Biblio "SEBO"
No início do século XX, uma fazenda no interior de Minas Gerais é cenário de estranhos acontecimentos. Ivo, o jovem filho do rígido fazendeiro Pedro, possui a saúde debilitada e é costumeiramente atacado por crises inexplicáveis, chegando ao desmaio. Para tentar melhorar o interesse de Ivo pela vida, sua mãe Carmen contrata Diamantina, uma bela e exímia professora de piano para, através da música, fortalecer o espírito do rapaz.
É neste ponto que a história na fazenda ganha novos rumos. Com a chegada de Diamantina, Sinhá Tina, uma ex-escrava que continua a trabalhar na região, começa a desvendar todo o mistério espiritual que envolve aquela família. Sinhá Tina é médium desenvolvida e passa, então, a colaborar no processo de cura de Ivo. Mas não será fácil... É necessário ainda enfrentar o ceticismo de Dr. Nelson, médico daquela cidade... Neste REENCONTRO DE ALMAS, O espírito João Duarte de Castro nos mostra, com clareza, quais as verdadeiras implicações da Lei de Causa e Efeito, ensinando-nos que os débitos do passado devem ser resgatados inexoravelmente para que a estrada de luz se abra em nosso caminho.
A chegada
Numa pequena estação ferroviária, onde o vaivém das pessoas leva e traz muitas esperanças, começa essa nossa história.
Início do século XX, a Maria Fumaça vai chegando, soltando pelo ar seus jorros de fumaça, decorrentes da queima da lenha, seu combustível.
A cidadezinha no interior mineiro é muito agradável e bela, com suas ruas e casarios bem pintados que denotam o capricho e a arte se fazendo presente, desde o período barroco de nosso mestre "Aleijadinho".
O lugar já fora palco de muitas brigas por causa das minas de ouro e diamantes, que fizeram de homens fortes verdadeiros escravos e loucos pelo brilho e esplendor das pedras.
Ao redor da cidade, distante aqui e ali, ainda fazendas de gado leiteiro conservam em suas lides ex-escravos que, muitas vezes, sem ter para onde ir, ficaram livres, porém trabalhando no que sabiam fazer: lidando com os animais, com a terra, com as plantações.
Igrejas forradas do mais puro requinte desde o piso até as abóbadas, onde as pinturas de figuras angelicais demonstravam os traços do divino que o artista anônimo ali quis deixar.
Seus detalhes no mais puro ouro, nos altares e aparatos, era de dar brilho ao mais insensível olhar.
Assim, vamos nos familiarizando e tendo noção de nosso ambiente, onde naquela pequena estação desembarca uma jovem,
de vestimenta simples, segurando em uma das mãos pequena mala e na outra, uma sombrinha que lhe dava um toque muito especial.
Ela descera do trem e, pelo que podia se ver, ninguém a esperava.
Notamo-lhe o olhar de apreensão, porém, quando foi deixando a estação e rebuscando na mala pequenino papel com um endereço, seu rosto foi - se transformando e, vendo a beleza do lugar, ficou radiante, calma e tranqüila.
Deveria apressar-se e assim procurar a casa da fazenda, mas algo a fazia caminhar a passos lentos como a reconhecer ruas, rostos e construções das quais, do fundo da memória, não conseguira apagar.
Diamantina, esse era o seu nome, caminhava, e, em direção contrária, vinha um rapazinho mulato, com chapéu de palha na cabeça, pés descalços, correndo ao encontro da jovem.
— Srta. Diamantina - chamou ele.
Ela, chegando mais perto, viu que o rapazinho estava lhe dirigindo a palavra e disse:
Tião conduziu Diamantina até a charrete, pegando-lhe a mala e acomodando a moça da melhor maneira possível.
No caminho para a fazenda, Tião foi contando sobre sua vida, sua família, seus patrões, e, também, sobre sua avó, com a qual morava desde que perdera os pais.
— É, moça, desculpe tocar nesses assuntos, mas foi briga feia. Mataram o pai e a mãe por causa daquelas malditas pedras. Eu não me conformo. Se não fosse pela vó, eu teria sumido desse lugar.
Diamantina o escutava, calada. No seu silêncio lembrava-se vagamente quando fora embora de uma cidade próxima, onde, também, ouro e pedras preciosas aguçavam a cobiça e a maldade nos corações.
Fora para a cidade grande, ainda garotinha. Num colégio interno, onde entre outras coisas aprendera música, era exímia pianista; entretanto, não deixou de aprender a tocar outros instrumentos.
De conversa em conversa, quando deram por si estavam diante dos portões da fazenda, onde uma ampla varanda, rodeada de flores, acolhia uma senhora muito simpática.
Diamantina desceu, e Tião pegou a mala e a acompanhou até a varanda.
Dona Carmen, a delicada senhora, pediu a Tião que levasse a mala da moça e ficou a perguntar a ela o motivo do atraso, pois já estava preocupada.
Convidando Diamantina a assentar-se em ampla sala, onde logo lhe serviram delicioso suco natural de fruta, Dona Carmen foi-lhe contando o drama que vivia e, também, familiarizando-se com a jovem que, desde o primeiro instante, muito a impressionara.
— Sabe, Diamantina, estou feliz por você ter aceitado o convite de meu marido, embora a idéia fosse minha. Conheci muito seus pais e nunca perdemos o contato, pois nossas famílias sempre se deram bem, e a amizade que nos uniu até o momento foi motivo para nós de muita alegria.
Diamantina ouvia a tudo, enquanto olhava no canto da sala grande piano, que ajudava a ornamentar o ambiente.
Dona Carmen contou-lhe sobre a aflição que tinha com o único filho, pois o rapaz, desde adolescente, apresentava problemas emocionais que até então a medicina não conseguia explicar.
— Deve ser - dizia a senhora - devido ao fato de meu marido ter um temperamento muito forte e austero. O menino foi criado em meio a muita contrariedade e discussão. Sabe como e, o poder, o dinheiro, quando mal canalizados, acabam gerando esse tipo de coisa.
Diamantina, após ouvir o que a senhora tinha para dizer, perguntou-lhe se poderia tomar um banho e depois disse que gostaria de retomar a conversa e ver no que as aulas de música, motivo pelo qual ali se encontrava, iriam ajudar o rapaz a melhorar seu relacionamento com os pais e as demais pessoas.
Tião dirigiu-se até a pequena casa, simples, singela, onde sua avó, octogenária, se encontrava sentada perto do fogão de lenha, na cozinha.
Ela era uma pessoa muito simples; na sua condição de ex-escrava, sempre trabalhara para a família de seus atuais patrões.
Revelava em seu doce semblante a sabedoria daquelas almas iluminadas que, de quando em quando, regressam ao círculo da carne, para exemplificar e ensinar através de seu exemplo e humildade, reunidos com muito amor.
Aquela velha senhora, embora muito tenha sofrido por ter perdido os filhos de morte tão violenta, ainda conservava na parede da pequena casa a bateia, instrumento de trabalho que servia como guia para encontrar o ouro e pedrarias.
Constantina, ou Sinhá Tina como era muito conhecida pelas redondezas, fazia curas extraordinárias com uma naturalidade e fé tão fortes que sua casa, fosse a hora que fosse, estava sempre aberta a atender aos aflitos do corpo e da alma.
Tião entrou sorrateiro e, com um sorriso largo, achegou-se a avó, dando lhe um afetuoso abraço.
Dizendo isso, Sinhá Tina pegou um prato e serviu bolo de fubá com café que acabara de fazer. O aroma estava delicioso, e Tião correu, refletindo sobre as palavras da avó.
Ele, apesar de jovem, percebia quanta sabedoria estava por trás daquelas palavras ditas de maneira simples, muitas vezes até de difícil entendimento, porém que saíam de uma alma pura e boa, como era a avó.
A CASA DE SlNHÁ TlNA
No quarto a ela destinado, Diamantina se preparava; depois de ter tomado seu banho e acomodado suas coisas na cômoda, assentou-se para ver pela janela do quarto a imensidão do verde que se perdia no horizonte, onde as montanhas azuis formavam lindas paisagens, como esculturas feitas pelo Criador.
Diamantina ficou por alguns instantes olhando pela janela enquanto pensava em sua missão naquele local. Começou a pensar em Tião e lembrou-se de que ele tinha comentado sobre sua avó. Sentiu muito desejo em conhecê-la. Enquanto divagava, ouviu batidas na porta do quarto.
Era Dona Carmen, convidando-a para um passeio pela fazenda. A senhora aproveitava a companhia de Diamantina para falar mais a respeito de Ivo, seu filho. Falava da preocupação que lhe corroía o peito de mãe aflita pelos padecimentos de seu único filho e herdeiro.
Nesse mesmo instante, Ivo, acompanhado pelo pai, voltava de algumas compras que haviam ido fazer na cidade: materiais para uso na fazenda, instrumentos agrícolas, adubos.
Vinham conversando sobre a chegada de Diamantina, que Ivo, por certo momento, não havia gostado muito da idéia.
— Papai, não sei por que mamãe insistiu tanto com essa história de aprender música. Não gosto de pensar em ficar horas e horas sendo ensinado por uma mulher e, além do mais, vocês sabem do meu problema. Não gostaria de dividir isso com mais ninguém -disse isso, e um tom de revolta lhe reforçava a voz.
O pai, austero, tentou desconversar, pois, em seu íntimo, não se conformava que seu único filho lhe trouxesse dissabores de saúde e emoções.
De repente, ao caminharem entre um lindo jardim em que uma bem arrumada cerca de bambus rodeava pequena casa, Diamantina perguntou a Dona Carmen:
_ Será porventura a casa de Tião e de sua avó?
_ Sim, Diamantina. Aqui mora um anjo de criatura. Quer conhecê-la?
Mal acabaram de falar, e a velha senhora vinha pelo quintal a jogar milho às galinhas, falando com elas com todo carinho. Olhou para as plantas e deu um belo sorriso, como a cumprimentá-las pelo perfume e pelas lindas cores.
Quando se deu conta, era observada atentamente pelas duas visitantes, que também sorriam.
— Dona Carmen, a senhora aqui! Muito me agrada sua visita, principalmente nessa companhia tão bonita. Nem precisa dizê. O danado do Tião já me conto a novidade. Bem-vinda, fia de Deus; Dona Carmen tava ti esperando com muito padece no coração.
Enquanto se cumprimentavam, chegava uma senhora em cima de um cavalo que trazia na garupa uma criança passando muito mal.
Aos olhos das duas mulheres, pulou do animal e, gritando,
disse:
— Sinhá Tina, salva meu filho. Ele já foi desenganado pelo doutor! Por favor, em nome do Senhor Jesus, salve-o pra mim. — E sucumbiu em longo pranto.
Nesse instante, Diamantina foi até o animal e num gesto de auxílio pegou a criança ao colo e percebeu a gravidade da situação.
Sinhá Tina entrou e colocou no pilãozinho de madeira umas ervas que colhera rapidamente, no quintal, como se estivesse sendo guiada a preparar infalível receita, sob as instruções de alguém.
Socou as ervas com a mão no pilão, enquanto balbuciava suas orações com grande fervor.
Dona Carmen amparava a mãe aflita, e Diamantina segurava o menino no colo, com todo carinho e dedicação.
Feitas as orações, Sinhá Tina pediu à mãe da criança que a ajudasse a fazer o pequenino engolir aquele remédio.
A mãe, auxiliada por Diamantina, levantou a cabecinha do filho, que chorava muito, e abriu-lhe a boca devagar.
Enquanto isso, Sinhá Tina pedia a todos que firmassem o pensamento em Deus, que tudo iria dar certo com o auxílio do Alto.
O menino entreabriu os olhinhos úmidos, meio estonteados, e num só gole sorveu o remédio que fora a ele destinado.
De repente, soltou um grito de dor a apertar-lhe o ventre.
Sinhá Tina falou à mãe que o levasse ao banheiro, que lá iria ser resolvido o problema.
A mãe, juntamente com Diamantina, apoiava o pequenino, que colocou através das fezes enorme quantidade de vermes que se acumulavam em seus intestinos.
Nesse instante, a água no fogão de lenha fervia para que um chá tranqüilizante fosse dado ao garoto e a todos que ali estavam.
Quando retornaram à cozinha, o garoto, ainda no colo da mãe, já voltava a ficar corado e olhava assustado para tudo.
Diamantina e Dona Carmen choravam silenciosamente, e, passado algum tempo, depois de toda aquela aflição, a mãe com tanta gratidão no coração em ter seu filho salvo beijou as mãos de Sinhá Tina e tomou o caminho de casa, agora com o filho na garupa do cavalo, porém se segurando em sua cintura com as mãozinhas firmes. Foram trotando entre choros e sorrisos.
A RECEPÇÃO DE IVO
Diamantina não conseguia exprimir o que ali sentira. Como a medicina havia dado o caso do garoto por encerrado e aquela humilde senhora, com tanta bondade e sabedoria, deu a vida nova ao coração daquela mãe aflita?
Enquanto divagava, seus pensamentos iam longe, Dona Carmen a convidou para continuarem o passeio e depois retornarem à casa, pois talvez Pedro, seu marido, e Ivo, seu filho, já tivessem voltado.
Sinhá Tina abraçou as duas e viu que a jovem recém-chegada tinha grande sensibilidade e percebia que as coisas iriam se modificar muito por ali.
Sentou-se em um banquinho tosco, no terreiro, e de mãos postas ao alto agradeceu, no silêncio de uma prece, por mais aquela graça vinda do Alto e da qual fora a intermediária.
— Pai de nós todos! Num sei o que essa veia tem de tão especial, mais só tenho a agradece Sua Santa Ajuda e de tudo os mensageiros que o Senhor põe no nosso caminho. Quero agradece por tudo de bom que tenho e que sua luz se derrame por todos os caminho, da Terra e do Céu. Que assim seja!
Ficou por uns instantes parada a olhar o infinito, onde o entardecer já fazia com que as aves se recolhessem aos seus ninhos para o descanso de mais uma etapa, de mais um dia.
Dona Carmen e Diamantina, de volta à casa, sentaram-se na sala e comentavam sobre o ocorrido na casa de Sinhá Tina.
Elas ainda estavam atônitas com o que presenciaram. Realmente, a bondade Divina é infinita.
Dona Carmen pediu a uma serviçal que preparasse um delicioso café, com rosquinhas de leite, enquanto Diamantina assentou-se ao piano e começou a dedilhar linda melodia.
Nesse instante, Ivo e o pai adentraram a sala. O rapaz, que desde lá de fora ouvia aquela música, estava boquiaberto.
Um sentimento de repulsa lhe invadia o ser, e a mãe, vendo-os chegar, notou-lhe o semblante mudado e empalidecido.
— Ivo, esta é Diamantina - apontou para a moça que, abruptamente, já havia interrompido a melodia. — Ela está aqui para ensiná-lo as primeiras notas do piano e fará companhia a todos nós, por uns tempos!
Apesar de ouvir a mãe dizendo aquelas palavras tão afetuosas, Ivo tinha vontade de sair correndo. Não queria estar passando por aquela situação.
Pedro, seu pai, nem se apercebera da sua mudança brusca de atitude. Estava longe de notar alguma coisa que denotasse sensibilidade.
Diamantina, surpresa, foi até o Sr. Pedro e estendeu-lhe a mão, cumprimentando-o. Porém, quando se dirigiu a Ivo, não sentiu a mesma receptividade.
Este não a encarava, e ela sentia como se estivesse diante de alguém que julgava, intimamente, todos os seus atos.
Mesmo assim, Diamantina tentou começar algum assunto, referindo-se ao ocorrido em casa de Sinhá Tina, mas foi surpreendida pela resposta:
— Prazer! Diamantina. Só quero que saiba o que penso sobre essa benzedeira: eu não acredito. Muitas vezes ela tentou convencer-me a tomar seus chás, e eu não quero nem saber disso. Por isso nós nos restringiremos às nossas aulas de piano e, quanto ao resto, prefiro que você nem comente comigo!
Diamantina, toda sem jeito, exibiu um sorriso amarelo e abaixou a cabeça, como a concordar.
Nesse momento, entrou a serviçal que preparara o café, quebrando o clima pesado que se fizera no ambiente.
Diamantina tomou um pouco de café e pediu licença a todos para retirar-se, alegando ligeira indisposição.
Ivo, sentado na poltrona perto da janela, olhava pela vidraça,
distraído.
Dona Carmen, com muito jeito, tentou convencer o filho: _ Ivo, por favor, não seja rebelde com quem apenas quer ajudá-lo. Não é agindo assim que você vai se libertar dos seus sofrimentos.
E, já entre lágrimas, diz:
— Eu faço orações todos os momentos desde que tudo começou a acontecer com você e espero em Deus que um dia as coisas melhorem:
Sr. Pedro já havia saído da sala, pois não gostava muito das conversas a respeito de fé e esperança na vida. Pensava mesmo nos negócios, e aquelas palavras melosas da esposa lhe causavam certa repulsa.
A noite chegou depois de um dia cheio de fortes emoções a todos.
Na mesa do jantar, Diamantina permanecia calada, embora tivesse muita vontade de conversar sobre coisas que estavam palpitantes no seu coração.
Porém, vendo que Ivo e o pai estavam longe de querer trocar algumas palavras, até mesmo com a própria Dona Carmen, a moça reservou-se em seu silêncio e meditava, enquanto se alimentava com delicadeza.
Antigos inimigos
Amanheceu, e o sol surgiu esplendoroso por detrás das montanhas azuis que faziam pano de fundo à paisagem da fazenda.
No terreiro da humilde casa, Sinhá Tina dava de comer às aves e, de quando em vez, mexia no fogão de lenha o tacho com delicioso doce de leite.
Cantarolava e orava.
Tião já havia ido para as lides do dia. A ele era destinado o trabalho de cuidar dos cavalos, ajudar na cocheira com o gado e a retirada do leite.
Rapaz humilde, vendo sempre a avó como exemplo, era pessoa de muito boa índole. Tudo fazia com amor e tinha a certeza de que Deus estava presente em todos os momentos da vida, inclusive nos mais difíceis.
Quando retornou para o almoço, Sinhá Tina pediu que levasse um pouco de doce de leite, em vidro esmerado, para Dona Carmen e principalmente para Diamantina.
— Fio, ocê diz pra elas que eu fiz de coração! Num carece manda o pote de volta pruque eu tenho bastante que as pessoas boas me dão. Num sei se mereço tanto, ô Santo Deus!
O rapaz beijou a avó e foi ligeiro em direção à casa de Dona Carmen.
Ivo, sentado em uma cadeira de balanço, olhava da varanda a imensidão das terras do pai e recordava as histórias que ele lhe
contava sobre os litígios que as pedras preciosas e o ouro causaram em muitas famílias.
Tião, que chegava todo sorridente, disse :
Tião foi pelo lado de fora da casa e, através da vidraça, fez um aceno com as mãos, ao qual a patroa correspondeu sorridente.
Diamantina, acompanhando Dona Carmen, foi de encontro a Tião, que lhes entregou o pote com o doce de leite que a avó havia mandado.
Dona Carmen agradeceu e disse:
— Além de todas as coisas boas que ela faz, Diamantina, Sinhá Tina cozinha como ninguém. Ela trabalhou muitos anos, desde o começo do meu casamento, como cozinheira; porém, agora, pela idade, resolvi dar-lhe o descanso merecido e assim ela pode dedicar mais tempo à sua linda missão.
Tião, que ainda ouvia a conversa, enxugou uma lágrima solitária a escorrer-lhe pela face ao ouvir Dona Carmen falar da avó com tanta ternura. Pediu licença e retirou-se, prometendo a Ivo que voltaria no final da tarde com o cavalo prontinho para o passeio.
Diamantina, vendo que Ivo estava na varanda, foi ter com ele. Quem sabe um pouco de prosa pudesse quebrar um pouco aquela frieza que se fizera entre os dois.
— Ivo - disse a moça -, Gostaria de lhe falar e pedir-lhe a opinião sobre qual o melhor horário para as nossas aulas de piano.
O rapaz, arredio ao que ela dizia, tentava fugir-lhe à presença.
Porém, Diamantina insistiu:
— Sabe, para aprender música, além da técnica, temos de ter disciplina e principalmente sensibilidade, aliadas à força de vontade.
Ivo tomou aquela observação como ofensiva e respondeu-lhe:
— Diamantina, converse com a mamãe a respeito. Já que ela tomou a atitude em requisitar sua presença, também que defina horários, está bem?
Falando isso em tom irônico, deixou novamente a moça sem jeito e saiu rumo ao pomar, andando rapidamente.
Diamantina entrou na sala e começou a tocar uma linda canção, enquanto as lágrimas lhe escorriam pela face rósea.
Pobre moça. O que teria feito para receber tanto desafeto?
Quanto mais chorava, mais melodiosa era a música que passava os limites da sala, dando aos empregados mais próximos à casa a oportunidade de ouvi-la.
Ivo, solitário e pensativo, percorreu o pomar e desceu até pequeno riacho, onde antigamente era procurado entre as águas barrentas o ouro luminoso.
