Biblio "SEBO"
SONHAVA agradavelmente quando a extensão telefónica do quarto o acordou. No sonho era um rapazinho a caminhar de mãos dadas com o pai, num dia outonal cheio de sol, para o Estádio da Yale em New Haven, a fim de assistir ao primeiro jogo de râguebi.
‑ Sheila ‑ tartamudeou‑, atende, sim?
O telefone estava na mesa‑de‑cabeceira do lado da mulher. Lembrou‑se logo, porém, de que a mulher não estava. Resmungou e estendeu‑se, entorpecido, através da cama. A luminosidade das setas do pequeno relógio da mesa‑de‑cabeceira indicava que eram três e meia. Resmungou de novo, enquanto tacteava à procura do telefone e levantava o auscultador.
‑ Damon ‑ disse uma voz que ele não reconheceu, rouca e áspera.
‑ Sim?
‑ Mr. Damon ‑ prosseguiu a voz ‑, ouvi a boa notícia e quis ser um dos primeiros a felicitá‑lo.
‑ O quê? ‑ perguntou Damon, atordoado e em voz pastosa. ‑ Quem fala? Que boa notícia?
‑ Tudo a seu tempo, Roger ‑ respondeu a voz.‑ Leio os jornais, como toda a gente. E, pelo que sei a seu respeito, achei que devia ser uma daquelas pessoas simpáticas que gostam de compartilhar a sua sorte ‑ de a espalhar à sua volta, por assim dizer.
‑ Passa das três da manhã... Em nome de Deus, que raio de ideia...
‑ É noite de sábado. Pensei que estivesse em casa a festejar com amigos. Enfim, visto ser sábado e tudo o mais, talvez me convidasse para uma bebida...
‑ Oh, homem, não chateie e deixe‑me dormir ‑ pediu Damon, fatigado.
‑ Tem muito tempo para dormir, Roger; tem sido um rapaz mau e vai ter de fazer alguma coisa a esse respeito. ‑ O tom era grosseiramente brincalhão.
‑ O quê? ‑ Damon abanou a cabeça, confuso, a perguntar a si mesmo se não se trataria de outro sonho. ‑ De que diabo está a falar?
‑ Sabe de que estou a falar. Roger. ‑ O tom deixara de ser brincalhão e tornara‑se ameaçador. ‑ Fala Zalovsky, de Chicago.
‑ Não conheço nenhum Zalovsky. E há anos que não vou a Chicago. ‑ Damon permitiu que o despertar da sua cólera, lhe tornasse a voz cortante. ‑ Que diabo pretende ao telefonar‑me no meio da noite? Vou desligar e...
‑ Aconselho‑o a não desligar, Roger ‑ disse o homem. ‑ Tenho de falar consigo.
‑ Eu não tenho de falar consigo. Boas noites, vou desligar imediatamente...
‑ Detestaria vê‑lo fazer uma coisa de que se arrependeria... de que se arrependeria muito, Roger... uma coisa como desligar o telefone ao Zalovsky. Já disse que quero falar consigo. E quero falar consigo esta noite.
‑ Não estou em Chicago. Ou não reparou nisso quando marcou o meu número? ‑ Já completamente acordado, apetecia‑lhe pagar na mesma moeda ao indivíduo, ainda que fosse apenas pelo telefone. ‑ Que é você? Um desses chalados do telefone?
Mas lembrou‑se de que talvez fosse um dos seus amigos, que estivesse bêbedo numa festa ou num bar aberto toda a noite e tivesse resolvido pregar‑lhe uma partida. No exercício da sua profissão acumulara alguns estranhos amigos.
‑ Está bem, está bem ‑ disse, mais calmamente.‑ Que tem a dizer de sua justiça?
‑ Não tenho nada a dizer de minha justiça ‑ respondeu o homem. ‑ Aqui quem manda sou eu. E também não estou em Chicago; estou apenas a uns dois quarteirões da sua casa. Na Rua 8.
Porque não despe os abafozinhos interiores de lã, veste qualquer coisa e vem encontrar‑se comigo à esquina da sua rua, daqui a, digamos, dez minutos? Terá tempo de lavar os dentes e pentear‑se...‑ O homem soltou uma gargalhada breve, um riso áspero.
‑ Não sei o que pensa que está a fazer, Mr. Zalovsky
‑ respondeu Damon ‑, mas se tem alguma coisa a tratar com alguém chamado Damon, ligou para o Damon errado. Devia certificar‑se de que não se enganava ao ligar para um homem no meio da noite e...
‑ Zalovsky não tem o hábito de cometer enganos. Estou a falar com o Roger Damon certo, e você bem o sabe. Aconselho‑o a encontrar‑se comigo daqui a dez minutos. Caso contrário... ‑ o homem pigarreou. ‑ Caso contrário, haverá consequências, Roger, consequências de que não gostará, de que não gostará mesmo nada...
‑ Vá‑se lixar ‑ replicou Damon.
‑ Sem palavras feias e antes que desligue, Roger
‑ redarguiu Zalovsky‑, uma última advertência. Trata‑se de uma questão de vida ou de morte. Da sua vida e da sua morte.
‑ Repito, vá‑se lixar ‑ disse Damon. ‑ Tem andado a ver muitos filmes de bandidos.
‑ Foi avisado, Roger. Posso não voltar a telefonar. Damon repôs o auscultador no descanso, com força,
emudecendo a odiosa voz grossa.
Estivera deitado atravessado na cama, para chegar ao telefone, mas depois de desligar virou‑se e sentou‑se. Sabia que era inútil tentar readormecer. Passou a mão pelo cabelo e esfregou os olhos. Tinha as mãos a tremer e irritou‑se consigo mesmo por causa disso. Ainda bem que a mulher não estava em casa naquele fim‑de‑semana, que fora visitar a mãe em Vermont. O telefonema tê‑la‑ia assustado, e depois irritado, e depois tornado desconfiada, e ela tê‑lo‑ia atormentado com perguntas durante horas para tentar saber o que ele fizera para receber um telefonema ameaçador às três e meia da manhã. Acabaria por redundar tudo numa das suas pouco frequentes discussões em que ela empregaria as frases «as tuas conhecidas propensões» e «com o teu passado...» Era por natureza uma mulher calma, mas não gostava de mistérios. Quando se preocupava por causa dele ou quando desconfiava de que, perversamente, ele estava a ocultar‑lhe algum sofrimento ou algum problema, tornava‑se insultuosa. Damon prometeu a si mesmo não lhe dizer nada a respeito do telefonema. Antes de ela chegar a casa inventaria um pretexto qualquer para mudar de lugar na cama, a fim de ser ele a atender o telefone. Claro que ela também ficaria desconfiada com isso, pois sabia que ele detestava falar ao telefone. Era a sua segunda mulher. Damon vivera com a primeira menos de um ano e aos 24 anos estava divorciado. Casara pela segunda vez aos 40 anos e durante os mais de 20 anos do seu casamento Sheila inventara ‑ ou, para ser verdadeiro, não inventara completamente ‑ uma ideia sombria da história dele antes de se terem conhecido. Sheila era quinze anos mais nova do que ele, e se alguém devia ter ciúmes esse alguém era ele. Não havia lógica no casamento.
«Ah!», pensou Damon. Provavelmente tinha sido um daqueles rapazes amigos de pregar partidas e de se divertirem, que costumavam escolher números ao acaso, na lista telefónica, e telefonar a fazer sugestões obscenas ou sinistras ameaças, com os amigos às gargalhadinhas, atrás. Mas a voz não fora a de um rapaz e ele não ouvira nenhumas gargalhadinhas em segundo plano. Mesmo assim, não falaria do assunto a Sheila. O homem dissera que talvez não voltasse a telefonar. No caso de voltar, até lá podia ao menos ter paz na família. Desejava que Sheila estivesse a gostar da visita a Vermont e regressasse bem disposta.
Entretanto... Entretanto o quê?
Suspirou e acendeu a luz. Estava frio no apartamento e ele vestiu um roupão quente, a recordar a voz provocante, quando dissera: «abafozinhos interiores de lã». Foi para a sala. Estava escuro. Ganhara algum dinheiro recentemente, mas os hábitos frugais de uma vida inteira persistiam. Acendeu as luzes todas. A sala era confortável, um pouco velha e a abarrotar de livros. O apartamento ficava no último andar de uma casa de arenito convertida em prédio de renda controlada e nenhuma das divisões era grande. A mulher andava constantemente a pedir‑lhe que se livrasse de alguns dos livros e ele prometia‑lhe sempre que havia de tratar disso.
Mas os livros iam aumentando.
Apesar do roupão, continuava com frio e até tremia um pouco. Andava de corpo hirto. Tinha à volta de 65 anos, constituição sólida e rosto avermelhado de quem leva uma vida ao ar livre, resultado de percorrer a pé e em cabelo, ida e volta, os três quilómetros de caminho para o escritório, estivesse o tempo que estivesse, e de dar passeios longos e solitários durante as férias. No entanto, só uma meia hora depois de se levantar as suas pernas aqueceram.
Tirou a lista telefónica de Manhattan da prateleira do fundo de uma das estantes e pô‑la em cima de uma mesa, debaixo de uma lâmpada. Orgulhava‑se de, apesar de usar óculos de leitura, quando necessário, ser capaz de ler os nomes e os números da lista telefónica sem eles, se a luz era boa.
Procurou na letra «D». Viu o seu nome, Damon, Roger, e a morada na Rua 10, oeste. Era o único Roger Damon mencionado em Manhattan. Embora o seu nome também estivesse na lista, na letra «G»: Gray, Damon & Gabrielsen, agência literária. Gray fundara a firma e dera sociedade a Damon ainda este não tinha 30 anos. Gray morrera havia anos, mas, por lealdade para com o velho, Damon não modificara o nome da agência. A lealdade tinha as suas virtudes, especialmente nos tempos que corriam. Gabrielsen era uma adição recente, em circunstâncias diferentes.
Fechou a lista telefónica e arrumou‑a com cuidado no seu lugar. Não queria deixar nenhuma pista para Sheila, quando ela regressasse a casa. Aguardaria o momento apropriado para lhe contar o que acontecera. Se é que algum momento poderia ser considerado apropriado.
Preparou uma boa dose de uísque com soda, na mesa encostada à parede, e bebeu‑o devagar, profundamente afundado na sua poltrona favorita. A bebida não o ajudou a compreender o que acontecera às três e meia daquela manhã. Nova Iorque estava cheia de loucos, pensou. Não apenas Nova Iorque. A América. O mundo. Assassinos fortuitos rondavam pelas ruas. Presidentes, papas, gente que esperava em estações de caminho‑de‑ferro, que saía de igrejas ou de lojas... Vida ou morte, dissera o homem.
A sua vida, a sua morte.
A não ser que se tratasse de uma grotesca brincadeira de mau gosto, algures um estranho ou alguém que o conhecia e lhe queria mal esperava por ele. Estava demasiado fatigado para tentar imaginar quem poderia ser e porque esperava, ou porque esperara até àquele momento.
Pensamentos nocturnos.
Sacudiu‑o um calafrio. Quando voltou para o quarto para tentar dormir, deixou todas as luzes da sala acesas.
ACORDOU‑O o som de sinos. Estivera a sonhar. Mais uma vez o pai fizera parte do sonho, mas sozinho e envolto numa luz viva, que irradiava do seu rosto sorridente e terno. Parecia jovem, como quando Damon tinha cerca de 10 anos e não como o homem descarnado e exausto em que se transformara no fim da vida. Debruçava‑se do que parecia uma balaustrada de mármore esculpido, a chamar com uma das mãos. Na outra segurava um cavalinho malhado, de madeira. O pai tinha sido fabricante de brinquedos para crianças, fizera bugigangas e bijutarias. Tinha morrido havia 20 anos.
Desta vez não era o telefone que tocava. Eram sinos de igreja. Domingo de manhã. Chamavam Nova Iorque para adorar. Vinde, todos vós fiéis da Cidade Imperial ‑ vinde, adúlteros, chantagistas, trapaceiros de bolsa. subornadores de júris, bêbedos, drogados, vadios, assassinos, perjuros, damas de batota, excêntricos do disco, trotadores, corredores de maratona, guardas prisionais, «chutadores» (*) e pistoleiros, vinde crentes e pregadores de falsa doutrina, vinde e adorai o Deus que pode ou não ter‑vos feito à sua semelhança.
Damon mexeu‑se na cama. A ausência de Sheila a seu lado causava‑lhe uma sensação estranha. Depois lembrou‑se do telefonema nocturno. Olhou para o relógio. Nove horas. Geralmente levantava‑se às sete.
(*) Calão: os que injectam heroína. (N. da T.)
A natureza tinha sido generosa com ele, deixara‑o dormir das quatro às nove. Cinco horas de esquecimento. Uma dádiva dominical.
Levantou‑se da cama e em vez de ir para a casa de banho lavar os dentes e tomar duche, dirigiu‑se descalço para a sala. As luzes continuavam todas acesas. Foi à porta, para ver se havia algum sobrescrito, algum bilhete caído no chão. Não havia nada.
Examinou a fechadura. Era frágil, simples. Um garoto podia abri‑la com um canivete. Durante todos os anos em que vivera em Nova Iorque nunca tinha sido roubado nem nunca pensara em fechaduras. A porta era de madeira, velha, tinha sido instalada quando a casa fora construída. Quando? 1900? 1890? Mudá‑la‑ia, compraria uma com um reforço de aço, uma fechadura impossível de forçar, um ralo e uma corrente. Não havia porteiro, em baixo, e todos os inquilinos, incluindo Sheila e ele próprio, eram descuidados no tocante a carregar no botão do trinco automático, quando a campainha tocava nas respectivas casas. O intercomunicador, pelo qual as pessoas deviam perguntar quem era antes de carregarem no botão e abrir a porta da rua, estava avariado havia anos. Que Damon soubesse, nem ele nem os seus vizinhos se tinham jamais queixado disso ao senhorio ou pedido que o mandasse consertar. Inocentes, falsamente seguros. Amanhã.
Preparou o pequeno‑almoço. Quando Sheila estava em casa, ao domingo, dava‑lhe sumo de laranja acabado de espremer, bacon e panquecas com melaço de bordo. Naquele domingo bebeu uma chávena de café e remediou‑se com uma fatia de pão da véspera.
O seu costumado ritual dos domingos era diferente. Enquanto Sheila preparava o pequeno‑almoço, ele ia comprar dois exemplares do Sunday Times, porqe tanto ele como Sheila gostavam de fazer o grande problema dominical de palavras cruzadas sem interferência um do outro, e passavam as manhãs num silêncio amigável, sentados em lados opostos da mesa da cozinha, a garatujar. Era um ponto de honra para ambos fazerem as palavras cruzadas a tinta. Os dois grandes montes de folhas de notícias, opinião, resultados, anúncios, elogio e condenação representavam de certo modo uma extravagância, mas eram um brinde de fim‑de‑semana e o sereno prazer da hora e tal depois do pequeno‑almoço fazia com que valessem a pena.
Vestiu‑se e desceu a escada silenciosa e mal iluminada. Parecia que todos os seus vizinhos dormiam até tarde. Teria algum deles recebido um telefonema no meio da noite? Também não havia nenhum bilhete na caixa do correio.
Tocou na algibeira, para se certificar de que tinha as chaves e podia regressar a casa, e desceu os poucos degraus que levavam à rua. Estava um dia agreste e cinzento, com rabanadas de vento frio. A Primavera atrasara‑se, naquele ano. Olhou para um lado e outro da rua. Uma mulher gorda com dois cães pequenos presos numa trela e um homem novo a empurrar um carro de bebé constituíam todo o trânsito daquela manhã de domingo. Ali não havia emboscadas, pelo menos que ele visse. No entanto, para um olhar conhecedor, a rua podia estar cheia de sinais ominosos. Fez uma careta, irritado com o seu nervosismo.
Ao chegar ao quiosque hesitou momentaneamente, sem saber se devia comprar um ou dois jornais. Pegou em dois, aborrecido, como sempre, com o volume e o peso sem sentido. Duvidava que Sheila comprasse o Sunday Times em Vermont, e sabia que ficaria grata se visse que ele pensara nela na sua ausência e lhe guardara uma cópia do problema de palavras cruzadas para quando chegasse a casa, mesmo que não tivesse tempo para as fazer. Olhou para a primeira página. Não trazia o nome de Zalovsky. Talvez esse não fosse o seu verdadeiro nome. Talvez o seu nome fosse realmente Smith ou Brown e Zalovsky fosse o seu nom de guerre e nas páginas interiores viesse uma história descrevendo os muitos crimes que cometera e pelos quais a polícia de dez estados andava agora a procurá‑lo. Embora a adopção de um nome como Zalovsky, para qualquer vingança ou má acção que o homem pretendesse executar, parecesse, tinha de o admitir, desnecessariamente complicada. A ideia fê‑lo sorrir. Enquanto regressava a casa, olhou para os transeuntes sem qualquer suspeita. A manhã ajustara‑se no seu padrão habitual dos domingos e quando as nuvens se separaram durante alguns momentos e a rua reflectiu os raios do Sol, ele deu consigo a cantarolar tranquilamente, ao aproximar‑se da porta.
Mas quando se sentou para fazer as palavras cruzadas foi com dificuldade que conseguiu completar algumas linhas. Ou o problema era mais difícil do que habitualmente, ou os seus pensamentos andavam longe. Pôs de parte a secção de magazine e abriu a secção de crítica literária, à procura da lista de bestsellers. Threnody, de Genevieve Dolger, ainda lá estava. Era o número quatro. Apesar do título, vinha na lista dos bestsellers havia já doze semanas. Damon abanou a cabeça melancolicamente, a lembrar‑se que tinha sido apenas por causa da insistência de Oliver Grabrielsen que acedera a trabalhar no livro com a autora e a tentar vendê‑lo, e que quase se tinham zangado por causa disso.
Oliver Gabrielsen era o seu assistente e trabalhava com ele havia quase 15 anos. Leitor omnívoro, tinha uma memória notável e um olho astuto, ainda que um tanto ou quanto excêntrico, para material fora do vulgar. Oliver conhecera Mrs. Dolger numa festa nos arredores de Roslyn, Long Island, que não é o género de lugar de onde costumam vir os bestsellers. A autora era uma mulher dos seus cinquenta e tal anos, casada com o vice‑presidente de um pequeno banco. Tinha quatro filhos, nunca escrevera nada antes e iniciara o romance, segundo parecera a Damon, principalmente por se sentir enfastiada com a sua vida de esposa suburbana. Era uma fantasia simples e ingénua acerca de uma rapariga pobre que subira na vida servindb‑se da sua beleza, do seu corpo e do seu apetite por homens, e que acabara por ter um fim trágico. Tratava‑se da mais velha das histórias e Damon não conseguira compreender por que motivo Oliver se mostrava tão interessado nela. A maior parte das vezes, os gostos de ambos eram similares. Quando Oliver dissera: «Dinheiro. Este livro tem a palavra dinheiro escarrapachada em todo ele. Para variar, aproveitemos uma fatia do grande bolo para nós», Damon abanara cepticamente a cabeça. «Oliver, meu pobre rapaz», dissera, «receio que ande a trabalhar em excesso ou a ir a demasiadas festas.»
