê-las.

Lynette sabia que não importava nem um pouco o fato de Neferet não estar tocando nela.

– Não, obrigada – respondeu ela, conseguindo, de alguma forma, evitar que a voz saísse trêmula. – Estou bem aqui com a Deusa.

– Mas do que é que você está falando? – explodiu um dos policiais. – Ela é uma porra de uma vampira que assassinou um monte de fiéis numa igreja! Ela não é uma merda de uma deusa.

– Lynette, eu não gosto de pessoas desbocadas. E você? – quis saber Neferet.

Prendendo a respiração, deu a única resposta que poderia. Meneou a cabeça e disse:

– Não, eu não gosto.

Neferet inclinou a cabeça para o lado e analisou o policial que tinha falado. Lynette viu o corpo dele se retorcer.

– Policial Jamison, será que palavrões permeiam sua mente enquanto tem fantasias com a sua enteada de dez anos de idade? E quando você a observa dormindo e admite para si mesmo que daqui a alguns dias você vai transformar seus desejos em realidade?

O policial empalideceu.

– Isso é uma porra de uma mentira! – exclamou.

– Mais profanação. “Parece-me que o lorde faz protestos demasiados” [*] – declarou Neferet. Então, ela se voltou para Lynette em tom conspiratório. – É uma citação, mas acho perfeitamente adequada à situação, você não acha?

– Acho – concordou Lynette, observando o policial de perto.

O homem estava rubro e parecia prestes a explodir a qualquer momento – e Lynette se deu conta de que Neferet não o estava provocando nem inventando nada daquilo. Ela deslizara pela mente dele e revelara o seu segredinho sujo.

– Sua vaca filha da puta! – berrou o policial Jamison.

– Já chega! – ordenou o detetive Marx, dirigindo-se ao homem uniformizado.

Então, sua atenção se voltou para Lynette e Neferet, falando de maneira clara e calma que fez Lynette desejar poder correr da loucura da vampira e direto para a proteção dele.

– Lynette, se você escolher ficar com Neferet, então vai fazer companhia a ela numa cela de cadeia. Neferet, você está presa pelo assassinato de toda a congregação da Boston Avenue Church.

A risada de Neferet foi seca e cruel.

– Você nem consegue fazer a acusação contra mim de forma correta, detetive.

– Você acabou de confessar esses assassinatos! – exclamou Marx.

Ele perdeu o tom profissional e objetivo que mantivera até aquele momento. Com um terrível aperto no estômago, Lynette se deu conta da verdade inacreditável – Neferet massacrara toda uma igreja cheia de inocentes.

Teve de segurar as mãos em frente de si para evitar que tremessem.

– Você tem uma mente tão decepcionantemente tacanha, detetive Marx. O que eu fiz naquela igreja não foi assassinato, foi sacrifício, e foi glorioso! Queria que você estivesse lá como testemunha, mas se estivesse lá , não estaria aqui para testemunhar o início do meu reinado. Ah, mas eu estou divagando. As suas acusações estão incorretas porque estão incompletas. Você se esqueceu de acrescentar o lanchinho que fiz com o seu prefeito algumas noites antes.

A expressão no rosto do detetive Marx era uma máscara de ódio.

– Meus instintos avisaram que os vampiros da Morada da Noite estavam dizendo a verdade sobre você ser a responsável pela morte do prefeito.

– Pelo menos uma vez, os seus instintos estavam corretos. Mas permita que eu continue com a minha confissão. É uma pena que não havia ninguém em Woodward Park para testemunhar minha saída triunfal de meu agradável recanto, enquanto eu descobria dois homens deliciosamente confusos praticamente implorando para que eu drenasse seu sangue.

Os olhos do detetive se arregalaram e Neferet zombou:

– Eu não sei o que é mais inacreditável, aquela energúmena da Zoey Redbird ter criado a ilusão de que matara os homens para logo em seguida correr pateticamente para você e se entregar, ou você realmente ter acreditado que aquela insípida tivesse coragem o suficiente para matar alguém. De qualquer modo, a situação não é muito favorável para suas habilidades de dedução.

Lynette viu que os policiais uniformizados, até mesmo Jamison, empalideceram diante da admissão direta de culpa de Neferet, mas o rosto do detetive Marx endureceu, formando linhas de teimosia.

– Neferet, permitirei que faça uma ligação para o Conselho Supremo, mas você deve se entregar agora e se preparar para arcar com as consequências dos seus atos.

– O Conselho Supremo tem ainda menos jurisdição sobre mim do que você – declarou Neferet. – Eu não sou vampira. Eu sou a Deusa das Trevas, Rainha de Tsi Sgili. E não vou nunca mais me curvar diante de qualquer autoridade. Você, Tulsa e o resto do mundo vão me adorar, é meu direito divino. Observem e aprendam. Mabel, venha até aqui.

A garota obedeceu imediatamente. Caminhou pelas portas que Judson abrira para ela e ficou ao lado de Neferet.

– Mais reféns não ajudarão você a se livrar disso! – exclamou o detetive Marx.

– Eu disse: observem e aprendam, humanos! Eu não tenho reféns, apenas súditos obedientes. Agora, observem o seu futuro!

Neferet abriu os braços para a garota que chamava Mabel. Lynette teve de dar um passo para o lado enquanto Mabel se apressava, de boa vontade, para abraçá-la.

– Se eu sou a sua Deusa, sacrifique-se por mim.

Com uma curiosidade mórbida, Lynette observou, perguntando-se o que a garota estaria disposta a fazer. Ela só teve segundos para pensar.

– A senhora é minha Deusa – afirmou a garota de forma mecânica e, então, começou a arranhar o próprio pescoço fazendo com que o sangue escorresse pelos ferimentos.

– Agora, sim, este é o comportamento esperado de uma súdita adequada. – Neferet se inclinou para beber o sangue da oferta. A garota arfou e estremeceu, mas, em vez de tentar escapar, ela exclamou com uma voz cheia de êxtase:

– Obrigada, Deusa

– Que delicadeza a sua – elogiou Neferet, seus lábios a centímetros do pescoço de Mabel. Antes de começar a se alimentar do sangue dela, Neferet ordenou: – Proteja-nos!

Instantes depois, houve um barulho ensurdecedor de tiros. Lynette se jogou no chão, encolhendo-se e colocando o braço sobre a cabeça numa vã tentativa de se proteger.

Ouviu uma lamúria de dor e, então, os policiais começaram a gritar. Tremendo violentamente, Lynette espiou por entre os braços. Neferet estava se alimentando da garota, ignorando o caos que acontecia diante deles.

Aparentemente, os tiros destinados a Neferet – e à própria Lynette – ricochetearam em algum escudo conjurado pela vampira e atingiram diretamente o corpo do policial desbocado.

– Ai, meu Deus – sussurrou Lynette.

– Será que você não quer dizer “ai, minha Deusa ”? – Neferet, com os lábios vermelhos do sangue da garota, sorriu para ela.

– Sim, é o que quero dizer – respondeu ela, sentindo-se tonta.

Neferet soltou a garota e Mabel caiu pesadamente no chão. Então, ela estendeu a mão para Lynette, que a pegou, e se levantou, trêmula.

– Não tema, não permitirei que eles a machuquem. Não permitirei que machuquem qualquer pessoa que seja leal a mim – afirmou.

A vampira voltou sua atenção para os policiais. Eles arrastaram o corpo cravejado de balas de Jamison para trás dos carros, onde o restante dos homens estava agachado. Lynette ouvia o som da estática dos rádios enquanto chamavam uma ambulância e pediam reforços.

– Você entendeu agora, detetive Marx? Aprendeu a sua lição?

– Aprendemos que você é uma assassina! – exclamou ele. – Ainda não terminamos. Este não é o fim.

– Pelo menos uma vez você está certo. Ainda não terminei aqui. Esse é só o começo. Observe e aprenda. Observe e aprenda – repetiu ela. – Ah, olhe para cima! Meus filhos, venham comigo!

Dando os braços para Lynette, entraram novamente no Mayo Hotel.

– Judson, acorrente as portas novamente.

– Sim, Deusa. Mas isso não os manterá lá fora por muito tempo.

– Eu sei disso! Limite-se a fazer o que eu ordenei. Como sempre, terei de tomar conta dos detalhes sozinha.

– Sim, Deusa.

– Lynette, gostaria que você se juntasse a mim na minha cobertura. Um evento espetacular está prestes a acontecer lá.

– Sim, Deusa – respondeu Lynette, entrando no elevador com ela.

O sorriso de Neferet era confiante.

– Você está quase acreditando que eu sou divina.

Lynette não respondeu. O que poderia dizer que Neferet não pudesse retorquir esquadrinhando a sua mente e descobrindo a verdade? Então, novamente, deu a única resposta possível:

– Estou aqui para servi-la.

– E assim será.

As portas se abriram para a cobertura.

– Kylee, Lynette está um pouco pálida, sirva para ela uma taça do melhor vinho e leve até a varanda.

Neferet passou por Kylee, com Lynette seguindo logo atrás, e abriu as portas para se juntar às sessenta pessoas que estavam reunidas em grupos amedrontados na varanda. Muitos estavam próximos à balaustrada que emoldurava a ampla extensão das portas para o lado de fora; pela expressão nos seus rostos, ficou claro que tinham ouvido os tiros e viram o que acontecera lá em baixo.

– Espere aqui, Lynette, e tome o seu vinho. Isso vai trazer um pouco de cor de volta ao seu rosto. Não posso permitir que a minha súdita favorita fique com uma aparência abatida e doentia – declarou Neferet.

Então, ela caminhou até o parapeito de pedra, fazendo com que as pessoas mais próximas a ela se afastassem, assustadas.

– Já que a educação moderna é de péssima qualidade, sinto que é meu dever, como a sua Deusa, dizer isto a vocês – ela fez uma pausa e apontou para as pedras esculpidas –: o nome disso é balaustrada. Os suportes grossos e com espaçamento uniforme, aqui e aqui – ela apontou novamente –, chamam-se balaústres. É uma feliz coincidência que haja exatamente sessenta balaústres espaçados em torno da varanda da cobertura do meu Templo. Eu quero que cada um de vocês escolha um balaústre e se posicione diretamente em frente a ele.

– Você... Você não vai nos obrigar a pular, não é? – quis saber uma velha aterrorizada.

– Não, Vovó – respondeu Neferet com a voz calorosa. – Isso não faria nenhum sentido. Será que vocês não viram como eu protegi Lynette contra as balas mortais que a polícia atirou contra ela?

Seguiu-se um longo silêncio e alguém disse:

– Mas você comeu aquela outra garota.

– Mabel foi desobediente. Será que vocês querem o mesmo destino que ela teve?

Suas palavras tiveram um efeito instantâneo sobre as pessoas, que se espalharam, cada qual assumindo uma posição em frente a um balaústre.

– Excelente! Kylee, sirva mais champanhe enquanto eu tenho uma conversa em particular com os meus filhos das Trevas.

Lynette apreciava vinho tinto caro e costumava degustá-lo, bebendo-o devagar. Mas não naquele momento. Ela bebeu ruidosamente, pegando a garrafa da mão de Kylee quando a garota robótica passou por ela para buscar mais champanhe. Lynette sentiu-se grata pela sensação surreal e destacada que o álcool lhe provocava enquanto observava a vampira se mover para um canto sombrio da varanda, bem longe do parapeito, e se curvava para conversar com o que parecia ser absolutamente nada.

Lynette sabia que não era o caso. E, com certeza, apenas um segundo ou dois depois, o ar em volta dos pés da vampira se ondulou, como correntes de ar quente se erguendo do asfalto abrasado de uma estrada, e as cobras de Neferet ficaram visíveis. Lynette ficou satisfeita que a vampira estivesse distraída com os seus “filhos”, pois não conseguia evitar o estremecimento de nojo. Lynette se lembrou de um velho filme de faroeste ao qual assistiu quando criança. Nele, os cowboys tinham que levar o gado e, enquanto cruzavam o rio, um jovem caiu do cavalo, pousando no meio de um enorme ninho de cobras aquáticas para ser morto por elas, embora não rápido o suficiente. Parecia que Neferet estava no centro do ninho, só que as suas cobras eram maiores, mais negras e até mais perigosas do que qualquer uma das cobras do velho oeste.

O que será que elas eram? Com certeza, Lynette não sabia muitas coisas sobre vampiros. Mesmo que fosse capaz de aceitar fazer negócios com eles – já que eram reconhecidamente ricos –, jamais fora contratada por um. Estava longe de ser uma perita em vampiros, mas tinha certeza de que ouvira falar alguma coisa sobre essas criaturas mortíferas semelhantes a cobras. Seus familiares deveriam ser gatos, meu Deus, e não répteis.

Lynette se serviu de mais vinho e tomou um longo gole em sua taça, sentindo-se aliviada por seu rosto estar quente. Bom, o calor deixaria o seu rosto “corado” de novo. Lynette não tinha dúvidas de que a vampira seria capaz de matá-la se lhe desse na telha. Disfarçadamente, apertou o próprio rosto para se certificar de estar completamente corada.

Como ela ia sair daquela confusão? Nem estava mais se preocupando em lucrar com aquilo. Só queria escapar sem ser caçada pelos filhos de uma vampira insana.

– Excelente! – Neferet se empertigou, voltando sua atenção para as sessenta pessoas, cada uma diante de um balaústre na cobertura. – Agora que os meus filhos compreendem os meus desejos, estou pronta para compartilhá-los com vocês, meus leais súditos. – Ela se colocou no centro da varanda para que pudesse ser vista e ouvida por todos. – Kylee, chega de champanhe por ora. Fique ao lado de Lynette.

Kylee, é claro, fez conforme foi ordenada.

Lynette lançou uns olhares de esguelha para a garota. A sua boca estava fechada, ela não conseguia ver qualquer sinal da infestação da cobra, mas a garota estava claramente no piloto automático. Seus olhos estavam abertos, mas sem vida. O rosto não tinha expressão. Dessa vez, Lynette conseguiu evitar um estremecimento de asco. Quem poderia saber o que aquela coisa ao seu lado poderia contar para a vampira?

– Bem, eu tenho uma pergunta para vocês, uma a que qualquer um pode responder. Qual é a sua maior preocupação neste momento? – perguntou Neferet para as pessoas.

Lynette achou estranha sua capacidade de parecer uma pessoa tão normal, até boa. Era tudo fachada, mas uma fachada muito boa.

Ninguém respondeu à sua pergunta, e Neferet deu um sorriso caloroso e encorajador, dizendo:

– Ah, vamos lá! Eu sou a sua Deusa. É o meu dever e um prazer ouvir as suas preocupações. E, como meus súditos, é o seu dever compartilhá-las comigo. Por favor, não me obriguem a forçá-los a cumprir com as suas obrigações.

Um homem resolveu responder:

– A minha maior preocupação é que eu não quero ser morto... Ou coisa pior – declarou ele, lançando um olhar nervoso e rápido para o ninho das trevas que cercava e se contorcia em torno da vampira.

– Muito bom! Ótima resposta. Mais alguém tem a mesma preocupação?

Neferet parecia realmente se preocupar e até mesmo Lynette sentiu que sua cabeça assentia junto com a dos outros.

– Perfeito! – exclamou Neferet. – Eu sabia que a segurança seria a principal preocupação de todos. Agora, vejam bem, eu não estou admoestando vocês, nem estou zangada, mas a sua principal preocupação deveria ser cuidar de mim e me adorar. – Várias pessoas começaram a protestar, obviamente temendo o que a vampira faria em seguida, mas Neferet ergueu a mão e, com um gesto régio calou a todos. – Não, não, eu compreendo. De verdade. E é por isso que vou deixar bem claro que ninguém pode ferir os meus súditos, de modo que fiquem livres para me adorar.

Lynette achou irônico que Neferet tenha feito tal pronunciamento enquanto sirenes soavam cada vez mais próximas lá embaixo.

– Para assegurar aos meus súditos de que eles estão seguros, precisarei da ajuda de vocês. Façam exatamente o que eu mandar, e prometo que o meu Templo será impenetrável a qualquer um que nos queira ferir.

Lynette deu um suspiro suave. Pena que ninguém disse o que todos estavam pensando: não é com o mundo exterior que estamos preocupados – é com você! Mas, é claro, ninguém disse nada disso. Era a Neferet que todos temiam.

– O que precisam fazer é bem simples. Primeiro, cada um de vocês deve se virar de modo a olhar para o lado de fora da cobertura. – De forma lenta e relutante, as sessenta pessoas fizeram como ela ordenou, e agora estavam de costas para Neferet. – Agora, ergam os braços, fechem os olhos, limpem suas mentes e respirem fundo junto comigo. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. – Lynette ouviu as pessoas respirando com ela. – Quero que se concentrem na minha voz e não pensem em mais nada.

Neferet fez uma pausa para olhar em volta e ver se todos estavam nos devidos lugares. Quando os seus olhos encontraram os de Lynette, seus lábios carnudos se abriram em um sorriso cruel.

O estômago de Lynette se contraiu e ela temeu que fosse vomitar todo o vinho que consumira.

O olhar de Neferet se afastou dela e pousou nas cobras que se contorciam em torno dos seus pés.

– Meus filhos, chegou a hora! – As palavras que disse a seguir foram entoadas em um ritmo musical que era supreendentemente tranquilizador, de forma quase hipnótica.

Em um ataque rápido, promovam a defunção
para que aqueles lá embaixo conheçam a minha ira.
O poder é farto, consuma seu quinhão
Para mim uma perfeita jaula assim se cria.

Lynette conseguia sentir o poder crescendo a cada verso que a vampira entoava, e ela, assim como as outras sessenta pessoas que estavam congeladas com os braços erguidos, não poderia fazer nada, a não ser esperar pelo que aconteceria a seguir.

Para que este mundo eu possa reedificar
meu Templo deve ser divinal – poderoso.
Para a Deusa, somente sua lealdade deve imperar
E para Tulsa ofereçam um divino canto majestoso.

Pelo tempo que ainda vivesse, Lynette jamais seria capaz de apagar da memória a visão do que aconteceu em seguida. Com as palavras “divino canto majestoso”, Neferet ergueu os braços e, como se aquele fosse o sinal pelo qual estavam esperando, as cobras dispararam em direção às costas das pessoas despreparadas. Lynette prendeu a respiração, esperando que as serpentes subissem por suas pernas e as possuíssem, mas suas expectativas não poderiam estar mais erradas. Em vez de possuir as pessoas, as cobras – como se formassem um único ser – atingiram-nas todas no meio das costas, atravessando-as com tanta força que o sangue e as tripas explodiram como uma chuva vermelha fluindo com as gavinhas sobre a balaustrada de pedra. Sem acreditar, Lynette assistiu às criaturas descerem pelas laterais do Mayo Hotel, lavando-o com negrume e sangue, como se estivessem desenrolando uma cortina escura e gotejante.

Um som chamou sua atenção de volta à Neferet. Entorpecida, viu que a vampira ainda tinha os braços erguidos. Sua cabeça estava inclinada para trás e seu corpo estremecia em espasmos enquanto ela gemia num êxtase terrível. Lynette tinha certeza de que vira um brilho sombrio emanando e se expandindo em volta dela. De repente, compreendeu. É a morte das pessoas . De alguma forma ela está se alimentando de suas almas, assim como as suas criaturas se alimentam dos seus corpos.

E elas estavam se alimentando das pessoas que tinham acabado de morrer – todas as cobras que permaneceram na cobertura. Lynette sentiu que balançava a cabeça. Havia tantas delas. Muitas ainda.

Lynette ainda meneava a cabeça e observava as criaturas que se agitavam por entre os mortos, grudando neles como sanguessugas gigantescas, drenando tudo o que restava nos corpos inertes, quando o braço de Neferet baixou. Ela arrumou o vestido e, sem lançar um olhar sequer para nenhum dos sessenta voluntários, virou-se, sorrindo, aproximando-se de Lynette.

– Kylee, jogue os corpos pela balaustrada quando os meus filhos acabarem de se alimentar. Ah, e chame Judson e os outros membros de minha equipe. Eles não precisam mais proteger as portas. Estamos todos seguros. Nada poderá penetrar o véu das Trevas. Ninguém poderá entrar nem sair do meu Templo sem minha permissão. Então, mande que a equipe avise aos súditos restantes de que eles não precisarão mais ficar naquele porão sombrio. Eles podem voltar para os seus quartos sem medo. Eu já me certifiquei de que todos estejam protegidos. Contanto que me adorem. Já chegou a hora de começarem a me adorar.

– Sim, Deusa – respondeu Kylee, desaparecendo pela porta da cobertura.

Os olhos verdes-esmeralda de Neferet encontraram os de Lynette.

– O que você achou do meu evento?

Lynette engoliu o enjoo que lhe subia pela garganta e ameaçava engasgá-la. Respondeu então com a mais pura honestidade:

– Eu jamais vi nada como aquilo.

– “Eu jamais vi nada como aquilo”, o quê? – perguntou Neferet, cheia de expectativa.

– Eu jamais vi nada como aquilo, Deusa – completou Lynette, curvando-se em uma reverência profunda e trêmula.

– E agora você realmente acredita nisso. Encantador! Levante-se, Lynette, minha querida, e sirva uma taça de vinho para nós, enquanto discutimos os tipos de evento de adoração que você planeja para mim.

Lynette se levantou e fez exatamente o que a Deusa mandou.

[*] Esta frase faz referência à obra Hamlet , de William Shakespeare. No caso, “The lady doth protest too much, methinks” (Parece-me que a dama faz protestos demasiados). Essa expressão indica uma situação em que a insistência na defesa de determinado argumento ou ponto de vista pode ser indício de que há uma mentira sendo ocultada pelo emissor. (N.E.)


6

Detetive Marx

Desde aquela noite escura e com muita neve em que Zoey Redbird o chamara até a velha estação, onde ela e um adolescente tinham escapado por pouco de serem assassinados, o detetive Marx tivera questionamentos em relação a Neferet, que, na época, era a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. A vampira parecera estranha para ele. Zoey obviamente ficara desconfiada dela quando ele levara os dois novatos de volta para a Morada da Noite, e Neferet a recebera de maneira calorosa e aparentemente sincera. Zoey assumira uma postura defensiva. Até dera um show para mostrar a nova tatuagem com a qual a Deusa tinha lhe presenteado naquela noite, o que, aos olhos treinados do detetive, indicava que a novata fora bem-sucedida em dizer à vampira mais poderosa e proeminente da escola que ficasse longe dela.

Marx achou que deveria ter ficado do lado da vampira e questionado a veracidade da novata. Em vez disso, Marx sentiu uma comichão sob a pele quando estava perto da Neferet, a mesma comichão que já lhe salvara nas ruas mais vezes do que poderia contar. Gostava de Zoey. Não sentia nenhuma comichão quando estava perto dela. De Neferet, porém, ele não tinha gostado nada.

Marx perguntara à sua irmã, que fora Marcada quase duas décadas antes, sobre Neferet. Anne fora surpreendentemente curta e grossa na sua resposta: Neferet é uma poderosa Grande Sacerdotisa. Fique longe dela. Quando pedira mais detalhes, Anne encerrara completamente a conversa. Chegara até a evitar as suas ligações por quase uma semana. Aquilo fora mais do que estranho. Ele e Anne eram gêmeos e se mantiveram próximos mesmo depois de ela ter sido Marcada e passado pela Transformação. Atualmente, ela dava aulas de Feitiços e Rituais na Morada da Noite de São Francisco. Marx passava as férias lá pelo menos uma vez por ano e ficara hospedado várias vezes no alojamento da escola como seu convidado. Anne costumava ser direta e honesta com ele sobre o seu mundo de vampiros. Sabia que poderia confiar no irmão. Mas bastou uma menção à Neferet, e Anne erguera um muro entre eles.

Marx odiara aquilo, odiara não ter a confiança da irmã. Então, nunca mais voltou a fazer perguntas sobre Neferet.

Nem mesmo quando a Grande Sacerdotisa deixara a Morada da Noite de Tulsa e dera uma entrevista coletiva condenando os vampiros atuais em geral e os da sua Morada em particular.

Nem mesmo quando Neferet desaparecera depois que a sua cobertura fora destruída.

Nem mesmo quando a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, Thanatos, acusara Neferet de ter assassinado o Prefeito LaFont.

Nem mesmo quando recebera uma pista anônima pelo Disque Denúncia dizendo ter visto uma vampira nua que se encaixava com a descrição de Neferet entrando na Boston Avenue Church.

Os últimos vinte e poucos minutos o fizeram mudar de ideia sobre não questionar a irmã.

– Aqui! Policial ferido aqui!

Marx acenou para a ambulância que chegara no bloqueio atrás do qual ele e os outros policiais estavam agachados. Lançou um olhar para Jamison. O cara estava obviamente condenado. As seis balas que ricochetearam no escudo invisível que Neferet erguera tinham, convenientemente, lhe atingido em todas as partes não protegidas pelo seu colete à prova de balas. Como ela conseguira fazer aquilo? Marx acrescentou mais uma pergunta à longa lista de perguntas que, com certeza, faria à irmã.

Mais carros oficiais do que ele poderia contar chegaram, parando no meio das ruas que cercavam o Mayo. Os policiais que não estavam dando cobertura para Marx apressavam-se em evacuar os prédios adjacentes. Marx enviara uma mensagem pelo rádio dizendo que um policial fora atingido, além de estar acontecendo uma situação grave envolvendo reféns.

Foi com uma mistura de alívio e tristeza que viu o chefe de polícia Connors liderando a equipe da SWAT. O chefe não era conhecido pelas habilidades diplomáticas.

– Detetive, faça um resumo rápido da situação – pediu ele.

– Neferet confessou os crimes na Boston Avenue. Ela está lá dentro do hotel com reféns. Ela tem controle sobre eles. Não sei se é por feitiço ou se apenas ela os deixou tão apavorados a ponto de estarem dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Mas você não vai acreditar nas coisas terríveis a que ela está obrigando essas pessoas fazerem.

– Depois de ver o que ela fez na Boston Avenue, acho difícil ficar surpreso com qualquer coisa que ela possa fazer – declarou o chefe de polícia em tom sombrio.

– Está vendo aquele corpo ali? Aquela garota dilacerou a própria garganta para Neferet enquanto dizia “obrigada, Deusa”. – Marx fez um gesto indicando a carcaça ensanguentada que costumava ser uma jovem.

– Alguma ideia de quantas pessoas estão lá dentro com ela?

Marx meneou a cabeça.

– Deve ter umas cem, mas é apenas um chute. Ela fechou o restaurante e trancou o prédio. Pelo que entendi, ela não vai deixar ninguém sair.

– Bem, ela vai ter que nos deixar entrar.

– Chefe, acho melhor conseguirmos algumas informações sobre a situação dos reféns. Não queremos uma repetição do que aconteceu na igreja. Ela massacrou aquelas pessoas, mas os corpos não parecem com nada do que já vi vampiros fazerem antes. Eles foram estraçalhados, comidos e drenados. O poder de Neferet não se parece em nada com o que já tenhamos lidado antes.

– É, eu vi. – O chefe de polícia meneou a cabeça. – Mas como uma porra de uma vampira conseguiu fazer algo assim? Eu ouvi dizer que uma Grande Sacerdotisa pode entrar na mente das pessoas. Controlá-las e até mesmo apagar lembranças. E sei que são fisicamente fortes, mas não tão fortes quanto os seus guerreiros. Mas a carnificina na igreja... – Ele balançou a cabeça. – Eu nunca ouvi falar em nada parecido com aquilo. E quanto a você? A sua irmã não é vampira?

– É sim, e eu vou dar uma ligada pra ela. Mas tem outra coisa que você precisa saber. Neferet não está dizendo que é uma vampira. Ela afirma ser uma deusa, para ser mais específico, a Deusa das Trevas e a Rainha de Tsi Sgili, seja lá o que for isso. Ela disse que transformou o Mayo no seu Templo e que quer que Tulsa a adore.

O chefe de polícia deu um grunhido.

– Porra nenhuma. Assim que avaliarmos a situação dos reféns, a gente vai entrar. Vamos ver o que o nosso atirador de elite com a sua arma de cinquenta calibres vai causar nas suas ilusões de divindade.

Marx acenou com a cabeça em concordância, mas sentiu a familiar comichão de aviso sob a pele, dando-lhe uma sensação ruim sobre como as coisas de desenrolariam.

– Esses malditos vampiros perderam a porra da cabeça ultimamente. Primeiro o assassinato do prefeito, então aqueles dois homens no parque, a carnificina na igreja e agora isso. Estou achando que precisamos fazer mais do que apenas colocar a Morada da Noite em confinamento. Acho que devemos expulsá-los de Tulsa!

– Chefe, sobre aqueles dois homens no parque. – Marx franziu as sobrancelhas. Sabia que os sentimentos contra os vampiros estavam em alta, mas ele detestava ouvir esse tipo de merda racista saindo pela boca do chefe da polícia.

– O quê? Você não prendeu aquela novata que confessou os assassinatos? Merda, ela talvez tenha matado LaFont também!

– Na verdade, chefe, Neferet acabou de confessar o assassinato do prefeito e daqueles dois homens. Ela gabou-se disso, assim como do massacre na igreja.

O chefe de polícia piscou, surpreso.

– Bem, então por que a porra de uma novata confessou ser a assassina? Ela faz parte dos seguidores de Neferet?

– Duvido muito. Zoey Redbird e Neferet têm uma história de animosidade entre elas. Acho que é provável que Zoey tenha encontrado com os homens e se defendido contra eles e, quando soube que estavam mortos, deve ter acreditado que os tinha matado . Ela é uma garota legal, chefe. Acho que ela se entregou porque estava consumida pelo remorso. Ela nem mesmo queria algum vampiro adulto com ela.

O chefe de polícia olhou para ele sem entender. Marx evitou um suspiro de impaciência e explicou:

– Se uma novata não está próxima a vampiros adultos, existe cem por cento de chance de que o seu corpo vai rejeitar a Transformação e ela morrerá. Zoey se julgou e se condenou; e decidiu que a sua sentença era a morte.

– Eu me esqueço do quanto você sabe sobre vampiros. – O chefe de polícia meneou a cabeça enojado. – Acho que não importa se eles são humanos ou novatos. Adolescentes são completamente incompreensíveis.

Marx abriu a boca para protestar – respeitosamente – que ele, na verdade, conhecia alguns adolescentes completamente compreensíveis e que incluiria Zoey Redbird na lista, quando o grito de um policial uniformizado o interrompeu.

– Ai, meu Deus! Olhem lá para cima!

Marx olhou para cima bem a tempo de ver criaturas negras e grotescas semelhantes a cobras, a não ser pela ausência de olhos – apenas bocas abertas emolduradas por dentes que estavam molhados e vermelhos –, sendo arremessadas por alguma força invisível pelo parapeito na cobertura do Mayo. As criaturas carregavam consigo uma explosão de sangue e tripas e fragmentos corpóreos e coágulos. E, enquanto caíam, elas se expandiam, mudando a forma de cobras sem olhos para uma cortina escura e pulsante, manchada de escarlate. A cortina desceu pela fachada de pedra do hotel, envolvendo-a em trevas e sangue enquanto se desenrolava até o chão.

– Atirem! Matem-nos! – berrou o chefe de polícia.

Marx tentou impedi-lo. Tentou lembrá-lo de que havia cidadãos inocentes lá dentro que poderiam facilmente ser feridos ou, até mesmo, mortos. Tentou dizer que o ataque só serviria para antagonizar a vampira que tinha mais reféns e que já estava tão louca, que acreditava ser imortal. Mas os tiros provocados pelo pânico explodiram à sua volta e suas palavras se perderam no furor do momento.

A princípio, Marx não queria olhar para cima. Não queria ver os tiros acabarem com o Mayo e ter de lidar com as consequências das ordens precipitadas do chefe de polícia. Marx, no entanto, não era o tipo de homem que fugia das coisas; ele fizera uma carreira ao lidar com elas. Resoluto, ergueu o olhar.

As cobras que se transformaram em cortina se expandiram de modo que parecia que o prédio tinha ganhado uma pele negra avermelhada, uma pele tão dura, que nem mesmo as Glocks que os policiais uniformizados carregavam conseguiam penetrar.

Todos observaram enquanto as trevas continuavam a descer pelo prédio até o nível da rua e a se fundir ali com um som sussurrante que lembrou Marx da vez que visitara Nova York e se hospedara no Plaza – e cometera o erro de sair para fumar às três horas da manhã. Ratos. Ele caminhara por uma cerca viva bem-aparada que ficava em frente à grandiosa entrada do Plaza e ouvira o som sussurrante. Olhara para baixo, ficando chocado ao se deparar com dezenas de ratazanas gordas passando por ali. Era com aquele som que a mortalha das trevas criada por Neferet se parecia enquanto se assentava no lugar onde o prédio encontrava a rua, contra pedras dos anos de 1920.

– Atirem nas portas. Vocês têm que passar por essa coisa e estar prontos para entrar! – berrou o chefe de polícia.

– Não! – exclamou Marx, enquanto os policiais uniformizados corriam para obedecer às ordens.

Determinado a sobreviver e lutar por mais um dia, Marx se abaixou atrás de um carro do pelotão.

Acabou em uma questão de segundos. Os policiais correram em direção às portas, disparando contra o vidro que agora estava coberto pela cortina negra e escorregadia salpicada de coágulos. Seu coração se partiu quando os gritos começaram. Marx já estava usando o rádio:

– Vários policiais feridos! Precisamos de mais ônibus no Mayo! E reforços! Mais reforços! Mande todos os policiais de Tulsa para cá! Agora!

Quando o comandante cambaleou para trás e caiu pesadamente no pavimento, atingido no meio da testa por fogo amigo, os olhos revirados e leitosos, sem dúvida morto, Marx fez a única coisa que sabia fazer: assumiu o comando.

– Cessar fogo e retirada! Retirada! – berrou ele, e os homens reagiram com um claro alívio.

Um jovem policial uniformizado se agachou ao lado dele, com a respiração pesada e as mãos trêmulas. Marx achou que o garoto não devia ter mais do que 21 anos.

– Mãe do céu! Aquele treco preto não sofreu nenhum arranhão! Os tiros ricochetearam diretamente para nós, como se estivessem mirando. Que merda é aquela? – Quis saber ele com a voz tão trêmula quanto as suas mãos.

– Magia – respondeu Marx. – Magia negra e maligna.

– E como é que a gente consegue lutar contra isso?

Marx encontrou os olhos do jovem.

– Nós não lutamos. Nós precisamos de ajuda. E, felizmente, eu sei onde conseguir.

Zoey

– Eu queria saber o que está acontecendo! – Stark andava de um lado para o outro em frente à sua cela.

– Por que você não vai até lá fora para ver se a Vovó ainda está na sala de espera? Ela pode descobrir o que está acontecendo. Ela trouxe cookies. Ninguém resiste aos cookies dela – eu disse.

– Boa ideia. Eu já volto.

Stark seguiu pelo corredor e foi a minha vez de ficar andando de um lado para o outro.

Neferet. Se alguma coisa louca estava acontecendo no Mayo, Neferet tinha de ser a responsável. Eu queria agarrar as grades da minha cela, sacudi-las e gritar como uma pessoa histérica: Tirem-me daqui! Tirem-me daqui! Se Neferet estava lá fora fazendo sabe-se lá o quê, eu deveria estar lá, tentando pensar em uma maneira de detê-la.

E eu estaria se eu não tivesse perdido a cabeça e matado dois homens.

Stark voltou correndo e cobriu as minhas mãos, que realmente estavam agarradas às grades, como seu eu fosse capaz de entortá-las.

– Eles devem ter expulsado a Vovó, Thanatos e todos os outros. Não tem ninguém aqui, a não ser um policial na recepção. Este lugar está deserto! Se eu tivesse a chave, poderia tirar você daqui sem nenhum problema. – Suas sobrancelhas, com suas mãos ainda pressionando as minhas. Ele sacudiu um pouco as barras (que nem se mexeram). Então ele deu o seu sorriso maroto. – Mas, já que eu não tenho a chave, será que você não conhece ninguém que poderia, de alguma forma, convocar alguns elementos, sei lá, para derrubar esta porta?

– Stark, eu estou aqui por um motivo. Eu fiz uma coisa muito, muito ruim. Fugir daqui não vai me ajudar em nada.

– Poderia ajudar se Neferet estiver desenfreada, alimentando-se de cidadãos inocentes de Tulsa. Na verdade, eles podem até se esquecer do seu acidente no parque e agradecê-la se você ajudar a derrotar a sra. Louca.

Dei um sorriso triste.

– Eles até podem esquecer, mas eu não vou conseguir. Além disso, eu não posso derrotar Neferet, Stark.

– Você já fez isso antes.

– Não para sempre e não sem ajuda.

– Bem... – Ele abriu os braços. – Você tem ajuda.

Bufei.

– Não é o suficiente. Se fôssemos suficientes, teríamos sido capazes de nos certificar de que Neferet nunca mais voltaria do lugar para onde a chutamos da última vez. – Então, os meus ombros ficaram caídos e eu os encolhi. – Provavelmente, nem é ela. Talvez sejam ladrões de banco.

– No Mayo? Hã, Z. Estamos falando de um hotel, não de um banco.

A porta do corredor se abriu e a estrutura de metal bateu contra a parede. O detetive Marx se apressou na nossa direção. A aparência dele estava péssima. Tipo, péssima mesmo. O paletó estava sujo e a calça, rasgada na altura de um dos joelhos. Senti o cheiro de sangue, o qual me obriguei a ignorar. Na verdade, isso nem foi tão difícil porque a expressão no seu rosto era perturbadora demais.

Ele parecia estar com medo.

– O que aconteceu no Woodward Park? – ele exigiu saber enquanto se colocava ao lado de Stark.

– Eu já disse.

– Conte para ele de novo – interveio Stark.

– Por quê? O que está acontecendo?

– Responda à minha pergunta primeiro.

– Tá legal. Como eu já disse, dois homens me irritaram e eu atirei a minha raiva neles.

– Mas o que eles fizeram para deixá-la tão irritada?

– Não o suficiente para eu matá-los, Ok? – respondi.

– Apenas responda à pergunta! – zangou-se Marx.

Surpresa com o seu tom, eu me ouvi respondendo:

– Eles estavam andando pelo parque procurando garotas para assustá-las e obrigá-las a lhes dar dinheiro. Eles não viram as minhas tatuagens antes de começarem a me assediar. Então, quando perceberam que eu não era apenas uma adolescente indefesa, mudaram de ideia sobre me assustar. Eles basicamente disseram que iriam procurar outra vítima e isso me deixou louca da vida. – Fiz uma pausa e acrescentei: – Mas ainda tem mais. Eu já estava muito irritada quando cheguei ao parque, foi por isso que eu tinha ido para lá. Para tentar me acalmar. Eu... Eu não conseguia controlar o meu temperamento.

– Conte para ele o resto. Conte para ele por que você deu a pedra da vidência para Aphrodite quando se entregou para a polícia – insistiu Stark.

– Eu não percebi na hora, mas agora eu consigo entender que a pedra da vidência, um tipo de talismã que ganhei na Ilha de Skye, estava afetando as minhas emoções. Tipo, amplificando-as ou provocando-as, ou talvez apenas alimentando o meu estresse. Ela fica quente quando funciona e, no parque, ela estava superquente. Foi por isso que consegui erguer os dois homens e atirá-los contra o paredão da gruta.

– Você não consegue fazer isso, digamos, agora, consegue? – perguntou Marx, observando-me atentamente.

– Acho que não. Pelo menos não sozinha. Eu teria que chamar um ou todos os elementos, e eles ficam mais poderosos se o meu círculo estiver comigo e nós cinco canalizarmos a nossa energia para eles.

Marx assentiu, pensativo.

– Você sabia que os dois homens estavam mortos quando saiu do parque?

– Não. Tipo, eu sabia que eu os tinha lançado contra o paredão, mas foi como uma explosão grande e louca para mim. Bem, eu fiquei surpresa com aquilo – respondi. Distraída, esfreguei a palma da minha mão direita na minha perna e, então, olhei para ela. No meio das tatuagens entrelaçadas, um círculo perfeito tinha se formado ali. Ergui a mão para que o detetive pudesse vê-la. – Essa marca no centro, o círculo, foi feita pela pedra da vidência. Aconteceu na hora em que atirei a minha raiva naqueles homens. Era como se o poder dela tivesse saído através de mim. Quando eu percebi o que tinha feito, eu me aproximei deles.

Engoli em seco ao me lembrar.

– E o que exatamente você viu? – perguntou Marx, impaciente.

– Eles estavam deitados lá, aos pés do paredão que dá para a Twenty-first Street. E-eu me lembro de que ouvi um deles gemer, e vi o outro estremecer. Ficou claro que os tinha machucado muito. Talvez até gravemente. Então, eu fiquei com medo e fugi. Eles deviam estar morrendo quando eu fui embora. Sinto muito. De verdade. Eu sei que isso não faz qualquer diferença. E eu também sei que não faz a menor diferença o fato de eles estarem no parque para assediar garotas nem que a pedra da vidência tenha me dado o poder para fazer o que eu fiz. Foi a minha raiva que matou aqueles homens. Eu sou a responsável. – Mordi o lábio com força. Eu não ia começar a chorar.

– Não, Zoey. A verdade é que não foi você que fez isso e não, você não é a responsável pela morte deles.

Ele passou o cartão magnético no painel da porta da minha cela, e a tranca de metal se abriu com um clique.

– Hein? – Pisquei para ele, sentindo que eu devia estar sonhando. Olhei para Stark, que também estava olhando para o detetive.

– Isso tem alguma coisa a ver com Neferet – disse Stark.

– Isso tem tudo a ver com Neferet – concordou Marx. – Ela confessou ter matado aqueles dois homens. Não, essa não é uma descrição precisa. Neferet se gabou de ter matado aqueles dois homens.

Stark comemorou e me envolveu em um abraço.

– Z., você não matou ninguém.

– Eu não matei ninguém! – repeti o grito de Stark, enquanto ele me abraçava, rindo.

Eu estava me sentindo fraca, quase tonta. Eu não tinha matado ninguém! Mas que merda, eu quase tinha rejeitado a Transformação. Eu quase morri. Por causa de Neferet.

Tudo sempre voltava a Neferet.

Bati no ombro de Stark e ele me colocou no chão (mas eu continuei segurando a sua mão).

Eu me virei para o detetive Marx.

– O que mais ela fez?

– Você e seus amigos estavam certos. Neferet matou o prefeito. Ele e os dois homens no parque foram só o aquecimento. Ela massacrou uma igreja cheia de gente, e agora declarou ser uma deusa. Ela tornou o Mayo como seu Templo e está trancada lá dentro com um monte de gente enfeitiçada.

– Merda! – exclamou Stark.

– Aiminhadeusa ! – Neferet finalmente conseguira. Ela finalmente conseguira se superar e mostrar para todo mundo o que ela era de verdade.

– Você está livre, Zoey. Todas as acusações foram retiradas. Mas, antes de você ir, eu tenho um favor para pedir.

Olhei diretamente nos olhos dele.

– Você não precisa pedir. Eu vou ajudá-lo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para detê-la.

Marx suspirou de alívio.

– Obrigado. Eu não vou mentir para você, Zoey. A situação no Mayo é feia. Horrível mesmo. Neferet é poderosa e perigosa.

– E uma louca de carteirinha – terminei por ele. – Eu sei. Eu já sei disso há meses.

– Então, você sabe contra quem vai lutar.

– Todos nós sabemos – disse Stark. – Porque nós fomos os únicos que lutamos contra aquela puta doida.

– Tudo bem, então. Você precisa pegar aquela tal de pedra da vidência antes de eu te levar para o Mayo e...

– Espere um pouco. Não, você não entende, detetive Marx. Quando eu disse que vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para deter Neferet, não quis dizer que faria tudo sozinha. – Apertei a mão de Stark. – Uma das coisas que aprendi com certeza é que eu fico mais forte com os meus amigos.

– Só me diga do que precisa e eu farei acontecer – afirmou Marx.

– Tudo de que preciso está na Morada da Noite – respondi.

– Então venha comigo, Zoey. Vou levá-la para casa.


7

Zoey

Eu mal tinha saído do carro do detetive Marx quando a Vovó saiu correndo pela porta da frente da escola e me envolveu em um abraço.

– U-we-tsi-a-ge-ya ! É você! Eu sabia... Eu sabia que você estava voltando para casa.

Eu a abracei rapidamente e demos os braços enquanto entrávamos na Morada da Noite com detetive Marx e Stark seguindo logo atrás. O sol estava se pondo, mas eu estava superconsciente de que ainda poderia provocar dor em Stark. Conforme nos apressamos para dentro do prédio, sorri para a Vovó e contei:

– Eu não matei ninguém! – Então, eu me lembrei de quem os tinha matado e o que mais ela tinha feito, e o meu sorriso se apagou. – Neferet os matou.

– Neferet? – Ergui os olhos do rosto feliz de Vovó para ver Thanatos, Aphrodite e Darius saindo da sala da Grande Sacerdotisa.

– Zoey, detetive Marx, será que poderiam explicar o que aconteceu? – pediu Thanatos.

– Neferet confessou ter matado os dois homens no parque... – começou a explicar detetive Marx, mas eu o interrompi.

– Espere, tem muito mais coisa do que isso, e eu preciso que o meu círculo ouça tudo. – Olhei para Thanatos. – Neferet se revelou. Precisamos nos apressar.

– Darius e Stark, reúnam o círculo de Zoey. Leve-os até a Câmara do Conselho. Chame Lenobia também. Ela é a sacerdotisa mais velha desta morada. Talvez precisemos de sua sabedoria. Vão agora! – orientou Thanatos.

Stark e Darius saíram.

– Detetive, permita que eu o acompanhe até a Câmara do Conselho. Sylvia, eu ficaria muito grata se você pudesse partilhar a sua sabedoria em relação ao que estamos enfrentando com Neferet. Você poderia se juntar a nós?

– É claro – respondeu Vovó em tom irônico. – Eu sei mais do que um pouco sobre Neferet e a sua marca singular do mal. – Vovó me deu um beijo suave no rosto e começou a caminhar com Thanatos e com detetive Marx em direção à escadaria que levava até a Câmara do Conselho.

Isso me deixou sozinha com Aphrodite.

– Eu não vou perguntar se você me quer ou não. Eu vou a essa reunião – afirmou ela antes de começar a seguir os três adultos.

Toquei em seu braço e ela se virou para olhar para mim. Eu não sabia dizer se eu vi mais medo ou raiva nos seus olhos – e as duas coisas fizeram com que eu me sentisse horrível.

– Sinto muito – disse de forma simples. – Eu estava errada. Você estava certa o tempo todo. Estava certa ao procurar Shaylin. Estava certa ao pedir que ela ficasse de olho em mim. Você estava certa em não me contar sobre a sua visão. Eu deveria ter escutado você, mas não escutei, e eu não teria escutado, mesmo se você me contasse sobre a sua visão. Eu estava fora de controle. Fui egoísta. Fui burra. Sinto muito – repeti. – Por favor, desculpe-me.

Enquanto eu estava falando, Aphrodite ficou totalmente parada. Não colocou a mão na cintura, nem zombou de mim ou jogou o cabelo. Ela me ouviu e me observou com seus olhos intensos e claros. Não disse nada pelo que pareceu ser um longo tempo e, quando finalmente falou, o tom de sua voz não estava irônico, nem malicioso, nem sarcástico. Ela estava séria. Os seus modos estavam calmos. Ela parecia a Profetisa de uma Deusa.

– Achei que você fosse minha amiga.

– Eu sou.

– Você me magoou.

– Eu sei. Gostaria de dizer que não foi a minha intenção, mas não vou mentir. Naquela hora, eu queria magoá-la porque eu estava sofrendo muito. Aphrodite, a pedra da vidência fez algo comigo. Não estou usando isso como desculpa pelo que disse e fiz. Eu ainda era eu . Eu ainda estava errada. Estou tentando explicar para você que percebi o que aconteceu... Ou pelo menos como aconteceu. E eu lhe juro que isso não vai acontecer de novo.

Ela continuou me analisando em silêncio.

– Também vou me desculpar com Shaylin – acrescentei.

Aphrodite assentiu.

– É melhor mesmo. Você a assustou muito.

– Não vai acontecer de novo – prometi em tom solene. – Eu juro.

– Você quer a pedra de volta?

– Não! – respondi, dando um passo para me afastar dela. – Eu quero que você a mantenha bem longe de mim.

– Esse é o meu plano – respondeu ela. – Eu só queria saber qual era o seu.

– Eu não tenho nenhum plano, a não ser me desculpar com você e Shaylin e, bem, com todos os outros.

– Bem, já era de se esperar – respondeu Aphrodite, parecendo-se um pouco mais com ela mesma. – Você costuma estar despreparada e mal-arrumada. Eles não têm chapinha na prisão? – Ela lançou um olhar de avaliação para o meu cabelo de quem acabou de sair da cama.

– Não. Cabelo bonito não é uma prioridade na prisão.

– Bem, até agora eu só tinha ouvido falar que o sistema penitenciário de Oklahoma é uma droga. Agora eu tenho certeza.

Isso me fez sorrir.

– Então, você me desculpa?

– Acho que é o que tenho que fazer. Você está horrível. Eu odiaria ter que jogar sal na ferida contra a moda que o seu curto período na prisão já lhe causou.

Eu ri e nós demos os braços.

– Será que existe alguma coisa que você não consiga resumir para a moda?

– Não, e não precisa agradecer.

Eu ri de novo e nós seguimos para a escadaria. Eu me sentia leve e feliz; por alguns momentos, deixei que Neferet saísse da minha mente e concentrei os meus pensamentos em uma oração silenciosa para Nyx: obrigada, Deusa, por ter me dado uma amiga tão boa!

– Ei, não vai ficar pensando que pode me abraçar e coisas desse tipo. Eu não sou de abraços. Vamos considerar isto aqui... – ela passou a mão na frente do seu corpo – ... uma zona de não contato. Darius, é claro, tem uma concessão.

– Entendi – respondi, mas continuei de braço dado com o dela enquanto subíamos as escadas. – Eu nem sonharia em cruzar a sua zona de não contato.

– Muito bem – disse ela, mas não afastou o braço do meu até estarmos na frente da sala de conferências. Então, ela parou e se virou para me olhar de forma séria e declarou: – Eu perdoo você, Zoey.

– Obrigada. – Pisquei rápido, surpresa pelas lágrimas repentinas nos meus olhos.

– Ah, merda – disse ela e, depois de olhar à sua volta para se certificar de que estávamos sozinhas, abriu os braços e me abraçou sussurrando: – Eu amo você, Z.

Eu funguei e retribuí o abraço.

– Eu também amo você.

O barulho da porta da escada se abrindo fez com que ela se afastasse de mim.

– Não chore – pediu ela, em tom sério. – Ficar choramingando não vai ajudar no visual desastroso que você tem agora.

– Tá bom – choraminguei um pouco mais.

– Zo! Ouvi dizer que soltaram você! Uhu ! – exclamou Aurox, feliz, falando de forma estranha e maravilhosamente semelhante a Heath.

Ele correu na minha direção, com a intenção clara de cruzar a minha zona de não contato. Dei alguns passos para trás e, então, parei quando ele vacilou e parou. Eu não sabia o que fazer. Tipo assim, nós decidimos ser amigos. Amigos se abraçavam. Mas nós decidimos ser apenas amigos. Bem, na verdade eu tinha decidido que seríamos apenas amigos e...

– Ah, para de pensar um pouco. Prostrado e pesaroso pra caramba foi como ele ficou sem você. – Aphrodite meneou a cabeça, enojada. – E estou usando aliterações para falar, se eu começar a fazer rimas, vou me jogar de um prédio bem alto. Façam um biquinho ou qualquer outra coisa bem rápido e, depois, vão para a Câmara do Conselho. Infelizmente, não temos muito tempo pra dramas de relacionamento.

Ela jogou o cabelo para trás, abriu a porta e entrou.

Aurox e eu nos olhamos.

– Biquinho? – perguntou ele.

Senti o rosto pegar fogo.

– Ela quer dizer dar um beijo.

Ele ergueu as sobrancelhas.

– Você quer me beijar?

Felizmente, nada do que ele disse depois de uhu parecia nem um pouco com Heath. Limpei a garganta.

– Acho que essa não seria uma boa ideia, mas obrigada por perguntar.

– Bem, estou feliz por você estar de volta – afirmou ele, tentando sorrir.

– Eu também. – Sorri de volta. – E, mesmo tudo sendo confuso, estou feliz por você estar de volta também.

Eu quis dizer aquilo como um elogio – e talvez até como uma piada particular (a situação não ficaria muito melhor se pudéssemos rir dela?), mas o sorriso que Aurox tentara dar desapareceu na hora.

– Você não está se referindo a mim . Mas sim a Heath. E eu não sou Heath. Com licença. Darius disse que eu deveria estar nesta reunião. – Dei um passo para o lado e permiti que ele abrisse a porta. Ele não a segurou para mim, mas a deixou se fechar na minha cara, deixando-me em pé ali, sozinha, no corredor, sentindo-me um cocô.

Tudo bem , disse para mim mesma, a minha vida ficaria bem mais fácil se Aurox continuasse chateado comigo – ou, pelo menos, irritado ou desinteressado. Aphrodite estava certa por vezes demais. Eu não tinha tempo para dramas de relacionamento (embora não achasse que aquilo fosse triste demais).

Passei os dedos pelo meu cabelo muito despenteado, empertiguei-me e entrei na Câmara do Conselho Escolar.

A sala era grande, mas sempre parecia ser pequena por causa da mesa redonda gigantesca que dominava o ambiente. Tenho quase certeza de que a ideia era imitar o rei Arthur (que, é claro, tinha sido o consorte da Grande Sacerdotisa Mogan le Fay), então ela não tinha uma cabeceira de verdade. O que acontecia era que o lugar onde a Grande Sacerdotisa se sentava se transformava automaticamente na cabeceira da mesa.

E por falar na atual Grande Sacerdotisa, fiquei surpresa ao vê-la entrar na sala pela porta dos fundos, assim que eu fechei a porta atrás de mim. Thanatos assentiu para Aurox, que assumiu uma posição de guarda ao se colocar ao lado daquela porta. Então, ela lançou um olhar para mim e indicou um assento vazio entre Vovó e Aphrodite. Thanatos se sentou à esquerda da Vovó, ao lado do detetive Marx. Enquanto eu me acomodava, tentando não ficar inquieta, Thanatos se inclinou para a frente de Vovó e se dirigiu a mim.

– É oficialmente bom tê-la de volta em casa, Zoey – declarou a Grande Sacerdotisa da Morte.

– Eu nem consigo dizer o quanto estou feliz de estar aqui e saber que não matei ninguém – respondi.

– Mas você aprendeu uma lição valiosa com essa experiência – comentou Vovó.

– É. Temos que parar Neferet. Não importa o que tenhamos de fazer – interveio Aphrodite.

– Bem, é verdade. Mas eu acho que a Vovó está falando de sempre escolher a bondade quando houver dúvida – disse eu.

– Eu não acredito que essa lição vá nos ajudar muito com Neferet – resmungou Aphrodite.

– Você ficaria surpresa, criança – respondeu Vovó suavemente, com um sorriso sábio nos lábios.

A porta se abriu e Stevie Rae entrou seguida por Stark, Damien e Shaunee.

– Z! Aiminhadeusa! É tão bom ver você livre! – Stevie Rae correu na minha direção e me envolveu em um grande abraço de urso. – Eu sabia que você não seria capaz de matar aqueles caras.

Eu lhe dei um abraço rápido antes de me soltar. Eu encontrei o seu olhar.

– Eu tenho algo a dizer sobre isso, mas quero esperar até todo mundo estar aqui.

– A espera acabou. O bonitão já está aqui – informou Aphrodite, sorrindo quando Darius entrou acompanhado por Lenobia e Shaylin.

Darius e Stark assumiram seus lugares em cada um dos lados da entrada principal. Stark me deu uma piscadela rápida, e eu fiquei feliz ao ver que ele não estava pálido e seus olhos tinham perdido aquele olhar ferido. Para ele estar assim tão melhor, o sol já devia ter se posto, e imaginei que Rephaim entraria a qualquer segundo agora.

Lenobia se sentou ao lado do detetive Marx, cumprimentando-o com um aceno rápido de cabeça. Shaylin escolheu o lugar mais distante de mim que conseguiu e não olhou na minha direção. Eu me levantei e limpei a garganta.

– Sei que uma emergência envolvendo Neferet está acontecendo no centro da cidade, mas eu preciso dizer uma coisa antes de começarmos a lidar com isso. E vou ser rápida. Como vocês já sabem, descobri hoje que não matei aqueles dois homens no parque. Mas, mesmo que eu não tenha causado a morte deles, sei que poderia ter feito aquilo. Eu estava fora de controle. Isso teve alguma coisa a ver com a pedra da vidência, mas também comigo . Eu estava errada. Aphrodite estava fazendo exatamente o que Nyx esperaria da sua Profetisa: ela informou a Shaylin que havia algo de ruim acontecendo comigo. – Eu olhei para Shaylin até que ela, relutante, encontrasse o meu olhar. – Shaylin, eu já pedi perdão a Aphrodite, mas lhe devo um pedido de desculpas ainda maior. Você estava certa ao me seguir. Você estava certa ao contar sobre as mudanças que detectou na minha aura. Foi muito, muito errado da minha parte empurrar você e perder a paciência daquele jeito, e não estou apenas pedindo para que aceite meu pedido de desculpas. Eu estou fazendo... – Fiz uma pausa e olhei para todos os meus amigos – ... um juramento a você e a todos aqui: farei tudo o que for preciso para me certificar de que isso jamais volte a acontecer.

– Eu perdoo você – afirmou Shaylin sem hesitar, embora o seu sorriso fosse hesitante e ela ainda parecesse estar com medo. – A propósito, as suas cores já voltaram ao normal agora.

– Obrigada – agradeci. – E, por favor, avise a mim, e a qualquer outra pessoa aqui, se perceber que as minhas cores estão bagunçadas de novo. Eu estava errada quando disse que você devia manter esse tipo de coisa para si mesma. Não se trata de uma invasão de privacidade. Você simplesmente está usando o dom que Nyx lhe deu.

– Zoey, onde está a pedra da vidência agora? – perguntou Thanatos.

– Está comigo – respondeu Aphrodite, antes que eu tivesse a chance de falar qualquer coisa.

– E eu não a quero de volta – acrescentei.

– Se ela é tão poderosa quanto você está dizendo que é, Zoey, você talvez não tenha escolha a não ser pegá-la de volta – disse o detetive Marx. – Porque vai ser preciso muito poder, muito poder mágico, para lutar contra Neferet.

– Detetive, é a sua vez. Explique exatamente o que Neferet fez – pediu Thanatos.

Eu me sentei e ouvi com um aperto no estômago e uma estranha premonição de que Marx estava certo.

Zoey

Seguiu-se um silêncio longo e doentio depois que o detetive Marx descrevera, com riqueza de detalhes, a carnificina de Neferet na igreja e, depois, o que acontecera no Mayo Hotel.

– Eu senti as mortes – disse Thanatos, meneando a cabeça com tristeza. – Eu sabia que algum tipo de tragédia humana, de morte em massa, tinha acontecido bem próximo de Tulsa. Eu estava assistindo ao noticiário, esperando ouvir que um avião tinha caído ou que talvez tivesse ocorrido algum tipo de tiroteio trágico em alguma escola. Mas eu não esperava isso. Eu realmente não esperava que Neferet fosse responsável por tudo isso.

– Nós não temos conseguido prever o comportamento dela, mas talvez possamos descobrir algo sobre o que esperar dela no futuro se analisarmos os crimes de Neferet até agora – sugeriu Vovó. – Ela matou o prefeito, e aquele crime a alimentou até Woodward Park. – Vovó fez uma pausa e deu um sorriso triste para Aphrodite. – Desculpe-me por ter de falar da morte do seu pai de uma forma tão objetiva.

– Eu entendo. E quero que continue – respondeu Aphrodite, séria. – Se a morte do meu pai nos ajudar a descobrir como derrotar Neferet, então, pelo menos, ele não terá morrido em vão.

Vovó assentiu e continuou:

– Ela deve ter se escondido no parque até Zoey ter enfrentado problemas com aqueles dois homens.

– Eu estava sentada naquele banco perto da gruta quando eles começaram a me assediar – contei, tentando juntar as peças. – Neferet talvez estivesse escondida na gruta.

– Vou mandar alguns policiais checarem – disse detetive Marx, fazendo anotações no seu bloco preto de espiral.

– As mortes dos dois homens no parque devem ter dado a Neferet o poder de que precisava para chegar à Boston Avenue Church – refletiu Vovó.

– E lá ela encontrou outra fonte maior de poder – acrescentou Lenobia. – Não podemos nos esquecer de que poder é o que há de mais importante para Neferet.

– Ela usa o poder para controlar aquelas criaturas semelhantes a cobras. As coisas que mataram aquelas pessoas na cobertura do Mayo e criaram aquele... Eu nem sei como chamar. – Marx hesitou, pensando. – É uma pele protetora, uma barreira. Mas seja lá o que for, tem muito poder.

– Aquelas criaturas com aparência de cobra são feitas de Trevas. Pense nelas como pensamentos odiosos, horríveis e cruéis que tomaram uma forma física – expliquei para o detetive Marx. – Eles fazem o que ela manda porque ela faz sacrifícios por eles. Eu tenho certeza de que Neferet não se alimentou de todas aquelas pessoas na igreja. Ela as sacrificou para que aquelas criaturas a continuem seguindo e fazendo o que ela deseja.

– Uma Tsi Sgili exige muito mais do que sangue por poder – interveio Vovó.

– Tsi Sgili... Rainha Tsi Sgili – disse Marx –, foi assim que Neferet se referiu a si mesma quando se intitulou Deusa.

– Tsi Sgili é um nome antigo que o meu povo usa para se referir a bruxas que escolheram as Trevas em vez da Luz. Elas vivem segregadas, afastadas de todos. – Vovó estremeceu. – As nossas lendas dizem que elas se alimentam de almas.

– Morte – disse Thanatos. – Eu deveria ter compreendido antes. Neferet se alimenta da energia que é liberada pelo espírito de uma pessoa no instante da sua morte.

– Ai, Deusa! – Lenobia parecia horrorizada e levou a mão ao peito. – Eu conheço Neferet há mais de um século. Ela sempre estava por perto quando um novato rejeitava a Transformação. Achávamos... As Sacerdotisas achavam que o dom de cura de Neferet confortava a passagem dos jovens.

– Ela não os confortava. Ela os usava – expliquei.

– Neferet tinha alguma coisa a ver com a nossa morte e a nossa volta – disse Stevie Rae. – Eu não consigo me lembrar. Talvez porque não consiga me obrigar a isso. Sei lá. – Ela estremeceu. – Mas eu sei que parecia como se algo dentro de mim estivesse se rompendo. – O seu olhar encontrou o de Stark, o único outro vampiro vermelho na sala. – Do que você se lembra?

– Dor. Trevas. Terror. Raiva. – Suas palavras estavam tensas, embora a sua voz permanecesse baixa, e nós nos inclinamos para ouvi-lo. – E, quando saímos daquilo, eu não era mais eu. Não até que Zoey dissesse que acreditava em mim, que confiava em mim.

– E eu também não consegui sair daquilo, até que Aphrodite acreditasse e confiasse em mim – disse Stevie Rae.

Aphrodite bufou.

– Pelo que me recordo, não foi bem assim. O que eu me lembro é que você tentou me devorar e, depois, pegou a minha condição de novata e levou com você.

– Porque você permitiu. Porque você sacrificou a sua humanidade por mim – esclareceu Stevie Rae.

– A parte de querer me devorar não foi legal – murmurou Aphrodite.

– O amor é mais forte que o ódio. Essa é a única verdade absoluta no universo. O amor conquista as Trevas – afirmou Vovó. – Nós só precisamos descobrir como o amor pode conquistar Neferet.

Ouvi um monte de suspiros após os meus.

– Tudo bem, eu sou totalmente a favor de o amor vencer – disse detetive Marx –, mas a gente precisa lidar com o que quer que seja que está acontecendo com aquelas coisas rastejantes.

– Neferet as está alimentando – respondi, sentindo a verdade das minhas palavras à medida que eu as pronunciava. – Ela dá a elas o que elas querem: sacrifícios com sangue fresco. E elas a obedecem. Se conseguirmos chegar a Neferet e a enfraquecermos ou, pelo menos, contê-la e impedi-la de matar mais gente, ela não conseguirá alimentá-las, e elas vão deixá-la.

– Concordo, mas acho que ainda tem mais, Zoey. As gavinhas das Trevas estão mudando, evoluindo, junto com Neferet – disse Thanatos. – Eu jamais, nos mais de cinco séculos que vivo como vampira, ouvi alguém criar o tipo de barreira como a que o detetive Marx acabou de descrever. – Ela se voltou para o policial. – E você disse que elas pareciam sensitivas, que elas, na verdade, direcionaram as balas para policiais específicos?

– Eu não tenho a menor dúvida quanto a isso. Eu estava lá. Eu vi aquilo de perto e tudo foi muito pessoal. Todos os primeiros tiros disparados atingiram o policial que ofendera Neferet, mas apenas nas partes do seu corpo que não estavam protegidas pelo colete à prova de balas. Os outros tiros feriram vários policiais, mas mataram apenas o chefe de polícia, o homem que deu a ordem de atacar o prédio – contou Marx.

– Lenobia, você já ouviu falar de algo assim? – perguntou Thanatos.

– Nunca.

– Então, chame a cavalaria – sugeriu Marx. – Envolvam o Conselho Supremo dos Vampiros. Talvez eles possam nos ajudar a descobrir uma maneira de vencer Neferet.

– O Conselho Supremo se recusou a nos ajudar – informou Thanatos. – Nós somos a cavalaria. – Ela se levantou. – Então, detetive Marx, vamos ao Mayo ver exatamente contra o que estamos lutando.

A porta dos fundos da Câmara do Conselho se abriu e Kalona, com o peito descoberto e olhos âmbar dardejando de raiva, caminhou até Thanatos.

– Já está na hora de você chamar a cavalaria completa. Eu sou um Guerreiro da Morte. Então, aonde você for, eu vou. Humanos e suas consequências que se danem.

Suas asas negras se desenrolaram e ocuparam a sala inteira.

O detetive Marx ficou boquiaberto.

– Merda – sussurrou Aphrodite.

– Eu digo o mesmo – concordei, perguntando-me o que aconteceria em seguida.


8

Detetive Marx

O cara era enorme. E tinha asas. Porras de asas gigantescas.

Marx ficou feliz por já estar sentado porque só de olhar para o... seja lá o que era aquilo... fazia os seus joelhos ficarem moles.

Primeiro, uma vampira-deusa enlouquecida e uma cortina preta sangrenta no Mayo. Agora, um gigante alado que dizia ser Guerreiro da Morte.

Será que estava na porra de um sonho?

Bem, se ele estava, o sonho continuava se desenrolando porque Thanatos caminhou até o gigante alado, e Marx com certeza não estava acordando.

– Ir comigo? Para o centro de Tulsa, diante dos olhares de...

– O que você vai fazer se as gavinhas das Trevas de Neferet atacarem você? Eu entendo essa manifestação das Trevas. Eu já a enfrentei diversas vezes no Mundo do Além. – A voz do gigante trovejava. – O que os humanos temeriam mais, a encarnação do mal ou a presença de um deus batalhando nas ruas de Tulsa?

– Os humanos não acreditam que deuses caminhem sobre a Terra – contrapôs Thanatos.

– Exatamente! – respondeu o gigante alado. – As ações de Neferet negaram a norma. Já passou da hora de os humanos tirarem a cabeça do buraco em que a enfiaram e se darem conta de que este mundo é cheio de magia, mistério e perigos. E também chegou a hora de eu fazer o que fui criado para fazer: ser um Guerreiro e lutar contra as Trevas.

A Grande Sacerdotisa curvou um pouco a cabeça em concordância com o homem alado. Então, ela se voltou para Marx:

– Detetive, gostaria de apresentá-lo ao meu Guerreiro sob Juramento, Kalona. Ele é o meu protetor, assim como o Mestre da Espada desta Morada da Noite. Ele me acompanhará até o Mayo.

Marx hesitou um momento e, então, fez a única coisa que passou por sua cabeça – estendeu a mão e a ofereceu para o grandão.

– Prazer em conhecê-lo, Kalona.

Kalona segurou o seu antebraço no cumprimento tradicional dos vampiros.

– O prazer é meu, detetive.

– Você não é um vampiro, né? – Marx não conseguiu evitar a pergunta.

– Não. Eu não sou.

Marx olhou para as asas do cara, que agora estavam enfiadas sob as suas costas. Aquelas coisas eram tão grandes, que chegavam a tocar o chão.

– O que você é ?

O sorriso de Kalona se abriu e pareceu ser sincero.

– Tem uma resposta complicada para essa pergunta, uma que eu prometo lhe dar depois que lidarmos com Neferet.

– Vou cobrar a resposta – disse Marx, tentando não olhar diretamente nos olhos do cara porque, ao fazê-lo, sentia a cabeça confusa e pesada, como se estivesse cheia de bolas de algodão.

– Você não vai precisar, detetive. Eu aprendi do modo difícil que é melhor que eu mesmo me preocupe em cumprir as minhas promessas.

– Então, nós todos vamos mesmo ao Mayo? – quis saber Aphrodite.

– Não. Kalona e eu vamos, assim como Zoey, Stark e o seu círculo. Darius, Aurox e Aphrodite, vocês vão ficar aqui com Lenobia. Vocês duas vão organizar uma reunião escolar. Atualizem o corpo docente e discente e os guerreiros. Informe apenas o básico e nada mais. Coloquem a escola em alerta máximo. Não sabemos qual será o próximo passo de Neferet.

– Você realmente acha que todos devem saber o que está acontecendo? – perguntou Stevie Rae, ecoando os pensamentos de Marx.

Zoey falou antes que Thanatos tivesse a chance:

– Acho que as Trevas odeiam que a luz brilhe, então vamos colocar muita luz sobre seja lá o que for que Neferet esteja fazendo.

– Essa é uma ótima maneira de descobrir quem quer voltar ao comando de Neferet e quem quer ficar e lutar contra ela junto com a gente – disse Stark.

– Vocês dois disseram exatamente o que penso – concordou Thanatos.

– Muito bem, então. Mas eu vou chamar Kramisha para me ajudar. Ela sempre sabe quem está tramando o quê – informou Aphrodite.

– É sábia a Profetisa que reúne os outros membros com dons dados pela sua Deusa – aprovou Thanatos.

– Também é sábia a Profetisa que mantém o seu celular por perto. Liguem se o inferno sair do controle, literal ou figurativamente – retrucou Aphrodite.

– Pode deixar – assegurou Zoey.

– Nós vamos com você, detetive Marx – declarou Thanatos.

Marx respirou fundo e desligou totalmente o botão de sanidade mental.

– Tudo bem. Vamos nessa.

Lynette

– Lynette, eu realmente adoro uma surpresa... – Neferet hesitou antes de continuar, erguendo um dedo fino. – Se a surpresa for agradável. Se não for, então uma surpresa não passa de uma interrupção irritante. Eu odeio interrupções quase tanto quanto odeio ficar irritada. – Seus olhos se afastaram de Lynette, e ela olhou para o que parecia ser as suas pernas nuas. – Falando em irritação, por que é que vocês estão andando por aí sem objetivo? Eu estou completamente segura, e vocês todos foram perfeitamente saciados. Vão se divertir em outro lugar e parem de ficar me puxando. Vão agora, xô! – Neferet fez um movimento de desprezo antes de voltar a sua atenção para a sua súdita.

Lynette não viu as coisas rastejantes, mas sentiu o roçar frio de algo passando por ela. Controlou um tremor de repugnância.

– Querida Lynette, onde paramos? Ah, sim, eu me lembro. Você anunciou que estava planejando uma pequena surpresa para mim. Por favor, continue se explicando.

Lynette olhou nos olhos da Deusa sem piscar. O pânico que estava concentrado em algum lugar sob o seu esterno estremeceu e recuou, mas ela apertou as rédeas mentais com as quais o controlava e permitiu que apenas o prazer de planejar um evento espetacular ocupasse a sua mente. O sorriso de Lynette estava confiante, assim como a sua voz.

– Deusa, eu sou muito boa no meu trabalho. Mesmo trabalhando em uma circunstância pouco comum e com recursos limitados, realmente acredito que você achará a surpresa agradável.

– Recursos limitados? Isso soa tão de mau gosto e barato. – Neferet franziu as sobrancelhas. – Eu certamente nunca desejei que você sentisse como se a sua Deusa fosse avarenta.

– Ah, mas eu não me sinto assim! – assegurou Lynette, esperando não ter apertado o botão de loucura de Neferet. – Eu coloquei essas restrições para mim mesma porque queria provar meu valor para você. Mas é claro que essa será apenas uma pequena amostra dos eventos que eu poderia planejar diariamente... Se eu tivesse mais tempo e mais dinheiro para fazer o meu trabalho.

Neferet relaxou a expressão.

– Você é uma mulher sábia, Lynette. Mostre-me o que planejou para mim. Se me agradar, pode ter certeza de que permitirei que continue com recursos ilimitados, embora não possa prometer que serei paciente para lhe dar muito tempo. Eu esperei muito tempo para começar o meu reinado. Estou impaciente pela adoração dos meus súditos.

– Isso é totalmente compreensível, Deusa. Em planejamento de eventos, eu nunca fico muito preocupada com o tempo quando tenho dinheiro.

Neferet a analisou.

Lynette se concentrou nos negócios. Ela se sobressaía nos negócios. Ela era confiante nos negócios. Os negócios não a aterrorizavam nem a enojavam.

Neferet sorriu.

– Você está sendo totalmente honesta. O seu negócio e a aquisição de dinheiro têm sido a sua principal preocupação. Continue, minha súdita! Revele a minha surpresa.

Lynette fez uma reverência e levou Neferet da suíte para o elevador, parando no mezanino.

– Por favor, Deusa, aguarde apenas um minuto.

Neferet sorriu e fez um gesto de concordância. Lynette pressionou o botão do elevador, então bateu em um comunicador quase oculto na sua orelha e disse rapidamente e em tom baixo:

– Kylee, aguarde dez segundos e, então, faça o quarteto começar a tocar.

– Sim, Lynette – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette lançou um olhar para a direita e fez um gesto de venha aqui . Judson, o bonito mensageiro, saiu das sombras. Ele trajava um uniforme impecável e passado e carregava uma bandeja de prata reluzente na qual havia uma taça perfeita de cristal cheia de champanhe rosê. Ele fez uma reverência perfeita e mecânica para Neferet e disse:

– Posso lhe oferecer uma taça de champanhe, Deusa?

– Ora, é claro. Obrigada, Judson.

A música começou a tocar no instante em que Neferet ergueu a taça da bandeja. Lynette ficou satisfeita ao ver o sorriso se erguer nos cantos da boca da Deusa.

– Danúbio Azul de Strauss. Uma das minhas valsas favoritas. Ah, Viena. Tão adorável e indulgente no passado.

– Por favor, queira me seguir, Deusa – pediu Lynette formalmente, levando Neferet pelo mezanino até o local para onde o seu trono havia sido colocado, bem acima da plataforma que a Deusa usara para se dirigir aos seus novos “súditos” algumas horas antes e onde, agora, havia um quarteto de cordas do casamento da noite anterior tocando nervosa e lindamente.

Neferet sentou-se com elegância, olhando para o quarteto.

– Eles tocam bem, embora eu prefira uma orquestra completa.

– Tempo e recursos – respondeu Lynette com um sorriso irônico.

Os lábios da Deusa se contraíram.

– Estou notando isso.

Lynette baixou a cabeça para Neferet e discretamente tocou no comunicador no seu ouvido:

– Conte até seis e mande-os entrar.

Então, ela prendeu a respiração e esperou que os doze artistas conseguissem se manter calmos.

As pesadas cortinas de veludo que cobriam o salão abaixo se abriram e, do lado oposto da sala, seis casais se apressaram para o centro do piso de mármore. As mulheres usavam vestidos vermelhos cujo tom fora o mais parecido um do outro que Lynette conseguira encontrar. Os homens trajavam smokings que ela conseguira juntar do que sobrara do casamento; os que estavam limpos o suficiente e servissem nos homens.

Servissem! Aquele tinha sido apenas parte dos problemas daquele evento infeliz. Tinha sido uma tarefa horrenda encontrar seis homens e seis mulheres no que Lynette tinha nomeado silenciosamente de reservatório de prisioneiros, que fossem relativamente atraentes, graciosos e capazes de aprender os passos básicos de uma valsa. Sim, ela poderia ter usado todos os membros da equipe dominados pelas cobras – eles obedeciam tudo que ela dizia para eles fazerem, desde que não tentasse fugir do Mayo. No entanto, o instinto de Lynette lhe disse que uma apresentação dos membros que já estavam sob o seu controle não impressionaria Neferet.

Não, Lynette acreditava que a Deusa queria, precisava , da ilusão de ser adorada. Então, ela ameaçara, insistira e chantageara 12 pessoas com aparência decente a trabalharem para ela.

Lynette percebia que estavam nervosos – duas das mulheres estavam tão trêmulas, que ela conseguia ver os seus braços tremerem –, mas, exatamente como ela instruíra, os casais se posicionaram no grande círculo e conseguiram chegar aos seus lugares depois da primeira contagem até seis. No começo do segundo conjunto de notas, todos os 12 ergueram o olhar para Neferet, pararam, contaram até três e, como se fossem um, cada um dos homens se curvara e cada uma das mulheres fez uma reverência para a Deusa.

Lynette detectou todos os erros. Viu que a mulher chamada Cindi quase caiu, e apenas a rapidez do seu par ao segurá-la pelo cotovelo impediu a queda. Camden, o garoto alto que fora o padrinho do casamento da noite anterior – e azarado o suficiente para estar com uma ressaca que impediu que ele pegasse o voo da madrugada junto com o noivo e a noiva para Dallas –, manteve a cabeça baixa por tempo demais. Lynette apertou os dentes. Se aquele garoto mimado estragasse tudo, ele lamentaria mais do que ela.

Lynette arriscou um olhar para Neferet. Obviamente satisfeita, a Deusa sorriu e assentiu com a cabeça em um gesto nobre para os dançarinos.

Agora dancem e não pareçam estranhos! , pensou Lynette.

Eles dançaram. Todos os 12 conseguiram começar na mesma nota e se moveram pelo salão seguindo um padrão quase circular. Eles estavam longe da perfeição, mas a música era adorável e, se alguns dançarinos vacilaram, “Danúbio Azul” compensou. Quando a nota final tocou, os seis casais se curvaram e reverenciaram Neferet, desta vez mantendo as suas poses como se estivessem congelados, e até mesmo Lynette teve de admitir que a cena estava muito bonita.

Neferet se ergueu e, para imenso alívio de Lynette, aplaudiu e riu.

– Muito bem, todos vocês! Isso foi muito bom. Judson, abra garrafas de champanhe para esses adoráveis súditos.

– Deusa, eles estão esperando a sua autorização para se levantarem – sussurrou Lynette para Neferet.

– Mas é claro que estão autorizados, e obrigada por me lembrar, querida Lynette. Vocês podem se levantar! – permitiu a Deusa. – Aproveitem o champanhe e a gratidão da sua Deusa pela adoração de vocês.

Lynette tocou no comunicador em seu ouvido novamente.

– Kylee, diga ao quarteto para começar a tocar a próxima música.

Em questão de segundos, a música encheu o ambiente de novo.

– “Valsa das flores”, do Quebra-nozes . Duas adoráveis músicas e excelentes escolhas – elogiou Neferet.

– Então, a minha surpresa foi agradável?

– Foi. O candelabro, as flores, os smokings e os vestidos vermelhos. Tudo foi muito bem-escolhido. Lynette, você começou muito bem como a minha planejadora de eventos. Eu aprovo o seu tema e a extraordinária música, o local lindamente escolhido e a homenagem respeitosa a mim.

– Então, posso presumir que gostaria de ter mais eventos desse tipo?

– Sim, mas da próxima vez eu gostaria que o tema fosse a minha época favorita. Os anos 1920. Essa foi uma época que vale a pena reviver. Você consegue fazer o Charleston, Lynette?

– Eu terei acesso à Internet?

– Terá, assim como uma generosa verba para os eventos – informou Neferet, abrindo um sorriso inteligente para Lynette.

– Então, eu consigo fazer o Charleston, assim como os seus súditos.

– Vamos precisar de mais músicos – declarou Neferet.

– Sim, Deusa. Vou providenciar – disse Lynette, já digitando suas anotações no smartphone.

– E fantasias. Vamos precisar de mais fantasias.

– É claro, Deusa – concordou Lynette.

– E eu preciso mais do que apenas dança, embora esse tenha sido um ótimo começo.

Lynette ergueu o olhar das suas anotações e olhou para Neferet, mas a Deusa não estava olhando para ela. Estava acariciando a taça de champanhe enquanto observava os seis casais que se espalharam em pequenos grupos aceitando o champanhe que Judson lhes servia. Lynette seguiu o seu olhar. O garoto mimado estava virando o que parecia ser a sua segunda taça de champanhe. Neferet o devorava com os olhos.

– Fico muito satisfeita que os meus súditos sejam tão atraentes – declarou ela.

Lynette bufou de forma irônica e automática, mas quando o olhar da Deusa pousou nela, ela se arrependeu instantaneamente por ter permitido um deslize de compostura.

Neferet ergueu uma das sobrancelhas ruivas.

– Ah, entendi. Você escolheu os doze com muito cuidado, porque nem todos os meus súditos são tão atraentes, não é mesmo.

Ela não usou um tom interrogativo, mas Lynette sentiu o impulso de responder.

– É isso mesmo. – Ela ergueu os ombros inquieta. – Sinto muito, Deusa, eu só queria me assegurar de que ficasse feliz com o meu primeiro pequeno evento.

– Isso é compreensível, querida Lynette. Na verdade, aprecio o seu esforço, e embora aprecie todos os meus súditos, eu também aprecio coisas, e pessoas, que são agradáveis aos meus sensos. – Neferet se inclinou no seu trono e usou um tom conspiratório para se dirigir à sua súdita: – Você poderia acrescentar isso à sua lista de tarefas como planejadora de eventos.

– Estou disposta a servi-la de qualquer forma que precise, Deusa. – Lynette estava tentando entender o que a Deusa queria. – Mas o que você quer dizer com “isso”?

– Certificar-se de que os meus súditos estejam sempre o mais atraentes possível, é claro. Sim, tenho certeza de que você tem talento para transformações.

– Transformações.

Lynette repetiu a palavra, sentindo-se extremamente sobrecarregada enquanto imagens dos súditos menos atraentes de Neferet passavam por sua cabeça. A mulher de cinquenta e poucos anos que precisava perder uns vinte e poucos quilos... A pré-adolescente ruiva esquelética cujo rosto já estava tomado por espinhas... O empresário careca e barrigudo e com queixo triplo que parecia um bócio...

A risada debochada de Neferet interrompeu o filme na sua mente.

– Pare de se preocupar, querida Lynette. Entre nós duas, conseguiremos separar o rebanho. Afinal, eu posso controlar tudo o que eles comem e tudo o que fazem. Você não concorda que dieta e exercícios são muito importantes?

Lynette assentiu com a cabeça e tentou manter-se focada completamente nos olhos verdes-esmeralda de Neferet.

– Então, além de colocar alguns deles de dieta e nos certificarmos de que passam algum tempo na academia do Templo, estou confiante de que você pode dar dicas de cabelo, maquiagem e moda. Correto?

– Sim, Deusa – respondeu ela automaticamente.

– Excelente. Estou feliz por você ter chamado a minha atenção para esta questão. É importante que os meus súditos sempre tenham a melhor aparência possível. Eles são, de algum modo, um reflexo de mim mesma.

Como se isso resolvesse a questão, o olhar de Neferet passeou pelo grupo abaixo delas, parando, de forma predatória, em Camden.

– Você fez uma excelente escolha com aquele ali, Lynette. Ele é alto, jovem e louro – disse Neferet. – Seu nome?

– Camden – informou Lynette. – Ele foi padrinho do casamento que me trouxe ao Mayo.

– Padrinho ? É mesmo? – Os olhos verdes-esmeralda de Neferet brilharam com uma intensidade perigosa, e Lynette ficou grata por tal intensidade não estar focada nela. – Talvez eu tenha que testá-lo para ver se Camden é realmente um bom súdito.

Lynette controlou um tremor de medo.

– Você gostaria que eu pedisse para alguém trazê-lo aqui?

– Não, querida Lynette. Eu posso muito bem convocá-lo. Talvez ele aprecie uma visita à varanda da minha cobertura. – Seus olhos brilhantes se voltaram para Lynette e o brilho feral neles se endureceu. – A minha equipe já se livrou daqueles vestígios desagradáveis, não é?

Merda! Eu estava ocupada demais organizando essa apresentação para verificar se todos os pedaços de gente tinham sido atirados pela varanda. A mente de Lynette começou a buscar algo para dizer e ela soltou um suspiro de alívio quando encontrou uma resposta:

– Deusa, creio que Kylee era a responsável pela questão da varanda.

– Aquela garota – murmurou Neferet, tomando um gole de champanhe. – Ela é boa para algumas coisas, mas precisa de muita supervisão. Será que você poderia usar essa útil maquininha no seu ouvido para lembrá-la das minhas ordens?

– É claro, Deusa – respondeu Lynette.

– E, enquanto você supervisiona Kylee, creio que eu vá me misturar aos meus adoráveis e atraentes súditos. Você consegue imaginar como o padrinho Camden se sentirá honrado se eu permitir que ele me tire para dançar?

Felizmente, a pergunta de Neferet era retórica e, em vez de concentrar a sua atenção na resposta de Lynette, a Deusa deu as costas para ela, tomou um gole de champanhe e caminhou em direção à grande escadaria dupla que levava ao salão de baile.

Lynette notou que Neferet não deslizou. Isso porque ela mandou as coisas rastejantes saírem para brincar , pensou Lynette. De alguma forma, elas deviam carregá-la – ou canalizar a energia para erguê-la – ou algo igualmente insano.

Ela meneou a cabeça como se quisesse clarear os pensamentos. Não podia se dar ao luxo de ficar pensando muito. Não podia se dar ao luxo de fazer mais nada a não ser sobreviver.

Lynette bateu no comunicador na sua orelha.

– Kylee, Neferet vai inspecionar a varanda da cobertura. Logo. Ela deixou você responsável pela limpeza.

– Compreendo e obedeço – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette suspirou. Deu alguns passos para trás e se apoiou em um dos pilares de mármore deixando-se ficar sem fazer nada por um momento, a não ser respirar.

Ela passara pelo primeiro teste de Neferet. Ainda estava viva e não tinha sido possuída por nenhuma criatura escorregadia. Mas, para continuar assim, não poderia se dar ao luxo de relaxar. Haveria tempo para relaxar depois que tudo isso acabasse. E Lynette conseguiria isso – ela sempre conseguia passar por todas as merdas que a vida atirava em sua direção.

Para começar, Lynette tinha uma lista de coisas a fazer.

Tinha de verificar todas as pessoas no prédio. Elas precisavam ser categorizadas como atraentes e aceitáveis ou aquelas que exigiriam trabalho. Na categoria das que exigem trabalho ela criaria as subcategorias gordo, malvestidos ou apenas feios por natureza. As duas primeiras poderiam ser corrigidas – em tese. Quanto aos que se enquadravam na terceira, bem, eles teriam de aprender algumas habilidades para que pudesse mantê-los nos bastidores.

– Espero que eles saibam cozinhar ou costurar.

Lynette estava falando consigo mesma enquanto digitava as observações no seu smartphone quando ouviu um grito vindo do salão. O que tinha acontecido agora? O que mais Neferet poderia estar fazendo? Com a mente cansada e pesada pelo medo e pela exaustão, obrigou os seus pés a levá-la até a beirada do mezanino.

Neferet estava ao lado de Camden. Ele estava olhando para o decote profundo do vestido curto de veludo da Deusa. As outras onze pessoas olhavam para as cobras escorregadias que se retorciam em volta dos tornozelos nus de Neferet.

– Ah, fique quieta – ordenou a Deusa para a garota que berrara. – Vocês precisam se acostumar com os meus filhos. Eles nunca ficam muito longe de mim, assim como vocês, meus leais súditos, nunca ficarão longe de mim.

– Si-Sinto muito, Deusa. E-eles parecem cobras. E e-eu tenho medo de cobras – gaguejou a menina.

– Eles não são cobras. São muito mais perigosos. E eu não estou pedindo para que você supere o medo que sente deles. Estou lhe ordenando que você não verbalize isso. – Neferet olhou para baixo, para as coisas rastejantes que se retorciam aos seus pés, parecendo excitadas. – O que foi, meus queridos?

– Deusa, o detetive voltou – chamou Judson do vestíbulo de entrada. – E trouxe mais gente com ele.

– Isso não significa nada. Ele pode trazer toda a Guarda Nacional de Oklahoma com ele. Eles não conseguirão penetrar a minha cortina protetora.

– Ele não trouxe um exército. Ele trouxe uma vampira que está fazendo o ar à sua volta brilhar enquanto um homem enorme que parece ter asas ocultas sob a sua capa de chuva caminha perto dela.

– Por que você esperou até agora para me dizer isso? – berrou Neferet. – Filhos! Venham comigo! – Erguida pelo ninho totalmente visível de víboras escorregadias, a Deusa deslizou até a porta da frente.

O corpo de Lynette ficou frio. Ela desceu dos sapatos elegantes de salto alto para que pudesse andar em silêncio pelo mezanino, dirigindo-se às grandes janelas panorâmicas que davam para a frente do prédio, tentando não pensar em nada, mas principalmente tentando não ter esperanças.


9

Zoey

– Que merda! O Mayo está horrível – declarei.

– É como se estivesse encharcado de morte. – Damien soava tão horrorizado quanto eu.

– Não de morte – contradisse Thanatos. – A morte é inevitável para todos os mortais. Ela não é boa nem má; é simplesmente parte da grande espiral da vida. Neferet usou nesse prédio dor e medo, sangue e desespero.

A sua voz estava estranha. Vovó, Stark, Shaylin e eu estávamos todos espremidos no Hummer da escola, e Thanatos estava na frente com Marx. Notei que quanto mais nos aproximávamos do Mayo, mais agitada a Grande Sacerdotisa parecia ficar. Ela estava literalmente inquieta, o que era muito estranho para ela – Thanatos costumava ser uma montanha de calmaria.

O seu óbvio nervosismo fez o meu estômago se revirar.

– Caos – disse Kalona. Olhei por sobre o meu ombro e ele estava sentado com Damien e Shaunee (eles estavam superapertados porque as asas dele ocupavam muito espaço), e vi-o meneando a cabeça enojado. – Neferet usou as gavinhas das Trevas para criar o caos e isso a está protegendo.

– Bem, o caos tem um cheiro horrível – reclamei enrugando o nariz.

– Fede e é horrível – concordou Damien. – E nós não temos nenhuma maneira de entrar.

– Sinto muito – desculpou-se Marx. – Eu devia ter avisado sobre o fedor.

– Não precisa se desculpar, detetive – disse Vovó. – Não creio que existisse qualquer coisa que você pudesse ter feito para nos preparar para isto.

– Você provavelmente está certa, mas é melhor avisar que não temos como saber se todas as partes humanas foram retiradas da área – acrescentou Marx. – Então, é melhor olharem por onde andam.

– Partes humanas? – A minha voz tremeu.

Marx assentiu.

– As coisas rastejantes mataram um monte de gente quando desceram pela varanda, cobrindo o prédio com trevas e tripas até aqui embaixo. Neste início de noite, Neferet tem jogado pedaços de pessoas, com todo o sangue drenado pelo parapeito da sua varanda.

– Eu consigo sentir o feitiço que ela fez com sangue, morte e Trevas – disse Thanatos. – Ela usou a morte daquelas pobres pessoas para construir uma barreira.

– Neferet lançou o feitiço, mas não sujaria as próprias mãos com a limpeza – concluiu Kalona em tom grave. – O que significa que ainda tem gente viva cumprindo as suas ordens.

– Será que importa quem está jogando? Principalmente se Neferet tiver feito reféns? – perguntou Shaunee.

– Tudo o que realmente importa é que todos se lembrem de que se detivermos Neferet, pararemos toda esta loucura também – respondeu Thanatos.

Todos nós concordamos de forma amarga.

Marx passou pelas barreiras da polícia e parou no meio-fio do outro lado da rua do Mayo em uma calçada ampla em frente ao prédio corporativo da empresa Oneok, onde nos sentamos e ficamos analisando o que tínhamos diante de nós.

– Organizamos dois postos de comando dentro da Oneok. O do terceiro andar com todos os equipamentos audiovisuais. E o que está no último andar com atiradores de elite – explicou-nos Marx enquanto nos sentamos e ficamos olhando para o prédio coberto de sangue coagulado do outro lado da rua.

– Atiradores de elite não podem matar Neferet – informou Kalona.

– É, a gente já percebeu – respondeu Marx secamente. – Mas eles podem matar pessoas, até mesmo as que estão sob o feitiço dela.

– Você não pode atirar naquelas pessoas! Elas são vítimas – declarou Vovó, virando-se, agitada. – Elas não são responsáveis pelas próprias ações, mas Neferet é.

– Sim, senhora, nós sabemos disso e não queremos atirar em ninguém, mas se Neferet ordenar que seus servos, ou seja lá como vocês querem chamá-los, nos ataquem ou a qualquer cidadão de Tulsa, seremos obrigados a impedi-los.

– Ela gostaria disso – disse Thanatos enquanto encarava o prédio. Ela parecia estar zangada. Achei que parecia mais pálida do que o usual, mas ela já era vampira havia, tipo, um zilhão de anos. Ela sempre estava pálida, então eu não poderia dizer com certeza. – Ela obteria mais poder com as suas mortes, além da satisfação de ter obrigado vocês a matar pessoas inocentes. – Thanatos olhou para Kalona. – Não podemos permitir isso.

– Concordo – respondeu Kalona.

– Bom – disse ela. – Já chega de ficarmos sentados aqui especulando. Eu preciso ir até lá. Preciso entender exatamente com o que estamos lidando.

Thanatos saiu do Hummer e bateu a porta atrás de si, deixando que o resto de nós a seguisse – de forma relutante.

Kalona se apressou a ficar ao seu lado. À distância, eu ouvia exclamações do tipo “Ei, olha lá aqueles vampiros!” e “Prepare a câmera, tem alguma coisa acontecendo na frente do Mayo!”.

O imortal alado tinha colocado uma longa capa de chuva para cobrir o seu peito tipicamente nu como uma forma bastante bem-sucedida de esconder as asas gigantescas. Eu o vi virar o corpo tentando enfiar as penas enormes lá dentro. Ele lançou um olhar irritado para as pessoas reunidas atrás das barricadas antes de os seus olhos encontrarem os do detetive Marx.

– Creio que seria mais sábio se você retirasse todos os civis dessa área da cidade. Ninguém estará seguro aqui.

– É, eu sei, mas tente dizer isso para a mídia. Conseguimos reunir todo mundo ali atrás, mas é uma merda lidar com a liberdade de imprensa.

Kalona deu de ombros.

– Então, eles terão de aprender a lição por si mesmos.

Com aquela observação agourenta, ele voltou a sua atenção para o Mayo. Thanatos olhava para o prédio, quase como se estivesse hipnotizada por ele. Engoli o meu medo e me posicionei ao seu lado, grata pela presença forte de Stark.

– Eu deveria saber. – A voz de Thanatos estava cansada. Ela deu vários passos na direção ao prédio. – Mas eu raramente era chamada para o local de uma morte humana, e nunca uma morte de tamanha magnitude. – Ela se aproximou mais do prédio, ficando na entrada semicircular de veículos anexa à entrada principal. Thanatos ergueu as mãos e estremeceu. – O terror usado para fazer esta barreira ainda está aqui.

– Sacerdotisa, eu aconselho que não se aproxime mais do prédio – disse Kalona, posicionando-se ao seu lado e gentilmente pegando o seu cotovelo e tentando fazer com que voltasse para a rua.

– Eu preciso ajudá-los – declarou ela, afastando a mão dele.

– Eles? – perguntou Marx.

– Nem todos os mortos se foram. O fim deles foi violento demais, aterrorizante demais, bem além do que qualquer coisa que essas pobres pessoas jamais imaginaram. Sinto os seus espíritos em pânico e eles ficam girando em círculos, incapazes de encontrar uma saída deste reino para o próximo.

– Você pode ajudá-los? – perguntou Vovó, que estava próxima ao Hummer.

– Acredito que sim.

– Tente fazer isso de forma rápida – orientou Kalona.

– Eu devo traçar um círculo? – perguntei.

– Não, Zoey. Você e todos os outros, exceto por Kalona, devem ficar lá trás em segurança. Isso é algo que eu tenho que fazer sozinha. O dom que nossa Deusa me concedeu é tudo de que eu preciso... – Ela fez uma pausa e deu um sorriso de agradecimento para Kalona – ... incluindo um protetor poderoso. Eu preciso acreditar na força que Nyx me dá.

– Façam como Thanatos disse e voltem para o Hummer – pediu Stark, puxando-me com ele. Marx se afastou mais devagar, os seus olhos concentrados em Thanatos.

– Damien! Ei! Damien! – Um humano bonito e jovem chegou correndo.

Damien se virou a tempo de receber um abraço gigantesco.

– Adam! Você não deveria estar aqui. É perigoso demais – repreendeu Damien.

– Ei, sou um jornalista. Eu tenho que lidar com o perigo – declarou ele sorrindo.

Por fim, eu o reconheci. Era Adam Paluka, um jornalista da Fox – o cara que nos entrevistou depois que Neferet deu aquela conferência ridícula. Eu sabia que Damien estava namorando alguém, e pelo modo como aqueles dois sorriam um para outro, acho que as coisas estavam indo bem. Nossa, eu me envolvera tanto com as coisas que estavam acontecendo comigo, que eu nunca pensei em perguntar a Damien como ele estava lidando com o fato de estar namorando tão rápido depois que Jack...

– Você precisa voltar para trás da barreira – disse Marx, aproximando-se de Adam com um olhar carregado.

Mas bem nesse momento, Thanatos começou o seu feitiço, atraindo toda a nossa atenção para si.

A Grande Sacerdotisa ergueu as mãos e fechou os olhos. Quando falou, a sua inquietação acabou. Suas palavras eram rítmicas e hipnóticas; sua voz, calma. Ela era forte, sábia e bonita – e eu tinha orgulho de ser uma novata da Morada da Noite sob o seu reinado.

Espíritos sofredores, venham até mim
Com calma e doçura, que a minha voz os guie assim
E que o meu dom acabe com o sofrimento sem fim

O ar em volta de Thanatos começou a brilhar como se alguém tivesse lançado globos mágicos cheios de purpurina em direção a ela.

– Ai, meu Deus! O que está acontecendo? O que aquela vampira está fazendo?

Eu estava tão concentrada no feitiço de Thanatos, que mal notei o barulho crescente vindo da multidão atrás de mim. Apesar disso, senti que Adam erguera o seu iPhone e ouvi um pequeno clique indicando que ele estava filmando. Stark apertou a minha mão antes de cochichar:

– Acho que Marx está prestes a expulsar os repórteres. Eu vou ver o que posso fazer para ajudá-lo. Certifique-se de que você, o seu grupo e Vovó fiquem perto do Hummer.

Assenti e vagamente notei que Stark estava discutindo com Damien sobre obrigar Adam a sair enquanto Marx caminhava decididamente em direção à barricada. Mas os meus olhos nunca se afastaram da Grande Sacerdotisa. Eu não conseguia parar de olhar. Thanatos comandava toda a minha concentração.

O guia para o fim do sofrimento eu sou sim
O amor atendeu às suas preces e ao terror colocou um fim;
Com calma e doçura, os seus espíritos estão livres assim!

Esferas brilhantes cercavam completamente Thanatos. Quando ela falou o último verso do feitiço e abriu os seus braços, cada uma das esferas precipitou-se para ela. Rindo de alegria absoluta, o rosto de Thanatos se iluminou de amor e ela ergueu os braços. As esferas brilhantes voaram como fogos de artifício para o céu noturno – só que, em vez de deixar para trás um rasto de fumaça, as esferas que desapareciam deixavam para trás um rasto de alívio e felicidade que me fez esquecer o estresse da situação – o horror do sangue e o fedor do Mayo coberto com Trevas –, fez-me esquecer de tudo, a não ser o fato de que, fôssemos humanos ou vampiros, havia sempre uma constante entre todos nós: o amor. Sempre o amor.

E, então, Neferet saiu pela porta da frente arruinando completamente o momento feliz. Antes, pensava que ela parecia uma insana, mas eu estava errada. O que ela era agora fazia a loucura anterior de Neferet parecer não mais que uma excentricidade, como uma velha que gosta de gatos e cheira a urina e mato. Ela estava usando um vestido curto verde. Por um segundo senti certo alívio. Tipo assim, ela não estava nua. Tudo bem, ela estava descalça, mas não achei nada demais naquilo, até que eu realmente olhei para os seus pés. Eles estavam descansando sobre um ninho escorregadio de gavinhas negras que se contraíam e pulsavam ao redor dela, envolvendo seus tornozelos e canelas, e, na verdade, erguendo-a do chão.

Mas aquilo nem era a coisa mais insana em Neferet. Foram os seus olhos que denunciaram a sua loucura. Algo acontecera com as suas pupilas – elas tinham desaparecido. Eram como pedras de mármore, completamente verdes-esmeralda.

– O que há de errado com os olh... – começou Adam, mas o berro de Neferet o cortou.

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo! – Neferet apontou para Thanatos, e duas das gavinhas correram na direção desta.

Kalona se moveu tão rápido, que tudo ficou um borrão. De repente, ele estava lá, entre Thanatos e as criaturas que a atacavam. Ele tirara o seu casaco e revelara a lança de ébano que tinha amarrada nas costas. Suas asas se desenrolaram enquanto ele se encontrava com as gavinhas, espetando uma delas, e enquanto esta se retorcia na agonia da morte, partiu a outra ao meio.

Neferet gritou, como se sentisse a dor das gavinhas.

– Ignorem Kalona! Matem Thanatos! E, depois, todos os outros!

Tudo explodiu.

As gavinhas das Trevas, como veneno cuspido da boca de uma víbora, saíram dos pés de Neferet, tentando passar por Kalona a fim de atingir Thanatos e o resto de nós. Stark voltou para mim, empurrando-me e à Vovó para trás dele e gritando para Damien, Adam, Shaunee e Shaylin para entrarem no Hummer.

Cambaleei para trás, certa de que eu iria assistir a Thanatos ser partida ao meio pelas criaturas de Neferet, provavelmente segundos antes de elas atacarem Stark e, depois, devorarem o restante de nós.

Mas nada daquilo aconteceu. As Trevas não venceram esta batalha – o imortal alado sim.

Kalona estava em todos os lugares. A sua lança se movia tão rápido, que provocava um som no ar.

– Um sabre de luz – arfou Damien. – E é de verdade, e não um de mentirinha como o do Star Wars.

– Leve-os para um lugar seguro! – ordenou Kalona para Marx.

Marx correu para a Grande Sacerdotisa e, enquanto Kalona usava o próprio corpo, suas asas e sua lança para nos proteger, nos apertamos no Hummer.

– Segurem-se! – Eu vou subir na calçada e tirar ele de lá! – avisou Marx ligando o carro.

– Espere! – disse Thanatos. – Ele está vindo para nós. Olhem para as gavinhas. A força delas acaba quando elas se afastam muito de Neferet.

A Grande Sacerdotisa estava certa. Kalona, ferido e sangrando, ainda estava lutando com as criaturas, mas se aproximava de nós e se afastava do Mayo. E as gavinhas não o estavam seguindo.

Quando Kalona chegou à traseira do Hummer, Neferet ergueu os braços e ordenou:

– Venham para mim, filhos! Eu os ajudarei!

As coisas rastejantes deslizaram para ela, enrolando-se em seus braços e pernas. Ela as acariciou, como se quisesse confortá-las, e antes de desaparecer dentro do Mayo, seus olhos brilhantes verdes-esmeralda se concentraram em nós.

– Obrigada pela lição. Da próxima vez, eu vencerei!

Zoey

– Não, de verdade, eu não preciso ir para o hospital – repetiu Kalona pela enésima vez para Marx. – Como eu já disse, traga-me água ou, melhor ainda, vinho. Eu vou subir até o alto deste prédio e me curar.

Nós contornamos o prédio da Oneok e entramos pelos fundos para nos juntarmos à força-tarefa de Tulsa no terceiro andar. Percebi por que Marx estava estressado com Kalona – ele estava ensanguentado. Todos na sala olhavam para ele, mesmo enquanto tentavam não olhar. Sério, se ele não fosse imortal, estaria em um saco preto para cadáveres.

Marx bufou e passou os dedos pelo cabelo.

– Tudo bem, então, já entendi. Já entendi. Você está bem. Carter! – gritou ele para um policial uniformizado, que imediatamente parou de fingir que estava analisando dados na tela do seu computador e deu atenção ao detetive. – Encontre a sala de reuniões do presidente da empresa. Deve haver bebida lá. – Marx voltou a sua atenção para Kalona. – Serve uísque? Esses caras corporativos preferem esse tipo de bebida.

– Serve – respondeu Kalona.

– Pode ir – disse Marx para Carter. – Tudo bem, então. Enquanto Kalona está se recuperando no telhado, vamos fazer um controle de danos. Paluka, passe o telefone para mim e saia daqui.

– Você não pode simplesmente pegar o meu telefone! Isso é ilegal!

– É uma evidência de uma investigação em andamento de múltiplos homicídios. Eu estou apreendendo o seu telefone – informou Marx.

– Um momento, por favor, detetive – pediu Vovó.

– Senhora? – Marx, assim como todos nós, olhou para Vovó, que deu um sorriso sereno.

– Adam, corrija-me se eu estiver errada, mas acredito que você não seja o único jornalista que testemunhou o que acabou de acontecer lá fora.

– Você não está errada – respondeu Adam.

– Ah, exatamente o que pensei. O que significa que deve haver um monte de equipes de filmagem gravando tudo de trás da barreira, isso sem mencionar as gravações feitas por celulares, como a que você fez.

Ouvi Marx suspirar enquanto Adam respondia:

– Exatamente, senhora.

Vovó e Thanatos trocaram um olhar e, então, a Grande Sacerdotisa assumiu a conversa que Vovó iniciara.

– Sr. Paluka, o que o senhor acha de fazer uma entrevista exclusiva comigo e Kalona?

Os olhos de Adam brilharam de animação, mas ele manteve a postura profissional.

– Eu gostaria muito disso, Grande Sacerdotisa.

– Então, é isso que você terá. – Thanatos lançou um olhar para Marx. – Às vezes é mais fácil abrir mão do controle e deixar o destino lidar com o que quer que venha em seguida.

– Pelo menos limpem um pouco do sangue e me deem um monte de comprimidos de Tylenol.

Zoey

Kalona realmente tentou limpar o sangue que escorria dos seus ferimentos semelhantes a chicotadas e dos arranhões menores e mais profundos que mais pareciam mordidas que se espalhavam pelo seu corpo. Achei que ele parecia bem-acabado, e ele ainda sangrava um pouco, mas estava agindo de forma totalmente normal – forte, silenciosa, intimidadora. Thanatos fez com que ele vestisse o casaco comprido. Disse que as suas asas já tinham aparecido o suficiente no vídeo da batalha que Adam exibiria durante a entrevista. Em silêncio, concordei com ela, mas também pensei que o casaco cobria bastante os ferimentos que estavam ali embaixo. Por uma vez, consegui manter a boca fechada e deixei que os outros lidassem com as consequências da luta com Neferet enquanto eu me afastava dos holofotes. Foi um breve momento de relaxamento para mim enquanto me encolhi ao lado de Stark para assistir com Vovó, Damien, Shaylin e Shaunee àquilo que jamais poderíamos imaginar alguns meses antes – Kalona sendo entrevistado pela TV de Tulsa.

Adam chamara uma equipe de iluminação e um cinegrafista. Achei que estavam fazendo um bom trabalho de não ficar olhando estupidamente para Kalona. Adam explicou para todos que iria carregar o vídeo da batalha e exibi-lo e, depois, começaria a entrevista. Também explicou que ela seria exibida ao vivo no plantão de notícias.

– Cara, ainda bem que não estamos ali – sussurrei.

– Adam está fazendo um excelente trabalho – disse Damien com voz suave enquanto seus olhos brilhavam para o jornalista.

– Eu gosto dele.

O olhar de Damien encontrou o meu.

– Você acha que o Jack teria gostado dele.

Estiquei a mão por sobre Stark e apertei a mão de Damien.

– Tenho certeza que sim.

Damien assentiu e piscou para afastar as lágrimas.

– De alguma forma, isso torna as coisas mais fáceis, apenas um pouco mais fáceis, mas sou grato por esse “pouco”.

Então, a nossa atenção estava em Adam enquanto a luz vermelha na câmera parou de piscar e nós assistimos às cenas da batalha de Kalona sendo exibidas em um monitor portátil.

– Sou Adam Paluka, ao vivo, com a vampira e o Guerreiro que acabamos de ver nesta cena surpreendente gravada há alguns momentos em frente ao Mayo Hotel, no centro de Tulsa, quando a Grande Sacerdotisa conhecida como Neferet atacou diversos cidadãos inocentes, inclusive eu. – Adam fez uma pausa, dando então um sorriso caloroso para Kalona. – Eu ainda não lhe agradeci por ter salvado a minha vida. Obrigado!

Kalona pareceu surpreso, quase tímido. Ele assentiu uma vez e disse:

– De nada.

– Kalona estava cumprindo o seu dever. Ele é o meu Guerreiro sob Juramento. Neferet, que não é mais reconhecida por nenhuma autoridade vampírica como Sacerdotisa de Nyx, atacou a mim e os que estavam comigo. Era o dever de Kalona nos proteger – declarou Thanatos.

– Thanatos, é muito bom falar com você novamente. Muitos dos nossos espectadores a reconhecerão como a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Será que você poderia explicar o que estava fazendo na frente do Mayo?

A entrevistada respirou fundo e, então, falou devagar e com clareza, como se quisesse que todos a compreendessem:

– A essa altura, vocês já sabem o que nós apenas suspeitávamos antes, que Neferet está completamente louca e que se tornou uma pessoa malévola. Ela admitiu ter cometido uma matança. Assassinou o prefeito de Tulsa. Assassinou dois homens em Woodward Park. De lá, seus assassinatos se dirigiram para inocentes na Boston Avenue Church no domingo de manhã e, em seguida, para o Mayo Hotel, onde ela se trancou. As mortes que causou no Mayo permitiram que criasse um escudo protetor sobre o prédio. Eu fui até lá por causa do meu dom concedido pela Deusa, que é ajudar as almas a passarem deste mundo para o próximo.

– As luzes brilhantes! Elas eram almas?

Thanatos concordou com a cabeça.

– Exatamente. Elas estavam presas neste reino por causa da forma violenta como morreram. Eu simplesmente as ajudei a se libertarem.

– Nossa! Isso é incrível.

O sorriso de Thanatos foi bonito.

– O ciclo da vida é realmente incrível.

– Sim, é claro que sim. Espere um pouco, Thanatos. Isso significa que eram almas humanas que você ajudou na passagem?

– Isso mesmo – respondeu ela, serena.

– Mas você é uma vampira .

O sorriso da Grande Sacerdotisa se abriu mais.

– Achei que já tínhamos falado disso.

– É verdade. – Adam passou os dedos pelo cabelo perfeito. – Mas uma pessoa da sua raça a atacou porque você estava ajudando almas humanas .

– Adam, já vivi por mais de quinhentos anos, e, nesse tempo, eu aprendi que a humanidade é definida pelas escolhas, e não pela genética. Para colocar de forma bem simples, humanos e vampiros têm mais semelhanças do que diferenças.

– Obviamente Neferet não pensa como você – disse Adam.

– Neferet está louca. Seus pensamentos são excêntricos e perigosos.

– O que são aquelas coisas que ela enviou para nos atacar? – perguntou Adam.

– O mal que tomou uma forma tangível. As criaturas seguem as ordens de Neferet. Desde que ela faça sacrifícios para mantê-las leais a ela. – Thanatos olhou diretamente para a câmera. – Nunca é demais enfatizar que, não importa o quanto Neferet ameace, é imperativo que nenhum humano deve chegar perto do Mayo. O poder de Neferet vem da morte. Fiquem longe do Mayo e a sua fonte de poder vai acabar secando.

Adam parou, pareceu chocado e, então, olhou para alguém que não estava aparecendo na filmagem.

– Detetive Marx, o senhor concorda com o pedido de Thanatos em relação ao Mayo?

O cinegrafista apontou a câmera para um detetive com expressão irritada. Imperturbável, ele respondeu sem hesitar:

– Concordo. O Departamento de Polícia de Tulsa colocou barreiras nas ruas que cercam o Mayo. Ninguém pode se aproximar do Mayo, nem mesmo as equipes policiais ou os militares.

– Mas não é verdade que Neferet está mantendo reféns dentro do Mayo? – quis saber Adam.

– É verdade, mas, nesse momento, não temos nomes nem números – respondeu Marx. – Eu entendo que as pessoas vão sentir falta dos seus entes queridos. O Departamento de Polícia abriu uma linha telefônica 0800 para perguntas e informações de pessoas desaparecidas. O público deve direcionar as suas perguntas por esse número.

– Número esse que o canal Fox 23 vai colocar na parte inferior da tela – informou Adam.

– Obrigado – agradeceu Marx, embora ele não parecesse particularmente grato.

– Detetive Marx, eu preciso perguntar: se o senhor não vai permitir que ninguém se aproxime do Mayo, como é que pretendem deter Neferet?

– Ela será detida por mim, pelos vampiros e pelos novatos que lutam ao meu lado. Neferet é da nossa raça. E somos nós que devemos derrotá-la.

Todos nós, inclusive o cinegrafista, concentraram-se no imortal alado.

– Kalona, o senhor não é um vampiro, certo? – perguntou Adam.

– Certo.

– Então, o que o senhor é?

Ele nem mesmo hesitou. Disse aquilo como se estivesse contando o que comeu no jantar da noite anterior.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas fiz escolhas ruins e, por isso, fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

Seguiu-se um silêncio em que ninguém parecia respirar. Então, Adam perguntou:

– E o que o senhor está fazendo aqui?

Kalona se empertigou e olhou diretamente para a câmera.

– Estou tentando me redimir dos meus erros do passado e obter o perdão de Nyx.

– Bem – Adam engoliu em seco –, parece-me que o senhor está fazendo um bom trabalho aqui. O senhor salvou a Grande Sacerdotisa, um grupo de vampiros e novatos, um detetive. Salvou, inclusive, a mim. Se o senhor conseguir deter Neferet, eu vou começar a chamá-lo de Super-Homem.

Os lábios carnudos de Kalona se ergueram em um sorriso.

– Se você vir Nyx, eu gostaria muito que dissesse isso para ela.

– Pode contar comigo – assegurou Adam. Então, ele se voltou para Thanatos: – A senhora tem mais alguma coisa a acrescentar, Grande Sacerdotisa? Será que existe alguma forma de o público nos ajudar?

– Existe sim – respondeu ela. – Todos podem rezar e enviar pensamentos e energia positiva para nós. A Morada da Noite fará o melhor que puder para proteger o povo de Tulsa, mas nós precisamos de intervenção divina.

– Rezar? Para quem? Para Deus ou para a Deusa? – quis saber Adam.

– Ora, para qualquer um deles ou para os dois, é claro. Gosto de acreditar que as orações não estão presas a questões semânticas.

Adam sorriu.

– Eu também prefiro acreditar nisso. – Ele se virou para a câmera. – Vamos todos rezar pelo fim da insanidade de Neferet e da violência que irrompeu em Tulsa em decorrência disso. E essas foram as últimas notícias sobre a situação no Mayo Hotel. Sou Adam Paluka, lembrando a todos para ficarem ligados no canal Fox 23 para terem uma cobertura completa.

– O irmão de Erebus. Isso não é interessante? – perguntou Vovó, enquanto Adam trocava um aperto de mão com Thanatos e agradecia a ela e a Kalona pela entrevista.

– Você sabia que ele era irmão de Erebus? – sussurrou Damien para mim.

– Hã... Sabia – respondi. – Ele mencionou isso há alguns dias.

– Mas estivemos meio ocupados desde então – completou Stark.

Damien coçou a testa.

– Eu me lembro vagamente de ter lido em uma antiga antologia poética vampírica algumas menções sobre o Filho da Lua e Guerreiro da Noite, junto com as descrições usuais de Erebus como Filho do Sol e Consorte de Nyx. Inicialmente, achei que eram apenas nomes diferentes para Erebus, mas, pensando bem, faz mais sentido que estivessem falando de dois imortais distintos.

– Isso torna os séculos de raiva de Kalona mais compreensíveis – declarou Vovó.

– É. Ter deixado de ser o guerreiro e companheiro de Nyx e não ter nem mais permissão para entrar no Mundo do Além. Isso deve doer de verdade – disse Damien, observando Kalona com olhos grandes e tristes.

– Ele estuprou e matou gente. Quem sabe o que ele fez no Mundo do Além antes de sua Queda – contou Stark.

– Todo mundo merece uma segunda chance, Tsi-ta-ga-a-s-ha-ya – afirmou Vovó, usando o apelido Cherokee que dera a ele. – Eu me lembro de que não faz muito tempo que você teve uma segunda chance.

Stark olhou para o chão.

Eu respirei fundo e disse:

– Eu também.

Vovó levantou as sobrancelhas.

– Hoje eu ganhei uma segunda chance – expliquei. Olhei de Vovó para os meus amigos, um de cada vez, e, por fim, meu olhar encontrou o de Stark. – Nós somos um time que precisa de uma segunda chance. Estou feliz de ter Kalona ao nosso lado.

Vovó tocou o meu braço.

– Algum dia, você deveria dizer isso para ele, u-we-tsi-a-ge-ya . Acho que você vai ficar surpresa com a diferença que suas palavras podem fazer.


10

Zoey

– Que merda! Você não vai acreditar no que acabou de viralizar no YouTube! – Nicole subiu correndo as escadas do auditório para o palco, acenando com o seu iPad como uma louca.

Aphrodite olhou para ela e afastou o iPad de si.

– Sério? A assembleia acabou agora mesmo . Você estava no YouTube enquanto eu estava falando?

– Sério. – Nicole revirou os olhos. – Supere isso. Todo mundo estava no YouTube. Você tem que ver isto. – Ela empurrou o iPad em direção a Aphrodite.

– Ser professora é um saco. Adolescentes são um saco – declarou Aphrodite, ainda ignorando o aparelho.

– Aiminhadeusa! Aquele é o Kalona? No YouTube? – Stevie Rae passou por Aphrodite para dar uma olhada na tela.

– O quê? Kalona? – Lenobia se apressou para ficar ao lado de Stevie Rae, com Darius e Rephaim logo atrás.

– Muito bem. Eu vou assistir. Agora que eu acabei de informar a todo o corpo discente que vamos salvar o mundo. De novo. – Aphrodite olhou para a tela e arregalou os olhos. – Céus! Por que você demorou tanto para nos dizer? Ligue logo! – Ela agarrou o iPad, tocou no botão para tocar e aumentou o volume até o máximo.

Não era um vídeo profissional, mas o início estava muito claro. Primeiro, focava em Thanatos. Ela estava na frente de um prédio com aparência horrível que parecia estar coberto por uma cortina gosmenta preta. Assistiram enquanto a Grande Sacerdotisa concluía o seu feitiço, erguendo os braços e sendo envolvida por um monte de esferas bonitas e brilhantes. Quando elas se ergueram aos céus, o vídeo ainda mostrava Thanatos, mas, ao fundo, dava para ouvir Neferet gritando:

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo!

O vídeo mudou e agora dava para ver Neferet em frente ao que devia ser o Mayo.

– Ela parece estar precisando de um McLanche Feliz – disse Stevie Rae.

Aphrodite não afastou os olhos da tela.

– Isso é tudo que você tem a dizer, caipira?

– Eu acho que ela está mais doida que um gato preso num saco – opinou Nicole.

– Ninguém perguntou... – começou Aphrodite, mas a explosão no vídeo interrompeu as suas palavras.

– Aiminhadeusa! Não! – ofegou Lenobia, enquanto assistiam a Neferet lançando uma nuvem de Trevas atrás de Thanatos e de todos os outros.

– Meu pai está salvando todo mundo – disse Rephaim.

– Olhem como ele se move. – A voz de Darius era respeitosa. – Sua velocidade e força são incríveis.

Aphrodite não teve a chance de concordar. O vídeo terminou com quem quer que estivesse filmando parando para entrar no Hummer da escola, embora ainda tenha conseguido filmar Neferet e os tentáculos sangrentos das Trevas deslizando para dentro do Mayo.

Então, começou a entrevista, e Aphrodite teve de se obrigar a fechar a boca, que estava aberta de forma não atraente porque lá estava Kalona – com asas e tudo –, ao lado de Thanatos no canal Fox 23.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas eu fiz escolhas erradas e, por isso, eu fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

– Irmão de Erebus? Ele só pode estar brincando! – Aphrodite sentiu que sua cabeça iria explodir.

– É verdade – confirmou Darius em voz baixa quando o vídeo chegou ao fim.

A tela ficou escura e Aphrodite olhou para ele.

– Você sabia ?

– Sabia. Kalona contou para Zoey, Stark e eu – admitiu Darius.

– E nenhum de vocês achou que seria importante contar para qualquer um de nós? – perguntou Lenobia, parecendo tão irritada quanto Aphrodite.

Darius encolheu os ombros largos.

– Para dizer a verdade, eu nem pensei muito nisso. A veracidade de Kalona foi mais do que questionável desde o momento em que ele apareceu aqui.

– Mas agora você acredita nele? – quis saber Rephaim.

Darius olhou para ele.

– Acredito.

– Rephaim, você sabia que o seu pai era irmão de Erebus? – perguntou Stevie Rae.

Os olhos do menino-pássaro ficaram tristes.

– O meu pai nunca fala sobre antes .

– O que significa que não, você não sabia? – insistiu Aphrodite.

– Isso – confirmou Rephaim, parecendo tão misterioso quanto o seu pai.

– Isso muda tudo – declarou Lenobia.

– Sim, de forma maravilhosa – animou-se Nicole, assentindo como um boneco bobblehead . [*] – Isso significa que temos um guerreiro de Nyx no nosso time.

– Não – discordou Aphrodite, secamente. – Significa que temos um ex-guerreiro de Nyx que fez tanta merda, que acabou expulso do Mundo do Além no nosso time. E isso não é tão legal assim.

– Ele disse que está tentando se redimir – falou Rephaim.

– E ele salvou Thanatos e os outros – reforçou Darius.

– Sinto muito, mas eu não estou pronta para pular cegamente para o time Kalona – disse Aphrodite.

– Acho que é cegueira ignorar o que está bem na frente dos seus olhos – retorquiu Rephaim, apontando para a tela escura do iPad.

– E eu acho que tem um monte de coisas sobre Kalona que não sabemos. – Ela fez uma pausa e lançou um olhar duro para Darius. – Ou pelo menos a maioria de nós não sabe. Agora, se vocês não têm mais nada que prefiram fazer, eu adoraria que reunissem todos os novatos que apresentem algum talento guerreiro. Tenho certeza de que Thanatos vai querer um exército para a batalha. Depois de assistir à louca no YouTube, tenho a sensação de que Neferet não vai dar a mínima para o time Kalona. – Aphrodite então deu um tapa na própria testa e acrescentou sarcasticamente: – Ah, esperem! A maldita Neferet provavelmente já sabe sobre a relação Kalona–Erebus, assim como praticamente todo mundo menos eu . – Ela jogou o cabelo para trás e se retirou.

Só quando já estava do lado de fora do auditório é que Aphrodite diminuiu o passo e permitiu que os pensamentos acompanhassem as suas emoções. Seu coração estava disparado e seu estômago, apertado. Estava puta da vida. Muito puta da vida.

Não, isso não é verdade. Eu não estou puta da vida. Eu estou assustada e chateada.

Com um suspiro enorme, Aphrodite saiu da calçada e foi até um dos bancos de carvalho. A mão que afastou o cabelo louro do seu rosto estava trêmula.

Darius omitira um segredo, algo importante. Até aquele momento, acreditara que ele era diferente de todos os outros caras nesta Terra. Ele deveria ser honesto. Ele deveria ser leal. E, acima de tudo, ele deveria amá-la o suficiente para nunca mentir para ela ou guardar um segredo dela.

Quando alguém conta uma mentira, é possível medir o quanto esse alguém amou você ou não. Aphrodite sabia disso porque crescera ouvindo uma mentira constante que não parava de crescer. Os seus pais fingiam ser um casal perfeito, mas a verdade era que se odiavam tanto quanto a odiavam. A não ser quando estavam em público, eles viviam vidas totalmente separadas – eles nem compartilhavam o mesmo quarto havia mais de uma década, quanto mais os segredos.

Eles mentiam um para o outro todos os dias.

Quando ela só tinha oito anos de idade, Aphrodite jurara para si mesma que jamais entraria em qualquer relacionamento semelhante ao casamento dos pais. Merda, até conhecer Darius, nunca tinha permitido que um cara se aproximasse o suficiente dela a ponto de importar se ele mentiria ou não. Ela se certificava de mentir para eles primeiro . Ela os traía primeiro . Ela terminava com eles primeiro .

– Eu consigo sentir a sua tristeza, minha bela. Por favor, fale comigo.

Aphrodite ergueu o olhar ao ouvir a voz de Darius, mas não o olhou nos olhos. Olhou por sobre o ombro dele.

– Sobre o que você quer conversar?

Ele se sentou ao lado dela e usou as costas da mão para enxugar uma lágrima que escorria pela bochecha dela. Aphrodite se afastou dele rapidamente, enxugando o outro lado do rosto.

– Eu quero conversar sobre nós – respondeu ele.

– É mesmo? Será que não seria bem mais fácil continuarmos seguindo do jeito que estamos? Fingindo estar “apaixonados para todo o sempre”? – perguntou ela sarcasticamente e usando os dedos para indicar as aspas.

– Nunca foi fingimento para mim. Você sabe muito bem disso, Aphrodite. – O tom dele era calmo e sério.

Ela desejou dar uma tapa na cara dele – machucá-lo –, fazê-lo sentir um pouco do medo que estava sentindo. Mas não fez nada de violento. Isso significaria perder o controle. Isso significaria que tinha se transformado na sua mãe. Em vez disso, Aphrodite o atacou com palavras.

– E como é que eu posso saber disso? Eu não posso entrar na sua cabeça. Eu nem posso compartilhar os seus sentimentos como uma verdadeira Profetisa faria. Mas tanto faz. Não se preocupe com isso. Está tudo bem, e nós dois temos um monte de merda para fazer porque, como sempre, as Trevas estão tentando dominar o nosso mundo.

– As Trevas terão de esperar, porque você é o meu mundo, e se eu perder você, eu vou me perder.

Aphrodite quis se levantar e se afastar dele sem olhar para trás. Ela iria endurecer o coração, deixá-lo tão duro quanto ele costumava ser para, na verdade, protegê-la. Antes da tempestade de Zoey e seu bando Nerd e Darius aparecerem na sua vida.

Era o que ela iria fazer, mas, de alguma forma, Darius disse exatamente a coisa certa. Então, as pernas de Aphrodite, de repente, decidiram ouvir o seu coração em vez de escutar a cabeça.

Aphrodite olhou para ele.

– Você mentiu para mim.

– Não, minha bela. Eu simplesmente não contei uma coisa para você.

– Por quê? Por que você não me contou? Kalona ser irmão de Erebus é uma puta informação importante.

– Eu não estou nem aí para o que Kalona disse ou deixou de dizer. Eu só ligo para você e o que você diz.

– Eu? – Aphrodite franziu as sobrancelhas. – Do que é que você está falando? Eu nunca mencionei qualquer coisa remotamente semelhante à possibilidade de Kalona e Erebus serem irmãos.

O sorriso de Darius foi lento e doce.

– Exatamente. E se você, minha bela Profetisa talentosa, não tem qualquer insight sobre o verdadeiro passado de Kalona, então por que é que eu deveria mencionar um comentário fora de contexto que um imortal alado fez? Aphrodite, se fosse importante que soubéssemos que Kalona era irmão de Erebus, então creio que você teria dito isso para mim .

Aphrodite meneou a cabeça, sentindo-se um pouco tonta quando ela se deu conta do que Darius realmente estava dizendo para ela.

Ele pegou a sua mão.

– Será que eu já disse hoje o quanto eu amo você?

– Não – sussurrou ela, pensando: por favor, não diga isso se não for verdade. Por favor, não faça isso.

– Com todo o meu ser – declarou ele.

Lágrimas escorreram pelo rosto de Aphrodite, mas ela não afastou o olhar dele.

– Não tenha medo – pediu ele.

– Eu tenho. Isso ainda me assusta – admitiu ela.

– Também me assusta, mas, para ficar com você, realmente com você e não apenas fingir para que o meu coração fique em segurança, vale a pena enfrentar e dominar esse medo.

– Mas você é um guerreiro. Eu não sou nada. Não de verdade. Eu sou apenas... – Sua voz falhou. Não conseguiria dizer, mas as palavras enchiam a sua mente: eu apenas sou filha de uma mulher horrível que só me ensinou a odiar, e nunca, nunca confiar no amor.

– Você é a pessoa mais corajosa que eu conheço – afirmou Darius com voz solene. – E você não é, e nunca será, como a sua mãe.

– E você nunca vai mentir para mim.

Ela não falou aquilo como uma pergunta, mas ele se levantou do banco e se ajoelhou, pressionando a mão dela contra o coração dele, dizendo:

– Aphrodite, Profetisa de Nyx, eu lhe juro que jamais mentirei para você. Se eu não falar a verdade sempre para você, que a Terra me engula inteiro para que o meu espírito jamais encontre o Mundo do Além.

Um calafrio terrível passou por Aphrodite e ela agarrou Darius, puxou-o para os seus braços e sorriu.

– Não, pare já com isso! Qualquer um pode contar acidentalmente uma mentira. Qualquer um! Eu não aceito o seu juramento!

Darius se inclinou um pouco para trás, segurando gentilmente os ombros trêmulos dela, e sorriu.

– Mas eu não sou qualquer um . Eu sou seu. O seu guerreiro. O seu amante. O seu companheiro. Juro que nunca vou mentir para você porque isso a magoaria mais do que poderia suportar, e eu prefiro que a Terra me engula para sempre do que fazer isso com você.

Enquanto olhava para Darius e via a verdade nos seus olhos, algo se libertou dentro de Aphrodite – algo pequeno e afiado que estivera fincado dentro dela por muito, muito tempo. Ela ofegou e inspirou fundo, soltando o ar devagar.

– Acabou – sussurrou ela.

– O que acabou, minha bela?

– O meu medo. Acabou, Darius. Você acabou com ele. – Aphrodite sabia que soava jovem e tola. Mas não ligava. Pela primeira vez na vida, não estava com medo de perder o amor. – Eu não posso perder você! – exclamou ela.

– Não – respondeu ele, sorrindo de novo. – Você jamais vai me perder. E eu não acabei com o seu medo. Você o deixou ir.

– Ah – respondeu ela, suavemente, compreendendo por fim. – Sinto muito por ter demorado tanto.

– Você demorou o tempo necessário, e eu não me arrependo por ter esperado.

Darius a beijou em seguida, e Aphrodite vivenciou a felicidade completa.

Até que Aurox os interrompeu.

– Darius! Aí está você. Venha rápido. Eles estão nos portões.

Aphrodite se apoiou no ombro de Darius e franziu as sobrancelhas para Aurox.

– Ah, que droga! Se você interrompeu este momento porque Zoey e seu bando nerd voltaram, eu vou acabar com você...

– Não é a Zoey! – explicou Aurox. – São humanos! Os humanos estão nos portões pedindo para entrar porque querem que nós os protejamos contra Neferet!

– Bem, neste caso, acho que devemos deixá-los entrar – declarou Darius, levantando-se e oferecendo a mão para Aphrodite. – Você não acha, minha bela?

Ela suspirou e resmungou:

– Tudo bem. Desde que não tenha nenhum político com eles.

[*] Bobblehead refere-se a bonecos que possuem a cabeça presa ao corpo por meio de uma mola, a qual faz com que a cabeça balance quando há qualquer movimento. (N. E.)


11

Zoey

– Ah, que merda! Uma multidão? Isso é tudo de que precisamos agora. – Suspirei, frustrada, enquanto passávamos pelo semáforo na Twenty-first Street em Utica e conseguimos ver a escola.

Foi uma cena superestranha. Já passava da meia-noite, e a rua estava escura. Deveria estar vazia também, mas os grandes portões de ferro da escola estavam abertos, e pudemos ver um monte de gente reunida na frente dele. Os dois lampiões a gás envolvidos por candeeiros de cobre desgastados pelo tempo lançavam sombras bruxuleantes em um semicírculo sobre o grupo. As pessoas também vinham dos dois lados da rua. Fora do alcance das chamas da escola, dava para ver as sombras escuras dos carros que estavam estacionados na calçada, parecendo abandonados e completamente fora de lugar.

– Você está vendo alguma coisa queimando além das nossas lanternas? Tipo um crucifixo gigantesco em chamas? – A cabeça de Shaunee apareceu entre mim e Stark enquanto tentava ver melhor do banco de trás onde estava.

– Parem o carro e deixem-me sair daqui. Eu vou resolver isso! – avisou Kalona.

– Não! – gritaram Thanatos, Marx e Vovó juntos.

– Eles não parecem zangados – disse Thanatos.

O detetive Marx parou e baixou o vidro. Todos apuramos os ouvidos para escutar alguma coisa, e então ele disse:

– Está difícil enxergar alguma coisa, mas não estou ouvindo gritos.

– A minha visão noturna é melhor do que a sua, e eu não estou vendo nenhum tumulto ou pânico. Tudo parece notavelmente calmo – declarou Thanatos.

– Tudo bem, melhor prevenir do que remediar. Então, vamos nos certificar de que saibam de que lado da lei a Morada da Noite está.

O detetive pegou uma sirene portátil que trouxera com ele do Oneok e a acoplou ao teto do Hummer. Ligou-a, e ela começou a girar uma luz azul e vermelha que era familiar demais para qualquer um de nós que não tivesse parado totalmente no cruzamento da rua 101 com a Lynn Lane, em frente à South Intermediate High School. Não que eu tenha qualquer experiência pessoal com isso. Só estou dizendo que é estranho estar em um carro de polícia quando a sirene está ligada.

Marx deu mais um tapa na sirene, que então emitiu um som odioso duas vezes. A luz e o som trabalharam em sintonia perfeita. A multidão se abriu e se virou para nós e, reconhecendo a presença do Departamento de Polícia de Tulsa, as pessoas abriram caminho para que o Hummer pudesse chegar à entrada da escola.

Diante do local onde o portão de ferro deveria estar seguramente trancado estavam Aphrodite, Darius, Stevie Rae, Rephaim, Lenobia e Aurox, todos alinhados na frente da entrada formando uma passagem humana.

– O que eles estão fazendo? – perguntou Stark, ecoando os meus pensamentos.

– Espero que tenham tomado decisões sábias – desejou Thanatos.

Em silêncio, concordei enquanto os meus olhos pousaram primeiro em Aphrodite. Se ela aparentasse estar zangada, ou segurasse uma bebida, eu saberia que o que quer que estivesse acontecendo ali era ruim – com crucifixos em chamas e gritos ou não. Mas ela parecia confusa. Tipo, obviamente confusa. Uma de suas mãos estava no quadril e os ombros, encolhidos. Ao mesmo tempo, Lenobia estava assentindo e conversando com alguém na multidão que eu não conseguia ver direito.

– Aphrodite parece confusa, mas não assustada – expus a minha observação de surpresa. – E Lenobia parece estar de acordo com o que quer que seja que está acontecendo. Não deve ser tão horrível.

– Lá estão a irmã Mary Angela e a irmã Emily. Ah, eu estou vendo! Tem um grupo de freiras lá na frente. – Vovó apontou e acenou. – Está tudo bem se elas fazem parte do grupo.

– É uma boa teoria, mas eu vou parar dentro da escola antes que qualquer um de vocês desça. E quero que vocês permaneçam nas dependências da Morada da Noite, não importa quem possa estar chamando vocês do lado de fora – declarou Marx.

Percebi que Vovó estava fazendo cara feia, mas Thanatos foi rápida em concordar:

– Pode deixar, detetive.

Eu estava feliz. Tudo bem, talvez fosse porque não havia se passado nem 24 horas desde que eu saíra da cadeia, mas uma multidão de humanos em torno dos portões da escola – ainda que fossem humanos conhecidos que pareciam ter vindo em paz – fazia o meu estômago se contrair com o estresse da situação. Isso sem mencionar que já passava da meia-noite e não fazia muito tempo desde que Neferet jogara pedaços de corpos humanos pela varanda da sua cobertura no Mayo. Eu não tinha a menor intenção de olhar de cara feia para Marx nem Thanatos, muito menos desobedecê-los. Na verdade, eu esperava já ter sido desobediente o suficiente pelo que seria o resto de uma vida que eu esperava ser longa e chata.

Então, Kalona saiu do Hummer.

– Ei, não é aquele cara alado? – gritou alguém na multidão.

– Uau! O filho de Erebus! – exclamou alguém mal-informado e pronunciando erroneamente o nome Erebus de forma que soasse como Airbus , o que fez Stark cobrir a boca com a mão para disfarçar o riso com uma tossida.

Dei uma cotovelada de leve em Stark, e ele me lançou o seu olhar charmoso e sorriso torto dizendo com os lábios “Airbus ”. Revirei os olhos.

– Tudo bem, tudo bem – disse o detetive Marx enquanto erguia as mãos fazendo um gesto para o público se acalmar. – Não tem nada para ver aqui. Vocês precisam se afastar e desbloquear a entrada.

– Ah, não precisa se preocupar, detetive. Não queremos bloquear a entrada da escola. Só queremos entrar na escola. – Uma freira alta, usando véu, deu um passo para a frente com um sorriso maternal nos lábios. – É tão bom vê-lo de novo, Kevin.

– Irmã Mary Angela, senhora. – Detetive Marx fez um gesto antigo de respeito com a cabeça. – É muito tarde para a senhora e as outras freiras fazerem uma visita social.

– Ah, Kevin, não estamos aqui para uma visita – declarou ela de forma enigmática.

Antes que Marx tivesse a chance de interrogá-la, Vovó falou passando por ele para encontrar a freira da fronteira da escola.

– Mary Angela, eu estava pensando em você hoje cedo.

Elas deram um abraço. A freira riu e disse alto o suficiente para que todos ouvissem:

– E quando foi que pensou em mim? Antes ou depois de ter sido atacada pelas Trevas? Você leva uma vida tão interessante, Sylvia.

Aphrodite, que se aproximou para ficar ao meu lado, bufou, dizendo:

– Os velhos deviam ter uma vida menos interessante.

– Nós devíamos ter uma vida menos interessante – retruquei baixinho.

Vovó sorriu como se tivesse nos ouvido.

– Foi depois, quando Thanatos pediu que todos em Tulsa rezassem para nos ajudar.

– Ah, que adorável coincidência, porque foi a oração que nos trouxe até aqui.

– Por favor, explique, cara irmã – pediu Thanatos.

Notei que ela não se juntou à Vovó. Olhei para Kalona, que estava colado ao seu lado como se esperasse que mais gavinhas das Trevas aparecessem a qualquer momento.

– Mas que merda, já chega dessa procrastinação – reclamou Aphrodite, dando um passo para a frente. – Eles querem a nossa proteção.

Eu a segui, embora Stark tenha segurado o meu cotovelo para que eu fosse mais devagar.

– Creio que a palavra correta para o que eles querem seja “santuário” – interveio Lenobia.

– Você quer dizer a palavra politicamente correta – retorquiu Aphrodite.

– Se qualquer um de nós fosse politicamente correto, não estaria aqui. – Do meio das sombras iluminadas pela luz dos lampiões, uma mulher pequena, seguida por um homem esbelto, caminhou até irmã Mary Angela. Ela assentiu educadamente para Thanatos. – Shalom, Grande Sacerdotisa.

– Eu a saúdo com paz, rabina Margaret – cumprimentou Thanatos. Agora que estavam mais perto da luz, o casal me parecia familiar. – Eu também o saúdo com paz, rabino Steven. É sempre um prazer ver os nossos vizinhos do Templo de Israel.

Percebi por que a mulher e o homem pareciam conhecidos. Eram rabinos casados, Margaret e Steven Bernstein, que recentemente se tornaram os líderes no Templo de Israel, localizado, literalmente, do lado da Morada da Noite, que dava para Utica Square. Eu me lembrava de que eles tinham elogiado muito os cookies de chocolate da Vovó durante o nosso evento antes que a noite tivesse, é claro, terminado em desastre e morte.

– Então, é realmente um santuário que vocês buscam nesta noite? – perguntou Thanatos para o casal, mas a sua voz se ergueu para toda a multidão.

– É – respondeu a rabina Margaret, enquanto ela e o seu marido, assim como todos, assentiam em concordância.

– A irmandade das beneditinas também busca um santuário – declarou irmã Mary Angela.

– Assim como a congregação de Todas as Almas – disse uma mulher mais velha, dando um passo para a frente e saindo das sombras. Ela tinha cabelo louro desbotado e comprido, mas os seus olhos eram de um azul tão vívido que, mesmo sob a luz fraca, brilhavam como pequenas águas-marinhas.

Thanatos hesitou. Lançou um olhar para Lenobia, que sorriu. Olhou para Kalona, que franziu o cenho. E, então, ela me surpreendeu ao olhar para mim por sobre o ombro. Encontrei o seu olhar e fiz o que meus instintos me mandaram fazer – sorri e assenti.

Thanatos voltou-se para Suzanne, segurou o seu antebraço na saudação vampírica tradicional e ergueu a voz, repleta com o poder de Nyx:

– Como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, eu lhes dou as boas-vindas ao grande santuário para todos que o buscam!

Ao meu lado, ouvi Stark suspirar e sussurrar.

– Ai, que merda...

Zoey

– Não, Bobby! Quantas vezes a mamãe vai ter que dizer? Você não pode tocar nas asas do moço alto! – Uma mulher com aparência cansada pegou o seu bebê que estava cambaleando pelo piso arenoso do ginásio com os braços erguidos, tentando pegar a ponta da asa de Kalona.

Mordi a bochecha para não rir enquanto o imortal alado fazia um som de desagrado e dava um passo para evitar os dedinhos grudentos. O bebê tentou sair do alcance dos braços cansados da mãe. Kalona foi para o outro lado. Como sempre, onde quer que aparecesse, todos os humanos concentravam sua atenção nele, e isso parecia afetá-lo. Ele parecia cansado. Curiosamente, os seus ferimentos ainda não tinham se curado por completo, formando linhas e círculos rosados dolorosos. Achei que talvez ele não tivesse passado tempo suficiente no telhado do Oneok quando um “Psiu!” de Aphrodite chamou a minha atenção.

– Z., caipira, venham comigo, agora! – chamou ela.

Stevie Rae e eu largamos um garrafão de água que levávamos para o ginásio e seguimos Aphrodite até o fim do muro mal-iluminado em cuja abertura ficava a estátua de Nyx.

– Cara, eu estou acabada – declarou Stevie Rae.

– Eu também – concordei.

– Já passou da hora do nosso intervalo – disse Aphrodite, jogando latas de refrigerante marrom para nós duas.

Então, ela me pegou totalmente de surpresa ao abrir uma lata para si.

– Refrigerante? Você? Achei que odiasse.

– E odeio mesmo, e isso não é refrigerante. É champanhe de Sophia – informou ela, tomando um gole pelo canudo cor-de-rosa que tirara da lata fina da mesma cor.

– Quem diria, champanhe em uma lata – comentou Stevie Rae.

– Qualquer um que seja civilizado.

– Eu não sabia – disse eu.

– Exatamente o que eu quero dizer – respondeu Aphrodite. Então, ela lançou um olhar para Kalona que estava no meio do ginásio, com certeza procurando alguém e tentando ignorar as pessoas que o olhavam. – Kalona e humanos, principalmente humanos pequenos, equivalem a um acidente de trem apocalíptico – declarou ela.

– Concordo plenamente – disse eu. – Vocês acham que ele está parecendo cansado?

Aphrodite bufou.

– Nós todos parecemos cansados.

– Acho que ele parece como sempre, só que um pouco ferido, o que torna aquele bebê meio malvado por tentar agarrar uma pena de sua asa – opinou Stevie Rae.

– Kalona é imortal. Ele está bem. E um bebê arrancando a pena dele seria mais que demais – declarou Aphrodite. – Acho que eu poderia convencer aquela criancinha a fazer isso. Ou melhor, convencer a mãe a permitir que o filho faça isso. Você acha que ela gostaria de um coquetel mimosa?

– Aquela mãe parece mesmo estar precisando de um coquetel mimosa, mas sem o suco de laranja. Acho que ela gostaria de uma das suas latinhas cor-de-rosa – disse Stevie Rae.

– Eu não costumo dizer isso com frequência, porque geralmente não é verdade, mas acho que você está certa, Stevie Rae – concedeu Aphrodite. – Embora eu venha a precisar de mais de uma dessas latinhas. Parece um trabalho para a viúva Clicquot.

– Viúva Clicquot? Ela é do Templo de Israel?

– Ah, sua pobre ignorante – lamentou Aphrodite, meneando a cabeça tristemente para Stevie Rae.

Kalona conseguiu passar pelo bebê e estava se movendo de novo. Ai, ele parecia estar vindo na nossa direção!

– Diga que ele não está vindo para cá.

– Quem dera eu poder dizer isso – respondeu Aphrodite.

– Ele parece um pombo gigante voltando para o poleiro – disse Stevie Rae.

– Será que devemos ir ao encontro dele? – sugeri, bocejando.

Olhei para o relógio da escola. Já eram 5h30 da manhã. Tínhamos pouco menos de uma hora antes de o sol nascer, e eu entendi o que era exaustão.

– Salvar Kalona dos humanos? Não mesmo – respondeu Aphrodite.

– Concordo – reforçou Stevie Rae.

Dei de ombros e bocejei de novo.

– Por mim, tudo bem. Estou cansada demais para me mexer.

Thanatos decidira que o melhor lugar para colocar todos os humanos – e realmente havia muitos deles – era no maior prédio do campus , o nosso ginásio. Achei uma boa ideia. O lugar era enorme, e com todos reunidos ali seria mais fácil manter o controle. É claro que a maior parte do piso do ginásio era de areia, porque era usado para o treinamento dos guerreiros, e a areia era um saco. Areia, sacos de dormir e humanos cansados, amedrontados e mal-humorados não constituíam uma boa combinação, então nós todos (quero dizer, quase todo mundo no campus , exceto Thanatos, Vovó, detetive Marx e os líderes religiosos) passamos as últimas horas nos esforçando para cobrir a arena dos guerreiros com lona, transformando o lugar no que parecia ser um abrigo temporário contra furacões. Não que aquilo fosse muito melhor, mas estava menos arenoso e mais limpo para as famílias dormirem.

– Olhe isso. – Aphrodite me cutucou com o ombro. – O rabino Steven Bernstein cercou Kalona. Aposto que está fazendo todo tipo de pergunta maluca sobre o Torá.

– É culpa do Kalona – disse eu. – Ele bem que poderia usar uma camisa.

– Pois é! Qual é a necessidade de ficar exibindo o peitoral? – questionou Aphrodite.

– Olha só, gente – interrompeu Stevie Rae, apontando. – Acho que Nicole e Shaylin estão se tornando boas amigas. Fico feliz. Nicole mudou muito e, bem, Shaylin precisa de uma melhor amiga, principalmente depois que você deu uma de louca para cima dela, Z. – disse Stevie Rae antes de acrescentar: – Sinto muito, Z. Eu não queria colocar o dedo na ferida.

Suspirei.

– Não tem problema. Eu realmente dei uma de louca para cima dela. Fico feliz que ela tenha uma boa amiga.

Aphrodite e eu olhamos para as duas meninas de cabelo escuro. Elas estavam arrumando o saco de dormir e pareciam superamigas. Na verdade, enquanto eu as observava, vi os ombros delas se tocarem e as cabeças se aproximarem. Ergui as sobrancelhas. Nicole ergueu a mão e afastou o cabelo de Shaylin do seu rosto, acariciando o rosto dela ao fazer isso, lembrando-me estranhamente de algo que Stark fazia enquanto me paquerava. Limpei a garganta.

– Hum, acho que elas parecem bem próximas .

– Todo mundo devia ter uma melhor amiga! – declarou Stevie Rae olhando para mim.

– Hum, Stevie Rae – comecei, ainda observando os toques e os olhares que Nicole e Shaylin estavam trocando –, acho que elas talvez...

– Ai, que droga, Z.! – exclamou Aphrodite. – Você fez Shaylin virar gay!

Eu franzi as sobrancelhas para ela.

– Seja legal!

– Aiminhadeusa! – Stevie Rae arregalou os olhos enquanto via Nicole dar um beijinho no pescoço de Shaylin. – Eu não sabia que você podia fazer alguém virar gay!

– Sério, caipira! Eu tenho que perguntar de novo: você é retardada?

– Você sabe como eu me sinto com essa palavra – respondeu Stevie Rae.

– E você sabe que eu não estou nem aí.

– E vocês duas sabem que quando começam a implicar uma com a outra me dá dor de cabeça. Aphrodite, não seja cruel com Shaylin e Nicole. Elas podem amar quem desejarem. Stevie Rae, não. Não dá para fazer alguém virar gay. Caramba.

– Ei, eu não estou nem aí para quem ela ama ou com quem ela anda dormindo, mas vou adorar ver a merda que está por vir. – Aphrodite apontou para o pequeno espaço entre a cama que Shaylin e Nicole estavam arrumando. – E aí vem Clark Kent, bem na hora. E eu acho que ele acabou de ver o beijo.

– É – disse Stevie Rae. – Acho que viu. Olhe só para ele.

– Confuso. Acho que seria isso que Vovó diria sobre a expressão dele. Totalmente confuso – concordei. – Eu sei que não deveria, mas acho que vou gostar de ver isto.

– Você está brincando? Eu quero gravar e assistir várias vezes – declarou Aphrodite.

Erik já estava começando a falar com Shaylin. Mesmo de onde estávamos, dava para perceber que ele usava o seu sorriso de astro de cinema com um brilho de cem watts.

– Sei que ele pode ser um saco às vezes, mas vocês têm que admitir que ele é uma gracinha – declarou Stevie Rae. – Não como Rephaim, mas um gatinho mesmo assim.

Aphrodite fez um som como se estivesse se controlando para não falar nada.

Nicole não hesitou e não se afastou. Parou ao lado de Shaylin e envolveu a sua cintura fina com o braço em um gesto íntimo, olhando diretamente para Erik com uma postura possessiva.

– Sabia que Nicole seria o cara – declarou Aphrodite.

– O cérebro do Erik parece prestes a explodir e passar pela covinha do seu queixo – disse eu.

– Zoey, Thanatos convocou você, Stevie Rae e Aphrodite. Ela pede que vocês três se juntem a ela na Câmara do Conselho. Isto é, se vocês tiverem acabado de tomar conta dos humanos – disse Kalona sarcasticamente, olhando para os não humanos que a gente estava espiando.

Nós três demos um pulo de susto ao som de sua voz. Como sempre, Aphrodite se recuperou primeiro.

– Bem, graças à Nyx e ao menino Jesus por nos tirar daqui antes do nascer do sol – declarou Aphrodite. – Vou levar dias para tirar toda essa areia das minhas sapatilhas Jimmy Choo brilhantes. Sou muito melhor em profetizar do que em arrastar coisas.

Ela jogou o cabelo para trás e se dirigiu à porta. Ouvi enquanto ela sugava o que restava do champanhe com o seu canudinho.

– Tudo bem. Hum, obrigada – disse eu de forma inadequada. – A gente deve chamar Stark, Darius e Rephaim também?

– Os homens estão ocupados. – Kalona olhou para o local onde os três homens lutavam com a extremidade de uma lona imensa.

– Tudo bem então. Vamos sair daqui – disse Stevie Rae acenando para Rephaim.

Eu mandei um beijo para Stark e a segui.


12

Zoey

Passamos pela irmã Mary Angela, a rabina Bernstein e a ministra de Todas as Almas enquanto entrávamos no corredor até a Câmara do Conselho.

– Zoey, Aphrodite e Stevie Rae – cumprimentou a freira, fazendo um gesto para as mulheres ao seu lado. – Permitam que eu apresente vocês três para a rabina Margaret Bernstein e Suzane Grimms.

– Merry meet – respondemos as três, quase em uníssono.

As mulheres pareciam cansadas, mas sorriram.

– Prazer em conhecê-las e em estarmos aqui – respondeu a rabina.

– Sim, obrigada a todas vocês pelo trabalho duro que estão fazendo para ajudar a todos se acomodarem.

Nós assentimos como quem diz “não há de quê” , e as mulheres se afastaram; a irmã Mary Angela olhou para mim.

– Boa sorte, Zoey.

– Ela sabe de alguma coisa que não sabemos – sussurrou Aphrodite.

Concordei com a cabeça, e seguimos para a porta da Câmara do Conselho. Então, quase demos de cara com Shaunee, que saiu olhando para todos os lados menos para onde estava indo.

– Caramba, tenha cuidado – disse eu, segurando-a para que nenhuma de nós duas caísse.

– Mas o que é que você está fazendo por aqui? – perguntou Stevie Rae. – A minha mãe diria que você está agindo como se o seu cabelo estivesse pegando fogo.

Shaunee ergueu a sobrancelha.

– Eu preferia que o meu cabelo estivesse pegando fogo a ter perdido o meu gato. Não consigo encontrar Beelzebub em lugar nenhum.

Eu tinha ficado superfeliz de saber que, enquanto eu estava presa, Shaunee e Kramisha tinham ido ao depósito e recuperado os nossos quatro gatos – além de Duquesa, é claro – e os levado de volta para a Morada da Noite. Nala pulou em mim quando fui para o dormitório trocar de roupa, e eu a apertei com tanta força que ela ficou descontente e espirrou no meu rosto.

– Por que você está estressada? Você sabe como os gatos são. Eles vêm quando querem e vão quando querem. Eu não tenho ideia de onde Malévola está agora – informou Aphrodite.

– Eu só espero que ela não esteja por aqui – desejou Stevie Rae baixinho.

Intervim antes que Aphrodite começasse a brigar com ela.

– Tenho que concordar com Aphrodite. Beelzebub deve estar feliz passeando por todos os túneis e esticando as patas.

– Foi o que pensei também, mas Beelzebub nunca falta ao jantar. Nunca . E eu sempre dou comida para ele bem antes do nascer do sol. Sacudi o pacote de Whiskas, e ele não veio correndo como sempre. Então, comecei a procurar. Vocês notaram que os gatos estão sumidos?

Pensei naquilo. Eu vira Nala antes de ir para o Mayo, mas, desde que voltamos, ela não aparecera. Na verdade, agora que estava pensando naquilo, eu não tinha visto nenhum dos gatos recentemente.

– Hmm, agora que você mencionou, não. Eu não vi nenhum dos gatos. Duquesa estava no ginásio com Damien e Stark, mas Cammy não estava com ele, nem Nala.

– Como se isso fosse alguma surpresa? Façam-me o favor. Não sejam idiotas. O ginásio está cheio de humanos. Eu não sou um gato, mas isso me faz querer sumir também. Eu com certeza não os culpo por quererem desaparecer.

– Faz sentido – concordou Stevie Rae. – Gatos são estranhos assim. Sem querer ofender – completou ela, olhando para Aphrodite.

– Concordo com estranho. Como eu já disse antes, normal é supervalorizado.

– Tudo bem, então eu vou tentar não me preocupar com ele. Sinto muito se esbarrei em vocês, gente. Vejo vocês mais tarde.

– Juntem-se a nós na Câmara do Conselho, jovens novatas. – A voz de Kalona nos surpreendeu.

– Ele é sempre tão furtivo – sussurrou Stevie Rae para mim.

– Obrigada por me convidar, Kalona, mas não, obrigada – declarou Shaunee. – Nunca ninguém sai da Câmara do Conselho dizendo “Uau, que legal! Mal posso esperar para fazer isso de novo”.

Eu ia começar a rir e me despedir de Shaunee, mas meus instintos entraram em ação e me fizeram dizer:

– Na verdade, eu gostaria muito que você se juntasse a nós.

Shaunee parou, suspirou e deu de ombros.

– Tudo bem. Acho que isso é melhor do que ficar arrumando as camas no ginásio.

Sorri em agradecimento, e nós cinco entramos na Câmara do Conselho.

Thanatos e Vovó estavam sentadas uma do lado da outra. Lenobia também estava lá. Fiquei surpresa de ver que o detetive Marx estava em pé, com os braços cruzados, atrás de Thanatos. Achei que não houvesse mais ninguém lá, mas um movimento na porta dos fundos chamou a minha atenção e eu vi Aurox ali de novo, como se estivesse de guarda. Ele não olhou para mim.

– Zoey, Aphrodite, Stevie Rae, Kalona, por favor, entrem e se acomodem – disse Thanatos. – Shaunee, não creio que eu a tenha convocado.

– Eu pedi para ela se juntar a nós – falei eu.

– Então, Shaunee também é bem-vinda – concordou Thanatos, fazendo um gesto para nos sentarmos.

Só quando cheguei à mesa vi que a grande tela plana de computador estava ligada. Pisquei, surpresa, e depois sorri e apressei os últimos passos.

– Sgiach! Oi, que legal ver você! – exclamei.

A rainha sorriu e respondeu de maneira mais formal (e adequada):

– Merry meet , Zoey. Também é um prazer revê-la.

– Chamamos a Rainha Sgiach, desejando falar com um dos seus guerreiros, para que lhe desse o recado de que gostaríamos de encontrá-la – explicou Thanatos.

– E ficamos surpresos, e satisfeitos, quando a própria rainha respondeu ao nosso chamado – acrescentou Vovó.

Fiz um cálculo mental rápido: se eram quase seis horas da manhã em Tulsa, devia ser meio-dia na Escócia. O que Sgiach estava fazendo acordada? Olhei a rainha com mais atenção. Ela estava sentada em uma cadeira enorme de madeira na sua biblioteca particular – que parecia normal. Mas Sgiach não estava com aparência normal. O seu cabelo estava desarrumado, o rosto sujo, e eu me inclinei para mais perto da tela para ver melhor...

– Sangue! Por que está suja e tem sangue em você? Está tudo bem?

– Estou viva – respondeu Sgiach, o que não respondia à minha pergunta.

– Onde está Shawnus ? – perguntou Aphrodite, errando a pronúncia do nome do guardião de Sgiach de propósito.

– Seoras – corrigiu a rainha, estreitando o olhar para Aphrodite – está liderando uma guarda diurna e protegendo a ilha.

– Espere aí, protegendo durante o dia ? – Sacudi a cabeça, confusa. – Mas a sua ilha protege a si mesma, principalmente durante o dia.

– Isso é verdade desde que a Luz e as Trevas estejam em equilíbrio – explicou Sgiach.

– Zoey Passarinha – Vovó tocou a minha mão, como se estivesse me dando força –, Neferet acabou com o equilíbrio no mundo. As Trevas Antigas começaram a extinguir a Luz.

Os meus joelhos cederam, e eu me sentei na cadeira. Stevie Rae se sentou pesadamente ao meu lado. Aphrodite ficou andando de um lado para o outro atrás de nós, quase esbarrando no detetive Marx, e Shaunee escolheu uma cadeira próxima a Lenobia.

– Mas Neferet já estava louca havia um tempão. Eu não entendo por que ela de repente bagunçou as coisas – raciocinei.

– Ah, menina – lamentou Thanatos em tom triste. – Não é uma coisa repentina. É a culminação de uma onda terrível que vem subindo desde que Neferet libertou Kalona de sua prisão.

Eu franzi o cenho para o imortal alado que estava do outro lado da sala, próximo à porta principal, com o peito nu, expressão pétrea e em silêncio.

– Ele está do nosso lado agora. Isso deveria ajudar, e não atrapalhar o equilíbrio – argumentei.

– Isso não é um jogo. Essas forças não podem ser controladas – explicou Sgiach. – Foi o ato de libertá-lo que fez a inundação começar. Kalona foi apenas a primeira pedra a cair em uma represa começando a ruir.

– Então, vamos colocar a pedra de volta! – exclamou Aphrodite.

– Realmente – concordou Thanatos. – Foi por isso que chamamos Sgiach.

– Então, o que vamos fazer? – perguntei.

– Você junta a sabedoria de épocas distintas, de um mundo diferente. Forças antigas estão trabalhando agora. E é com sabedoria antiga que temos que remar contra a maré e restaurar o equilíbrio.

– Será que você pode ser menos enigmática do que uma das minhas malditas visões? – pediu Aphrodite.

– É claro, minha jovem e arrogante profetisa. – Achei que Sgiach fosse dar um belo chute na bunda de Aphrodite via Skype, mas, em vez disso, o seu olhar pousou em mim e, apesar dos milhares de quilômetros que nos separavam, o que ela disse fez os pelos dos meus braços se eriçarem. – O detetive Marx me explicou o que aconteceu entre você e os humanos no parque. Thanatos e a sua avó me contaram que a sua violência contra eles não foi um incidente isolado e que envolveu a pedra da vidência.

– Isso, mas eu não tenho mais a pedra – assegurei para ela rapidamente. – Eu não a uso mais.

– Menina, você nunca a usou. Ela usou você – explicou ela.

Engoli a terrível secura que tomou conta da minha boca.

– Eu sei. Foi por isso que a deixei aos cuidados de Aphrodite quando me entreguei para o detetive Marx.

– Conte-me como estava se sentindo nos dias que culminaram no incidente no parque – pediu Sgiach.

Hesitei e tentei ordenar os pensamentos. Por fim, comecei:

– Eu estava nervosa. Frustrada. Irritada. Parecia que eu estava zangada o tempo todo.

– As coisas pioraram depois que você usou a pedra da vidência para revelar o espelho que refletia o passado quebrado de Neferet para ela?

Arregalei os olhos.

– Eu não tinha pensado nisso, mas sim, ficou pior depois. – Instintivamente, passei a mão pela cicatriz na palma da minha mão. – Ela esquentava com mais frequência. E eu perdia a noção do tempo. – Contei essa última parte rapidamente, sem olhar para os meus amigos, para quem eu não tinha contado aquilo.

– Você via coisas durante o seu tempo perdido? – ela perguntou.

– Via – admiti lentamente, não gostando nada da expressão em seu rosto.

– Coisas como Fey, os espíritos elementares que viu em Skye quando esteve lá comigo?

– Não. – Estremeci. – Até poderiam ser Fey, mas não era como os elementares em Skye. Eram horríveis.

– Alguns Fey são terríveis. Assim como nós, nem todos eles escolhem a Luz. O que você via quando perdia a noção do tempo aconteceu antes ou depois de usar a pedra para salvar a sua avó?

– Antes – respondi.

– Zoey, aqui está a verdade que você precisa ouvir: magia antiga pode restaurar o equilíbrio da Luz e das Trevas novamente, o que significa que a sua pedra da vidência é a chave para se vencer esta batalha.

– Então, eu preciso dá-la a outra pessoa, porque o que eu estava fazendo com ela não funcionou. Tudo piorou em vez de melhorar – disse eu.

– Eu gostaria que as coisas fossem tão simples assim – declarou Thanatos.

Ela, Vovó e Sgiach trocaram um olhar, e eu soube que elas tinham conversado sobre a pedra antes de eu chegar.

Vovó deu uns tapinhas na minha mão e disse:

– Ninguém mais pode ostentar a pedra da vidência, u-we-tsi-a-ge-ya . A pedra só esquenta para você. Isso significa que ela a escolheu, e apenas você poderá ostentar a magia antiga através dela.

– Tudo bem, então. Mas como é que eu faço isso? – perguntei, odiando o aperto que senti no estômago só de pensar em tocar na pedra da vidência de novo.

– Estou com a Zoey – apoiou-me Aphrodite. – Simples ou não, diga a ela o que ela precisa fazer.

– É mesmo. A Z. já derrotou as Trevas e Neferet uma vez. Nós todos derrotamos – concordou Stevie Rae.

– Por causa da natureza volátil da magia antiga, só posso lhe dizer o que sei que não deve ser feito – explicou Sgiach. – Para que o seu poder trabalhe pelo equilíbrio e não se corrompa, ela deve ser comandada por uma Sacerdotisa que não seja nem agressora nem vítima. Sua intenção deve ser pura. Ela não pode ser vingativa nem defensiva.

– Mas Zoey tem de usá-la de forma defensiva! – exclamou Marx. – Neferet é uma assassina sociopata com o objetivo de escravizar Tulsa e talvez até o mundo inteiro.

– Isso não é um talvez, detetive – interrompeu Kalona. – Neferet deseja fazer mais do que forçar alguns poucos humanos azarados a adorá-la. Ela deseja reinar como a única Deusa deste mundo e tornar todos nós os seus escravos.

– Então, como é que a porra dessa pedra pode ser a chave para derrotá-la se Zoey não pode usá-la de forma defensiva? – perguntou Marx.

– Detetive, a magia antiga é neutra. É o poder na sua mais pura essência. E ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a carrega. Se seus motivos não forem completamente altruístas, o caos será o resultado. – O seu olhar pousou em mim. – Você tem evidências disso diante de si. Pelo que sabemos de Neferet no passado, à luz do que ela fez no presente, acredito que haja indicações claras de que ela usou magia antiga por muito tempo, talvez até mesmo antes de ter sido Marcada.

– Mas eu nunca a vi usando uma pedra da vidência – disse eu.

– Uma pedra da vidência é apenas um condutor para a magia antiga. Considere as gavinhas das Trevas que a acompanham sempre. Elas são básicas demais, cruas demais para serem qualquer coisa a não ser que sejam ligadas aos poderes antigos da Luz e das Trevas. Eu sei. No Mundo do Além, lutei contra as Trevas em diferentes formas por várias eras. Elas podem ser sedutoras e astutas. As Trevas usam muitas faces, e algumas delas podem ser vistas, a princípio, como aliadas.

– Eu não consigo entender como aquelas coisas rastejantes nojentas podem ser vistas como algo bom – comentou Stevie Rae.

– Neferet raramente fala disso, mas ela foi estuprada pelo próprio pai na noite em que foi Marcada – contou Lenobia. – Algo a ajudou a passar por aquela provação terrível, e não foi outro novato nem a sua mentora. Os registros da Morada da Noite de Chicago dizem claramente que ela voltou para a casa da sua família e estrangulou o pai antes mesmo de ter completado a Transformação. O investigador registrou que o ataque foi tão forte que a cabeça do pai quase foi separada do corpo.

– E ela se safou disso? – perguntou Marx.

– O crime aconteceu no fim do século XIX em um mundo muito maior, detetive. O Conselho da Morada da Noite de Chicago e o Conselho Supremo dos Vampiros decidiram juntos que seria melhor tirá-la do estado e permitir que ela recomeçasse um novo caminho onde teria a oportunidade de se curar da sua tragédia – contou Thanatos.

Lenobia acrescentou:

– E lembre-se, detetive, de que aquele homem agredira e estuprara a filha de dezesseis anos de idade.

– Os registros do Conselho Supremo relatam que havia diversas marcas de mordidas, mordidas humanas no corpo de Neferet, e que ela estava horrivelmente ferida e violada na noite em que o Rastreador a encontrou – informou Thanatos concordando com Lenobia.

Senti um choque com a lembrança.

– Logo depois que fui Marcada, Neferet mencionou algo comigo sobre ter sido machucada pelos pais.

– Sua mãe morreu ao lhe dar à luz. O seu pai era um monstro – contou Lenobia. – Todos que conheceram Neferet na sua juventude sabiam dos rumores sobre o que acontecera na noite em que fora Marcada.

– Sinto muito pelo seu passado, mas isso não muda o fato de que Neferet é uma imortal instável que precisa ser detida – declarou Marx.

– Não estamos mencionando o passado de Neferet como uma desculpa para os seus atos presentes – respondeu Sgiach. – Nós o mencionamos como uma lição para Zoey. – Os olhos de Sgiach queimaram os meus. – A magia antiga foi levada até Neferet, e ela descobriu que podia ostentá-la. Assim como ela foi levada a você e ostentada por você.

– Tudo bem, mas eu não gosto de ser comparada com a Neferet – declarei.

– Ainda assim, o que tem acontecido com você desde que começou a usar a pedra da vidência é bem parecido com o que aconteceu com Neferet. Ela usa você, e enquanto o faz, a corrompe.

Senti como se eu tivesse levado um soco no estômago.

– Eu jamais serei como a Neferet!

– Você já pensou que se pudesse simplesmente controlar todo mundo à sua volta, então poderia tornar tudo melhor para os seus amigos e para si mesma? – perguntou-me Sgiach de forma direta.

– Já, mas eu não queria que nada de ruim acontecesse! Eu só queria poder fazer com que todos agissem de forma correta para acabar com toda a loucura.

– Agir de forma correta de acordo com quem? – quis saber Thanatos.

– De acordo comigo, eu acho, já que era eu que estava desejando – protestei, sentindo-me encurralada.

– Intenção! – exclamou Sgiach para mim. – A magia antiga é neutra. Ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a detém! E a intenção da Sacerdotisa não pode ser vingança, nem frustração, nem qualquer outro sentimento egoísta. A sua intenção deve ser pura e voltada completamente para o bem maior. Mesmo que isso signifique que você possa sobreviver ou não ao ser o instrumento que a magia usa.

– Estou com medo – admiti, e a Vovó apertou a minha mão, dando-me força. – E eu não sei como fazer o que vocês estão me pedindo para fazer. Eu preciso que vocês me ajudem!

– Apenas você pode se ajudar. Cresça, jovem Sacerdotisa. Mostre para nós por que Nyx escolheu lhe dar tantos dons – desafiou Sgiach. – Mas seja rápida. Você precisa comandar a pedra da vidência para termos uma chance de deter Neferet e restaurar o equilíbrio entre a Luz e as Trevas.

O olhar cortante da rainha recaiu em Thanatos.

– Grande Sacerdotisa, compreenda que Neferet precisa ser contida para que esse contágio de maldade diminua.

– Qual é o seu conselho para contê-la sem usar magia antiga? – perguntou Thanatos, fazendo com que o meu rosto ficasse quente.

Eu sabia que ela não devia ter que fazer aquela pergunta a Sgiach – eu deveria amadurecer o bastante para usar a pedra da vidência e ajudá-la.

– Procure pelos rituais e feitiços mais antigos – orientou Sgiach. – Não pense em derrotar Neferet. Isso é impossível sem a magia antiga. Pense em isolá-la, distraí-la, irritá-la. Qualquer coisa que a faça repensar suas tramoias e seus planos, qualquer coisa que a faça tropeçar e a torne mais lenta poderá ajudar vocês.

– E dar a Zoey mais tempo para descobrir o caminho para comandar a magia antiga – concluiu Vovó.

Sorri nervosamente para ela, desejando sentir tanta confiança em mim mesma quanto ela tinha.

– Tentarei o máximo que eu puder. Prometo.

– Você não pode tentar , Zoey. Tentar é perigoso demais. Você não pode fazer nada até que saiba que se livrou de tudo que há de negativo em você: medo, raiva, egoísmo, desejo de vingança, ódio, até mesmo irritação e frustração. Só então poderá comandar e controlar a magia antiga. Até lá, Aphrodite deve manter a pedra da vidência longe de você. Não precisamos ter de lutar contra duas imortais que já foram Sacerdotisas talentosas da nossa Deusa.

Eu não conseguia acreditar no que ela tinha acabado de dizer! Sgiach realmente acreditava que eu poderia virar alguma coisa como Neferet.

– Eu não sou imortal! Eu só sou uma garota que não quer ter nada a ver com magia antiga ou com aquela maldita pedra da vidência.

– Imagino que uma jovem Neferet teria dito exatamente a mesma coisa e ela também estava longe de ser “apenas uma garota” – retrucou Sgiach.

Antes que eu conseguisse me recuperar da afirmação horrível, Thanatos acrescentou:

– Eu só conheci uma outra novata que recebeu tantos dons da Deusa quanto você, Zoey Redbird, e o nome dela era Neferet.

Apertei a mão de Vovó, sentindo como se o meu mundo estivesse se ruindo sob os meus pés.

– Agora, eu tenho que cuidar da minha própria enchente – declarou Sgiach. – Confio em você, Zoey. Acredito que encontrará uma maneira de trazer as forças da magia antiga com você na sua batalha pela Luz. Até que eu a veja novamente, abençoada seja.

Então a conexão via Skype foi desligada, deixando a câmara no mais absoluto silêncio.

– É claro que tudo isso é culpa sua – disse Aphrodite para Kalona, antes de se dirigir a mim, acrescentando: – Se você começar a me chamar de Frodo, eu vou ficar puta da vida.

– Sem querer ser cruel nem nada, Aphrodite, mas você está sendo um Frodo para Z. – declarou Stevie Rae.

– Se isso fosse verdade, então você seria um Sam [*] gordo e baixo – retorquiu Aphrodite.

– Uma adolescente? – soou a voz de Marx atrás de nós. – Por que o equilíbrio de poder entre o bem e o mal tinha que estar nas mãos de uma adolescente?

Franzi o cenho para ele.

– Há meses eu me pergunto a mesma coisa – comentou Kalona.

– Devo insistir que nos atenhamos a questões produtivas apenas! – cortou a voz de Thanatos, fazendo com que Marx e Kalona baixassem a cabeça.

– Na verdade – comecei eu, hesitante –, a pergunta do detetive Marx me fez parar para pensar.

– Eu não quis ser tão grosseiro – insistiu Marx.

– Ah, eu sei – respondi. – O que você disse não foi grosseiro, apenas verdadeiro. Por que o equilíbrio entre o bem e o mal deveria depender de mim? – Eu me apressei para continuar, não querendo que os meus pensamentos fossem interrompidos. – Talvez não seja eu, nem mesmo nós, o que é tão importante. Sgiach disse que a magia antiga é o que importa. Basicamente, eu sou apenas o canal para ela; por algum motivo, que nenhum de nós conseguiu entender, ela funciona através de mim. Então, como disse, não sou eu que sou importante. É a magia.

– Aonde você quer chegar, Zoey Passarinha? – perguntou Vovó.

– Bem, a magia antiga também responde a Sgiach. Thanatos, Lenobia, por favor, corrijam-me se eu estiver errada, mas Sgiach não é a personificação da sua ilha?

– Ela é sim – respondeu Thanatos, e Lenobia assentiu, concordando.

– A magia antiga está na terra – disse Vovó, empertigando-se na cadeira. – Assim como os nossos ancestrais Cherokees acreditavam.

– Oklahoma tem poder antigo em sua terra vermelha – declarou Kalona. – Eu sei disso. Esse poder me atraiu para cá não muito tempo depois que fui criado e, novamente, depois da minha Queda.

– E ele o conteve por séculos – completou Thanatos.

Kalona contraiu o maxilar, mas assentiu.

– Sim.

– No dia em que fui Marcada, fugi para a sua fazenda, lembra, Vovó? – A minha voz estava ficando menos hesitante à medida que os meus pensamentos encontravam um caminho para seguir. – Eu desmaiei tentando encontrá-la.

– Eu me lembro – disse Vovó. – Foi a primeira vez que Nyx apareceu para você.

– Isso! Ela me disse que eu deveria ser os seus olhos e ouvidos no mundo em que eu estava lutando para encontrar o equilíbrio entre o bem e o mal.

– Mesmo naquela época a Deusa estava nos alertando através de você – declarou Thanatos.

– Parece que demoramos muito para compreender – disse Stevie Rae.

– Não só vocês, gente – respondi. – Eu também. Acho que não entendi realmente o que Nyx estava querendo me dizer até este momento. Prestei atenção principalmente à parte em que ela dizia que a Luz nem sempre era boa e que as Trevas nem sempre eram o mesmo que o mal. Acreditei que Nyx estava me avisando para ficar atenta a Neferet, porque ela era tão linda por fora, mas completamente podre por dentro.

– Faz sentido – concordou Aphrodite.

– Totalmente – reforçou Stevie Rae.

– É, mas veja o que mais Nyx disse. Lembro-me de que ela disse que eu era especial, a sua primeira U-we-tsi-a-ge-ya V-hna-I Sv-no-yi

– Filha da noite – traduziu Vovó por mim.

– Mas isso não foi tudo o que ela disse. Nyx afirmou que eu era especial por causa do meu sangue antigo combinado com a minha compreensão do mundo moderno.

– E o seu sangue carrega consigo o poder das Sábias Cherokees – disse Vovó. – As mulheres que tiravam a sua força da terra.

– Desta terra – completou Thanatos.

– Oklahoma é o lugar onde a Trilha de Lágrimas terminou – declarou Vovó.

– E para onde fui atraído, assim como Neferet – disse Kalona. – Não podemos esquecer que Zoey carrega dentro de si um pedaço da alma de A-ya, a virgem formada nesta terra.

Eu não queria pensar muito, mas rapidamente acrescentei:

– Também foi onde Aurox foi criado pelo sacrifício de sangue da minha mãe com o poder tirado da terra pela minha avó.

Marx franziu as sobrancelhas.

– Aurox?

– Eu sou Aurox – disse ele, saindo das sombras.

– Espere um pouco – pediu Marx. – Você nem tem uma lua crescente na testa. Achei que você fosse apenas um cara que era o consorte da Grande Sacerdotisa.

O pensamento de Aurox sendo o consorte de Thanatos fez o meu rosto queimar de vergonha.

Aurox me ignorou e lançou um olhar questionador para Thanatos. Ela fez um breve aceno com a cabeça e ele se virou para encontrar o olhar de Marx. Soando forte e seguro, disse:

– Eu não sou humano nem vampiro. Sou um receptáculo criado pela magia antiga cujo propósito eram a vingança e a destruição.

– Mas que foi criado com uma alma. E, tendo recebido a capacidade de escolher, você optou por se desviar da vingança e destruição – completou Vovó.

– Caramba, isso quase parece bom! – disse Marx, analisando Aurox com cuidado. – Se ele tem esses poderes da magia antiga, será que não pode nos ajudar a lutar contra Neferet?

– A parte da luta não é importante – disse eu, sem olhar para Aurox. – É a parte da criação; ele, assim como eu, veio para cá com o sangue que data de gerações nesta terra.

– Precisamos usar o poder da terra para lutar contra Neferet, pelo menos até Zoey conseguir lidar com a pedra da vidência – disse Aphrodite.

– Aiminhadeusa! Eu tenho a resposta. – Shaunee ergueu a mão. – Desculpem-me, não queria interromper, mas acho que sei o que vocês devem fazer!

– E o que é, Shaunee? – perguntou Thanatos.

Ela baixou a mão, falando rapidamente:

– Sgiach nos disse para procurar os feitiços e rituais mais antigos a fim de confundir Neferet. Você disse que precisamos impedi-la de se espalhar. Está bem na nossa cara! Thanatos, você até nos deu uma aula sobre isso no outro dia.

– Shaunee, será que você poderia ser mais clara? – pediu Thanatos.

– Nós podemos usar o Ritual de Proteção de Cleópatra! Podemos fazer com Tulsa o que foi feito em Alexandria! – exclamou Shaunee, animada.

– Eu não faço a menor ideia do que ela está falando – disse Marx.

– Eu faço – declarou Lenobia.

– Assim como todos nós deveríamos saber – disse Thanatos. – Mas nós também deveríamos saber que o feitiço de Cleópatra exige que a Grande Sacerdotisa que o invoca fique isolada, jejuando e orando por três dias.

– No ritmo que Neferet está matando, não temos três dias – declarou Marx, sombrio.

– Mas nós temos o poder da terra – disse eu. – Será que não podemos usá-lo para acelerar o feitiço e fazê-lo funcionar?

– Ideia interessante – elogiou Thanatos. – O feitiço teria de ser invocado de um lugar de poder extraordinário o mais próximo possível do Mayo. E a sacerdotisa que invocar o feitiço e fizer o ritual teria de se manter isolada e no local em meditação e oração, mantendo a sua intenção determinada e verdadeira.

– Não vou ser eu – disse eu. – E não estou dizendo isso porque estou reclamando de não ser madura o suficiente ou Grande Sacerdotisa o suficiente. O que quero dizer é que tenho que resolver esse lance da pedra da vidência e estar livre para usá-la contra Neferet assim que eu descobrir como.

– Concordo, Zoey. Eu sou a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. É o meu dever invocar o feitiço e mantê-lo enquanto o meu desejo durar – declarou Thanatos.

– O fogo é a base do feitiço de Cleópatra. Eu ficarei com você – disse Shaunee. – Pelo tempo que for necessário.

Thanatos assentiu respeitosamente para Shaunee.

– Vou gostar da sua companhia e o poder que você puder emprestar ao feitiço, filha.

– Oh, agradeça à Grande Mãe Terra! Eu sei o lugar de poder que vocês devem usar! – exclamou Vovó, batendo com a palma da mão na mesa para pontuar as suas palavras. – O Council Oak Tree. Seu poder ancestral reinou nas Terras Isoladas por séculos, e fica a uma curta distância do Mayo Hotel.

– Lenobia, Aphrodite, Zoey, Stevie Rae, Shaunee, o que vocês acham? Vocês concordam com Sylvia Redbird? – perguntou Thanatos.

– Eu concordo – respondeu Lenobia.

– Eu também – disse Shaunee.

– Idem – concordou Stevie Rae.

– Parece um bom plano – assentiu Aphrodite.

Encontrei o olhar da Vovó e vi a sabedoria, o amor e a verdade.

– Com certeza – afirmei.

– Então vamos descansar. No crepúsculo, o círculo de Zoey vai até o lugar de poder, e, enquanto o sol se põe, eu vou preparar o ritual de proteção e invocar o feitiço, e que Nyx nos dê força. Pois assim nós escolhemos; que assim seja.

[*] Sam é o apelido do personagem “Samwise Gamgee” da obra O Senhor dos Anéis , escrita por J. R. R. Tolkien. (N.E.)


13

Zoey

– Stark, você viu a Nala?

– Não. Venha para cama. Ela deve estar ocupada com os outros gatos avisando para os ratos locais que os gatos estão de volta – respondeu ele, sonolento, e batendo com a mão no lugar ao seu lado na cama.

O sol tinha nascido havia pouco mais de uma hora, e Stark estava se enfraquecendo rápido.

– Mas a Nala sempre dorme comigo.

– Não dorme não. Às vezes, ela dorme com Stevie Rae. – Ele deu um bocejo enorme. – Pare de se preocupar e venha aqui. Você está nervosa desde a reunião do Conselho. Você vai descobrir como usar a pedra da vidência. Sei que vai. Ficar preocupada o tempo todo não vai ajudar em nada. Deite-se que eu vou fazer uma massagem.

Olhei para ele e sorri. Além de amar muito quando ele massageava os meus ombros, ele estava totalmente fofo e sexy com o cabelo despenteado e o olhar sonolento. Além disso, ele estava certo. Preocupar-me não me ajudaria a descobrir como usar aquela estúpida pedra da vidência. Cedendo, eu me deitei na cama de costas para ele e depois gemi de puro prazer quando seus dedos fortes começaram a massagear os nós de estresse que tinham se formado nos meus ombros.

– Acho que você deve ser perfeito – declarei.

– Viu só? Quanto menos se preocupa, mais esperta você fica – respondeu ele, bocejando de novo.

– Ei, eu estou bem. Pode dormir agora.

– Eu sei que você está bem, mas vai ficar melhor se ficar quietinha e me deixar cuidar dos seus ombros.

Ele beijou a minha nuca.

– Tudo bem, mas você pode desistir na hora que quiser – disse eu, relaxando sob o seu toque.

– Z., eu nunca vou desistir de você. Você sabe disso.

Ele deu mais um beijo na minha nuca, e eu suspirei feliz.

– Eu amo você.

– Também amo você – respondeu ele.

Quando suas mãos pararam, eu estava relaxada, aquecida e cansada. Fechei os olhos, sorrindo, e adormeci.

Por cerca de dois minutos. Então, os meus olhos se abriram e eu me sentei, aguçando os ouvidos.

– Você ouviu alguma coisa? – perguntei para Stark.

Ele murmurou algo que pareceu ser:

– Gato... Tudo bem... pare de se preo...

Então, ele se virou, puxou as cobertas até o ouvido e começou a roncar baixo.

– Nossa, isso que é um Guerreiro – resmunguei.

Então, bocejei e me espreguicei. Eu realmente precisava voltar a dormir. O meu alarme já estava programado. Nós tínhamos que nos levantar e nos apertar na van da escola sem janelas e seguir o caminho até o Council Oak Tree antes do crepúsculo. Quem poderia saber que tipo de loucura Neferet cometeria diante de um feitiço de proteção. Inferno, ela já estava...

Então, ouvi novamente e soube exatamente o que havia me acordado. Era um som baixo, definitivamente era o ronronar de um gato.

E não havia nenhuma bolinha de pelo laranja encolhida aos pés da minha cama!

Vesti minha calça jeans e peguei meus sapatos da forma mais silenciosa que pude, andando de meia, na ponta dos pés, até a porta. Sem fazer nenhum barulho, me concentrei em pensamentos felizes, abri a porta e fui para o corredor. Desci rapidamente para o andar de baixo e passei pela sala comunal deserta do dormitório e saí, piscando quando os raios de sol atingiram os meus olhos, causando uma ardência. Eu não ia voltar mesmo para pegar os óculos de sol, então protegi os olhos com a mão e chamei:

– Nala! Gatinha! Nala-Nala, venha aqui!

Então, prendi a respiração e agucei os ouvidos.

Ouvi o som de novo! Era definitivamente um ronronar. E, definitivamente, parecia que o gato estava com algum tipo de problema. Não dava para saber se era a Nala ou não, mas eu sabia que o som vinha de algum lugar perto do muro da escola que dava para a direção leste.

Coisas ruins sempre acontecem lá! Corri apressada, contornando os dormitórios e me dirigindo para o muro, chamando.

– Psiu-psiu! Gatinha! Aqui! Nala!

O gato continuou ronronando. Eu me dei conta de que aquilo era bom e ruim. Bom, porque eu poderia seguir o som do seu miado. Ruim, porque quanto mais perto eu chegava, mais sofrido o gato parecia.

O ronronado seguinte fez o meu estômago se contrair. Eu estava perto o bastante do carvalho partido para saber que o gato estava definitivamente em algum lugar no alto daquela árvore. Ah, que droga! Por que é que tinha de ser aquela árvore? A árvore que Kalona partira em duas quando escapara da sua prisão na Terra, a árvore onde Jack morrera, a árvore em que eu vira as criaturas nojentas da magia antiga.

Diminuí o ritmo quando me aproximei da árvore de aparência assustadora. Tudo bem, eu gosto de árvores. Eu realmente gosto. Tipo assim, eu amo a Bosque da Deusa no Mundo do Além. Eu amo a minha afinidade com a Terra, mesmo que não esteja tão em sintonia com ela quanto estou com o espírito, mas ainda assim... Normalmente, eu não tenho problemas com árvores.

Esta árvore é diferente.

A caverna de Kalona ficava ali embaixo, e o jeito como ela se abria em duas fazia com que se parecesse com os ossos de um monstro, congelado na morte, agachado na sua abertura. Todas as outras árvores do campus se erguiam verdejantes. Não esta. Ela era negra e sem folhas, malévola e partida. Seus galhos formavam mais garras do que eu poderia contar.

– Miau-miau!

– Nala!

Eu a peguei nos meus braços e beijei o seu nariz úmido. Ela, é claro, espirrou em mim.

Eu ainda estava abraçando Nala quando ouvi um segundo gato e olhei para baixo.

– Cammy? – Ele se enroscou em mim e se esfregou nas minhas pernas, deixando pelos louros espalhados na minha calça. – Aposto que Damien não sabe que você está aqui fora. Você deveria estar encolhido junto com a Duquesa e ele em um sono profundo.

– Miaaaaaaau!

Aquele miado eu conhecia sem nem ver o animal branco que o emitira. Olhei por cima da base despedaçada da árvore e, com certeza, lá estava uma gata gigantesca com cara achatada e pelos brancos, cheia de atitude.

– Malévola, Aphrodite não ficaria nem um pouco satisfeita de você estar aqui aterrorizando os outros gatos. – Fiz uma pausa. – Bem, isso provavelmente é mentira. Mas ainda assim... Você deveria tentar não ser tão parecida com ela. Nossa, o que é que você acha...

Então, as sombras ao redor da árvore se moveram e eu percebi que o carvalho antigo e assustador estava completamente cercado pelos gatos da Morada da Noite.

Abracei Nala, enquanto sentia um frio gelado descer pela minha espinha.

– Mas o que é que está acontecendo aqui?

– Isso é o que eu gostaria de saber.

A voz de Aurox me assustou fazendo com que eu apertasse Nala forte demais e, com um grunhido zangado, ela pulou dos meus braços e se juntou aos outros gatos em volta da árvore.

– Você fez esses gatos virem até aqui?

– Eu? – Meneei a cabeça. – É claro que não. E se você soubesse qualquer coisa sobre gatos, entenderia que não se pode obrig á-los a fazer nada.

– Eu não sei muita coisa sobre gatos – declarou ele.

– Bem, tudo o que eu fiz foi seguir um grunhido horrível que, na verdade, me acordou. Achei que fosse Nala, mas ela parece estar bem.

– Grunhido? Mas que grunhido? Tudo que ouvi foi você conversando com os gatos.

Eu franzi as sobrancelhas para ele e abri a minha boca para explicar o óbvio – que alguma coisa tinha me atraído até ali e que havia alguma coisa de errado com os gatos e com ele também. Tipo assim, ele não precisava ser tão frio e rude sempre que se importava em falar comigo, mas o gato me interrompeu.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – O miado patético pareceu se estender por muito tempo.

– Está vindo lá de cima, da árvore.

Protegi os olhos com a mão e espiei por entre os galhos quebrados.

– Lá! – Aurox apontou. – Estou vendo!

Segui o dedo dele e vi também. Lá, bem no alto, nos galhos do topo da árvore, estava um gato realmente grande. Era um gato malhado de laranja e branco com pelos longos. Não era do mesmo tom de laranja forte de Nala. A cor daquele gato era mais suave, como se o laranja tivesse sido diluído com creme. Ele parecia familiar, e eu apertei os olhos, tentando me lembrar quem era seu dono, quando vislumbrei os seus olhos. Eram de um verde amarelado surpreendente, com um brilho inteligente.

– Que merda! Aquele é Skylar! O gato de Neferet! – disse eu.

– O gato de Neferet? Mas o que ele está fazendo aqui? Ele não deveria estar com ela?

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – berrou Skylar enquanto o vento fazia os galhos estremecerem sob ele, que tentava se manter firme.

– Ele vai cair – disse Aurox, movendo-se tão rápido que os gatos se espalharam.

– Ei, tome cuidado. Skylar é conhecido por morder. Sério, Aurox. Os gatos costumam refletir a personalidade do novato ou do vampiro que escolhem, e nós todos sabemos que Neferet é...

– Zo, eu não posso simplesmente deixá-lo cair.

E isso me fez calar a boca. Ele não apenas soou como Heath, mas estava fazendo uma coisa muito burra e doce e muito parecida com que Heath faria. É claro que ele provavelmente ia causar uma confusão tão grande quanto Heath teria feito, mas não havia muito mais o que eu pudesse fazer, a não ser esperar e tentar resolver a confusão. E pensar. Hmmm .

– Ei! – chamei, enquanto ele escalava a árvore feito um macaco. – Bem, nunca ouvi falar disso, mas talvez se o vampiro de um gato fica mau, talvez ele cometa suicídio ou algo assim. Skylar deve estar aí em cima porque a Neferet ficou desvairada e ele não consegue lidar com isso.

– Eu não vou deixar ninguém cometer suicídio no meu turno, seja um novato, um vampiro, um humano irritante... Nem mesmo um gato com fama de mordedor.

– Tudo bem. Espero que Nyx esteja com você.

– Eu também.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – gritou Skylar enquanto Aurox se agarrava em alguns galhos que o mantinham, acrescentando um som horrível e baixo enquanto ele tentava se afastar.

– Tente falar com ele. De forma suave, como os gatos gostam, tipo gatinho.

– Tipo gatinho? O que é isso?

– Caraca, ele está acabado – disse eu para Nala. Ela espirrou e pareceu concordar comigo. Os outros gatos estavam todos olhando para Skylar, como se estivessem ali para testemunharem algo. Eu não fazia a menor ideia do que dizer para Aurox.

– Hum, tente conversar com ele. Eu me lembro de que ele é muito inteligente.

– Tudo bem. Vou tentar.

Aurox subiu mais um pouco de forma a se sentar praticamente na mesma altura em que Skylar se encontrava. Eu ouvi quando ele limpou a garganta e, então, com uma voz completamente normal, que ele usa em uma conversa do dia a dia, começou a falar com o gato:

– Merry meet , Skylar. Pelo que soube, você tinha uma ligação com Neferet. Eu também já tive, então posso imaginar como você deve estar se sentindo. Ela também me magoou. Ela continua machucando os outros. Não posso permitir que você se machuque. Eu escolhi proteger esta escola e você faz parte desta escola.

O que aconteceu em seguida foi uma das coisas mais loucas que eu já vi – e olha que eu definitivamente já vi coisas muito loucas. Skylar inclinou a cabeça para o lado como se estivesse ouvindo Aurox.

– Skylar – continuou Aurox com voz solene –, eu vou protegê-lo, mesmo que seja de você mesmo.

Então, Aurox estendeu a mão.

Lentamente, Skylar se alongou em direção a ele até que pudesse ser tocado por Aurox. Prendi a respiração, esperando que o grande gato começasse a berrar novamente e batesse com a pata na sua mão. Mas não foi isso que ele fez. Na verdade, Skylar farejou a mão de Aurox, parou e, então, começou a esfregar o seu queixo contra a mão dele. Mesmo de onde eu estava lá embaixo, dava para ver o sorriso iluminar o rosto de Aurox quando começou, hesitante, a fazer carinho no gato. Skylar parou por um instante e virou a cabeça, analisando Aurox novamente.

– Você pode escolher não permitir que as Trevas de Neferet destruam a sua vida – insistiu Aurox em tom sincero enquanto acariciava o queixo de Skylar.

Sem mais hesitação, Skylar foi na direção dos braços de Aurox.

E todos os gatos em volta da árvore partida começaram a ronronar.

Quando Aurox chegou ao chão, ele estava segurando Skylar bem junto de si. O gato parecia estar abraçado a ele, e sua cabeça fofinha estava aninhada sob o queixo de Aurox. Quando ele se aproximou de mim, ouvi Skylar ronronando.

– Aconteceu algo lá em cima – contou Aurox, com os olhos brilhando.

– É. – Eu funguei e enxuguei o rosto com a manga da camisa. – Skylar escolheu você. Vocês agora pertencem um ao outro.

Aurox olhou para Skylar, acariciando o gato com movimentos longos a amorosos. Skylar não abriu os olhos. A não ser pelo fato de que estava ronronando loucamente, parecia ter adormecido.

– Zo, ele é demais!

Sorri entre as lágrimas.

– Com certeza é.

Aurox olhou para mim. Então, automaticamente enfiou a mão no bolso da calça jeans e me deu um Kleenex.

– Você está com nariz escorrendo de novo.

– Com certeza – respondi.

Seus olhos encontraram os meus. Ele os afastou depressa, mas não antes de eu ver o sofrimento da sua expressão.

– Sinto muito. Eu não deveria tê-la chamado de Zo.

– Você pode me chamar do jeito que quiser.

Seus olhos encontraram os meus de novo e eu vi um brilho de raiva cruzar o seu rosto.

– Não seja legal comigo porque acha que eu sou Heath.

– Que merda, Aurox, eu estou sendo legal com você porque gosto de você! Você salvou a minha avó. Você está segurando um gato supercruel que acabou de salvar. VOCÊ É UM CARA LEGAL! – Parei de falar para controlar o meu tom de voz antes de terminar. – É por isso que estou sendo legal com você.

– Eu gostaria que isso fosse verdade – disse ele.

– Aurox, eu juro que só vou dizer a verdade para você. Tenho muita merda pessoal para lidar agora para acrescentar mentiras à minha lista.

– Você está sendo sincera, não está?

– Estou. – Enxuguei o rosto e funguei. – Valeu pelo lencinho.

– Não há de quê.

– Você tem coisas de gato no seu quarto?

Ele hesitou, e então disse em tom suave:

– Eu não tenho um quarto.

– Onde você dorme?

– Eu não durmo.

Aiminhadeusa! Ele nem é humano! Senti o choque daquilo, e a lembrança de como ele ficava quando se transformava em touro passou pela minha mente. De forma resoluta, afastei o pensamento.

– Bem, você vai precisar de um quarto agora. Esse gato precisa de um lugar para dormir, comer e... hmm, você sabe alguma coisa sobre caixas de areia?

– Hã?

Sorri para ele.

– Venha comigo. Kalona também não dorme. Vamos encontrá-lo. Ele pode arrumar um quarto para você, comida de gato e uma caixa de areia.

– Chamei Nala e ela, na verdade, veio para mim, pulando nos meus braços. Notei, então, que os outros gatos tinham desaparecido.

– Você acha que Kalona sabe lidar com gatos? – perguntou Aurox enquanto caminhávamos juntos.

– Aposto que sim. Ele costumava ser um guerreiro de Nyx, e gatos constituem uma grande parte do Mundo do Além. A Deusa ama gatos.

O rosto de Aurox ficou sem expressão e ele perguntou:

– Zo, você acha que o fato de Skylar me escolher pode significar que Nyx se importa comigo? Mesmo que só um pouco?

– Pode apostar.

Isso foi tudo que consegui dizer antes de a minha garganta se fechar com as lágrimas, e Aurox me dar outro Kleenex.


14

Kalona

– Tudo bem, eu tenho que dizer para você que aquilo tudo foi muito estranho? Você também achou? – perguntou detetive Marx para Kalona.

Ele estava caminhando ao lado do imortal alado quando ambos deixaram o dormitório dos garotos e saíram para o sol forte e bonito do meio-dia.

Kalona ergueu as sobrancelhas e lançou um olhar de esguelha para o detetive. Não estava acostumado a conversar de forma leve com ninguém – principalmente com humanos. Nem com alguém que não o julgava como monstro por causa do seu passado. Ele me trata como se fôssemos companheiros de batalha , percebeu Kalona com um sobressalto incomum de surpresa.

E foi com outro sobressalto de surpresa que o imortal alado se deu conta de que realmente gostava da companhia do detetive.

– Estranho? Ver um gato de uma vampira imortal e louca escolher uma criatura criada a partir de magia antiga para ser uma arma das Trevas, e, então, ter que explicar para a referida criatura, que parece exatamente como um garoto confuso, como alimentar e limpar uma caixa de areia? – debochou Kalona. – Detetive, acho que “estranho” não é uma palavra forte o suficiente para descrever o que acabou de acontecer.

– Que bom ouvir isso!

O detetive deu um tapa no ombro de Kalona em um gesto amigável. Kalona teve de apertar os dentes por causa da dor que atravessou o seu corpo quando o gesto inocente de Marx abriu um ferimento ainda não curado. Kalona emitiu um grunhido que refletia concordância, e não desconforto.

Ignorando qualquer outra coisa a não ser a conversa que estavam tendo, Marx riu e continuou:

– É, teve uma hora lá, quando o garoto estava acariciando o queixo do gato gigante, que eu tenho quase certeza de que os seus olhos começaram a brilhar.

– Os do gato ou os do garoto? – brincou Kalona, ignorando a dor prolongada.

– Os do garoto. Os olhos dos gatos também podem brilhar? – Marx meneou a cabeça. – Não, não me diga. Agora eu compreendo por que a minha irmã diz que algumas coisas vampíricas são zona proibida para humanos. Não faz bem para a nossa cabeça. Pode nos enlouquecer.

Kalona riu.

– Acho que isso tem mais a ver com a estranheza dos nossos tempos do que com a habilidade dos humanos em compreender o anormal.

– Talvez você esteja certo. Estamos vivendo uma época muito estranha.

Eles caminharam juntos sem falar, embora Kalona não sentisse que o silêncio era pesado. Eram apenas dois homens responsáveis por proteger aqueles que lhe eram caros.

É assim que se deve fazer parte de uma família. Eu gosto desse sentimento! O pensamento chegou à sua mente de forma espontânea, e ele não sabia o que fazer com ele. Como é que a Morada da Noite se tornara a sua família? Kalona não fazia ideia, mas até mesmo Zoey Redbird, a novata que ele tentara seduzir primeiro para depois destruí-la, começou a confiar nele o suficiente para procurá-lo em busca de conselhos e ajuda para Aurox quando o felino de Neferet escolheu o receptáculo como seu familiar.

Assim, Kalona teve o seu terceiro sobressalto de surpresa.

– Pode deixar pra lá. Eu não queria perguntar. A minha irmã vive me dizendo que é um péssimo hábito que adquiri desde que me tornei detetive.

Kalona tentou se recompor mentalmente.

– Desculpe, eu estava pensando em outra coisa. Você me perguntou algo?

– Perguntei, mas era pessoal demais, principalmente considerando quem você é. Esqueça... Preciso dormir um pouco antes da loucura começar de novo – disse Marx depressa.

– Você pode me perguntar o que quiser. Nós lutamos contra as Trevas juntos. Deve haver confiança entre nós.

Chegaram ao dormitório das garotas, e Marx parou apoiando-se no corrimão da escada que dava para a varanda de entrada.

– Tudo bem, então. Eu só estava me perguntando por que Nyx não desce dos céus e detém, ela mesma, Neferet. Ela é a ex-Grande Sacerdotisa da Deusa. Acho que Nyx deve estar puta da vida pelo modo como está usando o seu poder de forma errada.

– Em primeiro lugar, Nyx não mora nos céus, ou, pelo menos, não nos céus da civilização ocidental moderna.

– Certo, desculpe. Eu esqueci. Minha irmã me explicou essa parte há alguns anos. Nyx mora no Mundo do Além, certo?

– O Mundo do Além é o reino de Nyx. Está correto.

– E você já esteve lá?

– Durante éons, aquele foi o meu reino também – contou Kalona devagar, desacostumado a falar sobre a Deusa ou o Mundo do Além.

– Desculpe-me se estou sendo intrometido. Eu vou parar por aqui e...

– Eu não me importo de falar sobre isso – respondeu Kalona, dando-se conta de que estava dizendo a verdade.

– Então, você conhece Nyx muito bem.

Kalona inspirou e expirou longamente várias vezes. A resposta para a pergunta do detetive era tão simples quanto desoladora.

– Eu conhecia a Deusa bem. Muito bem.

– Ah, entendi. No passado. – Marx parecia estar pensando em voz alta. – Isso pode explicar o que está acontecendo. Nyx mudou desde a época em que se conheceram. Talvez ela tenha perdido o interesse no mundo moderno. E quem poderia culpá-la? É por isso que ela está deixando que Neferet escape, mesmo tendo corrompido o poder concedido pela Deusa e ferindo não apenas humanos, mas novatos e vampiros também.

– Isso não é verdade. A nossa Deusa não perdeu o interesse em nós.

Kalona desviou o olhar de Marx e viu Shaunee caminhando pela calçada em direção a eles, carregando um gato cinza nos seus braços. Ela usava óculos escuros e um gorro que escondia o seu rosto; estava claro que a luz do sol a incomodava. Ela deve estar perto de completar a Transformação , pensou Kalona e, então, percebeu que a ideia de Shaunee passar pela Transformação e se tornar uma Sacerdotisa vampira lhe provocava um sentimento muito próximo de orgulho.

Esse pensamento fez com que sua voz ficasse brusca:

– Shaunee, você deveria estar no seu quarto, dormindo. A luz do sol não lhe faz bem.

– Eu estou indo para a cama. Só tinha que encontrar Beelzebub. Mas antes de eu ir, quero deixar algo muito claro para o detetive Marx. – Ela pousou seus olhos castanhos no detetive. – Nyx não perdeu o interesse em nós – repetiu ela.

O olhar de Marx passou para Kalona e, depois, voltou para Shaunee. Antes que pudesse responder, a novata recomeçou a falar:

– Não procure Kalona para obter respostas sobre Nyx. – Ela lançou um olhar de desculpas para o imortal. – Isso vai soar cruel, mas não estou fazendo isso de propósito. – Ela voltou a atenção para Marx antes de continuar. – Kalona caiu . Isso não faz dele uma testemunha perita em Nyx, detetive. Se você tem perguntas sobre a nossa Deusa, faça-as a mim. Eu converso com ela todos os dias, e, às vezes, ela até me responde.

– Tudo bem, então. Você pode explicar por que Nyx permitiria que Neferet causasse tanta dor e tanto sofrimento, assistindo a tudo sem fazer nada a respeito? Ela concedeu a Neferet os dons que permitiram que ela acumulasse tanto poder. Por que Nyx pelo menos não revoga os seus dons? Isso faria sentido. Não fazer nada não faz sentido para mim. Digo isso com todo o respeito pela sua Deusa, mas as ações dela não parecem a de uma divindade amorosa.

– Nyx não tirará os dons de Neferet, nem os dons de qualquer um de nós porque ela ama de forma incondicional e sempre mantém a sua palavra, mesmo quando não cumprimos a nossa e a traímos – explicou Shaunee.

Kalona cruzou os braços e fingiu desinteresse, embora não se mexesse – nem respirasse, apenas ouvisse.

– E ela não desce e salva o dia porque ela nos ama tanto que sempre nos dará o livre-arbítrio. – Ela fez uma pausa e, depois, perguntou: – Você tem filhos, detetive Marx?

– Tenho. Duas filhas. Uma de nove e outra de onze.

– E se você nunca permitisse que elas cometessem erros? Ou, melhor ainda, e se você permitisse que cometessem erros, mas, então, interviesse e resolvesse todas as consequências por elas?

– Acho que eu estaria criando uma dupla de meninas mimadas – respondeu ele.

– Que tipo de mulher você acha que elas se tornariam? – perguntou Shaunee.

– Egoístas e irresponsáveis. Se elas crescessem.

– Exatamente! – Shaunee sorriu. – Como nós poderíamos aprender, crescer e evoluir se Nyx nos resgatasse das nossas decisões erradas? Ou se parasse de permitir que tomássemos as nossas próprias decisões, boas ou ruins?

Kalona não conseguiu ficar em silêncio por mais tempo.

– Seria mais fácil se Nyx resolvesse tudo! Eu ainda a conheço bem o suficiente para assegurar a você que a nossa Deusa seria benevolente e bondosa. E isso é mais do que qualquer um de nós pode garantir em relação ao público em geral, sejam vampiros ou humanos.

– Se Nyx resolvesse tudo, os poderes da Luz e das Trevas ficariam desequilibrados para sempre – disse Shaunee.

– A Luz venceria! Não é esse o objetivo? – perguntou Kalona.

– Aiminhadeusa! Será que não percebe o que está pedindo?

– Sim! Estou pedindo paz! O fim do desejo por carnificina e do derramamento de sangue, da traição e da destruição.

– Não! – argumentou Shaunee. – Você está pedindo o fim do livre-arbítrio. Nós nos transformaríamos naquelas pessoas gordas e flutuantes do filme Wall-E , ou pior.

– Que língua você está falando?

– Eu sei do que ela está falando. É um filme da Pixar. Ela quer dizer que nós nos tornaríamos idiotas preguiçosos e sem motivação. – Marx coçou o queixo. – Na verdade, acho que ela talvez esteja certa. Você tem ido a alguma feira estadual?

Então, o detetive riu da própria piada, que não fez o menor sentido para Kalona.

Shaunee não piscou. Ela nem sorriu para Marx. Seu olhar sombrio pousou em Kalona.

– Você não vai conseguir se aproximar de Nyx dessa forma. Você tem que abandonar esse problema de controle e escolher realmente acreditar, de forma sincera, e amar de verdade. – Então, ela deu um beijo na cabeça do gato cinza adormecido em seus braços. – Então, isso responde às suas perguntas, detetive Marx?

– Não a todas, mas o suficiente por ora – respondeu ele.

– Ótimo! Vou pra cama. Vejo vocês no crepúsculo.

Ela subiu a escada e desapareceu no dormitório das garotas.

– Também vou dormir. Thanatos disse que eu poderia usar um beliche na casa dos professores. Você parece cansado. Você vem também?

– Não. Vou assumir o turno de Aurox e vigiar o perímetro – disse ele.

– Turno dobrado. Esses são difíceis. Você quer companhia?

Kalona olhou para o detetive. A pele sob os seus olhos estava ferida e seus passos, arrastados.

– Talvez numa próxima. Mas obrigado por se oferecer.

– Sem problemas. Tenha cuidado lá fora. Como a garota disse, vejo você no crepúsculo.

Kalona assentiu e começou a caminhar para o muro mais distante da escola, tentando, sem sucesso, não ouvir novamente as palavras de Shaunee ecoando em sua mente.

Lynette

– As fantasias estão péssimas! – disse Neferet enquanto meneava a cabeça e lançava um olhar de raiva para o grupo de pessoas trêmulas que Lynette escolhera para usar o que deveriam ser roupas dos anos vinte.

Se tudo, ou mesmo qualquer coisa , estivesse normal, Lynette teria dito que o seu último evento tinha passado por alguns problemas. Na insanidade em que o seu mundo se transformara, Lynette decidiu que o seu último evento era um colete cheio de explosivos de um homem-bomba prestes a explodir – e era ela quem estava usando o maldito colete.

– Deusa, você se lembra das duas coisas de que eu preciso? Tempo e recursos?

– Eu me lembro de tudo .

Lynette bateu palmas diante de si para que Neferet não percebesse o quanto estava trêmula. Limpou a mente e se concentrou no que fazia melhor – lidar com o cliente para que o evento fosse um sucesso.

– E é exatamente por isso que é tão bom planejar eventos para uma Deusa, e não para um humano ou um vampiro – disse Lynette.

O olhar raivoso de Neferet se suavizou com a bajulação.

– Do que você precisa que eu não lhe ofereci? Nós decidimos o tema da minha próxima adoração ontem à noite. Já está quase no crepúsculo, e tudo que eu pedi foi para dar uma olhada nas fantasias dos meus súditos enquanto eles ensaiam o Charleston. Estou certa de que Tulsa tem lojas de fantasia o suficiente e você tem acesso ilimitado aos meus recursos . Então, explique-me por que nenhuma dessas fantasias se parece remotamente com o estilo dos anos vinte?

– Tulsa tem apenas duas lojas decentes de fantasias: a Ehrle’s e a Top Hat – começou Lynette.

– Apenas duas? – Neferet suspirou. – Eu deveria ter começado o meu Templo em Chicago. Chicago está cheia de excelentes lojas. Kylee! Minha taça está vazia!

A Kybô, que era o modo como Lynette silenciosamente se referia à recepcionista robótica, apressou-se pelas escadas subindo até o local onde Neferet colocara o seu trono, enchendo novamente o líquido escarlate que nunca parecia ser o suficiente para a Deusa.

– Mas eu a interrompi, querida Lynette. Por favor, continue a explicação sobre as roupas. – Ela apontou os dedos com as unhas vermelhas para o grupo de pessoas desarrumadas esperando lá embaixo.

– Entrei em contato com os donos das duas lojas. Eles se recusaram a fazer qualquer entrega para nós.

Lynette deu a notícia rapidamente e então se preparou para a loucura.

Em vez de explodir, Neferet ficou totalmente imóvel. Em uma voz suave e pensativa, perguntou:

– E por que eles se recusaram a me atender?

– Eles explicaram que a polícia cercou todo o Mayo e que não permitem que ninguém se aproxime daqui.

Neferet bateu com uma das unhas afiadas na taça. Ela virou a cabeça em uma postura pensativa. Então, a sua expressão se suavizou e ela sorriu.

– A solução é simples. A polícia está evitando que os humanos entrem. Sua atenção está voltada para fora. Eles não vão esperar que alguém saia.

– Sair?

– Sim, bem, não vai ser qualquer um que vai sair. Será você.

Lynette se apoiou na grade de ferro.

– Eu?

– Minha querida, você está com algum problema de audição?

– N-não – apressou-se Lynette a assegurá-la.

– Kylee, sirva uma taça de vinho para Lynette. Ela está pálida. – Agradecida, Lynette tomou o vinho enquanto Neferet começava a sua explicação insana. – Será bem fácil para você. Você sairá pelos fundos, onde eles empilham aquele lixo horrendo. Pular a cerca não deve ser um problema. Você parece ter se mantido em forma. E, é claro, Judson vai acompanhá-la para ajudar com qualquer problema que possa ter. Judson, certifique-se de que a querida Lynette volte em segurança. E você carregará as sacolas de compras para ela, não é mesmo?

Judson assentiu de forma automática e respondeu:

– Sim, Deusa.

– Excelente! Vou pedir para Kylee chamar um táxi para encontrar vocês... Hum... em frente à Biblioteca Central na Fourth Street com a Dever. É longe o suficiente e não estará dentro do cerco policial, e perto o bastante para que não seja tão cansativo para você na volta. Judson vai carregar todo o peso para você.

A mente de Lynette estava a mil. Ela está mandando Judson comigo para me forçar a voltar. Mas ele não passa de um robô quando Neferet não está por perto. Talvez eu consiga escapar, principalmente quando chegarmos à biblioteca. Alguém lá poderá...

– Permita que eu esclareça uma coisa, Lynette. Judson e você não estarão sozinhos. Eu jamais pensaria em deixá-los tão vulneráveis. Vários dos meus filhos irão acompanhá-los. – A Deusa acariciou uma das coisas rastejantes que estava enrolada na sua perna. – Eles também ficarão ansiosos para se aproximarem de você, se hesitar. Então, você e Judson terão mais em comum do que imagina... Tão mais.

Lynette ordenou os pensamentos. Trabalho! Eu tenho que me concentrar no trabalho!

– Algum problema, querida? Com certeza você não discorda da minha solução.

– Honestamente, eu concordo com a parte de sair. – Lynette se concentrou na única coisa normal que sobrara do seu mundo, concentrar-se em concluir um trabalho. – A polícia não está esperando que ninguém faça isso. Mas eu me preocupo com a volta. Você mesma disse que eles estão concentrados em manter as pessoas do lado de fora.

– Você está certíssima em se preocupar. Eu me esqueço de que você não consegue ler a minha mente, porque posso ler a sua tão facilmente. A resposta para o seu problema é bem simples. Devemos esperar até o sol se pôr para você começar a sua jornada. Na volta, os meus filhos vão fazer uma cortina de neblina e magia, sombras e fumaça, para que as Trevas a ocultem.

Lynette ficou boquiaberta e manteve os pensamentos cuidadosamente em branco, sem saber o que dizer.

– Você não precisa ficar preocupada. Ficar oculta pelas trevas não machuca nem dói. Bem, eu deveria dizer que não vai machucar nem doer para você. Os meus filhos precisam ser alimentados. Nesta noite, um motorista de táxi vai ganhar mais do que uma boa gorjeta! – A risada de Neferet foi cruel e ensandecida.

Lynette ergueu a taça e tomou um grande gole.

– Agora, mande esses súditos desarrumados para os seus quartos. Da próxima vez que os vir, quero ficar encantada. – Neferet bateu as mãos depois de suas ordens, como se fosse um faraó dispensando os seus escravos. – Lynette, talvez seja melhor você trocar o seu vestido por uma calça e uma blusa escura. Eu odiaria se você ficasse acidentalmente exposta demais. Você está liberada até o crepúsculo.

– Sim, Deusa.

Lynette fez uma reverência e se afastou, trêmula, seguindo para o elevador que a levaria até o loft no quarto andar que Neferet lhe dera. Quando entrou no elevador, cobriu a boca com as duas mãos, abafando um grito que não conseguia controlar. Pela primeira vez, Lynette compreendeu que não havia como sobreviver à loucura de Neferet, que a questão não era se ela ia morrer, mas como e quando.


C O N T I N U A

Nunca me senti tão sombria assim.
Nem mesmo quando fui estilhaçada e presa no Mundo do Além e minha alma começou a se fragmentar. Naquela época, eu estava quebrada, destruída e prestes a me perder para sempre. Eu me sentia sombria por dentro, mas as pessoas que mais me amavam foram faróis lindos e brilhantes de esperança, e eu fui capaz de encontrar força em sua luz. Consegui sair da escuridão.
Desta vez, eu não tinha nenhuma esperança. Não conseguia encontrar uma luz. Eu merecia continuar perdida, despedaçada. Desta vez, eu não merecia ser salva.
O Detetive Marx me levou para a delegacia do condado de Tulsa em vez de me jogar numa cela com o resto dos criminosos presos há pouco tempo. Na viagem aparentemente interminável da Morada da Noite até o grande prédio de pedra marrom do Departamento de Polícia da First Street ele conversou comigo, explicando que tinha feito uma ligação e mexido uns pauzinhos para que eu ficasse em uma cela especial até que o meu advogado tomasse as devidas providências sobre minha acusação, e então eu poderia ser solta sob fiança. Ele alternava o olhar entre a estrada e o meu reflexo no espelho retrovisor. Meu olhar encontrou o dele. Não precisei de mais do que um olhar de relance para ler a expressão em seu rosto.
Ele sabia que eu não tinha a menor chance de conseguir sair sob fiança.
– Eu não preciso de um advogado – disse eu. – E não quero fiança.
– Zoey, você não está pensando direito. Espere um pouco. Acredite em mim, você vai precisar de um advogado. E, se puder sair sob fiança, será o melhor para você.
– Mas não seria o melhor para Tulsa. Ninguém vai deixar um monstro à solta. – Minha voz soou estável e indiferente, mas por dentro eu estava gritando.
– Você não é um monstro – assegurou-me Marx.
– Você viu aqueles dois homens que eu matei?

 


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Ele me lançou um olhar pelo retrovisor de novo e assentiu. Eu podia ver que seus lábios estavam pressionados, formando uma linha, como se estivesse se segurando para não dizer algo. Por algum motivo, seu olhar ainda era bondoso. Eu não conseguia retribuir aquele olhar.

Olhando pela janela, eu disse:

– Então, você sabe o que eu sou. Você pode me chamar de monstro, de assassina, de vampira novata e perigosa... É tudo a mesma coisa. Eu mereço ser presa. Eu mereço o que vai acontecer comigo.

Então, ele desistiu de conversar, e eu fiquei satisfeita.

Uma cerca de ferro preta cercava o estacionamento da delegacia de polícia, e Marx seguiu até um portão nos fundos onde precisava esperar para ser identificado antes de um enorme portão se abrir. Então, ele estacionou e me conduziu, algemada, por uma porta nos fundos e por uma grande e agitada sala toda dividida em cubículos. Quando entramos, policiais conversavam e telefones tocavam. Assim que perceberam que Marx estava comigo, foi como se tudo tivesse sido desligado. As conversas cessaram e todos nos fitaram como idiotas.

Fixei o olhar em um ponto na parede bem na minha frente e me concentrei para não permitir que os gritos dentro de mim ecoassem.

Tivemos de atravessar toda a sala. Então passamos por uma porta que levava a uma daquelas salas como as do seriado Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais , em que a incrível Mariska Hargitay interroga os bandidos.

Fiquei sobressaltada ao perceber que o que eu fizera me transformara em um dos bandidos.

Havia uma porta no canto da sala que levava a um pequeno corredor. Marx virou à esquerda e parou para passar seu crachá de identificação, e uma porta de aço muito grossa se abriu. Do outro lado, o corredor logo acabava. Havia outra porta de metal à nossa direita, que estava aberta. A parte de baixo era sólida, mas, na altura dos ombros, as grades começavam. Grades pretas e grossas. Foi onde o Detetive Marx parou. Olhei para dentro. O lugar era uma tumba. De repente, senti dificuldade para respirar, e meus olhos desviaram do lugar horrível para encontrar o rosto familiar de Marx.

– Com o poder que você tem, imagino que consiga fugir daqui – ele falou baixinho, como se alguém pudesse estar nos escutando.

– Eu deixei a pedra da vidência na Morada da Noite. Foi isso que me deu o poder para matar aqueles dois homens.

– Então, você não os matou sozinha?

– Eu fiquei furiosa e despejei toda a minha fúria neles. A pedra da vidência só me deu o estímulo. Detetive Marx, a culpa foi minha. Ponto final.

Tentei soar durona e certa do que estava falando, mas a minha voz saiu suave e trêmula.

– Você consegue fugir daqui, Zoey?

– Para ser honesta, eu não sei, mas prometo que não vou tentar. – Respirei fundo e soltei todo o ar de uma vez, dizendo a ele a mais absoluta verdade. – Por causa do que eu fiz, meu lugar é aqui, e independentemente do que aconteça comigo, eu mereço.

– Bem, eu prometo que ninguém vai conseguir incomodá-la aqui. Você estará segura – garantiu ele, gentil. – Eu mesmo me certifiquei disso. Então, o que vier a acontecer, não será porque levou uma surra de linchadores.

– Obrigada.

Minha voz estava fraca, mas consegui pronunciar as palavras.

Ele tirou de mim as algemas.

Eu não tinha conseguido me mexer ainda.

– Você precisa entrar na cela agora.

Consegui fazer com que meus pés se mexessem. Quando eu estava dentro da cela, virei-me e, pouco antes de ele fechar a porta, eu disse:

– Não quero ver ninguém. Especialmente se for da Morada da Noite.

– Tem certeza?

– Tenho.

– Você entende o que está dizendo, não entende? – perguntou ele.

Eu assenti.

– Eu sei o que acontece com uma novata que não fica perto de vampiros.

– Então, basicamente, você está dando a sua própria sentença.

Ele não formulou como uma pergunta, mas eu respondi mesmo assim.

– O que eu estou fazendo é me responsabilizar pelos meus atos.

Ele hesitou, e pareceu que havia mais alguma coisa que desejava dizer, mas Marx apenas deu de ombros, suspirou e concordou:

– Certo, então. Boa sorte, Zoey. Sinto muito que as coisas tenham chegado a esse ponto.

A porta se fechou como que selando um caixão.

Não havia janela, nenhuma luz exterior exceto a do corredor que espreitava por entre as barras da porta. No fundo da cela havia uma cama: um colchão fino em cima de placa de alguma coisa dura grudada na parede. Havia um vaso sanitário de alumínio saindo do meio de uma parede paralela, não muito longe da cama. Não tinha tampa. O chão era de concreto preto. As paredes eram cinza. Sentindo-me como se estivesse em um pesadelo, andei até a cama.

Seis passos. Esse era o comprimento da cela. Seis passos.

Fui até a parede lateral e caminhei pela cela. Cinco passos. Tinha cinco passos de largura.

Eu estava certa. Se não contasse a distância para o teto, eu estava trancada em uma tumba do tamanho de um caixão.

Sentei-me na cama, puxei os joelhos até embaixo do queixo e abracei-os. Meu corpo tremia, tremia e tremia.

Eu ia morrer.

Eu não consegui me lembrar se Oklahoma tinha pena de morte. Como se eu tivesse realmente prestado atenção às aulas de História enquanto o Treinador Fitz passava um filme atrás do outro. Mas, de qualquer forma, isso não importava. Eu deixara a Morada da Noite. Sozinha. Sem nenhum vampiro. Nem mesmo o Detetive Marx sabia o que isso significava. Era só uma questão de tempo até meu corpo começar a rejeitar a Transformação.

Como se eu tivesse rebobinado um filme em minha mente, imagens de novatas morrendo apareceram na tela dos meus olhos fechados: Elliot, Stevie, Rae, Stark, Erin...

Apertei meus olhos ainda mais.

Acontece rápido. Rápido mesmo , prometi para mim mesma.

Então, outra cena de morte surgiu nas minhas lembranças. Dois homens – mendigos, insolentes, mas vivos, até que não consegui controlar o meu temperamento. Eu me lembrava de como atirara a minha raiva contra eles... de como eles bateram contra o paredão de pedra ao lado da pequena gruta de Woodward Park... de como ficaram deitados lá, dobrados, quebrados...

Mas eles estavam se mexendo! Eu não achei que os tivesse matado! Não tinha a intenção de matá-los! Fora realmente um terrível acidente! Minha mente gritava.

– Não! – falei com firmeza para a parte egoísta de mim que queria inventar desculpas e fugir das consequências. – As pessoas têm convulsões quando estão morrendo. Eles estão mortos porque eu os matei. Não vai compensar o que fiz, mas mereço morrer.

Eu me encolhi embaixo do áspero cobertor cinza e fitei a parede. Ignorei a bandeja com o jantar que enfiaram por uma abertura na porta. Eu não estava com fome, mas independentemente do que houvesse na bandeja, definitivamente não me apeteceria.

E, por alguma razão, a refeição ruim fez com que eu me lembrasse da última vez em que senti um cheiro maravilhoso de comida: o psaguetti [*] da Morada da Noite, cercada de amigos.

Mas eu estava estressada demais com o problema Aurox/Heath/Stark e nem apreciei o psaguetti de verdade. Assim como não apreciei os meus amigos. Nem Stark. Não mesmo.

Eu não tinha parado para pensar como era sortuda por dois caras tão incríveis me amarem. Em vez disso, eu ficara irada e frustrada.

Pensei em Aphrodite. Lembrei-me de como ela falou com Shaylin sobre me vigiar. Lembrei-me de como entrei furiosa e despejei o poder da minha fúria acumulada através da pedra da vidência.

A lembrança fez com que eu me encolhesse de vergonha.

Aphrodite estava absolutamente certa. Eu precisava ser vigiada. Ela sequer teve a chance de conversar comigo. E, quando tentou, droga, eu não fui nem um pouco razoável.

Eu me encolhi de novo quando me lembrei de como cheguei perto de despejar a minha raiva contra Aphrodite.

– Aiminhadeusa ! Se eu tivesse feito isso, teria matado a minha amiga – disse para as palmas das minhas mãos enquanto cobria o rosto de vergonha.

Não importava que a pedra da vidência, de alguma forma, mesmo sem eu pedir, tivesse aumentado meus poderes. Tive muitos avisos. Todas aquelas vezes em que me irritava e a pedra ficava cada vez mais quente. Por que não parei e refleti sobre o que estava acontecendo? Por que não pedi a ajuda de alguém? Cheguei a pedir conselhos a Lenobia sobre namorados. Conselho sobre namorados! Devia ter perguntado sobre como controlar raiva!

Mas eu não pedia ajuda para nada, exceto para a única coisa em que a minha visão afunilada estava focada: em mim mesma.

Eu era uma vadia egocêntrica.

Eu merecia estar onde estava. Eu merecia as consequências.

As luzes do corredor se apagaram. Não fazia ideia de que horas eram. Parecia ter se passado anos, e não apenas meses, desde que eu fora humana – uma adolescente normal que tinha que ir para a cama muito cedo nos dias de aula.

Eu desejava, com todas as minhas forças, poder chamar o Super­-Homem e pedir que ele voasse na direção contrária em volta da Terra para fazer o tempo voltar para ontem. Então, eu estaria em casa, na Morada da Noite, com meus amigos. Eu me jogaria nos braços de Stark e diria a ele o quanto o amo e sou grata por tê-lo. Diria que sinto muito pela confusão com Aurox/Heath, e que sairíamos dessa – nós, as duas pessoas e meia envolvidas –, mas que eu desfrutaria de todo o amor que me cercava, independentemente de qualquer coisa. Depois, me livraria da maldita pedra da vidência, procuraria Aphrodite e entregaria a ela para que fosse mantida em segurança, como se ela fosse o meu Frodo.

Mas era tarde demais para desejos. Voltar no tempo era só uma fantasia. O Super-Homem não era real.

Não dormi. Era noite, e a noite se tornara o meu dia. Neste momento, eu deveria estar na escola com meus amigos, vivendo a minha vida, tendo um “dia” normal (para mim), em vez de estar aqui, encolhida. Eu deveria ter sido mais esperta. Mais forte. Deveria ter sido qualquer coisa, menos uma pirralha egoísta.

Horas depois, ouvi a portinhola se abrir de novo, e quando me virei, vi que alguém levara a minha bandeja intocada. Bom. Talvez o cheiro também fosse embora.

Eu precisava fazer xixi, mas não queria. Não queria usar o vaso sem tampa que saía da parede no meio da cela. Olhei para os cantos das paredes, no ponto de encontro com o teto. Câmeras.

Era legal guardas verem prisioneiros fazerem xixi?

As regras regulares se aplicavam a mim? Quero dizer, eu nunca ouvira falar de um novato ou vampiro ser julgado por um tribunal humano nem ir para uma prisão humana.

Não preciso me preocupar com isso. Vou me afogar no meu próprio sangue antes de ir a julgamento.

Por mais estranho que possa parecer, esse pensamento era um conforto, e quando a luz do corredor se acendeu, caí num sono agitado e sem sonho.

Para mim, pareceu que dez segundos depois, a portinhola se abriu de novo e outra bandeja de alumínio foi empurrada para dentro da minha cela. O barulho me fez acordar assustada, mas ainda estava grogue, ainda tentando voltar a dormir – até que o cheiro de ovos e bacon me deixou com água na boca. Há quanto tempo eu não comia? Nossa, me sentia péssima. Ainda sem enxergar direito, andei os seis passos até a porta, pegando a bandeja e levando com cuidado para a minha cama desarrumada.

Os ovos estavam mexidos e supermolhados. O bacon, duro como um pedaço de pau. Havia café, uma caixa de leite e uma torrada pura.

Eu daria praticamente qualquer coisa por uma tigela de cereal Count Chocula e uma lata de refrigerante.

Dei uma garfada nos ovos, mas estavam tão salgados que quase engasguei.

Mas, em vez engasgar, comecei a tossir. Naquela tosse terrível, senti alguma coisa metálica, pegajosa, quente e estranhamente maravilhosa.

Era o meu próprio sangue.

O medo tomou conta de mim, deixando-me fraca, tonta e nauseada. Está acontecendo tão rápido? Eu não estou pronta! Não estou pronta!

Tentando limpar a minha garganta, tentando respirar, cuspi os ovos, ignorei o tingimento rosado no amarelo gorduroso, coloquei a bandeja no chão e me encolhi na cama, passando os braços em volta de mim mesma e esperando por mais tosse e sangue – muito mais sangue. Minhas mãos estavam tremendo quando enxuguei meus lábios.

Eu estava com tanto medo!

Não fique , disse para mim mesma enquanto tentava prender uma tosse terrível. Logo você verá Nyx. E Jack. E talvez até Dragon e Anastasia.

E mamãe!

Mãe... de repente, desejei a presença de minha mãe com todas as forças do meu ser.

– Eu gostaria de não estar sozinha – sussurrei com uma voz grave, a boca grudada no colchão fino e duro.

Escutei a porta se abrindo, mas não me virei. Não queria ver a expressão horrorizada de um estranho. Fechei os olhos bem apertados e tentei fingir que estava na fazenda de lavanda da Vovó, dormindo no meu quarto lá. Tentei fingir que o cheiro dos ovos com bacon era da comida dela, e que a minha tosse era apenas uma gripe que me impedia de ir à escola.

E eu estava fazendo isso! Ah, obrigada, Nyx! De repente, juro que consegui sentir os aromas que sempre se espalhavam na casa da Vovó, lavanda e capim. Isso me deu a coragem para falar logo, antes que a minha voz ficasse sufocada pelo sangue, para quem quer que estivesse ali:

– Tudo bem. Isso é o que acontece com alguns novatos. Por favor, vá embora e me deixe em paz.

– Ah, Zoey Passarinha, minha preciosa u-we-tsi-a-ge-ya , a esta altura você já deveria saber que eu nunca vou deixá-la sozinha.

[*] Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)


2

Zoey

Achei que ela fosse parte da minha alucinação agonizante, parada ali na porta da cela, usando uma camisa de linho roxa e jeans gastos, com uma cesta de piquenique pendurada no braço. Mas assim que me virei para encará-la, ela correu até mim, sentando-se na beirada da cama e me envolvendo em seus braços e nos cheiros da minha infância.

– Vovó! Eu sinto muito! Sinto muito! – Soluçava em seu ombro.

– Shhh, u-we-tsi-a-ge-ya , estou aqui. – Ela passava a mão em círculos nas minhas costas.

A minha tosse amenizou temporariamente, então eu disse logo:

– Eu sei que estou sendo egoísta, mas estou tão feliz que esteja aqui. Eu não quero morrer sozinha.

Vovó se afastou de mim o suficiente para me pegar pelos ombros e me sacudir.

– Zoey Redbird, você não vai morrer.

Lágrimas escorreram pelo meu rosto. Eu as ignorei e enxuguei o canto da minha boca, estendendo meus dedos trêmulos para que ela pudesse ver o sangue.

Ela mal olhou para a prova que eu estava tentando lhe mostrar. Em vez disso, abriu a cesta de piquenique, tirou um guardanapo xadrez vermelho e branco e começou a enxugar as minhas lágrimas e meu nariz, exatamente como fazia quando eu era apenas uma menininha.

– Vovó, eu sei que você me ama mais do que qualquer pessoa no mundo – comecei, tentando (sem sucesso) não chorar. – Mas você não pode impedir que meu corpo rejeite a Transformação.

– Você está certa, u-we-tsi-a-ge-ya , eu não posso. Mas eles podem. – Ela apontou para a porta atrás de mim.

Virei-me e vi Thanatos e Lenobia, Stevie Rae, Darius e Stark – meu Stark –, todos apertados na porta. Stevie Rae estava chorando tão alto que não sei como não havia escutado antes.

Stark também estava chorando, mas em silêncio.

– Mas eu disse para não virem atrás de mim! Eu disse que mereço enfrentar as consequências. – Chorava tanto quanto Stevie Rae agora.

– Então, viva e enfrente as consequências! E eu estarei bem aqui, o mais perto possível de você para passar pela coisa toda! – Stark atirou as palavras em mim.

– Eu não posso. Já comecei a rejeitar a Transformação – contei soluçando.

– Menina, a sua avó falou a verdade. A não ser que a rejeição do seu corpo já esteja determinada, nossa presença vai impedi-la – afirmou Thanatos.

– Você não vai morrer! Eu não vou deixar! – gritou Stark aos prantos, e começou a entrar na minha cela.

– Espere aí, rapaz! Eu disse que só um de cada vez pode entrar na cela. – Um cara com uniforme policial veio de trás do meu grupo de amigos e se colocou entre eles e a minha cela. – O Detetive Marx me disse que eu deveria permitir a entrada de vocês, vampiros, no prédio se aparecessem, mas não vou quebrar as regras e deixar mais de um visitante por vez. A avó é da família. O resto de vocês pode esperar na sala de interrogatório. – Ele lançou um olhar sério para a minha avó. – A senhora tem quinze minutos. – Então, bateu a porta.

– Quinze minutos. – Vovó emitiu um ruído de descontentamento. – Isso não é uma visita apropriada. Esse é o tempo de cozinhar um ovo. Que rapaz sem coração. Bem, não vou ficar aqui perdendo tempo. Zoey Passarinha, assoe o nariz e fique de pé. Você precisa de uma boa defumação. Ah, os cavalheiros que revistaram a cesta fizeram uma bagunça.

Ela já estava mexendo dentro da cesta de piquenique sem fundo, por isso precisei segurar suas mãos nas minhas para que parasse e prestasse a atenção em mim.

– Vovó, eu amo você. Você sabe, não sabe?

– Claro, u-we-tsi-a-ge-ya. E eu amo você, de todo o coração. É por isso que preciso te defumar. Gostaria que tivesse uma banheira aqui, ou mesmo uma pia, para ajudar ainda mais na purificação. Mas a defumação vai ter que ser o suficiente. Trabalhei a noite toda e finalmente escolhi defumar você com essa concha de ostra que nós duas pegamos quando seguimos o Rio Mississipi até o Golfo no verão em que você completou dez anos. Lembra?

– Claro que lembro, Vovó, mas...

– Bom. Moí e misturei sálvia, cedro e lavanda. Combinados, eles formam um poderoso defumador para purificação emocional e física. – Ela estava derramando as ervas secas de uma bolsinha de veludo preta para a concha de ostra. – Eu também trouxe uma pena de águia e minha peça favorita de turquesa. Sei que eles podem tentar tirar de você, mas vamos tentar esconder dentro do colchão. Vai servir para protegê-la enquanto...

– Vovó, por favor, pare – interrompi. Encontrando o seu olhar sem nem piscar, eu disse: – Eu matei aqueles dois homens. Não mereço ser purificada nem protegida. Mereço o que estava acontecendo comigo antes de todos vocês aparecerem.

Minha intenção não era ser tão fria, mas minhas palavras fizeram com que ela hesitasse. Então, suavizei a minha voz, mas não a minha decisão.

– Os vampiros podem ter evitado que me afogasse no meu próprio sangue, mas isso não muda o fato de que eu fiz uma coisa terrível, uma coisa pela qual preciso ser punida.

Ela parou de preparar a minha defumação e seus olhos penetrantes encontraram os meus.

– Diga-me, u-we-tsi-a-ge-ya , por que você matou aqueles homens?

Balancei a cabeça e afastei o cabelo despenteado do meu rosto.

– Eu não sabia que os tinha matado até o Detetive Marx aparecer na Morada da Noite. Eu só sabia que eles tinham me enfurecido. Estavam perambulando por Woodward Park atrás de pessoas, principalmente garotas, amedrontando-as para que lhes dessem dinheiro. – Parei e meneei a cabeça de novo. – Mas isso não torna o que eu fiz aceitável. Quando dessem conta do que eu era, me deixariam em paz.

– E iam seguir até encontrar outra vítima.

– Provavelmente, mas não iam matar. Eles eram mendigos, não serial killers.

– Então, me conte o que aconteceu. Como você os matou?

– Descontei minha raiva neles. Da mesma forma que tinha feito com Shaylin mais cedo, atirando-a no chão. Só que eu fiquei ainda mais furiosa no parque. De algum jeito, a pedra da vidência exacerbou os meus sentimentos e me deu o poder de atacar todos eles.

– Mas você não matou Shaylin – considerou Vovó, sendo lógica. – Eu vi a menina na Morada da Noite um pouco antes de vir para cá. Ela me pareceu bem viva.

– Não, eu não a matei. Não dessa vez. Quem sabe o que poderia ter acontecido se eu não tivesse ido embora e seguido para o parque, e descontado a minha fúria naqueles dois homens? Vovó, eu estava descontrolada. Eu era um monstro.

– Zoey, você fez uma coisa monstruosa. Mas isso não faz de você um monstro. Você se entregou. Desistiu da pedra da vidência. Permitiu que a prendessem. Esses não são os atos de um monstro.

– Mas, Vovó, eu matei dois homens! – Senti meus olhos marejarem de novo.

– E agora você vai ter que enfrentar as consequências dos seus atos. Mas isso não significa que você deva desistir e causar ainda mais sofrimento para as pessoas que amam você.

Mordi meus lábios.

– Meu intuito é assumir minhas responsabilidades para não machucar mais ninguém, principalmente as pessoas que eu amo.

– Zoey Passarinha, não sei por que essa coisa terrível aconteceu. Eu não acredito que você seja uma assassina. – Ela ergueu a mão para que não a interrompesse quando tentei falar. – Sim, eu tenho consciência de que os dois homens estão mortos, e que você parece ser responsável pela morte deles. Ainda assim, você mesma admite que a pedra da vidência teve um papel decisivo no acidente, o que significa que a magia antiga está em ação.

– É verdade, eu estava usando a pedra – admiti.

– Ou ela estava usando você – contradisse ela.

– De qualquer forma, os resultados são os mesmos.

– Para os dois homens. Mas não necessariamente para você, u-we-tsi-a-ge-ya. Agora, fique de pé na minha frente. Você precisa que a sua mente seja clareada e seu espírito purificado para que possa analisar exatamente o que a trouxe para esta cela. Veja, não estou aqui para ajudá-la a se esconder do que fez. Estou aqui para que possa verdadeiramente encarar o que aconteceu.

Como sempre, Vovó era a voz da razão e do amor incondicional. Fiquei de pé e me permiti o breve conforto de vê-la pegar a concha com uma das mãos enquanto, com a outra, colocava um pequeno pedaço arredondado de carvão em cima da mistura de ervas e acendia. Conforme faiscava, ela disse:

– Respire fundo três vezes, u-we-tsi-a-ge-ya . E, a cada vez que o fizer, solte a energia tóxica que anuvia a sua mente e escurece o seu espírito. Visualize, Zoey Passarinha. Qual é a cor?

– Um verde asqueroso – respondi, pensando na coisa nojenta que saiu do meu nariz da última vez em que tive sinusite.

– Excelente. Expire e visualize que está se livrando disso junto com a sua respiração.

O carvão parara de faiscar e estava ficando cinza nas beiradas. Vovó pegou a bolsinha de veludo preta e começou a salpicar as ervas sobre o carvão dizendo:

– Eu lhe agradeço, espírito da sálvia branca, por sua força, sua pureza, seu poder. – Uma fumaça branca começou a subir da concha de ostra. – Eu agradeço a você, espírito do cedro, por sua divina natureza, por sua capacidade de criar uma ponte entre este Mundo e o Mundo do Além.

Mais fumaça subia, e eu inspirava e expirava.

– E, como sempre, agradeço ao espírito da lavanda, por sua natureza apaziguadora, por sua capacidade de nos permitir liberar a nossa raiva e alcançar a paz. – Então, Vovó começou a andar em volta de mim em sentido horário, batendo os seus pés em um ritmo pulsante, ancestral, que parecia eletrificar a fumaça aromatizada e impulsioná-la para dentro do meu corpo, conforme ela abanava em volta de mim com a pena de águia. Sem perder um passo de sua dança, a voz de Vovó se pareou aos seus movimentos, ecoando através do sangue dela para o meu. – Saia o que é tóxico, que é verde como bile. Entre a fumaça doce, prateada e pura.

Concentrei-me enquanto ela se movia à minha volta, entrando no ritual com a mesma facilidade que fizera por toda a minha infância.

– Inale a cura. Inale a purificação. Inale a calma. A bile verde embora irá. Substituída pela prata e pela claridade – cantava Vovó.

Levantei as mãos, guiando a fumaça em volta da minha cabeça, concentrando-me na purificação prateada.

– O-s-da – continuou Vovó, repetindo logo depois em nossa língua: – Bom, você está recuperando o seu centro.

Entrei em um estado sonolento, de transe, levada pela fumaça e pelo canto da Vovó. Pisquei, como se estivesse emergindo de um mergulho profundo, e meus olhos se arregalaram de surpresa. Claramente visível através da fumaça havia uma luz prateada brilhante que, como uma bolha, nos envolvia, a mim e a Vovó.

– Isso é o que você está projetando agora, Zoey Passarinha. Isso tomou o lugar das Trevas que estavam dentro de você.

Respirei fundo de novo, sentindo uma leveza surpreendente em meu peito. O aperto terrível que estivera ali desde que comecei a tossir sumiu. A sensação de desespero que estava dentro de mim também desapareceu...

Por quanto tempo? , perguntei-me. Agora que tinha ido embora, eu percebia o quanto aquilo era opressor.

Vovó tinha parado na minha frente. Colocou a concha de ostra entre nossos pés e segurou as minhas mãos.

– Eu não sei de tudo. Não tenho as respostas que você procura. Não posso fazer nada além de purificar e curar a sua mente e o seu espírito. Não posso tirá-la deste lugar nem mudar o passado que a trouxe para cá. Só posso amá-la e lembrá-la desta regrinha segundo a qual tentei viver a minha vida: não posso controlar os outros. Só posso controlar a mim mesma e as minhas reações aos outros. E, quando tudo o mais dá errado, eu escolho a bondade. Mostro compaixão. Então, se fiz escolhas ruins, pelo menos não causei danos ao meu espírito.

– Eu fracassei nisso, Vovó.

– Fracassei... isso é passado, e você deve deixar esse fracasso no passado, que é onde ele deve ficar. Aprenda com os seus erros e siga em frente. Não fracasse de novo, u-we-tsi-a-ge-ya. Isso significa que se você precisar enfrentar o julgamento e for para a prisão por causa dessa coisa terrível que aconteceu, então você fará isso falando a verdade e agindo com compaixão, assim como faria uma Grande Sacerdotisa da sua Deusa.

– Eu deveria afastar as pessoas que me amam. – Não disse isso como uma pergunta, mas Vovó me respondeu mesmo assim.

– Afastar as pessoas que a amam e se interessam verdadeiramente por você seria a ação infantil, e não de uma Grande Sacerdotisa.

– Vó, você acha que Nyx ainda quer que eu seja uma Grande Sacerdotisa?

Vovó sorriu.

– Acho, mas a minha opinião não é importante. O que você acha da sua Deusa, Zoey? Você acha que ela é tão volúvel que a amaria e depois a descartaria tão facilmente?

– Não estou questionando Nyx, e sim a mim mesma – admiti.

– Então, deve olhar para si mesma. Manter-se firme no seu centro. – Ela pegou a pedra turquesa que retirara da cesta de piquenique mais cedo e colocou-a em minha mão. – Você usou a pedra da vidência para concentrar seus poderes, querendo ou não. Agora, acredito que tenha que encontrar um foco dentro de você. Assim como a turquesa tem seu próprio poder protetor, você deve encontrar o seu próprio, dentro de si. Desta vez, não procure raiva, Zoey Passarinha. Procure compaixão e amor.

– Sempre amor – terminei por ela, pegando a pedra na minha mão e sentindo a sua maciez.

– Segure-se ao seu verdadeiro eu como está segurando esta pedra, e lembre-se de que sempre vou acreditar que você é mais forte, mais sábia e mais bondosa do que pensa ser.

Coloquei os braços em volta dela e abracei-a com força.

– Eu amo você, Vovó. Sempre amarei.

– Assim como eu sempre amarei você.

– Acabou o tempo! – A voz do guarda fez com que eu, relutantemente, soltasse Vovó. – Ei, o que está acontecendo aqui? O que vocês estavam queimando?

Vovó virou-se para ele, sorriu, e com sua voz mais doce, disse:

– Nada com o que você precise se preocupar, querido. Apenas um pouco de limpeza e purificação. Você gosta de biscoitos com gotas de chocolate? Tenho um ingrediente secreto que faz com que os meus fiquem irresistíveis, e, por acaso, tenho uma dúzia aqui na minha cesta. – Dando um tapinha no braço dele, ela acompanhou-o pela porta, levantando um prato de papel cheio de biscoitos de sua cesta mágica e piscando para mim por sobre o ombro. – Agora, querido, por que não arranja um café para acompanhar esses biscoitos enquanto chama o jovem e generoso vampiro chamado Stark para entrar e visitar a minha neta?

Stark!

Sentei-me na cama, endireitando minhas roupas nervosamente e tentando pentear o meu cabelo superdoido com os dedos. E, então, ele estava na porta, e me esqueci da aparência. Eu me esqueci de tudo, exceto de como estava feliz em vê-lo.

– Posso entrar? – perguntou ele, hesitante.

Assenti.

Não esperei que ele desse aqueles seis passos até mim. Não podia esperar nem mais um segundo. Assim que ele se aproximou, atirei-me em seus braços e enterrei meu rosto em seu ombro.

– Eu sinto muito! Não me odeie... por favor, não me odeie!

– Como eu poderia odiar você? – Ele me abraçou com tanta força que era difícil respirar, mas não liguei. – Você é a minha rainha, a minha Grande Sacerdotisa e meu amor... meu único amor. – Ele se afastou de mim apenas o suficiente para me olhar diretamente nos olhos. – Você não pode se suicidar. Eu não conseguiria sobreviver a isso, Zoey. Juro que não.

Havia círculos escuros embaixo de seus olhos, e suas tatuagens vermelhas de vampiro pareciam especialmente brilhantes contra a pele anormalmente pálida. Parecia que ele tinha envelhecido uma década em um dia.

Odiei vê-lo com aparência cansada e doentia. Odiei ser a causa disso.

Encontrei seu olhar e falei com toda gentileza e compaixão dentro de mim:

– Isso foi um erro. Não o cometerei de novo. Desculpe-me ter feito você passar por tudo isso. – Apontei para a cela.

Ele tocou meu rosto com gentileza, quase reverência.

– Para onde você for, eu vou. Nós fizemos um juramento para esta vida e além, Zoey Redbird. E tudo isso é suportável se tivermos um ao outro. Nós ainda temos um ao outro?

– Temos sim.

Eu o beijei, longa e apaixonadamente. Achei que eu o estivesse confortando, mas percebi que seu toque, seu beijo e seu amor é que estavam me confortando.

Foi naquele momento que realmente compreendi o quanto amo Stark.

– Está vendo? – perguntou ele, cobrindo meu rosto de beijos e enxugando as lágrimas que escorriam. – Está tudo melhor agora. Tudo vai ficar bem.

Eu não quis falar para ele que não tinha tanta certeza de que algum dia as coisas voltariam a ficar bem. Isso não seria compaixão. Em vez disso, levei-o até a minha cama estreita e dura. Nós nos sentamos e eu me aconcheguei nele, repousando em seu braço.

– Nós vamos nos revezar para ficar aqui de modo que você não volte a rejeitar a Transformação. De hoje em diante, sempre haverá um vampiro do lado de fora desta porta – Stark começou a explicar baixinho enquanto me abraçava bem apertado. – Vão colocar uma cama portátil no corredor.

– Mesmo? Você vai ficar assim tão perto de mim?

– Vou, o Detetive Marx fez com que permitissem que eu ficasse. Ele é um cara muito legal. Ele disse ao chefe de polícia que não permitir que um vampiro fique com você seria a mesma coisa que dar uma lâmina de barbear a um prisioneiro humano e depois fazer vista grossa para o que ele fizesse depois. Ele disse que isso era desumano e que, ao se entregar, você tinha os mesmos direitos que qualquer outro humano.

– Isso foi legal da parte dele. – De repente, percebi que horas deviam ser, meio-dia pelo menos. – Espere, você não devia estar aqui. Está claro lá fora. – Sentei-me e comecei a procurar queimaduras em seu corpo.

Ele sorriu.

– Estou bem. Stevie Rae também. Viemos para cá na parte de trás da van da escola, aquela sem janelas.

Assenti e sorri.

– A van de Chester the Molester. [*]

– Isso, é assim que eu me locomovo agora. – O sorriso dele ficou presunçoso. – Marx deixou que estacionássemos na garagem coberta ao lado da delegacia. Nenhum raio de sol tocou em nós.

– Tome cuidado, ok?

Ele ergueu as sobrancelhas.

– É sério isso? Você está me mandando tomar cuidado?

– Estou pedindo, na verdade – corrigi, lembrando-me de ser generosa.

Ele riu e me abraçou.

– Zoey Redbird, você está toda desarrumada, mas continua linda, e eu amo você.

– Eu também amo você.

Logo ele me soltou e seu rosto assumiu uma expressão mais séria.

– Tudo bem, quero que você me conte tudo. Já sei que você ficou furiosa com dois humanos e lançou algum tipo de poder neles, mas eu preciso de detalhes.

– Stark, será que não podemos simplesmente... – comecei, não querendo desperdiçar um segundo do meu tempo com ele para falar do terrível erro que cometi.

Ele me cortou.

– Não podemos simplesmente ignorar. Zoey, você pode ser um monte de coisas, mas assassina não é uma delas.

– Joguei dois caras contra o muro, e eles estão mortos. Isso me torna uma assassina, Stark.

– Veja bem, acho que eu tenho um problema com isso. Acho que isso torna a sua pedra da vidência uma assassina. Foi por isso que você a entregou para Aphrodite, não foi? Porque foi o que canalizou a sua fúria para aqueles dois caras.

Estava prestes a abrir a boca para tentar explicar para ele o que eu mesma não compreendia, mas o som de passos no corredor me interrompeu. O guarda, com rosto vermelho e olhos arregalados, apareceu na porta.

– Vamos, vamos! Saia. Agora! – ordenou ele para Stark, apontando freneticamente para ele. – Um dos seus vampiros pode ficar, mas tem que ser aqui no corredor. O resto de vocês tem que dar o fora daqui... voltar para o lugar de vocês.

– Espere, não faz nem cinco minutos, muito menos quinze – argumentou Stark.

– Não posso fazer nada a respeito. Tem alguma coisa acontecendo no presídio. Uma emergência no centro da cidade.

Segui Stark até a porta, sentindo como se um cubo de gelo estivesse descendo pela minha espinha.

– Onde no centro da cidade? O que está acontecendo? – perguntei.

– Está um inferno no Mayo Hotel, e eles precisam de todos os policiais da cidade lá.

A porta da cela se fechou, permitindo que eu e Stark nos víssemos por entre as grades.

– Neferet – disse Stark.

– Ah, droga – respondi, concordando.

[*] “Chester the Molester” era uma tirinha de autoria de Dwaine B. Tinsley e publicada pela revista Hustler por 13 anos. A história gira em torno de um homem, Chester, interessado em molestar sexualmente mulheres e adolescentes. (N.T.)


3

Neferet

Era o meio da manhã de um domingo preguiçoso quando Neferet ordenou aos seus filamentos de Trevas que se abrissem para que pudesse ser levada da espessa nuvem de sangue e morte para a calçada em frente ao Mayo. Ela endireitou seu terninho Armani e jogou o cabelo castanho para trás. Neferet estava pronta para seu retorno triunfal à cobertura que a esperava com seus mármores, pedras e veludos no topo do prédio. Abriu a porta vintage de latão e vidro e parou assim que a atravessou, suspirando feliz para o vasto salão de baile que se abria à sua frente, resplandecente com seu mármore branco, colunas estatuárias, ornamentos grandiosos da década de 1920, e uma escadaria dupla que se curvava até a pista de dança com a graça do sorriso satisfeito de uma deusa.

Suas sobrancelhas castanhas se arquearam. Seu olhar cor de esmeralda se tornou mais penetrante. Neferet observou à sua volta com interesse renovado.

– Este realmente é um prédio requintado o suficiente para ser o templo de uma deusa. – Neferet sorriu. – Meu templo. Minha casa.

– Srta. Neferet! É realmente a senhora? Estávamos tão preocupados que alguma coisa tivesse acontecido quando destruíram a sua cobertura.

Neferet desviou o olhar do grande salão para a jovem que sorria para ela por trás do balcão da recepção.

– Meu templo. Minha casa. Meus súditos . – Ela sabia o que deveria fazer. Por que demorara tanto para pensar nisso? Possivelmente porque nunca absorvera tantas mortes ao mesmo tempo como acontecera poucos momentos antes de chegar ao Mayo. Assim como suas fiéis gavinhas, Neferet estava pulsando com poder, e esse poder tornava seu pensamento focado e claro.

– Isso, é exatamente assim que deve ser. Todos os humanos neste prédio devem me adorar.

– Desculpe-me, madame. Não entendi o que quis dizer.

– Ah, você vai entender. Em breve, entenderá. – O sorriso radiante da recepcionista começara a se apagar. Com um movimento sobrenatural, Neferet deslizou até ela. Viu o nome da garota no crachá dourado. – Sim, minha querida Kylee. Logo você me entenderá completamente. Mas, primeiro, você vai me dizer quantos hóspedes há neste momento no hotel.

– Sinto muito, madame – desculpou-se Kylee, parecendo totalmente constrangida. – Não posso fornecer essa informação. Talvez se a senhorita me disser do que precisa...

Neferet se inclinou, passando a mão pelo lindo balcão de mármore, interrompendo-a e capturando o olhar da garota.

– Você não me questionará. Você jamais me questionará. Fará exatamente o que eu mandar.

– Eu... Eu sinto muito, madame. Não quis ofendê-la, mas as informações sobre os hóspedes do hotel são confidenciais. Nós... Nós temos muito cuidado com a nossa p-política de privacidade – gaguejou ela, as mãos trêmulas de nervoso enquanto agarrava a corrente de ouro com um crucifixo junto ao pescoço.

Mesmo se Neferet não fosse vidente, perceberia a extensão do medo da garota – o que não impressionava a Deusa nem um pouco.

– Excelente! Agora que você vai seguir as minhas ordens, espero que seja ainda mais cuidadosa com privacidade, a minha privacidade.

– Desculpe, madame, a senhora está dizendo que comprou o Mayo Hotel? – A confusão de Kylee se intensificava junto com seu medo.

– Ah, muito melhor do que isso, e muito mais permanente. Decidi transformar este prédio encantador no meu primeiro Templo. Mas eu já não ordenei que você nunca me questionasse? – Neferet suspirou e emitiu um som de desaprovação. – Kylee, você vai ter que se esforçar mais no futuro. Mas não precisa preocupar essa sua cabecinha loura. Sou uma deusa bondosa. Pretendo lhe oferecer a ajuda de que precisar para que seja minha súdita perfeita.

Enquanto Kylee arfava como um peixe fora d’água, Neferet virou-se de costas para ela e encarou o mar de gavinhas que, embora não fossem vistas pela idiota da Kylee, espalhavam-se pelo piso de mármore e subiam carinhosamente por suas pernas.

– Filhos, vocês se alimentaram muito bem. Agora, está na hora de me pagarem pela minha generosidade. – Eles se retorceram, excitados, um ninho de víboras, e Neferet sorriu carinhosamente para elas. – Sim, eu lhes dei a minha palavra. Que foi só o começo do nosso banquete. Mas vocês precisam trabalhar em troca de comida. Eu me recuso a ter filhos vagabundos. – Ela deu uma gargalhada afetada. – Agora, um de vocês deve possuir esta humana. Não! Não a matem. – Neferet esclareceu, quando uma dúzia de gavinhas começou a se arrastar exaltadamente na direção de Kylee. – Sigam a minha mente até a dela. Usem minha trilha até seus pensamentos e desejos mais profundos, e fiquem lá, envolvam sua vontade e apertem. Mas não o suficiente para matá-la ou roubar o que se passa por sua razão. Não quero um Templo cheio de idiotas. Quero um Templo cheio de súditos obedientes. Possuam-na para que eu tenha certeza de sua obediência!

Neferet se virou para encarar a garota, cujo rosto perdera a cor de forma tão drástica que seus olhos castanhos pareciam hematomas.

– Srta. Neferet, por favor, não me machuque! – implorou ela, começando a chorar.

– Kylee, minha querida, minha primeira súdita humana, isso é realmente para o seu bem. O livre-arbítrio é um fardo terrível. Eu tinha livre-arbítrio quando era uma garota, pouco mais nova do que você; ainda assim, estava presa a uma vida de abuso que eu não tinha escolhido. É muito comum isso acontecer com humanos. Olhe para si própria: o emprego subalterno, a roupa precária. Você não quer mais da vida?

– Q-quero – respondeu Kylee.

– Bem, então temos um trato. Se eu tirar o seu livre-arbítrio, também vou afastar de você os terrores inesperados que a vida pode trazer. – Neferet fitou dentro dos olhos arregalados da garota e perfurou sua mente. Estava concentrada demais em Kylee para baixar o olhar, mas sabia que uma fiel e forte gavinha a obedecera e estava subindo pelo corpo da garota. Embora não conseguisse ver o que estava rastejando por suas pernas, Kylee certamente podia sentir. Abriu a boca e começou a gritar. – Acabem com o terror dela e entrem nela! – ordenou Neferet, e a gavinha entrou pela boca aberta.

Kylee começou a engasgar convulsivamente, e apenas o domínio de Neferet em sua mente evitou que desmaiasse.

– Tão humana. Tão fraca – murmurou a Deusa enquanto sondava a mente da garota, sentindo a familiar presença das Trevas seguindo. Quando encontrou o centro da vontade de Kylee, sua alma, sua consciência, Neferet ordenou: – Envolvam-na! – Com seu sentido extra, presente que recebera de outra Deusa mais de um século antes, Neferet testemunhou as Trevas aprisionarem a vontade de Kylee.

A garota caiu, seu corpo se contorcendo em espasmos.

– Lembrem-se bem da trilha que acabei de mostrar para vocês, filhos. Kylee é apenas a primeira de muitas. – Neferet bateu uma palma. – Levante-se, Kylee. Arrume-se, minha querida. A sua vida acaba de se tornar muito mais , e eu tenho outras ordens que você deve cumprir.

Kylee ficou de pé, como se fosse uma marionete manipulada por cordas.

– Isso, assim está muito melhor. Agora, me diga quantos hóspedes há no hotel, e lembre-se, nada mais daqueles gritos irritantes.

– Sim, madame – respondeu Kylee de forma instantânea e mecânica.

O sorriso de Neferet voltou. Ela estava transbordando poder! Os humanos deviam adorá-la – com a débil força de vontade deles e mentes facilmente manipuláveis, não tinham a menor chance.

– E pare de me chamar de madame. Quero que me chame de Deusa.

– Sim, Deusa – repetiu Kylee automaticamente, sua voz totalmente desprovida de emoção. Então, começou a digitar no teclado enquanto fitava, sem expressão, a tela do computador. – No momento, temos 72 hóspedes, Deusa.

– Muito bem, Kylee. E quantos moradores há?

– Cinquenta.

Com um dedo longo, Neferet levantou o queixo de Kylee para que ela a fitasse de novo.

– Cinquenta o quê?

Kylee estremeceu, tal qual um cavalo espantando insetos, mas seu olhar permaneceu aberto, inexpressivo, e ela se corrigiu imediatamente, dizendo:

– Cinquenta, Deusa.

– Muito bem, Kylee. Vou me recolher à minha cobertura. Lembre-se, este prédio agora é o meu Templo, e eu insisto em proteger a minha privacidade, assim como meu divino corpo. Entendeu?

– Sim, Deusa.

– Você compreende que isso significa que, se alguém vier me procurar, você dirá que tem certeza absoluta de que eu não estou aqui, e o mandará embora?

– Compreendo, Deusa.

– Kylee, você foi muito útil. Vou permitir que tenha uma vida longa o suficiente para me adorar adequadamente.

– Obrigada, Deusa.

– De nada, querida.

Neferet começou a deslizar na direção do elevador. Levantou a mão, chamando.

– Venham, meus filhos. Tenho a sensação de que vamos precisar redecorar.

Inchadas e pulsando com o sangue com o qual tinham acabado de se alimentar, as gavinhas das Trevas seguiram ansiosamente sua ama.

– Exatamente como pensei. Deixaram em ruínas! Isso é inaceitável. – Neferet andou em volta das cadeiras reviradas dos tapetes manchados da sala de estar que costumava ser uma cobertura meticulosa e luxuosamente decorada. – Sangue velho! Esta sala está fedendo a sangue. Limpem! – mandou ela. As gavinhas obedeceram, embora mais lentamente do que quando a refeição que ela oferecia era fresca. – Não sejam tão exigentes. Parte desse sangue é de Kalona. Mesmo velho, sangue imortal tem poder. – Isso pareceu animar as gavinhas e elas passaram a rastejar com mais entusiasmo.

Enquanto trabalhavam, Neferet dirigiu-se até a adega, apenas para encontrá-la vazia. Não restava uma garrafa sequer do escuro e caro cabernet que ela tanto adorava.

