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Sexta-feira, 17:50, São Petersburgo
— Não entendo, Pavel — disse Piotr Volodya.
Pavel Odina segurou o volante com mais força e olhou de cara feia para o homem que ocupava o banco do carona da van.
— Não entende o que, Piotr?
— Você perdoou os franceses — respondeu Piotr, cofiando uma farta costeleta. — O que me diz dos alemães? Afinal, os dois invadiram a Mãe Rússia.
Pavel franziu as sobrancelhas.
— Se não entende a diferença, Piotr, você é um tolo.
— Isso não é resposta — protestou Ivan, um dos quatro homens que estavam no banco traseiro.
— Pode ser verdade — riu Eduard, sentado ao lado dele —, mas Ivan tem razão. Isso não é resposta.
Pavel mudou de marcha. Aquela era a parte que ele mais detestava do percurso de meia hora que fazia todas as noites até os apartamentos do Prospekt Nepokorennykh. A apenas dois minutos do Hermitage, teve de reduzir a marcha ao se aproximar do rio Neva. Estavam presos no tráfego, enquanto os inimigos políticos continuavam a toda velocidade.
Pavel tirou um cigarro do bolso e Piotr acendeu-o para ele.
— Obrigado, Piotr.
— Você ainda não me respondeu — insistiu Piotr.
— Vou responder quando chegarmos à ponte — replicou Pavel.
— Não posso xingar e pensar ao mesmo tempo.
Pavel manobrou bruscamente para passar da pista central para a pista da esquerda, fazendo os passageiros perderem o equilíbrio. Oleg e Konstantin, que haviam ferrado no sono no momento em que deixaram o Hermitage, acordaram, sobressaltados.
— Você é muito impaciente, Pavel — afirmou Ivan. — Por que está com tanta pressa para chegar em casa? Por causa da sua mulher? Desde quando?
— Muito engraçado — comentou Pavel.
A verdade era que não tinha pressa para chegar a lugar nenhum, mas sim para se livrar da pressão, para se livrar da data fatal que os preocupava há vários meses. Agora que estava quase tudo terminado, mal via a hora de voltar ao velho emprego de fazer programas de animação em computador para a Mosfilm.
Depois de mudar novamente de marcha, Pavel ziguezagueou entre as filas de pequenos Zaporojets-968, com seus ruidosos motores de 43 cavalos, e os Volga M-124 de cinco lugares, um pouco maiores. Havia também alguns carros estrangeiros, todos dirigidos por funcionários do governo e operadores do mercado negro; ninguém mais tinha dinheiro suficiente para comprá-los. Ele e os companheiros não estariam sequer naquela van se não tivesse sido emprestada pelo estúdio de TV O potente veículo suíço era a única coisa de que iria sentir falta.
Não, isso não é verdade, pensou, olhando para oeste. Saboreou a visão da Fortaleza de Pedro e Paulo na margem oposta do rio Neva, cujas torres finas e elegantes naquele momento refletiam o sol poente.
Sentiria falta também de São Petersburgo. Sentiria falta da beleza daqueles ocasos avermelhados do golfo da Finlândia, das águas tranquilas e azuis do Neva, do Fontanka, dos rios Yekateringovki e do esplendor dos muitos canais. Embora as águas ainda estivessem um pouco sujas, depois de anos de descaso por parte dos comunistas, já não transportavam resíduos industriais malcheirosos ao serpentearem pelo coração da bela cidade, a Veneza russa. Sentiria falta da majestade do palácio Belozersky, vermelho como um rubi, dos interiores dourados da capela Alexander Nevsky, onde às vezes ia rezar, dos bulbos folheados a ouro do palácio de Catarina, a Grande, e dos jardins e fontes de Petrodvorets, o palácio de Pedro, o Grande. Sentiria falta dos aerobarcos pintados de branco que deslizavam à superfície do rio Neva como se saídos de um romance de ficção científica de Stanislaw Lem, e dos magníficos encouraçados que passavam por eles, entrando e saindo da Escola Naval de Nakhimov, na ilha de Aptekarsky.
Além disso, é claro, sentiria falta do inigualável Hermitage. Embora eles não tivessem permissão para circular no museu, era exatamente isso o que ele fazia sempre que o coronel Rossky estava ocupado. Mesmo que alguém o visse dia após dia, pensaria que ele não passava de um simples trabalhador. Ninguém iria reparar nele. Além disso, seria demais esperar que um homem religioso deixasse passar a oportunidade de dar uma olhada na Descida da Cruz, de Rembrandt, ou na Lamentação de Cristo, de Carracci, ou em seu quadro favorito, São Vicente em um Calabouço, da Escola de Ribalta. Especialmente quando sentia tanta afinidade com o cativo, mas resoluto, São Vicente.
Por outro lado, ficaria aliviado ao se ver livre do trabalho, da tensão e, principalmente, dos olhos vigilantes do coronel Rossky. Servira sob as ordens do filho da mãe no Afeganistão e amaldiçoava o destino que tornara a reuni-los durante os últimos dezoito meses.
Como sempre fazia ao chegar à ponte do Kirovsky Prospekt, Pavel passou para a pista externa, com sua mureta de concreto e seus motoristas mais afoitos. Respirou fundo enquanto se juntava aos veículos mais rápidos.
— Quer uma resposta? — perguntou Pavel, dando uma tragada no cigarro.
— A qual das perguntas? — brincou Ivan. — Aquela que fiz a respeito da sua mulher?
Pavel amarrou a cara.
— Vou lhe dizer qual é a diferença entre os alemães e os franceses. Os franceses seguiram Napoleão porque tinham fome. Eles sempre colocaram o conforto na frente da decência.
— O que me diz da Resistência? — interpôs Piotr.
— Um fato irrelevante. O tremor reflexo de um cadáver. Se a Resistência na França tivesse sido tão forte quanto a Resistência dos russos em Stalingrado, Paris jamais teria caído.
Pavel pisou fundo no acelerador para evitar que um Volkswagen que cortava pela direita se colocasse à sua frente. Operadora do mercado negro, pensou, com base no olhar hostil da mulher. Olhou pelo espelho retrovisor e viu que um caminhão saía da pista central e se colocava atrás dele.
— Os franceses não são maus — prosseguiu Pavel. — Por outro lado, os alemães seguiram Hitler porque, no fundo, continuam vândalos. É só dar tempo a eles. Garanto que um dia desses as fábricas alemãs vão voltar a produzir tanques e bombardeiros.
Piotr sacudiu a cabeça.
— O que me diz do Japão?
— São outros filhos da mãe — declarou Pavel. — Se Dogin ganhar a eleição, também vai ficar de olho neles.
— A paranoia é uma boa razão para votar em alguém para presidente?
— Temer antigos inimigos não é paranoia; é prudência.
— É provocação! — exclamou Piotr. — Não se vota em um homem simplesmente porque ele prometeu atacar os alemães ao menor sinal de remilitarização.
— Esse foi apenas um dos motivos. — O movimento à frente diminuiu, e Pavel acelerou para cruzar o rio de águas turvas. Os homens fecharam as janelas para se proteger do vento cortante. — Dogin prometeu revitalizar o programa espacial, o que vai fortalecer a economia. Ele vai construir mais estúdios como o nosso e a instalação de novas fábricas ao longo da Ferrovia Transiberiana aumentará a produção de bens de consumo.
— Onde vai arranjar dinheiro para todas essas obras maravilhosas? — perguntou Piotr. — Nosso pequeno ninho custou vinte e cinco bilhões de rublos! Acredita realmente que se Dogin ganhar ele vai conseguir cortar gordura suficiente do governo e das aventuras da política externa?
Pavel soltou uma baforada e fez que sim com a cabeça.
Piotr franziu a testa e apontou para trás com o polegar.
— Não foi o que eu sem querer ouvi por lá. O Número Dois estava conversando com um assistente sobre os operadores do mercado negro. É com eles que espera conseguir o dinheiro, e esta é uma ligação perigosa para...
Pavel reagiu instintivamente quando o Volkswagen subitamente o fechou. Pisou com força no freio e girou o volante para a direita. Nesse momento, ouviu um ruído surdo, e uma fumaça verde e espessa começou a sair debaixo do painel.
— O que é isso? — exclamou Piotr, tossindo.
— Abram a janela! — gritou um dos homens do banco traseiro, enquanto todos começavam a sufocar.
Mas Pavel já tombara sobre o volante, quase sem sentidos. Não havia ninguém dirigindo quando o caminhão os atingiu por trás.
O Volkswagen estava parcialmente na pista da direita quando o caminhão jogou a van contra ele. O lado esquerdo do para-lama dianteiro da van bateu no carro, arrancando fagulhas e deslizando pelo seu lado direito. Dirigindo-se para a beirada da ponte, a van chocou-se com a mureta de concreto e passou por cima dela, impelida pelo caminhão. O pneu direito estourou, e o eixo dobrou-se sobre o muro de proteção e a van mergulhou de nariz no rio encapelado.
Houve um silvo quando o veículo atingiu a água, equilibrou-se por alguns momentos e depois capotou. Bolhas de vapor e ar escaparam pelos lados, misturando-se com a fumaça verde que se dissipava, enquanto a van era arrastada pela correnteza, de cabeça para baixo. A cabine estava totalmente submersa.
O corpulento motorista de caminhão e a jovem loura que dirigia o Volkswagen foram os primeiros a chegar à cena do acidente. Logo depois, outros motoristas se juntaram a eles, abandonando seus carros.
O homem e a mulher não se falaram; limitaram-se a ficar olhando enquanto a van era lentamente arrastada pela correnteza em direção sudoeste, as bolhas de ar diminuindo, a fumaça já quase invisível. O veículo já estava longe demais para que alguém mergulhasse em busca de sobreviventes.
Os dois motoristas asseguraram os curiosos de que estavam bem. Em seguida, voltaram aos seus veículos para esperar pela polícia.
Ninguém tinha visto o motorista do caminhão deixar cair uma pequena caixa retangular no rio antes de afastar-se.
Um
Sábado, 10:00, Moscou
O ministro do interior Nikolai Dogin, um homem alto e forte, estava sentado atrás de uma escrivaninha centenária de carvalho, em seu escritório no Kremlin. A pesada mesa era dominada por um computador. A direita do computador havia um telefone preto; à esquerda, um pequeno porta-retratos com uma fotografia dos pais. O instantâneo estava marcado por uma linha horizontal; o pai tivera de dobrá-lo para poder levá-lo no bolso da camisa durante a Guerra.
Os cabelos grisalhos de Dogin eram penteados para trás. Estava com o rosto abatido e os olhos negros pareciam cansados. O terno marrom, de corte simples, comprado no GUM, estava amarrotado, e os sapatos castanho-claros já tinham visto melhores dias — um cuidadoso e estudado toque de desmazelo que funcionara perfeitamente durante muitos anos.
Mas não esta semana, pensou com irritação.
Pela primeira vez, em trinta anos de serviço público, sua imagem de homem do povo lhe falhara. Com o entusiasmo de sempre, oferecera ao seu povo o nacionalismo que eles haviam dito querer. Declarara-se orgulhoso dos militares e desconfiado dos antigos inimigos. Desta vez, porém, o povo não votara nele.
Dogin sabia a razão, é claro. Seu adversário, Kiril Janin, estendera mais uma vez a rede surrada, tentando apanhar o linguado do conto de fadas do Velho Pedro, o peixe que faria todos os desejos se transformarem em realidade.
Capitalismo.
Enquanto Dogin esperava seu assistente, olhou de passagem para os sete homens sentados à sua frente, e seus olhos escuros se fixaram nas paredes, em uma história do sucesso do totalitarismo.
Como a escrivaninha, as paredes transpiravam história. Estavam cobertas de mapas emoldurados com requinte, alguns seculares, mapas da Rússia sob o governo de diferentes tsares, desde o tempo de Ivã, o Terrível. Os olhos cansados de Dogin examinaram um a um, desde um pergaminho desbotado que, ao que se dizia, fora pintado com o sangue de cavaleiros teutônicos capturados, até um mapa de pano do Kremlin que tinha sido encontrado no forro das calças de um assassino alemão.
O mundo como já foi um dia, cismou, enquanto contemplava um mapa da União Soviética que Gherman S. Titov levara para o espaço em 1961. O mundo como será novamente.
Os sete homens sentados em sofás e poltronas também eram entrados em anos. A maioria tinha cinquenta anos ou mais; alguns passavam dos sessenta. A maioria usava ternos, mas havia alguns de uniforme. Estavam todos calados. O silêncio era quebrado apenas pelo ventilador do computador — e depois, finalmente, por uma batida na porta.
— Entre.
Dogin sentiu um aperto no coração quando a porta foi aberta e um homem mais jovem entrou. Havia uma profunda tristeza nos olhos do rapaz e Dogin sabia o que isso significava.
— E então? — perguntou Dogin.
— Sinto muito. É oficial. Revi pessoalmente os números — respondeu o outro.
Dogin fez que sim com a cabeça.
— Obrigado.
— Quer que eu tome as providências?
Dogin assentiu novamente. O rapaz saiu do escritório e fechou a porta.
Dogin olhou para os homens. Como ele, permaneciam impassíveis.
— Eu já esperava por isso — declarou o ministro do interior. Puxou para mais perto a fotografia dos pais e passou as costas dos dedos no vidro do porta-retratos. Parecia estar falando com eles. — Janin, o ministro do exterior, ganhou a eleição. É o clima geral, os senhores sabem. Todos estão radiantes com a liberdade, mas é uma liberdade sem responsabilidade, autonomia sem juízo, independência sem cautela. A Rússia elegeu um presidente que quer criar uma nova moeda, escravizando nossa economia às exportações. Eliminar o mercado negro, acabando com o rublo. Eliminar os adversários políticos, tornando impossível tirá-lo do poder sem perder os mercados estrangeiros. Acabar com a oposição dos militares, pagando aos generais mais dinheiro para apoiar suas políticas do que para defender a Mãe Rússia. “Como a Alemanha e o Japão”, ele nos diz, “uma Rússia economicamente forte não precisará temer nenhum inimigo.” — Os olhos de Dogin estreitaram-se quando ele olhou para a imagem do pai. — Durante setenta anos, não tememos nenhum inimigo. Seu herói, Stalin, não governou a Rússia, ele governou o mundo! O nome dele vem de estai... aço. Nosso povo era feito de aço, então. Eles conheciam o valor do poder. Hoje, estão mais interessados no conforto e se deixam levar pela audácia e pelas falsas promessas!
— Seja bem-vindo à democracia, meu caro Nikolai — disse o general Viktor Mavik, um homem troncudo com uma voz retumbante. — Bem-vindo a um mundo no qual a OTAN corteja a República Tcheca, a Hungria, a Polônia e os países do antigo Pacto de Varsóvia, para que se juntem à aliança ocidental, sem ao menos nos consultar.
O vice-ministro das finanças, Yevgeny Grovlev, inclinou-se para a frente, o queixo pontudo apoiado nos polegares, os dedos magros envolvendo o nariz adunco.
— É melhor não nos metermos — afirmou. — Janin não vai conseguir fazer as reformas que pretende com suficiente rapidez. A sua popularidade vai cair mais depressa do que a de Gorbachev e Yeltsin.
— Meu adversário é jovem, mas não é estúpido — replicou Dogin. — Ele não faria promessas se não tivesse alguns acordos já fechados. E quando cumprir sua parte, os alemães e japoneses terão o que não conseguiram na Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos terão o que não conseguiram na Guerra Fria. De uma forma ou de outra, a Mãe Rússia será repartida por eles.
Dogin voltou os olhos para um outro mapa: o mapa da Rússia e da Europa Oriental na tela de seu computador. Pressionou uma tecla e a Europa Oriental cresceu; a Rússia desapareceu.
— Um golpe da história e seremos extintos — afirmou.
— Apenas pela nossa inércia — acrescentou Grovlev.
— É verdade — concordou Dogin. — Pela nossa inércia. — A sala estava ficando abafada e ele enxugou o suor do lábio superior com um lenço. — A promessa de riqueza fez as pessoas esquecerem a desconfiança que sentem dos estrangeiros. Mas vamos mostrar a elas que estão erradas. — Olhou para os outros ocupantes da sala. — O fato dos senhores ou seus candidatos terem perdido a eleição mostra como nosso povo está confuso. Por outro lado, o fato de estarem aqui esta manhã mostra que pretendem fazer alguma coisa a respeito.
— Isso mesmo — disse o general Mavik, afrouxando o colarinho com o dedo. — Confiamos no senhor para isso. Foi prefeito de Moscou e um comunista leal no Politburo. Mas em nosso primeiro encontro, disse-nos muito pouco a respeito do que pretendia fazer se a velha guarda não conseguisse retomar o Kremlin. Agora que sabemos que a velha guarda fracassou, eu gostaria de conhecer melhor os seus planos.
— Eu também — interveio o brigadeiro Dhaka. Seus olhos cinzentos brilhavam sob as sobrancelhas espessas. — Qualquer um de nós daria um excelente líder da oposição. Por que deveríamos apoiá-lo? Prometeu-nos uma ação conjunta com a Ucrânia. Até agora, vimos apenas umas poucas manobras da infantaria russa perto da fronteira, que o próprio Janin rapidamente aprovou. Mesmo que as manobras conjuntas aconteçam, o que conseguiremos com isso? Velhos irmãos soviéticos se unem, e o Ocidente fica um pouquinho assustado. De que forma isso nos ajudará a reconstruir a Rússia? Se está interessado no nosso apoio, precisa nos contar mais detalhes.
Dogin olhou para o general. O rosto cheio de Dhaka estava afogueado, o queixo volumoso em carne viva no ponto em que roçava na gravata apertada. O ministro sabia que se contasse os detalhes, a maioria se apressaria em apoiar Mavik, ou mesmo Janin.
Olhou para os companheiros, um a um. Em alguns rostos detectou convicção e força, enquanto em outros (Mavik e Grovlev, em particular) viu interesse, mas desânimo. A falta de confiança deles o irritou, porque ele era o único que tinha um plano para salvar a Rússia. Mesmo assim, permaneceu calmo.
— Querem detalhes? — perguntou Dogin. Digitou um comando no teclado do computador e fez girar o monitor, deixando-o de frente para os sete homens. Enquanto o disco rígido trabalhava, o ministro do interior olhou para a fotografia do pai. O velho Dogin tinha sido um soldado condecorado durante a Guerra, e depois se tornara um fiel guarda-costas de Stalin. Uma vez contara ao filho que durante a Guerra havia aprendido a levar apenas uma coisa com ele: a bandeira nacional. Estivesse onde estivesse, fossem quais fossem as circunstâncias, fossem quais fossem os perigos, ela sempre encontraria um amigo ou aliado para ele.
Quando o disco parou, Dogin e cinco dos homens levantaram-se. Mavik e Grovlev trocaram olhares desconfiados e também se puseram de pé, fazendo continência.
— É assim que pretendo reconstruir a Rússia — declarou Dogin. Deu a volta à mesa e apontou para a imagem na tela, que mostrava uma estrela amarela, uma foice e um martelo, num fundo vermelho. A velha bandeira soviética. — Lembrando ao povo qual é o seu dever. Os verdadeiros patriotas não hesitarão em fazer o que for necessário, seja qual for o plano, seja qual for o preço.
Os homens sentaram-se novamente, com exceção de Grovlev.
— Somos todos patriotas — afirmou o primeiro-ministro. — Não precisa ser melodramático. Se vou colocar meus recursos em suas mãos, tenho direito de saber como serão usados. Em um golpe? Em uma segunda revolução? Ou não confia em nós, sr. Ministro?
Dogin olhou para Grovlev. Não podia lhe contar toda a verdade. Não podia falar sobre o que pretendia fazer com os militares nem de suas relações com a máfia russa. A maioria dos russos pensava que eles ainda eram uma nação provinciana, sem uma visão mundial. Depois de ouvir seus planos, talvez Grovlev recuasse ou decidisse apoiar Janin.
— É verdade, não confio no senhor — afirmou Dogin.
Grovlev amarrou a cara.
— E pelas suas perguntas, é evidente que também não confia em mim — prosseguiu Dogin. — Pretendo conquistar sua confiança através de minhas ações, e o senhor precisa fazer a mesma coisa. Janin sabe quem são seus inimigos e agora tem o poder da presidência. Pode oferecer-lhe um cargo importante, que o senhor pode ficar tentado a aceitar. E, nesse caso, seria solicitado a trabalhar contra mim. Peço-lhe que tenha paciência nas próximas setenta e duas horas.
— Por que setenta e duas horas? — perguntou Skule, o jovem diretor assistente do Ministério da Segurança.
— É o tempo necessário para que meu centro de comando comece a funcionar.
Skule pareceu assustado.
— Setenta e duas horas? Não pode estar falando de São Petersburgo.
Dogin fez que sim com a cabeça.
— Está sob o seu controle?
Dogin assentiu novamente.
Skule deixou escapar um suspiro e os outros homens olharam para ele.
— Meus mais sinceros cumprimentos, ministro. Isso coloca o mundo inteiro nas suas mãos.
— É verdade — concordou Dogin, sorrindo. — Como no tempo de Stalin.
— Um momento — interrompeu Grovlev. — Mais uma vez não estou compreendendo. Sr. Ministro, o que é exatamente essa “coisa” que você controla?
— O Centro de Operações de São Petersburgo — explicou Dogin. — O centro de comunicações e reconhecimento mais sofisticado de toda a Rússia. Com ele, temos acesso a todos os satélites e meios de comunicação eletrônicos. O Centro também dispõe de agentes para operações “cirúrgicas”.
Grovlev parecia confuso.
— Está falando da estação de televisão do Hermitage?
— Isso mesmo — confirmou Dogin. — É apenas uma fachada, ministro Grovlev. Seu ministério aprovou a verba para um estúdio de TV, mas o dinheiro para o complexo subterrâneo foi fornecido
pelo meu departamento. E o projeto continua a ser financiado pelo Ministério do Interior. — Dogin bateu no peito. — Por mim.
Grovlev sentou-se.
— Está planejando esta operação há muito tempo.
— Há mais de dois anos — confirmou Dogin. — Vamos começar a operar segunda-feira à noite.
— Vai usar este Centro para muito mais do que espionar Janin — afirmou Dhaka.
— Para muito mais — concordou Dogin.
— Mas se recusa a nos dizer o quê — resmungou Grovlev. — Você nos pede a nossa cooperação, mas não quer cooperar!
— Está me pedindo para confiar no senhor, sr. Ministro? Está bem — disse Dogin. — Durante os últimos seis meses, meus homens do Centro de Operações vêm colhendo informações não só sobre meus adversários, como também sobre possíveis aliados. Sabemos muita coisa a respeito de subornos, amantes e — olhou fixamente para Grovlev — interesses pessoais incomuns. Terei prazer em compartilhar essas informações com o senhor, em público ou em particular, agora ou mais tarde.
Alguns dos presentes remexeram-se no assento. Grovlev permaneceu imóvel.
— Seu filho da puta! — exclamou.
— É verdade — concordou Dogin. — Sou um filho da puta que tem um trabalho a fazer. — O ministro do interior consultou o relógio, aproximou-se de Grovlev e olhou-o nos olhos. — Preciso ir agora, sr. Ministro. Tenho um encontro com o novo presidente. Preciso cumprimentá-lo e lhe pedir que assine alguns papéis. Dentro de doze horas, poderá julgar por si mesmo se estou trabalhando por vaidade ou — apontou para a bandeira no monitor — por ela.
Depois de cumprimentar com a cabeça a plateia silenciosa, o ministro Dogin deixou o escritório. Com seu assistente a reboque, entrou no carro que o levaria ao encontro com Janin e o traria de volta. Então, a portas fechadas, daria um telefonema capaz de mudar os destinos do mundo.
Dois
Sábado, 10:30, Moscou
Keith Fields-Hutton entrou no quarto do recém-reformado Hotel Rossiya, jogou a chave em cima da cômoda e correu para o banheiro. No caminho, parou para agarrar duas folhas de papel de fax que tinham saído da máquina que trouxera com ele.
Aquela era a parte do trabalho que mais detestava. Não o perigo, que às vezes podia ser considerável; não as horas intermináveis passadas em aeroportos à espera de voos da Aeroflot que nunca chegavam; nem as longas semanas longe de Peggy, embora fossem difíceis de suportar.
O que mais detestava era o maldito chá que o faziam beber.
Quando estava em Moscou, o que acontecia uma vez por mês, Fields-Hutton ficava sempre no Rossiya, perto do Kremlin, e tomava seu desjejum sem pressa, no elegante refeitório. Isso lhe dava tempo de ler o jornal de cabo a rabo e, mais importante, as diversas xícaras de chá que tomava davam a Andrei, o garçom, um motivo para deixar três, quatro, às vezes cinco saquinhos de chá na sua mesa. Amarrada ao cordão de cada saquinho havia uma etiqueta com o nome Chashka Chat. No interior de cada etiqueta estava um microfilme, que Fields-Hutton guardava no bolso quando ninguém estava olhando. A maior parte do tempo, o chefe dos garçons estava olhando, de modo que Fields-Hutton em geral precisava esperar para pegar o filme quando outros fregueses entravam no restaurante, distraindo a atenção do maître.
Andrei era uma das descobertas de Peggy. Seu nome viera de uma lista de ex-soldados e mais tarde ela descobrira que seu sonho original fora ganhar dinheiro explorando petróleo na Sibéria Ocidental. Entretanto, tinha sido ferido no Afeganistão, fora submetido a uma cirurgia nas costas e não podia mais trabalhar com equipamento pesado. Depois de Gorbachev, não ganhava o suficiente para se sustentar. Era o homem perfeito para servir de intermediário entre agentes secretos cujos nomes não conhecia, cujos rostos nunca via, e Fields-Hutton. Se Andrei um dia fosse apanhado, apenas Fields-Hutton estaria em perigo... e isso eram ossos do ofício.
Ao contrário do que muita gente pensava, a KGB não desaparecera com a queda do comunismo. Pelo contrário: com o novo nome de Ministério da Segurança, continuava mais ativa do que nunca. O órgão simplesmente passara de um exército de profissionais para uma força ainda maior de mercenários civis. Esses agentes eram pagos pelas informações que forneciam. Em consequência, tanto veteranos como amadores estavam sempre atrás de espiões. Peggy dizia que era a versão russa de Entertainment Tonight, com observadores em toda parte. E estava certa. A presa eram estrangeiros em vez de celebridades, mas o objetivo era o mesmo: detectar atividades furtivas ou suspeitas. E como muitos homens de negócios imaginavam que a Rússia não era mais um lugar perigoso, envolviam-se em atividades ilícitas ajudando os sócios locais a trocar rublos por dólares ou marcos, contrabandeando joias ou roupas caras para vendê-las no mercado negro ou espionando as empresas rivais. Quando eram descobertos, em vez de serem presos, geralmente podiam comprar a liberdade. Fields-Hutton costumava brincar que o ministério gastava menos tempo protegendo a segurança nacional do que supervisionando o comércio. Só os fabricantes japoneses pagavam aos agentes russos centenas de milhões de rublos por ano para vigiar os competidores que estivessem demonstrando um interesse exagerado por suas atividades na Rússia. Corriam rumores de que os japoneses tinham investido mais de 50 milhões de rublos na candidatura fracassada do ministro do interior Nikolai Dogin à presidência para ajudar a proteger o país de um afluxo de investidores estrangeiros.
O negócio da espionagem estava vivo e muito bem, e depois de sete anos o agente britânico Fields-Hutton ainda participava dele ativamente.
Fields-Hutton formara-se em Cambridge com um diploma em literatura russa e um desejo de tornar-se escritor. No domingo seguinte a sua formatura, estava sentado em um café de Kensington, lendo o livro de Dostoievski Notas do Subsolo, quando uma mulher na mesa ao lado olhou em volta e perguntou:
— Gostaria de saber mais a respeito da Rússia? — Ela riu e acrescentou: — Muito mais?
Aquele foi seu primeiro contato com a Inteligência Britânica e com Peggy. Mais tarde, ficou sabendo que a ligação entre o MI6 e Cambridge era antiga, remontando à Segunda Guerra Mundial e ao Ultra, o projeto secreto para decifrar o famoso código alemão chamado Enigma.
Fields-Hutton foi dar um passeio a pé com Peggy e concordou em encontrar-se com os superiores da moça. Em menos de um ano, o MI6 transformara-o em um editor de histórias em quadrinhos, que comprava histórias e desenhos de artistas russos para publicá-los na Europa. Isso lhe dava um motivo para fazer viagens frequentes com grandes pastas e maços de revistas, além de videocassetes e brinquedos baseados em personagens russos. Desde o começo, Fields-Hutton surpreendera-se com o fato de uma caneca, toalha de banho ou camisa com o desenho de um super-herói ser suficiente para que conseguisse os favores de funcionários de empresas aéreas, empregados de hotéis e até mesmo policiais. Quer os objetos fossem ser vendidos no mercado negro ou dados de presente às crianças, o escambo era uma forma de negociação muito praticada na Rússia.
Com todas as revistas e brinquedos que carregava, era fácil esconder o microfilme, às vezes enrolado no grampo de uma revista; outras vezes, no interior do braço oco de um boneco do Homem-Tigre. Ironicamente, o negócio das revistas em quadrinhos revelara-se um grande sucesso, e a Inteligência Britânica estava ganhando muito dinheiro com ele. O regulamento proibia atividades com fins lucrativos — “Não se esqueça de que trabalhamos para o governo” — dissera Winston Churchill uma vez a um agente que queria vender um brinquedo para decifrar códigos. Entretanto, o primeiro-ministro John Major e o Parlamento permitiram que os lucros das histórias em quadrinhos revertes sem para programas de auxílio às famílias de agentes ingleses mortos ou incapacitados em serviço.
Embora tivesse aprendido a adorar o negócio das histórias em quadrinhos e estivesse decidido a se tornar um escritor quando se aposentasse (tinha assunto suficiente para escrever vários livros de espionagem), o verdadeiro trabalho de Fields-Hutton para a Inteligência Britânica era ficar de olho nos projetos de construção da Rússia Oriental, fossem estrangeiros ou nacionais. Salas secretas e porões ocultos ainda estavam sendo construídos e, quando descobertos e espionados, forneciam informações valiosas. Seus contatos atuais — Andrei e Leon, um ilustrador que morava em um apartamento em São Petersburgo — haviam-lhe fornecido plantas e fotografias de todos os novos edifícios que estavam sendo construídos e das reformas que estavam sendo feitas no território coberto por ele.
Depois de sair do banheiro, Fields-Hutton sentou-se na beira da cama, tirou do bolso os saquinhos de chá e abriu os rótulos. Removeu cuidadosamente os microfilmes circulares e introduziu-os, um de cada vez, em uma lupa de alta potência, que, como explicava aos clientes, servia para examinar os detalhes dos desenhos. (“Sim senhor, tenho alguns bonés do Fantasma sobrando. Claro que pode ficar com um para seu filho. Por que não leva alguns para os seus amigos?")
O que viu em uma das fotografias podia estar ligado a uma pequena nota que vira no jornal da manhã. A foto mostrava rolos de encerado sendo transportados para dentro de um elevador de serviço do Hermitage. Fotografias tiradas em dias sucessivos revelavam grandes caixotes de obras de arte sendo também colocados no elevador.
Isso não deveria ter despertado qualquer suspeita. O museu estava sendo reformado para as comemorações do tricentenário da cidade, em 2003. Além disso, ficava na margem do rio Neva. Era possível que as paredes estivessem sendo cobertas com encerado para proteger os quadros da maresia.
Entretanto, Leon mandara-lhe dois faxes e, de acordo com a historinha do simbólico Capitão Lenda do primeiro, o super-herói voara até o Mundo de Hermes (isto é, Leon fora ao Hermitage) uma semana depois que as fotos foram tiradas, onde constatou que não havia encerados em nenhum dos três andares de nenhuma das três alas. Quanto aos caixotes, embora o museu estivesse sempre recebendo obras de arte por empréstimo, nenhum quadro novo estava sendo exibido e nenhuma mostra tinha sido anunciada para os próximos dias; como algumas partes do museu estavam fechadas para reforma, o espaço para exibições tinha sido bastante reduzido. Fields-Hutton pediria ao MI6 para verificar se algum museu ou colecionador particular havia mandado alguma coisa para o Hermitage recentemente, mas tinha quase certeza de que a resposta seria negativa.
Também era preciso levar em conta o comportamento dos operários que haviam levado os encerados e caixotes para os elevadores. De acordo com os quadrinhos de Leon, os homens — os escravos do Mundo de Hera que levavam armas e comida para uma base secreta — desciam para o porão no início da manhã e só retornavam no final da tarde. Leon estivera observando dois deles em particular, que eram os mais assíduos e aos quais poderia seguir, caso o MI6 achasse necessário. Embora eles pudessem muito bem estar trabalhando na reforma do museu, era também possível que estivessem usando a reforma como pretexto para executar atividades secretas no porão do museu.
Tudo isso combinava com o acidente relatado no jornal da manhã e também mencionado no segundo fax de Leon. Na véspera, uma van com seis empregados do museu, que se dirigiam para casa depois do trabalho, tinha caído no rio Neva, e todos os seus ocupantes tinham morrido afogados. Leon visitara o local do acidente e o desenho que fizera para a história do Capitão Lenda continha mais informações a respeito do desastre que a notícia do jornal: mostrava o herói ajudando os escravos a saírem de um foguete que caíra em um pântano. Ao lado da fumaça que saía do foguete, havia uma anotação: “Verde.” Cloro.
Os homens tinham sido vítimas de uma bomba de gás? O caminhão que abalroara a van, fazendo-a cair da ponte, fora instruído a fazer aquilo para acobertar o assassinato dos homens?
O acidente podia ser uma coincidência, mas no seu trabalho não podia se dar ao luxo de ignorar nenhuma possibilidade. Havia indícios de que estava acontecendo algo incomum em São Petersburgo e Fields-Hutton queria saber o que era.
Fields-Hutton mandou um fax com os desenhos de Leon para o escritório de Londres, acompanhado por um bilhete no qual recomendava que lhe pagassem um adiantamento de vinte e sete libras — o que significava que deviam consultar a página sete da edição de hoje do Dyen — e informava que estava indo para São Petersburgo conversar com o artista a respeito de alguns desenhos.
— Acho que estamos no caminho certo — escreveu. — Se o artista conseguir estabelecer uma ligação entre o pântano e as minas subterrâneas do Mundo de Hera, teremos nas mãos uma história fascinante. Eu lhes manterei a par do que Leon pensa a respeito.
Depois de receber uma confirmação de Londres, Fields-Hutton colocou sua câmera, um estojo de produtos de higiene, um walkman, desenhos e brinquedos em uma mochila, correu para o saguão do hotel e pegou um táxi para a Estação São Petersburgo, na Krasnoprudnaya, onde comprou um bilhete para a viagem de seiscentos e cinquenta quilômetros e se sentou em um banco duro para esperar o próximo trem para a bela cidade do golfo da Finlândia.
Três
Sábado, 12:20, Washington, D.C.
Durante a Guerra Fria, o modesto edifício de dois andares situado na Base Aérea de Andrews funcionara como alojamento para um tipo muito especial de tripulação. No caso de um ataque nuclear, aqueles homens teriam a missão de retirar os membros importantes do governo de Washington, D.C.
Entretanto, a construção cor de marfim não se tornara um monumento obsoleto à Guerra Fria. Os gramados agora eram mais bem cuidados e os pátios de terra onde os soldados costumavam treinar tinham sido transformados em jardins. Jardineiras de concreto em volta do prédio impediam que alguém se aproximasse com um carro-bomba. As pessoas que trabalhavam ali não chegavam mais em jipes e Hughes Defenders, mas em camionetas, Volvos e um ou outro Saab ou BMW.
Os setenta e oito funcionários em tempo integral que trabalhavam ali no momento eram pagos pelo Centro Nacional de Controle de Crises. Eram estrategistas, generais, diplomatas, analistas de informações, especialistas em computadores, psicólogos, técnicos em reconhecimento, ecologistas, advogados e até mesmo manipuladores de mídia, todos escolhidos a dedo. O CNCC compartilhava outros quarenta e dois funcionários de apoio com o Departamento de Defesa e a CIA, além de comandar um grupo tático de ataque de doze pessoas conhecido como Striker, que ficava baseado na Academia do FBI em Quantico, não muito longe dali.
O papel que o CNCC desempenhava não tinha similar na história dos Estados Unidos. Em um período de dois anos, o grupo gastara mais de 100 milhões de dólares em equipamentos e modificações de alta tecnologia, transformando o antigo alojamento em um centro de operações destinado a servir de ligação entre a Agência Central de Inteligência, a Agência de Segurança Nacional, a Casa Branca, o Departamento de Estado, o Departamento de Defesa, a Agência de Defesa de Inteligência, o Escritório Nacional de Reconhecimento e o Centro de Análise de Inteligência e Ameaças. Entretanto, depois de um período de testes de seis meses, no qual teve de lidar com crises domésticas e internacionais, o “Op-Center”, como era chamado informalmente, tinha sido no mínimo equiparado a esses órgãos. O diretor, Paul Hood, prestava contas diretamente ao presidente Michael Lawrence, e o que começara como um centro de comunicações com habilidades da SWAT, agora dispunha de uma capacidade única para monitorar, iniciar e gerenciar operações em qualquer lugar do mundo.
Eles eram uma combinação rara de velhos profissionais, que adotavam uma abordagem metódica, prática e humana para os problemas de informações, e rapazes louros, que adoravam a alta tecnologia e os golpes ousados. Quem comandava essa colcha de retalhos era Paul Hood que, embora não fosse nenhum santo, ganhara o apelido de “papa” Paul por seu desprendimento. Paul Hood era extremamente honesto, apesar de ter sido um banqueiro importante durante a administração Reagan. Era também extremamente reservado, embora tivesse sido prefeito de Los Angeles durante dois anos. Hood estava constantemente doutrinando sua equipe na nova arte do controle de crises. Considerava essa arte como uma alternativa para as respostas tradicionais de Washington, que se alternavam entre a omissão e a guerra. Em Los Angeles, tinha sido pioneiro na arte de dividir problemas em segmentos tratáveis e entregá-los a profissionais que trabalhavam em estreita colaboração. A tática funcionara muito bem em Los Angeles e também estava funcionando bem ali, embora não estivesse de acordo com a atitude “Quem manda aqui sou eu” da maioria dos órgãos do governo. Seu vice, Mike Rodgers, uma vez lhe dissera que provavelmente tinha mais inimigos em Washington do que em qualquer outra cidade do mundo, já que os chefes dos bureaus, os diretores das agências e os detentores de cargos eletivos encaravam o estilo de funcionamento do Op-Center como uma ameaça a seus feudos, e muitos deles fariam de tudo para tentar prejudicar a atuação do órgão.
— Os políticos de Washington são como zumbis — afirmara Rodgers —, prontos para se levantar dos mortos assim que a situação se torna mais favorável. Veja os exemplos de Richard Nixon e Jimmy Carter. Em consequência, os inimigos não tentam destruir apenas suas carreiras, tentam destruir suas vidas. E se isso não for suficiente, também se voltam contra suas famílias e seus amigos.
Entretanto, Hood não se importava. Sua missão era zelar pela segurança dos Estados Unidos, não pela melhoria da reputação do Op-Center e seus funcionários, e ele levava muito a sério essa missão. Também acreditava que se fizessem seu trabalho a contento, seus “rivais” não poderiam lhes fazer mal.
No momento, Ann Farris não via o banqueiro, o político ou o “papa” sentado na cadeira do diretor. Seus olhos escuros viam apenas o menino desajeitado no homem. Apesar do queixo quadrado, dos cabelos negros ondulados e dos olhos castanho-escuros, Hood parecia uma criança, que preferia ficar em Washington, brincando com os amigos, agentes e satélites espiões, a sair de férias com a família. Se os filhos não sentissem falta dos amiguinhos e a mudança para a costa leste não tivesse colocado seu casamento em risco, Ann tinha certeza de que Paul não iria.
O diretor do Op-Center, um homem de quarenta e três anos, estava sentado em seu espaçoso escritório no edifício de segurança máxima. O vice-diretor geral Mike Rodgers estava sentado em uma poltrona à esquerda da mesa, e a assessora de imprensa Ann Farris no sofá à direita. O itinerário de Harris para sua viagem ao sul da Califórnia aparecia na tela do computador.
— Sharon consegue arrancar uma semana de folga do chefe, Andy McDonnell, que acha que o seu programa na TV a cabo não pode passar sem o segmento de comida natural — observou Hood —, e acabamos no Bloopers, a antítese da comida natural. Seja como for, vamos estar lá na primeira noite. As crianças viram como é na MTV; se vocês mandarem me chamar, provavelmente não vou ouvir.
Ann inclinou-se para a frente e deu-lhe um tapinha nas costas da mão, o sorriso ainda mais radiante que o lenço amarelo exclusivo que usava nos longos cabelos castanhos.
— Aposto que se você se soltar, vai se divertir muito — afirmou. — Li a respeito do Bloopers no Spin. Peça um cachorro-quente com molho de picles e uns pastéis. Vai adorar.
Hood riu.
— Que tal colocarmos isso na nossa divisa? “Op-Center: tornando o mundo seguro para cachorros-quentes com molho de picles.”
— Vou ter de perguntar a Lowell como se diz isso em latim. — Ann sorriu. — Queremos que pelo menos pareça pomposo.
Rodgers suspirou e Hood e Ann olharam para ele. O general de duas estrelas estava sentado com uma das pernas apoiada no joelho da outra balançando-a para cima e para baixo, com ar impaciente.
— Desculpe, Mike — disse Hood. — Acho que estou me soltando antes da hora.
— Não é isso — protestou Rodgers. — Você simplesmente não está falando minha língua.
Como assessora de imprensa, Ann estava acostumada a escutar a verdade por trás de palavras amenas. Ele detectou um misto de censura e inveja na voz de Rodgers.
— Também não é a minha língua — declarou Hood. — Mas uma coisa que você aprende com os filhos, e tenho certeza de que Ann concorda comigo, é que a gente precisa se adaptar. Que diabo, às vezes tenho vontade de dizer a mesma coisa do rap e do heavy metal que meus pais diziam dos Young Rascais. A gente não pode ficar parado no tempo.
Rodgers não parecia estar de acordo.
— Sabe o que disse George Bernard Shaw a respeito da adaptação?
— Acho que não — admitiu Hood.
— Ele disse: “O homem razoável se adapta ao mundo; o homem pouco razoável insiste em adaptar o mundo a si próprio. Em consequência, todo o progresso depende do homem pouco razoável.” Não gosto de rap e jamais vou gostar. Digo mais: não vou fingir que gosto.
— O que você faz quando o tenente-coronel Squires resolve escutar rap?
— Mando ele desligar. Ele me diz que estou sendo muito intransigente...
— E você repete a frase de Shaw — adivinhou Ann.
Rodgers olhou para ela e fez que sim com a cabeça.
Hood levantou as sobrancelhas.
— Interessante. Bem, vamos ver se pelo menos concordamos quanto ao que vamos fazer nos próximos dias. Primeiro, meus compromissos.
Hood desfez-se do sorriso infantil e voltou-se para o computador. Ann piscou o olho para o vice-diretor, tentando arrancar-lhe um sorriso, mas não foi bem-sucedida. A verdade era que ele raramente sorria e só parecia genuinamente feliz quando estava caçando traidores, totalitários ou qualquer um que colocasse a carreira acima da segurança de homens e mulheres a serviço da pátria.
— Na segunda-feira estarei visitando os estúdios da Magna — prosseguiu Hood. — Terça é o dia do Parque de Diversões Wallace World. Como as crianças querem surfar, vamos à praia na quarta... e assim por diante. Se precisarem de mim, é só me chamar no celular. Posso conseguir uma linha segura na delegacia de polícia mais próxima ou no escritório do FBI.
— A semana deve ser calma — afirmou Ann. Ela gravara o relatório diário do assessor de inteligência Bob Herbert no computador portátil antes de se dirigir para a reunião e, levantando a tampa do aparelho, continuou — As fronteiras da Europa Oriental e do Oriente Médio estão relativamente tranquilas. A CIA ajudou as autoridades mexicanas a fechar a base naval dos rebeldes em Jalapa sem nenhum problema. As coisas sossegaram na Ásia depois que a guerra quase estourou na Coreia. E os russos e os ucranianos pelo menos estão novamente discutindo para decidir quem vai ficar com o quê na Crimeia.
— Mike, será que o resultado das eleições na Rússia vai mudar isso? — perguntou Hood.
— Creio que não — respondeu Rodgers. — O novo presidente da Rússia, Kiril Janin, já teve suas desavenças com o líder ucraniano Vesnik no passado, mas Janin é um político experiente. Ele vai adotar um tom conciliador. Seja como for, não estamos prevendo nenhum Código Vermelho para a semana que vem.
Hood fez que sim com a cabeça. Ann sabia que ele não acreditava muito no que chamava dos três Ps (projeções, pesquisas e psicologia), mas agora pelo menos estava fingindo escutar o que os assessores diziam. No começo, Paul e a psicóloga da equipe, Liz Gordon, davam-se tão bem quanto Clarence Darrow e William Jennings Bryan.
— Espero que esteja certo — disse Hood —, mas se o Op-Center for chamado para qualquer coisa mais importante que um Código Azul, quero ser o responsável por todas as decisões.
Rodgers parou de balançar a perna. Os olhos castanhos, normalmente dourados, pareciam mais escuros que o normal.
— Posso cuidar de qualquer coisa que venha a aparecer, Paul.
— Eu não disse que não podia. Você mostrou do que era capaz quando impediu que aqueles mísseis fossem lançados na Coreia do Norte.
— Então qual é o problema?
— Não há nenhum problema. Não estamos falando de capacidade, Mike, mas sim de responsabilidade.
— Entendo o que quer dizer — insistiu Rodgers —, mas isto está previsto no regulamento. O vice-diretor está autorizado a cuidar de tudo quando o diretor está ausente.
— A palavra é “indisposto”, não “ausente” — observou Hood. — Não pretendo ficar indisposto, e você sabe como os incidentes internacionais deixam o Congresso em pé de guerra. Se alguma coisa sair errada, sou eu que vou ter de explicar o que aconteceu a uma comissão do Senado. Quero ser capaz de contar a eles o que fiz, não o que li em seu relatório.
O nariz torto de Rodgers, quebrado quatro vezes no basquetebol universitário, baixou ligeiramente.
— Compreendo.
— Compreende, mas não concorda — afirmou Hood.
— É isso aí. Francamente, eu adoraria a chance de falar ao Congresso. Mostraria àqueles indolentes o que é governar por ações, e não por conchavos.
— É por isso que prefiro que seja eu a lidar com eles, Mike. Afinal de contas, ainda são eles que pagam as contas.
— O que obriga homens como Ollie North a fazer o que fazem — afirmou Rodgers. — Tudo para escapar das Comissões de Coordenação dos Vice-diretores. Os molengas que ficam examinando uma proposta de financiamento durante meses e depois a devolvem tão diluída que não serve para mais nada.
Hood fez menção de dizer alguma coisa agressiva e Rodgers parecia disposto a responder no mesmo tom. Em vez disso, os dois ficaram se olhando em silêncio.
— Bem — disse Ann, em tom apaziguador —, isso nos deixa a responsabilidade por aqueles Códigos Verdes aborrecidos de um refém e aqueles Códigos Azuis de vários reféns no país e deixa nos seus ombros os fáceis Códigos Amarelos de reféns no exterior e os Códigos Vermelhos de estado de guerra. — Fechou o computador, consultou o relógio e levantou-se. — Paul, quer mandar a sua agenda para os nossos computadores?
Hood olhou para a tela do monitor. Apertou Alt/F6 no teclado e depois PB/Enter e MR/Enter.
— Feito — declarou.
— Ótimo. Espero que se divirta e tenha uma semana bem descontraída.
Hood fez que sim com a cabeça e olhou novamente para Rodgers.
— Obrigado pela ajuda — disse, levantando-se e inclinando-se sobre a mesa para apertar a mão de Rodgers. — Se eu soubesse como tornar isto melhor para você, Mike, eu o faria.
— Até a semana que vem — disse Rodgers, caminhando em direção à porta.
— Até logo — disse Ann a Hood, acenando e sorrindo para ele. — Não se esqueça de escrever... e aproveite.
— Vou lhe mandar um cartão-postal do Bloopers — disse Hood.
Ann fechou a porta e saiu atrás de Rodgers, desviando-se de colegas e passando pelas portas abertas dos escritórios e pelas portas fechadas dos departamentos de coleta de informações do Op-Center.
— Você está bem? — perguntou, quando alcançou o militar.
Rodgers fez que sim com a cabeça.
— Você não parece bem.
— Até hoje não consigo me entender direito com ele.
— Eu sei — concordou Ann. — As vezes, a gente tem a impressão de que ele enxerga mais longe do que nós. O resto do tempo, parece que ele está simplesmente tentando nos manter na linha, como um inspetor de colégio.
Rodgers olhou para ela.
— É uma descrição bastante precisa, Ann. Você deve ter pensado muito no assunto... e em Hood.
A moça corou.
— Tento analisar todos que me cercam. É um mau hábito.
Para mudar o rumo da conversa, Ann tinha enfatizado a palavra “todos”, mas compreendeu imediatamente que isso fora um erro.
— Que ideia faz de mim} — perguntou Rodgers.
Ann olhou-o nos olhos.
— Você é um homem franco e decidido, em um mundo que ficou complexo demais para essas qualidades.
Chegaram à porta do escritório de Rodgers e pararam.
— Isso é bom ou mau? — quis saber o general.
— É complicado — respondeu Ann. — Se você fosse um pouquinho mais flexível, provavelmente conseguiria muito mais.
Sem tirar os olhos de Ann, Rodgers digitou sua senha no teclado que havia no umbral da porta.
— Se alguma coisa não é o que você quer, por que brigar por ela? — perguntou.
— Sempre achei que metade é melhor do que nada — replicou a moça.
— Entendo, embora não concorde. — Rodgers agora estava sorrindo. — E quer saber uma coisa? Da próxima vez que tiver vontade de dizer que sou teimoso, não precisa ficar com rodeios.
Rodgers fez uma continência, entrou no escritório e fechou a porta.
Ann ficou parada por um momento no corredor antes de caminhar lentamente em direção ao seu escritório. Tinha pena de Mike. Era um homem corajoso e inteligente. Entretanto, tinha um grave defeito: colocava a ação à frente da diplomacia, mesmo quando a ação envolvia o desprezo por pequenas coisas, como a soberania nacional e a aprovação do congresso. Sua fama de intransigente custara-lhe o cargo de vice-secretário de defesa; sua ida para o Op-Center tinha sido um prêmio de consolação. Ele aceitara o cargo porque, acima de tudo, era um soldado disciplinado, mas jamais se sentira feliz por trabalhar ali... ou por obedecer às ordens de um civil.
Todos nós temos os nossos problemas, pensou. Como ela, por exemplo. O problema a que Rodgers aludira sem querer.
Ia sentir saudade de Paul, o nobre cavalheiro que não se decidia a deixar a mulher, por mais que ela o desprezasse. Pior do que isso, Ann não podia deixar de imaginar como faria Paul se divertir se ela e o filho estivessem indo com ele para a Califórnia em vez de Sharon e as crianças...
Quatro
Sábado, 14:00, Brighton Beach
Desde que entrara clandestinamente nos Estados Unidos, em 1989, o russo Herman Josef trabalhava na Bestonia Bagel Shop, uma confeitaria, em Brighton Beach, no Brooklin. Um homem esbelto, moreno, de boa aparência, Josef era encarregado de cobrir a massa ainda quente com sal, gergelim, alho, cebola e outros temperos. Trabalhar perto dos fornos era horrível no verão, delicioso no inverno e agradavelmente sossegado durante o resto do ano. A maior parte do tempo, trabalhar ali era muito melhor do que trabalhar em Moscou.
O dono da loja, Arnold Belnick, chamou-o pelo intercomunicador.
— Herman, venha até o escritório. Tenho uma encomenda especial.
Sempre que ouvia isso, o moscovita de trinta e sete anos não se sentia mais sossegado. Velhos instintos e emoções vinham à tona; a necessidade de sobreviver, de vencer, de servir à pátria: perícias aperfeiçoadas durante os dez anos em que trabalhara para a KGB, antes que a agência fosse transformada.
Depois de jogar o avental sobre o balcão e deixar a tarefa de temperar as roscas por conta do filho mais moço de Belnick, Herman subiu a velha escada de dois em dois degraus e entrou no escritório, iluminado por uma lâmpada fluorescente de mesa e pela luz que entrava por uma claraboia suja. Fechou a porta, trancou-a e se aproximou do velho que estava sentado atrás da escrivaninha.
Belnick olhou para ele através de uma nuvem de fumaça de cigarro.
— Aqui está — disse, entregando a Herman uma folha de papel.
Herman leu o que estava escrito e devolveu o papel a Belnick. O homem gordo, quase careca, colocou-o no cinzeiro e ateou fogo nele com a brasa do cigarro. Depois, jogou as cinzas no chão e esmagou-as com o pé.
— Alguma pergunta?
— Sim. Terei de ir para o esconderijo?
— Não — respondeu Belnick. — Mesmo que você esteja sendo seguido, não há motivo para que alguém o associe ao evento.
Herman fez que sim com a cabeça. Já tinha estado uma vez na casa da Forest Road, em Valley Stream, depois de matar um rebelde da Chechênia que estava arrecadando fundos para a secessão. O esconderijo pertencia à máfia russa e Ficava a apenas quinze minutos de carro do Aeroporto Kennedy e vinte minutos da baía de Jamaica. Isso facilitava a tarefa de tirar os agentes do país se houvesse necessidade. No seu caso, ele se limitara a esperar que as coisas esfriassem antes de voltar à Bestonia.
Herman foi até um armário em um canto da sala, removeu o fundo falso e estendeu a mão. Tão casualmente como se estivesse trabalhando com temperos, começou a separar os objetos de que iria precisar.
Cinco
Domingo, 12:00, São Petersburgo
Com a velha câmera Bolsey de 35mm pendurada no pescoço, Keith Fields-Hutton comprou um bilhete em um quiosque em frente ao Hermitage, na margem do rio Neva, e depois caminhou até o museu. Como sempre, sentiu-se intimidado ao passar pelas colunas de mármore da entrada. A mesma emoção o assaltava toda vez que entrava naquele que era um dos edifícios historicamente mais famosos do mundo.
O Museu Hermitage é o maior museu da Rússia. Foi fundado em 1764 por Catarina, a Grande, como uma ala separada do recém-construído Palácio de Inverno. O acervo cresceu rapidamente das 225 obras de arte compradas pela imperatriz para a coleção atual de mais de três milhões de peças, que inclui trabalhos de Leonardo da Vinci, Van Gogh, Rembrandt, El Greco, Monet e muitos outros mestres, além de artefatos do Paleolítico, Mesolítico, Neolítico, da Idade do Bronze e da Idade do Ferro.
Hoje em dia, o museu é composto por três edifícios situados lado a lado: o Palácio de Inverno, o Pequeno Hermitage e o Grande Hermitage. Até 1917, o Hermitage era frequentado exclusivamente pela família real, por seus amigos e pelos aristocratas; o museu só foi aberto ao público após a Revolução.
Quando Fields-Hutton entrou no grande saguão principal, com seus funcionários e balcões de venda de lembranças, pensou em como era melancólico o fato de estar ali. Ao fundar o museu, Catarina estabelecera algumas regras de conduta para os visitantes. A primeira e mais importante era o Artigo Primeiro: “Antes de entrar, os visitantes devem deixar de lado o seu título e posição social bem como seu chapéu e sua espada. ”
A imperatriz estava certa. A experiência artística deveria servir para minimizar as desavenças pessoais e políticas, não para fomentá-las. Contudo, tanto Fields-Hutton como Leon acreditavam que os russos tinham sido os primeiros a infringir essa regra. Além da morte dos seis operários e das remessas de equipamentos, havia os níveis cada vez maiores de radiação de micro-ondas. Leon estivera ali antes que ele chegasse e usara um telefone celular em diferentes locais perto do edifício. Quanto mais se aproximava do rio, pior ficava a recepção. Isso podia explicar o uso dos encerados. Se os russos tinham estabelecido ali algum tipo de centro de comunicações abaixo do nível da água, os componentes eletrônicos teriam de ser protegidos da umidade.
Havia uma certa lógica estratégica em escolher um museu para abrigar um centro de comunicações. Os objetos de arte tinham o mesmo valor perene que o ouro e os museus raramente eram bombardeados. Hitler tinha sido o único a violar a santidade daquele lugar. Entretanto, os habitantes da cidade, que na época se chamava Leningrado, tinham tomado a precaução de transportar seus tesouros para Sverdlovsk, nos Urais.
Será que os russos montaram um centro aqui porque estão prevendo uma guerra, perguntou-se Fields-Hutton.
Consultou a planta do museu no seu Blue Guide. Na verdade, memorizara-a durante a viagem de trem, mas não queria despertar a curiosidade dos guardas, demonstrando uma familiaridade excessiva com o lugar. Cada guarda era um agente do Ministério da Segurança em potencial.
Depois de examinar o mapa, Fields-Hutton dirigiu-se para a esquerda, para a longa Galeria Rastrelli, ladeada por colunas. Ali, o pavimento estava totalmente exposto; não havia lugar para esconder um quarto secreto acima do teto ou uma escada que levasse ao porão. Perambulando pelas proximidades da parede que separava a Galeria Rastrelli da Ala Oriental, deparou com uma porta fechada. Havia um teclado numérico ao lado da porta, e o agente sorriu ao ler o cartaz em um cavalete à esquerda, que dizia, em caracteres cirílicos:
Este é o futuro lar de Artes para Crianças, um serviço de televisão que mostrará os tesouros do Hermitage para os estudantes de todo o país.
Pode ser que sim, pensou Fields-Hutton, e pode ser que não. Fingindo ler o Blue Guide enquanto observava o guarda, Fields-Hutton esperou que o homem se afastasse e foi até a porta. Havia uma câmera de segurança acima da porta e por isso evitou olhar para cima ou mostrar o rosto. Fingindo espirrar, cobriu o rosto com a mão e deu uma olhada na lente. Era pequena; menor que vinte milímetros. Tinha que ser uma grande angular; cobria a porta e uma região à esquerda e à direita, mas não o piso.
Fields-Hutton enfiou a mão no bolso da calça e tirou o lenço. No interior, havia um peso mexicano, uma das poucas moedas que não tinham valor na Rússia. Na pior das hipóteses, se fosse encontrado, seria guardado como lembrança — com um pouco de sorte, por um agente graduado que tivesse algo importante para dizer em particular.
Fields-Hutton espirrou de novo, dobrou o corpo e enfiou o peso por baixo da porta. Provavelmente havia um detector de movimento do outro lado, mas não devia ser suficientemente sensível para ser disparado pela moeda; caso contrário, cada barata ou rato do museu acionaria o alarme. Afastou-se rapidamente, ainda com o nariz enterrado no lenço.
Chegando à entrada principal, teve de esperar que um guarda lhe revistasse a mochila antes de ganhar a rua. Escolheu uma árvore à beira do rio, parou debaixo dela e tirou da mochila um walkman. Fez o aparelho selecionar diferentes faixas de um CD; os números descreviam, em código, o que ele acabara de ver no museu. Esses números ficavam registrados no disco gravável. Mais tarde, quando estivesse longe dos receptores possivelmente instalados no museu, faria o walkman transmitir o sinal para o Consulado Britânico em Helsinki, de onde seria retransmitido para Londres.
Depois de terminar o relatório a respeito do estúdio de TV, Fields-Hutton preparou-se para escutar o que esperava que fossem sons de espionagem acontecendo ao redor de seu pequeno peso.
Seis
Domingo, 12:50, São Petersburgo
Quando a moeda passou por baixo da porta, acionou um sensor eletromagnético projetado para ser disparado por qualquer objeto, por menor que fosse.
No mesmo momento, soou um alarme nos fones de ouvido de Glinka, o diretor de segurança do Centro de Operações. Embora ele não fosse um alarmista, sabia que o mesmo não se podia dizer do coronel Rossky, especialmente quando faltava apenas pouco mais de um dia para a hora zero e havia boatos de que estavam sendo espionados.
Ligou para a recepcionista, que lhe assegurou que ninguém entrara nem saíra do local. Depois de agradecer à moça, o agente baixo e musculoso tirou os fones de ouvido, entregou-os ao assistente, levantou-se e entrou no corredor estreito que levava ao cubículo do coronel.
Qualquer desculpa servia para esticar as pernas, depois de passar nove horas sem fazer nada, a não ser testar as escutas instaladas em dezenas de embaixadas em todo o mundo. Isso, depois de passar quatro horas submetendo duas das linhas telefônicas do Centro de Operações a uma bateria de testes.
O corredor central era mais ou menos o dobro, em largura e comprimento do espaço que havia entre as fileiras de bancos de um ônibus. Era iluminado por três lâmpadas de vinte e cinco watts, penduradas no teto e protegidas por quebra-luzes pintados de preto. O isolamento acústico era tão bom que nada, a não ser um tiro de canhão, poderia ser ouvido do lado de fora. As paredes internas e externas eram feitas de tijolo revestido com espuma líquida e seis camadas alternadas de fibra de vidro e borracha. Tudo isso era coberto de encerado, como proteção contra a umidade, e por uma camada de argamassa pintada de preto para absorver a luz, evitando que fosse vista no andar acima através das frestas no piso.
Como um tronco de árvore, o corredor tinha vários ramos, que levavam a diferentes setores: computadores, escuta, reconhecimento aéreo, comunicações, biblioteca, saída etc. O escritório do general Orlov ficava em uma extremidade e o do coronel Rossky na outra.
Glinka chegou ao escritório do coronel e apertou o botão vermelho do microfone ao lado da porta.
— O que é? — perguntou uma voz pelo alto-falante.
— Aqui é Glinka, coronel. Peguei uma perturbação de 0,98 segundo na área de recepção. Não daria tempo de ninguém entrar, mas o senhor pediu para avisar se houvesse qualquer...
— Onde está o faxineiro?
— Está trabalhando nas alas Kurgan — respondeu Glinka.
— Obrigado — disse Rossky. — Vou cuidar disto pessoalmente.
— Coronel, se quiser, eu posso...
— É só. Pode ir — interrompeu Rossky.
Glinka passou a mão nos cabelos louros.
— Sim, senhor — disse, antes de dar meia volta para retornar a seu posto.
Lá se vai minha chance de esticar as pernas indo até lá em cima, pensou. Mas era melhor sentir cãibras do que desagradar o vingativo coronel Rossky, como fizera o pobre Pavel Odina ao roubar equipamentos do centro. Glinka relatara o roubo ao coronel apenas porque não queria ser responsabilizado pelo mesmo. Jamais imaginara que o programador de computadores sofresse um castigo tão horrível, que todos ali sabiam que tinha sido arquitetado por Rossky.
Sentou-se, colocou novamente os fones e preparou-se para mais cinco horas de serviço ininterrupto.
Começou a pensar em tudo que faria com o filho da mãe se tivesse coragem...
Usando um uniforme preto bem engomado, com distintivos vermelhos na lapela, o coronel Leonid Rossky saiu do escritório e dirigiu-se para a porta à prova de fogo que levava à escada. Como todos os militares do spetsnaz — uma palavra derivada de spetsialnoye nazhacheniye, “serviços especiais” —, tinha caráter e nervos de aço. Isso transparecia na sua expressão. Sobrancelhas espessas e escuras, nariz reto e comprido, lábios finos cujos cantos estavam permanentemente voltados para baixo. Usava bigode, o que não era comum no seu ramo de atividade. O andar, porém, era típico das forças especiais: rápido e decidido, como se apenas uma coleira invisível o impedisse de correr em direção a um objetivo que apenas ele podia ver.
Depois de abrir a porta, atravessá-la e fechá-la com firmeza, Rossky digitou a senha para trancá-la e apertou um botão do intercomunicador.
— Raisa, tranque a porta de entrada.
— Sim, senhor — respondeu a moça.
O coronel atravessou rapidamente um corredor escuro, subiu outro lance de escadas e usou outra porta controlada por um teclado para chegar a um estúdio de TV Normalmente, teria substituído o uniforme por trajes civis antes de se dirigir ao estúdio, mas estava com pressa.
Os operários, que estavam instalando luminárias, monitores e câmeras de TV ignoraram Rossky quando ele abriu caminho por entre os cabos, caixotes e equipamentos. Do outro lado da cabine de controle envidraçada havia uma escada íngreme e bem iluminada. Rossky subiu a escada e chegou a uma pequena área de recepção no andar superior. Raisa levantou-se da cadeira e cumprimentou-o com a cabeça. Abriu a boca para dizer alguma coisa, mas o coronel silenciou-a com um gesto e olhou em torno.
Rossky encontrou a moeda sem dificuldade, jazendo inocentemente debaixo da mesa da recepcionista, do lado direito da sala. Os dois empregados que estavam desempacotando equipamentos pararam para olhar para ele, que fez um gesto para que continuassem o que estavam fazendo. Os dois voltaram a discutir uma partida de futebol enquanto Rossky examinava a moeda. Andou em torno dela como uma cobra cercando sua presa, sem tocá-la ou mesmo respirar perto dela. O alarme podia ter sido disparado por um defeito do equipamento e o peso podia ser exatamente o que parecia, mas ele não sobrevivera durante vinte anos nas forças especiais acreditando que as coisas sempre eram o que pareciam.
Observou que o peso estava bem gasto, como se tivesse passado vários anos em circulação. A data de 1982 parecia compatível com essa conjectura. Examinou os lados da moeda, os sulcos embotados, a sujeira alojada entre eles. Tudo parecia muito autêntico. Entretanto, isso não era o bastante. Arrancou um fio de cabelo da cabeça e aproximou-o da moeda. O fio foi atraído por ela. Levou o dedo indicador à boca e esfregou um pouco de saliva na moeda. Examinou o dedo de perto e viu traços de poeira; o lugar onde tocara a moeda estava limpo.
O fio de cabelo e a poeira tinham sido atraídos por eletricidade estática, o que queria dizer que alguma coisa no interior da moeda estava gerando um campo eletrostático. Com os lábios cerrados de raiva, Rossky aprumou o corpo e voltou ao Centro de Operações. O transmissor no interior do peso não era muito potente. O espião não podia estar a mais do que algumas centenas de metros do museu. As câmeras de segurança revelariam quem era; não seria difícil capturá-lo.
Sete
Domingo, 9:00, Washington, D.C.
Mike Rodgers passou rapidamente pela entrada do Op-Center. Depois de cumprimentar os guardas armados, que lhe forneceram a senha do dia, Rodgers atravessou o primeiro andar, onde tinham sido instalados os escritórios dos funcionários de alto escalão, na área de trabalho da antiga equipe de evacuação. Como Paul Hood, Rodgers preferia ficar no porão recém-construído, onde realmente funcionava o Op-Center.
Outra guarda armada estava postada ao lado do elevador e depois de lhe fornecer a senha Rodgers foi autorizado a prosseguir. O sistema anacrônico, mas muito menos dispendioso, do “Quem vem lá? fora escolhido para todo o Op-Center no lugar dos sistemas de alta tecnologia adotados por outros órgãos do governo, nos quais leitoras de impressões digitais tinham sido enganadas por luvas esculpidas por lasers, e sistemas de identificação de voz tinham sido burlados por sintetizadores. Embora Rodgers se encontrasse com a guarda praticamente todo dia durante seis meses e soubesse os nomes de seu marido e de seus filhos, ela não o deixaria passar se não dissesse a senha. Se insistisse, receberia voz de prisão. Se resistisse, a guarda poderia até atirar nele. No Op-Center, a precisão, a competência e o patriotismo eram mais importantes do que a amizade.
Entrando no coração do Op-Center, conhecido como “curral”, Rodgers atravessou um labirinto de cubículos até chegar aos escritórios da periferia. Ao contrário dos escritórios do andar acima, daquelas salas era possível examinar fotografias tiradas por satélites, comunicar-se com agentes no mundo inteiro ou consultar bases de dados capazes de prever com precisão a produção de arroz em Kan-Cum com cinco anos de antecedência.
Rodgers estava usando o escritório de Hood durante a ausência do chefe. O escritório ficava ao lado de um auditório conhecido pelo apelido afetuoso de “o Tanque”. O Tanque era cercado por uma parede de ondas eletromagnéticas que o tornava invulnerável a dispositivos de escuta. Corriam boatos de que as micro-ondas podiam também causar esterilidade e loucura. Liz Gordon, a psicóloga do grupo, costumava dizer, em tom irônico, que as ondas explicavam muita coisa que acontecia no Op-Center.
Alerta e cheio de energia, apesar de ter ficado acordado até tarde, pois passara a noite de sábado na cidade, Rodgers entrou com a senha no teclado ao lado da porta do escritório de Hood. A porta se abriu, as luzes se acenderam e pela primeira vez em seis meses Rodgers começou a sorrir. Finalmente o Op-Center estava em suas mãos.
Mesmo assim, sabia que não estava sendo perfeitamente justo com Hood. Ele tinha seu lado de inspetor de colégio, como dissera Ann, mas era um bom homem. Era bem-intencionado e, mais importante que isso, era um administrador extremamente capaz. Sabia delegar autoridade internamente a um grupo de especialistas relativamente autônomos como Martha Mackall e Lowell Coffey II, Matt Stoll e Ann Farris. Entretanto, Rodgers estava cada vez mais convencido de que o Op-Center devia ser comandado por um só homem, como o FBI na época de Hoover. Tinha de ser dirigido por alguém que não consultasse a CIA ou o Conselho de Segurança Nacional antes de agir, mas comunicasse aos outros órgãos o que estava fazendo depois do fato consumado. Após evitar uma guerra na Coreia e o possível bombardeio do Japão, chegara à conclusão de que o Op-Center precisava ser mais agressivo no cenário mundial, em vez de se limitar a reagir aos acontecimentos.
Esta é uma das razões pelas quais não devemos permanecer anônimos, pensou Rodgers. Mas havia tempo suficiente para fazer algo a respeito... algo passivo, como deixar vazar informações para a imprensa, ou algo mais drástico, como enviar o grupo tático de ataque, o Striker, em missões como as que tinham tornado os comandos israelenses tão conhecidos e respeitados. Missões que não precisassem ser atribuídas a outrem, da forma como o recente ataque à base de mísseis da Coreia do Norte tinha sido atribuído aos sul-coreanos.
Rodgers e Hood tinham discutido várias vezes a respeito e o diretor sempre chamava a atenção para os estatutos da organização, que proibiam aventuras. Eles deviam agir como polícia, afirmava, e não como quinta-colunas. Para Rodgers, porém, um estatuto era como uma partitura. Você era obrigado a tocar as notas como tinham sido escritas e seguir as instruções do compositor, mas havia muito espaço para interpretações pessoais. No Vietnã, lera e relera A história do declínio e queda do império romano, de Edward Gibbons, e algo que o autor escrevera dera a Rodgers a convicção de que a maior das bênçãos de um ser humano é a independência.
Inspirado por Gibbons e por uma cópia surrada de A guerra como a conheci, de George Patton, que o pai lhe dera, Rodgers serviu duas vezes no Vietnã. Voltou aos Estados Unidos e obteve seu Ph.D. em história geral pela Temple University; em seguida, foi destacado para servir na Alemanha e depois no Japão. Comandou uma brigada mecanizada do golfo Pérsico e passou algum tempo na Arábia Saudita antes de retornar aos Estados Unidos para se candidatar a um cargo no Departamento de Estado. Em vez disso, o presidente ofereceu-lhe o posto de vice-diretor do Op-Center. Não estava arrependido de aceitar. Era estimulante estar envolvido em crises de várias partes do mundo. Ainda saboreava o sucesso de sua recente incursão da Coreia do Norte. Entretanto, não gostava de ser o braço direito de ninguém, muito menos de Paul Hood.
O computador apitou. Rodgers caminhou até a mesa e apertou Control/A para receber. O rosto de Bob Herbert, o assessor de inteligência, apareceu na tela. O agente, que estava com trinta e oito anos, parecia cansado.
— Bom dia, Mike.
Olá, Bob — disse Rodgers. — O que está fazendo aqui num domingo?
— Estou aqui desde a noite passada. Stephen Viens, do ENR1, ligou para minha casa e tive de vir. Você não leu meu relatório?
— Ainda não — respondeu Mike. — O que aconteceu?
— É melhor dar uma olhada no seu correio eletrônico e depois ligar para mim — sugeriu Herbert. — Meu relatório tem todos os acontecimentos, as grafias corretas e as fotos dos saté...
— Por que você simplesmente não resume o que aconteceu? — perguntou Mike, passando a mão no rosto.
Correios eletrônicos. Apitos. Imagens via computador. Como foi que o trabalho de espionagem passou de Nathan Hale para os screensavers de Matt Stoll, com Derek Flint dançando O lago dos cisnes? O trabalho de espionagem deveria exigir um certo esforço físico, como fazer amor, e não se reduzir a um voyeurismo eletrônico.
— Está certo, Mike, eu lhe darei um resumo da situação — disse Herbert, levemente preocupado. — Você está bem?
— Estou — respondeu Rodgers. — Apenas um pouco meio fora de sintonia com o final do século XX.
— Você é que está dizendo — replicou Herbert.
Rodgers não se deu ao trabalho de explicar. O assessor de inteligência era um bom homem, alguém que pagara o preço pelo que fazia. Perdera a mulher e o uso das pernas no bombardeio da embaixada americana em Beirute, em 1983. Depois de muita relutância inicial, até mesmo Herbert estava se deixando seduzir pelos computadores, satélites e cabos de fibra óptica. Ele chamava esta trinca tecnológica de “visão que Deus faz do mundo”.
— O que temos — declarou Herbert — são duas coisas, talvez relacionadas, talvez não. Você sabe que temos captado radiação de micro-ondas nas proximidades do Hermitage, em São Petersburgo.
— Sei — concordou Rodgers.
— A princípio, pensamos que a radiação fosse de um estúdio de TV que os russos estão montando no Hermitage para transmitir programas de arte para as escolas. Acontece que meu especialista em TV analisou seus testes para essas transmissões e descobriu que estão todas na faixa de 153 a 11.950 quilohertz. Não é isso que estamos recebendo de Neva.
— Nesse caso, o estúdio de TV deve ser uma fachada para algum outro tipo de atividade — afirmou Rodgers.
— É provável. Achamos que podia ser um novo sistema de segurança para cuidar dos turistas que os russos estão esperando na comemoração do tricentenário da cidade, mas isso não faz muito sentido.
— Por quê?
— Martha Mackall ligou para um amigo no Tesouro e conseguiu para mim os orçamentos dos Ministérios de Cultura e Educação da Rússia — explicou Herbert. — Não existe nem um rublo em qualquer dos dois para o que deve ser uma instalação de cinco a sete milhões de dólares. Depois de mais algumas pesquisas, encontramos os fundos para o estúdio no orçamento do Ministério do Interior.
— Isso não quer dizer nada — argumentou Rodgers. — Nosso governo vive transferindo fundos de um ministério para outro.
— É verdade — concordou Herbert —, mas o ministério reservou vinte milhões de dólares para o projeto.
— O ministro do interior é Dogin, o linha-dura que acaba de perder a eleição para a presidência — observou Rodgers. — Parte desse dinheiro pode ter sido investida na sua campanha.
— Isso é possível — concordou Rodgers. — Mas há algo mais que indica que o estúdio de TV pode ser mais do que isso. À uma e meia da tarde de ontem, interceptamos uma comunicação do setor norte de São Petersburgo para Nova York. Uma encomenda de roscas.
— Como é que é? — perguntou Rodgers, surpreso.
— Um pedido enviado por fax de São Petersburgo para a Bestonia Bagel Shop, uma confeitaria em Brighton Beach. O freguês queria uma rosca de cebola com queijo, uma rosca de sal com manteiga, uma rosca simples e duas roscas de alho com salmão defumado.
— Ninguém faz um pedido desses do outro lado do mundo — disse Rodgers. — Tem certeza de que não é uma brincadeira?
— Tenho — afirmou Herbert. — Bestonia mandou uma confirmação de volta. É tudo muito suspeito.
— Tem razão — concordou Rodgers. — Faz ideia do que significa?
— Mandamos para a criptografia — explicou Herbert — e eles não souberam o que dizer. Lynne Dominick acha que os diferentes tipos de rosca podem representar setores da cidade ou do mundo, mas também podem ser agentes. Os diferentes tipos de cobertura podem indicar diferentes alvos. Ela disse que vai continuar analisando a questão, mas ligou para a Bestonia e descobriu que eles vendem doze tipos de roscas com vinte “sabores” diferentes. Vai ser complicado.
— O que me diz da confeitaria? — perguntou Rodgers.
— Até agora, está limpa. Os donos pertencem à família Belnick, que veio de Kiev, via Montreal, em 1961.
— Então foram plantados aqui há muito tempo — afirmou Rodgers.
— Isso mesmo — concordou Herbert. — Darrell informou ao FBI e eles estão vigiando a loja. Até agora, se limitaram a vender roscas.
Darrell McCaskey era o elemento de ligação entre o Op-Center, o FBI e a Interpol. Ele ajudava a coordenar os trabalhos desses órgãos, permitindo que cada um se beneficiasse das informações colhidas pelos outros.
— Tem certeza de que são roscas? — perguntou Rodgers.
— Filmamos os sacos abertos do alto de um edifício próximo — informou Herbert. — Parecem roscas autênticas. Além disso, o entregador recebe as quantias corretas para cada tipo de entrega que faz. As pessoas que recebem as encomendas não saem para almoçar, de modo que devem estar comendo o conteúdo dos sacos.
Rodgers fez que sim com a cabeça.
— Quer dizer que isso é mais um indício de que algo está acontecendo em São Petersburgo. O que o MI6 está fazendo a respeito?
— Eles têm um agente no local — afirmou Herbert. — O comandante Hubbard prometeu que vai nos manter informados.
— Ótimo — disse Rodgers. — E o que é que você pensa disso tudo?
— Eu me sinto como se tivesse voltado para a década de 1960 em um episódio para Além da imaginação — afirmou Herbert. — Quando os russos, duros como estão, começam a gastar muito dinheiro com alguma coisa, eu me preocupo.
Rodgers concordou com a cabeça enquanto o outro anunciava o fim da transmissão. Herbert tinha razão. Os russos eram maus perdedores e havia a possibilidade de que um candidato derrotado tivesse acesso a uma operação secreta com agentes nos Estados Unidos.
Rodgers também estava preocupado.
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1 Abreviatura de Escritório Nacional de Reconhecimento, ou seja, National Reconnaissance Office.
Oito
Domingo, 16:35, São Petersburgo
Seja qual for a estação, o calor do dia deixa São Petersburgo quase imediatamente afugentado pelo vento que sopra do golfo no final da tarde. O ar frio é levado para todos os cantos da cidade pelo labirinto de rios e canais, razão pela qual as luzes são acesas muito cedo na maioria das lojas e residências. É por isso, também, que os pedestres, forçados a enfrentar o vento gélido, sentem-se especialmente unidos depois que o sol se põe.
O efeito do pôr-do-sol era quase sobrenatural, pensou Fields-Hutton. Fazia quase duas horas que estava sentado debaixo de uma árvore na margem do rio Neva, lendo arquivos gravados no seu laptop Toshiba. Ao mesmo tempo, escutava o walkman, que era, na verdade, um receptor de rádio sintonizado para a frequência do peso mexicano no interior do Hermitage. Enquanto observava o sol se aproximar do horizonte, as ruas começarem a se esvaziar e o passeio na margem do rio ficar praticamente deserto, sentiu-se como se as pessoas tivessem que chegar em casa antes que os vampiros e fantasmas as pegassem.
Ou isso, pensou, ou as histórias em quadrinhos de terror e ficção científica que tenho editado estão começando a me influenciar.
Estava ficando com frio, apesar de acostumado ao clima de Londres. Pior ainda: começava a achar que tudo aquilo fora uma perda de tempo. Tudo que ouvira desde que instalara a escuta tinha sido conversas triviais a respeito de esportes, mulheres e chefes intransigentes, ruídos de caixotes sendo abertos e as idas e vindas dos funcionários do estúdio de TV Não era exatamente o tipo de informação que deixaria o pessoal do MI6 entusiasmado.
Olhou para o outro lado do rio e depois olhou de novo na direção do Hermitage. O museu era uma visão majestosa, as dezenas de colunas de mármore branco agora refletindo a luz avermelhada do crepúsculo, a cúpula dourada faiscando com os últimos raios de sol. Os ônibus turísticos começavam a se retirar. Os empregados do turno do dia estavam indo embora, enquanto os do turno da noite chegavam. Os visitantes locais que tinham passado o domingo no museu faziam fila para pegar os ônibus elétricos ou caminhavam em direção à estação de metrô mais próxima, no Prospekt Nevsky. Em breve tanto as ruas quanto o grande museu estariam desertos.
Fields-Hutton esperava que Leon tivesse conseguido um quarto de hotel para ele: teria de voltar no dia seguinte para continuar a escuta. Estava convencido de que se alguma coisa estranha estava acontecendo no Hermitage, só podia ser na estação de TV.
O inglês decidiu voltar para o interior do museu e observar a porta do estúdio de TV por alguns minutos, para ver se alguém, além dos operários, usava as instalações perto da hora de fechar. Alguém que pudesse descrever para a divisão de identificação do MI6: um militar em trajes civis, um funcionário do governo, um agente estrangeiro. Havia sempre muito movimento nos dias que precediam o início de uma operação importante. Além disso, um operário poderia, ao sair, dizer ou fazer alguma coisa que lhe desse uma pista a respeito do que estava acontecendo no interior.
Depois de fechar o computador e esticar um esqueleto que um agente americano uma vez descrevera como digno de Arthur Fiedler — levantou-se com uma sinfonia de estalidos —, Fields-Hutton tirou a poeira das calças e deixou o walkman ligado enquanto caminhava rapidamente em direção ao museu.
À direita, viu um casal que acabara de deixar o museu passeando de mãos dadas na margem do rio. Pensou em Peggy, não no primeiro passeio que haviam dado, aquele em que a moça o introduzira ao negócio da espionagem, mas em um passeio que ocorrera fazia apenas cinco dias, às margens do Tâmisa. Tinham falado em casamento pela primeira vez, e Peggy admitira que se sentia tentada a aceitar. Naturalmente, Peggy tinha o temperamento da Torre Inclinada de Pisa e poderia levar uma eternidade para cair, mas estava disposto a correr o risco. A moça não era a criatura quieta e reservada que sempre imaginara como esposa, mas gostava do seu entusiasmo. Além disso, tinha o rosto de um anjo. Valia a pena esperar que se decidisse.
Seus lábios se abriram em um sorriso quando uma jovem passou trotando em direção ao rio, acompanhada por um terrier Jack Russell. Fields-Hutton não imaginava que houvesse cães dessa raça inglesa na Rússia, embora o mercado negro estivesse contrabandeando de tudo ultimamente, inclusive cachorros que estavam na moda no Ocidente.
A mulher usava um agasalho esportivo e um boné de beisebol e levava nas mãos uma pequena garrafa de plástico. Quando se aproximou, pôde ver que não estava suando. Isso lhe pareceu estranho, já que os apartamentos mais próximos ficavam a pelo menos quinhentos metros de distância. A jovem sorriu. O agente retribuiu o sorriso. De repente, o cachorro escapou da coleira, correu na sua direção e mordeu-lhe a barriga da perna antes que a corredora tivesse tempo de segurá-lo.
— Sinto muito! — exclamou a moça, colocando o cachorro no colo.
— Não foi nada — disse o agente, apoiando o joelho direito no chão para examinar o ferimento.
Colocou o computador na calçada, tirou o lenço do bolso e enxugou o sangue que saía das duas filas semicirculares de marcas de dentes.
