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REGRAS PARA A DIREÇÃO DO ESPÍRITO / René Descartes
REGRAS PARA A DIREÇÃO DO ESPÍRITO / René Descartes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Um opúsculo incompleto de Descartes, mas quão significativo! Os estudiosos discutem a data em que terão sido redigidas as Regras Para a Direcção do Espírito. A s várias opiniões situam a sua redacção entre 1620 e 1635, tendo em conta algumas alusões biográficas nas Regras 2, 4, 10.

Segundo H. Gouhier, na sua edição (!), as Regras não devem ser anteriores a 1623; constituiriam uma espécie de resultado do trabalho intelectual feito entre 162) e 1628 e foi neste último ano que Descartes as teria posto por escrito.

Por seu turno, a história física do texto tem alguns meandros. Há três manuscritos importantes: a) O manuscrito original, que pertencia a Clerselier, mas perdeu-se; b) Uma cópia que foi de Leibniz e se encontrou na biblioteca de Hanôver; c} E a cópia de que se serviram os editores dos Opuscula posthuma na primeira edição do texto latino em Amesterdão,

1701, e que também desapareceu. Charles Adam e Paul

 

(1)   Descartes, Regulae ad directiomm ingenii. Notice par Henri Gouhier, Paris, Vrin 1965.

 

Tannery), na sua grande edição dos escritos cartesianos, Oeuvres de Descartes, Paris, Cerf 1908 (hoje, editados pela Vrin), recorreu ao texto publicado nos Opuscula e às variantes do manuscrito de Hanóver.

É esse texto (no tomo X da edição de A.dam e Tannery} que serve de base à presente edição e tradução para português.

Se o leitor estiver interessado, há algumas obras fundamentais que o poderão ajudar a estudar as Regulae:

 

1) E. Gilson, Index scolastico-cartésien, Paris, Alcan,

1913.

2) E. Gilson, René Descartes. Discourse de La Méthode. Texte et Commentaire, Paris, Vrin 192j, i^éy4.

3) E. J. Beck, The Method of Descartes, a study of the Regulae, Oxford 1932.

 

                       ARTUR MORÃO

 

 

 

 

A finalidade dos estudos deve ser a orientação do espírito para emitir juízos sólidos e verdadeiros sobre tudo o que se lhe depara.

 

Os homens costumam, sempre que reconhecem alguma semelhança entre duas coisas, avaliar ambas, mesmo naquilo em que são diversas, mediante o que reconheceram numa delas como verdadeiro. Realizam assim falsas aproximações entre as ciências, que consistem exclusivamente no conhecimento intelectual, e as artes, que exigem algum exercício e hábito corporal; e vêem que nem todas as artes devem ser aprendidas simultaneamente pelo mesmo homem e que só aquele que exerce uma única se transforma mais facilmente num artista consumado ; as mesmas mãos que se dedicam a cultivar os campos e a tocar cítara, ou que se entregam a vários ofícios diferentes, não os podem executar com tanto desafogo como se a um só se dedicassem. Julgaram que o mesmo se passaria com as ciências e, ao distingui-las umas das outras segundo a diversidade dos seus objectos, pensaram que era necessário adquirir cada uma separadamente, deixando de lado todas as outras. Enganaram-se rotundamente. com efeito, visto que todas as ciências nada mais são do que a sabedoria humana, a qual permanece sempre una e idêntica, por muito diferentes que sejam os objectos a que se aplique, e não recebe deles mais distinções do que a luz do sol da variedade das coisas que ilumina, não há necessidade de impor aos espíritos quaisquer limites. Nem o conhecimento de uma só verdade, como se fora a prática de uma única arte, nos desvia da descoberta de outra; pelo contrário, ajuda-nos. Sem dúvida, parece-me de espantar que a maior parte indague, com o maior empenho, os costumes dos homens, as propriedades das plantas, os movimentos dos astros, as transmutações dos metais e os objectos de semelhantes disciplinas e que, entretanto, quase ninguém pense no bom senso ou nesta Sabedoria universal, quando tudo o mais deve ser apreciado, não tanto por si mesmo quanto pelo contributo que a esta traz. Assim, não é sem motivo que pomos esta regra antes de todas as outras, porque nada nos afasta tanto do recto caminho da procura da verdade como orientar os nossos estudos, não para este fim geral, mas para alguns fins particulares. Não falo já dos maus e condenáveis, como a vã glória ou o lucro vergonhoso: é óbvio que as razões de mau quilate e os embustes próprios dos espíritos vulgares abrem neste sentido um caminho muito mais vantajoso do que o poderia fazer o sólido conhecimento da verdade. Mas pretendo falar dos fins honestos e louváveis, porque mais subtilmente somos por eles muitas vezes enganados: por exemplo, ao procurarmos adquirir as ciências úteis para o bem-estar da existência ou para o prazer que se encontra na contemplação da verdade, e que é quase a única felicidade completa nesta vida e que nenhuma dor vem perturbar. São estes os frutos legítimos das ciências que efectivamente podemós esperar; mas, se neles pensarmos durante o estudo, fazem muitas vezes que omitamos muitos meios necessários para o conhecimento de outras coisas, porque se afigurarão, à primeira vista, ou pouco úteis ou pouco dignos de interesse. É preciso acreditar que todas as ciências estão de tal modo conexas entre si que é muitíssimo mais fácil aprendê-las todas ao mesmo tempo do que separar uma só que seja das outras. Portanto, se alguém quiser investigar a sério a verdade das coisas, não deve escolher uma ciência particular: estão todas unidas entre si e dependentes umas das outras; mas pense apenas em aumentar a luz natural da razão, não para resolver esta ou aquela dificuldade de escola, mas para que, em cada circunstância da vida, o intelecto mostre à vontade o que deve escolher. Em breve ficará espantado de ter feito progressos muito superiores aos de quantos se dedicam a estudos particulares, e de ter obtido não só tudo o que os outros desejam, mas ainda coisas mais elevadas do que as que podem esperar.

 

Importa lidar unicamente com aqueles objectos para cujo conhecimento certo e indubitável os nossos espíritos parecem ser suficientes.

 

Toda a ciência é um conhecimento certo e evidente; nem aquele que duvida de muitas coisas é mais sábio do que quem nunca pensou nelas; parece até menos douto que este último, se formou uma opinião errada a respeito de algumas. Por isso, é melhor nunca estudar do que ocupar-se de objectos de tal modo difíceis que, não podendo distinguir o verdadeiro do falso, sejamos obrigados a tomar como certo o que é duvidoso, porque então não há tanta esperança de aumentar a instrução como perigo de a diminuir. Por conseguinte, mediante esta proposição, rejeitamos todos os conhecimentos somente prováveis, e declaramos que se deve confiar apenas nas coisas perfeitamente conhecidas e das quais não se pode duvidar. E embora os letrados estejam talvez convencidos de que existem muito poucos desses conhecimentos, porque um defeito comum ao género humano os levou a não reflectir sobre tais conhecimentos, como demasiado fáceis e acessíveis a todos. No entanto, sou de opinião de que estes são muito mais numerosos do que pensam e suficientes para provar, com certeza, inúmeras proposições, acerca das quais não puderam discorrer até então a não ser de uma maneira provável. Porque julgaram indigno de um homem letrado confessar que ignorava alguma coisa, habituaram-se de tal modo a adornar as suas falsas razões que, insensivelmente, acabaram por a si próprios se persuadirem e as tomarem como verdadeiras.

 

No entanto, se observarmos bem esta regra, muito poucas coisas se apresentam a cujo estudo nos possamos aplicar. Dificilmente se encontrará nas ciências qualquer questão sobre a qual os homens versados não tenham muitas vezes discordado entre si. Mas, sempre que duas pessoas têm sobre a mesma coisa juízos contrários, de certeza que pelo menos uma ou outra se engana, e nenhuma delas parece mesmo ter ciência; porque, se as razões de uma fossem certas e evidentes, poderia expô-las à outra de modo a finalmente convencer o seu entendimento. Parece, pois, que sobre todos os assuntos deste género podemos obter opiniões prováveis, mas não a ciência perfeita, visto que não nos é permitido sem temeridade esperar mais de nós mesmos do que os outros fizeram. Assim, das ciências já encontradas, restam só a Aritmética e a Geometria, às quais nos reduz a observação desta regra.

 

Apesar de tudo, não condenamos por isso a maneira de filosofar até agora encontrada pelos outros e, nos escolásticos, a maquinaria dos silogismos prováveis, perfeitamente adequada às suas guerras. Na verdade, são até um exercício para os espíritos das crianças e com certa emulação os fazem progredir: é muito melhor formá-los mediante opiniões deste jaez, ainda que aparentemente incertas devido às controvérsias dos eruditos, do que abandoná-los livremente a si próprios. Talvez sem guia se dirigissem para precipícios; mas enquanto caminharem pelas pegadas dos seus mestres, ainda que se afastem algumas vezes da verdade, seguirão no entanto um caminho mais seguro, pelo menos por já ter sido aprovado por homens mais prudentes. Nós próprios nos alegramos por outrora termos sido assim formados nas escolas; mas, porque agora estamos livres do juramento que nos submetia às palavras do Mestre e nos tornámos suficientemente adultos para subtrair a mão à palmatória, se quisermos seriamente determinar para nós próprios as regras que nos ajudem a chegar ao cume do conhecimento humano, há que admitir entre as primeiras a que nos previne contra o abuso do ócio, em que tantos caem; deixam de lado o que é fácil, só se ocupam de coisas árduas sobre as quais elaboram engenhosamente conjecturas por certo muito subtis e razões deveras prováveis. Mas, após muito trabalho, advertem já tarde que não fizeram mais do que aumentar o número das dúvidas, sem terem aprendido uma ciência.

 

E agora, por há pouco termos dito que, entre as disciplinas conhecidas pelos outros, só a Aritmética e a Geometria estavam isentas de todo o defeito de falsidade ou de incerteza, vamos examinar mais atentamente a razão disto mesmo, observando que há uma dupla via que nos leva ao conhecimento das coisas, a saber, a experiência ou a dedução. É preciso notar, além disso, que as experiências acerca das coisas são muitas vezes enganadoras, ao passo que a dedução ou a ilação pura de uma coisa a partir de outra se pode omitir quando não se divisa, mas nunca pode ser mal feita pelo entendimento, ainda o menos racional. E pouco úteis me parecem ser para isso os laços com que os Dialécticos pensam governar a razão humana, se bem que eu não negue que sejam muito apropriados para outros usos. com efeito, todo o erro possível -falo dos homens e não dos animais - nunca resulta de uma inferência errada, mas apenas de se partir de certas experiências pouco compreendidas ou de se emitirem juízos de modo temerário e sem fundamento.

 

De tais considerações infere-se claramente porque é que a Aritmética e a Geometria são muito mais certas que as outras disciplinas: são efectivamente as únicas que lidam com um objecto tão puro e simples que não têm de fazer suposição alguma que a experiência torne incerta, e consistem inteiramente em consequências a deduzir racionalmente. São, pois, as mais fáceis e claras de todas, e têm um objecto tal como o exigimos já que, excepto por inadvertência, parece difícil nelas um homem enganar-se. Apesar de tudo, não é de espantar que muitos espíritos se apliquem espontaneamente a outras artes ou à filosofia: isto acontece porque cada qual se permite a si mesmo mais confiadamente ser adivinho em matéria obscura do que em matéria evidente, e é muito mais fácil conjecturar sobre qualquer questão do que chegar à própria verdade numa só questão, por fácil que seja.

 

A conclusão a tirar de tudo o que precede é que não se deve aprender apenas a Aritmética e a Geometria, mas somente que, na procura do recto caminho da verdade, não há que ocupar-se de objecto algum sobre o qual não se possa ter uma certeza igual às demonstrações da Aritmética e da Geometria.

 

No que respeita aos objectos considerados, há que procurar não o que os outros pensaram ou o que nós próprios suspeitamos, mas aquilo de que podemos ter uma intuição clara e evidente ou que podemos deduzir com certeza; de nenhum outro modo se adquire a ciência.

 

Devem ler-se os livros dos Antigos, pois é uma grande vantagem podermos aproveitar os trabalhos de um tão elevado número de homens, quer para conhecer as descobertas já feitas no passado com êxito, quer também para nos informarmos do que ainda falta descobrir em todas as disciplinas. Há, contudo, um grande perigo de se contraírem talvez algumas manchas de erro na leitura demasiado atenta desses livros, manchas que a nós se agarram sejam quais forem as nossas resistências e precauções. com efeito, os escritores costumam ter um espírito tal que, todas as vezes que se embrenham por uma credulidade irreflectida na crítica de uma opinião controversa, se esforçam sempre por nos atrair mediante os mais subtis argumentos. Pelo contrário, sempre que tiveram a felicidade de encontrar algo de certo e evidente, nunca o expõem senão com rodeios, receando aparentemente diminuir pela simplicidade das razões o mérito da invenção, ou então porque nos invejam a verdade às claras.

 

Ainda que todos fossem de boa índole e francos, impedindo-nos de tomar coisas duvidosas por verdadeiras e expondo-nos tudo de boa fé, porque dificilmente um afirma algo cujo contrário não seja proposto por outro, nunca sabemos em qual deles acreditar. E não valeria de nada contar os votos para aderir à opinião partilhada por mais Autores; porque, se se trata de uma questão difícil, é mais credível que a sua verdade tenha sido descoberta por um reduzido número do que por muitos. Mesmo se todos estivessem de acordo, o seu ensino não nos bastaria: nunca nos tornaremos matemáticos, por exemplo, embora saibamos de cor todas as demonstrações feitas pelos outros, se com o espírito não formos capazes de resolver todo e qualquer problema; nem nos tornaremos filósofos se, tendo lido todos os raciocínios de Platão e Aristóteles, não pudermos formar um juízo sólido sobre quanto nos é proposto. com efeito, daríamos a impressão de termos aprendido não ciências, mas histórias.

 

Além disso, somos admoestados a não misturar absolutamente nenhuma conjectura com os nossos juízos sobre a verdade das coisas. Esta advertência não é de somenos importância: pois, a melhor razão pela qual não se encontra ainda na filosofia vulgar nada de tão evidente e tão certo que não possa questionar-se, é que primeiramente os estudiosos, não contentes com reconhecer as coisas claras e certas, ousaram defender coisas obscuras e desconhecidas, que só por conjecturas prováveis alcançavam. Depois, pouco a pouco, eles próprios lhes deram crédito total e confundiram-nas indistintamente com as coisas verdadeiras e evidentes, sem poderem tirar nenhuma conclusão que não parecesse depender de alguma proposição semelhante e que, por conseguinte, não fosse incerta.

 

A fim de não cairmos ulteriormente no mesmo erro, vamos aqui passar em revista todos os actos do nosso entendimento que nos permitem chegar ao conhecimento das coisas, sem nenhum receio de engano; admitem-se apenas dois, a saber, a intuição e a dedução.

 

Por intuição entendo, não a convicção flutuante fornecida pelos sentidos ou o juízo enganador de uma imaginação de composições inadequadas, mas o conceito da mente pura e atenta tão fácil e distinto que nenhuma dúvida nos fica acerca do que compreendemos; ou então, o que é a mesma coisa, o conceito da mente pura e atenta, sem dúvida possível, que nasce apenas da luz da razão e que, por ser mais simples, é ainda mais certo do que a dedução, se bem que esta última não possa ser mal feita pelo homem, como acima observamos. Assim, cada qual pode ver pela intuição intelectual que existe, que pensa, que um triângulo é delimitado apenas por três linhas, que a esfera o é apenas por uma superfície, e outras coisas semelhantes, que são muito mais numerosas do que a maioria observa, porque não se dignam aplicar a mente a coisas tão fáceis.

 

Quanto ao mais, faço aqui uma advertência geral não vá alguém talvez surpreender-se com o novo uso da palavra intuição e de outras que igualmente serei forçado a desviar da sua significação vulgar: não penso sequer no modo como cada expressão foi, nestes últimos tempos, usada nas escolas, porque seria dificílimo servir-me dos mesmos termos e exprimir ideias totalmente diversas; mas vou ater-me unicamente à significação de cada palavra em latim para que, à falta de termos próprios, transfira para a minha ideia, os que me parecem mais adequados.

 

Ora, esta evidência e esta certeza da intuição não são apenas exigidas para as simples enunciações, mas também para quaisquer raciocínios. Seja, por exemplo, esta consequência : 2 e 2 é igual a 3 mais 1; é preciso ver intuitivamente não só que 2+2 são 4, e que 3+1 são igualmente 4, mas, além disso, que destas duas proposições se conclui necessariamente aquela terceira.

 

Poderá agora perguntar-se porque é que à intuição juntámos um outro modo de conhecimento, que se realiza por dedução; por ela entendemos o que se conclui necessariamente de outras coisas conhecidas com certeza. Foi imperioso proceder assim, porque a maior parte das coisas são conhecidas com certeza, embora não sejam em si evidentes, contanto que sejam deduzidas de princípios verdadeiros, e já conhecidos, por um movimento contínuo e ininterrupto do pensamento, que intui nitidamente cada coisa em particular: eis o único modo de sabermos que o último elo de uma cadeia está ligado ao primeiro, mesmo que não aprendamos intuitivamente num só e mesmo olhar o conjunto dos elos intermédios, de que depende a ligação; basta que os tenhamos examinado sucessivamente e que nos lembremos que, do primeiro ao último, cada um deles está ligado aos seus vizinhos imediatos. Distinguimos portanto, aqui, a intuição intelectual da dedução certa pelo facto de que, nesta, se concebe uma espécie de movimento ou sucessão e na outra, não; além disso, para a dedução não é necessário, como para a intuição, uma evidência actual, mas é antes à memória que, de certo modo, vai buscar a sua certeza. Pelo que se pode dizer que estas proposições, que se concluem imediatamente a partir dos primeiros princípios, são conhecidas, de um ponto de vista diferente, ora por intuição, ora por dedução, mas que os primeiros princípios se conhecem somente por intuição, e, pelo contrário, as conclusões distantes só o podem ser por dedução.

 

Eis as duas vias mais seguras para chegar à ciência; do lado do espírito não se devem admitir mais, e todas as outras devem ser rejeitadas como suspeitas e passíveis de erro; o que, apesar de tudo, não nos impede de acreditar que aquilo que foi objecto da revelação divina é mais certo do que qualquer outro conhecimento; com efeito, a fé, por visar coisas obscuras, não é um acto do espírito, mas da vontade. E se tem fundamentos no entendimento, poderão e deverão todos eles ser descobertos por uma ou outra das vias já indicadas, como talvez um dia o demonstraremos mais amplamente.

 

O método é necessário para a procura da verdade.

 

Os Mortais são dominados por uma curiosidade tão cega que, muitas vezes, enveredam o espírito por caminhos desconhecidos, sem qualquer esperança razoável, mas unicamente para se arriscarem a encontrar o que procuram: é como se alguém, incendiado pelo desejo tão estúpido de encontrar um tesouro, vagueasse sem cessar pelas praças públicas para ver se, casualmente, encontrava algum perdido por um transeunte. Assim estudam quase todos os quimistas, a maioria dos geómetras e um grande número de filósofos; não nego que tenham por vezes muita sorte nos seus caminhos errantes e encontrem alguma verdade; contudo, não estou de acordo que sejam mais competentes, mas apenas mais afortunados. Ora, vale mais nunca pensar em procurar a verdade de alguma coisa que fazê-lo sem método: é certíssimo, pois, que os estudos feitos desordenadamente e as meditações confusas obscurecem a luz natural e cegam os espíritos. Quem se acostuma a andar assim nas trevas enfraquece de tal modo a acuidade do olhar que, depois, não pode suportar a luz do pleno dia. É a experiência que o diz: vemos muitíssimas vezes os que nunca se dedicaram às letras julgar o que se lhes depara com muito maior solidez e clareza do que aqueles que sempre frequentaram as escolas. Entendo por método regras certas e fáceis, que permitem a quem exactamente as observar nunca tomar por verdadeiro algo de falso e, sem desperdiçar inutilmente nenhum esforço da mente, mas aumentando sempre gradualmente o saber, atingir o conhecimento verdadeiro de tudo o que será capaz de saber.