Pegou nas mãos algumas pedras e entre pensamentos enevoados começou a atirá-las, uma a uma, como se estivesse fugindo de algo que não queria encarar.
Tião o viu de longe, quando tomava o rumo do riacho, e, antes de voltar ao trabalho, passou em casa para dar uma espiadela na avó.
Esta, sentada no terreiro, socava o pilão para seus preparados aromáticos.
Sinhá Tina olhou firmemente nos olhos do neto e disse:
— Meu fio! só Deus pode fazer as coisas se encaminha! Num adianta ocê querê conserta o mundo. Deixe que o rapaz aprenda com as chibatada que a vida dá nele; ah! se vai. E, digo mais: vamo reza bastante prá essa moça pode agüenta tudo que Deus pôs no caminho dela! Precisa muito de reza por ela, meu fio.
Olhou para o Alto e deu Graças a Deus, com as mãos postas para cima!
O dia passou célere. Com o cair da tarde, Tião voltou trazendo o cavalo com o qual Ivo daria o seu passeio.
Ivo a aprontou-se e, sob os olhares curiosos de sua mãe, foi saindo sorrateiro.
Dona Carmen seguiu-o até a varanda, sentindo que algo lhe apertava o peito, deixando-a em grande aflição. Viu quando ele, montando o animal, cruzou os limites em que sua visão podia enxergar.
Diamantina chegou ao seu lado, delicadamente, e tentou acalmá-la, pois sabia da preocupação que aquele rapaz trazia à pobre mãe.
— É, Diamantina, não adianta eu tentar disfarçar: tenho estado muito nervosa ultimamente. Além do mais, vejo que ele está te evitando. Parece querer fugir não só das aulas de música, mas de algo muito mais sério que não conseguimos compreender.
Diamantina escutou-lhe o desabafo e convidou-a para que assentasse à sala e desfrutasse de um pouco de música suave, que com certeza a tranqüilizaria.
Ivo, em seu trotear solitário, estava apavorado com as coisas que lhe vinham à mente.
Enquanto as lindas montanhas pareciam-lhe cada vez mais próximas, ele ficava, em pensamento, cada vez mais distante.
O que acontecera desde a chegada de Diamantina que o incomodava tanto? Não, não tinha nenhuma resposta que o satisfizesse. Realmente não sabia o que estava acontecendo.
O sol se pôs, e o crepúsculo tão belo, naquela tarde, parecia algo sombrio.
Ivo, sem perceber, distanciara-se muito da casa e já estava nos limites da fazenda, onde mais à frente a pequena estrada de ferro fazia passagem.
Começou a sentir-se sonolento, exausto. Desceu do animal, cambaleante, e caiu em um gramado, a poucos metros da linha do trem.
O cavalo, sem comando, retornou sozinho para os lados da casa, sendo avistado por Tião, que voltava de suas lidas.
O rapaz estremeceu. Um frio percorreu-lhe a espinha sem saber o que teria acontecido ao seu amigo e patrão.
Pegou nas rédeas do animal e levou-o para amarrá-lo próximo a sua casa, podendo assim ter uma conversa com a avó antes de levar a notícia aos patrões.
Ao entrar, já encontrou Sinhá Tina ajoelhada, rezando, e percebeu que para ela não havia novidade a contar.
— Corre, meu fio. Avisa Dona Carmen e o patrão; Ivo tá carecendo de ajuda o mais rápido que pude; vejo ele caído, desmaiado, e há pessoas ruins perto dele.
Tião fez logo o que a avó dissera e, chegando à casa principal, já se deparou com o casal, acompanhado de Diamantina, todos tomados de grande preocupação.
Tião contou que encontrara o cavalo sozinho e isso o deixou muito preocupado.
Dona Carmen já chorava, e Diamantina tentava tranqüilizá-la.
Sr. Pedro, Tião e mais alguns empregados montaram em seus cavalos e saíram em busca do rapaz.
Antes, porém, Tião chamou Diamantina e disse a ela o que a avó havia sentido.
Diamantina, entendendo a gravidade da situação, levou Dona Carmen para o quarto e a convidou a fazerem juntas uma oração.
"Pobre mãe, estava desesperada."
Enquanto isso, Ivo, caído, era envolto por sombras escuras que queriam atacá-lo, sugerindo-lhe na mente desacordada:
— Fomos roubados, rapaz. Queremos o nosso ouro. Cadê os ladrões?
E gargalhadas tétricas fariam arrepios a quem presenciasse aquela triste cena.
Tratava-se de espíritos desencarnados na mais pura ignorância moral, justamente por causa de brigas por pedras e ouro tempos atrás.
Sinhá Tina firmou o pensamento no Divino Criador e com toda a força de sua fé conseguiu ser ouvida em Posto de Socorro próximo ao Plano da Terra.
Três espíritos benfeitores puseram-se a auxiliar e foram intuindo Tião e os demais quanto ao local em que se encontrava Ivo.
Ao avistarem-no já se fazia noite.
Traziam os lampiões acesos a fim de iluminar o local. Sr. Pedro, ao deparar com o filho desacordado, foi tomado por grande angústia.
As entidades doentias, ao presenciarem a aproximação de intensa luz, fugiram apavoradas, enquanto os homens carregavam o rapaz desacordado e colocavam-no acomodado em um dos cavalos, para retornarem rapidamente à casa.
— Tião, corre na cidade chamar o doutor. Vai logo, menino! - dizia o pai, aflito.
Ao chegarem com Ivo no cavalo, Dona Carmen veio ao encontro de todos chorando muito.
Levaram-no rapidamente para o quarto e começaram a fazer compressas e a aplicar vinagre em suas narinas, a fim de que ele acordasse.
Passaram-se alguns longos minutos até que o médico adentrou o quarto.
Usando dos recursos de que dispunha e sabendo das doenças nervosas de que o rapaz era portador, aplicou-lhe uma injeção e pediu a todos que fossem para a sala, para que pudesse examiná-lo melhor.
Diamantina permanecia ao lado de Dona Carmen dando-lhe chás a cada instante.
O pai caminhava de lá para cá e começou a revoltar-se e dizer impropérios.
Diamantina olhou-o firmemente, e ele, vendo o olhar penetrante da jovem, tratou de mudar de atitude, pois percebeu que estava sendo inconveniente.
O médico examinou o rapaz detalhadamente sob as vistas dos espíritos amigos encarregados do socorro oportuno.
Como a parte clínica estava normal, chamou o Sr. Pedro para uma conversa, dizendo-lhe que a injeção de calmante aplicada em Ivo o faria dormir até o dia seguinte.
Despediu-se e disse que, se houvesse qualquer novidade, fossem chamá-lo.
Dona Carmen entrou no quarto, e Diamantina ficou na porta, olhando-a com carinho.
Afagando os cabelos do filho, sentiu o seu respirar junto ao peito e chorou silenciosamente.
Já em seu quarto, a moça fez sentida oração, pedindo ajuda a Deus para que tudo aquilo passasse e sentiu imensa vontade de falar com alguém a respeito de tudo aquilo. Logo lhe veio à mente Sinhá Tina e então decidiu que no outro dia iria ter com ela uma longa conversa.
Com os pensamentos meio atribulados, conseguiu enfim adormecer.
No quarto de Ivo, Dona Carmen assentou-se ao lado da cama do filho e ficou a vigiar-lhe o sono.
De quando em vez, ele se estremecia na cama, e a mãe sobressaltava-se ligeiramente.
Sr. Pedro, alta madrugada, veio pedir-lhe que viesse descansar um pouco, mas ela recusou.
— Não, quero ficar aqui até que Ivo acorde. Estou muito preocupada com ele. Não se preocupe, estou bem.
Em casa de Sinhá Tina, Tião, que a tudo presenciara, sentia que a avó estava muito confiante e que, se estivesse preocupada, estava disfarçando muito bem, pensava o rapaz.
Porém, a confiança e a fé daquela mulher eram imensas e com que tamanha sabedoria e méritos unidos ela, através da prece, conseguira socorro para Ivo a tempo certo.
Soltou um sorriso de esperança, ao qual Tião não conseguiu deixar de notar, juntamente com a grandiosidade daquelas palavras.
Era esperar amanhecer e ver o que estaria preparado para o aprendizado daquele momento.
O visitante inesperado
O sol nasceu, trazendo consigo seus raios de calor e de luminosidade, dando mais brilho às montanhas azuis que se perdiam ao longe.
A cantiga de um galo colocara todos em sintonia com o amanhecer.
Dona Carmen, agora com o raiar do dia, exausta de cansaço e preocupação, trouxe ao filho o café da manhã, pois Ivo havia acordado e reclamava de ligeira tontura e fraqueza.
— Mamãe, o que aconteceu? Não me recordo de nada!
— Calma, filho, tome seu café sossegado que depois conversaremos a respeito.
Diamantina tomou rapidamente o café, na cozinha mesmo, e, despedindo-se de Dona Carmen, foi conversar com Sinhá Tina, conforme havia planejado na noite anterior.
Foi caminhando, observando tudo o que acontecia ao redor: o cantar dos pássaros em seus ninhos, o brilho das flores nas belas árvores, onde o verde ressaltava-se ainda mais, banhadas pelos raios do sol.
Ia nesse trajeto pensando, pensando...
Quando deu por si, estava diante da casa de Sinhá Tina, onde Tião, com seu chapéu de palha nas mãos, cumprimentou-a todo sorridente, porém sem deixar de perguntar sobre Ivo.
Diamantina disse-lhe que o rapaz estava se recuperando e que logo tudo ficaria bem.
Tião despediu-se e saiu para mais um dia de trabalho.
Sinhá Tina, ouvindo conversa no portão, veio, de pés descalços, ao encontro da jovem e, ao vê-la, sentiu o coração palpitar de emoção.
Depois de trocado um forte abraço, as duas entram na casa, e Diamantina começou a observar as coisas simples que faziam a beleza do interior daquele lar.
Enquanto isso, na cidade, o médico que atendera Ivo, em meio a livros de medicina, continuava a se perguntar qual o motivo de aquele rapaz sofrer terríveis ataques.
Estava tão distraído que nem percebeu quando sua auxiliar bateu na porta de sua sala, em seu consultório.
— Dr. Nelson, o carteiro trouxe-lhe esta carta que chegou ontem à tarde, no trem das seis horas.
— Obrigado, pode deixá-la sobre a mesa.
E, dizendo isso, nem ao menos desviou o olhar para a jovem que percebeu que ele realmente estava muito preocupado com o que tinha acontecido a Ivo.
Estudava, estudava. Lia e lia. No seu íntimo sabia que talvez a medicina convencional não tivesse recursos ainda suficientes para entender e mesmo resolver o que ia na alma humana.
Começara atendendo seus clientes e nem deu por conta que a pequena missiva permanecera fechada em sua mesa.
Diamantina ficou por horas em casa de Sinhá Tina, que lhe fora narrando as coisas que sabia e ia além, muito além, do que os olhos carnais podia ver.
— Diamantina, os home num qué dá o braço a torce. Minha fia, era só fica na simplicidade da alma que tudo se resolveria. Deus num qué mais nada de nóis a num ser a luz que possamo espalha.
Diamantina bebia aquelas palavras como se saciando toda a sua sede de saber mais e mais.
Percebendo o avançado das horas, despediu-se da Sinhá e foi embora, preocupada com Ivo e Dona Carmen.
Ivo alimentou-se com caldos leves e, no fim da tarde, tentou trocar alguns passos dentro de seu próprio quarto.
Sr. Pedro, que passara o dia fora com os compromissos da fazenda, também chegou sedento por notícias.
Na cidade, Dr. Nelson fechou o consultório, pôs seu chapéu e saiu sem perceber que deixara a carta sobre a mesa.
Na pequena estação ferroviária, a Maria Fumaça chegava de mais um dia de vaivém, na viagem da vida.
Dona Carmen, ao ver a preocupação estampada no rosto do marido, chamou-o para uma conversa amiga, aliviando-lhe assim as aflições.
Quando foi servido o jantar, Ivo veio sentar-se à mesa para a alegria de todos. Estava mais corado, mais disposto.
Diamantina observou o rapaz e lembrou-se da conversa que tivera com Sinhá Tina.
Realmente a doença do rapaz era da alma, do espírito, como dissera a velha senhora.
Diamantina foi surpreendida quando, após a sobremesa, Ivo pediu que ela tocasse algo ao piano.
Dona Carmen encheu-se de júbilo, e permitiram-se todos ficar na sala, ouvindo aquela linda melodia que elevava os pensamentos a estágios de grande serenidade.
Em casa de Sinhá Tina, Tião jantou com a avó, conversando sobre os intrigantes assuntos da vida.
A avó, como sempre, falava-lhe ao coração, fazendo-o ver o que estava além das aparências humanas.
Tião lembrou-se da morte dos pais, e ela novamente lhe disse que não deveria ficar se lamentando, porque Deus sabia que tudo tinha uma razão de ser.
A lua iluminava o imenso céu, onde o salpicar das estrelas deixava o ar cheio de vibrações de harmonia e de brilho cintilante.
No lago, a luz do luar refletia-se imensa como uma grande bola prateada.
As coisas aconteciam da forma mais natural, como desde o primeiro instante da Criação.
Diamantina acordou e sentia-se aflita, pois tivera uma noite muito agitada. Alguns pesadelos desconexos como acontecimentos estranhos vinham-lhe à mente, e ela começou a suar frio.
No café, Dona Carmen, vendo-a abatida, perguntou-lhe se estava bem.
Dona Carmen pediu que um empregado levasse Diamantina de charrete até a cidade e marcasse um horário para que a buscasse na volta.
O dia estava muito bonito. Diamantina olhava os casarios coloridos, as crianças nas calçadas e lembrou-se do dia de sua chegada, na estação.
Uma lágrima correu-lhe pelas faces róseas.
Enfim, chegou diante de bela igreja e subiu os degraus que a separavam do nível da rua.
Benzeu-se em sinal de respeito e, com o olhar fixo no altar, caminhou lentamente até o primeiro banco.
Ajoelhou-se e fez sentida prece. Enquanto orava, chorava e pensava muito no caso de Ivo. Olhava em derredor e percebeu que se encontrava sozinha na igreja.
Ficou assim por algum tempo, quando sentiu passos que se chegavam cada vez mais perto. Olhou rapidamente para trás e viu um rapaz, cabeça baixa, ajoelhado, alguns bancos atrás do seu.
Terminada a oração, sentia-se agora mais calma, mais tranqüila. Começou a caminhar pela igreja, admirando as obras de arte ali existentes, sem perceber que o moço a acompanhava com o olhar.
Quando se dirigia à saída, o rapaz a interpelou:
— Srta., por favor! acabo de chegar de viagem. Como pode notar ainda estou aqui com minha mala. Desci na estação, porém não tinha ninguém me esperando, e eu havia escrito anteriormente a meu tio, Dr. Nelson, que viria. Acaso o conhece?
— Sim - respondeu Diamantina, espantada. Tornou o rapaz:
— Eu tenho o endereço, mas ainda não localizei o seu consultório. Sou seu sobrinho e médico recém-formado. Vim para essa cidade em busca de novos conhecimentos. A srta. pode estar estranhando eu aqui, dentro da igreja, em vez de estar procurando o endereço, mas resolvi procurar um pouco de repouso às minhas idéias meio confusas e alteradas pela viagem que acabei de fazer.
Diamantina, solícita, relembrou também sua chegada e
disse:
Os dois saíram à rua, e o sol fazia-se forte. Diamantina abriu sua delicada sombrinha e caminhou com passos lentos.
Andaram conversando até chegarem no endereço do consultório.
Diamantina olhou o relógio e viu ao longe a charrete vindo buscá-la.
Despediram-se, e Ernesto ficou bastante impressionado com a moça. Porém, precisava agora entrar e ver o que havia acontecido.
Na ante-sala do consultório do tio, a jovem atendente pediu-lhe que o esperasse terminar uma consulta.
Ela lhe ofereceu um café, mas ele preferiu um copo com água fresca.
Ao sair o paciente, Dr. Nelson, vindo até a porta, surpreso, encontrou o sobrinho em pé, a sorrir para ele.
Qual não foi a surpresa de Dr. Nelson, desapontado pela própria indelicadeza, quando a encontrou em meio aos seus livros, fechada.
Nesse instante, na fazenda, Diamantina desceu da charrete, sendo esperada na varanda por Dona Carmen e Ivo.
Diamantina percebeu o olhar de Ivo para ela. Sentiu algo diferente. Seria um olhar carinhoso?
Dona Carmen abraçou-a e juntas entraram.
Conversaram alguns minutos, e Dona Carmen chamou todos para o almoço.
O ambiente parecia mais ameno, pacífico.
Diamantina comentou o que ocorrera na igreja. O encontro com Ernesto, sobrinho do Dr. Nelson, e Ivo ouviu tudo com ar de intranqüilidade.
Depois de almoçarem, a moça disse a Ivo:
— Ivo, precisamos começar com nossa música. Vamos descansar um pouco e daqui alguns minutos iniciaremos a aula.
Ivo respondeu com carinho:
— Sim, Diamantina, a hora que você quiser.
Tudo aquilo causou certa estranheza na moça, mas, pensou ela, deveriam ter sido as preces que o ajudaram a se acalmar e a aceitar a idéia de tê-la como professora de piano.
Visita para Sinhá Tina
Dr. Nelson, antes de seu retorno ao consultório, conversou longos minutos com Ernesto.
O rapaz disse que a mãe queria vê-lo padre. Ele, por sua vez, até que tentara: freqüentou o seminário por algum tempo, porém a medicina sempre o fascinara. Era tudo o que ele queria aprender: o porquê das doenças físicas e dos sofrimentos humanos.
— Agora - dizia Ernesto -, sei que ainda estou começando a conhecer um pouco sobre a medicina, mas, tio, se me permite, gostaria de fazer um estágio com o senhor, inclusive porque corre fronteiras a história de uma tal Sinhá Tina que opera curas milagrosas. O senhor a conhece?
Dr. Nelson franziu a testa e, olhando sobre os óculos caídos em seu nariz, disse:
— Olha Ernesto, isso é boato mesmo. Eu tenho a minha fé, mas como uma pessoa tão rústica e sem conhecimentos científicos de todas as nuanças que envolvem o corpo físico pode promover cura, meu rapaz?! Tudo não passa de crendice popular. E certo que existem casos os mais variados que coincidentemente ela deu jeito, mas eu não acredito.
Ernesto ouvia-lhe atentamente o discurso e pensava em conhecer a curandeira assim que possível, mesmo sem a aprovação do tio.
Na fazenda, as aulas de piano começaram, e os dias transcorriam corriqueiros, até que certa tarde Sinhá Tina recebeu prazerosamente a visita de Diamantina.
— Êh! moça boa! Gosto muito quando ocê vem proseá com essa veia! Meu coração se alegra e sinto muita satisfação. Deus lhe abençoe, minha fia!
Diamantina abraçou-a e começou a contar sobre o despertar de Ivo para as aulas de piano. Contou a Sinhá Tina que ele agora parecia mais acomodado, menos arredio.
— Ói! minha fia! Fico contente, mais num se iluda! O rapaz ainda é duro de coração. Mas continue firme que vai pode ajuda muito mais do que ocê pensa.
De repente, Tião entrou ligeiro trazendo a notícia de que um rapaz, estranho nas redondezas, queria falar com a avó.
— Num carece de dizê nada. Já me avisaram. E o dotôzinho que veio me investiga. Me protege, meu Pai, que essa veia vai tê que tê muita paciência!
Sinhá Tina se levantou e foi em direção à porta. Disse a Tião que o rapaz poderia entrar.
Ernesto, ao deparar com Diamantina, esboçou delicado sorriso.
— Poxa, que prazer Diamantina! Estou feliz por reencontrá-la. Meu tio falou-me a respeito de seu trabalho com o seu paciente, o Ivo. Achei muito interessante.
Enquanto conversavam, Sinhá Tina observava a cena a desenrolar-lhe às vistas.
O rapaz, desculpando-se com a senhora, pediu que, se fosse possível, pudessem conversar um pouco.
Sinhá Tina olhou-o firmemente, como a desvendar-lhe os mais ocultos pensamentos que lhe iam na mente, e disse:
— Claro que pode! Num sei si vou pode lhe responde tudo que o doto quer sabe! Nem eu mesmo sei. Só Deus.
Ernesto, sem ter-lhe falado nada, ficou surpreso com a sensibilidade daquela pessoa tão humilde.
Tião saiu para algum compromisso de trabalho que ainda tinha por fazer e ficaram os três a conversar.
Diamantina ficou sem entender por que justamente naquele dia ela estava ali presente e participando daquele encontro tão estranho, por assim dizer.
Sinhá Tina contou a Ernesto que tudo o que conseguia era através da força e da vontade de Deus. Seu papel era simplesmente servir com amor, e as coisas, se fossem para o bem dos doentes, melhoravam muito, e na maioria dos casos eles até se curavam.