No entanto, para manter a paz no escritório e porque era uma altura de pouco movimento, com toda a gente a passar o Verão fora de Nova Iorque, trabalhara com a mulher, que era uma criatura plácida e pouco exigente, para tornar o livro pelo menos apresentável, suavizar as cenas de amor mais explícitas e a linguagem surpreendentemente grosseira e corrigir a gramática. Fora fácil convencê‑la a respeito de tudo menos do título. Embora ele a tivesse avisado de que Threnody era a espécie de título que punha as livrarias às moscas, ela mostrara‑se obstinada e surda a todos os argumentos. Damon acabara por suspirar e ceder. Em abono da verdade tinha no entanto de confessar que, depois do êxito do livro, ela nunca o arreliara lembrando‑lhe a sua lúgubre previsão. Não profissional em tudo quanto fazia, insistira com ele para que cobrasse 20 % de todos os seus ganhos com o livro, em vez dos 10 % habituais do agente. Meio a brincar, ele recomendara‑lhe que guardasse absoluto segredo desse gesto de extravagante generosidade, pois se o caso constasse arriscava‑se a ser boicotada durante o resto da sua vida por todas as organizações de escritores do país.
Não era o género de livro com que ele ou o seu antigo sócio Gray alguma vez se tivessem incomodado. Tinham‑se dedicado principalmente a descobrir jovens escritores e a ampará‑los no caminho das boas críticas e das vendas modestas, e não raras vezes haviam mantido esses escritores vivos com dinheiro do seu próprio bolso, enquanto terminavam os seus livros ou as suas peças. Nenhum deles ganhara nunca muito dinheiro, e uma decepcionante percentagem dos jovens e das jovens que tinham ajudado haviam‑se revelado autores de um só livro, ou viciado em drogas ou álcool, ou desaparecido em Hollywood.
Damon acalentara poucas esperanças pelo livro de Mrs. Dolger e quase se sentira aliviado quando meia dúzia de casas tinham recusado o romance, em rápida sucessão. Estava decidido a telefonar à dama, para Roslyn, e informá‑la, com cortês mágoa, de que o livro era invendável quando uma pequena editora o comprara e pagara um adiantamento insignificante para uma pequena primeira edição. O livro ascendera rapidamente ao topo da lista dos bestsellers, fora vendido para as edições brochadas por um milhão de dólares e Hollywood comprara‑o.
As comissões pareciam a Damon astronómicas. Pela primeira vez, o seu nome tinha sido mencionado nos jornais e a sua agência estava a ser inundada de manuscritos de escritores famosos e altamente pagos que estavam descontentes, por uma razão ou por outra, com os seus agentes e muitos dos quais ele nunca sequer vira na sua longa carreira no ramo.
‑ A sorte dos dados ‑ comentou Oliver, complacentemente. ‑ Tinha de acabar por nos sair um sete.
Pedira que o seu ordenado duplicasse e que o seu nome fosse posto na porta, como sócio. Damon sentira prazer em aceder a ambos os pedidos, mudara o nome da firma para Gray, Damon & Gabrielsen e limitara‑se a pedir a Oliver que fosse a menos festas. Mas recusara‑se firmemente a mudar‑se do que Oliver chamava as suas tristes duas divisões a fingir de escritório para instalações mais esplendorosas e apropriadas.
‑ Enfrente a realidade, Roger ‑ redarguira Oliver. ‑ Quando alguém aqui entra, pensa que mobilámos isto para cenário da Bleak House e olha a ver se ainda escrevemos com penas de pato.
‑ Oliver ‑ respondera Damon‑, deixe‑me explicar as coisas, embora você já trabalhe comigo há tanto tempo que não deveria ser preciso. Dediquei quase toda a minha vida de trabalho àquilo a que você chama «tristes duas divisões a fingir de escritório», e tenho tido sorte aqui e gosto de vir trabalhar para cá, de manhã. Não sinto desejo nenhum de me tornar um magnata e tenho ganho decentemente a vida, ainda que não, talvez, de acordo com aquilo a que vocês, jovens modernos, consideram padrões apropriados. Não sinto desejo nenhum de olhar para um mar de secretárias e saber que as pessoas a elas sentadas estão a trabalhar para mim e a exigir que as contrate, as despeça, as julgue e pague os seus planos de segurança social e reforma e sabe Deus que mais. O caso de Threnody é um logro, uma faísca que só cai uma vez. Para lhe ser franco, espero que não volte a acontecer nada semelhante. Arrepio‑me quando passo pela montra de uma livraria e os meus fins‑de‑semana têm sido arruinados por ver o livro na lista do Times todos os domingos. Dez linhas brilhantes do manuscrito de um jovem escritor desconhecido têm‑me causado infinitamente mais prazer do que todo o prazer que tenho tido e virei a ter com o pagamento das comissões de Threnody. Quanto a si, meu velho amigo, é jovem e, como é costume hoje em dia, rapace.
Era um pouco injusto e Damon sabia‑o, mas queria que o seu ponto de vista ficasse bem entendido. Oliver Gabrielsen não era assim tão jovem ‑ aproximava‑se dos 40 anos ‑, era tão dedicado ao serviço da escrita decente como o próprio Damon e quando pedira aumentos fizera‑o quase como quem pede desculpa. Damon sabia que, não fora o ordenado da mulher, Oliver teria vivido muito perto da fronteira da pobreza. Também sabia que Oliver recebera frequentes ofertas para trabalhar como director literário em casas editoras, com ordenados muito mais elevados do que ele lhe pagava, e recusara por causa daquilo a que chamava o desenfreado comercialismo das grandes casas que podiam dar‑se ao luxo de pagar o que lhe deviam ter parecido ordenados principescos, em comparação com as rações de miséria que recebia de Damon. Mas a inesperada maré de dinheiro que invadia o escritório parecia tê‑lo desequilibrado temporariamente e a percentagem das comissões que passara a caber‑lhe, como sócio, tinha modificado visivelmente o seu estilo de vestuário e os restaurantes onde almoçava. Além disso, mudara‑se de um apartamento pelintra no West Side para uma morada elegante nas 60, leste. Damon, como seria de esperar, atribuía as culpas à mulher de Oliver, Doris, que abandonara o emprego e agora aparecia de vez em quando no escritório de casaco de marta.
‑ Você pode ser demasiado jovem, Oliver ‑ prosseguiu Damon, a apreciar a oportunidade de perorar sobre um assunto que o seu antigo patrão, Mr. Gray, desenvolvera muitas vezes ‑, para conhecer o conforto da modéstia, a arrogância, até, de rejubilar com o alcance de objectivos moderados e realizações mundanas ainda mais moderadas, para saber que as coisas pelas quais outros homens caminham mais depressa para a sepultura lhe não interessam para nada. Eu nunca estive um dia doente na minha vida, nunca tive nenhuma úlcera, nem hipertensão, nem precisei de consultar um psiquiatra.
A única vez em que estive num hospital foi por ter sido atropelado por um automóvel quando atravessava a rua, de que resultou a fractura grave de uma perna.
‑ Bata três vezes em madeira ‑ aconselhou Oliver. ‑ É melhor bater em madeira.
Damon compreendia perfeitamente que ele não estava a aceitar o sermão de bom grado.
‑ Não sugeri que alugássemos o Tal Mahal, com os diabos! ‑ defendeu‑se Oliver. ‑ Mas não nos mataria se tivéssemos uma sala para cada um e um lugar decente para instalar outra secretária, a fim de dar uma ajuda no maldito correio. E com todas as chamadas que recebemos hoje em dia é pretensioso ter apenas uma linha telefónica. Ainda a semana passada um tipo da Random House me contou que ligou para o nosso número durante dois dias antes de conseguir ser atendido. Disse que, para a próxima vez que quiser comunicar connosco, utilizará //tantas. Instalar um PBX não significaria que toda a gente ia pensar que você estava a vender a alma aos filisteus. E também não seria luxo pecaminoso termos janelas cujos vidros fossem lavados de seis em seis meses. Aqui, quando quero saber como está o tempo lá fora, tenho de ligar a telefonia.
‑ Quando eu partir ‑ redarguiu Damon, em tom propositadamente sonoro‑, pode alugar um andar no Rocke‑feller Center e contratar para sua recepcionista a vencedora do concurso de Miss América. Mas enquanto eu cá estiver geriremos o nosso negócio como de costume. Oliver deu uma fungadela desdenhosa. Era um homem pequenino e louro, quase albino, e para compensar a pequenez andava muito erecto e com os ombros militarmente direitos. Fungar daquela maneira não era característico dele.
‑ Quando você partir ‑ resmungou. ‑ Não partirá nem daqui a mil anos. ‑ Eram bons amigos, como não podia deixar de ser trabalhando em mangas de camisa tão perto um do outro, dia após dia, e entre eles não havia cerimónias.
‑ Como lhe tenho dito repetidamente ‑ respondeu Damon ‑, tenciono reformar‑me o mais depressa possível e tentar ler todos os livros que não tenho tido tempo para ler por causa de dirigir esta agência.
‑ Só acreditarei quando vir ‑ ripostou Oliver - mas a sorrir.
‑ Prometo não o visitar, sequer, nas suas novas instalações palacianas ‑ prosseguiu Damon. ‑ Contentar‑me‑ei com receber os cheques trimestrais que o nosso contrato o obriga a enviar‑me e a acreditar que não arranjou um guarda‑livros gatuno para fazer falcatrua nos livros.
‑ Só não lhe roubarei o que não puder ‑ afirmou Oliver. ‑ Garanto‑lhe.
‑ Assim seja ‑ disse Damon, a dar‑lhe palmadinhas no ombro. ‑ E agora encerremos o assunto. Como concessão às suas susceptibilidades, pagarei pessoalmente a um homem para lavar as janelas, amanhã.
Riram‑se ambos e recomeçaram a trabalhar.
Sentado na sala atravancada com os sinos dominicais ainda a badalar e a página da crítica literária aberta à sua frente, com a lista dos bestsellers, recordou a conversa com Oliver e as palavras do sócio: «Dinheiro. Este livro tem a palavra dinheiro escarrapachada em todo ele.»
Oliver tivera razão. Tivera lamentavelmente razão.
Damon recordou também o que Zalovsky dissera: «Leio os jornais como toda a gente.» O que Zalovsky não sabia era que uma boa parte das comissões tinha sido gasta no pagamento de dívidas antigas e nas reparações necessárias da pequena casa de Long Island Sound, em Old Lyme, Connecticut, que um tio de Sheila, afectuoso e sem filhos, deixara à sobrinha em testamento. Passavam lá as férias de Verão e um ou outro fim‑de‑semana, quando podiam, tentando ignorar o seu estado de quase ruína. Agora teria um telhado novo, novas canalizações e nova pintura. Estaria pronta para o receber quando Damon achasse que era altura de se reformar.
Um simples caso de tentativa de chantagem ou extorsão, pensou, o preço de algumas linhas na coluna de algum jornal, num dia de pouco movimento. Ou não seria assim tão simples?
No entanto, era uma pista. Marcou o número de Roslyn.
‑ Genevieve ‑ disse, quando a própria autora atendeu o telefone‑, leu o Times desta manhã?
‑ Não é maravilhoso? ‑ perguntou Genevieve, que tinha uma voz fraca e defensiva, como se estivesse habituada a ser constantemente contrariada pelo marido e pelos filhos. ‑ Semana após semana. Até parece um conto de fadas.
«Mais do que jamais farás ideia, minha querida», pensou Damon, mas em vez disso comentou:
‑ Chegou à medula dos leitores de toda a parte.‑ Antes da venda para as edições brochadas teria corado ao ouvir‑se dizer tais palavras. ‑ Queria perguntar‑lhe... Por acaso recebeu um telefonema de um homem chamado Zalovsky?
‑Zalovsky, Zalovsky... ‑ Genevieve pareceu indecisa.‑ Não me lembro. Telefona tanta gente, hoje em dia... Televisão, rádio, entrevistas... O meu marido diz que vai pedir um número que não venha na lista.
«Mais um número que não venha na lista», pensou Damon. «Obtém êxito e esconde‑te. À maneira americana.»
‑ Zalovsky... ‑ repetiu Genevieve. ‑ Porque pergunta?
‑ Recebi um telefonema, acerca do livro. Foi muito vago. Disse que poderia telefonar de novo e eu pensei que talvez ele preferisse tratar directamente consigo. Como sabe, no escritório somos só o Olivier, eu e a secretária, e desde que você teve um êxito tão grande temos dificuldade em acompanhar todos os pedidos... Não é como nalgumas das grandes agências, com dúzias de pessoas, e secções, e tudo o mais...
‑ Bem sei. Todas elas recusaram o meu livro antes de eu os procurar a vocês. ‑ A voz deixara de ser defensiva e passara a ser amarga e fria. ‑ E sem a mínima cortesia. Você e o Oliver foram os dois primeiros cavalheiros genuínos que encontrei desde que escrevi o meu livro.
‑ Tentamos não nos esquecer da velha máxima que o meu antigo sócio gostava de repetir: editar é um negócio de cavalheiros. Claro que isso foi há muito tempo e as coisas mudaram. No entanto, é agradável saber que as nossas maneiras são apreciadas por certas pessoas.
Sentia‑se sempre pouco à vontade quando falava com Genevieve Dolger. As próprias palavras soavam‑lhe aos ouvidos como se tivessem sido engomadas e passadas a ferro. Perturbava‑o o facto de não ser capaz de falar normalmente com aquela mulher que as circunstâncias tinham atravessado na sua vida. Não era homem para fingimentos. Tinha por hábito, de que se orgulhava, dizer aos seus clientes exactamente o que pensava, quer em louvor, quer em admoestação. Se eles se ofendiam com as suas críticas, se se zangavam ou mostravam excessivamente na defensiva, dizia‑lhes francamente que por certo se sentiriam mais felizes com outra agência. Aquela era a única maneira como sabia trabalhar, explicava‑lhes. Mas agora aquela mulher que o enriquecera fazia‑o falar como se tivesse a boca cheia de rebuçados.
‑ Não pense que alguma vez me esquecerei da sua ajuda nem do que lhes devo ‑ dizia Genevieve, com voz trémula. ‑ Ficarei grata aos dois durante toda a minha vida, pelo que fizeram por mim.
‑Não duvido ‑ comentou Damon, lembrando‑se de todos os autores que, numa ocasião ou noutra, tinham dito mais ou menos a mesma coisa e depois se tinham passado, umas vezes envergonhadamente, outras vezes coléricos, para as grandes agências que podiam apresentá‑los às estrelas de cinema, mandar limusinas esperá‑los ao aeroporto, arranjar bilhetes à última hora para êxitos da Broadway com a casa esgotada havia meses, organizar campanhas publicitárias de televisão através do país e almoços de negócios nos melhores restaurantes da cidade. ‑ Não se esqueça de me dizer quando arranjar o seu número de telefone secreto.
‑ Será o primeiro a quem telefonarei, Roger ‑ afirmou ela, com a voz, para mágoa de Damon, repassada de sincera emoção.
‑Como vai o novo livro? ‑ perguntou, consciente de que ela esperava lhe fizesse essa pergunta.
Genevieve suspirou e o som chegou‑lhe suave e triste, através do telefone.
‑ Oh, é terrível, terrível! Parece que não consigo avançar. Escrevo uma página, releio‑a e tenho a certeza de que é absolutamente pavorosa. Rasgo‑a e depois vou fazer uma tarte, para não chorar.
‑ Não se preocupe ‑ tranquilizou‑a Damon, muito aliviado com a notícia. ‑ O princípio é sempre o mais difícil.
E não se apresse. Bem sabe que não há necessidade nenhuma disso.
‑ Tem de aprender a ser paciente comigo. ‑ Estou habituado aos bloqueios dos escritores ‑ disse Damon, a pensar que devia fazer figas ao fingir que aceitava a criatura como um membro daquela austera e aterradora profissão. ‑ Aparecem e desaparecem. Bem, parabéns mais uma vez, e não se esqueça: se precisar de mim, telefone.
Desligou. «Se tivesse sorte», pensou, ela faria uma centena de tartes antes de acabar o novo livro e ele ter‑se‑ia, entretanto, reformado da agência e retirado para a casinha de Old Lyme, nas costas do Sound. Pelo menos, pensou enquanto repunha o auscultador no descanso, Zalovsky não a incomodara. Se tivesse incomodado, ela com certeza lembrar‑se‑ia do nome.
Deu algumas voltas pelo apartamento desassossegado. Levara para casa um extenso manuscrito, para ler no fim‑de‑semana, pegou‑lhe e tentou ler algumas páginas, mas largou‑o, pois não encontrava sentido no que lia. Foi para o quarto e fez cuidadosamente a cama, coisa que não fazia desde que se casara. Genevieve Dolger com as suas tartes e ele com a sua cama. Olhou para o relógio. Ainda faltavam umas seis horas para Sheila chegar a casa. Os domingos sem ela eram vazios. Resolveu sair e dar um passeio até serem horas para almoçar. Mas quando vestia o sobretudo o telefone tocou. Deixou‑o tocar seis vezes sem se aproximar do instrumento, a fitá‑lo e a desejar que quem quer que fosse se cansasse de esperar e desistisse. Mas o telefone tocou uma sétima vez. Levantou o auscultador, à espera de ouvir a voz rouca e grosseira. Mas tratava‑se da autora do manuscrito que levara para casa e que de momento não conseguia ler.
‑ Só queria saber se acabou de ler o meu manuscrito‑ disse a mulher.
A voz era a melhor coisa que ela tinha: profunda e musical. Tinham tido um breve romance havia dois anos. Sheila dissera, ao ser informada do caso por uma amiga, que a mulher se atirara à cara dele. Frases de Sheila. Mas, para variar, a frase estivera certa. Depois do seu segundo encontro a mulher confiara‑lhe: «Tenho de lhe dizer: nunca conheci nenhum homem com uma cara tão sexy. Quando entra numa sala é como um touro a entrar na arena.» Passara um ano em Espanha, lera demasiado Hemingway e o seu falar era recheado de imagens ibéricas. Se tivesse empregado a palavra cojones, não lhe teria tocado, nem a ela, nem ao seu manuscrito. Mas ela refreara a língua e ele sucumbira, apesar de nunca ter pensado em si mesmo nos termos em que ela o descrevia. Na realidade, tinha até a impressão de que quando entrava numa sala perdia um pouco a firmeza do andar. E nunca vira um touro com olhos cinzento‑pálido como os seus. «Observa‑te ao espelho e vê um rosto desconhecido.» A mulher era razoavelmente bonita e inteligente, e nada má escritora, e mantinha o corpo em forma indo diariamente a um ginásio. Sentira‑se lisonjeado por uma mulher daquelas se esforçar tanto para o apanhar na sua cama. Com a sua idade. Bem, sessenta e poucos anos não era a beira da sepultura. Num dos seus raros momentos de azedume, Sheila dissera‑lhe: «Esbanjas‑te com mulheres.» O casamento não o curara dessa fraqueza particular. A ligação tinha sido agradável, não mais do que isso.
‑ Gosto do que li até agora ‑ respondeu. Imaginou‑a deitada nua na cama, de seios empinados e pernas ginasticadas musculosas. Esteve quase a convidá‑la para almoçar, mas desistiu. «Não contribuas para o testemunho que alguém ande porventura a coligir contra ti.»
‑Tentarei acabá‑lo até logo à noite. Depois telefono‑lhe.
Saiu e caminhou à toa pelas ruas de Greenwich Village. Parecia que ninguém o seguia. Geralmente, aos domingos, ele e Sheila almoçavam tarde num pequeno restaurante italiano de que ambos gostavam. Buon giorno, Signor, Signora, vá bene? Um gangster tinha lá sido abatido a tiro vários anos atrás. Esparguete com molho de caranguejo. Aconchegadas tardes de domingo em que podiam descontrair‑se juntos e esquecer as tensões da semana que passara e da que os esperava, diante de uma garrafa de Chianti.