 

Aqui, há duas observações a fazer: não tomar absolutamente nada de falso por verdadeiro, e chegar ao conhecimento de tudo. com efeito, se ignorarmos algo de quanto podemos saber é apenas porque ou nunca divisámos uma via que nos conduzisse a tal conhecimento, ou porque caímos no erro oposto. Mas se o método nos dá uma explicação perfeita do uso da intuição intelectual para não caírmos no erro contrário à verdade, e do meio de encontrar deduções para chegar ao conhecimento de tudo, parece-me que nada mais se exige para ele ser completo, já que nenhuma ciência se pode adquirir a não ser pela intuição intelectual ou pela dedução, como antes ficou dito. Nem ele se pode estender até ensinar como se devem fazer estas operações, porque são as mais simples e primeiras de todas, de tal maneira que, se o nosso entendimento as não pudesse usar antes, não compreenderia nenhum dos preceitos do próprio método, por mais fáceis que fossem. Quanto às outras operações intelectuais, que a Dialéctica se esforça por orientar com a ajuda destas primeiras, são aqui inúteis, ou antes, devem contar-se entre os obstáculos, já que não há nada que se possa juntar à pura luz da razão, sem a obscurecer de uma ou de outra maneira.

 

Uma vez que a utilidade deste método é tão grande que o cultivo das letras parece, sem ele, destinado a ser mais prejudicial do que útil, facilmente me convenço de que os espíritos superiores, mesmo só sob a conduta da natureza, já antes o divisaram de alguma maneira. com efeito, a mente humana tem não sei quê de divino, em que as primeiras sementes dos pensamentos úteis foram lançadas de tal modo que, muitas vezes, ainda que descuradas e abafadas por estudos feitos indirectamente, produzem um fruto espontâneo. É o que experimentamos, nas ciências mais fáceis, a Aritmética e a Geometria: de facto, vemos bastante bem que os antigos Geómetras utilizaram uma espécie de análise que estendiam à solução de todos os problemas, ainda que não a tenham transmitido à posteridade. E agora floresce um género de Aritmética, que se chama Álgebra, que permite fazer para os números o que os Antigos faziam para as figuras. Estas duas coisas não passam de frutos espontâneos dos princípios naturais do nosso método, e não me admiro que tenha sido nestas artes, cujos objectos são muito simples, que eles até aqui cresceram com mais facilidade do que nas outras, onde maiores obstáculos geralmente os costumam abafar, mas onde também, no entanto, se se cultivarem com sumo cuidado, se farão infalivelmente chegar à perfeita maturidade.

 

Foi o que me propus principalmente fazer neste Tratado. Não daria muita importância a estas regras, se só servissem para resolver os vãos problemas com que costumam entreter-se os calculadores ou os geómetras nos seus passatempos: julgaria, neste caso, não ter dado outra prova de superioridade que a de me ocupar de bagatelas, talvez com mais subtileza do que os outros. E ainda que esteja decidido a falar aqui muito de figuras e de números, porque não se podem pedir a nenhuma das outras disciplinas exemplos tão evidentes e tão certos, quem, no entanto, prestar atenção à minha ideia, aperceber-se-á facilmente de que estou a pensar nada menos do que nas Matemáticas vulgares e que exponho uma outra disciplina de que elas são mais roupagem do que partes. Esta disciplina deve efectivamente conter os primeiros rudimentos da razão humana e estender-se para fazer brotar verdades a respeito de qualquer assunto; e, para falar livremente, é preferível a todo o outro conhecimento transmitido humanamente, visto que é a fonte de todos os outros: é esta a minha persuasão. Se falei de roupagem não significa que eu queira cobrir e envolver este ensino para afastar o vulgo, antes o quero vestir e adornar para melhor se adaptar ao espírito humano. Quando primeiramente me apliquei às disciplinas matemáticas, li logo integralmente a maior parte das coisas que habitualmente os seus promotores ensinam e cultivei de preferência a Aritmética e a Geometria, porque eram - dizia-se - as mais simples e como que uma senda para as restantes. Mas, tanto numa como noutra, não tive a sorte de me virem às mãos Autores capazes de me satisfazer plenamente; lia neles, certamente, muitas coisas acerca dos números, cujo cálculo me fazia constatar a verdade; quanto às figuras, havia muitas coisas que de alguma maneira eles me metiam pelos olhos dentro e que eram o resultado de consequências rigorosas; mas, porque é que era assim e como lá se chegava não me parecia que o patenteassem bastante à mente; por isso, não ficava surpreendido ao ver a maior parte dos homens, mesmo os bem dotados e eruditos, aflorar estas artes para logo as abandonarem como infantis e inúteis ou, pelo contrário, deter-se à entrada, dissuadidos de as aprender pela ideia de que eram extremamente difíceis e intrincadas. com efeito, nada há de mais inútil do que lidar de tal modo com simples números e figuras imaginárias que a nossa vontade parece satisfazer-se com o conhecimento de semelhantes banalidades; e nestas demonstrações superficiais, em que o acaso faz mais descobertas do que a arte e que se dirigem mais aos olhos e à imaginação do que ao entendimento, nada de mais fútil do que a elas se aplicar ao ponto de perdermos, de algum modo, o hábito de utilizar a própria razão. Ao mesmo tempo, nada é mais complicado do que - com semelhante maneira de fazer demonstrações - superar novas dificuldades escondidas numa desordem de números.

 

Seguidamente, interroguei-me sobre a razão que outrora levou os criadores da Filosofia a não quererem admitir no estudo da sabedoria ninguém que fosse ignorante em Matemática, como se de todas esta disciplina lhes parecesse a mais fácil e necessária para ensinar e preparar os espíritos para outras ciências mais importantes. Suspeitei então que tivessem conhecido uma espécie de Matemática muito diferente da Matemática vulgar da nossa época, sem que por isso pensasse que dela tivessem tido um conhecimento perfeito, pois as suas loucas alegrias e sacrifícios por irrelevantes invenções mostram claramente como eram incultos. Nem me demovem da minha opinião algumas das suas máquinas celebradas pelos Historiadores, pois, apesar talvez da sua extrema simplicidade, facilmente conseguiram em celebridade ser elevados à categoria de prodígios pela multidão ignorante e embasbacada. Contudo, estou persuadido de que as primeiras sementes de verdades, depositadas pela natureza nos espíritos humanos e por nós abafadas, devido à leitura ou à audição quotidianas de tantos erros, tinham tal força naquela rude e simples antiguidade que os homens, mediante a mesma luz intelectual com que viam haver que preferir a virtude ao prazer e o honesto ao útil, embora ignorassem porque era assim, também chegaram a conhecer as ideias verdadeiras da Filosofia e da Matemática, sem terem ainda podido alcançar perfeitamente estas mesmas ciências. Na verdade, parece-me que alguns vestígios desta verdadeira Matemática surgem ainda em Pappus e Diofanto, os quais, sem serem dos primeiros tempos, viveram no entanto muitos séculos antes da nossa era. E não me custa acreditar que, ulteriormente, os próprios autores a fizeram desaparecer por uma espécie de astúcia perniciosa. com efeito, assim como se reconheceu que muitos artesãos tinham procedido relativamente às suas invenções, recearam eles que talvez» devido à sua grande facilidade e simplicidade, se desvalorizasse pela sua divulgação, e preferiram, para se fazerem admirar, apresentar-nos em seu lugar algumas verdades estéreis demonstradas com um subtil rigor lógico como efeitos da sua arte, em vez de nos ensinarem a própria arte, que eliminaria totalmente a nossa admiração. Houve, enfim, alguns homens muito engenhosos que se esforçaram no nosso século por ressuscitar a mesma arte, pois a que se designa com o bárbaro nome de Álgebra não parece ser outra coisa, contanto que apenas seja de tal modo liberta dos múltiplos números e inexplicáveis figuras que a complicam, que não mais lhe falte aquele grau de perspicácia e facilidade extremas que, por suposição nossa, devem existir na verdadeira Matemática. Visto que estes pensamentos me levaram dos estudos particulares da Aritmética e da Geometria para uma investigação aprofundada e geral da Matemática, interroguei-me, antes de mais, acerca do que todos entendem exactamente por essa palavra, e porque é que não são apenas as ciências, de que já se falou, que se dizem parte das Matemáticas, mas ainda a Astronomia, a Música, a Óptica, a Mecânica e muitas outras. Não basta aqui considerar a origem da palavra; uma vez que o termo Matemática tem apenas o sentido de disciplina, as ciências acima citadas não têm menos direito do que a Geometria à designação de Matemáticas. Como vemos, não há quase ninguém, desde que tenha apenas pisado o limiar das escolas, que não distinga facilmente, entre o que se lhe apresenta, aquilo que pertence à Matemática e o que pertence às outras disciplinas. Reflectindo mais atentamente, pareceu-me por fim óbvio relacionar com a Matemática tudo aquilo em que apenas se examina a ordem e medida, sem ter em conta se é em números, figuras, astros, sons, ou em qualquer outro objecto que semelhante medida se deve procurar; e, por conseguinte, deve haver uma ciência geral que explique tudo o que se pode investigar acerca da ordem e da medida, sem as aplicar a uma matéria especial: esta ciência designa-se, não pelo vocábulo suposto, mas pelo vocábulo já antigo e aceite pelo uso de Matemática universal, porque esta contém tudo o que contribui para que as outras ciências se chamem partes da Matemática. Quanto a Matemática universal sobrepuja em utilidade e facilidade as outras ciências que lhe estão subordinadas, vê-se perfeitamente no facto de abarcar os mesmos objectos que estas últimas e, além disso, muitos outros; no facto ainda de que as suas dificuldades, se é que contém algumas, existem também nestas últimas ciências, com outras ainda provenientes dos seus objectos particulares e que ela não tem. E agora, visto que todos sabem o seu nome e aquilo de que trata, embora não lhe prestem atenção, como explicar que a maior parte investigue laboriosamente as outras disciplinas, que dela dependem, e que ninguém se preocupe por aprender esta? Admirar-me-ia certamente se não soubesse que todos a consideram muito fácil e se não tivesse notado, há muito, que o espírito humano deixa sempre de lado o que julga poder fazer facilmente e se precipita logo para o que é novidade e mais elevado.

 

Eu, porém, consciente da minha fraqueza, decidi observar pertinazmente na busca do conhecimento das coisas uma ordem tal que, principiando sempre pelos objectos mais simples e mais fáceis, nunca passe a outros sem me parecer que os primeiros nada mais me deixam para desejar. Foi por isso que cultivei até agora, tanto quanto pude, essa Matemática universal, de maneira que julgo poder tratar daqui por diante as ciências mais elevadas, sem a elas prematuramente me aplicar. Mas, antes de ir em frente, tudo o que achei de mais digno de nota nos meus estudos anteriores, esforçar-me-ei por congregá-lo num todo e o pôr em ordem, quer para o retomar um dia comodamente neste opúsculo, se isso for necessário em virtude da diminuição da memória com o aumento da idade, quer para aliviar a memória e me poder aplicar ao resto com maior liberdade de espírito.

 

Todo o método consiste na ordem e na disposição dos objectos para os quais é necessário dirigir a penetração da mente, a fim de descobrirmos alguma verdade. E observá-lo-emos fielmente, se reduzirmos gradualmente as proposições complicadas e obscuras a proposições mais simples e se, em seguida, a partir da intuição das mais simples de todas, tentarmos elevar-nos pelos mesmos degraus ao conhecimento de todas as outras.

 

É nisto apenas que se contém o resumo de toda a humana indústria, e esta regra deve ser seguida por quem anseia pelo conhecimento das coisas não menos do que o fio de Teseu para quem desejasse penetrar no labirinto. Mas, há muitos que não reflectem no que ela prescreve, ou a ignoram totalmente, ou presumem dela não ter necessidade, e muitas vezes examinam questões dificílimas de um modo tão desordenado que parecem proceder como se tentassem chegar, com um só salto, da parte mais baixa ao fastígio de um edifício, descurando as escadas destinadas a este uso, ou não notando até que existem umas escadas. Assim fazem todos os astrólogos que, sem conhecer a natureza dos céus e mesmo sem ter observado perfeitamente os seus movimentos, esperam poder assinalar os seus efeitos. Assim faz a maioria dos que estudam a mecânica sem a física e que fabricam temerariamente instrumentos novos para produzir movimentos. Assim procedem também os filósofos que, descurando as experiências, julgam que a verdade nascerá do seu cérebro, como Minerva nasceu de Júpiter.

 

E, claro, todos aqueles de que acabámos de falar pecam evidentemente contra esta regra. Mas, porque muitas vezes a ordem que aqui se exige é de tal modo obscura e complicada que não está ao alcance de todos reconhecer qual seja ela, dificilmente tomarão precauções suficientes para não se perderem, a não ser que observem cuidadosamente o que será exposto na proposição seguinte.

 

Para distinguir as coisas mais simples das mais complexas e prosseguir ordenadamente na investigação, é necessário, em cada série de coisas em que directamente deduzimos algumas verdades umas das outras, notar o que é mais simples e como todo o resto dele está mais, ou menos, ou igualmente afastado.

 

Se bem que esta proposição não pareça ensinar nada de totalmente novo, contém, no entanto, o principal segredo da arte e nenhuma há mais útil em todo este Tratado. Ensina-nos, com efeito, que todas as coisas se podem dispor em certas séries, não evidentemente enquanto se referem a algum género de ser, tais como as dividiram os Filósofos nas suas categorias, mas enquanto umas se podem conhecer a partir das outras, de tal modo que, sempre que se apresente uma dificuldade, possamos imediatamente advertir se será útil examinar algumas outras, quais, e por que ordem.

 

RDE-3


Para que isso se possa fazer correctamente, há que notar, em primeiro lugar, que todas as coisas - sob o o aspecto da sua utilidade possível para o nosso propósito, isto é, quando não consideramos a sua natureza isoladamente, mas as comparamos entre si para as conhecer umas a partir das outras - se podem dizer ou absolutas ou relativas.

 

Chamo absoluto tudo o que contém em si a natureza pura e simples de que trata uma questão; por exemplo, tudo o que é considerado como independente, causa, simples, universal, uno, igual, semelhante, recto, ou outras coisas deste género; chamo-o, primeiramente, o mais simples e o mais fácil, em função do uso que dele faremos na resolução das questões.

 

Quanto ao relativo, é o que participa desta mesma natureza ou, ao menos, de algum dos seus elementos; por isso, pode referir-se ao absoluto, e dele se deduzir mediante uma certa série; mas, além disso, encerra no seu conceito outras coisas, que chamo relações; assim é tudo o que se diz dependente, efeito, composto, particular, múltiplo, desigual, dissemelhante, oblíquo, etc.

 

Estas coisas relativas afastam-se tanto mais das absolutas quanto mais relações deste tipo contêm, subordinadas umas às outras; e a presente regra adverte-nos que é preciso distinguir todas estas relações, e atentar na sua conexão mútua e na sua ordem natural, de modo que, a partir da última, possamos chegar à que é mais absoluta, passando por todas as outras.

 

E o segredo de toda a arte consiste em buscarmos com diligência em todas as coisas o que há de mais absoluto. Há coisas, com efeito, que são, sem dúvida alguma, sob um ponto de vista, mais absolutas do que outras, mas que, consideradas de outra maneira, são mais relativas. Assim, o universal é mais absoluto que o particular, porque tem uma natureza mais simples, mas pode dizer-se mais relativo do que este último, porque depende dos indivíduos para existir, etc. Do mesmo modo, certas coisas são por vezes realmente mais absolutas que outras sem, no entanto, serem ainda as mais absolutas de todas; por exemplo, se tomarmos em consideração os indivíduos, a espécie é algo de absoluto; se nos referirmos ao género, ela é algo de relativo; entre os objectos mensuráveis, a extensão é qualquer coisa de absoluto, mas, entre as espécies de extensão, é o comprimento que é absoluto, etc. Da mesma maneira, por fim, para melhor se compreender que consideramos aqui séries de coisas a conhecer e não a natureza de cada uma delas, foi de propósito que contámos a causa e o igual entre as coisas absolutas, embora as suas naturezas sejam verdadeiramente relativas. com efeito, para os Filósofos, a causa e o efeito são coisas correlativas; aqui, porém, se investigarmos o que é um efeito, importa antes conhecer a causa, e não inversamente. As coisas iguais também se correspondem umas às outras, mas só reconhecemos as desiguais comparando-as às iguais, e não inversamente, etc.

 

É necessário notar, em segundo lugar, que são poucas as naturezas puras e simples, que se podem ver por intuição imediatamente e por si mesmas, independentemente de quaisquer outras, mas nas próprias experiências ou graças a uma certa luz que nos é inata; dizemos que importa considerá-las diligentemente, porque são as mesmas que, em cada série, chamamos as mais simples. Quanto a todas as outras, só podem ser percebidas deduzindo-as das primeiras, quer por uma inferência imediata e próxima, quer apenas mediante duas, três ou mais conclusões diferentes, cujo número também deve ser notado, a fim de sabermos se mais ou menos graus as afastam da proposição que é a primeira e a mais simples. Tal é, em todo o lado, o encadeamento das consequências que origina estas séries de objectos de investigação, aos quais se deve reduzir toda a questão, para que examinar se possa com um método seguro. Mas, como não é fácil a todas recensear, e, além disso, como é mais importante discerni-las por uma certa penetração do espírito do que retê-las na memória, há que procurar um meio de dar aos espíritos uma formação que lhes permita reconhecê-las imediatamente, sempre que for necessário. Para tal, certamente, nada é mais conveniente, segundo a minha experiência, do que habituar-nos a reflectir com certa perspicácia sobre cada uma das mínimas coisas que já vimos anteriormente. Note-se, finalmente, em terceiro lugar, que não se devem começar os estudos pela investigação das coisas difíceis, mas que importa, antes de nos aprontarmos para algumas questões determinadas, recolher previamente, sem fazer nenhuma escolha, as verdades que se apresentem espontaneamente, ver depois, gradualmente, se outras delas se podem deduzir, e destas outras ainda, e assim por diante. Feito isto, é preciso reflectir atentamente nas verdades encontradas e examinar cuidadosamente porque é que pudemos achar umas mais cedo e mais facilmente do que outras e quais são essas. Assim saberemos julgar, ao abordar uma determinada questão, a que outras investigações será útil entregar-nos previamente. Por exemplo, se me viesse ao pensamento que o número 6 é o dobro de três, procuraria em seguida o dobro do número 6, quer dizer 12; procuraria igualmente, se bem me parece, o dobro deste último, ou seja, 24, e também o dobro deste último, a saber, 48, etc. Daqui deduziria facilmente que há a mesma relação entre 3 e 6 que entre 6 e 12, igualmente entre 12 e 24, etc., e que, por consequência, os números 3, 6, 12, 24,

48, etc., são continuamente proporcionais. Do mesmo modo, ainda que tudo isto seja tão claro que quase parece infantil, uma reflexão atenta faz-me compreender a maneira como se complicam todas as questões relativas às proporções ou relações entre as coisas que se podem propor, e a ordem que a sua investigação exige: só isso abrange o conjunto de toda a ciência das matemáticas puras.

 

Antes de mais, esclareço que não foi mais difícil encontrar o dobro de seis que o dobro de três; de modo análogo, em todos os casos, depois de se ter achado uma proporção entre duas grandezas quaisquer, podem dar-se outras inumeráveis que têm, entre si, a mesma proporção. Não se muda a natureza da dificuldade quando se procuram 3 ou 4 grandezas ou mesmo mais, porque - como é evidente - têm de encontrar-se uma a uma separadamente e sem relação às outras. Observo, em seguida, que, dadas as grandezas 3 e 6, apesar da facilidade que há em achar uma terceira que esteja em proporção contínua, ou seja, 12, não é, no entanto, tão fácil, dadas duas grandezas extremas, a saber 3 e 12, poder achar a grandeza média, isto é, 6, porque, para quem disto examina intuitivamente a razão, é claro que existe um ou outro género de dificuldade, que difere muito do precedente. com efeito, para achar um meio proporcional, é preciso prestar atenção, ao mesmo tempo, aos dois extremos e à proporção que entre eles existe, a fim de extrair uma nova pela sua divisão; é uma operação completamente diferente da exigida para, dadas duas grandezas, se encontrar uma terceira que esteja em proporção contínua. Prossigo e examino se, dadas as grandezas 3 e 24, se teria podido achar tão facilmente uma das duas médias proporcionais, ou seja 6 e 12. Aqui surge ainda um outro género de dificuldade mais complicado que os precedentes: é que aqui, com efeito, há que prestar atenção não só a uma coisa ou a duas, mas a três diferentes ao mesmo tempo, para achar uma quarta. É permitido ir mais longe ainda e ver se, dados apenas 3 e 48, teria sido mais difícil achar uma das três médias proporcionais, ou seja, 6, 12 e 24. De facto, parece ser assim, à primeira vista; mas logo nos ocorre que esta dificuldade se pode dividir e simplificar se, obviamente, se procurar primeiro uma só média proporcional entre 3 e 48, ou seja, 12, e se se procurar seguidamente uma outra média proporcional entre 3 e 12, ou seja 6, e uma outra entre 12 e 48, isto é 24. Deste modo se reduz ela ao segundo género de dificuldade já exposto.