Ernesto bebia-lhe as simples palavras ditas de forma tão humilde, mas carregadas de energia e amor e, acima de tudo, de verdade.
Ele pensava consigo mesmo a respeito do que aprendera, enquanto estivera no seminário, sobre o amor de Deus, das Obras da Criação, e algo no íntimo do seu ser, sabia que as coisas iam muito além do que um simples estetoscópio poderia auscultar.
As verdades do coração, do espírito, essas eram inatingíveis para aqueles que se negavam a descobrir as suas próprias verdades.
A conversa durou algumas horas, e ambos, Diamantina e Ernesto, despediram-se de Sinhá Tina, que havia lhes oferecido delicioso queijo com goiabada feita no tacho, no fogo de lenha.
Saíram extasiados. Cada um a sua maneira e na medida, é claro, de seu entendimento.
Ernesto foi embora e disse a Diamantina que assim que pudesse viria com o tio para ver Ivo.
Ela ficou contente, pois pensou que ele, sendo um médico mais moço, saberia alguma coisa a mais da medicina atual que pudesse favorecer Ivo.
Sinhá Tina ficou só, cismando, cismando. Falava sozinha.
— Meu Deus! agora sim que as coisas vão complica. Se a menina não tive pulso firme, o trabalho dela com o Ivo pode sofre algum abalo! Nos ajude, Pai, que só o Sinhô sabe os nosso caminho e que nóis tenhamo força e fé prá desenvorvê tudo que viemo aqui fazê! Muito obrigado, meu Pai, pelas bênção e pela vida que nos dá!
Ivo, agora, com as aulas de piano, sentia-se mais seguro. Começava a despertar enorme interesse pela companhia de Diamantina.
A jovem também estava muito satisfeita com tudo. Dona Carmen estava feliz, pois fazia semanas que Ivo passava bem, sem ter tido mais crises.
Até o Sr. Pedro comentou que realmente Diamantina fora uma pessoa de muita luz a vir para ajudar o filho. Embora descrente, agora passava a ver as coisas de outra forma. Ainda mais em se tratando de ajudar o filho. Começou a confiar cada dia mais.
Ernesto, no consultório, aproveitava o tempo que tinha para auxiliar o tio e ajudava-lhe também nas visitas aos enfermos em suas casas.
Comentou levemente sobre o seu encontro com Sinhá Tina, para o qual o tio não deu muita importância.
Dr. Nelson comunicou ao sobrinho que na tarde seguinte iriam até a casa de Ivo fazer-lhe uma visita rotineira. Enfim, examiná-lo, ver como iam as coisas.
Ernesto animou-se muito. Logo Diamantina veio-lhe à mente. Ficou trêmulo e emudecera, conseguindo apenas dizer "sim" com a cabeça.
Reencontro
Outro dia esplendoroso começava na bela fazenda mineira. O azul das montanhas misturava-se com o do céu, destacando-se os tons escuro e claro.
Pássaros de todos os tipos cantavam de cá para lá, e as águas do riacho seguiam seu curso, ouvindo melodias do Criador.
Tudo era mágico, magnífico.
A tarde caíra. Diamantina estava com Ivo ao piano, que havia progredido muito no aprendizado.
Pensava ela: "Quando aqui cheguei, as primeiras impressões com relação a Ivo quase me fizeram desistir. Graças a Deus tudo passou e posso agora ver o meu trabalho surtindo um efeito tão positivo".
A melodia que Diamantina tocava ao piano servia como fundo musical àquela tarde agradabilíssima.
Logo, ouviram-se passos chegando na varanda, e uma das auxiliares de Dona Carmen avisou-a tratar-se de Dr. Nelson e um rapaz.
Dona Carmen foi ao encontro dos dois, que já estavam quase cruzando a porta da grande sala.
Ivo estremeceu ao reparar o olhar daquele forasteiro para Diamantina.
De súbito, sentiu ligeiro mal-estar incomodando-o demais. — Ivo! Como vai? - perguntou Dr. Nelson todo sorridente. Ivo, pego subitamente, respondeu com voz trêmula.
Continuou o médico:
— Vejo pelo seu aspecto que está bem. Será a música a causadora de tão grande bem-estar?
Ivo parecia nem ouvir a pergunta e não conseguiu tirar os olhos de Ernesto que, por sua vez, trocava olhares com Diamantina.
A cena foi de puro reencontro. Reencontro de almas, sabe-se Deus o porquê.
Diamantina dirigiu-se até os dois para cumprimentá-los e pediu licença para interromper a aula.
Também nela os sentimentos eram muito estranhos, confusos.
O clima no momento ficou um tanto quanto conturbado.
Dona Carmen percebeu que Ivo modificara a expressão. Conhecia o filho suficientemente para saber que ele não estava gostando de tão inesperada visita.
Nessa altura dos acontecimentos, Diamantina recolhera-se ao seu quarto, tentando colocar as idéias em ordem.
Logo Dona Carmen pediu às empregadas da cozinha que aumentassem a quantidade de comida, pois havia convidados para o jantar.
Ivo, vendo a atenção que a mãe dispensava a Ernesto, ficou muito irritado.
Enquanto isso, Dr. Nelson o examinou e reconheceu que seu estado físico estava progredindo. Seu estado geral havia-se estabilizado.
Sr. Pedro, ao chegar, ficou satisfeito com a presença de Dr. Nelson, porque sempre ele conseguira tirar o filho das piores crises de sua saúde.
Para ele, as mãos do Pai Criador em nada interferiam, como Pensava a velha Sinhá Tina.
E, por falar nela, vamos encontrá-la no fogão à lenha, preparando delicioso prato de feijão com carne do sol, cujo aroma Perdia-se ao longo do caminho próximo à humilde casa.
Sinhá Tina gostava muito de cozinhar; fazia aquilo com tanto amor que dava vida e sabor aos mais simples pratos.
Num instante, com o entardecer chegando de mansinho e as primeiras estrelas no céu a cintilar, ela saiu até o terreiro e, olhando o crepúsculo azul-alaranjado, disse:
— Meu Pai e Criado de tudo qui existe, vós sabe que meu coração só tem a agradecer. Pai, obrigada pelo meu trabalho, pelo meu neto e por essas pessoa que o Senhor coloca no meu caminho prá que eu possa aprende um pouco mais. Pai de amor, estou preocupada com Diamantina; cuida dela nesse instante, meu Pai, ela vai precisa muito de vóis. Muito brigada por me ouvir e nos abençoe com sua luz prateada! Amém.
Dizendo isso, voltou ao fogão, onde ficou ainda meditando sobre a grandeza e a bondade infinita que poucos conseguiam perceber.
Mesa posta. Só faltava Diamantina vir que o jantar seria servido.
As cadeiras estavam todas alinhadas de forma que Diamantina ficou em frente a Ernesto.
A pobre moça, vendo o aspecto no rosto de Ivo, não sabia o que fazer, porém sabia que teria em enfrentar aquela situação e não poderia de modo algum fugir.
Durante o jantar, o silêncio era completo. As vezes, quebrado pelo barulho dos talheres ou copos.
Dona Carmen observava a tudo, principalmente o filho. Estava muito preocupada, embora não quisesse demonstrar.
Dr. Nelson, por sua vez, conversava com o Sr. Pedro, mas somente em frases curtas e sem delongas.
Algo parecia não estar bem no ar, naquela noite.
Diamantina alimentava-se divagando. Seus pensamentos misturavam-se e havia momentos em que se via chegando naquela Maria Fumaça, numa tarde, solitária.
Tudo isso a fazia pensar o que faria estando ali, naquele momento. Pensava consigo mesma do porquê de seus sentimentos. Tinha a impressão de já ter tido contato com Ernesto e Ivo. Pensava, pensava e não conseguia entender.
Assim, transcorrido o jantar, foram todos para a sala de estar saborear delicioso licor de pitanga.
Ivo pediu licença para recolher-se, desculpando-se e alegando cansaço.
Diamantina queria fazer o mesmo; entretanto, Ernesto não a deixou sair. Enredou-a numa conversa que mais parecia um monólogo, pois ela mal respondia.
Após algum tempo, Ernesto notou sua inquietação e sentiu-se um tanto quanto inconveniente. Porém, algo havia no olhar daquela jovem que o fascinara desde o primeiro instante.
Não queria admitir, mas sentia-se ligeiramente enamorado por Diamantina, como se realmente aquele momento já houvesse os unido outrora.
Dr. Nelson, vendo o avançar das horas, chamou o sobrinho, e os dois, despedindo-se e agradecendo, foram embora.
Diamantina, em seu quarto, fez uma prece fervorosa. Pedia ajuda Divina para aquela situação que, a ela, parecia ser tão delicada.
Dona Carmen, antes de recolher-se, foi ao quarto do filho dar uma olhada. Ficou assustada, pois percebera que o filho estava dormindo um sono intranquilo, certamente com pesadelos.
Em casa de Sinhá Tina, enquanto esta descansava o corpo físico, seu espírito, já com tanta bagagem, foi chamado a ajudar no socorro a Ivo.
De repente, viu-se diante de dois amigos espirituais que a levaram até o quarto do rapaz, onde duas entidades das sombras já o influenciavam assustadoramente.
As entidades inferiores perturbavam o pobre do rapaz na medida em que iam se lembrando do passado com pensamentos de vingança, ódio, raiva. Enfim, sentiam-se por algum motivo extremamente prejudicadas por quem agora era, nessa encarnação, Ivo.
Eram de uma vibração tão baixa que nem sentiram a chegada da equipe de socorro, que se mantinha em preces e aplicações de jatos magnéticos para a ajuda ao rapaz.
Sinhá Tina, espírito, desligada do corpo físico pelo sono, azia o que lhe era possível. Tentava transmitir o melhor que ia em seu coração em favor do rapaz. Seguia à risca as instruções dos espíritos socorristas, e, enquanto isso, eles percebiam que Ivo já se acalmava.
Um olhando para o outro, donde jatos de ira espalhavam-se ao redor, as entidades inferiores ficaram sem nada entender.
A medida que o socorro ia sendo aplicado, as entidades sombrias iam se desligando de Ivo até que fugiram do lugar, como se tivessem sido banidas.
Pouco a pouco o rapaz conseguiu aquietar-se, e os amigos socorristas foram embora, levando Sinhá Tina de volta ao corpo físico.
Amanheceu, e a pobre velha fez uma prece, pois sentira que uma batalha fora vencida, porém haveria muitas outras.
Precisariam da ajuda de mais irmãos abnegados no trabalho do bem e principalmente da vontade do próprio Ivo.
Ele, na verdade, era o centro de toda a solução de seu próprio problema.
Dona Carmen dormira preocupada. Logo cedo foi levar o café para o filho e percebeu-o um tanto quanto abatido, fatigado.
— Bom dia, meu filho! Teve pesadelos?
— Mamãe, bom dia! Ainda bem que já amanheceu, porque essa noite tive de ficar fugindo o tempo todo. Era como se eu estivesse num pântano tentando sair e, quanto mais tentava, mais me afundava. Estou exausto!
Dona Carmen recomendou que ele se alimentasse bem e, se se sentisse melhor, gostaria de no fim da tarde levá-lo à igreja.
Ele fez ares de que não estava muito disposto, mas naquele momento não quis contrariar a mãe.
Diamantina deu uma volta pelas cercanias da fazenda para respirar o ar da manhã e encontrou-se com Tião.
— Tião, dê lembranças a sua avó. Não sei por que, mas parece que essa noite sonhei com ela.
Tião sorriu, concordando com a cabeça, e foi caminhando para mais um dia de trabalho.
Diamantina caminhava e meditava.
No consultório do Dr. Nelson, Ernesto falava sobre Diamantina; não conseguia esconder o seu interesse pela moça.
O tio o ouvia atentamente, enqqanto Ernesto enaltecia mais e mais suas qualidades. Via na jovem algo que lhe tocara fundo o coração.
Dr. Nelson, educadamente, recomendou ao sobrinho que se contivesse um pouco em relação a esses sentimentos, para que não viesse a sofrer desilusões, e lembrou-o de que as obrigações do dia os aguardavam.
O consultório teve grande movimento, e o rapaz acompanhou caso a caso, demonstrando grande interesse.
O médico gostou muito de vê-lo participante e atento e via no sobrinho grandes chances de poder ampliar o trabalho e aumentar a clientela que já não era pequena.
Passada a hora do almoço, Ivo dirigiu-se a Diamantina e pediu-lhe que lhe tocasse ao piano alguma música relaxante.
Diamantina sorriu e, sob os olhares atentos do rapaz, fez o que ele lhe pedia.
A música tomou conta do ambiente, e ele se tranqüilizou.
Dona Carmen havia se preparado para ir à igreja e convidou Diamantina.
Ivo, ao ver que a moça havia concordado, tratou logo de arrumar-se para acompanhá-las.
Não era muito chegado às coisas espirituais, assim como o pai, porém Diamantina conseguia despertar nele esse interesse com sua simplicidade, formosura e delicadeza.
Já entardecia quando os três adentraram o corredor da igreja e dirigiram-se a um banco para fazerem preces.
Ivo acompanhava cada movimento de Diamantina.
A mãe já lhe havia notado o jeito enamorado e temeu pela felicidade do filho.
Feitas as orações, saíram os três para a rua que dava a uma bela praça arborizada.
Coincidentemente, Dr. Nelson e o sobrinho, após encerrarem o expediente, cruzaram com eles, que caminhavam conversando alegremente.
Ivo, ao deparar com Ernesto, quis recuar, mas não conseguiu. Não conseguiu nem disfarçar o seu descontentamento. Pensou: "Até parece perseguição. Não sei, mas acho que esse doutorzinho está caído pelos lados de Diamantina. Se for isso, vou fazer algo para impedir, ah! se vou".
Dona Carmen, tentando amenizar a situação, cumprimentou-os e disse que precisavam apressar-se, pois não dera as ordens quanto ao andamento do jantar e se tinha uma coisa que o marido não gostava era de chegar e não a encontrar em casa.
Essa desculpa fez com que Ernesto perdesse a oportunidade de uma conversa mais particular com Diamantina.
De volta à fazenda, Ivo falou pouco; foi para seu quarto como a procurar respostas a tantas perguntas que lhe vinham à mente.
Em casa de Sinhá Tina, enquanto mexia a comida no fogão à lenha, ela cantarolava canções de amor que guardava do tempo da escravidão, em que seus pais cantavam para esquecer o peso e as dores da chibata.
Estava distraída com as canções quando ouviu alguém batendo palmas no portão.
Abriu largo sorriso e foi amorosamente receber aquelas duas mulheres. Uma delas se mostrava muito trêmula, amparada pela outra. Eram irmãs.
— A senhora é Sinhá Tina? - uma das mulheres foi logo perguntando. - Venho por não saber mais a quem recorrer para livrar minha irmã desse mal que angustia todos em nossa família.
Sinhá Tina, levando-as para dentro, pediu que se sentassem.
A mulher que amparava a irmã contou-lhe a situação que estavam vivenciando e disse-lhe que há três ou quatro meses a moça não pregava o olho. Chorava muito e, de vez em quando, desmaiava.
— Já a levamos a vários médicos, até na Capital. Ficou internada, mas nada, nada deu jeito! Eles a enchem de remédios e injeções, e mesmo assim ela fica dessa maneira.
Enquanto ouvia toda a narrativa, Sinhá Tina, intimamente, fazia preces e pedia ajuda ao Alto, pois já sabia tratar-se de perturbação espiritual.
Pegou um copo com água, colocou sobre a mesa e fez uma prece que tornou o lugar inundado de intensa luz.
Nesse momento, a moça doente começou a dizer palavrões de toda espécie.
A irmã a olhou apavorada, e Sinhá Tina, colocando a mão sobre a cabeça da doente, conversou mentalmente com aquele espírito que a utilizava naquele instante. Pediu que deixasse a moça em paz, que a perdoasse, porque nada nessa Terra passava despercebido pela Justiça de Deus.
A moça foi-se acalmando e abriu os olhos, parecendo ser outra pessoa.
Sinhá Tina continuou em preces por mais uns instantes e deu-lhe a água para beber.
A irmã assistia à cena sem nada dizer. Só chorava. Depois de tudo, Sinhá Tina aproveitou o momento para dizer-lhes sobre a importância do perdão, dos bons pensamentos e principalmente dos bons sentimentos.
— Oia, minha fia! nóis num sabe de nada ainda nessa vida. Tem tanta coisa que a gente num vê e carece de aprende a respeita pruque tudo que Nosso Pai qué é a nossa felicidade. E muito bom que ocês façam muita oração na vossa casa que o ambiente lá num tá bom não. Precisa tirá todos pensamentos de desarmonia e briga á que isso só atrai doença da alma.
As duas ouviram as recomendações e, abraçando-a com amor e gratidão, foram embora, levando mais aquela lição de caridade sem igual.
A noite caiu calma e tranqüila.
Em casa de Ivo, o jantar foi servido sem sua presença, Porque desde o encontro com Ernesto ele resolvera ficar a sós com seus pensamentos.
As semanas passaram depressa, e as coisas não mudaram muito.
Ivo era assíduo aluno das aulas de piano, e Diamantina Procurava lhe dar o máximo de atenção, a pedido de Dona Carmen, que percebera como a chegada de Ernesto mexera com o modo de pensar do filho.
Os dias se passaram, e certa tarde as duas irmãs que estiveram em casa de Sinhá Tina foram ao consultorio do Dr. Nelson para exames de rotina.
O médico sabia da situação em que a moça, certa feita, adentrara ao seu consultorio e, vendo-a agora, com aspecto revigorado e saudável, quis saber qual fora o tratamento que fizera tamanho sucesso.
Sempre acompanhado pelo sobrinho e sob seus olhos curiosos, a irmã lhe narrara todo o ocorrido na casa de Sinhá Tina.
— É, Dr. Nelson, a fé e aquela abençoada senhora curaram minha irmã.
— O quê? - perguntou o médico entre confuso e admirado. Ernesto, entrando na conversa, perguntou:
Ernesto olhou para o tio, que tentava mudar o rumo da conversa.
Pensava Dr. Nelson: "Ah! não! Essas crendices só servem para deixar os leigos à mercê de pessoas inescrupulosas".
O sobrinho, parecendo ler seus pensamentos, dirigiu-se ao tio e às irmãs:
— Puxa! como é a vida. Eu tenho certeza de que realmente essa senhora tem uma energia que mexe com as mais profundas células; inclusive, eu, pessoalmente, estive em sua casa querendo saber a respeito de tudo que diziam dela e de suas curas. Não senti, absolutamente, tratar-se de pessoa que esteja enganando quem quer que seja. Aquela humildade e sabedoria colocam qualquer catedrático de boca aberta.
Dr. Nelson ficou abismado. Logo o seu próprio sobrinho vir com essas colocações tão banais! Pensava estar ali, diante de uma polêmica que levaria dias, porém a irmã acompanhante, percebendo o embaraço do médico, pediu licença quando soube que todos os exames estavam a contento; abraçou a irmã e foram embora sorridentes.
É bom dizer que as recomendações de Sinhá Tina estavam sendo seguidas à risca. Até um padre as irmãs levaram para benzer a casa, que agora parecia gozar novamente de paz e harmonia.
Os dias foram se passando, e Ernesto, saudoso de Diamantina, arranjou um pretexto para fazer-lhe uma visita. Falou com o tio, e este aprovou, vendo que não adiantaria qualquer palpite em contrário.
Certa tarde, em que Ivo estava totalmente envolvido com as aulas de música e Diamantina já o ouvia tocar alguns acordes, alguém chegou à porta da sala.
Dona Carmen, sentada bem à vista, deparou com Ernesto, que, num gesto gentil, não querendo interromper a melodia, fez que ela esperasse para anunciar sua chegada.
De nada adiantou tanta cerimônia. Ivo sentiu a presença de Ernesto e, num gesto rápido, fechou o piano, olhando firmemente para o rapaz como a indagá-lo por inteiro.
Ivo ficou extremamente insatisfeito com a chegada repentina daquele que ele já sentia como seu desafeto.
Diamantina, coitada, sentia-se corada; o sangue parecia ferver-lhe nas faces. Por que toda aquela disputa entre eles? Afinal de contas, ela não tinha compromissos com nenhum dos dois, embora sentisse que Ernesto muito sutilmente já houvesse demonstrado algum interesse afetuoso.
Dona Carmen, tentando quebrar o gelo da situação constrangedora em que seu filho e o recém-chegado se encontravam, tentou alguma conversação.
Diamantina cumprimentou Ernesto e pediu licença; já ia recolher-se, pois sentia-se cansada com as aulas e estava no seu horário de descanso, desculpa essa que não convenceu em nada Ernesto que, entre desapontado e sem jeito, resolveu aceitar o suco que uma das criadas preparou a pedido de Dona Carmen.
Nessas alturas, Ivo dirigiu-se à varanda e, olhando o infinito, tentava desvendar o que se passava com ele. Qual seria o motivo de tanta aflição e insegurança ao ver Ernesto?
Algo muito forte invadia-lhe o peito e só conseguia pensar em Diamantina.