A mulher se ajoelhou a seu lado, solícita. Mantendo imóvel o histérico terrier com o braço direito, estendeu o esquerdo, oferecendo-lhe a garrafa de água.
— Isso vai ajudar.
— Não, obrigado — disse Fields-Hutton, enquanto as marcas de dentes voltavam a se encher de sangue.
Havia alguma coisa errada. A mulher parecia preocupada demais, atenciosa demais. Os russos não eram assim. Era melhor dar o fora.
Antes que Fields-Hutton pudesse detê-la, a jovem despejou água na ferida. Uma mistura de água e sangue escorreu-lhe pela perna enquanto levantava a mão para detê-la.
— O que esta fazendo? — exclamou. — Pare, por favor...
Levantou-se. A jovem também se levantou e ficou olhando para ele. Não parecia mais preocupada; limitava-se a observá-lo. Até o cachorro estava quieto. As suspeitas de Fields-Hutton transformaram-se subitamente em realidade quando a dor desapareceu... juntamente com todas as sensações naquela perna.
— Quem é você? — perguntou, enquanto o entorpecimento subia para o tronco e começava a se sentir tonto. — Por que fez isso comigo?
A mulher não respondeu. Não era necessário. Fields-Hutton sabia que tinha sido envenenado com um agente químico de efeito quase instantâneo. Quando o mundo começou a girar, lembrou-se de Leon e abaixou-se para pegar o computador. Segurou o aparelho pela alça e cambaleou na direção do rio. Quando as pernas ficaram totalmente paralisadas, tentou usar as mãos para se arrastar. Queria permanecer vivo tempo suficiente para jogar o computador no rio Neva. Logo, porém, os braços também perderam a força e ele caiu de bruços.
A última coisa que Keith Fields-Hutton viu foi o rio dourado, a poucos metros de distância. A última coisa que ouviu foi a mulher atrás dele dizer “Adeus”. A última coisa que pensou foi em como Peggy choraria quando o comandante Hubbard lhe contasse que seu amado morrera em serviço, em São Petersburgo.
No momento seguinte, o agente paralisante VX fez parar o coração de Fields-Hutton.
Nove
Domingo, 21:00, Belgorod, na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia
O helicóptero Kamov Ka-26, de motor radial, pousou no campo iluminado, os dois rotores levantando poeira e formando desenhos de cavalos-marinhos invertidos no ar. Enquanto os soldados se aproximavam e começavam a descarregar os caixotes de equipamentos de comunicações do compartimento de carga atrás da cabine do piloto, o ministro do interior Dogin saltou. Segurando o chapéu de feltro com uma das mãos e a frente do sobretudo com a outra, dobrou o corpo e afastou-se com passos rápidos do local do pouso.
Dogin sempre gostara de bases temporárias como aquela — áreas desertas transformadas, da noite para o dia, em centros pulsantes de poder, marcas de botas no solo varrido pelo vento, o ar poeirento cheirando a óleo diesel.
A base tinha sido montada para guerra de montanha, usando uma planta desenvolvida durante a última fase da guerra do Afeganistão. A sua direita, a cem metros de distância, havia filas e mais filas de tendas, cada uma com capacidade para doze soldados. Eram vinte tendas por fila, e todas se estendiam muito além do alcance dos refletores, quase até as colinas distantes. Naquela direção, nos limites do acampamento, tinham sido cavadas trincheiras. Em caso de guerra, essas posições seriam usadas para proteger a base de ataques de guerrilheiros. A esquerda, onde o terreno era plano, estavam vários tanques, veículos blindados e helicópteros. Ali ficavam também o refeitório, os chuveiros, o hospital, o almoxarifado e o depósito de lixo. Mesmo à noite, a vida estava presente no ar: mecanizada, elétrica, estimulante.
A distância, Dogin avistou o imaculado monoplano bimotor PS-89, que pertencia a Dmitri Shovich. Era guardado por dois homens armados com rifles de combate Automat; o piloto estava na cabine, pronto para decolar a qualquer momento.
Olhando para o avião, o ministro do interior sentiu um calafrio. O que até o momento tinha sido apenas um plano estava para se transformar em realidade. Os homens e equipamentos ali estacionados, mais os materiais a caminho, só poderiam levá-los até um certo ponto. Para conseguir o dinheiro de que necessitava para anular os efeitos desastrosos da eleição, estava prestes a fazer um pacto com o demônio. Só lhe restava torcer para que Kosigan estivesse certo e a cláusula de escape funcionasse quando chegasse a hora.
Do outro lado do almoxarifado havia mais três tendas: a estação meteorológica, com os sensores do lado de fora, montados em tripés, ligados a computadores no interior; o centro de comunicações, com uma antena parabólica apontada para noroeste e outra para sudeste; e a tenda do comando.
O general Mikhail Kosigan estava de pé do lado de fora da tenda do comando, com as pernas bem abertas, as mãos cruzadas atrás das costas, a cabeça ereta. Atrás dele, um pouco à direita, estava um ordenança, que segurava o quepe.
Embora o vento fizesse balançar violentamente as abas do dólmã do general, as pernas das suas calças e a porta da tenda, Kosigan não parecia notar. Dos olhos negros ao queixo pontudo e à cicatriz que lhe cortava o rosto em diagonal, o general parecia concentrar em seu metro e noventa e três centímetros de altura toda a força e a arrogância dos cossacos.
— Seja bem-vindo, Nikolai! — exclamou. — É bom ver você!
Kosigan não estava falando alto, mas era fácil ouvi-lo, apesar do barulho do helicóptero. Dogin apertou-lhe a mão.
— É bom ver você, Mikhail.
— É mesmo? Nesse caso, por que essa cara triste?
— Não estou triste — afirmou Dogin, defensivamente. — Estou preocupado.
— Ah, o grande cérebro sempre trabalhando, como Trotsky no exílio.
Dogin fuzilou-o com os olhos.
— Não posso dizer que tenha gostado da comparação. Eu jamais me oporia a Stalin e não pretendo morrer com uma picaretada na cabeça.
Dogin ficou olhando para Kosigan. O general era um homem notável. Competira nas Olimpíadas e tinha sido bicampeão mundial de tiro de pistola, resultado de uma juventude passada na organização paramilitar DOSAAF — Sociedade Voluntária para Cooperação com Exército, Aeronáutica e Marinha —, que treinava jovens em esportes para os quais existia uma aplicação militar. A partir desse ponto, sua ascensão na carreira militar fora rápida e brilhante, embora não suficientemente veloz para contentar o seu ego descomunal. Dogin agora estava certo de que podia confiar no general. Kosigan precisava do ministro para ajudá-lo a passar a frente dos superiores na nova ordem que estava para acontecer. Mas o que iria fazer com ele depois? Depois era sempre um problema no caso de pessoas como Kosigan.
O general sorriu.
— Não se preocupe. Não há assassinos aqui, apenas aliados. Aliados que estão ficando cansados de tantas manobras, que estão ansiosos para fazer alguma coisa... mas... — o sorriso se acentuou — ... aliados que estão mais dispostos do que nunca a apoiar o ministro.
— E o general — acrescentou Dogin.
— Naturalmente — concordou Kosigan, voltando-se e apontando para sua tenda.
Quando entrou, Dogin viu o terceiro membro do estranho triunvirato: Dmitri Shovich. O gângster estava sentado em uma das três cadeiras dobráveis arrumadas em torno de uma pequena mesa verde de metal.
Shovich levantou-se quando Dogin entrou.
— Meu bom amigo — disse, em tom carinhoso.
Dogin não teve coragem de chamar o bandido de “amigo”.
— Dmitri — respondeu, fazendo uma leve mesura enquanto olhava diretamente para os olhos castanhos.
Eram frios, aqueles olhos, um efeito acentuado pelos cabelos brancos cortados rente e pelas sobrancelhas da mesma cor. O rosto magro e alongado de Shovich era impassível e sua pele estranhamente lisa. Dogin ouvira dizer que ele se submetera a um processo químico para remover as rugas que adquirira durante os nove anos que ficara em uma prisão da Sibéria.
Shovich tornou a sentar-se, sem tirar os olhos do recém-chegado.
— Não parece muito satisfeito, ministro.
— Está vendo, Nikolai? — interveio o general Kosigan. — Todos podem notar. — Virou a cadeira ao contrário, sentou-se com as pernas abertas e apontou para Dogin, o dedo indicador em riste, e o polegar para cima, como se sua mão fosse um revólver. — Se fosse menos sério, talvez não precisássemos estar aqui agora. A nova Rússia gosta de líderes capazes de rir e beber com o povo, não de alguém que parece carregar o peso do mundo nos ombros.
Dogin desabotoou o sobretudo e sentou-se na última cadeira. Havia uma bandeja com xícaras, um bule de chá e uma garrafa de vodca. Serviu-se de chá.
— A nova Rússia resolveu seguir um flautista que os levará, rindo e bebendo, para o desastre.
Parece que sim — admitiu Kosigan —, mas os russos jamais souberam o que é melhor para eles. Felizmente, estamos aqui para lhes mostrar. Somos uma trinca de patriotas, não somos?
Shovich apoiou as mãos na mesa.
— General, não sou nenhum patriota nem estou interessado em salvar a Rússia. A Rússia me fez passar nove anos no inferno antes que a anistia geral de Gorbachev me salvasse. Estou interessado apenas nas condições que discutimos anteriormente. Elas continuam aceitáveis para ambos?
— Continuam — declarou o general.
Os olhos gelados do gângster voltaram-se para Dogin.
— Ele está falando pelo senhor, ministro?
O ministro do interior colocou um cubo de açúcar na xícara. Nos cinco anos desde que fora libertado, Shovich transformara-se de um ladrão barato no chefe de uma organização criminosa internacional, que contava com um exército de 100.000 homens na Rússia, na Europa, nos Estados Unidos, no Japão e em outros países, a maioria dos quais tinha sido aceito apenas depois de provar sua lealdade matando um amigo ou parente.
Será que estou louco em me associar a alguém como ele? perguntou-se Dogin. Podiam contar com a lealdade de Shovich apenas enquanto lhe permitissem explorar vinte por cento dos recursos das antigas repúblicas soviéticas, que incluíam as maiores reservas de petróleo do mundo, uma quantidade de madeira duas vezes maior que a da floresta Amazônica, quase um quarto das reservas mundiais de ouro e diamantes, e grandes estoques de urânio, plutônio, chumbo, ferro, carvão, cobre, níquel, prata e platina. Aquele homem não era um patriota. Tudo que queria era explorar os recursos naturais da antiga União Soviética e, ao mesmo tempo, aproveitar-se de negócios legítimos para lavar o dinheiro do tráfico de drogas.
Era o tipo de acordo que deixava Dogin enojado, mas Kosigan sustentava que enquanto ele e seus colegas controlassem o maior exército em atividade no mundo, e Dogin operasse o novo centro de operações de São Petersburgo, não teriam nada a temer por parte de Shovich. Mais tarde ele poderia ser alijado do poder e exilado em uma das suas residências em Nova York, Londres, Cidade do México, Hong Kong ou Buenos Aires. Ou poderia ser eliminado, caso se recusasse a ir.
Dogin não estava tão certo de que isso fosse possível, mas não parecia haver outra opção. Precisava de muito dinheiro para comprar políticos e militares, para travar uma guerra sem a concordância do Kremlin. Ao contrário do Afeganistão, esta seria uma guerra que os russos poderiam ganhar. Entretanto, precisavam de dinheiro. Marx não teria gostado nem um pouco.
— Quem fala por mim sou eu — disse Dogin para Shovich. — Seus termos são aceitáveis. No dia em que Janin for deposto e eu for nomeado presidente, o ministro do interior será escolhido por você.
Shovich deu um sorriso gelado.
— E se eu escolher a mim mesmo?
A ideia deixou Dogin horrorizado, mas, como político experiente, não deixou que isso transparecesse.
— Como eu já disse, a escolha é sua.
A tensão da desconfiança mútua estava ficando pesada quando Kosigan os interrompeu ruidosamente:
— E a Ucrânia? E Vesnik?
Dogin desviou os olhos de Shovich.
— O presidente da Ucrânia está do nosso lado.
— Por quê? — perguntou Shovich. — Os ucranianos conquistaram a independência com a qual sonhavam há décadas.
— Vesnik tem nas mãos mais problemas sociais e étnicos do que ele e seus militares são capazes de enfrentar sozinhos — afirmou Dogin. — Precisa fazer algo antes que as coisas saiam de controle. Podemos ajudá-lo nisso. Também sente saudade dos tempos de glória, como eu e Kosigan. — Dogin olhou para o monstro a seu lado. — Meus aliados na Polônia estão planejando uma manifestação para quinta-feira que vem, à 0:30, hora local.
— Que tipo de manifestação? — quis saber Shovich.
— Meu assistente em São Petersburgo já enviou um grupo para a cidade fronteiriça de Przemysl, na Polônia — explicou Dogin. — Eles vão explodir uma bomba na sede do Partido Comunista Polonês. Os comunistas vão ficar indignados com o ataque e meus agentes estarão lá para assegurar que o protesto se torne violento. O governo polonês enviará tropas e o tumulto se estenderá até a fronteira da Ucrânia, que fica a apenas dez quilômetros de distância. À noite, na confusão, as tropas de Vesnik abrirão fogo contra os soldados poloneses.
— Quando isso acontecer — interveio Kosigan —, Vesnik entrará em contato comigo para pedir apoio militar. Janin já terá descoberto que está fora do círculo de poder. Ele vai tentar descobrir quais são os generais que estão do seu lado, como fez Yeltsin quando seus generais resolveram atacar a Chechênia. Não encontrará muitos aliados; os políticos que estamos comprando também vão se recusar a apoiá-lo. Os poloneses de ascendência ucraniana e bielorrussa também serão perseguidos. Quando eu e os ucranianos contra-atacarmos, a Rússia Branca se juntará a nós, deixando a frente de batalha a menos de cento e sessenta quilômetros de Varsóvia. Os russos ficarão entregues a uma histeria nacionalista, ao mesmo tempo que Janin será abandonado por seus parceiros comerciais em outros países. Ele estará acabado.
— O segredo do nosso sucesso — afirmou Dogin — é evitar que os Estados Unidos e a Europa se envolvam militarmente. — Olhou para Shovich. — Vamos trabalhar nisso diplomaticamente, afirmando que não se tratou de um ataque imperialista, mas de uma reação de defesa. Se isso não funcionar, o general já conversou com você a respeito de ameaçarmos algumas autoridades em postos-chave...
— É verdade — concordou Kosigan —, mas Dmitri me disse que tem uma ideia melhor. Por que não explica a ele, Dmitri?
Dogin ficou olhando para Shovich enquanto o monstro se ajeitava na cadeira antes de começar. Tinha certeza de que o gângster fazia isso apenas para irritá-lo. Ele se recostou, cruzou as pernas e removeu um torrão de lama da bota preta.
— Meus amigos na América disseram-me que o FBI costuma usar a tática do “bateu, levou” — afirmou Shovich. — Se estivermos explorando o jogo ou o tráfico de drogas, eles apenas tentam limitar nossa operações. Mas se ferirmos um dos seus homens, eles vão em cima de nós com toda a força. Isso evita que as ruas se transformem em um campo de batalha. Como a maioria dos meus amigos está neste negócio pelo dinheiro e não pela política, eles se recusam a atacar funcionários do governo.
— Nesse caso, o que você propõe? — perguntou Dogin.
— Uma demonstração de poder contra um alvo civil — respondeu Shovich.
— Com que objetivo? — quis saber Dogin.
— O de atrair a atenção dos americanos. Quando a tivermos, diremos que se nos deixarem em paz na Europa Oriental, não haverá novos atos de terrorismo. Podemos até entregar a eles o terrorista, o que ajudará a aumentar a popularidade do presidente Lawrence — respondeu Kosigan.
— Naturalmente — acrescentou Shovich —, terá que compensar meus colegas na América pela perda de um homem. Mas esse dinheiro poderá sair da sua caixinha, não é?
— É claro — concordou Kosigan. Estendeu a mão para a garrafa de vodca e olhou para Dogin. — Como venho dizendo há muito tempo, ministro, tudo que precisamos é manter os Estados Unidos a distância até que os noticiários da TV comecem a mostrar soldados mortos e feridos. O povo americano não vai tolerar um novo Vietnã. Faltando apenas alguns meses para a eleição, o presidente Lawrence não terá coragem de intervir no conflito.
Dogin olhou para Shovich.
— De que tipo de alvo civil você está falando?
— Isso não importa — replicou o gângster com desinteresse. — Meus amigos conhecem bem os Estados Unidos. Alguns são mercenários, outros são patriotas. Seja quem for o escolhido, porém, saberá como atingir fundo o orgulho americano. Deixei a escolha por conta deles — explicou com um sorriso gélido.
— Amanhã, a esta mesma hora, já saberemos de tudo pelos noticiários.
— Amanhã! — exclamou Kosigan. — Somos homens de ação!
— Encheu o seu copo e o de Shovich. — Como nosso amigo Nikolai não bebe, permitiremos que brinde com uma xícara de chá. — Levantou o copo. — A nossa aliança.
Enquanto os copos se tocavam, Dogin sentiu um frio na espinha. Aquilo era um golpe, uma segunda Revolução. Iriam construir um império à custa de muitas mortes. Podia aceitar isso; o que não podia aceitar com facilidade era a frieza de Shovich. Para o gângster, parecia não haver nenhuma diferença entre sequestro e assassinato.
Dogin bebeu um gole de chá e procurou convencer a si próprio de que aquela aliança espúria era uma necessidade. Todo líder tinha de fazer concessões para atingir seus objetivos. Pedro, o Grande, havia mudado a arte e a indústria na Rússia com as ideias que trouxera da Europa. A cooperação com os alemães permitira a Lenin derrubar o tsar e retirar a Rússia da Primeira Guerra Mundial. Stalin consolidara-se no poder assassinando Trotsky e outras centenas de milhares de pessoas. Yeltsin aliara-se aos exploradores do mercado negro para evitar que a economia do país desmoronasse.
Agora, era a sua vez de se associar a um gângster. Pelo menos, Shovich era russo. Melhor do que ir aos Estados Unidos de pires na mão, suplicando por auxílio financeiro e moral, como tinham feito Gorbachev e agora Janin.
Enquanto os outros esvaziavam os copos, Dogin evitou o olhar de Shovich. Tentou não pensar nos meios, mas apenas nos fins. Imaginou um mapa na parede do seu escritório. Um mapa de uma nova e poderosa União Soviética.
Dez
Domingo, 20:00, Nova York
Depois de receber as roscas encomendadas de São Petersburgo, Herman Josef colocou cinco quilos de explosivo plástico em uma sacola de compras, cobriu o explosivo com as roscas e caminhou três quarteirões até a Everything Russian, uma loja que vendia livros, fitas de vídeo e outros produtos de sua terra natal. Sessenta minutos mais tarde, entregou outros cinco quilos de explosivos na Mickey's Pawn Shop, em Brighton Beach.
Naquele dia, Herman fez quinze entregas, levando um total de 75 quilos de explosivos a diferentes locais. Não sabia se estava sendo seguido, mas comportou-se como se estivesse. Assim, em cada parada, cobrou pelas roscas e chegou a resmungar em voz alta, na saída, quando a gorjeta era menor que o habitual.
Depois que Herman saía de cada local, os explosivos eram levados por outro mensageiro para a Nicholas Home, uma casa para a velhice, onde eram colocados em uma embalagem para cadáveres e despachados para uma funerária, Gherkassov Funeral Home, no bairro de St. Marks, da cidade de Nova York, e escondidos no interior de um caixão. A família Ghaikov deixava a aquisição de armas e explosivos por conta dos Belnick; sua especialidade era o planejamento e a execução de atentados.
O túnel Queens-Midtown passa por baixo do East River, em Nova York, começando na Rua 36, entre a Segunda e a Terceira Avenida. O túnel liga a ilha de Manhattan à via expressa de Long Island, no bairro de Queens. Construído há cinquenta anos, é uma das principais artérias da cidade; a qualquer hora do dia ou da noite o movimento é intenso em seus dois quilômetros de extensão.
Aquela hora, uma noite quente de domingo, as luzes alaranjadas do túnel iluminavam o caminho para as famílias que voltavam para casa depois de passar o dia na cidade e para os viajantes que se dirigiam ao Aeroporto Internacional JFK ou ao Aeroporto La Guardia.
Alto, de cabelos e barba brancos, Eivai Ekdol baixou o vidro da janela do carro funerário. Respirou o ar poluído, que o fez lembrar-se de Moscou. Não pensava sobre as pessoas que estavam à sua volta ou o que estavam fazendo. Não importava. A morte daquelas pessoas era o preço a pagar pelo estabelecimento de uma nova ordem mundial.
Quando estava se aproximando da saída do túnel, o russo comprimiu o acendedor de cigarros do veículo. O pneu dianteiro esquerdo estourou e ele dirigiu em ziguezague até parar junto à parede do túnel. Ignorou os xingamentos dos motoristas que tinham de mudar de pista para evitar uma colisão. Os americanos estavam sempre xingando, como se os incidentes desagradáveis não tivessem direito de acontecer e, mais ainda, como se fossem uma afronta pessoal a cada um deles.
Ekdol ligou o pisca-pisca, saltou do carro funerário e caminhou até a saída do túnel. Quando chegou à saída, tirou do bolso um telefone celular e fingiu que estava falando com alguém. Continuou a falar enquanto se aproximava das cabines de pedágio.
Passou por um guarda de trânsito, que estava em um carro de polícia perto das cabines. O rapaz perguntou se precisava de ajuda.
— Não, obrigado — respondeu Ekdol com um sotaque carregado. — Já pedi socorro por telefone.
— Foi só o pneu? — perguntou o guarda.
— Não. O eixo quebrou.
— A iluminação lá dentro é muito precária. Alguém pode bater no senhor. Tem um facho de sinalização?
— Não, senhor.
O policial destravou a mala do carro.
— É melhor colocarmos alguns.
— Obrigado — disse Ekdol. — Acompanho o senhor em um momento. Antes, preciso ligar para os parentes do morto.
— É claro. — O guarda sorriu. — Ficaria muito esquisito um enterro sem corpo.
— Tem razão.
O policial saltou do carro, abriu a mala, pegou uma caixa de fachos e dirigiu-se para a entrada do túnel, assoviando.
Ainda fingindo que falava ao telefone, Ekdol passou pelas cabines. Pouco depois, um Cutlass parou ao seu lado. Antes de entrar no veículo, Ekdol apertou um dos botões do telefone.
Enquanto o Cutlass se afastava, uma bola de fogo irrompeu da boca do túnel, jogando fumaça, pedaços de pedra e fragmentos de metal em todas as direções. Os carros que estavam saindo do túnel foram arremessados para o ar. Um deles deu um salto mortal por cima do policial e chocou-se com uma van que estava parada em uma das cabines do pedágio. Os dois veículos explodiram, envolvendo a cabine em chamas. Outros carros foram esmagados por blocos de pedra, enquanto do interior do túnel vinham novos estrondos causados pelas explosões dos carros em chamas. Em poucos momentos, a praça do pedágio estava coberta por uma nuvem de fumaça branca e um silêncio pesado, funesto.
Depois de mais alguns segundos, o silêncio foi quebrado pelo rangido de vigas se encurvando e pelos estalidos do concreto se rompendo. Em seguida, quinhentos metros da via expressa e os edifícios que a ladeavam estremeceram quando o teto do túnel desabou. O rugido da água ao se precipitar pela fenda foi o de um oceano avassalador. As paredes do túnel não resistiram à pressão e seus pedaços foram carregados pela enxurrada que invadiu a praça do pedágio, levando de roldão os carros acidentados e os blocos de pedra. O sibilar dos incêndios apagados foi abafado pelo ruído da água que invadiu a via expressa, arrastando os poucos carros e postes de iluminação que ainda estavam de pé. Uma nuvem de vapor saiu da boca do túnel, misturando-se com a fumaça.
Quando a água começou a escoar e os detritos pararam de cair, as primeiras sirenas se fizeram ouvir a distância. Em poucos minutos, helicópteros da polícia sobrevoavam a via expressa, filmando os veículos que se afastavam do local do desastre. Entretanto, Ekdol não estava preocupado. Em menos de meia hora, teria chegado ao esconderijo. O carro seria desmontado e ele queimaria a barba e o bigode postiços, os óculos escuros e o boné de beisebol que estava usando.
No momento, o trabalho estava encerrado. Arnold Belnicke seus mercenários seriam pagos regiamente pela participação no atentado e, então, outros membros do Grozny se encarregariam de continuar o que ele começara.
Embora sua vida estivesse prestes a terminar, sentia-se honrado em sacrificá-la em nome da nova União Soviética.
Onze
Domingo, 21:05, Washington, D.C.
Mike Rodgers adorava Cartum.
Não era quente e macio como Elizabeth, Linda, Kate ou Ruthie, mas também não precisava sair no meio da noite para levá-lo em casa. O disco de vídeo com o filme estava ali mesmo, junto com suas outras obras favoritas, como El Cid, Lawrence da Arábia, O homem que queria ser rei e quase todos os filmes estrelados por John Wayne. Além disso, não precisava ser sociável. O filme não exigia que fizesse nada, a não ser colocá-lo no aparelho, relaxar e se divertir.
Rodgers antegozara o prazer de assistir Cartum mais uma vez o dia inteiro; portanto, deveria saber que alguma coisa fatalmente se interporia entre ele e o filme.
Começara o domingo com sua corrida diária de oito quilômetros. Em seguida, tomara café (preto, sem açúcar) sentado à mesa da sala de jantar com o laptop, revendo o cronograma de Paul Hood que agora seria o seu — para a semana seguinte. Estavam previstos encontros com os chefes de outras organizações de inteligência dos Estados Unidos para estudar formas mais eficientes de trocar informações, uma reunião preliminar com a comissão de orçamento e um almoço com o chefe da Gendarmerie Nationale da França, Benjamin. A simples ideia de falar com toda aquela gente deixou-o com a boca seca. Mas havia também alguns problemas de verdade para resolver. Teria de se reunir com Bob Herbert e Matt Stoll, os gênios dos computadores, para tratar dos programas de cobertura do novo satélite de IE, ou de Interferência Eletrônica. O satélite de IE estava sendo testado sobre o Japão e era capaz de romper impulsos eletrônicos em aparelhos tão pequenos como um microcomputador. Também receberia informações das equipes baseadas no Oriente Médio, na América do Sul e em outras partes do mundo. Isso, para não falar nos relatórios dos agentes americanos infiltrados no Exército da Rússia. Estava interessado em saber como estava indo a reforma da Distribuição de Petróleo, Óleo e Lubrificantes e curioso para ver como o novo presidente da Rússia pretendia compensar os cortes de pessoal tanto nos efetivos militares como nos serviços de apoio.
Mais do que tudo, aguardava com ansiedade os primeiros encontros com os engenheiros do Op-Center para discutir a criação do primeiro Op-Center Regional. Depois da Coreia, chegara à conclusão de que deveriam dispor de instalações móveis, que pudessem ser deslocadas com facilidade para qualquer ponto do planeta. Se fosse possível implementá-los, os OCR fariam com que se transformassem num órgão de inteligência ainda mais eficiente.
Depois do almoço, Rodgers fora à galeria de tiro de Andrews. Havia dias em que podia descarregar uma M3 calibre .45 e errar todos os tiros, mas também havia dias em que podia palitar os dentes com uma Colt Woodsman calibre .22. Hoje havia sido um bom dia. Depois de duas horas de uma exibição que deixara o pessoal da Força Aérea de boca aberta, Rodgers fora visitar a mãe na Van Gelder Home, uma casa geriátrica. Não estava mais lúcida do que ficara após sofrer um derrame, dois anos antes. Mesmo assim, tinha lido para ela seus poemas favoritos de Walt Whitman como sempre fazia e sentara-se, segurando-lhe a mão. Ao sair de lá, fora jantar com um velho companheiro do Vietnã. Andrew Porter era dono de uma cadeia de casas noturnas que cobria toda a Costa Leste e sabia fazer Rodgers rir como mais ninguém.
Enquanto estavam tomando café e se preparando para pagar a conta, o bip de Rodgers começou a tocar. Era Tobey Grumet, a assistente do diretor de segurança nacional. Rodgers contactou-a pelo celular.
Tobey informou-o a respeito do atentado que ocorrera em Nova York e comunicou que o presidente havia convocado uma reunião de emergência no Salão Oval. Rodgers pediu desculpas a Porter e deixou imediatamente o restaurante.
Enquanto se dirigia para a Casa Branca, Rodgers pensou no general Charles “Chinês” Gordon. Os esforços de Gordon para proteger a vulnerável Cartum dos fanáticos madis estavam, de uma só vez, entre as mais corajosas e mais insanas aventuras militares da história. Gordon pagara com a vida pelo seu heroísmo, tendo o peito atravessado por uma lança e a cabeça exibida em público na ponta de uma estaca. Entretanto, Rodgers sabia que era assim que Gordon queria morrer. O inglês trocara a vida pela oportunidade de dizer a um tirano: ‘ Não. Você não vai tomar este lugar sem luta. ”
Rodgers sentia-se da mesma forma. Ninguém podia fazer uma coisa como aquela no seu país. Não sem luta.
Escutou o noticiário no rádio do carro e falou ao telefone. Era bom ter alguma coisa para fazer; melhor que ficar pensando o tempo todo. O número de mortos passava de duzentos. O East River estava fechado ao tráfego e o FRD Drive, no lado leste de Manhattan, ficaria interrompido durante vários dias, enquanto os técnicos verificavam se sua estrutura tinha sido abalada. A polícia revistava todos que passavam por outros pontos de trânsito nas proximidades — pontes, estradas, aeroportos, estações de metrô — em busca de explosivos, o que significava que o centro da economia mundial estaria praticamente paralisado na segunda-feira.
O agente do Op-Center encarregado das ligações com o FBI, Darrell McCaskey, telefonou a Rodgers para informar que o FBI assumira o controle da investigação e que o diretor Egenes estaria presente à reunião. McCaskey contou a Rodgers que os extremistas de costume tinham ligado para assumir a responsabilidade pelo atentado, mas ninguém os levara a sério. McCaskey não fazia ideia de quem poderia ser o verdadeiro culpado.
Rodgers também recebeu um chamado da assistente do vice-diretor, Karen Wong, que dirigia o Op-Center nas noites de sábado e domingo.
General, fui informada de que o senhor foi convocado para uma reunião.
— É verdade.
Nesse caso, vou lhe fornecer uma informação que pode ser importante. Assim que Lynne Dominick, do departamento de criptografia, ouviu falar da explosão, resolveu dar mais uma olhada naquela encomenda de roscas que chegou de São Petersburgo. A hora da mensagem e o local de destino indicavam um provável suspeito.
— O que foi que ela descobriu?
— Conhecendo o resultado final, Lynne trabalhou de trás para a frente — explicou Karen — e conseguiu estabelecer um padrão. Supondo que a última rosca representasse o túnel, ela criou um mapa. O resto da encomenda parece designar pontos de Manhattan... lugares, por exemplo, onde deveriam ser entregues componentes da bomba.
Então foram os russos, pensou Rodgers sentindo um arrepio. Se eram eles que estavam por trás do atentado, o caso não seria mais considerado terrorismo, mas um ato de guerra.
— Diga a Lynne que está de parabéns pelo excelente trabalho. Mande um fax com as conclusões para a Casa Branca, usando um canal seguro.
— Agora mesmo. Mas aconteceu mais uma coisa em São Petersburgo — disse a moça. — O comandante Harry Hubbard, da MI6 de Londres, acaba de informar que perdeu dois homens lá. O primeiro foi ontem à tarde, um veterano chamado Keith Fields-Hutton. Estava do lado de fora do Hermitage, na margem do rio Neva, e, segundo os russos, sofreu um ataque cardíaco.
— Um eufemismo para Acabamos com ele — afirmou Rodgers. — Ele estava investigando o estúdio de TV?
— Isso mesmo — confirmou Wong. — Mas não chegou a mandar nenhum relatório. Parece que eles foram rápidos.
— Obrigado. Paul está a par de tudo?
— Está. Ele telefonou para cá assim que soube da explosão. Quer falar com você depois da reunião.
— Vou ligar para ele — prometeu Rodgers, parando no portão da Casa Branca para se identificar.
Doze
Segunda-feira, 6:00, São Petersburgo
Durante a infância, passada na pequena cidade de Naryan-Mar, banhada pelo oceano Ártico, no início da década de 1950, a visão que Sergei Orlov mais apreciava era a luz alaranjada da lareira da casa dos pais, quando caminhava penosamente pela neve, carregando dois ou três peixes que pescara em um pequeno lago que havia nas proximidades. Para Orlov, a luz da lareira não era apenas um ponto de referência na noite escura, mas um sinal de vida e esperança em um mundo frio e hostil.
Orbitando a Terra no final da década de 1970, quando participara de cinco missões Soyuz com oito a dezoito dias de duração e comandara as últimas três, o general Sergei Orlov vira algo ainda mais memorável. Não era nada de novo. Dezenas de cosmonautas haviam avistado a Terra do espaço. Entretanto, quer descrevessem nosso planeta como uma bolha azulada, uma bola de gude ou um enfeite de árvore de Natal, todos concordavam que a visão lhes dera uma nova perspectiva de vida. As ideologias políticas pareciam insignificantes diante do poder daquele frágil globo. Os viajantes do espaço compreendiam muito bem que se os seres humanos tinham um destino, não era o de lutar pelo controle de seu planeta natal, mas o de apreciar sua paz e hospitalidade enquanto viajavam para as estrelas.
E depois de voltarem à Terra, pensou Orlov, ao saltar do ônibus número 44 no Prospekt Nevsky. Os ideais e inspirações ficam mais fracos quando lhe pedem para fazer coisas em nome do seu país que você não pode recusar. Os russos jamais se recusavam a defender a pátria. O avô de Orlov era um tsarista, mas havia enfrentado os russos-brancos durante a Revolução. Seu pai não se recusara a lutar na Segunda Frente Ucraniana durante a Segunda Guerra Mundial. Fora por eles, e não por Brejnev, que Orlov treinara uma nova geração de cosmonautas para espionar os Estados Unidos e as forças da OTAN, assim como para desenvolver novas armas químicas no ambiente sem gravidade. Era treinado para ver o mundo não como um lar para todos os homens, mas como uma coisa a ser descascada, partida em pedaços e devorada em nome de um homem chamado Lenin.
Havia também os pedaços cobiçados por homens como o ministro Dogin, pensou, enquanto caminhava com passos rápidos pela avenida. Embora ainda fosse cedo, os funcionários já estavam chegando ao Hermitage, a Fim de prepará-lo para o afluxo diário de turistas.
O ministro podia ser simpático e revelar uma tolerância quase absurda ao discutir a história da Rússia, especialmente os tempos de Stalin, mas sua visão mundial estava ultrapassada. E quando Dogin fazia suas visitas mensais a São Petersburgo, parecia que as lembranças que o ministro guardava do tempo da União Soviética tornavam-se cada vez mais idealizadas.
Havia também homens como Rossky, que pareciam não ter nenhuma visão mundial. Para eles, poder e controle eram tudo. O telefonema furtivo de Glinka, o diretor de segurança, para seu apartamento deixara Orlov assustado. Sabia que Glinka estava acostumado a jogar dos dois lados, mas acreditara nele quando afirmara que as atividades de Rossky nas últimas vinte e quatro horas tinham sido particularmente suspeitas. Tudo havia começado quando Rossky insistira em cuidar pessoalmente da investigação trivial de um alarme contra intrusos no dia anterior, ao que se seguira uma comunicação em código com um agente, a respeito da qual não havia registro no computador, e negociações misteriosas com um médico-legista.
Recebi ordens para trabalhar com Rossky, pensou Orlov, mas não vou permitir que conduza operações fraudulentas. Quer Rossky gostasse ou não, teria de andar na linha ou seria deslocado para um cargo burocrático. Enquanto Rossky contasse com o apoio de Dogin, o ministro do interior, seria difícil livrar-se dele. Entretanto, Orlov já enfrentara dificuldades antes. Suas cicatrizes estavam ali para provar isso. Estava disposto a adquirir mais algumas, se fosse necessário. Aprendera inglês para poder viajar como relações públicas quando, na verdade, tratava de comprar e contrabandear para casa uma quantidade apreciável de livros, que lhe permitiam ter uma boa visão do que o resto do mundo estava lendo e pensando.
Orlov levantou a gola da capa impermeável para se proteger do vento cortante e guardou no bolso os óculos de aro de plástico preto. Sempre ficavam embaçados quando saltava do ônibus e não tinha tempo para cuidar deles. Como se já não fosse uma frustração suficiente precisar deles, aqueles olhos que no passado tinham conseguido avistar a Grande Muralha da China de uma distância de quase quinhentos quilômetros no espaço.
Apesar do problema com Rossky, os lábios grossos de Orlov estavam relaxados, sua testa larga sem nenhuma ruga abaixo da aba do chapéu cinza de feltro. Os olhos castanhos e penetrantes, as maçãs do rosto salientes e a pele morena eram, como o espírito aventureiro, uma parte da sua herança asiática — manchu. Seu bisavô uma vez lhe contara que a família fizera parte da primeira onda de guerreiros que invadiram a China e a Rússia no século XVII. Orlov não sabia onde o velho obtivera este tipo de informação; entretanto, agradava-lhe pensar que descendia de uma raça de pioneiros, de gente de boa índole, apesar de conquistadora.
Com pouco mais de um metro e setenta de altura, Orlov tinha ombros estreitos e corpo franzino, o que o tornava um cosmonauta ideal. Embora sua folha corrida como piloto de caça fosse impecável, levava com ele algumas marcas físicas e psicológicas dos anos que passara no espaço. Não conseguia andar sem mancar por causa de uma grave fratura que sofrera no quadril e na perna esquerda, quando um paraquedas se recusara a abrir no que seria sua última missão. O braço direito tinha feias cicatrizes, resultado das queimaduras sofridas ao retirar um aprendiz de cosmonauta dos destroços de um MIG-27 Flogger-D. Os médicos tinham colocado pinos no quadril para que pudesse caminhar, mas Orlov se recusara a se submeter a uma cirurgia plástica no braço. No fundo, gostava do modo como a esposa fazia ohhhhhh cada vez que via seu pobre pássaro ferido.
Orlov sorriu ao pensar em Masha. Embora o desjejum naquele dia tivesse sido interrompido pelo telefonema de Glinka, o prazer de estar com ela ainda o aquecia. Principalmente porque teria de durar até o dia seguinte, pois só então voltaria a vê-la. Como sempre acontecia antes de uma missão, os dois tinham passado por um ritual que haviam começado há quase vinte anos, antes que Orlov subisse ao espaço pela primeira vez em um foguete flamejante: abraçaram-se com força e certificaram-se de que estavam se despedindo sem nenhuma queixa ou ressentimento, nada que pudessem lamentar se ele não voltasse. Masha acreditava sinceramente que no dia em que quebrassem a tradição, o marido não voltaria para casa.
Aqueles dias que passei nas estações espaciais Mir e Salyut, pensou Orlov com um sorriso. Anos de trabalho com Kizim, Solovyev, Titov, Manarov e os outros cosmonautas que passavam semanas e meses no espaço. Apreciando a beleza estéril das espaçonaves Vostok e Voskhod, do módulo de astronomia Kvant, que lhes permitia explorar o universo. Experimentando o rugido e a fúria dos possantes foguetes Energia. Sentia falta de tudo isso. Há onze meses, porém, constatando que o programa espacial estava falido e à beira do colapso, o oficial, agora com quarenta e nove anos, concordara em comandar aquele lugar, um centro de operações de alta tecnologia que estava sendo montado para espionar amigos e inimigos, no país e no exterior. Gherkassov, o chefe do Ministério da Segurança, dissera-lhe que sua natureza calma, mas obcecada pelos detalhes, tornava-o a pessoa perfeita para dirigir uma organização de informações como aquela, sujeita a fortes pressões; mesmo assim, Orlov não conseguia escapar à impressão de que estava sendo rebaixado. Fora transferido da abóbada celeste para as profundezas do inferno; além disso, tinha sido estragado pelos muitos cientistas humanitários com quem trabalhara no Centro Espacial Yuri Gagarin, nos arredores de Moscou. Como o manchu havia compreendido muito bem, o progresso e o poder deveriam ser usados para tornar as pessoas mais nobres, para estimulá-las a fazer sacrifícios, não para controlá-las e escravizá-las.
Entretanto, Masha concordava com Cherkassov. Disse ao marido que era melhor que o Centro de Operações fosse dirigido por alguém com o seu temperamento em vez de alguém como Rossky, e tinha toda razão. Nem o coronel nem seu melhor amigo, Dogin, o ministro do interior, pareciam saber onde terminavam os interesses da Rússia e começavam suas ambições pessoais.
Enquanto Orlov caminhava a passos rápidos pela larga avenida, com o almoço e o jantar que a esposa lhe preparara debaixo do braço, dentro de sacos de papel, olhou para o outro lado do rio, para a Escola Naval Frunze, que abrigava o pequeno contingente de soldados da força especial de operações Molot do Centro Hammer.
Masha também estivera certa a respeito de Rossky. Depois que dissera à esposa quem seria seu segundo em comando — o homem que estivera envolvido com o filho deles, Nikita, naquele incidente em Moscou —, a esposa o aconselhara a não permitir que Dogin o obrigasse a aceitar Rossky. Masha tinha certeza de que os dois entrariam em conflito, enquanto Orlov achava que o fato de trabalharem no mesmo projeto, em uma convivência tão estreita, os obrigaria a confiar um no outro, e até mesmo a se respeitarem mutuamente.
Agora, porém, um confronto parecia inevitável. Por que a mulher era tão esperta... e ele tão ingênuo?
Seus olhos percorreram as construções na margem oposta do Neva, enquanto a luz oblíqua do sol nascente tingia de amarelo os majestosos edifícios da Academia de Ciências e do Museu de Antropologia, projetando longas sombras castanhas atrás deles. Passou algum tempo absorvendo a beleza da visão antes de entrar no museu e se dirigir para o complexo subterrâneo. Embora não pudesse mais apreciar a terra vista do espaço, havia muitas paisagens bonitas ali embaixo. O fato de Rossky e o ministro jamais pararem para olhar para o rio, para os edifícios e, especialmente, para as obras de arte o incomodava. Para eles, a beleza parecia ser apenas uma camuflagem.
Depois de entrar no museu, Orlov dirigiu-se para a Escadaria Jordan e para a entrada do novo braço secreto do Kremlin, uma instalação ao mesmo tempo prática e peculiar.
O lado prático estava no próprio Hermitage. Tinha sido escolhido em lugar de outros possíveis locais em Moscou e Volgogrado porque os agentes podiam entrar e sair sem serem vistos, misturando-se aos grupos de turistas; porque dali era possível viajar facilmente para a Escandinávia e para o resto da Europa; porque o rio Neva servia para ocultar e dispersar a maior parte das ondas eletromagnéticas produzidas pelos equipamentos do Centro; porque o estúdio de TV que haviam instalado permitia-lhes um acesso direto aos satélites de comunicações; porque, acima de tudo, ninguém jamais atacaria o Hermitage.
A peculiaridade resultava do interesse de Dogin pela história. O ministro colecionava mapas antigos e sua coleção incluía as plantas do quartel-general que Stalin mantivera durante a guerra nos subterrâneos do Kremlin — salas que não só eram à prova de bombas, mas que também estavam ligadas a um túnel secreto que seria usado para tirar Stalin de Moscou no caso de um ataque inimigo. O ministro tinha uma profunda admiração por Stalin e quando ele, o atual presidente, Janin, e o chefe do Ministério da Segurança projetaram aquela instalação de comunicações e espionagem para Boris Yeltsin, Dogin insistiu em usar um arranjo semelhante ao escolhido por Stalin. Orlov era forçado a reconhecer que tinha sido uma boa ideia. Como nos submarinos, as instalações confinadas, quase claustrofóbicas, ajudavam os agentes a se concentrarem no trabalho.
Orlov cumprimentou o sentinela e usou o teclado para abrir a porta; em seguida, mostrou o cartão de identificação à recepcionista, embora esta o conhecesse muito bem, pois era prima da Masha. Passou pela recepção, desceu a escada e entrou no estúdio de TV Depois de atravessar o estúdio, digitou em um teclado os quatro algarismos do código do dia e a porta se abriu. Quando Orlov tornou a fechá-la, a lâmpada que iluminava a escada à frente acendeu-se automaticamente. Desceu a escada e usou outro teclado para abrir a porta de acesso ao Centro. Atravessou o corredor central, fracamente iluminado, dobrou à direita e encaminhou-se para o escritório do coronel Rossky.
Treze
Domingo, 21:40, Washington, D.C.
Rodgers atravessou rapidamente os portões externo e interno e foi recebido na Casa Branca por Grumet, a assistente do diretor de segurança nacional. A mulher estava com cinquenta anos, tinha mais de um metro e oitenta de altura, cabelos louros lisos e compridos e quase não usava maquiagem. Rodgers tinha muito respeito por aquela veterana do Vietnã, que perdera o braço esquerdo em um desastre de helicóptero durante a guerra.
— Parece que estão todos me esperando. Será que cheguei atrasado? — perguntou Rodgers.
— Não, senhor — respondeu Grumet, fazendo continência para o general. — Acontece que somos gente velha, casada, que estava em casa assistindo televisão quando houve o atentado. Foi por isso que chegamos aqui na sua frente. Justamente quando o mundo parecia que estava ficando menos maluco...
— Oh, eu não diria isso — protestou Rodgers. — Seria ignorar as lições da história.
Antes de entrar na casa, o general tirou o paletó do uniforme e entregou-o ao fuzileiro naval que vigiava a entrada. Se não fizesse isso, os botões de metal fariam disparar o detector de metais instalado no umbral. O detector permaneceu silencioso. Depois de passar um detector portátil pelo paletó, o fuzileiro devolveu-o a Rodgers e bateu continência.
— O que está acontecendo? — perguntou Rodgers a Grumet enquanto atravessavam o corredor a caminho do Salão Oval.
— Fizemos o que manda o regulamento — respondeu. — Proibimos a entrada de estrangeiros e interrogamos os suspeitos de costume. O FBI colocou vários órgãos em estado de alerta e mandou examinar os destroços. Rachlin queixou-se de que a CIA gasta mais dinheiro em relações públicas do que vigiando os sociopatas, cientistas loucos e fanáticos ideológicos.
— Esse é Larry — comentou Rodgers. — Cheio de papas na língua. O que diabo essas pessoas querem, Tobey?
— Enquanto não conseguimos mais informações, estamos encarando o incidente como um atentado terrorista típico. É possível que tenha sido simplesmente um ato criminoso e que haja um pedido de resgate. Também é possível que a explosão seja obra de um indivíduo psicótico ou de um grupo local.
— Como o atentado de Oklahoma.
— Exatamente. Um grupo dando vazão ao seu ódio pela sociedade.
— Mas vocês não acreditam nisso, não é?
— Não, Mike. Achamos que foi trabalho de um grupo terrorista estrangeiro.
— Terroristas.
— Exatamente. Se for esse o caso, podem simplesmente estar atrás de publicidade para sua causa. Em geral, porém, os atos terroristas obedecem a uma estratégia... isto é, fazem parte de um plano global para atingir certos objetivos.
— A questão é sabermos qual é o objetivo dessa gente.
— Talvez a resposta não demore — afirmou Tobey. — Cinco minutos atrás, alguém ligou para o FBI em Nova York para dizer que o terrorista entraria em contato com o presidente. A pessoa falou sobre a força da explosão, o local exato, o tipo de explosivo utilizado. Tudo confere.
— O presidente vai receber o chamado? — quis saber Rodgers.
— Diretamente, não — respondeu Tobey —, mas vai estar na sala. Achamos que isso será suficiente para contentar os... droga! — exclamou, quando o bip começou a tocar. — Eles nos querem lá imediatamente!
Os dois saíram correndo. Um assistente acenou para que entrassem na antecâmara do Salão Oval e outro para que transpusessem a porta interna.
O presidente Mike Lawrence estava de pé atrás da escrivaninha, com seu metro e noventa e três de altura, as mãos nos quadris, as mangas da camisa arregaçadas com capricho. À sua frente estava o secretário de estado Av Lincoln, um ex-jogador profissional de beisebol de rosto redondo e um bico-de-viúva que já estava ficando ralo.
Quatro outros altos funcionários do governo estavam presentes: o diretor do FBI, Griffen Egenes, o diretor da CIA, Larry Rachlin, o chefe do Estado-Maior Conjunto, Melvin Parker, e o chefe da Agência de Segurança Nacional, Steve Burkow.
Todos escutavam, muito sérios, os sons que saíam do telefone viva voz do presidente.
... para poupar a vocês o trabalho de rastrear este telefonema — dizia alguém com um sotaque russo muito carregado. — Meu nome é Eivai Ekdol. Estou no número 1016 da Forest Road, em Valley Stream, Long Island. É um esconderijo do Grozny. Podem ficar com a casa e também comigo. Estou me oferecendo para ir a julgamento e citar os nomes dos policiais que me capturaram. Vai ser um belo espetáculo.
O Grozny, pensou Rodgers, sentando-se ao lado do jovem e vigoroso chefe da segurança nacional. Oh, Cristo.
Egenes, o ascético diretor do FBI, escreveu em um bloco amarelo: “Deixe-me mandar alguém até lá" e mostrou o bloco ao presidente.
O presidente fez que sim com a cabeça e Egenes saiu da sala.
— Depois que eu me entregar — continuou Ekdol —, não haverá novos atos de terrorismo.
— Qual o sentido de mandar o túnel pelos ares e depois se entregar? — perguntou Burkow. — O que vocês querem em troca?
— Nada, ou seja, queremos que os Estados Unidos não façam nada.
— Onde, quando e por quê? — perguntou Burkow.
— Na Europa Oriental — explicou Ekdol. — Vai haver um golpe militar e não queremos que os Estados Unidos e seu aliados se envolvam.
Parker pegou um telefone e virou o corpo para que o terrorista não pudesse ouvir sua voz.
Burkow disse:
— Não podemos prometer isso. Os Estados Unidos têm interesses na Polônia, na Hungria...
— E também nos Estados Unidos, sr. Burkow.
Burkow pareceu surpreso. Rodgers ficou imóvel, escutando com atenção.
— Está ameaçando praticar outros atentados? — quis saber Burkow.
— Isso mesmo — confirmou Ekdol. — As dez e quinze, uma ponte pênsil em uma grande cidade americana vai ser destruída por uma explosão. A menos, é claro, que antes disso tenhamos chegado a um acordo.
Todos na sala consultaram o relógio.
— Como devem saber — prosseguiu Ekdol —, dispomos de pouco menos de quatro minutos.
O presidente interveio:
— Sr. Ekdol, aqui é o presidente Lawrence. Precisamos de mais tempo.
— Levem o tempo que quiser, mas isso lhes custará muitas vidas. Não conseguirão me deter a tempo, mesmo que tenham despachado seus agentes enquanto estamos conversando. E mesmo que consigam pôr as mãos em mim, isso não deterá o Grozny.
O presidente fez um gesto e Burkow apertou uma tecla que bloqueava a entrada de som no telefone.
— Digam o que acham — ordenou Lawrence. — Depressa.
— Não negociamos com terroristas — declarou Burkow. — Ponto final.
— Claro que negociamos — protestou Lincoln. — Só não podemos fazer isso em público. Neste caso, não vejo alternativa.
— O que vamos fazer com o próximo Tojo que aparecer com uma bomba? — perguntou Burkow. — E se o próximo for Saddam Hussein? Ou algum neonazista aqui mesmo dos Estados Unidos?
— Não vamos permitir que aconteça de novo — afirmou Rachlin, o diretor da CIA. — Podemos aprender com este atentado. Preparar-nos para o futuro. No momento, o importante é evitar que aconteça outra tragédia. Primeiro desarmamos a bomba; depois, pegamos os responsáveis.
— E se for tudo um blefe? — argumentou Burkow. — Pelo que sabemos, esse sujeito pode ser um maluco que explodiu a única bomba que tinha naquele túnel.
— Sr. Presidente — interveio Rodgers —, deixe o filho da mãe levar vantagem desta vez. Conheço alguma coisa a respeito destes fanáticos do Grozny. Eles não blefam e o senhor já viu o estrago que podem causar. Faça o que estão pedindo e teremos mais tempo para acabar com eles.
— Você tem um plano?
— Tenho.
— Já é alguma coisa — disse o presidente.
— No momento, uma bolinha de papel em uma atiradeira seria alguma coisa — protestou Burkow. — Mas será que é a coisa certa a fazer?
Lawrence passou a mão no rosto enquanto Burkow olhava de cara feia para Rodgers. O chefe da segurança nacional não gostava de perder e obviamente tinha pensado que Rodgers o apoiaria. Em circunstâncias normais, estaria certo. Aquele problema, porém, era muito maior do que parecia à primeira vista; precisavam de tempo e de cabeça fria para lidar com ele.
— Desculpe, Steve — disse o presidente. — Concordo com você em princípio. Claro que concordo. Mesmo assim, tenho de dar ao monstro o que ele quer. Coloque-o de novo na linha.
Burkow desbloqueou a entrada de som no telefone.
— Ainda está aí? — perguntou o presidente.
— Estou.
— Se aceitarmos suas condições, não haverá mais nenhum atentado?
— Não, mas precisam se apressar — advertiu Ekdol. — Resta menos de um minuto.
— Nesse caso, aceitamos — disse o presidente. — Que droga, nós aceitamos!
— Muito bem — disse Ekdol.
O telefone ficou silencioso por um momento.
— Onde estão os explosivos? — perguntou Burkow.
— Em um caminhão que, no momento, está atravessando uma ponte — respondeu Ekdol. — Liguei para o motorista e mandei que cancelasse a explosão. Agora, como prometi, podem vir me buscar. Não vou revelar a ninguém nosso acordo, mas se faltar com a palavra, presidente, vão acontecer explosões em outras cidades. Entendeu?
— Entendi — disse o presidente.
O terrorista desligou.
Quatorze
Segunda-feira, 6:45, São Petersburgo
Orlov apertou o botão do intercomunicador do lado de fora do escritório de Rossky.
— Sim? — disse o coronel com voz estridente.
— Coronel, é o general Orlov.
A porta se abriu com um zumbido e Orlov entrou. Rossky estava sentado atrás de uma escrivaninha, do lado esquerdo do aposento. Sobre o tampo metálico da mesa havia um computador, um telefone, uma caneca de café, uma máquina de fax e uma bandeira. A direita estava a mesa coberta de papéis da sua assistente e secretária, cabo Valentina Belyev. Os dois se levantaram e bateram continência quando o general entrou, Belyev vigorosamente, Rossky mais lentamente.
Orlov retribuiu a continência e pediu a Valentina para deixá-los a sós. Quando a porta foi novamente fechada, Orlov olhou para o coronel.
— Aconteceu alguma coisa nas últimas vinte e quatro horas que eu deva saber? — perguntou.
Rossky sentou-se devagar.
— Aconteceu muita coisa. Quanto a tomar conhecimento... general, nossos satélites, nossos agentes, nossos códigos mais secretos, nossos sistemas de espionagem eletrônica, tudo isso será sua responsabilidade em algumas horas. Não acha que é muita coisa?
— Sou general — disse Orlov. — Meus subordinados fazem todo o trabalho. O que estou perguntando, coronel, é se não andou trabalhando mais do que devia.
— Não pode ser mais específico, general?
— Que assunto tinha com o legista? — perguntou Orlov.
— Precisávamos nos livrar de um corpo. Um agente inglês. Estava sendo vigiado há vários dias. Suicidou-se para não ser apanhado.
— Quando foi que isso aconteceu?
— Ontem.
— Por que não comunicou o ocorrido?
— Comuniquei... ao ministro Dogin.
Orlov amarrou a cara.
— Todos os relatórios devem passar pela minha mesa!
— Teoricamente, sim, general, mas ainda estamos em fase de instalação. A sua ligação com o computador do escritório do ministro só ficará pronta daqui a umas quatro horas. A minha, porém, já está funcionando. Achei que não haveria mal em usá-la.
— E a ligação entre o seu escritório e o meu? — perguntou Orlov, furioso. — Não está funcionando?
— Não recebeu uma cópia do relatório?
— Sabe que não!
— Um lapso. — Rossky sorriu. — Vou chamar atenção do cabo. Terá um relatório completo... se permitir que eu chame Belyev de volta... em poucos minutos.
Orlov ficou olhando para o coronel por alguns momentos.
— Entrou para a Sociedade Voluntária de Cooperação com o Exército, Aeronáutica e Marinha quando tinha apenas quatorze anos, não foi? — perguntou.
— É verdade — respondeu Rossky.
— Com dezesseis anos, era um exímio atirador. Enquanto os outros jovens saltavam a Vala do Diabo usando uniforme de atletismo e tênis de corrida, preferiu pular por cima das estacas afiadas no ponto mais largo, de botas e com uma mochila nas costas. O general Odinstev treinou-o pessoalmente, como parte de um grupo seleto, na arte do terrorismo e do assassinato. Se bem me lembro, executou um espião no Afeganistão com uma pá atirada de uma distância de cinquenta metros.
— Cinquenta e dois — corrigiu Rossky, olhando para o superior com ar de desafio. — Um recorde para os homens do spetsnaz.
Orlov aproximou-se da mesa e sentou-se na beirada. Você passou três anos no Afeganistão, até que um membro do seu grupo foi ferido em missão de captura de um líder afegão. Seu comandante de pelotão decidiu levar o ferido em vez de administrar a Morte Sagrada. Como comandante assistente, você lembrou seu superior que era seu dever ordenar a injeção letal e, quando ele se recusou, matou o comandante — uma mão na boca, uma faca na garganta. Então você tirou a vida do homem ferido.
— Se eu não tivesse feito isso — argumentou —, o comando mandaria executar todo o nosso grupo por traição.
— Claro. Mas houve uma investigação depois, e surgiu uma questão sobre se a ferida do soldado era suficiente para exigir sua morte.
— Era uma ferida na perna —, disse Rossky —, e ele estava nos retardando. O regulamento é bem específico nessa questão. A investigação foi mera formalidade-'
— Mesmo assim —, continuou Orlov —, alguns de seus homens não ficaram felizes com o que você fez. Ambição, desejo de promoção — essas foram algumas das acusações que eles fizeram, creio. Surgiu certa preocupação com sua segurança, então você foi chamado de volta e se tornou parte da escola especial da Academia Militar-Diplomática. Você foi professor do meu filho e conheceu o ministro Dogin quando ele ainda era prefeito de Moscou. Está correto?
— Sim, senhor.
Orlov se aproximou ainda mais, a voz quase um sussurro. — Serviu a seu país e aos militares vigorosamente por pouco mais de vinte anos, arriscou a vida e a reputação. Com toda essa experiência, Coronel, diga-me: você não aprendeu a não se sentar na presença de um oficial superior?, a menos que lhe seja dada permissão para fazê-lo?
O rosto de Rossky ficou vermelho. Ele se levantou imediatamente, lentamente, a postura rígida. — Sim, senhor.
Orlov continuou sentado na mesa.
— Minha carreira foi diferente da sua, coronel. Meu pai viu em primeira mão o que a Luftwaffe fez com o Exército Vermelho durante a guerra. Ele me transmitiu o respeito pela aviação. Passei oito anos nas Forças de Defesa Aérea, os primeiros quatro anos em voos de reconhecimento e o resto do tempo ajudando a treinar outros pilotos em emboscadas... ensinando-os a atrair aeronaves inimigas até que estivessem ao alcance da nossa artilharia antiaérea. — Orlov se levantou e olhou Rossky nos olhos. — Sabia de tudo isso, coronel? Estudou minha ficha?
— Sim, senhor.
— Então, sabe que nunca tive que punir oficialmente um de meus subordinados. Quase todos os homens são decentes, até mesmo os recrutas. Eles só querem fazer seu trabalho e ser recompensados pelo que fazem. Alguns cometem erros involuntários, mas não há necessidade de sujar a ficha deles por causa disso. Sempre darei a um soldado, a um patriota, o benefício da dúvida. Até mesmo ao senhor, coronel. — Orlov aproximou-se até seus rostos quase se tocarem. — Mas se passar de novo por cima da minha autoridade vou mandá-lo de volta para a academia...com uma anotação de insubordinação na sua ficha. Estou sendo claro, coronel?
— Perfeitamente... general — disse Rossky, quase cuspindo a palavra.
— Ótimo.
Os dois trocaram continências. Em seguida, o general dirigiu-se para a porta.
— General? — chamou Rossky.
Orlov olhou para trás. O coronel ainda estava em posição de sentido.
— Sim? — perguntou Orlov.
— O que o seu filho fez em Moscou... foi um erro involuntário?
— Meu filho agiu de forma tola e irresponsável. O senhor e o ministro foram muito complacentes.
— Tivemos essa atitude em sinal de respeito pelas suas realizações, general — declarou Rossky. — E seu filho tem uma grande carreira pela frente. Teve oportunidade de ler o relatório sobre o incidente?
Orlov fez uma careta.
— Não, nunca me interessei em saber os detalhes.
— Tenho uma cópia — afirmou Rossky. — Foi retirada dos registros do quartel-general do Estado-Maior. Havia uma recomendação em anexo. Sabia disso?
Orlov não disse nada.
— O sargento que comandava a companhia de Nikita recomendou que ele fosse expulso por indisciplina. Não por pichar a igreja grega ortodoxa de Ulitsa Arkhipova ou por bater no sacerdote, mas por arrombar o depósito da academia para conseguir a tinta e por reagir quando o sentinela tentou detê-lo. — Rossky sorriu. — Acho que seu filho ficou revoltado depois da aula em que eu disse que as forças armadas da Grécia estavam vendendo armas para o Afeganistão.
— O que está querendo provar? Que conseguiu induzir Nikita a atacar cidadãos indefesos?
— Os civis são o ponto fraco da mesma máquina que dirige os militares, general. Um alvo perfeitamente válido aos olhos do spetsnaz. Mas o senhor não está interessado em discutir política militar comigo, está?
— Não estou interessado em discutir coisa alguma com o senhor, coronel — disse Orlov. — Temos um centro de operações para inaugurar.
Dirigiu-se para a porta, mas a voz de Rossky o deteve.
— É verdade, general. Entretanto, já que me pediu para ser mantido a par de todas as minhas atividades, vou registrar por escrito os detalhes da nossa conversa... incluindo o que direi a seguir. As acusações contra o seu filho não foram retiradas. O relatório do sargento simplesmente foi ignorado, o que não é a mesma coisa. Se um dia chegar ao conhecimento da diretoria de pessoal, eles terão de tomar providências.
Orlov estava com a mão na maçaneta, de costas para o coronel.
— Meu filho sofrerá as consequências dos seus atos, embora eu esteja certo de que um juiz militar levará em conta seus muitos anos de serviço, além da forma como os registros foram perdidos e depois recuperados.
— Às vezes as pastas aparecem nos lugares mais imprevistos, general.
Orlov abriu a porta. A secretária de Rossky estava esperando do lado de fora e bateu continência.
— Sua impertinência será registrada no meu diário, coronel — afirmou Orlov. Olhou de Belyev para Rossky. — Quer que eu escreva mais alguma coisa?
Rossky ficou em posição de sentido ao lado da mesa.
— Não, senhor. No momento, não tenho mais o que dizer, general.
O General Orlov saiu para o corredor e Belyev entrou no escritório do coronel. Ela fechou a porta e o general pôde apenas imaginar o que estava acontecendo atrás da porta à prova de som.
Não que fizesse alguma diferença. Rossky fora advertido e teria que seguir as regras à risca... embora Orlov tivesse um palpite de que as regras começariam a mudar depois que o coronel falasse com Dogin pelo telefone.
Quinze
Domingo, 22:15, Washington, D.C.
Griff Egenes voltou ao Salão Oval.
— A polícia estadual já está a caminho de Forest Road — afirmou —, e uma das minhas equipes partiu de Nova York de helicóptero. Este fanático vai estar nas nossas mãos em menos de meia hora.
— Ele não vai oferecer resistência — observou Burkow.
Egenes sentou-se pesadamente.
— Como assim?
— Concordamos com suas exigências. Vai fazer algum tipo de discurso radical e deixar que o levem.
— Que merda! — exclamou Egenes. — Eu tinha vontade de fazer picadinho dele!
— Eu também — concordou Burkow.
O chefe da segurança nacional voltou-se para Mike Rodgers. Embora o clima do Salão Oval fosse de apreensão, Burkow parecia ser o mais preocupado de todos.
— E então, Mike? — perguntou. — Quem são essas criaturas e o que devemos fazer para acabar com elas?
— Antes que você responda a essa pergunta — interrompeu o presidente —, será que alguém pode me dizer se os russos estão com alguma operação militar em andamento que possa se transformar em uma invasão? Não temos obrigação de saber dessas coisas?
Mel Parker, o chefe do Estado-Maior Conjunto e homem silencioso da administração, respondeu:
— Enquanto Ekdol estava ocupado ditando os termos da rendição incondicional, liguei para o secretário de defesa. Colon consultou o Pentágono. No momento, várias divisões russas estão realizando manobras perto da fronteira com a Ucrânia. O número de soldados na região é bem maior do que de costume, mas nada que possa causar alarme.
— Nenhum movimento de tropas em outros locais? — quis saber Rodgers.
— O ENR está fazendo o possível para apurar — respondeu Parker.
— Essa concentração de tropas na fronteira pode muito bem ser o primeiro estágio de uma invasão — observou o presidente.
— É possível — concordou Parker.
— Aí é que está o problema — declarou Egenes. — Com todo esse enxugamento, nossos recursos humanos ficaram insuficientes. Um satélite não pode nos dizer para onde os soldados estão se preparando para marchar amanhã ou o que está escrito em um mapa no interior de uma tenda. É isso que um verdadeiro serviço de inteligência precisa descobrir.
— Isso pode ser um problema — concordou Rodgers —, mas pouco tem a ver com a atual situação.
— Por quê? — perguntou Rachlin.
— A verdade — declarou Rodgers — é que esse fanático não conseguiu muita coisa.
— Como assim? — quis saber Tobey, que se mantivera em silêncio enquanto tomava notas para Burkow.
— Suponha que haja uma invasão — disse Rodgers. — Que as tropas russas entrem na Ucrânia. Não poderíamos intervir.
— Por que não? — perguntou Tobey.
— Porque nesse caso estaríamos em guerra com a Rússia — explicou Rodgers. — O que faríamos em seguida? Não estamos em condições de sustentar uma guerra convencional. Provamos isso no Haiti e na Somália. Se tentássemos, as baixas seriam enormes e seriam mostradas em todos os canais de TV. O público e o Congresso cairiam em cima de nós. E não podemos recorrer a mísseis, bombardeiros e ataques maciços por causa dos danos colaterais e da população civil.
— Estou chorando lágrimas grossas, redondas, lágrimas de Betty Boop — declarou Burkow. — Vai haver uma guerra. Muita gente vai sofrer. E se não estou enganado, os russos dispararam a primeira salva contra um grupo de civis em Nova York.
— Não sabemos se o governo russo autorizou a operação — observou Egenes.
— Isso mesmo — disse o secretário de estado. — E, francamente, por mais impopular que essa opinião possa ser, não estou certo de que gostaria de nos ver envolvidos em uma guerra para defender a Europa Oriental. A Alemanha e a França não se juntariam a nós. Talvez nem mesmo nos apoiassem. A OTAN poderia ficar contra nós. Os gastos necessários para vencer a Rússia e reconstruir esses países depois de uma guerra seriam exorbitantes.
— Não — protestou Burkow, com ar de reprovação. — Nada de construirmos outra Linha Maginot para manter o inimigo a distância, como os Três Porquinhos e sua casa de palha. A ideia não me agrada nem um pouco. Acho muito melhor ir ao covil do Lobo Mau, bombardeá-lo com napalm e fazer um casaco com o que sobrar dele. Sei que não é politicamente correto, mas não fomos nós que começamos.
— Diga-me uma coisa — começou Lincoln, voltando-se para Rodgers —, os japoneses lhe mandaram uma caixa de bombons e um bilhete de agradecimento quando você evitou que Tóquio fosse reduzido a pó por aqueles mísseis da Coreia do Norte?
— Não fiz isso esperando um tapinha nas costas — declarou Rodgers, muito sério. — Fiz isso porque era a coisa certa a fazer.
— E nós todos ficamos muito orgulhosos de você — afirmou Lincoln. — Mesmo assim, perdemos dois homens e os japoneses, nenhum.
— Nesse caso, concordo com Mel — disse o presidente —, mas estamos nos desviando do problema atual: quem está por trás disto e por quê. — Consultou o relógio. — Devo entrar no ar às onze e dez para dizer alguma coisa a respeito do atentado. Tobey, quer atualizar o discurso para que fale da captura do terrorista graças à pronta ação do FBI, CIA e outros?
A assistente do diretor de segurança nacional fez que sim com a cabeça e se dirigiu ao telefone mais próximo.
O presidente voltou-se para Rodgers.
— General, foi por isso que me aconselhou a ceder às pretensões do terrorista? Porque de qualquer forma teríamos de fazer o que ele queria?
— Não, senhor — afirmou Rodgers. — A verdade é que nós não cedemos. O que fizemos foi distraí-lo.
Lawrence recostou-se com as mãos atrás da cabeça.
— Distraí-lo de quê?
— Do nosso contra-ataque — explicou Rodgers.
— Contra quem? — quis saber Burkow. — O sacana nos disse para quem trabalhava e se entregou.
— Mas podemos seguir o fio da meada — afirmou Rodgers.
— Continue — disse o presidente.
Rodgers inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.
— Presidente, o nome Grozny vem de Ivan Grozny, Ivan, o Terrível...
— Por que isso não é uma surpresa para mim? — murmurou Rachlin.
— Desde o tempo da Revolução eles têm trabalhado por idealismo, não por dinheiro — prosseguiu Rodgers. — Foram quinta-colunistas na Alemanha durante a Segunda Guerra e causaram alguns problemas menores aqui mesmo durante a Guerra Fria. No início da era espacial, foram responsáveis pelo fracasso de alguns lançamentos de foguetes Redstone não-tripulados.
— São financiados por quem? — perguntou Parker.
— Até recentemente, por forças políticas extremamente nacionalistas, que precisavam de terroristas para impor suas ideias. Gorbachev desbaratou-os em meados da década de 1980, fazendo com que se mudassem para outras regiões, especialmente os Estados Unidos e certos países da América do Sul, e unissem forças com a máfia russa na tentativa de derrubar os líderes ocidentalizados do novo governo.
— Nesse caso, devem odiar Janin — observou Lincoln.
— É isso mesmo — concordou Rodgers.
— Mas se não estão ligados ao governo — interveio o presidente —, o que podem estar planejando na Europa Oriental? Os russos não podem executar uma operação militar na Europa sem a aprovação do Kremlin. Não é como na Chechênia, que um punhado de generais colocou Yeltsin diante de um fato consumado.
— Pois é — comentou Rachlin. — Durante muito tempo, pensei que a ideia tivesse sido dele.
— Aí é que está — disse Rodgers. — É possível que alguma coisa grande esteja ocorrendo sem a aprovação do Kremlin. O que vimos na Chechênia, em 1994, foi o começo de uma tendência para a descentralização do poder na Rússia. Afinal de contas, trata-se de um país enorme, com oito fusos horários. Nada impede que alguém finalmente acorde para a realidade e diga: “Nosso país é como um dinossauro; precisa de mais de um cérebro para funcionar.”
O presidente olhou para Rodgers.
— Acha que alguém já disse isso?
Rodgers replicou:
— Antes do atentado, presidente, interceptamos uma encomenda de roscas que alguém de São Petersburgo enviou para uma confeitaria de Nova York.
— Uma encomenda de roscas? — repetiu Burkow. — Só pode ser um trote.
— Foi o que pensamos a princípio. A coisa não fazia sentido até que aconteceu o atentado. Usando o túnel Queens-Midtown como referência, um dos nossos criptógrafos descobriu que se tratava de um mapa de Nova York, com o túnel como principal destaque.
— Os outros pontos eram alvos secundários? — perguntou Egenes. — Afinal, os responsáveis pelo atentado no World Trade Center tinham vários alvos alternativos, entre eles o túnel Lincoln.
— Acho que não — respondeu Rodgers. — Nossa analista acha que parecem diferentes etapas no processo de fabricação da bomba. Agora, Larry, preciso que você confirme o que vou dizer. Há uns dois meses estamos captando radiação de micro-ondas nas proximidades do rio Neva, em São Petersburgo.
— O ar está coalhado de radiação — concordou Lincoln.
— A princípio, pensamos que a radiação estivesse sendo produzida por um estúdio de TV que os russos montaram no Hermitage — explicou Rodgers. — Agora acreditamos que o estúdio não passa de um disfarce para algum tipo de operação ultrassecreta.
— Um segundo “cérebro” para o dinossauro — observou Lincoln.
— Exatamente. Os recursos necessários para sua instalação aparentemente foram aprovados pelo ministro do interior, Nikolai Dogin.
— O homem que perdeu a última eleição — comentou o presidente.
— Esse mesmo. Mais uma coisa. Um agente inglês foi morto quando tentava investigar o local. Isso confirma que alguma coisa está acontecendo lá dentro. Seja o que for, quer se trate de um centro de comando ou de uma base militar, provavelmente está ligado ao atentado de Nova York através daquela encomenda de roscas.
— Nesse caso — declarou Av Lincoln —, temos o governo russo, ou alguma facção do referido governo, aliado a um grupo terrorista e, possivelmente, à máfia russa. E eles, aparentemente, têm um controle suficiente sobre as forças armadas para iniciar uma operação importante na Europa Oriental.
— É isso mesmo — concordou Rodgers.
— Puxa, como eu gostaria de interrogar pessoalmente esse rato arrogante do Grozny! — exclamou Rachlin.
— Garanto que não vamos conseguir arrancar nada dele — afirmou Egenes. — Se soubesse de alguma coisa, não permitiriam que se entregasse.
— Seria realmente uma estupidez — concordou Rachlin. — Eles estão nos entregando o terrorista só para preservar nossa imagem na opinião pública.
— Não vamos deixar que isso nos suba à cabeça — disse o presidente. — Todos nós sabemos que Kennedy teve de abrir mão de nossa presença militar na Turquia para que Khrushchev concordasse em retirar os mísseis de Cuba. O fato de que apenas metade do trato veio a público fez com que ele parecesse um herói e Khrushchev um idiota. De acordo com o que acabo de ouvir, tudo indica que, através de São Petersburgo, uma alta autoridade do governo russo deu ordem para que um atentado fosse executado em Nova York. Poderia ser o presidente Janin?
— Não acredito — declarou Lincoln. — Ele está interessado em manter boas relações com o Ocidente.
— Como podemos ter certeza? — perguntou Burkow. — Já que se falou em Boris Yeltsin, ele foi um dos que nos passaram para trás com uma boa conversa.
— Janin não tem nada a ganhar — argumentou Lincoln. — Um dos pontos da sua plataforma de governo foi reduzir as despesas militares. Além do mais, ele e o Grozny são inimigos naturais.
— O que me diz de Dogin? — perguntou o presidente. — Isso pode ser ideia dele?
— Dogin é um candidato mais provável — afirmou Rodgers. — Afinal, foi ele que pagou pela instalação deste suposto estúdio de televisão no Hermitage e provavelmente os agentes que trabalham lá estão a seu serviço.
— Existe alguma forma de conversarmos com Janin a respeito? — perguntou Tobey.
— Eu não arriscaria — advertiu Rodgers. — Mesmo que ele esteja por fora da jogada, é impossível ter certeza de que todos os seus auxiliares merecem confiança.
— Então qual é o seu plano, Mike? — perguntou Burkow, impaciente. — Do jeito como eu estou vendo as coisas, bastou uma bomba para colocar os Estados Unidos fora de ação. Cristo, eu me lembro do tempo em que uma coisa como essa provocava uma guerra.
— Steve, a bomba não nos colocou fora de ação — protestou Rodgers. — Na verdade, pode ter até nos ajudado.
— De que forma? — quis saber Burkow.
— Quem está por trás disso provavelmente ficou com a impressão de que não precisa mais nos vigiar de perto — afirmou Rodgers. — Como aconteceu com os russos depois que Hitler assinou o pacto de não-agressão.
— Eles estavam errados — observou Lincoln. — Hitler não respeitou o pacto.
— Exatamente — disse Rodgers. — Olhou para Lawrence. — Presidente, vamos fazer a mesma coisa. Deixe-me mandar o grupo Striker a São Petersburgo. Como prometemos, não vamos fazer nada na Europa Oriental. Na verdade, vamos deixar a Europa tremer um pouco com nosso isolacionismo.
— Isso certamente estará de acordo com a opinião pública dos americanos nos últimos tempos — comentou Lincoln.
— Enquanto isso — disse Rodgers —, deixe o grupo Striker cuidar desses bandidos.
O presidente olhou para todos os presentes, um a um. Rodgers sentiu o clima na sala mudar.
— Gosto da ideia — disse Burkow. — Gosto muito.
O presidente estava olhando diretamente para Rodgers.
— Faça isso — ordenou. — Traga-me a cabeça do Lobo Mau.
Dezesseis
Domingo, 20:00, Los Angeles
Paul Hood estava sentado em uma espreguiçadeira à beira da piscina do hotel. Conservava o bip e o telefone celular à mão e havia enterrado na cabeça o chapéu panamá para não ser reconhecido. No momento, não tinha vontade de bater papo com eleitores. Exceto pela falta de um bronzeado decente, parecia um moderno, absorto e independente produtor de cinema.
A verdade era que mesmo com Sharon e as crianças se divertindo a poucos metros de distância, na parte mais funda da piscina, sentia-se melancólico e estranhamente solitário. Estava com o walkman ligado, sintonizado para uma estação de notícias, à espera do discurso do presidente. Fazia muito tempo que não acompanhava um acontecimento importante não como representante do governo, mas como um cidadão comum, e não estava gostando nem um pouco. Não gostava de se sentir impotente, de não poder compartilhar sua aflição com os repórteres e com as outras autoridades. Gostaria de poder ajudar em alguma coisa, de demonstrar indignação ou até mesmo um certo desejo de vingança.
Ali, porém, era apenas um homem em uma espreguiçadeira, esperando pelas notícias como qualquer outro.
Não, não como qualquer outro, pensou. Esperava um chamado de Mike Rodgers. Embora a linha não fosse segura, Rodgers encontraria um meio de lhe dizer alguma coisa. Supondo que houvesse alguma coisa a ser dita.
Enquanto esperava, seus pensamentos se voltaram para o
atentado. O alvo não precisava ser o túnel. Podia muito bem ter sido o saguão daquele hotel, com seus turistas e homens de negócios asiáticos, com seus cineastas da Itália, Espanha, América do Sul e até mesmo da Rússia. Se toda aquela gente fosse embora, assustada, isso seria um baque enorme para a economia local, desde os serviços de limusine até os restaurantes. Quando Hood era prefeito de Los Angeles, participara de vários seminários a respeito dos terroristas. Embora tivessem métodos próprios e razões individuais para fazer o que faziam, apresentavam também uma coisa em comum: escolhiam como alvo lugares que as pessoas eram obrigadas a usar, como bases militares, meios de transporte coletivo ou edifícios de escritórios. Era assim que conseguiam levar os governos à mesa de negociação, apesar de os governos afirmarem em público que jamais negociariam com terroristas.
Também pensou em Bob Herbert, que perdera as duas pernas e a esposa em um atentado terrorista. Imaginou como estaria reagindo às notícias.
Um jovem garçom de cabelos oxigenados aproximou-se de Hood e perguntou se queria alguma coisa. Hood pediu uma soda. Quando o garçom voltou, ficou olhando para Hood.
— Você é quem eu estou pensando?
Hood desligou o walkman.
— O que disse?
— É o ex-prefeito, não é?
— Sou — admitiu Hood, sorrindo.
— Legal — disse o rapaz. — A filha de Boris Karloff esteve aqui ontem — comentou, enquanto colocava o copo em uma mesinha bamba de metal. — Que coisa incrível, isso que aconteceu em Nova York, não é? O tipo da coisa em que a gente não quer pensar, mas não pode deixar de pensar.
— É verdade — concordou Hood.
O garçom inclinou-se para despejar o líquido borbulhante no copo.
— O senhor vai gostar de saber disto. Ou talvez não goste, sei lá. Ouvi Mosura, o gerente, dizer ao detetive da casa que a companhia de seguros vai exigir que a gente promova treinamentos diários de evacuação, como fazem nos navios de luxo. Eles não querem que a cadeia de hotéis seja processada se alguém explodir uma bomba no prédio.
— Vocês têm obrigação de proteger os hóspedes e seus pertences — afirmou Hood.
— Exatamente — disse o garçom.
Hood assinou a nota e estava agradecendo ao garçom quando o telefone tocou. Atendeu imediatamente.
— Como vai, Mike? — perguntou.
Pegou o fone e dirigiu-se para um canto isolado.
— Como todo mundo — respondeu Rodgers. — Triste e chocado.
— O que pode me dizer?
— Estou indo para o escritório depois de uma reunião com o chefe. Muita coisa aconteceu. Para começar, o culpado ligou. Entregou-se. Está preso.
— Foi tão fácil assim?
— Ele impôs uma condição: não devemos nos meter em uma coisa que vai acontecer do outro lado do oceano, na antiga Cortina de Ferro; caso contrário, haverá outros atentados.
— É coisa grande? — perguntou Hood.
— Não temos certeza. Talvez o exército esteja envolvido.
— E o novo presidente?
— Não é provável. Parece mais uma reação à sua política.
— Entendo.
— Na verdade, acreditamos que a ordem tenha sido dada a partir daquele estúdio de TV que estávamos investigando. Temos algumas pistas bastante sólidas. O chefe nos autorizou a ir fundo, contanto que a gente cuide da papelada. Coloquei Lowell no caso.
Hood parou debaixo de uma palmeira. O presidente havia autorizado uma incursão do grupo Striker a São Petersburgo, e o advogado do Op-Center, Lowell Coffey II, fora encarregado de conseguir a aprovação da Comissão de Inteligência do Congresso. Era coisa grande. Consultou o relógio.
— Mike, vou pegar o voo noturno.
— Não é necessário — disse Rodgers. — No momento, não há muito que fazer. Quando as coisas começarem a esquentar, posso mandar um helicóptero levá-lo a Sacramento e lá pode pegar um avião de March.
Hood olhou na direção dos filhos. Tinha combinado ir com eles aos estúdios da Magna na manhã seguinte. Rodgers estava certo. Levaria menos de meia hora para chegar de helicóptero à base da Força Aérea e cinco horas depois estaria de volta a Washington. Mas tinha jurado fazer um trabalho, e aquele era um trabalho — mais precisamente um fardo, uma responsabilidade — que não queria deixar nos ombros de mais ninguém.
Seu coração estava batendo depressa. Hood sabia o que ele queria que fizesse. Já estava bombeando sangue para suas pernas, para que pudesse chegar a tempo no avião.
— Deixe-me falar com Sharon — disse, ao telefone.
— Ela vai ficar furiosa — afirmou Rodgers. — Respire fundo e não faça nada impensado. A situação aqui está sob controle.
— Obrigado, Mike. Daqui a pouco eu lhe conto o que decidi. Obrigado também pelas notícias. Até já.
— Até já — disse Rodgers, em tom desanimado.
Hood desligou o telefone, dobrou-o e bateu com ele de leve na palma da mão.
Sharon ficaria furiosa, e as crianças tremendamente desapontadas. Alexander só falava em ir com ele no Teknophage, o brinquedo de realidade virtual.