 

Tudo isto me permite observar, além disso, como se pode buscar o conhecimento da mesma coisa por vias diferentes, em que uma é muito mais difícil e obscura que a outra. Por exemplo: achar estes quatro termos continuamente proporcionais: 3, 6, 12, 24. Se supusermos dois seguidos, ou seja, 3 e 6, ou 6 e 12, ou 12 e 24, será facílimo achar os outros e diremos então que a proporção a encontrar é directamente examinada. Se supusermos dois alternados, isto é, 3 e 12, ou 6 e 24, para acharmos os outros, então diremos que a dificuldade é examinada indirectamente da primeira maneira. Se igualmente supusermos os dois externos, 3 e 24, para através deles se procurarem os intermediários 6 e 12, então ela será examinada indirectamente da segunda maneira. Poderia ainda continuar assim e extrair deste único exemplo muitas outras deduções: estas bastarão para que o leitor compreenda o que eu pretendo ao dizer que uma proposição se deduz directa ou indirectamente, e pense que, a partir do que há de mais fácil e do que se conhece em primeiro lugar, muitas descobertas podem ser feitas mesmo noutras disciplinas por aqueles que reflectem com atenção e se entregam às investigações com argúcia.

 

Para completar a ciência, é preciso analisar, uma por uma, todas as coisas que se relacionam com o nosso objectivo, por um movimento contínuo e jamais interrompido do pensamento, abarcando-as numa enumeração suficiente e metódica.

 

A observação do que aqui se propõe é necessária para admitir como certas as verdades que, dissemo-lo mais acima, se deduzem dos princípios primeiros e conhecidos em si mesmos, mas não de um modo imediato. com efeito, isto faz-se por vezes por um encadeamento tão longo de consequências que, após termos alcançado estas verdades, não é fácil lembrar-nos de todo o caminho que até aí nos levou; por isso dizemos que é preciso remediar a fraqueza da memória por uma espécie de movimento contínuo do pensamento. Por exemplo, se diversas operações me levaram primeiramente ao conhecimento da relação entre as grandezas A e B, depois entre B e C, em seguida entre C e D e, por fim, entre D e E, nem por isso vejo qual é a que existe entre A e E, e não posso fazer uma ideia precisa a partir das relações já conhecidas, a não ser que me recorde de todas. Por isso, percorrê-las-ei várias vezes por uma espécie de movimento contínuo da imaginação que vê intuitivamente cada objecto em particular enquanto vai passando aos outros, até ter aprendido a transitar da primeira relação para a última com tal rapidez que, sem deixar quase nenhum papel à memória, me pareça ver simultaneamente o todo por intuição. Assim, ao ajudar a memória, corrige-se também a lentidão do espírito e aumenta-se de certo modo a sua capacidade.

 

Acrescentamos, porém, que este movimento não deve interromper-se em nenhuma parte; frequentemente, os que tentam fazer alguma dedução demasiado rápida, partindo de princípios remotos, não percorrem todo o encadeamento das conclusões intermédias com o cuidado suficiente para não omitirem muitas inconsideradamente. Todavia, é certo que mesmo a menor das omissões faz imediatamente quebrar a cadeia e arruina completamente a certeza da conclusão.

 

Além disso, dizemos aqui que a enumeração é exigida para completar a ciência; pois, se os outros preceitos nos servem, certamente, para resolver a maioria das questões, só a enumeração nos pode ajudar a aplicar o nosso espírito a qualquer uma delas, a fazer sempre sobre ela um juízo seguro e certo e, por consequência, a não deixar escapar absolutamente nada, parecendo assim que de todas sabemos alguma coisa.

 

Esta enumeração, ou indução, é, pois, a investigação de tudo o que se relaciona com uma questão proposta, investigação tão diligente e tão cuidada que dela tiremos a conclusão certa e evidente de que nada omitimos por descuido; de tal forma que, depois de a termos usado, se o objecto da nossa investigação continuar oculto, fiquemos pelo menos mais sábios por nos apercebermos de que não poderíamos encontrá-lo por nenhuma das vias de nós conhecidas; e que se, por acaso, como muitas vezes acontece, pudemos percorrer todas as vias pelas quais os homens aí chegam, nos seja permitido afirmar audaciosamente que o seu conhecimento está fora de todo o alcance do espírito humano.

 

Note-se, além disso, que, por enumeração suficiente ou indução, entendemos apenas aquela que nos dá a verdade na sua conclusão com mais certeza do que todo o outro género de prova, salvo a simples intuição. Sempre que não é possível reduzir um conhecimento à intuição, depois de rejeitados todos os encadeamentos dos silogismos, resta-nos unicamente esta via, na qual devemos totalmente acreditar. Pois, todas as coisas que deduzimos imediatamente umas das outras, se a ilação tiver sido evidente, foram já reduzidas a uma verdadeira intuição. Mas, se tirarmos uma única consequência de um grande número de coisas separadas, muitas vezes a capacidade do nosso entendimento não é suficiente para conseguir abrangê-las a todas numa única intuição; neste caso, deve contentar-se com a certeza dessa operação. Do mesmo modo, não podemos por meio de uma única intuição da vista distinguir todos os elos de uma cadeia demasiado comprida; no entanto, se virmos a ligação de cada elo com os seguintes, isso bastará para dizermos também que percebemos como é que o último se liga ao primeiro.

 

Afirmei que esta operação deve ser suficiente, porque pode, muitas vezes, ser incompleta e, por conseguinte, sujeita a erro. Por vezes, com efeito, ainda que percorramos pela enumeração um elevado número de coisas perfeitamente evidentes, se, apesar de tudo, cometermos a menor omissão, dá-se a ruptura da cadeia e toda a certeza da conclusão se desvanece. Às vezes, também estamos certos de tudo abarcar com uma enumeração, mas sem distinguirmos as coisas uma por uma, de forma que só conhecemos o todo confusamente.

 

Além disso, essa enumeração deve, às vezes, ser completa, outras, distinta e, de tempos a tempos, nem uma coisa nem outra; por isso se disse apenas que deve ser suficiente. com efeito, se quisesse provar por enumeração quantos géneros há de seres corporais ou como são apreendidos pelos sentidos, não afirmaria que há uma determinada quantidade e não mais, a não ser que, antes, soubesse seguramente que os compreendi todos na minha enumeração e os distingui em particular uns dos outros. Suponhamos, por outro lado, que, pela mesma via, queria mostrar que a alma racional não é corporal; não será de modo algum necessário que a enumeração seja completa, mas bastará juntar simultaneamente todos os corpos em alguns grupos, de maneira a demonstrar que a alma racional a nenhum deles se pode referir. Suponhamos, por fim, que eu queria mostrar, por meio da enumeração, que a superfície do círculo é maior que todas as superfícies das outras figuras de igual perímetro: também não é necessário passar em revista todas as figuras, mas basta fazer esta demonstração para algumas em particular, a fim de daí extrair, igualmente por indução, idêntica conclusão a respeito de todas as outras.

 

Acrescentei também que a enumeração deve ser metódica, não só porque não há remédio mais eficaz contra os defeitos já enumerados do que aprofundar tudo com ordem, mas também porque acontece frequentemente que, se fosse preciso percorrer separadamente cada uma das coisas em particular que se relacionam com o objecto proposto, nenhuma vida humana bastaria para tal, quer por causa do seu número excessivo, quer em virtude das repetições demasiado frequentes que se apresentariam dos mesmos objectos. Mas, se dispusermos todas estas coisas na melhor ordem, reduzir-se-ão tanto quanto possível a determinadas classes, das quais bastará examinar cuidadosamente ou uma única, ou algum pormenor de cada uma em particular, ou então, algumas mais do que outras ou, pelo menos, nada alguma vez percorreremos em vão duas vezes; esta maneira de proceder é tão útil que, muitas vezes, por causa de uma ordem bem estabelecida, se levam a cabo, ao fim de pouco tempo - e graças a um trabalho fácil - numerosas tarefas que, à primeira vista, pareciam enormes.

 

Quanto à ordem de enumeração das coisas, pode geralmente variar e depende do arbítrio de cada um; por isso, para que o pensamento esteja em condições de a estabelecer com mais acuidade, é preciso recordar o que se disse na quinta proposição. Há ainda muitas coisas, nas artes humanas de menor importância, que se descobrem fazendo consistir todo o método no estabelecimento desta ordem. Assim, se se quiser fazer um anagrama perfeito transpondo as letras de um nome, não é necessário passar do mais fácil para o mais difícil, nem distinguir as coisas absolutas das relativas: nem isso tem lugar aqui. Bastará propor-se, pelo exame das transposições das letras, uma ordem tal que nunca se percorram duas vezes as mesmas e que o seu número seja, por exemplo, repartido por determinadas classes, de tal modo que se veja logo em quais há mais hipóteses de se achar o que se procura. Por este meio, com efeito, muitas vezes o trabalho não será longo, mas apenas uma brincadeira de crianças.

 

De resto, estas três últimas proposições não devem ser separadas, porque é preciso, geralmente, reflectir nelas ao mesmo tempo e porque todas contribuem igualmente para a perfeição do método. Não teria grande interesse determinar qual delas se deve ensinar em primeiro lugar; explicámo-las aqui em poucas palavras, porque quase mais nada temos a fazer no resto do Tratado, em que mostraremos em pormenor o que aqui abordámos em geral.

 

Se, na série de objectos a procurar, depararmos com alguma coisa que o nosso entendimento não possa intuir suficientemente bem, há que deter-se aí, sem examinar o que segue e evitando um trabalho supérfluo.

 

As três regras precedentes prescrevem a ordem e explicam-na; esta agora mostra em que casos é absolutamente necessária e em que casos é apenas útil. com efeito, o que constitui um grau completo na série que serve para ir das coisas relativas ao absoluto, ou inversamente, deve necessariamente ser examinado antes de tudo o que se lhe segue. Se, por outro lado, como frequentemente acontece, muitas coisas se referem ao mesmo grau, é sem dúvida útil passá-las sempre em revista por ordem. Quanto à ordem, não somos contudo obrigados a observá-la tão estrita e rigorosamente; regra geral, ainda que não conhecêssemos claramente todas as coisas, mas apenas um reduzido número ou uma só, pode, no entanto, passar-se à frente.

 

Esta regra decorre necessariamente das razões dadas para a segunda. Contudo, não se julgue que ela nada contém de novo para promover a erudição, embora pareça que apenas nos desvia da investigação de certas coisas, não nos expondo verdade alguma. Claro que apenas ensina os principiantes a não trabalharem em vão, quase pelo mesmo motivo que a segunda regra. Mas, aos que conhecerem perfeitamente as sete regras precedentes, ela mostra por que razão a si mesmos se podem contentar em qualquer ciência, ao ponto de nada mais terem a desejar. Pois, quem quer que tenha observado cuidadosamente as regras precedentes para resolver alguma dificuldade e seja, no entanto, obrigado por esta última regra a deter-se em alguma parte, saberá então certamente que, apesar de toda a sua aplicação, nunca poderá encontrar a ciência que procura, e isso não por culpa do seu espírito, mas pelo impedimento procedente da natureza da própria dificuldade, ou pela sua condição de homem. Este conhecimento não é uma ciência menor do que a que manifesta a natureza da própria coisa; e quem levasse mais longe a sua curiosidade não pareceria ter bom senso.

 

Tudo isto deve ser ilustrado por um ou dois exemplos. Assim, suponhamos que alguém procura, entregando-se exclusivamente às Matemáticas, essa linha que em Dióptrica se chama anaclástica, ou seja, aquela em que os raios paralelos se refractam de tal forma que todos, depois da refracção, têm um só ponto de intersecção. Facilmente observará, sem dúvida, segundo as regras quinta e sexta, que a determinação desta linha depende da relação que os ângulos de refracção mantêm com os ângulos de incidência; mas, como não será capaz de procurar minuciosamente esta relação, que diz respeito não à Matemática mas à Física, será forçado a deter-se aqui no limiar. De nada lhe servirá querer aprender este conhecimento dos Filósofos ou extraí-lo da experiência, pois pecaria contra a regra terceira. Além disso, esta proposição é ainda composta e relativa; ora, só de coisas puramente simples e absolutas é que se pode ter uma experiência certa; dir-se-á no seu lugar. Seria também inútil supor entre os ângulos em questão uma relação que, por suspeita, lhe parecesse a mais verdadeira de todas, pois já não procuraria a anaclástica, mas apenas uma linha que seria a consequência lógica da sua suposição.

 

Se, por outro lado, alguém que não se dedique só às Matemáticas, mas que, segundo a primeira regra, deseje procurar a verdade em tudo quanto se lhe depare, cair na mesma dificuldade, descobrirá, além disso, que a relação entre os ângulos de incidência e os ângulos de refracção depende da sua mudança devido à diversidade dos meios; que, por seu turno, esta mudança depende da maneira como o raio penetra através de todo o corpo diáfano, e que o conhecimento desta penetração supõe o conhecimento da natureza da acção da luz; e que, por fim, para compreender a acção da luz, é preciso saber o que é em geral uma potência natural: é, em última análise, o que há de mais absoluto em toda esta série. Portanto, depois de ter feito claramente e em pormenor este exame através da intuição intelectual, voltará a passar pelos mesmos graus, seguindo a quinta regra, e se, a partir do segundo grau, não puder descobrir a natureza da acção da luz, enumerará, de acordo com a sétima regra, todas as outras potências naturais, a fim de que o conhecimento de alguma destas potências lhe faça compreender essa acção, pelo menos por analogia; falaremos, depois, da analogia. Feito isto, investigará de que maneira o raio penetra através de todo o corpo diáfano e procederá assim por ordem em tudo o mais, até chegar à própria anaclástica. Esta constituiu até hoje em vão o objecto de muitas inquirições; contudo, nada

vejo que possa impedir alguém de vir a conhecê-la de maneira evidente, pelo uso correcto do nosso método. Mas demos o exemplo mais nobre de todos. Se alguém se propuser como questão a análise de todas as verdades para cujo conhecimento a razão humana é suficiente - e parece-me que isso deve ser feito uma vez na vida por todos os que se esforçam seriamente por alcançar a sabedoria - descobrirá certamente, a partir das regras dadas, que nada se pode conhecer antes do entendimento, visto que dele depende o conhecimento de todo o mais, e não o inverso. Depois de, em seguida, ter examinado em pormenor tudo o que vem imediatamente a seguir ao conhecimento do entendimento puro, enumerará, no resto, todos os outros instrumentos de conhecimento que temos além do entendimento, e que são apenas dois: a imaginação e os sentidos. Empregará, pois, todo o seu cuidado em distinguir e em examinar estes três modos de conhecimento, e ao ver que, propriamente, a verdade e o erro só podem existir no entendimento, embora derivem frequentemente a sua origem dos outros dois modos de conhecimento, prestará cuidadosa atenção a tudo quanto o possa enganar para se precaver, e enumerará exactamente todas as vias abertas aos homens para a verdade, a fim de seguir uma que seja segura: nem elas, com efeito, são tão numerosas que as não ache a todas facilmente e por uma enumeração suficiente. E - o que parecerá maravilhoso e incrível aos que o não experimentaram - logo após ter distinguido, a propósito de cada objecto em particular, os conhecimentos que enchem ou apenas ornamentam a memória dos que são verdadeiramente causa por que um homem se deva dizer mais erudito, o que será ainda fácil de fazer..., sentirá inteiramente que nada mais ignora por falta de espírito ou de arte, e que nada há que outro homem possa saber, sem que ele próprio também o consiga, bastando aplicar a sua mente como convém. Ainda que muitas vezes se possam propor-lhe muitas coisas, cuja investigação lhe será proibida por esta regra, devido ao facto de, no entanto, ter a percepção clara de que elas estão fora do alcance do espírito humano, nem por isso se julgará mais ignorante; mas o saber simplesmente que aquilo que procura não pode ser sabido por ninguém, satisfará plenamente a sua curiosidade, se for sensato.

 

Ora, para não ficarmos sempre na incerteza quanto à capacidade da inteligência e para que ela não trabalhe em vão e ao acaso, antes de nos prepararmos para conhecer as coisas em particular, importa uma vez na vida ter investigado cuidadosamente de que conhecimentos a razão humana é capaz. Para melhor o fazer, entre as coisas igualmente fáceis de conhecer, é por aquilo que há de mais útil que se deve encetar a inquirição.

 

Este método, na verdade, assemelha-se ao das artes mecânicas que não precisam da ajuda das outras, mas elas mesmas fornecem o meio de fabricar os seus instrumentos. Se, com efeito, alguém quisesse exercer uma destas artes, por exemplo, a de ferreiro, e estivesse privado de todos os instrumentos, seria certamente forçado, de início, a servir-se de uma pedra dura ou de qualquer bloco informe de ferro como bigorna, a pegar num calhau para martelo, a dispor de pedaços de madeira em forma de tenazes e a juntar, conforme as necessidades, outros objectos deste género. Após tais preparativos, não se esforçaria logo por forjar, para uso dos outros, espadas e capacetes ou quaisquer outros objectos de ferro; mas, antes de mais, fabricaria martelos, uma bigorna, tenazes e tudo o mais que lhe viesse a ser útil. Este exemplo ensina-nos que, no princípio, depois de termos encontrado apenas alguns preceitos rudimentares que mais parecem inatos às nossas mentes do que fornecidos pela arte, não é preciso tentar logo, com o seu auxílio, resolver os diferendos dos Filósofos ou tirar de apuros os Matemáticos; mas importa deles nos servirmos primeiro para procurar com o maior cuidado tudo o que há de mais necessário ao exame da verdade, sobretudo quando não houver razão que a faça parecer mais difícil de encontrar do que algumas das questões propostas geralmente na Geometria, ou na Física e nas outras disciplinas.

 

Por outro lado, nada pode haver aqui de mais útil do que investigar o que é o conhecimento humano e até onde se estende. Eis porque trataremos agora este assunto numa só questão e pensamos que é preciso examiná-la como a primeira de todas, segundo as regras já anteriormente estabelecidas. É o que deve fazer uma vez na vida quem quer que ame um pouco a verdade, pois a investigação aprofundada deste ponto contém os verdadeiros instrumentos do saber e todo o método. E nada me parece mais inadequado do que disputar audazmente sobre os segredos da natureza, a influência dos céus no nosso mundo inferior, a predição do futuro e coisas semelhantes, como muitos fazem, sem, no entanto, jamais terem inquirido se a razão humana pode fazer tais descobertas. E não deve considerar-se tarefa árdua ou difícil determinar os limites deste espírito, que em nós próprios sentimos, quando, muitas vezes, não hesitamos em formular um juízo sobre o que existe fora de nós e que nos é completamente estranho. E não é um trabalho imenso querer abarcar pelo pensamento todas as coisas contidas neste universo, para reconhecer como cada uma em particular se sujeita ao exame da nossa mente. Nada há, com efeito, tão múltiplo ou tão disperso que não se possa, mediante a enumeração, de que tratámos, incluir em limites determinados e reduzir a alguns pontos essenciais. Para disso fazer a experiência na questão proposta, dividimos primeiro tudo o que lhe diz respeito em duas partes: pois, há que relacioná-lo, quer connosco que somos capazes de conhecimentos, quer com as próprias coisas que se podem conhecer. Vamos discutir separadamente estes dois pontos.

 

Na verdade, advertimos que em nós só o entendimento é capaz de ciência: mas também que três outras faculdades o podem ajudar ou criar-lhe impedimentos: são a imaginação, os sentidos e a memória. É, pois, necessário ver por ordem em que é que cada uma destas faculdades em particular pode constituir um obstáculo, a fim de nos precavermos; ou então, em que é que elas nos podem ser úteis, de modo a lançarmos mão de todos os recursos. Assim, esta parte será discutida mediante uma enumeração suficiente, sujeita à discussão, como se mostrará na proposição seguinte.