Dona Carmen procurou assuntos para conversar com Ernesto porque, afinal de contas, ficara só ela dando atenção ao pobre rapaz.
Diamantina, após tomar um banho, saiu pelos fundos da casa e foi pelos lados da morada de Sinhá Tina.
Um forte desejo de conversar com ela tomou conta de seu coração.
Foi chegando e de longe já sentia o cheiro bom dos quitutes que a velha senhora estava preparando.
Ernesto, meio sem jeito, disse a Dona Carmen o que ocorrera com as irmãs que procuraram Sinhá Tina. Ele ficou muito empolgado com toda a história porque o tio lhe contara em detalhes o que afligia a saúde daquela moça. Disse também que o tio não aprovava seu interesse por tais coisas, mas ele não se importava e, a propósito, naquele instante, despediu-se de Dona Carmen e foi até a casa de Sinhá Tina.
Vejam como as coisas acontecem no momento oportuno. Nada havia sido combinado anteriormente.
Sinhá Tina, quando viu a jovem pianista vindo ao seu encontro, disse-lhe:
— Que Deus seja louvado, minha fia! Pena qui nóis num vamo pode conversa muito pruque o dotôrzinho já boto o pé na estrada e vem vindo prá cá também.
— O quê, Sinhá Tina? Como sabe?
— São as coisa da vida! As visão maio que o Nosso Pai deu prá essa veia aqui! Ele sabe o motivo qual qui é! Vamo confia!
Passados alguns minutos, bateram palma no portão, e elas se entreolharam, não necessitando trocar palavras.
De longe, na estrada, Tião viu o rapaz que esperava no portão.
Veio correndo atendê-lo e, todo sorridente, assim como a avó, cumprimentou-o e o convidou a entrar.
Era de dar alegria no coração a vibração que encontrávamos naquela humilde casa. O ambiente era tão agradável que parecia que raios de luz invadiam todos os espaços com cheiros de flores perfumadas e suaves.
Sinhá Tina estendeu a mão a Ernesto, e Diamantina olhou-o meio surpresa.
— Desculpem-me vir sem avisar. Sinhá Tina, eu soube do caso daquela moça que, através da senhora, obteve a cura, e fiquei curioso.
Disse isso sem tirar os olhos de Diamantina nem por um segundo.
— É, doto, a vida ensina a gente a amá os irmão e fazê o que o Nosso Pai Maio nos indica! Num tenho mérito nenhum; foi a vontade do Senhor e a fé das pessoa que cura e reanima, com a Graça de Deus!
Ernesto escutou a tudo muito atento. Que sabedoria tinha aquela mulher que, com tão simples palavras, trazia tantas verdades que não podiam ser contestadas. Tião conversava com Diamantina e perguntava sobre Ivo.
— Faz semanas que eu não vejo o Ivo! E os passeios a cavalo? Ele desistiu depois daquele acidente?
Quando Ernesto ouviu aquela parte da conversa, sentiu-se absorvido por um enorme desejo de saber mais e também começou a prestar atenção em Diamantina.
Esta, por sua vez, tentou ser o mais sucinta possível; não lhe agradava fazer comentários sobre Ivo perto de Ernesto. O motivo ela não sabia qual era.
Sinhá Tina, vendo que a conversa ia de vento em popa, delicadamente foi aos seus afazeres no fogão e recolheu alguma roupa que ainda estava no varal.
Diamantina falou a respeito da música e o quanto ela havia sido boa para o relaxamento de Ivo. Percebera que, depois que o rapaz pegara as aulas com afinco, não tivera mais crises fortes, embora estivesse sempre sob as orientações do Dr. Nelson.
Ernesto olhava Diamantina com uma ternura no olhar que fazia gosto. Podia-se logo ver que o rapaz já estava mesmo apaixonado e naquele instante agradecia aos céus pelo fato de "coincidentemente" ter encontrado a moça.
A noite chegou mansamente, e, depois de tomarem um delicioso chá de ervas, as duas visitas mostraram-se prontas para ir embora.
No entanto, Diamantina estava preocupada. Não queria dar chance a Ernesto para que porventura lhe abrisse o coração, pois sua sensibilidade já sentia que ele estava envolvido sentimentalmente por ela.
Procurou disfarçar quando ele se ofereceu para acompanhá-la, porém não houve jeito de recusar.
O caminho de volta à cidade era o mesmo que a levaria à casa. Não havia como fugir.
Os dois despediram-se e botaram o pé na estrada.
Enquanto isso, Ivo, na varanda, sentia a falta de Diamantina, e Dona Carmen tentava acalmá-lo, pressentindo que aquilo não acabaria bem.
Sr. Pedro chegou e perguntou o motivo pelo qual o moço demonstrava tanta aflição.
Diamantina, de longe, avistou Ivo na varanda. Um grande arrepio percorreu-lhe o corpo inteiro, e ela empalideceu.
Ernesto viu a transformação no semblante da moça e, como ela permanecera calada durante todo o trajeto, ele não se sentia à vontade para falar-lhe qualquer coisa.
Sr. Pedro, ao ver os dois se aproximando, acenou para Diamantina e foi cumprimentar o Dr. Ernesto.
— O que o traz aqui, doutor?
— Nada em especial, Sr. Pedro. Vim mesmo a passeio. Ivo entrou para a sala fazendo sinal para Diamantina de que
queria a sua presença.
A moça desvencilhou-se, dizendo que iria tomar um banho, pois sentia-se cansada.
Embora o casal insistisse para que Ernesto ficasse para o jantar, ele percebeu que o momento não era conveniente.
Vira que um clima pesado fizera-se presente ao notar o olhar de Ivo para ele.
Dona Carmen, toda sem jeito, tentou despedir-se naturalmente, sem deixar que o rapaz se sentisse mais embaraçado do que já estava.
Ernesto foi embora e levou consigo no pensamento sua tarde com Diamantina, em que lhe pareceu que a distância entre os dois se fizera ainda maior.
Ao chegar à cidade, em casa do tio, falou pouco e ficou silencioso durante todo o jantar.
Em casa de Ivo, Diamantina desculpou-se pela indisposição e não quis jantar.
Os três permaneceram em volta da mesa, Sr. Pedro, Dona Carmen e Ivo, absortos em seus próprios pensamentos.
Em seu quarto, Diamantina fez uma oração, tentando acalmar seu coração e colocar as idéias em ordem. Pensava na repulsa que Ivo sentia quando chegou, tentando-lhe levar-lhe o acalanto da música, e o rapaz se mostrava totalmente desinteressado. Agora essa situação. Sentia-se como sendo o alvo de uma briga. Mas como? Onde encontrar explicações?
Pensava, orava, até que adormeceu, agitada.
Sinhá Tina, em sono físico, desprendida do corpo denso, foi levada por companheiros da espiritualidade encarregados de auxiliar a todos aqueles envolvidos naquela trama, até o quarto de Diamantina.
A moça, após alguns passes magnéticos, foi levemente tornando-se, ou melhor, colocando-se fora do corpo físico, e deparou com aquela senhora que já aprendera a amar.
Sinhá Tina a envolveu em terno abraço e foi lhe transmitindo forças para que tivesse a coragem de cumprir o que estava a ela divinamente destinado.
Foi um encontro maravilhoso. Via-se a bondade de Deus se fazendo presente nas mais variadas situações.
Ao amanhecer, ambas, cada qual em sua casa, sentiam uma alegria sem par. Porém, Diamantina acordou e, quando foi para a mesa do café da manhã, viu que as coisas não estavam boas para Ivo.
Esse, ao contrário da moça, tivera por companhia noturna "visitantes" que queriam colocar lenha na fogueira de suas paixões mais mundanas.
Mais uma vez dormira muito mal e por seu aspecto via-se que estava acabado.
Como passara o dia anterior pensando com ódio e egoísmo, atraíra, naturalmente, "amigos" da mesma sintonia.
Dona Carmen disse à moça que gostaria de lhe falar a sós assim que ela tomasse o café.
Diamantina, com toda boa vontade e carinho, concordou e convidou Dona Carmen para um passeio pelos arvoredos, a fim de tomarem a fresca da manhã.
Ambas foram caminhando devagar por entre as árvores em cujas copas pássaros multicoloridos gorjeavam, dando graças a mais um novo dia.
A senhora, ao começar a falar de Ivo, começou a chorar.
Diamantina, vendo extenso gramado, convidou-a a assentarem-se para que pudessem melhor se acomodar.
A moça tinha por aquela senhora um amor muito grande. Sentia que, naquela casa, era muito mais que professora de piano. O laço afetivo que as unia era muito forte.
Quando via Dona Carmen entristecida era como se estivesse triste também. Não sabia o porquê. Talvez porque gostasse tanto dela como a uma mãe.
Dona Carmen contou a Diamantina toda a sua preocupação. Desde a chegada de Ernesto vira que Ivo transformara-se. Parecia ter muito ciúme do rapaz.
— Diamantina - disse entre lágrimas -, sinto-me angustiada e até envergonhada de estar lhe falando essas coisas, mas é o que realmente sinto.
Diamantina a abraçou ternamente e foi aos poucos acalmando-a
— Sabe, Dona Carmen, noto que a música está fazendo muito bem ao Ivo. Até seu comportamento comigo mudou. Vejo também que o mesmo ocorre com o Sr. Pedro. Os dois parecem estar mais serenos.
Dona Carmen balançava a cabeça, concordando plenamente com tudo o que a jovem falava.
Diamantina a tudo ouvia e sentia enormes arrepios pelo corpo. Para ela, aquela história parecia já lhe ter sido contada em algum momento de sua vida.
Continuou Dona Carmen:
— Nessas visões, Ivo foi crescendo perturbado. O que sempre ajudou foi a companhia de Tião, que o convidava para uma pescaria, um banho na cachoeira, enfim, talvez orientado pela avó, que sabia o problema do meu filho e queria distraí-lo um pouco. O sofrimento foi tanto que eu nem mesmo quis ter mais filhos, devido ao enorme trabalho que tinha com Ivo. Hoje está como você vê. Um homem adulto, porém com possibilidades limitadas. Com todas as coisas materiais que temos, muitas vezes vindas de grandes desavenças por heranças, tenho certeza de que trocaria tudo por uma vida simples, mas com meu filho são.
Nesse momento, as horas corriam na estrada do tempo. Em sua casa, Sinhá Tina parou no terreiro; olhando para o céu, disse:
— Brigada, Meu Pai! seus mensagero já começaram agir! Que o Senhor nos abençoe e num se esqueça de abrir os coração que ainda estão endurecido! Amém.
As duas amigas retornaram à casa, envolvidas num halo de muito amor e carinho.
Realmente, a prece que Sinhá Tina proferira alcançara planos elevados, retornando para as duas, que, naquele mesmo momento, tentavam entender o que ocorria e pedir auxílio para ajudar um irmão em provas.
Dona Carmen foi à cozinha ver os preparativos para o almoço, enquanto Ivo, na varanda, dizia a Diamantina:
— Pedi ao Tião que me preparasse dois cavalos. Sei que você não me negará de acompanhar-me a um passeio, não é?
Diamantina disse que o sol se fazia quente, mas, mesmo assim, Ivo insistiu. Ela concordou, e assim que Tião chegou com os animais ambos foram ao passeio pelos lados da cachoeira.
A jovem professora percebia que Ivo queria falar-lhe algo, mas lhe faltava coragem.
Iam cavalgando calados, observando a extensa paisagem a perder-se na linha do horizonte.
Muito além da medicina
No consultório do tio, na cidade, Ernesto pensava em Diamantina.
0 que estaria fazendo naquele momento?
O tio lhe falava algo, mas o rapaz estava tão distraído que nem se apercebia do que se passava ao seu redor.
Planejava: "Preciso declarar-lhe meus sentimentos; não gosto de ficar com coisas pendentes em minha vida; mesmo que sua resposta seja negativa eu vou tentar".
0 tio, vendo-o tão distante, tentou chamar-lhe a atenção pedindo que atendesse a próxima paciente.
Era uma senhora que trazia sua neta, uma jovenzinha de uns onze ou doze anos de idade.
A avó explicou a Dr. Ernesto que a menina andava muito apática e parecia, durante o sono, conversar com pessoas no quarto; eram conversas longas como se estivesse recebendo algumas instruções.
Fisicamente, não se alimentava direito e sentia muito tremor devido à debilidade orgânica.
Dr. Ernesto fez-lhe algumas perguntas, às quais a senhora respondia muito solícita.
Feitos os exames de rotina, ele pediu que fossem realizados alguns mais específicos, laboratoriais.
Antes de sair a avó virou-se para Ernesto e disse:
— Ah! já ia me esquecendo: tudo isso começou há exatamente uns quatro meses, desde a morte de meu marido, o avô que ela tanto gostava.
Ernesto ouvia-a e reafirmou-lhe o pedido dos exames, achando tratar-se, talvez, de uma anemia.
O tio vira o modo como o sobrinho atendeu a menina, muito carinhoso e paciente. Porém, viu também que o fato de a senhora ter mencionado a morte do avô o fez mudar de fisionomia.
Ficou um tanto cismado, pensativo.
Enfim, aguardaria o desfecho da história para quando viessem os exames. Por hora, recomendara-lhe uma alimentação mais proteica e que ingerisse bastante líquidos.
Pelo passeio, Ivo e Diamantina pararam embaixo de grande árvore, onde a sombra estava tão convidativa que até os cavalos dirigiram-se a ela, mesmo sem serem guiados.
Ivo segurou Diamantina pelas mãos e tentava falar-lhe do que lhe ia no coração.
A moça tremia sem saber o motivo; as coisas misturavam-se em sua cabeça, e em sua mente as palavras de Sinhá Tina tinham um eco incomensurável.
Pediu forças ao Pai Criador para que não viesse a magoar o rapaz, pois sabia quão sérios eram os seus problemas, mas também pensava em si mesma, nos seus próprios sentimentos.
O momento parecia não acabar. Algo de mágico tingia de um azul-claro a sombra em que se encontravam.
Ivo insistia em segurar-lhe as mãos e quase apertando-as soltou um desabafo:
— Diamantina, não posso mais fugir! Estou apaixonado por você!
A moça empalideceu e percebeu que, mesmo que estivesse desconfiando de algo, não estava preparada para aquele momento.
A cena assim permaneceu.
Semanas se passaram, e Diamantina continuava seu trabalho da música com Ivo, que, de certa forma, estava arrependido de ter-se declarado.
Dona Carmen ouviu por alguns dias o desabafo do filho e aconselhou-o a dar tempo ao tempo, pois tudo se ajeitaria.
Quanto a Diamantina, esta se posicionara com firmeza, não dando ao rapaz qualquer ilusão com relação aos seus sentimentos.
No consultório médico, após vários dias, algumas semanas talvez, retornaram avó e neta com os tais exames pedidos pelo Dr. Ernesto.
Na ante-sala, aguardavam silenciosas; o aspecto da menina não era dos melhores.
Ao entrarem no consultório, Dr. Ernesto examinou a garota e viu o resultado dos exames, analisando-os detalhadamente.
Nada acusavam. Nem mesmo uma leve anemia que fosse.
Dr. Nelson parecia perceber as intenções do sobrinho, pois este lhe pedira para ficar a sós com a avó e a paciente.
— O que será que esse menino está pensando? - cismava o tio. - Não gostei nada dessa atitude, mas, enfim, vamos ver qual é a novidade.
O rapaz iniciou uma conversa bem franca com a avó da garota.
A senhora, ainda meio estonteada pela atitude tão generosa do jovem médico, pediu-lhe o endereço de Sinhá Tina.
Ernesto deu-lhe o endereço oferecendo-se para acompanhá-la.
Despediram-se e, ao cair da tarde, como haviam combinado, foram ao encontro de Sinhá Tina.
Tião vinha chegando de mais um dia de trabalho, assoviando alegre melodia.
Naquele instante, ouviram-se palmas no portão, e Sinhá Tina ordenou amorosamente que as visitas entrassem.
A avó e a menina, seguida por Dr. Ernesto, adentraram a humilde casa.
Tião permanecera sentado num pequeno banco e fazia orações.
Sinhá Tina via a pobre menina e um senhor desencarnado enlaçando-a. Olhou para o Dr. Ernesto e perguntou-lhe:
Assim falando, dirigiu-se até a jovem e começou a fazer linda oração. Naquele instante, pela boca da menina, começaram a sair palavras de tristeza e um choro de lamento. Era o avô dizendo da falta que lhe fazia a neta e sua inconformação com a morte.
No mesmo instante, a avó conseguiu identificar-lhe as palavras e chorou muito.
Dr. Ernesto estava atônito. Olhou paraTião, que permanecia com os olhos fechados, orando pelo auxílio que, no momento, se fazia necessário.
Sinhá Tina conversou com o espírito desencarnado que, pouco a pouco, se rendeu aos seus sinceros argumentos e foi levado para o devido tratamento na espiritualidade.
A menina voltou ao normal e parecia ter acabado de acordar de um breve cochilo.
A avó, ainda muito emocionada, ouviu as recomendações de Sinhá Tina quanto ao fato de deixar que o marido seguisse seu caminho no além. Sinhá Tina sugeriu que ela desse a um asilo roupas pertences ao falecido que só estavam atrapalhando o ambiente e liberando energias de apego e estagnação.
A tudo o Dr. Ernesto ouvia sem dar uma palavra.
Sinhá Tina foi até o paiol e trouxe alguns ovos de pata para que a senhora fizesse gemadas para a menina, que logo estaria bem, novamente não se esquecendo, porém, do principal remédio: a prece.
Tião acompanhou-os até o portão, e a avó, abraçada a Sinhá Tina, não sabia como agradecer.
— Agradeça ao Pai Maior, minha fia! A nós só cabe fazer a nossa parte. Num carece de ficá jogando flor pruque num sou eu que faço. Eu sirvo o que meu Senhor Jesus recomenda. O amor ainda é o maio remédio prá curá tudas ferida dos homens! Vão com Deus, em paz! - E entrou, agradecendo como fazia a quase todo instante.
Até certo ponto do caminho os três não trocaram palavras, até que a jovem perguntou:
— Vó, estou com uma fome! O que aquela senhora fez? Eu não vi nada.
A avó, chorando e vendo escapar dos olhos do Dr. Ernesto uma lágrima, contou-lhe que aquela senhora fez uma oração para que o mal-estar fosse embora e que, um dia, talvez, ela até pudesse entender melhor.
Chegando à cidade, o Dr. Ernesto sentia-se acabrunhado diante de tanta grandeza de espírito de alguém que nem acesso às letras, ao conhecimento, tivera.
Pensava ele: "Como falar o que sucedeu a meu tio?"
No mesmo instante, achou melhor não dizer nada, embora não soubesse o que lhe esperava na casa do tio.
O rapaz entrou e sentiu que o clima estava carregado de animosidade.
O tio, enquanto a esposa lidava com o jantar, chamou-o até o seu gabinete para conversarem. Já foi logo dizendo:
— Ernesto, onde já se viu o que fez? O rapaz, trêmulo, nada respondeu. Continuou o tio:
— Não negue nada, pois vi o momento em que aquela senhora e sua neta seguiram com você para as bandas da fazenda do Pedro! Você foi buscar socorro na casa daquela velha? Responda Ernesto! — disse rispidamente.
Ernesto queria que o chão se abrisse sob seus pés para sumir naquele instante da frente do tio, mas sabia que teria de ser sincero com sua própria consciência.
O rapaz resolveu enfrentar logo aquela situação e disse:
— Meu tio, com todo o respeito e amor que lhe tenho, existem coisas das quais busco explicações. O senhor já parou para pensar no que está além da vida física? Quando eu era residente em um hospital, não agüentava ver a situação aflita de pais que perdiam seus filhos com terríveis doenças, em tenra idade. Perguntava-me por que a medicina não havia conseguido salvá-los. Eu nunca encontrava respostas que preenchessem o vazio que sempre ficava no meu coração. Eu não admitia ter de dar a notícia de que alguém não tinha mais esperanças de vida. Isso para mim era viver um pouco da morte também. Morte dos meus sonhos, das minhas idealizações de amor à medicina.
O tio escutava a tudo calado. Ernesto prosseguia:
— Comecei a me questionar a respeito desse Ser Maior que a tudo criou e percorri vários caminhos para chegar até aqui.
Admito, sim, que estive na casa de Sinhá Tina, porque, para falar-lhe a verdade, vim para cá imbuído num sentimento de busca de respostas a tantas indagações que me vêm à mente. Posso lhe garantir que aquela humilde senhora sabe muito mais coisas da vida do que nós dois juntos, com nossos diplomas. Para que o senhor saiba, a menina saiu de lá bem, e isso é o que importa.
O rapaz desabafou e confessou tudo o que lhe ia nos pensamentos e, por conseguinte, o tio, que não admitia essas coisas, ficou embasbacado.
Jantaram, e aquela noite fora diferente.
Ernesto dormira como alguém que sentisse a consciência tranqüila.