–Isso é o que acontece quando não estou aqui para ficar de olho naqueles humanos preguiçosos. Eles negligenciam suas tarefas. Estou sem vinho, e minha cobertura mais parece um matadouro!

O olhar irritado de Neferet foi de encontro à grande quantidade espalhada de poeira turquesa, vinda da jaula das Trevas, na qual suas gavinhas prenderam a entediantemente teimosa Sylvia Redbird.

– E aquilo! Sumam com aquele pó azul horrível. Macula toda a beleza do piso de ônix, ainda mais do que aqueles tapetes persas manchados.

Várias gavinhas tentaram obedecer à sua ordem, mas se esquivaram assustadas das partículas azuis, como se estas ainda tivessem o poder de afastá-las. A mais ousada delas seguiu pela pedra empoeirada, então estremeceu e se contraiu, sua carne escorregadia e emborrachada soltando fumaça e um líquido escuro e fétido. Neferet franziu a testa, acenando para a gavinha. Com uma unha afiada, ela perfurou a pele da palma de sua mão.

– Venha, alimente-se de mim e cure-se – murmurou ela, apreciando o toque gelado e doloroso da boca da gavinha, acariciando-a enquanto ela se alimentava, estremecendo sob seu toque.

– Isso nunca vai dar certo. Arrumar a bagunça deixada por humanos é muita humilhação para meus leais filhos. Súditos humanos devem limpar bagunças humanas, é disso que preciso, cumprindo as minhas ordens, facilitando o meu trabalho. E, felizmente, temos mais de cem deles sob este mesmo teto. Todos eles, exceto a tão útil Kylee, ainda não sabem o quanto ficarão assoberbados em breve. Hum... qual seria a melhor maneira de iniciar meus novos súditos?

Neferet sacudiu o braço para afastar a gavinha faminta.

– Não seja tão gulosa. Já está curada.

A gavinha se afastou. Neferet passou a mão pelo seu longo e esbelto pescoço, pensando. Precisava avaliar o melhor passo a dar, e precisava agir rápido.

Não deixara ninguém vivo na Church Boston Avenue, apenas centenas de corpos mutilados e sem sangue.

– As autoridades irão primeiro para a Morada da Noite, é claro. Thanatos insistirá que ninguém do seu rebanho impecável faria uma coisa daquelas. A velha vai jogar a culpa em mim. Acreditando nela ou não, mesmo a incompetente polícia local acabará vindo me procurar aqui. – Neferet tamborilou suas unhas longas e pontiagudas no balcão de mármore preto de sua adega vazia. Não tinha muito tempo ao seu dispor, a não ser que optasse por se esconder.

– Não, nunca mais vou me esconder. Sou uma Deusa, uma imortal, com o dom de comandar as Trevas. Nyx nunca me compreendeu. Kalona nunca me compreendeu. Ninguém jamais me compreendeu. Mas agora eu vou obrigá-los a me entender. Vou fazê-los entenderem! Os moradores de Tulsa é que devem se esconder de mim, e não o contrário.

Ela tinha de ser rápida e decisiva, antes que a polícia chegasse e tentasse, sem sucesso, prendê-la – ou antes que o seu banquete na igreja chegasse aos noticiários e começasse a assustar os hóspedes do Mayo Hotel: os seus futuros súditos.

Neferet encontrou um controle remoto e ligou a enorme televisão de tela plana que, por sorte, tinha saído intacta da batalha. Sintonizou no canal local, colocou no mudo e começou a andar de um lado para o outro, pensando em voz alta e mantendo os olhos grudados na tela.

– É uma pena que eu não possa enjaular os seres humanos como eu fiz com aquela velha e soltá-los quando eu precisasse de sua adoração ou de seus serviços. Isso seria tão mais fácil para eles e, o mais importante no final das contas, para mim. Eu apostaria muito no fato de que nenhum deles resistiria tanto quanto Sylvia Redbird. Os humanos comuns nunca poderiam entrar ou sair da jaula das Trevas criadas por vocês, meus queridos. E, pelo que vi até agora, os meus humanos são excessivamente normais. – Neferet parou abruptamente. – Os meus súditos são humanos normais. E eu me tornei tão mais do que uma humana comum ou uma vampira.

Distraída, Neferet acariciou uma gavinha que se enrolara em seu braço.

– É uma pena que eu não possa enjaular os humanos aqui. Eu os estaria protegendo, permitindo que eles troquem o tédio de suas vidas pela satisfação de me adorar, assim como fiz com Kylee. – Ela acariciava a gavinha, enquanto esta estremecia de prazer. – Eu não preciso enjaulá-los. Eu preciso tratá-los com carinho!

Abrindo os braços, ela sorriu para os seus servos das Trevas, que eram perfeitamente lindos e aterrorizantes.

– Tenho uma resposta para o nosso dilema, meus filhos! A jaula que criamos para aprisionar Redbird era fraca, uma tentativa patética de aprisionamento. Aprendi tantas coisas desde aquela noite! Consegui tanto poder... Nós conseguimos tanto poder. Não vamos enjaular as pessoas, como se eu fosse uma carcereira em vez de uma deusa. Meus filhos, vamos cobrir todas as paredes do meu Templo com as suas tramas mágicas e invioláveis para que os meus novos súditos possam me adorar sem qualquer empecilho. E isso será apenas o começo. À medida que eu absorver cada vez mais poder, por que não encapsular toda a cidade? Eu sei disso agora... Conheço o meu destino. Começo o meu reinado como Deusa das Trevas ao tornar Tulsa o meu Olimpo! Só que isso não será apenas um mito fraco contado como histórias banais de crianças para crianças. Isso será realidade: o Mundo das Trevas do Além veio para a Terra! E, nesse mundo, não haverá inocentes sendo abusados por predadores. Todos estarão sob a minha proteção. Eu tenho o destino deles nas minhas mãos, e eles só precisam se preocupar com o meu bem-estar. Ah, como eles vão me adorar!

Em volta dela, as gavinhas se contorceram em resposta à animação dela. Ela sorriu e acariciou as que estavam mais próximas.

– Sim, sim, eu sei. Será glorioso, mas o que preciso primeiro, meus filhos, é do serviço de quarto. Vamos convocar os meus novos servos. Alguns deles vão limpar e arrumar os meus aposentos da maneira correta. Outros vão reabastecer a adega. Todos vão me obedecer sem me questionar. Preparem-se. Chegou a hora de Neferet, a Deusa das Trevas!

Foi mais fácil do que ela mesma imaginara. Os humanos não eram apenas ridiculamente fáceis de serem controlados, mas também tão indefesos contra a infestação de uma única gavinha das Trevas quanto a pequena Kylee. Ela estava absolutamente certa. Eles precisavam dela para comandar a vida deles, assim como um bebê precisa da mãe.

O único problema no seu plano era que Neferet não tinha acesso a um número infinito de gavinhas. Apenas as mais leais, as suas verdadeiras filhas, continuaram ao seu lado depois que fora despedaçada.

Por um breve instante, considerou chamar mais filamentos de Trevas, mas logo rejeitou tal pensamento. Ela não recompensaria a traição – e os filamentos que a abandonaram no momento da necessidade a traíram no nível mais profundo.

Neferet tomou um gole do seu cabernet favorito em uma taça de cristal e andou pela cobertura, contando os humanos que se dedicavam à limpeza e à arrumação da bagunça que Zoey e seus amigos tinham deixado para trás. Seis. Havia quatro mulheres da equipe de limpeza e dois homens do serviço de quarto. Neferet sorriu. Na verdade, eles não passavam de garotos – ambos louros e ansiosos por atender aos seus pedidos de serviço de quarto. Saindo do seu elevador, suas expressões denunciaram os seus pensamentos de forma tão clara que ela nem precisou esquadrinhar suas mentes. Eles a desejavam. Muito. Obviamente esperavam que ela quisesse um pouco de sangue e sexo com vinho. Tolos! Agora eles se moviam mecanicamente, atendendo aos comandos que ela dava sem reclamar, sem preocupações e sem olhares galanteadores irritantes. Estavam exatamente como ela preferia os seus homens humanos: silenciosos, obedientes e jovens.

– Cavalheiros, a vida é gloriosa, não acham?

As duas cabeças louras se voltaram para ela.

– Sim, Deusa – responderam em uníssono, como sempre.

Neferet sorriu.

– Como costumo dizer, o livre-arbítrio é um peso terrível. Não precisam agradecer por eu ter aliviado vocês de tal peso. – Então, ela ordenou: – Voltem ao trabalho.

– Obrigado, Deusa. Sim, Deusa – repetiram eles, obedecendo-a.

Então, ela já tinha usado seis filamentos. Não, sete, contando a pequena Kylee, da recepção. Neferet lançou um olhar contemplativo para o ninho de gavinhas onde elas se reuniram para absorver o que restara do sangue seco de Kalona. Quantas havia? Tentou contar, mas era impossível. Elas se moviam muito e com rapidez, além de se fundirem umas às outras e depois se separarem quando desejassem. Parecia haver muitas delas, porém. E todas tinham crescido, engordado e estavam mais fortes depois de terem se fartado.

Eu preciso me certificar de que continuem bem alimentadas. Elas não podem definhar – pois isso significaria que o meu absoluto poder sobre os humanos também enfraqueceria.

Resoluta, Neferet discou zero para falar com a recepcionista.

– Recepção, como posso ajudá-la, Neferet? – respondeu a voz insolente de Kylee ao primeiro toque.

– Kylee, quando eu ligar, o modo correto de atender ao telefone é dizendo “Como posso servi-la, minha Deusa?”.

A voz de Kylee ficou sem expressão ou emoção e ela repetiu:

– Como posso servi-la, minha Deusa?

– Muito bem, Kylee. Você com certeza aprende rápido. Eu preciso saber quantos funcionários estão trabalhando aqui no meu Templo hoje.

– Seis faxineiras, dois carregadores, quatro membros do serviço de quarto e eu. Rachel deveria estar aqui na recepção comigo, mas está de licença médica.

– Pobre Rachel. Mas isso me deixa com treze funcionários ao meu dispor. É claro que isso não inclui o restaurante. Ele está aberto hoje?

– Está. Nós abrimos para o brunch até as duas horas da tarde aos domingos.

Kylee fez uma pausa para contar:

– O chef, um ajudante de cozinha, o bartender , que também é o gerente, e três garçonetes.

– Totalizando vinte. Eis o que quero de você, Kylee. Feche o restaurante imediatamente, mas não permita que os funcionários vão embora. Diga a eles que houve uma mudança na gerência do hotel e que o novo dono pediu uma reunião de funcionários.

– Farei como me pede, Deusa, mas os Snyder não são donos do restaurante.

– Quem são os Snyder?

– A família que comprou e reformou o Mayo em 2001. Eles são os donos do prédio.

– Corrigindo, Kylee, querida, eles eram os donos do prédio que era conhecido como Mayo Hotel. Eu controlo o Templo em que ele se tornou. Não importa. Isso logo ficará claro. Tudo de que preciso é que você reúna todos os funcionários do restaurante e do hotel e peça-lhes que venham até a cobertura daqui a trinta minutos. Depois, eu vou mudar o título da reunião de funcionários para o que ela realmente é: uma oportunidade de adorar a sua Deusa. Isso não soa muito mais agradável do que reunião de funcionários?

– Sim, Deusa – respondeu Kylee.

– Excelente. Vejo você e o resto dos meus súditos daqui a meia hora.

– Deusa, eu não posso deixar a recepção sozinha. O que acontecerá se alguém quiser se hospedar ou deixar o hotel?

– A resposta é simples, Kylee. Tranque as portas para que ninguém possa entrar ou sair do meu Templo. Tranque tudo e venha até mim com as chaves.

– Sim, Deusa.

Neferet teria de encontrar outro lugar para receber os súditos. A sua cobertura era íntima demais para tantos humanos. No entanto, teria de se virar por um tempo. Ela se posicionou diante das portas de vidro colorido que haviam sido quebradas e agora foram substituídas pelos garotos louros. Ela desligara as luzes elétricas berrantes e ordenara que as faxineiras trouxessem velas para os seus aposentos. Castiçais, suportes e velas de promessa cobriam a prateleira de granito, a cornija da lareira, a mesa de centro de mármore no estilo art déco e a grande mesa de jantar de madeira. Ela também ordenara que as lanternas que ficavam ao lado das portas tivessem as lâmpadas fortes retiradas e fossem substituídas por luzes bruxuleantes e quentes de velas brancas. Ela fez uma observação mental para pedir que um dos seus servos fosse comprar mais velas – muitas e muitas velas.

O olhar de Neferet passeou pela cobertura, e ela ficou satisfeita. Tudo parecia tão melhor, e estava apreciando a sua segunda garrafa de cabernet, pensando em quanto apreciaria mais tarde, quando um – ou uma – entre seus súditos se oferecesse para misturar o próprio sangue no vinho.

Neferet tinha se vestido com esmero, satisfeita ao ver que suas roupas ficaram intactas enquanto estivera ausente. Escolheu um vestido de seda dourada que se ajustava ao corpo como se acariciasse a sua pele. Como sempre, Neferet deixou o cabelo ruivo solto, em ondas brilhantes que desciam pelas costas até a cintura. Não usou nenhum adorno com um símbolo de qualquer outra deusa. Jamais voltaria a usar imagens adornadas em prata – ela arrancara o último daqueles filamentos de si.

Tinha um novo símbolo, no qual vinha pensando cuidadosamente, e mal podia esperar até que um dos seus súditos fosse encomendar a peça na joalheria de Moody e a “surpreendesse” com um rubi de seis quilates no formato de uma lágrima perfeita. Ela seria efusiva nos agradecimentos e sempre o usaria preso a uma grossa gargantilha de ouro.

Seria realmente bom ser a Deusa das Trevas – A Deusa de Tulsa –, a Deusa do Caos.

Ouviu o barulho do elevador.

– Meus filhos, venham até mim! – Os filamentos de Trevas se apressaram em sua direção, cercando-a, pousando sobre os seus pés descalços com um frescor reconfortante. – Ah, e súditos, vocês podem voltar à minha presença – disse ela por sobre os ombros na direção do local para onde ordenara que aguardassem até que tivessem novas ordens.

Eles passaram por ela no instante em que as portas do elevador se abriram e Kylee levou o restante dos funcionários para a cobertura.

– Bem-vindos! – Neferet ergueu a taça e os braços. – Vocês são abençoados por estarem diante de mim.

A maior parte do grupo pareceu confusa. Duas mulheres, vestidas como garçonetes, murmuraram perguntas uma para a outra. Os olhos afiados de Neferet as notou. Um dos homens, o que usava um chapéu idiota de chef, perguntou:

– Você poderia nos dizer o que está acontecendo aqui? Tivemos que fechar o restaurante e obrigar os nossos clientes a ir embora, mesmo que eles ainda não tivessem terminando o seu brunch. Posso afirmar para você que, com certeza, temos alguns ex- clientes muito putos da vida.

– Qual é o seu nome? – quis saber Neferet, mantendo o tom de voz agradável.

– Tony Witherby, mas a maioria das pessoas me chama de chef.

– Bem, Tony, eu não sou a maioria das pessoas. Veja bem, a maioria das pessoas me chama de Deusa.

Ele soltou uma gargalhada debochada.

– Você só pode estar brincando, né? Tipo, eu estou vendo as suas tatuagens e sei que você é uma vampira e tudo o mais, mas vampiras não são deusas.

Neferet ficou satisfeita ao ver Kylee se afastar do chef como se não quisesse ser contaminada por sua desobediência. Kylee estava realmente se tornando uma excelente súdita.

Neferet não desperdiçou sequer um olhar para o chef. Em vez disso, sorriu para os seus filhos alvoroçados.

– Tão ansiosos – comentou ela em um tom leve de reprovação. Ela se abaixou para acariciar uma gavinha particularmente precoce que se enrolara por sua perna quase na altura de sua coxa. – Você vai ser perfeita.

– Tudo bem, você vai ter que nos dizer o que está acontecendo ou eu vou ligar para o dono do restaurante – ameaçou o chef. Quando ela continuou a ignorá-lo, ele começou a gritar: – Isso é realmente ridíc...

– Pegue-o! – comandou Neferet para a gavinha. – E permitam que a vejam.

A gavinha ficou visível enquanto voava na direção do chef. Ela era tão grande que rapidamente o envolveu pela cintura grossa, movendo-se rapidamente para cima.

– Que merda é essa?! Solte-me! – gritou o chef, jogando-se para trás e batendo na gavinha com ambas as mãos, impotente.

Neferet achou que ele parecia uma menininha com medo de aranha.

Um homem bonito e negro vestido como mensageiro se aproximou para ajudar o chef.

– Fique onde está ou o seu destino será o mesmo do dele! – avisou Neferet.

O homem parou onde estava.

– Nããããão!

Os gritos do chef beiravam à histeria, e Neferet ficou aliviada ao ver que bem nesse momento a gavinha subiu pelo pescoço dele e invadiu sua boca, fazendo com que se abrisse de uma maneira quase impossível. Isso causou a rachadura e o sangramento dos cantos dos lábios, antes que todo o grosso comprimento do filamento desaparecesse dentro do corpo do humano. O chef caiu do chão.

– É tão deprimente quando um homem adulto age como uma menininha assustada, vocês não acham?

Os humanos que ainda não tinham sido possuídos por seus filhos olharam para ela com um misto de horror e descrença. Outra mulher, uma das faxineiras que não atendera ao chamado anterior de Neferet, estava rezando em espanhol, agarrada ao crucifixo pendurado em uma gargantilha de prata de aparência barata. Todo o grupo, exceto pelo equivocado Tony, estava se afastando, como um rebanho, na direção das portas do elevador.

– Nada disso – declarou Neferet com voz suave. – Vocês não podem partir antes de receber minha permissão.

– Você também vai nos matar? – perguntou uma das mulheres, segurando a mão da amiga e tremendo de forma espasmódica.

– Matar vocês? É claro que não. Tony não está morto. – Ela dirigiu-se então ao chef caído no chão. – Tony, meu querido, levante-se e diga para os outros que você está perfeitamente bem.

De forma estranha, Tony se levantou, virou-se para Neferet. Então, sem expressão no seu rosto rosado e manchado de sangue, declarou:

– Estou perfeitamente bem.

– Você se esqueceu de dizer uma coisinha – disse Neferet.

O corpo de Tony se retorceu em espasmos como se ele tivesse levado um choque por dentro, e ele se apressou a repetir:

– Estou perfeitamente bem, Deusa.

– Viram só? É exatamente como eu disse. Qual é o seu nome, querida? – perguntou ela para a mulher trêmula.

– Elinor.

– Que nome adorável. Não se veem mais nomes como esse hoje em dia, o que é uma pena. Para onde todas as Elinors e Elisabeths, Gertrudes, Gladys e Phyllis foram? Não, não precisa me responder. Elas foram substituídas por Haileys, Kaylees, Madisons e Jordans. Eu odeio nomes modernos. Sabe, Elinor, eu preciso agradecê-la. O seu nome de bom gosto fez com que eu tomasse uma decisão sobre vocês, meus novos súditos. Vou renomear qualquer um de vocês que possua um nome muito chamativo. – Neferet lançou um olhar para Kylee. – Exceto você, Kylee. Eu gosto muito do seu crachá dourado para mudar o seu nome.

– Deusa? – sussurrou Elinor em tom de pergunta.

– Pois não, minha querida.

– Nós agora estamos trabalhando para a senhora?

– Ah, é muito melhor do que isso. Vocês vão me adorar agora. Vocês vinte serão as primeiras testemunhas do meu reinado como Deusa das Trevas. Cada um de vocês terá um papel especial e muito importante para cumprir enquanto me adoram e atendem a cada uma das minhas necessidades. Vocês vão me oferecer presentes e sacrifícios e, em troca, tirarei o exaustivo livre-arbítrio que obviamente tem lhes reprimido e deprimido a vida. Por que outro motivo vocês estariam trabalhando em tarefas tão servis e sem sentido?

– Eu não estou entendendo o que está acontecendo – choramingou Elinor.

– Logo... logo a sua confusão acabará. Não se preocupe, doce Elinor, só dói um pouquinho. – Neferet ergueu o braço. – Meus filhos... – começou ela.

– Espere! – O mensageiro que quis ajudar Tony deu um passo para a frente e lançou um olhar inflexível para Neferet. – A senhora disse que se tentássemos ajudar o chef, nosso destino seria o mesmo do dele. Eu não ajudei. Ninguém mais ajudou. Então, de acordo com a sua própria palavra, não vai mandar essas coisas rastejantes nos atacar.

– E qual é o seu nome?

– Judson. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Deusa.

– Judson é um nome antigo do sul, sabia?

– Não, eu... Eu, não. Eu não sabia. – Ele fez outra pausa. – Deusa.

– Bem, é isso então. Eu também não vou trocar o seu nome. E quanto ao que eu disse antes? Eu menti. Peguem-nos! – Ordenou.

Felizmente, os seus filhos tinham antecipado os seus desejos e moveram-se rapidamente, de modo que os gritos irritantes logo cessaram.


4

Neferet

Neferet liberou seus novos súditos, cada qual tendo iniciado sua adoração por meio da possessão de um de seus filhos, e ordenou-lhes que chamassem os hóspedes e residentes do hotel e os reunissem no grande salão do hotel.

Decidira que deveria estabelecer o lugar das oferendas no salão principal, o qual era cercado por colunas de mármore, tinha pé-direito alto e o teto ornado com lindos candelabros no estilo art déco , e escadaria dupla e ampla em curva com balaústres de ferro forjado que contavam com uma grande plataforma entre o térreo – onde os súditos ficariam – e o passeio superior, onde apenas os seus adoradores mais próximos, aqueles que cuidavam dos seus desejos, seriam permitidos. Os outros ficariam presos nos próprios quartos ou no porão, o qual Kylee fora gentil em lhes mostrar. Ou, se eles provassem ser um estorvo excessivo e ela não quisesse gastar uma gavinha para possuí-los, eles se tornariam alimento para seus filhos.

É claro que ela só se alimentaria dos súditos que despertassem o seu interesse.

Kylee recebera a tarefa de encontrar uma cadeira que servisse de trono até que pudesse encomendar um que fosse entalhado para ela.

– Você precisa encontrar um artesão talentoso para criar exatamente o que eu quero. A madeira deve ser tingida de sangue vermelho profundo de búfalo – orientou ela, enquanto escolhia a colocação com cuidado. – E eu não quero nada daqueles assentos duros e pobres ao gosto dos velhos do Conselho Supremo. Almofadas de veludo dourado. É sobre elas que vou me sentar.

Neferet permitiu que duas das faxineiras mais atraentes a envolvessem num vestido luxuoso em tom púrpura real, e tinha acabado de decidir que não usaria sapato – ficaria descalça, como condiz a uma Deusa recém-nascida. Retornou à sua sala para encher novamente a taça de vinho, irritada por não haver lá nenhum humano ansioso por ajudá-la. Ela já estava esperando, impacientemente, que convidados e residentes estivessem rodeados por seus servos obedientes para que pudesse fazer a sua entrada triunfante no salão.

– Até mesmo para uma Deusa, é tão difícil encontrar empregados de qualidade. Mas eu vou deixar esse erro passar. Eles são só vinte. Devem estar bem ocupados reunindo os humanos no meu salão de oferendas. Mas vou deixar passar somente esta vez.

Estava bebericando o líquido vermelho, apreciando o sabor do sangue do bonito mensageiro que tinha tão graciosamente oferecido um pedaço da sua carne para dar mais sabor ao seu vinho, quando a televisão chamou a sua atenção. Havia uma legenda de notícias na parte inferior da imagem onde se lia ASSASSINATOS EM TULSA, e a âncora, Chera Kimiko, estava falando com uma expressão sombria.

Encantada, Neferet apertou o botão de mudo na televisão, esperando reviver os detalhes deliciosos do seu banquete. No entanto, em vez da Church Boston Avenue, a tela mostrou uma imagem do Woodward Park, em um estado terrível de desgaste. Então, a câmera mudou, e as sobrancelhas de Neferet se ergueram enquanto se concentravam em um paredão de pedra ao lado de uma gruta que, até recentemente, fora o seu santuário. Ela aumentou o volume, impaciente, a tempo de ouvir Kimiko dizendo de forma tão séria:

– Este é o local onde ocorreu o terrível assassinato de dois homens, cujos corpos foram descobertos por bombeiros na manhã de ontem. Conforme informamos anteriormente, a violenta tempestade que criou ventos de quase 120 km/hora foi acompanhada por raios mortais. Os raios que caem sobre a região de Tulsa já foram responsáveis por cinco mortes hoje, além de dez pessoas hospitalizadas em estado grave. Mas a morte desses dois homens aparentemente não tem relação com as tempestades. Adam Paluka está ao vivo com o detetive Kevin Marx e vamos até ele para mais detalhes. Adam?

A cena mudou do parque destruído pela tempestade para um detetive sentado atrás de uma mesa em um escritório de aparência comum. Neferet o reconheceu como o policial que fora irritantemente compreensivo com Zoey Redbird no passado. Ela fez uma careta enquanto assistia à entrevista.

– Detetive Marx, o senhor poderia nos explicar essas duas mortes adicionais em Woodward Park, e responder se o senhor realmente excluiu a possibilidade de as mortes terem sido caudadas pela tempestade?

– Os corpos dos dois homens, ambos na casa dos quarenta anos, foram descobertos na manhã de ontem. A causa da morte foi a mesma para os dois homens: contusão e hemorragia.

Neferet sorriu, decidindo que aquele era um excelente aquecimento para a carnificina que eles logo descobririam.

– E é verdade que o senhor prendeu alguém que confessou ter cometido os crimes?

Neferet ergueu as sobrancelhas.

– Confessou os assassinatos? Está presa? Isso é impossível.

– Sim, é muito triste ter de informar que uma jovem novata, a quem conheço pessoalmente, se apresentou por livre e espontânea vontade para confessar que assassinou os dois homens.

– Uma novata! – explodiu Neferet levantando-se da chaise e gritando com a tela da televisão.

– O senhor pode informar o nome de tal novata?

– Zoey Redbird .

Neferet gritou, pegou um dos abajures elétricos que tinha tirado da tomada e o atirou contra o aparelho de televisão.

– Aquela garota tola e fraca acredita que matou aqueles dois homens? Eu os encontrei a poucos metros do meu santuário, e seu sangue serviu para me alimentar para que pudesse ir ao grande banquete na Boston Avenue Church. Zoey Redbird matando dois homens adultos? Que grande bobagem! Ela não tem o ímpeto necessário para matar ninguém! E realmente confessou o assassinato? Aquela garota é uma idiota ainda maior do que eu imaginei.

Neferet jogou a cabeça para trás e sua gargalhada debochada ecoou pela cobertura.

Neferet assumira a sua posição no meio da graciosa escadaria dupla do salão principal do Mayo Hotel. Adorava a ironia de estar no mesmo lugar onde tantos humanos iludidos fizeram seus votos matrimoniais.

– Um pacote de macarrão tem validade maior do que a maioria dos casamentos humanos, sabia?

Ela sorriu para a multidão reunida sobre o piso de mármore preto e branco. Havia ordenado que diminuíssem as luzes e que grandes candelabros fossem posicionados e acesos em cada um dos lados. Sabia que sua beleza era divina, complementada pelo brilho de seu vestido à carícia da luz das velas.

Ordenou que metade dos seus vinte súditos a cercasse, embora sem entrar na plataforma em que se encontrava. Os outros dez humanos possuídos estavam posicionados na entrada do seu Templo. Ela dera a eles apenas uma ordem: ninguém poderia entrar ou sair.

Seus filhos das Trevas se contorciam à sua volta, invisíveis para os humanos que a olhavam boquiabertos, mas reconfortantes para ela com sua avidez familiar.

– Ah, vocês estão certos em não responder. Essa pergunta realmente não é uma forma digna de uma Deusa se dirigir pela primeira vez aos seus escolhidos. Permitam que eu comece de novo.

Neferet se posicionou na frente do seu trono, abriu os braços em um gesto amplo e começou:

– Atenção! Eu sou Neferet, a Deusa das Trevas, a Rainha de Tsi Sgili. Transformei este hotel no meu Templo das Trevas, e vocês, poucos afortunados, serão meus súditos fiéis, os meus escolhidos. Em troca, recompensarei sua adoração removendo as preocupações do mundo comum de vocês. Não mais precisarão trabalhar em empregos sem sentido. Não precisarão voltar para casamentos tediosos nem para filhos mal-agradecidos. De hoje em diante, até a sua morte, seu único objetivo será me adorar. Regozijem-se, humanos!

Seu discurso foi seguido por um longo momento de silêncio absoluto e, então, a multidão começou a se agitar nervosamente, aos sussurros.

Neferet aguardou pelo que sabia que viria a seguir, e isso manteve o sorriso no seu rosto. Gostava muito de ensinar lições de vida aos humanos.

Conforme previsto, Neferet não precisou esperar muito tempo. Uma mulher deu um passo à frente. Era alta e tinha cabelo castanho – devia estar no final da meia-idade, embora estivesse bem conservada e parecesse estar em forma, como uma mulher que se exercita diligentemente para se manter jovem. Usava um vestido de bom gosto e corte meticuloso em um tom bonito de verde-esmeralda.

– Onde você comprou esse vestido adorável? – perguntou Neferet à humana antes que ela tivesse a chance de dizer qualquer coisa.

A mulher piscou, obviamente surpresa com a pergunta, mas respondeu:

– É um Halston. Comprei na Miss Jackson’s.

– Kylee – chamou Neferet, olhando para o lugar em que a garota se encontrava aos pés da escadaria, com uma aparência serena de um robô. – Anote. Vou precisar que você vá até a Miss Jackson’s e escolha diversos vestidos para mim. Certifique-se de incluir modelos Halston.

– Sim, Deusa – entoou Kylee, sem emoção.

Neferet franziu o cenho, olhando para Kylee. Será que realmente queria que aquela garota escolhesse os seus trajes? Ela não devia ter mais do que vinte anos e se o seu corte de cabelo fosse uma indicação do seu senso de moda, seria realmente um desastre...

– Tudo bem, você tem que explicar o que realmente está acontecendo aqui. Eu não tenho tempo para isso. – Recuperando-se da sua surpresa, a mulher com o vestido verde-esmeralda interrompeu os pensamentos de Neferet, batendo com o pé no chão para demonstrar sua impaciência. – Eu tenho um jantar marcado no Summit Club, e pegar um avião para Nova York logo em seguida.

– Já expliquei a situação para vocês – disse Neferet. – Agora eu sou a sua Deusa. Você não vai jantar no Summit Club nem vai voltar para Nova York. A não ser que eu mande que você faça alguma coisa para mim. O seu único trabalho é me adorar. Em troca, eu acabarei com as suas angústias e preocupações mundanas. Qual é o tamanho desse vestido? Trinta e oito ou quarenta?

– Sério? Essa é uma piada de muito mau gosto. Frank Snyder está por trás disso, não é? Frank? – A mulher ignorou Neferet e chamou pelo homem, procurando ao seu redor, como se esperasse que ele fosse aparecer. – Ela está vestida como uma diva de cinema. Deixe-me adivinhar: ela vai cantar “Smoke gets in your eyes” pelo meu aniversário, não é? Como é que você encontrou uma vampira para contratar? Ou será que essas tatuagens foram pintadas?

A mulher girara em torno de si e novamente encarava Neferet, olhando para ela como se estivesse considerando apagar suas tatuagens.

Neferet se deu conta de que sua paciência chegara ao fim.

– Escolhidos, permitam que esta seja uma lição para vocês. Eu não sou uma piada. Eu sou a sua Deusa. Poderosa, possessiva, imortal e onisciente. Eu sou praticamente destituída de paciência, nunca aturo tolos. – Neferet se inclinou para a frente e pousou a mão no balaústre de ferro. Encontrou o olhar da mulher e invadiu a sua mente desprotegida. – Então, o seu nome é Nancy, e hoje é o seu aniversário. – O sorriso de Neferet era felino. – E você está fazendo cinquenta e três anos, embora diga aos amigos que tem quarenta e cinco.

O corpo da mulher estremeceu e ela arfou, chocada com a violação, mas impotente para resistir.

– Como você sabe disso? E como se atreve?

Neferet fez um som alto de admoestação, meneando a cabeça.

– Uma vida de tantas privações em nome da beleza. Será que ninguém lhe explicou que, não importa o que faça, você é humana e os humanos envelhecem? Nancy, você deveria ter comido mais massa, bebido mais vinho, dormido com o filho caçula do seu vizinho mais do que duas vezes e deixado o seu odioso marido quando ele teve o primeiro caso vinte anos atrás. E, Nancy, eu sei dessas coisas porque eu sou uma Deusa. Eu me atrevo a dizer essas coisas porque eu sou a sua Deusa, embora você, obviamente, não me mereça.

As pessoas em volta de Nancy se mexeram, como se quisessem se afastar dela, mas ainda estavam com expressões pasmadas e confusas de descrença em seus rostos bovinos.

– Seria inteligente se afastarem de Nancy. Eu sei que o meu Templo conta com instalações de lavanderia, mas não há motivo para mancharem desnecessariamente as suas roupas. – As pessoas mais próximas de Nancy se afastaram mais dela. Neferet sorriu, encorajando-os enquanto pegava uma das gavinhas que envolviam os seus pés descalços. Era satisfatoriamente pesada e grossa, e a sua pele gelada e emborrachada pulsava contra o seu corpo enquanto envolvia o seu braço. – Mate Nancy. Faça-a sofrer. Ela encheu a própria vida de sofrimento, então o sofrimento na morte deve ser um conforto para ela. – Neferet disse aquilo com carinho para seu filho. – Permita que seja visto.

Ela atirou a criatura em Nancy. A entidade tornou-se visível no ar. A multidão arfou e exclamou, mas logo começou a gritar quando a gavinha se enrolou no pescoço de Nancy e começou lentamente a cortar sua carne até arrancar a cabeça da mulher.

A multidão se descongelou e, gritando em pânico, seguiu em direção à saída.

– Eu não lhes dei permissão para sair! – Cheia de poder imortal, a voz de Neferet ecoou pelo amplo salão. – Meus filhos, permitam que meu povo veja vocês.

O ninho de Trevas ao seu redor se ondulou e se tornou visível, mas poucas pessoas notaram. Estavam ocupadas demais olhando, horrorizadas, para as cabeças negras das gavinhas, que haviam possuído a equipe e que, ao comando de Neferet, tornaram-se visíveis dentro das bocas escancaradas de cada um dos humanos robôs que guardavam as saídas.

Neferet fez outra nota mental – ela tinha de se certificar de recompensar os filhos que se ofereceram para a tediosa tarefa de possuir a equipe. Eles estavam sendo tão obedientes e compreensivos. Um outro banquete logo teria de ser providenciado para eles.

Sentiu um feixe de poder deslizar pelo seu corpo e voltou sua atenção para Nancy, cuja cabeça já estava separada do corpo. Havia tanto sangue, porém, que a gavinha não conseguia se alimentar rápido o suficiente. Neferet suspirou. O piso de mármore reluzente ia ficar manchado. Será que tinha de fazer tudo?

– Alimentem-se dela rapidamente! – ordenou aos filhos mais próximos. – Não tolerarei bagunça no meu Templo. – Então, suspirou mais uma vez e voltou sua atenção para o público em pânico. – Vocês estão começando muito mal! – exclamou ela. – Em troca de uma vida repleta de um novo objetivo, tudo o que peço em troca é a sua obediência e adoração. Nancy não me deu nada disso e vejam o que aconteceu com ela. Que isso sirva de lição para cada um de vocês.

– O que são essas criaturas? – perguntou um homem baixo e gordo, obviamente tentando controlar o medo enquanto acariciava o braço de uma mulher igualmente baixa e gorda e que enterrara o rosto no seu casaco enquanto soluçava.

– Estes são os meus filhos, formados por Trevas, e leais somente a mim.

– Por que eles estão dentro da boca daquelas pessoas? – quis saber ele.

– Porque aquelas pessoas fazem parte da minha equipe de trabalho e elas também devem ser leais apenas a mim. A possessão é muito mais eficiente do que cortar as suas cabeças. Agora, vocês viram como tudo será muito mais simples se vocês fizerem o que eu mandar?

– Mas isso é loucura! – gritou um homem no fundo do salão. – Você não pode esperar que nós fiquemos aqui e a adoremos, não é? Nós temos as nossas vidas, nossas famílias. Pessoas que sentirão a nossa falta.

– Tenho certeza de que sentirão mesmo, mas como eles são pessoas , e não imortais, isso não me preocupa. Mas se vocês forem muito, muito, mas muito bons mesmo, eu talvez lhes dê permissão para trazer a suas famílias para se juntarem a vocês.

– Você não pode fazer isso – disse uma mulher aos soluços. – A polícia vai nos salvar.

Neferet deu uma gargalhada.

– Ah, eu espero que sim. Estou ansiosa por este confronto. Garanto a vocês que o Departamento de Polícia de Tulsa não sairá vitorioso.

– E agora? O que nós vamos fazer? Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! – berrou outra mulher.

– Façam com que ela se cale! – ordenou a Deusa, e uma gavinha voou em direção à mulher, envolvendo seu rosto e tapando sua boca. Ela caiu no chão enquanto se contorcia.

Neferet soltou um longo suspiro de alívio quando não apenas os gritos da mulher cessaram, mas todo o grupo em pânico também se calou. Ela passou a mão pelo vestido perfeitamente ajustado ao seu corpo e, usando um tom calmo para os súditos apavorados, falou:

– Vocês devem aprender estas lições agora. – Ela fez um gesto com os dedos longos como se estivesse marcando itens em uma lista. – Eu não tolero histeria. Não tolero deslealdade. Também não sou muito chegada a homens brancos de meia-idade. Agora, eu preciso de sessenta voluntários para resolver negócios muito importantes na cobertura.

Ninguém se mexeu. Ninguém a olhou nos olhos. Neferet suspirou novamente e acrescentou:

– Eu não vou usar nenhum dos voluntários como alimento.

Uma jovem ergueu a mão trêmula.

– Sim, querida. Qual é a sua pergunta? – concedeu a Deusa.

– Você vai dizer para essas cobras entrarem nas nossas bocas?

Neferet sorriu docemente para a garota.

– Não, eu não vou fazer isso.

– Ent... Então, eu sou uma voluntária.

– Muito bem! – elogiou Neferet. – E qual é o seu nome?

– Staci.

– Não, eu vou chamá-la Gladys, que é um nome muito mais digno, você não acha?

A jovem logo concordou com a cabeça.

– Então, Gladys, fique do lado esquerdo do salão de oferendas. Agora, eu quero mais cinquenta e nove pessoas tão entusiasmadas quanto Gladys para se juntarem a ela.

Quando ninguém mais se mexeu, Neferet usou um tom de raiva e gritou:

– Agora!

Como se tivessem sido atingidos por um chicote, um grupo de humanos se sobressaltou e se juntou à primeira voluntária.

– Kylee, conte quantos humanos há e me informe quando houver sessenta.

Cada vez mais impaciente, Neferet esperou. Por fim, Kylee declarou:

– Temos sessenta voluntários, Deusa.

– Muito bem. Seja uma fofa, Kylee, e leve-os até a minha cobertura. Faça com que esperem na varanda pelas minhas ordens. Ah, e abra várias caixas de champanhe. Seja generosa. Meus voluntários devem ser recompensados.

Parecendo confusos, mas aliviados, os sessenta humanos entraram nos elevadores. Neferet voltou a sua atenção para os adoradores restantes. Eles a olhavam como se esperassem que uma guilhotina estivesse prestes a descer sobre as suas cabeças.

– Seria muito mais fácil usar a possessão em todos vocês. Instruir humanos dos tempos modernos a como adorar uma Deusa será uma tarefa extremamente tediosa – murmurou ela para si mesma, enquanto batia com os dedos no balaústre.

Uma mulher que estava próxima o suficiente para ouvi-la deu vários passos em direção à escadaria e, então, atraindo o olhar da Deusa, fez uma reverência profunda e elegante. Neferet ergueu as sobrancelhas. Analisou a mulher que se mantinha em reverência, com a cabeça respeitosamente curvada. Era mais velha do que Nancy, mas não muito. E embora estivesse bem-vestida, com um terninho bem cortado e caro, parecia ter a própria idade.

– Pode se levantar – permitiu Neferet por fim.

– Eu agradeço, Deusa. Será que a senhora me daria permissão para que eu me apresentasse?

– Vá em frente – concedeu, bastante intrigada.

– Eu sou Lynette Witherspoon, dona da Everlasting Expressions. Gostaria de lhe oferecer os meus serviços.

– Lynette. Sim, o seu nome não me ofende. Você pode mantê-lo. E o que é exatamente a Everlasting Expressions?

– É a minha empresa. Ofereço serviços de planejamento de eventos, coordenação e decoração para uma clientela seleta – explicou a súdita.

Neferet apreciou o orgulho e a confiança na sua voz.

– E o que você propõe para mim?

– Tudo – respondeu Lynette com voz firme. Ela olhou em volta do salão para as pessoas reunidas atrás dela, antes de lançar um olhar sincero para Neferet. – Creio que a adoração de uma Deusa seja um evento constante da maior importância, que deve ser dirigido com bom gosto e sem percalços. Se me der a sua permissão, garanto que a sua adoração será uma sucessão de eventos espetaculares.

– Interessante... – refletiu a Deusa. – Lynette, você não se importa se eu vislumbrar suas reais intenções, não é? – Embora tenha dito aquilo em tom de pergunta, Neferet não esperou pela resposta da súdita. No entanto, invadiu a mente da mulher de maneira mais gentil do que fizera com Nancy.

O que descobriu lhe fez sorrir.

– Lynette, você é uma oportunista.

– S-sou – confirmou ela, um pouco trêmula, depois que a Deusa saiu da sua mente.

– E você odeia os homens. – O sorriso dela se abriu mais.

– Eu não tenho poderes, então posso apenas imaginar, mas acredito que a senhora compreenda esse ódio – respondeu a mulher.

– Eu gosto de você, Lynette. Permitirei que gerencie o planejamento da minha adoração.

Lynette fez outra reverência profunda.

– Eu lhe agradeço, Deusa.

– E qual será a sua primeira ação? – Neferet sentia uma curiosidade quase incontrolável sobre as intenções daquela humana incomum.

– Bem – começou ela, batendo com a mão no seu coque e analisando as pessoas que estavam em silêncio atrás dela –, todos os eventos começam com duas coisas: roupas adequadas e decoração correta.

– Só tenho uma exigência: deslumbre-me – ordenou a Deusa.

– Sim, Deusa – respondeu a mulher em tom respeitoso.

– E quanto a vocês, meus súditos – disse Neferet, dirigindo-se para o seu rebanho –, façam tudo o que Lynette mandar. – Neferet dirigiu o olhar para Lynette e acrescentou: – Desde que ela não mande que tentem sair do meu Templo.

– Eu não pensaria uma coisa dessas, Deusa – apressou-se a humana em responder.

– Ah, minha querida, você pensou nisso. Você só se deu conta de como isso seria imprudente.

Lynette curvou a cabeça.

– Touché , Deusa.

– Agora, deixarei vocês, meus súditos, nas mãos capazes de Lynette. Vou para a minha cobertura me preparar para...

A saída de Neferet foi interrompida pelo mensageiro alto, Judson, chamando de seu posto em frente das portas fechadas e acorrentadas do Mayo Hotel.

– Deusa! A polícia está aqui!


5

Lynette

– Socorro! Polícia! Ela está nos mantendo presos aqui! – Uma garota que Lynette reconheceu como sendo a dama de honra do casamento espetacularmente caro da noite anterior começou a gritar, desvencilhando-se da equipe possuída, esmurrando o grosso vidro das portas dianteiras.

– Por que será que eu sempre tenho que fazer tudo? Equipe, todos vocês, exceto Judson, levem esses humanos para o porão!

A voz de Neferet estava cheia de veneno, e a equipe do hotel reagiu como se tivesse levado um choque elétrico. Começaram a reunir o grupo de pessoas aterrorizadas em direção à saída de emergência. A vampira flutuou pela escadaria e pelo piso do salão, passando tão próxima de Lynette que o vestido púrpura encostou nos seus pés. Lynette se afastou, tentando se esconder nas sombras e evitar ser levada com o resto do rebanho, mas Neferet falou com ela:

– Você, venha comigo. Eu não quero que você perca o evento que eu estou planejando.

– Como desejar, Deusa.

Lynette se empertigou, controlou o medo e seguiu a vampira. Não importava o que acontecesse, ela não ia terminar seus dias como aqueles pobres otários da equipe do hotel com aquelas cobras nojentas da vampira saindo pela boca. E também não faria nada idiota para acabar tendo a cabeça decepada. Ela sobrevivera a uma mãe alcoólatra e abusiva e à infância pobre para construir um império para si. Tinha dinheiro e status social. Dirigia uma Mercedes-Benz S-Class e era proprietária de uma casa de quase seiscentos metros quadrados em Eight Acres, o condomínio mais caro e exclusivo no centro de Tulsa. Passava as férias na França e só viajava de primeira classe. Ela poderia muito bem sobreviver a uma vampira doida com delírios de imortalidade e sedenta por poder, e ainda encontraria uma maneira de sair lucrando com a situação.

Neferet chegou até a garota que berrava.

– Você não é uma súdita adequada! – Com uma força sobrenatural, ela agarrou um punhado do cabelo louro tingido da garota e puxou sua cabeça para trás até que Lynette tivesse certeza de que o pescoço se partiria. Então, apontou para a boca aberta da garota. – Possuam-na!

Lynette queria afastar o olhar, mas não conseguiu. A cobra negra mergulhou na boca da dama de honra. Os olhos dela se reviraram de forma que só dava para ver a parte branca, o corpo totalmente inerte. Ela só não caiu no chão porque Neferet a segurava pelos cabelos.

– O seu nome será Mabel. Quando eu mandar, você virá de boa vontade até mim – rosnou a Deusa, erguendo o rosto da garota inconsciente até que ficasse a um dedo de distância do dela.

Um ligeiro piscar de olhos. Como se a vampira tivesse ligado um botão, o terror no rosto da garota desapareceu, deixando apenas uma expressão vidrada, mas atenta, em seus olhos.

– Sim, Deusa – entoou ela sem qualquer emoção.

Aquelas cobras horríveis têm total controle de quem quer que possuam , pensou Lynette. Não a mim , prometeu para si mesma. Não farão isso comigo. Eu prefiro morrer a terminar assim!

Neferet soltou a garota. Ela cambaleou como se estivesse desequilibrada, mas conseguiu manter-se de pé. A vampira passou a mão pelo cabelo perfeito e tirou alguma migalha invisível do seu ombro. Então, encarou Lynette.

– Você sabe o que vai acontecer se me decepcionar e acabar não se mostrando uma súdita adequada.

Lynette não afastou o olhar dos olhos verdes-esmeralda de Neferet. Mergulhou em uma reverência profunda que a vampira tanto apreciara antes.

– Eu não a decepcionarei, Deusa.

Sentiu o deslizar doentio de Neferet entrando em sua mente e concentrou os pensamentos nos fatos – ela não tinha a menor intenção de fazer qualquer coisa que levasse a vampira a se voltar contra ela.

– Logo, logo, você acreditará que eu sou uma Deusa, e que o seu destino é me servir. – Antes que Lynette tivesse a chance de comentar, Neferet virou de costas, ordenando: – Judson, desacorrente a porta da frente. Lynette, venha comigo. Meus filhos, não permitam que sejam vistos, mas prestem atenção em mim!

Com um som que trazia à mente de Lynette a recordação de antigas fortunas e opulência, as portas duplas e austeras de latão e de vidro se abriram e Neferet saiu, com Lynette logo atrás, tão perto que conseguia sentir o frio horripilante que emanava das cobras invisíveis.

Havia dois carros do Departamento de Polícia de Tulsa e um carro de passeio parados na pequena entrada circular diretamente em frente ao hotel. Quatro policiais uniformizados conversavam com um homem alto de roupas comuns que estava, obviamente, no comando, o que significava que ele era algum tipo de detetive. Com o aparecimento de Neferet, o grupo rapidamente voltou sua atenção para a bonita vampira. O detetive fez sinal com a cabeça para os outros, que deram alguns passos para trás e se posicionaram atrás dele, enquanto, com a expressão séria, começou a se aproximar de Neferet.

– Não, eu quero que você permaneça perto dos carros – declarou Neferet.

Ela estava próxima às portas, em pé sob o toldo de ferro, marca registrada da entrada do Mayo. Deu um pequeno passo para o lado e envolveu o ombro de Lynette com o braço e a empurrou. Lynette não precisava ser vidente para compreender o que a vampira queria que fizesse. Sem hesitar, deu um passo para a frente e se colocou entre Neferet e a polícia. A mão de Neferet se manteve em seu ombro, e ela sentia as unhas duras e afiadas da vampira pressionadas contra a pele do seu pescoço, bem acima da artéria que ali pulsava forte e rápido.

Lynette ficou completamente parada.

O homem alto hesitou apenas por um momento, embora aquele instante tenha parecido durar uma eternidade para Lynette. Então, os policiais deram vários passos para trás.

– Isso, assim está bem melhor. – Lynette detectou o sorriso na voz de Neferet. – Agora podemos conversar de maneira mais educada. Detetive Marx, que gentil da sua parte vir me visitar. Está uma tarde adorável, não acha? É como se a tempestade de ontem tivesse limpado a cidade.

Neferet falava em um tom afável, mantendo a mão descansando sobre o ombro de Lynette.

– Neferet, eu tenho que fazer algumas perguntas a você. Será que não prefere vir para a delegacia comigo em vez de ser interrogada aqui?

O suspiro de Neferet demonstrou uma decepção exagerada.

– Então, não podemos ser corteses um com o outro socialmente?

– Você sabe muito bem que, em circunstâncias normais, não tenho o menor problema com cortesia. Nós dois já trabalhamos juntos de forma amigável antes. Mas o que aconteceu ontem em Tulsa foi bem além do normal, e eu não tenho tempo para cortesia. – Ele fez uma pausa antes de gesticular em direção à Lynette. – E acho bem irônico você estar reclamando sobre questões de cortesia quando tem uma refém bem diante de si.

A pressão da unha de Neferet sumiu imediatamente, e a vampira afastou a mão do pescoço de Lynette, fazendo um carinho íntimo em seu rosto.

– Detetive, você não poderia estar mais enganado. Lynette, você é minha refém?

– Não, Deusa – respondeu ela, meneando a cabeça e esforçando-se para agir como se aquilo fosse algo corriqueiro, servir como escudo-humano de uma vampira psicótica. – Eu sou uma súdita por livre e espontânea vontade.

– Aí está. Viu? Está tudo bem. Lynette só está aqui porque ela me adora. Mas por que você, detetive Marx, está aqui? As perguntas que o trazem têm a ver com Woodward Park ou com a Boston Avenue Church?

Lynette viu os olhos do detetive se estreitarem.

– O que você sabe sobre Boston Avenue Church?

Neferet deu uma gargalhada.

– Tudo! Pode perguntar qualquer coisa. Você quer saber por quanto tempo aquele projeto de pastor gritou antes de eu matá-lo? Ou por que a esposa do conselheiro estava sem o seu lindo terninho branco Armani, o qual, coincidentemente, era do meu tamanho, quando você encontrou o seu corpo drenado e sem vida do lado de fora do seu santuário? Veja bem, é muito difícil remover manchas de sangue de um tecido de qualidade.

Enquanto a vampira falava, Lynette observava a mudança nos policiais. Primeiro, os seus rostos denunciaram que eles estavam em choque e, depois, sacaram suas armas, enojados e zangados.

A arma do detetive apontou para o seu ombro direito.

– Lynette – disse ele. – Caminhe diretamente para nós e mantenha as mãos onde possamos vê-las.

Lynette sabia que não importava nem um pouco o fato de Neferet não estar tocando nela.

– Não, obrigada – respondeu ela, conseguindo, de alguma forma, evitar que a voz saísse trêmula. – Estou bem aqui com a Deusa.

– Mas do que é que você está falando? – explodiu um dos policiais. – Ela é uma porra de uma vampira que assassinou um monte de fiéis numa igreja! Ela não é uma merda de uma deusa.

– Lynette, eu não gosto de pessoas desbocadas. E você? – quis saber Neferet.

Prendendo a respiração, deu a única resposta que poderia. Meneou a cabeça e disse:

– Não, eu não gosto.

Neferet inclinou a cabeça para o lado e analisou o policial que tinha falado. Lynette viu o corpo dele se retorcer.

– Policial Jamison, será que palavrões permeiam sua mente enquanto tem fantasias com a sua enteada de dez anos de idade? E quando você a observa dormindo e admite para si mesmo que daqui a alguns dias você vai transformar seus desejos em realidade?

O policial empalideceu.

– Isso é uma porra de uma mentira! – exclamou.

– Mais profanação. “Parece-me que o lorde faz protestos demasiados” [*] – declarou Neferet. Então, ela se voltou para Lynette em tom conspiratório. – É uma citação, mas acho perfeitamente adequada à situação, você não acha?

– Acho – concordou Lynette, observando o policial de perto.

O homem estava rubro e parecia prestes a explodir a qualquer momento – e Lynette se deu conta de que Neferet não o estava provocando nem inventando nada daquilo. Ela deslizara pela mente dele e revelara o seu segredinho sujo.

– Sua vaca filha da puta! – berrou o policial Jamison.

– Já chega! – ordenou o detetive Marx, dirigindo-se ao homem uniformizado.

Então, sua atenção se voltou para Lynette e Neferet, falando de maneira clara e calma que fez Lynette desejar poder correr da loucura da vampira e direto para a proteção dele.

– Lynette, se você escolher ficar com Neferet, então vai fazer companhia a ela numa cela de cadeia. Neferet, você está presa pelo assassinato de toda a congregação da Boston Avenue Church.

A risada de Neferet foi seca e cruel.

– Você nem consegue fazer a acusação contra mim de forma correta, detetive.

– Você acabou de confessar esses assassinatos! – exclamou Marx.

Ele perdeu o tom profissional e objetivo que mantivera até aquele momento. Com um terrível aperto no estômago, Lynette se deu conta da verdade inacreditável – Neferet massacrara toda uma igreja cheia de inocentes.

Teve de segurar as mãos em frente de si para evitar que tremessem.

– Você tem uma mente tão decepcionantemente tacanha, detetive Marx. O que eu fiz naquela igreja não foi assassinato, foi sacrifício, e foi glorioso! Queria que você estivesse lá como testemunha, mas se estivesse lá , não estaria aqui para testemunhar o início do meu reinado. Ah, mas eu estou divagando. As suas acusações estão incorretas porque estão incompletas. Você se esqueceu de acrescentar o lanchinho que fiz com o seu prefeito algumas noites antes.

A expressão no rosto do detetive Marx era uma máscara de ódio.

– Meus instintos avisaram que os vampiros da Morada da Noite estavam dizendo a verdade sobre você ser a responsável pela morte do prefeito.

– Pelo menos uma vez, os seus instintos estavam corretos. Mas permita que eu continue com a minha confissão. É uma pena que não havia ninguém em Woodward Park para testemunhar minha saída triunfal de meu agradável recanto, enquanto eu descobria dois homens deliciosamente confusos praticamente implorando para que eu drenasse seu sangue.

Os olhos do detetive se arregalaram e Neferet zombou:

– Eu não sei o que é mais inacreditável, aquela energúmena da Zoey Redbird ter criado a ilusão de que matara os homens para logo em seguida correr pateticamente para você e se entregar, ou você realmente ter acreditado que aquela insípida tivesse coragem o suficiente para matar alguém. De qualquer modo, a situação não é muito favorável para suas habilidades de dedução.

Lynette viu que os policiais uniformizados, até mesmo Jamison, empalideceram diante da admissão direta de culpa de Neferet, mas o rosto do detetive Marx endureceu, formando linhas de teimosia.

– Neferet, permitirei que faça uma ligação para o Conselho Supremo, mas você deve se entregar agora e se preparar para arcar com as consequências dos seus atos.

– O Conselho Supremo tem ainda menos jurisdição sobre mim do que você – declarou Neferet. – Eu não sou vampira. Eu sou a Deusa das Trevas, Rainha de Tsi Sgili. E não vou nunca mais me curvar diante de qualquer autoridade. Você, Tulsa e o resto do mundo vão me adorar, é meu direito divino. Observem e aprendam. Mabel, venha até aqui.

A garota obedeceu imediatamente. Caminhou pelas portas que Judson abrira para ela e ficou ao lado de Neferet.

– Mais reféns não ajudarão você a se livrar disso! – exclamou o detetive Marx.

– Eu disse: observem e aprendam, humanos! Eu não tenho reféns, apenas súditos obedientes. Agora, observem o seu futuro!

Neferet abriu os braços para a garota que chamava Mabel. Lynette teve de dar um passo para o lado enquanto Mabel se apressava, de boa vontade, para abraçá-la.

– Se eu sou a sua Deusa, sacrifique-se por mim.

Com uma curiosidade mórbida, Lynette observou, perguntando-se o que a garota estaria disposta a fazer. Ela só teve segundos para pensar.

– A senhora é minha Deusa – afirmou a garota de forma mecânica e, então, começou a arranhar o próprio pescoço fazendo com que o sangue escorresse pelos ferimentos.

– Agora, sim, este é o comportamento esperado de uma súdita adequada. – Neferet se inclinou para beber o sangue da oferta. A garota arfou e estremeceu, mas, em vez de tentar escapar, ela exclamou com uma voz cheia de êxtase:

– Obrigada, Deusa

– Que delicadeza a sua – elogiou Neferet, seus lábios a centímetros do pescoço de Mabel. Antes de começar a se alimentar do sangue dela, Neferet ordenou: – Proteja-nos!

Instantes depois, houve um barulho ensurdecedor de tiros. Lynette se jogou no chão, encolhendo-se e colocando o braço sobre a cabeça numa vã tentativa de se proteger.

Ouviu uma lamúria de dor e, então, os policiais começaram a gritar. Tremendo violentamente, Lynette espiou por entre os braços. Neferet estava se alimentando da garota, ignorando o caos que acontecia diante deles.

Aparentemente, os tiros destinados a Neferet – e à própria Lynette – ricochetearam em algum escudo conjurado pela vampira e atingiram diretamente o corpo do policial desbocado.

– Ai, meu Deus – sussurrou Lynette.

– Será que você não quer dizer “ai, minha Deusa ”? – Neferet, com os lábios vermelhos do sangue da garota, sorriu para ela.

– Sim, é o que quero dizer – respondeu ela, sentindo-se tonta.

Neferet soltou a garota e Mabel caiu pesadamente no chão. Então, ela estendeu a mão para Lynette, que a pegou, e se levantou, trêmula.

– Não tema, não permitirei que eles a machuquem. Não permitirei que machuquem qualquer pessoa que seja leal a mim – afirmou.

A vampira voltou sua atenção para os policiais. Eles arrastaram o corpo cravejado de balas de Jamison para trás dos carros, onde o restante dos homens estava agachado. Lynette ouvia o som da estática dos rádios enquanto chamavam uma ambulância e pediam reforços.

– Você entendeu agora, detetive Marx? Aprendeu a sua lição?

– Aprendemos que você é uma assassina! – exclamou ele. – Ainda não terminamos. Este não é o fim.

– Pelo menos uma vez você está certo. Ainda não terminei aqui. Esse é só o começo. Observe e aprenda. Observe e aprenda – repetiu ela. – Ah, olhe para cima! Meus filhos, venham comigo!

Dando os braços para Lynette, entraram novamente no Mayo Hotel.

– Judson, acorrente as portas novamente.

– Sim, Deusa. Mas isso não os manterá lá fora por muito tempo.

– Eu sei disso! Limite-se a fazer o que eu ordenei. Como sempre, terei de tomar conta dos detalhes sozinha.

– Sim, Deusa.

– Lynette, gostaria que você se juntasse a mim na minha cobertura. Um evento espetacular está prestes a acontecer lá.

– Sim, Deusa – respondeu Lynette, entrando no elevador com ela.

O sorriso de Neferet era confiante.

– Você está quase acreditando que eu sou divina.

Lynette não respondeu. O que poderia dizer que Neferet não pudesse retorquir esquadrinhando a sua mente e descobrindo a verdade? Então, novamente, deu a única resposta possível:

– Estou aqui para servi-la.

– E assim será.

As portas se abriram para a cobertura.

– Kylee, Lynette está um pouco pálida, sirva para ela uma taça do melhor vinho e leve até a varanda.

Neferet passou por Kylee, com Lynette seguindo logo atrás, e abriu as portas para se juntar às sessenta pessoas que estavam reunidas em grupos amedrontados na varanda. Muitos estavam próximos à balaustrada que emoldurava a ampla extensão das portas para o lado de fora; pela expressão nos seus rostos, ficou claro que tinham ouvido os tiros e viram o que acontecera lá em baixo.

– Espere aqui, Lynette, e tome o seu vinho. Isso vai trazer um pouco de cor de volta ao seu rosto. Não posso permitir que a minha súdita favorita fique com uma aparência abatida e doentia – declarou Neferet.

Então, ela caminhou até o parapeito de pedra, fazendo com que as pessoas mais próximas a ela se afastassem, assustadas.

– Já que a educação moderna é de péssima qualidade, sinto que é meu dever, como a sua Deusa, dizer isto a vocês – ela fez uma pausa e apontou para as pedras esculpidas –: o nome disso é balaustrada. Os suportes grossos e com espaçamento uniforme, aqui e aqui – ela apontou novamente –, chamam-se balaústres. É uma feliz coincidência que haja exatamente sessenta balaústres espaçados em torno da varanda da cobertura do meu Templo. Eu quero que cada um de vocês escolha um balaústre e se posicione diretamente em frente a ele.

– Você... Você não vai nos obrigar a pular, não é? – quis saber uma velha aterrorizada.

– Não, Vovó – respondeu Neferet com a voz calorosa. – Isso não faria nenhum sentido. Será que vocês não viram como eu protegi Lynette contra as balas mortais que a polícia atirou contra ela?

Seguiu-se um longo silêncio e alguém disse:

– Mas você comeu aquela outra garota.

– Mabel foi desobediente. Será que vocês querem o mesmo destino que ela teve?

Suas palavras tiveram um efeito instantâneo sobre as pessoas, que se espalharam, cada qual assumindo uma posição em frente a um balaústre.

– Excelente! Kylee, sirva mais champanhe enquanto eu tenho uma conversa em particular com os meus filhos das Trevas.

Lynette apreciava vinho tinto caro e costumava degustá-lo, bebendo-o devagar. Mas não naquele momento. Ela bebeu ruidosamente, pegando a garrafa da mão de Kylee quando a garota robótica passou por ela para buscar mais champanhe. Lynette sentiu-se grata pela sensação surreal e destacada que o álcool lhe provocava enquanto observava a vampira se mover para um canto sombrio da varanda, bem longe do parapeito, e se curvava para conversar com o que parecia ser absolutamente nada.

Lynette sabia que não era o caso. E, com certeza, apenas um segundo ou dois depois, o ar em volta dos pés da vampira se ondulou, como correntes de ar quente se erguendo do asfalto abrasado de uma estrada, e as cobras de Neferet ficaram visíveis. Lynette ficou satisfeita que a vampira estivesse distraída com os seus “filhos”, pois não conseguia evitar o estremecimento de nojo. Lynette se lembrou de um velho filme de faroeste ao qual assistiu quando criança. Nele, os cowboys tinham que levar o gado e, enquanto cruzavam o rio, um jovem caiu do cavalo, pousando no meio de um enorme ninho de cobras aquáticas para ser morto por elas, embora não rápido o suficiente. Parecia que Neferet estava no centro do ninho, só que as suas cobras eram maiores, mais negras e até mais perigosas do que qualquer uma das cobras do velho oeste.

O que será que elas eram? Com certeza, Lynette não sabia muitas coisas sobre vampiros. Mesmo que fosse capaz de aceitar fazer negócios com eles – já que eram reconhecidamente ricos –, jamais fora contratada por um. Estava longe de ser uma perita em vampiros, mas tinha certeza de que ouvira falar alguma coisa sobre essas criaturas mortíferas semelhantes a cobras. Seus familiares deveriam ser gatos, meu Deus, e não répteis.

Lynette se serviu de mais vinho e tomou um longo gole em sua taça, sentindo-se aliviada por seu rosto estar quente. Bom, o calor deixaria o seu rosto “corado” de novo. Lynette não tinha dúvidas de que a vampira seria capaz de matá-la se lhe desse na telha. Disfarçadamente, apertou o próprio rosto para se certificar de estar completamente corada.

Como ela ia sair daquela confusão? Nem estava mais se preocupando em lucrar com aquilo. Só queria escapar sem ser caçada pelos filhos de uma vampira insana.

– Excelente! – Neferet se empertigou, voltando sua atenção para as sessenta pessoas, cada uma diante de um balaústre na cobertura. – Agora que os meus filhos compreendem os meus desejos, estou pronta para compartilhá-los com vocês, meus leais súditos. – Ela se colocou no centro da varanda para que pudesse ser vista e ouvida por todos. – Kylee, chega de champanhe por ora. Fique ao lado de Lynette.

Kylee, é claro, fez conforme foi ordenada.

Lynette lançou uns olhares de esguelha para a garota. A sua boca estava fechada, ela não conseguia ver qualquer sinal da infestação da cobra, mas a garota estava claramente no piloto automático. Seus olhos estavam abertos, mas sem vida. O rosto não tinha expressão. Dessa vez, Lynette conseguiu evitar um estremecimento de asco. Quem poderia saber o que aquela coisa ao seu lado poderia contar para a vampira?

– Bem, eu tenho uma pergunta para vocês, uma a que qualquer um pode responder. Qual é a sua maior preocupação neste momento? – perguntou Neferet para as pessoas.

Lynette achou estranha sua capacidade de parecer uma pessoa tão normal, até boa. Era tudo fachada, mas uma fachada muito boa.

Ninguém respondeu à sua pergunta, e Neferet deu um sorriso caloroso e encorajador, dizendo:

– Ah, vamos lá! Eu sou a sua Deusa. É o meu dever e um prazer ouvir as suas preocupações. E, como meus súditos, é o seu dever compartilhá-las comigo. Por favor, não me obriguem a forçá-los a cumprir com as suas obrigações.

Um homem resolveu responder:

– A minha maior preocupação é que eu não quero ser morto... Ou coisa pior – declarou ele, lançando um olhar nervoso e rápido para o ninho das trevas que cercava e se contorcia em torno da vampira.

– Muito bom! Ótima resposta. Mais alguém tem a mesma preocupação?

Neferet parecia realmente se preocupar e até mesmo Lynette sentiu que sua cabeça assentia junto com a dos outros.

– Perfeito! – exclamou Neferet. – Eu sabia que a segurança seria a principal preocupação de todos. Agora, vejam bem, eu não estou admoestando vocês, nem estou zangada, mas a sua principal preocupação deveria ser cuidar de mim e me adorar. – Várias pessoas começaram a protestar, obviamente temendo o que a vampira faria em seguida, mas Neferet ergueu a mão e, com um gesto régio calou a todos. – Não, não, eu compreendo. De verdade. E é por isso que vou deixar bem claro que ninguém pode ferir os meus súditos, de modo que fiquem livres para me adorar.

Lynette achou irônico que Neferet tenha feito tal pronunciamento enquanto sirenes soavam cada vez mais próximas lá embaixo.

– Para assegurar aos meus súditos de que eles estão seguros, precisarei da ajuda de vocês. Façam exatamente o que eu mandar, e prometo que o meu Templo será impenetrável a qualquer um que nos queira ferir.

Lynette deu um suspiro suave. Pena que ninguém disse o que todos estavam pensando: não é com o mundo exterior que estamos preocupados – é com você! Mas, é claro, ninguém disse nada disso. Era a Neferet que todos temiam.

– O que precisam fazer é bem simples. Primeiro, cada um de vocês deve se virar de modo a olhar para o lado de fora da cobertura. – De forma lenta e relutante, as sessenta pessoas fizeram como ela ordenou, e agora estavam de costas para Neferet. – Agora, ergam os braços, fechem os olhos, limpem suas mentes e respirem fundo junto comigo. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. – Lynette ouviu as pessoas respirando com ela. – Quero que se concentrem na minha voz e não pensem em mais nada.

Neferet fez uma pausa para olhar em volta e ver se todos estavam nos devidos lugares. Quando os seus olhos encontraram os de Lynette, seus lábios carnudos se abriram em um sorriso cruel.

O estômago de Lynette se contraiu e ela temeu que fosse vomitar todo o vinho que consumira.

O olhar de Neferet se afastou dela e pousou nas cobras que se contorciam em torno dos seus pés.

– Meus filhos, chegou a hora! – As palavras que disse a seguir foram entoadas em um ritmo musical que era supreendentemente tranquilizador, de forma quase hipnótica.

Em um ataque rápido, promovam a defunção
para que aqueles lá embaixo conheçam a minha ira.
O poder é farto, consuma seu quinhão
Para mim uma perfeita jaula assim se cria.

Lynette conseguia sentir o poder crescendo a cada verso que a vampira entoava, e ela, assim como as outras sessenta pessoas que estavam congeladas com os braços erguidos, não poderia fazer nada, a não ser esperar pelo que aconteceria a seguir.

Para que este mundo eu possa reedificar
meu Templo deve ser divinal – poderoso.
Para a Deusa, somente sua lealdade deve imperar
E para Tulsa ofereçam um divino canto majestoso.

Pelo tempo que ainda vivesse, Lynette jamais seria capaz de apagar da memória a visão do que aconteceu em seguida. Com as palavras “divino canto majestoso”, Neferet ergueu os braços e, como se aquele fosse o sinal pelo qual estavam esperando, as cobras dispararam em direção às costas das pessoas despreparadas. Lynette prendeu a respiração, esperando que as serpentes subissem por suas pernas e as possuíssem, mas suas expectativas não poderiam estar mais erradas. Em vez de possuir as pessoas, as cobras – como se formassem um único ser – atingiram-nas todas no meio das costas, atravessando-as com tanta força que o sangue e as tripas explodiram como uma chuva vermelha fluindo com as gavinhas sobre a balaustrada de pedra. Sem acreditar, Lynette assistiu às criaturas descerem pelas laterais do Mayo Hotel, lavando-o com negrume e sangue, como se estivessem desenrolando uma cortina escura e gotejante.

Um som chamou sua atenção de volta à Neferet. Entorpecida, viu que a vampira ainda tinha os braços erguidos. Sua cabeça estava inclinada para trás e seu corpo estremecia em espasmos enquanto ela gemia num êxtase terrível. Lynette tinha certeza de que vira um brilho sombrio emanando e se expandindo em volta dela. De repente, compreendeu. É a morte das pessoas . De alguma forma ela está se alimentando de suas almas, assim como as suas criaturas se alimentam dos seus corpos.

E elas estavam se alimentando das pessoas que tinham acabado de morrer – todas as cobras que permaneceram na cobertura. Lynette sentiu que balançava a cabeça. Havia tantas delas. Muitas ainda.

Lynette ainda meneava a cabeça e observava as criaturas que se agitavam por entre os mortos, grudando neles como sanguessugas gigantescas, drenando tudo o que restava nos corpos inertes, quando o braço de Neferet baixou. Ela arrumou o vestido e, sem lançar um olhar sequer para nenhum dos sessenta voluntários, virou-se, sorrindo, aproximando-se de Lynette.

– Kylee, jogue os corpos pela balaustrada quando os meus filhos acabarem de se alimentar. Ah, e chame Judson e os outros membros de minha equipe. Eles não precisam mais proteger as portas. Estamos todos seguros. Nada poderá penetrar o véu das Trevas. Ninguém poderá entrar nem sair do meu Templo sem minha permissão. Então, mande que a equipe avise aos súditos restantes de que eles não precisarão mais ficar naquele porão sombrio. Eles podem voltar para os seus quartos sem medo. Eu já me certifiquei de que todos estejam protegidos. Contanto que me adorem. Já chegou a hora de começarem a me adorar.

– Sim, Deusa – respondeu Kylee, desaparecendo pela porta da cobertura.

Os olhos verdes-esmeralda de Neferet encontraram os de Lynette.

– O que você achou do meu evento?

Lynette engoliu o enjoo que lhe subia pela garganta e ameaçava engasgá-la. Respondeu então com a mais pura honestidade:

– Eu jamais vi nada como aquilo.

– “Eu jamais vi nada como aquilo”, o quê? – perguntou Neferet, cheia de expectativa.

– Eu jamais vi nada como aquilo, Deusa – completou Lynette, curvando-se em uma reverência profunda e trêmula.

– E agora você realmente acredita nisso. Encantador! Levante-se, Lynette, minha querida, e sirva uma taça de vinho para nós, enquanto discutimos os tipos de evento de adoração que você planeja para mim.

Lynette se levantou e fez exatamente o que a Deusa mandou.

[*] Esta frase faz referência à obra Hamlet , de William Shakespeare. No caso, “The lady doth protest too much, methinks” (Parece-me que a dama faz protestos demasiados). Essa expressão indica uma situação em que a insistência na defesa de determinado argumento ou ponto de vista pode ser indício de que há uma mentira sendo ocultada pelo emissor. (N.E.)


6

Detetive Marx

Desde aquela noite escura e com muita neve em que Zoey Redbird o chamara até a velha estação, onde ela e um adolescente tinham escapado por pouco de serem assassinados, o detetive Marx tivera questionamentos em relação a Neferet, que, na época, era a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. A vampira parecera estranha para ele. Zoey obviamente ficara desconfiada dela quando ele levara os dois novatos de volta para a Morada da Noite, e Neferet a recebera de maneira calorosa e aparentemente sincera. Zoey assumira uma postura defensiva. Até dera um show para mostrar a nova tatuagem com a qual a Deusa tinha lhe presenteado naquela noite, o que, aos olhos treinados do detetive, indicava que a novata fora bem-sucedida em dizer à vampira mais poderosa e proeminente da escola que ficasse longe dela.

Marx achou que deveria ter ficado do lado da vampira e questionado a veracidade da novata. Em vez disso, Marx sentiu uma comichão sob a pele quando estava perto da Neferet, a mesma comichão que já lhe salvara nas ruas mais vezes do que poderia contar. Gostava de Zoey. Não sentia nenhuma comichão quando estava perto dela. De Neferet, porém, ele não tinha gostado nada.

Marx perguntara à sua irmã, que fora Marcada quase duas décadas antes, sobre Neferet. Anne fora surpreendentemente curta e grossa na sua resposta: Neferet é uma poderosa Grande Sacerdotisa. Fique longe dela. Quando pedira mais detalhes, Anne encerrara completamente a conversa. Chegara até a evitar as suas ligações por quase uma semana. Aquilo fora mais do que estranho. Ele e Anne eram gêmeos e se mantiveram próximos mesmo depois de ela ter sido Marcada e passado pela Transformação. Atualmente, ela dava aulas de Feitiços e Rituais na Morada da Noite de São Francisco. Marx passava as férias lá pelo menos uma vez por ano e ficara hospedado várias vezes no alojamento da escola como seu convidado. Anne costumava ser direta e honesta com ele sobre o seu mundo de vampiros. Sabia que poderia confiar no irmão. Mas bastou uma menção à Neferet, e Anne erguera um muro entre eles.

Marx odiara aquilo, odiara não ter a confiança da irmã. Então, nunca mais voltou a fazer perguntas sobre Neferet.

Nem mesmo quando a Grande Sacerdotisa deixara a Morada da Noite de Tulsa e dera uma entrevista coletiva condenando os vampiros atuais em geral e os da sua Morada em particular.

Nem mesmo quando Neferet desaparecera depois que a sua cobertura fora destruída.

Nem mesmo quando a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, Thanatos, acusara Neferet de ter assassinado o Prefeito LaFont.

Nem mesmo quando recebera uma pista anônima pelo Disque Denúncia dizendo ter visto uma vampira nua que se encaixava com a descrição de Neferet entrando na Boston Avenue Church.

Os últimos vinte e poucos minutos o fizeram mudar de ideia sobre não questionar a irmã.

– Aqui! Policial ferido aqui!

Marx acenou para a ambulância que chegara no bloqueio atrás do qual ele e os outros policiais estavam agachados. Lançou um olhar para Jamison. O cara estava obviamente condenado. As seis balas que ricochetearam no escudo invisível que Neferet erguera tinham, convenientemente, lhe atingido em todas as partes não protegidas pelo seu colete à prova de balas. Como ela conseguira fazer aquilo? Marx acrescentou mais uma pergunta à longa lista de perguntas que, com certeza, faria à irmã.

Mais carros oficiais do que ele poderia contar chegaram, parando no meio das ruas que cercavam o Mayo. Os policiais que não estavam dando cobertura para Marx apressavam-se em evacuar os prédios adjacentes. Marx enviara uma mensagem pelo rádio dizendo que um policial fora atingido, além de estar acontecendo uma situação grave envolvendo reféns.

Foi com uma mistura de alívio e tristeza que viu o chefe de polícia Connors liderando a equipe da SWAT. O chefe não era conhecido pelas habilidades diplomáticas.

– Detetive, faça um resumo rápido da situação – pediu ele.

– Neferet confessou os crimes na Boston Avenue. Ela está lá dentro do hotel com reféns. Ela tem controle sobre eles. Não sei se é por feitiço ou se apenas ela os deixou tão apavorados a ponto de estarem dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Mas você não vai acreditar nas coisas terríveis a que ela está obrigando essas pessoas fazerem.

– Depois de ver o que ela fez na Boston Avenue, acho difícil ficar surpreso com qualquer coisa que ela possa fazer – declarou o chefe de polícia em tom sombrio.

– Está vendo aquele corpo ali? Aquela garota dilacerou a própria garganta para Neferet enquanto dizia “obrigada, Deusa”. – Marx fez um gesto indicando a carcaça ensanguentada que costumava ser uma jovem.

– Alguma ideia de quantas pessoas estão lá dentro com ela?

Marx meneou a cabeça.

– Deve ter umas cem, mas é apenas um chute. Ela fechou o restaurante e trancou o prédio. Pelo que entendi, ela não vai deixar ninguém sair.

– Bem, ela vai ter que nos deixar entrar.

– Chefe, acho melhor conseguirmos algumas informações sobre a situação dos reféns. Não queremos uma repetição do que aconteceu na igreja. Ela massacrou aquelas pessoas, mas os corpos não parecem com nada do que já vi vampiros fazerem antes. Eles foram estraçalhados, comidos e drenados. O poder de Neferet não se parece em nada com o que já tenhamos lidado antes.

– É, eu vi. – O chefe de polícia meneou a cabeça. – Mas como uma porra de uma vampira conseguiu fazer algo assim? Eu ouvi dizer que uma Grande Sacerdotisa pode entrar na mente das pessoas. Controlá-las e até mesmo apagar lembranças. E sei que são fisicamente fortes, mas não tão fortes quanto os seus guerreiros. Mas a carnificina na igreja... – Ele balançou a cabeça. – Eu nunca ouvi falar em nada parecido com aquilo. E quanto a você? A sua irmã não é vampira?

– É sim, e eu vou dar uma ligada pra ela. Mas tem outra coisa que você precisa saber. Neferet não está dizendo que é uma vampira. Ela afirma ser uma deusa, para ser mais específico, a Deusa das Trevas e a Rainha de Tsi Sgili, seja lá o que for isso. Ela disse que transformou o Mayo no seu Templo e que quer que Tulsa a adore.

O chefe de polícia deu um grunhido.

– Porra nenhuma. Assim que avaliarmos a situação dos reféns, a gente vai entrar. Vamos ver o que o nosso atirador de elite com a sua arma de cinquenta calibres vai causar nas suas ilusões de divindade.

Marx acenou com a cabeça em concordância, mas sentiu a familiar comichão de aviso sob a pele, dando-lhe uma sensação ruim sobre como as coisas de desenrolariam.

– Esses malditos vampiros perderam a porra da cabeça ultimamente. Primeiro o assassinato do prefeito, então aqueles dois homens no parque, a carnificina na igreja e agora isso. Estou achando que precisamos fazer mais do que apenas colocar a Morada da Noite em confinamento. Acho que devemos expulsá-los de Tulsa!

– Chefe, sobre aqueles dois homens no parque. – Marx franziu as sobrancelhas. Sabia que os sentimentos contra os vampiros estavam em alta, mas ele detestava ouvir esse tipo de merda racista saindo pela boca do chefe da polícia.

– O quê? Você não prendeu aquela novata que confessou os assassinatos? Merda, ela talvez tenha matado LaFont também!

– Na verdade, chefe, Neferet acabou de confessar o assassinato do prefeito e daqueles dois homens. Ela gabou-se disso, assim como do massacre na igreja.

O chefe de polícia piscou, surpreso.

– Bem, então por que a porra de uma novata confessou ser a assassina? Ela faz parte dos seguidores de Neferet?

– Duvido muito. Zoey Redbird e Neferet têm uma história de animosidade entre elas. Acho que é provável que Zoey tenha encontrado com os homens e se defendido contra eles e, quando soube que estavam mortos, deve ter acreditado que os tinha matado . Ela é uma garota legal, chefe. Acho que ela se entregou porque estava consumida pelo remorso. Ela nem mesmo queria algum vampiro adulto com ela.

O chefe de polícia olhou para ele sem entender. Marx evitou um suspiro de impaciência e explicou:

– Se uma novata não está próxima a vampiros adultos, existe cem por cento de chance de que o seu corpo vai rejeitar a Transformação e ela morrerá. Zoey se julgou e se condenou; e decidiu que a sua sentença era a morte.

– Eu me esqueço do quanto você sabe sobre vampiros. – O chefe de polícia meneou a cabeça enojado. – Acho que não importa se eles são humanos ou novatos. Adolescentes são completamente incompreensíveis.

Marx abriu a boca para protestar – respeitosamente – que ele, na verdade, conhecia alguns adolescentes completamente compreensíveis e que incluiria Zoey Redbird na lista, quando o grito de um policial uniformizado o interrompeu.

– Ai, meu Deus! Olhem lá para cima!

Marx olhou para cima bem a tempo de ver criaturas negras e grotescas semelhantes a cobras, a não ser pela ausência de olhos – apenas bocas abertas emolduradas por dentes que estavam molhados e vermelhos –, sendo arremessadas por alguma força invisível pelo parapeito na cobertura do Mayo. As criaturas carregavam consigo uma explosão de sangue e tripas e fragmentos corpóreos e coágulos. E, enquanto caíam, elas se expandiam, mudando a forma de cobras sem olhos para uma cortina escura e pulsante, manchada de escarlate. A cortina desceu pela fachada de pedra do hotel, envolvendo-a em trevas e sangue enquanto se desenrolava até o chão.

– Atirem! Matem-nos! – berrou o chefe de polícia.

Marx tentou impedi-lo. Tentou lembrá-lo de que havia cidadãos inocentes lá dentro que poderiam facilmente ser feridos ou, até mesmo, mortos. Tentou dizer que o ataque só serviria para antagonizar a vampira que tinha mais reféns e que já estava tão louca, que acreditava ser imortal. Mas os tiros provocados pelo pânico explodiram à sua volta e suas palavras se perderam no furor do momento.

A princípio, Marx não queria olhar para cima. Não queria ver os tiros acabarem com o Mayo e ter de lidar com as consequências das ordens precipitadas do chefe de polícia. Marx, no entanto, não era o tipo de homem que fugia das coisas; ele fizera uma carreira ao lidar com elas. Resoluto, ergueu o olhar.

As cobras que se transformaram em cortina se expandiram de modo que parecia que o prédio tinha ganhado uma pele negra avermelhada, uma pele tão dura, que nem mesmo as Glocks que os policiais uniformizados carregavam conseguiam penetrar.

Todos observaram enquanto as trevas continuavam a descer pelo prédio até o nível da rua e a se fundir ali com um som sussurrante que lembrou Marx da vez que visitara Nova York e se hospedara no Plaza – e cometera o erro de sair para fumar às três horas da manhã. Ratos. Ele caminhara por uma cerca viva bem-aparada que ficava em frente à grandiosa entrada do Plaza e ouvira o som sussurrante. Olhara para baixo, ficando chocado ao se deparar com dezenas de ratazanas gordas passando por ali. Era com aquele som que a mortalha das trevas criada por Neferet se parecia enquanto se assentava no lugar onde o prédio encontrava a rua, contra pedras dos anos de 1920.

– Atirem nas portas. Vocês têm que passar por essa coisa e estar prontos para entrar! – berrou o chefe de polícia.

– Não! – exclamou Marx, enquanto os policiais uniformizados corriam para obedecer às ordens.

Determinado a sobreviver e lutar por mais um dia, Marx se abaixou atrás de um carro do pelotão.

Acabou em uma questão de segundos. Os policiais correram em direção às portas, disparando contra o vidro que agora estava coberto pela cortina negra e escorregadia salpicada de coágulos. Seu coração se partiu quando os gritos começaram. Marx já estava usando o rádio:

– Vários policiais feridos! Precisamos de mais ônibus no Mayo! E reforços! Mais reforços! Mande todos os policiais de Tulsa para cá! Agora!

Quando o comandante cambaleou para trás e caiu pesadamente no pavimento, atingido no meio da testa por fogo amigo, os olhos revirados e leitosos, sem dúvida morto, Marx fez a única coisa que sabia fazer: assumiu o comando.

– Cessar fogo e retirada! Retirada! – berrou ele, e os homens reagiram com um claro alívio.

Um jovem policial uniformizado se agachou ao lado dele, com a respiração pesada e as mãos trêmulas. Marx achou que o garoto não devia ter mais do que 21 anos.

– Mãe do céu! Aquele treco preto não sofreu nenhum arranhão! Os tiros ricochetearam diretamente para nós, como se estivessem mirando. Que merda é aquela? – Quis saber ele com a voz tão trêmula quanto as suas mãos.

– Magia – respondeu Marx. – Magia negra e maligna.

– E como é que a gente consegue lutar contra isso?

Marx encontrou os olhos do jovem.

– Nós não lutamos. Nós precisamos de ajuda. E, felizmente, eu sei onde conseguir.

Zoey

– Eu queria saber o que está acontecendo! – Stark andava de um lado para o outro em frente à sua cela.

– Por que você não vai até lá fora para ver se a Vovó ainda está na sala de espera? Ela pode descobrir o que está acontecendo. Ela trouxe cookies. Ninguém resiste aos cookies dela – eu disse.

– Boa ideia. Eu já volto.

Stark seguiu pelo corredor e foi a minha vez de ficar andando de um lado para o outro.

Neferet. Se alguma coisa louca estava acontecendo no Mayo, Neferet tinha de ser a responsável. Eu queria agarrar as grades da minha cela, sacudi-las e gritar como uma pessoa histérica: Tirem-me daqui! Tirem-me daqui! Se Neferet estava lá fora fazendo sabe-se lá o quê, eu deveria estar lá, tentando pensar em uma maneira de detê-la.

E eu estaria se eu não tivesse perdido a cabeça e matado dois homens.

Stark voltou correndo e cobriu as minhas mãos, que realmente estavam agarradas às grades, como seu eu fosse capaz de entortá-las.

– Eles devem ter expulsado a Vovó, Thanatos e todos os outros. Não tem ninguém aqui, a não ser um policial na recepção. Este lugar está deserto! Se eu tivesse a chave, poderia tirar você daqui sem nenhum problema. – Suas sobrancelhas, com suas mãos ainda pressionando as minhas. Ele sacudiu um pouco as barras (que nem se mexeram). Então ele deu o seu sorriso maroto. – Mas, já que eu não tenho a chave, será que você não conhece ninguém que poderia, de alguma forma, convocar alguns elementos, sei lá, para derrubar esta porta?

– Stark, eu estou aqui por um motivo. Eu fiz uma coisa muito, muito ruim. Fugir daqui não vai me ajudar em nada.

– Poderia ajudar se Neferet estiver desenfreada, alimentando-se de cidadãos inocentes de Tulsa. Na verdade, eles podem até se esquecer do seu acidente no parque e agradecê-la se você ajudar a derrotar a sra. Louca.

Dei um sorriso triste.

– Eles até podem esquecer, mas eu não vou conseguir. Além disso, eu não posso derrotar Neferet, Stark.

– Você já fez isso antes.

– Não para sempre e não sem ajuda.

– Bem... – Ele abriu os braços. – Você tem ajuda.

Bufei.

– Não é o suficiente. Se fôssemos suficientes, teríamos sido capazes de nos certificar de que Neferet nunca mais voltaria do lugar para onde a chutamos da última vez. – Então, os meus ombros ficaram caídos e eu os encolhi. – Provavelmente, nem é ela. Talvez sejam ladrões de banco.

– No Mayo? Hã, Z. Estamos falando de um hotel, não de um banco.

A porta do corredor se abriu e a estrutura de metal bateu contra a parede. O detetive Marx se apressou na nossa direção. A aparência dele estava péssima. Tipo, péssima mesmo. O paletó estava sujo e a calça, rasgada na altura de um dos joelhos. Senti o cheiro de sangue, o qual me obriguei a ignorar. Na verdade, isso nem foi tão difícil porque a expressão no seu rosto era perturbadora demais.

Ele parecia estar com medo.

– O que aconteceu no Woodward Park? – ele exigiu saber enquanto se colocava ao lado de Stark.

– Eu já disse.

– Conte para ele de novo – interveio Stark.

– Por quê? O que está acontecendo?

– Responda à minha pergunta primeiro.

– Tá legal. Como eu já disse, dois homens me irritaram e eu atirei a minha raiva neles.

– Mas o que eles fizeram para deixá-la tão irritada?

– Não o suficiente para eu matá-los, Ok? – respondi.

– Apenas responda à pergunta! – zangou-se Marx.

Surpresa com o seu tom, eu me ouvi respondendo:

– Eles estavam andando pelo parque procurando garotas para assustá-las e obrigá-las a lhes dar dinheiro. Eles não viram as minhas tatuagens antes de começarem a me assediar. Então, quando perceberam que eu não era apenas uma adolescente indefesa, mudaram de ideia sobre me assustar. Eles basicamente disseram que iriam procurar outra vítima e isso me deixou louca da vida. – Fiz uma pausa e acrescentei: – Mas ainda tem mais. Eu já estava muito irritada quando cheguei ao parque, foi por isso que eu tinha ido para lá. Para tentar me acalmar. Eu... Eu não conseguia controlar o meu temperamento.

– Conte para ele o resto. Conte para ele por que você deu a pedra da vidência para Aphrodite quando se entregou para a polícia – insistiu Stark.

– Eu não percebi na hora, mas agora eu consigo entender que a pedra da vidência, um tipo de talismã que ganhei na Ilha de Skye, estava afetando as minhas emoções. Tipo, amplificando-as ou provocando-as, ou talvez apenas alimentando o meu estresse. Ela fica quente quando funciona e, no parque, ela estava superquente. Foi por isso que consegui erguer os dois homens e atirá-los contra o paredão da gruta.

– Você não consegue fazer isso, digamos, agora, consegue? – perguntou Marx, observando-me atentamente.

– Acho que não. Pelo menos não sozinha. Eu teria que chamar um ou todos os elementos, e eles ficam mais poderosos se o meu círculo estiver comigo e nós cinco canalizarmos a nossa energia para eles.

Marx assentiu, pensativo.

– Você sabia que os dois homens estavam mortos quando saiu do parque?

– Não. Tipo, eu sabia que eu os tinha lançado contra o paredão, mas foi como uma explosão grande e louca para mim. Bem, eu fiquei surpresa com aquilo – respondi. Distraída, esfreguei a palma da minha mão direita na minha perna e, então, olhei para ela. No meio das tatuagens entrelaçadas, um círculo perfeito tinha se formado ali. Ergui a mão para que o detetive pudesse vê-la. – Essa marca no centro, o círculo, foi feita pela pedra da vidência. Aconteceu na hora em que atirei a minha raiva naqueles homens. Era como se o poder dela tivesse saído através de mim. Quando eu percebi o que tinha feito, eu me aproximei deles.

Engoli em seco ao me lembrar.

– E o que exatamente você viu? – perguntou Marx, impaciente.

– Eles estavam deitados lá, aos pés do paredão que dá para a Twenty-first Street. E-eu me lembro de que ouvi um deles gemer, e vi o outro estremecer. Ficou claro que os tinha machucado muito. Talvez até gravemente. Então, eu fiquei com medo e fugi. Eles deviam estar morrendo quando eu fui embora. Sinto muito. De verdade. Eu sei que isso não faz qualquer diferença. E eu também sei que não faz a menor diferença o fato de eles estarem no parque para assediar garotas nem que a pedra da vidência tenha me dado o poder para fazer o que eu fiz. Foi a minha raiva que matou aqueles homens. Eu sou a responsável. – Mordi o lábio com força. Eu não ia começar a chorar.

– Não, Zoey. A verdade é que não foi você que fez isso e não, você não é a responsável pela morte deles.

Ele passou o cartão magnético no painel da porta da minha cela, e a tranca de metal se abriu com um clique.

– Hein? – Pisquei para ele, sentindo que eu devia estar sonhando. Olhei para Stark, que também estava olhando para o detetive.

– Isso tem alguma coisa a ver com Neferet – disse Stark.

– Isso tem tudo a ver com Neferet – concordou Marx. – Ela confessou ter matado aqueles dois homens. Não, essa não é uma descrição precisa. Neferet se gabou de ter matado aqueles dois homens.

Stark comemorou e me envolveu em um abraço.

– Z., você não matou ninguém.

– Eu não matei ninguém! – repeti o grito de Stark, enquanto ele me abraçava, rindo.

Eu estava me sentindo fraca, quase tonta. Eu não tinha matado ninguém! Mas que merda, eu quase tinha rejeitado a Transformação. Eu quase morri. Por causa de Neferet.

Tudo sempre voltava a Neferet.

Bati no ombro de Stark e ele me colocou no chão (mas eu continuei segurando a sua mão).

Eu me virei para o detetive Marx.

– O que mais ela fez?

– Você e seus amigos estavam certos. Neferet matou o prefeito. Ele e os dois homens no parque foram só o aquecimento. Ela massacrou uma igreja cheia de gente, e agora declarou ser uma deusa. Ela tornou o Mayo como seu Templo e está trancada lá dentro com um monte de gente enfeitiçada.

– Merda! – exclamou Stark.

– Aiminhadeusa ! – Neferet finalmente conseguira. Ela finalmente conseguira se superar e mostrar para todo mundo o que ela era de verdade.

– Você está livre, Zoey. Todas as acusações foram retiradas. Mas, antes de você ir, eu tenho um favor para pedir.

Olhei diretamente nos olhos dele.

– Você não precisa pedir. Eu vou ajudá-lo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para detê-la.

Marx suspirou de alívio.

– Obrigado. Eu não vou mentir para você, Zoey. A situação no Mayo é feia. Horrível mesmo. Neferet é poderosa e perigosa.

– E uma louca de carteirinha – terminei por ele. – Eu sei. Eu já sei disso há meses.

– Então, você sabe contra quem vai lutar.

– Todos nós sabemos – disse Stark. – Porque nós fomos os únicos que lutamos contra aquela puta doida.

– Tudo bem, então. Você precisa pegar aquela tal de pedra da vidência antes de eu te levar para o Mayo e...

– Espere um pouco. Não, você não entende, detetive Marx. Quando eu disse que vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para deter Neferet, não quis dizer que faria tudo sozinha. – Apertei a mão de Stark. – Uma das coisas que aprendi com certeza é que eu fico mais forte com os meus amigos.

– Só me diga do que precisa e eu farei acontecer – afirmou Marx.

– Tudo de que preciso está na Morada da Noite – respondi.

– Então venha comigo, Zoey. Vou levá-la para casa.


7

Zoey

Eu mal tinha saído do carro do detetive Marx quando a Vovó saiu correndo pela porta da frente da escola e me envolveu em um abraço.

– U-we-tsi-a-ge-ya ! É você! Eu sabia... Eu sabia que você estava voltando para casa.

Eu a abracei rapidamente e demos os braços enquanto entrávamos na Morada da Noite com detetive Marx e Stark seguindo logo atrás. O sol estava se pondo, mas eu estava superconsciente de que ainda poderia provocar dor em Stark. Conforme nos apressamos para dentro do prédio, sorri para a Vovó e contei:

– Eu não matei ninguém! – Então, eu me lembrei de quem os tinha matado e o que mais ela tinha feito, e o meu sorriso se apagou. – Neferet os matou.

– Neferet? – Ergui os olhos do rosto feliz de Vovó para ver Thanatos, Aphrodite e Darius saindo da sala da Grande Sacerdotisa.

– Zoey, detetive Marx, será que poderiam explicar o que aconteceu? – pediu Thanatos.

– Neferet confessou ter matado os dois homens no parque... – começou a explicar detetive Marx, mas eu o interrompi.

– Espere, tem muito mais coisa do que isso, e eu preciso que o meu círculo ouça tudo. – Olhei para Thanatos. – Neferet se revelou. Precisamos nos apressar.

– Darius e Stark, reúnam o círculo de Zoey. Leve-os até a Câmara do Conselho. Chame Lenobia também. Ela é a sacerdotisa mais velha desta morada. Talvez precisemos de sua sabedoria. Vão agora! – orientou Thanatos.

Stark e Darius saíram.

– Detetive, permita que eu o acompanhe até a Câmara do Conselho. Sylvia, eu ficaria muito grata se você pudesse partilhar a sua sabedoria em relação ao que estamos enfrentando com Neferet. Você poderia se juntar a nós?

– É claro – respondeu Vovó em tom irônico. – Eu sei mais do que um pouco sobre Neferet e a sua marca singular do mal. – Vovó me deu um beijo suave no rosto e começou a caminhar com Thanatos e com detetive Marx em direção à escadaria que levava até a Câmara do Conselho.

Isso me deixou sozinha com Aphrodite.

– Eu não vou perguntar se você me quer ou não. Eu vou a essa reunião – afirmou ela antes de começar a seguir os três adultos.

Toquei em seu braço e ela se virou para olhar para mim. Eu não sabia dizer se eu vi mais medo ou raiva nos seus olhos – e as duas coisas fizeram com que eu me sentisse horrível.

– Sinto muito – disse de forma simples. – Eu estava errada. Você estava certa o tempo todo. Estava certa ao procurar Shaylin. Estava certa ao pedir que ela ficasse de olho em mim. Você estava certa em não me contar sobre a sua visão. Eu deveria ter escutado você, mas não escutei, e eu não teria escutado, mesmo se você me contasse sobre a sua visão. Eu estava fora de controle. Fui egoísta. Fui burra. Sinto muito – repeti. – Por favor, desculpe-me.

Enquanto eu estava falando, Aphrodite ficou totalmente parada. Não colocou a mão na cintura, nem zombou de mim ou jogou o cabelo. Ela me ouviu e me observou com seus olhos intensos e claros. Não disse nada pelo que pareceu ser um longo tempo e, quando finalmente falou, o tom de sua voz não estava irônico, nem malicioso, nem sarcástico. Ela estava séria. Os seus modos estavam calmos. Ela parecia a Profetisa de uma Deusa.

– Achei que você fosse minha amiga.

– Eu sou.

– Você me magoou.

– Eu sei. Gostaria de dizer que não foi a minha intenção, mas não vou mentir. Naquela hora, eu queria magoá-la porque eu estava sofrendo muito. Aphrodite, a pedra da vidência fez algo comigo. Não estou usando isso como desculpa pelo que disse e fiz. Eu ainda era eu . Eu ainda estava errada. Estou tentando explicar para você que percebi o que aconteceu... Ou pelo menos como aconteceu. E eu lhe juro que isso não vai acontecer de novo.

Ela continuou me analisando em silêncio.

– Também vou me desculpar com Shaylin – acrescentei.

Aphrodite assentiu.

– É melhor mesmo. Você a assustou muito.

– Não vai acontecer de novo – prometi em tom solene. – Eu juro.

– Você quer a pedra de volta?

– Não! – respondi, dando um passo para me afastar dela. – Eu quero que você a mantenha bem longe de mim.

– Esse é o meu plano – respondeu ela. – Eu só queria saber qual era o seu.

– Eu não tenho nenhum plano, a não ser me desculpar com você e Shaylin e, bem, com todos os outros.

– Bem, já era de se esperar – respondeu Aphrodite, parecendo-se um pouco mais com ela mesma. – Você costuma estar despreparada e mal-arrumada. Eles não têm chapinha na prisão? – Ela lançou um olhar de avaliação para o meu cabelo de quem acabou de sair da cama.

– Não. Cabelo bonito não é uma prioridade na prisão.

– Bem, até agora eu só tinha ouvido falar que o sistema penitenciário de Oklahoma é uma droga. Agora eu tenho certeza.

Isso me fez sorrir.

– Então, você me desculpa?

– Acho que é o que tenho que fazer. Você está horrível. Eu odiaria ter que jogar sal na ferida contra a moda que o seu curto período na prisão já lhe causou.

Eu ri e nós demos os braços.

– Será que existe alguma coisa que você não consiga resumir para a moda?

– Não, e não precisa agradecer.

Eu ri de novo e nós seguimos para a escadaria. Eu me sentia leve e feliz; por alguns momentos, deixei que Neferet saísse da minha mente e concentrei os meus pensamentos em uma oração silenciosa para Nyx: obrigada, Deusa, por ter me dado uma amiga tão boa!

– Ei, não vai ficar pensando que pode me abraçar e coisas desse tipo. Eu não sou de abraços. Vamos considerar isto aqui... – ela passou a mão na frente do seu corpo – ... uma zona de não contato. Darius, é claro, tem uma concessão.

– Entendi – respondi, mas continuei de braço dado com o dela enquanto subíamos as escadas. – Eu nem sonharia em cruzar a sua zona de não contato.

– Muito bem – disse ela, mas não afastou o braço do meu até estarmos na frente da sala de conferências. Então, ela parou e se virou para me olhar de forma séria e declarou: – Eu perdoo você, Zoey.

– Obrigada. – Pisquei rápido, surpresa pelas lágrimas repentinas nos meus olhos.

– Ah, merda – disse ela e, depois de olhar à sua volta para se certificar de que estávamos sozinhas, abriu os braços e me abraçou sussurrando: – Eu amo você, Z.

Eu funguei e retribuí o abraço.

– Eu também amo você.

O barulho da porta da escada se abrindo fez com que ela se afastasse de mim.

– Não chore – pediu ela, em tom sério. – Ficar choramingando não vai ajudar no visual desastroso que você tem agora.

– Tá bom – choraminguei um pouco mais.

– Zo! Ouvi dizer que soltaram você! Uhu ! – exclamou Aurox, feliz, falando de forma estranha e maravilhosamente semelhante a Heath.

Ele correu na minha direção, com a intenção clara de cruzar a minha zona de não contato. Dei alguns passos para trás e, então, parei quando ele vacilou e parou. Eu não sabia o que fazer. Tipo assim, nós decidimos ser amigos. Amigos se abraçavam. Mas nós decidimos ser apenas amigos. Bem, na verdade eu tinha decidido que seríamos apenas amigos e...

– Ah, para de pensar um pouco. Prostrado e pesaroso pra caramba foi como ele ficou sem você. – Aphrodite meneou a cabeça, enojada. – E estou usando aliterações para falar, se eu começar a fazer rimas, vou me jogar de um prédio bem alto. Façam um biquinho ou qualquer outra coisa bem rápido e, depois, vão para a Câmara do Conselho. Infelizmente, não temos muito tempo pra dramas de relacionamento.

Ela jogou o cabelo para trás, abriu a porta e entrou.

Aurox e eu nos olhamos.

– Biquinho? – perguntou ele.

Senti o rosto pegar fogo.

– Ela quer dizer dar um beijo.

Ele ergueu as sobrancelhas.

– Você quer me beijar?

Felizmente, nada do que ele disse depois de uhu parecia nem um pouco com Heath. Limpei a garganta.

– Acho que essa não seria uma boa ideia, mas obrigada por perguntar.

– Bem, estou feliz por você estar de volta – afirmou ele, tentando sorrir.

– Eu também. – Sorri de volta. – E, mesmo tudo sendo confuso, estou feliz por você estar de volta também.

Eu quis dizer aquilo como um elogio – e talvez até como uma piada particular (a situação não ficaria muito melhor se pudéssemos rir dela?), mas o sorriso que Aurox tentara dar desapareceu na hora.

– Você não está se referindo a mim . Mas sim a Heath. E eu não sou Heath. Com licença. Darius disse que eu deveria estar nesta reunião. – Dei um passo para o lado e permiti que ele abrisse a porta. Ele não a segurou para mim, mas a deixou se fechar na minha cara, deixando-me em pé ali, sozinha, no corredor, sentindo-me um cocô.

Tudo bem , disse para mim mesma, a minha vida ficaria bem mais fácil se Aurox continuasse chateado comigo – ou, pelo menos, irritado ou desinteressado. Aphrodite estava certa por vezes demais. Eu não tinha tempo para dramas de relacionamento (embora não achasse que aquilo fosse triste demais).

Passei os dedos pelo meu cabelo muito despenteado, empertiguei-me e entrei na Câmara do Conselho Escolar.

A sala era grande, mas sempre parecia ser pequena por causa da mesa redonda gigantesca que dominava o ambiente. Tenho quase certeza de que a ideia era imitar o rei Arthur (que, é claro, tinha sido o consorte da Grande Sacerdotisa Mogan le Fay), então ela não tinha uma cabeceira de verdade. O que acontecia era que o lugar onde a Grande Sacerdotisa se sentava se transformava automaticamente na cabeceira da mesa.

E por falar na atual Grande Sacerdotisa, fiquei surpresa ao vê-la entrar na sala pela porta dos fundos, assim que eu fechei a porta atrás de mim. Thanatos assentiu para Aurox, que assumiu uma posição de guarda ao se colocar ao lado daquela porta. Então, ela lançou um olhar para mim e indicou um assento vazio entre Vovó e Aphrodite. Thanatos se sentou à esquerda da Vovó, ao lado do detetive Marx. Enquanto eu me acomodava, tentando não ficar inquieta, Thanatos se inclinou para a frente de Vovó e se dirigiu a mim.

– É oficialmente bom tê-la de volta em casa, Zoey – declarou a Grande Sacerdotisa da Morte.

– Eu nem consigo dizer o quanto estou feliz de estar aqui e saber que não matei ninguém – respondi.

– Mas você aprendeu uma lição valiosa com essa experiência – comentou Vovó.

– É. Temos que parar Neferet. Não importa o que tenhamos de fazer – interveio Aphrodite.

– Bem, é verdade. Mas eu acho que a Vovó está falando de sempre escolher a bondade quando houver dúvida – disse eu.

– Eu não acredito que essa lição vá nos ajudar muito com Neferet – resmungou Aphrodite.

– Você ficaria surpresa, criança – respondeu Vovó suavemente, com um sorriso sábio nos lábios.

A porta se abriu e Stevie Rae entrou seguida por Stark, Damien e Shaunee.

– Z! Aiminhadeusa! É tão bom ver você livre! – Stevie Rae correu na minha direção e me envolveu em um grande abraço de urso. – Eu sabia que você não seria capaz de matar aqueles caras.

Eu lhe dei um abraço rápido antes de me soltar. Eu encontrei o seu olhar.

– Eu tenho algo a dizer sobre isso, mas quero esperar até todo mundo estar aqui.

– A espera acabou. O bonitão já está aqui – informou Aphrodite, sorrindo quando Darius entrou acompanhado por Lenobia e Shaylin.

Darius e Stark assumiram seus lugares em cada um dos lados da entrada principal. Stark me deu uma piscadela rápida, e eu fiquei feliz ao ver que ele não estava pálido e seus olhos tinham perdido aquele olhar ferido. Para ele estar assim tão melhor, o sol já devia ter se posto, e imaginei que Rephaim entraria a qualquer segundo agora.

Lenobia se sentou ao lado do detetive Marx, cumprimentando-o com um aceno rápido de cabeça. Shaylin escolheu o lugar mais distante de mim que conseguiu e não olhou na minha direção. Eu me levantei e limpei a garganta.

– Sei que uma emergência envolvendo Neferet está acontecendo no centro da cidade, mas eu preciso dizer uma coisa antes de começarmos a lidar com isso. E vou ser rápida. Como vocês já sabem, descobri hoje que não matei aqueles dois homens no parque. Mas, mesmo que eu não tenha causado a morte deles, sei que poderia ter feito aquilo. Eu estava fora de controle. Isso teve alguma coisa a ver com a pedra da vidência, mas também comigo . Eu estava errada. Aphrodite estava fazendo exatamente o que Nyx esperaria da sua Profetisa: ela informou a Shaylin que havia algo de ruim acontecendo comigo. – Eu olhei para Shaylin até que ela, relutante, encontrasse o meu olhar. – Shaylin, eu já pedi perdão a Aphrodite, mas lhe devo um pedido de desculpas ainda maior. Você estava certa ao me seguir. Você estava certa ao contar sobre as mudanças que detectou na minha aura. Foi muito, muito errado da minha parte empurrar você e perder a paciência daquele jeito, e não estou apenas pedindo para que aceite meu pedido de desculpas. Eu estou fazendo... – Fiz uma pausa e olhei para todos os meus amigos – ... um juramento a você e a todos aqui: farei tudo o que for preciso para me certificar de que isso jamais volte a acontecer.

– Eu perdoo você – afirmou Shaylin sem hesitar, embora o seu sorriso fosse hesitante e ela ainda parecesse estar com medo. – A propósito, as suas cores já voltaram ao normal agora.

– Obrigada – agradeci. – E, por favor, avise a mim, e a qualquer outra pessoa aqui, se perceber que as minhas cores estão bagunçadas de novo. Eu estava errada quando disse que você devia manter esse tipo de coisa para si mesma. Não se trata de uma invasão de privacidade. Você simplesmente está usando o dom que Nyx lhe deu.

– Zoey, onde está a pedra da vidência agora? – perguntou Thanatos.

– Está comigo – respondeu Aphrodite, antes que eu tivesse a chance de falar qualquer coisa.

– E eu não a quero de volta – acrescentei.

– Se ela é tão poderosa quanto você está dizendo que é, Zoey, você talvez não tenha escolha a não ser pegá-la de volta – disse o detetive Marx. – Porque vai ser preciso muito poder, muito poder mágico, para lutar contra Neferet.

– Detetive, é a sua vez. Explique exatamente o que Neferet fez – pediu Thanatos.

Eu me sentei e ouvi com um aperto no estômago e uma estranha premonição de que Marx estava certo.

Zoey

Seguiu-se um silêncio longo e doentio depois que o detetive Marx descrevera, com riqueza de detalhes, a carnificina de Neferet na igreja e, depois, o que acontecera no Mayo Hotel.

– Eu senti as mortes – disse Thanatos, meneando a cabeça com tristeza. – Eu sabia que algum tipo de tragédia humana, de morte em massa, tinha acontecido bem próximo de Tulsa. Eu estava assistindo ao noticiário, esperando ouvir que um avião tinha caído ou que talvez tivesse ocorrido algum tipo de tiroteio trágico em alguma escola. Mas eu não esperava isso. Eu realmente não esperava que Neferet fosse responsável por tudo isso.

– Nós não temos conseguido prever o comportamento dela, mas talvez possamos descobrir algo sobre o que esperar dela no futuro se analisarmos os crimes de Neferet até agora – sugeriu Vovó. – Ela matou o prefeito, e aquele crime a alimentou até Woodward Park. – Vovó fez uma pausa e deu um sorriso triste para Aphrodite. – Desculpe-me por ter de falar da morte do seu pai de uma forma tão objetiva.

– Eu entendo. E quero que continue – respondeu Aphrodite, séria. – Se a morte do meu pai nos ajudar a descobrir como derrotar Neferet, então, pelo menos, ele não terá morrido em vão.

Vovó assentiu e continuou:

– Ela deve ter se escondido no parque até Zoey ter enfrentado problemas com aqueles dois homens.

– Eu estava sentada naquele banco perto da gruta quando eles começaram a me assediar – contei, tentando juntar as peças. – Neferet talvez estivesse escondida na gruta.

– Vou mandar alguns policiais checarem – disse detetive Marx, fazendo anotações no seu bloco preto de espiral.

– As mortes dos dois homens no parque devem ter dado a Neferet o poder de que precisava para chegar à Boston Avenue Church – refletiu Vovó.

– E lá ela encontrou outra fonte maior de poder – acrescentou Lenobia. – Não podemos nos esquecer de que poder é o que há de mais importante para Neferet.

– Ela usa o poder para controlar aquelas criaturas semelhantes a cobras. As coisas que mataram aquelas pessoas na cobertura do Mayo e criaram aquele... Eu nem sei como chamar. – Marx hesitou, pensando. – É uma pele protetora, uma barreira. Mas seja lá o que for, tem muito poder.

– Aquelas criaturas com aparência de cobra são feitas de Trevas. Pense nelas como pensamentos odiosos, horríveis e cruéis que tomaram uma forma física – expliquei para o detetive Marx. – Eles fazem o que ela manda porque ela faz sacrifícios por eles. Eu tenho certeza de que Neferet não se alimentou de todas aquelas pessoas na igreja. Ela as sacrificou para que aquelas criaturas a continuem seguindo e fazendo o que ela deseja.

– Uma Tsi Sgili exige muito mais do que sangue por poder – interveio Vovó.

– Tsi Sgili... Rainha Tsi Sgili – disse Marx –, foi assim que Neferet se referiu a si mesma quando se intitulou Deusa.

– Tsi Sgili é um nome antigo que o meu povo usa para se referir a bruxas que escolheram as Trevas em vez da Luz. Elas vivem segregadas, afastadas de todos. – Vovó estremeceu. – As nossas lendas dizem que elas se alimentam de almas.

– Morte – disse Thanatos. – Eu deveria ter compreendido antes. Neferet se alimenta da energia que é liberada pelo espírito de uma pessoa no instante da sua morte.

– Ai, Deusa! – Lenobia parecia horrorizada e levou a mão ao peito. – Eu conheço Neferet há mais de um século. Ela sempre estava por perto quando um novato rejeitava a Transformação. Achávamos... As Sacerdotisas achavam que o dom de cura de Neferet confortava a passagem dos jovens.

– Ela não os confortava. Ela os usava – expliquei.

– Neferet tinha alguma coisa a ver com a nossa morte e a nossa volta – disse Stevie Rae. – Eu não consigo me lembrar. Talvez porque não consiga me obrigar a isso. Sei lá. – Ela estremeceu. – Mas eu sei que parecia como se algo dentro de mim estivesse se rompendo. – O seu olhar encontrou o de Stark, o único outro vampiro vermelho na sala. – Do que você se lembra?

– Dor. Trevas. Terror. Raiva. – Suas palavras estavam tensas, embora a sua voz permanecesse baixa, e nós nos inclinamos para ouvi-lo. – E, quando saímos daquilo, eu não era mais eu. Não até que Zoey dissesse que acreditava em mim, que confiava em mim.

– E eu também não consegui sair daquilo, até que Aphrodite acreditasse e confiasse em mim – disse Stevie Rae.

Aphrodite bufou.

– Pelo que me recordo, não foi bem assim. O que eu me lembro é que você tentou me devorar e, depois, pegou a minha condição de novata e levou com você.

– Porque você permitiu. Porque você sacrificou a sua humanidade por mim – esclareceu Stevie Rae.

– A parte de querer me devorar não foi legal – murmurou Aphrodite.

– O amor é mais forte que o ódio. Essa é a única verdade absoluta no universo. O amor conquista as Trevas – afirmou Vovó. – Nós só precisamos descobrir como o amor pode conquistar Neferet.

Ouvi um monte de suspiros após os meus.

– Tudo bem, eu sou totalmente a favor de o amor vencer – disse detetive Marx –, mas a gente precisa lidar com o que quer que seja que está acontecendo com aquelas coisas rastejantes.

– Neferet as está alimentando – respondi, sentindo a verdade das minhas palavras à medida que eu as pronunciava. – Ela dá a elas o que elas querem: sacrifícios com sangue fresco. E elas a obedecem. Se conseguirmos chegar a Neferet e a enfraquecermos ou, pelo menos, contê-la e impedi-la de matar mais gente, ela não conseguirá alimentá-las, e elas vão deixá-la.

– Concordo, mas acho que ainda tem mais, Zoey. As gavinhas das Trevas estão mudando, evoluindo, junto com Neferet – disse Thanatos. – Eu jamais, nos mais de cinco séculos que vivo como vampira, ouvi alguém criar o tipo de barreira como a que o detetive Marx acabou de descrever. – Ela se voltou para o policial. – E você disse que elas pareciam sensitivas, que elas, na verdade, direcionaram as balas para policiais específicos?

– Eu não tenho a menor dúvida quanto a isso. Eu estava lá. Eu vi aquilo de perto e tudo foi muito pessoal. Todos os primeiros tiros disparados atingiram o policial que ofendera Neferet, mas apenas nas partes do seu corpo que não estavam protegidas pelo colete à prova de balas. Os outros tiros feriram vários policiais, mas mataram apenas o chefe de polícia, o homem que deu a ordem de atacar o prédio – contou Marx.

– Lenobia, você já ouviu falar de algo assim? – perguntou Thanatos.

– Nunca.

– Então, chame a cavalaria – sugeriu Marx. – Envolvam o Conselho Supremo dos Vampiros. Talvez eles possam nos ajudar a descobrir uma maneira de vencer Neferet.

– O Conselho Supremo se recusou a nos ajudar – informou Thanatos. – Nós somos a cavalaria. – Ela se levantou. – Então, detetive Marx, vamos ao Mayo ver exatamente contra o que estamos lutando.

A porta dos fundos da Câmara do Conselho se abriu e Kalona, com o peito descoberto e olhos âmbar dardejando de raiva, caminhou até Thanatos.

– Já está na hora de você chamar a cavalaria completa. Eu sou um Guerreiro da Morte. Então, aonde você for, eu vou. Humanos e suas consequências que se danem.

Suas asas negras se desenrolaram e ocuparam a sala inteira.

O detetive Marx ficou boquiaberto.

– Merda – sussurrou Aphrodite.

– Eu digo o mesmo – concordei, perguntando-me o que aconteceria em seguida.


8

Detetive Marx

O cara era enorme. E tinha asas. Porras de asas gigantescas.

Marx ficou feliz por já estar sentado porque só de olhar para o... seja lá o que era aquilo... fazia os seus joelhos ficarem moles.

Primeiro, uma vampira-deusa enlouquecida e uma cortina preta sangrenta no Mayo. Agora, um gigante alado que dizia ser Guerreiro da Morte.

Será que estava na porra de um sonho?

Bem, se ele estava, o sonho continuava se desenrolando porque Thanatos caminhou até o gigante alado, e Marx com certeza não estava acordando.

– Ir comigo? Para o centro de Tulsa, diante dos olhares de...

– O que você vai fazer se as gavinhas das Trevas de Neferet atacarem você? Eu entendo essa manifestação das Trevas. Eu já a enfrentei diversas vezes no Mundo do Além. – A voz do gigante trovejava. – O que os humanos temeriam mais, a encarnação do mal ou a presença de um deus batalhando nas ruas de Tulsa?

– Os humanos não acreditam que deuses caminhem sobre a Terra – contrapôs Thanatos.

– Exatamente! – respondeu o gigante alado. – As ações de Neferet negaram a norma. Já passou da hora de os humanos tirarem a cabeça do buraco em que a enfiaram e se darem conta de que este mundo é cheio de magia, mistério e perigos. E também chegou a hora de eu fazer o que fui criado para fazer: ser um Guerreiro e lutar contra as Trevas.

A Grande Sacerdotisa curvou um pouco a cabeça em concordância com o homem alado. Então, ela se voltou para Marx:

– Detetive, gostaria de apresentá-lo ao meu Guerreiro sob Juramento, Kalona. Ele é o meu protetor, assim como o Mestre da Espada desta Morada da Noite. Ele me acompanhará até o Mayo.

Marx hesitou um momento e, então, fez a única coisa que passou por sua cabeça – estendeu a mão e a ofereceu para o grandão.

– Prazer em conhecê-lo, Kalona.

Kalona segurou o seu antebraço no cumprimento tradicional dos vampiros.

– O prazer é meu, detetive.

– Você não é um vampiro, né? – Marx não conseguiu evitar a pergunta.

– Não. Eu não sou.

Marx olhou para as asas do cara, que agora estavam enfiadas sob as suas costas. Aquelas coisas eram tão grandes, que chegavam a tocar o chão.

– O que você é ?

O sorriso de Kalona se abriu e pareceu ser sincero.

– Tem uma resposta complicada para essa pergunta, uma que eu prometo lhe dar depois que lidarmos com Neferet.

– Vou cobrar a resposta – disse Marx, tentando não olhar diretamente nos olhos do cara porque, ao fazê-lo, sentia a cabeça confusa e pesada, como se estivesse cheia de bolas de algodão.

– Você não vai precisar, detetive. Eu aprendi do modo difícil que é melhor que eu mesmo me preocupe em cumprir as minhas promessas.

– Então, nós todos vamos mesmo ao Mayo? – quis saber Aphrodite.

– Não. Kalona e eu vamos, assim como Zoey, Stark e o seu círculo. Darius, Aurox e Aphrodite, vocês vão ficar aqui com Lenobia. Vocês duas vão organizar uma reunião escolar. Atualizem o corpo docente e discente e os guerreiros. Informe apenas o básico e nada mais. Coloquem a escola em alerta máximo. Não sabemos qual será o próximo passo de Neferet.

– Você realmente acha que todos devem saber o que está acontecendo? – perguntou Stevie Rae, ecoando os pensamentos de Marx.

Zoey falou antes que Thanatos tivesse a chance:

– Acho que as Trevas odeiam que a luz brilhe, então vamos colocar muita luz sobre seja lá o que for que Neferet esteja fazendo.

– Essa é uma ótima maneira de descobrir quem quer voltar ao comando de Neferet e quem quer ficar e lutar contra ela junto com a gente – disse Stark.

– Vocês dois disseram exatamente o que penso – concordou Thanatos.

– Muito bem, então. Mas eu vou chamar Kramisha para me ajudar. Ela sempre sabe quem está tramando o quê – informou Aphrodite.

– É sábia a Profetisa que reúne os outros membros com dons dados pela sua Deusa – aprovou Thanatos.

– Também é sábia a Profetisa que mantém o seu celular por perto. Liguem se o inferno sair do controle, literal ou figurativamente – retrucou Aphrodite.

– Pode deixar – assegurou Zoey.

– Nós vamos com você, detetive Marx – declarou Thanatos.

Marx respirou fundo e desligou totalmente o botão de sanidade mental.

– Tudo bem. Vamos nessa.

Lynette

– Lynette, eu realmente adoro uma surpresa... – Neferet hesitou antes de continuar, erguendo um dedo fino. – Se a surpresa for agradável. Se não for, então uma surpresa não passa de uma interrupção irritante. Eu odeio interrupções quase tanto quanto odeio ficar irritada. – Seus olhos se afastaram de Lynette, e ela olhou para o que parecia ser as suas pernas nuas. – Falando em irritação, por que é que vocês estão andando por aí sem objetivo? Eu estou completamente segura, e vocês todos foram perfeitamente saciados. Vão se divertir em outro lugar e parem de ficar me puxando. Vão agora, xô! – Neferet fez um movimento de desprezo antes de voltar a sua atenção para a sua súdita.

Lynette não viu as coisas rastejantes, mas sentiu o roçar frio de algo passando por ela. Controlou um tremor de repugnância.

– Querida Lynette, onde paramos? Ah, sim, eu me lembro. Você anunciou que estava planejando uma pequena surpresa para mim. Por favor, continue se explicando.

Lynette olhou nos olhos da Deusa sem piscar. O pânico que estava concentrado em algum lugar sob o seu esterno estremeceu e recuou, mas ela apertou as rédeas mentais com as quais o controlava e permitiu que apenas o prazer de planejar um evento espetacular ocupasse a sua mente. O sorriso de Lynette estava confiante, assim como a sua voz.

– Deusa, eu sou muito boa no meu trabalho. Mesmo trabalhando em uma circunstância pouco comum e com recursos limitados, realmente acredito que você achará a surpresa agradável.

– Recursos limitados? Isso soa tão de mau gosto e barato. – Neferet franziu as sobrancelhas. – Eu certamente nunca desejei que você sentisse como se a sua Deusa fosse avarenta.

– Ah, mas eu não me sinto assim! – assegurou Lynette, esperando não ter apertado o botão de loucura de Neferet. – Eu coloquei essas restrições para mim mesma porque queria provar meu valor para você. Mas é claro que essa será apenas uma pequena amostra dos eventos que eu poderia planejar diariamente... Se eu tivesse mais tempo e mais dinheiro para fazer o meu trabalho.

Neferet relaxou a expressão.

– Você é uma mulher sábia, Lynette. Mostre-me o que planejou para mim. Se me agradar, pode ter certeza de que permitirei que continue com recursos ilimitados, embora não possa prometer que serei paciente para lhe dar muito tempo. Eu esperei muito tempo para começar o meu reinado. Estou impaciente pela adoração dos meus súditos.

– Isso é totalmente compreensível, Deusa. Em planejamento de eventos, eu nunca fico muito preocupada com o tempo quando tenho dinheiro.

Neferet a analisou.

Lynette se concentrou nos negócios. Ela se sobressaía nos negócios. Ela era confiante nos negócios. Os negócios não a aterrorizavam nem a enojavam.

Neferet sorriu.

– Você está sendo totalmente honesta. O seu negócio e a aquisição de dinheiro têm sido a sua principal preocupação. Continue, minha súdita! Revele a minha surpresa.

Lynette fez uma reverência e levou Neferet da suíte para o elevador, parando no mezanino.

– Por favor, Deusa, aguarde apenas um minuto.

Neferet sorriu e fez um gesto de concordância. Lynette pressionou o botão do elevador, então bateu em um comunicador quase oculto na sua orelha e disse rapidamente e em tom baixo:

– Kylee, aguarde dez segundos e, então, faça o quarteto começar a tocar.

– Sim, Lynette – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette lançou um olhar para a direita e fez um gesto de venha aqui . Judson, o bonito mensageiro, saiu das sombras. Ele trajava um uniforme impecável e passado e carregava uma bandeja de prata reluzente na qual havia uma taça perfeita de cristal cheia de champanhe rosê. Ele fez uma reverência perfeita e mecânica para Neferet e disse:

– Posso lhe oferecer uma taça de champanhe, Deusa?

– Ora, é claro. Obrigada, Judson.

A música começou a tocar no instante em que Neferet ergueu a taça da bandeja. Lynette ficou satisfeita ao ver o sorriso se erguer nos cantos da boca da Deusa.

– Danúbio Azul de Strauss. Uma das minhas valsas favoritas. Ah, Viena. Tão adorável e indulgente no passado.

– Por favor, queira me seguir, Deusa – pediu Lynette formalmente, levando Neferet pelo mezanino até o local para onde o seu trono havia sido colocado, bem acima da plataforma que a Deusa usara para se dirigir aos seus novos “súditos” algumas horas antes e onde, agora, havia um quarteto de cordas do casamento da noite anterior tocando nervosa e lindamente.

Neferet sentou-se com elegância, olhando para o quarteto.

– Eles tocam bem, embora eu prefira uma orquestra completa.

– Tempo e recursos – respondeu Lynette com um sorriso irônico.

Os lábios da Deusa se contraíram.

– Estou notando isso.

Lynette baixou a cabeça para Neferet e discretamente tocou no comunicador no seu ouvido:

– Conte até seis e mande-os entrar.

Então, ela prendeu a respiração e esperou que os doze artistas conseguissem se manter calmos.

As pesadas cortinas de veludo que cobriam o salão abaixo se abriram e, do lado oposto da sala, seis casais se apressaram para o centro do piso de mármore. As mulheres usavam vestidos vermelhos cujo tom fora o mais parecido um do outro que Lynette conseguira encontrar. Os homens trajavam smokings que ela conseguira juntar do que sobrara do casamento; os que estavam limpos o suficiente e servissem nos homens.

Servissem! Aquele tinha sido apenas parte dos problemas daquele evento infeliz. Tinha sido uma tarefa horrenda encontrar seis homens e seis mulheres no que Lynette tinha nomeado silenciosamente de reservatório de prisioneiros, que fossem relativamente atraentes, graciosos e capazes de aprender os passos básicos de uma valsa. Sim, ela poderia ter usado todos os membros da equipe dominados pelas cobras – eles obedeciam tudo que ela dizia para eles fazerem, desde que não tentasse fugir do Mayo. No entanto, o instinto de Lynette lhe disse que uma apresentação dos membros que já estavam sob o seu controle não impressionaria Neferet.

Não, Lynette acreditava que a Deusa queria, precisava , da ilusão de ser adorada. Então, ela ameaçara, insistira e chantageara 12 pessoas com aparência decente a trabalharem para ela.

Lynette percebia que estavam nervosos – duas das mulheres estavam tão trêmulas, que ela conseguia ver os seus braços tremerem –, mas, exatamente como ela instruíra, os casais se posicionaram no grande círculo e conseguiram chegar aos seus lugares depois da primeira contagem até seis. No começo do segundo conjunto de notas, todos os 12 ergueram o olhar para Neferet, pararam, contaram até três e, como se fossem um, cada um dos homens se curvara e cada uma das mulheres fez uma reverência para a Deusa.

Lynette detectou todos os erros. Viu que a mulher chamada Cindi quase caiu, e apenas a rapidez do seu par ao segurá-la pelo cotovelo impediu a queda. Camden, o garoto alto que fora o padrinho do casamento da noite anterior – e azarado o suficiente para estar com uma ressaca que impediu que ele pegasse o voo da madrugada junto com o noivo e a noiva para Dallas –, manteve a cabeça baixa por tempo demais. Lynette apertou os dentes. Se aquele garoto mimado estragasse tudo, ele lamentaria mais do que ela.

Lynette arriscou um olhar para Neferet. Obviamente satisfeita, a Deusa sorriu e assentiu com a cabeça em um gesto nobre para os dançarinos.

Agora dancem e não pareçam estranhos! , pensou Lynette.

Eles dançaram. Todos os 12 conseguiram começar na mesma nota e se moveram pelo salão seguindo um padrão quase circular. Eles estavam longe da perfeição, mas a música era adorável e, se alguns dançarinos vacilaram, “Danúbio Azul” compensou. Quando a nota final tocou, os seis casais se curvaram e reverenciaram Neferet, desta vez mantendo as suas poses como se estivessem congelados, e até mesmo Lynette teve de admitir que a cena estava muito bonita.

Neferet se ergueu e, para imenso alívio de Lynette, aplaudiu e riu.

– Muito bem, todos vocês! Isso foi muito bom. Judson, abra garrafas de champanhe para esses adoráveis súditos.

– Deusa, eles estão esperando a sua autorização para se levantarem – sussurrou Lynette para Neferet.

– Mas é claro que estão autorizados, e obrigada por me lembrar, querida Lynette. Vocês podem se levantar! – permitiu a Deusa. – Aproveitem o champanhe e a gratidão da sua Deusa pela adoração de vocês.

Lynette tocou no comunicador em seu ouvido novamente.

– Kylee, diga ao quarteto para começar a tocar a próxima música.

Em questão de segundos, a música encheu o ambiente de novo.

– “Valsa das flores”, do Quebra-nozes . Duas adoráveis músicas e excelentes escolhas – elogiou Neferet.

– Então, a minha surpresa foi agradável?

– Foi. O candelabro, as flores, os smokings e os vestidos vermelhos. Tudo foi muito bem-escolhido. Lynette, você começou muito bem como a minha planejadora de eventos. Eu aprovo o seu tema e a extraordinária música, o local lindamente escolhido e a homenagem respeitosa a mim.

– Então, posso presumir que gostaria de ter mais eventos desse tipo?

– Sim, mas da próxima vez eu gostaria que o tema fosse a minha época favorita. Os anos 1920. Essa foi uma época que vale a pena reviver. Você consegue fazer o Charleston, Lynette?

– Eu terei acesso à Internet?

– Terá, assim como uma generosa verba para os eventos – informou Neferet, abrindo um sorriso inteligente para Lynette.

– Então, eu consigo fazer o Charleston, assim como os seus súditos.

– Vamos precisar de mais músicos – declarou Neferet.

– Sim, Deusa. Vou providenciar – disse Lynette, já digitando suas anotações no smartphone.

– E fantasias. Vamos precisar de mais fantasias.

– É claro, Deusa – concordou Lynette.

– E eu preciso mais do que apenas dança, embora esse tenha sido um ótimo começo.

Lynette ergueu o olhar das suas anotações e olhou para Neferet, mas a Deusa não estava olhando para ela. Estava acariciando a taça de champanhe enquanto observava os seis casais que se espalharam em pequenos grupos aceitando o champanhe que Judson lhes servia. Lynette seguiu o seu olhar. O garoto mimado estava virando o que parecia ser a sua segunda taça de champanhe. Neferet o devorava com os olhos.

– Fico muito satisfeita que os meus súditos sejam tão atraentes – declarou ela.

Lynette bufou de forma irônica e automática, mas quando o olhar da Deusa pousou nela, ela se arrependeu instantaneamente por ter permitido um deslize de compostura.

Neferet ergueu uma das sobrancelhas ruivas.

– Ah, entendi. Você escolheu os doze com muito cuidado, porque nem todos os meus súditos são tão atraentes, não é mesmo.

Ela não usou um tom interrogativo, mas Lynette sentiu o impulso de responder.

– É isso mesmo. – Ela ergueu os ombros inquieta. – Sinto muito, Deusa, eu só queria me assegurar de que ficasse feliz com o meu primeiro pequeno evento.

– Isso é compreensível, querida Lynette. Na verdade, aprecio o seu esforço, e embora aprecie todos os meus súditos, eu também aprecio coisas, e pessoas, que são agradáveis aos meus sensos. – Neferet se inclinou no seu trono e usou um tom conspiratório para se dirigir à sua súdita: – Você poderia acrescentar isso à sua lista de tarefas como planejadora de eventos.

– Estou disposta a servi-la de qualquer forma que precise, Deusa. – Lynette estava tentando entender o que a Deusa queria. – Mas o que você quer dizer com “isso”?

– Certificar-se de que os meus súditos estejam sempre o mais atraentes possível, é claro. Sim, tenho certeza de que você tem talento para transformações.

– Transformações.

Lynette repetiu a palavra, sentindo-se extremamente sobrecarregada enquanto imagens dos súditos menos atraentes de Neferet passavam por sua cabeça. A mulher de cinquenta e poucos anos que precisava perder uns vinte e poucos quilos... A pré-adolescente ruiva esquelética cujo rosto já estava tomado por espinhas... O empresário careca e barrigudo e com queixo triplo que parecia um bócio...

A risada debochada de Neferet interrompeu o filme na sua mente.

– Pare de se preocupar, querida Lynette. Entre nós duas, conseguiremos separar o rebanho. Afinal, eu posso controlar tudo o que eles comem e tudo o que fazem. Você não concorda que dieta e exercícios são muito importantes?

Lynette assentiu com a cabeça e tentou manter-se focada completamente nos olhos verdes-esmeralda de Neferet.

– Então, além de colocar alguns deles de dieta e nos certificarmos de que passam algum tempo na academia do Templo, estou confiante de que você pode dar dicas de cabelo, maquiagem e moda. Correto?

– Sim, Deusa – respondeu ela automaticamente.

– Excelente. Estou feliz por você ter chamado a minha atenção para esta questão. É importante que os meus súditos sempre tenham a melhor aparência possível. Eles são, de algum modo, um reflexo de mim mesma.

Como se isso resolvesse a questão, o olhar de Neferet passeou pelo grupo abaixo delas, parando, de forma predatória, em Camden.

– Você fez uma excelente escolha com aquele ali, Lynette. Ele é alto, jovem e louro – disse Neferet. – Seu nome?

– Camden – informou Lynette. – Ele foi padrinho do casamento que me trouxe ao Mayo.

– Padrinho ? É mesmo? – Os olhos verdes-esmeralda de Neferet brilharam com uma intensidade perigosa, e Lynette ficou grata por tal intensidade não estar focada nela. – Talvez eu tenha que testá-lo para ver se Camden é realmente um bom súdito.

Lynette controlou um tremor de medo.

– Você gostaria que eu pedisse para alguém trazê-lo aqui?

– Não, querida Lynette. Eu posso muito bem convocá-lo. Talvez ele aprecie uma visita à varanda da minha cobertura. – Seus olhos brilhantes se voltaram para Lynette e o brilho feral neles se endureceu. – A minha equipe já se livrou daqueles vestígios desagradáveis, não é?

Merda! Eu estava ocupada demais organizando essa apresentação para verificar se todos os pedaços de gente tinham sido atirados pela varanda. A mente de Lynette começou a buscar algo para dizer e ela soltou um suspiro de alívio quando encontrou uma resposta:

– Deusa, creio que Kylee era a responsável pela questão da varanda.

– Aquela garota – murmurou Neferet, tomando um gole de champanhe. – Ela é boa para algumas coisas, mas precisa de muita supervisão. Será que você poderia usar essa útil maquininha no seu ouvido para lembrá-la das minhas ordens?

– É claro, Deusa – respondeu Lynette.

– E, enquanto você supervisiona Kylee, creio que eu vá me misturar aos meus adoráveis e atraentes súditos. Você consegue imaginar como o padrinho Camden se sentirá honrado se eu permitir que ele me tire para dançar?

Felizmente, a pergunta de Neferet era retórica e, em vez de concentrar a sua atenção na resposta de Lynette, a Deusa deu as costas para ela, tomou um gole de champanhe e caminhou em direção à grande escadaria dupla que levava ao salão de baile.

Lynette notou que Neferet não deslizou. Isso porque ela mandou as coisas rastejantes saírem para brincar , pensou Lynette. De alguma forma, elas deviam carregá-la – ou canalizar a energia para erguê-la – ou algo igualmente insano.

Ela meneou a cabeça como se quisesse clarear os pensamentos. Não podia se dar ao luxo de ficar pensando muito. Não podia se dar ao luxo de fazer mais nada a não ser sobreviver.

Lynette bateu no comunicador na sua orelha.

– Kylee, Neferet vai inspecionar a varanda da cobertura. Logo. Ela deixou você responsável pela limpeza.

– Compreendo e obedeço – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette suspirou. Deu alguns passos para trás e se apoiou em um dos pilares de mármore deixando-se ficar sem fazer nada por um momento, a não ser respirar.

Ela passara pelo primeiro teste de Neferet. Ainda estava viva e não tinha sido possuída por nenhuma criatura escorregadia. Mas, para continuar assim, não poderia se dar ao luxo de relaxar. Haveria tempo para relaxar depois que tudo isso acabasse. E Lynette conseguiria isso – ela sempre conseguia passar por todas as merdas que a vida atirava em sua direção.

Para começar, Lynette tinha uma lista de coisas a fazer.

Tinha de verificar todas as pessoas no prédio. Elas precisavam ser categorizadas como atraentes e aceitáveis ou aquelas que exigiriam trabalho. Na categoria das que exigem trabalho ela criaria as subcategorias gordo, malvestidos ou apenas feios por natureza. As duas primeiras poderiam ser corrigidas – em tese. Quanto aos que se enquadravam na terceira, bem, eles teriam de aprender algumas habilidades para que pudesse mantê-los nos bastidores.

– Espero que eles saibam cozinhar ou costurar.

Lynette estava falando consigo mesma enquanto digitava as observações no seu smartphone quando ouviu um grito vindo do salão. O que tinha acontecido agora? O que mais Neferet poderia estar fazendo? Com a mente cansada e pesada pelo medo e pela exaustão, obrigou os seus pés a levá-la até a beirada do mezanino.

Neferet estava ao lado de Camden. Ele estava olhando para o decote profundo do vestido curto de veludo da Deusa. As outras onze pessoas olhavam para as cobras escorregadias que se retorciam em volta dos tornozelos nus de Neferet.

– Ah, fique quieta – ordenou a Deusa para a garota que berrara. – Vocês precisam se acostumar com os meus filhos. Eles nunca ficam muito longe de mim, assim como vocês, meus leais súditos, nunca ficarão longe de mim.

– Si-Sinto muito, Deusa. E-eles parecem cobras. E e-eu tenho medo de cobras – gaguejou a menina.

– Eles não são cobras. São muito mais perigosos. E eu não estou pedindo para que você supere o medo que sente deles. Estou lhe ordenando que você não verbalize isso. – Neferet olhou para baixo, para as coisas rastejantes que se retorciam aos seus pés, parecendo excitadas. – O que foi, meus queridos?

– Deusa, o detetive voltou – chamou Judson do vestíbulo de entrada. – E trouxe mais gente com ele.

– Isso não significa nada. Ele pode trazer toda a Guarda Nacional de Oklahoma com ele. Eles não conseguirão penetrar a minha cortina protetora.

– Ele não trouxe um exército. Ele trouxe uma vampira que está fazendo o ar à sua volta brilhar enquanto um homem enorme que parece ter asas ocultas sob a sua capa de chuva caminha perto dela.

– Por que você esperou até agora para me dizer isso? – berrou Neferet. – Filhos! Venham comigo! – Erguida pelo ninho totalmente visível de víboras escorregadias, a Deusa deslizou até a porta da frente.

O corpo de Lynette ficou frio. Ela desceu dos sapatos elegantes de salto alto para que pudesse andar em silêncio pelo mezanino, dirigindo-se às grandes janelas panorâmicas que davam para a frente do prédio, tentando não pensar em nada, mas principalmente tentando não ter esperanças.


9

Zoey

– Que merda! O Mayo está horrível – declarei.

– É como se estivesse encharcado de morte. – Damien soava tão horrorizado quanto eu.

– Não de morte – contradisse Thanatos. – A morte é inevitável para todos os mortais. Ela não é boa nem má; é simplesmente parte da grande espiral da vida. Neferet usou nesse prédio dor e medo, sangue e desespero.

A sua voz estava estranha. Vovó, Stark, Shaylin e eu estávamos todos espremidos no Hummer da escola, e Thanatos estava na frente com Marx. Notei que quanto mais nos aproximávamos do Mayo, mais agitada a Grande Sacerdotisa parecia ficar. Ela estava literalmente inquieta, o que era muito estranho para ela – Thanatos costumava ser uma montanha de calmaria.

O seu óbvio nervosismo fez o meu estômago se revirar.

– Caos – disse Kalona. Olhei por sobre o meu ombro e ele estava sentado com Damien e Shaunee (eles estavam superapertados porque as asas dele ocupavam muito espaço), e vi-o meneando a cabeça enojado. – Neferet usou as gavinhas das Trevas para criar o caos e isso a está protegendo.

– Bem, o caos tem um cheiro horrível – reclamei enrugando o nariz.

– Fede e é horrível – concordou Damien. – E nós não temos nenhuma maneira de entrar.

– Sinto muito – desculpou-se Marx. – Eu devia ter avisado sobre o fedor.

– Não precisa se desculpar, detetive – disse Vovó. – Não creio que existisse qualquer coisa que você pudesse ter feito para nos preparar para isto.

– Você provavelmente está certa, mas é melhor avisar que não temos como saber se todas as partes humanas foram retiradas da área – acrescentou Marx. – Então, é melhor olharem por onde andam.

– Partes humanas? – A minha voz tremeu.

Marx assentiu.

– As coisas rastejantes mataram um monte de gente quando desceram pela varanda, cobrindo o prédio com trevas e tripas até aqui embaixo. Neste início de noite, Neferet tem jogado pedaços de pessoas, com todo o sangue drenado pelo parapeito da sua varanda.

– Eu consigo sentir o feitiço que ela fez com sangue, morte e Trevas – disse Thanatos. – Ela usou a morte daquelas pobres pessoas para construir uma barreira.

– Neferet lançou o feitiço, mas não sujaria as próprias mãos com a limpeza – concluiu Kalona em tom grave. – O que significa que ainda tem gente viva cumprindo as suas ordens.

– Será que importa quem está jogando? Principalmente se Neferet tiver feito reféns? – perguntou Shaunee.

– Tudo o que realmente importa é que todos se lembrem de que se detivermos Neferet, pararemos toda esta loucura também – respondeu Thanatos.

Todos nós concordamos de forma amarga.

Marx passou pelas barreiras da polícia e parou no meio-fio do outro lado da rua do Mayo em uma calçada ampla em frente ao prédio corporativo da empresa Oneok, onde nos sentamos e ficamos analisando o que tínhamos diante de nós.

– Organizamos dois postos de comando dentro da Oneok. O do terceiro andar com todos os equipamentos audiovisuais. E o que está no último andar com atiradores de elite – explicou-nos Marx enquanto nos sentamos e ficamos olhando para o prédio coberto de sangue coagulado do outro lado da rua.

– Atiradores de elite não podem matar Neferet – informou Kalona.

– É, a gente já percebeu – respondeu Marx secamente. – Mas eles podem matar pessoas, até mesmo as que estão sob o feitiço dela.

– Você não pode atirar naquelas pessoas! Elas são vítimas – declarou Vovó, virando-se, agitada. – Elas não são responsáveis pelas próprias ações, mas Neferet é.

– Sim, senhora, nós sabemos disso e não queremos atirar em ninguém, mas se Neferet ordenar que seus servos, ou seja lá como vocês querem chamá-los, nos ataquem ou a qualquer cidadão de Tulsa, seremos obrigados a impedi-los.

– Ela gostaria disso – disse Thanatos enquanto encarava o prédio. Ela parecia estar zangada. Achei que parecia mais pálida do que o usual, mas ela já era vampira havia, tipo, um zilhão de anos. Ela sempre estava pálida, então eu não poderia dizer com certeza. – Ela obteria mais poder com as suas mortes, além da satisfação de ter obrigado vocês a matar pessoas inocentes. – Thanatos olhou para Kalona. – Não podemos permitir isso.

– Concordo – respondeu Kalona.

– Bom – disse ela. – Já chega de ficarmos sentados aqui especulando. Eu preciso ir até lá. Preciso entender exatamente com o que estamos lidando.

Thanatos saiu do Hummer e bateu a porta atrás de si, deixando que o resto de nós a seguisse – de forma relutante.

Kalona se apressou a ficar ao seu lado. À distância, eu ouvia exclamações do tipo “Ei, olha lá aqueles vampiros!” e “Prepare a câmera, tem alguma coisa acontecendo na frente do Mayo!”.

O imortal alado tinha colocado uma longa capa de chuva para cobrir o seu peito tipicamente nu como uma forma bastante bem-sucedida de esconder as asas gigantescas. Eu o vi virar o corpo tentando enfiar as penas enormes lá dentro. Ele lançou um olhar irritado para as pessoas reunidas atrás das barricadas antes de os seus olhos encontrarem os do detetive Marx.

– Creio que seria mais sábio se você retirasse todos os civis dessa área da cidade. Ninguém estará seguro aqui.

– É, eu sei, mas tente dizer isso para a mídia. Conseguimos reunir todo mundo ali atrás, mas é uma merda lidar com a liberdade de imprensa.

Kalona deu de ombros.

– Então, eles terão de aprender a lição por si mesmos.

Com aquela observação agourenta, ele voltou a sua atenção para o Mayo. Thanatos olhava para o prédio, quase como se estivesse hipnotizada por ele. Engoli o meu medo e me posicionei ao seu lado, grata pela presença forte de Stark.

– Eu deveria saber. – A voz de Thanatos estava cansada. Ela deu vários passos na direção ao prédio. – Mas eu raramente era chamada para o local de uma morte humana, e nunca uma morte de tamanha magnitude. – Ela se aproximou mais do prédio, ficando na entrada semicircular de veículos anexa à entrada principal. Thanatos ergueu as mãos e estremeceu. – O terror usado para fazer esta barreira ainda está aqui.

– Sacerdotisa, eu aconselho que não se aproxime mais do prédio – disse Kalona, posicionando-se ao seu lado e gentilmente pegando o seu cotovelo e tentando fazer com que voltasse para a rua.

– Eu preciso ajudá-los – declarou ela, afastando a mão dele.

– Eles? – perguntou Marx.

– Nem todos os mortos se foram. O fim deles foi violento demais, aterrorizante demais, bem além do que qualquer coisa que essas pobres pessoas jamais imaginaram. Sinto os seus espíritos em pânico e eles ficam girando em círculos, incapazes de encontrar uma saída deste reino para o próximo.

– Você pode ajudá-los? – perguntou Vovó, que estava próxima ao Hummer.

– Acredito que sim.

– Tente fazer isso de forma rápida – orientou Kalona.

– Eu devo traçar um círculo? – perguntei.

– Não, Zoey. Você e todos os outros, exceto por Kalona, devem ficar lá trás em segurança. Isso é algo que eu tenho que fazer sozinha. O dom que nossa Deusa me concedeu é tudo de que eu preciso... – Ela fez uma pausa e deu um sorriso de agradecimento para Kalona – ... incluindo um protetor poderoso. Eu preciso acreditar na força que Nyx me dá.

– Façam como Thanatos disse e voltem para o Hummer – pediu Stark, puxando-me com ele. Marx se afastou mais devagar, os seus olhos concentrados em Thanatos.

– Damien! Ei! Damien! – Um humano bonito e jovem chegou correndo.

Damien se virou a tempo de receber um abraço gigantesco.

– Adam! Você não deveria estar aqui. É perigoso demais – repreendeu Damien.

– Ei, sou um jornalista. Eu tenho que lidar com o perigo – declarou ele sorrindo.

Por fim, eu o reconheci. Era Adam Paluka, um jornalista da Fox – o cara que nos entrevistou depois que Neferet deu aquela conferência ridícula. Eu sabia que Damien estava namorando alguém, e pelo modo como aqueles dois sorriam um para outro, acho que as coisas estavam indo bem. Nossa, eu me envolvera tanto com as coisas que estavam acontecendo comigo, que eu nunca pensei em perguntar a Damien como ele estava lidando com o fato de estar namorando tão rápido depois que Jack...

– Você precisa voltar para trás da barreira – disse Marx, aproximando-se de Adam com um olhar carregado.

Mas bem nesse momento, Thanatos começou o seu feitiço, atraindo toda a nossa atenção para si.

A Grande Sacerdotisa ergueu as mãos e fechou os olhos. Quando falou, a sua inquietação acabou. Suas palavras eram rítmicas e hipnóticas; sua voz, calma. Ela era forte, sábia e bonita – e eu tinha orgulho de ser uma novata da Morada da Noite sob o seu reinado.

Espíritos sofredores, venham até mim
Com calma e doçura, que a minha voz os guie assim
E que o meu dom acabe com o sofrimento sem fim

O ar em volta de Thanatos começou a brilhar como se alguém tivesse lançado globos mágicos cheios de purpurina em direção a ela.

– Ai, meu Deus! O que está acontecendo? O que aquela vampira está fazendo?

Eu estava tão concentrada no feitiço de Thanatos, que mal notei o barulho crescente vindo da multidão atrás de mim. Apesar disso, senti que Adam erguera o seu iPhone e ouvi um pequeno clique indicando que ele estava filmando. Stark apertou a minha mão antes de cochichar:

– Acho que Marx está prestes a expulsar os repórteres. Eu vou ver o que posso fazer para ajudá-lo. Certifique-se de que você, o seu grupo e Vovó fiquem perto do Hummer.

Assenti e vagamente notei que Stark estava discutindo com Damien sobre obrigar Adam a sair enquanto Marx caminhava decididamente em direção à barricada. Mas os meus olhos nunca se afastaram da Grande Sacerdotisa. Eu não conseguia parar de olhar. Thanatos comandava toda a minha concentração.

O guia para o fim do sofrimento eu sou sim
O amor atendeu às suas preces e ao terror colocou um fim;
Com calma e doçura, os seus espíritos estão livres assim!

Esferas brilhantes cercavam completamente Thanatos. Quando ela falou o último verso do feitiço e abriu os seus braços, cada uma das esferas precipitou-se para ela. Rindo de alegria absoluta, o rosto de Thanatos se iluminou de amor e ela ergueu os braços. As esferas brilhantes voaram como fogos de artifício para o céu noturno – só que, em vez de deixar para trás um rasto de fumaça, as esferas que desapareciam deixavam para trás um rasto de alívio e felicidade que me fez esquecer o estresse da situação – o horror do sangue e o fedor do Mayo coberto com Trevas –, fez-me esquecer de tudo, a não ser o fato de que, fôssemos humanos ou vampiros, havia sempre uma constante entre todos nós: o amor. Sempre o amor.

E, então, Neferet saiu pela porta da frente arruinando completamente o momento feliz. Antes, pensava que ela parecia uma insana, mas eu estava errada. O que ela era agora fazia a loucura anterior de Neferet parecer não mais que uma excentricidade, como uma velha que gosta de gatos e cheira a urina e mato. Ela estava usando um vestido curto verde. Por um segundo senti certo alívio. Tipo assim, ela não estava nua. Tudo bem, ela estava descalça, mas não achei nada demais naquilo, até que eu realmente olhei para os seus pés. Eles estavam descansando sobre um ninho escorregadio de gavinhas negras que se contraíam e pulsavam ao redor dela, envolvendo seus tornozelos e canelas, e, na verdade, erguendo-a do chão.

Mas aquilo nem era a coisa mais insana em Neferet. Foram os seus olhos que denunciaram a sua loucura. Algo acontecera com as suas pupilas – elas tinham desaparecido. Eram como pedras de mármore, completamente verdes-esmeralda.

– O que há de errado com os olh... – começou Adam, mas o berro de Neferet o cortou.

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo! – Neferet apontou para Thanatos, e duas das gavinhas correram na direção desta.

Kalona se moveu tão rápido, que tudo ficou um borrão. De repente, ele estava lá, entre Thanatos e as criaturas que a atacavam. Ele tirara o seu casaco e revelara a lança de ébano que tinha amarrada nas costas. Suas asas se desenrolaram enquanto ele se encontrava com as gavinhas, espetando uma delas, e enquanto esta se retorcia na agonia da morte, partiu a outra ao meio.

Neferet gritou, como se sentisse a dor das gavinhas.

– Ignorem Kalona! Matem Thanatos! E, depois, todos os outros!

Tudo explodiu.

As gavinhas das Trevas, como veneno cuspido da boca de uma víbora, saíram dos pés de Neferet, tentando passar por Kalona a fim de atingir Thanatos e o resto de nós. Stark voltou para mim, empurrando-me e à Vovó para trás dele e gritando para Damien, Adam, Shaunee e Shaylin para entrarem no Hummer.

Cambaleei para trás, certa de que eu iria assistir a Thanatos ser partida ao meio pelas criaturas de Neferet, provavelmente segundos antes de elas atacarem Stark e, depois, devorarem o restante de nós.

Mas nada daquilo aconteceu. As Trevas não venceram esta batalha – o imortal alado sim.

Kalona estava em todos os lugares. A sua lança se movia tão rápido, que provocava um som no ar.

– Um sabre de luz – arfou Damien. – E é de verdade, e não um de mentirinha como o do Star Wars.

– Leve-os para um lugar seguro! – ordenou Kalona para Marx.

Marx correu para a Grande Sacerdotisa e, enquanto Kalona usava o próprio corpo, suas asas e sua lança para nos proteger, nos apertamos no Hummer.

– Segurem-se! – Eu vou subir na calçada e tirar ele de lá! – avisou Marx ligando o carro.

– Espere! – disse Thanatos. – Ele está vindo para nós. Olhem para as gavinhas. A força delas acaba quando elas se afastam muito de Neferet.

A Grande Sacerdotisa estava certa. Kalona, ferido e sangrando, ainda estava lutando com as criaturas, mas se aproximava de nós e se afastava do Mayo. E as gavinhas não o estavam seguindo.

Quando Kalona chegou à traseira do Hummer, Neferet ergueu os braços e ordenou:

– Venham para mim, filhos! Eu os ajudarei!

As coisas rastejantes deslizaram para ela, enrolando-se em seus braços e pernas. Ela as acariciou, como se quisesse confortá-las, e antes de desaparecer dentro do Mayo, seus olhos brilhantes verdes-esmeralda se concentraram em nós.

– Obrigada pela lição. Da próxima vez, eu vencerei!

Zoey

– Não, de verdade, eu não preciso ir para o hospital – repetiu Kalona pela enésima vez para Marx. – Como eu já disse, traga-me água ou, melhor ainda, vinho. Eu vou subir até o alto deste prédio e me curar.

Nós contornamos o prédio da Oneok e entramos pelos fundos para nos juntarmos à força-tarefa de Tulsa no terceiro andar. Percebi por que Marx estava estressado com Kalona – ele estava ensanguentado. Todos na sala olhavam para ele, mesmo enquanto tentavam não olhar. Sério, se ele não fosse imortal, estaria em um saco preto para cadáveres.

Marx bufou e passou os dedos pelo cabelo.

– Tudo bem, então, já entendi. Já entendi. Você está bem. Carter! – gritou ele para um policial uniformizado, que imediatamente parou de fingir que estava analisando dados na tela do seu computador e deu atenção ao detetive. – Encontre a sala de reuniões do presidente da empresa. Deve haver bebida lá. – Marx voltou a sua atenção para Kalona. – Serve uísque? Esses caras corporativos preferem esse tipo de bebida.

– Serve – respondeu Kalona.

– Pode ir – disse Marx para Carter. – Tudo bem, então. Enquanto Kalona está se recuperando no telhado, vamos fazer um controle de danos. Paluka, passe o telefone para mim e saia daqui.

– Você não pode simplesmente pegar o meu telefone! Isso é ilegal!

– É uma evidência de uma investigação em andamento de múltiplos homicídios. Eu estou apreendendo o seu telefone – informou Marx.

– Um momento, por favor, detetive – pediu Vovó.

– Senhora? – Marx, assim como todos nós, olhou para Vovó, que deu um sorriso sereno.

– Adam, corrija-me se eu estiver errada, mas acredito que você não seja o único jornalista que testemunhou o que acabou de acontecer lá fora.

– Você não está errada – respondeu Adam.

– Ah, exatamente o que pensei. O que significa que deve haver um monte de equipes de filmagem gravando tudo de trás da barreira, isso sem mencionar as gravações feitas por celulares, como a que você fez.

Ouvi Marx suspirar enquanto Adam respondia:

– Exatamente, senhora.

Vovó e Thanatos trocaram um olhar e, então, a Grande Sacerdotisa assumiu a conversa que Vovó iniciara.

– Sr. Paluka, o que o senhor acha de fazer uma entrevista exclusiva comigo e Kalona?

Os olhos de Adam brilharam de animação, mas ele manteve a postura profissional.

– Eu gostaria muito disso, Grande Sacerdotisa.

– Então, é isso que você terá. – Thanatos lançou um olhar para Marx. – Às vezes é mais fácil abrir mão do controle e deixar o destino lidar com o que quer que venha em seguida.

– Pelo menos limpem um pouco do sangue e me deem um monte de comprimidos de Tylenol.

Zoey

Kalona realmente tentou limpar o sangue que escorria dos seus ferimentos semelhantes a chicotadas e dos arranhões menores e mais profundos que mais pareciam mordidas que se espalhavam pelo seu corpo. Achei que ele parecia bem-acabado, e ele ainda sangrava um pouco, mas estava agindo de forma totalmente normal – forte, silenciosa, intimidadora. Thanatos fez com que ele vestisse o casaco comprido. Disse que as suas asas já tinham aparecido o suficiente no vídeo da batalha que Adam exibiria durante a entrevista. Em silêncio, concordei com ela, mas também pensei que o casaco cobria bastante os ferimentos que estavam ali embaixo. Por uma vez, consegui manter a boca fechada e deixei que os outros lidassem com as consequências da luta com Neferet enquanto eu me afastava dos holofotes. Foi um breve momento de relaxamento para mim enquanto me encolhi ao lado de Stark para assistir com Vovó, Damien, Shaylin e Shaunee àquilo que jamais poderíamos imaginar alguns meses antes – Kalona sendo entrevistado pela TV de Tulsa.

Adam chamara uma equipe de iluminação e um cinegrafista. Achei que estavam fazendo um bom trabalho de não ficar olhando estupidamente para Kalona. Adam explicou para todos que iria carregar o vídeo da batalha e exibi-lo e, depois, começaria a entrevista. Também explicou que ela seria exibida ao vivo no plantão de notícias.

– Cara, ainda bem que não estamos ali – sussurrei.

– Adam está fazendo um excelente trabalho – disse Damien com voz suave enquanto seus olhos brilhavam para o jornalista.

– Eu gosto dele.

O olhar de Damien encontrou o meu.

– Você acha que o Jack teria gostado dele.

Estiquei a mão por sobre Stark e apertei a mão de Damien.

– Tenho certeza que sim.

Damien assentiu e piscou para afastar as lágrimas.

– De alguma forma, isso torna as coisas mais fáceis, apenas um pouco mais fáceis, mas sou grato por esse “pouco”.

Então, a nossa atenção estava em Adam enquanto a luz vermelha na câmera parou de piscar e nós assistimos às cenas da batalha de Kalona sendo exibidas em um monitor portátil.

– Sou Adam Paluka, ao vivo, com a vampira e o Guerreiro que acabamos de ver nesta cena surpreendente gravada há alguns momentos em frente ao Mayo Hotel, no centro de Tulsa, quando a Grande Sacerdotisa conhecida como Neferet atacou diversos cidadãos inocentes, inclusive eu. – Adam fez uma pausa, dando então um sorriso caloroso para Kalona. – Eu ainda não lhe agradeci por ter salvado a minha vida. Obrigado!

Kalona pareceu surpreso, quase tímido. Ele assentiu uma vez e disse:

– De nada.

– Kalona estava cumprindo o seu dever. Ele é o meu Guerreiro sob Juramento. Neferet, que não é mais reconhecida por nenhuma autoridade vampírica como Sacerdotisa de Nyx, atacou a mim e os que estavam comigo. Era o dever de Kalona nos proteger – declarou Thanatos.

– Thanatos, é muito bom falar com você novamente. Muitos dos nossos espectadores a reconhecerão como a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Será que você poderia explicar o que estava fazendo na frente do Mayo?

A entrevistada respirou fundo e, então, falou devagar e com clareza, como se quisesse que todos a compreendessem:

– A essa altura, vocês já sabem o que nós apenas suspeitávamos antes, que Neferet está completamente louca e que se tornou uma pessoa malévola. Ela admitiu ter cometido uma matança. Assassinou o prefeito de Tulsa. Assassinou dois homens em Woodward Park. De lá, seus assassinatos se dirigiram para inocentes na Boston Avenue Church no domingo de manhã e, em seguida, para o Mayo Hotel, onde ela se trancou. As mortes que causou no Mayo permitiram que criasse um escudo protetor sobre o prédio. Eu fui até lá por causa do meu dom concedido pela Deusa, que é ajudar as almas a passarem deste mundo para o próximo.

– As luzes brilhantes! Elas eram almas?

Thanatos concordou com a cabeça.

– Exatamente. Elas estavam presas neste reino por causa da forma violenta como morreram. Eu simplesmente as ajudei a se libertarem.

– Nossa! Isso é incrível.

O sorriso de Thanatos foi bonito.

– O ciclo da vida é realmente incrível.

– Sim, é claro que sim. Espere um pouco, Thanatos. Isso significa que eram almas humanas que você ajudou na passagem?

– Isso mesmo – respondeu ela, serena.

– Mas você é uma vampira .

O sorriso da Grande Sacerdotisa se abriu mais.

– Achei que já tínhamos falado disso.

– É verdade. – Adam passou os dedos pelo cabelo perfeito. – Mas uma pessoa da sua raça a atacou porque você estava ajudando almas humanas .

– Adam, já vivi por mais de quinhentos anos, e, nesse tempo, eu aprendi que a humanidade é definida pelas escolhas, e não pela genética. Para colocar de forma bem simples, humanos e vampiros têm mais semelhanças do que diferenças.

– Obviamente Neferet não pensa como você – disse Adam.

– Neferet está louca. Seus pensamentos são excêntricos e perigosos.

– O que são aquelas coisas que ela enviou para nos atacar? – perguntou Adam.

– O mal que tomou uma forma tangível. As criaturas seguem as ordens de Neferet. Desde que ela faça sacrifícios para mantê-las leais a ela. – Thanatos olhou diretamente para a câmera. – Nunca é demais enfatizar que, não importa o quanto Neferet ameace, é imperativo que nenhum humano deve chegar perto do Mayo. O poder de Neferet vem da morte. Fiquem longe do Mayo e a sua fonte de poder vai acabar secando.

Adam parou, pareceu chocado e, então, olhou para alguém que não estava aparecendo na filmagem.

– Detetive Marx, o senhor concorda com o pedido de Thanatos em relação ao Mayo?

O cinegrafista apontou a câmera para um detetive com expressão irritada. Imperturbável, ele respondeu sem hesitar:

– Concordo. O Departamento de Polícia de Tulsa colocou barreiras nas ruas que cercam o Mayo. Ninguém pode se aproximar do Mayo, nem mesmo as equipes policiais ou os militares.

– Mas não é verdade que Neferet está mantendo reféns dentro do Mayo? – quis saber Adam.

– É verdade, mas, nesse momento, não temos nomes nem números – respondeu Marx. – Eu entendo que as pessoas vão sentir falta dos seus entes queridos. O Departamento de Polícia abriu uma linha telefônica 0800 para perguntas e informações de pessoas desaparecidas. O público deve direcionar as suas perguntas por esse número.

– Número esse que o canal Fox 23 vai colocar na parte inferior da tela – informou Adam.

– Obrigado – agradeceu Marx, embora ele não parecesse particularmente grato.

– Detetive Marx, eu preciso perguntar: se o senhor não vai permitir que ninguém se aproxime do Mayo, como é que pretendem deter Neferet?

– Ela será detida por mim, pelos vampiros e pelos novatos que lutam ao meu lado. Neferet é da nossa raça. E somos nós que devemos derrotá-la.

Todos nós, inclusive o cinegrafista, concentraram-se no imortal alado.

– Kalona, o senhor não é um vampiro, certo? – perguntou Adam.

– Certo.

– Então, o que o senhor é?

Ele nem mesmo hesitou. Disse aquilo como se estivesse contando o que comeu no jantar da noite anterior.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas fiz escolhas ruins e, por isso, fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

Seguiu-se um silêncio em que ninguém parecia respirar. Então, Adam perguntou:

– E o que o senhor está fazendo aqui?

Kalona se empertigou e olhou diretamente para a câmera.

– Estou tentando me redimir dos meus erros do passado e obter o perdão de Nyx.

– Bem – Adam engoliu em seco –, parece-me que o senhor está fazendo um bom trabalho aqui. O senhor salvou a Grande Sacerdotisa, um grupo de vampiros e novatos, um detetive. Salvou, inclusive, a mim. Se o senhor conseguir deter Neferet, eu vou começar a chamá-lo de Super-Homem.

Os lábios carnudos de Kalona se ergueram em um sorriso.

– Se você vir Nyx, eu gostaria muito que dissesse isso para ela.

– Pode contar comigo – assegurou Adam. Então, ele se voltou para Thanatos: – A senhora tem mais alguma coisa a acrescentar, Grande Sacerdotisa? Será que existe alguma forma de o público nos ajudar?

– Existe sim – respondeu ela. – Todos podem rezar e enviar pensamentos e energia positiva para nós. A Morada da Noite fará o melhor que puder para proteger o povo de Tulsa, mas nós precisamos de intervenção divina.

– Rezar? Para quem? Para Deus ou para a Deusa? – quis saber Adam.

– Ora, para qualquer um deles ou para os dois, é claro. Gosto de acreditar que as orações não estão presas a questões semânticas.

Adam sorriu.

– Eu também prefiro acreditar nisso. – Ele se virou para a câmera. – Vamos todos rezar pelo fim da insanidade de Neferet e da violência que irrompeu em Tulsa em decorrência disso. E essas foram as últimas notícias sobre a situação no Mayo Hotel. Sou Adam Paluka, lembrando a todos para ficarem ligados no canal Fox 23 para terem uma cobertura completa.

– O irmão de Erebus. Isso não é interessante? – perguntou Vovó, enquanto Adam trocava um aperto de mão com Thanatos e agradecia a ela e a Kalona pela entrevista.

– Você sabia que ele era irmão de Erebus? – sussurrou Damien para mim.

– Hã... Sabia – respondi. – Ele mencionou isso há alguns dias.

– Mas estivemos meio ocupados desde então – completou Stark.

Damien coçou a testa.

– Eu me lembro vagamente de ter lido em uma antiga antologia poética vampírica algumas menções sobre o Filho da Lua e Guerreiro da Noite, junto com as descrições usuais de Erebus como Filho do Sol e Consorte de Nyx. Inicialmente, achei que eram apenas nomes diferentes para Erebus, mas, pensando bem, faz mais sentido que estivessem falando de dois imortais distintos.

– Isso torna os séculos de raiva de Kalona mais compreensíveis – declarou Vovó.

– É. Ter deixado de ser o guerreiro e companheiro de Nyx e não ter nem mais permissão para entrar no Mundo do Além. Isso deve doer de verdade – disse Damien, observando Kalona com olhos grandes e tristes.

– Ele estuprou e matou gente. Quem sabe o que ele fez no Mundo do Além antes de sua Queda – contou Stark.

– Todo mundo merece uma segunda chance, Tsi-ta-ga-a-s-ha-ya – afirmou Vovó, usando o apelido Cherokee que dera a ele. – Eu me lembro de que não faz muito tempo que você teve uma segunda chance.

Stark olhou para o chão.

Eu respirei fundo e disse:

– Eu também.

Vovó levantou as sobrancelhas.

– Hoje eu ganhei uma segunda chance – expliquei. Olhei de Vovó para os meus amigos, um de cada vez, e, por fim, meu olhar encontrou o de Stark. – Nós somos um time que precisa de uma segunda chance. Estou feliz de ter Kalona ao nosso lado.

Vovó tocou o meu braço.

– Algum dia, você deveria dizer isso para ele, u-we-tsi-a-ge-ya . Acho que você vai ficar surpresa com a diferença que suas palavras podem fazer.


10

Zoey

– Que merda! Você não vai acreditar no que acabou de viralizar no YouTube! – Nicole subiu correndo as escadas do auditório para o palco, acenando com o seu iPad como uma louca.

Aphrodite olhou para ela e afastou o iPad de si.

– Sério? A assembleia acabou agora mesmo . Você estava no YouTube enquanto eu estava falando?

– Sério. – Nicole revirou os olhos. – Supere isso. Todo mundo estava no YouTube. Você tem que ver isto. – Ela empurrou o iPad em direção a Aphrodite.

– Ser professora é um saco. Adolescentes são um saco – declarou Aphrodite, ainda ignorando o aparelho.

– Aiminhadeusa! Aquele é o Kalona? No YouTube? – Stevie Rae passou por Aphrodite para dar uma olhada na tela.

– O quê? Kalona? – Lenobia se apressou para ficar ao lado de Stevie Rae, com Darius e Rephaim logo atrás.

– Muito bem. Eu vou assistir. Agora que eu acabei de informar a todo o corpo discente que vamos salvar o mundo. De novo. – Aphrodite olhou para a tela e arregalou os olhos. – Céus! Por que você demorou tanto para nos dizer? Ligue logo! – Ela agarrou o iPad, tocou no botão para tocar e aumentou o volume até o máximo.

Não era um vídeo profissional, mas o início estava muito claro. Primeiro, focava em Thanatos. Ela estava na frente de um prédio com aparência horrível que parecia estar coberto por uma cortina gosmenta preta. Assistiram enquanto a Grande Sacerdotisa concluía o seu feitiço, erguendo os braços e sendo envolvida por um monte de esferas bonitas e brilhantes. Quando elas se ergueram aos céus, o vídeo ainda mostrava Thanatos, mas, ao fundo, dava para ouvir Neferet gritando:

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo!

O vídeo mudou e agora dava para ver Neferet em frente ao que devia ser o Mayo.

– Ela parece estar precisando de um McLanche Feliz – disse Stevie Rae.

Aphrodite não afastou os olhos da tela.

– Isso é tudo que você tem a dizer, caipira?

– Eu acho que ela está mais doida que um gato preso num saco – opinou Nicole.

– Ninguém perguntou... – começou Aphrodite, mas a explosão no vídeo interrompeu as suas palavras.

– Aiminhadeusa! Não! – ofegou Lenobia, enquanto assistiam a Neferet lançando uma nuvem de Trevas atrás de Thanatos e de todos os outros.

– Meu pai está salvando todo mundo – disse Rephaim.

– Olhem como ele se move. – A voz de Darius era respeitosa. – Sua velocidade e força são incríveis.

Aphrodite não teve a chance de concordar. O vídeo terminou com quem quer que estivesse filmando parando para entrar no Hummer da escola, embora ainda tenha conseguido filmar Neferet e os tentáculos sangrentos das Trevas deslizando para dentro do Mayo.

Então, começou a entrevista, e Aphrodite teve de se obrigar a fechar a boca, que estava aberta de forma não atraente porque lá estava Kalona – com asas e tudo –, ao lado de Thanatos no canal Fox 23.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas eu fiz escolhas erradas e, por isso, eu fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

– Irmão de Erebus? Ele só pode estar brincando! – Aphrodite sentiu que sua cabeça iria explodir.

– É verdade – confirmou Darius em voz baixa quando o vídeo chegou ao fim.

A tela ficou escura e Aphrodite olhou para ele.

– Você sabia ?

– Sabia. Kalona contou para Zoey, Stark e eu – admitiu Darius.

– E nenhum de vocês achou que seria importante contar para qualquer um de nós? – perguntou Lenobia, parecendo tão irritada quanto Aphrodite.

Darius encolheu os ombros largos.

– Para dizer a verdade, eu nem pensei muito nisso. A veracidade de Kalona foi mais do que questionável desde o momento em que ele apareceu aqui.

– Mas agora você acredita nele? – quis saber Rephaim.

Darius olhou para ele.

– Acredito.

– Rephaim, você sabia que o seu pai era irmão de Erebus? – perguntou Stevie Rae.

Os olhos do menino-pássaro ficaram tristes.

– O meu pai nunca fala sobre antes .

– O que significa que não, você não sabia? – insistiu Aphrodite.

– Isso – confirmou Rephaim, parecendo tão misterioso quanto o seu pai.

– Isso muda tudo – declarou Lenobia.

– Sim, de forma maravilhosa – animou-se Nicole, assentindo como um boneco bobblehead . [*] – Isso significa que temos um guerreiro de Nyx no nosso time.

– Não – discordou Aphrodite, secamente. – Significa que temos um ex-guerreiro de Nyx que fez tanta merda, que acabou expulso do Mundo do Além no nosso time. E isso não é tão legal assim.

– Ele disse que está tentando se redimir – falou Rephaim.

– E ele salvou Thanatos e os outros – reforçou Darius.

– Sinto muito, mas eu não estou pronta para pular cegamente para o time Kalona – disse Aphrodite.

– Acho que é cegueira ignorar o que está bem na frente dos seus olhos – retorquiu Rephaim, apontando para a tela escura do iPad.

– E eu acho que tem um monte de coisas sobre Kalona que não sabemos. – Ela fez uma pausa e lançou um olhar duro para Darius. – Ou pelo menos a maioria de nós não sabe. Agora, se vocês não têm mais nada que prefiram fazer, eu adoraria que reunissem todos os novatos que apresentem algum talento guerreiro. Tenho certeza de que Thanatos vai querer um exército para a batalha. Depois de assistir à louca no YouTube, tenho a sensação de que Neferet não vai dar a mínima para o time Kalona. – Aphrodite então deu um tapa na própria testa e acrescentou sarcasticamente: – Ah, esperem! A maldita Neferet provavelmente já sabe sobre a relação Kalona–Erebus, assim como praticamente todo mundo menos eu . – Ela jogou o cabelo para trás e se retirou.

Só quando já estava do lado de fora do auditório é que Aphrodite diminuiu o passo e permitiu que os pensamentos acompanhassem as suas emoções. Seu coração estava disparado e seu estômago, apertado. Estava puta da vida. Muito puta da vida.

Não, isso não é verdade. Eu não estou puta da vida. Eu estou assustada e chateada.

Com um suspiro enorme, Aphrodite saiu da calçada e foi até um dos bancos de carvalho. A mão que afastou o cabelo louro do seu rosto estava trêmula.

Darius omitira um segredo, algo importante. Até aquele momento, acreditara que ele era diferente de todos os outros caras nesta Terra. Ele deveria ser honesto. Ele deveria ser leal. E, acima de tudo, ele deveria amá-la o suficiente para nunca mentir para ela ou guardar um segredo dela.

Quando alguém conta uma mentira, é possível medir o quanto esse alguém amou você ou não. Aphrodite sabia disso porque crescera ouvindo uma mentira constante que não parava de crescer. Os seus pais fingiam ser um casal perfeito, mas a verdade era que se odiavam tanto quanto a odiavam. A não ser quando estavam em público, eles viviam vidas totalmente separadas – eles nem compartilhavam o mesmo quarto havia mais de uma década, quanto mais os segredos.

Eles mentiam um para o outro todos os dias.

Quando ela só tinha oito anos de idade, Aphrodite jurara para si mesma que jamais entraria em qualquer relacionamento semelhante ao casamento dos pais. Merda, até conhecer Darius, nunca tinha permitido que um cara se aproximasse o suficiente dela a ponto de importar se ele mentiria ou não. Ela se certificava de mentir para eles primeiro . Ela os traía primeiro . Ela terminava com eles primeiro .

– Eu consigo sentir a sua tristeza, minha bela. Por favor, fale comigo.

Aphrodite ergueu o olhar ao ouvir a voz de Darius, mas não o olhou nos olhos. Olhou por sobre o ombro dele.

– Sobre o que você quer conversar?

Ele se sentou ao lado dela e usou as costas da mão para enxugar uma lágrima que escorria pela bochecha dela. Aphrodite se afastou dele rapidamente, enxugando o outro lado do rosto.

– Eu quero conversar sobre nós – respondeu ele.

– É mesmo? Será que não seria bem mais fácil continuarmos seguindo do jeito que estamos? Fingindo estar “apaixonados para todo o sempre”? – perguntou ela sarcasticamente e usando os dedos para indicar as aspas.

– Nunca foi fingimento para mim. Você sabe muito bem disso, Aphrodite. – O tom dele era calmo e sério.

Ela desejou dar uma tapa na cara dele – machucá-lo –, fazê-lo sentir um pouco do medo que estava sentindo. Mas não fez nada de violento. Isso significaria perder o controle. Isso significaria que tinha se transformado na sua mãe. Em vez disso, Aphrodite o atacou com palavras.

– E como é que eu posso saber disso? Eu não posso entrar na sua cabeça. Eu nem posso compartilhar os seus sentimentos como uma verdadeira Profetisa faria. Mas tanto faz. Não se preocupe com isso. Está tudo bem, e nós dois temos um monte de merda para fazer porque, como sempre, as Trevas estão tentando dominar o nosso mundo.

– As Trevas terão de esperar, porque você é o meu mundo, e se eu perder você, eu vou me perder.

Aphrodite quis se levantar e se afastar dele sem olhar para trás. Ela iria endurecer o coração, deixá-lo tão duro quanto ele costumava ser para, na verdade, protegê-la. Antes da tempestade de Zoey e seu bando Nerd e Darius aparecerem na sua vida.

Era o que ela iria fazer, mas, de alguma forma, Darius disse exatamente a coisa certa. Então, as pernas de Aphrodite, de repente, decidiram ouvir o seu coração em vez de escutar a cabeça.

Aphrodite olhou para ele.

– Você mentiu para mim.

– Não, minha bela. Eu simplesmente não contei uma coisa para você.

– Por quê? Por que você não me contou? Kalona ser irmão de Erebus é uma puta informação importante.

– Eu não estou nem aí para o que Kalona disse ou deixou de dizer. Eu só ligo para você e o que você diz.

– Eu? – Aphrodite franziu as sobrancelhas. – Do que é que você está falando? Eu nunca mencionei qualquer coisa remotamente semelhante à possibilidade de Kalona e Erebus serem irmãos.

O sorriso de Darius foi lento e doce.

– Exatamente. E se você, minha bela Profetisa talentosa, não tem qualquer insight sobre o verdadeiro passado de Kalona, então por que é que eu deveria mencionar um comentário fora de contexto que um imortal alado fez? Aphrodite, se fosse importante que soubéssemos que Kalona era irmão de Erebus, então creio que você teria dito isso para mim .

Aphrodite meneou a cabeça, sentindo-se um pouco tonta quando ela se deu conta do que Darius realmente estava dizendo para ela.

Ele pegou a sua mão.

– Será que eu já disse hoje o quanto eu amo você?

– Não – sussurrou ela, pensando: por favor, não diga isso se não for verdade. Por favor, não faça isso.

– Com todo o meu ser – declarou ele.

Lágrimas escorreram pelo rosto de Aphrodite, mas ela não afastou o olhar dele.

– Não tenha medo – pediu ele.

– Eu tenho. Isso ainda me assusta – admitiu ela.

– Também me assusta, mas, para ficar com você, realmente com você e não apenas fingir para que o meu coração fique em segurança, vale a pena enfrentar e dominar esse medo.

– Mas você é um guerreiro. Eu não sou nada. Não de verdade. Eu sou apenas... – Sua voz falhou. Não conseguiria dizer, mas as palavras enchiam a sua mente: eu apenas sou filha de uma mulher horrível que só me ensinou a odiar, e nunca, nunca confiar no amor.

– Você é a pessoa mais corajosa que eu conheço – afirmou Darius com voz solene. – E você não é, e nunca será, como a sua mãe.

– E você nunca vai mentir para mim.

Ela não falou aquilo como uma pergunta, mas ele se levantou do banco e se ajoelhou, pressionando a mão dela contra o coração dele, dizendo:

– Aphrodite, Profetisa de Nyx, eu lhe juro que jamais mentirei para você. Se eu não falar a verdade sempre para você, que a Terra me engula inteiro para que o meu espírito jamais encontre o Mundo do Além.

Um calafrio terrível passou por Aphrodite e ela agarrou Darius, puxou-o para os seus braços e sorriu.

– Não, pare já com isso! Qualquer um pode contar acidentalmente uma mentira. Qualquer um! Eu não aceito o seu juramento!

Darius se inclinou um pouco para trás, segurando gentilmente os ombros trêmulos dela, e sorriu.

– Mas eu não sou qualquer um . Eu sou seu. O seu guerreiro. O seu amante. O seu companheiro. Juro que nunca vou mentir para você porque isso a magoaria mais do que poderia suportar, e eu prefiro que a Terra me engula para sempre do que fazer isso com você.

Enquanto olhava para Darius e via a verdade nos seus olhos, algo se libertou dentro de Aphrodite – algo pequeno e afiado que estivera fincado dentro dela por muito, muito tempo. Ela ofegou e inspirou fundo, soltando o ar devagar.

– Acabou – sussurrou ela.

– O que acabou, minha bela?

– O meu medo. Acabou, Darius. Você acabou com ele. – Aphrodite sabia que soava jovem e tola. Mas não ligava. Pela primeira vez na vida, não estava com medo de perder o amor. – Eu não posso perder você! – exclamou ela.

– Não – respondeu ele, sorrindo de novo. – Você jamais vai me perder. E eu não acabei com o seu medo. Você o deixou ir.

– Ah – respondeu ela, suavemente, compreendendo por fim. – Sinto muito por ter demorado tanto.

– Você demorou o tempo necessário, e eu não me arrependo por ter esperado.

Darius a beijou em seguida, e Aphrodite vivenciou a felicidade completa.

Até que Aurox os interrompeu.

– Darius! Aí está você. Venha rápido. Eles estão nos portões.

Aphrodite se apoiou no ombro de Darius e franziu as sobrancelhas para Aurox.

– Ah, que droga! Se você interrompeu este momento porque Zoey e seu bando nerd voltaram, eu vou acabar com você...

– Não é a Zoey! – explicou Aurox. – São humanos! Os humanos estão nos portões pedindo para entrar porque querem que nós os protejamos contra Neferet!

– Bem, neste caso, acho que devemos deixá-los entrar – declarou Darius, levantando-se e oferecendo a mão para Aphrodite. – Você não acha, minha bela?

Ela suspirou e resmungou:

– Tudo bem. Desde que não tenha nenhum político com eles.

[*] Bobblehead refere-se a bonecos que possuem a cabeça presa ao corpo por meio de uma mola, a qual faz com que a cabeça balance quando há qualquer movimento. (N. E.)


11

Zoey

– Ah, que merda! Uma multidão? Isso é tudo de que precisamos agora. – Suspirei, frustrada, enquanto passávamos pelo semáforo na Twenty-first Street em Utica e conseguimos ver a escola.

Foi uma cena superestranha. Já passava da meia-noite, e a rua estava escura. Deveria estar vazia também, mas os grandes portões de ferro da escola estavam abertos, e pudemos ver um monte de gente reunida na frente dele. Os dois lampiões a gás envolvidos por candeeiros de cobre desgastados pelo tempo lançavam sombras bruxuleantes em um semicírculo sobre o grupo. As pessoas também vinham dos dois lados da rua. Fora do alcance das chamas da escola, dava para ver as sombras escuras dos carros que estavam estacionados na calçada, parecendo abandonados e completamente fora de lugar.

– Você está vendo alguma coisa queimando além das nossas lanternas? Tipo um crucifixo gigantesco em chamas? – A cabeça de Shaunee apareceu entre mim e Stark enquanto tentava ver melhor do banco de trás onde estava.

– Parem o carro e deixem-me sair daqui. Eu vou resolver isso! – avisou Kalona.

– Não! – gritaram Thanatos, Marx e Vovó juntos.

– Eles não parecem zangados – disse Thanatos.

O detetive Marx parou e baixou o vidro. Todos apuramos os ouvidos para escutar alguma coisa, e então ele disse:

– Está difícil enxergar alguma coisa, mas não estou ouvindo gritos.

– A minha visão noturna é melhor do que a sua, e eu não estou vendo nenhum tumulto ou pânico. Tudo parece notavelmente calmo – declarou Thanatos.

– Tudo bem, melhor prevenir do que remediar. Então, vamos nos certificar de que saibam de que lado da lei a Morada da Noite está.

O detetive pegou uma sirene portátil que trouxera com ele do Oneok e a acoplou ao teto do Hummer. Ligou-a, e ela começou a girar uma luz azul e vermelha que era familiar demais para qualquer um de nós que não tivesse parado totalmente no cruzamento da rua 101 com a Lynn Lane, em frente à South Intermediate High School. Não que eu tenha qualquer experiência pessoal com isso. Só estou dizendo que é estranho estar em um carro de polícia quando a sirene está ligada.

Marx deu mais um tapa na sirene, que então emitiu um som odioso duas vezes. A luz e o som trabalharam em sintonia perfeita. A multidão se abriu e se virou para nós e, reconhecendo a presença do Departamento de Polícia de Tulsa, as pessoas abriram caminho para que o Hummer pudesse chegar à entrada da escola.

Diante do local onde o portão de ferro deveria estar seguramente trancado estavam Aphrodite, Darius, Stevie Rae, Rephaim, Lenobia e Aurox, todos alinhados na frente da entrada formando uma passagem humana.

– O que eles estão fazendo? – perguntou Stark, ecoando os meus pensamentos.

– Espero que tenham tomado decisões sábias – desejou Thanatos.

Em silêncio, concordei enquanto os meus olhos pousaram primeiro em Aphrodite. Se ela aparentasse estar zangada, ou segurasse uma bebida, eu saberia que o que quer que estivesse acontecendo ali era ruim – com crucifixos em chamas e gritos ou não. Mas ela parecia confusa. Tipo, obviamente confusa. Uma de suas mãos estava no quadril e os ombros, encolhidos. Ao mesmo tempo, Lenobia estava assentindo e conversando com alguém na multidão que eu não conseguia ver direito.

– Aphrodite parece confusa, mas não assustada – expus a minha observação de surpresa. – E Lenobia parece estar de acordo com o que quer que seja que está acontecendo. Não deve ser tão horrível.

– Lá estão a irmã Mary Angela e a irmã Emily. Ah, eu estou vendo! Tem um grupo de freiras lá na frente. – Vovó apontou e acenou. – Está tudo bem se elas fazem parte do grupo.

– É uma boa teoria, mas eu vou parar dentro da escola antes que qualquer um de vocês desça. E quero que vocês permaneçam nas dependências da Morada da Noite, não importa quem possa estar chamando vocês do lado de fora – declarou Marx.

Percebi que Vovó estava fazendo cara feia, mas Thanatos foi rápida em concordar:

– Pode deixar, detetive.

Eu estava feliz. Tudo bem, talvez fosse porque não havia se passado nem 24 horas desde que eu saíra da cadeia, mas uma multidão de humanos em torno dos portões da escola – ainda que fossem humanos conhecidos que pareciam ter vindo em paz – fazia o meu estômago se contrair com o estresse da situação. Isso sem mencionar que já passava da meia-noite e não fazia muito tempo desde que Neferet jogara pedaços de corpos humanos pela varanda da sua cobertura no Mayo. Eu não tinha a menor intenção de olhar de cara feia para Marx nem Thanatos, muito menos desobedecê-los. Na verdade, eu esperava já ter sido desobediente o suficiente pelo que seria o resto de uma vida que eu esperava ser longa e chata.

Então, Kalona saiu do Hummer.

– Ei, não é aquele cara alado? – gritou alguém na multidão.

– Uau! O filho de Erebus! – exclamou alguém mal-informado e pronunciando erroneamente o nome Erebus de forma que soasse como Airbus , o que fez Stark cobrir a boca com a mão para disfarçar o riso com uma tossida.

Dei uma cotovelada de leve em Stark, e ele me lançou o seu olhar charmoso e sorriso torto dizendo com os lábios “Airbus ”. Revirei os olhos.

– Tudo bem, tudo bem – disse o detetive Marx enquanto erguia as mãos fazendo um gesto para o público se acalmar. – Não tem nada para ver aqui. Vocês precisam se afastar e desbloquear a entrada.

– Ah, não precisa se preocupar, detetive. Não queremos bloquear a entrada da escola. Só queremos entrar na escola. – Uma freira alta, usando véu, deu um passo para a frente com um sorriso maternal nos lábios. – É tão bom vê-lo de novo, Kevin.

– Irmã Mary Angela, senhora. – Detetive Marx fez um gesto antigo de respeito com a cabeça. – É muito tarde para a senhora e as outras freiras fazerem uma visita social.

– Ah, Kevin, não estamos aqui para uma visita – declarou ela de forma enigmática.

Antes que Marx tivesse a chance de interrogá-la, Vovó falou passando por ele para encontrar a freira da fronteira da escola.

– Mary Angela, eu estava pensando em você hoje cedo.

Elas deram um abraço. A freira riu e disse alto o suficiente para que todos ouvissem:

– E quando foi que pensou em mim? Antes ou depois de ter sido atacada pelas Trevas? Você leva uma vida tão interessante, Sylvia.

Aphrodite, que se aproximou para ficar ao meu lado, bufou, dizendo:

– Os velhos deviam ter uma vida menos interessante.

– Nós devíamos ter uma vida menos interessante – retruquei baixinho.

Vovó sorriu como se tivesse nos ouvido.

– Foi depois, quando Thanatos pediu que todos em Tulsa rezassem para nos ajudar.

– Ah, que adorável coincidência, porque foi a oração que nos trouxe até aqui.

– Por favor, explique, cara irmã – pediu Thanatos.

Notei que ela não se juntou à Vovó. Olhei para Kalona, que estava colado ao seu lado como se esperasse que mais gavinhas das Trevas aparecessem a qualquer momento.

– Mas que merda, já chega dessa procrastinação – reclamou Aphrodite, dando um passo para a frente. – Eles querem a nossa proteção.

Eu a segui, embora Stark tenha segurado o meu cotovelo para que eu fosse mais devagar.

– Creio que a palavra correta para o que eles querem seja “santuário” – interveio Lenobia.

– Você quer dizer a palavra politicamente correta – retorquiu Aphrodite.

– Se qualquer um de nós fosse politicamente correto, não estaria aqui. – Do meio das sombras iluminadas pela luz dos lampiões, uma mulher pequena, seguida por um homem esbelto, caminhou até irmã Mary Angela. Ela assentiu educadamente para Thanatos. – Shalom, Grande Sacerdotisa.

– Eu a saúdo com paz, rabina Margaret – cumprimentou Thanatos. Agora que estavam mais perto da luz, o casal me parecia familiar. – Eu também o saúdo com paz, rabino Steven. É sempre um prazer ver os nossos vizinhos do Templo de Israel.

Percebi por que a mulher e o homem pareciam conhecidos. Eram rabinos casados, Margaret e Steven Bernstein, que recentemente se tornaram os líderes no Templo de Israel, localizado, literalmente, do lado da Morada da Noite, que dava para Utica Square. Eu me lembrava de que eles tinham elogiado muito os cookies de chocolate da Vovó durante o nosso evento antes que a noite tivesse, é claro, terminado em desastre e morte.

– Então, é realmente um santuário que vocês buscam nesta noite? – perguntou Thanatos para o casal, mas a sua voz se ergueu para toda a multidão.

– É – respondeu a rabina Margaret, enquanto ela e o seu marido, assim como todos, assentiam em concordância.

– A irmandade das beneditinas também busca um santuário – declarou irmã Mary Angela.

– Assim como a congregação de Todas as Almas – disse uma mulher mais velha, dando um passo para a frente e saindo das sombras. Ela tinha cabelo louro desbotado e comprido, mas os seus olhos eram de um azul tão vívido que, mesmo sob a luz fraca, brilhavam como pequenas águas-marinhas.

Thanatos hesitou. Lançou um olhar para Lenobia, que sorriu. Olhou para Kalona, que franziu o cenho. E, então, ela me surpreendeu ao olhar para mim por sobre o ombro. Encontrei o seu olhar e fiz o que meus instintos me mandaram fazer – sorri e assenti.

Thanatos voltou-se para Suzanne, segurou o seu antebraço na saudação vampírica tradicional e ergueu a voz, repleta com o poder de Nyx:

– Como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, eu lhes dou as boas-vindas ao grande santuário para todos que o buscam!

Ao meu lado, ouvi Stark suspirar e sussurrar.

– Ai, que merda...

Zoey

– Não, Bobby! Quantas vezes a mamãe vai ter que dizer? Você não pode tocar nas asas do moço alto! – Uma mulher com aparência cansada pegou o seu bebê que estava cambaleando pelo piso arenoso do ginásio com os braços erguidos, tentando pegar a ponta da asa de Kalona.

Mordi a bochecha para não rir enquanto o imortal alado fazia um som de desagrado e dava um passo para evitar os dedinhos grudentos. O bebê tentou sair do alcance dos braços cansados da mãe. Kalona foi para o outro lado. Como sempre, onde quer que aparecesse, todos os humanos concentravam sua atenção nele, e isso parecia afetá-lo. Ele parecia cansado. Curiosamente, os seus ferimentos ainda não tinham se curado por completo, formando linhas e círculos rosados dolorosos. Achei que talvez ele não tivesse passado tempo suficiente no telhado do Oneok quando um “Psiu!” de Aphrodite chamou a minha atenção.

– Z., caipira, venham comigo, agora! – chamou ela.

Stevie Rae e eu largamos um garrafão de água que levávamos para o ginásio e seguimos Aphrodite até o fim do muro mal-iluminado em cuja abertura ficava a estátua de Nyx.

– Cara, eu estou acabada – declarou Stevie Rae.

– Eu também – concordei.

– Já passou da hora do nosso intervalo – disse Aphrodite, jogando latas de refrigerante marrom para nós duas.

Então, ela me pegou totalmente de surpresa ao abrir uma lata para si.

– Refrigerante? Você? Achei que odiasse.

– E odeio mesmo, e isso não é refrigerante. É champanhe de Sophia – informou ela, tomando um gole pelo canudo cor-de-rosa que tirara da lata fina da mesma cor.

– Quem diria, champanhe em uma lata – comentou Stevie Rae.

– Qualquer um que seja civilizado.

– Eu não sabia – disse eu.

– Exatamente o que eu quero dizer – respondeu Aphrodite. Então, ela lançou um olhar para Kalona que estava no meio do ginásio, com certeza procurando alguém e tentando ignorar as pessoas que o olhavam. – Kalona e humanos, principalmente humanos pequenos, equivalem a um acidente de trem apocalíptico – declarou ela.

– Concordo plenamente – disse eu. – Vocês acham que ele está parecendo cansado?

Aphrodite bufou.

– Nós todos parecemos cansados.

– Acho que ele parece como sempre, só que um pouco ferido, o que torna aquele bebê meio malvado por tentar agarrar uma pena de sua asa – opinou Stevie Rae.

– Kalona é imortal. Ele está bem. E um bebê arrancando a pena dele seria mais que demais – declarou Aphrodite. – Acho que eu poderia convencer aquela criancinha a fazer isso. Ou melhor, convencer a mãe a permitir que o filho faça isso. Você acha que ela gostaria de um coquetel mimosa?

– Aquela mãe parece mesmo estar precisando de um coquetel mimosa, mas sem o suco de laranja. Acho que ela gostaria de uma das suas latinhas cor-de-rosa – disse Stevie Rae.

– Eu não costumo dizer isso com frequência, porque geralmente não é verdade, mas acho que você está certa, Stevie Rae – concedeu Aphrodite. – Embora eu venha a precisar de mais de uma dessas latinhas. Parece um trabalho para a viúva Clicquot.

– Viúva Clicquot? Ela é do Templo de Israel?

– Ah, sua pobre ignorante – lamentou Aphrodite, meneando a cabeça tristemente para Stevie Rae.

Kalona conseguiu passar pelo bebê e estava se movendo de novo. Ai, ele parecia estar vindo na nossa direção!

– Diga que ele não está vindo para cá.

– Quem dera eu poder dizer isso – respondeu Aphrodite.

– Ele parece um pombo gigante voltando para o poleiro – disse Stevie Rae.

– Será que devemos ir ao encontro dele? – sugeri, bocejando.

Olhei para o relógio da escola. Já eram 5h30 da manhã. Tínhamos pouco menos de uma hora antes de o sol nascer, e eu entendi o que era exaustão.

– Salvar Kalona dos humanos? Não mesmo – respondeu Aphrodite.

– Concordo – reforçou Stevie Rae.

Dei de ombros e bocejei de novo.

– Por mim, tudo bem. Estou cansada demais para me mexer.

Thanatos decidira que o melhor lugar para colocar todos os humanos – e realmente havia muitos deles – era no maior prédio do campus , o nosso ginásio. Achei uma boa ideia. O lugar era enorme, e com todos reunidos ali seria mais fácil manter o controle. É claro que a maior parte do piso do ginásio era de areia, porque era usado para o treinamento dos guerreiros, e a areia era um saco. Areia, sacos de dormir e humanos cansados, amedrontados e mal-humorados não constituíam uma boa combinação, então nós todos (quero dizer, quase todo mundo no campus , exceto Thanatos, Vovó, detetive Marx e os líderes religiosos) passamos as últimas horas nos esforçando para cobrir a arena dos guerreiros com lona, transformando o lugar no que parecia ser um abrigo temporário contra furacões. Não que aquilo fosse muito melhor, mas estava menos arenoso e mais limpo para as famílias dormirem.

– Olhe isso. – Aphrodite me cutucou com o ombro. – O rabino Steven Bernstein cercou Kalona. Aposto que está fazendo todo tipo de pergunta maluca sobre o Torá.

– É culpa do Kalona – disse eu. – Ele bem que poderia usar uma camisa.

– Pois é! Qual é a necessidade de ficar exibindo o peitoral? – questionou Aphrodite.

– Olha só, gente – interrompeu Stevie Rae, apontando. – Acho que Nicole e Shaylin estão se tornando boas amigas. Fico feliz. Nicole mudou muito e, bem, Shaylin precisa de uma melhor amiga, principalmente depois que você deu uma de louca para cima dela, Z. – disse Stevie Rae antes de acrescentar: – Sinto muito, Z. Eu não queria colocar o dedo na ferida.

Suspirei.

– Não tem problema. Eu realmente dei uma de louca para cima dela. Fico feliz que ela tenha uma boa amiga.

Aphrodite e eu olhamos para as duas meninas de cabelo escuro. Elas estavam arrumando o saco de dormir e pareciam superamigas. Na verdade, enquanto eu as observava, vi os ombros delas se tocarem e as cabeças se aproximarem. Ergui as sobrancelhas. Nicole ergueu a mão e afastou o cabelo de Shaylin do seu rosto, acariciando o rosto dela ao fazer isso, lembrando-me estranhamente de algo que Stark fazia enquanto me paquerava. Limpei a garganta.

– Hum, acho que elas parecem bem próximas .

– Todo mundo devia ter uma melhor amiga! – declarou Stevie Rae olhando para mim.

– Hum, Stevie Rae – comecei, ainda observando os toques e os olhares que Nicole e Shaylin estavam trocando –, acho que elas talvez...

– Ai, que droga, Z.! – exclamou Aphrodite. – Você fez Shaylin virar gay!

Eu franzi as sobrancelhas para ela.

– Seja legal!

– Aiminhadeusa! – Stevie Rae arregalou os olhos enquanto via Nicole dar um beijinho no pescoço de Shaylin. – Eu não sabia que você podia fazer alguém virar gay!

– Sério, caipira! Eu tenho que perguntar de novo: você é retardada?

– Você sabe como eu me sinto com essa palavra – respondeu Stevie Rae.

– E você sabe que eu não estou nem aí.

– E vocês duas sabem que quando começam a implicar uma com a outra me dá dor de cabeça. Aphrodite, não seja cruel com Shaylin e Nicole. Elas podem amar quem desejarem. Stevie Rae, não. Não dá para fazer alguém virar gay. Caramba.

– Ei, eu não estou nem aí para quem ela ama ou com quem ela anda dormindo, mas vou adorar ver a merda que está por vir. – Aphrodite apontou para o pequeno espaço entre a cama que Shaylin e Nicole estavam arrumando. – E aí vem Clark Kent, bem na hora. E eu acho que ele acabou de ver o beijo.

– É – disse Stevie Rae. – Acho que viu. Olhe só para ele.

– Confuso. Acho que seria isso que Vovó diria sobre a expressão dele. Totalmente confuso – concordei. – Eu sei que não deveria, mas acho que vou gostar de ver isto.

– Você está brincando? Eu quero gravar e assistir várias vezes – declarou Aphrodite.

Erik já estava começando a falar com Shaylin. Mesmo de onde estávamos, dava para perceber que ele usava o seu sorriso de astro de cinema com um brilho de cem watts.

– Sei que ele pode ser um saco às vezes, mas vocês têm que admitir que ele é uma gracinha – declarou Stevie Rae. – Não como Rephaim, mas um gatinho mesmo assim.

Aphrodite fez um som como se estivesse se controlando para não falar nada.

Nicole não hesitou e não se afastou. Parou ao lado de Shaylin e envolveu a sua cintura fina com o braço em um gesto íntimo, olhando diretamente para Erik com uma postura possessiva.

– Sabia que Nicole seria o cara – declarou Aphrodite.

– O cérebro do Erik parece prestes a explodir e passar pela covinha do seu queixo – disse eu.

– Zoey, Thanatos convocou você, Stevie Rae e Aphrodite. Ela pede que vocês três se juntem a ela na Câmara do Conselho. Isto é, se vocês tiverem acabado de tomar conta dos humanos – disse Kalona sarcasticamente, olhando para os não humanos que a gente estava espiando.

Nós três demos um pulo de susto ao som de sua voz. Como sempre, Aphrodite se recuperou primeiro.

– Bem, graças à Nyx e ao menino Jesus por nos tirar daqui antes do nascer do sol – declarou Aphrodite. – Vou levar dias para tirar toda essa areia das minhas sapatilhas Jimmy Choo brilhantes. Sou muito melhor em profetizar do que em arrastar coisas.

Ela jogou o cabelo para trás e se dirigiu à porta. Ouvi enquanto ela sugava o que restava do champanhe com o seu canudinho.

– Tudo bem. Hum, obrigada – disse eu de forma inadequada. – A gente deve chamar Stark, Darius e Rephaim também?

– Os homens estão ocupados. – Kalona olhou para o local onde os três homens lutavam com a extremidade de uma lona imensa.

– Tudo bem então. Vamos sair daqui – disse Stevie Rae acenando para Rephaim.

Eu mandei um beijo para Stark e a segui.


12

Zoey

Passamos pela irmã Mary Angela, a rabina Bernstein e a ministra de Todas as Almas enquanto entrávamos no corredor até a Câmara do Conselho.

– Zoey, Aphrodite e Stevie Rae – cumprimentou a freira, fazendo um gesto para as mulheres ao seu lado. – Permitam que eu apresente vocês três para a rabina Margaret Bernstein e Suzane Grimms.

– Merry meet – respondemos as três, quase em uníssono.

As mulheres pareciam cansadas, mas sorriram.

– Prazer em conhecê-las e em estarmos aqui – respondeu a rabina.

– Sim, obrigada a todas vocês pelo trabalho duro que estão fazendo para ajudar a todos se acomodarem.

Nós assentimos como quem diz “não há de quê” , e as mulheres se afastaram; a irmã Mary Angela olhou para mim.

– Boa sorte, Zoey.

– Ela sabe de alguma coisa que não sabemos – sussurrou Aphrodite.

Concordei com a cabeça, e seguimos para a porta da Câmara do Conselho. Então, quase demos de cara com Shaunee, que saiu olhando para todos os lados menos para onde estava indo.

– Caramba, tenha cuidado – disse eu, segurando-a para que nenhuma de nós duas caísse.

– Mas o que é que você está fazendo por aqui? – perguntou Stevie Rae. – A minha mãe diria que você está agindo como se o seu cabelo estivesse pegando fogo.

Shaunee ergueu a sobrancelha.

– Eu preferia que o meu cabelo estivesse pegando fogo a ter perdido o meu gato. Não consigo encontrar Beelzebub em lugar nenhum.

Eu tinha ficado superfeliz de saber que, enquanto eu estava presa, Shaunee e Kramisha tinham ido ao depósito e recuperado os nossos quatro gatos – além de Duquesa, é claro – e os levado de volta para a Morada da Noite. Nala pulou em mim quando fui para o dormitório trocar de roupa, e eu a apertei com tanta força que ela ficou descontente e espirrou no meu rosto.

– Por que você está estressada? Você sabe como os gatos são. Eles vêm quando querem e vão quando querem. Eu não tenho ideia de onde Malévola está agora – informou Aphrodite.

– Eu só espero que ela não esteja por aqui – desejou Stevie Rae baixinho.

Intervim antes que Aphrodite começasse a brigar com ela.

– Tenho que concordar com Aphrodite. Beelzebub deve estar feliz passeando por todos os túneis e esticando as patas.

– Foi o que pensei também, mas Beelzebub nunca falta ao jantar. Nunca . E eu sempre dou comida para ele bem antes do nascer do sol. Sacudi o pacote de Whiskas, e ele não veio correndo como sempre. Então, comecei a procurar. Vocês notaram que os gatos estão sumidos?

Pensei naquilo. Eu vira Nala antes de ir para o Mayo, mas, desde que voltamos, ela não aparecera. Na verdade, agora que estava pensando naquilo, eu não tinha visto nenhum dos gatos recentemente.

– Hmm, agora que você mencionou, não. Eu não vi nenhum dos gatos. Duquesa estava no ginásio com Damien e Stark, mas Cammy não estava com ele, nem Nala.

– Como se isso fosse alguma surpresa? Façam-me o favor. Não sejam idiotas. O ginásio está cheio de humanos. Eu não sou um gato, mas isso me faz querer sumir também. Eu com certeza não os culpo por quererem desaparecer.

– Faz sentido – concordou Stevie Rae. – Gatos são estranhos assim. Sem querer ofender – completou ela, olhando para Aphrodite.

– Concordo com estranho. Como eu já disse antes, normal é supervalorizado.

– Tudo bem, então eu vou tentar não me preocupar com ele. Sinto muito se esbarrei em vocês, gente. Vejo vocês mais tarde.

– Juntem-se a nós na Câmara do Conselho, jovens novatas. – A voz de Kalona nos surpreendeu.

– Ele é sempre tão furtivo – sussurrou Stevie Rae para mim.

– Obrigada por me convidar, Kalona, mas não, obrigada – declarou Shaunee. – Nunca ninguém sai da Câmara do Conselho dizendo “Uau, que legal! Mal posso esperar para fazer isso de novo”.

Eu ia começar a rir e me despedir de Shaunee, mas meus instintos entraram em ação e me fizeram dizer:

– Na verdade, eu gostaria muito que você se juntasse a nós.

Shaunee parou, suspirou e deu de ombros.

– Tudo bem. Acho que isso é melhor do que ficar arrumando as camas no ginásio.

Sorri em agradecimento, e nós cinco entramos na Câmara do Conselho.

Thanatos e Vovó estavam sentadas uma do lado da outra. Lenobia também estava lá. Fiquei surpresa de ver que o detetive Marx estava em pé, com os braços cruzados, atrás de Thanatos. Achei que não houvesse mais ninguém lá, mas um movimento na porta dos fundos chamou a minha atenção e eu vi Aurox ali de novo, como se estivesse de guarda. Ele não olhou para mim.

– Zoey, Aphrodite, Stevie Rae, Kalona, por favor, entrem e se acomodem – disse Thanatos. – Shaunee, não creio que eu a tenha convocado.

– Eu pedi para ela se juntar a nós – falei eu.

– Então, Shaunee também é bem-vinda – concordou Thanatos, fazendo um gesto para nos sentarmos.

Só quando cheguei à mesa vi que a grande tela plana de computador estava ligada. Pisquei, surpresa, e depois sorri e apressei os últimos passos.

– Sgiach! Oi, que legal ver você! – exclamei.

A rainha sorriu e respondeu de maneira mais formal (e adequada):

– Merry meet , Zoey. Também é um prazer revê-la.

– Chamamos a Rainha Sgiach, desejando falar com um dos seus guerreiros, para que lhe desse o recado de que gostaríamos de encontrá-la – explicou Thanatos.

– E ficamos surpresos, e satisfeitos, quando a própria rainha respondeu ao nosso chamado – acrescentou Vovó.

Fiz um cálculo mental rápido: se eram quase seis horas da manhã em Tulsa, devia ser meio-dia na Escócia. O que Sgiach estava fazendo acordada? Olhei a rainha com mais atenção. Ela estava sentada em uma cadeira enorme de madeira na sua biblioteca particular – que parecia normal. Mas Sgiach não estava com aparência normal. O seu cabelo estava desarrumado, o rosto sujo, e eu me inclinei para mais perto da tela para ver melhor...

– Sangue! Por que está suja e tem sangue em você? Está tudo bem?

– Estou viva – respondeu Sgiach, o que não respondia à minha pergunta.

– Onde está Shawnus ? – perguntou Aphrodite, errando a pronúncia do nome do guardião de Sgiach de propósito.

– Seoras – corrigiu a rainha, estreitando o olhar para Aphrodite – está liderando uma guarda diurna e protegendo a ilha.

– Espere aí, protegendo durante o dia ? – Sacudi a cabeça, confusa. – Mas a sua ilha protege a si mesma, principalmente durante o dia.

– Isso é verdade desde que a Luz e as Trevas estejam em equilíbrio – explicou Sgiach.

– Zoey Passarinha – Vovó tocou a minha mão, como se estivesse me dando força –, Neferet acabou com o equilíbrio no mundo. As Trevas Antigas começaram a extinguir a Luz.

Os meus joelhos cederam, e eu me sentei na cadeira. Stevie Rae se sentou pesadamente ao meu lado. Aphrodite ficou andando de um lado para o outro atrás de nós, quase esbarrando no detetive Marx, e Shaunee escolheu uma cadeira próxima a Lenobia.

– Mas Neferet já estava louca havia um tempão. Eu não entendo por que ela de repente bagunçou as coisas – raciocinei.

– Ah, menina – lamentou Thanatos em tom triste. – Não é uma coisa repentina. É a culminação de uma onda terrível que vem subindo desde que Neferet libertou Kalona de sua prisão.

Eu franzi o cenho para o imortal alado que estava do outro lado da sala, próximo à porta principal, com o peito nu, expressão pétrea e em silêncio.

– Ele está do nosso lado agora. Isso deveria ajudar, e não atrapalhar o equilíbrio – argumentei.

– Isso não é um jogo. Essas forças não podem ser controladas – explicou Sgiach. – Foi o ato de libertá-lo que fez a inundação começar. Kalona foi apenas a primeira pedra a cair em uma represa começando a ruir.

– Então, vamos colocar a pedra de volta! – exclamou Aphrodite.

– Realmente – concordou Thanatos. – Foi por isso que chamamos Sgiach.

– Então, o que vamos fazer? – perguntei.

– Você junta a sabedoria de épocas distintas, de um mundo diferente. Forças antigas estão trabalhando agora. E é com sabedoria antiga que temos que remar contra a maré e restaurar o equilíbrio.

– Será que você pode ser menos enigmática do que uma das minhas malditas visões? – pediu Aphrodite.

– É claro, minha jovem e arrogante profetisa. – Achei que Sgiach fosse dar um belo chute na bunda de Aphrodite via Skype, mas, em vez disso, o seu olhar pousou em mim e, apesar dos milhares de quilômetros que nos separavam, o que ela disse fez os pelos dos meus braços se eriçarem. – O detetive Marx me explicou o que aconteceu entre você e os humanos no parque. Thanatos e a sua avó me contaram que a sua violência contra eles não foi um incidente isolado e que envolveu a pedra da vidência.

– Isso, mas eu não tenho mais a pedra – assegurei para ela rapidamente. – Eu não a uso mais.

– Menina, você nunca a usou. Ela usou você – explicou ela.

Engoli a terrível secura que tomou conta da minha boca.

– Eu sei. Foi por isso que a deixei aos cuidados de Aphrodite quando me entreguei para o detetive Marx.

– Conte-me como estava se sentindo nos dias que culminaram no incidente no parque – pediu Sgiach.

Hesitei e tentei ordenar os pensamentos. Por fim, comecei:

– Eu estava nervosa. Frustrada. Irritada. Parecia que eu estava zangada o tempo todo.

– As coisas pioraram depois que você usou a pedra da vidência para revelar o espelho que refletia o passado quebrado de Neferet para ela?

Arregalei os olhos.

– Eu não tinha pensado nisso, mas sim, ficou pior depois. – Instintivamente, passei a mão pela cicatriz na palma da minha mão. – Ela esquentava com mais frequência. E eu perdia a noção do tempo. – Contei essa última parte rapidamente, sem olhar para os meus amigos, para quem eu não tinha contado aquilo.

– Você via coisas durante o seu tempo perdido? – ela perguntou.

– Via – admiti lentamente, não gostando nada da expressão em seu rosto.

– Coisas como Fey, os espíritos elementares que viu em Skye quando esteve lá comigo?

– Não. – Estremeci. – Até poderiam ser Fey, mas não era como os elementares em Skye. Eram horríveis.

– Alguns Fey são terríveis. Assim como nós, nem todos eles escolhem a Luz. O que você via quando perdia a noção do tempo aconteceu antes ou depois de usar a pedra para salvar a sua avó?

– Antes – respondi.

– Zoey, aqui está a verdade que você precisa ouvir: magia antiga pode restaurar o equilíbrio da Luz e das Trevas novamente, o que significa que a sua pedra da vidência é a chave para se vencer esta batalha.

– Então, eu preciso dá-la a outra pessoa, porque o que eu estava fazendo com ela não funcionou. Tudo piorou em vez de melhorar – disse eu.

– Eu gostaria que as coisas fossem tão simples assim – declarou Thanatos.

Ela, Vovó e Sgiach trocaram um olhar, e eu soube que elas tinham conversado sobre a pedra antes de eu chegar.

Vovó deu uns tapinhas na minha mão e disse:

– Ninguém mais pode ostentar a pedra da vidência, u-we-tsi-a-ge-ya . A pedra só esquenta para você. Isso significa que ela a escolheu, e apenas você poderá ostentar a magia antiga através dela.

– Tudo bem, então. Mas como é que eu faço isso? – perguntei, odiando o aperto que senti no estômago só de pensar em tocar na pedra da vidência de novo.

– Estou com a Zoey – apoiou-me Aphrodite. – Simples ou não, diga a ela o que ela precisa fazer.

– É mesmo. A Z. já derrotou as Trevas e Neferet uma vez. Nós todos derrotamos – concordou Stevie Rae.

– Por causa da natureza volátil da magia antiga, só posso lhe dizer o que sei que não deve ser feito – explicou Sgiach. – Para que o seu poder trabalhe pelo equilíbrio e não se corrompa, ela deve ser comandada por uma Sacerdotisa que não seja nem agressora nem vítima. Sua intenção deve ser pura. Ela não pode ser vingativa nem defensiva.

– Mas Zoey tem de usá-la de forma defensiva! – exclamou Marx. – Neferet é uma assassina sociopata com o objetivo de escravizar Tulsa e talvez até o mundo inteiro.

– Isso não é um talvez, detetive – interrompeu Kalona. – Neferet deseja fazer mais do que forçar alguns poucos humanos azarados a adorá-la. Ela deseja reinar como a única Deusa deste mundo e tornar todos nós os seus escravos.

– Então, como é que a porra dessa pedra pode ser a chave para derrotá-la se Zoey não pode usá-la de forma defensiva? – perguntou Marx.

– Detetive, a magia antiga é neutra. É o poder na sua mais pura essência. E ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a carrega. Se seus motivos não forem completamente altruístas, o caos será o resultado. – O seu olhar pousou em mim. – Você tem evidências disso diante de si. Pelo que sabemos de Neferet no passado, à luz do que ela fez no presente, acredito que haja indicações claras de que ela usou magia antiga por muito tempo, talvez até mesmo antes de ter sido Marcada.

– Mas eu nunca a vi usando uma pedra da vidência – disse eu.

– Uma pedra da vidência é apenas um condutor para a magia antiga. Considere as gavinhas das Trevas que a acompanham sempre. Elas são básicas demais, cruas demais para serem qualquer coisa a não ser que sejam ligadas aos poderes antigos da Luz e das Trevas. Eu sei. No Mundo do Além, lutei contra as Trevas em diferentes formas por várias eras. Elas podem ser sedutoras e astutas. As Trevas usam muitas faces, e algumas delas podem ser vistas, a princípio, como aliadas.

– Eu não consigo entender como aquelas coisas rastejantes nojentas podem ser vistas como algo bom – comentou Stevie Rae.

– Neferet raramente fala disso, mas ela foi estuprada pelo próprio pai na noite em que foi Marcada – contou Lenobia. – Algo a ajudou a passar por aquela provação terrível, e não foi outro novato nem a sua mentora. Os registros da Morada da Noite de Chicago dizem claramente que ela voltou para a casa da sua família e estrangulou o pai antes mesmo de ter completado a Transformação. O investigador registrou que o ataque foi tão forte que a cabeça do pai quase foi separada do corpo.

– E ela se safou disso? – perguntou Marx.

– O crime aconteceu no fim do século XIX em um mundo muito maior, detetive. O Conselho da Morada da Noite de Chicago e o Conselho Supremo dos Vampiros decidiram juntos que seria melhor tirá-la do estado e permitir que ela recomeçasse um novo caminho onde teria a oportunidade de se curar da sua tragédia – contou Thanatos.

Lenobia acrescentou:

– E lembre-se, detetive, de que aquele homem agredira e estuprara a filha de dezesseis anos de idade.

– Os registros do Conselho Supremo relatam que havia diversas marcas de mordidas, mordidas humanas no corpo de Neferet, e que ela estava horrivelmente ferida e violada na noite em que o Rastreador a encontrou – informou Thanatos concordando com Lenobia.

Senti um choque com a lembrança.

– Logo depois que fui Marcada, Neferet mencionou algo comigo sobre ter sido machucada pelos pais.

– Sua mãe morreu ao lhe dar à luz. O seu pai era um monstro – contou Lenobia. – Todos que conheceram Neferet na sua juventude sabiam dos rumores sobre o que acontecera na noite em que fora Marcada.

– Sinto muito pelo seu passado, mas isso não muda o fato de que Neferet é uma imortal instável que precisa ser detida – declarou Marx.

– Não estamos mencionando o passado de Neferet como uma desculpa para os seus atos presentes – respondeu Sgiach. – Nós o mencionamos como uma lição para Zoey. – Os olhos de Sgiach queimaram os meus. – A magia antiga foi levada até Neferet, e ela descobriu que podia ostentá-la. Assim como ela foi levada a você e ostentada por você.

– Tudo bem, mas eu não gosto de ser comparada com a Neferet – declarei.

– Ainda assim, o que tem acontecido com você desde que começou a usar a pedra da vidência é bem parecido com o que aconteceu com Neferet. Ela usa você, e enquanto o faz, a corrompe.

Senti como se eu tivesse levado um soco no estômago.

– Eu jamais serei como a Neferet!

– Você já pensou que se pudesse simplesmente controlar todo mundo à sua volta, então poderia tornar tudo melhor para os seus amigos e para si mesma? – perguntou-me Sgiach de forma direta.

– Já, mas eu não queria que nada de ruim acontecesse! Eu só queria poder fazer com que todos agissem de forma correta para acabar com toda a loucura.

– Agir de forma correta de acordo com quem? – quis saber Thanatos.

– De acordo comigo, eu acho, já que era eu que estava desejando – protestei, sentindo-me encurralada.

– Intenção! – exclamou Sgiach para mim. – A magia antiga é neutra. Ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a detém! E a intenção da Sacerdotisa não pode ser vingança, nem frustração, nem qualquer outro sentimento egoísta. A sua intenção deve ser pura e voltada completamente para o bem maior. Mesmo que isso signifique que você possa sobreviver ou não ao ser o instrumento que a magia usa.

– Estou com medo – admiti, e a Vovó apertou a minha mão, dando-me força. – E eu não sei como fazer o que vocês estão me pedindo para fazer. Eu preciso que vocês me ajudem!

– Apenas você pode se ajudar. Cresça, jovem Sacerdotisa. Mostre para nós por que Nyx escolheu lhe dar tantos dons – desafiou Sgiach. – Mas seja rápida. Você precisa comandar a pedra da vidência para termos uma chance de deter Neferet e restaurar o equilíbrio entre a Luz e as Trevas.

O olhar cortante da rainha recaiu em Thanatos.

– Grande Sacerdotisa, compreenda que Neferet precisa ser contida para que esse contágio de maldade diminua.

– Qual é o seu conselho para contê-la sem usar magia antiga? – perguntou Thanatos, fazendo com que o meu rosto ficasse quente.

Eu sabia que ela não devia ter que fazer aquela pergunta a Sgiach – eu deveria amadurecer o bastante para usar a pedra da vidência e ajudá-la.

– Procure pelos rituais e feitiços mais antigos – orientou Sgiach. – Não pense em derrotar Neferet. Isso é impossível sem a magia antiga. Pense em isolá-la, distraí-la, irritá-la. Qualquer coisa que a faça repensar suas tramoias e seus planos, qualquer coisa que a faça tropeçar e a torne mais lenta poderá ajudar vocês.

– E dar a Zoey mais tempo para descobrir o caminho para comandar a magia antiga – concluiu Vovó.

Sorri nervosamente para ela, desejando sentir tanta confiança em mim mesma quanto ela tinha.

– Tentarei o máximo que eu puder. Prometo.

– Você não pode tentar , Zoey. Tentar é perigoso demais. Você não pode fazer nada até que saiba que se livrou de tudo que há de negativo em você: medo, raiva, egoísmo, desejo de vingança, ódio, até mesmo irritação e frustração. Só então poderá comandar e controlar a magia antiga. Até lá, Aphrodite deve manter a pedra da vidência longe de você. Não precisamos ter de lutar contra duas imortais que já foram Sacerdotisas talentosas da nossa Deusa.

Eu não conseguia acreditar no que ela tinha acabado de dizer! Sgiach realmente acreditava que eu poderia virar alguma coisa como Neferet.

– Eu não sou imortal! Eu só sou uma garota que não quer ter nada a ver com magia antiga ou com aquela maldita pedra da vidência.

– Imagino que uma jovem Neferet teria dito exatamente a mesma coisa e ela também estava longe de ser “apenas uma garota” – retrucou Sgiach.

Antes que eu conseguisse me recuperar da afirmação horrível, Thanatos acrescentou:

– Eu só conheci uma outra novata que recebeu tantos dons da Deusa quanto você, Zoey Redbird, e o nome dela era Neferet.

Apertei a mão de Vovó, sentindo como se o meu mundo estivesse se ruindo sob os meus pés.

– Agora, eu tenho que cuidar da minha própria enchente – declarou Sgiach. – Confio em você, Zoey. Acredito que encontrará uma maneira de trazer as forças da magia antiga com você na sua batalha pela Luz. Até que eu a veja novamente, abençoada seja.

Então a conexão via Skype foi desligada, deixando a câmara no mais absoluto silêncio.

– É claro que tudo isso é culpa sua – disse Aphrodite para Kalona, antes de se dirigir a mim, acrescentando: – Se você começar a me chamar de Frodo, eu vou ficar puta da vida.

– Sem querer ser cruel nem nada, Aphrodite, mas você está sendo um Frodo para Z. – declarou Stevie Rae.

– Se isso fosse verdade, então você seria um Sam [*] gordo e baixo – retorquiu Aphrodite.

– Uma adolescente? – soou a voz de Marx atrás de nós. – Por que o equilíbrio de poder entre o bem e o mal tinha que estar nas mãos de uma adolescente?

Franzi o cenho para ele.

– Há meses eu me pergunto a mesma coisa – comentou Kalona.

– Devo insistir que nos atenhamos a questões produtivas apenas! – cortou a voz de Thanatos, fazendo com que Marx e Kalona baixassem a cabeça.

– Na verdade – comecei eu, hesitante –, a pergunta do detetive Marx me fez parar para pensar.

– Eu não quis ser tão grosseiro – insistiu Marx.

– Ah, eu sei – respondi. – O que você disse não foi grosseiro, apenas verdadeiro. Por que o equilíbrio entre o bem e o mal deveria depender de mim? – Eu me apressei para continuar, não querendo que os meus pensamentos fossem interrompidos. – Talvez não seja eu, nem mesmo nós, o que é tão importante. Sgiach disse que a magia antiga é o que importa. Basicamente, eu sou apenas o canal para ela; por algum motivo, que nenhum de nós conseguiu entender, ela funciona através de mim. Então, como disse, não sou eu que sou importante. É a magia.

– Aonde você quer chegar, Zoey Passarinha? – perguntou Vovó.

– Bem, a magia antiga também responde a Sgiach. Thanatos, Lenobia, por favor, corrijam-me se eu estiver errada, mas Sgiach não é a personificação da sua ilha?

– Ela é sim – respondeu Thanatos, e Lenobia assentiu, concordando.

– A magia antiga está na terra – disse Vovó, empertigando-se na cadeira. – Assim como os nossos ancestrais Cherokees acreditavam.

– Oklahoma tem poder antigo em sua terra vermelha – declarou Kalona. – Eu sei disso. Esse poder me atraiu para cá não muito tempo depois que fui criado e, novamente, depois da minha Queda.

– E ele o conteve por séculos – completou Thanatos.

Kalona contraiu o maxilar, mas assentiu.

– Sim.

– No dia em que fui Marcada, fugi para a sua fazenda, lembra, Vovó? – A minha voz estava ficando menos hesitante à medida que os meus pensamentos encontravam um caminho para seguir. – Eu desmaiei tentando encontrá-la.

– Eu me lembro – disse Vovó. – Foi a primeira vez que Nyx apareceu para você.

– Isso! Ela me disse que eu deveria ser os seus olhos e ouvidos no mundo em que eu estava lutando para encontrar o equilíbrio entre o bem e o mal.

– Mesmo naquela época a Deusa estava nos alertando através de você – declarou Thanatos.

– Parece que demoramos muito para compreender – disse Stevie Rae.

– Não só vocês, gente – respondi. – Eu também. Acho que não entendi realmente o que Nyx estava querendo me dizer até este momento. Prestei atenção principalmente à parte em que ela dizia que a Luz nem sempre era boa e que as Trevas nem sempre eram o mesmo que o mal. Acreditei que Nyx estava me avisando para ficar atenta a Neferet, porque ela era tão linda por fora, mas completamente podre por dentro.

– Faz sentido – concordou Aphrodite.

– Totalmente – reforçou Stevie Rae.

– É, mas veja o que mais Nyx disse. Lembro-me de que ela disse que eu era especial, a sua primeira U-we-tsi-a-ge-ya V-hna-I Sv-no-yi

– Filha da noite – traduziu Vovó por mim.

– Mas isso não foi tudo o que ela disse. Nyx afirmou que eu era especial por causa do meu sangue antigo combinado com a minha compreensão do mundo moderno.

– E o seu sangue carrega consigo o poder das Sábias Cherokees – disse Vovó. – As mulheres que tiravam a sua força da terra.

– Desta terra – completou Thanatos.

– Oklahoma é o lugar onde a Trilha de Lágrimas terminou – declarou Vovó.

– E para onde fui atraído, assim como Neferet – disse Kalona. – Não podemos esquecer que Zoey carrega dentro de si um pedaço da alma de A-ya, a virgem formada nesta terra.

Eu não queria pensar muito, mas rapidamente acrescentei:

– Também foi onde Aurox foi criado pelo sacrifício de sangue da minha mãe com o poder tirado da terra pela minha avó.

Marx franziu as sobrancelhas.

– Aurox?

– Eu sou Aurox – disse ele, saindo das sombras.

– Espere um pouco – pediu Marx. – Você nem tem uma lua crescente na testa. Achei que você fosse apenas um cara que era o consorte da Grande Sacerdotisa.

O pensamento de Aurox sendo o consorte de Thanatos fez o meu rosto queimar de vergonha.

Aurox me ignorou e lançou um olhar questionador para Thanatos. Ela fez um breve aceno com a cabeça e ele se virou para encontrar o olhar de Marx. Soando forte e seguro, disse:

– Eu não sou humano nem vampiro. Sou um receptáculo criado pela magia antiga cujo propósito eram a vingança e a destruição.

– Mas que foi criado com uma alma. E, tendo recebido a capacidade de escolher, você optou por se desviar da vingança e destruição – completou Vovó.

– Caramba, isso quase parece bom! – disse Marx, analisando Aurox com cuidado. – Se ele tem esses poderes da magia antiga, será que não pode nos ajudar a lutar contra Neferet?

– A parte da luta não é importante – disse eu, sem olhar para Aurox. – É a parte da criação; ele, assim como eu, veio para cá com o sangue que data de gerações nesta terra.

– Precisamos usar o poder da terra para lutar contra Neferet, pelo menos até Zoey conseguir lidar com a pedra da vidência – disse Aphrodite.

– Aiminhadeusa! Eu tenho a resposta. – Shaunee ergueu a mão. – Desculpem-me, não queria interromper, mas acho que sei o que vocês devem fazer!

– E o que é, Shaunee? – perguntou Thanatos.

Ela baixou a mão, falando rapidamente:

– Sgiach nos disse para procurar os feitiços e rituais mais antigos a fim de confundir Neferet. Você disse que precisamos impedi-la de se espalhar. Está bem na nossa cara! Thanatos, você até nos deu uma aula sobre isso no outro dia.

– Shaunee, será que você poderia ser mais clara? – pediu Thanatos.

– Nós podemos usar o Ritual de Proteção de Cleópatra! Podemos fazer com Tulsa o que foi feito em Alexandria! – exclamou Shaunee, animada.

– Eu não faço a menor ideia do que ela está falando – disse Marx.

– Eu faço – declarou Lenobia.

– Assim como todos nós deveríamos saber – disse Thanatos. – Mas nós também deveríamos saber que o feitiço de Cleópatra exige que a Grande Sacerdotisa que o invoca fique isolada, jejuando e orando por três dias.

– No ritmo que Neferet está matando, não temos três dias – declarou Marx, sombrio.

– Mas nós temos o poder da terra – disse eu. – Será que não podemos usá-lo para acelerar o feitiço e fazê-lo funcionar?

– Ideia interessante – elogiou Thanatos. – O feitiço teria de ser invocado de um lugar de poder extraordinário o mais próximo possível do Mayo. E a sacerdotisa que invocar o feitiço e fizer o ritual teria de se manter isolada e no local em meditação e oração, mantendo a sua intenção determinada e verdadeira.

– Não vou ser eu – disse eu. – E não estou dizendo isso porque estou reclamando de não ser madura o suficiente ou Grande Sacerdotisa o suficiente. O que quero dizer é que tenho que resolver esse lance da pedra da vidência e estar livre para usá-la contra Neferet assim que eu descobrir como.

– Concordo, Zoey. Eu sou a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. É o meu dever invocar o feitiço e mantê-lo enquanto o meu desejo durar – declarou Thanatos.

– O fogo é a base do feitiço de Cleópatra. Eu ficarei com você – disse Shaunee. – Pelo tempo que for necessário.

Thanatos assentiu respeitosamente para Shaunee.

– Vou gostar da sua companhia e o poder que você puder emprestar ao feitiço, filha.

– Oh, agradeça à Grande Mãe Terra! Eu sei o lugar de poder que vocês devem usar! – exclamou Vovó, batendo com a palma da mão na mesa para pontuar as suas palavras. – O Council Oak Tree. Seu poder ancestral reinou nas Terras Isoladas por séculos, e fica a uma curta distância do Mayo Hotel.

– Lenobia, Aphrodite, Zoey, Stevie Rae, Shaunee, o que vocês acham? Vocês concordam com Sylvia Redbird? – perguntou Thanatos.

– Eu concordo – respondeu Lenobia.

– Eu também – disse Shaunee.

– Idem – concordou Stevie Rae.

– Parece um bom plano – assentiu Aphrodite.

Encontrei o olhar da Vovó e vi a sabedoria, o amor e a verdade.

– Com certeza – afirmei.

– Então vamos descansar. No crepúsculo, o círculo de Zoey vai até o lugar de poder, e, enquanto o sol se põe, eu vou preparar o ritual de proteção e invocar o feitiço, e que Nyx nos dê força. Pois assim nós escolhemos; que assim seja.

[*] Sam é o apelido do personagem “Samwise Gamgee” da obra O Senhor dos Anéis , escrita por J. R. R. Tolkien. (N.E.)


13

Zoey

– Stark, você viu a Nala?

– Não. Venha para cama. Ela deve estar ocupada com os outros gatos avisando para os ratos locais que os gatos estão de volta – respondeu ele, sonolento, e batendo com a mão no lugar ao seu lado na cama.

O sol tinha nascido havia pouco mais de uma hora, e Stark estava se enfraquecendo rápido.

– Mas a Nala sempre dorme comigo.

– Não dorme não. Às vezes, ela dorme com Stevie Rae. – Ele deu um bocejo enorme. – Pare de se preocupar e venha aqui. Você está nervosa desde a reunião do Conselho. Você vai descobrir como usar a pedra da vidência. Sei que vai. Ficar preocupada o tempo todo não vai ajudar em nada. Deite-se que eu vou fazer uma massagem.

Olhei para ele e sorri. Além de amar muito quando ele massageava os meus ombros, ele estava totalmente fofo e sexy com o cabelo despenteado e o olhar sonolento. Além disso, ele estava certo. Preocupar-me não me ajudaria a descobrir como usar aquela estúpida pedra da vidência. Cedendo, eu me deitei na cama de costas para ele e depois gemi de puro prazer quando seus dedos fortes começaram a massagear os nós de estresse que tinham se formado nos meus ombros.

– Acho que você deve ser perfeito – declarei.

– Viu só? Quanto menos se preocupa, mais esperta você fica – respondeu ele, bocejando de novo.

– Ei, eu estou bem. Pode dormir agora.

– Eu sei que você está bem, mas vai ficar melhor se ficar quietinha e me deixar cuidar dos seus ombros.

Ele beijou a minha nuca.

– Tudo bem, mas você pode desistir na hora que quiser – disse eu, relaxando sob o seu toque.

– Z., eu nunca vou desistir de você. Você sabe disso.

Ele deu mais um beijo na minha nuca, e eu suspirei feliz.

– Eu amo você.

– Também amo você – respondeu ele.

Quando suas mãos pararam, eu estava relaxada, aquecida e cansada. Fechei os olhos, sorrindo, e adormeci.

Por cerca de dois minutos. Então, os meus olhos se abriram e eu me sentei, aguçando os ouvidos.

– Você ouviu alguma coisa? – perguntei para Stark.

Ele murmurou algo que pareceu ser:

– Gato... Tudo bem... pare de se preo...

Então, ele se virou, puxou as cobertas até o ouvido e começou a roncar baixo.

– Nossa, isso que é um Guerreiro – resmunguei.

Então, bocejei e me espreguicei. Eu realmente precisava voltar a dormir. O meu alarme já estava programado. Nós tínhamos que nos levantar e nos apertar na van da escola sem janelas e seguir o caminho até o Council Oak Tree antes do crepúsculo. Quem poderia saber que tipo de loucura Neferet cometeria diante de um feitiço de proteção. Inferno, ela já estava...

Então, ouvi novamente e soube exatamente o que havia me acordado. Era um som baixo, definitivamente era o ronronar de um gato.

E não havia nenhuma bolinha de pelo laranja encolhida aos pés da minha cama!

Vesti minha calça jeans e peguei meus sapatos da forma mais silenciosa que pude, andando de meia, na ponta dos pés, até a porta. Sem fazer nenhum barulho, me concentrei em pensamentos felizes, abri a porta e fui para o corredor. Desci rapidamente para o andar de baixo e passei pela sala comunal deserta do dormitório e saí, piscando quando os raios de sol atingiram os meus olhos, causando uma ardência. Eu não ia voltar mesmo para pegar os óculos de sol, então protegi os olhos com a mão e chamei:

– Nala! Gatinha! Nala-Nala, venha aqui!

Então, prendi a respiração e agucei os ouvidos.

Ouvi o som de novo! Era definitivamente um ronronar. E, definitivamente, parecia que o gato estava com algum tipo de problema. Não dava para saber se era a Nala ou não, mas eu sabia que o som vinha de algum lugar perto do muro da escola que dava para a direção leste.

Coisas ruins sempre acontecem lá! Corri apressada, contornando os dormitórios e me dirigindo para o muro, chamando.

– Psiu-psiu! Gatinha! Aqui! Nala!

O gato continuou ronronando. Eu me dei conta de que aquilo era bom e ruim. Bom, porque eu poderia seguir o som do seu miado. Ruim, porque quanto mais perto eu chegava, mais sofrido o gato parecia.

O ronronado seguinte fez o meu estômago se contrair. Eu estava perto o bastante do carvalho partido para saber que o gato estava definitivamente em algum lugar no alto daquela árvore. Ah, que droga! Por que é que tinha de ser aquela árvore? A árvore que Kalona partira em duas quando escapara da sua prisão na Terra, a árvore onde Jack morrera, a árvore em que eu vira as criaturas nojentas da magia antiga.

Diminuí o ritmo quando me aproximei da árvore de aparência assustadora. Tudo bem, eu gosto de árvores. Eu realmente gosto. Tipo assim, eu amo a Bosque da Deusa no Mundo do Além. Eu amo a minha afinidade com a Terra, mesmo que não esteja tão em sintonia com ela quanto estou com o espírito, mas ainda assim... Normalmente, eu não tenho problemas com árvores.

Esta árvore é diferente.

A caverna de Kalona ficava ali embaixo, e o jeito como ela se abria em duas fazia com que se parecesse com os ossos de um monstro, congelado na morte, agachado na sua abertura. Todas as outras árvores do campus se erguiam verdejantes. Não esta. Ela era negra e sem folhas, malévola e partida. Seus galhos formavam mais garras do que eu poderia contar.

– Miau-miau!

– Nala!

Eu a peguei nos meus braços e beijei o seu nariz úmido. Ela, é claro, espirrou em mim.

Eu ainda estava abraçando Nala quando ouvi um segundo gato e olhei para baixo.

– Cammy? – Ele se enroscou em mim e se esfregou nas minhas pernas, deixando pelos louros espalhados na minha calça. – Aposto que Damien não sabe que você está aqui fora. Você deveria estar encolhido junto com a Duquesa e ele em um sono profundo.

– Miaaaaaaau!

Aquele miado eu conhecia sem nem ver o animal branco que o emitira. Olhei por cima da base despedaçada da árvore e, com certeza, lá estava uma gata gigantesca com cara achatada e pelos brancos, cheia de atitude.

– Malévola, Aphrodite não ficaria nem um pouco satisfeita de você estar aqui aterrorizando os outros gatos. – Fiz uma pausa. – Bem, isso provavelmente é mentira. Mas ainda assim... Você deveria tentar não ser tão parecida com ela. Nossa, o que é que você acha...

Então, as sombras ao redor da árvore se moveram e eu percebi que o carvalho antigo e assustador estava completamente cercado pelos gatos da Morada da Noite.

Abracei Nala, enquanto sentia um frio gelado descer pela minha espinha.

– Mas o que é que está acontecendo aqui?

– Isso é o que eu gostaria de saber.

A voz de Aurox me assustou fazendo com que eu apertasse Nala forte demais e, com um grunhido zangado, ela pulou dos meus braços e se juntou aos outros gatos em volta da árvore.

– Você fez esses gatos virem até aqui?

– Eu? – Meneei a cabeça. – É claro que não. E se você soubesse qualquer coisa sobre gatos, entenderia que não se pode obrig á-los a fazer nada.

– Eu não sei muita coisa sobre gatos – declarou ele.

– Bem, tudo o que eu fiz foi seguir um grunhido horrível que, na verdade, me acordou. Achei que fosse Nala, mas ela parece estar bem.

– Grunhido? Mas que grunhido? Tudo que ouvi foi você conversando com os gatos.

Eu franzi as sobrancelhas para ele e abri a minha boca para explicar o óbvio – que alguma coisa tinha me atraído até ali e que havia alguma coisa de errado com os gatos e com ele também. Tipo assim, ele não precisava ser tão frio e rude sempre que se importava em falar comigo, mas o gato me interrompeu.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – O miado patético pareceu se estender por muito tempo.

– Está vindo lá de cima, da árvore.

Protegi os olhos com a mão e espiei por entre os galhos quebrados.

– Lá! – Aurox apontou. – Estou vendo!

Segui o dedo dele e vi também. Lá, bem no alto, nos galhos do topo da árvore, estava um gato realmente grande. Era um gato malhado de laranja e branco com pelos longos. Não era do mesmo tom de laranja forte de Nala. A cor daquele gato era mais suave, como se o laranja tivesse sido diluído com creme. Ele parecia familiar, e eu apertei os olhos, tentando me lembrar quem era seu dono, quando vislumbrei os seus olhos. Eram de um verde amarelado surpreendente, com um brilho inteligente.

– Que merda! Aquele é Skylar! O gato de Neferet! – disse eu.

– O gato de Neferet? Mas o que ele está fazendo aqui? Ele não deveria estar com ela?

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – berrou Skylar enquanto o vento fazia os galhos estremecerem sob ele, que tentava se manter firme.

– Ele vai cair – disse Aurox, movendo-se tão rápido que os gatos se espalharam.

– Ei, tome cuidado. Skylar é conhecido por morder. Sério, Aurox. Os gatos costumam refletir a personalidade do novato ou do vampiro que escolhem, e nós todos sabemos que Neferet é...

– Zo, eu não posso simplesmente deixá-lo cair.

E isso me fez calar a boca. Ele não apenas soou como Heath, mas estava fazendo uma coisa muito burra e doce e muito parecida com que Heath faria. É claro que ele provavelmente ia causar uma confusão tão grande quanto Heath teria feito, mas não havia muito mais o que eu pudesse fazer, a não ser esperar e tentar resolver a confusão. E pensar. Hmmm .

– Ei! – chamei, enquanto ele escalava a árvore feito um macaco. – Bem, nunca ouvi falar disso, mas talvez se o vampiro de um gato fica mau, talvez ele cometa suicídio ou algo assim. Skylar deve estar aí em cima porque a Neferet ficou desvairada e ele não consegue lidar com isso.

– Eu não vou deixar ninguém cometer suicídio no meu turno, seja um novato, um vampiro, um humano irritante... Nem mesmo um gato com fama de mordedor.

– Tudo bem. Espero que Nyx esteja com você.

– Eu também.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – gritou Skylar enquanto Aurox se agarrava em alguns galhos que o mantinham, acrescentando um som horrível e baixo enquanto ele tentava se afastar.

– Tente falar com ele. De forma suave, como os gatos gostam, tipo gatinho.

– Tipo gatinho? O que é isso?

– Caraca, ele está acabado – disse eu para Nala. Ela espirrou e pareceu concordar comigo. Os outros gatos estavam todos olhando para Skylar, como se estivessem ali para testemunharem algo. Eu não fazia a menor ideia do que dizer para Aurox.

– Hum, tente conversar com ele. Eu me lembro de que ele é muito inteligente.

– Tudo bem. Vou tentar.

Aurox subiu mais um pouco de forma a se sentar praticamente na mesma altura em que Skylar se encontrava. Eu ouvi quando ele limpou a garganta e, então, com uma voz completamente normal, que ele usa em uma conversa do dia a dia, começou a falar com o gato:

– Merry meet , Skylar. Pelo que soube, você tinha uma ligação com Neferet. Eu também já tive, então posso imaginar como você deve estar se sentindo. Ela também me magoou. Ela continua machucando os outros. Não posso permitir que você se machuque. Eu escolhi proteger esta escola e você faz parte desta escola.

O que aconteceu em seguida foi uma das coisas mais loucas que eu já vi – e olha que eu definitivamente já vi coisas muito loucas. Skylar inclinou a cabeça para o lado como se estivesse ouvindo Aurox.

– Skylar – continuou Aurox com voz solene –, eu vou protegê-lo, mesmo que seja de você mesmo.

Então, Aurox estendeu a mão.

Lentamente, Skylar se alongou em direção a ele até que pudesse ser tocado por Aurox. Prendi a respiração, esperando que o grande gato começasse a berrar novamente e batesse com a pata na sua mão. Mas não foi isso que ele fez. Na verdade, Skylar farejou a mão de Aurox, parou e, então, começou a esfregar o seu queixo contra a mão dele. Mesmo de onde eu estava lá embaixo, dava para ver o sorriso iluminar o rosto de Aurox quando começou, hesitante, a fazer carinho no gato. Skylar parou por um instante e virou a cabeça, analisando Aurox novamente.

– Você pode escolher não permitir que as Trevas de Neferet destruam a sua vida – insistiu Aurox em tom sincero enquanto acariciava o queixo de Skylar.

Sem mais hesitação, Skylar foi na direção dos braços de Aurox.

E todos os gatos em volta da árvore partida começaram a ronronar.

Quando Aurox chegou ao chão, ele estava segurando Skylar bem junto de si. O gato parecia estar abraçado a ele, e sua cabeça fofinha estava aninhada sob o queixo de Aurox. Quando ele se aproximou de mim, ouvi Skylar ronronando.

– Aconteceu algo lá em cima – contou Aurox, com os olhos brilhando.

– É. – Eu funguei e enxuguei o rosto com a manga da camisa. – Skylar escolheu você. Vocês agora pertencem um ao outro.

Aurox olhou para Skylar, acariciando o gato com movimentos longos a amorosos. Skylar não abriu os olhos. A não ser pelo fato de que estava ronronando loucamente, parecia ter adormecido.

– Zo, ele é demais!

Sorri entre as lágrimas.

– Com certeza é.

Aurox olhou para mim. Então, automaticamente enfiou a mão no bolso da calça jeans e me deu um Kleenex.

– Você está com nariz escorrendo de novo.

– Com certeza – respondi.

Seus olhos encontraram os meus. Ele os afastou depressa, mas não antes de eu ver o sofrimento da sua expressão.

– Sinto muito. Eu não deveria tê-la chamado de Zo.

– Você pode me chamar do jeito que quiser.

Seus olhos encontraram os meus de novo e eu vi um brilho de raiva cruzar o seu rosto.

– Não seja legal comigo porque acha que eu sou Heath.

– Que merda, Aurox, eu estou sendo legal com você porque gosto de você! Você salvou a minha avó. Você está segurando um gato supercruel que acabou de salvar. VOCÊ É UM CARA LEGAL! – Parei de falar para controlar o meu tom de voz antes de terminar. – É por isso que estou sendo legal com você.

– Eu gostaria que isso fosse verdade – disse ele.

– Aurox, eu juro que só vou dizer a verdade para você. Tenho muita merda pessoal para lidar agora para acrescentar mentiras à minha lista.

– Você está sendo sincera, não está?

– Estou. – Enxuguei o rosto e funguei. – Valeu pelo lencinho.

– Não há de quê.

– Você tem coisas de gato no seu quarto?

Ele hesitou, e então disse em tom suave:

– Eu não tenho um quarto.

– Onde você dorme?

– Eu não durmo.

Aiminhadeusa! Ele nem é humano! Senti o choque daquilo, e a lembrança de como ele ficava quando se transformava em touro passou pela minha mente. De forma resoluta, afastei o pensamento.

– Bem, você vai precisar de um quarto agora. Esse gato precisa de um lugar para dormir, comer e... hmm, você sabe alguma coisa sobre caixas de areia?

– Hã?

Sorri para ele.

– Venha comigo. Kalona também não dorme. Vamos encontrá-lo. Ele pode arrumar um quarto para você, comida de gato e uma caixa de areia.

– Chamei Nala e ela, na verdade, veio para mim, pulando nos meus braços. Notei, então, que os outros gatos tinham desaparecido.

– Você acha que Kalona sabe lidar com gatos? – perguntou Aurox enquanto caminhávamos juntos.

– Aposto que sim. Ele costumava ser um guerreiro de Nyx, e gatos constituem uma grande parte do Mundo do Além. A Deusa ama gatos.

O rosto de Aurox ficou sem expressão e ele perguntou:

– Zo, você acha que o fato de Skylar me escolher pode significar que Nyx se importa comigo? Mesmo que só um pouco?

– Pode apostar.

Isso foi tudo que consegui dizer antes de a minha garganta se fechar com as lágrimas, e Aurox me dar outro Kleenex.


14

Kalona

– Tudo bem, eu tenho que dizer para você que aquilo tudo foi muito estranho? Você também achou? – perguntou detetive Marx para Kalona.

Ele estava caminhando ao lado do imortal alado quando ambos deixaram o dormitório dos garotos e saíram para o sol forte e bonito do meio-dia.

Kalona ergueu as sobrancelhas e lançou um olhar de esguelha para o detetive. Não estava acostumado a conversar de forma leve com ninguém – principalmente com humanos. Nem com alguém que não o julgava como monstro por causa do seu passado. Ele me trata como se fôssemos companheiros de batalha , percebeu Kalona com um sobressalto incomum de surpresa.

E foi com outro sobressalto de surpresa que o imortal alado se deu conta de que realmente gostava da companhia do detetive.

– Estranho? Ver um gato de uma vampira imortal e louca escolher uma criatura criada a partir de magia antiga para ser uma arma das Trevas, e, então, ter que explicar para a referida criatura, que parece exatamente como um garoto confuso, como alimentar e limpar uma caixa de areia? – debochou Kalona. – Detetive, acho que “estranho” não é uma palavra forte o suficiente para descrever o que acabou de acontecer.

– Que bom ouvir isso!

O detetive deu um tapa no ombro de Kalona em um gesto amigável. Kalona teve de apertar os dentes por causa da dor que atravessou o seu corpo quando o gesto inocente de Marx abriu um ferimento ainda não curado. Kalona emitiu um grunhido que refletia concordância, e não desconforto.

Ignorando qualquer outra coisa a não ser a conversa que estavam tendo, Marx riu e continuou:

– É, teve uma hora lá, quando o garoto estava acariciando o queixo do gato gigante, que eu tenho quase certeza de que os seus olhos começaram a brilhar.

– Os do gato ou os do garoto? – brincou Kalona, ignorando a dor prolongada.

– Os do garoto. Os olhos dos gatos também podem brilhar? – Marx meneou a cabeça. – Não, não me diga. Agora eu compreendo por que a minha irmã diz que algumas coisas vampíricas são zona proibida para humanos. Não faz bem para a nossa cabeça. Pode nos enlouquecer.

Kalona riu.

– Acho que isso tem mais a ver com a estranheza dos nossos tempos do que com a habilidade dos humanos em compreender o anormal.

– Talvez você esteja certo. Estamos vivendo uma época muito estranha.

Eles caminharam juntos sem falar, embora Kalona não sentisse que o silêncio era pesado. Eram apenas dois homens responsáveis por proteger aqueles que lhe eram caros.

É assim que se deve fazer parte de uma família. Eu gosto desse sentimento! O pensamento chegou à sua mente de forma espontânea, e ele não sabia o que fazer com ele. Como é que a Morada da Noite se tornara a sua família? Kalona não fazia ideia, mas até mesmo Zoey Redbird, a novata que ele tentara seduzir primeiro para depois destruí-la, começou a confiar nele o suficiente para procurá-lo em busca de conselhos e ajuda para Aurox quando o felino de Neferet escolheu o receptáculo como seu familiar.

Assim, Kalona teve o seu terceiro sobressalto de surpresa.

– Pode deixar pra lá. Eu não queria perguntar. A minha irmã vive me dizendo que é um péssimo hábito que adquiri desde que me tornei detetive.

Kalona tentou se recompor mentalmente.

– Desculpe, eu estava pensando em outra coisa. Você me perguntou algo?

– Perguntei, mas era pessoal demais, principalmente considerando quem você é. Esqueça... Preciso dormir um pouco antes da loucura começar de novo – disse Marx depressa.

– Você pode me perguntar o que quiser. Nós lutamos contra as Trevas juntos. Deve haver confiança entre nós.

Chegaram ao dormitório das garotas, e Marx parou apoiando-se no corrimão da escada que dava para a varanda de entrada.

– Tudo bem, então. Eu só estava me perguntando por que Nyx não desce dos céus e detém, ela mesma, Neferet. Ela é a ex-Grande Sacerdotisa da Deusa. Acho que Nyx deve estar puta da vida pelo modo como está usando o seu poder de forma errada.

– Em primeiro lugar, Nyx não mora nos céus, ou, pelo menos, não nos céus da civilização ocidental moderna.

– Certo, desculpe. Eu esqueci. Minha irmã me explicou essa parte há alguns anos. Nyx mora no Mundo do Além, certo?

– O Mundo do Além é o reino de Nyx. Está correto.

– E você já esteve lá?

– Durante éons, aquele foi o meu reino também – contou Kalona devagar, desacostumado a falar sobre a Deusa ou o Mundo do Além.

– Desculpe-me se estou sendo intrometido. Eu vou parar por aqui e...

– Eu não me importo de falar sobre isso – respondeu Kalona, dando-se conta de que estava dizendo a verdade.

– Então, você conhece Nyx muito bem.

Kalona inspirou e expirou longamente várias vezes. A resposta para a pergunta do detetive era tão simples quanto desoladora.

– Eu conhecia a Deusa bem. Muito bem.

– Ah, entendi. No passado. – Marx parecia estar pensando em voz alta. – Isso pode explicar o que está acontecendo. Nyx mudou desde a época em que se conheceram. Talvez ela tenha perdido o interesse no mundo moderno. E quem poderia culpá-la? É por isso que ela está deixando que Neferet escape, mesmo tendo corrompido o poder concedido pela Deusa e ferindo não apenas humanos, mas novatos e vampiros também.

– Isso não é verdade. A nossa Deusa não perdeu o interesse em nós.

Kalona desviou o olhar de Marx e viu Shaunee caminhando pela calçada em direção a eles, carregando um gato cinza nos seus braços. Ela usava óculos escuros e um gorro que escondia o seu rosto; estava claro que a luz do sol a incomodava. Ela deve estar perto de completar a Transformação , pensou Kalona e, então, percebeu que a ideia de Shaunee passar pela Transformação e se tornar uma Sacerdotisa vampira lhe provocava um sentimento muito próximo de orgulho.

Esse pensamento fez com que sua voz ficasse brusca:

– Shaunee, você deveria estar no seu quarto, dormindo. A luz do sol não lhe faz bem.

– Eu estou indo para a cama. Só tinha que encontrar Beelzebub. Mas antes de eu ir, quero deixar algo muito claro para o detetive Marx. – Ela pousou seus olhos castanhos no detetive. – Nyx não perdeu o interesse em nós – repetiu ela.

O olhar de Marx passou para Kalona e, depois, voltou para Shaunee. Antes que pudesse responder, a novata recomeçou a falar:

– Não procure Kalona para obter respostas sobre Nyx. – Ela lançou um olhar de desculpas para o imortal. – Isso vai soar cruel, mas não estou fazendo isso de propósito. – Ela voltou a atenção para Marx antes de continuar. – Kalona caiu . Isso não faz dele uma testemunha perita em Nyx, detetive. Se você tem perguntas sobre a nossa Deusa, faça-as a mim. Eu converso com ela todos os dias, e, às vezes, ela até me responde.

– Tudo bem, então. Você pode explicar por que Nyx permitiria que Neferet causasse tanta dor e tanto sofrimento, assistindo a tudo sem fazer nada a respeito? Ela concedeu a Neferet os dons que permitiram que ela acumulasse tanto poder. Por que Nyx pelo menos não revoga os seus dons? Isso faria sentido. Não fazer nada não faz sentido para mim. Digo isso com todo o respeito pela sua Deusa, mas as ações dela não parecem a de uma divindade amorosa.

– Nyx não tirará os dons de Neferet, nem os dons de qualquer um de nós porque ela ama de forma incondicional e sempre mantém a sua palavra, mesmo quando não cumprimos a nossa e a traímos – explicou Shaunee.

Kalona cruzou os braços e fingiu desinteresse, embora não se mexesse – nem respirasse, apenas ouvisse.

– E ela não desce e salva o dia porque ela nos ama tanto que sempre nos dará o livre-arbítrio. – Ela fez uma pausa e, depois, perguntou: – Você tem filhos, detetive Marx?

– Tenho. Duas filhas. Uma de nove e outra de onze.

– E se você nunca permitisse que elas cometessem erros? Ou, melhor ainda, e se você permitisse que cometessem erros, mas, então, interviesse e resolvesse todas as consequências por elas?

– Acho que eu estaria criando uma dupla de meninas mimadas – respondeu ele.

– Que tipo de mulher você acha que elas se tornariam? – perguntou Shaunee.

– Egoístas e irresponsáveis. Se elas crescessem.

– Exatamente! – Shaunee sorriu. – Como nós poderíamos aprender, crescer e evoluir se Nyx nos resgatasse das nossas decisões erradas? Ou se parasse de permitir que tomássemos as nossas próprias decisões, boas ou ruins?

Kalona não conseguiu ficar em silêncio por mais tempo.

– Seria mais fácil se Nyx resolvesse tudo! Eu ainda a conheço bem o suficiente para assegurar a você que a nossa Deusa seria benevolente e bondosa. E isso é mais do que qualquer um de nós pode garantir em relação ao público em geral, sejam vampiros ou humanos.

– Se Nyx resolvesse tudo, os poderes da Luz e das Trevas ficariam desequilibrados para sempre – disse Shaunee.

– A Luz venceria! Não é esse o objetivo? – perguntou Kalona.

– Aiminhadeusa! Será que não percebe o que está pedindo?

– Sim! Estou pedindo paz! O fim do desejo por carnificina e do derramamento de sangue, da traição e da destruição.

– Não! – argumentou Shaunee. – Você está pedindo o fim do livre-arbítrio. Nós nos transformaríamos naquelas pessoas gordas e flutuantes do filme Wall-E , ou pior.

– Que língua você está falando?

– Eu sei do que ela está falando. É um filme da Pixar. Ela quer dizer que nós nos tornaríamos idiotas preguiçosos e sem motivação. – Marx coçou o queixo. – Na verdade, acho que ela talvez esteja certa. Você tem ido a alguma feira estadual?

Então, o detetive riu da própria piada, que não fez o menor sentido para Kalona.

Shaunee não piscou. Ela nem sorriu para Marx. Seu olhar sombrio pousou em Kalona.

– Você não vai conseguir se aproximar de Nyx dessa forma. Você tem que abandonar esse problema de controle e escolher realmente acreditar, de forma sincera, e amar de verdade. – Então, ela deu um beijo na cabeça do gato cinza adormecido em seus braços. – Então, isso responde às suas perguntas, detetive Marx?

– Não a todas, mas o suficiente por ora – respondeu ele.

– Ótimo! Vou pra cama. Vejo vocês no crepúsculo.

Ela subiu a escada e desapareceu no dormitório das garotas.

– Também vou dormir. Thanatos disse que eu poderia usar um beliche na casa dos professores. Você parece cansado. Você vem também?

– Não. Vou assumir o turno de Aurox e vigiar o perímetro – disse ele.

– Turno dobrado. Esses são difíceis. Você quer companhia?

Kalona olhou para o detetive. A pele sob os seus olhos estava ferida e seus passos, arrastados.

– Talvez numa próxima. Mas obrigado por se oferecer.

– Sem problemas. Tenha cuidado lá fora. Como a garota disse, vejo você no crepúsculo.

Kalona assentiu e começou a caminhar para o muro mais distante da escola, tentando, sem sucesso, não ouvir novamente as palavras de Shaunee ecoando em sua mente.

Lynette

– As fantasias estão péssimas! – disse Neferet enquanto meneava a cabeça e lançava um olhar de raiva para o grupo de pessoas trêmulas que Lynette escolhera para usar o que deveriam ser roupas dos anos vinte.

Se tudo, ou mesmo qualquer coisa , estivesse normal, Lynette teria dito que o seu último evento tinha passado por alguns problemas. Na insanidade em que o seu mundo se transformara, Lynette decidiu que o seu último evento era um colete cheio de explosivos de um homem-bomba prestes a explodir – e era ela quem estava usando o maldito colete.

– Deusa, você se lembra das duas coisas de que eu preciso? Tempo e recursos?

– Eu me lembro de tudo .

Lynette bateu palmas diante de si para que Neferet não percebesse o quanto estava trêmula. Limpou a mente e se concentrou no que fazia melhor – lidar com o cliente para que o evento fosse um sucesso.

– E é exatamente por isso que é tão bom planejar eventos para uma Deusa, e não para um humano ou um vampiro – disse Lynette.

O olhar raivoso de Neferet se suavizou com a bajulação.

– Do que você precisa que eu não lhe ofereci? Nós decidimos o tema da minha próxima adoração ontem à noite. Já está quase no crepúsculo, e tudo que eu pedi foi para dar uma olhada nas fantasias dos meus súditos enquanto eles ensaiam o Charleston. Estou certa de que Tulsa tem lojas de fantasia o suficiente e você tem acesso ilimitado aos meus recursos . Então, explique-me por que nenhuma dessas fantasias se parece remotamente com o estilo dos anos vinte?

– Tulsa tem apenas duas lojas decentes de fantasias: a Ehrle’s e a Top Hat – começou Lynette.

– Apenas duas? – Neferet suspirou. – Eu deveria ter começado o meu Templo em Chicago. Chicago está cheia de excelentes lojas. Kylee! Minha taça está vazia!

A Kybô, que era o modo como Lynette silenciosamente se referia à recepcionista robótica, apressou-se pelas escadas subindo até o local onde Neferet colocara o seu trono, enchendo novamente o líquido escarlate que nunca parecia ser o suficiente para a Deusa.

– Mas eu a interrompi, querida Lynette. Por favor, continue a explicação sobre as roupas. – Ela apontou os dedos com as unhas vermelhas para o grupo de pessoas desarrumadas esperando lá embaixo.