O restaurante estava cheio, ele tivera de esperar por uma mesa e o proprietário perguntara pela saúde da signora ausente.
As pessoas ruidosas das outras mesas fizeram‑no sentir‑se mais só do que nunca. A garrafa de vinho não melhorou as coisas. Enquanto perguntava a si mesmo que sensação causaria o tiro num pequeno restaurante italiano.
QUANDO regressou depois de almoçar, viu uma folha de papel meio enfiada na abertura da sua caixa do correio. Olhou‑a apreensivamente, hesitou antes de lhe tocar e por fim tirou‑a. A folha de papel tinha sido arrancada de um livro de esboços e o recado, garatujado com um lápis preto, grosso, era de Gregor: «Passámos por aqui e tocámos para tua casa. Ficámos decepcionados. Escondes‑te de nós? Os amigos deviam estar em casa aos domingos. Vamos festejar. Explico‑te quando te vir. Desejamos compartilhar a nossa alegria com os nossos camaradas. Se leres isto antes da meia‑noite, vai a nossa casa. Haverá uma festa estilo húngaro, com vinho e mulheres e chouriço duro. Pelo menos uma mulher e um chouriço. Avanti!»
Damon sorriu ao ler o bilhete e depois, enquanto subia a escada, viu as horas. Ainda não eram três horas e Sheila não deveria chegar antes das seis. Gostava sempre de ver Gregor Khodar e a sua hospitaleira e talentosa mulher. Além disso, representava um dramaturgo cuja peça começaria a ser ensaiada em Setembro e esperava que Gregor pudesse fazer os cenários. Ao contar‑lhe o processo da sua americanização, Gregor dissera‑lhe que começara a caminhar para ocidente quando os Russos tinham chegado a Budapeste em 1956 e só parara quando chegara a Nova Iorque. «Acontecesse o que acontecesse» confidenciara uma vez a Damon, «eu sabia que seria mau para seres humanos. Por isso, perguntei a mim mesmo:
"Eu, Gregor Khodar, sou ser humano?" Examinei prós e contras. Achei que sim, talvez não fosse ser humano da classe mais elevada, mas mesmo assim pertencia à categoria.»
Tinha 20 anos, nessa altura, era um estudante de Arte sem dinheiro e passara alguns bocados muito maus de que nunca falava, antes de se fixar em Nova Iorque. E nunca revelara se deixara ou não alguma família atrás de si.
Embora se orgulhasse de ser húngaro («um povo civilizado, sempre apanhado no século errado», era a sua maneira de descrever os seus compatriotas), não era sentimental a esse respeito. «A Europa Central», dizia, «é como aqueles recifes de coral do Pacífico. A maré sobe e não se vêem, a maré desce e estão lá. O melhor que se pode dizer a seu respeito é que constituem perigo para a navegação. Quando bebo vinho Tokay e fico um bocadinho bêbedo, tenho a impressão de ficar com gosto a sangue e água do mar na boca.»
Com a sua testa alta, o seu cabelo preto e ralo a recuar, o sorriso suave e arcaico e a redonda e confortável barriga da meia‑idade, parecia, como Damon lhe dissera uma vez, um buda a pensar numa maroteira.
Falava com um sotaque brando e peculiar, com o moreno rosto magiar iluminado por olhos fundos e zombeteiros e os lábios, com um leve revirar para cima, como um arco ornamental destinado a pendurar na parede e não a matar, a darem a impressão de que nada do que ele dizia era para ser tomado a sério. No entanto, era um artista dotado e devotado, e além dos seus quadros, que tinham sido expostos em galerias de todo o país, fizera cenários para muitas peças da Broadway. Pintava lenta e laboriosamente e recusava dúzias de encomendas de cenários por não lhe agradarem. Por isso, não se podia dar ao luxo de viver como rico, mas troçava da sua pobreza, comparada com a abastança dos seus colegas mais acomodatícios.
A sua mulher, Ebba, uma criatura alta, magra e terna, com o rosto cansado de uma mulher da fronteira, descendia de suecos do Minesota e desenhava guarda‑roupas para o teatro. Os dois, além de serem um casal dedicado
e socialmente muito compensador, formavam uma utilíssima equipa de trabalho.
Damon não fazia ideia nenhuma do que Gregor estava a festejar, mas algumas horas de barulho e conversa no seu grande sótão próximo do rio Hudson, que os Khodars tinham convertido num estúdio onde podiam ambos trabalhar e viver, seriam com certeza melhores do que se passasse a longa tarde de domingo sozinho, a matutar.
Prevendo a possibilidade de Sheila chegar mais cedo, deixou um bilhete a dizer‑lhe que estava em casa de Gregor e a pedir‑lhe que telefonasse para lá. Sheila gostava do casal e uma vez até ficara suficientemente quieta para Gregor lhe pintar o retrato, no Verão anterior, quando os Khodars os tinham visitado no Connecticut. Gregor não se sentira satisfeito com o trabalho e mantivera o retrato num cavalete, no estúdio, para lhe poder dar umas pinceladas de vez em quando. «O problema, Sheila», dissera‑lhe, «é você ser nobre de cara, de figura, de carácter, de tudo, e nesta era moderna já não se fazerem pinturas a exprimir nobreza. Pelo menos em seres humanos. As pessoas já não parecem nobres, pura e simplesmente. Só alguns cães ‑ terras‑novas, cães de caça dourados, setters irlandeses... Dê‑me tempo, dê‑me tempo. Tenho de voltar atrás, ao século XV. Não é uma curta viagem de metropolitano.»
Gregor acolheu Damon com um abraço e Ebba com um tímido beijo na face. Gregor, que tinha as suas ideias próprias quanto à maneira como um artista devia vestir‑se, apresentava‑se de camisa de flanela aos quadrados com uma grande e berrante gravata cor de laranja e calças largas, de bombazina. Sem esquecer o grosso casaco de tweed castanho‑chocolate, que usava até no tempo mais quente. Era como se em certa altura da sua vida se tivesse sentido tão gelado que nunca mais se voltaria a sentir suficientemente quente.
Ao contrário do que acontecia nos estúdios de outros artistas, não estavam à vista quaisquer exemplares do trabalho de Gregor. O retrato de Sheila, no cavalete, estava coberto com um pano e todas as suas outras telas estavam empilhadas, de frente voltada para a parede. «Tenho medo», explicara Gregor, «de olhar para o que já fiz quando estou a fazer qualquer outra coisa. Se estou cansado ou numa fase difícil, há grande tentação de escolher caminho mais fácil: autoplagiar‑me. Quando estou bêbedo, altas horas da noite, com todo o trabalho do dia feito, olho os quadros. Rio ou choro e depois volto a ocultá‑los.»
Damon sentiu‑se aliviado por verificar que não era uma grande festa. Apenas um Mr. e uma Mrs. James Franklin, que ele já encontrara várias vezes com Gregor. Eram proprietários de uma galeria que dirigiam juntos na Madison Avenue. Ambos os Franklins usavam botões com a frase «No Nuke», e Damon lembrou‑se de ter lido que naquele dia haveria uma manifestação contra armas nucleares.
Estava também presente uma simpática e interessante senhora chamada Bettina Lacey, de cerca de 60 anos, que tinha no passado um marido divorciado e dirigia uma loja de antiguidades. Bebiam todos vinho, como Gregor prometera, e num grande prato estavam rodelas finas de duro chouriço húngaro, enfeitadas com rabanetes.
Depois dos cumprimentos e de se terem sentado, à maneira europeia, à volta de uma mesa circular de madeira esfregada, Damon perguntou:
‑ Que vem a ser isso de celebração?
‑ A seu tempo, meu amigo ‑ respondeu Gregor.‑Primeiro bebe.
Deitou vinho num copo, para Damon, que viu o rótulo. Era Tokay. Quando o provou, não lhe soube nem a sangue nem a água do mar.
‑ A seguir ‑ continuou Gregor ‑, Bettina tem de contar a sua história. Celebração, depois. Bettina... ‑ Fez um gesto largo, que provocou o derramamento de um pouco de vinho, na direcção da senhora que dirigia a loja de antiguidades.
‑ Gregor ‑ protestou Mr. Lacey ‑, acabaram todos de ouvir...
‑ O Roger, não ‑ interrompeu Gregor. ‑ Quero ver qual é a opinião dele. É um homem honesto e sensato e eu aprecio a sua opinião a respeito de qualquer coisa que eu próprio não entenda. Comece.
‑ Bem ‑ começou a mulher, sem grande relutância ‑, é acerca da minha filha. Creio que lhes disse que está a estudar em Roma...
‑ Sim ‑ confirmou Damon.
‑ Além disso, mantém‑se atenta a quaisquer antiguidades ‑ móveis, pratas antigas, coisas do género ‑ que apareçam em Itália e em que eu possa estar interessada. No último domingo havia uma grande feira de antiguidades logo à saída de Roma e ela disse‑me que iria vê‑la e que me escreveria acerca do que visse e pudesse interessar. Recebi uma carta dela há dois dias a explicar‑me por que motivo não tinha ido, apesar de ter alugado um carro para lá se dirigir. ‑ A senhora sorveu um golinho de vinho, como se a história que tinha para contar fosse dolorosa e precisasse de se fortalecer para prosseguir. ‑ Quando acordou no domingo de manhã, antes mesmo de se levantar da cama, segundo me escreveu, teve uma sensação que nunca experimentara antes ‑ uma apreensão terrível, medo. Sentiu‑se num vácuo, explicou, sem qualquer razão. Quase não conseguiu arranjar coragem para preparar o pequeno‑almoço e à ideia de que teria de conduzir um carro para fora da cidade desfez‑se em lágrimas. Estava sozinha e sentia‑se idiota, mas não podia deixar de chorar. E ela não é rapariga que chore facilmente. Nem mesmo quando era pequenina. Tremia e levou mais de uma hora para se vestir. A tal sensação não a abandonou toda a manhã, nem mesmo todo o dia, e nem sequer foi buscar o carro. Limitou‑se a sentar‑se ao sol nos Jardins Borghese, sem olhar para ninguém nem falar com ninguém, até que escureceu e voltou para casa, meteu‑se na cama, adormeceu como uma pedra e só acordou às nove horas da manhã seguinte.
Mrs. Lacey suspirou, com o rosto marcado pelo sofrimento, como quem se sente culpada de não ter podido confortar a filha num dia daqueles. Tentou sorrir e prosseguiu: ‑ Fosse o que fosse que a fizera sofrer no dia anterior tinha passado e ela sentia‑se bem e repousada. Saiu e no caminho para a biblioteca, onde estava a trabalhar, comprou o jornal. Foi então que viu os cabeçalhos. Tinha havido um incêndio terrível no velho edifício de madeira onde a feira se realizava, as portas estavam todas fechadas e tinham morrido trinta pessoas.
A senhora respirou profundamente como se o contar da história a tivesse deixado exausta.
Reinou silêncio na sala durante vários momentos.
‑ Acredita na precognição, Mr. Damon? ‑ perguntou Franklin, que era um homem honesto e prático, que lidava com coisas concretas e cujo tom de voz dava a entender a Damon não desejar atribuir grande importância à história da filha da senhora.
‑ Bem ‑ respondeu Damon, mais abalado do que desejaria demonstrar pela história da mulher ‑, claro que Jung e depois Arthur Koestler...
‑ Mas eles nunca provaram nada ‑ interrompeu Franklin. ‑ E você que diz, Gregor?
‑ Eu acredito em tudo que não possa ser provado - respondeu Gregor. ‑ Acho que precisamos todos de outra bebida.
Enquanto ele foi à cozinha buscar outra garrafa de vinho fresco, Mrs. Lacey disse:
‑ Lamento, não queria estragar a festa do Gregor. Naturalmente, seja o que for que tenha acontecido, darei graças a Deus durante o resto dos meus dias.
Houve um pequeno silêncio de constrangimento depois de ela ter falado, o ambiente de festa desfez‑se momentaneamente.
‑ Que história vem a ser essa da celebração? ‑ perguntou Damon, tanto para evitar especular quanto ao significado perturbador do comportamento da filha de Mrs. Lacey, como para tornar mais leve o tom da conversa.
‑ Obtivemos bolsa conjunta da fundação ‑ respondeu Gregor. ‑ Ebba e eu. Um ano na Europa. Generoso. Para refrescar nossos talentos na fonte da cultura. ‑ Sorriu. ‑ Museus, ópera, igrejas, jantares ricos, vinhos franceses. É melhor do que talões de refeições. América é terra generosa. Companhias petrolíferas, Congresso, os novos Médicis. Com a diferença de que não há compromissos envolvidos. Não tenho de pintar quadros de torres de petróleo, nem retratos de directores de companhias ou das suas mulheres. E Ebba não tem de desenhar figurinos para filhas debutantes. Garanto‑lhe que seremos bons capitalistas, não lhes retribuiremos o valor do dinheiro.
Partimos daqui a uma semana. Que se passa. Roger? Não pareces satisfeito.
‑ Claro que estou satisfeito ‑ afirmou Damon. ‑ Por vocês. Mas esperava que lesses um texto que represento. A peça deve subir à cena no Outono e eu tinha esperanças de que te interessasses.
‑ A peça é um cenário, duas personagens, certo? ‑ perguntou o pintor.
Damon riu‑se e emendou:
‑ Três.
Gregor acenou com a cabeça.
‑ Shakespeare tinha talvez trinta, quarenta personagens, vinte cenas diferentes.
‑ Shakespeare não tinha de lidar com os Shuberts, os bancos, os sindicatos...
Gregor acenou de novo com a cabeça.
‑ Pobre Shakespeare! Foi‑lhe negada experiência valiosa. Mostrou o seu trabalho, não mostrou? Roger, meus queridos amigos, o teatro em Nova Iorque mirrou até ficar do tamanho de uma noz desidratada. Vendedor ambulante de gravatas. Arranja um carpinteiro ou um decorador de interiores. Descreve‑me o cenário quando a peça se estrear. Estarei no La Scala a ver A Flauta Mágica. Quartos, ruas, elencos de centenas, estátuas, fogo do Inferno. Quando descobrires uma peça com comboios a entrar em estações, catedrais, palácios, florestas, exércitos a marchar, cenas de multidões, duzentos figurinos, tudo diferente, chama‑nos. América, país mais rico do mundo, peças de um cenário, sofá do psiquiatra, médico e paciente. Primeiro Acto: Tenho problemas, doutor. Segundo Acto: Continuo a ter problemas, doutor. Fim.
Damon riu‑se.
‑ És um pouco duro com os teus contemporâneos, Gregor. Ainda há boas peças.
‑ Muito poucas, muito poucas ‑ disse o pintor, tristemente.
‑ Hei‑de arranjar‑te uma comédia musical.
‑ Claro! ‑ exclamou Gregor. ‑ Um ano, dois anos de trabalho, mil esboços, histeria, custo suficiente para alimentar todo o Camboja durante seis meses, dura uma noite. Après mói, le deluge. Para a semana, a guilhotina. Não sou homem que possa suportar desperdício. Nunca deito nada fora, mas nada, nem um bocado de cordel, nem um tubo de tinta que ainda contenha um pingo de cor.
‑ Como de costume, Gregor ‑ disse Damon, bem disposto ‑, não é possível discutir contigo.
Gregor sorriu, encantado.
‑ Se ao menos toda a gente fosse tão sensata como tu, meu amigo! Mandar‑te‑ei um postal de Florença. Entretanto, se conheceres algum artista que precise de um bom e grande estúdio por um ano, barato, manda‑o ter comigo. Mas terá de ser pior pintor do que eu. Não gozarei a Europa se souber que um homem está a utilizar a minha casa para produzir obras‑primas. Também não quero um desses que o meu amigo Jim Franklin expõe na galeria: duas linhas em tela de 2x2 metros, fundo acrílico esguichado. Posso suportar mediocridade, aqui, mas não profanação ‑ e lançou um olhar carregado a Franklin.
‑ Então, então... ‑ redarguiu Franklin, sem se ofender. ‑ Também o expus.
‑ Quantas telas vendeu?
‑ Uma.
‑ Ah! ‑ rosnou Gregor. ‑ Fê‑los adorar a geometria. Redondez, paixão, deleite, admiração pelo rosto e pela figura humanos... kaput! Sou cão desgarrado na sua galeria. ‑ Tratava‑se visivelmente de um ponto melindroso, para Gregor, e a boa disposição abandonara a sua voz.
‑ Gregor, por favor ‑ pediu Ebba. ‑ O Jim não é o único culpado dos últimos 50 anos de arte moderna.
‑ Mas é cúmplice ‑ afirmou o pintor, carrancudo.
‑ Quinze exposições por ano. Olha para eles, com os seus botões.
Franklin tocou, embaraçado, no botão que tinha na lapela.
‑ Que há de mal em ser contra a guerra nuclear?
‑ perguntou, na defensiva.
‑ Não me queixo de ser contra a guerra nuclear ‑ respondeu Gregor, muito alto. ‑ Mas sou contra os botões. Que anunciam eles? Pertenço a uma categoria estrita, definida por outro qualquer, escuto, faço o que me mandam, diz o botão. Adapto‑me, encaixo‑me, mesmo que isso signifique cortar metade do cérebro, é o que eles anunciam. ‑ Estava, lançado a todo o pano, já não brincava. ‑ A marchar pelas avenidas da América.
‑ Convido‑o a marchar comigo da próxima vez que haja uma manifestação. Veja com os seus olhos ‑ redarguiu Franklin ainda calmo, embora Damon percebesse que ele estava aborrecido com o ataque do pintor.
‑ Quando tiver igual número de russos, checos, húngaros, alemães orientais, polacos, letónios e cubanos para marcharem com os mesmos botões ‑ disse Gregor quase sem fôlego, devido ao esforço para enumerar a lista de nomes ‑, marcharei consigo. Entretanto, no Kremlim, vêem retratos em jornais de americanos, ingleses e franceses a marchar, rebentam a rir e mandam mais cem mil soldados para o Afeganistão, e escolhem num mapa secreto as melhores casas da América, na Park Avenue, nos Hamptons, em Beverly Hills, para os comissários viverem quando cá chegarem.
‑ Gregor ‑ disse Ebba, vivamente ‑, deixa de ser tão húngaro! Não estamos em Budapeste!
‑ Nunca ninguém deixa de ser húngaro. E muito menos depois de ter visto os tanques russos nas avenidas.
‑ E então? ‑ perguntou Franklin, espicaçado. - Começamos a largar as bombas imediatamente?
Gregor levou a mão à cabeça e fez uma careta, pensativo.
‑ Preciso de beber antes de responder. Pergunta séria. ‑ Encheu um copo de vinho, bebeu um longo golo e pousou o copo. ‑ Sou contra a guerra nuclear que vamos ter, seja lá quem for que marche. Estou resignado. De uma maneira ou de outra, a espécie humana está ansiosa que isso aconteça. Eu vejo uma saída. Certo tipo de arma nuclear. Há algum tempo, as pessoas fizeram um grande alarido a esse respeito. Porquê, não sei. Bomba de neutrões. Trinta e cinco mil, quarenta mil ogivas nucleares, acabam com o mundo em trinta segundos ‑ homens, mulheres, crianças, pássaros no ar, peixes no mar, não ficarão cidades nenhumas, não ficará nada. Mas bomba de neutrões inventada por poeta, filósofo, amante da arte. Decerto, diz ele depois de terminar os cálculos, o mundo acaba. Mas a bomba de neutrões deixa alguma coisa. Decerto que mata toda a gente, mas deixa edifícios de pé, igrejas, museus, bibliotecas, naturezas mortas, estátuas, livros, deixa qualquer coisa para as duzentas ou trezentas pessoas que sobrarem, índios no Amazonas e esquimós no pólo Norte, alguma coisa para recomeçarem. Grande banzé. Toda a gente quer total: nós vamos, edifícios também vão, livros e quadros igualmente. Façam uma parada do meu género e marcharei com vocês.