Jesus, por que as coisas não podem ser mais simples?, perguntou-se, enquanto se dirigia para a piscina. Porque nesse caso não haveria razão para discutir, murmurou consigo mesmo, e a vida se tornaria monótona.
Embora tivesse que admitir que, no momento, um pouco de monotonia viria a calhar. Era exatamente o que esperara encontrar naquele retorno a Los Angeles.
— Papai, não vai cair na água? — gritou a filha, Harleigh, quando Hood se aproximou.
— Claro que não, sua boba! — exclamou Alexander. — Não está vendo que ele está com o telefone na mão?
— Não enxergo de longe sem os óculos, seu cretino — replicou a menina.
Sharon tinha parado de jogar água no filho e estava nadando no mesmo lugar. A julgar pela sua expressão, já adivinhara o que estava para vir.
— Venham cá! — exclamou, quando o marido se agachou na beira da piscina. — Acho que seu pai tem alguma coisa para nos contar.
Hood disse simplesmente:
— Preciso voltar para Washington. Depois do que aconteceu hoje... temos que fazer alguma coisa.
— Eles precisam do papai para castigar os culpados — disse Alexander.
— Psiu! — fez Hood. — Lembre-se do que eu sempre digo: em boca fechada...
— Não entram moscas — completou o menino. — Tchau — acrescentou, mergulhando.
A irmã tentou agarrá-lo, mas Alexander nadou para longe.
Sharon fuzilou o marido com os olhos.
— Será que eles não podem cuidar disso sem você?
— Podem, sim.
— Então fique conosco.
— Não posso — afirmou Hood. Baixou os olhos e olhou na direção do filho. Era difícil encarar a esposa. — Sinto muito. Ligo para você mais tarde.
Hood levantou-se e chamou os filhos, que interromperam as brincadeiras por tempo suficiente para acenar.
— Comprem uma camisa para mim no Teknophage! — gritou.
— Deixa conosco! — respondeu Alexander.
Virou-se para ir embora.
— Paul? — chamou Sharon.
Hood parou e olhou para trás.
— Sei que para você é difícil — disse ela — e não estou tornando as coisas mais fáceis, mas precisamos de você também. Especialmente Alexander. Amanhã vai passar o tempo todo dizendo: “Ah, o papai teria adorado isso” e “O papai teria adorado aquilo”. Mais cedo do que você pensa, suas ausências vão começar a ser cobradas.
— Pensa que isso não me incomoda?
— Não o suficiente — disse Sharon. — Não tanto quanto estar longe dos seus trens elétricos em Washington. Pense nisso, Paul.
Hood prometeu a si mesmo que o faria.
Antes, porém, tinha que correr para pegar um avião.
Dezessete
Segunda-feira, 3:35, Washington, D.C.
O tenente-coronel W Charles Squires esperava de pé na pista de pouso de Quantico. Estava vestido à paisana e usava um casaco de couro, seu computador laptop pousado no chão, entre as pernas, enquanto apressava os outros seis membros do grupo Striker que subiam a bordo dos dois Bell Jet Rangers que os levariam à Base Aérea de Andrews. Chegando lá, seriam transferidos para o C-141B StarLifter privativo do grupo Striker, no qual fariam o voo de onze horas até Helsinki.
A noite estava fresca e revigorante, mas, como sempre, o que mais o estimulava era o trabalho. Durante a infância, na Jamaica, nunca experimentara nada mais empolgante do que entrar no campo de futebol antes de uma partida, especialmente quando o outro time era o favorito; era da mesma forma que se sentia toda vez que o Striker entrava em ação. Tinha sido por causa da paixão de Squires pelo futebol que Hood lhe permitira batizar o grupo com o nome da posição em que jogara.
Squires estava dormindo em seu pequeno apartamento na base quando Rodgers telefonou, transmitindo-lhes as ordens para a viagem à Finlândia. Rodgers desculpou-se por só haver conseguido aprovação do Congresso para a ida de sete homens, em vez dos doze habituais. O Congresso tinha mania de meter o bedelho em tudo, e daquela vez o sacrificado tinha sido o efetivo. A ideia era de que, se fossem apanhados, poderiam explicar aos russos que não haviam mandado uma força completa. No mundo da política internacional, sutilezas como essa aparentemente eram importantes. Felizmente, depois da última missão, Squires tinha adaptado os planos do Striker de modo a poder trabalhar com um número quase arbitrário de membros.
Squires não acordou a esposa para se despedir; era mais fácil partir quando ela estava dormindo. Em vez disso, levou o telefone seguro para o banheiro e conversou com Rodgers enquanto se vestia. De acordo com o plano provisório, iriam se fazer passar por turistas. Depois que estivessem a caminho, Rodgers voltaria a entrar em contato com Squires para lhe transmitir novos detalhes. Em princípio, três membros do grupo iriam a São Petersburgo e quatro ficariam esperando em Helsinki.
Os membros do Striker escolhidos para permanecer em Helsinki ficariam desapontados, e não seriam os únicos. Não era todo dia que o Striker recebia uma missão, mas Squires os mantinha em forma através de treinamentos, competições esportivas e simulações; os quatro ficariam especialmente frustrados por chegarem tão perto sem participar da ação. Entretanto, como todo militar experiente, Rodgers insistia em ter alguns homens de reserva para ajudar os companheiros em uma possível retirada.
Depois que todo o grupo embarcou nos JetRangers, Squires entrou no segundo helicóptero. Antes mesmo que a aeronave decolasse, colocou no colo o computador portátil, introduziu um disquete que o piloto lhe passara e começou a verificar o equipamento que já estava a bordo do StarLifter, que ia desde armas até roupas e uniformes de países considerados problemáticos, países para os quais poderia ser necessário enviar agentes a qualquer momento: China, Rússia e várias nações do Oriente Médio e da América Latina. Havia também trajes de mergulho e agasalhos para todo o grupo, embora da lista ainda não constassem as máquinas fotográficas, as câmeras de vídeo, os guias turísticos, os dicionários e as passagens de avião de que necessitariam para que pudessem passar como turistas. Entretanto, Mike Rodgers orgulhava-se de não se esquecer de nenhum detalhe, e Squires sabia que tudo isso estaria à sua espera em Andrews.
Deu uma olhada nos Strikers que tinham vindo com ele, desde o louro e sorridente David George, que tinha sido dispensado da última missão e substituído por Mike Rodgers, até a recruta Sondra DeVonne, que começara o treinamento de SEAL e tinha sido designada recentemente para o Striker em substituição ao homem que haviam perdido na Coreia do Norte.
Como sempre, sentiu um grande orgulho ao ver a expressão dos comandados... e também se deu conta da responsabilidade que pesava sobre seus ombros; sabia que para alguns deles aquela missão talvez fosse a última. Embora pusesse todo o empenho no que fazia, sentia-se um pouco mais fatalista do que Rodgers, cujo lema era “Meu destino não está nas mãos do Senhor enquanto houver uma arma nas minhas.”
Squires baixou os olhos para o computador e sorriu ao pensar na esposa e no filho, Billy, que àquela hora deviam estar dormindo. E sentiu-se novamente orgulhoso ao imaginá-los mais seguros por causa dos homens e mulheres que há mais de duzentos anos vinham lutando pelos mesmos ideais, experimentando os mesmos medos, enquanto galopavam ou navegavam, rodavam ou voavam para proteger a democracia, na qual acreditavam com paixão...
Dezoito
Segunda-feira, 8:20, Washington, D.C.
A pequena lanchonete dos executivos ficava no andar térreo do Op-Center, uma sala segura localizada atrás da lanchonete dos funcionários. As paredes eram à prova de som, as persianas estavam permanentemente abaixadas e um transmissor de micro-ondas do lado de fora, em uma pista de pouso fora de uso, emitia um zumbido que devia parecer ensurdecedor aos curiosos.
Ao assumir a direção, Paul Hood insistira para que as duas lanchonetes oferecessem um cardápio bem variado na linha de refeições rápidas; os pratos iam desde bolinhos a minipizzas. Não estava pensando apenas no interesse dos funcionários do Op-Center, mas também na segurança nacional: durante a operação Tempestade no Deserto, o inimigo chegara à conclusão de que os americanos estavam planejando alguma coisa com base na quantidade de pizzas e pratos de comida chinesa que tinham sido encomendados pelo Pentágono. Se o Op-Center fosse colocado em estado de prontidão por algum motivo, Hood não queria que um espião ou jornalista soubesse disso através de um garoto que entregava Big Macs de motocicleta.
O maior movimento da lanchonete dos executivos era no período das oito às nove horas da manhã. O turno do dia rendia o turno da noite às seis da manhã e passava as duas horas seguintes revendo as informações recebidas dos quatro cantos do mundo. Por volta das oito, depois de todos os dados serem analisados e arquivados ou descartados, a não ser que houvesse alguma emergência, os chefes das divisões iam tomar café e trocar ideias. Naquele dia, Rodgers tinha usado o correio eletrônico para marcar uma reunião geral às nove, de modo que a lanchonete ficaria vazia alguns minutos antes, para que todos tivessem tempo de chegar ao Tanque.
Quando a assessora de imprensa Ann Farris entrou na sala, seu elegante terninho vermelho suscitou um gesto de aprovação por parte de Lowell Coffey II. A moça percebeu imediatamente que ele tivera uma noite extenuante; quando Lowell estava descansado, era muito crítico a respeito de tudo, desde moda até literatura.
— Muito trabalho? — perguntou Ann.
— Estive com a Comissão de Inteligência do Congresso — respondeu Coffey, voltando a ler um exemplar impecavelmente dobrado do Washington Post.
— Ah! — exclamou a moça. — Então foi uma longa noite. O que aconteceu?
— Mike acha que descobriu os russos que foram responsáveis pelo atentado no túnel. O Striker foi mandado para lá.
— Quer dizer que o tal de Eivai Ekdol não estava trabalhando sozinho.
— Isso mesmo — confirmou Lowell.
Ann parou diante da máquina de café e introduziu uma nota de um dólar.
— Paul já foi informado?
— Paul já está voltando.
Ann animou-se.
— É mesmo?
— Juro. Pegou o voo noturno em L.A. e deve chegar aqui a qualquer momento. Mike vai colocar o grupo inteiro a par da situação às nove horas.
Pobre Paul, pensou Ann, enquanto pegava o café expresso duplo e recolhia o troco. Foi e voltou em menos de vinte e quatro horas. Sharon deve ter adorado.
Os assentos em torno das seis mesas redondas estavam tomados por executivos surpreendentemente ociosos. A psicóloga Liz Gordon mastigava goma de mascar com nicotina na sala livre de fumaça, nervosamente torcendo nos dedos uma mecha de cabelos castanhos, enquanto bebericava o café preto com três cubos de açúcar e lia os tabloides da semana.
O assessor de operações Matt Stoll jogava pôquer com o assessor para assuntos do meio ambiente Phil Katzen. Havia uma pequena pilha de moedas de 25 cents entre os dois e, em vez de cartas, estavam usando laptops ligados por um cabo. Quando passou por eles, Ann teve certeza de que Stoll estava perdendo. Como ele próprio era o primeiro a reconhecer, não sabia disfarçar suas emoções. Quando as coisas não estavam correndo bem, fosse em um jogo de cartas ou nas tentativas de consertar um computador responsável pela defesa do mundo livre, o rosto redondo de querubim ficava coberto de suor.
Stoll descartou um seis de espadas e um quatro de paus. Phil passou-lhe em troca um cinco de espadas e um sete de copas.
— Pelo menos fiquei com cartas maiores — comentou Matt, abandonando a parada. — Vamos jogar mais uma mão — propôs. — É pena que o pôquer não seja como a computação quântica. Você aprisiona íons usando campos elétricos e magnéticos, bombardeia essas partículas com um raio laser para colocá-las no estado excitado, depois usa outro raio para fazê-la voltar ao estado fundamental. Aí estão os seus relés. Filas de íons em portas lógicas quânticas, formando o menor e mais rápido computador do mundo. Tudo muito limpo, claro, perfeito.
— É mesmo uma pena que o pôquer não funcione desta forma — disse Phil.
— Não seja sarcástico — protestou Stoll, colocando na boca a última rosquinha coberta com chocolate e bebendo um gole de café.
— Da próxima vez vamos jogar bacará e as coisas serão diferentes.
— Não vão ser, não — garantiu Katzen, recolhendo as moedas. — Você sempre perde no bacará.
— Eu sei — disse Stoll —, mas me sinto muito pior quando perco no pôquer. Não sei por quê.
— É a sua masculinidade que está em jogo — arriscou Liz Gordon, sem levantar os olhos do National Enquirer.
Stoll olhou para ela, surpreso.
— O que disse?
— Pense nos elementos envolvidos. Mãos fortes, blefes, o valor das apostas... toda essa coisa de fumar charutos, o Oeste Selvagem, a sala dos fundos, a noite com os rapazes.
Stoll e Katzen pareciam perplexos.
— Acreditem em mim — insistiu Liz, virando a página. — Sei do que estou falando.
— Acreditar em alguém que acompanha as notícias através dos tabloides? — disse Katzen.
— As notícias, não. As excentricidades. As pessoas famosas vivem em um mundo à parte, o que as torna um fascinante objeto de estudo. Quanto aos jogadores, eu costumava tratar casos crônicos em Atlantic City. Os homens detestam perder no pôquer e na sinuca. Experimente jogar Mico Preto ou pingue-pongue... fazem muito menos mal ao ego.
Ann sentou-se na mesa de Liz.
— O que me diz de jogos intelectuais, como xadrez e palavras cruzadas? — perguntou.
— São também machistas, mas de uma forma diferente — afirmou Liz. — Os homens também não gostam de perder em jogos desse tipo, mas aceitam muito mais facilmente perder para um homem do que para uma mulher.
Lowell Coffey riu.
— É o que vocês mulheres gostam de pensar. Sabe de uma coisa? Nunca ninguém me atacou com tanta agressividade quanto a senadora Barbara Fox na noite passada.
— Talvez ela estivesse apenas fazendo o seu trabalho melhor do que qualquer homem — observou Liz.
— Não — protestou Coffey. — Eu não consegui usar com ela o mesmo tipo de argumento que usei com os homens da comissão. Pergunte a Martha. Ela estava lá.
— A senadora Fox tem sido uma isolacionista ferrenha desde que a filha foi assassinada na França, faz alguns anos — comentou Ann.
— Escute — insistiu Liz —, tudo isto não é opinião minha. Já foram escritos muitos artigos sobre o assunto.
— Já foram escritos muitos artigos sobre discos voadores — argumentou Coffey — e ainda acho que tudo não passa de um monte de baboseiras. As pessoas reagem a outras pessoas independentemente do sexo delas.
Liz sorriu docemente.
— Lembre-se de Carol Laning, Lowell.
— O quê?
— Não estou autorizada a falar a respeito — disse Liz —, mas você está, se tiver cojones.
— Está falando da promotora do caso Fraser v. Maryland? Isso consta da minha ficha?
Liz não disse nada.
Coffey enrubesceu. Virou a página e tornou a dobrar o jornal.
— Está batendo na tecla errada, Elizabeth. Amassei o carro dela depois do julgamento por acidente. Era o meu primeiro caso e eu estava nervoso. Perder para uma mulher não teve nada a ver com isso.
— Claro que não — disse Liz.
— É verdade — insistiu Coffey, no momento em que seu bip começou a tocar. Olhou para o número, pousou o jornal na mesa e levantou-se. — Sinto muito, crianças, mas vamos ter de deixar meu discurso de encerramento para mais tarde. Preciso ligar para um líder mundial.
— Homem ou mulher? — quis saber Phil.
Coffey fez uma careta para eles antes de sair da lanchonete.
Depois que ele foi embora, Ann comentou:
— Não acha que foi um pouco dura com ele, Liz?
Liz acabou de ler o National Enquirer, recolheu o Star e o Globe e pôs-se de pé. Olhou para a morena de faces rosadas.
— Pode ser, Ann. Mas é bom para ele. Apesar do rompante, Lowell escuta o que as pessoas dizem... o que não se pode dizer de outras pessoas.
— Muito obrigado pela parte que me toca — disse Stoll, desligando os computadores e removendo o cabo. — Antes de você chegar, Ann, Liz e eu estávamos “discutindo” se a dificuldade dela para lidar com máquinas se devia a uma limitação física ou a uma atitude inconsciente contra os homens.
— Claro que é uma limitação física — afirmou Liz. — Seria a mesma coisa que dizer que sua habilidade para lidar com máquinas faz de você automaticamente um homem.
— Obrigado de novo — disse Stoll.
— Meu Deus! — exclamou Ann. — Proponho que a gente reduza o consumo de cafeína e açúcar no café da manhã.
— Não é isso — disse Stoll, enquanto Liz se afastava. — Estamos na segunda-feira que se segue a uma comoção internacional. Decidimos que ficaríamos todos um pouco irritadiços porque ninguém se lembrou de programar o vídeo para a semana que teremos de passar aqui.
Katzen enfiou o laptop debaixo do braço e levantou-se.
— Preciso me preparar para a reunião. Vejo vocês daqui a quinze minutos.
— E depois disso a cada quarto de hora — afirmou Stoll, acompanhando-o —, até ficarmos de cabelos brancos.
Sozinha na mesa, a assessora de imprensa bebeu mais um gole de café expresso e pensou na equipe principal do Op-Center. Formavam um grupo e tanto, no qual Matt Stoll era o mais infantil e Liz Gordon a mais agressiva. Entretanto, as melhores pessoas em qualquer campo de atividade costumavam ser tipos excêntricos e fazê-los trabalhar juntos em um ambiente confinado como aquele era uma tarefa árdua. O melhor que Paul Hood podia esperar de seus ecléticos assessores era uma coexistência pacífica, um ideal em comum e alguma dose de respeito mútuo. Conseguia isso através de uma administração dinâmica, participante... embora ela soubesse muito bem até que ponto a vida particular do chefe era prejudicada com isso.
A caminho da reunião, Ann esbarrou em Martha Mackall. A assessora política e especialista em linguística, de quarenta e nove anos de idade, também estava correndo para não chegar atrasada, embora jamais parecesse estar com pressa. Filha do falecido cantor de música soul Mack Mackall, tinha do pai o mesmo sorriso fácil, a mesma voz macia, o mesmo jeito afável... em torno de seu próprio núcleo de aço. Ela jamais perdia a calma, o resultado de uma infância passada na estrada com o pai, onde aprendera que bêbados, intolerantes e fanáticos eram intimidados com mais facilidade por uma mente lúcida do que por uma faca afiada. Quando Mack morreu em um desastre de automóvel, Martha foi morar com uma tia que a fez estudar com afinco, conseguiu que se formasse na universidade e viveu para vê-la chegar ao Departamento de Estado.
— Bom dia, querida — disse Martha, enquanto Ann apressava o passo para acompanhar a mulher mais alta.
— Bom dia, Martha — respondeu Ann. — Soube que você teve uma noite movimentada.
— Lowell e eu tivemos de interpretar a Dança dos Sete Véus no Capitólio. Esses congressistas são mesmo duros na queda — comentou Martha.
As duas não disseram mais nada até chegar à sala de reuniões. Martha não gostava de conversa fiada, a menos que estivesse entre os poderosos. Ann tinha cada vez mais a impressão de que se havia alguém que cobiçava o cargo de Hood, esse alguém não era Mike Rodgers.
Quando Ann e Martha chegaram, Mike Rodgers, Bob Herbert, Matt Stoll, Phil Katzen e Liz Gordon já estavam sentados em torno da grande mesa oval que havia no Tanque. Ann notou que Bob Herbert parecia tenso. Provavelmente, ele e seu velho amigo Rodgers tinham passado a noite trabalhando na missão do Striker... e lidando com as emoções que o atentado certamente havia despertado no inválido assessor de inteligência.
Às mulheres seguiram-se Paul Hood e um apressado Lowell Coffey. Antes mesmo que o advogado acabasse de entrar, Rodgers apertou um botão na lateral da mesa e a pesada porta começou a se fechar.
A pequena sala era iluminada por lâmpadas fluorescentes; na parede em frente ao lugar onde Rodgers estava sentado, o grande relógio digital usado para as contagens regressivas estava parado no zero. Sempre que era estabelecido um cronograma para lidar com uma crise, o relógio era ajustado e uma leitura semelhante aparecia em todos os escritórios, para que ninguém pudesse alegar mais tarde que não sabia quando as coisas deviam ser feitas.
As paredes, o piso, a porta e o teto do Tanque eram revestidos com Acoustix, um material preto com manchas cinzentas à prova de som. Por baixo do revestimento havia várias camadas de cortiça, trinta centímetros de concreto e mais Acoustix. Embutidos no concreto, em todas as seis faces da sala, havia condutores elétricos que geravam ondas aleatórias; nenhuma informação eletrônica podia entrar ou sair da sala sem ser distorcida de forma total e irreversível.
Hood sentou-se à cabeceira. À sua direita, em um prolongamento da mesa, havia um monitor, um teclado e uma tomada de telefone. Uma pequena câmera de fibra óptica tinha sido instalada sobre o monitor, permitindo que ele visse na tela qualquer um que dispusesse de um conjunto semelhante.
Quando a porta se fechou, Paul disse:
— Sei que estamos todos revoltados com o que aconteceu ontem, de modo que não há necessidade de dizer o que estou sentindo. Queria agradecer a Mike pelo incrível trabalho que fez. Ele lhes contará pessoalmente o que descobriu. Caso ainda não tenham ouvido falar, esta história tem implicações que ainda não chegaram ao conhecimento do público em geral. Mal tive tempo de tomar um banho depois que cheguei de Los Angeles, de modo que estou tão ansioso quanto vocês para ouvir o que ele tem a dizer. Gostaria de observar, porém, que tudo que irão ouvir é considerado segredo de estado. Quando sairmos desta sala, nada do que for dito aqui deverá ser repetido a ninguém, a não ser com autorização expressa minha e de Mike ou de Mike e Martha. — Hood olhou para Rodgers. — Mike?
Rodgers agradeceu a Hood e relatou ao grupo o que tinha sido decidido no Salão Oval. Anunciou que o Striker deixara a base de Andrews às 4:47 e chegaria a Helsinki por volta de 20:50, hora local.
— Lowell, o que diz o embaixador da Finlândia? — perguntou.
— Ele já me deu uma autorização provisória — respondeu o advogado. — Só está faltando a aprovação do presidente.
— Quando teremos isso?
— Esta manhã — respondeu Coffey.
Rodgers consultou o relógio.
— Já são quatro da tarde na Finlândia. Tem certeza?
— Tenho. Lá eles começam a trabalhar tarde e trabalham até tarde. Ninguém toma decisões importantes antes do almoço.
Rodgers olhou de Coffey para Darrell McCaskey.
— Supondo que o governo finlandês esteja de acordo, há alguma coisa que a Interpol possa fazer para nos ajudar em São Petersburgo?
— Isso depende. Está falando do Hermitage?
Rodgers fez que sim com a cabeça.
— Devo contar a eles que um agente inglês foi assassinado?
Rodgers olhou para Hood.
— O MI6 perdeu um homem que estava tentando investigar o estúdio de TV — Estamos pedindo à Interpol para fazer praticamente o mesmo tipo de investigação? — perguntou Hood.
Rodgers concordou novamente.
— Então precisam saber a respeito do inglês — declarou Hood. — Tenho certeza de que isso lhes servirá de estímulo.
— E quanto à fronteira? — perguntou Rodgers. — Se tivermos de entrar na Rússia por terra, existe alguma forma pela qual os finlandeses possam introduzir nossa equipe no país?
— Conheço alguém no Ministério da Defesa — afirmou McCaskey — e vou ver o que consigo. Só quero que entenda, Mike, que existem menos de quatro mil guardas finlandeses na fronteira. Eles não vão querer deixar os russos irritados.
— Eu entendo — disse o vice-diretor, voltando-se para Matt Stoll, o corpulento especialista em computadores, que tamborilava na mesa com os dedos longos e finos.
— Matt — disse Rodgers —, quero que use seus contatos para descobrir se os russos têm encomendado ou estocado algum equipamento fora do comum. Ou se algum dos seus técnicos de alto escalão foi transferido para São Petersburgo no último ano.
— Esses caras são muito discretos — afirmou Stoll. — Não têm um emprego à espera na iniciativa privada se o governo deixar de confiar neles. De qualquer maneira, vou tentar.
— Não tente...faça — disse Rodgers, asperamente. Logo depois, baixou os olhos, arrependido. — Desculpe. Foi uma longa noite. Matt, posso ter de mandar meus homens entrarem na Rússia e eles não vão ter vida fácil. Quero que saibam o que vão encontrar pela frente. Se conhecerem algo a respeito dos sistemas eletrônicos dos russos, isso ajudará muito.
— Está certo — disse Stoll, secamente. — Vou ver o que consigo apurar.
— Obrigado — disse Rodgers.
Ann viu quando o vice-diretor se virou para Liz Gordon. A moça pareceu surpresa. Ao contrário de Hood, que não atribuía muita importância ao perfil psicológico dos líderes estrangeiros, Rodgers depositava muita confiança nesse tipo de informação.
— Liz — disse ele —, quero que analise o ministro do interior da Rússia, Dogin, no seu computador. Leve em conta o fato de que ele perdeu a eleição presidencial para Janin, bem como a influência do general Mikhail Kosigan. Se precisar, Bob dispõe de uma ficha completa do general.
— O nome não me é estranho — comentou Martha. — Tenho certeza de que consta do meu arquivo.
Rodgers voltou-se para o assessor para assuntos do meio ambiente, Phil Katzen, que estava com o laptop aberto e preparado.
— Phil, preciso de dados a respeito do golfo da Finlândia e do estuário do Neva, especialmente nas proximidades do Hermitage. Temperatura, vazão, velocidade do vento...
O computador à direita de Hood emitiu um som. Ele apertou F6 para atender e Control para manter a chamada em suspenso.
Rodgers prosseguiu:
— Quero também que descubra tudo que puder a respeito da composição do subsolo do museu. Preciso saber até que profundidade os russos podem ter cavado.
Katzen fez que sim com a cabeça quando acabou de digitar as informações pedidas.
Hood apertou novamente a tecla Control. O rosto do seu assistente-executivo, Stephen “Bugs” Benet, apareceu na tela do monitor.
— Chefe — disse Bugs —, recebemos um chamado urgente do Comandante Hubbard, do MI6. Como diz respeito ao assunto em discussão, achei que...
— Obrigado — disse Hood. — Transfira a ligação para cá.
Hood ligou o alto-falante do telefone e esperou. Logo depois, o rosto de sabujo apareceu na tela.
— Bom dia, comandante — disse Hood. — Estou reunido com minha equipe, de modo que tomei a liberdade de ligar o telefone viva voz.
— Está ótimo — concordou Hubbard em sua voz grave e áspera, com um forte sotaque britânico. — Vou fazer o mesmo. Sr. Hood, deixe-me ir direto ao assunto. Temos aqui uma agente que gostaria de se juntar ao grupo que vocês enviaram a Helsinki.
Rodgers franziu o cenho e sacudiu a cabeça.
Hood disse:
— Comandante, estamos falando de um grupo extremamente coeso...
— Eu sei — interrompeu Hubbard —, mas escute primeiro o que tenho a dizer. Perdi dois agentes e um terceiro está escondido. Minha equipe quer que eu mande para lá nossa unidade Bengala, mas não acho que seria proveitoso enviar nossos dois grupos ao mesmo tempo a São Petersburgo.
— A sua unidade Bengala poderia me colocar em contato com o chefe desta nova operação dos russos?
— Como assim?
— O que estou querendo dizer, comandante, é que não está nos oferecendo nada que não possamos conseguir sozinhos. Vamos compartilhar com vocês tudo que descobrirmos, é claro.
— É claro — disse Hubbard. — Mas permita-me discordar. Podemos lhes oferecer algo importante: a srta. Peggy James.
Hood entrou rapidamente com Control/F5 no teclado para ter acesso aos arquivos dos agentes. Digitou MI6 e James, fazendo com que a ficha da agente britânica aparecesse na tela.
Rodgers levantou-se e ficou em pé atrás de Hood, enquanto este examinava o arquivo, que continha dados fornecidos pelo próprio MI6, além de informações independentes colhidas pelo Op-Center, pela CIA e por outros órgãos do governo americano.
— Ela tem uma ficha e tanto! — exclamou Hood. — Neta de um lorde, trabalhou como agente durante três anos na África do Sul, dois anos na Síria, sete anos em Londres. Tem o curso de operações especiais, fala seis línguas, foi elogiada quatro vezes pelos superiores. Seu passatempo é reformar e pilotar motocicletas antigas.
Interrompeu o que estava dizendo quando Mike Rodgers apontou para uma referência a outra ficha.
— Comandante Hubbard, aqui é Mike Rodgers. Estou vendo aqui que foi a srta. James que recrutou o sr. Fields-Hutton.
— É verdade, general — admitiu Hubbard. — Os dois eram muito unidos.
— Cuidado com parceiros vingativos — murmurou Liz, sacudindo a cabeça.
— Ouviu isso, comandante? — perguntou Hood. — Essa foi nossa psicóloga.
— Ouvimos muito bem — replicou uma voz de mulher — e asseguro-lhe que não estou nisto em busca de vingança. Minha vontade é terminar o trabalho que Keith começou.
— Ninguém está questionando sua capacidade, agente James — disse Liz em um tom forte e decidido, que não deixava margem para discussões. — Entretanto, este tipo de missão exige frieza absoluta, e é isso que queremos nos nossos...
— Bobagem — interrompeu Peggy. — Ou vou com vocês ou vou sozinha, mas que vou, vou.
— Já chega, James — disse Hubbard com firmeza.
Coffey pigarreou e apoiou as mãos sobre a mesa, com os dedos entrelaçados.
— Comandante Hubbard, agente James... sou Lowell Coffey II, advogado do Op-Center. — Olhou para Hood. — Paul, você provavelmente vai ficar furioso comigo, mas acho que deve concordar com o que eles estão propondo.
Hood permaneceu impassível, mas Rodgers arregalou os olhos. Coffey evitou olhar na sua direção.
— Martha e eu ainda temos alguns pontos a esclarecer com a CIC — explicou Coffey — e se eu puder dizer a eles que se trata de um grupo internacional, teremos mais chance de conseguir vantagens adicionais, como mais tempo, uma região geográfica mais extensa, coisas assim.
— Você também vai ficar zangado comigo, Mike — disse McCaskey —, mas ter a agente James na equipe também vai me ajudar. O ministro da defesa da Finlândia é muito amigo do almirante Marrow, dos Reais Fuzileiros Navais. Se precisarmos de novos favores no futuro, é a ele que teremos de recorrer.
O general ficou calado por alguns momentos, e o silêncio de Londres era de expectativa. Hood finalmente olhou para Bob Herbert. Os lábios do assessor de inteligência estavam contraídos e ele tamborilava com os dedos nos braços da cadeira de rodas.
— O que você me diz, Bob? — perguntou Hood.
Com a voz suave que ainda guardava traços da infância passada no Mississippi, Herbert disse:
— Podemos perfeitamente fazer este trabalho sem ajuda externa. Se a dama quiser ir por conta própria, isso é problema do comandante Hubbard. Não vejo nenhuma razão para colocarmos mais uma engrenagem em uma máquina de precisão.
Martha Mackall interveio:
— Acho que não devemos ser tão bairristas. A agente James é uma excelente profissional. Ela se encaixará perfeitamente na sua máquina de precisão.
— Obrigada — disse Peggy —, seja você quem for.
— Martha Mackall — disse Martha. — Assessora política. Não há de quê. Sei como é quando tentam nos manter afastadas do Clube do Bolinha.
— Isso é besteira — protestou Herbert. — Não estamos falando de negros, brancos, homens, mulheres ou estrangeiros. Já temos nossa cota de novatos nesta missão: Sondra DeVonne, mulher que substituiu Bass Moore. Tudo que estou dizendo é que seria loucura aceitarmos mais uma.
— Mais uma mulher, você quer dizer.
— Mais uma novata — corrigiu Herbert. — Meu Deus, desde quando cada decisão de comando tem de ser tomada como um ato de preconceito?
Hood tomou a palavra:
— Obrigado a todos pelas sugestões. Comandante, espero que me desculpe por falarmos tão abertamente a respeito da sua subordinada.
— Fico agradecida — afirmou Peggy. — Gosto de saber o que pensam de mim.
— Tenho minhas reservas, mas Lowell está certo — disse Hood. — Um grupo binacional faz muito sentido e Peggy parece ser a pessoa certa para participar dele.
Herbert apoiou as palmas das mãos na borda da mesa e assobiou as primeiras estrofes de It's a small world. Rodgers voltou ao seu lugar. Seu pescoço estava vermelho e ele parecia ainda mais sério do que de costume.
— Vou enviar a vocês todas as informações — prosseguiu Hood — para que a agente possa incorporar-se ao Striker. Não preciso dizer, comandante, que o líder do Striker, tenente-coronel Squires, goza da nossa mais completa confiança. Espero que a agente James obedeça a todas as suas ordens.
— Naturalmente, general — disse o comandante Hubbard. — Muito obrigado.
Hood olhou para Rodgers enquanto a imagem no monitor se dissipava.
— Mike, ele iria mandá-la de qualquer maneira. Assim, pelo menos saberemos onde está.
— Você é quem manda. Eu teria decidido o oposto. — Olhou para Hood. — Não estamos falando do Dia-D ou da operação Tempestade no Deserto. Não precisamos do apoio internacional. Os Estados Unidos foram atacados e estão tratando de se defender. Ponto final.
— Ponto e vírgula — corrigiu Hood. — O MI6 também teve baixas. As informações que eles nos forneceram reforçaram nossas suspeitas a respeito do local. Eles merecem participar da ação.
— Como já disse, não estou de acordo — insistiu Rodgers. — A srta. James devia ter sido repreendida por seu superior. Ela certamente não vai obedecer às ordens de Squires. Mas você está de volta e reassumiu o comando. — Olhou em torno. — Minha agenda está encerrada. Obrigado a todos pela atenção.
Hood também olhou em torno.
— Alguém tem mais alguma coisa a dizer?
— Eu tenho — afirmou Herbert. — Acho que Mike Rodgers, Lynne Dominick e Karen Wong merecem uma medalha pelo trabalho da noite passada. Enquanto todo mundo neste país estava levantando as mãos para o céu e se lamentando por causa do atentado, esses três descobriram quem foi o culpado e qual sua provável motivação. Em vez de um Purple Heart,1 Mike acaba de receber um chute no traseiro. Sinto muito, mas não consigo compreender.
— O fato de não concordarmos com ele — afirmou Lowell Coffey — não quer dizer que não reconhecemos o que fez.
— Você deve estar cansado, Bob — disse Liz Gordon. — Ninguém tem nada contra Mike. Estamos apenas sendo realistas. O mundo de hoje é diferente.
Herbert resmungou o que pensava do mundo de hoje enquanto se afastava em sua cadeira de rodas.
Hood levantou-se.
— Vou entrar em contato com vocês individualmente durante a manhã para saber como estão indo as coisas. — Olhou para Mike Rodgers. — Mais uma vez, caso alguém não tenha ouvido, gostaria de dizer que ninguém nesta sala poderia ter feito o trabalho que Mike fez na noite passada.
Rodgers agradeceu com um leve gesto de cabeça, apertou o botão para abrir a porta e deixou o Tanque logo atrás de Bob Herbert.
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1 Condecoração concedida aos soldados americanos feridos em combate. (N. do T)
Dezenove
Segunda-feira, 20:00, São Petersburgo
Quando o relógio digital no canto da tela do computador deixou de marcar 7:59:59, ocorreu uma grande mudança no Centro de Operações. O brilho azulado que enchera o aposento, produzido por mais de duas dúzias de telas de computador, foi substituído por um festival de luzes multicoloridas, que se refletiram nos rostos e nas roupas dos ocupantes da sala. O clima também mudou. Embora ninguém tenha aplaudido, o alívio era evidente na expressão de todos quando o Centro começou a funcionar.
O assessor de operações Fyodor Buriba olhou para Orlov do seu console solitário, em uma mesa no canto dianteiro direito da sala. A barba negra e bem aparada do jovem emoldurava um largo sorriso e seus olhos escuros brilhavam.
— Estamos cem por cento operacionais, general — declarou.
Sergei Orlov estava em pé no meio da grande sala, mãos atrás das costas, enquanto seus olhos percorriam os monitores.
— Obrigado, sr. Buriba — disse Orlov. — Todos estão de parabéns. Todos os postos verifiquem novamente os dados antes de informarmos a Moscou que a contagem regressiva foi iniciada.
Orlov começou a caminhar lentamente de um lado para outro, olhando por cima do ombro dos subordinados. Os vinte e quatro computadores e monitores estavam dispostos em semicírculo sobre uma mesa curva, quase em forma de ferradura. Cada monitor era guarnecido por um operador. Orlov acalmou-se um pouco exatamente às 20:00, quando o azul de cada tela foi substituído por uma torrente de dados, fotografias, mapas e gráficos. Dez dos monitores eram dedicados aos satélites de reconhecimento, quatro estavam em contato com uma base de dados mundial que incluía informações legais e “piratas” a respeito de departamentos de polícia, embaixadas e órgãos governamentais, outros nove estavam ligados a transmissores de rádio e telefones celulares e recebiam relatórios de agentes no mundo inteiro, e um estava acoplado diretamente ao escritório dos ministros do Kremlin, incluindo Dogin. Esta última conexão era operada pelo cabo Ivashin, que tinha sido escolhido a dedo pelo coronel Rossky e estava subordinado diretamente a ele. Todas as telas, a não ser as que mostravam mapas, estavam cheias de frases em código. As palavras nada significavam para Orlov, nem para a pessoa que operava o monitor ao lado, nem para qualquer outro funcionário do Centro; cada posto tinha um código diferente, o que tinha por objetivo minimizar os danos causados por um espião infiltrado no Centro. Caso um dos operadores adoecesse, um programa decodificador poderia ser ativado conjuntamente por Orlov e Rossky, cada um dos quais conhecia metade da senha.
Quando as telas foram ativadas, depois de várias semanas de testes, Orlov sentiu o mesmo que costumava sentir toda vez que um dos gigantescos foguetes começava a rugir abaixo dele: alívio pelo fato de tudo haver funcionado da forma prevista. Embora sua vida não estivesse em risco, como acontecia cada vez que era lançado ao espaço, a verdade era que jamais pensara nas viagens ao espaço em termos de vida e morte. Não era isso que mais o preocupava, quer como cosmonauta, quer como piloto de caça, quer como chefe de um centro de operações. Sua reputação era mais importante do que a vida; o que interessava a Orlov, sempre, era fazer o melhor trabalho possível e jamais cometer enganos.
A parede frontal da sala estava coberta por um mapa do planeta. As imagens de qualquer um dos monitores podiam ser superpostas ao mapa usando-se um projetor instalado no teto. Nas paredes laterais havia prateleiras com disquetes e fitas magnéticas, dados secretos, arquivos e registros a respeito de países, organizações militares e órgãos governamentais de todo o mundo. No centro da parede dos fundos havia uma porta que levava ao corredor e ao centro de criptografia, à sala da segurança, ao refeitório, ao banheiro e à saída. As portas dos escritórios de Orlov e Rossky ficavam à direita e esquerda, respectivamente.
De pé no coração do Centro, Orlov sentia-se como se estivesse comandando uma nave do futuro — uma nave que não ia a parte alguma, mas que mesmo assim era capaz de esquadrinhar os céus e perscrutar o âmago da Terra, uma nave que em poucos segundos seria capaz de descobrir quase tudo a respeito de qualquer habitante do planeta. Mesmo quando estava no espaço, com a Terra girando lentamente abaixo dele, Orlov não se sentira tão onisciente. E como todo governo necessitava de informações rápidas e precisas, o financiamento e operação do Centro não tinham sido afetados pelo caos que reinava em muitos setores da vida russa. Chegava quase a compreender como o tsar Nicolau II devia ter se sentido, vivendo em esplêndido isolamento até ser deposto pela Revolução. Era fácil estar em um lugar como aquele e sentir-se afastado dos problemas cotidianos; Orlov fazia questão de ler diariamente três ou quatro jornais para não perder contato com a realidade.
De repente, o cabo Ivashin levantou-se, olhou para o general e bateu continência. Tirou o fone do ouvido e ofereceu-o ao superior.
— General, a sala de rádio avisou que tem uma comunicação particular para o senhor.
— Obrigado — disse Orlov, dispensando o fone com um gesto. — Vou atender no escritório — explicou, dirigindo-se para a porta da direita.
Depois de digitar seu código pessoal no teclado à esquerda da porta, Orlov entrou no escritório. A cabeça da assistente, Nina Terova, surgiu de trás de uma divisória nos fundos da sala. Uma mulher altiva, de ombros largos, com trinta e cinco anos de idade, ela estava usando um conjunto azul-marinho de saia justa e jaqueta. Os cabelos castanhos estavam presos em um coque, seus olhos eram grandes, o nariz elegante e uma cicatriz profunda cortava-lhe diagonalmente a testa no lugar onde uma bala pegara de raspão no crânio. Ex-integrante da polícia de São Petersburgo, também possuía cicatrizes no peito e no braço direito, resultado de um confronto com dois assaltantes de banco que terminara com a morte dos bandidos.
— Parabéns, general — disse a moça.
— Obrigado — respondeu Orlov, fechando a porta —, mas ainda temos centenas de testes para fazer...
— Eu sei — disse Nina. — E quando tiver acabado de fazer todos esses testes, não ficará satisfeito enquanto o sistema não funcionar um dia inteiro sem incidentes, e depois uma semana, e depois um mês.
— O que é a vida sem novas metas? — perguntou o general antes de sentar-se atrás da escrivaninha, uma peça de acrílico preto apoiada em quatro pernas finas, pintadas de branco, fabricadas com os restos de um dos foguetes Vostok que o haviam levado ao espaço. O resto da sala estava decorado com fotografias, modelos, diplomas e recordações dos seus anos no espaço, incluindo uma estante de vidro com o objeto mais precioso da coleção, um dos painéis de controle da primitiva cápsula usada por Yuri Gagarin no primeiro voo tripulado no espaço cósmico.
Sentou-se na poltrona de couro, girou o corpo para colocar-se em frente ao computador e digitou o código de acesso. Imediatamente, a parte de trás da cabeça do ministro do interior apareceu na tela.
— Ministro — disse Orlov para o microfone embutido no canto inferior esquerdo do monitor.
Vários segundos se passaram antes que Dogin olhasse para a câmera. Orlov não sabia se o ministro gostava de fazer as pessoas esperarem ou se não gostava de dar a impressão de que estava esperando pelos outros. Fosse como fosse, aquilo era um jogo que absolutamente não lhe agradava.
O ministro sorriu.
— O cabo Ivashin disse que tudo transcorreu de acordo com as previsões.
— Além de passar por cima da minha autoridade, o cabo foi precipitado — disse Orlov. — Ainda não acabamos de analisar os dados.
— Tenho certeza de que está tudo certo — afirmou Dogin. — Perdoe o entusiasmo do cabo, general. Este é um grande dia para toda a equipe.
Para toda a equipe, repetiu Orlov mentalmente. Quando estava no programa espacial, uma equipe era um grupo de pessoas dedicadas, trabalhando para um objetivo comum: aumentar a presença do homem no espaço. Havia um aspecto político envolvido, mas a importância do trabalho em si o fazia parecer quase trivial. Ali, Orlov não dispunha de uma equipe. O que havia eram vários grupos, cada um com um objetivo diferente. Havia um grupo trabalhando para colocar o Centro em funcionamento, outro colhendo informações para Dogin, e até mesmo um grupo intermediário de paranoicos, liderado por Glinka, o diretor de segurança, que até o momento não decidira qual dos outros dois grupos ia apoiar. Isso podia custar-lhe o comando, mas Orlov prometeu a si mesmo que aqueles homens teriam que trabalhar como uma equipe.
— Na verdade — estava dizendo Dogin —, não poderíamos ter escolhido melhor momento para a inauguração. Neste instante, um jato Gulfstream está atravessando o Pacífico Sul em direção ao Japão. Depois de se reabastecer em Tóquio, o jato voará para Vladivostok. Meu assistente vai lhe mandar o plano de voo. Quero que o Centro acompanhe os movimentos desse avião. O piloto tem instruções para entrar em contato com vocês depois que pousar em Vladivostok, o que acontecerá aproximadamente às cinco horas da manhã, hora local. Quando isso acontecer, ligue para mim e lhe darei novas instruções.
— Trata-se de um teste do nosso sistema? — perguntou Orlov.
— Não, general. O Gulfstream está transportando uma carga extremamente importante.
— Nesse caso, ministro — argumentou Orlov —, até que nossos equipamentos tenham sido perfeitamente testados, por que não deixa essa tarefa a cargo da Defesa Aérea? Recorrer às Forças Técnicas de Rádio e Eletrônica seria...
— Impróprio e indiscreto — afirmou Dogin. Ele sorriu. — Quero que acompanhe o avião, general. Estou certo de que o Centro está em condições de fazer isso. Todas as transmissões do avião serão feitas em código, é claro, e qualquer problema ou atraso deverá ser comunicado diretamente a mim pelo senhor ou pelo coronel Rossky. Alguma pergunta?
— Várias, ministro — respondeu Orlov —, mas vou registrar a ordem e fazer o que está pedindo.
Entrou com um comando que fez com que a data e hora ficassem automaticamente registradas e uma janela aparecesse na parte inferior da tela. Em seguida, digitou: O ministro Dogin mandou acompanhar os movimentos de um jato Gulfstream que está voando para Vladivostok. Conferiu o texto a apertou o botão Save. O computador fez um ruído para mostrar que o arquivo tinha sido gravado com sucesso.
— Obrigado, general — disse Dogin. — Todas as suas perguntas serão respondidas oportunamente. Boa sorte com a contagem regressiva: estou aguardando ansiosamente a notícia de que a maior joia na coroa dos nossos serviços de inteligência está totalmente operacional.
— Sim, senhor — disse Orlov. — Entretanto, não posso deixar de me perguntar: quem está usando essa coroa?
Dogin continuou a sorrir.
— Estou desapontado com o senhor, general. A impertinência não combina com o seu temperamento.
— Peço desculpas. Acontece que nunca exigiram que eu executasse uma missão com informações incompletas, usando um equipamento que ainda não foi testado, nem me vi em uma situação em que os subordinados se sentissem livres para passar por cima da minha autoridade.
— As coisas mudam para todos nós — replicou Dogin. — Deixe-me lembrá-lo de algo que Stalin disse em um discurso para o povo russo em julho de 1941: “Não deve haver lugar em nossas fileiras para lamurientos e covardes, para alarmistas e desertores; nossa gente não deve conhecer o significado da palavra medo.” O senhor é um homem corajoso e equilibrado, general. Confie em mim e asseguro-lhe que sua fé será recompensada.
Dogin apertou um botão e sua imagem desapareceu. Olhando para a tela vazia, Orlov não se sentiu surpreso com a resposta — embora as palavras de Dogin não o deixassem mais tranquilo. Pelo contrário; levavam-no a suspeitar que talvez tivesse confiado demais em Dogin. Lembrou-se da Guerra Mundial que motivara o discurso de Stalin e pensou, preocupado, se Dogin estaria imaginando que a Rússia estaria em guerra... e, em caso afirmativo, com quem.
Vinte
Terça -feira, 3:05, Tóquio
Simon “Jet” Lee, nascido e criado em Honolulu, decidira dedicar a vida ao combate ao crime no dia 24 de agosto de 1967. Nesse dia, aos sete anos de idade, vira o pai — que era um corpulento figurante de cinema — participar de uma cena com Jack Lord e James MacArthur na série de TV Havaí Cinco-Zero. Não sabia se tinha sido a qualidade da interpretação de Lord ou o fato de que ele fora capaz de dominar o pai pela força que despertara nele o gosto pelo trabalho policial — mas tinha sido o hábito de tingir o cabelo de preto, como o de Lord, que lhe valera o apelido.1
Fosse qual fosse a razão, Lee entrara para o FBI em 1983, formara-se em terceiro lugar na turma e voltara para Honolulu como agente. Por duas vezes havia recusado promoções para poder ficar nas ruas e fazer o que mais gostava: caçar criminosos e fazer do mundo um lugar mais limpo.
Era por isso que estava em Tóquio, disfarçado de mecânico de avião, com a aprovação das Forças Japonesas de Autodefesa. Estava ocorrendo um contrabando de drogas da América do Sul para o Japão através do Havaí e, como seu parceiro em Honolulu, Lee estava investigando os aviões particulares que faziam essa rota, à procura de suspeitos.
O Gulfstream III era um avião altamente suspeito. O parceiro de Lee no Havaí descobrira que a aeronave havia partido da Colômbia e estava registrada em nome de uma companhia cujo dono tinha uma confeitaria em Nova York. Oficialmente, estava transportando ingredientes usados para fabricar a especialidade da confeitaria, roscas exóticas. Quando o despertador tocou no seu quarto, em um hotel situado a menos de cinco minutos de carro do aeroporto, Lee ligou para o parceiro, o sargento Ken Sawara, das FJA, e foi para lá.
Lee podia ouvir as mensagens da torre de controle nos fones de ouvido enquanto fingia trabalhar em um JT3D-7 turbofan em um canto do hangar. Depois de duas semanas mexendo naquele motor, devia conhecê-lo melhor que os próprios mecânicos da Pratt & Whitney. O Gulfstream havia pousado e deveria passar por uma rápida revisão antes de seguir para Vladivostok.
Isso o tornava ainda mais suspeito, pensou Lee, já que havia indícios de que o dono da confeitaria tinha ligações com a máfia russa.
Pouco à vontade no colete à prova de balas que usava por baixo do macacão branco, Lee pôs de lado a chave inglesa e dirigiu-se para o telefone na parede do hangar. Quando digitou o número do telefone celular de Ken, podia sentir no ombro esquerdo o peso do .38 Smith & Wesson que levava em um coldre.
— Ken, o Gulfstream acaba de pousar e está taxiando para o hangar número dois. Encontre-me lá — disse, ao telefone.
— Deixe-me fazer a investigação — propôs Ken Sawara.
— Não...
— Mas o seu japonês é terrível, Jet...
— O seu espanhol é pior. Encontre-me lá.
Ainda faltava muito tempo para o alvorecer e, embora o aeroporto não estivesse tão movimentado como o de Honolulu estivera seis horas antes, às 14:35, hora local, havia um tráfego aéreo bem razoável, tanto do leste como do oeste. Lee sabia que muitos gângsteres, homens como Aram Vonyev e Dmitri Shovich, preferiam que seus aviões pousassem em grandes aeroportos comerciais em vez das pequenas pistas que os agentes do governo podiam vigiar com mais facilidade. Aqueles dois criminosos gostavam especialmente que os aviões chegassem e partissem durante o dia, às claras, nas barbas da polícia e das quadrilhas rivais. Em Honolulu, como na Cidade do México e em Bogotá, aquele avião tinha pousado e decolado à luz do dia.
O Gulfstream taxiou em direção ao caminhão da Yaswee Oil estacionado em frente ao hangar mais próximo da pista. Ali, como nos outros aeroportos, o Gulfstream dispunha de um caminhão particular de combustível para se reabastecer. Embora os gângsteres tivessem razões para transportar suas mercadorias abertamente, nenhuma era tão forte que justificasse uma demora em terra maior do que o estritamente necessário.
Se o avião seguisse a rotina — e Lee sabia que não havia nenhuma razão para que não o fizesse —, tornaria a decolar em menos de cinquenta minutos, as duas turbinas Rolls-Royce Spey Mk 51 turbofan levando-o para noroeste no céu nublado. Logo estaria na Rússia, do outro lado do mar do Japão.
Depois de passar a mão na testa para afastar uma mecha de cabelo, Lee tirou do bolso uma requisição e fingiu estudá-la. Caminhou pela pista, assobiando. Viu as luzes piscantes do pequeno jato que se dirigia ao hangar para se reabastecer, os tanques quase vazios depois da viagem de 7.200 quilômetros. Observou como a equipe de terra desenrolava a mangueira do caminhão e, nesse momento, Lee teve certeza de que o avião transportava contrabando. Os homens estavam trabalhando mais depressa, mais eficientemente que o normal. Deviam ter recebido um bom dinheiro.
Com o canto do olho, percebeu que um carro se aproximava. Só podia ser Sawara. De acordo com o combinado, seu parceiro estacionaria o carro nas proximidades e ficaria de prontidão para o caso de Lee precisar de ajuda. O agente do FBI pretendia caminhar até o avião, explicar ao chefe da equipe de manutenção que estava ali para consertar uma válvula de combustível com defeito e aproveitar para dar uma olhada na carga enquanto discutiam o assunto com o piloto.
O Toyota reduziu a marcha e emparelhou com Lee. Lee parou, surpreso, e olhou na direção do veículo. A janela do motorista foi abaixada, mostrando o rosto impassível de Sawara.
O que deseja? — disse Lee em japonês, embora, com os olhos arregalados e a testa franzida, estivesse na verdade perguntando: Que diabo você faz aqui?
Em resposta, Sawara levantou um revólver .38 Special Model 60 e apontou-o para Lee. Movido pelo instinto, o policial jogou-se no chão um segundo antes de a arma disparar.
Lee sacou seu .38, atirou no pneu dianteiro e rolou para o lado enquanto Sawara manobrava o carro para atirar de novo. O aro da roda tirou fagulhas do piso quando ele engrenou uma marcha a ré, uma das mãos no volante, a outra ainda segurando o revólver do lado de fora da janela. O segundo tiro atingiu Lee na coxa direita.
Maldito traidor!, pensou Lee, atirando três vezes na porta do motorista. As balas atravessaram a porta com um ruído metálico e o terceiro e quarto tiros de Sawara passaram longe. Com um gemido, o japonês inclinou-se na direção da janela e sua cabeça tombou sobre o volante. O veículo acelerou, desgovernado, quando o pé do homem ferido apoiou-se pesadamente no pedal. Pelo menos estava se afastando, pensou Lee, vendo-o chocar-se com um carrinho de bagagem vazio. O Toyota passou por cima do carrinho, esmagando-o, e seguiu em frente.
O ferimento produzia uma cãibra violenta, que fazia os músculos se contraírem da coxa ao joelho. Era impossível mover a perna sem que o seu corpo fosse percorrido por uma onda de dor. Virando a cabeça, Lee olhou na direção do aeroplano, que estava a uns duzentos metros de distância. As luzes piscantes iluminavam a parte inferior da fuselagem e a equipe de terra continuava o trabalho, mas agora dois homens tinham aparecido na porta do avião. Usavam simples blusas de malha e não estavam armados. Ou não eram ingênuos, pensou Lee... ou eram.
Os dois homens entraram de volta no avião, gritando alguma coisa um para o outro.
Lee sabia que logo estariam de volta. Usando de toda a sua força de vontade, rolou até ficar de bruços, apoiou-se no joelho esquerdo e levantou-se. Com uma careta, arrastou-se para a frente, incapaz de apoiar o peso do corpo na perna direita sem sentir uma dor cruciante. Ao se aproximar, observou a equipe de terra. Estavam trabalhando rapidamente, mas sem querer dar a impressão de que estavam com pressa, como que para mostrar que tinham sido bem pagos e fariam o trabalho, mas o problema não era deles.
Entretanto, o problema era de Lee. Tinha sido treinado para enfrentar aquele tipo de situação e não era agora que iria desistir, não com sua presa encurralada em um avião ligado a um caminhão-tanque por uma mangueira, incapaz de se mover.
Quando estava quase chegando ao nariz do avião, um dos dois homens reapareceu na porta da cabine. Tinha nas mãos uma submetralhadora alemã Walther MPK e disparou uma rajada contra Lee. O agente do FBI já esperava o ataque e mergulhou na direção do lado oposto do avião, colocando o nariz da aeronave entre ele e o pistoleiro. Imaginou onde estaria a segurança do aeroporto; eles não podiam ter deixado de ouvir o tiroteio e era difícil acreditar que tivessem todos sido comprados pelos bandidos, como a equipe de terra e o Filho da puta do Sawara.
As balas fizeram uma trilha em ziguezague à direita de Lee. Rastejando na pista, ele estendeu o braço para atirar na roda da frente; isso manteria o avião em terra até que alguém aparecesse para ver o que estava acontecendo. A não ser, é claro, que todos os empregados do aeroporto, incluindo os guardas da segurança, tivessem sido comprados.
No momento em que Lee ia atirar, alguém disparou atrás dele, atingindo-o no ombro e na axila.
A surpresa fez o agente errar o pneu, acertando quatro tiros na asa e na fuselagem. Em seguida, outro tiro atingiu-o na coxa direita.
Virou-se e viu a figura ensanguentada de Ken Sawara em pé ao seu lado.
— Por que você foi se meter? — queixou-se Sawara, deixando-se cair de joelhos. — Por que não me deixou ir?
Reunindo suas últimas energias, Lee apontou o .38 para o japonês.
— Você quer ir? — perguntou, colocando uma bala no meio da testa do outro. — Pois vá!
Enquanto Sawara tombava inerte, Lee olhou na direção do aeroplano. Respirou com dificuldade enquanto observava os homens acabarem de abastecê-lo. Isso não é justo, pensou. O mocinho é traído pelo parceiro e morre na pista de pouso? Nenhum policial, nenhuma sirene distante, ninguém para capturar os criminosos ou para oferecer-lhe ajuda... nem mesmo um mecânico arrependido?
O último pensamento de Simon Lee antes de morrer foi o de que havia fracassado totalmente.
Meia hora depois, o avião decolou para a Rússia. Por causa da escuridão, ninguém, nem em terra nem na aeronave, viu o rolo de fumaça negra que se desprendeu da turbina de bombordo quando o Gulfstream começou a ganhar altura.
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1 Jet, em inglês, pode significar azeviche. (N. do T.)
Vinte e um
Segunda-feira, 12:30, Washington, D.C.
Durante o almoço, encomendado na cantina, Lowell Coffey, Martha Mackall e seus auxiliares trabalharam no escritório com paredes de lambris do advogado, procurando um caminho no campo minado legal que fazia parte de todas as missões do Striker.
O presidente da Finlândia havia aprovado o desembarque de uma força multinacional para fazer leituras de radiação no golfo, e a secretária de Coffey, Andrea Stempel, estava falando ao telefone com o escritório da Interpol em Helsinki, tentando conseguir um carro e vistos falsos para que três membros do grupo entrassem na Rússia. Perto dela, em um sofá de couro, o assistente de Stempel, Jeffrey Dryfoos, examinava os testamentos dos comandos do Striker. Se a papelada não estivesse em ordem, refletindo mudanças recentes do estado civil, número de filhos e bens principais, os documentos necessários seriam enviados ao avião via fax para serem assinados e devolvidos.
No momento, Coffey e Mackall estavam trabalhando no computador, preparando o rascunho da “autorização”, o documento que Coffey teria de apresentar à Comissão Conjunta de Inteligência do Congresso, constituída por oito senadores e deputados, antes que o Striker chegasse ao seu destino. Já haviam chegado a um acordo quanto ao tipo de armas que poderiam ser usadas, o tipo de operação a ser executada, a duração e outros detalhes. Coffey estivera envolvido em alguns pormenores que iam desde as radiofrequências permitidas até a hora, com precisão de minutos, em que o grupo entraria e sairia do país. Apesar de toda aquela discussão, a aprovação do Congresso, na verdade, não dava ao Striker o direito de entrar na Rússia de acordo com as leis internacionais. Entretanto, sem essa autorização, se os comandos fossem capturados, ficariam entregues à própria sorte. Com ela, os Estados Unidos negociariam discretamente, através dos canais diplomáticos, para que fossem libertados o mais cedo possível.
Na outra extremidade do corredor, depois dos escritórios de Mike Rodgers e Ann Farris, ficava o organizado centro de comando de Bob Herbert. A sala estreita e retangular abrigava vários bancos de computadores. Mapas do mundo ocupavam três das paredes; a outra estava coberta por uma dezena de monitores de televisão. As telas passavam a maior parte do tempo apagadas. Agora, porém, cinco delas mostravam imagens da Rússia, Ucrânia e Polônia colhidas por satélites. As imagens eram atualizadas todo 0,89 segundo.
Havia uma velha discussão na comunidade de inteligência a respeito do valor da espionagem realizada através de satélites em relação aos dados colhidos por agentes humanos. Idealmente, os órgãos de inteligência gostariam de contar com os dois tipos de fontes. Eles queriam ser capazes de ler o hodômetro de um jipe a partir de um satélite a oitenta quilômetros de altitude e, ao mesmo tempo, dispor de ouvidos no solo para escutar as conversas travadas atrás das portas fechadas. A espionagem eletrônica era mais “limpa”. Não havia a possibilidade de capturas ou interrogatórios, bem como nenhum risco de que agentes duplos fornecessem informações falsas. Entretanto, também não era possível contar com a inteligência humana para distinguir os alvos falsos dos verdadeiros.
Os satélites espiões que trabalhavam para o Pentágono, a CIA, o FBI e o Op-Center eram administrados por um órgão altamente secreto do Pentágono, o Escritório Nacional de Reconhecimento. Dirigido pelo meticuloso Stephen Viens, que tinha sido colega de escola de Matt Stoll, dispunha de um banco de monitores de televisão divididos em dez filas, cada qual com dez monitores. Todos mostravam setores diferentes da Terra, cada um gerando uma imagem que era atualizada todo 0,89 segundo, o que resultava em um total de sessenta e sete imagens em preto-e-branco por minuto, com diferentes graus de ampliação para cada aparelho. O ENR também era responsável pelos testes do novo satélite AIM — Audio-Imaging Monitor —, o primeiro de uma série de satélites de monitoramento de áudio projetados para fornecer imagens detalhadas do interior de submarinos e aeronaves a partir dos sons produzidos por pessoas e instrumentos transportados por esses veículos.
Três dos satélites do ENR estavam observando os movimentos de tropas na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia, enquanto outros dois acompanhavam de perto as forças da Polônia. Através de um conhecido nas Nações Unidas, Bob Herbert ficara sabendo que os poloneses estavam ficando nervosos com a concentração de forças dos russos. Embora Varsóvia ainda não tivesse autorizado a mobilização de tropas, as licenças tinham sido canceladas e as atividades dos ucranianos que viviam e trabalhavam na Polônia, perto da fronteira, estavam sendo acompanhadas por Varsóvia. Viens concordava com Herbert que era melhor vigiar a Polônia e pediu que as imagens fossem enviadas diretamente ao seu escritório, onde a equipe de análise fotogramétrica do Op-Center se encarregaria de estudá-las.
O relatório das atividades dos soldados em Belgorod naquele dia não indicava nada fora do comum a Bob Herbert e sua equipe de analistas. Nos últimos dois dias, a rotina tinha sido praticamente a mesma:
Ao mesmo tempo em que Herbert e seus homens acompanhavam as atividades militares, também procuravam colher informações para Gharlie Squires e seus comandos Striker a respeito da situação no Hermitage. Os satélites de reconhecimento não mostravam nenhum movimento fora do comum, e Matt Stoll e seu grupo não estavam tendo muita sorte com os programas que permitiam ao satélite AIM extrair informações dos ruídos produzidos no interior do museu. A falta de agentes no local aumentava a frustração de todos. O Egito, o Japão e a Colômbia tinham agentes em Moscou, mas nenhum em São Petersburgo. De qualquer forma, Herbert preferia não contar a eles que algo estava acontecendo no Hermitage, pois não tinha certeza de que não se colocariam do lado da Rússia. As velhas lealdades não haviam necessariamente mudado no mundo pós-Guerra Fria, mas novas alianças estavam sendo constantemente formadas. Herbert não tinha intenção de contribuir para uma delas, mesmo que isso implicasse a necessidade de o Striker perder algum tempo estudando o local antes de definir sua missão.
De repente, dez minutos depois do meio-dia — 21:10 em Moscou —, a situação mudou.
Bob Herbert foi chamado à sala de rádio do Op-Center, no canto noroeste do porão. Ele chegou na sua cadeira de rodas e aproximou-se do diretor de rádio-reconhecimento, John Quirk, um gigante taciturno de rosto beatífico, fala macia e paciência de monge.
Quirk estava sentado diante de uma unidade de rádio/computador, UTHER — Universal Translation and Heuristic Enharmonic Reporter —, que era capaz de gerar uma tradução praticamente simultânea de tudo que estivesse sendo dito por mais de quinhentos diferentes tipos de vozes, em mais de duzentas línguas e dialetos.
Quando avistou Herbert, Quirk retirou os fones do ouvido. Os outros três operadores presentes continuaram a trabalhar nos seus monitores, que estavam ligados a Moscou e São Petersburgo.
— Bob — disse Quirk —, interceptamos transmissões segundo as quais estão sendo reunidos equipamentos em várias bases aéreas, desde Rayazan até Vladivostok, equipamentos esses que serão despachados para Belgorod.
— Belgorod? — repetiu Herbert. — É perto de onde os russos estão fazendo manobras. Que tipo de equipamento estão mandando para lá?
Quirk fixou os olhos azuis na tela.
— Pode escolher. Caminhões de comunicações automatizadas, estações retransmissoras móveis, um helicóptero com equipamentos de retransmissão, caminhões e reboques da Distribuição de Petróleo, óleo e Lubrificantes, juntamente com serviços móveis de manutenção e abastecimento.
— Estão montando uma linha de comunicações e suprimentos — afirmou Herbert. — Pode ser algum tipo de treinamento.
— Nunca vi um treinamento organizado tão às pressas.
— Como assim? — perguntou Herbert.
— Bem — disse Quirk —, trata-se obviamente dos preparativos para um ataque, mas antes dos russos atacarem sempre trocam uma grande quantidade de mensagens a respeito da hora prevista para o início das ações e o tamanho estimado das forças inimigas. Costumamos interceptar transmissões com os cálculos da velocidade de deslocamento das tropas e conversas entre a linha de frente e o quartel-general a respeito das táticas a serem empregadas — envolvimento, penetração, esse tipo de coisa.
— Mas vocês não captaram nada — arriscou Herbert.
— Exatamente. É a primeira vez que isso acontece.
— Mesmo assim, quando todos esses veículos chegarem ao seu destino — observou Herbert —, eles estarão preparados para algo importante... como a invasão da Ucrânia.
— Correto.
— Acontece que os ucranianos até agora não fizeram nada.
— Pode ser que eles não saibam o que está acontecendo — propôs Quirk.
— Ou que não estejam levando os russos a sério — contrapôs Herbert. — As fotos do ENR mostram que dispõem de forças de reconhecimento perto da fronteira... mas não de companhias de reconhecimento profundo. É óbvio que não estão pensando em operar atrás das linhas inimigas. — Herbert tamborilou com os dedos nos braços da cadeira de rodas. — Quando é que você acha que os russos vão estar prontos para atacar?
— Esta noite, provavelmente — declarou Quirk. — De avião, é apenas um pulo até Belgorod.
— Não é possível que se trate de um despistamento? — quis saber Herbert.
Quirk sacudiu a cabeça.
— Essas comunicações são autênticas. Os russos usam uma combinação de caracteres latinos e cirílicos quando querem nos confundir. As letras que os dois alfabetos têm em comum supostamente tornam mais difícil a interpretação das mensagens, pois é difícil saber qual é o alfabeto que está sendo usado em cada momento. — Deu um tapinha no computador. — Acontece que nosso Uther aqui é muito esperto.
Herbert colocou a mão no ombro de Quirk.
— Bom trabalho. Informa-me se houver mais alguma novidade.
Vinte e dois
Segunda-feira, 21:30, São Petersburgo
— General — disse Yuri Marev —, a sala de rádio avisou que recebeu uma comunicação em código através da Esquadra do Pacífico, em Vladivostok. É do avião que o senhor me pediu para acompanhar no satélite Hawk.
O general Orlov parou de andar de um lado para o outro atrás do banco de computadores e aproximou-se do rapaz, que estava sentado na extremidade esquerda do banco.
— Tem certeza? — perguntou Orlov.
— Absoluta, general. É o Gulfstream.
Orlov olhou para o relógio na tela do computador. O avião só deveria pousar dali a meia hora, e ele conhecia bem aquela região: naquela época do ano, os ventos não eram favoráveis, de modo que era pouco provável que chegasse antes da hora prevista.
— Avise a Zilash que estou indo — ordenou Orlov antes de entrar no corredor com passos rápidos. Digitou o código do dia no teclado ao lado de uma das portas e entrou na sala de rádio, exígua e enfumaçada, que ficava ao lado do centro de operações de segurança de Glinka.
Arkady Zilash e seus dois assistentes estavam sentados em uma pequena sala cheia até o teto de equipamentos de rádio. Orlov nem mesmo conseguiu abrir totalmente a porta, já que um dos assistentes estava usando uma unidade espremida atrás dela. Os homens estavam todos usando fones de ouvido e Zilash não se deu conta da presença de Orlov até que o general bateu de leve no fone esquerdo.
O esquálido chefe da sala de rádio removeu os fones, assustado, e apagou o cigarro no cinzeiro.
— Desculpe, general — disse Zilash com sua voz baixa e rouca.
De repente, deu-se conta de que devia ficar em posição de sentido e fez menção de se levantar. Orlov dispensou-o com um gesto. Sem querer, Zilash sempre conseguia testar os limites do protocolo militar. Entretanto, era um gênio do rádio e, mais importante ainda, um auxiliar fiel de Orlov desde o tempo do Cosmodrome. O general gostaria de poder contar com outros homens como Zilash na sua equipe.
— Está tudo bem — disse Orlov.
— Obrigado, general.
— Qual foi a mensagem do Gulfstream?
Zilash ligou um gravador digital.
— Tive de filtrar a mensagem depois de decodificá-la — explicou. — A transmissão original estava cheia de estática. O tempo no oceano é terrível nesta época do ano.
A voz na fita era fraca mas inteligível:
— Vladivostok: perdemos potência no motor de bombordo. Não sabemos a extensão dos danos, mas alguns sistemas elétricos não funcionam. Pretendemos pousar com meia hora de atraso, mas não poderemos ir mais longe. Esperamos instruções.
Os olhos redondos de Zilash fitaram Orlov interrogativamente através da fumaça.
— Vai responder, general?
Orlov ficou pensativo por um momento.
— Ainda não. Coloque-me em contato com o contra-almirante Pasenko, no quartel-general da Esquadra do Pacífico.
Zilash olhou para o relógio do computador.
— Lá são quatro horas da manhã, general...
— Eu sei — disse Orlov, pacientemente. — Faça o que estou mandando.
— Sim, senhor.
Zilash digitou o nome no teclado do computador, verificou na tela qual era o número correspondente ao código do sinal, entrou com o mesmo número no programa codificador e enviou um sinal de rádio para a base. Quando o contra-almirante atendeu, passou os fones para Orlov.
— Sergei Orlov? — perguntou Pasenko. — Cosmonauta, piloto de caça e recluso? Você é um dos poucos homens que me fariam sair da cama a esta hora, sabia?
— Sinto muito quanto à hora, Ilya — disse Orlov. — Como tem passado?
— Muito bem! E você? Onde se escondeu nestes últimos dois anos? Não o vejo desde aquele encontro de veteranos em Odessa.
— Eu vou bem...
— É claro! Vocês cosmonautas estão sempre vendendo saúde. E Masha? Como vai a sua esposa sofredora?
— Também vai bem. Talvez a gente possa colocar a conversa em dia em outra ocasião, Ilya. No momento, eu queria lhe pedir um favor.
— O que quiser. O homem que manteve Brejnev esperando para assinar no livro de autógrafos da minha filha tem a minha gratidão imorredoura.
— Obrigado — disse Orlov, lembrando-se de como o ex-líder da União Soviética ficara irritado. Mas as crianças eram o futuro da humanidade e nunca houvera a menor hesitação por parte de Orlov. — Ilya, estamos com uma aeronave avariada que vai pousar no aeroporto de Vladivostok...
— O Gulfstream? Está aqui no meu computador.
— Esse mesmo. Preciso entregar essa carga em Moscou. Pode me emprestar um avião?
— Talvez eu tenha me precipitado — disse Pasenko. — Todos os aviões de que posso dispor estão sendo usados para transportar material para oeste.
Orlov foi pego de surpresa. O que será que está acontecendo no oeste?
— Se houvesse espaço, eu teria muito prazer em levar a sua encomenda de carona em um dos meus aviões — prosseguiu Pasenko —, mas o problema é que eles estão todos lotados. Acontece que está chegando uma frente fria do mar de Bering e vamos ter vários dias de mau tempo pela frente. Tudo que não conseguirmos despachar até esta noite provavelmente terá de ficar aqui durante pelo menos noventa e seis horas.
— Nesse caso, não há tempo nem de mandar um avião de Moscou — observou Orlov.
— Acho que não. Por que a pressa?
— Eu mesmo não sei. Coisas do Kremlin.
— Compreendo — disse Pasenko. — Quer uma sugestão? Em vez de deixar aqui a sua encomenda, Sergei, posso despachá-la de trem. Você pode mandar a encomenda para norte de Vladivostok e ir buscá-la de avião quando o tempo melhorar.
— Está falando da Ferrovia Transiberiana, não é? Quantos vagões pode me ceder?
— Um número suficiente para transportar tudo que o seu pequeno jato é capaz de carregar — afirmou Pasenko. — A única coisa que não posso lhe ceder são homens para acompanhar a carga. Para isso, necessitaria da aprovação do almirante Varchuk, e ele foi ao Kremlin encontrar o novo presidente. Ele detesta ser interrompido, a não ser que se trate de uma questão de segurança nacional.
— Tudo bem. Se me arranjar o transporte, posso cuidar dos homens. Você me confirma assim que puder?
— Não saia daí — disse Pasenko. — Volto a falar com você em menos de meia hora.
Orlov devolveu os fones a Zilash.
— Entre em contato com a base militar da ilha Sacalina — ordenou. — Diga ao operador que eu gostaria de falar com um membro do destacamento spetsnaz. Espere na linha.
— Sim, senhor. Que membro, general?
— O segundo-tenente Nikita Orlov. Meu filho — explicou Orlov.
Vinte e três
Segunda-feira, 13:45, Washington, D.C.
Paul Hood e Mike Rodgers estavam sentados atrás da mesa de Hood, estudando os perfis psicológicos que Liz Gordon acabara de enviar.
Se havia alguma tensão entre os dois por causa do que acontecera no Tanque, tinha sido posta de lado. Rodgers era independente por temperamento, mas tinha vinte anos de serviço. Sabia cumprir ordens, inclusive as que não lhe agradavam. Por seu lado, Hood raramente desautorizava seu auxiliar, e quase nunca em questões militares. Quando o fazia, era com o apoio da maioria da equipe.
O caso de Peggy James tinha sido complicado, mas o resultado podia ser explicado facilmente. A comunidade de inteligência era pequena demais para desavenças tolas. O risco de enviar uma agente experimentada com o Striker era aceitável; antes isso do que desagradar ao MI6 e ao comandante Hubbard.
Hood teve o cuidado de não ser exageradamente solícito para com Rodgers depois da pequena desavença. O general não gostaria disso. Ao mesmo tempo, porém, Hood mostrou-se mais aberto às ideias de Rodgers, especialmente ao seu entusiasmo pelos perfis psicológicos de Liz Gordon. O diretor do Op-Center tinha tanta confiança na psicanálise quanto na astrologia e frenologia. Sonhos de infância a respeito da mãe eram tão úteis para compreender a mente de um adulto quanto a atração gravitacional de Saturno e os galos na cabeça o eram para predizer o futuro.
Entretanto, Mike Rodgers acreditava nos poderes da psicanálise e, se nada mais, o estudo dos perfis psicológicos serviria para rever o currículo dos adversários em potencial.
A biografia resumida do novo presidente russo estava na tela, juntamente com referências a fotografias, recortes de jornal e fitas de vídeo. Hood leu sobre o nascimento de Janin em Makhachkala, à beira do mar Cáspio, seus estudos em Moscou, sua ascensão do Politburo para a posição de adido na Embaixada Soviética em Londres e depois para a de vice-embaixador em Washington.
Hood parou de rolar a tela quando chegou ao perfil traçado por Liz:
— “Ele se considera como um Pedro, o Grande, moderno em potencial” — leu Hood — “que apoia o livre comércio com o Ocidente e um influxo cultural por parte dos Estados Unidos para que a população continue a querer o que nós temos para vender.”
— Isso faz sentido — observou Rodgers. — Se eles querem filmes americanos, terão que comprar videocassetes russos. Se querem camisas dos Chicago Bulls ou camisetas de Janet Jackson, as companhias de tecidos começarão a abrir fábricas na Rússia.
— Mas Liz diz aqui: “Não acredito que ele tenha o mesmo senso estético de Pedro, o Grande.”
— Acho que ela está certa. O tsar estava genuinamente interessado na cultura ocidental. Janin está interessado apenas em fortalecer a economia e permanecer no poder. A questão, que também discutimos com o presidente na noite passada, é até que ponto estas ideias o afastam dos militares.
— Ele não tem nenhuma formação militar — afirmou Hood, consultando a parte da biografia que acabara de ler.
— Certo — concordou Rodgers. — Acontece que, historicamente, este tipo de líder é o primeiro a tentar usar a força para conseguir o que quer. Qualquer um que tenha estado na frente de batalha sabe muito bem o preço que se tem a pagar por ações militares. Em geral, essas pessoas são as que mais relutam em recorrer a soluções violentas.
Hood continuou a ler:
— “Dadas as advertências que o general Rodgers ouviu na reunião da Casa Branca na noite passada”, escreve Liz, “não acredito que Janin seja capaz de provocar uma luta armada para se impor ou para agradar aos militares. Ele se orgulha das suas ideias e da sua retórica, e não da força ou do uso de armas. Nos primeiros dias do novo governo, sua maior preocupação será a de não alienar o Ocidente.”
Hood recostou-se na cadeira, fechou os olhos e apertou o cavalete do nariz.
— Quer café? — perguntou Rodgers, continuando a examinar o relatório.
— Não, obrigado, eu me afoguei em café a noite passada, no avião.
— Por que não tentou dormir?
Hood riu.
— Porque fiquei com o último lugar a bordo, entre dois dos maiores roncadores deste planeta. Assim que decolamos, os dois tiraram os sapatos e ferraram no sono. Como detesto esses filmes água-com-açúcar que passam nos aviões, aproveitei o tempo para escrever uma carta de trinta páginas pedindo desculpas à minha família.
— Sharon ficou zangada ou desapontada? — perguntou Rodgers.
— As duas coisas e muito mais — respondeu Hood. Endireitou o corpo. — Droga, é melhor voltarmos a falar dos russos. Tenho mais chance de entendê-los do que de entender minha mulher.
Rodgers deu-lhe um tapinha nas costas enquanto concentravam a atenção na tela de novo.
— Liz diz aqui que Janin não é um homem impulsivo — observou Hood. — “Ele sempre se mantém fiel aos planos, guiado pelo que considera correto, mesmo que não esteja de acordo com o que pensa a maioria. Veja os recortes do Pravda Z-17A e Z-27C.”
Hood chamou para a tela os recortes mencionados e viu que, em 1986, Janin apoiara entusiasticamente o plano do vice-ministro do interior Abalya de combater os criminosos que estavam sequestrando empresários estrangeiros na Geórgia, mesmo depois que Abalya foi assassinado, e que, em 1987, incorrera na ira dos representantes da linha dura ao se recusar a apoiar uma lei que proibiria o uso de sósias de Lenin no que era chamado de “noites de escárnio”.
— “Um homem íntegro” — leu Hood, encerrando os comentários de Liz —, “que costuma errar mais por excesso de ousadia do que por excesso de cautela.”
— Não posso deixar de me perguntar se essa ousadia incluiria uma aventura militar — observou Rodgers.
— Eu estava pensando a mesma coisa — admitiu Hood. — Ele não hesitou em recomendar o uso da tropa contra os gângsteres na Geórgia.
— É verdade, mas eu não diria que seja a mesma coisa.
— Por quê?
— Usar a força para manter a paz é diferente de usar a força para impor a sua vontade — argumentou Rodgers. — Existe um ponto de legalidade que, psicologicamente, faria uma grande diferença para alguém como Janin.
— Bem — disse Hood —, o que vemos aqui parece confirmar a opinião que você externou na noite passada, no Salão Oval. O problema não é Janin. Vamos ver quem mais pode ser.
Hood passou para a parte seguinte do relatório de Liz, que a psicóloga chamara jocosamente de Tiros no Escuro.
— “General Viktor Mavik” — leu. — “Marechal de Artilharia do Exército.”
— Ele foi um dos oficiais que planejaram o ataque ao centro de televisão de Ostankino em 1993 — afirmou Rodgers. — Desafiou Yeltsin e, mesmo assim, sobreviveu. Ainda tem amigos poderosos dentro e fora do governo.
— “Não gosta de agir sozinho” — leu Hood. — Em seguida, vem nosso amigo marechal Mikhail Kosigan, que Liz descreve, de modo deveras pitoresco, como um “verdadeiro biruta”. Foi marechal-chefe de artilharia e defendeu abertamente dois oficiais que tinham sido repreendidos por Gorbachev depois de ordenarem missões suicidas no Afeganistão.
— “Por causa disso, Kosigan recebeu de Gorbachev a maior punição fora de uma corte marcial” — leu Rodgers. — “Foi rebaixado e acabou indo parar no Afeganistão, onde teve ocasião de comandar pessoalmente outras missões do mesmo tipo. Desta vez, porém, as coisas correram de forma diferente. Kosigan continuou a atacar até que os redutos rebeldes fossem tomados.”
— Parece um tipo perigoso — comentou Hood, passando para a tela seguinte.
O nome seguinte era a mais recente adição ao arquivo.
— Nikolai Dogin, ministro do interior — anunciou. Depois, começou a ler: — “Este homem jamais conheceu um capitalista que não desprezasse. Se olharem para a fotografia Dele, verão que a CIA o fotografou visitando secretamente Beijing quando Gorbachev subiu ao poder. Dogin, na época, era prefeito de Moscou e estava tentando conseguir o apoio do comunismo internacional contra o novo presidente.”
— Há alguma coisa em vocês, ex-prefeitos, que me preocupa — observou Rodgers, enquanto Hood chamava a fotografia para a tela.
O comentário, dito em tom muito sério, fez Hood sorrir.
Os homens se inclinaram na direção do monitor e leram o comentário classificado como “Secreto” associado à imagem, que dizia que a fotografia tinha sido entregue a Gorbachev pelo embaixador dos Estados Unidos.
Rodgers recostou-se na cadeira.
— Dogin deve ter as costas muito quentes para conseguir se manter no poder depois que Gorby soube disso.
— É verdade — concordou Hood. — O tipo de apoio que você acumula com o passar do tempo e se transforma em uma rede. O tipo de apoio que permite que você tire o governo das mãos de um presidente eleito pelo povo.
O intercomunicador do lado de fora da porta chamou.
— Chefe, aqui é Bob Herbert.
Hood apertou um botão no lado da mesa para destrancar a porta. A porta se abriu e Bob Herbert entrou, agitado, em sua cadeira de rodas. Colocou um disquete em cima da mesa. Sempre que Herbert estava nervoso, seu sotaque do Mississippi ficava mais carregado. Era o que acontecia no momento.
— Alguma coisa aconteceu às oito da noite, hora local — afirmou. — Alguma coisa grande.
Hood olhou para o disquete.
— O que foi?
— De repente, os russos estão em toda parte. — Apontou para o disco. — Veja você mesmo.
Hood carregou os dados no computador e viu que Herbert não estava exagerando. Pilotos e aviões de Orenburg estavam sendo transferidos para a fronteira da Ucrânia. A Esquadra do Báltico estava em alerta parcial, oficialmente como parte de um treinamento de rotina. A bateria de quatro satélites Hawk, geralmente usada para vigiar o Ocidente, estava agora monitorando alvos em potencial na Polônia.