Quanto a Dr. Nelson, só teve pesadelos. Todas as coisas ditas pelo sobrinho iam contra tudo o que ele pensava, porém admitia que havia seu fundo de verdade.
Outro dia amanhecia. O tio cumprimentou Ernesto à mesa do café e ligeiramente deu a entender que não gostaria mais de falar no assunto.
Inimigos invisíveis
Ivo continuou com as aulas de piano e já conseguia tocar algumas músicas sozinho. Era possível ver a transformação do rapaz quando entretido com a música e ao lado de Diamantina. Mesmo com ela não lhe dando esperanças de reciprocidade do seu amor, o rapaz não esmoreceu.
Diamantina, depois do almoço, foi tirar um cochilo em seu quarto. Passando por breve sono, sonhou estar conversando muito com Ernesto. Via-se junto dele como se fossem marido e mulher, porém com roupas que não eram daquela época.
Ao acordar, a moça ficou muito intrigada com tudo. Resolveu ir ver Sinhá Tina, que sabia sempre dar uma palavra de esperança e amor.
Ao chegar à humilde casa, escutou a voz daquela senhora que mais parecia um anjo em forma de ser humano.
— Ué! minha fia! por que esse coração tá aflito desse jeito? Eu já não te avisei que ocê num veio aqui por acaso, não? - e esboçou largo sorriso.
Diamantina foi ao seu encontro abraçando-a ternamente.
Ambas se enlaçaram numa sintonia de harmonia e luz. Assim, Diamantina resolveu abrir o coração e contar-lhe as últimas novidades.
A moça começou uma longa conversa e abriu seu coração para aquela que lhe transmitia força e confiança.
Sinhá Tina ouvia a tudo, mas parecia já saber da história.
Dizia Diamantina:
— Sinhá Tina, estou atravessando um momento muito delicado. Veja a senhora: despertar amores logo em dois rapazes totalmente estranhos tanto a mim quanto um ao outro.
Sinhá Tina olhou-a firmemente e disse-lhe:
Diamantina bebia aqueles ensinamentos e, quanto mais ouvia Sinhá Tina mais enchia-se de contentamento por obter respostas a tantas perguntas. Coisas do tipo: a vida além-túmulo, as provas da vida, os sofrimentos.
Era incrível como aquela pessoinha, de modo tão especial, trazia tantas verdades que lhe enchiam de alegria e paz.
O tempo passou rápido. Tião vinha assoviando alegre.
— Vê esse menino! E a melhor coisa que meu Deus me deixo! O pobre perdeu os pais de forma tão cruel e nem por isso fico apurrinhado. Ensinei ele a crê na Justiça de Deus e orá sempre. Essa é nossa maio proteção.
Tião, ao chegar e encontrar Diamantina, ficou muito contente, perguntou sobre Ivo e quis saber também de Dona Carmen.
Diamantina lhe contou que estava tudo bem e que por enquanto sua saúde se estabilizara. Viu que já se fazia tarde e, despedindo-se dos dois, ganhou o caminho de volta à casa.
Na cidade, Ernesto foi à igreja. Estava com o coração cheio de dúvidas quanto a Diamantina, quanto à vida, enfim. Ficou sentado por algum tempo diante de uma imagem de Maria Santíssima, tentando achar uma luz para o seu caminho. Sabia que agora fizera algo que o tio desaprovava. Talvez, se quisesse continuar com suas pesquisas, tivesse de, delicadamente, procurar um local para morar a fim de não entrar em desarmonia com o tio. Mas como faria isso? Não possuía recursos suficientes no momento para se manter e muito menos para montar seu próprio consultório. Isso então seria uma afronta ao tio, que até o momento o havia apoiado. Não sabia o que fazer.
De repente, o órgão da igreja começou a ser tocado por um jovem, que estava ainda no seminário e ajudava o padre durante as missas. Por estar fazendo aulas de música, o padre permitia que ele tocasse um pouco no órgão da igreja.
Ernesto fechou os olhos para ouvir melhor a melodia e penetrar naqueles acordes que, em poucos segundos, lhe elevaram o espírito aflito de tal maneira que agora parecia flutuar.
Começou a pensar em como a música tinha o poder de mudar as energias e dar, de repente, lucidez aos pensamentos que se achavam confusos.
Ficou lá por mais algum tempo e ainda em oração agradeceu a Deus por ter conhecido Diamantina. Achava e estava certo de que ela era a mulher de sua vida.
Levantou-se e caminhou lentamente pelo corredor da igreja, onde os últimos raios de sol da tarde entravam pelos vitrais, formando um lindo colorido de cores e luzes.
Ivo e Diamantina estavam agora sempre envolvidos com as aulas de música. Ele, desde a confissão de sua paixão por Diamantina, não tocara mais no assunto.
A vida foi seguindo seu curso, e Dona Carmen estava com o coração mais aliviado, pois, embora ainda tomando vários remédios, Ivo não entrara mais em crises. Achava a meiga senhora que a música estava aliviando o fardo que o filho carregava.
Numa tarde em que o sol baixava lentamente atrás das lindas montanhas azuis, Tião vinha pelo caminho quando avistou dois homens de meia-idade com aspecto carrancudo.
Pensou ele: "O que faziam ali? Como conseguiram entrar nos limites da fazenda?" Um calafrio percorreu seu corpo e nesse mesmo momento lembrou-se de rezar. Dizia baixinho:
— Me socorre, Meu Pai! Num tô gostando desses dois! Porém, tal foi sua surpresa quando passou por eles, e os
dois continuaram a conversa sem mesmo parecer enxergá-lo.
Tião saiu em disparada e, ao ficar mais distante, olhou para trás e não viu mais ninguém.
Tremeu. Quem seriam aqueles homens? Como poderiam ter sumido?
— A vó tem razão quando fala dos espíritos que querem fazer o mal — disse ele a si mesmo.
Rapidamente foi para casa, onde encontrou Sinhá Tina fazendo fervorosa oração.
O rapaz relatou tudo em pormenores à avó, que escutou com toda a atenção. Depois, ambos fizeram preces, e Sinhá Tina disse-lhe tratar-se de dois espíritos desencarnados que planejavam fazer o mal ali, por vingança, talvez. Disse ainda que ela, por ter a graça de Deus de poder sentir essas coisas, era avisada por seus mentores espirituais que atuavam no bem e que a oração era a providência mais eficaz.
Tião não sabia como falar à avó que estava com medo de encontrá-los novamente. Não queria demonstrar que, mesmo sendo quase um homem adulto, tinha medo de "fantasmas".
A avó, como a ler seus pensamentos, disse ao neto:
— Meu menino! o medo é o contrário da fé! Se ocê tem que alimenta qualqué pensamento ou sentimento, sempre prefira os bons! Num dê trela pra esses que qué atrapalha nossa vida, não. Vá com calma, faça preces e sempre conte com seu companheiro maior, nosso Jesus, que nunca abandona seus irmão!
Ouvindo isso, Tião começou a recordar a morte de seus pais na emboscada feita por causa de pedras preciosas. Sabia que onde se procuravam pedras raras muitas mortes aconteceram devido à ganância e à cobiça.
Naquela noite, quase não fechara os olhos; sonhou com os pais num lindo campo florido, porém não conseguiu falar com eles; tudo lhe vinha à mente em pequenos flashes, e ele entre um pouco de sono e pesadelo viu o amanhecer.
Energias maléficas
Na cidade, Ernesto estava com o tio preparando-se para mais um dia de atendimento no consultório.
Depois da conversa que tiveram, Ernesto ficou um pouco calado e triste, mas não deixou de ajudá-lo nas consultas. Pensava ele: "É melhor eu ir devagar com minhas idéias, pois nem todos são obrigados a pensar como eu".
Estavam no consultório quando chegou um senhor de idade passando muito mal. Estava com a respiração muito ofegante, e a mulher que o acompanhava disse aos médicos que ele não dormira a noite toda.
— Ele dizia que queriam pegá-lo pelo pescoço - disse ainda a mulher. — Pensei que estivesse com febre, pois falava coisas como se estivesse delirando!
Prontamente atendido e medicado, o senhor começou a sentir-se melhor.
Mesmo assim, Dr. Nelson pedira alguns exames que seriam feitos na Santa Casa local.
Ernesto olhava para o velho e ficou a cismar. O tio logo tratou de tirar o sobrinho da sala, pois via nele um perigo iminente.
O dia prosseguira normalmente. Ernesto nem sequer tocara no assunto daquele senhor com o tio, percebendo que ele não lhe dera chance alguma.
Tião, no trabalho, pensava no momento de retornar para casa. A visão do dia anterior o deixara com grande medo, muito embora tivesse ouvido os conselhos da avó.
Fez muitas orações e, naquela tarde, nada aconteceu de anormal.
Na hora do jantar em casa de Ivo, o rapaz mostrava-se meio indisposto. Dizia estar com calafrios.
'Talvez seja febre", pensou Dona Carmen, trazendo um chá para o filho e recomendando que fosse se deitar.
Sr. Pedro recolhera-se, e Diamantina havia ficado na sala conversando um pouco com Dona Carmen.
— Sabe, minha filha, quando vejo meu filho assim sinto muita aflição em meu peito. Só eu sei o que já passamos com ele desde menino. Ainda se o pai fosse mais compreensivo e aceitasse o auxílio da bondosa Sinhá Tina, tenho certeza de que tudo melhoraria. Mas, de tanto ele não querer, até Ivo não acredita nas curas feitas por intermédio dela.
Diamantina a tudo ouviu e disse-lhe que tentaria falar com Ivo e quem sabe a amizade dele com Tião pudesse convencê-lo a ir até Sinhá Tina.
Recolheram-se.
As horas da noite avançavam céleres. Naquela noite escura o céu estava sem estrelas devido à nebulosidade. Alguma coisa pairava no ar que não era algo bom de se sentir.
De repente, as duas entidades vistas por Tião chegaram no pátio externo da fazenda, perto do quarto de Ivo.
O rapaz, em sono físico, começou a sentir-se mal ao denotar as duas presenças adversas.
Um dizia ao outro:
— Ele deve estar por aqui. Conseguiu fugir de nós até hoje, mas agora...
— Sim, meu faro também me diz a mesma coisa. Ivo começou a estremecer e a debater-se na cama. Vejamos, meus amigos: Os dois espíritos na erraticidade
nem percebiam sua condição de desencarnados, tanto que nem se deram conta da presença de Tião, na véspera, por haver cristalizado seus sentimentos e pensamentos no passado.
Ivo começou a gemer, e Dona Carmen, ouvindo, foi ao quarto do filho em disparada.
Naquele mesmo instante, Sinhá Tina sentou-se na cama iniciando fervorosa prece.
Entidades de luz deslocaram-se até a fazenda para anular o mal-estar que as duas entidades provocavam em Ivo.
Diamantina, alarmada pelo barulho no corredor, vestiu-se e foi ver o que estava acontecendo.
Ivo estava abatido, e o suor inundava-lhe o pijama.
— Mamãe, não agüento mais essa perseguição. Que mal-estar. Quero que amanheça logo. A noite muito me assusta.
Diamantina fazia preces, silenciosamente.
Realmente, como dissera Sinhá Tina, ela fora chamada àquele local para ser o ponto de equilíbrio.
Com tantas pessoas vibrando e orando, os dois infelizes, pensando não ser ainda o momento de agir, perderam-se sob as sombras dos grandes arvoredos.
Amanheceu. Dona Carmen já havia solicitado a presença do Dr. Nelson que, naquele exato momento, examinava o rapaz, minuciosamente.
Ernesto viera com ele, o que causou em Ivo grande revolta. Não queria vê-lo perto de Diamantina, que saiu para um rápido passeio pela estrada, tentando arejar os pensamentos. Sentira que alguma coisa não ia bem naquela casa. Agora, começava a acreditar que a doença de Ivo não era puramente física como pensavam os médicos e até mesmo o Sr. Pedro.
Foi andando e, sem perceber, já estava próxima à cachoeira onde havia um lugar que, antigamente, era feito o garimpo das pedras.
As duas entidades que estiveram naquela noite na fazenda agora estavam ali, procurando pedras preciosas.
Diamantina sentiu um impulso em sair depressa dali. Não se sentira bem. Fez logo uma oração e tomou o caminho de volta.
Em casa de Ivo, Dr. Nelson redobrava a medicação, que o rapaz já não agüentava mais.
Os médicos despediram-se e foram embora. Ernesto, muito decepcionado por não ter podido falar com Diamantina.
Minutos depois da partida de Dr. Nelson e de Ernesto, Diamantina chegou na sala e disse a Dona Carmen que contasse com ela para o que precisasse.
— Diamantina - disse Dona Carmen -, vou te pedir que fale com Sinhá Tina e vamos tentar também o Tião. Vamos ver se conseguimos melhorar as coisas por aqui.
Ivo começara a tomar as medicações que o deixavam muito apático.
Diamantina, a pedido de Dona Carmen, seguiu até a casa de Sinhá Tina e expôs-lhe a situação.
A boa senhora disse que faria o que estivesse ao seu alcance, porém Deus, que tudo sabe e tudo vê, mostraria o momento certo de agirem em favor de Ivo. Antes de tudo ele teria de acreditar e pensar coisas boas para poder sair daquela situação.
— Minha fia - disse Sinhá Tina -, ninguém qué sofre, mas também num faz nada prá melhora, uai. Vô te conta o que se sucedeu com Tião esses dias; ocê veja como estamos no meio de pessoas que querem o mal e a desavença.
Sinhá Tina relatou a aparição daqueles homens e, no mesmo instante, toda arrepiada, Diamantina lembrou-se da sensação que tivera ao chegar próximo à cachoeira.
Prosseguiu Sinhá Tina:
— Sei que minha fia e meu genro morreram por causa de ambição. Eles garimpavam a mando do patrão e veio essa tragédia. Até hoje a história está mal contada, mas a Justiça de Deus se encarrega de esclarece.
Diamantina ia assimilando tudo aquilo e começava a pensar de que forma Ivo estaria sendo alvo de toda essa energia tão negativa.
Nova crise de Ivo
Na cidade, Ernesto saiu na varanda da casa do tio para contemplar a noite; olhava as estrelas e pensava em Diamantina. Pensava também na reação de Ivo, quando de sua visita à fazenda. Estaria ele também apaixonado pela moça? Era engraçado pensar, mas parecia que já sentira aquela sensação em algum tempo e lugar.
Os dias passavam, e às tardes, sempre que podia, Tião chamava Ivo para uma conversa.
O jovem mulato tentava atrair a atenção do amigo para as coisas de Deus. Falava-lhe, inspirado pelo Alto, que de nada adiantava possuir bens materiais sem ter a saúde necessária para desfrutar deles.
Ivo escutava sem argumentar. Sabia que o amigo queria nas entrelinhas mandar-lhe um recado. Mas qual seria? Estava ainda com o coração muito endurecido para compreender.
E Tião continuava. Falava-lhe da avó; das coisas que ele, em sua humilde casa, presenciara; das pessoas que haviam procurado todo tipo de socorro e só depois de aceitarem que elas próprias teriam de pedir auxílio e deixar ser ajudadas infalivelmente o auxílio viria.
E Ivo escutava, escutava.
Os dois, distraídos pela conversa, nem perceberam a chegada sorrateira do Sr. Pedro.
O pai de Ivo não gostou nem um pouco da prosa dos rapazes.
Ivo, ao notar-lhe a presença, disse a Tião que já era tarde e estava cansado.
Tião foi para casa sentindo que sua missão não seria fácil. Assim que chegou em casa, veio Sinhá Tina a dizer-lhe:
— Meu fio, persevera no bem! E assim mesmo! Quando a gente qué ajuda, tem de tê paciência e muito amor. Nossos amigos de luz estão vendo o nosso esforço! Não se amofine que a menina Diamantina também tá encarregada de fazê a parte dela! Tá tudo de acordo com os compromisso, meu fio.
Tião, com os olhos marejados de lágrimas, abraçou a avó e juntos entraram na casa, deixando para traz um lindo rastro de luz
As semanas se passaram mais lentamente. Ivo não parecia ter mais ânimo nem vontade de retornar às aulas de piano. Seus dias se resumiram em ficar entre o olhar perdido na varanda e sua cama, em seu quarto.
Diamantina tentou persuadi-lo, mas algo de muito ruim o abatia fortemente.
Ernesto, certa tarde, saiu sem dizer nada ao tio. Resolveu que faria uma visita a Diamantina, dando a desculpa de que iria ver Ivo. No caminho, foi pensando no porquê de seu coração bater mais forte ao pensar naquela bela moça.
Diamantina, como a pressentir que receberia uma visita inesperada, saiu a caminhar pela fazenda. Encontrou Tião, que a convidou para irem à sua casa.
Os dois foram recebidos com muita alegria pela avó, como de costume.
Naquele mesmo momento, Ernesto chegou à varanda e se deparou com Ivo sentado, olhando o horizonte.
Sentiu um calafrio ao ver o jeito contrariado com que o rapaz o olhou.
Ernesto interrompeu-o:
— Ora, Ivo, você precisa reagir! Não pode se deixar levar pelo pessimismo.
Dona Carmen, ao ouvir a conversa, veio toda sorridente cumprimentar o doutor.
Enquanto conversavam, pensava Ivo: "Esse fulano veio atrás de Diamantina, mas ainda bem que não a encontrou".
Nem mesmo acabou de pensar e Ernesto perguntou:
Ivo queria sair dali o mais rápido possível. Parecia que Ernesto estava sempre a cruzar seu caminho com Diamantina, mas, ao mesmo tempo, pensava: "Ela é livre. Não tem compromisso com ninguém. Nem sei por que sinto tanto ciúme".
A conversa continuou, e uma bela mesa com chá, bolos e biscoitos foi posta para o inesperado visitante.
Ivo estava ali por estar, porque seu coração não vibrava coisas boas.
Na cidade, Dr. Nelson e a esposa conversavam a respeito de Ernesto.
Dr. Nelson dizia à mulher que o sobrinho andava pesquisando a "tal" Sinhá Tina e isso não lhe agradava muito.
A esposa escutava, mas não retrucava em nada. Era uma pessoa de muita fé e jamais duvidaria de que Deus pudesse agir para curar seus filhos sempre que o amor e o merecimento fossem sentimentos presentes.
E ele continuava:
— Não gosto do jeito que ele fala da velha. Parece que ela é algo sobrenatural. E sabemos que a vida é o que é. Nascemos, crescemos e um dia, com toda certeza, morreremos.
Será? Em seu íntimo queria fazer força para acreditar nisso, pois, se assim não agisse, talvez não agüentasse quando tinha de diagnosticar uma doença sem solução.
Sinhá Tina conversou muito com Diamantina, mas a moça sentia que deveria ir para casa.
Tião a acompanhou e, àquela altura, Ernesto também já se despedia.
Ivo sentiu-se aliviado ao vê-lo ir embora e pouco tempo depois, da varanda, avistou Diamantina, que vinha no seu meigo caminhar embelezando ainda mais aquela tarde em que o sol se punha mais uma vez para que a noite trouxesse consigo o silêncio e o repouso confortadores.
Ivo, ao vê-la, sorriu todo contente.
— Olá! Ivo. Vejo que está mais animado, não é?
— Sim, Diamantina, quero ver se amanhã recomeçaremos as aulas de piano. Sinto que a música está fazendo-me muita falta.
A jovem pediu-lhe licença para entrar.
Na sala, encontrou Dona Carmen bordando uma linda toalha.
Diamantina conversou um pouco com ela, que lhe contou sobre a visita inesperada de Ernesto.
Diamantina ficou ruborizada. Envergonhou-se como a ler os pensamentos do jovem médico em declarar-lhe o amor que sentia por ela.
Dona Carmen reparou na fisionomia intranqüila da moça e não disse mais nada.
Chegou a hora do jantar. Com todos à mesa, o Sr. Pedro perguntou ao filho se ele estava melhor e fez-lhe um convite:
— Ivo, amanhã bem cedo gostaria que fosse comigo, juntamente com o Tião e mais dois empregados, vistoriar as cercas da fazenda. Existem comentários na cidade de que alguns colonos viram pessoas estranhas rondando o local. Precisamos nos certificar de que tudo está em ordem pois, não lhe sabemos as intenções.
Ivo, tentando ser útil e forte perante Diamantina, concordou em acompanhar o pai. Porém, durante a noite, novos pesadelos fizeram-no passar mal. A mãe foi várias vezes ao quarto verificar o que ocorria e rezava muito.
O dia chegou com o sol erguendo-se lentamente atrás das montanhas, enquanto nos arvoredos pássaros gorjeavam de pura alegria.
Dona Carmen pediu a Diamantina que fosse com ela até o quarto, pois sentia o coração apertado e não sabia dizer o motivo.
Tião, avisado pelos companheiros de trabalho, na véspera, logo cedo preparava os cavalos que iriam levá-los à tal inspeção.
Enquanto preparava os animais, pensava na visão que tivera e, seguindo as orientações da avó, procurou ligar-se com Deus fazendo orações.