‑ Gregor ‑ disse Mrs. Franklin, que falava pela primeira vez ‑, você não tem filhos, pode falar assim.
‑ É verdade ‑ concordou Gregor em voz baixa ‑, nós não temos filhos, a Ebba e eu. Não por nossa culpa. Por culpa de Deus. ‑ Inclinou‑se para Ebba, que se sentava sempre o mais perto dele que podia, e beijou‑a na face.
Damon levantou‑se. A conversa perturbara‑o mais do que desejava demonstrar. Não pôde deixar de perguntar a si mesmo se não daria vivas se tivesse a certeza de que Mr. Zalovsky seria extinto na explosão final.
‑ Acho melhor ir andando. A Sheila deve estar a chegar de um momento para o outro e ela não gosta de encontrar a casa vazia.
Enquanto se dirigia para casa, duvidou que tivesse sido boa ideia visitar Gregor naquela tarde. Para começar, invejava o ano na Europa que esperava os Khodars. Como seria delicioso, pensou, poder comprar bilhetes para ele e para Sheila e voar no dia seguinte para Paris ou Roma, deixando para trás todas as responsabilidades, todos os contratos, negócios e ameaças, sabendo que durante doze meses podia esquecer todas essas coisas. A vantagem de ser artista.
E a atmosfera no estúdio não fora propensa à boa disposição. O relato feito por Bettina Lacey da experiência da filha tinha sido, pelo menos, perturbador, com a sua sombra de morte horrorosa, apesar de a rapariga ter sido poupada. E o humor negro de Gregor a respeito da bomba de neutrões, se podia chamar‑se‑lhe humor, despertara temores que, como todos os homens e mulheres desta época, Damon tentava reprimir o mais possível.
Ter‑se‑ia sentido melhor, pensou, se em vez de ter voltado a casa depois do almoço e encontrado o bilhete de Gregor, tivesse entrado num bar, bebido uns copos e visto o jogo de basebol pela televisão.
QUANDO, às sete horas, Sheila ainda não tinha regressado, começou a preocupar‑se. Ela tinha dito que voltaria às seis horas e era admiravelmente pontual nos seus hábitos. Damon arrependeu‑se de não ter telefonado para casa de manhã, a dizer‑lhe que voltasse antes do pôr do Sol, que não queria que percorresse sozinha, ao crepúsculo, os cinco quarteirões a partir da garagem onde deixaria o carro que uma amiga lhe emprestara para a viagem. Poderia ter alegado que houvera uma onda de assaltos na Village nos últimos dias, o que não teria andado muito longe da verdade.
Às oito horas estava quase a ponto de telefonar à Polícia e caminhava nervosamente de um lado para o outro quando ouviu a chave na fechadura. Dirigiu‑se apressadamente para a porta e abraçou a mulher, apertou‑a com força a si quando ela entrou no pequeno vestíbulo. Geralmente, cumprimentavam‑se com um beijo breve na face. Por isso, ela recuou e saiu dos seus braços, surpreendida.
‑ Para que foi isso agora?
‑ Vens atrasada ‑ respondeu ele, e pegou na pequena mala de Sheila. ‑ Mais nada.
‑ Nesse caso ‑ redarguiu a mulher, a sorrir ‑, chegarei atrasada mais vezes.
Todo o seu rosto se modificava quando sorria, e ele adorava‑o apesar dos longos anos de casamento. Em repouso, a sua cara era grave e carregada e lembrava as sóbrias fotografias de camponeses que por vezes se viam em livros ilustrados acerca da Itália. Uma vez, ele dissera‑lhe que o seu sorriso a devolvia à América.
‑ Como correram as coisas em Vermont?
‑ É uma sorte eu ter só uma mãe ‑ respondeu Sheila. ‑ E por cá?
‑ Solitário. Guardei uma cópia das palavras cruzadas para ti.
‑ És um querido ‑ respondeu, enquanto despia o casaco. ‑ Vou reservá‑las para mais tarde. Agora quero apenas refrescar‑me e pentear o cabelo. Depois preparas‑me uma bebida e levas‑me a um bom restaurante, onde possamos comer uma refeição decente. A minha mãe tornou‑se vegetariana depois da minha última visita. Menopausa na cozinha.
Olhou de olhos franzidos para a luz do tecto, que raramente acendiam, mas que naquele momento brilhava em toda a sua intensidade, juntamente com todas as outras lâmpadas da sala. Na sua idade, costumava dizer, reservava a luz do tecto para as suas inimigas.
‑ Que estiveste aqui a fazer? Uma sessão fotográfica para a «Coelhinha do Ano» da Playboy?
‑ Estive a procurar um número de telefone ‑ mentiu, enquanto apagava a luz do tecto. ‑ Acho as bebidas uma boa ideia, mas pensava que comeríamos qualquer coisa cá em casa... uns ovos, qualquer coisa enlatada. Almocei tarde e bem e não tenho fome.
Começavam as explicações embora fosse ainda muito cedo para explicar porque preferia a sua própria casa ao que poderia esperá‑lo à esquina do quarteirão, a caminho do restaurante.
‑ Oh, deixa‑te disso, Roger! ‑ protestou Sheila. ‑ Domingo à noite...
Damon hesitou e quase lhe pediu que se sentasse, para lhe poder contar toda a história. Mas não quis estragar‑lhe o regresso a casa. Se estivesse na sua mão, não desejaria contar‑lhe nunca toda a história.
‑ Pronto, jantamos no restaurante ‑ acedeu. ‑ Vou preparar a tua bebida.
Ela olhou‑o perscrutadoramente. Ele reconheceu o olhar, a que chamava o seu «olhar do hospital».
Conhecera‑a quando se encontrava preso ao leito, com a perna sob tracção, depois de ter sido atropelado por um táxi. Estava num quarto semiparticular, que compartilhava com um homem chamado Biancella, que também fora atropelado e que era um tio solteiro de Sheila. Eram muito íntimos, tio e sobrinha, em grande parte porque tinham a mesma opinião sem esperança a respeito da mãe de Sheila, que era irmã de Biancella.
No seu sofrimento os dois homens tinham‑se tornado amigos. Damon ficara a saber que Biancella, homem baixo, moreno e bem parecido, de cabelo grisalho, dirigia uma garagem em Old Lyme, Connecticut, e só vinha a Nova Iorque uma vez por ano, para ver a sobrinha.
‑ Isto nunca teria acontecido em Old Lyme ‑ dissera Biancella, a bater melancolicamente no aparelho de gesso que lhe chegava ao quadril. ‑ A minha mãe bem me recomendou que evitasse as grandes cidades.
‑ Há anos que vivo em Nova Iorque ‑ observou Damon ‑ e saí do passeio exactamente como você.
Tinham‑se rido do descuido mútuo. Estavam ambos a melhorar e, por isso, podiam‑se rir.
Sheila ia visitar o tio todos os dias, depois de terminar o seu trabalho na escola infantil, e tinha sido no quarto semiparticular que Damon descobrira o seu «olhar do hospital». Biancella tentava sempre mostrar um rosto alegre e sem queixas quando a sobrinha entrava no quarto, por muito mau que o dia tivesse sido para ele até àquele momento. E ele tivera de facto alguns dias maus deitado na cama defronte da de Damon. Mas bastava a Sheila um olhar, ao entrar no quarto, para dizer:
‑ Não tente enganar‑me, tio Frederico; que se passa hoje? Alguma enfermeira o aborreceu, foi algum médico que o magoou? Que foi, hem?
Invariavelmente, tinha razão. Nas três semanas que visitara o quarto, adoptara mais ou menos Damon, também, e as tentativas de estoicismo da parte dele eram destruídas pela jovem bonita e morena de olhos graves, que repetidamente o fizera confessar que nem tudo corria bem, que não lhe davam sedação suficiente para poder dormir e que as queixas que fazia aos médicos de que o seu aparelho estava muito apertado, estavam a ser ignoradas. Sheila tornou‑se impopular junto dos médicos e de algumas enfermeiras, com as suas exigências de tratamento imediato. Mas, ao vê‑la arranjar as almofadas do tio, insistir com ele para que comesse os petiscos que lhe trouxera‑ e que queria à viva força que Damon compartilhasse ‑, falar apaziguadamente em voz baixa e rica de notícias da família, contar‑lhe anedotas amargamente cómicas a respeito da mãe, falar‑lhe de peças que vira e dos progressos das crianças das suas classes, Damon começou a considerar as suas visitas da tarde como o clímax de cada dia.
Ela encarregou‑se de arranjar jarras para as montanhas de flores que os amigos de Damon lhe enviavam e mostrava‑se friamente correcta, embora sem cordialidade, quando as suas visitas ao hospital coincidiam com as de algumas das senhoras conhecidas de Damon. Era serena e atenta e Damon compreendia que Biancella, que era um velho ossudo e atormentado pela dor, dissesse da sobrinha: «Quando ela põe a mão na minha testa para ver se tenho febre, sinto que me está a sarar mais do que todos os médicos, enfermeiras e injecções juntos.» Ao fim de duas semanas de hospital, Damon chegara à conclusão de que a sua mulher divorciada e a maioria das mulheres e raparigas que até então conhecera eram insuportavelmente frívolas e instáveis em comparação com Sheila Branch ‑ era esse o seu nome de solteira ‑, e que apesar da diferença de idades (ele tinha mais de 40 anos e ela 25) casaria com ela, se Sheila o aceitasse. Mas a sua sensibilidade, que era boa para o hospital, tornava‑se por vezes difícil de suportar num casamento prolongado. Naquela ocasião, nos primeiros momentos após a sua chegada, perguntou, enquanto descalçava as luvas que usara para guiar.
‑ Que se passa? Estás com um aspecto horrível.
‑ Não se passa nada ‑ respondeu bruscamente, com ar irritado, pois isso por vezes punha fim às perguntas. ‑ Passei o dia a ler e a tentar compreender o que está mal no manuscrito e como pode ser corrigido.
‑ É mais do que isso ‑ afirmou ela, teimosa como uma camponesa, como ele já lhe dissera mais de uma vez. ‑ Almoçaste com a tua ex‑mulher ‑ acrescentou, acusadoramente.
‑ Foi isso. Quando a vês, ficas sempre como se tivesses trovoada dentro da cabeça. De que se trata? Ela quer outra vez mais dinheiro?
‑ Para tua informação, almocei sozinho e não vejo a minha ex‑mulher há mais de um mês. ‑ Sentiu‑se grato pela oportunidade de se mostrar inocente e sinceramente magoado.
‑ Bem... mostra melhor cara, ou pelo menos diferente, quando sairmos para jantar. ‑ Sorriu e pôs fim à discussão, pelo menos momentaneamente. ‑ Eu é que devia estar com ar de tempestade, ao fim de dois dias com a Madonna.
‑ Estás linda ‑ afirmou ele, com sinceridade. Embora não houvesse esperança nenehuma de as agências de modelos virem alguma vez a escolhê‑la a fim de ser fotografada para as revistas de modas, as linhas severas e proeminentes do seu rosto, os grandes olhos escuros, o basto e áspero cabelo preto cortado pelos ombros e o corpo forte, generoso e moreno tinham‑se tornado, ao longo dos anos, o padrão pelo qual ele avaliava o merecimento e o carácter das mulheres. Apesar disso, sentira‑se breve, mas irresistivelmente atraído por muitas mulheres, também atraídas pela sua beleza ibérica, e saboreava o seu prazer com certo número delas. Os longos anos de alegre celibato depois de o seu primeiro casamento se desfazer, tinham sido devotados a duas coisas: trabalho e apetite. E o seu segundo casamento não o mudara nesses aspectos. Não era um homem religioso, ainda que, quando obrigado a pensar na religião, optasse pelo agnosticismo. No entanto, tinha a noção do pecado, se é que o apetite em si era pecado. Não blasfemava, não prestava falsos testemunhos, não roubava nem matava, mas de tempos a tempos cobiçava a mulher do próximo. O seu apetite era forte e natural e ele fazia muito pouco esforço para o dominar, embora, sempre que possível, tentasse não se prejudicar a si mesmo nem às suas parceiras, ao satisfazê‑lo. Naqueles anos em Nova Iorque não tinha sido o centro da abstinência. Tinha sido atraente, em jovem, e, como costuma acontecer às pessoas que foram bem‑parecidas na juventude, conduzia‑se com naturalidade e segurança, já mesmo depois de a idade ter deixado os seus tristes rastos na sua aparência. Não tentara ocultar de Sheila essa faceta do seu carácter. Aliás, não teria sido possível ‑ ela vira a parada de mulheres que o tinham ido visitar ao hospital e dispusera nas jarras as flores que elas lhe tinham enviado. A dama de Espanha irritara Sheila por causa da sua falta de discrição. Na verdade, também o aborrecera a ele, que a abandonara com uma espécie de alívio. Desde então, já lá iam dois anos, não houvera mais ninguém.
Nunca interrogara Sheila acerca dos seus romances antes do dia do seu casamento, nem depois disso, nem lhe pedira perdão. De modo geral, embora tivessem tido os seus períodos tempestuosos, tinham sido felizes juntos e, como acontecera naqela noite, ele sentia sempre o coração mais animado quando a via entrar em casa. Egoisticamente, sentia‑se grato por ser muito mais velho do que ela e por morrer antes dela.
Agora, ao ver Sheila parada na sua frente, chegada a casa em segurança, abraçou‑a mais uma vez e beijou‑a nos lábios, nos lábios familiares e macios, nos lábios doces que às vezes se podiam tornar obstinadamente ríspidos.
‑ Sheil ‑ murmurou‑lhe ao ouvido ‑, estou tão contente por teres voltado! Os dois dias pareceram séculos.
Ela voltou a sorrir, tocou‑lhe na boca com a ponta do dedo, como para o calar, e entrou no quarto. A maneira como ela andava, erecta, sem se bambolear, e com a cabeça direita e imóvel, recordou‑lhe, não pela primeira vez, uma rapariga de quem gostara e com a qual tivera um romance logo após a sua chegada a Nova Iorque. Era uma jovem actriz morena e, como Sheila, filha de mãe italiana. Algures nos seus genes, como nos de Sheila, devia haver uma memória racial de mulheres com pesadas ânforas à cabeça, a descer os caminhos banhados de sol da Calábria. Chamara‑se Antoinetta Bradley e ele estivera apaixonado por ela durante quase um ano, pensara que ela também o amava e até tinham falado em casar. Mas afinal quem ela amava era um dos melhores amigos dele, Maurice Fitzgerald, com quem Damon compartilhava um apartamento em Manhattan. Tinham atirado uma moeda ao ar para ver quem ficaria com o apartamento e Damon perdera.
‑ A sorte dos dados ‑ dissera Fitzgerald, quando o amigo começara a fazer as malas.
Antoinetta Bradley e Maurice Fitzgerald tinham partido para Londres algum tempo depois e Damon ouvira dizer que se tinham casado e fixado lá residência. Não voltara a ver nenhum deles nos 30 anos decorridos desde então, mas ainda se lembrava do andar de Antoinetta e do modo como Fitzgerald dissera: «A sorte dos dados.»
Na cozinha, a tirar gelo do frigorífico para as bebidas, a recordação fê‑lo suspirar e lembrou‑lhe os tempos anteriores à guerra e logo a seguir a ela em que trabalhara como actor e ainda esperara pela aberta que faria dele uma estrela. Não se saía muito mal e davam‑lhe pequenos papéis suficientes para viver com relativo conforto. Nessa altura, nunca lhe passara pela cabeça que, no futuro, tentasse fazer alguma coisa que não fosse teatro e, talvez, cinema.
Tinha sido durante os ensaios de uma das peças, no fim da década de 1940, que a sua vida mudara. Mr. Gray, que representava o autor, aparecera nos ensaios de tempos a tempos e ele e Damon tinham adquirido o hábito de conversar baixinho ao fundo da sala às escuras, nos longos períodos em que Damon não era necessário no palco. Mr. Gray perguntara‑lhe a sua opinião acerca da peça e ele dissera‑lhe francamente que pensava que não se aguentaria em cena e porquê. Gray ficara impressionado, dissera‑lhe que ele escolhera a profissão errada e que, se alguma vez precisasse de emprego, teria um à sua espera na agência Gray. «Foi franco comigo a respeito da peça», acrescentara, «é obviamente um jovem inteligente e culto e eu posso utilizá‑lo. Quanto ao seu trabalho no palco, a coisa muda de figura: não me convence e tenho quase a certeza de que nunca convencerá uma audiência. Se tentar continuar a sua carreira como actor, é minha opinião que se transformará num homem falhado e decepcionado.»
Duas semanas depois de a peça cair, Damon estava a trabalhar na agência de Mr. Gray.
Enquanto levava o gelo da cozinha e deitava as duas bebidas, Damon fez uma pequena careta ao lembrar‑se das palavras de Mr. Gray. Naquela noite, voltaria de certo modo a estar no palco, com uma audiência de uma pessoa. Representaria o melhor que pudesse, mas os anos não lhe tinham melhorado a arte de representar e tinha quase a certeza de que, agora como então, não seria convincente. Tinha uma longa noite à sua frente.
‑ Oliver ‑ dizia Sheila a Oliver Gabrielsen depois de terem encomendado o almoço ao criado, no restaurante do centro onde ela sabia que não havia nenhuma probabilidade de encontrar o marido ‑, telefonei‑lhe para casa tão cedo, ontem de manhã, logo depois de o Roger sair para o escritório, porque não queria que ele soubesse que eu queria falar consigo. ‑ Pedira a Oliver que almoçasse com ela naquele mesmo dia, mas ele já tinha um compromisso inadiável e, por isso, estavam a almoçar só na terça‑feira.
‑ A minha mulher ficou desconfiada ‑ comentou Oliver. ‑ Não está habituada a que me telefonem senhoras ao pequeno‑almoço, para marcar encontros. Diz que você é devastadoramente bonita. Num estilo antiquado.
‑ Sorriu e tocou na mão de Sheila, por cima da mesa. ‑ O estilo mais perigoso de todos, segundo ela. Diz também que ando sempre à procura de uma mãe, para me meter na cama com ela. Inveja‑a e tenta imitá‑la. Já reparou que, desde o ano passado, se penteia como você?
‑ Reparei. Se quer que lhe diga a verdade, pareceu‑me um pouco severo de mais para aquele rosto juvenil.‑ Sheila não acrescentou a palavra «vazio» à descrição, embora tivesse tornado a imagem mais correcta, se a tivesse acrescentado; não gostava muito de Doris Gabrielsen e achava que ela não era digna de Oliver.
‑ E uma vez surpreendi‑a a treinar‑se a andar como você, defronte do espelho ‑ disse Oliver.
‑ Nunca o conseguirá ‑ afirmou Sheila, momentaneamente irritada com aquela visão de outro matrimónio.