— Moscou está interessada principalmente em Kiev e Varsóvia — comentou Rodgers, depois de examinar as coordenadas dos satélites.
— O mais interessante é que a estação retransmissora dos Hawk em Baikonur saiu do ar às oito da noite, hora local.
— Apenas a estação? — perguntou Rodgers. — Não as antenas receptoras?
— Exatamente — confirmou Hood.
— Nesse caso, para onde estão mandando os dados? — quis saber Hood.
— Não temos certeza — disse Herbert —, mas é exatamente aqui que a coisa começa a ficar interessante. Detectamos um aumento de atividade elétrica em São Petersburgo exatamente às oito da noite, hora local. Acontece que foi nessa hora que a estação de TV do Hermitage começou a transmitir, de modo que tudo pode não passar de uma coincidência.
— Mas você não apostaria sua vida nisso — afirmou Hood.
Herbert fez que sim com a cabeça.
— Foi isso que Eivai Ekdol nos prometeu — disse Rodgers, ainda examinando a tela. — Uma ação militar. E está sendo executada com muita habilidade. Se tomarmos cada um desses eventos isoladamente, são todos rotineiros, a não ser a mudança na posição dos Hawk. Muitos equipamentos passam diariamente pelo porto de Vladivostok. Os russos executam manobras nas proximidades da fronteira da Ucrânia duas vezes por ano. A Esquadra do Báltico frequentemente realiza exercícios perto do litoral.
— O que está dizendo — observou Hood — é que nada disso seria notado se não estivéssemos de olho no que os russos estão fazendo.
— Isso mesmo — concordou Rodgers.
— O que eu não entendo — afirmou Hood — é o seguinte: se Janin não é o responsável, como puderam executar uma operação deste porte sem o seu conhecimento? Ele tinha de ter sido informado que alguma coisa estava acontecendo.
— Você sabe melhor do que ninguém que um líder é tão bom quanto suas informações — argumentou Rodgers.
— Sei também que se você conta alguma coisa a duas pessoas em Washington, ela deixa de ser um segredo — objetou Hood. — O mesmo certamente se aplica ao Kremlin.
— Engano seu — protestou Herbert. — Se apenas uma pessoa sabe alguma coisa no Kremlin, lá se foi o segredo.
— Estão se esquecendo de alguém — observou Rodgers. — Shovich. Um homem como ele pode usar ameaças e dinheiro para tapar a boca de muita gente. Além do mais, mesmo que não tenha uma ideia global do que está acontecendo, Janin provavelmente foi informado a respeito de alguns detalhes. Dogin ou Kosigan pode ter ido falar com ele logo após a eleição e conseguido sua autorização para algumas das manobras e transferências de tropas, como forma de manter os militares felizes e ocupados.
— Isso seria do interesse de Dogin — observou Herbert. — Se algo der errado, as ordens terão a assinatura de Janin.
Hood fez que sim com a cabeça e desligou o computador.
— Então Dogin é o principal suspeito, e São Petersburgo sua base de operações.
— Isso mesmo — concordou Herbert. — E o Striker cuidará dele.
Hood continuou a olhar para a tela vazia.
— O relatório da Interpol deverá chegar por volta das três — afirmou. — É nessa hora que vocês vão examinar as plantas do Hermitage e formular um plano para entrar no museu.
— Isso mesmo — confirmou Rodgers.
— O grupo de Táticas e Estratégias está verificando se é melhor o grupo saltar de paraquedas ou atravessar o Neva em uma balsa ou minissubmarino. O responsável por essa parte dos planos é Dom Limbos, que já cuidou de várias travessias de rios. Geórgia Mosley, dos suprimentos, já fez uma lista dos equipamentos de que o Striker vai necessitar em Helsinki.
— Então desistiram da ideia de introduzi-los no Hermitage disfarçados de turistas? — perguntou Hood.
— Isso mesmo — confirmou Herbert. — Os russos ainda estão vigiando os grupos de turistas e fotografando indivíduos suspeitos em hotéis, em ônibus, no museu e outros lugares. Mesmo que nossos homens jamais retornem, não queremos as fotografias deles nos arquivos dos russos.
Rodgers consultou o relógio.
— Paul, está na hora da reunião do grupo de Táticas e Estratégias e eu quero estar presente. Prometi a Squires que o plano vai estar pronto antes que eles pousem em Helsinki, o que deve ocorrer por volta das quatro da tarde, hora de Washington.
Hood fez que sim com a cabeça.
— Obrigado por tudo, Mike.
— De nada — disse Rodgers. Ao levantar-se, olhou para um peso de papel em forma de globo terrestre que estava sobre a mesa. — Eles nunca mudam — cismou.
— Quem? — quis saber Hood.
— Os tiranos — explicou Rodgers. — A Rússia pode ter sido uma charada envolta em mistério no interior de um enigma para Winston Churchill, mas o que vejo no momento é algo tão antigo quanto a própria história: um bando de indivíduos sedentos de poder, que pensam que sabem melhor do que o eleitorado o que é melhor para o povo.
— É por isso que estamos aqui — afirmou Hood. — Para mostrar a eles que não podem fazer isto impunemente.
Rodgers olhou para Hood.
— Sr. Diretor — declarou, com um sorriso —, gosto muito do seu estilo. Eu e o general Gordon.
Rodgers saiu com Bob Herbert, deixando Hood perplexo e com a impressão de que tinha feito uma aliança com o general... como se sua vida dependesse disso, ele não sabia como nem por quê.
Vinte e quatro
Terça-feira, 5:51, ilha Sacalina
A ilha Sacalina, no mar de Okhotsk, é uma faixa escarpada de mil quilômetros de comprimento, com aldeias de pescadores no litoral e majestosas florestas de pinheiros e minas de carvão no interior, de estradas esburacadas e poucas rodovias em bom estado, de ruínas de prisões do tempo dos Romanov e de antigos túmulos nos quais o sobrenome mais comum é Nepomnyashchy — “Ignorado”. Situada um fuso horário a oeste da linha internacional de mudança de data, está mais próxima da ponte Golden Gate do que do Kremlin. Quando é meio-dia em Moscou, já são 20:00 em Sacalina. A ilha vem sendo há muito tempo um refúgio para os líderes, muitos dos quais construíram dachas, confortáveis casas de campo nas colinas, e para os eremitas, que se embrenham nas matas virgens de Sacalina em busca de Deus e de paz.
Os russos vêm mantendo há muito tempo uma presença militar em Korsakov, na extremidade sudeste da ilha, perto das ilhas Curilas, que se estendem da extremidade setentrional de Hokkaido à extremidade meridional de Kamchatka. As ilhas foram ocupadas pela União Soviética em 1945, embora o Japão até hoje reivindique o arquipélago de mil e cem quilômetros de extensão.
A base russa em Korsakov é espartana, consistindo apenas em uma pista de pouso, um pequeno porto e quatro alojamentos. Quinhentos marinheiros e dois regimentos de homens-rãs spetsnaz e soldados navais estão fixados na ilha. Patrulhas diárias, aéreas e navais, acompanham, visual e eletronicamente, as atividades dos barcos japoneses de pesca do salmão.
O segundo-tenente Nikita Orlov, de vinte e três anos de idade, estava sentado no posto de comando, no alto de um pico do qual era possível ver o mar e a base. Os cabelos pretos eram cortados rente, a não ser pelas mechas que lhe cobriam a testa, e os lábios cheios e corados eram emoldurados por um queixo quadrado. Seus olhos castanhos tinham uma expressão vivaz enquanto ele revia as informações locais e transmitia por fax o relatório da noite anterior — ao mesmo tempo que olhava frequentemente pela janela aberta.
O jovem oficial gostava de levantar antes do alvorecer, tomar conhecimento do que acontecera enquanto estava dormindo e ver o sol surgir no horizonte e queimar as águas em direção à base. Adorava assistir ao despertar do mundo, embora os dias não trouxessem mais a mesma promessa da época de sua infância e, depois, dos tempos de cadete: a de que a União Soviética seria o império mais duradouro da história do mundo.
Por mais profunda que tivesse sido a decepção, Nikita adorava seu país mais apaixonadamente do que nunca e também adorava Sacalina. Tinha sido mandado diretamente para lá depois de terminar a academia spetsnaz, principalmente para ser afastado de Moscou depois do incidente com a igreja grega ortodoxa — mas também, sempre desconfiara, para evitar que manchasse o nome do pai. Sergei Orlov era um herói, valioso como instrutor de voo de pilotos jovens e impressionáveis, útil como propaganda nos simpósios e convenções internacionais. Nikita Orlov era um radical, um reacionário que tinha saudade do tempo em que não havia um Afeganistão para destruir o moral dos maiores militares do mundo, não havia um Chernobyl para abalar o orgulho da nação, não havia o glasnost e a perestroika para acabar com a economia e depois com a unidade nacional.
Entretanto, isso era o passado. Ali, pelo menos, ainda havia uma sensação de propósito, ainda havia um inimigo. O capitão Leshev — talvez sofrendo de um pouco de tédio depois de passar três anos no comando das tropas spetsnaz em Sacalina — passava boa parte do tempo organizando competições de tiro, que eram a sua paixão. Isso deixava Orlov encarregado na maior parte dos problemas militares, e ele acreditava que um dia a Rússia teria de enfrentar mais uma vez o Japão no campo militar, que eles tentariam invadir a ilha, e que ele talvez tivesse a honra de comandar a defesa.
Nikita também acreditava, sinceramente, que a Rússia ainda tinha contas a ajustar com os Estados Unidos. Os soviéticos haviam derrotado o Japão em uma guerra, e aquelas ilhas eram parte da recompensa. Ao mesmo tempo, porém, havia uma sensação de que a Rússia perdera a guerra com os Estados Unidos, e isso incomodava Orlov. O treinamento spetsnaz reforçara sua crença de que os inimigos deviam ser destruídos, não aplacados, e ele e seus soldados não deviam ser tolhidos por considerações de ordem ética, diplomática ou moral. Estava convencido de que os esforços de Janin para transformar a Rússia em uma nação de consumidores seriam tão desastrosos quanto os de Gorbachev, e isso levaria a uma capitulação final diante dos banqueiros e seus testas de ferro em Washington, Londres e Berlim.
Tinham recebido tabaco fresco na véspera e Orlov enrolou um cigarro enquanto um pedacinho do sol aparecia no horizonte, acima do mar escuro. Sentia-se tão integrado àquela terra, àquele alvorecer, que parecia possível encostar o cigarro no sol para acendê-lo. Em vez disso, usou o isqueiro que o pai lhe dera de presente quando entrara para a academia, a chama laranja iluminando a inscrição: Para Nikki, com amor e orgulho — seu pai. Nikita deu uma baforada e guardou o isqueiro de volta no bolso da camisa bem passada.
Com amor e orgulho. Qual teria sido a inscrição depois daquele incidente? pensou. Com vergonha e constrangimento? Ou quando Nikita aceitou aquela posição depois de se formar, longe do pai e mais próximo de um verdadeiro inimigo de Moscou. Com desapontamento e perplexidade?
O telefone tocou. Era uma extensão da sala de comunicações que ficava no sopé do morro. Como o assistente de Orlov ainda não havia chegado, ele atendeu pessoalmente.
— Posto um de Sacalina, Orlov falando.
— Bom dia — disse o interlocutor.
Nikita ficou em silêncio por alguns segundos.
— Papai?
— Sou eu, Nikki — disse o general. — Gomo vai?
— Vou bem, embora surpreso. — De repente, Nikita teve um sobressalto. — Aconteceu alguma coisa com a mamãe?
— Ela está muito bem — tranquilizou-o o general. — Nós dois estamos bem.
— Que bom — disse Nikita sem emoção. — Falar com você depois de tantos meses... acho que me deu um susto.
Houve outra pausa tensa. Os olhos de Nikita não contemplavam o nascer do sol com a mesma alegria. Pelo contrário; ficaram duros e amargos enquanto tragava profundamente e se lembrava das discussões que tivera com o pai após sua prisão, quatro anos antes. Lembrava-se de como o general tinha ficado zangado e embaraçado com o que o filho fizera naquela igreja, de como o famoso cosmonauta, que não podia ir a lugar nenhum sem ser reconhecido, passara a sentir vergonha de sair de casa. De como, finalmente, na noite em que o coronel Rossky — não seu influente pai — resolvera o assunto com a academia e conseguira que Nikita fosse perdoado com apenas uma semana de serviço dobrado, o pai visitara a academia e fizera um discurso a respeito dos males do ódio e de como grandes nações e grandes indivíduos podiam ser destruídos por ele. Os outros cadetes haviam permanecido em silêncio; quando o grande homem fora embora, alguém começara o jogo de Nikita e Sergei, que os soldados em treinamento representaram durante vários dias: “Sergei” tinha de adivinhar em que lugar de Moscou o filho estava pichando paredes com mensagens de ódio, enquanto “Nikita” fornecia as pistas.
Nikita ainda podia ouvir as vozes, as risadas dos companheiros.
— A embaixada dos Estados Unidos ?
— Está frio...
— O terminal da Japan Air Lines no aeroporto de Cheremetievo?
— Mais frio ainda...
— O banheiro dos homens do Kirov?
— Esquentou!
— Nikki — disse o pai. — Muitas vezes tive vontade de ligar, mas parece que falar comigo só serve para irritá-lo. Esperava que o tempo fizesse desaparecer essa sua amargura...
— Será que ele o livrou da sua arrogância? — perguntou Nikita. — Dessa ideia idiota de que nós, formigas aqui embaixo, só sabemos fazer coisas sujas e erradas?
— Não foram minhas viagens ao espaço que me ensinaram que uma nação pode ser destruída por dentro — afirmou Orlov. — Foram os homens ambiciosos que me ensinaram isso.
— Continua o mesmo homem ingênuo e cheio de piedade.
— E você continua o mesmo menino grosseiro e desrespeitoso.
— Agora que ligou, descobrimos que as coisas não mudaram nada.
— Não liguei para discutir com você.
— Não? Então para que foi? — perguntou Nikita. — Está testando o alcance de seus novos transmissores?
— Não, Nikki. Estou ligando porque preciso de um bom oficial para comandar uma unidade em uma missão importante.
Nikita endireitou-se na cadeira.
— Está interessado? — perguntou o general.
— Se é para o bem da Rússia e não para o bem da sua consciência, estou.
— Liguei porque acho que é o melhor oficial para esse trabalho.
— Nesse caso, aceito.
— Suas ordens serão enviadas através do capitão Leshev em menos de uma hora. Ficará à minha disposição durante três dias. Você e sua unidade deverão estar em Vladivostok às onze horas.
— Estaremos lá — assegurou Nikita, levantando-se. — Isso significa que está de volta ao serviço ativo?
— Você já sabe tudo que precisa saber — replicou o general.
— Muito bem — disse Nikita, soltando uma baforada.
— Nikki... tenha cuidado. Quando isso terminar, talvez você possa me encontrar em Moscou para fazermos as pazes.
— É uma ideia. Talvez eu possa convidar meus ex-colegas da academia. Não seria a mesma coisa sem a presença deles.
— Nikki... você não teria me ouvido em particular.
— E você não poderia ter limpado o nome dos Orlov a menos que me repreendesse em público.
— Fiz isso para que outros não cometessem o mesmo erro.
— Fez isso à minha custa. Obrigado, papai. — Nikita esmagou o cigarro no cinzeiro. — Vai me desculpar, mas se devo estar no continente às onze, preciso me preparar. Dê lembranças minhas à mamãe e ao coronel Rossky.
— Darei — assegurou-lhe o general. — Adeus, filho.
Nikita desligou o telefone e olhou na direção do sol nascente.
Era curioso que tantos compreendessem o que o pai parecia não entender: que a grandeza da Rússia estava na sua unidade, não na sua diversidade; que, como havia ensinado o coronel Rossky, o cirurgião que remove o tecido necrosado faz isso para salvar o paciente. O pai tinha sido escolhido para participar do programa espacial porque, entre outras coisas, era um homem calmo, valente, bondoso, a figura ideal para aparecer nas cerimônias públicas e inspirar os jovens pilotos que queriam ser heróis. Entretanto, cabia aos lutadores como ele, Nikita, fazer o trabalho sujo para a nova Rússia, reconstruir, expurgar, corrigir os erros cometidos na última década.
Depois de informar ao oficial do dia que havia sido convocado para uma missão, Nikita colocou o quepe na cabeça e deixou o posto de comando, sentindo pena do pai... mas curioso para saber que tipo de missão escolhera para o filho.
Vinte e cinco
2ª Feira, 14:53, sobre o Atlântico, a noroeste de Madri
O interior do C-141B StarLifter não era nada confortável. A ideia tinha sido economizar no peso para tornar o alcance do avião o maior possível. As paredes cobertas de lona não faziam nada para abafar o ronco dos motores e as lâmpadas nuas revelavam a sombra das nervuras da fuselagem. Os soldados estavam sentados em almofadas colocadas sobre bancos de madeira. Quando entravam em uma zona de turbulência, eram mantidos no lugar pelos cintos de segurança, mas era frequente que as almofadas escorregassem para o piso.
Embora os bancos pudessem acomodar apenas noventa soldados com um certo conforto, a capacidade máxima do StarLifter era de cerca de trezentos homens. Com apenas oito pessoas no compartimento de passageiros e um piloto, copiloto e navegador na cabine, o tenente-coronel Squires sentia-se como se estivesse voando de primeira classe. Podia esticar as pernas à vontade. Estava sentado sobre duas almofadas e colocara outra entre as costas e o metal duro da fuselagem. O melhor de tudo, porém, é que o ar estava respirável. Nas ocasiões em que os membros de elite do Striker viajavam com soldados de outras forças e com os cinco pastores alemães do Corpo K-9, o odor de corpos suados tendia a infestar o ambiente.
Depois de algumas horas no ar, Squires apreciava o conforto. Tinha passado a primeira hora com o sargento Chick Grey e o soldado David George, conferindo os equipamentos que iriam usar quando chegassem a Helsinki; passara as duas horas seguintes com o soldado Sondra DeVonne estudando os mapas de Helsinki e São Petersburgo no laptop', depois, dormira durante quatro horas.
Quando Squires acordou, George passou-lhe uma refeição aquecida no forno de micro-ondas e um copo de café preto. O resto do grupo tinha comido fazia uma hora.
— Nós temos que falar com o general Rodgers sobre essa comida — queixou-se Squires, levantando a tampa de isopor e olhando as fatias de peru, o purê de batata, a vagem e a broa de milho. — Temos mísseis capazes de atravessar metade do mundo e entrar pela chaminé do inimigo, mas continuam nos servindo a mesma droga dos voos comerciais.
— Mesmo assim, é melhor do que a ração que meu pai comia no Vietnã, coronel — observou George.
— Pode ser — admitiu Squires. — Mesmo assim, não custava nada instalar uma cafeteira decente. Droga, eu concordaria em pagar do meu próprio bolso! As novas cafeteiras quase não ocupam espaço e funcionam praticamente sozinhas. Nem mesmo o Exército conseguiria estragar o café feito numa delas.
— Ainda não provou meu café — comentou Sondra, sem levantar os olhos de seu exemplar de Morro dos ventos uivantes. — Quando estou em casa, meus pais não deixam que eu chegue perto da cafeteira.
Squires cortou um pedaço de peru.
— Que tipo de café você usa?
Sondra olhou para ele. Seus olhos grandes e castanhos eram perfeitamente emoldurados pelo rosto oval e a voz tinha um leve sotaque da infância passada em seu país de origem, a Argélia.
— Tipo, coronel? Não sei. O que encontro no supermercado.
— É esse o seu problema — afirmou Squires. — Minha mulher compra grãos inteiros e os conserva no congelador para moê-los de manhã. Geralmente acrescenta algo festivo, como nozes ou framboesas com cobertura de chocolate.
— Café com framboesa? — perguntou Sondra.
— Isso mesmo. Usamos a cafeteira apenas para coar o café, não deixamos que fique fervendo. Logo que fica pronto, nós o tiramos do fogo e o colocamos num bule. Nunca usamos creme ou açúcar. Esses são os grandes niveladores... fazem todo café ficar com o mesmo gosto.
— Parece muita coisa para fazer antes da formatura, coronel — comentou Sondra.
Squires apontou para o livro com a faca.
— Você está lendo Brontë. Não gosta de romances modernos?
— Isto é literatura — declarou a moça. — Os romances modernos são todos iguais.
— É assim que me sinto quanto ao café — disse Squires, espetando um pedaço de peru no garfo de plástico. — Se não é café de verdade, do jeito que eu gosto, para que tomar?
— Posso responder a isso com uma única palavra, coronel: cafeína — disse Sondra. — Quando leio Thomas Mann ou James Joyce até as quatro da manhã, preciso de alguma coisa para poder chegar à sala de aula às nove.
Squires fez que sim com a cabeça e observou:
— Conheço uma maneira melhor.
— Qual é?
— Flexões. Cem flexões, logo depois de se levantar, acordam você mais depressa do que cafeína. Além do mais, se consegue fazer isso de manhã, o resto do dia parece moleza.
Enquanto falavam, Ishi Honda, o operador de rádio, aproximou-se, vindo da traseira do avião. Membro veterano do Striker e faixa preta no judô, filho de mãe havaiana e pai japonês, o pequeno Honda cuidava das comunicações durante a convalescença do soldado Johnny Puckett, que tinha sido ferido na Coreia do Norte.
Honda bateu continência e passou a Squires o receptor do radiotransmissor TAC-Sat que levava na mochila.
— Coronel, o general Rodgers quer lhe falar.
— Obrigado — disse Squires, engolindo um pedaço de peru antes de atender a ligação. — Coronel Squires falando, general.
— Coronel Squires — disse Rodgers —, parece que seu grupo vai prosseguir rumo ao alvo, mas não como turistas.
— Entendido.
— Receberão instruções mais detalhadas antes do pouso — explicou Rodgers — sobre o ponto de partida, o meio de transporte e a hora da missão, mas não podemos lhes dizer exatamente o que estão procurando. Tudo que sabemos estará no relatório, até mesmo o lugar em que o agente da MI6 que investigava o local foi assassinado. Os russos também capturaram um dos informantes e outro está desaparecido.
— Eles não perderam tempo.
— É verdade. Outra coisa. Alguém do serviço secreto inglês vai se juntar a vocês.
— Eu o conheço? — perguntou Squires.
— É uma mulher — explicou Rodgers — e você não a conhece. Mas é bem qualificada. Vou pedir a Bob Herbert que lhe mande a ficha dela com os dados do Serviço de Assistência Técnica. Enquanto isso, peça a McCaskey para fazer um levantamento dos equipamentos aquáticos que vocês têm a bordo. Se precisarem de mais alguma coisa, estará esperando por vocês em Helsinki. Charlie?
— Sim, general?
— Boa sorte a todos.
— Obrigado — disse Squires, desligando.
Vinte e seis
Segunda-feira, 23:00, São Petersburgo
— Três... dois... um. Estamos... no ar.
Não houve aplausos quando Yuri Marev terminou a contagem regressiva nem sorrisos quando o general Orlov, que andava devagar de um lado para o outro atrás do semicírculo de computadores, reconheceu com um gesto de cabeça a entrada em funcionamento do Centro de Operações. Tudo correra exatamente de acordo com os planos; enquanto o longo dia estava chegando ao fim para a maioria dos empregados, Orlov sentia-se como se o seu dia estivesse apenas começando. Pedira para ver todos os dados que chegassem durante a hora seguinte; pretendia examiná-los com os diretores de reconhecimento, meteorologia, comunicações, operações, criptografia e análise, visualização e interceptação por computador. Entre esses diretores estavam incluídos os chefes do turno das quatro horas à meia-noite de cada departamento — a equipe principal, encarregada de analisar o volume maior de dados, colhidos no período das oito da manhã às quatro da tarde em Washington — e os vice-diretores, que trabalhavam nos turnos da meia-noite às oito da manhã e das oito da manhã às quatro da tarde. Rossky também estaria presente não só como segundo em comando, mas também como oficial de ligação com os militares. Rossky estava encarregado não apenas de analisar as informações de interesse militar e transmiti-la aos outros setores das forças armadas e do governo, mas também de comandar o grupo de ataquespetsnaz que estava à disposição do Centro para missões especiais.
Orlov olhou para Rossky, que estava em pé atrás do cabo Ivashin.
O coronel colocara-se em posição de descansar, com as mãos atrás das costas, visivelmente satisfeito com toda aquela atividade. Ele o fez lembrar-se de Nikita na primeira vez que o levara para ver os foguetes de lançamento e espaçonaves de Star City; o rapaz tinha ficado tão empolgado que não sabia para onde olhar. Orlov sabia, porém, que essa atitude não duraria muito.
Assim que o Centro foi declarado operacional, Orlov aproximou-se de Rossky. O coronel levou um momento para se voltar e bater continência.
— Coronel Rossky — disse Orlov —, gostaria que descobrisse para mim exatamente onde está meu filho. Tudo em código; não há necessidade de registrar a busca nos arquivos.
Rossky hesitou por um momento, aparentemente tentando adivinhar as razões de Orlov, mas sem sucesso.
— Sim, senhor — concordou, afinal.
Rossky ordenou que Ivashin pedisse à sala de rádio para entrar em contato com a base da ilha Sacalina e solicitar a informação ao sargento Nogovin. Todas as comunicações eram para ser executadas em Código Dois/Cinco/Três: as letras tinham de ser apagadas antes que pudessem ser decodificadas. Naquele caso, a segunda letra de todas as palavras do código era falsa, o que também acontecia com todas as palavras cujo número de ordem fosse múltiplo de cinco, a não ser a terceira letra das palavras falsas, que correspondia à primeira letra da palavra a seguir.
Ivashin recebeu a resposta em menos de dois minutos e o computador decodificou-a em um piscar de olhos.
Com as mãos ainda atrás das costas, Rossky inclinou-se na direção da tela e leu:
— O segundo-tenente Orlov e sua unidade de nove soldados spetsnaz chegaram a Vladivostok e estão aguardando novas instruções. — Rossky olhou para Orlov. — General — perguntou com voz tensa —, isso é algum tipo de manobra?
— Não, coronel, não é.
Rossky abriu a boca e tornou a fechá-la. Orlov esperou alguns segundos para se certificar de que ele era suficientemente esperto para não cometer um ato de insubordinação, queixando-se de ter sido excluído de uma manobra militar. O coronel devia estar se sentindo humilhado por ser tratado daquela forma na frente de toda a equipe, mas preferiu permanecer em silêncio.
— Venha comigo ao meu escritório, coronel — convidou Orlov, afastando-se. — Vou colocá-lo a par da disposição da unidade spetsnaz da ilha Sacalina.
O general ouviu os calcanhares de Rossky baterem, mas não olhou para trás. Depois de fechar a porta do escritório, sentou-se atrás da escrivaninha e olhou para Rossky, que estava em pé em frente à mesa.
— Está a par do fato de que o ministro Dogin enviou uma remessa por um avião civil?
— Sim, senhor.
— Houve um problema — explicou Orlov. — Um dos motores está com defeito. O avião não pode seguir viagem. Por causa do mau tempo e da escassez de aeronaves, dei ordens para que a carga fosse transferida para um trem que o contra-almirante Pasenko colocou à nossa disposição.
— Um trem vai levar quatro ou cinco dias para cobrir a distância entre Vladivostok e Moscou — observou Rossky.
— Acontece que o trem não precisa seguir até Moscou. Meu plano é transportar a carga de Vladivostok para um local onde possa ser recolhida por uma aeronave. Estava pensando em requisitar um helicóptero no aeródromo de Bada para ir ao encontro do trem em Bira. A cidade fica a apenas mil quilômetros de Vladivostok e suficientemente a oeste para ficar fora do caminho da tempestade.
— Parece que já tomou todas as providências. Há alguma coisa que eu possa fazer? — perguntou Rossky.
— Há, sim — respondeu Orlov. — Antes, porém, coronel, gostaria que me dissesse como foi informado desta remessa.
— Através do ministro — declarou Rossky sem se abalar.
— Ele se comunicou diretamente com o senhor?
— Isso mesmo. Acho que o senhor estava em casa, na ocasião. Foi na hora do jantar.
O general girou o corpo e digitou um comando no teclado para abrir o arquivo de registros.
— Entendo. Deve ter registrado a comunicação para que eu mais tarde tomasse conhecimento.
— Não, senhor.
— Por que não, coronel? Estava muito ocupado?
— O ministro não queria que o assunto ficasse registrado nos arquivos do Centro.
— O ministro não queria... — repetiu Orlov. — Não faz parte do regulamento militar que todas as ordens recebidas de um superior devem ser registradas?
— Sim, senhor.
— Está acostumado a acatar ordens de civis que contrariem o regulamento militar?
— Não, senhor — respondeu Rossky.
— Posso falar em nome do Centro — declarou Orlov. — Somos uma base autônoma, que serve a todos os setores do governo e das forças armadas. E quanto ao senhor, coronel? Por acaso deve lealdade especial ao ministro do interior?
Rossky levou alguns segundos para responder.
— Não, senhor — respondeu, afinal.
— Ótimo — disse Orlov —, porque se houver mais um incidente como este vou mandar transferi-lo. Fui claro?
O queixo de Rossky, rígido como pedra, moveu-se lentamente para cima e para baixo.
— Sim, senhor.
Orlov respirou fundo e começou a examinar os registros do dia. Não lhe passara pela cabeça que Rossky pudesse se rebelar abertamente; sua reserva era esperada. Entretanto, encurralara o coronel e pretendia continuar a pressioná-lo. Rossky teria que fazer alguma coisa.
— O ministro lhe disse mais alguma coisa, coronel, como de que consiste a remessa?
— Não, senhor.
— O senhor me sonegaria alguma informação, se o ministro lhe pedisse para fazê-lo?
Rossky olhou para o superior com o cenho franzido.
— Não, se a informação fosse de interesse do Centro, general.
Orlov parou de falar ao descobrir que o registro de sua própria conversa com Dogin havia desaparecido. Procurou de novo nas proximidades de 20:11, hora em que se recordava de ter feito o registro. Não havia nada.
— Alguma coisa errada, general? — perguntou Rossky.
Orlov procurou no arquivo inteiro para se certificar de que não havia entrado com a hora errada. Externamente calmo, por dentro estava muito agitado depois de descobrir que a palavra não aparecia em nenhum registro.
O general olhou para Rossky. O coronel agora estava com uma expressão relaxada, o que para ele era uma confissão de culpa: o próprio Rossky havia apagado o registro.
— Não — respondeu Orlov. — Não há nada errado. Esqueci de registrar uma ordem, mas vou fazê-lo assim que terminarmos nossa conversa. — Recostou-se na cadeira e viu um ligeiro sorriso de satisfação nos cantos dos lábios de Rossky. — Já perdi tempo demais com este assunto. Espero que tenha entendido bem minhas ordens.
— Sim, senhor.
— Quero que informe o ministro Dogin das minhas intenções e supervisione pessoalmente toda a operação. Meu filho o respeita e tenho certeza de que vão trabalhar juntos tão bem quanto no passado.
— Sim, senhor — repetiu Rossky. — Ele é um bom oficial.
O telefone começou a tocar e Orlov dispensou o coronel com um gesto enquanto tirava o fone do gancho. Rossky fechou a porta sem olhar para trás.
— Sim? — disse Orlov.
— General, aqui é Zilash. Poderia vir, por favor, à sala de rádio?
— O que houve?
— Estamos captando comunicações em código — explicou Zilash. — Já mandamos para a criptografia, mas ficamos preocupados com a possibilidade de acontecer alguma coisa antes que as mensagens sejam decifradas.
— Estou indo — disse Orlov.
Deixou o escritório sem se dar ao trabalho de registrar novamente a conversa com Dogin. Tinha certeza de que Rossky tornaria a apagar o registro. Estava frustrado com o fato de que uma conversa na qual pretendia colocar Rossky no seu lugar servira apenas para reforçar suas suspeitas de que Dogin e os spetsnaz pretendiam dirigir o Centro, usando-o como testa de ferro.
As palavras de Rossky ecoavam na sua mente: “Não, se a informação fosse de interesse do Centro, general". No espaço de apenas algumas horas, a morte de um agente inimigo e as informações sobre o Gulfstream tinham deixado de chegar ao seu conhecimento. O Centro era uma das maiores bases de reconhecimento do planeta; Orlov não permitiria que Rossky e Dogin a tornassem sua propriedade pessoal, embora não pretendesse fazer nada no momento. Os dias que passara no espaço o haviam ensinado que era muito importante manter a cabeça fria quando a temperatura abaixo de seus pés era de quase três mil graus centígrados... e a dupla ainda não fizera a temperatura atingir valores tão altos.
Fosse como fosse, ainda tinha um Centro para dirigir, e nem o coronel nem um megalomaníaco o impediriam de cumprir seu dever.
Orlov entrou com dificuldade na entulhada sala de rádio, ainda mais cheia de fumaça do que da vez anterior. O rosto macilento de Zilash estava virado para cima, os olhos perdidos no vazio enquanto escutava alguma coisa nos fones de ouvido. Depois de alguns momentos, retirou-os e olhou para Orlov.
— General — explicou, depois de bater a cinza do cigarro —, estamos acompanhando duas séries de comunicações em código e acreditamos que estejam relacionadas. A primeira é de Washington para uma aeronave que se encontra sobre o Atlântico, e a segunda é para Helsinki. — Deu duas rápidas baforadas e apagou o cigarro no cinzeiro. — Pedimos que a turma dos satélites desse uma olhada no avião: não tem sinais de identificação, mas eles acreditam que se trate de um C-141B StarLifter.
— Um grande transporte de tropas — afirmou Orlov com ar pensativo. — Versão modificada do C-141A. Conheço bem o avião.
— Eu já imaginava que o senhor conhecesse. — Zilash sorriu e acendeu outro cigarro. — O StarLifter está se dirigindo para Helsinki. Escutamos as comunicações entre o piloto e a torre; ele deverá chegar por volta das 23:00, hora local.
Orlov consultou o relógio.
— Falta menos de uma hora. Faz alguma ideia de quem está a bordo?
Zilash sacudiu a cabeça.
— Tentamos escutar o que estavam dizendo no interior do avião usando o Svetlana do Atlântico Norte, mas o comandante disse que existe um campo eletromagnético em volta da aeronave.
— Isso confirma espionagem — declarou Orlov sem muita surpresa. Lembrou-se do agente inglês que estivera investigando o Hermitage e amaldiçoou mentalmente Rossky pela forma como cuidara do assunto. O homem devia ter sido vigiado, e não induzido ao suicídio... se é que realmente pusera fim à própria vida. — Fale com o Ministério da Segurança em Moscou — ordenou. — Diga a eles que preciso de alguém em Helsinki para esperar o avião e verificar se os americanos pretendem entrar na Rússia.
— Sim, senhor — disse Zilash.
Orlov agradeceu, foi até seu escritório e convocou Rossky e Glinka, o diretor de segurança, para conversar sobre as medidas que deveriam ser tomadas caso tivessem visitas.
Vinte e sete
Terça-feira, 6:08, Vladivostok
Lenin uma vez disse o seguinte, referindo-se a Vladivostok: “Fica muito longe, mas é nossa.”
Durante as duas Guerras Mundiais, a cidade portuária, localizada na península de Muravyev, no mar do Japão, foi uma importante porta de entrada para equipamentos e matérias-primas provenientes dos Estados Unidos e outros países. Nos anos da Guerra Fria, os militares isolaram a cidade do resto do mundo, mas mesmo assim Vladivostok prosperou com o crescimento do porto e da Esquadra do Pacífico; a construção naval, tanto militar como civil, atraiu muitos trabalhadores e muito dinheiro para a região. Em 1986, Mikhail Gorbachev lançou a “Iniciativa Vladivostok”, que reabriu a cidade e a transformou no que o primeiro-ministro chamou de “uma janela escancarada no Oriente”.
Os novos líderes da Rússia esforçaram-se para tornar a cidade uma parte integrante do comércio no Anel do Pacífico, mas a abertura fez com que a cidade fosse invadida por gângsteres da Rússia e de outros países, atraídos pela moeda forte e pelos bens de consumo que chegavam ao porto por vias legais e ilegais.
O aeroporto de Vladivostok está situado pouco mais de trinta quilômetros ao norte da cidade. É uma viagem de carro de quase uma hora do aeroporto até o terminal ferroviário, localizado no coração de Vladivostok, a leste da movimentada Ulitsa Oktyabra.
Quando chegou ao aeroporto com sua tropa, o tenente Orlov foi recebido por um emissário do escritório do contra-almirante. O jovem mensageiro entregou ao oficial instruções lacradas, segundo as quais deveria entrar em contato com o coronel Rossky para receber novas ordens. Enquanto a neve começava a cair do céu cinzento, Nikita foi se juntar a sua unidade, que estava perfilada em frente ao Mi-6, o maior helicóptero do mundo, capaz de transportar setenta soldados por 1.043 quilômetros de distância. Os soldados estavam usando camuflagem toda branca, para a neve, com os capuzes baixados e as mochilas a seus pés. Cada homem estava armado com o equipamento padrão dos spetsnaz: uma submetralhadora com quatrocentas balas, uma faca, seis granadas de mão e uma pistola P-6. Nikita, por outro lado, usava uma AKR com apenas 160 balas; a submetralhadora de cano curto era a arma padrão dos oficiais.
Nikita deu ordem ao operador de rádio para armar a antena parabólica. Menos de um minuto depois, estava em uma comunicação segura, via satélite, com o coronel Rossky.
— Coronel — disse Nikita —, aqui é o tenente Orlov, chamando conforme instruções.
— Tenente — respondeu Rossky —, é bom falar com você depois de tantos anos. Fico satisfeito com a oportunidade de podermos trabalhar juntos novamente.
— Obrigado, coronel. Penso da mesma forma.
— Excelente. O que sabe desta missão, Orlov?
— Nada, coronel.
— Muito bem. Está vendo o Gulfstream na pista de pouso?
Nikita olhou para oeste e viu o jato estacionado na pista.
— Sim, senhor.
— Qual é o prefixo?
— N2692A — disse Nikita.
— Correto. Pedi ao contra-almirante Pasenko para enviar um comboio. Ele já chegou?
— Estou vendo quatro caminhões atrás da aeronave.
— Excelente. Sua missão é remover a carga da aeronave, colocá-la nos caminhões e transportá-la para o trem que está esperando no terminal ferroviário. Apenas o maquinista permanecerá a bordo; depois que o trem for carregado, seu grupo deverá conduzi-lo rumo norte. O destino provável é Bira, mas isso será confirmado durante a viagem. O trem estará sob seu comando; desde já está autorizado a tomar as medidas que considerar necessárias para que a carga chegue a seu destino.
— Entendido, coronel, e obrigado — disse Nikita.
O tenente não perguntou qual era a carga; não fazia diferença. Seria tratada com tanto carinho como se fosse uma remessa de ogivas nucleares, o que não estava fora de cogitação. Ouvira dizer que a região de Primorsky, à qual a cidade pertencia, tinha pretensões de se tornar independente da Rússia. Aquilo podia muito bem ser uma precaução do presidente recém-eleito para desarmar a área antes que acontecesse o pior.
— Pode se comunicar comigo de qualquer estação na rota Transiberiana — disse Rossky —, mas vou repetir mais uma vez, tenente, que está autorizado a tomar qualquer medida que julgar necessária para proteger o carregamento.
— Entendido, coronel — disse Nikita.
O tenente devolveu o telefone ao operador e mandou os homens entrarem em ação. Depois de colocarem as mochilas nas costas, eles atravessaram a pista de pouso em direção ao Gulfstream, quase escondido pela neve cada vez mais intensa.
Vinte e oito
Terça-feira, 23:09, Moscou
Andrei Volko nunca se sentira tão sozinho e assustado. No Afeganistão, mesmo nos piores momentos, havia sempre outros soldados, colegas de infortúnio, de quem se apiedar. Quando foi convidado por “P” para trabalhar para o MI6, a ideia de trair a pátria deu-lhe arrepios. Mas consolou-se com o fato de que seu país o abandonara depois da guerra, obrigando-o a fazer novos amigos na Inglaterra e ali na Rússia... embora não soubesse quem eram. Ninguém seria beneficiado, ele sabia, se fosse capturado e saísse recitando os nomes de outros espiões. Bastava saber que pertencia a um grupo; esse conhecimento o ajudara a suportar os anos amargos que haviam se seguido a uma grave lesão na coluna adquirida ao pular dentro de uma trincheira.
Entretanto, o rapaz alto, de cintura grossa, não estava pensando em nada disso ao se dirigir ao terminal ferroviário. Tinha sido surpreendido durante o jantar por um sinal do telefone que Fields-Hutton lhe dera. Estava escondido no interior de um walkman, um objeto tão desejável na Rússia que ninguém estranharia o fato de jamais se separar dele. O contato anônimo o informara da morte de Fields-Hutton e de outro agente e dissera para tentar chegar em menos de vinte e quatro horas a São Petersburgo, onde receberia novas instruções. Volko se vestira apressadamente e partira apenas com a roupa do corpo, o walkman e o dinheiro americano e alemão que Fields-Hutton deixara com ele exatamente para aquele tipo de emergência. Já não se sentia como se tivesse toda a Inglaterra o apoiando. Chegar a São Petersburgo seria uma missão difícil e solitária; não estava certo de conseguir seu objetivo. Não tinha carro, e pegar um avião até mesmo em um dos aeroportos menores, como Bykovo, seria muito arriscado. Seu nome já devia estar em todos os guichês, e os agentes poderiam muito bem pedir outro documento de identificação para confirmar o único documento falso que possuía. Sua única chance era pegar o trem para São Petersburgo.
Fields-Hutton lhe dissera uma vez que se um dia tivesse de deixar a cidade, não deveria se dirigir imediatamente para um aeroporto ou uma estação ferroviária. Jamais conseguiria ser mais rápido do que uma máquina de fax. Por outro lado, a atenção dos vendedores de bilhetes tendia a diminuir com o passar das horas, tornando-se praticamente nula nas horas sonolentas do final do expediente. Por isso, vagara pelas ruas até aquele momento, caminhando como se tivesse um destino imediato, misturando-se com o número cada vez menor de pessoas que voltavam para casa do trabalho ou das filas de comida, descrevendo um percurso tortuoso desde seu apartamento, na Prospekt Vernadskovo, até a estação de metrô mais próxima, e atravessando ruas laterais onde produtos do mercado negro eram descarregados das malas de carros particulares. Dali, viajara no trem apinhado até a estação Komsomolskaya, nordeste da cidade, que mais parecia um templo, com seis colunas gregas e uma cúpula majestosa encimada por uma torre. Caminhara pelas vizinhanças durante quase uma hora antes de se dirigir para a Estação de São Petersburgo, que atende a São Petersburgo, Tallinn e outras localidades ao norte de Moscou.
A estrada de ferro de 650 quilômetros de extensão que liga Moscou a São Petersburgo foi projetada pelo engenheiro americano tenente George Washington Whistler, pai do pintor James McNeill Whistler, e construída por camponeses e presidiários forçados a trabalhar em condições desumanas. Pouco depois, em 1851, foi construída a Estação Nikolayevskiy. Hoje conhecida como Estação de São Petersburgo, é o terminal ferroviário mais antigo de Moscou e uma das três estações localizadas na Praça Komsomolskaya. Do lado esquerdo da praça está a Estação Yaroslavl, no estilo art nouveau, construída em 1904, que é o ponto final da Ferrovia Transiberiana. À direita fica a Estação de Kazan, uma coleção de edifícios no estilo barroco terminada em 1926, da qual partem trens para os Urais, a Sibéria ocidental e a Ásia central.
A Estação de São Petersburgo fica ao lado do pavilhão Komsomolskaya, a noroeste da Estação Yaroslavl. Quando Volko se aproximou do prédio, enxugou o suor da testa na manga da camisa e ajeitou com a mão os cabelos louros. Fique calmo, pensou. Você precisa parecer calmo. Entreabriu os lábios em um largo sorriso, como se estivesse indo encontrar a namorada. Sabia que o sorriso era desmentido pela expressão dos olhos, mas esperava que ninguém se aproximasse o suficiente para notar.
Volko voltou os grandes olhos castanhos para a torre do relógio. Já passava das onze da noite. Havia quatro trens por dia, começando às oito da manhã e terminando à meia-noite; o plano de Volko era comprar uma passagem para o último trem e esperar para ver se os passageiros estavam sendo interrogados pela polícia. Em caso afirmativo, tinha duas opções. Uma era puxar conversa com outro passageiro enquanto se dirigissem para o trem, já que a polícia na certa estaria procurando um homem viajando sozinho. A outra era abordar um dos policiais e pedir informações. Fields-Hutton disse que os espiões que agem de forma furtiva em lugar público conseguiam com isso apenas chamar atenção para si mesmos, e que era da natureza humana ignorar os que não pareciam ter nada a esconder.
As filas nos guichês eram longas, mesmo àquela hora, e Volko entrou em uma do meio. Tinha comprado um jornal e começou a folheá-lo, embora sua mente não registrasse o que estava lendo. A fila avançava devagar, mas Volko, normalmente um homem impaciente, não estava se importando. Cada minuto de liberdade infundia-lhe mais confiança e também significava menos tempo como cativo no trem antes que ele partisse.
Comprou a passagem sem problemas e, embora os policiais estivessem observando o movimento e interrogando alguns homens que viajavam sozinhos, não foi incomodado.
Você vai conseguir, disse a si mesmo. Passou pelo arco ornamentado que levava à via férrea, onde o Expresso Vermelho estava esperando. Os dez vagões tinham sido construídos antes da Primeira Guerra Mundial; três tinham sido recentemente pintados de vermelho e um de verde, o que não diminuía seu antigo charme. Um grupo de turistas esperava do lado de fora do penúltimo vagão. Os carregadores tinham feito uma pilha irregular com as malas e os policiais examinavam todos os passaportes.
Estão me procurando, pensou Volko, passando por eles. Entrou no vagão na frente do que os turistas ocuparam e sentou-se em um dos bancos acolchoados. Arrependeu-se de não ter trazido uma mala. Era suspeito alguém viajar para uma cidade distante sem levar pelo menos uma muda de roupa. Olhou em torno e viu alguém colocando várias malas no bagageiro. Sentou-se sob uma delas, perto da janela.
Ajeitando-se no assento, com o jornal no colo e o walkman no bolso do paletó, Volko finalmente começou a relaxar. Foi então que um estranho silêncio tomou conta do vagão e sentiu o cano frio de uma pistola Makarov contra sua nuca.
Vinte e nove
Segunda-feira, 15:10, Washington, D.C.
Bob Herbert gostava de se sentir atarefado, mas não tanto que lhe desse vontade de sair do Op-Center na cadeira de rodas e não parar até chegar à cidade natal — “Não, não aquela Filadélfia” — no condado de Neshoba, não muito longe da divisa do Alabama. A Filadélfia não mudara quase nada desde o seu tempo de criança. Adorava ir até lá e ficar relembrando os bons tempos de outrora. Não eram necessariamente tempos mais inocentes, pois se lembrava muito bem do caos que todo mundo, desde os comunistas até Elvis Presley, havia causado quando era menino. Mas eram problemas que, para ele, desapareciam quando se entretinha com uma revista em quadrinhos, uma espingarda de chumbinho ou uma vara de pescar.
No momento, o bip informava-lhe que Stephen Viens, do Escritório Nacional de Reconhecimento, tinha alguma coisa para lhe mostrar. Interrompendo uma reunião de trabalho com Ann Farris, voltou para o escritório, fechou a porta e ligou para o ENR.
— Estou ligando para saber se você conseguiu alguma foto daquela praia de nudismo em Renova — disse pelo interfone.
— Infelizmente, não — respondeu Viens. — O que tenho é um avião cuja assinatura térmica estamos acompanhando para a DEA1. Ele voou da Colômbia para a Cidade do México e depois para Honolulu, Tóquio e Vladivostok.
— Os cartéis de drogas estão operando na Rússia — comentou Herbert. — Isso não é nenhuma novidade.
— Pode ser — concordou Viens —, mas quando o avião pousou em Vladivostok, tínhamos um satélite em posição para observá-lo de perto. É a primeira vez que vejo uma aeronave ser descarregada por soldados spetsnaz.
Herbert endireitou-se na cadeira.
— Quantos?
— Menos de uma dúzia, todos usando camuflagem para a neve — revelou Viens. — Além disso, os caixotes foram rapidamente transportados para caminhões da Esquadra do Pacífico. Podemos estar testemunhando uma operação multilateral.
Herbert lembrou-se do encontro entre Shovich, o general Kosigan e o ministro Dogin.
— Pode ser mais do que uma aliança entre os militares e os gângsteres — observou. — Os caminhões continuam lá?
— Continuam — confirmou Viens. — Os soldados tiveram que carregar dezenas e dezenas de caixotes. Um dos caminhões já está quase lotado.
— A carga dos caixotes parece bem equilibrada?
— Perfeitamente. Eles têm forma alongada, mas ambas as extremidades parecem igualmente pesadas.
— Faça uma investigação com o AIM — propôs Herbert. — Quero saber se há alguma coisa chacoalhando dentro desses caixotes.
— Está certo — prometeu Viens.
— Steve, mantenha-me informado sobre o destino desses caminhões — concluiu Herbert, desligando e chamando Mike Rodgers.
Rodgers estava fora do escritório e foi falar pessoalmente com Herbert ao ver o recado no bip. Quando o outro acabou de lhe contar o que sabia, Rodgers comentou:
— Quer dizer que agora os russos estão se associando abertamente aos tsares das drogas. Bem, eles precisam desesperadamente de moeda forte. Eu só queria saber se...
— Com licença — disse Herbert, quando o telefone começou a tocar. Apertou um botão no braço da cadeira de rodas. — Alô?
— Bob, aqui é Darrell. O FBI perdeu um agente em Tóquio.
— O que aconteceu?
— Foi baleado pela tripulação do Gulfstream — revelou McCaskey, em tom sombrio. — Os japoneses perderam um agente das Forças Japonesas de Autodefesa no fogo cruzado.
— Darrell, aqui é Mike — interveio Rodgers. — Há alguém ferido no avião?
— Aparentemente, não, embora a equipe de terra tenha sido muito evasiva. Eles estão muito assustados.
— Ou foram subornados — observou Herbert. — Sinto muito, Dar. O homem tinha família?
— Apenas o pai — respondeu McCaskey. — Vou ver se há alguma coisa que a gente possa fazer por ele.
— Certo — concordou Herbert.
— Acho que isso confirma a ligação entre a aeronave e os traficantes de drogas russos — afirmou McCaskey. — Nem mesmo os colombianos seriam suficientemente insanos para provocar um tiroteio em um aeroporto internacional.
— É verdade — concordou Herbert. — Preferem matar os juízes encarregados de julgá-los. A verdade é que esses traficantes são todos uma corja e eu adoraria colocar o Striker atrás deles.
Herbert desligou e levou algum tempo para se recompor. Fatos como aquele sempre deixavam o assessor de inteligência muito nervoso, especialmente quando a vítima tinha parentes próximos. Olhou para Rodgers.
— O que estava dizendo há um momento atrás, general?
Rodgers parecia menos animado do que antes do telefonema.
— Eu só queria saber se isto tem alguma ligação com o que Matt descobriu. Nosso gênio dos computadores acaba de se reunir comigo e com Paul — explicou Rodgers. — Ele conseguiu acessar a folha de pagamento do Kremlin através de um banco em Riad ao qual os russos devem mais de dez bilhões de dólares. Matt descobriu que eles contrataram alguns executivos a peso de ouro para trabalhar no novo estúdio de TV do Hermitage e no Ministério do Interior... pessoas sem registros anteriores em parte alguma.
— O que pode significar que alguém andou usando nomes e cargos fictícios para justificar os pagamentos dos agentes que estão trabalhando secretamente em São Petersburgo — observou Herbert.
— Exatamente — concordou Rodgers —, além de facilitar a compra de equipamentos de última geração dos Estados Unidos, Japão e Alemanha... componentes que foram enviados ao Ministério do Interior. Está começando a parecer que Dogin montou uma sofisticada operação de inteligência em São Petersburgo. Talvez Orlov esteja lá para ajudar na parte referente aos satélites.
Herbert levou um dedo à testa.
— Portanto, supondo-se que Dogin seja o cabeça e tenha ligações com a máfia russa, é provável que esteja planejando um golpe. Ele não precisa de armas; isso pode ficar por conta de Kosigan.
— Exatamente — concordou Rodgers. — Foi o que eu disse a Paul. O que Dogin precisa é de dinheiro para comprar políticos, jornalistas e apoio do exterior. Shovich pode muito bem estar fornecendo esse dinheiro em troca de futuros favores.
— Pode ser. Pode ser também que Dogin esteja planejando levantar dinheiro vendendo drogas fornecidas por Shovich — argumentou Herbert. — Não seria o primeiro político a fazer isso; apenas o mais importante. As drogas poderiam ser transportadas na mala diplomática por funcionários simpáticos à sua causa.
— Isso faz sentido — admitiu Rodgers. — Os diplomatas saem do país com drogas e voltam com moeda forte.
— Aqueles caixotes em Vladivostok devem fazer parte do plano — lembrou Herbert. — Provavelmente estão recheados de drogas, dólares ou ambos.
— Sabe qual é o maior problema? — observou Rodgers. — É que mesmo que Janin tome conhecimento do que está acontecendo, ficará de mãos atadas. Se tomar uma atitude mais drástica, duas coisas podem acontecer.
“Uma — prosseguiu — é que Dogin seja derrotado, mas o expurgo subsequente afugente os investidores estrangeiros de que Janin precisa para reconstruir o país. Resultado: a Rússia acaba em situação pior do que está.
“A outra é que Dogin e seus partidários ofereçam resistência, iniciando uma longa e sangrenta guerra civil, com armas nucleares nas mãos de Deus sabe quem. Nossa preocupação principal tem que ser a mesma do Panamá no tempo de Noriega e do Irã no tempo do xá: estabilidade, não legalidade.
— Bem pensado — concordou Herbert. — O que acha que o presidente vai fazer?
— O que fez na noite passada — respondeu Rodgers. — Absolutamente nada. Ele não pode informar Janin porque não podemos ter certeza da lealdade dos seus auxiliares diretos. Também não pode oferecer ajuda militar. Essa opção foi descartada na mesa de negociações. Seja como for, qualquer iniciativa no momento seria arriscada. Não queremos que Dogin e seus asseclas mergulhem na obscuridade, onde ainda constituiriam uma enorme ameaça.
— E como o presidente vai justificar toda essa passividade aos nossos aliados da OTAN? — quis saber Herbert. — Eles podem ser um bando de covardes, mas vão querer mostrar as garras.
— O presidente talvez mostre as nossas, também — afirmou Rodgers — ou, se conheço Lawrence, talvez use o neoisolacionismo como pretexto para mandar a OTAN às favas. Se fizer isso, terá o apoio da maior parte do público americano, especialmente depois daquele atentado terrorista.
Nesse momento, o telefone de Herbert começou a tocar. Ele olhou para o número de identificação na base. Era alguém do ENR. Ligou o alto-falante, para que Rodgers também pudesse ouvir.
— Bob — disse Stephen Viens —, ainda não conseguimos aquela leitura do AIM para você, mas acompanhamos o primeiro caminhão que deixou o aeroporto. Foi direto para a estação ferroviária de Vladivostok.
— Como está o tempo no local? — quis saber Herbert.
— Horroroso. Nevando forte. Na verdade, uma zona de instabilidade cobre toda a região. A situação não deve mudar nas próximas quarenta e oito horas.
— Já que não havia condições de voo, Dogin ou Kosigan decidiu mandar a mercadoria por terra — afirmou Herbert. — Dá para ver alguma coisa na estação?
— Não — respondeu Viens. — O trem está no interior do terminal. Mas temos os horários das viagens regulares e estamos de olho para o caso de um trem partir fora do horário normal.
— Obrigado — disse Herbert. — Mantenha-me informado.
Quando Viens desligou, o assessor de inteligência pensou em classificar aquele carregamento como um alvo IRV: identificável, rastreável, vulnerável.
— E importante — murmurou para si mesmo.
— O que disse? — perguntou Rodgers.
— Eu disse que essa carga é obviamente importante — respondeu Herbert. — Se não fosse, teriam esperado a tempestade passar.
— Concordo — disse Rodgers. — Não só é extremamente importante, como também ficou momentaneamente exposta.
Herbert levou alguns segundos para compreender aonde Rodgers queria chegar. Franziu a testa.
— Não, Mike, não está exposta. Está se dirigindo para o coração da Rússia, a milhares de quilômetros de distância de qualquer país amigo. Da Finlândia até lá não é nenhum pulinho.
— Tem razão — concordou Rodgers. — Por outro lado, é a maneira mais fácil de frustrar os planos de Dogin. Sem dinheiro, ele ficará de pés e mãos atados.
— Vá com calma, Mike — protestou Herbert. — Paul é partidário da diplomacia, não da truculência. Ele jamais concordará...
— Espere um momento — disse Rodgers.
Herbert aguardou enquanto Rodgers usava o telefone na mesa para chamar o assistente executivo de Hood.
— Bugs? Paul ainda está reunido com o Serviço de Assistência Técnica?
— Acho que sim — respondeu Bugs Benet.
— Pergunte a ele se pode vir ao meu escritório. Tenho novidades.
— Farei isso — disse Benet.
Depois que Benet desligou, Rodgers comentou com Herbert:
— Logo vamos saber se Paul está de acordo.
— Mesmo que consiga convencê-lo, ele jamais aprovaria um plano desses.
— Eles já aprovaram uma incursão do Striker na Rússia — observou Rodgers. — Darrell e Martha terão que convencê-los a aprovar uma segunda.
— E se não conseguirem?
— O que você faria, Bob?
Herbert ficou em silêncio por alguns momentos.
— Ora, Mike, sabe muito bem o que eu faria — disse, afinal.
— Você os mandaria assim mesmo, porque sabe que esta missão é importante e que eles são a equipe mais indicada para o trabalho. Escute, nós dois jogamos terra no túmulo de Bass Moore depois da Coreia do Norte... eu estava naquela incursão. Participei de outras missões em que tivemos baixas. Isso, porém, jamais nos impediu de cumprir nossa parte. Foi para isso que criamos o Striker, Bob.
A campainha da porta tocou e Herbert deixou Hood entrar.
Quando os olhos cansados do diretor pousaram em Herbert, ele demonstrou uma certa preocupação.
— Não parece muito satisfeito, Bob. O que houve?
Rodgers colocou-o a par do que estava acontecendo. Hood sentou-se na borda da mesa de Herbert, ouvindo em silêncio, enquanto o general falava sobre a situação na Rússia e suas ideias a respeito do Striker.
Quando Rodgers concluiu suas explicações, Hood perguntou:
— Como acha que os terroristas reagiriam a uma iniciativa como essa? Isso não equivaleria a um rompimento do nosso acordo?
— Acho que não — afirmou Rodgers. — Eles nos pediram especificamente para não intervir na Europa Oriental, não na Rússia central. De qualquer maneira, seria uma ação bem rápida.
— Entendo. Nesse caso, vamos passar para a objeção seguinte. Sabe que abomino o uso da força quando as portas da negociação estão abertas.
— Eu também — concordou Rodgers. — A palavra quase sempre é mais poderosa do que a espada. Acontece que ninguém vai convencer aquele trem a voltar para Vladivostok por livre e espontânea vontade.
— É provável que não — concordou Hood —, o que nos leva a uma outra questão. Suponha que você consiga a autorização para usar o Striker e eles descubram qual é a carga do trem. Digamos que seja heroína. O que vamos fazer? Confiscá-la, destruí-la ou avisar a Janin para que mande tropas russas para lutar com outras tropas russas?
— Quando você está com uma raposa na alça de mira, não põe o rifle de lado e chama os cachorros. Foi assim que deixamos que os nazistas se instalassem na Polônia, os castristas em Cuba e os comunistas no Vietnã — disse Rodgers.
Hood sacudiu a cabeça.
— Estamos falando em atacar a Rússia.
— Isso mesmo — concordou Rodgers. — Eles não acabam de nos atacar?
— Não é a mesma coisa.
— Explique isso às famílias das vítimas — disse Rodgers. Aproximou-se de Hood. — Paul, não somos apenas mais um órgão burocrático do governo. O Op-Center foi criado para resolver problemas, problemas que estejam fora do alcance da CIA, do Departamento de Estado e das forças armadas. É disso que estamos falando agora. Charlie Squires organizou o grupo Striker com pleno conhecimento de que eles seriam convocados para brincar com fogo, como acontece com todos os grupos militares de elite, do spetsnaz à Guarda Real de Omã, passando pela Guardia Civil da Guiné Equatorial. Uma intervenção no momento oportuno é a melhor forma de evitar que o caso atinja proporções perigosas.
Hood olhou para Herbert.
— O que acha?
Herbert esfregou os olhos.
— Com a idade, a ideia de arriscar as vidas de nossos rapazes em troca de ganhos políticos vem se tornando cada vez mais repugnante para mim. Neste caso, porém, a conexão Dogin-Shovich-Kosigan é um pesadelo e, queiramos ou não, o Op-Center tem que aparecer na linha de frente.
— O que me diz de São Petersburgo? — perguntou Hood. — Decidimos que seria suficiente separar o cérebro do corpo.
— Este dragão é maior do que pensávamos — afirmou Rodgers. — Se nos limitarmos a cortar a cabeça, o corpo poderá permanecer vivo por tempo suficiente para causar sérios estragos. Tudo depende do que vai acontecer com as drogas, o dinheiro ou o que quer que aquele trem esteja transportando.
Herbert rolou a cadeira para perto de Hood e deu um tapinha no joelho do chefe.
— Agora também parece insatisfeito.
— E com razão — disse Hood. Olhou para Rodgers. — Sei que não colocaria sua equipe em risco a menos que considerasse necessário. Se Darrell conseguir convencer a CIC, faça o que achar melhor.
Rodgers voltou-se para Herbert.
— Entre em contato com o Serviço de Assistência Técnica. Peça que formulem um plano para deixar o menor contingente possível do Striker em Helsinki e descubram a forma mais rápida e segura de fazer com que o grupo tenha acesso àquele trem. Mantenha Charlie a par de tudo que está acontecendo e certifique-se de que ele está de acordo.
— Oh, você conhece o Charlie — disse Herbert, rolando a cadeira de rodas na direção da porta. — É só falar em arriscar o pescoço que ele fica todo animado.
— Eu sei — concordou Rodgers. — Ele é o melhor de todos nós.
— Mike — disse Hood —, vou ter de contar tudo ao presidente. Só para seu governo, ainda não concordei cem por cento com esta operação. Mesmo assim, pode contar com o meu apoio.
— Obrigado — agradeceu Rodgers. — Isso é tudo que eu tenho direito de esperar.
Os dois deixaram o escritório logo depois de Herbert.
Enquanto rolava a cadeira em direção ao centro de comando do Serviço de Assistência Técnica, o assessor de inteligência perguntou a si mesmo por que nada no campo das relações humanas — desde conquistar uma nação até convencer um único interlocutor, passando por conservar uma namorada — podia ser conseguido sem luta.
Costumavam dizer que eram os obstáculos que davam sabor à vitória, mas Herbert não pensava assim. Se dependesse dele, todas as vitórias seriam bem mais fáceis...
________________
1 DEA: Drug Enforcement Administration, agência do governo americano que combate o tráfico de drogas. (N. do T.)
Trinta
Terça-feira, 23:20, Moscou
A sala era pequena, tinha paredes de concreto e era iluminada por uma lâmpada fluorescente localizada no teto. No interior havia uma mesa de madeira e um único banco. A porta era de metal e não havia janelas. O piso era de ladrilho preto, muito gasto.
Andrei Volko estava sentado no banco, debaixo da lâmpada. Sabia por que estava ali e tinha uma boa ideia do futuro que o aguardava. O policial o retirara do trem sem uma única palavra, encontrara-se com dois guardas armados e, juntos, os quatro haviam embarcado em um carro de polícia que os levara para a delegacia da Rua Dzerjinsky, não muito longe da antiga sede da KGB. Volko tinha sido algemado ao chegar. Enquanto esperava pelo interrogatório, sentindo-se totalmente indefeso, imaginou como teriam sabido da sua existência. Provavelmente através de alguma pista deixada por Fields-Hutton. Não que isso fizesse alguma diferença. Tentou não pensar em como seria espancado até que seus captores tivessem absoluta certeza de que não conhecia nenhum agente além dos que já tinham sido descobertos. Mais ainda: tentou não pensar em quantos dias se passariam até que fosse julgado, encarcerado e finalmente despertado pela manhã e executado com um tiro na cabeça. O futuro realmente lhe parecia surrealista.
O silêncio era total, a não ser pelas batidas do seu coração, que lhe ressoavam nos ouvidos. De vez em quando, uma onda de terror o assaltava, uma mistura de medo e desespero que o fazia perguntar-se: Como fui chegar a este ponto? Um soldado condecorado, um filho exemplar, um homem que só queria o que lhe era devido...
Uma chave girou na fechadura e a porta foi aberta. Três homens entraram na sala. Dois deles estavam uniformizados e armados com cassetetes. O terceiro era jovem, baixo e usava calça marrom bem passada e camisa social branca, sem gravata. Tinha um rosto redondo, olhos suaves e fumava um cigarro de cheiro ativo. Os dois guardas posicionaram-se em frente à porta aberta, em posição de descansar, bloqueando a saída.
— Meu nome é Pogodin e você está em sérias dificuldades — disse o rapaz com voz firme, aproximando-se de Volko. — Encontramos o telefone no walkman. O seu comparsa de São Petersburgo tinha um aparelho semelhante. Ao contrário de você, teve a infelicidade de cair nas mãos de um spetsnaz, que lidou com ele de uma forma bem drástica. Também estamos com as etiquetas dos saquinhos de chá que serviu ao espião inglês. Muito engenhoso. Imagino que usava os saquinhos para passar as informações e depois tirava a mesa para que ninguém notasse que as etiquetas estavam faltando. Encontramos fibras de uma das etiquetas na carteira dele. Foi assim que chegamos a você. Vai negar alguma dessas acusações?
Volko permaneceu em silêncio. Não se sentia especialmente corajoso, mas tudo que lhe restava era o autorrespeito; não queria perdê-lo.
Pogodin estava em pé ao lado de Volko, olhando-o de cima.
— Estou impressionado. A maioria das pessoas na sua posição não tem tanto autocontrole. Nunca ouviu falar dos nossos métodos de interrogatório?
— Ouvi, sim — afirmou Volko.
Pogodin ficou olhando para o prisioneiro por um momento, como se estivesse tentando decidir se ele era muito corajoso ou muito estúpido.
— Quer um cigarro?
O garçom sacudiu a cabeça.
— Gostaria de salvar a própria pele e ao mesmo tempo pagar uma parte do que deve a sua pátria?
Volko levantou os olhos para o jovem captor.
— Eu sabia que sim — disse Pogodin. Usou o cigarro para apontar na direção dos guardas. — Quer que eu mande que saiam para podermos conversar mais à vontade?
Volko pensou por um momento e fez que sim com a cabeça.
Pogodin mandou os guardas esperarem do lado de fora. Depois que saíram, fechou a porta, foi até a mesa e sentou-se na beirada.
— Estava esperando um tratamento um pouco diferente, não estava? — perguntou.
— Quando? — retorquiu Volko. — Hoje ou quando voltei do Afeganistão com as costas imprestáveis e uma pensão que não daria para sustentar um cachorro?
— Ah, um revoltado — observou Pogodin. — A revolta é uma motivação mais forte do que o ódio, porque não passa jamais. Quer dizer que traiu a Rússia porque sua pensão era insuficiente?
— Não — protestou Volko. — Porque me senti traído. Sentia dor o tempo todo, mas tinha que passar horas e horas em pé, trabalhando como garçom.
Pogodin encostou o polegar no peito do prisioneiro.
— E eu sinto dor cada vez que penso no meu avô sendo esmagado por um tanque em Stalingrado ou nos meus dois irmãos mais velhos sendo assassinados por francoatiradores do Afeganistão... e homens como você traindo todos os ideais pelos quais eles lutaram por causa de um mero desconforto. Essa é toda a afeição que você sente pela Rússia?
— Um homem precisa comer, e para comer precisa trabalhar — afirmou Volko, evitando olhar para o rapaz. — Eu teria sido demitido do hotel se não fosse pela insistência do inglês para que me conservassem. Ele era um excelente freguês.
Pogodin sacudiu a cabeça.
— Vou dizer aos meus superiores do Ministério da Segurança que você não se arrepende do que fez e tornaria a vender seu país por alguns trocados.
— Eu não queria que as coisas fossem dessa forma — protestou Volko.
— Claro que não — disse Pogodin, dando uma tragada no cigarro. — Porque agora seus amigos estão mortos e você corre o risco de se juntar a eles. — Inclinou-se na direção do garçom, soltando fumaça pelas duas narinas. — Mas não precisa ser assim, Andrei Volko. Por que estava indo para São Petersburgo?
— Pretendia encontrar alguém. Não sabia que já estava morto.
Pogodin esbofeteou o prisioneiro com violência.
— Você não podia estar indo encontrar o inglês nem o russo. Nem conhecia o russo; além do mais, os dois estavam mortos e o MI6 sabia disso. Quando o spetsnaz tentou usar os telefones secretos dos dois agentes, as linhas estavam desativadas. Ele foi muito imprudente. Você sempre iniciava as ligações fornecendo sua senha, certo?
Volko não disse nada.
— Claro que era assim que a coisa funcionava — afirmou Pogodin. — De modo que você estava indo a São Petersburgo para encontrar outra pessoa. Quem?
Volko continuou a olhar para o vazio, o medo cedendo lugar à vergonha. Sabia o que viria a seguir, sabia o que Pogodin tinha em mente, sabia que não lhe restavam muitas alternativas.
— Não sei — declarou. — Minhas ordens eram apenas para...
— Para fazer o quê?
Volko respirou fundo.
— Para me dirigir a São Petersburgo, entrar em contato com Londres e aguardar novas instruções.
— Eles tentariam transferi-lo para a Finlândia? — perguntou Pogodin.
— Essa... essa era a minha impressão — disse Volko.
Pogodin soltou uma baforada, levantou-se e olhou para o garçom.
— Vou ser franco, Andrei. Sua única salvação é nos ajudar a descobrir mais alguma coisa a respeito da operação dos ingleses. Está disposto a ir a São Petersburgo como planejado e trabalhar para nós em vez de para o inimigo?
— Disposto? — repetiu Volko. — Em uma transação que começou com uma pistola na minha nuca?
— E vai acabar com outra, se não cooperar — declarou Pogodin, friamente.
Volko olhou para a nuvem de fumaça em torno da lâmpada. Tentou convencer a si mesmo de que estaria agindo patrioticamente, mas sabia que não era verdade. A verdade era que estava apavorado.
— Está bem — concordou, de cara feia. — Vou a São Petersburgo — olhou para Pogodin — e farei o que vocês mandarem.
Pogodin consultou o relógio de pulso.
— Há uma cabine reservada para nós. Não será necessário fazer o trem esperar. Vou com você, é claro — acrescentou com um sorriso. — Embora não esteja armado, tenho certeza de que não me dará nenhum trabalho.
A última frase tinha sido dita em tom de ameaça, mas Volko estava abalado demais para responder. Não queria que outras pessoas morressem por sua causa, mas sabia que todos os espiões tinham consciência do risco que estavam correndo... inclusive ele próprio.
Enquanto Pogodin o conduzia da sala de interrogatórios para o carro, pensou consigo mesmo que tinha duas opções. Uma era aceitar os termos de Pogodin e ser recompensado com uma morte rápida. A outra era reagir e tentar recuperar parte da honra que perdera...
Trinta e um
Segunda-feira, 22:05, Berlim
O grande e pesado Ilyushin I1-76T era um avião russo de transporte com pouco mais de 50 metros de comprimento e uma envergadura da mesma ordem. Lançado como protótipo em 1971 e incorporado à Força Aérea Soviética em 1974, podia decolar de pistas curtas e não pavimentadas, o que o tornava a aeronave ideal para regiões desoladas como a Sibéria. Uma versão modificada também foi usada como avião-tanque para reabastecimento dos bombardeiros estratégicos supersônicos russos. O I1-76T fora vendido para o Iraque, a Tchecoslováquia e a Polônia. Dotado de quatro potentes motores Soloiev D-30KP turboventilados, o jato tinha uma velocidade de cruzeiro de quase oitocentos quilômetros por hora, uma autonomia de mais de seis mil e quatrocentos quilômetros e podia transportar quarenta toneladas de carga. Se estivesse voando relativamente vazio e se fossem instalados tanques de combustível adicionais no compartimento de carga, a autonomia podia ser aumentada em mais de setenta por cento.
Depois de se comunicar com o Pentágono e explicar que o Striker precisava entrar secretamente na Rússia, Bob Herbert foi posto em contato com o general David “Divebomb” Perel, em Berlim, que mantinha em segredo um Ilyushin I1-76T. O aeroplano fora conservado em uma base americana na Alemanha desde 1976, quando fora comprado pelo xá do Irã e depois vendido clandestinamente aos Estados Unidos. Depois de estudar o avião, a Força Aérea o preparara para ser usado em missões de espionagem. Até o momento, tinha sido empregado apenas em um número reduzido de missões, medindo as distâncias exatas entre pontos de referência para ajudar a calibrar os satélites de espionagem e tomando medidas de radar e infravermelho de instalações subterrâneas. Em todos esses voos, conseguira enganar os russos, seguindo um plano de voo preparado por um espião infiltrado na Força Aérea. O espião tinha sido informado, pelo rádio, de que deveria fazer a mesma coisa para aquele voo.
Aquela era a primeira vez em que o I1-76T seria usado para transportar soldados americanos, e também a primeira vez que passaria muito tempo no espaço aéreo russo — oito horas ao todo, ao voar de Helsinki para o local de desembarque e dali para o Japão. No passado, jamais estivera no ar tempo suficiente para ser detectado e investigado.
Herbert e Perel tinham consciência do perigo que a tripulação e os membros do Striker estavam correndo; ambos manifestaram sua apreensão a Mike Rodgers em uma conferência telefônica.
Rodgers partilhou suas preocupações e perguntou se os dois tinham uma proposta alternativa. Perel concordava com Herbert que, embora a operação estivesse dentro da jurisdição do Op-Center, a questão política era da competência do Departamento de Estado e a decisão deveria ficar por conta da Casa Branca. Rodgers lembrou a Herbert e observou para o general que até que soubessem com certeza o que havia no trem, aquela seria uma missão estritamente de reconhecimento. Até que a situação mudasse, não tinha escolha, a não ser continuar no mesmo curso de ação, fossem quais fossem os riscos envolvidos. A coleta de informações in loco, afirmou, jamais poderia ser uma atividade totalmente segura... e havia ocasiões, como aquela, em que era indispensável.
Assim, o I1-76T foi preparado, carregado com paraquedistas e equipamentos para o frio e decolou rumo a Helsinki com uma permissão especial de Kalle Niskanen, o ministro da defesa... que tinha sido informado apenas que se tratava de uma missão de reconhecimento, não de que soldados americanos quase certamente seriam desembarcados na Rússia. Aquele era um problema que Lowell Coffey teria de resolver no momento apropriado, embora não esperassem maiores objeções por parte do ministro, sabidamente hostil aos russos. Enquanto isso, Herbert entrou em contato com a sala de rádio do Op-Center e pediu para falar com o tenente-coronel Squires.
Trinta e dois
Terça-feira, 23:27, sul da Finlândia
— Não estou sendo hipócrita — assegurou Squires a Sondra quando o StarLifter estava se aproximando do aeroporto de Helsinki. Os Strikers tinham vestido roupas civis e pareciam turistas como outros quaisquer. — Sim, o café é um estimulante e pode fazer mal ao estômago, se consumido em excesso. Por outro lado, o vinho ataca o fígado e o intelecto.
— Não quando bebido com moderação — declarou Sondra, verificando mais uma vez os equipamentos. — Os provadores de vinho têm tanto direito de falar de safras, aromas e texturas quanto os provadores de café.
— Eu não falo de café — protestou Squires. — Não agito a bebida na minha caneca do Redskins e saboreio o buquê. Não, eu me limito a bebê-lo. Também não acho que se embebedar aos poucos em um ambiente refinado seja uma coisa legal. — Fez um gesto brusco com a mão. — Fim de papo.
Sondra fez uma careta enquanto fechava o zíper da mochila de aspecto ordinário que continha uma bússola, uma faca de caça de vinte centímetros, uma pistola M9 calibre .45, mil dólares em dinheiro e mapas da região que tinham sido impressos pelo computador de Squires durante o voo. Não era justo que ele lhe desse uma chave de estrela, mas a moça repetiu para si mesma que as forças armadas não eram uma instituição democrática, que antiguidade ora posto e todos os outros chavões com os quais os pais a haviam bombardeado quando lhes contara seus planos de entrar para a Marinha logo depois de se formar em Columbia.
— Se quer viajar, viaje — dissera o pai. — Eu pago a conta. Passe um ano fora.
Mas não era isso. Gari “Custard” DeVonne começara de baixo e fizera fortuna no negócio de sorvetes na Nova Inglaterra; não conseguia entender por que a filha única, que nunca tivera um desejo contrariado, decidira formar-se em literatura e entrar para a Marinha. E não se contentara com a Marinha comum; fizera questão de entrar para os SEALs. Talvez fosse uma forma de se testar, ela que tivera de enfrentar poucos desafios na infância. Talvez tivesse necessidade de escolher uma carreira bem diferente da do pai, que sempre se orgulhara dos seus sucessos no mundo dos negócios. Os SEALs, e agora o Striker, eram um desafio e tanto.
Enquanto a moça se perguntava como um homem tão inteligente como Squires podia ser tão teimoso, chegou um chamado do Op-Center. O coronel atendeu, escutou atentamente, como sempre, quase sem falar — e devolveu o telefone a Ishi Honda.
— Muito bem, senhoras e senhores, venham cá — disse, reunindo os comandados como um técnico depois de pedir tempo. — Aqui estão as últimas. Soldado George, quando chegarmos a Helsinki, você se separará do grupo. Darrell McCaskey combinou um encontro entre você e o Major Aho, do Ministério da Defesa da Finlândia. O major o colocará em contato com sua parceira, a agente do MI6 Peggy James, e vocês dois vão sozinhos investigar o Hermitage. Sinto muito, mas estaremos ocupados com outra missão. Vocês atravessarão o golfo da Finlândia em um minissubmarino. Os finlandeses têm um ministro da defesa cara de pau que de vez em quando envia missões de reconhecimento até o estuário do Neva. Os russos ainda não perceberam nada porque estão com falta de pessoal e não se preocupam muito com um ataque por parte da Finlândia.
— Que descuido! — observou Sondra.
— Você e a agente James desembarcarão em São Petersburgo em uma balsa, à luz do dia — prosseguiu Squires. — O general Rodgers preferiria que esperassem até o anoitecer, mas temos que respeitar o horário do minissubmarino. Felizmente, a Marinha russa tem uma base de minissubmarinos na baía de Koporskiy Zaliv, perto da cidade. Vocês estarão usando uniformes russos, que lhes serão dados em Helsinki. Se forem detidos por qualquer motivo, a agente James fala russo fluentemente e vocês estarão com os documentos apropriados. Os finlandeses já forneceram documentos russos à divisão de falsificações do Ministério da Segurança. O major Aho vai preparar para vocês uma história convincente e também lhes fornecerá vistos e papéis para que possam sair do país como militares russos de folga. Quando chegarem ao Hermitage, descubram o que puderem a respeito do centro de comunicações que eles parecem haver instalado no museu. Se puderem inutilizá-lo sem matar ninguém, façam-no. Alguma pergunta?
— Sim, senhor. Suponho que o major Aho seja o responsável pela operação enquanto estivermos na Finlândia. Quem vai ser o responsável enquanto estivermos na Rússia?
Squires pigarreou.
— Eu estava chegando lá. O Op-Center aprontou de novo. A agente James seria uma subordinada, se houvesse um oficial presente. Como não vou participar da missão, ela foi transformada em observadora. Em outras palavras, não está obrigada a receber ordens de você.
— Não?
— Sei que parece estranho, soldado. Tudo que posso lhe dizer é: cumpra sua parte. Se ela tiver ideias, procure escutá-las. Se não gostar das suas, tente negociar. A moça é bem preparada; não deverá causar problemas. Mais alguma coisa?
— Não, senhor — disse George, batendo continência. Se estava preocupado ou excitado, o rosto jovem e rosado não deixava isso transparecer.
— Muito bem. — Squires olhou em torno. — Enquanto isso, todos nós, com exceção de George, vamos fazer uma pequena viagem. Embarcaremos em um avião de transporte russo que vem sendo mantido há vários anos na geladeira e voaremos para um local ainda não identificado. O resto da missão será comunicado mais tarde.
— Faz alguma ideia da natureza da missão, coronel? — quis saber Sondra.
Squires fuzilou-a com os olhos.
— Se fizesse, teria dito. No momento em que souber de alguma coisa, vocês também saberão.
Sondra conseguiu manter a compostura, mas sua exuberância dissolveu-se como o açúcar que ousava pôr no café. A conversa anterior, e agora esta reprimenda, haviam revelado uma faceta de Squires que a jovem não tinha visto durante o mês que passara no Striker: não o homem provocador, instigante, do “tente mais uma vez”, do “não fique aí parado”, do “será que você não consegue acertar na mosca?”, mas sim o comandante ditatorial. A mudança de treinador para líder era sutil, mas estava lá. Era forçada a admitir que isso contribuía para aumentar o respeito que sentia pelo coronel.
Quando Squires dispensou a equipe e Sondra ficou só, fechou os olhos e fez o que lhe haviam ensinado durante o treinamento para SEAL: esforçou-se para recuperar o entusiasmo, lembrando-se de que não estava ali para lutar por Squires, mas para lutar por si mesma e por sua pátria.
— Soldado.
Sondra abriu os olhos. O tenente-coronel inclinara-se em sua direção para ser ouvido acima do ruído dos motores e estava com a expressão bem menos carregada do que momentos antes.
— Sim, coronel?
— Apenas um conselho — disse Squires. — Lá na base você mostrou uma agressividade bem acima do normal. Não sei com quem estava zangada ou quem estava tentando impressionar, mas a verdade é que chamou minha atenção. Você também é inteligente e habilidosa; caso contrário, não estaria aqui. Mas o que o resto da minha equipe sabe, soldado DeVonne, é que em uma missão como esta as virtudes cardeais são as virtudes cardeais: prudência, temperança, coragem e justiça. Está entendendo?
— Acho que sim, coronel.
— Vou colocar as coisas de outra forma — disse Squires, sentando-se e afivelando o cinto para o pouso. — Mantenha tudo aberto, a não ser a boca, e tudo correrá bem.
Sondra afivelou o cinto e ajeitou-se no assento. Ainda estava um pouco ofendida e surpresa com o fato de o tenente-coronel ter escolhido aquela hora e aquela forma de expor sua filosofia, mas sentia-se mais segura do que nunca de que ali estava um homem que podia seguir em qualquer combate...
Trinta e três
Segunda-feira, 16:30, Washington, D.C.
Enquanto Rodgers trabalhava em seu escritório, revendo os últimos planos que o Serviço de Assistência Técnica formulara para o Striker, Stephen Viens enviou-lhe um e-mail com os últimos dados colhidos pelo satélite AIM a respeito dos caixotes:
CONTEÚDO DE TODOS OS CAIXOTES PARECE SER UMA
MASSA SÓLIDA. PROVAVELMENTE NÃO SE TRATA DE
MÁQUINAS. DOIS HOMENS PODEM LEVANTÁ-LOS COM
FACILIDADE. MANDEI FOTOS PARA MATT STOLL ANALISAR.