– Entrei em contato com os donos das duas lojas. Eles se recusaram a fazer qualquer entrega para nós.

Lynette deu a notícia rapidamente e então se preparou para a loucura.

Em vez de explodir, Neferet ficou totalmente imóvel. Em uma voz suave e pensativa, perguntou:

– E por que eles se recusaram a me atender?

– Eles explicaram que a polícia cercou todo o Mayo e que não permitem que ninguém se aproxime daqui.

Neferet bateu com uma das unhas afiadas na taça. Ela virou a cabeça em uma postura pensativa. Então, a sua expressão se suavizou e ela sorriu.

– A solução é simples. A polícia está evitando que os humanos entrem. Sua atenção está voltada para fora. Eles não vão esperar que alguém saia.

– Sair?

– Sim, bem, não vai ser qualquer um que vai sair. Será você.

Lynette se apoiou na grade de ferro.

– Eu?

– Minha querida, você está com algum problema de audição?

– N-não – apressou-se Lynette a assegurá-la.

– Kylee, sirva uma taça de vinho para Lynette. Ela está pálida. – Agradecida, Lynette tomou o vinho enquanto Neferet começava a sua explicação insana. – Será bem fácil para você. Você sairá pelos fundos, onde eles empilham aquele lixo horrendo. Pular a cerca não deve ser um problema. Você parece ter se mantido em forma. E, é claro, Judson vai acompanhá-la para ajudar com qualquer problema que possa ter. Judson, certifique-se de que a querida Lynette volte em segurança. E você carregará as sacolas de compras para ela, não é mesmo?

Judson assentiu de forma automática e respondeu:

– Sim, Deusa.

– Excelente! Vou pedir para Kylee chamar um táxi para encontrar vocês... Hum... em frente à Biblioteca Central na Fourth Street com a Dever. É longe o suficiente e não estará dentro do cerco policial, e perto o bastante para que não seja tão cansativo para você na volta. Judson vai carregar todo o peso para você.

A mente de Lynette estava a mil. Ela está mandando Judson comigo para me forçar a voltar. Mas ele não passa de um robô quando Neferet não está por perto. Talvez eu consiga escapar, principalmente quando chegarmos à biblioteca. Alguém lá poderá...

– Permita que eu esclareça uma coisa, Lynette. Judson e você não estarão sozinhos. Eu jamais pensaria em deixá-los tão vulneráveis. Vários dos meus filhos irão acompanhá-los. – A Deusa acariciou uma das coisas rastejantes que estava enrolada na sua perna. – Eles também ficarão ansiosos para se aproximarem de você, se hesitar. Então, você e Judson terão mais em comum do que imagina... Tão mais.

Lynette ordenou os pensamentos. Trabalho! Eu tenho que me concentrar no trabalho!

– Algum problema, querida? Com certeza você não discorda da minha solução.

– Honestamente, eu concordo com a parte de sair. – Lynette se concentrou na única coisa normal que sobrara do seu mundo, concentrar-se em concluir um trabalho. – A polícia não está esperando que ninguém faça isso. Mas eu me preocupo com a volta. Você mesma disse que eles estão concentrados em manter as pessoas do lado de fora.

– Você está certíssima em se preocupar. Eu me esqueço de que você não consegue ler a minha mente, porque posso ler a sua tão facilmente. A resposta para o seu problema é bem simples. Devemos esperar até o sol se pôr para você começar a sua jornada. Na volta, os meus filhos vão fazer uma cortina de neblina e magia, sombras e fumaça, para que as Trevas a ocultem.

Lynette ficou boquiaberta e manteve os pensamentos cuidadosamente em branco, sem saber o que dizer.

– Você não precisa ficar preocupada. Ficar oculta pelas trevas não machuca nem dói. Bem, eu deveria dizer que não vai machucar nem doer para você. Os meus filhos precisam ser alimentados. Nesta noite, um motorista de táxi vai ganhar mais do que uma boa gorjeta! – A risada de Neferet foi cruel e ensandecida.

Lynette ergueu a taça e tomou um grande gole.

– Agora, mande esses súditos desarrumados para os seus quartos. Da próxima vez que os vir, quero ficar encantada. – Neferet bateu as mãos depois de suas ordens, como se fosse um faraó dispensando os seus escravos. – Lynette, talvez seja melhor você trocar o seu vestido por uma calça e uma blusa escura. Eu odiaria se você ficasse acidentalmente exposta demais. Você está liberada até o crepúsculo.

– Sim, Deusa.

Lynette fez uma reverência e se afastou, trêmula, seguindo para o elevador que a levaria até o loft no quarto andar que Neferet lhe dera. Quando entrou no elevador, cobriu a boca com as duas mãos, abafando um grito que não conseguia controlar. Pela primeira vez, Lynette compreendeu que não havia como sobreviver à loucura de Neferet, que a questão não era se ela ia morrer, mas como e quando.


C O N T I N U A

Nunca me senti tão sombria assim.
Nem mesmo quando fui estilhaçada e presa no Mundo do Além e minha alma começou a se fragmentar. Naquela época, eu estava quebrada, destruída e prestes a me perder para sempre. Eu me sentia sombria por dentro, mas as pessoas que mais me amavam foram faróis lindos e brilhantes de esperança, e eu fui capaz de encontrar força em sua luz. Consegui sair da escuridão.
Desta vez, eu não tinha nenhuma esperança. Não conseguia encontrar uma luz. Eu merecia continuar perdida, despedaçada. Desta vez, eu não merecia ser salva.
O Detetive Marx me levou para a delegacia do condado de Tulsa em vez de me jogar numa cela com o resto dos criminosos presos há pouco tempo. Na viagem aparentemente interminável da Morada da Noite até o grande prédio de pedra marrom do Departamento de Polícia da First Street ele conversou comigo, explicando que tinha feito uma ligação e mexido uns pauzinhos para que eu ficasse em uma cela especial até que o meu advogado tomasse as devidas providências sobre minha acusação, e então eu poderia ser solta sob fiança. Ele alternava o olhar entre a estrada e o meu reflexo no espelho retrovisor. Meu olhar encontrou o dele. Não precisei de mais do que um olhar de relance para ler a expressão em seu rosto.
Ele sabia que eu não tinha a menor chance de conseguir sair sob fiança.
– Eu não preciso de um advogado – disse eu. – E não quero fiança.
– Zoey, você não está pensando direito. Espere um pouco. Acredite em mim, você vai precisar de um advogado. E, se puder sair sob fiança, será o melhor para você.
– Mas não seria o melhor para Tulsa. Ninguém vai deixar um monstro à solta. – Minha voz soou estável e indiferente, mas por dentro eu estava gritando.
– Você não é um monstro – assegurou-me Marx.
– Você viu aqueles dois homens que eu matei?

 


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Ele me lançou um olhar pelo retrovisor de novo e assentiu. Eu podia ver que seus lábios estavam pressionados, formando uma linha, como se estivesse se segurando para não dizer algo. Por algum motivo, seu olhar ainda era bondoso. Eu não conseguia retribuir aquele olhar.

Olhando pela janela, eu disse:

– Então, você sabe o que eu sou. Você pode me chamar de monstro, de assassina, de vampira novata e perigosa... É tudo a mesma coisa. Eu mereço ser presa. Eu mereço o que vai acontecer comigo.

Então, ele desistiu de conversar, e eu fiquei satisfeita.

Uma cerca de ferro preta cercava o estacionamento da delegacia de polícia, e Marx seguiu até um portão nos fundos onde precisava esperar para ser identificado antes de um enorme portão se abrir. Então, ele estacionou e me conduziu, algemada, por uma porta nos fundos e por uma grande e agitada sala toda dividida em cubículos. Quando entramos, policiais conversavam e telefones tocavam. Assim que perceberam que Marx estava comigo, foi como se tudo tivesse sido desligado. As conversas cessaram e todos nos fitaram como idiotas.

Fixei o olhar em um ponto na parede bem na minha frente e me concentrei para não permitir que os gritos dentro de mim ecoassem.

Tivemos de atravessar toda a sala. Então passamos por uma porta que levava a uma daquelas salas como as do seriado Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais , em que a incrível Mariska Hargitay interroga os bandidos.

Fiquei sobressaltada ao perceber que o que eu fizera me transformara em um dos bandidos.

Havia uma porta no canto da sala que levava a um pequeno corredor. Marx virou à esquerda e parou para passar seu crachá de identificação, e uma porta de aço muito grossa se abriu. Do outro lado, o corredor logo acabava. Havia outra porta de metal à nossa direita, que estava aberta. A parte de baixo era sólida, mas, na altura dos ombros, as grades começavam. Grades pretas e grossas. Foi onde o Detetive Marx parou. Olhei para dentro. O lugar era uma tumba. De repente, senti dificuldade para respirar, e meus olhos desviaram do lugar horrível para encontrar o rosto familiar de Marx.

– Com o poder que você tem, imagino que consiga fugir daqui – ele falou baixinho, como se alguém pudesse estar nos escutando.

– Eu deixei a pedra da vidência na Morada da Noite. Foi isso que me deu o poder para matar aqueles dois homens.

– Então, você não os matou sozinha?

– Eu fiquei furiosa e despejei toda a minha fúria neles. A pedra da vidência só me deu o estímulo. Detetive Marx, a culpa foi minha. Ponto final.

Tentei soar durona e certa do que estava falando, mas a minha voz saiu suave e trêmula.

– Você consegue fugir daqui, Zoey?

– Para ser honesta, eu não sei, mas prometo que não vou tentar. – Respirei fundo e soltei todo o ar de uma vez, dizendo a ele a mais absoluta verdade. – Por causa do que eu fiz, meu lugar é aqui, e independentemente do que aconteça comigo, eu mereço.

– Bem, eu prometo que ninguém vai conseguir incomodá-la aqui. Você estará segura – garantiu ele, gentil. – Eu mesmo me certifiquei disso. Então, o que vier a acontecer, não será porque levou uma surra de linchadores.

– Obrigada.

Minha voz estava fraca, mas consegui pronunciar as palavras.

Ele tirou de mim as algemas.

Eu não tinha conseguido me mexer ainda.

– Você precisa entrar na cela agora.

Consegui fazer com que meus pés se mexessem. Quando eu estava dentro da cela, virei-me e, pouco antes de ele fechar a porta, eu disse:

– Não quero ver ninguém. Especialmente se for da Morada da Noite.

– Tem certeza?

– Tenho.

– Você entende o que está dizendo, não entende? – perguntou ele.

Eu assenti.

– Eu sei o que acontece com uma novata que não fica perto de vampiros.

– Então, basicamente, você está dando a sua própria sentença.

Ele não formulou como uma pergunta, mas eu respondi mesmo assim.

– O que eu estou fazendo é me responsabilizar pelos meus atos.

Ele hesitou, e pareceu que havia mais alguma coisa que desejava dizer, mas Marx apenas deu de ombros, suspirou e concordou:

– Certo, então. Boa sorte, Zoey. Sinto muito que as coisas tenham chegado a esse ponto.

A porta se fechou como que selando um caixão.

Não havia janela, nenhuma luz exterior exceto a do corredor que espreitava por entre as barras da porta. No fundo da cela havia uma cama: um colchão fino em cima de placa de alguma coisa dura grudada na parede. Havia um vaso sanitário de alumínio saindo do meio de uma parede paralela, não muito longe da cama. Não tinha tampa. O chão era de concreto preto. As paredes eram cinza. Sentindo-me como se estivesse em um pesadelo, andei até a cama.

Seis passos. Esse era o comprimento da cela. Seis passos.

Fui até a parede lateral e caminhei pela cela. Cinco passos. Tinha cinco passos de largura.

Eu estava certa. Se não contasse a distância para o teto, eu estava trancada em uma tumba do tamanho de um caixão.

Sentei-me na cama, puxei os joelhos até embaixo do queixo e abracei-os. Meu corpo tremia, tremia e tremia.

Eu ia morrer.

Eu não consegui me lembrar se Oklahoma tinha pena de morte. Como se eu tivesse realmente prestado atenção às aulas de História enquanto o Treinador Fitz passava um filme atrás do outro. Mas, de qualquer forma, isso não importava. Eu deixara a Morada da Noite. Sozinha. Sem nenhum vampiro. Nem mesmo o Detetive Marx sabia o que isso significava. Era só uma questão de tempo até meu corpo começar a rejeitar a Transformação.

Como se eu tivesse rebobinado um filme em minha mente, imagens de novatas morrendo apareceram na tela dos meus olhos fechados: Elliot, Stevie, Rae, Stark, Erin...

Apertei meus olhos ainda mais.

Acontece rápido. Rápido mesmo , prometi para mim mesma.

Então, outra cena de morte surgiu nas minhas lembranças. Dois homens – mendigos, insolentes, mas vivos, até que não consegui controlar o meu temperamento. Eu me lembrava de como atirara a minha raiva contra eles... de como eles bateram contra o paredão de pedra ao lado da pequena gruta de Woodward Park... de como ficaram deitados lá, dobrados, quebrados...

Mas eles estavam se mexendo! Eu não achei que os tivesse matado! Não tinha a intenção de matá-los! Fora realmente um terrível acidente! Minha mente gritava.

– Não! – falei com firmeza para a parte egoísta de mim que queria inventar desculpas e fugir das consequências. – As pessoas têm convulsões quando estão morrendo. Eles estão mortos porque eu os matei. Não vai compensar o que fiz, mas mereço morrer.

Eu me encolhi embaixo do áspero cobertor cinza e fitei a parede. Ignorei a bandeja com o jantar que enfiaram por uma abertura na porta. Eu não estava com fome, mas independentemente do que houvesse na bandeja, definitivamente não me apeteceria.

E, por alguma razão, a refeição ruim fez com que eu me lembrasse da última vez em que senti um cheiro maravilhoso de comida: o psaguetti [*] da Morada da Noite, cercada de amigos.

Mas eu estava estressada demais com o problema Aurox/Heath/Stark e nem apreciei o psaguetti de verdade. Assim como não apreciei os meus amigos. Nem Stark. Não mesmo.

Eu não tinha parado para pensar como era sortuda por dois caras tão incríveis me amarem. Em vez disso, eu ficara irada e frustrada.

Pensei em Aphrodite. Lembrei-me de como ela falou com Shaylin sobre me vigiar. Lembrei-me de como entrei furiosa e despejei o poder da minha fúria acumulada através da pedra da vidência.

A lembrança fez com que eu me encolhesse de vergonha.

Aphrodite estava absolutamente certa. Eu precisava ser vigiada. Ela sequer teve a chance de conversar comigo. E, quando tentou, droga, eu não fui nem um pouco razoável.

Eu me encolhi de novo quando me lembrei de como cheguei perto de despejar a minha raiva contra Aphrodite.

– Aiminhadeusa ! Se eu tivesse feito isso, teria matado a minha amiga – disse para as palmas das minhas mãos enquanto cobria o rosto de vergonha.

Não importava que a pedra da vidência, de alguma forma, mesmo sem eu pedir, tivesse aumentado meus poderes. Tive muitos avisos. Todas aquelas vezes em que me irritava e a pedra ficava cada vez mais quente. Por que não parei e refleti sobre o que estava acontecendo? Por que não pedi a ajuda de alguém? Cheguei a pedir conselhos a Lenobia sobre namorados. Conselho sobre namorados! Devia ter perguntado sobre como controlar raiva!

Mas eu não pedia ajuda para nada, exceto para a única coisa em que a minha visão afunilada estava focada: em mim mesma.

Eu era uma vadia egocêntrica.

Eu merecia estar onde estava. Eu merecia as consequências.

As luzes do corredor se apagaram. Não fazia ideia de que horas eram. Parecia ter se passado anos, e não apenas meses, desde que eu fora humana – uma adolescente normal que tinha que ir para a cama muito cedo nos dias de aula.

Eu desejava, com todas as minhas forças, poder chamar o Super­-Homem e pedir que ele voasse na direção contrária em volta da Terra para fazer o tempo voltar para ontem. Então, eu estaria em casa, na Morada da Noite, com meus amigos. Eu me jogaria nos braços de Stark e diria a ele o quanto o amo e sou grata por tê-lo. Diria que sinto muito pela confusão com Aurox/Heath, e que sairíamos dessa – nós, as duas pessoas e meia envolvidas –, mas que eu desfrutaria de todo o amor que me cercava, independentemente de qualquer coisa. Depois, me livraria da maldita pedra da vidência, procuraria Aphrodite e entregaria a ela para que fosse mantida em segurança, como se ela fosse o meu Frodo.

Mas era tarde demais para desejos. Voltar no tempo era só uma fantasia. O Super-Homem não era real.

Não dormi. Era noite, e a noite se tornara o meu dia. Neste momento, eu deveria estar na escola com meus amigos, vivendo a minha vida, tendo um “dia” normal (para mim), em vez de estar aqui, encolhida. Eu deveria ter sido mais esperta. Mais forte. Deveria ter sido qualquer coisa, menos uma pirralha egoísta.

Horas depois, ouvi a portinhola se abrir de novo, e quando me virei, vi que alguém levara a minha bandeja intocada. Bom. Talvez o cheiro também fosse embora.

Eu precisava fazer xixi, mas não queria. Não queria usar o vaso sem tampa que saía da parede no meio da cela. Olhei para os cantos das paredes, no ponto de encontro com o teto. Câmeras.

Era legal guardas verem prisioneiros fazerem xixi?

As regras regulares se aplicavam a mim? Quero dizer, eu nunca ouvira falar de um novato ou vampiro ser julgado por um tribunal humano nem ir para uma prisão humana.

Não preciso me preocupar com isso. Vou me afogar no meu próprio sangue antes de ir a julgamento.

Por mais estranho que possa parecer, esse pensamento era um conforto, e quando a luz do corredor se acendeu, caí num sono agitado e sem sonho.

Para mim, pareceu que dez segundos depois, a portinhola se abriu de novo e outra bandeja de alumínio foi empurrada para dentro da minha cela. O barulho me fez acordar assustada, mas ainda estava grogue, ainda tentando voltar a dormir – até que o cheiro de ovos e bacon me deixou com água na boca. Há quanto tempo eu não comia? Nossa, me sentia péssima. Ainda sem enxergar direito, andei os seis passos até a porta, pegando a bandeja e levando com cuidado para a minha cama desarrumada.

Os ovos estavam mexidos e supermolhados. O bacon, duro como um pedaço de pau. Havia café, uma caixa de leite e uma torrada pura.

Eu daria praticamente qualquer coisa por uma tigela de cereal Count Chocula e uma lata de refrigerante.

Dei uma garfada nos ovos, mas estavam tão salgados que quase engasguei.

Mas, em vez engasgar, comecei a tossir. Naquela tosse terrível, senti alguma coisa metálica, pegajosa, quente e estranhamente maravilhosa.

Era o meu próprio sangue.

O medo tomou conta de mim, deixando-me fraca, tonta e nauseada. Está acontecendo tão rápido? Eu não estou pronta! Não estou pronta!

Tentando limpar a minha garganta, tentando respirar, cuspi os ovos, ignorei o tingimento rosado no amarelo gorduroso, coloquei a bandeja no chão e me encolhi na cama, passando os braços em volta de mim mesma e esperando por mais tosse e sangue – muito mais sangue. Minhas mãos estavam tremendo quando enxuguei meus lábios.

Eu estava com tanto medo!

Não fique , disse para mim mesma enquanto tentava prender uma tosse terrível. Logo você verá Nyx. E Jack. E talvez até Dragon e Anastasia.

E mamãe!

Mãe... de repente, desejei a presença de minha mãe com todas as forças do meu ser.

– Eu gostaria de não estar sozinha – sussurrei com uma voz grave, a boca grudada no colchão fino e duro.

Escutei a porta se abrindo, mas não me virei. Não queria ver a expressão horrorizada de um estranho. Fechei os olhos bem apertados e tentei fingir que estava na fazenda de lavanda da Vovó, dormindo no meu quarto lá. Tentei fingir que o cheiro dos ovos com bacon era da comida dela, e que a minha tosse era apenas uma gripe que me impedia de ir à escola.

E eu estava fazendo isso! Ah, obrigada, Nyx! De repente, juro que consegui sentir os aromas que sempre se espalhavam na casa da Vovó, lavanda e capim. Isso me deu a coragem para falar logo, antes que a minha voz ficasse sufocada pelo sangue, para quem quer que estivesse ali:

– Tudo bem. Isso é o que acontece com alguns novatos. Por favor, vá embora e me deixe em paz.

– Ah, Zoey Passarinha, minha preciosa u-we-tsi-a-ge-ya , a esta altura você já deveria saber que eu nunca vou deixá-la sozinha.

[*] Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)


2

Zoey

Achei que ela fosse parte da minha alucinação agonizante, parada ali na porta da cela, usando uma camisa de linho roxa e jeans gastos, com uma cesta de piquenique pendurada no braço. Mas assim que me virei para encará-la, ela correu até mim, sentando-se na beirada da cama e me envolvendo em seus braços e nos cheiros da minha infância.

– Vovó! Eu sinto muito! Sinto muito! – Soluçava em seu ombro.

– Shhh, u-we-tsi-a-ge-ya , estou aqui. – Ela passava a mão em círculos nas minhas costas.

A minha tosse amenizou temporariamente, então eu disse logo:

– Eu sei que estou sendo egoísta, mas estou tão feliz que esteja aqui. Eu não quero morrer sozinha.

Vovó se afastou de mim o suficiente para me pegar pelos ombros e me sacudir.

– Zoey Redbird, você não vai morrer.

Lágrimas escorreram pelo meu rosto. Eu as ignorei e enxuguei o canto da minha boca, estendendo meus dedos trêmulos para que ela pudesse ver o sangue.

Ela mal olhou para a prova que eu estava tentando lhe mostrar. Em vez disso, abriu a cesta de piquenique, tirou um guardanapo xadrez vermelho e branco e começou a enxugar as minhas lágrimas e meu nariz, exatamente como fazia quando eu era apenas uma menininha.

– Vovó, eu sei que você me ama mais do que qualquer pessoa no mundo – comecei, tentando (sem sucesso) não chorar. – Mas você não pode impedir que meu corpo rejeite a Transformação.

– Você está certa, u-we-tsi-a-ge-ya , eu não posso. Mas eles podem. – Ela apontou para a porta atrás de mim.

Virei-me e vi Thanatos e Lenobia, Stevie Rae, Darius e Stark – meu Stark –, todos apertados na porta. Stevie Rae estava chorando tão alto que não sei como não havia escutado antes.

Stark também estava chorando, mas em silêncio.

– Mas eu disse para não virem atrás de mim! Eu disse que mereço enfrentar as consequências. – Chorava tanto quanto Stevie Rae agora.

– Então, viva e enfrente as consequências! E eu estarei bem aqui, o mais perto possível de você para passar pela coisa toda! – Stark atirou as palavras em mim.

– Eu não posso. Já comecei a rejeitar a Transformação – contei soluçando.

– Menina, a sua avó falou a verdade. A não ser que a rejeição do seu corpo já esteja determinada, nossa presença vai impedi-la – afirmou Thanatos.

– Você não vai morrer! Eu não vou deixar! – gritou Stark aos prantos, e começou a entrar na minha cela.

– Espere aí, rapaz! Eu disse que só um de cada vez pode entrar na cela. – Um cara com uniforme policial veio de trás do meu grupo de amigos e se colocou entre eles e a minha cela. – O Detetive Marx me disse que eu deveria permitir a entrada de vocês, vampiros, no prédio se aparecessem, mas não vou quebrar as regras e deixar mais de um visitante por vez. A avó é da família. O resto de vocês pode esperar na sala de interrogatório. – Ele lançou um olhar sério para a minha avó. – A senhora tem quinze minutos. – Então, bateu a porta.

– Quinze minutos. – Vovó emitiu um ruído de descontentamento. – Isso não é uma visita apropriada. Esse é o tempo de cozinhar um ovo. Que rapaz sem coração. Bem, não vou ficar aqui perdendo tempo. Zoey Passarinha, assoe o nariz e fique de pé. Você precisa de uma boa defumação. Ah, os cavalheiros que revistaram a cesta fizeram uma bagunça.

Ela já estava mexendo dentro da cesta de piquenique sem fundo, por isso precisei segurar suas mãos nas minhas para que parasse e prestasse a atenção em mim.

– Vovó, eu amo você. Você sabe, não sabe?

– Claro, u-we-tsi-a-ge-ya. E eu amo você, de todo o coração. É por isso que preciso te defumar. Gostaria que tivesse uma banheira aqui, ou mesmo uma pia, para ajudar ainda mais na purificação. Mas a defumação vai ter que ser o suficiente. Trabalhei a noite toda e finalmente escolhi defumar você com essa concha de ostra que nós duas pegamos quando seguimos o Rio Mississipi até o Golfo no verão em que você completou dez anos. Lembra?

– Claro que lembro, Vovó, mas...

– Bom. Moí e misturei sálvia, cedro e lavanda. Combinados, eles formam um poderoso defumador para purificação emocional e física. – Ela estava derramando as ervas secas de uma bolsinha de veludo preta para a concha de ostra. – Eu também trouxe uma pena de águia e minha peça favorita de turquesa. Sei que eles podem tentar tirar de você, mas vamos tentar esconder dentro do colchão. Vai servir para protegê-la enquanto...

– Vovó, por favor, pare – interrompi. Encontrando o seu olhar sem nem piscar, eu disse: – Eu matei aqueles dois homens. Não mereço ser purificada nem protegida. Mereço o que estava acontecendo comigo antes de todos vocês aparecerem.

Minha intenção não era ser tão fria, mas minhas palavras fizeram com que ela hesitasse. Então, suavizei a minha voz, mas não a minha decisão.

– Os vampiros podem ter evitado que me afogasse no meu próprio sangue, mas isso não muda o fato de que eu fiz uma coisa terrível, uma coisa pela qual preciso ser punida.

Ela parou de preparar a minha defumação e seus olhos penetrantes encontraram os meus.

– Diga-me, u-we-tsi-a-ge-ya , por que você matou aqueles homens?

Balancei a cabeça e afastei o cabelo despenteado do meu rosto.

– Eu não sabia que os tinha matado até o Detetive Marx aparecer na Morada da Noite. Eu só sabia que eles tinham me enfurecido. Estavam perambulando por Woodward Park atrás de pessoas, principalmente garotas, amedrontando-as para que lhes dessem dinheiro. – Parei e meneei a cabeça de novo. – Mas isso não torna o que eu fiz aceitável. Quando dessem conta do que eu era, me deixariam em paz.

– E iam seguir até encontrar outra vítima.

– Provavelmente, mas não iam matar. Eles eram mendigos, não serial killers.

– Então, me conte o que aconteceu. Como você os matou?

– Descontei minha raiva neles. Da mesma forma que tinha feito com Shaylin mais cedo, atirando-a no chão. Só que eu fiquei ainda mais furiosa no parque. De algum jeito, a pedra da vidência exacerbou os meus sentimentos e me deu o poder de atacar todos eles.

– Mas você não matou Shaylin – considerou Vovó, sendo lógica. – Eu vi a menina na Morada da Noite um pouco antes de vir para cá. Ela me pareceu bem viva.

– Não, eu não a matei. Não dessa vez. Quem sabe o que poderia ter acontecido se eu não tivesse ido embora e seguido para o parque, e descontado a minha fúria naqueles dois homens? Vovó, eu estava descontrolada. Eu era um monstro.

– Zoey, você fez uma coisa monstruosa. Mas isso não faz de você um monstro. Você se entregou. Desistiu da pedra da vidência. Permitiu que a prendessem. Esses não são os atos de um monstro.

– Mas, Vovó, eu matei dois homens! – Senti meus olhos marejarem de novo.

– E agora você vai ter que enfrentar as consequências dos seus atos. Mas isso não significa que você deva desistir e causar ainda mais sofrimento para as pessoas que amam você.

Mordi meus lábios.

– Meu intuito é assumir minhas responsabilidades para não machucar mais ninguém, principalmente as pessoas que eu amo.

– Zoey Passarinha, não sei por que essa coisa terrível aconteceu. Eu não acredito que você seja uma assassina. – Ela ergueu a mão para que não a interrompesse quando tentei falar. – Sim, eu tenho consciência de que os dois homens estão mortos, e que você parece ser responsável pela morte deles. Ainda assim, você mesma admite que a pedra da vidência teve um papel decisivo no acidente, o que significa que a magia antiga está em ação.

– É verdade, eu estava usando a pedra – admiti.

– Ou ela estava usando você – contradisse ela.

– De qualquer forma, os resultados são os mesmos.

– Para os dois homens. Mas não necessariamente para você, u-we-tsi-a-ge-ya. Agora, fique de pé na minha frente. Você precisa que a sua mente seja clareada e seu espírito purificado para que possa analisar exatamente o que a trouxe para esta cela. Veja, não estou aqui para ajudá-la a se esconder do que fez. Estou aqui para que possa verdadeiramente encarar o que aconteceu.

Como sempre, Vovó era a voz da razão e do amor incondicional. Fiquei de pé e me permiti o breve conforto de vê-la pegar a concha com uma das mãos enquanto, com a outra, colocava um pequeno pedaço arredondado de carvão em cima da mistura de ervas e acendia. Conforme faiscava, ela disse:

– Respire fundo três vezes, u-we-tsi-a-ge-ya . E, a cada vez que o fizer, solte a energia tóxica que anuvia a sua mente e escurece o seu espírito. Visualize, Zoey Passarinha. Qual é a cor?

– Um verde asqueroso – respondi, pensando na coisa nojenta que saiu do meu nariz da última vez em que tive sinusite.

– Excelente. Expire e visualize que está se livrando disso junto com a sua respiração.

O carvão parara de faiscar e estava ficando cinza nas beiradas. Vovó pegou a bolsinha de veludo preta e começou a salpicar as ervas sobre o carvão dizendo:

– Eu lhe agradeço, espírito da sálvia branca, por sua força, sua pureza, seu poder. – Uma fumaça branca começou a subir da concha de ostra. – Eu agradeço a você, espírito do cedro, por sua divina natureza, por sua capacidade de criar uma ponte entre este Mundo e o Mundo do Além.

Mais fumaça subia, e eu inspirava e expirava.

– E, como sempre, agradeço ao espírito da lavanda, por sua natureza apaziguadora, por sua capacidade de nos permitir liberar a nossa raiva e alcançar a paz. – Então, Vovó começou a andar em volta de mim em sentido horário, batendo os seus pés em um ritmo pulsante, ancestral, que parecia eletrificar a fumaça aromatizada e impulsioná-la para dentro do meu corpo, conforme ela abanava em volta de mim com a pena de águia. Sem perder um passo de sua dança, a voz de Vovó se pareou aos seus movimentos, ecoando através do sangue dela para o meu. – Saia o que é tóxico, que é verde como bile. Entre a fumaça doce, prateada e pura.

Concentrei-me enquanto ela se movia à minha volta, entrando no ritual com a mesma facilidade que fizera por toda a minha infância.

– Inale a cura. Inale a purificação. Inale a calma. A bile verde embora irá. Substituída pela prata e pela claridade – cantava Vovó.

Levantei as mãos, guiando a fumaça em volta da minha cabeça, concentrando-me na purificação prateada.

– O-s-da – continuou Vovó, repetindo logo depois em nossa língua: – Bom, você está recuperando o seu centro.

Entrei em um estado sonolento, de transe, levada pela fumaça e pelo canto da Vovó. Pisquei, como se estivesse emergindo de um mergulho profundo, e meus olhos se arregalaram de surpresa. Claramente visível através da fumaça havia uma luz prateada brilhante que, como uma bolha, nos envolvia, a mim e a Vovó.

– Isso é o que você está projetando agora, Zoey Passarinha. Isso tomou o lugar das Trevas que estavam dentro de você.

Respirei fundo de novo, sentindo uma leveza surpreendente em meu peito. O aperto terrível que estivera ali desde que comecei a tossir sumiu. A sensação de desespero que estava dentro de mim também desapareceu...

Por quanto tempo? , perguntei-me. Agora que tinha ido embora, eu percebia o quanto aquilo era opressor.

Vovó tinha parado na minha frente. Colocou a concha de ostra entre nossos pés e segurou as minhas mãos.

– Eu não sei de tudo. Não tenho as respostas que você procura. Não posso fazer nada além de purificar e curar a sua mente e o seu espírito. Não posso tirá-la deste lugar nem mudar o passado que a trouxe para cá. Só posso amá-la e lembrá-la desta regrinha segundo a qual tentei viver a minha vida: não posso controlar os outros. Só posso controlar a mim mesma e as minhas reações aos outros. E, quando tudo o mais dá errado, eu escolho a bondade. Mostro compaixão. Então, se fiz escolhas ruins, pelo menos não causei danos ao meu espírito.

– Eu fracassei nisso, Vovó.

– Fracassei... isso é passado, e você deve deixar esse fracasso no passado, que é onde ele deve ficar. Aprenda com os seus erros e siga em frente. Não fracasse de novo, u-we-tsi-a-ge-ya. Isso significa que se você precisar enfrentar o julgamento e for para a prisão por causa dessa coisa terrível que aconteceu, então você fará isso falando a verdade e agindo com compaixão, assim como faria uma Grande Sacerdotisa da sua Deusa.

– Eu deveria afastar as pessoas que me amam. – Não disse isso como uma pergunta, mas Vovó me respondeu mesmo assim.

– Afastar as pessoas que a amam e se interessam verdadeiramente por você seria a ação infantil, e não de uma Grande Sacerdotisa.

– Vó, você acha que Nyx ainda quer que eu seja uma Grande Sacerdotisa?

Vovó sorriu.

– Acho, mas a minha opinião não é importante. O que você acha da sua Deusa, Zoey? Você acha que ela é tão volúvel que a amaria e depois a descartaria tão facilmente?

– Não estou questionando Nyx, e sim a mim mesma – admiti.

– Então, deve olhar para si mesma. Manter-se firme no seu centro. – Ela pegou a pedra turquesa que retirara da cesta de piquenique mais cedo e colocou-a em minha mão. – Você usou a pedra da vidência para concentrar seus poderes, querendo ou não. Agora, acredito que tenha que encontrar um foco dentro de você. Assim como a turquesa tem seu próprio poder protetor, você deve encontrar o seu próprio, dentro de si. Desta vez, não procure raiva, Zoey Passarinha. Procure compaixão e amor.

– Sempre amor – terminei por ela, pegando a pedra na minha mão e sentindo a sua maciez.

– Segure-se ao seu verdadeiro eu como está segurando esta pedra, e lembre-se de que sempre vou acreditar que você é mais forte, mais sábia e mais bondosa do que pensa ser.

Coloquei os braços em volta dela e abracei-a com força.

– Eu amo você, Vovó. Sempre amarei.

– Assim como eu sempre amarei você.

– Acabou o tempo! – A voz do guarda fez com que eu, relutantemente, soltasse Vovó. – Ei, o que está acontecendo aqui? O que vocês estavam queimando?

Vovó virou-se para ele, sorriu, e com sua voz mais doce, disse:

– Nada com o que você precise se preocupar, querido. Apenas um pouco de limpeza e purificação. Você gosta de biscoitos com gotas de chocolate? Tenho um ingrediente secreto que faz com que os meus fiquem irresistíveis, e, por acaso, tenho uma dúzia aqui na minha cesta. – Dando um tapinha no braço dele, ela acompanhou-o pela porta, levantando um prato de papel cheio de biscoitos de sua cesta mágica e piscando para mim por sobre o ombro. – Agora, querido, por que não arranja um café para acompanhar esses biscoitos enquanto chama o jovem e generoso vampiro chamado Stark para entrar e visitar a minha neta?

Stark!

Sentei-me na cama, endireitando minhas roupas nervosamente e tentando pentear o meu cabelo superdoido com os dedos. E, então, ele estava na porta, e me esqueci da aparência. Eu me esqueci de tudo, exceto de como estava feliz em vê-lo.

– Posso entrar? – perguntou ele, hesitante.

Assenti.

Não esperei que ele desse aqueles seis passos até mim. Não podia esperar nem mais um segundo. Assim que ele se aproximou, atirei-me em seus braços e enterrei meu rosto em seu ombro.

– Eu sinto muito! Não me odeie... por favor, não me odeie!

– Como eu poderia odiar você? – Ele me abraçou com tanta força que era difícil respirar, mas não liguei. – Você é a minha rainha, a minha Grande Sacerdotisa e meu amor... meu único amor. – Ele se afastou de mim apenas o suficiente para me olhar diretamente nos olhos. – Você não pode se suicidar. Eu não conseguiria sobreviver a isso, Zoey. Juro que não.

Havia círculos escuros embaixo de seus olhos, e suas tatuagens vermelhas de vampiro pareciam especialmente brilhantes contra a pele anormalmente pálida. Parecia que ele tinha envelhecido uma década em um dia.

Odiei vê-lo com aparência cansada e doentia. Odiei ser a causa disso.

Encontrei seu olhar e falei com toda gentileza e compaixão dentro de mim:

– Isso foi um erro. Não o cometerei de novo. Desculpe-me ter feito você passar por tudo isso. – Apontei para a cela.

Ele tocou meu rosto com gentileza, quase reverência.

– Para onde você for, eu vou. Nós fizemos um juramento para esta vida e além, Zoey Redbird. E tudo isso é suportável se tivermos um ao outro. Nós ainda temos um ao outro?

– Temos sim.

Eu o beijei, longa e apaixonadamente. Achei que eu o estivesse confortando, mas percebi que seu toque, seu beijo e seu amor é que estavam me confortando.

Foi naquele momento que realmente compreendi o quanto amo Stark.

– Está vendo? – perguntou ele, cobrindo meu rosto de beijos e enxugando as lágrimas que escorriam. – Está tudo melhor agora. Tudo vai ficar bem.

Eu não quis falar para ele que não tinha tanta certeza de que algum dia as coisas voltariam a ficar bem. Isso não seria compaixão. Em vez disso, levei-o até a minha cama estreita e dura. Nós nos sentamos e eu me aconcheguei nele, repousando em seu braço.

– Nós vamos nos revezar para ficar aqui de modo que você não volte a rejeitar a Transformação. De hoje em diante, sempre haverá um vampiro do lado de fora desta porta – Stark começou a explicar baixinho enquanto me abraçava bem apertado. – Vão colocar uma cama portátil no corredor.

– Mesmo? Você vai ficar assim tão perto de mim?

– Vou, o Detetive Marx fez com que permitissem que eu ficasse. Ele é um cara muito legal. Ele disse ao chefe de polícia que não permitir que um vampiro fique com você seria a mesma coisa que dar uma lâmina de barbear a um prisioneiro humano e depois fazer vista grossa para o que ele fizesse depois. Ele disse que isso era desumano e que, ao se entregar, você tinha os mesmos direitos que qualquer outro humano.

– Isso foi legal da parte dele. – De repente, percebi que horas deviam ser, meio-dia pelo menos. – Espere, você não devia estar aqui. Está claro lá fora. – Sentei-me e comecei a procurar queimaduras em seu corpo.

Ele sorriu.

– Estou bem. Stevie Rae também. Viemos para cá na parte de trás da van da escola, aquela sem janelas.

Assenti e sorri.

– A van de Chester the Molester. [*]

– Isso, é assim que eu me locomovo agora. – O sorriso dele ficou presunçoso. – Marx deixou que estacionássemos na garagem coberta ao lado da delegacia. Nenhum raio de sol tocou em nós.

– Tome cuidado, ok?

Ele ergueu as sobrancelhas.

– É sério isso? Você está me mandando tomar cuidado?

– Estou pedindo, na verdade – corrigi, lembrando-me de ser generosa.

Ele riu e me abraçou.

– Zoey Redbird, você está toda desarrumada, mas continua linda, e eu amo você.

– Eu também amo você.

Logo ele me soltou e seu rosto assumiu uma expressão mais séria.

– Tudo bem, quero que você me conte tudo. Já sei que você ficou furiosa com dois humanos e lançou algum tipo de poder neles, mas eu preciso de detalhes.

– Stark, será que não podemos simplesmente... – comecei, não querendo desperdiçar um segundo do meu tempo com ele para falar do terrível erro que cometi.

Ele me cortou.

– Não podemos simplesmente ignorar. Zoey, você pode ser um monte de coisas, mas assassina não é uma delas.

– Joguei dois caras contra o muro, e eles estão mortos. Isso me torna uma assassina, Stark.

– Veja bem, acho que eu tenho um problema com isso. Acho que isso torna a sua pedra da vidência uma assassina. Foi por isso que você a entregou para Aphrodite, não foi? Porque foi o que canalizou a sua fúria para aqueles dois caras.

Estava prestes a abrir a boca para tentar explicar para ele o que eu mesma não compreendia, mas o som de passos no corredor me interrompeu. O guarda, com rosto vermelho e olhos arregalados, apareceu na porta.

– Vamos, vamos! Saia. Agora! – ordenou ele para Stark, apontando freneticamente para ele. – Um dos seus vampiros pode ficar, mas tem que ser aqui no corredor. O resto de vocês tem que dar o fora daqui... voltar para o lugar de vocês.

– Espere, não faz nem cinco minutos, muito menos quinze – argumentou Stark.

– Não posso fazer nada a respeito. Tem alguma coisa acontecendo no presídio. Uma emergência no centro da cidade.

Segui Stark até a porta, sentindo como se um cubo de gelo estivesse descendo pela minha espinha.

– Onde no centro da cidade? O que está acontecendo? – perguntei.

– Está um inferno no Mayo Hotel, e eles precisam de todos os policiais da cidade lá.

A porta da cela se fechou, permitindo que eu e Stark nos víssemos por entre as grades.

– Neferet – disse Stark.

– Ah, droga – respondi, concordando.

[*] “Chester the Molester” era uma tirinha de autoria de Dwaine B. Tinsley e publicada pela revista Hustler por 13 anos. A história gira em torno de um homem, Chester, interessado em molestar sexualmente mulheres e adolescentes. (N.T.)


3

Neferet

Era o meio da manhã de um domingo preguiçoso quando Neferet ordenou aos seus filamentos de Trevas que se abrissem para que pudesse ser levada da espessa nuvem de sangue e morte para a calçada em frente ao Mayo. Ela endireitou seu terninho Armani e jogou o cabelo castanho para trás. Neferet estava pronta para seu retorno triunfal à cobertura que a esperava com seus mármores, pedras e veludos no topo do prédio. Abriu a porta vintage de latão e vidro e parou assim que a atravessou, suspirando feliz para o vasto salão de baile que se abria à sua frente, resplandecente com seu mármore branco, colunas estatuárias, ornamentos grandiosos da década de 1920, e uma escadaria dupla que se curvava até a pista de dança com a graça do sorriso satisfeito de uma deusa.

Suas sobrancelhas castanhas se arquearam. Seu olhar cor de esmeralda se tornou mais penetrante. Neferet observou à sua volta com interesse renovado.

– Este realmente é um prédio requintado o suficiente para ser o templo de uma deusa. – Neferet sorriu. – Meu templo. Minha casa.

– Srta. Neferet! É realmente a senhora? Estávamos tão preocupados que alguma coisa tivesse acontecido quando destruíram a sua cobertura.

Neferet desviou o olhar do grande salão para a jovem que sorria para ela por trás do balcão da recepção.

– Meu templo. Minha casa. Meus súditos . – Ela sabia o que deveria fazer. Por que demorara tanto para pensar nisso? Possivelmente porque nunca absorvera tantas mortes ao mesmo tempo como acontecera poucos momentos antes de chegar ao Mayo. Assim como suas fiéis gavinhas, Neferet estava pulsando com poder, e esse poder tornava seu pensamento focado e claro.

– Isso, é exatamente assim que deve ser. Todos os humanos neste prédio devem me adorar.

– Desculpe-me, madame. Não entendi o que quis dizer.

– Ah, você vai entender. Em breve, entenderá. – O sorriso radiante da recepcionista começara a se apagar. Com um movimento sobrenatural, Neferet deslizou até ela. Viu o nome da garota no crachá dourado. – Sim, minha querida Kylee. Logo você me entenderá completamente. Mas, primeiro, você vai me dizer quantos hóspedes há neste momento no hotel.

– Sinto muito, madame – desculpou-se Kylee, parecendo totalmente constrangida. – Não posso fornecer essa informação. Talvez se a senhorita me disser do que precisa...

Neferet se inclinou, passando a mão pelo lindo balcão de mármore, interrompendo-a e capturando o olhar da garota.

– Você não me questionará. Você jamais me questionará. Fará exatamente o que eu mandar.

– Eu... Eu sinto muito, madame. Não quis ofendê-la, mas as informações sobre os hóspedes do hotel são confidenciais. Nós... Nós temos muito cuidado com a nossa p-política de privacidade – gaguejou ela, as mãos trêmulas de nervoso enquanto agarrava a corrente de ouro com um crucifixo junto ao pescoço.

Mesmo se Neferet não fosse vidente, perceberia a extensão do medo da garota – o que não impressionava a Deusa nem um pouco.

– Excelente! Agora que você vai seguir as minhas ordens, espero que seja ainda mais cuidadosa com privacidade, a minha privacidade.

– Desculpe, madame, a senhora está dizendo que comprou o Mayo Hotel? – A confusão de Kylee se intensificava junto com seu medo.

– Ah, muito melhor do que isso, e muito mais permanente. Decidi transformar este prédio encantador no meu primeiro Templo. Mas eu já não ordenei que você nunca me questionasse? – Neferet suspirou e emitiu um som de desaprovação. – Kylee, você vai ter que se esforçar mais no futuro. Mas não precisa preocupar essa sua cabecinha loura. Sou uma deusa bondosa. Pretendo lhe oferecer a ajuda de que precisar para que seja minha súdita perfeita.

Enquanto Kylee arfava como um peixe fora d’água, Neferet virou-se de costas para ela e encarou o mar de gavinhas que, embora não fossem vistas pela idiota da Kylee, espalhavam-se pelo piso de mármore e subiam carinhosamente por suas pernas.

– Filhos, vocês se alimentaram muito bem. Agora, está na hora de me pagarem pela minha generosidade. – Eles se retorceram, excitados, um ninho de víboras, e Neferet sorriu carinhosamente para elas. – Sim, eu lhes dei a minha palavra. Que foi só o começo do nosso banquete. Mas vocês precisam trabalhar em troca de comida. Eu me recuso a ter filhos vagabundos. – Ela deu uma gargalhada afetada. – Agora, um de vocês deve possuir esta humana. Não! Não a matem. – Neferet esclareceu, quando uma dúzia de gavinhas começou a se arrastar exaltadamente na direção de Kylee. – Sigam a minha mente até a dela. Usem minha trilha até seus pensamentos e desejos mais profundos, e fiquem lá, envolvam sua vontade e apertem. Mas não o suficiente para matá-la ou roubar o que se passa por sua razão. Não quero um Templo cheio de idiotas. Quero um Templo cheio de súditos obedientes. Possuam-na para que eu tenha certeza de sua obediência!

Neferet se virou para encarar a garota, cujo rosto perdera a cor de forma tão drástica que seus olhos castanhos pareciam hematomas.

– Srta. Neferet, por favor, não me machuque! – implorou ela, começando a chorar.

– Kylee, minha querida, minha primeira súdita humana, isso é realmente para o seu bem. O livre-arbítrio é um fardo terrível. Eu tinha livre-arbítrio quando era uma garota, pouco mais nova do que você; ainda assim, estava presa a uma vida de abuso que eu não tinha escolhido. É muito comum isso acontecer com humanos. Olhe para si própria: o emprego subalterno, a roupa precária. Você não quer mais da vida?

– Q-quero – respondeu Kylee.

– Bem, então temos um trato. Se eu tirar o seu livre-arbítrio, também vou afastar de você os terrores inesperados que a vida pode trazer. – Neferet fitou dentro dos olhos arregalados da garota e perfurou sua mente. Estava concentrada demais em Kylee para baixar o olhar, mas sabia que uma fiel e forte gavinha a obedecera e estava subindo pelo corpo da garota. Embora não conseguisse ver o que estava rastejando por suas pernas, Kylee certamente podia sentir. Abriu a boca e começou a gritar. – Acabem com o terror dela e entrem nela! – ordenou Neferet, e a gavinha entrou pela boca aberta.

Kylee começou a engasgar convulsivamente, e apenas o domínio de Neferet em sua mente evitou que desmaiasse.

– Tão humana. Tão fraca – murmurou a Deusa enquanto sondava a mente da garota, sentindo a familiar presença das Trevas seguindo. Quando encontrou o centro da vontade de Kylee, sua alma, sua consciência, Neferet ordenou: – Envolvam-na! – Com seu sentido extra, presente que recebera de outra Deusa mais de um século antes, Neferet testemunhou as Trevas aprisionarem a vontade de Kylee.

A garota caiu, seu corpo se contorcendo em espasmos.

– Lembrem-se bem da trilha que acabei de mostrar para vocês, filhos. Kylee é apenas a primeira de muitas. – Neferet bateu uma palma. – Levante-se, Kylee. Arrume-se, minha querida. A sua vida acaba de se tornar muito mais , e eu tenho outras ordens que você deve cumprir.

Kylee ficou de pé, como se fosse uma marionete manipulada por cordas.

– Isso, assim está muito melhor. Agora, me diga quantos hóspedes há no hotel, e lembre-se, nada mais daqueles gritos irritantes.

– Sim, madame – respondeu Kylee de forma instantânea e mecânica.

O sorriso de Neferet voltou. Ela estava transbordando poder! Os humanos deviam adorá-la – com a débil força de vontade deles e mentes facilmente manipuláveis, não tinham a menor chance.

– E pare de me chamar de madame. Quero que me chame de Deusa.

– Sim, Deusa – repetiu Kylee automaticamente, sua voz totalmente desprovida de emoção. Então, começou a digitar no teclado enquanto fitava, sem expressão, a tela do computador. – No momento, temos 72 hóspedes, Deusa.

– Muito bem, Kylee. E quantos moradores há?

– Cinquenta.

Com um dedo longo, Neferet levantou o queixo de Kylee para que ela a fitasse de novo.

– Cinquenta o quê?

Kylee estremeceu, tal qual um cavalo espantando insetos, mas seu olhar permaneceu aberto, inexpressivo, e ela se corrigiu imediatamente, dizendo:

– Cinquenta, Deusa.

– Muito bem, Kylee. Vou me recolher à minha cobertura. Lembre-se, este prédio agora é o meu Templo, e eu insisto em proteger a minha privacidade, assim como meu divino corpo. Entendeu?

– Sim, Deusa.

– Você compreende que isso significa que, se alguém vier me procurar, você dirá que tem certeza absoluta de que eu não estou aqui, e o mandará embora?

– Compreendo, Deusa.

– Kylee, você foi muito útil. Vou permitir que tenha uma vida longa o suficiente para me adorar adequadamente.

– Obrigada, Deusa.

– De nada, querida.

Neferet começou a deslizar na direção do elevador. Levantou a mão, chamando.

– Venham, meus filhos. Tenho a sensação de que vamos precisar redecorar.

Inchadas e pulsando com o sangue com o qual tinham acabado de se alimentar, as gavinhas das Trevas seguiram ansiosamente sua ama.

– Exatamente como pensei. Deixaram em ruínas! Isso é inaceitável. – Neferet andou em volta das cadeiras reviradas dos tapetes manchados da sala de estar que costumava ser uma cobertura meticulosa e luxuosamente decorada. – Sangue velho! Esta sala está fedendo a sangue. Limpem! – mandou ela. As gavinhas obedeceram, embora mais lentamente do que quando a refeição que ela oferecia era fresca. – Não sejam tão exigentes. Parte desse sangue é de Kalona. Mesmo velho, sangue imortal tem poder. – Isso pareceu animar as gavinhas e elas passaram a rastejar com mais entusiasmo.

Enquanto trabalhavam, Neferet dirigiu-se até a adega, apenas para encontrá-la vazia. Não restava uma garrafa sequer do escuro e caro cabernet que ela tanto adorava.

–Isso é o que acontece quando não estou aqui para ficar de olho naqueles humanos preguiçosos. Eles negligenciam suas tarefas. Estou sem vinho, e minha cobertura mais parece um matadouro!

O olhar irritado de Neferet foi de encontro à grande quantidade espalhada de poeira turquesa, vinda da jaula das Trevas, na qual suas gavinhas prenderam a entediantemente teimosa Sylvia Redbird.

– E aquilo! Sumam com aquele pó azul horrível. Macula toda a beleza do piso de ônix, ainda mais do que aqueles tapetes persas manchados.

Várias gavinhas tentaram obedecer à sua ordem, mas se esquivaram assustadas das partículas azuis, como se estas ainda tivessem o poder de afastá-las. A mais ousada delas seguiu pela pedra empoeirada, então estremeceu e se contraiu, sua carne escorregadia e emborrachada soltando fumaça e um líquido escuro e fétido. Neferet franziu a testa, acenando para a gavinha. Com uma unha afiada, ela perfurou a pele da palma de sua mão.

– Venha, alimente-se de mim e cure-se – murmurou ela, apreciando o toque gelado e doloroso da boca da gavinha, acariciando-a enquanto ela se alimentava, estremecendo sob seu toque.

– Isso nunca vai dar certo. Arrumar a bagunça deixada por humanos é muita humilhação para meus leais filhos. Súditos humanos devem limpar bagunças humanas, é disso que preciso, cumprindo as minhas ordens, facilitando o meu trabalho. E, felizmente, temos mais de cem deles sob este mesmo teto. Todos eles, exceto a tão útil Kylee, ainda não sabem o quanto ficarão assoberbados em breve. Hum... qual seria a melhor maneira de iniciar meus novos súditos?

Neferet sacudiu o braço para afastar a gavinha faminta.

– Não seja tão gulosa. Já está curada.

A gavinha se afastou. Neferet passou a mão pelo seu longo e esbelto pescoço, pensando. Precisava avaliar o melhor passo a dar, e precisava agir rápido.

Não deixara ninguém vivo na Church Boston Avenue, apenas centenas de corpos mutilados e sem sangue.

– As autoridades irão primeiro para a Morada da Noite, é claro. Thanatos insistirá que ninguém do seu rebanho impecável faria uma coisa daquelas. A velha vai jogar a culpa em mim. Acreditando nela ou não, mesmo a incompetente polícia local acabará vindo me procurar aqui. – Neferet tamborilou suas unhas longas e pontiagudas no balcão de mármore preto de sua adega vazia. Não tinha muito tempo ao seu dispor, a não ser que optasse por se esconder.

– Não, nunca mais vou me esconder. Sou uma Deusa, uma imortal, com o dom de comandar as Trevas. Nyx nunca me compreendeu. Kalona nunca me compreendeu. Ninguém jamais me compreendeu. Mas agora eu vou obrigá-los a me entender. Vou fazê-los entenderem! Os moradores de Tulsa é que devem se esconder de mim, e não o contrário.

Ela tinha de ser rápida e decisiva, antes que a polícia chegasse e tentasse, sem sucesso, prendê-la – ou antes que o seu banquete na igreja chegasse aos noticiários e começasse a assustar os hóspedes do Mayo Hotel: os seus futuros súditos.

Neferet encontrou um controle remoto e ligou a enorme televisão de tela plana que, por sorte, tinha saído intacta da batalha. Sintonizou no canal local, colocou no mudo e começou a andar de um lado para o outro, pensando em voz alta e mantendo os olhos grudados na tela.

– É uma pena que eu não possa enjaular os seres humanos como eu fiz com aquela velha e soltá-los quando eu precisasse de sua adoração ou de seus serviços. Isso seria tão mais fácil para eles e, o mais importante no final das contas, para mim. Eu apostaria muito no fato de que nenhum deles resistiria tanto quanto Sylvia Redbird. Os humanos comuns nunca poderiam entrar ou sair da jaula das Trevas criadas por vocês, meus queridos. E, pelo que vi até agora, os meus humanos são excessivamente normais. – Neferet parou abruptamente. – Os meus súditos são humanos normais. E eu me tornei tão mais do que uma humana comum ou uma vampira.

Distraída, Neferet acariciou uma gavinha que se enrolara em seu braço.

– É uma pena que eu não possa enjaular os humanos aqui. Eu os estaria protegendo, permitindo que eles troquem o tédio de suas vidas pela satisfação de me adorar, assim como fiz com Kylee. – Ela acariciava a gavinha, enquanto esta estremecia de prazer. – Eu não preciso enjaulá-los. Eu preciso tratá-los com carinho!

Abrindo os braços, ela sorriu para os seus servos das Trevas, que eram perfeitamente lindos e aterrorizantes.

– Tenho uma resposta para o nosso dilema, meus filhos! A jaula que criamos para aprisionar Redbird era fraca, uma tentativa patética de aprisionamento. Aprendi tantas coisas desde aquela noite! Consegui tanto poder... Nós conseguimos tanto poder. Não vamos enjaular as pessoas, como se eu fosse uma carcereira em vez de uma deusa. Meus filhos, vamos cobrir todas as paredes do meu Templo com as suas tramas mágicas e invioláveis para que os meus novos súditos possam me adorar sem qualquer empecilho. E isso será apenas o começo. À medida que eu absorver cada vez mais poder, por que não encapsular toda a cidade? Eu sei disso agora... Conheço o meu destino. Começo o meu reinado como Deusa das Trevas ao tornar Tulsa o meu Olimpo! Só que isso não será apenas um mito fraco contado como histórias banais de crianças para crianças. Isso será realidade: o Mundo das Trevas do Além veio para a Terra! E, nesse mundo, não haverá inocentes sendo abusados por predadores. Todos estarão sob a minha proteção. Eu tenho o destino deles nas minhas mãos, e eles só precisam se preocupar com o meu bem-estar. Ah, como eles vão me adorar!

Em volta dela, as gavinhas se contorceram em resposta à animação dela. Ela sorriu e acariciou as que estavam mais próximas.

– Sim, sim, eu sei. Será glorioso, mas o que preciso primeiro, meus filhos, é do serviço de quarto. Vamos convocar os meus novos servos. Alguns deles vão limpar e arrumar os meus aposentos da maneira correta. Outros vão reabastecer a adega. Todos vão me obedecer sem me questionar. Preparem-se. Chegou a hora de Neferet, a Deusa das Trevas!

Foi mais fácil do que ela mesma imaginara. Os humanos não eram apenas ridiculamente fáceis de serem controlados, mas também tão indefesos contra a infestação de uma única gavinha das Trevas quanto a pequena Kylee. Ela estava absolutamente certa. Eles precisavam dela para comandar a vida deles, assim como um bebê precisa da mãe.

O único problema no seu plano era que Neferet não tinha acesso a um número infinito de gavinhas. Apenas as mais leais, as suas verdadeiras filhas, continuaram ao seu lado depois que fora despedaçada.

Por um breve instante, considerou chamar mais filamentos de Trevas, mas logo rejeitou tal pensamento. Ela não recompensaria a traição – e os filamentos que a abandonaram no momento da necessidade a traíram no nível mais profundo.

Neferet tomou um gole do seu cabernet favorito em uma taça de cristal e andou pela cobertura, contando os humanos que se dedicavam à limpeza e à arrumação da bagunça que Zoey e seus amigos tinham deixado para trás. Seis. Havia quatro mulheres da equipe de limpeza e dois homens do serviço de quarto. Neferet sorriu. Na verdade, eles não passavam de garotos – ambos louros e ansiosos por atender aos seus pedidos de serviço de quarto. Saindo do seu elevador, suas expressões denunciaram os seus pensamentos de forma tão clara que ela nem precisou esquadrinhar suas mentes. Eles a desejavam. Muito. Obviamente esperavam que ela quisesse um pouco de sangue e sexo com vinho. Tolos! Agora eles se moviam mecanicamente, atendendo aos comandos que ela dava sem reclamar, sem preocupações e sem olhares galanteadores irritantes. Estavam exatamente como ela preferia os seus homens humanos: silenciosos, obedientes e jovens.

– Cavalheiros, a vida é gloriosa, não acham?

As duas cabeças louras se voltaram para ela.

– Sim, Deusa – responderam em uníssono, como sempre.

Neferet sorriu.

– Como costumo dizer, o livre-arbítrio é um peso terrível. Não precisam agradecer por eu ter aliviado vocês de tal peso. – Então, ela ordenou: – Voltem ao trabalho.

– Obrigado, Deusa. Sim, Deusa – repetiram eles, obedecendo-a.

Então, ela já tinha usado seis filamentos. Não, sete, contando a pequena Kylee, da recepção. Neferet lançou um olhar contemplativo para o ninho de gavinhas onde elas se reuniram para absorver o que restara do sangue seco de Kalona. Quantas havia? Tentou contar, mas era impossível. Elas se moviam muito e com rapidez, além de se fundirem umas às outras e depois se separarem quando desejassem. Parecia haver muitas delas, porém. E todas tinham crescido, engordado e estavam mais fortes depois de terem se fartado.

Eu preciso me certificar de que continuem bem alimentadas. Elas não podem definhar – pois isso significaria que o meu absoluto poder sobre os humanos também enfraqueceria.

Resoluta, Neferet discou zero para falar com a recepcionista.

– Recepção, como posso ajudá-la, Neferet? – respondeu a voz insolente de Kylee ao primeiro toque.

– Kylee, quando eu ligar, o modo correto de atender ao telefone é dizendo “Como posso servi-la, minha Deusa?”.

A voz de Kylee ficou sem expressão ou emoção e ela repetiu:

– Como posso servi-la, minha Deusa?

– Muito bem, Kylee. Você com certeza aprende rápido. Eu preciso saber quantos funcionários estão trabalhando aqui no meu Templo hoje.

– Seis faxineiras, dois carregadores, quatro membros do serviço de quarto e eu. Rachel deveria estar aqui na recepção comigo, mas está de licença médica.

– Pobre Rachel. Mas isso me deixa com treze funcionários ao meu dispor. É claro que isso não inclui o restaurante. Ele está aberto hoje?

– Está. Nós abrimos para o brunch até as duas horas da tarde aos domingos.

Kylee fez uma pausa para contar:

– O chef, um ajudante de cozinha, o bartender , que também é o gerente, e três garçonetes.

– Totalizando vinte. Eis o que quero de você, Kylee. Feche o restaurante imediatamente, mas não permita que os funcionários vão embora. Diga a eles que houve uma mudança na gerência do hotel e que o novo dono pediu uma reunião de funcionários.

– Farei como me pede, Deusa, mas os Snyder não são donos do restaurante.

– Quem são os Snyder?

– A família que comprou e reformou o Mayo em 2001. Eles são os donos do prédio.

– Corrigindo, Kylee, querida, eles eram os donos do prédio que era conhecido como Mayo Hotel. Eu controlo o Templo em que ele se tornou. Não importa. Isso logo ficará claro. Tudo de que preciso é que você reúna todos os funcionários do restaurante e do hotel e peça-lhes que venham até a cobertura daqui a trinta minutos. Depois, eu vou mudar o título da reunião de funcionários para o que ela realmente é: uma oportunidade de adorar a sua Deusa. Isso não soa muito mais agradável do que reunião de funcionários?

– Sim, Deusa – respondeu Kylee.

– Excelente. Vejo você e o resto dos meus súditos daqui a meia hora.

– Deusa, eu não posso deixar a recepção sozinha. O que acontecerá se alguém quiser se hospedar ou deixar o hotel?

– A resposta é simples, Kylee. Tranque as portas para que ninguém possa entrar ou sair do meu Templo. Tranque tudo e venha até mim com as chaves.

– Sim, Deusa.

Neferet teria de encontrar outro lugar para receber os súditos. A sua cobertura era íntima demais para tantos humanos. No entanto, teria de se virar por um tempo. Ela se posicionou diante das portas de vidro colorido que haviam sido quebradas e agora foram substituídas pelos garotos louros. Ela desligara as luzes elétricas berrantes e ordenara que as faxineiras trouxessem velas para os seus aposentos. Castiçais, suportes e velas de promessa cobriam a prateleira de granito, a cornija da lareira, a mesa de centro de mármore no estilo art déco e a grande mesa de jantar de madeira. Ela também ordenara que as lanternas que ficavam ao lado das portas tivessem as lâmpadas fortes retiradas e fossem substituídas por luzes bruxuleantes e quentes de velas brancas. Ela fez uma observação mental para pedir que um dos seus servos fosse comprar mais velas – muitas e muitas velas.

O olhar de Neferet passeou pela cobertura, e ela ficou satisfeita. Tudo parecia tão melhor, e estava apreciando a sua segunda garrafa de cabernet, pensando em quanto apreciaria mais tarde, quando um – ou uma – entre seus súditos se oferecesse para misturar o próprio sangue no vinho.

Neferet tinha se vestido com esmero, satisfeita ao ver que suas roupas ficaram intactas enquanto estivera ausente. Escolheu um vestido de seda dourada que se ajustava ao corpo como se acariciasse a sua pele. Como sempre, Neferet deixou o cabelo ruivo solto, em ondas brilhantes que desciam pelas costas até a cintura. Não usou nenhum adorno com um símbolo de qualquer outra deusa. Jamais voltaria a usar imagens adornadas em prata – ela arrancara o último daqueles filamentos de si.

Tinha um novo símbolo, no qual vinha pensando cuidadosamente, e mal podia esperar até que um dos seus súditos fosse encomendar a peça na joalheria de Moody e a “surpreendesse” com um rubi de seis quilates no formato de uma lágrima perfeita. Ela seria efusiva nos agradecimentos e sempre o usaria preso a uma grossa gargantilha de ouro.

Seria realmente bom ser a Deusa das Trevas – A Deusa de Tulsa –, a Deusa do Caos.

Ouviu o barulho do elevador.

– Meus filhos, venham até mim! – Os filamentos de Trevas se apressaram em sua direção, cercando-a, pousando sobre os seus pés descalços com um frescor reconfortante. – Ah, e súditos, vocês podem voltar à minha presença – disse ela por sobre os ombros na direção do local para onde ordenara que aguardassem até que tivessem novas ordens.

Eles passaram por ela no instante em que as portas do elevador se abriram e Kylee levou o restante dos funcionários para a cobertura.

– Bem-vindos! – Neferet ergueu a taça e os braços. – Vocês são abençoados por estarem diante de mim.

A maior parte do grupo pareceu confusa. Duas mulheres, vestidas como garçonetes, murmuraram perguntas uma para a outra. Os olhos afiados de Neferet as notou. Um dos homens, o que usava um chapéu idiota de chef, perguntou:

– Você poderia nos dizer o que está acontecendo aqui? Tivemos que fechar o restaurante e obrigar os nossos clientes a ir embora, mesmo que eles ainda não tivessem terminando o seu brunch. Posso afirmar para você que, com certeza, temos alguns ex- clientes muito putos da vida.

– Qual é o seu nome? – quis saber Neferet, mantendo o tom de voz agradável.

– Tony Witherby, mas a maioria das pessoas me chama de chef.

– Bem, Tony, eu não sou a maioria das pessoas. Veja bem, a maioria das pessoas me chama de Deusa.

Ele soltou uma gargalhada debochada.

– Você só pode estar brincando, né? Tipo, eu estou vendo as suas tatuagens e sei que você é uma vampira e tudo o mais, mas vampiras não são deusas.

Neferet ficou satisfeita ao ver Kylee se afastar do chef como se não quisesse ser contaminada por sua desobediência. Kylee estava realmente se tornando uma excelente súdita.

Neferet não desperdiçou sequer um olhar para o chef. Em vez disso, sorriu para os seus filhos alvoroçados.

– Tão ansiosos – comentou ela em um tom leve de reprovação. Ela se abaixou para acariciar uma gavinha particularmente precoce que se enrolara por sua perna quase na altura de sua coxa. – Você vai ser perfeita.

– Tudo bem, você vai ter que nos dizer o que está acontecendo ou eu vou ligar para o dono do restaurante – ameaçou o chef. Quando ela continuou a ignorá-lo, ele começou a gritar: – Isso é realmente ridíc...

– Pegue-o! – comandou Neferet para a gavinha. – E permitam que a vejam.

A gavinha ficou visível enquanto voava na direção do chef. Ela era tão grande que rapidamente o envolveu pela cintura grossa, movendo-se rapidamente para cima.

– Que merda é essa?! Solte-me! – gritou o chef, jogando-se para trás e batendo na gavinha com ambas as mãos, impotente.

Neferet achou que ele parecia uma menininha com medo de aranha.

Um homem bonito e negro vestido como mensageiro se aproximou para ajudar o chef.

– Fique onde está ou o seu destino será o mesmo do dele! – avisou Neferet.

O homem parou onde estava.

– Nããããão!

Os gritos do chef beiravam à histeria, e Neferet ficou aliviada ao ver que bem nesse momento a gavinha subiu pelo pescoço dele e invadiu sua boca, fazendo com que se abrisse de uma maneira quase impossível. Isso causou a rachadura e o sangramento dos cantos dos lábios, antes que todo o grosso comprimento do filamento desaparecesse dentro do corpo do humano. O chef caiu do chão.

– É tão deprimente quando um homem adulto age como uma menininha assustada, vocês não acham?

Os humanos que ainda não tinham sido possuídos por seus filhos olharam para ela com um misto de horror e descrença. Outra mulher, uma das faxineiras que não atendera ao chamado anterior de Neferet, estava rezando em espanhol, agarrada ao crucifixo pendurado em uma gargantilha de prata de aparência barata. Todo o grupo, exceto pelo equivocado Tony, estava se afastando, como um rebanho, na direção das portas do elevador.

– Nada disso – declarou Neferet com voz suave. – Vocês não podem partir antes de receber minha permissão.

– Você também vai nos matar? – perguntou uma das mulheres, segurando a mão da amiga e tremendo de forma espasmódica.

– Matar vocês? É claro que não. Tony não está morto. – Ela dirigiu-se então ao chef caído no chão. – Tony, meu querido, levante-se e diga para os outros que você está perfeitamente bem.

De forma estranha, Tony se levantou, virou-se para Neferet. Então, sem expressão no seu rosto rosado e manchado de sangue, declarou:

– Estou perfeitamente bem.

– Você se esqueceu de dizer uma coisinha – disse Neferet.

O corpo de Tony se retorceu em espasmos como se ele tivesse levado um choque por dentro, e ele se apressou a repetir:

– Estou perfeitamente bem, Deusa.

– Viram só? É exatamente como eu disse. Qual é o seu nome, querida? – perguntou ela para a mulher trêmula.

– Elinor.

– Que nome adorável. Não se veem mais nomes como esse hoje em dia, o que é uma pena. Para onde todas as Elinors e Elisabeths, Gertrudes, Gladys e Phyllis foram? Não, não precisa me responder. Elas foram substituídas por Haileys, Kaylees, Madisons e Jordans. Eu odeio nomes modernos. Sabe, Elinor, eu preciso agradecê-la. O seu nome de bom gosto fez com que eu tomasse uma decisão sobre vocês, meus novos súditos. Vou renomear qualquer um de vocês que possua um nome muito chamativo. – Neferet lançou um olhar para Kylee. – Exceto você, Kylee. Eu gosto muito do seu crachá dourado para mudar o seu nome.

– Deusa? – sussurrou Elinor em tom de pergunta.

– Pois não, minha querida.

– Nós agora estamos trabalhando para a senhora?

– Ah, é muito melhor do que isso. Vocês vão me adorar agora. Vocês vinte serão as primeiras testemunhas do meu reinado como Deusa das Trevas. Cada um de vocês terá um papel especial e muito importante para cumprir enquanto me adoram e atendem a cada uma das minhas necessidades. Vocês vão me oferecer presentes e sacrifícios e, em troca, tirarei o exaustivo livre-arbítrio que obviamente tem lhes reprimido e deprimido a vida. Por que outro motivo vocês estariam trabalhando em tarefas tão servis e sem sentido?

– Eu não estou entendendo o que está acontecendo – choramingou Elinor.

– Logo... logo a sua confusão acabará. Não se preocupe, doce Elinor, só dói um pouquinho. – Neferet ergueu o braço. – Meus filhos... – começou ela.

– Espere! – O mensageiro que quis ajudar Tony deu um passo para a frente e lançou um olhar inflexível para Neferet. – A senhora disse que se tentássemos ajudar o chef, nosso destino seria o mesmo do dele. Eu não ajudei. Ninguém mais ajudou. Então, de acordo com a sua própria palavra, não vai mandar essas coisas rastejantes nos atacar.

– E qual é o seu nome?

– Judson. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Deusa.

– Judson é um nome antigo do sul, sabia?

– Não, eu... Eu, não. Eu não sabia. – Ele fez outra pausa. – Deusa.

– Bem, é isso então. Eu também não vou trocar o seu nome. E quanto ao que eu disse antes? Eu menti. Peguem-nos! – Ordenou.

Felizmente, os seus filhos tinham antecipado os seus desejos e moveram-se rapidamente, de modo que os gritos irritantes logo cessaram.


4

Neferet

Neferet liberou seus novos súditos, cada qual tendo iniciado sua adoração por meio da possessão de um de seus filhos, e ordenou-lhes que chamassem os hóspedes e residentes do hotel e os reunissem no grande salão do hotel.

Decidira que deveria estabelecer o lugar das oferendas no salão principal, o qual era cercado por colunas de mármore, tinha pé-direito alto e o teto ornado com lindos candelabros no estilo art déco , e escadaria dupla e ampla em curva com balaústres de ferro forjado que contavam com uma grande plataforma entre o térreo – onde os súditos ficariam – e o passeio superior, onde apenas os seus adoradores mais próximos, aqueles que cuidavam dos seus desejos, seriam permitidos. Os outros ficariam presos nos próprios quartos ou no porão, o qual Kylee fora gentil em lhes mostrar. Ou, se eles provassem ser um estorvo excessivo e ela não quisesse gastar uma gavinha para possuí-los, eles se tornariam alimento para seus filhos.

É claro que ela só se alimentaria dos súditos que despertassem o seu interesse.

Kylee recebera a tarefa de encontrar uma cadeira que servisse de trono até que pudesse encomendar um que fosse entalhado para ela.

– Você precisa encontrar um artesão talentoso para criar exatamente o que eu quero. A madeira deve ser tingida de sangue vermelho profundo de búfalo – orientou ela, enquanto escolhia a colocação com cuidado. – E eu não quero nada daqueles assentos duros e pobres ao gosto dos velhos do Conselho Supremo. Almofadas de veludo dourado. É sobre elas que vou me sentar.

Neferet permitiu que duas das faxineiras mais atraentes a envolvessem num vestido luxuoso em tom púrpura real, e tinha acabado de decidir que não usaria sapato – ficaria descalça, como condiz a uma Deusa recém-nascida. Retornou à sua sala para encher novamente a taça de vinho, irritada por não haver lá nenhum humano ansioso por ajudá-la. Ela já estava esperando, impacientemente, que convidados e residentes estivessem rodeados por seus servos obedientes para que pudesse fazer a sua entrada triunfante no salão.

– Até mesmo para uma Deusa, é tão difícil encontrar empregados de qualidade. Mas eu vou deixar esse erro passar. Eles são só vinte. Devem estar bem ocupados reunindo os humanos no meu salão de oferendas. Mas vou deixar passar somente esta vez.

Estava bebericando o líquido vermelho, apreciando o sabor do sangue do bonito mensageiro que tinha tão graciosamente oferecido um pedaço da sua carne para dar mais sabor ao seu vinho, quando a televisão chamou a sua atenção. Havia uma legenda de notícias na parte inferior da imagem onde se lia ASSASSINATOS EM TULSA, e a âncora, Chera Kimiko, estava falando com uma expressão sombria.

Encantada, Neferet apertou o botão de mudo na televisão, esperando reviver os detalhes deliciosos do seu banquete. No entanto, em vez da Church Boston Avenue, a tela mostrou uma imagem do Woodward Park, em um estado terrível de desgaste. Então, a câmera mudou, e as sobrancelhas de Neferet se ergueram enquanto se concentravam em um paredão de pedra ao lado de uma gruta que, até recentemente, fora o seu santuário. Ela aumentou o volume, impaciente, a tempo de ouvir Kimiko dizendo de forma tão séria:

– Este é o local onde ocorreu o terrível assassinato de dois homens, cujos corpos foram descobertos por bombeiros na manhã de ontem. Conforme informamos anteriormente, a violenta tempestade que criou ventos de quase 120 km/hora foi acompanhada por raios mortais. Os raios que caem sobre a região de Tulsa já foram responsáveis por cinco mortes hoje, além de dez pessoas hospitalizadas em estado grave. Mas a morte desses dois homens aparentemente não tem relação com as tempestades. Adam Paluka está ao vivo com o detetive Kevin Marx e vamos até ele para mais detalhes. Adam?

A cena mudou do parque destruído pela tempestade para um detetive sentado atrás de uma mesa em um escritório de aparência comum. Neferet o reconheceu como o policial que fora irritantemente compreensivo com Zoey Redbird no passado. Ela fez uma careta enquanto assistia à entrevista.

– Detetive Marx, o senhor poderia nos explicar essas duas mortes adicionais em Woodward Park, e responder se o senhor realmente excluiu a possibilidade de as mortes terem sido caudadas pela tempestade?

– Os corpos dos dois homens, ambos na casa dos quarenta anos, foram descobertos na manhã de ontem. A causa da morte foi a mesma para os dois homens: contusão e hemorragia.

Neferet sorriu, decidindo que aquele era um excelente aquecimento para a carnificina que eles logo descobririam.

– E é verdade que o senhor prendeu alguém que confessou ter cometido os crimes?

Neferet ergueu as sobrancelhas.

– Confessou os assassinatos? Está presa? Isso é impossível.

– Sim, é muito triste ter de informar que uma jovem novata, a quem conheço pessoalmente, se apresentou por livre e espontânea vontade para confessar que assassinou os dois homens.

– Uma novata! – explodiu Neferet levantando-se da chaise e gritando com a tela da televisão.

– O senhor pode informar o nome de tal novata?

– Zoey Redbird .

Neferet gritou, pegou um dos abajures elétricos que tinha tirado da tomada e o atirou contra o aparelho de televisão.

– Aquela garota tola e fraca acredita que matou aqueles dois homens? Eu os encontrei a poucos metros do meu santuário, e seu sangue serviu para me alimentar para que pudesse ir ao grande banquete na Boston Avenue Church. Zoey Redbird matando dois homens adultos? Que grande bobagem! Ela não tem o ímpeto necessário para matar ninguém! E realmente confessou o assassinato? Aquela garota é uma idiota ainda maior do que eu imaginei.

Neferet jogou a cabeça para trás e sua gargalhada debochada ecoou pela cobertura.

Neferet assumira a sua posição no meio da graciosa escadaria dupla do salão principal do Mayo Hotel. Adorava a ironia de estar no mesmo lugar onde tantos humanos iludidos fizeram seus votos matrimoniais.

– Um pacote de macarrão tem validade maior do que a maioria dos casamentos humanos, sabia?

Ela sorriu para a multidão reunida sobre o piso de mármore preto e branco. Havia ordenado que diminuíssem as luzes e que grandes candelabros fossem posicionados e acesos em cada um dos lados. Sabia que sua beleza era divina, complementada pelo brilho de seu vestido à carícia da luz das velas.

Ordenou que metade dos seus vinte súditos a cercasse, embora sem entrar na plataforma em que se encontrava. Os outros dez humanos possuídos estavam posicionados na entrada do seu Templo. Ela dera a eles apenas uma ordem: ninguém poderia entrar ou sair.

Seus filhos das Trevas se contorciam à sua volta, invisíveis para os humanos que a olhavam boquiabertos, mas reconfortantes para ela com sua avidez familiar.

– Ah, vocês estão certos em não responder. Essa pergunta realmente não é uma forma digna de uma Deusa se dirigir pela primeira vez aos seus escolhidos. Permitam que eu comece de novo.

Neferet se posicionou na frente do seu trono, abriu os braços em um gesto amplo e começou:

– Atenção! Eu sou Neferet, a Deusa das Trevas, a Rainha de Tsi Sgili. Transformei este hotel no meu Templo das Trevas, e vocês, poucos afortunados, serão meus súditos fiéis, os meus escolhidos. Em troca, recompensarei sua adoração removendo as preocupações do mundo comum de vocês. Não mais precisarão trabalhar em empregos sem sentido. Não precisarão voltar para casamentos tediosos nem para filhos mal-agradecidos. De hoje em diante, até a sua morte, seu único objetivo será me adorar. Regozijem-se, humanos!

Seu discurso foi seguido por um longo momento de silêncio absoluto e, então, a multidão começou a se agitar nervosamente, aos sussurros.

Neferet aguardou pelo que sabia que viria a seguir, e isso manteve o sorriso no seu rosto. Gostava muito de ensinar lições de vida aos humanos.

Conforme previsto, Neferet não precisou esperar muito tempo. Uma mulher deu um passo à frente. Era alta e tinha cabelo castanho – devia estar no final da meia-idade, embora estivesse bem conservada e parecesse estar em forma, como uma mulher que se exercita diligentemente para se manter jovem. Usava um vestido de bom gosto e corte meticuloso em um tom bonito de verde-esmeralda.

– Onde você comprou esse vestido adorável? – perguntou Neferet à humana antes que ela tivesse a chance de dizer qualquer coisa.

A mulher piscou, obviamente surpresa com a pergunta, mas respondeu:

– É um Halston. Comprei na Miss Jackson’s.

– Kylee – chamou Neferet, olhando para o lugar em que a garota se encontrava aos pés da escadaria, com uma aparência serena de um robô. – Anote. Vou precisar que você vá até a Miss Jackson’s e escolha diversos vestidos para mim. Certifique-se de incluir modelos Halston.

– Sim, Deusa – entoou Kylee, sem emoção.

Neferet franziu o cenho, olhando para Kylee. Será que realmente queria que aquela garota escolhesse os seus trajes? Ela não devia ter mais do que vinte anos e se o seu corte de cabelo fosse uma indicação do seu senso de moda, seria realmente um desastre...

– Tudo bem, você tem que explicar o que realmente está acontecendo aqui. Eu não tenho tempo para isso. – Recuperando-se da sua surpresa, a mulher com o vestido verde-esmeralda interrompeu os pensamentos de Neferet, batendo com o pé no chão para demonstrar sua impaciência. – Eu tenho um jantar marcado no Summit Club, e pegar um avião para Nova York logo em seguida.

– Já expliquei a situação para vocês – disse Neferet. – Agora eu sou a sua Deusa. Você não vai jantar no Summit Club nem vai voltar para Nova York. A não ser que eu mande que você faça alguma coisa para mim. O seu único trabalho é me adorar. Em troca, eu acabarei com as suas angústias e preocupações mundanas. Qual é o tamanho desse vestido? Trinta e oito ou quarenta?

– Sério? Essa é uma piada de muito mau gosto. Frank Snyder está por trás disso, não é? Frank? – A mulher ignorou Neferet e chamou pelo homem, procurando ao seu redor, como se esperasse que ele fosse aparecer. – Ela está vestida como uma diva de cinema. Deixe-me adivinhar: ela vai cantar “Smoke gets in your eyes” pelo meu aniversário, não é? Como é que você encontrou uma vampira para contratar? Ou será que essas tatuagens foram pintadas?

A mulher girara em torno de si e novamente encarava Neferet, olhando para ela como se estivesse considerando apagar suas tatuagens.

Neferet se deu conta de que sua paciência chegara ao fim.

– Escolhidos, permitam que esta seja uma lição para vocês. Eu não sou uma piada. Eu sou a sua Deusa. Poderosa, possessiva, imortal e onisciente. Eu sou praticamente destituída de paciência, nunca aturo tolos. – Neferet se inclinou para a frente e pousou a mão no balaústre de ferro. Encontrou o olhar da mulher e invadiu a sua mente desprotegida. – Então, o seu nome é Nancy, e hoje é o seu aniversário. – O sorriso de Neferet era felino. – E você está fazendo cinquenta e três anos, embora diga aos amigos que tem quarenta e cinco.

O corpo da mulher estremeceu e ela arfou, chocada com a violação, mas impotente para resistir.

– Como você sabe disso? E como se atreve?

Neferet fez um som alto de admoestação, meneando a cabeça.

– Uma vida de tantas privações em nome da beleza. Será que ninguém lhe explicou que, não importa o que faça, você é humana e os humanos envelhecem? Nancy, você deveria ter comido mais massa, bebido mais vinho, dormido com o filho caçula do seu vizinho mais do que duas vezes e deixado o seu odioso marido quando ele teve o primeiro caso vinte anos atrás. E, Nancy, eu sei dessas coisas porque eu sou uma Deusa. Eu me atrevo a dizer essas coisas porque eu sou a sua Deusa, embora você, obviamente, não me mereça.

As pessoas em volta de Nancy se mexeram, como se quisessem se afastar dela, mas ainda estavam com expressões pasmadas e confusas de descrença em seus rostos bovinos.

– Seria inteligente se afastarem de Nancy. Eu sei que o meu Templo conta com instalações de lavanderia, mas não há motivo para mancharem desnecessariamente as suas roupas. – As pessoas mais próximas de Nancy se afastaram mais dela. Neferet sorriu, encorajando-os enquanto pegava uma das gavinhas que envolviam os seus pés descalços. Era satisfatoriamente pesada e grossa, e a sua pele gelada e emborrachada pulsava contra o seu corpo enquanto envolvia o seu braço. – Mate Nancy. Faça-a sofrer. Ela encheu a própria vida de sofrimento, então o sofrimento na morte deve ser um conforto para ela. – Neferet disse aquilo com carinho para seu filho. – Permita que seja visto.

Ela atirou a criatura em Nancy. A entidade tornou-se visível no ar. A multidão arfou e exclamou, mas logo começou a gritar quando a gavinha se enrolou no pescoço de Nancy e começou lentamente a cortar sua carne até arrancar a cabeça da mulher.

A multidão se descongelou e, gritando em pânico, seguiu em direção à saída.

– Eu não lhes dei permissão para sair! – Cheia de poder imortal, a voz de Neferet ecoou pelo amplo salão. – Meus filhos, permitam que meu povo veja vocês.

O ninho de Trevas ao seu redor se ondulou e se tornou visível, mas poucas pessoas notaram. Estavam ocupadas demais olhando, horrorizadas, para as cabeças negras das gavinhas, que haviam possuído a equipe e que, ao comando de Neferet, tornaram-se visíveis dentro das bocas escancaradas de cada um dos humanos robôs que guardavam as saídas.

Neferet fez outra nota mental – ela tinha de se certificar de recompensar os filhos que se ofereceram para a tediosa tarefa de possuir a equipe. Eles estavam sendo tão obedientes e compreensivos. Um outro banquete logo teria de ser providenciado para eles.

Sentiu um feixe de poder deslizar pelo seu corpo e voltou sua atenção para Nancy, cuja cabeça já estava separada do corpo. Havia tanto sangue, porém, que a gavinha não conseguia se alimentar rápido o suficiente. Neferet suspirou. O piso de mármore reluzente ia ficar manchado. Será que tinha de fazer tudo?

– Alimentem-se dela rapidamente! – ordenou aos filhos mais próximos. – Não tolerarei bagunça no meu Templo. – Então, suspirou mais uma vez e voltou sua atenção para o público em pânico. – Vocês estão começando muito mal! – exclamou ela. – Em troca de uma vida repleta de um novo objetivo, tudo o que peço em troca é a sua obediência e adoração. Nancy não me deu nada disso e vejam o que aconteceu com ela. Que isso sirva de lição para cada um de vocês.

– O que são essas criaturas? – perguntou um homem baixo e gordo, obviamente tentando controlar o medo enquanto acariciava o braço de uma mulher igualmente baixa e gorda e que enterrara o rosto no seu casaco enquanto soluçava.

– Estes são os meus filhos, formados por Trevas, e leais somente a mim.

– Por que eles estão dentro da boca daquelas pessoas? – quis saber ele.

– Porque aquelas pessoas fazem parte da minha equipe de trabalho e elas também devem ser leais apenas a mim. A possessão é muito mais eficiente do que cortar as suas cabeças. Agora, vocês viram como tudo será muito mais simples se vocês fizerem o que eu mandar?

– Mas isso é loucura! – gritou um homem no fundo do salão. – Você não pode esperar que nós fiquemos aqui e a adoremos, não é? Nós temos as nossas vidas, nossas famílias. Pessoas que sentirão a nossa falta.

– Tenho certeza de que sentirão mesmo, mas como eles são pessoas , e não imortais, isso não me preocupa. Mas se vocês forem muito, muito, mas muito bons mesmo, eu talvez lhes dê permissão para trazer a suas famílias para se juntarem a vocês.

– Você não pode fazer isso – disse uma mulher aos soluços. – A polícia vai nos salvar.

Neferet deu uma gargalhada.

– Ah, eu espero que sim. Estou ansiosa por este confronto. Garanto a vocês que o Departamento de Polícia de Tulsa não sairá vitorioso.

– E agora? O que nós vamos fazer? Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! – berrou outra mulher.

– Façam com que ela se cale! – ordenou a Deusa, e uma gavinha voou em direção à mulher, envolvendo seu rosto e tapando sua boca. Ela caiu no chão enquanto se contorcia.

Neferet soltou um longo suspiro de alívio quando não apenas os gritos da mulher cessaram, mas todo o grupo em pânico também se calou. Ela passou a mão pelo vestido perfeitamente ajustado ao seu corpo e, usando um tom calmo para os súditos apavorados, falou:

– Vocês devem aprender estas lições agora. – Ela fez um gesto com os dedos longos como se estivesse marcando itens em uma lista. – Eu não tolero histeria. Não tolero deslealdade. Também não sou muito chegada a homens brancos de meia-idade. Agora, eu preciso de sessenta voluntários para resolver negócios muito importantes na cobertura.

Ninguém se mexeu. Ninguém a olhou nos olhos. Neferet suspirou novamente e acrescentou:

– Eu não vou usar nenhum dos voluntários como alimento.

Uma jovem ergueu a mão trêmula.

– Sim, querida. Qual é a sua pergunta? – concedeu a Deusa.

– Você vai dizer para essas cobras entrarem nas nossas bocas?

Neferet sorriu docemente para a garota.

– Não, eu não vou fazer isso.

– Ent... Então, eu sou uma voluntária.

– Muito bem! – elogiou Neferet. – E qual é o seu nome?

– Staci.

– Não, eu vou chamá-la Gladys, que é um nome muito mais digno, você não acha?

A jovem logo concordou com a cabeça.

– Então, Gladys, fique do lado esquerdo do salão de oferendas. Agora, eu quero mais cinquenta e nove pessoas tão entusiasmadas quanto Gladys para se juntarem a ela.

Quando ninguém mais se mexeu, Neferet usou um tom de raiva e gritou:

– Agora!

Como se tivessem sido atingidos por um chicote, um grupo de humanos se sobressaltou e se juntou à primeira voluntária.

– Kylee, conte quantos humanos há e me informe quando houver sessenta.

Cada vez mais impaciente, Neferet esperou. Por fim, Kylee declarou:

– Temos sessenta voluntários, Deusa.

– Muito bem. Seja uma fofa, Kylee, e leve-os até a minha cobertura. Faça com que esperem na varanda pelas minhas ordens. Ah, e abra várias caixas de champanhe. Seja generosa. Meus voluntários devem ser recompensados.

Parecendo confusos, mas aliviados, os sessenta humanos entraram nos elevadores. Neferet voltou a sua atenção para os adoradores restantes. Eles a olhavam como se esperassem que uma guilhotina estivesse prestes a descer sobre as suas cabeças.

– Seria muito mais fácil usar a possessão em todos vocês. Instruir humanos dos tempos modernos a como adorar uma Deusa será uma tarefa extremamente tediosa – murmurou ela para si mesma, enquanto batia com os dedos no balaústre.

Uma mulher que estava próxima o suficiente para ouvi-la deu vários passos em direção à escadaria e, então, atraindo o olhar da Deusa, fez uma reverência profunda e elegante. Neferet ergueu as sobrancelhas. Analisou a mulher que se mantinha em reverência, com a cabeça respeitosamente curvada. Era mais velha do que Nancy, mas não muito. E embora estivesse bem-vestida, com um terninho bem cortado e caro, parecia ter a própria idade.

– Pode se levantar – permitiu Neferet por fim.

– Eu agradeço, Deusa. Será que a senhora me daria permissão para que eu me apresentasse?

– Vá em frente – concedeu, bastante intrigada.

– Eu sou Lynette Witherspoon, dona da Everlasting Expressions. Gostaria de lhe oferecer os meus serviços.

– Lynette. Sim, o seu nome não me ofende. Você pode mantê-lo. E o que é exatamente a Everlasting Expressions?

– É a minha empresa. Ofereço serviços de planejamento de eventos, coordenação e decoração para uma clientela seleta – explicou a súdita.

Neferet apreciou o orgulho e a confiança na sua voz.

– E o que você propõe para mim?

– Tudo – respondeu Lynette com voz firme. Ela olhou em volta do salão para as pessoas reunidas atrás dela, antes de lançar um olhar sincero para Neferet. – Creio que a adoração de uma Deusa seja um evento constante da maior importância, que deve ser dirigido com bom gosto e sem percalços. Se me der a sua permissão, garanto que a sua adoração será uma sucessão de eventos espetaculares.

– Interessante... – refletiu a Deusa. – Lynette, você não se importa se eu vislumbrar suas reais intenções, não é? – Embora tenha dito aquilo em tom de pergunta, Neferet não esperou pela resposta da súdita. No entanto, invadiu a mente da mulher de maneira mais gentil do que fizera com Nancy.

O que descobriu lhe fez sorrir.

– Lynette, você é uma oportunista.

– S-sou – confirmou ela, um pouco trêmula, depois que a Deusa saiu da sua mente.

– E você odeia os homens. – O sorriso dela se abriu mais.

– Eu não tenho poderes, então posso apenas imaginar, mas acredito que a senhora compreenda esse ódio – respondeu a mulher.

– Eu gosto de você, Lynette. Permitirei que gerencie o planejamento da minha adoração.

Lynette fez outra reverência profunda.

– Eu lhe agradeço, Deusa.

– E qual será a sua primeira ação? – Neferet sentia uma curiosidade quase incontrolável sobre as intenções daquela humana incomum.

– Bem – começou ela, batendo com a mão no seu coque e analisando as pessoas que estavam em silêncio atrás dela –, todos os eventos começam com duas coisas: roupas adequadas e decoração correta.

– Só tenho uma exigência: deslumbre-me – ordenou a Deusa.

– Sim, Deusa – respondeu a mulher em tom respeitoso.

– E quanto a vocês, meus súditos – disse Neferet, dirigindo-se para o seu rebanho –, façam tudo o que Lynette mandar. – Neferet dirigiu o olhar para Lynette e acrescentou: – Desde que ela não mande que tentem sair do meu Templo.

– Eu não pensaria uma coisa dessas, Deusa – apressou-se a humana em responder.

– Ah, minha querida, você pensou nisso. Você só se deu conta de como isso seria imprudente.

Lynette curvou a cabeça.

– Touché , Deusa.

– Agora, deixarei vocês, meus súditos, nas mãos capazes de Lynette. Vou para a minha cobertura me preparar para...

A saída de Neferet foi interrompida pelo mensageiro alto, Judson, chamando de seu posto em frente das portas fechadas e acorrentadas do Mayo Hotel.

– Deusa! A polícia está aqui!


5

Lynette

– Socorro! Polícia! Ela está nos mantendo presos aqui! – Uma garota que Lynette reconheceu como sendo a dama de honra do casamento espetacularmente caro da noite anterior começou a gritar, desvencilhando-se da equipe possuída, esmurrando o grosso vidro das portas dianteiras.

– Por que será que eu sempre tenho que fazer tudo? Equipe, todos vocês, exceto Judson, levem esses humanos para o porão!

A voz de Neferet estava cheia de veneno, e a equipe do hotel reagiu como se tivesse levado um choque elétrico. Começaram a reunir o grupo de pessoas aterrorizadas em direção à saída de emergência. A vampira flutuou pela escadaria e pelo piso do salão, passando tão próxima de Lynette que o vestido púrpura encostou nos seus pés. Lynette se afastou, tentando se esconder nas sombras e evitar ser levada com o resto do rebanho, mas Neferet falou com ela:

– Você, venha comigo. Eu não quero que você perca o evento que eu estou planejando.

– Como desejar, Deusa.

Lynette se empertigou, controlou o medo e seguiu a vampira. Não importava o que acontecesse, ela não ia terminar seus dias como aqueles pobres otários da equipe do hotel com aquelas cobras nojentas da vampira saindo pela boca. E também não faria nada idiota para acabar tendo a cabeça decepada. Ela sobrevivera a uma mãe alcoólatra e abusiva e à infância pobre para construir um império para si. Tinha dinheiro e status social. Dirigia uma Mercedes-Benz S-Class e era proprietária de uma casa de quase seiscentos metros quadrados em Eight Acres, o condomínio mais caro e exclusivo no centro de Tulsa. Passava as férias na França e só viajava de primeira classe. Ela poderia muito bem sobreviver a uma vampira doida com delírios de imortalidade e sedenta por poder, e ainda encontraria uma maneira de sair lucrando com a situação.

Neferet chegou até a garota que berrava.

– Você não é uma súdita adequada! – Com uma força sobrenatural, ela agarrou um punhado do cabelo louro tingido da garota e puxou sua cabeça para trás até que Lynette tivesse certeza de que o pescoço se partiria. Então, apontou para a boca aberta da garota. – Possuam-na!

Lynette queria afastar o olhar, mas não conseguiu. A cobra negra mergulhou na boca da dama de honra. Os olhos dela se reviraram de forma que só dava para ver a parte branca, o corpo totalmente inerte. Ela só não caiu no chão porque Neferet a segurava pelos cabelos.

– O seu nome será Mabel. Quando eu mandar, você virá de boa vontade até mim – rosnou a Deusa, erguendo o rosto da garota inconsciente até que ficasse a um dedo de distância do dela.

Um ligeiro piscar de olhos. Como se a vampira tivesse ligado um botão, o terror no rosto da garota desapareceu, deixando apenas uma expressão vidrada, mas atenta, em seus olhos.

– Sim, Deusa – entoou ela sem qualquer emoção.

Aquelas cobras horríveis têm total controle de quem quer que possuam , pensou Lynette. Não a mim , prometeu para si mesma. Não farão isso comigo. Eu prefiro morrer a terminar assim!

Neferet soltou a garota. Ela cambaleou como se estivesse desequilibrada, mas conseguiu manter-se de pé. A vampira passou a mão pelo cabelo perfeito e tirou alguma migalha invisível do seu ombro. Então, encarou Lynette.

– Você sabe o que vai acontecer se me decepcionar e acabar não se mostrando uma súdita adequada.

Lynette não afastou o olhar dos olhos verdes-esmeralda de Neferet. Mergulhou em uma reverência profunda que a vampira tanto apreciara antes.

– Eu não a decepcionarei, Deusa.

Sentiu o deslizar doentio de Neferet entrando em sua mente e concentrou os pensamentos nos fatos – ela não tinha a menor intenção de fazer qualquer coisa que levasse a vampira a se voltar contra ela.

– Logo, logo, você acreditará que eu sou uma Deusa, e que o seu destino é me servir. – Antes que Lynette tivesse a chance de comentar, Neferet virou de costas, ordenando: – Judson, desacorrente a porta da frente. Lynette, venha comigo. Meus filhos, não permitam que sejam vistos, mas prestem atenção em mim!

Com um som que trazia à mente de Lynette a recordação de antigas fortunas e opulência, as portas duplas e austeras de latão e de vidro se abriram e Neferet saiu, com Lynette logo atrás, tão perto que conseguia sentir o frio horripilante que emanava das cobras invisíveis.

Havia dois carros do Departamento de Polícia de Tulsa e um carro de passeio parados na pequena entrada circular diretamente em frente ao hotel. Quatro policiais uniformizados conversavam com um homem alto de roupas comuns que estava, obviamente, no comando, o que significava que ele era algum tipo de detetive. Com o aparecimento de Neferet, o grupo rapidamente voltou sua atenção para a bonita vampira. O detetive fez sinal com a cabeça para os outros, que deram alguns passos para trás e se posicionaram atrás dele, enquanto, com a expressão séria, começou a se aproximar de Neferet.

– Não, eu quero que você permaneça perto dos carros – declarou Neferet.

Ela estava próxima às portas, em pé sob o toldo de ferro, marca registrada da entrada do Mayo. Deu um pequeno passo para o lado e envolveu o ombro de Lynette com o braço e a empurrou. Lynette não precisava ser vidente para compreender o que a vampira queria que fizesse. Sem hesitar, deu um passo para a frente e se colocou entre Neferet e a polícia. A mão de Neferet se manteve em seu ombro, e ela sentia as unhas duras e afiadas da vampira pressionadas contra a pele do seu pescoço, bem acima da artéria que ali pulsava forte e rápido.

Lynette ficou completamente parada.

O homem alto hesitou apenas por um momento, embora aquele instante tenha parecido durar uma eternidade para Lynette. Então, os policiais deram vários passos para trás.

– Isso, assim está bem melhor. – Lynette detectou o sorriso na voz de Neferet. – Agora podemos conversar de maneira mais educada. Detetive Marx, que gentil da sua parte vir me visitar. Está uma tarde adorável, não acha? É como se a tempestade de ontem tivesse limpado a cidade.

Neferet falava em um tom afável, mantendo a mão descansando sobre o ombro de Lynette.

– Neferet, eu tenho que fazer algumas perguntas a você. Será que não prefere vir para a delegacia comigo em vez de ser interrogada aqui?

O suspiro de Neferet demonstrou uma decepção exagerada.

– Então, não podemos ser corteses um com o outro socialmente?

– Você sabe muito bem que, em circunstâncias normais, não tenho o menor problema com cortesia. Nós dois já trabalhamos juntos de forma amigável antes. Mas o que aconteceu ontem em Tulsa foi bem além do normal, e eu não tenho tempo para cortesia. – Ele fez uma pausa antes de gesticular em direção à Lynette. – E acho bem irônico você estar reclamando sobre questões de cortesia quando tem uma refém bem diante de si.

A pressão da unha de Neferet sumiu imediatamente, e a vampira afastou a mão do pescoço de Lynette, fazendo um carinho íntimo em seu rosto.

– Detetive, você não poderia estar mais enganado. Lynette, você é minha refém?

– Não, Deusa – respondeu ela, meneando a cabeça e esforçando-se para agir como se aquilo fosse algo corriqueiro, servir como escudo-humano de uma vampira psicótica. – Eu sou uma súdita por livre e espontânea vontade.

– Aí está. Viu? Está tudo bem. Lynette só está aqui porque ela me adora. Mas por que você, detetive Marx, está aqui? As perguntas que o trazem têm a ver com Woodward Park ou com a Boston Avenue Church?

Lynette viu os olhos do detetive se estreitarem.

– O que você sabe sobre Boston Avenue Church?

Neferet deu uma gargalhada.

– Tudo! Pode perguntar qualquer coisa. Você quer saber por quanto tempo aquele projeto de pastor gritou antes de eu matá-lo? Ou por que a esposa do conselheiro estava sem o seu lindo terninho branco Armani, o qual, coincidentemente, era do meu tamanho, quando você encontrou o seu corpo drenado e sem vida do lado de fora do seu santuário? Veja bem, é muito difícil remover manchas de sangue de um tecido de qualidade.

Enquanto a vampira falava, Lynette observava a mudança nos policiais. Primeiro, os seus rostos denunciaram que eles estavam em choque e, depois, sacaram suas armas, enojados e zangados.

A arma do detetive apontou para o seu ombro direito.

– Lynette – disse ele. – Caminhe diretamente para nós e mantenha as mãos onde possamos vê-las.

Lynette sabia que não importava nem um pouco o fato de Neferet não estar tocando nela.

– Não, obrigada – respondeu ela, conseguindo, de alguma forma, evitar que a voz saísse trêmula. – Estou bem aqui com a Deusa.

– Mas do que é que você está falando? – explodiu um dos policiais. – Ela é uma porra de uma vampira que assassinou um monte de fiéis numa igreja! Ela não é uma merda de uma deusa.

– Lynette, eu não gosto de pessoas desbocadas. E você? – quis saber Neferet.

Prendendo a respiração, deu a única resposta que poderia. Meneou a cabeça e disse:

– Não, eu não gosto.

Neferet inclinou a cabeça para o lado e analisou o policial que tinha falado. Lynette viu o corpo dele se retorcer.

– Policial Jamison, será que palavrões permeiam sua mente enquanto tem fantasias com a sua enteada de dez anos de idade? E quando você a observa dormindo e admite para si mesmo que daqui a alguns dias você vai transformar seus desejos em realidade?

O policial empalideceu.

– Isso é uma porra de uma mentira! – exclamou.

– Mais profanação. “Parece-me que o lorde faz protestos demasiados” [*] – declarou Neferet. Então, ela se voltou para Lynette em tom conspiratório. – É uma citação, mas acho perfeitamente adequada à situação, você não acha?

– Acho – concordou Lynette, observando o policial de perto.

O homem estava rubro e parecia prestes a explodir a qualquer momento – e Lynette se deu conta de que Neferet não o estava provocando nem inventando nada daquilo. Ela deslizara pela mente dele e revelara o seu segredinho sujo.

– Sua vaca filha da puta! – berrou o policial Jamison.

– Já chega! – ordenou o detetive Marx, dirigindo-se ao homem uniformizado.

Então, sua atenção se voltou para Lynette e Neferet, falando de maneira clara e calma que fez Lynette desejar poder correr da loucura da vampira e direto para a proteção dele.

– Lynette, se você escolher ficar com Neferet, então vai fazer companhia a ela numa cela de cadeia. Neferet, você está presa pelo assassinato de toda a congregação da Boston Avenue Church.

A risada de Neferet foi seca e cruel.

– Você nem consegue fazer a acusação contra mim de forma correta, detetive.

– Você acabou de confessar esses assassinatos! – exclamou Marx.

Ele perdeu o tom profissional e objetivo que mantivera até aquele momento. Com um terrível aperto no estômago, Lynette se deu conta da verdade inacreditável – Neferet massacrara toda uma igreja cheia de inocentes.

Teve de segurar as mãos em frente de si para evitar que tremessem.

– Você tem uma mente tão decepcionantemente tacanha, detetive Marx. O que eu fiz naquela igreja não foi assassinato, foi sacrifício, e foi glorioso! Queria que você estivesse lá como testemunha, mas se estivesse lá , não estaria aqui para testemunhar o início do meu reinado. Ah, mas eu estou divagando. As suas acusações estão incorretas porque estão incompletas. Você se esqueceu de acrescentar o lanchinho que fiz com o seu prefeito algumas noites antes.

A expressão no rosto do detetive Marx era uma máscara de ódio.

– Meus instintos avisaram que os vampiros da Morada da Noite estavam dizendo a verdade sobre você ser a responsável pela morte do prefeito.

– Pelo menos uma vez, os seus instintos estavam corretos. Mas permita que eu continue com a minha confissão. É uma pena que não havia ninguém em Woodward Park para testemunhar minha saída triunfal de meu agradável recanto, enquanto eu descobria dois homens deliciosamente confusos praticamente implorando para que eu drenasse seu sangue.

Os olhos do detetive se arregalaram e Neferet zombou:

– Eu não sei o que é mais inacreditável, aquela energúmena da Zoey Redbird ter criado a ilusão de que matara os homens para logo em seguida correr pateticamente para você e se entregar, ou você realmente ter acreditado que aquela insípida tivesse coragem o suficiente para matar alguém. De qualquer modo, a situação não é muito favorável para suas habilidades de dedução.

Lynette viu que os policiais uniformizados, até mesmo Jamison, empalideceram diante da admissão direta de culpa de Neferet, mas o rosto do detetive Marx endureceu, formando linhas de teimosia.

– Neferet, permitirei que faça uma ligação para o Conselho Supremo, mas você deve se entregar agora e se preparar para arcar com as consequências dos seus atos.

– O Conselho Supremo tem ainda menos jurisdição sobre mim do que você – declarou Neferet. – Eu não sou vampira. Eu sou a Deusa das Trevas, Rainha de Tsi Sgili. E não vou nunca mais me curvar diante de qualquer autoridade. Você, Tulsa e o resto do mundo vão me adorar, é meu direito divino. Observem e aprendam. Mabel, venha até aqui.

A garota obedeceu imediatamente. Caminhou pelas portas que Judson abrira para ela e ficou ao lado de Neferet.

– Mais reféns não ajudarão você a se livrar disso! – exclamou o detetive Marx.

– Eu disse: observem e aprendam, humanos! Eu não tenho reféns, apenas súditos obedientes. Agora, observem o seu futuro!

Neferet abriu os braços para a garota que chamava Mabel. Lynette teve de dar um passo para o lado enquanto Mabel se apressava, de boa vontade, para abraçá-la.

– Se eu sou a sua Deusa, sacrifique-se por mim.

Com uma curiosidade mórbida, Lynette observou, perguntando-se o que a garota estaria disposta a fazer. Ela só teve segundos para pensar.

– A senhora é minha Deusa – afirmou a garota de forma mecânica e, então, começou a arranhar o próprio pescoço fazendo com que o sangue escorresse pelos ferimentos.

– Agora, sim, este é o comportamento esperado de uma súdita adequada. – Neferet se inclinou para beber o sangue da oferta. A garota arfou e estremeceu, mas, em vez de tentar escapar, ela exclamou com uma voz cheia de êxtase:

– Obrigada, Deusa

– Que delicadeza a sua – elogiou Neferet, seus lábios a centímetros do pescoço de Mabel. Antes de começar a se alimentar do sangue dela, Neferet ordenou: – Proteja-nos!

Instantes depois, houve um barulho ensurdecedor de tiros. Lynette se jogou no chão, encolhendo-se e colocando o braço sobre a cabeça numa vã tentativa de se proteger.

Ouviu uma lamúria de dor e, então, os policiais começaram a gritar. Tremendo violentamente, Lynette espiou por entre os braços. Neferet estava se alimentando da garota, ignorando o caos que acontecia diante deles.

Aparentemente, os tiros destinados a Neferet – e à própria Lynette – ricochetearam em algum escudo conjurado pela vampira e atingiram diretamente o corpo do policial desbocado.

– Ai, meu Deus – sussurrou Lynette.

– Será que você não quer dizer “ai, minha Deusa ”? – Neferet, com os lábios vermelhos do sangue da garota, sorriu para ela.

– Sim, é o que quero dizer – respondeu ela, sentindo-se tonta.

Neferet soltou a garota e Mabel caiu pesadamente no chão. Então, ela estendeu a mão para Lynette, que a pegou, e se levantou, trêmula.

– Não tema, não permitirei que eles a machuquem. Não permitirei que machuquem qualquer pessoa que seja leal a mim – afirmou.

A vampira voltou sua atenção para os policiais. Eles arrastaram o corpo cravejado de balas de Jamison para trás dos carros, onde o restante dos homens estava agachado. Lynette ouvia o som da estática dos rádios enquanto chamavam uma ambulância e pediam reforços.

– Você entendeu agora, detetive Marx? Aprendeu a sua lição?

– Aprendemos que você é uma assassina! – exclamou ele. – Ainda não terminamos. Este não é o fim.

– Pelo menos uma vez você está certo. Ainda não terminei aqui. Esse é só o começo. Observe e aprenda. Observe e aprenda – repetiu ela. – Ah, olhe para cima! Meus filhos, venham comigo!

Dando os braços para Lynette, entraram novamente no Mayo Hotel.

– Judson, acorrente as portas novamente.

– Sim, Deusa. Mas isso não os manterá lá fora por muito tempo.

– Eu sei disso! Limite-se a fazer o que eu ordenei. Como sempre, terei de tomar conta dos detalhes sozinha.

– Sim, Deusa.

– Lynette, gostaria que você se juntasse a mim na minha cobertura. Um evento espetacular está prestes a acontecer lá.

– Sim, Deusa – respondeu Lynette, entrando no elevador com ela.

O sorriso de Neferet era confiante.

– Você está quase acreditando que eu sou divina.

Lynette não respondeu. O que poderia dizer que Neferet não pudesse retorquir esquadrinhando a sua mente e descobrindo a verdade? Então, novamente, deu a única resposta possível:

– Estou aqui para servi-la.

– E assim será.

As portas se abriram para a cobertura.

– Kylee, Lynette está um pouco pálida, sirva para ela uma taça do melhor vinho e leve até a varanda.

Neferet passou por Kylee, com Lynette seguindo logo atrás, e abriu as portas para se juntar às sessenta pessoas que estavam reunidas em grupos amedrontados na varanda. Muitos estavam próximos à balaustrada que emoldurava a ampla extensão das portas para o lado de fora; pela expressão nos seus rostos, ficou claro que tinham ouvido os tiros e viram o que acontecera lá em baixo.

– Espere aqui, Lynette, e tome o seu vinho. Isso vai trazer um pouco de cor de volta ao seu rosto. Não posso permitir que a minha súdita favorita fique com uma aparência abatida e doentia – declarou Neferet.

Então, ela caminhou até o parapeito de pedra, fazendo com que as pessoas mais próximas a ela se afastassem, assustadas.

– Já que a educação moderna é de péssima qualidade, sinto que é meu dever, como a sua Deusa, dizer isto a vocês – ela fez uma pausa e apontou para as pedras esculpidas –: o nome disso é balaustrada. Os suportes grossos e com espaçamento uniforme, aqui e aqui – ela apontou novamente –, chamam-se balaústres. É uma feliz coincidência que haja exatamente sessenta balaústres espaçados em torno da varanda da cobertura do meu Templo. Eu quero que cada um de vocês escolha um balaústre e se posicione diretamente em frente a ele.

– Você... Você não vai nos obrigar a pular, não é? – quis saber uma velha aterrorizada.

– Não, Vovó – respondeu Neferet com a voz calorosa. – Isso não faria nenhum sentido. Será que vocês não viram como eu protegi Lynette contra as balas mortais que a polícia atirou contra ela?

Seguiu-se um longo silêncio e alguém disse:

– Mas você comeu aquela outra garota.

– Mabel foi desobediente. Será que vocês querem o mesmo destino que ela teve?

Suas palavras tiveram um efeito instantâneo sobre as pessoas, que se espalharam, cada qual assumindo uma posição em frente a um balaústre.

– Excelente! Kylee, sirva mais champanhe enquanto eu tenho uma conversa em particular com os meus filhos das Trevas.

Lynette apreciava vinho tinto caro e costumava degustá-lo, bebendo-o devagar. Mas não naquele momento. Ela bebeu ruidosamente, pegando a garrafa da mão de Kylee quando a garota robótica passou por ela para buscar mais champanhe. Lynette sentiu-se grata pela sensação surreal e destacada que o álcool lhe provocava enquanto observava a vampira se mover para um canto sombrio da varanda, bem longe do parapeito, e se curvava para conversar com o que parecia ser absolutamente nada.

Lynette sabia que não era o caso. E, com certeza, apenas um segundo ou dois depois, o ar em volta dos pés da vampira se ondulou, como correntes de ar quente se erguendo do asfalto abrasado de uma estrada, e as cobras de Neferet ficaram visíveis. Lynette ficou satisfeita que a vampira estivesse distraída com os seus “filhos”, pois não conseguia evitar o estremecimento de nojo. Lynette se lembrou de um velho filme de faroeste ao qual assistiu quando criança. Nele, os cowboys tinham que levar o gado e, enquanto cruzavam o rio, um jovem caiu do cavalo, pousando no meio de um enorme ninho de cobras aquáticas para ser morto por elas, embora não rápido o suficiente. Parecia que Neferet estava no centro do ninho, só que as suas cobras eram maiores, mais negras e até mais perigosas do que qualquer uma das cobras do velho oeste.

O que será que elas eram? Com certeza, Lynette não sabia muitas coisas sobre vampiros. Mesmo que fosse capaz de aceitar fazer negócios com eles – já que eram reconhecidamente ricos –, jamais fora contratada por um. Estava longe de ser uma perita em vampiros, mas tinha certeza de que ouvira falar alguma coisa sobre essas criaturas mortíferas semelhantes a cobras. Seus familiares deveriam ser gatos, meu Deus, e não répteis.

Lynette se serviu de mais vinho e tomou um longo gole em sua taça, sentindo-se aliviada por seu rosto estar quente. Bom, o calor deixaria o seu rosto “corado” de novo. Lynette não tinha dúvidas de que a vampira seria capaz de matá-la se lhe desse na telha. Disfarçadamente, apertou o próprio rosto para se certificar de estar completamente corada.

Como ela ia sair daquela confusão? Nem estava mais se preocupando em lucrar com aquilo. Só queria escapar sem ser caçada pelos filhos de uma vampira insana.

– Excelente! – Neferet se empertigou, voltando sua atenção para as sessenta pessoas, cada uma diante de um balaústre na cobertura. – Agora que os meus filhos compreendem os meus desejos, estou pronta para compartilhá-los com vocês, meus leais súditos. – Ela se colocou no centro da varanda para que pudesse ser vista e ouvida por todos. – Kylee, chega de champanhe por ora. Fique ao lado de Lynette.

Kylee, é claro, fez conforme foi ordenada.

Lynette lançou uns olhares de esguelha para a garota. A sua boca estava fechada, ela não conseguia ver qualquer sinal da infestação da cobra, mas a garota estava claramente no piloto automático. Seus olhos estavam abertos, mas sem vida. O rosto não tinha expressão. Dessa vez, Lynette conseguiu evitar um estremecimento de asco. Quem poderia saber o que aquela coisa ao seu lado poderia contar para a vampira?

– Bem, eu tenho uma pergunta para vocês, uma a que qualquer um pode responder. Qual é a sua maior preocupação neste momento? – perguntou Neferet para as pessoas.

Lynette achou estranha sua capacidade de parecer uma pessoa tão normal, até boa. Era tudo fachada, mas uma fachada muito boa.

Ninguém respondeu à sua pergunta, e Neferet deu um sorriso caloroso e encorajador, dizendo:

– Ah, vamos lá! Eu sou a sua Deusa. É o meu dever e um prazer ouvir as suas preocupações. E, como meus súditos, é o seu dever compartilhá-las comigo. Por favor, não me obriguem a forçá-los a cumprir com as suas obrigações.

Um homem resolveu responder:

– A minha maior preocupação é que eu não quero ser morto... Ou coisa pior – declarou ele, lançando um olhar nervoso e rápido para o ninho das trevas que cercava e se contorcia em torno da vampira.

– Muito bom! Ótima resposta. Mais alguém tem a mesma preocupação?

Neferet parecia realmente se preocupar e até mesmo Lynette sentiu que sua cabeça assentia junto com a dos outros.

– Perfeito! – exclamou Neferet. – Eu sabia que a segurança seria a principal preocupação de todos. Agora, vejam bem, eu não estou admoestando vocês, nem estou zangada, mas a sua principal preocupação deveria ser cuidar de mim e me adorar. – Várias pessoas começaram a protestar, obviamente temendo o que a vampira faria em seguida, mas Neferet ergueu a mão e, com um gesto régio calou a todos. – Não, não, eu compreendo. De verdade. E é por isso que vou deixar bem claro que ninguém pode ferir os meus súditos, de modo que fiquem livres para me adorar.

Lynette achou irônico que Neferet tenha feito tal pronunciamento enquanto sirenes soavam cada vez mais próximas lá embaixo.

– Para assegurar aos meus súditos de que eles estão seguros, precisarei da ajuda de vocês. Façam exatamente o que eu mandar, e prometo que o meu Templo será impenetrável a qualquer um que nos queira ferir.

Lynette deu um suspiro suave. Pena que ninguém disse o que todos estavam pensando: não é com o mundo exterior que estamos preocupados – é com você! Mas, é claro, ninguém disse nada disso. Era a Neferet que todos temiam.

– O que precisam fazer é bem simples. Primeiro, cada um de vocês deve se virar de modo a olhar para o lado de fora da cobertura. – De forma lenta e relutante, as sessenta pessoas fizeram como ela ordenou, e agora estavam de costas para Neferet. – Agora, ergam os braços, fechem os olhos, limpem suas mentes e respirem fundo junto comigo. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. – Lynette ouviu as pessoas respirando com ela. – Quero que se concentrem na minha voz e não pensem em mais nada.

Neferet fez uma pausa para olhar em volta e ver se todos estavam nos devidos lugares. Quando os seus olhos encontraram os de Lynette, seus lábios carnudos se abriram em um sorriso cruel.

O estômago de Lynette se contraiu e ela temeu que fosse vomitar todo o vinho que consumira.

O olhar de Neferet se afastou dela e pousou nas cobras que se contorciam em torno dos seus pés.

– Meus filhos, chegou a hora! – As palavras que disse a seguir foram entoadas em um ritmo musical que era supreendentemente tranquilizador, de forma quase hipnótica.

Em um ataque rápido, promovam a defunção
para que aqueles lá embaixo conheçam a minha ira.
O poder é farto, consuma seu quinhão
Para mim uma perfeita jaula assim se cria.

Lynette conseguia sentir o poder crescendo a cada verso que a vampira entoava, e ela, assim como as outras sessenta pessoas que estavam congeladas com os braços erguidos, não poderia fazer nada, a não ser esperar pelo que aconteceria a seguir.

Para que este mundo eu possa reedificar
meu Templo deve ser divinal – poderoso.
Para a Deusa, somente sua lealdade deve imperar
E para Tulsa ofereçam um divino canto majestoso.

Pelo tempo que ainda vivesse, Lynette jamais seria capaz de apagar da memória a visão do que aconteceu em seguida. Com as palavras “divino canto majestoso”, Neferet ergueu os braços e, como se aquele fosse o sinal pelo qual estavam esperando, as cobras dispararam em direção às costas das pessoas despreparadas. Lynette prendeu a respiração, esperando que as serpentes subissem por suas pernas e as possuíssem, mas suas expectativas não poderiam estar mais erradas. Em vez de possuir as pessoas, as cobras – como se formassem um único ser – atingiram-nas todas no meio das costas, atravessando-as com tanta força que o sangue e as tripas explodiram como uma chuva vermelha fluindo com as gavinhas sobre a balaustrada de pedra. Sem acreditar, Lynette assistiu às criaturas descerem pelas laterais do Mayo Hotel, lavando-o com negrume e sangue, como se estivessem desenrolando uma cortina escura e gotejante.

Um som chamou sua atenção de volta à Neferet. Entorpecida, viu que a vampira ainda tinha os braços erguidos. Sua cabeça estava inclinada para trás e seu corpo estremecia em espasmos enquanto ela gemia num êxtase terrível. Lynette tinha certeza de que vira um brilho sombrio emanando e se expandindo em volta dela. De repente, compreendeu. É a morte das pessoas . De alguma forma ela está se alimentando de suas almas, assim como as suas criaturas se alimentam dos seus corpos.

E elas estavam se alimentando das pessoas que tinham acabado de morrer – todas as cobras que permaneceram na cobertura. Lynette sentiu que balançava a cabeça. Havia tantas delas. Muitas ainda.

Lynette ainda meneava a cabeça e observava as criaturas que se agitavam por entre os mortos, grudando neles como sanguessugas gigantescas, drenando tudo o que restava nos corpos inertes, quando o braço de Neferet baixou. Ela arrumou o vestido e, sem lançar um olhar sequer para nenhum dos sessenta voluntários, virou-se, sorrindo, aproximando-se de Lynette.

– Kylee, jogue os corpos pela balaustrada quando os meus filhos acabarem de se alimentar. Ah, e chame Judson e os outros membros de minha equipe. Eles não precisam mais proteger as portas. Estamos todos seguros. Nada poderá penetrar o véu das Trevas. Ninguém poderá entrar nem sair do meu Templo sem minha permissão. Então, mande que a equipe avise aos súditos restantes de que eles não precisarão mais ficar naquele porão sombrio. Eles podem voltar para os seus quartos sem medo. Eu já me certifiquei de que todos estejam protegidos. Contanto que me adorem. Já chegou a hora de começarem a me adorar.

– Sim, Deusa – respondeu Kylee, desaparecendo pela porta da cobertura.

Os olhos verdes-esmeralda de Neferet encontraram os de Lynette.

– O que você achou do meu evento?

Lynette engoliu o enjoo que lhe subia pela garganta e ameaçava engasgá-la. Respondeu então com a mais pura honestidade:

– Eu jamais vi nada como aquilo.

– “Eu jamais vi nada como aquilo”, o quê? – perguntou Neferet, cheia de expectativa.

– Eu jamais vi nada como aquilo, Deusa – completou Lynette, curvando-se em uma reverência profunda e trêmula.

– E agora você realmente acredita nisso. Encantador! Levante-se, Lynette, minha querida, e sirva uma taça de vinho para nós, enquanto discutimos os tipos de evento de adoração que você planeja para mim.

Lynette se levantou e fez exatamente o que a Deusa mandou.

[*] Esta frase faz referência à obra Hamlet , de William Shakespeare. No caso, “The lady doth protest too much, methinks” (Parece-me que a dama faz protestos demasiados). Essa expressão indica uma situação em que a insistência na defesa de determinado argumento ou ponto de vista pode ser indício de que há uma mentira sendo ocultada pelo emissor. (N.E.)


6

Detetive Marx

Desde aquela noite escura e com muita neve em que Zoey Redbird o chamara até a velha estação, onde ela e um adolescente tinham escapado por pouco de serem assassinados, o detetive Marx tivera questionamentos em relação a Neferet, que, na época, era a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. A vampira parecera estranha para ele. Zoey obviamente ficara desconfiada dela quando ele levara os dois novatos de volta para a Morada da Noite, e Neferet a recebera de maneira calorosa e aparentemente sincera. Zoey assumira uma postura defensiva. Até dera um show para mostrar a nova tatuagem com a qual a Deusa tinha lhe presenteado naquela noite, o que, aos olhos treinados do detetive, indicava que a novata fora bem-sucedida em dizer à vampira mais poderosa e proeminente da escola que ficasse longe dela.

Marx achou que deveria ter ficado do lado da vampira e questionado a veracidade da novata. Em vez disso, Marx sentiu uma comichão sob a pele quando estava perto da Neferet, a mesma comichão que já lhe salvara nas ruas mais vezes do que poderia contar. Gostava de Zoey. Não sentia nenhuma comichão quando estava perto dela. De Neferet, porém, ele não tinha gostado nada.

Marx perguntara à sua irmã, que fora Marcada quase duas décadas antes, sobre Neferet. Anne fora surpreendentemente curta e grossa na sua resposta: Neferet é uma poderosa Grande Sacerdotisa. Fique longe dela. Quando pedira mais detalhes, Anne encerrara completamente a conversa. Chegara até a evitar as suas ligações por quase uma semana. Aquilo fora mais do que estranho. Ele e Anne eram gêmeos e se mantiveram próximos mesmo depois de ela ter sido Marcada e passado pela Transformação. Atualmente, ela dava aulas de Feitiços e Rituais na Morada da Noite de São Francisco. Marx passava as férias lá pelo menos uma vez por ano e ficara hospedado várias vezes no alojamento da escola como seu convidado. Anne costumava ser direta e honesta com ele sobre o seu mundo de vampiros. Sabia que poderia confiar no irmão. Mas bastou uma menção à Neferet, e Anne erguera um muro entre eles.

Marx odiara aquilo, odiara não ter a confiança da irmã. Então, nunca mais voltou a fazer perguntas sobre Neferet.

Nem mesmo quando a Grande Sacerdotisa deixara a Morada da Noite de Tulsa e dera uma entrevista coletiva condenando os vampiros atuais em geral e os da sua Morada em particular.

Nem mesmo quando Neferet desaparecera depois que a sua cobertura fora destruída.

Nem mesmo quando a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, Thanatos, acusara Neferet de ter assassinado o Prefeito LaFont.

Nem mesmo quando recebera uma pista anônima pelo Disque Denúncia dizendo ter visto uma vampira nua que se encaixava com a descrição de Neferet entrando na Boston Avenue Church.

Os últimos vinte e poucos minutos o fizeram mudar de ideia sobre não questionar a irmã.

– Aqui! Policial ferido aqui!

Marx acenou para a ambulância que chegara no bloqueio atrás do qual ele e os outros policiais estavam agachados. Lançou um olhar para Jamison. O cara estava obviamente condenado. As seis balas que ricochetearam no escudo invisível que Neferet erguera tinham, convenientemente, lhe atingido em todas as partes não protegidas pelo seu colete à prova de balas. Como ela conseguira fazer aquilo? Marx acrescentou mais uma pergunta à longa lista de perguntas que, com certeza, faria à irmã.

Mais carros oficiais do que ele poderia contar chegaram, parando no meio das ruas que cercavam o Mayo. Os policiais que não estavam dando cobertura para Marx apressavam-se em evacuar os prédios adjacentes. Marx enviara uma mensagem pelo rádio dizendo que um policial fora atingido, além de estar acontecendo uma situação grave envolvendo reféns.

Foi com uma mistura de alívio e tristeza que viu o chefe de polícia Connors liderando a equipe da SWAT. O chefe não era conhecido pelas habilidades diplomáticas.

– Detetive, faça um resumo rápido da situação – pediu ele.

– Neferet confessou os crimes na Boston Avenue. Ela está lá dentro do hotel com reféns. Ela tem controle sobre eles. Não sei se é por feitiço ou se apenas ela os deixou tão apavorados a ponto de estarem dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Mas você não vai acreditar nas coisas terríveis a que ela está obrigando essas pessoas fazerem.

– Depois de ver o que ela fez na Boston Avenue, acho difícil ficar surpreso com qualquer coisa que ela possa fazer – declarou o chefe de polícia em tom sombrio.

– Está vendo aquele corpo ali? Aquela garota dilacerou a própria garganta para Neferet enquanto dizia “obrigada, Deusa”. – Marx fez um gesto indicando a carcaça ensanguentada que costumava ser uma jovem.

– Alguma ideia de quantas pessoas estão lá dentro com ela?

Marx meneou a cabeça.

– Deve ter umas cem, mas é apenas um chute. Ela fechou o restaurante e trancou o prédio. Pelo que entendi, ela não vai deixar ninguém sair.

– Bem, ela vai ter que nos deixar entrar.

– Chefe, acho melhor conseguirmos algumas informações sobre a situação dos reféns. Não queremos uma repetição do que aconteceu na igreja. Ela massacrou aquelas pessoas, mas os corpos não parecem com nada do que já vi vampiros fazerem antes. Eles foram estraçalhados, comidos e drenados. O poder de Neferet não se parece em nada com o que já tenhamos lidado antes.

– É, eu vi. – O chefe de polícia meneou a cabeça. – Mas como uma porra de uma vampira conseguiu fazer algo assim? Eu ouvi dizer que uma Grande Sacerdotisa pode entrar na mente das pessoas. Controlá-las e até mesmo apagar lembranças. E sei que são fisicamente fortes, mas não tão fortes quanto os seus guerreiros. Mas a carnificina na igreja... – Ele balançou a cabeça. – Eu nunca ouvi falar em nada parecido com aquilo. E quanto a você? A sua irmã não é vampira?

– É sim, e eu vou dar uma ligada pra ela. Mas tem outra coisa que você precisa saber. Neferet não está dizendo que é uma vampira. Ela afirma ser uma deusa, para ser mais específico, a Deusa das Trevas e a Rainha de Tsi Sgili, seja lá o que for isso. Ela disse que transformou o Mayo no seu Templo e que quer que Tulsa a adore.

O chefe de polícia deu um grunhido.

– Porra nenhuma. Assim que avaliarmos a situação dos reféns, a gente vai entrar. Vamos ver o que o nosso atirador de elite com a sua arma de cinquenta calibres vai causar nas suas ilusões de divindade.

Marx acenou com a cabeça em concordância, mas sentiu a familiar comichão de aviso sob a pele, dando-lhe uma sensação ruim sobre como as coisas de desenrolariam.

– Esses malditos vampiros perderam a porra da cabeça ultimamente. Primeiro o assassinato do prefeito, então aqueles dois homens no parque, a carnificina na igreja e agora isso. Estou achando que precisamos fazer mais do que apenas colocar a Morada da Noite em confinamento. Acho que devemos expulsá-los de Tulsa!

– Chefe, sobre aqueles dois homens no parque. – Marx franziu as sobrancelhas. Sabia que os sentimentos contra os vampiros estavam em alta, mas ele detestava ouvir esse tipo de merda racista saindo pela boca do chefe da polícia.

– O quê? Você não prendeu aquela novata que confessou os assassinatos? Merda, ela talvez tenha matado LaFont também!

– Na verdade, chefe, Neferet acabou de confessar o assassinato do prefeito e daqueles dois homens. Ela gabou-se disso, assim como do massacre na igreja.

O chefe de polícia piscou, surpreso.

– Bem, então por que a porra de uma novata confessou ser a assassina? Ela faz parte dos seguidores de Neferet?

– Duvido muito. Zoey Redbird e Neferet têm uma história de animosidade entre elas. Acho que é provável que Zoey tenha encontrado com os homens e se defendido contra eles e, quando soube que estavam mortos, deve ter acreditado que os tinha matado . Ela é uma garota legal, chefe. Acho que ela se entregou porque estava consumida pelo remorso. Ela nem mesmo queria algum vampiro adulto com ela.

O chefe de polícia olhou para ele sem entender. Marx evitou um suspiro de impaciência e explicou:

– Se uma novata não está próxima a vampiros adultos, existe cem por cento de chance de que o seu corpo vai rejeitar a Transformação e ela morrerá. Zoey se julgou e se condenou; e decidiu que a sua sentença era a morte.

– Eu me esqueço do quanto você sabe sobre vampiros. – O chefe de polícia meneou a cabeça enojado. – Acho que não importa se eles são humanos ou novatos. Adolescentes são completamente incompreensíveis.

Marx abriu a boca para protestar – respeitosamente – que ele, na verdade, conhecia alguns adolescentes completamente compreensíveis e que incluiria Zoey Redbird na lista, quando o grito de um policial uniformizado o interrompeu.

– Ai, meu Deus! Olhem lá para cima!

Marx olhou para cima bem a tempo de ver criaturas negras e grotescas semelhantes a cobras, a não ser pela ausência de olhos – apenas bocas abertas emolduradas por dentes que estavam molhados e vermelhos –, sendo arremessadas por alguma força invisível pelo parapeito na cobertura do Mayo. As criaturas carregavam consigo uma explosão de sangue e tripas e fragmentos corpóreos e coágulos. E, enquanto caíam, elas se expandiam, mudando a forma de cobras sem olhos para uma cortina escura e pulsante, manchada de escarlate. A cortina desceu pela fachada de pedra do hotel, envolvendo-a em trevas e sangue enquanto se desenrolava até o chão.

– Atirem! Matem-nos! – berrou o chefe de polícia.

Marx tentou impedi-lo. Tentou lembrá-lo de que havia cidadãos inocentes lá dentro que poderiam facilmente ser feridos ou, até mesmo, mortos. Tentou dizer que o ataque só serviria para antagonizar a vampira que tinha mais reféns e que já estava tão louca, que acreditava ser imortal. Mas os tiros provocados pelo pânico explodiram à sua volta e suas palavras se perderam no furor do momento.

A princípio, Marx não queria olhar para cima. Não queria ver os tiros acabarem com o Mayo e ter de lidar com as consequências das ordens precipitadas do chefe de polícia. Marx, no entanto, não era o tipo de homem que fugia das coisas; ele fizera uma carreira ao lidar com elas. Resoluto, ergueu o olhar.

As cobras que se transformaram em cortina se expandiram de modo que parecia que o prédio tinha ganhado uma pele negra avermelhada, uma pele tão dura, que nem mesmo as Glocks que os policiais uniformizados carregavam conseguiam penetrar.

Todos observaram enquanto as trevas continuavam a descer pelo prédio até o nível da rua e a se fundir ali com um som sussurrante que lembrou Marx da vez que visitara Nova York e se hospedara no Plaza – e cometera o erro de sair para fumar às três horas da manhã. Ratos. Ele caminhara por uma cerca viva bem-aparada que ficava em frente à grandiosa entrada do Plaza e ouvira o som sussurrante. Olhara para baixo, ficando chocado ao se deparar com dezenas de ratazanas gordas passando por ali. Era com aquele som que a mortalha das trevas criada por Neferet se parecia enquanto se assentava no lugar onde o prédio encontrava a rua, contra pedras dos anos de 1920.

– Atirem nas portas. Vocês têm que passar por essa coisa e estar prontos para entrar! – berrou o chefe de polícia.

– Não! – exclamou Marx, enquanto os policiais uniformizados corriam para obedecer às ordens.

Determinado a sobreviver e lutar por mais um dia, Marx se abaixou atrás de um carro do pelotão.

Acabou em uma questão de segundos. Os policiais correram em direção às portas, disparando contra o vidro que agora estava coberto pela cortina negra e escorregadia salpicada de coágulos. Seu coração se partiu quando os gritos começaram. Marx já estava usando o rádio:

– Vários policiais feridos! Precisamos de mais ônibus no Mayo! E reforços! Mais reforços! Mande todos os policiais de Tulsa para cá! Agora!

Quando o comandante cambaleou para trás e caiu pesadamente no pavimento, atingido no meio da testa por fogo amigo, os olhos revirados e leitosos, sem dúvida morto, Marx fez a única coisa que sabia fazer: assumiu o comando.

– Cessar fogo e retirada! Retirada! – berrou ele, e os homens reagiram com um claro alívio.

Um jovem policial uniformizado se agachou ao lado dele, com a respiração pesada e as mãos trêmulas. Marx achou que o garoto não devia ter mais do que 21 anos.

– Mãe do céu! Aquele treco preto não sofreu nenhum arranhão! Os tiros ricochetearam diretamente para nós, como se estivessem mirando. Que merda é aquela? – Quis saber ele com a voz tão trêmula quanto as suas mãos.

– Magia – respondeu Marx. – Magia negra e maligna.

– E como é que a gente consegue lutar contra isso?

Marx encontrou os olhos do jovem.

– Nós não lutamos. Nós precisamos de ajuda. E, felizmente, eu sei onde conseguir.

Zoey

– Eu queria saber o que está acontecendo! – Stark andava de um lado para o outro em frente à sua cela.

– Por que você não vai até lá fora para ver se a Vovó ainda está na sala de espera? Ela pode descobrir o que está acontecendo. Ela trouxe cookies. Ninguém resiste aos cookies dela – eu disse.

– Boa ideia. Eu já volto.

Stark seguiu pelo corredor e foi a minha vez de ficar andando de um lado para o outro.

Neferet. Se alguma coisa louca estava acontecendo no Mayo, Neferet tinha de ser a responsável. Eu queria agarrar as grades da minha cela, sacudi-las e gritar como uma pessoa histérica: Tirem-me daqui! Tirem-me daqui! Se Neferet estava lá fora fazendo sabe-se lá o quê, eu deveria estar lá, tentando pensar em uma maneira de detê-la.

E eu estaria se eu não tivesse perdido a cabeça e matado dois homens.

Stark voltou correndo e cobriu as minhas mãos, que realmente estavam agarradas às grades, como seu eu fosse capaz de entortá-las.

– Eles devem ter expulsado a Vovó, Thanatos e todos os outros. Não tem ninguém aqui, a não ser um policial na recepção. Este lugar está deserto! Se eu tivesse a chave, poderia tirar você daqui sem nenhum problema. – Suas sobrancelhas, com suas mãos ainda pressionando as minhas. Ele sacudiu um pouco as barras (que nem se mexeram). Então ele deu o seu sorriso maroto. – Mas, já que eu não tenho a chave, será que você não conhece ninguém que poderia, de alguma forma, convocar alguns elementos, sei lá, para derrubar esta porta?

– Stark, eu estou aqui por um motivo. Eu fiz uma coisa muito, muito ruim. Fugir daqui não vai me ajudar em nada.

– Poderia ajudar se Neferet estiver desenfreada, alimentando-se de cidadãos inocentes de Tulsa. Na verdade, eles podem até se esquecer do seu acidente no parque e agradecê-la se você ajudar a derrotar a sra. Louca.

Dei um sorriso triste.

– Eles até podem esquecer, mas eu não vou conseguir. Além disso, eu não posso derrotar Neferet, Stark.

– Você já fez isso antes.

– Não para sempre e não sem ajuda.

– Bem... – Ele abriu os braços. – Você tem ajuda.

Bufei.

– Não é o suficiente. Se fôssemos suficientes, teríamos sido capazes de nos certificar de que Neferet nunca mais voltaria do lugar para onde a chutamos da última vez. – Então, os meus ombros ficaram caídos e eu os encolhi. – Provavelmente, nem é ela. Talvez sejam ladrões de banco.

– No Mayo? Hã, Z. Estamos falando de um hotel, não de um banco.

A porta do corredor se abriu e a estrutura de metal bateu contra a parede. O detetive Marx se apressou na nossa direção. A aparência dele estava péssima. Tipo, péssima mesmo. O paletó estava sujo e a calça, rasgada na altura de um dos joelhos. Senti o cheiro de sangue, o qual me obriguei a ignorar. Na verdade, isso nem foi tão difícil porque a expressão no seu rosto era perturbadora demais.

Ele parecia estar com medo.

– O que aconteceu no Woodward Park? – ele exigiu saber enquanto se colocava ao lado de Stark.

– Eu já disse.

– Conte para ele de novo – interveio Stark.

– Por quê? O que está acontecendo?

– Responda à minha pergunta primeiro.

– Tá legal. Como eu já disse, dois homens me irritaram e eu atirei a minha raiva neles.

– Mas o que eles fizeram para deixá-la tão irritada?

– Não o suficiente para eu matá-los, Ok? – respondi.

– Apenas responda à pergunta! – zangou-se Marx.

Surpresa com o seu tom, eu me ouvi respondendo:

– Eles estavam andando pelo parque procurando garotas para assustá-las e obrigá-las a lhes dar dinheiro. Eles não viram as minhas tatuagens antes de começarem a me assediar. Então, quando perceberam que eu não era apenas uma adolescente indefesa, mudaram de ideia sobre me assustar. Eles basicamente disseram que iriam procurar outra vítima e isso me deixou louca da vida. – Fiz uma pausa e acrescentei: – Mas ainda tem mais. Eu já estava muito irritada quando cheguei ao parque, foi por isso que eu tinha ido para lá. Para tentar me acalmar. Eu... Eu não conseguia controlar o meu temperamento.

– Conte para ele o resto. Conte para ele por que você deu a pedra da vidência para Aphrodite quando se entregou para a polícia – insistiu Stark.

– Eu não percebi na hora, mas agora eu consigo entender que a pedra da vidência, um tipo de talismã que ganhei na Ilha de Skye, estava afetando as minhas emoções. Tipo, amplificando-as ou provocando-as, ou talvez apenas alimentando o meu estresse. Ela fica quente quando funciona e, no parque, ela estava superquente. Foi por isso que consegui erguer os dois homens e atirá-los contra o paredão da gruta.

– Você não consegue fazer isso, digamos, agora, consegue? – perguntou Marx, observando-me atentamente.

– Acho que não. Pelo menos não sozinha. Eu teria que chamar um ou todos os elementos, e eles ficam mais poderosos se o meu círculo estiver comigo e nós cinco canalizarmos a nossa energia para eles.

Marx assentiu, pensativo.

– Você sabia que os dois homens estavam mortos quando saiu do parque?

– Não. Tipo, eu sabia que eu os tinha lançado contra o paredão, mas foi como uma explosão grande e louca para mim. Bem, eu fiquei surpresa com aquilo – respondi. Distraída, esfreguei a palma da minha mão direita na minha perna e, então, olhei para ela. No meio das tatuagens entrelaçadas, um círculo perfeito tinha se formado ali. Ergui a mão para que o detetive pudesse vê-la. – Essa marca no centro, o círculo, foi feita pela pedra da vidência. Aconteceu na hora em que atirei a minha raiva naqueles homens. Era como se o poder dela tivesse saído através de mim. Quando eu percebi o que tinha feito, eu me aproximei deles.

Engoli em seco ao me lembrar.

– E o que exatamente você viu? – perguntou Marx, impaciente.

– Eles estavam deitados lá, aos pés do paredão que dá para a Twenty-first Street. E-eu me lembro de que ouvi um deles gemer, e vi o outro estremecer. Ficou claro que os tinha machucado muito. Talvez até gravemente. Então, eu fiquei com medo e fugi. Eles deviam estar morrendo quando eu fui embora. Sinto muito. De verdade. Eu sei que isso não faz qualquer diferença. E eu também sei que não faz a menor diferença o fato de eles estarem no parque para assediar garotas nem que a pedra da vidência tenha me dado o poder para fazer o que eu fiz. Foi a minha raiva que matou aqueles homens. Eu sou a responsável. – Mordi o lábio com força. Eu não ia começar a chorar.

– Não, Zoey. A verdade é que não foi você que fez isso e não, você não é a responsável pela morte deles.

Ele passou o cartão magnético no painel da porta da minha cela, e a tranca de metal se abriu com um clique.

– Hein? – Pisquei para ele, sentindo que eu devia estar sonhando. Olhei para Stark, que também estava olhando para o detetive.

– Isso tem alguma coisa a ver com Neferet – disse Stark.

– Isso tem tudo a ver com Neferet – concordou Marx. – Ela confessou ter matado aqueles dois homens. Não, essa não é uma descrição precisa. Neferet se gabou de ter matado aqueles dois homens.

Stark comemorou e me envolveu em um abraço.

– Z., você não matou ninguém.

– Eu não matei ninguém! – repeti o grito de Stark, enquanto ele me abraçava, rindo.

Eu estava me sentindo fraca, quase tonta. Eu não tinha matado ninguém! Mas que merda, eu quase tinha rejeitado a Transformação. Eu quase morri. Por causa de Neferet.

Tudo sempre voltava a Neferet.

Bati no ombro de Stark e ele me colocou no chão (mas eu continuei segurando a sua mão).

Eu me virei para o detetive Marx.

– O que mais ela fez?

– Você e seus amigos estavam certos. Neferet matou o prefeito. Ele e os dois homens no parque foram só o aquecimento. Ela massacrou uma igreja cheia de gente, e agora declarou ser uma deusa. Ela tornou o Mayo como seu Templo e está trancada lá dentro com um monte de gente enfeitiçada.

– Merda! – exclamou Stark.

– Aiminhadeusa ! – Neferet finalmente conseguira. Ela finalmente conseguira se superar e mostrar para todo mundo o que ela era de verdade.

– Você está livre, Zoey. Todas as acusações foram retiradas. Mas, antes de você ir, eu tenho um favor para pedir.

Olhei diretamente nos olhos dele.

– Você não precisa pedir. Eu vou ajudá-lo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para detê-la.

Marx suspirou de alívio.

– Obrigado. Eu não vou mentir para você, Zoey. A situação no Mayo é feia. Horrível mesmo. Neferet é poderosa e perigosa.

– E uma louca de carteirinha – terminei por ele. – Eu sei. Eu já sei disso há meses.

– Então, você sabe contra quem vai lutar.

– Todos nós sabemos – disse Stark. – Porque nós fomos os únicos que lutamos contra aquela puta doida.

– Tudo bem, então. Você precisa pegar aquela tal de pedra da vidência antes de eu te levar para o Mayo e...

– Espere um pouco. Não, você não entende, detetive Marx. Quando eu disse que vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para deter Neferet, não quis dizer que faria tudo sozinha. – Apertei a mão de Stark. – Uma das coisas que aprendi com certeza é que eu fico mais forte com os meus amigos.

– Só me diga do que precisa e eu farei acontecer – afirmou Marx.

– Tudo de que preciso está na Morada da Noite – respondi.

– Então venha comigo, Zoey. Vou levá-la para casa.


7

Zoey

Eu mal tinha saído do carro do detetive Marx quando a Vovó saiu correndo pela porta da frente da escola e me envolveu em um abraço.

– U-we-tsi-a-ge-ya ! É você! Eu sabia... Eu sabia que você estava voltando para casa.

Eu a abracei rapidamente e demos os braços enquanto entrávamos na Morada da Noite com detetive Marx e Stark seguindo logo atrás. O sol estava se pondo, mas eu estava superconsciente de que ainda poderia provocar dor em Stark. Conforme nos apressamos para dentro do prédio, sorri para a Vovó e contei:

– Eu não matei ninguém! – Então, eu me lembrei de quem os tinha matado e o que mais ela tinha feito, e o meu sorriso se apagou. – Neferet os matou.

– Neferet? – Ergui os olhos do rosto feliz de Vovó para ver Thanatos, Aphrodite e Darius saindo da sala da Grande Sacerdotisa.

– Zoey, detetive Marx, será que poderiam explicar o que aconteceu? – pediu Thanatos.

– Neferet confessou ter matado os dois homens no parque... – começou a explicar detetive Marx, mas eu o interrompi.

– Espere, tem muito mais coisa do que isso, e eu preciso que o meu círculo ouça tudo. – Olhei para Thanatos. – Neferet se revelou. Precisamos nos apressar.

– Darius e Stark, reúnam o círculo de Zoey. Leve-os até a Câmara do Conselho. Chame Lenobia também. Ela é a sacerdotisa mais velha desta morada. Talvez precisemos de sua sabedoria. Vão agora! – orientou Thanatos.

Stark e Darius saíram.

– Detetive, permita que eu o acompanhe até a Câmara do Conselho. Sylvia, eu ficaria muito grata se você pudesse partilhar a sua sabedoria em relação ao que estamos enfrentando com Neferet. Você poderia se juntar a nós?

– É claro – respondeu Vovó em tom irônico. – Eu sei mais do que um pouco sobre Neferet e a sua marca singular do mal. – Vovó me deu um beijo suave no rosto e começou a caminhar com Thanatos e com detetive Marx em direção à escadaria que levava até a Câmara do Conselho.

Isso me deixou sozinha com Aphrodite.

– Eu não vou perguntar se você me quer ou não. Eu vou a essa reunião – afirmou ela antes de começar a seguir os três adultos.

Toquei em seu braço e ela se virou para olhar para mim. Eu não sabia dizer se eu vi mais medo ou raiva nos seus olhos – e as duas coisas fizeram com que eu me sentisse horrível.

– Sinto muito – disse de forma simples. – Eu estava errada. Você estava certa o tempo todo. Estava certa ao procurar Shaylin. Estava certa ao pedir que ela ficasse de olho em mim. Você estava certa em não me contar sobre a sua visão. Eu deveria ter escutado você, mas não escutei, e eu não teria escutado, mesmo se você me contasse sobre a sua visão. Eu estava fora de controle. Fui egoísta. Fui burra. Sinto muito – repeti. – Por favor, desculpe-me.

Enquanto eu estava falando, Aphrodite ficou totalmente parada. Não colocou a mão na cintura, nem zombou de mim ou jogou o cabelo. Ela me ouviu e me observou com seus olhos intensos e claros. Não disse nada pelo que pareceu ser um longo tempo e, quando finalmente falou, o tom de sua voz não estava irônico, nem malicioso, nem sarcástico. Ela estava séria. Os seus modos estavam calmos. Ela parecia a Profetisa de uma Deusa.

– Achei que você fosse minha amiga.

– Eu sou.

– Você me magoou.

– Eu sei. Gostaria de dizer que não foi a minha intenção, mas não vou mentir. Naquela hora, eu queria magoá-la porque eu estava sofrendo muito. Aphrodite, a pedra da vidência fez algo comigo. Não estou usando isso como desculpa pelo que disse e fiz. Eu ainda era eu . Eu ainda estava errada. Estou tentando explicar para você que percebi o que aconteceu... Ou pelo menos como aconteceu. E eu lhe juro que isso não vai acontecer de novo.

Ela continuou me analisando em silêncio.

– Também vou me desculpar com Shaylin – acrescentei.

Aphrodite assentiu.

– É melhor mesmo. Você a assustou muito.

– Não vai acontecer de novo – prometi em tom solene. – Eu juro.

– Você quer a pedra de volta?

– Não! – respondi, dando um passo para me afastar dela. – Eu quero que você a mantenha bem longe de mim.

– Esse é o meu plano – respondeu ela. – Eu só queria saber qual era o seu.

– Eu não tenho nenhum plano, a não ser me desculpar com você e Shaylin e, bem, com todos os outros.

– Bem, já era de se esperar – respondeu Aphrodite, parecendo-se um pouco mais com ela mesma. – Você costuma estar despreparada e mal-arrumada. Eles não têm chapinha na prisão? – Ela lançou um olhar de avaliação para o meu cabelo de quem acabou de sair da cama.

– Não. Cabelo bonito não é uma prioridade na prisão.

– Bem, até agora eu só tinha ouvido falar que o sistema penitenciário de Oklahoma é uma droga. Agora eu tenho certeza.

Isso me fez sorrir.

– Então, você me desculpa?

– Acho que é o que tenho que fazer. Você está horrível. Eu odiaria ter que jogar sal na ferida contra a moda que o seu curto período na prisão já lhe causou.

Eu ri e nós demos os braços.

– Será que existe alguma coisa que você não consiga resumir para a moda?

– Não, e não precisa agradecer.

Eu ri de novo e nós seguimos para a escadaria. Eu me sentia leve e feliz; por alguns momentos, deixei que Neferet saísse da minha mente e concentrei os meus pensamentos em uma oração silenciosa para Nyx: obrigada, Deusa, por ter me dado uma amiga tão boa!

– Ei, não vai ficar pensando que pode me abraçar e coisas desse tipo. Eu não sou de abraços. Vamos considerar isto aqui... – ela passou a mão na frente do seu corpo – ... uma zona de não contato. Darius, é claro, tem uma concessão.

– Entendi – respondi, mas continuei de braço dado com o dela enquanto subíamos as escadas. – Eu nem sonharia em cruzar a sua zona de não contato.

– Muito bem – disse ela, mas não afastou o braço do meu até estarmos na frente da sala de conferências. Então, ela parou e se virou para me olhar de forma séria e declarou: – Eu perdoo você, Zoey.

– Obrigada. – Pisquei rápido, surpresa pelas lágrimas repentinas nos meus olhos.

– Ah, merda – disse ela e, depois de olhar à sua volta para se certificar de que estávamos sozinhas, abriu os braços e me abraçou sussurrando: – Eu amo você, Z.

Eu funguei e retribuí o abraço.

– Eu também amo você.

O barulho da porta da escada se abrindo fez com que ela se afastasse de mim.

– Não chore – pediu ela, em tom sério. – Ficar choramingando não vai ajudar no visual desastroso que você tem agora.

– Tá bom – choraminguei um pouco mais.

– Zo! Ouvi dizer que soltaram você! Uhu ! – exclamou Aurox, feliz, falando de forma estranha e maravilhosamente semelhante a Heath.

Ele correu na minha direção, com a intenção clara de cruzar a minha zona de não contato. Dei alguns passos para trás e, então, parei quando ele vacilou e parou. Eu não sabia o que fazer. Tipo assim, nós decidimos ser amigos. Amigos se abraçavam. Mas nós decidimos ser apenas amigos. Bem, na verdade eu tinha decidido que seríamos apenas amigos e...

– Ah, para de pensar um pouco. Prostrado e pesaroso pra caramba foi como ele ficou sem você. – Aphrodite meneou a cabeça, enojada. – E estou usando aliterações para falar, se eu começar a fazer rimas, vou me jogar de um prédio bem alto. Façam um biquinho ou qualquer outra coisa bem rápido e, depois, vão para a Câmara do Conselho. Infelizmente, não temos muito tempo pra dramas de relacionamento.

Ela jogou o cabelo para trás, abriu a porta e entrou.

Aurox e eu nos olhamos.

– Biquinho? – perguntou ele.

Senti o rosto pegar fogo.

– Ela quer dizer dar um beijo.

Ele ergueu as sobrancelhas.

– Você quer me beijar?

Felizmente, nada do que ele disse depois de uhu parecia nem um pouco com Heath. Limpei a garganta.

– Acho que essa não seria uma boa ideia, mas obrigada por perguntar.

– Bem, estou feliz por você estar de volta – afirmou ele, tentando sorrir.

– Eu também. – Sorri de volta. – E, mesmo tudo sendo confuso, estou feliz por você estar de volta também.

Eu quis dizer aquilo como um elogio – e talvez até como uma piada particular (a situação não ficaria muito melhor se pudéssemos rir dela?), mas o sorriso que Aurox tentara dar desapareceu na hora.

– Você não está se referindo a mim . Mas sim a Heath. E eu não sou Heath. Com licença. Darius disse que eu deveria estar nesta reunião. – Dei um passo para o lado e permiti que ele abrisse a porta. Ele não a segurou para mim, mas a deixou se fechar na minha cara, deixando-me em pé ali, sozinha, no corredor, sentindo-me um cocô.

Tudo bem , disse para mim mesma, a minha vida ficaria bem mais fácil se Aurox continuasse chateado comigo – ou, pelo menos, irritado ou desinteressado. Aphrodite estava certa por vezes demais. Eu não tinha tempo para dramas de relacionamento (embora não achasse que aquilo fosse triste demais).

Passei os dedos pelo meu cabelo muito despenteado, empertiguei-me e entrei na Câmara do Conselho Escolar.

A sala era grande, mas sempre parecia ser pequena por causa da mesa redonda gigantesca que dominava o ambiente. Tenho quase certeza de que a ideia era imitar o rei Arthur (que, é claro, tinha sido o consorte da Grande Sacerdotisa Mogan le Fay), então ela não tinha uma cabeceira de verdade. O que acontecia era que o lugar onde a Grande Sacerdotisa se sentava se transformava automaticamente na cabeceira da mesa.

E por falar na atual Grande Sacerdotisa, fiquei surpresa ao vê-la entrar na sala pela porta dos fundos, assim que eu fechei a porta atrás de mim. Thanatos assentiu para Aurox, que assumiu uma posição de guarda ao se colocar ao lado daquela porta. Então, ela lançou um olhar para mim e indicou um assento vazio entre Vovó e Aphrodite. Thanatos se sentou à esquerda da Vovó, ao lado do detetive Marx. Enquanto eu me acomodava, tentando não ficar inquieta, Thanatos se inclinou para a frente de Vovó e se dirigiu a mim.

– É oficialmente bom tê-la de volta em casa, Zoey – declarou a Grande Sacerdotisa da Morte.

– Eu nem consigo dizer o quanto estou feliz de estar aqui e saber que não matei ninguém – respondi.

– Mas você aprendeu uma lição valiosa com essa experiência – comentou Vovó.

– É. Temos que parar Neferet. Não importa o que tenhamos de fazer – interveio Aphrodite.

– Bem, é verdade. Mas eu acho que a Vovó está falando de sempre escolher a bondade quando houver dúvida – disse eu.

– Eu não acredito que essa lição vá nos ajudar muito com Neferet – resmungou Aphrodite.

– Você ficaria surpresa, criança – respondeu Vovó suavemente, com um sorriso sábio nos lábios.

A porta se abriu e Stevie Rae entrou seguida por Stark, Damien e Shaunee.

– Z! Aiminhadeusa! É tão bom ver você livre! – Stevie Rae correu na minha direção e me envolveu em um grande abraço de urso. – Eu sabia que você não seria capaz de matar aqueles caras.

Eu lhe dei um abraço rápido antes de me soltar. Eu encontrei o seu olhar.

– Eu tenho algo a dizer sobre isso, mas quero esperar até todo mundo estar aqui.

– A espera acabou. O bonitão já está aqui – informou Aphrodite, sorrindo quando Darius entrou acompanhado por Lenobia e Shaylin.

Darius e Stark assumiram seus lugares em cada um dos lados da entrada principal. Stark me deu uma piscadela rápida, e eu fiquei feliz ao ver que ele não estava pálido e seus olhos tinham perdido aquele olhar ferido. Para ele estar assim tão melhor, o sol já devia ter se posto, e imaginei que Rephaim entraria a qualquer segundo agora.

Lenobia se sentou ao lado do detetive Marx, cumprimentando-o com um aceno rápido de cabeça. Shaylin escolheu o lugar mais distante de mim que conseguiu e não olhou na minha direção. Eu me levantei e limpei a garganta.

– Sei que uma emergência envolvendo Neferet está acontecendo no centro da cidade, mas eu preciso dizer uma coisa antes de começarmos a lidar com isso. E vou ser rápida. Como vocês já sabem, descobri hoje que não matei aqueles dois homens no parque. Mas, mesmo que eu não tenha causado a morte deles, sei que poderia ter feito aquilo. Eu estava fora de controle. Isso teve alguma coisa a ver com a pedra da vidência, mas também comigo . Eu estava errada. Aphrodite estava fazendo exatamente o que Nyx esperaria da sua Profetisa: ela informou a Shaylin que havia algo de ruim acontecendo comigo. – Eu olhei para Shaylin até que ela, relutante, encontrasse o meu olhar. – Shaylin, eu já pedi perdão a Aphrodite, mas lhe devo um pedido de desculpas ainda maior. Você estava certa ao me seguir. Você estava certa ao contar sobre as mudanças que detectou na minha aura. Foi muito, muito errado da minha parte empurrar você e perder a paciência daquele jeito, e não estou apenas pedindo para que aceite meu pedido de desculpas. Eu estou fazendo... – Fiz uma pausa e olhei para todos os meus amigos – ... um juramento a você e a todos aqui: farei tudo o que for preciso para me certificar de que isso jamais volte a acontecer.

– Eu perdoo você – afirmou Shaylin sem hesitar, embora o seu sorriso fosse hesitante e ela ainda parecesse estar com medo. – A propósito, as suas cores já voltaram ao normal agora.

– Obrigada – agradeci. – E, por favor, avise a mim, e a qualquer outra pessoa aqui, se perceber que as minhas cores estão bagunçadas de novo. Eu estava errada quando disse que você devia manter esse tipo de coisa para si mesma. Não se trata de uma invasão de privacidade. Você simplesmente está usando o dom que Nyx lhe deu.

– Zoey, onde está a pedra da vidência agora? – perguntou Thanatos.

– Está comigo – respondeu Aphrodite, antes que eu tivesse a chance de falar qualquer coisa.

– E eu não a quero de volta – acrescentei.

– Se ela é tão poderosa quanto você está dizendo que é, Zoey, você talvez não tenha escolha a não ser pegá-la de volta – disse o detetive Marx. – Porque vai ser preciso muito poder, muito poder mágico, para lutar contra Neferet.

– Detetive, é a sua vez. Explique exatamente o que Neferet fez – pediu Thanatos.

Eu me sentei e ouvi com um aperto no estômago e uma estranha premonição de que Marx estava certo.

Zoey

Seguiu-se um silêncio longo e doentio depois que o detetive Marx descrevera, com riqueza de detalhes, a carnificina de Neferet na igreja e, depois, o que acontecera no Mayo Hotel.

– Eu senti as mortes – disse Thanatos, meneando a cabeça com tristeza. – Eu sabia que algum tipo de tragédia humana, de morte em massa, tinha acontecido bem próximo de Tulsa. Eu estava assistindo ao noticiário, esperando ouvir que um avião tinha caído ou que talvez tivesse ocorrido algum tipo de tiroteio trágico em alguma escola. Mas eu não esperava isso. Eu realmente não esperava que Neferet fosse responsável por tudo isso.

– Nós não temos conseguido prever o comportamento dela, mas talvez possamos descobrir algo sobre o que esperar dela no futuro se analisarmos os crimes de Neferet até agora – sugeriu Vovó. – Ela matou o prefeito, e aquele crime a alimentou até Woodward Park. – Vovó fez uma pausa e deu um sorriso triste para Aphrodite. – Desculpe-me por ter de falar da morte do seu pai de uma forma tão objetiva.

– Eu entendo. E quero que continue – respondeu Aphrodite, séria. – Se a morte do meu pai nos ajudar a descobrir como derrotar Neferet, então, pelo menos, ele não terá morrido em vão.

Vovó assentiu e continuou:

– Ela deve ter se escondido no parque até Zoey ter enfrentado problemas com aqueles dois homens.

– Eu estava sentada naquele banco perto da gruta quando eles começaram a me assediar – contei, tentando juntar as peças. – Neferet talvez estivesse escondida na gruta.

– Vou mandar alguns policiais checarem – disse detetive Marx, fazendo anotações no seu bloco preto de espiral.

– As mortes dos dois homens no parque devem ter dado a Neferet o poder de que precisava para chegar à Boston Avenue Church – refletiu Vovó.

– E lá ela encontrou outra fonte maior de poder – acrescentou Lenobia. – Não podemos nos esquecer de que poder é o que há de mais importante para Neferet.

– Ela usa o poder para controlar aquelas criaturas semelhantes a cobras. As coisas que mataram aquelas pessoas na cobertura do Mayo e criaram aquele... Eu nem sei como chamar. – Marx hesitou, pensando. – É uma pele protetora, uma barreira. Mas seja lá o que for, tem muito poder.

– Aquelas criaturas com aparência de cobra são feitas de Trevas. Pense nelas como pensamentos odiosos, horríveis e cruéis que tomaram uma forma física – expliquei para o detetive Marx. – Eles fazem o que ela manda porque ela faz sacrifícios por eles. Eu tenho certeza de que Neferet não se alimentou de todas aquelas pessoas na igreja. Ela as sacrificou para que aquelas criaturas a continuem seguindo e fazendo o que ela deseja.

– Uma Tsi Sgili exige muito mais do que sangue por poder – interveio Vovó.

– Tsi Sgili... Rainha Tsi Sgili – disse Marx –, foi assim que Neferet se referiu a si mesma quando se intitulou Deusa.

– Tsi Sgili é um nome antigo que o meu povo usa para se referir a bruxas que escolheram as Trevas em vez da Luz. Elas vivem segregadas, afastadas de todos. – Vovó estremeceu. – As nossas lendas dizem que elas se alimentam de almas.

– Morte – disse Thanatos. – Eu deveria ter compreendido antes. Neferet se alimenta da energia que é liberada pelo espírito de uma pessoa no instante da sua morte.

– Ai, Deusa! – Lenobia parecia horrorizada e levou a mão ao peito. – Eu conheço Neferet há mais de um século. Ela sempre estava por perto quando um novato rejeitava a Transformação. Achávamos... As Sacerdotisas achavam que o dom de cura de Neferet confortava a passagem dos jovens.

– Ela não os confortava. Ela os usava – expliquei.

– Neferet tinha alguma coisa a ver com a nossa morte e a nossa volta – disse Stevie Rae. – Eu não consigo me lembrar. Talvez porque não consiga me obrigar a isso. Sei lá. – Ela estremeceu. – Mas eu sei que parecia como se algo dentro de mim estivesse se rompendo. – O seu olhar encontrou o de Stark, o único outro vampiro vermelho na sala. – Do que você se lembra?

– Dor. Trevas. Terror. Raiva. – Suas palavras estavam tensas, embora a sua voz permanecesse baixa, e nós nos inclinamos para ouvi-lo. – E, quando saímos daquilo, eu não era mais eu. Não até que Zoey dissesse que acreditava em mim, que confiava em mim.

– E eu também não consegui sair daquilo, até que Aphrodite acreditasse e confiasse em mim – disse Stevie Rae.

Aphrodite bufou.

– Pelo que me recordo, não foi bem assim. O que eu me lembro é que você tentou me devorar e, depois, pegou a minha condição de novata e levou com você.

– Porque você permitiu. Porque você sacrificou a sua humanidade por mim – esclareceu Stevie Rae.

– A parte de querer me devorar não foi legal – murmurou Aphrodite.

– O amor é mais forte que o ódio. Essa é a única verdade absoluta no universo. O amor conquista as Trevas – afirmou Vovó. – Nós só precisamos descobrir como o amor pode conquistar Neferet.

Ouvi um monte de suspiros após os meus.

– Tudo bem, eu sou totalmente a favor de o amor vencer – disse detetive Marx –, mas a gente precisa lidar com o que quer que seja que está acontecendo com aquelas coisas rastejantes.

– Neferet as está alimentando – respondi, sentindo a verdade das minhas palavras à medida que eu as pronunciava. – Ela dá a elas o que elas querem: sacrifícios com sangue fresco. E elas a obedecem. Se conseguirmos chegar a Neferet e a enfraquecermos ou, pelo menos, contê-la e impedi-la de matar mais gente, ela não conseguirá alimentá-las, e elas vão deixá-la.

– Concordo, mas acho que ainda tem mais, Zoey. As gavinhas das Trevas estão mudando, evoluindo, junto com Neferet – disse Thanatos. – Eu jamais, nos mais de cinco séculos que vivo como vampira, ouvi alguém criar o tipo de barreira como a que o detetive Marx acabou de descrever. – Ela se voltou para o policial. – E você disse que elas pareciam sensitivas, que elas, na verdade, direcionaram as balas para policiais específicos?

– Eu não tenho a menor dúvida quanto a isso. Eu estava lá. Eu vi aquilo de perto e tudo foi muito pessoal. Todos os primeiros tiros disparados atingiram o policial que ofendera Neferet, mas apenas nas partes do seu corpo que não estavam protegidas pelo colete à prova de balas. Os outros tiros feriram vários policiais, mas mataram apenas o chefe de polícia, o homem que deu a ordem de atacar o prédio – contou Marx.

– Lenobia, você já ouviu falar de algo assim? – perguntou Thanatos.

– Nunca.

– Então, chame a cavalaria – sugeriu Marx. – Envolvam o Conselho Supremo dos Vampiros. Talvez eles possam nos ajudar a descobrir uma maneira de vencer Neferet.

– O Conselho Supremo se recusou a nos ajudar – informou Thanatos. – Nós somos a cavalaria. – Ela se levantou. – Então, detetive Marx, vamos ao Mayo ver exatamente contra o que estamos lutando.

A porta dos fundos da Câmara do Conselho se abriu e Kalona, com o peito descoberto e olhos âmbar dardejando de raiva, caminhou até Thanatos.

– Já está na hora de você chamar a cavalaria completa. Eu sou um Guerreiro da Morte. Então, aonde você for, eu vou. Humanos e suas consequências que se danem.

Suas asas negras se desenrolaram e ocuparam a sala inteira.

O detetive Marx ficou boquiaberto.

– Merda – sussurrou Aphrodite.

– Eu digo o mesmo – concordei, perguntando-me o que aconteceria em seguida.


8

Detetive Marx

O cara era enorme. E tinha asas. Porras de asas gigantescas.

Marx ficou feliz por já estar sentado porque só de olhar para o... seja lá o que era aquilo... fazia os seus joelhos ficarem moles.

Primeiro, uma vampira-deusa enlouquecida e uma cortina preta sangrenta no Mayo. Agora, um gigante alado que dizia ser Guerreiro da Morte.

Será que estava na porra de um sonho?

Bem, se ele estava, o sonho continuava se desenrolando porque Thanatos caminhou até o gigante alado, e Marx com certeza não estava acordando.

– Ir comigo? Para o centro de Tulsa, diante dos olhares de...

– O que você vai fazer se as gavinhas das Trevas de Neferet atacarem você? Eu entendo essa manifestação das Trevas. Eu já a enfrentei diversas vezes no Mundo do Além. – A voz do gigante trovejava. – O que os humanos temeriam mais, a encarnação do mal ou a presença de um deus batalhando nas ruas de Tulsa?

– Os humanos não acreditam que deuses caminhem sobre a Terra – contrapôs Thanatos.

– Exatamente! – respondeu o gigante alado. – As ações de Neferet negaram a norma. Já passou da hora de os humanos tirarem a cabeça do buraco em que a enfiaram e se darem conta de que este mundo é cheio de magia, mistério e perigos. E também chegou a hora de eu fazer o que fui criado para fazer: ser um Guerreiro e lutar contra as Trevas.

A Grande Sacerdotisa curvou um pouco a cabeça em concordância com o homem alado. Então, ela se voltou para Marx:

– Detetive, gostaria de apresentá-lo ao meu Guerreiro sob Juramento, Kalona. Ele é o meu protetor, assim como o Mestre da Espada desta Morada da Noite. Ele me acompanhará até o Mayo.

Marx hesitou um momento e, então, fez a única coisa que passou por sua cabeça – estendeu a mão e a ofereceu para o grandão.

– Prazer em conhecê-lo, Kalona.

Kalona segurou o seu antebraço no cumprimento tradicional dos vampiros.

– O prazer é meu, detetive.

– Você não é um vampiro, né? – Marx não conseguiu evitar a pergunta.

– Não. Eu não sou.

Marx olhou para as asas do cara, que agora estavam enfiadas sob as suas costas. Aquelas coisas eram tão grandes, que chegavam a tocar o chão.

– O que você é ?

O sorriso de Kalona se abriu e pareceu ser sincero.

– Tem uma resposta complicada para essa pergunta, uma que eu prometo lhe dar depois que lidarmos com Neferet.

– Vou cobrar a resposta – disse Marx, tentando não olhar diretamente nos olhos do cara porque, ao fazê-lo, sentia a cabeça confusa e pesada, como se estivesse cheia de bolas de algodão.

– Você não vai precisar, detetive. Eu aprendi do modo difícil que é melhor que eu mesmo me preocupe em cumprir as minhas promessas.

– Então, nós todos vamos mesmo ao Mayo? – quis saber Aphrodite.

– Não. Kalona e eu vamos, assim como Zoey, Stark e o seu círculo. Darius, Aurox e Aphrodite, vocês vão ficar aqui com Lenobia. Vocês duas vão organizar uma reunião escolar. Atualizem o corpo docente e discente e os guerreiros. Informe apenas o básico e nada mais. Coloquem a escola em alerta máximo. Não sabemos qual será o próximo passo de Neferet.

– Você realmente acha que todos devem saber o que está acontecendo? – perguntou Stevie Rae, ecoando os pensamentos de Marx.

Zoey falou antes que Thanatos tivesse a chance:

– Acho que as Trevas odeiam que a luz brilhe, então vamos colocar muita luz sobre seja lá o que for que Neferet esteja fazendo.

– Essa é uma ótima maneira de descobrir quem quer voltar ao comando de Neferet e quem quer ficar e lutar contra ela junto com a gente – disse Stark.

– Vocês dois disseram exatamente o que penso – concordou Thanatos.

– Muito bem, então. Mas eu vou chamar Kramisha para me ajudar. Ela sempre sabe quem está tramando o quê – informou Aphrodite.

– É sábia a Profetisa que reúne os outros membros com dons dados pela sua Deusa – aprovou Thanatos.

– Também é sábia a Profetisa que mantém o seu celular por perto. Liguem se o inferno sair do controle, literal ou figurativamente – retrucou Aphrodite.

– Pode deixar – assegurou Zoey.

– Nós vamos com você, detetive Marx – declarou Thanatos.

Marx respirou fundo e desligou totalmente o botão de sanidade mental.

– Tudo bem. Vamos nessa.

Lynette

– Lynette, eu realmente adoro uma surpresa... – Neferet hesitou antes de continuar, erguendo um dedo fino. – Se a surpresa for agradável. Se não for, então uma surpresa não passa de uma interrupção irritante. Eu odeio interrupções quase tanto quanto odeio ficar irritada. – Seus olhos se afastaram de Lynette, e ela olhou para o que parecia ser as suas pernas nuas. – Falando em irritação, por que é que vocês estão andando por aí sem objetivo? Eu estou completamente segura, e vocês todos foram perfeitamente saciados. Vão se divertir em outro lugar e parem de ficar me puxando. Vão agora, xô! – Neferet fez um movimento de desprezo antes de voltar a sua atenção para a sua súdita.

Lynette não viu as coisas rastejantes, mas sentiu o roçar frio de algo passando por ela. Controlou um tremor de repugnância.

– Querida Lynette, onde paramos? Ah, sim, eu me lembro. Você anunciou que estava planejando uma pequena surpresa para mim. Por favor, continue se explicando.

Lynette olhou nos olhos da Deusa sem piscar. O pânico que estava concentrado em algum lugar sob o seu esterno estremeceu e recuou, mas ela apertou as rédeas mentais com as quais o controlava e permitiu que apenas o prazer de planejar um evento espetacular ocupasse a sua mente. O sorriso de Lynette estava confiante, assim como a sua voz.

– Deusa, eu sou muito boa no meu trabalho. Mesmo trabalhando em uma circunstância pouco comum e com recursos limitados, realmente acredito que você achará a surpresa agradável.

– Recursos limitados? Isso soa tão de mau gosto e barato. – Neferet franziu as sobrancelhas. – Eu certamente nunca desejei que você sentisse como se a sua Deusa fosse avarenta.

– Ah, mas eu não me sinto assim! – assegurou Lynette, esperando não ter apertado o botão de loucura de Neferet. – Eu coloquei essas restrições para mim mesma porque queria provar meu valor para você. Mas é claro que essa será apenas uma pequena amostra dos eventos que eu poderia planejar diariamente... Se eu tivesse mais tempo e mais dinheiro para fazer o meu trabalho.

Neferet relaxou a expressão.

– Você é uma mulher sábia, Lynette. Mostre-me o que planejou para mim. Se me agradar, pode ter certeza de que permitirei que continue com recursos ilimitados, embora não possa prometer que serei paciente para lhe dar muito tempo. Eu esperei muito tempo para começar o meu reinado. Estou impaciente pela adoração dos meus súditos.

– Isso é totalmente compreensível, Deusa. Em planejamento de eventos, eu nunca fico muito preocupada com o tempo quando tenho dinheiro.

Neferet a analisou.

Lynette se concentrou nos negócios. Ela se sobressaía nos negócios. Ela era confiante nos negócios. Os negócios não a aterrorizavam nem a enojavam.

Neferet sorriu.

– Você está sendo totalmente honesta. O seu negócio e a aquisição de dinheiro têm sido a sua principal preocupação. Continue, minha súdita! Revele a minha surpresa.

Lynette fez uma reverência e levou Neferet da suíte para o elevador, parando no mezanino.

– Por favor, Deusa, aguarde apenas um minuto.

Neferet sorriu e fez um gesto de concordância. Lynette pressionou o botão do elevador, então bateu em um comunicador quase oculto na sua orelha e disse rapidamente e em tom baixo:

– Kylee, aguarde dez segundos e, então, faça o quarteto começar a tocar.

– Sim, Lynette – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette lançou um olhar para a direita e fez um gesto de venha aqui . Judson, o bonito mensageiro, saiu das sombras. Ele trajava um uniforme impecável e passado e carregava uma bandeja de prata reluzente na qual havia uma taça perfeita de cristal cheia de champanhe rosê. Ele fez uma reverência perfeita e mecânica para Neferet e disse:

– Posso lhe oferecer uma taça de champanhe, Deusa?

– Ora, é claro. Obrigada, Judson.

A música começou a tocar no instante em que Neferet ergueu a taça da bandeja. Lynette ficou satisfeita ao ver o sorriso se erguer nos cantos da boca da Deusa.

– Danúbio Azul de Strauss. Uma das minhas valsas favoritas. Ah, Viena. Tão adorável e indulgente no passado.

– Por favor, queira me seguir, Deusa – pediu Lynette formalmente, levando Neferet pelo mezanino até o local para onde o seu trono havia sido colocado, bem acima da plataforma que a Deusa usara para se dirigir aos seus novos “súditos” algumas horas antes e onde, agora, havia um quarteto de cordas do casamento da noite anterior tocando nervosa e lindamente.

Neferet sentou-se com elegância, olhando para o quarteto.

– Eles tocam bem, embora eu prefira uma orquestra completa.

– Tempo e recursos – respondeu Lynette com um sorriso irônico.

Os lábios da Deusa se contraíram.

– Estou notando isso.

Lynette baixou a cabeça para Neferet e discretamente tocou no comunicador no seu ouvido:

– Conte até seis e mande-os entrar.

Então, ela prendeu a respiração e esperou que os doze artistas conseguissem se manter calmos.

As pesadas cortinas de veludo que cobriam o salão abaixo se abriram e, do lado oposto da sala, seis casais se apressaram para o centro do piso de mármore. As mulheres usavam vestidos vermelhos cujo tom fora o mais parecido um do outro que Lynette conseguira encontrar. Os homens trajavam smokings que ela conseguira juntar do que sobrara do casamento; os que estavam limpos o suficiente e servissem nos homens.

Servissem! Aquele tinha sido apenas parte dos problemas daquele evento infeliz. Tinha sido uma tarefa horrenda encontrar seis homens e seis mulheres no que Lynette tinha nomeado silenciosamente de reservatório de prisioneiros, que fossem relativamente atraentes, graciosos e capazes de aprender os passos básicos de uma valsa. Sim, ela poderia ter usado todos os membros da equipe dominados pelas cobras – eles obedeciam tudo que ela dizia para eles fazerem, desde que não tentasse fugir do Mayo. No entanto, o instinto de Lynette lhe disse que uma apresentação dos membros que já estavam sob o seu controle não impressionaria Neferet.

Não, Lynette acreditava que a Deusa queria, precisava , da ilusão de ser adorada. Então, ela ameaçara, insistira e chantageara 12 pessoas com aparência decente a trabalharem para ela.

Lynette percebia que estavam nervosos – duas das mulheres estavam tão trêmulas, que ela conseguia ver os seus braços tremerem –, mas, exatamente como ela instruíra, os casais se posicionaram no grande círculo e conseguiram chegar aos seus lugares depois da primeira contagem até seis. No começo do segundo conjunto de notas, todos os 12 ergueram o olhar para Neferet, pararam, contaram até três e, como se fossem um, cada um dos homens se curvara e cada uma das mulheres fez uma reverência para a Deusa.

Lynette detectou todos os erros. Viu que a mulher chamada Cindi quase caiu, e apenas a rapidez do seu par ao segurá-la pelo cotovelo impediu a queda. Camden, o garoto alto que fora o padrinho do casamento da noite anterior – e azarado o suficiente para estar com uma ressaca que impediu que ele pegasse o voo da madrugada junto com o noivo e a noiva para Dallas –, manteve a cabeça baixa por tempo demais. Lynette apertou os dentes. Se aquele garoto mimado estragasse tudo, ele lamentaria mais do que ela.

Lynette arriscou um olhar para Neferet. Obviamente satisfeita, a Deusa sorriu e assentiu com a cabeça em um gesto nobre para os dançarinos.

Agora dancem e não pareçam estranhos! , pensou Lynette.

Eles dançaram. Todos os 12 conseguiram começar na mesma nota e se moveram pelo salão seguindo um padrão quase circular. Eles estavam longe da perfeição, mas a música era adorável e, se alguns dançarinos vacilaram, “Danúbio Azul” compensou. Quando a nota final tocou, os seis casais se curvaram e reverenciaram Neferet, desta vez mantendo as suas poses como se estivessem congelados, e até mesmo Lynette teve de admitir que a cena estava muito bonita.

Neferet se ergueu e, para imenso alívio de Lynette, aplaudiu e riu.

– Muito bem, todos vocês! Isso foi muito bom. Judson, abra garrafas de champanhe para esses adoráveis súditos.

– Deusa, eles estão esperando a sua autorização para se levantarem – sussurrou Lynette para Neferet.

– Mas é claro que estão autorizados, e obrigada por me lembrar, querida Lynette. Vocês podem se levantar! – permitiu a Deusa. – Aproveitem o champanhe e a gratidão da sua Deusa pela adoração de vocês.

Lynette tocou no comunicador em seu ouvido novamente.

– Kylee, diga ao quarteto para começar a tocar a próxima música.

Em questão de segundos, a música encheu o ambiente de novo.

– “Valsa das flores”, do Quebra-nozes . Duas adoráveis músicas e excelentes escolhas – elogiou Neferet.

– Então, a minha surpresa foi agradável?

– Foi. O candelabro, as flores, os smokings e os vestidos vermelhos. Tudo foi muito bem-escolhido. Lynette, você começou muito bem como a minha planejadora de eventos. Eu aprovo o seu tema e a extraordinária música, o local lindamente escolhido e a homenagem respeitosa a mim.

– Então, posso presumir que gostaria de ter mais eventos desse tipo?

– Sim, mas da próxima vez eu gostaria que o tema fosse a minha época favorita. Os anos 1920. Essa foi uma época que vale a pena reviver. Você consegue fazer o Charleston, Lynette?

– Eu terei acesso à Internet?

– Terá, assim como uma generosa verba para os eventos – informou Neferet, abrindo um sorriso inteligente para Lynette.

– Então, eu consigo fazer o Charleston, assim como os seus súditos.

– Vamos precisar de mais músicos – declarou Neferet.

– Sim, Deusa. Vou providenciar – disse Lynette, já digitando suas anotações no smartphone.

– E fantasias. Vamos precisar de mais fantasias.

– É claro, Deusa – concordou Lynette.

– E eu preciso mais do que apenas dança, embora esse tenha sido um ótimo começo.

Lynette ergueu o olhar das suas anotações e olhou para Neferet, mas a Deusa não estava olhando para ela. Estava acariciando a taça de champanhe enquanto observava os seis casais que se espalharam em pequenos grupos aceitando o champanhe que Judson lhes servia. Lynette seguiu o seu olhar. O garoto mimado estava virando o que parecia ser a sua segunda taça de champanhe. Neferet o devorava com os olhos.

– Fico muito satisfeita que os meus súditos sejam tão atraentes – declarou ela.

Lynette bufou de forma irônica e automática, mas quando o olhar da Deusa pousou nela, ela se arrependeu instantaneamente por ter permitido um deslize de compostura.

Neferet ergueu uma das sobrancelhas ruivas.

– Ah, entendi. Você escolheu os doze com muito cuidado, porque nem todos os meus súditos são tão atraentes, não é mesmo.

Ela não usou um tom interrogativo, mas Lynette sentiu o impulso de responder.

– É isso mesmo. – Ela ergueu os ombros inquieta. – Sinto muito, Deusa, eu só queria me assegurar de que ficasse feliz com o meu primeiro pequeno evento.

– Isso é compreensível, querida Lynette. Na verdade, aprecio o seu esforço, e embora aprecie todos os meus súditos, eu também aprecio coisas, e pessoas, que são agradáveis aos meus sensos. – Neferet se inclinou no seu trono e usou um tom conspiratório para se dirigir à sua súdita: – Você poderia acrescentar isso à sua lista de tarefas como planejadora de eventos.

– Estou disposta a servi-la de qualquer forma que precise, Deusa. – Lynette estava tentando entender o que a Deusa queria. – Mas o que você quer dizer com “isso”?

– Certificar-se de que os meus súditos estejam sempre o mais atraentes possível, é claro. Sim, tenho certeza de que você tem talento para transformações.

– Transformações.

Lynette repetiu a palavra, sentindo-se extremamente sobrecarregada enquanto imagens dos súditos menos atraentes de Neferet passavam por sua cabeça. A mulher de cinquenta e poucos anos que precisava perder uns vinte e poucos quilos... A pré-adolescente ruiva esquelética cujo rosto já estava tomado por espinhas... O empresário careca e barrigudo e com queixo triplo que parecia um bócio...

A risada debochada de Neferet interrompeu o filme na sua mente.

– Pare de se preocupar, querida Lynette. Entre nós duas, conseguiremos separar o rebanho. Afinal, eu posso controlar tudo o que eles comem e tudo o que fazem. Você não concorda que dieta e exercícios são muito importantes?

Lynette assentiu com a cabeça e tentou manter-se focada completamente nos olhos verdes-esmeralda de Neferet.

– Então, além de colocar alguns deles de dieta e nos certificarmos de que passam algum tempo na academia do Templo, estou confiante de que você pode dar dicas de cabelo, maquiagem e moda. Correto?

– Sim, Deusa – respondeu ela automaticamente.

– Excelente. Estou feliz por você ter chamado a minha atenção para esta questão. É importante que os meus súditos sempre tenham a melhor aparência possível. Eles são, de algum modo, um reflexo de mim mesma.

Como se isso resolvesse a questão, o olhar de Neferet passeou pelo grupo abaixo delas, parando, de forma predatória, em Camden.

– Você fez uma excelente escolha com aquele ali, Lynette. Ele é alto, jovem e louro – disse Neferet. – Seu nome?

– Camden – informou Lynette. – Ele foi padrinho do casamento que me trouxe ao Mayo.

– Padrinho ? É mesmo? – Os olhos verdes-esmeralda de Neferet brilharam com uma intensidade perigosa, e Lynette ficou grata por tal intensidade não estar focada nela. – Talvez eu tenha que testá-lo para ver se Camden é realmente um bom súdito.

Lynette controlou um tremor de medo.

– Você gostaria que eu pedisse para alguém trazê-lo aqui?

– Não, querida Lynette. Eu posso muito bem convocá-lo. Talvez ele aprecie uma visita à varanda da minha cobertura. – Seus olhos brilhantes se voltaram para Lynette e o brilho feral neles se endureceu. – A minha equipe já se livrou daqueles vestígios desagradáveis, não é?

Merda! Eu estava ocupada demais organizando essa apresentação para verificar se todos os pedaços de gente tinham sido atirados pela varanda. A mente de Lynette começou a buscar algo para dizer e ela soltou um suspiro de alívio quando encontrou uma resposta:

– Deusa, creio que Kylee era a responsável pela questão da varanda.

– Aquela garota – murmurou Neferet, tomando um gole de champanhe. – Ela é boa para algumas coisas, mas precisa de muita supervisão. Será que você poderia usar essa útil maquininha no seu ouvido para lembrá-la das minhas ordens?

– É claro, Deusa – respondeu Lynette.

– E, enquanto você supervisiona Kylee, creio que eu vá me misturar aos meus adoráveis e atraentes súditos. Você consegue imaginar como o padrinho Camden se sentirá honrado se eu permitir que ele me tire para dançar?

Felizmente, a pergunta de Neferet era retórica e, em vez de concentrar a sua atenção na resposta de Lynette, a Deusa deu as costas para ela, tomou um gole de champanhe e caminhou em direção à grande escadaria dupla que levava ao salão de baile.

Lynette notou que Neferet não deslizou. Isso porque ela mandou as coisas rastejantes saírem para brincar , pensou Lynette. De alguma forma, elas deviam carregá-la – ou canalizar a energia para erguê-la – ou algo igualmente insano.

Ela meneou a cabeça como se quisesse clarear os pensamentos. Não podia se dar ao luxo de ficar pensando muito. Não podia se dar ao luxo de fazer mais nada a não ser sobreviver.

Lynette bateu no comunicador na sua orelha.

– Kylee, Neferet vai inspecionar a varanda da cobertura. Logo. Ela deixou você responsável pela limpeza.

– Compreendo e obedeço – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette suspirou. Deu alguns passos para trás e se apoiou em um dos pilares de mármore deixando-se ficar sem fazer nada por um momento, a não ser respirar.

Ela passara pelo primeiro teste de Neferet. Ainda estava viva e não tinha sido possuída por nenhuma criatura escorregadia. Mas, para continuar assim, não poderia se dar ao luxo de relaxar. Haveria tempo para relaxar depois que tudo isso acabasse. E Lynette conseguiria isso – ela sempre conseguia passar por todas as merdas que a vida atirava em sua direção.

Para começar, Lynette tinha uma lista de coisas a fazer.

Tinha de verificar todas as pessoas no prédio. Elas precisavam ser categorizadas como atraentes e aceitáveis ou aquelas que exigiriam trabalho. Na categoria das que exigem trabalho ela criaria as subcategorias gordo, malvestidos ou apenas feios por natureza. As duas primeiras poderiam ser corrigidas – em tese. Quanto aos que se enquadravam na terceira, bem, eles teriam de aprender algumas habilidades para que pudesse mantê-los nos bastidores.

– Espero que eles saibam cozinhar ou costurar.

Lynette estava falando consigo mesma enquanto digitava as observações no seu smartphone quando ouviu um grito vindo do salão. O que tinha acontecido agora? O que mais Neferet poderia estar fazendo? Com a mente cansada e pesada pelo medo e pela exaustão, obrigou os seus pés a levá-la até a beirada do mezanino.

Neferet estava ao lado de Camden. Ele estava olhando para o decote profundo do vestido curto de veludo da Deusa. As outras onze pessoas olhavam para as cobras escorregadias que se retorciam em volta dos tornozelos nus de Neferet.

– Ah, fique quieta – ordenou a Deusa para a garota que berrara. – Vocês precisam se acostumar com os meus filhos. Eles nunca ficam muito longe de mim, assim como vocês, meus leais súditos, nunca ficarão longe de mim.

– Si-Sinto muito, Deusa. E-eles parecem cobras. E e-eu tenho medo de cobras – gaguejou a menina.

– Eles não são cobras. São muito mais perigosos. E eu não estou pedindo para que você supere o medo que sente deles. Estou lhe ordenando que você não verbalize isso. – Neferet olhou para baixo, para as coisas rastejantes que se retorciam aos seus pés, parecendo excitadas. – O que foi, meus queridos?

– Deusa, o detetive voltou – chamou Judson do vestíbulo de entrada. – E trouxe mais gente com ele.

– Isso não significa nada. Ele pode trazer toda a Guarda Nacional de Oklahoma com ele. Eles não conseguirão penetrar a minha cortina protetora.

– Ele não trouxe um exército. Ele trouxe uma vampira que está fazendo o ar à sua volta brilhar enquanto um homem enorme que parece ter asas ocultas sob a sua capa de chuva caminha perto dela.

– Por que você esperou até agora para me dizer isso? – berrou Neferet. – Filhos! Venham comigo! – Erguida pelo ninho totalmente visível de víboras escorregadias, a Deusa deslizou até a porta da frente.

O corpo de Lynette ficou frio. Ela desceu dos sapatos elegantes de salto alto para que pudesse andar em silêncio pelo mezanino, dirigindo-se às grandes janelas panorâmicas que davam para a frente do prédio, tentando não pensar em nada, mas principalmente tentando não ter esperanças.


9

Zoey

– Que merda! O Mayo está horrível – declarei.

– É como se estivesse encharcado de morte. – Damien soava tão horrorizado quanto eu.

– Não de morte – contradisse Thanatos. – A morte é inevitável para todos os mortais. Ela não é boa nem má; é simplesmente parte da grande espiral da vida. Neferet usou nesse prédio dor e medo, sangue e desespero.

A sua voz estava estranha. Vovó, Stark, Shaylin e eu estávamos todos espremidos no Hummer da escola, e Thanatos estava na frente com Marx. Notei que quanto mais nos aproximávamos do Mayo, mais agitada a Grande Sacerdotisa parecia ficar. Ela estava literalmente inquieta, o que era muito estranho para ela – Thanatos costumava ser uma montanha de calmaria.

O seu óbvio nervosismo fez o meu estômago se revirar.

– Caos – disse Kalona. Olhei por sobre o meu ombro e ele estava sentado com Damien e Shaunee (eles estavam superapertados porque as asas dele ocupavam muito espaço), e vi-o meneando a cabeça enojado. – Neferet usou as gavinhas das Trevas para criar o caos e isso a está protegendo.

– Bem, o caos tem um cheiro horrível – reclamei enrugando o nariz.

– Fede e é horrível – concordou Damien. – E nós não temos nenhuma maneira de entrar.

– Sinto muito – desculpou-se Marx. – Eu devia ter avisado sobre o fedor.

– Não precisa se desculpar, detetive – disse Vovó. – Não creio que existisse qualquer coisa que você pudesse ter feito para nos preparar para isto.

– Você provavelmente está certa, mas é melhor avisar que não temos como saber se todas as partes humanas foram retiradas da área – acrescentou Marx. – Então, é melhor olharem por onde andam.

– Partes humanas? – A minha voz tremeu.

Marx assentiu.

– As coisas rastejantes mataram um monte de gente quando desceram pela varanda, cobrindo o prédio com trevas e tripas até aqui embaixo. Neste início de noite, Neferet tem jogado pedaços de pessoas, com todo o sangue drenado pelo parapeito da sua varanda.

– Eu consigo sentir o feitiço que ela fez com sangue, morte e Trevas – disse Thanatos. – Ela usou a morte daquelas pobres pessoas para construir uma barreira.

– Neferet lançou o feitiço, mas não sujaria as próprias mãos com a limpeza – concluiu Kalona em tom grave. – O que significa que ainda tem gente viva cumprindo as suas ordens.

– Será que importa quem está jogando? Principalmente se Neferet tiver feito reféns? – perguntou Shaunee.

– Tudo o que realmente importa é que todos se lembrem de que se detivermos Neferet, pararemos toda esta loucura também – respondeu Thanatos.

Todos nós concordamos de forma amarga.

Marx passou pelas barreiras da polícia e parou no meio-fio do outro lado da rua do Mayo em uma calçada ampla em frente ao prédio corporativo da empresa Oneok, onde nos sentamos e ficamos analisando o que tínhamos diante de nós.

– Organizamos dois postos de comando dentro da Oneok. O do terceiro andar com todos os equipamentos audiovisuais. E o que está no último andar com atiradores de elite – explicou-nos Marx enquanto nos sentamos e ficamos olhando para o prédio coberto de sangue coagulado do outro lado da rua.

– Atiradores de elite não podem matar Neferet – informou Kalona.

– É, a gente já percebeu – respondeu Marx secamente. – Mas eles podem matar pessoas, até mesmo as que estão sob o feitiço dela.

– Você não pode atirar naquelas pessoas! Elas são vítimas – declarou Vovó, virando-se, agitada. – Elas não são responsáveis pelas próprias ações, mas Neferet é.

– Sim, senhora, nós sabemos disso e não queremos atirar em ninguém, mas se Neferet ordenar que seus servos, ou seja lá como vocês querem chamá-los, nos ataquem ou a qualquer cidadão de Tulsa, seremos obrigados a impedi-los.

– Ela gostaria disso – disse Thanatos enquanto encarava o prédio. Ela parecia estar zangada. Achei que parecia mais pálida do que o usual, mas ela já era vampira havia, tipo, um zilhão de anos. Ela sempre estava pálida, então eu não poderia dizer com certeza. – Ela obteria mais poder com as suas mortes, além da satisfação de ter obrigado vocês a matar pessoas inocentes. – Thanatos olhou para Kalona. – Não podemos permitir isso.

– Concordo – respondeu Kalona.

– Bom – disse ela. – Já chega de ficarmos sentados aqui especulando. Eu preciso ir até lá. Preciso entender exatamente com o que estamos lidando.

Thanatos saiu do Hummer e bateu a porta atrás de si, deixando que o resto de nós a seguisse – de forma relutante.

Kalona se apressou a ficar ao seu lado. À distância, eu ouvia exclamações do tipo “Ei, olha lá aqueles vampiros!” e “Prepare a câmera, tem alguma coisa acontecendo na frente do Mayo!”.

O imortal alado tinha colocado uma longa capa de chuva para cobrir o seu peito tipicamente nu como uma forma bastante bem-sucedida de esconder as asas gigantescas. Eu o vi virar o corpo tentando enfiar as penas enormes lá dentro. Ele lançou um olhar irritado para as pessoas reunidas atrás das barricadas antes de os seus olhos encontrarem os do detetive Marx.

– Creio que seria mais sábio se você retirasse todos os civis dessa área da cidade. Ninguém estará seguro aqui.

– É, eu sei, mas tente dizer isso para a mídia. Conseguimos reunir todo mundo ali atrás, mas é uma merda lidar com a liberdade de imprensa.

Kalona deu de ombros.

– Então, eles terão de aprender a lição por si mesmos.

Com aquela observação agourenta, ele voltou a sua atenção para o Mayo. Thanatos olhava para o prédio, quase como se estivesse hipnotizada por ele. Engoli o meu medo e me posicionei ao seu lado, grata pela presença forte de Stark.

– Eu deveria saber. – A voz de Thanatos estava cansada. Ela deu vários passos na direção ao prédio. – Mas eu raramente era chamada para o local de uma morte humana, e nunca uma morte de tamanha magnitude. – Ela se aproximou mais do prédio, ficando na entrada semicircular de veículos anexa à entrada principal. Thanatos ergueu as mãos e estremeceu. – O terror usado para fazer esta barreira ainda está aqui.

– Sacerdotisa, eu aconselho que não se aproxime mais do prédio – disse Kalona, posicionando-se ao seu lado e gentilmente pegando o seu cotovelo e tentando fazer com que voltasse para a rua.

– Eu preciso ajudá-los – declarou ela, afastando a mão dele.

– Eles? – perguntou Marx.

– Nem todos os mortos se foram. O fim deles foi violento demais, aterrorizante demais, bem além do que qualquer coisa que essas pobres pessoas jamais imaginaram. Sinto os seus espíritos em pânico e eles ficam girando em círculos, incapazes de encontrar uma saída deste reino para o próximo.

– Você pode ajudá-los? – perguntou Vovó, que estava próxima ao Hummer.

– Acredito que sim.

– Tente fazer isso de forma rápida – orientou Kalona.

– Eu devo traçar um círculo? – perguntei.

– Não, Zoey. Você e todos os outros, exceto por Kalona, devem ficar lá trás em segurança. Isso é algo que eu tenho que fazer sozinha. O dom que nossa Deusa me concedeu é tudo de que eu preciso... – Ela fez uma pausa e deu um sorriso de agradecimento para Kalona – ... incluindo um protetor poderoso. Eu preciso acreditar na força que Nyx me dá.

– Façam como Thanatos disse e voltem para o Hummer – pediu Stark, puxando-me com ele. Marx se afastou mais devagar, os seus olhos concentrados em Thanatos.

– Damien! Ei! Damien! – Um humano bonito e jovem chegou correndo.

Damien se virou a tempo de receber um abraço gigantesco.

– Adam! Você não deveria estar aqui. É perigoso demais – repreendeu Damien.

– Ei, sou um jornalista. Eu tenho que lidar com o perigo – declarou ele sorrindo.

Por fim, eu o reconheci. Era Adam Paluka, um jornalista da Fox – o cara que nos entrevistou depois que Neferet deu aquela conferência ridícula. Eu sabia que Damien estava namorando alguém, e pelo modo como aqueles dois sorriam um para outro, acho que as coisas estavam indo bem. Nossa, eu me envolvera tanto com as coisas que estavam acontecendo comigo, que eu nunca pensei em perguntar a Damien como ele estava lidando com o fato de estar namorando tão rápido depois que Jack...

– Você precisa voltar para trás da barreira – disse Marx, aproximando-se de Adam com um olhar carregado.

Mas bem nesse momento, Thanatos começou o seu feitiço, atraindo toda a nossa atenção para si.

A Grande Sacerdotisa ergueu as mãos e fechou os olhos. Quando falou, a sua inquietação acabou. Suas palavras eram rítmicas e hipnóticas; sua voz, calma. Ela era forte, sábia e bonita – e eu tinha orgulho de ser uma novata da Morada da Noite sob o seu reinado.

Espíritos sofredores, venham até mim
Com calma e doçura, que a minha voz os guie assim
E que o meu dom acabe com o sofrimento sem fim

O ar em volta de Thanatos começou a brilhar como se alguém tivesse lançado globos mágicos cheios de purpurina em direção a ela.

– Ai, meu Deus! O que está acontecendo? O que aquela vampira está fazendo?

Eu estava tão concentrada no feitiço de Thanatos, que mal notei o barulho crescente vindo da multidão atrás de mim. Apesar disso, senti que Adam erguera o seu iPhone e ouvi um pequeno clique indicando que ele estava filmando. Stark apertou a minha mão antes de cochichar:

– Acho que Marx está prestes a expulsar os repórteres. Eu vou ver o que posso fazer para ajudá-lo. Certifique-se de que você, o seu grupo e Vovó fiquem perto do Hummer.

Assenti e vagamente notei que Stark estava discutindo com Damien sobre obrigar Adam a sair enquanto Marx caminhava decididamente em direção à barricada. Mas os meus olhos nunca se afastaram da Grande Sacerdotisa. Eu não conseguia parar de olhar. Thanatos comandava toda a minha concentração.

O guia para o fim do sofrimento eu sou sim
O amor atendeu às suas preces e ao terror colocou um fim;
Com calma e doçura, os seus espíritos estão livres assim!

Esferas brilhantes cercavam completamente Thanatos. Quando ela falou o último verso do feitiço e abriu os seus braços, cada uma das esferas precipitou-se para ela. Rindo de alegria absoluta, o rosto de Thanatos se iluminou de amor e ela ergueu os braços. As esferas brilhantes voaram como fogos de artifício para o céu noturno – só que, em vez de deixar para trás um rasto de fumaça, as esferas que desapareciam deixavam para trás um rasto de alívio e felicidade que me fez esquecer o estresse da situação – o horror do sangue e o fedor do Mayo coberto com Trevas –, fez-me esquecer de tudo, a não ser o fato de que, fôssemos humanos ou vampiros, havia sempre uma constante entre todos nós: o amor. Sempre o amor.

E, então, Neferet saiu pela porta da frente arruinando completamente o momento feliz. Antes, pensava que ela parecia uma insana, mas eu estava errada. O que ela era agora fazia a loucura anterior de Neferet parecer não mais que uma excentricidade, como uma velha que gosta de gatos e cheira a urina e mato. Ela estava usando um vestido curto verde. Por um segundo senti certo alívio. Tipo assim, ela não estava nua. Tudo bem, ela estava descalça, mas não achei nada demais naquilo, até que eu realmente olhei para os seus pés. Eles estavam descansando sobre um ninho escorregadio de gavinhas negras que se contraíam e pulsavam ao redor dela, envolvendo seus tornozelos e canelas, e, na verdade, erguendo-a do chão.

Mas aquilo nem era a coisa mais insana em Neferet. Foram os seus olhos que denunciaram a sua loucura. Algo acontecera com as suas pupilas – elas tinham desaparecido. Eram como pedras de mármore, completamente verdes-esmeralda.

– O que há de errado com os olh... – começou Adam, mas o berro de Neferet o cortou.

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo! – Neferet apontou para Thanatos, e duas das gavinhas correram na direção desta.

Kalona se moveu tão rápido, que tudo ficou um borrão. De repente, ele estava lá, entre Thanatos e as criaturas que a atacavam. Ele tirara o seu casaco e revelara a lança de ébano que tinha amarrada nas costas. Suas asas se desenrolaram enquanto ele se encontrava com as gavinhas, espetando uma delas, e enquanto esta se retorcia na agonia da morte, partiu a outra ao meio.

Neferet gritou, como se sentisse a dor das gavinhas.

– Ignorem Kalona! Matem Thanatos! E, depois, todos os outros!

Tudo explodiu.

As gavinhas das Trevas, como veneno cuspido da boca de uma víbora, saíram dos pés de Neferet, tentando passar por Kalona a fim de atingir Thanatos e o resto de nós. Stark voltou para mim, empurrando-me e à Vovó para trás dele e gritando para Damien, Adam, Shaunee e Shaylin para entrarem no Hummer.

Cambaleei para trás, certa de que eu iria assistir a Thanatos ser partida ao meio pelas criaturas de Neferet, provavelmente segundos antes de elas atacarem Stark e, depois, devorarem o restante de nós.

Mas nada daquilo aconteceu. As Trevas não venceram esta batalha – o imortal alado sim.

Kalona estava em todos os lugares. A sua lança se movia tão rápido, que provocava um som no ar.

– Um sabre de luz – arfou Damien. – E é de verdade, e não um de mentirinha como o do Star Wars.

– Leve-os para um lugar seguro! – ordenou Kalona para Marx.

Marx correu para a Grande Sacerdotisa e, enquanto Kalona usava o próprio corpo, suas asas e sua lança para nos proteger, nos apertamos no Hummer.

– Segurem-se! – Eu vou subir na calçada e tirar ele de lá! – avisou Marx ligando o carro.

– Espere! – disse Thanatos. – Ele está vindo para nós. Olhem para as gavinhas. A força delas acaba quando elas se afastam muito de Neferet.

A Grande Sacerdotisa estava certa. Kalona, ferido e sangrando, ainda estava lutando com as criaturas, mas se aproximava de nós e se afastava do Mayo. E as gavinhas não o estavam seguindo.

Quando Kalona chegou à traseira do Hummer, Neferet ergueu os braços e ordenou:

– Venham para mim, filhos! Eu os ajudarei!

As coisas rastejantes deslizaram para ela, enrolando-se em seus braços e pernas. Ela as acariciou, como se quisesse confortá-las, e antes de desaparecer dentro do Mayo, seus olhos brilhantes verdes-esmeralda se concentraram em nós.

– Obrigada pela lição. Da próxima vez, eu vencerei!

Zoey

– Não, de verdade, eu não preciso ir para o hospital – repetiu Kalona pela enésima vez para Marx. – Como eu já disse, traga-me água ou, melhor ainda, vinho. Eu vou subir até o alto deste prédio e me curar.

Nós contornamos o prédio da Oneok e entramos pelos fundos para nos juntarmos à força-tarefa de Tulsa no terceiro andar. Percebi por que Marx estava estressado com Kalona – ele estava ensanguentado. Todos na sala olhavam para ele, mesmo enquanto tentavam não olhar. Sério, se ele não fosse imortal, estaria em um saco preto para cadáveres.

Marx bufou e passou os dedos pelo cabelo.

– Tudo bem, então, já entendi. Já entendi. Você está bem. Carter! – gritou ele para um policial uniformizado, que imediatamente parou de fingir que estava analisando dados na tela do seu computador e deu atenção ao detetive. – Encontre a sala de reuniões do presidente da empresa. Deve haver bebida lá. – Marx voltou a sua atenção para Kalona. – Serve uísque? Esses caras corporativos preferem esse tipo de bebida.

– Serve – respondeu Kalona.

– Pode ir – disse Marx para Carter. – Tudo bem, então. Enquanto Kalona está se recuperando no telhado, vamos fazer um controle de danos. Paluka, passe o telefone para mim e saia daqui.

– Você não pode simplesmente pegar o meu telefone! Isso é ilegal!

– É uma evidência de uma investigação em andamento de múltiplos homicídios. Eu estou apreendendo o seu telefone – informou Marx.

– Um momento, por favor, detetive – pediu Vovó.

– Senhora? – Marx, assim como todos nós, olhou para Vovó, que deu um sorriso sereno.

– Adam, corrija-me se eu estiver errada, mas acredito que você não seja o único jornalista que testemunhou o que acabou de acontecer lá fora.

– Você não está errada – respondeu Adam.

– Ah, exatamente o que pensei. O que significa que deve haver um monte de equipes de filmagem gravando tudo de trás da barreira, isso sem mencionar as gravações feitas por celulares, como a que você fez.

Ouvi Marx suspirar enquanto Adam respondia:

– Exatamente, senhora.

Vovó e Thanatos trocaram um olhar e, então, a Grande Sacerdotisa assumiu a conversa que Vovó iniciara.

– Sr. Paluka, o que o senhor acha de fazer uma entrevista exclusiva comigo e Kalona?

Os olhos de Adam brilharam de animação, mas ele manteve a postura profissional.

– Eu gostaria muito disso, Grande Sacerdotisa.

– Então, é isso que você terá. – Thanatos lançou um olhar para Marx. – Às vezes é mais fácil abrir mão do controle e deixar o destino lidar com o que quer que venha em seguida.

– Pelo menos limpem um pouco do sangue e me deem um monte de comprimidos de Tylenol.

Zoey

Kalona realmente tentou limpar o sangue que escorria dos seus ferimentos semelhantes a chicotadas e dos arranhões menores e mais profundos que mais pareciam mordidas que se espalhavam pelo seu corpo. Achei que ele parecia bem-acabado, e ele ainda sangrava um pouco, mas estava agindo de forma totalmente normal – forte, silenciosa, intimidadora. Thanatos fez com que ele vestisse o casaco comprido. Disse que as suas asas já tinham aparecido o suficiente no vídeo da batalha que Adam exibiria durante a entrevista. Em silêncio, concordei com ela, mas também pensei que o casaco cobria bastante os ferimentos que estavam ali embaixo. Por uma vez, consegui manter a boca fechada e deixei que os outros lidassem com as consequências da luta com Neferet enquanto eu me afastava dos holofotes. Foi um breve momento de relaxamento para mim enquanto me encolhi ao lado de Stark para assistir com Vovó, Damien, Shaylin e Shaunee àquilo que jamais poderíamos imaginar alguns meses antes – Kalona sendo entrevistado pela TV de Tulsa.

Adam chamara uma equipe de iluminação e um cinegrafista. Achei que estavam fazendo um bom trabalho de não ficar olhando estupidamente para Kalona. Adam explicou para todos que iria carregar o vídeo da batalha e exibi-lo e, depois, começaria a entrevista. Também explicou que ela seria exibida ao vivo no plantão de notícias.

– Cara, ainda bem que não estamos ali – sussurrei.

– Adam está fazendo um excelente trabalho – disse Damien com voz suave enquanto seus olhos brilhavam para o jornalista.

– Eu gosto dele.

O olhar de Damien encontrou o meu.

– Você acha que o Jack teria gostado dele.

Estiquei a mão por sobre Stark e apertei a mão de Damien.

– Tenho certeza que sim.

Damien assentiu e piscou para afastar as lágrimas.

– De alguma forma, isso torna as coisas mais fáceis, apenas um pouco mais fáceis, mas sou grato por esse “pouco”.

Então, a nossa atenção estava em Adam enquanto a luz vermelha na câmera parou de piscar e nós assistimos às cenas da batalha de Kalona sendo exibidas em um monitor portátil.

– Sou Adam Paluka, ao vivo, com a vampira e o Guerreiro que acabamos de ver nesta cena surpreendente gravada há alguns momentos em frente ao Mayo Hotel, no centro de Tulsa, quando a Grande Sacerdotisa conhecida como Neferet atacou diversos cidadãos inocentes, inclusive eu. – Adam fez uma pausa, dando então um sorriso caloroso para Kalona. – Eu ainda não lhe agradeci por ter salvado a minha vida. Obrigado!

Kalona pareceu surpreso, quase tímido. Ele assentiu uma vez e disse:

– De nada.

– Kalona estava cumprindo o seu dever. Ele é o meu Guerreiro sob Juramento. Neferet, que não é mais reconhecida por nenhuma autoridade vampírica como Sacerdotisa de Nyx, atacou a mim e os que estavam comigo. Era o dever de Kalona nos proteger – declarou Thanatos.

– Thanatos, é muito bom falar com você novamente. Muitos dos nossos espectadores a reconhecerão como a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Será que você poderia explicar o que estava fazendo na frente do Mayo?

A entrevistada respirou fundo e, então, falou devagar e com clareza, como se quisesse que todos a compreendessem:

– A essa altura, vocês já sabem o que nós apenas suspeitávamos antes, que Neferet está completamente louca e que se tornou uma pessoa malévola. Ela admitiu ter cometido uma matança. Assassinou o prefeito de Tulsa. Assassinou dois homens em Woodward Park. De lá, seus assassinatos se dirigiram para inocentes na Boston Avenue Church no domingo de manhã e, em seguida, para o Mayo Hotel, onde ela se trancou. As mortes que causou no Mayo permitiram que criasse um escudo protetor sobre o prédio. Eu fui até lá por causa do meu dom concedido pela Deusa, que é ajudar as almas a passarem deste mundo para o próximo.

– As luzes brilhantes! Elas eram almas?

Thanatos concordou com a cabeça.

– Exatamente. Elas estavam presas neste reino por causa da forma violenta como morreram. Eu simplesmente as ajudei a se libertarem.

– Nossa! Isso é incrível.

O sorriso de Thanatos foi bonito.

– O ciclo da vida é realmente incrível.

– Sim, é claro que sim. Espere um pouco, Thanatos. Isso significa que eram almas humanas que você ajudou na passagem?

– Isso mesmo – respondeu ela, serena.

– Mas você é uma vampira .

O sorriso da Grande Sacerdotisa se abriu mais.

– Achei que já tínhamos falado disso.

– É verdade. – Adam passou os dedos pelo cabelo perfeito. – Mas uma pessoa da sua raça a atacou porque você estava ajudando almas humanas .

– Adam, já vivi por mais de quinhentos anos, e, nesse tempo, eu aprendi que a humanidade é definida pelas escolhas, e não pela genética. Para colocar de forma bem simples, humanos e vampiros têm mais semelhanças do que diferenças.

– Obviamente Neferet não pensa como você – disse Adam.

– Neferet está louca. Seus pensamentos são excêntricos e perigosos.

– O que são aquelas coisas que ela enviou para nos atacar? – perguntou Adam.

– O mal que tomou uma forma tangível. As criaturas seguem as ordens de Neferet. Desde que ela faça sacrifícios para mantê-las leais a ela. – Thanatos olhou diretamente para a câmera. – Nunca é demais enfatizar que, não importa o quanto Neferet ameace, é imperativo que nenhum humano deve chegar perto do Mayo. O poder de Neferet vem da morte. Fiquem longe do Mayo e a sua fonte de poder vai acabar secando.

Adam parou, pareceu chocado e, então, olhou para alguém que não estava aparecendo na filmagem.

– Detetive Marx, o senhor concorda com o pedido de Thanatos em relação ao Mayo?

O cinegrafista apontou a câmera para um detetive com expressão irritada. Imperturbável, ele respondeu sem hesitar:

– Concordo. O Departamento de Polícia de Tulsa colocou barreiras nas ruas que cercam o Mayo. Ninguém pode se aproximar do Mayo, nem mesmo as equipes policiais ou os militares.

– Mas não é verdade que Neferet está mantendo reféns dentro do Mayo? – quis saber Adam.

– É verdade, mas, nesse momento, não temos nomes nem números – respondeu Marx. – Eu entendo que as pessoas vão sentir falta dos seus entes queridos. O Departamento de Polícia abriu uma linha telefônica 0800 para perguntas e informações de pessoas desaparecidas. O público deve direcionar as suas perguntas por esse número.

– Número esse que o canal Fox 23 vai colocar na parte inferior da tela – informou Adam.

– Obrigado – agradeceu Marx, embora ele não parecesse particularmente grato.

– Detetive Marx, eu preciso perguntar: se o senhor não vai permitir que ninguém se aproxime do Mayo, como é que pretendem deter Neferet?

– Ela será detida por mim, pelos vampiros e pelos novatos que lutam ao meu lado. Neferet é da nossa raça. E somos nós que devemos derrotá-la.

Todos nós, inclusive o cinegrafista, concentraram-se no imortal alado.

– Kalona, o senhor não é um vampiro, certo? – perguntou Adam.

– Certo.

– Então, o que o senhor é?

Ele nem mesmo hesitou. Disse aquilo como se estivesse contando o que comeu no jantar da noite anterior.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas fiz escolhas ruins e, por isso, fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

Seguiu-se um silêncio em que ninguém parecia respirar. Então, Adam perguntou:

– E o que o senhor está fazendo aqui?

Kalona se empertigou e olhou diretamente para a câmera.

– Estou tentando me redimir dos meus erros do passado e obter o perdão de Nyx.

– Bem – Adam engoliu em seco –, parece-me que o senhor está fazendo um bom trabalho aqui. O senhor salvou a Grande Sacerdotisa, um grupo de vampiros e novatos, um detetive. Salvou, inclusive, a mim. Se o senhor conseguir deter Neferet, eu vou começar a chamá-lo de Super-Homem.

Os lábios carnudos de Kalona se ergueram em um sorriso.

– Se você vir Nyx, eu gostaria muito que dissesse isso para ela.

– Pode contar comigo – assegurou Adam. Então, ele se voltou para Thanatos: – A senhora tem mais alguma coisa a acrescentar, Grande Sacerdotisa? Será que existe alguma forma de o público nos ajudar?

– Existe sim – respondeu ela. – Todos podem rezar e enviar pensamentos e energia positiva para nós. A Morada da Noite fará o melhor que puder para proteger o povo de Tulsa, mas nós precisamos de intervenção divina.

– Rezar? Para quem? Para Deus ou para a Deusa? – quis saber Adam.

– Ora, para qualquer um deles ou para os dois, é claro. Gosto de acreditar que as orações não estão presas a questões semânticas.

Adam sorriu.

– Eu também prefiro acreditar nisso. – Ele se virou para a câmera. – Vamos todos rezar pelo fim da insanidade de Neferet e da violência que irrompeu em Tulsa em decorrência disso. E essas foram as últimas notícias sobre a situação no Mayo Hotel. Sou Adam Paluka, lembrando a todos para ficarem ligados no canal Fox 23 para terem uma cobertura completa.

– O irmão de Erebus. Isso não é interessante? – perguntou Vovó, enquanto Adam trocava um aperto de mão com Thanatos e agradecia a ela e a Kalona pela entrevista.

– Você sabia que ele era irmão de Erebus? – sussurrou Damien para mim.

– Hã... Sabia – respondi. – Ele mencionou isso há alguns dias.

– Mas estivemos meio ocupados desde então – completou Stark.

Damien coçou a testa.

– Eu me lembro vagamente de ter lido em uma antiga antologia poética vampírica algumas menções sobre o Filho da Lua e Guerreiro da Noite, junto com as descrições usuais de Erebus como Filho do Sol e Consorte de Nyx. Inicialmente, achei que eram apenas nomes diferentes para Erebus, mas, pensando bem, faz mais sentido que estivessem falando de dois imortais distintos.

– Isso torna os séculos de raiva de Kalona mais compreensíveis – declarou Vovó.

– É. Ter deixado de ser o guerreiro e companheiro de Nyx e não ter nem mais permissão para entrar no Mundo do Além. Isso deve doer de verdade – disse Damien, observando Kalona com olhos grandes e tristes.

– Ele estuprou e matou gente. Quem sabe o que ele fez no Mundo do Além antes de sua Queda – contou Stark.

– Todo mundo merece uma segunda chance, Tsi-ta-ga-a-s-ha-ya – afirmou Vovó, usando o apelido Cherokee que dera a ele. – Eu me lembro de que não faz muito tempo que você teve uma segunda chance.

Stark olhou para o chão.

Eu respirei fundo e disse:

– Eu também.

Vovó levantou as sobrancelhas.

– Hoje eu ganhei uma segunda chance – expliquei. Olhei de Vovó para os meus amigos, um de cada vez, e, por fim, meu olhar encontrou o de Stark. – Nós somos um time que precisa de uma segunda chance. Estou feliz de ter Kalona ao nosso lado.

Vovó tocou o meu braço.

– Algum dia, você deveria dizer isso para ele, u-we-tsi-a-ge-ya . Acho que você vai ficar surpresa com a diferença que suas palavras podem fazer.


10

Zoey

– Que merda! Você não vai acreditar no que acabou de viralizar no YouTube! – Nicole subiu correndo as escadas do auditório para o palco, acenando com o seu iPad como uma louca.

Aphrodite olhou para ela e afastou o iPad de si.

– Sério? A assembleia acabou agora mesmo . Você estava no YouTube enquanto eu estava falando?

– Sério. – Nicole revirou os olhos. – Supere isso. Todo mundo estava no YouTube. Você tem que ver isto. – Ela empurrou o iPad em direção a Aphrodite.

– Ser professora é um saco. Adolescentes são um saco – declarou Aphrodite, ainda ignorando o aparelho.

– Aiminhadeusa! Aquele é o Kalona? No YouTube? – Stevie Rae passou por Aphrodite para dar uma olhada na tela.

– O quê? Kalona? – Lenobia se apressou para ficar ao lado de Stevie Rae, com Darius e Rephaim logo atrás.

– Muito bem. Eu vou assistir. Agora que eu acabei de informar a todo o corpo discente que vamos salvar o mundo. De novo. – Aphrodite olhou para a tela e arregalou os olhos. – Céus! Por que você demorou tanto para nos dizer? Ligue logo! – Ela agarrou o iPad, tocou no botão para tocar e aumentou o volume até o máximo.

Não era um vídeo profissional, mas o início estava muito claro. Primeiro, focava em Thanatos. Ela estava na frente de um prédio com aparência horrível que parecia estar coberto por uma cortina gosmenta preta. Assistiram enquanto a Grande Sacerdotisa concluía o seu feitiço, erguendo os braços e sendo envolvida por um monte de esferas bonitas e brilhantes. Quando elas se ergueram aos céus, o vídeo ainda mostrava Thanatos, mas, ao fundo, dava para ouvir Neferet gritando:

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo!

O vídeo mudou e agora dava para ver Neferet em frente ao que devia ser o Mayo.

– Ela parece estar precisando de um McLanche Feliz – disse Stevie Rae.

Aphrodite não afastou os olhos da tela.

– Isso é tudo que você tem a dizer, caipira?

– Eu acho que ela está mais doida que um gato preso num saco – opinou Nicole.

– Ninguém perguntou... – começou Aphrodite, mas a explosão no vídeo interrompeu as suas palavras.

– Aiminhadeusa! Não! – ofegou Lenobia, enquanto assistiam a Neferet lançando uma nuvem de Trevas atrás de Thanatos e de todos os outros.

– Meu pai está salvando todo mundo – disse Rephaim.

– Olhem como ele se move. – A voz de Darius era respeitosa. – Sua velocidade e força são incríveis.

Aphrodite não teve a chance de concordar. O vídeo terminou com quem quer que estivesse filmando parando para entrar no Hummer da escola, embora ainda tenha conseguido filmar Neferet e os tentáculos sangrentos das Trevas deslizando para dentro do Mayo.

Então, começou a entrevista, e Aphrodite teve de se obrigar a fechar a boca, que estava aberta de forma não atraente porque lá estava Kalona – com asas e tudo –, ao lado de Thanatos no canal Fox 23.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas eu fiz escolhas erradas e, por isso, eu fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

– Irmão de Erebus? Ele só pode estar brincando! – Aphrodite sentiu que sua cabeça iria explodir.

– É verdade – confirmou Darius em voz baixa quando o vídeo chegou ao fim.

A tela ficou escura e Aphrodite olhou para ele.

– Você sabia ?

– Sabia. Kalona contou para Zoey, Stark e eu – admitiu Darius.

– E nenhum de vocês achou que seria importante contar para qualquer um de nós? – perguntou Lenobia, parecendo tão irritada quanto Aphrodite.

Darius encolheu os ombros largos.

– Para dizer a verdade, eu nem pensei muito nisso. A veracidade de Kalona foi mais do que questionável desde o momento em que ele apareceu aqui.

– Mas agora você acredita nele? – quis saber Rephaim.

Darius olhou para ele.

– Acredito.

– Rephaim, você sabia que o seu pai era irmão de Erebus? – perguntou Stevie Rae.

Os olhos do menino-pássaro ficaram tristes.

– O meu pai nunca fala sobre antes .

– O que significa que não, você não sabia? – insistiu Aphrodite.

– Isso – confirmou Rephaim, parecendo tão misterioso quanto o seu pai.

– Isso muda tudo – declarou Lenobia.

– Sim, de forma maravilhosa – animou-se Nicole, assentindo como um boneco bobblehead . [*] – Isso significa que temos um guerreiro de Nyx no nosso time.

– Não – discordou Aphrodite, secamente. – Significa que temos um ex-guerreiro de Nyx que fez tanta merda, que acabou expulso do Mundo do Além no nosso time. E isso não é tão legal assim.

– Ele disse que está tentando se redimir – falou Rephaim.

– E ele salvou Thanatos e os outros – reforçou Darius.

– Sinto muito, mas eu não estou pronta para pular cegamente para o time Kalona – disse Aphrodite.

– Acho que é cegueira ignorar o que está bem na frente dos seus olhos – retorquiu Rephaim, apontando para a tela escura do iPad.

– E eu acho que tem um monte de coisas sobre Kalona que não sabemos. – Ela fez uma pausa e lançou um olhar duro para Darius. – Ou pelo menos a maioria de nós não sabe. Agora, se vocês não têm mais nada que prefiram fazer, eu adoraria que reunissem todos os novatos que apresentem algum talento guerreiro. Tenho certeza de que Thanatos vai querer um exército para a batalha. Depois de assistir à louca no YouTube, tenho a sensação de que Neferet não vai dar a mínima para o time Kalona. – Aphrodite então deu um tapa na própria testa e acrescentou sarcasticamente: – Ah, esperem! A maldita Neferet provavelmente já sabe sobre a relação Kalona–Erebus, assim como praticamente todo mundo menos eu . – Ela jogou o cabelo para trás e se retirou.

Só quando já estava do lado de fora do auditório é que Aphrodite diminuiu o passo e permitiu que os pensamentos acompanhassem as suas emoções. Seu coração estava disparado e seu estômago, apertado. Estava puta da vida. Muito puta da vida.

Não, isso não é verdade. Eu não estou puta da vida. Eu estou assustada e chateada.

Com um suspiro enorme, Aphrodite saiu da calçada e foi até um dos bancos de carvalho. A mão que afastou o cabelo louro do seu rosto estava trêmula.

Darius omitira um segredo, algo importante. Até aquele momento, acreditara que ele era diferente de todos os outros caras nesta Terra. Ele deveria ser honesto. Ele deveria ser leal. E, acima de tudo, ele deveria amá-la o suficiente para nunca mentir para ela ou guardar um segredo dela.

Quando alguém conta uma mentira, é possível medir o quanto esse alguém amou você ou não. Aphrodite sabia disso porque crescera ouvindo uma mentira constante que não parava de crescer. Os seus pais fingiam ser um casal perfeito, mas a verdade era que se odiavam tanto quanto a odiavam. A não ser quando estavam em público, eles viviam vidas totalmente separadas – eles nem compartilhavam o mesmo quarto havia mais de uma década, quanto mais os segredos.

Eles mentiam um para o outro todos os dias.

Quando ela só tinha oito anos de idade, Aphrodite jurara para si mesma que jamais entraria em qualquer relacionamento semelhante ao casamento dos pais. Merda, até conhecer Darius, nunca tinha permitido que um cara se aproximasse o suficiente dela a ponto de importar se ele mentiria ou não. Ela se certificava de mentir para eles primeiro . Ela os traía primeiro . Ela terminava com eles primeiro .

– Eu consigo sentir a sua tristeza, minha bela. Por favor, fale comigo.

Aphrodite ergueu o olhar ao ouvir a voz de Darius, mas não o olhou nos olhos. Olhou por sobre o ombro dele.

– Sobre o que você quer conversar?

Ele se sentou ao lado dela e usou as costas da mão para enxugar uma lágrima que escorria pela bochecha dela. Aphrodite se afastou dele rapidamente, enxugando o outro lado do rosto.

– Eu quero conversar sobre nós – respondeu ele.

– É mesmo? Será que não seria bem mais fácil continuarmos seguindo do jeito que estamos? Fingindo estar “apaixonados para todo o sempre”? – perguntou ela sarcasticamente e usando os dedos para indicar as aspas.

– Nunca foi fingimento para mim. Você sabe muito bem disso, Aphrodite. – O tom dele era calmo e sério.

Ela desejou dar uma tapa na cara dele – machucá-lo –, fazê-lo sentir um pouco do medo que estava sentindo. Mas não fez nada de violento. Isso significaria perder o controle. Isso significaria que tinha se transformado na sua mãe. Em vez disso, Aphrodite o atacou com palavras.

– E como é que eu posso saber disso? Eu não posso entrar na sua cabeça. Eu nem posso compartilhar os seus sentimentos como uma verdadeira Profetisa faria. Mas tanto faz. Não se preocupe com isso. Está tudo bem, e nós dois temos um monte de merda para fazer porque, como sempre, as Trevas estão tentando dominar o nosso mundo.

– As Trevas terão de esperar, porque você é o meu mundo, e se eu perder você, eu vou me perder.

Aphrodite quis se levantar e se afastar dele sem olhar para trás. Ela iria endurecer o coração, deixá-lo tão duro quanto ele costumava ser para, na verdade, protegê-la. Antes da tempestade de Zoey e seu bando Nerd e Darius aparecerem na sua vida.

Era o que ela iria fazer, mas, de alguma forma, Darius disse exatamente a coisa certa. Então, as pernas de Aphrodite, de repente, decidiram ouvir o seu coração em vez de escutar a cabeça.

Aphrodite olhou para ele.

– Você mentiu para mim.

– Não, minha bela. Eu simplesmente não contei uma coisa para você.

– Por quê? Por que você não me contou? Kalona ser irmão de Erebus é uma puta informação importante.

– Eu não estou nem aí para o que Kalona disse ou deixou de dizer. Eu só ligo para você e o que você diz.

– Eu? – Aphrodite franziu as sobrancelhas. – Do que é que você está falando? Eu nunca mencionei qualquer coisa remotamente semelhante à possibilidade de Kalona e Erebus serem irmãos.

O sorriso de Darius foi lento e doce.

– Exatamente. E se você, minha bela Profetisa talentosa, não tem qualquer insight sobre o verdadeiro passado de Kalona, então por que é que eu deveria mencionar um comentário fora de contexto que um imortal alado fez? Aphrodite, se fosse importante que soubéssemos que Kalona era irmão de Erebus, então creio que você teria dito isso para mim .

Aphrodite meneou a cabeça, sentindo-se um pouco tonta quando ela se deu conta do que Darius realmente estava dizendo para ela.

Ele pegou a sua mão.

– Será que eu já disse hoje o quanto eu amo você?

– Não – sussurrou ela, pensando: por favor, não diga isso se não for verdade. Por favor, não faça isso.

– Com todo o meu ser – declarou ele.

Lágrimas escorreram pelo rosto de Aphrodite, mas ela não afastou o olhar dele.

– Não tenha medo – pediu ele.

– Eu tenho. Isso ainda me assusta – admitiu ela.

– Também me assusta, mas, para ficar com você, realmente com você e não apenas fingir para que o meu coração fique em segurança, vale a pena enfrentar e dominar esse medo.

– Mas você é um guerreiro. Eu não sou nada. Não de verdade. Eu sou apenas... – Sua voz falhou. Não conseguiria dizer, mas as palavras enchiam a sua mente: eu apenas sou filha de uma mulher horrível que só me ensinou a odiar, e nunca, nunca confiar no amor.

– Você é a pessoa mais corajosa que eu conheço – afirmou Darius com voz solene. – E você não é, e nunca será, como a sua mãe.

– E você nunca vai mentir para mim.

Ela não falou aquilo como uma pergunta, mas ele se levantou do banco e se ajoelhou, pressionando a mão dela contra o coração dele, dizendo:

– Aphrodite, Profetisa de Nyx, eu lhe juro que jamais mentirei para você. Se eu não falar a verdade sempre para você, que a Terra me engula inteiro para que o meu espírito jamais encontre o Mundo do Além.

Um calafrio terrível passou por Aphrodite e ela agarrou Darius, puxou-o para os seus braços e sorriu.

– Não, pare já com isso! Qualquer um pode contar acidentalmente uma mentira. Qualquer um! Eu não aceito o seu juramento!

Darius se inclinou um pouco para trás, segurando gentilmente os ombros trêmulos dela, e sorriu.

– Mas eu não sou qualquer um . Eu sou seu. O seu guerreiro. O seu amante. O seu companheiro. Juro que nunca vou mentir para você porque isso a magoaria mais do que poderia suportar, e eu prefiro que a Terra me engula para sempre do que fazer isso com você.

Enquanto olhava para Darius e via a verdade nos seus olhos, algo se libertou dentro de Aphrodite – algo pequeno e afiado que estivera fincado dentro dela por muito, muito tempo. Ela ofegou e inspirou fundo, soltando o ar devagar.

– Acabou – sussurrou ela.

– O que acabou, minha bela?

– O meu medo. Acabou, Darius. Você acabou com ele. – Aphrodite sabia que soava jovem e tola. Mas não ligava. Pela primeira vez na vida, não estava com medo de perder o amor. – Eu não posso perder você! – exclamou ela.

– Não – respondeu ele, sorrindo de novo. – Você jamais vai me perder. E eu não acabei com o seu medo. Você o deixou ir.

– Ah – respondeu ela, suavemente, compreendendo por fim. – Sinto muito por ter demorado tanto.

– Você demorou o tempo necessário, e eu não me arrependo por ter esperado.

Darius a beijou em seguida, e Aphrodite vivenciou a felicidade completa.

Até que Aurox os interrompeu.

– Darius! Aí está você. Venha rápido. Eles estão nos portões.

Aphrodite se apoiou no ombro de Darius e franziu as sobrancelhas para Aurox.

– Ah, que droga! Se você interrompeu este momento porque Zoey e seu bando nerd voltaram, eu vou acabar com você...

– Não é a Zoey! – explicou Aurox. – São humanos! Os humanos estão nos portões pedindo para entrar porque querem que nós os protejamos contra Neferet!

– Bem, neste caso, acho que devemos deixá-los entrar – declarou Darius, levantando-se e oferecendo a mão para Aphrodite. – Você não acha, minha bela?

Ela suspirou e resmungou:

– Tudo bem. Desde que não tenha nenhum político com eles.

[*] Bobblehead refere-se a bonecos que possuem a cabeça presa ao corpo por meio de uma mola, a qual faz com que a cabeça balance quando há qualquer movimento. (N. E.)


11

Zoey

– Ah, que merda! Uma multidão? Isso é tudo de que precisamos agora. – Suspirei, frustrada, enquanto passávamos pelo semáforo na Twenty-first Street em Utica e conseguimos ver a escola.

Foi uma cena superestranha. Já passava da meia-noite, e a rua estava escura. Deveria estar vazia também, mas os grandes portões de ferro da escola estavam abertos, e pudemos ver um monte de gente reunida na frente dele. Os dois lampiões a gás envolvidos por candeeiros de cobre desgastados pelo tempo lançavam sombras bruxuleantes em um semicírculo sobre o grupo. As pessoas também vinham dos dois lados da rua. Fora do alcance das chamas da escola, dava para ver as sombras escuras dos carros que estavam estacionados na calçada, parecendo abandonados e completamente fora de lugar.

– Você está vendo alguma coisa queimando além das nossas lanternas? Tipo um crucifixo gigantesco em chamas? – A cabeça de Shaunee apareceu entre mim e Stark enquanto tentava ver melhor do banco de trás onde estava.

– Parem o carro e deixem-me sair daqui. Eu vou resolver isso! – avisou Kalona.

– Não! – gritaram Thanatos, Marx e Vovó juntos.

– Eles não parecem zangados – disse Thanatos.

O detetive Marx parou e baixou o vidro. Todos apuramos os ouvidos para escutar alguma coisa, e então ele disse:

– Está difícil enxergar alguma coisa, mas não estou ouvindo gritos.

– A minha visão noturna é melhor do que a sua, e eu não estou vendo nenhum tumulto ou pânico. Tudo parece notavelmente calmo – declarou Thanatos.

– Tudo bem, melhor prevenir do que remediar. Então, vamos nos certificar de que saibam de que lado da lei a Morada da Noite está.

O detetive pegou uma sirene portátil que trouxera com ele do Oneok e a acoplou ao teto do Hummer. Ligou-a, e ela começou a girar uma luz azul e vermelha que era familiar demais para qualquer um de nós que não tivesse parado totalmente no cruzamento da rua 101 com a Lynn Lane, em frente à South Intermediate High School. Não que eu tenha qualquer experiência pessoal com isso. Só estou dizendo que é estranho estar em um carro de polícia quando a sirene está ligada.

Marx deu mais um tapa na sirene, que então emitiu um som odioso duas vezes. A luz e o som trabalharam em sintonia perfeita. A multidão se abriu e se virou para nós e, reconhecendo a presença do Departamento de Polícia de Tulsa, as pessoas abriram caminho para que o Hummer pudesse chegar à entrada da escola.

Diante do local onde o portão de ferro deveria estar seguramente trancado estavam Aphrodite, Darius, Stevie Rae, Rephaim, Lenobia e Aurox, todos alinhados na frente da entrada formando uma passagem humana.

– O que eles estão fazendo? – perguntou Stark, ecoando os meus pensamentos.

– Espero que tenham tomado decisões sábias – desejou Thanatos.

Em silêncio, concordei enquanto os meus olhos pousaram primeiro em Aphrodite. Se ela aparentasse estar zangada, ou segurasse uma bebida, eu saberia que o que quer que estivesse acontecendo ali era ruim – com crucifixos em chamas e gritos ou não. Mas ela parecia confusa. Tipo, obviamente confusa. Uma de suas mãos estava no quadril e os ombros, encolhidos. Ao mesmo tempo, Lenobia estava assentindo e conversando com alguém na multidão que eu não conseguia ver direito.

– Aphrodite parece confusa, mas não assustada – expus a minha observação de surpresa. – E Lenobia parece estar de acordo com o que quer que seja que está acontecendo. Não deve ser tão horrível.

– Lá estão a irmã Mary Angela e a irmã Emily. Ah, eu estou vendo! Tem um grupo de freiras lá na frente. – Vovó apontou e acenou. – Está tudo bem se elas fazem parte do grupo.

– É uma boa teoria, mas eu vou parar dentro da escola antes que qualquer um de vocês desça. E quero que vocês permaneçam nas dependências da Morada da Noite, não importa quem possa estar chamando vocês do lado de fora – declarou Marx.

Percebi que Vovó estava fazendo cara feia, mas Thanatos foi rápida em concordar:

– Pode deixar, detetive.

Eu estava feliz. Tudo bem, talvez fosse porque não havia se passado nem 24 horas desde que eu saíra da cadeia, mas uma multidão de humanos em torno dos portões da escola – ainda que fossem humanos conhecidos que pareciam ter vindo em paz – fazia o meu estômago se contrair com o estresse da situação. Isso sem mencionar que já passava da meia-noite e não fazia muito tempo desde que Neferet jogara pedaços de corpos humanos pela varanda da sua cobertura no Mayo. Eu não tinha a menor intenção de olhar de cara feia para Marx nem Thanatos, muito menos desobedecê-los. Na verdade, eu esperava já ter sido desobediente o suficiente pelo que seria o resto de uma vida que eu esperava ser longa e chata.

Então, Kalona saiu do Hummer.

– Ei, não é aquele cara alado? – gritou alguém na multidão.

– Uau! O filho de Erebus! – exclamou alguém mal-informado e pronunciando erroneamente o nome Erebus de forma que soasse como Airbus , o que fez Stark cobrir a boca com a mão para disfarçar o riso com uma tossida.

Dei uma cotovelada de leve em Stark, e ele me lançou o seu olhar charmoso e sorriso torto dizendo com os lábios “Airbus ”. Revirei os olhos.

– Tudo bem, tudo bem – disse o detetive Marx enquanto erguia as mãos fazendo um gesto para o público se acalmar. – Não tem nada para ver aqui. Vocês precisam se afastar e desbloquear a entrada.

– Ah, não precisa se preocupar, detetive. Não queremos bloquear a entrada da escola. Só queremos entrar na escola. – Uma freira alta, usando véu, deu um passo para a frente com um sorriso maternal nos lábios. – É tão bom vê-lo de novo, Kevin.

– Irmã Mary Angela, senhora. – Detetive Marx fez um gesto antigo de respeito com a cabeça. – É muito tarde para a senhora e as outras freiras fazerem uma visita social.

– Ah, Kevin, não estamos aqui para uma visita – declarou ela de forma enigmática.

Antes que Marx tivesse a chance de interrogá-la, Vovó falou passando por ele para encontrar a freira da fronteira da escola.

– Mary Angela, eu estava pensando em você hoje cedo.

Elas deram um abraço. A freira riu e disse alto o suficiente para que todos ouvissem:

– E quando foi que pensou em mim? Antes ou depois de ter sido atacada pelas Trevas? Você leva uma vida tão interessante, Sylvia.

Aphrodite, que se aproximou para ficar ao meu lado, bufou, dizendo:

– Os velhos deviam ter uma vida menos interessante.

– Nós devíamos ter uma vida menos interessante – retruquei baixinho.

Vovó sorriu como se tivesse nos ouvido.

– Foi depois, quando Thanatos pediu que todos em Tulsa rezassem para nos ajudar.

– Ah, que adorável coincidência, porque foi a oração que nos trouxe até aqui.

– Por favor, explique, cara irmã – pediu Thanatos.

Notei que ela não se juntou à Vovó. Olhei para Kalona, que estava colado ao seu lado como se esperasse que mais gavinhas das Trevas aparecessem a qualquer momento.

– Mas que merda, já chega dessa procrastinação – reclamou Aphrodite, dando um passo para a frente. – Eles querem a nossa proteção.

Eu a segui, embora Stark tenha segurado o meu cotovelo para que eu fosse mais devagar.

– Creio que a palavra correta para o que eles querem seja “santuário” – interveio Lenobia.

– Você quer dizer a palavra politicamente correta – retorquiu Aphrodite.

– Se qualquer um de nós fosse politicamente correto, não estaria aqui. – Do meio das sombras iluminadas pela luz dos lampiões, uma mulher pequena, seguida por um homem esbelto, caminhou até irmã Mary Angela. Ela assentiu educadamente para Thanatos. – Shalom, Grande Sacerdotisa.

– Eu a saúdo com paz, rabina Margaret – cumprimentou Thanatos. Agora que estavam mais perto da luz, o casal me parecia familiar. – Eu também o saúdo com paz, rabino Steven. É sempre um prazer ver os nossos vizinhos do Templo de Israel.

Percebi por que a mulher e o homem pareciam conhecidos. Eram rabinos casados, Margaret e Steven Bernstein, que recentemente se tornaram os líderes no Templo de Israel, localizado, literalmente, do lado da Morada da Noite, que dava para Utica Square. Eu me lembrava de que eles tinham elogiado muito os cookies de chocolate da Vovó durante o nosso evento antes que a noite tivesse, é claro, terminado em desastre e morte.

– Então, é realmente um santuário que vocês buscam nesta noite? – perguntou Thanatos para o casal, mas a sua voz se ergueu para toda a multidão.

– É – respondeu a rabina Margaret, enquanto ela e o seu marido, assim como todos, assentiam em concordância.

– A irmandade das beneditinas também busca um santuário – declarou irmã Mary Angela.

– Assim como a congregação de Todas as Almas – disse uma mulher mais velha, dando um passo para a frente e saindo das sombras. Ela tinha cabelo louro desbotado e comprido, mas os seus olhos eram de um azul tão vívido que, mesmo sob a luz fraca, brilhavam como pequenas águas-marinhas.

Thanatos hesitou. Lançou um olhar para Lenobia, que sorriu. Olhou para Kalona, que franziu o cenho. E, então, ela me surpreendeu ao olhar para mim por sobre o ombro. Encontrei o seu olhar e fiz o que meus instintos me mandaram fazer – sorri e assenti.

Thanatos voltou-se para Suzanne, segurou o seu antebraço na saudação vampírica tradicional e ergueu a voz, repleta com o poder de Nyx:

– Como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, eu lhes dou as boas-vindas ao grande santuário para todos que o buscam!

Ao meu lado, ouvi Stark suspirar e sussurrar.

– Ai, que merda...

Zoey

– Não, Bobby! Quantas vezes a mamãe vai ter que dizer? Você não pode tocar nas asas do moço alto! – Uma mulher com aparência cansada pegou o seu bebê que estava cambaleando pelo piso arenoso do ginásio com os braços erguidos, tentando pegar a ponta da asa de Kalona.

Mordi a bochecha para não rir enquanto o imortal alado fazia um som de desagrado e dava um passo para evitar os dedinhos grudentos. O bebê tentou sair do alcance dos braços cansados da mãe. Kalona foi para o outro lado. Como sempre, onde quer que aparecesse, todos os humanos concentravam sua atenção nele, e isso parecia afetá-lo. Ele parecia cansado. Curiosamente, os seus ferimentos ainda não tinham se curado por completo, formando linhas e círculos rosados dolorosos. Achei que talvez ele não tivesse passado tempo suficiente no telhado do Oneok quando um “Psiu!” de Aphrodite chamou a minha atenção.

– Z., caipira, venham comigo, agora! – chamou ela.

Stevie Rae e eu largamos um garrafão de água que levávamos para o ginásio e seguimos Aphrodite até o fim do muro mal-iluminado em cuja abertura ficava a estátua de Nyx.

– Cara, eu estou acabada – declarou Stevie Rae.

– Eu também – concordei.

– Já passou da hora do nosso intervalo – disse Aphrodite, jogando latas de refrigerante marrom para nós duas.

Então, ela me pegou totalmente de surpresa ao abrir uma lata para si.

– Refrigerante? Você? Achei que odiasse.

– E odeio mesmo, e isso não é refrigerante. É champanhe de Sophia – informou ela, tomando um gole pelo canudo cor-de-rosa que tirara da lata fina da mesma cor.

– Quem diria, champanhe em uma lata – comentou Stevie Rae.

– Qualquer um que seja civilizado.

– Eu não sabia – disse eu.

– Exatamente o que eu quero dizer – respondeu Aphrodite. Então, ela lançou um olhar para Kalona que estava no meio do ginásio, com certeza procurando alguém e tentando ignorar as pessoas que o olhavam. – Kalona e humanos, principalmente humanos pequenos, equivalem a um acidente de trem apocalíptico – declarou ela.

– Concordo plenamente – disse eu. – Vocês acham que ele está parecendo cansado?

Aphrodite bufou.

– Nós todos parecemos cansados.

– Acho que ele parece como sempre, só que um pouco ferido, o que torna aquele bebê meio malvado por tentar agarrar uma pena de sua asa – opinou Stevie Rae.

– Kalona é imortal. Ele está bem. E um bebê arrancando a pena dele seria mais que demais – declarou Aphrodite. – Acho que eu poderia convencer aquela criancinha a fazer isso. Ou melhor, convencer a mãe a permitir que o filho faça isso. Você acha que ela gostaria de um coquetel mimosa?

– Aquela mãe parece mesmo estar precisando de um coquetel mimosa, mas sem o suco de laranja. Acho que ela gostaria de uma das suas latinhas cor-de-rosa – disse Stevie Rae.

– Eu não costumo dizer isso com frequência, porque geralmente não é verdade, mas acho que você está certa, Stevie Rae – concedeu Aphrodite. – Embora eu venha a precisar de mais de uma dessas latinhas. Parece um trabalho para a viúva Clicquot.

– Viúva Clicquot? Ela é do Templo de Israel?

– Ah, sua pobre ignorante – lamentou Aphrodite, meneando a cabeça tristemente para Stevie Rae.

Kalona conseguiu passar pelo bebê e estava se movendo de novo. Ai, ele parecia estar vindo na nossa direção!

– Diga que ele não está vindo para cá.

– Quem dera eu poder dizer isso – respondeu Aphrodite.

– Ele parece um pombo gigante voltando para o poleiro – disse Stevie Rae.

– Será que devemos ir ao encontro dele? – sugeri, bocejando.

Olhei para o relógio da escola. Já eram 5h30 da manhã. Tínhamos pouco menos de uma hora antes de o sol nascer, e eu entendi o que era exaustão.

– Salvar Kalona dos humanos? Não mesmo – respondeu Aphrodite.

– Concordo – reforçou Stevie Rae.

Dei de ombros e bocejei de novo.

– Por mim, tudo bem. Estou cansada demais para me mexer.

Thanatos decidira que o melhor lugar para colocar todos os humanos – e realmente havia muitos deles – era no maior prédio do campus , o nosso ginásio. Achei uma boa ideia. O lugar era enorme, e com todos reunidos ali seria mais fácil manter o controle. É claro que a maior parte do piso do ginásio era de areia, porque era usado para o treinamento dos guerreiros, e a areia era um saco. Areia, sacos de dormir e humanos cansados, amedrontados e mal-humorados não constituíam uma boa combinação, então nós todos (quero dizer, quase todo mundo no campus , exceto Thanatos, Vovó, detetive Marx e os líderes religiosos) passamos as últimas horas nos esforçando para cobrir a arena dos guerreiros com lona, transformando o lugar no que parecia ser um abrigo temporário contra furacões. Não que aquilo fosse muito melhor, mas estava menos arenoso e mais limpo para as famílias dormirem.

– Olhe isso. – Aphrodite me cutucou com o ombro. – O rabino Steven Bernstein cercou Kalona. Aposto que está fazendo todo tipo de pergunta maluca sobre o Torá.

– É culpa do Kalona – disse eu. – Ele bem que poderia usar uma camisa.

– Pois é! Qual é a necessidade de ficar exibindo o peitoral? – questionou Aphrodite.

– Olha só, gente – interrompeu Stevie Rae, apontando. – Acho que Nicole e Shaylin estão se tornando boas amigas. Fico feliz. Nicole mudou muito e, bem, Shaylin precisa de uma melhor amiga, principalmente depois que você deu uma de louca para cima dela, Z. – disse Stevie Rae antes de acrescentar: – Sinto muito, Z. Eu não queria colocar o dedo na ferida.

Suspirei.

– Não tem problema. Eu realmente dei uma de louca para cima dela. Fico feliz que ela tenha uma boa amiga.

Aphrodite e eu olhamos para as duas meninas de cabelo escuro. Elas estavam arrumando o saco de dormir e pareciam superamigas. Na verdade, enquanto eu as observava, vi os ombros delas se tocarem e as cabeças se aproximarem. Ergui as sobrancelhas. Nicole ergueu a mão e afastou o cabelo de Shaylin do seu rosto, acariciando o rosto dela ao fazer isso, lembrando-me estranhamente de algo que Stark fazia enquanto me paquerava. Limpei a garganta.

– Hum, acho que elas parecem bem próximas .

– Todo mundo devia ter uma melhor amiga! – declarou Stevie Rae olhando para mim.

– Hum, Stevie Rae – comecei, ainda observando os toques e os olhares que Nicole e Shaylin estavam trocando –, acho que elas talvez...

– Ai, que droga, Z.! – exclamou Aphrodite. – Você fez Shaylin virar gay!

Eu franzi as sobrancelhas para ela.

– Seja legal!

– Aiminhadeusa! – Stevie Rae arregalou os olhos enquanto via Nicole dar um beijinho no pescoço de Shaylin. – Eu não sabia que você podia fazer alguém virar gay!

– Sério, caipira! Eu tenho que perguntar de novo: você é retardada?

– Você sabe como eu me sinto com essa palavra – respondeu Stevie Rae.

– E você sabe que eu não estou nem aí.

– E vocês duas sabem que quando começam a implicar uma com a outra me dá dor de cabeça. Aphrodite, não seja cruel com Shaylin e Nicole. Elas podem amar quem desejarem. Stevie Rae, não. Não dá para fazer alguém virar gay. Caramba.

– Ei, eu não estou nem aí para quem ela ama ou com quem ela anda dormindo, mas vou adorar ver a merda que está por vir. – Aphrodite apontou para o pequeno espaço entre a cama que Shaylin e Nicole estavam arrumando. – E aí vem Clark Kent, bem na hora. E eu acho que ele acabou de ver o beijo.

– É – disse Stevie Rae. – Acho que viu. Olhe só para ele.

– Confuso. Acho que seria isso que Vovó diria sobre a expressão dele. Totalmente confuso – concordei. – Eu sei que não deveria, mas acho que vou gostar de ver isto.

– Você está brincando? Eu quero gravar e assistir várias vezes – declarou Aphrodite.

Erik já estava começando a falar com Shaylin. Mesmo de onde estávamos, dava para perceber que ele usava o seu sorriso de astro de cinema com um brilho de cem watts.

– Sei que ele pode ser um saco às vezes, mas vocês têm que admitir que ele é uma gracinha – declarou Stevie Rae. – Não como Rephaim, mas um gatinho mesmo assim.

Aphrodite fez um som como se estivesse se controlando para não falar nada.

Nicole não hesitou e não se afastou. Parou ao lado de Shaylin e envolveu a sua cintura fina com o braço em um gesto íntimo, olhando diretamente para Erik com uma postura possessiva.

– Sabia que Nicole seria o cara – declarou Aphrodite.

– O cérebro do Erik parece prestes a explodir e passar pela covinha do seu queixo – disse eu.

– Zoey, Thanatos convocou você, Stevie Rae e Aphrodite. Ela pede que vocês três se juntem a ela na Câmara do Conselho. Isto é, se vocês tiverem acabado de tomar conta dos humanos – disse Kalona sarcasticamente, olhando para os não humanos que a gente estava espiando.

Nós três demos um pulo de susto ao som de sua voz. Como sempre, Aphrodite se recuperou primeiro.

– Bem, graças à Nyx e ao menino Jesus por nos tirar daqui antes do nascer do sol – declarou Aphrodite. – Vou levar dias para tirar toda essa areia das minhas sapatilhas Jimmy Choo brilhantes. Sou muito melhor em profetizar do que em arrastar coisas.

Ela jogou o cabelo para trás e se dirigiu à porta. Ouvi enquanto ela sugava o que restava do champanhe com o seu canudinho.

– Tudo bem. Hum, obrigada – disse eu de forma inadequada. – A gente deve chamar Stark, Darius e Rephaim também?

– Os homens estão ocupados. – Kalona olhou para o local onde os três homens lutavam com a extremidade de uma lona imensa.

– Tudo bem então. Vamos sair daqui – disse Stevie Rae acenando para Rephaim.

Eu mandei um beijo para Stark e a segui.


12

Zoey

Passamos pela irmã Mary Angela, a rabina Bernstein e a ministra de Todas as Almas enquanto entrávamos no corredor até a Câmara do Conselho.

– Zoey, Aphrodite e Stevie Rae – cumprimentou a freira, fazendo um gesto para as mulheres ao seu lado. – Permitam que eu apresente vocês três para a rabina Margaret Bernstein e Suzane Grimms.

– Merry meet – respondemos as três, quase em uníssono.

As mulheres pareciam cansadas, mas sorriram.

– Prazer em conhecê-las e em estarmos aqui – respondeu a rabina.

– Sim, obrigada a todas vocês pelo trabalho duro que estão fazendo para ajudar a todos se acomodarem.

Nós assentimos como quem diz “não há de quê” , e as mulheres se afastaram; a irmã Mary Angela olhou para mim.

– Boa sorte, Zoey.

– Ela sabe de alguma coisa que não sabemos – sussurrou Aphrodite.

Concordei com a cabeça, e seguimos para a porta da Câmara do Conselho. Então, quase demos de cara com Shaunee, que saiu olhando para todos os lados menos para onde estava indo.

– Caramba, tenha cuidado – disse eu, segurando-a para que nenhuma de nós duas caísse.

– Mas o que é que você está fazendo por aqui? – perguntou Stevie Rae. – A minha mãe diria que você está agindo como se o seu cabelo estivesse pegando fogo.

Shaunee ergueu a sobrancelha.

– Eu preferia que o meu cabelo estivesse pegando fogo a ter perdido o meu gato. Não consigo encontrar Beelzebub em lugar nenhum.

Eu tinha ficado superfeliz de saber que, enquanto eu estava presa, Shaunee e Kramisha tinham ido ao depósito e recuperado os nossos quatro gatos – além de Duquesa, é claro – e os levado de volta para a Morada da Noite. Nala pulou em mim quando fui para o dormitório trocar de roupa, e eu a apertei com tanta força que ela ficou descontente e espirrou no meu rosto.

– Por que você está estressada? Você sabe como os gatos são. Eles vêm quando querem e vão quando querem. Eu não tenho ideia de onde Malévola está agora – informou Aphrodite.

– Eu só espero que ela não esteja por aqui – desejou Stevie Rae baixinho.

Intervim antes que Aphrodite começasse a brigar com ela.

– Tenho que concordar com Aphrodite. Beelzebub deve estar feliz passeando por todos os túneis e esticando as patas.

– Foi o que pensei também, mas Beelzebub nunca falta ao jantar. Nunca . E eu sempre dou comida para ele bem antes do nascer do sol. Sacudi o pacote de Whiskas, e ele não veio correndo como sempre. Então, comecei a procurar. Vocês notaram que os gatos estão sumidos?

Pensei naquilo. Eu vira Nala antes de ir para o Mayo, mas, desde que voltamos, ela não aparecera. Na verdade, agora que estava pensando naquilo, eu não tinha visto nenhum dos gatos recentemente.

– Hmm, agora que você mencionou, não. Eu não vi nenhum dos gatos. Duquesa estava no ginásio com Damien e Stark, mas Cammy não estava com ele, nem Nala.

– Como se isso fosse alguma surpresa? Façam-me o favor. Não sejam idiotas. O ginásio está cheio de humanos. Eu não sou um gato, mas isso me faz querer sumir também. Eu com certeza não os culpo por quererem desaparecer.

– Faz sentido – concordou Stevie Rae. – Gatos são estranhos assim. Sem querer ofender – completou ela, olhando para Aphrodite.

– Concordo com estranho. Como eu já disse antes, normal é supervalorizado.

– Tudo bem, então eu vou tentar não me preocupar com ele. Sinto muito se esbarrei em vocês, gente. Vejo vocês mais tarde.

– Juntem-se a nós na Câmara do Conselho, jovens novatas. – A voz de Kalona nos surpreendeu.

– Ele é sempre tão furtivo – sussurrou Stevie Rae para mim.

– Obrigada por me convidar, Kalona, mas não, obrigada – declarou Shaunee. – Nunca ninguém sai da Câmara do Conselho dizendo “Uau, que legal! Mal posso esperar para fazer isso de novo”.

Eu ia começar a rir e me despedir de Shaunee, mas meus instintos entraram em ação e me fizeram dizer:

– Na verdade, eu gostaria muito que você se juntasse a nós.

Shaunee parou, suspirou e deu de ombros.

– Tudo bem. Acho que isso é melhor do que ficar arrumando as camas no ginásio.

Sorri em agradecimento, e nós cinco entramos na Câmara do Conselho.

Thanatos e Vovó estavam sentadas uma do lado da outra. Lenobia também estava lá. Fiquei surpresa de ver que o detetive Marx estava em pé, com os braços cruzados, atrás de Thanatos. Achei que não houvesse mais ninguém lá, mas um movimento na porta dos fundos chamou a minha atenção e eu vi Aurox ali de novo, como se estivesse de guarda. Ele não olhou para mim.

– Zoey, Aphrodite, Stevie Rae, Kalona, por favor, entrem e se acomodem – disse Thanatos. – Shaunee, não creio que eu a tenha convocado.

– Eu pedi para ela se juntar a nós – falei eu.

– Então, Shaunee também é bem-vinda – concordou Thanatos, fazendo um gesto para nos sentarmos.

Só quando cheguei à mesa vi que a grande tela plana de computador estava ligada. Pisquei, surpresa, e depois sorri e apressei os últimos passos.

– Sgiach! Oi, que legal ver você! – exclamei.

A rainha sorriu e respondeu de maneira mais formal (e adequada):

– Merry meet , Zoey. Também é um prazer revê-la.

– Chamamos a Rainha Sgiach, desejando falar com um dos seus guerreiros, para que lhe desse o recado de que gostaríamos de encontrá-la – explicou Thanatos.

– E ficamos surpresos, e satisfeitos, quando a própria rainha respondeu ao nosso chamado – acrescentou Vovó.

Fiz um cálculo mental rápido: se eram quase seis horas da manhã em Tulsa, devia ser meio-dia na Escócia. O que Sgiach estava fazendo acordada? Olhei a rainha com mais atenção. Ela estava sentada em uma cadeira enorme de madeira na sua biblioteca particular – que parecia normal. Mas Sgiach não estava com aparência normal. O seu cabelo estava desarrumado, o rosto sujo, e eu me inclinei para mais perto da tela para ver melhor...

– Sangue! Por que está suja e tem sangue em você? Está tudo bem?

– Estou viva – respondeu Sgiach, o que não respondia à minha pergunta.

– Onde está Shawnus ? – perguntou Aphrodite, errando a pronúncia do nome do guardião de Sgiach de propósito.

– Seoras – corrigiu a rainha, estreitando o olhar para Aphrodite – está liderando uma guarda diurna e protegendo a ilha.

– Espere aí, protegendo durante o dia ? – Sacudi a cabeça, confusa. – Mas a sua ilha protege a si mesma, principalmente durante o dia.

– Isso é verdade desde que a Luz e as Trevas estejam em equilíbrio – explicou Sgiach.

– Zoey Passarinha – Vovó tocou a minha mão, como se estivesse me dando força –, Neferet acabou com o equilíbrio no mundo. As Trevas Antigas começaram a extinguir a Luz.

Os meus joelhos cederam, e eu me sentei na cadeira. Stevie Rae se sentou pesadamente ao meu lado. Aphrodite ficou andando de um lado para o outro atrás de nós, quase esbarrando no detetive Marx, e Shaunee escolheu uma cadeira próxima a Lenobia.