Pensava: "Meu Pai, me ajude! Afinal, sei que Sua proteção é completa e sou homem que não pode se amedrontar dessa forma, uai!"
Levou os animais ao local combinado, e Ivo, após ter tomado os remédios e um café bem reforçado, apesar de meio pálido, conseguiu subir no cavalo com o precioso auxílio de Tião.
Vejam como nosso Tião, pessoa simples, era tão importante para o rapaz. Conseguia dar-lhe força. Parecia dividir com ele as energias boas que Sinhá Tina sempre distribuía aos doentes que a procuravam. Era mais uma vez o amor ao próximo dando-nos uma lição de carinho.
Saíram num rápido galopar, Sr. Pedro, Ivo e Tião, e mais atrás os outros dois empregados.
Percorreram quase toda a fazenda: o local onde o gado ficava, a cocheira, a região próxima à cachoeira e o caminho que levava à velha estrada de ferro que fazia limites com a fazenda.
Nada encontraram, nem cercas caídas; nada que pudesse dizer ter sido violado para roubo ou coisa parecida.
Porém, a certa altura do percurso, próximo ao local em que certa vez Ivo caíra ao chão, algo de muito grave estava para acontecer.
Os cavalos empacaram e não queriam seguir adiante de forma alguma. Pareciam pressentir o que estava por vir. Ivo começou a sentir-se mal.
Tião, rapidamente, ao perceber o mal-estar do amigo, apressou-se em socorrê-lo. Chamou os outros dois companheiros, que o desceram do cavalo, e, sob as vistas espantadas de Sr. Pedro, Ivo parecia estar perdendo os sentidos.
Acomodaram-lhe num gramado, em uma sombra, e Tião, intimamente, recorreu à oração. O jovem mulato percebera que algo de muito ruim fazia com que Ivo tivesse esse tipo de crise.
Alguém pegou água e começou lavar o rosto de Ivo, para tentar acordá-lo.
Tião ligou-se à avó e esta, com sua grande sensibilidade premonitória, pedia auxílio a Deus e aos mensageiros de Jesus para que fossem em socorro do neto e de todos os que estavam juntos dele.
O momento era de muita tensão.
De repente, Tião, ao virar seu olhar para trás de uns arbustos, reconheceu a presença daqueles espíritos desencarnados com os quais cruzara certa tarde no caminho.
O rapaz orou fervorosamente, percebendo que só ele podia vê-los. Não sabia dizer o porquê, mas achou melhor ficar calado e não dizer nada ao patrão nem aos demais.
O sr. Pedro decidiu que não poderiam perder mais tempo e resolveu socorrer Ivo e levá-lo ao hospital, na cidade.
As entidades queriam se vingar de Ivo e, por esse motivo, estavam no seu encalço; seguiram-nos até o hospital.
O sr. Pedro pediu a Tião que fosse rapidamente avisar Dona Carmen e Diamantina para que as duas seguissem ao hospital para onde levariam Ivo.
As duas mulheres saíram tão apressadas que conseguiram chegar antes de todos.
Diamantina, em prece fervorosa, mentalizou muita luz e pedia ajuda ao Alto para aquele momento tão delicado.
Quando chegaram, devido à forte presença de luz e equilíbrio que Diamantina conseguira por meio de prece sincera, os espíritos infelizes não tiveram acesso ao interior do hospital e permaneceram rondando o pátio externo.
Dona Carmen chorava muito, mas também orava.
Tião amassava o chapéu de palha entre as mãos, pois estava muito nervoso por tudo o que novamente presenciara. Angustiado, perguntava-se quando aquilo teria fim.
Cabeça baixa, vez por outra enxugava uma lágrima que lhe insistia em brotar-lhe dos olhos.
Ivo, prontamente socorrido, começou a voltar a si. Era como se tivesse tido uma crise epilética.
Pálido e muito trêmulo, assustou-se ao ver-se rodeado de médicos.
O sr. Pedro não tardou em chamar o Dr. Nelson, que veio também prestar seu auxílio.
Diamantina, aflita, foi em direção a Tião, indagando-lhe como aquilo acontecera.
Tião narrou os fatos, deixando-lhe mais apavorada. Na realidade, com a chegada dos espíritos, sentiu que estava sendo observada, mas não sabia por quem.
Ernesto, assim que terminou as consultas, foi ao encontro do tio no hospital, e sua chegada causou grande constrangimento a Diamantina. Entretanto, o momento exigia equilíbrio e fraternidade, e realmente Ernesto estava preocupado com a saúde de Ivo.
Tião despediu-se e foi para a fazenda, pois sentia muita necessidade de estar junto da avó.
Assim que chegou, sentou-se no banco da cozinha e começou a contar todo o ocorrido à velha senhora.
Esta lhe explicou que se tratava de dois antigos credores de Ivo, de vidas passadas, e que há muito vinham para resgatar-lhe o prejuízo que este os causou.
SinháTina lembrou que a prece e a presença de Diamantina estavam sendo de grande valia para os irmãos socorristas ajudarem no que fosse preciso.
— Meu fio! tome esse chá! E calmante. Ocê também perdeu energia quando foi ajuda. Mais é assim memo. Deus dá em dobro. Nós tamo aqui com essa missão e vamo leva até onde Nosso Pai permiti.
Tião sorveu o chá, juntamente com as palavras sábias da avó, e recolheu-se. Não tinha condições emocionais de voltar ao trabalho. Pensava muito no amigo.
Enquanto isso, no hospital, depois de ter cuidado de Ivo, Dr. Nelson encarregou-se de dizer ao Sr. Pedro e Dona Carmen que o rapaz teria de ficar internado para exames mais detalhados.
Mais uma vez o coração de Dona Carmen se via dilacerado pela angústia e preocupação.
Dr. Nelson ofereceu-se para ficar com Ivo durante a noite e disse a Dona Carmen que ela auxiliaria mais se fosse para casa tentar descansar, pois tudo sairia bem.
Ernesto também se preocupava. Assim que pôde veio trocar algumas palavras com Diamantina.
Esta, sempre em orações, absorvia tudo o que o jovem médico lhe dizia.
Questionava-se sobre o porquê daquelas crises tão estranhas; tratava-se de algo em nível mental?
Diamantina argumentava:
— Olha, Ernesto, existem coisas em nossas vidas que só Deus e Seus enviados de luz podem nos ajudar a entender. Não adianta ficarmos aqui achando isso ou aquilo se o próprio Ivo não se vê com o firme propósito de melhorar. Tenho aprendido muito com Sinhá Tina e vejo que só ela, no momento, poderia fazer alguma coisa para reverter esse quadro.
Ernesto admirou-se, pois era exatamente aquilo que estava pensando.
Diamantina continuou:
— Porém, isso nem podemos cogitar. Desviemos o assunto, pois o Sr. Pedro e Dona Carmen estão chegando.
O sr. Pedro agradeceu a atenção de Ernesto, e junto com Dona Carmen e Diamantina, foi para a fazenda.
A noite passou lentamente. Ivo encontrava-se um pouco melhor, porém muito angustiado por estar internado. Não pensou sequer em fazer uma oração, muito embora houvesse ali entidades de luz, sempre prontas ao socorro de quem precisasse.
Aí, meu amigos, vemos que tudo depende de nossa vontade. A ajuda vem quando nos dispusermos a sermos ajudados.
Amanheceu, e nas primeiras horas da manhã, com a autorização dos médicos que cuidavam de Ivo, Sr. Pedro, Dona Carmen e Diamantina adentram o quarto do hospital e acercam-se do leito do rapaz.
Naquele mesmo momento, Tião estava dirigindo-se às lidas do dia, embora tivesse passado a noite muito preocupado com o amigo.
Agora, voltemos um pouco no tempo, meses ou várias semanas atrás em que, no consultório do Dr. Nelson, um velho senhor foi atendido, cuja esposa descrevia o quadro que o marido apresentava.
Tempos depois, eis que esse mesmo senhor foi indicado por alguém para que procurasse Sinhá Tina, pois os procedimentos médicos, embora de grande valia, não haviam tirado o mal-estar aflitivo do homem.
Sinhá Tina, com todo amor, deixando pata trás seus afazeres, atendeu novamente com muita boa vontade mais um irmão sedento de alívio espiritual.
Com largo sorriso, abriu o portão convidando o casal para entrar e assentar-se na humilde casa, no aspecto físico, porém cheia de muita riqueza de luz e paz.
O casal demonstrava-se meio assustado, pois era a primeira vez que recorria a esse tipo de recurso.
No entanto, o pobre homem, ao sentar-se, sentiu um envolvimento muito agradável, coisa que há muito não sentia.
Sinhá Tina, em preces, percebia a presença de um irmãozinho desencarnado que acompanhava o casal.
Tratava-se de uma entidade que necessitava de socorro, devido ao estado lastimoso em que se encontrava.
Por problemas passados que não podemos citar ou não seria necessário enumerar, os dois se afinaram e o pobre homem se encontrava em estado obsessivo, que já lhe havia prejudicado a saúde física.
Como Sinhá Tina era um espírito que muito contribuía para o socorro, a equipe espiritual que dela se utilizava para auxiliar era imensa. Estava sempre disposta à palavra de consolo e ao remédio salutar que cura o espírito doente.
Bastaram algumas orações, e o ambiente enchera-se de intensa luz.
O irmãozinho sofredor foi resgatado por uma equipe de socorro, enquanto o homem era envolvido em energias restauradoras.
Acabado o atendimento fraterno, Sinhá Tina recomendou ao casal que lesse sempre os Evangelhos, pois isso também ajudava na cura.
Ela, pessoa analfabeta, trazia gravado em seu ser todo o conhecimento cristão em virtude dos bons atos praticados.
O casal foi embora e no caminho cruzou com o Sr. Pedro, Dona Carmen e Diamantina, que voltavam do hospital.
A mulher do velho senhor estava em lágrimas.
Num átimo, Diamantina, ao vê-la, perguntou se necessitava de ajuda.
A mulher contou-lhe todo o ocorrido e disse que acabara de receber uma graça de Deus. Pedia muito para que Deus abençoasse aquela humilde preta-velha que falava errado, mas acabara de curar seu marido.
O sr. Pedro não pôde deixar de ouvir tudo e tentou apressá-las.
Dona Carmen não queria contrariá-lo, mas estava pensando em pedir auxílio a Sinhá Tina. Porém, rememorava todas as tentativas com Pedro, sempre irredutível.
Pensava ela: 'Talvez tenhamos de começar o ajuste com o pai para depois cuidarmos de nosso Ivo. Como alguém com o coração endurecido pode receber coisas tão maravilhosas?"
E, derrubando uma lágrima, foi embora, logo acompanhada por Diamantina.
Em casa de Dr. Nelson, Ernesto pensava em uma maneira de como levar Ivo até Sinhá Tina. Alguma forma que o rapaz aceitasse a ajuda espiritual, que, para ele, seria muito importante, principalmente para a conclusão de todas as suas pesquisas nessa área.
Os dias passaram-se, e Ivo estava de volta à casa.
Um tanto enfraquecido, assentado na sala, ouvia Diamantina tocar uma suave melodia ao piano, e a sala enchia-se de vibrações de amor e luz.
De repente, Tião chegou para visitar o amigo e dizer-lhe da alegria de tê-lo de volta.
Diamantina, vendo que os dois atrelaram uma conversa muito animada, resolveu deixá-los a sós.
Tião contava a Ivo sobre como estavam indo as coisas na fazenda, os passeios a cavalo dos quais sentia muita saudade de fazer com o amigo.
Ivo perguntou-lhe sobre doce de leite de Sinhá Tina. Dissera-lhe que estava com grande vontade de saboreá-lo.
Os dois passaram horas em conversa franca e prazerosa.
Diamantina aproveitou a oportunidade para conversar com Dona Carmen, que estava no quintal dos fundos, vendo algumas hortaliças fresquinhas para fazer a Ivo uma sopa leve, porém nutritiva.
A mãe achava que seu enfraquecimento se devia à falta de vitaminas.
Diamantina lhe dizia:
— Sabe, Dona Carmen, Sinhá Tina vê e sabe de muita coisa. Ela fala sobre certas energias ruins que sugam de nós toda a nossa força. Precisa ver como ela tem essa percepção tão acurada.
Assim falando, disse a Dona Carmen que Ernesto também achava que deveriam dar um jeito de autorizá-la a tentar um tratamento para Ivo. Falou também do interesse do jovem médico a respeito das curas que, por intermédio da escrava, foram realizadas.
Dona Carmen escutava-a com atenção e completou:
— Não precisa ir longe. Veja, há alguns dias atrás, o caso daquele senhor.
Diamantina via nos olhos da mãe aflita o firme propósito de ajudar o filho a curar-se. Porém, também sabia que o Sr. Pedro era uma pessoa muito orgulhosa e irredutível.
Diamantina continuou:
Já era quase hora do jantar. Tião despediu-se de Ivo com um forte abraço, prometendo trazer o doce de leite da avó.
Dona Carmen agradeceu-lhe a atenção e disse que qualquer tarde dessas faria uma visita a Sinhá Tina.
Carta para Ernesto
Ernesto passeava pela praça à noitinha, na hora da Ave Maria, vendo as mulheres dirigirem-se à igreja para rezar o terço. Um impulso o levou até lá; sentia-se necessitado de alimento para a alma, e o caso de Ivo o intrigava muito, como homem da ciência que era.
Ficou em um dos últimos bancos e, depois que as orações terminaram, caminhou até a sacristia, talvez com a intenção de se confessar.
O pároco era uma pessoa de meia-idade muito franca e sorridente. Já havia visto Ernesto na igreja e sabia tratar-se do sobrinho do Dr. Nelson, pois fora informado por suas colaboradoras.
— Entre, meu rapaz. Que a Paz de Jesus esteja convosco!
Conversaram por longo tempo. Não fora uma confissão propriamente dita, mas uma conversa que, de certa forma, preencheu o vazio que lhe invadia o ser.
O padre escutou cauteloso o comentário a respeito de Ivo. Disse a Ernesto já saber do problema do rapaz, porém, como Deus, só poderia agir na vida da pessoa se ela realmente assim permitisse.
Ernesto saiu de lá muito aliviado.
Ele e Diamantina tiveram o mesmo tipo de intuição no que dizia respeito a procurar ajuda espiritual para o rapaz.
Sinhá Tina, atentamente, mexia o tacho em que borbulhava deliciosa goiabada, cujo aroma sentia-se a distância. Tião lhe falava de Ivo e de sua vontade pelo doce de leite que a avó fazia com tanto capricho.
Sinhá Tina retirou o tacho do fogo e foi sentar-se perto do neto, para melhor dar-lhe atenção. Sabia de sua preocupação acerca do amigo e dissera-lhe que tudo tinha o tempo certo para acontecer.
— Cê sabe que ninguém foge dos compromisso, né mesmo! Que adianta nós se altera pelos problema se não confiamo no Pai Maior!
Tião, outra vez, percebia nas palavras da avó muita profundidade e sabedoria.
Os dias passaram-se e com eles a rotina do lugar quase não se alterava.
Ivo havia retornado ao piano, e Diamantina, sempre que tinha oportunidade, falava-lhe algo a respeito de Deus e da vida eterna.
Nesses momentos, era envolvida por entidades de luz que encontravam campo propício para o auxílio.
Sr. Pedro chegou certa tarde com ar meio embaraçado e logo chamou por Dona Carmen, perguntando-lhe:
— O que está acontecendo? Ainda agora encontrei-me com o padre e ele me perguntou se poderia vir aqui ver Ivo. Você tem alguma coisa a dizer a respeito?
Dona Carmen, sabendo da rispidez do marido, falou com voz trêmula:
Sr. Pedro ia responder, quando na varanda Tião chegou com o pote de doce de leite que amorosamente Sinhá Tina enviara a Ivo.
Tião cumprimentou a todos, indo ao encontro de Ivo para um efusivo abraço.
Sr. Pedro parou a conversa ali mesmo. De certa forma, a presença de Tião o incomodava. Não sabia o porquê, mas sentia-se meio desconfortável com a amizade do rapaz com seu filho.
Dona Carmen foi buscar uma vasilha para que Ivo degustasse o tão apreciado doce.
Diamantina, toda sorridente, disse a Tião que iria comer um pouco também, porque, além do sabor delicioso, vinha impregnado daquela energia maravilhosa de Sinhá Tina.
Isso mesmo, meus amigos, como vemos, o amor é um sentimento fundamental em tudo o que vamos fazer, principalmente no que diz respeito à alimentação, seja ela material ou espiritual.
Depois de conversarem, Tião despediu-se e pegou o rumo de casa. Em certa altura do caminho, sentiu algo estranho. Arrepiou-se todo. Começou a fazer uma prece, quando viu aqueles dois espíritos desencarnados confabulando perto de uma árvore. Como das outras vezes, os dois não se aperceberam da presença de Tião.
Ele, passos rápidos, pensou em ficar e tentar ouvir alguma coisa, mas o medo falou mais alto.
Sinhá Tina, pressentindo algo, começou a fazer uma prece para que os Mensageiros de Jesus protegessem seu neto.
A velha senhora tinha uma fé tão grande e inabalável que os espíritos de luz, instantaneamente, vieram em seu socorro.
Tião chegou à casa ofegante.
— Ih, meu fio! o caminho num tava bom, né mesmo? Não se apoquente, pois esses dois logo serão tratado do jeito que eles precisa: com amor, muito amor.
Na cidade, Ernesto pensava em Diamantina. Havia realmente afeiçoado-se à moça; porém, onde poderia cultivar esperanças de ser correspondido? Pensava que um dia, talvez, seus destinos pudessem se cruzar pelos caminhos da vida, tão cheios de surpresas.
Dr. Nelson, vendo-o absorto em pensamentos, foi trocar um dedo de prosa com ele.
Pela primeira vez o rapaz comentou que estava com saudade da mãezinha que deixara com a irmã quando de sua vinda para a casa do tio.
Uma lágrima rolou em seu rosto pela saudade. Parecia pressentir algo que estava por acontecer.
O tio, vendo-o naquele estado tão sensível, tentou animá-lo, dizendo:
Os dois conversaram mais um pouco e depois recolheram-se.
No outro dia, já no consultório, receberam a visita do carteiro.
Entre as correspondências, havia uma carta para Ernesto, enviada por sua irmã.
O rapaz, ao pegar o envelope, emocionou-se.
Entretanto, Ernesto não pôde ler a carta porque havia muitos pacientes no consultório naquele momento, e ele precisava ajudar o tio.
Estava ansioso e muito preocupado com o conteúdo da carta; porém, devido ao atendimento, dedicara-se ao trabalho com tanto amor que conseguira esquecê-la por algumas horas.
Na hora do almoço, a tia percebera-o chegar muito angustiado e vira que o rapaz fora direto ao seu quarto.
Dr. Nelson explicou-lhe que se tratava de uma carta da irmã e que Ernesto estava muito preocupado com sua mãe.
O casal assentou-se na sala,' esperando o sobrinho para o almoço.
O jovem médico iniciou a leitura rapidamente. Seus olhos percorreram as palavras da irmã que não lhe traziam boas notícias.
A saúde de sua mãe inspirava cuidados especiais, e a irmã relatava que estava providenciando tudo da melhor maneira, mas achou-se na obrigação de avisá-lo por ser tão ligado à mãe como era. Sabia que sua partida fora uma contingência da vida e que ele estava fazendo o melhor que podia.
Disse também que de resto estava tudo esta bem e que tinha fé em Deus de que logo as coisas se normalizariam.
Ernesto voltou à sala e contou tudo aos tios. Ambos deram todo o apoio ao sobrinho, que se mostrou muito ansioso por rever a mãe o quanto antes e quem sabe trocar idéias com os médicos que a estavam atendendo.
Dr. Nelson chamou-o para o almoço e pediu que ficasse calmo, pois logo ele estaria junto de sua mãezinha.
Enquanto comia meio sem vontade, lembrava-se das providências que precisava tomar. Teria de dirigir-se à estação a fim de comprar a passagem com antecedência. Num momento, passou-lhe pelo pensamento a figura de Sinhá Tina. Pensou em pedir-lhe que fizesse orações e as endereçasse à mãe adoentada. Disse para si mesmo:
— Assim que puder vou pessoalmente à casa de Sinhá Tina, pois tenho certeza de que terá uma boa acolhida para as minhas preocupações. Quanto ao tio, diria que iria à casa de Ivo, e ele de nada desconfiaria.
A tarde, foi à estação e comprou a passagem. Sua viagem seria dentro de três dias. De lá mesmo resolveu ir ate Sinhá Tina, seguindo a vontade que ia em seu coração.
A viagem de Ernesto
Naquela mesma tarde, Dona Carmen e Diamantina, foram agradecer o doce de leite e fazer uma visita à tão meiga e bondosa senhora.
Sinhá Tina, como de costume, as recebeu com muita alegria.
Tião ainda não havia chegado de seus afazeres, mas, de repente, as senhoras ouviram conversas que vinham do portão.
Diamantina, reconhecendo a voz de Ernesto, ficou um tanto quanto encabulada.