Rodgers murmurou consigo mesmo:
— Tijolos de cocaína ou pacotes de heroína correspondem perfeitamente a essa descrição. Eu gostaria de fazer os filhos da puta comerem todos eles.
Alguém bateu na porta. Rodgers apertou o botão e Lowell Coffey entrou.
— Queria falar comigo? — perguntou.
Rodgers convidou-o a sentar com um gesto. Coffey tirou a capa preta e se deixou cair na poltrona de couro. O advogado tinha olheiras e o cabelo não estava tão bem penteado como de costume. Parecia ter tido um dia difícil.
— Como foram as coisas com a Comissão de Inteligência do Congresso? — perguntou Rodgers.
Coffey puxou as abotoaduras com as iniciais LC para fora da manga do paletó.
— Expliquei nosso plano aos senadores Fox e Karlin, que disseram que estamos loucos. O senador Fox repetiu isso duas vezes. Eles se recusam a autorizar qualquer mudança na missão original do Striker. Acho que têm dificuldade para aceitar a ideia de um confronto com o Exército da Rússia, Mike.
— Não posso perder tempo com esse tipo de discussão — disse Rodgers. — Preciso mandar minha equipe para lá. Volte e diga a eles que ninguém está falando em confronto, Lowell. Trata-se de uma simples missão de reconhecimento.
— Uma simples missão de reconhecimento — repetiu Coffey, em tom irônico. — Eles jamais vão acreditar nisso. Eu não acredito nisso. Reconhecimento para descobrir o quê?
— Para onde vão os soldados e exatamente o que estão transportando.
— Para isso, vamos ter de entrar no trem. Um tipo de reconhecimento deveras agressivo, não acha? E se o Striker for cercado? O que é que eu vou dizer aos senadores? Vamos nos entregar ou resistir?
— O Striker jamais se rende — declarou Rodgers, orgulhosamente.
— Nesse caso, não adianta voltar lá.
— Está bem — acedeu Rodgers, de má vontade. — Diga a eles que não vamos resistir se formos apanhados. Prometa que não usaremos nada mais forte do que granadas de efeito moral e bombas de gás lacrimogêneo. Ninguém vai se ferir.
— Mesmo assim, não vão topar — afirmou Coffey.
— Então que se fodam! — exclamou Rodgers. — Que merda, nós estaremos violando as leis internacionais mesmo que a missão seja aprovada pelo Congresso!
— É verdade — concordou Coffey —, mas se formos pegos, o Congresso terá de segurar a barra e não seremos crucificados. Faz ideia de quantas leis e tratados internacionais seriam violados na missão que está propondo? O único consolo é que você não vai para a cadeia; até ser julgado por todas as acusações, vai passar no mínimo quarenta anos nos tribunais.
Rodgers ficou pensativo por um momento.
— E se você disser à comissão que não é contra o governo da Rússia que estamos lutando?
— Na Rússia? Contra quem mais estaríamos lutando?
— Acreditamos que um membro do alto escalão do governo russo se associou aos traficantes de drogas — explicou Rodgers.
— Nesse caso, por que não informamos ao presidente? — perguntou Coffey. — Se ele pedisse nossa ajuda...
— Ele não pode fazer isso. A eleição não deixou o presidente Janin suficientemente forte para enfrentar a facção rebelde.
Coffey pensou no que acabara de ouvir.
— Um membro do alto escalão. Eleito pelo povo?
Rodgers sacudiu a cabeça.
— Nomeado pelo ex-presidente e candidato a ir para a lata de lixo quando Janin encontrar a vassoura.
Coffey coçou o queixo.
— Isso, e mais a história das drogas, pode ajudar a convencê-los. O Congresso adora perseguir bandidos que os eleitores possam odiar. E o nosso presidente? Está nos apoiando?
— Paul contou a ele o que pretendemos fazer. Ele não ficou propriamente empolgado, mas está doido para pegar alguém pelo que aconteceu em Nova York.
— E Paul está do seu lado, suponho?
— Está, sim — confirmou Rodgers —, contanto que você me consiga a aprovação da CIC.
Coffey cruzou a perna e começou a balançar nervosamente o pé direito.
— Suponho que você não vai usar o StarLifter no interior da Rússia...
— Tiramos um I1-76T da naftalina em Berlim e o enviamos a Helsinki.
— Espere aí — disse Coffey. — O embaixador Filminor conseguiu que o governo da Finlândia aprovasse uma incursão na Rússia?
— Não foi bem assim. Bob teve uma conversa com o ministro da defesa.
— Niskanen? — exclamou Coffey. — Eu lhe disse esta manhã que o homem é louco! É por isso que os finlandeses o escolheram para ministro da defesa. Ele mete medo nos russos. Mas Niskanen não tem autoridade para aprovar uma missão como esta. Vocês vão precisar do consentimento do presidente Jarva e do primeiro-ministro Lumirae.
— Tudo que eu precisava de Niskanen era de uma autorização para entrar com o avião na Finlândia — explicou Rodgers. — Depois que o meu grupo estiver a caminho, qualquer um, ele, você ou o embaixador, pode contar o que está acontecendo ao presidente e ao primeiro-ministro.
Coffey sacudiu a cabeça.
— Mike, desta vez eu acho que você passou dos limites.
Ouviram uma batida na porta e Darrell McCaskey entrou no escritório.
— Estou interrompendo alguma coisa?
— Está — respondeu Coffey —, mas não tem importância.
— Ouvi falar do que aconteceu com aquele agente em Tóquio — disse Rodgers. — Sinto muito.
O elemento de ligação com o FBI coçou a cabeça prematuramente grisalha e entregou alguns papéis a Rodgers.
— Ele morreu no cumprimento do dever — afirmou. — Acho que isso significa alguma coisa.
Coffey fechou os olhos enquanto Rodgers examinava os papéis.
— Foram enviados por fax pela Interpol — explicou McCaskey. — São mapas preparados logo depois da queda da Polônia, que mostram o subsolo do Hermitage. Os russos sabiam que a guerra era inevitável, de modo que esvaziaram os porões, reforçaram as paredes com concreto e pretendiam transferir para lá o governo local e o comando militar no caso de um ataque inimigo. São paredes e tetos com meio metro de espessura, instalações hidráulicas, exaustores... não seria preciso muita coisa para transformar o local no centro de operações de um órgão de inteligência.
Rodgers olhou para as plantas arquitetônicas.
— É exatamente o que eu teria feito. Não sei por que levaram tanto tempo.
— De acordo com a Interpol, o porão já foi usado algumas vezes, ao longo dos anos, para abrigar equipamentos de espionagem eletrônica — afirmou McCaskey. — Mas você conhece os russos. Sempre que possível, preferem enviar agentes ao local.
— A mentalidade dos camponeses — observou Rodgers. — Mais vale uma batata na mão do que uma dúzia em um maldito plano quinquenal.
— Isso mesmo — concordou McCaskey. — Mas com nossas medidas de contraespionagem e o colapso da KGB, as coisas podem estar mudando.
— Obrigado — agradeceu Rodgers. — Faça essas plantas chegarem às mãos de Squires para que ele possa discuti-las com o homem que vai para São Petersburgo. — Olhou para Coffey. — Até que estamos fazendo um bom trabalho de espionagem. Acho bom você conseguir essa autorização. Vamos precisar dela assim que o Striker decolar novamente, o que deve acontecer — olhou para o relógio do computador — mais ou menos em uma hora.
Coffey não parecia muito animado. Levantou-se, puxou novamente as abotoaduras e olhou para Rodgers.
— Mais uma coisa, Mike. Como advogado e amigo, tenho o dever de lhe avisar que, de acordo com nosso estatuto, seção sete, “Militares Comandados por Civis”, subseção b, parágrafo dois, o Striker deve obediência ao oficial mais graduado, isto é, a você. O diretor não pode contrariar uma ordem sua.
— Conheço o estatuto quase tão bem como conheço Comentários sobre a guerra com a Gália, de César. Aonde quer chegar, Lowell?
— Se eu não conseguir a aprovação dos congressistas e Paul não quiser ir em frente sem eles, a única forma de chamar o Striker de volta seria demitir você e nomear outro vice-diretor.
— Eu não o colocaria nessa posição — protestou Rodgers. — Desistiria da operação se ele me pedisse. Aqui dentro, porém — levantou-se e bateu no peito —, tenho certeza de que Paul jamais faria isso. Somos um centro de controle de crises e temos obrigação de cuidar desta crise, o que não nos impede de fazer o que pudermos para que os membros do Striker voltem sãos e salvos desta missão.
— Vocês podem muito bem acabar sozinhos nesta empreitada — advertiu Coffey.
— Apenas se fracassarmos — observou Darrell McCaskey. — Depois do que fizemos na Coreia do Norte, podíamos ter sido crucificados, mas fomos bem-sucedidos e nada aconteceu.
Rodgers deu um tapinha no braço de Coffey e voltou para a mesa de Hood.
— Não comece a escrever nenhum epitáfio, Lowell. Estive lendo Churchill ultimamente e lembro-me do que ele disse ao Parlamento do Canadá em dezembro de 1941. Churchill conta o seguinte: “Quando avisei que os ingleses continuariam a lutar, qualquer que fosse a decisão dos canadenses, os generais disseram ao primeiro-ministro e seu indeciso gabinete: ‘Em três semanas os alemães vão torcer o pescoço da Inglaterra como se faz com uma galinha’.” — Rodgers sorriu. — A resposta de Churchill, senhores, poderia muito bem se tornar o novo lema do Op-Center: “Eles não conhecem o tamanho desta galinha! Eles não conhecem o tamanho deste pescoço!”
Trinta e quatro
Segunda-feira, 23:44, Helsinki
O StarLifter pousou em uma pista secundária do aeroporto de Helsinki; o major Aho estava lá para recebê-los. O oficial, alto e musculoso, apresentou-se em inglês fluente ao tenente-coronel Squires como “um dos poucos lapões de cabelos pretos” no exército finlandês. Como representante do primeiro-ministro Niskanen, tinha instruções específicas para fornecer aos americanos tudo que fosse necessário para a missão.
Como estavam conversando em frente à porta aberta da aeronave, expostos ao vento gélido da noite, Squires disse-lhe que a única coisa que queria era fechar a porta e esperar pelo I1-76T.
— Entendido — disse Aho, cuja voz sonora, como a postura, emprestava-lhe um ar de grande dignidade.
Deixando um assistente para trás para trabalhar como elemento de ligação com a equipe de terra, Aho esperou enquanto o soldado George trocava votos de boa sorte com os outros membros da equipe e depois o conduziu a um carro que estava à espera. Os dois se sentaram no banco de trás.
— Já esteve na Finlândia? — perguntou Aho.
— Major — disse o soldado —, antes de entrar para o Exército, eu jamais havia saído de Lubbock, Texas. Depois de me alistar, é a primeira vez que saio da Virgínia. Quando houve a primeira missão, eu ainda não pertencia ao grupo. Na segunda missão, na Filadélfia, estava doente. Na terceira missão, na Coreia, fui substituído em cima da hora por um general.
— Na vida, como no xadrez, rei toma peão. — O major Aho sorriu. — Desta vez você vai recuperar o tempo perdido; terá chance de conhecer dois países.
George retribuiu o sorriso. Havia uma benevolência beatífica na expressão do major, uma suavidade em seus olhos claros que George nunca havia visto em um oficial das forças armadas. Por baixo do uniforme marrom de Aho, porém, George também podia adivinhar músculos que jamais havia visto, a não ser em competições de cultura física na TV a cabo.
— Você tem sorte — afirmou o major. — Os homens vikings acreditavam que um guerreiro estrangeiro que viesse à Finlândia em missão de paz, antes de entrar em combate, seria invencível nos campos de batalha.
— Eram apenas os homens que acreditavam nisso, major?
Aho suspirou.
— O mundo era diferente naquela época, soldado. Por falar nisso... ainda não conhece sua parceira, certo?
— É verdade, major, mas estou ansioso para conhecê-la — respondeu George, diplomaticamente. Na verdade, estava preocupado com ela. Um fax com a ficha da agente tinha sido enviado para o avião e não estava muito convencido de que se daria bem com uma civil de outra equipe.
— Eu não diria isso a ela — começou Aho, inclinando-se na direção do soldado com ar conspiratório —, mas a sociedade dos vikings sempre se baseou em homens guerreiros. Todo homem levava com ele um machado, uma adaga e uma espada e usava roupas feitas de pele de raposa, castor ou esquilo, que deixavam um braço livre para lutar. Toda mulher usava uma caixinha em cada seio, feita de ferro, cobre, prata ou ouro, que indicava a situação financeira do marido. Também usava um anel no pescoço para mostrar sua subserviência. Há alguns anos, tivemos uma grande discussão nas escolas sobre a melhor maneira de ensinar a história dessa gente. — Ajeitou-se no assento. — Não queríamos ofender as mulheres, não queríamos ofender os ingleses, que muitas vezes foram atacados pelos vikings, não queríamos ofender os cristãos, mortos pelos pagãos... pagãos que não queriam ver suas culturas destituídas, como as dos visigodos, ostrogodos, borgonheses, lombardos e alemães. Felizmente, a verdade histórica prevaleceu sobre o que era considerado politicamente correto. Faz alguma lógica alguém se envergonhar de uma história como a nossa?
— Não, senhor — disse George, levantando os olhos para o céu estrelado. Era o mesmo céu que os vikings haviam contemplado... com reverenda ou medo? pensou. Era provável que os vikings não tivessem medo de nada, a não ser da desonra. Seu próprio treinamento, como o treinamento dos SEALs da Marinha, dos membros do Gomando Delta do Exército e dos spetsnaz russos, atribuía tanto valor à atitude quanto à preparação física: não bastava marchar vinte e quatro horas com uma mochila de vinte e cinco quilos nas costas para se manter em forma; era preciso também acreditar que a morte é rápida, mas o fracasso tem de ser suportado o resto da vida. George acreditava piamente nisso.
Mesmo assim, não podia negar que se sentia bem melhor quando “exagerava”, usando uma sacola cheia de granadas luminosas, uma veste de Kevlar à prova de balas com adagas na lapela para combates corpo a corpo, uma máscara contra gases Leyland and Birmingham e alguns pentes de munição 9mm. Em vez disso, levava na mochila óculos de visão noturna AN/PVS-7A, um visor térmico AN-PAS-7, para observar objetos ocultos pelo calor que geravam, e seu MP5SD3 Heckler & Koch de coronha desmontável, equipado com silenciador integral — até mesmo o ruído do ferrolho era absorvido por calços de borracha — que, usado com munição subsônica, não podia ser ouvido a cinco metros de distância. E um passaporte, é claro. Era a forma que Darrell McCaskey encontrara para ele sair da Rússia.
— Por outro lado, não acho que seus ancestrais tivessem feito alguma coisa do que estamos fazendo, major — observou George, tentando não permitir que os detalhes o distraíssem. Desviou os olhos da beleza radiante da Via Láctea no momento em que o carro chegou à cidade e tomou a principal avenida, a Pohjoesplanadi, ou Esplanada do Norte, que atravessa o centro de Helsinki de leste a oeste. — O que estou querendo dizer é que seria difícil introduzir um viking com três armas e um capacete de chifres em um país inimigo sem que ele fosse notado.
— É verdade — concordou Aho. — Além do mais, os vikings não gostavam de agir furtivamente. Eles preferiam aterrorizar os camponeses ao se aproximarem das cidades, forçando as autoridades locais a ter de lidar, além dos invasores, com a inquietação do povo.
— E aqui estamos nós, major, usando um minissubmarino — comentou George.
— Nós os chamamos de saqueadores anões — afirmou Aho. — Um pouco mais entusiástico, não acha?
— É verdade — concordou George, no momento em que passavam diante do majestoso palácio presidencial, construído para os tsares russos que governaram a cidade a partir de 1812, depois que o palácio de madeira que a rainha Cristina da Suécia havia mandado edificar dois séculos antes foi consumido por um incêndio. Aho conduziu o soldado para uma entrada lateral.
Àquela hora da noite, o palácio estava quase deserto. Depois de mostrar suas credenciais a um sentinela, Aho cumprimentou alguns membros do turno da noite e levou George para um pequeno escritório na extremidade de um corredor estreito e mal iluminado. Ao lado da porta de seis almofadas havia uma placa que dizia: Ministro da Defesa. Aho usou duas chaves para entrar.
— O ministro Niskanen tem vários escritórios na cidade — explicou Aho. — Usa este aqui quando está de bem com o presidente. No momento, não está sendo usado. — O major sorriu e acrescentou: — É outra coisa que mudou. No tempo de generais como Halfdan e Olaf Tryggvason, ou de monarcas como Knut e Svein Korkbeard, os líderes não levavam suas desavenças ao parlamento, ao congresso ou à imprensa. Encostavam uma escrava na parede, jogavam machados na sua direção e o homem que acertasse nela era considerado perdedor. Em seguida, todos iam beber e a disputa era esquecida.
— Acho que isso não funcionaria no mundo de hoje — observou George.
— Oh, funcionaria, sim — protestou Aho. — Só não seria muito popular.
A luz do escritório estava acesa e George viu uma mulher em pé atrás da escrivaninha, apoiada nos braços estendidos, examinando um mapa. Era esbelta, com olhos grandes e azuis emoldurados por cabelos louros cortados rente. Tinha uma boca pequena e os lábios naturalmente vermelhos; o nariz era forte e levemente arrebitado e a pele extremamente clara, com algumas sardas nas maçãs do rosto. Estava usando um traje preto de paraquedista.
— Srta. James, soldado George — apresentou Aho, depois de fechar a porta e tirar o quepe.
— Muito prazer em conhecê-la — disse George, sorrindo para a mulher e tirando a mochila das costas.
Peggy levantou os olhos por um momento e depois continuou a examinar o mapa.
— Boa noite, soldado. Você parece ter uns quinze.
O modo de falar incisivo e as maneiras bruscas fizeram George se lembrar de Bette Davis.
— Quinze e meio — corrigiu, aproximando-se da mesa. — Se está se referindo ao tamanho do pescoço.
Peggy olhou para ele.
— Além disso, é um comediante.
— Tenho muitos talentos, madame — declarou George. Ainda sorrindo, pulou para cima da mesa, com os pés dos dois lados do mapa, pegou uma faca de abrir cartas e encostou a lâmina na garganta de Peggy. — Também fui treinado para matar, rápida e silenciosamente.
Os dois se entreolharam e quase imediatamente George percebeu que isso tinha sido um erro. A agente conseguira distraí-lo o suficiente para golpeá-lo no pulso com os dois antebraços. A faca caiu na mesa e um momento depois Peggy levantou a perna direita e deu-lhe uma rasteira. Quando George caiu de lado, a agente agarrou-o pela frente da camisa e arrastou-o para o chão, derrubando-o de costas e plantando um pé no seu pescoço.
— Quando se pretende matar alguém, é melhor ficar de boca fechada — disse.
— Tem razão — concordou George, jogando os dois pés para cima, de modo a ficar temporariamente apoiado nas omoplatas. Prendendo o pescoço de Peggy com os pés, jogou-a no chão. — Mas acho que desta vez vou abrir uma exceção — acrescentou, virando-a de costas.
George manteve o aperto por alguns instantes, para ensinar uma lição à agente, e depois a libertou. Ajudou Peggy a se levantar, enquanto ela respirava fundo para recuperar o fôlego.
— Estou impressionada — murmurou, esfregando a garganta com a mão esquerda. — Mas você se esqueceu de uma coisa.
— O que, madame?
Peggy mostrou-lhe a faca de abrir cartas na mão direita.
— Agarrei-a quando você me derrubou. Da forma como estava me imobilizando, poderia tê-lo espetado em qualquer lugar.
Ainda esfregando a garganta, Peggy voltou a examinar o mapa enquanto George olhava para a faca e se recriminava mentalmente. O que o incomodava não era o fato de ter sido batido por uma mulher; nos treinamentos, ele e Sondra se tratavam como iguais. Em uma missão, porém, esquecer algo tão perigoso quanto uma faca podia significar a diferença entre a vida e a morte.
Ainda em pé perto da porta fechada, Aho observou:
— Agora que já foram apresentados, será que se importariam de começar a trabalhar?
Peggy fez que sim com a cabeça.
— Quando chegarem ao barco, no porto — disse Aho —, a senha será “maravilhoso pedestal”. A resposta é “dragão elegante”. Soldado George, já expliquei à agente James como terão acesso ao minissubmarino. Também lhe entreguei o dinheiro e os uniformes russos que os dois estarão usando. — Ele riu. — Acho que temos mais uniformes russos aqui, e mais bem talhados, do que os próprios russos.
Tirou um embrulho do bolso interno do paletó e passou-o a George.
— Aqui estão os documentos que os identificam como primeiro-sargento Starshina Yevgeny Glebov e marinheira Ada Lundver, da Marinha da Rússia. A srta. James é a marinheira, estando encarregada de levantamentos topográficos e manutenção de boias. Isso significa que, na presença de estranhos, terá que dar a impressão de que está sob as ordens do soldado George.
— Ele não fala russo — argumentou Peggy. — Como isso vai funcionar?
— Você dispõe de um passeio de barco de noventa minutos e uma viagem de submarino de dez horas para lhe ensinar algumas palavras básicas — afirmou Aho, colocando o quepe de volta na cabeça. — Acho que isso é tudo. Alguma pergunta?
— Não, senhor — respondeu George.
Peggy sacudiu a cabeça.
— Muito bem — disse o major. — Boa sorte.
George pegou a pesada mochila com seu equipamento no chão e se apressou a alcançar o major Aho, que saiu do escritório e fechou a porta. George teve que parar para não colidir com a porta.
— Oficiais! — murmurou, em tom depreciativo, estendendo a mão para a maçaneta.
— Pare! — ordenou Peggy.
George olhou para ela, surpreso.
— O que disse?
— Ponha essa mochila no chão — disse Peggy. — Eu e você não vamos sair ainda.
— Como assim?
A agente pegou uma câmera instantânea que estava em cima de um arquivo.
— Sorria — disse.
Quando o major Aho saiu do prédio, uma mulher e seu cachorro o esperavam, tendo como fundo as águas tranquilas de South Harbor. Valya viera de bicicleta do apartamento de um antigo agente em Helsinki, um policial finlandês aposentado, apoiando-a em um poste de rua antes de se afastar do cone de luz. Depois de atingir a segurança da obscuridade, deixou o cachorro — um spaniel um pouco menos resistente do que o terrier Jack Russell que usara contra o espião inglês em São Petersburgo — descansar um pouco da corrida. Valya não pretendia eliminar ninguém; estava ali apenas para observar o que se passava e relatar suas descobertas ao coronel Rossky.
Tinha sido fácil para o Centro de Operações rastrear o jato proveniente dos Estados Unidos, e ainda mais fácil para ela seguir o major e seu amigo americano quando deixaram o aeroporto. Agora o motorista estava à espera em um canto discreto da Kanavakatu, perto da majestosa catedral de Uspensky, e Valya esperava para ver o que fariam o oficial finlandês e o espião.
Os dois espiões, corrigiu a russa quando viu duas pessoas se juntarem a Aho, que caminhava em direção ao seu carro.
Quando teve certeza de que os três iam entrar no automóvel, Valya deu um puxão na coleira do cachorro e o animal começou a latir ruidosamente, duas vezes, mais duas vezes, duas mais.
— Ruthie! — gritou Valya, puxando a coleira uma segunda vez. O animal, bem treinado, parou de latir.
O major Aho olhou em torno, não viu nada fora do comum e entrou no carro, sentando-se no banco do carona. Os companheiros ocuparam o banco de trás. Em seguida, a russa viu seu parceiro, Volvo, entrar na Esplanada atrás deles, alertado pelos latidos. Tinham combinado que ele seguiria o carro até o seu destino e depois voltaria para buscá-la; Valya ficaria por mais algum tempo para se certificar de que ninguém mais sairia daquela ala do Palácio. Depois de perderem dois agentes, era natural que os adversários tomassem precauções extraordinárias. Alguns países faziam aquilo de forma rotineira: cinco anos antes, logo depois de Valya se juntar ao serviço de inteligência da spetsnaz, seu superior tinha sido iludido por uma falsa operação dos ingleses, cujo único objetivo era distrair as atenções da verdadeira operação. Depois de ser demitido, o chefe cometera suicídio. Valya Saparov não queria que algo semelhante acontecesse com ela.
Continuou a passear pelo cais, escutando o ruído suave da água se chocando com as pedras e observando os poucos carros e os pedestres ainda menos numerosos que passavam.
De repente, viu algo que lhe trouxe um sorriso aos lábios: duas pessoas deixando o palácio presidencial, duas pessoas muito parecidas com as que haviam saído pouco antes em companhia do oficial finlandês...
Trinta e cinco
Terça-feira, 1:08, São Petersburgo
Ao entrar para o programa espacial, o general Orlov fora forçado a adotar uma rotina rígida: tinha horários fixos para comer, dormir, trabalhar, tomar banho e exercitar-se. Quando começou a treinar outros cosmonautas, manteve essa disciplina pessoal, porque parecia se dar bem com ela.
Nos dois anos em que estivera vinculado ao Centro de Operações, porém, não conseguira manter a mesma rotina, porque lhe faltava tempo. Não podia exercitar-se tanto quanto gostaria, por exemplo, e isso o deixava tristonho. Nas últimas semanas, com a proximidade da inauguração, também vinha dormindo menos do que o necessário, o que contribuía para deixá-lo ainda mais taciturno.
Esperara ficar acordado até tarde naquele dia, ajudando a resolver qualquer problema que porventura surgisse em um dos vários sistemas, embora, até o momento, tudo estivesse correndo melhor do que esperava. Tinha se preparado até mesmo para lançar uma operação urgente de contraespionagem, se necessário, usando os agentes spetsnaz de Rossky sediados no subúrbio de Pushkin. Felizmente, Rossky tinha sido informado de que os agentes do Ministério da Segurança haviam encontrado e detido o garçom que trabalhava para o espião inglês, que estava sendo levado para São Petersburgo. Certamente poderia ser persuadido a ajudá-los a localizar os outros espiões — um método mais eficaz do que o tratamento radical que Rossky dispensara aos outros dois agentes. Orlov não acreditara nem por um momento que o agente inglês tivesse cometido suicídio e lamentava a oportunidade perdida de interrogá-lo.
As decepções e a necessidade de se adaptar faziam parte de qualquer trabalho, e Orlov permaneceu motivado e alerta. Entretanto, detestava esperar por qualquer coisa — especialmente pelas peças que faltavam de um quebra-cabeça. No espaço, sempre que era preciso consertar alguma coisa, havia uma lista de providências a serem tomadas. Ali, não tinha nada para fazer, a não ser esperar por novas informações.
A mensagem de Valya Saparov chegou à 1:09 da manhã, pouco depois da meia-noite em Helsinki. Como não quisera levar um transmissor seguro na missão, a agente fez uma chamada internacional comum de uma cabine telefônica de Helsinki para um número da central telefônica de São Petersburgo. Ali, um empregado do Centro de Operações encaminhou a ligação para a base de inteligência, onde foi recebida por um funcionário da sala de rádio. Desta forma, as chamadas telefônicas não podiam ser rastreadas até o Centro de Operações.
As chamadas dos agentes usando linhas regulares eram feitas na forma de mensagens pessoais para amigos, parentes ou colegas. Quando o agente não rotulava a mensagem pedindo para falar com alguém em particular, o Centro sabia que não havia necessidade de registrá-la. Algumas mensagens eram enviadas apenas para confundir possíveis agentes inimigos que estivessem na escuta, tentando descobrir algum significado oculto na conversa. Quando o agente dizia alguma coisa a respeito do tempo, o ouvinte sabia que a parte relevante da mensagem estava começando.
Valya pediu para falar com o tio Boris, o codinome do coronel Rossky, e ele foi avisado pelo operador de um dos nove computadores ligados às linhas telefônicas e de rádio. Pegou um par de fones e recebeu a chamada. O general Orlov tirou outro par de fones das mãos do operador e encostou um dos fones no ouvido, enquanto um gravador digital registrava a conversa.
— Minha querida ptitsa — disse Rossky —, meu pássaro precioso. Como foi a visita ao seu karol P — Estava usando um apelido, "rei”, para que ninguém pudesse investigar a identidade da pessoa mencionada.
— Muito bem — respondeu a moça. — Desculpe estar ligando tão tarde, mas passei o dia inteiro ocupada. O tempo não podia estar melhor para fazer turismo.
— Excelente.
— Agora estou na rua com o cachorro. Karol foi para o aeroporto com dois amigos, mas preferi ficar. Achei mais divertido dar um passeio de bicicleta pelo porto.
— Achei que você faria isso. Está gostando?
— Muito. Estava vendo duas pessoas se prepararem para uma viagem pelo golfo.
Orlov reparou que a agente tinha falado de uma viagem “pelo” golfo e não “no” golfo. Isso queria dizer que estavam viajando na superfície e não de submarino.
— Foram navegar no escuro? — perguntou Rossky.
— Isso mesmo — confirmou Valya. — Uma hora curiosa para viajar, mas estão usando uma lancha muito veloz e parecem saber o que estão fazendo. Além disso, titio, acho que pretendem assistir ao nascer do sol de um lugar muito bonito. Um homem e uma mulher... muito romântico, não acha?
— Acho — concordou Rossky. — Preciosa, não quero que se canse demais... por que não vai para casa dormir? Amanhã conversaremos de novo.
— Está bem. Boa noite, titio.
Um pensativo Orlov devolveu os fones ao operador e agradeceu, enquanto Rossky tirava os seus. A expressão do coronel era tensa quando seguiu o general até o escritório deste último. Embora a mensagem tivesse sido compreendida por todos os ocupantes do centro de comando, Orlov não queria discutir o assunto abertamente; os traidores podiam estar em toda parte.
— Que audácia! — comentou Rossky, irritado, quando a porta foi fechada. — Vir para cá de barco!
— A culpa é nossa, por não levarmos os finlandeses mais a sério — afirmou Orlov, sentando-se na borda da mesa. — A questão é a seguinte: vamos deixar os dois desembarcarem ou é melhor detê-los no meio do golfo?
— Deixá-los desembarcar na Rússia? Jamais. Vamos acompanhá-los com a ajuda do satélite e apanhá-los no momento em que entrarem em águas russas — declarou Rossky, com o olhar perdido no vazio, como se estivesse pensando em voz alta e não conversando com um oficial superior. — Se fôssemos seguir o regulamento, usaríamos barcos de pesca para minar o canal, mas não queremos enfrentar o ministro Niskanen tão abertamente. O que vou fazer — prosseguiu — é pedir que a Marinha envie um minissubmarino controlado pelo rádio do Terminal Marítimo para a ilha Coghlan. Uma colisão... lamentamos nossas baixas, pomos a culpa nos finlandeses.
— Se fôssemos seguir o regulamento... — repetiu Orlov. — Mas eu insisto. Não seria melhor deixarmos os dois desembarcarem?
Os olhos de Rossky fixaram-se no general. Não mostravam mais entusiasmo, mas estavam cheios de ressentimento.
— General, posso lhe fazer uma pergunta?
— É claro.
— Pretende contrariar todas as minhas iniciativas?
— Pretendo — admitiu Orlov —, toda vez que suas táticas e ideias não estiverem de acordo com os objetivos do Centro. Nossa missão é coletar informações. Matar esses dois agentes e acabar com a possibilidade de Niskanen enviar novos inimigos não contribuiria em nada para isso. Outros agentes se seguirão a esses dois; se não vierem da Finlândia, virão através da Turquia ou da Polônia. Acha que vamos conseguir policiar todas as nossas fronteiras? Não acha que seria melhor descobrirmos como eles operam e convencê-los a trabalhar para nós?
Enquanto Orlov estava falando, a expressão de Rossky passou de frustração para raiva. Quando o general terminou, seu auxiliar puxou a manga da camisa e consultou o relógio.
— Os agentes aparentemente esperam chegar antes do alvorecer, o que acontecerá dentro de pouco mais de quatro horas. É melhor o senhor me informar o quanto antes de sua decisão.
— Antes preciso saber de que recursos dispomos para vigiá-los — disse Orlov, no momento em que o telefone começou a tocar — e se o homem que Pogodin capturou em Moscou pode nos ajudar. — Estendeu a mão e ligou o alto-falante do telefone, em um esforço para agradar Rossky. O coronel não teve nenhuma reação.
— Sim? — disse Orlov.
— General, aqui é Zilash. Há mais ou menos noventa minutos, captamos uma transmissão muito estranha de Washington.
— Estranha em que sentido? — quis saber Orlov.
— Era uma mensagem em código para uma aeronave voando de Berlim para Helsinki — informou Zilash. — O cabo Ivashin mandou um satélite acompanhar a aeronave. Embora o avião tenha passado a maior parte do tempo no meio das nuvens — intencionalmente, ao que parece — conseguimos algumas imagens de boa qualidade através de brechas na camada de nuvens. Trata-se de um I1-76T.
Orlov e Rossky se entreolharam. A discussão passou temporariamente para segundo plano.
— Onde está o avião no momento? — perguntou Orlov.
— Pousado em Helsinki, general.
Rossky inclinou-se para a frente.
— Zilash, vocês conseguiram ver o prefixo?
— Não, coronel, mas temos certeza de que se trata de um II-76T.
— Muitos aviões estão sendo remanejados — comentou Orlov com Rossky. — Alguém pode ter usado a oportunidade para desertar.
— Duas outras possibilidades me vêm à mente — afirmou Rossky. — Os espiões que Valya está vigiando podem ser um artifício para desviar nossa atenção de outra missão, ou os Estados Unidos estão executando duas operações totalmente independentes na Finlândia.
Orlov concordou com a cabeça.
— Vamos saber mais quando descobrirmos qual é o destino do I1-76T — observou. — Zilash... continue seguindo o avião e avise-me no instante em que souber de mais alguma coisa.
— Sim, senhor.
Quando Orlov desligou o alto-falante, Rossky deu um passo na sua direção.
— General...
Orlov levantou os olhos.
— Sim?
— Se o avião entrar no espaço aéreo da Rússia, a Força Aérea vai querer abatê-lo, como fez com aquele jato da Korean Airlines. Eles devem ser alertados.
— Concordo — disse Orlov —, embora ache que tentar entrar no nosso espaço aéreo seria suicídio.
— Em circunstâncias normais, eu concordaria com o senhor — afirmou Rossky. — Nos últimos dias, porém, houve um aumento tão grande do tráfego aéreo militar nesta região que eu não me surpreenderia se o avião simplesmente se misturasse aos outros e conseguisse passar sem ser detectado.
— Bem observado — disse Orlov.
— E quanto ao barco? — perguntou Rossky. — Somos obrigados a informar à Marinha...
— Conheço muito bem nossas obrigações — interrompeu Orlov. — Este assunto vai ficar por minha conta, coronel. Deixe que desembarquem, vigie-os de perto e diga-me exatamente o que estão fazendo.
Rossky fez um muxoxo.
— Sim, senhor — disse, batendo continência sem entusiasmo.
— Coronel?
— Sim?
— Não deixe que nada aconteça aos ocupantes daquele barco. Não quero perder mais nenhum espião estrangeiro.
— Sim, senhor — disse Rossky, batendo continência mais uma vez antes de sair do escritório.
Trinta e seis
Terça-feira, 0:26, Helsinki
O distrito de South Harbor, em Helsinki, é famoso não só pela movimentada praça do mercado, em frente ao palácio presidencial, mas também pelos barcos que partem para a ilha Suomenlinna várias vezes por dia. Localizada na entrada do porto, esta imponente “Gibraltar do Norte” abriga um teatro ao ar livre, um museu militar e um imponente castelo do século XVIII. Em uma ilha próxima, a ilha Seurasaari, ligada ao continente por uma ponte, fica o Estádio Olímpico, sede dos Jogos Olímpicos de 1952.
A noite, as atrações turísticas não passam de sombras escuras. Mesmo que estivessem visíveis, Peggy James não teria tempo de apreciá-las. O major Aho fornecera-lhe um automóvel e instruções detalhadas. Quinze minutos depois que o major partiu para o aeroporto com os dois falsos espiões, ela foi com o soldado George para o porto, ao encontro da lancha que os levaria para Kotka e o minissubmarino. Não tinha tempo nem estava interessada em ver a paisagem. Apenas uma coisa lhe ocupava a mente: chegar a São Petersburgo. Tinha de terminar o trabalho que Fields-Hutton iniciara. Descobrir e matar a pessoa ou pessoas responsáveis por sua morte não era prioritário, embora estivesse preparada para fazê-lo se a oportunidade se apresentasse.
A lancha era uma Larson Gabrio 280; Peggy disse a senha, recebeu a resposta correta e o casal embarcou. Depois de colocar cuidadosamente a mochila no chão, a inglesa sentou-se ao lado de George e a lancha partiu. Os espiões passaram a maior parte da viagem de noventa minutos examinando os mapas do Hermitage e das ruas entre o ponto de desembarque e o museu. De acordo com o plano que Peggy havia formulado com o major Aho antes da chegada de George, o minissubmarino os deixaria em uma balsa de borracha perto do Parque Costeiro do Sul, a uma curta viagem de ônibus do destino. De certa forma, ela preferia aquela farsa a uma operação noturna tipo homens-rãs. As autoridades estrangeiras estavam mais propensas a acreditar em falsas histórias quando se tratava de operações à luz do dia, já que a maioria dos espiões não tinha coragem de executá-las.
O minissubmarino estava guardado em um galpão sem janelas. Peggy preferia ter saltado de avião perto do alvo, juntamente com a balsa, mas mergulhos noturnos em águas geladas eram excessivamente arriscados. Se ela e o soldado George caíssem longe demais da balsa, poderiam morrer de hipotermia antes de conseguir alcançá-la. Além do mais, a queda poderia danificar os delicados equipamentos que transportavam.
Depois de mostrarem suas fotografias, os agentes foram recebidos por um rapaz vestido com um suéter azul-escuro e calças da mesma cor. Ele tinha rosto quadrado, uma cova profunda no queixo e cabelos louros quase raspados. A porta foi fechada rapidamente. Um segundo homem surgiu das sombras, acendeu uma lanterna e apontou uma arma para o casal. Peggy colocou a mão diante dos olhos para se proteger da claridade, enquanto o primeiro homem comparava as fotografias com as cópias que a agente tinha mandado por fax, contendo o número de identificação do Palácio na parte superior.
— Claro que somos nós — comentou Peggy. — Quem mais teria coragem de se apresentar como o original de fotos tão horrorosas?
O homem passou as fotografias a faxes para o companheiro, que baixou a lanterna para examinar as imagens. Peggy agora podia ver-lhe o rosto, que era magro e ossudo, como se tivesse sido talhado em madeira. Ele fez que sim com a cabeça.
— Sou o comandante Rydman — disse aos recém-chegados. ? — Este é o timoneiro Osipow. Sigam-me, por favor.
Conduziu Peggy e George a um passadiço que contornava o galpão. O outro homem seguiu-os de perto.
Passaram por várias lanchas novas de patrulha e pararam diante de uma rampa localizada em um dos cantos do galpão. Ali, balançando suavemente ao lado de uma pequena escada de alumínio, viram um minissubmarino pintado de cinza-escuro. Embora a escotilha estivesse aberta, o interior encontrava-se às escuras. De acordo com o que Peggy havia lido durante a viagem para a Finlândia, os pequenos submersíveis costumavam ser recolhidos a cada seis meses para manutenção. Depois de içados da água por cordas amarradas aos ilhoses soldados ao casco, eram literalmente abertos ao meio, o compartimento do motor separado da estrutura dianteira. Com apenas quinze metros de comprimento, os cilindros de aço eram capazes de transportar quatro passageiros a uma velocidade máxima de nove nós. A viagem até São Petersburgo duraria até as duas da tarde, hora local, o que incluía uma subida à superfície depois de seis horas para lançar o respiradouro e fazer os motores diesel funcionarem durante meia hora, recarregando as baterias e repondo o ar.
Peggy não era claustrófoba, mas olhando para o que parecia uma grande garrafa térmica deitada, percebeu que dez horas bastante desconfortáveis a aguardavam. Observou que havia três bancos e nenhum outro espaço para sentar ou mesmo ficar de pé. Ela imaginou onde ficaria o comandante.
Osipow desceu a escada e acionou uma chave, ligando a mortiça iluminação interna. O timoneiro tomou seu lugar diante dos controles, uma haste curta para dirigir o submarino e um piloto automático para manter constantes a profundidade e o azimute. Ao seu lado estavam uma bomba usada para remover a umidade, que tendia a acumular-se na pequena cabine, e um volante para lançar minas. Depois que Osipow se certificou de que os controles, o motor e o ar estavam em ordem, Rydman convidou George a entrar.
— Sinto-me como um punho de macaco — comentou o soldado ao se enfiar no local que lhe fora destinado, projetando o peito para cima e torcendo o corpo para a direita, enquanto apoiava uma das mãos no assento.
— Ah, você já velejou — disse Osipow com uma voz nasalada, mas estranhamente melodiosa.
— Na minha terra natal — confirmou George, estendendo a mão para ajudar Peggy a embarcar. — Uma vez ganhei um concurso para ver quem conseguia fazer um punho mais depressa na ponta de uma corda. — Depois que a moça se ajeitou no assento, olhou para ela. — Punho de macaco é um tipo de nó decorativo que se faz na ponta das cordas.
— Quase sempre em torno de um peso. Não se recomenda o uso de uma passadeira, mas sim de uma corda mais comprida. — Olhou para o rosto de George, fracamente iluminado pela luz interna do submarino. Parecia ligeiramente mais pálido que o seu. — Tem mania de me subestimar, soldado. Ou será que para você todas as mulheres são seres inferiores?
George remexeu-se no banco de vinil. Deu de ombros, como que para negar a gravidade da acusação.
— Está sendo injusta comigo, srta. James. Se o comandante não compreendesse, eu teria explicado a ele, também.
Rydman interveio, em tom impaciente:
— Deixe-me explicar a vocês dois que estamos com falta de pessoal. Normalmente, tenho um eletricista que fica na popa para cuidar do motor e do equipamento elétrico. Desta vez, porém, não havia lugar para ele. Eu agradeceria se vocês limitassem a conversa ao mínimo necessário.
— Desculpe, comandante — disse George.
Em vez de descer, o comandante equilibrou-se em um anel de vinte centímetros que cingia a torre e fechou a escotilha. Quando Osipow informou que a lâmpada vermelha de segurança, que ficava ao lado do controle do piloto automático, estava acesa, Rydman testou o periscópio, fazendo-o girar lentamente 360 graus, enquanto acompanhava o movimento com o corpo, pisando com cuidado no estreito anel.
Sem interromper o que estava fazendo, o comandante Rydman disse aos passageiros:
— Vamos viajar perto da superfície, a oito nós, na primeira parte da viagem, que levará aproximadamente duas horas. Ao nos aproximarmos da ilha Moshchnyy, que pertence aos russos, teremos que submergir. A partir desse ponto, evitem falar alto. Os russos dispõem de detectores passivos de sonar na ilha e ao longo da costa. Ao contrário dos aparelhos de sonar ativo, esse tipo de sonar não emite sinais, mas se limita a captar ruídos, de modo que não temos como saber se estão na escuta. É provável que eles não percebam nossa presença, mas devemos nos preocupar em produzir a menor quantidade possível de ruídos.
— Como vamos saber se formos descobertos? — perguntou Peggy.
— Os explosivos lançados pelos navios da guarda costeira são difíceis de ignorar — observou Rydman. — Se isso acontecer, vamos ter que abortar a missão.
— Com que frequência isso ocorre? — perguntou Peggy, detestando o fato de não saber. Os espiões tinham obrigação de conhecer tão bem seus equipamentos e os dos adversários quanto conheciam seus próprios lares e automóveis. Entretanto, tudo acontecera tão depressa que a moça não tivera tempo de se preparar adequadamente. Além do mais, não se conhecia muita coisa a respeito das operações dos finlandeses no golfo.
— Fomos descobertos três vezes em dez viagens — respondeu Rydman —, mas nunca penetrei profundamente em águas russas. Desta vez, obviamente, o risco será bem maior. Entretanto, não estamos nisso totalmente desprotegidos. O major Aho vai mandar um helicóptero jogar algumas boias-sonda ao longo do nosso percurso. O sinal será monitorado em Helsinki; qualquer navio russo que penetre na região aparecerá como uma série de pontinhos na carta do sr. Osipow.
Osipow apontou na direção de um mapa circular, gerado por computador, com o diâmetro aproximado de um pires, localizado à direita da haste de controle.
Quando acabou de testar o periscópio, Rydman desdobrou um banquinho da parte dianteira da torre e sentou-se nele, com uma perna de cada lado. Em seguida, inclinou-se na direção do respiradouro, que também funcionava — com um eco considerável — para comunicação com o timoneiro.
— Pronto, sr. Osipow — disse o comandante.
O timoneiro ligou o motor, que começou a zumbir com muito pouco barulho e vibração. Logo depois, apagou a luz interna, deixando a embarcação às escuras, salvo por duas pequenas lâmpadas na popa.
Peggy virou a cabeça e olhou pela pequena vigia circular na parede do minissubmarino. Apenas umas poucas bolhas de ar geradas pela hélice passaram pelo seu campo de visão quando a embarcação submergiu para sair do galpão. A escuridão do lado de fora pareceu agredi-la, e seus olhos ficaram úmidos.
Você precisa manter o controle, murmurou consigo mesma. Não devia se deixar vencer pelo desgosto, pela frustração, pelo ódio.
Se fosse apenas Keith! Nesse caso, poderia pranteá-lo e seguir vivendo, com dificuldade, é claro, mas pelo menos com um objetivo. Agora, porém, que ele não existia mais, compreendia que não tinha um objetivo na vida, algo que deveria ter reconhecido há anos. De repente, era uma mulher de trinta e seis anos, que se dedicara a uma profissão que jamais lhe permitira aproveitar a vida, uma mulher que vira seu país perder o ânimo e a independência que possuía no tempo de Margaret Thatcher, perder a sua dignidade por causa de uma monarquia ridícula. Para que servira tudo aquilo, todos aqueles anos de trabalho e sacrifício, sem falar na perda do homem que amava? Continuava a trabalhar apenas por causa do hábito, das lembranças dos momentos agradáveis passados com Keith.
O que podemos esperar, perguntou-se, se a Inglaterra se tornar apenas um satélite da comunidade europeia? E um satélite em posição desfavorável, recusando-se a adular os alemães, como os franceses faziam, incapaz de manter o entusiasmo e a confiança diante do colapso industrial, como os espanhóis, ou de trocar constantemente de governo, como os italianos. Para que vivi até agora... e qual a minha motivação para continuar a viver?
— Srta. James?
O sussurro do soldado George, que parecia vir de outro mundo, trouxe-a de volta ao pequeno submarino.
— Sim?
— Temos dez horas de viagem pela frente e está escuro demais para estudar os mapas — disse George. — Seria abusar muito se eu lhe pedisse para me ensinar alguma coisa de russo?
Peggy olhou para o rosto jovem e animado de George. De onde ele tira tanto entusiasmo? perguntou-se. Conseguindo sorrir para o rapaz pela primeira vez, respondeu:
— Não, não é abusar muito. Por que não começamos com algumas perguntas básicas?
— Por exemplo?
— Kak, chto e patchemo — disse ela, bem devagar.
— O que significam essas palavras?
Peggy sorriu novamente.
— Como, o que e, talvez ainda mais importante, por quê?
Trinta e sete
Terça-feira, 2:30, na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia
A Operação Barbarossa foi a maior ofensiva militar da história. Em 22 de junho de 1941, tropas alemãs invadiram a Rússia, rompendo o Pacto de Paz Nazi-Soviético. Objetivo: capturar Moscou antes do inverno. Hitler enviou 3,2 milhões de soldados em 120 divisões contra 170 divisões soviéticas distribuídas ao longo de 2.300 quilômetros, do litoral do Báltico às margens do mar Negro.
Enquanto as divisões panzer alemãs penetravam na Rússia com incrível rapidez, a Luftwaffe arrasava a inexperiente aviação russa. Como resultado desta Blitzkrieg, os países do Báltico foram rapidamente tomados. Os danos infligidos pelos alemães foram catastróficos. Em novembro, importantes centros agrícolas, industriais, de transportes e comunicações estavam destruídos. Mais de dois milhões de soldados russos tinham sido capturados. Trezentos e cinquenta mil soldados russos haviam morrido, trezentos e setenta e oito mil estavam desaparecidos e um milhão tinham sido feridos. Apenas em Leningrado, 900.000 civis morreram durante o cerco dos alemães. Foi apenas nos últimos dias de dezembro que o castigado, mas renitente exército russo — auxiliado por temperaturas de 20 graus abaixo de zero, que estragaram as solas das botas dos alemães, congelaram seus equipamentos e abalaram o seu moral — conseguiu montar a primeira contraofensiva. Como resultado desta contraofensiva, os russos conseguiram impedir por pouco que Moscou caísse nas mãos do inimigo.
A longo prazo, a Operação Barbarossa foi um verdadeiro desastre para os alemães. Entretanto, ensinou aos russos uma importante lição a respeito das vantagens de uma guerra ofensiva em comparação com as guerras defensivas. Durante os quarenta anos que se seguiram, os militares russos dedicaram-se com um empenho quase fanático à meta de se capacitarem a iniciar e sustentar uma guerra ofensiva — como havia dito uma vez o general Mikhail Kosigan, em um discurso para suas tropas, “de forma que a próxima guerra mundial, se vier a ocorrer, seja travada em território alheio”. Para isso, as missões para os comandantes de unidades táticas de primeiro escalão eram divididas em três componentes destinados a destruir ou capturar tropas e equipamentos inimigos, bem como conquistar e controlar territórios estratégicos: a missão imediata, ou blijaiashcha zadacha, a missão subsequente, ou posledyuschaia zadacha, e a missão de consolidação, ou napravlenie dalneishego nastupleniia. Dentro dessas três categorias gerais, os regimentos muitas vezes recebiam missões especiais de curta duração, ou zadacha drita, que deviam ser completadas dentro do prazo estipulado. Não se aceitavam desculpas.
Tanto na Hungria em 1956 como na Tchecoslováquia em 1968, no Afeganistão em 1979 e na Chechênia em 1994, Moscou recorreu à força, e não à diplomacia, para resolver seus problemas internos. Seus instrumentos básicos eram a supriz, a neojadennost e a vnezapnost — a surpresa, a antecipação do inesperado e a criação do inesperado. Às vezes essas táticas davam certo; às vezes, não. Entretanto, a atitude básica permanecia a mesma, e o ministro do interior sabia disso. Dogin também sabia que muitos comandantes russos ansiavam pela oportunidade de se redimir depois de nove anos de guerra sangrenta no Afeganistão e da difícil eliminação dos rebeldes da Chechênia.
Chegara a hora de lhes dar uma chance. Muitos dos partidários de Dogin tinham sido transferidos para a fronteira da Rússia com a Ucrânia, onde, ao contrário do que acontecera no Afeganistão e na Chechênia, não estariam combatendo rebeldes e guerrilheiros. Aquela guerra, aquela aktivnost, aquela iniciativa, seria diferente.
A 0:30, hora local, em Przemysl, Polônia, a menos de quinze quilômetros da fronteira da Ucrânia, uma bomba de fabricação caseira explodiu no edifício de dois pavimentos que servia de sede para o Partido Comunista Polonês. Dois jornalistas que trabalhavam no jornal bissemanal Obywatel, o Cidadão, foram arremessados para fora do prédio; as duas paredes que resistiram ao atentado ficaram manchadas de tinta e de sangue; o calor fez com que exemplares do jornal e pedaços de pele das vítimas ficassem grudados nos arquivos de aço e nos assentos das cadeiras. Em questão de minutos, simpatizantes comunistas estavam nas ruas, protestando contra o ataque e invadindo o edifício dos correios e a delegacia de polícia. Um depósito de munições foi bombardeado com coquetéis Molotov e explodiu, matando um soldado. As 0:46, o chefe de polícia local ligou para Varsóvia pedindo reforços. A chamada foi interceptada por uma base de inteligência militar em Kiev e encaminhada ao presidente Vesnik.
Exatamente às 2:49, o presidente Vesnik telefonou para o general Kosigan e pediu sua ajuda para conter o que parecia ser um “pequeno tumulto” na fronteira entre a Polônia e a Ucrânia. As 2:50, 150.000 soldados russos entraram na Ucrânia, desde a antiga cidade de Novgorod, no norte, até o centro administrativo de Voroshilovgrad, no sul. Tropas de infantaria, regimentos motorizados, divisões de tanques, batalhões de artilharia e esquadrilhas de aviões avançaram de forma perfeitamente coordenada, muito diferente da desordem e do comportamento descuidado que haviam caracterizado o ataque contra Chechênia e a retirada do Afeganistão.
Em Moscou, exatamente às 2:50:30, o Kremlin recebeu uma comunicação urgente do presidente Vesnik, solicitando apoio dos russos para ajudar as tropas ucranianas a proteger os quase quinhentos quilômetros de fronteira da Ucrânia com a Polônia.
O presidente da Rússia, Kiril Janin, foi acordado e o pedido pegou-o totalmente de surpresa. Antes mesmo de chegar ao seu escritório no Kremlin, Janin recebeu outra mensagem do presidente da Ucrânia, no telefone do carro, que o deixou ainda mais surpreso:
“Obrigado por me atender tão prontamente. A chegada das tropas do general Kosigan servirá não só para evitar que a população entre em pânico, mas também para reafirmar os laços tradicionais entre a Rússia e a Ucrânia. Pedi ao embaixador Rozevna para informar às Nações Unidas e ao secretário-geral Brophy que as tropas russas entraram em nosso território com minha autorização pessoal. ”
Normalmente, o farto bigode e as espessas sobrancelhas de Janin emprestavam ao seu rosto oval uma expressão paternal, quase jovial. Agora, porém, os olhos castanho-escuros brilhavam e os lábios estreitos estavam tensos e trêmulos.
Voltou-se para a secretária, Larisa Shachtur, uma morena de meia-idade elegantemente vestida com um terninho no estilo ocidental, e disse-lhe para chamar o general Kosigan ao telefone. A moça só conseguiu falar com o general Leonid Mavik, oficial de ligação entre o exército e a aeronáutica. Mavik informou que o general Kosigan dera ordens estritas para que as comunicações pelo rádio fossem suspensas até o final da operação.
— General Mavik — insistiu a secretária —, quem está chamando é o presidente.
— Nesse caso, ele compreenderá a necessidade de agirmos com toda a discrição enquanto honramos nosso pacto de defesa com uma república irmã.
O general pediu licença, alegando que estava muito ocupado, e desligou, deixando o presidente e sua secretária a ouvir o ronronar suave do motor.
Janin olhou pela janela enfumaçada, à prova de balas, para as torres sombrias do Kremlin, que acabavam de aparecer no céu noturno, coberto de nuvens cinzentas.
— Quando eu era moço — comentou, respirando fundo para acalmar-se —, consegui pôr as mãos em um exemplar do livro que Svetlana Stalin escreveu a respeito do pai. Lembra-se?
— Perfeitamente — declarou Larisa. — Esteve proibido durante muitos anos.
— Isso mesmo. Apesar de conter muitas críticas a um homem que já não era considerado um herói pelo governo, muito pelo contrário. Uma coisa que Svetlana escreveu a respeito de Stalin impressionou-me muito. Ela disse que no final da década de 1930, achou que o pai adquirira o que chamou de “mania de perseguição”. Os inimigos estavam em toda parte. Mandou executar cinquenta mil oficiais de suas próprias forças armadas. Na verdade, matou mais oficiais russos com a patente de coronel ou superior do que os alemães durante toda a Segunda Guerra Mundial. — Encheu o peito de ar e exalou lentamente. — O que me assusta, Larisa, é pensar que ele pode não ter sido tão louco ou paranoico quanto a maioria pensa.
A mulher segurou-lhe a mão para confortá-lo quando o BMW preto saiu da Prospekt Kalinina e se dirigiu para a entrada noroeste do Kremlin, a chamada Porta da Trindade.
Trinta e oito
Terça-feira, 3:05, sobre o mar de Barents
O I1-76T pousou em Helsinki pouco antes da meia-noite, e a equipe do Striker estava a bordo dez minutos depois, assim como seu arsenal e seus equipamentos para o frio. O arsenal era composto por quatro arcas de um metro e meio de comprimento por um metro e vinte de largura e um metro de altura, carregadas de armas de fogo e explosivos, cordas e grampos, máscaras contra gás e medicamentos. Meia hora depois que subiram a bordo, o avião já tinha sido reabastecido e estava levantando voo.
Durante a fase inicial do voo, a aeronave havia atravessado a Finlândia de sudoeste para nordeste, rumara para leste, atravessando o mar de Barents, e passara para outro fuso horário, voando paralelamente à costa setentrional da Rússia.
O tenente-coronel Squires estava de olhos fechados, mas não estava dormindo. Maldito hábito, pensou: não conseguia dormir, a menos que soubesse aonde estava indo e por quê. Sabia que em breve receberia novas instruções do Op-Center, já que estavam se aproximando rapidamente do final do plano de voo, que os levaria ao local onde o mar de Barents encontrava-se com o mar de Pechora. Mesmo assim, sentia-se frustrado por não poder se concentrar em um objetivo. Durante a travessia do Atlântico, sua atenção estivera voltada para São Petersburgo. Agora que aquela parte da missão estava a cargo do soldado George, Squires não tinha nada para se preocupar. Em situações como aquela, o oficial sempre recorria a um artifício para não começar a pensar na mulher, no filho e no que fariam se ele não voltasse; era o chamado jogo do O que estou fazendo aqui, no qual tentava descobrir por que gostava tanto de ser um Striker.
Na primeira vez em que praticara esse jogo, a caminho de cabo Canaveral para descobrir quem havia colocado uma bomba a bordo de um ônibus espacial, chegara à conclusão de que estava ali para defender os Estados Unidos, e não só porque era o melhor país do mundo para se morar, mas também porque eram eles que, com sua energia e seus ideais, motivavam o resto do mundo. Se os Estados Unidos desaparecessem, Squires estava convencido de que o planeta se tornaria um campo de batalha para ditadores que buscavam o poder pelo poder, e não para estados autônomos que fossem viáveis e competitivos.
Na segunda vez, perguntara a si próprio até que ponto gostava daquela vida porque ela o fazia sentir-se vivo e ativo. E bastante, tinha de admitir. Muito mais do que o futebol, por exemplo, porque o que estava em jogo para ele próprio e para seu país era muito maior. Não havia sensação como colocar suas habilidades à prova em circunstâncias nas quais a maioria das pessoas ficaria gelada de medo ou pelo menos pensaria duas vezes antes de seguir em frente.
Desta vez, enquanto tentava imaginar quais seriam as intenções de Mike Rodgers e Bob Herbert, estava pensando em uma coisa que a psicóloga do Op-Center, Liz Gordon, lhe havia perguntado ao entrevistá-lo para a posição de comando.
— O que pensa do medo coletivo? — perguntara a moça.
Squires respondera que o medo e a coragem eram emoções que passavam por altos e baixos em qualquer indivíduo, e que uma boa equipe — e particularmente um bom comandante — tinha de extrair o que houvesse de mais positivo nos seus membros.
— O senhor está falando do medo simples — objetara Liz. — Eu me refiro ao medo coletivo. Pense a respeito. Não há pressa.
Depois de pensar um pouco, o coronel havia dito:
— Acho que compartilhamos o medo porque ele é causado por algo que nos ameaça a todos, ao contrário da coragem, que vem do indivíduo.
Tinha sido uma declaração ingênua, mas Liz a deixara passar. Agora, depois de três missões, Squires compreendia que o medo coletivo não era algo a ser superado, mas sim um sistema de apoio mútuo, que transformava pessoas das mais diversas origens, conhecimentos e interesses em um único organismo. Era o medo que tornava a tripulação de um bombardeiro da Segunda Guerra Mundial, os ocupantes de um carro da polícia ou os membros de um grupo de comandos de elite mais unidos do que marido e mulher. Era ele que tornava o todo maior do que a soma das partes.
Tanto quanto o patriotismo e a bravura, o medo coletivo era o cimento que mantinha o Striker unido.
Squires estava prestes a estudar a possibilidade de que conhecer o mundo fosse uma motivação adicional, quando Mike Rodgers chamou no TAC-Sat seguro. O coronel saiu imediatamente do devaneio e, como costumava dizer seu antigo técnico de futebol, atendeu ao chamado “pronto para o que desse e viesse”.
— Charlie — disse Rodgers —, desculpe por levarmos tanto tempo para ligar. Estivemos revendo os planos e desta vez vocês realmente vão ter de jogar como se estivessem em uma Copa do Mundo. Daqui a pouco mais de onze horas, depois de se manterem fora do espaço aéreo russo até o último momento, irão saltar de paraquedas em um ponto da Rússia a oeste de Khabarovsk. Bob vai fornecer ao piloto o plano de voo e as coordenadas. Esperamos que, por se tratar de um 11-76, ele consiga entrar e sair do país antes que as defesas russas percebam que não é uma das suas aeronaves. O objetivo de vocês é um trem de quatro vagões que está trafegando na linha Transiberiana. Se a carga for narcóticos, dinheiro, ouro ou armas, devem destruí-la. Se as armas forem nucleares, colham provas e tentem desarmá-las. O sargento Grey foi treinado para isso. Alguma pergunta até agora?
— Sim, senhor — respondeu Squires. — Se o Hermitage está envolvido, o carregamento pode conter obras de arte. Quer que a gente destrua quadros de Renoir e Van Gogh?
A linha ficou em silêncio por alguns momentos.
— Não. Limite-se a fotografá-los antes de liberá-los.
— Sim, senhor.
Rodgers prosseguiu:
— O alvo é uma colina de trinta e quatro metros de altura ao lado da via férrea. Os mapas topográficos da região serão enviados ao seu computador. Vocês devem descer a colina e esperar pelo trem.
Escolhemos essa área porque existem árvores e pedras na encosta da colina que vocês podem usar para bloquear a linha. Preferimos este método a usar explosivos, que poderiam ferir alguém. Se o trem estiver no horário, vão dispor de aproximadamente uma hora. Se estiver atrasado, terão de esperar. Não o deixem passar, mas façam o possível para não ferir nenhum soldado russo.
A recomendação não surpreendeu Squires: embaixadores detestavam ter que explicar incursões ilegais e mais ainda o que a CIA chamava de “rebaixamentos máximos”. Embora o coronel tivesse sido treinado para matar com qualquer coisa, desde um cadarço de sapato até uma Uzi, jamais fora obrigado a fazê-lo — e preferia que as coisas continuassem assim.
— O I1-76T viajará até Hokkaido para se reabastecer e voltará à Rússia — prosseguiu Rodgers —, mas não será usado por vocês para deixar o país. Quando completarem a missão, comuniquem-se com o I1-76T e dirijam-se ao ponto de encontro, a extremidade sul de uma ponte dois quilômetros a oeste do alvo.
Isso era muito curioso, pensou Squires. Rodgers só podia ter um motivo para não lhe dizer de que forma seriam retirados da Rússia: o medo de que fossem capturados. Ele não queria que os russos soubessem. Como se a missão em si já não fosse estimulante, o mistério aumentou ainda mais a motivação de Squires, falando àquela parte da sua personalidade que, como em quase todos os homens que conhecia, adorava equipamentos secretos de última geração.
— Charlie, não é como na Coreia do Norte — afirmou Rodgers. Pelo tom de voz, estava falando mais como amigo do que como general. Agora que tinha conseguido a atenção total de Squires, chegara a hora de lhe oferecer uma visão geral. — Temos razões para acreditar que alguns elementos na Rússia estão tentando reconstruir o império soviético. Embora São Petersburgo esteja provavelmente envolvido, é com você que contamos para detê-los.
— Compreendo, general — disse Squires.
— O plano é o mais completo que pudemos formular, dado o pouco que sabemos. Espero poder fornecer-lhe mais informações nas próximas horas. Sinto não podermos ajudá-lo mais do que isso.
— Tudo bem, general. Não é de Tácito ou outro desses caras que o senhor gosta de citar, mas eu disse ao soldado George, quando o deixamos em Helsinki, que o personagem de desenho animado Super Galo tinha um comentário perfeito para situações como esta: “Você sabia que o trabalho era perigoso quando concordou em fazê-lo.” Nós sabíamos, general, e ainda nos sentimos orgulhosos de estar aqui.
Rodgers deu uma gargalhada.
— Estou confiando a sorte do mundo a um homem que cita personagens de desenho animado! Vou fazer um trato com você. Volte para casa inteiro, e na próxima sessão de desenhos a pipoca vai ser por minha conta.
— Negócio fechado — disse Squires, desligando e tentando colocar os pensamentos em ordem antes de reunir a equipe para contar as novidades.
Trinta e nove
Terça-feira, 3:08, São Petersburgo
Sergei Orlov estava dormindo há pouco mais de uma hora no seu escritório, os cotovelos apoiados no braço da cadeira, as mãos no abdome e a cabeça pendendo ligeiramente para a esquerda. Embora sua mulher não acreditasse que ele se disciplinara para ser capaz de dormir a qualquer hora, em qualquer lugar, Orlov insistia em que não nascera com esse talento. Segundo ele, ao iniciar o treinamento para astronauta, acostumara-se a encaixar segmentos de meia hora de sono no meio das longas horas de treinamento. Ainda mais notável era o fato de que considerava essas “sonecas” tão repousantes durante o dia quanto as seis horas de sono que desfrutava à noite. E havia a vantagem adicional de que sua energia e atenção mantinham-se constantes durante toda a jornada de trabalho.
Jamais conseguiria trabalhar como Rossky, que parecia não descansar enquanto não resolvesse um problema. Mesmo naquele instante, quando seu substituto do turno da noite já assumira o comando, o coronel ainda estava no seu posto, no coração do Centro.
Orlov também achava que os problemas sempre pareciam mais simples depois de um cochilo. Durante seu último voo espacial, uma missão conjunta com a Bulgária — e o primeiro voo de três cosmonautas desde que a tripulação da Soyuz 11 morrera asfixiada durante o retorno à Terra — Orlov e seus dois camaradas tinham tentado acoplar a nave Soyuz à estação espacial Salyut 6. Quando uma falha no motor deixou a nave e a estação em rota de colisão, o controle da missão mandou Orlov ligar o motor de reserva e voltar imediatamente à Terra. Em vez disso, ele ligou o motor por um curto período, apenas para se afastar até uma distância segura, e dormiu durante quinze minutos... para desespero dos companheiros. Em seguida, usou o motor de reserva para executar a manobra de acoplamento. Embora não restasse combustível no motor de reserva para voltara Terra, depois de entrar a bordo da estação espacial Orlov conseguiu descobrir o defeito do motor principal, consertar o circuito responsável e salvar a missão, para gáudio de toda a equipe do cosmódromo de Baikonur. Mais tarde, de volta à Terra, Orlov ficou sabendo que os dados de telemetria tinham mostrado que sua atividade cardiovascular diminuíra consideravelmente durante o período de sono. Daí por diante, o programa de treinamento dos astronautas passara a incluir uma sesta, embora ela não parecesse fazer tão bem aos outros astronautas quanto a Orlov.
Orlov jamais dormia para fugir de um problema, mas quando finalmente conseguiu fechar os olhos, à 1:45, foi um alívio deixar de lado por alguns instantes as preocupações do momento. Foi despertado às 2:51, quando a secretária, Nina, ligou para anunciar uma chamada do Ministério da Defesa. Quando Orlov atendeu, o marechal de comunicações, general David Ergashev, informou a respeito da entrada de tropas russas na Ucrânia e pediu que o novo Centro de Operações ajudasse a acompanhar os boletins dos países europeus a respeito do evento. Surpreso com a notícia e imaginando se aquilo não seria apenas um teste da capacidade do Centro — por que outra razão não teria sido avisado? —, Orlov transmitiu a ordem para o operador de rádio, Yuri Marev.
Através de ligações de fibra óptica com antenas parabólicas fora de São Petersburgo e de suas próprias linhas especiais na central telefônica da cidade, o Centro de Operações podia monitorar todas as comunicações dos escritórios do marechal-chefe de Artilharia, do marechal-chefe da Força Aérea e do almirante da Esquadra. A missão do Centro era assegurar que essas linhas de comunicação não estavam sendo monitoradas por estranhos. Ele também podia ser usado como uma central de distribuição de informações para outros órgãos do governo.
Ou podia simplesmente escutar.
Antes de desligar, Orlov pediu a Marev para monitorar as chamadas do general Kosigan e do escritório do marechal-chefe. A resposta de Marev pegou-o de surpresa.
— Já estamos fazendo isso — afirmou Marev. — O coronel Rossky deu ordem para acompanharmos os movimentos de tropas.
— Para onde estão indo essas informações? — perguntou Orlov.
— Para o computador central.
— Muito bem — disse Orlov, recuperando rapidamente a compostura. — Faça com que essas informações também sejam enviadas ao meu computador.
— Sim, senhor — disse Marev.
Orlov virou-se para a tela do computador e ficou esperando. Maldito Rossky, pensou. Ou aquilo era uma represália ou Rossky tinha algo em mente — algo que talvez envolvesse seu amigo Dogin. Entretanto, não havia nada que pudesse fazer. Contanto que as informações fossem registradas no computador principal do Centro, ficando disponíveis para distribuição interna e para outros órgãos, Rossky não tinha obrigação de comunicá-las ao general... mesmo se tratando de um acontecimento tão importante como aquele.
Enquanto esperava, Orlov procurou avaliar a situação, a começar pelo pedido inusitado por parte da Ucrânia. Como muitos outros oficiais, tinha imaginado que as várias manobras eram a forma que o presidente Janin encontrara para mostrar ao mundo que não havia abandonado os militares em troca de negócios com o Ocidente. Agora, porém, estava claro que a invasão da antiga república tinha sido planejada e que era esse o motivo pelo qual havia tantos soldados perto da fronteira. Planejada por quem? Dogin? E por quê? Aquilo não era um golpe militar, e não era uma guerra.
Os primeiros dados começaram a chegar. A infantaria russa pretendia se unir às forças ucranianas em Kharkov e Voroshilovgrad, mas não se tratava de manobras conjuntas. Os agradecimentos do presidente Vesnik deixavam isso bem claro.
Igualmente surpreendente era o inesperado silêncio por parte do Kremlin. Nos dezoito minutos que se seguiram à entrada de tropas na Ucrânia, Janin não tinha feito nenhuma declaração pública a respeito do evento. No momento, todas as embaixadas dos países ocidentais em Moscou deviam estar rascunhando e entregando em mãos mensagens nas quais manifestavam sua apreensão.
Marev e sua pequena equipe continuaram a filtrar dados brutos das comunicações que chegavam. O número de pessoas e máquinas que estavam sendo deslocadas era fantástico. Ainda mais espantosos, porém, eram alguns detalhes da operação. A oeste de Novgorod, perto do Centro Administrativo Ucraniano de Chernigov, o major-general Andrassy tinha estabelecido uma linha de dez quilômetros de batalhões de artilharia em uma formação triangular de apoio: duzentos metros de morteiros M-1973 e M-1974, com um quilômetro de distância entre eles e o banco seguinte de duzentos metros; quase um quilômetro atrás, no centro do espaço deixado pelos dois lados do triângulo, havia outro banco de duzentos metros de peças de artilharia. Os canhões estavam apontados para a fronteira da Bielorrússia, suficientemente próximos para serem equipados com alças de mira ópticas de fogo direto.
Aquilo não era nenhum teste. Tratava-se, com certeza, de preparativos para a guerra. Nesse caso, gostaria de saber até que ponto Rossky — e, por associação, ele próprio — estava envolvido na história.
Orlov pediu a Nina para chamar Rolan Mikyan, o diretor do Ministério de Segurança, ao telefone. Conhecia o erudito Mikyan dos tempos do Cosmódromo, quando o azerbaidjano — detentor de um doutorado em ciências políticas — tinha sido escolhido pela GRU, o órgão militar de inteligência, para comandar a segurança da base espacial. Os dois tinham se encontrado várias vezes no último ano para discutir formas de compartilhar informações, evitando a duplicação de esforços. Orlov descobrira que, embora o tempo não tivesse abalado a lealdade de Mikyan para com a Rússia, as transformações haviam produzido nele um certo cinismo — devido, suspeitava, a uma paixão tardia pela república natal.
Nina encontrou o diretor em casa, embora não estivesse dormindo.
— Sergei — disse Mikyan —, já ia ligar para você.
— Sabia o que ia acontecer na Ucrânia? — perguntou Orlov.
— Somos profissionais de inteligência. Sabemos de tudo que acontece.
— Não sabia, sabia?
— Parece que estamos com um ponto cego naquela região — afirmou Mikyan. — Arquitetado pelos militares, ao que parece.
— Sabia que estamos com cento e cinquenta morteiros apontados para Minsk?
— O diretor da noite acaba de me informar. Além disso, aeronaves do porta-aviões Murometz, que no momento se encontra ao largo da costa de Odessa, estão voando ao longo da fronteira da Moldávia, tomando muito cuidado para não atravessá-la.
— Está neste trabalho há mais tempo do que eu — disse Orlov. — Qual é sua teoria?
— Alguém nos altos escalões maquinou uma operação ultrassecreta. Mas não se sinta mal, Sergei. Muita gente foi pega de surpresa, incluindo, ao que parece, o nosso novo presidente.
— Alguém já falou com ele?
— No momento, está reunido a portas fechadas com seus assessores mais próximos — explicou Mikyan. — Com exceção de Dogin, o ministro do interior.
— Onde está Dogin?
— Doente, na sua dacha, nas colinas próximas de Moscou.
— Falei com ele faz algumas horas — afirmou Orlov, em tom de desagrado. — Estava ótimo.
— Tenho certeza que sim. O que nos dá alguma ideia de quem pode estar por trás desta operação.
O telefone tocou.
— Espere um momento — disse Orlov a Mikyan.
— É melhor eu desligar — disse Mikyan. — Preciso ir ao ministério, mas antes ia ligar para você para preveni-lo de uma coisa. Dogin se responsabilizou pelo seu Centro no Kremlin e ele entrou em funcionamento pouco antes da incursão. Se o ministro está usando o Centro de Operações para ajudá-lo nesta aventura, e se as coisas correrem mal, você pode ter que enfrentar um pelotão de fuzilamento. Crimes contra o estado, ajudar uma potência estrangeira...
— Eu já estava pensando nisso — disse Orlov. — Obrigado, Rolan. Ligo para você mais tarde.
Quando Mikyan desligou, Nina informou a Orlov que Zilash esperava na linha. O general mudou para a linha interna.
— Sim, Arkady?
— General, a Defesa Aérea da ilha de Kolguyev informou que o I1-76T atravessou a Finlândia, chegou ao mar de Barents e está rumando para leste.
— Eles têm alguma ideia de para onde está indo?
— Não, senhor.
— Um palpite... qualquer coisa?
— Sabem apenas que está rumando para leste, general. Diretamente para leste. Mas dizem que pode ser um avião de abastecimento. Estamos usando os 76T para transportar cargas da Alemanha, França e Escandinávia.
— A Defesa Aérea tentou identificar a aeronave?
— Sim, senhor. Está enviando o sinal correto.
Orlov sabia que isso não queria dizer nada. Os emissores de calor instalados no nariz dos aviões eram fáceis de montar, comprar ou roubar.
— Alguém falou com o 76T?
— Não, senhor. Quase todos os aviões de transporte estão com o rádio desligado para não congestionar os canais de comunicações.
— A Defesa Aérea captou comunicações do exterior com qualquer outra aeronave russa?
— Não pelo que sabemos, general.
— Obrigado — disse Orlov. — Gostaria de receber comunicados a cada meia hora, mesmo que a situação continue inalterada. E mais uma coisa, Zilash.
— Sim, senhor.
— Monitore e grave qualquer comunicação entre o general Kosigan e o Ministério do Interior. Isso se aplica tanto às linhas telefônicas normais quanto ao canal particular do general.
A pausa durou apenas um momento, embora tenha parecido mais longa.
— Está me dizendo para espionar o general Kosigan, general?
— Quero apenas que cumpra minhas ordens — respondeu Orlov. — Prefiro acreditar que estava apenas repetindo-as, e não questionando-as.
— É isso mesmo, general — disse Zilash. — Obrigado.
Depois de desligar, Orlov disse a si mesmo que estava errado a respeito do avião, que se tratava apenas de um daqueles exercícios que a CIA ocasionalmente executava para ver como os russos reagiriam se pensassem que a tripulação de um dos seus aviões ou navios havia mudado de lado. Não havia nada pior em um confronto militar do que os comandantes começarem a duvidar da lealdade de seus comandados.
Entretanto, o instinto, combinado com a cautela, fazia com que rejeitasse essa hipótese. Supondo que o avião fosse dos Estados Unidos ou da OTAN, qual seria o seu destino? Se quisesse chegar aos Estados Unidos, teria tomado a rota do Ártico ou atravessado o Atlântico. Para atingir o Extremo Oriente, usaria as rotas aéreas mais ao sul. Lembrou-se da última conversa que tivera com Rossky e da pergunta que parecia ter uma única resposta. Por que usar um avião russo, a menos que pretendessem pousar em algum local da Rússia? Em que lugar da Rússia oriental os americanos poderiam estar interessados?
Essa pergunta também parecia ter apenas uma resposta, a qual não agradava nem um pouco a Orlov.
Digitou 22 no telefone. Uma voz grave atendeu.
— Oficial de Operações Fyodor Buriba.
— Fyodor, aqui é o general Orlov. Entre em contato com o dr. Sagdeev, do Instituto Russo de Pesquisas Espaciais, e arranje para mim um sumário das atividades dos satélites dos Estados Unidos e da OTAN das 21:00 de ontem até 1:00 de hoje, cobrindo a região da Rússia oriental entre o mar de Okhotsk e o platô Aldan, até o mar do Japão.
— Pode deixar — disse Buriba. — O senhor está interessado apenas na cobertura primária, dados de GPS e o registro das horas em que houve transmissão de dados, ou também quer as informações dos sensores eletro-ópticos, do loco isoelétrico...
— A cobertura primária será suficiente — interrompeu Orlov. — Quando receber esses dados, compare-os com a hora em que o carregamento foi transferido do Gulfstream para o trem em Vladivostok e verifique se a operação pode ter sido detectada por algum satélite.
— Sim, senhor.
Depois que Buriba desligou, Orlov recostou-se na cadeira e olhou para o teto. O Escritório de Reconhecimento de Detritos Espaciais do Instituto Russo de Pesquisas Espaciais tinha sido fundado para rastrear o número cada vez maior de foguetes de lançamento, espaçonaves abandonadas e satélites mortos que orbitava a Terra, constituindo um risco palpável para os viajantes espaciais. Em 1982, porém, o número de funcionários foi duplicado e o escritório recebeu a missão adicional de estudar secretamente os satélites de espionagem americanos, europeus e chineses. Os computadores de Sagdeev estavam ligados a antenas espalhadas por todo o país e registravam os momentos em que os satélites transmitiam dados. Embora a maior parte das informações estivesse em código e não pudesse ser decifrada, pelo menos os russos sabiam quem estava vigiando o que e quando.
Era possível — não, era provável, corrigiu Orlov mentalmente — que o aumento dos movimentos de tropas russas nos últimos dias tivesse induzido os americanos e europeus a observar mais de perto instalações militares como a base naval de Vladivostok. Com isso, poderiam muito bem ter visto a transferência dos caixotes do jato para o trem.
Mas por que considerariam isso importante para enviar um avião?, perguntou-se. Especialmente quando o trem poderia ser observado do espaço, se tudo que os americanos e europeus quisessem fosse conhecer seu destino.
Se o avião pretendia interceptar o trem, provavelmente iria passar o menor tempo possível no espaço aéreo russo. Isso significava uma aproximação pelo leste, o que daria a seu filho de dez a quatorze horas para se preparar.
Mesmo assim, era uma missão perigosa para quem quer que estivesse comandando o 76T, e a questão continuava de pé. Por que alguém se daria a todo esse trabalho?
Apesar de tudo que estava acontecendo, Orlov sabia que tinha que descobrir por que aquela carga era tão importante. Sabia também que havia apenas uma forma de conseguir isso.
Quarenta
Terça-feira, 10:09, Ussurisk
A locomotiva a vapor de antes da guerra tinha uma caldeira enferrujada, um limpa-trilhos amassado e uma chaminé enegrecida por décadas de fuligem. O atrelado estava cheio de carvão. Na cabine havia não só pó de carvão, mas também lembranças de viagens anteriores por toda a Rússia: pedaços de folhas secas das florestas de Irkutsk, areia das planícies do Turquestão, manchas de óleo dos campos de Usinsk.
Também havia fantasmas, as sombras dos inúmeros maquinistas que haviam acelerado a locomotiva ou jogado carvão na caldeira. O segundo-tenente Nikita Orlov podia vê-los no cabo de madeira do apito, coberto por uma camada de sujeira, e no piso de ferro, cuja superfície rugosa tinha sido polida pelo atrito de tantos sapatos e botas. Quando olhava pela janela, podia imaginar os camponeses que tinham olhado para aquela máquina com admiração e pensado: “Finalmente, os trens chegaram à Sibéria. As longas viagens de carro de boi e a cavalo pela Grande Estrada Postal eram coisa do passado. Agora, as centenas de pequenas comunidades estavam ligadas pelo ferro, não pela lama.
Entretanto, história era uma coisa e pressa era outra. Orlov teria preferido uma locomotiva diesel àquela relíquia, mas o chefe dos transportes de Vladivostok não conseguira arranjar nada melhor. Orlov aprendera uma coisa a respeito do governo e dos militares: melhor um carro, trem ou avião na mão, por mais antigo que fosse, do que nada. Seria sempre possível tentar trocá-lo por algo melhor.
Não que a máquina funcionasse mal, pensou. Apesar de seis décadas de desgaste, ainda estava em bom estado. A biela principal, a biela de acoplamento e as rodas motrizes eram fortes, os cilindros sólidos. Além do atrelado, estava rebocando dois vagões de carga e um vagão de serviço. Viajavam com boa velocidade, mais de sessenta quilômetros por hora, apesar da neve que caía. Naquele ritmo, com dois soldados se revezando para manter a caldeira bem abastecida, o tenente Orlov calculou que levariam dezesseis ou dezessete horas para deixar a zona de tempestade. De acordo com seu assistente e operador de rádio, cabo Fodor, isso os colocaria entre Khabarovsk e Bira.
Nikita e o louro e rosado Fodor estavam sentados em extremidades opostas de uma mesa de madeira, no primeiro vagão de carga. Um terço dos caixotes de madeira tinha sido empilhado em forma de pirâmide, em seis fileiras na parte traseira do vagão. A veneziana do lado direito do trem estava aberta e havia uma antena parabólica presa ao caixilho da janela, voltada para fora. Dois cabos ligavam a antena a um telefone seguro, do tamanho de uma maleta, que repousava em um cobertor estendido no piso do vagão. Fodor havia pendurado uma lona na parte aberta da janela para protegê-los do vento e da neve. De vez em quando, tinha de se levantar para remover a neve da antena.
Os dois usavam casacos brancos forrados de pele e pesadas botas. Sobre a mesa estavam suas luvas e um lampião aceso. Nikita estava fumando um cigarro enrolado à mão e mantinha as costas das mãos perto do lampião para aquecê-las. Fodor estava usando um laptop alimentado por uma bateria. Precisava gritar para se fazer ouvir acima do ruído do vento e das rodas barulhentas do trem.
— Tenente, serão necessárias apenas três viagens de oitenta quilômetros, ida e volta, para um Helicóptero Mi8 levar a carga a um lugar onde um jato possa pousar — declarou Fodor, examinando o mapa verde e branco na tela. Levantou o computador para mostrar a imagem ao oficial. — Aquele ponto ali, tenente, a noroeste do rio Amur.