– Mas Neferet já estava louca havia um tempão. Eu não entendo por que ela de repente bagunçou as coisas – raciocinei.

– Ah, menina – lamentou Thanatos em tom triste. – Não é uma coisa repentina. É a culminação de uma onda terrível que vem subindo desde que Neferet libertou Kalona de sua prisão.

Eu franzi o cenho para o imortal alado que estava do outro lado da sala, próximo à porta principal, com o peito nu, expressão pétrea e em silêncio.

– Ele está do nosso lado agora. Isso deveria ajudar, e não atrapalhar o equilíbrio – argumentei.

– Isso não é um jogo. Essas forças não podem ser controladas – explicou Sgiach. – Foi o ato de libertá-lo que fez a inundação começar. Kalona foi apenas a primeira pedra a cair em uma represa começando a ruir.

– Então, vamos colocar a pedra de volta! – exclamou Aphrodite.

– Realmente – concordou Thanatos. – Foi por isso que chamamos Sgiach.

– Então, o que vamos fazer? – perguntei.

– Você junta a sabedoria de épocas distintas, de um mundo diferente. Forças antigas estão trabalhando agora. E é com sabedoria antiga que temos que remar contra a maré e restaurar o equilíbrio.

– Será que você pode ser menos enigmática do que uma das minhas malditas visões? – pediu Aphrodite.

– É claro, minha jovem e arrogante profetisa. – Achei que Sgiach fosse dar um belo chute na bunda de Aphrodite via Skype, mas, em vez disso, o seu olhar pousou em mim e, apesar dos milhares de quilômetros que nos separavam, o que ela disse fez os pelos dos meus braços se eriçarem. – O detetive Marx me explicou o que aconteceu entre você e os humanos no parque. Thanatos e a sua avó me contaram que a sua violência contra eles não foi um incidente isolado e que envolveu a pedra da vidência.

– Isso, mas eu não tenho mais a pedra – assegurei para ela rapidamente. – Eu não a uso mais.

– Menina, você nunca a usou. Ela usou você – explicou ela.

Engoli a terrível secura que tomou conta da minha boca.

– Eu sei. Foi por isso que a deixei aos cuidados de Aphrodite quando me entreguei para o detetive Marx.

– Conte-me como estava se sentindo nos dias que culminaram no incidente no parque – pediu Sgiach.

Hesitei e tentei ordenar os pensamentos. Por fim, comecei:

– Eu estava nervosa. Frustrada. Irritada. Parecia que eu estava zangada o tempo todo.

– As coisas pioraram depois que você usou a pedra da vidência para revelar o espelho que refletia o passado quebrado de Neferet para ela?

Arregalei os olhos.

– Eu não tinha pensado nisso, mas sim, ficou pior depois. – Instintivamente, passei a mão pela cicatriz na palma da minha mão. – Ela esquentava com mais frequência. E eu perdia a noção do tempo. – Contei essa última parte rapidamente, sem olhar para os meus amigos, para quem eu não tinha contado aquilo.

– Você via coisas durante o seu tempo perdido? – ela perguntou.

– Via – admiti lentamente, não gostando nada da expressão em seu rosto.

– Coisas como Fey, os espíritos elementares que viu em Skye quando esteve lá comigo?

– Não. – Estremeci. – Até poderiam ser Fey, mas não era como os elementares em Skye. Eram horríveis.

– Alguns Fey são terríveis. Assim como nós, nem todos eles escolhem a Luz. O que você via quando perdia a noção do tempo aconteceu antes ou depois de usar a pedra para salvar a sua avó?

– Antes – respondi.

– Zoey, aqui está a verdade que você precisa ouvir: magia antiga pode restaurar o equilíbrio da Luz e das Trevas novamente, o que significa que a sua pedra da vidência é a chave para se vencer esta batalha.

– Então, eu preciso dá-la a outra pessoa, porque o que eu estava fazendo com ela não funcionou. Tudo piorou em vez de melhorar – disse eu.

– Eu gostaria que as coisas fossem tão simples assim – declarou Thanatos.

Ela, Vovó e Sgiach trocaram um olhar, e eu soube que elas tinham conversado sobre a pedra antes de eu chegar.

Vovó deu uns tapinhas na minha mão e disse:

– Ninguém mais pode ostentar a pedra da vidência, u-we-tsi-a-ge-ya . A pedra só esquenta para você. Isso significa que ela a escolheu, e apenas você poderá ostentar a magia antiga através dela.

– Tudo bem, então. Mas como é que eu faço isso? – perguntei, odiando o aperto que senti no estômago só de pensar em tocar na pedra da vidência de novo.

– Estou com a Zoey – apoiou-me Aphrodite. – Simples ou não, diga a ela o que ela precisa fazer.

– É mesmo. A Z. já derrotou as Trevas e Neferet uma vez. Nós todos derrotamos – concordou Stevie Rae.

– Por causa da natureza volátil da magia antiga, só posso lhe dizer o que sei que não deve ser feito – explicou Sgiach. – Para que o seu poder trabalhe pelo equilíbrio e não se corrompa, ela deve ser comandada por uma Sacerdotisa que não seja nem agressora nem vítima. Sua intenção deve ser pura. Ela não pode ser vingativa nem defensiva.

– Mas Zoey tem de usá-la de forma defensiva! – exclamou Marx. – Neferet é uma assassina sociopata com o objetivo de escravizar Tulsa e talvez até o mundo inteiro.

– Isso não é um talvez, detetive – interrompeu Kalona. – Neferet deseja fazer mais do que forçar alguns poucos humanos azarados a adorá-la. Ela deseja reinar como a única Deusa deste mundo e tornar todos nós os seus escravos.

– Então, como é que a porra dessa pedra pode ser a chave para derrotá-la se Zoey não pode usá-la de forma defensiva? – perguntou Marx.

– Detetive, a magia antiga é neutra. É o poder na sua mais pura essência. E ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a carrega. Se seus motivos não forem completamente altruístas, o caos será o resultado. – O seu olhar pousou em mim. – Você tem evidências disso diante de si. Pelo que sabemos de Neferet no passado, à luz do que ela fez no presente, acredito que haja indicações claras de que ela usou magia antiga por muito tempo, talvez até mesmo antes de ter sido Marcada.

– Mas eu nunca a vi usando uma pedra da vidência – disse eu.

– Uma pedra da vidência é apenas um condutor para a magia antiga. Considere as gavinhas das Trevas que a acompanham sempre. Elas são básicas demais, cruas demais para serem qualquer coisa a não ser que sejam ligadas aos poderes antigos da Luz e das Trevas. Eu sei. No Mundo do Além, lutei contra as Trevas em diferentes formas por várias eras. Elas podem ser sedutoras e astutas. As Trevas usam muitas faces, e algumas delas podem ser vistas, a princípio, como aliadas.

– Eu não consigo entender como aquelas coisas rastejantes nojentas podem ser vistas como algo bom – comentou Stevie Rae.

– Neferet raramente fala disso, mas ela foi estuprada pelo próprio pai na noite em que foi Marcada – contou Lenobia. – Algo a ajudou a passar por aquela provação terrível, e não foi outro novato nem a sua mentora. Os registros da Morada da Noite de Chicago dizem claramente que ela voltou para a casa da sua família e estrangulou o pai antes mesmo de ter completado a Transformação. O investigador registrou que o ataque foi tão forte que a cabeça do pai quase foi separada do corpo.

– E ela se safou disso? – perguntou Marx.

– O crime aconteceu no fim do século XIX em um mundo muito maior, detetive. O Conselho da Morada da Noite de Chicago e o Conselho Supremo dos Vampiros decidiram juntos que seria melhor tirá-la do estado e permitir que ela recomeçasse um novo caminho onde teria a oportunidade de se curar da sua tragédia – contou Thanatos.

Lenobia acrescentou:

– E lembre-se, detetive, de que aquele homem agredira e estuprara a filha de dezesseis anos de idade.

– Os registros do Conselho Supremo relatam que havia diversas marcas de mordidas, mordidas humanas no corpo de Neferet, e que ela estava horrivelmente ferida e violada na noite em que o Rastreador a encontrou – informou Thanatos concordando com Lenobia.

Senti um choque com a lembrança.

– Logo depois que fui Marcada, Neferet mencionou algo comigo sobre ter sido machucada pelos pais.

– Sua mãe morreu ao lhe dar à luz. O seu pai era um monstro – contou Lenobia. – Todos que conheceram Neferet na sua juventude sabiam dos rumores sobre o que acontecera na noite em que fora Marcada.

– Sinto muito pelo seu passado, mas isso não muda o fato de que Neferet é uma imortal instável que precisa ser detida – declarou Marx.

– Não estamos mencionando o passado de Neferet como uma desculpa para os seus atos presentes – respondeu Sgiach. – Nós o mencionamos como uma lição para Zoey. – Os olhos de Sgiach queimaram os meus. – A magia antiga foi levada até Neferet, e ela descobriu que podia ostentá-la. Assim como ela foi levada a você e ostentada por você.

– Tudo bem, mas eu não gosto de ser comparada com a Neferet – declarei.

– Ainda assim, o que tem acontecido com você desde que começou a usar a pedra da vidência é bem parecido com o que aconteceu com Neferet. Ela usa você, e enquanto o faz, a corrompe.

Senti como se eu tivesse levado um soco no estômago.

– Eu jamais serei como a Neferet!

– Você já pensou que se pudesse simplesmente controlar todo mundo à sua volta, então poderia tornar tudo melhor para os seus amigos e para si mesma? – perguntou-me Sgiach de forma direta.

– Já, mas eu não queria que nada de ruim acontecesse! Eu só queria poder fazer com que todos agissem de forma correta para acabar com toda a loucura.

– Agir de forma correta de acordo com quem? – quis saber Thanatos.

– De acordo comigo, eu acho, já que era eu que estava desejando – protestei, sentindo-me encurralada.

– Intenção! – exclamou Sgiach para mim. – A magia antiga é neutra. Ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a detém! E a intenção da Sacerdotisa não pode ser vingança, nem frustração, nem qualquer outro sentimento egoísta. A sua intenção deve ser pura e voltada completamente para o bem maior. Mesmo que isso signifique que você possa sobreviver ou não ao ser o instrumento que a magia usa.

– Estou com medo – admiti, e a Vovó apertou a minha mão, dando-me força. – E eu não sei como fazer o que vocês estão me pedindo para fazer. Eu preciso que vocês me ajudem!

– Apenas você pode se ajudar. Cresça, jovem Sacerdotisa. Mostre para nós por que Nyx escolheu lhe dar tantos dons – desafiou Sgiach. – Mas seja rápida. Você precisa comandar a pedra da vidência para termos uma chance de deter Neferet e restaurar o equilíbrio entre a Luz e as Trevas.

O olhar cortante da rainha recaiu em Thanatos.

– Grande Sacerdotisa, compreenda que Neferet precisa ser contida para que esse contágio de maldade diminua.

– Qual é o seu conselho para contê-la sem usar magia antiga? – perguntou Thanatos, fazendo com que o meu rosto ficasse quente.

Eu sabia que ela não devia ter que fazer aquela pergunta a Sgiach – eu deveria amadurecer o bastante para usar a pedra da vidência e ajudá-la.

– Procure pelos rituais e feitiços mais antigos – orientou Sgiach. – Não pense em derrotar Neferet. Isso é impossível sem a magia antiga. Pense em isolá-la, distraí-la, irritá-la. Qualquer coisa que a faça repensar suas tramoias e seus planos, qualquer coisa que a faça tropeçar e a torne mais lenta poderá ajudar vocês.

– E dar a Zoey mais tempo para descobrir o caminho para comandar a magia antiga – concluiu Vovó.

Sorri nervosamente para ela, desejando sentir tanta confiança em mim mesma quanto ela tinha.

– Tentarei o máximo que eu puder. Prometo.

– Você não pode tentar , Zoey. Tentar é perigoso demais. Você não pode fazer nada até que saiba que se livrou de tudo que há de negativo em você: medo, raiva, egoísmo, desejo de vingança, ódio, até mesmo irritação e frustração. Só então poderá comandar e controlar a magia antiga. Até lá, Aphrodite deve manter a pedra da vidência longe de você. Não precisamos ter de lutar contra duas imortais que já foram Sacerdotisas talentosas da nossa Deusa.

Eu não conseguia acreditar no que ela tinha acabado de dizer! Sgiach realmente acreditava que eu poderia virar alguma coisa como Neferet.

– Eu não sou imortal! Eu só sou uma garota que não quer ter nada a ver com magia antiga ou com aquela maldita pedra da vidência.

– Imagino que uma jovem Neferet teria dito exatamente a mesma coisa e ela também estava longe de ser “apenas uma garota” – retrucou Sgiach.

Antes que eu conseguisse me recuperar da afirmação horrível, Thanatos acrescentou:

– Eu só conheci uma outra novata que recebeu tantos dons da Deusa quanto você, Zoey Redbird, e o nome dela era Neferet.

Apertei a mão de Vovó, sentindo como se o meu mundo estivesse se ruindo sob os meus pés.

– Agora, eu tenho que cuidar da minha própria enchente – declarou Sgiach. – Confio em você, Zoey. Acredito que encontrará uma maneira de trazer as forças da magia antiga com você na sua batalha pela Luz. Até que eu a veja novamente, abençoada seja.

Então a conexão via Skype foi desligada, deixando a câmara no mais absoluto silêncio.

– É claro que tudo isso é culpa sua – disse Aphrodite para Kalona, antes de se dirigir a mim, acrescentando: – Se você começar a me chamar de Frodo, eu vou ficar puta da vida.

– Sem querer ser cruel nem nada, Aphrodite, mas você está sendo um Frodo para Z. – declarou Stevie Rae.

– Se isso fosse verdade, então você seria um Sam [*] gordo e baixo – retorquiu Aphrodite.

– Uma adolescente? – soou a voz de Marx atrás de nós. – Por que o equilíbrio de poder entre o bem e o mal tinha que estar nas mãos de uma adolescente?

Franzi o cenho para ele.

– Há meses eu me pergunto a mesma coisa – comentou Kalona.

– Devo insistir que nos atenhamos a questões produtivas apenas! – cortou a voz de Thanatos, fazendo com que Marx e Kalona baixassem a cabeça.

– Na verdade – comecei eu, hesitante –, a pergunta do detetive Marx me fez parar para pensar.

– Eu não quis ser tão grosseiro – insistiu Marx.

– Ah, eu sei – respondi. – O que você disse não foi grosseiro, apenas verdadeiro. Por que o equilíbrio entre o bem e o mal deveria depender de mim? – Eu me apressei para continuar, não querendo que os meus pensamentos fossem interrompidos. – Talvez não seja eu, nem mesmo nós, o que é tão importante. Sgiach disse que a magia antiga é o que importa. Basicamente, eu sou apenas o canal para ela; por algum motivo, que nenhum de nós conseguiu entender, ela funciona através de mim. Então, como disse, não sou eu que sou importante. É a magia.

– Aonde você quer chegar, Zoey Passarinha? – perguntou Vovó.

– Bem, a magia antiga também responde a Sgiach. Thanatos, Lenobia, por favor, corrijam-me se eu estiver errada, mas Sgiach não é a personificação da sua ilha?

– Ela é sim – respondeu Thanatos, e Lenobia assentiu, concordando.

– A magia antiga está na terra – disse Vovó, empertigando-se na cadeira. – Assim como os nossos ancestrais Cherokees acreditavam.

– Oklahoma tem poder antigo em sua terra vermelha – declarou Kalona. – Eu sei disso. Esse poder me atraiu para cá não muito tempo depois que fui criado e, novamente, depois da minha Queda.

– E ele o conteve por séculos – completou Thanatos.

Kalona contraiu o maxilar, mas assentiu.

– Sim.

– No dia em que fui Marcada, fugi para a sua fazenda, lembra, Vovó? – A minha voz estava ficando menos hesitante à medida que os meus pensamentos encontravam um caminho para seguir. – Eu desmaiei tentando encontrá-la.

– Eu me lembro – disse Vovó. – Foi a primeira vez que Nyx apareceu para você.

– Isso! Ela me disse que eu deveria ser os seus olhos e ouvidos no mundo em que eu estava lutando para encontrar o equilíbrio entre o bem e o mal.

– Mesmo naquela época a Deusa estava nos alertando através de você – declarou Thanatos.

– Parece que demoramos muito para compreender – disse Stevie Rae.

– Não só vocês, gente – respondi. – Eu também. Acho que não entendi realmente o que Nyx estava querendo me dizer até este momento. Prestei atenção principalmente à parte em que ela dizia que a Luz nem sempre era boa e que as Trevas nem sempre eram o mesmo que o mal. Acreditei que Nyx estava me avisando para ficar atenta a Neferet, porque ela era tão linda por fora, mas completamente podre por dentro.

– Faz sentido – concordou Aphrodite.

– Totalmente – reforçou Stevie Rae.

– É, mas veja o que mais Nyx disse. Lembro-me de que ela disse que eu era especial, a sua primeira U-we-tsi-a-ge-ya V-hna-I Sv-no-yi

– Filha da noite – traduziu Vovó por mim.

– Mas isso não foi tudo o que ela disse. Nyx afirmou que eu era especial por causa do meu sangue antigo combinado com a minha compreensão do mundo moderno.

– E o seu sangue carrega consigo o poder das Sábias Cherokees – disse Vovó. – As mulheres que tiravam a sua força da terra.

– Desta terra – completou Thanatos.

– Oklahoma é o lugar onde a Trilha de Lágrimas terminou – declarou Vovó.

– E para onde fui atraído, assim como Neferet – disse Kalona. – Não podemos esquecer que Zoey carrega dentro de si um pedaço da alma de A-ya, a virgem formada nesta terra.

Eu não queria pensar muito, mas rapidamente acrescentei:

– Também foi onde Aurox foi criado pelo sacrifício de sangue da minha mãe com o poder tirado da terra pela minha avó.

Marx franziu as sobrancelhas.

– Aurox?

– Eu sou Aurox – disse ele, saindo das sombras.

– Espere um pouco – pediu Marx. – Você nem tem uma lua crescente na testa. Achei que você fosse apenas um cara que era o consorte da Grande Sacerdotisa.

O pensamento de Aurox sendo o consorte de Thanatos fez o meu rosto queimar de vergonha.

Aurox me ignorou e lançou um olhar questionador para Thanatos. Ela fez um breve aceno com a cabeça e ele se virou para encontrar o olhar de Marx. Soando forte e seguro, disse:

– Eu não sou humano nem vampiro. Sou um receptáculo criado pela magia antiga cujo propósito eram a vingança e a destruição.

– Mas que foi criado com uma alma. E, tendo recebido a capacidade de escolher, você optou por se desviar da vingança e destruição – completou Vovó.

– Caramba, isso quase parece bom! – disse Marx, analisando Aurox com cuidado. – Se ele tem esses poderes da magia antiga, será que não pode nos ajudar a lutar contra Neferet?

– A parte da luta não é importante – disse eu, sem olhar para Aurox. – É a parte da criação; ele, assim como eu, veio para cá com o sangue que data de gerações nesta terra.

– Precisamos usar o poder da terra para lutar contra Neferet, pelo menos até Zoey conseguir lidar com a pedra da vidência – disse Aphrodite.

– Aiminhadeusa! Eu tenho a resposta. – Shaunee ergueu a mão. – Desculpem-me, não queria interromper, mas acho que sei o que vocês devem fazer!

– E o que é, Shaunee? – perguntou Thanatos.

Ela baixou a mão, falando rapidamente:

– Sgiach nos disse para procurar os feitiços e rituais mais antigos a fim de confundir Neferet. Você disse que precisamos impedi-la de se espalhar. Está bem na nossa cara! Thanatos, você até nos deu uma aula sobre isso no outro dia.

– Shaunee, será que você poderia ser mais clara? – pediu Thanatos.

– Nós podemos usar o Ritual de Proteção de Cleópatra! Podemos fazer com Tulsa o que foi feito em Alexandria! – exclamou Shaunee, animada.

– Eu não faço a menor ideia do que ela está falando – disse Marx.

– Eu faço – declarou Lenobia.

– Assim como todos nós deveríamos saber – disse Thanatos. – Mas nós também deveríamos saber que o feitiço de Cleópatra exige que a Grande Sacerdotisa que o invoca fique isolada, jejuando e orando por três dias.

– No ritmo que Neferet está matando, não temos três dias – declarou Marx, sombrio.

– Mas nós temos o poder da terra – disse eu. – Será que não podemos usá-lo para acelerar o feitiço e fazê-lo funcionar?

– Ideia interessante – elogiou Thanatos. – O feitiço teria de ser invocado de um lugar de poder extraordinário o mais próximo possível do Mayo. E a sacerdotisa que invocar o feitiço e fizer o ritual teria de se manter isolada e no local em meditação e oração, mantendo a sua intenção determinada e verdadeira.

– Não vou ser eu – disse eu. – E não estou dizendo isso porque estou reclamando de não ser madura o suficiente ou Grande Sacerdotisa o suficiente. O que quero dizer é que tenho que resolver esse lance da pedra da vidência e estar livre para usá-la contra Neferet assim que eu descobrir como.

– Concordo, Zoey. Eu sou a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. É o meu dever invocar o feitiço e mantê-lo enquanto o meu desejo durar – declarou Thanatos.

– O fogo é a base do feitiço de Cleópatra. Eu ficarei com você – disse Shaunee. – Pelo tempo que for necessário.

Thanatos assentiu respeitosamente para Shaunee.

– Vou gostar da sua companhia e o poder que você puder emprestar ao feitiço, filha.

– Oh, agradeça à Grande Mãe Terra! Eu sei o lugar de poder que vocês devem usar! – exclamou Vovó, batendo com a palma da mão na mesa para pontuar as suas palavras. – O Council Oak Tree. Seu poder ancestral reinou nas Terras Isoladas por séculos, e fica a uma curta distância do Mayo Hotel.

– Lenobia, Aphrodite, Zoey, Stevie Rae, Shaunee, o que vocês acham? Vocês concordam com Sylvia Redbird? – perguntou Thanatos.

– Eu concordo – respondeu Lenobia.

– Eu também – disse Shaunee.

– Idem – concordou Stevie Rae.

– Parece um bom plano – assentiu Aphrodite.

Encontrei o olhar da Vovó e vi a sabedoria, o amor e a verdade.

– Com certeza – afirmei.

– Então vamos descansar. No crepúsculo, o círculo de Zoey vai até o lugar de poder, e, enquanto o sol se põe, eu vou preparar o ritual de proteção e invocar o feitiço, e que Nyx nos dê força. Pois assim nós escolhemos; que assim seja.

[*] Sam é o apelido do personagem “Samwise Gamgee” da obra O Senhor dos Anéis , escrita por J. R. R. Tolkien. (N.E.)


13

Zoey

– Stark, você viu a Nala?

– Não. Venha para cama. Ela deve estar ocupada com os outros gatos avisando para os ratos locais que os gatos estão de volta – respondeu ele, sonolento, e batendo com a mão no lugar ao seu lado na cama.

O sol tinha nascido havia pouco mais de uma hora, e Stark estava se enfraquecendo rápido.

– Mas a Nala sempre dorme comigo.

– Não dorme não. Às vezes, ela dorme com Stevie Rae. – Ele deu um bocejo enorme. – Pare de se preocupar e venha aqui. Você está nervosa desde a reunião do Conselho. Você vai descobrir como usar a pedra da vidência. Sei que vai. Ficar preocupada o tempo todo não vai ajudar em nada. Deite-se que eu vou fazer uma massagem.

Olhei para ele e sorri. Além de amar muito quando ele massageava os meus ombros, ele estava totalmente fofo e sexy com o cabelo despenteado e o olhar sonolento. Além disso, ele estava certo. Preocupar-me não me ajudaria a descobrir como usar aquela estúpida pedra da vidência. Cedendo, eu me deitei na cama de costas para ele e depois gemi de puro prazer quando seus dedos fortes começaram a massagear os nós de estresse que tinham se formado nos meus ombros.

– Acho que você deve ser perfeito – declarei.

– Viu só? Quanto menos se preocupa, mais esperta você fica – respondeu ele, bocejando de novo.

– Ei, eu estou bem. Pode dormir agora.

– Eu sei que você está bem, mas vai ficar melhor se ficar quietinha e me deixar cuidar dos seus ombros.

Ele beijou a minha nuca.

– Tudo bem, mas você pode desistir na hora que quiser – disse eu, relaxando sob o seu toque.

– Z., eu nunca vou desistir de você. Você sabe disso.

Ele deu mais um beijo na minha nuca, e eu suspirei feliz.

– Eu amo você.

– Também amo você – respondeu ele.

Quando suas mãos pararam, eu estava relaxada, aquecida e cansada. Fechei os olhos, sorrindo, e adormeci.

Por cerca de dois minutos. Então, os meus olhos se abriram e eu me sentei, aguçando os ouvidos.

– Você ouviu alguma coisa? – perguntei para Stark.

Ele murmurou algo que pareceu ser:

– Gato... Tudo bem... pare de se preo...

Então, ele se virou, puxou as cobertas até o ouvido e começou a roncar baixo.

– Nossa, isso que é um Guerreiro – resmunguei.

Então, bocejei e me espreguicei. Eu realmente precisava voltar a dormir. O meu alarme já estava programado. Nós tínhamos que nos levantar e nos apertar na van da escola sem janelas e seguir o caminho até o Council Oak Tree antes do crepúsculo. Quem poderia saber que tipo de loucura Neferet cometeria diante de um feitiço de proteção. Inferno, ela já estava...

Então, ouvi novamente e soube exatamente o que havia me acordado. Era um som baixo, definitivamente era o ronronar de um gato.

E não havia nenhuma bolinha de pelo laranja encolhida aos pés da minha cama!

Vesti minha calça jeans e peguei meus sapatos da forma mais silenciosa que pude, andando de meia, na ponta dos pés, até a porta. Sem fazer nenhum barulho, me concentrei em pensamentos felizes, abri a porta e fui para o corredor. Desci rapidamente para o andar de baixo e passei pela sala comunal deserta do dormitório e saí, piscando quando os raios de sol atingiram os meus olhos, causando uma ardência. Eu não ia voltar mesmo para pegar os óculos de sol, então protegi os olhos com a mão e chamei:

– Nala! Gatinha! Nala-Nala, venha aqui!

Então, prendi a respiração e agucei os ouvidos.

Ouvi o som de novo! Era definitivamente um ronronar. E, definitivamente, parecia que o gato estava com algum tipo de problema. Não dava para saber se era a Nala ou não, mas eu sabia que o som vinha de algum lugar perto do muro da escola que dava para a direção leste.

Coisas ruins sempre acontecem lá! Corri apressada, contornando os dormitórios e me dirigindo para o muro, chamando.

– Psiu-psiu! Gatinha! Aqui! Nala!

O gato continuou ronronando. Eu me dei conta de que aquilo era bom e ruim. Bom, porque eu poderia seguir o som do seu miado. Ruim, porque quanto mais perto eu chegava, mais sofrido o gato parecia.

O ronronado seguinte fez o meu estômago se contrair. Eu estava perto o bastante do carvalho partido para saber que o gato estava definitivamente em algum lugar no alto daquela árvore. Ah, que droga! Por que é que tinha de ser aquela árvore? A árvore que Kalona partira em duas quando escapara da sua prisão na Terra, a árvore onde Jack morrera, a árvore em que eu vira as criaturas nojentas da magia antiga.

Diminuí o ritmo quando me aproximei da árvore de aparência assustadora. Tudo bem, eu gosto de árvores. Eu realmente gosto. Tipo assim, eu amo a Bosque da Deusa no Mundo do Além. Eu amo a minha afinidade com a Terra, mesmo que não esteja tão em sintonia com ela quanto estou com o espírito, mas ainda assim... Normalmente, eu não tenho problemas com árvores.

Esta árvore é diferente.

A caverna de Kalona ficava ali embaixo, e o jeito como ela se abria em duas fazia com que se parecesse com os ossos de um monstro, congelado na morte, agachado na sua abertura. Todas as outras árvores do campus se erguiam verdejantes. Não esta. Ela era negra e sem folhas, malévola e partida. Seus galhos formavam mais garras do que eu poderia contar.

– Miau-miau!

– Nala!

Eu a peguei nos meus braços e beijei o seu nariz úmido. Ela, é claro, espirrou em mim.

Eu ainda estava abraçando Nala quando ouvi um segundo gato e olhei para baixo.

– Cammy? – Ele se enroscou em mim e se esfregou nas minhas pernas, deixando pelos louros espalhados na minha calça. – Aposto que Damien não sabe que você está aqui fora. Você deveria estar encolhido junto com a Duquesa e ele em um sono profundo.

– Miaaaaaaau!

Aquele miado eu conhecia sem nem ver o animal branco que o emitira. Olhei por cima da base despedaçada da árvore e, com certeza, lá estava uma gata gigantesca com cara achatada e pelos brancos, cheia de atitude.

– Malévola, Aphrodite não ficaria nem um pouco satisfeita de você estar aqui aterrorizando os outros gatos. – Fiz uma pausa. – Bem, isso provavelmente é mentira. Mas ainda assim... Você deveria tentar não ser tão parecida com ela. Nossa, o que é que você acha...

Então, as sombras ao redor da árvore se moveram e eu percebi que o carvalho antigo e assustador estava completamente cercado pelos gatos da Morada da Noite.

Abracei Nala, enquanto sentia um frio gelado descer pela minha espinha.

– Mas o que é que está acontecendo aqui?

– Isso é o que eu gostaria de saber.

A voz de Aurox me assustou fazendo com que eu apertasse Nala forte demais e, com um grunhido zangado, ela pulou dos meus braços e se juntou aos outros gatos em volta da árvore.

– Você fez esses gatos virem até aqui?

– Eu? – Meneei a cabeça. – É claro que não. E se você soubesse qualquer coisa sobre gatos, entenderia que não se pode obrig á-los a fazer nada.

– Eu não sei muita coisa sobre gatos – declarou ele.

– Bem, tudo o que eu fiz foi seguir um grunhido horrível que, na verdade, me acordou. Achei que fosse Nala, mas ela parece estar bem.

– Grunhido? Mas que grunhido? Tudo que ouvi foi você conversando com os gatos.

Eu franzi as sobrancelhas para ele e abri a minha boca para explicar o óbvio – que alguma coisa tinha me atraído até ali e que havia alguma coisa de errado com os gatos e com ele também. Tipo assim, ele não precisava ser tão frio e rude sempre que se importava em falar comigo, mas o gato me interrompeu.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – O miado patético pareceu se estender por muito tempo.

– Está vindo lá de cima, da árvore.

Protegi os olhos com a mão e espiei por entre os galhos quebrados.

– Lá! – Aurox apontou. – Estou vendo!

Segui o dedo dele e vi também. Lá, bem no alto, nos galhos do topo da árvore, estava um gato realmente grande. Era um gato malhado de laranja e branco com pelos longos. Não era do mesmo tom de laranja forte de Nala. A cor daquele gato era mais suave, como se o laranja tivesse sido diluído com creme. Ele parecia familiar, e eu apertei os olhos, tentando me lembrar quem era seu dono, quando vislumbrei os seus olhos. Eram de um verde amarelado surpreendente, com um brilho inteligente.

– Que merda! Aquele é Skylar! O gato de Neferet! – disse eu.

– O gato de Neferet? Mas o que ele está fazendo aqui? Ele não deveria estar com ela?

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – berrou Skylar enquanto o vento fazia os galhos estremecerem sob ele, que tentava se manter firme.

– Ele vai cair – disse Aurox, movendo-se tão rápido que os gatos se espalharam.

– Ei, tome cuidado. Skylar é conhecido por morder. Sério, Aurox. Os gatos costumam refletir a personalidade do novato ou do vampiro que escolhem, e nós todos sabemos que Neferet é...

– Zo, eu não posso simplesmente deixá-lo cair.

E isso me fez calar a boca. Ele não apenas soou como Heath, mas estava fazendo uma coisa muito burra e doce e muito parecida com que Heath faria. É claro que ele provavelmente ia causar uma confusão tão grande quanto Heath teria feito, mas não havia muito mais o que eu pudesse fazer, a não ser esperar e tentar resolver a confusão. E pensar. Hmmm .

– Ei! – chamei, enquanto ele escalava a árvore feito um macaco. – Bem, nunca ouvi falar disso, mas talvez se o vampiro de um gato fica mau, talvez ele cometa suicídio ou algo assim. Skylar deve estar aí em cima porque a Neferet ficou desvairada e ele não consegue lidar com isso.

– Eu não vou deixar ninguém cometer suicídio no meu turno, seja um novato, um vampiro, um humano irritante... Nem mesmo um gato com fama de mordedor.

– Tudo bem. Espero que Nyx esteja com você.

– Eu também.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – gritou Skylar enquanto Aurox se agarrava em alguns galhos que o mantinham, acrescentando um som horrível e baixo enquanto ele tentava se afastar.

– Tente falar com ele. De forma suave, como os gatos gostam, tipo gatinho.

– Tipo gatinho? O que é isso?

– Caraca, ele está acabado – disse eu para Nala. Ela espirrou e pareceu concordar comigo. Os outros gatos estavam todos olhando para Skylar, como se estivessem ali para testemunharem algo. Eu não fazia a menor ideia do que dizer para Aurox.

– Hum, tente conversar com ele. Eu me lembro de que ele é muito inteligente.

– Tudo bem. Vou tentar.

Aurox subiu mais um pouco de forma a se sentar praticamente na mesma altura em que Skylar se encontrava. Eu ouvi quando ele limpou a garganta e, então, com uma voz completamente normal, que ele usa em uma conversa do dia a dia, começou a falar com o gato:

– Merry meet , Skylar. Pelo que soube, você tinha uma ligação com Neferet. Eu também já tive, então posso imaginar como você deve estar se sentindo. Ela também me magoou. Ela continua machucando os outros. Não posso permitir que você se machuque. Eu escolhi proteger esta escola e você faz parte desta escola.

O que aconteceu em seguida foi uma das coisas mais loucas que eu já vi – e olha que eu definitivamente já vi coisas muito loucas. Skylar inclinou a cabeça para o lado como se estivesse ouvindo Aurox.

– Skylar – continuou Aurox com voz solene –, eu vou protegê-lo, mesmo que seja de você mesmo.

Então, Aurox estendeu a mão.

Lentamente, Skylar se alongou em direção a ele até que pudesse ser tocado por Aurox. Prendi a respiração, esperando que o grande gato começasse a berrar novamente e batesse com a pata na sua mão. Mas não foi isso que ele fez. Na verdade, Skylar farejou a mão de Aurox, parou e, então, começou a esfregar o seu queixo contra a mão dele. Mesmo de onde eu estava lá embaixo, dava para ver o sorriso iluminar o rosto de Aurox quando começou, hesitante, a fazer carinho no gato. Skylar parou por um instante e virou a cabeça, analisando Aurox novamente.

– Você pode escolher não permitir que as Trevas de Neferet destruam a sua vida – insistiu Aurox em tom sincero enquanto acariciava o queixo de Skylar.

Sem mais hesitação, Skylar foi na direção dos braços de Aurox.

E todos os gatos em volta da árvore partida começaram a ronronar.

Quando Aurox chegou ao chão, ele estava segurando Skylar bem junto de si. O gato parecia estar abraçado a ele, e sua cabeça fofinha estava aninhada sob o queixo de Aurox. Quando ele se aproximou de mim, ouvi Skylar ronronando.

– Aconteceu algo lá em cima – contou Aurox, com os olhos brilhando.

– É. – Eu funguei e enxuguei o rosto com a manga da camisa. – Skylar escolheu você. Vocês agora pertencem um ao outro.

Aurox olhou para Skylar, acariciando o gato com movimentos longos a amorosos. Skylar não abriu os olhos. A não ser pelo fato de que estava ronronando loucamente, parecia ter adormecido.

– Zo, ele é demais!

Sorri entre as lágrimas.

– Com certeza é.

Aurox olhou para mim. Então, automaticamente enfiou a mão no bolso da calça jeans e me deu um Kleenex.

– Você está com nariz escorrendo de novo.

– Com certeza – respondi.

Seus olhos encontraram os meus. Ele os afastou depressa, mas não antes de eu ver o sofrimento da sua expressão.

– Sinto muito. Eu não deveria tê-la chamado de Zo.

– Você pode me chamar do jeito que quiser.

Seus olhos encontraram os meus de novo e eu vi um brilho de raiva cruzar o seu rosto.

– Não seja legal comigo porque acha que eu sou Heath.

– Que merda, Aurox, eu estou sendo legal com você porque gosto de você! Você salvou a minha avó. Você está segurando um gato supercruel que acabou de salvar. VOCÊ É UM CARA LEGAL! – Parei de falar para controlar o meu tom de voz antes de terminar. – É por isso que estou sendo legal com você.

– Eu gostaria que isso fosse verdade – disse ele.

– Aurox, eu juro que só vou dizer a verdade para você. Tenho muita merda pessoal para lidar agora para acrescentar mentiras à minha lista.

– Você está sendo sincera, não está?

– Estou. – Enxuguei o rosto e funguei. – Valeu pelo lencinho.

– Não há de quê.

– Você tem coisas de gato no seu quarto?

Ele hesitou, e então disse em tom suave:

– Eu não tenho um quarto.

– Onde você dorme?

– Eu não durmo.

Aiminhadeusa! Ele nem é humano! Senti o choque daquilo, e a lembrança de como ele ficava quando se transformava em touro passou pela minha mente. De forma resoluta, afastei o pensamento.

– Bem, você vai precisar de um quarto agora. Esse gato precisa de um lugar para dormir, comer e... hmm, você sabe alguma coisa sobre caixas de areia?

– Hã?

Sorri para ele.

– Venha comigo. Kalona também não dorme. Vamos encontrá-lo. Ele pode arrumar um quarto para você, comida de gato e uma caixa de areia.

– Chamei Nala e ela, na verdade, veio para mim, pulando nos meus braços. Notei, então, que os outros gatos tinham desaparecido.

– Você acha que Kalona sabe lidar com gatos? – perguntou Aurox enquanto caminhávamos juntos.

– Aposto que sim. Ele costumava ser um guerreiro de Nyx, e gatos constituem uma grande parte do Mundo do Além. A Deusa ama gatos.

O rosto de Aurox ficou sem expressão e ele perguntou:

– Zo, você acha que o fato de Skylar me escolher pode significar que Nyx se importa comigo? Mesmo que só um pouco?

– Pode apostar.

Isso foi tudo que consegui dizer antes de a minha garganta se fechar com as lágrimas, e Aurox me dar outro Kleenex.


14

Kalona

– Tudo bem, eu tenho que dizer para você que aquilo tudo foi muito estranho? Você também achou? – perguntou detetive Marx para Kalona.

Ele estava caminhando ao lado do imortal alado quando ambos deixaram o dormitório dos garotos e saíram para o sol forte e bonito do meio-dia.

Kalona ergueu as sobrancelhas e lançou um olhar de esguelha para o detetive. Não estava acostumado a conversar de forma leve com ninguém – principalmente com humanos. Nem com alguém que não o julgava como monstro por causa do seu passado. Ele me trata como se fôssemos companheiros de batalha , percebeu Kalona com um sobressalto incomum de surpresa.

E foi com outro sobressalto de surpresa que o imortal alado se deu conta de que realmente gostava da companhia do detetive.

– Estranho? Ver um gato de uma vampira imortal e louca escolher uma criatura criada a partir de magia antiga para ser uma arma das Trevas, e, então, ter que explicar para a referida criatura, que parece exatamente como um garoto confuso, como alimentar e limpar uma caixa de areia? – debochou Kalona. – Detetive, acho que “estranho” não é uma palavra forte o suficiente para descrever o que acabou de acontecer.

– Que bom ouvir isso!

O detetive deu um tapa no ombro de Kalona em um gesto amigável. Kalona teve de apertar os dentes por causa da dor que atravessou o seu corpo quando o gesto inocente de Marx abriu um ferimento ainda não curado. Kalona emitiu um grunhido que refletia concordância, e não desconforto.

Ignorando qualquer outra coisa a não ser a conversa que estavam tendo, Marx riu e continuou:

– É, teve uma hora lá, quando o garoto estava acariciando o queixo do gato gigante, que eu tenho quase certeza de que os seus olhos começaram a brilhar.

– Os do gato ou os do garoto? – brincou Kalona, ignorando a dor prolongada.

– Os do garoto. Os olhos dos gatos também podem brilhar? – Marx meneou a cabeça. – Não, não me diga. Agora eu compreendo por que a minha irmã diz que algumas coisas vampíricas são zona proibida para humanos. Não faz bem para a nossa cabeça. Pode nos enlouquecer.

Kalona riu.

– Acho que isso tem mais a ver com a estranheza dos nossos tempos do que com a habilidade dos humanos em compreender o anormal.

– Talvez você esteja certo. Estamos vivendo uma época muito estranha.

Eles caminharam juntos sem falar, embora Kalona não sentisse que o silêncio era pesado. Eram apenas dois homens responsáveis por proteger aqueles que lhe eram caros.

É assim que se deve fazer parte de uma família. Eu gosto desse sentimento! O pensamento chegou à sua mente de forma espontânea, e ele não sabia o que fazer com ele. Como é que a Morada da Noite se tornara a sua família? Kalona não fazia ideia, mas até mesmo Zoey Redbird, a novata que ele tentara seduzir primeiro para depois destruí-la, começou a confiar nele o suficiente para procurá-lo em busca de conselhos e ajuda para Aurox quando o felino de Neferet escolheu o receptáculo como seu familiar.

Assim, Kalona teve o seu terceiro sobressalto de surpresa.

– Pode deixar pra lá. Eu não queria perguntar. A minha irmã vive me dizendo que é um péssimo hábito que adquiri desde que me tornei detetive.

Kalona tentou se recompor mentalmente.

– Desculpe, eu estava pensando em outra coisa. Você me perguntou algo?

– Perguntei, mas era pessoal demais, principalmente considerando quem você é. Esqueça... Preciso dormir um pouco antes da loucura começar de novo – disse Marx depressa.

– Você pode me perguntar o que quiser. Nós lutamos contra as Trevas juntos. Deve haver confiança entre nós.

Chegaram ao dormitório das garotas, e Marx parou apoiando-se no corrimão da escada que dava para a varanda de entrada.

– Tudo bem, então. Eu só estava me perguntando por que Nyx não desce dos céus e detém, ela mesma, Neferet. Ela é a ex-Grande Sacerdotisa da Deusa. Acho que Nyx deve estar puta da vida pelo modo como está usando o seu poder de forma errada.

– Em primeiro lugar, Nyx não mora nos céus, ou, pelo menos, não nos céus da civilização ocidental moderna.

– Certo, desculpe. Eu esqueci. Minha irmã me explicou essa parte há alguns anos. Nyx mora no Mundo do Além, certo?

– O Mundo do Além é o reino de Nyx. Está correto.

– E você já esteve lá?

– Durante éons, aquele foi o meu reino também – contou Kalona devagar, desacostumado a falar sobre a Deusa ou o Mundo do Além.

– Desculpe-me se estou sendo intrometido. Eu vou parar por aqui e...

– Eu não me importo de falar sobre isso – respondeu Kalona, dando-se conta de que estava dizendo a verdade.

– Então, você conhece Nyx muito bem.

Kalona inspirou e expirou longamente várias vezes. A resposta para a pergunta do detetive era tão simples quanto desoladora.

– Eu conhecia a Deusa bem. Muito bem.

– Ah, entendi. No passado. – Marx parecia estar pensando em voz alta. – Isso pode explicar o que está acontecendo. Nyx mudou desde a época em que se conheceram. Talvez ela tenha perdido o interesse no mundo moderno. E quem poderia culpá-la? É por isso que ela está deixando que Neferet escape, mesmo tendo corrompido o poder concedido pela Deusa e ferindo não apenas humanos, mas novatos e vampiros também.

– Isso não é verdade. A nossa Deusa não perdeu o interesse em nós.

Kalona desviou o olhar de Marx e viu Shaunee caminhando pela calçada em direção a eles, carregando um gato cinza nos seus braços. Ela usava óculos escuros e um gorro que escondia o seu rosto; estava claro que a luz do sol a incomodava. Ela deve estar perto de completar a Transformação , pensou Kalona e, então, percebeu que a ideia de Shaunee passar pela Transformação e se tornar uma Sacerdotisa vampira lhe provocava um sentimento muito próximo de orgulho.

Esse pensamento fez com que sua voz ficasse brusca:

– Shaunee, você deveria estar no seu quarto, dormindo. A luz do sol não lhe faz bem.

– Eu estou indo para a cama. Só tinha que encontrar Beelzebub. Mas antes de eu ir, quero deixar algo muito claro para o detetive Marx. – Ela pousou seus olhos castanhos no detetive. – Nyx não perdeu o interesse em nós – repetiu ela.

O olhar de Marx passou para Kalona e, depois, voltou para Shaunee. Antes que pudesse responder, a novata recomeçou a falar:

– Não procure Kalona para obter respostas sobre Nyx. – Ela lançou um olhar de desculpas para o imortal. – Isso vai soar cruel, mas não estou fazendo isso de propósito. – Ela voltou a atenção para Marx antes de continuar. – Kalona caiu . Isso não faz dele uma testemunha perita em Nyx, detetive. Se você tem perguntas sobre a nossa Deusa, faça-as a mim. Eu converso com ela todos os dias, e, às vezes, ela até me responde.

– Tudo bem, então. Você pode explicar por que Nyx permitiria que Neferet causasse tanta dor e tanto sofrimento, assistindo a tudo sem fazer nada a respeito? Ela concedeu a Neferet os dons que permitiram que ela acumulasse tanto poder. Por que Nyx pelo menos não revoga os seus dons? Isso faria sentido. Não fazer nada não faz sentido para mim. Digo isso com todo o respeito pela sua Deusa, mas as ações dela não parecem a de uma divindade amorosa.

– Nyx não tirará os dons de Neferet, nem os dons de qualquer um de nós porque ela ama de forma incondicional e sempre mantém a sua palavra, mesmo quando não cumprimos a nossa e a traímos – explicou Shaunee.

Kalona cruzou os braços e fingiu desinteresse, embora não se mexesse – nem respirasse, apenas ouvisse.

– E ela não desce e salva o dia porque ela nos ama tanto que sempre nos dará o livre-arbítrio. – Ela fez uma pausa e, depois, perguntou: – Você tem filhos, detetive Marx?

– Tenho. Duas filhas. Uma de nove e outra de onze.

– E se você nunca permitisse que elas cometessem erros? Ou, melhor ainda, e se você permitisse que cometessem erros, mas, então, interviesse e resolvesse todas as consequências por elas?

– Acho que eu estaria criando uma dupla de meninas mimadas – respondeu ele.

– Que tipo de mulher você acha que elas se tornariam? – perguntou Shaunee.

– Egoístas e irresponsáveis. Se elas crescessem.

– Exatamente! – Shaunee sorriu. – Como nós poderíamos aprender, crescer e evoluir se Nyx nos resgatasse das nossas decisões erradas? Ou se parasse de permitir que tomássemos as nossas próprias decisões, boas ou ruins?

Kalona não conseguiu ficar em silêncio por mais tempo.

– Seria mais fácil se Nyx resolvesse tudo! Eu ainda a conheço bem o suficiente para assegurar a você que a nossa Deusa seria benevolente e bondosa. E isso é mais do que qualquer um de nós pode garantir em relação ao público em geral, sejam vampiros ou humanos.

– Se Nyx resolvesse tudo, os poderes da Luz e das Trevas ficariam desequilibrados para sempre – disse Shaunee.

– A Luz venceria! Não é esse o objetivo? – perguntou Kalona.

– Aiminhadeusa! Será que não percebe o que está pedindo?

– Sim! Estou pedindo paz! O fim do desejo por carnificina e do derramamento de sangue, da traição e da destruição.

– Não! – argumentou Shaunee. – Você está pedindo o fim do livre-arbítrio. Nós nos transformaríamos naquelas pessoas gordas e flutuantes do filme Wall-E , ou pior.

– Que língua você está falando?

– Eu sei do que ela está falando. É um filme da Pixar. Ela quer dizer que nós nos tornaríamos idiotas preguiçosos e sem motivação. – Marx coçou o queixo. – Na verdade, acho que ela talvez esteja certa. Você tem ido a alguma feira estadual?

Então, o detetive riu da própria piada, que não fez o menor sentido para Kalona.

Shaunee não piscou. Ela nem sorriu para Marx. Seu olhar sombrio pousou em Kalona.

– Você não vai conseguir se aproximar de Nyx dessa forma. Você tem que abandonar esse problema de controle e escolher realmente acreditar, de forma sincera, e amar de verdade. – Então, ela deu um beijo na cabeça do gato cinza adormecido em seus braços. – Então, isso responde às suas perguntas, detetive Marx?

– Não a todas, mas o suficiente por ora – respondeu ele.

– Ótimo! Vou pra cama. Vejo vocês no crepúsculo.

Ela subiu a escada e desapareceu no dormitório das garotas.

– Também vou dormir. Thanatos disse que eu poderia usar um beliche na casa dos professores. Você parece cansado. Você vem também?

– Não. Vou assumir o turno de Aurox e vigiar o perímetro – disse ele.

– Turno dobrado. Esses são difíceis. Você quer companhia?

Kalona olhou para o detetive. A pele sob os seus olhos estava ferida e seus passos, arrastados.

– Talvez numa próxima. Mas obrigado por se oferecer.

– Sem problemas. Tenha cuidado lá fora. Como a garota disse, vejo você no crepúsculo.

Kalona assentiu e começou a caminhar para o muro mais distante da escola, tentando, sem sucesso, não ouvir novamente as palavras de Shaunee ecoando em sua mente.

Lynette

– As fantasias estão péssimas! – disse Neferet enquanto meneava a cabeça e lançava um olhar de raiva para o grupo de pessoas trêmulas que Lynette escolhera para usar o que deveriam ser roupas dos anos vinte.

Se tudo, ou mesmo qualquer coisa , estivesse normal, Lynette teria dito que o seu último evento tinha passado por alguns problemas. Na insanidade em que o seu mundo se transformara, Lynette decidiu que o seu último evento era um colete cheio de explosivos de um homem-bomba prestes a explodir – e era ela quem estava usando o maldito colete.

– Deusa, você se lembra das duas coisas de que eu preciso? Tempo e recursos?

– Eu me lembro de tudo .

Lynette bateu palmas diante de si para que Neferet não percebesse o quanto estava trêmula. Limpou a mente e se concentrou no que fazia melhor – lidar com o cliente para que o evento fosse um sucesso.

– E é exatamente por isso que é tão bom planejar eventos para uma Deusa, e não para um humano ou um vampiro – disse Lynette.

O olhar raivoso de Neferet se suavizou com a bajulação.

– Do que você precisa que eu não lhe ofereci? Nós decidimos o tema da minha próxima adoração ontem à noite. Já está quase no crepúsculo, e tudo que eu pedi foi para dar uma olhada nas fantasias dos meus súditos enquanto eles ensaiam o Charleston. Estou certa de que Tulsa tem lojas de fantasia o suficiente e você tem acesso ilimitado aos meus recursos . Então, explique-me por que nenhuma dessas fantasias se parece remotamente com o estilo dos anos vinte?

– Tulsa tem apenas duas lojas decentes de fantasias: a Ehrle’s e a Top Hat – começou Lynette.

– Apenas duas? – Neferet suspirou. – Eu deveria ter começado o meu Templo em Chicago. Chicago está cheia de excelentes lojas. Kylee! Minha taça está vazia!

A Kybô, que era o modo como Lynette silenciosamente se referia à recepcionista robótica, apressou-se pelas escadas subindo até o local onde Neferet colocara o seu trono, enchendo novamente o líquido escarlate que nunca parecia ser o suficiente para a Deusa.

– Mas eu a interrompi, querida Lynette. Por favor, continue a explicação sobre as roupas. – Ela apontou os dedos com as unhas vermelhas para o grupo de pessoas desarrumadas esperando lá embaixo.

– Entrei em contato com os donos das duas lojas. Eles se recusaram a fazer qualquer entrega para nós.

Lynette deu a notícia rapidamente e então se preparou para a loucura.

Em vez de explodir, Neferet ficou totalmente imóvel. Em uma voz suave e pensativa, perguntou:

– E por que eles se recusaram a me atender?

– Eles explicaram que a polícia cercou todo o Mayo e que não permitem que ninguém se aproxime daqui.

Neferet bateu com uma das unhas afiadas na taça. Ela virou a cabeça em uma postura pensativa. Então, a sua expressão se suavizou e ela sorriu.

– A solução é simples. A polícia está evitando que os humanos entrem. Sua atenção está voltada para fora. Eles não vão esperar que alguém saia.

– Sair?

– Sim, bem, não vai ser qualquer um que vai sair. Será você.

Lynette se apoiou na grade de ferro.

– Eu?

– Minha querida, você está com algum problema de audição?

– N-não – apressou-se Lynette a assegurá-la.

– Kylee, sirva uma taça de vinho para Lynette. Ela está pálida. – Agradecida, Lynette tomou o vinho enquanto Neferet começava a sua explicação insana. – Será bem fácil para você. Você sairá pelos fundos, onde eles empilham aquele lixo horrendo. Pular a cerca não deve ser um problema. Você parece ter se mantido em forma. E, é claro, Judson vai acompanhá-la para ajudar com qualquer problema que possa ter. Judson, certifique-se de que a querida Lynette volte em segurança. E você carregará as sacolas de compras para ela, não é mesmo?

Judson assentiu de forma automática e respondeu:

– Sim, Deusa.

– Excelente! Vou pedir para Kylee chamar um táxi para encontrar vocês... Hum... em frente à Biblioteca Central na Fourth Street com a Dever. É longe o suficiente e não estará dentro do cerco policial, e perto o bastante para que não seja tão cansativo para você na volta. Judson vai carregar todo o peso para você.

A mente de Lynette estava a mil. Ela está mandando Judson comigo para me forçar a voltar. Mas ele não passa de um robô quando Neferet não está por perto. Talvez eu consiga escapar, principalmente quando chegarmos à biblioteca. Alguém lá poderá...

– Permita que eu esclareça uma coisa, Lynette. Judson e você não estarão sozinhos. Eu jamais pensaria em deixá-los tão vulneráveis. Vários dos meus filhos irão acompanhá-los. – A Deusa acariciou uma das coisas rastejantes que estava enrolada na sua perna. – Eles também ficarão ansiosos para se aproximarem de você, se hesitar. Então, você e Judson terão mais em comum do que imagina... Tão mais.

Lynette ordenou os pensamentos. Trabalho! Eu tenho que me concentrar no trabalho!

– Algum problema, querida? Com certeza você não discorda da minha solução.

– Honestamente, eu concordo com a parte de sair. – Lynette se concentrou na única coisa normal que sobrara do seu mundo, concentrar-se em concluir um trabalho. – A polícia não está esperando que ninguém faça isso. Mas eu me preocupo com a volta. Você mesma disse que eles estão concentrados em manter as pessoas do lado de fora.

– Você está certíssima em se preocupar. Eu me esqueço de que você não consegue ler a minha mente, porque posso ler a sua tão facilmente. A resposta para o seu problema é bem simples. Devemos esperar até o sol se pôr para você começar a sua jornada. Na volta, os meus filhos vão fazer uma cortina de neblina e magia, sombras e fumaça, para que as Trevas a ocultem.

Lynette ficou boquiaberta e manteve os pensamentos cuidadosamente em branco, sem saber o que dizer.

– Você não precisa ficar preocupada. Ficar oculta pelas trevas não machuca nem dói. Bem, eu deveria dizer que não vai machucar nem doer para você. Os meus filhos precisam ser alimentados. Nesta noite, um motorista de táxi vai ganhar mais do que uma boa gorjeta! – A risada de Neferet foi cruel e ensandecida.

Lynette ergueu a taça e tomou um grande gole.

– Agora, mande esses súditos desarrumados para os seus quartos. Da próxima vez que os vir, quero ficar encantada. – Neferet bateu as mãos depois de suas ordens, como se fosse um faraó dispensando os seus escravos. – Lynette, talvez seja melhor você trocar o seu vestido por uma calça e uma blusa escura. Eu odiaria se você ficasse acidentalmente exposta demais. Você está liberada até o crepúsculo.

– Sim, Deusa.

Lynette fez uma reverência e se afastou, trêmula, seguindo para o elevador que a levaria até o loft no quarto andar que Neferet lhe dera. Quando entrou no elevador, cobriu a boca com as duas mãos, abafando um grito que não conseguia controlar. Pela primeira vez, Lynette compreendeu que não havia como sobreviver à loucura de Neferet, que a questão não era se ela ia morrer, mas como e quando.


C O N T I N U A

Nunca me senti tão sombria assim.
Nem mesmo quando fui estilhaçada e presa no Mundo do Além e minha alma começou a se fragmentar. Naquela época, eu estava quebrada, destruída e prestes a me perder para sempre. Eu me sentia sombria por dentro, mas as pessoas que mais me amavam foram faróis lindos e brilhantes de esperança, e eu fui capaz de encontrar força em sua luz. Consegui sair da escuridão.
Desta vez, eu não tinha nenhuma esperança. Não conseguia encontrar uma luz. Eu merecia continuar perdida, despedaçada. Desta vez, eu não merecia ser salva.
O Detetive Marx me levou para a delegacia do condado de Tulsa em vez de me jogar numa cela com o resto dos criminosos presos há pouco tempo. Na viagem aparentemente interminável da Morada da Noite até o grande prédio de pedra marrom do Departamento de Polícia da First Street ele conversou comigo, explicando que tinha feito uma ligação e mexido uns pauzinhos para que eu ficasse em uma cela especial até que o meu advogado tomasse as devidas providências sobre minha acusação, e então eu poderia ser solta sob fiança. Ele alternava o olhar entre a estrada e o meu reflexo no espelho retrovisor. Meu olhar encontrou o dele. Não precisei de mais do que um olhar de relance para ler a expressão em seu rosto.
Ele sabia que eu não tinha a menor chance de conseguir sair sob fiança.
– Eu não preciso de um advogado – disse eu. – E não quero fiança.
– Zoey, você não está pensando direito. Espere um pouco. Acredite em mim, você vai precisar de um advogado. E, se puder sair sob fiança, será o melhor para você.
– Mas não seria o melhor para Tulsa. Ninguém vai deixar um monstro à solta. – Minha voz soou estável e indiferente, mas por dentro eu estava gritando.
– Você não é um monstro – assegurou-me Marx.
– Você viu aqueles dois homens que eu matei?

 


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Ele me lançou um olhar pelo retrovisor de novo e assentiu. Eu podia ver que seus lábios estavam pressionados, formando uma linha, como se estivesse se segurando para não dizer algo. Por algum motivo, seu olhar ainda era bondoso. Eu não conseguia retribuir aquele olhar.

Olhando pela janela, eu disse:

– Então, você sabe o que eu sou. Você pode me chamar de monstro, de assassina, de vampira novata e perigosa... É tudo a mesma coisa. Eu mereço ser presa. Eu mereço o que vai acontecer comigo.

Então, ele desistiu de conversar, e eu fiquei satisfeita.

Uma cerca de ferro preta cercava o estacionamento da delegacia de polícia, e Marx seguiu até um portão nos fundos onde precisava esperar para ser identificado antes de um enorme portão se abrir. Então, ele estacionou e me conduziu, algemada, por uma porta nos fundos e por uma grande e agitada sala toda dividida em cubículos. Quando entramos, policiais conversavam e telefones tocavam. Assim que perceberam que Marx estava comigo, foi como se tudo tivesse sido desligado. As conversas cessaram e todos nos fitaram como idiotas.

Fixei o olhar em um ponto na parede bem na minha frente e me concentrei para não permitir que os gritos dentro de mim ecoassem.

Tivemos de atravessar toda a sala. Então passamos por uma porta que levava a uma daquelas salas como as do seriado Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais , em que a incrível Mariska Hargitay interroga os bandidos.

Fiquei sobressaltada ao perceber que o que eu fizera me transformara em um dos bandidos.

Havia uma porta no canto da sala que levava a um pequeno corredor. Marx virou à esquerda e parou para passar seu crachá de identificação, e uma porta de aço muito grossa se abriu. Do outro lado, o corredor logo acabava. Havia outra porta de metal à nossa direita, que estava aberta. A parte de baixo era sólida, mas, na altura dos ombros, as grades começavam. Grades pretas e grossas. Foi onde o Detetive Marx parou. Olhei para dentro. O lugar era uma tumba. De repente, senti dificuldade para respirar, e meus olhos desviaram do lugar horrível para encontrar o rosto familiar de Marx.

– Com o poder que você tem, imagino que consiga fugir daqui – ele falou baixinho, como se alguém pudesse estar nos escutando.

– Eu deixei a pedra da vidência na Morada da Noite. Foi isso que me deu o poder para matar aqueles dois homens.

– Então, você não os matou sozinha?

– Eu fiquei furiosa e despejei toda a minha fúria neles. A pedra da vidência só me deu o estímulo. Detetive Marx, a culpa foi minha. Ponto final.

Tentei soar durona e certa do que estava falando, mas a minha voz saiu suave e trêmula.

– Você consegue fugir daqui, Zoey?

– Para ser honesta, eu não sei, mas prometo que não vou tentar. – Respirei fundo e soltei todo o ar de uma vez, dizendo a ele a mais absoluta verdade. – Por causa do que eu fiz, meu lugar é aqui, e independentemente do que aconteça comigo, eu mereço.

– Bem, eu prometo que ninguém vai conseguir incomodá-la aqui. Você estará segura – garantiu ele, gentil. – Eu mesmo me certifiquei disso. Então, o que vier a acontecer, não será porque levou uma surra de linchadores.

– Obrigada.

Minha voz estava fraca, mas consegui pronunciar as palavras.

Ele tirou de mim as algemas.

Eu não tinha conseguido me mexer ainda.

– Você precisa entrar na cela agora.

Consegui fazer com que meus pés se mexessem. Quando eu estava dentro da cela, virei-me e, pouco antes de ele fechar a porta, eu disse:

– Não quero ver ninguém. Especialmente se for da Morada da Noite.

– Tem certeza?

– Tenho.

– Você entende o que está dizendo, não entende? – perguntou ele.

Eu assenti.

– Eu sei o que acontece com uma novata que não fica perto de vampiros.

– Então, basicamente, você está dando a sua própria sentença.

Ele não formulou como uma pergunta, mas eu respondi mesmo assim.

– O que eu estou fazendo é me responsabilizar pelos meus atos.

Ele hesitou, e pareceu que havia mais alguma coisa que desejava dizer, mas Marx apenas deu de ombros, suspirou e concordou:

– Certo, então. Boa sorte, Zoey. Sinto muito que as coisas tenham chegado a esse ponto.

A porta se fechou como que selando um caixão.

Não havia janela, nenhuma luz exterior exceto a do corredor que espreitava por entre as barras da porta. No fundo da cela havia uma cama: um colchão fino em cima de placa de alguma coisa dura grudada na parede. Havia um vaso sanitário de alumínio saindo do meio de uma parede paralela, não muito longe da cama. Não tinha tampa. O chão era de concreto preto. As paredes eram cinza. Sentindo-me como se estivesse em um pesadelo, andei até a cama.

Seis passos. Esse era o comprimento da cela. Seis passos.

Fui até a parede lateral e caminhei pela cela. Cinco passos. Tinha cinco passos de largura.

Eu estava certa. Se não contasse a distância para o teto, eu estava trancada em uma tumba do tamanho de um caixão.

Sentei-me na cama, puxei os joelhos até embaixo do queixo e abracei-os. Meu corpo tremia, tremia e tremia.

Eu ia morrer.

Eu não consegui me lembrar se Oklahoma tinha pena de morte. Como se eu tivesse realmente prestado atenção às aulas de História enquanto o Treinador Fitz passava um filme atrás do outro. Mas, de qualquer forma, isso não importava. Eu deixara a Morada da Noite. Sozinha. Sem nenhum vampiro. Nem mesmo o Detetive Marx sabia o que isso significava. Era só uma questão de tempo até meu corpo começar a rejeitar a Transformação.

Como se eu tivesse rebobinado um filme em minha mente, imagens de novatas morrendo apareceram na tela dos meus olhos fechados: Elliot, Stevie, Rae, Stark, Erin...

Apertei meus olhos ainda mais.

Acontece rápido. Rápido mesmo , prometi para mim mesma.

Então, outra cena de morte surgiu nas minhas lembranças. Dois homens – mendigos, insolentes, mas vivos, até que não consegui controlar o meu temperamento. Eu me lembrava de como atirara a minha raiva contra eles... de como eles bateram contra o paredão de pedra ao lado da pequena gruta de Woodward Park... de como ficaram deitados lá, dobrados, quebrados...

Mas eles estavam se mexendo! Eu não achei que os tivesse matado! Não tinha a intenção de matá-los! Fora realmente um terrível acidente! Minha mente gritava.

– Não! – falei com firmeza para a parte egoísta de mim que queria inventar desculpas e fugir das consequências. – As pessoas têm convulsões quando estão morrendo. Eles estão mortos porque eu os matei. Não vai compensar o que fiz, mas mereço morrer.

Eu me encolhi embaixo do áspero cobertor cinza e fitei a parede. Ignorei a bandeja com o jantar que enfiaram por uma abertura na porta. Eu não estava com fome, mas independentemente do que houvesse na bandeja, definitivamente não me apeteceria.

E, por alguma razão, a refeição ruim fez com que eu me lembrasse da última vez em que senti um cheiro maravilhoso de comida: o psaguetti [*] da Morada da Noite, cercada de amigos.

Mas eu estava estressada demais com o problema Aurox/Heath/Stark e nem apreciei o psaguetti de verdade. Assim como não apreciei os meus amigos. Nem Stark. Não mesmo.

Eu não tinha parado para pensar como era sortuda por dois caras tão incríveis me amarem. Em vez disso, eu ficara irada e frustrada.

Pensei em Aphrodite. Lembrei-me de como ela falou com Shaylin sobre me vigiar. Lembrei-me de como entrei furiosa e despejei o poder da minha fúria acumulada através da pedra da vidência.

A lembrança fez com que eu me encolhesse de vergonha.

Aphrodite estava absolutamente certa. Eu precisava ser vigiada. Ela sequer teve a chance de conversar comigo. E, quando tentou, droga, eu não fui nem um pouco razoável.

Eu me encolhi de novo quando me lembrei de como cheguei perto de despejar a minha raiva contra Aphrodite.

– Aiminhadeusa ! Se eu tivesse feito isso, teria matado a minha amiga – disse para as palmas das minhas mãos enquanto cobria o rosto de vergonha.

Não importava que a pedra da vidência, de alguma forma, mesmo sem eu pedir, tivesse aumentado meus poderes. Tive muitos avisos. Todas aquelas vezes em que me irritava e a pedra ficava cada vez mais quente. Por que não parei e refleti sobre o que estava acontecendo? Por que não pedi a ajuda de alguém? Cheguei a pedir conselhos a Lenobia sobre namorados. Conselho sobre namorados! Devia ter perguntado sobre como controlar raiva!

Mas eu não pedia ajuda para nada, exceto para a única coisa em que a minha visão afunilada estava focada: em mim mesma.

Eu era uma vadia egocêntrica.

Eu merecia estar onde estava. Eu merecia as consequências.

As luzes do corredor se apagaram. Não fazia ideia de que horas eram. Parecia ter se passado anos, e não apenas meses, desde que eu fora humana – uma adolescente normal que tinha que ir para a cama muito cedo nos dias de aula.

Eu desejava, com todas as minhas forças, poder chamar o Super­-Homem e pedir que ele voasse na direção contrária em volta da Terra para fazer o tempo voltar para ontem. Então, eu estaria em casa, na Morada da Noite, com meus amigos. Eu me jogaria nos braços de Stark e diria a ele o quanto o amo e sou grata por tê-lo. Diria que sinto muito pela confusão com Aurox/Heath, e que sairíamos dessa – nós, as duas pessoas e meia envolvidas –, mas que eu desfrutaria de todo o amor que me cercava, independentemente de qualquer coisa. Depois, me livraria da maldita pedra da vidência, procuraria Aphrodite e entregaria a ela para que fosse mantida em segurança, como se ela fosse o meu Frodo.

Mas era tarde demais para desejos. Voltar no tempo era só uma fantasia. O Super-Homem não era real.

Não dormi. Era noite, e a noite se tornara o meu dia. Neste momento, eu deveria estar na escola com meus amigos, vivendo a minha vida, tendo um “dia” normal (para mim), em vez de estar aqui, encolhida. Eu deveria ter sido mais esperta. Mais forte. Deveria ter sido qualquer coisa, menos uma pirralha egoísta.

Horas depois, ouvi a portinhola se abrir de novo, e quando me virei, vi que alguém levara a minha bandeja intocada. Bom. Talvez o cheiro também fosse embora.

Eu precisava fazer xixi, mas não queria. Não queria usar o vaso sem tampa que saía da parede no meio da cela. Olhei para os cantos das paredes, no ponto de encontro com o teto. Câmeras.

Era legal guardas verem prisioneiros fazerem xixi?

As regras regulares se aplicavam a mim? Quero dizer, eu nunca ouvira falar de um novato ou vampiro ser julgado por um tribunal humano nem ir para uma prisão humana.

Não preciso me preocupar com isso. Vou me afogar no meu próprio sangue antes de ir a julgamento.

Por mais estranho que possa parecer, esse pensamento era um conforto, e quando a luz do corredor se acendeu, caí num sono agitado e sem sonho.

Para mim, pareceu que dez segundos depois, a portinhola se abriu de novo e outra bandeja de alumínio foi empurrada para dentro da minha cela. O barulho me fez acordar assustada, mas ainda estava grogue, ainda tentando voltar a dormir – até que o cheiro de ovos e bacon me deixou com água na boca. Há quanto tempo eu não comia? Nossa, me sentia péssima. Ainda sem enxergar direito, andei os seis passos até a porta, pegando a bandeja e levando com cuidado para a minha cama desarrumada.

Os ovos estavam mexidos e supermolhados. O bacon, duro como um pedaço de pau. Havia café, uma caixa de leite e uma torrada pura.

Eu daria praticamente qualquer coisa por uma tigela de cereal Count Chocula e uma lata de refrigerante.

Dei uma garfada nos ovos, mas estavam tão salgados que quase engasguei.

Mas, em vez engasgar, comecei a tossir. Naquela tosse terrível, senti alguma coisa metálica, pegajosa, quente e estranhamente maravilhosa.

Era o meu próprio sangue.

O medo tomou conta de mim, deixando-me fraca, tonta e nauseada. Está acontecendo tão rápido? Eu não estou pronta! Não estou pronta!

Tentando limpar a minha garganta, tentando respirar, cuspi os ovos, ignorei o tingimento rosado no amarelo gorduroso, coloquei a bandeja no chão e me encolhi na cama, passando os braços em volta de mim mesma e esperando por mais tosse e sangue – muito mais sangue. Minhas mãos estavam tremendo quando enxuguei meus lábios.

Eu estava com tanto medo!

Não fique , disse para mim mesma enquanto tentava prender uma tosse terrível. Logo você verá Nyx. E Jack. E talvez até Dragon e Anastasia.

E mamãe!

Mãe... de repente, desejei a presença de minha mãe com todas as forças do meu ser.

– Eu gostaria de não estar sozinha – sussurrei com uma voz grave, a boca grudada no colchão fino e duro.

Escutei a porta se abrindo, mas não me virei. Não queria ver a expressão horrorizada de um estranho. Fechei os olhos bem apertados e tentei fingir que estava na fazenda de lavanda da Vovó, dormindo no meu quarto lá. Tentei fingir que o cheiro dos ovos com bacon era da comida dela, e que a minha tosse era apenas uma gripe que me impedia de ir à escola.

E eu estava fazendo isso! Ah, obrigada, Nyx! De repente, juro que consegui sentir os aromas que sempre se espalhavam na casa da Vovó, lavanda e capim. Isso me deu a coragem para falar logo, antes que a minha voz ficasse sufocada pelo sangue, para quem quer que estivesse ali:

– Tudo bem. Isso é o que acontece com alguns novatos. Por favor, vá embora e me deixe em paz.

– Ah, Zoey Passarinha, minha preciosa u-we-tsi-a-ge-ya , a esta altura você já deveria saber que eu nunca vou deixá-la sozinha.

[*] Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)


2

Zoey

Achei que ela fosse parte da minha alucinação agonizante, parada ali na porta da cela, usando uma camisa de linho roxa e jeans gastos, com uma cesta de piquenique pendurada no braço. Mas assim que me virei para encará-la, ela correu até mim, sentando-se na beirada da cama e me envolvendo em seus braços e nos cheiros da minha infância.

– Vovó! Eu sinto muito! Sinto muito! – Soluçava em seu ombro.

– Shhh, u-we-tsi-a-ge-ya , estou aqui. – Ela passava a mão em círculos nas minhas costas.

A minha tosse amenizou temporariamente, então eu disse logo:

– Eu sei que estou sendo egoísta, mas estou tão feliz que esteja aqui. Eu não quero morrer sozinha.

Vovó se afastou de mim o suficiente para me pegar pelos ombros e me sacudir.

– Zoey Redbird, você não vai morrer.

Lágrimas escorreram pelo meu rosto. Eu as ignorei e enxuguei o canto da minha boca, estendendo meus dedos trêmulos para que ela pudesse ver o sangue.

Ela mal olhou para a prova que eu estava tentando lhe mostrar. Em vez disso, abriu a cesta de piquenique, tirou um guardanapo xadrez vermelho e branco e começou a enxugar as minhas lágrimas e meu nariz, exatamente como fazia quando eu era apenas uma menininha.

– Vovó, eu sei que você me ama mais do que qualquer pessoa no mundo – comecei, tentando (sem sucesso) não chorar. – Mas você não pode impedir que meu corpo rejeite a Transformação.

– Você está certa, u-we-tsi-a-ge-ya , eu não posso. Mas eles podem. – Ela apontou para a porta atrás de mim.

Virei-me e vi Thanatos e Lenobia, Stevie Rae, Darius e Stark – meu Stark –, todos apertados na porta. Stevie Rae estava chorando tão alto que não sei como não havia escutado antes.

Stark também estava chorando, mas em silêncio.

– Mas eu disse para não virem atrás de mim! Eu disse que mereço enfrentar as consequências. – Chorava tanto quanto Stevie Rae agora.

– Então, viva e enfrente as consequências! E eu estarei bem aqui, o mais perto possível de você para passar pela coisa toda! – Stark atirou as palavras em mim.

– Eu não posso. Já comecei a rejeitar a Transformação – contei soluçando.

– Menina, a sua avó falou a verdade. A não ser que a rejeição do seu corpo já esteja determinada, nossa presença vai impedi-la – afirmou Thanatos.

– Você não vai morrer! Eu não vou deixar! – gritou Stark aos prantos, e começou a entrar na minha cela.

– Espere aí, rapaz! Eu disse que só um de cada vez pode entrar na cela. – Um cara com uniforme policial veio de trás do meu grupo de amigos e se colocou entre eles e a minha cela. – O Detetive Marx me disse que eu deveria permitir a entrada de vocês, vampiros, no prédio se aparecessem, mas não vou quebrar as regras e deixar mais de um visitante por vez. A avó é da família. O resto de vocês pode esperar na sala de interrogatório. – Ele lançou um olhar sério para a minha avó. – A senhora tem quinze minutos. – Então, bateu a porta.

– Quinze minutos. – Vovó emitiu um ruído de descontentamento. – Isso não é uma visita apropriada. Esse é o tempo de cozinhar um ovo. Que rapaz sem coração. Bem, não vou ficar aqui perdendo tempo. Zoey Passarinha, assoe o nariz e fique de pé. Você precisa de uma boa defumação. Ah, os cavalheiros que revistaram a cesta fizeram uma bagunça.

Ela já estava mexendo dentro da cesta de piquenique sem fundo, por isso precisei segurar suas mãos nas minhas para que parasse e prestasse a atenção em mim.

– Vovó, eu amo você. Você sabe, não sabe?

– Claro, u-we-tsi-a-ge-ya. E eu amo você, de todo o coração. É por isso que preciso te defumar. Gostaria que tivesse uma banheira aqui, ou mesmo uma pia, para ajudar ainda mais na purificação. Mas a defumação vai ter que ser o suficiente. Trabalhei a noite toda e finalmente escolhi defumar você com essa concha de ostra que nós duas pegamos quando seguimos o Rio Mississipi até o Golfo no verão em que você completou dez anos. Lembra?

– Claro que lembro, Vovó, mas...

– Bom. Moí e misturei sálvia, cedro e lavanda. Combinados, eles formam um poderoso defumador para purificação emocional e física. – Ela estava derramando as ervas secas de uma bolsinha de veludo preta para a concha de ostra. – Eu também trouxe uma pena de águia e minha peça favorita de turquesa. Sei que eles podem tentar tirar de você, mas vamos tentar esconder dentro do colchão. Vai servir para protegê-la enquanto...

– Vovó, por favor, pare – interrompi. Encontrando o seu olhar sem nem piscar, eu disse: – Eu matei aqueles dois homens. Não mereço ser purificada nem protegida. Mereço o que estava acontecendo comigo antes de todos vocês aparecerem.

Minha intenção não era ser tão fria, mas minhas palavras fizeram com que ela hesitasse. Então, suavizei a minha voz, mas não a minha decisão.

– Os vampiros podem ter evitado que me afogasse no meu próprio sangue, mas isso não muda o fato de que eu fiz uma coisa terrível, uma coisa pela qual preciso ser punida.

Ela parou de preparar a minha defumação e seus olhos penetrantes encontraram os meus.

– Diga-me, u-we-tsi-a-ge-ya , por que você matou aqueles homens?

Balancei a cabeça e afastei o cabelo despenteado do meu rosto.

– Eu não sabia que os tinha matado até o Detetive Marx aparecer na Morada da Noite. Eu só sabia que eles tinham me enfurecido. Estavam perambulando por Woodward Park atrás de pessoas, principalmente garotas, amedrontando-as para que lhes dessem dinheiro. – Parei e meneei a cabeça de novo. – Mas isso não torna o que eu fiz aceitável. Quando dessem conta do que eu era, me deixariam em paz.

– E iam seguir até encontrar outra vítima.

– Provavelmente, mas não iam matar. Eles eram mendigos, não serial killers.

– Então, me conte o que aconteceu. Como você os matou?

– Descontei minha raiva neles. Da mesma forma que tinha feito com Shaylin mais cedo, atirando-a no chão. Só que eu fiquei ainda mais furiosa no parque. De algum jeito, a pedra da vidência exacerbou os meus sentimentos e me deu o poder de atacar todos eles.

– Mas você não matou Shaylin – considerou Vovó, sendo lógica. – Eu vi a menina na Morada da Noite um pouco antes de vir para cá. Ela me pareceu bem viva.

– Não, eu não a matei. Não dessa vez. Quem sabe o que poderia ter acontecido se eu não tivesse ido embora e seguido para o parque, e descontado a minha fúria naqueles dois homens? Vovó, eu estava descontrolada. Eu era um monstro.

– Zoey, você fez uma coisa monstruosa. Mas isso não faz de você um monstro. Você se entregou. Desistiu da pedra da vidência. Permitiu que a prendessem. Esses não são os atos de um monstro.

– Mas, Vovó, eu matei dois homens! – Senti meus olhos marejarem de novo.

– E agora você vai ter que enfrentar as consequências dos seus atos. Mas isso não significa que você deva desistir e causar ainda mais sofrimento para as pessoas que amam você.

Mordi meus lábios.

– Meu intuito é assumir minhas responsabilidades para não machucar mais ninguém, principalmente as pessoas que eu amo.

– Zoey Passarinha, não sei por que essa coisa terrível aconteceu. Eu não acredito que você seja uma assassina. – Ela ergueu a mão para que não a interrompesse quando tentei falar. – Sim, eu tenho consciência de que os dois homens estão mortos, e que você parece ser responsável pela morte deles. Ainda assim, você mesma admite que a pedra da vidência teve um papel decisivo no acidente, o que significa que a magia antiga está em ação.

– É verdade, eu estava usando a pedra – admiti.

– Ou ela estava usando você – contradisse ela.

– De qualquer forma, os resultados são os mesmos.

– Para os dois homens. Mas não necessariamente para você, u-we-tsi-a-ge-ya. Agora, fique de pé na minha frente. Você precisa que a sua mente seja clareada e seu espírito purificado para que possa analisar exatamente o que a trouxe para esta cela. Veja, não estou aqui para ajudá-la a se esconder do que fez. Estou aqui para que possa verdadeiramente encarar o que aconteceu.

Como sempre, Vovó era a voz da razão e do amor incondicional. Fiquei de pé e me permiti o breve conforto de vê-la pegar a concha com uma das mãos enquanto, com a outra, colocava um pequeno pedaço arredondado de carvão em cima da mistura de ervas e acendia. Conforme faiscava, ela disse:

– Respire fundo três vezes, u-we-tsi-a-ge-ya . E, a cada vez que o fizer, solte a energia tóxica que anuvia a sua mente e escurece o seu espírito. Visualize, Zoey Passarinha. Qual é a cor?

– Um verde asqueroso – respondi, pensando na coisa nojenta que saiu do meu nariz da última vez em que tive sinusite.

– Excelente. Expire e visualize que está se livrando disso junto com a sua respiração.

O carvão parara de faiscar e estava ficando cinza nas beiradas. Vovó pegou a bolsinha de veludo preta e começou a salpicar as ervas sobre o carvão dizendo:

– Eu lhe agradeço, espírito da sálvia branca, por sua força, sua pureza, seu poder. – Uma fumaça branca começou a subir da concha de ostra. – Eu agradeço a você, espírito do cedro, por sua divina natureza, por sua capacidade de criar uma ponte entre este Mundo e o Mundo do Além.

Mais fumaça subia, e eu inspirava e expirava.

– E, como sempre, agradeço ao espírito da lavanda, por sua natureza apaziguadora, por sua capacidade de nos permitir liberar a nossa raiva e alcançar a paz. – Então, Vovó começou a andar em volta de mim em sentido horário, batendo os seus pés em um ritmo pulsante, ancestral, que parecia eletrificar a fumaça aromatizada e impulsioná-la para dentro do meu corpo, conforme ela abanava em volta de mim com a pena de águia. Sem perder um passo de sua dança, a voz de Vovó se pareou aos seus movimentos, ecoando através do sangue dela para o meu. – Saia o que é tóxico, que é verde como bile. Entre a fumaça doce, prateada e pura.

Concentrei-me enquanto ela se movia à minha volta, entrando no ritual com a mesma facilidade que fizera por toda a minha infância.

– Inale a cura. Inale a purificação. Inale a calma. A bile verde embora irá. Substituída pela prata e pela claridade – cantava Vovó.

Levantei as mãos, guiando a fumaça em volta da minha cabeça, concentrando-me na purificação prateada.

– O-s-da – continuou Vovó, repetindo logo depois em nossa língua: – Bom, você está recuperando o seu centro.

Entrei em um estado sonolento, de transe, levada pela fumaça e pelo canto da Vovó. Pisquei, como se estivesse emergindo de um mergulho profundo, e meus olhos se arregalaram de surpresa. Claramente visível através da fumaça havia uma luz prateada brilhante que, como uma bolha, nos envolvia, a mim e a Vovó.

– Isso é o que você está projetando agora, Zoey Passarinha. Isso tomou o lugar das Trevas que estavam dentro de você.

Respirei fundo de novo, sentindo uma leveza surpreendente em meu peito. O aperto terrível que estivera ali desde que comecei a tossir sumiu. A sensação de desespero que estava dentro de mim também desapareceu...

Por quanto tempo? , perguntei-me. Agora que tinha ido embora, eu percebia o quanto aquilo era opressor.

Vovó tinha parado na minha frente. Colocou a concha de ostra entre nossos pés e segurou as minhas mãos.

– Eu não sei de tudo. Não tenho as respostas que você procura. Não posso fazer nada além de purificar e curar a sua mente e o seu espírito. Não posso tirá-la deste lugar nem mudar o passado que a trouxe para cá. Só posso amá-la e lembrá-la desta regrinha segundo a qual tentei viver a minha vida: não posso controlar os outros. Só posso controlar a mim mesma e as minhas reações aos outros. E, quando tudo o mais dá errado, eu escolho a bondade. Mostro compaixão. Então, se fiz escolhas ruins, pelo menos não causei danos ao meu espírito.

– Eu fracassei nisso, Vovó.

– Fracassei... isso é passado, e você deve deixar esse fracasso no passado, que é onde ele deve ficar. Aprenda com os seus erros e siga em frente. Não fracasse de novo, u-we-tsi-a-ge-ya. Isso significa que se você precisar enfrentar o julgamento e for para a prisão por causa dessa coisa terrível que aconteceu, então você fará isso falando a verdade e agindo com compaixão, assim como faria uma Grande Sacerdotisa da sua Deusa.

– Eu deveria afastar as pessoas que me amam. – Não disse isso como uma pergunta, mas Vovó me respondeu mesmo assim.

– Afastar as pessoas que a amam e se interessam verdadeiramente por você seria a ação infantil, e não de uma Grande Sacerdotisa.

– Vó, você acha que Nyx ainda quer que eu seja uma Grande Sacerdotisa?

Vovó sorriu.

– Acho, mas a minha opinião não é importante. O que você acha da sua Deusa, Zoey? Você acha que ela é tão volúvel que a amaria e depois a descartaria tão facilmente?

– Não estou questionando Nyx, e sim a mim mesma – admiti.

– Então, deve olhar para si mesma. Manter-se firme no seu centro. – Ela pegou a pedra turquesa que retirara da cesta de piquenique mais cedo e colocou-a em minha mão. – Você usou a pedra da vidência para concentrar seus poderes, querendo ou não. Agora, acredito que tenha que encontrar um foco dentro de você. Assim como a turquesa tem seu próprio poder protetor, você deve encontrar o seu próprio, dentro de si. Desta vez, não procure raiva, Zoey Passarinha. Procure compaixão e amor.

– Sempre amor – terminei por ela, pegando a pedra na minha mão e sentindo a sua maciez.

– Segure-se ao seu verdadeiro eu como está segurando esta pedra, e lembre-se de que sempre vou acreditar que você é mais forte, mais sábia e mais bondosa do que pensa ser.

Coloquei os braços em volta dela e abracei-a com força.

– Eu amo você, Vovó. Sempre amarei.

– Assim como eu sempre amarei você.

– Acabou o tempo! – A voz do guarda fez com que eu, relutantemente, soltasse Vovó. – Ei, o que está acontecendo aqui? O que vocês estavam queimando?

Vovó virou-se para ele, sorriu, e com sua voz mais doce, disse:

– Nada com o que você precise se preocupar, querido. Apenas um pouco de limpeza e purificação. Você gosta de biscoitos com gotas de chocolate? Tenho um ingrediente secreto que faz com que os meus fiquem irresistíveis, e, por acaso, tenho uma dúzia aqui na minha cesta. – Dando um tapinha no braço dele, ela acompanhou-o pela porta, levantando um prato de papel cheio de biscoitos de sua cesta mágica e piscando para mim por sobre o ombro. – Agora, querido, por que não arranja um café para acompanhar esses biscoitos enquanto chama o jovem e generoso vampiro chamado Stark para entrar e visitar a minha neta?

Stark!

Sentei-me na cama, endireitando minhas roupas nervosamente e tentando pentear o meu cabelo superdoido com os dedos. E, então, ele estava na porta, e me esqueci da aparência. Eu me esqueci de tudo, exceto de como estava feliz em vê-lo.

– Posso entrar? – perguntou ele, hesitante.

Assenti.

Não esperei que ele desse aqueles seis passos até mim. Não podia esperar nem mais um segundo. Assim que ele se aproximou, atirei-me em seus braços e enterrei meu rosto em seu ombro.

– Eu sinto muito! Não me odeie... por favor, não me odeie!

– Como eu poderia odiar você? – Ele me abraçou com tanta força que era difícil respirar, mas não liguei. – Você é a minha rainha, a minha Grande Sacerdotisa e meu amor... meu único amor. – Ele se afastou de mim apenas o suficiente para me olhar diretamente nos olhos. – Você não pode se suicidar. Eu não conseguiria sobreviver a isso, Zoey. Juro que não.

Havia círculos escuros embaixo de seus olhos, e suas tatuagens vermelhas de vampiro pareciam especialmente brilhantes contra a pele anormalmente pálida. Parecia que ele tinha envelhecido uma década em um dia.

Odiei vê-lo com aparência cansada e doentia. Odiei ser a causa disso.

Encontrei seu olhar e falei com toda gentileza e compaixão dentro de mim:

– Isso foi um erro. Não o cometerei de novo. Desculpe-me ter feito você passar por tudo isso. – Apontei para a cela.

Ele tocou meu rosto com gentileza, quase reverência.

– Para onde você for, eu vou. Nós fizemos um juramento para esta vida e além, Zoey Redbird. E tudo isso é suportável se tivermos um ao outro. Nós ainda temos um ao outro?

– Temos sim.

Eu o beijei, longa e apaixonadamente. Achei que eu o estivesse confortando, mas percebi que seu toque, seu beijo e seu amor é que estavam me confortando.

Foi naquele momento que realmente compreendi o quanto amo Stark.

– Está vendo? – perguntou ele, cobrindo meu rosto de beijos e enxugando as lágrimas que escorriam. – Está tudo melhor agora. Tudo vai ficar bem.

Eu não quis falar para ele que não tinha tanta certeza de que algum dia as coisas voltariam a ficar bem. Isso não seria compaixão. Em vez disso, levei-o até a minha cama estreita e dura. Nós nos sentamos e eu me aconcheguei nele, repousando em seu braço.

– Nós vamos nos revezar para ficar aqui de modo que você não volte a rejeitar a Transformação. De hoje em diante, sempre haverá um vampiro do lado de fora desta porta – Stark começou a explicar baixinho enquanto me abraçava bem apertado. – Vão colocar uma cama portátil no corredor.

– Mesmo? Você vai ficar assim tão perto de mim?

– Vou, o Detetive Marx fez com que permitissem que eu ficasse. Ele é um cara muito legal. Ele disse ao chefe de polícia que não permitir que um vampiro fique com você seria a mesma coisa que dar uma lâmina de barbear a um prisioneiro humano e depois fazer vista grossa para o que ele fizesse depois. Ele disse que isso era desumano e que, ao se entregar, você tinha os mesmos direitos que qualquer outro humano.

– Isso foi legal da parte dele. – De repente, percebi que horas deviam ser, meio-dia pelo menos. – Espere, você não devia estar aqui. Está claro lá fora. – Sentei-me e comecei a procurar queimaduras em seu corpo.

Ele sorriu.

– Estou bem. Stevie Rae também. Viemos para cá na parte de trás da van da escola, aquela sem janelas.

Assenti e sorri.

– A van de Chester the Molester. [*]

– Isso, é assim que eu me locomovo agora. – O sorriso dele ficou presunçoso. – Marx deixou que estacionássemos na garagem coberta ao lado da delegacia. Nenhum raio de sol tocou em nós.

– Tome cuidado, ok?

Ele ergueu as sobrancelhas.

– É sério isso? Você está me mandando tomar cuidado?

– Estou pedindo, na verdade – corrigi, lembrando-me de ser generosa.

Ele riu e me abraçou.

– Zoey Redbird, você está toda desarrumada, mas continua linda, e eu amo você.

– Eu também amo você.

Logo ele me soltou e seu rosto assumiu uma expressão mais séria.

– Tudo bem, quero que você me conte tudo. Já sei que você ficou furiosa com dois humanos e lançou algum tipo de poder neles, mas eu preciso de detalhes.

– Stark, será que não podemos simplesmente... – comecei, não querendo desperdiçar um segundo do meu tempo com ele para falar do terrível erro que cometi.

Ele me cortou.

– Não podemos simplesmente ignorar. Zoey, você pode ser um monte de coisas, mas assassina não é uma delas.

– Joguei dois caras contra o muro, e eles estão mortos. Isso me torna uma assassina, Stark.

– Veja bem, acho que eu tenho um problema com isso. Acho que isso torna a sua pedra da vidência uma assassina. Foi por isso que você a entregou para Aphrodite, não foi? Porque foi o que canalizou a sua fúria para aqueles dois caras.

Estava prestes a abrir a boca para tentar explicar para ele o que eu mesma não compreendia, mas o som de passos no corredor me interrompeu. O guarda, com rosto vermelho e olhos arregalados, apareceu na porta.

– Vamos, vamos! Saia. Agora! – ordenou ele para Stark, apontando freneticamente para ele. – Um dos seus vampiros pode ficar, mas tem que ser aqui no corredor. O resto de vocês tem que dar o fora daqui... voltar para o lugar de vocês.

– Espere, não faz nem cinco minutos, muito menos quinze – argumentou Stark.

– Não posso fazer nada a respeito. Tem alguma coisa acontecendo no presídio. Uma emergência no centro da cidade.

Segui Stark até a porta, sentindo como se um cubo de gelo estivesse descendo pela minha espinha.

– Onde no centro da cidade? O que está acontecendo? – perguntei.

– Está um inferno no Mayo Hotel, e eles precisam de todos os policiais da cidade lá.

A porta da cela se fechou, permitindo que eu e Stark nos víssemos por entre as grades.

– Neferet – disse Stark.

– Ah, droga – respondi, concordando.

[*] “Chester the Molester” era uma tirinha de autoria de Dwaine B. Tinsley e publicada pela revista Hustler por 13 anos. A história gira em torno de um homem, Chester, interessado em molestar sexualmente mulheres e adolescentes. (N.T.)


3

Neferet

Era o meio da manhã de um domingo preguiçoso quando Neferet ordenou aos seus filamentos de Trevas que se abrissem para que pudesse ser levada da espessa nuvem de sangue e morte para a calçada em frente ao Mayo. Ela endireitou seu terninho Armani e jogou o cabelo castanho para trás. Neferet estava pronta para seu retorno triunfal à cobertura que a esperava com seus mármores, pedras e veludos no topo do prédio. Abriu a porta vintage de latão e vidro e parou assim que a atravessou, suspirando feliz para o vasto salão de baile que se abria à sua frente, resplandecente com seu mármore branco, colunas estatuárias, ornamentos grandiosos da década de 1920, e uma escadaria dupla que se curvava até a pista de dança com a graça do sorriso satisfeito de uma deusa.

Suas sobrancelhas castanhas se arquearam. Seu olhar cor de esmeralda se tornou mais penetrante. Neferet observou à sua volta com interesse renovado.

– Este realmente é um prédio requintado o suficiente para ser o templo de uma deusa. – Neferet sorriu. – Meu templo. Minha casa.

– Srta. Neferet! É realmente a senhora? Estávamos tão preocupados que alguma coisa tivesse acontecido quando destruíram a sua cobertura.

Neferet desviou o olhar do grande salão para a jovem que sorria para ela por trás do balcão da recepção.

– Meu templo. Minha casa. Meus súditos . – Ela sabia o que deveria fazer. Por que demorara tanto para pensar nisso? Possivelmente porque nunca absorvera tantas mortes ao mesmo tempo como acontecera poucos momentos antes de chegar ao Mayo. Assim como suas fiéis gavinhas, Neferet estava pulsando com poder, e esse poder tornava seu pensamento focado e claro.

– Isso, é exatamente assim que deve ser. Todos os humanos neste prédio devem me adorar.

– Desculpe-me, madame. Não entendi o que quis dizer.

– Ah, você vai entender. Em breve, entenderá. – O sorriso radiante da recepcionista começara a se apagar. Com um movimento sobrenatural, Neferet deslizou até ela. Viu o nome da garota no crachá dourado. – Sim, minha querida Kylee. Logo você me entenderá completamente. Mas, primeiro, você vai me dizer quantos hóspedes há neste momento no hotel.

– Sinto muito, madame – desculpou-se Kylee, parecendo totalmente constrangida. – Não posso fornecer essa informação. Talvez se a senhorita me disser do que precisa...

Neferet se inclinou, passando a mão pelo lindo balcão de mármore, interrompendo-a e capturando o olhar da garota.

– Você não me questionará. Você jamais me questionará. Fará exatamente o que eu mandar.

– Eu... Eu sinto muito, madame. Não quis ofendê-la, mas as informações sobre os hóspedes do hotel são confidenciais. Nós... Nós temos muito cuidado com a nossa p-política de privacidade – gaguejou ela, as mãos trêmulas de nervoso enquanto agarrava a corrente de ouro com um crucifixo junto ao pescoço.

Mesmo se Neferet não fosse vidente, perceberia a extensão do medo da garota – o que não impressionava a Deusa nem um pouco.

– Excelente! Agora que você vai seguir as minhas ordens, espero que seja ainda mais cuidadosa com privacidade, a minha privacidade.

– Desculpe, madame, a senhora está dizendo que comprou o Mayo Hotel? – A confusão de Kylee se intensificava junto com seu medo.

– Ah, muito melhor do que isso, e muito mais permanente. Decidi transformar este prédio encantador no meu primeiro Templo. Mas eu já não ordenei que você nunca me questionasse? – Neferet suspirou e emitiu um som de desaprovação. – Kylee, você vai ter que se esforçar mais no futuro. Mas não precisa preocupar essa sua cabecinha loura. Sou uma deusa bondosa. Pretendo lhe oferecer a ajuda de que precisar para que seja minha súdita perfeita.

Enquanto Kylee arfava como um peixe fora d’água, Neferet virou-se de costas para ela e encarou o mar de gavinhas que, embora não fossem vistas pela idiota da Kylee, espalhavam-se pelo piso de mármore e subiam carinhosamente por suas pernas.

– Filhos, vocês se alimentaram muito bem. Agora, está na hora de me pagarem pela minha generosidade. – Eles se retorceram, excitados, um ninho de víboras, e Neferet sorriu carinhosamente para elas. – Sim, eu lhes dei a minha palavra. Que foi só o começo do nosso banquete. Mas vocês precisam trabalhar em troca de comida. Eu me recuso a ter filhos vagabundos. – Ela deu uma gargalhada afetada. – Agora, um de vocês deve possuir esta humana. Não! Não a matem. – Neferet esclareceu, quando uma dúzia de gavinhas começou a se arrastar exaltadamente na direção de Kylee. – Sigam a minha mente até a dela. Usem minha trilha até seus pensamentos e desejos mais profundos, e fiquem lá, envolvam sua vontade e apertem. Mas não o suficiente para matá-la ou roubar o que se passa por sua razão. Não quero um Templo cheio de idiotas. Quero um Templo cheio de súditos obedientes. Possuam-na para que eu tenha certeza de sua obediência!

Neferet se virou para encarar a garota, cujo rosto perdera a cor de forma tão drástica que seus olhos castanhos pareciam hematomas.

– Srta. Neferet, por favor, não me machuque! – implorou ela, começando a chorar.

– Kylee, minha querida, minha primeira súdita humana, isso é realmente para o seu bem. O livre-arbítrio é um fardo terrível. Eu tinha livre-arbítrio quando era uma garota, pouco mais nova do que você; ainda assim, estava presa a uma vida de abuso que eu não tinha escolhido. É muito comum isso acontecer com humanos. Olhe para si própria: o emprego subalterno, a roupa precária. Você não quer mais da vida?

– Q-quero – respondeu Kylee.

– Bem, então temos um trato. Se eu tirar o seu livre-arbítrio, também vou afastar de você os terrores inesperados que a vida pode trazer. – Neferet fitou dentro dos olhos arregalados da garota e perfurou sua mente. Estava concentrada demais em Kylee para baixar o olhar, mas sabia que uma fiel e forte gavinha a obedecera e estava subindo pelo corpo da garota. Embora não conseguisse ver o que estava rastejando por suas pernas, Kylee certamente podia sentir. Abriu a boca e começou a gritar. – Acabem com o terror dela e entrem nela! – ordenou Neferet, e a gavinha entrou pela boca aberta.

Kylee começou a engasgar convulsivamente, e apenas o domínio de Neferet em sua mente evitou que desmaiasse.

– Tão humana. Tão fraca – murmurou a Deusa enquanto sondava a mente da garota, sentindo a familiar presença das Trevas seguindo. Quando encontrou o centro da vontade de Kylee, sua alma, sua consciência, Neferet ordenou: – Envolvam-na! – Com seu sentido extra, presente que recebera de outra Deusa mais de um século antes, Neferet testemunhou as Trevas aprisionarem a vontade de Kylee.

A garota caiu, seu corpo se contorcendo em espasmos.

– Lembrem-se bem da trilha que acabei de mostrar para vocês, filhos. Kylee é apenas a primeira de muitas. – Neferet bateu uma palma. – Levante-se, Kylee. Arrume-se, minha querida. A sua vida acaba de se tornar muito mais , e eu tenho outras ordens que você deve cumprir.

Kylee ficou de pé, como se fosse uma marionete manipulada por cordas.

– Isso, assim está muito melhor. Agora, me diga quantos hóspedes há no hotel, e lembre-se, nada mais daqueles gritos irritantes.

– Sim, madame – respondeu Kylee de forma instantânea e mecânica.

O sorriso de Neferet voltou. Ela estava transbordando poder! Os humanos deviam adorá-la – com a débil força de vontade deles e mentes facilmente manipuláveis, não tinham a menor chance.

– E pare de me chamar de madame. Quero que me chame de Deusa.

– Sim, Deusa – repetiu Kylee automaticamente, sua voz totalmente desprovida de emoção. Então, começou a digitar no teclado enquanto fitava, sem expressão, a tela do computador. – No momento, temos 72 hóspedes, Deusa.

– Muito bem, Kylee. E quantos moradores há?

– Cinquenta.

Com um dedo longo, Neferet levantou o queixo de Kylee para que ela a fitasse de novo.

– Cinquenta o quê?

Kylee estremeceu, tal qual um cavalo espantando insetos, mas seu olhar permaneceu aberto, inexpressivo, e ela se corrigiu imediatamente, dizendo:

– Cinquenta, Deusa.

– Muito bem, Kylee. Vou me recolher à minha cobertura. Lembre-se, este prédio agora é o meu Templo, e eu insisto em proteger a minha privacidade, assim como meu divino corpo. Entendeu?

– Sim, Deusa.

– Você compreende que isso significa que, se alguém vier me procurar, você dirá que tem certeza absoluta de que eu não estou aqui, e o mandará embora?

– Compreendo, Deusa.

– Kylee, você foi muito útil. Vou permitir que tenha uma vida longa o suficiente para me adorar adequadamente.

– Obrigada, Deusa.

– De nada, querida.

Neferet começou a deslizar na direção do elevador. Levantou a mão, chamando.

– Venham, meus filhos. Tenho a sensação de que vamos precisar redecorar.

Inchadas e pulsando com o sangue com o qual tinham acabado de se alimentar, as gavinhas das Trevas seguiram ansiosamente sua ama.

– Exatamente como pensei. Deixaram em ruínas! Isso é inaceitável. – Neferet andou em volta das cadeiras reviradas dos tapetes manchados da sala de estar que costumava ser uma cobertura meticulosa e luxuosamente decorada. – Sangue velho! Esta sala está fedendo a sangue. Limpem! – mandou ela. As gavinhas obedeceram, embora mais lentamente do que quando a refeição que ela oferecia era fresca. – Não sejam tão exigentes. Parte desse sangue é de Kalona. Mesmo velho, sangue imortal tem poder. – Isso pareceu animar as gavinhas e elas passaram a rastejar com mais entusiasmo.

Enquanto trabalhavam, Neferet dirigiu-se até a adega, apenas para encontrá-la vazia. Não restava uma garrafa sequer do escuro e caro cabernet que ela tanto adorava.

–Isso é o que acontece quando não estou aqui para ficar de olho naqueles humanos preguiçosos. Eles negligenciam suas tarefas. Estou sem vinho, e minha cobertura mais parece um matadouro!

O olhar irritado de Neferet foi de encontro à grande quantidade espalhada de poeira turquesa, vinda da jaula das Trevas, na qual suas gavinhas prenderam a entediantemente teimosa Sylvia Redbird.

– E aquilo! Sumam com aquele pó azul horrível. Macula toda a beleza do piso de ônix, ainda mais do que aqueles tapetes persas manchados.

Várias gavinhas tentaram obedecer à sua ordem, mas se esquivaram assustadas das partículas azuis, como se estas ainda tivessem o poder de afastá-las. A mais ousada delas seguiu pela pedra empoeirada, então estremeceu e se contraiu, sua carne escorregadia e emborrachada soltando fumaça e um líquido escuro e fétido. Neferet franziu a testa, acenando para a gavinha. Com uma unha afiada, ela perfurou a pele da palma de sua mão.

– Venha, alimente-se de mim e cure-se – murmurou ela, apreciando o toque gelado e doloroso da boca da gavinha, acariciando-a enquanto ela se alimentava, estremecendo sob seu toque.

– Isso nunca vai dar certo. Arrumar a bagunça deixada por humanos é muita humilhação para meus leais filhos. Súditos humanos devem limpar bagunças humanas, é disso que preciso, cumprindo as minhas ordens, facilitando o meu trabalho. E, felizmente, temos mais de cem deles sob este mesmo teto. Todos eles, exceto a tão útil Kylee, ainda não sabem o quanto ficarão assoberbados em breve. Hum... qual seria a melhor maneira de iniciar meus novos súditos?

Neferet sacudiu o braço para afastar a gavinha faminta.

– Não seja tão gulosa. Já está curada.

A gavinha se afastou. Neferet passou a mão pelo seu longo e esbelto pescoço, pensando. Precisava avaliar o melhor passo a dar, e precisava agir rápido.

Não deixara ninguém vivo na Church Boston Avenue, apenas centenas de corpos mutilados e sem sangue.

– As autoridades irão primeiro para a Morada da Noite, é claro. Thanatos insistirá que ninguém do seu rebanho impecável faria uma coisa daquelas. A velha vai jogar a culpa em mim. Acreditando nela ou não, mesmo a incompetente polícia local acabará vindo me procurar aqui. – Neferet tamborilou suas unhas longas e pontiagudas no balcão de mármore preto de sua adega vazia. Não tinha muito tempo ao seu dispor, a não ser que optasse por se esconder.

– Não, nunca mais vou me esconder. Sou uma Deusa, uma imortal, com o dom de comandar as Trevas. Nyx nunca me compreendeu. Kalona nunca me compreendeu. Ninguém jamais me compreendeu. Mas agora eu vou obrigá-los a me entender. Vou fazê-los entenderem! Os moradores de Tulsa é que devem se esconder de mim, e não o contrário.

Ela tinha de ser rápida e decisiva, antes que a polícia chegasse e tentasse, sem sucesso, prendê-la – ou antes que o seu banquete na igreja chegasse aos noticiários e começasse a assustar os hóspedes do Mayo Hotel: os seus futuros súditos.

Neferet encontrou um controle remoto e ligou a enorme televisão de tela plana que, por sorte, tinha saído intacta da batalha. Sintonizou no canal local, colocou no mudo e começou a andar de um lado para o outro, pensando em voz alta e mantendo os olhos grudados na tela.

– É uma pena que eu não possa enjaular os seres humanos como eu fiz com aquela velha e soltá-los quando eu precisasse de sua adoração ou de seus serviços. Isso seria tão mais fácil para eles e, o mais importante no final das contas, para mim. Eu apostaria muito no fato de que nenhum deles resistiria tanto quanto Sylvia Redbird. Os humanos comuns nunca poderiam entrar ou sair da jaula das Trevas criadas por vocês, meus queridos. E, pelo que vi até agora, os meus humanos são excessivamente normais. – Neferet parou abruptamente. – Os meus súditos são humanos normais. E eu me tornei tão mais do que uma humana comum ou uma vampira.

Distraída, Neferet acariciou uma gavinha que se enrolara em seu braço.

– É uma pena que eu não possa enjaular os humanos aqui. Eu os estaria protegendo, permitindo que eles troquem o tédio de suas vidas pela satisfação de me adorar, assim como fiz com Kylee. – Ela acariciava a gavinha, enquanto esta estremecia de prazer. – Eu não preciso enjaulá-los. Eu preciso tratá-los com carinho!

Abrindo os braços, ela sorriu para os seus servos das Trevas, que eram perfeitamente lindos e aterrorizantes.

– Tenho uma resposta para o nosso dilema, meus filhos! A jaula que criamos para aprisionar Redbird era fraca, uma tentativa patética de aprisionamento. Aprendi tantas coisas desde aquela noite! Consegui tanto poder... Nós conseguimos tanto poder. Não vamos enjaular as pessoas, como se eu fosse uma carcereira em vez de uma deusa. Meus filhos, vamos cobrir todas as paredes do meu Templo com as suas tramas mágicas e invioláveis para que os meus novos súditos possam me adorar sem qualquer empecilho. E isso será apenas o começo. À medida que eu absorver cada vez mais poder, por que não encapsular toda a cidade? Eu sei disso agora... Conheço o meu destino. Começo o meu reinado como Deusa das Trevas ao tornar Tulsa o meu Olimpo! Só que isso não será apenas um mito fraco contado como histórias banais de crianças para crianças. Isso será realidade: o Mundo das Trevas do Além veio para a Terra! E, nesse mundo, não haverá inocentes sendo abusados por predadores. Todos estarão sob a minha proteção. Eu tenho o destino deles nas minhas mãos, e eles só precisam se preocupar com o meu bem-estar. Ah, como eles vão me adorar!

Em volta dela, as gavinhas se contorceram em resposta à animação dela. Ela sorriu e acariciou as que estavam mais próximas.

– Sim, sim, eu sei. Será glorioso, mas o que preciso primeiro, meus filhos, é do serviço de quarto. Vamos convocar os meus novos servos. Alguns deles vão limpar e arrumar os meus aposentos da maneira correta. Outros vão reabastecer a adega. Todos vão me obedecer sem me questionar. Preparem-se. Chegou a hora de Neferet, a Deusa das Trevas!

Foi mais fácil do que ela mesma imaginara. Os humanos não eram apenas ridiculamente fáceis de serem controlados, mas também tão indefesos contra a infestação de uma única gavinha das Trevas quanto a pequena Kylee. Ela estava absolutamente certa. Eles precisavam dela para comandar a vida deles, assim como um bebê precisa da mãe.

O único problema no seu plano era que Neferet não tinha acesso a um número infinito de gavinhas. Apenas as mais leais, as suas verdadeiras filhas, continuaram ao seu lado depois que fora despedaçada.

Por um breve instante, considerou chamar mais filamentos de Trevas, mas logo rejeitou tal pensamento. Ela não recompensaria a traição – e os filamentos que a abandonaram no momento da necessidade a traíram no nível mais profundo.

Neferet tomou um gole do seu cabernet favorito em uma taça de cristal e andou pela cobertura, contando os humanos que se dedicavam à limpeza e à arrumação da bagunça que Zoey e seus amigos tinham deixado para trás. Seis. Havia quatro mulheres da equipe de limpeza e dois homens do serviço de quarto. Neferet sorriu. Na verdade, eles não passavam de garotos – ambos louros e ansiosos por atender aos seus pedidos de serviço de quarto. Saindo do seu elevador, suas expressões denunciaram os seus pensamentos de forma tão clara que ela nem precisou esquadrinhar suas mentes. Eles a desejavam. Muito. Obviamente esperavam que ela quisesse um pouco de sangue e sexo com vinho. Tolos! Agora eles se moviam mecanicamente, atendendo aos comandos que ela dava sem reclamar, sem preocupações e sem olhares galanteadores irritantes. Estavam exatamente como ela preferia os seus homens humanos: silenciosos, obedientes e jovens.

– Cavalheiros, a vida é gloriosa, não acham?

As duas cabeças louras se voltaram para ela.

– Sim, Deusa – responderam em uníssono, como sempre.

Neferet sorriu.

– Como costumo dizer, o livre-arbítrio é um peso terrível. Não precisam agradecer por eu ter aliviado vocês de tal peso. – Então, ela ordenou: – Voltem ao trabalho.

– Obrigado, Deusa. Sim, Deusa – repetiram eles, obedecendo-a.

Então, ela já tinha usado seis filamentos. Não, sete, contando a pequena Kylee, da recepção. Neferet lançou um olhar contemplativo para o ninho de gavinhas onde elas se reuniram para absorver o que restara do sangue seco de Kalona. Quantas havia? Tentou contar, mas era impossível. Elas se moviam muito e com rapidez, além de se fundirem umas às outras e depois se separarem quando desejassem. Parecia haver muitas delas, porém. E todas tinham crescido, engordado e estavam mais fortes depois de terem se fartado.

Eu preciso me certificar de que continuem bem alimentadas. Elas não podem definhar – pois isso significaria que o meu absoluto poder sobre os humanos também enfraqueceria.

Resoluta, Neferet discou zero para falar com a recepcionista.

– Recepção, como posso ajudá-la, Neferet? – respondeu a voz insolente de Kylee ao primeiro toque.

– Kylee, quando eu ligar, o modo correto de atender ao telefone é dizendo “Como posso servi-la, minha Deusa?”.

A voz de Kylee ficou sem expressão ou emoção e ela repetiu:

– Como posso servi-la, minha Deusa?

– Muito bem, Kylee. Você com certeza aprende rápido. Eu preciso saber quantos funcionários estão trabalhando aqui no meu Templo hoje.

– Seis faxineiras, dois carregadores, quatro membros do serviço de quarto e eu. Rachel deveria estar aqui na recepção comigo, mas está de licença médica.

– Pobre Rachel. Mas isso me deixa com treze funcionários ao meu dispor. É claro que isso não inclui o restaurante. Ele está aberto hoje?

– Está. Nós abrimos para o brunch até as duas horas da tarde aos domingos.

Kylee fez uma pausa para contar:

– O chef, um ajudante de cozinha, o bartender , que também é o gerente, e três garçonetes.

– Totalizando vinte. Eis o que quero de você, Kylee. Feche o restaurante imediatamente, mas não permita que os funcionários vão embora. Diga a eles que houve uma mudança na gerência do hotel e que o novo dono pediu uma reunião de funcionários.

– Farei como me pede, Deusa, mas os Snyder não são donos do restaurante.

– Quem são os Snyder?

– A família que comprou e reformou o Mayo em 2001. Eles são os donos do prédio.

– Corrigindo, Kylee, querida, eles eram os donos do prédio que era conhecido como Mayo Hotel. Eu controlo o Templo em que ele se tornou. Não importa. Isso logo ficará claro. Tudo de que preciso é que você reúna todos os funcionários do restaurante e do hotel e peça-lhes que venham até a cobertura daqui a trinta minutos. Depois, eu vou mudar o título da reunião de funcionários para o que ela realmente é: uma oportunidade de adorar a sua Deusa. Isso não soa muito mais agradável do que reunião de funcionários?

– Sim, Deusa – respondeu Kylee.

– Excelente. Vejo você e o resto dos meus súditos daqui a meia hora.

– Deusa, eu não posso deixar a recepção sozinha. O que acontecerá se alguém quiser se hospedar ou deixar o hotel?

– A resposta é simples, Kylee. Tranque as portas para que ninguém possa entrar ou sair do meu Templo. Tranque tudo e venha até mim com as chaves.

– Sim, Deusa.

Neferet teria de encontrar outro lugar para receber os súditos. A sua cobertura era íntima demais para tantos humanos. No entanto, teria de se virar por um tempo. Ela se posicionou diante das portas de vidro colorido que haviam sido quebradas e agora foram substituídas pelos garotos louros. Ela desligara as luzes elétricas berrantes e ordenara que as faxineiras trouxessem velas para os seus aposentos. Castiçais, suportes e velas de promessa cobriam a prateleira de granito, a cornija da lareira, a mesa de centro de mármore no estilo art déco e a grande mesa de jantar de madeira. Ela também ordenara que as lanternas que ficavam ao lado das portas tivessem as lâmpadas fortes retiradas e fossem substituídas por luzes bruxuleantes e quentes de velas brancas. Ela fez uma observação mental para pedir que um dos seus servos fosse comprar mais velas – muitas e muitas velas.

O olhar de Neferet passeou pela cobertura, e ela ficou satisfeita. Tudo parecia tão melhor, e estava apreciando a sua segunda garrafa de cabernet, pensando em quanto apreciaria mais tarde, quando um – ou uma – entre seus súditos se oferecesse para misturar o próprio sangue no vinho.

Neferet tinha se vestido com esmero, satisfeita ao ver que suas roupas ficaram intactas enquanto estivera ausente. Escolheu um vestido de seda dourada que se ajustava ao corpo como se acariciasse a sua pele. Como sempre, Neferet deixou o cabelo ruivo solto, em ondas brilhantes que desciam pelas costas até a cintura. Não usou nenhum adorno com um símbolo de qualquer outra deusa. Jamais voltaria a usar imagens adornadas em prata – ela arrancara o último daqueles filamentos de si.

Tinha um novo símbolo, no qual vinha pensando cuidadosamente, e mal podia esperar até que um dos seus súditos fosse encomendar a peça na joalheria de Moody e a “surpreendesse” com um rubi de seis quilates no formato de uma lágrima perfeita. Ela seria efusiva nos agradecimentos e sempre o usaria preso a uma grossa gargantilha de ouro.

Seria realmente bom ser a Deusa das Trevas – A Deusa de Tulsa –, a Deusa do Caos.

Ouviu o barulho do elevador.

– Meus filhos, venham até mim! – Os filamentos de Trevas se apressaram em sua direção, cercando-a, pousando sobre os seus pés descalços com um frescor reconfortante. – Ah, e súditos, vocês podem voltar à minha presença – disse ela por sobre os ombros na direção do local para onde ordenara que aguardassem até que tivessem novas ordens.

Eles passaram por ela no instante em que as portas do elevador se abriram e Kylee levou o restante dos funcionários para a cobertura.

– Bem-vindos! – Neferet ergueu a taça e os braços. – Vocês são abençoados por estarem diante de mim.

A maior parte do grupo pareceu confusa. Duas mulheres, vestidas como garçonetes, murmuraram perguntas uma para a outra. Os olhos afiados de Neferet as notou. Um dos homens, o que usava um chapéu idiota de chef, perguntou:

– Você poderia nos dizer o que está acontecendo aqui? Tivemos que fechar o restaurante e obrigar os nossos clientes a ir embora, mesmo que eles ainda não tivessem terminando o seu brunch. Posso afirmar para você que, com certeza, temos alguns ex- clientes muito putos da vida.

– Qual é o seu nome? – quis saber Neferet, mantendo o tom de voz agradável.

– Tony Witherby, mas a maioria das pessoas me chama de chef.

– Bem, Tony, eu não sou a maioria das pessoas. Veja bem, a maioria das pessoas me chama de Deusa.

Ele soltou uma gargalhada debochada.

– Você só pode estar brincando, né? Tipo, eu estou vendo as suas tatuagens e sei que você é uma vampira e tudo o mais, mas vampiras não são deusas.

Neferet ficou satisfeita ao ver Kylee se afastar do chef como se não quisesse ser contaminada por sua desobediência. Kylee estava realmente se tornando uma excelente súdita.

Neferet não desperdiçou sequer um olhar para o chef. Em vez disso, sorriu para os seus filhos alvoroçados.

– Tão ansiosos – comentou ela em um tom leve de reprovação. Ela se abaixou para acariciar uma gavinha particularmente precoce que se enrolara por sua perna quase na altura de sua coxa. – Você vai ser perfeita.

– Tudo bem, você vai ter que nos dizer o que está acontecendo ou eu vou ligar para o dono do restaurante – ameaçou o chef. Quando ela continuou a ignorá-lo, ele começou a gritar: – Isso é realmente ridíc...

– Pegue-o! – comandou Neferet para a gavinha. – E permitam que a vejam.

A gavinha ficou visível enquanto voava na direção do chef. Ela era tão grande que rapidamente o envolveu pela cintura grossa, movendo-se rapidamente para cima.

– Que merda é essa?! Solte-me! – gritou o chef, jogando-se para trás e batendo na gavinha com ambas as mãos, impotente.

Neferet achou que ele parecia uma menininha com medo de aranha.

Um homem bonito e negro vestido como mensageiro se aproximou para ajudar o chef.

– Fique onde está ou o seu destino será o mesmo do dele! – avisou Neferet.

O homem parou onde estava.

– Nããããão!

Os gritos do chef beiravam à histeria, e Neferet ficou aliviada ao ver que bem nesse momento a gavinha subiu pelo pescoço dele e invadiu sua boca, fazendo com que se abrisse de uma maneira quase impossível. Isso causou a rachadura e o sangramento dos cantos dos lábios, antes que todo o grosso comprimento do filamento desaparecesse dentro do corpo do humano. O chef caiu do chão.

– É tão deprimente quando um homem adulto age como uma menininha assustada, vocês não acham?

Os humanos que ainda não tinham sido possuídos por seus filhos olharam para ela com um misto de horror e descrença. Outra mulher, uma das faxineiras que não atendera ao chamado anterior de Neferet, estava rezando em espanhol, agarrada ao crucifixo pendurado em uma gargantilha de prata de aparência barata. Todo o grupo, exceto pelo equivocado Tony, estava se afastando, como um rebanho, na direção das portas do elevador.

– Nada disso – declarou Neferet com voz suave. – Vocês não podem partir antes de receber minha permissão.

– Você também vai nos matar? – perguntou uma das mulheres, segurando a mão da amiga e tremendo de forma espasmódica.

– Matar vocês? É claro que não. Tony não está morto. – Ela dirigiu-se então ao chef caído no chão. – Tony, meu querido, levante-se e diga para os outros que você está perfeitamente bem.

De forma estranha, Tony se levantou, virou-se para Neferet. Então, sem expressão no seu rosto rosado e manchado de sangue, declarou:

– Estou perfeitamente bem.

– Você se esqueceu de dizer uma coisinha – disse Neferet.

O corpo de Tony se retorceu em espasmos como se ele tivesse levado um choque por dentro, e ele se apressou a repetir:

– Estou perfeitamente bem, Deusa.

– Viram só? É exatamente como eu disse. Qual é o seu nome, querida? – perguntou ela para a mulher trêmula.

– Elinor.

– Que nome adorável. Não se veem mais nomes como esse hoje em dia, o que é uma pena. Para onde todas as Elinors e Elisabeths, Gertrudes, Gladys e Phyllis foram? Não, não precisa me responder. Elas foram substituídas por Haileys, Kaylees, Madisons e Jordans. Eu odeio nomes modernos. Sabe, Elinor, eu preciso agradecê-la. O seu nome de bom gosto fez com que eu tomasse uma decisão sobre vocês, meus novos súditos. Vou renomear qualquer um de vocês que possua um nome muito chamativo. – Neferet lançou um olhar para Kylee. – Exceto você, Kylee. Eu gosto muito do seu crachá dourado para mudar o seu nome.

– Deusa? – sussurrou Elinor em tom de pergunta.

– Pois não, minha querida.

– Nós agora estamos trabalhando para a senhora?

– Ah, é muito melhor do que isso. Vocês vão me adorar agora. Vocês vinte serão as primeiras testemunhas do meu reinado como Deusa das Trevas. Cada um de vocês terá um papel especial e muito importante para cumprir enquanto me adoram e atendem a cada uma das minhas necessidades. Vocês vão me oferecer presentes e sacrifícios e, em troca, tirarei o exaustivo livre-arbítrio que obviamente tem lhes reprimido e deprimido a vida. Por que outro motivo vocês estariam trabalhando em tarefas tão servis e sem sentido?

– Eu não estou entendendo o que está acontecendo – choramingou Elinor.

– Logo... logo a sua confusão acabará. Não se preocupe, doce Elinor, só dói um pouquinho. – Neferet ergueu o braço. – Meus filhos... – começou ela.

– Espere! – O mensageiro que quis ajudar Tony deu um passo para a frente e lançou um olhar inflexível para Neferet. – A senhora disse que se tentássemos ajudar o chef, nosso destino seria o mesmo do dele. Eu não ajudei. Ninguém mais ajudou. Então, de acordo com a sua própria palavra, não vai mandar essas coisas rastejantes nos atacar.

– E qual é o seu nome?

– Judson. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Deusa.

– Judson é um nome antigo do sul, sabia?

– Não, eu... Eu, não. Eu não sabia. – Ele fez outra pausa. – Deusa.

– Bem, é isso então. Eu também não vou trocar o seu nome. E quanto ao que eu disse antes? Eu menti. Peguem-nos! – Ordenou.

Felizmente, os seus filhos tinham antecipado os seus desejos e moveram-se rapidamente, de modo que os gritos irritantes logo cessaram.


4

Neferet

Neferet liberou seus novos súditos, cada qual tendo iniciado sua adoração por meio da possessão de um de seus filhos, e ordenou-lhes que chamassem os hóspedes e residentes do hotel e os reunissem no grande salão do hotel.

Decidira que deveria estabelecer o lugar das oferendas no salão principal, o qual era cercado por colunas de mármore, tinha pé-direito alto e o teto ornado com lindos candelabros no estilo art déco , e escadaria dupla e ampla em curva com balaústres de ferro forjado que contavam com uma grande plataforma entre o térreo – onde os súditos ficariam – e o passeio superior, onde apenas os seus adoradores mais próximos, aqueles que cuidavam dos seus desejos, seriam permitidos. Os outros ficariam presos nos próprios quartos ou no porão, o qual Kylee fora gentil em lhes mostrar. Ou, se eles provassem ser um estorvo excessivo e ela não quisesse gastar uma gavinha para possuí-los, eles se tornariam alimento para seus filhos.

É claro que ela só se alimentaria dos súditos que despertassem o seu interesse.

Kylee recebera a tarefa de encontrar uma cadeira que servisse de trono até que pudesse encomendar um que fosse entalhado para ela.

– Você precisa encontrar um artesão talentoso para criar exatamente o que eu quero. A madeira deve ser tingida de sangue vermelho profundo de búfalo – orientou ela, enquanto escolhia a colocação com cuidado. – E eu não quero nada daqueles assentos duros e pobres ao gosto dos velhos do Conselho Supremo. Almofadas de veludo dourado. É sobre elas que vou me sentar.

Neferet permitiu que duas das faxineiras mais atraentes a envolvessem num vestido luxuoso em tom púrpura real, e tinha acabado de decidir que não usaria sapato – ficaria descalça, como condiz a uma Deusa recém-nascida. Retornou à sua sala para encher novamente a taça de vinho, irritada por não haver lá nenhum humano ansioso por ajudá-la. Ela já estava esperando, impacientemente, que convidados e residentes estivessem rodeados por seus servos obedientes para que pudesse fazer a sua entrada triunfante no salão.

– Até mesmo para uma Deusa, é tão difícil encontrar empregados de qualidade. Mas eu vou deixar esse erro passar. Eles são só vinte. Devem estar bem ocupados reunindo os humanos no meu salão de oferendas. Mas vou deixar passar somente esta vez.

Estava bebericando o líquido vermelho, apreciando o sabor do sangue do bonito mensageiro que tinha tão graciosamente oferecido um pedaço da sua carne para dar mais sabor ao seu vinho, quando a televisão chamou a sua atenção. Havia uma legenda de notícias na parte inferior da imagem onde se lia ASSASSINATOS EM TULSA, e a âncora, Chera Kimiko, estava falando com uma expressão sombria.

Encantada, Neferet apertou o botão de mudo na televisão, esperando reviver os detalhes deliciosos do seu banquete. No entanto, em vez da Church Boston Avenue, a tela mostrou uma imagem do Woodward Park, em um estado terrível de desgaste. Então, a câmera mudou, e as sobrancelhas de Neferet se ergueram enquanto se concentravam em um paredão de pedra ao lado de uma gruta que, até recentemente, fora o seu santuário. Ela aumentou o volume, impaciente, a tempo de ouvir Kimiko dizendo de forma tão séria:

– Este é o local onde ocorreu o terrível assassinato de dois homens, cujos corpos foram descobertos por bombeiros na manhã de ontem. Conforme informamos anteriormente, a violenta tempestade que criou ventos de quase 120 km/hora foi acompanhada por raios mortais. Os raios que caem sobre a região de Tulsa já foram responsáveis por cinco mortes hoje, além de dez pessoas hospitalizadas em estado grave. Mas a morte desses dois homens aparentemente não tem relação com as tempestades. Adam Paluka está ao vivo com o detetive Kevin Marx e vamos até ele para mais detalhes. Adam?

A cena mudou do parque destruído pela tempestade para um detetive sentado atrás de uma mesa em um escritório de aparência comum. Neferet o reconheceu como o policial que fora irritantemente compreensivo com Zoey Redbird no passado. Ela fez uma careta enquanto assistia à entrevista.

– Detetive Marx, o senhor poderia nos explicar essas duas mortes adicionais em Woodward Park, e responder se o senhor realmente excluiu a possibilidade de as mortes terem sido caudadas pela tempestade?

– Os corpos dos dois homens, ambos na casa dos quarenta anos, foram descobertos na manhã de ontem. A causa da morte foi a mesma para os dois homens: contusão e hemorragia.

Neferet sorriu, decidindo que aquele era um excelente aquecimento para a carnificina que eles logo descobririam.

– E é verdade que o senhor prendeu alguém que confessou ter cometido os crimes?

Neferet ergueu as sobrancelhas.

– Confessou os assassinatos? Está presa? Isso é impossível.

– Sim, é muito triste ter de informar que uma jovem novata, a quem conheço pessoalmente, se apresentou por livre e espontânea vontade para confessar que assassinou os dois homens.

– Uma novata! – explodiu Neferet levantando-se da chaise e gritando com a tela da televisão.

– O senhor pode informar o nome de tal novata?

– Zoey Redbird .

Neferet gritou, pegou um dos abajures elétricos que tinha tirado da tomada e o atirou contra o aparelho de televisão.

– Aquela garota tola e fraca acredita que matou aqueles dois homens? Eu os encontrei a poucos metros do meu santuário, e seu sangue serviu para me alimentar para que pudesse ir ao grande banquete na Boston Avenue Church. Zoey Redbird matando dois homens adultos? Que grande bobagem! Ela não tem o ímpeto necessário para matar ninguém! E realmente confessou o assassinato? Aquela garota é uma idiota ainda maior do que eu imaginei.

Neferet jogou a cabeça para trás e sua gargalhada debochada ecoou pela cobertura.

Neferet assumira a sua posição no meio da graciosa escadaria dupla do salão principal do Mayo Hotel. Adorava a ironia de estar no mesmo lugar onde tantos humanos iludidos fizeram seus votos matrimoniais.

– Um pacote de macarrão tem validade maior do que a maioria dos casamentos humanos, sabia?

Ela sorriu para a multidão reunida sobre o piso de mármore preto e branco. Havia ordenado que diminuíssem as luzes e que grandes candelabros fossem posicionados e acesos em cada um dos lados. Sabia que sua beleza era divina, complementada pelo brilho de seu vestido à carícia da luz das velas.

Ordenou que metade dos seus vinte súditos a cercasse, embora sem entrar na plataforma em que se encontrava. Os outros dez humanos possuídos estavam posicionados na entrada do seu Templo. Ela dera a eles apenas uma ordem: ninguém poderia entrar ou sair.

Seus filhos das Trevas se contorciam à sua volta, invisíveis para os humanos que a olhavam boquiabertos, mas reconfortantes para ela com sua avidez familiar.

– Ah, vocês estão certos em não responder. Essa pergunta realmente não é uma forma digna de uma Deusa se dirigir pela primeira vez aos seus escolhidos. Permitam que eu comece de novo.

Neferet se posicionou na frente do seu trono, abriu os braços em um gesto amplo e começou:

– Atenção! Eu sou Neferet, a Deusa das Trevas, a Rainha de Tsi Sgili. Transformei este hotel no meu Templo das Trevas, e vocês, poucos afortunados, serão meus súditos fiéis, os meus escolhidos. Em troca, recompensarei sua adoração removendo as preocupações do mundo comum de vocês. Não mais precisarão trabalhar em empregos sem sentido. Não precisarão voltar para casamentos tediosos nem para filhos mal-agradecidos. De hoje em diante, até a sua morte, seu único objetivo será me adorar. Regozijem-se, humanos!

Seu discurso foi seguido por um longo momento de silêncio absoluto e, então, a multidão começou a se agitar nervosamente, aos sussurros.

Neferet aguardou pelo que sabia que viria a seguir, e isso manteve o sorriso no seu rosto. Gostava muito de ensinar lições de vida aos humanos.

Conforme previsto, Neferet não precisou esperar muito tempo. Uma mulher deu um passo à frente. Era alta e tinha cabelo castanho – devia estar no final da meia-idade, embora estivesse bem conservada e parecesse estar em forma, como uma mulher que se exercita diligentemente para se manter jovem. Usava um vestido de bom gosto e corte meticuloso em um tom bonito de verde-esmeralda.

– Onde você comprou esse vestido adorável? – perguntou Neferet à humana antes que ela tivesse a chance de dizer qualquer coisa.

A mulher piscou, obviamente surpresa com a pergunta, mas respondeu:

– É um Halston. Comprei na Miss Jackson’s.

– Kylee – chamou Neferet, olhando para o lugar em que a garota se encontrava aos pés da escadaria, com uma aparência serena de um robô. – Anote. Vou precisar que você vá até a Miss Jackson’s e escolha diversos vestidos para mim. Certifique-se de incluir modelos Halston.

– Sim, Deusa – entoou Kylee, sem emoção.

Neferet franziu o cenho, olhando para Kylee. Será que realmente queria que aquela garota escolhesse os seus trajes? Ela não devia ter mais do que vinte anos e se o seu corte de cabelo fosse uma indicação do seu senso de moda, seria realmente um desastre...

– Tudo bem, você tem que explicar o que realmente está acontecendo aqui. Eu não tenho tempo para isso. – Recuperando-se da sua surpresa, a mulher com o vestido verde-esmeralda interrompeu os pensamentos de Neferet, batendo com o pé no chão para demonstrar sua impaciência. – Eu tenho um jantar marcado no Summit Club, e pegar um avião para Nova York logo em seguida.

– Já expliquei a situação para vocês – disse Neferet. – Agora eu sou a sua Deusa. Você não vai jantar no Summit Club nem vai voltar para Nova York. A não ser que eu mande que você faça alguma coisa para mim. O seu único trabalho é me adorar. Em troca, eu acabarei com as suas angústias e preocupações mundanas. Qual é o tamanho desse vestido? Trinta e oito ou quarenta?

– Sério? Essa é uma piada de muito mau gosto. Frank Snyder está por trás disso, não é? Frank? – A mulher ignorou Neferet e chamou pelo homem, procurando ao seu redor, como se esperasse que ele fosse aparecer. – Ela está vestida como uma diva de cinema. Deixe-me adivinhar: ela vai cantar “Smoke gets in your eyes” pelo meu aniversário, não é? Como é que você encontrou uma vampira para contratar? Ou será que essas tatuagens foram pintadas?

A mulher girara em torno de si e novamente encarava Neferet, olhando para ela como se estivesse considerando apagar suas tatuagens.

Neferet se deu conta de que sua paciência chegara ao fim.

– Escolhidos, permitam que esta seja uma lição para vocês. Eu não sou uma piada. Eu sou a sua Deusa. Poderosa, possessiva, imortal e onisciente. Eu sou praticamente destituída de paciência, nunca aturo tolos. – Neferet se inclinou para a frente e pousou a mão no balaústre de ferro. Encontrou o olhar da mulher e invadiu a sua mente desprotegida. – Então, o seu nome é Nancy, e hoje é o seu aniversário. – O sorriso de Neferet era felino. – E você está fazendo cinquenta e três anos, embora diga aos amigos que tem quarenta e cinco.

O corpo da mulher estremeceu e ela arfou, chocada com a violação, mas impotente para resistir.

– Como você sabe disso? E como se atreve?

Neferet fez um som alto de admoestação, meneando a cabeça.

– Uma vida de tantas privações em nome da beleza. Será que ninguém lhe explicou que, não importa o que faça, você é humana e os humanos envelhecem? Nancy, você deveria ter comido mais massa, bebido mais vinho, dormido com o filho caçula do seu vizinho mais do que duas vezes e deixado o seu odioso marido quando ele teve o primeiro caso vinte anos atrás. E, Nancy, eu sei dessas coisas porque eu sou uma Deusa. Eu me atrevo a dizer essas coisas porque eu sou a sua Deusa, embora você, obviamente, não me mereça.

As pessoas em volta de Nancy se mexeram, como se quisessem se afastar dela, mas ainda estavam com expressões pasmadas e confusas de descrença em seus rostos bovinos.

– Seria inteligente se afastarem de Nancy. Eu sei que o meu Templo conta com instalações de lavanderia, mas não há motivo para mancharem desnecessariamente as suas roupas. – As pessoas mais próximas de Nancy se afastaram mais dela. Neferet sorriu, encorajando-os enquanto pegava uma das gavinhas que envolviam os seus pés descalços. Era satisfatoriamente pesada e grossa, e a sua pele gelada e emborrachada pulsava contra o seu corpo enquanto envolvia o seu braço. – Mate Nancy. Faça-a sofrer. Ela encheu a própria vida de sofrimento, então o sofrimento na morte deve ser um conforto para ela. – Neferet disse aquilo com carinho para seu filho. – Permita que seja visto.

Ela atirou a criatura em Nancy. A entidade tornou-se visível no ar. A multidão arfou e exclamou, mas logo começou a gritar quando a gavinha se enrolou no pescoço de Nancy e começou lentamente a cortar sua carne até arrancar a cabeça da mulher.

A multidão se descongelou e, gritando em pânico, seguiu em direção à saída.

– Eu não lhes dei permissão para sair! – Cheia de poder imortal, a voz de Neferet ecoou pelo amplo salão. – Meus filhos, permitam que meu povo veja vocês.

O ninho de Trevas ao seu redor se ondulou e se tornou visível, mas poucas pessoas notaram. Estavam ocupadas demais olhando, horrorizadas, para as cabeças negras das gavinhas, que haviam possuído a equipe e que, ao comando de Neferet, tornaram-se visíveis dentro das bocas escancaradas de cada um dos humanos robôs que guardavam as saídas.

Neferet fez outra nota mental – ela tinha de se certificar de recompensar os filhos que se ofereceram para a tediosa tarefa de possuir a equipe. Eles estavam sendo tão obedientes e compreensivos. Um outro banquete logo teria de ser providenciado para eles.

Sentiu um feixe de poder deslizar pelo seu corpo e voltou sua atenção para Nancy, cuja cabeça já estava separada do corpo. Havia tanto sangue, porém, que a gavinha não conseguia se alimentar rápido o suficiente. Neferet suspirou. O piso de mármore reluzente ia ficar manchado. Será que tinha de fazer tudo?

– Alimentem-se dela rapidamente! – ordenou aos filhos mais próximos. – Não tolerarei bagunça no meu Templo. – Então, suspirou mais uma vez e voltou sua atenção para o público em pânico. – Vocês estão começando muito mal! – exclamou ela. – Em troca de uma vida repleta de um novo objetivo, tudo o que peço em troca é a sua obediência e adoração. Nancy não me deu nada disso e vejam o que aconteceu com ela. Que isso sirva de lição para cada um de vocês.

– O que são essas criaturas? – perguntou um homem baixo e gordo, obviamente tentando controlar o medo enquanto acariciava o braço de uma mulher igualmente baixa e gorda e que enterrara o rosto no seu casaco enquanto soluçava.

– Estes são os meus filhos, formados por Trevas, e leais somente a mim.

– Por que eles estão dentro da boca daquelas pessoas? – quis saber ele.

– Porque aquelas pessoas fazem parte da minha equipe de trabalho e elas também devem ser leais apenas a mim. A possessão é muito mais eficiente do que cortar as suas cabeças. Agora, vocês viram como tudo será muito mais simples se vocês fizerem o que eu mandar?

– Mas isso é loucura! – gritou um homem no fundo do salão. – Você não pode esperar que nós fiquemos aqui e a adoremos, não é? Nós temos as nossas vidas, nossas famílias. Pessoas que sentirão a nossa falta.

– Tenho certeza de que sentirão mesmo, mas como eles são pessoas , e não imortais, isso não me preocupa. Mas se vocês forem muito, muito, mas muito bons mesmo, eu talvez lhes dê permissão para trazer a suas famílias para se juntarem a vocês.

– Você não pode fazer isso – disse uma mulher aos soluços. – A polícia vai nos salvar.

Neferet deu uma gargalhada.

– Ah, eu espero que sim. Estou ansiosa por este confronto. Garanto a vocês que o Departamento de Polícia de Tulsa não sairá vitorioso.

– E agora? O que nós vamos fazer? Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! – berrou outra mulher.

– Façam com que ela se cale! – ordenou a Deusa, e uma gavinha voou em direção à mulher, envolvendo seu rosto e tapando sua boca. Ela caiu no chão enquanto se contorcia.

Neferet soltou um longo suspiro de alívio quando não apenas os gritos da mulher cessaram, mas todo o grupo em pânico também se calou. Ela passou a mão pelo vestido perfeitamente ajustado ao seu corpo e, usando um tom calmo para os súditos apavorados, falou:

– Vocês devem aprender estas lições agora. – Ela fez um gesto com os dedos longos como se estivesse marcando itens em uma lista. – Eu não tolero histeria. Não tolero deslealdade. Também não sou muito chegada a homens brancos de meia-idade. Agora, eu preciso de sessenta voluntários para resolver negócios muito importantes na cobertura.

Ninguém se mexeu. Ninguém a olhou nos olhos. Neferet suspirou novamente e acrescentou:

– Eu não vou usar nenhum dos voluntários como alimento.

Uma jovem ergueu a mão trêmula.

– Sim, querida. Qual é a sua pergunta? – concedeu a Deusa.

– Você vai dizer para essas cobras entrarem nas nossas bocas?

Neferet sorriu docemente para a garota.

– Não, eu não vou fazer isso.

– Ent... Então, eu sou uma voluntária.

– Muito bem! – elogiou Neferet. – E qual é o seu nome?

– Staci.

– Não, eu vou chamá-la Gladys, que é um nome muito mais digno, você não acha?

A jovem logo concordou com a cabeça.

– Então, Gladys, fique do lado esquerdo do salão de oferendas. Agora, eu quero mais cinquenta e nove pessoas tão entusiasmadas quanto Gladys para se juntarem a ela.

Quando ninguém mais se mexeu, Neferet usou um tom de raiva e gritou:

– Agora!

Como se tivessem sido atingidos por um chicote, um grupo de humanos se sobressaltou e se juntou à primeira voluntária.

– Kylee, conte quantos humanos há e me informe quando houver sessenta.

Cada vez mais impaciente, Neferet esperou. Por fim, Kylee declarou:

– Temos sessenta voluntários, Deusa.

– Muito bem. Seja uma fofa, Kylee, e leve-os até a minha cobertura. Faça com que esperem na varanda pelas minhas ordens. Ah, e abra várias caixas de champanhe. Seja generosa. Meus voluntários devem ser recompensados.

Parecendo confusos, mas aliviados, os sessenta humanos entraram nos elevadores. Neferet voltou a sua atenção para os adoradores restantes. Eles a olhavam como se esperassem que uma guilhotina estivesse prestes a descer sobre as suas cabeças.

– Seria muito mais fácil usar a possessão em todos vocês. Instruir humanos dos tempos modernos a como adorar uma Deusa será uma tarefa extremamente tediosa – murmurou ela para si mesma, enquanto batia com os dedos no balaústre.

Uma mulher que estava próxima o suficiente para ouvi-la deu vários passos em direção à escadaria e, então, atraindo o olhar da Deusa, fez uma reverência profunda e elegante. Neferet ergueu as sobrancelhas. Analisou a mulher que se mantinha em reverência, com a cabeça respeitosamente curvada. Era mais velha do que Nancy, mas não muito. E embora estivesse bem-vestida, com um terninho bem cortado e caro, parecia ter a própria idade.

– Pode se levantar – permitiu Neferet por fim.

– Eu agradeço, Deusa. Será que a senhora me daria permissão para que eu me apresentasse?

– Vá em frente – concedeu, bastante intrigada.

– Eu sou Lynette Witherspoon, dona da Everlasting Expressions. Gostaria de lhe oferecer os meus serviços.

– Lynette. Sim, o seu nome não me ofende. Você pode mantê-lo. E o que é exatamente a Everlasting Expressions?

– É a minha empresa. Ofereço serviços de planejamento de eventos, coordenação e decoração para uma clientela seleta – explicou a súdita.

Neferet apreciou o orgulho e a confiança na sua voz.

– E o que você propõe para mim?

– Tudo – respondeu Lynette com voz firme. Ela olhou em volta do salão para as pessoas reunidas atrás dela, antes de lançar um olhar sincero para Neferet. – Creio que a adoração de uma Deusa seja um evento constante da maior importância, que deve ser dirigido com bom gosto e sem percalços. Se me der a sua permissão, garanto que a sua adoração será uma sucessão de eventos espetaculares.

– Interessante... – refletiu a Deusa. – Lynette, você não se importa se eu vislumbrar suas reais intenções, não é? – Embora tenha dito aquilo em tom de pergunta, Neferet não esperou pela resposta da súdita. No entanto, invadiu a mente da mulher de maneira mais gentil do que fizera com Nancy.

O que descobriu lhe fez sorrir.

– Lynette, você é uma oportunista.

– S-sou – confirmou ela, um pouco trêmula, depois que a Deusa saiu da sua mente.

– E você odeia os homens. – O sorriso dela se abriu mais.

– Eu não tenho poderes, então posso apenas imaginar, mas acredito que a senhora compreenda esse ódio – respondeu a mulher.

– Eu gosto de você, Lynette. Permitirei que gerencie o planejamento da minha adoração.

Lynette fez outra reverência profunda.

– Eu lhe agradeço, Deusa.

– E qual será a sua primeira ação? – Neferet sentia uma curiosidade quase incontrolável sobre as intenções daquela humana incomum.

– Bem – começou ela, batendo com a mão no seu coque e analisando as pessoas que estavam em silêncio atrás dela –, todos os eventos começam com duas coisas: roupas adequadas e decoração correta.

– Só tenho uma exigência: deslumbre-me – ordenou a Deusa.

– Sim, Deusa – respondeu a mulher em tom respeitoso.

– E quanto a vocês, meus súditos – disse Neferet, dirigindo-se para o seu rebanho –, façam tudo o que Lynette mandar. – Neferet dirigiu o olhar para Lynette e acrescentou: – Desde que ela não mande que tentem sair do meu Templo.

– Eu não pensaria uma coisa dessas, Deusa – apressou-se a humana em responder.

– Ah, minha querida, você pensou nisso. Você só se deu conta de como isso seria imprudente.

Lynette curvou a cabeça.

– Touché , Deusa.

– Agora, deixarei vocês, meus súditos, nas mãos capazes de Lynette. Vou para a minha cobertura me preparar para...

A saída de Neferet foi interrompida pelo mensageiro alto, Judson, chamando de seu posto em frente das portas fechadas e acorrentadas do Mayo Hotel.

– Deusa! A polícia está aqui!


5

Lynette

– Socorro! Polícia! Ela está nos mantendo presos aqui! – Uma garota que Lynette reconheceu como sendo a dama de honra do casamento espetacularmente caro da noite anterior começou a gritar, desvencilhando-se da equipe possuída, esmurrando o grosso vidro das portas dianteiras.

– Por que será que eu sempre tenho que fazer tudo? Equipe, todos vocês, exceto Judson, levem esses humanos para o porão!

A voz de Neferet estava cheia de veneno, e a equipe do hotel reagiu como se tivesse levado um choque elétrico. Começaram a reunir o grupo de pessoas aterrorizadas em direção à saída de emergência. A vampira flutuou pela escadaria e pelo piso do salão, passando tão próxima de Lynette que o vestido púrpura encostou nos seus pés. Lynette se afastou, tentando se esconder nas sombras e evitar ser levada com o resto do rebanho, mas Neferet falou com ela:

– Você, venha comigo. Eu não quero que você perca o evento que eu estou planejando.

– Como desejar, Deusa.

Lynette se empertigou, controlou o medo e seguiu a vampira. Não importava o que acontecesse, ela não ia terminar seus dias como aqueles pobres otários da equipe do hotel com aquelas cobras nojentas da vampira saindo pela boca. E também não faria nada idiota para acabar tendo a cabeça decepada. Ela sobrevivera a uma mãe alcoólatra e abusiva e à infância pobre para construir um império para si. Tinha dinheiro e status social. Dirigia uma Mercedes-Benz S-Class e era proprietária de uma casa de quase seiscentos metros quadrados em Eight Acres, o condomínio mais caro e exclusivo no centro de Tulsa. Passava as férias na França e só viajava de primeira classe. Ela poderia muito bem sobreviver a uma vampira doida com delírios de imortalidade e sedenta por poder, e ainda encontraria uma maneira de sair lucrando com a situação.

Neferet chegou até a garota que berrava.

– Você não é uma súdita adequada! – Com uma força sobrenatural, ela agarrou um punhado do cabelo louro tingido da garota e puxou sua cabeça para trás até que Lynette tivesse certeza de que o pescoço se partiria. Então, apontou para a boca aberta da garota. – Possuam-na!

Lynette queria afastar o olhar, mas não conseguiu. A cobra negra mergulhou na boca da dama de honra. Os olhos dela se reviraram de forma que só dava para ver a parte branca, o corpo totalmente inerte. Ela só não caiu no chão porque Neferet a segurava pelos cabelos.

– O seu nome será Mabel. Quando eu mandar, você virá de boa vontade até mim – rosnou a Deusa, erguendo o rosto da garota inconsciente até que ficasse a um dedo de distância do dela.

Um ligeiro piscar de olhos. Como se a vampira tivesse ligado um botão, o terror no rosto da garota desapareceu, deixando apenas uma expressão vidrada, mas atenta, em seus olhos.

– Sim, Deusa – entoou ela sem qualquer emoção.

Aquelas cobras horríveis têm total controle de quem quer que possuam , pensou Lynette. Não a mim , prometeu para si mesma. Não farão isso comigo. Eu prefiro morrer a terminar assim!

Neferet soltou a garota. Ela cambaleou como se estivesse desequilibrada, mas conseguiu manter-se de pé. A vampira passou a mão pelo cabelo perfeito e tirou alguma migalha invisível do seu ombro. Então, encarou Lynette.

– Você sabe o que vai acontecer se me decepcionar e acabar não se mostrando uma súdita adequada.

Lynette não afastou o olhar dos olhos verdes-esmeralda de Neferet. Mergulhou em uma reverência profunda que a vampira tanto apreciara antes.

– Eu não a decepcionarei, Deusa.

Sentiu o deslizar doentio de Neferet entrando em sua mente e concentrou os pensamentos nos fatos – ela não tinha a menor intenção de fazer qualquer coisa que levasse a vampira a se voltar contra ela.

– Logo, logo, você acreditará que eu sou uma Deusa, e que o seu destino é me servir. – Antes que Lynette tivesse a chance de comentar, Neferet virou de costas, ordenando: – Judson, desacorrente a porta da frente. Lynette, venha comigo. Meus filhos, não permitam que sejam vistos, mas prestem atenção em mim!

Com um som que trazia à mente de Lynette a recordação de antigas fortunas e opulência, as portas duplas e austeras de latão e de vidro se abriram e Neferet saiu, com Lynette logo atrás, tão perto que conseguia sentir o frio horripilante que emanava das cobras invisíveis.

Havia dois carros do Departamento de Polícia de Tulsa e um carro de passeio parados na pequena entrada circular diretamente em frente ao hotel. Quatro policiais uniformizados conversavam com um homem alto de roupas comuns que estava, obviamente, no comando, o que significava que ele era algum tipo de detetive. Com o aparecimento de Neferet, o grupo rapidamente voltou sua atenção para a bonita vampira. O detetive fez sinal com a cabeça para os outros, que deram alguns passos para trás e se posicionaram atrás dele, enquanto, com a expressão séria, começou a se aproximar de Neferet.

– Não, eu quero que você permaneça perto dos carros – declarou Neferet.

Ela estava próxima às portas, em pé sob o toldo de ferro, marca registrada da entrada do Mayo. Deu um pequeno passo para o lado e envolveu o ombro de Lynette com o braço e a empurrou. Lynette não precisava ser vidente para compreender o que a vampira queria que fizesse. Sem hesitar, deu um passo para a frente e se colocou entre Neferet e a polícia. A mão de Neferet se manteve em seu ombro, e ela sentia as unhas duras e afiadas da vampira pressionadas contra a pele do seu pescoço, bem acima da artéria que ali pulsava forte e rápido.

Lynette ficou completamente parada.

O homem alto hesitou apenas por um momento, embora aquele instante tenha parecido durar uma eternidade para Lynette. Então, os policiais deram vários passos para trás.

– Isso, assim está bem melhor. – Lynette detectou o sorriso na voz de Neferet. – Agora podemos conversar de maneira mais educada. Detetive Marx, que gentil da sua parte vir me visitar. Está uma tarde adorável, não acha? É como se a tempestade de ontem tivesse limpado a cidade.

Neferet falava em um tom afável, mantendo a mão descansando sobre o ombro de Lynette.

– Neferet, eu tenho que fazer algumas perguntas a você. Será que não prefere vir para a delegacia comigo em vez de ser interrogada aqui?

O suspiro de Neferet demonstrou uma decepção exagerada.

– Então, não podemos ser corteses um com o outro socialmente?

– Você sabe muito bem que, em circunstâncias normais, não tenho o menor problema com cortesia. Nós dois já trabalhamos juntos de forma amigável antes. Mas o que aconteceu ontem em Tulsa foi bem além do normal, e eu não tenho tempo para cortesia. – Ele fez uma pausa antes de gesticular em direção à Lynette. – E acho bem irônico você estar reclamando sobre questões de cortesia quando tem uma refém bem diante de si.

A pressão da unha de Neferet sumiu imediatamente, e a vampira afastou a mão do pescoço de Lynette, fazendo um carinho íntimo em seu rosto.

– Detetive, você não poderia estar mais enganado. Lynette, você é minha refém?

– Não, Deusa – respondeu ela, meneando a cabeça e esforçando-se para agir como se aquilo fosse algo corriqueiro, servir como escudo-humano de uma vampira psicótica. – Eu sou uma súdita por livre e espontânea vontade.

– Aí está. Viu? Está tudo bem. Lynette só está aqui porque ela me adora. Mas por que você, detetive Marx, está aqui? As perguntas que o trazem têm a ver com Woodward Park ou com a Boston Avenue Church?

Lynette viu os olhos do detetive se estreitarem.

– O que você sabe sobre Boston Avenue Church?

Neferet deu uma gargalhada.

– Tudo! Pode perguntar qualquer coisa. Você quer saber por quanto tempo aquele projeto de pastor gritou antes de eu matá-lo? Ou por que a esposa do conselheiro estava sem o seu lindo terninho branco Armani, o qual, coincidentemente, era do meu tamanho, quando você encontrou o seu corpo drenado e sem vida do lado de fora do seu santuário? Veja bem, é muito difícil remover manchas de sangue de um tecido de qualidade.

Enquanto a vampira falava, Lynette observava a mudança nos policiais. Primeiro, os seus rostos denunciaram que eles estavam em choque e, depois, sacaram suas armas, enojados e zangados.

A arma do detetive apontou para o seu ombro direito.

– Lynette – disse ele. – Caminhe diretamente para nós e mantenha as mãos onde possamos vê-las.

Lynette sabia que não importava nem um pouco o fato de Neferet não estar tocando nela.

– Não, obrigada – respondeu ela, conseguindo, de alguma forma, evitar que a voz saísse trêmula. – Estou bem aqui com a Deusa.

– Mas do que é que você está falando? – explodiu um dos policiais. – Ela é uma porra de uma vampira que assassinou um monte de fiéis numa igreja! Ela não é uma merda de uma deusa.

– Lynette, eu não gosto de pessoas desbocadas. E você? – quis saber Neferet.

Prendendo a respiração, deu a única resposta que poderia. Meneou a cabeça e disse:

– Não, eu não gosto.

Neferet inclinou a cabeça para o lado e analisou o policial que tinha falado. Lynette viu o corpo dele se retorcer.

– Policial Jamison, será que palavrões permeiam sua mente enquanto tem fantasias com a sua enteada de dez anos de idade? E quando você a observa dormindo e admite para si mesmo que daqui a alguns dias você vai transformar seus desejos em realidade?

O policial empalideceu.

– Isso é uma porra de uma mentira! – exclamou.

– Mais profanação. “Parece-me que o lorde faz protestos demasiados” [*] – declarou Neferet. Então, ela se voltou para Lynette em tom conspiratório. – É uma citação, mas acho perfeitamente adequada à situação, você não acha?

– Acho – concordou Lynette, observando o policial de perto.

O homem estava rubro e parecia prestes a explodir a qualquer momento – e Lynette se deu conta de que Neferet não o estava provocando nem inventando nada daquilo. Ela deslizara pela mente dele e revelara o seu segredinho sujo.

– Sua vaca filha da puta! – berrou o policial Jamison.

– Já chega! – ordenou o detetive Marx, dirigindo-se ao homem uniformizado.

Então, sua atenção se voltou para Lynette e Neferet, falando de maneira clara e calma que fez Lynette desejar poder correr da loucura da vampira e direto para a proteção dele.

– Lynette, se você escolher ficar com Neferet, então vai fazer companhia a ela numa cela de cadeia. Neferet, você está presa pelo assassinato de toda a congregação da Boston Avenue Church.

A risada de Neferet foi seca e cruel.

– Você nem consegue fazer a acusação contra mim de forma correta, detetive.

– Você acabou de confessar esses assassinatos! – exclamou Marx.

Ele perdeu o tom profissional e objetivo que mantivera até aquele momento. Com um terrível aperto no estômago, Lynette se deu conta da verdade inacreditável – Neferet massacrara toda uma igreja cheia de inocentes.

Teve de segurar as mãos em frente de si para evitar que tremessem.

– Você tem uma mente tão decepcionantemente tacanha, detetive Marx. O que eu fiz naquela igreja não foi assassinato, foi sacrifício, e foi glorioso! Queria que você estivesse lá como testemunha, mas se estivesse lá , não estaria aqui para testemunhar o início do meu reinado. Ah, mas eu estou divagando. As suas acusações estão incorretas porque estão incompletas. Você se esqueceu de acrescentar o lanchinho que fiz com o seu prefeito algumas noites antes.

A expressão no rosto do detetive Marx era uma máscara de ódio.

– Meus instintos avisaram que os vampiros da Morada da Noite estavam dizendo a verdade sobre você ser a responsável pela morte do prefeito.

– Pelo menos uma vez, os seus instintos estavam corretos. Mas permita que eu continue com a minha confissão. É uma pena que não havia ninguém em Woodward Park para testemunhar minha saída triunfal de meu agradável recanto, enquanto eu descobria dois homens deliciosamente confusos praticamente implorando para que eu drenasse seu sangue.

Os olhos do detetive se arregalaram e Neferet zombou:

– Eu não sei o que é mais inacreditável, aquela energúmena da Zoey Redbird ter criado a ilusão de que matara os homens para logo em seguida correr pateticamente para você e se entregar, ou você realmente ter acreditado que aquela insípida tivesse coragem o suficiente para matar alguém. De qualquer modo, a situação não é muito favorável para suas habilidades de dedução.

Lynette viu que os policiais uniformizados, até mesmo Jamison, empalideceram diante da admissão direta de culpa de Neferet, mas o rosto do detetive Marx endureceu, formando linhas de teimosia.

– Neferet, permitirei que faça uma ligação para o Conselho Supremo, mas você deve se entregar agora e se preparar para arcar com as consequências dos seus atos.

– O Conselho Supremo tem ainda menos jurisdição sobre mim do que você – declarou Neferet. – Eu não sou vampira. Eu sou a Deusa das Trevas, Rainha de Tsi Sgili. E não vou nunca mais me curvar diante de qualquer autoridade. Você, Tulsa e o resto do mundo vão me adorar, é meu direito divino. Observem e aprendam. Mabel, venha até aqui.

A garota obedeceu imediatamente. Caminhou pelas portas que Judson abrira para ela e ficou ao lado de Neferet.

– Mais reféns não ajudarão você a se livrar disso! – exclamou o detetive Marx.

– Eu disse: observem e aprendam, humanos! Eu não tenho reféns, apenas súditos obedientes. Agora, observem o seu futuro!

Neferet abriu os braços para a garota que chamava Mabel. Lynette teve de dar um passo para o lado enquanto Mabel se apressava, de boa vontade, para abraçá-la.

– Se eu sou a sua Deusa, sacrifique-se por mim.

Com uma curiosidade mórbida, Lynette observou, perguntando-se o que a garota estaria disposta a fazer. Ela só teve segundos para pensar.

– A senhora é minha Deusa – afirmou a garota de forma mecânica e, então, começou a arranhar o próprio pescoço fazendo com que o sangue escorresse pelos ferimentos.

– Agora, sim, este é o comportamento esperado de uma súdita adequada. – Neferet se inclinou para beber o sangue da oferta. A garota arfou e estremeceu, mas, em vez de tentar escapar, ela exclamou com uma voz cheia de êxtase:

– Obrigada, Deusa

– Que delicadeza a sua – elogiou Neferet, seus lábios a centímetros do pescoço de Mabel. Antes de começar a se alimentar do sangue dela, Neferet ordenou: – Proteja-nos!

Instantes depois, houve um barulho ensurdecedor de tiros. Lynette se jogou no chão, encolhendo-se e colocando o braço sobre a cabeça numa vã tentativa de se proteger.

Ouviu uma lamúria de dor e, então, os policiais começaram a gritar. Tremendo violentamente, Lynette espiou por entre os braços. Neferet estava se alimentando da garota, ignorando o caos que acontecia diante deles.

Aparentemente, os tiros destinados a Neferet – e à própria Lynette – ricochetearam em algum escudo conjurado pela vampira e atingiram diretamente o corpo do policial desbocado.

– Ai, meu Deus – sussurrou Lynette.

– Será que você não quer dizer “ai, minha Deusa ”? – Neferet, com os lábios vermelhos do sangue da garota, sorriu para ela.

– Sim, é o que quero dizer – respondeu ela, sentindo-se tonta.

Neferet soltou a garota e Mabel caiu pesadamente no chão. Então, ela estendeu a mão para Lynette, que a pegou, e se levantou, trêmula.

– Não tema, não permitirei que eles a machuquem. Não permitirei que machuquem qualquer pessoa que seja leal a mim – afirmou.

A vampira voltou sua atenção para os policiais. Eles arrastaram o corpo cravejado de balas de Jamison para trás dos carros, onde o restante dos homens estava agachado. Lynette ouvia o som da estática dos rádios enquanto chamavam uma ambulância e pediam reforços.

– Você entendeu agora, detetive Marx? Aprendeu a sua lição?

– Aprendemos que você é uma assassina! – exclamou ele. – Ainda não terminamos. Este não é o fim.

– Pelo menos uma vez você está certo. Ainda não terminei aqui. Esse é só o começo. Observe e aprenda. Observe e aprenda – repetiu ela. – Ah, olhe para cima! Meus filhos, venham comigo!

Dando os braços para Lynette, entraram novamente no Mayo Hotel.

– Judson, acorrente as portas novamente.

– Sim, Deusa. Mas isso não os manterá lá fora por muito tempo.

– Eu sei disso! Limite-se a fazer o que eu ordenei. Como sempre, terei de tomar conta dos detalhes sozinha.

– Sim, Deusa.

– Lynette, gostaria que você se juntasse a mim na minha cobertura. Um evento espetacular está prestes a acontecer lá.

– Sim, Deusa – respondeu Lynette, entrando no elevador com ela.

O sorriso de Neferet era confiante.

– Você está quase acreditando que eu sou divina.

Lynette não respondeu. O que poderia dizer que Neferet não pudesse retorquir esquadrinhando a sua mente e descobrindo a verdade? Então, novamente, deu a única resposta possível:

– Estou aqui para servi-la.

– E assim será.

As portas se abriram para a cobertura.

– Kylee, Lynette está um pouco pálida, sirva para ela uma taça do melhor vinho e leve até a varanda.

Neferet passou por Kylee, com Lynette seguindo logo atrás, e abriu as portas para se juntar às sessenta pessoas que estavam reunidas em grupos amedrontados na varanda. Muitos estavam próximos à balaustrada que emoldurava a ampla extensão das portas para o lado de fora; pela expressão nos seus rostos, ficou claro que tinham ouvido os tiros e viram o que acontecera lá em baixo.

– Espere aqui, Lynette, e tome o seu vinho. Isso vai trazer um pouco de cor de volta ao seu rosto. Não posso permitir que a minha súdita favorita fique com uma aparência abatida e doentia – declarou Neferet.

Então, ela caminhou até o parapeito de pedra, fazendo com que as pessoas mais próximas a ela se afastassem, assustadas.

– Já que a educação moderna é de péssima qualidade, sinto que é meu dever, como a sua Deusa, dizer isto a vocês – ela fez uma pausa e apontou para as pedras esculpidas –: o nome disso é balaustrada. Os suportes grossos e com espaçamento uniforme, aqui e aqui – ela apontou novamente –, chamam-se balaústres. É uma feliz coincidência que haja exatamente sessenta balaústres espaçados em torno da varanda da cobertura do meu Templo. Eu quero que cada um de vocês escolha um balaústre e se posicione diretamente em frente a ele.

– Você... Você não vai nos obrigar a pular, não é? – quis saber uma velha aterrorizada.

– Não, Vovó – respondeu Neferet com a voz calorosa. – Isso não faria nenhum sentido. Será que vocês não viram como eu protegi Lynette contra as balas mortais que a polícia atirou contra ela?

Seguiu-se um longo silêncio e alguém disse:

– Mas você comeu aquela outra garota.

– Mabel foi desobediente. Será que vocês querem o mesmo destino que ela teve?

Suas palavras tiveram um efeito instantâneo sobre as pessoas, que se espalharam, cada qual assumindo uma posição em frente a um balaústre.

– Excelente! Kylee, sirva mais champanhe enquanto eu tenho uma conversa em particular com os meus filhos das Trevas.

Lynette apreciava vinho tinto caro e costumava degustá-lo, bebendo-o devagar. Mas não naquele momento. Ela bebeu ruidosamente, pegando a garrafa da mão de Kylee quando a garota robótica passou por ela para buscar mais champanhe. Lynette sentiu-se grata pela sensação surreal e destacada que o álcool lhe provocava enquanto observava a vampira se mover para um canto sombrio da varanda, bem longe do parapeito, e se curvava para conversar com o que parecia ser absolutamente nada.

Lynette sabia que não era o caso. E, com certeza, apenas um segundo ou dois depois, o ar em volta dos pés da vampira se ondulou, como correntes de ar quente se erguendo do asfalto abrasado de uma estrada, e as cobras de Neferet ficaram visíveis. Lynette ficou satisfeita que a vampira estivesse distraída com os seus “filhos”, pois não conseguia evitar o estremecimento de nojo. Lynette se lembrou de um velho filme de faroeste ao qual assistiu quando criança. Nele, os cowboys tinham que levar o gado e, enquanto cruzavam o rio, um jovem caiu do cavalo, pousando no meio de um enorme ninho de cobras aquáticas para ser morto por elas, embora não rápido o suficiente. Parecia que Neferet estava no centro do ninho, só que as suas cobras eram maiores, mais negras e até mais perigosas do que qualquer uma das cobras do velho oeste.

O que será que elas eram? Com certeza, Lynette não sabia muitas coisas sobre vampiros. Mesmo que fosse capaz de aceitar fazer negócios com eles – já que eram reconhecidamente ricos –, jamais fora contratada por um. Estava longe de ser uma perita em vampiros, mas tinha certeza de que ouvira falar alguma coisa sobre essas criaturas mortíferas semelhantes a cobras. Seus familiares deveriam ser gatos, meu Deus, e não répteis.

Lynette se serviu de mais vinho e tomou um longo gole em sua taça, sentindo-se aliviada por seu rosto estar quente. Bom, o calor deixaria o seu rosto “corado” de novo. Lynette não tinha dúvidas de que a vampira seria capaz de matá-la se lhe desse na telha. Disfarçadamente, apertou o próprio rosto para se certificar de estar completamente corada.

Como ela ia sair daquela confusão? Nem estava mais se preocupando em lucrar com aquilo. Só queria escapar sem ser caçada pelos filhos de uma vampira insana.

– Excelente! – Neferet se empertigou, voltando sua atenção para as sessenta pessoas, cada uma diante de um balaústre na cobertura. – Agora que os meus filhos compreendem os meus desejos, estou pronta para compartilhá-los com vocês, meus leais súditos. – Ela se colocou no centro da varanda para que pudesse ser vista e ouvida por todos. – Kylee, chega de champanhe por ora. Fique ao lado de Lynette.

Kylee, é claro, fez conforme foi ordenada.

Lynette lançou uns olhares de esguelha para a garota. A sua boca estava fechada, ela não conseguia ver qualquer sinal da infestação da cobra, mas a garota estava claramente no piloto automático. Seus olhos estavam abertos, mas sem vida. O rosto não tinha expressão. Dessa vez, Lynette conseguiu evitar um estremecimento de asco. Quem poderia saber o que aquela coisa ao seu lado poderia contar para a vampira?

– Bem, eu tenho uma pergunta para vocês, uma a que qualquer um pode responder. Qual é a sua maior preocupação neste momento? – perguntou Neferet para as pessoas.

Lynette achou estranha sua capacidade de parecer uma pessoa tão normal, até boa. Era tudo fachada, mas uma fachada muito boa.

Ninguém respondeu à sua pergunta, e Neferet deu um sorriso caloroso e encorajador, dizendo:

– Ah, vamos lá! Eu sou a sua Deusa. É o meu dever e um prazer ouvir as suas preocupações. E, como meus súditos, é o seu dever compartilhá-las comigo. Por favor, não me obriguem a forçá-los a cumprir com as suas obrigações.

Um homem resolveu responder:

– A minha maior preocupação é que eu não quero ser morto... Ou coisa pior – declarou ele, lançando um olhar nervoso e rápido para o ninho das trevas que cercava e se contorcia em torno da vampira.

– Muito bom! Ótima resposta. Mais alguém tem a mesma preocupação?

Neferet parecia realmente se preocupar e até mesmo Lynette sentiu que sua cabeça assentia junto com a dos outros.

– Perfeito! – exclamou Neferet. – Eu sabia que a segurança seria a principal preocupação de todos. Agora, vejam bem, eu não estou admoestando vocês, nem estou zangada, mas a sua principal preocupação deveria ser cuidar de mim e me adorar. – Várias pessoas começaram a protestar, obviamente temendo o que a vampira faria em seguida, mas Neferet ergueu a mão e, com um gesto régio calou a todos. – Não, não, eu compreendo. De verdade. E é por isso que vou deixar bem claro que ninguém pode ferir os meus súditos, de modo que fiquem livres para me adorar.

Lynette achou irônico que Neferet tenha feito tal pronunciamento enquanto sirenes soavam cada vez mais próximas lá embaixo.

– Para assegurar aos meus súditos de que eles estão seguros, precisarei da ajuda de vocês. Façam exatamente o que eu mandar, e prometo que o meu Templo será impenetrável a qualquer um que nos queira ferir.

Lynette deu um suspiro suave. Pena que ninguém disse o que todos estavam pensando: não é com o mundo exterior que estamos preocupados – é com você! Mas, é claro, ninguém disse nada disso. Era a Neferet que todos temiam.

– O que precisam fazer é bem simples. Primeiro, cada um de vocês deve se virar de modo a olhar para o lado de fora da cobertura. – De forma lenta e relutante, as sessenta pessoas fizeram como ela ordenou, e agora estavam de costas para Neferet. – Agora, ergam os braços, fechem os olhos, limpem suas mentes e respirem fundo junto comigo. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. – Lynette ouviu as pessoas respirando com ela. – Quero que se concentrem na minha voz e não pensem em mais nada.

Neferet fez uma pausa para olhar em volta e ver se todos estavam nos devidos lugares. Quando os seus olhos encontraram os de Lynette, seus lábios carnudos se abriram em um sorriso cruel.

O estômago de Lynette se contraiu e ela temeu que fosse vomitar todo o vinho que consumira.

O olhar de Neferet se afastou dela e pousou nas cobras que se contorciam em torno dos seus pés.

– Meus filhos, chegou a hora! – As palavras que disse a seguir foram entoadas em um ritmo musical que era supreendentemente tranquilizador, de forma quase hipnótica.

Em um ataque rápido, promovam a defunção
para que aqueles lá embaixo conheçam a minha ira.
O poder é farto, consuma seu quinhão
Para mim uma perfeita jaula assim se cria.

Lynette conseguia sentir o poder crescendo a cada verso que a vampira entoava, e ela, assim como as outras sessenta pessoas que estavam congeladas com os braços erguidos, não poderia fazer nada, a não ser esperar pelo que aconteceria a seguir.

Para que este mundo eu possa reedificar
meu Templo deve ser divinal – poderoso.
Para a Deusa, somente sua lealdade deve imperar
E para Tulsa ofereçam um divino canto majestoso.

Pelo tempo que ainda vivesse, Lynette jamais seria capaz de apagar da memória a visão do que aconteceu em seguida. Com as palavras “divino canto majestoso”, Neferet ergueu os braços e, como se aquele fosse o sinal pelo qual estavam esperando, as cobras dispararam em direção às costas das pessoas despreparadas. Lynette prendeu a respiração, esperando que as serpentes subissem por suas pernas e as possuíssem, mas suas expectativas não poderiam estar mais erradas. Em vez de possuir as pessoas, as cobras – como se formassem um único ser – atingiram-nas todas no meio das costas, atravessando-as com tanta força que o sangue e as tripas explodiram como uma chuva vermelha fluindo com as gavinhas sobre a balaustrada de pedra. Sem acreditar, Lynette assistiu às criaturas descerem pelas laterais do Mayo Hotel, lavando-o com negrume e sangue, como se estivessem desenrolando uma cortina escura e gotejante.

Um som chamou sua atenção de volta à Neferet. Entorpecida, viu que a vampira ainda tinha os braços erguidos. Sua cabeça estava inclinada para trás e seu corpo estremecia em espasmos enquanto ela gemia num êxtase terrível. Lynette tinha certeza de que vira um brilho sombrio emanando e se expandindo em volta dela. De repente, compreendeu. É a morte das pessoas . De alguma forma ela está se alimentando de suas almas, assim como as suas criaturas se alimentam dos seus corpos.

E elas estavam se alimentando das pessoas que tinham acabado de morrer – todas as cobras que permaneceram na cobertura. Lynette sentiu que balançava a cabeça. Havia tantas delas. Muitas ainda.

Lynette ainda meneava a cabeça e observava as criaturas que se agitavam por entre os mortos, grudando neles como sanguessugas gigantescas, drenando tudo o que restava nos corpos inertes, quando o braço de Neferet baixou. Ela arrumou o vestido e, sem lançar um olhar sequer para nenhum dos sessenta voluntários, virou-se, sorrindo, aproximando-se de Lynette.

– Kylee, jogue os corpos pela balaustrada quando os meus filhos acabarem de se alimentar. Ah, e chame Judson e os outros membros de minha equipe. Eles não precisam mais proteger as portas. Estamos todos seguros. Nada poderá penetrar o véu das Trevas. Ninguém poderá entrar nem sair do meu Templo sem minha permissão. Então, mande que a equipe avise aos súditos restantes de que eles não precisarão mais ficar naquele porão sombrio. Eles podem voltar para os seus quartos sem medo. Eu já me certifiquei de que todos estejam protegidos. Contanto que me adorem. Já chegou a hora de começarem a me adorar.

– Sim, Deusa – respondeu Kylee, desaparecendo pela porta da cobertura.

Os olhos verdes-esmeralda de Neferet encontraram os de Lynette.

– O que você achou do meu evento?

Lynette engoliu o enjoo que lhe subia pela garganta e ameaçava engasgá-la. Respondeu então com a mais pura honestidade:

– Eu jamais vi nada como aquilo.

– “Eu jamais vi nada como aquilo”, o quê? – perguntou Neferet, cheia de expectativa.

– Eu jamais vi nada como aquilo, Deusa – completou Lynette, curvando-se em uma reverência profunda e trêmula.

– E agora você realmente acredita nisso. Encantador! Levante-se, Lynette, minha querida, e sirva uma taça de vinho para nós, enquanto discutimos os tipos de evento de adoração que você planeja para mim.

Lynette se levantou e fez exatamente o que a Deusa mandou.

[*] Esta frase faz referência à obra Hamlet , de William Shakespeare. No caso, “The lady doth protest too much, methinks” (Parece-me que a dama faz protestos demasiados). Essa expressão indica uma situação em que a insistência na defesa de determinado argumento ou ponto de vista pode ser indício de que há uma mentira sendo ocultada pelo emissor. (N.E.)


6

Detetive Marx

Desde aquela noite escura e com muita neve em que Zoey Redbird o chamara até a velha estação, onde ela e um adolescente tinham escapado por pouco de serem assassinados, o detetive Marx tivera questionamentos em relação a Neferet, que, na época, era a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. A vampira parecera estranha para ele. Zoey obviamente ficara desconfiada dela quando ele levara os dois novatos de volta para a Morada da Noite, e Neferet a recebera de maneira calorosa e aparentemente sincera. Zoey assumira uma postura defensiva. Até dera um show para mostrar a nova tatuagem com a qual a Deusa tinha lhe presenteado naquela noite, o que, aos olhos treinados do detetive, indicava que a novata fora bem-sucedida em dizer à vampira mais poderosa e proeminente da escola que ficasse longe dela.

Marx achou que deveria ter ficado do lado da vampira e questionado a veracidade da novata. Em vez disso, Marx sentiu uma comichão sob a pele quando estava perto da Neferet, a mesma comichão que já lhe salvara nas ruas mais vezes do que poderia contar. Gostava de Zoey. Não sentia nenhuma comichão quando estava perto dela. De Neferet, porém, ele não tinha gostado nada.

Marx perguntara à sua irmã, que fora Marcada quase duas décadas antes, sobre Neferet. Anne fora surpreendentemente curta e grossa na sua resposta: Neferet é uma poderosa Grande Sacerdotisa. Fique longe dela. Quando pedira mais detalhes, Anne encerrara completamente a conversa. Chegara até a evitar as suas ligações por quase uma semana. Aquilo fora mais do que estranho. Ele e Anne eram gêmeos e se mantiveram próximos mesmo depois de ela ter sido Marcada e passado pela Transformação. Atualmente, ela dava aulas de Feitiços e Rituais na Morada da Noite de São Francisco. Marx passava as férias lá pelo menos uma vez por ano e ficara hospedado várias vezes no alojamento da escola como seu convidado. Anne costumava ser direta e honesta com ele sobre o seu mundo de vampiros. Sabia que poderia confiar no irmão. Mas bastou uma menção à Neferet, e Anne erguera um muro entre eles.

Marx odiara aquilo, odiara não ter a confiança da irmã. Então, nunca mais voltou a fazer perguntas sobre Neferet.

Nem mesmo quando a Grande Sacerdotisa deixara a Morada da Noite de Tulsa e dera uma entrevista coletiva condenando os vampiros atuais em geral e os da sua Morada em particular.

Nem mesmo quando Neferet desaparecera depois que a sua cobertura fora destruída.

Nem mesmo quando a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, Thanatos, acusara Neferet de ter assassinado o Prefeito LaFont.

Nem mesmo quando recebera uma pista anônima pelo Disque Denúncia dizendo ter visto uma vampira nua que se encaixava com a descrição de Neferet entrando na Boston Avenue Church.

Os últimos vinte e poucos minutos o fizeram mudar de ideia sobre não questionar a irmã.

– Aqui! Policial ferido aqui!

Marx acenou para a ambulância que chegara no bloqueio atrás do qual ele e os outros policiais estavam agachados. Lançou um olhar para Jamison. O cara estava obviamente condenado. As seis balas que ricochetearam no escudo invisível que Neferet erguera tinham, convenientemente, lhe atingido em todas as partes não protegidas pelo seu colete à prova de balas. Como ela conseguira fazer aquilo? Marx acrescentou mais uma pergunta à longa lista de perguntas que, com certeza, faria à irmã.

Mais carros oficiais do que ele poderia contar chegaram, parando no meio das ruas que cercavam o Mayo. Os policiais que não estavam dando cobertura para Marx apressavam-se em evacuar os prédios adjacentes. Marx enviara uma mensagem pelo rádio dizendo que um policial fora atingido, além de estar acontecendo uma situação grave envolvendo reféns.

Foi com uma mistura de alívio e tristeza que viu o chefe de polícia Connors liderando a equipe da SWAT. O chefe não era conhecido pelas habilidades diplomáticas.

– Detetive, faça um resumo rápido da situação – pediu ele.

– Neferet confessou os crimes na Boston Avenue. Ela está lá dentro do hotel com reféns. Ela tem controle sobre eles. Não sei se é por feitiço ou se apenas ela os deixou tão apavorados a ponto de estarem dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Mas você não vai acreditar nas coisas terríveis a que ela está obrigando essas pessoas fazerem.

– Depois de ver o que ela fez na Boston Avenue, acho difícil ficar surpreso com qualquer coisa que ela possa fazer – declarou o chefe de polícia em tom sombrio.

– Está vendo aquele corpo ali? Aquela garota dilacerou a própria garganta para Neferet enquanto dizia “obrigada, Deusa”. – Marx fez um gesto indicando a carcaça ensanguentada que costumava ser uma jovem.

– Alguma ideia de quantas pessoas estão lá dentro com ela?

Marx meneou a cabeça.

– Deve ter umas cem, mas é apenas um chute. Ela fechou o restaurante e trancou o prédio. Pelo que entendi, ela não vai deixar ninguém sair.

– Bem, ela vai ter que nos deixar entrar.

– Chefe, acho melhor conseguirmos algumas informações sobre a situação dos reféns. Não queremos uma repetição do que aconteceu na igreja. Ela massacrou aquelas pessoas, mas os corpos não parecem com nada do que já vi vampiros fazerem antes. Eles foram estraçalhados, comidos e drenados. O poder de Neferet não se parece em nada com o que já tenhamos lidado antes.

– É, eu vi. – O chefe de polícia meneou a cabeça. – Mas como uma porra de uma vampira conseguiu fazer algo assim? Eu ouvi dizer que uma Grande Sacerdotisa pode entrar na mente das pessoas. Controlá-las e até mesmo apagar lembranças. E sei que são fisicamente fortes, mas não tão fortes quanto os seus guerreiros. Mas a carnificina na igreja... – Ele balançou a cabeça. – Eu nunca ouvi falar em nada parecido com aquilo. E quanto a você? A sua irmã não é vampira?

– É sim, e eu vou dar uma ligada pra ela. Mas tem outra coisa que você precisa saber. Neferet não está dizendo que é uma vampira. Ela afirma ser uma deusa, para ser mais específico, a Deusa das Trevas e a Rainha de Tsi Sgili, seja lá o que for isso. Ela disse que transformou o Mayo no seu Templo e que quer que Tulsa a adore.

O chefe de polícia deu um grunhido.

– Porra nenhuma. Assim que avaliarmos a situação dos reféns, a gente vai entrar. Vamos ver o que o nosso atirador de elite com a sua arma de cinquenta calibres vai causar nas suas ilusões de divindade.

Marx acenou com a cabeça em concordância, mas sentiu a familiar comichão de aviso sob a pele, dando-lhe uma sensação ruim sobre como as coisas de desenrolariam.

– Esses malditos vampiros perderam a porra da cabeça ultimamente. Primeiro o assassinato do prefeito, então aqueles dois homens no parque, a carnificina na igreja e agora isso. Estou achando que precisamos fazer mais do que apenas colocar a Morada da Noite em confinamento. Acho que devemos expulsá-los de Tulsa!

– Chefe, sobre aqueles dois homens no parque. – Marx franziu as sobrancelhas. Sabia que os sentimentos contra os vampiros estavam em alta, mas ele detestava ouvir esse tipo de merda racista saindo pela boca do chefe da polícia.

– O quê? Você não prendeu aquela novata que confessou os assassinatos? Merda, ela talvez tenha matado LaFont também!

– Na verdade, chefe, Neferet acabou de confessar o assassinato do prefeito e daqueles dois homens. Ela gabou-se disso, assim como do massacre na igreja.

O chefe de polícia piscou, surpreso.

– Bem, então por que a porra de uma novata confessou ser a assassina? Ela faz parte dos seguidores de Neferet?

– Duvido muito. Zoey Redbird e Neferet têm uma história de animosidade entre elas. Acho que é provável que Zoey tenha encontrado com os homens e se defendido contra eles e, quando soube que estavam mortos, deve ter acreditado que os tinha matado . Ela é uma garota legal, chefe. Acho que ela se entregou porque estava consumida pelo remorso. Ela nem mesmo queria algum vampiro adulto com ela.

O chefe de polícia olhou para ele sem entender. Marx evitou um suspiro de impaciência e explicou:

– Se uma novata não está próxima a vampiros adultos, existe cem por cento de chance de que o seu corpo vai rejeitar a Transformação e ela morrerá. Zoey se julgou e se condenou; e decidiu que a sua sentença era a morte.

– Eu me esqueço do quanto você sabe sobre vampiros. – O chefe de polícia meneou a cabeça enojado. – Acho que não importa se eles são humanos ou novatos. Adolescentes são completamente incompreensíveis.

Marx abriu a boca para protestar – respeitosamente – que ele, na verdade, conhecia alguns adolescentes completamente compreensíveis e que incluiria Zoey Redbird na lista, quando o grito de um policial uniformizado o interrompeu.

– Ai, meu Deus! Olhem lá para cima!

Marx olhou para cima bem a tempo de ver criaturas negras e grotescas semelhantes a cobras, a não ser pela ausência de olhos – apenas bocas abertas emolduradas por dentes que estavam molhados e vermelhos –, sendo arremessadas por alguma força invisível pelo parapeito na cobertura do Mayo. As criaturas carregavam consigo uma explosão de sangue e tripas e fragmentos corpóreos e coágulos. E, enquanto caíam, elas se expandiam, mudando a forma de cobras sem olhos para uma cortina escura e pulsante, manchada de escarlate. A cortina desceu pela fachada de pedra do hotel, envolvendo-a em trevas e sangue enquanto se desenrolava até o chão.

– Atirem! Matem-nos! – berrou o chefe de polícia.

Marx tentou impedi-lo. Tentou lembrá-lo de que havia cidadãos inocentes lá dentro que poderiam facilmente ser feridos ou, até mesmo, mortos. Tentou dizer que o ataque só serviria para antagonizar a vampira que tinha mais reféns e que já estava tão louca, que acreditava ser imortal. Mas os tiros provocados pelo pânico explodiram à sua volta e suas palavras se perderam no furor do momento.

A princípio, Marx não queria olhar para cima. Não queria ver os tiros acabarem com o Mayo e ter de lidar com as consequências das ordens precipitadas do chefe de polícia. Marx, no entanto, não era o tipo de homem que fugia das coisas; ele fizera uma carreira ao lidar com elas. Resoluto, ergueu o olhar.

As cobras que se transformaram em cortina se expandiram de modo que parecia que o prédio tinha ganhado uma pele negra avermelhada, uma pele tão dura, que nem mesmo as Glocks que os policiais uniformizados carregavam conseguiam penetrar.

Todos observaram enquanto as trevas continuavam a descer pelo prédio até o nível da rua e a se fundir ali com um som sussurrante que lembrou Marx da vez que visitara Nova York e se hospedara no Plaza – e cometera o erro de sair para fumar às três horas da manhã. Ratos. Ele caminhara por uma cerca viva bem-aparada que ficava em frente à grandiosa entrada do Plaza e ouvira o som sussurrante. Olhara para baixo, ficando chocado ao se deparar com dezenas de ratazanas gordas passando por ali. Era com aquele som que a mortalha das trevas criada por Neferet se parecia enquanto se assentava no lugar onde o prédio encontrava a rua, contra pedras dos anos de 1920.

– Atirem nas portas. Vocês têm que passar por essa coisa e estar prontos para entrar! – berrou o chefe de polícia.

– Não! – exclamou Marx, enquanto os policiais uniformizados corriam para obedecer às ordens.

Determinado a sobreviver e lutar por mais um dia, Marx se abaixou atrás de um carro do pelotão.

Acabou em uma questão de segundos. Os policiais correram em direção às portas, disparando contra o vidro que agora estava coberto pela cortina negra e escorregadia salpicada de coágulos. Seu coração se partiu quando os gritos começaram. Marx já estava usando o rádio:

– Vários policiais feridos! Precisamos de mais ônibus no Mayo! E reforços! Mais reforços! Mande todos os policiais de Tulsa para cá! Agora!

Quando o comandante cambaleou para trás e caiu pesadamente no pavimento, atingido no meio da testa por fogo amigo, os olhos revirados e leitosos, sem dúvida morto, Marx fez a única coisa que sabia fazer: assumiu o comando.

– Cessar fogo e retirada! Retirada! – berrou ele, e os homens reagiram com um claro alívio.

Um jovem policial uniformizado se agachou ao lado dele, com a respiração pesada e as mãos trêmulas. Marx achou que o garoto não devia ter mais do que 21 anos.

– Mãe do céu! Aquele treco preto não sofreu nenhum arranhão! Os tiros ricochetearam diretamente para nós, como se estivessem mirando. Que merda é aquela? – Quis saber ele com a voz tão trêmula quanto as suas mãos.

– Magia – respondeu Marx. – Magia negra e maligna.

– E como é que a gente consegue lutar contra isso?

Marx encontrou os olhos do jovem.

– Nós não lutamos. Nós precisamos de ajuda. E, felizmente, eu sei onde conseguir.

Zoey

– Eu queria saber o que está acontecendo! – Stark andava de um lado para o outro em frente à sua cela.

– Por que você não vai até lá fora para ver se a Vovó ainda está na sala de espera? Ela pode descobrir o que está acontecendo. Ela trouxe cookies. Ninguém resiste aos cookies dela – eu disse.

– Boa ideia. Eu já volto.

Stark seguiu pelo corredor e foi a minha vez de ficar andando de um lado para o outro.

Neferet. Se alguma coisa louca estava acontecendo no Mayo, Neferet tinha de ser a responsável. Eu queria agarrar as grades da minha cela, sacudi-las e gritar como uma pessoa histérica: Tirem-me daqui! Tirem-me daqui! Se Neferet estava lá fora fazendo sabe-se lá o quê, eu deveria estar lá, tentando pensar em uma maneira de detê-la.

E eu estaria se eu não tivesse perdido a cabeça e matado dois homens.

Stark voltou correndo e cobriu as minhas mãos, que realmente estavam agarradas às grades, como seu eu fosse capaz de entortá-las.

– Eles devem ter expulsado a Vovó, Thanatos e todos os outros. Não tem ninguém aqui, a não ser um policial na recepção. Este lugar está deserto! Se eu tivesse a chave, poderia tirar você daqui sem nenhum problema. – Suas sobrancelhas, com suas mãos ainda pressionando as minhas. Ele sacudiu um pouco as barras (que nem se mexeram). Então ele deu o seu sorriso maroto. – Mas, já que eu não tenho a chave, será que você não conhece ninguém que poderia, de alguma forma, convocar alguns elementos, sei lá, para derrubar esta porta?

– Stark, eu estou aqui por um motivo. Eu fiz uma coisa muito, muito ruim. Fugir daqui não vai me ajudar em nada.

– Poderia ajudar se Neferet estiver desenfreada, alimentando-se de cidadãos inocentes de Tulsa. Na verdade, eles podem até se esquecer do seu acidente no parque e agradecê-la se você ajudar a derrotar a sra. Louca.

Dei um sorriso triste.

– Eles até podem esquecer, mas eu não vou conseguir. Além disso, eu não posso derrotar Neferet, Stark.

– Você já fez isso antes.

– Não para sempre e não sem ajuda.

– Bem... – Ele abriu os braços. – Você tem ajuda.

Bufei.

– Não é o suficiente. Se fôssemos suficientes, teríamos sido capazes de nos certificar de que Neferet nunca mais voltaria do lugar para onde a chutamos da última vez. – Então, os meus ombros ficaram caídos e eu os encolhi. – Provavelmente, nem é ela. Talvez sejam ladrões de banco.

– No Mayo? Hã, Z. Estamos falando de um hotel, não de um banco.

A porta do corredor se abriu e a estrutura de metal bateu contra a parede. O detetive Marx se apressou na nossa direção. A aparência dele estava péssima. Tipo, péssima mesmo. O paletó estava sujo e a calça, rasgada na altura de um dos joelhos. Senti o cheiro de sangue, o qual me obriguei a ignorar. Na verdade, isso nem foi tão difícil porque a expressão no seu rosto era perturbadora demais.

Ele parecia estar com medo.

– O que aconteceu no Woodward Park? – ele exigiu saber enquanto se colocava ao lado de Stark.

– Eu já disse.

– Conte para ele de novo – interveio Stark.

– Por quê? O que está acontecendo?

– Responda à minha pergunta primeiro.

– Tá legal. Como eu já disse, dois homens me irritaram e eu atirei a minha raiva neles.

– Mas o que eles fizeram para deixá-la tão irritada?

– Não o suficiente para eu matá-los, Ok? – respondi.

– Apenas responda à pergunta! – zangou-se Marx.

Surpresa com o seu tom, eu me ouvi respondendo:

– Eles estavam andando pelo parque procurando garotas para assustá-las e obrigá-las a lhes dar dinheiro. Eles não viram as minhas tatuagens antes de começarem a me assediar. Então, quando perceberam que eu não era apenas uma adolescente indefesa, mudaram de ideia sobre me assustar. Eles basicamente disseram que iriam procurar outra vítima e isso me deixou louca da vida. – Fiz uma pausa e acrescentei: – Mas ainda tem mais. Eu já estava muito irritada quando cheguei ao parque, foi por isso que eu tinha ido para lá. Para tentar me acalmar. Eu... Eu não conseguia controlar o meu temperamento.

– Conte para ele o resto. Conte para ele por que você deu a pedra da vidência para Aphrodite quando se entregou para a polícia – insistiu Stark.

– Eu não percebi na hora, mas agora eu consigo entender que a pedra da vidência, um tipo de talismã que ganhei na Ilha de Skye, estava afetando as minhas emoções. Tipo, amplificando-as ou provocando-as, ou talvez apenas alimentando o meu estresse. Ela fica quente quando funciona e, no parque, ela estava superquente. Foi por isso que consegui erguer os dois homens e atirá-los contra o paredão da gruta.

– Você não consegue fazer isso, digamos, agora, consegue? – perguntou Marx, observando-me atentamente.

– Acho que não. Pelo menos não sozinha. Eu teria que chamar um ou todos os elementos, e eles ficam mais poderosos se o meu círculo estiver comigo e nós cinco canalizarmos a nossa energia para eles.

Marx assentiu, pensativo.

– Você sabia que os dois homens estavam mortos quando saiu do parque?

– Não. Tipo, eu sabia que eu os tinha lançado contra o paredão, mas foi como uma explosão grande e louca para mim. Bem, eu fiquei surpresa com aquilo – respondi. Distraída, esfreguei a palma da minha mão direita na minha perna e, então, olhei para ela. No meio das tatuagens entrelaçadas, um círculo perfeito tinha se formado ali. Ergui a mão para que o detetive pudesse vê-la. – Essa marca no centro, o círculo, foi feita pela pedra da vidência. Aconteceu na hora em que atirei a minha raiva naqueles homens. Era como se o poder dela tivesse saído através de mim. Quando eu percebi o que tinha feito, eu me aproximei deles.

Engoli em seco ao me lembrar.

– E o que exatamente você viu? – perguntou Marx, impaciente.

– Eles estavam deitados lá, aos pés do paredão que dá para a Twenty-first Street. E-eu me lembro de que ouvi um deles gemer, e vi o outro estremecer. Ficou claro que os tinha machucado muito. Talvez até gravemente. Então, eu fiquei com medo e fugi. Eles deviam estar morrendo quando eu fui embora. Sinto muito. De verdade. Eu sei que isso não faz qualquer diferença. E eu também sei que não faz a menor diferença o fato de eles estarem no parque para assediar garotas nem que a pedra da vidência tenha me dado o poder para fazer o que eu fiz. Foi a minha raiva que matou aqueles homens. Eu sou a responsável. – Mordi o lábio com força. Eu não ia começar a chorar.

– Não, Zoey. A verdade é que não foi você que fez isso e não, você não é a responsável pela morte deles.

Ele passou o cartão magnético no painel da porta da minha cela, e a tranca de metal se abriu com um clique.

– Hein? – Pisquei para ele, sentindo que eu devia estar sonhando. Olhei para Stark, que também estava olhando para o detetive.

– Isso tem alguma coisa a ver com Neferet – disse Stark.

– Isso tem tudo a ver com Neferet – concordou Marx. – Ela confessou ter matado aqueles dois homens. Não, essa não é uma descrição precisa. Neferet se gabou de ter matado aqueles dois homens.

Stark comemorou e me envolveu em um abraço.

– Z., você não matou ninguém.

– Eu não matei ninguém! – repeti o grito de Stark, enquanto ele me abraçava, rindo.

Eu estava me sentindo fraca, quase tonta. Eu não tinha matado ninguém! Mas que merda, eu quase tinha rejeitado a Transformação. Eu quase morri. Por causa de Neferet.

Tudo sempre voltava a Neferet.

Bati no ombro de Stark e ele me colocou no chão (mas eu continuei segurando a sua mão).

Eu me virei para o detetive Marx.

– O que mais ela fez?

– Você e seus amigos estavam certos. Neferet matou o prefeito. Ele e os dois homens no parque foram só o aquecimento. Ela massacrou uma igreja cheia de gente, e agora declarou ser uma deusa. Ela tornou o Mayo como seu Templo e está trancada lá dentro com um monte de gente enfeitiçada.

– Merda! – exclamou Stark.

– Aiminhadeusa ! – Neferet finalmente conseguira. Ela finalmente conseguira se superar e mostrar para todo mundo o que ela era de verdade.

– Você está livre, Zoey. Todas as acusações foram retiradas. Mas, antes de você ir, eu tenho um favor para pedir.

Olhei diretamente nos olhos dele.

– Você não precisa pedir. Eu vou ajudá-lo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para detê-la.

Marx suspirou de alívio.

– Obrigado. Eu não vou mentir para você, Zoey. A situação no Mayo é feia. Horrível mesmo. Neferet é poderosa e perigosa.

– E uma louca de carteirinha – terminei por ele. – Eu sei. Eu já sei disso há meses.

– Então, você sabe contra quem vai lutar.

– Todos nós sabemos – disse Stark. – Porque nós fomos os únicos que lutamos contra aquela puta doida.

– Tudo bem, então. Você precisa pegar aquela tal de pedra da vidência antes de eu te levar para o Mayo e...

– Espere um pouco. Não, você não entende, detetive Marx. Quando eu disse que vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para deter Neferet, não quis dizer que faria tudo sozinha. – Apertei a mão de Stark. – Uma das coisas que aprendi com certeza é que eu fico mais forte com os meus amigos.

– Só me diga do que precisa e eu farei acontecer – afirmou Marx.

– Tudo de que preciso está na Morada da Noite – respondi.

– Então venha comigo, Zoey. Vou levá-la para casa.


7

Zoey

Eu mal tinha saído do carro do detetive Marx quando a Vovó saiu correndo pela porta da frente da escola e me envolveu em um abraço.

– U-we-tsi-a-ge-ya ! É você! Eu sabia... Eu sabia que você estava voltando para casa.

Eu a abracei rapidamente e demos os braços enquanto entrávamos na Morada da Noite com detetive Marx e Stark seguindo logo atrás. O sol estava se pondo, mas eu estava superconsciente de que ainda poderia provocar dor em Stark. Conforme nos apressamos para dentro do prédio, sorri para a Vovó e contei:

– Eu não matei ninguém! – Então, eu me lembrei de quem os tinha matado e o que mais ela tinha feito, e o meu sorriso se apagou. – Neferet os matou.

– Neferet? – Ergui os olhos do rosto feliz de Vovó para ver Thanatos, Aphrodite e Darius saindo da sala da Grande Sacerdotisa.

– Zoey, detetive Marx, será que poderiam explicar o que aconteceu? – pediu Thanatos.

– Neferet confessou ter matado os dois homens no parque... – começou a explicar detetive Marx, mas eu o interrompi.

– Espere, tem muito mais coisa do que isso, e eu preciso que o meu círculo ouça tudo. – Olhei para Thanatos. – Neferet se revelou. Precisamos nos apressar.

– Darius e Stark, reúnam o círculo de Zoey. Leve-os até a Câmara do Conselho. Chame Lenobia também. Ela é a sacerdotisa mais velha desta morada. Talvez precisemos de sua sabedoria. Vão agora! – orientou Thanatos.

Stark e Darius saíram.

– Detetive, permita que eu o acompanhe até a Câmara do Conselho. Sylvia, eu ficaria muito grata se você pudesse partilhar a sua sabedoria em relação ao que estamos enfrentando com Neferet. Você poderia se juntar a nós?

– É claro – respondeu Vovó em tom irônico. – Eu sei mais do que um pouco sobre Neferet e a sua marca singular do mal. – Vovó me deu um beijo suave no rosto e começou a caminhar com Thanatos e com detetive Marx em direção à escadaria que levava até a Câmara do Conselho.

Isso me deixou sozinha com Aphrodite.

– Eu não vou perguntar se você me quer ou não. Eu vou a essa reunião – afirmou ela antes de começar a seguir os três adultos.

Toquei em seu braço e ela se virou para olhar para mim. Eu não sabia dizer se eu vi mais medo ou raiva nos seus olhos – e as duas coisas fizeram com que eu me sentisse horrível.

– Sinto muito – disse de forma simples. – Eu estava errada. Você estava certa o tempo todo. Estava certa ao procurar Shaylin. Estava certa ao pedir que ela ficasse de olho em mim. Você estava certa em não me contar sobre a sua visão. Eu deveria ter escutado você, mas não escutei, e eu não teria escutado, mesmo se você me contasse sobre a sua visão. Eu estava fora de controle. Fui egoísta. Fui burra. Sinto muito – repeti. – Por favor, desculpe-me.

Enquanto eu estava falando, Aphrodite ficou totalmente parada. Não colocou a mão na cintura, nem zombou de mim ou jogou o cabelo. Ela me ouviu e me observou com seus olhos intensos e claros. Não disse nada pelo que pareceu ser um longo tempo e, quando finalmente falou, o tom de sua voz não estava irônico, nem malicioso, nem sarcástico. Ela estava séria. Os seus modos estavam calmos. Ela parecia a Profetisa de uma Deusa.

– Achei que você fosse minha amiga.

– Eu sou.

– Você me magoou.

– Eu sei. Gostaria de dizer que não foi a minha intenção, mas não vou mentir. Naquela hora, eu queria magoá-la porque eu estava sofrendo muito. Aphrodite, a pedra da vidência fez algo comigo. Não estou usando isso como desculpa pelo que disse e fiz. Eu ainda era eu . Eu ainda estava errada. Estou tentando explicar para você que percebi o que aconteceu... Ou pelo menos como aconteceu. E eu lhe juro que isso não vai acontecer de novo.

Ela continuou me analisando em silêncio.

– Também vou me desculpar com Shaylin – acrescentei.

Aphrodite assentiu.

– É melhor mesmo. Você a assustou muito.

– Não vai acontecer de novo – prometi em tom solene. – Eu juro.

– Você quer a pedra de volta?

– Não! – respondi, dando um passo para me afastar dela. – Eu quero que você a mantenha bem longe de mim.

– Esse é o meu plano – respondeu ela. – Eu só queria saber qual era o seu.

– Eu não tenho nenhum plano, a não ser me desculpar com você e Shaylin e, bem, com todos os outros.

– Bem, já era de se esperar – respondeu Aphrodite, parecendo-se um pouco mais com ela mesma. – Você costuma estar despreparada e mal-arrumada. Eles não têm chapinha na prisão? – Ela lançou um olhar de avaliação para o meu cabelo de quem acabou de sair da cama.

– Não. Cabelo bonito não é uma prioridade na prisão.

– Bem, até agora eu só tinha ouvido falar que o sistema penitenciário de Oklahoma é uma droga. Agora eu tenho certeza.

Isso me fez sorrir.

– Então, você me desculpa?

– Acho que é o que tenho que fazer. Você está horrível. Eu odiaria ter que jogar sal na ferida contra a moda que o seu curto período na prisão já lhe causou.

Eu ri e nós demos os braços.

– Será que existe alguma coisa que você não consiga resumir para a moda?

– Não, e não precisa agradecer.

Eu ri de novo e nós seguimos para a escadaria. Eu me sentia leve e feliz; por alguns momentos, deixei que Neferet saísse da minha mente e concentrei os meus pensamentos em uma oração silenciosa para Nyx: obrigada, Deusa, por ter me dado uma amiga tão boa!

– Ei, não vai ficar pensando que pode me abraçar e coisas desse tipo. Eu não sou de abraços. Vamos considerar isto aqui... – ela passou a mão na frente do seu corpo – ... uma zona de não contato. Darius, é claro, tem uma concessão.

– Entendi – respondi, mas continuei de braço dado com o dela enquanto subíamos as escadas. – Eu nem sonharia em cruzar a sua zona de não contato.

– Muito bem – disse ela, mas não afastou o braço do meu até estarmos na frente da sala de conferências. Então, ela parou e se virou para me olhar de forma séria e declarou: – Eu perdoo você, Zoey.

– Obrigada. – Pisquei rápido, surpresa pelas lágrimas repentinas nos meus olhos.

– Ah, merda – disse ela e, depois de olhar à sua volta para se certificar de que estávamos sozinhas, abriu os braços e me abraçou sussurrando: – Eu amo você, Z.

Eu funguei e retribuí o abraço.

– Eu também amo você.

O barulho da porta da escada se abrindo fez com que ela se afastasse de mim.

– Não chore – pediu ela, em tom sério. – Ficar choramingando não vai ajudar no visual desastroso que você tem agora.

– Tá bom – choraminguei um pouco mais.

– Zo! Ouvi dizer que soltaram você! Uhu ! – exclamou Aurox, feliz, falando de forma estranha e maravilhosamente semelhante a Heath.

Ele correu na minha direção, com a intenção clara de cruzar a minha zona de não contato. Dei alguns passos para trás e, então, parei quando ele vacilou e parou. Eu não sabia o que fazer. Tipo assim, nós decidimos ser amigos. Amigos se abraçavam. Mas nós decidimos ser apenas amigos. Bem, na verdade eu tinha decidido que seríamos apenas amigos e...

– Ah, para de pensar um pouco. Prostrado e pesaroso pra caramba foi como ele ficou sem você. – Aphrodite meneou a cabeça, enojada. – E estou usando aliterações para falar, se eu começar a fazer rimas, vou me jogar de um prédio bem alto. Façam um biquinho ou qualquer outra coisa bem rápido e, depois, vão para a Câmara do Conselho. Infelizmente, não temos muito tempo pra dramas de relacionamento.

Ela jogou o cabelo para trás, abriu a porta e entrou.

Aurox e eu nos olhamos.

– Biquinho? – perguntou ele.

Senti o rosto pegar fogo.

– Ela quer dizer dar um beijo.

Ele ergueu as sobrancelhas.

– Você quer me beijar?

Felizmente, nada do que ele disse depois de uhu parecia nem um pouco com Heath. Limpei a garganta.

– Acho que essa não seria uma boa ideia, mas obrigada por perguntar.

– Bem, estou feliz por você estar de volta – afirmou ele, tentando sorrir.

– Eu também. – Sorri de volta. – E, mesmo tudo sendo confuso, estou feliz por você estar de volta também.

Eu quis dizer aquilo como um elogio – e talvez até como uma piada particular (a situação não ficaria muito melhor se pudéssemos rir dela?), mas o sorriso que Aurox tentara dar desapareceu na hora.

– Você não está se referindo a mim . Mas sim a Heath. E eu não sou Heath. Com licença. Darius disse que eu deveria estar nesta reunião. – Dei um passo para o lado e permiti que ele abrisse a porta. Ele não a segurou para mim, mas a deixou se fechar na minha cara, deixando-me em pé ali, sozinha, no corredor, sentindo-me um cocô.

Tudo bem , disse para mim mesma, a minha vida ficaria bem mais fácil se Aurox continuasse chateado comigo – ou, pelo menos, irritado ou desinteressado. Aphrodite estava certa por vezes demais. Eu não tinha tempo para dramas de relacionamento (embora não achasse que aquilo fosse triste demais).

Passei os dedos pelo meu cabelo muito despenteado, empertiguei-me e entrei na Câmara do Conselho Escolar.

A sala era grande, mas sempre parecia ser pequena por causa da mesa redonda gigantesca que dominava o ambiente. Tenho quase certeza de que a ideia era imitar o rei Arthur (que, é claro, tinha sido o consorte da Grande Sacerdotisa Mogan le Fay), então ela não tinha uma cabeceira de verdade. O que acontecia era que o lugar onde a Grande Sacerdotisa se sentava se transformava automaticamente na cabeceira da mesa.

E por falar na atual Grande Sacerdotisa, fiquei surpresa ao vê-la entrar na sala pela porta dos fundos, assim que eu fechei a porta atrás de mim. Thanatos assentiu para Aurox, que assumiu uma posição de guarda ao se colocar ao lado daquela porta. Então, ela lançou um olhar para mim e indicou um assento vazio entre Vovó e Aphrodite. Thanatos se sentou à esquerda da Vovó, ao lado do detetive Marx. Enquanto eu me acomodava, tentando não ficar inquieta, Thanatos se inclinou para a frente de Vovó e se dirigiu a mim.

– É oficialmente bom tê-la de volta em casa, Zoey – declarou a Grande Sacerdotisa da Morte.

– Eu nem consigo dizer o quanto estou feliz de estar aqui e saber que não matei ninguém – respondi.

– Mas você aprendeu uma lição valiosa com essa experiência – comentou Vovó.

– É. Temos que parar Neferet. Não importa o que tenhamos de fazer – interveio Aphrodite.

– Bem, é verdade. Mas eu acho que a Vovó está falando de sempre escolher a bondade quando houver dúvida – disse eu.

– Eu não acredito que essa lição vá nos ajudar muito com Neferet – resmungou Aphrodite.

– Você ficaria surpresa, criança – respondeu Vovó suavemente, com um sorriso sábio nos lábios.

A porta se abriu e Stevie Rae entrou seguida por Stark, Damien e Shaunee.

– Z! Aiminhadeusa! É tão bom ver você livre! – Stevie Rae correu na minha direção e me envolveu em um grande abraço de urso. – Eu sabia que você não seria capaz de matar aqueles caras.

Eu lhe dei um abraço rápido antes de me soltar. Eu encontrei o seu olhar.

– Eu tenho algo a dizer sobre isso, mas quero esperar até todo mundo estar aqui.

– A espera acabou. O bonitão já está aqui – informou Aphrodite, sorrindo quando Darius entrou acompanhado por Lenobia e Shaylin.

Darius e Stark assumiram seus lugares em cada um dos lados da entrada principal. Stark me deu uma piscadela rápida, e eu fiquei feliz ao ver que ele não estava pálido e seus olhos tinham perdido aquele olhar ferido. Para ele estar assim tão melhor, o sol já devia ter se posto, e imaginei que Rephaim entraria a qualquer segundo agora.

Lenobia se sentou ao lado do detetive Marx, cumprimentando-o com um aceno rápido de cabeça. Shaylin escolheu o lugar mais distante de mim que conseguiu e não olhou na minha direção. Eu me levantei e limpei a garganta.

– Sei que uma emergência envolvendo Neferet está acontecendo no centro da cidade, mas eu preciso dizer uma coisa antes de começarmos a lidar com isso. E vou ser rápida. Como vocês já sabem, descobri hoje que não matei aqueles dois homens no parque. Mas, mesmo que eu não tenha causado a morte deles, sei que poderia ter feito aquilo. Eu estava fora de controle. Isso teve alguma coisa a ver com a pedra da vidência, mas também comigo . Eu estava errada. Aphrodite estava fazendo exatamente o que Nyx esperaria da sua Profetisa: ela informou a Shaylin que havia algo de ruim acontecendo comigo. – Eu olhei para Shaylin até que ela, relutante, encontrasse o meu olhar. – Shaylin, eu já pedi perdão a Aphrodite, mas lhe devo um pedido de desculpas ainda maior. Você estava certa ao me seguir. Você estava certa ao contar sobre as mudanças que detectou na minha aura. Foi muito, muito errado da minha parte empurrar você e perder a paciência daquele jeito, e não estou apenas pedindo para que aceite meu pedido de desculpas. Eu estou fazendo... – Fiz uma pausa e olhei para todos os meus amigos – ... um juramento a você e a todos aqui: farei tudo o que for preciso para me certificar de que isso jamais volte a acontecer.

– Eu perdoo você – afirmou Shaylin sem hesitar, embora o seu sorriso fosse hesitante e ela ainda parecesse estar com medo. – A propósito, as suas cores já voltaram ao normal agora.

– Obrigada – agradeci. – E, por favor, avise a mim, e a qualquer outra pessoa aqui, se perceber que as minhas cores estão bagunçadas de novo. Eu estava errada quando disse que você devia manter esse tipo de coisa para si mesma. Não se trata de uma invasão de privacidade. Você simplesmente está usando o dom que Nyx lhe deu.

– Zoey, onde está a pedra da vidência agora? – perguntou Thanatos.

– Está comigo – respondeu Aphrodite, antes que eu tivesse a chance de falar qualquer coisa.

– E eu não a quero de volta – acrescentei.

– Se ela é tão poderosa quanto você está dizendo que é, Zoey, você talvez não tenha escolha a não ser pegá-la de volta – disse o detetive Marx. – Porque vai ser preciso muito poder, muito poder mágico, para lutar contra Neferet.

– Detetive, é a sua vez. Explique exatamente o que Neferet fez – pediu Thanatos.

Eu me sentei e ouvi com um aperto no estômago e uma estranha premonição de que Marx estava certo.

Zoey

Seguiu-se um silêncio longo e doentio depois que o detetive Marx descrevera, com riqueza de detalhes, a carnificina de Neferet na igreja e, depois, o que acontecera no Mayo Hotel.

– Eu senti as mortes – disse Thanatos, meneando a cabeça com tristeza. – Eu sabia que algum tipo de tragédia humana, de morte em massa, tinha acontecido bem próximo de Tulsa. Eu estava assistindo ao noticiário, esperando ouvir que um avião tinha caído ou que talvez tivesse ocorrido algum tipo de tiroteio trágico em alguma escola. Mas eu não esperava isso. Eu realmente não esperava que Neferet fosse responsável por tudo isso.

– Nós não temos conseguido prever o comportamento dela, mas talvez possamos descobrir algo sobre o que esperar dela no futuro se analisarmos os crimes de Neferet até agora – sugeriu Vovó. – Ela matou o prefeito, e aquele crime a alimentou até Woodward Park. – Vovó fez uma pausa e deu um sorriso triste para Aphrodite. – Desculpe-me por ter de falar da morte do seu pai de uma forma tão objetiva.

– Eu entendo. E quero que continue – respondeu Aphrodite, séria. – Se a morte do meu pai nos ajudar a descobrir como derrotar Neferet, então, pelo menos, ele não terá morrido em vão.

Vovó assentiu e continuou:

– Ela deve ter se escondido no parque até Zoey ter enfrentado problemas com aqueles dois homens.

– Eu estava sentada naquele banco perto da gruta quando eles começaram a me assediar – contei, tentando juntar as peças. – Neferet talvez estivesse escondida na gruta.

– Vou mandar alguns policiais checarem – disse detetive Marx, fazendo anotações no seu bloco preto de espiral.

– As mortes dos dois homens no parque devem ter dado a Neferet o poder de que precisava para chegar à Boston Avenue Church – refletiu Vovó.

– E lá ela encontrou outra fonte maior de poder – acrescentou Lenobia. – Não podemos nos esquecer de que poder é o que há de mais importante para Neferet.

– Ela usa o poder para controlar aquelas criaturas semelhantes a cobras. As coisas que mataram aquelas pessoas na cobertura do Mayo e criaram aquele... Eu nem sei como chamar. – Marx hesitou, pensando. – É uma pele protetora, uma barreira. Mas seja lá o que for, tem muito poder.

– Aquelas criaturas com aparência de cobra são feitas de Trevas. Pense nelas como pensamentos odiosos, horríveis e cruéis que tomaram uma forma física – expliquei para o detetive Marx. – Eles fazem o que ela manda porque ela faz sacrifícios por eles. Eu tenho certeza de que Neferet não se alimentou de todas aquelas pessoas na igreja. Ela as sacrificou para que aquelas criaturas a continuem seguindo e fazendo o que ela deseja.

– Uma Tsi Sgili exige muito mais do que sangue por poder – interveio Vovó.

– Tsi Sgili... Rainha Tsi Sgili – disse Marx –, foi assim que Neferet se referiu a si mesma quando se intitulou Deusa.

– Tsi Sgili é um nome antigo que o meu povo usa para se referir a bruxas que escolheram as Trevas em vez da Luz. Elas vivem segregadas, afastadas de todos. – Vovó estremeceu. – As nossas lendas dizem que elas se alimentam de almas.

– Morte – disse Thanatos. – Eu deveria ter compreendido antes. Neferet se alimenta da energia que é liberada pelo espírito de uma pessoa no instante da sua morte.

– Ai, Deusa! – Lenobia parecia horrorizada e levou a mão ao peito. – Eu conheço Neferet há mais de um século. Ela sempre estava por perto quando um novato rejeitava a Transformação. Achávamos... As Sacerdotisas achavam que o dom de cura de Neferet confortava a passagem dos jovens.

– Ela não os confortava. Ela os usava – expliquei.

– Neferet tinha alguma coisa a ver com a nossa morte e a nossa volta – disse Stevie Rae. – Eu não consigo me lembrar. Talvez porque não consiga me obrigar a isso. Sei lá. – Ela estremeceu. – Mas eu sei que parecia como se algo dentro de mim estivesse se rompendo. – O seu olhar encontrou o de Stark, o único outro vampiro vermelho na sala. – Do que você se lembra?

– Dor. Trevas. Terror. Raiva. – Suas palavras estavam tensas, embora a sua voz permanecesse baixa, e nós nos inclinamos para ouvi-lo. – E, quando saímos daquilo, eu não era mais eu. Não até que Zoey dissesse que acreditava em mim, que confiava em mim.

– E eu também não consegui sair daquilo, até que Aphrodite acreditasse e confiasse em mim – disse Stevie Rae.

Aphrodite bufou.

– Pelo que me recordo, não foi bem assim. O que eu me lembro é que você tentou me devorar e, depois, pegou a minha condição de novata e levou com você.

– Porque você permitiu. Porque você sacrificou a sua humanidade por mim – esclareceu Stevie Rae.

– A parte de querer me devorar não foi legal – murmurou Aphrodite.

– O amor é mais forte que o ódio. Essa é a única verdade absoluta no universo. O amor conquista as Trevas – afirmou Vovó. – Nós só precisamos descobrir como o amor pode conquistar Neferet.

Ouvi um monte de suspiros após os meus.

– Tudo bem, eu sou totalmente a favor de o amor vencer – disse detetive Marx –, mas a gente precisa lidar com o que quer que seja que está acontecendo com aquelas coisas rastejantes.

– Neferet as está alimentando – respondi, sentindo a verdade das minhas palavras à medida que eu as pronunciava. – Ela dá a elas o que elas querem: sacrifícios com sangue fresco. E elas a obedecem. Se conseguirmos chegar a Neferet e a enfraquecermos ou, pelo menos, contê-la e impedi-la de matar mais gente, ela não conseguirá alimentá-las, e elas vão deixá-la.

– Concordo, mas acho que ainda tem mais, Zoey. As gavinhas das Trevas estão mudando, evoluindo, junto com Neferet – disse Thanatos. – Eu jamais, nos mais de cinco séculos que vivo como vampira, ouvi alguém criar o tipo de barreira como a que o detetive Marx acabou de descrever. – Ela se voltou para o policial. – E você disse que elas pareciam sensitivas, que elas, na verdade, direcionaram as balas para policiais específicos?

– Eu não tenho a menor dúvida quanto a isso. Eu estava lá. Eu vi aquilo de perto e tudo foi muito pessoal. Todos os primeiros tiros disparados atingiram o policial que ofendera Neferet, mas apenas nas partes do seu corpo que não estavam protegidas pelo colete à prova de balas. Os outros tiros feriram vários policiais, mas mataram apenas o chefe de polícia, o homem que deu a ordem de atacar o prédio – contou Marx.

– Lenobia, você já ouviu falar de algo assim? – perguntou Thanatos.

– Nunca.

– Então, chame a cavalaria – sugeriu Marx. – Envolvam o Conselho Supremo dos Vampiros. Talvez eles possam nos ajudar a descobrir uma maneira de vencer Neferet.

– O Conselho Supremo se recusou a nos ajudar – informou Thanatos. – Nós somos a cavalaria. – Ela se levantou. – Então, detetive Marx, vamos ao Mayo ver exatamente contra o que estamos lutando.

A porta dos fundos da Câmara do Conselho se abriu e Kalona, com o peito descoberto e olhos âmbar dardejando de raiva, caminhou até Thanatos.

– Já está na hora de você chamar a cavalaria completa. Eu sou um Guerreiro da Morte. Então, aonde você for, eu vou. Humanos e suas consequências que se danem.

Suas asas negras se desenrolaram e ocuparam a sala inteira.

O detetive Marx ficou boquiaberto.

– Merda – sussurrou Aphrodite.

– Eu digo o mesmo – concordei, perguntando-me o que aconteceria em seguida.


8

Detetive Marx

O cara era enorme. E tinha asas. Porras de asas gigantescas.

Marx ficou feliz por já estar sentado porque só de olhar para o... seja lá o que era aquilo... fazia os seus joelhos ficarem moles.

Primeiro, uma vampira-deusa enlouquecida e uma cortina preta sangrenta no Mayo. Agora, um gigante alado que dizia ser Guerreiro da Morte.

Será que estava na porra de um sonho?

Bem, se ele estava, o sonho continuava se desenrolando porque Thanatos caminhou até o gigante alado, e Marx com certeza não estava acordando.

– Ir comigo? Para o centro de Tulsa, diante dos olhares de...

– O que você vai fazer se as gavinhas das Trevas de Neferet atacarem você? Eu entendo essa manifestação das Trevas. Eu já a enfrentei diversas vezes no Mundo do Além. – A voz do gigante trovejava. – O que os humanos temeriam mais, a encarnação do mal ou a presença de um deus batalhando nas ruas de Tulsa?

– Os humanos não acreditam que deuses caminhem sobre a Terra – contrapôs Thanatos.

– Exatamente! – respondeu o gigante alado. – As ações de Neferet negaram a norma. Já passou da hora de os humanos tirarem a cabeça do buraco em que a enfiaram e se darem conta de que este mundo é cheio de magia, mistério e perigos. E também chegou a hora de eu fazer o que fui criado para fazer: ser um Guerreiro e lutar contra as Trevas.

A Grande Sacerdotisa curvou um pouco a cabeça em concordância com o homem alado. Então, ela se voltou para Marx:

– Detetive, gostaria de apresentá-lo ao meu Guerreiro sob Juramento, Kalona. Ele é o meu protetor, assim como o Mestre da Espada desta Morada da Noite. Ele me acompanhará até o Mayo.

Marx hesitou um momento e, então, fez a única coisa que passou por sua cabeça – estendeu a mão e a ofereceu para o grandão.

– Prazer em conhecê-lo, Kalona.

Kalona segurou o seu antebraço no cumprimento tradicional dos vampiros.

– O prazer é meu, detetive.

– Você não é um vampiro, né? – Marx não conseguiu evitar a pergunta.

– Não. Eu não sou.

Marx olhou para as asas do cara, que agora estavam enfiadas sob as suas costas. Aquelas coisas eram tão grandes, que chegavam a tocar o chão.

– O que você é ?

O sorriso de Kalona se abriu e pareceu ser sincero.

– Tem uma resposta complicada para essa pergunta, uma que eu prometo lhe dar depois que lidarmos com Neferet.

– Vou cobrar a resposta – disse Marx, tentando não olhar diretamente nos olhos do cara porque, ao fazê-lo, sentia a cabeça confusa e pesada, como se estivesse cheia de bolas de algodão.

– Você não vai precisar, detetive. Eu aprendi do modo difícil que é melhor que eu mesmo me preocupe em cumprir as minhas promessas.

– Então, nós todos vamos mesmo ao Mayo? – quis saber Aphrodite.

– Não. Kalona e eu vamos, assim como Zoey, Stark e o seu círculo. Darius, Aurox e Aphrodite, vocês vão ficar aqui com Lenobia. Vocês duas vão organizar uma reunião escolar. Atualizem o corpo docente e discente e os guerreiros. Informe apenas o básico e nada mais. Coloquem a escola em alerta máximo. Não sabemos qual será o próximo passo de Neferet.

– Você realmente acha que todos devem saber o que está acontecendo? – perguntou Stevie Rae, ecoando os pensamentos de Marx.

Zoey falou antes que Thanatos tivesse a chance:

– Acho que as Trevas odeiam que a luz brilhe, então vamos colocar muita luz sobre seja lá o que for que Neferet esteja fazendo.

– Essa é uma ótima maneira de descobrir quem quer voltar ao comando de Neferet e quem quer ficar e lutar contra ela junto com a gente – disse Stark.

– Vocês dois disseram exatamente o que penso – concordou Thanatos.

– Muito bem, então. Mas eu vou chamar Kramisha para me ajudar. Ela sempre sabe quem está tramando o quê – informou Aphrodite.

– É sábia a Profetisa que reúne os outros membros com dons dados pela sua Deusa – aprovou Thanatos.

– Também é sábia a Profetisa que mantém o seu celular por perto. Liguem se o inferno sair do controle, literal ou figurativamente – retrucou Aphrodite.

– Pode deixar – assegurou Zoey.

– Nós vamos com você, detetive Marx – declarou Thanatos.

Marx respirou fundo e desligou totalmente o botão de sanidade mental.

– Tudo bem. Vamos nessa.

Lynette

– Lynette, eu realmente adoro uma surpresa... – Neferet hesitou antes de continuar, erguendo um dedo fino. – Se a surpresa for agradável. Se não for, então uma surpresa não passa de uma interrupção irritante. Eu odeio interrupções quase tanto quanto odeio ficar irritada. – Seus olhos se afastaram de Lynette, e ela olhou para o que parecia ser as suas pernas nuas. – Falando em irritação, por que é que vocês estão andando por aí sem objetivo? Eu estou completamente segura, e vocês todos foram perfeitamente saciados. Vão se divertir em outro lugar e parem de ficar me puxando. Vão agora, xô! – Neferet fez um movimento de desprezo antes de voltar a sua atenção para a sua súdita.

Lynette não viu as coisas rastejantes, mas sentiu o roçar frio de algo passando por ela. Controlou um tremor de repugnância.

– Querida Lynette, onde paramos? Ah, sim, eu me lembro. Você anunciou que estava planejando uma pequena surpresa para mim. Por favor, continue se explicando.

Lynette olhou nos olhos da Deusa sem piscar. O pânico que estava concentrado em algum lugar sob o seu esterno estremeceu e recuou, mas ela apertou as rédeas mentais com as quais o controlava e permitiu que apenas o prazer de planejar um evento espetacular ocupasse a sua mente. O sorriso de Lynette estava confiante, assim como a sua voz.

– Deusa, eu sou muito boa no meu trabalho. Mesmo trabalhando em uma circunstância pouco comum e com recursos limitados, realmente acredito que você achará a surpresa agradável.

– Recursos limitados? Isso soa tão de mau gosto e barato. – Neferet franziu as sobrancelhas. – Eu certamente nunca desejei que você sentisse como se a sua Deusa fosse avarenta.

– Ah, mas eu não me sinto assim! – assegurou Lynette, esperando não ter apertado o botão de loucura de Neferet. – Eu coloquei essas restrições para mim mesma porque queria provar meu valor para você. Mas é claro que essa será apenas uma pequena amostra dos eventos que eu poderia planejar diariamente... Se eu tivesse mais tempo e mais dinheiro para fazer o meu trabalho.

Neferet relaxou a expressão.

– Você é uma mulher sábia, Lynette. Mostre-me o que planejou para mim. Se me agradar, pode ter certeza de que permitirei que continue com recursos ilimitados, embora não possa prometer que serei paciente para lhe dar muito tempo. Eu esperei muito tempo para começar o meu reinado. Estou impaciente pela adoração dos meus súditos.

– Isso é totalmente compreensível, Deusa. Em planejamento de eventos, eu nunca fico muito preocupada com o tempo quando tenho dinheiro.

Neferet a analisou.

Lynette se concentrou nos negócios. Ela se sobressaía nos negócios. Ela era confiante nos negócios. Os negócios não a aterrorizavam nem a enojavam.

Neferet sorriu.

– Você está sendo totalmente honesta. O seu negócio e a aquisição de dinheiro têm sido a sua principal preocupação. Continue, minha súdita! Revele a minha surpresa.

Lynette fez uma reverência e levou Neferet da suíte para o elevador, parando no mezanino.

– Por favor, Deusa, aguarde apenas um minuto.

Neferet sorriu e fez um gesto de concordância. Lynette pressionou o botão do elevador, então bateu em um comunicador quase oculto na sua orelha e disse rapidamente e em tom baixo:

– Kylee, aguarde dez segundos e, então, faça o quarteto começar a tocar.

– Sim, Lynette – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette lançou um olhar para a direita e fez um gesto de venha aqui . Judson, o bonito mensageiro, saiu das sombras. Ele trajava um uniforme impecável e passado e carregava uma bandeja de prata reluzente na qual havia uma taça perfeita de cristal cheia de champanhe rosê. Ele fez uma reverência perfeita e mecânica para Neferet e disse:

– Posso lhe oferecer uma taça de champanhe, Deusa?

– Ora, é claro. Obrigada, Judson.

A música começou a tocar no instante em que Neferet ergueu a taça da bandeja. Lynette ficou satisfeita ao ver o sorriso se erguer nos cantos da boca da Deusa.

– Danúbio Azul de Strauss. Uma das minhas valsas favoritas. Ah, Viena. Tão adorável e indulgente no passado.

– Por favor, queira me seguir, Deusa – pediu Lynette formalmente, levando Neferet pelo mezanino até o local para onde o seu trono havia sido colocado, bem acima da plataforma que a Deusa usara para se dirigir aos seus novos “súditos” algumas horas antes e onde, agora, havia um quarteto de cordas do casamento da noite anterior tocando nervosa e lindamente.

Neferet sentou-se com elegância, olhando para o quarteto.

– Eles tocam bem, embora eu prefira uma orquestra completa.

– Tempo e recursos – respondeu Lynette com um sorriso irônico.

Os lábios da Deusa se contraíram.

– Estou notando isso.

Lynette baixou a cabeça para Neferet e discretamente tocou no comunicador no seu ouvido:

– Conte até seis e mande-os entrar.

Então, ela prendeu a respiração e esperou que os doze artistas conseguissem se manter calmos.

As pesadas cortinas de veludo que cobriam o salão abaixo se abriram e, do lado oposto da sala, seis casais se apressaram para o centro do piso de mármore. As mulheres usavam vestidos vermelhos cujo tom fora o mais parecido um do outro que Lynette conseguira encontrar. Os homens trajavam smokings que ela conseguira juntar do que sobrara do casamento; os que estavam limpos o suficiente e servissem nos homens.

Servissem! Aquele tinha sido apenas parte dos problemas daquele evento infeliz. Tinha sido uma tarefa horrenda encontrar seis homens e seis mulheres no que Lynette tinha nomeado silenciosamente de reservatório de prisioneiros, que fossem relativamente atraentes, graciosos e capazes de aprender os passos básicos de uma valsa. Sim, ela poderia ter usado todos os membros da equipe dominados pelas cobras – eles obedeciam tudo que ela dizia para eles fazerem, desde que não tentasse fugir do Mayo. No entanto, o instinto de Lynette lhe disse que uma apresentação dos membros que já estavam sob o seu controle não impressionaria Neferet.

Não, Lynette acreditava que a Deusa queria, precisava , da ilusão de ser adorada. Então, ela ameaçara, insistira e chantageara 12 pessoas com aparência decente a trabalharem para ela.

Lynette percebia que estavam nervosos – duas das mulheres estavam tão trêmulas, que ela conseguia ver os seus braços tremerem –, mas, exatamente como ela instruíra, os casais se posicionaram no grande círculo e conseguiram chegar aos seus lugares depois da primeira contagem até seis. No começo do segundo conjunto de notas, todos os 12 ergueram o olhar para Neferet, pararam, contaram até três e, como se fossem um, cada um dos homens se curvara e cada uma das mulheres fez uma reverência para a Deusa.

Lynette detectou todos os erros. Viu que a mulher chamada Cindi quase caiu, e apenas a rapidez do seu par ao segurá-la pelo cotovelo impediu a queda. Camden, o garoto alto que fora o padrinho do casamento da noite anterior – e azarado o suficiente para estar com uma ressaca que impediu que ele pegasse o voo da madrugada junto com o noivo e a noiva para Dallas –, manteve a cabeça baixa por tempo demais. Lynette apertou os dentes. Se aquele garoto mimado estragasse tudo, ele lamentaria mais do que ela.

Lynette arriscou um olhar para Neferet. Obviamente satisfeita, a Deusa sorriu e assentiu com a cabeça em um gesto nobre para os dançarinos.

Agora dancem e não pareçam estranhos! , pensou Lynette.

Eles dançaram. Todos os 12 conseguiram começar na mesma nota e se moveram pelo salão seguindo um padrão quase circular. Eles estavam longe da perfeição, mas a música era adorável e, se alguns dançarinos vacilaram, “Danúbio Azul” compensou. Quando a nota final tocou, os seis casais se curvaram e reverenciaram Neferet, desta vez mantendo as suas poses como se estivessem congelados, e até mesmo Lynette teve de admitir que a cena estava muito bonita.

Neferet se ergueu e, para imenso alívio de Lynette, aplaudiu e riu.

– Muito bem, todos vocês! Isso foi muito bom. Judson, abra garrafas de champanhe para esses adoráveis súditos.

– Deusa, eles estão esperando a sua autorização para se levantarem – sussurrou Lynette para Neferet.

– Mas é claro que estão autorizados, e obrigada por me lembrar, querida Lynette. Vocês podem se levantar! – permitiu a Deusa. – Aproveitem o champanhe e a gratidão da sua Deusa pela adoração de vocês.

Lynette tocou no comunicador em seu ouvido novamente.

– Kylee, diga ao quarteto para começar a tocar a próxima música.

Em questão de segundos, a música encheu o ambiente de novo.

– “Valsa das flores”, do Quebra-nozes . Duas adoráveis músicas e excelentes escolhas – elogiou Neferet.

– Então, a minha surpresa foi agradável?

– Foi. O candelabro, as flores, os smokings e os vestidos vermelhos. Tudo foi muito bem-escolhido. Lynette, você começou muito bem como a minha planejadora de eventos. Eu aprovo o seu tema e a extraordinária música, o local lindamente escolhido e a homenagem respeitosa a mim.

– Então, posso presumir que gostaria de ter mais eventos desse tipo?

– Sim, mas da próxima vez eu gostaria que o tema fosse a minha época favorita. Os anos 1920. Essa foi uma época que vale a pena reviver. Você consegue fazer o Charleston, Lynette?

– Eu terei acesso à Internet?

– Terá, assim como uma generosa verba para os eventos – informou Neferet, abrindo um sorriso inteligente para Lynette.

– Então, eu consigo fazer o Charleston, assim como os seus súditos.

– Vamos precisar de mais músicos – declarou Neferet.

– Sim, Deusa. Vou providenciar – disse Lynette, já digitando suas anotações no smartphone.

– E fantasias. Vamos precisar de mais fantasias.

– É claro, Deusa – concordou Lynette.

– E eu preciso mais do que apenas dança, embora esse tenha sido um ótimo começo.

Lynette ergueu o olhar das suas anotações e olhou para Neferet, mas a Deusa não estava olhando para ela. Estava acariciando a taça de champanhe enquanto observava os seis casais que se espalharam em pequenos grupos aceitando o champanhe que Judson lhes servia. Lynette seguiu o seu olhar. O garoto mimado estava virando o que parecia ser a sua segunda taça de champanhe. Neferet o devorava com os olhos.

– Fico muito satisfeita que os meus súditos sejam tão atraentes – declarou ela.

Lynette bufou de forma irônica e automática, mas quando o olhar da Deusa pousou nela, ela se arrependeu instantaneamente por ter permitido um deslize de compostura.

Neferet ergueu uma das sobrancelhas ruivas.

– Ah, entendi. Você escolheu os doze com muito cuidado, porque nem todos os meus súditos são tão atraentes, não é mesmo.

Ela não usou um tom interrogativo, mas Lynette sentiu o impulso de responder.

– É isso mesmo. – Ela ergueu os ombros inquieta. – Sinto muito, Deusa, eu só queria me assegurar de que ficasse feliz com o meu primeiro pequeno evento.

– Isso é compreensível, querida Lynette. Na verdade, aprecio o seu esforço, e embora aprecie todos os meus súditos, eu também aprecio coisas, e pessoas, que são agradáveis aos meus sensos. – Neferet se inclinou no seu trono e usou um tom conspiratório para se dirigir à sua súdita: – Você poderia acrescentar isso à sua lista de tarefas como planejadora de eventos.

– Estou disposta a servi-la de qualquer forma que precise, Deusa. – Lynette estava tentando entender o que a Deusa queria. – Mas o que você quer dizer com “isso”?

– Certificar-se de que os meus súditos estejam sempre o mais atraentes possível, é claro. Sim, tenho certeza de que você tem talento para transformações.

– Transformações.

Lynette repetiu a palavra, sentindo-se extremamente sobrecarregada enquanto imagens dos súditos menos atraentes de Neferet passavam por sua cabeça. A mulher de cinquenta e poucos anos que precisava perder uns vinte e poucos quilos... A pré-adolescente ruiva esquelética cujo rosto já estava tomado por espinhas... O empresário careca e barrigudo e com queixo triplo que parecia um bócio...

A risada debochada de Neferet interrompeu o filme na sua mente.

– Pare de se preocupar, querida Lynette. Entre nós duas, conseguiremos separar o rebanho. Afinal, eu posso controlar tudo o que eles comem e tudo o que fazem. Você não concorda que dieta e exercícios são muito importantes?

Lynette assentiu com a cabeça e tentou manter-se focada completamente nos olhos verdes-esmeralda de Neferet.

– Então, além de colocar alguns deles de dieta e nos certificarmos de que passam algum tempo na academia do Templo, estou confiante de que você pode dar dicas de cabelo, maquiagem e moda. Correto?

– Sim, Deusa – respondeu ela automaticamente.

– Excelente. Estou feliz por você ter chamado a minha atenção para esta questão. É importante que os meus súditos sempre tenham a melhor aparência possível. Eles são, de algum modo, um reflexo de mim mesma.

Como se isso resolvesse a questão, o olhar de Neferet passeou pelo grupo abaixo delas, parando, de forma predatória, em Camden.

– Você fez uma excelente escolha com aquele ali, Lynette. Ele é alto, jovem e louro – disse Neferet. – Seu nome?

– Camden – informou Lynette. – Ele foi padrinho do casamento que me trouxe ao Mayo.

– Padrinho ? É mesmo? – Os olhos verdes-esmeralda de Neferet brilharam com uma intensidade perigosa, e Lynette ficou grata por tal intensidade não estar focada nela. – Talvez eu tenha que testá-lo para ver se Camden é realmente um bom súdito.

Lynette controlou um tremor de medo.

– Você gostaria que eu pedisse para alguém trazê-lo aqui?

– Não, querida Lynette. Eu posso muito bem convocá-lo. Talvez ele aprecie uma visita à varanda da minha cobertura. – Seus olhos brilhantes se voltaram para Lynette e o brilho feral neles se endureceu. – A minha equipe já se livrou daqueles vestígios desagradáveis, não é?

Merda! Eu estava ocupada demais organizando essa apresentação para verificar se todos os pedaços de gente tinham sido atirados pela varanda. A mente de Lynette começou a buscar algo para dizer e ela soltou um suspiro de alívio quando encontrou uma resposta:

– Deusa, creio que Kylee era a responsável pela questão da varanda.

– Aquela garota – murmurou Neferet, tomando um gole de champanhe. – Ela é boa para algumas coisas, mas precisa de muita supervisão. Será que você poderia usar essa útil maquininha no seu ouvido para lembrá-la das minhas ordens?

– É claro, Deusa – respondeu Lynette.

– E, enquanto você supervisiona Kylee, creio que eu vá me misturar aos meus adoráveis e atraentes súditos. Você consegue imaginar como o padrinho Camden se sentirá honrado se eu permitir que ele me tire para dançar?

Felizmente, a pergunta de Neferet era retórica e, em vez de concentrar a sua atenção na resposta de Lynette, a Deusa deu as costas para ela, tomou um gole de champanhe e caminhou em direção à grande escadaria dupla que levava ao salão de baile.

Lynette notou que Neferet não deslizou. Isso porque ela mandou as coisas rastejantes saírem para brincar , pensou Lynette. De alguma forma, elas deviam carregá-la – ou canalizar a energia para erguê-la – ou algo igualmente insano.

Ela meneou a cabeça como se quisesse clarear os pensamentos. Não podia se dar ao luxo de ficar pensando muito. Não podia se dar ao luxo de fazer mais nada a não ser sobreviver.

Lynette bateu no comunicador na sua orelha.

– Kylee, Neferet vai inspecionar a varanda da cobertura. Logo. Ela deixou você responsável pela limpeza.

– Compreendo e obedeço – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette suspirou. Deu alguns passos para trás e se apoiou em um dos pilares de mármore deixando-se ficar sem fazer nada por um momento, a não ser respirar.

Ela passara pelo primeiro teste de Neferet. Ainda estava viva e não tinha sido possuída por nenhuma criatura escorregadia. Mas, para continuar assim, não poderia se dar ao luxo de relaxar. Haveria tempo para relaxar depois que tudo isso acabasse. E Lynette conseguiria isso – ela sempre conseguia passar por todas as merdas que a vida atirava em sua direção.

Para começar, Lynette tinha uma lista de coisas a fazer.

Tinha de verificar todas as pessoas no prédio. Elas precisavam ser categorizadas como atraentes e aceitáveis ou aquelas que exigiriam trabalho. Na categoria das que exigem trabalho ela criaria as subcategorias gordo, malvestidos ou apenas feios por natureza. As duas primeiras poderiam ser corrigidas – em tese. Quanto aos que se enquadravam na terceira, bem, eles teriam de aprender algumas habilidades para que pudesse mantê-los nos bastidores.

– Espero que eles saibam cozinhar ou costurar.

Lynette estava falando consigo mesma enquanto digitava as observações no seu smartphone quando ouviu um grito vindo do salão. O que tinha acontecido agora? O que mais Neferet poderia estar fazendo? Com a mente cansada e pesada pelo medo e pela exaustão, obrigou os seus pés a levá-la até a beirada do mezanino.

Neferet estava ao lado de Camden. Ele estava olhando para o decote profundo do vestido curto de veludo da Deusa. As outras onze pessoas olhavam para as cobras escorregadias que se retorciam em volta dos tornozelos nus de Neferet.

– Ah, fique quieta – ordenou a Deusa para a garota que berrara. – Vocês precisam se acostumar com os meus filhos. Eles nunca ficam muito longe de mim, assim como vocês, meus leais súditos, nunca ficarão longe de mim.

– Si-Sinto muito, Deusa. E-eles parecem cobras. E e-eu tenho medo de cobras – gaguejou a menina.

– Eles não são cobras. São muito mais perigosos. E eu não estou pedindo para que você supere o medo que sente deles. Estou lhe ordenando que você não verbalize isso. – Neferet olhou para baixo, para as coisas rastejantes que se retorciam aos seus pés, parecendo excitadas. – O que foi, meus queridos?

– Deusa, o detetive voltou – chamou Judson do vestíbulo de entrada. – E trouxe mais gente com ele.

– Isso não significa nada. Ele pode trazer toda a Guarda Nacional de Oklahoma com ele. Eles não conseguirão penetrar a minha cortina protetora.

– Ele não trouxe um exército. Ele trouxe uma vampira que está fazendo o ar à sua volta brilhar enquanto um homem enorme que parece ter asas ocultas sob a sua capa de chuva caminha perto dela.

– Por que você esperou até agora para me dizer isso? – berrou Neferet. – Filhos! Venham comigo! – Erguida pelo ninho totalmente visível de víboras escorregadias, a Deusa deslizou até a porta da frente.

O corpo de Lynette ficou frio. Ela desceu dos sapatos elegantes de salto alto para que pudesse andar em silêncio pelo mezanino, dirigindo-se às grandes janelas panorâmicas que davam para a frente do prédio, tentando não pensar em nada, mas principalmente tentando não ter esperanças.


9

Zoey

– Que merda! O Mayo está horrível – declarei.

– É como se estivesse encharcado de morte. – Damien soava tão horrorizado quanto eu.

– Não de morte – contradisse Thanatos. – A morte é inevitável para todos os mortais. Ela não é boa nem má; é simplesmente parte da grande espiral da vida. Neferet usou nesse prédio dor e medo, sangue e desespero.

A sua voz estava estranha. Vovó, Stark, Shaylin e eu estávamos todos espremidos no Hummer da escola, e Thanatos estava na frente com Marx. Notei que quanto mais nos aproximávamos do Mayo, mais agitada a Grande Sacerdotisa parecia ficar. Ela estava literalmente inquieta, o que era muito estranho para ela – Thanatos costumava ser uma montanha de calmaria.

O seu óbvio nervosismo fez o meu estômago se revirar.

– Caos – disse Kalona. Olhei por sobre o meu ombro e ele estava sentado com Damien e Shaunee (eles estavam superapertados porque as asas dele ocupavam muito espaço), e vi-o meneando a cabeça enojado. – Neferet usou as gavinhas das Trevas para criar o caos e isso a está protegendo.

– Bem, o caos tem um cheiro horrível – reclamei enrugando o nariz.

– Fede e é horrível – concordou Damien. – E nós não temos nenhuma maneira de entrar.

– Sinto muito – desculpou-se Marx. – Eu devia ter avisado sobre o fedor.

– Não precisa se desculpar, detetive – disse Vovó. – Não creio que existisse qualquer coisa que você pudesse ter feito para nos preparar para isto.

– Você provavelmente está certa, mas é melhor avisar que não temos como saber se todas as partes humanas foram retiradas da área – acrescentou Marx. – Então, é melhor olharem por onde andam.

– Partes humanas? – A minha voz tremeu.

Marx assentiu.

– As coisas rastejantes mataram um monte de gente quando desceram pela varanda, cobrindo o prédio com trevas e tripas até aqui embaixo. Neste início de noite, Neferet tem jogado pedaços de pessoas, com todo o sangue drenado pelo parapeito da sua varanda.

– Eu consigo sentir o feitiço que ela fez com sangue, morte e Trevas – disse Thanatos. – Ela usou a morte daquelas pobres pessoas para construir uma barreira.

– Neferet lançou o feitiço, mas não sujaria as próprias mãos com a limpeza – concluiu Kalona em tom grave. – O que significa que ainda tem gente viva cumprindo as suas ordens.

– Será que importa quem está jogando? Principalmente se Neferet tiver feito reféns? – perguntou Shaunee.

– Tudo o que realmente importa é que todos se lembrem de que se detivermos Neferet, pararemos toda esta loucura também – respondeu Thanatos.

Todos nós concordamos de forma amarga.

Marx passou pelas barreiras da polícia e parou no meio-fio do outro lado da rua do Mayo em uma calçada ampla em frente ao prédio corporativo da empresa Oneok, onde nos sentamos e ficamos analisando o que tínhamos diante de nós.

– Organizamos dois postos de comando dentro da Oneok. O do terceiro andar com todos os equipamentos audiovisuais. E o que está no último andar com atiradores de elite – explicou-nos Marx enquanto nos sentamos e ficamos olhando para o prédio coberto de sangue coagulado do outro lado da rua.

– Atiradores de elite não podem matar Neferet – informou Kalona.

– É, a gente já percebeu – respondeu Marx secamente. – Mas eles podem matar pessoas, até mesmo as que estão sob o feitiço dela.

– Você não pode atirar naquelas pessoas! Elas são vítimas – declarou Vovó, virando-se, agitada. – Elas não são responsáveis pelas próprias ações, mas Neferet é.

– Sim, senhora, nós sabemos disso e não queremos atirar em ninguém, mas se Neferet ordenar que seus servos, ou seja lá como vocês querem chamá-los, nos ataquem ou a qualquer cidadão de Tulsa, seremos obrigados a impedi-los.

– Ela gostaria disso – disse Thanatos enquanto encarava o prédio. Ela parecia estar zangada. Achei que parecia mais pálida do que o usual, mas ela já era vampira havia, tipo, um zilhão de anos. Ela sempre estava pálida, então eu não poderia dizer com certeza. – Ela obteria mais poder com as suas mortes, além da satisfação de ter obrigado vocês a matar pessoas inocentes. – Thanatos olhou para Kalona. – Não podemos permitir isso.

– Concordo – respondeu Kalona.

– Bom – disse ela. – Já chega de ficarmos sentados aqui especulando. Eu preciso ir até lá. Preciso entender exatamente com o que estamos lidando.

Thanatos saiu do Hummer e bateu a porta atrás de si, deixando que o resto de nós a seguisse – de forma relutante.

Kalona se apressou a ficar ao seu lado. À distância, eu ouvia exclamações do tipo “Ei, olha lá aqueles vampiros!” e “Prepare a câmera, tem alguma coisa acontecendo na frente do Mayo!”.

O imortal alado tinha colocado uma longa capa de chuva para cobrir o seu peito tipicamente nu como uma forma bastante bem-sucedida de esconder as asas gigantescas. Eu o vi virar o corpo tentando enfiar as penas enormes lá dentro. Ele lançou um olhar irritado para as pessoas reunidas atrás das barricadas antes de os seus olhos encontrarem os do detetive Marx.

– Creio que seria mais sábio se você retirasse todos os civis dessa área da cidade. Ninguém estará seguro aqui.

– É, eu sei, mas tente dizer isso para a mídia. Conseguimos reunir todo mundo ali atrás, mas é uma merda lidar com a liberdade de imprensa.

Kalona deu de ombros.

– Então, eles terão de aprender a lição por si mesmos.

Com aquela observação agourenta, ele voltou a sua atenção para o Mayo. Thanatos olhava para o prédio, quase como se estivesse hipnotizada por ele. Engoli o meu medo e me posicionei ao seu lado, grata pela presença forte de Stark.

– Eu deveria saber. – A voz de Thanatos estava cansada. Ela deu vários passos na direção ao prédio. – Mas eu raramente era chamada para o local de uma morte humana, e nunca uma morte de tamanha magnitude. – Ela se aproximou mais do prédio, ficando na entrada semicircular de veículos anexa à entrada principal. Thanatos ergueu as mãos e estremeceu. – O terror usado para fazer esta barreira ainda está aqui.

– Sacerdotisa, eu aconselho que não se aproxime mais do prédio – disse Kalona, posicionando-se ao seu lado e gentilmente pegando o seu cotovelo e tentando fazer com que voltasse para a rua.

– Eu preciso ajudá-los – declarou ela, afastando a mão dele.

– Eles? – perguntou Marx.

– Nem todos os mortos se foram. O fim deles foi violento demais, aterrorizante demais, bem além do que qualquer coisa que essas pobres pessoas jamais imaginaram. Sinto os seus espíritos em pânico e eles ficam girando em círculos, incapazes de encontrar uma saída deste reino para o próximo.

– Você pode ajudá-los? – perguntou Vovó, que estava próxima ao Hummer.

– Acredito que sim.

– Tente fazer isso de forma rápida – orientou Kalona.

– Eu devo traçar um círculo? – perguntei.

– Não, Zoey. Você e todos os outros, exceto por Kalona, devem ficar lá trás em segurança. Isso é algo que eu tenho que fazer sozinha. O dom que nossa Deusa me concedeu é tudo de que eu preciso... – Ela fez uma pausa e deu um sorriso de agradecimento para Kalona – ... incluindo um protetor poderoso. Eu preciso acreditar na força que Nyx me dá.

– Façam como Thanatos disse e voltem para o Hummer – pediu Stark, puxando-me com ele. Marx se afastou mais devagar, os seus olhos concentrados em Thanatos.

– Damien! Ei! Damien! – Um humano bonito e jovem chegou correndo.

Damien se virou a tempo de receber um abraço gigantesco.

– Adam! Você não deveria estar aqui. É perigoso demais – repreendeu Damien.

– Ei, sou um jornalista. Eu tenho que lidar com o perigo – declarou ele sorrindo.

Por fim, eu o reconheci. Era Adam Paluka, um jornalista da Fox – o cara que nos entrevistou depois que Neferet deu aquela conferência ridícula. Eu sabia que Damien estava namorando alguém, e pelo modo como aqueles dois sorriam um para outro, acho que as coisas estavam indo bem. Nossa, eu me envolvera tanto com as coisas que estavam acontecendo comigo, que eu nunca pensei em perguntar a Damien como ele estava lidando com o fato de estar namorando tão rápido depois que Jack...

– Você precisa voltar para trás da barreira – disse Marx, aproximando-se de Adam com um olhar carregado.

Mas bem nesse momento, Thanatos começou o seu feitiço, atraindo toda a nossa atenção para si.

A Grande Sacerdotisa ergueu as mãos e fechou os olhos. Quando falou, a sua inquietação acabou. Suas palavras eram rítmicas e hipnóticas; sua voz, calma. Ela era forte, sábia e bonita – e eu tinha orgulho de ser uma novata da Morada da Noite sob o seu reinado.

Espíritos sofredores, venham até mim
Com calma e doçura, que a minha voz os guie assim
E que o meu dom acabe com o sofrimento sem fim

O ar em volta de Thanatos começou a brilhar como se alguém tivesse lançado globos mágicos cheios de purpurina em direção a ela.

– Ai, meu Deus! O que está acontecendo? O que aquela vampira está fazendo?

Eu estava tão concentrada no feitiço de Thanatos, que mal notei o barulho crescente vindo da multidão atrás de mim. Apesar disso, senti que Adam erguera o seu iPhone e ouvi um pequeno clique indicando que ele estava filmando. Stark apertou a minha mão antes de cochichar:

– Acho que Marx está prestes a expulsar os repórteres. Eu vou ver o que posso fazer para ajudá-lo. Certifique-se de que você, o seu grupo e Vovó fiquem perto do Hummer.

Assenti e vagamente notei que Stark estava discutindo com Damien sobre obrigar Adam a sair enquanto Marx caminhava decididamente em direção à barricada. Mas os meus olhos nunca se afastaram da Grande Sacerdotisa. Eu não conseguia parar de olhar. Thanatos comandava toda a minha concentração.

O guia para o fim do sofrimento eu sou sim
O amor atendeu às suas preces e ao terror colocou um fim;
Com calma e doçura, os seus espíritos estão livres assim!

Esferas brilhantes cercavam completamente Thanatos. Quando ela falou o último verso do feitiço e abriu os seus braços, cada uma das esferas precipitou-se para ela. Rindo de alegria absoluta, o rosto de Thanatos se iluminou de amor e ela ergueu os braços. As esferas brilhantes voaram como fogos de artifício para o céu noturno – só que, em vez de deixar para trás um rasto de fumaça, as esferas que desapareciam deixavam para trás um rasto de alívio e felicidade que me fez esquecer o estresse da situação – o horror do sangue e o fedor do Mayo coberto com Trevas –, fez-me esquecer de tudo, a não ser o fato de que, fôssemos humanos ou vampiros, havia sempre uma constante entre todos nós: o amor. Sempre o amor.

E, então, Neferet saiu pela porta da frente arruinando completamente o momento feliz. Antes, pensava que ela parecia uma insana, mas eu estava errada. O que ela era agora fazia a loucura anterior de Neferet parecer não mais que uma excentricidade, como uma velha que gosta de gatos e cheira a urina e mato. Ela estava usando um vestido curto verde. Por um segundo senti certo alívio. Tipo assim, ela não estava nua. Tudo bem, ela estava descalça, mas não achei nada demais naquilo, até que eu realmente olhei para os seus pés. Eles estavam descansando sobre um ninho escorregadio de gavinhas negras que se contraíam e pulsavam ao redor dela, envolvendo seus tornozelos e canelas, e, na verdade, erguendo-a do chão.

Mas aquilo nem era a coisa mais insana em Neferet. Foram os seus olhos que denunciaram a sua loucura. Algo acontecera com as suas pupilas – elas tinham desaparecido. Eram como pedras de mármore, completamente verdes-esmeralda.

– O que há de errado com os olh... – começou Adam, mas o berro de Neferet o cortou.

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo! – Neferet apontou para Thanatos, e duas das gavinhas correram na direção desta.

Kalona se moveu tão rápido, que tudo ficou um borrão. De repente, ele estava lá, entre Thanatos e as criaturas que a atacavam. Ele tirara o seu casaco e revelara a lança de ébano que tinha amarrada nas costas. Suas asas se desenrolaram enquanto ele se encontrava com as gavinhas, espetando uma delas, e enquanto esta se retorcia na agonia da morte, partiu a outra ao meio.

Neferet gritou, como se sentisse a dor das gavinhas.

– Ignorem Kalona! Matem Thanatos! E, depois, todos os outros!

Tudo explodiu.

As gavinhas das Trevas, como veneno cuspido da boca de uma víbora, saíram dos pés de Neferet, tentando passar por Kalona a fim de atingir Thanatos e o resto de nós. Stark voltou para mim, empurrando-me e à Vovó para trás dele e gritando para Damien, Adam, Shaunee e Shaylin para entrarem no Hummer.

Cambaleei para trás, certa de que eu iria assistir a Thanatos ser partida ao meio pelas criaturas de Neferet, provavelmente segundos antes de elas atacarem Stark e, depois, devorarem o restante de nós.

Mas nada daquilo aconteceu. As Trevas não venceram esta batalha – o imortal alado sim.

Kalona estava em todos os lugares. A sua lança se movia tão rápido, que provocava um som no ar.

– Um sabre de luz – arfou Damien. – E é de verdade, e não um de mentirinha como o do Star Wars.

– Leve-os para um lugar seguro! – ordenou Kalona para Marx.

Marx correu para a Grande Sacerdotisa e, enquanto Kalona usava o próprio corpo, suas asas e sua lança para nos proteger, nos apertamos no Hummer.

– Segurem-se! – Eu vou subir na calçada e tirar ele de lá! – avisou Marx ligando o carro.

– Espere! – disse Thanatos. – Ele está vindo para nós. Olhem para as gavinhas. A força delas acaba quando elas se afastam muito de Neferet.

A Grande Sacerdotisa estava certa. Kalona, ferido e sangrando, ainda estava lutando com as criaturas, mas se aproximava de nós e se afastava do Mayo. E as gavinhas não o estavam seguindo.

Quando Kalona chegou à traseira do Hummer, Neferet ergueu os braços e ordenou:

– Venham para mim, filhos! Eu os ajudarei!

As coisas rastejantes deslizaram para ela, enrolando-se em seus braços e pernas. Ela as acariciou, como se quisesse confortá-las, e antes de desaparecer dentro do Mayo, seus olhos brilhantes verdes-esmeralda se concentraram em nós.

– Obrigada pela lição. Da próxima vez, eu vencerei!

Zoey

– Não, de verdade, eu não preciso ir para o hospital – repetiu Kalona pela enésima vez para Marx. – Como eu já disse, traga-me água ou, melhor ainda, vinho. Eu vou subir até o alto deste prédio e me curar.

Nós contornamos o prédio da Oneok e entramos pelos fundos para nos juntarmos à força-tarefa de Tulsa no terceiro andar. Percebi por que Marx estava estressado com Kalona – ele estava ensanguentado. Todos na sala olhavam para ele, mesmo enquanto tentavam não olhar. Sério, se ele não fosse imortal, estaria em um saco preto para cadáveres.

Marx bufou e passou os dedos pelo cabelo.

– Tudo bem, então, já entendi. Já entendi. Você está bem. Carter! – gritou ele para um policial uniformizado, que imediatamente parou de fingir que estava analisando dados na tela do seu computador e deu atenção ao detetive. – Encontre a sala de reuniões do presidente da empresa. Deve haver bebida lá. – Marx voltou a sua atenção para Kalona. – Serve uísque? Esses caras corporativos preferem esse tipo de bebida.

– Serve – respondeu Kalona.

– Pode ir – disse Marx para Carter. – Tudo bem, então. Enquanto Kalona está se recuperando no telhado, vamos fazer um controle de danos. Paluka, passe o telefone para mim e saia daqui.

– Você não pode simplesmente pegar o meu telefone! Isso é ilegal!

– É uma evidência de uma investigação em andamento de múltiplos homicídios. Eu estou apreendendo o seu telefone – informou Marx.

– Um momento, por favor, detetive – pediu Vovó.

– Senhora? – Marx, assim como todos nós, olhou para Vovó, que deu um sorriso sereno.

– Adam, corrija-me se eu estiver errada, mas acredito que você não seja o único jornalista que testemunhou o que acabou de acontecer lá fora.

– Você não está errada – respondeu Adam.

– Ah, exatamente o que pensei. O que significa que deve haver um monte de equipes de filmagem gravando tudo de trás da barreira, isso sem mencionar as gravações feitas por celulares, como a que você fez.

Ouvi Marx suspirar enquanto Adam respondia:

– Exatamente, senhora.

Vovó e Thanatos trocaram um olhar e, então, a Grande Sacerdotisa assumiu a conversa que Vovó iniciara.

– Sr. Paluka, o que o senhor acha de fazer uma entrevista exclusiva comigo e Kalona?

Os olhos de Adam brilharam de animação, mas ele manteve a postura profissional.

– Eu gostaria muito disso, Grande Sacerdotisa.

– Então, é isso que você terá. – Thanatos lançou um olhar para Marx. – Às vezes é mais fácil abrir mão do controle e deixar o destino lidar com o que quer que venha em seguida.

– Pelo menos limpem um pouco do sangue e me deem um monte de comprimidos de Tylenol.

Zoey

Kalona realmente tentou limpar o sangue que escorria dos seus ferimentos semelhantes a chicotadas e dos arranhões menores e mais profundos que mais pareciam mordidas que se espalhavam pelo seu corpo. Achei que ele parecia bem-acabado, e ele ainda sangrava um pouco, mas estava agindo de forma totalmente normal – forte, silenciosa, intimidadora. Thanatos fez com que ele vestisse o casaco comprido. Disse que as suas asas já tinham aparecido o suficiente no vídeo da batalha que Adam exibiria durante a entrevista. Em silêncio, concordei com ela, mas também pensei que o casaco cobria bastante os ferimentos que estavam ali embaixo. Por uma vez, consegui manter a boca fechada e deixei que os outros lidassem com as consequências da luta com Neferet enquanto eu me afastava dos holofotes. Foi um breve momento de relaxamento para mim enquanto me encolhi ao lado de Stark para assistir com Vovó, Damien, Shaylin e Shaunee àquilo que jamais poderíamos imaginar alguns meses antes – Kalona sendo entrevistado pela TV de Tulsa.