 

Em seguida, importa vir às próprias coisas e considerá-las só enquanto o entendimento as atinge. Neste sentido, dividimo-las em naturezas inteiramente simples e em complexas ou compostas. Entre as naturezas simples, só pode haver naturezas espirituais, ou corporais, ou pertencentes a ambas ao mesmo tempo; por fim, entre as naturezas compostas, umas são de facto captadas como tais pelo entendimento, antes de ele as determinar por um juízo, enquanto as outras são por ele compostas. Far-se-á uma exposição mais pormenorizada de tudo isto na duodécima proposição, com a demonstração de que só pode haver erro nestas últimas naturezas cornpostas pela inteligência. Eis porque distinguimos, nas naturezas compostas, as que se deduzem das naturezas mais simples e são conhecidas por si mesmas, das quais trataremos em todo o livro seguinte, e as que pressupõem outras, cuja experiência nos mostra a composição na realidade, e a cuja explicação destinamos todo o terceiro livro.

 

Em todo este Tratado, esforçar-nos-emos por procurar com tanto cuidado e tornar tão fáceis todas as vias abertas aos homens para o conhecimento da verdade, que quem quer que tenha perfeitamente aprendido todo o nosso método -ainda que seja o mais medíocre dos espíritos - verá que nenhuma destas vias lhe está mais vedada do que aos outros e que já nada ignora por falta de espírito ou de arte. Mas, sempre que aplicar a sua mente ao conhecimento de alguma coisa, ou a encontrará completamente, ou aperceber-se-á, pelo menos, de que ela depende de uma experiência que não está em seu poder, e é por isso que não se queixará do seu espírito, se bem que seja forçado a deter-se; ou, por fim, demonstrará que a coisa procurada ultrapassa totalmente a apreensão do espírito humano e, por conseguinte, não se julgará por isso como mais ignorante, porque não há menos ciência neste conhecimento do que em qualquer outro.

 

É preciso dirigir toda a acuidade do espírito para as coisas menos importantes e mais fáceis e nelas nos determos tempo suficiente até nos habituarmos a ver a verdade por intuição de uma maneira distinta e clara.

 

Depois de termos exposto as duas operações do nosso entendimento, a intuição e a dedução, que são as únicas de que nos devemos servir para aprender as ciências, como dissemos, vamos agora explicar, nesta proposição e na seguinte, como nos podemos tornar mais aptos para fazer estas operações e cultivar, ao mesmo tempo, as duas principais faculdades do nosso espírito, a saber, a perspicácia, vendo distintamente por intuição cada coisa em particular, e a sagacidade, deduzindo-as com arte umas das outras.

 

Conhecemos certamente a maneira como utilizar a intuição intelectual, quanto mais não seja por comparação com os nossos olhos. Pois, quem quiser observar muitos objectos ao mesmo tempo com um só olhar, não vê distintamente nenhum deles; e, do mesmo modo, quem tiver o costume de prestar atenção a muitas coisas ao mesmo tempo, por um só acto de pensamento, fica com espírito confuso. Mas os artesãos que se ocupam de obras minuciosas e que se habituaram a dirigir atentamente a penetração do seu olhar para cada ponto em particular, adquirem, com o uso, a capacidade de distinguir perfeitamente as coisas mais ínfimas e subtis; assim também, os que nunca dissipam o seu pensamento em vários objectos ao mesmo tempo, mas o ocupam continuamente na consideração do que há de mais simples e de mais fácil, tornam-se perspicazes.

 

No entanto, é um defeito comum aos mortais considerar mais belo o que é difícil, e a maioria das pessoas julgam nada saber quando vêem a causa muito simples e clara de uma coisa, elas que entretanto admiram nos Filósofos certas razões sublimes e de longe tiradas, ainda que quase sempre elas se apoiem em fundamentos nunca por alguém suficientemente examinados em pormenor: são, sem dúvida, insensatas, já que gostam mais das trevas do que da luz. Ora, importa observar que os verdadeiramente sábios têm igual facilidade em discernir a verdade, quer a extraiam de um assunto simples ou de um assunto obscuro. Pois, em cada um destes casos, é por um acto semelhante, único e distinto, que eles a captam, depois que aí chegaram: toda a diferença está na via, que deve ser certamente mais longa, se conduz a uma verdade mais afastada dos princípios primeiros e mais absolutos.

 

É preciso, pois, que todos se habituem a abarcar pelo pensamento tão poucas coisas ao mesmo tempo e coisas tão simples que nunca julguem saber algo, que não o vejam também por intuição tão distintamente como aquilo que de tudo mais distintamente conhecem. Alguns, claro, são por natureza muito mais aptos para isto do que outros, mas o método e o exercício podem tornar também os espíritos muito mais aptos. A única recomendação que, segundo me parece, dentre todas aqui importa fazer é que cada qual se persuada firmemente de que não é das coisas grandes e obscuras, mas apenas das fáceis e mais ao nosso alcance, que é preciso deduzir as ciências, por mais escondidas que se possam supor.

 

Assim, por exemplo, se eu quisesse examinar se alguma potência natural pode, no mesmo instante, exercer-se num local afastado, atravessando todo o espaço intermédio, não é logo para a força magnética ou a influência dos astros, não é sequer para a rapidez da acção da luz, que dirigirei a minha mente, a fim de inquirir se, porventura, tais acções são instantâneas, pois isso seria mais difícil de provar do que o objecto da minha pesquisa; mas reflectirei, de preferência, no movimento local dos corpos, porque nada pode haver em tudo isto que seja mais perceptível aos sentidos. E notarei, certamente, que uma pedra não pode passar instantaneamente de um local para outro, porque é um corpo; enquanto que uma potência semelhante à que move a pedra só se comunica de uma maneira instantânea, se passar no estado nu de um sujeito a outro. Assim, ao imprimir um movimento na extremidade de um pau, por mais comprido que ele seja, facilmente concebo que a potência que serve para mover esta parte do pau move necessariamente num só e mesmo instante todas as suas outras partes, porque se comunica no estado nu, sem existir em qualquer corpo como, por exemplo, uma pedra, que serviria para a transportar.

 

Da mesma maneira, se eu quiser saber como é que uma só e mesma causa simples pode produzir simultaneamente efeitos contrários, não é aos remédios dos médicos, que expulsam certos humores e retêm outros, que vou recorrer, não é sobre a Lua, que aquece pela sua luz e arrefece por uma qualidade oculta, que direi bagatelas, mas considerarei antes por intuição a balança, em que o mesmo peso num só e mesmo instante eleva um dos pratos e baixa o outro, e coisas semelhantes.

 

Para que o espírito se torne perspicaz, deve exercitar-se em procurar o que já por outros foi encontrado, e em percorrer metodicamente todas as artes ou ofícios dos homens, ainda os menos importantes, mas sobretudo os que manifestam ou supõem ordem.

 

Nasci, confesso, com um espírito tal que o maior prazer dos estudos consistiu, para mim, não em ouvir as razões dos outros, mas em exercitar-me a mim próprio na sua descoberta; pois, foi apenas isso que me atraiu quando ainda jovem para o estudo das ciências, e sempre que o título de um livro me prometia uma nova descoberta, antes de continuar a ler, tentava saber, se por uma perspicácia inata, não poderia porventura chegar a semelhante resultado, e evitava cuidadosamente destruir esse prazer inocente por uma leitura apressada. Fui tantas vezes bem sucedido que finalmente reconheci que já não chegaria à verdade, seguindo o hábito dos outros homens, por investigações feitas de modo incerto e às cegas, com a ajuda da sorte mais do que da arte, mas que uma longa experiência me tinha permitido captar determinadas regras, que para este efeito me foram de não pouca utilidade e de que me vali para planear muitas mais. Assim, aperfeiçoei cuidadosamente todo o meu método e persuadi-me de que, desde o princípio, tinha adoptado a maneira de estudar mais útil de todas.

 

Mas, porque os espíritos de todos não têm uma tão grande inclinação natural para procurar minuciosamente as coisas pelas suas próprias forças, esta proposição ensina-nos que não é forçoso ocupar-nos logo com o mais difícil e árduo, mas que é preciso examinar antes todas as artes menos importantes e mais simples, principalmente aquelas em que mais reina a ordem; por exemplo, as dos artesãos que tecem telas e tapeçarias, as das mulheres que bordam à agulha ou entremeiam os fios de um tecido de cambiantes infinitamente variados; do mesmo modo, todos os jogos numéricos e tudo o que se relaciona com a Aritmética, e exercícios semelhantes. É maravilhoso constatar como todas estas coisas cultivam o espírito, contanto que não vamos buscar a descoberta aos outros, mas a tiremos de nós próprios. com efeito, dado que nelas nada há que permaneça escondido e porque correspondem inteiramente à capacidade do conhecimento humano, apresentam-nos muito distintamente inúmeras ordens todas diferentes entre si, submetidas, porém, a regras e cuja exacta observância constitui quase toda a sagacidade humana.

 

E, por isso, advertimos a que se aplicassem a estas investigações com método, método que, nestas matérias de menor importância, não difere habitualmente da observância constante da ordem que existe na própria coisa ou que se inventa com subtileza. Suponhamos, por exemplo, que queremos ler uma escrita de caracteres desconhecidos: nenhuma ordem aí aparece certamente, mas, apesar disso, imaginamos uma, quer para examinar todas as hipóteses que se podem fazer relativamente a cada símbolo, ou cada palavra ou cada frase em particular, quer ainda para as dispor de maneira a conhecer por enumeração tudo o que delas se pode deduzir. Importa, sobretudo, evitar perder tempo em adivinhar semelhantes coisas fortuitamente e sem arte, pois, ainda que possam muitas vezes encontrar-se sem arte e, por vezes, talvez mais rapidamente à sorte do que com a ajuda de um método, enfraqueceriam a luz do espírito e o habituariam de tal modo a vãs puerilidades que, depois, se deteria sempre à superfície das coisas, sem nelas poder penetrar mais intimamente. Mas, entretanto, não vamos nós cair no erro dos que só pensam em coisas sérias e demasiado elevadas, das quais, após múltiplos trabalhos, adquirem uma ciência confusa, embora desejem uma profunda? É, pois, no que há de mais fácil que devemos primeiramente exercitar-nos, mas com método, a fim de que, por vias abertas e conhecidas, nos acostumemos, como quem brinca, a penetrar sempre até à íntima verdade das coisas: por este meio, com efeito, será em seguida pouco a pouco, e num tempo mais curto do que ousaríamos esperar, que também teremos consciência de poder, com igual facilidade, deduzir de princípios evidentes várias proposições que parecem muito difíceis e complicadas.

 

Alguns espantar-se-ão, talvez, que neste lugar em que procuramos os meios de nos tornarmos mais aptos para deduzir as verdades umas das outras, omitamos todos os preceitos dos Dialécticos, com os quais julgam eles governar a razão, prescrevendo-lhe certas formas de raciocínio tão necessariamente concludentes que a razão neles confiante, embora de certa maneira dispense a evidência e a atenção da própria inferência, pode, todavia, em virtude da forma, concluir por vezes algo de acertado. Efectivamente, observamos que a verdade se subtrai muitas vezes a estes laços, enquanto aqueles que deles se servem neles permanecem enredados. Isto não acontece tão frequentemente aos outros; e a experiência mostra-nos que todos os sofismas mais subtis quase nunca costumam enganar a quem se serve da razão, mas sim os próprios sofistas.

 

Por isso, é sobretudo para evitar aqui que a nossa razão se desinteresse, enquanto examinamos a verdade de alguma coisa, que rejeitamos estas formas lógicas como contrárias ao nosso objectivo e procuramos antes cuidadosamente tudo o que nos ajude a manter o pensamento atento, como se mostrará a seguir. Ora, para que se torne ainda mais evidente que esta arte de raciocinar em nada contribui para o conhecimento da verdade, importa observar que os Dialécticos não podem construir com a sua arte nenhum silogismo cuja conclusão seja verdadeira, a menos que se tenha já a sua matéria, isto é, a não ser que já antes conheçam a mesma verdade que nele se deduz. Daqui claramente se conclui que uma tal forma lógica não lhes permite conhecer nada de novo e que, por conseguinte, a Dialéctica vulgar é totalmente inútil para os que desejam descobrir a verdade das coisas. Só pode servir, por vezes, para expor mais facilmente a outros as razões já conhecidas e, por consequência, é preciso fazê-la passar da Filosofia para a Retórica.

 

Depois da intuição de algumas proposições simples, se delas tirarmos outra conclusão, convém percorrer as mesmas com o pensamento num movimento contínuo e em nenhum lado interrompido, reflectir nas suas relações mútuas, e conceber distintamente várias coisas ao mesmo tempo, tanto quanto se puder; efectivamente, é assim que o nosso conhecimento se torna muito mais certo e se aumenta a capacidade do espírito.

 

Eis aqui a ocasião de expor mais claramente o que anteriormente se disse sobre a intuição intelectual, nas regras terceira e sétima, pois, numa dessas passagens, opusemo-la à dedução e, na outra, apenas à enumeração. Definimos esta como uma inferência a partir de inúmeras coisas separadas, ao passo que, como dissemos no mesmo local, a simples dedução de uma coisa a partir de outra se faz por intuição.

 

Foi preciso agir assim porque, para a intuição intelectual, duas condições se exigem, a saber, que a proposição seja compreendida clara e distintamente e que, em seguida, seja também compreendida toda ao mesmo tempo e não sucessivamente. A dedução, porém, se pensarmos fazê-la, como na terceira regra, não parece que se realize toda ao mesmo tempo, mas implica um certo movimento do nosso espírito que infere uma coisa de outra; por isso, foi com razão que aí a distinguimos da intuição. Mas se a considerarmos já feita, segundo o que se disse na sétima regra, já não designa então movimento algum, mas o termo de um movimento, e é por isso que supomos que a vemos por intuição, quando é simples e clara, e não quando é composta e complexa. Foi a esta última que demos o nome de enumeração ou de indução, porque não pode ser então captada toda ao mesmo tempo pelo entendimento e a sua certeza depende, de algum modo, da memória, na qual se devem conservar os juízos emitidos sobre cada uma das partes enumeradas, para de todas elas se tirar uma única conclusão.

 

Outras tantas distinções havia a fazer para interpretar a presente regra, já que a nona tratou unicamente da intuição intelectual e a décima apenas da enumeração; esta agora explica de que maneira as duas operações se completam e aperfeiçoam mutuamente, ao ponto de parecerem fundir-se conjuntamente numa só, graças a um movimento do pensamento que considera atentamente por intuição cada objecto em particular, ao mesmo tempo que vai passando aos outros.

 

Há nisto uma dupla vantagem que indicamos e que consiste em conhecer a conclusão, que nos ocupa, de uma maneira mais certa e em tornar o nosso espírito mais apto para outras descobertas. com efeito, a memória, da qual depende, como se disse, a certeza das conclusões que abarcam mais do que o que pode ser captado por uma só das nossas intuições, deve ser despertada e fortificada, devido aos seus esquecimentos e fraquezas, por um movimento contínuo e repetido do pensamento. Suponhamos, por exemplo, que, por várias operações, eu tenha chegado a conhecer, primeiro, qual a relação existente entre uma primeira grandeza e uma segunda, depois, entre uma segunda e uma terceira, em seguida, entre uma terceira e uma quarta e, finalmente, entre uma quarta e uma quinta: nem por isso vejo que relação existe entre a primeira e a quinta e não a posso deduzir das que já são conhecidas, a não ser que me lembre de todas. Eis porque é necessário que o meu pensamento as percorra de novo, até que passe da primeira à última com tal rapidez que, sem quase deixar nenhum papel à memória, pareça ver toda a coisa ao mesmo tempo por intuição.

 

Não há ninguém que não veja como é que por este meio se corrige a lentidão do espírito e aumenta a sua capacidade. Além disso, importa observar que a maior utilidade da nossa regra consiste em que a reflexão sobre a mútua dependência das proposições simples nos faz adquirir o hábito de distinguir subitamente o que é mais ou menos relativo, e por que graus se reduz ao absoluto. Suponhamos, por exemplo, que percorro algumas grandezas continuamente proporcionais: eis tudo aquilo sobre que you reflectir. Ê por um conceito semelhante, nem mais nem menos fácil, que reconheço a relação existente entre a primeira e a segunda, entre a segunda e a terceira, entre a terceira e a quarta, etc. Mas não posso conceber assim tão facilmente qual a dependência da segunda relativamente à primeira e à terceira ao mesmo tempo, e é ainda muito mais difícil conceber a dependência desta segunda relativamente à primeira e à quarta, etc. Daí chego, em seguida, a captar porque é que, dadas somente a primeira e a segunda, posso facilmente encontrar a terceira e a quarta, etc.: é que isto se faz por meio de conceitos particulares e distintos. Ora, dadas apenas a primeira e a terceira, não descobrirei tão facilmente a média, pois isso só se pode fazer mediante um conceito que envolva ao mesmo tempo dois dos precedentes. Dadas apenas a primeira e a quarta, ser-me-á ainda mais difícil ver por intuição as duas médias, porque há aqui três conceitos simultaneamente implicados. Por isso, também me pareceria mais difícil ainda achar três médias entre a primeira e a quinta. Há, no entanto, outra razão para que isto se passe de outra forma: é que, apesar da ligação simultânea que existe aqui entre quatro conceitos, eles podem contudo ser separados, dado que quatro é divisível por outro número, de maneira a possibilitar-me a busca da terceira apenas por meio da primeira e da quinta, em seguida, da segunda por meio da primeira e da terceira, etc. Quem se habituou a fazer estas reflexões e outras semelhantes reconhece imediatamente, sempre que examina uma nova questão, o que é que nela gera a dificuldade e qual é de entre todos o meio mais simples para a resolver: é o que constitui a maior ajuda para conhecer a verdade.

 

Finalmente, há que utilizar todos os recursos do entendimento, da imaginação, dos sentidos e da memória, quer para termos uma intuição distinta das proposições simples, quer para estabelecermos, entre as coisas que se procuram e as conhecidas, uma ligação adequada que as permita reconhecer, quer ainda para encontrar as coisas que entre si se devem comparar, a fim de se não omitir nenhum recurso da indústria humana.

 

Esta regra é a conclusão de tudo o que anteriormente se disse e ensina em geral o que era necessário explicar em particular: eis como.

 

No conhecimento, há apenas dois pontos a considerar, a saber: nós, que conhecemos, e os objectos a conhecer. Em nós, há apenas quatro faculdades que podemos utilizar para esse objectivo: o entendimento, a imaginação, os sentidos e a memória. Só o entendimento é capaz de ver a verdade; deve, no entanto, ser ajudado pela imaginação, pelos sentidos e pela memória, para nada omitirmos de quanto se oferece à nossa indústria. Do lado da realidade, basta examinar três coisas, a saber: primeiro, o que se apresenta espontaneamente; em seguida, como se conhece por outro um determinado objecto; e, por fim, que deduções se podem tirar de cada um deles. Esta enumeração parece-me completa, não omitindo absolutamente nada daquilo a que se pode estender a indústria humana.

 

Por isso, passando ao primeiro ponto, desejaria aqui expor o que é a mente do homem, o que é o seu corpo, como é que este é informado por aquela, quais são em todo o composto humano as faculdades que servem para o conhecimento e o que cada uma delas faz em particular, se este lugar não me parecesse demasiado estreito para incluir todos os preliminares necessários, antes de a todos se tornar manifesta a verdade destas coisas. Desejo, com efeito, escrever sempre de maneira a nada asserir de quanto se costuma pôr em discussão, a não ser que previamente tenha exposto as razões que me levaram às minhas deduções e mediante as quais creio que os outros também podem ser persuadidos.

 

Mas, já que não o posso fazer agora, bastar-me-á explicar com a máxima brevidade possível, qual dos modos de conceber tudo o que em nós se destina a conhecer as coisas é mais útil ao meu propósito. Não acreditareis, excepto se vos agradar, que assim seja; mas, que é que vos impedirá de seguir as mesmas suposições se é evidente que, sem em nada diminuir a verdade das coisas, elas unicamente tornam tudo muito mais claro? Não será diverso do que acontece na Geometria, em que fazeis sobre a quantidade certas suposições que não enfraquecem de maneira alguma a força das demonstrações, ainda que tenhais muitas vezes, na Física, uma ideia diferente acerca da sua natureza.

 

É preciso, pois, conceber, em Primeiro lugar, que todos os sentidos externos enquanto partes do corpo embora os apliquemos aos objectos por uma acção ou seja, por um movimento local, são todavia, para falar com propriedade, somente passivos na sensação pela mesma razão por que a cera recebe a figura impressa por um selo. E nem sequer se deve pensar que estas expressões são analógicas; importa antes conceber que o objecto modifica realmente a fiçura exterior do corpo senciente, exactamente da mesma maneira que o selo modifica a que se encontra na superfície da cera. Há que admitir isto, não só quando pelo tacto sentimos um corpo como figurado, ou duro, ou rugoso, etc, mas também quando mediante o tacto percepcionamos o calor, o frio e as qualidades semelhantes. O mesmo acontece com os outros sentidos: a primeira parte Q recebe assim a figura, impressa pela acção da luz revestida de diversas cores; e a primeira membrana das orelhas das narinas e da língua, impérvia ao objecto, vai igualmente buscar uma nova figura ao som, ao odor e ao sabor.