Sinhá Tina disse, sorrindo:
— Calma, fia! num adianta fugi dos compromisso não! Ele veio pedi ajuda e nós vamos fazê o melhor que nós pude, num é mesmo?
Diamantina, reconhecendo naquelas palavras um recado todo especial, tranqüilizou-se.
Ao adentrar a humilde casa, Ernesto ficou com o coração cheio de alegria por encontrar aquelas pessoas que tanto lhe faziam bem. Dirigiu-se a Dona Carmen, perguntando por Ivo.
Ela lhe disse que ele se recuperava, mas ainda inspirava cuidados.
O olhar de Ernesto várias vezes cruzou com o de Diamantina.
A moça, por sua vez, não admitia, mas estava sentindo algo diferente em relação ao rapaz. Um carinho especial brotava naquele momento em seu coração.
Pensava ela: 'Tanto relutei e agora pareço enxergá-lo com outros olhos. Deve estar acontecendo algo com meus sentimentos que não consigo identificar".
Aqueles momentos foram muito agradáveis em casa de Sinhá Tina. Ernesto contava a todos sobre sua mãe que se encontrava adoentada. Foi o que bastou para que todos acompanhassem Sinhá Tina numa prece endereçada a ela. Pediram com muito fervor e, ao término, ela disse que, com a graça de Deus, a enferma seria ajudada na medida em que fosse permitido.
Todos se despediram, e Ernesto acompanhou as duas mulheres até a fazenda, indo, a seguir, direto para casa.
Diamantina, ao entrar, viu que Ivo estava um tanto quanto impaciente. Parecia até que havia lido seus pensamentos e visto o que acontecera em casa de Sinhá Tina com relação a Ernesto. Mas, como o rapaz andava quase sempre com o humor alterado, resolveu deixar a conversa para uma outra hora, talvez.
Sr. Pedro, que havia chegado mais cedo, chamou a esposa ao quarto e quis saber o que fora fazer em casa de Sinhá Tina.
Dona Carmen explicou que fora agradecer o doce de leite, mas já sabia que o marido viria com recriminações.
Naquela noite, a lua se fazia cheia e prateada. Após o jantar, Diamantina dirigiu-se até o piano e tocou uma linda melodia, muito romântica.
Ivo olhava-a sem piscar.
Dona Carmen percebera tudo. Via que o filho nutria enorme paixão pela moça e sabia que o sentimento não seria facilmente correspondido, devido a seus problemas de saúde. Como mãe, sabia das limitações do filho e sofria muito.
Diamantina tinha o pensamento voltado para Ernesto. Aquela melodia a fez ainda mais sensível. Algo de muito estranho se passava em seu coração. Esperaria para ver.
Chegara o dia da viagem de Ernesto.
Na estação repleta de passageiros, carregadores, bagagens que iam e vinham em suas carriolas respectivas, Dr. Nelson foi acompanhar o sobrinho na partida.
— Tio, assim que for possível, retornarei e espero vir com boas notícias — disse o jovem médico.
Abraçaram-se, quando o trem apitou o sinal de partida.
E lá foi ele pela estrada de ferro, soltando a fumaça que se desfazia pelo caminho como nuvens que se desmancham ao passar do vento.
Uma semana se passou, e Ernesto não mandava notícias.
Diamantina, naqueles dias, até sonhava com o rapaz, mas manteve isso em segredo.
Já Ernesto, ao chegar, não encontrou a mãe em boas condições de saúde. Estava acamada e, ao ver o filho, começou a chorar, porém sua debilidade a impedia até de sentar-se na cama.
Ernesto percebeu tratar-se de doença grave, mas não queria desanimar-se. Lembrou-se das palavras de Sinhá Tina, das preces, e procurou transmitir forças também para a irmã.
Sentando-se na sala para conversarem mais à vontade, as crianças, que gostavam muito do tio, sentaram-se ao lado dele e o encheram de perguntas a respeito de sua nova morada, como fora a viagem de trem e se eles poderiam ir com ele algum dia.
Ele, emocionado, abraçou-os e disse:
— Talvez, meus queridos, talvez.
Ernesto permaneceu ao lado da mãe por mais ou menos duas semanas. Acompanhava de perto seu tratamento e estava se preparando para o pior, apesar de não querer encarar a realidade.
Os dias se passavam melancólicos.
Sinhá Tina fazia orações e as endereçava a Ernesto e sua mãezinha. A bondosa senhora afeiçoara-se demais ao jovem médico.
Algumas vezes, Diamantina ia ter com ela e passavam juntas momentos agradáveis, tendo as conversas um doce sabor de entendimento e fraternidade.
Numa fria manhã, em que os médicos debalde tentaram salvar-lhe a vida, a mãe de Ernesto cerrou de vez os olhos carnais para transferir-se à verdadeira vida.
Foi tudo muito doloroso, e o rapaz esperou passar alguns dias em companhia da irmã para confortá-la, mas necessitava retornar aos seus deveres junto ao tio.
Naqueles dias, falou muito sobre Sinhá Tina à irmã. Dizia que ela acreditava que a vida não terminava no túmulo e até fazia contatos com as almas daqueles que já haviam partido.
A irmã, como ele, de formação católica, ficava boquiaberta com tudo aquilo e percebia o quanto o irmão havia mudado. Estava mais sedento das coisas de Deus e procurava aliar a medicina ao Criador da vida.
Dizia ele:
— Não acho que o Autor Universal tenha feito tudo isso para uma única existência física. Por quê? Para quê?
A irmã, acalentando no peito a tristeza da recente perda da mãezinha, procurava em suas palavras um fio de esperança e de consolo.
Chegara o dia do retorno. O cunhado levou-o à estação, donde já havia passado uns quarenta dias desde sua partida.
Ernesto enviara uma carta ao tio, que o aguardava na estação para mostrar-lhe o apoio e confortá-lo da perda que sofrera.
NOVO ATAQUE INIMIGO
Enquanto isso, Ivo ia se recuperando. Certa tarde, resolveu dar um passeio juntamente com Tião e Diamantina. Foram a cavalo para os lados da mina. Tião sentia calafrios. Não queria mostrar medo, mas algo o fazia arrepiar-se.
De repente, aqueles dois espíritos desencarnados, que se encontram ao lado de um arbusto, assustaram o cavalo, que soltou um forte relinchar.
Diamantina, aflita, pediu:
— Vamos voltar!
Porém, nesse instante, Ivo, que estava atrás, teve outra forte crise e despencou do cavalo, caindo ao solo com um de seus pés preso no estribo do animal.
Naquele momento, já desmaiado, Ivo estava pálido e suava demais.
Tião e Diamantina, apavorados, deitaram-no no gramado, tentando fazê-lo reagir.
Sinhá Tina sentiu naquele instante um leve tremor e não tardou a pedir auxílio ao Pai, porque pressentia que algo de errado se passava com o neto e os outros.
Ivo, fora do corpo físico, deparou com aquelas entidades que, ao vê-lo, vieram em disparada ao seu lado.
Tião sentia que precisavam sair dali o mais depressa possível e, graças às orações da avó, conseguiram maravilhosa ajuda espiritual.
Espíritos de luz não permitiram que os dois infelizes se aproximassem de Ivo e foram levados dali, meio hipnotizados.
Diamantina e Tião ajeitaram Ivo num cavalo e retornaram rápido à fazenda, de onde imediatamente foi levado ao hospital, na cidade.
Depois dos exames feitos, constatou-se a fratura no pé. As coisas não estavam boas para o rapaz, novamente.
Ao chegar com as notícias para Sinhá Tina, Tião a escutou dizer, sabiamente:
— Meu fio! quando o amor num dá jeito a dor vem socorre!
Sr. Pedro andava de lá para cá no corredor do hospital, enquanto Diamantina amparava Dona Carmen, que chorava muito.
Dentro de seu coração de mãe era difícil ver o filho recair dia após dia. Tentava encontrar explicações para aquela situação, mas não conseguia.
Dr. Nelson, avisado sobre o ocorrido, foi ao hospital dar seu
apoio.
Ernesto, por ainda estar recuperando-se da perda da mãe e da viagem, deixou a visita para outro momento.
Os médicos não falavam muito a respeito do estado do doente, pois era difícil diagnosticar aquelas crises que deixavam Ivo tão debilitado.
Sinhá Tina fazia orações. Pensava num modo de socorrer o rapaz, mas sabia de o pedido devia partir dele mesmo, e sr. Pedro teria que aceitar que existe um Pai que tudo sabe e tudo vê e que, diante de Suas Leis Eternas, ninguém sai sem dar sua paga.
Alguns dias se passaram, e Ivo estava mais recuperado. Embora ainda com o pé fraturado, recebera alta do hospital.
Diamantina passou a acompanhá-lo a todo instante, procurando fortalecê-lo emocionalmente.
Numa tarde, a moça resolveu ir até Sinhá Tina, e a velha senhora contou-lhe a respeito dos dois espíritos infelizes que, tudo indicava, eram causadores do mal que afetava Ivo desde a infância.
Sinhá Tina pacientemente explicou a Diamantina tudo sobre as sucessivas vidas, que não morremos ao deixarmos a vida física.
As informações foram sendo absorvidas de maneira tão natural pela moça, que parecia já saber de todas elas.
Continuaram a conversar, e Sinhá Tina dizia que o problema de Ivo só seria resolvido se Sr. Pedro viesse, para que, através dele, pudessem começar um atendimento fraterno àqueles irmãos. De nada adiantavam as medicações e as orações se não fosse acudida a causa. Estariam cuidando, nesse caso, só do efeito. Extremamente maléfico, por sinal.
Diamantina tomou uma resolução. Custasse o que custasse falaria com o Sr. Pedro; iria argumentar, dizer que fizesse algo em prol de sua melhora. Sabia que não seria fácil, mas tentaria.
LEMBRANÇAS DE PEDRO
Em casa de seu tio, Ernesto, a par de tudo que o tio lhe contara, também pensava muito em Ivo. Aquilo lhe trouxe à mente como era frágil a vida humana. Lembrou-se da mãezinha que agora não fazia mais parte dessa esfera. Tais pensamentos deixaram-no com os olhos marejados de lágrimas. Pensava: "Mamãe já tinha idade avançada, mas Ivo, coitado, sofre desde criança, sabe-se lá o porquê".
Queria também poder ajudá-lo e, envolto nesses pensamentos sentiu vontade de ir à igreja aliviar as dores da alma. Sentou-se e ficou por longos minutos em profundo silêncio, em prece comovida.
O padre, ao vê-lo, percebeu que estava muito circunspecto e deixou-o à vontade.
Terminada a oração, Ernesto dirigiu-se à sacristia e foi ter com o padre. Pediu que fizesse uma missa em intenção à mãezinha falecida e falou sobre Ivo.
O padre a tudo ouviu e dissera que oraria pelos dois.
Ernesto saiu da igreja e foi até a praça, onde a noite caía serena. O céu salpicado de estrelas cintilantes convidavam a uma comunhão com o Criador. Absorto nesses pensamentos, lembrou-se de Diamantina e sentiu saudade.
Tudo transcorria num clima de normalidade aparente. Dr. Nelson e Ernesto continuavam atendendo no consultório.
Ivo, agora mais recuperado, saía-se muito bem nas aulas de música, o que alegrava muito Diamantina, pois via que o rapaz aguçara a sensibilidade.
Como havia proposto a si mesma, certa noite, após o jantar, pediu ao Sr. Pedro que lhe concedesse alguns minutos de sua atenção, pois gostaria de falar-lhe a sós.
Sr. Pedro ficou um tanto quanto encabulado, mas não teve como recusar tão amável pedido.
Ambos foram para a biblioteca, e Diamantina começou a falar sobre os problemas psíquicos de Ivo.
Entretanto, Pedro não contava com toda a argumentação da jovem. Ela lhe falava coisas que lhe deixaram muitas perguntas sem resposta.
Naquele instante, Dona Carmen pediu a Ivo que fosse com ela até o quarto para fazerem orações, porque ela achava que seria muito importante para a saúde do rapaz.
Ivo, como já estava cansado de tantas crises, internações, enfim, tanto sofrimento, sem pestanejar acompanhou a mãe. Também porque ficou contente ao saber do interesse de Diamantina sobre sua melhora. Seu carinho por ela era muito especial.
Enquanto isso, Diamantina falava sobre a vida, as coisas de Deus, sobre Sua justiça.
Sr. Pedro começou a relembrar fatos contados por seu pai, ocorridos com seu avô nas minas de ouro. Não se sabe a razão, aquelas histórias lhe vieram à mente, e era justamente por elas que aquelas duas entidades sofredoras estavam querendo se vingar. Sabia ele que dois homens trabalhavam para seu avô e que, depois de encontrarem pepitas e mais pepitas de ouro, foram brutalmente assassinados.
Perturbado, o avô de Pedro não demorou a desencarnar muito adoentado e totalmente enlouquecido.
Aquelas imagens lhe vieram à mente de forma tão nítida que o homem, duro como era, estava quase chorando.
" O que estaria acontecendo?" - perguntava-se ele.
Diamantina insistia que Sinhá Tina poderia ao menos tentar ajudar.
Ouvindo um pouco mais a moça, mas não podendo fugir a tão tristes e obscuras revelações do passado, quis de uma forma ou de outra interrompê-la, alegando mal-estar.
Dona Carmen sentiu no momento da oração que alguma coisa mudaria muito nos próximos dias.
A noite caiu silenciosamente.
Compromissos espirituais
Todos estavam recolhidos em seus aposentos, e Diamantina, depois de uma prece de muita intensidade, adormeceu. Saindo do corpo físico, foi encontrar-se com Sinhá Tina e outros espíritos encarregados do socorro a Ivo.
Qual não fora a surpresa de Diamantina quando viu, no meio de todos, Ernesto.
Tratava-se de uma reunião que há muito haviam programado e assumido por tarefa nessa vida.
Instruções recebidas, continuaremos atentos às Leis Divinas imutáveis e justas.
No encontro na espiritualidade, os mentores mostraram a todos os participantes os fatos que estavam propiciando aqueles efeitos naquele momento.
Como o Sr. Pedro havia pressentido em conversa com Diamantina, seu avô fora, em época da busca do ouro, pessoa muito orgulhosa e egoísta. Não media as conseqüências no sentido de prejudicar àqueles que caíssem sob seus domínios.
Porém, como a Lei é imutável, todos um dia, de uma forma ou de outra, voltam para ressarcir seus débitos.
Ivo, hoje, nada mais era que seu bisavô reencarnado, motivo pelo qual aquelas duas entidades passaram anos e anos o perseguindo com o único intuito de vingança.
Os espíritos socorristas sabem que não podem transgredir as leis, porém isso não os impede de auxiliar para evitar mal maior.
Sabiam que, para ajudar Ivo a se curar daquela doença, que nada mais era que uma terrível obsessão, precisariam socorrer os vingadores que, no passado, foram suas vítimas.
Depois de tudo esclarecido, Diamantina e Ernesto receberam instruções para que fizessem tudo sob a orientação sábia de Sinhá Tina.
Ambos teriam leve impressão daquele contato na espiritualidade, porque ainda não se achavam devidamente preparados para ter plena consciência de tudo, fato que poderiam modificar com qualquer interferência.
Após amanhecer, Diamantina recordou-se vagamente do sonho, mas, na mesa do café da manhã, o Sr. Pedro, um tanto assustado, afirmou ter sonhado com o avô que mal conhecera, mas o sonho deixara nele uma impressão muito forte.
Saiu dali e pediu a Dona Carmen que o acompanhasse para uma conversa. Disse que não sabia o que estava se passando, mas sentia muito medo pelo bem-estar do filho.
Dona Carmen, pela primeira vez, viu nos olhos do marido um pedido de auxílio. Percebia que alguma coisa começara a modificar-se.
Enquanto isso, Ernesto, nos momentos vagos no consultório, ficava pensando em como poderia ajudar Ivo, pois despertara naquela manhã com a nítida sensação de que deveria fazê-lo de alguma forma.
Sinhá Tina, que tinha a consciência de que tudo corria pelo rumo certo, comentou com Tião sobre as coisas que poderiam vir a ocorrer. Dizia ao rapaz para que não estranhasse se o patrão viesse ter com ela, fato que jamais pensaram poder acontecer um dia.
Na fazenda, tudo era muito belo. A natureza fora generosa com o lugar que, por entre as lindas montanhas azuis, o sol se punha com esplendor, banhando a tudo com seus raios dourados.
Porém, esse ouro de energias salutares banhava a todos, e ninguém brigava ou cometia crimes para poder contemplá-lo.
Ele, o astro-rei, era uma bênção Divina mostrando mais uma vez que o Criador fez do homem seu herdeiro de todas as riquezas, que dinheiro algum pode adquirir.
Nos dias que se seguiram, Ivo mostrou-se visivelmente mais tranqüilo. Sempre queria estar envolvido com a música, que lhe trazia grande bem-estar.
Vejam, amigos, como a música elevada consegue afastar de nós os maus pensamentos e sentimentos.
Os dias passaram-se, e SinháTina preparava-se para a tarefa que em breve precisaria cumprir.
Certa tarde, Diamantina perguntou a Dona Carmen se Tião poderia levá-la até a cidade. Estava querendo sair um pouco, ver as pessoas, a praça, enfim, ir até a igreja.
Tião, com toda boa vontade, levou a moça e ficou fazendo algumas compras no armazém, enquanto Diamantina revia os lugares que lembravam muito sua chegada àquela cidade.
Foi até a igreja e sentiu-se envolvida por um halo de grande bem-estar. Não percebeu que alguém vira o momento em que ela adentrava a igreja e sentou-se alguns bancos atrás.
Era Ernesto, que tivera a intuição de fazer o mesmo que Diamantina. Queria rezar um pouco, meditar, enviar pensamentos à mãezinha que, estivesse onde estivesse, receberia dele aquele gesto amor.
Ao virar-se, Diamantina viu o rapaz com um largo sorriso no rosto.
Ele, delicadamente, aproximou-se, e ambos ficaram emocionados por alguns momentos.
Depois dos cumprimentos, Ernesto convidou Diamantina para um passeio pela praça.
Realmente a tarde estava convidativa para uma conversa edificante e carinhosa.
Sentaram-se em um banco, debaixo de frondosa árvore cujas flores já caídas no calçamento deixavam um tom rosa, como um tapete bonito para quem por ali passasse.
Embora Ernesto quisesse falar-lhe sobre outras coisas, a conversa girou em torno de Ivo.
Falaram a respeito de suas crenças, dos motivos do sofrimento, e, sendo Ernesto um homem da ciência, não via no rapaz doente motivo físico para viver às voltas com tão fortes medicamentos, que não passavam de paliativos.
Conversaram por várias horas que nem perceberam a chegada de Tião.
O rapaz ficou meio sem jeito, mas a noite se aproximava, e Tião pensava em retornar à fazenda com Diamantina na mais absoluta segurança.
Diamantina despediu-se de Ernesto e convidou-o para ir à fazenda no fim de semana para visitar Ivo e, quem sabe, poderiam chegar até a casa de Sinhá Tina e trocar mais algumas idéias.
Era incrível, mas pareciam saber que estavam reunidos ali com uma tarefa que só mesmo no íntimo poderiam constatar.
Diamantina e Tião tomaram o rumo da fazenda, e Ernesto retornou à casa do tio completamente feliz e com o coração repleto de esperanças.
Passados alguns metros da porteira, os dois, Diamantina e Tião, que estavam na charrete, perceberam algo de estranho. Os cavalos ameaçaram recuar.
Tratavam-se das entidades menos felizes que agora não podiam mais aproximar-se da forma como faziam. Era só mudar os pensamentos e as atitudes dos encarnados e as coisas começaram a mudar para eles também.
Tudo na vida tem o momento certo de acontecer.
O pobre Tião estava apavorado. Já estava cansado de passar por aqueles sustos. A avó lhe dizia para sempre segurar nas mãos de Deus. Elas eram o rumo certo para livrar-lhe das garras do mal.
Bem, sabemos, porém, que energias como o medo nos distanciam dos bons pensamentos e diminuem sensivelmente nossa fé.
Por outro lado, Diamantina fixou-se na oração benfazeja e conseguiu a calma interior de que tanto necessitava.
Ambos ficaram ali por uns longos minutos até que as coisas se acalmaram, e Tião, conduzindo os cavalos, conseguiu levá-los até a casa.
Diamantina chegou empalidecida à casa, mas, sem que Ivo percebesse, chamou Dona Carmen para contar-lhe o ocorrido.
— Minha filha, sinto que teremos de nos unir em orações. Temos de afastar o mal que isso está causando a nós e muito mais a Ivo.
Diamantina foi tomar um banho na tentativa de relaxar um pouco.
Ivo, ingênuo, nada percebeu que alguma coisa acontecera, pois estava na varanda quando Tião passou e o cumprimentou rapidamente. Vendo-se só com a mãe, foi ter com ela uma conversa. Perguntou-lhe muitas coisas sobre onde Diamantina havia ido e o que realmente estava acontecendo.