‑ Tem um andar afectado que nasceu com ela. Desculpe estar a ser despeitada. Ela recorda‑me a idade que tenho.
‑ Não se preocupe, ela às vezes também se mostra despeitada a seu respeito. Esta manhã disse que era muitíssimo esquisito você querer falar‑me a sós. Ficou zangada quando lhe afirmei que não fazia nenhuma ideia do que se tratava e declarou saber muito bem que eu estava a mentir. Diz que você e o Roger e ela e eu não formamos um quarteto: somos um trio e meio. e o meio é ela.
‑ Lamento.
Oliver encolheu os ombros.
‑ Faz‑lhe bem. Ajuda a manter a tensão necessária no casamento.
‑ Bem, invente uma história qualquer, mas não lhe diga a verdade, porque se trata do Roger.
‑ Já tinha calculado.
‑ E tem de ficar rigorosamente entre nós dois, Oliver. Estive ausente dois dias e deve ter acontecido qualquer coisa nesse espaço de tempo. Ele tem‑se portado de modo muito peculiar... para ele. Sabe como gosta de ir a pé a toda a parte...
Oliver acenou afirmativamente.
‑ Eu sofro as consequências disso ‑ queixou‑se.‑ Quando temos algum encontro fora do escritório, mesmo que seja em casa do Diabo, ele recusa‑se a ir de táxi e detesta autocarros. Já lhe disse que vou comprar umas botas de marcha, para usar no escritório... E ainda por cima anda tão depressa que chego a todo o lado a ofegar e coberto de suor. A ele mantém‑no em forma, mas a mim recorda‑me que os varões da minha família morreram novos, de problemas cardíacos.
‑ Bem ‑ prosseguiu Sheila ‑, em forma ou não, no domingo à noite, quando saímos para jantar, insistiu em ir de táxi, apesar de serem apenas dez minutos a pé da nossa casa ao restaurante, e voltou igualmente de táxi. Disse que as ruas se tornaram tão perigosas que é arriscado caminhar nelas de noite. Depois, quando chegámos a casa, começou a falar de o senhorio não arranjar o intercomunicador e de qualquer pessoa poder entrar no prédio a qualquer hora do dia ou da noite. E disse que ia mandar instalar uma porta nova no apartamento, uma porta de aço, com corrente de segurança, fechaduras a sério e um ralo. E que ia também pedir que mudassem o telefone e não pusessem o número do novo na lista. Sabe bem que ele não é medroso... Já o tenho visto pôr cobro a lutas na rua, entre dois alentados rufiões. Não consegui fazê‑lo dizer‑me por que motivo ficou de súbito tão preocupado. Até disse que pensava que nos devíamos mudar para um daqueles grandes e horríveis prédios novos que têm aquilo a que chamam um sistema de segurança ‑ você sabe a que me refiro, televisão nos elevadores, dois homens à porta e um PBX onde toda a gente tem de dizer o nome e ser anunciada. ‑ Abanou a cabeça, inquieta. ‑ Não está nada de acordo com ele. Gosta do apartamento e geralmente detesta mudar seja o que for. Há anos que insisto com ele para pintar as paredes, que têm a tinta toda a cair, e ele nem quer ouvir falar disso nem ao menos livrar‑se de alguns dos livros que ameaçam submergir‑nos.
Oliver voltou a acenar com a cabeça.
‑ Quando lhe sugeri que talvez fosse altura de nos mudarmos para um escritório maior, rosnou como um urso e pregou‑me um comprido sermão acerca das belezas de um comportamento modesto.
‑ Para ser franca, fiquei atordoada ‑ confessou Sheila. ‑ Ausentei‑me dois breves dias e quando voltei encontrei um homem diferente. ‑ Abanou a cabeça. ‑ Tentei levá‑lo a dar‑me uma explicação, mas limitou‑se a dizer que era o clima dos tempos que corriam, que estávamos a viver numa segurança ilusória e que se apercebera de repente disso. Repliquei‑lhe que estava a dizer disparates, que não acreditava nele e, claro, discutimos. Depois, no meio da noite, ouvi‑o andar de um lado para o outro na sala e vi que acendera as luzes todas. Costuma dormir como se alguém lhe tivesse dado uma martelada na cabeça. Confesso que estou preocupada.. Ele é um homem racional e tudo isto é tão irracional... Lembrei‑me de falar consigo para lhe perguntar se notou alguma coisa...
Oliver aguardou em silêncio que o criado lhes pusesse os pratos à frente. Torceu um bocadinho as mãos e fitou Sheila muito sério, com os graves olhos claros.
‑ Sim ‑ respondeu, quando o criado se foi embora ‑, há qualquer coisa. Ontem de manhã, quando chegou ao escritório, andou de um lado para o outro e observou diversas vezes a fechadura da porta principal. Como sabe, mantemo‑la sempre aberta. Que poderá alguém roubar‑nos? Mil manuscritos recusados? Depois disse a Miss Walton, a nossa secretária, que mandasse substituí‑la e instalar um daqueles pequenos guichês de vidro à prova de bala que têm nos bancos, com um sistema especial para se falar. Disse também que deixaríamos de atender o telefone quando ele tocasse: doravante, só Miss Walton o atenderia e perguntaria quem era e o que desejava antes de passar a chamada para qualquer de nós. Perguntei‑lhe se pensava que íamos mudar para o negócio de diamantes e ele respondeu‑me: «Não é caso para brincadeiras.» Disse que em toda a cidade havia escritórios que estavam a ser assaltados e que sabia de uma secretária que tinha sido violentada à sua mesa de trabalho, quando estava sozinha na hora do almoço. Conhece Miss Walton... Tem quase 60 anos e pesa cerca de 90 kg. Quando lhe respondi que talvez ela adorasse, redarguiu: «Oliver, o seu carácter tem uma faceta frívola em que reparei há muito tempo, mas a cujo respeito nunca disse nada. Pois digo‑lhe agora que não a aprovo.» Por isso, calei‑me.
‑ Que lhe parece que seja? Oliver voltou a encolher os ombros.
‑ Não sei. Dinheiro, talvez. Não está habituado a ele. Eu também não estou, é verdade, mas não pensei em comprar um bocado de vidro à prova de bala só porque, em 20 anos, tivemos a sorte de descobrir um livro que é uma mina. Velhice?
‑ Um homem não se torna velho em dois dias ‑ observou Sheila, impacientemente. ‑ Ele tem inimigos?
‑ Quem não tem inimigos? Mas porque pergunta?
‑ Não sei porquê, tenho a impressão de que ele foi ameaçado durante a minha ausência e está a reagir.
‑ Seja o que for que se possa dizer a respeito da nossa profissão, uma coisa é certa: é pacífica. Os escritores não andam por aí a matar pessoas, a não ser que sejam Hemingways, e infelizmente não temos nenhuns Hemingways na nossa lista. Claro que Mailer apunhalou uma das suas mulheres com um canivete, mas nós também não temos nenhum Mailer. ‑ Tentou sorrir tranquilizadoramente e bateu de novo na mão de Sheila. ‑ Talvez seja um estado de espírito passageiro. Talvez se tenha sentido melancólico com a sua ausência e esta seja a sua maneira de o demonstrar.
‑ Já tenho estado ausente mais de dois dias e ele não propôs que fôssemos viver para uma fortaleza por causa disso.
‑ Talvez o tenha ocultado até agora e os dois dias tenham sido a gota de água que fez trasbordar a taça.
‑ Alusões literárias não resolvem este problema particular ‑ disse Sheila, secamente. ‑ Sabe dizer‑me mais alguma coisa?
Oliver hesitou e brincou com a comida que tinha no prato.
‑ Uma coisa... duas coisas, para ser exacto.
‑ O quê? ‑ A voz de Sheila tornara‑se ríspida. ‑ Não me esconda nada, Oliver.
‑ Bem... ‑ respondeu o interpelado, com relutância‑ ...ele devia ter lido um manuscrito no fim‑de‑semana. Era um manuscrito de uma mulher com a qual temos tido alguma sorte, até agora... e ele é sempre tão meticuloso, insiste sempre em que as coisas sejam lidas rapidamente... Mas na segunda‑feira de manhã atirou com o manuscrito para cima da minha secretária, disse‑me que não lhe encontrava pés nem cabeça e pediu‑me que o lesse e lhe dissesse se prestava para alguma coisa ou não. O manuscrito era perfeitamente aceitável e ele disse‑me, quando o informei: «Está bem, trate do negócio», apesar de sempre ter feito pessoalmente os contratos da escritora em questão. Oh, esqueci‑me! Não pedi nada para beber. Quer um copo de vinho?
‑ Deixe lá o vinho. Falou em duas coisas. Qual foi a segunda?
Oliver pareceu pouco à vontade.
‑ Não sei se vai gostar de ouvir, Sheila...
‑ Tenho de ajudar o Roger, e você também. E não poderemos fazê‑lo se ocultarmos coisas um ao outro. Qual é a segunda coisa?
‑ Uma ocasião, Roger disse‑me que, às vezes, você lhe lembrava Medeia ‑ comentou Oliver, a protelar. ‑ Agora compreendo o que ele queria dizer.
‑ Mataria alguém que tentasse fazer mal ao meu marido ‑ confirmou Sheila, com naturalidade. ‑ E isso não tem nada a ver com um jovem que pretende demonstrar que leu literatura grega suficientemente para saber quem foi Medeia.
‑ Sou seu amigo, Sheila ‑ lembrou Oliver, ofendido. ‑ E do Roger. Você sabe isso.
‑ Prove‑o ‑ replicou, sem piedade. ‑ Qual foi a segunda coisa?
Oliver tossiu, como se tivesse qualquer coisa presa na garganta, e bebeu um copo de água.
‑ A segunda coisa ‑ disse, enquanto pousava o copo ‑ é que ele pediu a Miss Walton para telefonar à prefeitura e informar‑se do que era necessário fazer para obter uma licença de porte de arma de fogo.
Sheila fechou os olhos.
‑ Oh, Cristo! ‑ exclamou, baixinho.
‑ Tem razão, oh, Cristo! ‑ murmurou Oliver. ‑ Que vai dizer ao Roger?
‑ Vou‑lhe repetir todas as palavras da nossa conversa.
‑ Ele nunca me perdoará.
‑ Será uma grande pena ‑ comentou Sheila.
DAMON olhou impacientemente para o relógio. Telefonara à ex‑mulher, Elaine, e pedira‑lhe que se encontrasse com ele no restaurante à uma hora. Já era uma e vinte. Ela chegara sempre atrasada a todo o lado, o que tinha sido uma das muitas razões para se divorciarem, e não mudara. Tão‑pouco mudara noutros hábitos seus. Ainda fumava três maços de cigarros por dia, bebia de manhã à noite e desbaratava no jogo todo o dinheiro a que podia deitar mão. A mistura dos odores do fumo de cigarro e do álcool que a envolvia ainda tornava o rotineiro beijo na face, quando se encontravam, uma provação para ele. Vestira‑se sempre desmazeladamente, como uma rapariga que ia para as aulas à chuva, numa manhã em Northampton, e agora, com 60 anos e gorda, continuava a ser capaz de aparecer num restaurante de jeans e camisola de lã dois tamanhos acima do seu. O que parecera uma encantadora falta de vaidade numa rapariga, quando ele a conhecera na livraria onde ela trabalhava, era agora, na mulher, uma estudada afectação de juvenilidade.
Fora uma rapariga bonita, quando tinham casado, com uma cara pequena, maliciosa e esperta e comprido cabelo ruivo, e tinha sido inteligente, espirituosa e dona de um coração generoso e compassivo, mas a sua desenvoltura com o dinheiro, a sua negligência indolente acerca da sua pessoa, dele e do apartamento de ambos e mais os seus três vícios, haviam destruído o casamento. Tinham casado à pressa, dez dias depois de se conhecerem, e não tinham dormido um com o outro antes do casamento. A descoberta mútua de que não se satisfaziam um ao outro sexualmente iniciara a vida em comum como uma calamidade inesperada e intrigante, para a qual acabara por não haver remédio.
Apesar de tudo isso, o divórcio tinha sido amigável. Libertos das cadeias das obrigações físicas, tinham permanecido amigos. O gosto dela por literatura era ecléctico e digno de confiança e, às vezes, ele dava‑lhe manuscritos para ler, a fim de saber a sua reacção, e os seus conselhos a esse respeito eram geralmente úteis. Só nos últimos três anos, depois da morte do segundo marido, adquirira o hábito de lhe pedir dinheiro. O marido tinha sido um jogador profissional e, juntamente com ele, Elaine passara a maior parte do tempo em Las Vegas e em campos de corridas pelo país fora, vivendo umas vezes, consoante a velocidade dos cavalos ou o girar de uma roda, em grande estilo e vendo‑se outras obrigada a empenhar as jóias com que o marido a cobria durante as marés de sorte.
Damon não era um homem sovina e, até mesmo com os seus meios limitados, antes de Threnody, não teria chorado as importâncias relativamente pequenas que ela lhe pedia se não soubesse que o dinheiro iria parar às mãos de vendedores de bebidas e às de agentes de apostas e jogadores mais experientes do que ela nos tabuleiros de gamão. Era nessas ocasiões que regressava a casa carrancudo e mal humorado e tinha de suportar a desaprovação de Sheila.
No entanto, apesar de tudo, Elaine conservara a sua faculdade de o divertir. Naquele dia, porém, pensou tristemente ao olhar de novo para o relógio, a conversa não seria divertida.
Viu‑a entrar no restaurante e olhar, míope, em seu redor, à procura dele. Agora usava o cabelo cortado curto e pintado de um violento tom magenta, para esconder as madeixas grisalhas. Grato, viu que ela trazia um vestido azul‑escuro decente e usava sapatos de salto alto em vez dos habituais mocassins cambados. No entanto, os vapores, quando a beijou na face, eram os mesmos.
Tinha o rosto surpreendentemente jovem e sem rugas e, contra todas as probabilidades, os olhos verdes mantinham‑se límpidos.
‑ Estás com muito bom aspecto ‑ disse‑lhe ele, enquanto se sentavam ao lado um do outro numa banqueta. ‑ Muito chique, se não te importas que to diga.
‑ Tive uma boa maré de sorte com os cavalos ‑ explicou ela. ‑ Melhora a saúde. E arranjei um namorado novo, que insistiu para que queimasse todas as minhas velhas roupas.
‑ Boa ideia a dele ‑ comentou Damon, a pensar que ela teria 80 anos e continuaria a arranjar namorados novos.
Elaine voltou‑se na banqueta, para poder olhá‑lo.
‑ Tu não estás com muito bom aspecto. Que se passa? A sorte não se dá bem contigo?
‑ Não te pedi que viesses aqui ter comigo para falar da minha saúde ‑ respondeu Damon. ‑ Trata‑se de outra coisa.
‑ Se é acerca do dinheiro que te devo ‑ fingira sempre que ele lhe emprestava o dinheiro e não que lho dava ‑, provavelmente poderei espremer a maior parte dele ao meu namorado. É um distribuidor.
‑ Um distribuidor de quê? De roupas a senhoras que as não merecem?
Elaine sorriu calmamente, sem se deixar perturbar pela alfinetada. Nunca tivera mau génio, a não ser embriagada, pois então insultava quem lhe aparecesse à frente.
‑ De máquinas de moedas. Dá um bom rendimento, embora implique jantares de negócios com alguns cavalheiros muito peculiares.
‑ Foi justamente por isso que te convidei para almoçar‑ disse Damon. ‑ Desde que te conheço, com o teu pendor para a jogatina, tens‑te dado com cavalheiros peculiares, pelo menos do meu ponto de vista. Jóqueis, treinadores de cavalos, batoteiros, angariadores de apostas, palpiteiros e sabe Deus que mais.
‑ Uma rapariga tem o direito de escolher os seus amigos ‑ redarguiu Elaine, com dignidade.‑ São muito mais divertidos do que os escritores chatos, sempre a falar de Henry James, que costumavas levar para casa. Se tencionas pregar‑me um sermão, acho melhor ir‑me embora imediatamente. ‑ Começou a levantar‑se, mas ele fez‑lhe sinal para que se sentasse.
‑ Senta‑te, senta‑te. ‑ Olhou para o criado, que parara defronte da mesa. ‑ Que queres comer?
‑ Não me ofereces uma bebida? Ou ainda andas na cruzada pela minha sobriedade?
‑ Esqueci‑me. Que tomas?
‑ Que é isso que estás a beber? ‑ apontou para o copo pequeno ao lado do prato dele.
‑ Xerez.
Elaine fez uma careta.
‑ Que droga! Dá cabo do fígado. Vodka com gelo é agradável a esta hora do dia. Ou já não te lembras?
‑ Bem de mais. ‑ Damon voltou a olhar para o criado e pediu: ‑ Um vodka com gelo.
‑ Outro xerez para o senhor? ‑ perguntou o criado. Damon abanou a cabeça.
‑ Este chega‑me. Tome nota do resto que queremos, por favor.
O restaurante era conhecido pela sua comida francesa, mas Elaine pediu um hamburger com cebola frita sem olhar sequer para a lista.
‑ Continuas a comer bodegas ‑ comentou Damon.
‑ A rapariga americana típica ‑ replicou Elaine, a rir. ‑ Ou a senhora americana típica, atendendo à minha idade. Mas diz‑me cá, porque te interessaste tão de repente pelos meus indignos amigos?
Damon respirou fundo e depois, a falar lenta e claramente para ter a certeza de que Elaine compreendia todas as palavras, repetiu a conversa telefónica com Zalovsky, textualmente, parando apenas um momento quando o criado trouxe a vodka. Tratava‑se de uma conversa que não era difícil de recordar.
Elaine assumiu uma expressão grave, enquanto o ouvia, e só tocou na bebida quando ele acabou. Nessa altura, despejou metade do copo de um trago.
‑ Deve ter sido uma noite dos diabos. Não admira que estejas com essa cara. Conheces alguém chamado Zalovsky?
‑ Não. E tu?
‑ Não. Perguntarei ao Freddie, o meu namorado, se conhece, mas só por descargo de consciência.
‑ O teu Freddie dedica‑se a um pouco de chantagem quando não anda a distribuir máquinas de moedas?
Elaine pareceu pouco à vontade.
‑ É possível. Mas só no âmbito do negócio. ‑ Despejou o copo e bateu‑lhe com a unha, para indicar ao criado, que ia a passar pela mesa, que queria outra bebida. ‑ Ele sabe de ti, claro, mas pela parte que lhe toca é como se tudo tivesse acontecido durante a Guerra Civil. Os únicos agentes que conhece são do FBI e a única coisa que lê é a página das corridas.
‑ Costumam ir a Chicago?
‑ Oh, de longe em longe, quando há uma grande corrida em Arlington ou quando o Freddie me convida para o acompanhar numa viagem de negócios e paramos a caminho de Las Vegas.
‑ Claro que pode ter‑se tratado de alguém que quis pregar‑me uma partida desagradável...
Elaine abanou a cabeça.
‑ Não me parece partida nenhuma. Não te quero assustar mais do que o necessário, mas tenho um palpite de que se trata de coisa séria. Muitíssimo séria, mesmo. Que tencionas fazer quando ele voltar a telefonar‑te?
‑ Não sei ao certo. Pensei que tivesses algumas ideias.
‑ Deixa‑me pensar... ‑ Bebeu um golo do segundo vodka, acendeu um cigarro e tentou afastar o fumo com um gesto da mão. ‑ Bem, conheço um detective na Brigada de Homicídios. Queres que fale com ele e veja o que pensa que deves fazer?