Adam chamara uma equipe de iluminação e um cinegrafista. Achei que estavam fazendo um bom trabalho de não ficar olhando estupidamente para Kalona. Adam explicou para todos que iria carregar o vídeo da batalha e exibi-lo e, depois, começaria a entrevista. Também explicou que ela seria exibida ao vivo no plantão de notícias.

– Cara, ainda bem que não estamos ali – sussurrei.

– Adam está fazendo um excelente trabalho – disse Damien com voz suave enquanto seus olhos brilhavam para o jornalista.

– Eu gosto dele.

O olhar de Damien encontrou o meu.

– Você acha que o Jack teria gostado dele.

Estiquei a mão por sobre Stark e apertei a mão de Damien.

– Tenho certeza que sim.

Damien assentiu e piscou para afastar as lágrimas.

– De alguma forma, isso torna as coisas mais fáceis, apenas um pouco mais fáceis, mas sou grato por esse “pouco”.

Então, a nossa atenção estava em Adam enquanto a luz vermelha na câmera parou de piscar e nós assistimos às cenas da batalha de Kalona sendo exibidas em um monitor portátil.

– Sou Adam Paluka, ao vivo, com a vampira e o Guerreiro que acabamos de ver nesta cena surpreendente gravada há alguns momentos em frente ao Mayo Hotel, no centro de Tulsa, quando a Grande Sacerdotisa conhecida como Neferet atacou diversos cidadãos inocentes, inclusive eu. – Adam fez uma pausa, dando então um sorriso caloroso para Kalona. – Eu ainda não lhe agradeci por ter salvado a minha vida. Obrigado!

Kalona pareceu surpreso, quase tímido. Ele assentiu uma vez e disse:

– De nada.

– Kalona estava cumprindo o seu dever. Ele é o meu Guerreiro sob Juramento. Neferet, que não é mais reconhecida por nenhuma autoridade vampírica como Sacerdotisa de Nyx, atacou a mim e os que estavam comigo. Era o dever de Kalona nos proteger – declarou Thanatos.

– Thanatos, é muito bom falar com você novamente. Muitos dos nossos espectadores a reconhecerão como a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Será que você poderia explicar o que estava fazendo na frente do Mayo?

A entrevistada respirou fundo e, então, falou devagar e com clareza, como se quisesse que todos a compreendessem:

– A essa altura, vocês já sabem o que nós apenas suspeitávamos antes, que Neferet está completamente louca e que se tornou uma pessoa malévola. Ela admitiu ter cometido uma matança. Assassinou o prefeito de Tulsa. Assassinou dois homens em Woodward Park. De lá, seus assassinatos se dirigiram para inocentes na Boston Avenue Church no domingo de manhã e, em seguida, para o Mayo Hotel, onde ela se trancou. As mortes que causou no Mayo permitiram que criasse um escudo protetor sobre o prédio. Eu fui até lá por causa do meu dom concedido pela Deusa, que é ajudar as almas a passarem deste mundo para o próximo.

– As luzes brilhantes! Elas eram almas?

Thanatos concordou com a cabeça.

– Exatamente. Elas estavam presas neste reino por causa da forma violenta como morreram. Eu simplesmente as ajudei a se libertarem.

– Nossa! Isso é incrível.

O sorriso de Thanatos foi bonito.

– O ciclo da vida é realmente incrível.

– Sim, é claro que sim. Espere um pouco, Thanatos. Isso significa que eram almas humanas que você ajudou na passagem?

– Isso mesmo – respondeu ela, serena.

– Mas você é uma vampira .

O sorriso da Grande Sacerdotisa se abriu mais.

– Achei que já tínhamos falado disso.

– É verdade. – Adam passou os dedos pelo cabelo perfeito. – Mas uma pessoa da sua raça a atacou porque você estava ajudando almas humanas .

– Adam, já vivi por mais de quinhentos anos, e, nesse tempo, eu aprendi que a humanidade é definida pelas escolhas, e não pela genética. Para colocar de forma bem simples, humanos e vampiros têm mais semelhanças do que diferenças.

– Obviamente Neferet não pensa como você – disse Adam.

– Neferet está louca. Seus pensamentos são excêntricos e perigosos.

– O que são aquelas coisas que ela enviou para nos atacar? – perguntou Adam.

– O mal que tomou uma forma tangível. As criaturas seguem as ordens de Neferet. Desde que ela faça sacrifícios para mantê-las leais a ela. – Thanatos olhou diretamente para a câmera. – Nunca é demais enfatizar que, não importa o quanto Neferet ameace, é imperativo que nenhum humano deve chegar perto do Mayo. O poder de Neferet vem da morte. Fiquem longe do Mayo e a sua fonte de poder vai acabar secando.

Adam parou, pareceu chocado e, então, olhou para alguém que não estava aparecendo na filmagem.

– Detetive Marx, o senhor concorda com o pedido de Thanatos em relação ao Mayo?

O cinegrafista apontou a câmera para um detetive com expressão irritada. Imperturbável, ele respondeu sem hesitar:

– Concordo. O Departamento de Polícia de Tulsa colocou barreiras nas ruas que cercam o Mayo. Ninguém pode se aproximar do Mayo, nem mesmo as equipes policiais ou os militares.

– Mas não é verdade que Neferet está mantendo reféns dentro do Mayo? – quis saber Adam.

– É verdade, mas, nesse momento, não temos nomes nem números – respondeu Marx. – Eu entendo que as pessoas vão sentir falta dos seus entes queridos. O Departamento de Polícia abriu uma linha telefônica 0800 para perguntas e informações de pessoas desaparecidas. O público deve direcionar as suas perguntas por esse número.

– Número esse que o canal Fox 23 vai colocar na parte inferior da tela – informou Adam.

– Obrigado – agradeceu Marx, embora ele não parecesse particularmente grato.

– Detetive Marx, eu preciso perguntar: se o senhor não vai permitir que ninguém se aproxime do Mayo, como é que pretendem deter Neferet?

– Ela será detida por mim, pelos vampiros e pelos novatos que lutam ao meu lado. Neferet é da nossa raça. E somos nós que devemos derrotá-la.

Todos nós, inclusive o cinegrafista, concentraram-se no imortal alado.

– Kalona, o senhor não é um vampiro, certo? – perguntou Adam.

– Certo.

– Então, o que o senhor é?

Ele nem mesmo hesitou. Disse aquilo como se estivesse contando o que comeu no jantar da noite anterior.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas fiz escolhas ruins e, por isso, fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

Seguiu-se um silêncio em que ninguém parecia respirar. Então, Adam perguntou:

– E o que o senhor está fazendo aqui?

Kalona se empertigou e olhou diretamente para a câmera.

– Estou tentando me redimir dos meus erros do passado e obter o perdão de Nyx.

– Bem – Adam engoliu em seco –, parece-me que o senhor está fazendo um bom trabalho aqui. O senhor salvou a Grande Sacerdotisa, um grupo de vampiros e novatos, um detetive. Salvou, inclusive, a mim. Se o senhor conseguir deter Neferet, eu vou começar a chamá-lo de Super-Homem.

Os lábios carnudos de Kalona se ergueram em um sorriso.

– Se você vir Nyx, eu gostaria muito que dissesse isso para ela.

– Pode contar comigo – assegurou Adam. Então, ele se voltou para Thanatos: – A senhora tem mais alguma coisa a acrescentar, Grande Sacerdotisa? Será que existe alguma forma de o público nos ajudar?

– Existe sim – respondeu ela. – Todos podem rezar e enviar pensamentos e energia positiva para nós. A Morada da Noite fará o melhor que puder para proteger o povo de Tulsa, mas nós precisamos de intervenção divina.

– Rezar? Para quem? Para Deus ou para a Deusa? – quis saber Adam.

– Ora, para qualquer um deles ou para os dois, é claro. Gosto de acreditar que as orações não estão presas a questões semânticas.

Adam sorriu.

– Eu também prefiro acreditar nisso. – Ele se virou para a câmera. – Vamos todos rezar pelo fim da insanidade de Neferet e da violência que irrompeu em Tulsa em decorrência disso. E essas foram as últimas notícias sobre a situação no Mayo Hotel. Sou Adam Paluka, lembrando a todos para ficarem ligados no canal Fox 23 para terem uma cobertura completa.

– O irmão de Erebus. Isso não é interessante? – perguntou Vovó, enquanto Adam trocava um aperto de mão com Thanatos e agradecia a ela e a Kalona pela entrevista.

– Você sabia que ele era irmão de Erebus? – sussurrou Damien para mim.

– Hã... Sabia – respondi. – Ele mencionou isso há alguns dias.

– Mas estivemos meio ocupados desde então – completou Stark.

Damien coçou a testa.

– Eu me lembro vagamente de ter lido em uma antiga antologia poética vampírica algumas menções sobre o Filho da Lua e Guerreiro da Noite, junto com as descrições usuais de Erebus como Filho do Sol e Consorte de Nyx. Inicialmente, achei que eram apenas nomes diferentes para Erebus, mas, pensando bem, faz mais sentido que estivessem falando de dois imortais distintos.

– Isso torna os séculos de raiva de Kalona mais compreensíveis – declarou Vovó.

– É. Ter deixado de ser o guerreiro e companheiro de Nyx e não ter nem mais permissão para entrar no Mundo do Além. Isso deve doer de verdade – disse Damien, observando Kalona com olhos grandes e tristes.

– Ele estuprou e matou gente. Quem sabe o que ele fez no Mundo do Além antes de sua Queda – contou Stark.

– Todo mundo merece uma segunda chance, Tsi-ta-ga-a-s-ha-ya – afirmou Vovó, usando o apelido Cherokee que dera a ele. – Eu me lembro de que não faz muito tempo que você teve uma segunda chance.

Stark olhou para o chão.

Eu respirei fundo e disse:

– Eu também.

Vovó levantou as sobrancelhas.

– Hoje eu ganhei uma segunda chance – expliquei. Olhei de Vovó para os meus amigos, um de cada vez, e, por fim, meu olhar encontrou o de Stark. – Nós somos um time que precisa de uma segunda chance. Estou feliz de ter Kalona ao nosso lado.

Vovó tocou o meu braço.

– Algum dia, você deveria dizer isso para ele, u-we-tsi-a-ge-ya . Acho que você vai ficar surpresa com a diferença que suas palavras podem fazer.


10

Zoey

– Que merda! Você não vai acreditar no que acabou de viralizar no YouTube! – Nicole subiu correndo as escadas do auditório para o palco, acenando com o seu iPad como uma louca.

Aphrodite olhou para ela e afastou o iPad de si.

– Sério? A assembleia acabou agora mesmo . Você estava no YouTube enquanto eu estava falando?

– Sério. – Nicole revirou os olhos. – Supere isso. Todo mundo estava no YouTube. Você tem que ver isto. – Ela empurrou o iPad em direção a Aphrodite.

– Ser professora é um saco. Adolescentes são um saco – declarou Aphrodite, ainda ignorando o aparelho.

– Aiminhadeusa! Aquele é o Kalona? No YouTube? – Stevie Rae passou por Aphrodite para dar uma olhada na tela.

– O quê? Kalona? – Lenobia se apressou para ficar ao lado de Stevie Rae, com Darius e Rephaim logo atrás.

– Muito bem. Eu vou assistir. Agora que eu acabei de informar a todo o corpo discente que vamos salvar o mundo. De novo. – Aphrodite olhou para a tela e arregalou os olhos. – Céus! Por que você demorou tanto para nos dizer? Ligue logo! – Ela agarrou o iPad, tocou no botão para tocar e aumentou o volume até o máximo.

Não era um vídeo profissional, mas o início estava muito claro. Primeiro, focava em Thanatos. Ela estava na frente de um prédio com aparência horrível que parecia estar coberto por uma cortina gosmenta preta. Assistiram enquanto a Grande Sacerdotisa concluía o seu feitiço, erguendo os braços e sendo envolvida por um monte de esferas bonitas e brilhantes. Quando elas se ergueram aos céus, o vídeo ainda mostrava Thanatos, mas, ao fundo, dava para ouvir Neferet gritando:

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo!

O vídeo mudou e agora dava para ver Neferet em frente ao que devia ser o Mayo.

– Ela parece estar precisando de um McLanche Feliz – disse Stevie Rae.

Aphrodite não afastou os olhos da tela.

– Isso é tudo que você tem a dizer, caipira?

– Eu acho que ela está mais doida que um gato preso num saco – opinou Nicole.

– Ninguém perguntou... – começou Aphrodite, mas a explosão no vídeo interrompeu as suas palavras.

– Aiminhadeusa! Não! – ofegou Lenobia, enquanto assistiam a Neferet lançando uma nuvem de Trevas atrás de Thanatos e de todos os outros.

– Meu pai está salvando todo mundo – disse Rephaim.

– Olhem como ele se move. – A voz de Darius era respeitosa. – Sua velocidade e força são incríveis.

Aphrodite não teve a chance de concordar. O vídeo terminou com quem quer que estivesse filmando parando para entrar no Hummer da escola, embora ainda tenha conseguido filmar Neferet e os tentáculos sangrentos das Trevas deslizando para dentro do Mayo.

Então, começou a entrevista, e Aphrodite teve de se obrigar a fechar a boca, que estava aberta de forma não atraente porque lá estava Kalona – com asas e tudo –, ao lado de Thanatos no canal Fox 23.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas eu fiz escolhas erradas e, por isso, eu fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

– Irmão de Erebus? Ele só pode estar brincando! – Aphrodite sentiu que sua cabeça iria explodir.

– É verdade – confirmou Darius em voz baixa quando o vídeo chegou ao fim.

A tela ficou escura e Aphrodite olhou para ele.

– Você sabia ?

– Sabia. Kalona contou para Zoey, Stark e eu – admitiu Darius.

– E nenhum de vocês achou que seria importante contar para qualquer um de nós? – perguntou Lenobia, parecendo tão irritada quanto Aphrodite.

Darius encolheu os ombros largos.

– Para dizer a verdade, eu nem pensei muito nisso. A veracidade de Kalona foi mais do que questionável desde o momento em que ele apareceu aqui.

– Mas agora você acredita nele? – quis saber Rephaim.

Darius olhou para ele.

– Acredito.

– Rephaim, você sabia que o seu pai era irmão de Erebus? – perguntou Stevie Rae.

Os olhos do menino-pássaro ficaram tristes.

– O meu pai nunca fala sobre antes .

– O que significa que não, você não sabia? – insistiu Aphrodite.

– Isso – confirmou Rephaim, parecendo tão misterioso quanto o seu pai.

– Isso muda tudo – declarou Lenobia.

– Sim, de forma maravilhosa – animou-se Nicole, assentindo como um boneco bobblehead . [*] – Isso significa que temos um guerreiro de Nyx no nosso time.

– Não – discordou Aphrodite, secamente. – Significa que temos um ex-guerreiro de Nyx que fez tanta merda, que acabou expulso do Mundo do Além no nosso time. E isso não é tão legal assim.

– Ele disse que está tentando se redimir – falou Rephaim.

– E ele salvou Thanatos e os outros – reforçou Darius.

– Sinto muito, mas eu não estou pronta para pular cegamente para o time Kalona – disse Aphrodite.

– Acho que é cegueira ignorar o que está bem na frente dos seus olhos – retorquiu Rephaim, apontando para a tela escura do iPad.

– E eu acho que tem um monte de coisas sobre Kalona que não sabemos. – Ela fez uma pausa e lançou um olhar duro para Darius. – Ou pelo menos a maioria de nós não sabe. Agora, se vocês não têm mais nada que prefiram fazer, eu adoraria que reunissem todos os novatos que apresentem algum talento guerreiro. Tenho certeza de que Thanatos vai querer um exército para a batalha. Depois de assistir à louca no YouTube, tenho a sensação de que Neferet não vai dar a mínima para o time Kalona. – Aphrodite então deu um tapa na própria testa e acrescentou sarcasticamente: – Ah, esperem! A maldita Neferet provavelmente já sabe sobre a relação Kalona–Erebus, assim como praticamente todo mundo menos eu . – Ela jogou o cabelo para trás e se retirou.

Só quando já estava do lado de fora do auditório é que Aphrodite diminuiu o passo e permitiu que os pensamentos acompanhassem as suas emoções. Seu coração estava disparado e seu estômago, apertado. Estava puta da vida. Muito puta da vida.

Não, isso não é verdade. Eu não estou puta da vida. Eu estou assustada e chateada.

Com um suspiro enorme, Aphrodite saiu da calçada e foi até um dos bancos de carvalho. A mão que afastou o cabelo louro do seu rosto estava trêmula.

Darius omitira um segredo, algo importante. Até aquele momento, acreditara que ele era diferente de todos os outros caras nesta Terra. Ele deveria ser honesto. Ele deveria ser leal. E, acima de tudo, ele deveria amá-la o suficiente para nunca mentir para ela ou guardar um segredo dela.

Quando alguém conta uma mentira, é possível medir o quanto esse alguém amou você ou não. Aphrodite sabia disso porque crescera ouvindo uma mentira constante que não parava de crescer. Os seus pais fingiam ser um casal perfeito, mas a verdade era que se odiavam tanto quanto a odiavam. A não ser quando estavam em público, eles viviam vidas totalmente separadas – eles nem compartilhavam o mesmo quarto havia mais de uma década, quanto mais os segredos.

Eles mentiam um para o outro todos os dias.

Quando ela só tinha oito anos de idade, Aphrodite jurara para si mesma que jamais entraria em qualquer relacionamento semelhante ao casamento dos pais. Merda, até conhecer Darius, nunca tinha permitido que um cara se aproximasse o suficiente dela a ponto de importar se ele mentiria ou não. Ela se certificava de mentir para eles primeiro . Ela os traía primeiro . Ela terminava com eles primeiro .

– Eu consigo sentir a sua tristeza, minha bela. Por favor, fale comigo.

Aphrodite ergueu o olhar ao ouvir a voz de Darius, mas não o olhou nos olhos. Olhou por sobre o ombro dele.

– Sobre o que você quer conversar?

Ele se sentou ao lado dela e usou as costas da mão para enxugar uma lágrima que escorria pela bochecha dela. Aphrodite se afastou dele rapidamente, enxugando o outro lado do rosto.

– Eu quero conversar sobre nós – respondeu ele.

– É mesmo? Será que não seria bem mais fácil continuarmos seguindo do jeito que estamos? Fingindo estar “apaixonados para todo o sempre”? – perguntou ela sarcasticamente e usando os dedos para indicar as aspas.

– Nunca foi fingimento para mim. Você sabe muito bem disso, Aphrodite. – O tom dele era calmo e sério.

Ela desejou dar uma tapa na cara dele – machucá-lo –, fazê-lo sentir um pouco do medo que estava sentindo. Mas não fez nada de violento. Isso significaria perder o controle. Isso significaria que tinha se transformado na sua mãe. Em vez disso, Aphrodite o atacou com palavras.

– E como é que eu posso saber disso? Eu não posso entrar na sua cabeça. Eu nem posso compartilhar os seus sentimentos como uma verdadeira Profetisa faria. Mas tanto faz. Não se preocupe com isso. Está tudo bem, e nós dois temos um monte de merda para fazer porque, como sempre, as Trevas estão tentando dominar o nosso mundo.

– As Trevas terão de esperar, porque você é o meu mundo, e se eu perder você, eu vou me perder.

Aphrodite quis se levantar e se afastar dele sem olhar para trás. Ela iria endurecer o coração, deixá-lo tão duro quanto ele costumava ser para, na verdade, protegê-la. Antes da tempestade de Zoey e seu bando Nerd e Darius aparecerem na sua vida.

Era o que ela iria fazer, mas, de alguma forma, Darius disse exatamente a coisa certa. Então, as pernas de Aphrodite, de repente, decidiram ouvir o seu coração em vez de escutar a cabeça.

Aphrodite olhou para ele.

– Você mentiu para mim.

– Não, minha bela. Eu simplesmente não contei uma coisa para você.

– Por quê? Por que você não me contou? Kalona ser irmão de Erebus é uma puta informação importante.

– Eu não estou nem aí para o que Kalona disse ou deixou de dizer. Eu só ligo para você e o que você diz.

– Eu? – Aphrodite franziu as sobrancelhas. – Do que é que você está falando? Eu nunca mencionei qualquer coisa remotamente semelhante à possibilidade de Kalona e Erebus serem irmãos.

O sorriso de Darius foi lento e doce.

– Exatamente. E se você, minha bela Profetisa talentosa, não tem qualquer insight sobre o verdadeiro passado de Kalona, então por que é que eu deveria mencionar um comentário fora de contexto que um imortal alado fez? Aphrodite, se fosse importante que soubéssemos que Kalona era irmão de Erebus, então creio que você teria dito isso para mim .

Aphrodite meneou a cabeça, sentindo-se um pouco tonta quando ela se deu conta do que Darius realmente estava dizendo para ela.

Ele pegou a sua mão.

– Será que eu já disse hoje o quanto eu amo você?

– Não – sussurrou ela, pensando: por favor, não diga isso se não for verdade. Por favor, não faça isso.

– Com todo o meu ser – declarou ele.

Lágrimas escorreram pelo rosto de Aphrodite, mas ela não afastou o olhar dele.

– Não tenha medo – pediu ele.

– Eu tenho. Isso ainda me assusta – admitiu ela.

– Também me assusta, mas, para ficar com você, realmente com você e não apenas fingir para que o meu coração fique em segurança, vale a pena enfrentar e dominar esse medo.

– Mas você é um guerreiro. Eu não sou nada. Não de verdade. Eu sou apenas... – Sua voz falhou. Não conseguiria dizer, mas as palavras enchiam a sua mente: eu apenas sou filha de uma mulher horrível que só me ensinou a odiar, e nunca, nunca confiar no amor.

– Você é a pessoa mais corajosa que eu conheço – afirmou Darius com voz solene. – E você não é, e nunca será, como a sua mãe.

– E você nunca vai mentir para mim.

Ela não falou aquilo como uma pergunta, mas ele se levantou do banco e se ajoelhou, pressionando a mão dela contra o coração dele, dizendo:

– Aphrodite, Profetisa de Nyx, eu lhe juro que jamais mentirei para você. Se eu não falar a verdade sempre para você, que a Terra me engula inteiro para que o meu espírito jamais encontre o Mundo do Além.

Um calafrio terrível passou por Aphrodite e ela agarrou Darius, puxou-o para os seus braços e sorriu.

– Não, pare já com isso! Qualquer um pode contar acidentalmente uma mentira. Qualquer um! Eu não aceito o seu juramento!

Darius se inclinou um pouco para trás, segurando gentilmente os ombros trêmulos dela, e sorriu.

– Mas eu não sou qualquer um . Eu sou seu. O seu guerreiro. O seu amante. O seu companheiro. Juro que nunca vou mentir para você porque isso a magoaria mais do que poderia suportar, e eu prefiro que a Terra me engula para sempre do que fazer isso com você.

Enquanto olhava para Darius e via a verdade nos seus olhos, algo se libertou dentro de Aphrodite – algo pequeno e afiado que estivera fincado dentro dela por muito, muito tempo. Ela ofegou e inspirou fundo, soltando o ar devagar.

– Acabou – sussurrou ela.

– O que acabou, minha bela?

– O meu medo. Acabou, Darius. Você acabou com ele. – Aphrodite sabia que soava jovem e tola. Mas não ligava. Pela primeira vez na vida, não estava com medo de perder o amor. – Eu não posso perder você! – exclamou ela.

– Não – respondeu ele, sorrindo de novo. – Você jamais vai me perder. E eu não acabei com o seu medo. Você o deixou ir.

– Ah – respondeu ela, suavemente, compreendendo por fim. – Sinto muito por ter demorado tanto.

– Você demorou o tempo necessário, e eu não me arrependo por ter esperado.

Darius a beijou em seguida, e Aphrodite vivenciou a felicidade completa.

Até que Aurox os interrompeu.

– Darius! Aí está você. Venha rápido. Eles estão nos portões.

Aphrodite se apoiou no ombro de Darius e franziu as sobrancelhas para Aurox.

– Ah, que droga! Se você interrompeu este momento porque Zoey e seu bando nerd voltaram, eu vou acabar com você...

– Não é a Zoey! – explicou Aurox. – São humanos! Os humanos estão nos portões pedindo para entrar porque querem que nós os protejamos contra Neferet!

– Bem, neste caso, acho que devemos deixá-los entrar – declarou Darius, levantando-se e oferecendo a mão para Aphrodite. – Você não acha, minha bela?

Ela suspirou e resmungou:

– Tudo bem. Desde que não tenha nenhum político com eles.

[*] Bobblehead refere-se a bonecos que possuem a cabeça presa ao corpo por meio de uma mola, a qual faz com que a cabeça balance quando há qualquer movimento. (N. E.)


11

Zoey

– Ah, que merda! Uma multidão? Isso é tudo de que precisamos agora. – Suspirei, frustrada, enquanto passávamos pelo semáforo na Twenty-first Street em Utica e conseguimos ver a escola.

Foi uma cena superestranha. Já passava da meia-noite, e a rua estava escura. Deveria estar vazia também, mas os grandes portões de ferro da escola estavam abertos, e pudemos ver um monte de gente reunida na frente dele. Os dois lampiões a gás envolvidos por candeeiros de cobre desgastados pelo tempo lançavam sombras bruxuleantes em um semicírculo sobre o grupo. As pessoas também vinham dos dois lados da rua. Fora do alcance das chamas da escola, dava para ver as sombras escuras dos carros que estavam estacionados na calçada, parecendo abandonados e completamente fora de lugar.

– Você está vendo alguma coisa queimando além das nossas lanternas? Tipo um crucifixo gigantesco em chamas? – A cabeça de Shaunee apareceu entre mim e Stark enquanto tentava ver melhor do banco de trás onde estava.

– Parem o carro e deixem-me sair daqui. Eu vou resolver isso! – avisou Kalona.

– Não! – gritaram Thanatos, Marx e Vovó juntos.

– Eles não parecem zangados – disse Thanatos.

O detetive Marx parou e baixou o vidro. Todos apuramos os ouvidos para escutar alguma coisa, e então ele disse:

– Está difícil enxergar alguma coisa, mas não estou ouvindo gritos.

– A minha visão noturna é melhor do que a sua, e eu não estou vendo nenhum tumulto ou pânico. Tudo parece notavelmente calmo – declarou Thanatos.

– Tudo bem, melhor prevenir do que remediar. Então, vamos nos certificar de que saibam de que lado da lei a Morada da Noite está.

O detetive pegou uma sirene portátil que trouxera com ele do Oneok e a acoplou ao teto do Hummer. Ligou-a, e ela começou a girar uma luz azul e vermelha que era familiar demais para qualquer um de nós que não tivesse parado totalmente no cruzamento da rua 101 com a Lynn Lane, em frente à South Intermediate High School. Não que eu tenha qualquer experiência pessoal com isso. Só estou dizendo que é estranho estar em um carro de polícia quando a sirene está ligada.

Marx deu mais um tapa na sirene, que então emitiu um som odioso duas vezes. A luz e o som trabalharam em sintonia perfeita. A multidão se abriu e se virou para nós e, reconhecendo a presença do Departamento de Polícia de Tulsa, as pessoas abriram caminho para que o Hummer pudesse chegar à entrada da escola.

Diante do local onde o portão de ferro deveria estar seguramente trancado estavam Aphrodite, Darius, Stevie Rae, Rephaim, Lenobia e Aurox, todos alinhados na frente da entrada formando uma passagem humana.

– O que eles estão fazendo? – perguntou Stark, ecoando os meus pensamentos.

– Espero que tenham tomado decisões sábias – desejou Thanatos.

Em silêncio, concordei enquanto os meus olhos pousaram primeiro em Aphrodite. Se ela aparentasse estar zangada, ou segurasse uma bebida, eu saberia que o que quer que estivesse acontecendo ali era ruim – com crucifixos em chamas e gritos ou não. Mas ela parecia confusa. Tipo, obviamente confusa. Uma de suas mãos estava no quadril e os ombros, encolhidos. Ao mesmo tempo, Lenobia estava assentindo e conversando com alguém na multidão que eu não conseguia ver direito.

– Aphrodite parece confusa, mas não assustada – expus a minha observação de surpresa. – E Lenobia parece estar de acordo com o que quer que seja que está acontecendo. Não deve ser tão horrível.

– Lá estão a irmã Mary Angela e a irmã Emily. Ah, eu estou vendo! Tem um grupo de freiras lá na frente. – Vovó apontou e acenou. – Está tudo bem se elas fazem parte do grupo.

– É uma boa teoria, mas eu vou parar dentro da escola antes que qualquer um de vocês desça. E quero que vocês permaneçam nas dependências da Morada da Noite, não importa quem possa estar chamando vocês do lado de fora – declarou Marx.

Percebi que Vovó estava fazendo cara feia, mas Thanatos foi rápida em concordar:

– Pode deixar, detetive.

Eu estava feliz. Tudo bem, talvez fosse porque não havia se passado nem 24 horas desde que eu saíra da cadeia, mas uma multidão de humanos em torno dos portões da escola – ainda que fossem humanos conhecidos que pareciam ter vindo em paz – fazia o meu estômago se contrair com o estresse da situação. Isso sem mencionar que já passava da meia-noite e não fazia muito tempo desde que Neferet jogara pedaços de corpos humanos pela varanda da sua cobertura no Mayo. Eu não tinha a menor intenção de olhar de cara feia para Marx nem Thanatos, muito menos desobedecê-los. Na verdade, eu esperava já ter sido desobediente o suficiente pelo que seria o resto de uma vida que eu esperava ser longa e chata.

Então, Kalona saiu do Hummer.

– Ei, não é aquele cara alado? – gritou alguém na multidão.

– Uau! O filho de Erebus! – exclamou alguém mal-informado e pronunciando erroneamente o nome Erebus de forma que soasse como Airbus , o que fez Stark cobrir a boca com a mão para disfarçar o riso com uma tossida.

Dei uma cotovelada de leve em Stark, e ele me lançou o seu olhar charmoso e sorriso torto dizendo com os lábios “Airbus ”. Revirei os olhos.

– Tudo bem, tudo bem – disse o detetive Marx enquanto erguia as mãos fazendo um gesto para o público se acalmar. – Não tem nada para ver aqui. Vocês precisam se afastar e desbloquear a entrada.

– Ah, não precisa se preocupar, detetive. Não queremos bloquear a entrada da escola. Só queremos entrar na escola. – Uma freira alta, usando véu, deu um passo para a frente com um sorriso maternal nos lábios. – É tão bom vê-lo de novo, Kevin.

– Irmã Mary Angela, senhora. – Detetive Marx fez um gesto antigo de respeito com a cabeça. – É muito tarde para a senhora e as outras freiras fazerem uma visita social.

– Ah, Kevin, não estamos aqui para uma visita – declarou ela de forma enigmática.

Antes que Marx tivesse a chance de interrogá-la, Vovó falou passando por ele para encontrar a freira da fronteira da escola.

– Mary Angela, eu estava pensando em você hoje cedo.

Elas deram um abraço. A freira riu e disse alto o suficiente para que todos ouvissem:

– E quando foi que pensou em mim? Antes ou depois de ter sido atacada pelas Trevas? Você leva uma vida tão interessante, Sylvia.

Aphrodite, que se aproximou para ficar ao meu lado, bufou, dizendo:

– Os velhos deviam ter uma vida menos interessante.

– Nós devíamos ter uma vida menos interessante – retruquei baixinho.

Vovó sorriu como se tivesse nos ouvido.

– Foi depois, quando Thanatos pediu que todos em Tulsa rezassem para nos ajudar.

– Ah, que adorável coincidência, porque foi a oração que nos trouxe até aqui.

– Por favor, explique, cara irmã – pediu Thanatos.

Notei que ela não se juntou à Vovó. Olhei para Kalona, que estava colado ao seu lado como se esperasse que mais gavinhas das Trevas aparecessem a qualquer momento.

– Mas que merda, já chega dessa procrastinação – reclamou Aphrodite, dando um passo para a frente. – Eles querem a nossa proteção.

Eu a segui, embora Stark tenha segurado o meu cotovelo para que eu fosse mais devagar.

– Creio que a palavra correta para o que eles querem seja “santuário” – interveio Lenobia.

– Você quer dizer a palavra politicamente correta – retorquiu Aphrodite.

– Se qualquer um de nós fosse politicamente correto, não estaria aqui. – Do meio das sombras iluminadas pela luz dos lampiões, uma mulher pequena, seguida por um homem esbelto, caminhou até irmã Mary Angela. Ela assentiu educadamente para Thanatos. – Shalom, Grande Sacerdotisa.

– Eu a saúdo com paz, rabina Margaret – cumprimentou Thanatos. Agora que estavam mais perto da luz, o casal me parecia familiar. – Eu também o saúdo com paz, rabino Steven. É sempre um prazer ver os nossos vizinhos do Templo de Israel.

Percebi por que a mulher e o homem pareciam conhecidos. Eram rabinos casados, Margaret e Steven Bernstein, que recentemente se tornaram os líderes no Templo de Israel, localizado, literalmente, do lado da Morada da Noite, que dava para Utica Square. Eu me lembrava de que eles tinham elogiado muito os cookies de chocolate da Vovó durante o nosso evento antes que a noite tivesse, é claro, terminado em desastre e morte.

– Então, é realmente um santuário que vocês buscam nesta noite? – perguntou Thanatos para o casal, mas a sua voz se ergueu para toda a multidão.

– É – respondeu a rabina Margaret, enquanto ela e o seu marido, assim como todos, assentiam em concordância.

– A irmandade das beneditinas também busca um santuário – declarou irmã Mary Angela.

– Assim como a congregação de Todas as Almas – disse uma mulher mais velha, dando um passo para a frente e saindo das sombras. Ela tinha cabelo louro desbotado e comprido, mas os seus olhos eram de um azul tão vívido que, mesmo sob a luz fraca, brilhavam como pequenas águas-marinhas.

Thanatos hesitou. Lançou um olhar para Lenobia, que sorriu. Olhou para Kalona, que franziu o cenho. E, então, ela me surpreendeu ao olhar para mim por sobre o ombro. Encontrei o seu olhar e fiz o que meus instintos me mandaram fazer – sorri e assenti.

Thanatos voltou-se para Suzanne, segurou o seu antebraço na saudação vampírica tradicional e ergueu a voz, repleta com o poder de Nyx:

– Como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, eu lhes dou as boas-vindas ao grande santuário para todos que o buscam!

Ao meu lado, ouvi Stark suspirar e sussurrar.

– Ai, que merda...

Zoey

– Não, Bobby! Quantas vezes a mamãe vai ter que dizer? Você não pode tocar nas asas do moço alto! – Uma mulher com aparência cansada pegou o seu bebê que estava cambaleando pelo piso arenoso do ginásio com os braços erguidos, tentando pegar a ponta da asa de Kalona.

Mordi a bochecha para não rir enquanto o imortal alado fazia um som de desagrado e dava um passo para evitar os dedinhos grudentos. O bebê tentou sair do alcance dos braços cansados da mãe. Kalona foi para o outro lado. Como sempre, onde quer que aparecesse, todos os humanos concentravam sua atenção nele, e isso parecia afetá-lo. Ele parecia cansado. Curiosamente, os seus ferimentos ainda não tinham se curado por completo, formando linhas e círculos rosados dolorosos. Achei que talvez ele não tivesse passado tempo suficiente no telhado do Oneok quando um “Psiu!” de Aphrodite chamou a minha atenção.

– Z., caipira, venham comigo, agora! – chamou ela.

Stevie Rae e eu largamos um garrafão de água que levávamos para o ginásio e seguimos Aphrodite até o fim do muro mal-iluminado em cuja abertura ficava a estátua de Nyx.

– Cara, eu estou acabada – declarou Stevie Rae.

– Eu também – concordei.

– Já passou da hora do nosso intervalo – disse Aphrodite, jogando latas de refrigerante marrom para nós duas.

Então, ela me pegou totalmente de surpresa ao abrir uma lata para si.

– Refrigerante? Você? Achei que odiasse.

– E odeio mesmo, e isso não é refrigerante. É champanhe de Sophia – informou ela, tomando um gole pelo canudo cor-de-rosa que tirara da lata fina da mesma cor.

– Quem diria, champanhe em uma lata – comentou Stevie Rae.

– Qualquer um que seja civilizado.

– Eu não sabia – disse eu.

– Exatamente o que eu quero dizer – respondeu Aphrodite. Então, ela lançou um olhar para Kalona que estava no meio do ginásio, com certeza procurando alguém e tentando ignorar as pessoas que o olhavam. – Kalona e humanos, principalmente humanos pequenos, equivalem a um acidente de trem apocalíptico – declarou ela.

– Concordo plenamente – disse eu. – Vocês acham que ele está parecendo cansado?

Aphrodite bufou.

– Nós todos parecemos cansados.

– Acho que ele parece como sempre, só que um pouco ferido, o que torna aquele bebê meio malvado por tentar agarrar uma pena de sua asa – opinou Stevie Rae.

– Kalona é imortal. Ele está bem. E um bebê arrancando a pena dele seria mais que demais – declarou Aphrodite. – Acho que eu poderia convencer aquela criancinha a fazer isso. Ou melhor, convencer a mãe a permitir que o filho faça isso. Você acha que ela gostaria de um coquetel mimosa?

– Aquela mãe parece mesmo estar precisando de um coquetel mimosa, mas sem o suco de laranja. Acho que ela gostaria de uma das suas latinhas cor-de-rosa – disse Stevie Rae.

– Eu não costumo dizer isso com frequência, porque geralmente não é verdade, mas acho que você está certa, Stevie Rae – concedeu Aphrodite. – Embora eu venha a precisar de mais de uma dessas latinhas. Parece um trabalho para a viúva Clicquot.

– Viúva Clicquot? Ela é do Templo de Israel?

– Ah, sua pobre ignorante – lamentou Aphrodite, meneando a cabeça tristemente para Stevie Rae.

Kalona conseguiu passar pelo bebê e estava se movendo de novo. Ai, ele parecia estar vindo na nossa direção!

– Diga que ele não está vindo para cá.

– Quem dera eu poder dizer isso – respondeu Aphrodite.

– Ele parece um pombo gigante voltando para o poleiro – disse Stevie Rae.

– Será que devemos ir ao encontro dele? – sugeri, bocejando.

Olhei para o relógio da escola. Já eram 5h30 da manhã. Tínhamos pouco menos de uma hora antes de o sol nascer, e eu entendi o que era exaustão.

– Salvar Kalona dos humanos? Não mesmo – respondeu Aphrodite.

– Concordo – reforçou Stevie Rae.

Dei de ombros e bocejei de novo.

– Por mim, tudo bem. Estou cansada demais para me mexer.

Thanatos decidira que o melhor lugar para colocar todos os humanos – e realmente havia muitos deles – era no maior prédio do campus , o nosso ginásio. Achei uma boa ideia. O lugar era enorme, e com todos reunidos ali seria mais fácil manter o controle. É claro que a maior parte do piso do ginásio era de areia, porque era usado para o treinamento dos guerreiros, e a areia era um saco. Areia, sacos de dormir e humanos cansados, amedrontados e mal-humorados não constituíam uma boa combinação, então nós todos (quero dizer, quase todo mundo no campus , exceto Thanatos, Vovó, detetive Marx e os líderes religiosos) passamos as últimas horas nos esforçando para cobrir a arena dos guerreiros com lona, transformando o lugar no que parecia ser um abrigo temporário contra furacões. Não que aquilo fosse muito melhor, mas estava menos arenoso e mais limpo para as famílias dormirem.

– Olhe isso. – Aphrodite me cutucou com o ombro. – O rabino Steven Bernstein cercou Kalona. Aposto que está fazendo todo tipo de pergunta maluca sobre o Torá.

– É culpa do Kalona – disse eu. – Ele bem que poderia usar uma camisa.

– Pois é! Qual é a necessidade de ficar exibindo o peitoral? – questionou Aphrodite.

– Olha só, gente – interrompeu Stevie Rae, apontando. – Acho que Nicole e Shaylin estão se tornando boas amigas. Fico feliz. Nicole mudou muito e, bem, Shaylin precisa de uma melhor amiga, principalmente depois que você deu uma de louca para cima dela, Z. – disse Stevie Rae antes de acrescentar: – Sinto muito, Z. Eu não queria colocar o dedo na ferida.

Suspirei.

– Não tem problema. Eu realmente dei uma de louca para cima dela. Fico feliz que ela tenha uma boa amiga.

Aphrodite e eu olhamos para as duas meninas de cabelo escuro. Elas estavam arrumando o saco de dormir e pareciam superamigas. Na verdade, enquanto eu as observava, vi os ombros delas se tocarem e as cabeças se aproximarem. Ergui as sobrancelhas. Nicole ergueu a mão e afastou o cabelo de Shaylin do seu rosto, acariciando o rosto dela ao fazer isso, lembrando-me estranhamente de algo que Stark fazia enquanto me paquerava. Limpei a garganta.

– Hum, acho que elas parecem bem próximas .

– Todo mundo devia ter uma melhor amiga! – declarou Stevie Rae olhando para mim.

– Hum, Stevie Rae – comecei, ainda observando os toques e os olhares que Nicole e Shaylin estavam trocando –, acho que elas talvez...

– Ai, que droga, Z.! – exclamou Aphrodite. – Você fez Shaylin virar gay!

Eu franzi as sobrancelhas para ela.

– Seja legal!

– Aiminhadeusa! – Stevie Rae arregalou os olhos enquanto via Nicole dar um beijinho no pescoço de Shaylin. – Eu não sabia que você podia fazer alguém virar gay!

– Sério, caipira! Eu tenho que perguntar de novo: você é retardada?

– Você sabe como eu me sinto com essa palavra – respondeu Stevie Rae.

– E você sabe que eu não estou nem aí.

– E vocês duas sabem que quando começam a implicar uma com a outra me dá dor de cabeça. Aphrodite, não seja cruel com Shaylin e Nicole. Elas podem amar quem desejarem. Stevie Rae, não. Não dá para fazer alguém virar gay. Caramba.

– Ei, eu não estou nem aí para quem ela ama ou com quem ela anda dormindo, mas vou adorar ver a merda que está por vir. – Aphrodite apontou para o pequeno espaço entre a cama que Shaylin e Nicole estavam arrumando. – E aí vem Clark Kent, bem na hora. E eu acho que ele acabou de ver o beijo.

– É – disse Stevie Rae. – Acho que viu. Olhe só para ele.

– Confuso. Acho que seria isso que Vovó diria sobre a expressão dele. Totalmente confuso – concordei. – Eu sei que não deveria, mas acho que vou gostar de ver isto.

– Você está brincando? Eu quero gravar e assistir várias vezes – declarou Aphrodite.

Erik já estava começando a falar com Shaylin. Mesmo de onde estávamos, dava para perceber que ele usava o seu sorriso de astro de cinema com um brilho de cem watts.

– Sei que ele pode ser um saco às vezes, mas vocês têm que admitir que ele é uma gracinha – declarou Stevie Rae. – Não como Rephaim, mas um gatinho mesmo assim.

Aphrodite fez um som como se estivesse se controlando para não falar nada.

Nicole não hesitou e não se afastou. Parou ao lado de Shaylin e envolveu a sua cintura fina com o braço em um gesto íntimo, olhando diretamente para Erik com uma postura possessiva.

– Sabia que Nicole seria o cara – declarou Aphrodite.

– O cérebro do Erik parece prestes a explodir e passar pela covinha do seu queixo – disse eu.

– Zoey, Thanatos convocou você, Stevie Rae e Aphrodite. Ela pede que vocês três se juntem a ela na Câmara do Conselho. Isto é, se vocês tiverem acabado de tomar conta dos humanos – disse Kalona sarcasticamente, olhando para os não humanos que a gente estava espiando.

Nós três demos um pulo de susto ao som de sua voz. Como sempre, Aphrodite se recuperou primeiro.

– Bem, graças à Nyx e ao menino Jesus por nos tirar daqui antes do nascer do sol – declarou Aphrodite. – Vou levar dias para tirar toda essa areia das minhas sapatilhas Jimmy Choo brilhantes. Sou muito melhor em profetizar do que em arrastar coisas.

Ela jogou o cabelo para trás e se dirigiu à porta. Ouvi enquanto ela sugava o que restava do champanhe com o seu canudinho.

– Tudo bem. Hum, obrigada – disse eu de forma inadequada. – A gente deve chamar Stark, Darius e Rephaim também?

– Os homens estão ocupados. – Kalona olhou para o local onde os três homens lutavam com a extremidade de uma lona imensa.

– Tudo bem então. Vamos sair daqui – disse Stevie Rae acenando para Rephaim.

Eu mandei um beijo para Stark e a segui.


12

Zoey

Passamos pela irmã Mary Angela, a rabina Bernstein e a ministra de Todas as Almas enquanto entrávamos no corredor até a Câmara do Conselho.

– Zoey, Aphrodite e Stevie Rae – cumprimentou a freira, fazendo um gesto para as mulheres ao seu lado. – Permitam que eu apresente vocês três para a rabina Margaret Bernstein e Suzane Grimms.

– Merry meet – respondemos as três, quase em uníssono.

As mulheres pareciam cansadas, mas sorriram.

– Prazer em conhecê-las e em estarmos aqui – respondeu a rabina.

– Sim, obrigada a todas vocês pelo trabalho duro que estão fazendo para ajudar a todos se acomodarem.

Nós assentimos como quem diz “não há de quê” , e as mulheres se afastaram; a irmã Mary Angela olhou para mim.

– Boa sorte, Zoey.

– Ela sabe de alguma coisa que não sabemos – sussurrou Aphrodite.

Concordei com a cabeça, e seguimos para a porta da Câmara do Conselho. Então, quase demos de cara com Shaunee, que saiu olhando para todos os lados menos para onde estava indo.

– Caramba, tenha cuidado – disse eu, segurando-a para que nenhuma de nós duas caísse.

– Mas o que é que você está fazendo por aqui? – perguntou Stevie Rae. – A minha mãe diria que você está agindo como se o seu cabelo estivesse pegando fogo.

Shaunee ergueu a sobrancelha.

– Eu preferia que o meu cabelo estivesse pegando fogo a ter perdido o meu gato. Não consigo encontrar Beelzebub em lugar nenhum.

Eu tinha ficado superfeliz de saber que, enquanto eu estava presa, Shaunee e Kramisha tinham ido ao depósito e recuperado os nossos quatro gatos – além de Duquesa, é claro – e os levado de volta para a Morada da Noite. Nala pulou em mim quando fui para o dormitório trocar de roupa, e eu a apertei com tanta força que ela ficou descontente e espirrou no meu rosto.

– Por que você está estressada? Você sabe como os gatos são. Eles vêm quando querem e vão quando querem. Eu não tenho ideia de onde Malévola está agora – informou Aphrodite.

– Eu só espero que ela não esteja por aqui – desejou Stevie Rae baixinho.

Intervim antes que Aphrodite começasse a brigar com ela.

– Tenho que concordar com Aphrodite. Beelzebub deve estar feliz passeando por todos os túneis e esticando as patas.

– Foi o que pensei também, mas Beelzebub nunca falta ao jantar. Nunca . E eu sempre dou comida para ele bem antes do nascer do sol. Sacudi o pacote de Whiskas, e ele não veio correndo como sempre. Então, comecei a procurar. Vocês notaram que os gatos estão sumidos?

Pensei naquilo. Eu vira Nala antes de ir para o Mayo, mas, desde que voltamos, ela não aparecera. Na verdade, agora que estava pensando naquilo, eu não tinha visto nenhum dos gatos recentemente.

– Hmm, agora que você mencionou, não. Eu não vi nenhum dos gatos. Duquesa estava no ginásio com Damien e Stark, mas Cammy não estava com ele, nem Nala.

– Como se isso fosse alguma surpresa? Façam-me o favor. Não sejam idiotas. O ginásio está cheio de humanos. Eu não sou um gato, mas isso me faz querer sumir também. Eu com certeza não os culpo por quererem desaparecer.

– Faz sentido – concordou Stevie Rae. – Gatos são estranhos assim. Sem querer ofender – completou ela, olhando para Aphrodite.

– Concordo com estranho. Como eu já disse antes, normal é supervalorizado.

– Tudo bem, então eu vou tentar não me preocupar com ele. Sinto muito se esbarrei em vocês, gente. Vejo vocês mais tarde.

– Juntem-se a nós na Câmara do Conselho, jovens novatas. – A voz de Kalona nos surpreendeu.

– Ele é sempre tão furtivo – sussurrou Stevie Rae para mim.

– Obrigada por me convidar, Kalona, mas não, obrigada – declarou Shaunee. – Nunca ninguém sai da Câmara do Conselho dizendo “Uau, que legal! Mal posso esperar para fazer isso de novo”.

Eu ia começar a rir e me despedir de Shaunee, mas meus instintos entraram em ação e me fizeram dizer:

– Na verdade, eu gostaria muito que você se juntasse a nós.

Shaunee parou, suspirou e deu de ombros.

– Tudo bem. Acho que isso é melhor do que ficar arrumando as camas no ginásio.

Sorri em agradecimento, e nós cinco entramos na Câmara do Conselho.

Thanatos e Vovó estavam sentadas uma do lado da outra. Lenobia também estava lá. Fiquei surpresa de ver que o detetive Marx estava em pé, com os braços cruzados, atrás de Thanatos. Achei que não houvesse mais ninguém lá, mas um movimento na porta dos fundos chamou a minha atenção e eu vi Aurox ali de novo, como se estivesse de guarda. Ele não olhou para mim.

– Zoey, Aphrodite, Stevie Rae, Kalona, por favor, entrem e se acomodem – disse Thanatos. – Shaunee, não creio que eu a tenha convocado.

– Eu pedi para ela se juntar a nós – falei eu.

– Então, Shaunee também é bem-vinda – concordou Thanatos, fazendo um gesto para nos sentarmos.

Só quando cheguei à mesa vi que a grande tela plana de computador estava ligada. Pisquei, surpresa, e depois sorri e apressei os últimos passos.

– Sgiach! Oi, que legal ver você! – exclamei.

A rainha sorriu e respondeu de maneira mais formal (e adequada):

– Merry meet , Zoey. Também é um prazer revê-la.

– Chamamos a Rainha Sgiach, desejando falar com um dos seus guerreiros, para que lhe desse o recado de que gostaríamos de encontrá-la – explicou Thanatos.

– E ficamos surpresos, e satisfeitos, quando a própria rainha respondeu ao nosso chamado – acrescentou Vovó.

Fiz um cálculo mental rápido: se eram quase seis horas da manhã em Tulsa, devia ser meio-dia na Escócia. O que Sgiach estava fazendo acordada? Olhei a rainha com mais atenção. Ela estava sentada em uma cadeira enorme de madeira na sua biblioteca particular – que parecia normal. Mas Sgiach não estava com aparência normal. O seu cabelo estava desarrumado, o rosto sujo, e eu me inclinei para mais perto da tela para ver melhor...

– Sangue! Por que está suja e tem sangue em você? Está tudo bem?

– Estou viva – respondeu Sgiach, o que não respondia à minha pergunta.

– Onde está Shawnus ? – perguntou Aphrodite, errando a pronúncia do nome do guardião de Sgiach de propósito.

– Seoras – corrigiu a rainha, estreitando o olhar para Aphrodite – está liderando uma guarda diurna e protegendo a ilha.

– Espere aí, protegendo durante o dia ? – Sacudi a cabeça, confusa. – Mas a sua ilha protege a si mesma, principalmente durante o dia.

– Isso é verdade desde que a Luz e as Trevas estejam em equilíbrio – explicou Sgiach.

– Zoey Passarinha – Vovó tocou a minha mão, como se estivesse me dando força –, Neferet acabou com o equilíbrio no mundo. As Trevas Antigas começaram a extinguir a Luz.

Os meus joelhos cederam, e eu me sentei na cadeira. Stevie Rae se sentou pesadamente ao meu lado. Aphrodite ficou andando de um lado para o outro atrás de nós, quase esbarrando no detetive Marx, e Shaunee escolheu uma cadeira próxima a Lenobia.

– Mas Neferet já estava louca havia um tempão. Eu não entendo por que ela de repente bagunçou as coisas – raciocinei.

– Ah, menina – lamentou Thanatos em tom triste. – Não é uma coisa repentina. É a culminação de uma onda terrível que vem subindo desde que Neferet libertou Kalona de sua prisão.

Eu franzi o cenho para o imortal alado que estava do outro lado da sala, próximo à porta principal, com o peito nu, expressão pétrea e em silêncio.

– Ele está do nosso lado agora. Isso deveria ajudar, e não atrapalhar o equilíbrio – argumentei.

– Isso não é um jogo. Essas forças não podem ser controladas – explicou Sgiach. – Foi o ato de libertá-lo que fez a inundação começar. Kalona foi apenas a primeira pedra a cair em uma represa começando a ruir.

– Então, vamos colocar a pedra de volta! – exclamou Aphrodite.

– Realmente – concordou Thanatos. – Foi por isso que chamamos Sgiach.

– Então, o que vamos fazer? – perguntei.

– Você junta a sabedoria de épocas distintas, de um mundo diferente. Forças antigas estão trabalhando agora. E é com sabedoria antiga que temos que remar contra a maré e restaurar o equilíbrio.

– Será que você pode ser menos enigmática do que uma das minhas malditas visões? – pediu Aphrodite.

– É claro, minha jovem e arrogante profetisa. – Achei que Sgiach fosse dar um belo chute na bunda de Aphrodite via Skype, mas, em vez disso, o seu olhar pousou em mim e, apesar dos milhares de quilômetros que nos separavam, o que ela disse fez os pelos dos meus braços se eriçarem. – O detetive Marx me explicou o que aconteceu entre você e os humanos no parque. Thanatos e a sua avó me contaram que a sua violência contra eles não foi um incidente isolado e que envolveu a pedra da vidência.

– Isso, mas eu não tenho mais a pedra – assegurei para ela rapidamente. – Eu não a uso mais.

– Menina, você nunca a usou. Ela usou você – explicou ela.

Engoli a terrível secura que tomou conta da minha boca.

– Eu sei. Foi por isso que a deixei aos cuidados de Aphrodite quando me entreguei para o detetive Marx.

– Conte-me como estava se sentindo nos dias que culminaram no incidente no parque – pediu Sgiach.

Hesitei e tentei ordenar os pensamentos. Por fim, comecei:

– Eu estava nervosa. Frustrada. Irritada. Parecia que eu estava zangada o tempo todo.

– As coisas pioraram depois que você usou a pedra da vidência para revelar o espelho que refletia o passado quebrado de Neferet para ela?

Arregalei os olhos.

– Eu não tinha pensado nisso, mas sim, ficou pior depois. – Instintivamente, passei a mão pela cicatriz na palma da minha mão. – Ela esquentava com mais frequência. E eu perdia a noção do tempo. – Contei essa última parte rapidamente, sem olhar para os meus amigos, para quem eu não tinha contado aquilo.

– Você via coisas durante o seu tempo perdido? – ela perguntou.

– Via – admiti lentamente, não gostando nada da expressão em seu rosto.

– Coisas como Fey, os espíritos elementares que viu em Skye quando esteve lá comigo?

– Não. – Estremeci. – Até poderiam ser Fey, mas não era como os elementares em Skye. Eram horríveis.

– Alguns Fey são terríveis. Assim como nós, nem todos eles escolhem a Luz. O que você via quando perdia a noção do tempo aconteceu antes ou depois de usar a pedra para salvar a sua avó?

– Antes – respondi.

– Zoey, aqui está a verdade que você precisa ouvir: magia antiga pode restaurar o equilíbrio da Luz e das Trevas novamente, o que significa que a sua pedra da vidência é a chave para se vencer esta batalha.

– Então, eu preciso dá-la a outra pessoa, porque o que eu estava fazendo com ela não funcionou. Tudo piorou em vez de melhorar – disse eu.

– Eu gostaria que as coisas fossem tão simples assim – declarou Thanatos.

Ela, Vovó e Sgiach trocaram um olhar, e eu soube que elas tinham conversado sobre a pedra antes de eu chegar.

Vovó deu uns tapinhas na minha mão e disse:

– Ninguém mais pode ostentar a pedra da vidência, u-we-tsi-a-ge-ya . A pedra só esquenta para você. Isso significa que ela a escolheu, e apenas você poderá ostentar a magia antiga através dela.

– Tudo bem, então. Mas como é que eu faço isso? – perguntei, odiando o aperto que senti no estômago só de pensar em tocar na pedra da vidência de novo.

– Estou com a Zoey – apoiou-me Aphrodite. – Simples ou não, diga a ela o que ela precisa fazer.

– É mesmo. A Z. já derrotou as Trevas e Neferet uma vez. Nós todos derrotamos – concordou Stevie Rae.

– Por causa da natureza volátil da magia antiga, só posso lhe dizer o que sei que não deve ser feito – explicou Sgiach. – Para que o seu poder trabalhe pelo equilíbrio e não se corrompa, ela deve ser comandada por uma Sacerdotisa que não seja nem agressora nem vítima. Sua intenção deve ser pura. Ela não pode ser vingativa nem defensiva.

– Mas Zoey tem de usá-la de forma defensiva! – exclamou Marx. – Neferet é uma assassina sociopata com o objetivo de escravizar Tulsa e talvez até o mundo inteiro.

– Isso não é um talvez, detetive – interrompeu Kalona. – Neferet deseja fazer mais do que forçar alguns poucos humanos azarados a adorá-la. Ela deseja reinar como a única Deusa deste mundo e tornar todos nós os seus escravos.

– Então, como é que a porra dessa pedra pode ser a chave para derrotá-la se Zoey não pode usá-la de forma defensiva? – perguntou Marx.

– Detetive, a magia antiga é neutra. É o poder na sua mais pura essência. E ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a carrega. Se seus motivos não forem completamente altruístas, o caos será o resultado. – O seu olhar pousou em mim. – Você tem evidências disso diante de si. Pelo que sabemos de Neferet no passado, à luz do que ela fez no presente, acredito que haja indicações claras de que ela usou magia antiga por muito tempo, talvez até mesmo antes de ter sido Marcada.

– Mas eu nunca a vi usando uma pedra da vidência – disse eu.

– Uma pedra da vidência é apenas um condutor para a magia antiga. Considere as gavinhas das Trevas que a acompanham sempre. Elas são básicas demais, cruas demais para serem qualquer coisa a não ser que sejam ligadas aos poderes antigos da Luz e das Trevas. Eu sei. No Mundo do Além, lutei contra as Trevas em diferentes formas por várias eras. Elas podem ser sedutoras e astutas. As Trevas usam muitas faces, e algumas delas podem ser vistas, a princípio, como aliadas.

– Eu não consigo entender como aquelas coisas rastejantes nojentas podem ser vistas como algo bom – comentou Stevie Rae.

– Neferet raramente fala disso, mas ela foi estuprada pelo próprio pai na noite em que foi Marcada – contou Lenobia. – Algo a ajudou a passar por aquela provação terrível, e não foi outro novato nem a sua mentora. Os registros da Morada da Noite de Chicago dizem claramente que ela voltou para a casa da sua família e estrangulou o pai antes mesmo de ter completado a Transformação. O investigador registrou que o ataque foi tão forte que a cabeça do pai quase foi separada do corpo.

– E ela se safou disso? – perguntou Marx.

– O crime aconteceu no fim do século XIX em um mundo muito maior, detetive. O Conselho da Morada da Noite de Chicago e o Conselho Supremo dos Vampiros decidiram juntos que seria melhor tirá-la do estado e permitir que ela recomeçasse um novo caminho onde teria a oportunidade de se curar da sua tragédia – contou Thanatos.

Lenobia acrescentou:

– E lembre-se, detetive, de que aquele homem agredira e estuprara a filha de dezesseis anos de idade.

– Os registros do Conselho Supremo relatam que havia diversas marcas de mordidas, mordidas humanas no corpo de Neferet, e que ela estava horrivelmente ferida e violada na noite em que o Rastreador a encontrou – informou Thanatos concordando com Lenobia.

Senti um choque com a lembrança.

– Logo depois que fui Marcada, Neferet mencionou algo comigo sobre ter sido machucada pelos pais.

– Sua mãe morreu ao lhe dar à luz. O seu pai era um monstro – contou Lenobia. – Todos que conheceram Neferet na sua juventude sabiam dos rumores sobre o que acontecera na noite em que fora Marcada.

– Sinto muito pelo seu passado, mas isso não muda o fato de que Neferet é uma imortal instável que precisa ser detida – declarou Marx.

– Não estamos mencionando o passado de Neferet como uma desculpa para os seus atos presentes – respondeu Sgiach. – Nós o mencionamos como uma lição para Zoey. – Os olhos de Sgiach queimaram os meus. – A magia antiga foi levada até Neferet, e ela descobriu que podia ostentá-la. Assim como ela foi levada a você e ostentada por você.

– Tudo bem, mas eu não gosto de ser comparada com a Neferet – declarei.

– Ainda assim, o que tem acontecido com você desde que começou a usar a pedra da vidência é bem parecido com o que aconteceu com Neferet. Ela usa você, e enquanto o faz, a corrompe.

Senti como se eu tivesse levado um soco no estômago.

– Eu jamais serei como a Neferet!

– Você já pensou que se pudesse simplesmente controlar todo mundo à sua volta, então poderia tornar tudo melhor para os seus amigos e para si mesma? – perguntou-me Sgiach de forma direta.

– Já, mas eu não queria que nada de ruim acontecesse! Eu só queria poder fazer com que todos agissem de forma correta para acabar com toda a loucura.

– Agir de forma correta de acordo com quem? – quis saber Thanatos.

– De acordo comigo, eu acho, já que era eu que estava desejando – protestei, sentindo-me encurralada.

– Intenção! – exclamou Sgiach para mim. – A magia antiga é neutra. Ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a detém! E a intenção da Sacerdotisa não pode ser vingança, nem frustração, nem qualquer outro sentimento egoísta. A sua intenção deve ser pura e voltada completamente para o bem maior. Mesmo que isso signifique que você possa sobreviver ou não ao ser o instrumento que a magia usa.

– Estou com medo – admiti, e a Vovó apertou a minha mão, dando-me força. – E eu não sei como fazer o que vocês estão me pedindo para fazer. Eu preciso que vocês me ajudem!

– Apenas você pode se ajudar. Cresça, jovem Sacerdotisa. Mostre para nós por que Nyx escolheu lhe dar tantos dons – desafiou Sgiach. – Mas seja rápida. Você precisa comandar a pedra da vidência para termos uma chance de deter Neferet e restaurar o equilíbrio entre a Luz e as Trevas.

O olhar cortante da rainha recaiu em Thanatos.

– Grande Sacerdotisa, compreenda que Neferet precisa ser contida para que esse contágio de maldade diminua.

– Qual é o seu conselho para contê-la sem usar magia antiga? – perguntou Thanatos, fazendo com que o meu rosto ficasse quente.

Eu sabia que ela não devia ter que fazer aquela pergunta a Sgiach – eu deveria amadurecer o bastante para usar a pedra da vidência e ajudá-la.

– Procure pelos rituais e feitiços mais antigos – orientou Sgiach. – Não pense em derrotar Neferet. Isso é impossível sem a magia antiga. Pense em isolá-la, distraí-la, irritá-la. Qualquer coisa que a faça repensar suas tramoias e seus planos, qualquer coisa que a faça tropeçar e a torne mais lenta poderá ajudar vocês.

– E dar a Zoey mais tempo para descobrir o caminho para comandar a magia antiga – concluiu Vovó.

Sorri nervosamente para ela, desejando sentir tanta confiança em mim mesma quanto ela tinha.

– Tentarei o máximo que eu puder. Prometo.

– Você não pode tentar , Zoey. Tentar é perigoso demais. Você não pode fazer nada até que saiba que se livrou de tudo que há de negativo em você: medo, raiva, egoísmo, desejo de vingança, ódio, até mesmo irritação e frustração. Só então poderá comandar e controlar a magia antiga. Até lá, Aphrodite deve manter a pedra da vidência longe de você. Não precisamos ter de lutar contra duas imortais que já foram Sacerdotisas talentosas da nossa Deusa.

Eu não conseguia acreditar no que ela tinha acabado de dizer! Sgiach realmente acreditava que eu poderia virar alguma coisa como Neferet.

– Eu não sou imortal! Eu só sou uma garota que não quer ter nada a ver com magia antiga ou com aquela maldita pedra da vidência.

– Imagino que uma jovem Neferet teria dito exatamente a mesma coisa e ela também estava longe de ser “apenas uma garota” – retrucou Sgiach.

Antes que eu conseguisse me recuperar da afirmação horrível, Thanatos acrescentou:

– Eu só conheci uma outra novata que recebeu tantos dons da Deusa quanto você, Zoey Redbird, e o nome dela era Neferet.

Apertei a mão de Vovó, sentindo como se o meu mundo estivesse se ruindo sob os meus pés.

– Agora, eu tenho que cuidar da minha própria enchente – declarou Sgiach. – Confio em você, Zoey. Acredito que encontrará uma maneira de trazer as forças da magia antiga com você na sua batalha pela Luz. Até que eu a veja novamente, abençoada seja.

Então a conexão via Skype foi desligada, deixando a câmara no mais absoluto silêncio.

– É claro que tudo isso é culpa sua – disse Aphrodite para Kalona, antes de se dirigir a mim, acrescentando: – Se você começar a me chamar de Frodo, eu vou ficar puta da vida.

– Sem querer ser cruel nem nada, Aphrodite, mas você está sendo um Frodo para Z. – declarou Stevie Rae.

– Se isso fosse verdade, então você seria um Sam [*] gordo e baixo – retorquiu Aphrodite.

– Uma adolescente? – soou a voz de Marx atrás de nós. – Por que o equilíbrio de poder entre o bem e o mal tinha que estar nas mãos de uma adolescente?

Franzi o cenho para ele.

– Há meses eu me pergunto a mesma coisa – comentou Kalona.

– Devo insistir que nos atenhamos a questões produtivas apenas! – cortou a voz de Thanatos, fazendo com que Marx e Kalona baixassem a cabeça.

– Na verdade – comecei eu, hesitante –, a pergunta do detetive Marx me fez parar para pensar.

– Eu não quis ser tão grosseiro – insistiu Marx.

– Ah, eu sei – respondi. – O que você disse não foi grosseiro, apenas verdadeiro. Por que o equilíbrio entre o bem e o mal deveria depender de mim? – Eu me apressei para continuar, não querendo que os meus pensamentos fossem interrompidos. – Talvez não seja eu, nem mesmo nós, o que é tão importante. Sgiach disse que a magia antiga é o que importa. Basicamente, eu sou apenas o canal para ela; por algum motivo, que nenhum de nós conseguiu entender, ela funciona através de mim. Então, como disse, não sou eu que sou importante. É a magia.

– Aonde você quer chegar, Zoey Passarinha? – perguntou Vovó.

– Bem, a magia antiga também responde a Sgiach. Thanatos, Lenobia, por favor, corrijam-me se eu estiver errada, mas Sgiach não é a personificação da sua ilha?

– Ela é sim – respondeu Thanatos, e Lenobia assentiu, concordando.

– A magia antiga está na terra – disse Vovó, empertigando-se na cadeira. – Assim como os nossos ancestrais Cherokees acreditavam.

– Oklahoma tem poder antigo em sua terra vermelha – declarou Kalona. – Eu sei disso. Esse poder me atraiu para cá não muito tempo depois que fui criado e, novamente, depois da minha Queda.

– E ele o conteve por séculos – completou Thanatos.

Kalona contraiu o maxilar, mas assentiu.

– Sim.

– No dia em que fui Marcada, fugi para a sua fazenda, lembra, Vovó? – A minha voz estava ficando menos hesitante à medida que os meus pensamentos encontravam um caminho para seguir. – Eu desmaiei tentando encontrá-la.

– Eu me lembro – disse Vovó. – Foi a primeira vez que Nyx apareceu para você.

– Isso! Ela me disse que eu deveria ser os seus olhos e ouvidos no mundo em que eu estava lutando para encontrar o equilíbrio entre o bem e o mal.

– Mesmo naquela época a Deusa estava nos alertando através de você – declarou Thanatos.

– Parece que demoramos muito para compreender – disse Stevie Rae.

– Não só vocês, gente – respondi. – Eu também. Acho que não entendi realmente o que Nyx estava querendo me dizer até este momento. Prestei atenção principalmente à parte em que ela dizia que a Luz nem sempre era boa e que as Trevas nem sempre eram o mesmo que o mal. Acreditei que Nyx estava me avisando para ficar atenta a Neferet, porque ela era tão linda por fora, mas completamente podre por dentro.

– Faz sentido – concordou Aphrodite.

– Totalmente – reforçou Stevie Rae.

– É, mas veja o que mais Nyx disse. Lembro-me de que ela disse que eu era especial, a sua primeira U-we-tsi-a-ge-ya V-hna-I Sv-no-yi

– Filha da noite – traduziu Vovó por mim.

– Mas isso não foi tudo o que ela disse. Nyx afirmou que eu era especial por causa do meu sangue antigo combinado com a minha compreensão do mundo moderno.

– E o seu sangue carrega consigo o poder das Sábias Cherokees – disse Vovó. – As mulheres que tiravam a sua força da terra.

– Desta terra – completou Thanatos.

– Oklahoma é o lugar onde a Trilha de Lágrimas terminou – declarou Vovó.

– E para onde fui atraído, assim como Neferet – disse Kalona. – Não podemos esquecer que Zoey carrega dentro de si um pedaço da alma de A-ya, a virgem formada nesta terra.

Eu não queria pensar muito, mas rapidamente acrescentei:

– Também foi onde Aurox foi criado pelo sacrifício de sangue da minha mãe com o poder tirado da terra pela minha avó.

Marx franziu as sobrancelhas.

– Aurox?

– Eu sou Aurox – disse ele, saindo das sombras.

– Espere um pouco – pediu Marx. – Você nem tem uma lua crescente na testa. Achei que você fosse apenas um cara que era o consorte da Grande Sacerdotisa.

O pensamento de Aurox sendo o consorte de Thanatos fez o meu rosto queimar de vergonha.

Aurox me ignorou e lançou um olhar questionador para Thanatos. Ela fez um breve aceno com a cabeça e ele se virou para encontrar o olhar de Marx. Soando forte e seguro, disse:

– Eu não sou humano nem vampiro. Sou um receptáculo criado pela magia antiga cujo propósito eram a vingança e a destruição.

– Mas que foi criado com uma alma. E, tendo recebido a capacidade de escolher, você optou por se desviar da vingança e destruição – completou Vovó.

– Caramba, isso quase parece bom! – disse Marx, analisando Aurox com cuidado. – Se ele tem esses poderes da magia antiga, será que não pode nos ajudar a lutar contra Neferet?

– A parte da luta não é importante – disse eu, sem olhar para Aurox. – É a parte da criação; ele, assim como eu, veio para cá com o sangue que data de gerações nesta terra.

– Precisamos usar o poder da terra para lutar contra Neferet, pelo menos até Zoey conseguir lidar com a pedra da vidência – disse Aphrodite.

– Aiminhadeusa! Eu tenho a resposta. – Shaunee ergueu a mão. – Desculpem-me, não queria interromper, mas acho que sei o que vocês devem fazer!

– E o que é, Shaunee? – perguntou Thanatos.

Ela baixou a mão, falando rapidamente:

– Sgiach nos disse para procurar os feitiços e rituais mais antigos a fim de confundir Neferet. Você disse que precisamos impedi-la de se espalhar. Está bem na nossa cara! Thanatos, você até nos deu uma aula sobre isso no outro dia.

– Shaunee, será que você poderia ser mais clara? – pediu Thanatos.

– Nós podemos usar o Ritual de Proteção de Cleópatra! Podemos fazer com Tulsa o que foi feito em Alexandria! – exclamou Shaunee, animada.

– Eu não faço a menor ideia do que ela está falando – disse Marx.

– Eu faço – declarou Lenobia.

– Assim como todos nós deveríamos saber – disse Thanatos. – Mas nós também deveríamos saber que o feitiço de Cleópatra exige que a Grande Sacerdotisa que o invoca fique isolada, jejuando e orando por três dias.

– No ritmo que Neferet está matando, não temos três dias – declarou Marx, sombrio.

– Mas nós temos o poder da terra – disse eu. – Será que não podemos usá-lo para acelerar o feitiço e fazê-lo funcionar?

– Ideia interessante – elogiou Thanatos. – O feitiço teria de ser invocado de um lugar de poder extraordinário o mais próximo possível do Mayo. E a sacerdotisa que invocar o feitiço e fizer o ritual teria de se manter isolada e no local em meditação e oração, mantendo a sua intenção determinada e verdadeira.

– Não vou ser eu – disse eu. – E não estou dizendo isso porque estou reclamando de não ser madura o suficiente ou Grande Sacerdotisa o suficiente. O que quero dizer é que tenho que resolver esse lance da pedra da vidência e estar livre para usá-la contra Neferet assim que eu descobrir como.

– Concordo, Zoey. Eu sou a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. É o meu dever invocar o feitiço e mantê-lo enquanto o meu desejo durar – declarou Thanatos.

– O fogo é a base do feitiço de Cleópatra. Eu ficarei com você – disse Shaunee. – Pelo tempo que for necessário.

Thanatos assentiu respeitosamente para Shaunee.

– Vou gostar da sua companhia e o poder que você puder emprestar ao feitiço, filha.

– Oh, agradeça à Grande Mãe Terra! Eu sei o lugar de poder que vocês devem usar! – exclamou Vovó, batendo com a palma da mão na mesa para pontuar as suas palavras. – O Council Oak Tree. Seu poder ancestral reinou nas Terras Isoladas por séculos, e fica a uma curta distância do Mayo Hotel.

– Lenobia, Aphrodite, Zoey, Stevie Rae, Shaunee, o que vocês acham? Vocês concordam com Sylvia Redbird? – perguntou Thanatos.

– Eu concordo – respondeu Lenobia.

– Eu também – disse Shaunee.

– Idem – concordou Stevie Rae.

– Parece um bom plano – assentiu Aphrodite.

Encontrei o olhar da Vovó e vi a sabedoria, o amor e a verdade.

– Com certeza – afirmei.

– Então vamos descansar. No crepúsculo, o círculo de Zoey vai até o lugar de poder, e, enquanto o sol se põe, eu vou preparar o ritual de proteção e invocar o feitiço, e que Nyx nos dê força. Pois assim nós escolhemos; que assim seja.

[*] Sam é o apelido do personagem “Samwise Gamgee” da obra O Senhor dos Anéis , escrita por J. R. R. Tolkien. (N.E.)


13

Zoey

– Stark, você viu a Nala?

– Não. Venha para cama. Ela deve estar ocupada com os outros gatos avisando para os ratos locais que os gatos estão de volta – respondeu ele, sonolento, e batendo com a mão no lugar ao seu lado na cama.

O sol tinha nascido havia pouco mais de uma hora, e Stark estava se enfraquecendo rápido.

– Mas a Nala sempre dorme comigo.

– Não dorme não. Às vezes, ela dorme com Stevie Rae. – Ele deu um bocejo enorme. – Pare de se preocupar e venha aqui. Você está nervosa desde a reunião do Conselho. Você vai descobrir como usar a pedra da vidência. Sei que vai. Ficar preocupada o tempo todo não vai ajudar em nada. Deite-se que eu vou fazer uma massagem.

Olhei para ele e sorri. Além de amar muito quando ele massageava os meus ombros, ele estava totalmente fofo e sexy com o cabelo despenteado e o olhar sonolento. Além disso, ele estava certo. Preocupar-me não me ajudaria a descobrir como usar aquela estúpida pedra da vidência. Cedendo, eu me deitei na cama de costas para ele e depois gemi de puro prazer quando seus dedos fortes começaram a massagear os nós de estresse que tinham se formado nos meus ombros.

– Acho que você deve ser perfeito – declarei.

– Viu só? Quanto menos se preocupa, mais esperta você fica – respondeu ele, bocejando de novo.

– Ei, eu estou bem. Pode dormir agora.

– Eu sei que você está bem, mas vai ficar melhor se ficar quietinha e me deixar cuidar dos seus ombros.

Ele beijou a minha nuca.

– Tudo bem, mas você pode desistir na hora que quiser – disse eu, relaxando sob o seu toque.

– Z., eu nunca vou desistir de você. Você sabe disso.

Ele deu mais um beijo na minha nuca, e eu suspirei feliz.

– Eu amo você.

– Também amo você – respondeu ele.

Quando suas mãos pararam, eu estava relaxada, aquecida e cansada. Fechei os olhos, sorrindo, e adormeci.

Por cerca de dois minutos. Então, os meus olhos se abriram e eu me sentei, aguçando os ouvidos.

– Você ouviu alguma coisa? – perguntei para Stark.

Ele murmurou algo que pareceu ser:

– Gato... Tudo bem... pare de se preo...

Então, ele se virou, puxou as cobertas até o ouvido e começou a roncar baixo.

– Nossa, isso que é um Guerreiro – resmunguei.

Então, bocejei e me espreguicei. Eu realmente precisava voltar a dormir. O meu alarme já estava programado. Nós tínhamos que nos levantar e nos apertar na van da escola sem janelas e seguir o caminho até o Council Oak Tree antes do crepúsculo. Quem poderia saber que tipo de loucura Neferet cometeria diante de um feitiço de proteção. Inferno, ela já estava...

Então, ouvi novamente e soube exatamente o que havia me acordado. Era um som baixo, definitivamente era o ronronar de um gato.

E não havia nenhuma bolinha de pelo laranja encolhida aos pés da minha cama!

Vesti minha calça jeans e peguei meus sapatos da forma mais silenciosa que pude, andando de meia, na ponta dos pés, até a porta. Sem fazer nenhum barulho, me concentrei em pensamentos felizes, abri a porta e fui para o corredor. Desci rapidamente para o andar de baixo e passei pela sala comunal deserta do dormitório e saí, piscando quando os raios de sol atingiram os meus olhos, causando uma ardência. Eu não ia voltar mesmo para pegar os óculos de sol, então protegi os olhos com a mão e chamei:

– Nala! Gatinha! Nala-Nala, venha aqui!

Então, prendi a respiração e agucei os ouvidos.

Ouvi o som de novo! Era definitivamente um ronronar. E, definitivamente, parecia que o gato estava com algum tipo de problema. Não dava para saber se era a Nala ou não, mas eu sabia que o som vinha de algum lugar perto do muro da escola que dava para a direção leste.

Coisas ruins sempre acontecem lá! Corri apressada, contornando os dormitórios e me dirigindo para o muro, chamando.

– Psiu-psiu! Gatinha! Aqui! Nala!

O gato continuou ronronando. Eu me dei conta de que aquilo era bom e ruim. Bom, porque eu poderia seguir o som do seu miado. Ruim, porque quanto mais perto eu chegava, mais sofrido o gato parecia.

O ronronado seguinte fez o meu estômago se contrair. Eu estava perto o bastante do carvalho partido para saber que o gato estava definitivamente em algum lugar no alto daquela árvore. Ah, que droga! Por que é que tinha de ser aquela árvore? A árvore que Kalona partira em duas quando escapara da sua prisão na Terra, a árvore onde Jack morrera, a árvore em que eu vira as criaturas nojentas da magia antiga.

Diminuí o ritmo quando me aproximei da árvore de aparência assustadora. Tudo bem, eu gosto de árvores. Eu realmente gosto. Tipo assim, eu amo a Bosque da Deusa no Mundo do Além. Eu amo a minha afinidade com a Terra, mesmo que não esteja tão em sintonia com ela quanto estou com o espírito, mas ainda assim... Normalmente, eu não tenho problemas com árvores.

Esta árvore é diferente.

A caverna de Kalona ficava ali embaixo, e o jeito como ela se abria em duas fazia com que se parecesse com os ossos de um monstro, congelado na morte, agachado na sua abertura. Todas as outras árvores do campus se erguiam verdejantes. Não esta. Ela era negra e sem folhas, malévola e partida. Seus galhos formavam mais garras do que eu poderia contar.

– Miau-miau!

– Nala!

Eu a peguei nos meus braços e beijei o seu nariz úmido. Ela, é claro, espirrou em mim.

Eu ainda estava abraçando Nala quando ouvi um segundo gato e olhei para baixo.

– Cammy? – Ele se enroscou em mim e se esfregou nas minhas pernas, deixando pelos louros espalhados na minha calça. – Aposto que Damien não sabe que você está aqui fora. Você deveria estar encolhido junto com a Duquesa e ele em um sono profundo.

– Miaaaaaaau!

Aquele miado eu conhecia sem nem ver o animal branco que o emitira. Olhei por cima da base despedaçada da árvore e, com certeza, lá estava uma gata gigantesca com cara achatada e pelos brancos, cheia de atitude.

– Malévola, Aphrodite não ficaria nem um pouco satisfeita de você estar aqui aterrorizando os outros gatos. – Fiz uma pausa. – Bem, isso provavelmente é mentira. Mas ainda assim... Você deveria tentar não ser tão parecida com ela. Nossa, o que é que você acha...

Então, as sombras ao redor da árvore se moveram e eu percebi que o carvalho antigo e assustador estava completamente cercado pelos gatos da Morada da Noite.

Abracei Nala, enquanto sentia um frio gelado descer pela minha espinha.

– Mas o que é que está acontecendo aqui?

– Isso é o que eu gostaria de saber.

A voz de Aurox me assustou fazendo com que eu apertasse Nala forte demais e, com um grunhido zangado, ela pulou dos meus braços e se juntou aos outros gatos em volta da árvore.

– Você fez esses gatos virem até aqui?

– Eu? – Meneei a cabeça. – É claro que não. E se você soubesse qualquer coisa sobre gatos, entenderia que não se pode obrig á-los a fazer nada.

– Eu não sei muita coisa sobre gatos – declarou ele.

– Bem, tudo o que eu fiz foi seguir um grunhido horrível que, na verdade, me acordou. Achei que fosse Nala, mas ela parece estar bem.

– Grunhido? Mas que grunhido? Tudo que ouvi foi você conversando com os gatos.

Eu franzi as sobrancelhas para ele e abri a minha boca para explicar o óbvio – que alguma coisa tinha me atraído até ali e que havia alguma coisa de errado com os gatos e com ele também. Tipo assim, ele não precisava ser tão frio e rude sempre que se importava em falar comigo, mas o gato me interrompeu.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – O miado patético pareceu se estender por muito tempo.

– Está vindo lá de cima, da árvore.

Protegi os olhos com a mão e espiei por entre os galhos quebrados.

– Lá! – Aurox apontou. – Estou vendo!

Segui o dedo dele e vi também. Lá, bem no alto, nos galhos do topo da árvore, estava um gato realmente grande. Era um gato malhado de laranja e branco com pelos longos. Não era do mesmo tom de laranja forte de Nala. A cor daquele gato era mais suave, como se o laranja tivesse sido diluído com creme. Ele parecia familiar, e eu apertei os olhos, tentando me lembrar quem era seu dono, quando vislumbrei os seus olhos. Eram de um verde amarelado surpreendente, com um brilho inteligente.

– Que merda! Aquele é Skylar! O gato de Neferet! – disse eu.

– O gato de Neferet? Mas o que ele está fazendo aqui? Ele não deveria estar com ela?

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – berrou Skylar enquanto o vento fazia os galhos estremecerem sob ele, que tentava se manter firme.

– Ele vai cair – disse Aurox, movendo-se tão rápido que os gatos se espalharam.

– Ei, tome cuidado. Skylar é conhecido por morder. Sério, Aurox. Os gatos costumam refletir a personalidade do novato ou do vampiro que escolhem, e nós todos sabemos que Neferet é...

– Zo, eu não posso simplesmente deixá-lo cair.

E isso me fez calar a boca. Ele não apenas soou como Heath, mas estava fazendo uma coisa muito burra e doce e muito parecida com que Heath faria. É claro que ele provavelmente ia causar uma confusão tão grande quanto Heath teria feito, mas não havia muito mais o que eu pudesse fazer, a não ser esperar e tentar resolver a confusão. E pensar. Hmmm .

– Ei! – chamei, enquanto ele escalava a árvore feito um macaco. – Bem, nunca ouvi falar disso, mas talvez se o vampiro de um gato fica mau, talvez ele cometa suicídio ou algo assim. Skylar deve estar aí em cima porque a Neferet ficou desvairada e ele não consegue lidar com isso.

– Eu não vou deixar ninguém cometer suicídio no meu turno, seja um novato, um vampiro, um humano irritante... Nem mesmo um gato com fama de mordedor.

– Tudo bem. Espero que Nyx esteja com você.

– Eu também.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – gritou Skylar enquanto Aurox se agarrava em alguns galhos que o mantinham, acrescentando um som horrível e baixo enquanto ele tentava se afastar.

– Tente falar com ele. De forma suave, como os gatos gostam, tipo gatinho.

– Tipo gatinho? O que é isso?

– Caraca, ele está acabado – disse eu para Nala. Ela espirrou e pareceu concordar comigo. Os outros gatos estavam todos olhando para Skylar, como se estivessem ali para testemunharem algo. Eu não fazia a menor ideia do que dizer para Aurox.

– Hum, tente conversar com ele. Eu me lembro de que ele é muito inteligente.

– Tudo bem. Vou tentar.

Aurox subiu mais um pouco de forma a se sentar praticamente na mesma altura em que Skylar se encontrava. Eu ouvi quando ele limpou a garganta e, então, com uma voz completamente normal, que ele usa em uma conversa do dia a dia, começou a falar com o gato:

– Merry meet , Skylar. Pelo que soube, você tinha uma ligação com Neferet. Eu também já tive, então posso imaginar como você deve estar se sentindo. Ela também me magoou. Ela continua machucando os outros. Não posso permitir que você se machuque. Eu escolhi proteger esta escola e você faz parte desta escola.

O que aconteceu em seguida foi uma das coisas mais loucas que eu já vi – e olha que eu definitivamente já vi coisas muito loucas. Skylar inclinou a cabeça para o lado como se estivesse ouvindo Aurox.

– Skylar – continuou Aurox com voz solene –, eu vou protegê-lo, mesmo que seja de você mesmo.

Então, Aurox estendeu a mão.

Lentamente, Skylar se alongou em direção a ele até que pudesse ser tocado por Aurox. Prendi a respiração, esperando que o grande gato começasse a berrar novamente e batesse com a pata na sua mão. Mas não foi isso que ele fez. Na verdade, Skylar farejou a mão de Aurox, parou e, então, começou a esfregar o seu queixo contra a mão dele. Mesmo de onde eu estava lá embaixo, dava para ver o sorriso iluminar o rosto de Aurox quando começou, hesitante, a fazer carinho no gato. Skylar parou por um instante e virou a cabeça, analisando Aurox novamente.

– Você pode escolher não permitir que as Trevas de Neferet destruam a sua vida – insistiu Aurox em tom sincero enquanto acariciava o queixo de Skylar.

Sem mais hesitação, Skylar foi na direção dos braços de Aurox.

E todos os gatos em volta da árvore partida começaram a ronronar.

Quando Aurox chegou ao chão, ele estava segurando Skylar bem junto de si. O gato parecia estar abraçado a ele, e sua cabeça fofinha estava aninhada sob o queixo de Aurox. Quando ele se aproximou de mim, ouvi Skylar ronronando.

– Aconteceu algo lá em cima – contou Aurox, com os olhos brilhando.

– É. – Eu funguei e enxuguei o rosto com a manga da camisa. – Skylar escolheu você. Vocês agora pertencem um ao outro.

Aurox olhou para Skylar, acariciando o gato com movimentos longos a amorosos. Skylar não abriu os olhos. A não ser pelo fato de que estava ronronando loucamente, parecia ter adormecido.

– Zo, ele é demais!

Sorri entre as lágrimas.

– Com certeza é.

Aurox olhou para mim. Então, automaticamente enfiou a mão no bolso da calça jeans e me deu um Kleenex.

– Você está com nariz escorrendo de novo.

– Com certeza – respondi.

Seus olhos encontraram os meus. Ele os afastou depressa, mas não antes de eu ver o sofrimento da sua expressão.

– Sinto muito. Eu não deveria tê-la chamado de Zo.

– Você pode me chamar do jeito que quiser.

Seus olhos encontraram os meus de novo e eu vi um brilho de raiva cruzar o seu rosto.

– Não seja legal comigo porque acha que eu sou Heath.

– Que merda, Aurox, eu estou sendo legal com você porque gosto de você! Você salvou a minha avó. Você está segurando um gato supercruel que acabou de salvar. VOCÊ É UM CARA LEGAL! – Parei de falar para controlar o meu tom de voz antes de terminar. – É por isso que estou sendo legal com você.

– Eu gostaria que isso fosse verdade – disse ele.

– Aurox, eu juro que só vou dizer a verdade para você. Tenho muita merda pessoal para lidar agora para acrescentar mentiras à minha lista.

– Você está sendo sincera, não está?

– Estou. – Enxuguei o rosto e funguei. – Valeu pelo lencinho.

– Não há de quê.

– Você tem coisas de gato no seu quarto?

Ele hesitou, e então disse em tom suave:

– Eu não tenho um quarto.

– Onde você dorme?

– Eu não durmo.

Aiminhadeusa! Ele nem é humano! Senti o choque daquilo, e a lembrança de como ele ficava quando se transformava em touro passou pela minha mente. De forma resoluta, afastei o pensamento.

– Bem, você vai precisar de um quarto agora. Esse gato precisa de um lugar para dormir, comer e... hmm, você sabe alguma coisa sobre caixas de areia?

– Hã?

Sorri para ele.

– Venha comigo. Kalona também não dorme. Vamos encontrá-lo. Ele pode arrumar um quarto para você, comida de gato e uma caixa de areia.

– Chamei Nala e ela, na verdade, veio para mim, pulando nos meus braços. Notei, então, que os outros gatos tinham desaparecido.

– Você acha que Kalona sabe lidar com gatos? – perguntou Aurox enquanto caminhávamos juntos.

– Aposto que sim. Ele costumava ser um guerreiro de Nyx, e gatos constituem uma grande parte do Mundo do Além. A Deusa ama gatos.

O rosto de Aurox ficou sem expressão e ele perguntou:

– Zo, você acha que o fato de Skylar me escolher pode significar que Nyx se importa comigo? Mesmo que só um pouco?

– Pode apostar.

Isso foi tudo que consegui dizer antes de a minha garganta se fechar com as lágrimas, e Aurox me dar outro Kleenex.


14

Kalona

– Tudo bem, eu tenho que dizer para você que aquilo tudo foi muito estranho? Você também achou? – perguntou detetive Marx para Kalona.

Ele estava caminhando ao lado do imortal alado quando ambos deixaram o dormitório dos garotos e saíram para o sol forte e bonito do meio-dia.

Kalona ergueu as sobrancelhas e lançou um olhar de esguelha para o detetive. Não estava acostumado a conversar de forma leve com ninguém – principalmente com humanos. Nem com alguém que não o julgava como monstro por causa do seu passado. Ele me trata como se fôssemos companheiros de batalha , percebeu Kalona com um sobressalto incomum de surpresa.

E foi com outro sobressalto de surpresa que o imortal alado se deu conta de que realmente gostava da companhia do detetive.

– Estranho? Ver um gato de uma vampira imortal e louca escolher uma criatura criada a partir de magia antiga para ser uma arma das Trevas, e, então, ter que explicar para a referida criatura, que parece exatamente como um garoto confuso, como alimentar e limpar uma caixa de areia? – debochou Kalona. – Detetive, acho que “estranho” não é uma palavra forte o suficiente para descrever o que acabou de acontecer.

– Que bom ouvir isso!

O detetive deu um tapa no ombro de Kalona em um gesto amigável. Kalona teve de apertar os dentes por causa da dor que atravessou o seu corpo quando o gesto inocente de Marx abriu um ferimento ainda não curado. Kalona emitiu um grunhido que refletia concordância, e não desconforto.

Ignorando qualquer outra coisa a não ser a conversa que estavam tendo, Marx riu e continuou:

– É, teve uma hora lá, quando o garoto estava acariciando o queixo do gato gigante, que eu tenho quase certeza de que os seus olhos começaram a brilhar.

– Os do gato ou os do garoto? – brincou Kalona, ignorando a dor prolongada.

– Os do garoto. Os olhos dos gatos também podem brilhar? – Marx meneou a cabeça. – Não, não me diga. Agora eu compreendo por que a minha irmã diz que algumas coisas vampíricas são zona proibida para humanos. Não faz bem para a nossa cabeça. Pode nos enlouquecer.

Kalona riu.

– Acho que isso tem mais a ver com a estranheza dos nossos tempos do que com a habilidade dos humanos em compreender o anormal.

– Talvez você esteja certo. Estamos vivendo uma época muito estranha.

Eles caminharam juntos sem falar, embora Kalona não sentisse que o silêncio era pesado. Eram apenas dois homens responsáveis por proteger aqueles que lhe eram caros.

É assim que se deve fazer parte de uma família. Eu gosto desse sentimento! O pensamento chegou à sua mente de forma espontânea, e ele não sabia o que fazer com ele. Como é que a Morada da Noite se tornara a sua família? Kalona não fazia ideia, mas até mesmo Zoey Redbird, a novata que ele tentara seduzir primeiro para depois destruí-la, começou a confiar nele o suficiente para procurá-lo em busca de conselhos e ajuda para Aurox quando o felino de Neferet escolheu o receptáculo como seu familiar.

Assim, Kalona teve o seu terceiro sobressalto de surpresa.

– Pode deixar pra lá. Eu não queria perguntar. A minha irmã vive me dizendo que é um péssimo hábito que adquiri desde que me tornei detetive.

Kalona tentou se recompor mentalmente.

– Desculpe, eu estava pensando em outra coisa. Você me perguntou algo?

– Perguntei, mas era pessoal demais, principalmente considerando quem você é. Esqueça... Preciso dormir um pouco antes da loucura começar de novo – disse Marx depressa.

– Você pode me perguntar o que quiser. Nós lutamos contra as Trevas juntos. Deve haver confiança entre nós.

Chegaram ao dormitório das garotas, e Marx parou apoiando-se no corrimão da escada que dava para a varanda de entrada.

– Tudo bem, então. Eu só estava me perguntando por que Nyx não desce dos céus e detém, ela mesma, Neferet. Ela é a ex-Grande Sacerdotisa da Deusa. Acho que Nyx deve estar puta da vida pelo modo como está usando o seu poder de forma errada.

– Em primeiro lugar, Nyx não mora nos céus, ou, pelo menos, não nos céus da civilização ocidental moderna.

– Certo, desculpe. Eu esqueci. Minha irmã me explicou essa parte há alguns anos. Nyx mora no Mundo do Além, certo?

– O Mundo do Além é o reino de Nyx. Está correto.

– E você já esteve lá?

– Durante éons, aquele foi o meu reino também – contou Kalona devagar, desacostumado a falar sobre a Deusa ou o Mundo do Além.

– Desculpe-me se estou sendo intrometido. Eu vou parar por aqui e...

– Eu não me importo de falar sobre isso – respondeu Kalona, dando-se conta de que estava dizendo a verdade.

– Então, você conhece Nyx muito bem.

Kalona inspirou e expirou longamente várias vezes. A resposta para a pergunta do detetive era tão simples quanto desoladora.

– Eu conhecia a Deusa bem. Muito bem.

– Ah, entendi. No passado. – Marx parecia estar pensando em voz alta. – Isso pode explicar o que está acontecendo. Nyx mudou desde a época em que se conheceram. Talvez ela tenha perdido o interesse no mundo moderno. E quem poderia culpá-la? É por isso que ela está deixando que Neferet escape, mesmo tendo corrompido o poder concedido pela Deusa e ferindo não apenas humanos, mas novatos e vampiros também.

– Isso não é verdade. A nossa Deusa não perdeu o interesse em nós.

Kalona desviou o olhar de Marx e viu Shaunee caminhando pela calçada em direção a eles, carregando um gato cinza nos seus braços. Ela usava óculos escuros e um gorro que escondia o seu rosto; estava claro que a luz do sol a incomodava. Ela deve estar perto de completar a Transformação , pensou Kalona e, então, percebeu que a ideia de Shaunee passar pela Transformação e se tornar uma Sacerdotisa vampira lhe provocava um sentimento muito próximo de orgulho.

Esse pensamento fez com que sua voz ficasse brusca:

– Shaunee, você deveria estar no seu quarto, dormindo. A luz do sol não lhe faz bem.

– Eu estou indo para a cama. Só tinha que encontrar Beelzebub. Mas antes de eu ir, quero deixar algo muito claro para o detetive Marx. – Ela pousou seus olhos castanhos no detetive. – Nyx não perdeu o interesse em nós – repetiu ela.

O olhar de Marx passou para Kalona e, depois, voltou para Shaunee. Antes que pudesse responder, a novata recomeçou a falar:

– Não procure Kalona para obter respostas sobre Nyx. – Ela lançou um olhar de desculpas para o imortal. – Isso vai soar cruel, mas não estou fazendo isso de propósito. – Ela voltou a atenção para Marx antes de continuar. – Kalona caiu . Isso não faz dele uma testemunha perita em Nyx, detetive. Se você tem perguntas sobre a nossa Deusa, faça-as a mim. Eu converso com ela todos os dias, e, às vezes, ela até me responde.

– Tudo bem, então. Você pode explicar por que Nyx permitiria que Neferet causasse tanta dor e tanto sofrimento, assistindo a tudo sem fazer nada a respeito? Ela concedeu a Neferet os dons que permitiram que ela acumulasse tanto poder. Por que Nyx pelo menos não revoga os seus dons? Isso faria sentido. Não fazer nada não faz sentido para mim. Digo isso com todo o respeito pela sua Deusa, mas as ações dela não parecem a de uma divindade amorosa.

– Nyx não tirará os dons de Neferet, nem os dons de qualquer um de nós porque ela ama de forma incondicional e sempre mantém a sua palavra, mesmo quando não cumprimos a nossa e a traímos – explicou Shaunee.

Kalona cruzou os braços e fingiu desinteresse, embora não se mexesse – nem respirasse, apenas ouvisse.

– E ela não desce e salva o dia porque ela nos ama tanto que sempre nos dará o livre-arbítrio. – Ela fez uma pausa e, depois, perguntou: – Você tem filhos, detetive Marx?

– Tenho. Duas filhas. Uma de nove e outra de onze.

– E se você nunca permitisse que elas cometessem erros? Ou, melhor ainda, e se você permitisse que cometessem erros, mas, então, interviesse e resolvesse todas as consequências por elas?

– Acho que eu estaria criando uma dupla de meninas mimadas – respondeu ele.

– Que tipo de mulher você acha que elas se tornariam? – perguntou Shaunee.

– Egoístas e irresponsáveis. Se elas crescessem.

– Exatamente! – Shaunee sorriu. – Como nós poderíamos aprender, crescer e evoluir se Nyx nos resgatasse das nossas decisões erradas? Ou se parasse de permitir que tomássemos as nossas próprias decisões, boas ou ruins?

Kalona não conseguiu ficar em silêncio por mais tempo.

– Seria mais fácil se Nyx resolvesse tudo! Eu ainda a conheço bem o suficiente para assegurar a você que a nossa Deusa seria benevolente e bondosa. E isso é mais do que qualquer um de nós pode garantir em relação ao público em geral, sejam vampiros ou humanos.

– Se Nyx resolvesse tudo, os poderes da Luz e das Trevas ficariam desequilibrados para sempre – disse Shaunee.

– A Luz venceria! Não é esse o objetivo? – perguntou Kalona.

– Aiminhadeusa! Será que não percebe o que está pedindo?

– Sim! Estou pedindo paz! O fim do desejo por carnificina e do derramamento de sangue, da traição e da destruição.

– Não! – argumentou Shaunee. – Você está pedindo o fim do livre-arbítrio. Nós nos transformaríamos naquelas pessoas gordas e flutuantes do filme Wall-E , ou pior.

– Que língua você está falando?

– Eu sei do que ela está falando. É um filme da Pixar. Ela quer dizer que nós nos tornaríamos idiotas preguiçosos e sem motivação. – Marx coçou o queixo. – Na verdade, acho que ela talvez esteja certa. Você tem ido a alguma feira estadual?

Então, o detetive riu da própria piada, que não fez o menor sentido para Kalona.

Shaunee não piscou. Ela nem sorriu para Marx. Seu olhar sombrio pousou em Kalona.

– Você não vai conseguir se aproximar de Nyx dessa forma. Você tem que abandonar esse problema de controle e escolher realmente acreditar, de forma sincera, e amar de verdade. – Então, ela deu um beijo na cabeça do gato cinza adormecido em seus braços. – Então, isso responde às suas perguntas, detetive Marx?

– Não a todas, mas o suficiente por ora – respondeu ele.

– Ótimo! Vou pra cama. Vejo vocês no crepúsculo.

Ela subiu a escada e desapareceu no dormitório das garotas.

– Também vou dormir. Thanatos disse que eu poderia usar um beliche na casa dos professores. Você parece cansado. Você vem também?

– Não. Vou assumir o turno de Aurox e vigiar o perímetro – disse ele.

– Turno dobrado. Esses são difíceis. Você quer companhia?

Kalona olhou para o detetive. A pele sob os seus olhos estava ferida e seus passos, arrastados.

– Talvez numa próxima. Mas obrigado por se oferecer.

– Sem problemas. Tenha cuidado lá fora. Como a garota disse, vejo você no crepúsculo.

Kalona assentiu e começou a caminhar para o muro mais distante da escola, tentando, sem sucesso, não ouvir novamente as palavras de Shaunee ecoando em sua mente.

Lynette

– As fantasias estão péssimas! – disse Neferet enquanto meneava a cabeça e lançava um olhar de raiva para o grupo de pessoas trêmulas que Lynette escolhera para usar o que deveriam ser roupas dos anos vinte.

Se tudo, ou mesmo qualquer coisa , estivesse normal, Lynette teria dito que o seu último evento tinha passado por alguns problemas. Na insanidade em que o seu mundo se transformara, Lynette decidiu que o seu último evento era um colete cheio de explosivos de um homem-bomba prestes a explodir – e era ela quem estava usando o maldito colete.

– Deusa, você se lembra das duas coisas de que eu preciso? Tempo e recursos?

– Eu me lembro de tudo .

Lynette bateu palmas diante de si para que Neferet não percebesse o quanto estava trêmula. Limpou a mente e se concentrou no que fazia melhor – lidar com o cliente para que o evento fosse um sucesso.

– E é exatamente por isso que é tão bom planejar eventos para uma Deusa, e não para um humano ou um vampiro – disse Lynette.

O olhar raivoso de Neferet se suavizou com a bajulação.

– Do que você precisa que eu não lhe ofereci? Nós decidimos o tema da minha próxima adoração ontem à noite. Já está quase no crepúsculo, e tudo que eu pedi foi para dar uma olhada nas fantasias dos meus súditos enquanto eles ensaiam o Charleston. Estou certa de que Tulsa tem lojas de fantasia o suficiente e você tem acesso ilimitado aos meus recursos . Então, explique-me por que nenhuma dessas fantasias se parece remotamente com o estilo dos anos vinte?

– Tulsa tem apenas duas lojas decentes de fantasias: a Ehrle’s e a Top Hat – começou Lynette.

– Apenas duas? – Neferet suspirou. – Eu deveria ter começado o meu Templo em Chicago. Chicago está cheia de excelentes lojas. Kylee! Minha taça está vazia!

A Kybô, que era o modo como Lynette silenciosamente se referia à recepcionista robótica, apressou-se pelas escadas subindo até o local onde Neferet colocara o seu trono, enchendo novamente o líquido escarlate que nunca parecia ser o suficiente para a Deusa.

– Mas eu a interrompi, querida Lynette. Por favor, continue a explicação sobre as roupas. – Ela apontou os dedos com as unhas vermelhas para o grupo de pessoas desarrumadas esperando lá embaixo.

– Entrei em contato com os donos das duas lojas. Eles se recusaram a fazer qualquer entrega para nós.

Lynette deu a notícia rapidamente e então se preparou para a loucura.

Em vez de explodir, Neferet ficou totalmente imóvel. Em uma voz suave e pensativa, perguntou:

– E por que eles se recusaram a me atender?

– Eles explicaram que a polícia cercou todo o Mayo e que não permitem que ninguém se aproxime daqui.

Neferet bateu com uma das unhas afiadas na taça. Ela virou a cabeça em uma postura pensativa. Então, a sua expressão se suavizou e ela sorriu.

– A solução é simples. A polícia está evitando que os humanos entrem. Sua atenção está voltada para fora. Eles não vão esperar que alguém saia.

– Sair?

– Sim, bem, não vai ser qualquer um que vai sair. Será você.

Lynette se apoiou na grade de ferro.

– Eu?

– Minha querida, você está com algum problema de audição?

– N-não – apressou-se Lynette a assegurá-la.

– Kylee, sirva uma taça de vinho para Lynette. Ela está pálida. – Agradecida, Lynette tomou o vinho enquanto Neferet começava a sua explicação insana. – Será bem fácil para você. Você sairá pelos fundos, onde eles empilham aquele lixo horrendo. Pular a cerca não deve ser um problema. Você parece ter se mantido em forma. E, é claro, Judson vai acompanhá-la para ajudar com qualquer problema que possa ter. Judson, certifique-se de que a querida Lynette volte em segurança. E você carregará as sacolas de compras para ela, não é mesmo?

Judson assentiu de forma automática e respondeu:

– Sim, Deusa.

– Excelente! Vou pedir para Kylee chamar um táxi para encontrar vocês... Hum... em frente à Biblioteca Central na Fourth Street com a Dever. É longe o suficiente e não estará dentro do cerco policial, e perto o bastante para que não seja tão cansativo para você na volta. Judson vai carregar todo o peso para você.

A mente de Lynette estava a mil. Ela está mandando Judson comigo para me forçar a voltar. Mas ele não passa de um robô quando Neferet não está por perto. Talvez eu consiga escapar, principalmente quando chegarmos à biblioteca. Alguém lá poderá...

– Permita que eu esclareça uma coisa, Lynette. Judson e você não estarão sozinhos. Eu jamais pensaria em deixá-los tão vulneráveis. Vários dos meus filhos irão acompanhá-los. – A Deusa acariciou uma das coisas rastejantes que estava enrolada na sua perna. – Eles também ficarão ansiosos para se aproximarem de você, se hesitar. Então, você e Judson terão mais em comum do que imagina... Tão mais.

Lynette ordenou os pensamentos. Trabalho! Eu tenho que me concentrar no trabalho!

– Algum problema, querida? Com certeza você não discorda da minha solução.

– Honestamente, eu concordo com a parte de sair. – Lynette se concentrou na única coisa normal que sobrara do seu mundo, concentrar-se em concluir um trabalho. – A polícia não está esperando que ninguém faça isso. Mas eu me preocupo com a volta. Você mesma disse que eles estão concentrados em manter as pessoas do lado de fora.

– Você está certíssima em se preocupar. Eu me esqueço de que você não consegue ler a minha mente, porque posso ler a sua tão facilmente. A resposta para o seu problema é bem simples. Devemos esperar até o sol se pôr para você começar a sua jornada. Na volta, os meus filhos vão fazer uma cortina de neblina e magia, sombras e fumaça, para que as Trevas a ocultem.

Lynette ficou boquiaberta e manteve os pensamentos cuidadosamente em branco, sem saber o que dizer.

– Você não precisa ficar preocupada. Ficar oculta pelas trevas não machuca nem dói. Bem, eu deveria dizer que não vai machucar nem doer para você. Os meus filhos precisam ser alimentados. Nesta noite, um motorista de táxi vai ganhar mais do que uma boa gorjeta! – A risada de Neferet foi cruel e ensandecida.

Lynette ergueu a taça e tomou um grande gole.

– Agora, mande esses súditos desarrumados para os seus quartos. Da próxima vez que os vir, quero ficar encantada. – Neferet bateu as mãos depois de suas ordens, como se fosse um faraó dispensando os seus escravos. – Lynette, talvez seja melhor você trocar o seu vestido por uma calça e uma blusa escura. Eu odiaria se você ficasse acidentalmente exposta demais. Você está liberada até o crepúsculo.

– Sim, Deusa.

Lynette fez uma reverência e se afastou, trêmula, seguindo para o elevador que a levaria até o loft no quarto andar que Neferet lhe dera. Quando entrou no elevador, cobriu a boca com as duas mãos, abafando um grito que não conseguia controlar. Pela primeira vez, Lynette compreendeu que não havia como sobreviver à loucura de Neferet, que a questão não era se ela ia morrer, mas como e quando.


C O N T I N U A

Nunca me senti tão sombria assim.
Nem mesmo quando fui estilhaçada e presa no Mundo do Além e minha alma começou a se fragmentar. Naquela época, eu estava quebrada, destruída e prestes a me perder para sempre. Eu me sentia sombria por dentro, mas as pessoas que mais me amavam foram faróis lindos e brilhantes de esperança, e eu fui capaz de encontrar força em sua luz. Consegui sair da escuridão.
Desta vez, eu não tinha nenhuma esperança. Não conseguia encontrar uma luz. Eu merecia continuar perdida, despedaçada. Desta vez, eu não merecia ser salva.
O Detetive Marx me levou para a delegacia do condado de Tulsa em vez de me jogar numa cela com o resto dos criminosos presos há pouco tempo. Na viagem aparentemente interminável da Morada da Noite até o grande prédio de pedra marrom do Departamento de Polícia da First Street ele conversou comigo, explicando que tinha feito uma ligação e mexido uns pauzinhos para que eu ficasse em uma cela especial até que o meu advogado tomasse as devidas providências sobre minha acusação, e então eu poderia ser solta sob fiança. Ele alternava o olhar entre a estrada e o meu reflexo no espelho retrovisor. Meu olhar encontrou o dele. Não precisei de mais do que um olhar de relance para ler a expressão em seu rosto.
Ele sabia que eu não tinha a menor chance de conseguir sair sob fiança.
– Eu não preciso de um advogado – disse eu. – E não quero fiança.
– Zoey, você não está pensando direito. Espere um pouco. Acredite em mim, você vai precisar de um advogado. E, se puder sair sob fiança, será o melhor para você.
– Mas não seria o melhor para Tulsa. Ninguém vai deixar um monstro à solta. – Minha voz soou estável e indiferente, mas por dentro eu estava gritando.
– Você não é um monstro – assegurou-me Marx.
– Você viu aqueles dois homens que eu matei?

 


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Ele me lançou um olhar pelo retrovisor de novo e assentiu. Eu podia ver que seus lábios estavam pressionados, formando uma linha, como se estivesse se segurando para não dizer algo. Por algum motivo, seu olhar ainda era bondoso. Eu não conseguia retribuir aquele olhar.

Olhando pela janela, eu disse:

– Então, você sabe o que eu sou. Você pode me chamar de monstro, de assassina, de vampira novata e perigosa... É tudo a mesma coisa. Eu mereço ser presa. Eu mereço o que vai acontecer comigo.

Então, ele desistiu de conversar, e eu fiquei satisfeita.

Uma cerca de ferro preta cercava o estacionamento da delegacia de polícia, e Marx seguiu até um portão nos fundos onde precisava esperar para ser identificado antes de um enorme portão se abrir. Então, ele estacionou e me conduziu, algemada, por uma porta nos fundos e por uma grande e agitada sala toda dividida em cubículos. Quando entramos, policiais conversavam e telefones tocavam. Assim que perceberam que Marx estava comigo, foi como se tudo tivesse sido desligado. As conversas cessaram e todos nos fitaram como idiotas.

Fixei o olhar em um ponto na parede bem na minha frente e me concentrei para não permitir que os gritos dentro de mim ecoassem.

Tivemos de atravessar toda a sala. Então passamos por uma porta que levava a uma daquelas salas como as do seriado Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais , em que a incrível Mariska Hargitay interroga os bandidos.

Fiquei sobressaltada ao perceber que o que eu fizera me transformara em um dos bandidos.

Havia uma porta no canto da sala que levava a um pequeno corredor. Marx virou à esquerda e parou para passar seu crachá de identificação, e uma porta de aço muito grossa se abriu. Do outro lado, o corredor logo acabava. Havia outra porta de metal à nossa direita, que estava aberta. A parte de baixo era sólida, mas, na altura dos ombros, as grades começavam. Grades pretas e grossas. Foi onde o Detetive Marx parou. Olhei para dentro. O lugar era uma tumba. De repente, senti dificuldade para respirar, e meus olhos desviaram do lugar horrível para encontrar o rosto familiar de Marx.

– Com o poder que você tem, imagino que consiga fugir daqui – ele falou baixinho, como se alguém pudesse estar nos escutando.

– Eu deixei a pedra da vidência na Morada da Noite. Foi isso que me deu o poder para matar aqueles dois homens.

– Então, você não os matou sozinha?

– Eu fiquei furiosa e despejei toda a minha fúria neles. A pedra da vidência só me deu o estímulo. Detetive Marx, a culpa foi minha. Ponto final.

Tentei soar durona e certa do que estava falando, mas a minha voz saiu suave e trêmula.

– Você consegue fugir daqui, Zoey?

– Para ser honesta, eu não sei, mas prometo que não vou tentar. – Respirei fundo e soltei todo o ar de uma vez, dizendo a ele a mais absoluta verdade. – Por causa do que eu fiz, meu lugar é aqui, e independentemente do que aconteça comigo, eu mereço.

– Bem, eu prometo que ninguém vai conseguir incomodá-la aqui. Você estará segura – garantiu ele, gentil. – Eu mesmo me certifiquei disso. Então, o que vier a acontecer, não será porque levou uma surra de linchadores.

– Obrigada.

Minha voz estava fraca, mas consegui pronunciar as palavras.

Ele tirou de mim as algemas.

Eu não tinha conseguido me mexer ainda.

– Você precisa entrar na cela agora.

Consegui fazer com que meus pés se mexessem. Quando eu estava dentro da cela, virei-me e, pouco antes de ele fechar a porta, eu disse:

– Não quero ver ninguém. Especialmente se for da Morada da Noite.

– Tem certeza?

– Tenho.

– Você entende o que está dizendo, não entende? – perguntou ele.

Eu assenti.

– Eu sei o que acontece com uma novata que não fica perto de vampiros.

– Então, basicamente, você está dando a sua própria sentença.

Ele não formulou como uma pergunta, mas eu respondi mesmo assim.

– O que eu estou fazendo é me responsabilizar pelos meus atos.

Ele hesitou, e pareceu que havia mais alguma coisa que desejava dizer, mas Marx apenas deu de ombros, suspirou e concordou:

– Certo, então. Boa sorte, Zoey. Sinto muito que as coisas tenham chegado a esse ponto.

A porta se fechou como que selando um caixão.

Não havia janela, nenhuma luz exterior exceto a do corredor que espreitava por entre as barras da porta. No fundo da cela havia uma cama: um colchão fino em cima de placa de alguma coisa dura grudada na parede. Havia um vaso sanitário de alumínio saindo do meio de uma parede paralela, não muito longe da cama. Não tinha tampa. O chão era de concreto preto. As paredes eram cinza. Sentindo-me como se estivesse em um pesadelo, andei até a cama.

Seis passos. Esse era o comprimento da cela. Seis passos.

Fui até a parede lateral e caminhei pela cela. Cinco passos. Tinha cinco passos de largura.

Eu estava certa. Se não contasse a distância para o teto, eu estava trancada em uma tumba do tamanho de um caixão.

Sentei-me na cama, puxei os joelhos até embaixo do queixo e abracei-os. Meu corpo tremia, tremia e tremia.

Eu ia morrer.

Eu não consegui me lembrar se Oklahoma tinha pena de morte. Como se eu tivesse realmente prestado atenção às aulas de História enquanto o Treinador Fitz passava um filme atrás do outro. Mas, de qualquer forma, isso não importava. Eu deixara a Morada da Noite. Sozinha. Sem nenhum vampiro. Nem mesmo o Detetive Marx sabia o que isso significava. Era só uma questão de tempo até meu corpo começar a rejeitar a Transformação.

Como se eu tivesse rebobinado um filme em minha mente, imagens de novatas morrendo apareceram na tela dos meus olhos fechados: Elliot, Stevie, Rae, Stark, Erin...

Apertei meus olhos ainda mais.

Acontece rápido. Rápido mesmo , prometi para mim mesma.

Então, outra cena de morte surgiu nas minhas lembranças. Dois homens – mendigos, insolentes, mas vivos, até que não consegui controlar o meu temperamento. Eu me lembrava de como atirara a minha raiva contra eles... de como eles bateram contra o paredão de pedra ao lado da pequena gruta de Woodward Park... de como ficaram deitados lá, dobrados, quebrados...

Mas eles estavam se mexendo! Eu não achei que os tivesse matado! Não tinha a intenção de matá-los! Fora realmente um terrível acidente! Minha mente gritava.

– Não! – falei com firmeza para a parte egoísta de mim que queria inventar desculpas e fugir das consequências. – As pessoas têm convulsões quando estão morrendo. Eles estão mortos porque eu os matei. Não vai compensar o que fiz, mas mereço morrer.

Eu me encolhi embaixo do áspero cobertor cinza e fitei a parede. Ignorei a bandeja com o jantar que enfiaram por uma abertura na porta. Eu não estava com fome, mas independentemente do que houvesse na bandeja, definitivamente não me apeteceria.

E, por alguma razão, a refeição ruim fez com que eu me lembrasse da última vez em que senti um cheiro maravilhoso de comida: o psaguetti [*] da Morada da Noite, cercada de amigos.

Mas eu estava estressada demais com o problema Aurox/Heath/Stark e nem apreciei o psaguetti de verdade. Assim como não apreciei os meus amigos. Nem Stark. Não mesmo.

Eu não tinha parado para pensar como era sortuda por dois caras tão incríveis me amarem. Em vez disso, eu ficara irada e frustrada.

Pensei em Aphrodite. Lembrei-me de como ela falou com Shaylin sobre me vigiar. Lembrei-me de como entrei furiosa e despejei o poder da minha fúria acumulada através da pedra da vidência.

A lembrança fez com que eu me encolhesse de vergonha.

Aphrodite estava absolutamente certa. Eu precisava ser vigiada. Ela sequer teve a chance de conversar comigo. E, quando tentou, droga, eu não fui nem um pouco razoável.

Eu me encolhi de novo quando me lembrei de como cheguei perto de despejar a minha raiva contra Aphrodite.

– Aiminhadeusa ! Se eu tivesse feito isso, teria matado a minha amiga – disse para as palmas das minhas mãos enquanto cobria o rosto de vergonha.

Não importava que a pedra da vidência, de alguma forma, mesmo sem eu pedir, tivesse aumentado meus poderes. Tive muitos avisos. Todas aquelas vezes em que me irritava e a pedra ficava cada vez mais quente. Por que não parei e refleti sobre o que estava acontecendo? Por que não pedi a ajuda de alguém? Cheguei a pedir conselhos a Lenobia sobre namorados. Conselho sobre namorados! Devia ter perguntado sobre como controlar raiva!

Mas eu não pedia ajuda para nada, exceto para a única coisa em que a minha visão afunilada estava focada: em mim mesma.

Eu era uma vadia egocêntrica.

Eu merecia estar onde estava. Eu merecia as consequências.

As luzes do corredor se apagaram. Não fazia ideia de que horas eram. Parecia ter se passado anos, e não apenas meses, desde que eu fora humana – uma adolescente normal que tinha que ir para a cama muito cedo nos dias de aula.

Eu desejava, com todas as minhas forças, poder chamar o Super­-Homem e pedir que ele voasse na direção contrária em volta da Terra para fazer o tempo voltar para ontem. Então, eu estaria em casa, na Morada da Noite, com meus amigos. Eu me jogaria nos braços de Stark e diria a ele o quanto o amo e sou grata por tê-lo. Diria que sinto muito pela confusão com Aurox/Heath, e que sairíamos dessa – nós, as duas pessoas e meia envolvidas –, mas que eu desfrutaria de todo o amor que me cercava, independentemente de qualquer coisa. Depois, me livraria da maldita pedra da vidência, procuraria Aphrodite e entregaria a ela para que fosse mantida em segurança, como se ela fosse o meu Frodo.

Mas era tarde demais para desejos. Voltar no tempo era só uma fantasia. O Super-Homem não era real.

Não dormi. Era noite, e a noite se tornara o meu dia. Neste momento, eu deveria estar na escola com meus amigos, vivendo a minha vida, tendo um “dia” normal (para mim), em vez de estar aqui, encolhida. Eu deveria ter sido mais esperta. Mais forte. Deveria ter sido qualquer coisa, menos uma pirralha egoísta.

Horas depois, ouvi a portinhola se abrir de novo, e quando me virei, vi que alguém levara a minha bandeja intocada. Bom. Talvez o cheiro também fosse embora.

Eu precisava fazer xixi, mas não queria. Não queria usar o vaso sem tampa que saía da parede no meio da cela. Olhei para os cantos das paredes, no ponto de encontro com o teto. Câmeras.

Era legal guardas verem prisioneiros fazerem xixi?

As regras regulares se aplicavam a mim? Quero dizer, eu nunca ouvira falar de um novato ou vampiro ser julgado por um tribunal humano nem ir para uma prisão humana.

Não preciso me preocupar com isso. Vou me afogar no meu próprio sangue antes de ir a julgamento.

Por mais estranho que possa parecer, esse pensamento era um conforto, e quando a luz do corredor se acendeu, caí num sono agitado e sem sonho.

Para mim, pareceu que dez segundos depois, a portinhola se abriu de novo e outra bandeja de alumínio foi empurrada para dentro da minha cela. O barulho me fez acordar assustada, mas ainda estava grogue, ainda tentando voltar a dormir – até que o cheiro de ovos e bacon me deixou com água na boca. Há quanto tempo eu não comia? Nossa, me sentia péssima. Ainda sem enxergar direito, andei os seis passos até a porta, pegando a bandeja e levando com cuidado para a minha cama desarrumada.

Os ovos estavam mexidos e supermolhados. O bacon, duro como um pedaço de pau. Havia café, uma caixa de leite e uma torrada pura.

Eu daria praticamente qualquer coisa por uma tigela de cereal Count Chocula e uma lata de refrigerante.

Dei uma garfada nos ovos, mas estavam tão salgados que quase engasguei.

Mas, em vez engasgar, comecei a tossir. Naquela tosse terrível, senti alguma coisa metálica, pegajosa, quente e estranhamente maravilhosa.

Era o meu próprio sangue.

O medo tomou conta de mim, deixando-me fraca, tonta e nauseada. Está acontecendo tão rápido? Eu não estou pronta! Não estou pronta!

Tentando limpar a minha garganta, tentando respirar, cuspi os ovos, ignorei o tingimento rosado no amarelo gorduroso, coloquei a bandeja no chão e me encolhi na cama, passando os braços em volta de mim mesma e esperando por mais tosse e sangue – muito mais sangue. Minhas mãos estavam tremendo quando enxuguei meus lábios.

Eu estava com tanto medo!

Não fique , disse para mim mesma enquanto tentava prender uma tosse terrível. Logo você verá Nyx. E Jack. E talvez até Dragon e Anastasia.

E mamãe!

Mãe... de repente, desejei a presença de minha mãe com todas as forças do meu ser.

– Eu gostaria de não estar sozinha – sussurrei com uma voz grave, a boca grudada no colchão fino e duro.

Escutei a porta se abrindo, mas não me virei. Não queria ver a expressão horrorizada de um estranho. Fechei os olhos bem apertados e tentei fingir que estava na fazenda de lavanda da Vovó, dormindo no meu quarto lá. Tentei fingir que o cheiro dos ovos com bacon era da comida dela, e que a minha tosse era apenas uma gripe que me impedia de ir à escola.

E eu estava fazendo isso! Ah, obrigada, Nyx! De repente, juro que consegui sentir os aromas que sempre se espalhavam na casa da Vovó, lavanda e capim. Isso me deu a coragem para falar logo, antes que a minha voz ficasse sufocada pelo sangue, para quem quer que estivesse ali:

– Tudo bem. Isso é o que acontece com alguns novatos. Por favor, vá embora e me deixe em paz.

– Ah, Zoey Passarinha, minha preciosa u-we-tsi-a-ge-ya , a esta altura você já deveria saber que eu nunca vou deixá-la sozinha.

[*] Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)


2

Zoey

Achei que ela fosse parte da minha alucinação agonizante, parada ali na porta da cela, usando uma camisa de linho roxa e jeans gastos, com uma cesta de piquenique pendurada no braço. Mas assim que me virei para encará-la, ela correu até mim, sentando-se na beirada da cama e me envolvendo em seus braços e nos cheiros da minha infância.

– Vovó! Eu sinto muito! Sinto muito! – Soluçava em seu ombro.

– Shhh, u-we-tsi-a-ge-ya , estou aqui. – Ela passava a mão em círculos nas minhas costas.

A minha tosse amenizou temporariamente, então eu disse logo:

– Eu sei que estou sendo egoísta, mas estou tão feliz que esteja aqui. Eu não quero morrer sozinha.

Vovó se afastou de mim o suficiente para me pegar pelos ombros e me sacudir.

– Zoey Redbird, você não vai morrer.

Lágrimas escorreram pelo meu rosto. Eu as ignorei e enxuguei o canto da minha boca, estendendo meus dedos trêmulos para que ela pudesse ver o sangue.

Ela mal olhou para a prova que eu estava tentando lhe mostrar. Em vez disso, abriu a cesta de piquenique, tirou um guardanapo xadrez vermelho e branco e começou a enxugar as minhas lágrimas e meu nariz, exatamente como fazia quando eu era apenas uma menininha.

– Vovó, eu sei que você me ama mais do que qualquer pessoa no mundo – comecei, tentando (sem sucesso) não chorar. – Mas você não pode impedir que meu corpo rejeite a Transformação.

– Você está certa, u-we-tsi-a-ge-ya , eu não posso. Mas eles podem. – Ela apontou para a porta atrás de mim.

Virei-me e vi Thanatos e Lenobia, Stevie Rae, Darius e Stark – meu Stark –, todos apertados na porta. Stevie Rae estava chorando tão alto que não sei como não havia escutado antes.

Stark também estava chorando, mas em silêncio.

– Mas eu disse para não virem atrás de mim! Eu disse que mereço enfrentar as consequências. – Chorava tanto quanto Stevie Rae agora.

– Então, viva e enfrente as consequências! E eu estarei bem aqui, o mais perto possível de você para passar pela coisa toda! – Stark atirou as palavras em mim.

– Eu não posso. Já comecei a rejeitar a Transformação – contei soluçando.

– Menina, a sua avó falou a verdade. A não ser que a rejeição do seu corpo já esteja determinada, nossa presença vai impedi-la – afirmou Thanatos.

– Você não vai morrer! Eu não vou deixar! – gritou Stark aos prantos, e começou a entrar na minha cela.

– Espere aí, rapaz! Eu disse que só um de cada vez pode entrar na cela. – Um cara com uniforme policial veio de trás do meu grupo de amigos e se colocou entre eles e a minha cela. – O Detetive Marx me disse que eu deveria permitir a entrada de vocês, vampiros, no prédio se aparecessem, mas não vou quebrar as regras e deixar mais de um visitante por vez. A avó é da família. O resto de vocês pode esperar na sala de interrogatório. – Ele lançou um olhar sério para a minha avó. – A senhora tem quinze minutos. – Então, bateu a porta.

– Quinze minutos. – Vovó emitiu um ruído de descontentamento. – Isso não é uma visita apropriada. Esse é o tempo de cozinhar um ovo. Que rapaz sem coração. Bem, não vou ficar aqui perdendo tempo. Zoey Passarinha, assoe o nariz e fique de pé. Você precisa de uma boa defumação. Ah, os cavalheiros que revistaram a cesta fizeram uma bagunça.

Ela já estava mexendo dentro da cesta de piquenique sem fundo, por isso precisei segurar suas mãos nas minhas para que parasse e prestasse a atenção em mim.

– Vovó, eu amo você. Você sabe, não sabe?

– Claro, u-we-tsi-a-ge-ya. E eu amo você, de todo o coração. É por isso que preciso te defumar. Gostaria que tivesse uma banheira aqui, ou mesmo uma pia, para ajudar ainda mais na purificação. Mas a defumação vai ter que ser o suficiente. Trabalhei a noite toda e finalmente escolhi defumar você com essa concha de ostra que nós duas pegamos quando seguimos o Rio Mississipi até o Golfo no verão em que você completou dez anos. Lembra?

– Claro que lembro, Vovó, mas...

– Bom. Moí e misturei sálvia, cedro e lavanda. Combinados, eles formam um poderoso defumador para purificação emocional e física. – Ela estava derramando as ervas secas de uma bolsinha de veludo preta para a concha de ostra. – Eu também trouxe uma pena de águia e minha peça favorita de turquesa. Sei que eles podem tentar tirar de você, mas vamos tentar esconder dentro do colchão. Vai servir para protegê-la enquanto...

– Vovó, por favor, pare – interrompi. Encontrando o seu olhar sem nem piscar, eu disse: – Eu matei aqueles dois homens. Não mereço ser purificada nem protegida. Mereço o que estava acontecendo comigo antes de todos vocês aparecerem.

Minha intenção não era ser tão fria, mas minhas palavras fizeram com que ela hesitasse. Então, suavizei a minha voz, mas não a minha decisão.

– Os vampiros podem ter evitado que me afogasse no meu próprio sangue, mas isso não muda o fato de que eu fiz uma coisa terrível, uma coisa pela qual preciso ser punida.

Ela parou de preparar a minha defumação e seus olhos penetrantes encontraram os meus.

– Diga-me, u-we-tsi-a-ge-ya , por que você matou aqueles homens?

Balancei a cabeça e afastei o cabelo despenteado do meu rosto.

– Eu não sabia que os tinha matado até o Detetive Marx aparecer na Morada da Noite. Eu só sabia que eles tinham me enfurecido. Estavam perambulando por Woodward Park atrás de pessoas, principalmente garotas, amedrontando-as para que lhes dessem dinheiro. – Parei e meneei a cabeça de novo. – Mas isso não torna o que eu fiz aceitável. Quando dessem conta do que eu era, me deixariam em paz.

– E iam seguir até encontrar outra vítima.

– Provavelmente, mas não iam matar. Eles eram mendigos, não serial killers.

– Então, me conte o que aconteceu. Como você os matou?

– Descontei minha raiva neles. Da mesma forma que tinha feito com Shaylin mais cedo, atirando-a no chão. Só que eu fiquei ainda mais furiosa no parque. De algum jeito, a pedra da vidência exacerbou os meus sentimentos e me deu o poder de atacar todos eles.

– Mas você não matou Shaylin – considerou Vovó, sendo lógica. – Eu vi a menina na Morada da Noite um pouco antes de vir para cá. Ela me pareceu bem viva.

– Não, eu não a matei. Não dessa vez. Quem sabe o que poderia ter acontecido se eu não tivesse ido embora e seguido para o parque, e descontado a minha fúria naqueles dois homens? Vovó, eu estava descontrolada. Eu era um monstro.

– Zoey, você fez uma coisa monstruosa. Mas isso não faz de você um monstro. Você se entregou. Desistiu da pedra da vidência. Permitiu que a prendessem. Esses não são os atos de um monstro.

– Mas, Vovó, eu matei dois homens! – Senti meus olhos marejarem de novo.

– E agora você vai ter que enfrentar as consequências dos seus atos. Mas isso não significa que você deva desistir e causar ainda mais sofrimento para as pessoas que amam você.

Mordi meus lábios.

– Meu intuito é assumir minhas responsabilidades para não machucar mais ninguém, principalmente as pessoas que eu amo.

– Zoey Passarinha, não sei por que essa coisa terrível aconteceu. Eu não acredito que você seja uma assassina. – Ela ergueu a mão para que não a interrompesse quando tentei falar. – Sim, eu tenho consciência de que os dois homens estão mortos, e que você parece ser responsável pela morte deles. Ainda assim, você mesma admite que a pedra da vidência teve um papel decisivo no acidente, o que significa que a magia antiga está em ação.

– É verdade, eu estava usando a pedra – admiti.

– Ou ela estava usando você – contradisse ela.

– De qualquer forma, os resultados são os mesmos.

– Para os dois homens. Mas não necessariamente para você, u-we-tsi-a-ge-ya. Agora, fique de pé na minha frente. Você precisa que a sua mente seja clareada e seu espírito purificado para que possa analisar exatamente o que a trouxe para esta cela. Veja, não estou aqui para ajudá-la a se esconder do que fez. Estou aqui para que possa verdadeiramente encarar o que aconteceu.

Como sempre, Vovó era a voz da razão e do amor incondicional. Fiquei de pé e me permiti o breve conforto de vê-la pegar a concha com uma das mãos enquanto, com a outra, colocava um pequeno pedaço arredondado de carvão em cima da mistura de ervas e acendia. Conforme faiscava, ela disse:

– Respire fundo três vezes, u-we-tsi-a-ge-ya . E, a cada vez que o fizer, solte a energia tóxica que anuvia a sua mente e escurece o seu espírito. Visualize, Zoey Passarinha. Qual é a cor?

– Um verde asqueroso – respondi, pensando na coisa nojenta que saiu do meu nariz da última vez em que tive sinusite.

– Excelente. Expire e visualize que está se livrando disso junto com a sua respiração.

O carvão parara de faiscar e estava ficando cinza nas beiradas. Vovó pegou a bolsinha de veludo preta e começou a salpicar as ervas sobre o carvão dizendo:

– Eu lhe agradeço, espírito da sálvia branca, por sua força, sua pureza, seu poder. – Uma fumaça branca começou a subir da concha de ostra. – Eu agradeço a você, espírito do cedro, por sua divina natureza, por sua capacidade de criar uma ponte entre este Mundo e o Mundo do Além.

Mais fumaça subia, e eu inspirava e expirava.

– E, como sempre, agradeço ao espírito da lavanda, por sua natureza apaziguadora, por sua capacidade de nos permitir liberar a nossa raiva e alcançar a paz. – Então, Vovó começou a andar em volta de mim em sentido horário, batendo os seus pés em um ritmo pulsante, ancestral, que parecia eletrificar a fumaça aromatizada e impulsioná-la para dentro do meu corpo, conforme ela abanava em volta de mim com a pena de águia. Sem perder um passo de sua dança, a voz de Vovó se pareou aos seus movimentos, ecoando através do sangue dela para o meu. – Saia o que é tóxico, que é verde como bile. Entre a fumaça doce, prateada e pura.

Concentrei-me enquanto ela se movia à minha volta, entrando no ritual com a mesma facilidade que fizera por toda a minha infância.

– Inale a cura. Inale a purificação. Inale a calma. A bile verde embora irá. Substituída pela prata e pela claridade – cantava Vovó.

Levantei as mãos, guiando a fumaça em volta da minha cabeça, concentrando-me na purificação prateada.

– O-s-da – continuou Vovó, repetindo logo depois em nossa língua: – Bom, você está recuperando o seu centro.

Entrei em um estado sonolento, de transe, levada pela fumaça e pelo canto da Vovó. Pisquei, como se estivesse emergindo de um mergulho profundo, e meus olhos se arregalaram de surpresa. Claramente visível através da fumaça havia uma luz prateada brilhante que, como uma bolha, nos envolvia, a mim e a Vovó.

– Isso é o que você está projetando agora, Zoey Passarinha. Isso tomou o lugar das Trevas que estavam dentro de você.

Respirei fundo de novo, sentindo uma leveza surpreendente em meu peito. O aperto terrível que estivera ali desde que comecei a tossir sumiu. A sensação de desespero que estava dentro de mim também desapareceu...

Por quanto tempo? , perguntei-me. Agora que tinha ido embora, eu percebia o quanto aquilo era opressor.

Vovó tinha parado na minha frente. Colocou a concha de ostra entre nossos pés e segurou as minhas mãos.

– Eu não sei de tudo. Não tenho as respostas que você procura. Não posso fazer nada além de purificar e curar a sua mente e o seu espírito. Não posso tirá-la deste lugar nem mudar o passado que a trouxe para cá. Só posso amá-la e lembrá-la desta regrinha segundo a qual tentei viver a minha vida: não posso controlar os outros. Só posso controlar a mim mesma e as minhas reações aos outros. E, quando tudo o mais dá errado, eu escolho a bondade. Mostro compaixão. Então, se fiz escolhas ruins, pelo menos não causei danos ao meu espírito.

– Eu fracassei nisso, Vovó.

– Fracassei... isso é passado, e você deve deixar esse fracasso no passado, que é onde ele deve ficar. Aprenda com os seus erros e siga em frente. Não fracasse de novo, u-we-tsi-a-ge-ya. Isso significa que se você precisar enfrentar o julgamento e for para a prisão por causa dessa coisa terrível que aconteceu, então você fará isso falando a verdade e agindo com compaixão, assim como faria uma Grande Sacerdotisa da sua Deusa.

– Eu deveria afastar as pessoas que me amam. – Não disse isso como uma pergunta, mas Vovó me respondeu mesmo assim.

– Afastar as pessoas que a amam e se interessam verdadeiramente por você seria a ação infantil, e não de uma Grande Sacerdotisa.

– Vó, você acha que Nyx ainda quer que eu seja uma Grande Sacerdotisa?

Vovó sorriu.

– Acho, mas a minha opinião não é importante. O que você acha da sua Deusa, Zoey? Você acha que ela é tão volúvel que a amaria e depois a descartaria tão facilmente?

– Não estou questionando Nyx, e sim a mim mesma – admiti.

– Então, deve olhar para si mesma. Manter-se firme no seu centro. – Ela pegou a pedra turquesa que retirara da cesta de piquenique mais cedo e colocou-a em minha mão. – Você usou a pedra da vidência para concentrar seus poderes, querendo ou não. Agora, acredito que tenha que encontrar um foco dentro de você. Assim como a turquesa tem seu próprio poder protetor, você deve encontrar o seu próprio, dentro de si. Desta vez, não procure raiva, Zoey Passarinha. Procure compaixão e amor.

– Sempre amor – terminei por ela, pegando a pedra na minha mão e sentindo a sua maciez.

– Segure-se ao seu verdadeiro eu como está segurando esta pedra, e lembre-se de que sempre vou acreditar que você é mais forte, mais sábia e mais bondosa do que pensa ser.

Coloquei os braços em volta dela e abracei-a com força.

– Eu amo você, Vovó. Sempre amarei.

– Assim como eu sempre amarei você.

– Acabou o tempo! – A voz do guarda fez com que eu, relutantemente, soltasse Vovó. – Ei, o que está acontecendo aqui? O que vocês estavam queimando?

Vovó virou-se para ele, sorriu, e com sua voz mais doce, disse:

– Nada com o que você precise se preocupar, querido. Apenas um pouco de limpeza e purificação. Você gosta de biscoitos com gotas de chocolate? Tenho um ingrediente secreto que faz com que os meus fiquem irresistíveis, e, por acaso, tenho uma dúzia aqui na minha cesta. – Dando um tapinha no braço dele, ela acompanhou-o pela porta, levantando um prato de papel cheio de biscoitos de sua cesta mágica e piscando para mim por sobre o ombro. – Agora, querido, por que não arranja um café para acompanhar esses biscoitos enquanto chama o jovem e generoso vampiro chamado Stark para entrar e visitar a minha neta?

Stark!

Sentei-me na cama, endireitando minhas roupas nervosamente e tentando pentear o meu cabelo superdoido com os dedos. E, então, ele estava na porta, e me esqueci da aparência. Eu me esqueci de tudo, exceto de como estava feliz em vê-lo.

– Posso entrar? – perguntou ele, hesitante.

Assenti.

Não esperei que ele desse aqueles seis passos até mim. Não podia esperar nem mais um segundo. Assim que ele se aproximou, atirei-me em seus braços e enterrei meu rosto em seu ombro.

– Eu sinto muito! Não me odeie... por favor, não me odeie!

– Como eu poderia odiar você? – Ele me abraçou com tanta força que era difícil respirar, mas não liguei. – Você é a minha rainha, a minha Grande Sacerdotisa e meu amor... meu único amor. – Ele se afastou de mim apenas o suficiente para me olhar diretamente nos olhos. – Você não pode se suicidar. Eu não conseguiria sobreviver a isso, Zoey. Juro que não.

Havia círculos escuros embaixo de seus olhos, e suas tatuagens vermelhas de vampiro pareciam especialmente brilhantes contra a pele anormalmente pálida. Parecia que ele tinha envelhecido uma década em um dia.

Odiei vê-lo com aparência cansada e doentia. Odiei ser a causa disso.

Encontrei seu olhar e falei com toda gentileza e compaixão dentro de mim:

– Isso foi um erro. Não o cometerei de novo. Desculpe-me ter feito você passar por tudo isso. – Apontei para a cela.

Ele tocou meu rosto com gentileza, quase reverência.

– Para onde você for, eu vou. Nós fizemos um juramento para esta vida e além, Zoey Redbird. E tudo isso é suportável se tivermos um ao outro. Nós ainda temos um ao outro?

– Temos sim.

Eu o beijei, longa e apaixonadamente. Achei que eu o estivesse confortando, mas percebi que seu toque, seu beijo e seu amor é que estavam me confortando.

Foi naquele momento que realmente compreendi o quanto amo Stark.

– Está vendo? – perguntou ele, cobrindo meu rosto de beijos e enxugando as lágrimas que escorriam. – Está tudo melhor agora. Tudo vai ficar bem.

Eu não quis falar para ele que não tinha tanta certeza de que algum dia as coisas voltariam a ficar bem. Isso não seria compaixão. Em vez disso, levei-o até a minha cama estreita e dura. Nós nos sentamos e eu me aconcheguei nele, repousando em seu braço.

– Nós vamos nos revezar para ficar aqui de modo que você não volte a rejeitar a Transformação. De hoje em diante, sempre haverá um vampiro do lado de fora desta porta – Stark começou a explicar baixinho enquanto me abraçava bem apertado. – Vão colocar uma cama portátil no corredor.

– Mesmo? Você vai ficar assim tão perto de mim?

– Vou, o Detetive Marx fez com que permitissem que eu ficasse. Ele é um cara muito legal. Ele disse ao chefe de polícia que não permitir que um vampiro fique com você seria a mesma coisa que dar uma lâmina de barbear a um prisioneiro humano e depois fazer vista grossa para o que ele fizesse depois. Ele disse que isso era desumano e que, ao se entregar, você tinha os mesmos direitos que qualquer outro humano.

– Isso foi legal da parte dele. – De repente, percebi que horas deviam ser, meio-dia pelo menos. – Espere, você não devia estar aqui. Está claro lá fora. – Sentei-me e comecei a procurar queimaduras em seu corpo.

Ele sorriu.

– Estou bem. Stevie Rae também. Viemos para cá na parte de trás da van da escola, aquela sem janelas.

Assenti e sorri.

– A van de Chester the Molester. [*]

– Isso, é assim que eu me locomovo agora. – O sorriso dele ficou presunçoso. – Marx deixou que estacionássemos na garagem coberta ao lado da delegacia. Nenhum raio de sol tocou em nós.

– Tome cuidado, ok?

Ele ergueu as sobrancelhas.

– É sério isso? Você está me mandando tomar cuidado?

– Estou pedindo, na verdade – corrigi, lembrando-me de ser generosa.

Ele riu e me abraçou.

– Zoey Redbird, você está toda desarrumada, mas continua linda, e eu amo você.

– Eu também amo você.

Logo ele me soltou e seu rosto assumiu uma expressão mais séria.

– Tudo bem, quero que você me conte tudo. Já sei que você ficou furiosa com dois humanos e lançou algum tipo de poder neles, mas eu preciso de detalhes.

– Stark, será que não podemos simplesmente... – comecei, não querendo desperdiçar um segundo do meu tempo com ele para falar do terrível erro que cometi.

Ele me cortou.

– Não podemos simplesmente ignorar. Zoey, você pode ser um monte de coisas, mas assassina não é uma delas.

– Joguei dois caras contra o muro, e eles estão mortos. Isso me torna uma assassina, Stark.

– Veja bem, acho que eu tenho um problema com isso. Acho que isso torna a sua pedra da vidência uma assassina. Foi por isso que você a entregou para Aphrodite, não foi? Porque foi o que canalizou a sua fúria para aqueles dois caras.

Estava prestes a abrir a boca para tentar explicar para ele o que eu mesma não compreendia, mas o som de passos no corredor me interrompeu. O guarda, com rosto vermelho e olhos arregalados, apareceu na porta.

– Vamos, vamos! Saia. Agora! – ordenou ele para Stark, apontando freneticamente para ele. – Um dos seus vampiros pode ficar, mas tem que ser aqui no corredor. O resto de vocês tem que dar o fora daqui... voltar para o lugar de vocês.

– Espere, não faz nem cinco minutos, muito menos quinze – argumentou Stark.

– Não posso fazer nada a respeito. Tem alguma coisa acontecendo no presídio. Uma emergência no centro da cidade.

Segui Stark até a porta, sentindo como se um cubo de gelo estivesse descendo pela minha espinha.

– Onde no centro da cidade? O que está acontecendo? – perguntei.

– Está um inferno no Mayo Hotel, e eles precisam de todos os policiais da cidade lá.

A porta da cela se fechou, permitindo que eu e Stark nos víssemos por entre as grades.

– Neferet – disse Stark.

– Ah, droga – respondi, concordando.

[*] “Chester the Molester” era uma tirinha de autoria de Dwaine B. Tinsley e publicada pela revista Hustler por 13 anos. A história gira em torno de um homem, Chester, interessado em molestar sexualmente mulheres e adolescentes. (N.T.)


3

Neferet

Era o meio da manhã de um domingo preguiçoso quando Neferet ordenou aos seus filamentos de Trevas que se abrissem para que pudesse ser levada da espessa nuvem de sangue e morte para a calçada em frente ao Mayo. Ela endireitou seu terninho Armani e jogou o cabelo castanho para trás. Neferet estava pronta para seu retorno triunfal à cobertura que a esperava com seus mármores, pedras e veludos no topo do prédio. Abriu a porta vintage de latão e vidro e parou assim que a atravessou, suspirando feliz para o vasto salão de baile que se abria à sua frente, resplandecente com seu mármore branco, colunas estatuárias, ornamentos grandiosos da década de 1920, e uma escadaria dupla que se curvava até a pista de dança com a graça do sorriso satisfeito de uma deusa.

Suas sobrancelhas castanhas se arquearam. Seu olhar cor de esmeralda se tornou mais penetrante. Neferet observou à sua volta com interesse renovado.

– Este realmente é um prédio requintado o suficiente para ser o templo de uma deusa. – Neferet sorriu. – Meu templo. Minha casa.

– Srta. Neferet! É realmente a senhora? Estávamos tão preocupados que alguma coisa tivesse acontecido quando destruíram a sua cobertura.

Neferet desviou o olhar do grande salão para a jovem que sorria para ela por trás do balcão da recepção.

– Meu templo. Minha casa. Meus súditos . – Ela sabia o que deveria fazer. Por que demorara tanto para pensar nisso? Possivelmente porque nunca absorvera tantas mortes ao mesmo tempo como acontecera poucos momentos antes de chegar ao Mayo. Assim como suas fiéis gavinhas, Neferet estava pulsando com poder, e esse poder tornava seu pensamento focado e claro.

– Isso, é exatamente assim que deve ser. Todos os humanos neste prédio devem me adorar.

– Desculpe-me, madame. Não entendi o que quis dizer.

– Ah, você vai entender. Em breve, entenderá. – O sorriso radiante da recepcionista começara a se apagar. Com um movimento sobrenatural, Neferet deslizou até ela. Viu o nome da garota no crachá dourado. – Sim, minha querida Kylee. Logo você me entenderá completamente. Mas, primeiro, você vai me dizer quantos hóspedes há neste momento no hotel.

– Sinto muito, madame – desculpou-se Kylee, parecendo totalmente constrangida. – Não posso fornecer essa informação. Talvez se a senhorita me disser do que precisa...

Neferet se inclinou, passando a mão pelo lindo balcão de mármore, interrompendo-a e capturando o olhar da garota.

– Você não me questionará. Você jamais me questionará. Fará exatamente o que eu mandar.

– Eu... Eu sinto muito, madame. Não quis ofendê-la, mas as informações sobre os hóspedes do hotel são confidenciais. Nós... Nós temos muito cuidado com a nossa p-política de privacidade – gaguejou ela, as mãos trêmulas de nervoso enquanto agarrava a corrente de ouro com um crucifixo junto ao pescoço.

Mesmo se Neferet não fosse vidente, perceberia a extensão do medo da garota – o que não impressionava a Deusa nem um pouco.

– Excelente! Agora que você vai seguir as minhas ordens, espero que seja ainda mais cuidadosa com privacidade, a minha privacidade.

– Desculpe, madame, a senhora está dizendo que comprou o Mayo Hotel? – A confusão de Kylee se intensificava junto com seu medo.

– Ah, muito melhor do que isso, e muito mais permanente. Decidi transformar este prédio encantador no meu primeiro Templo. Mas eu já não ordenei que você nunca me questionasse? – Neferet suspirou e emitiu um som de desaprovação. – Kylee, você vai ter que se esforçar mais no futuro. Mas não precisa preocupar essa sua cabecinha loura. Sou uma deusa bondosa. Pretendo lhe oferecer a ajuda de que precisar para que seja minha súdita perfeita.

Enquanto Kylee arfava como um peixe fora d’água, Neferet virou-se de costas para ela e encarou o mar de gavinhas que, embora não fossem vistas pela idiota da Kylee, espalhavam-se pelo piso de mármore e subiam carinhosamente por suas pernas.

– Filhos, vocês se alimentaram muito bem. Agora, está na hora de me pagarem pela minha generosidade. – Eles se retorceram, excitados, um ninho de víboras, e Neferet sorriu carinhosamente para elas. – Sim, eu lhes dei a minha palavra. Que foi só o começo do nosso banquete. Mas vocês precisam trabalhar em troca de comida. Eu me recuso a ter filhos vagabundos. – Ela deu uma gargalhada afetada. – Agora, um de vocês deve possuir esta humana. Não! Não a matem. – Neferet esclareceu, quando uma dúzia de gavinhas começou a se arrastar exaltadamente na direção de Kylee. – Sigam a minha mente até a dela. Usem minha trilha até seus pensamentos e desejos mais profundos, e fiquem lá, envolvam sua vontade e apertem. Mas não o suficiente para matá-la ou roubar o que se passa por sua razão. Não quero um Templo cheio de idiotas. Quero um Templo cheio de súditos obedientes. Possuam-na para que eu tenha certeza de sua obediência!

Neferet se virou para encarar a garota, cujo rosto perdera a cor de forma tão drástica que seus olhos castanhos pareciam hematomas.

– Srta. Neferet, por favor, não me machuque! – implorou ela, começando a chorar.

– Kylee, minha querida, minha primeira súdita humana, isso é realmente para o seu bem. O livre-arbítrio é um fardo terrível. Eu tinha livre-arbítrio quando era uma garota, pouco mais nova do que você; ainda assim, estava presa a uma vida de abuso que eu não tinha escolhido. É muito comum isso acontecer com humanos. Olhe para si própria: o emprego subalterno, a roupa precária. Você não quer mais da vida?

– Q-quero – respondeu Kylee.

– Bem, então temos um trato. Se eu tirar o seu livre-arbítrio, também vou afastar de você os terrores inesperados que a vida pode trazer. – Neferet fitou dentro dos olhos arregalados da garota e perfurou sua mente. Estava concentrada demais em Kylee para baixar o olhar, mas sabia que uma fiel e forte gavinha a obedecera e estava subindo pelo corpo da garota. Embora não conseguisse ver o que estava rastejando por suas pernas, Kylee certamente podia sentir. Abriu a boca e começou a gritar. – Acabem com o terror dela e entrem nela! – ordenou Neferet, e a gavinha entrou pela boca aberta.

Kylee começou a engasgar convulsivamente, e apenas o domínio de Neferet em sua mente evitou que desmaiasse.

– Tão humana. Tão fraca – murmurou a Deusa enquanto sondava a mente da garota, sentindo a familiar presença das Trevas seguindo. Quando encontrou o centro da vontade de Kylee, sua alma, sua consciência, Neferet ordenou: – Envolvam-na! – Com seu sentido extra, presente que recebera de outra Deusa mais de um século antes, Neferet testemunhou as Trevas aprisionarem a vontade de Kylee.

A garota caiu, seu corpo se contorcendo em espasmos.

– Lembrem-se bem da trilha que acabei de mostrar para vocês, filhos. Kylee é apenas a primeira de muitas. – Neferet bateu uma palma. – Levante-se, Kylee. Arrume-se, minha querida. A sua vida acaba de se tornar muito mais , e eu tenho outras ordens que você deve cumprir.

Kylee ficou de pé, como se fosse uma marionete manipulada por cordas.

– Isso, assim está muito melhor. Agora, me diga quantos hóspedes há no hotel, e lembre-se, nada mais daqueles gritos irritantes.

– Sim, madame – respondeu Kylee de forma instantânea e mecânica.

O sorriso de Neferet voltou. Ela estava transbordando poder! Os humanos deviam adorá-la – com a débil força de vontade deles e mentes facilmente manipuláveis, não tinham a menor chance.

– E pare de me chamar de madame. Quero que me chame de Deusa.

– Sim, Deusa – repetiu Kylee automaticamente, sua voz totalmente desprovida de emoção. Então, começou a digitar no teclado enquanto fitava, sem expressão, a tela do computador. – No momento, temos 72 hóspedes, Deusa.

– Muito bem, Kylee. E quantos moradores há?

– Cinquenta.

Com um dedo longo, Neferet levantou o queixo de Kylee para que ela a fitasse de novo.

– Cinquenta o quê?

Kylee estremeceu, tal qual um cavalo espantando insetos, mas seu olhar permaneceu aberto, inexpressivo, e ela se corrigiu imediatamente, dizendo:

– Cinquenta, Deusa.

– Muito bem, Kylee. Vou me recolher à minha cobertura. Lembre-se, este prédio agora é o meu Templo, e eu insisto em proteger a minha privacidade, assim como meu divino corpo. Entendeu?

– Sim, Deusa.

– Você compreende que isso significa que, se alguém vier me procurar, você dirá que tem certeza absoluta de que eu não estou aqui, e o mandará embora?

– Compreendo, Deusa.

– Kylee, você foi muito útil. Vou permitir que tenha uma vida longa o suficiente para me adorar adequadamente.

– Obrigada, Deusa.

– De nada, querida.

Neferet começou a deslizar na direção do elevador. Levantou a mão, chamando.

– Venham, meus filhos. Tenho a sensação de que vamos precisar redecorar.

Inchadas e pulsando com o sangue com o qual tinham acabado de se alimentar, as gavinhas das Trevas seguiram ansiosamente sua ama.

– Exatamente como pensei. Deixaram em ruínas! Isso é inaceitável. – Neferet andou em volta das cadeiras reviradas dos tapetes manchados da sala de estar que costumava ser uma cobertura meticulosa e luxuosamente decorada. – Sangue velho! Esta sala está fedendo a sangue. Limpem! – mandou ela. As gavinhas obedeceram, embora mais lentamente do que quando a refeição que ela oferecia era fresca. – Não sejam tão exigentes. Parte desse sangue é de Kalona. Mesmo velho, sangue imortal tem poder. – Isso pareceu animar as gavinhas e elas passaram a rastejar com mais entusiasmo.

Enquanto trabalhavam, Neferet dirigiu-se até a adega, apenas para encontrá-la vazia. Não restava uma garrafa sequer do escuro e caro cabernet que ela tanto adorava.

–Isso é o que acontece quando não estou aqui para ficar de olho naqueles humanos preguiçosos. Eles negligenciam suas tarefas. Estou sem vinho, e minha cobertura mais parece um matadouro!

O olhar irritado de Neferet foi de encontro à grande quantidade espalhada de poeira turquesa, vinda da jaula das Trevas, na qual suas gavinhas prenderam a entediantemente teimosa Sylvia Redbird.

– E aquilo! Sumam com aquele pó azul horrível. Macula toda a beleza do piso de ônix, ainda mais do que aqueles tapetes persas manchados.

Várias gavinhas tentaram obedecer à sua ordem, mas se esquivaram assustadas das partículas azuis, como se estas ainda tivessem o poder de afastá-las. A mais ousada delas seguiu pela pedra empoeirada, então estremeceu e se contraiu, sua carne escorregadia e emborrachada soltando fumaça e um líquido escuro e fétido. Neferet franziu a testa, acenando para a gavinha. Com uma unha afiada, ela perfurou a pele da palma de sua mão.

– Venha, alimente-se de mim e cure-se – murmurou ela, apreciando o toque gelado e doloroso da boca da gavinha, acariciando-a enquanto ela se alimentava, estremecendo sob seu toque.

– Isso nunca vai dar certo. Arrumar a bagunça deixada por humanos é muita humilhação para meus leais filhos. Súditos humanos devem limpar bagunças humanas, é disso que preciso, cumprindo as minhas ordens, facilitando o meu trabalho. E, felizmente, temos mais de cem deles sob este mesmo teto. Todos eles, exceto a tão útil Kylee, ainda não sabem o quanto ficarão assoberbados em breve. Hum... qual seria a melhor maneira de iniciar meus novos súditos?

Neferet sacudiu o braço para afastar a gavinha faminta.

– Não seja tão gulosa. Já está curada.

A gavinha se afastou. Neferet passou a mão pelo seu longo e esbelto pescoço, pensando. Precisava avaliar o melhor passo a dar, e precisava agir rápido.

Não deixara ninguém vivo na Church Boston Avenue, apenas centenas de corpos mutilados e sem sangue.

– As autoridades irão primeiro para a Morada da Noite, é claro. Thanatos insistirá que ninguém do seu rebanho impecável faria uma coisa daquelas. A velha vai jogar a culpa em mim. Acreditando nela ou não, mesmo a incompetente polícia local acabará vindo me procurar aqui. – Neferet tamborilou suas unhas longas e pontiagudas no balcão de mármore preto de sua adega vazia. Não tinha muito tempo ao seu dispor, a não ser que optasse por se esconder.

– Não, nunca mais vou me esconder. Sou uma Deusa, uma imortal, com o dom de comandar as Trevas. Nyx nunca me compreendeu. Kalona nunca me compreendeu. Ninguém jamais me compreendeu. Mas agora eu vou obrigá-los a me entender. Vou fazê-los entenderem! Os moradores de Tulsa é que devem se esconder de mim, e não o contrário.

Ela tinha de ser rápida e decisiva, antes que a polícia chegasse e tentasse, sem sucesso, prendê-la – ou antes que o seu banquete na igreja chegasse aos noticiários e começasse a assustar os hóspedes do Mayo Hotel: os seus futuros súditos.

Neferet encontrou um controle remoto e ligou a enorme televisão de tela plana que, por sorte, tinha saído intacta da batalha. Sintonizou no canal local, colocou no mudo e começou a andar de um lado para o outro, pensando em voz alta e mantendo os olhos grudados na tela.

– É uma pena que eu não possa enjaular os seres humanos como eu fiz com aquela velha e soltá-los quando eu precisasse de sua adoração ou de seus serviços. Isso seria tão mais fácil para eles e, o mais importante no final das contas, para mim. Eu apostaria muito no fato de que nenhum deles resistiria tanto quanto Sylvia Redbird. Os humanos comuns nunca poderiam entrar ou sair da jaula das Trevas criadas por vocês, meus queridos. E, pelo que vi até agora, os meus humanos são excessivamente normais. – Neferet parou abruptamente. – Os meus súditos são humanos normais. E eu me tornei tão mais do que uma humana comum ou uma vampira.

Distraída, Neferet acariciou uma gavinha que se enrolara em seu braço.

– É uma pena que eu não possa enjaular os humanos aqui. Eu os estaria protegendo, permitindo que eles troquem o tédio de suas vidas pela satisfação de me adorar, assim como fiz com Kylee. – Ela acariciava a gavinha, enquanto esta estremecia de prazer. – Eu não preciso enjaulá-los. Eu preciso tratá-los com carinho!

Abrindo os braços, ela sorriu para os seus servos das Trevas, que eram perfeitamente lindos e aterrorizantes.

– Tenho uma resposta para o nosso dilema, meus filhos! A jaula que criamos para aprisionar Redbird era fraca, uma tentativa patética de aprisionamento. Aprendi tantas coisas desde aquela noite! Consegui tanto poder... Nós conseguimos tanto poder. Não vamos enjaular as pessoas, como se eu fosse uma carcereira em vez de uma deusa. Meus filhos, vamos cobrir todas as paredes do meu Templo com as suas tramas mágicas e invioláveis para que os meus novos súditos possam me adorar sem qualquer empecilho. E isso será apenas o começo. À medida que eu absorver cada vez mais poder, por que não encapsular toda a cidade? Eu sei disso agora... Conheço o meu destino. Começo o meu reinado como Deusa das Trevas ao tornar Tulsa o meu Olimpo! Só que isso não será apenas um mito fraco contado como histórias banais de crianças para crianças. Isso será realidade: o Mundo das Trevas do Além veio para a Terra! E, nesse mundo, não haverá inocentes sendo abusados por predadores. Todos estarão sob a minha proteção. Eu tenho o destino deles nas minhas mãos, e eles só precisam se preocupar com o meu bem-estar. Ah, como eles vão me adorar!

Em volta dela, as gavinhas se contorceram em resposta à animação dela. Ela sorriu e acariciou as que estavam mais próximas.

– Sim, sim, eu sei. Será glorioso, mas o que preciso primeiro, meus filhos, é do serviço de quarto. Vamos convocar os meus novos servos. Alguns deles vão limpar e arrumar os meus aposentos da maneira correta. Outros vão reabastecer a adega. Todos vão me obedecer sem me questionar. Preparem-se. Chegou a hora de Neferet, a Deusa das Trevas!

Foi mais fácil do que ela mesma imaginara. Os humanos não eram apenas ridiculamente fáceis de serem controlados, mas também tão indefesos contra a infestação de uma única gavinha das Trevas quanto a pequena Kylee. Ela estava absolutamente certa. Eles precisavam dela para comandar a vida deles, assim como um bebê precisa da mãe.

O único problema no seu plano era que Neferet não tinha acesso a um número infinito de gavinhas. Apenas as mais leais, as suas verdadeiras filhas, continuaram ao seu lado depois que fora despedaçada.

Por um breve instante, considerou chamar mais filamentos de Trevas, mas logo rejeitou tal pensamento. Ela não recompensaria a traição – e os filamentos que a abandonaram no momento da necessidade a traíram no nível mais profundo.

Neferet tomou um gole do seu cabernet favorito em uma taça de cristal e andou pela cobertura, contando os humanos que se dedicavam à limpeza e à arrumação da bagunça que Zoey e seus amigos tinham deixado para trás. Seis. Havia quatro mulheres da equipe de limpeza e dois homens do serviço de quarto. Neferet sorriu. Na verdade, eles não passavam de garotos – ambos louros e ansiosos por atender aos seus pedidos de serviço de quarto. Saindo do seu elevador, suas expressões denunciaram os seus pensamentos de forma tão clara que ela nem precisou esquadrinhar suas mentes. Eles a desejavam. Muito. Obviamente esperavam que ela quisesse um pouco de sangue e sexo com vinho. Tolos! Agora eles se moviam mecanicamente, atendendo aos comandos que ela dava sem reclamar, sem preocupações e sem olhares galanteadores irritantes. Estavam exatamente como ela preferia os seus homens humanos: silenciosos, obedientes e jovens.

– Cavalheiros, a vida é gloriosa, não acham?

As duas cabeças louras se voltaram para ela.

– Sim, Deusa – responderam em uníssono, como sempre.

Neferet sorriu.

– Como costumo dizer, o livre-arbítrio é um peso terrível. Não precisam agradecer por eu ter aliviado vocês de tal peso. – Então, ela ordenou: – Voltem ao trabalho.

– Obrigado, Deusa. Sim, Deusa – repetiram eles, obedecendo-a.

Então, ela já tinha usado seis filamentos. Não, sete, contando a pequena Kylee, da recepção. Neferet lançou um olhar contemplativo para o ninho de gavinhas onde elas se reuniram para absorver o que restara do sangue seco de Kalona. Quantas havia? Tentou contar, mas era impossível. Elas se moviam muito e com rapidez, além de se fundirem umas às outras e depois se separarem quando desejassem. Parecia haver muitas delas, porém. E todas tinham crescido, engordado e estavam mais fortes depois de terem se fartado.

Eu preciso me certificar de que continuem bem alimentadas. Elas não podem definhar – pois isso significaria que o meu absoluto poder sobre os humanos também enfraqueceria.

Resoluta, Neferet discou zero para falar com a recepcionista.

– Recepção, como posso ajudá-la, Neferet? – respondeu a voz insolente de Kylee ao primeiro toque.

– Kylee, quando eu ligar, o modo correto de atender ao telefone é dizendo “Como posso servi-la, minha Deusa?”.

A voz de Kylee ficou sem expressão ou emoção e ela repetiu:

– Como posso servi-la, minha Deusa?

– Muito bem, Kylee. Você com certeza aprende rápido. Eu preciso saber quantos funcionários estão trabalhando aqui no meu Templo hoje.

– Seis faxineiras, dois carregadores, quatro membros do serviço de quarto e eu. Rachel deveria estar aqui na recepção comigo, mas está de licença médica.

– Pobre Rachel. Mas isso me deixa com treze funcionários ao meu dispor. É claro que isso não inclui o restaurante. Ele está aberto hoje?

– Está. Nós abrimos para o brunch até as duas horas da tarde aos domingos.

Kylee fez uma pausa para contar:

– O chef, um ajudante de cozinha, o bartender , que também é o gerente, e três garçonetes.

– Totalizando vinte. Eis o que quero de você, Kylee. Feche o restaurante imediatamente, mas não permita que os funcionários vão embora. Diga a eles que houve uma mudança na gerência do hotel e que o novo dono pediu uma reunião de funcionários.

– Farei como me pede, Deusa, mas os Snyder não são donos do restaurante.

– Quem são os Snyder?

– A família que comprou e reformou o Mayo em 2001. Eles são os donos do prédio.

– Corrigindo, Kylee, querida, eles eram os donos do prédio que era conhecido como Mayo Hotel. Eu controlo o Templo em que ele se tornou. Não importa. Isso logo ficará claro. Tudo de que preciso é que você reúna todos os funcionários do restaurante e do hotel e peça-lhes que venham até a cobertura daqui a trinta minutos. Depois, eu vou mudar o título da reunião de funcionários para o que ela realmente é: uma oportunidade de adorar a sua Deusa. Isso não soa muito mais agradável do que reunião de funcionários?

– Sim, Deusa – respondeu Kylee.

– Excelente. Vejo você e o resto dos meus súditos daqui a meia hora.

– Deusa, eu não posso deixar a recepção sozinha. O que acontecerá se alguém quiser se hospedar ou deixar o hotel?

– A resposta é simples, Kylee. Tranque as portas para que ninguém possa entrar ou sair do meu Templo. Tranque tudo e venha até mim com as chaves.

– Sim, Deusa.

Neferet teria de encontrar outro lugar para receber os súditos. A sua cobertura era íntima demais para tantos humanos. No entanto, teria de se virar por um tempo. Ela se posicionou diante das portas de vidro colorido que haviam sido quebradas e agora foram substituídas pelos garotos louros. Ela desligara as luzes elétricas berrantes e ordenara que as faxineiras trouxessem velas para os seus aposentos. Castiçais, suportes e velas de promessa cobriam a prateleira de granito, a cornija da lareira, a mesa de centro de mármore no estilo art déco e a grande mesa de jantar de madeira. Ela também ordenara que as lanternas que ficavam ao lado das portas tivessem as lâmpadas fortes retiradas e fossem substituídas por luzes bruxuleantes e quentes de velas brancas. Ela fez uma observação mental para pedir que um dos seus servos fosse comprar mais velas – muitas e muitas velas.

O olhar de Neferet passeou pela cobertura, e ela ficou satisfeita. Tudo parecia tão melhor, e estava apreciando a sua segunda garrafa de cabernet, pensando em quanto apreciaria mais tarde, quando um – ou uma – entre seus súditos se oferecesse para misturar o próprio sangue no vinho.

Neferet tinha se vestido com esmero, satisfeita ao ver que suas roupas ficaram intactas enquanto estivera ausente. Escolheu um vestido de seda dourada que se ajustava ao corpo como se acariciasse a sua pele. Como sempre, Neferet deixou o cabelo ruivo solto, em ondas brilhantes que desciam pelas costas até a cintura. Não usou nenhum adorno com um símbolo de qualquer outra deusa. Jamais voltaria a usar imagens adornadas em prata – ela arrancara o último daqueles filamentos de si.

Tinha um novo símbolo, no qual vinha pensando cuidadosamente, e mal podia esperar até que um dos seus súditos fosse encomendar a peça na joalheria de Moody e a “surpreendesse” com um rubi de seis quilates no formato de uma lágrima perfeita. Ela seria efusiva nos agradecimentos e sempre o usaria preso a uma grossa gargantilha de ouro.

Seria realmente bom ser a Deusa das Trevas – A Deusa de Tulsa –, a Deusa do Caos.

Ouviu o barulho do elevador.

– Meus filhos, venham até mim! – Os filamentos de Trevas se apressaram em sua direção, cercando-a, pousando sobre os seus pés descalços com um frescor reconfortante. – Ah, e súditos, vocês podem voltar à minha presença – disse ela por sobre os ombros na direção do local para onde ordenara que aguardassem até que tivessem novas ordens.

Eles passaram por ela no instante em que as portas do elevador se abriram e Kylee levou o restante dos funcionários para a cobertura.

– Bem-vindos! – Neferet ergueu a taça e os braços. – Vocês são abençoados por estarem diante de mim.

A maior parte do grupo pareceu confusa. Duas mulheres, vestidas como garçonetes, murmuraram perguntas uma para a outra. Os olhos afiados de Neferet as notou. Um dos homens, o que usava um chapéu idiota de chef, perguntou:

– Você poderia nos dizer o que está acontecendo aqui? Tivemos que fechar o restaurante e obrigar os nossos clientes a ir embora, mesmo que eles ainda não tivessem terminando o seu brunch. Posso afirmar para você que, com certeza, temos alguns ex- clientes muito putos da vida.

– Qual é o seu nome? – quis saber Neferet, mantendo o tom de voz agradável.

– Tony Witherby, mas a maioria das pessoas me chama de chef.

– Bem, Tony, eu não sou a maioria das pessoas. Veja bem, a maioria das pessoas me chama de Deusa.

Ele soltou uma gargalhada debochada.

– Você só pode estar brincando, né? Tipo, eu estou vendo as suas tatuagens e sei que você é uma vampira e tudo o mais, mas vampiras não são deusas.

Neferet ficou satisfeita ao ver Kylee se afastar do chef como se não quisesse ser contaminada por sua desobediência. Kylee estava realmente se tornando uma excelente súdita.

Neferet não desperdiçou sequer um olhar para o chef. Em vez disso, sorriu para os seus filhos alvoroçados.

– Tão ansiosos – comentou ela em um tom leve de reprovação. Ela se abaixou para acariciar uma gavinha particularmente precoce que se enrolara por sua perna quase na altura de sua coxa. – Você vai ser perfeita.

– Tudo bem, você vai ter que nos dizer o que está acontecendo ou eu vou ligar para o dono do restaurante – ameaçou o chef. Quando ela continuou a ignorá-lo, ele começou a gritar: – Isso é realmente ridíc...

– Pegue-o! – comandou Neferet para a gavinha. – E permitam que a vejam.

A gavinha ficou visível enquanto voava na direção do chef. Ela era tão grande que rapidamente o envolveu pela cintura grossa, movendo-se rapidamente para cima.

– Que merda é essa?! Solte-me! – gritou o chef, jogando-se para trás e batendo na gavinha com ambas as mãos, impotente.

Neferet achou que ele parecia uma menininha com medo de aranha.

Um homem bonito e negro vestido como mensageiro se aproximou para ajudar o chef.

– Fique onde está ou o seu destino será o mesmo do dele! – avisou Neferet.

O homem parou onde estava.

– Nããããão!

Os gritos do chef beiravam à histeria, e Neferet ficou aliviada ao ver que bem nesse momento a gavinha subiu pelo pescoço dele e invadiu sua boca, fazendo com que se abrisse de uma maneira quase impossível. Isso causou a rachadura e o sangramento dos cantos dos lábios, antes que todo o grosso comprimento do filamento desaparecesse dentro do corpo do humano. O chef caiu do chão.

– É tão deprimente quando um homem adulto age como uma menininha assustada, vocês não acham?

Os humanos que ainda não tinham sido possuídos por seus filhos olharam para ela com um misto de horror e descrença. Outra mulher, uma das faxineiras que não atendera ao chamado anterior de Neferet, estava rezando em espanhol, agarrada ao crucifixo pendurado em uma gargantilha de prata de aparência barata. Todo o grupo, exceto pelo equivocado Tony, estava se afastando, como um rebanho, na direção das portas do elevador.

– Nada disso – declarou Neferet com voz suave. – Vocês não podem partir antes de receber minha permissão.

– Você também vai nos matar? – perguntou uma das mulheres, segurando a mão da amiga e tremendo de forma espasmódica.

– Matar vocês? É claro que não. Tony não está morto. – Ela dirigiu-se então ao chef caído no chão. – Tony, meu querido, levante-se e diga para os outros que você está perfeitamente bem.

De forma estranha, Tony se levantou, virou-se para Neferet. Então, sem expressão no seu rosto rosado e manchado de sangue, declarou:

– Estou perfeitamente bem.

– Você se esqueceu de dizer uma coisinha – disse Neferet.

O corpo de Tony se retorceu em espasmos como se ele tivesse levado um choque por dentro, e ele se apressou a repetir:

– Estou perfeitamente bem, Deusa.

– Viram só? É exatamente como eu disse. Qual é o seu nome, querida? – perguntou ela para a mulher trêmula.

– Elinor.

– Que nome adorável. Não se veem mais nomes como esse hoje em dia, o que é uma pena. Para onde todas as Elinors e Elisabeths, Gertrudes, Gladys e Phyllis foram? Não, não precisa me responder. Elas foram substituídas por Haileys, Kaylees, Madisons e Jordans. Eu odeio nomes modernos. Sabe, Elinor, eu preciso agradecê-la. O seu nome de bom gosto fez com que eu tomasse uma decisão sobre vocês, meus novos súditos. Vou renomear qualquer um de vocês que possua um nome muito chamativo. – Neferet lançou um olhar para Kylee. – Exceto você, Kylee. Eu gosto muito do seu crachá dourado para mudar o seu nome.

– Deusa? – sussurrou Elinor em tom de pergunta.

– Pois não, minha querida.

– Nós agora estamos trabalhando para a senhora?

– Ah, é muito melhor do que isso. Vocês vão me adorar agora. Vocês vinte serão as primeiras testemunhas do meu reinado como Deusa das Trevas. Cada um de vocês terá um papel especial e muito importante para cumprir enquanto me adoram e atendem a cada uma das minhas necessidades. Vocês vão me oferecer presentes e sacrifícios e, em troca, tirarei o exaustivo livre-arbítrio que obviamente tem lhes reprimido e deprimido a vida. Por que outro motivo vocês estariam trabalhando em tarefas tão servis e sem sentido?

– Eu não estou entendendo o que está acontecendo – choramingou Elinor.

– Logo... logo a sua confusão acabará. Não se preocupe, doce Elinor, só dói um pouquinho. – Neferet ergueu o braço. – Meus filhos... – começou ela.

– Espere! – O mensageiro que quis ajudar Tony deu um passo para a frente e lançou um olhar inflexível para Neferet. – A senhora disse que se tentássemos ajudar o chef, nosso destino seria o mesmo do dele. Eu não ajudei. Ninguém mais ajudou. Então, de acordo com a sua própria palavra, não vai mandar essas coisas rastejantes nos atacar.

– E qual é o seu nome?

– Judson. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Deusa.

– Judson é um nome antigo do sul, sabia?

– Não, eu... Eu, não. Eu não sabia. – Ele fez outra pausa. – Deusa.

– Bem, é isso então. Eu também não vou trocar o seu nome. E quanto ao que eu disse antes? Eu menti. Peguem-nos! – Ordenou.

Felizmente, os seus filhos tinham antecipado os seus desejos e moveram-se rapidamente, de modo que os gritos irritantes logo cessaram.


4

Neferet

Neferet liberou seus novos súditos, cada qual tendo iniciado sua adoração por meio da possessão de um de seus filhos, e ordenou-lhes que chamassem os hóspedes e residentes do hotel e os reunissem no grande salão do hotel.

Decidira que deveria estabelecer o lugar das oferendas no salão principal, o qual era cercado por colunas de mármore, tinha pé-direito alto e o teto ornado com lindos candelabros no estilo art déco , e escadaria dupla e ampla em curva com balaústres de ferro forjado que contavam com uma grande plataforma entre o térreo – onde os súditos ficariam – e o passeio superior, onde apenas os seus adoradores mais próximos, aqueles que cuidavam dos seus desejos, seriam permitidos. Os outros ficariam presos nos próprios quartos ou no porão, o qual Kylee fora gentil em lhes mostrar. Ou, se eles provassem ser um estorvo excessivo e ela não quisesse gastar uma gavinha para possuí-los, eles se tornariam alimento para seus filhos.

É claro que ela só se alimentaria dos súditos que despertassem o seu interesse.

Kylee recebera a tarefa de encontrar uma cadeira que servisse de trono até que pudesse encomendar um que fosse entalhado para ela.

– Você precisa encontrar um artesão talentoso para criar exatamente o que eu quero. A madeira deve ser tingida de sangue vermelho profundo de búfalo – orientou ela, enquanto escolhia a colocação com cuidado. – E eu não quero nada daqueles assentos duros e pobres ao gosto dos velhos do Conselho Supremo. Almofadas de veludo dourado. É sobre elas que vou me sentar.

Neferet permitiu que duas das faxineiras mais atraentes a envolvessem num vestido luxuoso em tom púrpura real, e tinha acabado de decidir que não usaria sapato – ficaria descalça, como condiz a uma Deusa recém-nascida. Retornou à sua sala para encher novamente a taça de vinho, irritada por não haver lá nenhum humano ansioso por ajudá-la. Ela já estava esperando, impacientemente, que convidados e residentes estivessem rodeados por seus servos obedientes para que pudesse fazer a sua entrada triunfante no salão.

– Até mesmo para uma Deusa, é tão difícil encontrar empregados de qualidade. Mas eu vou deixar esse erro passar. Eles são só vinte. Devem estar bem ocupados reunindo os humanos no meu salão de oferendas. Mas vou deixar passar somente esta vez.

Estava bebericando o líquido vermelho, apreciando o sabor do sangue do bonito mensageiro que tinha tão graciosamente oferecido um pedaço da sua carne para dar mais sabor ao seu vinho, quando a televisão chamou a sua atenção. Havia uma legenda de notícias na parte inferior da imagem onde se lia ASSASSINATOS EM TULSA, e a âncora, Chera Kimiko, estava falando com uma expressão sombria.

Encantada, Neferet apertou o botão de mudo na televisão, esperando reviver os detalhes deliciosos do seu banquete. No entanto, em vez da Church Boston Avenue, a tela mostrou uma imagem do Woodward Park, em um estado terrível de desgaste. Então, a câmera mudou, e as sobrancelhas de Neferet se ergueram enquanto se concentravam em um paredão de pedra ao lado de uma gruta que, até recentemente, fora o seu santuário. Ela aumentou o volume, impaciente, a tempo de ouvir Kimiko dizendo de forma tão séria:

– Este é o local onde ocorreu o terrível assassinato de dois homens, cujos corpos foram descobertos por bombeiros na manhã de ontem. Conforme informamos anteriormente, a violenta tempestade que criou ventos de quase 120 km/hora foi acompanhada por raios mortais. Os raios que caem sobre a região de Tulsa já foram responsáveis por cinco mortes hoje, além de dez pessoas hospitalizadas em estado grave. Mas a morte desses dois homens aparentemente não tem relação com as tempestades. Adam Paluka está ao vivo com o detetive Kevin Marx e vamos até ele para mais detalhes. Adam?

A cena mudou do parque destruído pela tempestade para um detetive sentado atrás de uma mesa em um escritório de aparência comum. Neferet o reconheceu como o policial que fora irritantemente compreensivo com Zoey Redbird no passado. Ela fez uma careta enquanto assistia à entrevista.

– Detetive Marx, o senhor poderia nos explicar essas duas mortes adicionais em Woodward Park, e responder se o senhor realmente excluiu a possibilidade de as mortes terem sido caudadas pela tempestade?

– Os corpos dos dois homens, ambos na casa dos quarenta anos, foram descobertos na manhã de ontem. A causa da morte foi a mesma para os dois homens: contusão e hemorragia.

Neferet sorriu, decidindo que aquele era um excelente aquecimento para a carnificina que eles logo descobririam.

– E é verdade que o senhor prendeu alguém que confessou ter cometido os crimes?

Neferet ergueu as sobrancelhas.

– Confessou os assassinatos? Está presa? Isso é impossível.

– Sim, é muito triste ter de informar que uma jovem novata, a quem conheço pessoalmente, se apresentou por livre e espontânea vontade para confessar que assassinou os dois homens.

– Uma novata! – explodiu Neferet levantando-se da chaise e gritando com a tela da televisão.

– O senhor pode informar o nome de tal novata?

– Zoey Redbird .

Neferet gritou, pegou um dos abajures elétricos que tinha tirado da tomada e o atirou contra o aparelho de televisão.

– Aquela garota tola e fraca acredita que matou aqueles dois homens? Eu os encontrei a poucos metros do meu santuário, e seu sangue serviu para me alimentar para que pudesse ir ao grande banquete na Boston Avenue Church. Zoey Redbird matando dois homens adultos? Que grande bobagem! Ela não tem o ímpeto necessário para matar ninguém! E realmente confessou o assassinato? Aquela garota é uma idiota ainda maior do que eu imaginei.

Neferet jogou a cabeça para trás e sua gargalhada debochada ecoou pela cobertura.

Neferet assumira a sua posição no meio da graciosa escadaria dupla do salão principal do Mayo Hotel. Adorava a ironia de estar no mesmo lugar onde tantos humanos iludidos fizeram seus votos matrimoniais.

– Um pacote de macarrão tem validade maior do que a maioria dos casamentos humanos, sabia?

Ela sorriu para a multidão reunida sobre o piso de mármore preto e branco. Havia ordenado que diminuíssem as luzes e que grandes candelabros fossem posicionados e acesos em cada um dos lados. Sabia que sua beleza era divina, complementada pelo brilho de seu vestido à carícia da luz das velas.

Ordenou que metade dos seus vinte súditos a cercasse, embora sem entrar na plataforma em que se encontrava. Os outros dez humanos possuídos estavam posicionados na entrada do seu Templo. Ela dera a eles apenas uma ordem: ninguém poderia entrar ou sair.

Seus filhos das Trevas se contorciam à sua volta, invisíveis para os humanos que a olhavam boquiabertos, mas reconfortantes para ela com sua avidez familiar.

– Ah, vocês estão certos em não responder. Essa pergunta realmente não é uma forma digna de uma Deusa se dirigir pela primeira vez aos seus escolhidos. Permitam que eu comece de novo.

Neferet se posicionou na frente do seu trono, abriu os braços em um gesto amplo e começou:

– Atenção! Eu sou Neferet, a Deusa das Trevas, a Rainha de Tsi Sgili. Transformei este hotel no meu Templo das Trevas, e vocês, poucos afortunados, serão meus súditos fiéis, os meus escolhidos. Em troca, recompensarei sua adoração removendo as preocupações do mundo comum de vocês. Não mais precisarão trabalhar em empregos sem sentido. Não precisarão voltar para casamentos tediosos nem para filhos mal-agradecidos. De hoje em diante, até a sua morte, seu único objetivo será me adorar. Regozijem-se, humanos!

Seu discurso foi seguido por um longo momento de silêncio absoluto e, então, a multidão começou a se agitar nervosamente, aos sussurros.

Neferet aguardou pelo que sabia que viria a seguir, e isso manteve o sorriso no seu rosto. Gostava muito de ensinar lições de vida aos humanos.

Conforme previsto, Neferet não precisou esperar muito tempo. Uma mulher deu um passo à frente. Era alta e tinha cabelo castanho – devia estar no final da meia-idade, embora estivesse bem conservada e parecesse estar em forma, como uma mulher que se exercita diligentemente para se manter jovem. Usava um vestido de bom gosto e corte meticuloso em um tom bonito de verde-esmeralda.

– Onde você comprou esse vestido adorável? – perguntou Neferet à humana antes que ela tivesse a chance de dizer qualquer coisa.

A mulher piscou, obviamente surpresa com a pergunta, mas respondeu:

– É um Halston. Comprei na Miss Jackson’s.

– Kylee – chamou Neferet, olhando para o lugar em que a garota se encontrava aos pés da escadaria, com uma aparência serena de um robô. – Anote. Vou precisar que você vá até a Miss Jackson’s e escolha diversos vestidos para mim. Certifique-se de incluir modelos Halston.

– Sim, Deusa – entoou Kylee, sem emoção.

Neferet franziu o cenho, olhando para Kylee. Será que realmente queria que aquela garota escolhesse os seus trajes? Ela não devia ter mais do que vinte anos e se o seu corte de cabelo fosse uma indicação do seu senso de moda, seria realmente um desastre...

– Tudo bem, você tem que explicar o que realmente está acontecendo aqui. Eu não tenho tempo para isso. – Recuperando-se da sua surpresa, a mulher com o vestido verde-esmeralda interrompeu os pensamentos de Neferet, batendo com o pé no chão para demonstrar sua impaciência. – Eu tenho um jantar marcado no Summit Club, e pegar um avião para Nova York logo em seguida.

– Já expliquei a situação para vocês – disse Neferet. – Agora eu sou a sua Deusa. Você não vai jantar no Summit Club nem vai voltar para Nova York. A não ser que eu mande que você faça alguma coisa para mim. O seu único trabalho é me adorar. Em troca, eu acabarei com as suas angústias e preocupações mundanas. Qual é o tamanho desse vestido? Trinta e oito ou quarenta?

– Sério? Essa é uma piada de muito mau gosto. Frank Snyder está por trás disso, não é? Frank? – A mulher ignorou Neferet e chamou pelo homem, procurando ao seu redor, como se esperasse que ele fosse aparecer. – Ela está vestida como uma diva de cinema. Deixe-me adivinhar: ela vai cantar “Smoke gets in your eyes” pelo meu aniversário, não é? Como é que você encontrou uma vampira para contratar? Ou será que essas tatuagens foram pintadas?

A mulher girara em torno de si e novamente encarava Neferet, olhando para ela como se estivesse considerando apagar suas tatuagens.

Neferet se deu conta de que sua paciência chegara ao fim.

– Escolhidos, permitam que esta seja uma lição para vocês. Eu não sou uma piada. Eu sou a sua Deusa. Poderosa, possessiva, imortal e onisciente. Eu sou praticamente destituída de paciência, nunca aturo tolos. – Neferet se inclinou para a frente e pousou a mão no balaústre de ferro. Encontrou o olhar da mulher e invadiu a sua mente desprotegida. – Então, o seu nome é Nancy, e hoje é o seu aniversário. – O sorriso de Neferet era felino. – E você está fazendo cinquenta e três anos, embora diga aos amigos que tem quarenta e cinco.

O corpo da mulher estremeceu e ela arfou, chocada com a violação, mas impotente para resistir.

– Como você sabe disso? E como se atreve?

Neferet fez um som alto de admoestação, meneando a cabeça.

– Uma vida de tantas privações em nome da beleza. Será que ninguém lhe explicou que, não importa o que faça, você é humana e os humanos envelhecem? Nancy, você deveria ter comido mais massa, bebido mais vinho, dormido com o filho caçula do seu vizinho mais do que duas vezes e deixado o seu odioso marido quando ele teve o primeiro caso vinte anos atrás. E, Nancy, eu sei dessas coisas porque eu sou uma Deusa. Eu me atrevo a dizer essas coisas porque eu sou a sua Deusa, embora você, obviamente, não me mereça.

As pessoas em volta de Nancy se mexeram, como se quisessem se afastar dela, mas ainda estavam com expressões pasmadas e confusas de descrença em seus rostos bovinos.

– Seria inteligente se afastarem de Nancy. Eu sei que o meu Templo conta com instalações de lavanderia, mas não há motivo para mancharem desnecessariamente as suas roupas. – As pessoas mais próximas de Nancy se afastaram mais dela. Neferet sorriu, encorajando-os enquanto pegava uma das gavinhas que envolviam os seus pés descalços. Era satisfatoriamente pesada e grossa, e a sua pele gelada e emborrachada pulsava contra o seu corpo enquanto envolvia o seu braço. – Mate Nancy. Faça-a sofrer. Ela encheu a própria vida de sofrimento, então o sofrimento na morte deve ser um conforto para ela. – Neferet disse aquilo com carinho para seu filho. – Permita que seja visto.

Ela atirou a criatura em Nancy. A entidade tornou-se visível no ar. A multidão arfou e exclamou, mas logo começou a gritar quando a gavinha se enrolou no pescoço de Nancy e começou lentamente a cortar sua carne até arrancar a cabeça da mulher.

A multidão se descongelou e, gritando em pânico, seguiu em direção à saída.

– Eu não lhes dei permissão para sair! – Cheia de poder imortal, a voz de Neferet ecoou pelo amplo salão. – Meus filhos, permitam que meu povo veja vocês.

O ninho de Trevas ao seu redor se ondulou e se tornou visível, mas poucas pessoas notaram. Estavam ocupadas demais olhando, horrorizadas, para as cabeças negras das gavinhas, que haviam possuído a equipe e que, ao comando de Neferet, tornaram-se visíveis dentro das bocas escancaradas de cada um dos humanos robôs que guardavam as saídas.

Neferet fez outra nota mental – ela tinha de se certificar de recompensar os filhos que se ofereceram para a tediosa tarefa de possuir a equipe. Eles estavam sendo tão obedientes e compreensivos. Um outro banquete logo teria de ser providenciado para eles.

Sentiu um feixe de poder deslizar pelo seu corpo e voltou sua atenção para Nancy, cuja cabeça já estava separada do corpo. Havia tanto sangue, porém, que a gavinha não conseguia se alimentar rápido o suficiente. Neferet suspirou. O piso de mármore reluzente ia ficar manchado. Será que tinha de fazer tudo?

– Alimentem-se dela rapidamente! – ordenou aos filhos mais próximos. – Não tolerarei bagunça no meu Templo. – Então, suspirou mais uma vez e voltou sua atenção para o público em pânico. – Vocês estão começando muito mal! – exclamou ela. – Em troca de uma vida repleta de um novo objetivo, tudo o que peço em troca é a sua obediência e adoração. Nancy não me deu nada disso e vejam o que aconteceu com ela. Que isso sirva de lição para cada um de vocês.

– O que são essas criaturas? – perguntou um homem baixo e gordo, obviamente tentando controlar o medo enquanto acariciava o braço de uma mulher igualmente baixa e gorda e que enterrara o rosto no seu casaco enquanto soluçava.

– Estes são os meus filhos, formados por Trevas, e leais somente a mim.

– Por que eles estão dentro da boca daquelas pessoas? – quis saber ele.

– Porque aquelas pessoas fazem parte da minha equipe de trabalho e elas também devem ser leais apenas a mim. A possessão é muito mais eficiente do que cortar as suas cabeças. Agora, vocês viram como tudo será muito mais simples se vocês fizerem o que eu mandar?

– Mas isso é loucura! – gritou um homem no fundo do salão. – Você não pode esperar que nós fiquemos aqui e a adoremos, não é? Nós temos as nossas vidas, nossas famílias. Pessoas que sentirão a nossa falta.

– Tenho certeza de que sentirão mesmo, mas como eles são pessoas , e não imortais, isso não me preocupa. Mas se vocês forem muito, muito, mas muito bons mesmo, eu talvez lhes dê permissão para trazer a suas famílias para se juntarem a vocês.

– Você não pode fazer isso – disse uma mulher aos soluços. – A polícia vai nos salvar.

Neferet deu uma gargalhada.

– Ah, eu espero que sim. Estou ansiosa por este confronto. Garanto a vocês que o Departamento de Polícia de Tulsa não sairá vitorioso.

– E agora? O que nós vamos fazer? Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! – berrou outra mulher.

– Façam com que ela se cale! – ordenou a Deusa, e uma gavinha voou em direção à mulher, envolvendo seu rosto e tapando sua boca. Ela caiu no chão enquanto se contorcia.

Neferet soltou um longo suspiro de alívio quando não apenas os gritos da mulher cessaram, mas todo o grupo em pânico também se calou. Ela passou a mão pelo vestido perfeitamente ajustado ao seu corpo e, usando um tom calmo para os súditos apavorados, falou:

– Vocês devem aprender estas lições agora. – Ela fez um gesto com os dedos longos como se estivesse marcando itens em uma lista. – Eu não tolero histeria. Não tolero deslealdade. Também não sou muito chegada a homens brancos de meia-idade. Agora, eu preciso de sessenta voluntários para resolver negócios muito importantes na cobertura.

Ninguém se mexeu. Ninguém a olhou nos olhos. Neferet suspirou novamente e acrescentou:

– Eu não vou usar nenhum dos voluntários como alimento.

Uma jovem ergueu a mão trêmula.

– Sim, querida. Qual é a sua pergunta? – concedeu a Deusa.

– Você vai dizer para essas cobras entrarem nas nossas bocas?

Neferet sorriu docemente para a garota.

– Não, eu não vou fazer isso.

– Ent... Então, eu sou uma voluntária.

– Muito bem! – elogiou Neferet. – E qual é o seu nome?

– Staci.

– Não, eu vou chamá-la Gladys, que é um nome muito mais digno, você não acha?

A jovem logo concordou com a cabeça.

– Então, Gladys, fique do lado esquerdo do salão de oferendas. Agora, eu quero mais cinquenta e nove pessoas tão entusiasmadas quanto Gladys para se juntarem a ela.

Quando ninguém mais se mexeu, Neferet usou um tom de raiva e gritou:

– Agora!

Como se tivessem sido atingidos por um chicote, um grupo de humanos se sobressaltou e se juntou à primeira voluntária.

– Kylee, conte quantos humanos há e me informe quando houver sessenta.

Cada vez mais impaciente, Neferet esperou. Por fim, Kylee declarou:

– Temos sessenta voluntários, Deusa.

– Muito bem. Seja uma fofa, Kylee, e leve-os até a minha cobertura. Faça com que esperem na varanda pelas minhas ordens. Ah, e abra várias caixas de champanhe. Seja generosa. Meus voluntários devem ser recompensados.

Parecendo confusos, mas aliviados, os sessenta humanos entraram nos elevadores. Neferet voltou a sua atenção para os adoradores restantes. Eles a olhavam como se esperassem que uma guilhotina estivesse prestes a descer sobre as suas cabeças.

– Seria muito mais fácil usar a possessão em todos vocês. Instruir humanos dos tempos modernos a como adorar uma Deusa será uma tarefa extremamente tediosa – murmurou ela para si mesma, enquanto batia com os dedos no balaústre.

Uma mulher que estava próxima o suficiente para ouvi-la deu vários passos em direção à escadaria e, então, atraindo o olhar da Deusa, fez uma reverência profunda e elegante. Neferet ergueu as sobrancelhas. Analisou a mulher que se mantinha em reverência, com a cabeça respeitosamente curvada. Era mais velha do que Nancy, mas não muito. E embora estivesse bem-vestida, com um terninho bem cortado e caro, parecia ter a própria idade.

– Pode se levantar – permitiu Neferet por fim.

– Eu agradeço, Deusa. Será que a senhora me daria permissão para que eu me apresentasse?

– Vá em frente – concedeu, bastante intrigada.

– Eu sou Lynette Witherspoon, dona da Everlasting Expressions. Gostaria de lhe oferecer os meus serviços.

– Lynette. Sim, o seu nome não me ofende. Você pode mantê-lo. E o que é exatamente a Everlasting Expressions?

– É a minha empresa. Ofereço serviços de planejamento de eventos, coordenação e decoração para uma clientela seleta – explicou a súdita.

Neferet apreciou o orgulho e a confiança na sua voz.

– E o que você propõe para mim?

– Tudo – respondeu Lynette com voz firme. Ela olhou em volta do salão para as pessoas reunidas atrás dela, antes de lançar um olhar sincero para Neferet. – Creio que a adoração de uma Deusa seja um evento constante da maior importância, que deve ser dirigido com bom gosto e sem percalços. Se me der a sua permissão, garanto que a sua adoração será uma sucessão de eventos espetaculares.

– Interessante... – refletiu a Deusa. – Lynette, você não se importa se eu vislumbrar suas reais intenções, não é? – Embora tenha dito aquilo em tom de pergunta, Neferet não esperou pela resposta da súdita. No entanto, invadiu a mente da mulher de maneira mais gentil do que fizera com Nancy.

O que descobriu lhe fez sorrir.

– Lynette, você é uma oportunista.

– S-sou – confirmou ela, um pouco trêmula, depois que a Deusa saiu da sua mente.

– E você odeia os homens. – O sorriso dela se abriu mais.

– Eu não tenho poderes, então posso apenas imaginar, mas acredito que a senhora compreenda esse ódio – respondeu a mulher.

– Eu gosto de você, Lynette. Permitirei que gerencie o planejamento da minha adoração.

Lynette fez outra reverência profunda.

– Eu lhe agradeço, Deusa.

– E qual será a sua primeira ação? – Neferet sentia uma curiosidade quase incontrolável sobre as intenções daquela humana incomum.

– Bem – começou ela, batendo com a mão no seu coque e analisando as pessoas que estavam em silêncio atrás dela –, todos os eventos começam com duas coisas: roupas adequadas e decoração correta.

– Só tenho uma exigência: deslumbre-me – ordenou a Deusa.

– Sim, Deusa – respondeu a mulher em tom respeitoso.

– E quanto a vocês, meus súditos – disse Neferet, dirigindo-se para o seu rebanho –, façam tudo o que Lynette mandar. – Neferet dirigiu o olhar para Lynette e acrescentou: – Desde que ela não mande que tentem sair do meu Templo.

– Eu não pensaria uma coisa dessas, Deusa – apressou-se a humana em responder.

– Ah, minha querida, você pensou nisso. Você só se deu conta de como isso seria imprudente.

Lynette curvou a cabeça.

– Touché , Deusa.

– Agora, deixarei vocês, meus súditos, nas mãos capazes de Lynette. Vou para a minha cobertura me preparar para...

A saída de Neferet foi interrompida pelo mensageiro alto, Judson, chamando de seu posto em frente das portas fechadas e acorrentadas do Mayo Hotel.

– Deusa! A polícia está aqui!


5

Lynette

– Socorro! Polícia! Ela está nos mantendo presos aqui! – Uma garota que Lynette reconheceu como sendo a dama de honra do casamento espetacularmente caro da noite anterior começou a gritar, desvencilhando-se da equipe possuída, esmurrando o grosso vidro das portas dianteiras.

– Por que será que eu sempre tenho que fazer tudo? Equipe, todos vocês, exceto Judson, levem esses humanos para o porão!

A voz de Neferet estava cheia de veneno, e a equipe do hotel reagiu como se tivesse levado um choque elétrico. Começaram a reunir o grupo de pessoas aterrorizadas em direção à saída de emergência. A vampira flutuou pela escadaria e pelo piso do salão, passando tão próxima de Lynette que o vestido púrpura encostou nos seus pés. Lynette se afastou, tentando se esconder nas sombras e evitar ser levada com o resto do rebanho, mas Neferet falou com ela:

– Você, venha comigo. Eu não quero que você perca o evento que eu estou planejando.

– Como desejar, Deusa.

Lynette se empertigou, controlou o medo e seguiu a vampira. Não importava o que acontecesse, ela não ia terminar seus dias como aqueles pobres otários da equipe do hotel com aquelas cobras nojentas da vampira saindo pela boca. E também não faria nada idiota para acabar tendo a cabeça decepada. Ela sobrevivera a uma mãe alcoólatra e abusiva e à infância pobre para construir um império para si. Tinha dinheiro e status social. Dirigia uma Mercedes-Benz S-Class e era proprietária de uma casa de quase seiscentos metros quadrados em Eight Acres, o condomínio mais caro e exclusivo no centro de Tulsa. Passava as férias na França e só viajava de primeira classe. Ela poderia muito bem sobreviver a uma vampira doida com delírios de imortalidade e sedenta por poder, e ainda encontraria uma maneira de sair lucrando com a situação.

Neferet chegou até a garota que berrava.

– Você não é uma súdita adequada! – Com uma força sobrenatural, ela agarrou um punhado do cabelo louro tingido da garota e puxou sua cabeça para trás até que Lynette tivesse certeza de que o pescoço se partiria. Então, apontou para a boca aberta da garota. – Possuam-na!

Lynette queria afastar o olhar, mas não conseguiu. A cobra negra mergulhou na boca da dama de honra. Os olhos dela se reviraram de forma que só dava para ver a parte branca, o corpo totalmente inerte. Ela só não caiu no chão porque Neferet a segurava pelos cabelos.

– O seu nome será Mabel. Quando eu mandar, você virá de boa vontade até mim – rosnou a Deusa, erguendo o rosto da garota inconsciente até que ficasse a um dedo de distância do dela.

Um ligeiro piscar de olhos. Como se a vampira tivesse ligado um botão, o terror no rosto da garota desapareceu, deixando apenas uma expressão vidrada, mas atenta, em seus olhos.

– Sim, Deusa – entoou ela sem qualquer emoção.

Aquelas cobras horríveis têm total controle de quem quer que possuam , pensou Lynette. Não a mim , prometeu para si mesma. Não farão isso comigo. Eu prefiro morrer a terminar assim!

Neferet soltou a garota. Ela cambaleou como se estivesse desequilibrada, mas conseguiu manter-se de pé. A vampira passou a mão pelo cabelo perfeito e tirou alguma migalha invisível do seu ombro. Então, encarou Lynette.

– Você sabe o que vai acontecer se me decepcionar e acabar não se mostrando uma súdita adequada.

Lynette não afastou o olhar dos olhos verdes-esmeralda de Neferet. Mergulhou em uma reverência profunda que a vampira tanto apreciara antes.

– Eu não a decepcionarei, Deusa.

Sentiu o deslizar doentio de Neferet entrando em sua mente e concentrou os pensamentos nos fatos – ela não tinha a menor intenção de fazer qualquer coisa que levasse a vampira a se voltar contra ela.

– Logo, logo, você acreditará que eu sou uma Deusa, e que o seu destino é me servir. – Antes que Lynette tivesse a chance de comentar, Neferet virou de costas, ordenando: – Judson, desacorrente a porta da frente. Lynette, venha comigo. Meus filhos, não permitam que sejam vistos, mas prestem atenção em mim!

Com um som que trazia à mente de Lynette a recordação de antigas fortunas e opulência, as portas duplas e austeras de latão e de vidro se abriram e Neferet saiu, com Lynette logo atrás, tão perto que conseguia sentir o frio horripilante que emanava das cobras invisíveis.

Havia dois carros do Departamento de Polícia de Tulsa e um carro de passeio parados na pequena entrada circular diretamente em frente ao hotel. Quatro policiais uniformizados conversavam com um homem alto de roupas comuns que estava, obviamente, no comando, o que significava que ele era algum tipo de detetive. Com o aparecimento de Neferet, o grupo rapidamente voltou sua atenção para a bonita vampira. O detetive fez sinal com a cabeça para os outros, que deram alguns passos para trás e se posicionaram atrás dele, enquanto, com a expressão séria, começou a se aproximar de Neferet.

– Não, eu quero que você permaneça perto dos carros – declarou Neferet.

Ela estava próxima às portas, em pé sob o toldo de ferro, marca registrada da entrada do Mayo. Deu um pequeno passo para o lado e envolveu o ombro de Lynette com o braço e a empurrou. Lynette não precisava ser vidente para compreender o que a vampira queria que fizesse. Sem hesitar, deu um passo para a frente e se colocou entre Neferet e a polícia. A mão de Neferet se manteve em seu ombro, e ela sentia as unhas duras e afiadas da vampira pressionadas contra a pele do seu pescoço, bem acima da artéria que ali pulsava forte e rápido.

Lynette ficou completamente parada.

O homem alto hesitou apenas por um momento, embora aquele instante tenha parecido durar uma eternidade para Lynette. Então, os policiais deram vários passos para trás.

– Isso, assim está bem melhor. – Lynette detectou o sorriso na voz de Neferet. – Agora podemos conversar de maneira mais educada. Detetive Marx, que gentil da sua parte vir me visitar. Está uma tarde adorável, não acha? É como se a tempestade de ontem tivesse limpado a cidade.

Neferet falava em um tom afável, mantendo a mão descansando sobre o ombro de Lynette.

– Neferet, eu tenho que fazer algumas perguntas a você. Será que não prefere vir para a delegacia comigo em vez de ser interrogada aqui?

O suspiro de Neferet demonstrou uma decepção exagerada.

– Então, não podemos ser corteses um com o outro socialmente?

– Você sabe muito bem que, em circunstâncias normais, não tenho o menor problema com cortesia. Nós dois já trabalhamos juntos de forma amigável antes. Mas o que aconteceu ontem em Tulsa foi bem além do normal, e eu não tenho tempo para cortesia. – Ele fez uma pausa antes de gesticular em direção à Lynette. – E acho bem irônico você estar reclamando sobre questões de cortesia quando tem uma refém bem diante de si.

A pressão da unha de Neferet sumiu imediatamente, e a vampira afastou a mão do pescoço de Lynette, fazendo um carinho íntimo em seu rosto.

– Detetive, você não poderia estar mais enganado. Lynette, você é minha refém?

– Não, Deusa – respondeu ela, meneando a cabeça e esforçando-se para agir como se aquilo fosse algo corriqueiro, servir como escudo-humano de uma vampira psicótica. – Eu sou uma súdita por livre e espontânea vontade.

– Aí está. Viu? Está tudo bem. Lynette só está aqui porque ela me adora. Mas por que você, detetive Marx, está aqui? As perguntas que o trazem têm a ver com Woodward Park ou com a Boston Avenue Church?

Lynette viu os olhos do detetive se estreitarem.

– O que você sabe sobre Boston Avenue Church?

Neferet deu uma gargalhada.

– Tudo! Pode perguntar qualquer coisa. Você quer saber por quanto tempo aquele projeto de pastor gritou antes de eu matá-lo? Ou por que a esposa do conselheiro estava sem o seu lindo terninho branco Armani, o qual, coincidentemente, era do meu tamanho, quando você encontrou o seu corpo drenado e sem vida do lado de fora do seu santuário? Veja bem, é muito difícil remover manchas de sangue de um tecido de qualidade.

Enquanto a vampira falava, Lynette observava a mudança nos policiais. Primeiro, os seus rostos denunciaram que eles estavam em choque e, depois, sacaram suas armas, enojados e zangados.

A arma do detetive apontou para o seu ombro direito.

– Lynette – disse ele. – Caminhe diretamente para nós e mantenha as mãos onde possamos vê-las.

Lynette sabia que não importava nem um pouco o fato de Neferet não estar tocando nela.

– Não, obrigada – respondeu ela, conseguindo, de alguma forma, evitar que a voz saísse trêmula. – Estou bem aqui com a Deusa.

– Mas do que é que você está falando? – explodiu um dos policiais. – Ela é uma porra de uma vampira que assassinou um monte de fiéis numa igreja! Ela não é uma merda de uma deusa.

– Lynette, eu não gosto de pessoas desbocadas. E você? – quis saber Neferet.

Prendendo a respiração, deu a única resposta que poderia. Meneou a cabeça e disse:

– Não, eu não gosto.

Neferet inclinou a cabeça para o lado e analisou o policial que tinha falado. Lynette viu o corpo dele se retorcer.

– Policial Jamison, será que palavrões permeiam sua mente enquanto tem fantasias com a sua enteada de dez anos de idade? E quando você a observa dormindo e admite para si mesmo que daqui a alguns dias você vai transformar seus desejos em realidade?

O policial empalideceu.

– Isso é uma porra de uma mentira! – exclamou.

– Mais profanação. “Parece-me que o lorde faz protestos demasiados” [*] – declarou Neferet. Então, ela se voltou para Lynette em tom conspiratório. – É uma citação, mas acho perfeitamente adequada à situação, você não acha?

– Acho – concordou Lynette, observando o policial de perto.

O homem estava rubro e parecia prestes a explodir a qualquer momento – e Lynette se deu conta de que Neferet não o estava provocando nem inventando nada daquilo. Ela deslizara pela mente dele e revelara o seu segredinho sujo.

– Sua vaca filha da puta! – berrou o policial Jamison.

– Já chega! – ordenou o detetive Marx, dirigindo-se ao homem uniformizado.

Então, sua atenção se voltou para Lynette e Neferet, falando de maneira clara e calma que fez Lynette desejar poder correr da loucura da vampira e direto para a proteção dele.

– Lynette, se você escolher ficar com Neferet, então vai fazer companhia a ela numa cela de cadeia. Neferet, você está presa pelo assassinato de toda a congregação da Boston Avenue Church.

A risada de Neferet foi seca e cruel.

– Você nem consegue fazer a acusação contra mim de forma correta, detetive.

– Você acabou de confessar esses assassinatos! – exclamou Marx.

Ele perdeu o tom profissional e objetivo que mantivera até aquele momento. Com um terrível aperto no estômago, Lynette se deu conta da verdade inacreditável – Neferet massacrara toda uma igreja cheia de inocentes.

Teve de segurar as mãos em frente de si para evitar que tremessem.

– Você tem uma mente tão decepcionantemente tacanha, detetive Marx. O que eu fiz naquela igreja não foi assassinato, foi sacrifício, e foi glorioso! Queria que você estivesse lá como testemunha, mas se estivesse lá , não estaria aqui para testemunhar o início do meu reinado. Ah, mas eu estou divagando. As suas acusações estão incorretas porque estão incompletas. Você se esqueceu de acrescentar o lanchinho que fiz com o seu prefeito algumas noites antes.

A expressão no rosto do detetive Marx era uma máscara de ódio.

– Meus instintos avisaram que os vampiros da Morada da Noite estavam dizendo a verdade sobre você ser a responsável pela morte do prefeito.

– Pelo menos uma vez, os seus instintos estavam corretos. Mas permita que eu continue com a minha confissão. É uma pena que não havia ninguém em Woodward Park para testemunhar minha saída triunfal de meu agradável recanto, enquanto eu descobria dois homens deliciosamente confusos praticamente implorando para que eu drenasse seu sangue.

Os olhos do detetive se arregalaram e Neferet zombou:

– Eu não sei o que é mais inacreditável, aquela energúmena da Zoey Redbird ter criado a ilusão de que matara os homens para logo em seguida correr pateticamente para você e se entregar, ou você realmente ter acreditado que aquela insípida tivesse coragem o suficiente para matar alguém. De qualquer modo, a situação não é muito favorável para suas habilidades de dedução.

Lynette viu que os policiais uniformizados, até mesmo Jamison, empalideceram diante da admissão direta de culpa de Neferet, mas o rosto do detetive Marx endureceu, formando linhas de teimosia.

– Neferet, permitirei que faça uma ligação para o Conselho Supremo, mas você deve se entregar agora e se preparar para arcar com as consequências dos seus atos.

– O Conselho Supremo tem ainda menos jurisdição sobre mim do que você – declarou Neferet. – Eu não sou vampira. Eu sou a Deusa das Trevas, Rainha de Tsi Sgili. E não vou nunca mais me curvar diante de qualquer autoridade. Você, Tulsa e o resto do mundo vão me adorar, é meu direito divino. Observem e aprendam. Mabel, venha até aqui.

A garota obedeceu imediatamente. Caminhou pelas portas que Judson abrira para ela e ficou ao lado de Neferet.

– Mais reféns não ajudarão você a se livrar disso! – exclamou o detetive Marx.

– Eu disse: observem e aprendam, humanos! Eu não tenho reféns, apenas súditos obedientes. Agora, observem o seu futuro!

Neferet abriu os braços para a garota que chamava Mabel. Lynette teve de dar um passo para o lado enquanto Mabel se apressava, de boa vontade, para abraçá-la.

– Se eu sou a sua Deusa, sacrifique-se por mim.

Com uma curiosidade mórbida, Lynette observou, perguntando-se o que a garota estaria disposta a fazer. Ela só teve segundos para pensar.

– A senhora é minha Deusa – afirmou a garota de forma mecânica e, então, começou a arranhar o próprio pescoço fazendo com que o sangue escorresse pelos ferimentos.

– Agora, sim, este é o comportamento esperado de uma súdita adequada. – Neferet se inclinou para beber o sangue da oferta. A garota arfou e estremeceu, mas, em vez de tentar escapar, ela exclamou com uma voz cheia de êxtase:

– Obrigada, Deusa

– Que delicadeza a sua – elogiou Neferet, seus lábios a centímetros do pescoço de Mabel. Antes de começar a se alimentar do sangue dela, Neferet ordenou: – Proteja-nos!

Instantes depois, houve um barulho ensurdecedor de tiros. Lynette se jogou no chão, encolhendo-se e colocando o braço sobre a cabeça numa vã tentativa de se proteger.

Ouviu uma lamúria de dor e, então, os policiais começaram a gritar. Tremendo violentamente, Lynette espiou por entre os braços. Neferet estava se alimentando da garota, ignorando o caos que acontecia diante deles.

Aparentemente, os tiros destinados a Neferet – e à própria Lynette – ricochetearam em algum escudo conjurado pela vampira e atingiram diretamente o corpo do policial desbocado.

– Ai, meu Deus – sussurrou Lynette.

– Será que você não quer dizer “ai, minha Deusa ”? – Neferet, com os lábios vermelhos do sangue da garota, sorriu para ela.

– Sim, é o que quero dizer – respondeu ela, sentindo-se tonta.

Neferet soltou a garota e Mabel caiu pesadamente no chão. Então, ela estendeu a mão para Lynette, que a pegou, e se levantou, trêmula.

– Não tema, não permitirei que eles a machuquem. Não permitirei que machuquem qualquer pessoa que seja leal a mim – afirmou.

A vampira voltou sua atenção para os policiais. Eles arrastaram o corpo cravejado de balas de Jamison para trás dos carros, onde o restante dos homens estava agachado. Lynette ouvia o som da estática dos rádios enquanto chamavam uma ambulância e pediam reforços.

– Você entendeu agora, detetive Marx? Aprendeu a sua lição?

– Aprendemos que você é uma assassina! – exclamou ele. – Ainda não terminamos. Este não é o fim.

– Pelo menos uma vez você está certo. Ainda não terminei aqui. Esse é só o começo. Observe e aprenda. Observe e aprenda – repetiu ela. – Ah, olhe para cima! Meus filhos, venham comigo!

Dando os braços para Lynette, entraram novamente no Mayo Hotel.

– Judson, acorrente as portas novamente.

– Sim, Deusa. Mas isso não os manterá lá fora por muito tempo.

– Eu sei disso! Limite-se a fazer o que eu ordenei. Como sempre, terei de tomar conta dos detalhes sozinha.

– Sim, Deusa.

– Lynette, gostaria que você se juntasse a mim na minha cobertura. Um evento espetacular está prestes a acontecer lá.

– Sim, Deusa – respondeu Lynette, entrando no elevador com ela.

O sorriso de Neferet era confiante.

– Você está quase acreditando que eu sou divina.

Lynette não respondeu. O que poderia dizer que Neferet não pudesse retorquir esquadrinhando a sua mente e descobrindo a verdade? Então, novamente, deu a única resposta possível:

– Estou aqui para servi-la.

– E assim será.

As portas se abriram para a cobertura.

– Kylee, Lynette está um pouco pálida, sirva para ela uma taça do melhor vinho e leve até a varanda.

Neferet passou por Kylee, com Lynette seguindo logo atrás, e abriu as portas para se juntar às sessenta pessoas que estavam reunidas em grupos amedrontados na varanda. Muitos estavam próximos à balaustrada que emoldurava a ampla extensão das portas para o lado de fora; pela expressão nos seus rostos, ficou claro que tinham ouvido os tiros e viram o que acontecera lá em baixo.

– Espere aqui, Lynette, e tome o seu vinho. Isso vai trazer um pouco de cor de volta ao seu rosto. Não posso permitir que a minha súdita favorita fique com uma aparência abatida e doentia – declarou Neferet.

Então, ela caminhou até o parapeito de pedra, fazendo com que as pessoas mais próximas a ela se afastassem, assustadas.

– Já que a educação moderna é de péssima qualidade, sinto que é meu dever, como a sua Deusa, dizer isto a vocês – ela fez uma pausa e apontou para as pedras esculpidas –: o nome disso é balaustrada. Os suportes grossos e com espaçamento uniforme, aqui e aqui – ela apontou novamente –, chamam-se balaústres. É uma feliz coincidência que haja exatamente sessenta balaústres espaçados em torno da varanda da cobertura do meu Templo. Eu quero que cada um de vocês escolha um balaústre e se posicione diretamente em frente a ele.

– Você... Você não vai nos obrigar a pular, não é? – quis saber uma velha aterrorizada.

– Não, Vovó – respondeu Neferet com a voz calorosa. – Isso não faria nenhum sentido. Será que vocês não viram como eu protegi Lynette contra as balas mortais que a polícia atirou contra ela?

Seguiu-se um longo silêncio e alguém disse:

– Mas você comeu aquela outra garota.

– Mabel foi desobediente. Será que vocês querem o mesmo destino que ela teve?

Suas palavras tiveram um efeito instantâneo sobre as pessoas, que se espalharam, cada qual assumindo uma posição em frente a um balaústre.

– Excelente! Kylee, sirva mais champanhe enquanto eu tenho uma conversa em particular com os meus filhos das Trevas.

Lynette apreciava vinho tinto caro e costumava degustá-lo, bebendo-o devagar. Mas não naquele momento. Ela bebeu ruidosamente, pegando a garrafa da mão de Kylee quando a garota robótica passou por ela para buscar mais champanhe. Lynette sentiu-se grata pela sensação surreal e destacada que o álcool lhe provocava enquanto observava a vampira se mover para um canto sombrio da varanda, bem longe do parapeito, e se curvava para conversar com o que parecia ser absolutamente nada.

Lynette sabia que não era o caso. E, com certeza, apenas um segundo ou dois depois, o ar em volta dos pés da vampira se ondulou, como correntes de ar quente se erguendo do asfalto abrasado de uma estrada, e as cobras de Neferet ficaram visíveis. Lynette ficou satisfeita que a vampira estivesse distraída com os seus “filhos”, pois não conseguia evitar o estremecimento de nojo. Lynette se lembrou de um velho filme de faroeste ao qual assistiu quando criança. Nele, os cowboys tinham que levar o gado e, enquanto cruzavam o rio, um jovem caiu do cavalo, pousando no meio de um enorme ninho de cobras aquáticas para ser morto por elas, embora não rápido o suficiente. Parecia que Neferet estava no centro do ninho, só que as suas cobras eram maiores, mais negras e até mais perigosas do que qualquer uma das cobras do velho oeste.

O que será que elas eram? Com certeza, Lynette não sabia muitas coisas sobre vampiros. Mesmo que fosse capaz de aceitar fazer negócios com eles – já que eram reconhecidamente ricos –, jamais fora contratada por um. Estava longe de ser uma perita em vampiros, mas tinha certeza de que ouvira falar alguma coisa sobre essas criaturas mortíferas semelhantes a cobras. Seus familiares deveriam ser gatos, meu Deus, e não répteis.

Lynette se serviu de mais vinho e tomou um longo gole em sua taça, sentindo-se aliviada por seu rosto estar quente. Bom, o calor deixaria o seu rosto “corado” de novo. Lynette não tinha dúvidas de que a vampira seria capaz de matá-la se lhe desse na telha. Disfarçadamente, apertou o próprio rosto para se certificar de estar completamente corada.

Como ela ia sair daquela confusão? Nem estava mais se preocupando em lucrar com aquilo. Só queria escapar sem ser caçada pelos filhos de uma vampira insana.

– Excelente! – Neferet se empertigou, voltando sua atenção para as sessenta pessoas, cada uma diante de um balaústre na cobertura. – Agora que os meus filhos compreendem os meus desejos, estou pronta para compartilhá-los com vocês, meus leais súditos. – Ela se colocou no centro da varanda para que pudesse ser vista e ouvida por todos. – Kylee, chega de champanhe por ora. Fique ao lado de Lynette.

Kylee, é claro, fez conforme foi ordenada.

Lynette lançou uns olhares de esguelha para a garota. A sua boca estava fechada, ela não conseguia ver qualquer sinal da infestação da cobra, mas a garota estava claramente no piloto automático. Seus olhos estavam abertos, mas sem vida. O rosto não tinha expressão. Dessa vez, Lynette conseguiu evitar um estremecimento de asco. Quem poderia saber o que aquela coisa ao seu lado poderia contar para a vampira?

– Bem, eu tenho uma pergunta para vocês, uma a que qualquer um pode responder. Qual é a sua maior preocupação neste momento? – perguntou Neferet para as pessoas.

Lynette achou estranha sua capacidade de parecer uma pessoa tão normal, até boa. Era tudo fachada, mas uma fachada muito boa.

Ninguém respondeu à sua pergunta, e Neferet deu um sorriso caloroso e encorajador, dizendo:

– Ah, vamos lá! Eu sou a sua Deusa. É o meu dever e um prazer ouvir as suas preocupações. E, como meus súditos, é o seu dever compartilhá-las comigo. Por favor, não me obriguem a forçá-los a cumprir com as suas obrigações.

Um homem resolveu responder:

– A minha maior preocupação é que eu não quero ser morto... Ou coisa pior – declarou ele, lançando um olhar nervoso e rápido para o ninho das trevas que cercava e se contorcia em torno da vampira.

– Muito bom! Ótima resposta. Mais alguém tem a mesma preocupação?

Neferet parecia realmente se preocupar e até mesmo Lynette sentiu que sua cabeça assentia junto com a dos outros.

– Perfeito! – exclamou Neferet. – Eu sabia que a segurança seria a principal preocupação de todos. Agora, vejam bem, eu não estou admoestando vocês, nem estou zangada, mas a sua principal preocupação deveria ser cuidar de mim e me adorar. – Várias pessoas começaram a protestar, obviamente temendo o que a vampira faria em seguida, mas Neferet ergueu a mão e, com um gesto régio calou a todos. – Não, não, eu compreendo. De verdade. E é por isso que vou deixar bem claro que ninguém pode ferir os meus súditos, de modo que fiquem livres para me adorar.

Lynette achou irônico que Neferet tenha feito tal pronunciamento enquanto sirenes soavam cada vez mais próximas lá embaixo.

– Para assegurar aos meus súditos de que eles estão seguros, precisarei da ajuda de vocês. Façam exatamente o que eu mandar, e prometo que o meu Templo será impenetrável a qualquer um que nos queira ferir.

Lynette deu um suspiro suave. Pena que ninguém disse o que todos estavam pensando: não é com o mundo exterior que estamos preocupados – é com você! Mas, é claro, ninguém disse nada disso. Era a Neferet que todos temiam.

– O que precisam fazer é bem simples. Primeiro, cada um de vocês deve se virar de modo a olhar para o lado de fora da cobertura. – De forma lenta e relutante, as sessenta pessoas fizeram como ela ordenou, e agora estavam de costas para Neferet. – Agora, ergam os braços, fechem os olhos, limpem suas mentes e respirem fundo junto comigo. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. – Lynette ouviu as pessoas respirando com ela. – Quero que se concentrem na minha voz e não pensem em mais nada.

Neferet fez uma pausa para olhar em volta e ver se todos estavam nos devidos lugares. Quando os seus olhos encontraram os de Lynette, seus lábios carnudos se abriram em um sorriso cruel.

O estômago de Lynette se contraiu e ela temeu que fosse vomitar todo o vinho que consumira.

O olhar de Neferet se afastou dela e pousou nas cobras que se contorciam em torno dos seus pés.

– Meus filhos, chegou a hora! – As palavras que disse a seguir foram entoadas em um ritmo musical que era supreendentemente tranquilizador, de forma quase hipnótica.

Em um ataque rápido, promovam a defunção
para que aqueles lá embaixo conheçam a minha ira.
O poder é farto, consuma seu quinhão
Para mim uma perfeita jaula assim se cria.

Lynette conseguia sentir o poder crescendo a cada verso que a vampira entoava, e ela, assim como as outras sessenta pessoas que estavam congeladas com os braços erguidos, não poderia fazer nada, a não ser esperar pelo que aconteceria a seguir.

Para que este mundo eu possa reedificar
meu Templo deve ser divinal – poderoso.
Para a Deusa, somente sua lealdade deve imperar
E para Tulsa ofereçam um divino canto majestoso.

Pelo tempo que ainda vivesse, Lynette jamais seria capaz de apagar da memória a visão do que aconteceu em seguida. Com as palavras “divino canto majestoso”, Neferet ergueu os braços e, como se aquele fosse o sinal pelo qual estavam esperando, as cobras dispararam em direção às costas das pessoas despreparadas. Lynette prendeu a respiração, esperando que as serpentes subissem por suas pernas e as possuíssem, mas suas expectativas não poderiam estar mais erradas. Em vez de possuir as pessoas, as cobras – como se formassem um único ser – atingiram-nas todas no meio das costas, atravessando-as com tanta força que o sangue e as tripas explodiram como uma chuva vermelha fluindo com as gavinhas sobre a balaustrada de pedra. Sem acreditar, Lynette assistiu às criaturas descerem pelas laterais do Mayo Hotel, lavando-o com negrume e sangue, como se estivessem desenrolando uma cortina escura e gotejante.

Um som chamou sua atenção de volta à Neferet. Entorpecida, viu que a vampira ainda tinha os braços erguidos. Sua cabeça estava inclinada para trás e seu corpo estremecia em espasmos enquanto ela gemia num êxtase terrível. Lynette tinha certeza de que vira um brilho sombrio emanando e se expandindo em volta dela. De repente, compreendeu. É a morte das pessoas . De alguma forma ela está se alimentando de suas almas, assim como as suas criaturas se alimentam dos seus corpos.

E elas estavam se alimentando das pessoas que tinham acabado de morrer – todas as cobras que permaneceram na cobertura. Lynette sentiu que balançava a cabeça. Havia tantas delas. Muitas ainda.

Lynette ainda meneava a cabeça e observava as criaturas que se agitavam por entre os mortos, grudando neles como sanguessugas gigantescas, drenando tudo o que restava nos corpos inertes, quando o braço de Neferet baixou. Ela arrumou o vestido e, sem lançar um olhar sequer para nenhum dos sessenta voluntários, virou-se, sorrindo, aproximando-se de Lynette.

– Kylee, jogue os corpos pela balaustrada quando os meus filhos acabarem de se alimentar. Ah, e chame Judson e os outros membros de minha equipe. Eles não precisam mais proteger as portas. Estamos todos seguros. Nada poderá penetrar o véu das Trevas. Ninguém poderá entrar nem sair do meu Templo sem minha permissão. Então, mande que a equipe avise aos súditos restantes de que eles não precisarão mais ficar naquele porão sombrio. Eles podem voltar para os seus quartos sem medo. Eu já me certifiquei de que todos estejam protegidos. Contanto que me adorem. Já chegou a hora de começarem a me adorar.

– Sim, Deusa – respondeu Kylee, desaparecendo pela porta da cobertura.

Os olhos verdes-esmeralda de Neferet encontraram os de Lynette.

– O que você achou do meu evento?

Lynette engoliu o enjoo que lhe subia pela garganta e ameaçava engasgá-la. Respondeu então com a mais pura honestidade:

– Eu jamais vi nada como aquilo.

– “Eu jamais vi nada como aquilo”, o quê? – perguntou Neferet, cheia de expectativa.

– Eu jamais vi nada como aquilo, Deusa – completou Lynette, curvando-se em uma reverência profunda e trêmula.

– E agora você realmente acredita nisso. Encantador! Levante-se, Lynette, minha querida, e sirva uma taça de vinho para nós, enquanto discutimos os tipos de evento de adoração que você planeja para mim.

Lynette se levantou e fez exatamente o que a Deusa mandou.

[*] Esta frase faz referência à obra Hamlet , de William Shakespeare. No caso, “The lady doth protest too much, methinks” (Parece-me que a dama faz protestos demasiados). Essa expressão indica uma situação em que a insistência na defesa de determinado argumento ou ponto de vista pode ser indício de que há uma mentira sendo ocultada pelo emissor. (N.E.)


6

Detetive Marx

Desde aquela noite escura e com muita neve em que Zoey Redbird o chamara até a velha estação, onde ela e um adolescente tinham escapado por pouco de serem assassinados, o detetive Marx tivera questionamentos em relação a Neferet, que, na época, era a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. A vampira parecera estranha para ele. Zoey obviamente ficara desconfiada dela quando ele levara os dois novatos de volta para a Morada da Noite, e Neferet a recebera de maneira calorosa e aparentemente sincera. Zoey assumira uma postura defensiva. Até dera um show para mostrar a nova tatuagem com a qual a Deusa tinha lhe presenteado naquela noite, o que, aos olhos treinados do detetive, indicava que a novata fora bem-sucedida em dizer à vampira mais poderosa e proeminente da escola que ficasse longe dela.

Marx achou que deveria ter ficado do lado da vampira e questionado a veracidade da novata. Em vez disso, Marx sentiu uma comichão sob a pele quando estava perto da Neferet, a mesma comichão que já lhe salvara nas ruas mais vezes do que poderia contar. Gostava de Zoey. Não sentia nenhuma comichão quando estava perto dela. De Neferet, porém, ele não tinha gostado nada.

Marx perguntara à sua irmã, que fora Marcada quase duas décadas antes, sobre Neferet. Anne fora surpreendentemente curta e grossa na sua resposta: Neferet é uma poderosa Grande Sacerdotisa. Fique longe dela. Quando pedira mais detalhes, Anne encerrara completamente a conversa. Chegara até a evitar as suas ligações por quase uma semana. Aquilo fora mais do que estranho. Ele e Anne eram gêmeos e se mantiveram próximos mesmo depois de ela ter sido Marcada e passado pela Transformação. Atualmente, ela dava aulas de Feitiços e Rituais na Morada da Noite de São Francisco. Marx passava as férias lá pelo menos uma vez por ano e ficara hospedado várias vezes no alojamento da escola como seu convidado. Anne costumava ser direta e honesta com ele sobre o seu mundo de vampiros. Sabia que poderia confiar no irmão. Mas bastou uma menção à Neferet, e Anne erguera um muro entre eles.

Marx odiara aquilo, odiara não ter a confiança da irmã. Então, nunca mais voltou a fazer perguntas sobre Neferet.

Nem mesmo quando a Grande Sacerdotisa deixara a Morada da Noite de Tulsa e dera uma entrevista coletiva condenando os vampiros atuais em geral e os da sua Morada em particular.

Nem mesmo quando Neferet desaparecera depois que a sua cobertura fora destruída.

Nem mesmo quando a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, Thanatos, acusara Neferet de ter assassinado o Prefeito LaFont.

Nem mesmo quando recebera uma pista anônima pelo Disque Denúncia dizendo ter visto uma vampira nua que se encaixava com a descrição de Neferet entrando na Boston Avenue Church.

Os últimos vinte e poucos minutos o fizeram mudar de ideia sobre não questionar a irmã.

– Aqui! Policial ferido aqui!

Marx acenou para a ambulância que chegara no bloqueio atrás do qual ele e os outros policiais estavam agachados. Lançou um olhar para Jamison. O cara estava obviamente condenado. As seis balas que ricochetearam no escudo invisível que Neferet erguera tinham, convenientemente, lhe atingido em todas as partes não protegidas pelo seu colete à prova de balas. Como ela conseguira fazer aquilo? Marx acrescentou mais uma pergunta à longa lista de perguntas que, com certeza, faria à irmã.

Mais carros oficiais do que ele poderia contar chegaram, parando no meio das ruas que cercavam o Mayo. Os policiais que não estavam dando cobertura para Marx apressavam-se em evacuar os prédios adjacentes. Marx enviara uma mensagem pelo rádio dizendo que um policial fora atingido, além de estar acontecendo uma situação grave envolvendo reféns.

Foi com uma mistura de alívio e tristeza que viu o chefe de polícia Connors liderando a equipe da SWAT. O chefe não era conhecido pelas habilidades diplomáticas.

– Detetive, faça um resumo rápido da situação – pediu ele.

– Neferet confessou os crimes na Boston Avenue. Ela está lá dentro do hotel com reféns. Ela tem controle sobre eles. Não sei se é por feitiço ou se apenas ela os deixou tão apavorados a ponto de estarem dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Mas você não vai acreditar nas coisas terríveis a que ela está obrigando essas pessoas fazerem.

– Depois de ver o que ela fez na Boston Avenue, acho difícil ficar surpreso com qualquer coisa que ela possa fazer – declarou o chefe de polícia em tom sombrio.

– Está vendo aquele corpo ali? Aquela garota dilacerou a própria garganta para Neferet enquanto dizia “obrigada, Deusa”. – Marx fez um gesto indicando a carcaça ensanguentada que costumava ser uma jovem.

– Alguma ideia de quantas pessoas estão lá dentro com ela?

Marx meneou a cabeça.

– Deve ter umas cem, mas é apenas um chute. Ela fechou o restaurante e trancou o prédio. Pelo que entendi, ela não vai deixar ninguém sair.

– Bem, ela vai ter que nos deixar entrar.

– Chefe, acho melhor conseguirmos algumas informações sobre a situação dos reféns. Não queremos uma repetição do que aconteceu na igreja. Ela massacrou aquelas pessoas, mas os corpos não parecem com nada do que já vi vampiros fazerem antes. Eles foram estraçalhados, comidos e drenados. O poder de Neferet não se parece em nada com o que já tenhamos lidado antes.

– É, eu vi. – O chefe de polícia meneou a cabeça. – Mas como uma porra de uma vampira conseguiu fazer algo assim? Eu ouvi dizer que uma Grande Sacerdotisa pode entrar na mente das pessoas. Controlá-las e até mesmo apagar lembranças. E sei que são fisicamente fortes, mas não tão fortes quanto os seus guerreiros. Mas a carnificina na igreja... – Ele balançou a cabeça. – Eu nunca ouvi falar em nada parecido com aquilo. E quanto a você? A sua irmã não é vampira?

– É sim, e eu vou dar uma ligada pra ela. Mas tem outra coisa que você precisa saber. Neferet não está dizendo que é uma vampira. Ela afirma ser uma deusa, para ser mais específico, a Deusa das Trevas e a Rainha de Tsi Sgili, seja lá o que for isso. Ela disse que transformou o Mayo no seu Templo e que quer que Tulsa a adore.

O chefe de polícia deu um grunhido.

– Porra nenhuma. Assim que avaliarmos a situação dos reféns, a gente vai entrar. Vamos ver o que o nosso atirador de elite com a sua arma de cinquenta calibres vai causar nas suas ilusões de divindade.

Marx acenou com a cabeça em concordância, mas sentiu a familiar comichão de aviso sob a pele, dando-lhe uma sensação ruim sobre como as coisas de desenrolariam.

– Esses malditos vampiros perderam a porra da cabeça ultimamente. Primeiro o assassinato do prefeito, então aqueles dois homens no parque, a carnificina na igreja e agora isso. Estou achando que precisamos fazer mais do que apenas colocar a Morada da Noite em confinamento. Acho que devemos expulsá-los de Tulsa!

– Chefe, sobre aqueles dois homens no parque. – Marx franziu as sobrancelhas. Sabia que os sentimentos contra os vampiros estavam em alta, mas ele detestava ouvir esse tipo de merda racista saindo pela boca do chefe da polícia.

– O quê? Você não prendeu aquela novata que confessou os assassinatos? Merda, ela talvez tenha matado LaFont também!

– Na verdade, chefe, Neferet acabou de confessar o assassinato do prefeito e daqueles dois homens. Ela gabou-se disso, assim como do massacre na igreja.

O chefe de polícia piscou, surpreso.

– Bem, então por que a porra de uma novata confessou ser a assassina? Ela faz parte dos seguidores de Neferet?

– Duvido muito. Zoey Redbird e Neferet têm uma história de animosidade entre elas. Acho que é provável que Zoey tenha encontrado com os homens e se defendido contra eles e, quando soube que estavam mortos, deve ter acreditado que os tinha matado . Ela é uma garota legal, chefe. Acho que ela se entregou porque estava consumida pelo remorso. Ela nem mesmo queria algum vampiro adulto com ela.

O chefe de polícia olhou para ele sem entender. Marx evitou um suspiro de impaciência e explicou:

– Se uma novata não está próxima a vampiros adultos, existe cem por cento de chance de que o seu corpo vai rejeitar a Transformação e ela morrerá. Zoey se julgou e se condenou; e decidiu que a sua sentença era a morte.

– Eu me esqueço do quanto você sabe sobre vampiros. – O chefe de polícia meneou a cabeça enojado. – Acho que não importa se eles são humanos ou novatos. Adolescentes são completamente incompreensíveis.

Marx abriu a boca para protestar – respeitosamente – que ele, na verdade, conhecia alguns adolescentes completamente compreensíveis e que incluiria Zoey Redbird na lista, quando o grito de um policial uniformizado o interrompeu.

– Ai, meu Deus! Olhem lá para cima!

Marx olhou para cima bem a tempo de ver criaturas negras e grotescas semelhantes a cobras, a não ser pela ausência de olhos – apenas bocas abertas emolduradas por dentes que estavam molhados e vermelhos –, sendo arremessadas por alguma força invisível pelo parapeito na cobertura do Mayo. As criaturas carregavam consigo uma explosão de sangue e tripas e fragmentos corpóreos e coágulos. E, enquanto caíam, elas se expandiam, mudando a forma de cobras sem olhos para uma cortina escura e pulsante, manchada de escarlate. A cortina desceu pela fachada de pedra do hotel, envolvendo-a em trevas e sangue enquanto se desenrolava até o chão.

– Atirem! Matem-nos! – berrou o chefe de polícia.

Marx tentou impedi-lo. Tentou lembrá-lo de que havia cidadãos inocentes lá dentro que poderiam facilmente ser feridos ou, até mesmo, mortos. Tentou dizer que o ataque só serviria para antagonizar a vampira que tinha mais reféns e que já estava tão louca, que acreditava ser imortal. Mas os tiros provocados pelo pânico explodiram à sua volta e suas palavras se perderam no furor do momento.

A princípio, Marx não queria olhar para cima. Não queria ver os tiros acabarem com o Mayo e ter de lidar com as consequências das ordens precipitadas do chefe de polícia. Marx, no entanto, não era o tipo de homem que fugia das coisas; ele fizera uma carreira ao lidar com elas. Resoluto, ergueu o olhar.

As cobras que se transformaram em cortina se expandiram de modo que parecia que o prédio tinha ganhado uma pele negra avermelhada, uma pele tão dura, que nem mesmo as Glocks que os policiais uniformizados carregavam conseguiam penetrar.

Todos observaram enquanto as trevas continuavam a descer pelo prédio até o nível da rua e a se fundir ali com um som sussurrante que lembrou Marx da vez que visitara Nova York e se hospedara no Plaza – e cometera o erro de sair para fumar às três horas da manhã. Ratos. Ele caminhara por uma cerca viva bem-aparada que ficava em frente à grandiosa entrada do Plaza e ouvira o som sussurrante. Olhara para baixo, ficando chocado ao se deparar com dezenas de ratazanas gordas passando por ali. Era com aquele som que a mortalha das trevas criada por Neferet se parecia enquanto se assentava no lugar onde o prédio encontrava a rua, contra pedras dos anos de 1920.

– Atirem nas portas. Vocês têm que passar por essa coisa e estar prontos para entrar! – berrou o chefe de polícia.

– Não! – exclamou Marx, enquanto os policiais uniformizados corriam para obedecer às ordens.

Determinado a sobreviver e lutar por mais um dia, Marx se abaixou atrás de um carro do pelotão.

Acabou em uma questão de segundos. Os policiais correram em direção às portas, disparando contra o vidro que agora estava coberto pela cortina negra e escorregadia salpicada de coágulos. Seu coração se partiu quando os gritos começaram. Marx já estava usando o rádio:

– Vários policiais feridos! Precisamos de mais ônibus no Mayo! E reforços! Mais reforços! Mande todos os policiais de Tulsa para cá! Agora!

Quando o comandante cambaleou para trás e caiu pesadamente no pavimento, atingido no meio da testa por fogo amigo, os olhos revirados e leitosos, sem dúvida morto, Marx fez a única coisa que sabia fazer: assumiu o comando.

– Cessar fogo e retirada! Retirada! – berrou ele, e os homens reagiram com um claro alívio.

Um jovem policial uniformizado se agachou ao lado dele, com a respiração pesada e as mãos trêmulas. Marx achou que o garoto não devia ter mais do que 21 anos.

– Mãe do céu! Aquele treco preto não sofreu nenhum arranhão! Os tiros ricochetearam diretamente para nós, como se estivessem mirando. Que merda é aquela? – Quis saber ele com a voz tão trêmula quanto as suas mãos.

– Magia – respondeu Marx. – Magia negra e maligna.

– E como é que a gente consegue lutar contra isso?

Marx encontrou os olhos do jovem.

– Nós não lutamos. Nós precisamos de ajuda. E, felizmente, eu sei onde conseguir.

Zoey

– Eu queria saber o que está acontecendo! – Stark andava de um lado para o outro em frente à sua cela.

– Por que você não vai até lá fora para ver se a Vovó ainda está na sala de espera? Ela pode descobrir o que está acontecendo. Ela trouxe cookies. Ninguém resiste aos cookies dela – eu disse.

– Boa ideia. Eu já volto.

Stark seguiu pelo corredor e foi a minha vez de ficar andando de um lado para o outro.

Neferet. Se alguma coisa louca estava acontecendo no Mayo, Neferet tinha de ser a responsável. Eu queria agarrar as grades da minha cela, sacudi-las e gritar como uma pessoa histérica: Tirem-me daqui! Tirem-me daqui! Se Neferet estava lá fora fazendo sabe-se lá o quê, eu deveria estar lá, tentando pensar em uma maneira de detê-la.

E eu estaria se eu não tivesse perdido a cabeça e matado dois homens.

Stark voltou correndo e cobriu as minhas mãos, que realmente estavam agarradas às grades, como seu eu fosse capaz de entortá-las.

– Eles devem ter expulsado a Vovó, Thanatos e todos os outros. Não tem ninguém aqui, a não ser um policial na recepção. Este lugar está deserto! Se eu tivesse a chave, poderia tirar você daqui sem nenhum problema. – Suas sobrancelhas, com suas mãos ainda pressionando as minhas. Ele sacudiu um pouco as barras (que nem se mexeram). Então ele deu o seu sorriso maroto. – Mas, já que eu não tenho a chave, será que você não conhece ninguém que poderia, de alguma forma, convocar alguns elementos, sei lá, para derrubar esta porta?

– Stark, eu estou aqui por um motivo. Eu fiz uma coisa muito, muito ruim. Fugir daqui não vai me ajudar em nada.

– Poderia ajudar se Neferet estiver desenfreada, alimentando-se de cidadãos inocentes de Tulsa. Na verdade, eles podem até se esquecer do seu acidente no parque e agradecê-la se você ajudar a derrotar a sra. Louca.

Dei um sorriso triste.

– Eles até podem esquecer, mas eu não vou conseguir. Além disso, eu não posso derrotar Neferet, Stark.

– Você já fez isso antes.

– Não para sempre e não sem ajuda.

– Bem... – Ele abriu os braços. – Você tem ajuda.

Bufei.

– Não é o suficiente. Se fôssemos suficientes, teríamos sido capazes de nos certificar de que Neferet nunca mais voltaria do lugar para onde a chutamos da última vez. – Então, os meus ombros ficaram caídos e eu os encolhi. – Provavelmente, nem é ela. Talvez sejam ladrões de banco.

– No Mayo? Hã, Z. Estamos falando de um hotel, não de um banco.

A porta do corredor se abriu e a estrutura de metal bateu contra a parede. O detetive Marx se apressou na nossa direção. A aparência dele estava péssima. Tipo, péssima mesmo. O paletó estava sujo e a calça, rasgada na altura de um dos joelhos. Senti o cheiro de sangue, o qual me obriguei a ignorar. Na verdade, isso nem foi tão difícil porque a expressão no seu rosto era perturbadora demais.

Ele parecia estar com medo.

– O que aconteceu no Woodward Park? – ele exigiu saber enquanto se colocava ao lado de Stark.

– Eu já disse.

– Conte para ele de novo – interveio Stark.

– Por quê? O que está acontecendo?

– Responda à minha pergunta primeiro.

– Tá legal. Como eu já disse, dois homens me irritaram e eu atirei a minha raiva neles.

– Mas o que eles fizeram para deixá-la tão irritada?

– Não o suficiente para eu matá-los, Ok? – respondi.

– Apenas responda à pergunta! – zangou-se Marx.

Surpresa com o seu tom, eu me ouvi respondendo:

– Eles estavam andando pelo parque procurando garotas para assustá-las e obrigá-las a lhes dar dinheiro. Eles não viram as minhas tatuagens antes de começarem a me assediar. Então, quando perceberam que eu não era apenas uma adolescente indefesa, mudaram de ideia sobre me assustar. Eles basicamente disseram que iriam procurar outra vítima e isso me deixou louca da vida. – Fiz uma pausa e acrescentei: – Mas ainda tem mais. Eu já estava muito irritada quando cheguei ao parque, foi por isso que eu tinha ido para lá. Para tentar me acalmar. Eu... Eu não conseguia controlar o meu temperamento.

– Conte para ele o resto. Conte para ele por que você deu a pedra da vidência para Aphrodite quando se entregou para a polícia – insistiu Stark.

– Eu não percebi na hora, mas agora eu consigo entender que a pedra da vidência, um tipo de talismã que ganhei na Ilha de Skye, estava afetando as minhas emoções. Tipo, amplificando-as ou provocando-as, ou talvez apenas alimentando o meu estresse. Ela fica quente quando funciona e, no parque, ela estava superquente. Foi por isso que consegui erguer os dois homens e atirá-los contra o paredão da gruta.

– Você não consegue fazer isso, digamos, agora, consegue? – perguntou Marx, observando-me atentamente.

– Acho que não. Pelo menos não sozinha. Eu teria que chamar um ou todos os elementos, e eles ficam mais poderosos se o meu círculo estiver comigo e nós cinco canalizarmos a nossa energia para eles.

Marx assentiu, pensativo.

– Você sabia que os dois homens estavam mortos quando saiu do parque?

– Não. Tipo, eu sabia que eu os tinha lançado contra o paredão, mas foi como uma explosão grande e louca para mim. Bem, eu fiquei surpresa com aquilo – respondi. Distraída, esfreguei a palma da minha mão direita na minha perna e, então, olhei para ela. No meio das tatuagens entrelaçadas, um círculo perfeito tinha se formado ali. Ergui a mão para que o detetive pudesse vê-la. – Essa marca no centro, o círculo, foi feita pela pedra da vidência. Aconteceu na hora em que atirei a minha raiva naqueles homens. Era como se o poder dela tivesse saído através de mim. Quando eu percebi o que tinha feito, eu me aproximei deles.

Engoli em seco ao me lembrar.

– E o que exatamente você viu? – perguntou Marx, impaciente.

– Eles estavam deitados lá, aos pés do paredão que dá para a Twenty-first Street. E-eu me lembro de que ouvi um deles gemer, e vi o outro estremecer. Ficou claro que os tinha machucado muito. Talvez até gravemente. Então, eu fiquei com medo e fugi. Eles deviam estar morrendo quando eu fui embora. Sinto muito. De verdade. Eu sei que isso não faz qualquer diferença. E eu também sei que não faz a menor diferença o fato de eles estarem no parque para assediar garotas nem que a pedra da vidência tenha me dado o poder para fazer o que eu fiz. Foi a minha raiva que matou aqueles homens. Eu sou a responsável. – Mordi o lábio com força. Eu não ia começar a chorar.

– Não, Zoey. A verdade é que não foi você que fez isso e não, você não é a responsável pela morte deles.

Ele passou o cartão magnético no painel da porta da minha cela, e a tranca de metal se abriu com um clique.

– Hein? – Pisquei para ele, sentindo que eu devia estar sonhando. Olhei para Stark, que também estava olhando para o detetive.

– Isso tem alguma coisa a ver com Neferet – disse Stark.

– Isso tem tudo a ver com Neferet – concordou Marx. – Ela confessou ter matado aqueles dois homens. Não, essa não é uma descrição precisa. Neferet se gabou de ter matado aqueles dois homens.

Stark comemorou e me envolveu em um abraço.

– Z., você não matou ninguém.

– Eu não matei ninguém! – repeti o grito de Stark, enquanto ele me abraçava, rindo.

Eu estava me sentindo fraca, quase tonta. Eu não tinha matado ninguém! Mas que merda, eu quase tinha rejeitado a Transformação. Eu quase morri. Por causa de Neferet.

Tudo sempre voltava a Neferet.

Bati no ombro de Stark e ele me colocou no chão (mas eu continuei segurando a sua mão).

Eu me virei para o detetive Marx.

– O que mais ela fez?

– Você e seus amigos estavam certos. Neferet matou o prefeito. Ele e os dois homens no parque foram só o aquecimento. Ela massacrou uma igreja cheia de gente, e agora declarou ser uma deusa. Ela tornou o Mayo como seu Templo e está trancada lá dentro com um monte de gente enfeitiçada.

– Merda! – exclamou Stark.

– Aiminhadeusa ! – Neferet finalmente conseguira. Ela finalmente conseguira se superar e mostrar para todo mundo o que ela era de verdade.

– Você está livre, Zoey. Todas as acusações foram retiradas. Mas, antes de você ir, eu tenho um favor para pedir.

Olhei diretamente nos olhos dele.

– Você não precisa pedir. Eu vou ajudá-lo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para detê-la.

Marx suspirou de alívio.

– Obrigado. Eu não vou mentir para você, Zoey. A situação no Mayo é feia. Horrível mesmo. Neferet é poderosa e perigosa.

– E uma louca de carteirinha – terminei por ele. – Eu sei. Eu já sei disso há meses.

– Então, você sabe contra quem vai lutar.

– Todos nós sabemos – disse Stark. – Porque nós fomos os únicos que lutamos contra aquela puta doida.

– Tudo bem, então. Você precisa pegar aquela tal de pedra da vidência antes de eu te levar para o Mayo e...

– Espere um pouco. Não, você não entende, detetive Marx. Quando eu disse que vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para deter Neferet, não quis dizer que faria tudo sozinha. – Apertei a mão de Stark. – Uma das coisas que aprendi com certeza é que eu fico mais forte com os meus amigos.

– Só me diga do que precisa e eu farei acontecer – afirmou Marx.

– Tudo de que preciso está na Morada da Noite – respondi.

– Então venha comigo, Zoey. Vou levá-la para casa.


7

Zoey

Eu mal tinha saído do carro do detetive Marx quando a Vovó saiu correndo pela porta da frente da escola e me envolveu em um abraço.

– U-we-tsi-a-ge-ya ! É você! Eu sabia... Eu sabia que você estava voltando para casa.

Eu a abracei rapidamente e demos os braços enquanto entrávamos na Morada da Noite com detetive Marx e Stark seguindo logo atrás. O sol estava se pondo, mas eu estava superconsciente de que ainda poderia provocar dor em Stark. Conforme nos apressamos para dentro do prédio, sorri para a Vovó e contei:

– Eu não matei ninguém! – Então, eu me lembrei de quem os tinha matado e o que mais ela tinha feito, e o meu sorriso se apagou. – Neferet os matou.

– Neferet? – Ergui os olhos do rosto feliz de Vovó para ver Thanatos, Aphrodite e Darius saindo da sala da Grande Sacerdotisa.

– Zoey, detetive Marx, será que poderiam explicar o que aconteceu? – pediu Thanatos.

– Neferet confessou ter matado os dois homens no parque... – começou a explicar detetive Marx, mas eu o interrompi.

– Espere, tem muito mais coisa do que isso, e eu preciso que o meu círculo ouça tudo. – Olhei para Thanatos. – Neferet se revelou. Precisamos nos apressar.

– Darius e Stark, reúnam o círculo de Zoey. Leve-os até a Câmara do Conselho. Chame Lenobia também. Ela é a sacerdotisa mais velha desta morada. Talvez precisemos de sua sabedoria. Vão agora! – orientou Thanatos.

Stark e Darius saíram.

– Detetive, permita que eu o acompanhe até a Câmara do Conselho. Sylvia, eu ficaria muito grata se você pudesse partilhar a sua sabedoria em relação ao que estamos enfrentando com Neferet. Você poderia se juntar a nós?

– É claro – respondeu Vovó em tom irônico. – Eu sei mais do que um pouco sobre Neferet e a sua marca singular do mal. – Vovó me deu um beijo suave no rosto e começou a caminhar com Thanatos e com detetive Marx em direção à escadaria que levava até a Câmara do Conselho.

Isso me deixou sozinha com Aphrodite.

– Eu não vou perguntar se você me quer ou não. Eu vou a essa reunião – afirmou ela antes de começar a seguir os três adultos.

Toquei em seu braço e ela se virou para olhar para mim. Eu não sabia dizer se eu vi mais medo ou raiva nos seus olhos – e as duas coisas fizeram com que eu me sentisse horrível.

– Sinto muito – disse de forma simples. – Eu estava errada. Você estava certa o tempo todo. Estava certa ao procurar Shaylin. Estava certa ao pedir que ela ficasse de olho em mim. Você estava certa em não me contar sobre a sua visão. Eu deveria ter escutado você, mas não escutei, e eu não teria escutado, mesmo se você me contasse sobre a sua visão. Eu estava fora de controle. Fui egoísta. Fui burra. Sinto muito – repeti. – Por favor, desculpe-me.

Enquanto eu estava falando, Aphrodite ficou totalmente parada. Não colocou a mão na cintura, nem zombou de mim ou jogou o cabelo. Ela me ouviu e me observou com seus olhos intensos e claros. Não disse nada pelo que pareceu ser um longo tempo e, quando finalmente falou, o tom de sua voz não estava irônico, nem malicioso, nem sarcástico. Ela estava séria. Os seus modos estavam calmos. Ela parecia a Profetisa de uma Deusa.

– Achei que você fosse minha amiga.

– Eu sou.

– Você me magoou.

– Eu sei. Gostaria de dizer que não foi a minha intenção, mas não vou mentir. Naquela hora, eu queria magoá-la porque eu estava sofrendo muito. Aphrodite, a pedra da vidência fez algo comigo. Não estou usando isso como desculpa pelo que disse e fiz. Eu ainda era eu . Eu ainda estava errada. Estou tentando explicar para você que percebi o que aconteceu... Ou pelo menos como aconteceu. E eu lhe juro que isso não vai acontecer de novo.

Ela continuou me analisando em silêncio.

– Também vou me desculpar com Shaylin – acrescentei.

Aphrodite assentiu.

– É melhor mesmo. Você a assustou muito.

– Não vai acontecer de novo – prometi em tom solene. – Eu juro.

– Você quer a pedra de volta?

– Não! – respondi, dando um passo para me afastar dela. – Eu quero que você a mantenha bem longe de mim.

– Esse é o meu plano – respondeu ela. – Eu só queria saber qual era o seu.

– Eu não tenho nenhum plano, a não ser me desculpar com você e Shaylin e, bem, com todos os outros.

– Bem, já era de se esperar – respondeu Aphrodite, parecendo-se um pouco mais com ela mesma. – Você costuma estar despreparada e mal-arrumada. Eles não têm chapinha na prisão? – Ela lançou um olhar de avaliação para o meu cabelo de quem acabou de sair da cama.

– Não. Cabelo bonito não é uma prioridade na prisão.

– Bem, até agora eu só tinha ouvido falar que o sistema penitenciário de Oklahoma é uma droga. Agora eu tenho certeza.

Isso me fez sorrir.

– Então, você me desculpa?

– Acho que é o que tenho que fazer. Você está horrível. Eu odiaria ter que jogar sal na ferida contra a moda que o seu curto período na prisão já lhe causou.

Eu ri e nós demos os braços.

– Será que existe alguma coisa que você não consiga resumir para a moda?

– Não, e não precisa agradecer.

Eu ri de novo e nós seguimos para a escadaria. Eu me sentia leve e feliz; por alguns momentos, deixei que Neferet saísse da minha mente e concentrei os meus pensamentos em uma oração silenciosa para Nyx: obrigada, Deusa, por ter me dado uma amiga tão boa!

– Ei, não vai ficar pensando que pode me abraçar e coisas desse tipo. Eu não sou de abraços. Vamos considerar isto aqui... – ela passou a mão na frente do seu corpo – ... uma zona de não contato. Darius, é claro, tem uma concessão.

– Entendi – respondi, mas continuei de braço dado com o dela enquanto subíamos as escadas. – Eu nem sonharia em cruzar a sua zona de não contato.

– Muito bem – disse ela, mas não afastou o braço do meu até estarmos na frente da sala de conferências. Então, ela parou e se virou para me olhar de forma séria e declarou: – Eu perdoo você, Zoey.

– Obrigada. – Pisquei rápido, surpresa pelas lágrimas repentinas nos meus olhos.

– Ah, merda – disse ela e, depois de olhar à sua volta para se certificar de que estávamos sozinhas, abriu os braços e me abraçou sussurrando: – Eu amo você, Z.

Eu funguei e retribuí o abraço.

– Eu também amo você.

O barulho da porta da escada se abrindo fez com que ela se afastasse de mim.

– Não chore – pediu ela, em tom sério. – Ficar choramingando não vai ajudar no visual desastroso que você tem agora.

– Tá bom – choraminguei um pouco mais.

– Zo! Ouvi dizer que soltaram você! Uhu ! – exclamou Aurox, feliz, falando de forma estranha e maravilhosamente semelhante a Heath.

Ele correu na minha direção, com a intenção clara de cruzar a minha zona de não contato. Dei alguns passos para trás e, então, parei quando ele vacilou e parou. Eu não sabia o que fazer. Tipo assim, nós decidimos ser amigos. Amigos se abraçavam. Mas nós decidimos ser apenas amigos. Bem, na verdade eu tinha decidido que seríamos apenas amigos e...

– Ah, para de pensar um pouco. Prostrado e pesaroso pra caramba foi como ele ficou sem você. – Aphrodite meneou a cabeça, enojada. – E estou usando aliterações para falar, se eu começar a fazer rimas, vou me jogar de um prédio bem alto. Façam um biquinho ou qualquer outra coisa bem rápido e, depois, vão para a Câmara do Conselho. Infelizmente, não temos muito tempo pra dramas de relacionamento.

Ela jogou o cabelo para trás, abriu a porta e entrou.

Aurox e eu nos olhamos.

– Biquinho? – perguntou ele.

Senti o rosto pegar fogo.

– Ela quer dizer dar um beijo.

Ele ergueu as sobrancelhas.

– Você quer me beijar?

Felizmente, nada do que ele disse depois de uhu parecia nem um pouco com Heath. Limpei a garganta.

– Acho que essa não seria uma boa ideia, mas obrigada por perguntar.

– Bem, estou feliz por você estar de volta – afirmou ele, tentando sorrir.

– Eu também. – Sorri de volta. – E, mesmo tudo sendo confuso, estou feliz por você estar de volta também.

Eu quis dizer aquilo como um elogio – e talvez até como uma piada particular (a situação não ficaria muito melhor se pudéssemos rir dela?), mas o sorriso que Aurox tentara dar desapareceu na hora.

– Você não está se referindo a mim . Mas sim a Heath. E eu não sou Heath. Com licença. Darius disse que eu deveria estar nesta reunião. – Dei um passo para o lado e permiti que ele abrisse a porta. Ele não a segurou para mim, mas a deixou se fechar na minha cara, deixando-me em pé ali, sozinha, no corredor, sentindo-me um cocô.

Tudo bem , disse para mim mesma, a minha vida ficaria bem mais fácil se Aurox continuasse chateado comigo – ou, pelo menos, irritado ou desinteressado. Aphrodite estava certa por vezes demais. Eu não tinha tempo para dramas de relacionamento (embora não achasse que aquilo fosse triste demais).

Passei os dedos pelo meu cabelo muito despenteado, empertiguei-me e entrei na Câmara do Conselho Escolar.

A sala era grande, mas sempre parecia ser pequena por causa da mesa redonda gigantesca que dominava o ambiente. Tenho quase certeza de que a ideia era imitar o rei Arthur (que, é claro, tinha sido o consorte da Grande Sacerdotisa Mogan le Fay), então ela não tinha uma cabeceira de verdade. O que acontecia era que o lugar onde a Grande Sacerdotisa se sentava se transformava automaticamente na cabeceira da mesa.

E por falar na atual Grande Sacerdotisa, fiquei surpresa ao vê-la entrar na sala pela porta dos fundos, assim que eu fechei a porta atrás de mim. Thanatos assentiu para Aurox, que assumiu uma posição de guarda ao se colocar ao lado daquela porta. Então, ela lançou um olhar para mim e indicou um assento vazio entre Vovó e Aphrodite. Thanatos se sentou à esquerda da Vovó, ao lado do detetive Marx. Enquanto eu me acomodava, tentando não ficar inquieta, Thanatos se inclinou para a frente de Vovó e se dirigiu a mim.

– É oficialmente bom tê-la de volta em casa, Zoey – declarou a Grande Sacerdotisa da Morte.

– Eu nem consigo dizer o quanto estou feliz de estar aqui e saber que não matei ninguém – respondi.

– Mas você aprendeu uma lição valiosa com essa experiência – comentou Vovó.

– É. Temos que parar Neferet. Não importa o que tenhamos de fazer – interveio Aphrodite.

– Bem, é verdade. Mas eu acho que a Vovó está falando de sempre escolher a bondade quando houver dúvida – disse eu.

– Eu não acredito que essa lição vá nos ajudar muito com Neferet – resmungou Aphrodite.

– Você ficaria surpresa, criança – respondeu Vovó suavemente, com um sorriso sábio nos lábios.

A porta se abriu e Stevie Rae entrou seguida por Stark, Damien e Shaunee.

– Z! Aiminhadeusa! É tão bom ver você livre! – Stevie Rae correu na minha direção e me envolveu em um grande abraço de urso. – Eu sabia que você não seria capaz de matar aqueles caras.

Eu lhe dei um abraço rápido antes de me soltar. Eu encontrei o seu olhar.

– Eu tenho algo a dizer sobre isso, mas quero esperar até todo mundo estar aqui.

– A espera acabou. O bonitão já está aqui – informou Aphrodite, sorrindo quando Darius entrou acompanhado por Lenobia e Shaylin.

Darius e Stark assumiram seus lugares em cada um dos lados da entrada principal. Stark me deu uma piscadela rápida, e eu fiquei feliz ao ver que ele não estava pálido e seus olhos tinham perdido aquele olhar ferido. Para ele estar assim tão melhor, o sol já devia ter se posto, e imaginei que Rephaim entraria a qualquer segundo agora.

Lenobia se sentou ao lado do detetive Marx, cumprimentando-o com um aceno rápido de cabeça. Shaylin escolheu o lugar mais distante de mim que conseguiu e não olhou na minha direção. Eu me levantei e limpei a garganta.