Nikita olhou para a tela. Suas sobrancelhas negras e fartas franziram-se.
— Isso se conseguirmos um avião. Ainda não compreendo a razão para todo aquele tumulto em Vladivostok. Por que não havia nada disponível, a não ser este trem?
— Talvez estejamos em guerra, tenente — brincou Fodor —, e tenham se esquecido de nos contar.
O telefone tocou. Fodor atendeu, tapando o outro ouvido com o dedo para poder escutar. Um momento depois, empurrou o lampião para o lado e passou o fone a Nikita.
— É Korsakov, passando para nós uma chamada do general Orlov — explicou Fodor com os olhos arregalados, e um traço de admiração na voz.
Nikita pegou o fone, impassível, e gritou:
— Alô!
— Está me ouvindo? — perguntou o general.
— Muito mal! Pode falar mais alto?
— Nikita — disse o general —, temos razões para acreditar que um I1-76T controlado por uma potência estrangeira tentará interceptar o seu trem esta noite. Estamos tentando descobrir quem está a bordo, mas para isso preciso saber qual é a sua carga.
Nikita olhou na direção dos caixotes. Não entendia por que o pai não Fizera a mesma pergunta ao oficial encarregado da operação.
— O capitão Leshev não me forneceu essa informação — explicou.
— Nesse caso, quero que você abra um deles — disse o general Orlov. — Esta é uma ordem oficial, de modo que você não será responsabilizado por inspecionar o carregamento.
Nikita ainda estava olhando para os caixotes. Na verdade, ele próprio estava curioso para saber o que continham. Pediu ao pai para esperar na linha.
Depois de passar o fone a Fodor, calçou as luvas e aproximou-se dos caixotes. Pegou uma pá que estava pendurada em um gancho na parede, introduziu a ponta entre duas ripas de madeira, apoiou o pé nas costas da pá e fez força. Um dos lados do caixote rangeu e saiu do lugar.
— Cabo, traga o lampião.
Fodor apressou-se a obedecer; quando a luz alaranjada iluminou o interior do caixote, puderam ver os maços de notas de cem dólares, presos com cintas de papel branco e arrumados em pilhas.
Nikita usou a ponta da bota para colocar a tampa de volta no lugar. Mandou que Fodor abrisse outra caixa, atravessou novamente o vagão chacoalhante e pegou o fone.
— Os caixotes contêm dinheiro, papai! — gritou. — Dinheiro americano!
— Este aqui também está cheio de dólares! — exclamou Fodor.
— É provavelmente o que todos os caixotes contêm — afirmou Nikita.
— Dinheiro para uma nova revolução — murmurou consigo mesmo o general Orlov.
Nikita cobriu o outro ouvido com a palma da mão.
— O que disse?
— Korsakov contou a você a respeito da Ucrânia? — perguntou o general, levantando a voz.
— Não, senhor.
Enquanto o general Orlov o colocava a par dos movimentos dos exércitos do general Kosigan, Nikita ia ficando cada vez mais inquieto. Não era apenas por não estar participando das operações militares. Nikita não sabia se o pai e o general Kosigan tinham tido algum tipo de relacionamento no passado, mas podia perceber que naquele momento estavam em lados opostos. Isso era para ele um problema, porque teria preferido estar trabalhando com o dinâmico e ambicioso general Kosigan do que com um piloto de provas transformado em herói nacional... que só se lembrava do filho quando este o deixava embaraçado.
Quando o pai terminou, o jovem oficial perguntou:
— Posso falar abertamente?
O pedido era extremamente irregular. No Exército russo, até mesmo falar informalmente a um komandir ou nachalnik — um comandante ou chefe — era considerado uma atitude inaceitável. A resposta a uma pergunta não podia ser da ou nyet, sim ou não, mas tinha de ser tak tochno ou nikak nyet — certamente que sim ou de forma alguma.
— Claro que sim — respondeu o general.
— Foi por isso que me pediu para tomar conta desta remessa? Para me manter longe da frente de batalha?
— Quando falei com você pela primeira vez, meu filho, não havia nenhuma frente de batalha.
— Mas sabia o que estava para acontecer — afirmou Nikita. — Tinha que saber. Todos na base comentam que no lugar onde trabalha atualmente não há surpresas.
— O que está ouvindo são os últimos gemidos da máquina de propaganda — declarou o general Orlov. — A operação pegou de surpresa muitas altas autoridades como eu. Até descobrirmos o que está acontecendo, prefiro que o dinheiro fique onde está.
— E se o general Kosigan pretende usá-lo para comprar a colaboração dos ucranianos? Retardar a entrega do dinheiro poderia custar muitas vidas.
— Ou salvá-las — observou o general Orlov. — Fazer uma guerra custa dinheiro.
— Será justo desconfiar dos seus motivos? — argumentou Nikita. — Ouvi dizer que ele é um soldado desde criança...
— Sob alguns aspectos, continua a ser uma criança. Quero que mande seus soldados vigiarem o trem dia e noite. Não deixe que ninguém se aproxime sem minha permissão.
— Sim, senhor — disse Nikita. — Quando voltará a entrar em contato?
— Quando souber mais alguma coisa a respeito do dinheiro ou do I1-76T. Nikki, tenho um palpite de que está mais próximo da frente de batalha do que imaginamos. Tome cuidado.
— Sim, senhor.
O tenente apertou o botão à direita do bocal, encerrando a ligação. Pediu a Fodor para remover a neve da antena e observou o mapa na tela do computador. Seus olhos acompanharam o caminho no mapa, de Ippolitovka a Sibirchevo, de Sibirchevo a Muchnaya e dali para o norte. Consultou o relógio.
— Cabo Fodor, devemos estar em Ozernaya Pad em aproximadamente meia hora. Avise ao maquinista para parar quando chegarmos lá.
— Sim, senhor — disse Fodor, dirigindo-se à parte da frente do vagão para usar o intercomunicador.
Nikita pretendia cuidar muito bem daquele trem. Era nele que estava o futuro da Rússia, e ninguém — nem mesmo seu pai, o general — conseguiria detê-lo.
Quarenta e um
Segunda-feira, 19:10, Washington, D.C.
— Consegui!
Hood estava cochilando no sofá, satisfeito por ter passado algumas das tarefas de rotina para Curt Hardaway e o turno da noite, quando Lowell Coffey entrou no escritório e fez um gesto dramático.
— Assinado, selado e... tã-tã-tã-tã... entregue!
Hood sentou-se e sorriu.
— A CIC concordou?
— Concordou, mas não tive nada a ver com o caso. Foram os russos que conseguiram isso para nós, mandando cem mil soldados para a Ucrânia.
— Não faz diferença. Mike já sabe? — perguntou Hood.
— Acabo de falar com ele. Está vindo para cá.
Hood examinou o documento. A assinatura do senador Fox estava em um lugar de destaque, onde todos os conservadores podiam vê-la. Entretanto, também estava satisfeito com a novidade. Ali deitado, já decidira apoiar Rodgers na missão do Striker. Números e balanços podiam ter suas vantagens, mas às vezes uma ação concreta era necessária.
Quando Lowell saiu para informar Martha Mackall, Hood enviou e-mail a Hardaway, esfregou os olhos e lembrou exatamente por que concordara em dirigir o Op-Center.
Hood e todas as pessoas que conhecia — incluindo o presidente, de quem frequentemente discordava — faziam o que estavam fazendo, em primeiro lugar, porque não bastava bater continência para a bandeira; era preciso dedicar-se a ela de corpo e alma. Rodgers dera-lhe de presente uma placa de metal, que estava sobre a sua escrivaninha, com um pensamento de Thomas Jefferson: “A árvore da liberdade deve ser regada de vez em quando com o sangue de patriotas e tiranos.” Desde o tempo da universidade que Hood queria fazer parte daquele processo.
Daquele processo sagrado, corrigiu mentalmente.
Rodgers e Bob Herbert chegaram nesse momento. Depois de se apertarem as mãos, os três homens se abraçaram.
— Obrigado, Paul — disse Rodgers. — Charlie está ansioso para começar.
Hood não fez nenhum comentário, mas sabia que Rodgers estava pensando a mesma coisa: agora que tinham conseguido o que queriam, só restava rezar para que tivessem tomado a decisão correta. Deixou-se cair na cadeira atrás da escrivaninha.
— Quer dizer que eles têm permissão para ir em frente — observou. — O que vamos fazer para tirá-los de lá?
— A CIG não sabe, mas meus amigos do Pentágono nos emprestaram um Mosquito.
— O que é isso?
— Uma aeronave ultrassecreta, do tipo invisível. O Pentágono ainda não terminou a fase de testes e enviou-a para Seul apenas por achar que poderia ser útil durante uma crise que tivemos lá, mas é o único meio de que dispomos para entrar e sair da Rússia sem sermos vistos, ouvidos ou cheirados.
— Charlie está de acordo? — perguntou Hood.
— Charlie às vezes parece uma criança — comentou Rodgers, rindo. — É só falar em um brinquedinho novo que seus olhos começam a brilhar.
— Como vai ser o cronograma da operação de resgate?
— O Mosquito deverá estar no Japão por volta das dez da manhã, hora local. A transferência para o 76T deverá levar apenas uns quarenta e cinco minutos. O 76T vai ficar esperando no solo até receber o sinal verde.
— E se o Mosquito for abatido? — perguntou Hood.
Rodgers respirou fundo.
— Nesse caso, terá de ser reduzido a pedacinhos. Para isso, foi instalado a bordo um botão de autodestruição que faz um serviço bastante completo. Se a tripulação não conseguir explodi-lo por algum motivo, o Striker terá de fazê-lo. O Mosquito não pode cair nas mãos dos russos.
— Qual é o plano reserva se o Mosquito falhar?
— O Striker dispõe de pouco mais de seis horas de escuridão para percorrer uma distância de vinte quilômetros e chegar ao 76T — declarou Rodgers. — O terreno é acidentado, mas não muito. Mesmo na pior das hipóteses, com a temperatura caindo para quinze graus negativos, eles têm agasalhos adequados e óculos de visão noturna. Vão conseguir.
— E o 76T? Será que vai aguentar? — perguntou Hood.
— É um avião projetado para clima frio — explicou Herbert.
— Continuará funcionando normalmente, a menos que a temperatura caia abaixo de vinte e cinco graus negativos, o que não é provável.
— E se isso acontecer? — insistiu Hood.
— Se a temperatura cair muito — disse Herbert —, teremos de decolar sem o Striker. Nesse caso, o grupo será avisado e terá de esperar como puder até as condições de tempo melhorarem. Esses homens treinaram táticas de sobrevivência; vão saber se virar. De acordo com os estudos geográficos de Katzen, a região a oeste da cadeia de Sikhote-Alin está cheia de pequenos mamíferos e as colinas possuem muitas cavernas onde eles poderão se abrigar.
— Parece que estaremos bem se as coisas chegarem até esse ponto — observou Hood. — Quais são os planos se os russos descobrirem que o 76T não pertence a eles?
— Isso é pouco provável — afirmou Rodgers. — Conseguimos remover um transmissor de IFF de um dos 76T que eles perderam no Afeganistão. Há vários anos que os russos não mudam sua tecnologia de Identificação Amigo ou Inimigo, de modo que não deverá haver nenhum problema. Os 76T não são como os nossos aviões, que transmitem sinais de micro-ondas na faixa milimétrica para transponders de outras aeronaves e estações de rastreamento.
— E as comunicações com o 76T?
— Nossas transmissões para o avião foram todas em código — explicou Rodgers. — Os russos sabem que de vez em quando fazemos falsas transmissões para confundi-los e tendem a ignorar transmissões externas para os seus aviões. Durante as próximas horas, vamos enviar mensagens para vários aviões. Os russos vão pensar que estamos implicando com eles por causa dos recentes movimentos de tropas. Enquanto isso, o 76T permanecerá em silêncio, como a maioria dos aviões de transporte russos. Se a Defesa Aérea russa começar a ficar nervosa, conversaremos com eles. O piloto vai dizer que está transportando para a Rússia peças de reposição adquiridas em Berlim e tanques de combustível de borracha conseguidos em Helsinki. No momento, a borracha está muito escassa na Rússia. Se por alguma razão os russos vêm acompanhando o percurso do 76T, isso explicará por que ele esteve na Alemanha e na Finlândia.
— Gostei da ideia — observou Hood. — Gostei muito. Suponho que o piloto também pode explicar que está voando ao longo da fronteira para evitar as rotas aéreas mais comuns.
Rodgers fez que sim com a cabeça.
— Aqueles céus estão mesmo muito congestionados. Se o 76T for forçado a conversar com os russos, eles vão aceitar nossa história sem problemas, já que estamos supostamente transportando uma carga muito menos importante do que soldados, rações e armas.
— E se, apesar de todas as nossas precauções, eles descobrirem a verdade? — quis saber Hood. — Qual o STOP que vamos usar?
— Se tivermos de executar um Súbito Encerramento do Programa dentro do espaço aéreo russo — disse Herbert —, nosso plano é simples: desligar o rádio e cair fora o mais depressa possível. Existem alguns truques que podemos usar durante a retirada. Eles não vão derrubar o avião, a menos que estejam absolutamente certos de que não pertence a eles... o que dificilmente acontecerá.
— Parece ótimo — disse Hood. — Diga ao pessoal do Serviço de Assistência Técnica e ao resto da sua equipe que eles fizeram um excelente trabalho.
— Obrigado. Eles vão ficar satisfeitos — disse Rodgers. Pegou o peso de papéis em forma de globo terrestre e começou a revirá-lo nas mãos. — Paul, outras coisas estão acontecendo na Rússia. Acho que foi por isso que o Pentágono se dispôs a fazer uma pequena demonstração com o Mosquito.
Hood olhou para ele, surpreso.
— Uma demonstração?
Rodgers fez que sim com a cabeça.
— Duas das quatro divisões motorizadas russas da frente do Turquestão foram remanejadas e enviadas para a Ucrânia — afirmou. — Kosigan tirou uma divisão de tanques do Nono Exército, da frente do Transbaikal, e uma brigada aerotransportada da frente do Extremo Oriente. Se forem iniciadas hostilidades com a Polônia e Kosigan retirar novas forças da fronteira com a China, é bem provável que Beijing entre na briga. Os chineses recentemente colocaram o general Wu De no comando do Décimo Primeiro Exército, com sede em Lanzhou. De acordo com o relatório de Liz, esse cara é maluco.
— Eu li o relatório — afirmou Hood. — Ele era um dos astronautas do fracassado programa espacial chinês.
— Isso mesmo — concordou Rodgers. — Acontece que já executamos várias simulações de guerra baseadas em situações semelhantes, de modo que nada disto é novidade. Na verdade, o presidente acaba de pedir ao Pentágono para lhe enviar essas simulações. Se os chineses colocarem suas cinco divisões da Guarda da Fronteira em estado de alerta para ameaçar a Rússia com uma segunda frente, os russos não vão recuar. Pelo contrário. As escaramuças de fronteira vão começar e em pouco tempo os dois países estarão em guerra, a menos que uma cabeça fria — a de Janin, no caso — assuma o controle. Nossa política em uma situação como essa consiste em apoiar o pacifista, mas para isso teremos de nos comprometer com Janin e até mesmo apoiá-lo militarmente...
— Rompendo nosso acordo com o Grozny — completou Hood. — Que situação! Ajudamos a manter a paz entre Beijing e Moscou e somos premiados com atentados terroristas.
— É uma possibilidade concreta — afirmou Rodgers. — Daí a importância de nossas aeronaves invisíveis. Quanto mais tempo conseguirmos participar da ação sem que o Grozny tenha conhecimento, melhor.
O telefone começou a tocar. Hood olhou para o código digital no mostrador. Era Stephen Viens, do ENR.
Hood atendeu.
— Como vai, Stephen?
— Paul? Pensei que tivesse saído de férias.
— Já estou de volta — explicou Hood. — Quais são as novidades?
— Bob nos pediu para vigiar aquele trem na Transiberiana e aconteceu uma coisa engraçada.
— O quê?
— Acho que você não vai gostar — disse Viens. — Dê uma olhada no monitor. Estou mandando a imagem.
Quarenta e dois
Terça-feira, 9:13, Seul
As janelas do hangar da base que ficava nos arredores de Seul eram à prova de bala e pintadas de preto. As portas estavam trancadas e havia uma sentinela diante de cada uma. Ninguém, a não ser os membros da Equipe M da Força Aérea, podia se aproximar da construção. A unidade dos Mosquitos era comandada pelo general Donald Robertson, um dínamo de sessenta e quatro anos de idade, que descobrira o bungee-jump quando tinha sessenta anos e praticava o esporte uma vez por dia, antes do desjejum.
No interior do hangar, a equipe de vinte soldados tinha ensaiado aquela operação dezenas de vezes, usando um protótipo feito de madeira e plástico. Agora, que a emergência e a carga eram reais, eles se moviam ainda com mais rapidez e precisão, estimulados pela necessidade, manipulando os componentes surpreendentemente leves, pintados de preto fosco, com facilidade e confiança. Tinham praticado carregar o avião experimental em vários tipos de aeronaves, desde o helicóptero Sikorsky S-64, para missões a menos de 400 quilômetros de distância, até aviões de carga, como o StarLifter e o velho Short Belfast da RAF, para voos de 8.000 quilômetros ou mais. Para a viagem de 1.200 quilômetros até Hokkaido, o general Milton A. Warden havia autorizado o uso de um Lockheed C-130E, que possuía o maior compartimento de carga de todas as aeronaves disponíveis na Coreia do Sul e cuja rampa de acesso, controlada hidraulicamente, tornava relativamente fáceis os processos de carga e descarga. Como Mike Rodgers dissera a Warden, a rapidez seria extremamente importante depois que o Hercules pousasse no Japão.
Enquanto a Equipe M executava a operação de carregamento, o piloto, copiloto e navegador estavam estudando o plano de voo, verificando os quatro motores turboélice Allison T-56-A-1A e obtendo autorização da torre da base secreta dos Estados Unidos, situada a meio caminho entre Otaru, na costa, e Sapporo, a maior cidade da ilha. A base tinha sido estabelecida no início da Guerra Fria para servir como ponto de partida para missões na Rússia oriental e abrigara de dez a quinze aviões de espionagem até que os satélites os tornaram relativamente obsoletos no início da década de 1980. Agora, os soldados lotados na base chamavam a si mesmos de “observadores de pássaros” e dedicavam-se a monitorar as idas e vindas dos russos nos receptores de radar e de rádio.
Entretanto, com dois transportes pesados a caminho e a necessidade de informações geográficas e meteorológicas precisas, os observadores de pássaros estavam de volta ao mundo da aeronáutica. No momento em que o Hercules saía do hangar em Seul, os militares de Hokkaido estavam se preparando para ajudar a apontar, lançar e guiar um veículo que deixaria os russos sem saber o que os atingira.
Quarenta e três
Terça-feira, 4:05, golfo da Finlândia
O cheiro no interior do minissubmarino era o pior possível. O ar estava seco e parado. Para Peggy James, porém, isso não era o pior. Ela detestava a sensação de desorientação total. Toda hora o submarino era colhido por correntes que o faziam balançar de um lado para o outro ou para cima e para baixo. O timoneiro usava os lemes da embarcação para corrigir o curso que, por alguns instantes, fazia o dócil cavalinho de pau se comportar como um potro bravo.
A moça também tinha problemas com a visão e a audição. Para começar, todos estavam sussurrando. O casco espesso e a água do lado de fora abafavam ainda mais os sons. Além da luminosidade difusa produzida pelo painel de controle, a única luz a bordo era a da pequena lanterna que estavam autorizados a usar. Com aquela luz amarelo pálido — para não falar nas longas horas que passara acordada e no calor letárgico da cabine — era difícil manter os olhos abertos. Depois de apenas duas horas debaixo d'água, já estava torcendo para chegar a hora de subirem à superfície quando atingissem a metade da viagem, dali a mais ou menos quatro horas.
A boa notícia era que David George aprendera as frases em russo com muita facilidade, o que a lembrara de que não se deve julgar as pessoas pela fala arrastada ou confundir animação com ingenuidade. George era esperto e capaz, com um entusiasmo juvenil que contaminava tudo que fazia. Embora fosse tão inexperiente quanto Peggy em matéria de viagens submarinas, George parecia estar gostando do passeio.
Peggy e George passaram o tempo estudando mapas de São
Petersburgo e plantas do Hermitage. A moça concordava com os analistas do MI6, que achavam que as atividades de espionagem tinham de estar ligadas ao novo estúdio de TV que Fields-Hutton estava certo ao afirmar que o estúdio ficava no subsolo. Não só o estúdio constituía uma fachada perfeita para os equipamentos de que os russos iriam necessitar e para os sinais eletromagnéticos que teriam de enviar, mas o porão estava a uma distância segura do segundo andar da ala oeste. Era ali que ficava a coleção numismática do museu; o metal das moedas poderia afetar os instrumentos mais sensíveis.
Fosse qual fosse a sua localização no interior do museu, a instalação necessitaria de cabos de comunicações. Se encontrassem esses cabos, Peggy e George poderiam descobrir o que estava acontecendo. Além disso, se o Centro ficasse mesmo no porão, era provável que os cabos tivessem sido instalados nos dutos de ventilação. Não só seria mais simples aproveitar passagens já existentes, mas também esse tipo de instalação facilitaria o acesso aos cabos para reparos ou atualizações. A questão era a seguinte: teriam de esperar até escurecer para executar a busca eletrônica ou conseguiriam encontrar algum local no interior do museu para usar os equipamentos que a moça trouxera?
Com as pálpebras ficando cada vez mais pesadas na luz mortiça, Peggy perguntou a George se poderiam prosseguir mais tarde. O rapaz admitiu que também estava ficando cansado e gostaria de um descanso. Peggy fechou os olhos e ajeitou-se no assento, procurando não pensar no submarino e imaginar que estava em um balanço no jardim de uma casa de campo em Tregaron, no País de Gales. Tinha sido ali que passara a infância e algumas férias com Keith, em um mundo da Guerra Fria que, curiosamente, tinha sido menos perigoso e mais previsível que a era pós-comunismo...
Quarenta e quatro
Terça-feira, 6:30, São Petersburgo
— General — disse Titev, um dos operadores de rádio, ao telefone —, Zilash contou-me que o senhor queria ser informado a respeito de todas as comunicações entre o General Kosigan e o ministro Dogin. Está ocorrendo uma neste exato momento, usando o código Via Láctea.
O General Orlov endireitou-se na cadeira.
— Obrigado, Titev. Ponha no meu computador.
Via Láctea era o mais complexo dos códigos usados pelos militares russos. Podia ser empregado em linhas abertas, pois não só embaralhava eletronicamente o sinal, mas também o distribuía por vários comprimentos de onda, de modo que um ouvinte sem o decodificador apropriado necessitaria, literalmente, de dezenas de receptores sintonizados em diferentes canais para interceptar todo o sinal. Tanto o escritório do ministro como o centro de comando de Kosigan dispunham de um decodificador apropriado. Titev, também.
Orlov desligou. Enquanto esperava que a mensagem fosse decodificada e enviada ao computador, comeu o sanduíche de atum que Masha tinha preparado para ele e passou em revista o que havia acontecido nas últimas três horas. Rossky recolhera-se ao seu escritório às 4:30. Era de certa forma reconfortante saber que mesmo aquele homem de ferro dos spetsnaz tinha necessidade de descansar. Orlov sabia que levaria algum tempo para acertar os ponteiros com Rossky, mas repetiu para si mesmo que, apesar de todos os seus defeitos, o coronel era um excelente soldado. Valeria a pena o esforço.
Orlov tinha saído para receber a equipe do turno da noite em sua primeira jornada de trabalho depois que o centro de operações entrara oficialmente em funcionamento, oportunidade que aproveitara para convidar o substituto de Rossky no turno da noite, coronel Oleg Dal, para um bate-papo no seu escritório. Dal, que achava Rossky ainda mais difícil de lidar do que Dogin, era um veterano da Força Aérea de sessenta anos, tinha sido professor de Orlov e era um dos muitos oficiais cujas carreiras haviam praticamente estagnado depois que Mathias Rust, um jovem alemão, conseguira evitar as defesas aéreas russas e pousara na Praça Vermelha, em 1987. Dal detestava o modo como Rossky se recusava a delegar responsabilidades, mesmo nas áreas em que não tinha muita experiência. Como Orlov, compreendia que era assim que os spetsnaz pensavam, mas isso não o fazia encarar o coronel com mais simpatia.
O general Orlov tinha contado a Dal o que sabia sobre o 76T e sua jornada para o leste. No momento, encontrava-se a sudeste do arquipélago Francisco José, no oceano Ártico. Também falara dos esforços da inteligência dos Estados Unidos para se comunicar com outros transportes russos. Dal concordara que o 76T parecia suspeito não só porque estava voando para leste, como também porque não havia registros de nenhuma compra de mercadorias em Berlim ou Helsinki. Embora os registros pudessem estar perdidos na burocracia, Dal sugerira que um caça se aproximasse da aeronave e fizesse sinal para que ela rompesse o silêncio de rádio e explicasse sua missão. Orlov concordara e pedira-lhe para conversar com o general-major Petrov, da Força Aérea, que comandava as quatro divisões da defesa aérea encarregadas de patrulhar o Círculo Polar Ártico.
Orlov decidira não falar a ninguém a respeito do dinheiro no trem; queria descobrir quais eram as intenções de Dogin e Kosigan antes de tomar qualquer atitude e esperava que a conversa que estava prestes a ouvir lhe trouxesse novas informações.
Quando a transcrição da conversa telefônica começou a chegar, Orlov engoliu às pressas o que restava do sanduíche, tirou um guardanapo de um saco de papel e levou-o aos lábios. Ainda guardava um traço do perfume de Masha. Sorriu.
Titev tinha programado o computador para indicar quais eram as falas de Kosigan e quais eram as de Dogin. O texto aparecia na forma de parágrafos, interrompidos quando mudava o interlocutor e pontuados de acordo com a inflexão do orador. Orlov começou a ler e foi ficando cada vez mais preocupado. Não era só a possibilidade de uma guerra que o deixava aflito, mas também o fato de ser difícil saber quem estava trabalhando para quem naquela empreitada.
DOGIN: General, parece que pegamos o Kremlin e o mundo de surpresa.
KOSIGAN: Essa foi minha zadacha dnia... minha missão do dia.
DOGIN: Janin está até agora tentando descobrir o que aconteceu...
KOSIGAN: Como eu disse, force-o a reagir, em vez de agir, e ele se torna outra pessoa.
DOGIN: Foi por isso que deixei que você avançasse com suas tropas antes que o dinheiro chegasse .
KOSIGAN: Deixou?
DOGIN: Concordei, deixei, que diferença faz? Você tinha razão em querer colocar Janin na defensiva o mais cedo possível.
KOSIGAN: Não podemos perder a iniciativa...
DOGIN: Isso não vai acontecer. Onde está?
KOSIGAN: Cinquenta e um quilômetros a oeste de Lvov, Polônia. Todos os regimentos da linha de frente já estão em posição e posso ver a Polônia da minha tenda de comando. Tudo que esperamos são os grandes atos de terrorismo que o dinheiro de Shovich vai me comprar. Onde estão eles? Estou ficando impaciente.
DOGIN: Talvez tenha de esperar um pouco mais do que pensávamos.
KOSIGAN: Esperar? Como assim?
DOGIN: Não contávamos com a neve. O general Orlov mandou transferir os caixotes para um trem.
KOSIGAN: Seis bilhões de dólares viajando de trem! Acha que ele suspeita de alguma coisa?
DOGIN: Não, não, não é nada disso. Ele fez isso para poder tirar a carga da zona de tempestade.
KOSIGAN: Mas de trem, ministro? Um meio de transporte tão vulnerável...
DOGIN: O trem está sendo guardado por um destacamento comandado pelo filho de Orlov. Rossky garantiu-me que o rapaz é um soldado de verdade, e não um macaco espacial.
KOSIGAN: Ele pode estar mancomunado com o pai.
DOGIN: Eu lhe asseguro, general, que não é esse o caso. Além disso, ninguém vai ouvir falar do dinheiro depois que ele for entregue. Quando isto terminar, pretendo reformar Orlov pai e devolver Orlov filho para o lugar remoto onde estava. Não se preocupe. Vou mandar buscar o carregamento a oeste de Bira, fora da zona de tempestade, e enviá-lo direto para você.
KOSIGAN: Quinze ou dezesseis horas perdidas! A primeira das escaramuças deveria estar ocorrendo daqui a poucas horas! Do jeito que as coisas estão indo, talvez Janin tenha tempo de recuperar o controle da situação.
DOGIN: Não há perigo. Já conversei com nossos aliados no governo. Eles compreendem as razões da demora...
KOSIGAN: Aliados? Não passam de interesseiros. Se Janin descobrir o que estamos fazendo e chegar até eles antes que tenhamos tempo de encher-lhes os bolsos...
DOGIN: Ele não vai fazer isso. O presidente não vai fazer nada nas próximas horas e nossos mercenários poloneses começarão a agir no momento em que forem pagos.
KOSIGAN: O governo! Os poloneses! Não precisamos de nenhum dos dois! Deixe-me mandar alguns spetsnaz disfarçados de operários atacar a delegacia e a estação de televisão.
DOGIN: Não posso deixar que você faça isso.
KOSIGAN: Deixar?
DOGIN: Eles são profissionais. Precisamos de amadores. Queremos que isso pareça uma revolução interna, não uma invasão.
KOSIGAN: Por quê? Quem é que nós temos de agradar, as Nações Unidas? Metade do Exército e da Força Aérea e dois terços da Marinha da antiga União Soviética hoje pertencem à Rússia. Controlamos 520.000 soldados do Exército, 30.000 especialistas em Foguetes Estratégicos, 110.000 especialistas em Defesa Aérea, 200.000 marinheiros . . .
DOGIN: Não podemos nos indispor com o mundo inteiro!
KOSIGAN: Por que não? Posso tomar a Polônia e depois o Kremlin. Quando estivermos no poder, o resto do mundo que vá para o inferno!
DOGIN: Como vai controlar os poloneses? Através da lei marcial? Seus soldados não seriam suficientes .
KOSIGAN: Hitler mandou executar a população de aldeias inteiras para que isso servisse de exemplo. Funcionou.
DOGIN: Pode ter funcionado há cinquenta anos, mas hoje é diferente. As antenas parabólicas, os telefones celulares e as máquinas de fax tornaram impossível isolar uma nação e subjugá-la moralmente. Já lhe disse antes que esta revolução deve ser comandada por líderes e autoridades locais, pessoas que podem ser compradas, mas em quem os poloneses confiam. Não devemos semear o caos.
KOSIGAN: E a promessa de maiores poderes quando eles ganharem as eleições daqui a dois meses? Não é suficiente para garantir o apoio dos delegados e prefeitos?
DOGIN: Claro que sim. Acontece que eles também insistiram em garantir suas contas bancárias, caso a revolução seja sufocada.
KOSIGAN: Filhos da puta!
DOGIN: Não se iluda, general. Somos todos filhos da puta. Fique calmo. Já avisei a Shovich que a remessa vai atrasar, e ele avisou aos seus capangas.
KOSIGAN: Como ele reagiu?
DOGIN: Disse que costumava marcar a passagem do tempo fazendo risquinhos na parede da cela. Alguns riscos a mais não significam muita coisa para ele.
KOSIGAN: Para o seu bem, espero que esteja certo.
DOGIN: Está tudo correndo de acordo com os planos. .. o que houve foi apenas um atraso. Em vez de daqui a vinte e quatro horas, estaremos comemorando o sucesso da revolução daqui a quarenta horas.
KOSIGAN: Espero que esteja certo, ministro. Uma coisa eu lhe prometo: pretendo entrar na Polônia, de uma forma ou de outra. Boa noite, ministro.
DOGIN: Boa noite, general, e fique tranquilo. Não vou desapontá-lo.
Quando a transmissão terminou, Orlov estava se sentindo como na primeira vez em que usara a centrífuga, quando estava treinando para ser astronauta: tonto e enjoado.
O plano era conquistar a Europa Oriental, depor Janin e construir um novo império soviético. Um plano engenhoso na sua crueldade. Um jornal comunista de uma pequena cidade da Polônia sofre um atentado terrorista. Os comunistas de várias cidades polonesas, de Varsóvia até a fronteira com a Ucrânia, reagem com violência, fora de qualquer proporção com o incidente. Dogin recebe o apoio dos antigos comunistas — ainda havia muitos poloneses que apreciavam a forma como Wladyslaw Gomulka expulsou os stalinistas em 1956 e implantou o comunismo no estilo polonês, com Nua estranha mistura de socialismo e capitalismo. A Polônia torna-se um país dividido quando as velhas alianças do sindicato Solidariedade são refeitas e, com o apoio da igreja, os operários começam a se manifestar contra os comunistas, como no tempo em que João Paulo II, um papa polonês, exortou os católicos a elegerem Lech Walesa para a presidência. Os conflitos entre comunistas e anticomunistas levam a uma repetição das greves, crises de abastecimento e arruaças que a Polônia experimentou em 1980. Muitos poloneses, não tendo o que comer, vão buscar abrigo na vizinha Ucrânia, o que reacende velhas tensões entre católicos e membros da Igreja ortodoxa ucraniana. Soldados e tanques poloneses são chamados para conter o êxodo, e as tropas de Kosigan são usadas para escoltar os refugiados de volta à Polônia. Essas tropas não deixam o país; pouco depois, os tchecos ou os romenos se tornam o alvo seguinte.
Orlov sentia-se como se estivesse sonhando não só por causa dos acontecimentos que estavam prestes a se desencadear, mas também pela posição em que colocara o filho. A única forma de frustrar os planos de Dogin seria alertar Nikita para que não entregasse a carga que lhe fora confiada. Se apesar disso Dogin saísse vitorioso, Nikita certamente seria executado; se fosse derrotado, Orlov sabia que o filho se sentiria como se tivesse traído os militares. Havia também a possibilidade de que Nikita se recusasse a obedecer ao pai. Se isso acontecesse, Orlov não teria outra escolha a não ser mandar prendê-lo. A pena para insubordinação era de um a cinco anos de prisão; isso representaria não só a ruptura definitiva entre eles, mas também um grande choque para Masha, bem maior que aquele que sofrerá depois do incidente na academia.
Como a transcrição e até mesmo a transmissão poderia ter sido forjada no Centro — montada digitalmente a partir de gravações anteriores —, não havia nada que Orlov pudesse levar ao presidente Janin como prova da traição. Entretanto, os caixotes não deviam chegar ao destino, e isso era uma coisa que ele podia dizer ao Kremlin. Enquanto isso, esperava poder convencer o filho de que Dogin, um homem que servira a seu país com muita dedicação e ajudara a evitar que o rapaz fosse expulso da Academia, era agora um inimigo da pátria.
Ao contrário do que podia parecer, o coronel Rossky não tinha se recolhido ao escritório para descansar.
Depois que Valentina Belyev fora para casa, deixando Rossky sozinho, o coronel começara a escutar as comunicações entre os escritórios do Centro, usando um sistema criado para ele pelo falecido Pavel Odina. Justamente por ter instalado o sistema, e porque ninguém mais podia saber que existia, foi que o especialista em comunicações tivera de morrer na ponte. Pavel não era um militar, mas isso não fazia diferença. As vezes, os civis também precisavam morrer depois de prestarem serviços. Era como nos túmulos do Egito antigo, cuja segurança era garantida pela morte dos arquitetos. Quando a segurança nacional estava em jogo, não podia haver lugar para sentimentalismo. Os membros do spetsnaz tinham ordens para matar qualquer companheiro que fosse ferido ou que hesitasse no cumprimento do dever. Os vice-comandantes tinham ordens para matar os comandantes que se recusassem a matar os feridos ou covardes. Se necessário, Rossky tiraria a própria vida para proteger um segredo de estado.
Tanto os telefones externos como a rede interna de comunicações do Centro de Operações estavam ligados ao computador de Rossky. Havia também escutas eletrônicas, da espessura de um fio de cabelo, nos eletrodutos, nos respiradouros e debaixo dos tapetes. Cada microfone tinha um número de código no computador. Desta forma, Rossky podia ouvir qualquer conversa usando fones de ouvido. As conversas também podiam ser gravadas digitalmente ou transmitidas ao ministro Dogin.
Rossky escutou mais uma vez, com os lábios cerrados, a conversa entre Orlov e o filho. Em seguida, ouviu a gravação do diálogo no qual o general Orlov mandava Titev monitorar as conversas entre Dogin e o general Kosigan.
É muita ousadia! pensou Rossky.
Orlov era um homem popular, um testa de ferro que tinha sido escolhido porque sua fama e seu carisma ajudariam a carrear fundos do Ministério de Finanças para o Centro de Operações. Quem era ele para questionar os atos do ministro Dogin e do general Kosigan?
E agora Rossky ouvia a conversa em que o general Orlov, aquele herói de muitas condecorações, dizia ao filho para, ao ser informado do destino do trem, dirigir-se para lá, mas não entregar os caixotes aos enviados do ministro Dogin. Na conversa, o general Orlov prometia enviar um destacamento de homens de confiança do colégio naval para confiscar a carga.
Embora Nikita não contestasse a ordem, Rossky pôde perceber, pelo seu tom de voz, que não estava nada satisfeito. Isso era ótimo. O rapaz não seria julgado por traição e executado, como o pai.
Rossky teria muito prazer de cometer pessoalmente o assassinato. Entretanto, o ministro Dogin não gostava que seus auxiliares recorressem a táticas pouco sutis. Antes que o Centro entrasse em funcionamento, o ministro instruíra Rossky para se comunicar com ele, que por sua vez recorreria ao general Mavik, o marechal de Artilharia, caso fosse necessário revogar uma ordem de Orlov.
Quando o general Orlov ligou para o major Levski, comandante do grupo Molot de doze homens, e disse-lhe que se preparasse para voar até Bira, o coronel Rossky achou que já ouvira o suficiente. Digitou uma senha no computador que lhe permitia o acesso a uma linha particular, uma linha direta para o Ministério do Interior, e colocou o ministro Dogin a par da situação. Dogin disse que se comunicaria com o general Mavik para articular a remoção de Orlov e avisou a Rossky que ele em breve assumiria o comando do Centro de Operações.
Quarenta e cinco
Terça-feira, 8:35, perto do Círculo Polar Ártico
O tenente-coronel Squires olhou distraidamente para Ishi Honda, que verificava o equipamento de comunicações na sua mochila. Enquanto estavam no 76T, usavam o rádio do avião para conversar com o Op-Center. Depois de desembarcarem, porém, teriam de recorrer à pequena antena preta presa à mochila, junto ao transmissor portátil.
Honda ajoelhou-se e desdobrou as pernas e braços da unidade de quarenta e três centímetros de diâmetro, certificando-se de que estavam totalmente estendidos. Aparafusou o cabo coaxial da antena no transmissor, colocou os fones e ficou escutando enquanto o sistema passava por um teste de autocalibragem. Depois, usou uma contagem regressiva a partir de dez para verificar o microfone e fez para Squires o sinal de que estava tudo em ordem.
Em seguida, chegou a vez de testar o receptor do sistema global de posicionamento, um aparelho do tamanho de um controle remoto, com um mostrador digital luminoso, que normalmente ficava guardado em uma bolsa lateral da mochila. Enviou um sinal de um quarto de segundo que lhe permitiria assegurar que o dispositivo estava funcionando, mas não daria tempo aos russos de localizá-lo. O soldado DeVonne estava encarregado da bússola e do altímetro do grupo e teria a responsabilidade de levá-los até o local onde seriam recolhidos depois de completada a missão.
Depois de tirar uma soneca, o sargento Chick Grey foi verificar sua veste de combate Tac III. Em lugar de máscara contra gases e pentes de submetralhadora de 9mm, os bolsos continham os C-4 que usariam na missão. Antes de saltarem de paraquedas na Rússia, todos os membros do Striker colocariam luvas de Nomex, balaclavas, macacões, óculos com lentes inquebráveis, coletes de Kevlar e botas de combate. Em seguida, verificariam o equipamento que estavam levando nas vestes Tac III e também os cintos de alpinista, as bolsas amarradas às pernas, com granadas luminosas, as submetralhadoras H&K MP5A2 de 9mm e as pistolas Beretta de 9mm com pentes de grande capacidade.
Apenas uma coisa estava faltando, pensou Squires. Trocaria todos os equipamentos de alta tecnologia por uma pequena frota de veículos leves de ataque. Depois que descessem na Rússia, o Op-Center não poderia fazer muita coisa para ajudá-los a deter o trem ou a sair do país. Entretanto, um par de VLAs para transportá-los nas pedras ou no gelo a cento e vinte quilômetros por hora, talvez com uma metralhadora M60E3 na frente e um artilheiro no banco de trás com uma metralhadora calibre .50... isso seria ótimo. Difícil de lançar de paraquedas e montar, talvez, mas muito útil.
Squires foi até a cabine para esticar as pernas e saber das novidades. A tripulação estava aliviada por não ter recebido nenhuma mensagem dos russos. O piloto Matt Mazer comentou que isso provavelmente não se devia à sua habilidade e esperteza, mas sim ao grande volume de tráfego aéreo. Depois de consultar o mapa e verificar a distância que o avião ainda teria de percorrer para atravessar o oceano Ártico e o mar de Bering para chegar ao Japão, Squires voltou para a parte traseira a tempo de receber uma chamada de Mike Rodgers. Agora que o 76T estava dentro do raio de alcance dos receptores russos, a chamada estava sendo retransmitida através de um canal que Niskanen, o ministro de defesa, tinha estabelecido na torre de Helsinki, para que não fosse possível rastreá-la até Washington.
— Aqui é Squires, general — disse, quando Honda passou o receptor.
— Coronel, temos uma novidade com relação ao trem — informou Rodgers. — Ele parou e recolheu passageiros civis. Parece que, no momento, está transportando cinco a dez homens e mulheres em cada vagão.
Squires levou alguns momentos para assimilar a informação. Ele e seu grupo tinham praticado várias vezes a invasão de trens ocupados por terroristas e reféns, caso em que o número de inimigos era pequeno e os civis estavam ansiosos para dar o fora. Aquele caso, porém, era um pouco diferente.
— Compreendo, general — disse Squires, afinal.
— Há soldados em todos os vagões — prosseguiu Rodgers, em tom preocupado. — Examinei pessoalmente algumas fotos do trem. Vocês vão ter de jogar as granadas luminosas pelas janelas, desarmar os soldados e fazer todos desembarcarem. Depois que fizerem isso, entraremos em contato com Vladivostok e informaremos onde estão os passageiros. Vão ter que deixá-los com alguns agasalhos, para que não morram de frio.
— Entendido, general.
— Vocês serão resgatados na ponte da qual falamos ontem. Estejam lá antes da meia-noite. Terão oito minutos para subir a bordo; isso é tudo que a Comissão de Inteligência do Congresso nos concedeu.
— Estaremos lá, general.
— Não gosto da forma como está sendo conduzida esta missão, Charlie, mas não parece haver alternativa — afirmou Rodgers. — Pessoalmente, achava melhor bombardear o trem, mas, por alguma razão, o Congresso reluta em matar soldados inimigos, preferindo arriscar a vida dos nossos.
— Esse é o nosso trabalho, general — disse Squires. — Além disso, o senhor me conhece. É o tipo de trabalho que eu gosto.
— Eu sei. Acontece que o oficial encarregado do trem, um segundo-tenente chamado Nikita Orlov, não é um desses garotos que entraram para o exército para ter o que comer. De acordo com sua ficha, é um lutador, o filho de um cosmonauta interessado em provar que vale alguma coisa.
— Ótimo — observou Squires. — Detestaria fazer uma viagem comprida como essa e não entrar em ação.
— Coronel, está falando comigo — disse Rodgers, em tom severo. — Deixe as bravatas para os seus soldados. Mais do que deter o trem, quero meus Strikers sãos e salvos. Está me entendendo?
— Sim, senhor.
Depois de desejar boa sorte, Rodgers desligou e Squires devolveu o fone a Ishi Honda. O operador de rádio voltou a seu lugar e Squires consultou o relógio, que não tinha se dado ao trabalho de acertar enquanto mudavam de fuso horário.
Mais oito horas, pensou. Colocou as mãos no colo, esticou as pernas e fechou os olhos. Antes de entrar para o Striker, fazia apenas sete meses, tinha passado algum tempo no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Natick, nos arredores de Boston. Ali, participara de experimentos com novos uniformes que se adaptavam instantaneamente ao ambiente, como um camaleão. Usara roupas com sensores que ajustavam a refletividade do tecido. Assistira à luta dos cientistas para modificar os genes do bicho-da-seda de modo a criar uma fibra que mudasse automaticamente de cor. Experimentara o desajeitado traje eletroforético, cuja coloração podia ser modificada aplicando-se um campo elétrico a um corante líquido colocado entre duas camadas de tecido plástico. Lembrava-se de ter pensado, na ocasião, que até o final do século os uniformes camuflados, os tanques invisíveis e as sondas sem piloto permitiriam que os Estados Unidos entrassem em guerra sem colocar em risco a vida ] de ninguém, e que os novos heróis seriam os cientistas, não os soldados.
Para sua surpresa, a ideia o entristecera. Embora nenhum soldado quisesse morrer, parte da motivação de todos os guerreiros que conhecera era a vontade de testar os próprios limites, o desejo de arriscar a vida pela pátria ou pelos companheiros. Sem esse perigo, I sem esse preço, sem essa vitória conquistada com esforço, talvez a liberdade não tivesse tanto valor.
Com essa ideia na cabeça e com a voz de Rodgers ainda ressoando nos ouvidos, Squires adormeceu, pensando que pelo menos haveria as brigas de galo na piscina da base, com o filho nos ombros e o soldado George caindo para trás, com uma expressão de surpresa no rosto...
Quarenta e seis
Terça-feira, 14:06, São Petersburgo
Algumas horas antes de chegarem à costa da Rússia, Peggy James e David George tiveram vinte e sete minutos para apreciar o ar puro da manhã no golfo da Finlândia. Em seguida, tornaram a entrar no minissubmarino para a segunda parte da jornada. Era menos do que Peggy gostaria, mas o suficiente para deixá-la mais animada.
Quando faltava uma hora para o fim da viagem, o capitão Rydman desceu do seu poleiro na torre e ficou de cócoras no espaço exíguo entre o casco e os passageiros. Peggy e George já haviam verificado os equipamentos que levavam nas mochilas à prova d'água e estavam vestindo os uniformes russos. George desviou os olhos quando Peggy colocou a saia azul. Rydman, não.
Quando a moça terminou, Rydman abriu uma caixa de metal pintada de preto, de trinta e cinco centímetros de comprimento por trinta de altura e quinze de espessura, que havia no casco, à esquerda da sua cabeça, e sussurrou:
— Quando subirmos, vou dar a vocês sessenta segundos para inflar a balsa. Para isso, basta puxar este pino — enfiou o dedo em um anel preso a um fio de náilon e apontou para os remos acima e abaixo da balsa comprimida. — Os remos estão dobrados ao meio. A balsa tem inscrições em russo que conferem com os documentos que estão levando. Vocês pertencem à tripulação de um submarino classe Argus, da base de Koporskiy Zaliv. Acredito que já tenham “ido instruídos a respeito.
— Superficialmente — observou George.
— Como se diz isso em russo? — perguntou Peggy.
George franziu a testa, tentando se lembrar.
— Myedlyenna — declarou, orgulhosamente.
— Isso quer dizer devagar — corrigiu Peggy —, mas tudo bem. Capitão — disse, olhando para Rydman —, por que apenas sessenta segundos? Não precisa renovar o ar e carregar as baterias?
— Ainda podemos passar uma hora debaixo d'água... o suficiente para deixarmos as águas russas para trás. Sugiro que vocês deem mais uma olhada nos mapas. Precisam conhecer bem as vizinhanças do local onde vamos deixá-los.
— A Petergofskoye Shosse atravessa o parque — afirmou Peggy. — Devemos segui-la até a Prospekt Stachek e descer a rua em direção ao rio. O Hermitage fica a leste.
— Excelente — disse Rydman. — Vocês sabem dos trabalhadores, claro.
A moça olhou para ele, surpresa.
— Que trabalhadores?
— Pelo amor de Deus, está em todos os jornais! Milhares de trabalhadores vão se reunir esta noite na Praça do Palácio para celebrar o início de uma greve geral de vinte e quatro horas em todo o país. A greve, anunciada ontem, foi convocada pela Federação Russa de Sindicatos de Livre Comércio para reivindicar salários atrasados e pensões mais justas para os trabalhadores. O encontro vai ser à noite para não assustar os turistas.
— Não sabíamos de nada — afirmou a moça. — Nossas organizações sabem até o que o presidente Janin lê no banheiro, mas não acompanham o noticiário.
— A não ser que seja isso que ele costuma ler — observou George.
— Obrigada por tudo, capitão — disse Peggy.
Rydman fez que sim com a cabeça e voltou à torre para dirigir o pequeno submarino durante a fase final da jornada.
Peggy e George permaneceram em silêncio enquanto o submarino voltava a mergulhar. A agente inglesa estava pensando se a presença de milhares de civis e centenas de policiais nas vizinhanças do Hermitage era uma vantagem ou uma desvantagem. Provavelmente era uma vantagem. Os policiais estariam ocupados demais, mantendo os trabalhadores indignados na linha, para se preocupar com dois marinheiros russos.
O desembarque foi executado rapidamente. Depois de usar o periscópio para se assegurar de que não havia nenhuma embarcação nas proximidades, o submarino subiu à superfície. Rydman abriu a escotilha e Peggy saiu. Estavam a uns seiscentos metros da costa e havia muita neblina. Era pouco provável que fossem vistos, mesmo que os russos soubessem onde procurar, pensou a moça, enquanto George lhe passava o pacote surpreendentemente pesado. Ainda de pé na torre, Peggy enfiou o dedo no anel e jogou a balsa no mar. Ela se inflou quase instantaneamente. Apoiando-se com os braços nos lados da torre, a moça sentou-se no casco do submarino e escorregou para a balsa. George saiu do submarino com os remos, passou-os para Peggy, entregou-lhe as mochilas e depois foi juntar-se a ela na balsa.
— Boa sorte — disse Rydman, enfiando a cabeça para fora por um momento antes de fechar a escotilha.
O pequeno submarino foi embora menos de dois minutos depois de subir à superfície, deixando Peggy e George sozinhos nas águas tranquilas.
Não falaram nada enquanto remavam para a praia, Peggy procurando a península que assinalava o limite norte da enseada onde ficava o parque.
A correnteza estava favorável, mas mesmo assim remaram vigorosamente para se manter aquecidos. O vento gélido penetrava nos decotes em V dos paletós dos uniformes. Estavam usando por baixo apenas uma fina camiseta listrada azul e branca. As fitas azuis dos quepes brancos mal conseguiam mantê-los no lugar.
A dupla conseguiu chegar ao litoral em pouco mais de quarenta e cinco minutos. O parque onde desembarcaram estava relativamente deserto. George amarrou a balsa em uma das várias estacas. Enquanto colocava a mochila nas costas, Peggy queixou-se em voz alta, em russo, por ter que fazer a manutenção das boias em um dia tão frio. Ao mesmo tempo, olhou em volta. A pessoa mais próxima estava a uns duzentos metros de distância, um artista sentado em uma espreguiçadeira, debaixo de uma árvore, fazendo um retrato em creiom de uma turista loura, enquanto o namorado assistia à cena com ar de aprovação. A mulher estava olhando na direção deles, mas não parecia tê-los visto. Um policial caminhava em uma alameda um pouco mais distante, enquanto um homem barbado cochilava em um banco, com um walkman no peito e um São Bernardo descansando na grama a seu lado. Um homem em trajes esportivos passou correndo pelo artista. Peggy nunca havia pensado que os russos praticassem corrida ou qualquer outra atividade de lazer; a visão causou-lhe estranheza.
Menos de três quilômetros ao sul do parque, aviões estavam pousando regularmente no aeroporto de São Petersburgo. O rugir dos motores perturbava a tranquilidade do ambiente, mas esse era o paradoxo da Rússia, a aspereza insensível da modernidade, manchando a beleza do passado. Olhou para o norte, na direção da cidade, e viu cúpulas azuis, cúpulas douradas, cúpulas brancas, torres góticas, estátuas de bronze, canais sinuosos e uma infinidade de telhados planos, quase todos castanhos. São Petersburgo era mais como Veneza ou Florença do que como Londres ou Paris. Keith devia ter adorado conhecê-la.
George acabou de amarrar a balsa, colocou a mochila no ombro e aproximou-se da companheira.
— Estou pronto — disse.
Peggy olhou na direção da espaçosa Petergofskoye Shosse, a menos de seiscentos metros de distância. De acordo com o mapa se seguissem a rua, chegariam a uma estação de metrô. Uma mudança de trem na estação do Instituto Tecnológico os levaria à porta do Hermitage.
Quando começaram a caminhar, Peggy comentou em russo sobre o estado das boias e de como os mapas das correntes estavam desatualizados.
O homem que estava sentado no banco acompanhou-os com os olhos. Sem mexer as mãos, que estavam no colo, falou em um pequeno microfone escondido na barba farta.
— Aqui é Ronash — disse. — Dois marinheiros acabam de desembarcar no parque e deixaram sua balsa. Levam mochilas nas costas e estão indo para leste, a pé.
O agente de Rossky olhou na direção da linda finlandesa, suspirou fundo e decidiu que da próxima vez ia se disfarçar de artista.
Quarenta e sete
Terça-feira, 6:09, Washington, D.C.
Tinha sido uma noite tranquila para Paul Hood.
Conseguira localizar Sharon e as crianças no Bloopers na noite anterior e depois de ouvir a respeito do jelly bean burger e do icecream soda de peru, esticara o corpo no sofá do escritório, enquanto Curt Hardaway cuidava do turno da noite. Ex-principal executivo da Sean Corp, uma empresa que vendia software de navegação para os militares, Hardaway era um administrador competente, um líder dinâmico e conhecia muito bem os meandros do governo federal. Aposentara-se aos sessenta e cinco anos com mais de um milhão de dólares no bolso e costumava brincar que seria um bilionário se negociasse com a indústria privada em vez de trabalhar para o governo. Uma vez tinha dito a Hood: “Jamais abro mão da qualidade, por menos que o governo esteja pagando. Não quero ver um garoto sentado na cabine de um Tomcat, pensando: ‘Tudo isto foi fabricado por quem ofereceu o preço menor’/”
Extraoficialmente, Paul Hood e Mike Rodgers paravam de trabalhar às 18:00. Oficialmente, porém, nenhum dos dois saía de serviço até deixar o prédio. Enquanto estavam ali, nem o diretor da noite, Bill Abram, nem Curt Hardaway jamais haviam tentado “tirar os ossos daqueles dois cachorros”, nas palavras de Hardaway.
Enquanto estava ali deitado, sem sapatos, com os pés apoiados no braço do sofá, pensava na família — as pessoas que mais amava, mas que parecia desapontar a todo instante. Talvez isso fosse inevitável. Há uma tendência para deixarmos de lado as pessoas mais próximas, porque sabemos que elas não nos abandonarão em nenhuma circunstância. Entretanto, isso lhe pesava na consciência. Ironicamente, as pessoas que realmente parecia ter agradado no dia anterior eram aquelas com quem tinha menos afinidade, Liz Gordon e Charlie Squires. A moça porque reconhecera seu trabalho, usando-o em sessão de planejamento, e o tenente-coronel porque estava permitindo que executasse uma missão importante.
Entre dois cochilos, Hood também olhou para o relógio que mostrava a contagem regressiva para o momento em que recolheriam o Striker nas tundras.
Vinte e cinco horas, cinquenta minutos e contando, pensou. Ao ligar o relógio, Hardaway ajustara-o para trinta e sete horas, mais ou menos. Como se sentiriam todos quando a contagem chegasse a zero? Como estaria o mundo nesse momento?
Era ao mesmo tempo deprimente e estranhamente excitante. Fosse como fosse, olhar para o relógio era melhor do que assistir à CNN. O noticiário só falava do atentado em Nova York e de uma possível relação com o ataque a um jornal da Polônia. Eivai Ekdol declarara-se ligado à Força de Oposição Ucraniana, constituída por soldados que não concordavam com a entrada de forças russas no país. Era uma manobra esperta, Hood tinha de admitir. O miserável estava fazendo a opinião pública americana apoiar a união russo-ucraniana ao denunciá-la com veemência.
Hood foi despertado pela notícia do minissubmarino, transmitida através de Helsinki, de que o soldado George e Peggy James tinham desembarcado em São Petersburgo. Cinco minutos depois, foi informado por Mike Rodgers — que também passara a maior parte da noite acordado — de que o 76T havia entrado no espaço aéreo russo e estava se aproximando do alvo. Estaria lá em aproximadamente vinte minutos. Rodgers contou-lhe que o chaff1 lançado pelo 76T ao se aproximar da costa tinha desorientado o posto de observação de Nakhodka o suficiente para permitir que a aeronave se misturasse aos outros transportes. Até o momento, ninguém havia prestado nenhuma atenção a seus movimentos.
— A Defesa Aérea não reagiu à interferência? — perguntou Hood, em tom incrédulo.
— Só lançamos o chaff apenas para esconder a direção de onde estávamos chegando — explicou Rodgers. — Depois que o 76T entrou na Rússia, não fizemos mais nada fora do comum. A tripulação não está usando o rádio e depois que desembarcar o Striker informará Nakhodka que estão indo a Hokkaido buscar peças de reposição para transmissores.
— Ainda não acredito que tenham entrado na Rússia com tanta facilidade — observou Hood.
— Os russos estão com falta de pessoal — disse Rodgers. — Seus operadores de radar trabalham muito mais do que os nossos. Se não fizermos nenhuma bobagem, é pouco provável que nos descubram.
— Tem certeza de que é isso mesmo — perguntou Hood —, ou será que estão preparando uma armadilha?
— Consideramos esta possibilidade quando estávamos planejando a operação. Não haveria motivo para os russos se arriscarem a permitir que uma força de ataque desembarcasse em seu território. A verdade, Paul, é que a Rússia com quem você se preocupa não existe mais.
— A Rússia de hoje ainda é suficiente para nos deixar roendo as unhas — replicou Hood.
— Touché — disse Rodgers.
Hood levantou-se, telefonou para Bugs Benet, pediu-lhe para reunir os chefes de departamento no Tanque e foi para o seu banheiro particular lavar o rosto. Enquanto se enxugava, continuava pensando na Rússia. Será que Mike estava certo ou será que eles estavam sendo excessivamente otimistas, influenciados pela euforia que se seguira à queda do comunismo russo e da União Soviética?
A União Soviética estava realmente extinta? Aquilo não seria apenas um sonho, uma ilusão, um período de transição como as tréguas que separavam as grandes eras glaciais? Será que as forças do mal tinham apenas se recolhido temporariamente para logo se reagrupar e tornar a aparecer mais fortes do que nunca?
Os russos não estavam acostumados à iniciativa e à liberdade. Eram governados por ditadores desde o tempo de Ivã, o Terrível.
Desde o tempo de Ivan Grozny, pensou, com um arrepio.
Ao se dirigir para o Tanque, Hood não acreditava que, acontecesse o que acontecesse nas próximas horas, o Império do Mal estivesse morto para sempre.
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1 Chaff: Folhas metálicas lançadas por aviões para confundir aparelhos de radar. (N. do T)
Quarenta e oito
Terça-feira, 14:29, São Petersburgo
Durante sua primeira missão espacial, o general Orlov não pudera falar com Masha; ao voltar, encontrara-a emocionalmente tensa. A esposa havia comentado que desde o tempo de namoro nunca haviam passado um dia inteiro, quanto mais três, sem se falar.
Na ocasião, tinha considerado aquilo um tolo sentimentalismo da mulher. Quando Nikita nasceu, porém, e Masha teve uma hemorragia e passou algum tempo sem poder falar, percebeu que ouvir a voz de um ente querido podia ser um grande consolo. Se Masha pudesse dizer “Eu te amo”, aqueles longos dias passados à sua cabeceira teriam sido muito mais fáceis de suportar.
Jamais deixou novamente que se passasse um dia sem falar com a esposa. E sempre se surpreendia ao constatar o bem que até mesmo uma conversa rápida podia fazer a ambos. Embora Masha não devesse saber qual era a natureza do seu trabalho no Hermitage, havia contado a ela. Naturalmente, omitira os detalhes e não dissera nada a respeito dos companheiros de trabalho, com exceção de Rossky; afinal, tinha de ter alguém com quem se queixar.
Depois de ligar para Masha às 10:30 da manhã e dizer à desapontada esposa que “os negócios iam tão bem” que não sabia quando poderia voltar para casa, Orlov se dirigira ao centro de comando. Queria estar com sua equipe para comemorar a passagem do primeiro meio dia de funcionamento do centro.
Rossky chegou pouco depois das onze, e ele e Orlov assumiram aquelas que se haviam tornado suas posições extraoficiais no centro de comando. Orlov começou a caminhar lentamente atrás do banco de operadores de computador, cada um dos quais monitorava uma pequena parte do universo de inteligência. Rossky postou-se atrás do cabo Ivashin, observando a ligação com Dogin e os outros ministros do Kremlin. Rossky parecia ainda mais tenso e concentrado do que de costume enquanto acompanhava os acontecimentos militares e políticos. Orlov não acreditava que a chegada iminente de dois agentes inimigos, procedentes da Finlândia, fosse motivo para tanta preocupação, mas achou melhor ficar calado. Na maioria das vezes, questionar as atitudes do coronel Rossky era pura perda de tempo.
Às 13:30, o Centro de Operações interceptou um comunicado da estação da Defesa Aérea em Nakhodka para o escritório de inteligência do marechal da Força Aérea revelando que o radar estivera fora de ação durante aproximadamente quatro minutos, mas parecia ter voltado ao normal. Enquanto a Defesa Aérea verificava as transmissões de todas as aeronaves na região e comparava-as com os sinais na tela do radar, para se certificar de que não havia intrusos, Orlov teve certeza de que a interrupção tinha sido causada pelo 76T proveniente de Berlim. Ele agora estava no espaço aéreo russo, rumando para oeste — a menos de uma hora do local onde se encontrava o trem.
Telefonou imediatamente para o substituto de Titev no turno da tarde, Gregori Stenin, e pediu-lhe para chamar o escritório do marechal. Responderam que o marechal estava em reunião.
— Diga que é urgente — ordenou Orlov.
Rossky pediu os fones a Ivashin.
— Deixe-me falar com eles.
Enquanto Orlov continuava a esperar ao telefone, o marechal Petrov atendeu a ligação de Rossky. Orlov viu um brilho de satisfação nos olhos do coronel.
— Marechal — disse Rossky —, tenho uma chamada para o senhor do general Sergei Orlov, do Centro de Operações de São Petersburgo.
— Obrigado, coronel — agradeceu Petrov.
Orlov levou alguns momentos para recuperar a voz. Para o chefe de um centro de inteligência, estava de repente se sentindo muito ignorante.. e muito vulnerável.
Orlov contou ao marechal do 76T e Petrov informou que já havia enviado um par de MiGs para forçá-lo a pousar ou abatê-lo. Orlov desligou e se aproximou de Rossky.
— Obrigado — disse.
Rossky se empertigou.
— Não há de quê.
— Conheço o marechal socialmente, coronel.
— Isso é um privilégio de poucos, general.
— Você o conhece?
— Não, senhor.
— Então explique — disse Orlov, em tom incisivo.
— Não estou entendendo, general.
Nesse momento, Orlov teve certeza de que a conversa com Petrov e agora com ele era uma espécie de jogo. Entretanto, não estava disposto a entrar publicamente em uma disputa de poder, uma disputa na qual poderia muito bem ser derrotado.
— Tudo bem — disse. — Pode voltar a seu posto.
— Sim, senhor — disse Rossky.
Orlov estava começando a suspeitar que até mesmo sua nomeação para aquele cargo fazia parte de um plano mais amplo. Enquanto Delev, Spansky e outros olhavam para ele de soslaio, a única questão que o preocupava era saber com quem poderia contar, quem estaria envolvido na trama desde o início e quem — como Petrov — tinha sido introduzido à última hora. O que mais o magoava era a ideia de que os amigos talvez o abandonassem para salvar a própria pele.
Orlov voltou a seu posto atrás do banco de computadores, embora não fosse o mesmo que ocupara alguns minutos antes. O equilíbrio de poder fora visivelmente alterado a favor de Rossky. Orlov sabia que era preciso fazer alguma coisa. Jamais se acovardara diante de nada e não pretendia sair dali derrotado. Teria que minar rapidamente a posição do coronel, e sem permitir que ele recorresse a manobras furtivas; jamais conseguiria derrotá-lo nesse plano.
Orlov convenceu-se de que havia apenas uma atitude a tomar no momento em que Ivashin informou ao coronel que um agente de segurança da polícia de São Petersburgo, Ronash, tinha ligado para a chefatura.
Rossky pegou os fones, encostou um deles no ouvido e escutou em silêncio, enquanto o sargento Lizichev contava o que Ronash havia testemunhado.
O coronel aproximou o microfone da boca.
— Sargento, diga a Ronash para seguir aqueles dois — ordenou. — São os que estávamos procurando. Provavelmente vão para o metrô. Nesse caso, Ronash deve entrar no trem com eles. Mande policiais à paisana esperarem na estação de baldeação do Instituto Tecnológico e também nas paradas de Gostinyy Dvor e Prospekt Nevsky. Provavelmente vão saltar na Nevsky; encontrarei seus homens lá. — Escutou por um momento e acrescentou: — Cachecóis listrados em vermelho e amarelo... está certo, não posso deixar de reconhecê-los.
Rossky devolveu os fones a Ivashin e caminhou até onde estava Orlov.
— General, o senhor tem sido leal ao Centro e à Rússia — disse, pausadamente — e não fez nada que possa prejudicá-lo no futuro. Para o bem da sua pensão e do futuro de seu filho, espero que continue assim.
— Impertinência registrada, coronel — replicou Orlov, em tom severo. — Vou lhe dar uma repreensão. Mais alguma coisa?
Rossky fuzilou-o com os olhos, mas não disse nada.
— Ótimo. — Orlov apontou para a porta com a cabeça. — Quando voltar, esteja preparado para cumprir ordens, minhas ordens, ou será enviado de volta a Moscou.
O general sabia que Rossky tinha que sair para encontrar os agentes, mas aos outros pareceria que estava obedecendo ao seu comando.
Rossky deu meia-volta sem fazer continência e saiu apressadamente do centro de comando. Orlov tinha certeza de que o coronel não entregaria o Centro de Operações sem resistência no caso de um golpe. Era disso que estavam falando, percebia agora. Embora permanecesse no centro de comando, seu pensamento estava com Rossky. Qual seria o próximo passo do coronel?
Quarenta e nove
Terça-feira, 21:30, Khabarovsk
— De acordo com o espelho retrovisor, temos companhia — avisou Matt Mazer ao coronel Squires.
O Striker tinha ido visitar a cabine três minutos antes de deixar o avião para agradecer ao piloto pela ajuda. A tela do radar mostrava claramente dois pontinhos se aproximando a mais de mil quilômetros por hora.
— Prepare-se para liberar combustível — disse Mazer ao copiloto, John Barylick.
— Sim, senhor — respondeu o novato, que, embora aparentemente calmo, não parava de mascar chiclete.
A Força Aérea havia equipado o 76T com um tanque de combustível dividido em dois compartimentos: um que alimentava o avião, outro que podia ser esvaziado ao apertar de um botão. Se fossem descobertos, o vazamento de combustível seria usado como desculpa para o avião mudar de rumo. Podiam pousar imediatamente, se isso fosse necessário para não serem abatidos ou escoltados até uma base russa — ou, próximos da costa como estavam, podiam deixar o espaço aéreo russo e voltar para a casa.
Em qualquer dos dois casos, Squires sabia que era pouco provável que o 76T voltasse para buscá-los.
— O que pretende fazer, coronel? — perguntou o piloto a Squires.
— Vamos saltar — declarou Squires. — Vou avisar ao Op-Center o que aconteceu e eles darão um jeito de nos tirar daqui.
O piloto olhou novamente para a tela do radar.
— Daqui a noventa segundos, os MiGs estarão suficientemente próximos para ver os paraquedas.
— Nesse caso, vamos saltar já — propôs Squires.
— Gosto do seu jeito, coronel — disse o piloto, batendo uma continência.
Squires voltou correndo para o compartimento traseiro. Decidiu não contar aos outros o que estava acontecendo. Não era hora. Precisava que se concentrassem no salto. Embora estivesse disposto a enfrentar o demônio em pessoa com aqueles soldados a seu lado, uma preocupação errada no momento errado podia custar vidas.
Na Academia do FBI, em Quantico, os Strikers tinham praticado vários tipos de desembarque aéreo, desde saltos noturnos de paraquedas até ataques em que os membros da equipe ficavam pendurados debaixo de helicópteros, sustentados por cabos, e desciam simultaneamente em torres de igreja, colinas e até mesmo no teto de ônibus em movimento. Todos os membros da equipe tinham a coragem, a energia e a inteligência necessárias para o trabalho. Entretanto, a interpretação dos exames minuciosos realizados pelos médicos era muito fácil: ou os soldados estavam em condições de servir no Striker ou não estavam. Apesar dos melhores esforços de Liz Gordon e sua equipe de psicólogos, a verdadeira questão era como se comportariam quando fossem submetidos às pressões de uma missão de verdade... quando não houvesse uma rede de segurança para apará-los se caíssem do alto de um telhado. Quando se dessem conta de que o terreno acidentado não era o campo de treinamento de Camp Dawson, em West Virgínia, mas as montanhas da Coreia do Norte ou as tundras da Sibéria.
Não era por falta de respeito ou de confiança que Squires lhes sonegava informações; o objetivo era poupá-los, na medida do possível, de perturbações externas que pudessem afetar negativamente o seu desempenho.
Os Strikers estavam prontos para saltar, como tinham estado durante a última meia hora. A cada cinco minutos, o navegador fornecia a Squires as coordenadas exatas, caso fosse preciso pular antes da hora. O grupo aproveitara o tempo para se preparar para a “infiltração”. Cada membro verificara as armas e a mochila de um companheiro, certificando-se de que estavam firmemente amarradas no peito, costas e lados, e que a mochila nas costas não interferiria com a abertura do paraquedas. O equipamento de alpinismo estava acondicionado em sacos que três dos Strikers carregavam na ponta de cordas de cinco metros, que penderiam abaixo deles durante o salto. Os companheiros verificaram também os capacetes forrados de couro, as máscaras de oxigênio e os óculos de visão noturna. Esses óculos eram tão pesados que era preciso colocar contrapesos na parte traseira do capacete. Depois de alguns meses de treinamento com eles, a maioria dos Strikers descobria que o número do seu colarinho tinha aumentado um ou dois pontos por causa do espessamento dos músculos do pescoço. Pouco antes que a porta fosse aberta, transferiram a tomada de oxigênio das máscaras da alimentação de bordo para os tanques portáteis que levavam amarrados à cintura.
As luzes vermelhas acenderam e um vento cortante invadiu o compartimento. O ruído tornou-se ensurdecedor. Assim que uma lâmpada verde se acendeu, mostrando que estavam sobre o alvo, Squires foi até a porta, girou o corpo e atirou-se no espaço de cabeça para baixo, na posição do “sapo”. Com o canto do olho, viu o segundo membro do grupo, o sargento Grey, saltar atrás dele. Em seguida, consultou o grande altímetro redondo que levava no pulso direito.
Os números estavam mudando rapidamente: onze mil metros, dez mil e quinhentos, dez mil. Apesar das roupas pesadas, o ar gelado entrou em contato com sua pele, enregelando-o, e depois fazendo-o sentir fisgadas, graças à combinação de frio e alta pressão. Abriu os braços e as pernas; quando o altímetro indicou nove mil metros, puxou a corda prateada. Sentiu um leve solavanco e as pernas começaram a balançar sob o seu corpo.
Enquanto descia no céu escuro e sem nuvens, a temperatura do ar aumentou perceptivelmente, embora ainda estivesse abaixo de zero. Enquanto os outros membros da equipe se agrupavam, orientados pela tira fosforescente no capacete de Squires, o tenente-coronel observava o solo em busca dos pontos de referência: a linha de trem, a ponte, as montanhas. Estavam todos lá, o que deixou Squires aliviado. No início de uma missão, um dos fatores psicológicos mais importantes era chegar ao alvo com boa precisão. Isso não só fazia os soldados se sentirem mais competentes, mas também os deixava mais à vontade, já que conheciam de cor os mapas da região. Era menos uma coisa para se preocupar.
Embora estivesse muito escuro, os óculos de visão noturna permitiram que Squires reconhecesse o rochedo onde deviam pousar. Usou as correias para manobrar o paraquedas de modo a se aproximar o máximo possível da beira do penhasco. Combinara com os Strikers que deveriam todos descer atrás dele; a última coisa que queria era que um dos companheiros errasse o alvo. Se caíssem numa plataforma da montanha, teriam que ser resgatados, o que consumiria um tempo precioso; se descessem na planície, podiam ser vistos.
Uma rajada de vento perto do chão pegou Squires de surpresa, fazendo-o descer a apenas cinco metros da borda da montanha. Deitando-se de lado para reduzir a resistência do corpo ao vento, o tenente-coronel livrou-se rapidamente do paraquedas, dobrou-o e levantou-se para assistir à chegada do sargento Grey, do soldado DeVonne e dos demais. Sentiu orgulho deles quando desceram com precisão; em menos de cinco minutos, os seis Strikers tinham amarrado os paraquedas em uma árvore. O soldado DeVonne ficou para trás para instalar uma pequena bomba incendiária sob os paraquedas. Estava programada para explodir à 0:18, depois que os Strikers estivessem longe dali, destruindo a si mesma e aos paraquedas, não deixando nenhum vestígio que os russos pudessem apresentar às Nações Unidas como “prova” de uma incursão dos americanos.
Quando os Strikers estavam se agrupando em torno de Squires, puderam ouvir o rugir distante de outros motores de avião além dos do 76T.
— Parece que eles têm companhia — observou o soldado Eddie Medina.
— Estão preparados para isso — afirmou Squires. — Soldado Honda, monte o TAC-Sat. Todos os outros, preparem-se para descer a montanha.
Enquanto os outros cinco Strikers usavam grampos para prender as cordas de alpinismo na encosta da montanha, Squires chamou o Op-Center.
— Bom dia — disse, quando Mike Rodgers atendeu do outro lado da linha. — Gomo está a manhã por aí?
— Fresca e ensolarada — respondeu Rodgers. — Gharlie, você está sabendo dos MiGs...
— Estou.
— OK. Estamos trabalhando nisso. O 76T vai tentar chegar a Hokkaido, mas não poderá voltar. Estamos preparando uma variante do plano original. Esteja no local combinado, na hora combinada. Vamos mandar uma aeronave para lá.
— Entendido.
Estava subentendido que se ocorresse algum problema, o grupo teria que encontrar algum lugar para se esconder. Vários locais promissores tinham sido assinalados nos mapas; em caso de necessidade, procurariam o mais próximo.
— Boa sorte — disse Rodgers, antes de desligar.
Charlie devolveu o receptor a Honda. Enquanto o operador de rádio guardava o TAC-Sat, Squires examinou o terreno. Não era preciso o brilho verde e fantasmagórico dos óculos de visão noturna para que parecesse morto e desolado sob a abóbada de estrelas anormalmente luminosas. Os trilhos aproximavam-se da montanha fazendo uma curva suave a partir da planície a leste, passavam por um desfiladeiro natural e continuavam por um terreno plano, semeado de arbustos e placas de neve. Ao sul, havia montanhas. A região parecia totalmente deserta; os únicos sons eram o zumbido do vento e o ruído que as botas dos Strikers faziam ao deslocar as pedras soltas da encosta.
Depois de terminar a tarefa, Honda foi juntar-se ao grupo. Com um último olhar para leste, a direção de onde deveria surgir a presa, Squires também se dirigiu ao local onde os Strikers estavam ultimando os preparativos para descer a montanha.
Cinquenta
Terça-feira, 21:32 Khabarovsk
Nikita tinha um instinto peculiar para aeronaves. Talvez por ter passado a infância no Cosmódromo, sempre ouvia a aproximação de helicópteros muito antes dos companheiros. Podia reconhecer os diferentes tipos de jatos pelo ruído das turbinas. A mãe costumava dizer-lhe que os anos que o pai passara em cabines de aeronaves tinham afetado os seus genes, “contaminando-os com combustível de aviação”, tinham sido essas as palavras da mãe. Nikita não acreditava nisso. Adorava voar. Entretanto, tornar-se um aviador, ser comparado ao herói nacional Sergei Orlov, teria sido impossível. Assim, mantinha essa paixão em segredo, como um sonho cuja magia não pudesse ser explicada a mais ninguém.
O trem reduziu a marcha ao se aproximar de um trecho da linha onde a neve havia se acumulado. Apesar do ruído do vento que entrava pela janela aberta, passando pela veneziana, Nikita ouviu o som característico de turbinas de MIG. Eram dois deles, chegando do leste para juntar-se ao transporte que voava diretamente acima. Não eram os primeiros jatos que ouvia, mas havia algo de diferente neles.
Enfiou a cabeça para fora da janela e voltou o ouvido esquerdo para cima. Embora fosse impossível ver alguma coisa por causa da neve que caía, os sons podiam ser ouvidos com toda a clareza. Escutou atentamente. Os MIGs não estavam escoltando o 76T, estavam perseguindo-o. Ouviu quando o 76T, e depois os jatos, mudaram de direção e rumaram para leste.
Aquilo não estava certo. Podia muito bem ser o 76T a respeito do qual o pai o alertara.
Nikita recolheu a cabeça para dentro do vagão, indiferente à neve que se acumulara no cabelo e no rosto.
— Chame o coronel Rossky pelo rádio — ordenou ao cabo Fodor, que estava sentado à mesa, aquecendo as mãos no lampião.
— Sim, senhor — respondeu o cabo, dirigindo-se ao aparelho.
Enquanto Fodor se agachava ao lado do transmissor, esperando que a ilha Sacalina retransmitisse o chamado, os olhos de Nikita detiveram-se nos civis que haviam recolhido, enquanto procurava mentalmente outras explicações para o que ouvira. Um defeito mecânico poderia ter feito o transporte retornar, mas nesse caso ele não precisaria de uma escolta. Será que havia alguém à procura do trem, tentando ajudá-los? Seu pai, talvez? O general Kosigan? Ou podia ser outra pessoa?
— Ele não está — anunciou Fodor.
— Peça para falar com o general Orlov — ordenou Nikita com impaciência.
Fodor obedeceu e em seguida passou-lhe o fone.
— Ele está na linha, tenente.
Nikita sentou-se de cócoras.
— General?
— O que foi, Nikki?
— Há um transporte lá em cima — disse Nikita. — Estava indo para oeste até que dois jatos apareceram. Depois, mudou de rumo.
— É o 76T — afirmou Orlov.
— Quais são minhas ordens? — perguntou Nikita.
— Pedi permissão ao presidente para mandar tropas a seu encontro em Bira — disse o general —, mas meu pedido ainda não foi atendido. Até segunda ordem, faça o que for preciso para proteger o carregamento.
— Como equipamento de guerra ou como prova?
— Isso não é da sua conta. Suas ordens são para protegê-lo.
— Sim, senhor — disse Nikita.
Depois de entregar o receptor a Fodor, o jovem oficial foi para a parte traseira do vagão, abrindo caminho entre os passageiros. Os cinco homens e as duas mulheres estavam sentados em esteiras jogando cartas, lendo ou tricotando à luz do lampião. Nikita abriu a porta e passou por cima do engate escorregadio. Uma chuva de neve caiu em seus ombros quando abriu a porta do outro vagão.
No interior, o corpulento sargento Versky conversava com um de seus comandados, enquanto vigiavam a janela do lado norte. Outro homem estava de plantão na janela sul. Todos ficaram em posição de sentido quando o tenente Orlov entrou.
— Sargento — disse Nikita, batendo continência —, quero atiradores no teto do trem, dois em cada vagão, revezando-se a cada meia hora.
— Sim, senhor — disse Versky.
— Se não houver tempo para pedir instruções — prosseguiu Nikita —, seus homens devem atirar em qualquer um que se aproxime do trem. — Olhou para os civis, quatro homens e três mulheres, que tinham embarcado na última estação. Um dos homens estava sentado com as costas apoiadas em um caixote, dormindo. — E deixe sempre alguém vigiando o vagão, sargento. Não quero que nada aconteça com meu carregamento.
— Pode deixar, tenente.
Nikita voltou ao seu vagão, imaginando onde estaria Rossky... e se, caso não conseguisse se comunicar com o coronel, deixaria que os caixotes fossem entregues a seu pai.
Cinquenta e um
Terça-feira, 6: 45, Washington, D.C.
— Outra mensagem do ENR — comunicou Bugs Benet a Hood e aos outros diretores do Op-Center, que estavam reunidos em torno da mesa de conferências do Tanque.
— Obrigado — disse Hood para a imagem do assistente no monitor. — Pode começar.
Ouviram a voz de Viens, mas não viram o seu rosto. Em vez disso, uma paisagem em preto-e-branco apareceu na tela.
— Paul — disse Viens —, recebemos isto faz apenas três minutos.
Hood virou ligeiramente o monitor na direção de Rodgers e ficou olhando para o terreno desolado, seguido pelo trem, que ocupou aproximadamente um terço do centro da imagem. A cena estava pouco nítida por causa da neve que caía, mas era possível ver que havia manchas escuras no teto dos vagões.
— Desculpe a má qualidade da imagem — disse Viens. — Está nevando como o diabo. Mesmo assim, temos certeza de que essas manchas no teto dos vagões são soldados. Estão usando camuflagem branca, de modo que não podem ser vistos diretamente, mas as sombras são impossíveis de disfarçar.
— São soldados, sim — observou Rodgers, em tom preocupado, apontando a tela. — O modo como estão dispostos não deixa margem a dúvidas. O último está virado para a frente e para a esquerda, o seguinte para trás e para a direita, o seguinte para a frente e para a direita e assim por diante. Esta forma aqui — mostrou uma pequena linha perto de uma das sombras — parece um rifle.
— É o que achamos, Mike — concordou Viens.
— Obrigado, Stephen — agradeceu Hood, desligando o monitor. A sala ficou em silêncio, a não ser pelo leve zumbido da blindagem eletromagnética que a envolvia. — Será que eles sabem que o Striker está à espera deles?
— É bem possível — afirmou Bob Herbert, no momento em que o telefone na mesa começou a tocar.
— É para você — disse Rodgers, depois de olhar para o número de código.
Por causa da blindagem eletromagnética, Herbert não podia ser chamado pelo telefone celular da cadeira de rodas. Pegou o fone que estava em frente a ele na mesa de conferências, digitou seu número de código e escutou. Quando desligou, estava muito pálido.
— O 76T está sendo escoltado por um par de MIGs — afirmou. — Vai começar a largar combustível e rumar para Hokkaido, mas não poderá voltar à Rússia.
Rodgers consultou o relógio e depois estendeu a mão para o fone mais próximo.
— Vou dar ordem para o Mosquito partir de Hokkaido.
Herbert deu um soco na mesa.
— Não acho que seja uma boa ideia, Mike. É uma viagem de mais de mil e seiscentos quilômetros, ida e volta. O Mosquito tem um alcance de mil cento e...
— Sei qual é o alcance do Mosquito — interrompeu Rodgers.
— Mil cento e trinta e seis quilômetros e trezentos metros. Mas podemos usar um cruzador no mar do Japão. O Mosquito pode pousar no convés...