‑ Não gosto da palavra... Homicídios.
‑ Lamento, mas é o único detective que conheço.
‑ Fala com ele... e obrigado.
‑ Depois telefono‑te, para te informar do que ele disser.
‑ Telefona‑me para o escritório. Não quero que a minha mulher atenda o telefone quando o Zalovsky voltar a telefonar.
‑ Queres dizer que não lhe contaste que foste ameaçado?‑ perguntou Elaine em tom acusador.
‑ Não quero alarmá‑la desnecessariamente.
‑ Desnecessariamente, meu Deus! Se corres perigo, ela também corre. Não foste capaz de deduzir isso? Se, por qualquer razão, quem quer que te procura não te conseguir apanhar, que pensas que fará? Que se alistará nos escoteiros? Apanhá‑la‑á a ela.
‑ Não tenho tanta experiência destas coisas como tu. ‑ Sabia que ela tinha razão, mas não pôde deixar de lhe falar agressivamente.
‑ Lá pelo facto de eu ir a Las Vegas algumas vezes por ano, não fales como se eu fosse a rainha pistoleira da Mafia ‑ replicou ela, em voz repassada de cólera. ‑Trata‑se apenas de senso comum, com os diabos!
‑ Creio que tens razão ‑ admitiu, relutante. ‑ Falarei com ela.
«Outra grande noite na residência Damon», pensou enquanto via o criado servir o hamburger de Elaine e o seu filete de linguado.
‑ Não pedes vinho? ‑ perguntou Elaine.
‑ Com certeza. Que queres?
‑ Que queres tu? Geralmente é o anfitrião que pede o vinho, e eu presumo que és tu quem oferece o almoço.
‑ Não gosto de beber no meio do dia. ‑ Fora‑lhe sempre difícil não parecer muito santimonial na presença de Elaine.
‑ Meia garrafa de beaujolais ‑ disse ela ao criado. Noutros tempos, teria pedido uma garrafa inteira.
Talvez estivesse a reduzir a bebida, pensou Damon.
‑ Zalovsky de Chicago ‑ disse ela, como se falasse sozinha, enquanto cobria o hamburger de ketchup. ‑ Fazes alguma ideia de qual poderá ser o aspecto dele?
‑ Só falei com ele pelo telefone uns dois minutos. Mas, para ser franco, a partir da voz fiz uma imagem mental dele. Talvez 45, 50 anos, pesado, roupas berrantes, nenhuma evidência de qualquer educação.
‑ Que fizeste até agora, a esse respeito?
‑ Por enquanto, não posso fazer muito... Olha, requeri uma licença para porte de arma de fogo.
Elaine fez uma careta de desagrado.
‑ Não creio que isso seja uma grande ideia. Sabes o que eu faria no teu lugar, Roger? Começava a fazer listas.
‑ Que género de listas?
‑ De pessoas que por qualquer motivo, tivessem razão de queixa contra ti, chalados que tenham ido ao teu escritório e levado sopa, pessoas que pensam que os intrujaste de qualquer modo, damas que abandonaste ou maridos ou namorados de damas que não abandonaste tão cedo como deverias... ‑ Sorriu e o seu rosto tornou‑se de novo momentaneamente vivo, sem idade. ‑ Isso daria cá uma lista, rapaz! E recua bem no tempo. As pessoas deixam as coisas envenenar‑lhe o espírito durante anos, tornam‑se neuróticas à medida que envelhecem... Se têm uma maré de azar procuram alguém a quem culpar, ou se vêem um filme acerca de vingança, ou de uma mulher desdenhada, ou sabe Deus de quê. Um escritor chalado qualquer pode ter‑te oferecido um manuscrito que nem sequer leste e devolveste com meia dúzia de palavras de recusa, e depois leu Threnody, viu o livro nas listas de bestsellers e pensou que tinha sido plagiado. Meu Deus, não vivo contigo nem sei há quantos anos e até eu podia fazer uma lista de bom tamanho, sem precisar de me esforçar muito! E não procures pistas apenas na letra «Z». O nome pode não significar nada. Quando falares com o detective ‑ a propósito, é o tenente Schulter‑, não tenhas acanhamento de falar das tuas proezas. Ele poderá apreender qualquer coisa, um indício em que tu nunca pensarias. E... ‑ hesitou, de garfo no ar. ‑ Talvez devesses pedir à tua mulher que desse uma boa vista de olhos ao seu passado. É uma mulher bonita, segundo me consta ‑ ou, pelo menos, foi uma mulher bonita ‑, e eu nunca conheci nenhuma mulher bonita que não tivesse uma taça cheia de sofrimento na sua vida ou que não tenha, pelo menos uma vez, escolhido o homem errado. Ainda por cima é meio‑italiana e nunca se sabe que género de relações os italianos têm e não gostam de propagandear.
‑ Oh, por favor, não metas no assunto essa história dos italianos! O tio dela tinha uma garagem no Connecticut.
Tratava‑se de uma antiga batalha entre eles. Elaine provinha de rigorosos antepassados alemães do Wisconsin, o que explicava a sua castidade antes do dia do casamento, se não depois, e tinha opiniões fortes a respeito das características desmerecedoras de italianos, gregos, judeus, hospedeiras do ar, irlandeses e escoceses. Se alguma vez tivesse conhecido um búlgaro ou um oriundo da Mongólia Exterior, provavelmente teria descoberto que também não se podia confiar neles.
Elaine observou o criado, que deitava o vinho, com expressão obstinada. O homem era moreno e tinha aspecto de mediterrânico. Damon desejou que ele não tivesse ouvido a última parte da diatribe de Elaine.
‑ Tinha, então, uma garagem no Connecticut ‑ resmungou Elaine depois de o criado se afastar e de beber meio copo de vinho. ‑ Aposto que tem para aí uns oito outros tios que nunca viram uma garagem, mas viram muitas outras coisas que poderiam ter interessado a Polícia, de tempos a tempos.
‑ Disse‑te que não metesses a história dos italianos no assunto.
‑ Pediste‑me que te ajudasse. ‑ Agora estava ofendida.‑ Se não me dás ouvidos, para que serve dizer‑te o que penso?
‑ Está bem, está bem ‑ resmungou, fatigado. ‑ Farei essas listas.
‑ E, enquanto estiveres com a mão na massa, dá uma boa vista de olhos às listas da tua mulher. Espero que depois continuem casados. Por favor ‑ a sua voz suavizou‑se ‑, tem cuidado. Não permitas que te aconteça nada. Preciso de saber que estás bem e ainda andas por cá. Hoje, como sempre, estou contente por te ver, sem que a razão importe. Finjamos, até ao fim da garrafa, que este é um almoço romântico, nostálgico, e que tu és o meu glorioso antigo amante e vives com o coração despedaçado há 30 anos, porque nos separámos.
Encheu outro copo de vinho e ergueu‑o num brinde, na direcção dele.
‑ Vá, esqueçamos o assunto até ao fim da refeição e tentemos encontrar algum prazer no facto de estarmos de novo juntos e ainda sermos capazes de comer e beber sem querermos matar‑nos um ao outro. Diz‑me cá, sinceramente: achas que devo mandar fazer um levantamento do rosto?
REGRESSOU lentamente a pé, ao escritório, depois de almoçar, a recapitular mentalmente o que Elaine lhe dissera enquanto bebia, quase sem reparar nas pessoas que o cercavam e com os nomes dos homens e das mulheres que conhecera na sua longa vida, não a organizarem‑se no seu cérebro em listas ordenadas e fáceis de consultar, como Elaine sugerira, mas a rodopiarem numa névoa, numa confusão de identidades. De súbito, viu um homem idoso, ligeiramente curvado, de óculos grossos e sobretudo preto com gola de pele, a aproximar‑se dele. Na sua vida só conhecera um homem com um sobretudo daqueles: Harrison Gray.
‑ Harrison! ‑ exclamou, enquanto estugava o passo ao encontro do outro e estendia a mão.
O homem parou e olhou‑o intrigado, meio assustado com o cumprimento. Pôs as mãos atrás das costas e disse:
‑ O senhor deve estar enganado. Chamo‑me George.
Damon recuou, pestanejou e abanou a cabeça, para a desanuviar.
‑ Peço desculpa ‑ murmurou, quase a gaguejar. ‑ Parece‑se tanto com um dos meus melhores amigos... Não sei em que estava a pensar. Ele morreu, sabe...
O homem fitou‑o desconfiadamente e fungou, como se quisesse detectar no hálito de Damon o cheiro de martinis tomados antes do almoço.
‑ Eu não estou morto ‑ declarou, ofendido. ‑ Como espero que possa ver.
‑ Perdoe ‑ insistiu Damon. envergonhado. ‑ Devia ir a devanear...
‑ Pelo menos! ‑ redarguiu o homem, secamente. ‑ E agora, se me permite...
‑ Com certeza.
Damon desviou‑se para o lado, a fim de deixar o velho passar. Depois de o homem se afastar, abanou de novo a cabeça violentamente e, sentindo o suor frio alastrar‑lhe por todo o corpo, continuou o seu caminho para o escritório, atento a cada passo e meticulosamente cauteloso quando atravessava a rua, não viessem carros a grande velocidade. Mas quando chegou à entrada do edifício, na Rua 43, parou, olhou estupidamente para as pessoas que entravam e saíam e compreendeu que não seria capaz de entrar, meter‑se no elevador, encarar Miss Walton e Oliver Gabrielsen sentados às respectivas secretárias e fingir que era uma tarde como outra qualquer e que podiam contar com ele para fazer o trabalho rotineiro de todas as tardes.
Cumprimentar homens mortos na rua! Teve um calafrio, ao pensar no que fizera. Frequentemente, àquela hora, teria acabado de almoçar com Mr. Gray no Algonquin, no quarteirão acima, e seguido directamente da sala de jantar para o bar, ao qual Mr. Gray estava ligado por muitos anos de tranquilo beber, para tomarem um brande pós‑almoço, a bebida preferida de Mr. Gray.
Quase automaticamente, Damon seguiu na direcção da Avenida 6, agora chamada Avenida das Américas (oh, amigo, o que é América?), virou para a Rua 44 e entrou no bar do Algonquin, que raramente frequentara desde a morte de Mr. Gray. Gostava do bar e não permitiu a si mesmo aprofundar as razões por que a morte do seu amigo e sócio tinha sido de certo modo um sinal para o evitar.
«Os mortos têm as suas exigências», pensou, ao sentar‑se ao pequeno balcão familiar; «os lugares onde as nossas conversas se travaram na acalmia de uma tarde são reservados para eles.» Não se encontrava ninguém no bar além dele, e Damon não reconheceu o empregado. Pediu um conhaque, e não o seu usual scotch, lembrando‑se de que Mr. Gray (estranhamente, após a sua longa amizade, pensava nele como Mr. Gray em vez de pelo seu nome próprio) gostava de Bisquit Dubouchet.
Os vapores assaltaram‑lhe a memória e por um momento Mr. Gray foi uma presença viva a seu lado. A presença não era macabra nem a recordação desgostosa, mas antes terna e reconfortante.
A última vez que vira Mr. Gray tinha sido no décimo aniversário do seu casamento. Houvera uma pequena festa no apartamento de Damon, com um punhado de clientes da agência por quem tinham especial afecto e um velho amigo de Damon, Martin Crewes, que fora cliente e se fixara em Hollywood, onde era agora um argumentista muito bem pago e tinha um empresário que tratava dos contratos em seu nome. Viera a Nova Iorque conferenciar com um realizador, e Damon gostara de ouvir a sua voz pelo telefone, na véspera. Tinham sido bons amigos e ele fora um homem honesto e talentoso, e sempre bom companheiro. Escrevera dois excelentes romances acerca da pequena cidade do Ohaio onde nascera, mas tinham‑se vendido mal e Crewes dissera a Damon e a Mr. Gray, ao partir para a Costa Ocidental: «Que vá tudo para o Diabo, rendo‑me. Estou cansado de passar fome. Tem de haver um limite para o número de vezes que batemos com a cabeça na parede de pedra. A única coisa que sei fazer é escrever, e se alguém me quer pagar por isso, que Deus o abençoe. Tentarei não escrever merda, mas se for isso o que quiserem será isso que lhes darei.» Tinha sido um homem bem‑humorado e divertido quando Damon o conhecera, mas passados alguns minutos de conversa, enquanto bebiam antes do jantar, Damon entristecera por ver que o seu amigo se transformara num solene e pomposo saco de vento que contava anedotas sem graça acerca de produtores, realizadores e estrelas de cinema e sublinhava a sua conversa com um riso alto e nervoso, que punha os nervos do agente em franja.
Tinha sido um jovem de sólida constituição e ligeiramente gordo, mas entretanto perdera a carne e ficara reduzido ao osso e Damon desconfiou de que fazia ginástica pelo menos duas horas por dia e só comia fruta e nozes para manter aquela figura tensa de baletista. O seu cabelo reluzia, de um tom de ébano pouco natural, e estava cortado à pajem, de uma maneira que lhe cobria por completo as orelhas. Usava uma camisola preta de gola alta, um grosso fio de ouro suspenso do pescoço, calças pretas e casaco de casimira acastanhado. O rapaz da pequena cidade do Ohio acerca do qual ele escrevera, em tempos, desaparecera por completo.
Nos primeiros dez minutos passados na sala tivera tempo de dizer aos convidados que o filme que tinha acabado custara sete, nem menos, e que o que ia fazer a seguir seria épico e teriam sorte se conseguissem fazê‑lo por menos de dez. Damon precisou de alguns momentos para compreender que os sete eram sete milhões e os dez, dez milhões.
Quando chegara, mais tarde do que os outros convidados, Mr. Gray tornara clara a sua desaprovação logo com as primeiras palavras que dirigira ao indivíduo: «Ah, Crewes Parede de Pedra regressou finalmente, para receber a continência das suas tropas esfarrapadas, mas leais!» E Damon compreendera que tinha sido um erro convidar o argumentista para a festa. E quando Mr. Gray recuara um passo para observar Crewes, como se quisesse ver bem um quadro num museu, e perguntara, em tom de espanto zombeteiro: «Esse é o uniforme da Paramount?», Damon ficara com a certeza de que Crewes nunca mais lhe telefonaria,‑por muitas vezes que viesse a Nova Iorque.
Apesar de tudo, a festa tinha sido agradável. Crewes partira cedo, depois de beber apenas soda com uma rodela de limão e de ter debicado a salada e à volta da fatia de presunto assado que Sheila lhe pusera no prato.
Os Damons partiam no dia seguinte para um passeio de um mês pela Europa e os amigos que já lá tinham estado informaram‑nos dos lugares que não deveriam perder, e os amigos que ainda lá não tinham estado disseram‑lhes quanto invejavam os viajantes. E Mr. Gray, num discurso cerimonioso, oferecera a Damon um diário encadernado de cabedal, para escrever as suas impressões da viagem, e dera a Sheila uma régua de calcular, num estojo de camurça, para ela fazer a conversão dos metros e dos centímetros em jardas e polegadas e das moedas estrangeiras no seu equivalente em dólares americanos.
A festa acabara tarde, mas Damon percebera que Mr. Gray não tinha vontade de se ir embora, servira‑lhe o terceiro brande da noite e dissera‑lhe baixinho: «Fique mais um bocado», antes de se despedir dos outros convidados. Sheila fora para o quarto, a fim de acabar de fazer as malas, e Damon preparara uma bebida e sentara‑se na cadeira próxima da ponta do sofá onde Mr. Gray estava sentado.
‑ Tenho de lhe pedir desculpa, Roger, do que fiz ao Crewes. No fim de contas, ele era seu convidado.
‑ Que disparate! Quem se apresenta numa festa em Nova Iorque vestido daquela maneira, merece ouvir aquilo de que não gosta.
‑ Não me pude conter ‑ confessou Mr. Gray. ‑ Sabe, não tenho nada contra os filmes, per se. Na realidade, até gosto. E também não tenho nada contra as pessoas que os fazem. Mas quando vejo um homem com o talento que Crewes tinha deixar‑se ir na onda daquela maneira e não escrever uma palavra decente em dez anos, fico triste. O desperdício, homem, o desperdício! Houve escritores que passaram pela nossa agência a quem aconselhei que fossem para lá e se deixassem lá ficar, porque sabia que seriam mais felizes a adaptar o material de outros e aliviados do pesado fardo da criação. Além disso, seriam pagos, e eu não subestimo o amor que certos homens têm pelo dinheiro. De resto, a língua não ficaria a perder nem uma frase pelo facto de eles irem passar a vida a escrever por encomenda. A outros aconselhei‑os a irem e fazerem um filme, pela experiência e pelo dinheiro, pois sabia que regressariam e fariam o trabalho para que tinham nascido. ‑ Sorvera tristemente um golo de brande. ‑ No caso de Crews, foi uma decepção pessoal. Pensava que estava a moldá‑lo. Vi uma peça dele num acto, num daqueles espectáculos da Equity Library, procurei‑o e disse‑lhe que era um romancista e não um dramaturgo, e financiei‑o durante um ano inteiro enquanto ele trabalhava no seu primeiro livro. Foi um dos jovens mais prometedores que passaram pela agência. E agora, o que é? Um galarote bronzeado, a cantar na capoeira. ‑ Franzira a boca, desgostoso. ‑ Mas para quê continuar a repisar nisto? Na nossa profissão, a desilusão é uma mercadoria que podemos ter a certeza de que chega todos os dias com o correio da manhã.
‑ Voltara a sorver o brande em silêncio, durante alguns momentos, a olhar pensativamente para as brasas da lareira quase apagada. ‑ Não só na nossa profissão ‑ acrescentara.
‑ O meu filho, por exemplo.
‑ O quê? ‑ perguntara Damon, surpreendido; sabia que Mr. Gray fora casado e era viúvo quando se tinham conhecido mas o filho nunca tinha sido mencionado.
‑ O meu filho ‑ repetira Mr. Gray. ‑ É negociante de cereais, compra agora para vender mais tarde, coisas assim. Fez fortuna durante a guerra. E depois dela. Espera que o mercado esteja na alta para vender trigo aos milhões de esfomeados da Europa e da Ásia. Foi um rapaz brilhante, quase um génio. O seu campo era a matemática, a física... Podia ter sido o astro refulgente de qualquer faculdade, em qualquer universidade do país. Foi a única dádiva de ouro de um casamento que de outro modo teria sido horrível. Soube utilizar o seu talento para manipular, para negociar, para tirar partido de todos os truques e complexidades da lei e do mercado. Li não há muito tempo que era o mais jovem multimilionário dos Estados Unidos, que ganhara todo o seu dinheiro pelos seus próprios esforços. Com o coração frio de um guarda de campo de concentração. Vinha na revista Time.
‑ Não li ‑ murmurara Damon.
‑ Não a trago na algibeira para mostrar aos amigos
‑ respondera Mr. Gray, e sorrira ao de leve.
‑ Não sabia que tinha um filho.
‑ Dói‑me falar dele.
‑ Também não fala muito da sua mulher. Deduzi que era um assunto doloroso.
‑ A minha mulher morreu nova. ‑ Mr. Gray encolhera os ombros. ‑ Não se perdeu muito. Eu era tímido e ela era humilde e foi a primeira rapariga que me deixou beijá‑la. Morreu, creio, de embaraço, de embaraço por estar viva e ocupar espaço no planeta. Não houve uma centelha de verdadeira vida nela desde o dia em que nasceu; tinha espírito de escrava. Suponho que o meu filho se tornou no que é porque olhou para a mãe e disse a si mesmo que, em tudo quanto fosse possível, teria de ser diferente dela. E desprezava‑me. Quando falámos pela última vez disse‑me ‑ ainda me parece ouvir o desprezo da sua voz ‑ que eu me contentava com viver num canto e de uma côdea durante toda a vida, mas ele, não.