– Sei que uma emergência envolvendo Neferet está acontecendo no centro da cidade, mas eu preciso dizer uma coisa antes de começarmos a lidar com isso. E vou ser rápida. Como vocês já sabem, descobri hoje que não matei aqueles dois homens no parque. Mas, mesmo que eu não tenha causado a morte deles, sei que poderia ter feito aquilo. Eu estava fora de controle. Isso teve alguma coisa a ver com a pedra da vidência, mas também comigo . Eu estava errada. Aphrodite estava fazendo exatamente o que Nyx esperaria da sua Profetisa: ela informou a Shaylin que havia algo de ruim acontecendo comigo. – Eu olhei para Shaylin até que ela, relutante, encontrasse o meu olhar. – Shaylin, eu já pedi perdão a Aphrodite, mas lhe devo um pedido de desculpas ainda maior. Você estava certa ao me seguir. Você estava certa ao contar sobre as mudanças que detectou na minha aura. Foi muito, muito errado da minha parte empurrar você e perder a paciência daquele jeito, e não estou apenas pedindo para que aceite meu pedido de desculpas. Eu estou fazendo... – Fiz uma pausa e olhei para todos os meus amigos – ... um juramento a você e a todos aqui: farei tudo o que for preciso para me certificar de que isso jamais volte a acontecer.

– Eu perdoo você – afirmou Shaylin sem hesitar, embora o seu sorriso fosse hesitante e ela ainda parecesse estar com medo. – A propósito, as suas cores já voltaram ao normal agora.

– Obrigada – agradeci. – E, por favor, avise a mim, e a qualquer outra pessoa aqui, se perceber que as minhas cores estão bagunçadas de novo. Eu estava errada quando disse que você devia manter esse tipo de coisa para si mesma. Não se trata de uma invasão de privacidade. Você simplesmente está usando o dom que Nyx lhe deu.

– Zoey, onde está a pedra da vidência agora? – perguntou Thanatos.

– Está comigo – respondeu Aphrodite, antes que eu tivesse a chance de falar qualquer coisa.

– E eu não a quero de volta – acrescentei.

– Se ela é tão poderosa quanto você está dizendo que é, Zoey, você talvez não tenha escolha a não ser pegá-la de volta – disse o detetive Marx. – Porque vai ser preciso muito poder, muito poder mágico, para lutar contra Neferet.

– Detetive, é a sua vez. Explique exatamente o que Neferet fez – pediu Thanatos.

Eu me sentei e ouvi com um aperto no estômago e uma estranha premonição de que Marx estava certo.

Zoey

Seguiu-se um silêncio longo e doentio depois que o detetive Marx descrevera, com riqueza de detalhes, a carnificina de Neferet na igreja e, depois, o que acontecera no Mayo Hotel.

– Eu senti as mortes – disse Thanatos, meneando a cabeça com tristeza. – Eu sabia que algum tipo de tragédia humana, de morte em massa, tinha acontecido bem próximo de Tulsa. Eu estava assistindo ao noticiário, esperando ouvir que um avião tinha caído ou que talvez tivesse ocorrido algum tipo de tiroteio trágico em alguma escola. Mas eu não esperava isso. Eu realmente não esperava que Neferet fosse responsável por tudo isso.

– Nós não temos conseguido prever o comportamento dela, mas talvez possamos descobrir algo sobre o que esperar dela no futuro se analisarmos os crimes de Neferet até agora – sugeriu Vovó. – Ela matou o prefeito, e aquele crime a alimentou até Woodward Park. – Vovó fez uma pausa e deu um sorriso triste para Aphrodite. – Desculpe-me por ter de falar da morte do seu pai de uma forma tão objetiva.

– Eu entendo. E quero que continue – respondeu Aphrodite, séria. – Se a morte do meu pai nos ajudar a descobrir como derrotar Neferet, então, pelo menos, ele não terá morrido em vão.

Vovó assentiu e continuou:

– Ela deve ter se escondido no parque até Zoey ter enfrentado problemas com aqueles dois homens.

– Eu estava sentada naquele banco perto da gruta quando eles começaram a me assediar – contei, tentando juntar as peças. – Neferet talvez estivesse escondida na gruta.

– Vou mandar alguns policiais checarem – disse detetive Marx, fazendo anotações no seu bloco preto de espiral.

– As mortes dos dois homens no parque devem ter dado a Neferet o poder de que precisava para chegar à Boston Avenue Church – refletiu Vovó.

– E lá ela encontrou outra fonte maior de poder – acrescentou Lenobia. – Não podemos nos esquecer de que poder é o que há de mais importante para Neferet.

– Ela usa o poder para controlar aquelas criaturas semelhantes a cobras. As coisas que mataram aquelas pessoas na cobertura do Mayo e criaram aquele... Eu nem sei como chamar. – Marx hesitou, pensando. – É uma pele protetora, uma barreira. Mas seja lá o que for, tem muito poder.

– Aquelas criaturas com aparência de cobra são feitas de Trevas. Pense nelas como pensamentos odiosos, horríveis e cruéis que tomaram uma forma física – expliquei para o detetive Marx. – Eles fazem o que ela manda porque ela faz sacrifícios por eles. Eu tenho certeza de que Neferet não se alimentou de todas aquelas pessoas na igreja. Ela as sacrificou para que aquelas criaturas a continuem seguindo e fazendo o que ela deseja.

– Uma Tsi Sgili exige muito mais do que sangue por poder – interveio Vovó.

– Tsi Sgili... Rainha Tsi Sgili – disse Marx –, foi assim que Neferet se referiu a si mesma quando se intitulou Deusa.

– Tsi Sgili é um nome antigo que o meu povo usa para se referir a bruxas que escolheram as Trevas em vez da Luz. Elas vivem segregadas, afastadas de todos. – Vovó estremeceu. – As nossas lendas dizem que elas se alimentam de almas.

– Morte – disse Thanatos. – Eu deveria ter compreendido antes. Neferet se alimenta da energia que é liberada pelo espírito de uma pessoa no instante da sua morte.

– Ai, Deusa! – Lenobia parecia horrorizada e levou a mão ao peito. – Eu conheço Neferet há mais de um século. Ela sempre estava por perto quando um novato rejeitava a Transformação. Achávamos... As Sacerdotisas achavam que o dom de cura de Neferet confortava a passagem dos jovens.

– Ela não os confortava. Ela os usava – expliquei.

– Neferet tinha alguma coisa a ver com a nossa morte e a nossa volta – disse Stevie Rae. – Eu não consigo me lembrar. Talvez porque não consiga me obrigar a isso. Sei lá. – Ela estremeceu. – Mas eu sei que parecia como se algo dentro de mim estivesse se rompendo. – O seu olhar encontrou o de Stark, o único outro vampiro vermelho na sala. – Do que você se lembra?

– Dor. Trevas. Terror. Raiva. – Suas palavras estavam tensas, embora a sua voz permanecesse baixa, e nós nos inclinamos para ouvi-lo. – E, quando saímos daquilo, eu não era mais eu. Não até que Zoey dissesse que acreditava em mim, que confiava em mim.

– E eu também não consegui sair daquilo, até que Aphrodite acreditasse e confiasse em mim – disse Stevie Rae.

Aphrodite bufou.

– Pelo que me recordo, não foi bem assim. O que eu me lembro é que você tentou me devorar e, depois, pegou a minha condição de novata e levou com você.

– Porque você permitiu. Porque você sacrificou a sua humanidade por mim – esclareceu Stevie Rae.

– A parte de querer me devorar não foi legal – murmurou Aphrodite.

– O amor é mais forte que o ódio. Essa é a única verdade absoluta no universo. O amor conquista as Trevas – afirmou Vovó. – Nós só precisamos descobrir como o amor pode conquistar Neferet.

Ouvi um monte de suspiros após os meus.

– Tudo bem, eu sou totalmente a favor de o amor vencer – disse detetive Marx –, mas a gente precisa lidar com o que quer que seja que está acontecendo com aquelas coisas rastejantes.

– Neferet as está alimentando – respondi, sentindo a verdade das minhas palavras à medida que eu as pronunciava. – Ela dá a elas o que elas querem: sacrifícios com sangue fresco. E elas a obedecem. Se conseguirmos chegar a Neferet e a enfraquecermos ou, pelo menos, contê-la e impedi-la de matar mais gente, ela não conseguirá alimentá-las, e elas vão deixá-la.

– Concordo, mas acho que ainda tem mais, Zoey. As gavinhas das Trevas estão mudando, evoluindo, junto com Neferet – disse Thanatos. – Eu jamais, nos mais de cinco séculos que vivo como vampira, ouvi alguém criar o tipo de barreira como a que o detetive Marx acabou de descrever. – Ela se voltou para o policial. – E você disse que elas pareciam sensitivas, que elas, na verdade, direcionaram as balas para policiais específicos?

– Eu não tenho a menor dúvida quanto a isso. Eu estava lá. Eu vi aquilo de perto e tudo foi muito pessoal. Todos os primeiros tiros disparados atingiram o policial que ofendera Neferet, mas apenas nas partes do seu corpo que não estavam protegidas pelo colete à prova de balas. Os outros tiros feriram vários policiais, mas mataram apenas o chefe de polícia, o homem que deu a ordem de atacar o prédio – contou Marx.

– Lenobia, você já ouviu falar de algo assim? – perguntou Thanatos.

– Nunca.

– Então, chame a cavalaria – sugeriu Marx. – Envolvam o Conselho Supremo dos Vampiros. Talvez eles possam nos ajudar a descobrir uma maneira de vencer Neferet.

– O Conselho Supremo se recusou a nos ajudar – informou Thanatos. – Nós somos a cavalaria. – Ela se levantou. – Então, detetive Marx, vamos ao Mayo ver exatamente contra o que estamos lutando.

A porta dos fundos da Câmara do Conselho se abriu e Kalona, com o peito descoberto e olhos âmbar dardejando de raiva, caminhou até Thanatos.

– Já está na hora de você chamar a cavalaria completa. Eu sou um Guerreiro da Morte. Então, aonde você for, eu vou. Humanos e suas consequências que se danem.

Suas asas negras se desenrolaram e ocuparam a sala inteira.

O detetive Marx ficou boquiaberto.

– Merda – sussurrou Aphrodite.

– Eu digo o mesmo – concordei, perguntando-me o que aconteceria em seguida.


8

Detetive Marx

O cara era enorme. E tinha asas. Porras de asas gigantescas.

Marx ficou feliz por já estar sentado porque só de olhar para o... seja lá o que era aquilo... fazia os seus joelhos ficarem moles.

Primeiro, uma vampira-deusa enlouquecida e uma cortina preta sangrenta no Mayo. Agora, um gigante alado que dizia ser Guerreiro da Morte.

Será que estava na porra de um sonho?

Bem, se ele estava, o sonho continuava se desenrolando porque Thanatos caminhou até o gigante alado, e Marx com certeza não estava acordando.

– Ir comigo? Para o centro de Tulsa, diante dos olhares de...

– O que você vai fazer se as gavinhas das Trevas de Neferet atacarem você? Eu entendo essa manifestação das Trevas. Eu já a enfrentei diversas vezes no Mundo do Além. – A voz do gigante trovejava. – O que os humanos temeriam mais, a encarnação do mal ou a presença de um deus batalhando nas ruas de Tulsa?

– Os humanos não acreditam que deuses caminhem sobre a Terra – contrapôs Thanatos.

– Exatamente! – respondeu o gigante alado. – As ações de Neferet negaram a norma. Já passou da hora de os humanos tirarem a cabeça do buraco em que a enfiaram e se darem conta de que este mundo é cheio de magia, mistério e perigos. E também chegou a hora de eu fazer o que fui criado para fazer: ser um Guerreiro e lutar contra as Trevas.

A Grande Sacerdotisa curvou um pouco a cabeça em concordância com o homem alado. Então, ela se voltou para Marx:

– Detetive, gostaria de apresentá-lo ao meu Guerreiro sob Juramento, Kalona. Ele é o meu protetor, assim como o Mestre da Espada desta Morada da Noite. Ele me acompanhará até o Mayo.

Marx hesitou um momento e, então, fez a única coisa que passou por sua cabeça – estendeu a mão e a ofereceu para o grandão.

– Prazer em conhecê-lo, Kalona.

Kalona segurou o seu antebraço no cumprimento tradicional dos vampiros.

– O prazer é meu, detetive.

– Você não é um vampiro, né? – Marx não conseguiu evitar a pergunta.

– Não. Eu não sou.

Marx olhou para as asas do cara, que agora estavam enfiadas sob as suas costas. Aquelas coisas eram tão grandes, que chegavam a tocar o chão.

– O que você é ?

O sorriso de Kalona se abriu e pareceu ser sincero.

– Tem uma resposta complicada para essa pergunta, uma que eu prometo lhe dar depois que lidarmos com Neferet.

– Vou cobrar a resposta – disse Marx, tentando não olhar diretamente nos olhos do cara porque, ao fazê-lo, sentia a cabeça confusa e pesada, como se estivesse cheia de bolas de algodão.

– Você não vai precisar, detetive. Eu aprendi do modo difícil que é melhor que eu mesmo me preocupe em cumprir as minhas promessas.

– Então, nós todos vamos mesmo ao Mayo? – quis saber Aphrodite.

– Não. Kalona e eu vamos, assim como Zoey, Stark e o seu círculo. Darius, Aurox e Aphrodite, vocês vão ficar aqui com Lenobia. Vocês duas vão organizar uma reunião escolar. Atualizem o corpo docente e discente e os guerreiros. Informe apenas o básico e nada mais. Coloquem a escola em alerta máximo. Não sabemos qual será o próximo passo de Neferet.

– Você realmente acha que todos devem saber o que está acontecendo? – perguntou Stevie Rae, ecoando os pensamentos de Marx.

Zoey falou antes que Thanatos tivesse a chance:

– Acho que as Trevas odeiam que a luz brilhe, então vamos colocar muita luz sobre seja lá o que for que Neferet esteja fazendo.

– Essa é uma ótima maneira de descobrir quem quer voltar ao comando de Neferet e quem quer ficar e lutar contra ela junto com a gente – disse Stark.

– Vocês dois disseram exatamente o que penso – concordou Thanatos.

– Muito bem, então. Mas eu vou chamar Kramisha para me ajudar. Ela sempre sabe quem está tramando o quê – informou Aphrodite.

– É sábia a Profetisa que reúne os outros membros com dons dados pela sua Deusa – aprovou Thanatos.

– Também é sábia a Profetisa que mantém o seu celular por perto. Liguem se o inferno sair do controle, literal ou figurativamente – retrucou Aphrodite.

– Pode deixar – assegurou Zoey.

– Nós vamos com você, detetive Marx – declarou Thanatos.

Marx respirou fundo e desligou totalmente o botão de sanidade mental.

– Tudo bem. Vamos nessa.

Lynette

– Lynette, eu realmente adoro uma surpresa... – Neferet hesitou antes de continuar, erguendo um dedo fino. – Se a surpresa for agradável. Se não for, então uma surpresa não passa de uma interrupção irritante. Eu odeio interrupções quase tanto quanto odeio ficar irritada. – Seus olhos se afastaram de Lynette, e ela olhou para o que parecia ser as suas pernas nuas. – Falando em irritação, por que é que vocês estão andando por aí sem objetivo? Eu estou completamente segura, e vocês todos foram perfeitamente saciados. Vão se divertir em outro lugar e parem de ficar me puxando. Vão agora, xô! – Neferet fez um movimento de desprezo antes de voltar a sua atenção para a sua súdita.

Lynette não viu as coisas rastejantes, mas sentiu o roçar frio de algo passando por ela. Controlou um tremor de repugnância.

– Querida Lynette, onde paramos? Ah, sim, eu me lembro. Você anunciou que estava planejando uma pequena surpresa para mim. Por favor, continue se explicando.

Lynette olhou nos olhos da Deusa sem piscar. O pânico que estava concentrado em algum lugar sob o seu esterno estremeceu e recuou, mas ela apertou as rédeas mentais com as quais o controlava e permitiu que apenas o prazer de planejar um evento espetacular ocupasse a sua mente. O sorriso de Lynette estava confiante, assim como a sua voz.

– Deusa, eu sou muito boa no meu trabalho. Mesmo trabalhando em uma circunstância pouco comum e com recursos limitados, realmente acredito que você achará a surpresa agradável.

– Recursos limitados? Isso soa tão de mau gosto e barato. – Neferet franziu as sobrancelhas. – Eu certamente nunca desejei que você sentisse como se a sua Deusa fosse avarenta.

– Ah, mas eu não me sinto assim! – assegurou Lynette, esperando não ter apertado o botão de loucura de Neferet. – Eu coloquei essas restrições para mim mesma porque queria provar meu valor para você. Mas é claro que essa será apenas uma pequena amostra dos eventos que eu poderia planejar diariamente... Se eu tivesse mais tempo e mais dinheiro para fazer o meu trabalho.

Neferet relaxou a expressão.

– Você é uma mulher sábia, Lynette. Mostre-me o que planejou para mim. Se me agradar, pode ter certeza de que permitirei que continue com recursos ilimitados, embora não possa prometer que serei paciente para lhe dar muito tempo. Eu esperei muito tempo para começar o meu reinado. Estou impaciente pela adoração dos meus súditos.

– Isso é totalmente compreensível, Deusa. Em planejamento de eventos, eu nunca fico muito preocupada com o tempo quando tenho dinheiro.

Neferet a analisou.

Lynette se concentrou nos negócios. Ela se sobressaía nos negócios. Ela era confiante nos negócios. Os negócios não a aterrorizavam nem a enojavam.

Neferet sorriu.

– Você está sendo totalmente honesta. O seu negócio e a aquisição de dinheiro têm sido a sua principal preocupação. Continue, minha súdita! Revele a minha surpresa.

Lynette fez uma reverência e levou Neferet da suíte para o elevador, parando no mezanino.

– Por favor, Deusa, aguarde apenas um minuto.

Neferet sorriu e fez um gesto de concordância. Lynette pressionou o botão do elevador, então bateu em um comunicador quase oculto na sua orelha e disse rapidamente e em tom baixo:

– Kylee, aguarde dez segundos e, então, faça o quarteto começar a tocar.

– Sim, Lynette – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette lançou um olhar para a direita e fez um gesto de venha aqui . Judson, o bonito mensageiro, saiu das sombras. Ele trajava um uniforme impecável e passado e carregava uma bandeja de prata reluzente na qual havia uma taça perfeita de cristal cheia de champanhe rosê. Ele fez uma reverência perfeita e mecânica para Neferet e disse:

– Posso lhe oferecer uma taça de champanhe, Deusa?

– Ora, é claro. Obrigada, Judson.

A música começou a tocar no instante em que Neferet ergueu a taça da bandeja. Lynette ficou satisfeita ao ver o sorriso se erguer nos cantos da boca da Deusa.

– Danúbio Azul de Strauss. Uma das minhas valsas favoritas. Ah, Viena. Tão adorável e indulgente no passado.

– Por favor, queira me seguir, Deusa – pediu Lynette formalmente, levando Neferet pelo mezanino até o local para onde o seu trono havia sido colocado, bem acima da plataforma que a Deusa usara para se dirigir aos seus novos “súditos” algumas horas antes e onde, agora, havia um quarteto de cordas do casamento da noite anterior tocando nervosa e lindamente.

Neferet sentou-se com elegância, olhando para o quarteto.

– Eles tocam bem, embora eu prefira uma orquestra completa.

– Tempo e recursos – respondeu Lynette com um sorriso irônico.

Os lábios da Deusa se contraíram.

– Estou notando isso.

Lynette baixou a cabeça para Neferet e discretamente tocou no comunicador no seu ouvido:

– Conte até seis e mande-os entrar.

Então, ela prendeu a respiração e esperou que os doze artistas conseguissem se manter calmos.

As pesadas cortinas de veludo que cobriam o salão abaixo se abriram e, do lado oposto da sala, seis casais se apressaram para o centro do piso de mármore. As mulheres usavam vestidos vermelhos cujo tom fora o mais parecido um do outro que Lynette conseguira encontrar. Os homens trajavam smokings que ela conseguira juntar do que sobrara do casamento; os que estavam limpos o suficiente e servissem nos homens.

Servissem! Aquele tinha sido apenas parte dos problemas daquele evento infeliz. Tinha sido uma tarefa horrenda encontrar seis homens e seis mulheres no que Lynette tinha nomeado silenciosamente de reservatório de prisioneiros, que fossem relativamente atraentes, graciosos e capazes de aprender os passos básicos de uma valsa. Sim, ela poderia ter usado todos os membros da equipe dominados pelas cobras – eles obedeciam tudo que ela dizia para eles fazerem, desde que não tentasse fugir do Mayo. No entanto, o instinto de Lynette lhe disse que uma apresentação dos membros que já estavam sob o seu controle não impressionaria Neferet.

Não, Lynette acreditava que a Deusa queria, precisava , da ilusão de ser adorada. Então, ela ameaçara, insistira e chantageara 12 pessoas com aparência decente a trabalharem para ela.

Lynette percebia que estavam nervosos – duas das mulheres estavam tão trêmulas, que ela conseguia ver os seus braços tremerem –, mas, exatamente como ela instruíra, os casais se posicionaram no grande círculo e conseguiram chegar aos seus lugares depois da primeira contagem até seis. No começo do segundo conjunto de notas, todos os 12 ergueram o olhar para Neferet, pararam, contaram até três e, como se fossem um, cada um dos homens se curvara e cada uma das mulheres fez uma reverência para a Deusa.

Lynette detectou todos os erros. Viu que a mulher chamada Cindi quase caiu, e apenas a rapidez do seu par ao segurá-la pelo cotovelo impediu a queda. Camden, o garoto alto que fora o padrinho do casamento da noite anterior – e azarado o suficiente para estar com uma ressaca que impediu que ele pegasse o voo da madrugada junto com o noivo e a noiva para Dallas –, manteve a cabeça baixa por tempo demais. Lynette apertou os dentes. Se aquele garoto mimado estragasse tudo, ele lamentaria mais do que ela.

Lynette arriscou um olhar para Neferet. Obviamente satisfeita, a Deusa sorriu e assentiu com a cabeça em um gesto nobre para os dançarinos.

Agora dancem e não pareçam estranhos! , pensou Lynette.

Eles dançaram. Todos os 12 conseguiram começar na mesma nota e se moveram pelo salão seguindo um padrão quase circular. Eles estavam longe da perfeição, mas a música era adorável e, se alguns dançarinos vacilaram, “Danúbio Azul” compensou. Quando a nota final tocou, os seis casais se curvaram e reverenciaram Neferet, desta vez mantendo as suas poses como se estivessem congelados, e até mesmo Lynette teve de admitir que a cena estava muito bonita.

Neferet se ergueu e, para imenso alívio de Lynette, aplaudiu e riu.

– Muito bem, todos vocês! Isso foi muito bom. Judson, abra garrafas de champanhe para esses adoráveis súditos.

– Deusa, eles estão esperando a sua autorização para se levantarem – sussurrou Lynette para Neferet.

– Mas é claro que estão autorizados, e obrigada por me lembrar, querida Lynette. Vocês podem se levantar! – permitiu a Deusa. – Aproveitem o champanhe e a gratidão da sua Deusa pela adoração de vocês.

Lynette tocou no comunicador em seu ouvido novamente.

– Kylee, diga ao quarteto para começar a tocar a próxima música.

Em questão de segundos, a música encheu o ambiente de novo.

– “Valsa das flores”, do Quebra-nozes . Duas adoráveis músicas e excelentes escolhas – elogiou Neferet.

– Então, a minha surpresa foi agradável?

– Foi. O candelabro, as flores, os smokings e os vestidos vermelhos. Tudo foi muito bem-escolhido. Lynette, você começou muito bem como a minha planejadora de eventos. Eu aprovo o seu tema e a extraordinária música, o local lindamente escolhido e a homenagem respeitosa a mim.

– Então, posso presumir que gostaria de ter mais eventos desse tipo?

– Sim, mas da próxima vez eu gostaria que o tema fosse a minha época favorita. Os anos 1920. Essa foi uma época que vale a pena reviver. Você consegue fazer o Charleston, Lynette?

– Eu terei acesso à Internet?

– Terá, assim como uma generosa verba para os eventos – informou Neferet, abrindo um sorriso inteligente para Lynette.

– Então, eu consigo fazer o Charleston, assim como os seus súditos.

– Vamos precisar de mais músicos – declarou Neferet.

– Sim, Deusa. Vou providenciar – disse Lynette, já digitando suas anotações no smartphone.

– E fantasias. Vamos precisar de mais fantasias.

– É claro, Deusa – concordou Lynette.

– E eu preciso mais do que apenas dança, embora esse tenha sido um ótimo começo.

Lynette ergueu o olhar das suas anotações e olhou para Neferet, mas a Deusa não estava olhando para ela. Estava acariciando a taça de champanhe enquanto observava os seis casais que se espalharam em pequenos grupos aceitando o champanhe que Judson lhes servia. Lynette seguiu o seu olhar. O garoto mimado estava virando o que parecia ser a sua segunda taça de champanhe. Neferet o devorava com os olhos.

– Fico muito satisfeita que os meus súditos sejam tão atraentes – declarou ela.

Lynette bufou de forma irônica e automática, mas quando o olhar da Deusa pousou nela, ela se arrependeu instantaneamente por ter permitido um deslize de compostura.

Neferet ergueu uma das sobrancelhas ruivas.

– Ah, entendi. Você escolheu os doze com muito cuidado, porque nem todos os meus súditos são tão atraentes, não é mesmo.

Ela não usou um tom interrogativo, mas Lynette sentiu o impulso de responder.

– É isso mesmo. – Ela ergueu os ombros inquieta. – Sinto muito, Deusa, eu só queria me assegurar de que ficasse feliz com o meu primeiro pequeno evento.

– Isso é compreensível, querida Lynette. Na verdade, aprecio o seu esforço, e embora aprecie todos os meus súditos, eu também aprecio coisas, e pessoas, que são agradáveis aos meus sensos. – Neferet se inclinou no seu trono e usou um tom conspiratório para se dirigir à sua súdita: – Você poderia acrescentar isso à sua lista de tarefas como planejadora de eventos.

– Estou disposta a servi-la de qualquer forma que precise, Deusa. – Lynette estava tentando entender o que a Deusa queria. – Mas o que você quer dizer com “isso”?

– Certificar-se de que os meus súditos estejam sempre o mais atraentes possível, é claro. Sim, tenho certeza de que você tem talento para transformações.

– Transformações.

Lynette repetiu a palavra, sentindo-se extremamente sobrecarregada enquanto imagens dos súditos menos atraentes de Neferet passavam por sua cabeça. A mulher de cinquenta e poucos anos que precisava perder uns vinte e poucos quilos... A pré-adolescente ruiva esquelética cujo rosto já estava tomado por espinhas... O empresário careca e barrigudo e com queixo triplo que parecia um bócio...

A risada debochada de Neferet interrompeu o filme na sua mente.

– Pare de se preocupar, querida Lynette. Entre nós duas, conseguiremos separar o rebanho. Afinal, eu posso controlar tudo o que eles comem e tudo o que fazem. Você não concorda que dieta e exercícios são muito importantes?

Lynette assentiu com a cabeça e tentou manter-se focada completamente nos olhos verdes-esmeralda de Neferet.

– Então, além de colocar alguns deles de dieta e nos certificarmos de que passam algum tempo na academia do Templo, estou confiante de que você pode dar dicas de cabelo, maquiagem e moda. Correto?

– Sim, Deusa – respondeu ela automaticamente.

– Excelente. Estou feliz por você ter chamado a minha atenção para esta questão. É importante que os meus súditos sempre tenham a melhor aparência possível. Eles são, de algum modo, um reflexo de mim mesma.

Como se isso resolvesse a questão, o olhar de Neferet passeou pelo grupo abaixo delas, parando, de forma predatória, em Camden.

– Você fez uma excelente escolha com aquele ali, Lynette. Ele é alto, jovem e louro – disse Neferet. – Seu nome?

– Camden – informou Lynette. – Ele foi padrinho do casamento que me trouxe ao Mayo.

– Padrinho ? É mesmo? – Os olhos verdes-esmeralda de Neferet brilharam com uma intensidade perigosa, e Lynette ficou grata por tal intensidade não estar focada nela. – Talvez eu tenha que testá-lo para ver se Camden é realmente um bom súdito.

Lynette controlou um tremor de medo.

– Você gostaria que eu pedisse para alguém trazê-lo aqui?

– Não, querida Lynette. Eu posso muito bem convocá-lo. Talvez ele aprecie uma visita à varanda da minha cobertura. – Seus olhos brilhantes se voltaram para Lynette e o brilho feral neles se endureceu. – A minha equipe já se livrou daqueles vestígios desagradáveis, não é?

Merda! Eu estava ocupada demais organizando essa apresentação para verificar se todos os pedaços de gente tinham sido atirados pela varanda. A mente de Lynette começou a buscar algo para dizer e ela soltou um suspiro de alívio quando encontrou uma resposta:

– Deusa, creio que Kylee era a responsável pela questão da varanda.

– Aquela garota – murmurou Neferet, tomando um gole de champanhe. – Ela é boa para algumas coisas, mas precisa de muita supervisão. Será que você poderia usar essa útil maquininha no seu ouvido para lembrá-la das minhas ordens?

– É claro, Deusa – respondeu Lynette.

– E, enquanto você supervisiona Kylee, creio que eu vá me misturar aos meus adoráveis e atraentes súditos. Você consegue imaginar como o padrinho Camden se sentirá honrado se eu permitir que ele me tire para dançar?

Felizmente, a pergunta de Neferet era retórica e, em vez de concentrar a sua atenção na resposta de Lynette, a Deusa deu as costas para ela, tomou um gole de champanhe e caminhou em direção à grande escadaria dupla que levava ao salão de baile.

Lynette notou que Neferet não deslizou. Isso porque ela mandou as coisas rastejantes saírem para brincar , pensou Lynette. De alguma forma, elas deviam carregá-la – ou canalizar a energia para erguê-la – ou algo igualmente insano.

Ela meneou a cabeça como se quisesse clarear os pensamentos. Não podia se dar ao luxo de ficar pensando muito. Não podia se dar ao luxo de fazer mais nada a não ser sobreviver.

Lynette bateu no comunicador na sua orelha.

– Kylee, Neferet vai inspecionar a varanda da cobertura. Logo. Ela deixou você responsável pela limpeza.

– Compreendo e obedeço – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette suspirou. Deu alguns passos para trás e se apoiou em um dos pilares de mármore deixando-se ficar sem fazer nada por um momento, a não ser respirar.

Ela passara pelo primeiro teste de Neferet. Ainda estava viva e não tinha sido possuída por nenhuma criatura escorregadia. Mas, para continuar assim, não poderia se dar ao luxo de relaxar. Haveria tempo para relaxar depois que tudo isso acabasse. E Lynette conseguiria isso – ela sempre conseguia passar por todas as merdas que a vida atirava em sua direção.

Para começar, Lynette tinha uma lista de coisas a fazer.

Tinha de verificar todas as pessoas no prédio. Elas precisavam ser categorizadas como atraentes e aceitáveis ou aquelas que exigiriam trabalho. Na categoria das que exigem trabalho ela criaria as subcategorias gordo, malvestidos ou apenas feios por natureza. As duas primeiras poderiam ser corrigidas – em tese. Quanto aos que se enquadravam na terceira, bem, eles teriam de aprender algumas habilidades para que pudesse mantê-los nos bastidores.

– Espero que eles saibam cozinhar ou costurar.

Lynette estava falando consigo mesma enquanto digitava as observações no seu smartphone quando ouviu um grito vindo do salão. O que tinha acontecido agora? O que mais Neferet poderia estar fazendo? Com a mente cansada e pesada pelo medo e pela exaustão, obrigou os seus pés a levá-la até a beirada do mezanino.

Neferet estava ao lado de Camden. Ele estava olhando para o decote profundo do vestido curto de veludo da Deusa. As outras onze pessoas olhavam para as cobras escorregadias que se retorciam em volta dos tornozelos nus de Neferet.

– Ah, fique quieta – ordenou a Deusa para a garota que berrara. – Vocês precisam se acostumar com os meus filhos. Eles nunca ficam muito longe de mim, assim como vocês, meus leais súditos, nunca ficarão longe de mim.

– Si-Sinto muito, Deusa. E-eles parecem cobras. E e-eu tenho medo de cobras – gaguejou a menina.

– Eles não são cobras. São muito mais perigosos. E eu não estou pedindo para que você supere o medo que sente deles. Estou lhe ordenando que você não verbalize isso. – Neferet olhou para baixo, para as coisas rastejantes que se retorciam aos seus pés, parecendo excitadas. – O que foi, meus queridos?

– Deusa, o detetive voltou – chamou Judson do vestíbulo de entrada. – E trouxe mais gente com ele.

– Isso não significa nada. Ele pode trazer toda a Guarda Nacional de Oklahoma com ele. Eles não conseguirão penetrar a minha cortina protetora.

– Ele não trouxe um exército. Ele trouxe uma vampira que está fazendo o ar à sua volta brilhar enquanto um homem enorme que parece ter asas ocultas sob a sua capa de chuva caminha perto dela.

– Por que você esperou até agora para me dizer isso? – berrou Neferet. – Filhos! Venham comigo! – Erguida pelo ninho totalmente visível de víboras escorregadias, a Deusa deslizou até a porta da frente.

O corpo de Lynette ficou frio. Ela desceu dos sapatos elegantes de salto alto para que pudesse andar em silêncio pelo mezanino, dirigindo-se às grandes janelas panorâmicas que davam para a frente do prédio, tentando não pensar em nada, mas principalmente tentando não ter esperanças.


9

Zoey

– Que merda! O Mayo está horrível – declarei.

– É como se estivesse encharcado de morte. – Damien soava tão horrorizado quanto eu.

– Não de morte – contradisse Thanatos. – A morte é inevitável para todos os mortais. Ela não é boa nem má; é simplesmente parte da grande espiral da vida. Neferet usou nesse prédio dor e medo, sangue e desespero.

A sua voz estava estranha. Vovó, Stark, Shaylin e eu estávamos todos espremidos no Hummer da escola, e Thanatos estava na frente com Marx. Notei que quanto mais nos aproximávamos do Mayo, mais agitada a Grande Sacerdotisa parecia ficar. Ela estava literalmente inquieta, o que era muito estranho para ela – Thanatos costumava ser uma montanha de calmaria.

O seu óbvio nervosismo fez o meu estômago se revirar.

– Caos – disse Kalona. Olhei por sobre o meu ombro e ele estava sentado com Damien e Shaunee (eles estavam superapertados porque as asas dele ocupavam muito espaço), e vi-o meneando a cabeça enojado. – Neferet usou as gavinhas das Trevas para criar o caos e isso a está protegendo.

– Bem, o caos tem um cheiro horrível – reclamei enrugando o nariz.

– Fede e é horrível – concordou Damien. – E nós não temos nenhuma maneira de entrar.

– Sinto muito – desculpou-se Marx. – Eu devia ter avisado sobre o fedor.

– Não precisa se desculpar, detetive – disse Vovó. – Não creio que existisse qualquer coisa que você pudesse ter feito para nos preparar para isto.

– Você provavelmente está certa, mas é melhor avisar que não temos como saber se todas as partes humanas foram retiradas da área – acrescentou Marx. – Então, é melhor olharem por onde andam.

– Partes humanas? – A minha voz tremeu.

Marx assentiu.

– As coisas rastejantes mataram um monte de gente quando desceram pela varanda, cobrindo o prédio com trevas e tripas até aqui embaixo. Neste início de noite, Neferet tem jogado pedaços de pessoas, com todo o sangue drenado pelo parapeito da sua varanda.

– Eu consigo sentir o feitiço que ela fez com sangue, morte e Trevas – disse Thanatos. – Ela usou a morte daquelas pobres pessoas para construir uma barreira.

– Neferet lançou o feitiço, mas não sujaria as próprias mãos com a limpeza – concluiu Kalona em tom grave. – O que significa que ainda tem gente viva cumprindo as suas ordens.

– Será que importa quem está jogando? Principalmente se Neferet tiver feito reféns? – perguntou Shaunee.

– Tudo o que realmente importa é que todos se lembrem de que se detivermos Neferet, pararemos toda esta loucura também – respondeu Thanatos.

Todos nós concordamos de forma amarga.

Marx passou pelas barreiras da polícia e parou no meio-fio do outro lado da rua do Mayo em uma calçada ampla em frente ao prédio corporativo da empresa Oneok, onde nos sentamos e ficamos analisando o que tínhamos diante de nós.

– Organizamos dois postos de comando dentro da Oneok. O do terceiro andar com todos os equipamentos audiovisuais. E o que está no último andar com atiradores de elite – explicou-nos Marx enquanto nos sentamos e ficamos olhando para o prédio coberto de sangue coagulado do outro lado da rua.

– Atiradores de elite não podem matar Neferet – informou Kalona.

– É, a gente já percebeu – respondeu Marx secamente. – Mas eles podem matar pessoas, até mesmo as que estão sob o feitiço dela.

– Você não pode atirar naquelas pessoas! Elas são vítimas – declarou Vovó, virando-se, agitada. – Elas não são responsáveis pelas próprias ações, mas Neferet é.

– Sim, senhora, nós sabemos disso e não queremos atirar em ninguém, mas se Neferet ordenar que seus servos, ou seja lá como vocês querem chamá-los, nos ataquem ou a qualquer cidadão de Tulsa, seremos obrigados a impedi-los.

– Ela gostaria disso – disse Thanatos enquanto encarava o prédio. Ela parecia estar zangada. Achei que parecia mais pálida do que o usual, mas ela já era vampira havia, tipo, um zilhão de anos. Ela sempre estava pálida, então eu não poderia dizer com certeza. – Ela obteria mais poder com as suas mortes, além da satisfação de ter obrigado vocês a matar pessoas inocentes. – Thanatos olhou para Kalona. – Não podemos permitir isso.

– Concordo – respondeu Kalona.

– Bom – disse ela. – Já chega de ficarmos sentados aqui especulando. Eu preciso ir até lá. Preciso entender exatamente com o que estamos lidando.

Thanatos saiu do Hummer e bateu a porta atrás de si, deixando que o resto de nós a seguisse – de forma relutante.

Kalona se apressou a ficar ao seu lado. À distância, eu ouvia exclamações do tipo “Ei, olha lá aqueles vampiros!” e “Prepare a câmera, tem alguma coisa acontecendo na frente do Mayo!”.

O imortal alado tinha colocado uma longa capa de chuva para cobrir o seu peito tipicamente nu como uma forma bastante bem-sucedida de esconder as asas gigantescas. Eu o vi virar o corpo tentando enfiar as penas enormes lá dentro. Ele lançou um olhar irritado para as pessoas reunidas atrás das barricadas antes de os seus olhos encontrarem os do detetive Marx.

– Creio que seria mais sábio se você retirasse todos os civis dessa área da cidade. Ninguém estará seguro aqui.

– É, eu sei, mas tente dizer isso para a mídia. Conseguimos reunir todo mundo ali atrás, mas é uma merda lidar com a liberdade de imprensa.

Kalona deu de ombros.

– Então, eles terão de aprender a lição por si mesmos.

Com aquela observação agourenta, ele voltou a sua atenção para o Mayo. Thanatos olhava para o prédio, quase como se estivesse hipnotizada por ele. Engoli o meu medo e me posicionei ao seu lado, grata pela presença forte de Stark.

– Eu deveria saber. – A voz de Thanatos estava cansada. Ela deu vários passos na direção ao prédio. – Mas eu raramente era chamada para o local de uma morte humana, e nunca uma morte de tamanha magnitude. – Ela se aproximou mais do prédio, ficando na entrada semicircular de veículos anexa à entrada principal. Thanatos ergueu as mãos e estremeceu. – O terror usado para fazer esta barreira ainda está aqui.

– Sacerdotisa, eu aconselho que não se aproxime mais do prédio – disse Kalona, posicionando-se ao seu lado e gentilmente pegando o seu cotovelo e tentando fazer com que voltasse para a rua.

– Eu preciso ajudá-los – declarou ela, afastando a mão dele.

– Eles? – perguntou Marx.

– Nem todos os mortos se foram. O fim deles foi violento demais, aterrorizante demais, bem além do que qualquer coisa que essas pobres pessoas jamais imaginaram. Sinto os seus espíritos em pânico e eles ficam girando em círculos, incapazes de encontrar uma saída deste reino para o próximo.

– Você pode ajudá-los? – perguntou Vovó, que estava próxima ao Hummer.

– Acredito que sim.

– Tente fazer isso de forma rápida – orientou Kalona.

– Eu devo traçar um círculo? – perguntei.

– Não, Zoey. Você e todos os outros, exceto por Kalona, devem ficar lá trás em segurança. Isso é algo que eu tenho que fazer sozinha. O dom que nossa Deusa me concedeu é tudo de que eu preciso... – Ela fez uma pausa e deu um sorriso de agradecimento para Kalona – ... incluindo um protetor poderoso. Eu preciso acreditar na força que Nyx me dá.

– Façam como Thanatos disse e voltem para o Hummer – pediu Stark, puxando-me com ele. Marx se afastou mais devagar, os seus olhos concentrados em Thanatos.

– Damien! Ei! Damien! – Um humano bonito e jovem chegou correndo.

Damien se virou a tempo de receber um abraço gigantesco.

– Adam! Você não deveria estar aqui. É perigoso demais – repreendeu Damien.

– Ei, sou um jornalista. Eu tenho que lidar com o perigo – declarou ele sorrindo.

Por fim, eu o reconheci. Era Adam Paluka, um jornalista da Fox – o cara que nos entrevistou depois que Neferet deu aquela conferência ridícula. Eu sabia que Damien estava namorando alguém, e pelo modo como aqueles dois sorriam um para outro, acho que as coisas estavam indo bem. Nossa, eu me envolvera tanto com as coisas que estavam acontecendo comigo, que eu nunca pensei em perguntar a Damien como ele estava lidando com o fato de estar namorando tão rápido depois que Jack...

– Você precisa voltar para trás da barreira – disse Marx, aproximando-se de Adam com um olhar carregado.

Mas bem nesse momento, Thanatos começou o seu feitiço, atraindo toda a nossa atenção para si.

A Grande Sacerdotisa ergueu as mãos e fechou os olhos. Quando falou, a sua inquietação acabou. Suas palavras eram rítmicas e hipnóticas; sua voz, calma. Ela era forte, sábia e bonita – e eu tinha orgulho de ser uma novata da Morada da Noite sob o seu reinado.

Espíritos sofredores, venham até mim
Com calma e doçura, que a minha voz os guie assim
E que o meu dom acabe com o sofrimento sem fim

O ar em volta de Thanatos começou a brilhar como se alguém tivesse lançado globos mágicos cheios de purpurina em direção a ela.

– Ai, meu Deus! O que está acontecendo? O que aquela vampira está fazendo?

Eu estava tão concentrada no feitiço de Thanatos, que mal notei o barulho crescente vindo da multidão atrás de mim. Apesar disso, senti que Adam erguera o seu iPhone e ouvi um pequeno clique indicando que ele estava filmando. Stark apertou a minha mão antes de cochichar:

– Acho que Marx está prestes a expulsar os repórteres. Eu vou ver o que posso fazer para ajudá-lo. Certifique-se de que você, o seu grupo e Vovó fiquem perto do Hummer.

Assenti e vagamente notei que Stark estava discutindo com Damien sobre obrigar Adam a sair enquanto Marx caminhava decididamente em direção à barricada. Mas os meus olhos nunca se afastaram da Grande Sacerdotisa. Eu não conseguia parar de olhar. Thanatos comandava toda a minha concentração.

O guia para o fim do sofrimento eu sou sim
O amor atendeu às suas preces e ao terror colocou um fim;
Com calma e doçura, os seus espíritos estão livres assim!

Esferas brilhantes cercavam completamente Thanatos. Quando ela falou o último verso do feitiço e abriu os seus braços, cada uma das esferas precipitou-se para ela. Rindo de alegria absoluta, o rosto de Thanatos se iluminou de amor e ela ergueu os braços. As esferas brilhantes voaram como fogos de artifício para o céu noturno – só que, em vez de deixar para trás um rasto de fumaça, as esferas que desapareciam deixavam para trás um rasto de alívio e felicidade que me fez esquecer o estresse da situação – o horror do sangue e o fedor do Mayo coberto com Trevas –, fez-me esquecer de tudo, a não ser o fato de que, fôssemos humanos ou vampiros, havia sempre uma constante entre todos nós: o amor. Sempre o amor.

E, então, Neferet saiu pela porta da frente arruinando completamente o momento feliz. Antes, pensava que ela parecia uma insana, mas eu estava errada. O que ela era agora fazia a loucura anterior de Neferet parecer não mais que uma excentricidade, como uma velha que gosta de gatos e cheira a urina e mato. Ela estava usando um vestido curto verde. Por um segundo senti certo alívio. Tipo assim, ela não estava nua. Tudo bem, ela estava descalça, mas não achei nada demais naquilo, até que eu realmente olhei para os seus pés. Eles estavam descansando sobre um ninho escorregadio de gavinhas negras que se contraíam e pulsavam ao redor dela, envolvendo seus tornozelos e canelas, e, na verdade, erguendo-a do chão.

Mas aquilo nem era a coisa mais insana em Neferet. Foram os seus olhos que denunciaram a sua loucura. Algo acontecera com as suas pupilas – elas tinham desaparecido. Eram como pedras de mármore, completamente verdes-esmeralda.

– O que há de errado com os olh... – começou Adam, mas o berro de Neferet o cortou.

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo! – Neferet apontou para Thanatos, e duas das gavinhas correram na direção desta.

Kalona se moveu tão rápido, que tudo ficou um borrão. De repente, ele estava lá, entre Thanatos e as criaturas que a atacavam. Ele tirara o seu casaco e revelara a lança de ébano que tinha amarrada nas costas. Suas asas se desenrolaram enquanto ele se encontrava com as gavinhas, espetando uma delas, e enquanto esta se retorcia na agonia da morte, partiu a outra ao meio.

Neferet gritou, como se sentisse a dor das gavinhas.

– Ignorem Kalona! Matem Thanatos! E, depois, todos os outros!

Tudo explodiu.

As gavinhas das Trevas, como veneno cuspido da boca de uma víbora, saíram dos pés de Neferet, tentando passar por Kalona a fim de atingir Thanatos e o resto de nós. Stark voltou para mim, empurrando-me e à Vovó para trás dele e gritando para Damien, Adam, Shaunee e Shaylin para entrarem no Hummer.

Cambaleei para trás, certa de que eu iria assistir a Thanatos ser partida ao meio pelas criaturas de Neferet, provavelmente segundos antes de elas atacarem Stark e, depois, devorarem o restante de nós.

Mas nada daquilo aconteceu. As Trevas não venceram esta batalha – o imortal alado sim.

Kalona estava em todos os lugares. A sua lança se movia tão rápido, que provocava um som no ar.

– Um sabre de luz – arfou Damien. – E é de verdade, e não um de mentirinha como o do Star Wars.

– Leve-os para um lugar seguro! – ordenou Kalona para Marx.

Marx correu para a Grande Sacerdotisa e, enquanto Kalona usava o próprio corpo, suas asas e sua lança para nos proteger, nos apertamos no Hummer.

– Segurem-se! – Eu vou subir na calçada e tirar ele de lá! – avisou Marx ligando o carro.

– Espere! – disse Thanatos. – Ele está vindo para nós. Olhem para as gavinhas. A força delas acaba quando elas se afastam muito de Neferet.

A Grande Sacerdotisa estava certa. Kalona, ferido e sangrando, ainda estava lutando com as criaturas, mas se aproximava de nós e se afastava do Mayo. E as gavinhas não o estavam seguindo.

Quando Kalona chegou à traseira do Hummer, Neferet ergueu os braços e ordenou:

– Venham para mim, filhos! Eu os ajudarei!

As coisas rastejantes deslizaram para ela, enrolando-se em seus braços e pernas. Ela as acariciou, como se quisesse confortá-las, e antes de desaparecer dentro do Mayo, seus olhos brilhantes verdes-esmeralda se concentraram em nós.

– Obrigada pela lição. Da próxima vez, eu vencerei!

Zoey

– Não, de verdade, eu não preciso ir para o hospital – repetiu Kalona pela enésima vez para Marx. – Como eu já disse, traga-me água ou, melhor ainda, vinho. Eu vou subir até o alto deste prédio e me curar.

Nós contornamos o prédio da Oneok e entramos pelos fundos para nos juntarmos à força-tarefa de Tulsa no terceiro andar. Percebi por que Marx estava estressado com Kalona – ele estava ensanguentado. Todos na sala olhavam para ele, mesmo enquanto tentavam não olhar. Sério, se ele não fosse imortal, estaria em um saco preto para cadáveres.

Marx bufou e passou os dedos pelo cabelo.

– Tudo bem, então, já entendi. Já entendi. Você está bem. Carter! – gritou ele para um policial uniformizado, que imediatamente parou de fingir que estava analisando dados na tela do seu computador e deu atenção ao detetive. – Encontre a sala de reuniões do presidente da empresa. Deve haver bebida lá. – Marx voltou a sua atenção para Kalona. – Serve uísque? Esses caras corporativos preferem esse tipo de bebida.

– Serve – respondeu Kalona.

– Pode ir – disse Marx para Carter. – Tudo bem, então. Enquanto Kalona está se recuperando no telhado, vamos fazer um controle de danos. Paluka, passe o telefone para mim e saia daqui.

– Você não pode simplesmente pegar o meu telefone! Isso é ilegal!

– É uma evidência de uma investigação em andamento de múltiplos homicídios. Eu estou apreendendo o seu telefone – informou Marx.

– Um momento, por favor, detetive – pediu Vovó.

– Senhora? – Marx, assim como todos nós, olhou para Vovó, que deu um sorriso sereno.

– Adam, corrija-me se eu estiver errada, mas acredito que você não seja o único jornalista que testemunhou o que acabou de acontecer lá fora.

– Você não está errada – respondeu Adam.

– Ah, exatamente o que pensei. O que significa que deve haver um monte de equipes de filmagem gravando tudo de trás da barreira, isso sem mencionar as gravações feitas por celulares, como a que você fez.

Ouvi Marx suspirar enquanto Adam respondia:

– Exatamente, senhora.

Vovó e Thanatos trocaram um olhar e, então, a Grande Sacerdotisa assumiu a conversa que Vovó iniciara.

– Sr. Paluka, o que o senhor acha de fazer uma entrevista exclusiva comigo e Kalona?

Os olhos de Adam brilharam de animação, mas ele manteve a postura profissional.

– Eu gostaria muito disso, Grande Sacerdotisa.

– Então, é isso que você terá. – Thanatos lançou um olhar para Marx. – Às vezes é mais fácil abrir mão do controle e deixar o destino lidar com o que quer que venha em seguida.

– Pelo menos limpem um pouco do sangue e me deem um monte de comprimidos de Tylenol.

Zoey

Kalona realmente tentou limpar o sangue que escorria dos seus ferimentos semelhantes a chicotadas e dos arranhões menores e mais profundos que mais pareciam mordidas que se espalhavam pelo seu corpo. Achei que ele parecia bem-acabado, e ele ainda sangrava um pouco, mas estava agindo de forma totalmente normal – forte, silenciosa, intimidadora. Thanatos fez com que ele vestisse o casaco comprido. Disse que as suas asas já tinham aparecido o suficiente no vídeo da batalha que Adam exibiria durante a entrevista. Em silêncio, concordei com ela, mas também pensei que o casaco cobria bastante os ferimentos que estavam ali embaixo. Por uma vez, consegui manter a boca fechada e deixei que os outros lidassem com as consequências da luta com Neferet enquanto eu me afastava dos holofotes. Foi um breve momento de relaxamento para mim enquanto me encolhi ao lado de Stark para assistir com Vovó, Damien, Shaylin e Shaunee àquilo que jamais poderíamos imaginar alguns meses antes – Kalona sendo entrevistado pela TV de Tulsa.

Adam chamara uma equipe de iluminação e um cinegrafista. Achei que estavam fazendo um bom trabalho de não ficar olhando estupidamente para Kalona. Adam explicou para todos que iria carregar o vídeo da batalha e exibi-lo e, depois, começaria a entrevista. Também explicou que ela seria exibida ao vivo no plantão de notícias.

– Cara, ainda bem que não estamos ali – sussurrei.

– Adam está fazendo um excelente trabalho – disse Damien com voz suave enquanto seus olhos brilhavam para o jornalista.

– Eu gosto dele.

O olhar de Damien encontrou o meu.

– Você acha que o Jack teria gostado dele.

Estiquei a mão por sobre Stark e apertei a mão de Damien.

– Tenho certeza que sim.

Damien assentiu e piscou para afastar as lágrimas.

– De alguma forma, isso torna as coisas mais fáceis, apenas um pouco mais fáceis, mas sou grato por esse “pouco”.

Então, a nossa atenção estava em Adam enquanto a luz vermelha na câmera parou de piscar e nós assistimos às cenas da batalha de Kalona sendo exibidas em um monitor portátil.

– Sou Adam Paluka, ao vivo, com a vampira e o Guerreiro que acabamos de ver nesta cena surpreendente gravada há alguns momentos em frente ao Mayo Hotel, no centro de Tulsa, quando a Grande Sacerdotisa conhecida como Neferet atacou diversos cidadãos inocentes, inclusive eu. – Adam fez uma pausa, dando então um sorriso caloroso para Kalona. – Eu ainda não lhe agradeci por ter salvado a minha vida. Obrigado!

Kalona pareceu surpreso, quase tímido. Ele assentiu uma vez e disse:

– De nada.

– Kalona estava cumprindo o seu dever. Ele é o meu Guerreiro sob Juramento. Neferet, que não é mais reconhecida por nenhuma autoridade vampírica como Sacerdotisa de Nyx, atacou a mim e os que estavam comigo. Era o dever de Kalona nos proteger – declarou Thanatos.

– Thanatos, é muito bom falar com você novamente. Muitos dos nossos espectadores a reconhecerão como a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Será que você poderia explicar o que estava fazendo na frente do Mayo?

A entrevistada respirou fundo e, então, falou devagar e com clareza, como se quisesse que todos a compreendessem:

– A essa altura, vocês já sabem o que nós apenas suspeitávamos antes, que Neferet está completamente louca e que se tornou uma pessoa malévola. Ela admitiu ter cometido uma matança. Assassinou o prefeito de Tulsa. Assassinou dois homens em Woodward Park. De lá, seus assassinatos se dirigiram para inocentes na Boston Avenue Church no domingo de manhã e, em seguida, para o Mayo Hotel, onde ela se trancou. As mortes que causou no Mayo permitiram que criasse um escudo protetor sobre o prédio. Eu fui até lá por causa do meu dom concedido pela Deusa, que é ajudar as almas a passarem deste mundo para o próximo.

– As luzes brilhantes! Elas eram almas?

Thanatos concordou com a cabeça.

– Exatamente. Elas estavam presas neste reino por causa da forma violenta como morreram. Eu simplesmente as ajudei a se libertarem.

– Nossa! Isso é incrível.

O sorriso de Thanatos foi bonito.

– O ciclo da vida é realmente incrível.

– Sim, é claro que sim. Espere um pouco, Thanatos. Isso significa que eram almas humanas que você ajudou na passagem?

– Isso mesmo – respondeu ela, serena.

– Mas você é uma vampira .

O sorriso da Grande Sacerdotisa se abriu mais.

– Achei que já tínhamos falado disso.

– É verdade. – Adam passou os dedos pelo cabelo perfeito. – Mas uma pessoa da sua raça a atacou porque você estava ajudando almas humanas .

– Adam, já vivi por mais de quinhentos anos, e, nesse tempo, eu aprendi que a humanidade é definida pelas escolhas, e não pela genética. Para colocar de forma bem simples, humanos e vampiros têm mais semelhanças do que diferenças.

– Obviamente Neferet não pensa como você – disse Adam.

– Neferet está louca. Seus pensamentos são excêntricos e perigosos.

– O que são aquelas coisas que ela enviou para nos atacar? – perguntou Adam.

– O mal que tomou uma forma tangível. As criaturas seguem as ordens de Neferet. Desde que ela faça sacrifícios para mantê-las leais a ela. – Thanatos olhou diretamente para a câmera. – Nunca é demais enfatizar que, não importa o quanto Neferet ameace, é imperativo que nenhum humano deve chegar perto do Mayo. O poder de Neferet vem da morte. Fiquem longe do Mayo e a sua fonte de poder vai acabar secando.

Adam parou, pareceu chocado e, então, olhou para alguém que não estava aparecendo na filmagem.

– Detetive Marx, o senhor concorda com o pedido de Thanatos em relação ao Mayo?

O cinegrafista apontou a câmera para um detetive com expressão irritada. Imperturbável, ele respondeu sem hesitar:

– Concordo. O Departamento de Polícia de Tulsa colocou barreiras nas ruas que cercam o Mayo. Ninguém pode se aproximar do Mayo, nem mesmo as equipes policiais ou os militares.

– Mas não é verdade que Neferet está mantendo reféns dentro do Mayo? – quis saber Adam.

– É verdade, mas, nesse momento, não temos nomes nem números – respondeu Marx. – Eu entendo que as pessoas vão sentir falta dos seus entes queridos. O Departamento de Polícia abriu uma linha telefônica 0800 para perguntas e informações de pessoas desaparecidas. O público deve direcionar as suas perguntas por esse número.

– Número esse que o canal Fox 23 vai colocar na parte inferior da tela – informou Adam.

– Obrigado – agradeceu Marx, embora ele não parecesse particularmente grato.

– Detetive Marx, eu preciso perguntar: se o senhor não vai permitir que ninguém se aproxime do Mayo, como é que pretendem deter Neferet?

– Ela será detida por mim, pelos vampiros e pelos novatos que lutam ao meu lado. Neferet é da nossa raça. E somos nós que devemos derrotá-la.

Todos nós, inclusive o cinegrafista, concentraram-se no imortal alado.

– Kalona, o senhor não é um vampiro, certo? – perguntou Adam.

– Certo.

– Então, o que o senhor é?

Ele nem mesmo hesitou. Disse aquilo como se estivesse contando o que comeu no jantar da noite anterior.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas fiz escolhas ruins e, por isso, fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

Seguiu-se um silêncio em que ninguém parecia respirar. Então, Adam perguntou:

– E o que o senhor está fazendo aqui?

Kalona se empertigou e olhou diretamente para a câmera.

– Estou tentando me redimir dos meus erros do passado e obter o perdão de Nyx.

– Bem – Adam engoliu em seco –, parece-me que o senhor está fazendo um bom trabalho aqui. O senhor salvou a Grande Sacerdotisa, um grupo de vampiros e novatos, um detetive. Salvou, inclusive, a mim. Se o senhor conseguir deter Neferet, eu vou começar a chamá-lo de Super-Homem.

Os lábios carnudos de Kalona se ergueram em um sorriso.

– Se você vir Nyx, eu gostaria muito que dissesse isso para ela.

– Pode contar comigo – assegurou Adam. Então, ele se voltou para Thanatos: – A senhora tem mais alguma coisa a acrescentar, Grande Sacerdotisa? Será que existe alguma forma de o público nos ajudar?

– Existe sim – respondeu ela. – Todos podem rezar e enviar pensamentos e energia positiva para nós. A Morada da Noite fará o melhor que puder para proteger o povo de Tulsa, mas nós precisamos de intervenção divina.

– Rezar? Para quem? Para Deus ou para a Deusa? – quis saber Adam.

– Ora, para qualquer um deles ou para os dois, é claro. Gosto de acreditar que as orações não estão presas a questões semânticas.

Adam sorriu.

– Eu também prefiro acreditar nisso. – Ele se virou para a câmera. – Vamos todos rezar pelo fim da insanidade de Neferet e da violência que irrompeu em Tulsa em decorrência disso. E essas foram as últimas notícias sobre a situação no Mayo Hotel. Sou Adam Paluka, lembrando a todos para ficarem ligados no canal Fox 23 para terem uma cobertura completa.

– O irmão de Erebus. Isso não é interessante? – perguntou Vovó, enquanto Adam trocava um aperto de mão com Thanatos e agradecia a ela e a Kalona pela entrevista.

– Você sabia que ele era irmão de Erebus? – sussurrou Damien para mim.

– Hã... Sabia – respondi. – Ele mencionou isso há alguns dias.

– Mas estivemos meio ocupados desde então – completou Stark.

Damien coçou a testa.

– Eu me lembro vagamente de ter lido em uma antiga antologia poética vampírica algumas menções sobre o Filho da Lua e Guerreiro da Noite, junto com as descrições usuais de Erebus como Filho do Sol e Consorte de Nyx. Inicialmente, achei que eram apenas nomes diferentes para Erebus, mas, pensando bem, faz mais sentido que estivessem falando de dois imortais distintos.

– Isso torna os séculos de raiva de Kalona mais compreensíveis – declarou Vovó.

– É. Ter deixado de ser o guerreiro e companheiro de Nyx e não ter nem mais permissão para entrar no Mundo do Além. Isso deve doer de verdade – disse Damien, observando Kalona com olhos grandes e tristes.

– Ele estuprou e matou gente. Quem sabe o que ele fez no Mundo do Além antes de sua Queda – contou Stark.

– Todo mundo merece uma segunda chance, Tsi-ta-ga-a-s-ha-ya – afirmou Vovó, usando o apelido Cherokee que dera a ele. – Eu me lembro de que não faz muito tempo que você teve uma segunda chance.

Stark olhou para o chão.

Eu respirei fundo e disse:

– Eu também.

Vovó levantou as sobrancelhas.

– Hoje eu ganhei uma segunda chance – expliquei. Olhei de Vovó para os meus amigos, um de cada vez, e, por fim, meu olhar encontrou o de Stark. – Nós somos um time que precisa de uma segunda chance. Estou feliz de ter Kalona ao nosso lado.

Vovó tocou o meu braço.

– Algum dia, você deveria dizer isso para ele, u-we-tsi-a-ge-ya . Acho que você vai ficar surpresa com a diferença que suas palavras podem fazer.


10

Zoey

– Que merda! Você não vai acreditar no que acabou de viralizar no YouTube! – Nicole subiu correndo as escadas do auditório para o palco, acenando com o seu iPad como uma louca.

Aphrodite olhou para ela e afastou o iPad de si.

– Sério? A assembleia acabou agora mesmo . Você estava no YouTube enquanto eu estava falando?

– Sério. – Nicole revirou os olhos. – Supere isso. Todo mundo estava no YouTube. Você tem que ver isto. – Ela empurrou o iPad em direção a Aphrodite.

– Ser professora é um saco. Adolescentes são um saco – declarou Aphrodite, ainda ignorando o aparelho.

– Aiminhadeusa! Aquele é o Kalona? No YouTube? – Stevie Rae passou por Aphrodite para dar uma olhada na tela.

– O quê? Kalona? – Lenobia se apressou para ficar ao lado de Stevie Rae, com Darius e Rephaim logo atrás.

– Muito bem. Eu vou assistir. Agora que eu acabei de informar a todo o corpo discente que vamos salvar o mundo. De novo. – Aphrodite olhou para a tela e arregalou os olhos. – Céus! Por que você demorou tanto para nos dizer? Ligue logo! – Ela agarrou o iPad, tocou no botão para tocar e aumentou o volume até o máximo.

Não era um vídeo profissional, mas o início estava muito claro. Primeiro, focava em Thanatos. Ela estava na frente de um prédio com aparência horrível que parecia estar coberto por uma cortina gosmenta preta. Assistiram enquanto a Grande Sacerdotisa concluía o seu feitiço, erguendo os braços e sendo envolvida por um monte de esferas bonitas e brilhantes. Quando elas se ergueram aos céus, o vídeo ainda mostrava Thanatos, mas, ao fundo, dava para ouvir Neferet gritando:

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo!

O vídeo mudou e agora dava para ver Neferet em frente ao que devia ser o Mayo.

– Ela parece estar precisando de um McLanche Feliz – disse Stevie Rae.

Aphrodite não afastou os olhos da tela.

– Isso é tudo que você tem a dizer, caipira?

– Eu acho que ela está mais doida que um gato preso num saco – opinou Nicole.

– Ninguém perguntou... – começou Aphrodite, mas a explosão no vídeo interrompeu as suas palavras.

– Aiminhadeusa! Não! – ofegou Lenobia, enquanto assistiam a Neferet lançando uma nuvem de Trevas atrás de Thanatos e de todos os outros.

– Meu pai está salvando todo mundo – disse Rephaim.

– Olhem como ele se move. – A voz de Darius era respeitosa. – Sua velocidade e força são incríveis.

Aphrodite não teve a chance de concordar. O vídeo terminou com quem quer que estivesse filmando parando para entrar no Hummer da escola, embora ainda tenha conseguido filmar Neferet e os tentáculos sangrentos das Trevas deslizando para dentro do Mayo.

Então, começou a entrevista, e Aphrodite teve de se obrigar a fechar a boca, que estava aberta de forma não atraente porque lá estava Kalona – com asas e tudo –, ao lado de Thanatos no canal Fox 23.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas eu fiz escolhas erradas e, por isso, eu fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

– Irmão de Erebus? Ele só pode estar brincando! – Aphrodite sentiu que sua cabeça iria explodir.

– É verdade – confirmou Darius em voz baixa quando o vídeo chegou ao fim.

A tela ficou escura e Aphrodite olhou para ele.

– Você sabia ?

– Sabia. Kalona contou para Zoey, Stark e eu – admitiu Darius.

– E nenhum de vocês achou que seria importante contar para qualquer um de nós? – perguntou Lenobia, parecendo tão irritada quanto Aphrodite.

Darius encolheu os ombros largos.

– Para dizer a verdade, eu nem pensei muito nisso. A veracidade de Kalona foi mais do que questionável desde o momento em que ele apareceu aqui.

– Mas agora você acredita nele? – quis saber Rephaim.

Darius olhou para ele.

– Acredito.

– Rephaim, você sabia que o seu pai era irmão de Erebus? – perguntou Stevie Rae.

Os olhos do menino-pássaro ficaram tristes.

– O meu pai nunca fala sobre antes .

– O que significa que não, você não sabia? – insistiu Aphrodite.

– Isso – confirmou Rephaim, parecendo tão misterioso quanto o seu pai.

– Isso muda tudo – declarou Lenobia.

– Sim, de forma maravilhosa – animou-se Nicole, assentindo como um boneco bobblehead . [*] – Isso significa que temos um guerreiro de Nyx no nosso time.

– Não – discordou Aphrodite, secamente. – Significa que temos um ex-guerreiro de Nyx que fez tanta merda, que acabou expulso do Mundo do Além no nosso time. E isso não é tão legal assim.

– Ele disse que está tentando se redimir – falou Rephaim.

– E ele salvou Thanatos e os outros – reforçou Darius.

– Sinto muito, mas eu não estou pronta para pular cegamente para o time Kalona – disse Aphrodite.

– Acho que é cegueira ignorar o que está bem na frente dos seus olhos – retorquiu Rephaim, apontando para a tela escura do iPad.

– E eu acho que tem um monte de coisas sobre Kalona que não sabemos. – Ela fez uma pausa e lançou um olhar duro para Darius. – Ou pelo menos a maioria de nós não sabe. Agora, se vocês não têm mais nada que prefiram fazer, eu adoraria que reunissem todos os novatos que apresentem algum talento guerreiro. Tenho certeza de que Thanatos vai querer um exército para a batalha. Depois de assistir à louca no YouTube, tenho a sensação de que Neferet não vai dar a mínima para o time Kalona. – Aphrodite então deu um tapa na própria testa e acrescentou sarcasticamente: – Ah, esperem! A maldita Neferet provavelmente já sabe sobre a relação Kalona–Erebus, assim como praticamente todo mundo menos eu . – Ela jogou o cabelo para trás e se retirou.

Só quando já estava do lado de fora do auditório é que Aphrodite diminuiu o passo e permitiu que os pensamentos acompanhassem as suas emoções. Seu coração estava disparado e seu estômago, apertado. Estava puta da vida. Muito puta da vida.

Não, isso não é verdade. Eu não estou puta da vida. Eu estou assustada e chateada.

Com um suspiro enorme, Aphrodite saiu da calçada e foi até um dos bancos de carvalho. A mão que afastou o cabelo louro do seu rosto estava trêmula.

Darius omitira um segredo, algo importante. Até aquele momento, acreditara que ele era diferente de todos os outros caras nesta Terra. Ele deveria ser honesto. Ele deveria ser leal. E, acima de tudo, ele deveria amá-la o suficiente para nunca mentir para ela ou guardar um segredo dela.

Quando alguém conta uma mentira, é possível medir o quanto esse alguém amou você ou não. Aphrodite sabia disso porque crescera ouvindo uma mentira constante que não parava de crescer. Os seus pais fingiam ser um casal perfeito, mas a verdade era que se odiavam tanto quanto a odiavam. A não ser quando estavam em público, eles viviam vidas totalmente separadas – eles nem compartilhavam o mesmo quarto havia mais de uma década, quanto mais os segredos.

Eles mentiam um para o outro todos os dias.

Quando ela só tinha oito anos de idade, Aphrodite jurara para si mesma que jamais entraria em qualquer relacionamento semelhante ao casamento dos pais. Merda, até conhecer Darius, nunca tinha permitido que um cara se aproximasse o suficiente dela a ponto de importar se ele mentiria ou não. Ela se certificava de mentir para eles primeiro . Ela os traía primeiro . Ela terminava com eles primeiro .

– Eu consigo sentir a sua tristeza, minha bela. Por favor, fale comigo.

Aphrodite ergueu o olhar ao ouvir a voz de Darius, mas não o olhou nos olhos. Olhou por sobre o ombro dele.

– Sobre o que você quer conversar?

Ele se sentou ao lado dela e usou as costas da mão para enxugar uma lágrima que escorria pela bochecha dela. Aphrodite se afastou dele rapidamente, enxugando o outro lado do rosto.

– Eu quero conversar sobre nós – respondeu ele.

– É mesmo? Será que não seria bem mais fácil continuarmos seguindo do jeito que estamos? Fingindo estar “apaixonados para todo o sempre”? – perguntou ela sarcasticamente e usando os dedos para indicar as aspas.

– Nunca foi fingimento para mim. Você sabe muito bem disso, Aphrodite. – O tom dele era calmo e sério.

Ela desejou dar uma tapa na cara dele – machucá-lo –, fazê-lo sentir um pouco do medo que estava sentindo. Mas não fez nada de violento. Isso significaria perder o controle. Isso significaria que tinha se transformado na sua mãe. Em vez disso, Aphrodite o atacou com palavras.

– E como é que eu posso saber disso? Eu não posso entrar na sua cabeça. Eu nem posso compartilhar os seus sentimentos como uma verdadeira Profetisa faria. Mas tanto faz. Não se preocupe com isso. Está tudo bem, e nós dois temos um monte de merda para fazer porque, como sempre, as Trevas estão tentando dominar o nosso mundo.

– As Trevas terão de esperar, porque você é o meu mundo, e se eu perder você, eu vou me perder.

Aphrodite quis se levantar e se afastar dele sem olhar para trás. Ela iria endurecer o coração, deixá-lo tão duro quanto ele costumava ser para, na verdade, protegê-la. Antes da tempestade de Zoey e seu bando Nerd e Darius aparecerem na sua vida.

Era o que ela iria fazer, mas, de alguma forma, Darius disse exatamente a coisa certa. Então, as pernas de Aphrodite, de repente, decidiram ouvir o seu coração em vez de escutar a cabeça.

Aphrodite olhou para ele.

– Você mentiu para mim.

– Não, minha bela. Eu simplesmente não contei uma coisa para você.

– Por quê? Por que você não me contou? Kalona ser irmão de Erebus é uma puta informação importante.

– Eu não estou nem aí para o que Kalona disse ou deixou de dizer. Eu só ligo para você e o que você diz.

– Eu? – Aphrodite franziu as sobrancelhas. – Do que é que você está falando? Eu nunca mencionei qualquer coisa remotamente semelhante à possibilidade de Kalona e Erebus serem irmãos.

O sorriso de Darius foi lento e doce.

– Exatamente. E se você, minha bela Profetisa talentosa, não tem qualquer insight sobre o verdadeiro passado de Kalona, então por que é que eu deveria mencionar um comentário fora de contexto que um imortal alado fez? Aphrodite, se fosse importante que soubéssemos que Kalona era irmão de Erebus, então creio que você teria dito isso para mim .

Aphrodite meneou a cabeça, sentindo-se um pouco tonta quando ela se deu conta do que Darius realmente estava dizendo para ela.

Ele pegou a sua mão.

– Será que eu já disse hoje o quanto eu amo você?

– Não – sussurrou ela, pensando: por favor, não diga isso se não for verdade. Por favor, não faça isso.

– Com todo o meu ser – declarou ele.

Lágrimas escorreram pelo rosto de Aphrodite, mas ela não afastou o olhar dele.

– Não tenha medo – pediu ele.

– Eu tenho. Isso ainda me assusta – admitiu ela.

– Também me assusta, mas, para ficar com você, realmente com você e não apenas fingir para que o meu coração fique em segurança, vale a pena enfrentar e dominar esse medo.

– Mas você é um guerreiro. Eu não sou nada. Não de verdade. Eu sou apenas... – Sua voz falhou. Não conseguiria dizer, mas as palavras enchiam a sua mente: eu apenas sou filha de uma mulher horrível que só me ensinou a odiar, e nunca, nunca confiar no amor.

– Você é a pessoa mais corajosa que eu conheço – afirmou Darius com voz solene. – E você não é, e nunca será, como a sua mãe.

– E você nunca vai mentir para mim.

Ela não falou aquilo como uma pergunta, mas ele se levantou do banco e se ajoelhou, pressionando a mão dela contra o coração dele, dizendo:

– Aphrodite, Profetisa de Nyx, eu lhe juro que jamais mentirei para você. Se eu não falar a verdade sempre para você, que a Terra me engula inteiro para que o meu espírito jamais encontre o Mundo do Além.

Um calafrio terrível passou por Aphrodite e ela agarrou Darius, puxou-o para os seus braços e sorriu.

– Não, pare já com isso! Qualquer um pode contar acidentalmente uma mentira. Qualquer um! Eu não aceito o seu juramento!

Darius se inclinou um pouco para trás, segurando gentilmente os ombros trêmulos dela, e sorriu.

– Mas eu não sou qualquer um . Eu sou seu. O seu guerreiro. O seu amante. O seu companheiro. Juro que nunca vou mentir para você porque isso a magoaria mais do que poderia suportar, e eu prefiro que a Terra me engula para sempre do que fazer isso com você.

Enquanto olhava para Darius e via a verdade nos seus olhos, algo se libertou dentro de Aphrodite – algo pequeno e afiado que estivera fincado dentro dela por muito, muito tempo. Ela ofegou e inspirou fundo, soltando o ar devagar.

– Acabou – sussurrou ela.

– O que acabou, minha bela?

– O meu medo. Acabou, Darius. Você acabou com ele. – Aphrodite sabia que soava jovem e tola. Mas não ligava. Pela primeira vez na vida, não estava com medo de perder o amor. – Eu não posso perder você! – exclamou ela.

– Não – respondeu ele, sorrindo de novo. – Você jamais vai me perder. E eu não acabei com o seu medo. Você o deixou ir.

– Ah – respondeu ela, suavemente, compreendendo por fim. – Sinto muito por ter demorado tanto.

– Você demorou o tempo necessário, e eu não me arrependo por ter esperado.

Darius a beijou em seguida, e Aphrodite vivenciou a felicidade completa.

Até que Aurox os interrompeu.

– Darius! Aí está você. Venha rápido. Eles estão nos portões.

Aphrodite se apoiou no ombro de Darius e franziu as sobrancelhas para Aurox.

– Ah, que droga! Se você interrompeu este momento porque Zoey e seu bando nerd voltaram, eu vou acabar com você...

– Não é a Zoey! – explicou Aurox. – São humanos! Os humanos estão nos portões pedindo para entrar porque querem que nós os protejamos contra Neferet!

– Bem, neste caso, acho que devemos deixá-los entrar – declarou Darius, levantando-se e oferecendo a mão para Aphrodite. – Você não acha, minha bela?

Ela suspirou e resmungou:

– Tudo bem. Desde que não tenha nenhum político com eles.

[*] Bobblehead refere-se a bonecos que possuem a cabeça presa ao corpo por meio de uma mola, a qual faz com que a cabeça balance quando há qualquer movimento. (N. E.)


11

Zoey

– Ah, que merda! Uma multidão? Isso é tudo de que precisamos agora. – Suspirei, frustrada, enquanto passávamos pelo semáforo na Twenty-first Street em Utica e conseguimos ver a escola.

Foi uma cena superestranha. Já passava da meia-noite, e a rua estava escura. Deveria estar vazia também, mas os grandes portões de ferro da escola estavam abertos, e pudemos ver um monte de gente reunida na frente dele. Os dois lampiões a gás envolvidos por candeeiros de cobre desgastados pelo tempo lançavam sombras bruxuleantes em um semicírculo sobre o grupo. As pessoas também vinham dos dois lados da rua. Fora do alcance das chamas da escola, dava para ver as sombras escuras dos carros que estavam estacionados na calçada, parecendo abandonados e completamente fora de lugar.

– Você está vendo alguma coisa queimando além das nossas lanternas? Tipo um crucifixo gigantesco em chamas? – A cabeça de Shaunee apareceu entre mim e Stark enquanto tentava ver melhor do banco de trás onde estava.

– Parem o carro e deixem-me sair daqui. Eu vou resolver isso! – avisou Kalona.

– Não! – gritaram Thanatos, Marx e Vovó juntos.

– Eles não parecem zangados – disse Thanatos.

O detetive Marx parou e baixou o vidro. Todos apuramos os ouvidos para escutar alguma coisa, e então ele disse:

– Está difícil enxergar alguma coisa, mas não estou ouvindo gritos.

– A minha visão noturna é melhor do que a sua, e eu não estou vendo nenhum tumulto ou pânico. Tudo parece notavelmente calmo – declarou Thanatos.

– Tudo bem, melhor prevenir do que remediar. Então, vamos nos certificar de que saibam de que lado da lei a Morada da Noite está.

O detetive pegou uma sirene portátil que trouxera com ele do Oneok e a acoplou ao teto do Hummer. Ligou-a, e ela começou a girar uma luz azul e vermelha que era familiar demais para qualquer um de nós que não tivesse parado totalmente no cruzamento da rua 101 com a Lynn Lane, em frente à South Intermediate High School. Não que eu tenha qualquer experiência pessoal com isso. Só estou dizendo que é estranho estar em um carro de polícia quando a sirene está ligada.

Marx deu mais um tapa na sirene, que então emitiu um som odioso duas vezes. A luz e o som trabalharam em sintonia perfeita. A multidão se abriu e se virou para nós e, reconhecendo a presença do Departamento de Polícia de Tulsa, as pessoas abriram caminho para que o Hummer pudesse chegar à entrada da escola.

Diante do local onde o portão de ferro deveria estar seguramente trancado estavam Aphrodite, Darius, Stevie Rae, Rephaim, Lenobia e Aurox, todos alinhados na frente da entrada formando uma passagem humana.

– O que eles estão fazendo? – perguntou Stark, ecoando os meus pensamentos.

– Espero que tenham tomado decisões sábias – desejou Thanatos.

Em silêncio, concordei enquanto os meus olhos pousaram primeiro em Aphrodite. Se ela aparentasse estar zangada, ou segurasse uma bebida, eu saberia que o que quer que estivesse acontecendo ali era ruim – com crucifixos em chamas e gritos ou não. Mas ela parecia confusa. Tipo, obviamente confusa. Uma de suas mãos estava no quadril e os ombros, encolhidos. Ao mesmo tempo, Lenobia estava assentindo e conversando com alguém na multidão que eu não conseguia ver direito.

– Aphrodite parece confusa, mas não assustada – expus a minha observação de surpresa. – E Lenobia parece estar de acordo com o que quer que seja que está acontecendo. Não deve ser tão horrível.

– Lá estão a irmã Mary Angela e a irmã Emily. Ah, eu estou vendo! Tem um grupo de freiras lá na frente. – Vovó apontou e acenou. – Está tudo bem se elas fazem parte do grupo.

– É uma boa teoria, mas eu vou parar dentro da escola antes que qualquer um de vocês desça. E quero que vocês permaneçam nas dependências da Morada da Noite, não importa quem possa estar chamando vocês do lado de fora – declarou Marx.

Percebi que Vovó estava fazendo cara feia, mas Thanatos foi rápida em concordar:

– Pode deixar, detetive.

Eu estava feliz. Tudo bem, talvez fosse porque não havia se passado nem 24 horas desde que eu saíra da cadeia, mas uma multidão de humanos em torno dos portões da escola – ainda que fossem humanos conhecidos que pareciam ter vindo em paz – fazia o meu estômago se contrair com o estresse da situação. Isso sem mencionar que já passava da meia-noite e não fazia muito tempo desde que Neferet jogara pedaços de corpos humanos pela varanda da sua cobertura no Mayo. Eu não tinha a menor intenção de olhar de cara feia para Marx nem Thanatos, muito menos desobedecê-los. Na verdade, eu esperava já ter sido desobediente o suficiente pelo que seria o resto de uma vida que eu esperava ser longa e chata.

Então, Kalona saiu do Hummer.

– Ei, não é aquele cara alado? – gritou alguém na multidão.

– Uau! O filho de Erebus! – exclamou alguém mal-informado e pronunciando erroneamente o nome Erebus de forma que soasse como Airbus , o que fez Stark cobrir a boca com a mão para disfarçar o riso com uma tossida.

Dei uma cotovelada de leve em Stark, e ele me lançou o seu olhar charmoso e sorriso torto dizendo com os lábios “Airbus ”. Revirei os olhos.

– Tudo bem, tudo bem – disse o detetive Marx enquanto erguia as mãos fazendo um gesto para o público se acalmar. – Não tem nada para ver aqui. Vocês precisam se afastar e desbloquear a entrada.

– Ah, não precisa se preocupar, detetive. Não queremos bloquear a entrada da escola. Só queremos entrar na escola. – Uma freira alta, usando véu, deu um passo para a frente com um sorriso maternal nos lábios. – É tão bom vê-lo de novo, Kevin.

– Irmã Mary Angela, senhora. – Detetive Marx fez um gesto antigo de respeito com a cabeça. – É muito tarde para a senhora e as outras freiras fazerem uma visita social.

– Ah, Kevin, não estamos aqui para uma visita – declarou ela de forma enigmática.

Antes que Marx tivesse a chance de interrogá-la, Vovó falou passando por ele para encontrar a freira da fronteira da escola.

– Mary Angela, eu estava pensando em você hoje cedo.

Elas deram um abraço. A freira riu e disse alto o suficiente para que todos ouvissem:

– E quando foi que pensou em mim? Antes ou depois de ter sido atacada pelas Trevas? Você leva uma vida tão interessante, Sylvia.

Aphrodite, que se aproximou para ficar ao meu lado, bufou, dizendo:

– Os velhos deviam ter uma vida menos interessante.

– Nós devíamos ter uma vida menos interessante – retruquei baixinho.

Vovó sorriu como se tivesse nos ouvido.

– Foi depois, quando Thanatos pediu que todos em Tulsa rezassem para nos ajudar.

– Ah, que adorável coincidência, porque foi a oração que nos trouxe até aqui.

– Por favor, explique, cara irmã – pediu Thanatos.

Notei que ela não se juntou à Vovó. Olhei para Kalona, que estava colado ao seu lado como se esperasse que mais gavinhas das Trevas aparecessem a qualquer momento.

– Mas que merda, já chega dessa procrastinação – reclamou Aphrodite, dando um passo para a frente. – Eles querem a nossa proteção.

Eu a segui, embora Stark tenha segurado o meu cotovelo para que eu fosse mais devagar.

– Creio que a palavra correta para o que eles querem seja “santuário” – interveio Lenobia.

– Você quer dizer a palavra politicamente correta – retorquiu Aphrodite.

– Se qualquer um de nós fosse politicamente correto, não estaria aqui. – Do meio das sombras iluminadas pela luz dos lampiões, uma mulher pequena, seguida por um homem esbelto, caminhou até irmã Mary Angela. Ela assentiu educadamente para Thanatos. – Shalom, Grande Sacerdotisa.

– Eu a saúdo com paz, rabina Margaret – cumprimentou Thanatos. Agora que estavam mais perto da luz, o casal me parecia familiar. – Eu também o saúdo com paz, rabino Steven. É sempre um prazer ver os nossos vizinhos do Templo de Israel.

Percebi por que a mulher e o homem pareciam conhecidos. Eram rabinos casados, Margaret e Steven Bernstein, que recentemente se tornaram os líderes no Templo de Israel, localizado, literalmente, do lado da Morada da Noite, que dava para Utica Square. Eu me lembrava de que eles tinham elogiado muito os cookies de chocolate da Vovó durante o nosso evento antes que a noite tivesse, é claro, terminado em desastre e morte.

– Então, é realmente um santuário que vocês buscam nesta noite? – perguntou Thanatos para o casal, mas a sua voz se ergueu para toda a multidão.

– É – respondeu a rabina Margaret, enquanto ela e o seu marido, assim como todos, assentiam em concordância.

– A irmandade das beneditinas também busca um santuário – declarou irmã Mary Angela.

– Assim como a congregação de Todas as Almas – disse uma mulher mais velha, dando um passo para a frente e saindo das sombras. Ela tinha cabelo louro desbotado e comprido, mas os seus olhos eram de um azul tão vívido que, mesmo sob a luz fraca, brilhavam como pequenas águas-marinhas.

Thanatos hesitou. Lançou um olhar para Lenobia, que sorriu. Olhou para Kalona, que franziu o cenho. E, então, ela me surpreendeu ao olhar para mim por sobre o ombro. Encontrei o seu olhar e fiz o que meus instintos me mandaram fazer – sorri e assenti.

Thanatos voltou-se para Suzanne, segurou o seu antebraço na saudação vampírica tradicional e ergueu a voz, repleta com o poder de Nyx:

– Como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, eu lhes dou as boas-vindas ao grande santuário para todos que o buscam!

Ao meu lado, ouvi Stark suspirar e sussurrar.

– Ai, que merda...

Zoey

– Não, Bobby! Quantas vezes a mamãe vai ter que dizer? Você não pode tocar nas asas do moço alto! – Uma mulher com aparência cansada pegou o seu bebê que estava cambaleando pelo piso arenoso do ginásio com os braços erguidos, tentando pegar a ponta da asa de Kalona.

Mordi a bochecha para não rir enquanto o imortal alado fazia um som de desagrado e dava um passo para evitar os dedinhos grudentos. O bebê tentou sair do alcance dos braços cansados da mãe. Kalona foi para o outro lado. Como sempre, onde quer que aparecesse, todos os humanos concentravam sua atenção nele, e isso parecia afetá-lo. Ele parecia cansado. Curiosamente, os seus ferimentos ainda não tinham se curado por completo, formando linhas e círculos rosados dolorosos. Achei que talvez ele não tivesse passado tempo suficiente no telhado do Oneok quando um “Psiu!” de Aphrodite chamou a minha atenção.

– Z., caipira, venham comigo, agora! – chamou ela.

Stevie Rae e eu largamos um garrafão de água que levávamos para o ginásio e seguimos Aphrodite até o fim do muro mal-iluminado em cuja abertura ficava a estátua de Nyx.

– Cara, eu estou acabada – declarou Stevie Rae.

– Eu também – concordei.

– Já passou da hora do nosso intervalo – disse Aphrodite, jogando latas de refrigerante marrom para nós duas.

Então, ela me pegou totalmente de surpresa ao abrir uma lata para si.

– Refrigerante? Você? Achei que odiasse.

– E odeio mesmo, e isso não é refrigerante. É champanhe de Sophia – informou ela, tomando um gole pelo canudo cor-de-rosa que tirara da lata fina da mesma cor.

– Quem diria, champanhe em uma lata – comentou Stevie Rae.

– Qualquer um que seja civilizado.

– Eu não sabia – disse eu.

– Exatamente o que eu quero dizer – respondeu Aphrodite. Então, ela lançou um olhar para Kalona que estava no meio do ginásio, com certeza procurando alguém e tentando ignorar as pessoas que o olhavam. – Kalona e humanos, principalmente humanos pequenos, equivalem a um acidente de trem apocalíptico – declarou ela.

– Concordo plenamente – disse eu. – Vocês acham que ele está parecendo cansado?

Aphrodite bufou.

– Nós todos parecemos cansados.

– Acho que ele parece como sempre, só que um pouco ferido, o que torna aquele bebê meio malvado por tentar agarrar uma pena de sua asa – opinou Stevie Rae.

– Kalona é imortal. Ele está bem. E um bebê arrancando a pena dele seria mais que demais – declarou Aphrodite. – Acho que eu poderia convencer aquela criancinha a fazer isso. Ou melhor, convencer a mãe a permitir que o filho faça isso. Você acha que ela gostaria de um coquetel mimosa?

– Aquela mãe parece mesmo estar precisando de um coquetel mimosa, mas sem o suco de laranja. Acho que ela gostaria de uma das suas latinhas cor-de-rosa – disse Stevie Rae.

– Eu não costumo dizer isso com frequência, porque geralmente não é verdade, mas acho que você está certa, Stevie Rae – concedeu Aphrodite. – Embora eu venha a precisar de mais de uma dessas latinhas. Parece um trabalho para a viúva Clicquot.

– Viúva Clicquot? Ela é do Templo de Israel?

– Ah, sua pobre ignorante – lamentou Aphrodite, meneando a cabeça tristemente para Stevie Rae.

Kalona conseguiu passar pelo bebê e estava se movendo de novo. Ai, ele parecia estar vindo na nossa direção!

– Diga que ele não está vindo para cá.

– Quem dera eu poder dizer isso – respondeu Aphrodite.

– Ele parece um pombo gigante voltando para o poleiro – disse Stevie Rae.

– Será que devemos ir ao encontro dele? – sugeri, bocejando.

Olhei para o relógio da escola. Já eram 5h30 da manhã. Tínhamos pouco menos de uma hora antes de o sol nascer, e eu entendi o que era exaustão.

– Salvar Kalona dos humanos? Não mesmo – respondeu Aphrodite.

– Concordo – reforçou Stevie Rae.

Dei de ombros e bocejei de novo.

– Por mim, tudo bem. Estou cansada demais para me mexer.

Thanatos decidira que o melhor lugar para colocar todos os humanos – e realmente havia muitos deles – era no maior prédio do campus , o nosso ginásio. Achei uma boa ideia. O lugar era enorme, e com todos reunidos ali seria mais fácil manter o controle. É claro que a maior parte do piso do ginásio era de areia, porque era usado para o treinamento dos guerreiros, e a areia era um saco. Areia, sacos de dormir e humanos cansados, amedrontados e mal-humorados não constituíam uma boa combinação, então nós todos (quero dizer, quase todo mundo no campus , exceto Thanatos, Vovó, detetive Marx e os líderes religiosos) passamos as últimas horas nos esforçando para cobrir a arena dos guerreiros com lona, transformando o lugar no que parecia ser um abrigo temporário contra furacões. Não que aquilo fosse muito melhor, mas estava menos arenoso e mais limpo para as famílias dormirem.

– Olhe isso. – Aphrodite me cutucou com o ombro. – O rabino Steven Bernstein cercou Kalona. Aposto que está fazendo todo tipo de pergunta maluca sobre o Torá.

– É culpa do Kalona – disse eu. – Ele bem que poderia usar uma camisa.

– Pois é! Qual é a necessidade de ficar exibindo o peitoral? – questionou Aphrodite.

– Olha só, gente – interrompeu Stevie Rae, apontando. – Acho que Nicole e Shaylin estão se tornando boas amigas. Fico feliz. Nicole mudou muito e, bem, Shaylin precisa de uma melhor amiga, principalmente depois que você deu uma de louca para cima dela, Z. – disse Stevie Rae antes de acrescentar: – Sinto muito, Z. Eu não queria colocar o dedo na ferida.

Suspirei.

– Não tem problema. Eu realmente dei uma de louca para cima dela. Fico feliz que ela tenha uma boa amiga.

Aphrodite e eu olhamos para as duas meninas de cabelo escuro. Elas estavam arrumando o saco de dormir e pareciam superamigas. Na verdade, enquanto eu as observava, vi os ombros delas se tocarem e as cabeças se aproximarem. Ergui as sobrancelhas. Nicole ergueu a mão e afastou o cabelo de Shaylin do seu rosto, acariciando o rosto dela ao fazer isso, lembrando-me estranhamente de algo que Stark fazia enquanto me paquerava. Limpei a garganta.

– Hum, acho que elas parecem bem próximas .

– Todo mundo devia ter uma melhor amiga! – declarou Stevie Rae olhando para mim.

– Hum, Stevie Rae – comecei, ainda observando os toques e os olhares que Nicole e Shaylin estavam trocando –, acho que elas talvez...

– Ai, que droga, Z.! – exclamou Aphrodite. – Você fez Shaylin virar gay!

Eu franzi as sobrancelhas para ela.

– Seja legal!

– Aiminhadeusa! – Stevie Rae arregalou os olhos enquanto via Nicole dar um beijinho no pescoço de Shaylin. – Eu não sabia que você podia fazer alguém virar gay!

– Sério, caipira! Eu tenho que perguntar de novo: você é retardada?

– Você sabe como eu me sinto com essa palavra – respondeu Stevie Rae.

– E você sabe que eu não estou nem aí.

– E vocês duas sabem que quando começam a implicar uma com a outra me dá dor de cabeça. Aphrodite, não seja cruel com Shaylin e Nicole. Elas podem amar quem desejarem. Stevie Rae, não. Não dá para fazer alguém virar gay. Caramba.

– Ei, eu não estou nem aí para quem ela ama ou com quem ela anda dormindo, mas vou adorar ver a merda que está por vir. – Aphrodite apontou para o pequeno espaço entre a cama que Shaylin e Nicole estavam arrumando. – E aí vem Clark Kent, bem na hora. E eu acho que ele acabou de ver o beijo.

– É – disse Stevie Rae. – Acho que viu. Olhe só para ele.

– Confuso. Acho que seria isso que Vovó diria sobre a expressão dele. Totalmente confuso – concordei. – Eu sei que não deveria, mas acho que vou gostar de ver isto.

– Você está brincando? Eu quero gravar e assistir várias vezes – declarou Aphrodite.

Erik já estava começando a falar com Shaylin. Mesmo de onde estávamos, dava para perceber que ele usava o seu sorriso de astro de cinema com um brilho de cem watts.

– Sei que ele pode ser um saco às vezes, mas vocês têm que admitir que ele é uma gracinha – declarou Stevie Rae. – Não como Rephaim, mas um gatinho mesmo assim.

Aphrodite fez um som como se estivesse se controlando para não falar nada.

Nicole não hesitou e não se afastou. Parou ao lado de Shaylin e envolveu a sua cintura fina com o braço em um gesto íntimo, olhando diretamente para Erik com uma postura possessiva.

– Sabia que Nicole seria o cara – declarou Aphrodite.

– O cérebro do Erik parece prestes a explodir e passar pela covinha do seu queixo – disse eu.

– Zoey, Thanatos convocou você, Stevie Rae e Aphrodite. Ela pede que vocês três se juntem a ela na Câmara do Conselho. Isto é, se vocês tiverem acabado de tomar conta dos humanos – disse Kalona sarcasticamente, olhando para os não humanos que a gente estava espiando.

Nós três demos um pulo de susto ao som de sua voz. Como sempre, Aphrodite se recuperou primeiro.

– Bem, graças à Nyx e ao menino Jesus por nos tirar daqui antes do nascer do sol – declarou Aphrodite. – Vou levar dias para tirar toda essa areia das minhas sapatilhas Jimmy Choo brilhantes. Sou muito melhor em profetizar do que em arrastar coisas.

Ela jogou o cabelo para trás e se dirigiu à porta. Ouvi enquanto ela sugava o que restava do champanhe com o seu canudinho.

– Tudo bem. Hum, obrigada – disse eu de forma inadequada. – A gente deve chamar Stark, Darius e Rephaim também?

– Os homens estão ocupados. – Kalona olhou para o local onde os três homens lutavam com a extremidade de uma lona imensa.

– Tudo bem então. Vamos sair daqui – disse Stevie Rae acenando para Rephaim.

Eu mandei um beijo para Stark e a segui.


12

Zoey

Passamos pela irmã Mary Angela, a rabina Bernstein e a ministra de Todas as Almas enquanto entrávamos no corredor até a Câmara do Conselho.

– Zoey, Aphrodite e Stevie Rae – cumprimentou a freira, fazendo um gesto para as mulheres ao seu lado. – Permitam que eu apresente vocês três para a rabina Margaret Bernstein e Suzane Grimms.

– Merry meet – respondemos as três, quase em uníssono.

As mulheres pareciam cansadas, mas sorriram.

– Prazer em conhecê-las e em estarmos aqui – respondeu a rabina.

– Sim, obrigada a todas vocês pelo trabalho duro que estão fazendo para ajudar a todos se acomodarem.

Nós assentimos como quem diz “não há de quê” , e as mulheres se afastaram; a irmã Mary Angela olhou para mim.

– Boa sorte, Zoey.

– Ela sabe de alguma coisa que não sabemos – sussurrou Aphrodite.

Concordei com a cabeça, e seguimos para a porta da Câmara do Conselho. Então, quase demos de cara com Shaunee, que saiu olhando para todos os lados menos para onde estava indo.

– Caramba, tenha cuidado – disse eu, segurando-a para que nenhuma de nós duas caísse.

– Mas o que é que você está fazendo por aqui? – perguntou Stevie Rae. – A minha mãe diria que você está agindo como se o seu cabelo estivesse pegando fogo.

Shaunee ergueu a sobrancelha.

– Eu preferia que o meu cabelo estivesse pegando fogo a ter perdido o meu gato. Não consigo encontrar Beelzebub em lugar nenhum.

Eu tinha ficado superfeliz de saber que, enquanto eu estava presa, Shaunee e Kramisha tinham ido ao depósito e recuperado os nossos quatro gatos – além de Duquesa, é claro – e os levado de volta para a Morada da Noite. Nala pulou em mim quando fui para o dormitório trocar de roupa, e eu a apertei com tanta força que ela ficou descontente e espirrou no meu rosto.

– Por que você está estressada? Você sabe como os gatos são. Eles vêm quando querem e vão quando querem. Eu não tenho ideia de onde Malévola está agora – informou Aphrodite.

– Eu só espero que ela não esteja por aqui – desejou Stevie Rae baixinho.

Intervim antes que Aphrodite começasse a brigar com ela.

– Tenho que concordar com Aphrodite. Beelzebub deve estar feliz passeando por todos os túneis e esticando as patas.

– Foi o que pensei também, mas Beelzebub nunca falta ao jantar. Nunca . E eu sempre dou comida para ele bem antes do nascer do sol. Sacudi o pacote de Whiskas, e ele não veio correndo como sempre. Então, comecei a procurar. Vocês notaram que os gatos estão sumidos?

Pensei naquilo. Eu vira Nala antes de ir para o Mayo, mas, desde que voltamos, ela não aparecera. Na verdade, agora que estava pensando naquilo, eu não tinha visto nenhum dos gatos recentemente.

– Hmm, agora que você mencionou, não. Eu não vi nenhum dos gatos. Duquesa estava no ginásio com Damien e Stark, mas Cammy não estava com ele, nem Nala.

– Como se isso fosse alguma surpresa? Façam-me o favor. Não sejam idiotas. O ginásio está cheio de humanos. Eu não sou um gato, mas isso me faz querer sumir também. Eu com certeza não os culpo por quererem desaparecer.

– Faz sentido – concordou Stevie Rae. – Gatos são estranhos assim. Sem querer ofender – completou ela, olhando para Aphrodite.

– Concordo com estranho. Como eu já disse antes, normal é supervalorizado.

– Tudo bem, então eu vou tentar não me preocupar com ele. Sinto muito se esbarrei em vocês, gente. Vejo vocês mais tarde.

– Juntem-se a nós na Câmara do Conselho, jovens novatas. – A voz de Kalona nos surpreendeu.

– Ele é sempre tão furtivo – sussurrou Stevie Rae para mim.

– Obrigada por me convidar, Kalona, mas não, obrigada – declarou Shaunee. – Nunca ninguém sai da Câmara do Conselho dizendo “Uau, que legal! Mal posso esperar para fazer isso de novo”.

Eu ia começar a rir e me despedir de Shaunee, mas meus instintos entraram em ação e me fizeram dizer:

– Na verdade, eu gostaria muito que você se juntasse a nós.

Shaunee parou, suspirou e deu de ombros.

– Tudo bem. Acho que isso é melhor do que ficar arrumando as camas no ginásio.

Sorri em agradecimento, e nós cinco entramos na Câmara do Conselho.

Thanatos e Vovó estavam sentadas uma do lado da outra. Lenobia também estava lá. Fiquei surpresa de ver que o detetive Marx estava em pé, com os braços cruzados, atrás de Thanatos. Achei que não houvesse mais ninguém lá, mas um movimento na porta dos fundos chamou a minha atenção e eu vi Aurox ali de novo, como se estivesse de guarda. Ele não olhou para mim.

– Zoey, Aphrodite, Stevie Rae, Kalona, por favor, entrem e se acomodem – disse Thanatos. – Shaunee, não creio que eu a tenha convocado.

– Eu pedi para ela se juntar a nós – falei eu.

– Então, Shaunee também é bem-vinda – concordou Thanatos, fazendo um gesto para nos sentarmos.

Só quando cheguei à mesa vi que a grande tela plana de computador estava ligada. Pisquei, surpresa, e depois sorri e apressei os últimos passos.

– Sgiach! Oi, que legal ver você! – exclamei.

A rainha sorriu e respondeu de maneira mais formal (e adequada):

– Merry meet , Zoey. Também é um prazer revê-la.

– Chamamos a Rainha Sgiach, desejando falar com um dos seus guerreiros, para que lhe desse o recado de que gostaríamos de encontrá-la – explicou Thanatos.

– E ficamos surpresos, e satisfeitos, quando a própria rainha respondeu ao nosso chamado – acrescentou Vovó.

Fiz um cálculo mental rápido: se eram quase seis horas da manhã em Tulsa, devia ser meio-dia na Escócia. O que Sgiach estava fazendo acordada? Olhei a rainha com mais atenção. Ela estava sentada em uma cadeira enorme de madeira na sua biblioteca particular – que parecia normal. Mas Sgiach não estava com aparência normal. O seu cabelo estava desarrumado, o rosto sujo, e eu me inclinei para mais perto da tela para ver melhor...

– Sangue! Por que está suja e tem sangue em você? Está tudo bem?

– Estou viva – respondeu Sgiach, o que não respondia à minha pergunta.

– Onde está Shawnus ? – perguntou Aphrodite, errando a pronúncia do nome do guardião de Sgiach de propósito.

– Seoras – corrigiu a rainha, estreitando o olhar para Aphrodite – está liderando uma guarda diurna e protegendo a ilha.

– Espere aí, protegendo durante o dia ? – Sacudi a cabeça, confusa. – Mas a sua ilha protege a si mesma, principalmente durante o dia.

– Isso é verdade desde que a Luz e as Trevas estejam em equilíbrio – explicou Sgiach.

– Zoey Passarinha – Vovó tocou a minha mão, como se estivesse me dando força –, Neferet acabou com o equilíbrio no mundo. As Trevas Antigas começaram a extinguir a Luz.

Os meus joelhos cederam, e eu me sentei na cadeira. Stevie Rae se sentou pesadamente ao meu lado. Aphrodite ficou andando de um lado para o outro atrás de nós, quase esbarrando no detetive Marx, e Shaunee escolheu uma cadeira próxima a Lenobia.

– Mas Neferet já estava louca havia um tempão. Eu não entendo por que ela de repente bagunçou as coisas – raciocinei.

– Ah, menina – lamentou Thanatos em tom triste. – Não é uma coisa repentina. É a culminação de uma onda terrível que vem subindo desde que Neferet libertou Kalona de sua prisão.

Eu franzi o cenho para o imortal alado que estava do outro lado da sala, próximo à porta principal, com o peito nu, expressão pétrea e em silêncio.

– Ele está do nosso lado agora. Isso deveria ajudar, e não atrapalhar o equilíbrio – argumentei.

– Isso não é um jogo. Essas forças não podem ser controladas – explicou Sgiach. – Foi o ato de libertá-lo que fez a inundação começar. Kalona foi apenas a primeira pedra a cair em uma represa começando a ruir.

– Então, vamos colocar a pedra de volta! – exclamou Aphrodite.

– Realmente – concordou Thanatos. – Foi por isso que chamamos Sgiach.

– Então, o que vamos fazer? – perguntei.

– Você junta a sabedoria de épocas distintas, de um mundo diferente. Forças antigas estão trabalhando agora. E é com sabedoria antiga que temos que remar contra a maré e restaurar o equilíbrio.

– Será que você pode ser menos enigmática do que uma das minhas malditas visões? – pediu Aphrodite.

– É claro, minha jovem e arrogante profetisa. – Achei que Sgiach fosse dar um belo chute na bunda de Aphrodite via Skype, mas, em vez disso, o seu olhar pousou em mim e, apesar dos milhares de quilômetros que nos separavam, o que ela disse fez os pelos dos meus braços se eriçarem. – O detetive Marx me explicou o que aconteceu entre você e os humanos no parque. Thanatos e a sua avó me contaram que a sua violência contra eles não foi um incidente isolado e que envolveu a pedra da vidência.

– Isso, mas eu não tenho mais a pedra – assegurei para ela rapidamente. – Eu não a uso mais.

– Menina, você nunca a usou. Ela usou você – explicou ela.

Engoli a terrível secura que tomou conta da minha boca.

– Eu sei. Foi por isso que a deixei aos cuidados de Aphrodite quando me entreguei para o detetive Marx.

– Conte-me como estava se sentindo nos dias que culminaram no incidente no parque – pediu Sgiach.

Hesitei e tentei ordenar os pensamentos. Por fim, comecei:

– Eu estava nervosa. Frustrada. Irritada. Parecia que eu estava zangada o tempo todo.

– As coisas pioraram depois que você usou a pedra da vidência para revelar o espelho que refletia o passado quebrado de Neferet para ela?

Arregalei os olhos.

– Eu não tinha pensado nisso, mas sim, ficou pior depois. – Instintivamente, passei a mão pela cicatriz na palma da minha mão. – Ela esquentava com mais frequência. E eu perdia a noção do tempo. – Contei essa última parte rapidamente, sem olhar para os meus amigos, para quem eu não tinha contado aquilo.

– Você via coisas durante o seu tempo perdido? – ela perguntou.

– Via – admiti lentamente, não gostando nada da expressão em seu rosto.

– Coisas como Fey, os espíritos elementares que viu em Skye quando esteve lá comigo?

– Não. – Estremeci. – Até poderiam ser Fey, mas não era como os elementares em Skye. Eram horríveis.

– Alguns Fey são terríveis. Assim como nós, nem todos eles escolhem a Luz. O que você via quando perdia a noção do tempo aconteceu antes ou depois de usar a pedra para salvar a sua avó?

– Antes – respondi.

– Zoey, aqui está a verdade que você precisa ouvir: magia antiga pode restaurar o equilíbrio da Luz e das Trevas novamente, o que significa que a sua pedra da vidência é a chave para se vencer esta batalha.

– Então, eu preciso dá-la a outra pessoa, porque o que eu estava fazendo com ela não funcionou. Tudo piorou em vez de melhorar – disse eu.

– Eu gostaria que as coisas fossem tão simples assim – declarou Thanatos.

Ela, Vovó e Sgiach trocaram um olhar, e eu soube que elas tinham conversado sobre a pedra antes de eu chegar.

Vovó deu uns tapinhas na minha mão e disse:

– Ninguém mais pode ostentar a pedra da vidência, u-we-tsi-a-ge-ya . A pedra só esquenta para você. Isso significa que ela a escolheu, e apenas você poderá ostentar a magia antiga através dela.

– Tudo bem, então. Mas como é que eu faço isso? – perguntei, odiando o aperto que senti no estômago só de pensar em tocar na pedra da vidência de novo.

– Estou com a Zoey – apoiou-me Aphrodite. – Simples ou não, diga a ela o que ela precisa fazer.

– É mesmo. A Z. já derrotou as Trevas e Neferet uma vez. Nós todos derrotamos – concordou Stevie Rae.

– Por causa da natureza volátil da magia antiga, só posso lhe dizer o que sei que não deve ser feito – explicou Sgiach. – Para que o seu poder trabalhe pelo equilíbrio e não se corrompa, ela deve ser comandada por uma Sacerdotisa que não seja nem agressora nem vítima. Sua intenção deve ser pura. Ela não pode ser vingativa nem defensiva.

– Mas Zoey tem de usá-la de forma defensiva! – exclamou Marx. – Neferet é uma assassina sociopata com o objetivo de escravizar Tulsa e talvez até o mundo inteiro.

– Isso não é um talvez, detetive – interrompeu Kalona. – Neferet deseja fazer mais do que forçar alguns poucos humanos azarados a adorá-la. Ela deseja reinar como a única Deusa deste mundo e tornar todos nós os seus escravos.

– Então, como é que a porra dessa pedra pode ser a chave para derrotá-la se Zoey não pode usá-la de forma defensiva? – perguntou Marx.

– Detetive, a magia antiga é neutra. É o poder na sua mais pura essência. E ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a carrega. Se seus motivos não forem completamente altruístas, o caos será o resultado. – O seu olhar pousou em mim. – Você tem evidências disso diante de si. Pelo que sabemos de Neferet no passado, à luz do que ela fez no presente, acredito que haja indicações claras de que ela usou magia antiga por muito tempo, talvez até mesmo antes de ter sido Marcada.

– Mas eu nunca a vi usando uma pedra da vidência – disse eu.

– Uma pedra da vidência é apenas um condutor para a magia antiga. Considere as gavinhas das Trevas que a acompanham sempre. Elas são básicas demais, cruas demais para serem qualquer coisa a não ser que sejam ligadas aos poderes antigos da Luz e das Trevas. Eu sei. No Mundo do Além, lutei contra as Trevas em diferentes formas por várias eras. Elas podem ser sedutoras e astutas. As Trevas usam muitas faces, e algumas delas podem ser vistas, a princípio, como aliadas.

– Eu não consigo entender como aquelas coisas rastejantes nojentas podem ser vistas como algo bom – comentou Stevie Rae.

– Neferet raramente fala disso, mas ela foi estuprada pelo próprio pai na noite em que foi Marcada – contou Lenobia. – Algo a ajudou a passar por aquela provação terrível, e não foi outro novato nem a sua mentora. Os registros da Morada da Noite de Chicago dizem claramente que ela voltou para a casa da sua família e estrangulou o pai antes mesmo de ter completado a Transformação. O investigador registrou que o ataque foi tão forte que a cabeça do pai quase foi separada do corpo.

– E ela se safou disso? – perguntou Marx.

– O crime aconteceu no fim do século XIX em um mundo muito maior, detetive. O Conselho da Morada da Noite de Chicago e o Conselho Supremo dos Vampiros decidiram juntos que seria melhor tirá-la do estado e permitir que ela recomeçasse um novo caminho onde teria a oportunidade de se curar da sua tragédia – contou Thanatos.

Lenobia acrescentou:

– E lembre-se, detetive, de que aquele homem agredira e estuprara a filha de dezesseis anos de idade.

– Os registros do Conselho Supremo relatam que havia diversas marcas de mordidas, mordidas humanas no corpo de Neferet, e que ela estava horrivelmente ferida e violada na noite em que o Rastreador a encontrou – informou Thanatos concordando com Lenobia.

Senti um choque com a lembrança.

– Logo depois que fui Marcada, Neferet mencionou algo comigo sobre ter sido machucada pelos pais.

– Sua mãe morreu ao lhe dar à luz. O seu pai era um monstro – contou Lenobia. – Todos que conheceram Neferet na sua juventude sabiam dos rumores sobre o que acontecera na noite em que fora Marcada.

– Sinto muito pelo seu passado, mas isso não muda o fato de que Neferet é uma imortal instável que precisa ser detida – declarou Marx.

– Não estamos mencionando o passado de Neferet como uma desculpa para os seus atos presentes – respondeu Sgiach. – Nós o mencionamos como uma lição para Zoey. – Os olhos de Sgiach queimaram os meus. – A magia antiga foi levada até Neferet, e ela descobriu que podia ostentá-la. Assim como ela foi levada a você e ostentada por você.

– Tudo bem, mas eu não gosto de ser comparada com a Neferet – declarei.

– Ainda assim, o que tem acontecido com você desde que começou a usar a pedra da vidência é bem parecido com o que aconteceu com Neferet. Ela usa você, e enquanto o faz, a corrompe.

Senti como se eu tivesse levado um soco no estômago.

– Eu jamais serei como a Neferet!

– Você já pensou que se pudesse simplesmente controlar todo mundo à sua volta, então poderia tornar tudo melhor para os seus amigos e para si mesma? – perguntou-me Sgiach de forma direta.

– Já, mas eu não queria que nada de ruim acontecesse! Eu só queria poder fazer com que todos agissem de forma correta para acabar com toda a loucura.

– Agir de forma correta de acordo com quem? – quis saber Thanatos.

– De acordo comigo, eu acho, já que era eu que estava desejando – protestei, sentindo-me encurralada.

– Intenção! – exclamou Sgiach para mim. – A magia antiga é neutra. Ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a detém! E a intenção da Sacerdotisa não pode ser vingança, nem frustração, nem qualquer outro sentimento egoísta. A sua intenção deve ser pura e voltada completamente para o bem maior. Mesmo que isso signifique que você possa sobreviver ou não ao ser o instrumento que a magia usa.

– Estou com medo – admiti, e a Vovó apertou a minha mão, dando-me força. – E eu não sei como fazer o que vocês estão me pedindo para fazer. Eu preciso que vocês me ajudem!

– Apenas você pode se ajudar. Cresça, jovem Sacerdotisa. Mostre para nós por que Nyx escolheu lhe dar tantos dons – desafiou Sgiach. – Mas seja rápida. Você precisa comandar a pedra da vidência para termos uma chance de deter Neferet e restaurar o equilíbrio entre a Luz e as Trevas.

O olhar cortante da rainha recaiu em Thanatos.

– Grande Sacerdotisa, compreenda que Neferet precisa ser contida para que esse contágio de maldade diminua.

– Qual é o seu conselho para contê-la sem usar magia antiga? – perguntou Thanatos, fazendo com que o meu rosto ficasse quente.

Eu sabia que ela não devia ter que fazer aquela pergunta a Sgiach – eu deveria amadurecer o bastante para usar a pedra da vidência e ajudá-la.

– Procure pelos rituais e feitiços mais antigos – orientou Sgiach. – Não pense em derrotar Neferet. Isso é impossível sem a magia antiga. Pense em isolá-la, distraí-la, irritá-la. Qualquer coisa que a faça repensar suas tramoias e seus planos, qualquer coisa que a faça tropeçar e a torne mais lenta poderá ajudar vocês.

– E dar a Zoey mais tempo para descobrir o caminho para comandar a magia antiga – concluiu Vovó.

Sorri nervosamente para ela, desejando sentir tanta confiança em mim mesma quanto ela tinha.

– Tentarei o máximo que eu puder. Prometo.

– Você não pode tentar , Zoey. Tentar é perigoso demais. Você não pode fazer nada até que saiba que se livrou de tudo que há de negativo em você: medo, raiva, egoísmo, desejo de vingança, ódio, até mesmo irritação e frustração. Só então poderá comandar e controlar a magia antiga. Até lá, Aphrodite deve manter a pedra da vidência longe de você. Não precisamos ter de lutar contra duas imortais que já foram Sacerdotisas talentosas da nossa Deusa.

Eu não conseguia acreditar no que ela tinha acabado de dizer! Sgiach realmente acreditava que eu poderia virar alguma coisa como Neferet.

– Eu não sou imortal! Eu só sou uma garota que não quer ter nada a ver com magia antiga ou com aquela maldita pedra da vidência.

– Imagino que uma jovem Neferet teria dito exatamente a mesma coisa e ela também estava longe de ser “apenas uma garota” – retrucou Sgiach.

Antes que eu conseguisse me recuperar da afirmação horrível, Thanatos acrescentou:

– Eu só conheci uma outra novata que recebeu tantos dons da Deusa quanto você, Zoey Redbird, e o nome dela era Neferet.

Apertei a mão de Vovó, sentindo como se o meu mundo estivesse se ruindo sob os meus pés.

– Agora, eu tenho que cuidar da minha própria enchente – declarou Sgiach. – Confio em você, Zoey. Acredito que encontrará uma maneira de trazer as forças da magia antiga com você na sua batalha pela Luz. Até que eu a veja novamente, abençoada seja.

Então a conexão via Skype foi desligada, deixando a câmara no mais absoluto silêncio.

– É claro que tudo isso é culpa sua – disse Aphrodite para Kalona, antes de se dirigir a mim, acrescentando: – Se você começar a me chamar de Frodo, eu vou ficar puta da vida.

– Sem querer ser cruel nem nada, Aphrodite, mas você está sendo um Frodo para Z. – declarou Stevie Rae.

– Se isso fosse verdade, então você seria um Sam [*] gordo e baixo – retorquiu Aphrodite.

– Uma adolescente? – soou a voz de Marx atrás de nós. – Por que o equilíbrio de poder entre o bem e o mal tinha que estar nas mãos de uma adolescente?

Franzi o cenho para ele.

– Há meses eu me pergunto a mesma coisa – comentou Kalona.

– Devo insistir que nos atenhamos a questões produtivas apenas! – cortou a voz de Thanatos, fazendo com que Marx e Kalona baixassem a cabeça.

– Na verdade – comecei eu, hesitante –, a pergunta do detetive Marx me fez parar para pensar.

– Eu não quis ser tão grosseiro – insistiu Marx.

– Ah, eu sei – respondi. – O que você disse não foi grosseiro, apenas verdadeiro. Por que o equilíbrio entre o bem e o mal deveria depender de mim? – Eu me apressei para continuar, não querendo que os meus pensamentos fossem interrompidos. – Talvez não seja eu, nem mesmo nós, o que é tão importante. Sgiach disse que a magia antiga é o que importa. Basicamente, eu sou apenas o canal para ela; por algum motivo, que nenhum de nós conseguiu entender, ela funciona através de mim. Então, como disse, não sou eu que sou importante. É a magia.

– Aonde você quer chegar, Zoey Passarinha? – perguntou Vovó.

– Bem, a magia antiga também responde a Sgiach. Thanatos, Lenobia, por favor, corrijam-me se eu estiver errada, mas Sgiach não é a personificação da sua ilha?

– Ela é sim – respondeu Thanatos, e Lenobia assentiu, concordando.

– A magia antiga está na terra – disse Vovó, empertigando-se na cadeira. – Assim como os nossos ancestrais Cherokees acreditavam.

– Oklahoma tem poder antigo em sua terra vermelha – declarou Kalona. – Eu sei disso. Esse poder me atraiu para cá não muito tempo depois que fui criado e, novamente, depois da minha Queda.

– E ele o conteve por séculos – completou Thanatos.

Kalona contraiu o maxilar, mas assentiu.

– Sim.

– No dia em que fui Marcada, fugi para a sua fazenda, lembra, Vovó? – A minha voz estava ficando menos hesitante à medida que os meus pensamentos encontravam um caminho para seguir. – Eu desmaiei tentando encontrá-la.

– Eu me lembro – disse Vovó. – Foi a primeira vez que Nyx apareceu para você.

– Isso! Ela me disse que eu deveria ser os seus olhos e ouvidos no mundo em que eu estava lutando para encontrar o equilíbrio entre o bem e o mal.

– Mesmo naquela época a Deusa estava nos alertando através de você – declarou Thanatos.

– Parece que demoramos muito para compreender – disse Stevie Rae.

– Não só vocês, gente – respondi. – Eu também. Acho que não entendi realmente o que Nyx estava querendo me dizer até este momento. Prestei atenção principalmente à parte em que ela dizia que a Luz nem sempre era boa e que as Trevas nem sempre eram o mesmo que o mal. Acreditei que Nyx estava me avisando para ficar atenta a Neferet, porque ela era tão linda por fora, mas completamente podre por dentro.

– Faz sentido – concordou Aphrodite.

– Totalmente – reforçou Stevie Rae.

– É, mas veja o que mais Nyx disse. Lembro-me de que ela disse que eu era especial, a sua primeira U-we-tsi-a-ge-ya V-hna-I Sv-no-yi

– Filha da noite – traduziu Vovó por mim.

– Mas isso não foi tudo o que ela disse. Nyx afirmou que eu era especial por causa do meu sangue antigo combinado com a minha compreensão do mundo moderno.

– E o seu sangue carrega consigo o poder das Sábias Cherokees – disse Vovó. – As mulheres que tiravam a sua força da terra.

– Desta terra – completou Thanatos.

– Oklahoma é o lugar onde a Trilha de Lágrimas terminou – declarou Vovó.

– E para onde fui atraído, assim como Neferet – disse Kalona. – Não podemos esquecer que Zoey carrega dentro de si um pedaço da alma de A-ya, a virgem formada nesta terra.

Eu não queria pensar muito, mas rapidamente acrescentei:

– Também foi onde Aurox foi criado pelo sacrifício de sangue da minha mãe com o poder tirado da terra pela minha avó.

Marx franziu as sobrancelhas.

– Aurox?

– Eu sou Aurox – disse ele, saindo das sombras.

– Espere um pouco – pediu Marx. – Você nem tem uma lua crescente na testa. Achei que você fosse apenas um cara que era o consorte da Grande Sacerdotisa.

O pensamento de Aurox sendo o consorte de Thanatos fez o meu rosto queimar de vergonha.

Aurox me ignorou e lançou um olhar questionador para Thanatos. Ela fez um breve aceno com a cabeça e ele se virou para encontrar o olhar de Marx. Soando forte e seguro, disse:

– Eu não sou humano nem vampiro. Sou um receptáculo criado pela magia antiga cujo propósito eram a vingança e a destruição.

– Mas que foi criado com uma alma. E, tendo recebido a capacidade de escolher, você optou por se desviar da vingança e destruição – completou Vovó.

– Caramba, isso quase parece bom! – disse Marx, analisando Aurox com cuidado. – Se ele tem esses poderes da magia antiga, será que não pode nos ajudar a lutar contra Neferet?

– A parte da luta não é importante – disse eu, sem olhar para Aurox. – É a parte da criação; ele, assim como eu, veio para cá com o sangue que data de gerações nesta terra.

– Precisamos usar o poder da terra para lutar contra Neferet, pelo menos até Zoey conseguir lidar com a pedra da vidência – disse Aphrodite.

– Aiminhadeusa! Eu tenho a resposta. – Shaunee ergueu a mão. – Desculpem-me, não queria interromper, mas acho que sei o que vocês devem fazer!

– E o que é, Shaunee? – perguntou Thanatos.

Ela baixou a mão, falando rapidamente:

– Sgiach nos disse para procurar os feitiços e rituais mais antigos a fim de confundir Neferet. Você disse que precisamos impedi-la de se espalhar. Está bem na nossa cara! Thanatos, você até nos deu uma aula sobre isso no outro dia.

– Shaunee, será que você poderia ser mais clara? – pediu Thanatos.

– Nós podemos usar o Ritual de Proteção de Cleópatra! Podemos fazer com Tulsa o que foi feito em Alexandria! – exclamou Shaunee, animada.

– Eu não faço a menor ideia do que ela está falando – disse Marx.

– Eu faço – declarou Lenobia.

– Assim como todos nós deveríamos saber – disse Thanatos. – Mas nós também deveríamos saber que o feitiço de Cleópatra exige que a Grande Sacerdotisa que o invoca fique isolada, jejuando e orando por três dias.

– No ritmo que Neferet está matando, não temos três dias – declarou Marx, sombrio.

– Mas nós temos o poder da terra – disse eu. – Será que não podemos usá-lo para acelerar o feitiço e fazê-lo funcionar?

– Ideia interessante – elogiou Thanatos. – O feitiço teria de ser invocado de um lugar de poder extraordinário o mais próximo possível do Mayo. E a sacerdotisa que invocar o feitiço e fizer o ritual teria de se manter isolada e no local em meditação e oração, mantendo a sua intenção determinada e verdadeira.

– Não vou ser eu – disse eu. – E não estou dizendo isso porque estou reclamando de não ser madura o suficiente ou Grande Sacerdotisa o suficiente. O que quero dizer é que tenho que resolver esse lance da pedra da vidência e estar livre para usá-la contra Neferet assim que eu descobrir como.

– Concordo, Zoey. Eu sou a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. É o meu dever invocar o feitiço e mantê-lo enquanto o meu desejo durar – declarou Thanatos.

– O fogo é a base do feitiço de Cleópatra. Eu ficarei com você – disse Shaunee. – Pelo tempo que for necessário.

Thanatos assentiu respeitosamente para Shaunee.

– Vou gostar da sua companhia e o poder que você puder emprestar ao feitiço, filha.

– Oh, agradeça à Grande Mãe Terra! Eu sei o lugar de poder que vocês devem usar! – exclamou Vovó, batendo com a palma da mão na mesa para pontuar as suas palavras. – O Council Oak Tree. Seu poder ancestral reinou nas Terras Isoladas por séculos, e fica a uma curta distância do Mayo Hotel.

– Lenobia, Aphrodite, Zoey, Stevie Rae, Shaunee, o que vocês acham? Vocês concordam com Sylvia Redbird? – perguntou Thanatos.

– Eu concordo – respondeu Lenobia.

– Eu também – disse Shaunee.

– Idem – concordou Stevie Rae.

– Parece um bom plano – assentiu Aphrodite.

Encontrei o olhar da Vovó e vi a sabedoria, o amor e a verdade.

– Com certeza – afirmei.

– Então vamos descansar. No crepúsculo, o círculo de Zoey vai até o lugar de poder, e, enquanto o sol se põe, eu vou preparar o ritual de proteção e invocar o feitiço, e que Nyx nos dê força. Pois assim nós escolhemos; que assim seja.

[*] Sam é o apelido do personagem “Samwise Gamgee” da obra O Senhor dos Anéis , escrita por J. R. R. Tolkien. (N.E.)


13

Zoey

– Stark, você viu a Nala?

– Não. Venha para cama. Ela deve estar ocupada com os outros gatos avisando para os ratos locais que os gatos estão de volta – respondeu ele, sonolento, e batendo com a mão no lugar ao seu lado na cama.

O sol tinha nascido havia pouco mais de uma hora, e Stark estava se enfraquecendo rápido.

– Mas a Nala sempre dorme comigo.

– Não dorme não. Às vezes, ela dorme com Stevie Rae. – Ele deu um bocejo enorme. – Pare de se preocupar e venha aqui. Você está nervosa desde a reunião do Conselho. Você vai descobrir como usar a pedra da vidência. Sei que vai. Ficar preocupada o tempo todo não vai ajudar em nada. Deite-se que eu vou fazer uma massagem.

Olhei para ele e sorri. Além de amar muito quando ele massageava os meus ombros, ele estava totalmente fofo e sexy com o cabelo despenteado e o olhar sonolento. Além disso, ele estava certo. Preocupar-me não me ajudaria a descobrir como usar aquela estúpida pedra da vidência. Cedendo, eu me deitei na cama de costas para ele e depois gemi de puro prazer quando seus dedos fortes começaram a massagear os nós de estresse que tinham se formado nos meus ombros.

– Acho que você deve ser perfeito – declarei.

– Viu só? Quanto menos se preocupa, mais esperta você fica – respondeu ele, bocejando de novo.

– Ei, eu estou bem. Pode dormir agora.

– Eu sei que você está bem, mas vai ficar melhor se ficar quietinha e me deixar cuidar dos seus ombros.

Ele beijou a minha nuca.

– Tudo bem, mas você pode desistir na hora que quiser – disse eu, relaxando sob o seu toque.

– Z., eu nunca vou desistir de você. Você sabe disso.

Ele deu mais um beijo na minha nuca, e eu suspirei feliz.

– Eu amo você.

– Também amo você – respondeu ele.

Quando suas mãos pararam, eu estava relaxada, aquecida e cansada. Fechei os olhos, sorrindo, e adormeci.

Por cerca de dois minutos. Então, os meus olhos se abriram e eu me sentei, aguçando os ouvidos.

– Você ouviu alguma coisa? – perguntei para Stark.

Ele murmurou algo que pareceu ser:

– Gato... Tudo bem... pare de se preo...

Então, ele se virou, puxou as cobertas até o ouvido e começou a roncar baixo.

– Nossa, isso que é um Guerreiro – resmunguei.

Então, bocejei e me espreguicei. Eu realmente precisava voltar a dormir. O meu alarme já estava programado. Nós tínhamos que nos levantar e nos apertar na van da escola sem janelas e seguir o caminho até o Council Oak Tree antes do crepúsculo. Quem poderia saber que tipo de loucura Neferet cometeria diante de um feitiço de proteção. Inferno, ela já estava...

Então, ouvi novamente e soube exatamente o que havia me acordado. Era um som baixo, definitivamente era o ronronar de um gato.

E não havia nenhuma bolinha de pelo laranja encolhida aos pés da minha cama!

Vesti minha calça jeans e peguei meus sapatos da forma mais silenciosa que pude, andando de meia, na ponta dos pés, até a porta. Sem fazer nenhum barulho, me concentrei em pensamentos felizes, abri a porta e fui para o corredor. Desci rapidamente para o andar de baixo e passei pela sala comunal deserta do dormitório e saí, piscando quando os raios de sol atingiram os meus olhos, causando uma ardência. Eu não ia voltar mesmo para pegar os óculos de sol, então protegi os olhos com a mão e chamei:

– Nala! Gatinha! Nala-Nala, venha aqui!

Então, prendi a respiração e agucei os ouvidos.

Ouvi o som de novo! Era definitivamente um ronronar. E, definitivamente, parecia que o gato estava com algum tipo de problema. Não dava para saber se era a Nala ou não, mas eu sabia que o som vinha de algum lugar perto do muro da escola que dava para a direção leste.

Coisas ruins sempre acontecem lá! Corri apressada, contornando os dormitórios e me dirigindo para o muro, chamando.

– Psiu-psiu! Gatinha! Aqui! Nala!

O gato continuou ronronando. Eu me dei conta de que aquilo era bom e ruim. Bom, porque eu poderia seguir o som do seu miado. Ruim, porque quanto mais perto eu chegava, mais sofrido o gato parecia.

O ronronado seguinte fez o meu estômago se contrair. Eu estava perto o bastante do carvalho partido para saber que o gato estava definitivamente em algum lugar no alto daquela árvore. Ah, que droga! Por que é que tinha de ser aquela árvore? A árvore que Kalona partira em duas quando escapara da sua prisão na Terra, a árvore onde Jack morrera, a árvore em que eu vira as criaturas nojentas da magia antiga.

Diminuí o ritmo quando me aproximei da árvore de aparência assustadora. Tudo bem, eu gosto de árvores. Eu realmente gosto. Tipo assim, eu amo a Bosque da Deusa no Mundo do Além. Eu amo a minha afinidade com a Terra, mesmo que não esteja tão em sintonia com ela quanto estou com o espírito, mas ainda assim... Normalmente, eu não tenho problemas com árvores.

Esta árvore é diferente.

A caverna de Kalona ficava ali embaixo, e o jeito como ela se abria em duas fazia com que se parecesse com os ossos de um monstro, congelado na morte, agachado na sua abertura. Todas as outras árvores do campus se erguiam verdejantes. Não esta. Ela era negra e sem folhas, malévola e partida. Seus galhos formavam mais garras do que eu poderia contar.

– Miau-miau!

– Nala!

Eu a peguei nos meus braços e beijei o seu nariz úmido. Ela, é claro, espirrou em mim.

Eu ainda estava abraçando Nala quando ouvi um segundo gato e olhei para baixo.

– Cammy? – Ele se enroscou em mim e se esfregou nas minhas pernas, deixando pelos louros espalhados na minha calça. – Aposto que Damien não sabe que você está aqui fora. Você deveria estar encolhido junto com a Duquesa e ele em um sono profundo.

– Miaaaaaaau!

Aquele miado eu conhecia sem nem ver o animal branco que o emitira. Olhei por cima da base despedaçada da árvore e, com certeza, lá estava uma gata gigantesca com cara achatada e pelos brancos, cheia de atitude.

– Malévola, Aphrodite não ficaria nem um pouco satisfeita de você estar aqui aterrorizando os outros gatos. – Fiz uma pausa. – Bem, isso provavelmente é mentira. Mas ainda assim... Você deveria tentar não ser tão parecida com ela. Nossa, o que é que você acha...

Então, as sombras ao redor da árvore se moveram e eu percebi que o carvalho antigo e assustador estava completamente cercado pelos gatos da Morada da Noite.

Abracei Nala, enquanto sentia um frio gelado descer pela minha espinha.

– Mas o que é que está acontecendo aqui?

– Isso é o que eu gostaria de saber.

A voz de Aurox me assustou fazendo com que eu apertasse Nala forte demais e, com um grunhido zangado, ela pulou dos meus braços e se juntou aos outros gatos em volta da árvore.

– Você fez esses gatos virem até aqui?

– Eu? – Meneei a cabeça. – É claro que não. E se você soubesse qualquer coisa sobre gatos, entenderia que não se pode obrig á-los a fazer nada.

– Eu não sei muita coisa sobre gatos – declarou ele.

– Bem, tudo o que eu fiz foi seguir um grunhido horrível que, na verdade, me acordou. Achei que fosse Nala, mas ela parece estar bem.

– Grunhido? Mas que grunhido? Tudo que ouvi foi você conversando com os gatos.

Eu franzi as sobrancelhas para ele e abri a minha boca para explicar o óbvio – que alguma coisa tinha me atraído até ali e que havia alguma coisa de errado com os gatos e com ele também. Tipo assim, ele não precisava ser tão frio e rude sempre que se importava em falar comigo, mas o gato me interrompeu.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – O miado patético pareceu se estender por muito tempo.

– Está vindo lá de cima, da árvore.

Protegi os olhos com a mão e espiei por entre os galhos quebrados.

– Lá! – Aurox apontou. – Estou vendo!

Segui o dedo dele e vi também. Lá, bem no alto, nos galhos do topo da árvore, estava um gato realmente grande. Era um gato malhado de laranja e branco com pelos longos. Não era do mesmo tom de laranja forte de Nala. A cor daquele gato era mais suave, como se o laranja tivesse sido diluído com creme. Ele parecia familiar, e eu apertei os olhos, tentando me lembrar quem era seu dono, quando vislumbrei os seus olhos. Eram de um verde amarelado surpreendente, com um brilho inteligente.

– Que merda! Aquele é Skylar! O gato de Neferet! – disse eu.

– O gato de Neferet? Mas o que ele está fazendo aqui? Ele não deveria estar com ela?

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – berrou Skylar enquanto o vento fazia os galhos estremecerem sob ele, que tentava se manter firme.

– Ele vai cair – disse Aurox, movendo-se tão rápido que os gatos se espalharam.

– Ei, tome cuidado. Skylar é conhecido por morder. Sério, Aurox. Os gatos costumam refletir a personalidade do novato ou do vampiro que escolhem, e nós todos sabemos que Neferet é...

– Zo, eu não posso simplesmente deixá-lo cair.

E isso me fez calar a boca. Ele não apenas soou como Heath, mas estava fazendo uma coisa muito burra e doce e muito parecida com que Heath faria. É claro que ele provavelmente ia causar uma confusão tão grande quanto Heath teria feito, mas não havia muito mais o que eu pudesse fazer, a não ser esperar e tentar resolver a confusão. E pensar. Hmmm .

– Ei! – chamei, enquanto ele escalava a árvore feito um macaco. – Bem, nunca ouvi falar disso, mas talvez se o vampiro de um gato fica mau, talvez ele cometa suicídio ou algo assim. Skylar deve estar aí em cima porque a Neferet ficou desvairada e ele não consegue lidar com isso.

– Eu não vou deixar ninguém cometer suicídio no meu turno, seja um novato, um vampiro, um humano irritante... Nem mesmo um gato com fama de mordedor.

– Tudo bem. Espero que Nyx esteja com você.

– Eu também.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – gritou Skylar enquanto Aurox se agarrava em alguns galhos que o mantinham, acrescentando um som horrível e baixo enquanto ele tentava se afastar.

– Tente falar com ele. De forma suave, como os gatos gostam, tipo gatinho.

– Tipo gatinho? O que é isso?

– Caraca, ele está acabado – disse eu para Nala. Ela espirrou e pareceu concordar comigo. Os outros gatos estavam todos olhando para Skylar, como se estivessem ali para testemunharem algo. Eu não fazia a menor ideia do que dizer para Aurox.

– Hum, tente conversar com ele. Eu me lembro de que ele é muito inteligente.

– Tudo bem. Vou tentar.

Aurox subiu mais um pouco de forma a se sentar praticamente na mesma altura em que Skylar se encontrava. Eu ouvi quando ele limpou a garganta e, então, com uma voz completamente normal, que ele usa em uma conversa do dia a dia, começou a falar com o gato:

– Merry meet , Skylar. Pelo que soube, você tinha uma ligação com Neferet. Eu também já tive, então posso imaginar como você deve estar se sentindo. Ela também me magoou. Ela continua machucando os outros. Não posso permitir que você se machuque. Eu escolhi proteger esta escola e você faz parte desta escola.

O que aconteceu em seguida foi uma das coisas mais loucas que eu já vi – e olha que eu definitivamente já vi coisas muito loucas. Skylar inclinou a cabeça para o lado como se estivesse ouvindo Aurox.

– Skylar – continuou Aurox com voz solene –, eu vou protegê-lo, mesmo que seja de você mesmo.

Então, Aurox estendeu a mão.

Lentamente, Skylar se alongou em direção a ele até que pudesse ser tocado por Aurox. Prendi a respiração, esperando que o grande gato começasse a berrar novamente e batesse com a pata na sua mão. Mas não foi isso que ele fez. Na verdade, Skylar farejou a mão de Aurox, parou e, então, começou a esfregar o seu queixo contra a mão dele. Mesmo de onde eu estava lá embaixo, dava para ver o sorriso iluminar o rosto de Aurox quando começou, hesitante, a fazer carinho no gato. Skylar parou por um instante e virou a cabeça, analisando Aurox novamente.

– Você pode escolher não permitir que as Trevas de Neferet destruam a sua vida – insistiu Aurox em tom sincero enquanto acariciava o queixo de Skylar.

Sem mais hesitação, Skylar foi na direção dos braços de Aurox.

E todos os gatos em volta da árvore partida começaram a ronronar.

Quando Aurox chegou ao chão, ele estava segurando Skylar bem junto de si. O gato parecia estar abraçado a ele, e sua cabeça fofinha estava aninhada sob o queixo de Aurox. Quando ele se aproximou de mim, ouvi Skylar ronronando.

– Aconteceu algo lá em cima – contou Aurox, com os olhos brilhando.

– É. – Eu funguei e enxuguei o rosto com a manga da camisa. – Skylar escolheu você. Vocês agora pertencem um ao outro.

Aurox olhou para Skylar, acariciando o gato com movimentos longos a amorosos. Skylar não abriu os olhos. A não ser pelo fato de que estava ronronando loucamente, parecia ter adormecido.

– Zo, ele é demais!

Sorri entre as lágrimas.

– Com certeza é.

Aurox olhou para mim. Então, automaticamente enfiou a mão no bolso da calça jeans e me deu um Kleenex.

– Você está com nariz escorrendo de novo.

– Com certeza – respondi.

Seus olhos encontraram os meus. Ele os afastou depressa, mas não antes de eu ver o sofrimento da sua expressão.

– Sinto muito. Eu não deveria tê-la chamado de Zo.

– Você pode me chamar do jeito que quiser.

Seus olhos encontraram os meus de novo e eu vi um brilho de raiva cruzar o seu rosto.

– Não seja legal comigo porque acha que eu sou Heath.

– Que merda, Aurox, eu estou sendo legal com você porque gosto de você! Você salvou a minha avó. Você está segurando um gato supercruel que acabou de salvar. VOCÊ É UM CARA LEGAL! – Parei de falar para controlar o meu tom de voz antes de terminar. – É por isso que estou sendo legal com você.

– Eu gostaria que isso fosse verdade – disse ele.

– Aurox, eu juro que só vou dizer a verdade para você. Tenho muita merda pessoal para lidar agora para acrescentar mentiras à minha lista.

– Você está sendo sincera, não está?

– Estou. – Enxuguei o rosto e funguei. – Valeu pelo lencinho.

– Não há de quê.

– Você tem coisas de gato no seu quarto?

Ele hesitou, e então disse em tom suave:

– Eu não tenho um quarto.

– Onde você dorme?

– Eu não durmo.

Aiminhadeusa! Ele nem é humano! Senti o choque daquilo, e a lembrança de como ele ficava quando se transformava em touro passou pela minha mente. De forma resoluta, afastei o pensamento.

– Bem, você vai precisar de um quarto agora. Esse gato precisa de um lugar para dormir, comer e... hmm, você sabe alguma coisa sobre caixas de areia?

– Hã?

Sorri para ele.

– Venha comigo. Kalona também não dorme. Vamos encontrá-lo. Ele pode arrumar um quarto para você, comida de gato e uma caixa de areia.

– Chamei Nala e ela, na verdade, veio para mim, pulando nos meus braços. Notei, então, que os outros gatos tinham desaparecido.

– Você acha que Kalona sabe lidar com gatos? – perguntou Aurox enquanto caminhávamos juntos.

– Aposto que sim. Ele costumava ser um guerreiro de Nyx, e gatos constituem uma grande parte do Mundo do Além. A Deusa ama gatos.

O rosto de Aurox ficou sem expressão e ele perguntou:

– Zo, você acha que o fato de Skylar me escolher pode significar que Nyx se importa comigo? Mesmo que só um pouco?

– Pode apostar.

Isso foi tudo que consegui dizer antes de a minha garganta se fechar com as lágrimas, e Aurox me dar outro Kleenex.


14

Kalona

– Tudo bem, eu tenho que dizer para você que aquilo tudo foi muito estranho? Você também achou? – perguntou detetive Marx para Kalona.

Ele estava caminhando ao lado do imortal alado quando ambos deixaram o dormitório dos garotos e saíram para o sol forte e bonito do meio-dia.

Kalona ergueu as sobrancelhas e lançou um olhar de esguelha para o detetive. Não estava acostumado a conversar de forma leve com ninguém – principalmente com humanos. Nem com alguém que não o julgava como monstro por causa do seu passado. Ele me trata como se fôssemos companheiros de batalha , percebeu Kalona com um sobressalto incomum de surpresa.

E foi com outro sobressalto de surpresa que o imortal alado se deu conta de que realmente gostava da companhia do detetive.

– Estranho? Ver um gato de uma vampira imortal e louca escolher uma criatura criada a partir de magia antiga para ser uma arma das Trevas, e, então, ter que explicar para a referida criatura, que parece exatamente como um garoto confuso, como alimentar e limpar uma caixa de areia? – debochou Kalona. – Detetive, acho que “estranho” não é uma palavra forte o suficiente para descrever o que acabou de acontecer.

– Que bom ouvir isso!

O detetive deu um tapa no ombro de Kalona em um gesto amigável. Kalona teve de apertar os dentes por causa da dor que atravessou o seu corpo quando o gesto inocente de Marx abriu um ferimento ainda não curado. Kalona emitiu um grunhido que refletia concordância, e não desconforto.

Ignorando qualquer outra coisa a não ser a conversa que estavam tendo, Marx riu e continuou:

– É, teve uma hora lá, quando o garoto estava acariciando o queixo do gato gigante, que eu tenho quase certeza de que os seus olhos começaram a brilhar.

– Os do gato ou os do garoto? – brincou Kalona, ignorando a dor prolongada.

– Os do garoto. Os olhos dos gatos também podem brilhar? – Marx meneou a cabeça. – Não, não me diga. Agora eu compreendo por que a minha irmã diz que algumas coisas vampíricas são zona proibida para humanos. Não faz bem para a nossa cabeça. Pode nos enlouquecer.

Kalona riu.

– Acho que isso tem mais a ver com a estranheza dos nossos tempos do que com a habilidade dos humanos em compreender o anormal.

– Talvez você esteja certo. Estamos vivendo uma época muito estranha.

Eles caminharam juntos sem falar, embora Kalona não sentisse que o silêncio era pesado. Eram apenas dois homens responsáveis por proteger aqueles que lhe eram caros.

É assim que se deve fazer parte de uma família. Eu gosto desse sentimento! O pensamento chegou à sua mente de forma espontânea, e ele não sabia o que fazer com ele. Como é que a Morada da Noite se tornara a sua família? Kalona não fazia ideia, mas até mesmo Zoey Redbird, a novata que ele tentara seduzir primeiro para depois destruí-la, começou a confiar nele o suficiente para procurá-lo em busca de conselhos e ajuda para Aurox quando o felino de Neferet escolheu o receptáculo como seu familiar.

Assim, Kalona teve o seu terceiro sobressalto de surpresa.

– Pode deixar pra lá. Eu não queria perguntar. A minha irmã vive me dizendo que é um péssimo hábito que adquiri desde que me tornei detetive.

Kalona tentou se recompor mentalmente.

– Desculpe, eu estava pensando em outra coisa. Você me perguntou algo?

– Perguntei, mas era pessoal demais, principalmente considerando quem você é. Esqueça... Preciso dormir um pouco antes da loucura começar de novo – disse Marx depressa.

– Você pode me perguntar o que quiser. Nós lutamos contra as Trevas juntos. Deve haver confiança entre nós.

Chegaram ao dormitório das garotas, e Marx parou apoiando-se no corrimão da escada que dava para a varanda de entrada.

– Tudo bem, então. Eu só estava me perguntando por que Nyx não desce dos céus e detém, ela mesma, Neferet. Ela é a ex-Grande Sacerdotisa da Deusa. Acho que Nyx deve estar puta da vida pelo modo como está usando o seu poder de forma errada.

– Em primeiro lugar, Nyx não mora nos céus, ou, pelo menos, não nos céus da civilização ocidental moderna.

– Certo, desculpe. Eu esqueci. Minha irmã me explicou essa parte há alguns anos. Nyx mora no Mundo do Além, certo?

– O Mundo do Além é o reino de Nyx. Está correto.

– E você já esteve lá?

– Durante éons, aquele foi o meu reino também – contou Kalona devagar, desacostumado a falar sobre a Deusa ou o Mundo do Além.

– Desculpe-me se estou sendo intrometido. Eu vou parar por aqui e...

– Eu não me importo de falar sobre isso – respondeu Kalona, dando-se conta de que estava dizendo a verdade.

– Então, você conhece Nyx muito bem.

Kalona inspirou e expirou longamente várias vezes. A resposta para a pergunta do detetive era tão simples quanto desoladora.

– Eu conhecia a Deusa bem. Muito bem.

– Ah, entendi. No passado. – Marx parecia estar pensando em voz alta. – Isso pode explicar o que está acontecendo. Nyx mudou desde a época em que se conheceram. Talvez ela tenha perdido o interesse no mundo moderno. E quem poderia culpá-la? É por isso que ela está deixando que Neferet escape, mesmo tendo corrompido o poder concedido pela Deusa e ferindo não apenas humanos, mas novatos e vampiros também.

– Isso não é verdade. A nossa Deusa não perdeu o interesse em nós.

Kalona desviou o olhar de Marx e viu Shaunee caminhando pela calçada em direção a eles, carregando um gato cinza nos seus braços. Ela usava óculos escuros e um gorro que escondia o seu rosto; estava claro que a luz do sol a incomodava. Ela deve estar perto de completar a Transformação , pensou Kalona e, então, percebeu que a ideia de Shaunee passar pela Transformação e se tornar uma Sacerdotisa vampira lhe provocava um sentimento muito próximo de orgulho.

Esse pensamento fez com que sua voz ficasse brusca:

– Shaunee, você deveria estar no seu quarto, dormindo. A luz do sol não lhe faz bem.

– Eu estou indo para a cama. Só tinha que encontrar Beelzebub. Mas antes de eu ir, quero deixar algo muito claro para o detetive Marx. – Ela pousou seus olhos castanhos no detetive. – Nyx não perdeu o interesse em nós – repetiu ela.

O olhar de Marx passou para Kalona e, depois, voltou para Shaunee. Antes que pudesse responder, a novata recomeçou a falar:

– Não procure Kalona para obter respostas sobre Nyx. – Ela lançou um olhar de desculpas para o imortal. – Isso vai soar cruel, mas não estou fazendo isso de propósito. – Ela voltou a atenção para Marx antes de continuar. – Kalona caiu . Isso não faz dele uma testemunha perita em Nyx, detetive. Se você tem perguntas sobre a nossa Deusa, faça-as a mim. Eu converso com ela todos os dias, e, às vezes, ela até me responde.

– Tudo bem, então. Você pode explicar por que Nyx permitiria que Neferet causasse tanta dor e tanto sofrimento, assistindo a tudo sem fazer nada a respeito? Ela concedeu a Neferet os dons que permitiram que ela acumulasse tanto poder. Por que Nyx pelo menos não revoga os seus dons? Isso faria sentido. Não fazer nada não faz sentido para mim. Digo isso com todo o respeito pela sua Deusa, mas as ações dela não parecem a de uma divindade amorosa.

– Nyx não tirará os dons de Neferet, nem os dons de qualquer um de nós porque ela ama de forma incondicional e sempre mantém a sua palavra, mesmo quando não cumprimos a nossa e a traímos – explicou Shaunee.

Kalona cruzou os braços e fingiu desinteresse, embora não se mexesse – nem respirasse, apenas ouvisse.

– E ela não desce e salva o dia porque ela nos ama tanto que sempre nos dará o livre-arbítrio. – Ela fez uma pausa e, depois, perguntou: – Você tem filhos, detetive Marx?

– Tenho. Duas filhas. Uma de nove e outra de onze.

– E se você nunca permitisse que elas cometessem erros? Ou, melhor ainda, e se você permitisse que cometessem erros, mas, então, interviesse e resolvesse todas as consequências por elas?

– Acho que eu estaria criando uma dupla de meninas mimadas – respondeu ele.

– Que tipo de mulher você acha que elas se tornariam? – perguntou Shaunee.

– Egoístas e irresponsáveis. Se elas crescessem.

– Exatamente! – Shaunee sorriu. – Como nós poderíamos aprender, crescer e evoluir se Nyx nos resgatasse das nossas decisões erradas? Ou se parasse de permitir que tomássemos as nossas próprias decisões, boas ou ruins?

Kalona não conseguiu ficar em silêncio por mais tempo.

– Seria mais fácil se Nyx resolvesse tudo! Eu ainda a conheço bem o suficiente para assegurar a você que a nossa Deusa seria benevolente e bondosa. E isso é mais do que qualquer um de nós pode garantir em relação ao público em geral, sejam vampiros ou humanos.

– Se Nyx resolvesse tudo, os poderes da Luz e das Trevas ficariam desequilibrados para sempre – disse Shaunee.

– A Luz venceria! Não é esse o objetivo? – perguntou Kalona.

– Aiminhadeusa! Será que não percebe o que está pedindo?

– Sim! Estou pedindo paz! O fim do desejo por carnificina e do derramamento de sangue, da traição e da destruição.

– Não! – argumentou Shaunee. – Você está pedindo o fim do livre-arbítrio. Nós nos transformaríamos naquelas pessoas gordas e flutuantes do filme Wall-E , ou pior.

– Que língua você está falando?

– Eu sei do que ela está falando. É um filme da Pixar. Ela quer dizer que nós nos tornaríamos idiotas preguiçosos e sem motivação. – Marx coçou o queixo. – Na verdade, acho que ela talvez esteja certa. Você tem ido a alguma feira estadual?

Então, o detetive riu da própria piada, que não fez o menor sentido para Kalona.

Shaunee não piscou. Ela nem sorriu para Marx. Seu olhar sombrio pousou em Kalona.

– Você não vai conseguir se aproximar de Nyx dessa forma. Você tem que abandonar esse problema de controle e escolher realmente acreditar, de forma sincera, e amar de verdade. – Então, ela deu um beijo na cabeça do gato cinza adormecido em seus braços. – Então, isso responde às suas perguntas, detetive Marx?

– Não a todas, mas o suficiente por ora – respondeu ele.

– Ótimo! Vou pra cama. Vejo vocês no crepúsculo.

Ela subiu a escada e desapareceu no dormitório das garotas.

– Também vou dormir. Thanatos disse que eu poderia usar um beliche na casa dos professores. Você parece cansado. Você vem também?

– Não. Vou assumir o turno de Aurox e vigiar o perímetro – disse ele.

– Turno dobrado. Esses são difíceis. Você quer companhia?

Kalona olhou para o detetive. A pele sob os seus olhos estava ferida e seus passos, arrastados.

– Talvez numa próxima. Mas obrigado por se oferecer.

– Sem problemas. Tenha cuidado lá fora. Como a garota disse, vejo você no crepúsculo.

Kalona assentiu e começou a caminhar para o muro mais distante da escola, tentando, sem sucesso, não ouvir novamente as palavras de Shaunee ecoando em sua mente.

Lynette

– As fantasias estão péssimas! – disse Neferet enquanto meneava a cabeça e lançava um olhar de raiva para o grupo de pessoas trêmulas que Lynette escolhera para usar o que deveriam ser roupas dos anos vinte.

Se tudo, ou mesmo qualquer coisa , estivesse normal, Lynette teria dito que o seu último evento tinha passado por alguns problemas. Na insanidade em que o seu mundo se transformara, Lynette decidiu que o seu último evento era um colete cheio de explosivos de um homem-bomba prestes a explodir – e era ela quem estava usando o maldito colete.

– Deusa, você se lembra das duas coisas de que eu preciso? Tempo e recursos?

– Eu me lembro de tudo .

Lynette bateu palmas diante de si para que Neferet não percebesse o quanto estava trêmula. Limpou a mente e se concentrou no que fazia melhor – lidar com o cliente para que o evento fosse um sucesso.

– E é exatamente por isso que é tão bom planejar eventos para uma Deusa, e não para um humano ou um vampiro – disse Lynette.

O olhar raivoso de Neferet se suavizou com a bajulação.

– Do que você precisa que eu não lhe ofereci? Nós decidimos o tema da minha próxima adoração ontem à noite. Já está quase no crepúsculo, e tudo que eu pedi foi para dar uma olhada nas fantasias dos meus súditos enquanto eles ensaiam o Charleston. Estou certa de que Tulsa tem lojas de fantasia o suficiente e você tem acesso ilimitado aos meus recursos . Então, explique-me por que nenhuma dessas fantasias se parece remotamente com o estilo dos anos vinte?

– Tulsa tem apenas duas lojas decentes de fantasias: a Ehrle’s e a Top Hat – começou Lynette.

– Apenas duas? – Neferet suspirou. – Eu deveria ter começado o meu Templo em Chicago. Chicago está cheia de excelentes lojas. Kylee! Minha taça está vazia!

A Kybô, que era o modo como Lynette silenciosamente se referia à recepcionista robótica, apressou-se pelas escadas subindo até o local onde Neferet colocara o seu trono, enchendo novamente o líquido escarlate que nunca parecia ser o suficiente para a Deusa.

– Mas eu a interrompi, querida Lynette. Por favor, continue a explicação sobre as roupas. – Ela apontou os dedos com as unhas vermelhas para o grupo de pessoas desarrumadas esperando lá embaixo.

– Entrei em contato com os donos das duas lojas. Eles se recusaram a fazer qualquer entrega para nós.

Lynette deu a notícia rapidamente e então se preparou para a loucura.

Em vez de explodir, Neferet ficou totalmente imóvel. Em uma voz suave e pensativa, perguntou:

– E por que eles se recusaram a me atender?

– Eles explicaram que a polícia cercou todo o Mayo e que não permitem que ninguém se aproxime daqui.

Neferet bateu com uma das unhas afiadas na taça. Ela virou a cabeça em uma postura pensativa. Então, a sua expressão se suavizou e ela sorriu.

– A solução é simples. A polícia está evitando que os humanos entrem. Sua atenção está voltada para fora. Eles não vão esperar que alguém saia.

– Sair?

– Sim, bem, não vai ser qualquer um que vai sair. Será você.

Lynette se apoiou na grade de ferro.

– Eu?

– Minha querida, você está com algum problema de audição?

– N-não – apressou-se Lynette a assegurá-la.

– Kylee, sirva uma taça de vinho para Lynette. Ela está pálida. – Agradecida, Lynette tomou o vinho enquanto Neferet começava a sua explicação insana. – Será bem fácil para você. Você sairá pelos fundos, onde eles empilham aquele lixo horrendo. Pular a cerca não deve ser um problema. Você parece ter se mantido em forma. E, é claro, Judson vai acompanhá-la para ajudar com qualquer problema que possa ter. Judson, certifique-se de que a querida Lynette volte em segurança. E você carregará as sacolas de compras para ela, não é mesmo?

Judson assentiu de forma automática e respondeu:

– Sim, Deusa.

– Excelente! Vou pedir para Kylee chamar um táxi para encontrar vocês... Hum... em frente à Biblioteca Central na Fourth Street com a Dever. É longe o suficiente e não estará dentro do cerco policial, e perto o bastante para que não seja tão cansativo para você na volta. Judson vai carregar todo o peso para você.

A mente de Lynette estava a mil. Ela está mandando Judson comigo para me forçar a voltar. Mas ele não passa de um robô quando Neferet não está por perto. Talvez eu consiga escapar, principalmente quando chegarmos à biblioteca. Alguém lá poderá...

– Permita que eu esclareça uma coisa, Lynette. Judson e você não estarão sozinhos. Eu jamais pensaria em deixá-los tão vulneráveis. Vários dos meus filhos irão acompanhá-los. – A Deusa acariciou uma das coisas rastejantes que estava enrolada na sua perna. – Eles também ficarão ansiosos para se aproximarem de você, se hesitar. Então, você e Judson terão mais em comum do que imagina... Tão mais.

Lynette ordenou os pensamentos. Trabalho! Eu tenho que me concentrar no trabalho!

– Algum problema, querida? Com certeza você não discorda da minha solução.

– Honestamente, eu concordo com a parte de sair. – Lynette se concentrou na única coisa normal que sobrara do seu mundo, concentrar-se em concluir um trabalho. – A polícia não está esperando que ninguém faça isso. Mas eu me preocupo com a volta. Você mesma disse que eles estão concentrados em manter as pessoas do lado de fora.

– Você está certíssima em se preocupar. Eu me esqueço de que você não consegue ler a minha mente, porque posso ler a sua tão facilmente. A resposta para o seu problema é bem simples. Devemos esperar até o sol se pôr para você começar a sua jornada. Na volta, os meus filhos vão fazer uma cortina de neblina e magia, sombras e fumaça, para que as Trevas a ocultem.

Lynette ficou boquiaberta e manteve os pensamentos cuidadosamente em branco, sem saber o que dizer.

– Você não precisa ficar preocupada. Ficar oculta pelas trevas não machuca nem dói. Bem, eu deveria dizer que não vai machucar nem doer para você. Os meus filhos precisam ser alimentados. Nesta noite, um motorista de táxi vai ganhar mais do que uma boa gorjeta! – A risada de Neferet foi cruel e ensandecida.

Lynette ergueu a taça e tomou um grande gole.

– Agora, mande esses súditos desarrumados para os seus quartos. Da próxima vez que os vir, quero ficar encantada. – Neferet bateu as mãos depois de suas ordens, como se fosse um faraó dispensando os seus escravos. – Lynette, talvez seja melhor você trocar o seu vestido por uma calça e uma blusa escura. Eu odiaria se você ficasse acidentalmente exposta demais. Você está liberada até o crepúsculo.

– Sim, Deusa.

Lynette fez uma reverência e se afastou, trêmula, seguindo para o elevador que a levaria até o loft no quarto andar que Neferet lhe dera. Quando entrou no elevador, cobriu a boca com as duas mãos, abafando um grito que não conseguia controlar. Pela primeira vez, Lynette compreendeu que não havia como sobreviver à loucura de Neferet, que a questão não era se ela ia morrer, mas como e quando.


C O N T I N U A

Nunca me senti tão sombria assim.
Nem mesmo quando fui estilhaçada e presa no Mundo do Além e minha alma começou a se fragmentar. Naquela época, eu estava quebrada, destruída e prestes a me perder para sempre. Eu me sentia sombria por dentro, mas as pessoas que mais me amavam foram faróis lindos e brilhantes de esperança, e eu fui capaz de encontrar força em sua luz. Consegui sair da escuridão.
Desta vez, eu não tinha nenhuma esperança. Não conseguia encontrar uma luz. Eu merecia continuar perdida, despedaçada. Desta vez, eu não merecia ser salva.
O Detetive Marx me levou para a delegacia do condado de Tulsa em vez de me jogar numa cela com o resto dos criminosos presos há pouco tempo. Na viagem aparentemente interminável da Morada da Noite até o grande prédio de pedra marrom do Departamento de Polícia da First Street ele conversou comigo, explicando que tinha feito uma ligação e mexido uns pauzinhos para que eu ficasse em uma cela especial até que o meu advogado tomasse as devidas providências sobre minha acusação, e então eu poderia ser solta sob fiança. Ele alternava o olhar entre a estrada e o meu reflexo no espelho retrovisor. Meu olhar encontrou o dele. Não precisei de mais do que um olhar de relance para ler a expressão em seu rosto.
Ele sabia que eu não tinha a menor chance de conseguir sair sob fiança.
– Eu não preciso de um advogado – disse eu. – E não quero fiança.
– Zoey, você não está pensando direito. Espere um pouco. Acredite em mim, você vai precisar de um advogado. E, se puder sair sob fiança, será o melhor para você.
– Mas não seria o melhor para Tulsa. Ninguém vai deixar um monstro à solta. – Minha voz soou estável e indiferente, mas por dentro eu estava gritando.
– Você não é um monstro – assegurou-me Marx.
– Você viu aqueles dois homens que eu matei?

 


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Ele me lançou um olhar pelo retrovisor de novo e assentiu. Eu podia ver que seus lábios estavam pressionados, formando uma linha, como se estivesse se segurando para não dizer algo. Por algum motivo, seu olhar ainda era bondoso. Eu não conseguia retribuir aquele olhar.

Olhando pela janela, eu disse:

– Então, você sabe o que eu sou. Você pode me chamar de monstro, de assassina, de vampira novata e perigosa... É tudo a mesma coisa. Eu mereço ser presa. Eu mereço o que vai acontecer comigo.

Então, ele desistiu de conversar, e eu fiquei satisfeita.

Uma cerca de ferro preta cercava o estacionamento da delegacia de polícia, e Marx seguiu até um portão nos fundos onde precisava esperar para ser identificado antes de um enorme portão se abrir. Então, ele estacionou e me conduziu, algemada, por uma porta nos fundos e por uma grande e agitada sala toda dividida em cubículos. Quando entramos, policiais conversavam e telefones tocavam. Assim que perceberam que Marx estava comigo, foi como se tudo tivesse sido desligado. As conversas cessaram e todos nos fitaram como idiotas.

Fixei o olhar em um ponto na parede bem na minha frente e me concentrei para não permitir que os gritos dentro de mim ecoassem.

Tivemos de atravessar toda a sala. Então passamos por uma porta que levava a uma daquelas salas como as do seriado Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais , em que a incrível Mariska Hargitay interroga os bandidos.

Fiquei sobressaltada ao perceber que o que eu fizera me transformara em um dos bandidos.

Havia uma porta no canto da sala que levava a um pequeno corredor. Marx virou à esquerda e parou para passar seu crachá de identificação, e uma porta de aço muito grossa se abriu. Do outro lado, o corredor logo acabava. Havia outra porta de metal à nossa direita, que estava aberta. A parte de baixo era sólida, mas, na altura dos ombros, as grades começavam. Grades pretas e grossas. Foi onde o Detetive Marx parou. Olhei para dentro. O lugar era uma tumba. De repente, senti dificuldade para respirar, e meus olhos desviaram do lugar horrível para encontrar o rosto familiar de Marx.

– Com o poder que você tem, imagino que consiga fugir daqui – ele falou baixinho, como se alguém pudesse estar nos escutando.

– Eu deixei a pedra da vidência na Morada da Noite. Foi isso que me deu o poder para matar aqueles dois homens.

– Então, você não os matou sozinha?

– Eu fiquei furiosa e despejei toda a minha fúria neles. A pedra da vidência só me deu o estímulo. Detetive Marx, a culpa foi minha. Ponto final.

Tentei soar durona e certa do que estava falando, mas a minha voz saiu suave e trêmula.

– Você consegue fugir daqui, Zoey?

– Para ser honesta, eu não sei, mas prometo que não vou tentar. – Respirei fundo e soltei todo o ar de uma vez, dizendo a ele a mais absoluta verdade. – Por causa do que eu fiz, meu lugar é aqui, e independentemente do que aconteça comigo, eu mereço.

– Bem, eu prometo que ninguém vai conseguir incomodá-la aqui. Você estará segura – garantiu ele, gentil. – Eu mesmo me certifiquei disso. Então, o que vier a acontecer, não será porque levou uma surra de linchadores.

– Obrigada.

Minha voz estava fraca, mas consegui pronunciar as palavras.

Ele tirou de mim as algemas.

Eu não tinha conseguido me mexer ainda.

– Você precisa entrar na cela agora.

Consegui fazer com que meus pés se mexessem. Quando eu estava dentro da cela, virei-me e, pouco antes de ele fechar a porta, eu disse:

– Não quero ver ninguém. Especialmente se for da Morada da Noite.

– Tem certeza?

– Tenho.

– Você entende o que está dizendo, não entende? – perguntou ele.

Eu assenti.

– Eu sei o que acontece com uma novata que não fica perto de vampiros.

– Então, basicamente, você está dando a sua própria sentença.

Ele não formulou como uma pergunta, mas eu respondi mesmo assim.

– O que eu estou fazendo é me responsabilizar pelos meus atos.

Ele hesitou, e pareceu que havia mais alguma coisa que desejava dizer, mas Marx apenas deu de ombros, suspirou e concordou:

– Certo, então. Boa sorte, Zoey. Sinto muito que as coisas tenham chegado a esse ponto.

A porta se fechou como que selando um caixão.

Não havia janela, nenhuma luz exterior exceto a do corredor que espreitava por entre as barras da porta. No fundo da cela havia uma cama: um colchão fino em cima de placa de alguma coisa dura grudada na parede. Havia um vaso sanitário de alumínio saindo do meio de uma parede paralela, não muito longe da cama. Não tinha tampa. O chão era de concreto preto. As paredes eram cinza. Sentindo-me como se estivesse em um pesadelo, andei até a cama.

Seis passos. Esse era o comprimento da cela. Seis passos.

Fui até a parede lateral e caminhei pela cela. Cinco passos. Tinha cinco passos de largura.

Eu estava certa. Se não contasse a distância para o teto, eu estava trancada em uma tumba do tamanho de um caixão.

Sentei-me na cama, puxei os joelhos até embaixo do queixo e abracei-os. Meu corpo tremia, tremia e tremia.

Eu ia morrer.

Eu não consegui me lembrar se Oklahoma tinha pena de morte. Como se eu tivesse realmente prestado atenção às aulas de História enquanto o Treinador Fitz passava um filme atrás do outro. Mas, de qualquer forma, isso não importava. Eu deixara a Morada da Noite. Sozinha. Sem nenhum vampiro. Nem mesmo o Detetive Marx sabia o que isso significava. Era só uma questão de tempo até meu corpo começar a rejeitar a Transformação.

Como se eu tivesse rebobinado um filme em minha mente, imagens de novatas morrendo apareceram na tela dos meus olhos fechados: Elliot, Stevie, Rae, Stark, Erin...

Apertei meus olhos ainda mais.

Acontece rápido. Rápido mesmo , prometi para mim mesma.

Então, outra cena de morte surgiu nas minhas lembranças. Dois homens – mendigos, insolentes, mas vivos, até que não consegui controlar o meu temperamento. Eu me lembrava de como atirara a minha raiva contra eles... de como eles bateram contra o paredão de pedra ao lado da pequena gruta de Woodward Park... de como ficaram deitados lá, dobrados, quebrados...

Mas eles estavam se mexendo! Eu não achei que os tivesse matado! Não tinha a intenção de matá-los! Fora realmente um terrível acidente! Minha mente gritava.

– Não! – falei com firmeza para a parte egoísta de mim que queria inventar desculpas e fugir das consequências. – As pessoas têm convulsões quando estão morrendo. Eles estão mortos porque eu os matei. Não vai compensar o que fiz, mas mereço morrer.

Eu me encolhi embaixo do áspero cobertor cinza e fitei a parede. Ignorei a bandeja com o jantar que enfiaram por uma abertura na porta. Eu não estava com fome, mas independentemente do que houvesse na bandeja, definitivamente não me apeteceria.

E, por alguma razão, a refeição ruim fez com que eu me lembrasse da última vez em que senti um cheiro maravilhoso de comida: o psaguetti [*] da Morada da Noite, cercada de amigos.

Mas eu estava estressada demais com o problema Aurox/Heath/Stark e nem apreciei o psaguetti de verdade. Assim como não apreciei os meus amigos. Nem Stark. Não mesmo.

Eu não tinha parado para pensar como era sortuda por dois caras tão incríveis me amarem. Em vez disso, eu ficara irada e frustrada.

Pensei em Aphrodite. Lembrei-me de como ela falou com Shaylin sobre me vigiar. Lembrei-me de como entrei furiosa e despejei o poder da minha fúria acumulada através da pedra da vidência.

A lembrança fez com que eu me encolhesse de vergonha.

Aphrodite estava absolutamente certa. Eu precisava ser vigiada. Ela sequer teve a chance de conversar comigo. E, quando tentou, droga, eu não fui nem um pouco razoável.

Eu me encolhi de novo quando me lembrei de como cheguei perto de despejar a minha raiva contra Aphrodite.

– Aiminhadeusa ! Se eu tivesse feito isso, teria matado a minha amiga – disse para as palmas das minhas mãos enquanto cobria o rosto de vergonha.

Não importava que a pedra da vidência, de alguma forma, mesmo sem eu pedir, tivesse aumentado meus poderes. Tive muitos avisos. Todas aquelas vezes em que me irritava e a pedra ficava cada vez mais quente. Por que não parei e refleti sobre o que estava acontecendo? Por que não pedi a ajuda de alguém? Cheguei a pedir conselhos a Lenobia sobre namorados. Conselho sobre namorados! Devia ter perguntado sobre como controlar raiva!

Mas eu não pedia ajuda para nada, exceto para a única coisa em que a minha visão afunilada estava focada: em mim mesma.

Eu era uma vadia egocêntrica.

Eu merecia estar onde estava. Eu merecia as consequências.

As luzes do corredor se apagaram. Não fazia ideia de que horas eram. Parecia ter se passado anos, e não apenas meses, desde que eu fora humana – uma adolescente normal que tinha que ir para a cama muito cedo nos dias de aula.

Eu desejava, com todas as minhas forças, poder chamar o Super­-Homem e pedir que ele voasse na direção contrária em volta da Terra para fazer o tempo voltar para ontem. Então, eu estaria em casa, na Morada da Noite, com meus amigos. Eu me jogaria nos braços de Stark e diria a ele o quanto o amo e sou grata por tê-lo. Diria que sinto muito pela confusão com Aurox/Heath, e que sairíamos dessa – nós, as duas pessoas e meia envolvidas –, mas que eu desfrutaria de todo o amor que me cercava, independentemente de qualquer coisa. Depois, me livraria da maldita pedra da vidência, procuraria Aphrodite e entregaria a ela para que fosse mantida em segurança, como se ela fosse o meu Frodo.

Mas era tarde demais para desejos. Voltar no tempo era só uma fantasia. O Super-Homem não era real.

Não dormi. Era noite, e a noite se tornara o meu dia. Neste momento, eu deveria estar na escola com meus amigos, vivendo a minha vida, tendo um “dia” normal (para mim), em vez de estar aqui, encolhida. Eu deveria ter sido mais esperta. Mais forte. Deveria ter sido qualquer coisa, menos uma pirralha egoísta.

Horas depois, ouvi a portinhola se abrir de novo, e quando me virei, vi que alguém levara a minha bandeja intocada. Bom. Talvez o cheiro também fosse embora.

Eu precisava fazer xixi, mas não queria. Não queria usar o vaso sem tampa que saía da parede no meio da cela. Olhei para os cantos das paredes, no ponto de encontro com o teto. Câmeras.

Era legal guardas verem prisioneiros fazerem xixi?

As regras regulares se aplicavam a mim? Quero dizer, eu nunca ouvira falar de um novato ou vampiro ser julgado por um tribunal humano nem ir para uma prisão humana.

Não preciso me preocupar com isso. Vou me afogar no meu próprio sangue antes de ir a julgamento.

Por mais estranho que possa parecer, esse pensamento era um conforto, e quando a luz do corredor se acendeu, caí num sono agitado e sem sonho.

Para mim, pareceu que dez segundos depois, a portinhola se abriu de novo e outra bandeja de alumínio foi empurrada para dentro da minha cela. O barulho me fez acordar assustada, mas ainda estava grogue, ainda tentando voltar a dormir – até que o cheiro de ovos e bacon me deixou com água na boca. Há quanto tempo eu não comia? Nossa, me sentia péssima. Ainda sem enxergar direito, andei os seis passos até a porta, pegando a bandeja e levando com cuidado para a minha cama desarrumada.

Os ovos estavam mexidos e supermolhados. O bacon, duro como um pedaço de pau. Havia café, uma caixa de leite e uma torrada pura.

Eu daria praticamente qualquer coisa por uma tigela de cereal Count Chocula e uma lata de refrigerante.

Dei uma garfada nos ovos, mas estavam tão salgados que quase engasguei.

Mas, em vez engasgar, comecei a tossir. Naquela tosse terrível, senti alguma coisa metálica, pegajosa, quente e estranhamente maravilhosa.

Era o meu próprio sangue.

O medo tomou conta de mim, deixando-me fraca, tonta e nauseada. Está acontecendo tão rápido? Eu não estou pronta! Não estou pronta!

Tentando limpar a minha garganta, tentando respirar, cuspi os ovos, ignorei o tingimento rosado no amarelo gorduroso, coloquei a bandeja no chão e me encolhi na cama, passando os braços em volta de mim mesma e esperando por mais tosse e sangue – muito mais sangue. Minhas mãos estavam tremendo quando enxuguei meus lábios.

Eu estava com tanto medo!

Não fique , disse para mim mesma enquanto tentava prender uma tosse terrível. Logo você verá Nyx. E Jack. E talvez até Dragon e Anastasia.

E mamãe!

Mãe... de repente, desejei a presença de minha mãe com todas as forças do meu ser.

– Eu gostaria de não estar sozinha – sussurrei com uma voz grave, a boca grudada no colchão fino e duro.

Escutei a porta se abrindo, mas não me virei. Não queria ver a expressão horrorizada de um estranho. Fechei os olhos bem apertados e tentei fingir que estava na fazenda de lavanda da Vovó, dormindo no meu quarto lá. Tentei fingir que o cheiro dos ovos com bacon era da comida dela, e que a minha tosse era apenas uma gripe que me impedia de ir à escola.

E eu estava fazendo isso! Ah, obrigada, Nyx! De repente, juro que consegui sentir os aromas que sempre se espalhavam na casa da Vovó, lavanda e capim. Isso me deu a coragem para falar logo, antes que a minha voz ficasse sufocada pelo sangue, para quem quer que estivesse ali:

– Tudo bem. Isso é o que acontece com alguns novatos. Por favor, vá embora e me deixe em paz.

– Ah, Zoey Passarinha, minha preciosa u-we-tsi-a-ge-ya , a esta altura você já deveria saber que eu nunca vou deixá-la sozinha.

[*] Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)


2

Zoey

Achei que ela fosse parte da minha alucinação agonizante, parada ali na porta da cela, usando uma camisa de linho roxa e jeans gastos, com uma cesta de piquenique pendurada no braço. Mas assim que me virei para encará-la, ela correu até mim, sentando-se na beirada da cama e me envolvendo em seus braços e nos cheiros da minha infância.

– Vovó! Eu sinto muito! Sinto muito! – Soluçava em seu ombro.

– Shhh, u-we-tsi-a-ge-ya , estou aqui. – Ela passava a mão em círculos nas minhas costas.

A minha tosse amenizou temporariamente, então eu disse logo:

– Eu sei que estou sendo egoísta, mas estou tão feliz que esteja aqui. Eu não quero morrer sozinha.

Vovó se afastou de mim o suficiente para me pegar pelos ombros e me sacudir.

– Zoey Redbird, você não vai morrer.

Lágrimas escorreram pelo meu rosto. Eu as ignorei e enxuguei o canto da minha boca, estendendo meus dedos trêmulos para que ela pudesse ver o sangue.

Ela mal olhou para a prova que eu estava tentando lhe mostrar. Em vez disso, abriu a cesta de piquenique, tirou um guardanapo xadrez vermelho e branco e começou a enxugar as minhas lágrimas e meu nariz, exatamente como fazia quando eu era apenas uma menininha.

– Vovó, eu sei que você me ama mais do que qualquer pessoa no mundo – comecei, tentando (sem sucesso) não chorar. – Mas você não pode impedir que meu corpo rejeite a Transformação.

– Você está certa, u-we-tsi-a-ge-ya , eu não posso. Mas eles podem. – Ela apontou para a porta atrás de mim.

Virei-me e vi Thanatos e Lenobia, Stevie Rae, Darius e Stark – meu Stark –, todos apertados na porta. Stevie Rae estava chorando tão alto que não sei como não havia escutado antes.

Stark também estava chorando, mas em silêncio.

– Mas eu disse para não virem atrás de mim! Eu disse que mereço enfrentar as consequências. – Chorava tanto quanto Stevie Rae agora.

– Então, viva e enfrente as consequências! E eu estarei bem aqui, o mais perto possível de você para passar pela coisa toda! – Stark atirou as palavras em mim.

– Eu não posso. Já comecei a rejeitar a Transformação – contei soluçando.

– Menina, a sua avó falou a verdade. A não ser que a rejeição do seu corpo já esteja determinada, nossa presença vai impedi-la – afirmou Thanatos.

– Você não vai morrer! Eu não vou deixar! – gritou Stark aos prantos, e começou a entrar na minha cela.

– Espere aí, rapaz! Eu disse que só um de cada vez pode entrar na cela. – Um cara com uniforme policial veio de trás do meu grupo de amigos e se colocou entre eles e a minha cela. – O Detetive Marx me disse que eu deveria permitir a entrada de vocês, vampiros, no prédio se aparecessem, mas não vou quebrar as regras e deixar mais de um visitante por vez. A avó é da família. O resto de vocês pode esperar na sala de interrogatório. – Ele lançou um olhar sério para a minha avó. – A senhora tem quinze minutos. – Então, bateu a porta.

– Quinze minutos. – Vovó emitiu um ruído de descontentamento. – Isso não é uma visita apropriada. Esse é o tempo de cozinhar um ovo. Que rapaz sem coração. Bem, não vou ficar aqui perdendo tempo. Zoey Passarinha, assoe o nariz e fique de pé. Você precisa de uma boa defumação. Ah, os cavalheiros que revistaram a cesta fizeram uma bagunça.

Ela já estava mexendo dentro da cesta de piquenique sem fundo, por isso precisei segurar suas mãos nas minhas para que parasse e prestasse a atenção em mim.

– Vovó, eu amo você. Você sabe, não sabe?

– Claro, u-we-tsi-a-ge-ya. E eu amo você, de todo o coração. É por isso que preciso te defumar. Gostaria que tivesse uma banheira aqui, ou mesmo uma pia, para ajudar ainda mais na purificação. Mas a defumação vai ter que ser o suficiente. Trabalhei a noite toda e finalmente escolhi defumar você com essa concha de ostra que nós duas pegamos quando seguimos o Rio Mississipi até o Golfo no verão em que você completou dez anos. Lembra?

– Claro que lembro, Vovó, mas...

– Bom. Moí e misturei sálvia, cedro e lavanda. Combinados, eles formam um poderoso defumador para purificação emocional e física. – Ela estava derramando as ervas secas de uma bolsinha de veludo preta para a concha de ostra. – Eu também trouxe uma pena de águia e minha peça favorita de turquesa. Sei que eles podem tentar tirar de você, mas vamos tentar esconder dentro do colchão. Vai servir para protegê-la enquanto...

– Vovó, por favor, pare – interrompi. Encontrando o seu olhar sem nem piscar, eu disse: – Eu matei aqueles dois homens. Não mereço ser purificada nem protegida. Mereço o que estava acontecendo comigo antes de todos vocês aparecerem.

Minha intenção não era ser tão fria, mas minhas palavras fizeram com que ela hesitasse. Então, suavizei a minha voz, mas não a minha decisão.

– Os vampiros podem ter evitado que me afogasse no meu próprio sangue, mas isso não muda o fato de que eu fiz uma coisa terrível, uma coisa pela qual preciso ser punida.

Ela parou de preparar a minha defumação e seus olhos penetrantes encontraram os meus.

– Diga-me, u-we-tsi-a-ge-ya , por que você matou aqueles homens?

Balancei a cabeça e afastei o cabelo despenteado do meu rosto.

– Eu não sabia que os tinha matado até o Detetive Marx aparecer na Morada da Noite. Eu só sabia que eles tinham me enfurecido. Estavam perambulando por Woodward Park atrás de pessoas, principalmente garotas, amedrontando-as para que lhes dessem dinheiro. – Parei e meneei a cabeça de novo. – Mas isso não torna o que eu fiz aceitável. Quando dessem conta do que eu era, me deixariam em paz.

– E iam seguir até encontrar outra vítima.

– Provavelmente, mas não iam matar. Eles eram mendigos, não serial killers.

– Então, me conte o que aconteceu. Como você os matou?

– Descontei minha raiva neles. Da mesma forma que tinha feito com Shaylin mais cedo, atirando-a no chão. Só que eu fiquei ainda mais furiosa no parque. De algum jeito, a pedra da vidência exacerbou os meus sentimentos e me deu o poder de atacar todos eles.

– Mas você não matou Shaylin – considerou Vovó, sendo lógica. – Eu vi a menina na Morada da Noite um pouco antes de vir para cá. Ela me pareceu bem viva.

– Não, eu não a matei. Não dessa vez. Quem sabe o que poderia ter acontecido se eu não tivesse ido embora e seguido para o parque, e descontado a minha fúria naqueles dois homens? Vovó, eu estava descontrolada. Eu era um monstro.

– Zoey, você fez uma coisa monstruosa. Mas isso não faz de você um monstro. Você se entregou. Desistiu da pedra da vidência. Permitiu que a prendessem. Esses não são os atos de um monstro.

– Mas, Vovó, eu matei dois homens! – Senti meus olhos marejarem de novo.

– E agora você vai ter que enfrentar as consequências dos seus atos. Mas isso não significa que você deva desistir e causar ainda mais sofrimento para as pessoas que amam você.

Mordi meus lábios.

– Meu intuito é assumir minhas responsabilidades para não machucar mais ninguém, principalmente as pessoas que eu amo.

– Zoey Passarinha, não sei por que essa coisa terrível aconteceu. Eu não acredito que você seja uma assassina. – Ela ergueu a mão para que não a interrompesse quando tentei falar. – Sim, eu tenho consciência de que os dois homens estão mortos, e que você parece ser responsável pela morte deles. Ainda assim, você mesma admite que a pedra da vidência teve um papel decisivo no acidente, o que significa que a magia antiga está em ação.

– É verdade, eu estava usando a pedra – admiti.

– Ou ela estava usando você – contradisse ela.

– De qualquer forma, os resultados são os mesmos.

– Para os dois homens. Mas não necessariamente para você, u-we-tsi-a-ge-ya. Agora, fique de pé na minha frente. Você precisa que a sua mente seja clareada e seu espírito purificado para que possa analisar exatamente o que a trouxe para esta cela. Veja, não estou aqui para ajudá-la a se esconder do que fez. Estou aqui para que possa verdadeiramente encarar o que aconteceu.

Como sempre, Vovó era a voz da razão e do amor incondicional. Fiquei de pé e me permiti o breve conforto de vê-la pegar a concha com uma das mãos enquanto, com a outra, colocava um pequeno pedaço arredondado de carvão em cima da mistura de ervas e acendia. Conforme faiscava, ela disse:

– Respire fundo três vezes, u-we-tsi-a-ge-ya . E, a cada vez que o fizer, solte a energia tóxica que anuvia a sua mente e escurece o seu espírito. Visualize, Zoey Passarinha. Qual é a cor?

– Um verde asqueroso – respondi, pensando na coisa nojenta que saiu do meu nariz da última vez em que tive sinusite.

– Excelente. Expire e visualize que está se livrando disso junto com a sua respiração.

O carvão parara de faiscar e estava ficando cinza nas beiradas. Vovó pegou a bolsinha de veludo preta e começou a salpicar as ervas sobre o carvão dizendo:

– Eu lhe agradeço, espírito da sálvia branca, por sua força, sua pureza, seu poder. – Uma fumaça branca começou a subir da concha de ostra. – Eu agradeço a você, espírito do cedro, por sua divina natureza, por sua capacidade de criar uma ponte entre este Mundo e o Mundo do Além.

Mais fumaça subia, e eu inspirava e expirava.

– E, como sempre, agradeço ao espírito da lavanda, por sua natureza apaziguadora, por sua capacidade de nos permitir liberar a nossa raiva e alcançar a paz. – Então, Vovó começou a andar em volta de mim em sentido horário, batendo os seus pés em um ritmo pulsante, ancestral, que parecia eletrificar a fumaça aromatizada e impulsioná-la para dentro do meu corpo, conforme ela abanava em volta de mim com a pena de águia. Sem perder um passo de sua dança, a voz de Vovó se pareou aos seus movimentos, ecoando através do sangue dela para o meu. – Saia o que é tóxico, que é verde como bile. Entre a fumaça doce, prateada e pura.

Concentrei-me enquanto ela se movia à minha volta, entrando no ritual com a mesma facilidade que fizera por toda a minha infância.

– Inale a cura. Inale a purificação. Inale a calma. A bile verde embora irá. Substituída pela prata e pela claridade – cantava Vovó.

Levantei as mãos, guiando a fumaça em volta da minha cabeça, concentrando-me na purificação prateada.

– O-s-da – continuou Vovó, repetindo logo depois em nossa língua: – Bom, você está recuperando o seu centro.

Entrei em um estado sonolento, de transe, levada pela fumaça e pelo canto da Vovó. Pisquei, como se estivesse emergindo de um mergulho profundo, e meus olhos se arregalaram de surpresa. Claramente visível através da fumaça havia uma luz prateada brilhante que, como uma bolha, nos envolvia, a mim e a Vovó.

– Isso é o que você está projetando agora, Zoey Passarinha. Isso tomou o lugar das Trevas que estavam dentro de você.

Respirei fundo de novo, sentindo uma leveza surpreendente em meu peito. O aperto terrível que estivera ali desde que comecei a tossir sumiu. A sensação de desespero que estava dentro de mim também desapareceu...

Por quanto tempo? , perguntei-me. Agora que tinha ido embora, eu percebia o quanto aquilo era opressor.

Vovó tinha parado na minha frente. Colocou a concha de ostra entre nossos pés e segurou as minhas mãos.

– Eu não sei de tudo. Não tenho as respostas que você procura. Não posso fazer nada além de purificar e curar a sua mente e o seu espírito. Não posso tirá-la deste lugar nem mudar o passado que a trouxe para cá. Só posso amá-la e lembrá-la desta regrinha segundo a qual tentei viver a minha vida: não posso controlar os outros. Só posso controlar a mim mesma e as minhas reações aos outros. E, quando tudo o mais dá errado, eu escolho a bondade. Mostro compaixão. Então, se fiz escolhas ruins, pelo menos não causei danos ao meu espírito.

– Eu fracassei nisso, Vovó.

– Fracassei... isso é passado, e você deve deixar esse fracasso no passado, que é onde ele deve ficar. Aprenda com os seus erros e siga em frente. Não fracasse de novo, u-we-tsi-a-ge-ya. Isso significa que se você precisar enfrentar o julgamento e for para a prisão por causa dessa coisa terrível que aconteceu, então você fará isso falando a verdade e agindo com compaixão, assim como faria uma Grande Sacerdotisa da sua Deusa.

– Eu deveria afastar as pessoas que me amam. – Não disse isso como uma pergunta, mas Vovó me respondeu mesmo assim.

– Afastar as pessoas que a amam e se interessam verdadeiramente por você seria a ação infantil, e não de uma Grande Sacerdotisa.

– Vó, você acha que Nyx ainda quer que eu seja uma Grande Sacerdotisa?

Vovó sorriu.

– Acho, mas a minha opinião não é importante. O que você acha da sua Deusa, Zoey? Você acha que ela é tão volúvel que a amaria e depois a descartaria tão facilmente?

– Não estou questionando Nyx, e sim a mim mesma – admiti.

– Então, deve olhar para si mesma. Manter-se firme no seu centro. – Ela pegou a pedra turquesa que retirara da cesta de piquenique mais cedo e colocou-a em minha mão. – Você usou a pedra da vidência para concentrar seus poderes, querendo ou não. Agora, acredito que tenha que encontrar um foco dentro de você. Assim como a turquesa tem seu próprio poder protetor, você deve encontrar o seu próprio, dentro de si. Desta vez, não procure raiva, Zoey Passarinha. Procure compaixão e amor.

– Sempre amor – terminei por ela, pegando a pedra na minha mão e sentindo a sua maciez.

– Segure-se ao seu verdadeiro eu como está segurando esta pedra, e lembre-se de que sempre vou acreditar que você é mais forte, mais sábia e mais bondosa do que pensa ser.

Coloquei os braços em volta dela e abracei-a com força.

– Eu amo você, Vovó. Sempre amarei.

– Assim como eu sempre amarei você.

– Acabou o tempo! – A voz do guarda fez com que eu, relutantemente, soltasse Vovó. – Ei, o que está acontecendo aqui? O que vocês estavam queimando?

Vovó virou-se para ele, sorriu, e com sua voz mais doce, disse:

– Nada com o que você precise se preocupar, querido. Apenas um pouco de limpeza e purificação. Você gosta de biscoitos com gotas de chocolate? Tenho um ingrediente secreto que faz com que os meus fiquem irresistíveis, e, por acaso, tenho uma dúzia aqui na minha cesta. – Dando um tapinha no braço dele, ela acompanhou-o pela porta, levantando um prato de papel cheio de biscoitos de sua cesta mágica e piscando para mim por sobre o ombro. – Agora, querido, por que não arranja um café para acompanhar esses biscoitos enquanto chama o jovem e generoso vampiro chamado Stark para entrar e visitar a minha neta?

Stark!

Sentei-me na cama, endireitando minhas roupas nervosamente e tentando pentear o meu cabelo superdoido com os dedos. E, então, ele estava na porta, e me esqueci da aparência. Eu me esqueci de tudo, exceto de como estava feliz em vê-lo.

– Posso entrar? – perguntou ele, hesitante.

Assenti.

Não esperei que ele desse aqueles seis passos até mim. Não podia esperar nem mais um segundo. Assim que ele se aproximou, atirei-me em seus braços e enterrei meu rosto em seu ombro.

– Eu sinto muito! Não me odeie... por favor, não me odeie!

– Como eu poderia odiar você? – Ele me abraçou com tanta força que era difícil respirar, mas não liguei. – Você é a minha rainha, a minha Grande Sacerdotisa e meu amor... meu único amor. – Ele se afastou de mim apenas o suficiente para me olhar diretamente nos olhos. – Você não pode se suicidar. Eu não conseguiria sobreviver a isso, Zoey. Juro que não.

Havia círculos escuros embaixo de seus olhos, e suas tatuagens vermelhas de vampiro pareciam especialmente brilhantes contra a pele anormalmente pálida. Parecia que ele tinha envelhecido uma década em um dia.

Odiei vê-lo com aparência cansada e doentia. Odiei ser a causa disso.

Encontrei seu olhar e falei com toda gentileza e compaixão dentro de mim:

– Isso foi um erro. Não o cometerei de novo. Desculpe-me ter feito você passar por tudo isso. – Apontei para a cela.

Ele tocou meu rosto com gentileza, quase reverência.

– Para onde você for, eu vou. Nós fizemos um juramento para esta vida e além, Zoey Redbird. E tudo isso é suportável se tivermos um ao outro. Nós ainda temos um ao outro?

– Temos sim.

Eu o beijei, longa e apaixonadamente. Achei que eu o estivesse confortando, mas percebi que seu toque, seu beijo e seu amor é que estavam me confortando.

Foi naquele momento que realmente compreendi o quanto amo Stark.

– Está vendo? – perguntou ele, cobrindo meu rosto de beijos e enxugando as lágrimas que escorriam. – Está tudo melhor agora. Tudo vai ficar bem.

Eu não quis falar para ele que não tinha tanta certeza de que algum dia as coisas voltariam a ficar bem. Isso não seria compaixão. Em vez disso, levei-o até a minha cama estreita e dura. Nós nos sentamos e eu me aconcheguei nele, repousando em seu braço.

– Nós vamos nos revezar para ficar aqui de modo que você não volte a rejeitar a Transformação. De hoje em diante, sempre haverá um vampiro do lado de fora desta porta – Stark começou a explicar baixinho enquanto me abraçava bem apertado. – Vão colocar uma cama portátil no corredor.

– Mesmo? Você vai ficar assim tão perto de mim?

– Vou, o Detetive Marx fez com que permitissem que eu ficasse. Ele é um cara muito legal. Ele disse ao chefe de polícia que não permitir que um vampiro fique com você seria a mesma coisa que dar uma lâmina de barbear a um prisioneiro humano e depois fazer vista grossa para o que ele fizesse depois. Ele disse que isso era desumano e que, ao se entregar, você tinha os mesmos direitos que qualquer outro humano.

– Isso foi legal da parte dele. – De repente, percebi que horas deviam ser, meio-dia pelo menos. – Espere, você não devia estar aqui. Está claro lá fora. – Sentei-me e comecei a procurar queimaduras em seu corpo.

Ele sorriu.

– Estou bem. Stevie Rae também. Viemos para cá na parte de trás da van da escola, aquela sem janelas.

Assenti e sorri.

– A van de Chester the Molester. [*]

– Isso, é assim que eu me locomovo agora. – O sorriso dele ficou presunçoso. – Marx deixou que estacionássemos na garagem coberta ao lado da delegacia. Nenhum raio de sol tocou em nós.

– Tome cuidado, ok?

Ele ergueu as sobrancelhas.

– É sério isso? Você está me mandando tomar cuidado?

– Estou pedindo, na verdade – corrigi, lembrando-me de ser generosa.

Ele riu e me abraçou.

– Zoey Redbird, você está toda desarrumada, mas continua linda, e eu amo você.

– Eu também amo você.

Logo ele me soltou e seu rosto assumiu uma expressão mais séria.

– Tudo bem, quero que você me conte tudo. Já sei que você ficou furiosa com dois humanos e lançou algum tipo de poder neles, mas eu preciso de detalhes.

– Stark, será que não podemos simplesmente... – comecei, não querendo desperdiçar um segundo do meu tempo com ele para falar do terrível erro que cometi.

Ele me cortou.

– Não podemos simplesmente ignorar. Zoey, você pode ser um monte de coisas, mas assassina não é uma delas.

– Joguei dois caras contra o muro, e eles estão mortos. Isso me torna uma assassina, Stark.

– Veja bem, acho que eu tenho um problema com isso. Acho que isso torna a sua pedra da vidência uma assassina. Foi por isso que você a entregou para Aphrodite, não foi? Porque foi o que canalizou a sua fúria para aqueles dois caras.

Estava prestes a abrir a boca para tentar explicar para ele o que eu mesma não compreendia, mas o som de passos no corredor me interrompeu. O guarda, com rosto vermelho e olhos arregalados, apareceu na porta.

– Vamos, vamos! Saia. Agora! – ordenou ele para Stark, apontando freneticamente para ele. – Um dos seus vampiros pode ficar, mas tem que ser aqui no corredor. O resto de vocês tem que dar o fora daqui... voltar para o lugar de vocês.

– Espere, não faz nem cinco minutos, muito menos quinze – argumentou Stark.

– Não posso fazer nada a respeito. Tem alguma coisa acontecendo no presídio. Uma emergência no centro da cidade.

Segui Stark até a porta, sentindo como se um cubo de gelo estivesse descendo pela minha espinha.

– Onde no centro da cidade? O que está acontecendo? – perguntei.

– Está um inferno no Mayo Hotel, e eles precisam de todos os policiais da cidade lá.

A porta da cela se fechou, permitindo que eu e Stark nos víssemos por entre as grades.

– Neferet – disse Stark.

– Ah, droga – respondi, concordando.

[*] “Chester the Molester” era uma tirinha de autoria de Dwaine B. Tinsley e publicada pela revista Hustler por 13 anos. A história gira em torno de um homem, Chester, interessado em molestar sexualmente mulheres e adolescentes. (N.T.)


3

Neferet

Era o meio da manhã de um domingo preguiçoso quando Neferet ordenou aos seus filamentos de Trevas que se abrissem para que pudesse ser levada da espessa nuvem de sangue e morte para a calçada em frente ao Mayo. Ela endireitou seu terninho Armani e jogou o cabelo castanho para trás. Neferet estava pronta para seu retorno triunfal à cobertura que a esperava com seus mármores, pedras e veludos no topo do prédio. Abriu a porta vintage de latão e vidro e parou assim que a atravessou, suspirando feliz para o vasto salão de baile que se abria à sua frente, resplandecente com seu mármore branco, colunas estatuárias, ornamentos grandiosos da década de 1920, e uma escadaria dupla que se curvava até a pista de dança com a graça do sorriso satisfeito de uma deusa.

Suas sobrancelhas castanhas se arquearam. Seu olhar cor de esmeralda se tornou mais penetrante. Neferet observou à sua volta com interesse renovado.

– Este realmente é um prédio requintado o suficiente para ser o templo de uma deusa. – Neferet sorriu. – Meu templo. Minha casa.

– Srta. Neferet! É realmente a senhora? Estávamos tão preocupados que alguma coisa tivesse acontecido quando destruíram a sua cobertura.

Neferet desviou o olhar do grande salão para a jovem que sorria para ela por trás do balcão da recepção.

– Meu templo. Minha casa. Meus súditos . – Ela sabia o que deveria fazer. Por que demorara tanto para pensar nisso? Possivelmente porque nunca absorvera tantas mortes ao mesmo tempo como acontecera poucos momentos antes de chegar ao Mayo. Assim como suas fiéis gavinhas, Neferet estava pulsando com poder, e esse poder tornava seu pensamento focado e claro.

– Isso, é exatamente assim que deve ser. Todos os humanos neste prédio devem me adorar.

– Desculpe-me, madame. Não entendi o que quis dizer.

– Ah, você vai entender. Em breve, entenderá. – O sorriso radiante da recepcionista começara a se apagar. Com um movimento sobrenatural, Neferet deslizou até ela. Viu o nome da garota no crachá dourado. – Sim, minha querida Kylee. Logo você me entenderá completamente. Mas, primeiro, você vai me dizer quantos hóspedes há neste momento no hotel.

– Sinto muito, madame – desculpou-se Kylee, parecendo totalmente constrangida. – Não posso fornecer essa informação. Talvez se a senhorita me disser do que precisa...

Neferet se inclinou, passando a mão pelo lindo balcão de mármore, interrompendo-a e capturando o olhar da garota.

– Você não me questionará. Você jamais me questionará. Fará exatamente o que eu mandar.

– Eu... Eu sinto muito, madame. Não quis ofendê-la, mas as informações sobre os hóspedes do hotel são confidenciais. Nós... Nós temos muito cuidado com a nossa p-política de privacidade – gaguejou ela, as mãos trêmulas de nervoso enquanto agarrava a corrente de ouro com um crucifixo junto ao pescoço.

Mesmo se Neferet não fosse vidente, perceberia a extensão do medo da garota – o que não impressionava a Deusa nem um pouco.

– Excelente! Agora que você vai seguir as minhas ordens, espero que seja ainda mais cuidadosa com privacidade, a minha privacidade.

– Desculpe, madame, a senhora está dizendo que comprou o Mayo Hotel? – A confusão de Kylee se intensificava junto com seu medo.

– Ah, muito melhor do que isso, e muito mais permanente. Decidi transformar este prédio encantador no meu primeiro Templo. Mas eu já não ordenei que você nunca me questionasse? – Neferet suspirou e emitiu um som de desaprovação. – Kylee, você vai ter que se esforçar mais no futuro. Mas não precisa preocupar essa sua cabecinha loura. Sou uma deusa bondosa. Pretendo lhe oferecer a ajuda de que precisar para que seja minha súdita perfeita.

Enquanto Kylee arfava como um peixe fora d’água, Neferet virou-se de costas para ela e encarou o mar de gavinhas que, embora não fossem vistas pela idiota da Kylee, espalhavam-se pelo piso de mármore e subiam carinhosamente por suas pernas.

– Filhos, vocês se alimentaram muito bem. Agora, está na hora de me pagarem pela minha generosidade. – Eles se retorceram, excitados, um ninho de víboras, e Neferet sorriu carinhosamente para elas. – Sim, eu lhes dei a minha palavra. Que foi só o começo do nosso banquete. Mas vocês precisam trabalhar em troca de comida. Eu me recuso a ter filhos vagabundos. – Ela deu uma gargalhada afetada. – Agora, um de vocês deve possuir esta humana. Não! Não a matem. – Neferet esclareceu, quando uma dúzia de gavinhas começou a se arrastar exaltadamente na direção de Kylee. – Sigam a minha mente até a dela. Usem minha trilha até seus pensamentos e desejos mais profundos, e fiquem lá, envolvam sua vontade e apertem. Mas não o suficiente para matá-la ou roubar o que se passa por sua razão. Não quero um Templo cheio de idiotas. Quero um Templo cheio de súditos obedientes. Possuam-na para que eu tenha certeza de sua obediência!

Neferet se virou para encarar a garota, cujo rosto perdera a cor de forma tão drástica que seus olhos castanhos pareciam hematomas.

– Srta. Neferet, por favor, não me machuque! – implorou ela, começando a chorar.

– Kylee, minha querida, minha primeira súdita humana, isso é realmente para o seu bem. O livre-arbítrio é um fardo terrível. Eu tinha livre-arbítrio quando era uma garota, pouco mais nova do que você; ainda assim, estava presa a uma vida de abuso que eu não tinha escolhido. É muito comum isso acontecer com humanos. Olhe para si própria: o emprego subalterno, a roupa precária. Você não quer mais da vida?

– Q-quero – respondeu Kylee.

– Bem, então temos um trato. Se eu tirar o seu livre-arbítrio, também vou afastar de você os terrores inesperados que a vida pode trazer. – Neferet fitou dentro dos olhos arregalados da garota e perfurou sua mente. Estava concentrada demais em Kylee para baixar o olhar, mas sabia que uma fiel e forte gavinha a obedecera e estava subindo pelo corpo da garota. Embora não conseguisse ver o que estava rastejando por suas pernas, Kylee certamente podia sentir. Abriu a boca e começou a gritar. – Acabem com o terror dela e entrem nela! – ordenou Neferet, e a gavinha entrou pela boca aberta.

Kylee começou a engasgar convulsivamente, e apenas o domínio de Neferet em sua mente evitou que desmaiasse.

– Tão humana. Tão fraca – murmurou a Deusa enquanto sondava a mente da garota, sentindo a familiar presença das Trevas seguindo. Quando encontrou o centro da vontade de Kylee, sua alma, sua consciência, Neferet ordenou: – Envolvam-na! – Com seu sentido extra, presente que recebera de outra Deusa mais de um século antes, Neferet testemunhou as Trevas aprisionarem a vontade de Kylee.

A garota caiu, seu corpo se contorcendo em espasmos.

– Lembrem-se bem da trilha que acabei de mostrar para vocês, filhos. Kylee é apenas a primeira de muitas. – Neferet bateu uma palma. – Levante-se, Kylee. Arrume-se, minha querida. A sua vida acaba de se tornar muito mais , e eu tenho outras ordens que você deve cumprir.

Kylee ficou de pé, como se fosse uma marionete manipulada por cordas.

– Isso, assim está muito melhor. Agora, me diga quantos hóspedes há no hotel, e lembre-se, nada mais daqueles gritos irritantes.

– Sim, madame – respondeu Kylee de forma instantânea e mecânica.

O sorriso de Neferet voltou. Ela estava transbordando poder! Os humanos deviam adorá-la – com a débil força de vontade deles e mentes facilmente manipuláveis, não tinham a menor chance.

– E pare de me chamar de madame. Quero que me chame de Deusa.

– Sim, Deusa – repetiu Kylee automaticamente, sua voz totalmente desprovida de emoção. Então, começou a digitar no teclado enquanto fitava, sem expressão, a tela do computador. – No momento, temos 72 hóspedes, Deusa.

– Muito bem, Kylee. E quantos moradores há?

– Cinquenta.

Com um dedo longo, Neferet levantou o queixo de Kylee para que ela a fitasse de novo.

– Cinquenta o quê?

Kylee estremeceu, tal qual um cavalo espantando insetos, mas seu olhar permaneceu aberto, inexpressivo, e ela se corrigiu imediatamente, dizendo:

– Cinquenta, Deusa.

– Muito bem, Kylee. Vou me recolher à minha cobertura. Lembre-se, este prédio agora é o meu Templo, e eu insisto em proteger a minha privacidade, assim como meu divino corpo. Entendeu?

– Sim, Deusa.

– Você compreende que isso significa que, se alguém vier me procurar, você dirá que tem certeza absoluta de que eu não estou aqui, e o mandará embora?

– Compreendo, Deusa.

– Kylee, você foi muito útil. Vou permitir que tenha uma vida longa o suficiente para me adorar adequadamente.

– Obrigada, Deusa.

– De nada, querida.

Neferet começou a deslizar na direção do elevador. Levantou a mão, chamando.

– Venham, meus filhos. Tenho a sensação de que vamos precisar redecorar.

Inchadas e pulsando com o sangue com o qual tinham acabado de se alimentar, as gavinhas das Trevas seguiram ansiosamente sua ama.

– Exatamente como pensei. Deixaram em ruínas! Isso é inaceitável. – Neferet andou em volta das cadeiras reviradas dos tapetes manchados da sala de estar que costumava ser uma cobertura meticulosa e luxuosamente decorada. – Sangue velho! Esta sala está fedendo a sangue. Limpem! – mandou ela. As gavinhas obedeceram, embora mais lentamente do que quando a refeição que ela oferecia era fresca. – Não sejam tão exigentes. Parte desse sangue é de Kalona. Mesmo velho, sangue imortal tem poder. – Isso pareceu animar as gavinhas e elas passaram a rastejar com mais entusiasmo.

Enquanto trabalhavam, Neferet dirigiu-se até a adega, apenas para encontrá-la vazia. Não restava uma garrafa sequer do escuro e caro cabernet que ela tanto adorava.

–Isso é o que acontece quando não estou aqui para ficar de olho naqueles humanos preguiçosos. Eles negligenciam suas tarefas. Estou sem vinho, e minha cobertura mais parece um matadouro!

O olhar irritado de Neferet foi de encontro à grande quantidade espalhada de poeira turquesa, vinda da jaula das Trevas, na qual suas gavinhas prenderam a entediantemente teimosa Sylvia Redbird.

– E aquilo! Sumam com aquele pó azul horrível. Macula toda a beleza do piso de ônix, ainda mais do que aqueles tapetes persas manchados.

Várias gavinhas tentaram obedecer à sua ordem, mas se esquivaram assustadas das partículas azuis, como se estas ainda tivessem o poder de afastá-las. A mais ousada delas seguiu pela pedra empoeirada, então estremeceu e se contraiu, sua carne escorregadia e emborrachada soltando fumaça e um líquido escuro e fétido. Neferet franziu a testa, acenando para a gavinha. Com uma unha afiada, ela perfurou a pele da palma de sua mão.

– Venha, alimente-se de mim e cure-se – murmurou ela, apreciando o toque gelado e doloroso da boca da gavinha, acariciando-a enquanto ela se alimentava, estremecendo sob seu toque.

– Isso nunca vai dar certo. Arrumar a bagunça deixada por humanos é muita humilhação para meus leais filhos. Súditos humanos devem limpar bagunças humanas, é disso que preciso, cumprindo as minhas ordens, facilitando o meu trabalho. E, felizmente, temos mais de cem deles sob este mesmo teto. Todos eles, exceto a tão útil Kylee, ainda não sabem o quanto ficarão assoberbados em breve. Hum... qual seria a melhor maneira de iniciar meus novos súditos?

Neferet sacudiu o braço para afastar a gavinha faminta.

– Não seja tão gulosa. Já está curada.

A gavinha se afastou. Neferet passou a mão pelo seu longo e esbelto pescoço, pensando. Precisava avaliar o melhor passo a dar, e precisava agir rápido.

Não deixara ninguém vivo na Church Boston Avenue, apenas centenas de corpos mutilados e sem sangue.

– As autoridades irão primeiro para a Morada da Noite, é claro. Thanatos insistirá que ninguém do seu rebanho impecável faria uma coisa daquelas. A velha vai jogar a culpa em mim. Acreditando nela ou não, mesmo a incompetente polícia local acabará vindo me procurar aqui. – Neferet tamborilou suas unhas longas e pontiagudas no balcão de mármore preto de sua adega vazia. Não tinha muito tempo ao seu dispor, a não ser que optasse por se esconder.

– Não, nunca mais vou me esconder. Sou uma Deusa, uma imortal, com o dom de comandar as Trevas. Nyx nunca me compreendeu. Kalona nunca me compreendeu. Ninguém jamais me compreendeu. Mas agora eu vou obrigá-los a me entender. Vou fazê-los entenderem! Os moradores de Tulsa é que devem se esconder de mim, e não o contrário.

Ela tinha de ser rápida e decisiva, antes que a polícia chegasse e tentasse, sem sucesso, prendê-la – ou antes que o seu banquete na igreja chegasse aos noticiários e começasse a assustar os hóspedes do Mayo Hotel: os seus futuros súditos.

Neferet encontrou um controle remoto e ligou a enorme televisão de tela plana que, por sorte, tinha saído intacta da batalha. Sintonizou no canal local, colocou no mudo e começou a andar de um lado para o outro, pensando em voz alta e mantendo os olhos grudados na tela.

– É uma pena que eu não possa enjaular os seres humanos como eu fiz com aquela velha e soltá-los quando eu precisasse de sua adoração ou de seus serviços. Isso seria tão mais fácil para eles e, o mais importante no final das contas, para mim. Eu apostaria muito no fato de que nenhum deles resistiria tanto quanto Sylvia Redbird. Os humanos comuns nunca poderiam entrar ou sair da jaula das Trevas criadas por vocês, meus queridos. E, pelo que vi até agora, os meus humanos são excessivamente normais. – Neferet parou abruptamente. – Os meus súditos são humanos normais. E eu me tornei tão mais do que uma humana comum ou uma vampira.

Distraída, Neferet acariciou uma gavinha que se enrolara em seu braço.

– É uma pena que eu não possa enjaular os humanos aqui. Eu os estaria protegendo, permitindo que eles troquem o tédio de suas vidas pela satisfação de me adorar, assim como fiz com Kylee. – Ela acariciava a gavinha, enquanto esta estremecia de prazer. – Eu não preciso enjaulá-los. Eu preciso tratá-los com carinho!

Abrindo os braços, ela sorriu para os seus servos das Trevas, que eram perfeitamente lindos e aterrorizantes.

– Tenho uma resposta para o nosso dilema, meus filhos! A jaula que criamos para aprisionar Redbird era fraca, uma tentativa patética de aprisionamento. Aprendi tantas coisas desde aquela noite! Consegui tanto poder... Nós conseguimos tanto poder. Não vamos enjaular as pessoas, como se eu fosse uma carcereira em vez de uma deusa. Meus filhos, vamos cobrir todas as paredes do meu Templo com as suas tramas mágicas e invioláveis para que os meus novos súditos possam me adorar sem qualquer empecilho. E isso será apenas o começo. À medida que eu absorver cada vez mais poder, por que não encapsular toda a cidade? Eu sei disso agora... Conheço o meu destino. Começo o meu reinado como Deusa das Trevas ao tornar Tulsa o meu Olimpo! Só que isso não será apenas um mito fraco contado como histórias banais de crianças para crianças. Isso será realidade: o Mundo das Trevas do Além veio para a Terra! E, nesse mundo, não haverá inocentes sendo abusados por predadores. Todos estarão sob a minha proteção. Eu tenho o destino deles nas minhas mãos, e eles só precisam se preocupar com o meu bem-estar. Ah, como eles vão me adorar!

Em volta dela, as gavinhas se contorceram em resposta à animação dela. Ela sorriu e acariciou as que estavam mais próximas.

– Sim, sim, eu sei. Será glorioso, mas o que preciso primeiro, meus filhos, é do serviço de quarto. Vamos convocar os meus novos servos. Alguns deles vão limpar e arrumar os meus aposentos da maneira correta. Outros vão reabastecer a adega. Todos vão me obedecer sem me questionar. Preparem-se. Chegou a hora de Neferet, a Deusa das Trevas!

Foi mais fácil do que ela mesma imaginara. Os humanos não eram apenas ridiculamente fáceis de serem controlados, mas também tão indefesos contra a infestação de uma única gavinha das Trevas quanto a pequena Kylee. Ela estava absolutamente certa. Eles precisavam dela para comandar a vida deles, assim como um bebê precisa da mãe.

O único problema no seu plano era que Neferet não tinha acesso a um número infinito de gavinhas. Apenas as mais leais, as suas verdadeiras filhas, continuaram ao seu lado depois que fora despedaçada.

Por um breve instante, considerou chamar mais filamentos de Trevas, mas logo rejeitou tal pensamento. Ela não recompensaria a traição – e os filamentos que a abandonaram no momento da necessidade a traíram no nível mais profundo.

Neferet tomou um gole do seu cabernet favorito em uma taça de cristal e andou pela cobertura, contando os humanos que se dedicavam à limpeza e à arrumação da bagunça que Zoey e seus amigos tinham deixado para trás. Seis. Havia quatro mulheres da equipe de limpeza e dois homens do serviço de quarto. Neferet sorriu. Na verdade, eles não passavam de garotos – ambos louros e ansiosos por atender aos seus pedidos de serviço de quarto. Saindo do seu elevador, suas expressões denunciaram os seus pensamentos de forma tão clara que ela nem precisou esquadrinhar suas mentes. Eles a desejavam. Muito. Obviamente esperavam que ela quisesse um pouco de sangue e sexo com vinho. Tolos! Agora eles se moviam mecanicamente, atendendo aos comandos que ela dava sem reclamar, sem preocupações e sem olhares galanteadores irritantes. Estavam exatamente como ela preferia os seus homens humanos: silenciosos, obedientes e jovens.

– Cavalheiros, a vida é gloriosa, não acham?

As duas cabeças louras se voltaram para ela.

– Sim, Deusa – responderam em uníssono, como sempre.

Neferet sorriu.

– Como costumo dizer, o livre-arbítrio é um peso terrível. Não precisam agradecer por eu ter aliviado vocês de tal peso. – Então, ela ordenou: – Voltem ao trabalho.

– Obrigado, Deusa. Sim, Deusa – repetiram eles, obedecendo-a.

Então, ela já tinha usado seis filamentos. Não, sete, contando a pequena Kylee, da recepção. Neferet lançou um olhar contemplativo para o ninho de gavinhas onde elas se reuniram para absorver o que restara do sangue seco de Kalona. Quantas havia? Tentou contar, mas era impossível. Elas se moviam muito e com rapidez, além de se fundirem umas às outras e depois se separarem quando desejassem. Parecia haver muitas delas, porém. E todas tinham crescido, engordado e estavam mais fortes depois de terem se fartado.

Eu preciso me certificar de que continuem bem alimentadas. Elas não podem definhar – pois isso significaria que o meu absoluto poder sobre os humanos também enfraqueceria.

Resoluta, Neferet discou zero para falar com a recepcionista.

– Recepção, como posso ajudá-la, Neferet? – respondeu a voz insolente de Kylee ao primeiro toque.

– Kylee, quando eu ligar, o modo correto de atender ao telefone é dizendo “Como posso servi-la, minha Deusa?”.

A voz de Kylee ficou sem expressão ou emoção e ela repetiu:

– Como posso servi-la, minha Deusa?

– Muito bem, Kylee. Você com certeza aprende rápido. Eu preciso saber quantos funcionários estão trabalhando aqui no meu Templo hoje.

– Seis faxineiras, dois carregadores, quatro membros do serviço de quarto e eu. Rachel deveria estar aqui na recepção comigo, mas está de licença médica.

– Pobre Rachel. Mas isso me deixa com treze funcionários ao meu dispor. É claro que isso não inclui o restaurante. Ele está aberto hoje?

– Está. Nós abrimos para o brunch até as duas horas da tarde aos domingos.

Kylee fez uma pausa para contar:

– O chef, um ajudante de cozinha, o bartender , que também é o gerente, e três garçonetes.

– Totalizando vinte. Eis o que quero de você, Kylee. Feche o restaurante imediatamente, mas não permita que os funcionários vão embora. Diga a eles que houve uma mudança na gerência do hotel e que o novo dono pediu uma reunião de funcionários.

– Farei como me pede, Deusa, mas os Snyder não são donos do restaurante.

– Quem são os Snyder?

– A família que comprou e reformou o Mayo em 2001. Eles são os donos do prédio.

– Corrigindo, Kylee, querida, eles eram os donos do prédio que era conhecido como Mayo Hotel. Eu controlo o Templo em que ele se tornou. Não importa. Isso logo ficará claro. Tudo de que preciso é que você reúna todos os funcionários do restaurante e do hotel e peça-lhes que venham até a cobertura daqui a trinta minutos. Depois, eu vou mudar o título da reunião de funcionários para o que ela realmente é: uma oportunidade de adorar a sua Deusa. Isso não soa muito mais agradável do que reunião de funcionários?

– Sim, Deusa – respondeu Kylee.

– Excelente. Vejo você e o resto dos meus súditos daqui a meia hora.

– Deusa, eu não posso deixar a recepção sozinha. O que acontecerá se alguém quiser se hospedar ou deixar o hotel?

– A resposta é simples, Kylee. Tranque as portas para que ninguém possa entrar ou sair do meu Templo. Tranque tudo e venha até mim com as chaves.

– Sim, Deusa.

Neferet teria de encontrar outro lugar para receber os súditos. A sua cobertura era íntima demais para tantos humanos. No entanto, teria de se virar por um tempo. Ela se posicionou diante das portas de vidro colorido que haviam sido quebradas e agora foram substituídas pelos garotos louros. Ela desligara as luzes elétricas berrantes e ordenara que as faxineiras trouxessem velas para os seus aposentos. Castiçais, suportes e velas de promessa cobriam a prateleira de granito, a cornija da lareira, a mesa de centro de mármore no estilo art déco e a grande mesa de jantar de madeira. Ela também ordenara que as lanternas que ficavam ao lado das portas tivessem as lâmpadas fortes retiradas e fossem substituídas por luzes bruxuleantes e quentes de velas brancas. Ela fez uma observação mental para pedir que um dos seus servos fosse comprar mais velas – muitas e muitas velas.

O olhar de Neferet passeou pela cobertura, e ela ficou satisfeita. Tudo parecia tão melhor, e estava apreciando a sua segunda garrafa de cabernet, pensando em quanto apreciaria mais tarde, quando um – ou uma – entre seus súditos se oferecesse para misturar o próprio sangue no vinho.

Neferet tinha se vestido com esmero, satisfeita ao ver que suas roupas ficaram intactas enquanto estivera ausente. Escolheu um vestido de seda dourada que se ajustava ao corpo como se acariciasse a sua pele. Como sempre, Neferet deixou o cabelo ruivo solto, em ondas brilhantes que desciam pelas costas até a cintura. Não usou nenhum adorno com um símbolo de qualquer outra deusa. Jamais voltaria a usar imagens adornadas em prata – ela arrancara o último daqueles filamentos de si.

Tinha um novo símbolo, no qual vinha pensando cuidadosamente, e mal podia esperar até que um dos seus súditos fosse encomendar a peça na joalheria de Moody e a “surpreendesse” com um rubi de seis quilates no formato de uma lágrima perfeita. Ela seria efusiva nos agradecimentos e sempre o usaria preso a uma grossa gargantilha de ouro.

Seria realmente bom ser a Deusa das Trevas – A Deusa de Tulsa –, a Deusa do Caos.

Ouviu o barulho do elevador.

– Meus filhos, venham até mim! – Os filamentos de Trevas se apressaram em sua direção, cercando-a, pousando sobre os seus pés descalços com um frescor reconfortante. – Ah, e súditos, vocês podem voltar à minha presença – disse ela por sobre os ombros na direção do local para onde ordenara que aguardassem até que tivessem novas ordens.

Eles passaram por ela no instante em que as portas do elevador se abriram e Kylee levou o restante dos funcionários para a cobertura.

– Bem-vindos! – Neferet ergueu a taça e os braços. – Vocês são abençoados por estarem diante de mim.

A maior parte do grupo pareceu confusa. Duas mulheres, vestidas como garçonetes, murmuraram perguntas uma para a outra. Os olhos afiados de Neferet as notou. Um dos homens, o que usava um chapéu idiota de chef, perguntou:

– Você poderia nos dizer o que está acontecendo aqui? Tivemos que fechar o restaurante e obrigar os nossos clientes a ir embora, mesmo que eles ainda não tivessem terminando o seu brunch. Posso afirmar para você que, com certeza, temos alguns ex- clientes muito putos da vida.

– Qual é o seu nome? – quis saber Neferet, mantendo o tom de voz agradável.

– Tony Witherby, mas a maioria das pessoas me chama de chef.

– Bem, Tony, eu não sou a maioria das pessoas. Veja bem, a maioria das pessoas me chama de Deusa.

Ele soltou uma gargalhada debochada.

– Você só pode estar brincando, né? Tipo, eu estou vendo as suas tatuagens e sei que você é uma vampira e tudo o mais, mas vampiras não são deusas.

Neferet ficou satisfeita ao ver Kylee se afastar do chef como se não quisesse ser contaminada por sua desobediência. Kylee estava realmente se tornando uma excelente súdita.

Neferet não desperdiçou sequer um olhar para o chef. Em vez disso, sorriu para os seus filhos alvoroçados.

– Tão ansiosos – comentou ela em um tom leve de reprovação. Ela se abaixou para acariciar uma gavinha particularmente precoce que se enrolara por sua perna quase na altura de sua coxa. – Você vai ser perfeita.

– Tudo bem, você vai ter que nos dizer o que está acontecendo ou eu vou ligar para o dono do restaurante – ameaçou o chef. Quando ela continuou a ignorá-lo, ele começou a gritar: – Isso é realmente ridíc...

– Pegue-o! – comandou Neferet para a gavinha. – E permitam que a vejam.

A gavinha ficou visível enquanto voava na direção do chef. Ela era tão grande que rapidamente o envolveu pela cintura grossa, movendo-se rapidamente para cima.

– Que merda é essa?! Solte-me! – gritou o chef, jogando-se para trás e batendo na gavinha com ambas as mãos, impotente.

Neferet achou que ele parecia uma menininha com medo de aranha.

Um homem bonito e negro vestido como mensageiro se aproximou para ajudar o chef.

– Fique onde está ou o seu destino será o mesmo do dele! – avisou Neferet.

O homem parou onde estava.

– Nããããão!

Os gritos do chef beiravam à histeria, e Neferet ficou aliviada ao ver que bem nesse momento a gavinha subiu pelo pescoço dele e invadiu sua boca, fazendo com que se abrisse de uma maneira quase impossível. Isso causou a rachadura e o sangramento dos cantos dos lábios, antes que todo o grosso comprimento do filamento desaparecesse dentro do corpo do humano. O chef caiu do chão.

– É tão deprimente quando um homem adulto age como uma menininha assustada, vocês não acham?

Os humanos que ainda não tinham sido possuídos por seus filhos olharam para ela com um misto de horror e descrença. Outra mulher, uma das faxineiras que não atendera ao chamado anterior de Neferet, estava rezando em espanhol, agarrada ao crucifixo pendurado em uma gargantilha de prata de aparência barata. Todo o grupo, exceto pelo equivocado Tony, estava se afastando, como um rebanho, na direção das portas do elevador.

– Nada disso – declarou Neferet com voz suave. – Vocês não podem partir antes de receber minha permissão.

– Você também vai nos matar? – perguntou uma das mulheres, segurando a mão da amiga e tremendo de forma espasmódica.

– Matar vocês? É claro que não. Tony não está morto. – Ela dirigiu-se então ao chef caído no chão. – Tony, meu querido, levante-se e diga para os outros que você está perfeitamente bem.

De forma estranha, Tony se levantou, virou-se para Neferet. Então, sem expressão no seu rosto rosado e manchado de sangue, declarou:

– Estou perfeitamente bem.

– Você se esqueceu de dizer uma coisinha – disse Neferet.

O corpo de Tony se retorceu em espasmos como se ele tivesse levado um choque por dentro, e ele se apressou a repetir:

– Estou perfeitamente bem, Deusa.

– Viram só? É exatamente como eu disse. Qual é o seu nome, querida? – perguntou ela para a mulher trêmula.

– Elinor.

– Que nome adorável. Não se veem mais nomes como esse hoje em dia, o que é uma pena. Para onde todas as Elinors e Elisabeths, Gertrudes, Gladys e Phyllis foram? Não, não precisa me responder. Elas foram substituídas por Haileys, Kaylees, Madisons e Jordans. Eu odeio nomes modernos. Sabe, Elinor, eu preciso agradecê-la. O seu nome de bom gosto fez com que eu tomasse uma decisão sobre vocês, meus novos súditos. Vou renomear qualquer um de vocês que possua um nome muito chamativo. – Neferet lançou um olhar para Kylee. – Exceto você, Kylee. Eu gosto muito do seu crachá dourado para mudar o seu nome.

– Deusa? – sussurrou Elinor em tom de pergunta.

– Pois não, minha querida.

– Nós agora estamos trabalhando para a senhora?

– Ah, é muito melhor do que isso. Vocês vão me adorar agora. Vocês vinte serão as primeiras testemunhas do meu reinado como Deusa das Trevas. Cada um de vocês terá um papel especial e muito importante para cumprir enquanto me adoram e atendem a cada uma das minhas necessidades. Vocês vão me oferecer presentes e sacrifícios e, em troca, tirarei o exaustivo livre-arbítrio que obviamente tem lhes reprimido e deprimido a vida. Por que outro motivo vocês estariam trabalhando em tarefas tão servis e sem sentido?

– Eu não estou entendendo o que está acontecendo – choramingou Elinor.

– Logo... logo a sua confusão acabará. Não se preocupe, doce Elinor, só dói um pouquinho. – Neferet ergueu o braço. – Meus filhos... – começou ela.

– Espere! – O mensageiro que quis ajudar Tony deu um passo para a frente e lançou um olhar inflexível para Neferet. – A senhora disse que se tentássemos ajudar o chef, nosso destino seria o mesmo do dele. Eu não ajudei. Ninguém mais ajudou. Então, de acordo com a sua própria palavra, não vai mandar essas coisas rastejantes nos atacar.

– E qual é o seu nome?

– Judson. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Deusa.

– Judson é um nome antigo do sul, sabia?

– Não, eu... Eu, não. Eu não sabia. – Ele fez outra pausa. – Deusa.

– Bem, é isso então. Eu também não vou trocar o seu nome. E quanto ao que eu disse antes? Eu menti. Peguem-nos! – Ordenou.

Felizmente, os seus filhos tinham antecipado os seus desejos e moveram-se rapidamente, de modo que os gritos irritantes logo cessaram.


4

Neferet

Neferet liberou seus novos súditos, cada qual tendo iniciado sua adoração por meio da possessão de um de seus filhos, e ordenou-lhes que chamassem os hóspedes e residentes do hotel e os reunissem no grande salão do hotel.

Decidira que deveria estabelecer o lugar das oferendas no salão principal, o qual era cercado por colunas de mármore, tinha pé-direito alto e o teto ornado com lindos candelabros no estilo art déco , e escadaria dupla e ampla em curva com balaústres de ferro forjado que contavam com uma grande plataforma entre o térreo – onde os súditos ficariam – e o passeio superior, onde apenas os seus adoradores mais próximos, aqueles que cuidavam dos seus desejos, seriam permitidos. Os outros ficariam presos nos próprios quartos ou no porão, o qual Kylee fora gentil em lhes mostrar. Ou, se eles provassem ser um estorvo excessivo e ela não quisesse gastar uma gavinha para possuí-los, eles se tornariam alimento para seus filhos.

É claro que ela só se alimentaria dos súditos que despertassem o seu interesse.

Kylee recebera a tarefa de encontrar uma cadeira que servisse de trono até que pudesse encomendar um que fosse entalhado para ela.

– Você precisa encontrar um artesão talentoso para criar exatamente o que eu quero. A madeira deve ser tingida de sangue vermelho profundo de búfalo – orientou ela, enquanto escolhia a colocação com cuidado. – E eu não quero nada daqueles assentos duros e pobres ao gosto dos velhos do Conselho Supremo. Almofadas de veludo dourado. É sobre elas que vou me sentar.

Neferet permitiu que duas das faxineiras mais atraentes a envolvessem num vestido luxuoso em tom púrpura real, e tinha acabado de decidir que não usaria sapato – ficaria descalça, como condiz a uma Deusa recém-nascida. Retornou à sua sala para encher novamente a taça de vinho, irritada por não haver lá nenhum humano ansioso por ajudá-la. Ela já estava esperando, impacientemente, que convidados e residentes estivessem rodeados por seus servos obedientes para que pudesse fazer a sua entrada triunfante no salão.

– Até mesmo para uma Deusa, é tão difícil encontrar empregados de qualidade. Mas eu vou deixar esse erro passar. Eles são só vinte. Devem estar bem ocupados reunindo os humanos no meu salão de oferendas. Mas vou deixar passar somente esta vez.

Estava bebericando o líquido vermelho, apreciando o sabor do sangue do bonito mensageiro que tinha tão graciosamente oferecido um pedaço da sua carne para dar mais sabor ao seu vinho, quando a televisão chamou a sua atenção. Havia uma legenda de notícias na parte inferior da imagem onde se lia ASSASSINATOS EM TULSA, e a âncora, Chera Kimiko, estava falando com uma expressão sombria.

Encantada, Neferet apertou o botão de mudo na televisão, esperando reviver os detalhes deliciosos do seu banquete. No entanto, em vez da Church Boston Avenue, a tela mostrou uma imagem do Woodward Park, em um estado terrível de desgaste. Então, a câmera mudou, e as sobrancelhas de Neferet se ergueram enquanto se concentravam em um paredão de pedra ao lado de uma gruta que, até recentemente, fora o seu santuário. Ela aumentou o volume, impaciente, a tempo de ouvir Kimiko dizendo de forma tão séria:

– Este é o local onde ocorreu o terrível assassinato de dois homens, cujos corpos foram descobertos por bombeiros na manhã de ontem. Conforme informamos anteriormente, a violenta tempestade que criou ventos de quase 120 km/hora foi acompanhada por raios mortais. Os raios que caem sobre a região de Tulsa já foram responsáveis por cinco mortes hoje, além de dez pessoas hospitalizadas em estado grave. Mas a morte desses dois homens aparentemente não tem relação com as tempestades. Adam Paluka está ao vivo com o detetive Kevin Marx e vamos até ele para mais detalhes. Adam?

A cena mudou do parque destruído pela tempestade para um detetive sentado atrás de uma mesa em um escritório de aparência comum. Neferet o reconheceu como o policial que fora irritantemente compreensivo com Zoey Redbird no passado. Ela fez uma careta enquanto assistia à entrevista.

– Detetive Marx, o senhor poderia nos explicar essas duas mortes adicionais em Woodward Park, e responder se o senhor realmente excluiu a possibilidade de as mortes terem sido caudadas pela tempestade?

– Os corpos dos dois homens, ambos na casa dos quarenta anos, foram descobertos na manhã de ontem. A causa da morte foi a mesma para os dois homens: contusão e hemorragia.

Neferet sorriu, decidindo que aquele era um excelente aquecimento para a carnificina que eles logo descobririam.

– E é verdade que o senhor prendeu alguém que confessou ter cometido os crimes?

Neferet ergueu as sobrancelhas.

– Confessou os assassinatos? Está presa? Isso é impossível.

– Sim, é muito triste ter de informar que uma jovem novata, a quem conheço pessoalmente, se apresentou por livre e espontânea vontade para confessar que assassinou os dois homens.

– Uma novata! – explodiu Neferet levantando-se da chaise e gritando com a tela da televisão.

– O senhor pode informar o nome de tal novata?

– Zoey Redbird .

Neferet gritou, pegou um dos abajures elétricos que tinha tirado da tomada e o atirou contra o aparelho de televisão.

– Aquela garota tola e fraca acredita que matou aqueles dois homens? Eu os encontrei a poucos metros do meu santuário, e seu sangue serviu para me alimentar para que pudesse ir ao grande banquete na Boston Avenue Church. Zoey Redbird matando dois homens adultos? Que grande bobagem! Ela não tem o ímpeto necessário para matar ninguém! E realmente confessou o assassinato? Aquela garota é uma idiota ainda maior do que eu imaginei.

Neferet jogou a cabeça para trás e sua gargalhada debochada ecoou pela cobertura.

Neferet assumira a sua posição no meio da graciosa escadaria dupla do salão principal do Mayo Hotel. Adorava a ironia de estar no mesmo lugar onde tantos humanos iludidos fizeram seus votos matrimoniais.

– Um pacote de macarrão tem validade maior do que a maioria dos casamentos humanos, sabia?

Ela sorriu para a multidão reunida sobre o piso de mármore preto e branco. Havia ordenado que diminuíssem as luzes e que grandes candelabros fossem posicionados e acesos em cada um dos lados. Sabia que sua beleza era divina, complementada pelo brilho de seu vestido à carícia da luz das velas.

Ordenou que metade dos seus vinte súditos a cercasse, embora sem entrar na plataforma em que se encontrava. Os outros dez humanos possuídos estavam posicionados na entrada do seu Templo. Ela dera a eles apenas uma ordem: ninguém poderia entrar ou sair.

Seus filhos das Trevas se contorciam à sua volta, invisíveis para os humanos que a olhavam boquiabertos, mas reconfortantes para ela com sua avidez familiar.

– Ah, vocês estão certos em não responder. Essa pergunta realmente não é uma forma digna de uma Deusa se dirigir pela primeira vez aos seus escolhidos. Permitam que eu comece de novo.

Neferet se posicionou na frente do seu trono, abriu os braços em um gesto amplo e começou:

– Atenção! Eu sou Neferet, a Deusa das Trevas, a Rainha de Tsi Sgili. Transformei este hotel no meu Templo das Trevas, e vocês, poucos afortunados, serão meus súditos fiéis, os meus escolhidos. Em troca, recompensarei sua adoração removendo as preocupações do mundo comum de vocês. Não mais precisarão trabalhar em empregos sem sentido. Não precisarão voltar para casamentos tediosos nem para filhos mal-agradecidos. De hoje em diante, até a sua morte, seu único objetivo será me adorar. Regozijem-se, humanos!

Seu discurso foi seguido por um longo momento de silêncio absoluto e, então, a multidão começou a se agitar nervosamente, aos sussurros.

Neferet aguardou pelo que sabia que viria a seguir, e isso manteve o sorriso no seu rosto. Gostava muito de ensinar lições de vida aos humanos.

Conforme previsto, Neferet não precisou esperar muito tempo. Uma mulher deu um passo à frente. Era alta e tinha cabelo castanho – devia estar no final da meia-idade, embora estivesse bem conservada e parecesse estar em forma, como uma mulher que se exercita diligentemente para se manter jovem. Usava um vestido de bom gosto e corte meticuloso em um tom bonito de verde-esmeralda.

– Onde você comprou esse vestido adorável? – perguntou Neferet à humana antes que ela tivesse a chance de dizer qualquer coisa.

A mulher piscou, obviamente surpresa com a pergunta, mas respondeu:

– É um Halston. Comprei na Miss Jackson’s.

– Kylee – chamou Neferet, olhando para o lugar em que a garota se encontrava aos pés da escadaria, com uma aparência serena de um robô. – Anote. Vou precisar que você vá até a Miss Jackson’s e escolha diversos vestidos para mim. Certifique-se de incluir modelos Halston.

– Sim, Deusa – entoou Kylee, sem emoção.

Neferet franziu o cenho, olhando para Kylee. Será que realmente queria que aquela garota escolhesse os seus trajes? Ela não devia ter mais do que vinte anos e se o seu corte de cabelo fosse uma indicação do seu senso de moda, seria realmente um desastre...

– Tudo bem, você tem que explicar o que realmente está acontecendo aqui. Eu não tenho tempo para isso. – Recuperando-se da sua surpresa, a mulher com o vestido verde-esmeralda interrompeu os pensamentos de Neferet, batendo com o pé no chão para demonstrar sua impaciência. – Eu tenho um jantar marcado no Summit Club, e pegar um avião para Nova York logo em seguida.

– Já expliquei a situação para vocês – disse Neferet. – Agora eu sou a sua Deusa. Você não vai jantar no Summit Club nem vai voltar para Nova York. A não ser que eu mande que você faça alguma coisa para mim. O seu único trabalho é me adorar. Em troca, eu acabarei com as suas angústias e preocupações mundanas. Qual é o tamanho desse vestido? Trinta e oito ou quarenta?

– Sério? Essa é uma piada de muito mau gosto. Frank Snyder está por trás disso, não é? Frank? – A mulher ignorou Neferet e chamou pelo homem, procurando ao seu redor, como se esperasse que ele fosse aparecer. – Ela está vestida como uma diva de cinema. Deixe-me adivinhar: ela vai cantar “Smoke gets in your eyes” pelo meu aniversário, não é? Como é que você encontrou uma vampira para contratar? Ou será que essas tatuagens foram pintadas?

A mulher girara em torno de si e novamente encarava Neferet, olhando para ela como se estivesse considerando apagar suas tatuagens.

Neferet se deu conta de que sua paciência chegara ao fim.

– Escolhidos, permitam que esta seja uma lição para vocês. Eu não sou uma piada. Eu sou a sua Deusa. Poderosa, possessiva, imortal e onisciente. Eu sou praticamente destituída de paciência, nunca aturo tolos. – Neferet se inclinou para a frente e pousou a mão no balaústre de ferro. Encontrou o olhar da mulher e invadiu a sua mente desprotegida. – Então, o seu nome é Nancy, e hoje é o seu aniversário. – O sorriso de Neferet era felino. – E você está fazendo cinquenta e três anos, embora diga aos amigos que tem quarenta e cinco.

O corpo da mulher estremeceu e ela arfou, chocada com a violação, mas impotente para resistir.

– Como você sabe disso? E como se atreve?

Neferet fez um som alto de admoestação, meneando a cabeça.

– Uma vida de tantas privações em nome da beleza. Será que ninguém lhe explicou que, não importa o que faça, você é humana e os humanos envelhecem? Nancy, você deveria ter comido mais massa, bebido mais vinho, dormido com o filho caçula do seu vizinho mais do que duas vezes e deixado o seu odioso marido quando ele teve o primeiro caso vinte anos atrás. E, Nancy, eu sei dessas coisas porque eu sou uma Deusa. Eu me atrevo a dizer essas coisas porque eu sou a sua Deusa, embora você, obviamente, não me mereça.

As pessoas em volta de Nancy se mexeram, como se quisessem se afastar dela, mas ainda estavam com expressões pasmadas e confusas de descrença em seus rostos bovinos.

– Seria inteligente se afastarem de Nancy. Eu sei que o meu Templo conta com instalações de lavanderia, mas não há motivo para mancharem desnecessariamente as suas roupas. – As pessoas mais próximas de Nancy se afastaram mais dela. Neferet sorriu, encorajando-os enquanto pegava uma das gavinhas que envolviam os seus pés descalços. Era satisfatoriamente pesada e grossa, e a sua pele gelada e emborrachada pulsava contra o seu corpo enquanto envolvia o seu braço. – Mate Nancy. Faça-a sofrer. Ela encheu a própria vida de sofrimento, então o sofrimento na morte deve ser um conforto para ela. – Neferet disse aquilo com carinho para seu filho. – Permita que seja visto.

Ela atirou a criatura em Nancy. A entidade tornou-se visível no ar. A multidão arfou e exclamou, mas logo começou a gritar quando a gavinha se enrolou no pescoço de Nancy e começou lentamente a cortar sua carne até arrancar a cabeça da mulher.

A multidão se descongelou e, gritando em pânico, seguiu em direção à saída.

– Eu não lhes dei permissão para sair! – Cheia de poder imortal, a voz de Neferet ecoou pelo amplo salão. – Meus filhos, permitam que meu povo veja vocês.

O ninho de Trevas ao seu redor se ondulou e se tornou visível, mas poucas pessoas notaram. Estavam ocupadas demais olhando, horrorizadas, para as cabeças negras das gavinhas, que haviam possuído a equipe e que, ao comando de Neferet, tornaram-se visíveis dentro das bocas escancaradas de cada um dos humanos robôs que guardavam as saídas.

Neferet fez outra nota mental – ela tinha de se certificar de recompensar os filhos que se ofereceram para a tediosa tarefa de possuir a equipe. Eles estavam sendo tão obedientes e compreensivos. Um outro banquete logo teria de ser providenciado para eles.

Sentiu um feixe de poder deslizar pelo seu corpo e voltou sua atenção para Nancy, cuja cabeça já estava separada do corpo. Havia tanto sangue, porém, que a gavinha não conseguia se alimentar rápido o suficiente. Neferet suspirou. O piso de mármore reluzente ia ficar manchado. Será que tinha de fazer tudo?

– Alimentem-se dela rapidamente! – ordenou aos filhos mais próximos. – Não tolerarei bagunça no meu Templo. – Então, suspirou mais uma vez e voltou sua atenção para o público em pânico. – Vocês estão começando muito mal! – exclamou ela. – Em troca de uma vida repleta de um novo objetivo, tudo o que peço em troca é a sua obediência e adoração. Nancy não me deu nada disso e vejam o que aconteceu com ela. Que isso sirva de lição para cada um de vocês.

– O que são essas criaturas? – perguntou um homem baixo e gordo, obviamente tentando controlar o medo enquanto acariciava o braço de uma mulher igualmente baixa e gorda e que enterrara o rosto no seu casaco enquanto soluçava.

– Estes são os meus filhos, formados por Trevas, e leais somente a mim.

– Por que eles estão dentro da boca daquelas pessoas? – quis saber ele.

– Porque aquelas pessoas fazem parte da minha equipe de trabalho e elas também devem ser leais apenas a mim. A possessão é muito mais eficiente do que cortar as suas cabeças. Agora, vocês viram como tudo será muito mais simples se vocês fizerem o que eu mandar?

– Mas isso é loucura! – gritou um homem no fundo do salão. – Você não pode esperar que nós fiquemos aqui e a adoremos, não é? Nós temos as nossas vidas, nossas famílias. Pessoas que sentirão a nossa falta.

– Tenho certeza de que sentirão mesmo, mas como eles são pessoas , e não imortais, isso não me preocupa. Mas se vocês forem muito, muito, mas muito bons mesmo, eu talvez lhes dê permissão para trazer a suas famílias para se juntarem a vocês.

– Você não pode fazer isso – disse uma mulher aos soluços. – A polícia vai nos salvar.

Neferet deu uma gargalhada.

– Ah, eu espero que sim. Estou ansiosa por este confronto. Garanto a vocês que o Departamento de Polícia de Tulsa não sairá vitorioso.

– E agora? O que nós vamos fazer? Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! – berrou outra mulher.

– Façam com que ela se cale! – ordenou a Deusa, e uma gavinha voou em direção à mulher, envolvendo seu rosto e tapando sua boca. Ela caiu no chão enquanto se contorcia.

Neferet soltou um longo suspiro de alívio quando não apenas os gritos da mulher cessaram, mas todo o grupo em pânico também se calou. Ela passou a mão pelo vestido perfeitamente ajustado ao seu corpo e, usando um tom calmo para os súditos apavorados, falou:

– Vocês devem aprender estas lições agora. – Ela fez um gesto com os dedos longos como se estivesse marcando itens em uma lista. – Eu não tolero histeria. Não tolero deslealdade. Também não sou muito chegada a homens brancos de meia-idade. Agora, eu preciso de sessenta voluntários para resolver negócios muito importantes na cobertura.

Ninguém se mexeu. Ninguém a olhou nos olhos. Neferet suspirou novamente e acrescentou:

– Eu não vou usar nenhum dos voluntários como alimento.

Uma jovem ergueu a mão trêmula.

– Sim, querida. Qual é a sua pergunta? – concedeu a Deusa.

– Você vai dizer para essas cobras entrarem nas nossas bocas?

Neferet sorriu docemente para a garota.

– Não, eu não vou fazer isso.

– Ent... Então, eu sou uma voluntária.

– Muito bem! – elogiou Neferet. – E qual é o seu nome?

– Staci.

– Não, eu vou chamá-la Gladys, que é um nome muito mais digno, você não acha?

A jovem logo concordou com a cabeça.

– Então, Gladys, fique do lado esquerdo do salão de oferendas. Agora, eu quero mais cinquenta e nove pessoas tão entusiasmadas quanto Gladys para se juntarem a ela.

Quando ninguém mais se mexeu, Neferet usou um tom de raiva e gritou:

– Agora!

Como se tivessem sido atingidos por um chicote, um grupo de humanos se sobressaltou e se juntou à primeira voluntária.

– Kylee, conte quantos humanos há e me informe quando houver sessenta.

Cada vez mais impaciente, Neferet esperou. Por fim, Kylee declarou:

– Temos sessenta voluntários, Deusa.

– Muito bem. Seja uma fofa, Kylee, e leve-os até a minha cobertura. Faça com que esperem na varanda pelas minhas ordens. Ah, e abra várias caixas de champanhe. Seja generosa. Meus voluntários devem ser recompensados.

Parecendo confusos, mas aliviados, os sessenta humanos entraram nos elevadores. Neferet voltou a sua atenção para os adoradores restantes. Eles a olhavam como se esperassem que uma guilhotina estivesse prestes a descer sobre as suas cabeças.

– Seria muito mais fácil usar a possessão em todos vocês. Instruir humanos dos tempos modernos a como adorar uma Deusa será uma tarefa extremamente tediosa – murmurou ela para si mesma, enquanto batia com os dedos no balaústre.

Uma mulher que estava próxima o suficiente para ouvi-la deu vários passos em direção à escadaria e, então, atraindo o olhar da Deusa, fez uma reverência profunda e elegante. Neferet ergueu as sobrancelhas. Analisou a mulher que se mantinha em reverência, com a cabeça respeitosamente curvada. Era mais velha do que Nancy, mas não muito. E embora estivesse bem-vestida, com um terninho bem cortado e caro, parecia ter a própria idade.

– Pode se levantar – permitiu Neferet por fim.

– Eu agradeço, Deusa. Será que a senhora me daria permissão para que eu me apresentasse?

– Vá em frente – concedeu, bastante intrigada.

– Eu sou Lynette Witherspoon, dona da Everlasting Expressions. Gostaria de lhe oferecer os meus serviços.

– Lynette. Sim, o seu nome não me ofende. Você pode mantê-lo. E o que é exatamente a Everlasting Expressions?

– É a minha empresa. Ofereço serviços de planejamento de eventos, coordenação e decoração para uma clientela seleta – explicou a súdita.

Neferet apreciou o orgulho e a confiança na sua voz.

– E o que você propõe para mim?

– Tudo – respondeu Lynette com voz firme. Ela olhou em volta do salão para as pessoas reunidas atrás dela, antes de lançar um olhar sincero para Neferet. – Creio que a adoração de uma Deusa seja um evento constante da maior importância, que deve ser dirigido com bom gosto e sem percalços. Se me der a sua permissão, garanto que a sua adoração será uma sucessão de eventos espetaculares.

– Interessante... – refletiu a Deusa. – Lynette, você não se importa se eu vislumbrar suas reais intenções, não é? – Embora tenha dito aquilo em tom de pergunta, Neferet não esperou pela resposta da súdita. No entanto, invadiu a mente da mulher de maneira mais gentil do que fizera com Nancy.

O que descobriu lhe fez sorrir.

– Lynette, você é uma oportunista.

– S-sou – confirmou ela, um pouco trêmula, depois que a Deusa saiu da sua mente.

– E você odeia os homens. – O sorriso dela se abriu mais.

– Eu não tenho poderes, então posso apenas imaginar, mas acredito que a senhora compreenda esse ódio – respondeu a mulher.

– Eu gosto de você, Lynette. Permitirei que gerencie o planejamento da minha adoração.

Lynette fez outra reverência profunda.

– Eu lhe agradeço, Deusa.

– E qual será a sua primeira ação? – Neferet sentia uma curiosidade quase incontrolável sobre as intenções daquela humana incomum.

– Bem – começou ela, batendo com a mão no seu coque e analisando as pessoas que estavam em silêncio atrás dela –, todos os eventos começam com duas coisas: roupas adequadas e decoração correta.

– Só tenho uma exigência: deslumbre-me – ordenou a Deusa.

– Sim, Deusa – respondeu a mulher em tom respeitoso.

– E quanto a vocês, meus súditos – disse Neferet, dirigindo-se para o seu rebanho –, façam tudo o que Lynette mandar. – Neferet dirigiu o olhar para Lynette e acrescentou: – Desde que ela não mande que tentem sair do meu Templo.

– Eu não pensaria uma coisa dessas, Deusa – apressou-se a humana em responder.

– Ah, minha querida, você pensou nisso. Você só se deu conta de como isso seria imprudente.

Lynette curvou a cabeça.

– Touché , Deusa.

– Agora, deixarei vocês, meus súditos, nas mãos capazes de Lynette. Vou para a minha cobertura me preparar para...

A saída de Neferet foi interrompida pelo mensageiro alto, Judson, chamando de seu posto em frente das portas fechadas e acorrentadas do Mayo Hotel.

– Deusa! A polícia está aqui!


5

Lynette

– Socorro! Polícia! Ela está nos mantendo presos aqui! – Uma garota que Lynette reconheceu como sendo a dama de honra do casamento espetacularmente caro da noite anterior começou a gritar, desvencilhando-se da equipe possuída, esmurrando o grosso vidro das portas dianteiras.

– Por que será que eu sempre tenho que fazer tudo? Equipe, todos vocês, exceto Judson, levem esses humanos para o porão!

A voz de Neferet estava cheia de veneno, e a equipe do hotel reagiu como se tivesse levado um choque elétrico. Começaram a reunir o grupo de pessoas aterrorizadas em direção à saída de emergência. A vampira flutuou pela escadaria e pelo piso do salão, passando tão próxima de Lynette que o vestido púrpura encostou nos seus pés. Lynette se afastou, tentando se esconder nas sombras e evitar ser levada com o resto do rebanho, mas Neferet falou com ela:

– Você, venha comigo. Eu não quero que você perca o evento que eu estou planejando.

– Como desejar, Deusa.

Lynette se empertigou, controlou o medo e seguiu a vampira. Não importava o que acontecesse, ela não ia terminar seus dias como aqueles pobres otários da equipe do hotel com aquelas cobras nojentas da vampira saindo pela boca. E também não faria nada idiota para acabar tendo a cabeça decepada. Ela sobrevivera a uma mãe alcoólatra e abusiva e à infância pobre para construir um império para si. Tinha dinheiro e status social. Dirigia uma Mercedes-Benz S-Class e era proprietária de uma casa de quase seiscentos metros quadrados em Eight Acres, o condomínio mais caro e exclusivo no centro de Tulsa. Passava as férias na França e só viajava de primeira classe. Ela poderia muito bem sobreviver a uma vampira doida com delírios de imortalidade e sedenta por poder, e ainda encontraria uma maneira de sair lucrando com a situação.

Neferet chegou até a garota que berrava.

– Você não é uma súdita adequada! – Com uma força sobrenatural, ela agarrou um punhado do cabelo louro tingido da garota e puxou sua cabeça para trás até que Lynette tivesse certeza de que o pescoço se partiria. Então, apontou para a boca aberta da garota. – Possuam-na!

Lynette queria afastar o olhar, mas não conseguiu. A cobra negra mergulhou na boca da dama de honra. Os olhos dela se reviraram de forma que só dava para ver a parte branca, o corpo totalmente inerte. Ela só não caiu no chão porque Neferet a segurava pelos cabelos.

– O seu nome será Mabel. Quando eu mandar, você virá de boa vontade até mim – rosnou a Deusa, erguendo o rosto da garota inconsciente até que ficasse a um dedo de distância do dela.

Um ligeiro piscar de olhos. Como se a vampira tivesse ligado um botão, o terror no rosto da garota desapareceu, deixando apenas uma expressão vidrada, mas atenta, em seus olhos.

– Sim, Deusa – entoou ela sem qualquer emoção.

Aquelas cobras horríveis têm total controle de quem quer que possuam , pensou Lynette. Não a mim , prometeu para si mesma. Não farão isso comigo. Eu prefiro morrer a terminar assim!

Neferet soltou a garota. Ela cambaleou como se estivesse desequilibrada, mas conseguiu manter-se de pé. A vampira passou a mão pelo cabelo perfeito e tirou alguma migalha invisível do seu ombro. Então, encarou Lynette.

– Você sabe o que vai acontecer se me decepcionar e acabar não se mostrando uma súdita adequada.

Lynette não afastou o olhar dos olhos verdes-esmeralda de Neferet. Mergulhou em uma reverência profunda que a vampira tanto apreciara antes.

– Eu não a decepcionarei, Deusa.

Sentiu o deslizar doentio de Neferet entrando em sua mente e concentrou os pensamentos nos fatos – ela não tinha a menor intenção de fazer qualquer coisa que levasse a vampira a se voltar contra ela.

– Logo, logo, você acreditará que eu sou uma Deusa, e que o seu destino é me servir. – Antes que Lynette tivesse a chance de comentar, Neferet virou de costas, ordenando: – Judson, desacorrente a porta da frente. Lynette, venha comigo. Meus filhos, não permitam que sejam vistos, mas prestem atenção em mim!

Com um som que trazia à mente de Lynette a recordação de antigas fortunas e opulência, as portas duplas e austeras de latão e de vidro se abriram e Neferet saiu, com Lynette logo atrás, tão perto que conseguia sentir o frio horripilante que emanava das cobras invisíveis.

Havia dois carros do Departamento de Polícia de Tulsa e um carro de passeio parados na pequena entrada circular diretamente em frente ao hotel. Quatro policiais uniformizados conversavam com um homem alto de roupas comuns que estava, obviamente, no comando, o que significava que ele era algum tipo de detetive. Com o aparecimento de Neferet, o grupo rapidamente voltou sua atenção para a bonita vampira. O detetive fez sinal com a cabeça para os outros, que deram alguns passos para trás e se posicionaram atrás dele, enquanto, com a expressão séria, começou a se aproximar de Neferet.

– Não, eu quero que você permaneça perto dos carros – declarou Neferet.

Ela estava próxima às portas, em pé sob o toldo de ferro, marca registrada da entrada do Mayo. Deu um pequeno passo para o lado e envolveu o ombro de Lynette com o braço e a empurrou. Lynette não precisava ser vidente para compreender o que a vampira queria que fizesse. Sem hesitar, deu um passo para a frente e se colocou entre Neferet e a polícia. A mão de Neferet se manteve em seu ombro, e ela sentia as unhas duras e afiadas da vampira pressionadas contra a pele do seu pescoço, bem acima da artéria que ali pulsava forte e rápido.

Lynette ficou completamente parada.

O homem alto hesitou apenas por um momento, embora aquele instante tenha parecido durar uma eternidade para Lynette. Então, os policiais deram vários passos para trás.

– Isso, assim está bem melhor. – Lynette detectou o sorriso na voz de Neferet. – Agora podemos conversar de maneira mais educada. Detetive Marx, que gentil da sua parte vir me visitar. Está uma tarde adorável, não acha? É como se a tempestade de ontem tivesse limpado a cidade.

Neferet falava em um tom afável, mantendo a mão descansando sobre o ombro de Lynette.

– Neferet, eu tenho que fazer algumas perguntas a você. Será que não prefere vir para a delegacia comigo em vez de ser interrogada aqui?

O suspiro de Neferet demonstrou uma decepção exagerada.

– Então, não podemos ser corteses um com o outro socialmente?

– Você sabe muito bem que, em circunstâncias normais, não tenho o menor problema com cortesia. Nós dois já trabalhamos juntos de forma amigável antes. Mas o que aconteceu ontem em Tulsa foi bem além do normal, e eu não tenho tempo para cortesia. – Ele fez uma pausa antes de gesticular em direção à Lynette. – E acho bem irônico você estar reclamando sobre questões de cortesia quando tem uma refém bem diante de si.

A pressão da unha de Neferet sumiu imediatamente, e a vampira afastou a mão do pescoço de Lynette, fazendo um carinho íntimo em seu rosto.

– Detetive, você não poderia estar mais enganado. Lynette, você é minha refém?

– Não, Deusa – respondeu ela, meneando a cabeça e esforçando-se para agir como se aquilo fosse algo corriqueiro, servir como escudo-humano de uma vampira psicótica. – Eu sou uma súdita por livre e espontânea vontade.

– Aí está. Viu? Está tudo bem. Lynette só está aqui porque ela me adora. Mas por que você, detetive Marx, está aqui? As perguntas que o trazem têm a ver com Woodward Park ou com a Boston Avenue Church?

Lynette viu os olhos do detetive se estreitarem.

– O que você sabe sobre Boston Avenue Church?

Neferet deu uma gargalhada.

– Tudo! Pode perguntar qualquer coisa. Você quer saber por quanto tempo aquele projeto de pastor gritou antes de eu matá-lo? Ou por que a esposa do conselheiro estava sem o seu lindo terninho branco Armani, o qual, coincidentemente, era do meu tamanho, quando você encontrou o seu corpo drenado e sem vida do lado de fora do seu santuário? Veja bem, é muito difícil remover manchas de sangue de um tecido de qualidade.

Enquanto a vampira falava, Lynette observava a mudança nos policiais. Primeiro, os seus rostos denunciaram que eles estavam em choque e, depois, sacaram suas armas, enojados e zangados.

A arma do detetive apontou para o seu ombro direito.

– Lynette – disse ele. – Caminhe diretamente para nós e mantenha as mãos onde possamos vê-las.

Lynette sabia que não importava nem um pouco o fato de Neferet não estar tocando nela.

– Não, obrigada – respondeu ela, conseguindo, de alguma forma, evitar que a voz saísse trêmula. – Estou bem aqui com a Deusa.

– Mas do que é que você está falando? – explodiu um dos policiais. – Ela é uma porra de uma vampira que assassinou um monte de fiéis numa igreja! Ela não é uma merda de uma deusa.

– Lynette, eu não gosto de pessoas desbocadas. E você? – quis saber Neferet.

Prendendo a respiração, deu a única resposta que poderia. Meneou a cabeça e disse:

– Não, eu não gosto.

Neferet inclinou a cabeça para o lado e analisou o policial que tinha falado. Lynette viu o corpo dele se retorcer.

– Policial Jamison, será que palavrões permeiam sua mente enquanto tem fantasias com a sua enteada de dez anos de idade? E quando você a observa dormindo e admite para si mesmo que daqui a alguns dias você vai transformar seus desejos em realidade?

O policial empalideceu.

– Isso é uma porra de uma mentira! – exclamou.

– Mais profanação. “Parece-me que o lorde faz protestos demasiados” [*] – declarou Neferet. Então, ela se voltou para Lynette em tom conspiratório. – É uma citação, mas acho perfeitamente adequada à situação, você não acha?

– Acho – concordou Lynette, observando o policial de perto.

O homem estava rubro e parecia prestes a explodir a qualquer momento – e Lynette se deu conta de que Neferet não o estava provocando nem inventando nada daquilo. Ela deslizara pela mente dele e revelara o seu segredinho sujo.

– Sua vaca filha da puta! – berrou o policial Jamison.

– Já chega! – ordenou o detetive Marx, dirigindo-se ao homem uniformizado.

Então, sua atenção se voltou para Lynette e Neferet, falando de maneira clara e calma que fez Lynette desejar poder correr da loucura da vampira e direto para a proteção dele.

– Lynette, se você escolher ficar com Neferet, então vai fazer companhia a ela numa cela de cadeia. Neferet, você está presa pelo assassinato de toda a congregação da Boston Avenue Church.

A risada de Neferet foi seca e cruel.

– Você nem consegue fazer a acusação contra mim de forma correta, detetive.

– Você acabou de confessar esses assassinatos! – exclamou Marx.

Ele perdeu o tom profissional e objetivo que mantivera até aquele momento. Com um terrível aperto no estômago, Lynette se deu conta da verdade inacreditável – Neferet massacrara toda uma igreja cheia de inocentes.

Teve de segurar as mãos em frente de si para evitar que tremessem.

– Você tem uma mente tão decepcionantemente tacanha, detetive Marx. O que eu fiz naquela igreja não foi assassinato, foi sacrifício, e foi glorioso! Queria que você estivesse lá como testemunha, mas se estivesse lá , não estaria aqui para testemunhar o início do meu reinado. Ah, mas eu estou divagando. As suas acusações estão incorretas porque estão incompletas. Você se esqueceu de acrescentar o lanchinho que fiz com o seu prefeito algumas noites antes.

A expressão no rosto do detetive Marx era uma máscara de ódio.

– Meus instintos avisaram que os vampiros da Morada da Noite estavam dizendo a verdade sobre você ser a responsável pela morte do prefeito.

– Pelo menos uma vez, os seus instintos estavam corretos. Mas permita que eu continue com a minha confissão. É uma pena que não havia ninguém em Woodward Park para testemunhar minha saída triunfal de meu agradável recanto, enquanto eu descobria dois homens deliciosamente confusos praticamente implorando para que eu drenasse seu sangue.

Os olhos do detetive se arregalaram e Neferet zombou:

– Eu não sei o que é mais inacreditável, aquela energúmena da Zoey Redbird ter criado a ilusão de que matara os homens para logo em seguida correr pateticamente para você e se entregar, ou você realmente ter acreditado que aquela insípida tivesse coragem o suficiente para matar alguém. De qualquer modo, a situação não é muito favorável para suas habilidades de dedução.

Lynette viu que os policiais uniformizados, até mesmo Jamison, empalideceram diante da admissão direta de culpa de Neferet, mas o rosto do detetive Marx endureceu, formando linhas de teimosia.

– Neferet, permitirei que faça uma ligação para o Conselho Supremo, mas você deve se entregar agora e se preparar para arcar com as consequências dos seus atos.

– O Conselho Supremo tem ainda menos jurisdição sobre mim do que você – declarou Neferet. – Eu não sou vampira. Eu sou a Deusa das Trevas, Rainha de Tsi Sgili. E não vou nunca mais me curvar diante de qualquer autoridade. Você, Tulsa e o resto do mundo vão me adorar, é meu direito divino. Observem e aprendam. Mabel, venha até aqui.

A garota obedeceu imediatamente. Caminhou pelas portas que Judson abrira para ela e ficou ao lado de Neferet.

– Mais reféns não ajudarão você a se livrar disso! – exclamou o detetive Marx.