— Não temos permissão do Congresso para o Mosquito voar sozinho — observou Martha Mackall.
— Também não temos permissão para trocar tiros com soldados russos — acrescentou Lowell Coffey. — Esta seria supostamente apenas uma missão de reconhecimento.
— Eu me preocupo mais com meus soldados — replicou Rodgers — do que com esses conversas-fiadas.
— Vamos ver se existe alguma forma de agradar todo mundo — disse Hood — e desapontar a todos. Mike...
— Sim, chefe?
— O que vamos fazer com o Striker se cancelarmos a missão imediatamente?
Rodgers respirou fundo.
— O Mosquito teria que buscá-los de qualquer maneira — disse. — O agente mais próximo que poderia tirá-los da Ásia está em Hegang, Heilongjiang, a mais de trezentos quilômetros de distância, e não posso exigir que façam essa viagem.
— Na China? — perguntou Coffey. — Não temos ninguém na Rússia?
— Com o fim da Cortina de Ferro, nossos agentes em Vladivostok foram repatriados — explicou Rodgers. — Não tivemos recursos para contratar outros.
— Eles podem ficar escondidos até a poeira assentar — propôs Phil Katzen. — O terreno é propício...
— Os russos sabem que o Striker está lá, droga! — exclamou Rodgers. — Eles também têm satélites e vão acabar encontrando o grupo! — Olhou para Hood. — Paul, a melhor solução é seguir em frente, como planejamos.
— Seguir em frente — observou Martha —, para um confronto com os russos, quando o país é um barril de pólvora prestes a explodir.
— A única forma de manter nossa missão em segredo — advertiu Coffey — é matar todos os ocupantes do trem.
— Prefere deixar que aconteça uma guerra? — contrapôs Rodgers. — Uma guerra que envolveria toda a Europa e provavelmente os chineses? Por que tenho a impressão de que estou novamente em 1945, ouvindo os argumentos dos que achavam que não devíamos usar a bomba atômica para salvar as vidas de americanos?
— Mike, estamos falando justamente das vidas de americanos — interveio Hood. — As vidas dos Strikers...
— Não me fale das vidas dos Strikers, Paul — pediu Rodgers, por entre dentes. — Por favor.
Hood levou alguns segundos para responder.
— Está certo — disse, afinal.
As mãos de Rodgers estavam sobre a mesa. Seus polegares ficaram vermelhos, como se estivesse fazendo muita força para se controlar.
— Está se sentindo bem, Mike? — perguntou Liz.
O general fez que sim com a cabeça e olhou para Hood.
— Desculpe, Paul. Eu não devia ter dito isso.
— Esqueça. Acho que nós dois estamos precisando de um bom filme com muita pipoca.
— Ora essa! — exclamou Coffey. — Temos entre nós um homem do lar!
— Está certo, um filme adulto — corrigiu Hood.
— Ei, o cara está fora de controle — disse Coffey. — Alguém chame a polícia de costumes!
Todos, exceto Ann, começaram a rir. Hood bateu na mesa, pedindo silêncio.
— O que eu estava tentando dizer um momento atrás é que os diplomatas ainda não desistiram de resolver este problema de forma pacífica, e ninguém sabe o que o presidente Janin vai fazer. Será que vamos comprometer as negociações de paz se prosseguirmos com a missão?
— Em qualquer hipótese — observou Rodgers, em tom mais calmo —, os caixotes que estão no trem representam muito poder para pessoas corruptas. Mesmo que o dinheiro não seja suficiente para iniciar uma guerra, colocará um bocado de influência nas mãos de gângsteres. Não temos a responsabilidade de tentar evitar que isso aconteça?
— Nossa maior responsabilidade é para com o Striker e para com as leis do nosso país — objetou Coffey.
— Leis aprovadas pelos seus amigos do Capitólio — observou Rodgers —, não leis morais. Você fez o que pôde, mas, como disse Benjamin Franklin, “A necessidade não é uma boa mercadoria de troca.” — Rodgers olhou para Hood. — Você me conhece, Paul. O Striker é mais importante para mim do que minha própria vida, mas fazer o que é certo é mais importante do que ambos. E o certo é parar aquele trem.
Hood parou para pensar. Rodgers e Coffey estavam enxergando o problema sob duas perspectivas diferentes e nenhum dos dois estava errado. Entretanto, a decisão era sua, e detestava estar sentado ali, com todo o conforto e segurança, decidindo a sorte de sete pessoas em uma montanha gelada do outro lado do mundo.
Digitou o código de Bugs no computador e o rosto do assistente apareceu no monitor.
— Sim, Paul?
— Entre em contato com o Striker no TAC-Sat e veja se o tenente-coronel Squires está livre para atender. Se não, peça que ligue para mim na primeira oportunidade.
— Sim, senhor — disse Bugs, desligando.
Rodgers não parecia satisfeito.
— O que vai fazer, Paul?
— Charlie é o comandante do grupo — explicou Hood. — Quero saber a opinião dele.
— Ele é um soldado profissional — observou Rodgers. — O que acha que vai dizer?
— Se atender, logo saberemos.
— Não se faz isso com um soldado — protestou Rodgers. — Isso não é liderança, mas gerenciamento. A única questão que devíamos estar discutindo é a seguinte: estamos apoiando o Striker ou não estamos? Podemos assumir este compromisso e mantê-lo até o fim?
— Podemos, sim — replicou Hood, friamente. — Mas depois da sua missão na Coreia, tive a curiosidade de ler os relatórios que escreveu como membro da força-tarefa especial encarregada de planejar o resgate dos americanos mantidos como reféns pela Guarda Revolucionária de Khomeini. Estava certo ao afirmar que nossas forças estavam preparadas no papel, mas não na prática. Também estava certo ao se preocupar com a retirada do grupo avançado de soldados das Forças Especiais que entrariam secretamente em Teerã alguns dias antes da missão Garra de Águia. Se não fosse você, os agentes não teriam um plano para retirá-los do Aeroporto Internacional de Mehrabad em um voo da Swiss Air caso as coisas dessem errado. Por que escolheu este meio de fuga?
— Porque tirá-los um a um do esconderijo daria mais tempo aos iranianos para encontrá-los — explicou Rodgers. — Fazia mais sentido comprar passagens num voo comercial e removê-los todos de uma vez.
— Com quem você trabalhou? — perguntou Hood.
— Com Ari Moreaux, que montou o esconderijo para nós.
— Seu agente no local — observou Hood, no momento em que a imagem de Bugs reapareceu na tela. — Sim, Bugs?
— Mandei um sinal para os fones do capacete de Honda. Agora só nos resta esperar.
— Obrigado — disse Hood. Olhou novamente para Rodgers. — Aquilo não é o Vietnã, Mike. Não estamos nos recusando a prestar apoio moral ou tático aos nossos soldados. Se Squires quiser seguir em frente, vou apoiá-lo cem por cento, mesmo que mais tarde tenha de levar um sabão do Congresso.
— A decisão não é sua — lembrou-lhe Rodgers.
— Você pode comandar o Striker — reconheceu Hood —, mas a decisão de ir além dos limites estabelecidos pela Comissão de Inteligência é minha.
Bugs apareceu de novo.
— O tenente-coronel Squires está colocando os fones, Paul. Vou pô-lo na linha.
Hood aumentou o volume do alto-falante.
— Coronel?
— Sim, senhor! — disse Squires, a voz perfeitamente clara apesar do crepitar causado pela nevasca.
— Qual é a situação? — perguntou Hood.
— Cinco Strikers estão quase chegando ao sopé da montanha. Eu e o soldado Newmeyer vamos começar a descida.
— Coronel — interveio Rodgers —, há soldados russos no teto daquele trem. São dez ou onze, na formação universal.
Virados para norte, sul, leste e oeste, traduziu mentalmente Hood.
— Estamos em dúvida se devemos prosseguir com a missão — disse Hood. — O que acha?
— Bem, senhor, estou aqui há algum tempo olhando a paisagem...
— A paisagem? — repetiu Hood.
— Sim, senhor. A missão parece ser exequível. Peço permissão para prosseguir.
Hood detectou um brilho nos olhos de Rodgers. Era um brilho de orgulho, não de triunfo.
— Está a par dos parâmetros da missão — disse Hood.
— Não devemos ferir nenhum russo — recitou Squires. — Acho que isso vai ser possível. Se não for, abortamos a missão e rumamos para o ponto de extração.
— Isso mesmo — concordou Hood. — Vamos ficar de olho no trem e mantê-los atualizados.
— Obrigado, senhor... general Rodgers. Como dizem por aqui, Dosvidania. Até breve.
Cinquenta e dois
Terça-feira, 14:52, São Petersburgo
Peggy parou no telefone público ao lado do Canal Griboyedora. Depois de olhar em torno, introduziu dois copeques no aparelho. Em resposta ao olhar interrogativo de George, disse, laconicamente:
— Volko. Telefone celular.
Certo, pensou o rapaz. O espião. Com tudo que estava acontecendo, George esquecera-se totalmente dele. Uma das coisas que os membros do Striker tinham sido treinados para fazer era tomar consciência de tudo que os rodeava em apenas um olhar casual, observando detalhes que a maioria das pessoas deixaria passar. As pessoas comuns olhavam para o céu, para o mar, para os edifícios... coisas grandes, que chamavam a atenção. Entretanto, não era ali que geralmente estava a “informação”, mas sim em um pequeno vale abaixo do céu, em uma caverna ao lado do mar ou em uma rua passando pelo meio dos edifícios. Esses eram os lugares que interessavam aos Strikers. E as pessoas, sempre as pessoas. Uma árvore ou caixa de correspondência não podia colocar em risco uma missão, mas o mesmo não se podia dizer de alguém escondido atrás desses objetos.
Justamente porque não se deixara distrair pelas árvores do parque ou pelo movimento da rua, o soldado George notou que o homem que estava dormindo no banco havia acordado. Caminhava devagar, menos de duzentos metros atrás deles, e o São Bernardo estava ofegante. Deviam ter corrido para chegar ali.
Peggy disse ao telefone, em russo:
— O Hermitage, a Conestabile Madonna, de Rafael, lado esquerdo, de meia em meia hora, durante um minuto. Depois que o museu fechar, vá ao Prospekt Krasnyy, Parte Superior, e se apoie em uma árvore com o braço esquerdo.
A agente inglesa estava explicando ao agente onde encontrá-la e como se identificar. Desligou e continuaram a caminhar.
— Estamos sendo seguidos — advertiu George em inglês.
— O homem barbudo — concordou Peggy. — Eu sei. Isso pode tornar as coisas um pouco mais fáceis.
— Mais fáceis?
— É claro. Os russos sabem que chegamos e o centro de operações que Keith procurava pode muito bem estar envolvido. Seja como for, é bom verificarmos se aquele homem está com um transmissor. Você tem fogo?
— Como é que é?
— Tem um fósforo? Um isqueiro?
— Eu não fumo.
— Nem eu — disse Peggy, em tom impaciente —, mas remexa nos bolsos como se estivesse procurando um isqueiro.
— Oh. Desculpe — disse George, mexendo nos bolsos da camisa e da calça.
— Ótimo. Agora espere aqui.
Quase todos os soldados russos fumavam. Embora a contragosto, George, como Peggy, tivera de aprender a arte de inalar a forte mistura apreciada pelos militares russos e chineses, para o caso de o Striker ter de executar alguma missão na Ásia. Entretanto, George não fazia ideia do que a companheira tinha em mente quando a viu tirar um maço de cigarros do bolso da blusa e se aproximar do homem barbado.
Enquanto George baixava os olhos, aparentando uma total falta de interesse, o russo fingia estar esperando que o cachorro urinasse em uma árvore, coisa que absolutamente não se mostrava propenso a fazer. Com o cigarro pendurado no canto da boca, Peggy estava a uns dez metros do homem quando ele começou a andar na direção oposta.
— Moço! — exclamou a agente, em um russo fluente, trotando atrás dele. — O senhor tem um fósforo?
O homem sacudiu a cabeça sem olhar para trás.
Peggy aproximou-se e, com um gesto rápido, agarrou a coleira perto do lugar onde estava enrolada na mão esquerda do homem. Puxou com força e, ao mesmo tempo, colocou-se à sua frente. Ele gemeu quando a coleira cortou-lhe a circulação dos dedos.
George viu o olhar de Peggy fixar-se na barba. A moça fez que sim com a cabeça quando viu o microfone. Encarou o russo e levou o dedo aos lábios, exigindo silêncio.
O russo concordou com a cabeça.
— Obrigado pelo fogo — disse Peggy, conduzindo o espião na direção de George. — Seu cachorro é muito bonito.
George sabia que a moça estava falando para evitar que os russos se comunicassem com o agente. Enquanto houvesse alguém nas proximidades, eles não esperariam que o homem barbado respondesse a suas perguntas. Peggy não podia simplesmente desligar o microfone, pois os russos ficariam sabendo que havia alguma coisa errada.
Exceto pelo fato de que o agente russo estava ligeiramente encolhido, qualquer um que observasse a cena pensaria que ele e Peggy eram amigos passeando de mãos dadas. Quando chegaram ao lado de George, Peggy apalpou o bolso traseiro esquerdo da calça do russo com as costas da mão. Enfiou a mão no bolso, retirou as chaves do carro e fez um gesto vago com a mão livre.
O russo fez uma careta e apontou para uma fila de carros na outra extremidade do parque.
Peggy olhou interrogativamente para George, que mostrou com a cabeça que havia compreendido.
— É curioso como os cachorros grandes são mansos — observou Peggy enquanto continuavam a caminhar, o São Bernardo arrastando-se atrás deles. — São os pequenos que causam problemas.
Os três entraram no parque e dirigiram-se a uma fila de carros estacionados do outro lado do gramado em forma de feijão. Quando chegaram lá, o russo conduziu-os a um carro preto de duas portas.
Ao se aproximarem da porta do carona, Peggy olhou para o russo e apontou para o carro.
— Ele morde?
O homem sacudiu a cabeça.
Peggy torceu a coleira e a dor fez o russo ficar na ponta dos pés.
— Morde, sim! — exclamou. — Tome cuidado!
Peggy entregou as chaves ao russo e ordenou que abrisse a porta. O homem obedeceu e apontou para o porta-luvas. Peggy ajoelhou-se ao lado do carro para que ele pudesse sentar-se e girar o botão com a mão direita. Meia-volta para a esquerda, meia-volta para a direita e uma volta completa para a esquerda fizeram abrir o compartimento. No interior, havia um cilindro de gás e uma chave comutadora. George aprendera em uma aula que os milionários, militares de altas patentes e funcionários do primeiro escalão do governo costumavam instalar nos seus carros dispositivos de segurança ativados automaticamente em caso de sequestro. Os russos, por exemplo, gostavam de usar um gás tóxico, que era liberado depois de um certo tempo. A vítima, naturalmente, sabia quando prender a respiração.
Depois que o russo desarmou o dispositivo, Peggy puxou-o pela mão, pegou as chaves e entregou-as a George. Fez um gesto com a cabeça em direção ao banco do motorista. George deu a volta, entrou no carro e ligou o motor, enquanto Peggy se sentava no banco traseiro com o russo. Usando a mão livre, ela soltou o cachorro da coleira e bateu a porta. O São Bernardo apoiou-se com as patas dianteiras na janela, latindo. Peggy ignorou-o e diminuiu o volume do microfone do walkman.
— Procure transmissores ocultos — disse Peggy para George enquanto se ajeitava no banco traseiro.
George tirou o localizador de transmissores da mochila. Testou o interior do carro e depois aproximou-o do russo. O instrumento permaneceu em silêncio.
— Estamos limpos — declarou o rapaz.
— Ótimo.
George podia ouvir o som de vozes nos fones do russo.
— Por outro lado, acho que estão falando com ele. Provavelmente querem saber por que o microfone ficou mudo.
— Pois vão ter de esperar — afirmou Peggy. — Olhou para George no espelho retrovisor. — Quais são suas ordens nessas circunstâncias?
— O manual diz que se formos descobertos devemos nos dispersar e cair fora.
— A segurança em primeiro lugar. E o que diz o nosso manual, também.
— É mais do que isso — protestou George. — Sabemos de coisas que os russos adorariam...
— Eu sei — interrompeu Peggy. — Mas o que você realmente deseja fazer?
— Descobrir o que está acontecendo no Hermitage — respondeu George.
— Eu também — concordou Peggy. — Vamos ver se nosso amigo e sua barba podem nos ajudar. — Peggy tirou um punhal da manga do uniforme e colocou-o debaixo da orelha esquerda do russo. Soltou a coleira e perguntou, em russo:
— Como você se chama?
O russo hesitou e Peggy comprimiu a ponta afiada do punhal contra o seu pescoço.
— Se demorar, vou apertar com mais força — ameaçou.
— Ronash — respondeu o russo.
— Muito bem, Ronash — disse Peggy. — Queremos ter certeza de que não vai dizer nada aos seus amigos em código, de modo que vai fazer exatamente o que eu mandar. Está me entendendo?
— Da.
— Quem é o chefe desta operação?
— Não sei.
— Não acredito!
— Um oficial dos spetsnaz. Não sei o nome dele.
— Está bem. Você vai dizer a eles o seguinte: “Aqui é Ronash. Quero falar com o oficial dos spetsnaz encarregado da operação.” Quando ele atender, passe-me o microfone.
Ronash fez que sim com a cabeça, tomando muito cuidado para não se espetar. George olhou para a moça pelo espelho.
— O que vamos fazer, afinal? — perguntou, em inglês.
— Investigar o Hermitage. Podemos forçar a entrada, se for necessário, mas tenho uma ideia melhor.
Quando George arrancou com o carro, o cachorro parou de pular. Ficou apenas olhando e balançando a cauda comprida, enquanto o veículo se afastava. Depois, deitou-se na grama, a cabeça enorme pendendo para o lado e arrastando o resto do corpo com ela.
Típico da indústria russa pós-Guerra Fria, pensou George. Até mesmo os cachorros não querem pegar no pesado.
Enquanto dirigia o carro ao longo do Canal Obvodnyy, na direção do Prospekt Moskovsky, George comparava a atitude do cachorro com a fria eficiência com que Peggy executava suas tarefas. Embora não gostasse de ver usurpada sua posição de liderança, não podia deixar de ficar impressionado com a segurança da moça e sua capacidade de improvisar. Estava também muito curioso e um pouquinho ansioso para saber aonde aquilo tudo os levaria... a despeito do fato de se encontrar metido até o pescoço em águas que estavam definitivamente subindo.
Cinquenta e três
Terça-feira, 22:07, Khabarovsk
Com todos os recursos de alta tecnologia que os militares haviam colocado à disposição dos Strikers, Charlie Squires não conseguia entender por que eles não dispunham de óculos de visão noturna antiembaçantes em lugar daqueles foggles,1 como os Strikers os haviam apelidado. O suor acumulava-se na parte interna das lentes e se você cobria a boca com um protetor, como o tenente-coronel tentara fazer, a transpiração esquentava, transformava-se em vapor e você não via mais nada. Se não usava um protetor, seus lábios congelavam e a ponta do seu nariz ficava insensível.
Ter o nariz congelado era melhor do que cair do alto de um precipício de trinta metros, de modo que Squires escolhera a segunda alternativa... se bem que não era possível ver muita coisa no meio de tanta neve. Pelo menos, podia enxergar o rochedo.
Squires estava descendo a montanha em dupla com o soldado Terrence Newmeyer. Um deles descia pela encosta, preso à corda, procurava um ponto de apoio e estendia a mão para ajudar o outro. No escuro, em uma encosta gelada, Squires não queria que ninguém descesse sozinho, embora tivesse de admitir que aquelas não eram as piores condições que já enfrentara. Uma vez, tinha sido convidado para se juntar à Sayeret Giva'ati, a brigada de elite de Israel, durante a semana de “treinamento para o inferno”. Os exercícios incluíam descer um penhasco de vinte metros de altura e depois correr em uma pista de obstáculos. No final do treinamento, os uniformes de cor verde-oliva dos soldados estavam em trapos e não era por causa do rochedo: durante a descida, os oficiais bombardeavam os soldados não só com xingamentos em iídiche, mas também com pedras. Comparada com o que experimentara em Israel, aquela descida — com foggles e tudo — era moleza.
A uns quinze metros do pé da montanha, cinco metros à esquerda, Squires ouviu os gritos de Sondra, pedindo que esperassem. O tenente-coronel olhou para baixo e viu-a agachada ao lado do parceiro de descida, o soldado Walter Pupshaw.
— O que houve? — gritou Squires, arriscando uma olhada rápida para o horizonte, à procura da fumaça da locomotiva. Não viu nada... ainda.
— Ele está colado na pedra! — gritou Sondra de volta. — Rasgou a perna da calça. O suor congelou e prendeu o forro no gelo!
Squires gritou para baixo:
— Soldado Honda, quero saber a hora prevista para o trem chegar!
O operador de rádio montou rapidamente o TAC-Sat, enquanto Squires e Newmeyer aproximavam-se de Pupshaw. O oficial agachou-se ligeiramente acima e à direita do soldado.
— Sinto muito, coronel — disse Pupshaw. — Devo ter passado por um lugar mais gelado do que os outros.
Squires olhou para o soldado, que parecia uma grande aranha grudada em uma parede.
— Soldado DeVonne — disse o tenente-coronel —, fique acima dele e se prepare para segurá-lo com força. Soldado Newmeyer, vamos usar nossa corda para tentar soltá-lo.
Squires pegou a corda que o ligava a Newmeyer e jogou-a para cima, fazendo-a cair nos braços de Pupshaw, à frente do seu rosto.
— Pupshaw, levante o braço esquerdo e deixe a corda escorregar até sua cintura. Depois, faça a mesma coisa com o braço direito.
— Sim, senhor — disse Pupshaw.
Newmeyer e Squires estenderam a mão para sustentar o soldado enquanto, cautelosamente, Pupshaw tirava a mão esquerda da pedra, deixava a corda descer e tornava a se apoiar. Repetiu a manobra com o braço direito. A corda estava agora no nível do seu cinto.
— Muito bem — disse Squires. — Eu e o soldado Newmeyer agora vamos descer juntos. Colocaremos todo o nosso peso na corda e ela deverá desgrudá-lo do gelo. DeVonne, esteja preparada para sustentá-lo quando ele se soltar.
— Sim, senhor — disse a moça.
Squires e Newmeyer foram descendo devagar, um de cada lado do soldado Pupshaw, a corda pressionando o gelo que se formara entre o Striker e a encosta. Os dois homens fizeram força até que o gelo se rompeu em uma chuva de partículas. Squires agarrou-se com firmeza ao penhasco, DeVonne conseguiu suportar o peso de Pupshaw e depois de um momento de tensão, quando a pedra debaixo de sua bota direita cedeu, Newmeyer conseguiu recuperar o equilíbrio com a ajuda de Pupshaw.
— Obrigado — agradeceu Pupshaw, quando os quatro atingiram o pé da montanha.
Quando Squires chegou, o sargento Grey já tinha reunido a equipe ao lado dos trilhos. Havia um espaço de uns dez metros entre a base da montanha e a linha férrea; a oeste, a uma distância de aproximadamente trinta metros, podiam ver algumas árvores que pareciam ter morrido antes da Revolução Russa. O soldado Honda já estava recebendo a transmissão do TAC-Sat; quando terminou, informou ao tenente-coronel que, de acordo com os últimos dados do ENR, o trem se encontrava trinta e três quilômetros a leste, viajando a cinquenta e cinco quilômetros por hora.
— Nesse caso, vai estar aqui em menos de meia hora — observou Squires. — Não nos resta muito tempo. Muito bem. Sargento Grey, quero que você e Newmeyer derrubem uma dessas árvores com explosivos para que ela fique atravessada na linha.
O sargento Grey já estava tirando o C-4 dos bolsos de sua veste de combate.
— Sim, senhor.
— DeVonne, Pupshaw, Honda... dirijam-se ao ponto de encontro e verifiquem se o caminho está limpo. Não é provável que encontrem nenhum camponês por essas bandas, mas nunca se sabe. Pode haver lobos.
— Coronel — começou Sondra —, eu gostaria de...
— Faça o que estou mandando — interrompeu Squires. — Eu, o sargento Grey e o soldado Newmeyer podemos executar sozinhos esta parte do plano. Preciso dos outros para cobrir nossa retirada, se for necessário.
— Sim, senhor — disse o soldado DeVonne, batendo continência.
Squires virou-se para o soldado Honda para colocá-lo a par do restante da missão.
— Entre em contato com o QG assim que vir a ponte. Diga a eles o que pretendemos fazer. Se não receber nenhuma comunicação, terá que se virar. Não estaremos em posição de usar nossos transmissores de rádio.
— Entendido — disse Honda.
Enquanto os três Strikers iniciavam a jornada com neve até os joelhos, em meio a um vento cortante, Squires foi reunir-se ao sargento Grey e ao soldado Newmeyer. Grey já havia grudado pequenas tiras de C-4 no tronco de uma grande árvore perto dos trilhos. Newmeyer estava cortando o estopim de segurança, deixando as espoletas de tempo que trouxera para Squires usar mais tarde. Os estopins de segurança eram divididos em segmentos de trinta segundos; ele tinha cortado um pedaço com dez segmentos de comprimento.
— É melhor diminuir para quatro minutos — recomendou Squires, olhando por cima do ombro. — Estou preocupado com a possibilidade de o trem estar tão perto que eles ouçam a explosão.
Newmeyer sorriu.
— Nós todos passamos pelo teste de correr vinte quilômetros em menos de noventa e oito minutos, coronel.
— Mas não na neve e carregados de equipamentos...
— Não há por que se preocupar, coronel — insistiu Newmeyer.
— Também precisamos de tempo para jogar neve na árvore e dar a impressão de que caiu há algum tempo — observou Squires. — Além disso, eu e Grey temos outro trabalhinho para fazer.
O tenente-coronel olhou o desfiladeiro. Em cinco minutos, chegariam a uma depressão na rocha, a trezentos metros de distância, que os protegeria da explosão — contanto que ela não fizesse a montanha inteira desabar sobre eles. Como Grey era experiente e não estavam usando explosivos de grande potência, não era provável que isso acontecesse. Restaria tempo suficiente para que um deles voltasse e removesse qualquer vestígio de seus passos na neve; tinha que parecer que a árvore havia caído sozinha.
Quando acabou de instalar o explosivo, Grey fez um sinal e Squires agachou-se, enquanto Newmeyer acendia o estopim.
— Vamos! — exclamou Squires.
O tenente-coronel ajudou Newmeyer a se levantar e os três saíram correndo rumo ao abrigo natural, chegando com um minuto de sobra. Ainda estavam recuperando o fôlego quando o ruído seco da explosão quebrou o silêncio da noite, logo seguido pelo rangido do tronco se partindo e um baque surdo quando se chocou com o chão, bloqueando a linha.
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1 Foggles, trocadilho baseado na combinação de duas palavras em inglês, fog (nevoeiro) e goggles (óculos). (N. do T.)
Cinquenta e quatro
Terça-feira, 23:08, Hokkaido
A “cabine de vidro” para dois homens era baixa, escura e possuía um para-brisa estreito e arredondado. Três dos seis monitores coloridos formavam um único panorama tático, enquanto um HUD grande-angular fornecia informações sobre a aeronave e o alvo. Não havia mostradores dedicados; os monitores geravam todas as informações necessárias para os pilotos, incluindo os dados recolhidos por sofisticados sensores montados no exterior da aeronave.
Atrás da cabine ficava uma fuselagem pintada de preto fosco, medindo dezenove metros e noventa e quatro centímetros de comprimento. O Mosquito não possuía ângulos pronunciados e, graças ao sistema No Tail Rotor — sem rotor de cauda — e aos rolamentos de última geração do rotor principal, voava praticamente sem produzir ruído. O ar que saía, sob pressão, por aberturas semelhantes a guelras localizadas na parte traseira da fuselagem, substituía o rotor da cauda dos helicópteros convencionais; um bocal móvel, instalado na cauda, permitia que o piloto dirigisse a aeronave. Todos os equipamentos supérfluos do helicóptero, já normalmente leve, graças à ausência de eixos motores e caixas de marchas, tinham sido eliminados, incluindo os armamentos, o que reduzira seu peso de quatro para apenas três toneladas. Com um tanque extra de combustível transportado do lado de fora e usado primeiro — para que o invólucro de borracha pudesse ser lançado no mar e recuperado — e voltando para a base com mais setecentos quilos do que na viagem de ida — o Mosquito tinha uma autonomia de mil e cem quilômetros.
O Mosquito pertencia a uma classe de aeronaves que a imprensa e os leigos chamavam de “invisíveis”, mas os responsáveis pelo programa do Mosquito na Base Aérea Wright-Patterson preferiam chamar de “pouco visíveis”. Seria faltar com a verdade dizer que aquelas aeronaves não podiam ser vistas pelo radar. Se o inimigo usasse um radar muito potente, detectaria a presença do F-117A, do B-2A ou do Mosquito. Entretanto, não havia nenhum sistema de armas no mundo que fosse capaz de rastrear um desses modelos; era aí que estava a sua vantagem em relação às aeronaves convencionais.
Nenhuma das aeronaves pouco visíveis em uso corrente poderia ser usada em uma missão como aquela; era por isso que o programa do Mosquito tinha sido criado em 1991. Apenas um helicóptero seria capaz de sobrevoar à noite um terreno montanhoso em baixa altitude, desembarcar ou recolher soldados, dar meia-volta e retornar —, e apenas uma aeronave pouco visível poderia fazer isso em um céu tão movimentado e bem patrulhado como o da Rússia.
Voando a trezentos e vinte quilômetros por hora, o Mosquito chegaria ao alvo pouco antes da meia-noite, hora local. Se o helicóptero levasse mais de oito minutos para recolher os Strikers em Khabarovsk, não teria combustível suficiente para chegar ao cruzador que estaria à sua espera no mar do Japão. Entretanto, depois de ensaiarem todas as fases da missão no simulador, o piloto Steve Kahrs e o copiloto Anthony Iovino tinham confiança no protótipo e estavam ansiosos para testá-lo em ação. Se o grupo de forças especiais fosse bem-sucedido, isso os transformaria em heróis e, mais importante, deixaria mais uma vez frustrados os outrora todo-poderosos militares russos.
Cinquenta e cinco
Terça-feira, 15:25, São Petersburgo
— General Orlov, tenho más notícias — disse o major Levski.
Apenas a voz do major chegava ao escritório de Orlov através de um par de fones ligado ao computador. A base naval nos arredores da cidade ainda não estava equipada com recursos de vídeo; depois dos últimos cortes nos orçamentos militares, essa deficiência provavelmente não seria sanada tão cedo.
— O que foi, major? — perguntou Orlov, com voz cansada.
— O general Mavik mandou chamar de volta o grupo Molot.
— Quando?
— Ele acaba de me ligar — informou Levski. — Sinto muito, general, mas não tenho escolha a não ser...
— Eu compreendo — interrompeu Orlov. Bebeu um gole de café. — Não deixe de agradecer em meu nome ao tenente Starik e sua equipe.
— Sim, senhor. General, eu queria que soubesse que, aconteça o que acontecer, não está sozinho. Pode contar comigo. E com o Molot, também.
Os lábios de Orlov abriram-se num sorriso.
— Muito obrigado, major.
— Não tenho a pretensão de entender o que está acontecendo — prosseguiu Levski. — Alguns falam de um golpe iminente, apoiado pelos gângsteres do mercado negro. Tudo que sei é que uma vez tentei tirar um velho Kalinin K-4 de um mergulho, general. Tinha um motor e tanto. Um BMW muito robusto.
— Conheço o avião — declarou Orlov.
— Enquanto eu estava atravessando as nuvens, olhando diretamente para baixo, lembro-me de ter pensado: “Este avião tem um passado de glórias; não posso deixá-lo na mão, por mais temperamental que se mostre.” Não era apenas um dever, era uma honra. Em vez de saltar de paraquedas, lutei com os controles até conseguir aterrissar. Não foi um pouso bonito, mas nós dois escapamos. Depois, desmontei pessoalmente — pessoalmente — aquele maldito motor alemão e consertei-o.
— O Kalinin tornou a voar?
— Como um passarinho — afirmou Levski.
Orlov sabia que estava cansado porque aquela história do Young Boy's Digest o deixou comovido.
— Obrigado, major. Eu lhe avisarei quando estiver com as mãos no capô do motor.
Orlov desligou e esvaziou a xícara de café. Era bom saber que tinha outro aliado, além de sua dedicada assistente, Nina, que deveria estar de volta às quatro. Além disso, tinha a esposa. Masha estava sempre do seu lado, claro, mas como o matador de dragões que levava para a batalha as cores da mulher amada, tinha que combater sozinho. Jamais, nem mesmo na vastidão do espaço sideral, experimentara uma sensação tão grande de isolamento.
Usando o teclado, transferiu a ligação para o canal que a polícia usava para monitorar seus agentes.
— ... nos deixem em paz — estava dizendo uma voz de mulher, em russo fluente.
— Deixar em liberdade um grupo de ataque que invadiu a Rússia?
Rossky deu uma gargalhada. Estava obviamente conversando com alguém no seu telefone celular, para o qual a chamada tinha sido encaminhada pelo Centro de Operações ou pela central de polícia.
— Não somos um grupo de ataque — protestou a mulher.
— Foram vistos entrando no Palácio Presidencial com o major Pentti Aho...
— Ele providenciou nosso transporte. Estamos tentando descobrir quem matou um comerciante inglês...
— O relatório oficial e os restos da vítima foram entregues à Embaixada Britânica — afirmou Rossky.
— Restos cremados! — exclamou a mulher. — Os ingleses não acreditam que ele tenha morrido de um ataque cardíaco.
— E nós não acreditamos que ele fosse um comerciante! — replicou Rossky. — Vocês têm mais nove minutos para se entregar ou vão fazer companhia a seu amigo. É muito simples.
— Nada é tão simples assim — disse Orlov.
Apenas um leve crepitar de estática se fez ouvir na linha durante o que pareceu um longo tempo.
— Com quem estou falando? — quis saber a mulher.
— Com o oficial mais graduado de São Petersburgo — explicou Orlov, mais para Rossky do que para a mulher. — Quem é a senhora? Não tente usar sua identidade falsa. Sabemos como entrou no país e de onde veio.
— Está bem — concordou a mulher. — Somos agentes do COMINT. Trabalhamos para Niskanen, o ministro da defesa, em Helsinki.
— Não é verdade! — berrou Rossky. — Niskanen não arriscaria seu pessoal para desenterrar um cadáver!
— O MI6 não sabia o que fazer — explicou a mulher —, e por isso entrou em contato com a CIA e o ministro da defesa. Eles acharam que seria mais diplomático que eu e meu colega viéssemos aqui tentar descobrir por que o inglês foi assassinado... depois disso, tentaríamos encontrar uma solução pacífica para o problema.
— Quer que eu acredite que são mediadores? — perguntou Rossky, em tom sarcástico. — Se fossem, teriam chegado de avião, com passaportes tirados às pressas, ansiosos para expor seu caso. Vocês vieram de submarino porque não queriam ser vistos no aeroporto. Você está mentindo!
— Qual é a estrada que margeia o golfo de Bótnia? — perguntou Orlov.
— A Estrada Dois — respondeu a mulher.
— Quantas províncias tem a Finlândia?
— Doze.
— Isso não prova nada! — exclamou Rossky. — Ela foi preparada para esse tipo de interrogatório!
— Claro que fui — concordou a mulher. — Em Turku, onde nasci e cresci.
— Tudo isso é perda de tempo! — acrescentou Rossky. — Ela está ilegalmente no país e em quatro minutos meus agentes vão detê-la.
— Se conseguirem me encontrar.
— O Teatro Kirov está à esquerda — disse Rossky —, na posição das dez horas. Há um Mercedes verde atrás de você. Se tentar correr, meus agentes têm ordem para atirar.
Houve uma pausa. Embora a mulher pudesse ter procurado transmissores no carro, Orlov sabia que ela provavelmente não notara o telefone celular na mala. A linha era mantida aberta sempre que um agente estava de serviço. O telefone não era revelado pelos detectores, mas permitia que descobrissem a localização do carro a qualquer momento.
A mulher disse calmamente:
— Se alguma coisa acontecer conosco, perderá a oportunidade de se comunicar diretamente com seu equivalente em Washington. Estou me referindo ao oficial graduado, não ao brutamontes.
— Sim? — disse Orlov, interessado.
— Acredito que o senhor seja mais do que o militar mais graduado de São Petersburgo. Acredito que seja o general Sergei Orlov, o chefe de um centro de informações recentemente instalado nesta cidade. Também acredito que poderá conseguir muito mais se entrar em contato com seu equivalente em Washington do que se mandar me matar e entregar minhas cinzas ao ministro da defesa.
Nos últimos dois anos, Orlov e sua equipe vinham tentando descobrir mais a respeito do equivalente americano do Centro de Operações, seu reflexo no espelho, um centro de informações e gerenciamento de crises como o que estavam acabando de implantar em São Petersburgo. Agentes infiltrados na CIA e no FBI tinham sido encarregados de descobrir tudo que pudessem a respeito. Entretanto, o Op-Center de Washington era muito mais recente, muito menor e muito mais difícil de espionar. O que aquela mulher estava oferecendo — fosse porque era muito esperta ou porque estava muito assustada — era uma coisa que não podia se dar ao luxo de desprezar.
— Talvez — disse Orlov. — Como me colocaria em contato com Washington?
— Deixe-me falar com o major Aho, no Palácio — disse a mulher. — Ele se encarregará de tudo.
Orlov considerou a proposta por um momento. A ideia de fazer um acordo com uma invasora não lhe agradava, mas era melhor tentar uma solução diplomática do que dar uma ordem que certamente resultaria em derramamento de sangue.
— Liberte o agente que está mantendo prisioneiro — propôs — e terá sua chance.
— De acordo — concordou a mulher, sem hesitar.
— Coronel? — chamou Orlov.
— Sim, general? — respondeu Rossky com voz tensa.
— Não faça nada sem antes me consultar. Entendeu bem?
— Entendi.
Orlov ouviu um movimento do outro lado da linha e os sons abafados de uma conversa em voz baixa. Era difícil dizer se vinham do carro ou da estação de metrô do Instituto Tecnológico, para onde Rossky tinha ido à procura dos espiões inimigos. Fosse como fosse, sabia que o coronel não aceitaria passivamente a situação, que ele faria alguma coisa para manter seu orgulho intacto... e para capturar os dois agentes.
Cinquenta e seis
Terça-feira, 7:35, Washington, D.C.
Hood descobrira há muito tempo que o problema do gerenciamento de crises era o fato de você sempre ter de cortar a cabeça da Medusa, ir ao fundo da questão, no momento em que se sentia mais cansado.
Na última vez em que pusera a cabeça em um travesseiro, Hood estava em um quarto de hotel de Los Angeles com a família. Agora estava ali, mais de vinte e quatro horas depois, sentado no seu escritório com Mike Rodgers, Bob Herbert, Ann Farris, Lowell Coffey e Liz Gordon, à espera das primeiras notícias de dois grupos de Strikers que tinham sido encarregados de atacar um país estrangeiro. Porque, por mais eufemismos que usassem — e era o que Ann pretendia fazer nas entrevistas coletivas, caso os grupos fossem descobertos ou capturados —, isso era exatamente o que o Striker estava fazendo: atacando a Rússia.
A equipe conversava sobre banalidades para passar o tempo, e Hood mal conseguia escutar o que diziam enquanto pensava nas consequências do que estavam fazendo. A julgar pelo olhar distante de Mike Rodgers, ele se sentia da mesma forma.
Coffey puxou o punho da camisa e consultou o relógio.
Herbert fez uma careta.
— Olhar toda hora para o relógio não vai fazer o tempo passar mais rápido — disse.
Liz saltou em defesa de Coffey.
— É como canja de galinha, Bob. Mal, não faz.
Ann fez menção de dizer alguma coisa, mas mudou de ideia quando o telefone começou a tocar. Hood apertou o botão do alto-falante.
— Sr. Hood — disse Bugs Benet —, há um chamado para o senhor de São Petersburgo, encaminhado pelo escritório do major Pentti Aho.
— Complete a ligação — disse Hood. Estava se sentindo como nas manhãs quentes de verão, quando o ar ficava parado e difícil de respirar. — Tem alguma ideia do que se trata, Bob? — perguntou, apertando o botão que desligava o microfone.
— Nosso Striker pode ter sido apanhado e obrigado a telefonar — respondeu Herbert. — Não consigo pensar em nenhuma outra...
— Aqui é Kris — disse Peggy.
— Esqueça o que eu estava dizendo — falou Herbert. — Kris é o nome que Peggy usa quando está em segurança. Kringle é o seu nome quando está presa na chaminé, por assim dizer.
Hood soltou o botão.
— Sim, Kris?
— O general Sergei Orlov gostaria de falar com seu equivalente — disse Peggy.
— Você está com o general? — perguntou Hood.
— Não. Falei com ele pelo rádio.
Hood apertou novamente o botão e olhou para Herbert.
— Acha que ela está falando sério?
— Se estiver — observou Herbert —, Peg e George conseguiram um verdadeiro milagre.
— Em se tratando de um Striker, isso não chega a ser uma surpresa. E essa agente inglesa também não é de se desprezar.
Hood soltou o botão.
— Kris, o equivalente concorda.
Uma voz firme interveio, falando em inglês com um sotaque carregado:
— Com quem tenho a honra de falar?
— Aqui é Paul Hood — disse o chefe do Op-Center, olhando em torno e constatando que estavam todos sentados na ponta da cadeira.
— Muito prazer, sr. Hood — disse Orlov.
— General Orlov, venho acompanhando sua carreira há muitos anos. Eu e meus companheiros. O senhor tem muitos admiradores em nosso país.
— Obrigado.
— Diga-me uma coisa. O senhor pode me enviar imagens?
— Posso, através do satélite Zontik-6 — respondeu Orlov.
Hood olhou para Herbert.
— Pode nos ligar a esse satélite?
O chefe da inteligência encolheu-se como se tivesse sido atingido por um jato de água fria.
— Ele vai ver o Tanque! Não pode estar falando sério!
— Pois estou.
Herbert praguejou e ligou para o escritório pelo telefone celular, girando a cadeira e encolhendo-se para que Orlov não pudesse ouvi-lo.
— General, gostaria de conversar cara a cara com o senhor. Se pudermos estabelecer uma ligação de vídeo, estaria de acordo?
— Com muito prazer — disse Orlov. — Nossos governos ficariam arrepiados se soubessem o que estamos fazendo.
— Eu mesmo estou um pouco nervoso — admitiu Hood. — Não é exatamente um procedimento padrão.
— Tem razão — concordou Orlov. — Mas as circunstâncias exigem medidas heroicas.
— Concordo inteiramente — disse Hood.
Herbert girou a cadeira de volta para a posição inicial.
— Pode ser feito — anunciou. — Mas eu lhe faço um apelo para que...
— Obrigado — interrompeu Hood. — General Orlov...
— Eu ouvi — disse o general. — Nosso áudio é muito bom.
— O que ele pensa que o nosso é? — murmurou Herbert. — Sobra da CIA?
— Peça ao seu operador para transmitir o sinal para o canal vinte e quatro — disse Orlov — do que é, sem dúvida, a última palavra em matéria de transmissor e antena parabólica para sistemas de controle de comunicações, o Modelo CB7.
Hood riu para Herbert, que não estava achando graça em nada.
— Pergunte a ele — disse Herbert — se os cosmonautas ainda mijam no pneu do ônibus antes de se dirigirem para a plataforma de lançamento.
— Ainda — declarou Orlov, em tom descontraído que contrastava com a exclamação de desagrado de Hood. — Quem começou essa tradição foi Yuri Gagarin, depois de exagerar no chá. Até as mulheres cosmonautas fazem isso. Em matéria de igualdade entre os sexos, acho que sempre estivemos na frente de vocês.
Ann e Liz olharam para Herbert, que se remexeu, constrangido, na cadeira de rodas, enquanto chamava a sala dos satélites.
Foram necessários apenas dois minutos para completar a ligação. O rosto do general apareceu na tela: óculos de aros grossos, pretos, maçãs do rosto bem talhadas, pele morena, testa larga, sem rugas. Olhando para aqueles olhos castanhos e inteligentes, olhos que tinham visto a Terra de um ponto de vista reservado a muito poucas pessoas, Hood teve certeza de que podia confiar neles.
— Bem — disse Orlov com um sorriso amável —, aqui estamos. Mais uma vez, obrigado.
— Obrigado — disse Hood.
— Agora vamos ser francos — propôs Orlov. — Nós dois estamos preocupados com aquele trem e sua carga. Você está tão preocupado que mandou uma força de assalto para interceptá-lo, talvez destruí-lo. Eu estou tão preocupado que mandei soldados para protegê-lo. Você sabe qual é a carga?
— Por que não nos conta? — replicou Hood.
— O trem está transportando dinheiro que será usado na Europa Oriental para subornar funcionários do governo e financiar atividades subversivas.
— Quando? — perguntou Hood.
Herbert levou o dedo aos lábios. Hood apertou o botão que desligava o microfone.
— Se o general disser que está do nosso lado, não acredite — recomendou Herbert. — Ele poderia mandar parar aquele trem, se quisesse. Um homem na posição que ele ocupa tem que ter amigos.
— Não necessariamente, Bob — objetou Rodgers. — Ninguém sabe o que está acontecendo no Kremlin.
Hood tornou a ligar o microfone.
— O que o senhor propõe, general Orlov?
— Não posso confiscar a carga. Não tenho homens para isso.
— O senhor é um general com um comando — observou Hood.
— Fui obrigado a pedir a um amigo para examinar meu próprio escritório à procura de escutas — disse Orlov. — Sou Leônidas nas Termópilas, traído por Efialtes. Estou tentando defender um desfiladeiro muito importante.
Rodgers sorriu.
— Essa foi boa — sussurrou.
— Embora eu não possa apreender a carga, ela não deve chegar a seu destino — prosseguiu Orlov. — E vocês não devem atacar o trem.
— General, isso não é uma proposta — observou Hood. — É um nó górdio.
— O que disse?
— Um quebra-cabeça muito difícil de resolver, general. Gomo podemos atendê-lo?
— Com uma conferência de paz na Sibéria — explicou Orlov — entre as tropas de vocês e as minhas.
Rodgers passou um dedo pela garganta. Relutantemente, Hood desligou mais uma vez o microfone.
— Tome cuidado, Paul — recomendou Rodgers. — Não podemos abandonar o Striker à própria sorte.
Herbert acrescentou:
— Especialmente com o filho de Orlov responsável pela segurança do trem. O general está tentando proteger a pele do filho. Os russos podem fuzilar os Strikers, armados ou não, e a ONU vai dizer que eles tinham todo o direito.
Hood silenciou-os com um gesto e tornou a ligar o microfone.
— O que o senhor sugere, general Orlov?
— Vou pedir que o oficial responsável pela segurança do trem mande seus homens deporem as armas, permitindo que seu grupo se aproxime.
— O oficial a que se refere é seu filho — afirmou Hood.
— Tem razão — concordou Orlov. — Ele é meu filho. Isso não faz diferença. Estamos falando da paz mundial!
— Por que simplesmente não manda o trem de volta? — perguntou Hood.
— Porque perderia a carga para os responsáveis pelo envio — explicou Orlov. — Eles simplesmente arranjariam outra forma de transportá-la.
— Entendo — disse Hood. Ficou pensativo um momento. — General, o que está propondo exporia meus homens a um grande risco. Está querendo que eles se aproximem do trem abertamente, observados pelos seus soldados.
— É exatamente isso que estou propondo — confirmou Orlov.
— O que deseja que nossos homens façam quando chegarem ao trem? — perguntou Hood.
— Que levem a maior parte possível da carga para fora do país. Que a usem como prova de que o que está acontecendo não é obra do governo legal da Rússia, mas de uma minoria corrupta — respondeu Orlov.
— Como o ministro Dogin? — perguntou Hood.
— Sem comentários — disse Orlov.
— Por quê?
— Minha posição é delicada e tenho esposa — respondeu Orlov.
Hood olhou para Rodgers, que parecia cada vez mais avesso a um acordo com o general russo. Era compreensível. Orlov estava pedindo muito e oferecendo apenas sua palavra em troca.
— De quanto tempo precisa para se comunicar com o trem? — perguntou Hood, lembrando-se de que não seria possível adiar a retirada do Striker.
— Quatro ou cinco minutos — respondeu Orlov.
Hood olhou para o relógio na parede, que mostrava a contagem regressiva. O trem chegaria ao local onde estava o Striker em sete minutos, aproximadamente.
— Não vamos ter muito mais tempo que isso — afirmou Hood. — Temos nossos cronogramas...
— Eu compreendo — disse Orlov. — Por favor, deixe esta linha aberta e voltarei a chamá-lo o mais rápido possível.
— Está bem — concordou Hood, desligando o microfone.
Rodgers tomou a palavra:
— Paul, o Striker já deve ter feito alguma coisa, como bloquear a linha ou tomar de assalto a locomotiva. Dependendo da posição do TAC-Sat, talvez não haja tempo de alertá-los.
— Eu sei — concordou Hood —, mas Charlie Squires é um homem esperto. Se os russos pararem o trem e saírem com uma bandeira branca, vai ouvi-los. Especialmente se explicarmos o que devem dizer a Charlie.
— Não sei como pode confiar nesses bebedores de vodca — comentou Herbert, em tom amargo. — Lenin traiu Kerensky, Stalin traiu Trotsky, Yeltsin traiu Gorbachev, Dogin traiu Janin. Que diabo, Orlov agora está querendo trair Dogin! Esses caras vivem se apunhalando pelas costas. Imagine o que farão conosco, se deixarmos.
— Levando em conta que a alternativa é um confronto armado... — começou Lowell Coffey.
— E o papel de herói representado por Orlov — acrescentou Liz —, que parece muito importante para ele...
— Certo — concordou Coffey. — Levando tudo isso em conta, o risco me parece aceitável.
— Aceitável porque não é sua vida que está em jogo — protestou Herbert. — Reputações de herói podem ser fabricadas, como Ann pode muito bem lhe dizer, e eu prefiro um confronto armado a um massacre.
Rodgers fez que sim com a cabeça.
— Como disse lorde Macaulay em 1831, “Ser moderado na guerra é uma imbecilidade”.
— Morrer na guerra é ainda pior — afirmou Liz.
— Vamos ver qual será a contrapartida de Orlov — disse Hood.
Enquanto olhava para os pequenos números verdes do relógio da parede, Hood sabia que, fosse ela qual fosse, tinha apenas alguns segundos para tomar uma decisão que afetaria vidas e nações — baseado apenas no que o instinto lhe dizia a respeito do rosto de um homem na tela de um computador.
Cinquenta e sete
Terça-feira, 22:45, Khabarovsk
Quando Orlov se comunicou com o trem, o cabo Fodor informou-lhe que Nikita tinha ido até a locomotiva observar os trilhos à frente e levaria alguns minutos para voltar.
— Não dispomos de alguns minutos — advertiu Orlov. — Diga a ele para parar o trem imediatamente e atender ao telefone.
— Sim, senhor — disse o cabo.
Fodor foi correndo até a parte dianteira do vagão, tirou o receptor do gancho e apertou o botão do intercomunicador. Depois de quase um minuto, Nikita atendeu.
— O que foi?
— Tenente, o general está na linha — explicou Fodor. — Ele disse que devemos parar o trem imediatamente e quer falar com o senhor.
— Não estou ouvindo por causa do barulho — disse Nikita. — Quer repetir?
Fodor gritou:
— O general mandou parar o trem imediatamente e,..
O cabo interrompeu o que estava dizendo ao ouvir o guincho dos freios, através da porta e não pelo interfone; logo depois, foi arremessado para a frente, quando o vagão se chocou violentamente com o atrelado. Fodor largou o receptor para ajudar a firmar a antena parabólica, que um dos soldados tivera presença de espírito suficiente para segurar, mas o receptor estava caído de lado e um dos cabos coaxiais tinha se desprendido da antena. Pelo menos, o lampião continuara de pé; quando o trem parou e os soldados e civis começaram a se levantar do meio dos caixotes, Fodor pôde inspecionar o equipamento. Embora o conector tivesse sido arrancado e ainda estivesse preso à antena, o cabo parecia em bom estado. O cabo tirou as luvas e começou a tentar consertá-lo.
Como a grande caldeira ocupava a frente da cabine, as únicas janelas da locomotiva ficavam nas laterais. Nikita estava olhando por uma delas quando viu a árvore caída. Gritou para o maquinista parar o trem, mas quando o pobre rapaz hesitou, o próprio Nikita acionou o freio.
Os três homens que estavam na cabine foram arremessados no chão com violência. Quando o trem parou, Nikita ouviu gritos vindos de cima e da parte traseira da composição. Levantou-se rapidamente. Sentiu uma dor surda no quadril direito, que machucara na queda. Pegou uma lanterna em um gancho na parede, correu para a janela e iluminou o terreno em volta. Um dos soldados tinha caído do teto do primeiro vagão, mas já estava descendo de um banco de neve.
— Você está bem? — gritou Nikita.
— Acho que sim, tenente — respondeu o jovem soldado, com voz trêmula. — Está precisando de ajuda?
— Não! — berrou Nikita. — Volte para o seu posto!
— Sim, senhor — respondeu o soldado, fazendo uma continência desajeitada com a luva suja de neve, enquanto alguém estendia as mãos para ajudá-lo a subir de novo no teto do vagão.
Nikita recomendou que os dois soldados que estavam na cabine ficassem de guarda nas janelas da locomotiva e subiu no atrelado. O vento tinha parado e a neve caía placidamente. Havia um silêncio tenso, como o que se segue aos desastres de automóvel, e o som das suas botas raspando no carvão era áspero e seco. Atravessou o atrelado, levantando uma nuvem de neve e pó de carvão, e pulou agilmente para o engate do primeiro vagão. Espirrando de frio, usou a lanterna para localizar a maçaneta.
— Mande seis homens desobstruírem a linha — ordenou ao corpulento sargento Versky assim que entrou no vagão. — Há uma árvore atravessada nos trilhos que deve ser removida o mais depressa possível. Quero que três homens montem guarda enquanto os outros três trabalham.
— Sim, senhor — disse Versky.
— Diga a eles que tomem cuidado com possíveis francoatiradores — acrescentou Nikita. — Talvez eles estejam usando dispositivos de visão noturna.
— Entendido, tenente.
Nikita voltou-a para Fodor.
— Como está o transmissor?
— Vou levar mais alguns minutos para consertá-lo — respondeu o cabo, agachado ao lado do lampião.
— Procure andar depressa — recomendou o tenente, deixando escapar uma nuvem de vapor. — O que mais disse o general?
— Apenas para o senhor parar o trem e atender ao chamado — respondeu Fodor. — Mais nada.
— Droga! — exclamou Nikita. — Droga!
Enquanto a equipe do sargento procurava archotes em um saco de provisões, Nikita mandou que os civis empilhassem de novo os caixotes. Um soldado apareceu, vindo do segundo carro. Parecia um pouco desnorteado. Nikita mandou-o de volta com ordens para arrumar os caixotes e não descuidar da vigilância.
— Avise ao pessoal do vagão de serviço para se manter atento — acrescentou Nikita. — Podemos sofrer um ataque pela retaguarda.
O tenente ficou parado, de pernas abertas, no meio do vagão, balançando o corpo impacientemente para a frente e para trás. Tentou colocar-se no lugar do inimigo.
A árvore podia ter caído sozinha ou podia ter sido derrubada. Caso a segunda hipótese fosse a verdadeira, a emboscada fracassara. Se tivessem colidido com a árvore, ficariam parados ao lado de um rochedo — o lugar ideal para atirar nos soldados que viajavam no teto dos vagões. Ali, porém, a centenas de metros de distância, os atacantes só conseguiriam abater um ou dois soldados antes de serem descobertos. Além disso, não havia como se aproximarem do trem sem serem vistos. O que vão fazer, então?
Seu pai havia dito para que ele parasse o trem. Será que sabia da árvore? Ou estaria preocupado com outro perigo mais à frente, como uma emboscada ou explosivos?
— Depressa! — disse para Fodor.
— Está quase pronto, tenente — replicou o cabo, que, apesar do frio, estava com o rosto afogueado e a testa coberta de suor.
Nikita estava ficando cada vez mais irritado com a situação; o ar em volta parecia-lhe muito pesado. Era mais do que apenas a escuridão e o isolamento; era a certeza de que o inimigo não se encontrava muito longe.
Cinquenta e oito
Terça-feira, 15:50, São Petersburgo
— Acho que eles se esqueceram de nós.
A ideia parecia surpreender o soldado George, que, ao volante, já se aproximava do Hermitage, depois de atravessar o rio Moika e fazer algumas curvas traiçoeiras. Passou à direita da estátua do Cavaleiro de Bronze e dobrou à direita na Gogolya Ulitsa, que terminava na Praça do Palácio.
Peggy tinha desligado o rádio depois que Orlov e Paul Hood mudaram de satélite e ficou claro que ninguém mais entraria na linha. Depois de pôr em liberdade o trêmulo, mas agradecido, passageiro, ela e George decidiram prosseguir rumo ao Hermitage, onde poderiam deixar o carro, misturar-se à multidão e respirar um pouco antes de passarem à segunda parte da missão.
— Quer dizer: isso é falta de consideração, não acha? Atravessamos milhares de quilômetros como sardinhas em lata, fazemos o serviço, e ninguém se preocupa em ligar de volta para nos dizer: “A propósito, bom trabalho, pessoal.”
— Você veio para cá em busca de aprovação? — perguntou Peggy.
— Não, mas mesmo assim seria bom recebê-la.
— Não se preocupe. Tenho um palpite de que depois que sairmos daqui você vai sentir saudade do anonimato.
Quando as colunas brancas do Hermitage, às quais o sol poente emprestava um brilho dourado, apareceram ao longe, George pôde ver e ouvir o exército de operários a que o capitão Rydman se referira.
George sacudiu a cabeça.
— Quem podia imaginar?
— A última vez que alguém fez um protesto nesta praça — observou Peggy —, provavelmente o Hermitage ainda se chamava Palácio de Inverno e os guardas de Nicolau II dispersaram os manifestantes a bala.
— É assustador pensar que existe gente interessada em trazer de volta o tacão de ferro — disse George.
— É por isso que não me preocupo com agradecimentos. É o medo que nos faz agir, não um tapinha nas costas. A vigilância traz suas próprias recompensas. Era assim que Keith pensava.
George olhou para Peggy no espelho retrovisor. Não detectou nenhum sinal de tristeza na voz da agente pela perda do amante, nem conseguiu ver saudade em seus olhos. Talvez fosse uma dessas pessoas que não choram em público. Imaginou como reagiria quando chegassem ao local onde Keith morrera.
Havia pelo menos três mil pessoas espalhadas pelo grande tabuleiro de xadrez da Praça do Palácio. Estavam viradas para um palanque erguido em frente ao Arco do Estado-Maior. Como a polícia estava desviando o tráfego, Peggy pediu a George para estacionar por ali mesmo. Ele parou ao lado de um café ao ar livre com guarda-sóis marrons nas mesas, cada um deles anunciando uma marca diferente de cerveja ou vinho.
— Os capitalistas não perderam tempo — comentou George, em tom de crítica, ao saltarem do carro.
— Eles nunca perdem — respondeu a moça, notando que um dos policiais estava olhando para o casal.
George percebeu, também.
— A polícia vai identificar o carro — comentou.
— Eles não esperam que continuemos por aqui — objetou Peggy. — Pelo que sabem, nossa missão está encerrada.
— Não acha que nosso amigo Ronash já forneceu nossa descrição, que está sendo distribuída por toda São Petersburgo?
— Ainda não. Mas se queremos nos fazer passar por turistas, precisamos nos livrar desses uniformes. — Peggy consultou o relógio. — Temos que encontrar Volko em uma hora e dez minutos. É melhor entrarmos. Se formos interpelados, posso dizer que trabalhamos para o Almirantado, que fica a um quarteirão daqui. Vou explicar que estamos vigiando os manifestantes para que não passem dos limites da praça. Depois de entrar no museu, mudamos de roupa, fingimos que somos um jovem casal de namorados e nos dirigimos para o Rafael.
— Finalmente, um papel que me agrada! — exclamou George, enquanto se dirigiam para a praça.
— Não se empolgue demais — advertiu Peggy. — Vamos ter uma pequena briga lá dentro para que eu possa me afastar e puxar conversa com Volko.
George sorriu.
— Sou casado. Esse papel me agrada, também — retrucou, no momento em que contornavam a multidão reunida na praça.
Peggy não retribuiu o sorriso. George imaginou se ela teria sequer ouvido suas palavras. Viu quando a moça olhou para a multidão, para as esculturas no alto do Arco do Estado-Maior, para os próprios pés... para todas as direções, menos para o Hermitage e para o rio em cuja margem tinha morrido Keith Fields-Hutton. Teve a impressão de que os olhos de Peggy estavam úmidos e seus passos um pouco mais pesados.
Já era hora, pensou com satisfação, de se sentir um pouco mais próximo da pessoa com quem passara o dia inteiro praticamente colado.
Cinquenta e nove
Terça-feira, 22:51, Khabarovsk
Os soldados spetsnaz eram treinados para fazer muita coisa com sua arma principal, a espada. Eram deixados em quartos fechados com apenas a espada e um cão raivoso. Tinham de derrubar árvores com ela. Vez por outra, recebiam ordens para cavar trincheiras com a espada no solo congelado, trincheiras suficientemente profundas para abrigá-los. Em um certo momento, vários tanques atravessavam o campo de treinamento. Os soldados que não tinham cavado suficientemente fundo eram esmagados.
Com a ajuda de Liz Gordon, o tenente-coronel Squires tinha feito um estudo especial das técnicas dos spetsnaz, tentando identificar aquelas que melhor explicassem a notável resistência e versatilidade desses soldados. Sabia que não poderia imitar todas elas. O uso de espancamentos regulares para aumentar a capacidade dos soldados de suportar maus-tratos jamais seria aprovado pelo Pentágono, embora houvesse comandantes que aprovariam esses métodos sem pestanejar. Entretanto, chegara a adaptar muitos métodos dos spetsnaz. Um dos seus favoritos era a capacidade de criar camuflagens em um prazo de tempo extremamente curto e se esconder nos lugares mais improváveis.
Quando Squires soube que havia soldados no teto do trem, compreendeu que estariam vigiando a copa das árvores, os rochedos e os bancos de neve ao lado da via férrea. Alguém na locomotiva certamente estaria observando os trilhos à procura de explosivos ou obstáculos. Entretanto, tinha de chegar ao trem sem ser visto, e o melhor lugar para se esconder eram os próprios trilhos.
A luz do farol da locomotiva certamente era fraca e difusa, e os soldados estariam com a atenção inteiramente voltada para as trilhas. Assim, sentiu-se razoavelmente seguro em usar uma pequena machadinha para cavar entre dois dormentes, abrir uma pequena cova no leito da estrada de ferro, deitar-se de costas e pedir a Grey que cobrisse com neve o seu corpo e o saco de C-4, deixando um pequeno túnel lateral para que pudesse respirar. Depois de enterrar Newmeyer nas proximidades, Grey escondeu-se atrás de uma pedra, longe do trem; quando Squires e Newmeyer invadissem os dois vagões e a confusão começasse, Grey atacaria o seu alvo, a locomotiva.
Squires ouviu e depois sentiu a aproximação do trem. Não tinha nada a temer; estava abaixo da superfície, em um lugar onde nem mesmo o limpa-trilhos, se houvesse um, o tocaria. Sua única preocupação era que o maquinista visse a árvore cedo demais ou não chegasse a vê-la e colidisse com ela. Na segunda hipótese, não só o trem ficaria avariado, mas as rodas poderiam arremessar a árvore contra ele, caso em que, como dissera a Grey, rindo, seria transformado em linguiça.
No final, nada disso aconteceu. Mas quando o trem parou e Squires conseguiu cavar um pequeno buraco na frente dos olhos, constatou que estava debaixo do atrelado, isto é, um vagão à frente do que gostaria.
Pelo menos a camuflagem funcionou, pensou consigo mesmo enquanto se livrava discretamente da neve que lhe cobria o corpo. Havia algo de muito gratificante e historicamente correto em enganar soldados russos com uma tática russa — como Rasputin sendo assassinado por tsaristas e o tsar sendo assassinado por revolucionários.
Quando acabou de remover a neve, Squires ouviu gritos. Apesar de praticamente cada centímetro quadrado de sua pele estar coberto com Nomex, sentia frio — um frio que parecia mais intenso por causa da escuridão que o envolvia.
Assim que saiu do buraco, ouviu o som de botas na neve úmida. Logo depois, foram acesas algumas tochas que espalharam círculos róseos de luz, emprestando ao fundo escuro do trem um brilho diabólico.
Depois de colocar cuidadosamente a mochila na barriga, Squires começou a rastejar para trás, em direção ao primeiro vagão. Viu alguns soldados passarem ao lado do trem e parou por um momento para desabotoar a tira de segurança do coldre que usava no quadril direito. Embora Squires não tivesse intenção de provocar um incidente internacional, preferia ler uma reportagem no jornal sobre seus crimes do que outros lerem sobre sua morte numa planície gelada da Sibéria.
Squires era um bom rastejador; antes que os russos chegassem à árvore caída, já estava embaixo do engate entre o atrelado e o primeiro vagão. Abriu a mochila, removeu o C-4 e pressionou-o contra o metal, fazendo com que flocos de ferrugem caíssem como neve. Depois de se certificar de que os explosivos estavam bem presos, pegou o detonador de dez centímetros de diâmetro e introduziu os terminais positivo e negativo no plástico. Havia dois botões acima de um teclado numérico; apertou o botão da esquerda, ativando a unidade, e usou o teclado numérico para escolher o intervalo de tempo. A explosão deveria ocorrer em uma hora. Depois de digitar 60:00:00, apertou o botão da direita para confirmar a escolha. Em seguida, apertou o botão da esquerda e o da direita mais uma vez para iniciar a contagem regressiva.
Squires apoiou os pés na neve avermelhada e rastejou até a metade do primeiro vagão. Ouviu ruídos no interior, à direita. A parada súbita devia ter desarrumado os caixotes, que estavam sendo colocados de volta no lugar. Rastejando para trás mais alguns metros, parou exatamente abaixo do local de onde vinha o barulho e colocou mais uma carga de C-4. Introduziu os terminais do detonador e repetiu o processo de fixar a hora da explosão. Depois de rastejar até o segundo vagão, instalou mais uma carga de C-4 e mais um detonador.
Quando terminou, Squires permitiu-se um suspiro profundo. Olhou por cima do peito para a frente do trem e viu que os soldados estavam quase acabando de remover a árvore. Não dispunha de muito tempo.
Depois de se livrar da mochila, saiu de baixo do trem, deitou-se de bruços, olhou para o mostrador luminoso do relógio e ficou contente por ter completado a operação em tão pouco tempo. Sabia que se tivesse tido oportunidade de ensaiar todos os movimentos em Andrews, teria levado um tempo dez a vinte por cento maior para executar a tarefa. Por que era assim, não sabia. Mas era verdade.
Olhou na direção do primeiro vagão e, apoiando-se nos cotovelos, dirigiu-se a um banco de neve perto do atrelado. Começou a remover a neve; era o sinal para Newmeyer sair do esconderijo. O soldado estava muito nervoso e tinha mordido a balaclava para evitar que os dentes chocalhassem. Squires deu-lhe um tapinha no ombro e Newmeyer virou-se de bruços. Tinha sido enterrado com a Beretta de 9mm junto ao peito e não perdeu tempo para colocá-la no coldre.
Newmeyer sabia o que fazer; Squires rastejou de volta ao segundo vagão para colocar-se em posição.
Tinham chegado a uma parte do plano que o tenente-coronel gostaria de ter ensaiado. Entretanto, embora um soldado spetsnaz pudesse passar setenta e duas horas sem dormir, os paraquedistas Sayeret Tzanhanim de Israel fossem capazes de descer nas costas de um camelo em disparada, e ele tivesse visto um oficial da Guarda Real de Omã matar um homem com um alfinete de chapéu no pescoço, Squires sabia que nenhum soldado do mundo era capaz de improvisar como um Striker. Era nisso que estava a beleza do grupo; era por isso que combinavam perfeitamente com a missão do Op-Center de pôr fim às crises antes que se agravassem.
Squires pendurou o detonador no cinto, vestiu a máscara contra gases e tirou uma granada luminosa da bolsa que levava pendurada na cintura. Enfiou o polegar direito no anel preso ao pino da granada, ainda segurando a trava de segurança. Em seguida, tirou da bolsa uma bomba de gás lacrimogêneo M54 e segurou-a com a mão esquerda, com o polegar enfiado no anel. Depois que Newmeyer o imitou, os dois se levantaram devagar, nas sombras, um pouco à direita das janelas do primeiro e segundo vagões.
Sessenta
Terça-feira, 7:53, Washington, D.C.
— Onde está ele?
Hood estava pensando exatamente a mesma coisa que Herbert acabava de dizer.
Durante alguns minutos, todos no escritório tinham permanecido em silêncio e ele repassara mentalmente a conversa com Orlov, tentando se convencer de que não fornecera ao russo nenhuma informação que pudesse ser usada contra os Strikers. Orlov já sabia da existência dos dois grupos e estava a par da sua localização. Por outro lado, Hood estava convencido de que a conversa representava um passo importante para minimizar a crise. Há muito tempo que Orlov poderia ter usado sua posição na Rússia para se promover, se fosse essa a sua intenção. Hood queria acreditar que o cosmonauta, além de patriota, era um humanista.
Acontece que o filho dele é responsável pelo trem, pensou Hood, e isso pode fazer as coisas mudarem de figura.
— Mensagem do Striker Honda — anunciou Bugs Benet.
— Passe para mim — disse Hood — e coloque o mapa da missão no computador. Tire a imagem da tela se o General Orlov chamar de novo.
Enquanto falava, o diretor empurrou o telefone para a beira da mesa, na direção de Mike Rodgers. O general pareceu apreciar o gesto.
A voz de Honda se fez ouvir na linha segura, forte e surpreendentemente nítida.
— Aqui é o soldado Honda. Estou chamando como combinado.
— Aqui é o general Rodgers. Pode falar, soldado.
— General, estamos ao lado da ponte e a nevasca está começando a ceder. Três Strikers estão presentes nas coordenadas 9518-828 para garantir a retirada, e três Strikers estão no trem, coordenadas 6987-572. O tenente-coronel pretende colocar C-4 no trem, remover todos os passageiros com granadas luminosas e gás lacrimogêneo, colocar o trem em movimento e fazer com que ele vá pelos ares. Ele ficou com medo de que alguém pudesse se ferir com fragmentos da caldeira. Deverá se juntar a nós no ponto de recolhimento depois que o alvo for neutralizado.
Hood olhou para a tela do computador. Embora as distâncias envolvidas fossem grandes, a ideia parecia viável.
— Soldado — disse Rodgers —, viu algum sinal de resistência por parte dos russos?
— General, não vimos nenhum russo. O tenente-coronel mandou derrubar uma árvore para bloquear a linha; isso, nós ouvimos. Depois, ouvimos o trem chegar, ouvimos o barulho dos freios e ouvimos quando ele parou. Mas não podemos vê-lo daqui.
— Ouviram tiros?
— Não, senhor.
— Se for necessário transmitir um recado à equipe beta, vocês têm condições de fazer isso? — perguntou Rodgers.
— Só se um de nós for até lá; eles não estão com o rádio ligado. General, preciso me juntar aos outros, mas tornarei a ligar se houver alguma novidade.
Rodgers agradeceu e desejou-lhe boa sorte, enquanto Hood chamava Benet na outra linha e pedia que as fotos do local tiradas por satélite fossem enviadas para sua impressora assim que fossem recebidas pelo ENR. Rodgers e Herbert se aproximaram da impressora atrás da mesa de Hood para esperar a primeira foto.
Logo depois, o rosto de Orlov apareceu na tela do computador. Parecia mais preocupado do que antes e Hood fez um sinal disfarçado para que Liz se aproximasse. A moça ficou a seu lado, fora do alcance da câmera de fibra óptica. De onde estava, podia ver a imagem de Orlov na tela.
— Desculpe a demora — disse Orlov. — Dei ordem ao operador de rádio para mandar o trem parar e colocar meu filho na linha, mas a ligação caiu. Sinceramente, não sei o que aconteceu.
— Eu soube que meu grupo colocou uma árvore atravessada na linha — disse Hood —, mas aparentemente não houve uma colisão.
— Nesse caso, talvez eles tenham recebido meu aviso a tempo — observou Orlov.
Hood viu o general olhar para baixo.
— Nikita está chamando — disse Orlov. — Com licença, senhores. Voltarei a ligar mais tarde.
A imagem desapareceu e Hood virou-se para Liz.
— O que achou?
— Olhar firme, voz um pouco baixa, ombros curvados — disse a moça. — Como alguém que está dizendo a verdade, mas não se sente nada satisfeito com ela.
— Tive a mesma impressão. — Hood sorriu. — Obrigado, Liz.
A moça retribuiu o sorriso.
— Não há de quê.
De repente, a impressora começou a funcionar, e Rodgers e Herbert olharam para Hood com a mesma expressão que Orlov, enquanto esperavam a primeira foto sair da máquina.
Sessenta e um
Terça-feira, 22:54, Khabarovsk
O conserto do cabo foi retardado pelo fato de que as pontas dos dedos do cabo Fodor estavam enregeladas. Agachado ao lado da antena, ele teve de remover dois centímetros de isolamento com um canivete, a fim de expor um comprimento de fio suficiente para refazer a ligação. O fato de dois civis estarem observando o que fazia, enquanto discutiam melhores meios de descascar o fio, não ajudou em nada.
Quando Fodor finalmente terminou, passou o receptor ao tenente, que estava de pé bem atrás dele. Os movimentos de Fodor não foram triunfantes, mas rápidos e econômicos.
— Nikita — disse o general. — Você está bem?
— Estou, general. Vamos ter de retirar uma árvore...
— Não deve fazer isso.
— O que foi que disse? — perguntou Nikita, incrédulo.
— Quero que chame de volta seus soldados. Não devem atacar os soldados americanos em hipótese alguma, compreende?
Um vento gelado estava entrando pela janela, mas não foi por isso que Nikita ficou arrepiado.
— General, não me peça para me render...
— Isso não será necessário — assegurou Orlov. — Mas quero que obedeça às minhas ordens. Está me entendendo?
Nikita hesitou.
— Perfeitamente — respondeu, afinal.
— Estou em contato com o comandante das forças americanas — explicou Orlov. — Mantenha a linha aberta e lhe darei mais...
Nikita não ouviu o resto. Houve um ruído surdo no piso de madeira do vagão. O rapaz se voltou e viu a granada rolar lentamente na sua direção; segundos depois, irrompeu em uma série de clarões cegantes e explosões ensurdecedoras. Os ocupantes do vagão começaram a gritar e Nikita ouviu outro ruído de queda, seguido pelo sibilar de gás.
No momento em que sacou a pistola e se dirigiu para a porta da frente do vagão, Nikita não pôde deixar de pensar em como os americanos eram espertos: primeiro, usavam uma granada luminosa para forçá-los a fechar os olhos e, em seguida, lançavam uma bomba de gás lacrimogêneo para mantê-los fechados..., mas sem os danos permanentes que poderiam ocorrer se eles fossem expostos ao gás com os olhos abertos naquele espaço exíguo.
Não querem ser acusados de desumanidade nas Nações Unidas, pensou o tenente, com irritação.
Aos olhos de Nikita, os americanos estavam tentando neutralizar os soldados para poder fugir com o dinheiro. Certamente os atacantes estavam espalhados em torno do trem, e não faria sentido mandar suas tropas persegui-los no escuro. Entretanto, os comandos jamais conseguiriam capturá-lo e ficar com a carga. Enquanto apalpava o caminho com a mão esquerda, amaldiçoava o pai por confiar nos americanos, por achar que eram eles, e não o general Kosigan, que melhor refletiam os interesses do povo russo.
Ao se aproximar da porta, Nikita gritou:
— Sargento Versky, dê-nos cobertura!
— Sim, senhor! — gritou Versky de volta.
Quando chegou à frente do carro e emergiu das nuvens de gás lacrimogêneo, Nikita abriu os olhos e viu os homens de Versky de bruços na neve, prontos para atirar ao primeiro sinal de fogo inimigo. Atrás dele, o cabo Fodor e outro soldado estavam ajudando os civis a saltar do trem.
Nikita afastou-se um pouco do vagão e falou com um soldado que estava no teto, olhando para o outro lado da linha.
— Soldado Chiza, está vendo alguém?
— Não, senhor.
— Como é possível? — berrou Nikita. — As granadas vieram daquele lado!
— Não vi ninguém, tenente!
Isso é impossível, pensou Nikita. Aquelas granadas tinham sido lançadas manualmente. Alguém havia se aproximado do trem o suficiente para jogá-las. Então lhe ocorreu que esse alguém teria deixado pegadas na neve.
Sem perder mais tempo, Nikita começou a caminhar na direção da locomotiva, disposto a contornar o trem e dar uma olhada do outro lado.
Sessenta e dois
Terça-feira, 22:56, Khabarovsk
Agachado atrás de uma pedra do tamanho do antigo Thunderbird do pai, o sargento Chick Grey não viu Squires e Newmeyer jogarem as granadas pelas janelas do trem, mas quando o orgulho da equipe de atletismo de Long Island do Colégio Valley Stream viu a cor da neve passar de negro carvão para branco magnésio, foi como se alguém tivesse dado o tiro de largada. Já havia arriscado uma olhada na direção da locomotiva e saiu de trás da pedra, as pernas em movimento frenético, o corpo curvado, voando pela neve na direção do trem. Viu quando Squires e Newmeyer entraram pelas janelas dos dois vagões. Esperou o som característico das Berettas, mas não ouviu nada. Logo depois, um rolo de fumaça começou a sair pela porta traseira do segundo vagão, e viu Newmeyer mexendo no engate entre o segundo vagão e o vagão de serviço. Em poucos instantes, o vagão vermelho estava solto, deixando um soldado atirando inutilmente do teto.
Grey sentiu orgulho do que os Strikers tinham feito: se ninguém saísse ferido, aquela seria uma operação para a cápsula do tempo das forças especiais.
Idiota!, pensou, dando uma guinada para a esquerda e depois outra para a direita, sem parar de correr. Reconheceu que tinha cortejado o desastre ao festejar antecipadamente o sucesso e recriminou-se à moda brusca, mas tradicional, dos Strikers.
Quando ainda estava a alguns metros do trem, Grey viu, à luz dos archotes, uma sombra se aproximar da frente da locomotiva, vindo do outro lado da linha. Para não encontrar o intruso, pulou na direção do tubo injetor que passava pela cabine, logo acima das rodas traseiras. Agarrou-o, jogou as pernas pela janela e foi cair no meio da cabine, de cócoras.
O maquinista se virou, surpreso. Grey cerrou o punho da mão esquerda e deu um soco na boca do soldado, acompanhado de um chute no joelho que o derrubou.
O sargento não queria que o homem ficasse inconsciente, já que precisaria dele, caso não conseguisse colocar o trem em movimento. Entretanto, o acelerador e o freio eram fáceis de operar; depois de chute o segundo para colocá-lo na posição vertical, inclinou o acelerador para a direita e o trem deu um salto para a frente.
— Saia! — berrou Grey ao soldado.
O jovem russo, quase imberbe, estava tentando recuperar o controle das pernas, mas desistiu e ficou de joelhos.
O Striker fez um gesto brusco na direção da janela.
— Hum... dosvidanya! — exclamou, usando a única palavra russa que conhecia. — Adeus!
O russo hesitou e, então, tentou agarrar a Beretta que Grey levava na cintura. O Striker golpeou o russo na têmpora com o cotovelo. O soldado caiu no canto da cabine como um pugilista nocauteado.
— Seu cachorro! — rosnou o sargento.
Depois de puxar um pouco mais o acelerador, colocou o russo no ombro como se fosse um saco de farinha, carregou-o até a janela e jogou-o de costas num banco de neve que passava. Quando olhou para trás, viu soldados russos tentando alcançar o trem. Entretanto, alguns tiros provenientes dos dois vagões os fizeram parar, e logo o Striker Express varava a noite a três quartos da velocidade máxima.
Quando o trem entrou em movimento, Nikita estava passando na frente do limpa-trilhos. Pulando para fora dos trilhos, agarrou o corrimão da escada e subiu três degraus para chegar à plataforma. Agachado ali, as costas apoiadas na chapa da caldeira, segurou com força a submetralhadora AKR e ficou olhando, com ódio crescente, enquanto o soldado Maximich era atirado janela afora e os outros americanos atiravam em seus homens, os legítimos donos do trem, obrigando-os a se esconder atrás de pedras e árvores.
Esses são os homens que meu pai considera amigos!, lamentou-se, enquanto os últimos vestígios de gás lacrimogêneo se dissipavam e a locomotiva ganhava velocidade.
Ainda agachado, Nikita transferiu a arma para a mão esquerda e galgou a saliência acima do reservatório de ar. O estreito beiral passava por cima do cano injetor, em direção à caldeira. Segurando-se no corrimão que ficava um pouco mais acima, o segundo-tenente apontou a submetralhadora para o interior da cabine.
E enquanto Nikita passava sob o domo de vapor, a apenas dois metros da cabine, o soldado americano olhava para fora, sem desconfiar de nada.
Sessenta e três
Terça -feira, 16:02, Moscou
Dogin, o ministro do interior, estava satisfeito. Muito satisfeito.
Sozinho no escritório pela primeira vez no dia, saboreava o triunfo iminente. As tropas do general Kosigan estavam entrando na Ucrânia sem incidentes; havia mesmo notícias de russos e ucranianos que recebiam os soldados com bandeiras soviéticas.
Tropas polonesas estavam sendo deslocadas para a fronteira da Ucrânia. A OTAN e os Estados Unidos haviam transferido soldados da Inglaterra para a Alemanha e da Alemanha para a fronteira com a Polônia, e tinha havido uma demonstração de força quando caças da OTAN sobrevoaram Varsóvia. Entretanto, nenhum soldado não-polonês havia pisado em território polonês, nem era provável que isso viesse a acontecer. Não com agentes russos prontos para entrar em ação em várias partes do mundo. Os Estados Unidos preferiam ver a Rússia recuperar sua histórica esfera de influência a permitir que soldados americanos se ocupassem de rebeliões e invasões da América Latina ao Oriente Médio. No momento, o emissário de Dogin em Washington, o vice-chefe de missão Savitski, estava discutindo os objetivos dos russos em uma reunião a portas fechadas no Departamento de Estado. O novo embaixador de Janin já havia estado com Lincoln, o secretário de Estado. Ao concordarem com o segundo encontro, os Estados Unidos tinham reconhecido oficialmente a existência de um segundo governo na Rússia. E o Grozny nem precisara praticar novos atentados para conseguir esse reconhecimento.
Os novos amigos políticos de Dogin haviam concordado em esperar o dinheiro, e o presidente Janin enfrentava sérios bloqueios nos canais de informação e comando, que o impediam de reagir com rapidez ou precisão. Dogin orgulhava-se do fato de sua tática estar se revelando muito mais eficaz do que a adotada pelos autores do fracassado golpe contra Mikhail Gorbachev. Não era preciso isolar o líder com armas e soldados. Uma vez privado de sua capacidade de ver e ouvir, ficaria totalmente indefeso.
Dogin deu um risinho de satisfação. O que poderia fazer o idiota? Ir para a televisão e dizer ao eleitorado que não sabia o que estava acontecendo? Pedir por favor que alguém lhe dissesse alguma coisa?