 

É muito útil uma tal concepção de todas estas coisas, pois nada cai mais facilmente sob os sentidos do que a figura: na verdade, toca-se e vê-se. por outro lado esta suposição nem sequer implica mais consequências falsas do que qualquer outra: a prOva está em que o conceito de figura é tão comum e tão simples que está incluído em todo o sensível. Por exemplo, podes supor que a cor seja o que quiseres, mas nâo negarás que é extensa e, por consequência, figurada. Que inconveniente, pois, daqui resultará se, precavendo-nos de admitir inutilmente ou de formar irreflectidamente algum novo ser, não negarmos da cor o que a outros teria agradado pensar, mas apenas abstrairmos de tudo o resto

- salvo do que constitui uma figura - e se concebermos a diferença que existe entre o branco, o azul, o vermelho, etc., como a que existe entre as figuras aqui expostas ou outras semelhantes, etc.?

 

O mesmo se pode dizer de tudo o mais, pois a quantidade infinita das figuras basta, é certo, para exprimir todas as diferenças dos objectos sensíveis.

 

Em segundo lugar, é preciso conceber que, visto o sentido externo ser posto em movimento pelo objecto, a figura que ele recebe é transposta para outra parte do corpo, chamada sentido comum, instantaneamente e sem passagem real de ser algum de um sítio para outro. É precisamente assim que agora, ao escrever, compreendo que, no mesmo instante em que cada letra particular é traçada no papel, não só a parte inferior da minha pena está a mover-se, mas ainda que nem sequer nela pode existir o menor movimento, sem que seja igualmente recebido ao mesmo tempo em toda a pena, cuja parte superior descreve no ar todas estas diferentes formas de movimentos, ainda que na minha concepção nada de real passe de uma extremidade à outra. Quem pensaria, com efeito, que há menos conexão entre as partes do corpo humano do que entre as de uma pena, e que é que se pode imaginar de mais simples para exprimir este facto?

 

Em terceiro lugar, é preciso conceber que o sentido comum desempenha também o papel de um selo para formar na fantasia ou imaginação, tal como na cera, as mesmas figuras ou ideias que vêm dos sentidos externos, puras e incorporais; e que esta fantasia é uma verdadeira parte do corpo, cuja grandeza é tal que as suas diversas porções podem revestir várias figuras distintas umas das outras e as costumam conservar por bastante tempo: é então a mesma que se chama memória.

 

Em quarto lugar, é preciso conceber que a força motriz ou os próprios nervos têm a sua origem no cérebro, onde se encontra a fantasia, pela qual são movidos de maneiras diferentes, tal como o sentido comum o é pelo sentido externo ou como a pena inteira pela sua parte inferior. Este exemplo mostra também como é que a fantasia pode ser a causa de muitos movimentos nos nervos sem, no entanto, ter as suas imagens expressas em si, mas outras de que podem seguir-se estes movimentos. com efeito, a pena inteira não está em movimento tal como acontece com a sua parte inferior; pelo contrário, parece, na sua parte maior, animada por um movimento totalmente diferente e contrário. E assim se compreende como podem fazer-se todos os movimentos dos outros animais ainda que neles não se admita absolutamente nenhum conhecimento das coisas, mas apenas uma fantasia puramente corpórea; também assim se compreende como em nós próprios se fazem todas aquelas operações que realizamos sem qualquer ajuda da razão.

 

Finalmente, em quinto lugar, é preciso conceber que esta força pela qual conhecemos propriamente as coisas é puramente espiritual e não é menos distinta de todo o corpo do que o sangue do osso, ou a mão do olho; que, além disso, é única, quer porque recebe as figuras vindas do sentido comum, ao mesmo tempo que a fantasia, quer porque se aplica às que se conservam na memória, quer porque forma outras novas que ocupam de tal forma a imaginação que, muitas vezes, esta não chega para receber ao mesmo tempo as ideias vindas do sentido comum, ou para as transferir para a força motriz segundo a simples organização corporal. Em todos estes casos, esta força cognoscente é ora passiva, ora activa; ora imita o selo, ora a cera; contudo, estas expressões só devem aqui tomar-se analogicamente, pois nada se encontra nas coisas corpóreas que lhe seja totalmente semelhante. É uma só e mesma força que, ao aplicar-se com a imaginação ao sentido comum, se diz: ver, tocar, etc.,; que, ao aplicar-se apenas à imaginação, enquanto esta se acha revestida de diversas figuras, se diz: recordar; que, ao aplicar-se a ela para formar outras novas, se diz: imaginar ou conceber; que, finalmente, ao agir só, se diz: compreender. No seu devido lugar, exporei mais longamente de que modo se faz esta última operação. Segundo estas diversas funções, a mesma força chama-se ainda ou entendimento puro, ou imaginação, ou memória, ou sentidos, mas dá-se-lhe propriamente o nome de espírito, sempre que forme novas ideias na fantasia, ou se ocupe das já feitas. Consideramo-la apta para estas diversas operações e há que ter em conta, ulteriormente, a distinção das denominações precedentes. Uma vez assim formuladas todas estas concepções, o leitor atento divisará facilmente quais as ajudas que deve pedir a cada faculdade e até onde se pode estender a indústria dos homens para suprir os defeitos do espírito.

 

Com efeito, assim como o entendimento pode ser movido pela imaginação ou, pelo contrário, agir sobre ela, assim também a imaginação pode agir sobre os sentidos pela força motriz, aplicando-os aos seus objectos ou, pelo contrário, eles podem agir sobre ela, pintando nela as imagens dos corpos; por outro lado, a memória, pelo menos a corpórea e semelhante à recordação dos animais, não é de forma alguma distinta da imaginação. Conclui-se assim com certeza que, se o entendimento se ocupa do que nada tem de corporal ou de semelhante ao corporal, não pode ser ajudado por essas faculdades; mas, pelo contrário, para que nelas não encontre obstáculo algum, é preciso afastar os sentidos e despojar, tanto quanto possível, a imaginação de toda impressão distinta. Se, por outro lado, o entendimento se propõe examinar um objecto que se pode relacionar com um corpo, é a ideia deste objecto que é preciso formar com a maior distinção possível na imaginação; para mais comodamente o fazer, deve mostrar-se aos sentidos externos o próprio objecto que esta ideia representará. Uma pluralidade de objectos não pode facilitar ao entendimento a intuição distinta de cada um deles em particular. Mas, para tirar de uma pluralidade uma só dedução, o que muitas vezes se tem de fazer, há que rejeitar das ideias, que das coisas se têm, tudo o que não exigir uma atenção imediata, a fim de que o resto mais facilmente se retenha na memória. Do mesmo modo, não serão então as próprias coisas que se devem propor aos sentidos externos, mas antes algumas das suas figuras abreviadas, e estas, contanto que bastem para evitar um lapso de memória, serão tanto mais cómodas quanto mais breves forem. Quem tudo isto observar nada omitirá, assim me parece, do que se relaciona com esta parte da nossa exposição.

 

E vamos, agora, abordar também o segundo ponto: distinguir cuidadosamente as noções das coisas simples, das noções que a partir delas se compõem e ver numas e noutras onde pode residir o erro, a fim de o evitarmos, e quais as que se podem conhecer com certeza a fim de apenas delas nos ocuparmos. Neste lugar, tal como no que precede, é preciso fazer certas suposições que talvez nem todos nos concedam; mas pouco importa que nem sequer as julguem mais verdadeiras do que os círculos imaginários com que os Astrónomos descrevem os seus fenómenos, contanto que, pela sua ajuda, se distinga, a propósito de qualquer coisa, que conhecimento pode ser verdadeiro ou falso.

 

Dizemos, pois, em primeiro lugar, que é preciso considerar as coisas singulares em ordem ao nosso conhecimento de forma diferente de quando delas falamos tal como existem realmente. Se, por exemplo, considerarmos um corpo extenso e figurado, confessaremos que ele, por parte da realidade, é algo de uno e de simples. com efeito, não poderia neste sentido dizer-se composto de natureza corporal, de extensão e de figura, pois estes elementos nunca existiram distintos uns dos outros. Mas, em relação ao nosso entendimento, dizemos que é composto destas três naturezas, porque captámos cada uma delas separadamente antes de termos podido julgar que se encontram as três juntas num só e mesmo sujeito. É por isso que, não tratando aqui de coisas senão enquanto percebidas pelo entendimento, chamamos simples só àquelas cujo conhecimento é tão claro e distinto que o entendimento não as pode dividir em várias outras conhecidas mais distintamente: tais são a figura, a extensão, o movimento, etc. Quanto às outras, concebemo-las todas como se, de certo modo, fossem cornpostas destas. É preciso entender isso de maneira tão geral que não há sequer excepção para as que, às vezes, obtemos por abstracção das próprias coisas simples: assim acontece quando dizemos que a figura é o limite do objecto extenso, concebendo pela palavra limite algo mais geral que pela palavra figura, visto que se pode, sem dúvida alguma, falar também do limite do movimento, etc. Neste caso, se bem que o limite designe uma abstracção tirada da figura, não devem, porém, considerar-se por isso mais simples do que a figura; antes, uma vez que se atribui ainda a outras coisas, como o termo de uma duração ou de um movimento, etc., coisas que são de um género totalmente diferente do da figura, houve também que abstraí-lo dos seus objectos, e, por conseguinte, é um composto de várias naturezas completamente diferentes e às quais se aplica apenas de maneira equívoca.

 

Dizemos, em segundo lugar, que as coisas chamadas simples em relação ao nosso entendimento são puramente intelectuais, ou puramente materiais, ou comuns. São puramente intelectuais as conhecidas pelo entendimento, graças a uma certa luz ingénita e sem a ajuda de qualquer imagem corpórea. Ora, é certo que há algumas assim, e não pode formar-se nenhuma ideia corporal que nos represente o que é o conhecimento, a dúvida, a ignorância, e também o que é a acção da vontade, que nos é permitido chamar volição, e coisas semelhantes, todas elas por nós conhecidas tão real e facilmente que, para tal, basta sermos dotados de razão. Puramente materiais são as coisas que sabemos existirem apenas nos corpos, como a figura, a extensão, o movimento, etc. Finalmente, devem chamar-se comuns as que são atribuídas indistintamente ora aos objectos corpóreos, ora aos espíritos, como a existência, a unidade, a duração e coisas semelhantes. A isto se devem igualmente referir essas noções comuns que são como laços unindo entre si outras naturezas simples e sobre cuja evidência se apoiam todas as conclusões dos raciocínios. São as seguintes: duas coisas idênticas a uma terceira são idênticas entre si; assim também, duas coisas que não podem relacionar-se com uma terceira do mesmo modo, têm também entre si alguma diferença, etc. E, além disso, estas noções comuns podem ser conhecidas, quer pelo entendimento puro, quer através do mesmo entendimento que intui as imagens das coisas materiais.

 

De resto, entre estas naturezas simples, há ainda a contar a privação e a negação destas mesmas naturezas, enquanto são apreendidas pelo nosso entendimento, pois, não é menos verdadeiro o conhecimento que me faz ver intuitivamente o que é o nada, ou o instante, ou o repouso, do que aquele mediante o qual compreendo o que é a existência, ou a duração, ou o movimento. Graças a esta maneira de conceber, poderemos ulteriormente dizer que todos os restantes objectos que viermos a   conhecer são   compostos   destas   naturezas   simples: por exemplo, se me acontece julgar que uma figura não está em movimento, direi que o meu pensamento é de certo modo composto de figura e repouso, e assim por diante. Dizemos, em terceiro lugar, que estas naturezas são todas conhecidas por si mesmas e que nada contêm de falso. Será fácil prová-lo, se distinguirmos a faculdade, pela qual o entendimento vê   as coisas por intuição e as conhece, daquela pela qual ele julga, afirmando ou negando. Pode efectivamente acontecer que pensemos ignorar coisas que na realidade conhecemos, e assim é quando, além do que nelas vemos por intuição ou que o nosso pensamento aí capta, suspeitamos que há alguma coisa que nos está escondida, e quando este nosso pensamento é falso. Por este motivo, é evidente que nos enganamos se, por vezes, julgamos que não conhecemos completamente alguma destas naturezas simples ; com efeito, se dela apreendêssemos intelectualmente uma mínima parte, o que é seguramente necessário na hipótese de que sobre ela emitimos algum juízo, haveria que concluir, por isso mesmo, que a conhecemos perfeitamente. Aliás, nem a poderíamos chamar simples, mas composta, em virtude do que nela captamos e do que dela julgamos ignorar.

 

Dizemos, em quarto lugar, que a conjunção destas coisas simples entre si é necessária ou contingente. É necessária, quando uma está implicada tão intimamente no conceito da outra que não podemos conceber distintamente uma ou outra, se as julgarmos separadas entre si. É desta maneira que a figura está unida à extensão, o movimento à duração ou ao tempo, etc., porque não é possível conceber uma figura privada de extensão, nem um movimento privado de toda a duração. Do mesmo modo ainda, se digo que quatro e três fazem sete, trata-se de uma composição necessária; com efeito, não concebemos distintamente o número sete sem nele incluirmos numa certa relação confusa o número três e o número quatro. Do mesmo modo, tudo o que se demonstra a respeito das figuras e dos números conecta-se necessariamente com o objecto de que se afirma. E não é apenas nas coisas sensíveis que se encontra esta necessidade, mas também noutras circunstâncias: por exemplo, se Sócrates diz que duvida de tudo, segue-se necessariamente que compreende ao menos que duvida; do mesmo modo, que sabe que pode haver algo de verdadeiro ou de falso, etc., pois estas consequências estão necessariamente ligadas à natureza da dúvida. A sua união contingente é a que não implica nenhuma ligação indissolúvel entre as coisas: como quando se diz que um corpo é animado, que um homem está vestido, etc. Há ainda uma grande quantidade de coisas que, muitas vezes, estão ligadas entre si necessariamente e que a maioria das pessoas situa entre as contingentes, não notando a relação que entre elas existe, como, por exemplo, esta proposição: sou, portanto, Deus é; e do mesmo modo: compreendo, portanto, tenho uma mente distinta do corpo, etc. Finalmente, importa observar que as proposições conversas da maior parte das proposições necessárias são contingentes: assim, ainda que do facto de eu existir tire a conclusão de que Deus existe, não é contudo permitido, em virtude do facto de Deus existir, afirmar que eu também existo.

 

Dizemos, em quinto lugar, que nada podemos compreender para além destas naturezas simples e da espécie de mistura ou composição que entre elas existe. E, claro, é muitas vezes mais fácil considerar ao mesmo tempo várias juntas do que separar das outras uma única; por exemplo, posso conhecer o triângulo sem nunca ter pensado que, neste conhecimento, está ainda contido o do ângulo, da linha, do número três, da figura, da extensão, etc.; isto não nos impede, no entanto, de dizer que a natureza do triângulo é composta de todas estas naturezas e que elas são mais conhecidas do que o triângulo, pois são elas próprias que a inteligência nele descobre. No mesmo triângulo estão talvez ainda encerradas muitas outras naturezas que nos escapam, como a grandeza dos ângulos, cuja soma é igual a dois rectos, e as relações inumeráveis que existem entre os lados e os ângulos, ou a capacidade da área, etc.

 

Dizemos, em sexto lugar, que as naturezas por nós chamadas compostas nos são conhecidas, quer porque experimentamos o que elas são, quer porque nós próprios as compomos. Experimentamos tudo o que percepcionamos pela sensação, tudo o que ouvimos dos outros e, de um modo geral, tudo o que chega ao nosso entendimento, ou de algum lado, ou da contemplação reflectida que ele tem de si próprio. Há que notar, a este respeito, que o entendimento nunca pode ser enganado por experiência alguma, desde que unicamente tenha a intuição precisa da coisa que lhe é apresentada, conforme a possui em si ou numa imagem, e contanto que, além disso, não julgue que a imaginação reproduz fielmente os objectos dos sentidos, nem que os sentidos revestem as verdadeiras figuras das coisa, nem, finalmente, que as coisas externas são sempre tais quais nos aparecem. É em todos estes pontos que, efectivamente, estamos sujeitos ao erro, como se alguém nos contar uma fábula, julgarmos que o acontecimento tem lugar; ou se um doente atingido de icterícia julgar que tudo é amarelo, porque tem o olho tingido de amarelo; ou, por fim, se devido a uma lesão da imaginação, como acontece aos melancólicos, julgarmos que as suas imagens perturbadas representam realidades. Mas nada disto enganará o entendimento do sábio, porque tudo o que receber da imaginação será evidentemente por ele julgado como realmente nela pintado; todavia, nunca afirmará que isso mesmo aconteceu tal qual e sem qualquer mudança das coisas externas para os sentidos e dos sentidos para a imaginação, a não ser que o tenha conhecido antes, por qualquer outro meio. Por outro lado, compomos nós próprios as coisas que entendemos, sempre que julgamos existir nelas algo que nenhuma experiência imediatamente mostrou à nossa mente. Por exemplo, se acontecer que o doente de icterícia se persuade de que as coisas vistas são amarelas, este seu pensamento será composto daquilo que a sua fantasia lhe representa e da suposição que faz, a saber, que a cor amarela lhe aparece, não por defeito do seu olho, mas porque as coisas vistas são realmente amarelas. A conclusão é que só podemos ser enganados compondo nós próprios de certo modo as coisas em que acreditamos.

 

Dizemos, em sétimo lugar, que esta composição se pode fazer de três maneiras, a saber, por impulso, por conjectura ou por dedução. É por impulso que compõem os seus juízos sobre as coisas aqueles cujo espírito os leva a alguma crença, sem serem persuadidos por razão alguma, mas determinados apenas ou por alguma potência superior, ou pela sua própria liberdade, ou por uma disposição da fantasia: a primeira influência nunca engana, a segunda raramente, a terceira quase sempre; mas a primeira não tem o seu lugar aqui, porque não depende da arte. A composição faz-se por conjectura quando, por exemplo, do facto de a água, por estar mais afastada do centro do mundo do que a terra, ser também de uma essência mais subtil, e ainda do facto de o ar, por se encontrar acima da água, ser também mais leve, conjecturamos que, acima do ar, nada mais há do que éter muito puro e muito mais subtil que o próprio ar, etc. Tudo o que deste modo compomos não nos engana, certamente, se julgarmos que é apenas provável e se jamais afirmarmos que é verdadeiro, mas também não nos torna mais sábios.

 

Resta só, pois, a dedução pela qual possamos compor as coisas de forma a estarmos seguros da sua verdade. Pode, porém, haver nela também numerosos defeitos, como acontece se, pelo facto de nada haver no nosso espaço cheio de ar que percepcionemos pela vista, tacto ou qualquer outro sentido, daí concluirmos que este espaço é vazio, associando erradamente a natureza do vazio à deste espaço. Assim acontece sempre que de uma coisa particular ou contingente julgarmos que é possível deduzir algo de geral e de necessário. Mas está em nosso poder evitar este erro, a saber, se nunca ligarmos coisas entre si sem ver por intuição que a ligação de uma com outra é completamente necessária, como acontece ao deduzirmos que nada pode ser figurado sem ser extenso, pelo facto da figura ter uma ligação necessária com a extensão, etc.

 

Tudo isto permite concluir, em primeiro lugar, que expusemos distintamente e, em minha opinião, por uma enumeração suficiente, o que no início só confusa e grosseiramente pudemos mostrar, a saber, que não há vias abertas ao homem para um conhecimento certo da verdade além da intuição evidente e da dedução necessária; e também para conhecer o que são as naturezas simples, que abordámos na oitava proposição. E é claro que a intuição intelectual se estende, por um lado, a todas essas naturezas, por outro, ao conhecimento das conexões que existem necessariamente entre si e, finalmente, a todas as outras coisas que o entendimento julga existir de uma maneira precisa, quer em si próprio, quer na fantasia. Quanto à dedução, dir-se-ão mais coisas a seguir.