– Eu disse: observem e aprendam, humanos! Eu não tenho reféns, apenas súditos obedientes. Agora, observem o seu futuro!

Neferet abriu os braços para a garota que chamava Mabel. Lynette teve de dar um passo para o lado enquanto Mabel se apressava, de boa vontade, para abraçá-la.

– Se eu sou a sua Deusa, sacrifique-se por mim.

Com uma curiosidade mórbida, Lynette observou, perguntando-se o que a garota estaria disposta a fazer. Ela só teve segundos para pensar.

– A senhora é minha Deusa – afirmou a garota de forma mecânica e, então, começou a arranhar o próprio pescoço fazendo com que o sangue escorresse pelos ferimentos.

– Agora, sim, este é o comportamento esperado de uma súdita adequada. – Neferet se inclinou para beber o sangue da oferta. A garota arfou e estremeceu, mas, em vez de tentar escapar, ela exclamou com uma voz cheia de êxtase:

– Obrigada, Deusa

– Que delicadeza a sua – elogiou Neferet, seus lábios a centímetros do pescoço de Mabel. Antes de começar a se alimentar do sangue dela, Neferet ordenou: – Proteja-nos!

Instantes depois, houve um barulho ensurdecedor de tiros. Lynette se jogou no chão, encolhendo-se e colocando o braço sobre a cabeça numa vã tentativa de se proteger.

Ouviu uma lamúria de dor e, então, os policiais começaram a gritar. Tremendo violentamente, Lynette espiou por entre os braços. Neferet estava se alimentando da garota, ignorando o caos que acontecia diante deles.

Aparentemente, os tiros destinados a Neferet – e à própria Lynette – ricochetearam em algum escudo conjurado pela vampira e atingiram diretamente o corpo do policial desbocado.

– Ai, meu Deus – sussurrou Lynette.

– Será que você não quer dizer “ai, minha Deusa ”? – Neferet, com os lábios vermelhos do sangue da garota, sorriu para ela.

– Sim, é o que quero dizer – respondeu ela, sentindo-se tonta.

Neferet soltou a garota e Mabel caiu pesadamente no chão. Então, ela estendeu a mão para Lynette, que a pegou, e se levantou, trêmula.

– Não tema, não permitirei que eles a machuquem. Não permitirei que machuquem qualquer pessoa que seja leal a mim – afirmou.

A vampira voltou sua atenção para os policiais. Eles arrastaram o corpo cravejado de balas de Jamison para trás dos carros, onde o restante dos homens estava agachado. Lynette ouvia o som da estática dos rádios enquanto chamavam uma ambulância e pediam reforços.

– Você entendeu agora, detetive Marx? Aprendeu a sua lição?

– Aprendemos que você é uma assassina! – exclamou ele. – Ainda não terminamos. Este não é o fim.

– Pelo menos uma vez você está certo. Ainda não terminei aqui. Esse é só o começo. Observe e aprenda. Observe e aprenda – repetiu ela. – Ah, olhe para cima! Meus filhos, venham comigo!

Dando os braços para Lynette, entraram novamente no Mayo Hotel.

– Judson, acorrente as portas novamente.

– Sim, Deusa. Mas isso não os manterá lá fora por muito tempo.

– Eu sei disso! Limite-se a fazer o que eu ordenei. Como sempre, terei de tomar conta dos detalhes sozinha.

– Sim, Deusa.

– Lynette, gostaria que você se juntasse a mim na minha cobertura. Um evento espetacular está prestes a acontecer lá.

– Sim, Deusa – respondeu Lynette, entrando no elevador com ela.

O sorriso de Neferet era confiante.

– Você está quase acreditando que eu sou divina.

Lynette não respondeu. O que poderia dizer que Neferet não pudesse retorquir esquadrinhando a sua mente e descobrindo a verdade? Então, novamente, deu a única resposta possível:

– Estou aqui para servi-la.

– E assim será.

As portas se abriram para a cobertura.

– Kylee, Lynette está um pouco pálida, sirva para ela uma taça do melhor vinho e leve até a varanda.

Neferet passou por Kylee, com Lynette seguindo logo atrás, e abriu as portas para se juntar às sessenta pessoas que estavam reunidas em grupos amedrontados na varanda. Muitos estavam próximos à balaustrada que emoldurava a ampla extensão das portas para o lado de fora; pela expressão nos seus rostos, ficou claro que tinham ouvido os tiros e viram o que acontecera lá em baixo.

– Espere aqui, Lynette, e tome o seu vinho. Isso vai trazer um pouco de cor de volta ao seu rosto. Não posso permitir que a minha súdita favorita fique com uma aparência abatida e doentia – declarou Neferet.

Então, ela caminhou até o parapeito de pedra, fazendo com que as pessoas mais próximas a ela se afastassem, assustadas.

– Já que a educação moderna é de péssima qualidade, sinto que é meu dever, como a sua Deusa, dizer isto a vocês – ela fez uma pausa e apontou para as pedras esculpidas –: o nome disso é balaustrada. Os suportes grossos e com espaçamento uniforme, aqui e aqui – ela apontou novamente –, chamam-se balaústres. É uma feliz coincidência que haja exatamente sessenta balaústres espaçados em torno da varanda da cobertura do meu Templo. Eu quero que cada um de vocês escolha um balaústre e se posicione diretamente em frente a ele.

– Você... Você não vai nos obrigar a pular, não é? – quis saber uma velha aterrorizada.

– Não, Vovó – respondeu Neferet com a voz calorosa. – Isso não faria nenhum sentido. Será que vocês não viram como eu protegi Lynette contra as balas mortais que a polícia atirou contra ela?

Seguiu-se um longo silêncio e alguém disse:

– Mas você comeu aquela outra garota.

– Mabel foi desobediente. Será que vocês querem o mesmo destino que ela teve?

Suas palavras tiveram um efeito instantâneo sobre as pessoas, que se espalharam, cada qual assumindo uma posição em frente a um balaústre.

– Excelente! Kylee, sirva mais champanhe enquanto eu tenho uma conversa em particular com os meus filhos das Trevas.

Lynette apreciava vinho tinto caro e costumava degustá-lo, bebendo-o devagar. Mas não naquele momento. Ela bebeu ruidosamente, pegando a garrafa da mão de Kylee quando a garota robótica passou por ela para buscar mais champanhe. Lynette sentiu-se grata pela sensação surreal e destacada que o álcool lhe provocava enquanto observava a vampira se mover para um canto sombrio da varanda, bem longe do parapeito, e se curvava para conversar com o que parecia ser absolutamente nada.

Lynette sabia que não era o caso. E, com certeza, apenas um segundo ou dois depois, o ar em volta dos pés da vampira se ondulou, como correntes de ar quente se erguendo do asfalto abrasado de uma estrada, e as cobras de Neferet ficaram visíveis. Lynette ficou satisfeita que a vampira estivesse distraída com os seus “filhos”, pois não conseguia evitar o estremecimento de nojo. Lynette se lembrou de um velho filme de faroeste ao qual assistiu quando criança. Nele, os cowboys tinham que levar o gado e, enquanto cruzavam o rio, um jovem caiu do cavalo, pousando no meio de um enorme ninho de cobras aquáticas para ser morto por elas, embora não rápido o suficiente. Parecia que Neferet estava no centro do ninho, só que as suas cobras eram maiores, mais negras e até mais perigosas do que qualquer uma das cobras do velho oeste.

O que será que elas eram? Com certeza, Lynette não sabia muitas coisas sobre vampiros. Mesmo que fosse capaz de aceitar fazer negócios com eles – já que eram reconhecidamente ricos –, jamais fora contratada por um. Estava longe de ser uma perita em vampiros, mas tinha certeza de que ouvira falar alguma coisa sobre essas criaturas mortíferas semelhantes a cobras. Seus familiares deveriam ser gatos, meu Deus, e não répteis.

Lynette se serviu de mais vinho e tomou um longo gole em sua taça, sentindo-se aliviada por seu rosto estar quente. Bom, o calor deixaria o seu rosto “corado” de novo. Lynette não tinha dúvidas de que a vampira seria capaz de matá-la se lhe desse na telha. Disfarçadamente, apertou o próprio rosto para se certificar de estar completamente corada.

Como ela ia sair daquela confusão? Nem estava mais se preocupando em lucrar com aquilo. Só queria escapar sem ser caçada pelos filhos de uma vampira insana.

– Excelente! – Neferet se empertigou, voltando sua atenção para as sessenta pessoas, cada uma diante de um balaústre na cobertura. – Agora que os meus filhos compreendem os meus desejos, estou pronta para compartilhá-los com vocês, meus leais súditos. – Ela se colocou no centro da varanda para que pudesse ser vista e ouvida por todos. – Kylee, chega de champanhe por ora. Fique ao lado de Lynette.

Kylee, é claro, fez conforme foi ordenada.

Lynette lançou uns olhares de esguelha para a garota. A sua boca estava fechada, ela não conseguia ver qualquer sinal da infestação da cobra, mas a garota estava claramente no piloto automático. Seus olhos estavam abertos, mas sem vida. O rosto não tinha expressão. Dessa vez, Lynette conseguiu evitar um estremecimento de asco. Quem poderia saber o que aquela coisa ao seu lado poderia contar para a vampira?

– Bem, eu tenho uma pergunta para vocês, uma a que qualquer um pode responder. Qual é a sua maior preocupação neste momento? – perguntou Neferet para as pessoas.

Lynette achou estranha sua capacidade de parecer uma pessoa tão normal, até boa. Era tudo fachada, mas uma fachada muito boa.

Ninguém respondeu à sua pergunta, e Neferet deu um sorriso caloroso e encorajador, dizendo:

– Ah, vamos lá! Eu sou a sua Deusa. É o meu dever e um prazer ouvir as suas preocupações. E, como meus súditos, é o seu dever compartilhá-las comigo. Por favor, não me obriguem a forçá-los a cumprir com as suas obrigações.

Um homem resolveu responder:

– A minha maior preocupação é que eu não quero ser morto... Ou coisa pior – declarou ele, lançando um olhar nervoso e rápido para o ninho das trevas que cercava e se contorcia em torno da vampira.

– Muito bom! Ótima resposta. Mais alguém tem a mesma preocupação?

Neferet parecia realmente se preocupar e até mesmo Lynette sentiu que sua cabeça assentia junto com a dos outros.

– Perfeito! – exclamou Neferet. – Eu sabia que a segurança seria a principal preocupação de todos. Agora, vejam bem, eu não estou admoestando vocês, nem estou zangada, mas a sua principal preocupação deveria ser cuidar de mim e me adorar. – Várias pessoas começaram a protestar, obviamente temendo o que a vampira faria em seguida, mas Neferet ergueu a mão e, com um gesto régio calou a todos. – Não, não, eu compreendo. De verdade. E é por isso que vou deixar bem claro que ninguém pode ferir os meus súditos, de modo que fiquem livres para me adorar.

Lynette achou irônico que Neferet tenha feito tal pronunciamento enquanto sirenes soavam cada vez mais próximas lá embaixo.

– Para assegurar aos meus súditos de que eles estão seguros, precisarei da ajuda de vocês. Façam exatamente o que eu mandar, e prometo que o meu Templo será impenetrável a qualquer um que nos queira ferir.

Lynette deu um suspiro suave. Pena que ninguém disse o que todos estavam pensando: não é com o mundo exterior que estamos preocupados – é com você! Mas, é claro, ninguém disse nada disso. Era a Neferet que todos temiam.

– O que precisam fazer é bem simples. Primeiro, cada um de vocês deve se virar de modo a olhar para o lado de fora da cobertura. – De forma lenta e relutante, as sessenta pessoas fizeram como ela ordenou, e agora estavam de costas para Neferet. – Agora, ergam os braços, fechem os olhos, limpem suas mentes e respirem fundo junto comigo. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. – Lynette ouviu as pessoas respirando com ela. – Quero que se concentrem na minha voz e não pensem em mais nada.

Neferet fez uma pausa para olhar em volta e ver se todos estavam nos devidos lugares. Quando os seus olhos encontraram os de Lynette, seus lábios carnudos se abriram em um sorriso cruel.

O estômago de Lynette se contraiu e ela temeu que fosse vomitar todo o vinho que consumira.

O olhar de Neferet se afastou dela e pousou nas cobras que se contorciam em torno dos seus pés.

– Meus filhos, chegou a hora! – As palavras que disse a seguir foram entoadas em um ritmo musical que era supreendentemente tranquilizador, de forma quase hipnótica.

Em um ataque rápido, promovam a defunção
para que aqueles lá embaixo conheçam a minha ira.
O poder é farto, consuma seu quinhão
Para mim uma perfeita jaula assim se cria.

Lynette conseguia sentir o poder crescendo a cada verso que a vampira entoava, e ela, assim como as outras sessenta pessoas que estavam congeladas com os braços erguidos, não poderia fazer nada, a não ser esperar pelo que aconteceria a seguir.

Para que este mundo eu possa reedificar
meu Templo deve ser divinal – poderoso.
Para a Deusa, somente sua lealdade deve imperar
E para Tulsa ofereçam um divino canto majestoso.

Pelo tempo que ainda vivesse, Lynette jamais seria capaz de apagar da memória a visão do que aconteceu em seguida. Com as palavras “divino canto majestoso”, Neferet ergueu os braços e, como se aquele fosse o sinal pelo qual estavam esperando, as cobras dispararam em direção às costas das pessoas despreparadas. Lynette prendeu a respiração, esperando que as serpentes subissem por suas pernas e as possuíssem, mas suas expectativas não poderiam estar mais erradas. Em vez de possuir as pessoas, as cobras – como se formassem um único ser – atingiram-nas todas no meio das costas, atravessando-as com tanta força que o sangue e as tripas explodiram como uma chuva vermelha fluindo com as gavinhas sobre a balaustrada de pedra. Sem acreditar, Lynette assistiu às criaturas descerem pelas laterais do Mayo Hotel, lavando-o com negrume e sangue, como se estivessem desenrolando uma cortina escura e gotejante.

Um som chamou sua atenção de volta à Neferet. Entorpecida, viu que a vampira ainda tinha os braços erguidos. Sua cabeça estava inclinada para trás e seu corpo estremecia em espasmos enquanto ela gemia num êxtase terrível. Lynette tinha certeza de que vira um brilho sombrio emanando e se expandindo em volta dela. De repente, compreendeu. É a morte das pessoas . De alguma forma ela está se alimentando de suas almas, assim como as suas criaturas se alimentam dos seus corpos.

E elas estavam se alimentando das pessoas que tinham acabado de morrer – todas as cobras que permaneceram na cobertura. Lynette sentiu que balançava a cabeça. Havia tantas delas. Muitas ainda.

Lynette ainda meneava a cabeça e observava as criaturas que se agitavam por entre os mortos, grudando neles como sanguessugas gigantescas, drenando tudo o que restava nos corpos inertes, quando o braço de Neferet baixou. Ela arrumou o vestido e, sem lançar um olhar sequer para nenhum dos sessenta voluntários, virou-se, sorrindo, aproximando-se de Lynette.

– Kylee, jogue os corpos pela balaustrada quando os meus filhos acabarem de se alimentar. Ah, e chame Judson e os outros membros de minha equipe. Eles não precisam mais proteger as portas. Estamos todos seguros. Nada poderá penetrar o véu das Trevas. Ninguém poderá entrar nem sair do meu Templo sem minha permissão. Então, mande que a equipe avise aos súditos restantes de que eles não precisarão mais ficar naquele porão sombrio. Eles podem voltar para os seus quartos sem medo. Eu já me certifiquei de que todos estejam protegidos. Contanto que me adorem. Já chegou a hora de começarem a me adorar.

– Sim, Deusa – respondeu Kylee, desaparecendo pela porta da cobertura.

Os olhos verdes-esmeralda de Neferet encontraram os de Lynette.

– O que você achou do meu evento?

Lynette engoliu o enjoo que lhe subia pela garganta e ameaçava engasgá-la. Respondeu então com a mais pura honestidade:

– Eu jamais vi nada como aquilo.

– “Eu jamais vi nada como aquilo”, o quê? – perguntou Neferet, cheia de expectativa.

– Eu jamais vi nada como aquilo, Deusa – completou Lynette, curvando-se em uma reverência profunda e trêmula.

– E agora você realmente acredita nisso. Encantador! Levante-se, Lynette, minha querida, e sirva uma taça de vinho para nós, enquanto discutimos os tipos de evento de adoração que você planeja para mim.

Lynette se levantou e fez exatamente o que a Deusa mandou.

[*] Esta frase faz referência à obra Hamlet , de William Shakespeare. No caso, “The lady doth protest too much, methinks” (Parece-me que a dama faz protestos demasiados). Essa expressão indica uma situação em que a insistência na defesa de determinado argumento ou ponto de vista pode ser indício de que há uma mentira sendo ocultada pelo emissor. (N.E.)


6

Detetive Marx

Desde aquela noite escura e com muita neve em que Zoey Redbird o chamara até a velha estação, onde ela e um adolescente tinham escapado por pouco de serem assassinados, o detetive Marx tivera questionamentos em relação a Neferet, que, na época, era a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. A vampira parecera estranha para ele. Zoey obviamente ficara desconfiada dela quando ele levara os dois novatos de volta para a Morada da Noite, e Neferet a recebera de maneira calorosa e aparentemente sincera. Zoey assumira uma postura defensiva. Até dera um show para mostrar a nova tatuagem com a qual a Deusa tinha lhe presenteado naquela noite, o que, aos olhos treinados do detetive, indicava que a novata fora bem-sucedida em dizer à vampira mais poderosa e proeminente da escola que ficasse longe dela.

Marx achou que deveria ter ficado do lado da vampira e questionado a veracidade da novata. Em vez disso, Marx sentiu uma comichão sob a pele quando estava perto da Neferet, a mesma comichão que já lhe salvara nas ruas mais vezes do que poderia contar. Gostava de Zoey. Não sentia nenhuma comichão quando estava perto dela. De Neferet, porém, ele não tinha gostado nada.

Marx perguntara à sua irmã, que fora Marcada quase duas décadas antes, sobre Neferet. Anne fora surpreendentemente curta e grossa na sua resposta: Neferet é uma poderosa Grande Sacerdotisa. Fique longe dela. Quando pedira mais detalhes, Anne encerrara completamente a conversa. Chegara até a evitar as suas ligações por quase uma semana. Aquilo fora mais do que estranho. Ele e Anne eram gêmeos e se mantiveram próximos mesmo depois de ela ter sido Marcada e passado pela Transformação. Atualmente, ela dava aulas de Feitiços e Rituais na Morada da Noite de São Francisco. Marx passava as férias lá pelo menos uma vez por ano e ficara hospedado várias vezes no alojamento da escola como seu convidado. Anne costumava ser direta e honesta com ele sobre o seu mundo de vampiros. Sabia que poderia confiar no irmão. Mas bastou uma menção à Neferet, e Anne erguera um muro entre eles.

Marx odiara aquilo, odiara não ter a confiança da irmã. Então, nunca mais voltou a fazer perguntas sobre Neferet.

Nem mesmo quando a Grande Sacerdotisa deixara a Morada da Noite de Tulsa e dera uma entrevista coletiva condenando os vampiros atuais em geral e os da sua Morada em particular.

Nem mesmo quando Neferet desaparecera depois que a sua cobertura fora destruída.

Nem mesmo quando a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, Thanatos, acusara Neferet de ter assassinado o Prefeito LaFont.

Nem mesmo quando recebera uma pista anônima pelo Disque Denúncia dizendo ter visto uma vampira nua que se encaixava com a descrição de Neferet entrando na Boston Avenue Church.

Os últimos vinte e poucos minutos o fizeram mudar de ideia sobre não questionar a irmã.

– Aqui! Policial ferido aqui!

Marx acenou para a ambulância que chegara no bloqueio atrás do qual ele e os outros policiais estavam agachados. Lançou um olhar para Jamison. O cara estava obviamente condenado. As seis balas que ricochetearam no escudo invisível que Neferet erguera tinham, convenientemente, lhe atingido em todas as partes não protegidas pelo seu colete à prova de balas. Como ela conseguira fazer aquilo? Marx acrescentou mais uma pergunta à longa lista de perguntas que, com certeza, faria à irmã.

Mais carros oficiais do que ele poderia contar chegaram, parando no meio das ruas que cercavam o Mayo. Os policiais que não estavam dando cobertura para Marx apressavam-se em evacuar os prédios adjacentes. Marx enviara uma mensagem pelo rádio dizendo que um policial fora atingido, além de estar acontecendo uma situação grave envolvendo reféns.

Foi com uma mistura de alívio e tristeza que viu o chefe de polícia Connors liderando a equipe da SWAT. O chefe não era conhecido pelas habilidades diplomáticas.

– Detetive, faça um resumo rápido da situação – pediu ele.

– Neferet confessou os crimes na Boston Avenue. Ela está lá dentro do hotel com reféns. Ela tem controle sobre eles. Não sei se é por feitiço ou se apenas ela os deixou tão apavorados a ponto de estarem dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Mas você não vai acreditar nas coisas terríveis a que ela está obrigando essas pessoas fazerem.

– Depois de ver o que ela fez na Boston Avenue, acho difícil ficar surpreso com qualquer coisa que ela possa fazer – declarou o chefe de polícia em tom sombrio.

– Está vendo aquele corpo ali? Aquela garota dilacerou a própria garganta para Neferet enquanto dizia “obrigada, Deusa”. – Marx fez um gesto indicando a carcaça ensanguentada que costumava ser uma jovem.

– Alguma ideia de quantas pessoas estão lá dentro com ela?

Marx meneou a cabeça.

– Deve ter umas cem, mas é apenas um chute. Ela fechou o restaurante e trancou o prédio. Pelo que entendi, ela não vai deixar ninguém sair.

– Bem, ela vai ter que nos deixar entrar.

– Chefe, acho melhor conseguirmos algumas informações sobre a situação dos reféns. Não queremos uma repetição do que aconteceu na igreja. Ela massacrou aquelas pessoas, mas os corpos não parecem com nada do que já vi vampiros fazerem antes. Eles foram estraçalhados, comidos e drenados. O poder de Neferet não se parece em nada com o que já tenhamos lidado antes.

– É, eu vi. – O chefe de polícia meneou a cabeça. – Mas como uma porra de uma vampira conseguiu fazer algo assim? Eu ouvi dizer que uma Grande Sacerdotisa pode entrar na mente das pessoas. Controlá-las e até mesmo apagar lembranças. E sei que são fisicamente fortes, mas não tão fortes quanto os seus guerreiros. Mas a carnificina na igreja... – Ele balançou a cabeça. – Eu nunca ouvi falar em nada parecido com aquilo. E quanto a você? A sua irmã não é vampira?

– É sim, e eu vou dar uma ligada pra ela. Mas tem outra coisa que você precisa saber. Neferet não está dizendo que é uma vampira. Ela afirma ser uma deusa, para ser mais específico, a Deusa das Trevas e a Rainha de Tsi Sgili, seja lá o que for isso. Ela disse que transformou o Mayo no seu Templo e que quer que Tulsa a adore.

O chefe de polícia deu um grunhido.

– Porra nenhuma. Assim que avaliarmos a situação dos reféns, a gente vai entrar. Vamos ver o que o nosso atirador de elite com a sua arma de cinquenta calibres vai causar nas suas ilusões de divindade.

Marx acenou com a cabeça em concordância, mas sentiu a familiar comichão de aviso sob a pele, dando-lhe uma sensação ruim sobre como as coisas de desenrolariam.

– Esses malditos vampiros perderam a porra da cabeça ultimamente. Primeiro o assassinato do prefeito, então aqueles dois homens no parque, a carnificina na igreja e agora isso. Estou achando que precisamos fazer mais do que apenas colocar a Morada da Noite em confinamento. Acho que devemos expulsá-los de Tulsa!

– Chefe, sobre aqueles dois homens no parque. – Marx franziu as sobrancelhas. Sabia que os sentimentos contra os vampiros estavam em alta, mas ele detestava ouvir esse tipo de merda racista saindo pela boca do chefe da polícia.

– O quê? Você não prendeu aquela novata que confessou os assassinatos? Merda, ela talvez tenha matado LaFont também!

– Na verdade, chefe, Neferet acabou de confessar o assassinato do prefeito e daqueles dois homens. Ela gabou-se disso, assim como do massacre na igreja.

O chefe de polícia piscou, surpreso.

– Bem, então por que a porra de uma novata confessou ser a assassina? Ela faz parte dos seguidores de Neferet?

– Duvido muito. Zoey Redbird e Neferet têm uma história de animosidade entre elas. Acho que é provável que Zoey tenha encontrado com os homens e se defendido contra eles e, quando soube que estavam mortos, deve ter acreditado que os tinha matado . Ela é uma garota legal, chefe. Acho que ela se entregou porque estava consumida pelo remorso. Ela nem mesmo queria algum vampiro adulto com ela.

O chefe de polícia olhou para ele sem entender. Marx evitou um suspiro de impaciência e explicou:

– Se uma novata não está próxima a vampiros adultos, existe cem por cento de chance de que o seu corpo vai rejeitar a Transformação e ela morrerá. Zoey se julgou e se condenou; e decidiu que a sua sentença era a morte.

– Eu me esqueço do quanto você sabe sobre vampiros. – O chefe de polícia meneou a cabeça enojado. – Acho que não importa se eles são humanos ou novatos. Adolescentes são completamente incompreensíveis.

Marx abriu a boca para protestar – respeitosamente – que ele, na verdade, conhecia alguns adolescentes completamente compreensíveis e que incluiria Zoey Redbird na lista, quando o grito de um policial uniformizado o interrompeu.

– Ai, meu Deus! Olhem lá para cima!

Marx olhou para cima bem a tempo de ver criaturas negras e grotescas semelhantes a cobras, a não ser pela ausência de olhos – apenas bocas abertas emolduradas por dentes que estavam molhados e vermelhos –, sendo arremessadas por alguma força invisível pelo parapeito na cobertura do Mayo. As criaturas carregavam consigo uma explosão de sangue e tripas e fragmentos corpóreos e coágulos. E, enquanto caíam, elas se expandiam, mudando a forma de cobras sem olhos para uma cortina escura e pulsante, manchada de escarlate. A cortina desceu pela fachada de pedra do hotel, envolvendo-a em trevas e sangue enquanto se desenrolava até o chão.

– Atirem! Matem-nos! – berrou o chefe de polícia.

Marx tentou impedi-lo. Tentou lembrá-lo de que havia cidadãos inocentes lá dentro que poderiam facilmente ser feridos ou, até mesmo, mortos. Tentou dizer que o ataque só serviria para antagonizar a vampira que tinha mais reféns e que já estava tão louca, que acreditava ser imortal. Mas os tiros provocados pelo pânico explodiram à sua volta e suas palavras se perderam no furor do momento.

A princípio, Marx não queria olhar para cima. Não queria ver os tiros acabarem com o Mayo e ter de lidar com as consequências das ordens precipitadas do chefe de polícia. Marx, no entanto, não era o tipo de homem que fugia das coisas; ele fizera uma carreira ao lidar com elas. Resoluto, ergueu o olhar.

As cobras que se transformaram em cortina se expandiram de modo que parecia que o prédio tinha ganhado uma pele negra avermelhada, uma pele tão dura, que nem mesmo as Glocks que os policiais uniformizados carregavam conseguiam penetrar.

Todos observaram enquanto as trevas continuavam a descer pelo prédio até o nível da rua e a se fundir ali com um som sussurrante que lembrou Marx da vez que visitara Nova York e se hospedara no Plaza – e cometera o erro de sair para fumar às três horas da manhã. Ratos. Ele caminhara por uma cerca viva bem-aparada que ficava em frente à grandiosa entrada do Plaza e ouvira o som sussurrante. Olhara para baixo, ficando chocado ao se deparar com dezenas de ratazanas gordas passando por ali. Era com aquele som que a mortalha das trevas criada por Neferet se parecia enquanto se assentava no lugar onde o prédio encontrava a rua, contra pedras dos anos de 1920.

– Atirem nas portas. Vocês têm que passar por essa coisa e estar prontos para entrar! – berrou o chefe de polícia.

– Não! – exclamou Marx, enquanto os policiais uniformizados corriam para obedecer às ordens.

Determinado a sobreviver e lutar por mais um dia, Marx se abaixou atrás de um carro do pelotão.

Acabou em uma questão de segundos. Os policiais correram em direção às portas, disparando contra o vidro que agora estava coberto pela cortina negra e escorregadia salpicada de coágulos. Seu coração se partiu quando os gritos começaram. Marx já estava usando o rádio:

– Vários policiais feridos! Precisamos de mais ônibus no Mayo! E reforços! Mais reforços! Mande todos os policiais de Tulsa para cá! Agora!

Quando o comandante cambaleou para trás e caiu pesadamente no pavimento, atingido no meio da testa por fogo amigo, os olhos revirados e leitosos, sem dúvida morto, Marx fez a única coisa que sabia fazer: assumiu o comando.

– Cessar fogo e retirada! Retirada! – berrou ele, e os homens reagiram com um claro alívio.

Um jovem policial uniformizado se agachou ao lado dele, com a respiração pesada e as mãos trêmulas. Marx achou que o garoto não devia ter mais do que 21 anos.

– Mãe do céu! Aquele treco preto não sofreu nenhum arranhão! Os tiros ricochetearam diretamente para nós, como se estivessem mirando. Que merda é aquela? – Quis saber ele com a voz tão trêmula quanto as suas mãos.

– Magia – respondeu Marx. – Magia negra e maligna.

– E como é que a gente consegue lutar contra isso?

Marx encontrou os olhos do jovem.

– Nós não lutamos. Nós precisamos de ajuda. E, felizmente, eu sei onde conseguir.

Zoey

– Eu queria saber o que está acontecendo! – Stark andava de um lado para o outro em frente à sua cela.

– Por que você não vai até lá fora para ver se a Vovó ainda está na sala de espera? Ela pode descobrir o que está acontecendo. Ela trouxe cookies. Ninguém resiste aos cookies dela – eu disse.

– Boa ideia. Eu já volto.

Stark seguiu pelo corredor e foi a minha vez de ficar andando de um lado para o outro.

Neferet. Se alguma coisa louca estava acontecendo no Mayo, Neferet tinha de ser a responsável. Eu queria agarrar as grades da minha cela, sacudi-las e gritar como uma pessoa histérica: Tirem-me daqui! Tirem-me daqui! Se Neferet estava lá fora fazendo sabe-se lá o quê, eu deveria estar lá, tentando pensar em uma maneira de detê-la.

E eu estaria se eu não tivesse perdido a cabeça e matado dois homens.

Stark voltou correndo e cobriu as minhas mãos, que realmente estavam agarradas às grades, como seu eu fosse capaz de entortá-las.

– Eles devem ter expulsado a Vovó, Thanatos e todos os outros. Não tem ninguém aqui, a não ser um policial na recepção. Este lugar está deserto! Se eu tivesse a chave, poderia tirar você daqui sem nenhum problema. – Suas sobrancelhas, com suas mãos ainda pressionando as minhas. Ele sacudiu um pouco as barras (que nem se mexeram). Então ele deu o seu sorriso maroto. – Mas, já que eu não tenho a chave, será que você não conhece ninguém que poderia, de alguma forma, convocar alguns elementos, sei lá, para derrubar esta porta?

– Stark, eu estou aqui por um motivo. Eu fiz uma coisa muito, muito ruim. Fugir daqui não vai me ajudar em nada.

– Poderia ajudar se Neferet estiver desenfreada, alimentando-se de cidadãos inocentes de Tulsa. Na verdade, eles podem até se esquecer do seu acidente no parque e agradecê-la se você ajudar a derrotar a sra. Louca.

Dei um sorriso triste.

– Eles até podem esquecer, mas eu não vou conseguir. Além disso, eu não posso derrotar Neferet, Stark.

– Você já fez isso antes.

– Não para sempre e não sem ajuda.

– Bem... – Ele abriu os braços. – Você tem ajuda.

Bufei.

– Não é o suficiente. Se fôssemos suficientes, teríamos sido capazes de nos certificar de que Neferet nunca mais voltaria do lugar para onde a chutamos da última vez. – Então, os meus ombros ficaram caídos e eu os encolhi. – Provavelmente, nem é ela. Talvez sejam ladrões de banco.

– No Mayo? Hã, Z. Estamos falando de um hotel, não de um banco.

A porta do corredor se abriu e a estrutura de metal bateu contra a parede. O detetive Marx se apressou na nossa direção. A aparência dele estava péssima. Tipo, péssima mesmo. O paletó estava sujo e a calça, rasgada na altura de um dos joelhos. Senti o cheiro de sangue, o qual me obriguei a ignorar. Na verdade, isso nem foi tão difícil porque a expressão no seu rosto era perturbadora demais.

Ele parecia estar com medo.

– O que aconteceu no Woodward Park? – ele exigiu saber enquanto se colocava ao lado de Stark.

– Eu já disse.

– Conte para ele de novo – interveio Stark.

– Por quê? O que está acontecendo?

– Responda à minha pergunta primeiro.

– Tá legal. Como eu já disse, dois homens me irritaram e eu atirei a minha raiva neles.

– Mas o que eles fizeram para deixá-la tão irritada?

– Não o suficiente para eu matá-los, Ok? – respondi.

– Apenas responda à pergunta! – zangou-se Marx.

Surpresa com o seu tom, eu me ouvi respondendo:

– Eles estavam andando pelo parque procurando garotas para assustá-las e obrigá-las a lhes dar dinheiro. Eles não viram as minhas tatuagens antes de começarem a me assediar. Então, quando perceberam que eu não era apenas uma adolescente indefesa, mudaram de ideia sobre me assustar. Eles basicamente disseram que iriam procurar outra vítima e isso me deixou louca da vida. – Fiz uma pausa e acrescentei: – Mas ainda tem mais. Eu já estava muito irritada quando cheguei ao parque, foi por isso que eu tinha ido para lá. Para tentar me acalmar. Eu... Eu não conseguia controlar o meu temperamento.

– Conte para ele o resto. Conte para ele por que você deu a pedra da vidência para Aphrodite quando se entregou para a polícia – insistiu Stark.

– Eu não percebi na hora, mas agora eu consigo entender que a pedra da vidência, um tipo de talismã que ganhei na Ilha de Skye, estava afetando as minhas emoções. Tipo, amplificando-as ou provocando-as, ou talvez apenas alimentando o meu estresse. Ela fica quente quando funciona e, no parque, ela estava superquente. Foi por isso que consegui erguer os dois homens e atirá-los contra o paredão da gruta.

– Você não consegue fazer isso, digamos, agora, consegue? – perguntou Marx, observando-me atentamente.

– Acho que não. Pelo menos não sozinha. Eu teria que chamar um ou todos os elementos, e eles ficam mais poderosos se o meu círculo estiver comigo e nós cinco canalizarmos a nossa energia para eles.

Marx assentiu, pensativo.

– Você sabia que os dois homens estavam mortos quando saiu do parque?

– Não. Tipo, eu sabia que eu os tinha lançado contra o paredão, mas foi como uma explosão grande e louca para mim. Bem, eu fiquei surpresa com aquilo – respondi. Distraída, esfreguei a palma da minha mão direita na minha perna e, então, olhei para ela. No meio das tatuagens entrelaçadas, um círculo perfeito tinha se formado ali. Ergui a mão para que o detetive pudesse vê-la. – Essa marca no centro, o círculo, foi feita pela pedra da vidência. Aconteceu na hora em que atirei a minha raiva naqueles homens. Era como se o poder dela tivesse saído através de mim. Quando eu percebi o que tinha feito, eu me aproximei deles.

Engoli em seco ao me lembrar.

– E o que exatamente você viu? – perguntou Marx, impaciente.

– Eles estavam deitados lá, aos pés do paredão que dá para a Twenty-first Street. E-eu me lembro de que ouvi um deles gemer, e vi o outro estremecer. Ficou claro que os tinha machucado muito. Talvez até gravemente. Então, eu fiquei com medo e fugi. Eles deviam estar morrendo quando eu fui embora. Sinto muito. De verdade. Eu sei que isso não faz qualquer diferença. E eu também sei que não faz a menor diferença o fato de eles estarem no parque para assediar garotas nem que a pedra da vidência tenha me dado o poder para fazer o que eu fiz. Foi a minha raiva que matou aqueles homens. Eu sou a responsável. – Mordi o lábio com força. Eu não ia começar a chorar.

– Não, Zoey. A verdade é que não foi você que fez isso e não, você não é a responsável pela morte deles.

Ele passou o cartão magnético no painel da porta da minha cela, e a tranca de metal se abriu com um clique.

– Hein? – Pisquei para ele, sentindo que eu devia estar sonhando. Olhei para Stark, que também estava olhando para o detetive.

– Isso tem alguma coisa a ver com Neferet – disse Stark.

– Isso tem tudo a ver com Neferet – concordou Marx. – Ela confessou ter matado aqueles dois homens. Não, essa não é uma descrição precisa. Neferet se gabou de ter matado aqueles dois homens.

Stark comemorou e me envolveu em um abraço.

– Z., você não matou ninguém.

– Eu não matei ninguém! – repeti o grito de Stark, enquanto ele me abraçava, rindo.

Eu estava me sentindo fraca, quase tonta. Eu não tinha matado ninguém! Mas que merda, eu quase tinha rejeitado a Transformação. Eu quase morri. Por causa de Neferet.

Tudo sempre voltava a Neferet.

Bati no ombro de Stark e ele me colocou no chão (mas eu continuei segurando a sua mão).

Eu me virei para o detetive Marx.

– O que mais ela fez?

– Você e seus amigos estavam certos. Neferet matou o prefeito. Ele e os dois homens no parque foram só o aquecimento. Ela massacrou uma igreja cheia de gente, e agora declarou ser uma deusa. Ela tornou o Mayo como seu Templo e está trancada lá dentro com um monte de gente enfeitiçada.

– Merda! – exclamou Stark.

– Aiminhadeusa ! – Neferet finalmente conseguira. Ela finalmente conseguira se superar e mostrar para todo mundo o que ela era de verdade.

– Você está livre, Zoey. Todas as acusações foram retiradas. Mas, antes de você ir, eu tenho um favor para pedir.

Olhei diretamente nos olhos dele.

– Você não precisa pedir. Eu vou ajudá-lo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para detê-la.

Marx suspirou de alívio.

– Obrigado. Eu não vou mentir para você, Zoey. A situação no Mayo é feia. Horrível mesmo. Neferet é poderosa e perigosa.

– E uma louca de carteirinha – terminei por ele. – Eu sei. Eu já sei disso há meses.

– Então, você sabe contra quem vai lutar.

– Todos nós sabemos – disse Stark. – Porque nós fomos os únicos que lutamos contra aquela puta doida.

– Tudo bem, então. Você precisa pegar aquela tal de pedra da vidência antes de eu te levar para o Mayo e...

– Espere um pouco. Não, você não entende, detetive Marx. Quando eu disse que vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para deter Neferet, não quis dizer que faria tudo sozinha. – Apertei a mão de Stark. – Uma das coisas que aprendi com certeza é que eu fico mais forte com os meus amigos.

– Só me diga do que precisa e eu farei acontecer – afirmou Marx.

– Tudo de que preciso está na Morada da Noite – respondi.

– Então venha comigo, Zoey. Vou levá-la para casa.


7

Zoey

Eu mal tinha saído do carro do detetive Marx quando a Vovó saiu correndo pela porta da frente da escola e me envolveu em um abraço.

– U-we-tsi-a-ge-ya ! É você! Eu sabia... Eu sabia que você estava voltando para casa.

Eu a abracei rapidamente e demos os braços enquanto entrávamos na Morada da Noite com detetive Marx e Stark seguindo logo atrás. O sol estava se pondo, mas eu estava superconsciente de que ainda poderia provocar dor em Stark. Conforme nos apressamos para dentro do prédio, sorri para a Vovó e contei:

– Eu não matei ninguém! – Então, eu me lembrei de quem os tinha matado e o que mais ela tinha feito, e o meu sorriso se apagou. – Neferet os matou.

– Neferet? – Ergui os olhos do rosto feliz de Vovó para ver Thanatos, Aphrodite e Darius saindo da sala da Grande Sacerdotisa.

– Zoey, detetive Marx, será que poderiam explicar o que aconteceu? – pediu Thanatos.

– Neferet confessou ter matado os dois homens no parque... – começou a explicar detetive Marx, mas eu o interrompi.

– Espere, tem muito mais coisa do que isso, e eu preciso que o meu círculo ouça tudo. – Olhei para Thanatos. – Neferet se revelou. Precisamos nos apressar.

– Darius e Stark, reúnam o círculo de Zoey. Leve-os até a Câmara do Conselho. Chame Lenobia também. Ela é a sacerdotisa mais velha desta morada. Talvez precisemos de sua sabedoria. Vão agora! – orientou Thanatos.

Stark e Darius saíram.

– Detetive, permita que eu o acompanhe até a Câmara do Conselho. Sylvia, eu ficaria muito grata se você pudesse partilhar a sua sabedoria em relação ao que estamos enfrentando com Neferet. Você poderia se juntar a nós?

– É claro – respondeu Vovó em tom irônico. – Eu sei mais do que um pouco sobre Neferet e a sua marca singular do mal. – Vovó me deu um beijo suave no rosto e começou a caminhar com Thanatos e com detetive Marx em direção à escadaria que levava até a Câmara do Conselho.

Isso me deixou sozinha com Aphrodite.

– Eu não vou perguntar se você me quer ou não. Eu vou a essa reunião – afirmou ela antes de começar a seguir os três adultos.

Toquei em seu braço e ela se virou para olhar para mim. Eu não sabia dizer se eu vi mais medo ou raiva nos seus olhos – e as duas coisas fizeram com que eu me sentisse horrível.

– Sinto muito – disse de forma simples. – Eu estava errada. Você estava certa o tempo todo. Estava certa ao procurar Shaylin. Estava certa ao pedir que ela ficasse de olho em mim. Você estava certa em não me contar sobre a sua visão. Eu deveria ter escutado você, mas não escutei, e eu não teria escutado, mesmo se você me contasse sobre a sua visão. Eu estava fora de controle. Fui egoísta. Fui burra. Sinto muito – repeti. – Por favor, desculpe-me.

Enquanto eu estava falando, Aphrodite ficou totalmente parada. Não colocou a mão na cintura, nem zombou de mim ou jogou o cabelo. Ela me ouviu e me observou com seus olhos intensos e claros. Não disse nada pelo que pareceu ser um longo tempo e, quando finalmente falou, o tom de sua voz não estava irônico, nem malicioso, nem sarcástico. Ela estava séria. Os seus modos estavam calmos. Ela parecia a Profetisa de uma Deusa.

– Achei que você fosse minha amiga.

– Eu sou.

– Você me magoou.

– Eu sei. Gostaria de dizer que não foi a minha intenção, mas não vou mentir. Naquela hora, eu queria magoá-la porque eu estava sofrendo muito. Aphrodite, a pedra da vidência fez algo comigo. Não estou usando isso como desculpa pelo que disse e fiz. Eu ainda era eu . Eu ainda estava errada. Estou tentando explicar para você que percebi o que aconteceu... Ou pelo menos como aconteceu. E eu lhe juro que isso não vai acontecer de novo.

Ela continuou me analisando em silêncio.

– Também vou me desculpar com Shaylin – acrescentei.

Aphrodite assentiu.

– É melhor mesmo. Você a assustou muito.

– Não vai acontecer de novo – prometi em tom solene. – Eu juro.

– Você quer a pedra de volta?

– Não! – respondi, dando um passo para me afastar dela. – Eu quero que você a mantenha bem longe de mim.

– Esse é o meu plano – respondeu ela. – Eu só queria saber qual era o seu.

– Eu não tenho nenhum plano, a não ser me desculpar com você e Shaylin e, bem, com todos os outros.

– Bem, já era de se esperar – respondeu Aphrodite, parecendo-se um pouco mais com ela mesma. – Você costuma estar despreparada e mal-arrumada. Eles não têm chapinha na prisão? – Ela lançou um olhar de avaliação para o meu cabelo de quem acabou de sair da cama.

– Não. Cabelo bonito não é uma prioridade na prisão.

– Bem, até agora eu só tinha ouvido falar que o sistema penitenciário de Oklahoma é uma droga. Agora eu tenho certeza.

Isso me fez sorrir.

– Então, você me desculpa?

– Acho que é o que tenho que fazer. Você está horrível. Eu odiaria ter que jogar sal na ferida contra a moda que o seu curto período na prisão já lhe causou.

Eu ri e nós demos os braços.

– Será que existe alguma coisa que você não consiga resumir para a moda?

– Não, e não precisa agradecer.

Eu ri de novo e nós seguimos para a escadaria. Eu me sentia leve e feliz; por alguns momentos, deixei que Neferet saísse da minha mente e concentrei os meus pensamentos em uma oração silenciosa para Nyx: obrigada, Deusa, por ter me dado uma amiga tão boa!

– Ei, não vai ficar pensando que pode me abraçar e coisas desse tipo. Eu não sou de abraços. Vamos considerar isto aqui... – ela passou a mão na frente do seu corpo – ... uma zona de não contato. Darius, é claro, tem uma concessão.

– Entendi – respondi, mas continuei de braço dado com o dela enquanto subíamos as escadas. – Eu nem sonharia em cruzar a sua zona de não contato.

– Muito bem – disse ela, mas não afastou o braço do meu até estarmos na frente da sala de conferências. Então, ela parou e se virou para me olhar de forma séria e declarou: – Eu perdoo você, Zoey.

– Obrigada. – Pisquei rápido, surpresa pelas lágrimas repentinas nos meus olhos.

– Ah, merda – disse ela e, depois de olhar à sua volta para se certificar de que estávamos sozinhas, abriu os braços e me abraçou sussurrando: – Eu amo você, Z.

Eu funguei e retribuí o abraço.

– Eu também amo você.

O barulho da porta da escada se abrindo fez com que ela se afastasse de mim.

– Não chore – pediu ela, em tom sério. – Ficar choramingando não vai ajudar no visual desastroso que você tem agora.

– Tá bom – choraminguei um pouco mais.

– Zo! Ouvi dizer que soltaram você! Uhu ! – exclamou Aurox, feliz, falando de forma estranha e maravilhosamente semelhante a Heath.

Ele correu na minha direção, com a intenção clara de cruzar a minha zona de não contato. Dei alguns passos para trás e, então, parei quando ele vacilou e parou. Eu não sabia o que fazer. Tipo assim, nós decidimos ser amigos. Amigos se abraçavam. Mas nós decidimos ser apenas amigos. Bem, na verdade eu tinha decidido que seríamos apenas amigos e...

– Ah, para de pensar um pouco. Prostrado e pesaroso pra caramba foi como ele ficou sem você. – Aphrodite meneou a cabeça, enojada. – E estou usando aliterações para falar, se eu começar a fazer rimas, vou me jogar de um prédio bem alto. Façam um biquinho ou qualquer outra coisa bem rápido e, depois, vão para a Câmara do Conselho. Infelizmente, não temos muito tempo pra dramas de relacionamento.

Ela jogou o cabelo para trás, abriu a porta e entrou.

Aurox e eu nos olhamos.

– Biquinho? – perguntou ele.

Senti o rosto pegar fogo.

– Ela quer dizer dar um beijo.

Ele ergueu as sobrancelhas.

– Você quer me beijar?

Felizmente, nada do que ele disse depois de uhu parecia nem um pouco com Heath. Limpei a garganta.

– Acho que essa não seria uma boa ideia, mas obrigada por perguntar.

– Bem, estou feliz por você estar de volta – afirmou ele, tentando sorrir.

– Eu também. – Sorri de volta. – E, mesmo tudo sendo confuso, estou feliz por você estar de volta também.

Eu quis dizer aquilo como um elogio – e talvez até como uma piada particular (a situação não ficaria muito melhor se pudéssemos rir dela?), mas o sorriso que Aurox tentara dar desapareceu na hora.

– Você não está se referindo a mim . Mas sim a Heath. E eu não sou Heath. Com licença. Darius disse que eu deveria estar nesta reunião. – Dei um passo para o lado e permiti que ele abrisse a porta. Ele não a segurou para mim, mas a deixou se fechar na minha cara, deixando-me em pé ali, sozinha, no corredor, sentindo-me um cocô.

Tudo bem , disse para mim mesma, a minha vida ficaria bem mais fácil se Aurox continuasse chateado comigo – ou, pelo menos, irritado ou desinteressado. Aphrodite estava certa por vezes demais. Eu não tinha tempo para dramas de relacionamento (embora não achasse que aquilo fosse triste demais).

Passei os dedos pelo meu cabelo muito despenteado, empertiguei-me e entrei na Câmara do Conselho Escolar.

A sala era grande, mas sempre parecia ser pequena por causa da mesa redonda gigantesca que dominava o ambiente. Tenho quase certeza de que a ideia era imitar o rei Arthur (que, é claro, tinha sido o consorte da Grande Sacerdotisa Mogan le Fay), então ela não tinha uma cabeceira de verdade. O que acontecia era que o lugar onde a Grande Sacerdotisa se sentava se transformava automaticamente na cabeceira da mesa.

E por falar na atual Grande Sacerdotisa, fiquei surpresa ao vê-la entrar na sala pela porta dos fundos, assim que eu fechei a porta atrás de mim. Thanatos assentiu para Aurox, que assumiu uma posição de guarda ao se colocar ao lado daquela porta. Então, ela lançou um olhar para mim e indicou um assento vazio entre Vovó e Aphrodite. Thanatos se sentou à esquerda da Vovó, ao lado do detetive Marx. Enquanto eu me acomodava, tentando não ficar inquieta, Thanatos se inclinou para a frente de Vovó e se dirigiu a mim.

– É oficialmente bom tê-la de volta em casa, Zoey – declarou a Grande Sacerdotisa da Morte.

– Eu nem consigo dizer o quanto estou feliz de estar aqui e saber que não matei ninguém – respondi.

– Mas você aprendeu uma lição valiosa com essa experiência – comentou Vovó.

– É. Temos que parar Neferet. Não importa o que tenhamos de fazer – interveio Aphrodite.

– Bem, é verdade. Mas eu acho que a Vovó está falando de sempre escolher a bondade quando houver dúvida – disse eu.

– Eu não acredito que essa lição vá nos ajudar muito com Neferet – resmungou Aphrodite.

– Você ficaria surpresa, criança – respondeu Vovó suavemente, com um sorriso sábio nos lábios.

A porta se abriu e Stevie Rae entrou seguida por Stark, Damien e Shaunee.

– Z! Aiminhadeusa! É tão bom ver você livre! – Stevie Rae correu na minha direção e me envolveu em um grande abraço de urso. – Eu sabia que você não seria capaz de matar aqueles caras.

Eu lhe dei um abraço rápido antes de me soltar. Eu encontrei o seu olhar.

– Eu tenho algo a dizer sobre isso, mas quero esperar até todo mundo estar aqui.

– A espera acabou. O bonitão já está aqui – informou Aphrodite, sorrindo quando Darius entrou acompanhado por Lenobia e Shaylin.

Darius e Stark assumiram seus lugares em cada um dos lados da entrada principal. Stark me deu uma piscadela rápida, e eu fiquei feliz ao ver que ele não estava pálido e seus olhos tinham perdido aquele olhar ferido. Para ele estar assim tão melhor, o sol já devia ter se posto, e imaginei que Rephaim entraria a qualquer segundo agora.

Lenobia se sentou ao lado do detetive Marx, cumprimentando-o com um aceno rápido de cabeça. Shaylin escolheu o lugar mais distante de mim que conseguiu e não olhou na minha direção. Eu me levantei e limpei a garganta.

– Sei que uma emergência envolvendo Neferet está acontecendo no centro da cidade, mas eu preciso dizer uma coisa antes de começarmos a lidar com isso. E vou ser rápida. Como vocês já sabem, descobri hoje que não matei aqueles dois homens no parque. Mas, mesmo que eu não tenha causado a morte deles, sei que poderia ter feito aquilo. Eu estava fora de controle. Isso teve alguma coisa a ver com a pedra da vidência, mas também comigo . Eu estava errada. Aphrodite estava fazendo exatamente o que Nyx esperaria da sua Profetisa: ela informou a Shaylin que havia algo de ruim acontecendo comigo. – Eu olhei para Shaylin até que ela, relutante, encontrasse o meu olhar. – Shaylin, eu já pedi perdão a Aphrodite, mas lhe devo um pedido de desculpas ainda maior. Você estava certa ao me seguir. Você estava certa ao contar sobre as mudanças que detectou na minha aura. Foi muito, muito errado da minha parte empurrar você e perder a paciência daquele jeito, e não estou apenas pedindo para que aceite meu pedido de desculpas. Eu estou fazendo... – Fiz uma pausa e olhei para todos os meus amigos – ... um juramento a você e a todos aqui: farei tudo o que for preciso para me certificar de que isso jamais volte a acontecer.

– Eu perdoo você – afirmou Shaylin sem hesitar, embora o seu sorriso fosse hesitante e ela ainda parecesse estar com medo. – A propósito, as suas cores já voltaram ao normal agora.

– Obrigada – agradeci. – E, por favor, avise a mim, e a qualquer outra pessoa aqui, se perceber que as minhas cores estão bagunçadas de novo. Eu estava errada quando disse que você devia manter esse tipo de coisa para si mesma. Não se trata de uma invasão de privacidade. Você simplesmente está usando o dom que Nyx lhe deu.

– Zoey, onde está a pedra da vidência agora? – perguntou Thanatos.

– Está comigo – respondeu Aphrodite, antes que eu tivesse a chance de falar qualquer coisa.

– E eu não a quero de volta – acrescentei.

– Se ela é tão poderosa quanto você está dizendo que é, Zoey, você talvez não tenha escolha a não ser pegá-la de volta – disse o detetive Marx. – Porque vai ser preciso muito poder, muito poder mágico, para lutar contra Neferet.

– Detetive, é a sua vez. Explique exatamente o que Neferet fez – pediu Thanatos.

Eu me sentei e ouvi com um aperto no estômago e uma estranha premonição de que Marx estava certo.

Zoey

Seguiu-se um silêncio longo e doentio depois que o detetive Marx descrevera, com riqueza de detalhes, a carnificina de Neferet na igreja e, depois, o que acontecera no Mayo Hotel.

– Eu senti as mortes – disse Thanatos, meneando a cabeça com tristeza. – Eu sabia que algum tipo de tragédia humana, de morte em massa, tinha acontecido bem próximo de Tulsa. Eu estava assistindo ao noticiário, esperando ouvir que um avião tinha caído ou que talvez tivesse ocorrido algum tipo de tiroteio trágico em alguma escola. Mas eu não esperava isso. Eu realmente não esperava que Neferet fosse responsável por tudo isso.

– Nós não temos conseguido prever o comportamento dela, mas talvez possamos descobrir algo sobre o que esperar dela no futuro se analisarmos os crimes de Neferet até agora – sugeriu Vovó. – Ela matou o prefeito, e aquele crime a alimentou até Woodward Park. – Vovó fez uma pausa e deu um sorriso triste para Aphrodite. – Desculpe-me por ter de falar da morte do seu pai de uma forma tão objetiva.

– Eu entendo. E quero que continue – respondeu Aphrodite, séria. – Se a morte do meu pai nos ajudar a descobrir como derrotar Neferet, então, pelo menos, ele não terá morrido em vão.

Vovó assentiu e continuou:

– Ela deve ter se escondido no parque até Zoey ter enfrentado problemas com aqueles dois homens.

– Eu estava sentada naquele banco perto da gruta quando eles começaram a me assediar – contei, tentando juntar as peças. – Neferet talvez estivesse escondida na gruta.

– Vou mandar alguns policiais checarem – disse detetive Marx, fazendo anotações no seu bloco preto de espiral.

– As mortes dos dois homens no parque devem ter dado a Neferet o poder de que precisava para chegar à Boston Avenue Church – refletiu Vovó.

– E lá ela encontrou outra fonte maior de poder – acrescentou Lenobia. – Não podemos nos esquecer de que poder é o que há de mais importante para Neferet.

– Ela usa o poder para controlar aquelas criaturas semelhantes a cobras. As coisas que mataram aquelas pessoas na cobertura do Mayo e criaram aquele... Eu nem sei como chamar. – Marx hesitou, pensando. – É uma pele protetora, uma barreira. Mas seja lá o que for, tem muito poder.

– Aquelas criaturas com aparência de cobra são feitas de Trevas. Pense nelas como pensamentos odiosos, horríveis e cruéis que tomaram uma forma física – expliquei para o detetive Marx. – Eles fazem o que ela manda porque ela faz sacrifícios por eles. Eu tenho certeza de que Neferet não se alimentou de todas aquelas pessoas na igreja. Ela as sacrificou para que aquelas criaturas a continuem seguindo e fazendo o que ela deseja.

– Uma Tsi Sgili exige muito mais do que sangue por poder – interveio Vovó.

– Tsi Sgili... Rainha Tsi Sgili – disse Marx –, foi assim que Neferet se referiu a si mesma quando se intitulou Deusa.

– Tsi Sgili é um nome antigo que o meu povo usa para se referir a bruxas que escolheram as Trevas em vez da Luz. Elas vivem segregadas, afastadas de todos. – Vovó estremeceu. – As nossas lendas dizem que elas se alimentam de almas.

– Morte – disse Thanatos. – Eu deveria ter compreendido antes. Neferet se alimenta da energia que é liberada pelo espírito de uma pessoa no instante da sua morte.

– Ai, Deusa! – Lenobia parecia horrorizada e levou a mão ao peito. – Eu conheço Neferet há mais de um século. Ela sempre estava por perto quando um novato rejeitava a Transformação. Achávamos... As Sacerdotisas achavam que o dom de cura de Neferet confortava a passagem dos jovens.

– Ela não os confortava. Ela os usava – expliquei.

– Neferet tinha alguma coisa a ver com a nossa morte e a nossa volta – disse Stevie Rae. – Eu não consigo me lembrar. Talvez porque não consiga me obrigar a isso. Sei lá. – Ela estremeceu. – Mas eu sei que parecia como se algo dentro de mim estivesse se rompendo. – O seu olhar encontrou o de Stark, o único outro vampiro vermelho na sala. – Do que você se lembra?

– Dor. Trevas. Terror. Raiva. – Suas palavras estavam tensas, embora a sua voz permanecesse baixa, e nós nos inclinamos para ouvi-lo. – E, quando saímos daquilo, eu não era mais eu. Não até que Zoey dissesse que acreditava em mim, que confiava em mim.

– E eu também não consegui sair daquilo, até que Aphrodite acreditasse e confiasse em mim – disse Stevie Rae.

Aphrodite bufou.

– Pelo que me recordo, não foi bem assim. O que eu me lembro é que você tentou me devorar e, depois, pegou a minha condição de novata e levou com você.

– Porque você permitiu. Porque você sacrificou a sua humanidade por mim – esclareceu Stevie Rae.

– A parte de querer me devorar não foi legal – murmurou Aphrodite.

– O amor é mais forte que o ódio. Essa é a única verdade absoluta no universo. O amor conquista as Trevas – afirmou Vovó. – Nós só precisamos descobrir como o amor pode conquistar Neferet.

Ouvi um monte de suspiros após os meus.

– Tudo bem, eu sou totalmente a favor de o amor vencer – disse detetive Marx –, mas a gente precisa lidar com o que quer que seja que está acontecendo com aquelas coisas rastejantes.

– Neferet as está alimentando – respondi, sentindo a verdade das minhas palavras à medida que eu as pronunciava. – Ela dá a elas o que elas querem: sacrifícios com sangue fresco. E elas a obedecem. Se conseguirmos chegar a Neferet e a enfraquecermos ou, pelo menos, contê-la e impedi-la de matar mais gente, ela não conseguirá alimentá-las, e elas vão deixá-la.

– Concordo, mas acho que ainda tem mais, Zoey. As gavinhas das Trevas estão mudando, evoluindo, junto com Neferet – disse Thanatos. – Eu jamais, nos mais de cinco séculos que vivo como vampira, ouvi alguém criar o tipo de barreira como a que o detetive Marx acabou de descrever. – Ela se voltou para o policial. – E você disse que elas pareciam sensitivas, que elas, na verdade, direcionaram as balas para policiais específicos?

– Eu não tenho a menor dúvida quanto a isso. Eu estava lá. Eu vi aquilo de perto e tudo foi muito pessoal. Todos os primeiros tiros disparados atingiram o policial que ofendera Neferet, mas apenas nas partes do seu corpo que não estavam protegidas pelo colete à prova de balas. Os outros tiros feriram vários policiais, mas mataram apenas o chefe de polícia, o homem que deu a ordem de atacar o prédio – contou Marx.

– Lenobia, você já ouviu falar de algo assim? – perguntou Thanatos.

– Nunca.

– Então, chame a cavalaria – sugeriu Marx. – Envolvam o Conselho Supremo dos Vampiros. Talvez eles possam nos ajudar a descobrir uma maneira de vencer Neferet.

– O Conselho Supremo se recusou a nos ajudar – informou Thanatos. – Nós somos a cavalaria. – Ela se levantou. – Então, detetive Marx, vamos ao Mayo ver exatamente contra o que estamos lutando.

A porta dos fundos da Câmara do Conselho se abriu e Kalona, com o peito descoberto e olhos âmbar dardejando de raiva, caminhou até Thanatos.

– Já está na hora de você chamar a cavalaria completa. Eu sou um Guerreiro da Morte. Então, aonde você for, eu vou. Humanos e suas consequências que se danem.

Suas asas negras se desenrolaram e ocuparam a sala inteira.

O detetive Marx ficou boquiaberto.

– Merda – sussurrou Aphrodite.

– Eu digo o mesmo – concordei, perguntando-me o que aconteceria em seguida.


8

Detetive Marx

O cara era enorme. E tinha asas. Porras de asas gigantescas.

Marx ficou feliz por já estar sentado porque só de olhar para o... seja lá o que era aquilo... fazia os seus joelhos ficarem moles.

Primeiro, uma vampira-deusa enlouquecida e uma cortina preta sangrenta no Mayo. Agora, um gigante alado que dizia ser Guerreiro da Morte.

Será que estava na porra de um sonho?

Bem, se ele estava, o sonho continuava se desenrolando porque Thanatos caminhou até o gigante alado, e Marx com certeza não estava acordando.

– Ir comigo? Para o centro de Tulsa, diante dos olhares de...

– O que você vai fazer se as gavinhas das Trevas de Neferet atacarem você? Eu entendo essa manifestação das Trevas. Eu já a enfrentei diversas vezes no Mundo do Além. – A voz do gigante trovejava. – O que os humanos temeriam mais, a encarnação do mal ou a presença de um deus batalhando nas ruas de Tulsa?

– Os humanos não acreditam que deuses caminhem sobre a Terra – contrapôs Thanatos.

– Exatamente! – respondeu o gigante alado. – As ações de Neferet negaram a norma. Já passou da hora de os humanos tirarem a cabeça do buraco em que a enfiaram e se darem conta de que este mundo é cheio de magia, mistério e perigos. E também chegou a hora de eu fazer o que fui criado para fazer: ser um Guerreiro e lutar contra as Trevas.

A Grande Sacerdotisa curvou um pouco a cabeça em concordância com o homem alado. Então, ela se voltou para Marx:

– Detetive, gostaria de apresentá-lo ao meu Guerreiro sob Juramento, Kalona. Ele é o meu protetor, assim como o Mestre da Espada desta Morada da Noite. Ele me acompanhará até o Mayo.

Marx hesitou um momento e, então, fez a única coisa que passou por sua cabeça – estendeu a mão e a ofereceu para o grandão.

– Prazer em conhecê-lo, Kalona.

Kalona segurou o seu antebraço no cumprimento tradicional dos vampiros.

– O prazer é meu, detetive.

– Você não é um vampiro, né? – Marx não conseguiu evitar a pergunta.

– Não. Eu não sou.

Marx olhou para as asas do cara, que agora estavam enfiadas sob as suas costas. Aquelas coisas eram tão grandes, que chegavam a tocar o chão.

– O que você é ?

O sorriso de Kalona se abriu e pareceu ser sincero.

– Tem uma resposta complicada para essa pergunta, uma que eu prometo lhe dar depois que lidarmos com Neferet.

– Vou cobrar a resposta – disse Marx, tentando não olhar diretamente nos olhos do cara porque, ao fazê-lo, sentia a cabeça confusa e pesada, como se estivesse cheia de bolas de algodão.

– Você não vai precisar, detetive. Eu aprendi do modo difícil que é melhor que eu mesmo me preocupe em cumprir as minhas promessas.

– Então, nós todos vamos mesmo ao Mayo? – quis saber Aphrodite.

– Não. Kalona e eu vamos, assim como Zoey, Stark e o seu círculo. Darius, Aurox e Aphrodite, vocês vão ficar aqui com Lenobia. Vocês duas vão organizar uma reunião escolar. Atualizem o corpo docente e discente e os guerreiros. Informe apenas o básico e nada mais. Coloquem a escola em alerta máximo. Não sabemos qual será o próximo passo de Neferet.

– Você realmente acha que todos devem saber o que está acontecendo? – perguntou Stevie Rae, ecoando os pensamentos de Marx.

Zoey falou antes que Thanatos tivesse a chance:

– Acho que as Trevas odeiam que a luz brilhe, então vamos colocar muita luz sobre seja lá o que for que Neferet esteja fazendo.

– Essa é uma ótima maneira de descobrir quem quer voltar ao comando de Neferet e quem quer ficar e lutar contra ela junto com a gente – disse Stark.

– Vocês dois disseram exatamente o que penso – concordou Thanatos.

– Muito bem, então. Mas eu vou chamar Kramisha para me ajudar. Ela sempre sabe quem está tramando o quê – informou Aphrodite.

– É sábia a Profetisa que reúne os outros membros com dons dados pela sua Deusa – aprovou Thanatos.

– Também é sábia a Profetisa que mantém o seu celular por perto. Liguem se o inferno sair do controle, literal ou figurativamente – retrucou Aphrodite.

– Pode deixar – assegurou Zoey.

– Nós vamos com você, detetive Marx – declarou Thanatos.

Marx respirou fundo e desligou totalmente o botão de sanidade mental.

– Tudo bem. Vamos nessa.

Lynette

– Lynette, eu realmente adoro uma surpresa... – Neferet hesitou antes de continuar, erguendo um dedo fino. – Se a surpresa for agradável. Se não for, então uma surpresa não passa de uma interrupção irritante. Eu odeio interrupções quase tanto quanto odeio ficar irritada. – Seus olhos se afastaram de Lynette, e ela olhou para o que parecia ser as suas pernas nuas. – Falando em irritação, por que é que vocês estão andando por aí sem objetivo? Eu estou completamente segura, e vocês todos foram perfeitamente saciados. Vão se divertir em outro lugar e parem de ficar me puxando. Vão agora, xô! – Neferet fez um movimento de desprezo antes de voltar a sua atenção para a sua súdita.

Lynette não viu as coisas rastejantes, mas sentiu o roçar frio de algo passando por ela. Controlou um tremor de repugnância.

– Querida Lynette, onde paramos? Ah, sim, eu me lembro. Você anunciou que estava planejando uma pequena surpresa para mim. Por favor, continue se explicando.

Lynette olhou nos olhos da Deusa sem piscar. O pânico que estava concentrado em algum lugar sob o seu esterno estremeceu e recuou, mas ela apertou as rédeas mentais com as quais o controlava e permitiu que apenas o prazer de planejar um evento espetacular ocupasse a sua mente. O sorriso de Lynette estava confiante, assim como a sua voz.

– Deusa, eu sou muito boa no meu trabalho. Mesmo trabalhando em uma circunstância pouco comum e com recursos limitados, realmente acredito que você achará a surpresa agradável.

– Recursos limitados? Isso soa tão de mau gosto e barato. – Neferet franziu as sobrancelhas. – Eu certamente nunca desejei que você sentisse como se a sua Deusa fosse avarenta.

– Ah, mas eu não me sinto assim! – assegurou Lynette, esperando não ter apertado o botão de loucura de Neferet. – Eu coloquei essas restrições para mim mesma porque queria provar meu valor para você. Mas é claro que essa será apenas uma pequena amostra dos eventos que eu poderia planejar diariamente... Se eu tivesse mais tempo e mais dinheiro para fazer o meu trabalho.

Neferet relaxou a expressão.

– Você é uma mulher sábia, Lynette. Mostre-me o que planejou para mim. Se me agradar, pode ter certeza de que permitirei que continue com recursos ilimitados, embora não possa prometer que serei paciente para lhe dar muito tempo. Eu esperei muito tempo para começar o meu reinado. Estou impaciente pela adoração dos meus súditos.

– Isso é totalmente compreensível, Deusa. Em planejamento de eventos, eu nunca fico muito preocupada com o tempo quando tenho dinheiro.

Neferet a analisou.

Lynette se concentrou nos negócios. Ela se sobressaía nos negócios. Ela era confiante nos negócios. Os negócios não a aterrorizavam nem a enojavam.

Neferet sorriu.

– Você está sendo totalmente honesta. O seu negócio e a aquisição de dinheiro têm sido a sua principal preocupação. Continue, minha súdita! Revele a minha surpresa.

Lynette fez uma reverência e levou Neferet da suíte para o elevador, parando no mezanino.

– Por favor, Deusa, aguarde apenas um minuto.

Neferet sorriu e fez um gesto de concordância. Lynette pressionou o botão do elevador, então bateu em um comunicador quase oculto na sua orelha e disse rapidamente e em tom baixo:

– Kylee, aguarde dez segundos e, então, faça o quarteto começar a tocar.

– Sim, Lynette – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette lançou um olhar para a direita e fez um gesto de venha aqui . Judson, o bonito mensageiro, saiu das sombras. Ele trajava um uniforme impecável e passado e carregava uma bandeja de prata reluzente na qual havia uma taça perfeita de cristal cheia de champanhe rosê. Ele fez uma reverência perfeita e mecânica para Neferet e disse:

– Posso lhe oferecer uma taça de champanhe, Deusa?

– Ora, é claro. Obrigada, Judson.

A música começou a tocar no instante em que Neferet ergueu a taça da bandeja. Lynette ficou satisfeita ao ver o sorriso se erguer nos cantos da boca da Deusa.

– Danúbio Azul de Strauss. Uma das minhas valsas favoritas. Ah, Viena. Tão adorável e indulgente no passado.

– Por favor, queira me seguir, Deusa – pediu Lynette formalmente, levando Neferet pelo mezanino até o local para onde o seu trono havia sido colocado, bem acima da plataforma que a Deusa usara para se dirigir aos seus novos “súditos” algumas horas antes e onde, agora, havia um quarteto de cordas do casamento da noite anterior tocando nervosa e lindamente.

Neferet sentou-se com elegância, olhando para o quarteto.

– Eles tocam bem, embora eu prefira uma orquestra completa.

– Tempo e recursos – respondeu Lynette com um sorriso irônico.

Os lábios da Deusa se contraíram.

– Estou notando isso.

Lynette baixou a cabeça para Neferet e discretamente tocou no comunicador no seu ouvido:

– Conte até seis e mande-os entrar.

Então, ela prendeu a respiração e esperou que os doze artistas conseguissem se manter calmos.

As pesadas cortinas de veludo que cobriam o salão abaixo se abriram e, do lado oposto da sala, seis casais se apressaram para o centro do piso de mármore. As mulheres usavam vestidos vermelhos cujo tom fora o mais parecido um do outro que Lynette conseguira encontrar. Os homens trajavam smokings que ela conseguira juntar do que sobrara do casamento; os que estavam limpos o suficiente e servissem nos homens.

Servissem! Aquele tinha sido apenas parte dos problemas daquele evento infeliz. Tinha sido uma tarefa horrenda encontrar seis homens e seis mulheres no que Lynette tinha nomeado silenciosamente de reservatório de prisioneiros, que fossem relativamente atraentes, graciosos e capazes de aprender os passos básicos de uma valsa. Sim, ela poderia ter usado todos os membros da equipe dominados pelas cobras – eles obedeciam tudo que ela dizia para eles fazerem, desde que não tentasse fugir do Mayo. No entanto, o instinto de Lynette lhe disse que uma apresentação dos membros que já estavam sob o seu controle não impressionaria Neferet.

Não, Lynette acreditava que a Deusa queria, precisava , da ilusão de ser adorada. Então, ela ameaçara, insistira e chantageara 12 pessoas com aparência decente a trabalharem para ela.

Lynette percebia que estavam nervosos – duas das mulheres estavam tão trêmulas, que ela conseguia ver os seus braços tremerem –, mas, exatamente como ela instruíra, os casais se posicionaram no grande círculo e conseguiram chegar aos seus lugares depois da primeira contagem até seis. No começo do segundo conjunto de notas, todos os 12 ergueram o olhar para Neferet, pararam, contaram até três e, como se fossem um, cada um dos homens se curvara e cada uma das mulheres fez uma reverência para a Deusa.

Lynette detectou todos os erros. Viu que a mulher chamada Cindi quase caiu, e apenas a rapidez do seu par ao segurá-la pelo cotovelo impediu a queda. Camden, o garoto alto que fora o padrinho do casamento da noite anterior – e azarado o suficiente para estar com uma ressaca que impediu que ele pegasse o voo da madrugada junto com o noivo e a noiva para Dallas –, manteve a cabeça baixa por tempo demais. Lynette apertou os dentes. Se aquele garoto mimado estragasse tudo, ele lamentaria mais do que ela.

Lynette arriscou um olhar para Neferet. Obviamente satisfeita, a Deusa sorriu e assentiu com a cabeça em um gesto nobre para os dançarinos.

Agora dancem e não pareçam estranhos! , pensou Lynette.

Eles dançaram. Todos os 12 conseguiram começar na mesma nota e se moveram pelo salão seguindo um padrão quase circular. Eles estavam longe da perfeição, mas a música era adorável e, se alguns dançarinos vacilaram, “Danúbio Azul” compensou. Quando a nota final tocou, os seis casais se curvaram e reverenciaram Neferet, desta vez mantendo as suas poses como se estivessem congelados, e até mesmo Lynette teve de admitir que a cena estava muito bonita.

Neferet se ergueu e, para imenso alívio de Lynette, aplaudiu e riu.

– Muito bem, todos vocês! Isso foi muito bom. Judson, abra garrafas de champanhe para esses adoráveis súditos.

– Deusa, eles estão esperando a sua autorização para se levantarem – sussurrou Lynette para Neferet.

– Mas é claro que estão autorizados, e obrigada por me lembrar, querida Lynette. Vocês podem se levantar! – permitiu a Deusa. – Aproveitem o champanhe e a gratidão da sua Deusa pela adoração de vocês.

Lynette tocou no comunicador em seu ouvido novamente.

– Kylee, diga ao quarteto para começar a tocar a próxima música.

Em questão de segundos, a música encheu o ambiente de novo.

– “Valsa das flores”, do Quebra-nozes . Duas adoráveis músicas e excelentes escolhas – elogiou Neferet.

– Então, a minha surpresa foi agradável?

– Foi. O candelabro, as flores, os smokings e os vestidos vermelhos. Tudo foi muito bem-escolhido. Lynette, você começou muito bem como a minha planejadora de eventos. Eu aprovo o seu tema e a extraordinária música, o local lindamente escolhido e a homenagem respeitosa a mim.

– Então, posso presumir que gostaria de ter mais eventos desse tipo?

– Sim, mas da próxima vez eu gostaria que o tema fosse a minha época favorita. Os anos 1920. Essa foi uma época que vale a pena reviver. Você consegue fazer o Charleston, Lynette?

– Eu terei acesso à Internet?

– Terá, assim como uma generosa verba para os eventos – informou Neferet, abrindo um sorriso inteligente para Lynette.

– Então, eu consigo fazer o Charleston, assim como os seus súditos.

– Vamos precisar de mais músicos – declarou Neferet.

– Sim, Deusa. Vou providenciar – disse Lynette, já digitando suas anotações no smartphone.

– E fantasias. Vamos precisar de mais fantasias.

– É claro, Deusa – concordou Lynette.

– E eu preciso mais do que apenas dança, embora esse tenha sido um ótimo começo.

Lynette ergueu o olhar das suas anotações e olhou para Neferet, mas a Deusa não estava olhando para ela. Estava acariciando a taça de champanhe enquanto observava os seis casais que se espalharam em pequenos grupos aceitando o champanhe que Judson lhes servia. Lynette seguiu o seu olhar. O garoto mimado estava virando o que parecia ser a sua segunda taça de champanhe. Neferet o devorava com os olhos.

– Fico muito satisfeita que os meus súditos sejam tão atraentes – declarou ela.

Lynette bufou de forma irônica e automática, mas quando o olhar da Deusa pousou nela, ela se arrependeu instantaneamente por ter permitido um deslize de compostura.

Neferet ergueu uma das sobrancelhas ruivas.

– Ah, entendi. Você escolheu os doze com muito cuidado, porque nem todos os meus súditos são tão atraentes, não é mesmo.

Ela não usou um tom interrogativo, mas Lynette sentiu o impulso de responder.

– É isso mesmo. – Ela ergueu os ombros inquieta. – Sinto muito, Deusa, eu só queria me assegurar de que ficasse feliz com o meu primeiro pequeno evento.

– Isso é compreensível, querida Lynette. Na verdade, aprecio o seu esforço, e embora aprecie todos os meus súditos, eu também aprecio coisas, e pessoas, que são agradáveis aos meus sensos. – Neferet se inclinou no seu trono e usou um tom conspiratório para se dirigir à sua súdita: – Você poderia acrescentar isso à sua lista de tarefas como planejadora de eventos.

– Estou disposta a servi-la de qualquer forma que precise, Deusa. – Lynette estava tentando entender o que a Deusa queria. – Mas o que você quer dizer com “isso”?

– Certificar-se de que os meus súditos estejam sempre o mais atraentes possível, é claro. Sim, tenho certeza de que você tem talento para transformações.

– Transformações.

Lynette repetiu a palavra, sentindo-se extremamente sobrecarregada enquanto imagens dos súditos menos atraentes de Neferet passavam por sua cabeça. A mulher de cinquenta e poucos anos que precisava perder uns vinte e poucos quilos... A pré-adolescente ruiva esquelética cujo rosto já estava tomado por espinhas... O empresário careca e barrigudo e com queixo triplo que parecia um bócio...

A risada debochada de Neferet interrompeu o filme na sua mente.

– Pare de se preocupar, querida Lynette. Entre nós duas, conseguiremos separar o rebanho. Afinal, eu posso controlar tudo o que eles comem e tudo o que fazem. Você não concorda que dieta e exercícios são muito importantes?

Lynette assentiu com a cabeça e tentou manter-se focada completamente nos olhos verdes-esmeralda de Neferet.

– Então, além de colocar alguns deles de dieta e nos certificarmos de que passam algum tempo na academia do Templo, estou confiante de que você pode dar dicas de cabelo, maquiagem e moda. Correto?

– Sim, Deusa – respondeu ela automaticamente.

– Excelente. Estou feliz por você ter chamado a minha atenção para esta questão. É importante que os meus súditos sempre tenham a melhor aparência possível. Eles são, de algum modo, um reflexo de mim mesma.

Como se isso resolvesse a questão, o olhar de Neferet passeou pelo grupo abaixo delas, parando, de forma predatória, em Camden.

– Você fez uma excelente escolha com aquele ali, Lynette. Ele é alto, jovem e louro – disse Neferet. – Seu nome?

– Camden – informou Lynette. – Ele foi padrinho do casamento que me trouxe ao Mayo.

– Padrinho ? É mesmo? – Os olhos verdes-esmeralda de Neferet brilharam com uma intensidade perigosa, e Lynette ficou grata por tal intensidade não estar focada nela. – Talvez eu tenha que testá-lo para ver se Camden é realmente um bom súdito.

Lynette controlou um tremor de medo.

– Você gostaria que eu pedisse para alguém trazê-lo aqui?

– Não, querida Lynette. Eu posso muito bem convocá-lo. Talvez ele aprecie uma visita à varanda da minha cobertura. – Seus olhos brilhantes se voltaram para Lynette e o brilho feral neles se endureceu. – A minha equipe já se livrou daqueles vestígios desagradáveis, não é?

Merda! Eu estava ocupada demais organizando essa apresentação para verificar se todos os pedaços de gente tinham sido atirados pela varanda. A mente de Lynette começou a buscar algo para dizer e ela soltou um suspiro de alívio quando encontrou uma resposta:

– Deusa, creio que Kylee era a responsável pela questão da varanda.

– Aquela garota – murmurou Neferet, tomando um gole de champanhe. – Ela é boa para algumas coisas, mas precisa de muita supervisão. Será que você poderia usar essa útil maquininha no seu ouvido para lembrá-la das minhas ordens?

– É claro, Deusa – respondeu Lynette.

– E, enquanto você supervisiona Kylee, creio que eu vá me misturar aos meus adoráveis e atraentes súditos. Você consegue imaginar como o padrinho Camden se sentirá honrado se eu permitir que ele me tire para dançar?

Felizmente, a pergunta de Neferet era retórica e, em vez de concentrar a sua atenção na resposta de Lynette, a Deusa deu as costas para ela, tomou um gole de champanhe e caminhou em direção à grande escadaria dupla que levava ao salão de baile.

Lynette notou que Neferet não deslizou. Isso porque ela mandou as coisas rastejantes saírem para brincar , pensou Lynette. De alguma forma, elas deviam carregá-la – ou canalizar a energia para erguê-la – ou algo igualmente insano.

Ela meneou a cabeça como se quisesse clarear os pensamentos. Não podia se dar ao luxo de ficar pensando muito. Não podia se dar ao luxo de fazer mais nada a não ser sobreviver.

Lynette bateu no comunicador na sua orelha.

– Kylee, Neferet vai inspecionar a varanda da cobertura. Logo. Ela deixou você responsável pela limpeza.

– Compreendo e obedeço – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette suspirou. Deu alguns passos para trás e se apoiou em um dos pilares de mármore deixando-se ficar sem fazer nada por um momento, a não ser respirar.

Ela passara pelo primeiro teste de Neferet. Ainda estava viva e não tinha sido possuída por nenhuma criatura escorregadia. Mas, para continuar assim, não poderia se dar ao luxo de relaxar. Haveria tempo para relaxar depois que tudo isso acabasse. E Lynette conseguiria isso – ela sempre conseguia passar por todas as merdas que a vida atirava em sua direção.

Para começar, Lynette tinha uma lista de coisas a fazer.

Tinha de verificar todas as pessoas no prédio. Elas precisavam ser categorizadas como atraentes e aceitáveis ou aquelas que exigiriam trabalho. Na categoria das que exigem trabalho ela criaria as subcategorias gordo, malvestidos ou apenas feios por natureza. As duas primeiras poderiam ser corrigidas – em tese. Quanto aos que se enquadravam na terceira, bem, eles teriam de aprender algumas habilidades para que pudesse mantê-los nos bastidores.

– Espero que eles saibam cozinhar ou costurar.

Lynette estava falando consigo mesma enquanto digitava as observações no seu smartphone quando ouviu um grito vindo do salão. O que tinha acontecido agora? O que mais Neferet poderia estar fazendo? Com a mente cansada e pesada pelo medo e pela exaustão, obrigou os seus pés a levá-la até a beirada do mezanino.

Neferet estava ao lado de Camden. Ele estava olhando para o decote profundo do vestido curto de veludo da Deusa. As outras onze pessoas olhavam para as cobras escorregadias que se retorciam em volta dos tornozelos nus de Neferet.

– Ah, fique quieta – ordenou a Deusa para a garota que berrara. – Vocês precisam se acostumar com os meus filhos. Eles nunca ficam muito longe de mim, assim como vocês, meus leais súditos, nunca ficarão longe de mim.

– Si-Sinto muito, Deusa. E-eles parecem cobras. E e-eu tenho medo de cobras – gaguejou a menina.

– Eles não são cobras. São muito mais perigosos. E eu não estou pedindo para que você supere o medo que sente deles. Estou lhe ordenando que você não verbalize isso. – Neferet olhou para baixo, para as coisas rastejantes que se retorciam aos seus pés, parecendo excitadas. – O que foi, meus queridos?

– Deusa, o detetive voltou – chamou Judson do vestíbulo de entrada. – E trouxe mais gente com ele.

– Isso não significa nada. Ele pode trazer toda a Guarda Nacional de Oklahoma com ele. Eles não conseguirão penetrar a minha cortina protetora.

– Ele não trouxe um exército. Ele trouxe uma vampira que está fazendo o ar à sua volta brilhar enquanto um homem enorme que parece ter asas ocultas sob a sua capa de chuva caminha perto dela.

– Por que você esperou até agora para me dizer isso? – berrou Neferet. – Filhos! Venham comigo! – Erguida pelo ninho totalmente visível de víboras escorregadias, a Deusa deslizou até a porta da frente.

O corpo de Lynette ficou frio. Ela desceu dos sapatos elegantes de salto alto para que pudesse andar em silêncio pelo mezanino, dirigindo-se às grandes janelas panorâmicas que davam para a frente do prédio, tentando não pensar em nada, mas principalmente tentando não ter esperanças.


9

Zoey

– Que merda! O Mayo está horrível – declarei.

– É como se estivesse encharcado de morte. – Damien soava tão horrorizado quanto eu.

– Não de morte – contradisse Thanatos. – A morte é inevitável para todos os mortais. Ela não é boa nem má; é simplesmente parte da grande espiral da vida. Neferet usou nesse prédio dor e medo, sangue e desespero.

A sua voz estava estranha. Vovó, Stark, Shaylin e eu estávamos todos espremidos no Hummer da escola, e Thanatos estava na frente com Marx. Notei que quanto mais nos aproximávamos do Mayo, mais agitada a Grande Sacerdotisa parecia ficar. Ela estava literalmente inquieta, o que era muito estranho para ela – Thanatos costumava ser uma montanha de calmaria.

O seu óbvio nervosismo fez o meu estômago se revirar.

– Caos – disse Kalona. Olhei por sobre o meu ombro e ele estava sentado com Damien e Shaunee (eles estavam superapertados porque as asas dele ocupavam muito espaço), e vi-o meneando a cabeça enojado. – Neferet usou as gavinhas das Trevas para criar o caos e isso a está protegendo.

– Bem, o caos tem um cheiro horrível – reclamei enrugando o nariz.

– Fede e é horrível – concordou Damien. – E nós não temos nenhuma maneira de entrar.

– Sinto muito – desculpou-se Marx. – Eu devia ter avisado sobre o fedor.

– Não precisa se desculpar, detetive – disse Vovó. – Não creio que existisse qualquer coisa que você pudesse ter feito para nos preparar para isto.

– Você provavelmente está certa, mas é melhor avisar que não temos como saber se todas as partes humanas foram retiradas da área – acrescentou Marx. – Então, é melhor olharem por onde andam.

– Partes humanas? – A minha voz tremeu.

Marx assentiu.

– As coisas rastejantes mataram um monte de gente quando desceram pela varanda, cobrindo o prédio com trevas e tripas até aqui embaixo. Neste início de noite, Neferet tem jogado pedaços de pessoas, com todo o sangue drenado pelo parapeito da sua varanda.

– Eu consigo sentir o feitiço que ela fez com sangue, morte e Trevas – disse Thanatos. – Ela usou a morte daquelas pobres pessoas para construir uma barreira.

– Neferet lançou o feitiço, mas não sujaria as próprias mãos com a limpeza – concluiu Kalona em tom grave. – O que significa que ainda tem gente viva cumprindo as suas ordens.

– Será que importa quem está jogando? Principalmente se Neferet tiver feito reféns? – perguntou Shaunee.

– Tudo o que realmente importa é que todos se lembrem de que se detivermos Neferet, pararemos toda esta loucura também – respondeu Thanatos.

Todos nós concordamos de forma amarga.

Marx passou pelas barreiras da polícia e parou no meio-fio do outro lado da rua do Mayo em uma calçada ampla em frente ao prédio corporativo da empresa Oneok, onde nos sentamos e ficamos analisando o que tínhamos diante de nós.

– Organizamos dois postos de comando dentro da Oneok. O do terceiro andar com todos os equipamentos audiovisuais. E o que está no último andar com atiradores de elite – explicou-nos Marx enquanto nos sentamos e ficamos olhando para o prédio coberto de sangue coagulado do outro lado da rua.

– Atiradores de elite não podem matar Neferet – informou Kalona.

– É, a gente já percebeu – respondeu Marx secamente. – Mas eles podem matar pessoas, até mesmo as que estão sob o feitiço dela.

– Você não pode atirar naquelas pessoas! Elas são vítimas – declarou Vovó, virando-se, agitada. – Elas não são responsáveis pelas próprias ações, mas Neferet é.

– Sim, senhora, nós sabemos disso e não queremos atirar em ninguém, mas se Neferet ordenar que seus servos, ou seja lá como vocês querem chamá-los, nos ataquem ou a qualquer cidadão de Tulsa, seremos obrigados a impedi-los.

– Ela gostaria disso – disse Thanatos enquanto encarava o prédio. Ela parecia estar zangada. Achei que parecia mais pálida do que o usual, mas ela já era vampira havia, tipo, um zilhão de anos. Ela sempre estava pálida, então eu não poderia dizer com certeza. – Ela obteria mais poder com as suas mortes, além da satisfação de ter obrigado vocês a matar pessoas inocentes. – Thanatos olhou para Kalona. – Não podemos permitir isso.

– Concordo – respondeu Kalona.

– Bom – disse ela. – Já chega de ficarmos sentados aqui especulando. Eu preciso ir até lá. Preciso entender exatamente com o que estamos lidando.

Thanatos saiu do Hummer e bateu a porta atrás de si, deixando que o resto de nós a seguisse – de forma relutante.

Kalona se apressou a ficar ao seu lado. À distância, eu ouvia exclamações do tipo “Ei, olha lá aqueles vampiros!” e “Prepare a câmera, tem alguma coisa acontecendo na frente do Mayo!”.

O imortal alado tinha colocado uma longa capa de chuva para cobrir o seu peito tipicamente nu como uma forma bastante bem-sucedida de esconder as asas gigantescas. Eu o vi virar o corpo tentando enfiar as penas enormes lá dentro. Ele lançou um olhar irritado para as pessoas reunidas atrás das barricadas antes de os seus olhos encontrarem os do detetive Marx.

– Creio que seria mais sábio se você retirasse todos os civis dessa área da cidade. Ninguém estará seguro aqui.

– É, eu sei, mas tente dizer isso para a mídia. Conseguimos reunir todo mundo ali atrás, mas é uma merda lidar com a liberdade de imprensa.

Kalona deu de ombros.

– Então, eles terão de aprender a lição por si mesmos.

Com aquela observação agourenta, ele voltou a sua atenção para o Mayo. Thanatos olhava para o prédio, quase como se estivesse hipnotizada por ele. Engoli o meu medo e me posicionei ao seu lado, grata pela presença forte de Stark.

– Eu deveria saber. – A voz de Thanatos estava cansada. Ela deu vários passos na direção ao prédio. – Mas eu raramente era chamada para o local de uma morte humana, e nunca uma morte de tamanha magnitude. – Ela se aproximou mais do prédio, ficando na entrada semicircular de veículos anexa à entrada principal. Thanatos ergueu as mãos e estremeceu. – O terror usado para fazer esta barreira ainda está aqui.

– Sacerdotisa, eu aconselho que não se aproxime mais do prédio – disse Kalona, posicionando-se ao seu lado e gentilmente pegando o seu cotovelo e tentando fazer com que voltasse para a rua.

– Eu preciso ajudá-los – declarou ela, afastando a mão dele.

– Eles? – perguntou Marx.

– Nem todos os mortos se foram. O fim deles foi violento demais, aterrorizante demais, bem além do que qualquer coisa que essas pobres pessoas jamais imaginaram. Sinto os seus espíritos em pânico e eles ficam girando em círculos, incapazes de encontrar uma saída deste reino para o próximo.

– Você pode ajudá-los? – perguntou Vovó, que estava próxima ao Hummer.

– Acredito que sim.

– Tente fazer isso de forma rápida – orientou Kalona.

– Eu devo traçar um círculo? – perguntei.

– Não, Zoey. Você e todos os outros, exceto por Kalona, devem ficar lá trás em segurança. Isso é algo que eu tenho que fazer sozinha. O dom que nossa Deusa me concedeu é tudo de que eu preciso... – Ela fez uma pausa e deu um sorriso de agradecimento para Kalona – ... incluindo um protetor poderoso. Eu preciso acreditar na força que Nyx me dá.

– Façam como Thanatos disse e voltem para o Hummer – pediu Stark, puxando-me com ele. Marx se afastou mais devagar, os seus olhos concentrados em Thanatos.

– Damien! Ei! Damien! – Um humano bonito e jovem chegou correndo.

Damien se virou a tempo de receber um abraço gigantesco.

– Adam! Você não deveria estar aqui. É perigoso demais – repreendeu Damien.

– Ei, sou um jornalista. Eu tenho que lidar com o perigo – declarou ele sorrindo.

Por fim, eu o reconheci. Era Adam Paluka, um jornalista da Fox – o cara que nos entrevistou depois que Neferet deu aquela conferência ridícula. Eu sabia que Damien estava namorando alguém, e pelo modo como aqueles dois sorriam um para outro, acho que as coisas estavam indo bem. Nossa, eu me envolvera tanto com as coisas que estavam acontecendo comigo, que eu nunca pensei em perguntar a Damien como ele estava lidando com o fato de estar namorando tão rápido depois que Jack...

– Você precisa voltar para trás da barreira – disse Marx, aproximando-se de Adam com um olhar carregado.

Mas bem nesse momento, Thanatos começou o seu feitiço, atraindo toda a nossa atenção para si.

A Grande Sacerdotisa ergueu as mãos e fechou os olhos. Quando falou, a sua inquietação acabou. Suas palavras eram rítmicas e hipnóticas; sua voz, calma. Ela era forte, sábia e bonita – e eu tinha orgulho de ser uma novata da Morada da Noite sob o seu reinado.

Espíritos sofredores, venham até mim
Com calma e doçura, que a minha voz os guie assim
E que o meu dom acabe com o sofrimento sem fim

O ar em volta de Thanatos começou a brilhar como se alguém tivesse lançado globos mágicos cheios de purpurina em direção a ela.

– Ai, meu Deus! O que está acontecendo? O que aquela vampira está fazendo?

Eu estava tão concentrada no feitiço de Thanatos, que mal notei o barulho crescente vindo da multidão atrás de mim. Apesar disso, senti que Adam erguera o seu iPhone e ouvi um pequeno clique indicando que ele estava filmando. Stark apertou a minha mão antes de cochichar:

– Acho que Marx está prestes a expulsar os repórteres. Eu vou ver o que posso fazer para ajudá-lo. Certifique-se de que você, o seu grupo e Vovó fiquem perto do Hummer.

Assenti e vagamente notei que Stark estava discutindo com Damien sobre obrigar Adam a sair enquanto Marx caminhava decididamente em direção à barricada. Mas os meus olhos nunca se afastaram da Grande Sacerdotisa. Eu não conseguia parar de olhar. Thanatos comandava toda a minha concentração.

O guia para o fim do sofrimento eu sou sim
O amor atendeu às suas preces e ao terror colocou um fim;
Com calma e doçura, os seus espíritos estão livres assim!

Esferas brilhantes cercavam completamente Thanatos. Quando ela falou o último verso do feitiço e abriu os seus braços, cada uma das esferas precipitou-se para ela. Rindo de alegria absoluta, o rosto de Thanatos se iluminou de amor e ela ergueu os braços. As esferas brilhantes voaram como fogos de artifício para o céu noturno – só que, em vez de deixar para trás um rasto de fumaça, as esferas que desapareciam deixavam para trás um rasto de alívio e felicidade que me fez esquecer o estresse da situação – o horror do sangue e o fedor do Mayo coberto com Trevas –, fez-me esquecer de tudo, a não ser o fato de que, fôssemos humanos ou vampiros, havia sempre uma constante entre todos nós: o amor. Sempre o amor.

E, então, Neferet saiu pela porta da frente arruinando completamente o momento feliz. Antes, pensava que ela parecia uma insana, mas eu estava errada. O que ela era agora fazia a loucura anterior de Neferet parecer não mais que uma excentricidade, como uma velha que gosta de gatos e cheira a urina e mato. Ela estava usando um vestido curto verde. Por um segundo senti certo alívio. Tipo assim, ela não estava nua. Tudo bem, ela estava descalça, mas não achei nada demais naquilo, até que eu realmente olhei para os seus pés. Eles estavam descansando sobre um ninho escorregadio de gavinhas negras que se contraíam e pulsavam ao redor dela, envolvendo seus tornozelos e canelas, e, na verdade, erguendo-a do chão.

Mas aquilo nem era a coisa mais insana em Neferet. Foram os seus olhos que denunciaram a sua loucura. Algo acontecera com as suas pupilas – elas tinham desaparecido. Eram como pedras de mármore, completamente verdes-esmeralda.

– O que há de errado com os olh... – começou Adam, mas o berro de Neferet o cortou.

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo! – Neferet apontou para Thanatos, e duas das gavinhas correram na direção desta.

Kalona se moveu tão rápido, que tudo ficou um borrão. De repente, ele estava lá, entre Thanatos e as criaturas que a atacavam. Ele tirara o seu casaco e revelara a lança de ébano que tinha amarrada nas costas. Suas asas se desenrolaram enquanto ele se encontrava com as gavinhas, espetando uma delas, e enquanto esta se retorcia na agonia da morte, partiu a outra ao meio.

Neferet gritou, como se sentisse a dor das gavinhas.

– Ignorem Kalona! Matem Thanatos! E, depois, todos os outros!

Tudo explodiu.

As gavinhas das Trevas, como veneno cuspido da boca de uma víbora, saíram dos pés de Neferet, tentando passar por Kalona a fim de atingir Thanatos e o resto de nós. Stark voltou para mim, empurrando-me e à Vovó para trás dele e gritando para Damien, Adam, Shaunee e Shaylin para entrarem no Hummer.

Cambaleei para trás, certa de que eu iria assistir a Thanatos ser partida ao meio pelas criaturas de Neferet, provavelmente segundos antes de elas atacarem Stark e, depois, devorarem o restante de nós.

Mas nada daquilo aconteceu. As Trevas não venceram esta batalha – o imortal alado sim.

Kalona estava em todos os lugares. A sua lança se movia tão rápido, que provocava um som no ar.

– Um sabre de luz – arfou Damien. – E é de verdade, e não um de mentirinha como o do Star Wars.

– Leve-os para um lugar seguro! – ordenou Kalona para Marx.

Marx correu para a Grande Sacerdotisa e, enquanto Kalona usava o próprio corpo, suas asas e sua lança para nos proteger, nos apertamos no Hummer.

– Segurem-se! – Eu vou subir na calçada e tirar ele de lá! – avisou Marx ligando o carro.

– Espere! – disse Thanatos. – Ele está vindo para nós. Olhem para as gavinhas. A força delas acaba quando elas se afastam muito de Neferet.

A Grande Sacerdotisa estava certa. Kalona, ferido e sangrando, ainda estava lutando com as criaturas, mas se aproximava de nós e se afastava do Mayo. E as gavinhas não o estavam seguindo.

Quando Kalona chegou à traseira do Hummer, Neferet ergueu os braços e ordenou:

– Venham para mim, filhos! Eu os ajudarei!

As coisas rastejantes deslizaram para ela, enrolando-se em seus braços e pernas. Ela as acariciou, como se quisesse confortá-las, e antes de desaparecer dentro do Mayo, seus olhos brilhantes verdes-esmeralda se concentraram em nós.

– Obrigada pela lição. Da próxima vez, eu vencerei!

Zoey

– Não, de verdade, eu não preciso ir para o hospital – repetiu Kalona pela enésima vez para Marx. – Como eu já disse, traga-me água ou, melhor ainda, vinho. Eu vou subir até o alto deste prédio e me curar.

Nós contornamos o prédio da Oneok e entramos pelos fundos para nos juntarmos à força-tarefa de Tulsa no terceiro andar. Percebi por que Marx estava estressado com Kalona – ele estava ensanguentado. Todos na sala olhavam para ele, mesmo enquanto tentavam não olhar. Sério, se ele não fosse imortal, estaria em um saco preto para cadáveres.

Marx bufou e passou os dedos pelo cabelo.

– Tudo bem, então, já entendi. Já entendi. Você está bem. Carter! – gritou ele para um policial uniformizado, que imediatamente parou de fingir que estava analisando dados na tela do seu computador e deu atenção ao detetive. – Encontre a sala de reuniões do presidente da empresa. Deve haver bebida lá. – Marx voltou a sua atenção para Kalona. – Serve uísque? Esses caras corporativos preferem esse tipo de bebida.

– Serve – respondeu Kalona.

– Pode ir – disse Marx para Carter. – Tudo bem, então. Enquanto Kalona está se recuperando no telhado, vamos fazer um controle de danos. Paluka, passe o telefone para mim e saia daqui.

– Você não pode simplesmente pegar o meu telefone! Isso é ilegal!

– É uma evidência de uma investigação em andamento de múltiplos homicídios. Eu estou apreendendo o seu telefone – informou Marx.

– Um momento, por favor, detetive – pediu Vovó.

– Senhora? – Marx, assim como todos nós, olhou para Vovó, que deu um sorriso sereno.

– Adam, corrija-me se eu estiver errada, mas acredito que você não seja o único jornalista que testemunhou o que acabou de acontecer lá fora.

– Você não está errada – respondeu Adam.

– Ah, exatamente o que pensei. O que significa que deve haver um monte de equipes de filmagem gravando tudo de trás da barreira, isso sem mencionar as gravações feitas por celulares, como a que você fez.

Ouvi Marx suspirar enquanto Adam respondia:

– Exatamente, senhora.

Vovó e Thanatos trocaram um olhar e, então, a Grande Sacerdotisa assumiu a conversa que Vovó iniciara.

– Sr. Paluka, o que o senhor acha de fazer uma entrevista exclusiva comigo e Kalona?

Os olhos de Adam brilharam de animação, mas ele manteve a postura profissional.

– Eu gostaria muito disso, Grande Sacerdotisa.

– Então, é isso que você terá. – Thanatos lançou um olhar para Marx. – Às vezes é mais fácil abrir mão do controle e deixar o destino lidar com o que quer que venha em seguida.

– Pelo menos limpem um pouco do sangue e me deem um monte de comprimidos de Tylenol.

Zoey

Kalona realmente tentou limpar o sangue que escorria dos seus ferimentos semelhantes a chicotadas e dos arranhões menores e mais profundos que mais pareciam mordidas que se espalhavam pelo seu corpo. Achei que ele parecia bem-acabado, e ele ainda sangrava um pouco, mas estava agindo de forma totalmente normal – forte, silenciosa, intimidadora. Thanatos fez com que ele vestisse o casaco comprido. Disse que as suas asas já tinham aparecido o suficiente no vídeo da batalha que Adam exibiria durante a entrevista. Em silêncio, concordei com ela, mas também pensei que o casaco cobria bastante os ferimentos que estavam ali embaixo. Por uma vez, consegui manter a boca fechada e deixei que os outros lidassem com as consequências da luta com Neferet enquanto eu me afastava dos holofotes. Foi um breve momento de relaxamento para mim enquanto me encolhi ao lado de Stark para assistir com Vovó, Damien, Shaylin e Shaunee àquilo que jamais poderíamos imaginar alguns meses antes – Kalona sendo entrevistado pela TV de Tulsa.

Adam chamara uma equipe de iluminação e um cinegrafista. Achei que estavam fazendo um bom trabalho de não ficar olhando estupidamente para Kalona. Adam explicou para todos que iria carregar o vídeo da batalha e exibi-lo e, depois, começaria a entrevista. Também explicou que ela seria exibida ao vivo no plantão de notícias.

– Cara, ainda bem que não estamos ali – sussurrei.

– Adam está fazendo um excelente trabalho – disse Damien com voz suave enquanto seus olhos brilhavam para o jornalista.

– Eu gosto dele.

O olhar de Damien encontrou o meu.

– Você acha que o Jack teria gostado dele.

Estiquei a mão por sobre Stark e apertei a mão de Damien.

– Tenho certeza que sim.

Damien assentiu e piscou para afastar as lágrimas.

– De alguma forma, isso torna as coisas mais fáceis, apenas um pouco mais fáceis, mas sou grato por esse “pouco”.

Então, a nossa atenção estava em Adam enquanto a luz vermelha na câmera parou de piscar e nós assistimos às cenas da batalha de Kalona sendo exibidas em um monitor portátil.

– Sou Adam Paluka, ao vivo, com a vampira e o Guerreiro que acabamos de ver nesta cena surpreendente gravada há alguns momentos em frente ao Mayo Hotel, no centro de Tulsa, quando a Grande Sacerdotisa conhecida como Neferet atacou diversos cidadãos inocentes, inclusive eu. – Adam fez uma pausa, dando então um sorriso caloroso para Kalona. – Eu ainda não lhe agradeci por ter salvado a minha vida. Obrigado!

Kalona pareceu surpreso, quase tímido. Ele assentiu uma vez e disse:

– De nada.

– Kalona estava cumprindo o seu dever. Ele é o meu Guerreiro sob Juramento. Neferet, que não é mais reconhecida por nenhuma autoridade vampírica como Sacerdotisa de Nyx, atacou a mim e os que estavam comigo. Era o dever de Kalona nos proteger – declarou Thanatos.

– Thanatos, é muito bom falar com você novamente. Muitos dos nossos espectadores a reconhecerão como a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Será que você poderia explicar o que estava fazendo na frente do Mayo?

A entrevistada respirou fundo e, então, falou devagar e com clareza, como se quisesse que todos a compreendessem:

– A essa altura, vocês já sabem o que nós apenas suspeitávamos antes, que Neferet está completamente louca e que se tornou uma pessoa malévola. Ela admitiu ter cometido uma matança. Assassinou o prefeito de Tulsa. Assassinou dois homens em Woodward Park. De lá, seus assassinatos se dirigiram para inocentes na Boston Avenue Church no domingo de manhã e, em seguida, para o Mayo Hotel, onde ela se trancou. As mortes que causou no Mayo permitiram que criasse um escudo protetor sobre o prédio. Eu fui até lá por causa do meu dom concedido pela Deusa, que é ajudar as almas a passarem deste mundo para o próximo.

– As luzes brilhantes! Elas eram almas?

Thanatos concordou com a cabeça.

– Exatamente. Elas estavam presas neste reino por causa da forma violenta como morreram. Eu simplesmente as ajudei a se libertarem.

– Nossa! Isso é incrível.

O sorriso de Thanatos foi bonito.

– O ciclo da vida é realmente incrível.

– Sim, é claro que sim. Espere um pouco, Thanatos. Isso significa que eram almas humanas que você ajudou na passagem?

– Isso mesmo – respondeu ela, serena.

– Mas você é uma vampira .

O sorriso da Grande Sacerdotisa se abriu mais.

– Achei que já tínhamos falado disso.

– É verdade. – Adam passou os dedos pelo cabelo perfeito. – Mas uma pessoa da sua raça a atacou porque você estava ajudando almas humanas .

– Adam, já vivi por mais de quinhentos anos, e, nesse tempo, eu aprendi que a humanidade é definida pelas escolhas, e não pela genética. Para colocar de forma bem simples, humanos e vampiros têm mais semelhanças do que diferenças.

– Obviamente Neferet não pensa como você – disse Adam.

– Neferet está louca. Seus pensamentos são excêntricos e perigosos.

– O que são aquelas coisas que ela enviou para nos atacar? – perguntou Adam.

– O mal que tomou uma forma tangível. As criaturas seguem as ordens de Neferet. Desde que ela faça sacrifícios para mantê-las leais a ela. – Thanatos olhou diretamente para a câmera. – Nunca é demais enfatizar que, não importa o quanto Neferet ameace, é imperativo que nenhum humano deve chegar perto do Mayo. O poder de Neferet vem da morte. Fiquem longe do Mayo e a sua fonte de poder vai acabar secando.

Adam parou, pareceu chocado e, então, olhou para alguém que não estava aparecendo na filmagem.

– Detetive Marx, o senhor concorda com o pedido de Thanatos em relação ao Mayo?

O cinegrafista apontou a câmera para um detetive com expressão irritada. Imperturbável, ele respondeu sem hesitar:

– Concordo. O Departamento de Polícia de Tulsa colocou barreiras nas ruas que cercam o Mayo. Ninguém pode se aproximar do Mayo, nem mesmo as equipes policiais ou os militares.

– Mas não é verdade que Neferet está mantendo reféns dentro do Mayo? – quis saber Adam.

– É verdade, mas, nesse momento, não temos nomes nem números – respondeu Marx. – Eu entendo que as pessoas vão sentir falta dos seus entes queridos. O Departamento de Polícia abriu uma linha telefônica 0800 para perguntas e informações de pessoas desaparecidas. O público deve direcionar as suas perguntas por esse número.

– Número esse que o canal Fox 23 vai colocar na parte inferior da tela – informou Adam.

– Obrigado – agradeceu Marx, embora ele não parecesse particularmente grato.

– Detetive Marx, eu preciso perguntar: se o senhor não vai permitir que ninguém se aproxime do Mayo, como é que pretendem deter Neferet?

– Ela será detida por mim, pelos vampiros e pelos novatos que lutam ao meu lado. Neferet é da nossa raça. E somos nós que devemos derrotá-la.

Todos nós, inclusive o cinegrafista, concentraram-se no imortal alado.

– Kalona, o senhor não é um vampiro, certo? – perguntou Adam.

– Certo.

– Então, o que o senhor é?

Ele nem mesmo hesitou. Disse aquilo como se estivesse contando o que comeu no jantar da noite anterior.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas fiz escolhas ruins e, por isso, fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

Seguiu-se um silêncio em que ninguém parecia respirar. Então, Adam perguntou:

– E o que o senhor está fazendo aqui?

Kalona se empertigou e olhou diretamente para a câmera.

– Estou tentando me redimir dos meus erros do passado e obter o perdão de Nyx.

– Bem – Adam engoliu em seco –, parece-me que o senhor está fazendo um bom trabalho aqui. O senhor salvou a Grande Sacerdotisa, um grupo de vampiros e novatos, um detetive. Salvou, inclusive, a mim. Se o senhor conseguir deter Neferet, eu vou começar a chamá-lo de Super-Homem.

Os lábios carnudos de Kalona se ergueram em um sorriso.

– Se você vir Nyx, eu gostaria muito que dissesse isso para ela.

– Pode contar comigo – assegurou Adam. Então, ele se voltou para Thanatos: – A senhora tem mais alguma coisa a acrescentar, Grande Sacerdotisa? Será que existe alguma forma de o público nos ajudar?

– Existe sim – respondeu ela. – Todos podem rezar e enviar pensamentos e energia positiva para nós. A Morada da Noite fará o melhor que puder para proteger o povo de Tulsa, mas nós precisamos de intervenção divina.

– Rezar? Para quem? Para Deus ou para a Deusa? – quis saber Adam.

– Ora, para qualquer um deles ou para os dois, é claro. Gosto de acreditar que as orações não estão presas a questões semânticas.

Adam sorriu.

– Eu também prefiro acreditar nisso. – Ele se virou para a câmera. – Vamos todos rezar pelo fim da insanidade de Neferet e da violência que irrompeu em Tulsa em decorrência disso. E essas foram as últimas notícias sobre a situação no Mayo Hotel. Sou Adam Paluka, lembrando a todos para ficarem ligados no canal Fox 23 para terem uma cobertura completa.

– O irmão de Erebus. Isso não é interessante? – perguntou Vovó, enquanto Adam trocava um aperto de mão com Thanatos e agradecia a ela e a Kalona pela entrevista.

– Você sabia que ele era irmão de Erebus? – sussurrou Damien para mim.

– Hã... Sabia – respondi. – Ele mencionou isso há alguns dias.

– Mas estivemos meio ocupados desde então – completou Stark.

Damien coçou a testa.

– Eu me lembro vagamente de ter lido em uma antiga antologia poética vampírica algumas menções sobre o Filho da Lua e Guerreiro da Noite, junto com as descrições usuais de Erebus como Filho do Sol e Consorte de Nyx. Inicialmente, achei que eram apenas nomes diferentes para Erebus, mas, pensando bem, faz mais sentido que estivessem falando de dois imortais distintos.

– Isso torna os séculos de raiva de Kalona mais compreensíveis – declarou Vovó.

– É. Ter deixado de ser o guerreiro e companheiro de Nyx e não ter nem mais permissão para entrar no Mundo do Além. Isso deve doer de verdade – disse Damien, observando Kalona com olhos grandes e tristes.

– Ele estuprou e matou gente. Quem sabe o que ele fez no Mundo do Além antes de sua Queda – contou Stark.

– Todo mundo merece uma segunda chance, Tsi-ta-ga-a-s-ha-ya – afirmou Vovó, usando o apelido Cherokee que dera a ele. – Eu me lembro de que não faz muito tempo que você teve uma segunda chance.

Stark olhou para o chão.

Eu respirei fundo e disse:

– Eu também.

Vovó levantou as sobrancelhas.

– Hoje eu ganhei uma segunda chance – expliquei. Olhei de Vovó para os meus amigos, um de cada vez, e, por fim, meu olhar encontrou o de Stark. – Nós somos um time que precisa de uma segunda chance. Estou feliz de ter Kalona ao nosso lado.

Vovó tocou o meu braço.

– Algum dia, você deveria dizer isso para ele, u-we-tsi-a-ge-ya . Acho que você vai ficar surpresa com a diferença que suas palavras podem fazer.


10

Zoey

– Que merda! Você não vai acreditar no que acabou de viralizar no YouTube! – Nicole subiu correndo as escadas do auditório para o palco, acenando com o seu iPad como uma louca.

Aphrodite olhou para ela e afastou o iPad de si.

– Sério? A assembleia acabou agora mesmo . Você estava no YouTube enquanto eu estava falando?

– Sério. – Nicole revirou os olhos. – Supere isso. Todo mundo estava no YouTube. Você tem que ver isto. – Ela empurrou o iPad em direção a Aphrodite.

– Ser professora é um saco. Adolescentes são um saco – declarou Aphrodite, ainda ignorando o aparelho.

– Aiminhadeusa! Aquele é o Kalona? No YouTube? – Stevie Rae passou por Aphrodite para dar uma olhada na tela.

– O quê? Kalona? – Lenobia se apressou para ficar ao lado de Stevie Rae, com Darius e Rephaim logo atrás.

– Muito bem. Eu vou assistir. Agora que eu acabei de informar a todo o corpo discente que vamos salvar o mundo. De novo. – Aphrodite olhou para a tela e arregalou os olhos. – Céus! Por que você demorou tanto para nos dizer? Ligue logo! – Ela agarrou o iPad, tocou no botão para tocar e aumentou o volume até o máximo.

Não era um vídeo profissional, mas o início estava muito claro. Primeiro, focava em Thanatos. Ela estava na frente de um prédio com aparência horrível que parecia estar coberto por uma cortina gosmenta preta. Assistiram enquanto a Grande Sacerdotisa concluía o seu feitiço, erguendo os braços e sendo envolvida por um monte de esferas bonitas e brilhantes. Quando elas se ergueram aos céus, o vídeo ainda mostrava Thanatos, mas, ao fundo, dava para ouvir Neferet gritando:

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo!

O vídeo mudou e agora dava para ver Neferet em frente ao que devia ser o Mayo.

– Ela parece estar precisando de um McLanche Feliz – disse Stevie Rae.

Aphrodite não afastou os olhos da tela.

– Isso é tudo que você tem a dizer, caipira?

– Eu acho que ela está mais doida que um gato preso num saco – opinou Nicole.

– Ninguém perguntou... – começou Aphrodite, mas a explosão no vídeo interrompeu as suas palavras.

– Aiminhadeusa! Não! – ofegou Lenobia, enquanto assistiam a Neferet lançando uma nuvem de Trevas atrás de Thanatos e de todos os outros.

– Meu pai está salvando todo mundo – disse Rephaim.

– Olhem como ele se move. – A voz de Darius era respeitosa. – Sua velocidade e força são incríveis.

Aphrodite não teve a chance de concordar. O vídeo terminou com quem quer que estivesse filmando parando para entrar no Hummer da escola, embora ainda tenha conseguido filmar Neferet e os tentáculos sangrentos das Trevas deslizando para dentro do Mayo.

Então, começou a entrevista, e Aphrodite teve de se obrigar a fechar a boca, que estava aberta de forma não atraente porque lá estava Kalona – com asas e tudo –, ao lado de Thanatos no canal Fox 23.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas eu fiz escolhas erradas e, por isso, eu fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

– Irmão de Erebus? Ele só pode estar brincando! – Aphrodite sentiu que sua cabeça iria explodir.

– É verdade – confirmou Darius em voz baixa quando o vídeo chegou ao fim.

A tela ficou escura e Aphrodite olhou para ele.

– Você sabia ?

– Sabia. Kalona contou para Zoey, Stark e eu – admitiu Darius.

– E nenhum de vocês achou que seria importante contar para qualquer um de nós? – perguntou Lenobia, parecendo tão irritada quanto Aphrodite.

Darius encolheu os ombros largos.

– Para dizer a verdade, eu nem pensei muito nisso. A veracidade de Kalona foi mais do que questionável desde o momento em que ele apareceu aqui.

– Mas agora você acredita nele? – quis saber Rephaim.

Darius olhou para ele.

– Acredito.

– Rephaim, você sabia que o seu pai era irmão de Erebus? – perguntou Stevie Rae.

Os olhos do menino-pássaro ficaram tristes.

– O meu pai nunca fala sobre antes .

– O que significa que não, você não sabia? – insistiu Aphrodite.

– Isso – confirmou Rephaim, parecendo tão misterioso quanto o seu pai.

– Isso muda tudo – declarou Lenobia.

– Sim, de forma maravilhosa – animou-se Nicole, assentindo como um boneco bobblehead . [*] – Isso significa que temos um guerreiro de Nyx no nosso time.

– Não – discordou Aphrodite, secamente. – Significa que temos um ex-guerreiro de Nyx que fez tanta merda, que acabou expulso do Mundo do Além no nosso time. E isso não é tão legal assim.

– Ele disse que está tentando se redimir – falou Rephaim.

– E ele salvou Thanatos e os outros – reforçou Darius.

– Sinto muito, mas eu não estou pronta para pular cegamente para o time Kalona – disse Aphrodite.

– Acho que é cegueira ignorar o que está bem na frente dos seus olhos – retorquiu Rephaim, apontando para a tela escura do iPad.

– E eu acho que tem um monte de coisas sobre Kalona que não sabemos. – Ela fez uma pausa e lançou um olhar duro para Darius. – Ou pelo menos a maioria de nós não sabe. Agora, se vocês não têm mais nada que prefiram fazer, eu adoraria que reunissem todos os novatos que apresentem algum talento guerreiro. Tenho certeza de que Thanatos vai querer um exército para a batalha. Depois de assistir à louca no YouTube, tenho a sensação de que Neferet não vai dar a mínima para o time Kalona. – Aphrodite então deu um tapa na própria testa e acrescentou sarcasticamente: – Ah, esperem! A maldita Neferet provavelmente já sabe sobre a relação Kalona–Erebus, assim como praticamente todo mundo menos eu . – Ela jogou o cabelo para trás e se retirou.

Só quando já estava do lado de fora do auditório é que Aphrodite diminuiu o passo e permitiu que os pensamentos acompanhassem as suas emoções. Seu coração estava disparado e seu estômago, apertado. Estava puta da vida. Muito puta da vida.

Não, isso não é verdade. Eu não estou puta da vida. Eu estou assustada e chateada.

Com um suspiro enorme, Aphrodite saiu da calçada e foi até um dos bancos de carvalho. A mão que afastou o cabelo louro do seu rosto estava trêmula.

Darius omitira um segredo, algo importante. Até aquele momento, acreditara que ele era diferente de todos os outros caras nesta Terra. Ele deveria ser honesto. Ele deveria ser leal. E, acima de tudo, ele deveria amá-la o suficiente para nunca mentir para ela ou guardar um segredo dela.

Quando alguém conta uma mentira, é possível medir o quanto esse alguém amou você ou não. Aphrodite sabia disso porque crescera ouvindo uma mentira constante que não parava de crescer. Os seus pais fingiam ser um casal perfeito, mas a verdade era que se odiavam tanto quanto a odiavam. A não ser quando estavam em público, eles viviam vidas totalmente separadas – eles nem compartilhavam o mesmo quarto havia mais de uma década, quanto mais os segredos.

Eles mentiam um para o outro todos os dias.

Quando ela só tinha oito anos de idade, Aphrodite jurara para si mesma que jamais entraria em qualquer relacionamento semelhante ao casamento dos pais. Merda, até conhecer Darius, nunca tinha permitido que um cara se aproximasse o suficiente dela a ponto de importar se ele mentiria ou não. Ela se certificava de mentir para eles primeiro . Ela os traía primeiro . Ela terminava com eles primeiro .

– Eu consigo sentir a sua tristeza, minha bela. Por favor, fale comigo.

Aphrodite ergueu o olhar ao ouvir a voz de Darius, mas não o olhou nos olhos. Olhou por sobre o ombro dele.

– Sobre o que você quer conversar?

Ele se sentou ao lado dela e usou as costas da mão para enxugar uma lágrima que escorria pela bochecha dela. Aphrodite se afastou dele rapidamente, enxugando o outro lado do rosto.

– Eu quero conversar sobre nós – respondeu ele.

– É mesmo? Será que não seria bem mais fácil continuarmos seguindo do jeito que estamos? Fingindo estar “apaixonados para todo o sempre”? – perguntou ela sarcasticamente e usando os dedos para indicar as aspas.

– Nunca foi fingimento para mim. Você sabe muito bem disso, Aphrodite. – O tom dele era calmo e sério.

Ela desejou dar uma tapa na cara dele – machucá-lo –, fazê-lo sentir um pouco do medo que estava sentindo. Mas não fez nada de violento. Isso significaria perder o controle. Isso significaria que tinha se transformado na sua mãe. Em vez disso, Aphrodite o atacou com palavras.

– E como é que eu posso saber disso? Eu não posso entrar na sua cabeça. Eu nem posso compartilhar os seus sentimentos como uma verdadeira Profetisa faria. Mas tanto faz. Não se preocupe com isso. Está tudo bem, e nós dois temos um monte de merda para fazer porque, como sempre, as Trevas estão tentando dominar o nosso mundo.

– As Trevas terão de esperar, porque você é o meu mundo, e se eu perder você, eu vou me perder.

Aphrodite quis se levantar e se afastar dele sem olhar para trás. Ela iria endurecer o coração, deixá-lo tão duro quanto ele costumava ser para, na verdade, protegê-la. Antes da tempestade de Zoey e seu bando Nerd e Darius aparecerem na sua vida.

Era o que ela iria fazer, mas, de alguma forma, Darius disse exatamente a coisa certa. Então, as pernas de Aphrodite, de repente, decidiram ouvir o seu coração em vez de escutar a cabeça.

Aphrodite olhou para ele.

– Você mentiu para mim.

– Não, minha bela. Eu simplesmente não contei uma coisa para você.

– Por quê? Por que você não me contou? Kalona ser irmão de Erebus é uma puta informação importante.

– Eu não estou nem aí para o que Kalona disse ou deixou de dizer. Eu só ligo para você e o que você diz.

– Eu? – Aphrodite franziu as sobrancelhas. – Do que é que você está falando? Eu nunca mencionei qualquer coisa remotamente semelhante à possibilidade de Kalona e Erebus serem irmãos.

O sorriso de Darius foi lento e doce.

– Exatamente. E se você, minha bela Profetisa talentosa, não tem qualquer insight sobre o verdadeiro passado de Kalona, então por que é que eu deveria mencionar um comentário fora de contexto que um imortal alado fez? Aphrodite, se fosse importante que soubéssemos que Kalona era irmão de Erebus, então creio que você teria dito isso para mim .

Aphrodite meneou a cabeça, sentindo-se um pouco tonta quando ela se deu conta do que Darius realmente estava dizendo para ela.

Ele pegou a sua mão.

– Será que eu já disse hoje o quanto eu amo você?

– Não – sussurrou ela, pensando: por favor, não diga isso se não for verdade. Por favor, não faça isso.

– Com todo o meu ser – declarou ele.

Lágrimas escorreram pelo rosto de Aphrodite, mas ela não afastou o olhar dele.

– Não tenha medo – pediu ele.

– Eu tenho. Isso ainda me assusta – admitiu ela.

– Também me assusta, mas, para ficar com você, realmente com você e não apenas fingir para que o meu coração fique em segurança, vale a pena enfrentar e dominar esse medo.

– Mas você é um guerreiro. Eu não sou nada. Não de verdade. Eu sou apenas... – Sua voz falhou. Não conseguiria dizer, mas as palavras enchiam a sua mente: eu apenas sou filha de uma mulher horrível que só me ensinou a odiar, e nunca, nunca confiar no amor.

– Você é a pessoa mais corajosa que eu conheço – afirmou Darius com voz solene. – E você não é, e nunca será, como a sua mãe.

– E você nunca vai mentir para mim.

Ela não falou aquilo como uma pergunta, mas ele se levantou do banco e se ajoelhou, pressionando a mão dela contra o coração dele, dizendo:

– Aphrodite, Profetisa de Nyx, eu lhe juro que jamais mentirei para você. Se eu não falar a verdade sempre para você, que a Terra me engula inteiro para que o meu espírito jamais encontre o Mundo do Além.

Um calafrio terrível passou por Aphrodite e ela agarrou Darius, puxou-o para os seus braços e sorriu.

– Não, pare já com isso! Qualquer um pode contar acidentalmente uma mentira. Qualquer um! Eu não aceito o seu juramento!

Darius se inclinou um pouco para trás, segurando gentilmente os ombros trêmulos dela, e sorriu.

– Mas eu não sou qualquer um . Eu sou seu. O seu guerreiro. O seu amante. O seu companheiro. Juro que nunca vou mentir para você porque isso a magoaria mais do que poderia suportar, e eu prefiro que a Terra me engula para sempre do que fazer isso com você.

Enquanto olhava para Darius e via a verdade nos seus olhos, algo se libertou dentro de Aphrodite – algo pequeno e afiado que estivera fincado dentro dela por muito, muito tempo. Ela ofegou e inspirou fundo, soltando o ar devagar.

– Acabou – sussurrou ela.

– O que acabou, minha bela?

– O meu medo. Acabou, Darius. Você acabou com ele. – Aphrodite sabia que soava jovem e tola. Mas não ligava. Pela primeira vez na vida, não estava com medo de perder o amor. – Eu não posso perder você! – exclamou ela.

– Não – respondeu ele, sorrindo de novo. – Você jamais vai me perder. E eu não acabei com o seu medo. Você o deixou ir.

– Ah – respondeu ela, suavemente, compreendendo por fim. – Sinto muito por ter demorado tanto.

– Você demorou o tempo necessário, e eu não me arrependo por ter esperado.

Darius a beijou em seguida, e Aphrodite vivenciou a felicidade completa.

Até que Aurox os interrompeu.

– Darius! Aí está você. Venha rápido. Eles estão nos portões.

Aphrodite se apoiou no ombro de Darius e franziu as sobrancelhas para Aurox.

– Ah, que droga! Se você interrompeu este momento porque Zoey e seu bando nerd voltaram, eu vou acabar com você...

– Não é a Zoey! – explicou Aurox. – São humanos! Os humanos estão nos portões pedindo para entrar porque querem que nós os protejamos contra Neferet!

– Bem, neste caso, acho que devemos deixá-los entrar – declarou Darius, levantando-se e oferecendo a mão para Aphrodite. – Você não acha, minha bela?

Ela suspirou e resmungou:

– Tudo bem. Desde que não tenha nenhum político com eles.

[*] Bobblehead refere-se a bonecos que possuem a cabeça presa ao corpo por meio de uma mola, a qual faz com que a cabeça balance quando há qualquer movimento. (N. E.)


11

Zoey

– Ah, que merda! Uma multidão? Isso é tudo de que precisamos agora. – Suspirei, frustrada, enquanto passávamos pelo semáforo na Twenty-first Street em Utica e conseguimos ver a escola.

Foi uma cena superestranha. Já passava da meia-noite, e a rua estava escura. Deveria estar vazia também, mas os grandes portões de ferro da escola estavam abertos, e pudemos ver um monte de gente reunida na frente dele. Os dois lampiões a gás envolvidos por candeeiros de cobre desgastados pelo tempo lançavam sombras bruxuleantes em um semicírculo sobre o grupo. As pessoas também vinham dos dois lados da rua. Fora do alcance das chamas da escola, dava para ver as sombras escuras dos carros que estavam estacionados na calçada, parecendo abandonados e completamente fora de lugar.

– Você está vendo alguma coisa queimando além das nossas lanternas? Tipo um crucifixo gigantesco em chamas? – A cabeça de Shaunee apareceu entre mim e Stark enquanto tentava ver melhor do banco de trás onde estava.

– Parem o carro e deixem-me sair daqui. Eu vou resolver isso! – avisou Kalona.

– Não! – gritaram Thanatos, Marx e Vovó juntos.

– Eles não parecem zangados – disse Thanatos.

O detetive Marx parou e baixou o vidro. Todos apuramos os ouvidos para escutar alguma coisa, e então ele disse:

– Está difícil enxergar alguma coisa, mas não estou ouvindo gritos.

– A minha visão noturna é melhor do que a sua, e eu não estou vendo nenhum tumulto ou pânico. Tudo parece notavelmente calmo – declarou Thanatos.

– Tudo bem, melhor prevenir do que remediar. Então, vamos nos certificar de que saibam de que lado da lei a Morada da Noite está.

O detetive pegou uma sirene portátil que trouxera com ele do Oneok e a acoplou ao teto do Hummer. Ligou-a, e ela começou a girar uma luz azul e vermelha que era familiar demais para qualquer um de nós que não tivesse parado totalmente no cruzamento da rua 101 com a Lynn Lane, em frente à South Intermediate High School. Não que eu tenha qualquer experiência pessoal com isso. Só estou dizendo que é estranho estar em um carro de polícia quando a sirene está ligada.

Marx deu mais um tapa na sirene, que então emitiu um som odioso duas vezes. A luz e o som trabalharam em sintonia perfeita. A multidão se abriu e se virou para nós e, reconhecendo a presença do Departamento de Polícia de Tulsa, as pessoas abriram caminho para que o Hummer pudesse chegar à entrada da escola.

Diante do local onde o portão de ferro deveria estar seguramente trancado estavam Aphrodite, Darius, Stevie Rae, Rephaim, Lenobia e Aurox, todos alinhados na frente da entrada formando uma passagem humana.

– O que eles estão fazendo? – perguntou Stark, ecoando os meus pensamentos.

– Espero que tenham tomado decisões sábias – desejou Thanatos.

Em silêncio, concordei enquanto os meus olhos pousaram primeiro em Aphrodite. Se ela aparentasse estar zangada, ou segurasse uma bebida, eu saberia que o que quer que estivesse acontecendo ali era ruim – com crucifixos em chamas e gritos ou não. Mas ela parecia confusa. Tipo, obviamente confusa. Uma de suas mãos estava no quadril e os ombros, encolhidos. Ao mesmo tempo, Lenobia estava assentindo e conversando com alguém na multidão que eu não conseguia ver direito.

– Aphrodite parece confusa, mas não assustada – expus a minha observação de surpresa. – E Lenobia parece estar de acordo com o que quer que seja que está acontecendo. Não deve ser tão horrível.

– Lá estão a irmã Mary Angela e a irmã Emily. Ah, eu estou vendo! Tem um grupo de freiras lá na frente. – Vovó apontou e acenou. – Está tudo bem se elas fazem parte do grupo.

– É uma boa teoria, mas eu vou parar dentro da escola antes que qualquer um de vocês desça. E quero que vocês permaneçam nas dependências da Morada da Noite, não importa quem possa estar chamando vocês do lado de fora – declarou Marx.

Percebi que Vovó estava fazendo cara feia, mas Thanatos foi rápida em concordar:

– Pode deixar, detetive.

Eu estava feliz. Tudo bem, talvez fosse porque não havia se passado nem 24 horas desde que eu saíra da cadeia, mas uma multidão de humanos em torno dos portões da escola – ainda que fossem humanos conhecidos que pareciam ter vindo em paz – fazia o meu estômago se contrair com o estresse da situação. Isso sem mencionar que já passava da meia-noite e não fazia muito tempo desde que Neferet jogara pedaços de corpos humanos pela varanda da sua cobertura no Mayo. Eu não tinha a menor intenção de olhar de cara feia para Marx nem Thanatos, muito menos desobedecê-los. Na verdade, eu esperava já ter sido desobediente o suficiente pelo que seria o resto de uma vida que eu esperava ser longa e chata.

Então, Kalona saiu do Hummer.

– Ei, não é aquele cara alado? – gritou alguém na multidão.

– Uau! O filho de Erebus! – exclamou alguém mal-informado e pronunciando erroneamente o nome Erebus de forma que soasse como Airbus , o que fez Stark cobrir a boca com a mão para disfarçar o riso com uma tossida.

Dei uma cotovelada de leve em Stark, e ele me lançou o seu olhar charmoso e sorriso torto dizendo com os lábios “Airbus ”. Revirei os olhos.

– Tudo bem, tudo bem – disse o detetive Marx enquanto erguia as mãos fazendo um gesto para o público se acalmar. – Não tem nada para ver aqui. Vocês precisam se afastar e desbloquear a entrada.

– Ah, não precisa se preocupar, detetive. Não queremos bloquear a entrada da escola. Só queremos entrar na escola. – Uma freira alta, usando véu, deu um passo para a frente com um sorriso maternal nos lábios. – É tão bom vê-lo de novo, Kevin.

– Irmã Mary Angela, senhora. – Detetive Marx fez um gesto antigo de respeito com a cabeça. – É muito tarde para a senhora e as outras freiras fazerem uma visita social.

– Ah, Kevin, não estamos aqui para uma visita – declarou ela de forma enigmática.

Antes que Marx tivesse a chance de interrogá-la, Vovó falou passando por ele para encontrar a freira da fronteira da escola.

– Mary Angela, eu estava pensando em você hoje cedo.

Elas deram um abraço. A freira riu e disse alto o suficiente para que todos ouvissem:

– E quando foi que pensou em mim? Antes ou depois de ter sido atacada pelas Trevas? Você leva uma vida tão interessante, Sylvia.

Aphrodite, que se aproximou para ficar ao meu lado, bufou, dizendo:

– Os velhos deviam ter uma vida menos interessante.

– Nós devíamos ter uma vida menos interessante – retruquei baixinho.

Vovó sorriu como se tivesse nos ouvido.

– Foi depois, quando Thanatos pediu que todos em Tulsa rezassem para nos ajudar.

– Ah, que adorável coincidência, porque foi a oração que nos trouxe até aqui.

– Por favor, explique, cara irmã – pediu Thanatos.

Notei que ela não se juntou à Vovó. Olhei para Kalona, que estava colado ao seu lado como se esperasse que mais gavinhas das Trevas aparecessem a qualquer momento.

– Mas que merda, já chega dessa procrastinação – reclamou Aphrodite, dando um passo para a frente. – Eles querem a nossa proteção.

Eu a segui, embora Stark tenha segurado o meu cotovelo para que eu fosse mais devagar.

– Creio que a palavra correta para o que eles querem seja “santuário” – interveio Lenobia.

– Você quer dizer a palavra politicamente correta – retorquiu Aphrodite.

– Se qualquer um de nós fosse politicamente correto, não estaria aqui. – Do meio das sombras iluminadas pela luz dos lampiões, uma mulher pequena, seguida por um homem esbelto, caminhou até irmã Mary Angela. Ela assentiu educadamente para Thanatos. – Shalom, Grande Sacerdotisa.

– Eu a saúdo com paz, rabina Margaret – cumprimentou Thanatos. Agora que estavam mais perto da luz, o casal me parecia familiar. – Eu também o saúdo com paz, rabino Steven. É sempre um prazer ver os nossos vizinhos do Templo de Israel.

Percebi por que a mulher e o homem pareciam conhecidos. Eram rabinos casados, Margaret e Steven Bernstein, que recentemente se tornaram os líderes no Templo de Israel, localizado, literalmente, do lado da Morada da Noite, que dava para Utica Square. Eu me lembrava de que eles tinham elogiado muito os cookies de chocolate da Vovó durante o nosso evento antes que a noite tivesse, é claro, terminado em desastre e morte.

– Então, é realmente um santuário que vocês buscam nesta noite? – perguntou Thanatos para o casal, mas a sua voz se ergueu para toda a multidão.

– É – respondeu a rabina Margaret, enquanto ela e o seu marido, assim como todos, assentiam em concordância.

– A irmandade das beneditinas também busca um santuário – declarou irmã Mary Angela.

– Assim como a congregação de Todas as Almas – disse uma mulher mais velha, dando um passo para a frente e saindo das sombras. Ela tinha cabelo louro desbotado e comprido, mas os seus olhos eram de um azul tão vívido que, mesmo sob a luz fraca, brilhavam como pequenas águas-marinhas.

Thanatos hesitou. Lançou um olhar para Lenobia, que sorriu. Olhou para Kalona, que franziu o cenho. E, então, ela me surpreendeu ao olhar para mim por sobre o ombro. Encontrei o seu olhar e fiz o que meus instintos me mandaram fazer – sorri e assenti.

Thanatos voltou-se para Suzanne, segurou o seu antebraço na saudação vampírica tradicional e ergueu a voz, repleta com o poder de Nyx:

– Como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, eu lhes dou as boas-vindas ao grande santuário para todos que o buscam!

Ao meu lado, ouvi Stark suspirar e sussurrar.

– Ai, que merda...

Zoey

– Não, Bobby! Quantas vezes a mamãe vai ter que dizer? Você não pode tocar nas asas do moço alto! – Uma mulher com aparência cansada pegou o seu bebê que estava cambaleando pelo piso arenoso do ginásio com os braços erguidos, tentando pegar a ponta da asa de Kalona.

Mordi a bochecha para não rir enquanto o imortal alado fazia um som de desagrado e dava um passo para evitar os dedinhos grudentos. O bebê tentou sair do alcance dos braços cansados da mãe. Kalona foi para o outro lado. Como sempre, onde quer que aparecesse, todos os humanos concentravam sua atenção nele, e isso parecia afetá-lo. Ele parecia cansado. Curiosamente, os seus ferimentos ainda não tinham se curado por completo, formando linhas e círculos rosados dolorosos. Achei que talvez ele não tivesse passado tempo suficiente no telhado do Oneok quando um “Psiu!” de Aphrodite chamou a minha atenção.

– Z., caipira, venham comigo, agora! – chamou ela.

Stevie Rae e eu largamos um garrafão de água que levávamos para o ginásio e seguimos Aphrodite até o fim do muro mal-iluminado em cuja abertura ficava a estátua de Nyx.

– Cara, eu estou acabada – declarou Stevie Rae.

– Eu também – concordei.

– Já passou da hora do nosso intervalo – disse Aphrodite, jogando latas de refrigerante marrom para nós duas.

Então, ela me pegou totalmente de surpresa ao abrir uma lata para si.

– Refrigerante? Você? Achei que odiasse.

– E odeio mesmo, e isso não é refrigerante. É champanhe de Sophia – informou ela, tomando um gole pelo canudo cor-de-rosa que tirara da lata fina da mesma cor.

– Quem diria, champanhe em uma lata – comentou Stevie Rae.

– Qualquer um que seja civilizado.

– Eu não sabia – disse eu.

– Exatamente o que eu quero dizer – respondeu Aphrodite. Então, ela lançou um olhar para Kalona que estava no meio do ginásio, com certeza procurando alguém e tentando ignorar as pessoas que o olhavam. – Kalona e humanos, principalmente humanos pequenos, equivalem a um acidente de trem apocalíptico – declarou ela.

– Concordo plenamente – disse eu. – Vocês acham que ele está parecendo cansado?

Aphrodite bufou.

– Nós todos parecemos cansados.

– Acho que ele parece como sempre, só que um pouco ferido, o que torna aquele bebê meio malvado por tentar agarrar uma pena de sua asa – opinou Stevie Rae.

– Kalona é imortal. Ele está bem. E um bebê arrancando a pena dele seria mais que demais – declarou Aphrodite. – Acho que eu poderia convencer aquela criancinha a fazer isso. Ou melhor, convencer a mãe a permitir que o filho faça isso. Você acha que ela gostaria de um coquetel mimosa?

– Aquela mãe parece mesmo estar precisando de um coquetel mimosa, mas sem o suco de laranja. Acho que ela gostaria de uma das suas latinhas cor-de-rosa – disse Stevie Rae.

– Eu não costumo dizer isso com frequência, porque geralmente não é verdade, mas acho que você está certa, Stevie Rae – concedeu Aphrodite. – Embora eu venha a precisar de mais de uma dessas latinhas. Parece um trabalho para a viúva Clicquot.

– Viúva Clicquot? Ela é do Templo de Israel?

– Ah, sua pobre ignorante – lamentou Aphrodite, meneando a cabeça tristemente para Stevie Rae.

Kalona conseguiu passar pelo bebê e estava se movendo de novo. Ai, ele parecia estar vindo na nossa direção!

– Diga que ele não está vindo para cá.

– Quem dera eu poder dizer isso – respondeu Aphrodite.

– Ele parece um pombo gigante voltando para o poleiro – disse Stevie Rae.

– Será que devemos ir ao encontro dele? – sugeri, bocejando.

Olhei para o relógio da escola. Já eram 5h30 da manhã. Tínhamos pouco menos de uma hora antes de o sol nascer, e eu entendi o que era exaustão.

– Salvar Kalona dos humanos? Não mesmo – respondeu Aphrodite.

– Concordo – reforçou Stevie Rae.

Dei de ombros e bocejei de novo.

– Por mim, tudo bem. Estou cansada demais para me mexer.

Thanatos decidira que o melhor lugar para colocar todos os humanos – e realmente havia muitos deles – era no maior prédio do campus , o nosso ginásio. Achei uma boa ideia. O lugar era enorme, e com todos reunidos ali seria mais fácil manter o controle. É claro que a maior parte do piso do ginásio era de areia, porque era usado para o treinamento dos guerreiros, e a areia era um saco. Areia, sacos de dormir e humanos cansados, amedrontados e mal-humorados não constituíam uma boa combinação, então nós todos (quero dizer, quase todo mundo no campus , exceto Thanatos, Vovó, detetive Marx e os líderes religiosos) passamos as últimas horas nos esforçando para cobrir a arena dos guerreiros com lona, transformando o lugar no que parecia ser um abrigo temporário contra furacões. Não que aquilo fosse muito melhor, mas estava menos arenoso e mais limpo para as famílias dormirem.

– Olhe isso. – Aphrodite me cutucou com o ombro. – O rabino Steven Bernstein cercou Kalona. Aposto que está fazendo todo tipo de pergunta maluca sobre o Torá.

– É culpa do Kalona – disse eu. – Ele bem que poderia usar uma camisa.

– Pois é! Qual é a necessidade de ficar exibindo o peitoral? – questionou Aphrodite.

– Olha só, gente – interrompeu Stevie Rae, apontando. – Acho que Nicole e Shaylin estão se tornando boas amigas. Fico feliz. Nicole mudou muito e, bem, Shaylin precisa de uma melhor amiga, principalmente depois que você deu uma de louca para cima dela, Z. – disse Stevie Rae antes de acrescentar: – Sinto muito, Z. Eu não queria colocar o dedo na ferida.

Suspirei.

– Não tem problema. Eu realmente dei uma de louca para cima dela. Fico feliz que ela tenha uma boa amiga.

Aphrodite e eu olhamos para as duas meninas de cabelo escuro. Elas estavam arrumando o saco de dormir e pareciam superamigas. Na verdade, enquanto eu as observava, vi os ombros delas se tocarem e as cabeças se aproximarem. Ergui as sobrancelhas. Nicole ergueu a mão e afastou o cabelo de Shaylin do seu rosto, acariciando o rosto dela ao fazer isso, lembrando-me estranhamente de algo que Stark fazia enquanto me paquerava. Limpei a garganta.

– Hum, acho que elas parecem bem próximas .

– Todo mundo devia ter uma melhor amiga! – declarou Stevie Rae olhando para mim.

– Hum, Stevie Rae – comecei, ainda observando os toques e os olhares que Nicole e Shaylin estavam trocando –, acho que elas talvez...

– Ai, que droga, Z.! – exclamou Aphrodite. – Você fez Shaylin virar gay!

Eu franzi as sobrancelhas para ela.

– Seja legal!

– Aiminhadeusa! – Stevie Rae arregalou os olhos enquanto via Nicole dar um beijinho no pescoço de Shaylin. – Eu não sabia que você podia fazer alguém virar gay!

– Sério, caipira! Eu tenho que perguntar de novo: você é retardada?

– Você sabe como eu me sinto com essa palavra – respondeu Stevie Rae.

– E você sabe que eu não estou nem aí.

– E vocês duas sabem que quando começam a implicar uma com a outra me dá dor de cabeça. Aphrodite, não seja cruel com Shaylin e Nicole. Elas podem amar quem desejarem. Stevie Rae, não. Não dá para fazer alguém virar gay. Caramba.

– Ei, eu não estou nem aí para quem ela ama ou com quem ela anda dormindo, mas vou adorar ver a merda que está por vir. – Aphrodite apontou para o pequeno espaço entre a cama que Shaylin e Nicole estavam arrumando. – E aí vem Clark Kent, bem na hora. E eu acho que ele acabou de ver o beijo.

– É – disse Stevie Rae. – Acho que viu. Olhe só para ele.

– Confuso. Acho que seria isso que Vovó diria sobre a expressão dele. Totalmente confuso – concordei. – Eu sei que não deveria, mas acho que vou gostar de ver isto.

– Você está brincando? Eu quero gravar e assistir várias vezes – declarou Aphrodite.

Erik já estava começando a falar com Shaylin. Mesmo de onde estávamos, dava para perceber que ele usava o seu sorriso de astro de cinema com um brilho de cem watts.

– Sei que ele pode ser um saco às vezes, mas vocês têm que admitir que ele é uma gracinha – declarou Stevie Rae. – Não como Rephaim, mas um gatinho mesmo assim.

Aphrodite fez um som como se estivesse se controlando para não falar nada.

Nicole não hesitou e não se afastou. Parou ao lado de Shaylin e envolveu a sua cintura fina com o braço em um gesto íntimo, olhando diretamente para Erik com uma postura possessiva.

– Sabia que Nicole seria o cara – declarou Aphrodite.

– O cérebro do Erik parece prestes a explodir e passar pela covinha do seu queixo – disse eu.

– Zoey, Thanatos convocou você, Stevie Rae e Aphrodite. Ela pede que vocês três se juntem a ela na Câmara do Conselho. Isto é, se vocês tiverem acabado de tomar conta dos humanos – disse Kalona sarcasticamente, olhando para os não humanos que a gente estava espiando.

Nós três demos um pulo de susto ao som de sua voz. Como sempre, Aphrodite se recuperou primeiro.

– Bem, graças à Nyx e ao menino Jesus por nos tirar daqui antes do nascer do sol – declarou Aphrodite. – Vou levar dias para tirar toda essa areia das minhas sapatilhas Jimmy Choo brilhantes. Sou muito melhor em profetizar do que em arrastar coisas.

Ela jogou o cabelo para trás e se dirigiu à porta. Ouvi enquanto ela sugava o que restava do champanhe com o seu canudinho.

– Tudo bem. Hum, obrigada – disse eu de forma inadequada. – A gente deve chamar Stark, Darius e Rephaim também?

– Os homens estão ocupados. – Kalona olhou para o local onde os três homens lutavam com a extremidade de uma lona imensa.

– Tudo bem então. Vamos sair daqui – disse Stevie Rae acenando para Rephaim.

Eu mandei um beijo para Stark e a segui.


12

Zoey

Passamos pela irmã Mary Angela, a rabina Bernstein e a ministra de Todas as Almas enquanto entrávamos no corredor até a Câmara do Conselho.

– Zoey, Aphrodite e Stevie Rae – cumprimentou a freira, fazendo um gesto para as mulheres ao seu lado. – Permitam que eu apresente vocês três para a rabina Margaret Bernstein e Suzane Grimms.

– Merry meet – respondemos as três, quase em uníssono.

As mulheres pareciam cansadas, mas sorriram.

– Prazer em conhecê-las e em estarmos aqui – respondeu a rabina.

– Sim, obrigada a todas vocês pelo trabalho duro que estão fazendo para ajudar a todos se acomodarem.

Nós assentimos como quem diz “não há de quê” , e as mulheres se afastaram; a irmã Mary Angela olhou para mim.

– Boa sorte, Zoey.

– Ela sabe de alguma coisa que não sabemos – sussurrou Aphrodite.

Concordei com a cabeça, e seguimos para a porta da Câmara do Conselho. Então, quase demos de cara com Shaunee, que saiu olhando para todos os lados menos para onde estava indo.

– Caramba, tenha cuidado – disse eu, segurando-a para que nenhuma de nós duas caísse.

– Mas o que é que você está fazendo por aqui? – perguntou Stevie Rae. – A minha mãe diria que você está agindo como se o seu cabelo estivesse pegando fogo.

Shaunee ergueu a sobrancelha.

– Eu preferia que o meu cabelo estivesse pegando fogo a ter perdido o meu gato. Não consigo encontrar Beelzebub em lugar nenhum.

Eu tinha ficado superfeliz de saber que, enquanto eu estava presa, Shaunee e Kramisha tinham ido ao depósito e recuperado os nossos quatro gatos – além de Duquesa, é claro – e os levado de volta para a Morada da Noite. Nala pulou em mim quando fui para o dormitório trocar de roupa, e eu a apertei com tanta força que ela ficou descontente e espirrou no meu rosto.

– Por que você está estressada? Você sabe como os gatos são. Eles vêm quando querem e vão quando querem. Eu não tenho ideia de onde Malévola está agora – informou Aphrodite.

– Eu só espero que ela não esteja por aqui – desejou Stevie Rae baixinho.

Intervim antes que Aphrodite começasse a brigar com ela.

– Tenho que concordar com Aphrodite. Beelzebub deve estar feliz passeando por todos os túneis e esticando as patas.

– Foi o que pensei também, mas Beelzebub nunca falta ao jantar. Nunca . E eu sempre dou comida para ele bem antes do nascer do sol. Sacudi o pacote de Whiskas, e ele não veio correndo como sempre. Então, comecei a procurar. Vocês notaram que os gatos estão sumidos?

Pensei naquilo. Eu vira Nala antes de ir para o Mayo, mas, desde que voltamos, ela não aparecera. Na verdade, agora que estava pensando naquilo, eu não tinha visto nenhum dos gatos recentemente.

– Hmm, agora que você mencionou, não. Eu não vi nenhum dos gatos. Duquesa estava no ginásio com Damien e Stark, mas Cammy não estava com ele, nem Nala.

– Como se isso fosse alguma surpresa? Façam-me o favor. Não sejam idiotas. O ginásio está cheio de humanos. Eu não sou um gato, mas isso me faz querer sumir também. Eu com certeza não os culpo por quererem desaparecer.

– Faz sentido – concordou Stevie Rae. – Gatos são estranhos assim. Sem querer ofender – completou ela, olhando para Aphrodite.

– Concordo com estranho. Como eu já disse antes, normal é supervalorizado.

– Tudo bem, então eu vou tentar não me preocupar com ele. Sinto muito se esbarrei em vocês, gente. Vejo vocês mais tarde.

– Juntem-se a nós na Câmara do Conselho, jovens novatas. – A voz de Kalona nos surpreendeu.

– Ele é sempre tão furtivo – sussurrou Stevie Rae para mim.

– Obrigada por me convidar, Kalona, mas não, obrigada – declarou Shaunee. – Nunca ninguém sai da Câmara do Conselho dizendo “Uau, que legal! Mal posso esperar para fazer isso de novo”.

Eu ia começar a rir e me despedir de Shaunee, mas meus instintos entraram em ação e me fizeram dizer:

– Na verdade, eu gostaria muito que você se juntasse a nós.

Shaunee parou, suspirou e deu de ombros.

– Tudo bem. Acho que isso é melhor do que ficar arrumando as camas no ginásio.

Sorri em agradecimento, e nós cinco entramos na Câmara do Conselho.

Thanatos e Vovó estavam sentadas uma do lado da outra. Lenobia também estava lá. Fiquei surpresa de ver que o detetive Marx estava em pé, com os braços cruzados, atrás de Thanatos. Achei que não houvesse mais ninguém lá, mas um movimento na porta dos fundos chamou a minha atenção e eu vi Aurox ali de novo, como se estivesse de guarda. Ele não olhou para mim.

– Zoey, Aphrodite, Stevie Rae, Kalona, por favor, entrem e se acomodem – disse Thanatos. – Shaunee, não creio que eu a tenha convocado.

– Eu pedi para ela se juntar a nós – falei eu.

– Então, Shaunee também é bem-vinda – concordou Thanatos, fazendo um gesto para nos sentarmos.

Só quando cheguei à mesa vi que a grande tela plana de computador estava ligada. Pisquei, surpresa, e depois sorri e apressei os últimos passos.

– Sgiach! Oi, que legal ver você! – exclamei.

A rainha sorriu e respondeu de maneira mais formal (e adequada):

– Merry meet , Zoey. Também é um prazer revê-la.

– Chamamos a Rainha Sgiach, desejando falar com um dos seus guerreiros, para que lhe desse o recado de que gostaríamos de encontrá-la – explicou Thanatos.

– E ficamos surpresos, e satisfeitos, quando a própria rainha respondeu ao nosso chamado – acrescentou Vovó.

Fiz um cálculo mental rápido: se eram quase seis horas da manhã em Tulsa, devia ser meio-dia na Escócia. O que Sgiach estava fazendo acordada? Olhei a rainha com mais atenção. Ela estava sentada em uma cadeira enorme de madeira na sua biblioteca particular – que parecia normal. Mas Sgiach não estava com aparência normal. O seu cabelo estava desarrumado, o rosto sujo, e eu me inclinei para mais perto da tela para ver melhor...

– Sangue! Por que está suja e tem sangue em você? Está tudo bem?

– Estou viva – respondeu Sgiach, o que não respondia à minha pergunta.

– Onde está Shawnus ? – perguntou Aphrodite, errando a pronúncia do nome do guardião de Sgiach de propósito.

– Seoras – corrigiu a rainha, estreitando o olhar para Aphrodite – está liderando uma guarda diurna e protegendo a ilha.

– Espere aí, protegendo durante o dia ? – Sacudi a cabeça, confusa. – Mas a sua ilha protege a si mesma, principalmente durante o dia.

– Isso é verdade desde que a Luz e as Trevas estejam em equilíbrio – explicou Sgiach.

– Zoey Passarinha – Vovó tocou a minha mão, como se estivesse me dando força –, Neferet acabou com o equilíbrio no mundo. As Trevas Antigas começaram a extinguir a Luz.

Os meus joelhos cederam, e eu me sentei na cadeira. Stevie Rae se sentou pesadamente ao meu lado. Aphrodite ficou andando de um lado para o outro atrás de nós, quase esbarrando no detetive Marx, e Shaunee escolheu uma cadeira próxima a Lenobia.

– Mas Neferet já estava louca havia um tempão. Eu não entendo por que ela de repente bagunçou as coisas – raciocinei.

– Ah, menina – lamentou Thanatos em tom triste. – Não é uma coisa repentina. É a culminação de uma onda terrível que vem subindo desde que Neferet libertou Kalona de sua prisão.

Eu franzi o cenho para o imortal alado que estava do outro lado da sala, próximo à porta principal, com o peito nu, expressão pétrea e em silêncio.

– Ele está do nosso lado agora. Isso deveria ajudar, e não atrapalhar o equilíbrio – argumentei.

– Isso não é um jogo. Essas forças não podem ser controladas – explicou Sgiach. – Foi o ato de libertá-lo que fez a inundação começar. Kalona foi apenas a primeira pedra a cair em uma represa começando a ruir.

– Então, vamos colocar a pedra de volta! – exclamou Aphrodite.

– Realmente – concordou Thanatos. – Foi por isso que chamamos Sgiach.

– Então, o que vamos fazer? – perguntei.

– Você junta a sabedoria de épocas distintas, de um mundo diferente. Forças antigas estão trabalhando agora. E é com sabedoria antiga que temos que remar contra a maré e restaurar o equilíbrio.

– Será que você pode ser menos enigmática do que uma das minhas malditas visões? – pediu Aphrodite.

– É claro, minha jovem e arrogante profetisa. – Achei que Sgiach fosse dar um belo chute na bunda de Aphrodite via Skype, mas, em vez disso, o seu olhar pousou em mim e, apesar dos milhares de quilômetros que nos separavam, o que ela disse fez os pelos dos meus braços se eriçarem. – O detetive Marx me explicou o que aconteceu entre você e os humanos no parque. Thanatos e a sua avó me contaram que a sua violência contra eles não foi um incidente isolado e que envolveu a pedra da vidência.

– Isso, mas eu não tenho mais a pedra – assegurei para ela rapidamente. – Eu não a uso mais.

– Menina, você nunca a usou. Ela usou você – explicou ela.

Engoli a terrível secura que tomou conta da minha boca.

– Eu sei. Foi por isso que a deixei aos cuidados de Aphrodite quando me entreguei para o detetive Marx.

– Conte-me como estava se sentindo nos dias que culminaram no incidente no parque – pediu Sgiach.

Hesitei e tentei ordenar os pensamentos. Por fim, comecei:

– Eu estava nervosa. Frustrada. Irritada. Parecia que eu estava zangada o tempo todo.

– As coisas pioraram depois que você usou a pedra da vidência para revelar o espelho que refletia o passado quebrado de Neferet para ela?

Arregalei os olhos.

– Eu não tinha pensado nisso, mas sim, ficou pior depois. – Instintivamente, passei a mão pela cicatriz na palma da minha mão. – Ela esquentava com mais frequência. E eu perdia a noção do tempo. – Contei essa última parte rapidamente, sem olhar para os meus amigos, para quem eu não tinha contado aquilo.

– Você via coisas durante o seu tempo perdido? – ela perguntou.

– Via – admiti lentamente, não gostando nada da expressão em seu rosto.

– Coisas como Fey, os espíritos elementares que viu em Skye quando esteve lá comigo?

– Não. – Estremeci. – Até poderiam ser Fey, mas não era como os elementares em Skye. Eram horríveis.

– Alguns Fey são terríveis. Assim como nós, nem todos eles escolhem a Luz. O que você via quando perdia a noção do tempo aconteceu antes ou depois de usar a pedra para salvar a sua avó?

– Antes – respondi.

– Zoey, aqui está a verdade que você precisa ouvir: magia antiga pode restaurar o equilíbrio da Luz e das Trevas novamente, o que significa que a sua pedra da vidência é a chave para se vencer esta batalha.

– Então, eu preciso dá-la a outra pessoa, porque o que eu estava fazendo com ela não funcionou. Tudo piorou em vez de melhorar – disse eu.

– Eu gostaria que as coisas fossem tão simples assim – declarou Thanatos.

Ela, Vovó e Sgiach trocaram um olhar, e eu soube que elas tinham conversado sobre a pedra antes de eu chegar.

Vovó deu uns tapinhas na minha mão e disse:

– Ninguém mais pode ostentar a pedra da vidência, u-we-tsi-a-ge-ya . A pedra só esquenta para você. Isso significa que ela a escolheu, e apenas você poderá ostentar a magia antiga através dela.

– Tudo bem, então. Mas como é que eu faço isso? – perguntei, odiando o aperto que senti no estômago só de pensar em tocar na pedra da vidência de novo.

– Estou com a Zoey – apoiou-me Aphrodite. – Simples ou não, diga a ela o que ela precisa fazer.

– É mesmo. A Z. já derrotou as Trevas e Neferet uma vez. Nós todos derrotamos – concordou Stevie Rae.

– Por causa da natureza volátil da magia antiga, só posso lhe dizer o que sei que não deve ser feito – explicou Sgiach. – Para que o seu poder trabalhe pelo equilíbrio e não se corrompa, ela deve ser comandada por uma Sacerdotisa que não seja nem agressora nem vítima. Sua intenção deve ser pura. Ela não pode ser vingativa nem defensiva.

– Mas Zoey tem de usá-la de forma defensiva! – exclamou Marx. – Neferet é uma assassina sociopata com o objetivo de escravizar Tulsa e talvez até o mundo inteiro.

– Isso não é um talvez, detetive – interrompeu Kalona. – Neferet deseja fazer mais do que forçar alguns poucos humanos azarados a adorá-la. Ela deseja reinar como a única Deusa deste mundo e tornar todos nós os seus escravos.

– Então, como é que a porra dessa pedra pode ser a chave para derrotá-la se Zoey não pode usá-la de forma defensiva? – perguntou Marx.

– Detetive, a magia antiga é neutra. É o poder na sua mais pura essência. E ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a carrega. Se seus motivos não forem completamente altruístas, o caos será o resultado. – O seu olhar pousou em mim. – Você tem evidências disso diante de si. Pelo que sabemos de Neferet no passado, à luz do que ela fez no presente, acredito que haja indicações claras de que ela usou magia antiga por muito tempo, talvez até mesmo antes de ter sido Marcada.

– Mas eu nunca a vi usando uma pedra da vidência – disse eu.

– Uma pedra da vidência é apenas um condutor para a magia antiga. Considere as gavinhas das Trevas que a acompanham sempre. Elas são básicas demais, cruas demais para serem qualquer coisa a não ser que sejam ligadas aos poderes antigos da Luz e das Trevas. Eu sei. No Mundo do Além, lutei contra as Trevas em diferentes formas por várias eras. Elas podem ser sedutoras e astutas. As Trevas usam muitas faces, e algumas delas podem ser vistas, a princípio, como aliadas.

– Eu não consigo entender como aquelas coisas rastejantes nojentas podem ser vistas como algo bom – comentou Stevie Rae.

– Neferet raramente fala disso, mas ela foi estuprada pelo próprio pai na noite em que foi Marcada – contou Lenobia. – Algo a ajudou a passar por aquela provação terrível, e não foi outro novato nem a sua mentora. Os registros da Morada da Noite de Chicago dizem claramente que ela voltou para a casa da sua família e estrangulou o pai antes mesmo de ter completado a Transformação. O investigador registrou que o ataque foi tão forte que a cabeça do pai quase foi separada do corpo.

– E ela se safou disso? – perguntou Marx.

– O crime aconteceu no fim do século XIX em um mundo muito maior, detetive. O Conselho da Morada da Noite de Chicago e o Conselho Supremo dos Vampiros decidiram juntos que seria melhor tirá-la do estado e permitir que ela recomeçasse um novo caminho onde teria a oportunidade de se curar da sua tragédia – contou Thanatos.

Lenobia acrescentou:

– E lembre-se, detetive, de que aquele homem agredira e estuprara a filha de dezesseis anos de idade.

– Os registros do Conselho Supremo relatam que havia diversas marcas de mordidas, mordidas humanas no corpo de Neferet, e que ela estava horrivelmente ferida e violada na noite em que o Rastreador a encontrou – informou Thanatos concordando com Lenobia.

Senti um choque com a lembrança.

– Logo depois que fui Marcada, Neferet mencionou algo comigo sobre ter sido machucada pelos pais.

– Sua mãe morreu ao lhe dar à luz. O seu pai era um monstro – contou Lenobia. – Todos que conheceram Neferet na sua juventude sabiam dos rumores sobre o que acontecera na noite em que fora Marcada.

– Sinto muito pelo seu passado, mas isso não muda o fato de que Neferet é uma imortal instável que precisa ser detida – declarou Marx.

– Não estamos mencionando o passado de Neferet como uma desculpa para os seus atos presentes – respondeu Sgiach. – Nós o mencionamos como uma lição para Zoey. – Os olhos de Sgiach queimaram os meus. – A magia antiga foi levada até Neferet, e ela descobriu que podia ostentá-la. Assim como ela foi levada a você e ostentada por você.

– Tudo bem, mas eu não gosto de ser comparada com a Neferet – declarei.

– Ainda assim, o que tem acontecido com você desde que começou a usar a pedra da vidência é bem parecido com o que aconteceu com Neferet. Ela usa você, e enquanto o faz, a corrompe.

Senti como se eu tivesse levado um soco no estômago.

– Eu jamais serei como a Neferet!

– Você já pensou que se pudesse simplesmente controlar todo mundo à sua volta, então poderia tornar tudo melhor para os seus amigos e para si mesma? – perguntou-me Sgiach de forma direta.

– Já, mas eu não queria que nada de ruim acontecesse! Eu só queria poder fazer com que todos agissem de forma correta para acabar com toda a loucura.

– Agir de forma correta de acordo com quem? – quis saber Thanatos.

– De acordo comigo, eu acho, já que era eu que estava desejando – protestei, sentindo-me encurralada.

– Intenção! – exclamou Sgiach para mim. – A magia antiga é neutra. Ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a detém! E a intenção da Sacerdotisa não pode ser vingança, nem frustração, nem qualquer outro sentimento egoísta. A sua intenção deve ser pura e voltada completamente para o bem maior. Mesmo que isso signifique que você possa sobreviver ou não ao ser o instrumento que a magia usa.

– Estou com medo – admiti, e a Vovó apertou a minha mão, dando-me força. – E eu não sei como fazer o que vocês estão me pedindo para fazer. Eu preciso que vocês me ajudem!

– Apenas você pode se ajudar. Cresça, jovem Sacerdotisa. Mostre para nós por que Nyx escolheu lhe dar tantos dons – desafiou Sgiach. – Mas seja rápida. Você precisa comandar a pedra da vidência para termos uma chance de deter Neferet e restaurar o equilíbrio entre a Luz e as Trevas.

O olhar cortante da rainha recaiu em Thanatos.

– Grande Sacerdotisa, compreenda que Neferet precisa ser contida para que esse contágio de maldade diminua.

– Qual é o seu conselho para contê-la sem usar magia antiga? – perguntou Thanatos, fazendo com que o meu rosto ficasse quente.

Eu sabia que ela não devia ter que fazer aquela pergunta a Sgiach – eu deveria amadurecer o bastante para usar a pedra da vidência e ajudá-la.

– Procure pelos rituais e feitiços mais antigos – orientou Sgiach. – Não pense em derrotar Neferet. Isso é impossível sem a magia antiga. Pense em isolá-la, distraí-la, irritá-la. Qualquer coisa que a faça repensar suas tramoias e seus planos, qualquer coisa que a faça tropeçar e a torne mais lenta poderá ajudar vocês.

– E dar a Zoey mais tempo para descobrir o caminho para comandar a magia antiga – concluiu Vovó.

Sorri nervosamente para ela, desejando sentir tanta confiança em mim mesma quanto ela tinha.

– Tentarei o máximo que eu puder. Prometo.

– Você não pode tentar , Zoey. Tentar é perigoso demais. Você não pode fazer nada até que saiba que se livrou de tudo que há de negativo em você: medo, raiva, egoísmo, desejo de vingança, ódio, até mesmo irritação e frustração. Só então poderá comandar e controlar a magia antiga. Até lá, Aphrodite deve manter a pedra da vidência longe de você. Não precisamos ter de lutar contra duas imortais que já foram Sacerdotisas talentosas da nossa Deusa.

Eu não conseguia acreditar no que ela tinha acabado de dizer! Sgiach realmente acreditava que eu poderia virar alguma coisa como Neferet.

– Eu não sou imortal! Eu só sou uma garota que não quer ter nada a ver com magia antiga ou com aquela maldita pedra da vidência.

– Imagino que uma jovem Neferet teria dito exatamente a mesma coisa e ela também estava longe de ser “apenas uma garota” – retrucou Sgiach.

Antes que eu conseguisse me recuperar da afirmação horrível, Thanatos acrescentou:

– Eu só conheci uma outra novata que recebeu tantos dons da Deusa quanto você, Zoey Redbird, e o nome dela era Neferet.

Apertei a mão de Vovó, sentindo como se o meu mundo estivesse se ruindo sob os meus pés.

– Agora, eu tenho que cuidar da minha própria enchente – declarou Sgiach. – Confio em você, Zoey. Acredito que encontrará uma maneira de trazer as forças da magia antiga com você na sua batalha pela Luz. Até que eu a veja novamente, abençoada seja.

Então a conexão via Skype foi desligada, deixando a câmara no mais absoluto silêncio.

– É claro que tudo isso é culpa sua – disse Aphrodite para Kalona, antes de se dirigir a mim, acrescentando: – Se você começar a me chamar de Frodo, eu vou ficar puta da vida.

– Sem querer ser cruel nem nada, Aphrodite, mas você está sendo um Frodo para Z. – declarou Stevie Rae.

– Se isso fosse verdade, então você seria um Sam [*] gordo e baixo – retorquiu Aphrodite.

– Uma adolescente? – soou a voz de Marx atrás de nós. – Por que o equilíbrio de poder entre o bem e o mal tinha que estar nas mãos de uma adolescente?

Franzi o cenho para ele.

– Há meses eu me pergunto a mesma coisa – comentou Kalona.

– Devo insistir que nos atenhamos a questões produtivas apenas! – cortou a voz de Thanatos, fazendo com que Marx e Kalona baixassem a cabeça.

– Na verdade – comecei eu, hesitante –, a pergunta do detetive Marx me fez parar para pensar.

– Eu não quis ser tão grosseiro – insistiu Marx.

– Ah, eu sei – respondi. – O que você disse não foi grosseiro, apenas verdadeiro. Por que o equilíbrio entre o bem e o mal deveria depender de mim? – Eu me apressei para continuar, não querendo que os meus pensamentos fossem interrompidos. – Talvez não seja eu, nem mesmo nós, o que é tão importante. Sgiach disse que a magia antiga é o que importa. Basicamente, eu sou apenas o canal para ela; por algum motivo, que nenhum de nós conseguiu entender, ela funciona através de mim. Então, como disse, não sou eu que sou importante. É a magia.

– Aonde você quer chegar, Zoey Passarinha? – perguntou Vovó.

– Bem, a magia antiga também responde a Sgiach. Thanatos, Lenobia, por favor, corrijam-me se eu estiver errada, mas Sgiach não é a personificação da sua ilha?

– Ela é sim – respondeu Thanatos, e Lenobia assentiu, concordando.

– A magia antiga está na terra – disse Vovó, empertigando-se na cadeira. – Assim como os nossos ancestrais Cherokees acreditavam.

– Oklahoma tem poder antigo em sua terra vermelha – declarou Kalona. – Eu sei disso. Esse poder me atraiu para cá não muito tempo depois que fui criado e, novamente, depois da minha Queda.

– E ele o conteve por séculos – completou Thanatos.

Kalona contraiu o maxilar, mas assentiu.

– Sim.

– No dia em que fui Marcada, fugi para a sua fazenda, lembra, Vovó? – A minha voz estava ficando menos hesitante à medida que os meus pensamentos encontravam um caminho para seguir. – Eu desmaiei tentando encontrá-la.

– Eu me lembro – disse Vovó. – Foi a primeira vez que Nyx apareceu para você.

– Isso! Ela me disse que eu deveria ser os seus olhos e ouvidos no mundo em que eu estava lutando para encontrar o equilíbrio entre o bem e o mal.

– Mesmo naquela época a Deusa estava nos alertando através de você – declarou Thanatos.

– Parece que demoramos muito para compreender – disse Stevie Rae.

– Não só vocês, gente – respondi. – Eu também. Acho que não entendi realmente o que Nyx estava querendo me dizer até este momento. Prestei atenção principalmente à parte em que ela dizia que a Luz nem sempre era boa e que as Trevas nem sempre eram o mesmo que o mal. Acreditei que Nyx estava me avisando para ficar atenta a Neferet, porque ela era tão linda por fora, mas completamente podre por dentro.

– Faz sentido – concordou Aphrodite.

– Totalmente – reforçou Stevie Rae.

– É, mas veja o que mais Nyx disse. Lembro-me de que ela disse que eu era especial, a sua primeira U-we-tsi-a-ge-ya V-hna-I Sv-no-yi

– Filha da noite – traduziu Vovó por mim.

– Mas isso não foi tudo o que ela disse. Nyx afirmou que eu era especial por causa do meu sangue antigo combinado com a minha compreensão do mundo moderno.

– E o seu sangue carrega consigo o poder das Sábias Cherokees – disse Vovó. – As mulheres que tiravam a sua força da terra.

– Desta terra – completou Thanatos.

– Oklahoma é o lugar onde a Trilha de Lágrimas terminou – declarou Vovó.

– E para onde fui atraído, assim como Neferet – disse Kalona. – Não podemos esquecer que Zoey carrega dentro de si um pedaço da alma de A-ya, a virgem formada nesta terra.

Eu não queria pensar muito, mas rapidamente acrescentei:

– Também foi onde Aurox foi criado pelo sacrifício de sangue da minha mãe com o poder tirado da terra pela minha avó.

Marx franziu as sobrancelhas.

– Aurox?

– Eu sou Aurox – disse ele, saindo das sombras.

– Espere um pouco – pediu Marx. – Você nem tem uma lua crescente na testa. Achei que você fosse apenas um cara que era o consorte da Grande Sacerdotisa.

O pensamento de Aurox sendo o consorte de Thanatos fez o meu rosto queimar de vergonha.

Aurox me ignorou e lançou um olhar questionador para Thanatos. Ela fez um breve aceno com a cabeça e ele se virou para encontrar o olhar de Marx. Soando forte e seguro, disse:

– Eu não sou humano nem vampiro. Sou um receptáculo criado pela magia antiga cujo propósito eram a vingança e a destruição.

– Mas que foi criado com uma alma. E, tendo recebido a capacidade de escolher, você optou por se desviar da vingança e destruição – completou Vovó.

– Caramba, isso quase parece bom! – disse Marx, analisando Aurox com cuidado. – Se ele tem esses poderes da magia antiga, será que não pode nos ajudar a lutar contra Neferet?

– A parte da luta não é importante – disse eu, sem olhar para Aurox. – É a parte da criação; ele, assim como eu, veio para cá com o sangue que data de gerações nesta terra.

– Precisamos usar o poder da terra para lutar contra Neferet, pelo menos até Zoey conseguir lidar com a pedra da vidência – disse Aphrodite.

– Aiminhadeusa! Eu tenho a resposta. – Shaunee ergueu a mão. – Desculpem-me, não queria interromper, mas acho que sei o que vocês devem fazer!

– E o que é, Shaunee? – perguntou Thanatos.

Ela baixou a mão, falando rapidamente:

– Sgiach nos disse para procurar os feitiços e rituais mais antigos a fim de confundir Neferet. Você disse que precisamos impedi-la de se espalhar. Está bem na nossa cara! Thanatos, você até nos deu uma aula sobre isso no outro dia.

– Shaunee, será que você poderia ser mais clara? – pediu Thanatos.

– Nós podemos usar o Ritual de Proteção de Cleópatra! Podemos fazer com Tulsa o que foi feito em Alexandria! – exclamou Shaunee, animada.

– Eu não faço a menor ideia do que ela está falando – disse Marx.

– Eu faço – declarou Lenobia.

– Assim como todos nós deveríamos saber – disse Thanatos. – Mas nós também deveríamos saber que o feitiço de Cleópatra exige que a Grande Sacerdotisa que o invoca fique isolada, jejuando e orando por três dias.

– No ritmo que Neferet está matando, não temos três dias – declarou Marx, sombrio.

– Mas nós temos o poder da terra – disse eu. – Será que não podemos usá-lo para acelerar o feitiço e fazê-lo funcionar?

– Ideia interessante – elogiou Thanatos. – O feitiço teria de ser invocado de um lugar de poder extraordinário o mais próximo possível do Mayo. E a sacerdotisa que invocar o feitiço e fizer o ritual teria de se manter isolada e no local em meditação e oração, mantendo a sua intenção determinada e verdadeira.

– Não vou ser eu – disse eu. – E não estou dizendo isso porque estou reclamando de não ser madura o suficiente ou Grande Sacerdotisa o suficiente. O que quero dizer é que tenho que resolver esse lance da pedra da vidência e estar livre para usá-la contra Neferet assim que eu descobrir como.

– Concordo, Zoey. Eu sou a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. É o meu dever invocar o feitiço e mantê-lo enquanto o meu desejo durar – declarou Thanatos.

– O fogo é a base do feitiço de Cleópatra. Eu ficarei com você – disse Shaunee. – Pelo tempo que for necessário.

Thanatos assentiu respeitosamente para Shaunee.

– Vou gostar da sua companhia e o poder que você puder emprestar ao feitiço, filha.

– Oh, agradeça à Grande Mãe Terra! Eu sei o lugar de poder que vocês devem usar! – exclamou Vovó, batendo com a palma da mão na mesa para pontuar as suas palavras. – O Council Oak Tree. Seu poder ancestral reinou nas Terras Isoladas por séculos, e fica a uma curta distância do Mayo Hotel.

– Lenobia, Aphrodite, Zoey, Stevie Rae, Shaunee, o que vocês acham? Vocês concordam com Sylvia Redbird? – perguntou Thanatos.

– Eu concordo – respondeu Lenobia.

– Eu também – disse Shaunee.

– Idem – concordou Stevie Rae.

– Parece um bom plano – assentiu Aphrodite.

Encontrei o olhar da Vovó e vi a sabedoria, o amor e a verdade.

– Com certeza – afirmei.

– Então vamos descansar. No crepúsculo, o círculo de Zoey vai até o lugar de poder, e, enquanto o sol se põe, eu vou preparar o ritual de proteção e invocar o feitiço, e que Nyx nos dê força. Pois assim nós escolhemos; que assim seja.

[*] Sam é o apelido do personagem “Samwise Gamgee” da obra O Senhor dos Anéis , escrita por J. R. R. Tolkien. (N.E.)


13

Zoey

– Stark, você viu a Nala?

– Não. Venha para cama. Ela deve estar ocupada com os outros gatos avisando para os ratos locais que os gatos estão de volta – respondeu ele, sonolento, e batendo com a mão no lugar ao seu lado na cama.

O sol tinha nascido havia pouco mais de uma hora, e Stark estava se enfraquecendo rápido.

– Mas a Nala sempre dorme comigo.

– Não dorme não. Às vezes, ela dorme com Stevie Rae. – Ele deu um bocejo enorme. – Pare de se preocupar e venha aqui. Você está nervosa desde a reunião do Conselho. Você vai descobrir como usar a pedra da vidência. Sei que vai. Ficar preocupada o tempo todo não vai ajudar em nada. Deite-se que eu vou fazer uma massagem.

Olhei para ele e sorri. Além de amar muito quando ele massageava os meus ombros, ele estava totalmente fofo e sexy com o cabelo despenteado e o olhar sonolento. Além disso, ele estava certo. Preocupar-me não me ajudaria a descobrir como usar aquela estúpida pedra da vidência. Cedendo, eu me deitei na cama de costas para ele e depois gemi de puro prazer quando seus dedos fortes começaram a massagear os nós de estresse que tinham se formado nos meus ombros.

– Acho que você deve ser perfeito – declarei.

– Viu só? Quanto menos se preocupa, mais esperta você fica – respondeu ele, bocejando de novo.

– Ei, eu estou bem. Pode dormir agora.

– Eu sei que você está bem, mas vai ficar melhor se ficar quietinha e me deixar cuidar dos seus ombros.

Ele beijou a minha nuca.

– Tudo bem, mas você pode desistir na hora que quiser – disse eu, relaxando sob o seu toque.

– Z., eu nunca vou desistir de você. Você sabe disso.

Ele deu mais um beijo na minha nuca, e eu suspirei feliz.

– Eu amo você.

– Também amo você – respondeu ele.

Quando suas mãos pararam, eu estava relaxada, aquecida e cansada. Fechei os olhos, sorrindo, e adormeci.

Por cerca de dois minutos. Então, os meus olhos se abriram e eu me sentei, aguçando os ouvidos.

– Você ouviu alguma coisa? – perguntei para Stark.

Ele murmurou algo que pareceu ser:

– Gato... Tudo bem... pare de se preo...

Então, ele se virou, puxou as cobertas até o ouvido e começou a roncar baixo.

– Nossa, isso que é um Guerreiro – resmunguei.

Então, bocejei e me espreguicei. Eu realmente precisava voltar a dormir. O meu alarme já estava programado. Nós tínhamos que nos levantar e nos apertar na van da escola sem janelas e seguir o caminho até o Council Oak Tree antes do crepúsculo. Quem poderia saber que tipo de loucura Neferet cometeria diante de um feitiço de proteção. Inferno, ela já estava...

Então, ouvi novamente e soube exatamente o que havia me acordado. Era um som baixo, definitivamente era o ronronar de um gato.

E não havia nenhuma bolinha de pelo laranja encolhida aos pés da minha cama!

Vesti minha calça jeans e peguei meus sapatos da forma mais silenciosa que pude, andando de meia, na ponta dos pés, até a porta. Sem fazer nenhum barulho, me concentrei em pensamentos felizes, abri a porta e fui para o corredor. Desci rapidamente para o andar de baixo e passei pela sala comunal deserta do dormitório e saí, piscando quando os raios de sol atingiram os meus olhos, causando uma ardência. Eu não ia voltar mesmo para pegar os óculos de sol, então protegi os olhos com a mão e chamei:

– Nala! Gatinha! Nala-Nala, venha aqui!

Então, prendi a respiração e agucei os ouvidos.

Ouvi o som de novo! Era definitivamente um ronronar. E, definitivamente, parecia que o gato estava com algum tipo de problema. Não dava para saber se era a Nala ou não, mas eu sabia que o som vinha de algum lugar perto do muro da escola que dava para a direção leste.

Coisas ruins sempre acontecem lá! Corri apressada, contornando os dormitórios e me dirigindo para o muro, chamando.

– Psiu-psiu! Gatinha! Aqui! Nala!

O gato continuou ronronando. Eu me dei conta de que aquilo era bom e ruim. Bom, porque eu poderia seguir o som do seu miado. Ruim, porque quanto mais perto eu chegava, mais sofrido o gato parecia.

O ronronado seguinte fez o meu estômago se contrair. Eu estava perto o bastante do carvalho partido para saber que o gato estava definitivamente em algum lugar no alto daquela árvore. Ah, que droga! Por que é que tinha de ser aquela árvore? A árvore que Kalona partira em duas quando escapara da sua prisão na Terra, a árvore onde Jack morrera, a árvore em que eu vira as criaturas nojentas da magia antiga.

Diminuí o ritmo quando me aproximei da árvore de aparência assustadora. Tudo bem, eu gosto de árvores. Eu realmente gosto. Tipo assim, eu amo a Bosque da Deusa no Mundo do Além. Eu amo a minha afinidade com a Terra, mesmo que não esteja tão em sintonia com ela quanto estou com o espírito, mas ainda assim... Normalmente, eu não tenho problemas com árvores.

Esta árvore é diferente.

A caverna de Kalona ficava ali embaixo, e o jeito como ela se abria em duas fazia com que se parecesse com os ossos de um monstro, congelado na morte, agachado na sua abertura. Todas as outras árvores do campus se erguiam verdejantes. Não esta. Ela era negra e sem folhas, malévola e partida. Seus galhos formavam mais garras do que eu poderia contar.

– Miau-miau!

– Nala!

Eu a peguei nos meus braços e beijei o seu nariz úmido. Ela, é claro, espirrou em mim.

Eu ainda estava abraçando Nala quando ouvi um segundo gato e olhei para baixo.

– Cammy? – Ele se enroscou em mim e se esfregou nas minhas pernas, deixando pelos louros espalhados na minha calça. – Aposto que Damien não sabe que você está aqui fora. Você deveria estar encolhido junto com a Duquesa e ele em um sono profundo.

– Miaaaaaaau!

Aquele miado eu conhecia sem nem ver o animal branco que o emitira. Olhei por cima da base despedaçada da árvore e, com certeza, lá estava uma gata gigantesca com cara achatada e pelos brancos, cheia de atitude.

– Malévola, Aphrodite não ficaria nem um pouco satisfeita de você estar aqui aterrorizando os outros gatos. – Fiz uma pausa. – Bem, isso provavelmente é mentira. Mas ainda assim... Você deveria tentar não ser tão parecida com ela. Nossa, o que é que você acha...

Então, as sombras ao redor da árvore se moveram e eu percebi que o carvalho antigo e assustador estava completamente cercado pelos gatos da Morada da Noite.

Abracei Nala, enquanto sentia um frio gelado descer pela minha espinha.

– Mas o que é que está acontecendo aqui?

– Isso é o que eu gostaria de saber.

A voz de Aurox me assustou fazendo com que eu apertasse Nala forte demais e, com um grunhido zangado, ela pulou dos meus braços e se juntou aos outros gatos em volta da árvore.

– Você fez esses gatos virem até aqui?

– Eu? – Meneei a cabeça. – É claro que não. E se você soubesse qualquer coisa sobre gatos, entenderia que não se pode obrig á-los a fazer nada.

– Eu não sei muita coisa sobre gatos – declarou ele.

– Bem, tudo o que eu fiz foi seguir um grunhido horrível que, na verdade, me acordou. Achei que fosse Nala, mas ela parece estar bem.

– Grunhido? Mas que grunhido? Tudo que ouvi foi você conversando com os gatos.

Eu franzi as sobrancelhas para ele e abri a minha boca para explicar o óbvio – que alguma coisa tinha me atraído até ali e que havia alguma coisa de errado com os gatos e com ele também. Tipo assim, ele não precisava ser tão frio e rude sempre que se importava em falar comigo, mas o gato me interrompeu.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – O miado patético pareceu se estender por muito tempo.

– Está vindo lá de cima, da árvore.

Protegi os olhos com a mão e espiei por entre os galhos quebrados.

– Lá! – Aurox apontou. – Estou vendo!

Segui o dedo dele e vi também. Lá, bem no alto, nos galhos do topo da árvore, estava um gato realmente grande. Era um gato malhado de laranja e branco com pelos longos. Não era do mesmo tom de laranja forte de Nala. A cor daquele gato era mais suave, como se o laranja tivesse sido diluído com creme. Ele parecia familiar, e eu apertei os olhos, tentando me lembrar quem era seu dono, quando vislumbrei os seus olhos. Eram de um verde amarelado surpreendente, com um brilho inteligente.

– Que merda! Aquele é Skylar! O gato de Neferet! – disse eu.

– O gato de Neferet? Mas o que ele está fazendo aqui? Ele não deveria estar com ela?

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – berrou Skylar enquanto o vento fazia os galhos estremecerem sob ele, que tentava se manter firme.

– Ele vai cair – disse Aurox, movendo-se tão rápido que os gatos se espalharam.

– Ei, tome cuidado. Skylar é conhecido por morder. Sério, Aurox. Os gatos costumam refletir a personalidade do novato ou do vampiro que escolhem, e nós todos sabemos que Neferet é...

– Zo, eu não posso simplesmente deixá-lo cair.

E isso me fez calar a boca. Ele não apenas soou como Heath, mas estava fazendo uma coisa muito burra e doce e muito parecida com que Heath faria. É claro que ele provavelmente ia causar uma confusão tão grande quanto Heath teria feito, mas não havia muito mais o que eu pudesse fazer, a não ser esperar e tentar resolver a confusão. E pensar. Hmmm .

– Ei! – chamei, enquanto ele escalava a árvore feito um macaco. – Bem, nunca ouvi falar disso, mas talvez se o vampiro de um gato fica mau, talvez ele cometa suicídio ou algo assim. Skylar deve estar aí em cima porque a Neferet ficou desvairada e ele não consegue lidar com isso.

– Eu não vou deixar ninguém cometer suicídio no meu turno, seja um novato, um vampiro, um humano irritante... Nem mesmo um gato com fama de mordedor.

– Tudo bem. Espero que Nyx esteja com você.

– Eu também.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – gritou Skylar enquanto Aurox se agarrava em alguns galhos que o mantinham, acrescentando um som horrível e baixo enquanto ele tentava se afastar.

– Tente falar com ele. De forma suave, como os gatos gostam, tipo gatinho.

– Tipo gatinho? O que é isso?

– Caraca, ele está acabado – disse eu para Nala. Ela espirrou e pareceu concordar comigo. Os outros gatos estavam todos olhando para Skylar, como se estivessem ali para testemunharem algo. Eu não fazia a menor ideia do que dizer para Aurox.

– Hum, tente conversar com ele. Eu me lembro de que ele é muito inteligente.

– Tudo bem. Vou tentar.

Aurox subiu mais um pouco de forma a se sentar praticamente na mesma altura em que Skylar se encontrava. Eu ouvi quando ele limpou a garganta e, então, com uma voz completamente normal, que ele usa em uma conversa do dia a dia, começou a falar com o gato:

– Merry meet , Skylar. Pelo que soube, você tinha uma ligação com Neferet. Eu também já tive, então posso imaginar como você deve estar se sentindo. Ela também me magoou. Ela continua machucando os outros. Não posso permitir que você se machuque. Eu escolhi proteger esta escola e você faz parte desta escola.

O que aconteceu em seguida foi uma das coisas mais loucas que eu já vi – e olha que eu definitivamente já vi coisas muito loucas. Skylar inclinou a cabeça para o lado como se estivesse ouvindo Aurox.

– Skylar – continuou Aurox com voz solene –, eu vou protegê-lo, mesmo que seja de você mesmo.

Então, Aurox estendeu a mão.

Lentamente, Skylar se alongou em direção a ele até que pudesse ser tocado por Aurox. Prendi a respiração, esperando que o grande gato começasse a berrar novamente e batesse com a pata na sua mão. Mas não foi isso que ele fez. Na verdade, Skylar farejou a mão de Aurox, parou e, então, começou a esfregar o seu queixo contra a mão dele. Mesmo de onde eu estava lá embaixo, dava para ver o sorriso iluminar o rosto de Aurox quando começou, hesitante, a fazer carinho no gato. Skylar parou por um instante e virou a cabeça, analisando Aurox novamente.

– Você pode escolher não permitir que as Trevas de Neferet destruam a sua vida – insistiu Aurox em tom sincero enquanto acariciava o queixo de Skylar.

Sem mais hesitação, Skylar foi na direção dos braços de Aurox.

E todos os gatos em volta da árvore partida começaram a ronronar.

Quando Aurox chegou ao chão, ele estava segurando Skylar bem junto de si. O gato parecia estar abraçado a ele, e sua cabeça fofinha estava aninhada sob o queixo de Aurox. Quando ele se aproximou de mim, ouvi Skylar ronronando.

– Aconteceu algo lá em cima – contou Aurox, com os olhos brilhando.

– É. – Eu funguei e enxuguei o rosto com a manga da camisa. – Skylar escolheu você. Vocês agora pertencem um ao outro.

Aurox olhou para Skylar, acariciando o gato com movimentos longos a amorosos. Skylar não abriu os olhos. A não ser pelo fato de que estava ronronando loucamente, parecia ter adormecido.

– Zo, ele é demais!

Sorri entre as lágrimas.

– Com certeza é.

Aurox olhou para mim. Então, automaticamente enfiou a mão no bolso da calça jeans e me deu um Kleenex.

– Você está com nariz escorrendo de novo.

– Com certeza – respondi.

Seus olhos encontraram os meus. Ele os afastou depressa, mas não antes de eu ver o sofrimento da sua expressão.

– Sinto muito. Eu não deveria tê-la chamado de Zo.

– Você pode me chamar do jeito que quiser.

Seus olhos encontraram os meus de novo e eu vi um brilho de raiva cruzar o seu rosto.

– Não seja legal comigo porque acha que eu sou Heath.

– Que merda, Aurox, eu estou sendo legal com você porque gosto de você! Você salvou a minha avó. Você está segurando um gato supercruel que acabou de salvar. VOCÊ É UM CARA LEGAL! – Parei de falar para controlar o meu tom de voz antes de terminar. – É por isso que estou sendo legal com você.

– Eu gostaria que isso fosse verdade – disse ele.

– Aurox, eu juro que só vou dizer a verdade para você. Tenho muita merda pessoal para lidar agora para acrescentar mentiras à minha lista.

– Você está sendo sincera, não está?

– Estou. – Enxuguei o rosto e funguei. – Valeu pelo lencinho.

– Não há de quê.

– Você tem coisas de gato no seu quarto?

Ele hesitou, e então disse em tom suave:

– Eu não tenho um quarto.

– Onde você dorme?

– Eu não durmo.

Aiminhadeusa! Ele nem é humano! Senti o choque daquilo, e a lembrança de como ele ficava quando se transformava em touro passou pela minha mente. De forma resoluta, afastei o pensamento.

– Bem, você vai precisar de um quarto agora. Esse gato precisa de um lugar para dormir, comer e... hmm, você sabe alguma coisa sobre caixas de areia?

– Hã?

Sorri para ele.

– Venha comigo. Kalona também não dorme. Vamos encontrá-lo. Ele pode arrumar um quarto para você, comida de gato e uma caixa de areia.

– Chamei Nala e ela, na verdade, veio para mim, pulando nos meus braços. Notei, então, que os outros gatos tinham desaparecido.

– Você acha que Kalona sabe lidar com gatos? – perguntou Aurox enquanto caminhávamos juntos.

– Aposto que sim. Ele costumava ser um guerreiro de Nyx, e gatos constituem uma grande parte do Mundo do Além. A Deusa ama gatos.

O rosto de Aurox ficou sem expressão e ele perguntou:

– Zo, você acha que o fato de Skylar me escolher pode significar que Nyx se importa comigo? Mesmo que só um pouco?

– Pode apostar.

Isso foi tudo que consegui dizer antes de a minha garganta se fechar com as lágrimas, e Aurox me dar outro Kleenex.


14

Kalona

– Tudo bem, eu tenho que dizer para você que aquilo tudo foi muito estranho? Você também achou? – perguntou detetive Marx para Kalona.

Ele estava caminhando ao lado do imortal alado quando ambos deixaram o dormitório dos garotos e saíram para o sol forte e bonito do meio-dia.

Kalona ergueu as sobrancelhas e lançou um olhar de esguelha para o detetive. Não estava acostumado a conversar de forma leve com ninguém – principalmente com humanos. Nem com alguém que não o julgava como monstro por causa do seu passado. Ele me trata como se fôssemos companheiros de batalha , percebeu Kalona com um sobressalto incomum de surpresa.

E foi com outro sobressalto de surpresa que o imortal alado se deu conta de que realmente gostava da companhia do detetive.

– Estranho? Ver um gato de uma vampira imortal e louca escolher uma criatura criada a partir de magia antiga para ser uma arma das Trevas, e, então, ter que explicar para a referida criatura, que parece exatamente como um garoto confuso, como alimentar e limpar uma caixa de areia? – debochou Kalona. – Detetive, acho que “estranho” não é uma palavra forte o suficiente para descrever o que acabou de acontecer.

– Que bom ouvir isso!

O detetive deu um tapa no ombro de Kalona em um gesto amigável. Kalona teve de apertar os dentes por causa da dor que atravessou o seu corpo quando o gesto inocente de Marx abriu um ferimento ainda não curado. Kalona emitiu um grunhido que refletia concordância, e não desconforto.

Ignorando qualquer outra coisa a não ser a conversa que estavam tendo, Marx riu e continuou:

– É, teve uma hora lá, quando o garoto estava acariciando o queixo do gato gigante, que eu tenho quase certeza de que os seus olhos começaram a brilhar.

– Os do gato ou os do garoto? – brincou Kalona, ignorando a dor prolongada.

– Os do garoto. Os olhos dos gatos também podem brilhar? – Marx meneou a cabeça. – Não, não me diga. Agora eu compreendo por que a minha irmã diz que algumas coisas vampíricas são zona proibida para humanos. Não faz bem para a nossa cabeça. Pode nos enlouquecer.

Kalona riu.

– Acho que isso tem mais a ver com a estranheza dos nossos tempos do que com a habilidade dos humanos em compreender o anormal.

– Talvez você esteja certo. Estamos vivendo uma época muito estranha.

Eles caminharam juntos sem falar, embora Kalona não sentisse que o silêncio era pesado. Eram apenas dois homens responsáveis por proteger aqueles que lhe eram caros.

É assim que se deve fazer parte de uma família. Eu gosto desse sentimento! O pensamento chegou à sua mente de forma espontânea, e ele não sabia o que fazer com ele. Como é que a Morada da Noite se tornara a sua família? Kalona não fazia ideia, mas até mesmo Zoey Redbird, a novata que ele tentara seduzir primeiro para depois destruí-la, começou a confiar nele o suficiente para procurá-lo em busca de conselhos e ajuda para Aurox quando o felino de Neferet escolheu o receptáculo como seu familiar.

Assim, Kalona teve o seu terceiro sobressalto de surpresa.

– Pode deixar pra lá. Eu não queria perguntar. A minha irmã vive me dizendo que é um péssimo hábito que adquiri desde que me tornei detetive.

Kalona tentou se recompor mentalmente.

– Desculpe, eu estava pensando em outra coisa. Você me perguntou algo?

– Perguntei, mas era pessoal demais, principalmente considerando quem você é. Esqueça... Preciso dormir um pouco antes da loucura começar de novo – disse Marx depressa.

– Você pode me perguntar o que quiser. Nós lutamos contra as Trevas juntos. Deve haver confiança entre nós.

Chegaram ao dormitório das garotas, e Marx parou apoiando-se no corrimão da escada que dava para a varanda de entrada.

– Tudo bem, então. Eu só estava me perguntando por que Nyx não desce dos céus e detém, ela mesma, Neferet. Ela é a ex-Grande Sacerdotisa da Deusa. Acho que Nyx deve estar puta da vida pelo modo como está usando o seu poder de forma errada.

– Em primeiro lugar, Nyx não mora nos céus, ou, pelo menos, não nos céus da civilização ocidental moderna.

– Certo, desculpe. Eu esqueci. Minha irmã me explicou essa parte há alguns anos. Nyx mora no Mundo do Além, certo?

– O Mundo do Além é o reino de Nyx. Está correto.

– E você já esteve lá?

– Durante éons, aquele foi o meu reino também – contou Kalona devagar, desacostumado a falar sobre a Deusa ou o Mundo do Além.

– Desculpe-me se estou sendo intrometido. Eu vou parar por aqui e...

– Eu não me importo de falar sobre isso – respondeu Kalona, dando-se conta de que estava dizendo a verdade.

– Então, você conhece Nyx muito bem.

Kalona inspirou e expirou longamente várias vezes. A resposta para a pergunta do detetive era tão simples quanto desoladora.

– Eu conhecia a Deusa bem. Muito bem.

– Ah, entendi. No passado. – Marx parecia estar pensando em voz alta. – Isso pode explicar o que está acontecendo. Nyx mudou desde a época em que se conheceram. Talvez ela tenha perdido o interesse no mundo moderno. E quem poderia culpá-la? É por isso que ela está deixando que Neferet escape, mesmo tendo corrompido o poder concedido pela Deusa e ferindo não apenas humanos, mas novatos e vampiros também.

– Isso não é verdade. A nossa Deusa não perdeu o interesse em nós.

Kalona desviou o olhar de Marx e viu Shaunee caminhando pela calçada em direção a eles, carregando um gato cinza nos seus braços. Ela usava óculos escuros e um gorro que escondia o seu rosto; estava claro que a luz do sol a incomodava. Ela deve estar perto de completar a Transformação , pensou Kalona e, então, percebeu que a ideia de Shaunee passar pela Transformação e se tornar uma Sacerdotisa vampira lhe provocava um sentimento muito próximo de orgulho.

Esse pensamento fez com que sua voz ficasse brusca:

– Shaunee, você deveria estar no seu quarto, dormindo. A luz do sol não lhe faz bem.

– Eu estou indo para a cama. Só tinha que encontrar Beelzebub. Mas antes de eu ir, quero deixar algo muito claro para o detetive Marx. – Ela pousou seus olhos castanhos no detetive. – Nyx não perdeu o interesse em nós – repetiu ela.

O olhar de Marx passou para Kalona e, depois, voltou para Shaunee. Antes que pudesse responder, a novata recomeçou a falar:

– Não procure Kalona para obter respostas sobre Nyx. – Ela lançou um olhar de desculpas para o imortal. – Isso vai soar cruel, mas não estou fazendo isso de propósito. – Ela voltou a atenção para Marx antes de continuar. – Kalona caiu . Isso não faz dele uma testemunha perita em Nyx, detetive. Se você tem perguntas sobre a nossa Deusa, faça-as a mim. Eu converso com ela todos os dias, e, às vezes, ela até me responde.

– Tudo bem, então. Você pode explicar por que Nyx permitiria que Neferet causasse tanta dor e tanto sofrimento, assistindo a tudo sem fazer nada a respeito? Ela concedeu a Neferet os dons que permitiram que ela acumulasse tanto poder. Por que Nyx pelo menos não revoga os seus dons? Isso faria sentido. Não fazer nada não faz sentido para mim. Digo isso com todo o respeito pela sua Deusa, mas as ações dela não parecem a de uma divindade amorosa.

– Nyx não tirará os dons de Neferet, nem os dons de qualquer um de nós porque ela ama de forma incondicional e sempre mantém a sua palavra, mesmo quando não cumprimos a nossa e a traímos – explicou Shaunee.

Kalona cruzou os braços e fingiu desinteresse, embora não se mexesse – nem respirasse, apenas ouvisse.

– E ela não desce e salva o dia porque ela nos ama tanto que sempre nos dará o livre-arbítrio. – Ela fez uma pausa e, depois, perguntou: – Você tem filhos, detetive Marx?

– Tenho. Duas filhas. Uma de nove e outra de onze.

– E se você nunca permitisse que elas cometessem erros? Ou, melhor ainda, e se você permitisse que cometessem erros, mas, então, interviesse e resolvesse todas as consequências por elas?

– Acho que eu estaria criando uma dupla de meninas mimadas – respondeu ele.

– Que tipo de mulher você acha que elas se tornariam? – perguntou Shaunee.

– Egoístas e irresponsáveis. Se elas crescessem.

– Exatamente! – Shaunee sorriu. – Como nós poderíamos aprender, crescer e evoluir se Nyx nos resgatasse das nossas decisões erradas? Ou se parasse de permitir que tomássemos as nossas próprias decisões, boas ou ruins?

Kalona não conseguiu ficar em silêncio por mais tempo.

– Seria mais fácil se Nyx resolvesse tudo! Eu ainda a conheço bem o suficiente para assegurar a você que a nossa Deusa seria benevolente e bondosa. E isso é mais do que qualquer um de nós pode garantir em relação ao público em geral, sejam vampiros ou humanos.

– Se Nyx resolvesse tudo, os poderes da Luz e das Trevas ficariam desequilibrados para sempre – disse Shaunee.

– A Luz venceria! Não é esse o objetivo? – perguntou Kalona.

– Aiminhadeusa! Será que não percebe o que está pedindo?

– Sim! Estou pedindo paz! O fim do desejo por carnificina e do derramamento de sangue, da traição e da destruição.

– Não! – argumentou Shaunee. – Você está pedindo o fim do livre-arbítrio. Nós nos transformaríamos naquelas pessoas gordas e flutuantes do filme Wall-E , ou pior.

– Que língua você está falando?

– Eu sei do que ela está falando. É um filme da Pixar. Ela quer dizer que nós nos tornaríamos idiotas preguiçosos e sem motivação. – Marx coçou o queixo. – Na verdade, acho que ela talvez esteja certa. Você tem ido a alguma feira estadual?

Então, o detetive riu da própria piada, que não fez o menor sentido para Kalona.

Shaunee não piscou. Ela nem sorriu para Marx. Seu olhar sombrio pousou em Kalona.

– Você não vai conseguir se aproximar de Nyx dessa forma. Você tem que abandonar esse problema de controle e escolher realmente acreditar, de forma sincera, e amar de verdade. – Então, ela deu um beijo na cabeça do gato cinza adormecido em seus braços. – Então, isso responde às suas perguntas, detetive Marx?

– Não a todas, mas o suficiente por ora – respondeu ele.

– Ótimo! Vou pra cama. Vejo vocês no crepúsculo.

Ela subiu a escada e desapareceu no dormitório das garotas.

– Também vou dormir. Thanatos disse que eu poderia usar um beliche na casa dos professores. Você parece cansado. Você vem também?

– Não. Vou assumir o turno de Aurox e vigiar o perímetro – disse ele.

– Turno dobrado. Esses são difíceis. Você quer companhia?

Kalona olhou para o detetive. A pele sob os seus olhos estava ferida e seus passos, arrastados.

– Talvez numa próxima. Mas obrigado por se oferecer.

– Sem problemas. Tenha cuidado lá fora. Como a garota disse, vejo você no crepúsculo.

Kalona assentiu e começou a caminhar para o muro mais distante da escola, tentando, sem sucesso, não ouvir novamente as palavras de Shaunee ecoando em sua mente.

Lynette

– As fantasias estão péssimas! – disse Neferet enquanto meneava a cabeça e lançava um olhar de raiva para o grupo de pessoas trêmulas que Lynette escolhera para usar o que deveriam ser roupas dos anos vinte.

Se tudo, ou mesmo qualquer coisa , estivesse normal, Lynette teria dito que o seu último evento tinha passado por alguns problemas. Na insanidade em que o seu mundo se transformara, Lynette decidiu que o seu último evento era um colete cheio de explosivos de um homem-bomba prestes a explodir – e era ela quem estava usando o maldito colete.

– Deusa, você se lembra das duas coisas de que eu preciso? Tempo e recursos?

– Eu me lembro de tudo .

Lynette bateu palmas diante de si para que Neferet não percebesse o quanto estava trêmula. Limpou a mente e se concentrou no que fazia melhor – lidar com o cliente para que o evento fosse um sucesso.

– E é exatamente por isso que é tão bom planejar eventos para uma Deusa, e não para um humano ou um vampiro – disse Lynette.

O olhar raivoso de Neferet se suavizou com a bajulação.

– Do que você precisa que eu não lhe ofereci? Nós decidimos o tema da minha próxima adoração ontem à noite. Já está quase no crepúsculo, e tudo que eu pedi foi para dar uma olhada nas fantasias dos meus súditos enquanto eles ensaiam o Charleston. Estou certa de que Tulsa tem lojas de fantasia o suficiente e você tem acesso ilimitado aos meus recursos . Então, explique-me por que nenhuma dessas fantasias se parece remotamente com o estilo dos anos vinte?

– Tulsa tem apenas duas lojas decentes de fantasias: a Ehrle’s e a Top Hat – começou Lynette.

– Apenas duas? – Neferet suspirou. – Eu deveria ter começado o meu Templo em Chicago. Chicago está cheia de excelentes lojas. Kylee! Minha taça está vazia!

A Kybô, que era o modo como Lynette silenciosamente se referia à recepcionista robótica, apressou-se pelas escadas subindo até o local onde Neferet colocara o seu trono, enchendo novamente o líquido escarlate que nunca parecia ser o suficiente para a Deusa.

– Mas eu a interrompi, querida Lynette. Por favor, continue a explicação sobre as roupas. – Ela apontou os dedos com as unhas vermelhas para o grupo de pessoas desarrumadas esperando lá embaixo.

– Entrei em contato com os donos das duas lojas. Eles se recusaram a fazer qualquer entrega para nós.

Lynette deu a notícia rapidamente e então se preparou para a loucura.

Em vez de explodir, Neferet ficou totalmente imóvel. Em uma voz suave e pensativa, perguntou:

– E por que eles se recusaram a me atender?

– Eles explicaram que a polícia cercou todo o Mayo e que não permitem que ninguém se aproxime daqui.

Neferet bateu com uma das unhas afiadas na taça. Ela virou a cabeça em uma postura pensativa. Então, a sua expressão se suavizou e ela sorriu.

– A solução é simples. A polícia está evitando que os humanos entrem. Sua atenção está voltada para fora. Eles não vão esperar que alguém saia.

– Sair?

– Sim, bem, não vai ser qualquer um que vai sair. Será você.

Lynette se apoiou na grade de ferro.

– Eu?

– Minha querida, você está com algum problema de audição?

– N-não – apressou-se Lynette a assegurá-la.

– Kylee, sirva uma taça de vinho para Lynette. Ela está pálida. – Agradecida, Lynette tomou o vinho enquanto Neferet começava a sua explicação insana. – Será bem fácil para você. Você sairá pelos fundos, onde eles empilham aquele lixo horrendo. Pular a cerca não deve ser um problema. Você parece ter se mantido em forma. E, é claro, Judson vai acompanhá-la para ajudar com qualquer problema que possa ter. Judson, certifique-se de que a querida Lynette volte em segurança. E você carregará as sacolas de compras para ela, não é mesmo?

Judson assentiu de forma automática e respondeu:

– Sim, Deusa.

– Excelente! Vou pedir para Kylee chamar um táxi para encontrar vocês... Hum... em frente à Biblioteca Central na Fourth Street com a Dever. É longe o suficiente e não estará dentro do cerco policial, e perto o bastante para que não seja tão cansativo para você na volta. Judson vai carregar todo o peso para você.

A mente de Lynette estava a mil. Ela está mandando Judson comigo para me forçar a voltar. Mas ele não passa de um robô quando Neferet não está por perto. Talvez eu consiga escapar, principalmente quando chegarmos à biblioteca. Alguém lá poderá...

– Permita que eu esclareça uma coisa, Lynette. Judson e você não estarão sozinhos. Eu jamais pensaria em deixá-los tão vulneráveis. Vários dos meus filhos irão acompanhá-los. – A Deusa acariciou uma das coisas rastejantes que estava enrolada na sua perna. – Eles também ficarão ansiosos para se aproximarem de você, se hesitar. Então, você e Judson terão mais em comum do que imagina... Tão mais.

Lynette ordenou os pensamentos. Trabalho! Eu tenho que me concentrar no trabalho!

– Algum problema, querida? Com certeza você não discorda da minha solução.

– Honestamente, eu concordo com a parte de sair. – Lynette se concentrou na única coisa normal que sobrara do seu mundo, concentrar-se em concluir um trabalho. – A polícia não está esperando que ninguém faça isso. Mas eu me preocupo com a volta. Você mesma disse que eles estão concentrados em manter as pessoas do lado de fora.

– Você está certíssima em se preocupar. Eu me esqueço de que você não consegue ler a minha mente, porque posso ler a sua tão facilmente. A resposta para o seu problema é bem simples. Devemos esperar até o sol se pôr para você começar a sua jornada. Na volta, os meus filhos vão fazer uma cortina de neblina e magia, sombras e fumaça, para que as Trevas a ocultem.

Lynette ficou boquiaberta e manteve os pensamentos cuidadosamente em branco, sem saber o que dizer.

– Você não precisa ficar preocupada. Ficar oculta pelas trevas não machuca nem dói. Bem, eu deveria dizer que não vai machucar nem doer para você. Os meus filhos precisam ser alimentados. Nesta noite, um motorista de táxi vai ganhar mais do que uma boa gorjeta! – A risada de Neferet foi cruel e ensandecida.

Lynette ergueu a taça e tomou um grande gole.

– Agora, mande esses súditos desarrumados para os seus quartos. Da próxima vez que os vir, quero ficar encantada. – Neferet bateu as mãos depois de suas ordens, como se fosse um faraó dispensando os seus escravos. – Lynette, talvez seja melhor você trocar o seu vestido por uma calça e uma blusa escura. Eu odiaria se você ficasse acidentalmente exposta demais. Você está liberada até o crepúsculo.

– Sim, Deusa.

Lynette fez uma reverência e se afastou, trêmula, seguindo para o elevador que a levaria até o loft no quarto andar que Neferet lhe dera. Quando entrou no elevador, cobriu a boca com as duas mãos, abafando um grito que não conseguia controlar. Pela primeira vez, Lynette compreendeu que não havia como sobreviver à loucura de Neferet, que a questão não era se ela ia morrer, mas como e quando.


C O N T I N U A

Nunca me senti tão sombria assim.
Nem mesmo quando fui estilhaçada e presa no Mundo do Além e minha alma começou a se fragmentar. Naquela época, eu estava quebrada, destruída e prestes a me perder para sempre. Eu me sentia sombria por dentro, mas as pessoas que mais me amavam foram faróis lindos e brilhantes de esperança, e eu fui capaz de encontrar força em sua luz. Consegui sair da escuridão.
Desta vez, eu não tinha nenhuma esperança. Não conseguia encontrar uma luz. Eu merecia continuar perdida, despedaçada. Desta vez, eu não merecia ser salva.
O Detetive Marx me levou para a delegacia do condado de Tulsa em vez de me jogar numa cela com o resto dos criminosos presos há pouco tempo. Na viagem aparentemente interminável da Morada da Noite até o grande prédio de pedra marrom do Departamento de Polícia da First Street ele conversou comigo, explicando que tinha feito uma ligação e mexido uns pauzinhos para que eu ficasse em uma cela especial até que o meu advogado tomasse as devidas providências sobre minha acusação, e então eu poderia ser solta sob fiança. Ele alternava o olhar entre a estrada e o meu reflexo no espelho retrovisor. Meu olhar encontrou o dele. Não precisei de mais do que um olhar de relance para ler a expressão em seu rosto.
Ele sabia que eu não tinha a menor chance de conseguir sair sob fiança.
– Eu não preciso de um advogado – disse eu. – E não quero fiança.
– Zoey, você não está pensando direito. Espere um pouco. Acredite em mim, você vai precisar de um advogado. E, se puder sair sob fiança, será o melhor para você.
– Mas não seria o melhor para Tulsa. Ninguém vai deixar um monstro à solta. – Minha voz soou estável e indiferente, mas por dentro eu estava gritando.
– Você não é um monstro – assegurou-me Marx.
– Você viu aqueles dois homens que eu matei?

 


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Ele me lançou um olhar pelo retrovisor de novo e assentiu. Eu podia ver que seus lábios estavam pressionados, formando uma linha, como se estivesse se segurando para não dizer algo. Por algum motivo, seu olhar ainda era bondoso. Eu não conseguia retribuir aquele olhar.

Olhando pela janela, eu disse:

– Então, você sabe o que eu sou. Você pode me chamar de monstro, de assassina, de vampira novata e perigosa... É tudo a mesma coisa. Eu mereço ser presa. Eu mereço o que vai acontecer comigo.

Então, ele desistiu de conversar, e eu fiquei satisfeita.

Uma cerca de ferro preta cercava o estacionamento da delegacia de polícia, e Marx seguiu até um portão nos fundos onde precisava esperar para ser identificado antes de um enorme portão se abrir. Então, ele estacionou e me conduziu, algemada, por uma porta nos fundos e por uma grande e agitada sala toda dividida em cubículos. Quando entramos, policiais conversavam e telefones tocavam. Assim que perceberam que Marx estava comigo, foi como se tudo tivesse sido desligado. As conversas cessaram e todos nos fitaram como idiotas.

Fixei o olhar em um ponto na parede bem na minha frente e me concentrei para não permitir que os gritos dentro de mim ecoassem.

Tivemos de atravessar toda a sala. Então passamos por uma porta que levava a uma daquelas salas como as do seriado Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais , em que a incrível Mariska Hargitay interroga os bandidos.

Fiquei sobressaltada ao perceber que o que eu fizera me transformara em um dos bandidos.

Havia uma porta no canto da sala que levava a um pequeno corredor. Marx virou à esquerda e parou para passar seu crachá de identificação, e uma porta de aço muito grossa se abriu. Do outro lado, o corredor logo acabava. Havia outra porta de metal à nossa direita, que estava aberta. A parte de baixo era sólida, mas, na altura dos ombros, as grades começavam. Grades pretas e grossas. Foi onde o Detetive Marx parou. Olhei para dentro. O lugar era uma tumba. De repente, senti dificuldade para respirar, e meus olhos desviaram do lugar horrível para encontrar o rosto familiar de Marx.

– Com o poder que você tem, imagino que consiga fugir daqui – ele falou baixinho, como se alguém pudesse estar nos escutando.

– Eu deixei a pedra da vidência na Morada da Noite. Foi isso que me deu o poder para matar aqueles dois homens.

– Então, você não os matou sozinha?

– Eu fiquei furiosa e despejei toda a minha fúria neles. A pedra da vidência só me deu o estímulo. Detetive Marx, a culpa foi minha. Ponto final.

Tentei soar durona e certa do que estava falando, mas a minha voz saiu suave e trêmula.

– Você consegue fugir daqui, Zoey?

– Para ser honesta, eu não sei, mas prometo que não vou tentar. – Respirei fundo e soltei todo o ar de uma vez, dizendo a ele a mais absoluta verdade. – Por causa do que eu fiz, meu lugar é aqui, e independentemente do que aconteça comigo, eu mereço.

– Bem, eu prometo que ninguém vai conseguir incomodá-la aqui. Você estará segura – garantiu ele, gentil. – Eu mesmo me certifiquei disso. Então, o que vier a acontecer, não será porque levou uma surra de linchadores.

– Obrigada.

Minha voz estava fraca, mas consegui pronunciar as palavras.

Ele tirou de mim as algemas.

Eu não tinha conseguido me mexer ainda.

– Você precisa entrar na cela agora.

Consegui fazer com que meus pés se mexessem. Quando eu estava dentro da cela, virei-me e, pouco antes de ele fechar a porta, eu disse:

– Não quero ver ninguém. Especialmente se for da Morada da Noite.

– Tem certeza?

– Tenho.

– Você entende o que está dizendo, não entende? – perguntou ele.

Eu assenti.

– Eu sei o que acontece com uma novata que não fica perto de vampiros.

– Então, basicamente, você está dando a sua própria sentença.

Ele não formulou como uma pergunta, mas eu respondi mesmo assim.

– O que eu estou fazendo é me responsabilizar pelos meus atos.

Ele hesitou, e pareceu que havia mais alguma coisa que desejava dizer, mas Marx apenas deu de ombros, suspirou e concordou:

– Certo, então. Boa sorte, Zoey. Sinto muito que as coisas tenham chegado a esse ponto.

A porta se fechou como que selando um caixão.

Não havia janela, nenhuma luz exterior exceto a do corredor que espreitava por entre as barras da porta. No fundo da cela havia uma cama: um colchão fino em cima de placa de alguma coisa dura grudada na parede. Havia um vaso sanitário de alumínio saindo do meio de uma parede paralela, não muito longe da cama. Não tinha tampa. O chão era de concreto preto. As paredes eram cinza. Sentindo-me como se estivesse em um pesadelo, andei até a cama.

Seis passos. Esse era o comprimento da cela. Seis passos.

Fui até a parede lateral e caminhei pela cela. Cinco passos. Tinha cinco passos de largura.

Eu estava certa. Se não contasse a distância para o teto, eu estava trancada em uma tumba do tamanho de um caixão.

Sentei-me na cama, puxei os joelhos até embaixo do queixo e abracei-os. Meu corpo tremia, tremia e tremia.

Eu ia morrer.

Eu não consegui me lembrar se Oklahoma tinha pena de morte. Como se eu tivesse realmente prestado atenção às aulas de História enquanto o Treinador Fitz passava um filme atrás do outro. Mas, de qualquer forma, isso não importava. Eu deixara a Morada da Noite. Sozinha. Sem nenhum vampiro. Nem mesmo o Detetive Marx sabia o que isso significava. Era só uma questão de tempo até meu corpo começar a rejeitar a Transformação.

Como se eu tivesse rebobinado um filme em minha mente, imagens de novatas morrendo apareceram na tela dos meus olhos fechados: Elliot, Stevie, Rae, Stark, Erin...

Apertei meus olhos ainda mais.

Acontece rápido. Rápido mesmo , prometi para mim mesma.

Então, outra cena de morte surgiu nas minhas lembranças. Dois homens – mendigos, insolentes, mas vivos, até que não consegui controlar o meu temperamento. Eu me lembrava de como atirara a minha raiva contra eles... de como eles bateram contra o paredão de pedra ao lado da pequena gruta de Woodward Park... de como ficaram deitados lá, dobrados, quebrados...

Mas eles estavam se mexendo! Eu não achei que os tivesse matado! Não tinha a intenção de matá-los! Fora realmente um terrível acidente! Minha mente gritava.

– Não! – falei com firmeza para a parte egoísta de mim que queria inventar desculpas e fugir das consequências. – As pessoas têm convulsões quando estão morrendo. Eles estão mortos porque eu os matei. Não vai compensar o que fiz, mas mereço morrer.

Eu me encolhi embaixo do áspero cobertor cinza e fitei a parede. Ignorei a bandeja com o jantar que enfiaram por uma abertura na porta. Eu não estava com fome, mas independentemente do que houvesse na bandeja, definitivamente não me apeteceria.

E, por alguma razão, a refeição ruim fez com que eu me lembrasse da última vez em que senti um cheiro maravilhoso de comida: o psaguetti [*] da Morada da Noite, cercada de amigos.

Mas eu estava estressada demais com o problema Aurox/Heath/Stark e nem apreciei o psaguetti de verdade. Assim como não apreciei os meus amigos. Nem Stark. Não mesmo.

Eu não tinha parado para pensar como era sortuda por dois caras tão incríveis me amarem. Em vez disso, eu ficara irada e frustrada.

Pensei em Aphrodite. Lembrei-me de como ela falou com Shaylin sobre me vigiar. Lembrei-me de como entrei furiosa e despejei o poder da minha fúria acumulada através da pedra da vidência.

A lembrança fez com que eu me encolhesse de vergonha.

Aphrodite estava absolutamente certa. Eu precisava ser vigiada. Ela sequer teve a chance de conversar comigo. E, quando tentou, droga, eu não fui nem um pouco razoável.

Eu me encolhi de novo quando me lembrei de como cheguei perto de despejar a minha raiva contra Aphrodite.

– Aiminhadeusa ! Se eu tivesse feito isso, teria matado a minha amiga – disse para as palmas das minhas mãos enquanto cobria o rosto de vergonha.

Não importava que a pedra da vidência, de alguma forma, mesmo sem eu pedir, tivesse aumentado meus poderes. Tive muitos avisos. Todas aquelas vezes em que me irritava e a pedra ficava cada vez mais quente. Por que não parei e refleti sobre o que estava acontecendo? Por que não pedi a ajuda de alguém? Cheguei a pedir conselhos a Lenobia sobre namorados. Conselho sobre namorados! Devia ter perguntado sobre como controlar raiva!

Mas eu não pedia ajuda para nada, exceto para a única coisa em que a minha visão afunilada estava focada: em mim mesma.

Eu era uma vadia egocêntrica.

Eu merecia estar onde estava. Eu merecia as consequências.

As luzes do corredor se apagaram. Não fazia ideia de que horas eram. Parecia ter se passado anos, e não apenas meses, desde que eu fora humana – uma adolescente normal que tinha que ir para a cama muito cedo nos dias de aula.

Eu desejava, com todas as minhas forças, poder chamar o Super­-Homem e pedir que ele voasse na direção contrária em volta da Terra para fazer o tempo voltar para ontem. Então, eu estaria em casa, na Morada da Noite, com meus amigos. Eu me jogaria nos braços de Stark e diria a ele o quanto o amo e sou grata por tê-lo. Diria que sinto muito pela confusão com Aurox/Heath, e que sairíamos dessa – nós, as duas pessoas e meia envolvidas –, mas que eu desfrutaria de todo o amor que me cercava, independentemente de qualquer coisa. Depois, me livraria da maldita pedra da vidência, procuraria Aphrodite e entregaria a ela para que fosse mantida em segurança, como se ela fosse o meu Frodo.

Mas era tarde demais para desejos. Voltar no tempo era só uma fantasia. O Super-Homem não era real.

Não dormi. Era noite, e a noite se tornara o meu dia. Neste momento, eu deveria estar na escola com meus amigos, vivendo a minha vida, tendo um “dia” normal (para mim), em vez de estar aqui, encolhida. Eu deveria ter sido mais esperta. Mais forte. Deveria ter sido qualquer coisa, menos uma pirralha egoísta.

Horas depois, ouvi a portinhola se abrir de novo, e quando me virei, vi que alguém levara a minha bandeja intocada. Bom. Talvez o cheiro também fosse embora.

Eu precisava fazer xixi, mas não queria. Não queria usar o vaso sem tampa que saía da parede no meio da cela. Olhei para os cantos das paredes, no ponto de encontro com o teto. Câmeras.

Era legal guardas verem prisioneiros fazerem xixi?

As regras regulares se aplicavam a mim? Quero dizer, eu nunca ouvira falar de um novato ou vampiro ser julgado por um tribunal humano nem ir para uma prisão humana.

Não preciso me preocupar com isso. Vou me afogar no meu próprio sangue antes de ir a julgamento.

Por mais estranho que possa parecer, esse pensamento era um conforto, e quando a luz do corredor se acendeu, caí num sono agitado e sem sonho.

Para mim, pareceu que dez segundos depois, a portinhola se abriu de novo e outra bandeja de alumínio foi empurrada para dentro da minha cela. O barulho me fez acordar assustada, mas ainda estava grogue, ainda tentando voltar a dormir – até que o cheiro de ovos e bacon me deixou com água na boca. Há quanto tempo eu não comia? Nossa, me sentia péssima. Ainda sem enxergar direito, andei os seis passos até a porta, pegando a bandeja e levando com cuidado para a minha cama desarrumada.

Os ovos estavam mexidos e supermolhados. O bacon, duro como um pedaço de pau. Havia café, uma caixa de leite e uma torrada pura.

Eu daria praticamente qualquer coisa por uma tigela de cereal Count Chocula e uma lata de refrigerante.

Dei uma garfada nos ovos, mas estavam tão salgados que quase engasguei.

Mas, em vez engasgar, comecei a tossir. Naquela tosse terrível, senti alguma coisa metálica, pegajosa, quente e estranhamente maravilhosa.

Era o meu próprio sangue.

O medo tomou conta de mim, deixando-me fraca, tonta e nauseada. Está acontecendo tão rápido? Eu não estou pronta! Não estou pronta!

Tentando limpar a minha garganta, tentando respirar, cuspi os ovos, ignorei o tingimento rosado no amarelo gorduroso, coloquei a bandeja no chão e me encolhi na cama, passando os braços em volta de mim mesma e esperando por mais tosse e sangue – muito mais sangue. Minhas mãos estavam tremendo quando enxuguei meus lábios.

Eu estava com tanto medo!

Não fique , disse para mim mesma enquanto tentava prender uma tosse terrível. Logo você verá Nyx. E Jack. E talvez até Dragon e Anastasia.

E mamãe!

Mãe... de repente, desejei a presença de minha mãe com todas as forças do meu ser.

– Eu gostaria de não estar sozinha – sussurrei com uma voz grave, a boca grudada no colchão fino e duro.

Escutei a porta se abrindo, mas não me virei. Não queria ver a expressão horrorizada de um estranho. Fechei os olhos bem apertados e tentei fingir que estava na fazenda de lavanda da Vovó, dormindo no meu quarto lá. Tentei fingir que o cheiro dos ovos com bacon era da comida dela, e que a minha tosse era apenas uma gripe que me impedia de ir à escola.

E eu estava fazendo isso! Ah, obrigada, Nyx! De repente, juro que consegui sentir os aromas que sempre se espalhavam na casa da Vovó, lavanda e capim. Isso me deu a coragem para falar logo, antes que a minha voz ficasse sufocada pelo sangue, para quem quer que estivesse ali:

– Tudo bem. Isso é o que acontece com alguns novatos. Por favor, vá embora e me deixe em paz.

– Ah, Zoey Passarinha, minha preciosa u-we-tsi-a-ge-ya , a esta altura você já deveria saber que eu nunca vou deixá-la sozinha.

[*] Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)


2

Zoey

Achei que ela fosse parte da minha alucinação agonizante, parada ali na porta da cela, usando uma camisa de linho roxa e jeans gastos, com uma cesta de piquenique pendurada no braço. Mas assim que me virei para encará-la, ela correu até mim, sentando-se na beirada da cama e me envolvendo em seus braços e nos cheiros da minha infância.

– Vovó! Eu sinto muito! Sinto muito! – Soluçava em seu ombro.

– Shhh, u-we-tsi-a-ge-ya , estou aqui. – Ela passava a mão em círculos nas minhas costas.

A minha tosse amenizou temporariamente, então eu disse logo:

– Eu sei que estou sendo egoísta, mas estou tão feliz que esteja aqui. Eu não quero morrer sozinha.

Vovó se afastou de mim o suficiente para me pegar pelos ombros e me sacudir.

– Zoey Redbird, você não vai morrer.

Lágrimas escorreram pelo meu rosto. Eu as ignorei e enxuguei o canto da minha boca, estendendo meus dedos trêmulos para que ela pudesse ver o sangue.

Ela mal olhou para a prova que eu estava tentando lhe mostrar. Em vez disso, abriu a cesta de piquenique, tirou um guardanapo xadrez vermelho e branco e começou a enxugar as minhas lágrimas e meu nariz, exatamente como fazia quando eu era apenas uma menininha.

– Vovó, eu sei que você me ama mais do que qualquer pessoa no mundo – comecei, tentando (sem sucesso) não chorar. – Mas você não pode impedir que meu corpo rejeite a Transformação.

– Você está certa, u-we-tsi-a-ge-ya , eu não posso. Mas eles podem. – Ela apontou para a porta atrás de mim.

Virei-me e vi Thanatos e Lenobia, Stevie Rae, Darius e Stark – meu Stark –, todos apertados na porta. Stevie Rae estava chorando tão alto que não sei como não havia escutado antes.

Stark também estava chorando, mas em silêncio.

– Mas eu disse para não virem atrás de mim! Eu disse que mereço enfrentar as consequências. – Chorava tanto quanto Stevie Rae agora.

– Então, viva e enfrente as consequências! E eu estarei bem aqui, o mais perto possível de você para passar pela coisa toda! – Stark atirou as palavras em mim.

– Eu não posso. Já comecei a rejeitar a Transformação – contei soluçando.

– Menina, a sua avó falou a verdade. A não ser que a rejeição do seu corpo já esteja determinada, nossa presença vai impedi-la – afirmou Thanatos.

– Você não vai morrer! Eu não vou deixar! – gritou Stark aos prantos, e começou a entrar na minha cela.

– Espere aí, rapaz! Eu disse que só um de cada vez pode entrar na cela. – Um cara com uniforme policial veio de trás do meu grupo de amigos e se colocou entre eles e a minha cela. – O Detetive Marx me disse que eu deveria permitir a entrada de vocês, vampiros, no prédio se aparecessem, mas não vou quebrar as regras e deixar mais de um visitante por vez. A avó é da família. O resto de vocês pode esperar na sala de interrogatório. – Ele lançou um olhar sério para a minha avó. – A senhora tem quinze minutos. – Então, bateu a porta.

– Quinze minutos. – Vovó emitiu um ruído de descontentamento. – Isso não é uma visita apropriada. Esse é o tempo de cozinhar um ovo. Que rapaz sem coração. Bem, não vou ficar aqui perdendo tempo. Zoey Passarinha, assoe o nariz e fique de pé. Você precisa de uma boa defumação. Ah, os cavalheiros que revistaram a cesta fizeram uma bagunça.

Ela já estava mexendo dentro da cesta de piquenique sem fundo, por isso precisei segurar suas mãos nas minhas para que parasse e prestasse a atenção em mim.

– Vovó, eu amo você. Você sabe, não sabe?

– Claro, u-we-tsi-a-ge-ya. E eu amo você, de todo o coração. É por isso que preciso te defumar. Gostaria que tivesse uma banheira aqui, ou mesmo uma pia, para ajudar ainda mais na purificação. Mas a defumação vai ter que ser o suficiente. Trabalhei a noite toda e finalmente escolhi defumar você com essa concha de ostra que nós duas pegamos quando seguimos o Rio Mississipi até o Golfo no verão em que você completou dez anos. Lembra?

– Claro que lembro, Vovó, mas...

– Bom. Moí e misturei sálvia, cedro e lavanda. Combinados, eles formam um poderoso defumador para purificação emocional e física. – Ela estava derramando as ervas secas de uma bolsinha de veludo preta para a concha de ostra. – Eu também trouxe uma pena de águia e minha peça favorita de turquesa. Sei que eles podem tentar tirar de você, mas vamos tentar esconder dentro do colchão. Vai servir para protegê-la enquanto...

– Vovó, por favor, pare – interrompi. Encontrando o seu olhar sem nem piscar, eu disse: – Eu matei aqueles dois homens. Não mereço ser purificada nem protegida. Mereço o que estava acontecendo comigo antes de todos vocês aparecerem.

Minha intenção não era ser tão fria, mas minhas palavras fizeram com que ela hesitasse. Então, suavizei a minha voz, mas não a minha decisão.

– Os vampiros podem ter evitado que me afogasse no meu próprio sangue, mas isso não muda o fato de que eu fiz uma coisa terrível, uma coisa pela qual preciso ser punida.

Ela parou de preparar a minha defumação e seus olhos penetrantes encontraram os meus.

– Diga-me, u-we-tsi-a-ge-ya , por que você matou aqueles homens?

Balancei a cabeça e afastei o cabelo despenteado do meu rosto.

– Eu não sabia que os tinha matado até o Detetive Marx aparecer na Morada da Noite. Eu só sabia que eles tinham me enfurecido. Estavam perambulando por Woodward Park atrás de pessoas, principalmente garotas, amedrontando-as para que lhes dessem dinheiro. – Parei e meneei a cabeça de novo. – Mas isso não torna o que eu fiz aceitável. Quando dessem conta do que eu era, me deixariam em paz.

– E iam seguir até encontrar outra vítima.

– Provavelmente, mas não iam matar. Eles eram mendigos, não serial killers.

– Então, me conte o que aconteceu. Como você os matou?

– Descontei minha raiva neles. Da mesma forma que tinha feito com Shaylin mais cedo, atirando-a no chão. Só que eu fiquei ainda mais furiosa no parque. De algum jeito, a pedra da vidência exacerbou os meus sentimentos e me deu o poder de atacar todos eles.

– Mas você não matou Shaylin – considerou Vovó, sendo lógica. – Eu vi a menina na Morada da Noite um pouco antes de vir para cá. Ela me pareceu bem viva.

– Não, eu não a matei. Não dessa vez. Quem sabe o que poderia ter acontecido se eu não tivesse ido embora e seguido para o parque, e descontado a minha fúria naqueles dois homens? Vovó, eu estava descontrolada. Eu era um monstro.

– Zoey, você fez uma coisa monstruosa. Mas isso não faz de você um monstro. Você se entregou. Desistiu da pedra da vidência. Permitiu que a prendessem. Esses não são os atos de um monstro.

– Mas, Vovó, eu matei dois homens! – Senti meus olhos marejarem de novo.

– E agora você vai ter que enfrentar as consequências dos seus atos. Mas isso não significa que você deva desistir e causar ainda mais sofrimento para as pessoas que amam você.

Mordi meus lábios.

– Meu intuito é assumir minhas responsabilidades para não machucar mais ninguém, principalmente as pessoas que eu amo.

– Zoey Passarinha, não sei por que essa coisa terrível aconteceu. Eu não acredito que você seja uma assassina. – Ela ergueu a mão para que não a interrompesse quando tentei falar. – Sim, eu tenho consciência de que os dois homens estão mortos, e que você parece ser responsável pela morte deles. Ainda assim, você mesma admite que a pedra da vidência teve um papel decisivo no acidente, o que significa que a magia antiga está em ação.

– É verdade, eu estava usando a pedra – admiti.

– Ou ela estava usando você – contradisse ela.

– De qualquer forma, os resultados são os mesmos.

– Para os dois homens. Mas não necessariamente para você, u-we-tsi-a-ge-ya. Agora, fique de pé na minha frente. Você precisa que a sua mente seja clareada e seu espírito purificado para que possa analisar exatamente o que a trouxe para esta cela. Veja, não estou aqui para ajudá-la a se esconder do que fez. Estou aqui para que possa verdadeiramente encarar o que aconteceu.

Como sempre, Vovó era a voz da razão e do amor incondicional. Fiquei de pé e me permiti o breve conforto de vê-la pegar a concha com uma das mãos enquanto, com a outra, colocava um pequeno pedaço arredondado de carvão em cima da mistura de ervas e acendia. Conforme faiscava, ela disse:

– Respire fundo três vezes, u-we-tsi-a-ge-ya . E, a cada vez que o fizer, solte a energia tóxica que anuvia a sua mente e escurece o seu espírito. Visualize, Zoey Passarinha. Qual é a cor?

– Um verde asqueroso – respondi, pensando na coisa nojenta que saiu do meu nariz da última vez em que tive sinusite.

– Excelente. Expire e visualize que está se livrando disso junto com a sua respiração.

O carvão parara de faiscar e estava ficando cinza nas beiradas. Vovó pegou a bolsinha de veludo preta e começou a salpicar as ervas sobre o carvão dizendo:

– Eu lhe agradeço, espírito da sálvia branca, por sua força, sua pureza, seu poder. – Uma fumaça branca começou a subir da concha de ostra. – Eu agradeço a você, espírito do cedro, por sua divina natureza, por sua capacidade de criar uma ponte entre este Mundo e o Mundo do Além.

Mais fumaça subia, e eu inspirava e expirava.

– E, como sempre, agradeço ao espírito da lavanda, por sua natureza apaziguadora, por sua capacidade de nos permitir liberar a nossa raiva e alcançar a paz. – Então, Vovó começou a andar em volta de mim em sentido horário, batendo os seus pés em um ritmo pulsante, ancestral, que parecia eletrificar a fumaça aromatizada e impulsioná-la para dentro do meu corpo, conforme ela abanava em volta de mim com a pena de águia. Sem perder um passo de sua dança, a voz de Vovó se pareou aos seus movimentos, ecoando através do sangue dela para o meu. – Saia o que é tóxico, que é verde como bile. Entre a fumaça doce, prateada e pura.

Concentrei-me enquanto ela se movia à minha volta, entrando no ritual com a mesma facilidade que fizera por toda a minha infância.

– Inale a cura. Inale a purificação. Inale a calma. A bile verde embora irá. Substituída pela prata e pela claridade – cantava Vovó.

Levantei as mãos, guiando a fumaça em volta da minha cabeça, concentrando-me na purificação prateada.

– O-s-da – continuou Vovó, repetindo logo depois em nossa língua: – Bom, você está recuperando o seu centro.

Entrei em um estado sonolento, de transe, levada pela fumaça e pelo canto da Vovó. Pisquei, como se estivesse emergindo de um mergulho profundo, e meus olhos se arregalaram de surpresa. Claramente visível através da fumaça havia uma luz prateada brilhante que, como uma bolha, nos envolvia, a mim e a Vovó.

– Isso é o que você está projetando agora, Zoey Passarinha. Isso tomou o lugar das Trevas que estavam dentro de você.

Respirei fundo de novo, sentindo uma leveza surpreendente em meu peito. O aperto terrível que estivera ali desde que comecei a tossir sumiu. A sensação de desespero que estava dentro de mim também desapareceu...

Por quanto tempo? , perguntei-me. Agora que tinha ido embora, eu percebia o quanto aquilo era opressor.

Vovó tinha parado na minha frente. Colocou a concha de ostra entre nossos pés e segurou as minhas mãos.

– Eu não sei de tudo. Não tenho as respostas que você procura. Não posso fazer nada além de purificar e curar a sua mente e o seu espírito. Não posso tirá-la deste lugar nem mudar o passado que a trouxe para cá. Só posso amá-la e lembrá-la desta regrinha segundo a qual tentei viver a minha vida: não posso controlar os outros. Só posso controlar a mim mesma e as minhas reações aos outros. E, quando tudo o mais dá errado, eu escolho a bondade. Mostro compaixão. Então, se fiz escolhas ruins, pelo menos não causei danos ao meu espírito.

– Eu fracassei nisso, Vovó.

– Fracassei... isso é passado, e você deve deixar esse fracasso no passado, que é onde ele deve ficar. Aprenda com os seus erros e siga em frente. Não fracasse de novo, u-we-tsi-a-ge-ya. Isso significa que se você precisar enfrentar o julgamento e for para a prisão por causa dessa coisa terrível que aconteceu, então você fará isso falando a verdade e agindo com compaixão, assim como faria uma Grande Sacerdotisa da sua Deusa.

– Eu deveria afastar as pessoas que me amam. – Não disse isso como uma pergunta, mas Vovó me respondeu mesmo assim.

– Afastar as pessoas que a amam e se interessam verdadeiramente por você seria a ação infantil, e não de uma Grande Sacerdotisa.

– Vó, você acha que Nyx ainda quer que eu seja uma Grande Sacerdotisa?

Vovó sorriu.

– Acho, mas a minha opinião não é importante. O que você acha da sua Deusa, Zoey? Você acha que ela é tão volúvel que a amaria e depois a descartaria tão facilmente?

– Não estou questionando Nyx, e sim a mim mesma – admiti.

– Então, deve olhar para si mesma. Manter-se firme no seu centro. – Ela pegou a pedra turquesa que retirara da cesta de piquenique mais cedo e colocou-a em minha mão. – Você usou a pedra da vidência para concentrar seus poderes, querendo ou não. Agora, acredito que tenha que encontrar um foco dentro de você. Assim como a turquesa tem seu próprio poder protetor, você deve encontrar o seu próprio, dentro de si. Desta vez, não procure raiva, Zoey Passarinha. Procure compaixão e amor.

– Sempre amor – terminei por ela, pegando a pedra na minha mão e sentindo a sua maciez.

– Segure-se ao seu verdadeiro eu como está segurando esta pedra, e lembre-se de que sempre vou acreditar que você é mais forte, mais sábia e mais bondosa do que pensa ser.

Coloquei os braços em volta dela e abracei-a com força.

– Eu amo você, Vovó. Sempre amarei.

– Assim como eu sempre amarei você.

– Acabou o tempo! – A voz do guarda fez com que eu, relutantemente, soltasse Vovó. – Ei, o que está acontecendo aqui? O que vocês estavam queimando?

Vovó virou-se para ele, sorriu, e com sua voz mais doce, disse:

– Nada com o que você precise se preocupar, querido. Apenas um pouco de limpeza e purificação. Você gosta de biscoitos com gotas de chocolate? Tenho um ingrediente secreto que faz com que os meus fiquem irresistíveis, e, por acaso, tenho uma dúzia aqui na minha cesta. – Dando um tapinha no braço dele, ela acompanhou-o pela porta, levantando um prato de papel cheio de biscoitos de sua cesta mágica e piscando para mim por sobre o ombro. – Agora, querido, por que não arranja um café para acompanhar esses biscoitos enquanto chama o jovem e generoso vampiro chamado Stark para entrar e visitar a minha neta?

Stark!

Sentei-me na cama, endireitando minhas roupas nervosamente e tentando pentear o meu cabelo superdoido com os dedos. E, então, ele estava na porta, e me esqueci da aparência. Eu me esqueci de tudo, exceto de como estava feliz em vê-lo.

– Posso entrar? – perguntou ele, hesitante.

Assenti.

Não esperei que ele desse aqueles seis passos até mim. Não podia esperar nem mais um segundo. Assim que ele se aproximou, atirei-me em seus braços e enterrei meu rosto em seu ombro.

– Eu sinto muito! Não me odeie... por favor, não me odeie!

– Como eu poderia odiar você? – Ele me abraçou com tanta força que era difícil respirar, mas não liguei. – Você é a minha rainha, a minha Grande Sacerdotisa e meu amor... meu único amor. – Ele se afastou de mim apenas o suficiente para me olhar diretamente nos olhos. – Você não pode se suicidar. Eu não conseguiria sobreviver a isso, Zoey. Juro que não.

Havia círculos escuros embaixo de seus olhos, e suas tatuagens vermelhas de vampiro pareciam especialmente brilhantes contra a pele anormalmente pálida. Parecia que ele tinha envelhecido uma década em um dia.

Odiei vê-lo com aparência cansada e doentia. Odiei ser a causa disso.

Encontrei seu olhar e falei com toda gentileza e compaixão dentro de mim:

– Isso foi um erro. Não o cometerei de novo. Desculpe-me ter feito você passar por tudo isso. – Apontei para a cela.

Ele tocou meu rosto com gentileza, quase reverência.

– Para onde você for, eu vou. Nós fizemos um juramento para esta vida e além, Zoey Redbird. E tudo isso é suportável se tivermos um ao outro. Nós ainda temos um ao outro?

– Temos sim.

Eu o beijei, longa e apaixonadamente. Achei que eu o estivesse confortando, mas percebi que seu toque, seu beijo e seu amor é que estavam me confortando.

Foi naquele momento que realmente compreendi o quanto amo Stark.

– Está vendo? – perguntou ele, cobrindo meu rosto de beijos e enxugando as lágrimas que escorriam. – Está tudo melhor agora. Tudo vai ficar bem.

Eu não quis falar para ele que não tinha tanta certeza de que algum dia as coisas voltariam a ficar bem. Isso não seria compaixão. Em vez disso, levei-o até a minha cama estreita e dura. Nós nos sentamos e eu me aconcheguei nele, repousando em seu braço.

– Nós vamos nos revezar para ficar aqui de modo que você não volte a rejeitar a Transformação. De hoje em diante, sempre haverá um vampiro do lado de fora desta porta – Stark começou a explicar baixinho enquanto me abraçava bem apertado. – Vão colocar uma cama portátil no corredor.

– Mesmo? Você vai ficar assim tão perto de mim?

– Vou, o Detetive Marx fez com que permitissem que eu ficasse. Ele é um cara muito legal. Ele disse ao chefe de polícia que não permitir que um vampiro fique com você seria a mesma coisa que dar uma lâmina de barbear a um prisioneiro humano e depois fazer vista grossa para o que ele fizesse depois. Ele disse que isso era desumano e que, ao se entregar, você tinha os mesmos direitos que qualquer outro humano.

– Isso foi legal da parte dele. – De repente, percebi que horas deviam ser, meio-dia pelo menos. – Espere, você não devia estar aqui. Está claro lá fora. – Sentei-me e comecei a procurar queimaduras em seu corpo.

Ele sorriu.

– Estou bem. Stevie Rae também. Viemos para cá na parte de trás da van da escola, aquela sem janelas.

Assenti e sorri.

– A van de Chester the Molester. [*]

– Isso, é assim que eu me locomovo agora. – O sorriso dele ficou presunçoso. – Marx deixou que estacionássemos na garagem coberta ao lado da delegacia. Nenhum raio de sol tocou em nós.

– Tome cuidado, ok?

Ele ergueu as sobrancelhas.

– É sério isso? Você está me mandando tomar cuidado?

– Estou pedindo, na verdade – corrigi, lembrando-me de ser generosa.

Ele riu e me abraçou.

– Zoey Redbird, você está toda desarrumada, mas continua linda, e eu amo você.

– Eu também amo você.

Logo ele me soltou e seu rosto assumiu uma expressão mais séria.

– Tudo bem, quero que você me conte tudo. Já sei que você ficou furiosa com dois humanos e lançou algum tipo de poder neles, mas eu preciso de detalhes.

– Stark, será que não podemos simplesmente... – comecei, não querendo desperdiçar um segundo do meu tempo com ele para falar do terrível erro que cometi.

Ele me cortou.

– Não podemos simplesmente ignorar. Zoey, você pode ser um monte de coisas, mas assassina não é uma delas.

– Joguei dois caras contra o muro, e eles estão mortos. Isso me torna uma assassina, Stark.

– Veja bem, acho que eu tenho um problema com isso. Acho que isso torna a sua pedra da vidência uma assassina. Foi por isso que você a entregou para Aphrodite, não foi? Porque foi o que canalizou a sua fúria para aqueles dois caras.

Estava prestes a abrir a boca para tentar explicar para ele o que eu mesma não compreendia, mas o som de passos no corredor me interrompeu. O guarda, com rosto vermelho e olhos arregalados, apareceu na porta.

– Vamos, vamos! Saia. Agora! – ordenou ele para Stark, apontando freneticamente para ele. – Um dos seus vampiros pode ficar, mas tem que ser aqui no corredor. O resto de vocês tem que dar o fora daqui... voltar para o lugar de vocês.

– Espere, não faz nem cinco minutos, muito menos quinze – argumentou Stark.

– Não posso fazer nada a respeito. Tem alguma coisa acontecendo no presídio. Uma emergência no centro da cidade.

Segui Stark até a porta, sentindo como se um cubo de gelo estivesse descendo pela minha espinha.

– Onde no centro da cidade? O que está acontecendo? – perguntei.

– Está um inferno no Mayo Hotel, e eles precisam de todos os policiais da cidade lá.

A porta da cela se fechou, permitindo que eu e Stark nos víssemos por entre as grades.

– Neferet – disse Stark.

– Ah, droga – respondi, concordando.

[*] “Chester the Molester” era uma tirinha de autoria de Dwaine B. Tinsley e publicada pela revista Hustler por 13 anos. A história gira em torno de um homem, Chester, interessado em molestar sexualmente mulheres e adolescentes. (N.T.)


3

Neferet

Era o meio da manhã de um domingo preguiçoso quando Neferet ordenou aos seus filamentos de Trevas que se abrissem para que pudesse ser levada da espessa nuvem de sangue e morte para a calçada em frente ao Mayo. Ela endireitou seu terninho Armani e jogou o cabelo castanho para trás. Neferet estava pronta para seu retorno triunfal à cobertura que a esperava com seus mármores, pedras e veludos no topo do prédio. Abriu a porta vintage de latão e vidro e parou assim que a atravessou, suspirando feliz para o vasto salão de baile que se abria à sua frente, resplandecente com seu mármore branco, colunas estatuárias, ornamentos grandiosos da década de 1920, e uma escadaria dupla que se curvava até a pista de dança com a graça do sorriso satisfeito de uma deusa.

Suas sobrancelhas castanhas se arquearam. Seu olhar cor de esmeralda se tornou mais penetrante. Neferet observou à sua volta com interesse renovado.

– Este realmente é um prédio requintado o suficiente para ser o templo de uma deusa. – Neferet sorriu. – Meu templo. Minha casa.

– Srta. Neferet! É realmente a senhora? Estávamos tão preocupados que alguma coisa tivesse acontecido quando destruíram a sua cobertura.

Neferet desviou o olhar do grande salão para a jovem que sorria para ela por trás do balcão da recepção.

– Meu templo. Minha casa. Meus súditos . – Ela sabia o que deveria fazer. Por que demorara tanto para pensar nisso? Possivelmente porque nunca absorvera tantas mortes ao mesmo tempo como acontecera poucos momentos antes de chegar ao Mayo. Assim como suas fiéis gavinhas, Neferet estava pulsando com poder, e esse poder tornava seu pensamento focado e claro.

– Isso, é exatamente assim que deve ser. Todos os humanos neste prédio devem me adorar.

– Desculpe-me, madame. Não entendi o que quis dizer.

– Ah, você vai entender. Em breve, entenderá. – O sorriso radiante da recepcionista começara a se apagar. Com um movimento sobrenatural, Neferet deslizou até ela. Viu o nome da garota no crachá dourado. – Sim, minha querida Kylee. Logo você me entenderá completamente. Mas, primeiro, você vai me dizer quantos hóspedes há neste momento no hotel.

– Sinto muito, madame – desculpou-se Kylee, parecendo totalmente constrangida. – Não posso fornecer essa informação. Talvez se a senhorita me disser do que precisa...

Neferet se inclinou, passando a mão pelo lindo balcão de mármore, interrompendo-a e capturando o olhar da garota.

– Você não me questionará. Você jamais me questionará. Fará exatamente o que eu mandar.

– Eu... Eu sinto muito, madame. Não quis ofendê-la, mas as informações sobre os hóspedes do hotel são confidenciais. Nós... Nós temos muito cuidado com a nossa p-política de privacidade – gaguejou ela, as mãos trêmulas de nervoso enquanto agarrava a corrente de ouro com um crucifixo junto ao pescoço.

Mesmo se Neferet não fosse vidente, perceberia a extensão do medo da garota – o que não impressionava a Deusa nem um pouco.

– Excelente! Agora que você vai seguir as minhas ordens, espero que seja ainda mais cuidadosa com privacidade, a minha privacidade.

– Desculpe, madame, a senhora está dizendo que comprou o Mayo Hotel? – A confusão de Kylee se intensificava junto com seu medo.

– Ah, muito melhor do que isso, e muito mais permanente. Decidi transformar este prédio encantador no meu primeiro Templo. Mas eu já não ordenei que você nunca me questionasse? – Neferet suspirou e emitiu um som de desaprovação. – Kylee, você vai ter que se esforçar mais no futuro. Mas não precisa preocupar essa sua cabecinha loura. Sou uma deusa bondosa. Pretendo lhe oferecer a ajuda de que precisar para que seja minha súdita perfeita.

Enquanto Kylee arfava como um peixe fora d’água, Neferet virou-se de costas para ela e encarou o mar de gavinhas que, embora não fossem vistas pela idiota da Kylee, espalhavam-se pelo piso de mármore e subiam carinhosamente por suas pernas.

– Filhos, vocês se alimentaram muito bem. Agora, está na hora de me pagarem pela minha generosidade. – Eles se retorceram, excitados, um ninho de víboras, e Neferet sorriu carinhosamente para elas. – Sim, eu lhes dei a minha palavra. Que foi só o começo do nosso banquete. Mas vocês precisam trabalhar em troca de comida. Eu me recuso a ter filhos vagabundos. – Ela deu uma gargalhada afetada. – Agora, um de vocês deve possuir esta humana. Não! Não a matem. – Neferet esclareceu, quando uma dúzia de gavinhas começou a se arrastar exaltadamente na direção de Kylee. – Sigam a minha mente até a dela. Usem minha trilha até seus pensamentos e desejos mais profundos, e fiquem lá, envolvam sua vontade e apertem. Mas não o suficiente para matá-la ou roubar o que se passa por sua razão. Não quero um Templo cheio de idiotas. Quero um Templo cheio de súditos obedientes. Possuam-na para que eu tenha certeza de sua obediência!

Neferet se virou para encarar a garota, cujo rosto perdera a cor de forma tão drástica que seus olhos castanhos pareciam hematomas.

– Srta. Neferet, por favor, não me machuque! – implorou ela, começando a chorar.

– Kylee, minha querida, minha primeira súdita humana, isso é realmente para o seu bem. O livre-arbítrio é um fardo terrível. Eu tinha livre-arbítrio quando era uma garota, pouco mais nova do que você; ainda assim, estava presa a uma vida de abuso que eu não tinha escolhido. É muito comum isso acontecer com humanos. Olhe para si própria: o emprego subalterno, a roupa precária. Você não quer mais da vida?

– Q-quero – respondeu Kylee.

– Bem, então temos um trato. Se eu tirar o seu livre-arbítrio, também vou afastar de você os terrores inesperados que a vida pode trazer. – Neferet fitou dentro dos olhos arregalados da garota e perfurou sua mente. Estava concentrada demais em Kylee para baixar o olhar, mas sabia que uma fiel e forte gavinha a obedecera e estava subindo pelo corpo da garota. Embora não conseguisse ver o que estava rastejando por suas pernas, Kylee certamente podia sentir. Abriu a boca e começou a gritar. – Acabem com o terror dela e entrem nela! – ordenou Neferet, e a gavinha entrou pela boca aberta.

Kylee começou a engasgar convulsivamente, e apenas o domínio de Neferet em sua mente evitou que desmaiasse.

– Tão humana. Tão fraca – murmurou a Deusa enquanto sondava a mente da garota, sentindo a familiar presença das Trevas seguindo. Quando encontrou o centro da vontade de Kylee, sua alma, sua consciência, Neferet ordenou: – Envolvam-na! – Com seu sentido extra, presente que recebera de outra Deusa mais de um século antes, Neferet testemunhou as Trevas aprisionarem a vontade de Kylee.

A garota caiu, seu corpo se contorcendo em espasmos.

– Lembrem-se bem da trilha que acabei de mostrar para vocês, filhos. Kylee é apenas a primeira de muitas. – Neferet bateu uma palma. – Levante-se, Kylee. Arrume-se, minha querida. A sua vida acaba de se tornar muito mais , e eu tenho outras ordens que você deve cumprir.

Kylee ficou de pé, como se fosse uma marionete manipulada por cordas.

– Isso, assim está muito melhor. Agora, me diga quantos hóspedes há no hotel, e lembre-se, nada mais daqueles gritos irritantes.

– Sim, madame – respondeu Kylee de forma instantânea e mecânica.

O sorriso de Neferet voltou. Ela estava transbordando poder! Os humanos deviam adorá-la – com a débil força de vontade deles e mentes facilmente manipuláveis, não tinham a menor chance.

– E pare de me chamar de madame. Quero que me chame de Deusa.

– Sim, Deusa – repetiu Kylee automaticamente, sua voz totalmente desprovida de emoção. Então, começou a digitar no teclado enquanto fitava, sem expressão, a tela do computador. – No momento, temos 72 hóspedes, Deusa.

– Muito bem, Kylee. E quantos moradores há?

– Cinquenta.

Com um dedo longo, Neferet levantou o queixo de Kylee para que ela a fitasse de novo.

– Cinquenta o quê?

Kylee estremeceu, tal qual um cavalo espantando insetos, mas seu olhar permaneceu aberto, inexpressivo, e ela se corrigiu imediatamente, dizendo:

– Cinquenta, Deusa.

– Muito bem, Kylee. Vou me recolher à minha cobertura. Lembre-se, este prédio agora é o meu Templo, e eu insisto em proteger a minha privacidade, assim como meu divino corpo. Entendeu?

– Sim, Deusa.

– Você compreende que isso significa que, se alguém vier me procurar, você dirá que tem certeza absoluta de que eu não estou aqui, e o mandará embora?

– Compreendo, Deusa.

– Kylee, você foi muito útil. Vou permitir que tenha uma vida longa o suficiente para me adorar adequadamente.

– Obrigada, Deusa.

– De nada, querida.

Neferet começou a deslizar na direção do elevador. Levantou a mão, chamando.

– Venham, meus filhos. Tenho a sensação de que vamos precisar redecorar.

Inchadas e pulsando com o sangue com o qual tinham acabado de se alimentar, as gavinhas das Trevas seguiram ansiosamente sua ama.

– Exatamente como pensei. Deixaram em ruínas! Isso é inaceitável. – Neferet andou em volta das cadeiras reviradas dos tapetes manchados da sala de estar que costumava ser uma cobertura meticulosa e luxuosamente decorada. – Sangue velho! Esta sala está fedendo a sangue. Limpem! – mandou ela. As gavinhas obedeceram, embora mais lentamente do que quando a refeição que ela oferecia era fresca. – Não sejam tão exigentes. Parte desse sangue é de Kalona. Mesmo velho, sangue imortal tem poder. – Isso pareceu animar as gavinhas e elas passaram a rastejar com mais entusiasmo.

Enquanto trabalhavam, Neferet dirigiu-se até a adega, apenas para encontrá-la vazia. Não restava uma garrafa sequer do escuro e caro cabernet que ela tanto adorava.

–Isso é o que acontece quando não estou aqui para ficar de olho naqueles humanos preguiçosos. Eles negligenciam suas tarefas. Estou sem vinho, e minha cobertura mais parece um matadouro!

O olhar irritado de Neferet foi de encontro à grande quantidade espalhada de poeira turquesa, vinda da jaula das Trevas, na qual suas gavinhas prenderam a entediantemente teimosa Sylvia Redbird.

– E aquilo! Sumam com aquele pó azul horrível. Macula toda a beleza do piso de ônix, ainda mais do que aqueles tapetes persas manchados.

Várias gavinhas tentaram obedecer à sua ordem, mas se esquivaram assustadas das partículas azuis, como se estas ainda tivessem o poder de afastá-las. A mais ousada delas seguiu pela pedra empoeirada, então estremeceu e se contraiu, sua carne escorregadia e emborrachada soltando fumaça e um líquido escuro e fétido. Neferet franziu a testa, acenando para a gavinha. Com uma unha afiada, ela perfurou a pele da palma de sua mão.

– Venha, alimente-se de mim e cure-se – murmurou ela, apreciando o toque gelado e doloroso da boca da gavinha, acariciando-a enquanto ela se alimentava, estremecendo sob seu toque.

– Isso nunca vai dar certo. Arrumar a bagunça deixada por humanos é muita humilhação para meus leais filhos. Súditos humanos devem limpar bagunças humanas, é disso que preciso, cumprindo as minhas ordens, facilitando o meu trabalho. E, felizmente, temos mais de cem deles sob este mesmo teto. Todos eles, exceto a tão útil Kylee, ainda não sabem o quanto ficarão assoberbados em breve. Hum... qual seria a melhor maneira de iniciar meus novos súditos?

Neferet sacudiu o braço para afastar a gavinha faminta.

– Não seja tão gulosa. Já está curada.

A gavinha se afastou. Neferet passou a mão pelo seu longo e esbelto pescoço, pensando. Precisava avaliar o melhor passo a dar, e precisava agir rápido.

Não deixara ninguém vivo na Church Boston Avenue, apenas centenas de corpos mutilados e sem sangue.

– As autoridades irão primeiro para a Morada da Noite, é claro. Thanatos insistirá que ninguém do seu rebanho impecável faria uma coisa daquelas. A velha vai jogar a culpa em mim. Acreditando nela ou não, mesmo a incompetente polícia local acabará vindo me procurar aqui. – Neferet tamborilou suas unhas longas e pontiagudas no balcão de mármore preto de sua adega vazia. Não tinha muito tempo ao seu dispor, a não ser que optasse por se esconder.

– Não, nunca mais vou me esconder. Sou uma Deusa, uma imortal, com o dom de comandar as Trevas. Nyx nunca me compreendeu. Kalona nunca me compreendeu. Ninguém jamais me compreendeu. Mas agora eu vou obrigá-los a me entender. Vou fazê-los entenderem! Os moradores de Tulsa é que devem se esconder de mim, e não o contrário.

Ela tinha de ser rápida e decisiva, antes que a polícia chegasse e tentasse, sem sucesso, prendê-la – ou antes que o seu banquete na igreja chegasse aos noticiários e começasse a assustar os hóspedes do Mayo Hotel: os seus futuros súditos.

Neferet encontrou um controle remoto e ligou a enorme televisão de tela plana que, por sorte, tinha saído intacta da batalha. Sintonizou no canal local, colocou no mudo e começou a andar de um lado para o outro, pensando em voz alta e mantendo os olhos grudados na tela.

– É uma pena que eu não possa enjaular os seres humanos como eu fiz com aquela velha e soltá-los quando eu precisasse de sua adoração ou de seus serviços. Isso seria tão mais fácil para eles e, o mais importante no final das contas, para mim. Eu apostaria muito no fato de que nenhum deles resistiria tanto quanto Sylvia Redbird. Os humanos comuns nunca poderiam entrar ou sair da jaula das Trevas criadas por vocês, meus queridos. E, pelo que vi até agora, os meus humanos são excessivamente normais. – Neferet parou abruptamente. – Os meus súditos são humanos normais. E eu me tornei tão mais do que uma humana comum ou uma vampira.

Distraída, Neferet acariciou uma gavinha que se enrolara em seu braço.

– É uma pena que eu não possa enjaular os humanos aqui. Eu os estaria protegendo, permitindo que eles troquem o tédio de suas vidas pela satisfação de me adorar, assim como fiz com Kylee. – Ela acariciava a gavinha, enquanto esta estremecia de prazer. – Eu não preciso enjaulá-los. Eu preciso tratá-los com carinho!

Abrindo os braços, ela sorriu para os seus servos das Trevas, que eram perfeitamente lindos e aterrorizantes.