Dona Carmen fugiu do assunto, dizendo que talvez Diamantina estivesse saudosa de seus tempos de criança, da família, e que aquilo poderia estar-lhe causando angústia.
O rapaz não se convencera muito, mas não quis esticar o assunto, já que a moça retornava à sala.
Ela, se sentou ao piano e tocou uma linda melodia, que fizera chorar Dona Carmen e Ivo.
Quando viu Ivo chorando, achou que algo já estivesse acontecendo, que sua sensibilidade viera à tona.
Em casa de Sinhá Tina, Tião, depois de narrar toda a história à avó acalmou-se com as orações fervorosas da velha senhora e com suas explicações certeiras a respeito de tudo o que estava acontecendo.
O momento do auxílio a Ivo estava chegando, porque agora tanto o pai como o próprio Ivo se mostravam mais acessíveis a receber aquele tipo de ajuda.
Ernesto, logo pela manhã, acordou pensando na tarde anterior e certificava-se, a cada minuto, de que seu amor por
Diamantina era algo muito verdadeiro. Pensou em atender no consultório, juntamente com o tio, e no fim da tarde ir até a fazenda. Nada comentou com Dr. Nelson, pois gostaria de ir sozinho.
O sr. Pedro não passara bem a noite. Tivera terríveis pesadelos, aos quais reclamou a Dona Carmen.
Ela, aproveitando a chance, falou a ele sobre a necessidade de fazerem alguma coisa. Quem sabe chamar o padre para vir benzer a casa?
Sr. Pedro, meio contrariado, fez sinal de concordância com a cabeça e ordenou a Tião que fosse à cidade e combinasse tudo. O homem, embora extremamente cético em relação a tudo aquilo, aceitara a sugestão da esposa pelo menos por desencargo de consciência.
O padre mostrou-se muito interessado e, naquela mesma tarde, foi à fazenda para fazer o que o haviam pedido.
Logo que chegou viu Diamantina e coincidentemente, minutos após sua chegada, Ernesto subiu as escadas da varanda.
Dona Carmen acompanhou o padre pela casa, enquanto Diamantina ficou na sala, juntamente com Ernesto, sr. Pedro e Ivo.
O padre fez as orações acompanhado da senhora, que atentava para tudo.
Na sala, o clima estava um pouco constrangedor devido ao fato de Ernesto estar presente e Ivo ter notado alegria nos olhos de Diamantina.
Tião ficara na varanda esperando para acompanhar o padre na saída e percebeu quando Ivo veio ao seu encontro.
E assim tentou desconversar.
Na casa, Diamantina procurava manter-se em silêncio para colaborar com o trabalho do padre, mas Ernesto e o sr. Pedro conversavam sem parar.
Os dois, embora por motivos diferentes, estavam muit0 ansiosos.
O padre realmente sentiu algo no ar. Comentou com Dona Carmen sobre a necessidade de cultivar o hábito de participar das missas, de deixar Deus participar mais da vida de todos ali.
Dona Carmen concordou, porém sabia que o marido não possuía temperamento tão fácil e talvez, só vendo algo de muito sério, pudesse achar uma forma de olhar um pouco para seu lado verdadeiro, o espiritual.
Tudo encerrado. Foram servidos um suco com biscoitos ao padre, e Tião foi levá-lo de volta à cidade.
Ernesto, convidado por Dona Carmen, ficou para o jantar, muito embora percebesse a contrariedade de Ivo.
Todos permaneceram silenciosos durante a refeição e, após terminada, Dona Carmen pediu a Diamantina que tocasse ao piano uma linda melodia.
Tião retornou à fazenda. Sinhá Tina já o esperava. A comida quentinha esfumaçava no fogão de lenha. Tudo ali era muito simples, mas completamente autêntico.
Tião comentou com a avó que o padre benzera a casa e tudo o mais, ao que a velha senhora respondeu:
— Meu fio! coisas de fora num adianta. Claro que a oração tem o seu valor, mais, se nós num muda o coração e nossa cabeça, num usá do perdão e não deixa a luz entra na escuridão, num adianta nada. Só o amor verdadero, quando acompanhado pela força de vontade de se melhora, é que nos leva pra caminho melhor! Chega de conversa que as coisa já tá acontecendo da forma como tem que sê! Deus é bom e justo!
Ernesto aproveitou o quanto pôde da companhia de Diamantina. Ouvi-la tocar fora para ele algo maravilhoso.
Porém, o tempo corria célere e a noite já avançava em altas horas.
Ivo, vendo os dois com trocas de olhares tão insistentes, pediu licença para retirar-se. Estava por demais enciumado para continuar partilhando daquela cena.
A mãe percebeu muita mágoa no semblante do filho.
TOMADA DE CONSCIÊNCIA
Ernesto despediu-se e combinou com Diamantina que entraria em contato com ela para marcarem um encontro, pois queria ter uma conversa definitiva, ainda mais agora que se sentia levemente correspondido.
Diamantina recolheu-se. Fez a oração costumeira e pediu ajuda a Deus para que suas atitudes fossem as mais acertadas possíveis. Também estava preocupada porque viera para ajudar Ivo, mas, seu coração, naquele momento, palpitava por Ernesto. Deitou-se e logo adormeceu.
De repente, viu-se diante de Sinhá Tina envolta em muita luz. Ela lhe segurou as mãos e disse que o momento de socorro a Ivo estava cada vez mais próximo e que ela tivesse forças suficientes e muita fé em Deus, pois tudo aconteceria no momento certo.
Ivo, em sua cama, debatia-se muito. As entidades doentias que eram a causa de seus pesadelos procuravam-no. De tão ignorantes que eram, não conseguiam entender muito a realidade dos fatos. Sabiam, sim, tratar-se do homem que, por sua ganância, lhe fizera perder a vida.
Longos anos se passaram, e aqueles dois irmãos ainda não tinham tido um pensamento sequer de querer melhorar. Daí o fato de o livre-arbítrio ser correto.
Deus não tira ninguém do sofrimento se aquele que sofre não der o primeiro passo e continuar firme na certeza da melhora plena.
Os dias passaram-se, e depois daquela noite o comportamento de Ivo mudou muito. Devido ao seu ciúme por Diamantina, não aceitava mais as aulas de música que tanto lhe ajudavam.
Aumentavam-se as preocupações de Dona Carmen.
Sr. Pedro percebeu que o filho estava decaído e comentou com a esposa:
— Parece que não resolveu muito o benzimento do padre. Eu falei que isso tudo não passa de crendice.
Dona Carmen não ousou retrucar. Preferiu deixar as coisas acontecerem e teve paciência de esperar. No fundo sabia que Deus não os desampararia.
Diamantina, por sua vez, certa tarde foi ao encontro de Ernesto e escutou tudo o que o jovem médico tinha a lhe falar.
O rapaz abriu seu coração com tanto amor e sinceridade que Diamantina chegou às lágrimas.
— Diamantina, sinto algo novo em meu peito porque você despertou em mim um amor imenso. Gosto muito do seu caráter e de sua forma de encarar a vida e os fatos que dela decorrem. Por outro lado, estou ciente de que Ivo também cultiva em seu coração um sentimento por ti e não sei nesse caso o que devemos fazer.
Diamantina olhou-o firmemente nos olhos e disse com uma convicção de dar inveja:
— Ernesto, peço que tenha um pouco mais de paciência. Sei que ficaremos juntos porque não estamos aqui por acaso. Quanto a Ivo, sua participação em seu auxílio é também de grande importância. Tenhamos fé que tudo sairá bem.
A noite chegou, e Ernesto a levou de volta à fazenda, onde a cena que encontraram não lhes agradou em nada.
Escutaram do lado de fora o burburinho na sala. Muita conversa.
Entraram e encontraram Dona Carmen aos prantos, amparada pelas criadas.
Ivo tivera outra forte crise. Estava desacordado.
Tião havia ido buscar Dr. Nelson, mas Ernesto arregaçou as mangas e pôs-se a examiná-lo.
Ivo havia ficado muito enciumado em saber que Diamantina agora cultivava o amor de Ernesto. Começou então a entrar numa faixa negativa de vingança e ódio e acabou abrindo enorme brecha para que as entidades que o perseguiam encontrassem o campo propício. Ele se sentira mal e era como se estivesse sendo sugado através de todos os poros.
Ernesto, em um primeiro momento, fizera ares de muita preocupação. Chamou Diamantina num canto e lhe disse:
— Não vejo nada aqui que justifique tal estado de morbidez. Diamantina, corra em casa de Sinhá Tina é a traga, custe o que custar.
A moça não titubeou e, enquanto Dr. Nelson adentrava ao recinto, pegou Tião pelo braço e pediu a ele que fossem buscar a avó.
Tião espantou-se. Jamais pensara que Sr. Pedro desse o consentimento.
Diamantina estava muito firme em sua decisão e, parecendo ler os pensamentos de Tião, disse:
— Tião, não estamos sozinhos nessa empreitada. Deus nos mostrou o caminho e sentimos em nosso coração que chegou o momento do socorro.
Sinhá Tina, já sabendo o que viria, havia preparado uma garrafada com as ervas medicinais que a espiritualidade havia-lhe indicado.
Foram os três cumprir a tarefa que há muito assumiram.
Ivo encontrava-se desacordado. O quarto estava cheio de gente, criadas trazendo toalhas molhadas, amónia, para ver se conseguiam despertá-lo.
Sr. Pedro, ao avistar Sinhá Tina, quase desmaiou. Porém, não pôde impedir e, naquele momento foi levado por Dona Carmen ao seu quarto e ambos puseram-se a rezar diante do oratório.
Dr. Nelson não se conformava com a presença de Sinhá Tina. Bateu de frente com a senhora e saiu dali com passos largos.
No quarto de Ivo ficaram Diamantina, Tião, Ernesto e nossa querida Sinhá.
Naquele momento, ela pediu a atenção de todos: precisavam estar com os pensamentos voltados para o Mestre Jesus, pois três pessoas que muito sofriam deveriam ser amparadas.
Dependeria delas, obviamente, o sucesso do socorro bendito.
Quando começaram a orar e a firmar o pensamento, Tião, sentado aos pés da cama de Ivo, começou a ter e sentir diferentes sensações. Uma de suas entidades se aproximou, e a avó sabia que a assistência começava ali.
Pela boca de Tião, que pareceu transfigurar-se, falou a entidade:
— Até que enfim vamos cobrar o que merecemos.
Sinhá Tina ficou bem perto de Tião, agora servindo como médium e controlando a entidade doentia.
Ernesto e Diamantina, mesmo apavorados, não deixaram de orar. De uma forma ou de outra sabiam fazer parte daquela tarefa.
Sinhá Tina começou a falar-lhe bem fundo ao coração e aquele que chegara todo arrogante agora chorava. Chorava de arrependimento por perceber quanto tempo perdera.
Os amigos socorristas acolheram-no, e ele foi levado a um Posto de Socorro próximo dali.
Ivo sentou-se na cama e começou a chorar convulsivamente no momento em que reconheceu a segunda entidade que se manifestou, dessa vez pela psicofonia de Diamantina.
A moça, consciente que estava de toda a situação, dava sua parcela naquele instante para o esclarecimento que precisava ser feito.
Falava muito e também chorava.
Ivo relembrou seu passado remoto por meio de um recurso utilizado pelos espíritos socorristas e começou ali seu renascimento para uma nova vida.
Viu-se diante daqueles que hoje, seus algozes, ontem haviam sido vítimas indefesas de sua sovinice e ganância.
Através de Diamantina, falava a segunda entidade mais endurecida. Percebia-se isso claramente por suas palavras carregadas de rancor.
Sinhá Tina, no cumprimento reto e responsável de seu dever, era assistida de forma sensacional.
Orava e tentava conversar, amenizando o sentimento de ódio que impedia aquele irmãozinho sofredor de galgar melhores lugares.
As horas foram longas até que a entidade arredia percebeu no local a presença de sua mãezinha, que lhe pedia usasse do perdão se quisesse ser feliz.
Foram momentos de muita emoção.
Ivo, envolvido por aquela equipe, chorou muito e disse que estava disposto a ressarcir todos os seus débitos e faltas. Pediu perdão e disse que agora realmente sabia o que era o amor verdadeiro, vendo a forma com que Sinhá Tina atendia ao caso com tanto amor e desinteresse material.
Ernesto e Tião a tudo assistiam e, sob as recomendações da senhora, faziam orações.
O tempo passou até que finalmente a entidade rebelde reconheceu que realmente estava disposta a mudar de vida. Percebera o quanto havia sofrido por sua própria ignorância.
Naquele momento, os socorristas aproveitaram a oportunidade para retirá-lo, a fim de que pudesse ser tratado em local apropriado.
Sinhá Tina, envolta em grande luz, fez uma prece tão profunda que o ambiente pareceu elevar-se do chão.
— Sinhô, meu Pai! aqui viemo prá ajuda e somo nós que fomo mais ajudado. São tantas as vezes que Nosso Pai nos perdoa que temo até vergonha de continuar tantas vezes no erro e na mald ade. Sua Misericórdia é tão grande que perto de Vóis somo que nem grão de areia solto no vento, mas sabemo que os dia vão nos trazê alegria quando nosso coração se liberta da maldade e do egoísmo. Pedimos que olhe por nós que precisamo muito de Vóis! Assim seja!
NOVOS RUMOS
Depois de tudo acabado, Ivo estava completamente suado. Sua roupa encharcada chegara até a molhar fronhas e lençóis.
Sinhá Tina recomendou a Diamantina que desse ao rapaz o remédio de ervas, para seu restabelecimento.
Tratava-se de um tônico, e logo ele estaria em perfeitas condições de saúde para realizar tudo o que viera fazer aqui na Terra
Ernesto saiu do quarto e se deparou com o tio e o sr. Pedro na sala, cabisbaixos.
O tio fez-lhe sinal para irem embora e nem quis trocar palavra.
Dona Carmen adentrou o quarto e deu, em prantos, um forte abraço em Sinhá Tina, que sorria de felicidade.
— Não sei como posso agradecer tudo o que a senhora fez por nós. Só a bondade divina poderá recompensá-la na eternidade.
Dirigiu-se a Ivo, que estava com uma aparência de quem havia retornado de um grande pesadelo e, agora, percebia que tudo passou.
Tião pegou a avó pelo braço e entre lágrimas foram para casa. Sabia que era mais uma daquelas coisas que acontecera ali, naquela noite, que só o Pai Maior poderia explicar-lhes ao coração. Amava a avó a cada dia mais e como aprendia com ela. Nem sabia o quanto.
Todos foram embora.
Ivo pediu à mãe que chamasse o pai. Precisava muito falar-lhe, e o momento era aquele.
Sr. Pedro adentrou o quarto e, abraçando o filho, um sentimento lhe invadiu a alma e o fez chorar copiosamente.
Aquele momento estava sendo maravilhoso.
Dona Carmen há muito ansiava ver seu marido, pai de seu filho, agindo como tal.
O abraço entre os dois fora comovente. Era como se uma nova luz entrasse por aquela casa. Tudo parecia modificado.
Sinhá Tina, chegando em casa, agradeceu, juntamente com Tião, por mais aquela oportunidade abençoada, em que o trabalho no socorro aos irmãos fora feito com tanta ajuda do Alto.
Avó e neto pediram que, de agora em diante, Ivo pudesse recomeçar uma nova vida sem todas aquelas crises que o fizeram crescer em meio a tanta doença e medicação.
Dr. Nelson fora o caminho todo de retorno ao lar sem trocar palavra com Ernesto. Este, por sua vez, sabia da total desaprovação do tio em relação a tudo o que ocorrera, mas, com todo o seu bom senso e aprendizado, não poderia negar jamais que Deus agira através daquele grupo de pessoas de boa vontade.
No dia seguinte, logo pela manhã, tentou conversar com o tio, mas percebeu, pelo tom de voz do Dr. Nelson, que não adiantaria. Melhor seria que o tempo e a vida lhe mostrassem aquilo que para ele era uma coisa muito real e verdadeira. Deixou-o com seus pensamentos e respeitou suas opiniões.
O café da manhã de Ivo fora repleto de guloseimas que Dona Carmen pediu que fossem preparadas ao gosto do rapaz.
Diamantina, porém, estava receosa. Sabia em seu íntimo que Ivo iria tentar conversar com ela e não saberia como fugir daquela conversa.
Sr. Pedro, com o semblante sereno, tomou o café e seguiu para os afazeres da fazenda que pediam sua presença.
Pela primeira vez, em anos, deu um beijo na testa da esposa e um abraço no filho.
Realmente, vemos aqui que o verdadeiro sentido e fundamento de um lar estava renascendo no amor e respeito mútuos.
Ivo chamou Diamantina ao piano e tocou para ela uma bela melodia. Depois, convidou-a para um passeio por entre os arvoredos.
Diamantina estava com o coração batendo aceleradamente. Temia pela saúde de Ivo, muito embora soubesse que tudo havia acontecido porque ele próprio demonstrou vontade firme e segura em modificar-se.
A conversa iniciou-se receosa.
Diamantina, olhos baixos, escutava surpresa o que o rapaz estava lhe dizendo.
Falava-lhe de seu carinho por ela; porém, agora, sentia tudo isso de forma diferente. Pela primeira vez compreendera que sua missão ali fora a de auxiliá-lo e por amor a ela disse que sabia que ela e Ernesto teriam seguir seus caminhos juntos.
Diamantina levantou os olhos marejados de lágrimas e abraçou-o ternamente.
Passearam, e ali selava-se uma grande e terna amizade que começara um dia em algumas notas de piano.
Em casa de Sinhá Tina, a equipe socorrista a havia informado que aqueles irmãozinhos seguiram para o tratamento necessário e que mais uma vez sua boa vontade fora algo grandioso para aquele desfecho feliz.
A velha senhora chorou comovida e soube que sua rotina continuaria, até quando Deus permitisse, auxiliando com a luz do amor e da verdade que clareia a mais densa das trevas.
O tempo correu célere, e para os novos amigos vamos deixando nosso sincero abraço fraterno.
Dois anos haviam-se passado desde os últimos importantes episódios.
Ivo recuperara-se quase totalmente, porque sabemos que as coisas não são assim feitas como num passe de mágica.
Começou a ajudar o pai no tocante aos trabalhos da fazenda, e a música virara sua doce companheira. Rendera tanto no aprendizado que decidira pedir ao pai se poderia passar aquilo que lhe viera como remédio, através de Diamantina, para os filhos dos empregados da fazenda.
Sr. Pedro preparou uma sala especial, onde fora colocado o piano, e encarregou-se de adquirir livros, partituras, enfim, tudo o que pudesse ajudar Ivo nos novos horizontes que se abriam.
Na sala, havia oito crianças, todas muito interessadas pela música. Seus pais não sabiam como agradecer, porque, financeiramente, não poderiam arcar com o pagamento das aulas, as quais Ivo não cobrava nenhum tostão.
Aquele tempo de renovação em sua vida fê-lo sentir e pensar melhor a respeito da existência e do motivo que nos levava passar por determinadas dificuldades.
Agora, poderíamos assim dizer, tornara-se um homem consciente de seus limites e possibilidades.
E Ernesto e Diamantina? Que sucedeu com eles?
Ernesto havia, com o auxílio de Diamantina, montado um consultório na zona rural, onde atendia a preços módicos todas as pessoas da região e mesmo as que vinham de longe.
Todos achavam que o doutor tinha algo de divino em seu atendimento, pois o amor que depositava na consulta a cada paciente era realmente de muita afetividade e abnegação.
Haviam se casado há quase um ano, e Diamantina encontrava-se no comecinho de sua primeira gestação.
Os dois irradiavam felicidade. Eram gratos à vida e a Deus por terem tido a chance de passar por essa existência deixando algo de bom no coração de cada um, principalmente no de sr. Pedro, que não medira esforços em adquirir a casa em que hoje abriga o consultório de Dr. Ernesto e de sua auxiliar e querida esposa Diamantina.
O tio, Dr. Nelson, que ficara na cidade, aprendera muito com o sobrinho e já não estava mais tão descrente assim.
Dessa forma, as coisas foram se ajeitando, e Dr. Ernesto foi angariando amigos em longínquas cidades. Porém, quando sua sensibilidade e a medicina convencional não surtiam o efeito necessário, ele não se fazia de rogado e indicava com amor o endereço da casa de nossa querida Sinhá Tina.
Vamos nos distanciando da janela da sala de música de Ivo e, percorrendo a estrada, abrimos pequeno portão, ladeado por lindas flores. Encontramos a velha senhora sentada no terreiro, contemplando o céu, agradecendo ao Pai Amoroso com toda a sua humildade de gratidão, que, embora tivesse passado pelas agruras de um momento em que a cor da pele distinguia quem era melhor ou pior, ainda assim plantava por onde passava o amor, a esperança e a sementinha do perdão, caminho pelo qual chegaremos sem dúvida ao Portal do Senhor, onde o brilho que vislumbraremos será guardado para sempre em nossos corações.
Vera Lucia Proença
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