 

Conclui-se, em segundo lugar, que não há que envidar esforços por conhecer essas naturezas simples, pois são já suficientemente conhecidas por si mesmas, mas apenas por as separar umas das outras e considerar à parte intuitivamente cada uma delas, aplicando-lhes a sua penetração intelectual. Não há ninguém, com efeito, que seja tão débil de espírito que não perceba que, quando sentado, é de algum modo diferente de si, quando levantado. Mas nem todos separam com a mesma distinção a natureza da situação do resto que se contém nesse pensamento, e nem todos podem afirmar que nada mudou, excepto a situação. Não é em vão que aqui fazemos esta observação, porque os letrados têm frequentemente o costume de serem tão engenhosos que encontram meio de nada ver mesmo no que é evidente por si e que os incultos nunca ignoram. É o que lhes acontece sempre que tentam esclarecer estas coisas conhecidas por si mesmas, mediante algo de mais evidente: com efeito, ou explicam outra coisa, ou absolutamente nada. Pois quem não percebe todas as mudanças, sejam elas quais forem, que sofremos ao mudar de lugar, e quem poderia conceber a mesma coisa, quando se lhe diz que o lugar é a superfície do corpo ambientei Esta superfície pode mudar, se bem que eu permaneça imóvel e não mude de lugar, ou, pelo contrário, deslocar-se comigo de maneira a rodear-me, embora eu já não me encontre no mesmo lugar. Em contrapartida, não parecem proferir palavras mágicas, que têm uma força oculta e para além do alcance do espírito humano, os que dizem que o movimento, coisa conhecidíssima de todos, / o acto do ser em potência, enquanto está em potência”? Quem compreende estas palavras? Quem ignora o que é o movimento? E quem não confessaria que estes homens procuraram um nó num junco? È preciso, pois, dizer que nunca se devem explicar as coisas por definição alguma desta espécie, não aconteça captarmos em vez do simples o composto, mas que cada um as deve apenas examinar separadas de tudo o mais, numa intuição atenta e segundo as luzes do seu espírito. Conclui-se, em terceiro lugar, que toda a ciência humana consiste apenas em ver distintamente como estas naturezas simples concorrem em conjunto para a composição das outras coisas. É muito útil observar isto, pois, sempre que se propõe uma dificuldade para resolver, quase todos se detêm no limiar, na incerteza de saber a que pensamentos devem aplicar a sua mente e na persuasão de que importa procurar algum outro novo género de ser antes desconhecido, como, por ex., ao perguntar-se qual a natureza da pedra-íman, logo eles, ao vaticinarem que a coisa é penosa e difícil, desviam a inteligência de tudo o que é evidente e a viram para tudo o que há de mais difícil e, partidos à aventura, esperam que ele encontre algo de novo, errando pelo espaço vazio das causas múltiplas. Mas aquele que pensa que nada se pode conhecer na pedra-íman que não seja composto de certas naturezas simples e conhecidas por si mesmas, não tem incertezas sobre o que é preciso fazer. Primeiro, reúne cuidadosamente todas as experiências que pode encontrar a propósito desta pedra; depois, esforça-se por daí deduzir qual a mistura de naturezas simples necessária para produzir todos os efeitos que reconheceu por experiência na pedra-íman. Uma vez achada esta mistura, pode audaciosamente afirmar que compreendeu a verdadeira natureza da pedra-íman, tanto quanto ela pôde ser descoberta por um homem e com a ajuda das experiências feitas.

 

Por fim, conclui-se, em quarto lugar, do que foi dito, que os conhecimentos das coisas não devem ser olhados como mais obscuros uns do que os outros, já que todos são da mesma natureza e consistem apenas numa composição de coisas conhecidas por si mesmas. Quase ninguém se dá conta, mas, apoiando-se numa opinião contrária, os mais atrevidos permitem-se tomar as suas conjecturas por demonstrações verdadeiras e, nas coisas que ignoram completamente, afirmam que vêm verdades muitas vezes obscuras como através de uma nuvem. Estas verdades, não as temem expor, associando os seus conceitos a palavras que, habitualmente, os ajudam a raciocinar sobre muitas coisas e a delas falar logicamente, sem realmente serem compreendidos nem por si próprios nem pelos que os ouvem. Quanto aos mais modestos, abstêm-se muitas vezes de examinar uma quantidade de coisas, ainda que fáceis e muito necessárias para a vida, só porque se consideram impotentes a seu respeito; e como julgam que podem ser compreendidas por outros mais dotados de espírito, aceitam as opiniões daqueles cuja autoridade lhes inspira mais confiança.

 

Dizemos, em quinto lugar, que a dedução só se pode fazer, quer das palavras às coisas, quer do efeito à sua causa, quer da causa ao seu efeito, quer do semelhante ao semelhante, quer das partes às partes ou ao próprio todo...

 

Quanto ao mais, receando que o encadeamento dos nossos preceitos escape a alguém, dividimos tudo o que se pode conhecer em proposições simples e em questões. Para as proposições simples, não damos outros preceitos diferentes dos que preparam a nossa força de conhecimentos para captar por intuição quaisquer objectos mais distintamente os perscrutar com maior sagacidade, porque estas proposições devem ocorrer espontaneamente e não podem ser objecto de investigação. A isto nos dedicámos nos doze primeiros preceitos e julgamos ter então mostrado tudo o que, na nossa opinião, pode facilitar o uso da razão. Quanto às questões, umas compreendem-se perfeitamente, ainda quando se ignore a solução: é só delas que nos ocuparemos nas doze regras que se seguem imediatamente; outras compreendem-se imperfeitamente e reservamo-las para as doze últimas regras. É uma divisão urdida com um desígnio; fizemo-la, quer para não sermos obrigados a dizer algo que pressuponha o conhecimento do que se segue, quer para ensinarmos, antes de mais, o que também julgamos ser prioritário no cultivo do espírito. Note-se que, entre as questões que se compreendem perfeitamente, colocamos apenas aquelas em que percebemos distintamente três coisas, a saber: que sinais permitem reconhecer o que se procura, quando ele surge; que é precisamente naquilo de que o devemos deduzir; e como importa provar que há entre estes objectos, uma tal dependência que um não pode de forma alguma mudar quando o outro não muda.

 

Desta forma, temos as nossas premissas e nada mais fica por mostrar do que o modo de encontrar a conclusão, não certamente deduzÍndo de uma única coisa simples um objecto determinado (pois isso pode fazer-se sem preceitos, como já se disse), mas extraindo um objecto determinado, que depende de muitas coisas conjuntamente implicadas, com uma tal arte que não se exija uma maior profundidade de espírito do que a requerida para fazer a mais simples inferência. As questões deste tipo são quase sempre abstractas e quase só se encontram na Aritmética ou na Geometria: é por isso que parecerão pouco úteis aos inexperientes. Faço, no entanto, uma advertência: no estudo desta arte devem mais longamente ocupar-se e exercitar-se os que desejam possuir perfeitamente a última parte deste método, em que tratamos de tudo o resto.

 

Se compreendermos perfeitamente uma questão, devemos abstraí-la de todo o conceito supérfluo, reduzi-la à maior simplicidade e dividi-la em partes tão pequenas quanto possível, enumerando-as.

 

Só nisto apenas imitamos os Dialécticos: assim como eles, na exposição das formas dos silogismos, supõem que se conhecem os seus termos ou a matéria, assim também nós exigimos aqui antecipadamente que a questão seja perfeitamente compreendida. Mas não distinguimos, como eles, dois extremos e um meio: é da maneira seguinte que tratamos todo o assunto. Primeiro, em toda a questão, deve haver necessariamente algo de desconhecido, pois, de outro modo, a sua investigação seria inútil: em segundo lugar, esse incógnito tem de ser designado de alguma maneira, pois, de outro modo, não estaríamos determinados a investigá-lo de preferência a qualquer outro objecto; em terceiro lugar, só pode ser designado mediante alguma outra coisa já conhecida.

 

Tudo isto se encontra até nas questões imperfeitas, como acontece sempre que se inquire a natureza da pedra-íman. O que compreendemos quanto ao significado dos dois termos, pedra-íman e natureza, é conhecido: é o que nos determina a procurá-lo de preferência a outra coisa. Mas, além disso, a fim de a questão ser perfeita, queremos que ela seja completamente determinada, de tal forma que nada mais se inquira além do que se pode deduzir dos dados. Assim acontece se alguém me pergunta o que se deve inferir precisamente sobre a natureza da pedra-íman a partir das experiências que Gilberto afirma ter feito, quer elas sejam verdadeiras ou falsas; do mesmo modo, se me pergunta a minha opinião sobre a natureza do som, atendendo precisamente a estes três factos: três cordas A, B, C, produzem o mesmo som e, entre elas, B é, por hipótese, duas vezes mais grossa que A, sem ser mais comprida mas esticada por um peso duas vezes mais pesado, ao passo que C não é mais grossa que A, mas apenas duas vezes mais comprida e esticada por um peso quatro vezes mais pesado, etc. Percebe-se assim facilmente como é que todas as questões imperfeitas se podem reduzir às perfeitas, como se exporá mais extensamente no respectivo lugar. Vê-se também como é preciso observar esta regra para que uma dificuldade bem compreendida seja abstraída de todo o conceito supérfluo e reduzida a uma forma tal que já não tenhamos o pensamento ocupado neste ou naquele assunto em particular, mas apenas em comparar certas grandezas entre si. Por exemplo, depois de nos termos decidido a só examinar tais ou tais experiências sobre a pedra-íman, já não há mais nenhuma dificuldade em remover o nosso pensamento de todas as outras.

 

Acrescente-se, além disso, que a dificuldade se deve reduzir à sua maior simplicidade, segundo as regras quinta e sexta, e dividir-se segundo a sétima. Assim, ao examinar a pedra-íman a partir de várias experiências, percorrê-las-ei separadamente uma a seguir à outra; do mesmo modo, se se tratar do som, como já se disse, compararei separadamente entre si as cordas A e B, depois A e C, etc., de maneira a abarcar seguidamente tudo ao mesmo tempo numa enumeração suficiente. Eis, pois, em relação aos termos de uma proposição, os únicos três pontos a que o entendimento puro se deve ater antes de abordarmos a sua última solução, se houver necessidade de utilizar as onze regras seguintes. A terceira parte deste Tratado explicará mais claramente a maneira de fazer isto. Por outro lado, entendemos por questões tudo aquilo em que se encontra o verdadeiro ou o falso, e há que enumerar os diversos géneros de questões para determinar o que somos capazes de fazer em relação a cada uma delas.

 

Já dissemos que só na intuição das coisas, quer simples, quer ligadas, é que não pode haver erro. Assim também, não é neste sentido que elas se chamam questões, mas recebem esse nome a partir do momento em que decidimos emitir sobre elas um determinado juízo. com efeito, não são apenas as perguntas feitas por outros que colocamos no número das questões, mas, em relação à própria ignorância ou, antes, à dúvida de Sócrates, tratou-se de uma questão logo que Sócrates, fazendo incidir a sua atenção neste ponto, se pôs a procurar se era verdade que ele duvidasse de tudo, e isso mesmo afirmou.

 

Ora, nós procuramos, quer as coisas pelas palavras, quer as causas pelos seus efeitos, quer os efeitos pelas suas causas, quer o todo pelas suas partes, ou outras partes por algumas de entre elas, quer, enfim, várias coisas ao mesmo tempo a partir do que se acabou de dizer.

 

Dizemos que se procuram as coisas pelas palavras, sempre que a dificuldade reside na obscuridade da linguagem. A isto se referem não só todos os enigmas - como o da Esfinge sobre o animal que, a princípio, é quadrúpede, em seguida, bípede e, por fim, caminha sobre três pés; e também o dos pescadores que, em pé, na margem do rio, munidos de anzóis e linhas para apanharem os peixes, diziam que já não tinham os que haviam apanhado e que, inversamente, tinham aqueles que ainda não haviam conseguido apanhar, etc.; mas, além disso, na maioria dos casos sobre que discutem os letrados, trata-se, quase sempre, de uma questão de palavras. E não é preciso ter tão má opinião de grandes espíritos que se julgue que eles concebem mal as próprias coisas sempre que as não expliquem em termos suficientemente adequados. Se lhes acontece, por exemplo, chamar lugar à superfície do corpo ambiente, nada de falso concebem na realidade, mas abusam apenas do termo lugar, que significa, segundo o uso corrente, essa natureza simples e conhecida por si mesma, devido à qual algo se diz estar aqui ou ali. Consiste numa certa relação entre a coisa, que se diz estar no lugar, e as partes do espaço exterior; e alguns, vendo que o nome de lugar era empregue para designar a superfície ambiente, denominaram-no impropriamente lugar interno. O mesmo se passa com tudo o mais. Estas questões de palavras encontram-se tão frequentemente que, se houvesse sempre acordo entre os Filósofos quanto ao significado das palavras, isso equivaleria à supressão de quase todas as suas controvérsias.

 

A investigação das causas pelos seus efeitos tem lugar sempre que tentamos descobrir, a propósito de uma coisa, se ela é ou o que ela é...

 

De resto, quando se nos propõe uma questão para resolver, frequentemente acontece que não notamos logo a que género ela pertence, nem se são as coisas que procuramos pelas palavras ou as causas pelos seus efeitos, etc.; é por isso que me parece supérfluo entrar em tais pormenores sobre estes casos em particular. Será mais rápido e mais cómodo tratar ao mesmo tempo e com ordem tudo o que é preciso fazer para resolver qualquer dificuldade. Por consequência, dada uma questão qualquer, importa esforçar-nos, primeiro, por compreender claramente o que se procura.

 

Frequentemente, alguns apressam-se de tal modo a investigar proposições que aplicam à sua solução um espírito vagabundo, antes de advertirem por que sinais reconhecerão o objecto procurado, se por acaso aparecer. Não são menos ineptos do que um criado enviado a qualquer lado pelo seu senhor e que estivesse tão desejoso de obedecer que se pusesse a correr precipitadamente sem ainda ter recebido ordens e sem saber onde o mandava ir.

 

Pelo contrário, em toda a questão, ainda que deva haver algo de desconhecido, pois, de outro modo, a sua investigação seria inútil, é preciso, no entanto, que este incógnito seja designado por condições tão precisas que nos determinemos completamente a procurar um objecto particular de preferência a outro. É ao exame destas condições que, como dizemos, nos devemos entregar desde o início; e isso acontecerá se aplicarmos a nossa penetração intelectual a captá-las intuitivamente, uma a uma, investigando cuidadosamente que limitação recebe de cada uma delas esse incógnito que procuramos. Na verdade, o espírito humano costuma enganar-se aqui, de duas maneiras, quer supondo algo mais do que o que lhe foi dado para determinar a questão, quer, pelo contrário, omitindo alguma coisa.

 

É preciso evitar supor mais coisas e coisas mais precisas do que as que nos são dadas: sobretudo nos enigmas e nas outras perguntas artificiosamente feitas para pôr os espíritos em apuros, mas, por vezes, também noutras questões, quando, para as resolver, se supõe

- parece - como certo o que nenhuma razão explícita, mas apenas uma opinião inveterada, nos fez aceitar. Por exemplo, no enigma da Esfinge, não se deve pensar que a palavra pé designa apenas verdadeiros pés de animais, mas é preciso ver ainda se ela não se pode aplicar, como de facto acontece, a outras coisas, a saber, às mãos da criança e ao bordão do velho, visto que ambos se servem deles como de pés para andarem. Assim também, na adivinha dos pescadores, é preciso ter cuidado para que o pensamento dos peixes não se apodere de tal forma de nossa mente que a impeça de pensar nesses animais que, frequentemente, os pobres trazem consigo sem querer, e que deitam fora depois de os terem apanhado. Assim também, se se inquirir como foi construído um vaso semelhante ao que vimos um dia, no meio do qual se elevava uma coluna encimada por uma estátua de Tântalo fazendo o gesto de beber; vaso que continha exactamente a água que nele se vertia, enquanto ela não atingia um nível suficientemente elevado para entrar na boca de Tântalo, mas que a deixava de todo escapar imediatamente, logo que chegava aos seus lábios infelizes; parece, à primeira vista, que todo o artifício consistiu em construir esta estátua de Tântalo que, no entanto, não determina de forma alguma a questão, não passando de um complemento. Toda a dificuldade consiste unicamente em investigar como se deve construir o vaso para que a água se escape dele completamente quando atinge uma certa altura, e de forma alguma antes. Igualmente, por fim, se a partir de todas as observações que possuímos sobre os astros se inquirir o que podemos assegurar com certeza a respeito dos seus movimentos, não é preciso fazer, como os Antigos, a suposição gratuita de que a Terra é imóvel e colocada no centro do Mundo, porque desde a nossa infância assim nos pareceu, mas importa antes pôr essa opinião em dúvida para, em seguida, examinarmos o que de certo é permitido asserir sobre este assunto. E assim por diante.

 

Pecamos por omissão, sempre que uma condição requerida para determinar uma questão na mesma está expressa ou compreendida, sem nela reflectirmos. É o que acontece na investigação de um movimento perpétuo, não natural, como o dos astros ou das águas da fonte, mas produzido pela indústria humana, se alguém (como alguns julgaram que se podia fazer, pensando que a Terra se move sempre em círculo à volta do seu eixo e que a pedra-íman conserva todas as propriedades da Terra), se alguém pensar que encontrará este movimento perpétuo dispondo esta pedra de maneira a que se mova em círculo ou, pelo menos, que ela comunique ao ferro o seu movimento com outras propriedades. Mesmo que viesse a conseguir, a sua arte não produziria, contudo, um movimento perpétuo, mas utilizaria apenas o que é natural, e não agiria de forma diferente de se colocasse uma roda sob a queda de um rio de maneira a pô-la sempre em movimento; ele omitiria, pois, uma concepção indispensável para resolver a questão, etc.

 

Uma vez assaz compreendida a questão, é preciso ver exactamente em que consiste a sua dificuldade, para a isolar das restantes e mais facilmente se resolver.

 

Nem sempre é suficiente compreender uma questão para saber onde está a dificuldade, mas é preciso também reflectir em cada uma das coisas que nela são requeridas a fim de que, se ocorrerem coisas fáceis de encontrar, as deixemos de lado e, uma vez retiradas da questão, apenas reste o que ignoramos. Assim, na questão do vaso descrita um pouco mais acima, facilmente notamos como é que o vaso se deve fazer: a coluna levantada ao meio, o pássaro pintado, etc. Rejeitado tudo isso por não se relacionar com o assunto, resta a dificuldade pura e simples que reside no facto de a água, antes contida no vaso, se escapar toda depois de ter chegado a uma certa altura. A que se deve isto? Eis o que é preciso investigar.

 

Agora, é apenas importante passar em revista ordenadamente tudo o que nos foi dado numa proposição, rejeitando o que claramente virmos não se relacionar com o assunto, retendo o que é necessário e relegando o que é duvidoso para um exame mais atento.

 

A mesma regra deve aplicar-se à extensão real dos corpos e propor-se à imaginação com a ajuda de figuras puras e simples; será assim percebida muito mais distintamente pelo entendimento.

 

Para nos servirmos da ajuda da imaginação, é preciso notar que, ao deduzir algo de determinado e desconhecido de outro já conhecido anteriormente, nem por isso se depara sempre com um novo género de ser. Há apenas um alargamento de todo o nosso conhecimento que nos faz compreender que, de uma ou de outra maneira, a coisa procurada participa da natureza daquelas que nos são dadas na proposição. Por exemplo, se alguém for cego de nascença, não há esperança de alguma vez chegarmos por raciocínio a fazer-lhe perceber verdadeiras ideias das cores, como as que temos ao extraí-las dos sentidos; mas se alguém, outrora, tiver visto as cores principais, sem nunca ter visto as cores intermédias ou mistas, pode acontecer que se formem também imagens das que nunca viu, graças à sua semelhança com outras, mediante uma dedução. Do mesmo modo, se houver na pedra-íman algum género de ser que nada tenha de semelhante com o que o nosso entendimento até agora viu, não é de esperar que alguma vez o venhamos a conhecer por raciocínio, pois, seria preciso ser dotado para isso ou de um novo sentido ou de uma mente divina. Tudo o que neste caso o espírito humano pode dar, julgaremos tê-lo obtido, se percepcionarmos distintamente a mistura de seres ou de naturezas já conhecidas, que produz os mesmos efeitos que se descobrem na pedra-íman.