– Tenho uma resposta para o nosso dilema, meus filhos! A jaula que criamos para aprisionar Redbird era fraca, uma tentativa patética de aprisionamento. Aprendi tantas coisas desde aquela noite! Consegui tanto poder... Nós conseguimos tanto poder. Não vamos enjaular as pessoas, como se eu fosse uma carcereira em vez de uma deusa. Meus filhos, vamos cobrir todas as paredes do meu Templo com as suas tramas mágicas e invioláveis para que os meus novos súditos possam me adorar sem qualquer empecilho. E isso será apenas o começo. À medida que eu absorver cada vez mais poder, por que não encapsular toda a cidade? Eu sei disso agora... Conheço o meu destino. Começo o meu reinado como Deusa das Trevas ao tornar Tulsa o meu Olimpo! Só que isso não será apenas um mito fraco contado como histórias banais de crianças para crianças. Isso será realidade: o Mundo das Trevas do Além veio para a Terra! E, nesse mundo, não haverá inocentes sendo abusados por predadores. Todos estarão sob a minha proteção. Eu tenho o destino deles nas minhas mãos, e eles só precisam se preocupar com o meu bem-estar. Ah, como eles vão me adorar!

Em volta dela, as gavinhas se contorceram em resposta à animação dela. Ela sorriu e acariciou as que estavam mais próximas.

– Sim, sim, eu sei. Será glorioso, mas o que preciso primeiro, meus filhos, é do serviço de quarto. Vamos convocar os meus novos servos. Alguns deles vão limpar e arrumar os meus aposentos da maneira correta. Outros vão reabastecer a adega. Todos vão me obedecer sem me questionar. Preparem-se. Chegou a hora de Neferet, a Deusa das Trevas!

Foi mais fácil do que ela mesma imaginara. Os humanos não eram apenas ridiculamente fáceis de serem controlados, mas também tão indefesos contra a infestação de uma única gavinha das Trevas quanto a pequena Kylee. Ela estava absolutamente certa. Eles precisavam dela para comandar a vida deles, assim como um bebê precisa da mãe.

O único problema no seu plano era que Neferet não tinha acesso a um número infinito de gavinhas. Apenas as mais leais, as suas verdadeiras filhas, continuaram ao seu lado depois que fora despedaçada.

Por um breve instante, considerou chamar mais filamentos de Trevas, mas logo rejeitou tal pensamento. Ela não recompensaria a traição – e os filamentos que a abandonaram no momento da necessidade a traíram no nível mais profundo.

Neferet tomou um gole do seu cabernet favorito em uma taça de cristal e andou pela cobertura, contando os humanos que se dedicavam à limpeza e à arrumação da bagunça que Zoey e seus amigos tinham deixado para trás. Seis. Havia quatro mulheres da equipe de limpeza e dois homens do serviço de quarto. Neferet sorriu. Na verdade, eles não passavam de garotos – ambos louros e ansiosos por atender aos seus pedidos de serviço de quarto. Saindo do seu elevador, suas expressões denunciaram os seus pensamentos de forma tão clara que ela nem precisou esquadrinhar suas mentes. Eles a desejavam. Muito. Obviamente esperavam que ela quisesse um pouco de sangue e sexo com vinho. Tolos! Agora eles se moviam mecanicamente, atendendo aos comandos que ela dava sem reclamar, sem preocupações e sem olhares galanteadores irritantes. Estavam exatamente como ela preferia os seus homens humanos: silenciosos, obedientes e jovens.

– Cavalheiros, a vida é gloriosa, não acham?

As duas cabeças louras se voltaram para ela.

– Sim, Deusa – responderam em uníssono, como sempre.

Neferet sorriu.

– Como costumo dizer, o livre-arbítrio é um peso terrível. Não precisam agradecer por eu ter aliviado vocês de tal peso. – Então, ela ordenou: – Voltem ao trabalho.

– Obrigado, Deusa. Sim, Deusa – repetiram eles, obedecendo-a.

Então, ela já tinha usado seis filamentos. Não, sete, contando a pequena Kylee, da recepção. Neferet lançou um olhar contemplativo para o ninho de gavinhas onde elas se reuniram para absorver o que restara do sangue seco de Kalona. Quantas havia? Tentou contar, mas era impossível. Elas se moviam muito e com rapidez, além de se fundirem umas às outras e depois se separarem quando desejassem. Parecia haver muitas delas, porém. E todas tinham crescido, engordado e estavam mais fortes depois de terem se fartado.

Eu preciso me certificar de que continuem bem alimentadas. Elas não podem definhar – pois isso significaria que o meu absoluto poder sobre os humanos também enfraqueceria.

Resoluta, Neferet discou zero para falar com a recepcionista.

– Recepção, como posso ajudá-la, Neferet? – respondeu a voz insolente de Kylee ao primeiro toque.

– Kylee, quando eu ligar, o modo correto de atender ao telefone é dizendo “Como posso servi-la, minha Deusa?”.

A voz de Kylee ficou sem expressão ou emoção e ela repetiu:

– Como posso servi-la, minha Deusa?

– Muito bem, Kylee. Você com certeza aprende rápido. Eu preciso saber quantos funcionários estão trabalhando aqui no meu Templo hoje.

– Seis faxineiras, dois carregadores, quatro membros do serviço de quarto e eu. Rachel deveria estar aqui na recepção comigo, mas está de licença médica.

– Pobre Rachel. Mas isso me deixa com treze funcionários ao meu dispor. É claro que isso não inclui o restaurante. Ele está aberto hoje?

– Está. Nós abrimos para o brunch até as duas horas da tarde aos domingos.

Kylee fez uma pausa para contar:

– O chef, um ajudante de cozinha, o bartender , que também é o gerente, e três garçonetes.

– Totalizando vinte. Eis o que quero de você, Kylee. Feche o restaurante imediatamente, mas não permita que os funcionários vão embora. Diga a eles que houve uma mudança na gerência do hotel e que o novo dono pediu uma reunião de funcionários.

– Farei como me pede, Deusa, mas os Snyder não são donos do restaurante.

– Quem são os Snyder?

– A família que comprou e reformou o Mayo em 2001. Eles são os donos do prédio.

– Corrigindo, Kylee, querida, eles eram os donos do prédio que era conhecido como Mayo Hotel. Eu controlo o Templo em que ele se tornou. Não importa. Isso logo ficará claro. Tudo de que preciso é que você reúna todos os funcionários do restaurante e do hotel e peça-lhes que venham até a cobertura daqui a trinta minutos. Depois, eu vou mudar o título da reunião de funcionários para o que ela realmente é: uma oportunidade de adorar a sua Deusa. Isso não soa muito mais agradável do que reunião de funcionários?

– Sim, Deusa – respondeu Kylee.

– Excelente. Vejo você e o resto dos meus súditos daqui a meia hora.

– Deusa, eu não posso deixar a recepção sozinha. O que acontecerá se alguém quiser se hospedar ou deixar o hotel?

– A resposta é simples, Kylee. Tranque as portas para que ninguém possa entrar ou sair do meu Templo. Tranque tudo e venha até mim com as chaves.

– Sim, Deusa.

Neferet teria de encontrar outro lugar para receber os súditos. A sua cobertura era íntima demais para tantos humanos. No entanto, teria de se virar por um tempo. Ela se posicionou diante das portas de vidro colorido que haviam sido quebradas e agora foram substituídas pelos garotos louros. Ela desligara as luzes elétricas berrantes e ordenara que as faxineiras trouxessem velas para os seus aposentos. Castiçais, suportes e velas de promessa cobriam a prateleira de granito, a cornija da lareira, a mesa de centro de mármore no estilo art déco e a grande mesa de jantar de madeira. Ela também ordenara que as lanternas que ficavam ao lado das portas tivessem as lâmpadas fortes retiradas e fossem substituídas por luzes bruxuleantes e quentes de velas brancas. Ela fez uma observação mental para pedir que um dos seus servos fosse comprar mais velas – muitas e muitas velas.

O olhar de Neferet passeou pela cobertura, e ela ficou satisfeita. Tudo parecia tão melhor, e estava apreciando a sua segunda garrafa de cabernet, pensando em quanto apreciaria mais tarde, quando um – ou uma – entre seus súditos se oferecesse para misturar o próprio sangue no vinho.

Neferet tinha se vestido com esmero, satisfeita ao ver que suas roupas ficaram intactas enquanto estivera ausente. Escolheu um vestido de seda dourada que se ajustava ao corpo como se acariciasse a sua pele. Como sempre, Neferet deixou o cabelo ruivo solto, em ondas brilhantes que desciam pelas costas até a cintura. Não usou nenhum adorno com um símbolo de qualquer outra deusa. Jamais voltaria a usar imagens adornadas em prata – ela arrancara o último daqueles filamentos de si.

Tinha um novo símbolo, no qual vinha pensando cuidadosamente, e mal podia esperar até que um dos seus súditos fosse encomendar a peça na joalheria de Moody e a “surpreendesse” com um rubi de seis quilates no formato de uma lágrima perfeita. Ela seria efusiva nos agradecimentos e sempre o usaria preso a uma grossa gargantilha de ouro.

Seria realmente bom ser a Deusa das Trevas – A Deusa de Tulsa –, a Deusa do Caos.

Ouviu o barulho do elevador.

– Meus filhos, venham até mim! – Os filamentos de Trevas se apressaram em sua direção, cercando-a, pousando sobre os seus pés descalços com um frescor reconfortante. – Ah, e súditos, vocês podem voltar à minha presença – disse ela por sobre os ombros na direção do local para onde ordenara que aguardassem até que tivessem novas ordens.

Eles passaram por ela no instante em que as portas do elevador se abriram e Kylee levou o restante dos funcionários para a cobertura.

– Bem-vindos! – Neferet ergueu a taça e os braços. – Vocês são abençoados por estarem diante de mim.

A maior parte do grupo pareceu confusa. Duas mulheres, vestidas como garçonetes, murmuraram perguntas uma para a outra. Os olhos afiados de Neferet as notou. Um dos homens, o que usava um chapéu idiota de chef, perguntou:

– Você poderia nos dizer o que está acontecendo aqui? Tivemos que fechar o restaurante e obrigar os nossos clientes a ir embora, mesmo que eles ainda não tivessem terminando o seu brunch. Posso afirmar para você que, com certeza, temos alguns ex- clientes muito putos da vida.

– Qual é o seu nome? – quis saber Neferet, mantendo o tom de voz agradável.

– Tony Witherby, mas a maioria das pessoas me chama de chef.

– Bem, Tony, eu não sou a maioria das pessoas. Veja bem, a maioria das pessoas me chama de Deusa.

Ele soltou uma gargalhada debochada.

– Você só pode estar brincando, né? Tipo, eu estou vendo as suas tatuagens e sei que você é uma vampira e tudo o mais, mas vampiras não são deusas.

Neferet ficou satisfeita ao ver Kylee se afastar do chef como se não quisesse ser contaminada por sua desobediência. Kylee estava realmente se tornando uma excelente súdita.

Neferet não desperdiçou sequer um olhar para o chef. Em vez disso, sorriu para os seus filhos alvoroçados.

– Tão ansiosos – comentou ela em um tom leve de reprovação. Ela se abaixou para acariciar uma gavinha particularmente precoce que se enrolara por sua perna quase na altura de sua coxa. – Você vai ser perfeita.

– Tudo bem, você vai ter que nos dizer o que está acontecendo ou eu vou ligar para o dono do restaurante – ameaçou o chef. Quando ela continuou a ignorá-lo, ele começou a gritar: – Isso é realmente ridíc...

– Pegue-o! – comandou Neferet para a gavinha. – E permitam que a vejam.

A gavinha ficou visível enquanto voava na direção do chef. Ela era tão grande que rapidamente o envolveu pela cintura grossa, movendo-se rapidamente para cima.

– Que merda é essa?! Solte-me! – gritou o chef, jogando-se para trás e batendo na gavinha com ambas as mãos, impotente.

Neferet achou que ele parecia uma menininha com medo de aranha.

Um homem bonito e negro vestido como mensageiro se aproximou para ajudar o chef.

– Fique onde está ou o seu destino será o mesmo do dele! – avisou Neferet.

O homem parou onde estava.

– Nããããão!

Os gritos do chef beiravam à histeria, e Neferet ficou aliviada ao ver que bem nesse momento a gavinha subiu pelo pescoço dele e invadiu sua boca, fazendo com que se abrisse de uma maneira quase impossível. Isso causou a rachadura e o sangramento dos cantos dos lábios, antes que todo o grosso comprimento do filamento desaparecesse dentro do corpo do humano. O chef caiu do chão.

– É tão deprimente quando um homem adulto age como uma menininha assustada, vocês não acham?

Os humanos que ainda não tinham sido possuídos por seus filhos olharam para ela com um misto de horror e descrença. Outra mulher, uma das faxineiras que não atendera ao chamado anterior de Neferet, estava rezando em espanhol, agarrada ao crucifixo pendurado em uma gargantilha de prata de aparência barata. Todo o grupo, exceto pelo equivocado Tony, estava se afastando, como um rebanho, na direção das portas do elevador.

– Nada disso – declarou Neferet com voz suave. – Vocês não podem partir antes de receber minha permissão.

– Você também vai nos matar? – perguntou uma das mulheres, segurando a mão da amiga e tremendo de forma espasmódica.

– Matar vocês? É claro que não. Tony não está morto. – Ela dirigiu-se então ao chef caído no chão. – Tony, meu querido, levante-se e diga para os outros que você está perfeitamente bem.

De forma estranha, Tony se levantou, virou-se para Neferet. Então, sem expressão no seu rosto rosado e manchado de sangue, declarou:

– Estou perfeitamente bem.

– Você se esqueceu de dizer uma coisinha – disse Neferet.

O corpo de Tony se retorceu em espasmos como se ele tivesse levado um choque por dentro, e ele se apressou a repetir:

– Estou perfeitamente bem, Deusa.

– Viram só? É exatamente como eu disse. Qual é o seu nome, querida? – perguntou ela para a mulher trêmula.

– Elinor.

– Que nome adorável. Não se veem mais nomes como esse hoje em dia, o que é uma pena. Para onde todas as Elinors e Elisabeths, Gertrudes, Gladys e Phyllis foram? Não, não precisa me responder. Elas foram substituídas por Haileys, Kaylees, Madisons e Jordans. Eu odeio nomes modernos. Sabe, Elinor, eu preciso agradecê-la. O seu nome de bom gosto fez com que eu tomasse uma decisão sobre vocês, meus novos súditos. Vou renomear qualquer um de vocês que possua um nome muito chamativo. – Neferet lançou um olhar para Kylee. – Exceto você, Kylee. Eu gosto muito do seu crachá dourado para mudar o seu nome.

– Deusa? – sussurrou Elinor em tom de pergunta.

– Pois não, minha querida.

– Nós agora estamos trabalhando para a senhora?

– Ah, é muito melhor do que isso. Vocês vão me adorar agora. Vocês vinte serão as primeiras testemunhas do meu reinado como Deusa das Trevas. Cada um de vocês terá um papel especial e muito importante para cumprir enquanto me adoram e atendem a cada uma das minhas necessidades. Vocês vão me oferecer presentes e sacrifícios e, em troca, tirarei o exaustivo livre-arbítrio que obviamente tem lhes reprimido e deprimido a vida. Por que outro motivo vocês estariam trabalhando em tarefas tão servis e sem sentido?

– Eu não estou entendendo o que está acontecendo – choramingou Elinor.

– Logo... logo a sua confusão acabará. Não se preocupe, doce Elinor, só dói um pouquinho. – Neferet ergueu o braço. – Meus filhos... – começou ela.

– Espere! – O mensageiro que quis ajudar Tony deu um passo para a frente e lançou um olhar inflexível para Neferet. – A senhora disse que se tentássemos ajudar o chef, nosso destino seria o mesmo do dele. Eu não ajudei. Ninguém mais ajudou. Então, de acordo com a sua própria palavra, não vai mandar essas coisas rastejantes nos atacar.

– E qual é o seu nome?

– Judson. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Deusa.

– Judson é um nome antigo do sul, sabia?

– Não, eu... Eu, não. Eu não sabia. – Ele fez outra pausa. – Deusa.

– Bem, é isso então. Eu também não vou trocar o seu nome. E quanto ao que eu disse antes? Eu menti. Peguem-nos! – Ordenou.

Felizmente, os seus filhos tinham antecipado os seus desejos e moveram-se rapidamente, de modo que os gritos irritantes logo cessaram.


4

Neferet

Neferet liberou seus novos súditos, cada qual tendo iniciado sua adoração por meio da possessão de um de seus filhos, e ordenou-lhes que chamassem os hóspedes e residentes do hotel e os reunissem no grande salão do hotel.

Decidira que deveria estabelecer o lugar das oferendas no salão principal, o qual era cercado por colunas de mármore, tinha pé-direito alto e o teto ornado com lindos candelabros no estilo art déco , e escadaria dupla e ampla em curva com balaústres de ferro forjado que contavam com uma grande plataforma entre o térreo – onde os súditos ficariam – e o passeio superior, onde apenas os seus adoradores mais próximos, aqueles que cuidavam dos seus desejos, seriam permitidos. Os outros ficariam presos nos próprios quartos ou no porão, o qual Kylee fora gentil em lhes mostrar. Ou, se eles provassem ser um estorvo excessivo e ela não quisesse gastar uma gavinha para possuí-los, eles se tornariam alimento para seus filhos.

É claro que ela só se alimentaria dos súditos que despertassem o seu interesse.

Kylee recebera a tarefa de encontrar uma cadeira que servisse de trono até que pudesse encomendar um que fosse entalhado para ela.

– Você precisa encontrar um artesão talentoso para criar exatamente o que eu quero. A madeira deve ser tingida de sangue vermelho profundo de búfalo – orientou ela, enquanto escolhia a colocação com cuidado. – E eu não quero nada daqueles assentos duros e pobres ao gosto dos velhos do Conselho Supremo. Almofadas de veludo dourado. É sobre elas que vou me sentar.

Neferet permitiu que duas das faxineiras mais atraentes a envolvessem num vestido luxuoso em tom púrpura real, e tinha acabado de decidir que não usaria sapato – ficaria descalça, como condiz a uma Deusa recém-nascida. Retornou à sua sala para encher novamente a taça de vinho, irritada por não haver lá nenhum humano ansioso por ajudá-la. Ela já estava esperando, impacientemente, que convidados e residentes estivessem rodeados por seus servos obedientes para que pudesse fazer a sua entrada triunfante no salão.

– Até mesmo para uma Deusa, é tão difícil encontrar empregados de qualidade. Mas eu vou deixar esse erro passar. Eles são só vinte. Devem estar bem ocupados reunindo os humanos no meu salão de oferendas. Mas vou deixar passar somente esta vez.

Estava bebericando o líquido vermelho, apreciando o sabor do sangue do bonito mensageiro que tinha tão graciosamente oferecido um pedaço da sua carne para dar mais sabor ao seu vinho, quando a televisão chamou a sua atenção. Havia uma legenda de notícias na parte inferior da imagem onde se lia ASSASSINATOS EM TULSA, e a âncora, Chera Kimiko, estava falando com uma expressão sombria.

Encantada, Neferet apertou o botão de mudo na televisão, esperando reviver os detalhes deliciosos do seu banquete. No entanto, em vez da Church Boston Avenue, a tela mostrou uma imagem do Woodward Park, em um estado terrível de desgaste. Então, a câmera mudou, e as sobrancelhas de Neferet se ergueram enquanto se concentravam em um paredão de pedra ao lado de uma gruta que, até recentemente, fora o seu santuário. Ela aumentou o volume, impaciente, a tempo de ouvir Kimiko dizendo de forma tão séria:

– Este é o local onde ocorreu o terrível assassinato de dois homens, cujos corpos foram descobertos por bombeiros na manhã de ontem. Conforme informamos anteriormente, a violenta tempestade que criou ventos de quase 120 km/hora foi acompanhada por raios mortais. Os raios que caem sobre a região de Tulsa já foram responsáveis por cinco mortes hoje, além de dez pessoas hospitalizadas em estado grave. Mas a morte desses dois homens aparentemente não tem relação com as tempestades. Adam Paluka está ao vivo com o detetive Kevin Marx e vamos até ele para mais detalhes. Adam?

A cena mudou do parque destruído pela tempestade para um detetive sentado atrás de uma mesa em um escritório de aparência comum. Neferet o reconheceu como o policial que fora irritantemente compreensivo com Zoey Redbird no passado. Ela fez uma careta enquanto assistia à entrevista.

– Detetive Marx, o senhor poderia nos explicar essas duas mortes adicionais em Woodward Park, e responder se o senhor realmente excluiu a possibilidade de as mortes terem sido caudadas pela tempestade?

– Os corpos dos dois homens, ambos na casa dos quarenta anos, foram descobertos na manhã de ontem. A causa da morte foi a mesma para os dois homens: contusão e hemorragia.

Neferet sorriu, decidindo que aquele era um excelente aquecimento para a carnificina que eles logo descobririam.

– E é verdade que o senhor prendeu alguém que confessou ter cometido os crimes?

Neferet ergueu as sobrancelhas.

– Confessou os assassinatos? Está presa? Isso é impossível.

– Sim, é muito triste ter de informar que uma jovem novata, a quem conheço pessoalmente, se apresentou por livre e espontânea vontade para confessar que assassinou os dois homens.

– Uma novata! – explodiu Neferet levantando-se da chaise e gritando com a tela da televisão.

– O senhor pode informar o nome de tal novata?

– Zoey Redbird .

Neferet gritou, pegou um dos abajures elétricos que tinha tirado da tomada e o atirou contra o aparelho de televisão.

– Aquela garota tola e fraca acredita que matou aqueles dois homens? Eu os encontrei a poucos metros do meu santuário, e seu sangue serviu para me alimentar para que pudesse ir ao grande banquete na Boston Avenue Church. Zoey Redbird matando dois homens adultos? Que grande bobagem! Ela não tem o ímpeto necessário para matar ninguém! E realmente confessou o assassinato? Aquela garota é uma idiota ainda maior do que eu imaginei.

Neferet jogou a cabeça para trás e sua gargalhada debochada ecoou pela cobertura.

Neferet assumira a sua posição no meio da graciosa escadaria dupla do salão principal do Mayo Hotel. Adorava a ironia de estar no mesmo lugar onde tantos humanos iludidos fizeram seus votos matrimoniais.

– Um pacote de macarrão tem validade maior do que a maioria dos casamentos humanos, sabia?

Ela sorriu para a multidão reunida sobre o piso de mármore preto e branco. Havia ordenado que diminuíssem as luzes e que grandes candelabros fossem posicionados e acesos em cada um dos lados. Sabia que sua beleza era divina, complementada pelo brilho de seu vestido à carícia da luz das velas.

Ordenou que metade dos seus vinte súditos a cercasse, embora sem entrar na plataforma em que se encontrava. Os outros dez humanos possuídos estavam posicionados na entrada do seu Templo. Ela dera a eles apenas uma ordem: ninguém poderia entrar ou sair.

Seus filhos das Trevas se contorciam à sua volta, invisíveis para os humanos que a olhavam boquiabertos, mas reconfortantes para ela com sua avidez familiar.

– Ah, vocês estão certos em não responder. Essa pergunta realmente não é uma forma digna de uma Deusa se dirigir pela primeira vez aos seus escolhidos. Permitam que eu comece de novo.

Neferet se posicionou na frente do seu trono, abriu os braços em um gesto amplo e começou:

– Atenção! Eu sou Neferet, a Deusa das Trevas, a Rainha de Tsi Sgili. Transformei este hotel no meu Templo das Trevas, e vocês, poucos afortunados, serão meus súditos fiéis, os meus escolhidos. Em troca, recompensarei sua adoração removendo as preocupações do mundo comum de vocês. Não mais precisarão trabalhar em empregos sem sentido. Não precisarão voltar para casamentos tediosos nem para filhos mal-agradecidos. De hoje em diante, até a sua morte, seu único objetivo será me adorar. Regozijem-se, humanos!

Seu discurso foi seguido por um longo momento de silêncio absoluto e, então, a multidão começou a se agitar nervosamente, aos sussurros.

Neferet aguardou pelo que sabia que viria a seguir, e isso manteve o sorriso no seu rosto. Gostava muito de ensinar lições de vida aos humanos.

Conforme previsto, Neferet não precisou esperar muito tempo. Uma mulher deu um passo à frente. Era alta e tinha cabelo castanho – devia estar no final da meia-idade, embora estivesse bem conservada e parecesse estar em forma, como uma mulher que se exercita diligentemente para se manter jovem. Usava um vestido de bom gosto e corte meticuloso em um tom bonito de verde-esmeralda.

– Onde você comprou esse vestido adorável? – perguntou Neferet à humana antes que ela tivesse a chance de dizer qualquer coisa.

A mulher piscou, obviamente surpresa com a pergunta, mas respondeu:

– É um Halston. Comprei na Miss Jackson’s.

– Kylee – chamou Neferet, olhando para o lugar em que a garota se encontrava aos pés da escadaria, com uma aparência serena de um robô. – Anote. Vou precisar que você vá até a Miss Jackson’s e escolha diversos vestidos para mim. Certifique-se de incluir modelos Halston.

– Sim, Deusa – entoou Kylee, sem emoção.

Neferet franziu o cenho, olhando para Kylee. Será que realmente queria que aquela garota escolhesse os seus trajes? Ela não devia ter mais do que vinte anos e se o seu corte de cabelo fosse uma indicação do seu senso de moda, seria realmente um desastre...

– Tudo bem, você tem que explicar o que realmente está acontecendo aqui. Eu não tenho tempo para isso. – Recuperando-se da sua surpresa, a mulher com o vestido verde-esmeralda interrompeu os pensamentos de Neferet, batendo com o pé no chão para demonstrar sua impaciência. – Eu tenho um jantar marcado no Summit Club, e pegar um avião para Nova York logo em seguida.

– Já expliquei a situação para vocês – disse Neferet. – Agora eu sou a sua Deusa. Você não vai jantar no Summit Club nem vai voltar para Nova York. A não ser que eu mande que você faça alguma coisa para mim. O seu único trabalho é me adorar. Em troca, eu acabarei com as suas angústias e preocupações mundanas. Qual é o tamanho desse vestido? Trinta e oito ou quarenta?

– Sério? Essa é uma piada de muito mau gosto. Frank Snyder está por trás disso, não é? Frank? – A mulher ignorou Neferet e chamou pelo homem, procurando ao seu redor, como se esperasse que ele fosse aparecer. – Ela está vestida como uma diva de cinema. Deixe-me adivinhar: ela vai cantar “Smoke gets in your eyes” pelo meu aniversário, não é? Como é que você encontrou uma vampira para contratar? Ou será que essas tatuagens foram pintadas?

A mulher girara em torno de si e novamente encarava Neferet, olhando para ela como se estivesse considerando apagar suas tatuagens.

Neferet se deu conta de que sua paciência chegara ao fim.

– Escolhidos, permitam que esta seja uma lição para vocês. Eu não sou uma piada. Eu sou a sua Deusa. Poderosa, possessiva, imortal e onisciente. Eu sou praticamente destituída de paciência, nunca aturo tolos. – Neferet se inclinou para a frente e pousou a mão no balaústre de ferro. Encontrou o olhar da mulher e invadiu a sua mente desprotegida. – Então, o seu nome é Nancy, e hoje é o seu aniversário. – O sorriso de Neferet era felino. – E você está fazendo cinquenta e três anos, embora diga aos amigos que tem quarenta e cinco.

O corpo da mulher estremeceu e ela arfou, chocada com a violação, mas impotente para resistir.

– Como você sabe disso? E como se atreve?

Neferet fez um som alto de admoestação, meneando a cabeça.

– Uma vida de tantas privações em nome da beleza. Será que ninguém lhe explicou que, não importa o que faça, você é humana e os humanos envelhecem? Nancy, você deveria ter comido mais massa, bebido mais vinho, dormido com o filho caçula do seu vizinho mais do que duas vezes e deixado o seu odioso marido quando ele teve o primeiro caso vinte anos atrás. E, Nancy, eu sei dessas coisas porque eu sou uma Deusa. Eu me atrevo a dizer essas coisas porque eu sou a sua Deusa, embora você, obviamente, não me mereça.

As pessoas em volta de Nancy se mexeram, como se quisessem se afastar dela, mas ainda estavam com expressões pasmadas e confusas de descrença em seus rostos bovinos.

– Seria inteligente se afastarem de Nancy. Eu sei que o meu Templo conta com instalações de lavanderia, mas não há motivo para mancharem desnecessariamente as suas roupas. – As pessoas mais próximas de Nancy se afastaram mais dela. Neferet sorriu, encorajando-os enquanto pegava uma das gavinhas que envolviam os seus pés descalços. Era satisfatoriamente pesada e grossa, e a sua pele gelada e emborrachada pulsava contra o seu corpo enquanto envolvia o seu braço. – Mate Nancy. Faça-a sofrer. Ela encheu a própria vida de sofrimento, então o sofrimento na morte deve ser um conforto para ela. – Neferet disse aquilo com carinho para seu filho. – Permita que seja visto.

Ela atirou a criatura em Nancy. A entidade tornou-se visível no ar. A multidão arfou e exclamou, mas logo começou a gritar quando a gavinha se enrolou no pescoço de Nancy e começou lentamente a cortar sua carne até arrancar a cabeça da mulher.

A multidão se descongelou e, gritando em pânico, seguiu em direção à saída.

– Eu não lhes dei permissão para sair! – Cheia de poder imortal, a voz de Neferet ecoou pelo amplo salão. – Meus filhos, permitam que meu povo veja vocês.

O ninho de Trevas ao seu redor se ondulou e se tornou visível, mas poucas pessoas notaram. Estavam ocupadas demais olhando, horrorizadas, para as cabeças negras das gavinhas, que haviam possuído a equipe e que, ao comando de Neferet, tornaram-se visíveis dentro das bocas escancaradas de cada um dos humanos robôs que guardavam as saídas.

Neferet fez outra nota mental – ela tinha de se certificar de recompensar os filhos que se ofereceram para a tediosa tarefa de possuir a equipe. Eles estavam sendo tão obedientes e compreensivos. Um outro banquete logo teria de ser providenciado para eles.

Sentiu um feixe de poder deslizar pelo seu corpo e voltou sua atenção para Nancy, cuja cabeça já estava separada do corpo. Havia tanto sangue, porém, que a gavinha não conseguia se alimentar rápido o suficiente. Neferet suspirou. O piso de mármore reluzente ia ficar manchado. Será que tinha de fazer tudo?

– Alimentem-se dela rapidamente! – ordenou aos filhos mais próximos. – Não tolerarei bagunça no meu Templo. – Então, suspirou mais uma vez e voltou sua atenção para o público em pânico. – Vocês estão começando muito mal! – exclamou ela. – Em troca de uma vida repleta de um novo objetivo, tudo o que peço em troca é a sua obediência e adoração. Nancy não me deu nada disso e vejam o que aconteceu com ela. Que isso sirva de lição para cada um de vocês.

– O que são essas criaturas? – perguntou um homem baixo e gordo, obviamente tentando controlar o medo enquanto acariciava o braço de uma mulher igualmente baixa e gorda e que enterrara o rosto no seu casaco enquanto soluçava.

– Estes são os meus filhos, formados por Trevas, e leais somente a mim.

– Por que eles estão dentro da boca daquelas pessoas? – quis saber ele.

– Porque aquelas pessoas fazem parte da minha equipe de trabalho e elas também devem ser leais apenas a mim. A possessão é muito mais eficiente do que cortar as suas cabeças. Agora, vocês viram como tudo será muito mais simples se vocês fizerem o que eu mandar?

– Mas isso é loucura! – gritou um homem no fundo do salão. – Você não pode esperar que nós fiquemos aqui e a adoremos, não é? Nós temos as nossas vidas, nossas famílias. Pessoas que sentirão a nossa falta.

– Tenho certeza de que sentirão mesmo, mas como eles são pessoas , e não imortais, isso não me preocupa. Mas se vocês forem muito, muito, mas muito bons mesmo, eu talvez lhes dê permissão para trazer a suas famílias para se juntarem a vocês.

– Você não pode fazer isso – disse uma mulher aos soluços. – A polícia vai nos salvar.

Neferet deu uma gargalhada.

– Ah, eu espero que sim. Estou ansiosa por este confronto. Garanto a vocês que o Departamento de Polícia de Tulsa não sairá vitorioso.

– E agora? O que nós vamos fazer? Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! – berrou outra mulher.

– Façam com que ela se cale! – ordenou a Deusa, e uma gavinha voou em direção à mulher, envolvendo seu rosto e tapando sua boca. Ela caiu no chão enquanto se contorcia.

Neferet soltou um longo suspiro de alívio quando não apenas os gritos da mulher cessaram, mas todo o grupo em pânico também se calou. Ela passou a mão pelo vestido perfeitamente ajustado ao seu corpo e, usando um tom calmo para os súditos apavorados, falou:

– Vocês devem aprender estas lições agora. – Ela fez um gesto com os dedos longos como se estivesse marcando itens em uma lista. – Eu não tolero histeria. Não tolero deslealdade. Também não sou muito chegada a homens brancos de meia-idade. Agora, eu preciso de sessenta voluntários para resolver negócios muito importantes na cobertura.

Ninguém se mexeu. Ninguém a olhou nos olhos. Neferet suspirou novamente e acrescentou:

– Eu não vou usar nenhum dos voluntários como alimento.

Uma jovem ergueu a mão trêmula.

– Sim, querida. Qual é a sua pergunta? – concedeu a Deusa.

– Você vai dizer para essas cobras entrarem nas nossas bocas?

Neferet sorriu docemente para a garota.

– Não, eu não vou fazer isso.

– Ent... Então, eu sou uma voluntária.

– Muito bem! – elogiou Neferet. – E qual é o seu nome?

– Staci.

– Não, eu vou chamá-la Gladys, que é um nome muito mais digno, você não acha?

A jovem logo concordou com a cabeça.

– Então, Gladys, fique do lado esquerdo do salão de oferendas. Agora, eu quero mais cinquenta e nove pessoas tão entusiasmadas quanto Gladys para se juntarem a ela.

Quando ninguém mais se mexeu, Neferet usou um tom de raiva e gritou:

– Agora!

Como se tivessem sido atingidos por um chicote, um grupo de humanos se sobressaltou e se juntou à primeira voluntária.

– Kylee, conte quantos humanos há e me informe quando houver sessenta.

Cada vez mais impaciente, Neferet esperou. Por fim, Kylee declarou:

– Temos sessenta voluntários, Deusa.

– Muito bem. Seja uma fofa, Kylee, e leve-os até a minha cobertura. Faça com que esperem na varanda pelas minhas ordens. Ah, e abra várias caixas de champanhe. Seja generosa. Meus voluntários devem ser recompensados.

Parecendo confusos, mas aliviados, os sessenta humanos entraram nos elevadores. Neferet voltou a sua atenção para os adoradores restantes. Eles a olhavam como se esperassem que uma guilhotina estivesse prestes a descer sobre as suas cabeças.

– Seria muito mais fácil usar a possessão em todos vocês. Instruir humanos dos tempos modernos a como adorar uma Deusa será uma tarefa extremamente tediosa – murmurou ela para si mesma, enquanto batia com os dedos no balaústre.

Uma mulher que estava próxima o suficiente para ouvi-la deu vários passos em direção à escadaria e, então, atraindo o olhar da Deusa, fez uma reverência profunda e elegante. Neferet ergueu as sobrancelhas. Analisou a mulher que se mantinha em reverência, com a cabeça respeitosamente curvada. Era mais velha do que Nancy, mas não muito. E embora estivesse bem-vestida, com um terninho bem cortado e caro, parecia ter a própria idade.

– Pode se levantar – permitiu Neferet por fim.

– Eu agradeço, Deusa. Será que a senhora me daria permissão para que eu me apresentasse?

– Vá em frente – concedeu, bastante intrigada.

– Eu sou Lynette Witherspoon, dona da Everlasting Expressions. Gostaria de lhe oferecer os meus serviços.

– Lynette. Sim, o seu nome não me ofende. Você pode mantê-lo. E o que é exatamente a Everlasting Expressions?

– É a minha empresa. Ofereço serviços de planejamento de eventos, coordenação e decoração para uma clientela seleta – explicou a súdita.

Neferet apreciou o orgulho e a confiança na sua voz.

– E o que você propõe para mim?

– Tudo – respondeu Lynette com voz firme. Ela olhou em volta do salão para as pessoas reunidas atrás dela, antes de lançar um olhar sincero para Neferet. – Creio que a adoração de uma Deusa seja um evento constante da maior importância, que deve ser dirigido com bom gosto e sem percalços. Se me der a sua permissão, garanto que a sua adoração será uma sucessão de eventos espetaculares.

– Interessante... – refletiu a Deusa. – Lynette, você não se importa se eu vislumbrar suas reais intenções, não é? – Embora tenha dito aquilo em tom de pergunta, Neferet não esperou pela resposta da súdita. No entanto, invadiu a mente da mulher de maneira mais gentil do que fizera com Nancy.

O que descobriu lhe fez sorrir.

– Lynette, você é uma oportunista.

– S-sou – confirmou ela, um pouco trêmula, depois que a Deusa saiu da sua mente.

– E você odeia os homens. – O sorriso dela se abriu mais.

– Eu não tenho poderes, então posso apenas imaginar, mas acredito que a senhora compreenda esse ódio – respondeu a mulher.

– Eu gosto de você, Lynette. Permitirei que gerencie o planejamento da minha adoração.

Lynette fez outra reverência profunda.

– Eu lhe agradeço, Deusa.

– E qual será a sua primeira ação? – Neferet sentia uma curiosidade quase incontrolável sobre as intenções daquela humana incomum.

– Bem – começou ela, batendo com a mão no seu coque e analisando as pessoas que estavam em silêncio atrás dela –, todos os eventos começam com duas coisas: roupas adequadas e decoração correta.

– Só tenho uma exigência: deslumbre-me – ordenou a Deusa.

– Sim, Deusa – respondeu a mulher em tom respeitoso.

– E quanto a vocês, meus súditos – disse Neferet, dirigindo-se para o seu rebanho –, façam tudo o que Lynette mandar. – Neferet dirigiu o olhar para Lynette e acrescentou: – Desde que ela não mande que tentem sair do meu Templo.

– Eu não pensaria uma coisa dessas, Deusa – apressou-se a humana em responder.

– Ah, minha querida, você pensou nisso. Você só se deu conta de como isso seria imprudente.

Lynette curvou a cabeça.

– Touché , Deusa.

– Agora, deixarei vocês, meus súditos, nas mãos capazes de Lynette. Vou para a minha cobertura me preparar para...

A saída de Neferet foi interrompida pelo mensageiro alto, Judson, chamando de seu posto em frente das portas fechadas e acorrentadas do Mayo Hotel.

– Deusa! A polícia está aqui!


5

Lynette

– Socorro! Polícia! Ela está nos mantendo presos aqui! – Uma garota que Lynette reconheceu como sendo a dama de honra do casamento espetacularmente caro da noite anterior começou a gritar, desvencilhando-se da equipe possuída, esmurrando o grosso vidro das portas dianteiras.

– Por que será que eu sempre tenho que fazer tudo? Equipe, todos vocês, exceto Judson, levem esses humanos para o porão!

A voz de Neferet estava cheia de veneno, e a equipe do hotel reagiu como se tivesse levado um choque elétrico. Começaram a reunir o grupo de pessoas aterrorizadas em direção à saída de emergência. A vampira flutuou pela escadaria e pelo piso do salão, passando tão próxima de Lynette que o vestido púrpura encostou nos seus pés. Lynette se afastou, tentando se esconder nas sombras e evitar ser levada com o resto do rebanho, mas Neferet falou com ela:

– Você, venha comigo. Eu não quero que você perca o evento que eu estou planejando.

– Como desejar, Deusa.

Lynette se empertigou, controlou o medo e seguiu a vampira. Não importava o que acontecesse, ela não ia terminar seus dias como aqueles pobres otários da equipe do hotel com aquelas cobras nojentas da vampira saindo pela boca. E também não faria nada idiota para acabar tendo a cabeça decepada. Ela sobrevivera a uma mãe alcoólatra e abusiva e à infância pobre para construir um império para si. Tinha dinheiro e status social. Dirigia uma Mercedes-Benz S-Class e era proprietária de uma casa de quase seiscentos metros quadrados em Eight Acres, o condomínio mais caro e exclusivo no centro de Tulsa. Passava as férias na França e só viajava de primeira classe. Ela poderia muito bem sobreviver a uma vampira doida com delírios de imortalidade e sedenta por poder, e ainda encontraria uma maneira de sair lucrando com a situação.

Neferet chegou até a garota que berrava.

– Você não é uma súdita adequada! – Com uma força sobrenatural, ela agarrou um punhado do cabelo louro tingido da garota e puxou sua cabeça para trás até que Lynette tivesse certeza de que o pescoço se partiria. Então, apontou para a boca aberta da garota. – Possuam-na!

Lynette queria afastar o olhar, mas não conseguiu. A cobra negra mergulhou na boca da dama de honra. Os olhos dela se reviraram de forma que só dava para ver a parte branca, o corpo totalmente inerte. Ela só não caiu no chão porque Neferet a segurava pelos cabelos.

– O seu nome será Mabel. Quando eu mandar, você virá de boa vontade até mim – rosnou a Deusa, erguendo o rosto da garota inconsciente até que ficasse a um dedo de distância do dela.

Um ligeiro piscar de olhos. Como se a vampira tivesse ligado um botão, o terror no rosto da garota desapareceu, deixando apenas uma expressão vidrada, mas atenta, em seus olhos.

– Sim, Deusa – entoou ela sem qualquer emoção.

Aquelas cobras horríveis têm total controle de quem quer que possuam , pensou Lynette. Não a mim , prometeu para si mesma. Não farão isso comigo. Eu prefiro morrer a terminar assim!

Neferet soltou a garota. Ela cambaleou como se estivesse desequilibrada, mas conseguiu manter-se de pé. A vampira passou a mão pelo cabelo perfeito e tirou alguma migalha invisível do seu ombro. Então, encarou Lynette.

– Você sabe o que vai acontecer se me decepcionar e acabar não se mostrando uma súdita adequada.

Lynette não afastou o olhar dos olhos verdes-esmeralda de Neferet. Mergulhou em uma reverência profunda que a vampira tanto apreciara antes.

– Eu não a decepcionarei, Deusa.

Sentiu o deslizar doentio de Neferet entrando em sua mente e concentrou os pensamentos nos fatos – ela não tinha a menor intenção de fazer qualquer coisa que levasse a vampira a se voltar contra ela.

– Logo, logo, você acreditará que eu sou uma Deusa, e que o seu destino é me servir. – Antes que Lynette tivesse a chance de comentar, Neferet virou de costas, ordenando: – Judson, desacorrente a porta da frente. Lynette, venha comigo. Meus filhos, não permitam que sejam vistos, mas prestem atenção em mim!

Com um som que trazia à mente de Lynette a recordação de antigas fortunas e opulência, as portas duplas e austeras de latão e de vidro se abriram e Neferet saiu, com Lynette logo atrás, tão perto que conseguia sentir o frio horripilante que emanava das cobras invisíveis.

Havia dois carros do Departamento de Polícia de Tulsa e um carro de passeio parados na pequena entrada circular diretamente em frente ao hotel. Quatro policiais uniformizados conversavam com um homem alto de roupas comuns que estava, obviamente, no comando, o que significava que ele era algum tipo de detetive. Com o aparecimento de Neferet, o grupo rapidamente voltou sua atenção para a bonita vampira. O detetive fez sinal com a cabeça para os outros, que deram alguns passos para trás e se posicionaram atrás dele, enquanto, com a expressão séria, começou a se aproximar de Neferet.

– Não, eu quero que você permaneça perto dos carros – declarou Neferet.

Ela estava próxima às portas, em pé sob o toldo de ferro, marca registrada da entrada do Mayo. Deu um pequeno passo para o lado e envolveu o ombro de Lynette com o braço e a empurrou. Lynette não precisava ser vidente para compreender o que a vampira queria que fizesse. Sem hesitar, deu um passo para a frente e se colocou entre Neferet e a polícia. A mão de Neferet se manteve em seu ombro, e ela sentia as unhas duras e afiadas da vampira pressionadas contra a pele do seu pescoço, bem acima da artéria que ali pulsava forte e rápido.

Lynette ficou completamente parada.

O homem alto hesitou apenas por um momento, embora aquele instante tenha parecido durar uma eternidade para Lynette. Então, os policiais deram vários passos para trás.

– Isso, assim está bem melhor. – Lynette detectou o sorriso na voz de Neferet. – Agora podemos conversar de maneira mais educada. Detetive Marx, que gentil da sua parte vir me visitar. Está uma tarde adorável, não acha? É como se a tempestade de ontem tivesse limpado a cidade.

Neferet falava em um tom afável, mantendo a mão descansando sobre o ombro de Lynette.

– Neferet, eu tenho que fazer algumas perguntas a você. Será que não prefere vir para a delegacia comigo em vez de ser interrogada aqui?

O suspiro de Neferet demonstrou uma decepção exagerada.

– Então, não podemos ser corteses um com o outro socialmente?

– Você sabe muito bem que, em circunstâncias normais, não tenho o menor problema com cortesia. Nós dois já trabalhamos juntos de forma amigável antes. Mas o que aconteceu ontem em Tulsa foi bem além do normal, e eu não tenho tempo para cortesia. – Ele fez uma pausa antes de gesticular em direção à Lynette. – E acho bem irônico você estar reclamando sobre questões de cortesia quando tem uma refém bem diante de si.

A pressão da unha de Neferet sumiu imediatamente, e a vampira afastou a mão do pescoço de Lynette, fazendo um carinho íntimo em seu rosto.

– Detetive, você não poderia estar mais enganado. Lynette, você é minha refém?

– Não, Deusa – respondeu ela, meneando a cabeça e esforçando-se para agir como se aquilo fosse algo corriqueiro, servir como escudo-humano de uma vampira psicótica. – Eu sou uma súdita por livre e espontânea vontade.

– Aí está. Viu? Está tudo bem. Lynette só está aqui porque ela me adora. Mas por que você, detetive Marx, está aqui? As perguntas que o trazem têm a ver com Woodward Park ou com a Boston Avenue Church?

Lynette viu os olhos do detetive se estreitarem.

– O que você sabe sobre Boston Avenue Church?

Neferet deu uma gargalhada.

– Tudo! Pode perguntar qualquer coisa. Você quer saber por quanto tempo aquele projeto de pastor gritou antes de eu matá-lo? Ou por que a esposa do conselheiro estava sem o seu lindo terninho branco Armani, o qual, coincidentemente, era do meu tamanho, quando você encontrou o seu corpo drenado e sem vida do lado de fora do seu santuário? Veja bem, é muito difícil remover manchas de sangue de um tecido de qualidade.

Enquanto a vampira falava, Lynette observava a mudança nos policiais. Primeiro, os seus rostos denunciaram que eles estavam em choque e, depois, sacaram suas armas, enojados e zangados.

A arma do detetive apontou para o seu ombro direito.

– Lynette – disse ele. – Caminhe diretamente para nós e mantenha as mãos onde possamos vê-las.

Lynette sabia que não importava nem um pouco o fato de Neferet não estar tocando nela.

– Não, obrigada – respondeu ela, conseguindo, de alguma forma, evitar que a voz saísse trêmula. – Estou bem aqui com a Deusa.

– Mas do que é que você está falando? – explodiu um dos policiais. – Ela é uma porra de uma vampira que assassinou um monte de fiéis numa igreja! Ela não é uma merda de uma deusa.

– Lynette, eu não gosto de pessoas desbocadas. E você? – quis saber Neferet.

Prendendo a respiração, deu a única resposta que poderia. Meneou a cabeça e disse:

– Não, eu não gosto.

Neferet inclinou a cabeça para o lado e analisou o policial que tinha falado. Lynette viu o corpo dele se retorcer.

– Policial Jamison, será que palavrões permeiam sua mente enquanto tem fantasias com a sua enteada de dez anos de idade? E quando você a observa dormindo e admite para si mesmo que daqui a alguns dias você vai transformar seus desejos em realidade?

O policial empalideceu.

– Isso é uma porra de uma mentira! – exclamou.

– Mais profanação. “Parece-me que o lorde faz protestos demasiados” [*] – declarou Neferet. Então, ela se voltou para Lynette em tom conspiratório. – É uma citação, mas acho perfeitamente adequada à situação, você não acha?

– Acho – concordou Lynette, observando o policial de perto.

O homem estava rubro e parecia prestes a explodir a qualquer momento – e Lynette se deu conta de que Neferet não o estava provocando nem inventando nada daquilo. Ela deslizara pela mente dele e revelara o seu segredinho sujo.

– Sua vaca filha da puta! – berrou o policial Jamison.

– Já chega! – ordenou o detetive Marx, dirigindo-se ao homem uniformizado.

Então, sua atenção se voltou para Lynette e Neferet, falando de maneira clara e calma que fez Lynette desejar poder correr da loucura da vampira e direto para a proteção dele.

– Lynette, se você escolher ficar com Neferet, então vai fazer companhia a ela numa cela de cadeia. Neferet, você está presa pelo assassinato de toda a congregação da Boston Avenue Church.

A risada de Neferet foi seca e cruel.

– Você nem consegue fazer a acusação contra mim de forma correta, detetive.

– Você acabou de confessar esses assassinatos! – exclamou Marx.

Ele perdeu o tom profissional e objetivo que mantivera até aquele momento. Com um terrível aperto no estômago, Lynette se deu conta da verdade inacreditável – Neferet massacrara toda uma igreja cheia de inocentes.

Teve de segurar as mãos em frente de si para evitar que tremessem.

– Você tem uma mente tão decepcionantemente tacanha, detetive Marx. O que eu fiz naquela igreja não foi assassinato, foi sacrifício, e foi glorioso! Queria que você estivesse lá como testemunha, mas se estivesse lá , não estaria aqui para testemunhar o início do meu reinado. Ah, mas eu estou divagando. As suas acusações estão incorretas porque estão incompletas. Você se esqueceu de acrescentar o lanchinho que fiz com o seu prefeito algumas noites antes.

A expressão no rosto do detetive Marx era uma máscara de ódio.

– Meus instintos avisaram que os vampiros da Morada da Noite estavam dizendo a verdade sobre você ser a responsável pela morte do prefeito.

– Pelo menos uma vez, os seus instintos estavam corretos. Mas permita que eu continue com a minha confissão. É uma pena que não havia ninguém em Woodward Park para testemunhar minha saída triunfal de meu agradável recanto, enquanto eu descobria dois homens deliciosamente confusos praticamente implorando para que eu drenasse seu sangue.

Os olhos do detetive se arregalaram e Neferet zombou:

– Eu não sei o que é mais inacreditável, aquela energúmena da Zoey Redbird ter criado a ilusão de que matara os homens para logo em seguida correr pateticamente para você e se entregar, ou você realmente ter acreditado que aquela insípida tivesse coragem o suficiente para matar alguém. De qualquer modo, a situação não é muito favorável para suas habilidades de dedução.

Lynette viu que os policiais uniformizados, até mesmo Jamison, empalideceram diante da admissão direta de culpa de Neferet, mas o rosto do detetive Marx endureceu, formando linhas de teimosia.

– Neferet, permitirei que faça uma ligação para o Conselho Supremo, mas você deve se entregar agora e se preparar para arcar com as consequências dos seus atos.

– O Conselho Supremo tem ainda menos jurisdição sobre mim do que você – declarou Neferet. – Eu não sou vampira. Eu sou a Deusa das Trevas, Rainha de Tsi Sgili. E não vou nunca mais me curvar diante de qualquer autoridade. Você, Tulsa e o resto do mundo vão me adorar, é meu direito divino. Observem e aprendam. Mabel, venha até aqui.

A garota obedeceu imediatamente. Caminhou pelas portas que Judson abrira para ela e ficou ao lado de Neferet.

– Mais reféns não ajudarão você a se livrar disso! – exclamou o detetive Marx.

– Eu disse: observem e aprendam, humanos! Eu não tenho reféns, apenas súditos obedientes. Agora, observem o seu futuro!

Neferet abriu os braços para a garota que chamava Mabel. Lynette teve de dar um passo para o lado enquanto Mabel se apressava, de boa vontade, para abraçá-la.

– Se eu sou a sua Deusa, sacrifique-se por mim.

Com uma curiosidade mórbida, Lynette observou, perguntando-se o que a garota estaria disposta a fazer. Ela só teve segundos para pensar.

– A senhora é minha Deusa – afirmou a garota de forma mecânica e, então, começou a arranhar o próprio pescoço fazendo com que o sangue escorresse pelos ferimentos.

– Agora, sim, este é o comportamento esperado de uma súdita adequada. – Neferet se inclinou para beber o sangue da oferta. A garota arfou e estremeceu, mas, em vez de tentar escapar, ela exclamou com uma voz cheia de êxtase:

– Obrigada, Deusa

– Que delicadeza a sua – elogiou Neferet, seus lábios a centímetros do pescoço de Mabel. Antes de começar a se alimentar do sangue dela, Neferet ordenou: – Proteja-nos!

Instantes depois, houve um barulho ensurdecedor de tiros. Lynette se jogou no chão, encolhendo-se e colocando o braço sobre a cabeça numa vã tentativa de se proteger.

Ouviu uma lamúria de dor e, então, os policiais começaram a gritar. Tremendo violentamente, Lynette espiou por entre os braços. Neferet estava se alimentando da garota, ignorando o caos que acontecia diante deles.

Aparentemente, os tiros destinados a Neferet – e à própria Lynette – ricochetearam em algum escudo conjurado pela vampira e atingiram diretamente o corpo do policial desbocado.

– Ai, meu Deus – sussurrou Lynette.

– Será que você não quer dizer “ai, minha Deusa ”? – Neferet, com os lábios vermelhos do sangue da garota, sorriu para ela.

– Sim, é o que quero dizer – respondeu ela, sentindo-se tonta.

Neferet soltou a garota e Mabel caiu pesadamente no chão. Então, ela estendeu a mão para Lynette, que a pegou, e se levantou, trêmula.

– Não tema, não permitirei que eles a machuquem. Não permitirei que machuquem qualquer pessoa que seja leal a mim – afirmou.

A vampira voltou sua atenção para os policiais. Eles arrastaram o corpo cravejado de balas de Jamison para trás dos carros, onde o restante dos homens estava agachado. Lynette ouvia o som da estática dos rádios enquanto chamavam uma ambulância e pediam reforços.

– Você entendeu agora, detetive Marx? Aprendeu a sua lição?

– Aprendemos que você é uma assassina! – exclamou ele. – Ainda não terminamos. Este não é o fim.

– Pelo menos uma vez você está certo. Ainda não terminei aqui. Esse é só o começo. Observe e aprenda. Observe e aprenda – repetiu ela. – Ah, olhe para cima! Meus filhos, venham comigo!

Dando os braços para Lynette, entraram novamente no Mayo Hotel.

– Judson, acorrente as portas novamente.

– Sim, Deusa. Mas isso não os manterá lá fora por muito tempo.

– Eu sei disso! Limite-se a fazer o que eu ordenei. Como sempre, terei de tomar conta dos detalhes sozinha.

– Sim, Deusa.

– Lynette, gostaria que você se juntasse a mim na minha cobertura. Um evento espetacular está prestes a acontecer lá.

– Sim, Deusa – respondeu Lynette, entrando no elevador com ela.

O sorriso de Neferet era confiante.

– Você está quase acreditando que eu sou divina.

Lynette não respondeu. O que poderia dizer que Neferet não pudesse retorquir esquadrinhando a sua mente e descobrindo a verdade? Então, novamente, deu a única resposta possível:

– Estou aqui para servi-la.

– E assim será.

As portas se abriram para a cobertura.

– Kylee, Lynette está um pouco pálida, sirva para ela uma taça do melhor vinho e leve até a varanda.

Neferet passou por Kylee, com Lynette seguindo logo atrás, e abriu as portas para se juntar às sessenta pessoas que estavam reunidas em grupos amedrontados na varanda. Muitos estavam próximos à balaustrada que emoldurava a ampla extensão das portas para o lado de fora; pela expressão nos seus rostos, ficou claro que tinham ouvido os tiros e viram o que acontecera lá em baixo.

– Espere aqui, Lynette, e tome o seu vinho. Isso vai trazer um pouco de cor de volta ao seu rosto. Não posso permitir que a minha súdita favorita fique com uma aparência abatida e doentia – declarou Neferet.

Então, ela caminhou até o parapeito de pedra, fazendo com que as pessoas mais próximas a ela se afastassem, assustadas.

– Já que a educação moderna é de péssima qualidade, sinto que é meu dever, como a sua Deusa, dizer isto a vocês – ela fez uma pausa e apontou para as pedras esculpidas –: o nome disso é balaustrada. Os suportes grossos e com espaçamento uniforme, aqui e aqui – ela apontou novamente –, chamam-se balaústres. É uma feliz coincidência que haja exatamente sessenta balaústres espaçados em torno da varanda da cobertura do meu Templo. Eu quero que cada um de vocês escolha um balaústre e se posicione diretamente em frente a ele.

– Você... Você não vai nos obrigar a pular, não é? – quis saber uma velha aterrorizada.

– Não, Vovó – respondeu Neferet com a voz calorosa. – Isso não faria nenhum sentido. Será que vocês não viram como eu protegi Lynette contra as balas mortais que a polícia atirou contra ela?

Seguiu-se um longo silêncio e alguém disse:

– Mas você comeu aquela outra garota.

– Mabel foi desobediente. Será que vocês querem o mesmo destino que ela teve?

Suas palavras tiveram um efeito instantâneo sobre as pessoas, que se espalharam, cada qual assumindo uma posição em frente a um balaústre.

– Excelente! Kylee, sirva mais champanhe enquanto eu tenho uma conversa em particular com os meus filhos das Trevas.

Lynette apreciava vinho tinto caro e costumava degustá-lo, bebendo-o devagar. Mas não naquele momento. Ela bebeu ruidosamente, pegando a garrafa da mão de Kylee quando a garota robótica passou por ela para buscar mais champanhe. Lynette sentiu-se grata pela sensação surreal e destacada que o álcool lhe provocava enquanto observava a vampira se mover para um canto sombrio da varanda, bem longe do parapeito, e se curvava para conversar com o que parecia ser absolutamente nada.

Lynette sabia que não era o caso. E, com certeza, apenas um segundo ou dois depois, o ar em volta dos pés da vampira se ondulou, como correntes de ar quente se erguendo do asfalto abrasado de uma estrada, e as cobras de Neferet ficaram visíveis. Lynette ficou satisfeita que a vampira estivesse distraída com os seus “filhos”, pois não conseguia evitar o estremecimento de nojo. Lynette se lembrou de um velho filme de faroeste ao qual assistiu quando criança. Nele, os cowboys tinham que levar o gado e, enquanto cruzavam o rio, um jovem caiu do cavalo, pousando no meio de um enorme ninho de cobras aquáticas para ser morto por elas, embora não rápido o suficiente. Parecia que Neferet estava no centro do ninho, só que as suas cobras eram maiores, mais negras e até mais perigosas do que qualquer uma das cobras do velho oeste.

O que será que elas eram? Com certeza, Lynette não sabia muitas coisas sobre vampiros. Mesmo que fosse capaz de aceitar fazer negócios com eles – já que eram reconhecidamente ricos –, jamais fora contratada por um. Estava longe de ser uma perita em vampiros, mas tinha certeza de que ouvira falar alguma coisa sobre essas criaturas mortíferas semelhantes a cobras. Seus familiares deveriam ser gatos, meu Deus, e não répteis.

Lynette se serviu de mais vinho e tomou um longo gole em sua taça, sentindo-se aliviada por seu rosto estar quente. Bom, o calor deixaria o seu rosto “corado” de novo. Lynette não tinha dúvidas de que a vampira seria capaz de matá-la se lhe desse na telha. Disfarçadamente, apertou o próprio rosto para se certificar de estar completamente corada.

Como ela ia sair daquela confusão? Nem estava mais se preocupando em lucrar com aquilo. Só queria escapar sem ser caçada pelos filhos de uma vampira insana.

– Excelente! – Neferet se empertigou, voltando sua atenção para as sessenta pessoas, cada uma diante de um balaústre na cobertura. – Agora que os meus filhos compreendem os meus desejos, estou pronta para compartilhá-los com vocês, meus leais súditos. – Ela se colocou no centro da varanda para que pudesse ser vista e ouvida por todos. – Kylee, chega de champanhe por ora. Fique ao lado de Lynette.

Kylee, é claro, fez conforme foi ordenada.

Lynette lançou uns olhares de esguelha para a garota. A sua boca estava fechada, ela não conseguia ver qualquer sinal da infestação da cobra, mas a garota estava claramente no piloto automático. Seus olhos estavam abertos, mas sem vida. O rosto não tinha expressão. Dessa vez, Lynette conseguiu evitar um estremecimento de asco. Quem poderia saber o que aquela coisa ao seu lado poderia contar para a vampira?

– Bem, eu tenho uma pergunta para vocês, uma a que qualquer um pode responder. Qual é a sua maior preocupação neste momento? – perguntou Neferet para as pessoas.

Lynette achou estranha sua capacidade de parecer uma pessoa tão normal, até boa. Era tudo fachada, mas uma fachada muito boa.

Ninguém respondeu à sua pergunta, e Neferet deu um sorriso caloroso e encorajador, dizendo:

– Ah, vamos lá! Eu sou a sua Deusa. É o meu dever e um prazer ouvir as suas preocupações. E, como meus súditos, é o seu dever compartilhá-las comigo. Por favor, não me obriguem a forçá-los a cumprir com as suas obrigações.

Um homem resolveu responder:

– A minha maior preocupação é que eu não quero ser morto... Ou coisa pior – declarou ele, lançando um olhar nervoso e rápido para o ninho das trevas que cercava e se contorcia em torno da vampira.

– Muito bom! Ótima resposta. Mais alguém tem a mesma preocupação?

Neferet parecia realmente se preocupar e até mesmo Lynette sentiu que sua cabeça assentia junto com a dos outros.

– Perfeito! – exclamou Neferet. – Eu sabia que a segurança seria a principal preocupação de todos. Agora, vejam bem, eu não estou admoestando vocês, nem estou zangada, mas a sua principal preocupação deveria ser cuidar de mim e me adorar. – Várias pessoas começaram a protestar, obviamente temendo o que a vampira faria em seguida, mas Neferet ergueu a mão e, com um gesto régio calou a todos. – Não, não, eu compreendo. De verdade. E é por isso que vou deixar bem claro que ninguém pode ferir os meus súditos, de modo que fiquem livres para me adorar.

Lynette achou irônico que Neferet tenha feito tal pronunciamento enquanto sirenes soavam cada vez mais próximas lá embaixo.

– Para assegurar aos meus súditos de que eles estão seguros, precisarei da ajuda de vocês. Façam exatamente o que eu mandar, e prometo que o meu Templo será impenetrável a qualquer um que nos queira ferir.

Lynette deu um suspiro suave. Pena que ninguém disse o que todos estavam pensando: não é com o mundo exterior que estamos preocupados – é com você! Mas, é claro, ninguém disse nada disso. Era a Neferet que todos temiam.

– O que precisam fazer é bem simples. Primeiro, cada um de vocês deve se virar de modo a olhar para o lado de fora da cobertura. – De forma lenta e relutante, as sessenta pessoas fizeram como ela ordenou, e agora estavam de costas para Neferet. – Agora, ergam os braços, fechem os olhos, limpem suas mentes e respirem fundo junto comigo. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. – Lynette ouviu as pessoas respirando com ela. – Quero que se concentrem na minha voz e não pensem em mais nada.

Neferet fez uma pausa para olhar em volta e ver se todos estavam nos devidos lugares. Quando os seus olhos encontraram os de Lynette, seus lábios carnudos se abriram em um sorriso cruel.

O estômago de Lynette se contraiu e ela temeu que fosse vomitar todo o vinho que consumira.

O olhar de Neferet se afastou dela e pousou nas cobras que se contorciam em torno dos seus pés.

– Meus filhos, chegou a hora! – As palavras que disse a seguir foram entoadas em um ritmo musical que era supreendentemente tranquilizador, de forma quase hipnótica.

Em um ataque rápido, promovam a defunção
para que aqueles lá embaixo conheçam a minha ira.
O poder é farto, consuma seu quinhão
Para mim uma perfeita jaula assim se cria.

Lynette conseguia sentir o poder crescendo a cada verso que a vampira entoava, e ela, assim como as outras sessenta pessoas que estavam congeladas com os braços erguidos, não poderia fazer nada, a não ser esperar pelo que aconteceria a seguir.

Para que este mundo eu possa reedificar
meu Templo deve ser divinal – poderoso.
Para a Deusa, somente sua lealdade deve imperar
E para Tulsa ofereçam um divino canto majestoso.

Pelo tempo que ainda vivesse, Lynette jamais seria capaz de apagar da memória a visão do que aconteceu em seguida. Com as palavras “divino canto majestoso”, Neferet ergueu os braços e, como se aquele fosse o sinal pelo qual estavam esperando, as cobras dispararam em direção às costas das pessoas despreparadas. Lynette prendeu a respiração, esperando que as serpentes subissem por suas pernas e as possuíssem, mas suas expectativas não poderiam estar mais erradas. Em vez de possuir as pessoas, as cobras – como se formassem um único ser – atingiram-nas todas no meio das costas, atravessando-as com tanta força que o sangue e as tripas explodiram como uma chuva vermelha fluindo com as gavinhas sobre a balaustrada de pedra. Sem acreditar, Lynette assistiu às criaturas descerem pelas laterais do Mayo Hotel, lavando-o com negrume e sangue, como se estivessem desenrolando uma cortina escura e gotejante.

Um som chamou sua atenção de volta à Neferet. Entorpecida, viu que a vampira ainda tinha os braços erguidos. Sua cabeça estava inclinada para trás e seu corpo estremecia em espasmos enquanto ela gemia num êxtase terrível. Lynette tinha certeza de que vira um brilho sombrio emanando e se expandindo em volta dela. De repente, compreendeu. É a morte das pessoas . De alguma forma ela está se alimentando de suas almas, assim como as suas criaturas se alimentam dos seus corpos.

E elas estavam se alimentando das pessoas que tinham acabado de morrer – todas as cobras que permaneceram na cobertura. Lynette sentiu que balançava a cabeça. Havia tantas delas. Muitas ainda.

Lynette ainda meneava a cabeça e observava as criaturas que se agitavam por entre os mortos, grudando neles como sanguessugas gigantescas, drenando tudo o que restava nos corpos inertes, quando o braço de Neferet baixou. Ela arrumou o vestido e, sem lançar um olhar sequer para nenhum dos sessenta voluntários, virou-se, sorrindo, aproximando-se de Lynette.

– Kylee, jogue os corpos pela balaustrada quando os meus filhos acabarem de se alimentar. Ah, e chame Judson e os outros membros de minha equipe. Eles não precisam mais proteger as portas. Estamos todos seguros. Nada poderá penetrar o véu das Trevas. Ninguém poderá entrar nem sair do meu Templo sem minha permissão. Então, mande que a equipe avise aos súditos restantes de que eles não precisarão mais ficar naquele porão sombrio. Eles podem voltar para os seus quartos sem medo. Eu já me certifiquei de que todos estejam protegidos. Contanto que me adorem. Já chegou a hora de começarem a me adorar.

– Sim, Deusa – respondeu Kylee, desaparecendo pela porta da cobertura.

Os olhos verdes-esmeralda de Neferet encontraram os de Lynette.

– O que você achou do meu evento?

Lynette engoliu o enjoo que lhe subia pela garganta e ameaçava engasgá-la. Respondeu então com a mais pura honestidade:

– Eu jamais vi nada como aquilo.

– “Eu jamais vi nada como aquilo”, o quê? – perguntou Neferet, cheia de expectativa.

– Eu jamais vi nada como aquilo, Deusa – completou Lynette, curvando-se em uma reverência profunda e trêmula.

– E agora você realmente acredita nisso. Encantador! Levante-se, Lynette, minha querida, e sirva uma taça de vinho para nós, enquanto discutimos os tipos de evento de adoração que você planeja para mim.

Lynette se levantou e fez exatamente o que a Deusa mandou.

[*] Esta frase faz referência à obra Hamlet , de William Shakespeare. No caso, “The lady doth protest too much, methinks” (Parece-me que a dama faz protestos demasiados). Essa expressão indica uma situação em que a insistência na defesa de determinado argumento ou ponto de vista pode ser indício de que há uma mentira sendo ocultada pelo emissor. (N.E.)


6

Detetive Marx

Desde aquela noite escura e com muita neve em que Zoey Redbird o chamara até a velha estação, onde ela e um adolescente tinham escapado por pouco de serem assassinados, o detetive Marx tivera questionamentos em relação a Neferet, que, na época, era a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. A vampira parecera estranha para ele. Zoey obviamente ficara desconfiada dela quando ele levara os dois novatos de volta para a Morada da Noite, e Neferet a recebera de maneira calorosa e aparentemente sincera. Zoey assumira uma postura defensiva. Até dera um show para mostrar a nova tatuagem com a qual a Deusa tinha lhe presenteado naquela noite, o que, aos olhos treinados do detetive, indicava que a novata fora bem-sucedida em dizer à vampira mais poderosa e proeminente da escola que ficasse longe dela.

Marx achou que deveria ter ficado do lado da vampira e questionado a veracidade da novata. Em vez disso, Marx sentiu uma comichão sob a pele quando estava perto da Neferet, a mesma comichão que já lhe salvara nas ruas mais vezes do que poderia contar. Gostava de Zoey. Não sentia nenhuma comichão quando estava perto dela. De Neferet, porém, ele não tinha gostado nada.

Marx perguntara à sua irmã, que fora Marcada quase duas décadas antes, sobre Neferet. Anne fora surpreendentemente curta e grossa na sua resposta: Neferet é uma poderosa Grande Sacerdotisa. Fique longe dela. Quando pedira mais detalhes, Anne encerrara completamente a conversa. Chegara até a evitar as suas ligações por quase uma semana. Aquilo fora mais do que estranho. Ele e Anne eram gêmeos e se mantiveram próximos mesmo depois de ela ter sido Marcada e passado pela Transformação. Atualmente, ela dava aulas de Feitiços e Rituais na Morada da Noite de São Francisco. Marx passava as férias lá pelo menos uma vez por ano e ficara hospedado várias vezes no alojamento da escola como seu convidado. Anne costumava ser direta e honesta com ele sobre o seu mundo de vampiros. Sabia que poderia confiar no irmão. Mas bastou uma menção à Neferet, e Anne erguera um muro entre eles.

Marx odiara aquilo, odiara não ter a confiança da irmã. Então, nunca mais voltou a fazer perguntas sobre Neferet.

Nem mesmo quando a Grande Sacerdotisa deixara a Morada da Noite de Tulsa e dera uma entrevista coletiva condenando os vampiros atuais em geral e os da sua Morada em particular.

Nem mesmo quando Neferet desaparecera depois que a sua cobertura fora destruída.

Nem mesmo quando a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, Thanatos, acusara Neferet de ter assassinado o Prefeito LaFont.

Nem mesmo quando recebera uma pista anônima pelo Disque Denúncia dizendo ter visto uma vampira nua que se encaixava com a descrição de Neferet entrando na Boston Avenue Church.

Os últimos vinte e poucos minutos o fizeram mudar de ideia sobre não questionar a irmã.

– Aqui! Policial ferido aqui!

Marx acenou para a ambulância que chegara no bloqueio atrás do qual ele e os outros policiais estavam agachados. Lançou um olhar para Jamison. O cara estava obviamente condenado. As seis balas que ricochetearam no escudo invisível que Neferet erguera tinham, convenientemente, lhe atingido em todas as partes não protegidas pelo seu colete à prova de balas. Como ela conseguira fazer aquilo? Marx acrescentou mais uma pergunta à longa lista de perguntas que, com certeza, faria à irmã.

Mais carros oficiais do que ele poderia contar chegaram, parando no meio das ruas que cercavam o Mayo. Os policiais que não estavam dando cobertura para Marx apressavam-se em evacuar os prédios adjacentes. Marx enviara uma mensagem pelo rádio dizendo que um policial fora atingido, além de estar acontecendo uma situação grave envolvendo reféns.

Foi com uma mistura de alívio e tristeza que viu o chefe de polícia Connors liderando a equipe da SWAT. O chefe não era conhecido pelas habilidades diplomáticas.

– Detetive, faça um resumo rápido da situação – pediu ele.

– Neferet confessou os crimes na Boston Avenue. Ela está lá dentro do hotel com reféns. Ela tem controle sobre eles. Não sei se é por feitiço ou se apenas ela os deixou tão apavorados a ponto de estarem dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Mas você não vai acreditar nas coisas terríveis a que ela está obrigando essas pessoas fazerem.

– Depois de ver o que ela fez na Boston Avenue, acho difícil ficar surpreso com qualquer coisa que ela possa fazer – declarou o chefe de polícia em tom sombrio.

– Está vendo aquele corpo ali? Aquela garota dilacerou a própria garganta para Neferet enquanto dizia “obrigada, Deusa”. – Marx fez um gesto indicando a carcaça ensanguentada que costumava ser uma jovem.

– Alguma ideia de quantas pessoas estão lá dentro com ela?

Marx meneou a cabeça.

– Deve ter umas cem, mas é apenas um chute. Ela fechou o restaurante e trancou o prédio. Pelo que entendi, ela não vai deixar ninguém sair.

– Bem, ela vai ter que nos deixar entrar.

– Chefe, acho melhor conseguirmos algumas informações sobre a situação dos reféns. Não queremos uma repetição do que aconteceu na igreja. Ela massacrou aquelas pessoas, mas os corpos não parecem com nada do que já vi vampiros fazerem antes. Eles foram estraçalhados, comidos e drenados. O poder de Neferet não se parece em nada com o que já tenhamos lidado antes.

– É, eu vi. – O chefe de polícia meneou a cabeça. – Mas como uma porra de uma vampira conseguiu fazer algo assim? Eu ouvi dizer que uma Grande Sacerdotisa pode entrar na mente das pessoas. Controlá-las e até mesmo apagar lembranças. E sei que são fisicamente fortes, mas não tão fortes quanto os seus guerreiros. Mas a carnificina na igreja... – Ele balançou a cabeça. – Eu nunca ouvi falar em nada parecido com aquilo. E quanto a você? A sua irmã não é vampira?

– É sim, e eu vou dar uma ligada pra ela. Mas tem outra coisa que você precisa saber. Neferet não está dizendo que é uma vampira. Ela afirma ser uma deusa, para ser mais específico, a Deusa das Trevas e a Rainha de Tsi Sgili, seja lá o que for isso. Ela disse que transformou o Mayo no seu Templo e que quer que Tulsa a adore.

O chefe de polícia deu um grunhido.

– Porra nenhuma. Assim que avaliarmos a situação dos reféns, a gente vai entrar. Vamos ver o que o nosso atirador de elite com a sua arma de cinquenta calibres vai causar nas suas ilusões de divindade.

Marx acenou com a cabeça em concordância, mas sentiu a familiar comichão de aviso sob a pele, dando-lhe uma sensação ruim sobre como as coisas de desenrolariam.

– Esses malditos vampiros perderam a porra da cabeça ultimamente. Primeiro o assassinato do prefeito, então aqueles dois homens no parque, a carnificina na igreja e agora isso. Estou achando que precisamos fazer mais do que apenas colocar a Morada da Noite em confinamento. Acho que devemos expulsá-los de Tulsa!

– Chefe, sobre aqueles dois homens no parque. – Marx franziu as sobrancelhas. Sabia que os sentimentos contra os vampiros estavam em alta, mas ele detestava ouvir esse tipo de merda racista saindo pela boca do chefe da polícia.

– O quê? Você não prendeu aquela novata que confessou os assassinatos? Merda, ela talvez tenha matado LaFont também!

– Na verdade, chefe, Neferet acabou de confessar o assassinato do prefeito e daqueles dois homens. Ela gabou-se disso, assim como do massacre na igreja.

O chefe de polícia piscou, surpreso.

– Bem, então por que a porra de uma novata confessou ser a assassina? Ela faz parte dos seguidores de Neferet?

– Duvido muito. Zoey Redbird e Neferet têm uma história de animosidade entre elas. Acho que é provável que Zoey tenha encontrado com os homens e se defendido contra eles e, quando soube que estavam mortos, deve ter acreditado que os tinha matado . Ela é uma garota legal, chefe. Acho que ela se entregou porque estava consumida pelo remorso. Ela nem mesmo queria algum vampiro adulto com ela.

O chefe de polícia olhou para ele sem entender. Marx evitou um suspiro de impaciência e explicou:

– Se uma novata não está próxima a vampiros adultos, existe cem por cento de chance de que o seu corpo vai rejeitar a Transformação e ela morrerá. Zoey se julgou e se condenou; e decidiu que a sua sentença era a morte.

– Eu me esqueço do quanto você sabe sobre vampiros. – O chefe de polícia meneou a cabeça enojado. – Acho que não importa se eles são humanos ou novatos. Adolescentes são completamente incompreensíveis.

Marx abriu a boca para protestar – respeitosamente – que ele, na verdade, conhecia alguns adolescentes completamente compreensíveis e que incluiria Zoey Redbird na lista, quando o grito de um policial uniformizado o interrompeu.

– Ai, meu Deus! Olhem lá para cima!

Marx olhou para cima bem a tempo de ver criaturas negras e grotescas semelhantes a cobras, a não ser pela ausência de olhos – apenas bocas abertas emolduradas por dentes que estavam molhados e vermelhos –, sendo arremessadas por alguma força invisível pelo parapeito na cobertura do Mayo. As criaturas carregavam consigo uma explosão de sangue e tripas e fragmentos corpóreos e coágulos. E, enquanto caíam, elas se expandiam, mudando a forma de cobras sem olhos para uma cortina escura e pulsante, manchada de escarlate. A cortina desceu pela fachada de pedra do hotel, envolvendo-a em trevas e sangue enquanto se desenrolava até o chão.

– Atirem! Matem-nos! – berrou o chefe de polícia.

Marx tentou impedi-lo. Tentou lembrá-lo de que havia cidadãos inocentes lá dentro que poderiam facilmente ser feridos ou, até mesmo, mortos. Tentou dizer que o ataque só serviria para antagonizar a vampira que tinha mais reféns e que já estava tão louca, que acreditava ser imortal. Mas os tiros provocados pelo pânico explodiram à sua volta e suas palavras se perderam no furor do momento.

A princípio, Marx não queria olhar para cima. Não queria ver os tiros acabarem com o Mayo e ter de lidar com as consequências das ordens precipitadas do chefe de polícia. Marx, no entanto, não era o tipo de homem que fugia das coisas; ele fizera uma carreira ao lidar com elas. Resoluto, ergueu o olhar.

As cobras que se transformaram em cortina se expandiram de modo que parecia que o prédio tinha ganhado uma pele negra avermelhada, uma pele tão dura, que nem mesmo as Glocks que os policiais uniformizados carregavam conseguiam penetrar.

Todos observaram enquanto as trevas continuavam a descer pelo prédio até o nível da rua e a se fundir ali com um som sussurrante que lembrou Marx da vez que visitara Nova York e se hospedara no Plaza – e cometera o erro de sair para fumar às três horas da manhã. Ratos. Ele caminhara por uma cerca viva bem-aparada que ficava em frente à grandiosa entrada do Plaza e ouvira o som sussurrante. Olhara para baixo, ficando chocado ao se deparar com dezenas de ratazanas gordas passando por ali. Era com aquele som que a mortalha das trevas criada por Neferet se parecia enquanto se assentava no lugar onde o prédio encontrava a rua, contra pedras dos anos de 1920.

– Atirem nas portas. Vocês têm que passar por essa coisa e estar prontos para entrar! – berrou o chefe de polícia.

– Não! – exclamou Marx, enquanto os policiais uniformizados corriam para obedecer às ordens.

Determinado a sobreviver e lutar por mais um dia, Marx se abaixou atrás de um carro do pelotão.

Acabou em uma questão de segundos. Os policiais correram em direção às portas, disparando contra o vidro que agora estava coberto pela cortina negra e escorregadia salpicada de coágulos. Seu coração se partiu quando os gritos começaram. Marx já estava usando o rádio:

– Vários policiais feridos! Precisamos de mais ônibus no Mayo! E reforços! Mais reforços! Mande todos os policiais de Tulsa para cá! Agora!

Quando o comandante cambaleou para trás e caiu pesadamente no pavimento, atingido no meio da testa por fogo amigo, os olhos revirados e leitosos, sem dúvida morto, Marx fez a única coisa que sabia fazer: assumiu o comando.

– Cessar fogo e retirada! Retirada! – berrou ele, e os homens reagiram com um claro alívio.

Um jovem policial uniformizado se agachou ao lado dele, com a respiração pesada e as mãos trêmulas. Marx achou que o garoto não devia ter mais do que 21 anos.

– Mãe do céu! Aquele treco preto não sofreu nenhum arranhão! Os tiros ricochetearam diretamente para nós, como se estivessem mirando. Que merda é aquela? – Quis saber ele com a voz tão trêmula quanto as suas mãos.

– Magia – respondeu Marx. – Magia negra e maligna.

– E como é que a gente consegue lutar contra isso?

Marx encontrou os olhos do jovem.

– Nós não lutamos. Nós precisamos de ajuda. E, felizmente, eu sei onde conseguir.

Zoey

– Eu queria saber o que está acontecendo! – Stark andava de um lado para o outro em frente à sua cela.

– Por que você não vai até lá fora para ver se a Vovó ainda está na sala de espera? Ela pode descobrir o que está acontecendo. Ela trouxe cookies. Ninguém resiste aos cookies dela – eu disse.

– Boa ideia. Eu já volto.

Stark seguiu pelo corredor e foi a minha vez de ficar andando de um lado para o outro.

Neferet. Se alguma coisa louca estava acontecendo no Mayo, Neferet tinha de ser a responsável. Eu queria agarrar as grades da minha cela, sacudi-las e gritar como uma pessoa histérica: Tirem-me daqui! Tirem-me daqui! Se Neferet estava lá fora fazendo sabe-se lá o quê, eu deveria estar lá, tentando pensar em uma maneira de detê-la.

E eu estaria se eu não tivesse perdido a cabeça e matado dois homens.

Stark voltou correndo e cobriu as minhas mãos, que realmente estavam agarradas às grades, como seu eu fosse capaz de entortá-las.

– Eles devem ter expulsado a Vovó, Thanatos e todos os outros. Não tem ninguém aqui, a não ser um policial na recepção. Este lugar está deserto! Se eu tivesse a chave, poderia tirar você daqui sem nenhum problema. – Suas sobrancelhas, com suas mãos ainda pressionando as minhas. Ele sacudiu um pouco as barras (que nem se mexeram). Então ele deu o seu sorriso maroto. – Mas, já que eu não tenho a chave, será que você não conhece ninguém que poderia, de alguma forma, convocar alguns elementos, sei lá, para derrubar esta porta?

– Stark, eu estou aqui por um motivo. Eu fiz uma coisa muito, muito ruim. Fugir daqui não vai me ajudar em nada.

– Poderia ajudar se Neferet estiver desenfreada, alimentando-se de cidadãos inocentes de Tulsa. Na verdade, eles podem até se esquecer do seu acidente no parque e agradecê-la se você ajudar a derrotar a sra. Louca.

Dei um sorriso triste.

– Eles até podem esquecer, mas eu não vou conseguir. Além disso, eu não posso derrotar Neferet, Stark.

– Você já fez isso antes.

– Não para sempre e não sem ajuda.

– Bem... – Ele abriu os braços. – Você tem ajuda.

Bufei.

– Não é o suficiente. Se fôssemos suficientes, teríamos sido capazes de nos certificar de que Neferet nunca mais voltaria do lugar para onde a chutamos da última vez. – Então, os meus ombros ficaram caídos e eu os encolhi. – Provavelmente, nem é ela. Talvez sejam ladrões de banco.

– No Mayo? Hã, Z. Estamos falando de um hotel, não de um banco.

A porta do corredor se abriu e a estrutura de metal bateu contra a parede. O detetive Marx se apressou na nossa direção. A aparência dele estava péssima. Tipo, péssima mesmo. O paletó estava sujo e a calça, rasgada na altura de um dos joelhos. Senti o cheiro de sangue, o qual me obriguei a ignorar. Na verdade, isso nem foi tão difícil porque a expressão no seu rosto era perturbadora demais.

Ele parecia estar com medo.

– O que aconteceu no Woodward Park? – ele exigiu saber enquanto se colocava ao lado de Stark.

– Eu já disse.

– Conte para ele de novo – interveio Stark.

– Por quê? O que está acontecendo?

– Responda à minha pergunta primeiro.

– Tá legal. Como eu já disse, dois homens me irritaram e eu atirei a minha raiva neles.

– Mas o que eles fizeram para deixá-la tão irritada?

– Não o suficiente para eu matá-los, Ok? – respondi.

– Apenas responda à pergunta! – zangou-se Marx.

Surpresa com o seu tom, eu me ouvi respondendo:

– Eles estavam andando pelo parque procurando garotas para assustá-las e obrigá-las a lhes dar dinheiro. Eles não viram as minhas tatuagens antes de começarem a me assediar. Então, quando perceberam que eu não era apenas uma adolescente indefesa, mudaram de ideia sobre me assustar. Eles basicamente disseram que iriam procurar outra vítima e isso me deixou louca da vida. – Fiz uma pausa e acrescentei: – Mas ainda tem mais. Eu já estava muito irritada quando cheguei ao parque, foi por isso que eu tinha ido para lá. Para tentar me acalmar. Eu... Eu não conseguia controlar o meu temperamento.

– Conte para ele o resto. Conte para ele por que você deu a pedra da vidência para Aphrodite quando se entregou para a polícia – insistiu Stark.

– Eu não percebi na hora, mas agora eu consigo entender que a pedra da vidência, um tipo de talismã que ganhei na Ilha de Skye, estava afetando as minhas emoções. Tipo, amplificando-as ou provocando-as, ou talvez apenas alimentando o meu estresse. Ela fica quente quando funciona e, no parque, ela estava superquente. Foi por isso que consegui erguer os dois homens e atirá-los contra o paredão da gruta.

– Você não consegue fazer isso, digamos, agora, consegue? – perguntou Marx, observando-me atentamente.

– Acho que não. Pelo menos não sozinha. Eu teria que chamar um ou todos os elementos, e eles ficam mais poderosos se o meu círculo estiver comigo e nós cinco canalizarmos a nossa energia para eles.

Marx assentiu, pensativo.

– Você sabia que os dois homens estavam mortos quando saiu do parque?

– Não. Tipo, eu sabia que eu os tinha lançado contra o paredão, mas foi como uma explosão grande e louca para mim. Bem, eu fiquei surpresa com aquilo – respondi. Distraída, esfreguei a palma da minha mão direita na minha perna e, então, olhei para ela. No meio das tatuagens entrelaçadas, um círculo perfeito tinha se formado ali. Ergui a mão para que o detetive pudesse vê-la. – Essa marca no centro, o círculo, foi feita pela pedra da vidência. Aconteceu na hora em que atirei a minha raiva naqueles homens. Era como se o poder dela tivesse saído através de mim. Quando eu percebi o que tinha feito, eu me aproximei deles.

Engoli em seco ao me lembrar.

– E o que exatamente você viu? – perguntou Marx, impaciente.

– Eles estavam deitados lá, aos pés do paredão que dá para a Twenty-first Street. E-eu me lembro de que ouvi um deles gemer, e vi o outro estremecer. Ficou claro que os tinha machucado muito. Talvez até gravemente. Então, eu fiquei com medo e fugi. Eles deviam estar morrendo quando eu fui embora. Sinto muito. De verdade. Eu sei que isso não faz qualquer diferença. E eu também sei que não faz a menor diferença o fato de eles estarem no parque para assediar garotas nem que a pedra da vidência tenha me dado o poder para fazer o que eu fiz. Foi a minha raiva que matou aqueles homens. Eu sou a responsável. – Mordi o lábio com força. Eu não ia começar a chorar.

– Não, Zoey. A verdade é que não foi você que fez isso e não, você não é a responsável pela morte deles.

Ele passou o cartão magnético no painel da porta da minha cela, e a tranca de metal se abriu com um clique.

– Hein? – Pisquei para ele, sentindo que eu devia estar sonhando. Olhei para Stark, que também estava olhando para o detetive.

– Isso tem alguma coisa a ver com Neferet – disse Stark.

– Isso tem tudo a ver com Neferet – concordou Marx. – Ela confessou ter matado aqueles dois homens. Não, essa não é uma descrição precisa. Neferet se gabou de ter matado aqueles dois homens.

Stark comemorou e me envolveu em um abraço.

– Z., você não matou ninguém.

– Eu não matei ninguém! – repeti o grito de Stark, enquanto ele me abraçava, rindo.

Eu estava me sentindo fraca, quase tonta. Eu não tinha matado ninguém! Mas que merda, eu quase tinha rejeitado a Transformação. Eu quase morri. Por causa de Neferet.

Tudo sempre voltava a Neferet.

Bati no ombro de Stark e ele me colocou no chão (mas eu continuei segurando a sua mão).

Eu me virei para o detetive Marx.

– O que mais ela fez?

– Você e seus amigos estavam certos. Neferet matou o prefeito. Ele e os dois homens no parque foram só o aquecimento. Ela massacrou uma igreja cheia de gente, e agora declarou ser uma deusa. Ela tornou o Mayo como seu Templo e está trancada lá dentro com um monte de gente enfeitiçada.

– Merda! – exclamou Stark.

– Aiminhadeusa ! – Neferet finalmente conseguira. Ela finalmente conseguira se superar e mostrar para todo mundo o que ela era de verdade.

– Você está livre, Zoey. Todas as acusações foram retiradas. Mas, antes de você ir, eu tenho um favor para pedir.

Olhei diretamente nos olhos dele.

– Você não precisa pedir. Eu vou ajudá-lo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para detê-la.

Marx suspirou de alívio.

– Obrigado. Eu não vou mentir para você, Zoey. A situação no Mayo é feia. Horrível mesmo. Neferet é poderosa e perigosa.

– E uma louca de carteirinha – terminei por ele. – Eu sei. Eu já sei disso há meses.

– Então, você sabe contra quem vai lutar.

– Todos nós sabemos – disse Stark. – Porque nós fomos os únicos que lutamos contra aquela puta doida.

– Tudo bem, então. Você precisa pegar aquela tal de pedra da vidência antes de eu te levar para o Mayo e...

– Espere um pouco. Não, você não entende, detetive Marx. Quando eu disse que vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para deter Neferet, não quis dizer que faria tudo sozinha. – Apertei a mão de Stark. – Uma das coisas que aprendi com certeza é que eu fico mais forte com os meus amigos.

– Só me diga do que precisa e eu farei acontecer – afirmou Marx.

– Tudo de que preciso está na Morada da Noite – respondi.

– Então venha comigo, Zoey. Vou levá-la para casa.


7

Zoey

Eu mal tinha saído do carro do detetive Marx quando a Vovó saiu correndo pela porta da frente da escola e me envolveu em um abraço.

– U-we-tsi-a-ge-ya ! É você! Eu sabia... Eu sabia que você estava voltando para casa.

Eu a abracei rapidamente e demos os braços enquanto entrávamos na Morada da Noite com detetive Marx e Stark seguindo logo atrás. O sol estava se pondo, mas eu estava superconsciente de que ainda poderia provocar dor em Stark. Conforme nos apressamos para dentro do prédio, sorri para a Vovó e contei:

– Eu não matei ninguém! – Então, eu me lembrei de quem os tinha matado e o que mais ela tinha feito, e o meu sorriso se apagou. – Neferet os matou.

– Neferet? – Ergui os olhos do rosto feliz de Vovó para ver Thanatos, Aphrodite e Darius saindo da sala da Grande Sacerdotisa.

– Zoey, detetive Marx, será que poderiam explicar o que aconteceu? – pediu Thanatos.

– Neferet confessou ter matado os dois homens no parque... – começou a explicar detetive Marx, mas eu o interrompi.

– Espere, tem muito mais coisa do que isso, e eu preciso que o meu círculo ouça tudo. – Olhei para Thanatos. – Neferet se revelou. Precisamos nos apressar.

– Darius e Stark, reúnam o círculo de Zoey. Leve-os até a Câmara do Conselho. Chame Lenobia também. Ela é a sacerdotisa mais velha desta morada. Talvez precisemos de sua sabedoria. Vão agora! – orientou Thanatos.

Stark e Darius saíram.

– Detetive, permita que eu o acompanhe até a Câmara do Conselho. Sylvia, eu ficaria muito grata se você pudesse partilhar a sua sabedoria em relação ao que estamos enfrentando com Neferet. Você poderia se juntar a nós?

– É claro – respondeu Vovó em tom irônico. – Eu sei mais do que um pouco sobre Neferet e a sua marca singular do mal. – Vovó me deu um beijo suave no rosto e começou a caminhar com Thanatos e com detetive Marx em direção à escadaria que levava até a Câmara do Conselho.

Isso me deixou sozinha com Aphrodite.

– Eu não vou perguntar se você me quer ou não. Eu vou a essa reunião – afirmou ela antes de começar a seguir os três adultos.

Toquei em seu braço e ela se virou para olhar para mim. Eu não sabia dizer se eu vi mais medo ou raiva nos seus olhos – e as duas coisas fizeram com que eu me sentisse horrível.

– Sinto muito – disse de forma simples. – Eu estava errada. Você estava certa o tempo todo. Estava certa ao procurar Shaylin. Estava certa ao pedir que ela ficasse de olho em mim. Você estava certa em não me contar sobre a sua visão. Eu deveria ter escutado você, mas não escutei, e eu não teria escutado, mesmo se você me contasse sobre a sua visão. Eu estava fora de controle. Fui egoísta. Fui burra. Sinto muito – repeti. – Por favor, desculpe-me.

Enquanto eu estava falando, Aphrodite ficou totalmente parada. Não colocou a mão na cintura, nem zombou de mim ou jogou o cabelo. Ela me ouviu e me observou com seus olhos intensos e claros. Não disse nada pelo que pareceu ser um longo tempo e, quando finalmente falou, o tom de sua voz não estava irônico, nem malicioso, nem sarcástico. Ela estava séria. Os seus modos estavam calmos. Ela parecia a Profetisa de uma Deusa.

– Achei que você fosse minha amiga.

– Eu sou.

– Você me magoou.

– Eu sei. Gostaria de dizer que não foi a minha intenção, mas não vou mentir. Naquela hora, eu queria magoá-la porque eu estava sofrendo muito. Aphrodite, a pedra da vidência fez algo comigo. Não estou usando isso como desculpa pelo que disse e fiz. Eu ainda era eu . Eu ainda estava errada. Estou tentando explicar para você que percebi o que aconteceu... Ou pelo menos como aconteceu. E eu lhe juro que isso não vai acontecer de novo.

Ela continuou me analisando em silêncio.

– Também vou me desculpar com Shaylin – acrescentei.

Aphrodite assentiu.

– É melhor mesmo. Você a assustou muito.

– Não vai acontecer de novo – prometi em tom solene. – Eu juro.

– Você quer a pedra de volta?

– Não! – respondi, dando um passo para me afastar dela. – Eu quero que você a mantenha bem longe de mim.

– Esse é o meu plano – respondeu ela. – Eu só queria saber qual era o seu.

– Eu não tenho nenhum plano, a não ser me desculpar com você e Shaylin e, bem, com todos os outros.

– Bem, já era de se esperar – respondeu Aphrodite, parecendo-se um pouco mais com ela mesma. – Você costuma estar despreparada e mal-arrumada. Eles não têm chapinha na prisão? – Ela lançou um olhar de avaliação para o meu cabelo de quem acabou de sair da cama.

– Não. Cabelo bonito não é uma prioridade na prisão.

– Bem, até agora eu só tinha ouvido falar que o sistema penitenciário de Oklahoma é uma droga. Agora eu tenho certeza.

Isso me fez sorrir.

– Então, você me desculpa?

– Acho que é o que tenho que fazer. Você está horrível. Eu odiaria ter que jogar sal na ferida contra a moda que o seu curto período na prisão já lhe causou.

Eu ri e nós demos os braços.

– Será que existe alguma coisa que você não consiga resumir para a moda?

– Não, e não precisa agradecer.

Eu ri de novo e nós seguimos para a escadaria. Eu me sentia leve e feliz; por alguns momentos, deixei que Neferet saísse da minha mente e concentrei os meus pensamentos em uma oração silenciosa para Nyx: obrigada, Deusa, por ter me dado uma amiga tão boa!

– Ei, não vai ficar pensando que pode me abraçar e coisas desse tipo. Eu não sou de abraços. Vamos considerar isto aqui... – ela passou a mão na frente do seu corpo – ... uma zona de não contato. Darius, é claro, tem uma concessão.

– Entendi – respondi, mas continuei de braço dado com o dela enquanto subíamos as escadas. – Eu nem sonharia em cruzar a sua zona de não contato.

– Muito bem – disse ela, mas não afastou o braço do meu até estarmos na frente da sala de conferências. Então, ela parou e se virou para me olhar de forma séria e declarou: – Eu perdoo você, Zoey.

– Obrigada. – Pisquei rápido, surpresa pelas lágrimas repentinas nos meus olhos.

– Ah, merda – disse ela e, depois de olhar à sua volta para se certificar de que estávamos sozinhas, abriu os braços e me abraçou sussurrando: – Eu amo você, Z.

Eu funguei e retribuí o abraço.

– Eu também amo você.

O barulho da porta da escada se abrindo fez com que ela se afastasse de mim.

– Não chore – pediu ela, em tom sério. – Ficar choramingando não vai ajudar no visual desastroso que você tem agora.

– Tá bom – choraminguei um pouco mais.

– Zo! Ouvi dizer que soltaram você! Uhu ! – exclamou Aurox, feliz, falando de forma estranha e maravilhosamente semelhante a Heath.

Ele correu na minha direção, com a intenção clara de cruzar a minha zona de não contato. Dei alguns passos para trás e, então, parei quando ele vacilou e parou. Eu não sabia o que fazer. Tipo assim, nós decidimos ser amigos. Amigos se abraçavam. Mas nós decidimos ser apenas amigos. Bem, na verdade eu tinha decidido que seríamos apenas amigos e...

– Ah, para de pensar um pouco. Prostrado e pesaroso pra caramba foi como ele ficou sem você. – Aphrodite meneou a cabeça, enojada. – E estou usando aliterações para falar, se eu começar a fazer rimas, vou me jogar de um prédio bem alto. Façam um biquinho ou qualquer outra coisa bem rápido e, depois, vão para a Câmara do Conselho. Infelizmente, não temos muito tempo pra dramas de relacionamento.

Ela jogou o cabelo para trás, abriu a porta e entrou.

Aurox e eu nos olhamos.

– Biquinho? – perguntou ele.

Senti o rosto pegar fogo.

– Ela quer dizer dar um beijo.

Ele ergueu as sobrancelhas.

– Você quer me beijar?

Felizmente, nada do que ele disse depois de uhu parecia nem um pouco com Heath. Limpei a garganta.

– Acho que essa não seria uma boa ideia, mas obrigada por perguntar.

– Bem, estou feliz por você estar de volta – afirmou ele, tentando sorrir.

– Eu também. – Sorri de volta. – E, mesmo tudo sendo confuso, estou feliz por você estar de volta também.

Eu quis dizer aquilo como um elogio – e talvez até como uma piada particular (a situação não ficaria muito melhor se pudéssemos rir dela?), mas o sorriso que Aurox tentara dar desapareceu na hora.

– Você não está se referindo a mim . Mas sim a Heath. E eu não sou Heath. Com licença. Darius disse que eu deveria estar nesta reunião. – Dei um passo para o lado e permiti que ele abrisse a porta. Ele não a segurou para mim, mas a deixou se fechar na minha cara, deixando-me em pé ali, sozinha, no corredor, sentindo-me um cocô.

Tudo bem , disse para mim mesma, a minha vida ficaria bem mais fácil se Aurox continuasse chateado comigo – ou, pelo menos, irritado ou desinteressado. Aphrodite estava certa por vezes demais. Eu não tinha tempo para dramas de relacionamento (embora não achasse que aquilo fosse triste demais).

Passei os dedos pelo meu cabelo muito despenteado, empertiguei-me e entrei na Câmara do Conselho Escolar.

A sala era grande, mas sempre parecia ser pequena por causa da mesa redonda gigantesca que dominava o ambiente. Tenho quase certeza de que a ideia era imitar o rei Arthur (que, é claro, tinha sido o consorte da Grande Sacerdotisa Mogan le Fay), então ela não tinha uma cabeceira de verdade. O que acontecia era que o lugar onde a Grande Sacerdotisa se sentava se transformava automaticamente na cabeceira da mesa.

E por falar na atual Grande Sacerdotisa, fiquei surpresa ao vê-la entrar na sala pela porta dos fundos, assim que eu fechei a porta atrás de mim. Thanatos assentiu para Aurox, que assumiu uma posição de guarda ao se colocar ao lado daquela porta. Então, ela lançou um olhar para mim e indicou um assento vazio entre Vovó e Aphrodite. Thanatos se sentou à esquerda da Vovó, ao lado do detetive Marx. Enquanto eu me acomodava, tentando não ficar inquieta, Thanatos se inclinou para a frente de Vovó e se dirigiu a mim.

– É oficialmente bom tê-la de volta em casa, Zoey – declarou a Grande Sacerdotisa da Morte.

– Eu nem consigo dizer o quanto estou feliz de estar aqui e saber que não matei ninguém – respondi.

– Mas você aprendeu uma lição valiosa com essa experiência – comentou Vovó.

– É. Temos que parar Neferet. Não importa o que tenhamos de fazer – interveio Aphrodite.

– Bem, é verdade. Mas eu acho que a Vovó está falando de sempre escolher a bondade quando houver dúvida – disse eu.

– Eu não acredito que essa lição vá nos ajudar muito com Neferet – resmungou Aphrodite.

– Você ficaria surpresa, criança – respondeu Vovó suavemente, com um sorriso sábio nos lábios.

A porta se abriu e Stevie Rae entrou seguida por Stark, Damien e Shaunee.

– Z! Aiminhadeusa! É tão bom ver você livre! – Stevie Rae correu na minha direção e me envolveu em um grande abraço de urso. – Eu sabia que você não seria capaz de matar aqueles caras.

Eu lhe dei um abraço rápido antes de me soltar. Eu encontrei o seu olhar.

– Eu tenho algo a dizer sobre isso, mas quero esperar até todo mundo estar aqui.

– A espera acabou. O bonitão já está aqui – informou Aphrodite, sorrindo quando Darius entrou acompanhado por Lenobia e Shaylin.

Darius e Stark assumiram seus lugares em cada um dos lados da entrada principal. Stark me deu uma piscadela rápida, e eu fiquei feliz ao ver que ele não estava pálido e seus olhos tinham perdido aquele olhar ferido. Para ele estar assim tão melhor, o sol já devia ter se posto, e imaginei que Rephaim entraria a qualquer segundo agora.

Lenobia se sentou ao lado do detetive Marx, cumprimentando-o com um aceno rápido de cabeça. Shaylin escolheu o lugar mais distante de mim que conseguiu e não olhou na minha direção. Eu me levantei e limpei a garganta.

– Sei que uma emergência envolvendo Neferet está acontecendo no centro da cidade, mas eu preciso dizer uma coisa antes de começarmos a lidar com isso. E vou ser rápida. Como vocês já sabem, descobri hoje que não matei aqueles dois homens no parque. Mas, mesmo que eu não tenha causado a morte deles, sei que poderia ter feito aquilo. Eu estava fora de controle. Isso teve alguma coisa a ver com a pedra da vidência, mas também comigo . Eu estava errada. Aphrodite estava fazendo exatamente o que Nyx esperaria da sua Profetisa: ela informou a Shaylin que havia algo de ruim acontecendo comigo. – Eu olhei para Shaylin até que ela, relutante, encontrasse o meu olhar. – Shaylin, eu já pedi perdão a Aphrodite, mas lhe devo um pedido de desculpas ainda maior. Você estava certa ao me seguir. Você estava certa ao contar sobre as mudanças que detectou na minha aura. Foi muito, muito errado da minha parte empurrar você e perder a paciência daquele jeito, e não estou apenas pedindo para que aceite meu pedido de desculpas. Eu estou fazendo... – Fiz uma pausa e olhei para todos os meus amigos – ... um juramento a você e a todos aqui: farei tudo o que for preciso para me certificar de que isso jamais volte a acontecer.

– Eu perdoo você – afirmou Shaylin sem hesitar, embora o seu sorriso fosse hesitante e ela ainda parecesse estar com medo. – A propósito, as suas cores já voltaram ao normal agora.

– Obrigada – agradeci. – E, por favor, avise a mim, e a qualquer outra pessoa aqui, se perceber que as minhas cores estão bagunçadas de novo. Eu estava errada quando disse que você devia manter esse tipo de coisa para si mesma. Não se trata de uma invasão de privacidade. Você simplesmente está usando o dom que Nyx lhe deu.

– Zoey, onde está a pedra da vidência agora? – perguntou Thanatos.

– Está comigo – respondeu Aphrodite, antes que eu tivesse a chance de falar qualquer coisa.

– E eu não a quero de volta – acrescentei.

– Se ela é tão poderosa quanto você está dizendo que é, Zoey, você talvez não tenha escolha a não ser pegá-la de volta – disse o detetive Marx. – Porque vai ser preciso muito poder, muito poder mágico, para lutar contra Neferet.

– Detetive, é a sua vez. Explique exatamente o que Neferet fez – pediu Thanatos.

Eu me sentei e ouvi com um aperto no estômago e uma estranha premonição de que Marx estava certo.

Zoey

Seguiu-se um silêncio longo e doentio depois que o detetive Marx descrevera, com riqueza de detalhes, a carnificina de Neferet na igreja e, depois, o que acontecera no Mayo Hotel.

– Eu senti as mortes – disse Thanatos, meneando a cabeça com tristeza. – Eu sabia que algum tipo de tragédia humana, de morte em massa, tinha acontecido bem próximo de Tulsa. Eu estava assistindo ao noticiário, esperando ouvir que um avião tinha caído ou que talvez tivesse ocorrido algum tipo de tiroteio trágico em alguma escola. Mas eu não esperava isso. Eu realmente não esperava que Neferet fosse responsável por tudo isso.

– Nós não temos conseguido prever o comportamento dela, mas talvez possamos descobrir algo sobre o que esperar dela no futuro se analisarmos os crimes de Neferet até agora – sugeriu Vovó. – Ela matou o prefeito, e aquele crime a alimentou até Woodward Park. – Vovó fez uma pausa e deu um sorriso triste para Aphrodite. – Desculpe-me por ter de falar da morte do seu pai de uma forma tão objetiva.

– Eu entendo. E quero que continue – respondeu Aphrodite, séria. – Se a morte do meu pai nos ajudar a descobrir como derrotar Neferet, então, pelo menos, ele não terá morrido em vão.

Vovó assentiu e continuou:

– Ela deve ter se escondido no parque até Zoey ter enfrentado problemas com aqueles dois homens.

– Eu estava sentada naquele banco perto da gruta quando eles começaram a me assediar – contei, tentando juntar as peças. – Neferet talvez estivesse escondida na gruta.

– Vou mandar alguns policiais checarem – disse detetive Marx, fazendo anotações no seu bloco preto de espiral.

– As mortes dos dois homens no parque devem ter dado a Neferet o poder de que precisava para chegar à Boston Avenue Church – refletiu Vovó.

– E lá ela encontrou outra fonte maior de poder – acrescentou Lenobia. – Não podemos nos esquecer de que poder é o que há de mais importante para Neferet.

– Ela usa o poder para controlar aquelas criaturas semelhantes a cobras. As coisas que mataram aquelas pessoas na cobertura do Mayo e criaram aquele... Eu nem sei como chamar. – Marx hesitou, pensando. – É uma pele protetora, uma barreira. Mas seja lá o que for, tem muito poder.

– Aquelas criaturas com aparência de cobra são feitas de Trevas. Pense nelas como pensamentos odiosos, horríveis e cruéis que tomaram uma forma física – expliquei para o detetive Marx. – Eles fazem o que ela manda porque ela faz sacrifícios por eles. Eu tenho certeza de que Neferet não se alimentou de todas aquelas pessoas na igreja. Ela as sacrificou para que aquelas criaturas a continuem seguindo e fazendo o que ela deseja.

– Uma Tsi Sgili exige muito mais do que sangue por poder – interveio Vovó.

– Tsi Sgili... Rainha Tsi Sgili – disse Marx –, foi assim que Neferet se referiu a si mesma quando se intitulou Deusa.

– Tsi Sgili é um nome antigo que o meu povo usa para se referir a bruxas que escolheram as Trevas em vez da Luz. Elas vivem segregadas, afastadas de todos. – Vovó estremeceu. – As nossas lendas dizem que elas se alimentam de almas.

– Morte – disse Thanatos. – Eu deveria ter compreendido antes. Neferet se alimenta da energia que é liberada pelo espírito de uma pessoa no instante da sua morte.

– Ai, Deusa! – Lenobia parecia horrorizada e levou a mão ao peito. – Eu conheço Neferet há mais de um século. Ela sempre estava por perto quando um novato rejeitava a Transformação. Achávamos... As Sacerdotisas achavam que o dom de cura de Neferet confortava a passagem dos jovens.

– Ela não os confortava. Ela os usava – expliquei.

– Neferet tinha alguma coisa a ver com a nossa morte e a nossa volta – disse Stevie Rae. – Eu não consigo me lembrar. Talvez porque não consiga me obrigar a isso. Sei lá. – Ela estremeceu. – Mas eu sei que parecia como se algo dentro de mim estivesse se rompendo. – O seu olhar encontrou o de Stark, o único outro vampiro vermelho na sala. – Do que você se lembra?

– Dor. Trevas. Terror. Raiva. – Suas palavras estavam tensas, embora a sua voz permanecesse baixa, e nós nos inclinamos para ouvi-lo. – E, quando saímos daquilo, eu não era mais eu. Não até que Zoey dissesse que acreditava em mim, que confiava em mim.

– E eu também não consegui sair daquilo, até que Aphrodite acreditasse e confiasse em mim – disse Stevie Rae.

Aphrodite bufou.

– Pelo que me recordo, não foi bem assim. O que eu me lembro é que você tentou me devorar e, depois, pegou a minha condição de novata e levou com você.

– Porque você permitiu. Porque você sacrificou a sua humanidade por mim – esclareceu Stevie Rae.

– A parte de querer me devorar não foi legal – murmurou Aphrodite.

– O amor é mais forte que o ódio. Essa é a única verdade absoluta no universo. O amor conquista as Trevas – afirmou Vovó. – Nós só precisamos descobrir como o amor pode conquistar Neferet.

Ouvi um monte de suspiros após os meus.

– Tudo bem, eu sou totalmente a favor de o amor vencer – disse detetive Marx –, mas a gente precisa lidar com o que quer que seja que está acontecendo com aquelas coisas rastejantes.

– Neferet as está alimentando – respondi, sentindo a verdade das minhas palavras à medida que eu as pronunciava. – Ela dá a elas o que elas querem: sacrifícios com sangue fresco. E elas a obedecem. Se conseguirmos chegar a Neferet e a enfraquecermos ou, pelo menos, contê-la e impedi-la de matar mais gente, ela não conseguirá alimentá-las, e elas vão deixá-la.

– Concordo, mas acho que ainda tem mais, Zoey. As gavinhas das Trevas estão mudando, evoluindo, junto com Neferet – disse Thanatos. – Eu jamais, nos mais de cinco séculos que vivo como vampira, ouvi alguém criar o tipo de barreira como a que o detetive Marx acabou de descrever. – Ela se voltou para o policial. – E você disse que elas pareciam sensitivas, que elas, na verdade, direcionaram as balas para policiais específicos?

– Eu não tenho a menor dúvida quanto a isso. Eu estava lá. Eu vi aquilo de perto e tudo foi muito pessoal. Todos os primeiros tiros disparados atingiram o policial que ofendera Neferet, mas apenas nas partes do seu corpo que não estavam protegidas pelo colete à prova de balas. Os outros tiros feriram vários policiais, mas mataram apenas o chefe de polícia, o homem que deu a ordem de atacar o prédio – contou Marx.

– Lenobia, você já ouviu falar de algo assim? – perguntou Thanatos.

– Nunca.

– Então, chame a cavalaria – sugeriu Marx. – Envolvam o Conselho Supremo dos Vampiros. Talvez eles possam nos ajudar a descobrir uma maneira de vencer Neferet.

– O Conselho Supremo se recusou a nos ajudar – informou Thanatos. – Nós somos a cavalaria. – Ela se levantou. – Então, detetive Marx, vamos ao Mayo ver exatamente contra o que estamos lutando.

A porta dos fundos da Câmara do Conselho se abriu e Kalona, com o peito descoberto e olhos âmbar dardejando de raiva, caminhou até Thanatos.

– Já está na hora de você chamar a cavalaria completa. Eu sou um Guerreiro da Morte. Então, aonde você for, eu vou. Humanos e suas consequências que se danem.

Suas asas negras se desenrolaram e ocuparam a sala inteira.

O detetive Marx ficou boquiaberto.

– Merda – sussurrou Aphrodite.

– Eu digo o mesmo – concordei, perguntando-me o que aconteceria em seguida.


8

Detetive Marx

O cara era enorme. E tinha asas. Porras de asas gigantescas.

Marx ficou feliz por já estar sentado porque só de olhar para o... seja lá o que era aquilo... fazia os seus joelhos ficarem moles.

Primeiro, uma vampira-deusa enlouquecida e uma cortina preta sangrenta no Mayo. Agora, um gigante alado que dizia ser Guerreiro da Morte.

Será que estava na porra de um sonho?

Bem, se ele estava, o sonho continuava se desenrolando porque Thanatos caminhou até o gigante alado, e Marx com certeza não estava acordando.

– Ir comigo? Para o centro de Tulsa, diante dos olhares de...

– O que você vai fazer se as gavinhas das Trevas de Neferet atacarem você? Eu entendo essa manifestação das Trevas. Eu já a enfrentei diversas vezes no Mundo do Além. – A voz do gigante trovejava. – O que os humanos temeriam mais, a encarnação do mal ou a presença de um deus batalhando nas ruas de Tulsa?

– Os humanos não acreditam que deuses caminhem sobre a Terra – contrapôs Thanatos.

– Exatamente! – respondeu o gigante alado. – As ações de Neferet negaram a norma. Já passou da hora de os humanos tirarem a cabeça do buraco em que a enfiaram e se darem conta de que este mundo é cheio de magia, mistério e perigos. E também chegou a hora de eu fazer o que fui criado para fazer: ser um Guerreiro e lutar contra as Trevas.

A Grande Sacerdotisa curvou um pouco a cabeça em concordância com o homem alado. Então, ela se voltou para Marx:

– Detetive, gostaria de apresentá-lo ao meu Guerreiro sob Juramento, Kalona. Ele é o meu protetor, assim como o Mestre da Espada desta Morada da Noite. Ele me acompanhará até o Mayo.

Marx hesitou um momento e, então, fez a única coisa que passou por sua cabeça – estendeu a mão e a ofereceu para o grandão.

– Prazer em conhecê-lo, Kalona.

Kalona segurou o seu antebraço no cumprimento tradicional dos vampiros.

– O prazer é meu, detetive.

– Você não é um vampiro, né? – Marx não conseguiu evitar a pergunta.

– Não. Eu não sou.

Marx olhou para as asas do cara, que agora estavam enfiadas sob as suas costas. Aquelas coisas eram tão grandes, que chegavam a tocar o chão.

– O que você é ?

O sorriso de Kalona se abriu e pareceu ser sincero.

– Tem uma resposta complicada para essa pergunta, uma que eu prometo lhe dar depois que lidarmos com Neferet.

– Vou cobrar a resposta – disse Marx, tentando não olhar diretamente nos olhos do cara porque, ao fazê-lo, sentia a cabeça confusa e pesada, como se estivesse cheia de bolas de algodão.

– Você não vai precisar, detetive. Eu aprendi do modo difícil que é melhor que eu mesmo me preocupe em cumprir as minhas promessas.

– Então, nós todos vamos mesmo ao Mayo? – quis saber Aphrodite.

– Não. Kalona e eu vamos, assim como Zoey, Stark e o seu círculo. Darius, Aurox e Aphrodite, vocês vão ficar aqui com Lenobia. Vocês duas vão organizar uma reunião escolar. Atualizem o corpo docente e discente e os guerreiros. Informe apenas o básico e nada mais. Coloquem a escola em alerta máximo. Não sabemos qual será o próximo passo de Neferet.

– Você realmente acha que todos devem saber o que está acontecendo? – perguntou Stevie Rae, ecoando os pensamentos de Marx.

Zoey falou antes que Thanatos tivesse a chance:

– Acho que as Trevas odeiam que a luz brilhe, então vamos colocar muita luz sobre seja lá o que for que Neferet esteja fazendo.

– Essa é uma ótima maneira de descobrir quem quer voltar ao comando de Neferet e quem quer ficar e lutar contra ela junto com a gente – disse Stark.

– Vocês dois disseram exatamente o que penso – concordou Thanatos.

– Muito bem, então. Mas eu vou chamar Kramisha para me ajudar. Ela sempre sabe quem está tramando o quê – informou Aphrodite.

– É sábia a Profetisa que reúne os outros membros com dons dados pela sua Deusa – aprovou Thanatos.

– Também é sábia a Profetisa que mantém o seu celular por perto. Liguem se o inferno sair do controle, literal ou figurativamente – retrucou Aphrodite.

– Pode deixar – assegurou Zoey.

– Nós vamos com você, detetive Marx – declarou Thanatos.

Marx respirou fundo e desligou totalmente o botão de sanidade mental.

– Tudo bem. Vamos nessa.

Lynette

– Lynette, eu realmente adoro uma surpresa... – Neferet hesitou antes de continuar, erguendo um dedo fino. – Se a surpresa for agradável. Se não for, então uma surpresa não passa de uma interrupção irritante. Eu odeio interrupções quase tanto quanto odeio ficar irritada. – Seus olhos se afastaram de Lynette, e ela olhou para o que parecia ser as suas pernas nuas. – Falando em irritação, por que é que vocês estão andando por aí sem objetivo? Eu estou completamente segura, e vocês todos foram perfeitamente saciados. Vão se divertir em outro lugar e parem de ficar me puxando. Vão agora, xô! – Neferet fez um movimento de desprezo antes de voltar a sua atenção para a sua súdita.

Lynette não viu as coisas rastejantes, mas sentiu o roçar frio de algo passando por ela. Controlou um tremor de repugnância.

– Querida Lynette, onde paramos? Ah, sim, eu me lembro. Você anunciou que estava planejando uma pequena surpresa para mim. Por favor, continue se explicando.

Lynette olhou nos olhos da Deusa sem piscar. O pânico que estava concentrado em algum lugar sob o seu esterno estremeceu e recuou, mas ela apertou as rédeas mentais com as quais o controlava e permitiu que apenas o prazer de planejar um evento espetacular ocupasse a sua mente. O sorriso de Lynette estava confiante, assim como a sua voz.

– Deusa, eu sou muito boa no meu trabalho. Mesmo trabalhando em uma circunstância pouco comum e com recursos limitados, realmente acredito que você achará a surpresa agradável.

– Recursos limitados? Isso soa tão de mau gosto e barato. – Neferet franziu as sobrancelhas. – Eu certamente nunca desejei que você sentisse como se a sua Deusa fosse avarenta.

– Ah, mas eu não me sinto assim! – assegurou Lynette, esperando não ter apertado o botão de loucura de Neferet. – Eu coloquei essas restrições para mim mesma porque queria provar meu valor para você. Mas é claro que essa será apenas uma pequena amostra dos eventos que eu poderia planejar diariamente... Se eu tivesse mais tempo e mais dinheiro para fazer o meu trabalho.

Neferet relaxou a expressão.

– Você é uma mulher sábia, Lynette. Mostre-me o que planejou para mim. Se me agradar, pode ter certeza de que permitirei que continue com recursos ilimitados, embora não possa prometer que serei paciente para lhe dar muito tempo. Eu esperei muito tempo para começar o meu reinado. Estou impaciente pela adoração dos meus súditos.

– Isso é totalmente compreensível, Deusa. Em planejamento de eventos, eu nunca fico muito preocupada com o tempo quando tenho dinheiro.

Neferet a analisou.

Lynette se concentrou nos negócios. Ela se sobressaía nos negócios. Ela era confiante nos negócios. Os negócios não a aterrorizavam nem a enojavam.

Neferet sorriu.

– Você está sendo totalmente honesta. O seu negócio e a aquisição de dinheiro têm sido a sua principal preocupação. Continue, minha súdita! Revele a minha surpresa.

Lynette fez uma reverência e levou Neferet da suíte para o elevador, parando no mezanino.

– Por favor, Deusa, aguarde apenas um minuto.

Neferet sorriu e fez um gesto de concordância. Lynette pressionou o botão do elevador, então bateu em um comunicador quase oculto na sua orelha e disse rapidamente e em tom baixo:

– Kylee, aguarde dez segundos e, então, faça o quarteto começar a tocar.

– Sim, Lynette – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette lançou um olhar para a direita e fez um gesto de venha aqui . Judson, o bonito mensageiro, saiu das sombras. Ele trajava um uniforme impecável e passado e carregava uma bandeja de prata reluzente na qual havia uma taça perfeita de cristal cheia de champanhe rosê. Ele fez uma reverência perfeita e mecânica para Neferet e disse:

– Posso lhe oferecer uma taça de champanhe, Deusa?

– Ora, é claro. Obrigada, Judson.

A música começou a tocar no instante em que Neferet ergueu a taça da bandeja. Lynette ficou satisfeita ao ver o sorriso se erguer nos cantos da boca da Deusa.

– Danúbio Azul de Strauss. Uma das minhas valsas favoritas. Ah, Viena. Tão adorável e indulgente no passado.

– Por favor, queira me seguir, Deusa – pediu Lynette formalmente, levando Neferet pelo mezanino até o local para onde o seu trono havia sido colocado, bem acima da plataforma que a Deusa usara para se dirigir aos seus novos “súditos” algumas horas antes e onde, agora, havia um quarteto de cordas do casamento da noite anterior tocando nervosa e lindamente.

Neferet sentou-se com elegância, olhando para o quarteto.

– Eles tocam bem, embora eu prefira uma orquestra completa.

– Tempo e recursos – respondeu Lynette com um sorriso irônico.

Os lábios da Deusa se contraíram.

– Estou notando isso.

Lynette baixou a cabeça para Neferet e discretamente tocou no comunicador no seu ouvido:

– Conte até seis e mande-os entrar.

Então, ela prendeu a respiração e esperou que os doze artistas conseguissem se manter calmos.

As pesadas cortinas de veludo que cobriam o salão abaixo se abriram e, do lado oposto da sala, seis casais se apressaram para o centro do piso de mármore. As mulheres usavam vestidos vermelhos cujo tom fora o mais parecido um do outro que Lynette conseguira encontrar. Os homens trajavam smokings que ela conseguira juntar do que sobrara do casamento; os que estavam limpos o suficiente e servissem nos homens.

Servissem! Aquele tinha sido apenas parte dos problemas daquele evento infeliz. Tinha sido uma tarefa horrenda encontrar seis homens e seis mulheres no que Lynette tinha nomeado silenciosamente de reservatório de prisioneiros, que fossem relativamente atraentes, graciosos e capazes de aprender os passos básicos de uma valsa. Sim, ela poderia ter usado todos os membros da equipe dominados pelas cobras – eles obedeciam tudo que ela dizia para eles fazerem, desde que não tentasse fugir do Mayo. No entanto, o instinto de Lynette lhe disse que uma apresentação dos membros que já estavam sob o seu controle não impressionaria Neferet.

Não, Lynette acreditava que a Deusa queria, precisava , da ilusão de ser adorada. Então, ela ameaçara, insistira e chantageara 12 pessoas com aparência decente a trabalharem para ela.

Lynette percebia que estavam nervosos – duas das mulheres estavam tão trêmulas, que ela conseguia ver os seus braços tremerem –, mas, exatamente como ela instruíra, os casais se posicionaram no grande círculo e conseguiram chegar aos seus lugares depois da primeira contagem até seis. No começo do segundo conjunto de notas, todos os 12 ergueram o olhar para Neferet, pararam, contaram até três e, como se fossem um, cada um dos homens se curvara e cada uma das mulheres fez uma reverência para a Deusa.

Lynette detectou todos os erros. Viu que a mulher chamada Cindi quase caiu, e apenas a rapidez do seu par ao segurá-la pelo cotovelo impediu a queda. Camden, o garoto alto que fora o padrinho do casamento da noite anterior – e azarado o suficiente para estar com uma ressaca que impediu que ele pegasse o voo da madrugada junto com o noivo e a noiva para Dallas –, manteve a cabeça baixa por tempo demais. Lynette apertou os dentes. Se aquele garoto mimado estragasse tudo, ele lamentaria mais do que ela.

Lynette arriscou um olhar para Neferet. Obviamente satisfeita, a Deusa sorriu e assentiu com a cabeça em um gesto nobre para os dançarinos.

Agora dancem e não pareçam estranhos! , pensou Lynette.

Eles dançaram. Todos os 12 conseguiram começar na mesma nota e se moveram pelo salão seguindo um padrão quase circular. Eles estavam longe da perfeição, mas a música era adorável e, se alguns dançarinos vacilaram, “Danúbio Azul” compensou. Quando a nota final tocou, os seis casais se curvaram e reverenciaram Neferet, desta vez mantendo as suas poses como se estivessem congelados, e até mesmo Lynette teve de admitir que a cena estava muito bonita.

Neferet se ergueu e, para imenso alívio de Lynette, aplaudiu e riu.

– Muito bem, todos vocês! Isso foi muito bom. Judson, abra garrafas de champanhe para esses adoráveis súditos.

– Deusa, eles estão esperando a sua autorização para se levantarem – sussurrou Lynette para Neferet.

– Mas é claro que estão autorizados, e obrigada por me lembrar, querida Lynette. Vocês podem se levantar! – permitiu a Deusa. – Aproveitem o champanhe e a gratidão da sua Deusa pela adoração de vocês.

Lynette tocou no comunicador em seu ouvido novamente.

– Kylee, diga ao quarteto para começar a tocar a próxima música.

Em questão de segundos, a música encheu o ambiente de novo.

– “Valsa das flores”, do Quebra-nozes . Duas adoráveis músicas e excelentes escolhas – elogiou Neferet.

– Então, a minha surpresa foi agradável?

– Foi. O candelabro, as flores, os smokings e os vestidos vermelhos. Tudo foi muito bem-escolhido. Lynette, você começou muito bem como a minha planejadora de eventos. Eu aprovo o seu tema e a extraordinária música, o local lindamente escolhido e a homenagem respeitosa a mim.

– Então, posso presumir que gostaria de ter mais eventos desse tipo?

– Sim, mas da próxima vez eu gostaria que o tema fosse a minha época favorita. Os anos 1920. Essa foi uma época que vale a pena reviver. Você consegue fazer o Charleston, Lynette?

– Eu terei acesso à Internet?

– Terá, assim como uma generosa verba para os eventos – informou Neferet, abrindo um sorriso inteligente para Lynette.

– Então, eu consigo fazer o Charleston, assim como os seus súditos.

– Vamos precisar de mais músicos – declarou Neferet.

– Sim, Deusa. Vou providenciar – disse Lynette, já digitando suas anotações no smartphone.

– E fantasias. Vamos precisar de mais fantasias.

– É claro, Deusa – concordou Lynette.

– E eu preciso mais do que apenas dança, embora esse tenha sido um ótimo começo.

Lynette ergueu o olhar das suas anotações e olhou para Neferet, mas a Deusa não estava olhando para ela. Estava acariciando a taça de champanhe enquanto observava os seis casais que se espalharam em pequenos grupos aceitando o champanhe que Judson lhes servia. Lynette seguiu o seu olhar. O garoto mimado estava virando o que parecia ser a sua segunda taça de champanhe. Neferet o devorava com os olhos.

– Fico muito satisfeita que os meus súditos sejam tão atraentes – declarou ela.

Lynette bufou de forma irônica e automática, mas quando o olhar da Deusa pousou nela, ela se arrependeu instantaneamente por ter permitido um deslize de compostura.

Neferet ergueu uma das sobrancelhas ruivas.

– Ah, entendi. Você escolheu os doze com muito cuidado, porque nem todos os meus súditos são tão atraentes, não é mesmo.

Ela não usou um tom interrogativo, mas Lynette sentiu o impulso de responder.

– É isso mesmo. – Ela ergueu os ombros inquieta. – Sinto muito, Deusa, eu só queria me assegurar de que ficasse feliz com o meu primeiro pequeno evento.

– Isso é compreensível, querida Lynette. Na verdade, aprecio o seu esforço, e embora aprecie todos os meus súditos, eu também aprecio coisas, e pessoas, que são agradáveis aos meus sensos. – Neferet se inclinou no seu trono e usou um tom conspiratório para se dirigir à sua súdita: – Você poderia acrescentar isso à sua lista de tarefas como planejadora de eventos.

– Estou disposta a servi-la de qualquer forma que precise, Deusa. – Lynette estava tentando entender o que a Deusa queria. – Mas o que você quer dizer com “isso”?

– Certificar-se de que os meus súditos estejam sempre o mais atraentes possível, é claro. Sim, tenho certeza de que você tem talento para transformações.

– Transformações.

Lynette repetiu a palavra, sentindo-se extremamente sobrecarregada enquanto imagens dos súditos menos atraentes de Neferet passavam por sua cabeça. A mulher de cinquenta e poucos anos que precisava perder uns vinte e poucos quilos... A pré-adolescente ruiva esquelética cujo rosto já estava tomado por espinhas... O empresário careca e barrigudo e com queixo triplo que parecia um bócio...

A risada debochada de Neferet interrompeu o filme na sua mente.

– Pare de se preocupar, querida Lynette. Entre nós duas, conseguiremos separar o rebanho. Afinal, eu posso controlar tudo o que eles comem e tudo o que fazem. Você não concorda que dieta e exercícios são muito importantes?

Lynette assentiu com a cabeça e tentou manter-se focada completamente nos olhos verdes-esmeralda de Neferet.

– Então, além de colocar alguns deles de dieta e nos certificarmos de que passam algum tempo na academia do Templo, estou confiante de que você pode dar dicas de cabelo, maquiagem e moda. Correto?

– Sim, Deusa – respondeu ela automaticamente.

– Excelente. Estou feliz por você ter chamado a minha atenção para esta questão. É importante que os meus súditos sempre tenham a melhor aparência possível. Eles são, de algum modo, um reflexo de mim mesma.

Como se isso resolvesse a questão, o olhar de Neferet passeou pelo grupo abaixo delas, parando, de forma predatória, em Camden.

– Você fez uma excelente escolha com aquele ali, Lynette. Ele é alto, jovem e louro – disse Neferet. – Seu nome?

– Camden – informou Lynette. – Ele foi padrinho do casamento que me trouxe ao Mayo.

– Padrinho ? É mesmo? – Os olhos verdes-esmeralda de Neferet brilharam com uma intensidade perigosa, e Lynette ficou grata por tal intensidade não estar focada nela. – Talvez eu tenha que testá-lo para ver se Camden é realmente um bom súdito.

Lynette controlou um tremor de medo.

– Você gostaria que eu pedisse para alguém trazê-lo aqui?

– Não, querida Lynette. Eu posso muito bem convocá-lo. Talvez ele aprecie uma visita à varanda da minha cobertura. – Seus olhos brilhantes se voltaram para Lynette e o brilho feral neles se endureceu. – A minha equipe já se livrou daqueles vestígios desagradáveis, não é?

Merda! Eu estava ocupada demais organizando essa apresentação para verificar se todos os pedaços de gente tinham sido atirados pela varanda. A mente de Lynette começou a buscar algo para dizer e ela soltou um suspiro de alívio quando encontrou uma resposta:

– Deusa, creio que Kylee era a responsável pela questão da varanda.

– Aquela garota – murmurou Neferet, tomando um gole de champanhe. – Ela é boa para algumas coisas, mas precisa de muita supervisão. Será que você poderia usar essa útil maquininha no seu ouvido para lembrá-la das minhas ordens?

– É claro, Deusa – respondeu Lynette.

– E, enquanto você supervisiona Kylee, creio que eu vá me misturar aos meus adoráveis e atraentes súditos. Você consegue imaginar como o padrinho Camden se sentirá honrado se eu permitir que ele me tire para dançar?

Felizmente, a pergunta de Neferet era retórica e, em vez de concentrar a sua atenção na resposta de Lynette, a Deusa deu as costas para ela, tomou um gole de champanhe e caminhou em direção à grande escadaria dupla que levava ao salão de baile.

Lynette notou que Neferet não deslizou. Isso porque ela mandou as coisas rastejantes saírem para brincar , pensou Lynette. De alguma forma, elas deviam carregá-la – ou canalizar a energia para erguê-la – ou algo igualmente insano.

Ela meneou a cabeça como se quisesse clarear os pensamentos. Não podia se dar ao luxo de ficar pensando muito. Não podia se dar ao luxo de fazer mais nada a não ser sobreviver.

Lynette bateu no comunicador na sua orelha.

– Kylee, Neferet vai inspecionar a varanda da cobertura. Logo. Ela deixou você responsável pela limpeza.

– Compreendo e obedeço – foi a resposta robótica de Kylee.

Lynette suspirou. Deu alguns passos para trás e se apoiou em um dos pilares de mármore deixando-se ficar sem fazer nada por um momento, a não ser respirar.

Ela passara pelo primeiro teste de Neferet. Ainda estava viva e não tinha sido possuída por nenhuma criatura escorregadia. Mas, para continuar assim, não poderia se dar ao luxo de relaxar. Haveria tempo para relaxar depois que tudo isso acabasse. E Lynette conseguiria isso – ela sempre conseguia passar por todas as merdas que a vida atirava em sua direção.

Para começar, Lynette tinha uma lista de coisas a fazer.

Tinha de verificar todas as pessoas no prédio. Elas precisavam ser categorizadas como atraentes e aceitáveis ou aquelas que exigiriam trabalho. Na categoria das que exigem trabalho ela criaria as subcategorias gordo, malvestidos ou apenas feios por natureza. As duas primeiras poderiam ser corrigidas – em tese. Quanto aos que se enquadravam na terceira, bem, eles teriam de aprender algumas habilidades para que pudesse mantê-los nos bastidores.

– Espero que eles saibam cozinhar ou costurar.

Lynette estava falando consigo mesma enquanto digitava as observações no seu smartphone quando ouviu um grito vindo do salão. O que tinha acontecido agora? O que mais Neferet poderia estar fazendo? Com a mente cansada e pesada pelo medo e pela exaustão, obrigou os seus pés a levá-la até a beirada do mezanino.

Neferet estava ao lado de Camden. Ele estava olhando para o decote profundo do vestido curto de veludo da Deusa. As outras onze pessoas olhavam para as cobras escorregadias que se retorciam em volta dos tornozelos nus de Neferet.

– Ah, fique quieta – ordenou a Deusa para a garota que berrara. – Vocês precisam se acostumar com os meus filhos. Eles nunca ficam muito longe de mim, assim como vocês, meus leais súditos, nunca ficarão longe de mim.

– Si-Sinto muito, Deusa. E-eles parecem cobras. E e-eu tenho medo de cobras – gaguejou a menina.

– Eles não são cobras. São muito mais perigosos. E eu não estou pedindo para que você supere o medo que sente deles. Estou lhe ordenando que você não verbalize isso. – Neferet olhou para baixo, para as coisas rastejantes que se retorciam aos seus pés, parecendo excitadas. – O que foi, meus queridos?

– Deusa, o detetive voltou – chamou Judson do vestíbulo de entrada. – E trouxe mais gente com ele.

– Isso não significa nada. Ele pode trazer toda a Guarda Nacional de Oklahoma com ele. Eles não conseguirão penetrar a minha cortina protetora.

– Ele não trouxe um exército. Ele trouxe uma vampira que está fazendo o ar à sua volta brilhar enquanto um homem enorme que parece ter asas ocultas sob a sua capa de chuva caminha perto dela.

– Por que você esperou até agora para me dizer isso? – berrou Neferet. – Filhos! Venham comigo! – Erguida pelo ninho totalmente visível de víboras escorregadias, a Deusa deslizou até a porta da frente.

O corpo de Lynette ficou frio. Ela desceu dos sapatos elegantes de salto alto para que pudesse andar em silêncio pelo mezanino, dirigindo-se às grandes janelas panorâmicas que davam para a frente do prédio, tentando não pensar em nada, mas principalmente tentando não ter esperanças.


9

Zoey

– Que merda! O Mayo está horrível – declarei.

– É como se estivesse encharcado de morte. – Damien soava tão horrorizado quanto eu.

– Não de morte – contradisse Thanatos. – A morte é inevitável para todos os mortais. Ela não é boa nem má; é simplesmente parte da grande espiral da vida. Neferet usou nesse prédio dor e medo, sangue e desespero.

A sua voz estava estranha. Vovó, Stark, Shaylin e eu estávamos todos espremidos no Hummer da escola, e Thanatos estava na frente com Marx. Notei que quanto mais nos aproximávamos do Mayo, mais agitada a Grande Sacerdotisa parecia ficar. Ela estava literalmente inquieta, o que era muito estranho para ela – Thanatos costumava ser uma montanha de calmaria.

O seu óbvio nervosismo fez o meu estômago se revirar.

– Caos – disse Kalona. Olhei por sobre o meu ombro e ele estava sentado com Damien e Shaunee (eles estavam superapertados porque as asas dele ocupavam muito espaço), e vi-o meneando a cabeça enojado. – Neferet usou as gavinhas das Trevas para criar o caos e isso a está protegendo.

– Bem, o caos tem um cheiro horrível – reclamei enrugando o nariz.

– Fede e é horrível – concordou Damien. – E nós não temos nenhuma maneira de entrar.

– Sinto muito – desculpou-se Marx. – Eu devia ter avisado sobre o fedor.

– Não precisa se desculpar, detetive – disse Vovó. – Não creio que existisse qualquer coisa que você pudesse ter feito para nos preparar para isto.

– Você provavelmente está certa, mas é melhor avisar que não temos como saber se todas as partes humanas foram retiradas da área – acrescentou Marx. – Então, é melhor olharem por onde andam.

– Partes humanas? – A minha voz tremeu.

Marx assentiu.

– As coisas rastejantes mataram um monte de gente quando desceram pela varanda, cobrindo o prédio com trevas e tripas até aqui embaixo. Neste início de noite, Neferet tem jogado pedaços de pessoas, com todo o sangue drenado pelo parapeito da sua varanda.

– Eu consigo sentir o feitiço que ela fez com sangue, morte e Trevas – disse Thanatos. – Ela usou a morte daquelas pobres pessoas para construir uma barreira.

– Neferet lançou o feitiço, mas não sujaria as próprias mãos com a limpeza – concluiu Kalona em tom grave. – O que significa que ainda tem gente viva cumprindo as suas ordens.

– Será que importa quem está jogando? Principalmente se Neferet tiver feito reféns? – perguntou Shaunee.

– Tudo o que realmente importa é que todos se lembrem de que se detivermos Neferet, pararemos toda esta loucura também – respondeu Thanatos.

Todos nós concordamos de forma amarga.

Marx passou pelas barreiras da polícia e parou no meio-fio do outro lado da rua do Mayo em uma calçada ampla em frente ao prédio corporativo da empresa Oneok, onde nos sentamos e ficamos analisando o que tínhamos diante de nós.

– Organizamos dois postos de comando dentro da Oneok. O do terceiro andar com todos os equipamentos audiovisuais. E o que está no último andar com atiradores de elite – explicou-nos Marx enquanto nos sentamos e ficamos olhando para o prédio coberto de sangue coagulado do outro lado da rua.

– Atiradores de elite não podem matar Neferet – informou Kalona.

– É, a gente já percebeu – respondeu Marx secamente. – Mas eles podem matar pessoas, até mesmo as que estão sob o feitiço dela.

– Você não pode atirar naquelas pessoas! Elas são vítimas – declarou Vovó, virando-se, agitada. – Elas não são responsáveis pelas próprias ações, mas Neferet é.

– Sim, senhora, nós sabemos disso e não queremos atirar em ninguém, mas se Neferet ordenar que seus servos, ou seja lá como vocês querem chamá-los, nos ataquem ou a qualquer cidadão de Tulsa, seremos obrigados a impedi-los.

– Ela gostaria disso – disse Thanatos enquanto encarava o prédio. Ela parecia estar zangada. Achei que parecia mais pálida do que o usual, mas ela já era vampira havia, tipo, um zilhão de anos. Ela sempre estava pálida, então eu não poderia dizer com certeza. – Ela obteria mais poder com as suas mortes, além da satisfação de ter obrigado vocês a matar pessoas inocentes. – Thanatos olhou para Kalona. – Não podemos permitir isso.

– Concordo – respondeu Kalona.

– Bom – disse ela. – Já chega de ficarmos sentados aqui especulando. Eu preciso ir até lá. Preciso entender exatamente com o que estamos lidando.

Thanatos saiu do Hummer e bateu a porta atrás de si, deixando que o resto de nós a seguisse – de forma relutante.

Kalona se apressou a ficar ao seu lado. À distância, eu ouvia exclamações do tipo “Ei, olha lá aqueles vampiros!” e “Prepare a câmera, tem alguma coisa acontecendo na frente do Mayo!”.

O imortal alado tinha colocado uma longa capa de chuva para cobrir o seu peito tipicamente nu como uma forma bastante bem-sucedida de esconder as asas gigantescas. Eu o vi virar o corpo tentando enfiar as penas enormes lá dentro. Ele lançou um olhar irritado para as pessoas reunidas atrás das barricadas antes de os seus olhos encontrarem os do detetive Marx.

– Creio que seria mais sábio se você retirasse todos os civis dessa área da cidade. Ninguém estará seguro aqui.

– É, eu sei, mas tente dizer isso para a mídia. Conseguimos reunir todo mundo ali atrás, mas é uma merda lidar com a liberdade de imprensa.

Kalona deu de ombros.

– Então, eles terão de aprender a lição por si mesmos.

Com aquela observação agourenta, ele voltou a sua atenção para o Mayo. Thanatos olhava para o prédio, quase como se estivesse hipnotizada por ele. Engoli o meu medo e me posicionei ao seu lado, grata pela presença forte de Stark.

– Eu deveria saber. – A voz de Thanatos estava cansada. Ela deu vários passos na direção ao prédio. – Mas eu raramente era chamada para o local de uma morte humana, e nunca uma morte de tamanha magnitude. – Ela se aproximou mais do prédio, ficando na entrada semicircular de veículos anexa à entrada principal. Thanatos ergueu as mãos e estremeceu. – O terror usado para fazer esta barreira ainda está aqui.

– Sacerdotisa, eu aconselho que não se aproxime mais do prédio – disse Kalona, posicionando-se ao seu lado e gentilmente pegando o seu cotovelo e tentando fazer com que voltasse para a rua.

– Eu preciso ajudá-los – declarou ela, afastando a mão dele.

– Eles? – perguntou Marx.

– Nem todos os mortos se foram. O fim deles foi violento demais, aterrorizante demais, bem além do que qualquer coisa que essas pobres pessoas jamais imaginaram. Sinto os seus espíritos em pânico e eles ficam girando em círculos, incapazes de encontrar uma saída deste reino para o próximo.

– Você pode ajudá-los? – perguntou Vovó, que estava próxima ao Hummer.

– Acredito que sim.

– Tente fazer isso de forma rápida – orientou Kalona.

– Eu devo traçar um círculo? – perguntei.

– Não, Zoey. Você e todos os outros, exceto por Kalona, devem ficar lá trás em segurança. Isso é algo que eu tenho que fazer sozinha. O dom que nossa Deusa me concedeu é tudo de que eu preciso... – Ela fez uma pausa e deu um sorriso de agradecimento para Kalona – ... incluindo um protetor poderoso. Eu preciso acreditar na força que Nyx me dá.

– Façam como Thanatos disse e voltem para o Hummer – pediu Stark, puxando-me com ele. Marx se afastou mais devagar, os seus olhos concentrados em Thanatos.

– Damien! Ei! Damien! – Um humano bonito e jovem chegou correndo.

Damien se virou a tempo de receber um abraço gigantesco.

– Adam! Você não deveria estar aqui. É perigoso demais – repreendeu Damien.

– Ei, sou um jornalista. Eu tenho que lidar com o perigo – declarou ele sorrindo.

Por fim, eu o reconheci. Era Adam Paluka, um jornalista da Fox – o cara que nos entrevistou depois que Neferet deu aquela conferência ridícula. Eu sabia que Damien estava namorando alguém, e pelo modo como aqueles dois sorriam um para outro, acho que as coisas estavam indo bem. Nossa, eu me envolvera tanto com as coisas que estavam acontecendo comigo, que eu nunca pensei em perguntar a Damien como ele estava lidando com o fato de estar namorando tão rápido depois que Jack...

– Você precisa voltar para trás da barreira – disse Marx, aproximando-se de Adam com um olhar carregado.

Mas bem nesse momento, Thanatos começou o seu feitiço, atraindo toda a nossa atenção para si.

A Grande Sacerdotisa ergueu as mãos e fechou os olhos. Quando falou, a sua inquietação acabou. Suas palavras eram rítmicas e hipnóticas; sua voz, calma. Ela era forte, sábia e bonita – e eu tinha orgulho de ser uma novata da Morada da Noite sob o seu reinado.

Espíritos sofredores, venham até mim
Com calma e doçura, que a minha voz os guie assim
E que o meu dom acabe com o sofrimento sem fim

O ar em volta de Thanatos começou a brilhar como se alguém tivesse lançado globos mágicos cheios de purpurina em direção a ela.

– Ai, meu Deus! O que está acontecendo? O que aquela vampira está fazendo?

Eu estava tão concentrada no feitiço de Thanatos, que mal notei o barulho crescente vindo da multidão atrás de mim. Apesar disso, senti que Adam erguera o seu iPhone e ouvi um pequeno clique indicando que ele estava filmando. Stark apertou a minha mão antes de cochichar:

– Acho que Marx está prestes a expulsar os repórteres. Eu vou ver o que posso fazer para ajudá-lo. Certifique-se de que você, o seu grupo e Vovó fiquem perto do Hummer.

Assenti e vagamente notei que Stark estava discutindo com Damien sobre obrigar Adam a sair enquanto Marx caminhava decididamente em direção à barricada. Mas os meus olhos nunca se afastaram da Grande Sacerdotisa. Eu não conseguia parar de olhar. Thanatos comandava toda a minha concentração.

O guia para o fim do sofrimento eu sou sim
O amor atendeu às suas preces e ao terror colocou um fim;
Com calma e doçura, os seus espíritos estão livres assim!

Esferas brilhantes cercavam completamente Thanatos. Quando ela falou o último verso do feitiço e abriu os seus braços, cada uma das esferas precipitou-se para ela. Rindo de alegria absoluta, o rosto de Thanatos se iluminou de amor e ela ergueu os braços. As esferas brilhantes voaram como fogos de artifício para o céu noturno – só que, em vez de deixar para trás um rasto de fumaça, as esferas que desapareciam deixavam para trás um rasto de alívio e felicidade que me fez esquecer o estresse da situação – o horror do sangue e o fedor do Mayo coberto com Trevas –, fez-me esquecer de tudo, a não ser o fato de que, fôssemos humanos ou vampiros, havia sempre uma constante entre todos nós: o amor. Sempre o amor.

E, então, Neferet saiu pela porta da frente arruinando completamente o momento feliz. Antes, pensava que ela parecia uma insana, mas eu estava errada. O que ela era agora fazia a loucura anterior de Neferet parecer não mais que uma excentricidade, como uma velha que gosta de gatos e cheira a urina e mato. Ela estava usando um vestido curto verde. Por um segundo senti certo alívio. Tipo assim, ela não estava nua. Tudo bem, ela estava descalça, mas não achei nada demais naquilo, até que eu realmente olhei para os seus pés. Eles estavam descansando sobre um ninho escorregadio de gavinhas negras que se contraíam e pulsavam ao redor dela, envolvendo seus tornozelos e canelas, e, na verdade, erguendo-a do chão.

Mas aquilo nem era a coisa mais insana em Neferet. Foram os seus olhos que denunciaram a sua loucura. Algo acontecera com as suas pupilas – elas tinham desaparecido. Eram como pedras de mármore, completamente verdes-esmeralda.

– O que há de errado com os olh... – começou Adam, mas o berro de Neferet o cortou.

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo! – Neferet apontou para Thanatos, e duas das gavinhas correram na direção desta.

Kalona se moveu tão rápido, que tudo ficou um borrão. De repente, ele estava lá, entre Thanatos e as criaturas que a atacavam. Ele tirara o seu casaco e revelara a lança de ébano que tinha amarrada nas costas. Suas asas se desenrolaram enquanto ele se encontrava com as gavinhas, espetando uma delas, e enquanto esta se retorcia na agonia da morte, partiu a outra ao meio.

Neferet gritou, como se sentisse a dor das gavinhas.

– Ignorem Kalona! Matem Thanatos! E, depois, todos os outros!

Tudo explodiu.

As gavinhas das Trevas, como veneno cuspido da boca de uma víbora, saíram dos pés de Neferet, tentando passar por Kalona a fim de atingir Thanatos e o resto de nós. Stark voltou para mim, empurrando-me e à Vovó para trás dele e gritando para Damien, Adam, Shaunee e Shaylin para entrarem no Hummer.

Cambaleei para trás, certa de que eu iria assistir a Thanatos ser partida ao meio pelas criaturas de Neferet, provavelmente segundos antes de elas atacarem Stark e, depois, devorarem o restante de nós.

Mas nada daquilo aconteceu. As Trevas não venceram esta batalha – o imortal alado sim.

Kalona estava em todos os lugares. A sua lança se movia tão rápido, que provocava um som no ar.

– Um sabre de luz – arfou Damien. – E é de verdade, e não um de mentirinha como o do Star Wars.

– Leve-os para um lugar seguro! – ordenou Kalona para Marx.

Marx correu para a Grande Sacerdotisa e, enquanto Kalona usava o próprio corpo, suas asas e sua lança para nos proteger, nos apertamos no Hummer.

– Segurem-se! – Eu vou subir na calçada e tirar ele de lá! – avisou Marx ligando o carro.

– Espere! – disse Thanatos. – Ele está vindo para nós. Olhem para as gavinhas. A força delas acaba quando elas se afastam muito de Neferet.

A Grande Sacerdotisa estava certa. Kalona, ferido e sangrando, ainda estava lutando com as criaturas, mas se aproximava de nós e se afastava do Mayo. E as gavinhas não o estavam seguindo.

Quando Kalona chegou à traseira do Hummer, Neferet ergueu os braços e ordenou:

– Venham para mim, filhos! Eu os ajudarei!

As coisas rastejantes deslizaram para ela, enrolando-se em seus braços e pernas. Ela as acariciou, como se quisesse confortá-las, e antes de desaparecer dentro do Mayo, seus olhos brilhantes verdes-esmeralda se concentraram em nós.

– Obrigada pela lição. Da próxima vez, eu vencerei!

Zoey

– Não, de verdade, eu não preciso ir para o hospital – repetiu Kalona pela enésima vez para Marx. – Como eu já disse, traga-me água ou, melhor ainda, vinho. Eu vou subir até o alto deste prédio e me curar.

Nós contornamos o prédio da Oneok e entramos pelos fundos para nos juntarmos à força-tarefa de Tulsa no terceiro andar. Percebi por que Marx estava estressado com Kalona – ele estava ensanguentado. Todos na sala olhavam para ele, mesmo enquanto tentavam não olhar. Sério, se ele não fosse imortal, estaria em um saco preto para cadáveres.

Marx bufou e passou os dedos pelo cabelo.

– Tudo bem, então, já entendi. Já entendi. Você está bem. Carter! – gritou ele para um policial uniformizado, que imediatamente parou de fingir que estava analisando dados na tela do seu computador e deu atenção ao detetive. – Encontre a sala de reuniões do presidente da empresa. Deve haver bebida lá. – Marx voltou a sua atenção para Kalona. – Serve uísque? Esses caras corporativos preferem esse tipo de bebida.

– Serve – respondeu Kalona.

– Pode ir – disse Marx para Carter. – Tudo bem, então. Enquanto Kalona está se recuperando no telhado, vamos fazer um controle de danos. Paluka, passe o telefone para mim e saia daqui.

– Você não pode simplesmente pegar o meu telefone! Isso é ilegal!

– É uma evidência de uma investigação em andamento de múltiplos homicídios. Eu estou apreendendo o seu telefone – informou Marx.

– Um momento, por favor, detetive – pediu Vovó.

– Senhora? – Marx, assim como todos nós, olhou para Vovó, que deu um sorriso sereno.

– Adam, corrija-me se eu estiver errada, mas acredito que você não seja o único jornalista que testemunhou o que acabou de acontecer lá fora.

– Você não está errada – respondeu Adam.

– Ah, exatamente o que pensei. O que significa que deve haver um monte de equipes de filmagem gravando tudo de trás da barreira, isso sem mencionar as gravações feitas por celulares, como a que você fez.

Ouvi Marx suspirar enquanto Adam respondia:

– Exatamente, senhora.

Vovó e Thanatos trocaram um olhar e, então, a Grande Sacerdotisa assumiu a conversa que Vovó iniciara.

– Sr. Paluka, o que o senhor acha de fazer uma entrevista exclusiva comigo e Kalona?

Os olhos de Adam brilharam de animação, mas ele manteve a postura profissional.

– Eu gostaria muito disso, Grande Sacerdotisa.

– Então, é isso que você terá. – Thanatos lançou um olhar para Marx. – Às vezes é mais fácil abrir mão do controle e deixar o destino lidar com o que quer que venha em seguida.

– Pelo menos limpem um pouco do sangue e me deem um monte de comprimidos de Tylenol.

Zoey

Kalona realmente tentou limpar o sangue que escorria dos seus ferimentos semelhantes a chicotadas e dos arranhões menores e mais profundos que mais pareciam mordidas que se espalhavam pelo seu corpo. Achei que ele parecia bem-acabado, e ele ainda sangrava um pouco, mas estava agindo de forma totalmente normal – forte, silenciosa, intimidadora. Thanatos fez com que ele vestisse o casaco comprido. Disse que as suas asas já tinham aparecido o suficiente no vídeo da batalha que Adam exibiria durante a entrevista. Em silêncio, concordei com ela, mas também pensei que o casaco cobria bastante os ferimentos que estavam ali embaixo. Por uma vez, consegui manter a boca fechada e deixei que os outros lidassem com as consequências da luta com Neferet enquanto eu me afastava dos holofotes. Foi um breve momento de relaxamento para mim enquanto me encolhi ao lado de Stark para assistir com Vovó, Damien, Shaylin e Shaunee àquilo que jamais poderíamos imaginar alguns meses antes – Kalona sendo entrevistado pela TV de Tulsa.

Adam chamara uma equipe de iluminação e um cinegrafista. Achei que estavam fazendo um bom trabalho de não ficar olhando estupidamente para Kalona. Adam explicou para todos que iria carregar o vídeo da batalha e exibi-lo e, depois, começaria a entrevista. Também explicou que ela seria exibida ao vivo no plantão de notícias.

– Cara, ainda bem que não estamos ali – sussurrei.

– Adam está fazendo um excelente trabalho – disse Damien com voz suave enquanto seus olhos brilhavam para o jornalista.

– Eu gosto dele.

O olhar de Damien encontrou o meu.

– Você acha que o Jack teria gostado dele.

Estiquei a mão por sobre Stark e apertei a mão de Damien.

– Tenho certeza que sim.

Damien assentiu e piscou para afastar as lágrimas.

– De alguma forma, isso torna as coisas mais fáceis, apenas um pouco mais fáceis, mas sou grato por esse “pouco”.

Então, a nossa atenção estava em Adam enquanto a luz vermelha na câmera parou de piscar e nós assistimos às cenas da batalha de Kalona sendo exibidas em um monitor portátil.

– Sou Adam Paluka, ao vivo, com a vampira e o Guerreiro que acabamos de ver nesta cena surpreendente gravada há alguns momentos em frente ao Mayo Hotel, no centro de Tulsa, quando a Grande Sacerdotisa conhecida como Neferet atacou diversos cidadãos inocentes, inclusive eu. – Adam fez uma pausa, dando então um sorriso caloroso para Kalona. – Eu ainda não lhe agradeci por ter salvado a minha vida. Obrigado!

Kalona pareceu surpreso, quase tímido. Ele assentiu uma vez e disse:

– De nada.

– Kalona estava cumprindo o seu dever. Ele é o meu Guerreiro sob Juramento. Neferet, que não é mais reconhecida por nenhuma autoridade vampírica como Sacerdotisa de Nyx, atacou a mim e os que estavam comigo. Era o dever de Kalona nos proteger – declarou Thanatos.

– Thanatos, é muito bom falar com você novamente. Muitos dos nossos espectadores a reconhecerão como a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Será que você poderia explicar o que estava fazendo na frente do Mayo?

A entrevistada respirou fundo e, então, falou devagar e com clareza, como se quisesse que todos a compreendessem:

– A essa altura, vocês já sabem o que nós apenas suspeitávamos antes, que Neferet está completamente louca e que se tornou uma pessoa malévola. Ela admitiu ter cometido uma matança. Assassinou o prefeito de Tulsa. Assassinou dois homens em Woodward Park. De lá, seus assassinatos se dirigiram para inocentes na Boston Avenue Church no domingo de manhã e, em seguida, para o Mayo Hotel, onde ela se trancou. As mortes que causou no Mayo permitiram que criasse um escudo protetor sobre o prédio. Eu fui até lá por causa do meu dom concedido pela Deusa, que é ajudar as almas a passarem deste mundo para o próximo.

– As luzes brilhantes! Elas eram almas?

Thanatos concordou com a cabeça.

– Exatamente. Elas estavam presas neste reino por causa da forma violenta como morreram. Eu simplesmente as ajudei a se libertarem.

– Nossa! Isso é incrível.

O sorriso de Thanatos foi bonito.

– O ciclo da vida é realmente incrível.

– Sim, é claro que sim. Espere um pouco, Thanatos. Isso significa que eram almas humanas que você ajudou na passagem?

– Isso mesmo – respondeu ela, serena.

– Mas você é uma vampira .

O sorriso da Grande Sacerdotisa se abriu mais.

– Achei que já tínhamos falado disso.

– É verdade. – Adam passou os dedos pelo cabelo perfeito. – Mas uma pessoa da sua raça a atacou porque você estava ajudando almas humanas .

– Adam, já vivi por mais de quinhentos anos, e, nesse tempo, eu aprendi que a humanidade é definida pelas escolhas, e não pela genética. Para colocar de forma bem simples, humanos e vampiros têm mais semelhanças do que diferenças.

– Obviamente Neferet não pensa como você – disse Adam.

– Neferet está louca. Seus pensamentos são excêntricos e perigosos.

– O que são aquelas coisas que ela enviou para nos atacar? – perguntou Adam.

– O mal que tomou uma forma tangível. As criaturas seguem as ordens de Neferet. Desde que ela faça sacrifícios para mantê-las leais a ela. – Thanatos olhou diretamente para a câmera. – Nunca é demais enfatizar que, não importa o quanto Neferet ameace, é imperativo que nenhum humano deve chegar perto do Mayo. O poder de Neferet vem da morte. Fiquem longe do Mayo e a sua fonte de poder vai acabar secando.

Adam parou, pareceu chocado e, então, olhou para alguém que não estava aparecendo na filmagem.

– Detetive Marx, o senhor concorda com o pedido de Thanatos em relação ao Mayo?

O cinegrafista apontou a câmera para um detetive com expressão irritada. Imperturbável, ele respondeu sem hesitar:

– Concordo. O Departamento de Polícia de Tulsa colocou barreiras nas ruas que cercam o Mayo. Ninguém pode se aproximar do Mayo, nem mesmo as equipes policiais ou os militares.

– Mas não é verdade que Neferet está mantendo reféns dentro do Mayo? – quis saber Adam.

– É verdade, mas, nesse momento, não temos nomes nem números – respondeu Marx. – Eu entendo que as pessoas vão sentir falta dos seus entes queridos. O Departamento de Polícia abriu uma linha telefônica 0800 para perguntas e informações de pessoas desaparecidas. O público deve direcionar as suas perguntas por esse número.

– Número esse que o canal Fox 23 vai colocar na parte inferior da tela – informou Adam.

– Obrigado – agradeceu Marx, embora ele não parecesse particularmente grato.

– Detetive Marx, eu preciso perguntar: se o senhor não vai permitir que ninguém se aproxime do Mayo, como é que pretendem deter Neferet?

– Ela será detida por mim, pelos vampiros e pelos novatos que lutam ao meu lado. Neferet é da nossa raça. E somos nós que devemos derrotá-la.

Todos nós, inclusive o cinegrafista, concentraram-se no imortal alado.

– Kalona, o senhor não é um vampiro, certo? – perguntou Adam.

– Certo.

– Então, o que o senhor é?

Ele nem mesmo hesitou. Disse aquilo como se estivesse contando o que comeu no jantar da noite anterior.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas fiz escolhas ruins e, por isso, fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

Seguiu-se um silêncio em que ninguém parecia respirar. Então, Adam perguntou:

– E o que o senhor está fazendo aqui?

Kalona se empertigou e olhou diretamente para a câmera.

– Estou tentando me redimir dos meus erros do passado e obter o perdão de Nyx.

– Bem – Adam engoliu em seco –, parece-me que o senhor está fazendo um bom trabalho aqui. O senhor salvou a Grande Sacerdotisa, um grupo de vampiros e novatos, um detetive. Salvou, inclusive, a mim. Se o senhor conseguir deter Neferet, eu vou começar a chamá-lo de Super-Homem.

Os lábios carnudos de Kalona se ergueram em um sorriso.

– Se você vir Nyx, eu gostaria muito que dissesse isso para ela.

– Pode contar comigo – assegurou Adam. Então, ele se voltou para Thanatos: – A senhora tem mais alguma coisa a acrescentar, Grande Sacerdotisa? Será que existe alguma forma de o público nos ajudar?

– Existe sim – respondeu ela. – Todos podem rezar e enviar pensamentos e energia positiva para nós. A Morada da Noite fará o melhor que puder para proteger o povo de Tulsa, mas nós precisamos de intervenção divina.

– Rezar? Para quem? Para Deus ou para a Deusa? – quis saber Adam.

– Ora, para qualquer um deles ou para os dois, é claro. Gosto de acreditar que as orações não estão presas a questões semânticas.

Adam sorriu.

– Eu também prefiro acreditar nisso. – Ele se virou para a câmera. – Vamos todos rezar pelo fim da insanidade de Neferet e da violência que irrompeu em Tulsa em decorrência disso. E essas foram as últimas notícias sobre a situação no Mayo Hotel. Sou Adam Paluka, lembrando a todos para ficarem ligados no canal Fox 23 para terem uma cobertura completa.

– O irmão de Erebus. Isso não é interessante? – perguntou Vovó, enquanto Adam trocava um aperto de mão com Thanatos e agradecia a ela e a Kalona pela entrevista.

– Você sabia que ele era irmão de Erebus? – sussurrou Damien para mim.

– Hã... Sabia – respondi. – Ele mencionou isso há alguns dias.

– Mas estivemos meio ocupados desde então – completou Stark.

Damien coçou a testa.

– Eu me lembro vagamente de ter lido em uma antiga antologia poética vampírica algumas menções sobre o Filho da Lua e Guerreiro da Noite, junto com as descrições usuais de Erebus como Filho do Sol e Consorte de Nyx. Inicialmente, achei que eram apenas nomes diferentes para Erebus, mas, pensando bem, faz mais sentido que estivessem falando de dois imortais distintos.

– Isso torna os séculos de raiva de Kalona mais compreensíveis – declarou Vovó.

– É. Ter deixado de ser o guerreiro e companheiro de Nyx e não ter nem mais permissão para entrar no Mundo do Além. Isso deve doer de verdade – disse Damien, observando Kalona com olhos grandes e tristes.

– Ele estuprou e matou gente. Quem sabe o que ele fez no Mundo do Além antes de sua Queda – contou Stark.

– Todo mundo merece uma segunda chance, Tsi-ta-ga-a-s-ha-ya – afirmou Vovó, usando o apelido Cherokee que dera a ele. – Eu me lembro de que não faz muito tempo que você teve uma segunda chance.

Stark olhou para o chão.

Eu respirei fundo e disse:

– Eu também.

Vovó levantou as sobrancelhas.

– Hoje eu ganhei uma segunda chance – expliquei. Olhei de Vovó para os meus amigos, um de cada vez, e, por fim, meu olhar encontrou o de Stark. – Nós somos um time que precisa de uma segunda chance. Estou feliz de ter Kalona ao nosso lado.

Vovó tocou o meu braço.

– Algum dia, você deveria dizer isso para ele, u-we-tsi-a-ge-ya . Acho que você vai ficar surpresa com a diferença que suas palavras podem fazer.


10

Zoey

– Que merda! Você não vai acreditar no que acabou de viralizar no YouTube! – Nicole subiu correndo as escadas do auditório para o palco, acenando com o seu iPad como uma louca.

Aphrodite olhou para ela e afastou o iPad de si.

– Sério? A assembleia acabou agora mesmo . Você estava no YouTube enquanto eu estava falando?

– Sério. – Nicole revirou os olhos. – Supere isso. Todo mundo estava no YouTube. Você tem que ver isto. – Ela empurrou o iPad em direção a Aphrodite.

– Ser professora é um saco. Adolescentes são um saco – declarou Aphrodite, ainda ignorando o aparelho.

– Aiminhadeusa! Aquele é o Kalona? No YouTube? – Stevie Rae passou por Aphrodite para dar uma olhada na tela.

– O quê? Kalona? – Lenobia se apressou para ficar ao lado de Stevie Rae, com Darius e Rephaim logo atrás.

– Muito bem. Eu vou assistir. Agora que eu acabei de informar a todo o corpo discente que vamos salvar o mundo. De novo. – Aphrodite olhou para a tela e arregalou os olhos. – Céus! Por que você demorou tanto para nos dizer? Ligue logo! – Ela agarrou o iPad, tocou no botão para tocar e aumentou o volume até o máximo.

Não era um vídeo profissional, mas o início estava muito claro. Primeiro, focava em Thanatos. Ela estava na frente de um prédio com aparência horrível que parecia estar coberto por uma cortina gosmenta preta. Assistiram enquanto a Grande Sacerdotisa concluía o seu feitiço, erguendo os braços e sendo envolvida por um monte de esferas bonitas e brilhantes. Quando elas se ergueram aos céus, o vídeo ainda mostrava Thanatos, mas, ao fundo, dava para ouvir Neferet gritando:

– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo!

O vídeo mudou e agora dava para ver Neferet em frente ao que devia ser o Mayo.

– Ela parece estar precisando de um McLanche Feliz – disse Stevie Rae.

Aphrodite não afastou os olhos da tela.

– Isso é tudo que você tem a dizer, caipira?

– Eu acho que ela está mais doida que um gato preso num saco – opinou Nicole.

– Ninguém perguntou... – começou Aphrodite, mas a explosão no vídeo interrompeu as suas palavras.

– Aiminhadeusa! Não! – ofegou Lenobia, enquanto assistiam a Neferet lançando uma nuvem de Trevas atrás de Thanatos e de todos os outros.

– Meu pai está salvando todo mundo – disse Rephaim.

– Olhem como ele se move. – A voz de Darius era respeitosa. – Sua velocidade e força são incríveis.

Aphrodite não teve a chance de concordar. O vídeo terminou com quem quer que estivesse filmando parando para entrar no Hummer da escola, embora ainda tenha conseguido filmar Neferet e os tentáculos sangrentos das Trevas deslizando para dentro do Mayo.

Então, começou a entrevista, e Aphrodite teve de se obrigar a fechar a boca, que estava aberta de forma não atraente porque lá estava Kalona – com asas e tudo –, ao lado de Thanatos no canal Fox 23.

– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas eu fiz escolhas erradas e, por isso, eu fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.

– Irmão de Erebus? Ele só pode estar brincando! – Aphrodite sentiu que sua cabeça iria explodir.

– É verdade – confirmou Darius em voz baixa quando o vídeo chegou ao fim.

A tela ficou escura e Aphrodite olhou para ele.

– Você sabia ?

– Sabia. Kalona contou para Zoey, Stark e eu – admitiu Darius.

– E nenhum de vocês achou que seria importante contar para qualquer um de nós? – perguntou Lenobia, parecendo tão irritada quanto Aphrodite.

Darius encolheu os ombros largos.

– Para dizer a verdade, eu nem pensei muito nisso. A veracidade de Kalona foi mais do que questionável desde o momento em que ele apareceu aqui.

– Mas agora você acredita nele? – quis saber Rephaim.

Darius olhou para ele.

– Acredito.

– Rephaim, você sabia que o seu pai era irmão de Erebus? – perguntou Stevie Rae.

Os olhos do menino-pássaro ficaram tristes.

– O meu pai nunca fala sobre antes .

– O que significa que não, você não sabia? – insistiu Aphrodite.

– Isso – confirmou Rephaim, parecendo tão misterioso quanto o seu pai.

– Isso muda tudo – declarou Lenobia.

– Sim, de forma maravilhosa – animou-se Nicole, assentindo como um boneco bobblehead . [*] – Isso significa que temos um guerreiro de Nyx no nosso time.

– Não – discordou Aphrodite, secamente. – Significa que temos um ex-guerreiro de Nyx que fez tanta merda, que acabou expulso do Mundo do Além no nosso time. E isso não é tão legal assim.

– Ele disse que está tentando se redimir – falou Rephaim.

– E ele salvou Thanatos e os outros – reforçou Darius.

– Sinto muito, mas eu não estou pronta para pular cegamente para o time Kalona – disse Aphrodite.

– Acho que é cegueira ignorar o que está bem na frente dos seus olhos – retorquiu Rephaim, apontando para a tela escura do iPad.

– E eu acho que tem um monte de coisas sobre Kalona que não sabemos. – Ela fez uma pausa e lançou um olhar duro para Darius. – Ou pelo menos a maioria de nós não sabe. Agora, se vocês não têm mais nada que prefiram fazer, eu adoraria que reunissem todos os novatos que apresentem algum talento guerreiro. Tenho certeza de que Thanatos vai querer um exército para a batalha. Depois de assistir à louca no YouTube, tenho a sensação de que Neferet não vai dar a mínima para o time Kalona. – Aphrodite então deu um tapa na própria testa e acrescentou sarcasticamente: – Ah, esperem! A maldita Neferet provavelmente já sabe sobre a relação Kalona–Erebus, assim como praticamente todo mundo menos eu . – Ela jogou o cabelo para trás e se retirou.

Só quando já estava do lado de fora do auditório é que Aphrodite diminuiu o passo e permitiu que os pensamentos acompanhassem as suas emoções. Seu coração estava disparado e seu estômago, apertado. Estava puta da vida. Muito puta da vida.

Não, isso não é verdade. Eu não estou puta da vida. Eu estou assustada e chateada.

Com um suspiro enorme, Aphrodite saiu da calçada e foi até um dos bancos de carvalho. A mão que afastou o cabelo louro do seu rosto estava trêmula.

Darius omitira um segredo, algo importante. Até aquele momento, acreditara que ele era diferente de todos os outros caras nesta Terra. Ele deveria ser honesto. Ele deveria ser leal. E, acima de tudo, ele deveria amá-la o suficiente para nunca mentir para ela ou guardar um segredo dela.

Quando alguém conta uma mentira, é possível medir o quanto esse alguém amou você ou não. Aphrodite sabia disso porque crescera ouvindo uma mentira constante que não parava de crescer. Os seus pais fingiam ser um casal perfeito, mas a verdade era que se odiavam tanto quanto a odiavam. A não ser quando estavam em público, eles viviam vidas totalmente separadas – eles nem compartilhavam o mesmo quarto havia mais de uma década, quanto mais os segredos.

Eles mentiam um para o outro todos os dias.

Quando ela só tinha oito anos de idade, Aphrodite jurara para si mesma que jamais entraria em qualquer relacionamento semelhante ao casamento dos pais. Merda, até conhecer Darius, nunca tinha permitido que um cara se aproximasse o suficiente dela a ponto de importar se ele mentiria ou não. Ela se certificava de mentir para eles primeiro . Ela os traía primeiro . Ela terminava com eles primeiro .

– Eu consigo sentir a sua tristeza, minha bela. Por favor, fale comigo.

Aphrodite ergueu o olhar ao ouvir a voz de Darius, mas não o olhou nos olhos. Olhou por sobre o ombro dele.

– Sobre o que você quer conversar?

Ele se sentou ao lado dela e usou as costas da mão para enxugar uma lágrima que escorria pela bochecha dela. Aphrodite se afastou dele rapidamente, enxugando o outro lado do rosto.

– Eu quero conversar sobre nós – respondeu ele.

– É mesmo? Será que não seria bem mais fácil continuarmos seguindo do jeito que estamos? Fingindo estar “apaixonados para todo o sempre”? – perguntou ela sarcasticamente e usando os dedos para indicar as aspas.

– Nunca foi fingimento para mim. Você sabe muito bem disso, Aphrodite. – O tom dele era calmo e sério.

Ela desejou dar uma tapa na cara dele – machucá-lo –, fazê-lo sentir um pouco do medo que estava sentindo. Mas não fez nada de violento. Isso significaria perder o controle. Isso significaria que tinha se transformado na sua mãe. Em vez disso, Aphrodite o atacou com palavras.

– E como é que eu posso saber disso? Eu não posso entrar na sua cabeça. Eu nem posso compartilhar os seus sentimentos como uma verdadeira Profetisa faria. Mas tanto faz. Não se preocupe com isso. Está tudo bem, e nós dois temos um monte de merda para fazer porque, como sempre, as Trevas estão tentando dominar o nosso mundo.

– As Trevas terão de esperar, porque você é o meu mundo, e se eu perder você, eu vou me perder.

Aphrodite quis se levantar e se afastar dele sem olhar para trás. Ela iria endurecer o coração, deixá-lo tão duro quanto ele costumava ser para, na verdade, protegê-la. Antes da tempestade de Zoey e seu bando Nerd e Darius aparecerem na sua vida.

Era o que ela iria fazer, mas, de alguma forma, Darius disse exatamente a coisa certa. Então, as pernas de Aphrodite, de repente, decidiram ouvir o seu coração em vez de escutar a cabeça.

Aphrodite olhou para ele.

– Você mentiu para mim.

– Não, minha bela. Eu simplesmente não contei uma coisa para você.

– Por quê? Por que você não me contou? Kalona ser irmão de Erebus é uma puta informação importante.

– Eu não estou nem aí para o que Kalona disse ou deixou de dizer. Eu só ligo para você e o que você diz.

– Eu? – Aphrodite franziu as sobrancelhas. – Do que é que você está falando? Eu nunca mencionei qualquer coisa remotamente semelhante à possibilidade de Kalona e Erebus serem irmãos.

O sorriso de Darius foi lento e doce.

– Exatamente. E se você, minha bela Profetisa talentosa, não tem qualquer insight sobre o verdadeiro passado de Kalona, então por que é que eu deveria mencionar um comentário fora de contexto que um imortal alado fez? Aphrodite, se fosse importante que soubéssemos que Kalona era irmão de Erebus, então creio que você teria dito isso para mim .

Aphrodite meneou a cabeça, sentindo-se um pouco tonta quando ela se deu conta do que Darius realmente estava dizendo para ela.

Ele pegou a sua mão.

– Será que eu já disse hoje o quanto eu amo você?

– Não – sussurrou ela, pensando: por favor, não diga isso se não for verdade. Por favor, não faça isso.

– Com todo o meu ser – declarou ele.

Lágrimas escorreram pelo rosto de Aphrodite, mas ela não afastou o olhar dele.

– Não tenha medo – pediu ele.

– Eu tenho. Isso ainda me assusta – admitiu ela.

– Também me assusta, mas, para ficar com você, realmente com você e não apenas fingir para que o meu coração fique em segurança, vale a pena enfrentar e dominar esse medo.

– Mas você é um guerreiro. Eu não sou nada. Não de verdade. Eu sou apenas... – Sua voz falhou. Não conseguiria dizer, mas as palavras enchiam a sua mente: eu apenas sou filha de uma mulher horrível que só me ensinou a odiar, e nunca, nunca confiar no amor.

– Você é a pessoa mais corajosa que eu conheço – afirmou Darius com voz solene. – E você não é, e nunca será, como a sua mãe.

– E você nunca vai mentir para mim.

Ela não falou aquilo como uma pergunta, mas ele se levantou do banco e se ajoelhou, pressionando a mão dela contra o coração dele, dizendo:

– Aphrodite, Profetisa de Nyx, eu lhe juro que jamais mentirei para você. Se eu não falar a verdade sempre para você, que a Terra me engula inteiro para que o meu espírito jamais encontre o Mundo do Além.

Um calafrio terrível passou por Aphrodite e ela agarrou Darius, puxou-o para os seus braços e sorriu.

– Não, pare já com isso! Qualquer um pode contar acidentalmente uma mentira. Qualquer um! Eu não aceito o seu juramento!

Darius se inclinou um pouco para trás, segurando gentilmente os ombros trêmulos dela, e sorriu.

– Mas eu não sou qualquer um . Eu sou seu. O seu guerreiro. O seu amante. O seu companheiro. Juro que nunca vou mentir para você porque isso a magoaria mais do que poderia suportar, e eu prefiro que a Terra me engula para sempre do que fazer isso com você.

Enquanto olhava para Darius e via a verdade nos seus olhos, algo se libertou dentro de Aphrodite – algo pequeno e afiado que estivera fincado dentro dela por muito, muito tempo. Ela ofegou e inspirou fundo, soltando o ar devagar.

– Acabou – sussurrou ela.

– O que acabou, minha bela?

– O meu medo. Acabou, Darius. Você acabou com ele. – Aphrodite sabia que soava jovem e tola. Mas não ligava. Pela primeira vez na vida, não estava com medo de perder o amor. – Eu não posso perder você! – exclamou ela.

– Não – respondeu ele, sorrindo de novo. – Você jamais vai me perder. E eu não acabei com o seu medo. Você o deixou ir.

– Ah – respondeu ela, suavemente, compreendendo por fim. – Sinto muito por ter demorado tanto.

– Você demorou o tempo necessário, e eu não me arrependo por ter esperado.

Darius a beijou em seguida, e Aphrodite vivenciou a felicidade completa.

Até que Aurox os interrompeu.

– Darius! Aí está você. Venha rápido. Eles estão nos portões.

Aphrodite se apoiou no ombro de Darius e franziu as sobrancelhas para Aurox.

– Ah, que droga! Se você interrompeu este momento porque Zoey e seu bando nerd voltaram, eu vou acabar com você...

– Não é a Zoey! – explicou Aurox. – São humanos! Os humanos estão nos portões pedindo para entrar porque querem que nós os protejamos contra Neferet!

– Bem, neste caso, acho que devemos deixá-los entrar – declarou Darius, levantando-se e oferecendo a mão para Aphrodite. – Você não acha, minha bela?

Ela suspirou e resmungou:

– Tudo bem. Desde que não tenha nenhum político com eles.

[*] Bobblehead refere-se a bonecos que possuem a cabeça presa ao corpo por meio de uma mola, a qual faz com que a cabeça balance quando há qualquer movimento. (N. E.)


11

Zoey

– Ah, que merda! Uma multidão? Isso é tudo de que precisamos agora. – Suspirei, frustrada, enquanto passávamos pelo semáforo na Twenty-first Street em Utica e conseguimos ver a escola.

Foi uma cena superestranha. Já passava da meia-noite, e a rua estava escura. Deveria estar vazia também, mas os grandes portões de ferro da escola estavam abertos, e pudemos ver um monte de gente reunida na frente dele. Os dois lampiões a gás envolvidos por candeeiros de cobre desgastados pelo tempo lançavam sombras bruxuleantes em um semicírculo sobre o grupo. As pessoas também vinham dos dois lados da rua. Fora do alcance das chamas da escola, dava para ver as sombras escuras dos carros que estavam estacionados na calçada, parecendo abandonados e completamente fora de lugar.

– Você está vendo alguma coisa queimando além das nossas lanternas? Tipo um crucifixo gigantesco em chamas? – A cabeça de Shaunee apareceu entre mim e Stark enquanto tentava ver melhor do banco de trás onde estava.

– Parem o carro e deixem-me sair daqui. Eu vou resolver isso! – avisou Kalona.

– Não! – gritaram Thanatos, Marx e Vovó juntos.

– Eles não parecem zangados – disse Thanatos.

O detetive Marx parou e baixou o vidro. Todos apuramos os ouvidos para escutar alguma coisa, e então ele disse:

– Está difícil enxergar alguma coisa, mas não estou ouvindo gritos.

– A minha visão noturna é melhor do que a sua, e eu não estou vendo nenhum tumulto ou pânico. Tudo parece notavelmente calmo – declarou Thanatos.

– Tudo bem, melhor prevenir do que remediar. Então, vamos nos certificar de que saibam de que lado da lei a Morada da Noite está.

O detetive pegou uma sirene portátil que trouxera com ele do Oneok e a acoplou ao teto do Hummer. Ligou-a, e ela começou a girar uma luz azul e vermelha que era familiar demais para qualquer um de nós que não tivesse parado totalmente no cruzamento da rua 101 com a Lynn Lane, em frente à South Intermediate High School. Não que eu tenha qualquer experiência pessoal com isso. Só estou dizendo que é estranho estar em um carro de polícia quando a sirene está ligada.

Marx deu mais um tapa na sirene, que então emitiu um som odioso duas vezes. A luz e o som trabalharam em sintonia perfeita. A multidão se abriu e se virou para nós e, reconhecendo a presença do Departamento de Polícia de Tulsa, as pessoas abriram caminho para que o Hummer pudesse chegar à entrada da escola.

Diante do local onde o portão de ferro deveria estar seguramente trancado estavam Aphrodite, Darius, Stevie Rae, Rephaim, Lenobia e Aurox, todos alinhados na frente da entrada formando uma passagem humana.

– O que eles estão fazendo? – perguntou Stark, ecoando os meus pensamentos.

– Espero que tenham tomado decisões sábias – desejou Thanatos.

Em silêncio, concordei enquanto os meus olhos pousaram primeiro em Aphrodite. Se ela aparentasse estar zangada, ou segurasse uma bebida, eu saberia que o que quer que estivesse acontecendo ali era ruim – com crucifixos em chamas e gritos ou não. Mas ela parecia confusa. Tipo, obviamente confusa. Uma de suas mãos estava no quadril e os ombros, encolhidos. Ao mesmo tempo, Lenobia estava assentindo e conversando com alguém na multidão que eu não conseguia ver direito.

– Aphrodite parece confusa, mas não assustada – expus a minha observação de surpresa. – E Lenobia parece estar de acordo com o que quer que seja que está acontecendo. Não deve ser tão horrível.

– Lá estão a irmã Mary Angela e a irmã Emily. Ah, eu estou vendo! Tem um grupo de freiras lá na frente. – Vovó apontou e acenou. – Está tudo bem se elas fazem parte do grupo.

– É uma boa teoria, mas eu vou parar dentro da escola antes que qualquer um de vocês desça. E quero que vocês permaneçam nas dependências da Morada da Noite, não importa quem possa estar chamando vocês do lado de fora – declarou Marx.

Percebi que Vovó estava fazendo cara feia, mas Thanatos foi rápida em concordar:

– Pode deixar, detetive.

Eu estava feliz. Tudo bem, talvez fosse porque não havia se passado nem 24 horas desde que eu saíra da cadeia, mas uma multidão de humanos em torno dos portões da escola – ainda que fossem humanos conhecidos que pareciam ter vindo em paz – fazia o meu estômago se contrair com o estresse da situação. Isso sem mencionar que já passava da meia-noite e não fazia muito tempo desde que Neferet jogara pedaços de corpos humanos pela varanda da sua cobertura no Mayo. Eu não tinha a menor intenção de olhar de cara feia para Marx nem Thanatos, muito menos desobedecê-los. Na verdade, eu esperava já ter sido desobediente o suficiente pelo que seria o resto de uma vida que eu esperava ser longa e chata.

Então, Kalona saiu do Hummer.

– Ei, não é aquele cara alado? – gritou alguém na multidão.

– Uau! O filho de Erebus! – exclamou alguém mal-informado e pronunciando erroneamente o nome Erebus de forma que soasse como Airbus , o que fez Stark cobrir a boca com a mão para disfarçar o riso com uma tossida.

Dei uma cotovelada de leve em Stark, e ele me lançou o seu olhar charmoso e sorriso torto dizendo com os lábios “Airbus ”. Revirei os olhos.

– Tudo bem, tudo bem – disse o detetive Marx enquanto erguia as mãos fazendo um gesto para o público se acalmar. – Não tem nada para ver aqui. Vocês precisam se afastar e desbloquear a entrada.

– Ah, não precisa se preocupar, detetive. Não queremos bloquear a entrada da escola. Só queremos entrar na escola. – Uma freira alta, usando véu, deu um passo para a frente com um sorriso maternal nos lábios. – É tão bom vê-lo de novo, Kevin.

– Irmã Mary Angela, senhora. – Detetive Marx fez um gesto antigo de respeito com a cabeça. – É muito tarde para a senhora e as outras freiras fazerem uma visita social.

– Ah, Kevin, não estamos aqui para uma visita – declarou ela de forma enigmática.

Antes que Marx tivesse a chance de interrogá-la, Vovó falou passando por ele para encontrar a freira da fronteira da escola.

– Mary Angela, eu estava pensando em você hoje cedo.

Elas deram um abraço. A freira riu e disse alto o suficiente para que todos ouvissem:

– E quando foi que pensou em mim? Antes ou depois de ter sido atacada pelas Trevas? Você leva uma vida tão interessante, Sylvia.

Aphrodite, que se aproximou para ficar ao meu lado, bufou, dizendo:

– Os velhos deviam ter uma vida menos interessante.

– Nós devíamos ter uma vida menos interessante – retruquei baixinho.

Vovó sorriu como se tivesse nos ouvido.

– Foi depois, quando Thanatos pediu que todos em Tulsa rezassem para nos ajudar.

– Ah, que adorável coincidência, porque foi a oração que nos trouxe até aqui.

– Por favor, explique, cara irmã – pediu Thanatos.

Notei que ela não se juntou à Vovó. Olhei para Kalona, que estava colado ao seu lado como se esperasse que mais gavinhas das Trevas aparecessem a qualquer momento.

– Mas que merda, já chega dessa procrastinação – reclamou Aphrodite, dando um passo para a frente. – Eles querem a nossa proteção.

Eu a segui, embora Stark tenha segurado o meu cotovelo para que eu fosse mais devagar.

– Creio que a palavra correta para o que eles querem seja “santuário” – interveio Lenobia.

– Você quer dizer a palavra politicamente correta – retorquiu Aphrodite.

– Se qualquer um de nós fosse politicamente correto, não estaria aqui. – Do meio das sombras iluminadas pela luz dos lampiões, uma mulher pequena, seguida por um homem esbelto, caminhou até irmã Mary Angela. Ela assentiu educadamente para Thanatos. – Shalom, Grande Sacerdotisa.

– Eu a saúdo com paz, rabina Margaret – cumprimentou Thanatos. Agora que estavam mais perto da luz, o casal me parecia familiar. – Eu também o saúdo com paz, rabino Steven. É sempre um prazer ver os nossos vizinhos do Templo de Israel.

Percebi por que a mulher e o homem pareciam conhecidos. Eram rabinos casados, Margaret e Steven Bernstein, que recentemente se tornaram os líderes no Templo de Israel, localizado, literalmente, do lado da Morada da Noite, que dava para Utica Square. Eu me lembrava de que eles tinham elogiado muito os cookies de chocolate da Vovó durante o nosso evento antes que a noite tivesse, é claro, terminado em desastre e morte.

– Então, é realmente um santuário que vocês buscam nesta noite? – perguntou Thanatos para o casal, mas a sua voz se ergueu para toda a multidão.

– É – respondeu a rabina Margaret, enquanto ela e o seu marido, assim como todos, assentiam em concordância.

– A irmandade das beneditinas também busca um santuário – declarou irmã Mary Angela.

– Assim como a congregação de Todas as Almas – disse uma mulher mais velha, dando um passo para a frente e saindo das sombras. Ela tinha cabelo louro desbotado e comprido, mas os seus olhos eram de um azul tão vívido que, mesmo sob a luz fraca, brilhavam como pequenas águas-marinhas.

Thanatos hesitou. Lançou um olhar para Lenobia, que sorriu. Olhou para Kalona, que franziu o cenho. E, então, ela me surpreendeu ao olhar para mim por sobre o ombro. Encontrei o seu olhar e fiz o que meus instintos me mandaram fazer – sorri e assenti.

Thanatos voltou-se para Suzanne, segurou o seu antebraço na saudação vampírica tradicional e ergueu a voz, repleta com o poder de Nyx:

– Como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, eu lhes dou as boas-vindas ao grande santuário para todos que o buscam!

Ao meu lado, ouvi Stark suspirar e sussurrar.

– Ai, que merda...

Zoey

– Não, Bobby! Quantas vezes a mamãe vai ter que dizer? Você não pode tocar nas asas do moço alto! – Uma mulher com aparência cansada pegou o seu bebê que estava cambaleando pelo piso arenoso do ginásio com os braços erguidos, tentando pegar a ponta da asa de Kalona.

Mordi a bochecha para não rir enquanto o imortal alado fazia um som de desagrado e dava um passo para evitar os dedinhos grudentos. O bebê tentou sair do alcance dos braços cansados da mãe. Kalona foi para o outro lado. Como sempre, onde quer que aparecesse, todos os humanos concentravam sua atenção nele, e isso parecia afetá-lo. Ele parecia cansado. Curiosamente, os seus ferimentos ainda não tinham se curado por completo, formando linhas e círculos rosados dolorosos. Achei que talvez ele não tivesse passado tempo suficiente no telhado do Oneok quando um “Psiu!” de Aphrodite chamou a minha atenção.

– Z., caipira, venham comigo, agora! – chamou ela.

Stevie Rae e eu largamos um garrafão de água que levávamos para o ginásio e seguimos Aphrodite até o fim do muro mal-iluminado em cuja abertura ficava a estátua de Nyx.

– Cara, eu estou acabada – declarou Stevie Rae.

– Eu também – concordei.

– Já passou da hora do nosso intervalo – disse Aphrodite, jogando latas de refrigerante marrom para nós duas.

Então, ela me pegou totalmente de surpresa ao abrir uma lata para si.

– Refrigerante? Você? Achei que odiasse.

– E odeio mesmo, e isso não é refrigerante. É champanhe de Sophia – informou ela, tomando um gole pelo canudo cor-de-rosa que tirara da lata fina da mesma cor.

– Quem diria, champanhe em uma lata – comentou Stevie Rae.

– Qualquer um que seja civilizado.

– Eu não sabia – disse eu.

– Exatamente o que eu quero dizer – respondeu Aphrodite. Então, ela lançou um olhar para Kalona que estava no meio do ginásio, com certeza procurando alguém e tentando ignorar as pessoas que o olhavam. – Kalona e humanos, principalmente humanos pequenos, equivalem a um acidente de trem apocalíptico – declarou ela.

– Concordo plenamente – disse eu. – Vocês acham que ele está parecendo cansado?

Aphrodite bufou.

– Nós todos parecemos cansados.

– Acho que ele parece como sempre, só que um pouco ferido, o que torna aquele bebê meio malvado por tentar agarrar uma pena de sua asa – opinou Stevie Rae.

– Kalona é imortal. Ele está bem. E um bebê arrancando a pena dele seria mais que demais – declarou Aphrodite. – Acho que eu poderia convencer aquela criancinha a fazer isso. Ou melhor, convencer a mãe a permitir que o filho faça isso. Você acha que ela gostaria de um coquetel mimosa?

– Aquela mãe parece mesmo estar precisando de um coquetel mimosa, mas sem o suco de laranja. Acho que ela gostaria de uma das suas latinhas cor-de-rosa – disse Stevie Rae.

– Eu não costumo dizer isso com frequência, porque geralmente não é verdade, mas acho que você está certa, Stevie Rae – concedeu Aphrodite. – Embora eu venha a precisar de mais de uma dessas latinhas. Parece um trabalho para a viúva Clicquot.

– Viúva Clicquot? Ela é do Templo de Israel?

– Ah, sua pobre ignorante – lamentou Aphrodite, meneando a cabeça tristemente para Stevie Rae.

Kalona conseguiu passar pelo bebê e estava se movendo de novo. Ai, ele parecia estar vindo na nossa direção!

– Diga que ele não está vindo para cá.

– Quem dera eu poder dizer isso – respondeu Aphrodite.

– Ele parece um pombo gigante voltando para o poleiro – disse Stevie Rae.

– Será que devemos ir ao encontro dele? – sugeri, bocejando.

Olhei para o relógio da escola. Já eram 5h30 da manhã. Tínhamos pouco menos de uma hora antes de o sol nascer, e eu entendi o que era exaustão.

– Salvar Kalona dos humanos? Não mesmo – respondeu Aphrodite.

– Concordo – reforçou Stevie Rae.

Dei de ombros e bocejei de novo.

– Por mim, tudo bem. Estou cansada demais para me mexer.

Thanatos decidira que o melhor lugar para colocar todos os humanos – e realmente havia muitos deles – era no maior prédio do campus , o nosso ginásio. Achei uma boa ideia. O lugar era enorme, e com todos reunidos ali seria mais fácil manter o controle. É claro que a maior parte do piso do ginásio era de areia, porque era usado para o treinamento dos guerreiros, e a areia era um saco. Areia, sacos de dormir e humanos cansados, amedrontados e mal-humorados não constituíam uma boa combinação, então nós todos (quero dizer, quase todo mundo no campus , exceto Thanatos, Vovó, detetive Marx e os líderes religiosos) passamos as últimas horas nos esforçando para cobrir a arena dos guerreiros com lona, transformando o lugar no que parecia ser um abrigo temporário contra furacões. Não que aquilo fosse muito melhor, mas estava menos arenoso e mais limpo para as famílias dormirem.

– Olhe isso. – Aphrodite me cutucou com o ombro. – O rabino Steven Bernstein cercou Kalona. Aposto que está fazendo todo tipo de pergunta maluca sobre o Torá.

– É culpa do Kalona – disse eu. – Ele bem que poderia usar uma camisa.

– Pois é! Qual é a necessidade de ficar exibindo o peitoral? – questionou Aphrodite.

– Olha só, gente – interrompeu Stevie Rae, apontando. – Acho que Nicole e Shaylin estão se tornando boas amigas. Fico feliz. Nicole mudou muito e, bem, Shaylin precisa de uma melhor amiga, principalmente depois que você deu uma de louca para cima dela, Z. – disse Stevie Rae antes de acrescentar: – Sinto muito, Z. Eu não queria colocar o dedo na ferida.

Suspirei.

– Não tem problema. Eu realmente dei uma de louca para cima dela. Fico feliz que ela tenha uma boa amiga.

Aphrodite e eu olhamos para as duas meninas de cabelo escuro. Elas estavam arrumando o saco de dormir e pareciam superamigas. Na verdade, enquanto eu as observava, vi os ombros delas se tocarem e as cabeças se aproximarem. Ergui as sobrancelhas. Nicole ergueu a mão e afastou o cabelo de Shaylin do seu rosto, acariciando o rosto dela ao fazer isso, lembrando-me estranhamente de algo que Stark fazia enquanto me paquerava. Limpei a garganta.

– Hum, acho que elas parecem bem próximas .

– Todo mundo devia ter uma melhor amiga! – declarou Stevie Rae olhando para mim.

– Hum, Stevie Rae – comecei, ainda observando os toques e os olhares que Nicole e Shaylin estavam trocando –, acho que elas talvez...

– Ai, que droga, Z.! – exclamou Aphrodite. – Você fez Shaylin virar gay!

Eu franzi as sobrancelhas para ela.

– Seja legal!

– Aiminhadeusa! – Stevie Rae arregalou os olhos enquanto via Nicole dar um beijinho no pescoço de Shaylin. – Eu não sabia que você podia fazer alguém virar gay!

– Sério, caipira! Eu tenho que perguntar de novo: você é retardada?

– Você sabe como eu me sinto com essa palavra – respondeu Stevie Rae.

– E você sabe que eu não estou nem aí.

– E vocês duas sabem que quando começam a implicar uma com a outra me dá dor de cabeça. Aphrodite, não seja cruel com Shaylin e Nicole. Elas podem amar quem desejarem. Stevie Rae, não. Não dá para fazer alguém virar gay. Caramba.

– Ei, eu não estou nem aí para quem ela ama ou com quem ela anda dormindo, mas vou adorar ver a merda que está por vir. – Aphrodite apontou para o pequeno espaço entre a cama que Shaylin e Nicole estavam arrumando. – E aí vem Clark Kent, bem na hora. E eu acho que ele acabou de ver o beijo.

– É – disse Stevie Rae. – Acho que viu. Olhe só para ele.

– Confuso. Acho que seria isso que Vovó diria sobre a expressão dele. Totalmente confuso – concordei. – Eu sei que não deveria, mas acho que vou gostar de ver isto.

– Você está brincando? Eu quero gravar e assistir várias vezes – declarou Aphrodite.

Erik já estava começando a falar com Shaylin. Mesmo de onde estávamos, dava para perceber que ele usava o seu sorriso de astro de cinema com um brilho de cem watts.

– Sei que ele pode ser um saco às vezes, mas vocês têm que admitir que ele é uma gracinha – declarou Stevie Rae. – Não como Rephaim, mas um gatinho mesmo assim.

Aphrodite fez um som como se estivesse se controlando para não falar nada.

Nicole não hesitou e não se afastou. Parou ao lado de Shaylin e envolveu a sua cintura fina com o braço em um gesto íntimo, olhando diretamente para Erik com uma postura possessiva.

– Sabia que Nicole seria o cara – declarou Aphrodite.

– O cérebro do Erik parece prestes a explodir e passar pela covinha do seu queixo – disse eu.

– Zoey, Thanatos convocou você, Stevie Rae e Aphrodite. Ela pede que vocês três se juntem a ela na Câmara do Conselho. Isto é, se vocês tiverem acabado de tomar conta dos humanos – disse Kalona sarcasticamente, olhando para os não humanos que a gente estava espiando.

Nós três demos um pulo de susto ao som de sua voz. Como sempre, Aphrodite se recuperou primeiro.

– Bem, graças à Nyx e ao menino Jesus por nos tirar daqui antes do nascer do sol – declarou Aphrodite. – Vou levar dias para tirar toda essa areia das minhas sapatilhas Jimmy Choo brilhantes. Sou muito melhor em profetizar do que em arrastar coisas.

Ela jogou o cabelo para trás e se dirigiu à porta. Ouvi enquanto ela sugava o que restava do champanhe com o seu canudinho.

– Tudo bem. Hum, obrigada – disse eu de forma inadequada. – A gente deve chamar Stark, Darius e Rephaim também?

– Os homens estão ocupados. – Kalona olhou para o local onde os três homens lutavam com a extremidade de uma lona imensa.

– Tudo bem então. Vamos sair daqui – disse Stevie Rae acenando para Rephaim.

Eu mandei um beijo para Stark e a segui.


12

Zoey

Passamos pela irmã Mary Angela, a rabina Bernstein e a ministra de Todas as Almas enquanto entrávamos no corredor até a Câmara do Conselho.

– Zoey, Aphrodite e Stevie Rae – cumprimentou a freira, fazendo um gesto para as mulheres ao seu lado. – Permitam que eu apresente vocês três para a rabina Margaret Bernstein e Suzane Grimms.

– Merry meet – respondemos as três, quase em uníssono.

As mulheres pareciam cansadas, mas sorriram.

– Prazer em conhecê-las e em estarmos aqui – respondeu a rabina.

– Sim, obrigada a todas vocês pelo trabalho duro que estão fazendo para ajudar a todos se acomodarem.

Nós assentimos como quem diz “não há de quê” , e as mulheres se afastaram; a irmã Mary Angela olhou para mim.

– Boa sorte, Zoey.

– Ela sabe de alguma coisa que não sabemos – sussurrou Aphrodite.

Concordei com a cabeça, e seguimos para a porta da Câmara do Conselho. Então, quase demos de cara com Shaunee, que saiu olhando para todos os lados menos para onde estava indo.

– Caramba, tenha cuidado – disse eu, segurando-a para que nenhuma de nós duas caísse.

– Mas o que é que você está fazendo por aqui? – perguntou Stevie Rae. – A minha mãe diria que você está agindo como se o seu cabelo estivesse pegando fogo.

Shaunee ergueu a sobrancelha.

– Eu preferia que o meu cabelo estivesse pegando fogo a ter perdido o meu gato. Não consigo encontrar Beelzebub em lugar nenhum.

Eu tinha ficado superfeliz de saber que, enquanto eu estava presa, Shaunee e Kramisha tinham ido ao depósito e recuperado os nossos quatro gatos – além de Duquesa, é claro – e os levado de volta para a Morada da Noite. Nala pulou em mim quando fui para o dormitório trocar de roupa, e eu a apertei com tanta força que ela ficou descontente e espirrou no meu rosto.

– Por que você está estressada? Você sabe como os gatos são. Eles vêm quando querem e vão quando querem. Eu não tenho ideia de onde Malévola está agora – informou Aphrodite.

– Eu só espero que ela não esteja por aqui – desejou Stevie Rae baixinho.

Intervim antes que Aphrodite começasse a brigar com ela.

– Tenho que concordar com Aphrodite. Beelzebub deve estar feliz passeando por todos os túneis e esticando as patas.

– Foi o que pensei também, mas Beelzebub nunca falta ao jantar. Nunca . E eu sempre dou comida para ele bem antes do nascer do sol. Sacudi o pacote de Whiskas, e ele não veio correndo como sempre. Então, comecei a procurar. Vocês notaram que os gatos estão sumidos?

Pensei naquilo. Eu vira Nala antes de ir para o Mayo, mas, desde que voltamos, ela não aparecera. Na verdade, agora que estava pensando naquilo, eu não tinha visto nenhum dos gatos recentemente.

– Hmm, agora que você mencionou, não. Eu não vi nenhum dos gatos. Duquesa estava no ginásio com Damien e Stark, mas Cammy não estava com ele, nem Nala.

– Como se isso fosse alguma surpresa? Façam-me o favor. Não sejam idiotas. O ginásio está cheio de humanos. Eu não sou um gato, mas isso me faz querer sumir também. Eu com certeza não os culpo por quererem desaparecer.

– Faz sentido – concordou Stevie Rae. – Gatos são estranhos assim. Sem querer ofender – completou ela, olhando para Aphrodite.

– Concordo com estranho. Como eu já disse antes, normal é supervalorizado.

– Tudo bem, então eu vou tentar não me preocupar com ele. Sinto muito se esbarrei em vocês, gente. Vejo vocês mais tarde.

– Juntem-se a nós na Câmara do Conselho, jovens novatas. – A voz de Kalona nos surpreendeu.

– Ele é sempre tão furtivo – sussurrou Stevie Rae para mim.

– Obrigada por me convidar, Kalona, mas não, obrigada – declarou Shaunee. – Nunca ninguém sai da Câmara do Conselho dizendo “Uau, que legal! Mal posso esperar para fazer isso de novo”.

Eu ia começar a rir e me despedir de Shaunee, mas meus instintos entraram em ação e me fizeram dizer:

– Na verdade, eu gostaria muito que você se juntasse a nós.

Shaunee parou, suspirou e deu de ombros.

– Tudo bem. Acho que isso é melhor do que ficar arrumando as camas no ginásio.

Sorri em agradecimento, e nós cinco entramos na Câmara do Conselho.

Thanatos e Vovó estavam sentadas uma do lado da outra. Lenobia também estava lá. Fiquei surpresa de ver que o detetive Marx estava em pé, com os braços cruzados, atrás de Thanatos. Achei que não houvesse mais ninguém lá, mas um movimento na porta dos fundos chamou a minha atenção e eu vi Aurox ali de novo, como se estivesse de guarda. Ele não olhou para mim.

– Zoey, Aphrodite, Stevie Rae, Kalona, por favor, entrem e se acomodem – disse Thanatos. – Shaunee, não creio que eu a tenha convocado.

– Eu pedi para ela se juntar a nós – falei eu.

– Então, Shaunee também é bem-vinda – concordou Thanatos, fazendo um gesto para nos sentarmos.

Só quando cheguei à mesa vi que a grande tela plana de computador estava ligada. Pisquei, surpresa, e depois sorri e apressei os últimos passos.

– Sgiach! Oi, que legal ver você! – exclamei.

A rainha sorriu e respondeu de maneira mais formal (e adequada):

– Merry meet , Zoey. Também é um prazer revê-la.

– Chamamos a Rainha Sgiach, desejando falar com um dos seus guerreiros, para que lhe desse o recado de que gostaríamos de encontrá-la – explicou Thanatos.

– E ficamos surpresos, e satisfeitos, quando a própria rainha respondeu ao nosso chamado – acrescentou Vovó.

Fiz um cálculo mental rápido: se eram quase seis horas da manhã em Tulsa, devia ser meio-dia na Escócia. O que Sgiach estava fazendo acordada? Olhei a rainha com mais atenção. Ela estava sentada em uma cadeira enorme de madeira na sua biblioteca particular – que parecia normal. Mas Sgiach não estava com aparência normal. O seu cabelo estava desarrumado, o rosto sujo, e eu me inclinei para mais perto da tela para ver melhor...

– Sangue! Por que está suja e tem sangue em você? Está tudo bem?

– Estou viva – respondeu Sgiach, o que não respondia à minha pergunta.

– Onde está Shawnus ? – perguntou Aphrodite, errando a pronúncia do nome do guardião de Sgiach de propósito.

– Seoras – corrigiu a rainha, estreitando o olhar para Aphrodite – está liderando uma guarda diurna e protegendo a ilha.

– Espere aí, protegendo durante o dia ? – Sacudi a cabeça, confusa. – Mas a sua ilha protege a si mesma, principalmente durante o dia.

– Isso é verdade desde que a Luz e as Trevas estejam em equilíbrio – explicou Sgiach.

– Zoey Passarinha – Vovó tocou a minha mão, como se estivesse me dando força –, Neferet acabou com o equilíbrio no mundo. As Trevas Antigas começaram a extinguir a Luz.

Os meus joelhos cederam, e eu me sentei na cadeira. Stevie Rae se sentou pesadamente ao meu lado. Aphrodite ficou andando de um lado para o outro atrás de nós, quase esbarrando no detetive Marx, e Shaunee escolheu uma cadeira próxima a Lenobia.

– Mas Neferet já estava louca havia um tempão. Eu não entendo por que ela de repente bagunçou as coisas – raciocinei.

– Ah, menina – lamentou Thanatos em tom triste. – Não é uma coisa repentina. É a culminação de uma onda terrível que vem subindo desde que Neferet libertou Kalona de sua prisão.

Eu franzi o cenho para o imortal alado que estava do outro lado da sala, próximo à porta principal, com o peito nu, expressão pétrea e em silêncio.

– Ele está do nosso lado agora. Isso deveria ajudar, e não atrapalhar o equilíbrio – argumentei.

– Isso não é um jogo. Essas forças não podem ser controladas – explicou Sgiach. – Foi o ato de libertá-lo que fez a inundação começar. Kalona foi apenas a primeira pedra a cair em uma represa começando a ruir.

– Então, vamos colocar a pedra de volta! – exclamou Aphrodite.

– Realmente – concordou Thanatos. – Foi por isso que chamamos Sgiach.

– Então, o que vamos fazer? – perguntei.

– Você junta a sabedoria de épocas distintas, de um mundo diferente. Forças antigas estão trabalhando agora. E é com sabedoria antiga que temos que remar contra a maré e restaurar o equilíbrio.

– Será que você pode ser menos enigmática do que uma das minhas malditas visões? – pediu Aphrodite.

– É claro, minha jovem e arrogante profetisa. – Achei que Sgiach fosse dar um belo chute na bunda de Aphrodite via Skype, mas, em vez disso, o seu olhar pousou em mim e, apesar dos milhares de quilômetros que nos separavam, o que ela disse fez os pelos dos meus braços se eriçarem. – O detetive Marx me explicou o que aconteceu entre você e os humanos no parque. Thanatos e a sua avó me contaram que a sua violência contra eles não foi um incidente isolado e que envolveu a pedra da vidência.

– Isso, mas eu não tenho mais a pedra – assegurei para ela rapidamente. – Eu não a uso mais.

– Menina, você nunca a usou. Ela usou você – explicou ela.

Engoli a terrível secura que tomou conta da minha boca.

– Eu sei. Foi por isso que a deixei aos cuidados de Aphrodite quando me entreguei para o detetive Marx.

– Conte-me como estava se sentindo nos dias que culminaram no incidente no parque – pediu Sgiach.

Hesitei e tentei ordenar os pensamentos. Por fim, comecei:

– Eu estava nervosa. Frustrada. Irritada. Parecia que eu estava zangada o tempo todo.

– As coisas pioraram depois que você usou a pedra da vidência para revelar o espelho que refletia o passado quebrado de Neferet para ela?

Arregalei os olhos.

– Eu não tinha pensado nisso, mas sim, ficou pior depois. – Instintivamente, passei a mão pela cicatriz na palma da minha mão. – Ela esquentava com mais frequência. E eu perdia a noção do tempo. – Contei essa última parte rapidamente, sem olhar para os meus amigos, para quem eu não tinha contado aquilo.

– Você via coisas durante o seu tempo perdido? – ela perguntou.

– Via – admiti lentamente, não gostando nada da expressão em seu rosto.

– Coisas como Fey, os espíritos elementares que viu em Skye quando esteve lá comigo?

– Não. – Estremeci. – Até poderiam ser Fey, mas não era como os elementares em Skye. Eram horríveis.

– Alguns Fey são terríveis. Assim como nós, nem todos eles escolhem a Luz. O que você via quando perdia a noção do tempo aconteceu antes ou depois de usar a pedra para salvar a sua avó?

– Antes – respondi.

– Zoey, aqui está a verdade que você precisa ouvir: magia antiga pode restaurar o equilíbrio da Luz e das Trevas novamente, o que significa que a sua pedra da vidência é a chave para se vencer esta batalha.

– Então, eu preciso dá-la a outra pessoa, porque o que eu estava fazendo com ela não funcionou. Tudo piorou em vez de melhorar – disse eu.

– Eu gostaria que as coisas fossem tão simples assim – declarou Thanatos.

Ela, Vovó e Sgiach trocaram um olhar, e eu soube que elas tinham conversado sobre a pedra antes de eu chegar.

Vovó deu uns tapinhas na minha mão e disse:

– Ninguém mais pode ostentar a pedra da vidência, u-we-tsi-a-ge-ya . A pedra só esquenta para você. Isso significa que ela a escolheu, e apenas você poderá ostentar a magia antiga através dela.

– Tudo bem, então. Mas como é que eu faço isso? – perguntei, odiando o aperto que senti no estômago só de pensar em tocar na pedra da vidência de novo.

– Estou com a Zoey – apoiou-me Aphrodite. – Simples ou não, diga a ela o que ela precisa fazer.

– É mesmo. A Z. já derrotou as Trevas e Neferet uma vez. Nós todos derrotamos – concordou Stevie Rae.

– Por causa da natureza volátil da magia antiga, só posso lhe dizer o que sei que não deve ser feito – explicou Sgiach. – Para que o seu poder trabalhe pelo equilíbrio e não se corrompa, ela deve ser comandada por uma Sacerdotisa que não seja nem agressora nem vítima. Sua intenção deve ser pura. Ela não pode ser vingativa nem defensiva.

– Mas Zoey tem de usá-la de forma defensiva! – exclamou Marx. – Neferet é uma assassina sociopata com o objetivo de escravizar Tulsa e talvez até o mundo inteiro.

– Isso não é um talvez, detetive – interrompeu Kalona. – Neferet deseja fazer mais do que forçar alguns poucos humanos azarados a adorá-la. Ela deseja reinar como a única Deusa deste mundo e tornar todos nós os seus escravos.

– Então, como é que a porra dessa pedra pode ser a chave para derrotá-la se Zoey não pode usá-la de forma defensiva? – perguntou Marx.

– Detetive, a magia antiga é neutra. É o poder na sua mais pura essência. E ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a carrega. Se seus motivos não forem completamente altruístas, o caos será o resultado. – O seu olhar pousou em mim. – Você tem evidências disso diante de si. Pelo que sabemos de Neferet no passado, à luz do que ela fez no presente, acredito que haja indicações claras de que ela usou magia antiga por muito tempo, talvez até mesmo antes de ter sido Marcada.

– Mas eu nunca a vi usando uma pedra da vidência – disse eu.

– Uma pedra da vidência é apenas um condutor para a magia antiga. Considere as gavinhas das Trevas que a acompanham sempre. Elas são básicas demais, cruas demais para serem qualquer coisa a não ser que sejam ligadas aos poderes antigos da Luz e das Trevas. Eu sei. No Mundo do Além, lutei contra as Trevas em diferentes formas por várias eras. Elas podem ser sedutoras e astutas. As Trevas usam muitas faces, e algumas delas podem ser vistas, a princípio, como aliadas.

– Eu não consigo entender como aquelas coisas rastejantes nojentas podem ser vistas como algo bom – comentou Stevie Rae.

– Neferet raramente fala disso, mas ela foi estuprada pelo próprio pai na noite em que foi Marcada – contou Lenobia. – Algo a ajudou a passar por aquela provação terrível, e não foi outro novato nem a sua mentora. Os registros da Morada da Noite de Chicago dizem claramente que ela voltou para a casa da sua família e estrangulou o pai antes mesmo de ter completado a Transformação. O investigador registrou que o ataque foi tão forte que a cabeça do pai quase foi separada do corpo.

– E ela se safou disso? – perguntou Marx.

– O crime aconteceu no fim do século XIX em um mundo muito maior, detetive. O Conselho da Morada da Noite de Chicago e o Conselho Supremo dos Vampiros decidiram juntos que seria melhor tirá-la do estado e permitir que ela recomeçasse um novo caminho onde teria a oportunidade de se curar da sua tragédia – contou Thanatos.

Lenobia acrescentou:

– E lembre-se, detetive, de que aquele homem agredira e estuprara a filha de dezesseis anos de idade.

– Os registros do Conselho Supremo relatam que havia diversas marcas de mordidas, mordidas humanas no corpo de Neferet, e que ela estava horrivelmente ferida e violada na noite em que o Rastreador a encontrou – informou Thanatos concordando com Lenobia.

Senti um choque com a lembrança.

– Logo depois que fui Marcada, Neferet mencionou algo comigo sobre ter sido machucada pelos pais.

– Sua mãe morreu ao lhe dar à luz. O seu pai era um monstro – contou Lenobia. – Todos que conheceram Neferet na sua juventude sabiam dos rumores sobre o que acontecera na noite em que fora Marcada.

– Sinto muito pelo seu passado, mas isso não muda o fato de que Neferet é uma imortal instável que precisa ser detida – declarou Marx.

– Não estamos mencionando o passado de Neferet como uma desculpa para os seus atos presentes – respondeu Sgiach. – Nós o mencionamos como uma lição para Zoey. – Os olhos de Sgiach queimaram os meus. – A magia antiga foi levada até Neferet, e ela descobriu que podia ostentá-la. Assim como ela foi levada a você e ostentada por você.

– Tudo bem, mas eu não gosto de ser comparada com a Neferet – declarei.

– Ainda assim, o que tem acontecido com você desde que começou a usar a pedra da vidência é bem parecido com o que aconteceu com Neferet. Ela usa você, e enquanto o faz, a corrompe.

Senti como se eu tivesse levado um soco no estômago.

– Eu jamais serei como a Neferet!

– Você já pensou que se pudesse simplesmente controlar todo mundo à sua volta, então poderia tornar tudo melhor para os seus amigos e para si mesma? – perguntou-me Sgiach de forma direta.

– Já, mas eu não queria que nada de ruim acontecesse! Eu só queria poder fazer com que todos agissem de forma correta para acabar com toda a loucura.

– Agir de forma correta de acordo com quem? – quis saber Thanatos.

– De acordo comigo, eu acho, já que era eu que estava desejando – protestei, sentindo-me encurralada.

– Intenção! – exclamou Sgiach para mim. – A magia antiga é neutra. Ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a detém! E a intenção da Sacerdotisa não pode ser vingança, nem frustração, nem qualquer outro sentimento egoísta. A sua intenção deve ser pura e voltada completamente para o bem maior. Mesmo que isso signifique que você possa sobreviver ou não ao ser o instrumento que a magia usa.

– Estou com medo – admiti, e a Vovó apertou a minha mão, dando-me força. – E eu não sei como fazer o que vocês estão me pedindo para fazer. Eu preciso que vocês me ajudem!

– Apenas você pode se ajudar. Cresça, jovem Sacerdotisa. Mostre para nós por que Nyx escolheu lhe dar tantos dons – desafiou Sgiach. – Mas seja rápida. Você precisa comandar a pedra da vidência para termos uma chance de deter Neferet e restaurar o equilíbrio entre a Luz e as Trevas.

O olhar cortante da rainha recaiu em Thanatos.

– Grande Sacerdotisa, compreenda que Neferet precisa ser contida para que esse contágio de maldade diminua.

– Qual é o seu conselho para contê-la sem usar magia antiga? – perguntou Thanatos, fazendo com que o meu rosto ficasse quente.

Eu sabia que ela não devia ter que fazer aquela pergunta a Sgiach – eu deveria amadurecer o bastante para usar a pedra da vidência e ajudá-la.

– Procure pelos rituais e feitiços mais antigos – orientou Sgiach. – Não pense em derrotar Neferet. Isso é impossível sem a magia antiga. Pense em isolá-la, distraí-la, irritá-la. Qualquer coisa que a faça repensar suas tramoias e seus planos, qualquer coisa que a faça tropeçar e a torne mais lenta poderá ajudar vocês.

– E dar a Zoey mais tempo para descobrir o caminho para comandar a magia antiga – concluiu Vovó.

Sorri nervosamente para ela, desejando sentir tanta confiança em mim mesma quanto ela tinha.

– Tentarei o máximo que eu puder. Prometo.

– Você não pode tentar , Zoey. Tentar é perigoso demais. Você não pode fazer nada até que saiba que se livrou de tudo que há de negativo em você: medo, raiva, egoísmo, desejo de vingança, ódio, até mesmo irritação e frustração. Só então poderá comandar e controlar a magia antiga. Até lá, Aphrodite deve manter a pedra da vidência longe de você. Não precisamos ter de lutar contra duas imortais que já foram Sacerdotisas talentosas da nossa Deusa.

Eu não conseguia acreditar no que ela tinha acabado de dizer! Sgiach realmente acreditava que eu poderia virar alguma coisa como Neferet.

– Eu não sou imortal! Eu só sou uma garota que não quer ter nada a ver com magia antiga ou com aquela maldita pedra da vidência.

– Imagino que uma jovem Neferet teria dito exatamente a mesma coisa e ela também estava longe de ser “apenas uma garota” – retrucou Sgiach.

Antes que eu conseguisse me recuperar da afirmação horrível, Thanatos acrescentou:

– Eu só conheci uma outra novata que recebeu tantos dons da Deusa quanto você, Zoey Redbird, e o nome dela era Neferet.

Apertei a mão de Vovó, sentindo como se o meu mundo estivesse se ruindo sob os meus pés.

– Agora, eu tenho que cuidar da minha própria enchente – declarou Sgiach. – Confio em você, Zoey. Acredito que encontrará uma maneira de trazer as forças da magia antiga com você na sua batalha pela Luz. Até que eu a veja novamente, abençoada seja.

Então a conexão via Skype foi desligada, deixando a câmara no mais absoluto silêncio.

– É claro que tudo isso é culpa sua – disse Aphrodite para Kalona, antes de se dirigir a mim, acrescentando: – Se você começar a me chamar de Frodo, eu vou ficar puta da vida.

– Sem querer ser cruel nem nada, Aphrodite, mas você está sendo um Frodo para Z. – declarou Stevie Rae.

– Se isso fosse verdade, então você seria um Sam [*] gordo e baixo – retorquiu Aphrodite.

– Uma adolescente? – soou a voz de Marx atrás de nós. – Por que o equilíbrio de poder entre o bem e o mal tinha que estar nas mãos de uma adolescente?

Franzi o cenho para ele.

– Há meses eu me pergunto a mesma coisa – comentou Kalona.

– Devo insistir que nos atenhamos a questões produtivas apenas! – cortou a voz de Thanatos, fazendo com que Marx e Kalona baixassem a cabeça.

– Na verdade – comecei eu, hesitante –, a pergunta do detetive Marx me fez parar para pensar.

– Eu não quis ser tão grosseiro – insistiu Marx.

– Ah, eu sei – respondi. – O que você disse não foi grosseiro, apenas verdadeiro. Por que o equilíbrio entre o bem e o mal deveria depender de mim? – Eu me apressei para continuar, não querendo que os meus pensamentos fossem interrompidos. – Talvez não seja eu, nem mesmo nós, o que é tão importante. Sgiach disse que a magia antiga é o que importa. Basicamente, eu sou apenas o canal para ela; por algum motivo, que nenhum de nós conseguiu entender, ela funciona através de mim. Então, como disse, não sou eu que sou importante. É a magia.

– Aonde você quer chegar, Zoey Passarinha? – perguntou Vovó.

– Bem, a magia antiga também responde a Sgiach. Thanatos, Lenobia, por favor, corrijam-me se eu estiver errada, mas Sgiach não é a personificação da sua ilha?

– Ela é sim – respondeu Thanatos, e Lenobia assentiu, concordando.

– A magia antiga está na terra – disse Vovó, empertigando-se na cadeira. – Assim como os nossos ancestrais Cherokees acreditavam.

– Oklahoma tem poder antigo em sua terra vermelha – declarou Kalona. – Eu sei disso. Esse poder me atraiu para cá não muito tempo depois que fui criado e, novamente, depois da minha Queda.

– E ele o conteve por séculos – completou Thanatos.

Kalona contraiu o maxilar, mas assentiu.

– Sim.

– No dia em que fui Marcada, fugi para a sua fazenda, lembra, Vovó? – A minha voz estava ficando menos hesitante à medida que os meus pensamentos encontravam um caminho para seguir. – Eu desmaiei tentando encontrá-la.

– Eu me lembro – disse Vovó. – Foi a primeira vez que Nyx apareceu para você.

– Isso! Ela me disse que eu deveria ser os seus olhos e ouvidos no mundo em que eu estava lutando para encontrar o equilíbrio entre o bem e o mal.

– Mesmo naquela época a Deusa estava nos alertando através de você – declarou Thanatos.

– Parece que demoramos muito para compreender – disse Stevie Rae.

– Não só vocês, gente – respondi. – Eu também. Acho que não entendi realmente o que Nyx estava querendo me dizer até este momento. Prestei atenção principalmente à parte em que ela dizia que a Luz nem sempre era boa e que as Trevas nem sempre eram o mesmo que o mal. Acreditei que Nyx estava me avisando para ficar atenta a Neferet, porque ela era tão linda por fora, mas completamente podre por dentro.

– Faz sentido – concordou Aphrodite.

– Totalmente – reforçou Stevie Rae.

– É, mas veja o que mais Nyx disse. Lembro-me de que ela disse que eu era especial, a sua primeira U-we-tsi-a-ge-ya V-hna-I Sv-no-yi

– Filha da noite – traduziu Vovó por mim.

– Mas isso não foi tudo o que ela disse. Nyx afirmou que eu era especial por causa do meu sangue antigo combinado com a minha compreensão do mundo moderno.

– E o seu sangue carrega consigo o poder das Sábias Cherokees – disse Vovó. – As mulheres que tiravam a sua força da terra.

– Desta terra – completou Thanatos.

– Oklahoma é o lugar onde a Trilha de Lágrimas terminou – declarou Vovó.

– E para onde fui atraído, assim como Neferet – disse Kalona. – Não podemos esquecer que Zoey carrega dentro de si um pedaço da alma de A-ya, a virgem formada nesta terra.

Eu não queria pensar muito, mas rapidamente acrescentei:

– Também foi onde Aurox foi criado pelo sacrifício de sangue da minha mãe com o poder tirado da terra pela minha avó.

Marx franziu as sobrancelhas.

– Aurox?

– Eu sou Aurox – disse ele, saindo das sombras.

– Espere um pouco – pediu Marx. – Você nem tem uma lua crescente na testa. Achei que você fosse apenas um cara que era o consorte da Grande Sacerdotisa.

O pensamento de Aurox sendo o consorte de Thanatos fez o meu rosto queimar de vergonha.

Aurox me ignorou e lançou um olhar questionador para Thanatos. Ela fez um breve aceno com a cabeça e ele se virou para encontrar o olhar de Marx. Soando forte e seguro, disse:

– Eu não sou humano nem vampiro. Sou um receptáculo criado pela magia antiga cujo propósito eram a vingança e a destruição.

– Mas que foi criado com uma alma. E, tendo recebido a capacidade de escolher, você optou por se desviar da vingança e destruição – completou Vovó.

– Caramba, isso quase parece bom! – disse Marx, analisando Aurox com cuidado. – Se ele tem esses poderes da magia antiga, será que não pode nos ajudar a lutar contra Neferet?

– A parte da luta não é importante – disse eu, sem olhar para Aurox. – É a parte da criação; ele, assim como eu, veio para cá com o sangue que data de gerações nesta terra.

– Precisamos usar o poder da terra para lutar contra Neferet, pelo menos até Zoey conseguir lidar com a pedra da vidência – disse Aphrodite.

– Aiminhadeusa! Eu tenho a resposta. – Shaunee ergueu a mão. – Desculpem-me, não queria interromper, mas acho que sei o que vocês devem fazer!

– E o que é, Shaunee? – perguntou Thanatos.

Ela baixou a mão, falando rapidamente:

– Sgiach nos disse para procurar os feitiços e rituais mais antigos a fim de confundir Neferet. Você disse que precisamos impedi-la de se espalhar. Está bem na nossa cara! Thanatos, você até nos deu uma aula sobre isso no outro dia.

– Shaunee, será que você poderia ser mais clara? – pediu Thanatos.

– Nós podemos usar o Ritual de Proteção de Cleópatra! Podemos fazer com Tulsa o que foi feito em Alexandria! – exclamou Shaunee, animada.

– Eu não faço a menor ideia do que ela está falando – disse Marx.

– Eu faço – declarou Lenobia.

– Assim como todos nós deveríamos saber – disse Thanatos. – Mas nós também deveríamos saber que o feitiço de Cleópatra exige que a Grande Sacerdotisa que o invoca fique isolada, jejuando e orando por três dias.

– No ritmo que Neferet está matando, não temos três dias – declarou Marx, sombrio.

– Mas nós temos o poder da terra – disse eu. – Será que não podemos usá-lo para acelerar o feitiço e fazê-lo funcionar?

– Ideia interessante – elogiou Thanatos. – O feitiço teria de ser invocado de um lugar de poder extraordinário o mais próximo possível do Mayo. E a sacerdotisa que invocar o feitiço e fizer o ritual teria de se manter isolada e no local em meditação e oração, mantendo a sua intenção determinada e verdadeira.

– Não vou ser eu – disse eu. – E não estou dizendo isso porque estou reclamando de não ser madura o suficiente ou Grande Sacerdotisa o suficiente. O que quero dizer é que tenho que resolver esse lance da pedra da vidência e estar livre para usá-la contra Neferet assim que eu descobrir como.

– Concordo, Zoey. Eu sou a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. É o meu dever invocar o feitiço e mantê-lo enquanto o meu desejo durar – declarou Thanatos.

– O fogo é a base do feitiço de Cleópatra. Eu ficarei com você – disse Shaunee. – Pelo tempo que for necessário.

Thanatos assentiu respeitosamente para Shaunee.

– Vou gostar da sua companhia e o poder que você puder emprestar ao feitiço, filha.

– Oh, agradeça à Grande Mãe Terra! Eu sei o lugar de poder que vocês devem usar! – exclamou Vovó, batendo com a palma da mão na mesa para pontuar as suas palavras. – O Council Oak Tree. Seu poder ancestral reinou nas Terras Isoladas por séculos, e fica a uma curta distância do Mayo Hotel.

– Lenobia, Aphrodite, Zoey, Stevie Rae, Shaunee, o que vocês acham? Vocês concordam com Sylvia Redbird? – perguntou Thanatos.

– Eu concordo – respondeu Lenobia.

– Eu também – disse Shaunee.

– Idem – concordou Stevie Rae.

– Parece um bom plano – assentiu Aphrodite.

Encontrei o olhar da Vovó e vi a sabedoria, o amor e a verdade.

– Com certeza – afirmei.

– Então vamos descansar. No crepúsculo, o círculo de Zoey vai até o lugar de poder, e, enquanto o sol se põe, eu vou preparar o ritual de proteção e invocar o feitiço, e que Nyx nos dê força. Pois assim nós escolhemos; que assim seja.

[*] Sam é o apelido do personagem “Samwise Gamgee” da obra O Senhor dos Anéis , escrita por J. R. R. Tolkien. (N.E.)


13

Zoey

– Stark, você viu a Nala?

– Não. Venha para cama. Ela deve estar ocupada com os outros gatos avisando para os ratos locais que os gatos estão de volta – respondeu ele, sonolento, e batendo com a mão no lugar ao seu lado na cama.

O sol tinha nascido havia pouco mais de uma hora, e Stark estava se enfraquecendo rápido.

– Mas a Nala sempre dorme comigo.

– Não dorme não. Às vezes, ela dorme com Stevie Rae. – Ele deu um bocejo enorme. – Pare de se preocupar e venha aqui. Você está nervosa desde a reunião do Conselho. Você vai descobrir como usar a pedra da vidência. Sei que vai. Ficar preocupada o tempo todo não vai ajudar em nada. Deite-se que eu vou fazer uma massagem.

Olhei para ele e sorri. Além de amar muito quando ele massageava os meus ombros, ele estava totalmente fofo e sexy com o cabelo despenteado e o olhar sonolento. Além disso, ele estava certo. Preocupar-me não me ajudaria a descobrir como usar aquela estúpida pedra da vidência. Cedendo, eu me deitei na cama de costas para ele e depois gemi de puro prazer quando seus dedos fortes começaram a massagear os nós de estresse que tinham se formado nos meus ombros.

– Acho que você deve ser perfeito – declarei.

– Viu só? Quanto menos se preocupa, mais esperta você fica – respondeu ele, bocejando de novo.

– Ei, eu estou bem. Pode dormir agora.

– Eu sei que você está bem, mas vai ficar melhor se ficar quietinha e me deixar cuidar dos seus ombros.

Ele beijou a minha nuca.

– Tudo bem, mas você pode desistir na hora que quiser – disse eu, relaxando sob o seu toque.

– Z., eu nunca vou desistir de você. Você sabe disso.

Ele deu mais um beijo na minha nuca, e eu suspirei feliz.

– Eu amo você.

– Também amo você – respondeu ele.

Quando suas mãos pararam, eu estava relaxada, aquecida e cansada. Fechei os olhos, sorrindo, e adormeci.

Por cerca de dois minutos. Então, os meus olhos se abriram e eu me sentei, aguçando os ouvidos.

– Você ouviu alguma coisa? – perguntei para Stark.

Ele murmurou algo que pareceu ser:

– Gato... Tudo bem... pare de se preo...

Então, ele se virou, puxou as cobertas até o ouvido e começou a roncar baixo.

– Nossa, isso que é um Guerreiro – resmunguei.

Então, bocejei e me espreguicei. Eu realmente precisava voltar a dormir. O meu alarme já estava programado. Nós tínhamos que nos levantar e nos apertar na van da escola sem janelas e seguir o caminho até o Council Oak Tree antes do crepúsculo. Quem poderia saber que tipo de loucura Neferet cometeria diante de um feitiço de proteção. Inferno, ela já estava...

Então, ouvi novamente e soube exatamente o que havia me acordado. Era um som baixo, definitivamente era o ronronar de um gato.

E não havia nenhuma bolinha de pelo laranja encolhida aos pés da minha cama!

Vesti minha calça jeans e peguei meus sapatos da forma mais silenciosa que pude, andando de meia, na ponta dos pés, até a porta. Sem fazer nenhum barulho, me concentrei em pensamentos felizes, abri a porta e fui para o corredor. Desci rapidamente para o andar de baixo e passei pela sala comunal deserta do dormitório e saí, piscando quando os raios de sol atingiram os meus olhos, causando uma ardência. Eu não ia voltar mesmo para pegar os óculos de sol, então protegi os olhos com a mão e chamei:

– Nala! Gatinha! Nala-Nala, venha aqui!

Então, prendi a respiração e agucei os ouvidos.

Ouvi o som de novo! Era definitivamente um ronronar. E, definitivamente, parecia que o gato estava com algum tipo de problema. Não dava para saber se era a Nala ou não, mas eu sabia que o som vinha de algum lugar perto do muro da escola que dava para a direção leste.

Coisas ruins sempre acontecem lá! Corri apressada, contornando os dormitórios e me dirigindo para o muro, chamando.

– Psiu-psiu! Gatinha! Aqui! Nala!

O gato continuou ronronando. Eu me dei conta de que aquilo era bom e ruim. Bom, porque eu poderia seguir o som do seu miado. Ruim, porque quanto mais perto eu chegava, mais sofrido o gato parecia.

O ronronado seguinte fez o meu estômago se contrair. Eu estava perto o bastante do carvalho partido para saber que o gato estava definitivamente em algum lugar no alto daquela árvore. Ah, que droga! Por que é que tinha de ser aquela árvore? A árvore que Kalona partira em duas quando escapara da sua prisão na Terra, a árvore onde Jack morrera, a árvore em que eu vira as criaturas nojentas da magia antiga.

Diminuí o ritmo quando me aproximei da árvore de aparência assustadora. Tudo bem, eu gosto de árvores. Eu realmente gosto. Tipo assim, eu amo a Bosque da Deusa no Mundo do Além. Eu amo a minha afinidade com a Terra, mesmo que não esteja tão em sintonia com ela quanto estou com o espírito, mas ainda assim... Normalmente, eu não tenho problemas com árvores.

Esta árvore é diferente.

A caverna de Kalona ficava ali embaixo, e o jeito como ela se abria em duas fazia com que se parecesse com os ossos de um monstro, congelado na morte, agachado na sua abertura. Todas as outras árvores do campus se erguiam verdejantes. Não esta. Ela era negra e sem folhas, malévola e partida. Seus galhos formavam mais garras do que eu poderia contar.

– Miau-miau!

– Nala!

Eu a peguei nos meus braços e beijei o seu nariz úmido. Ela, é claro, espirrou em mim.

Eu ainda estava abraçando Nala quando ouvi um segundo gato e olhei para baixo.

– Cammy? – Ele se enroscou em mim e se esfregou nas minhas pernas, deixando pelos louros espalhados na minha calça. – Aposto que Damien não sabe que você está aqui fora. Você deveria estar encolhido junto com a Duquesa e ele em um sono profundo.

– Miaaaaaaau!

Aquele miado eu conhecia sem nem ver o animal branco que o emitira. Olhei por cima da base despedaçada da árvore e, com certeza, lá estava uma gata gigantesca com cara achatada e pelos brancos, cheia de atitude.

– Malévola, Aphrodite não ficaria nem um pouco satisfeita de você estar aqui aterrorizando os outros gatos. – Fiz uma pausa. – Bem, isso provavelmente é mentira. Mas ainda assim... Você deveria tentar não ser tão parecida com ela. Nossa, o que é que você acha...

Então, as sombras ao redor da árvore se moveram e eu percebi que o carvalho antigo e assustador estava completamente cercado pelos gatos da Morada da Noite.

Abracei Nala, enquanto sentia um frio gelado descer pela minha espinha.

– Mas o que é que está acontecendo aqui?

– Isso é o que eu gostaria de saber.

A voz de Aurox me assustou fazendo com que eu apertasse Nala forte demais e, com um grunhido zangado, ela pulou dos meus braços e se juntou aos outros gatos em volta da árvore.

– Você fez esses gatos virem até aqui?

– Eu? – Meneei a cabeça. – É claro que não. E se você soubesse qualquer coisa sobre gatos, entenderia que não se pode obrig á-los a fazer nada.

– Eu não sei muita coisa sobre gatos – declarou ele.

– Bem, tudo o que eu fiz foi seguir um grunhido horrível que, na verdade, me acordou. Achei que fosse Nala, mas ela parece estar bem.

– Grunhido? Mas que grunhido? Tudo que ouvi foi você conversando com os gatos.

Eu franzi as sobrancelhas para ele e abri a minha boca para explicar o óbvio – que alguma coisa tinha me atraído até ali e que havia alguma coisa de errado com os gatos e com ele também. Tipo assim, ele não precisava ser tão frio e rude sempre que se importava em falar comigo, mas o gato me interrompeu.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – O miado patético pareceu se estender por muito tempo.

– Está vindo lá de cima, da árvore.

Protegi os olhos com a mão e espiei por entre os galhos quebrados.

– Lá! – Aurox apontou. – Estou vendo!

Segui o dedo dele e vi também. Lá, bem no alto, nos galhos do topo da árvore, estava um gato realmente grande. Era um gato malhado de laranja e branco com pelos longos. Não era do mesmo tom de laranja forte de Nala. A cor daquele gato era mais suave, como se o laranja tivesse sido diluído com creme. Ele parecia familiar, e eu apertei os olhos, tentando me lembrar quem era seu dono, quando vislumbrei os seus olhos. Eram de um verde amarelado surpreendente, com um brilho inteligente.

– Que merda! Aquele é Skylar! O gato de Neferet! – disse eu.

– O gato de Neferet? Mas o que ele está fazendo aqui? Ele não deveria estar com ela?

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – berrou Skylar enquanto o vento fazia os galhos estremecerem sob ele, que tentava se manter firme.

– Ele vai cair – disse Aurox, movendo-se tão rápido que os gatos se espalharam.

– Ei, tome cuidado. Skylar é conhecido por morder. Sério, Aurox. Os gatos costumam refletir a personalidade do novato ou do vampiro que escolhem, e nós todos sabemos que Neferet é...

– Zo, eu não posso simplesmente deixá-lo cair.

E isso me fez calar a boca. Ele não apenas soou como Heath, mas estava fazendo uma coisa muito burra e doce e muito parecida com que Heath faria. É claro que ele provavelmente ia causar uma confusão tão grande quanto Heath teria feito, mas não havia muito mais o que eu pudesse fazer, a não ser esperar e tentar resolver a confusão. E pensar. Hmmm .

– Ei! – chamei, enquanto ele escalava a árvore feito um macaco. – Bem, nunca ouvi falar disso, mas talvez se o vampiro de um gato fica mau, talvez ele cometa suicídio ou algo assim. Skylar deve estar aí em cima porque a Neferet ficou desvairada e ele não consegue lidar com isso.

– Eu não vou deixar ninguém cometer suicídio no meu turno, seja um novato, um vampiro, um humano irritante... Nem mesmo um gato com fama de mordedor.

– Tudo bem. Espero que Nyx esteja com você.

– Eu também.

– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – gritou Skylar enquanto Aurox se agarrava em alguns galhos que o mantinham, acrescentando um som horrível e baixo enquanto ele tentava se afastar.

– Tente falar com ele. De forma suave, como os gatos gostam, tipo gatinho.

– Tipo gatinho? O que é isso?

– Caraca, ele está acabado – disse eu para Nala. Ela espirrou e pareceu concordar comigo. Os outros gatos estavam todos olhando para Skylar, como se estivessem ali para testemunharem algo. Eu não fazia a menor ideia do que dizer para Aurox.

– Hum, tente conversar com ele. Eu me lembro de que ele é muito inteligente.

– Tudo bem. Vou tentar.

Aurox subiu mais um pouco de forma a se sentar praticamente na mesma altura em que Skylar se encontrava. Eu ouvi quando ele limpou a garganta e, então, com uma voz completamente normal, que ele usa em uma conversa do dia a dia, começou a falar com o gato:

– Merry meet , Skylar. Pelo que soube, você tinha uma ligação com Neferet. Eu também já tive, então posso imaginar como você deve estar se sentindo. Ela também me magoou. Ela continua machucando os outros. Não posso permitir que você se machuque. Eu escolhi proteger esta escola e você faz parte desta escola.

O que aconteceu em seguida foi uma das coisas mais loucas que eu já vi – e olha que eu definitivamente já vi coisas muito loucas. Skylar inclinou a cabeça para o lado como se estivesse ouvindo Aurox.

– Skylar – continuou Aurox com voz solene –, eu vou protegê-lo, mesmo que seja de você mesmo.

Então, Aurox estendeu a mão.

Lentamente, Skylar se alongou em direção a ele até que pudesse ser tocado por Aurox. Prendi a respiração, esperando que o grande gato começasse a berrar novamente e batesse com a pata na sua mão. Mas não foi isso que ele fez. Na verdade, Skylar farejou a mão de Aurox, parou e, então, começou a esfregar o seu queixo contra a mão dele. Mesmo de onde eu estava lá embaixo, dava para ver o sorriso iluminar o rosto de Aurox quando começou, hesitante, a fazer carinho no gato. Skylar parou por um instante e virou a cabeça, analisando Aurox novamente.

– Você pode escolher não permitir que as Trevas de Neferet destruam a sua vida – insistiu Aurox em tom sincero enquanto acariciava o queixo de Skylar.

Sem mais hesitação, Skylar foi na direção dos braços de Aurox.

E todos os gatos em volta da árvore partida começaram a ronronar.

Quando Aurox chegou ao chão, ele estava segurando Skylar bem junto de si. O gato parecia estar abraçado a ele, e sua cabeça fofinha estava aninhada sob o queixo de Aurox. Quando ele se aproximou de mim, ouvi Skylar ronronando.

– Aconteceu algo lá em cima – contou Aurox, com os olhos brilhando.

– É. – Eu funguei e enxuguei o rosto com a manga da camisa. – Skylar escolheu você. Vocês agora pertencem um ao outro.

Aurox olhou para Skylar, acariciando o gato com movimentos longos a amorosos. Skylar não abriu os olhos. A não ser pelo fato de que estava ronronando loucamente, parecia ter adormecido.

– Zo, ele é demais!

Sorri entre as lágrimas.

– Com certeza é.

Aurox olhou para mim. Então, automaticamente enfiou a mão no bolso da calça jeans e me deu um Kleenex.

– Você está com nariz escorrendo de novo.

– Com certeza – respondi.

Seus olhos encontraram os meus. Ele os afastou depressa, mas não antes de eu ver o sofrimento da sua expressão.

– Sinto muito. Eu não deveria tê-la chamado de Zo.

– Você pode me chamar do jeito que quiser.

Seus olhos encontraram os meus de novo e eu vi um brilho de raiva cruzar o seu rosto.

– Não seja legal comigo porque acha que eu sou Heath.

– Que merda, Aurox, eu estou sendo legal com você porque gosto de você! Você salvou a minha avó. Você está segurando um gato supercruel que acabou de salvar. VOCÊ É UM CARA LEGAL! – Parei de falar para controlar o meu tom de voz antes de terminar. – É por isso que estou sendo legal com você.

– Eu gostaria que isso fosse verdade – disse ele.

– Aurox, eu juro que só vou dizer a verdade para você. Tenho muita merda pessoal para lidar agora para acrescentar mentiras à minha lista.

– Você está sendo sincera, não está?

– Estou. – Enxuguei o rosto e funguei. – Valeu pelo lencinho.

– Não há de quê.

– Você tem coisas de gato no seu quarto?

Ele hesitou, e então disse em tom suave:

– Eu não tenho um quarto.

– Onde você dorme?

– Eu não durmo.

Aiminhadeusa! Ele nem é humano! Senti o choque daquilo, e a lembrança de como ele ficava quando se transformava em touro passou pela minha mente. De forma resoluta, afastei o pensamento.

– Bem, você vai precisar de um quarto agora. Esse gato precisa de um lugar para dormir, comer e... hmm, você sabe alguma coisa sobre caixas de areia?

– Hã?

Sorri para ele.

– Venha comigo. Kalona também não dorme. Vamos encontrá-lo. Ele pode arrumar um quarto para você, comida de gato e uma caixa de areia.

– Chamei Nala e ela, na verdade, veio para mim, pulando nos meus braços. Notei, então, que os outros gatos tinham desaparecido.

– Você acha que Kalona sabe lidar com gatos? – perguntou Aurox enquanto caminhávamos juntos.

– Aposto que sim. Ele costumava ser um guerreiro de Nyx, e gatos constituem uma grande parte do Mundo do Além. A Deusa ama gatos.

O rosto de Aurox ficou sem expressão e ele perguntou:

– Zo, você acha que o fato de Skylar me escolher pode significar que Nyx se importa comigo? Mesmo que só um pouco?

– Pode apostar.

Isso foi tudo que consegui dizer antes de a minha garganta se fechar com as lágrimas, e Aurox me dar outro Kleenex.


14

Kalona

– Tudo bem, eu tenho que dizer para você que aquilo tudo foi muito estranho? Você também achou? – perguntou detetive Marx para Kalona.

Ele estava caminhando ao lado do imortal alado quando ambos deixaram o dormitório dos garotos e saíram para o sol forte e bonito do meio-dia.

Kalona ergueu as sobrancelhas e lançou um olhar de esguelha para o detetive. Não estava acostumado a conversar de forma leve com ninguém – principalmente com humanos. Nem com alguém que não o julgava como monstro por causa do seu passado. Ele me trata como se fôssemos companheiros de batalha , percebeu Kalona com um sobressalto incomum de surpresa.

E foi com outro sobressalto de surpresa que o imortal alado se deu conta de que realmente gostava da companhia do detetive.

– Estranho? Ver um gato de uma vampira imortal e louca escolher uma criatura criada a partir de magia antiga para ser uma arma das Trevas, e, então, ter que explicar para a referida criatura, que parece exatamente como um garoto confuso, como alimentar e limpar uma caixa de areia? – debochou Kalona. – Detetive, acho que “estranho” não é uma palavra forte o suficiente para descrever o que acabou de acontecer.

– Que bom ouvir isso!

O detetive deu um tapa no ombro de Kalona em um gesto amigável. Kalona teve de apertar os dentes por causa da dor que atravessou o seu corpo quando o gesto inocente de Marx abriu um ferimento ainda não curado. Kalona emitiu um grunhido que refletia concordância, e não desconforto.

Ignorando qualquer outra coisa a não ser a conversa que estavam tendo, Marx riu e continuou:

– É, teve uma hora lá, quando o garoto estava acariciando o queixo do gato gigante, que eu tenho quase certeza de que os seus olhos começaram a brilhar.

– Os do gato ou os do garoto? – brincou Kalona, ignorando a dor prolongada.

– Os do garoto. Os olhos dos gatos também podem brilhar? – Marx meneou a cabeça. – Não, não me diga. Agora eu compreendo por que a minha irmã diz que algumas coisas vampíricas são zona proibida para humanos. Não faz bem para a nossa cabeça. Pode nos enlouquecer.

Kalona riu.

– Acho que isso tem mais a ver com a estranheza dos nossos tempos do que com a habilidade dos humanos em compreender o anormal.

– Talvez você esteja certo. Estamos vivendo uma época muito estranha.

Eles caminharam juntos sem falar, embora Kalona não sentisse que o silêncio era pesado. Eram apenas dois homens responsáveis por proteger aqueles que lhe eram caros.

É assim que se deve fazer parte de uma família. Eu gosto desse sentimento! O pensamento chegou à sua mente de forma espontânea, e ele não sabia o que fazer com ele. Como é que a Morada da Noite se tornara a sua família? Kalona não fazia ideia, mas até mesmo Zoey Redbird, a novata que ele tentara seduzir primeiro para depois destruí-la, começou a confiar nele o suficiente para procurá-lo em busca de conselhos e ajuda para Aurox quando o felino de Neferet escolheu o receptáculo como seu familiar.

Assim, Kalona teve o seu terceiro sobressalto de surpresa.

– Pode deixar pra lá. Eu não queria perguntar. A minha irmã vive me dizendo que é um péssimo hábito que adquiri desde que me tornei detetive.

Kalona tentou se recompor mentalmente.

– Desculpe, eu estava pensando em outra coisa. Você me perguntou algo?

– Perguntei, mas era pessoal demais, principalmente considerando quem você é. Esqueça... Preciso dormir um pouco antes da loucura começar de novo – disse Marx depressa.

– Você pode me perguntar o que quiser. Nós lutamos contra as Trevas juntos. Deve haver confiança entre nós.

Chegaram ao dormitório das garotas, e Marx parou apoiando-se no corrimão da escada que dava para a varanda de entrada.

– Tudo bem, então. Eu só estava me perguntando por que Nyx não desce dos céus e detém, ela mesma, Neferet. Ela é a ex-Grande Sacerdotisa da Deusa. Acho que Nyx deve estar puta da vida pelo modo como está usando o seu poder de forma errada.

– Em primeiro lugar, Nyx não mora nos céus, ou, pelo menos, não nos céus da civilização ocidental moderna.

– Certo, desculpe. Eu esqueci. Minha irmã me explicou essa parte há alguns anos. Nyx mora no Mundo do Além, certo?

– O Mundo do Além é o reino de Nyx. Está correto.

– E você já esteve lá?

– Durante éons, aquele foi o meu reino também – contou Kalona devagar, desacostumado a falar sobre a Deusa ou o Mundo do Além.

– Desculpe-me se estou sendo intrometido. Eu vou parar por aqui e...

– Eu não me importo de falar sobre isso – respondeu Kalona, dando-se conta de que estava dizendo a verdade.

– Então, você conhece Nyx muito bem.

Kalona inspirou e expirou longamente várias vezes. A resposta para a pergunta do detetive era tão simples quanto desoladora.

– Eu conhecia a Deusa bem. Muito bem.

– Ah, entendi. No passado. – Marx parecia estar pensando em voz alta. – Isso pode explicar o que está acontecendo. Nyx mudou desde a época em que se conheceram. Talvez ela tenha perdido o interesse no mundo moderno. E quem poderia culpá-la? É por isso que ela está deixando que Neferet escape, mesmo tendo corrompido o poder concedido pela Deusa e ferindo não apenas humanos, mas novatos e vampiros também.

– Isso não é verdade. A nossa Deusa não perdeu o interesse em nós.

Kalona desviou o olhar de Marx e viu Shaunee caminhando pela calçada em direção a eles, carregando um gato cinza nos seus braços. Ela usava óculos escuros e um gorro que escondia o seu rosto; estava claro que a luz do sol a incomodava. Ela deve estar perto de completar a Transformação , pensou Kalona e, então, percebeu que a ideia de Shaunee passar pela Transformação e se tornar uma Sacerdotisa vampira lhe provocava um sentimento muito próximo de orgulho.

Esse pensamento fez com que sua voz ficasse brusca:

– Shaunee, você deveria estar no seu quarto, dormindo. A luz do sol não lhe faz bem.

– Eu estou indo para a cama. Só tinha que encontrar Beelzebub. Mas antes de eu ir, quero deixar algo muito claro para o detetive Marx. – Ela pousou seus olhos castanhos no detetive. – Nyx não perdeu o interesse em nós – repetiu ela.

O olhar de Marx passou para Kalona e, depois, voltou para Shaunee. Antes que pudesse responder, a novata recomeçou a falar:

– Não procure Kalona para obter respostas sobre Nyx. – Ela lançou um olhar de desculpas para o imortal. – Isso vai soar cruel, mas não estou fazendo isso de propósito. – Ela voltou a atenção para Marx antes de continuar. – Kalona caiu . Isso não faz dele uma testemunha perita em Nyx, detetive. Se você tem perguntas sobre a nossa Deusa, faça-as a mim. Eu converso com ela todos os dias, e, às vezes, ela até me responde.

– Tudo bem, então. Você pode explicar por que Nyx permitiria que Neferet causasse tanta dor e tanto sofrimento, assistindo a tudo sem fazer nada a respeito? Ela concedeu a Neferet os dons que permitiram que ela acumulasse tanto poder. Por que Nyx pelo menos não revoga os seus dons? Isso faria sentido. Não fazer nada não faz sentido para mim. Digo isso com todo o respeito pela sua Deusa, mas as ações dela não parecem a de uma divindade amorosa.

– Nyx não tirará os dons de Neferet, nem os dons de qualquer um de nós porque ela ama de forma incondicional e sempre mantém a sua palavra, mesmo quando não cumprimos a nossa e a traímos – explicou Shaunee.

Kalona cruzou os braços e fingiu desinteresse, embora não se mexesse – nem respirasse, apenas ouvisse.

– E ela não desce e salva o dia porque ela nos ama tanto que sempre nos dará o livre-arbítrio. – Ela fez uma pausa e, depois, perguntou: – Você tem filhos, detetive Marx?

– Tenho. Duas filhas. Uma de nove e outra de onze.

– E se você nunca permitisse que elas cometessem erros? Ou, melhor ainda, e se você permitisse que cometessem erros, mas, então, interviesse e resolvesse todas as consequências por elas?

– Acho que eu estaria criando uma dupla de meninas mimadas – respondeu ele.

– Que tipo de mulher você acha que elas se tornariam? – perguntou Shaunee.

– Egoístas e irresponsáveis. Se elas crescessem.

– Exatamente! – Shaunee sorriu. – Como nós poderíamos aprender, crescer e evoluir se Nyx nos resgatasse das nossas decisões erradas? Ou se parasse de permitir que tomássemos as nossas próprias decisões, boas ou ruins?

Kalona não conseguiu ficar em silêncio por mais tempo.

– Seria mais fácil se Nyx resolvesse tudo! Eu ainda a conheço bem o suficiente para assegurar a você que a nossa Deusa seria benevolente e bondosa. E isso é mais do que qualquer um de nós pode garantir em relação ao público em geral, sejam vampiros ou humanos.

– Se Nyx resolvesse tudo, os poderes da Luz e das Trevas ficariam desequilibrados para sempre – disse Shaunee.

– A Luz venceria! Não é esse o objetivo? – perguntou Kalona.

– Aiminhadeusa! Será que não percebe o que está pedindo?

– Sim! Estou pedindo paz! O fim do desejo por carnificina e do derramamento de sangue, da traição e da destruição.

– Não! – argumentou Shaunee. – Você está pedindo o fim do livre-arbítrio. Nós nos transformaríamos naquelas pessoas gordas e flutuantes do filme Wall-E , ou pior.

– Que língua você está falando?

– Eu sei do que ela está falando. É um filme da Pixar. Ela quer dizer que nós nos tornaríamos idiotas preguiçosos e sem motivação. – Marx coçou o queixo. – Na verdade, acho que ela talvez esteja certa. Você tem ido a alguma feira estadual?

Então, o detetive riu da própria piada, que não fez o menor sentido para Kalona.

Shaunee não piscou. Ela nem sorriu para Marx. Seu olhar sombrio pousou em Kalona.

– Você não vai conseguir se aproximar de Nyx dessa forma. Você tem que abandonar esse problema de controle e escolher realmente acreditar, de forma sincera, e amar de verdade. – Então, ela deu um beijo na cabeça do gato cinza adormecido em seus braços. – Então, isso responde às suas perguntas, detetive Marx?

– Não a todas, mas o suficiente por ora – respondeu ele.

– Ótimo! Vou pra cama. Vejo vocês no crepúsculo.

Ela subiu a escada e desapareceu no dormitório das garotas.

– Também vou dormir. Thanatos disse que eu poderia usar um beliche na casa dos professores. Você parece cansado. Você vem também?

– Não. Vou assumir o turno de Aurox e vigiar o perímetro – disse ele.

– Turno dobrado. Esses são difíceis. Você quer companhia?

Kalona olhou para o detetive. A pele sob os seus olhos estava ferida e seus passos, arrastados.

– Talvez numa próxima. Mas obrigado por se oferecer.

– Sem problemas. Tenha cuidado lá fora. Como a garota disse, vejo você no crepúsculo.

Kalona assentiu e começou a caminhar para o muro mais distante da escola, tentando, sem sucesso, não ouvir novamente as palavras de Shaunee ecoando em sua mente.

Lynette

– As fantasias estão péssimas! – disse Neferet enquanto meneava a cabeça e lançava um olhar de raiva para o grupo de pessoas trêmulas que Lynette escolhera para usar o que deveriam ser roupas dos anos vinte.

Se tudo, ou mesmo qualquer coisa , estivesse normal, Lynette teria dito que o seu último evento tinha passado por alguns problemas. Na insanidade em que o seu mundo se transformara, Lynette decidiu que o seu último evento era um colete cheio de explosivos de um homem-bomba prestes a explodir – e era ela quem estava usando o maldito colete.

– Deusa, você se lembra das duas coisas de que eu preciso? Tempo e recursos?

– Eu me lembro de tudo .

Lynette bateu palmas diante de si para que Neferet não percebesse o quanto estava trêmula. Limpou a mente e se concentrou no que fazia melhor – lidar com o cliente para que o evento fosse um sucesso.

– E é exatamente por isso que é tão bom planejar eventos para uma Deusa, e não para um humano ou um vampiro – disse Lynette.

O olhar raivoso de Neferet se suavizou com a bajulação.

– Do que você precisa que eu não lhe ofereci? Nós decidimos o tema da minha próxima adoração ontem à noite. Já está quase no crepúsculo, e tudo que eu pedi foi para dar uma olhada nas fantasias dos meus súditos enquanto eles ensaiam o Charleston. Estou certa de que Tulsa tem lojas de fantasia o suficiente e você tem acesso ilimitado aos meus recursos . Então, explique-me por que nenhuma dessas fantasias se parece remotamente com o estilo dos anos vinte?

– Tulsa tem apenas duas lojas decentes de fantasias: a Ehrle’s e a Top Hat – começou Lynette.

– Apenas duas? – Neferet suspirou. – Eu deveria ter começado o meu Templo em Chicago. Chicago está cheia de excelentes lojas. Kylee! Minha taça está vazia!

A Kybô, que era o modo como Lynette silenciosamente se referia à recepcionista robótica, apressou-se pelas escadas subindo até o local onde Neferet colocara o seu trono, enchendo novamente o líquido escarlate que nunca parecia ser o suficiente para a Deusa.

– Mas eu a interrompi, querida Lynette. Por favor, continue a explicação sobre as roupas. – Ela apontou os dedos com as unhas vermelhas para o grupo de pessoas desarrumadas esperando lá embaixo.

– Entrei em contato com os donos das duas lojas. Eles se recusaram a fazer qualquer entrega para nós.

Lynette deu a notícia rapidamente e então se preparou para a loucura.

Em vez de explodir, Neferet ficou totalmente imóvel. Em uma voz suave e pensativa, perguntou:

– E por que eles se recusaram a me atender?

– Eles explicaram que a polícia cercou todo o Mayo e que não permitem que ninguém se aproxime daqui.

Neferet bateu com uma das unhas afiadas na taça. Ela virou a cabeça em uma postura pensativa. Então, a sua expressão se suavizou e ela sorriu.

– A solução é simples. A polícia está evitando que os humanos entrem. Sua atenção está voltada para fora. Eles não vão esperar que alguém saia.

– Sair?

– Sim, bem, não vai ser qualquer um que vai sair. Será você.

Lynette se apoiou na grade de ferro.

– Eu?

– Minha querida, você está com algum problema de audição?

– N-não – apressou-se Lynette a assegurá-la.

– Kylee, sirva uma taça de vinho para Lynette. Ela está pálida. – Agradecida, Lynette tomou o vinho enquanto Neferet começava a sua explicação insana. – Será bem fácil para você. Você sairá pelos fundos, onde eles empilham aquele lixo horrendo. Pular a cerca não deve ser um problema. Você parece ter se mantido em forma. E, é claro, Judson vai acompanhá-la para ajudar com qualquer problema que possa ter. Judson, certifique-se de que a querida Lynette volte em segurança. E você carregará as sacolas de compras para ela, não é mesmo?

Judson assentiu de forma automática e respondeu:

– Sim, Deusa.

– Excelente! Vou pedir para Kylee chamar um táxi para encontrar vocês... Hum... em frente à Biblioteca Central na Fourth Street com a Dever. É longe o suficiente e não estará dentro do cerco policial, e perto o bastante para que não seja tão cansativo para você na volta. Judson vai carregar todo o peso para você.

A mente de Lynette estava a mil. Ela está mandando Judson comigo para me forçar a voltar. Mas ele não passa de um robô quando Neferet não está por perto. Talvez eu consiga escapar, principalmente quando chegarmos à biblioteca. Alguém lá poderá...

– Permita que eu esclareça uma coisa, Lynette. Judson e você não estarão sozinhos. Eu jamais pensaria em deixá-los tão vulneráveis. Vários dos meus filhos irão acompanhá-los. – A Deusa acariciou uma das coisas rastejantes que estava enrolada na sua perna. – Eles também ficarão ansiosos para se aproximarem de você, se hesitar. Então, você e Judson terão mais em comum do que imagina... Tão mais.

Lynette ordenou os pensamentos. Trabalho! Eu tenho que me concentrar no trabalho!

– Algum problema, querida? Com certeza você não discorda da minha solução.

– Honestamente, eu concordo com a parte de sair. – Lynette se concentrou na única coisa normal que sobrara do seu mundo, concentrar-se em concluir um trabalho. – A polícia não está esperando que ninguém faça isso. Mas eu me preocupo com a volta. Você mesma disse que eles estão concentrados em manter as pessoas do lado de fora.

– Você está certíssima em se preocupar. Eu me esqueço de que você não consegue ler a minha mente, porque posso ler a sua tão facilmente. A resposta para o seu problema é bem simples. Devemos esperar até o sol se pôr para você começar a sua jornada. Na volta, os meus filhos vão fazer uma cortina de neblina e magia, sombras e fumaça, para que as Trevas a ocultem.

Lynette ficou boquiaberta e manteve os pensamentos cuidadosamente em branco, sem saber o que dizer.

– Você não precisa ficar preocupada. Ficar oculta pelas trevas não machuca nem dói. Bem, eu deveria dizer que não vai machucar nem doer para você. Os meus filhos precisam ser alimentados. Nesta noite, um motorista de táxi vai ganhar mais do que uma boa gorjeta! – A risada de Neferet foi cruel e ensandecida.

Lynette ergueu a taça e tomou um grande gole.

– Agora, mande esses súditos desarrumados para os seus quartos. Da próxima vez que os vir, quero ficar encantada. – Neferet bateu as mãos depois de suas ordens, como se fosse um faraó dispensando os seus escravos. – Lynette, talvez seja melhor você trocar o seu vestido por uma calça e uma blusa escura. Eu odiaria se você ficasse acidentalmente exposta demais. Você está liberada até o crepúsculo.

– Sim, Deusa.

Lynette fez uma reverência e se afastou, trêmula, seguindo para o elevador que a levaria até o loft no quarto andar que Neferet lhe dera. Quando entrou no elevador, cobriu a boca com as duas mãos, abafando um grito que não conseguia controlar. Pela primeira vez, Lynette compreendeu que não havia como sobreviver à loucura de Neferet, que a questão não era se ela ia morrer, mas como e quando.

 

 

 


C O N T I N U A