‑ Mr. Gray soltara uma gargalhada curta. ‑ Bem, eu ainda estou no meu canto e ele é o mais jovem multimilionário feito por si mesmo da América. ‑ Suspirara, acabara o brande e olhara interrogadoramente para Damon. ‑ Acha que posso beber só mais um?
‑ Com certeza ‑ respondera Damon, e voltara a encher‑lhe o copo.
Mr. Gray inclinara a cabeça para aspirar o cheiro do conhaque. Damon tivera a impressão de que ele estava a chorar e tentava ocultá‑lo.
‑ Ah, mas eu não o mantive a pé para me lamentar da minha vida privada! ‑ dissera por fim, ainda de cabeça baixa. ‑ Um velho, altas horas da noite, sob a influência de um nadinha de brande a mais...‑A voz morrera‑lhe.
‑ Roger, deixei a minha pasta no vestíbulo. Importa‑se de a ir buscar?
Damon demorara‑se um bocado, para dar a Mr. Gray tempo para enxugar as lágrimas. Ouvira‑o assoar‑se ruidosamente. A pasta pesava e Damon perguntara a si mesmo que poderia conter e por que motivo Mr. Gray levara a pasta para uma festa.
‑ Ah, cá está! ‑ exclamara Mr. Gray vivamente, quando Damon entrara na sala. ‑ Encontrou‑a.
Pousara o copo e pusera a pasta nos joelhos. A pasta costumava andar cheia de manuscritos que ele levava para casa, para ler depois das horas de trabalho e nos fins‑de‑semana. Acariciara o cabedal velho e o fecho de latão amachucado, antes de a abrir e tirar um frasquinho de comprimidos. Depois tirara um comprimido e metera‑o debaixo da língua. Damon reparara que a mão sulcada de veias e com manchas de fígado tremia ligeiramente.
‑ O brande acelera o coração ‑ dissera, quase como se se desculpasse, como se fosse descortês um convidado ingerir qualquer coisa que não fosse fornecida pelo anfitrião. ‑ Os médicos bem me avisam, mas não se pode viver completamente sem vícios. ‑ A sua voz tornara‑se de súbito mais forte e as suas mãos tinham deixado de tremer. ‑ Foi uma bonita festa. E a Sheila parece sempre esplêndida, na sua própria casa. Foi há dez anos, não foi? Como o tempo voa! ‑ Tinha sido testemunha do casamento, no gabinete do juiz. ‑ Vocês foram bons um para
o outro. Se fosse mais novo, teria inveja do vosso casamento. E, no seu lugar, não faria nada para o perturbar.
‑ Sei a que se refere ‑ murmurara Damon, pouco à vontade.
‑ Aquelas pequenas ausências do escritório, à tarde, os telefonemas...
‑ Temos um entendimento, a Sheila e eu. Uma espécie de entendimento tácito.
‑ Não estou a censurá‑lo, Roger. Para ser franco, as suas excursões do meio da tarde causam‑me um prazer vicarial... Tenho fantasiado o que será ser interessado como você, vigoroso, perseguido pelas mulheres... Iluminou‑me muitos dias cinzentos. Mas você já não é jovem, os fogos já deviam estar amodorrados, tem algo de precioso que deve conservar...
‑ Como acabou de dizer, não se pode viver completamente sem vícios. ‑ Damon rira‑se, para conduzir a conversa a um nível mais ligeiro. ‑ E eu raramente bebo brande.
Mr. Gray rira‑se também, como um velho amigo a compartilhar com outro uma tunantice masculina.
‑ Bem, pelo menos proceda de maneira a não ser apanhado.
Depois voltara a ficar sério, abrira de novo a pasta que mantivera no colo e tirara um grande sobrescrito de tela muito cheio.
‑ Roger ‑ dissera, suavemente ‑, vou‑lhe pedir um grande favor. Este sobrescrito contém anos de trabalho e uma vida inteira de esperança. É um manuscrito. ‑ Rira‑se, constrangido. ‑ Um livro que acabei de escrever. O único livro que jamais escrevi, e provavelmente que jamais escreverei. Quando era novo, queria ser escritor. Tentei, mas em vão. Lera tanto que não podia acreditar que o que eu próprio escrevia tivesse algum valor. Por isso, fiz o que me pareceu ser a segunda melhor coisa. Seria o vaso, o meio, a conduta, se quiser, do trabalho de bons escritores. Aqui e ali, pode‑se dizer que consegui. Mas não é isso que interessa. Com a idade, com a imersão em palavras, por assim dizer, com os anos de observação e crítica, pensei que talvez tivesse acumulado sabedoria suficiente para criar qualquer coisa que redimisse o que restava da minha vida.
Agora você vai viajar, haverá dias de chuva em que não poderá sair do hotel, talvez longas viagens de comboio, noites em que se sentirá cansado de ouvir uma língua estrangeira... Quando voltar, espero que o tenha lido. Até agora, ninguém o viu além de mim, nem sequer uma dactilógrafa. ‑ Respirara fundo e levara a mão à garganta, como se quisesse aliviar alguma tensão oculta. ‑ Se me disser que é bom, mostrá‑lo‑ei. Se me disser que não presta, queimá‑lo‑ei.
Damon pegara no sobrescrito, no qual se lia, na caligrafia redonda e certinha de Mr. Gray: Viagem a Solo, de Harrison Gray.
‑ Estou ansioso por começar a lê‑lo.
‑ Por favor ‑ pedira Mr. Gray ‑, não olhe para a primeira linha antes de se encontrar a pelo menos 5000 quilómetros de distância.
A viagem fora tudo o que podiam ter esperado, ou melhor ainda. Tinham viajado sem horário, conforme a fantasia lhes mandava, livres e sem peias, encontrando nova alegria em estarem juntos 24 horas por dia, passeando de mãos dadas como jovens amantes ao longo do Sena, pelas margens do Tibre, através do Palazzo dei Uffizi, num caminho de montanha dos Alpes Suíços e pelas pontes dos canais perto da Grande Laguna. Pararam silenciosos diante da Catedral de Chartres e subiram ao cume do monte St. Michel. Juntos, leram Henry James sobre Paris, As Pedras de Veneza, de Ruskin, e Stendhal sobre Roma, jantaram bouillabaisse ao sol da Primavera, em restaurantes sobranceiros ao porto de Antibes, e fettuccine ai pesto em mesas voltadas para o mar da Ligúria. Não fora o manuscrito de Mr. Gray e Damon não poderia ter imaginado umas férias mais perfeitas. Quando Sheila lhe perguntara que tal era o livro, respondera‑lhe que era bom. Mas mentira. O livro jazia morto nas suas mãos. Harrison Gray, quando novo, viajara durante alguns meses num vapor sem rota fixa à volta das ilhas do Pacífico Sul e o livro era uma recordação, sob a forma de romance, dessa viagem. Na escrita, parecia uma paródia enfadonha da Juventude, de Conrad.
Mr. Gray, aquele homem delicado e exigente, tão sensível ao torneado de uma frase, tão vivo no apontar de uma nota errada numa personagem imaginária, tão penetrante na detecção de falsidade ou retórica, tão impregnado da glória da grande literatura e tão devotado a ela, escrevera um livro tão chato, tão banal, tão canhestro, que Damon chorava interiormente ao percorrer as páginas em que não havia duas frases seguidas com uma amostra da música ou do sabor da língua inglesa. À medida que o mês se aproximava do fim, temia a ideia do regresso, o momento em que chegaria ao escritório e teria de enfrentar o seu velho e querido amigo.
Mas Mr. Gray, cavalheiresco e atencioso até ao fim, poupou‑lhe esse momento. Quando voltou ao escritório, com o manuscrito, no primeiro dia depois do seu regresso, foi saudado à porta por uma chorosa Miss Walton, nessa altura mais magra e com galantes bandós de cabelo cor de pêlo de rato, que lhe disse não ter sabido como comunicar com ele, na Europa, para o informar de que Mr. Gray morrera na semana anterior.
Nessa noite, embora estivesse calor e Nova Iorque já se encontrasse em poder do Verão, Damon acendeu a lareira da sala e lançou a Viagem a Solo, página a página, às chamas. Era o menos que podia fazer em honra da memória do seu amigo.
Depois de recordar tudo isso, Damon fitou o copo do brande pousado no balcão, suspirou, pegou no copo, bebeu o que restava, pagou e saiu do hotel.
Ao contrário do que era hábito, não percorreu a pé os três quilómetros até casa. Ao pensar na longa noite que ia passar com a mulher, com as suas explicações e confissões, os seus medos e os seus alarmes, não se sentiu com disposição para encontrar nas ruas da cidade quaisquer outros dos seus mortos familiares.
Fez sinal a um táxi e seguiu para casa em silêncio.
QUANDO, na manhã seguinte, se despediu de Sheila com um beijo, antes de sair para o trabalho, achou‑a com ar sério e tenso. Tinha sido uma noite exaustiva, que começara, quando ele entrara, com a pergunta:
‑ Que vem a ser isso a respeito de uma pistola?
‑ Onde ouviste falar de uma pistola? ‑ perguntara por sua vez, já arrependido de a ter deixado, ainda que apenas um dia, na ignorância do que se passava.
‑ Almocei com o Oliver. Ele está tão preocupado contigo como eu.
‑ Está bem, senta‑te. Temos de falar um pouco... ou melhor, muito.
Depois, usando as mesmas palavras que usara ao almoço com Elaine, falou‑lhe do telefonema que recebera no meio da noite. Contou‑lhe também a maior parte, mas não tudo, do que Elaine dissera acerca de fazer listas de pessoas que pudessem desejar‑lhe mal. Receoso de a magoar e fazer pensar que não confiava nela, omitiu o conselho de Elaine para que Sheila fizesse também uma lista pessoal. Por outras razões, omitiu igualmente o nome de uma mulher com quem estivera envolvido havia muito tempo, que lhe telefonara recentemente de Chicago e cuja família, ou ela própria, poderia sentir‑se tentada pela ideia de vingança, quer pela violência, quer pelo dinheiro.
‑ Detesto perguntar isto, Sheil ‑ dissera após horas de discussão e especulação que pareciam andar sempre à roda e nunca terminar com a tomada de decisões ‑, mas será possível que alguém tenha alguma coisa contra ti e queira fazer‑te pagar por meu intermédio?
‑ Foi a Elaine que sugeriu isso? ‑ perguntara Sheila, desconfiada.
- Mais ou menos.
‑ Nem poderia deixar de ser ‑ comentara a mulher, azedamente. ‑ Pediu‑te outra vez dinheiro?
‑ Não. Agora tem um namorado rico.
‑ Graças a Deus por pequenos favores! ‑ exclamara Sheila, ironicamente. ‑ Deixa‑me ver se consigo contar os meus inimigos... Sim, há um rapazinho de cinco anos, numa das minhas classes, que disse odiar‑me por o ter mandado para o canto durante dez minutos, como castigo de ter feito uma menina chorar. ‑ Sorrira. ‑ Tenho a cabeça cansada e é tarde. Vamos para a cama. Talvez as coisas pareçam mais 'claras de manhã.
Mas a manhã chegara, uma normal manhã de trabalho, e ela despedia‑se dele com ar cansado e angustiado, e Damon via pelas suas olheiras que não dormira bem. Ele também não dormira nada bem e voltara a ter o sonho em que o pai estava parado na balaustrada de mármore, a segurar o cavalo de brincar, a sorrir e a chamá‑lo convidativamente, com a mão.
À porta beijaram‑se de novo, com mais demora, e ela disse:‑«Tem cuidado.» Ele respondeu: «Com certeza», desceu a escada e saiu para um uivante e frio vento primaveril. Noutras ocasiões, teria achado que um tempo assim enrijava, no longo esticão para o escritório, mas naquele dia embrulhou‑se bem na gabardina, levantou a gola à roda das orelhas e caminhou o mais depressa que pôde, a tentar manter‑se quente. Os rostos das pessoas por quem passava pareciam franzidos e hostis, e se, en masse, os rostos representavam alguma coisa, era um ódio generalizado, que abarcava tudo, e uma certeza íntima de que todos os homens, ou pelo menos todos os nova‑iorquinos, eram seus inimigos.
No escritório não foi muito melhor. Quando Oliver entrou, Damon fechou a porta que separava a sala onde trabalhavam da sala exterior, para evitar que Miss Walton ouvisse o que ia dizer. Depois, rispidamente e em voz demasiado alta, perguntou:
‑ Em que diabo de velha calhandreira se transformou? A dar à língua pela cidade toda! Pensava que tínhamos um acordo segundo o qual o que se passa neste escritório fica neste escritório.
‑ Oh! ‑ exclamou Oliver. ‑ Sheila disse‑lhe que almoçámos juntos.
‑ Claro que disse.
‑ Escute, Roger ‑ pediu Oliver, a falar calmamente, embora Damon visse que estava magoado ‑, a Sheila tem andado intrigada com o seu comportamento desde que ela regressou de Vermont. E eu também. Uma pistola, francamente! Há anos que clama por uma lei de controlo de armas, vi o seu nome em dúzias de petições a congressistas.
‑ Mudei de ideias! ‑ disse Roger, ainda a falar muito alto. ‑ Não é motivo para andar a dar à língua nas minhas costas.
‑ Roger, falar com a sua mulher de um problema que não tem nada a ver com o escritório não é andar a dar à língua pela cidade toda.
‑ Como pode estar tão certo de que não tem nada a ver com o escritório? Pois olhe que talvez tenha. ‑ Enquanto falava, Damon tinha consciência de que estava a ser injusto, mas não podia conter‑se. ‑ E doravante cale o raio da boca.
Quando Oliver se voltou e dirigiu silenciosamente para a sua secretária, Damon pensou: «Mais um ponto contra mim.»
Não disseram uma palavra um ao outro durante toda a manhã e Damon o mais que conseguiu foi fingir que trabalhava e mexer irritadamente na papelada que lhe enchia a secretária. Eram quase onze horas quando o seu telefone tocou.
‑ Mrs. Damon ao telefone ‑ informou‑o Miss Walton.
Damon ficou surpreendido. Sheila fazia questão de nunca lhe telefonar para o trabalho. Quando o fazia era por volta das cinco horas, altura em que sabia que ele estava a preparar‑se para sair e lhe pedia que levasse qualquer coisa para casa ou, se por coincidência se encontrava ali perto, lhe sugeria que se encontrassem para tomar uma bebida nas proximidades do escritório, jantassem e depois fossem ao cinema.
‑ Ligue.
‑ Roger ‑ disse Sheila sem preliminares ‑, estive a pensar no que disseste a respeito de eu poder ter inimigos.
‑ É acerca do rapazinho que puseste de castigo ao canto? ‑ perguntou Damon. ‑ Tornou‑se malvado? ‑ Era uma piada sem graça e ele compreendeu‑o imediatamente.
‑ Agrada‑me que estejas tão bem disposto ‑ volveu Sheila, irritada. ‑ Eu não estou.
‑ Desculpa.
‑ O período passado aconteceu uma coisa de que me devia ter lembrado. Um homem habituou‑se a andar pelas imediações da escola, a oferecer rebuçados aos garotos e a convidá‑los para irem comer um sorvete com ele. Como sabes, às vezes as mães chegam atrasadas para levar os filhos. As outras professoras e eu temos tanto que fazer que não podemos ir para a rua esperar as queridas senhoras e, por isso, damos rigorosas instruções às crianças para não se afastarem do portão da frente. Nunca se sabe, porém, com garotos de 4 e 5 anos. O caso começou a preocupar‑me e, uma tarde, desci e disse‑lhe que não o queria parado defronte da escola nem a falar com os miúdos. Era um indivíduo dos seus 50 anos e bem vestido, mas o seu aspecto não me inspirou confiança. Mostrou‑se insultado, disse que era um velho reformado e solitário que gostava de crianças e declarou que o ofendia o facto de eu pensar que podia haver algum mal em dar um rebuçado a uma criança. Depois disso, deixou de aparecer com tanta frequência, mas de vez em quando eu via‑o, a fingir que ia apenas a passar, por coincidência, quando as aulas terminavam. Contei o caso a um polícia, o qual lhe disse, quando o encontrou, que se voltasse a vê‑lo a rondar a escola o levaria preso por suspeita. Só o vi mais uma vez, por acaso, na nossa rua e mesmo defronte da nossa casa, e ele lançou‑me um olhar furioso e disse: «Cadela lésbica. Agora vá contar isso à Polícia.» ‑ Sheila suspirou. ‑ Ri‑me na sua cara, ele afastou‑se e só voltei a pensar nele esta manhã.
Estava a dar uma volta à minha secretária e encontrei o bocado de papel onde escrevera o nome que o polícia me indicara. Queres que to diga? Talvez não signifique nada, mas quem sabe?
‑ Qual é o nome?
‑ McVane. Só tenho o apelido. Foi há muitos meses e não me parece possível...
‑ Tudo é possível. Obrigado, Sheil.
‑ Desculpa ter interrompido o teu trabalho, mas pensei que gostarias de saber.
‑ Claro.
‑ Como vão as coisas no escritório esta manhã?
‑ Numa maré de rosas.
‑ Espero que não tenhas descomposto o Oliver ‑ disse Sheila, e pareceu inquieta.
‑ Houve uma breve discussão. ‑ Viu as costas de Oliver, que estavam voltadas para ele, hirtas, e teve a certeza de que o sócio sabia com quem ele estava a falar e de quê.
‑ Meu Deus, que complicação! ‑ lamentou‑se Sheila.
Miss Walton interveio:
‑ Mr. Damon, tenho uma chamada à sua espera E de um cavalheiro que diz chamar‑se Schulter. Disse que era importante, que estava a falar de uma cabina e não podia esperar.
‑ Tenho de desligar, Sheila. Se me atrasar um pouco a chegar a casa não te preocupes.
‑ Último boletim para iluminar o teu dia ‑ brincou Sheila. ‑ Esta manhã o rapazinho disse que gostava de mim.
‑ Como toda a gente ‑ redarguiu Damon, e ouviu o CliC, quando ela desligou.
Seguiu‑se um momento de ruídos telefónicos, enquanto Miss Walton fazia a ligação necessária na antiquada consola telefónica. Depois uma voz de homem anunciou:
‑ Detective Schulter. ‑ A voz era roufenha e lembrou a Damon o ruído de uma mão calejada ao deslizar por um bocado áspero de cortiça.
‑ Queira dizer.
‑ Mrs. Sparman pediu‑me que lhe telefonasse.
‑ Quem?
- Elaine Sparman.
‑ Ah, sim! ‑ Tinha‑se esquecido de que Sparman era o apelido do segundo marido de Elaine, na qual pensava sempre como Mrs. Damon.
‑ Estou perto daí. Pode ir ter comigo ao grande bar de sanduíches próximo da Avenida 6?
‑ Quando?
‑ Imediatamente. Preciso de falar antes do almoço com alguns outros indivíduos das imediações.
‑ Estarei lá daqui a dez minutos. Como o reconhecerei?
Schulter deu uma gargalhada.
‑ Serei o único detective presente e basta olhar para mim para o perceber. De qualquer modo, estou de sobretudo cinzento e tenho na mão um exemplar do Wall Street Journal.