O único medo do ministro, o de que Shovich se mostrasse impaciente com a demora inesperada, não se concretizara. Na certa havia usado um dos seus passaportes falsos para deixar o país, mantendo-se em movimento, como Patton durante a Segunda Guerra Mundial, com o intuito de confundir inimigos e rivais. Não que importasse a Dogin onde Shovich estava. Ficaria contente se o verme permanecesse debaixo de uma pedra o maior tempo possível.
Até agora, disse a si mesmo, o único que me decepcionou foi Sergei Orlov. O ministro e seus aliados estavam trabalhando para salvar o país, mesmo que para isso fosse preciso passar por cima de algumas leis. Já imaginava que um homem tradicionalista e amante da ordem como o general não apreciasse seus métodos pouco ortodoxos, mas não esperava que Orlov o desafiasse abertamente, contrariando as ordens dadas pelo coronel Rossky. Ao fazer isso, pensou Dogin, o general havia posto por terra sua carreira. Deixara as linhas russas e juntara-se à Brigada Ligeira em sua jornada ao Vale da Morte.
Dogin tinha pena dele. Orlov fizera seu trabalho, ajudando a convencer políticos relutantes a concordar com a criação do novo Centro de Operações, porque era um homem íntegro e honesto. E teria continuado a colaborar com o novo regime, se tivesse se integrado à equipe.
O ministro olhou para os mapas antigos que adornavam as paredes de seu escritório e sentiu um frêmito de prazer ao imaginar que, em breve, poderia acrescentar um novo-velho mapa, o da renascida União Soviética.
Consultou o relógio. Àquela altura, a tempestade já devia ter passado e o trem devia estar se aproximando de Khabarovsk. Pegou o telefone e pediu ao assistente para colocar o general Orlov na linha. Depois que a chegada do trem fosse confirmada, mandaria um avião para Birobidjan, a capital da região autônoma dos judeus, à margem do rio Bira. A fábrica de implementos agrícolas de Dalselmash tinha um campo de pouso capaz de acomodar um avião militar de médio porte.
O homem que atendeu não era o oficial digno e resignado com quem falara anteriormente. O general mostrou-se surpreendentemente agressivo.
— Seu plano falhou — declarou, secamente.
O ministro ficou desconfiado.
— Que plano? Aconteceu alguma coisa com o trem?
— Acertou em cheio — replicou Orlov. — Neste momento, está sendo atacado por comandos americanos.
Dogin retesou-se na cadeira.
— O trem estava sob sua responsabilidade, sob a responsabilidade do seu filho!
— Tenho certeza de que Nikita fará o possível para resistir — afirmou Orlov. — Os americanos estão em desvantagem... não querem ferir nossos homens.
— Eles têm juízo — observou Dogin. — Onde está Rossky?
— Caçando espiões — informou Orlov. — Mas eles foram espertos. Capturaram o agente que os seguia e usaram o rádio dele para me colocar em contato com um centro de operações em Washington. Foi assim que fiquei sabendo do seu plano. Eu e os americanos tentamos chegar a um acordo.
— Não quero ouvir falar dos seus fracassos — disse Dogin. — Quero apenas que encontre Rossky; quando isso acontecer, deve passar-lhe o comando.
— Está se esquecendo de que apenas o presidente pode me demitir?
— Se não renunciar, general Orlov, vou mandar prendê-lo.
— Como é que Rossky e seus capangas vão entrar aqui? — perguntou Orlov. — A partir deste momento, o Centro está fechado.
— Vamos tomá-lo de volta — advertiu Dogin.
— Talvez... mas não a tempo de salvar o trem... e sua causa.
— General! — berrou Dogin. — Pense no que está fazendo! Pense no seu filho, na sua esposa!
— Amo meu filho e minha esposa, mas, no momento, estou pensando na Rússia. Adeus, ministro.
Orlov desligou. Durante um minuto, Dogin ficou parado onde estava, apertando com força o telefone. Era impossível imaginar que havia chegado tão longe apenas para ser arruinado pela traição de Orlov.
Com o rosto afogueado e as mãos trêmulas de raiva, mandou o assistente ligar para o general Dhaka, da Força Aérea. Os americanos só podiam ter chegado pelo ar, e sem dúvida estavam planejando sair do país da mesma forma. Tornaria isso impossível; se algo acontecesse com a carga, os americanos teriam de devolver o dinheiro... ou seus soldados seriam devolvidos através de Shovich, um pedaço de cada vez.
Sessenta e quatro
Terça -feira, 23:10, Khabarovsk
Squires viu os últimos restos de gás lacrimogêneo flutuarem para o teto e saírem pela porta e pelas janelas. Com os olhos e a boca protegidos por uma máscara que parecia já fazer parte de seu corpo, os ouvidos atentos a qualquer sinal de perigo, correu na direção dos volumes empilhados ou espalhados ao acaso na parte traseira do vagão. Usou a faca da lapela para abrir um dos caixotes de madeira.
Estava cheio de dinheiro. Os lucros do sofrimento, destinados a provocar mais sofrimento.
Ainda bem, pensou, olhando para o relógio, que em trinta e dois minutos tudo isso vai virar confete. Ele e sua pequena equipe continuariam a viagem por mais vinte minutos, até um lugar onde os russos não pudessem alcançar o trem. Depois, iriam a pé até a ponte, enquanto atrás deles, como Sodoma e Gomorra, os dois vagões daquele banco podre seriam reduzidos a pedacinhos. Experimentou a mesma emoção que muitos americanos, de Thomas Jefferson a Rosa Parks, deviam ter sentido: a satisfação e o orgulho de dizer não ao que é errado, de não se submeter aos corruptos.
Squires dirigiu-se à porta traseira do vagão. Quando ia entrar no segundo vagão, para ver como Newmeyer estava se saindo, ouviu o som de tiros na outra direção.
Tiros na locomotiva?, pensou. Como pode ser? Grey não tinha em quem atirar, agora que os russos haviam ficado para trás.
Depois de gritar o nome de Newmeyer, Squires atravessou correndo o vagão, mergulhou na espessa nuvem de fumaça negra que envolvia o atrelado e começou a avançar cautelosamente em direção à locomotiva.
O tempo fora suficiente apenas para uma curta rajada, mas Nikita tinha certeza de que atingira o alvo. Vira o ombro do americano ser projetado para trás e o uniforme branco se manchar de sangue.
Nikita deslocou-se rapidamente por fora da locomotiva. Ela parecia isolada do resto do trem, que estava escondido atrás de nuvens de fumaça negra e flocos de neve agitados pelo vento. Chegando à cabine, baixou a arma e olhou pela janela. Estava vazia. Seus olhos esquadrinharam o interior, iluminado pelas chamas alaranjadas da fornalha...
Levantou os olhos e viu uma cabeça e o cano de uma Beretta aparecerem no teto. Nikita mergulhou pela janela, levando uma bala na parte de trás da coxa direita quando o americano disparou vários tiros contra a lateral do trem.
Fazendo um esgar, Nikita comprimiu a coxa com a mão esquerda enquanto sua calça ficava rapidamente empapada de sangue. A dor era tão forte que tinha a impressão de que a perna estava sendo apertada por um torno, mas o que o incomodava mais era não ter previsto que o americano poderia sair pela janela e subir para o teto da locomotiva.
O que faria?
Nikita levantou-se com esforço, colocando todo o peso do corpo na perna esquerda, e arrastou-se para o acelerador. O mais importante era parar o trem, ganhando tempo para que seus homens o alcançassem.
Seus olhos se moviam de janela em janela enquanto atravessava a cabine, com a arma na mão e o dedo no gatilho. O americano teria que entrar ali para colocar de novo o trem em movimento, e as únicas entradas eram as duas janelas.
De repente, ouviu um baque familiar e a cabine foi iluminada por um clarão cegante.
— Não! — gritou Nikita, fechando os olhos e recuando para a parede traseira da cabine.
O estrondo das granadas luminosas foi amplificado pelas paredes de metal da cabine. Colocou as mãos nos ouvidos para protegê-los, sentindo-se totalmente indefeso. Não podia nem mesmo disparar cegamente, já que havia um risco considerável de ser atingido por um ricochete.
Isso não pode acabar assim, disse a si mesmo. Cambaleando para frente, Nikita tentou empurrar o acelerador com o pé esquerdo. Quando percebeu que não conseguiria apoiar-se na perna direita, ficou de joelhos e estendeu a mão esquerda para o acelerador. Começou a puxá-lo para a direita, mas foi interrompido pelo calcanhar de uma bota. Nikita fez uma tentativa inútil de agarrar a perna, mas seus dedos encontraram apenas o ar. Balançou a arma de um lado para outro, à procura de um alvo.
— Lute comigo! — gritou. — Covarde!
Nesse momento, tudo ficou escuro, as explosões pararam e os únicos sons nos ouvidos de Nikita passaram a ser um zumbido irritante e as batidas de seu próprio coração.
Perscrutando a escuridão, o tenente viu um vulto encolhido num canto. O frio havia congelado o sangue, mas reconheceu o ferimento. Viu que tinha feito vários furos no uniforme, mas apenas uma bala não atingira o que parecia ser um colete à prova de balas.
Levantou a arma e apontou-a para a testa do homem, logo acima dos óculos.
— Não faça isso! — advertiu, em inglês, uma voz à esquerda de Nikita.
O oficial russo se virou e viu uma Beretta apontada para ele do lado de fora da janela. Atrás dela estava um homem alto e corpulento, vestido da mesma forma que o ferido.
Não ia permitir que um fora da lei lhe dissesse o que fazer. Nikita voltou a apontar a arma, disposto a liquidar o ferido, quer o outro homem disparasse ou não. Entretanto, o homem que estava caído no canto voltou inesperadamente à vida, trançando as pernas no seu tronco, jogando-o de costas no chão e mantendo-o imobilizado até o outro homem entrar pela janela e desarmá-lo. Nikita debateu-se, mas a dor na perna o impedia de se levantar e mesmo de opor muita resistência. O segundo homem colocou o joelho no peito de Nikita e usou a sola da bota para empurrar o acelerador, aumentando novamente a velocidade do trem. Ainda ajoelhado sobre o peito de Nikita, pegou o que parecia ser uma corda de alpinismo e usou-a para amarrar o tornozelo da perna boa de Nikita a uma alavanca pouco abaixo da janela. O russo não podia alcançá-la e pela segunda vez na noite se sentiu envergonhado.
Os dois planejaram isso juntos no teto da cabine, pensou. E eu caí na armadilha como um novato.
— Nossas desculpas, tenente — disse o homem em inglês, levantando-se e tirando os óculos.
Um terceiro homem se aproximou da cabine e, depois de gritar alguma coisa, foi autorizado a entrar pela janela.
O recém-chegado cuidou do ferimento do companheiro à luz da fornalha, enquanto o outro homem — obviamente o chefe do grupo — se curvava para examinar o ferimento de Nikita. Nesse momento, Nikita estendeu o braço esquerdo para tentar mover o acelerador. O líder agarrou seu pulso e o russo tentou chutá-lo com a perna livre, mas fez uma careta de dor.
— Sofrimento não rende medalha — disse o homem a Nikita.
O líder pegou o saco onde estava a corda, usou uma pequena faca para cortar a correia e enrolou-a na perna empapada de sangue, logo acima do ferimento, apertando com força. Usou outro pedaço de correia para prender as mãos do russo e amarrá-las a um gancho no piso do trem.
— Saltaremos do trem em alguns minutos — informou. — Vamos levá-lo conosco e providenciar para que receba assistência médica.
Nikita não fazia ideia do que ele estava dizendo, nem se importava. Esses homens eram inimigos; de uma forma ou de outra, precisava impedi-los de fazer o que estavam planejando.
Com as mãos atrás das costas, usou a unha do polegar para remover a pedra do anel. No momento em que isso aconteceu, uma lâmina de um centímetro de comprimento se projetou para fora. Nikita começou imediatamente a cortar a tira de couro.
Sessenta e cinco
Terça-feira, 16:27, São Petersburgo
Depois de passarem pelos manifestantes, Peggy e George tinham ido aos banheiros do Hermitage e vestido as roupas que levavam, jeans, camisetas de malha e tênis que estavam na moda entre a juventude russa. Guardaram os uniformes nas mochilas e subiram de mãos dadas a majestosa escadaria que levava ao primeiro andar do Grande Hermitage, sede da expressiva coleção de arte ocidental do museu.
Uma das joias da coleção, a Conestabile Madonna, de Rafael, pintada em 1502, deve seu nome à cidade italiana onde esteve durante vários séculos. A pintura arredondada tem dezoito centímetros de altura por dezoito de largura, uma moldura de ouro trabalhado da mesma largura que o próprio quadro, e mostra a Virgem, em um vestido azul, sentada no campo, com o menino Jesus nos braços.
Peggy e George tinham chegado pouco antes da hora combinada com Volko. Peggy fingia estar apreciando os quadros enquanto, na verdade, observava o Rafael. George, que jamais tinha visto uma fotografia do agente, continuava segurando a mão da moça, enquanto seus olhos passeavam de uma pintura para outra. Como não era a mão de sua esposa, sentia-se culpado por sentir prazer naquele toque, no calor dos dedos de Peggy na sua palma, na leveza das pontas dos dedos da moça apoiados no lado da sua mão. Pensar em como aqueles dedos podiam ser mortais só servia para tornar o seu toque ainda mais elétrico.
Exatamente às 16:29, George sentiu a mão de Peggy se retesar. Olhou na direção do Rafael. Um homem de quase um metro e noventa de altura tinha entrado na sala e dirigia-se lentamente para a pintura. Estava usando uma túnica branca, sapatos marrons e uma jaqueta azul que revelava seu abdome proeminente. Quando se aproximou do Rafael, Peggy apertou com mais força a mão de George. No último momento, o russo mudou de direção e dirigiu-se para o lado direito da pintura, não o esquerdo.
Peggy puxou George discretamente na direção da porta. Agora estava segurando o braço dele com as duas mãos, deixando que a sustentasse. Enquanto isso, seus olhos varriam a sala, movendo-se bem devagar para não chamar atenção. Todos os presentes estavam se movendo ou olhando para os quadros, a não ser um homem baixinho, vestindo calça marrom. Seu rosto redondo parecia deslocado ali, uma nuvem sombria no meio de expressões de felicidade e deslumbramento...
Peggy parou diante da Sagrada família, de Rafael. Apontou o José sem barba e a Virgem, como se estivesse fazendo algum comentário.
— Aquele homem de calça marrom parece estar vigiando Volko — sussurrou.
— Vi apenas uma mulher — disse George.
— Onde?
— Na sala ao lado — explicou o rapaz. — Aquela do Michelangelo. Está virada para cá, com um folheto nas mãos.
Peggy fingiu um espirro para poder desviar os olhos da pintura. Viu a mulher, aparentemente concentrada no folheto, mas claramente observando Volko com a visão periférica.
— Bom trabalho — disse Peggy. — Eles estão cobrindo as duas saídas, mas isso não quer dizer que saibam quem somos.
— Talvez seja por isso que mandaram Volko — sugeriu George. — Ele está sendo usado como isca, mas deu um jeito de nos avisar.
Um minuto se passou e, depois de consultar o relógio, Volko se afastou da pintura. O homem de rosto redondo foi para a porta, mas a mulher permaneceu onde estava.
— Por que ela continua vigiando a sala? — comentou Peggy em voz alta, enquanto ela e George passavam para o quadro ao lado.
— Talvez nosso amigo Ronash tenha fornecido nossa descrição àquele cara.
— É possível — concordou a moça. — Vamos nos separar para ver o que acontece.
— Isso é loucura. Quem vai vigiar nossa retaguarda?
— Vamos ter que vigiar nossa própria retaguarda — afirmou Peggy. — Você sai atrás de Volko e eu passo pela mulher. Nos encontramos na entrada principal. Se um de nós for apanhado, o outro cai fora o mais depressa possível. Entendido?
— De jeito nenhum! — protestou George.
Peggy abriu ao acaso o folheto do museu.
— Escute — disse, com firmeza —, alguém tem que escapar para contar o que aconteceu. Descrever esses agentes, denunciá-los. Você não entende?
Essa é a diferença entre um Striker e um espião, pensou George. Um é membro de uma equipe; o outro, um lobo solitário. Naquele caso, porém, o lobo solitário estava certo.
— Está bem — concordou, afinal. — Vamos em frente.
Peggy levantou os olhos do folheto e apontou para a sala onde estava o Michelangelo. George fez que sim com a cabeça, consultou o relógio e deu-lhe um beijo no rosto.
— Boa sorte — disse o rapaz, dirigindo-se para a porta por onde havia saído Volko.
Quando George se aproximou do homem de rosto redondo, sentiu uma espécie de atração mórbida. Evitando olhar para ele, esquadrinhou a multidão procurando Volko na Loggia de Rafael, a cópia de uma galeria do mesmo nome no Vaticano. Não viu o homem de rosto redondo enquanto caminhava entre os espetaculares murais de Unterberger, nem conseguiu localizar Volko...
— Adnu minuktu, pajalsta — disse alguém atrás dele. — Um momento, por favor.
George se virou e seus músculos se contraíram quando o homem de rosto redondo se aproximou. Ele tinha compreendido a palavra “por favor” e depreendeu, pelo dedo indicador estendido, que o homem queria que esperasse. Qual seria o teor da conversa, porém, era algo que não podia prever.
Ele estava sorrindo agradavelmente quando, de repente, Volko veio correndo por atrás do homem de rosto redondo. Ele havia tirado o casaco, razão pela qual George o perdera de vista, e o esticava com força entre as mãos. Em um movimento rápido, envolveu a garganta do homem de rosto redondo, que ia ficando vermelho.
— Maldito seja, Pogodin! — ele gritou, seu próprio rosto ficando vermelho pela força que colocava no ataque.
Dois guardas de segurança corriam para Volko ao mesmo tempo em que pediam reforços pelo rádio.
— Fuja! — gritou Volko para George.
O Striker recuou para a entrada da galeria da Europa Ocidental. Olhou por cima do ombro para ver se Peggy voltava e viu que tanto ela quanto a mulher tinham sumido. Quando voltou a olhar para Volko, Pogodin já havia tirado uma pequena pistola PSM de dentro do paletó. Antes que George pudesse se mexer, Pogodin estendeu a mão em volta do peito e disparou para trás, no agressor.
Volko caiu de joelhos e depois desabou no chão, no meio de uma poça de sangue. Resistindo à tentação de ir atrás de Peggy para se certificar de que ela estava em segurança, George dirigiu-se para a magnífica Escadaria do Teatro e desceu.
Quando partiu, não percebeu outro par de olhos que assistia a tudo por trás de um arco no extremo sul da galeria, olhos treinados de spetsnaz tão afiados e carnívoros como os de um falcão...
Sessenta e seis
Terça-feira, 23:47, Khabarovsk
Ele se movia como a sombra de Peter Pan, um vulto negro quase imperceptível no céu noturno.
A fuselagem arredondada e pintada de preto fosco do Mosquito refletia muito pouca luz e era RAM-coated — revestida de um material que absorvia ondas de radar. Os motores eram silenciosos e os bancos, cintos de segurança e capacetes dos dois tripulantes também tinham sido pintados de preto para que não pudessem ser vistos no interior da cabine.
O helicóptero sobrevoou sem ser notado os edifícios de concreto de pequenas cidades e os casebres de madeira ou de pedra de várias aldeias. Dentro da cabine, o radar e a câmera de televisão colorida, trabalhando em conjunto com o piloto automático CIRCE — computer-imaged route, correction-enabled, ou rota com imagem de computador, habilitado para correção — ajudavam o piloto a evitar outras aeronaves e a se desviar de picos que excedessem a altitude de cruzeiro de mil e duzentos metros.
Um navio inglês no oceano Ártico captou uma mensagem de Moscou para Bira ordenando que uma aeronave fosse ao encontro do trem. Cálculos rápidos do copiloto Iovino, usando o computador de bordo, revelaram que no momento em que o avião chegasse, o Mosquito já teria decolado de volta. A menos que os russos pegassem um forte vento de popa ou o Mosquito tivesse que enfrentar um vento de proa, conseguiriam recolher os Strikers sem serem vistos.
— A não ser que o trem atrase, observou Kahrs, o piloto. Nesse caso, tinha ordens para abortar a missão e rumar para o mar do Japão. O compromisso da Força Aérea de resgatar os comandos era limitado não pela solidariedade, mas pela capacidade do tanque de combustível do Mosquito.
— Estamos chegando — anunciou Iovino.
Kahrs olhou para o monitor. As imagens desfilavam na tela de doze polegadas, tendo sido colhidas por satélites e convertidas para o ponto de vista do helicóptero pelos computadores do Pentágono. Objetos tão pequenos como galhos de árvore eram exibidos na tela.
Quando o helicóptero sobrevoou uma colina arredondada e mergulhou em um vale, o mapa do computador começou a mostrar os trilhos.
— Passando para visual — anunciou Kahrs, para indicar que estaria olhando pela janela em vez de recorrer às imagens geradas pelo computador.
Usando os óculos de visão noturna, com seu rastreador infravermelho de grande-angular, Kahrs avistou, quase dois quilômetros à frente, uma fogueira na neve e várias pessoas reunidas em torno. Deviam ser os soldados.
Apertou um botão. Todos os Strikers levavam um transmissor no salto das botas. Os sinais deveriam aparecer em um mapa da área, projetado em seu visor. Três pontos vermelhos começaram a piscar em um setor do mapa; três, em outro.
Kahrs levantou os olhos. Na distância, por trás de uma cadeia de montanhas, podia ver grossos rolos de fumaça. Três dos sinais estavam vindo de lá.
— Encontramos o trem — declarou Kahrs.
Iovino digitou coordenadas em um teclado e olhou para o mapa.
— O ponto de resgate fica dois vírgula quatro quilômetros a noroeste de nossa posição atual. É evidente que o grupo se dividiu.
— Como estamos de tempo? — perguntou o piloto.
— Cinquenta e três segundos adiantados.
Kahrs começou a descida, simultaneamente dirigindo o Mosquito para noroeste. O helicóptero voava como os aeromodelos de madeira que Kahrs costumava lançar na infância, cortando o ar com graça e segurança, o silêncio dos rotores contribuindo para a impressão de que estava planando.
Depois de passar pela primeira de três ravinas quase paralelas, o piloto nivelou o helicóptero a cento e cinquenta metros e rumou para o norte.
— Ponte à frente — anunciou, ao avistar a velha estrutura de aço que cruzava as três ravinas. — Alvo localizado — acrescentou, quando viu os Strikers na cabeceira da ponte.
— Pouso em quarenta e seis, quarenta e cinco, quarenta e quatro segundos — disse Iovino, depois de digitar as coordenadas no teclado.
Kahrs olhou para sudeste, para a fumaça que saía do trem.
— Estou vendo apenas três dos seis — afirmou. — Desça a escada assim que puder.
— Entendido — respondeu Iovino.
Enquanto Kahrs se dirigia para o alvo, Iovino observava os números da contagem regressiva na tela. Quando faltavam sete segundos para o pouso, apertou o botão que fazia com que a escotilha de popa se abrisse. Isso levou um segundo. Quando faltavam cinco segundos, o Mosquito reduziu a velocidade e ele apertou um segundo botão, liberando uma escada preta de sete metros e meio de comprimento. A escada desenrolou-se em quatro segundos, e o Mosquito ficou parado oito metros acima do solo.
Ishi Honda foi o primeiro a subir a bordo. Iovino se virou para ele.
— Onde estão os outros? — perguntou o copiloto.
— Estão no trem — respondeu Honda, ajeitando-se no espaço exíguo e estendendo a mão para ajudar Sondra.
— O que pretendem fazer?
— Vir para cá — afirmou, enquanto ele e Sondra estendiam as mãos para ajudar Pupshaw.
Iovino olhou para Kahrs, que fez um gesto com a cabeça para mostrar que tinha ouvido.
— O que acha de irmos ao encontro deles? — perguntou Kahrs a Iovino.
Antes mesmo que Pupshaw subisse a bordo, Iovino estava usando o computador para calcular o combustível extra que seria necessário para voarem até o local onde estava o trem, em vez de ficarem esperando. A única incógnita era o momento em que os três Strikers saltariam do trem, mas tinha que supor que isso aconteceria antes de chegarem.
— É melhor irmos até lá — afirmou Iovino, apertando os botões que faziam a escada ser recolhida e a escotilha se fechar. O mecanismo era operado por baterias e usá-lo não custaria nada em termos de combustível, enquanto voar com a escada desenrolada e a escotilha aberta aumentaria o arrasto e, portanto, o consumo de combustível.
— Vamos buscá-los — disse Kahrs, mantendo o Mosquito a uma altitude de oito metros enquanto fazia o helicóptero girar para sudeste, tão suavemente como um ponteiro de bússola, para ir ao encontro do trem.
Sessenta e sete
Terça-feira, 8:49, Washington, D.C.
— Que espécie de operação vocês estão executando, Paul?
Paul Hood olhou para o rosto rechonchudo de Larry Rachlin no monitor. Os cabelos grisalhos, já escassos, estavam muito bem penteados e os olhos castanho-claros tinham uma expressão de censura por trás dos óculos de aro de ouro. Um charuto apagado movia-se para cima e para baixo quando o diretor da CIA falava.
— Não faço a menor ideia do que está falando — replicou Hood.
Olhou para o relógio no canto da tela. Em poucos minutos, o Striker seria resgatado; mais duas horas, e o Mosquito pousaria em um cruzador, encerrando a aventura sem deixar nenhuma prova.
Rachlin retirou o charuto da boca e apontou com ele para a câmera.
— Acho que foi por isso que você foi escolhido para o cargo em vez de Mike Rodgers — observou. — Tem uma cara de pau maior do que a de Clark Gable em ...E o vento levou. “Quem, eu, Larry? Executando uma operação clandestina?” Vamos, Paul, apesar das heroicas tentativas de Stephen Viens de tentar me convencer de que um dos satélites estava fora do ar, tenho algumas fotos de um satélite espião dos chineses que mostram comandos atacando um trem. Beijing me perguntou o que estava acontecendo e, ao contrário de você, eu não fazia a menor ideia. A menos que outro país tenha posto as mãos em um I1-76T — que os chineses observaram na cena do crime e que por acaso eu sei que o Pentágono comprou anos atrás —, a operação só pode ter sido planejada por você. A CIG disse aos meus homens que não autorizou nenhum tipo de incursão armada. Eles também gostariam de saber o que vocês estão fazendo. Por isso eu repito: o que está acontecendo?
— Estou tão surpreso quanto você, Larry — observou Hood, em tom inocente. — Sabe que eu estava de férias.
— Sei. E voltou bem depressa.
— Tinha me esquecido de como detesto Los Angeles — replicou Hood.
— Oh, claro. Foi isso. Todo mundo detesta L.A. Por que estão sempre indo para lá?
— Porque as estradas são bem sinalizadas — respondeu Hood.
— O que acha de eu perguntar ao presidente o que está acontecendo? — propôs Rachlin, enfiando o charuto de volta na boca. — Ele deve ter todas as informações de que preciso, não acha?
— Como vou saber? Dê-me alguns minutos para conversar com Mike e Bob e eu ligo para você de volta.
— Claro, Paul. Só quero que se lembre de uma coisa. Você é novo aqui. Já trabalhei no Pentágono e no FBI antes de vir para a CIA. Aqui não é a Cidade dos Anjos, meu amigo, mas sim a Cidade dos Demônios. Se tentar passar os outros para trás, acabará queimado ou espetado. Entendeu?
— Mensagem recebida e registrada, Larry. Como eu já disse, ligo para você de volta.
— Faça isso — disse o diretor da CIA, usando a ponta do charuto para interromper a transmissão.
Hood olhou para Mike Rodgers. Todos os demais tinham saído para cuidar das suas atribuições, deixando o diretor e seu substituto esperando notícias do Mosquito.
— Sinto muito pelo que ele disse — comentou Hood.
— Não esquente com isso — disse Rodgers. Estava sentado em uma poltrona, de braços cruzados, muito sério. — Também não precisa se preocupar com Larry. Temos algumas fotos muito interessantes. É por isso que ele esbraveja tanto. Não o leve a sério.
— Que tipo de fotos? — quis saber Hood.
Dele em um iate com três mulheres, nenhuma das quais era a esposa — explicou Rodgers. — A única razão pela qual o presidente o colocou no lugar de Greg Kidd é que Larry tinha gravações da irmã do presidente tentando acusar uma companhia japonesa de contribuições ilegais para sua campanha eleitoral.
— Aquela mulher é fora de série. — Hood sorriu. — O presidente devia tê-la nomeado para a CIA em vez de Larry. Pelo menos, teria usado a CIA para espionar o inimigo em vez de nos espionar.
— Como disse Larry, isto aqui é o inferno. Ninguém confia em ninguém.
O telefone tocou. Hood apertou o botão do alto-falante.
— Sim?
— Chamada do Striker — anunciou Bugs.
Rodgers deu um salto da cadeira.
— Aqui é o soldado Honda — disse uma voz muito nítida, no meio de um mar de silêncio.
— Estou ouvindo, soldado — disse Rodgers.
— General, eu, Pups e Sondra estamos a bordo da aeronave...
Rodgers sentiu um frio na barriga.
— ... e os outros três continuam no trem. Não sabemos por que não saltaram ainda.
Rodgers se sentiu um pouco mais calmo.
— Algum indício de resistência?
— Acho que não — respondeu Honda. — Podemos vê-los na cabine da locomotiva. Vou manter a linha aberta. Chegaremos lá em trinta e nove segundos.
Rodgers cerrou os punhos e se apoiou neles enquanto continuava em pé ao lado da mesa. As mãos de Hood estavam entrelaçadas ao lado do telefone e ele aproveitou a oportunidade para rezar pelos Strikers.
Hood olhou para Rodgers. O general levantou a cabeça para encarar o diretor. Hood viu orgulho e preocupação naqueles olhos. Compreendia a força da união daqueles homens, uma união mais profunda que o amor, mais íntima que o casamento. Hood sentia inveja daquele vínculo — mesmo agora, que estava causando tanta aflição a Rodgers.
Especialmente agora, pensou Hood, pois situações como aquela só serviam para tornar o vínculo ainda mais forte.
Foi nesse momento que voltaram a ouvir a voz de Honda, com uma urgência que não estava presente momentos antes.
Sessenta e oito
Terça-feira, 16:45, São Petersburgo
A distância entre Peggy e a entrada principal do Hermitage não seria maior se ela ainda estivesse em Helsinki. Pelo menos, era assim que a agente inglesa se sentia ao caminhar rapidamente em direção à galeria seguinte, onde eram exibidas pinturas da Escola de Bolonha. Dali, se não houvesse nenhum contratempo, poderia chegar rapidamente à escadaria principal.
Peggy sabia que estava sendo seguida pela mulher e por outra pessoa, alguém que estava observando a cena de longe e comunicando suas observações a um centro de comando, centro esse talvez localizado ali mesmo no Hermitage, funcionando com ou sem a aprovação de Orlov.
A agente parou em frente a um quadro de Tintoretto, só para ver o que a outra faria. Observou-a atentamente, como se fosse uma impressão digital debaixo de uma lente de aumento.
A mulher se deteve diante de um Veronese. Não tentou nem disfarçar. Parou abruptamente, obviamente, querendo que Peggy soubesse que estava sendo seguida. Talvez, pensou Peggy, a mulher esperasse que ela entrasse em pânico.
A concentração fez com que duas pequenas rugas aparecessem acima do seu nariz. Peggy considerou e descartou várias opções, desde tomar um quadro como refém até iniciar um incêndio. Contra-ataques como aqueles invariavelmente atraíam reforços ao local e tornavam a fuga mais difícil. Chegou a pensar em invadir o estúdio de TV e se entregar ao general Orlov. Entretanto, rejeitou imediatamente a ideia: mesmo que estivesse disposto a concordar com uma troca de espiões, Orlov não conseguiria garantir sua segurança. Além do mais, a primeira lição que os quinta-colunistas aprendiam era jamais se aventurar em um local confinado, e aquele porão era mais do que um local confinado, era praticamente uma sepultura.
Peggy sabia, porém, que não a deixariam em liberdade por muito tempo; agora que ela e George tinham sido localizados, as saídas seriam fechadas, depois os corredores e finalmente as galerias. Nesse caso, não lhes restaria nenhuma saída. A agente não estava disposta a permitir que os russos decidissem hora e lugar do confronto final.
A coisa a fazer era mantê-los no escuro até que conseguisse sair do prédio ou, pelo menos, desviar-lhes a atenção do soldado George. A melhor forma de fazer isso era começar com a apreciadora de arte que estava no seu encalço.
Peggy imaginou o que aconteceria se ela se entregasse à mulher de uma forma que ela não pudesse recusar — antes que os russos estivessem todos no lugar, prontos para recebê-la.
Voltando-se subitamente, começou a caminhar em passos rápidos, quase correndo, em direção à escadaria principal.
Imediatamente, a mulher a seguiu.
Peggy deixou a galeria e chegou à suntuosa escadaria, com suas paredes de mármore amarelo e balaustradas com dez colunas cada uma. A inglesa começou a descer os degraus, misturando-se com o público esparso do final da tarde.
De repente, a meio caminho do saguão principal, tropeçou e caiu.
Sessenta e nove
Terça-feira, 23:55, Khabarovsk
Dois minutos antes da hora em que Squires pretendia parar o trem, o oficial russo perguntou:
— Cigarret?
Os três Strikers estavam na cabine do trem, arrumando o equipamento. Squires olhou para o prisioneiro.
— Não fumamos — explicou. — São os novos tempos. Tem cigarros com você?
O russo não pareceu ter compreendido.
— Cigarret? — repetiu, apontando com o queixo para o bolso da jaqueta.
Squires olhou pela janela para a parte traseira do trem, que estava fazendo uma curva suave. Colocou os óculos de visão noturna.
— Newmeyer — disse —, veja se pode ajudar o homem.
— Sim, senhor — respondeu o soldado.
Deixando o ferido sargento Grey no canto da cabine, Newmeyer aproximou-se do russo. Enfiou a mão no bolso da jaqueta e retirou um saco de couro, muito gasto, fechado com um grosso elástico. Um isqueiro de aço com iniciais em cirílico e um retrato de Stalin estava preso debaixo do elástico.
— Deve ser uma herança de família — observou Newmeyer, examinando o objeto à luz da fornalha.
Newmeyer abriu o saco, encontrou vários cigarros feitos à mão no interior e retirou um deles. Nikita esticou a língua e Newmeyer colocou o cigarro sobre ela. O russo recolheu a língua, segurou o cigarro entre os lábios e esperou que Newmeyer o acendesse.
Newmeyer acendeu o cigarro, fechou a tampa do isqueiro e enfiou-o debaixo do elástico.
Nikita soltou duas nuvens de fumaça pelas narinas.
Newmeyer curvou-se para colocar o saco de couro no bolso do russo. Nesse momento, Nikita jogou o corpo para a frente, batendo com a testa na cabeça de Newmeyer.
Com um gemido, Newmeyer caiu de costas e largou o saco. O russo agarrou-o e enfiou-o, junto com o isqueiro, nas engrenagens do acelerador, simultaneamente empurrando a alavanca para a direita.
O trem ganhou velocidade enquanto as engrenagens trituravam a bolsa e o isqueiro, que tinha sido presente do pai de Nikita. Pedaços de couro e fragmentos de aço penetraram nas engrenagens, entortando os dentes e prendendo-os em um abraço deformado.
— Que merda! — exclamou Squires, depois de tentar inutilmente puxar a alavanca de volta.
Olhou então para o russo, que assistia à cena com uma expressão distante, como se seus olhos estivessem fora de foco, e para o soldado, cuja cabeça começava a mostrar os sinais de um forte hematoma. Newmeyer estava com um joelho no peito do russo e um ar de quem pede desculpas.
— Sinto muito, coronel — foi tudo que encontrou para dizer.
Que diabo, pensou Squires. O filho da mãe fez apenas o que nós teríamos feito, e fez muito bem.
Agora o trem estava sem controle, ganhando velocidade enquanto fazia a curva e rumava para a ponte. Em pouco mais de dois minutos a locomotiva deixaria de existir. Não havia tempo para pegar Gray e o russo e pular antes que chegassem ao desfiladeiro. E eles tinham apenas uns dois minutos antes que a locomotiva deixasse de existir.
Squires correu de volta até a janela e olhou para fora. No horizonte, viu o que, através dos óculos de visão noturna, parecia uma nuvem de gafanhotos. Era a aeronave de resgate, embora não se parecesse nem de leve com um helicóptero convencional. A cor e as linhas arredondadas imediatamente revelaram que se tratava de algo pouco visível. Sentiu-se lisonjeado. Nem mesmo Muammar Kadhafi merecera a estreia de uma aeronave Stealth, invisível, embora estivessem todas em estado de alerta quando Reagan e Weinberger cruzaram sua “linha da morte” no Golfo de Sidra e deram uma lição a Tripoli em 1986.
O helicóptero se aproximava rapidamente, voando baixo. Tinha parado totalmente de nevar, a visibilidade era boa e provavelmente o piloto não levaria muito tempo para concluir que o trem estava fora de controle. A questão era: haveria tempo suficiente para resgatá-los?
— Newmeyer — disse Squires —, ajude Grey a subir para o teto. Vamos dar o fora.
— Sim, senhor — respondeu o contrito Striker.
Tirando o joelho do peito do russo, Newmeyer evitou seu olhar estranhamente distante enquanto levantava o sargento com todo o cuidado e o colocava no ombro. Grey, que mal conseguia se manter consciente, fez o possível para ajudá-lo. Em seguida, o soldado ficou observando, atento, enquanto Squires deitava o russo de bruços no chão.
— Vá! — disse Squires para Newmeyer, apontando a janela com a cabeça. — Vai dar tudo certo.
Relutantemente, Newmeyer apoiou-se na borda da janela e empurrou Grey para o teto.
Depois de agarrar o russo pelos cabelos, Squires desamarrou a corda de alpinismo que o mantinha preso ao piso, amarrou seus pulsos e o arrastou-o para a janela.
Setenta
Terça-feira, 16:56, São Petersburgo
Quando viu a espiã hesitar no meio da escadaria, a primeira reação de Valya foi se abaixar, pensando que a outra fosse atirar na sua direção. Ao perceber que a mulher estava caindo, Valya recompôs-se e desceu correndo atrás dela. Nunca se sabia o que esperar de indivíduos feridos ou moribundos. Muitas vezes sua guarda estava baixa ou estavam tão atordoados que diziam coisas, às vezes coisas importantes.
Os outros frequentadores do museu abriram caminho quando a espiã rolou vinte e poucos degraus, aparentemente sem bater com a cabeça, e chegou ao patamar com uma cambalhota, caindo sobre o ombro. Ficou deitada na posição fetal, gemendo, as pernas se mexendo devagar, enquanto os populares se reuniam em torno. Alguém gritou pedindo socorro a um guarda, enquanto dois homens se ajoelhavam a seu lado. Um deles tirou o paletó e o colocou sob a cabeça da moça ferida.
— Não toquem nela! — berrou Valya. — Afastem-se!
A russa chegou ao patamar e tirou a pistola de um coldre no tornozelo.
— Esta mulher é uma criminosa procurada — anunciou. — Deixem o assunto por nossa conta.
Os russos recuaram imediatamente. Os estrangeiros viram a arma e os imitaram.
Valya se aproximou de Peggy e olhou para ela. Levantou os olhos para os curiosos.
— Eu disse para se afastarem! — gritou, fazendo um gesto impaciente com as costas da mão. — Vão embora!
O último dos curiosos se foi e Valya tornou a olhar para Peggy. Os olhos da espiã estavam fechados e seu braço direito estava sob o peito, a mão embaixo do queixo. O braço esquerdo pendia inerte ao lado do corpo.
Valya não estava preocupada com a possibilidade de a espiã ter quebrado algum osso ou se machucado na queda. Depois de encostar a arma no pescoço de Peggy, rolou-a de costas.
Peggy se encolheu; sua boca formou um pequeno oval de dor antes que relaxasse de novo.
— Foi um tombo e tanto — disse Valya, em inglês. — Está me ouvindo?
Peggy fez que sim com a cabeça, aparentemente com esforço.
— Vocês ingleses estão caindo como folhas de outono — disse Valya. — Primeiro, acabei com o vendedor de histórias em quadrinhos e sua equipe; agora, chegou sua vez. — Valya encostou o cano da arma na garganta de Peggy. — Vou providenciar um hospital para você — prometeu —, depois que falar.
Os lábios de Peggy se moveram.
— An... antes...
— Não, não — protestou Valya com um sorriso cruel. — Depois. Primeiro quero saber algumas coisas sobre essa operação. Por exemplo: em Helsinki, quem foi que...
Peggy agiu com tanta rapidez que Valya não teve tempo de reagir. Levantou o punho cerrado que estava sob o queixo, o punho no qual segurava a faca da lapela. A lâmina estava virada para baixo; Peggy enfiou-a na depressão acima da clavícula de Valya e puxou-a na direção da laringe. Ao mesmo tempo, usou o cotovelo da mão esquerda para empurrar o outro braço de Valya para longe, caso a arma disparasse.
A arma não disparou. A russa deixou cair a pistola e agarrou desesperadamente o pulso de Peggy com as duas mãos, tentando em vão retirar a faca.
— O que eu estava querendo dizer — explicou Peggy — era o seguinte: “Antes de me levar para o hospital, é bom ter certeza de que minha queda foi mesmo um acidente!” — Enfiou mais a faca e Valya desabou sobre ela, gorgolejando. — Aquele agente que você matou era a minha folha de outono — acrescentou. — Estou fazendo isso por ele.
— Não se mova! — gritou alguém em russo, do alto da escada.
Peggy levantou os olhos e se deparou com um homem magro, de aparência ascética, com o uniforme de coronel dos spetsnaz. Na ponta de seu braço estendido, muito firme, viu uma pistola P-6. Atrás dele, ainda ofegante, esfregando a garganta, estava o homem que Volko havia atacado.
— Vou sair de baixo da sua amiga — respondeu Peggy, em russo. Virou-se de lado e empurrou Valya. Os olhos da mulher estavam fechados e o rosto muito pálido enquanto sua vida se esvaía no chão de mármore.
O coronel começou a descer a escadaria. Peggy deixou a russa deitada e se levantou, dando as costas para ele.
— Levante as mãos — ordenou o oficial.
Se estava chocado com o que acontecera à colega, não deixou transparecer.
— Conheço a rotina — disse Peggy, virando-se lentamente e começando a levantar as mãos.
Quando as mãos estavam na altura do peito, virou-se bruscamente, segurando a pistola de Valya, que pegara no chão antes de se levantar. Não havia turistas por perto quando ela atirou no coronel Rossky, que parou onde estava, sete degraus acima do patamar, e reagiu ao ataque como se estivesse participando de um duelo: respondendo ao fogo.
Peggy não permaneceu onde estava. Imediatamente após disparar a primeira salva, jogou-se no chão e rolou para a esquerda até o corrimão.
Depois de alguns segundos, os ecos dos disparos se dissiparam e só restou um cheiro pungente de pólvora como testemunho do embate — isso, e duas manchas vermelhas no paletó do uniforme do coronel Rossky, que cresciam rapidamente.
A expressão do oficial não mudou; como todos os spetsnaz, tinha sido treinado para suportar qualquer sofrimento em silêncio. Entretanto, um momento depois, o braço estendido perdeu a firmeza, a P-6 caiu no chão e Rossky a seguiu, o corpo fazendo uma curva graciosa até cair de costas. Com os braços abertos, de cabeça para baixo, o spetsnaz escorregou até o patamar, onde parou ao lado de Valya.
Peggy apontou a arma para Pogodin, que estava agachado no alto da escadaria, atrás de uma coluna trabalhada. Era o assassino de Volko e merecia morrer. Entretanto, o agente pareceu ler os pensamentos da moça, ou talvez visse a promessa de morte nos seus olhos, pois se afastou da escada, correndo de volta para a galeria. Peggy ouviu o som distante de passos; não podia saber se eram a segurança, turistas em pânico ou mesmo grevistas ansiando por um confronto com a polícia. Por mais que desejasse vingar a morte de Volko, não estava na hora de perseguir seu assassino.
Virando-se, Peggy enfiou a arma embaixo da blusa e saiu correndo para a saída, gritando em russo:
— Socorro! O assassino está lá em cima! Ele ficou louco!
Ao chegar à entrada principal, ainda gritando, cruzou com os guardas que chegavam apressadamente ao local. Saiu do prédio e misturou-se aos grevistas que se reuniam em torno do museu, torcendo para que não fosse um deles — ou um agente do governo se fazendo passar por um deles — que perdera o juízo...
Setenta e um
Terça-feira, 8:57, Washington, D.C.
— Vão subir no teto da locomotiva! — exclamou Honda, a calma anterior substituída pelo que parecia a Rodgers uma expressão de medo ou susto. — O trem está indo muito depressa... parece descontrolado.
— Não podem pular? — quis saber Rodgers.
— Negativo, general. O trem já chegou à ponte e se pularem a queda vai ser de mais de cinquenta metros. Posso ver Grey... que merda! Desculpe, general. Newmeyer acaba de deixá-lo no teto e está subindo para se juntar a ele. O sargento se mexeu, mas parece ferido.
— É grave? — perguntou Rodgers, preocupado.
— Difícil dizer, general. Está deitado. Agora estou vendo... não sei quem é. Parece um soldado russo. Também está ferido. Tem uma grande mancha de sangue na perna.
— O que o russo está fazendo? — perguntou Rodgers.
— Nada. O tenente-coronel Squires passou-o a Newmeyer, segurando-o pelo cabelo. Newmeyer está tentando enfiar as mãos por baixo dos braços do russo. Parece que ele está resistindo. Espere, general.
Alguém disse alguma coisa no helicóptero e Honda parou de falar. Rodgers não conseguiu entender qual era o teor da conversa. De repente, ouviu Sondra propor:
— Nesse caso, por que não jogamos fora nossas roupas e armas? Isso será suficiente!
Obviamente, Squires queria levar o russo para bordo e o piloto estava preocupado com o excesso de peso. Rodgers sentiu um frio na espinha.
Honda voltou a falar.
— O piloto está preocupado com os noventa quilos a mais e com o tempo que vamos levar para recolhê-los. Acontece que eles não querem deixá-lo para trás.
— Soldado — disse Rodgers —, o responsável pela missão agora é o piloto e ele também tem uma tripulação para se preocupar. Está me entendendo?
— Sim, senhor.
Aquelas tinham sido as palavras mais difíceis que Rodgers jamais pronunciara; Hood apertou o braço dele de leve em sinal de solidariedade.
— O russo está com o tronco para fora do trem, mas parece um peso morto — explicou Honda.
— Será que está morto?
- Não, senhor. Está mexendo os braços e as pernas.
A linha ficou novamente silenciosa. Rodgers e Hood se entreolharam. Férias canceladas, quem-omitiu-o-que-a-quem, nada disso tinha importância naquele momento em que sofriam juntos a agonia de uma espera que parecia interminável.
— Agora posso ver o coronel — anunciou Honda. — Inclinou-se para fora da janela e está segurando o russo pelo uniforme. Agora apontou para a cabine e passou o dedo pela garganta.
— Os controles não funcionam — comentou Rodgers. — Será que é isso que está querendo dizer?
— Achamos que sim, general. Espere um momento. Vamos sobrevoar o trem. Acho que... sim, é isso mesmo.
— É isso o quê?
— General — explicou Ishi Honda, em tom emocionado —, o piloto mandou baixar a escada. Temos oitenta segundos para recolher nossos homens.
Rodgers finalmente conseguiu respirar. Enquanto o fazia, via os números do relógio do computador desfilarem inexoravelmente...
Setenta e dois
Terça -feira, 23:57, Khabarovsk
O Mosquito sobrevoou o trem como uma nuvem de tempestade, escura, energética e silenciosa. Squires acompanhou o helicóptero com os olhos quando ele passou por cima da locomotiva e do atrelado, parou, fez um giro de cento e oitenta graus e começou a descer lentamente.
A escada foi baixada. Sondra desceu alguns degraus e estendeu a mão, pronta para ajudar.
— Venham! — chamou.
— Newmeyer! — gritou Squires, fazendo-se ouvir acima do ruído da locomotiva.
— Coronel?
— Largue o russo e ajude Grey a subir. Depois, vá também.
Newmeyer obedeceu imediatamente. Como todos os grupos de comandos especiais, os Strikers tinham sido treinados para cumprir ordens sem hesitação em situações de crise, mesmo que essas ordens não estivessem de acordo com suas convicções íntimas. Mais tarde, Newmeyer poderia repassar todo o processo de retirada, tanto sozinho em sua cama como em reuniões com os colegas e em conversas com a psicóloga, Liz Gordon. No momento, porém, limitava-se a cumprir as ordens do tenente-coronel Squires.
Deixando o russo de lado, Newmeyer colocou o ombro debaixo de Grey. O helicóptero estava diretamente acima; o piloto desceu mais meio metro, colocando a base da escada no mesmo nível que os joelhos do soldado.
Newmeyer colocou o pé no segundo degrau da escada e começou a escalada. Assim que puderam, Sondra e Pupshaw puxaram Grey para o interior do helicóptero.
Enquanto Pupshaw cuidava do sargento ferido, Sondra estendeu a mão para Newmeyer, sem tirar os olhos do tenente-coronel Squires.
— Trinta segundos! — anunciou Iovino, o copiloto.
— - Coronel! gritou a moça, enquanto Squires tentava levantar Nikita. — Temos meio minuto!
— Vinte e cinco! — gritou Iovino.
Squires colocou o russo nos ombros e sentou-se na borda da janela. Nikita empurrou-o, tentando voltar para a cabine.
— Vinte!
— Fique quieto! — advertiu Squires, segurando o russo pela gola do casaco, enquanto ele tentava escorregar de volta para dentro do trem.
Nikita enfiou o braço no corrimão ao lado da janela e segurou-se com força.
— Quinze!
O rosto e a voz de Sondra estavam começando a mostrar sua aflição.
— Coronel... quinze segundos!
Ainda empoleirado na janela, Squires gesticulou para que o helicóptero descesse um pouco mais.
O Mosquito chegou um pouco para o lado e desceu até que a escada estivesse no nível da janela.
— Dez segundos!
Largando o casaco de Nikita, o tenente-coronel apoiou a mão esquerda no teto do trem, sacou a Beretta com a mão direita, apontou-a para o braço de Nikita e apertou o gatilho. O russo deu um grito de dor, largou o corrimão e caiu para dentro da cabine.
Squires mergulhou atrás dele.
— Não! — gritou Sondra, descendo até a ponta da escada. Newmeyer desceu atrás dela.
— Cinco segundos! — berrou Iovino.
— Espere! — gritou Sondra.
A escada estava balançando ao lado da janela. Gemendo e praguejando, Squires empurrou o corpo inerte de Nikita para fora da janela. Sondra e Newmeyer o seguraram pelo casaco e o arrancaram do trem.
O piloto esperou enquanto Pupshaw projetava o corpo para fora do helicóptero e recolhia o russo das mãos de Newmeyer.
O tenente-coronel subiu novamente na janela. No instante em que suas mãos ficaram livres, Sondra estendeu-as para Squires. Ele também estendeu as mãos...
O primeiro vagão foi pelos ares, seguido logo depois pelo segundo. As explosões fizeram com que a locomotiva balançasse violentamente, separando-se do atrelado, que descarrilou, jogando carvão em todas as direções.
— Coronel! — gritou Sondra, quando Squires caiu de volta dentro da cabine e o piloto subia um pouco para evitar as ondas de choque. — Piloto, não vá ainda!
O piloto subiu mais ainda para fugir dos fragmentos de metal.
— Entre! — gritou Newmeyer para Sondra, a plenos pulmões.
Os olhos de Sondra refletiam as bolas de fogo enquanto a moça observava a locomotiva seguir em frente, as rodas tirando fagulhas dos trilhos.
— Ele ainda está lá! — protestou a moça. — Temos que voltar!
A ponte, enfraquecida pela explosão, não resistiu mais ao peso da locomotiva. O colapso pareceu irreal, ocorrendo em câmera lenta e acelerando-se apenas quando a caldeira explodiu, lançando pedaços da locomotiva em todas as direções. Depois, tudo — trilhos, vigas da ponte, fragmentos do trem — foi parar no fundo do desfiladeiro.
As chamas se apagaram rapidamente enquanto o Mosquito cortava os céus, ganhando velocidade.
— Não! Não! — protestou Sondra, quando braços fortes a agarraram pelos ombros.
— Temos que recolher a escada! — advertiu Iovino.
Newmeyer olhou para a moça.
— Entre logo! — pediu, gritando para se fazer ouvir acima do ruído do vento. — Por favor!
Sondra subiu a escada e entrou no helicóptero, ajudada por Newmeyer e Pupshaw. Assim que pôde, Honda recolheu a escada e a escotilha foi fechada.
Com cara de poucos amigos, Pupshaw usou o estojo de primeiros socorros para tratar do ferimento de Grey e depois foi ver o russo. Exceto pelos gemidos de Nikita, o silêncio no interior do Mosquito era total.
— Ele estava bem ali — lamentou-se Sondra, afinal. — Mais alguns segundos, era tudo que eu precisava...
— O piloto estava esperando — comentou Newmeyer. A culpa foi da explosão.
— Não — corrigiu a moça. — A culpa foi minha.
— Isso não é verdade — protestou Newmeyer. — Não havia nada que você pudesse fazer.
— Eu devia ter feito o que meu instinto mandava — replicou a moça — e atirado no filho da puta que ele estava tentando salvar! Agora não vamos ter problema de peso — prosseguiu, com um sorriso amargo, olhando para o russo com os olhos marejados de lágrimas — e, se dependesse de mim, teríamos menos ainda. — Em seguida, como que envergonhada pela desumanidade do que acabara de dizer, exclamou: — Oh, Deus, por quê? Por quê?
A seu lado, Newmeyer enxugou os olhos na manga do casaco, enquanto Pupshaw fazia curativos no braço e na perna de Nikita com tanto capricho e suavidade quanto sua caridade tão duramente testada permitia.
Setenta e três
Terça-feira, 9:10, Washington, D.C.
A voz de Ishi Honda era triste e solene ao comunicar a Rodgers a má notícia.
— Newmeyer e o sargento Grey foram resgatados do trem, juntamente com um oficial russo — informou. — Infelizmente, não conseguimos salvar o tenente-coronel Squires. Ele permaneceu...
Honda interrompeu o que estava dizendo e Rodgers pôde ouvi-lo engolir em seco.
— Ele permaneceu no trem, que explodiu. Nossa missão foi cumprida.
Rodgers ficou sem fala. A garganta, a boca, os braços estavam paralisados. O espírito, mesmo acostumado à rapidez com que a guerra podia ceifar vidas, ainda estava chocado com o que acabara de ouvir.
— Como está o sargento Grey? — perguntou Hood.
— Levou um tiro no ombro — explicou Honda.
— E o russo?
— Um tiro na coxa e outro, de raspão, no braço — respondeu Honda. — Por causa do problema de combustível, não vamos poder desembarcá-lo. Terá que seguir conosco até Hokkaido.
— Entendido — disse Hood. — Vamos resolver isso com a embaixada da Rússia.
— Soldado — interveio Rodgers, com os olhos úmidos — diga a todos que fizeram um excelente trabalho. Diga isso a eles.
— Sim, senhor — disse Honda. — Obrigado, general. Direi a eles. Câmbio e desligo.
Hood desligou o alto-falante e olhou para Rodgers.
— Há alguma coisa que eu possa fazer, Mike?
Depois de um momento, o general comentou:
— Pode fazer com que a morte devolva Charlie e fique comigo?
Hood não respondeu. Limitou-se a dar um tapinha no pulso de Mike. O general pareceu não sentir.
— Charlie tinha família — disse Rodgers. — O que é que eu tenho?
— Uma responsabilidade — respondeu Hood com suavidade, mas com firmeza. — Precisa se controlar para contar a essa família o que aconteceu e ajudá-la neste momento difícil.
Rodgers virou-se para Hood.
— Tem razão — concordou.
— Vou ligar para Liz — disse Hood. — Ela pode ajudar. Também vai ser útil aos Strikers quando eles voltarem.
— Os Strikers... — repetiu Rodgers com voz embargada. — Preciso cuidar disso. Se tiverem uma missão amanhã, vão precisar de um chefe.
— Peça ao major Shooter para iniciar o processo — sugeriu Hood.
Rodgers sacudiu a cabeça e se levantou.
— Não. Esse é o meu trabalho. Tenho alguns nomes em mente que gostaria de discutir com você esta tarde.
— Está bem — concordou Hood.
Nesse momento, Bob Herbert entrou na sala, freando a cadeira de rodas diante dos dois. Tinha um largo sorriso nos lábios.
— Acabo de receber notícias do Pentágono — informou. — Eles interceptaram as mensagens de aeronaves russas que sobrevoaram a área. Os pilotos viram os soldados russos, observaram os destroços do trem, mas não disseram uma palavra a respeito da aeronave usada no resgate! — Bateu palmas. — Isso é que é “baixa visibilidade”!
Rodgers olhou para ele. O sorriso de Herbert sumiu quando os olhos dos dois se encontraram.
— Perdemos Charlie — informou o general.
— Oh, não! — exclamou Herbert, empalidecendo. Gritou em vão: — Charlie!
— Bob — disse Hood —, precisamos de você para acertar as coisas com os russos. Existe um oficial russo a bordo da aeronave de resgate. Seria melhor se ele pudesse ser devolvido discretamente...
— Paul, você ficou maluco? — exclamou Herbert. Rolou a cadeira para a frente, irritado. — Dê-me um segundo para digerir toda essa merda!
— Não — afirmou Rodgers com voz firme. — Paul está absolutamente certo. Ainda não terminamos. Lowell tem que pôr o Congresso a par do que aconteceu, Martha precisa usar seu charme com os russos, o presidente tem que ser informado, e se a imprensa ficar sabendo do incidente, e vai ser difícil evitar que isso aconteça, Ann terá que lidar com eles. Podemos lamentar mais tarde a morte de Charlie. No momento, todos temos muito trabalho a fazer.
Herbert olhou de Rodgers para Hood. O vermelho de seu rosto tinha se espalhado até o pescoço.
— Está certo — concordou, virando a cadeira de rodas na direção da porta. — É preciso manter as rodas do governo girando, com o sangue como combustível. Ninguém ficou com muita pena de mim quando me mandaram pelos ares. Por que seria diferente com Charlie?
— Porque isso o faria sentir que não morreu em vão — gritou Rodgers, quando Herbert já estava saindo. — Vamos homenagear a memória de Charlie Squires, eu lhe prometo!
Herbert parou e sua cabeça pendeu para a frente.
— Sim, eu sei — disse, sem se virar. — Mas dói como o diabo, sabe?
— Eu sei — concordou Rodgers, enquanto as lágrimas finalmente jorravam- de seus olhos. — Claro que sei.
Setenta e quatro
Terça-feira, 16:15, Moscou
Cinco minutos depois que o Pentágono interceptou as comunicações dos jatos russos com a base, Dogin, o ministro do interior, recebeu um telefonema do escritório de Dhaka, o general da Força Aérea.
— Ministro — disse o interlocutor — aqui é o general-major Dragun. Os caças que o senhor requisitou não encontraram nenhum sinal de aeronaves estrangeiras. Foram vistos apenas os passageiros do trem, militares e civis.
— Nesse caso, os comandos ainda devem estar lá — afirmou Dogin.
— Além disso — prosseguiu Dragun —, o general pediu para informar que o trem que partiu de Vladivostok foi localizado no fundo da ravina de Obernaya, a leste de Khabarovsk.
— Em que estado? — perguntou Dogin, embora já adivinhasse a resposta.
— O trem foi totalmente destruído — respondeu Dragun.
Dogin sentiu como se tivesse levado um soco. Levou alguns segundos para recuperar a voz.
— Deixe-me falar com o general — pediu.
— Infelizmente — disse Dragun —, o general Dhaka está em uma reunião com representantes do presidente Janin. A reunião deve demorar. Quer lhe enviar algum recado?
Dogin sacudiu a cabeça lentamente.
— Não, general. Isso não será necessário.
— Muito bem — disse Dragun. — Tenha uma boa tarde, ministro.
Dogin bateu com o fone no gancho.
Está tudo acabado, pensou. Meus planos, meus sonhos, a nova União Soviética. E quando Shovich souber que o dinheiro não existe mais, até minha vida estará em perigo.
Dogin tirou novamente o fone do gancho. Ao sinal de discar, chamou o assistente e pediu-lhe que ligasse para Sergei Orlov.
Será que ele também vai me evitar?, pensou Dogin. Talvez a União Soviética estivesse de volta, embora não da forma como imaginara.
Orlov atendeu imediatamente.
— Eu já ia ligar para o senhor, sr. Ministro. Houve um tiroteio no museu. O coronel Rossky está em estado muito grave e uma de suas agentes, Valya Saparov, foi assassinada.
— Quem fez isso?
— Uma agente que entrou no país através de Helsinki — explicou Orlov. — Ela escapou se misturando a um grupo de grevistas. A polícia a está procurando. — Orlov hesitou. — Já soube o que aconteceu com o trem, sr. Ministro?
— Já. Diga-me, Sergei, tem notícias de seu filho?
A voz de Orlov tinha o tom profissional de um cosmonauta.
— Até agora, não houve nenhuma comunicação com as pessoas que estavam no trem. Sei que muitos foram desembarcados... mas não sei se meu filho está entre eles.
— Deve estar bem — afirmou Dogin, em tom otimista. — Houve muitas baixas, como em Stalingrado, mas uma ou duas flores sempre sobrevivem.
— Espero que esteja certo — disse Orlov.
Dogin respirou fundo e acrescentou, com voz trêmula:
— Eu provavelmente vou ser uma dessas baixas. Eu, o general Kosigan, talvez o general Mavik... aqueles que se recusaram a permanecer na retaguarda. A única questão é saber quem vai nos pegar primeiro, o governo, Shovich ou os colombianos que lhe deram o dinheiro.
— Por que não pede proteção a Janin?
— Contra Shovich? — Dogin riu. — Em um país onde um assassino pode ser comprado por cem dólares americanos? Não, Sergei. Meu destino foi pelos ares com o trem. É uma grande ironia. Eu detestava aquele gângster e tudo que representa.
— Nesse caso, ministro, por que se envolveu com ele? Por que tantas pessoas tiveram de sofrer?
— Não sei — respondeu Dogin. — Honestamente, não sei. O general Kosigan convenceu-me de que poderíamos nos livrar dele mais tarde, e eu queria acreditar nisso... embora, no fundo, soubesse que não era verdade. — Seus olhos passearam pelos velhos mapas nas paredes. — Eu queria tanto isto... reaver o que perdemos. Voltar ao tempo em que a União Soviética agia e as outras nações reagiam, ao tempo em que nossa ciência, nossa cultura e nosso poderio militar eram a inveja do mundo. Hoje, compreendo que não escolhi a melhor maneira de perseguir esse objetivo.
— Ministro Dogin — disse Orlov —, seu ideal era impossível. Se tivesse conseguido formar a nova união, ela não duraria muito. Quando voltei ao centro espacial do Casaquistão, no mês passado, vi penas e dejetos de pássaros nas escadas e os foguetes cobertos com capas de plástico que, por sua vez, estavam cobertas de poeira. Naquele momento, também senti saudade do passado, da era de Gagarin, do tempo em que acreditávamos que nossos ônibus espaciais, os Burans,1 nos permitiriam colonizar o espaço. Não podemos controlar a evolução e a extinção, ministro. Certas coisas são irreversíveis.
— Pode ser —, admitiu Dogin. — Mas não é por isso que vamos deixar de lutar. Quando um homem está morrendo, ninguém pergunta se um tratamento é muito caro ou muito perigoso. Fazemos o que precisa ser feito. Apenas quando o paciente morre, e a emoção é substituída pela razão, é que percebemos quão fúteis eram nossos esforços. — O ministro sorriu. — E, no entanto, Sergei... no entanto, devo admitir que cheguei a pensar que meu plano daria certo. Se não fossem os americanos...
— Não — protestou Dogin —, não foram os americanos. Foi apenas um americano, um agente do FBI em Tóquio, que atirou no jato e nos forçou a transferir o dinheiro. Pense nisso, Sergei. Um único e despretensioso indivíduo conseguiu mudar o destino do mundo.
Dogin agora estava respirando com mais facilidade. Sentia-se estranhamente em paz quando estendeu a mão e abriu uma gaveta da escrivaninha.
— Espero que continue no Centro, Sergei. A Rússia precisa de pessoas como você. Quanto a seu filho, quando se encontrar com ele... procure não ser muito severo. Queríamos recuperar o que tivemos um dia... enquanto ele queria ver pela primeira vez o que conhece apenas dos livros de história. Embora os métodos possam ter sido questionáveis, não há nada de vergonhoso no sonho.
Depois de desligar, Dogin olhou para o mapa da União Soviética em 1945, e continuou a olhar para ele enquanto encostava o cano da Makarov na têmpora e puxava o gatilho.
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1 Tempestade de neve em russo. O Buran soviético, similar aos ônibus espaciais americanos, subiu ao espaço uma vez.
Setenta e cinco
Terça-feira, 16:22, São Petersburgo
Parecia estranho ao general Orlov que os três homens que haviam desempenhado um papel tão importante nos eventos do dia — Dogin, Paul Hood e ele mesmo — tivessem executado suas tarefas atrás de escrivaninhas, sem ver a luz do dia uma única vez desde que a crise começara.
Demônios no escuro, é o que somos, conduzindo os destinos do homem...
Ainda faltava uma coisa, mas isso ia demorar. Depois de ligar para o escritório do general Dhaka para saber notícias do filho e seus comandados, só lhe restava sentar e esperar.
Deixou o corpo afundar na cadeira. Tinha sido forçado a lutar contra os compatriotas, que amavam a Rússia à sua maneira, e agora a tragédia do que acontecera começava a pesar.
Olhou para os relógios. Por que ninguém ligou ainda?, perguntou-se. Certamente os pilotos podiam contar quantos soldados havia lá embaixo.
A campainha do telefone sobressaltou-o, como se fosse o sibilar de uma cobra prestes a dar o bote. Mesmo assim, atendeu antes que tocasse pela segunda vez.
— Sim? — perguntou, sentindo as têmporas latejarem.
— Há uma ligação de vídeo para o senhor — anunciou a secretária.
— Ponha na tela — disse Orlov, com impaciência.
Os olhos do general estavam grudados no monitor quando o rosto de Paul Hood apareceu. O americano levou um momento para se certificar de que estava falando com Orlov.
— General, seu filho está bem — declarou.
Os lábios de Orlov tremeram por um momento e depois se abriram em um sorriso de alívio.
— Obrigado. Muito obrigado!
— No momento, ele se encontra na aeronave de resgate — prosseguiu Hood. — Vamos providenciar para que seja recambiado o mais cedo possível. Isso pode levar um dia ou dois, já que foi levemente ferido no braço e na perna.
— Mas ele está bem? Não corre risco de vida?
— Estamos cuidando bem dele — assegurou Hood.
Orlov chegou um pouco para a frente na cadeira. Tinha ficado radiante com a notícia. Entretanto, havia algo nos olhos do americano, uma certa reserva no seu tom de voz, que indicava que nem tudo estava certo.
— Há alguma coisa que eu possa fazer por você? — perguntou Orlov.
— Há, sim — respondeu Hood. — Quero que diga uma coisa a seu filho.
Orlov esperou pacientemente que o outro continuasse.
— Seu filho teve que ser removido à força do trem. Certamente pensou que era seu dever afundar com o navio. Deve ter também achado que era uma desonra ser levado para bordo de uma aeronave estrangeira. Ao resistir, porém, causou a morte do comandante do grupo.
— Sinto muito — disse Orlov. — Se eu puder fazer alguma coisa...
— General — interrompeu Hood —, não estou querendo que se sinta culpado nem estou lhe pedindo nenhum tipo de compensação. Vamos requisitar os restos mortais do coronel Squires através dos canais diplomáticos. Acontece que meu auxiliar imediato era muito ligado ao comandante do grupo e quer saber se o senhor transmitiria um recado ao seu filho.
— É claro — disse Orlov.
— Ele manda dizer que, no folclore russo, “Sadko”, o tsar do Mar, diz ao herói que qualquer guerreiro pode tirar vidas, mas apenas um grande guerreiro luta para poupá-las. Faça o seu filho entender isso. Ajudará a torná-lo um grande guerreiro
— Infelizmente, meu filho não me ouve — disse Orlov —, mas eu lhe garanto que grandes guerreiros nascerão das sementes que foram plantadas aqui.
Orlov agradeceu novamente a Hood e desligou, pensando, em respeitoso silêncio, nos desconhecidos sem os quais sua vida e a da esposa estariam naquele momento em ruínas.
Em seguida, levantou-se, colocou o quepe na cabeça e foi para a rua. Exceto pela presença dos grevistas, tudo parecia exatamente como na hora em que chegara, e ficou surpreso ao se dar conta de que exatamente vinte e quatro horas haviam se passado desde que entrara no edifício para falar com Rossky.
Vinte e quatro horas durante as quais o mundo quase mudara.
Vinte e quatro horas sem abraçar a mulher.
Setenta e seis
Terça-feira, 22:00, Helsinki
Foi fácil para Peggy sair do Hermitage.
Quando os tiros foram disparados na escadaria, correu um boato entre os grevistas de que o Exército estava chegando para dissolver a manifestação. A multidão rapidamente começou a se dispersar e, depois, tornou a se reunir com a mesma rapidez, como mercúrio, quando os policiais entraram correndo no museu e os líderes perceberam que o tiroteio não tinha nada a ver com eles. A massa de trabalhadores então se deslocou em direção ao Hermitage, congestionando a entrada principal, onde não havia mais guardas, invadindo o museu e causando pânico entre os turistas que tentavam sair, o que atraiu os guardas de volta. Os policiais usaram os cassetetes e formaram um cordão para proteger as obras de arte e expulsar os grevistas.
Peggy saiu do museu se fazendo passar por uma turista assustada.
Estava anoitecendo e Peggy dirigiu-se para a estação de metrô mais próxima. O movimento era grande àquela hora, porque muita gente estava voltando para casa depois de mais um dia de trabalho, mas havia um trem a cada dois minutos e, depois de pagar os cinco copeques, a moça não levou muito tempo para embarcar. Em poucos minutos, estava chegando à Estação Finlândia, de onde partiam trens para o país vizinho, com paradas em Razliv, Repino e Vyborg.
George já estava lá, sentado em um banco de madeira na sala de espera, lendo um jornal em inglês, com uma sacola cheia de lembranças ao lado. Peggy mostrou visto e passaporte no guichê, comprou uma passagem para Helsinki e ficou observando o rapaz. Ele lia um pouco, levantava a cabeça, olhava em torno e retomava a leitura.
Uma dessas vezes, manteve a cabeça levantada por mais tempo. Não olhou diretamente para Peggy, mas a moça certamente estava dentro do seu campo de visão. Pouco depois, levantou-se com seu jornal, seus cartões-postais, seu globo do Hermitage e outras recordações. Peggy compreendeu que o rapaz a vira. Assim que ele desapareceu, foi até o quiosque central, comprou jornais em russo e em inglês, além de várias revistas, e sentou-se para esperar o trem, cuja partida estava prevista para meia-noite.
A segurança não era maior do que em qualquer estação de trem; os acontecimentos em Moscou e na Ucrânia certamente estavam atraindo a atenção e os recursos da polícia. Peggy subiu a bordo sem contratempos, depois de mostrar seus documentos no portão.
O trem era moderno, bem iluminado, com bancos supostamente de luxo, estreitos, mas macios, cujo objetivo era fazer os turistas menos sofisticados pensarem que estavam viajando em grande estilo. Embora Peggy detestasse a decoração de seu vagão, como também os veludos amassados vermelhos e amarelos do vagão-leito, nem sua desaprovação estética nem os momentos difíceis que passara nas últimas horas transpareciam em sua expressão descontraída. Apenas quando entrou no banheiro, semelhante ao de um avião, para procurar manchas de sangue nas roupas e na pele, foi que se permitiu um momento de desabafo.
Apoiou as mãos na pia de aço inoxidável, fechou os olhos e disse baixinho:
— Vim para cá em busca de vingança, matei aquela mulher e não me arrependo. — Peggy sorriu. — Se existe liberdade condicional na outra vida, meu querido, prometo me comportar muito bem daqui por diante para poder passar de onde vou para onde certamente você está. E agradeça a Volko. O que ele fez por nós deve tê-lo colocado, no mínimo, aos pés de Deus.
Várias vezes durante a viagem, Peggy esbarrou em George, embora os dois não se falassem, a não ser para dizer “com licença” quando cruzavam no corredor apertado O fato de conseguirem embarcar não queria dizer que não houvesse espiões no trem que podiam estar à procura de casais suspeitos ou homens e mulheres viajando sozinhos. Por essa razão, Peggy passou o máximo de tempo possível perto de um grupo de soldados russos no vagão-leito, fazendo comentários ocasionais para dar a impressão de que estava com eles e até mesmo flertando com um deles para poder contar com um anjo da guarda, caso fosse necessário. Ao chegarem a Helsinki, pouco antes do amanhecer, deu ao russo um endereço e um número de telefone falsos quando os dois passaram pela alfândega. Uma declaração verbal foi suficiente para garantir o ingresso de Peggy, mas a bagagem dos russos foi minuciosamente revistada.
Peggy e George se encontraram na rua. A inglesa semicerrou os olhos para protegê-los do sol que anunciava o novo dia.
— Que diabos aconteceu no museu? — perguntou George.
Peggy sorriu.
— Esqueci que você ainda não sabe.
— Não, não sei. Fiquei imaginando aquela cena de Os canhões de Navarone, em que a espiã comprou a própria liberdade.
— Fingi que tropecei na escada — contou Peggy. — Quando a mulher se revelou, tentando me prender, tive de eliminá-la. Usei a arma dela em um oficial spetsnaz que parecia achar que podia levar dois tiros e ainda torcer meu pescocinho. Não podia, não. Depois disso, houve uma grande confusão, e eu escapei.
— Jamais vão fazer um filme com a história da sua vida — declarou George. — Ninguém acreditaria.
— A vida é sempre mais interessante do que o cinema — afirmou a moça. — É por isso que eles têm que usar uma tela com dez metros de altura.
Trocaram ideias a respeito do futuro. George pretendia voltar para os Estados Unidos no primeiro voo. Peggy ainda não sabia como ou quando deixaria Helsinki; tudo que queria no momento era andar pela rua, sentir o sol banhar seu rosto e evitar qualquer espaço fechado que lhe lembrasse um minissubmarino, o banco traseiro de um carro ou um vagão de trem.
Os dois pararam em frente ao Teatro Nacional Finlandês. Olharam um para o outro com carinho.
— Confesso que estava errada — disse Peggy. — Não pensei que você estivesse preparado para esta missão.
— Obrigado — replicou George. — Isso é animador, vindo de uma pessoa muito mais experiente, muito mais velha.
Peggy teve vontade de jogá-lo no chão, como fizera no dia em que se conheceram. Em vez disso, estendeu-lhe a mão.
— O rosto de um anjo e a alma de um demônio — comentou. — É uma boa combinação. Espero revê-lo um dia.
— Amém — disse George.
Fez menção de ir embora, parou e disse:
— Quando estiver com ele, o cara que permitiu a contragosto que eu me juntasse a vocês, agradeça por mim.
— O líder do grupo? — perguntou George.
— Não — disse Peggy. — Mike. Ele me deu uma chance de recuperar parte do que perdi.
— Vou dizer isso a ele — prometeu George.
Virando-se para o sol como uma mariposa para o fogo, Peggy começou a descer a rua deserta.
Setenta e sete
Sexta-feira, 8:00, Washington, D.C.
Uma chuva durante a noite tinha deixado a pista da Base Aérea de Dover, em Delaware, úmida e nevoenta, refletindo o estado de espírito do pequeno grupo que se reunira para receber o avião de transporte C-141. De pé ao lado de uma imaculada guarda de honra, Paul Hood, Mike Rodgers, Melissa Squires e o filho de Squires, Billy, eram um só coração, e esse coração estava sangrando.
Quando chegaram na limusine, atrás do carro fúnebre, Rodgers pensara em se mostrar forte por causa de Billy. Agora, porém, percebia que, além de ser pouco natural, isso era impossível. No momento em que a porta do compartimento de carga se abriu e o caixão coberto com a bandeira americana foi retirado do avião, as lágrimas escorreram pelo rosto de Rodgers e ele se tornou tão menino quanto Billy, aflito, necessitado de consolo e desesperado porque não havia consolo possível. O general ficou em posição de sentido, suportando o melhor que podia os soluços da viúva e do filho do tenente-coronel Squires. Foi um alívio quando Hood se aproximou e ficou entre eles, o impermeável balançando ao vento, as mãos nos ombros dos dois, pronto para oferecer palavras, apoio ou o que fosse necessário.
Como julguei mal este homem, pensou Rodgers.
A guarda de honra disparou uma salva e o caixão foi colocado no carro fúnebre para a viagem até Arlington. De repente, o franzino Billy, de apenas cinco anos, virou-se para Rodgers.
— Acha que papai ficou com medo quando estava no trem? — perguntou, com sua voz infantil.
Rodgers precisou fazer um esforço imenso para não chorar convulsivamente. Enquanto os grandes olhos do menino esperavam, foi Hood que se agachou a seu lado e respondeu.
— Seu pai era como um policial ou um bombeiro — explicou. — Eles sentem medo quando têm de enfrentar um criminoso ou um incêndio, mas querem ajudar as pessoas e, por isso, tiram a coragem daqui — afirmou, encostando o dedo na lapela do blazer de Billy, no lugar do coração.
— Como eles conseguem isso? — perguntou o menino, interessado.
— Não sei — disse Hood. — Acho que só os heróis podem responder a essa pergunta.
— Então meu pai era um herói? — perguntou o menino obviamente interessado.
— E dos grandes — respondeu Hood. — Um super-herói.
— Mais do que o senhor, general Rodgers?
— Muito mais — respondeu Rodgers.
Melissa colocou o braço no ombro de Billy e, depois de dirigir a Hood um sorriso de gratidão, conduziu o filho para a limusine.
Rodgers ficou olhando a viúva até ela entrar no carro. Depois, virou-se para Hood.
— Acho que li... — começou. Parou e engoliu em seco antes de começar de novo. — Acho que li os maiores discursos da história da humanidade. Nenhum deles, porém, me comoveu tanto quanto o que você acaba de dizer, Paul. Quero que saiba que tenho orgulho de conhecer você. Mais ainda: tenho orgulho de servir sob seu comando.
Rodgers bateu continência e entrou no carro. Como estava olhando para Billy, não viu Hood enxugar uma lágrima antes de segui-lo.
Setenta e oito
Terça-feira seguinte, 11:30, São Petersburgo
Paul Hood, a esposa e os dois filhos deram um longo passeio no parque que ficava ao lado do Prospekt Nevsky antes de se separarem — Sharon e as crianças para ver um grupo jogando futebol, Hood para se sentar em um banco à sombra de uma velha árvore, ao lado de um homem de casaco de couro que jogava migalhas de pão para os pombos.
— É estranho pensar — disse o homem, em inglês claro, fluente — que as criaturas do céu precisam vir à terra para se alimentar, construir ninhos e criar filhos. — Fez um gesto amplo em direção ao céu. — Seria de esperar que houvesse um lugar para eles lá em cima.
Hood sorriu.
— Lá de cima, eles têm uma visão privilegiada do que está acontecendo aqui embaixo. Isso vale alguma coisa, penso eu. — Olhou para o homem. — Não concorda, general Orlov?
O ex-cosmonauta fez que sim com a cabeça.
— Acho que sim. — Olhou para o recém-chegado. — Como está, meu amigo?
— Muito bem — respondeu Hood.
Orlov apontou para o gramado com um pedaço de pão.
— Estou vendo que trouxe a família.
— Estava devendo a eles um resto de férias. Achei que aqui seria um bom lugar para desfrutá-las.
Orlov assentiu.
— Não há cidade como São Petersburgo. Mesmo quando se chamava Leningrado, era a joia da União Soviética.
— Obrigado por concordar em me encontrar — disse Hood. — Isso torna esta visita duplamente agradável.
Orlov olhou para o pão e acabou de picá-lo. Jogou os pedaços e esfregou as mãos.
— Nós dois tivemos uma semana e tanto. Impedimos um golpe de estado, evitamos uma guerra e comparecemos a um funeral... você de um amigo, eu de um inimigo, mas ambos de pessoas que morreram prematuramente.
Hood desviou os olhos. A tristeza ainda era muito recente.
— Pelo menos seu filho está bem — afirmou. — Isso me ajuda a aceitar melhor o que aconteceu. Talvez tenha valido a pena.
— Espero que sim — concordou Orlov. — Meu filho está convalescendo em um apartamento aqui na cidade e vamos ter algumas semanas para conversar e curar velhas feridas. Acho que se mostrará mais receptivo do que no passado, agora que seu mentor dos spetsnaz está fora de ação e os generais Kosigan e Mavik foram submetidos à corte marcial. Espero que compreenda que é preciso muito pouca coragem para se aliar a vândalos. — Orlov enfiou a mão no bolso do casaco. — Há mais uma coisa que eu espero — acrescentou, tirando do bolso um velho livro fino, encadernado em couro e com inscrições em letras douradas na capa e na lombada. Entregou-o a Hood.
— Que livro é esse? — perguntou Hood.
— Sadko — explicou Orlov. — É uma edição antiga... para o seu segundo em comando. Mandei que uma nova edição fosse distribuída aos militares que servem aqui em São Petersburgo. Acabo de lê-lo e fiquei empolgado. É estranho que um americano conheça melhor do que nós as riquezas da nossa cultura.
— Visão — repetiu Hood. — Às vezes é bom ser um pássaro, às vezes é bom estar no chão.
— É verdade — concordou Orlov. — Aprendi muita coisa com o que aconteceu. Quando aceitei este posto, pensei... talvez como você... que passaria meu tempo como um oficial da intendência, atendendo às necessidades de informações de outros setores das forças armadas. Hoje, compreendo que é nossa responsabilidade usar corretamente esses recursos. Quando meu filho voltar à ativa, pretendo nomeá-lo para uma força especial cuja missão será colocar na cadeia um monstro chamado Shovich. Espero, na verdade, que nossos dois centros de operações possam colaborar nessa tarefa.
— Será uma honra, general — disse Hood.
Orlov consultou o relógio.
— Por falar no meu filho, vou almoçar com ele e minha mulher, Masha. Não fazemos isso desde o tempo em que eu era astronauta. Vai ser muito bom.
Levantou-se e Hood o imitou.
— Procure não esperar demais das pessoas — advertiu Hood. — Nikita, Janin, você e eu... somos apenas seres humanos, nem mais, nem menos.
Orlov apertou-lhe as mãos calorosamente.
— Minhas esperanças estão sempre lá em cima — declarou Orlov, levantando os olhos. Depois, olhou na direção da família de Hood e sorriu. — Mesmo que pense assim, ensine seus filhos a agir de outra forma. Vai ficar surpreso com os resultados.
Hood esperou que Orlov se afastasse e depois se dirigiu para o canto do parque onde havia deixado Alexander e Harleigh. A princípio, só avistou Sharon. Levou alguns momentos para localizar os filhos; estavam jogando futebol com as crianças russas.
— Talvez você tenha razão — disse, em voz alta.
Enfiando as mãos nos bolsos, olhou pela última vez na direção de Orlov e caminhou com passos leves e o coração ainda mais leve para o lado da esposa.
Tom Clancy
O melhor da literatura para todos os gostos e idades