 

Claro, todos estes seres já conhecidos, tais como a extensão, a figura, o movimento e coisas semelhantes, que não vem a propósito enumerar aqui, conhecem-se em diversos sujeitos por intermédio de uma mesma ideia, e não imaginamos de outra forma a figura de uma coroa, quer seja de prata ou de oiro. Esta ideia comum não se transfere de um sujeito para outro a não ser por uma simples comparação: afirmamos que o que se procura é, segundo este ou aquele aspecto, parecido, idêntico ou igual a um objecto dado, de tal forma que, em todo o raciocínio, é apenas por uma comparação que conhecemos a verdade de uma maneira precisa. Por exemplo, neste caso: todo o A é B, todo o B é C, portanto, todo o A é C, compara-se entre si o que é procurado e o que é dado, quer dizer, A e C, sob esta relação que um e outro são B, etc. Mas porque, como já advertimos, as formas dos silogismos em nada nos ajudam a perceber a verdade das coisas, será de toda a vantagem para o leitor, depois de as ter completamente rejeitado, conceber que todo o conhecimento, que não se obtém por meio de intuição pura e simples de um objecto isolado, se consegue apenas pela comparação de dois ou mais objectos entre si. E, efectivamente, quase toda a indústria da razão humana consiste em preparar esta operação, pois, quando é conhecida e simples, não há necessidade de nenhum auxílio da arte, mas apenas das luzes naturais para ver instintivamente a verdade que por ela se obtém.

 

É preciso notar que as comparações se dizem simples e manifestas, mas só quando o que se procura e o que é dado participa igualmente de uma certa natureza. Quanto às outras todas, necessitam de preparação, e apenas por este motivo: a natureza comum não se encontra nos dois objectos tal qual, mas segundo determinadas relações ou proporções em que está envolvida. E, na sua maior parte, a indústria humana não consiste noutra coisa senão em transformar estas proporções de maneira a ver claramente a igualdade que existe entre o que se procura e o que já se conhece.

 

É preciso notar, em seguida, que só se pode reduzir a esta igualdade o que supõe o mais e o menos, e tudo isso está compreendido no nome de grandeza. Deste modo, uma vez que, segundo a regra precedente, os termos da dificuldade foram abstraídos de todo o sujeito, neste caso só temos, ulteriormente, de nos ocupar das grandezas em geral.

 

Por outro lado, para que ainda então imaginemos algo e não utilizemos o entendimento puro, mas o entendimento ajudado pelas espécies representadas na fantasia, importa observar, finalmente, que nada se diz das grandezas em geral que não possa também referir-se especialmente a qualquer delas em particular.

 

Assim, é fácil concluir que será de não pouca vantagem aplicar o que compreendemos sobre as grandezas em geral à espécie de grandeza que, entre todas, mais fácil e distintamente, será representada na nossa imaginação. Esta espécie de grandeza é a extensão real do corpo abstraída de tudo o resto, excepto da figura: isto deriva do que foi dito na regra duodécima, em que concebemos a própria fantasia com as ideias nela existentes como um verdadeiro corpo real, extenso e figurado.

 

É também evidente por si, pois em nenhum outro sujeito se vêem mais distintamente todas as diferenças das proporções. com efeito, ainda que uma coisa se possa dizer mais ou menos branca do que outra e, do mesmo modo, um som mais ou menos agudo, e assim por diante, não podemos, no entanto, definir com exactidão se há neste afastamento uma relação dupla ou tripla, etc., a não ser que recorramos a uma analogia com a extensão de um corpo figurado. Que fique, pois, firmemente assente que as questões perfeitamente determinadas não contêm quase nenhuma dificuldade, além daquela que consiste em reduzir as proporções a igualdades: tudo aquilo em que precisamente se encontra uma tal dificuldade pode e deve separar-se com facilidade de todo o outro sujeito e reduzir-se a uma extensão ou a figuras; por este motivo, trataremos só delas ulteriormente até à regra vigésima quinta, deixando de lado qualquer outra consideração. Desejaríamos ter aqui um leitor devotado ao estudo da Aritmética e da Geometria, embora eu preferisse que ele não se tivesse ainda ocupado delas a não ser através da erudição vulgar. com efeito, o emprego das regras que agora you dar é muito mais fácil no seu estudo, para o qual, mais do que em qualquer outro género de questões, é de todo suficiente. A sua utilidade para adquirir uma maior sabedoria é tal que não recearei afirmar que esta parte do nosso método não foi inventada por causa dos problemas matemáticos, antes são estes que importa estudar quase só por mor de a cultivar. E nada suporei destas disciplinas, excepto talvez certos axiomas conhecidos por si mesmos e ao alcance de toda a gente; mas o seu conhecimento, tal como habitualmente se encontra noutros, ainda que não seja alterado por nenhum erro declarado, é no entanto obscurecido por um grande número de princípios desvirtuados e mal concebidos, que nos esforçaremos, de passagem e já a seguir, por corrigir.

 

Por extensão, entendemos tudo o que tem um comprimento, uma largura e uma profundidade, sem inquirir se é um verdadeiro corpo ou um espaço apenas; e não há necessidade de uma explicação mais longa, ao que parece, pois nada há que seja mais facilmente percebido pela nossa imaginação. Todavia, visto que os letrados usam muitas vezes distinções tão subtis que obscurecem a luz natural e encontram trevas até naquilo que os incultos nunca ignoram, é preciso adverti-los de que a extensão não significa aqui algo de distinto e separado do próprio sujeito, e que não reconhecemos em geral entes filosóficos desta espécie, que não caiam realmente no campo da imaginação. Pois, ainda que alguém possa persuadir-se de que, por exemplo, ao reduzir a nada tudo o que é extenso na natureza das coisas, não repugna, entretanto, que a própria extensão exista por si só; todavia, não se servirá de uma ideia corpórea para formar este conceito, mas só do entendimento que emite um juízo errado. Ele próprio o confessará, se reflectir atentamente sobre a própria imagem da extensão, que se esforçará por representar então na sua fantasia: notará, com efeito, que não a vê privada de todo o sujeito, mas que a imagina de forma completamente diversa do juízo que sobre ela profere, de tal forma que esses entes abstractos (seja qual for a opinião do intelecto acerca da verdade do facto) jamais, porém, se formam na fantasia separadamente dos seus sujeitos.

 

Ora, como ulteriormente nada faremos sem o auxílio da imaginação, é importante distinguir cautamente por meio de que ideias as significações particulares das palavras se devem propor ao nosso intelecto. Propomos, por isso, examinar estas três fórmulas: a extensão ocupa o lugar, o corpo tem extensão, e a extensão não é o corpo.

 

A primeira mostra como é que a extensão é tomada por aquilo que é extenso. Ao dizer: a extensão ocupa lugar, concebo exactamente a mesma coisa como quando digo: o que é extenso ocupa lugar. Todavia, para evitar a ambiguidade, não é melhor empregar a expressão: o que é extenso, pois ela não significaria tão distintamente o que concebemos, ou seja, que um sujeito ocupa lugar porque é extenso. Poder-se-ia entender unicamente por tal: o que é extenso é um sujeito que ocupa lugar, como se eu dissesse: um ser animado ocupa lugar. Esta razão explica por que dissemos que tínhamos aqui a intenção de tratar da extensão mais do que do que é extenso, embora julguemos que ela não se deve conceber de modo diferente do que é extenso.

 

Passemos agora a estas palavras: o corpo tem extensão, onde compreendemos que a extensão significa algo de diferente do corpo; não formamos, no entanto, na nossa fantasia duas ideias distintas, a do corpo e a da extensão, mas unicamente a do corpo extenso. Nem é diferente, por parte da coisa, do que se dissesse: O corpo é extenso, ou antes: o que é extenso é extenso. É o que caracteriza estes entes que só existem num outro e nunca podem conceber-se sem um sujeito. Já não acontece o mesmo com os que são realmente distintos dos seus sujeitos, pois se dissesse, por exemplo: Pedro tem riquezas, a ideia de Pedro seria completamente diferente da de riquezas; e, do mesmo modo, se dissesse: Paulo é rico, imaginaria uma coisa completamente diferente do que se dissesse: o rico é rico. A maior parte das pessoas não distingue esta diferença e opinam erradamente que a extensão possui algo de distinto do que é extenso, tal como as riquezas de Paulo se diferenciam de Paulo.

 

Por fim, se dissermos: a extensão não é o corpo, então a palavra extensão toma-se num sentido completamente diferente do que acima se expôs. E neste significado não há ideia particular que lhe corresponda na fantasia, mas toda esta enunciação provém do entendimento puro, que é o único que tem o poder de isolar seres abstractos desta espécie. Esta é uma ocasião de erro para muita gente: não notam que a extensão tomada neste sentido não pode ser captada pela imaginação, e representam-na por uma verdadeira ideia. Mas, como uma tal ideia envolve necessariamente o conceito de corpo, se disserem que a extensão assim concebida não é o corpo, imprudentemente caem no embaraço: de que a mesma coisa é simultaneamente corpo e não corpo. É muito importante distinguir as enunciações, nas quais as palavras desta espécie: extensão, figura, número, superfície, linha, unidade, etc., têm um significado tão restrito que excluem algo de que, na realidade, não são distintas, como quando se diz: a extensão ou a figura não é o corpo; o número não é a coisa numerada, a superfície é o limite do corpo, a linha o da superfície, o ponto o da linha; a unidade não é uma quantidade, etc. Todas estas proposições e semelhantes devem remover-se totalmente da imaginação, para que sejam verdadeiras; é por isso que não temos a intenção de as analisar a seguir.

 

Importa observar ainda cuidadosamente: em todas as outras proposições em que estas palavras, embora conservando o mesmo significado e sendo do mesmo modo separadas dos sujeitos, nada, porém, excluem ou negam daquilo de que realmente não se distinguem, podemos e devemos servir-nos da ajuda da imaginação; porque então, embora o entendimento só atenda precisamente ao que se designa pela palavra, a imaginação deve, no entanto, formar uma ideia verdadeira da coisa, para permitir ao entendimento voltar-se, quando necessário, para as suas outras condições não expressas pela palavra, e não julgar imprudentemente que foram excluídas. Por exemplo, se se tratar do número, imaginaremos um sujeito mensurável por meio de muitas unidades e, apesar de o entendimento reflectir agora só na sua multiplicidade, acautelar-nos-emos não vá ele, ulteriormente, concluir daí algo no qual se suponha que a coisa numerada está excluída do nosso conceito. É o que fazem os que atribuem aos números espantosos mistérios e puros disparates nos quais, certamente, não acreditariam, se não concebessem o número como distinto das coisas numeradas. Do mesmo modo, se tratarmos da figura, pensaremos que tratamos de um sujeito extenso, que apenas concebemos sob a relação de ser figurado; se abordarmos o corpo, pensaremos que tratamos do mesmo sujeito, enquanto comprido, largo e profundo; se nos ocuparmos da superfície, concebê-la-emos como comprida e larga, deixando de lado a sua profundidade sem, no entanto, a negar; se tratarmos da linha, será apenas enquanto é comprida; se nos centrarmos no ponto, deixaremos de parte tudo o resto, excepto que é um ser. Apesar da amplidão com que faço todas estas deduções, os espíritos dos mortais estão, todavia, tão preocupados que temo que só muito poucos estejam nesta matéria suficientemente livres de todo o perigo de erro, e achem, numa longa exposição, demasiado breve a explicação do meu pensamento. com efeito, as próprias artes da Aritmética e da Geometria, se bem que sejam as mais certas de todas, são aqui, no entanto, uma fonte de erro. Qual o calculador, com efeito, que não pensa que os seus números foram, não só abstraídos de todo o sujeito pelo entendimento, mas que é preciso também dele os distinguir realmente pela imaginação? Qual o Geómetra que, apesar dos seus princípios, não perturba a evidência do seu objecto, ao julgar que às linhas lhes falta largura e às superfícies profundidade, embora logo a seguir as componha umas pelas outras, sem notar que a linha, a partir de cujo movimento pensa ele que nasce a superfície, é um verdadeiro corpo, ao passo que aquela a que falta largura não passa de um modo do corpo, etc. ? Mas, para não nos determos mais tempo nestes pormenores, expor-se-á com mais brevidade a maneira como supomos que o nosso objecto se deve conceber para demonstrarmos a seu respeito, o mais facilmente possível, tudo o que há de verdadeiro no campo da Aritmética e da Geometria.

 

Ocupamo-nos, portanto, aqui de um objecto extenso, sem nada mais considerar nele do que a extensão, e evitando de propósito a palavra quantidade, porque há certos Filósofos tão subtis que também distinguiram esta da extensão. Mas supomos que todas as questões foram levadas a um ponto tal que nada mais se inquire a não ser uma certa extensão que importa conhecer, comparando-a com outra conhecida. Como, efectivamente, não estamos à espera do conhecimento de um novo ser, mas só queremos reduzir as proporções, por complicadas que sejam, ao ponto em que o desconhecido se equipare a algo de conhecido, é certo que todas as diferenças de proporções, que se encontram noutros sujeitos, podem também encontrar-se entre duas ou várias extensões. Assim, para o nosso propósito, basta considerar na própria extensão todos os aspectos que nos podem ajudar a expor as diferenças de proporções, e apresentam-se apenas três: a dimensão, a unidade e a figura.

 

Por dimensão, nada mais entendemos do que o modo e a maneira segundo a qual um sujeito se considera como mensurável; deste modo, não só o comprimento, a largura e a profundidade são as dimensões do corpo, mas ainda o peso é a dimensão segundo a qual os sujeitos são pesados, a velocidade é a dimensão do movimento, e uma infinidade de outras coisas deste género. Pois, a própria divisão em várias partes iguais, quer seja real ou apenas intelectual, é exactamente a dimensão segundo a qual contamos as coisas, e esta maneira de constituir um número chama-se propriamente uma espécie de dimensão, se bem que haja alguma diferença no significado da palavra divisão. com efeito, se considerarmos as partes em relação ao todo, diz-se então que contamos; se, pelo contrário, nos referimos ao todo, enquanto dividido em partes, medimo-lo. Por exemplo, medimos os séculos por anos, dias, horas, momentos, mas se contarmos momentos, horas, dias e anos, acabaremos por ter séculos.

 

Por aqui se vê que pode haver no mesmo sujeito uma infinidade de dimensões diversas e que nada absolutamente acrescentam às coisas que as possuem, mas que se compreendem da mesma maneira, quer tenham um fundamento real nos próprios sujeitos, quer tenham sido imaginadas arbitrariamente pela nossa mente. É, com efeito, algo de real o peso do corpo ou a velocidade do movimento ou a divisão do século em anos e dias; mas não a divisão do dia em horas e momentos, etc. No entanto, o mesmo acontece a todas as coisas, se as considerarmos apenas sob a relação da dimensão, como é preciso fazer aqui e nas disciplinas Matemáticas; pois, é aos Físicos que cabe sobretudo examinar se o seu fundamento é real.

 

Semelhante observação lança uma nova luz na Geometria, já que nela quase todos concebem erradamente três espécies de quantidade: a linha, a superfície e o corpo. com efeito, já antes se estabeleceu que a linha e a superfície não dão lugar a um conceito, enquanto verdadeiramente distintas do corpo ou distintas uma da outra. Mas, se se considerarem simplesmente como abstraídas pelo intelecto, não são então espécies de quantidade mais diversas do que, no homem, são espécies diferentes de substância o animal e o vivente. Note-se, de passagem, que as três dimensões dos corpos, o comprimento, a largura e a profundidade, não diferem entre si só por palavras: nada impede, com efeito, de escolher num dado sólido qualquer destas extensões por comprimento, uma outra por largura, etc. E ainda que só as três tenham um fundamento real em todo o objecto extenso, enquanto simplesmente extenso, no entanto, não lhes damos aqui maior atenção do que a outras em número infinito e que são formadas pelo intelecto ou têm outros fundamentos nas coisas. Assim, num triângulo, se o quisermos medir perfeitamente, é preciso conhecer, por parte da coisa, três elementos, que são ou os três lados, ou dois lados e um ângulo, ou dois ângulos e a superfície, etc.; do mesmo modo, é preciso conhecer cinco num trapézio, seis num tetraedro, etc. Tudo isso se pode chamar dimensões. Mas, a fim de escolhermos aqui as que melhor ajudam a nossa imaginação, nunca prestemos atenção ao mesmo tempo a mais do que uma ou duas, representadas na nossa fantasia, ainda que notássemos existirem muitas outras na proposição de que nos ocuparemos. É, com efeito, próprio da arte distingui-las no maior número possível, de maneira a que examinemos muito poucas ao mesmo tempo e a todas, porém, sucessivamente.

 

A unidade é aquela natureza comum na qual, como acima dissemos, devem igualmente participar todas as coisas que entre si se comparam. Se não houver já alguma determinada na questão, podemos tomar em vez dela quer uma das grandezas já dadas, quer outra qualquer, e será a medida comum a todas as outras. Compreenderemos que nela existem tantas dimensões quantas existem nos extremos a comparar entre si. Concebê-la-emos também, quer simplesmente como algo de extenso, abstracção feita de tudo o resto, e então será idêntica ao ponto dos Geómetras, cujo movimento lhes serve para compor a linha; quer como uma linha, ou como um quadrado.

 

No tocante às figuras, já se mostrou acima como é que só por elas se podem formar ideias de todas as coisas. Resta-nos fazer aqui uma advertência: é que, das suas diversas espécies inumeráveis, só empregaremos aqui aquelas pelas quais mais facilmente se exprimem todas as diferenças das relações ou proporções. Ora, há apenas dois géneros de coisas que entre si se comparam: as pluralidades e as grandezas. Temos, então, dois géneros de figuras que nos servem para as conceber: assim, por exemplo, os pontos que designam um número triangular, ou a árvore que faz conhecer a genealogia de alguém, etc.,

 

O PAI, O FILHO, A FILHA são figuras para representar a pluralidade; mas as que são contínuas e indivisas, como um triângulo, um quadrado, etc., levam ao conhecimento das grandezas.

 

Agora, a fim de expormos quais são, de todas estas figuras, aquelas de que aqui nos vamos servir, é preciso saber que todas as relações possíveis entre seres do mesmo género se devem referir a dois pontos essenciais, que são a ordem e a medida.

 

Importa, além disso, saber que, na cogitação de uma ordem, não é pouca a actividade, como ver se pode aqui ou acolá no nosso método, que quase nada mais ensina, ao passo que no conhecimento de uma ordem, após a sua descoberta, não existe absolutamente nenhuma dificuldade, e a nossa mente pode facilmente, segundo a regra sétima, percorrer uma a uma as partes ordenadas. É que, neste género de relações, umas referem-se às outras só por si, sem mediação de um terceiro termo, como acontece nas medidas, de que, por isso, nos limitaremos a dar aqui a explicação. Reconheço, com efeito, qual a ordem que existe entre A e B, sem outra consideração que a destes dois extremos; mas não reconheço que relação de grandeza há entre dois e três, sem ter considerado um terceiro termo, que é a unidade que serve de medida comum aos outros dois.

 

Importa também saber que as grandezas contínuas podem, devido a uma unidade de empréstimo, reduzir-se por vezes totalmente a uma pluralidade, e sempre pelo menos parcialmente. A pluralidade das unidades pode, depois, dispor-se numa tal ordem que a dificuldade, que se relacionava com o conhecimento da medida, depende apenas da ordem: é neste progresso que a arte nos é do maior auxílio.

 

Por fim, há que saber que, entre as dimensões de uma grandeza contínua, não há outra que se conceba mais distintamente do que o comprimento e a largura, e que não é preciso atender a várias simultaneamente na mesma figura, para comparar entre si duas diferentes. O que a arte diz é que, se tivermos mais de duas diferentes para entre si comparar, se percorrem sucessivamente e se atende apenas a duas simultaneamente.

 

Depois destas observações, é fácil concluir que, nas proposições, não se deve fazer menos abstracção das próprias figuras de que tratam os Geómetras, se delas se fizer questão, do que de qualquer outra matéria. Nem há que guardar alguma para nosso uso, salvo as superfícies rectilíneas e rectangulares ou, então, as linhas rectas, que também chamamos figuras, pois não nos são menos úteis do que as superfícies para imaginar um sujeito verdadeiramente extenso, como acima se disse. Enfim, é pelas mesmas figuras que é preciso representar, ora grandezas contínuas, ora também uma pluralidade ou um número, e nada há de mais simples que a indústria humana possa achar para expor todas as diferenças que existem entre as relações.

 

É também útil quase sempre traçar estas figuras e apresentá-las aos sentidos externos, para que seja mais fácil, por este meio, conservar atento o nosso pensamento.

 

O modo como se devem representar estas figuras, para que, ao pô-las mesmo debaixo dos olhos, as suas imagens se formem mais distintamente na nossa imaginação, é por si evidente. Primeiramente, representaremos a unidade de três maneiras, que são: por um quadrado Q, se a ela atendermos enquanto comprida e larga; ou por uma linha , se a considerarmos apenas enquanto comprida; ou, enfim, por um ponto, se só pretendermos com ela formar uma quantidade. Mas, de qualquer maneira que se represente e conceba, sempre compreenderemos que é um sujeito extenso em todos os sentidos e susceptível de uma infinidade de dimensões. Assim ainda, os termos de uma proposição, se for preciso atender simultaneamente a duas das suas grandezas diferentes, apresentar-se-ão aos nossos olhos mediante um rectângulo, cujos dois lados serão as duas grandezas propostas; desta maneira se forem incomensuráveis com a unidade; desta ou ou destoutra J J J , se forem comensuráveis; sem mais nada, se só estiver em questão uma pluralidade de unidades. Finalmente, se prestarmos atenção só a uma das suas grandezas, representá-la-emos ou por um rectângulo, de que um lado é a grandeza proposta e o outro a unidade, desta maneira i l, o que se faz sempre que é preciso compará-la com uma superfície; ou por um só comprimento, da maneira seguinte , se se considerar apenas como um comprimento incomensurável; ou, então, da maneira seguinte , se

for uma pluralidade.

 

O que não requer a atenção imediata da mente, embora necessário à conclusão, mais vale designá-lo por notações muito breves do que por figuras inteiras; assim a memória não poderá enganar-se nem o pensamento distrair-se enquanto se aplica a outras deduções.

 

Quanto ao mais, como dissemos que não se deviam contemplar numa só e mesma intuição, quer visual quer intelectual, mais de duas dimensões diferentes entre as inumeráveis dimensões que se podem representar na nossa fantasia, é importante reter todas as outras, para que facilmente nos ocorram, sempre que necessário; e foi para este fim que a natureza parece ter instruído a memória. Mas, porque esta frequentemente se apaga e para não nos forçar a gastar uma parte da atenção em reavivá-la, enquanto estamos ocupados com outros pensamentos, a arte descobriu muito a propósito o uso da escrita. Fortalecidos por este auxílio, não confiaremos aqui absolutamente nada à memória, mas deixando a nossa fantasia livre e totalmente entregue às ideias presentes, representaremos no papel tudo o que for preciso. E isto por meio de notas muito breves para que, após havermos examinado distintamente cada coisa em particular, segundo a regra nona, possamos, segundo a undécima, tudo percorrer por um movimento muito rápido do pensamento e ver simultaneamente por intuição o maior número possível de objectos.

 

Assim, tudo o que for necessário considerar como uma unidade para a solução de uma dificuldade, designá-lo-emos por uma nota única, que pode representar-se à vontade. Mas, para mais facilidade, servir-nos-emos das letras a, b, c, etc., para exprimir as grandezas já conhecidas, e das letras A, B, C, etc., para exprimir as incógnitas. Fá-las-emos preceder frequentemente das notações numéricas 1, 2, 3, 4, etc., para explicar a pluralidade, e acrescentaremos as mesmas notações para significar o número de relações que será preciso nelas compreender. Por exemplo, se escrever: 2 tf3, será como se dissesse: o dobro da grandeza representada pela letra a e que contém três relações. Por este meio, não só faremos economia de muitas palavras mas, o que é o principal, apresentaremos os termos da dificuldade sob uma forma tão pura e tão simples que, sem nada se omitir de útil, jamais se encontre neles algo de supérfluo e que ocupe inutilmente a capacidade do espírito, enquanto a nossa mente tiver de abarcar vários objectos ao mesmo tempo.

 

Para mais claramente se compreender tudo isto, é preciso notar, primeiro, que os Calculadores costumam designar as grandezas em particular por várias unidades ou por um número determinado, ao passo que aqui não as abstraímos menos das figuras geométricas ou de qualquer outra coisa. Fazemo-lo, quer para evitar o aborrecimento de um cálculo longo e supérfluo, quer sobretudo para que as partes da matéria, que dizem respeito à natureza da dificuldade, permaneçam sempre distintas e não sejam carregadas de números inúteis. Por exemplo, se se procurar a base de um triângulo rectângulo, cujos lados dados são 9 e 12, o calculador dirá que ela é igual à 1/ 225 ou 15; ao passo que nós poremos a e b no lugar de 9 e 12 e acharemos que a base do triângulo é igual à V «2 + £2, e estas duas partes a2 e. b2 permanecerão distintas, as quais se confundem no número. Note-se ainda que, por número de relações, se devem compreender as proporções que se seguem em ordem contínua. Outros, na Álgebra vulgar, esforçam-se por as exprimir mediante várias dimensões e várias figuras, das quais chamam, à primeira, raiz; à segunda, quadrado; à terceira, cubo; à quarta, biquadrado, etc. Estes nomes enganaram-me a mim durante muito tempo, confesso-o, pois, não me parecia que se pudesse apresentar algo de mais claro à minha imaginação, depois da linha e do quadrado, do que o cubo e as outras figuras construídas à sua semelhança; e, claro, resolvi com o seu auxílio um bom número de dificuldades. Mas, depois de muitas experiências, reconheci que, por esta maneira de conceber, nunca encontrara nada que, sem ela, não pudesse conhecer muito mais fácil e distintamente, e que se deviam rejeitar tais denominações para que não perturbem o conceito, pois a mesma grandeza, quer se chame cubo ou biquadrado, nunca deve, no entanto, apresentar-se à imaginação senão como uma linha ou uma superfície, segundo a regra precedente. Há que notar sobretudo que a raíz, o quadrado, o cubo, etc., não são mais do que grandezas continuamente proporcionais, que supomos sempre dominadas por esta unidade de empréstimo, de que já falámos acima. É a esta unidade que a primeira grandeza proporcional se refere imediatamente e por uma só relação; mas, a segunda, por intermédio da primeira, e, portanto, por duas relações; a terceira, por intermédio da primeira e da segunda, e por três relações, etc., etc. Chamaremos, pois, daqui em diante, primeira proporcional essa grandeza que, em Álgebra, se chama raíz; segunda proporcional, a que se chama quadrado, e assim por diante.

 

Importa, finalmente, observar que, embora aqui façamos abstracção de certos números nos termos de uma dificuldade para examinar a sua natureza, acontece frequentemente, porém, que ela se possa resolver mais simplesmente com os números dados do que se deles for abstraída; o que se explica pelo duplo uso dos números e a que já antes fizemos alusão: explicam, ora a ordem, ora a medida. Por consequência, depois de termos investigado a dificuldade expressa em termos gerais, há que a reduzir aos números dados, para ver se eles porventura nos fornecem alguma solução mais simples. Por exemplo, depois de termos visto que a base do triângulo rectângulo, em função dos lados a & b, é igual a -y/ #2 + b2 , é preciso, em vez de a2, pôr 81 e, em vez de h2, 144; estes números somados dão 225, cuja raíz ou média proporcional entre a unidade e 225, é 15. Ficaremos assim a saber que a base 15 é comensurável com os lados 9 e 12, mas não de uma maneira geral pelo facto de ela ser a base do triângulo rectângulo, no qual um lado está para o outro como 3 para 4. Fazemos todas estas distinções, nós, que procuramos o conhecimento evidente e distinto das coisas, mas não os Calculadores, que ficam contentes desde que se lhes ofereça a soma desejada, mesmo sem se notar que ela depende dos lados: no entanto, é o único ponto em que reside propriamente a ciência.

 

Pelo contrário, importa observar geralmente que nunca se deve confiar à memória nada daquilo que não exige uma atenção contínua, se pudermos pô-lo no papel, para evitar que uma parte do nosso espírito se subtraia ao conhecimento de um objecto presente em virtude de uma recordação inútil. Há também que fazer um sumário, onde escreveremos os termos da questão, tais como nos terão sido propostos na primeira vez; em seguida, como é que se abstraem e por que notações se designam. Desta forma, depois de se ter achado a solução graças a estas mesmas notações, aplicaremos facilmente esta solução, sem intervenção da memória, ao sujeito particular de que estivermos a tratar, pois nada se abstrai a não ser de uma matéria menos geral. Eis, pois, o que eu escreveria: procura-se a base AC de um triângulo rectângulo ABC e abstraio a dificuldade de maneira a procurar em geral a grandeza da base, a partir da grandeza dos lados; em seguida, em vez de A B, que é igual a 9, ponho a e, em vez de B C, que é igual a 12, ponho b, t assim por diante.

 

Note-se que temos ainda a intenção de nos servirmos das quatro regras precedentes na terceira parte deste Tratado, tomando-as de uma maneira um pouco mais ampla do que aquela por que foram aqui explicadas, como se dirá no seu devido lugar.

 

A dificuldade proposta deve ser directamente percorrida, prescindindo do facto de alguns dos seus termos serem conhecidos e outros desconhecidos, examinando intuitivamente a interdependência de cada um deles em relação aos outros, mediante verdadeiros raciocínios.

 

As quatro regras precedentes ensinaram-nos como é que as dificuldades determinadas e perfeitamente compreendidas se devem abstrair de cada um dos seus sujeitos em particular e reduzir ao ponto de nada mais se procurar ulteriormente senão certas grandezas a conhecer, estabelecendo esta ou aquela relação entre elas e certas grandezas dadas. Agora, nas cinco regras seguintes, exporemos como é que as mesmas dificuldades devem ser tratadas, de maneira a subordinar umas às outras, numa só proposição, todas as grandezas desconhecidas, seja qual for o seu número, e de maneira a que, estando a primeira em relação à unidade como a segunda em relação à primeira, a terceira em relação à segunda, a quarta em relação à terceira e, assim por diante, se forem tantas, tenham uma soma igual a alguma grandeza conhecida. Isso far-se-á por um método tão certo que, de certo modo, tenhamos a possibilidade de afirmar com segurança que nenhuma indústria as teria podido reduzir a termos mais simples.

 

Quanto ao presente, note-se que, em toda a questão a resolver por dedução, existe uma via sem obstáculo e directa, por meio da qual nos é permitido passar o mais facilmente possível de um termo a outro, ao passo que todas as outras vias são mais difíceis e indirectas. Para isto compreender, é preciso recordar o que se disse na regra undécima, onde expusemos como se deve fazer o encadeamento das proposições: se cada uma delas em particular se comparar com as vizinhas, fácil nos será perceber como é que também a primeira e a última se relacionam entre si, embora não seja tão fácil deduzir as intermédias a partir das extremas. Assim, se considerarmos intuitivamente a sua dependência recíproca, sem interromper a ordem em nenhuma parte, para daí inferir como é que a última depende da primeira, percorremos directamente a dificuldade. Pelo contrário, se, sabendo que a primeira e o última estão unidas entre si de uma maneira determinada, daí quisermos deduzir quais são as intermediárias que as unem, seria então uma ordem completamente indirecta e invertida que seguiríamos. Como nos ocupamos aqui apenas das questões complicadas, nas quais se conhecem os extremos e se deve chegar a conhecer certos intermediários, no meio de uma ordem perturbada, todo o artifício neste lugar consistirá, supondo conhecido o que é desconhecido, em podermos assim propor-nos uma via fácil e directa de investigação, mesmo nas dificuldades mais embrulhadas. Nada impede que isso sempre aconteça, pois supusemos, desde o início desta parte, poder reconhecer que as coisas desconhecidas numa questão estão numa dependência tal das coisas conhecidas que são por estas completamente determinadas. Deste modo, se reflectirmos sobre elas mesmas, que primeiro nos ocorrem, enquanto reconhecemos esta determinação, e se as contarmos entre as conhecidas ainda que desconhecidas, para daí deduzirmos pouco a pouco e pelos verdadeiros raciocínios todas as coisas mesmo conhecidas, como se fossem desconhecidas, cumpriremos tudo o que esta regra prescreve. Quanto aos exemplos de muitas outras coisas, de que temos a intenção de falar a seguir, reservamo-los para a regra vigésima quarta, porque aí mais facilmente se exporão.

 

Para isso, exigem-se apenas quatro operações: a adição, a subtracção, a multiplicação e a divisão: as duas últimas, muitas vezes, não se devem aqui fazer, quer para não complicar, quer porque podem, ulteriormente, ser mais facilmente efectuadas.

 

A multiplicidade das regras provém, muitas vezes, da incompetência de um Mestre, e o que se pode reduzir a um preceito geral único fica menos claro, quando se divide em numerosos preceitos particulares. É por isso que todas as operações de que é preciso servir-se para percorrer as questões, quer dizer, para deduzir certas grandezas de outras, as reduzimos aqui a quatro pontos essenciais: a sua explicação fará conhecer como são suficientes.

 

Com efeito, suponhamos que chegamos ao conhecimento de uma só grandeza, possuindo as partes de que ela é composta: isso faz-se pela adição. Suponhamos que reconhecemos uma parte possuindo o todo e o excesso deste todo sobre essa mesma parte: isso faz-se pela subtracção. Não há mais processos de deduzir uma grandeza de outras, tomadas absolutamente, e nas quais de certa maneira está contida. Mas, se for preciso encontrar alguma por meio de outras de que ela é completamente diferente e nas quais de nenhum modo está contida, é necessário que alguma relação a ligue a estas: se for necessário procurar directamente esta relação, há que usar a multiplicação; se indirectamente, a divisão.

 

Para expor claramente estes dois pontos, é preciso saber que a unidade, de que já falámos, é aqui a base e o fundamento de todas as relações, e que, na série das grandezas continuamente proporcionais, ela ocupa o primeiro grau, ao passo que as grandezas dadas se encontram no segundo, e as grandezas procuradas no terceiro, quarto e demais graus, se a proporção for directa; se, por outro lado, for indirecta, a grandeza procurada encontra-se no segundo grau e nos graus intermediários, ao passo que a grandeza dada está no último.

 

Com efeito, se se disser: a unidade está para a grandeza dada, a ou 5, tal como b ou 7, grandeza também dada, está para aquela que é procurada, ou seja, a b ou 35, então a e b estão no segundo grau e o respectivo produto a b no terceiro. Do mesmo modo, se se acrescentar: a unidade está para c ou 9, como ab ou 35 estão para a grandeza procurada abe ou 315, então abe está no quarto grau, e obtém-se este produto pelas duas multiplicações de ab e de c, que estão no segundo grau, e assim por diante. Do mesmo modo: a unidade está para a ou 5, tal como a ou 5 estão para a2 ou 25; e ainda: a unidade está para a ou 5 tal como <z2 ou 25 para a* ou 125; assim, a unidade está para a ou 5, tal como <23 ou 125 estão para a* ou 625, etc. com efeito, a multiplicação não se faz de maneira diferente quer se multiplique a mesma grandeza por ela própria ou se a multiplique por outra completamente diferente.

 

Agora, se se disser: a unidade está para a ou 5, divisor dado, tal como B ou 7, que é uma grandeza procurada, estão para ab ou 35, dividendo dado, então, a ordem é invertida e indirecta: é por isso que só se obtém a grandeza procurada B pela divisão de ab, grandeza dada, por a, grandeza também dada. Do mesmo modo, se se disser: a unidade está para A ou 5, grandeza procurada, tal como A ou 5, grandeza procurada, está para a2 ou 25, grandeza dada; ou melhor: a unidade está para A ou 5, grandeza procurada, tal como A2 ou 25, grandeza procurada, está para a3 ou 125, grandeza dada; e assim por diante. Englobam-se todas estas operações no nome de divisão; apesar de tudo, há que ver que os últimos casos desta espécie encerram mais dificuldades que os primeiros, porque neles se acha mais vezes a grandeza procurada, que contém, por consequência, mais relações. com efeito, nestes últimos exemplos, é como se se dissesse que é preciso extrair a raiz quadrada de a2 ou 25, ou a raíz cúbica de «3 ou de 125, e assim por diante: é a maneira de falar de que se servem os Calculadores. Para explicarmos isto na linguagem dos Geómetras, é como se se dissesse que é preciso achar uma média proporcional entre esta grandeza de empréstimo que chamamos unidade, e a que designamos por a2, ou, então, duas médias proporcionais entre a unidade e <2J, e assim por diante.

 

Donde se obtém facilmente a conclusão de que estas duas operações são suficientes para achar qualquer das grandezas que se devem deduzir de outras grandezas, em virtude de certa relação. Compreendido isto, vamos prosseguir, expondo como é que estas operações devem ser analisadas pela imaginação e como também é preciso mostrá-las aos próprios olhos, para explicarmos já a seguir o seu uso ou prática.

 

Se for preciso fazer uma adição ou uma subtracção, concebemos o sujeito como uma linha, ou como uma grandeza extensa, na qual apenas se considera o comprimento, pois, se for preciso juntar a linha a à linha b, juntamo-las uma à outra desta maneira, ab, a b e obtém-se c.

 

Mas, se a mais pequena tiver de ser extraída, a saber, b de a, aplicá-las-emos uma sobre a outra desta maneira e temos assim a parte da maior que não pode ser recoberta pela mais pequena, ou seja:

 

Na multiplicação, concebemos também as grandezas dadas à maneira de linhas, mas imaginando que com elas se forma um rectângulo, pois, se multiplicarmos a por b dispomo-las uma com a outra segundo um ângulo, desta maneira:

 

Do mesmo modo, se quisermos multiplicar ab por c, é preciso conceber ab como uma linha, que é ab de maneira a ter para abe:

 

Por fim, na divisão em que o divisor for dado, imaginamos que a grandeza a dividir é um rectângulo, em que um lado é o divisor e o outro o quociente. Se, por exemplo, houver que dividir o rectângulo ab por a, retiramos-lhe a largura a, e fica b como quociente: b, ou, pelo contrário, se for preciso dividir o mesmo rectângulo por b, retirar-lhe-emos a altura b, e o quociente será a,

 

Quanto às divisões em que o divisor não é dado, mas apenas designado por uma relação, como quando se diz que é preciso extrair a raíz quadrada ou cúbica, etc., então há que ver que o termo a dividir e todos os outros, se devem sempre conceber como linhas que se encontram numa série de grandezas continuamente proporcionais, em que a primeira é a unidade e a última é a grandeza a dividir. Quanto à maneira de encontrar entre esta e a unidade tantas médias proporcionais quantas quisermos, será explicada no seu devido lugar. Que baste por agora o facto de termos advertido não haver necessidade de caminhos indirectos e reflexos da imaginação; por agora, tratamos apenas das questões a percorrer directamente.

 

Quanto às outras operações, podem, sem dúvida alguma, levar-se a cabo da maneira extremamente fácil como dissemos que se devem conceber. Resta, no entanto, expor como é que os seus termos se devem preparar, pois, ainda que tenhamos a liberdade, ao lidar com uma dificuldade, de conceber os seus termos como linhas ou como rectângulos, sem nunca lhes atribuirmos outras figuras, como dissemos na regra décima quarta, acontece muitas vezes no raciocínio que um rectângulo, depois de ter resultado da multiplicação de duas linhas, se deve conceber como uma linha, para fazer uma outra operação. Acontece ainda que o mesmo rectângulo, ou a linha resultante de uma adição ou de uma subtracção, deve logo conceber-se como um outro rectângulo a construir sobre uma linha designada, pela qual é preciso fazer a divisão.

 

É, pois, importante expor aqui como é que todo o rectângulo se pode transformar em linha e, por sua vez, como é que uma linha ou mesmo um rectângulo se podem transformar noutro rectângulo de lado designado. Isto é muito fácil para os Geómetras, desde que façam esta observação: por linhas, sempre que as comparamos a algum rectângulo, como aqui, entendemos sempre rectângulos, em que um lado é o comprimento que tomámos por unidade. Assim, todo este trabalho se reduz à proposição seguinte: dado um rectângulo, construir outro que lhe seja igual, sobre um dos lados.

 

Se bem que seja familiar até aos principiantes na Geometria, agrada-me no entanto expô-lo em pormenor, receando ter omitido algo.

 

Por este método de raciocinar, importa procurar tantas grandezas expressas de duas maneiras diferentes quantos os termos incógnitos que supomos como conhecidos, para percorrer directamente a dificuldade; ter-se-ão assim outras tantas comparações entre duas coisas iguais.

 

Resolvidas as equações, há que efectuar as operações que deixámos de lado, nunca utilizando a multiplicação sempre que para a divisão houver lugar.

 

Se tivermos várias equações desta espécie, há que reduzi-las a uma única, a saber, àquela cujos termos ocuparão o menor número de graus na série das grandezas continuamente proporcionais, segundo a qual os mesmos termos se devem ordenar.

 

 

                                                                  René Descartes

 

 

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