‑ Entendido. Obrigado.
‑ Não me agradeça ainda. Por enquanto, ainda não fiz nada por si. Até daqui a dez minutos.
Damon ficou um momento a olhar fixamente para a secretária, a tentar imaginar que sinistros assuntos teria Mr. Schulter, da Brigada de Homicídios, a tratar com os outros indivíduos das imediações, como dissera, e a perguntar a si mesmo se o seu conhecimento com Elaine surgira no exercício da sua profissão. Perguntava igualmente a si mesmo que espécie de detective seria, para ler o Wall Street Journal. Depois levantou‑se e, sem dizer nada a Oliver, foi buscar o sobretudo e disse a Miss Walton que tomasse nota de quaisquer recados que chegassem para ele, pois não sabia quando voltaria. Saiu. O elevador demorou muito tempo a chegar e ele carregou repetidas vezes no botão, cheio de impaciência. Mr. Schulter parecera‑lhe o tipo de homem que quando falava em dez minutos queria dizer mesmo dez minutos. Damon tinha o pressentimento de que, se chegasse no décimo primeiro minuto, já não encontraria o detective.
Mas não chegou atrasado e quando entrou no bar viu um homem alentado, de sobretudo cinzento, sentado sozinho a beber uma chávena de café e a ler o Wall Street Journal.
‑ Mr. Schulter? ‑ perguntou Damon, de pé junto da mesa.
Schulter levantou a cabeça. Tinha um monumental queixo quadrado, uma barba preto‑azulada que devia ser uma destruidora de lâminas e olhos pequenos, azul‑frio, afundados em pesadas bolsas de carne e permanentemente desprovidos de afecto ou confiança na espécie humana. Quando ele olhou para cima, Damon pensou nos canhões dos couraçados a moverem‑se nas suas torres, preparando‑se para um ataque. «Tudo quanto este homem compreende», pensou, «é a duplicidade e disparar para produzir efeito.»
‑ Sente‑se.
O detective dobrou cuidadosamente o jornal e pô‑lo na mesa, a seu lado. Não perguntou a Damon se queria comer ou beber alguma coisa. Não perdeu tempo nenhum com amenidades.
‑ Mrs. Sparman disse‑me que foi ameaçado pelo telefone. ‑ Parecia aborrecido, como se Damon devesse saber há muito tempo que toda a gente era ameaçada de uma maneira ou de outra, que se tratava de um facto da vida, como o tempo, e que pouco ou nada se podia fazer a tal respeito. ‑ Ela referiu‑me mais ou menos o que o indivíduo disse pelo telefone. Não é muito, como ponto de partida, a não ser que o senhor tenha alguma ideia de quem ele é e por que motivo lhe telefonou precisamente nesta altura.
‑ Bem, sou agente literário e...
Schulter acenou com a cabeça e os canhões elevaram‑se ligeiramente.
‑ Mrs. Sparman falou‑me do seu trabalho.
‑ Fiz um negócio particularmente lucrativo com uma autora desconhecida e o caso causou grande agitação nos círculos editoriais, fui entrevistado e o meu nome e a minha fotografia têm vindo nos jornais.
Schulter acenou de novo com a cabeça.
‑ O raio dos jornais ‑ resmungou. ‑ Só arranjam problemas. Perdi algumas condenações que estavam garantidas porque eles pespegaram com tudo nas suas páginas, antes de eu poder fazer valer as minhas provas em tribunal. Por conseguinte, esse indivíduo pensa que sabe qualquer coisa a seu respeito e que você lhe pagará para ele manter a boca fechada. Parece‑lhe razoável, Mr. Damon?
‑ Parece.
‑ Faz alguma ideia do motivo por que o indivíduo lhe chamou um mau rapaz?
Schulter olhou friamente para Damon e este compreendeu que ele procurava qualquer coisa no seu rosto, um espasmo, uma mudança de expressão, qualquer coisa que lhe revelasse se ele ia ou não mentir.
‑ Não faço a mínima ideia ‑ respondeu, e os glaciais olhos azuis não se modificaram em nada, não lhe permitiram ver se o detective acreditara ou não nas suas palavras.
‑ O indivíduo, esse tal Mr. Zalovsky, não mencionou nenhuma soma de dinheiro?
‑ Não.
‑ Mas disse que o senhor teria de pagar por ser um mau rapaz.
‑ Sim.
‑ O pagamento nem sempre tem de significar dinheiro. Também pode ser vingança.
‑ Pensei nisso.
‑ E tem alguma ideia?
‑ Não, realmente.
‑ Que significa isso?
Pelo tom ríspido e exigente da voz do detective, Damon teve a impressão de que, quando acabasse de o interrogar, Schulter tiraria da algibeira um par de algemas e o levaria para a esquadra.
‑ Significa que praticamente toda a gente conheceu alguém que pensa que uma pessoa a insultou ou prejudicou de qualquer maneira.
‑ Importa‑se de me dar um exemplo, por favor? Da sua própria vida.
‑ Bem, não é exactamente da minha vida... Mas esta manhã a minha mulher lembrou‑se de uma coisa e falou comigo a esse respeito pelo telefone, pouco antes de o senhor telefonar.
‑ A sua mulher ‑ murmurou o detective. ‑ Mrs. Sparman falou dela. De que se lembrou ela?
Schulter tinha olhado para o relógio e Damon contou‑lhe o mais resumidamente possível a história do homem que rondava a escola, a queixa de Sheila ao polícia e o encontro defronte da sua casa, em que o homem lhe chamara cadela lésbica.
‑ Encontrou o apelido dele num bocado de papel, na gaveta da secretária ‑ concluiu Damon. ‑ McVane. Não sabe o primeiro nome.
Schulter resmungou, como que desagradado com o descuido criminoso das pessoas com as quais era obrigado a lidar.
‑ Ela sabe o nome do agente policial a quem se queixou e que alegadamente admoestou o indivíduo?
‑ Estou convencido de que não sabe ‑ respondeu Damon, em tom de quem se desculpa.
‑ O número do distintivo?
‑ Perguntar‑lhe‑ei, mas estou igualmente convencido de que não sabe.
Schulter abanou a cabeça, irritado.
‑ Se ao menos as pessoas aprendessem que têm de ajudar a Polícia se querem que ela as proteja...
‑ Nem a minha mulher nem eu ‑ respondeu Damon, mostrando‑se também irritado ‑ tivemos fosse o que fosse a ver com a Polícia antes disto. Somos amadores totais, no tocante a crime.
‑ Há sempre uma primeira vez ‑ comentou Schulter como se, de futuro, Damon e a mulher devessem esperar uma série de acontecimentos que os forçariam a adoptar uma abordagem mais profissional do comportamento criminal. ‑ De qualquer modo, vou passar o nome de McVane pelo computador, para ver o que dá. Provavelmente nada. ‑ Olhou com ar de censura para Damon.‑ Mais alguma coisa?
Damon hesitou e respirou fundo.
‑ Há cerca de dois meses recebi um telefonema de Gary, Indiana. De uma senhora. Telefonou‑me para o escritório. Não disse uma palavra acerca do assunto a ninguém e não quero que a minha mulher saiba. Gostaria que me prometesse que não dirá nada a esse respeito que possa chegar aos ouvidos dela...
‑ Quem está a ser ameaçado é o senhor ‑ interrompeu‑o Schulter, friamente. ‑ A mim, ninguém está a ameaçar. Farei o possível, mas não posso prometer nada. No entanto, se deseja protecção, acho que é melhor dizer‑me.
Estava calor no restaurante e Damon tirou o lenço e enxugou o suor da testa. O detective não despira o pesado sobretudo, mas não apresentava nenhuns indícios de que o calor estivesse a incomodá‑lo, nem mesmo de que quaisquer extremos climáticos pudessem causar‑lhe a mínima diferença. Damon olhou em redor, para ver se se encontrava alguém suficientemente perto para ouvir o que ia dizer.
‑ Era uma rapariga ‑ disse em voz tão baixa que o detective teve de se inclinar para ele para o ouvir. Pela primeira vez, havia uma expressão de interesse, quase de prazer, no rosto de Schulter. ‑ Uma rapariga, uma mulher nova, na realidade. Casada. Tive um romance com ela. O marido era treinador de uma equipa de futebol liceal em Gary, Indiana. Ela veio a Nova Iorque visitar os pais e eu conheci‑a. Ela... bem, engravidou. De mim. Ela e o marido não tinham conseguido ter filhos. Tentavam, segundo me disse, mas sem resultado. Não quis fazer um aborto. Ia ter o filho, disse‑me, e deixar o marido acreditar que era dele.
‑ Ah ‑ exclamou Schulter, com satisfação ‑, foi um mau rapaz!
‑ Não me sinto culpado. Ela usou‑me, em vez de inseminação artificial, mais nada.
‑ Não foi assim tão artificial. ‑ Pela primeira vez havia um brilho divertido nos olhos do detective. ‑ Quer dizer‑me o nome dela?
‑ Acho que devo dizer. Mrs. Julia Larch.
‑ Talvez haja qualquer relação, aí ‑ disse Schulter, pensativo.
‑ Ela vive em Gary. Quem telefonou disse que era de Chicago.
Damon fechou os olhos e voltou a ver a carta, a caligrafia inclinada para trás no papel azul perfumado. Parabéns, lera, de nariz um pouco franzido por causa do perfume do papel grosso, é pai de um rapaz de 3,600 kg. Recordou o misto de vergonha e euforia que sentira ao rasgar a carta e o sobrescrito e deitar os bocadinhos no cesto dos papéis. Ele e Elaine, pressentindo desde o princípio que o seu casamento não duraria, tinham tido o cuidado de evitar a gravidez. Sheila quisera filhos, mas os seus esforços tinham sido vãos. Haviam poupado um ao outro a dor de descobrir de quem era a culpa.
Agora sabia que, pelo menos ele, era fecundo. Filho único desde que o seu irmão mais velho, Davey, morrera de leucemia com a idade de dez anos, tinha finalmente um filho, ainda que nem soubesse o seu nome e provavelmente nunca o visse. O seu sangue seria transmitido, continuaria.
Schulter fazia‑lhe uma pergunta e Damon abriu os olhos.
‑ Como se explica que subitamente, tantos anos depois e sem mais nem menos, ela lhe tenha telefonado?
‑ Voltou a escrever‑me há cerca de um ano. Vinha a Nova Iorque com o garoto e queria que me encontrasse com ela e com ele. Deu‑me a morada de uma amiga para onde poderia escrever sem receio.
‑ Viu o garoto?
‑ Não. Escrevi‑lhe a dizer que se passara tudo havia já muito tempo e que me parecia melhor não complicarmos as coisas. Na realidade, ao longo dos anos houve ocasiões em que pensei que, verdadeiramente, não sabia nada acerca da mulher, que ela podia ter andado a dormir com uma dúzia de homens enquanto estivera em Nova Iorque e que o garoto podia ser filho de qualquer deles. Bem, quando me telefonou disse‑me que guardara a carta, escondida, e que o marido a encontrara.
Schulter acenou com a cabeça.
‑ Moral da história: nunca se devem escrever essas coisas. Continue. Que mais lhe disse a senhora pelo telefone?
‑ Como estava a chorar, era‑lhe difícil falar e não se mostrava muito coerente, mas eu consegui perceber que o marido lhe começara a bater até ela contar a história toda. Não sei se é verdade, se não. Disse‑me também que ele jurara que me faria numa polpa se alguma vez me encontrasse, e que era melhor eu pagar o sustento e educação do rapaz, se sabia o que era bom para mim.
‑ Tem pago?
‑ Mandei a Julia Larch um cheque de mil dólares.
‑ Foi um erro ‑ observou Schulter. ‑ Com o seu nome escrito no cheque e tudo.
‑ Não sabia que mais fazer ‑ confessou Damon, fatigado.
A verdade e as consequências, pensou, não eram um jogo, mas sim um desporto sanguinário.
‑ Tem a morada dela?
‑ Tenho. ‑ Damon tirou um livrinho de apontamentos da algibeira, escreveu a morada, arrancou a página e estendeu‑a ao detective.
‑ Vou telefonar a um capitão da Polícia que conheço em Gary e pedir‑lhe que investigue o tipo.
‑ Peça‑lhe que seja discreto, pelo amor de Deus.
‑ Discreto! ‑ O lábio superior de Schulter arrepanhou‑se. ‑ Essa é uma palavra que os capitães da Polícia têm de procurar no dicionário. Que vai fazer quando esse tal Zalovsky lhe voltar a telefonar?
‑ Pensei que talvez o senhor me soubesse dizer o que devo fazer.
Schulter pensou um momento e bebeu um golo de café frio.
‑ Bem, a primeira coisa que lhe recomendo é que ligue uma máquina de gravar ao seu telefone. Depois, quando ele telefonar, tente marcar um encontro para o dia seguinte. Informe‑me onde e quando se deverá efectuar o encontro e eu tentarei estar lá ou perto de lá. com a esperança de que ele não repare em mim.
‑ Quando telefonou, disse que me queria ver dali a dez minutos ‑ lembrou Damon. ‑ À esquina. Suponho que o seu próximo telefonema será do mesmo género. Não terei tempo de lhe telefonar a avisá‑lo.
Schulter deixou escapar a respiração através dos dentes, com um som sibilante.
‑ Pode comprar qualquer equipamento para transportar consigo, a fim de gravar o que ele lhe disser. Arranja isso em qualquer loja de equipamento electrónico. ‑ Olhou de novo para o relógio e empurrou para trás a chávena e o pires. ‑ Tenho de ir andando. Se tiver no passado mais historiazinhas interessantes como a de Mrs. Larch, tente recordá‑las e escreva‑as num papel, com nomes e datas, para quando eu o voltar a ver. ‑ Levantou‑se, forte e alentado, sem suar apesar do grosso sobretudo, e pôs um chapéu de feltro castanho‑escuro, de abas estreitas, que parecia ridiculamente pequeno na sua cabeça maciça. ‑ Uma última coisa ‑ acrescentou, quando Damon se levantou ‑, Mrs. Sparman disse‑me que o senhor estava a considerar a ideia de pedir uma licença de porte de arma, para uma pistola.
‑ É verdade.
‑ Que idade tem, Mr. Damon?
‑ 65 anos.
‑ Já alguma vez manejou uma arma ligeira?
‑ Não. Nunca toquei numa arma na minha vida.
‑ Onde esteve durante a guerra?
‑ Na Marinha Mercante. Não distribuíam armas. Schulter acenou com a cabeça.
‑ Uma arma far‑lhe‑á mais mal do que bem ‑ afirmou. ‑ De resto, já há demasiadas armas de fogo nas ruas. Marinha Mercante, hem? ‑ O desdém da sua voz era evidente e inequívoco. ‑ Pagamento de horas extraordinárias nos dias passados em zonas de combate. Serviço duro, como costumávamos dizer.
‑ O senhor esteve na guerra?
‑ No primeiro de Fuzileiros. Não pagavam horas extraordinárias.
‑ Não era demasiado novo? Que idade tem agora? Uns 50?
‑ 57. Alistei‑me aos 17. Dias perfumados no romântico Pacífico Sul. Ainda fico amarelo umas duas vezes por ano. Bem, vou andando. Não tenho tempo para lhe contar a história da minha vida. Aqueles judeus malucos do bairro dos diamantes andam na rua com 200.000 dólares de pedras preciosas na pasta... é como se tivessem um letreiro nas costas: Venham buscá‑los. Depois ficam surpreendidos quando são assassinados. No lugar deles, contrataria um pelotão de infantaria do Exército de Israel para patrulhar a Rua 47. Tenho uma tarde muito cheia à minha frente: tenho de investigar os melhores amigos de dois mortos. ‑ Encaixou melhor o absurdo chapelinho na cabeça que começava a ficar calva. ‑ Espere aqui um minuto ou dois depois de eu sair. Não quero que nos vejam juntos na rua. E seja optimista.
Não houve aperto de mão e o antigo fuzileiro caminhou direito ao balcão, a oscilar como um marinheiro numa tempestade, e saiu para a rua.
SUBIU lentamente a 6.a Avenida, a lembrar‑se de que. perto da Rua 50, havia uma grande loja que vendia equipamento electrónico. Sentia‑se fisicamente magoado depois da sua sessão com o tenente Schulter. Era como se tivesse acabado de se submeter a uma massagem excessivamente vigorosa. Schulter não o ajudara muito; na realidade, suscitara mais perguntas do que dera respostas. E fora penoso ter de lhe falar de Julia. Sair a chorar do passado, ao fim de tantos anos, para o atormentar com um problema que ele não criara. Lembrava‑se da noite em que se tinham conhecido. Ele e Sheila tinham ido a uma pequena festa em que se falara principalmente de livros. Alguém levara Julia à festa. Ao falar com ela, Damon ficara a saber que tinha sido bibliotecária antes de casar e que lamentava ter deixado Nova Iorque. Só participara esporadicamente na conversa geral, embora as poucas coisas que dissera tornassem claro que lera muitos dos escritores contemporâneos, sabia da existência de todos os livros de que se falara na reunião e se mantinha ao corrente da mexeriquice literária, mesmo em Gary, lendo uma quantidade de revistas e correspondendo‑se com amigos que deixara em Nova Iorque e que se movimentavam nas fronteiras dos mundos editorial e teatral. Era uma mulherzinha bonita, de um género pálido, deslavado e tímido, e não causara nenhuma impressão forte em Damon, nem boa, nem má.
Ele estava a atravessar um período tempestuoso com Sheila. Bebia muito, porque o negócio corria mal e alguns dos seus clientes mais bem sucedidos tinham‑no abandonado. Três ou quatro noites por semana ficava fora de casa até às duas ou três da manhã, com amigos que à meia‑noite já estavam entorpecidos pelo álcool. Ele próprio, as mais das vezes, chegava ao apartamento com passo pouco firme e com dificuldade em enfiar a chave na fechadura da porta. As desculpas que apresentava não tinham nenhuma base e Sheila escutava‑as num silêncio gelado. Havia semanas que não faziam amor, antes da noite da festa. Quando chegaram a casa, assim que deram as boas‑noites um ao outro Sheila apagou a luz da sua mesa‑de‑cabeceira.
Ele sentia‑se excitado e tinha uma enorme erecção, e estendeu a mão para a acariciar. Ela afastou‑lha, furiosa. «Estás outra vez bêbedo», disse. «Não faço amor com bêbedos.»
Damon deitou‑se de costas, submerso em autocom‑paixão. «Nada corre bem», pensou, «está tudo a escorregar pela encosta do monte abaixo. Este casamento não durará muito mais tempo.»
De manhã, não esperou que Sheila lhe fizesse o pequeno‑almoço. Saiu e tomou‑o numa cafetaria a caminho do trabalho. Miraculosamente, não tinha nenhuma ressaca. De cabeça desanuviada, achou que o seu comportamento dos últimos meses era tanto culpa de Sheila como dele próprio. A deterioração do casamento começara com uma discussão por causa de dinheiro. Ele levava muito pouco para casa, Sheila nunca ganhara muito e as contas estavam a acumular‑se. Depois um editor com uma reputação desagradável, que enriquecera com a publicação de livros sensacionalistas e semipornográficos, oferecera‑lhe emprego na sua firma, para iniciar uma linha mais respeitável. O dinheiro que prometia era muito bom, mas o homem era um grosseirão e só para o tornar respeitável seriam precisos dez Damons. Recusara, por isso, a oferta e cometera o erro de contar o facto a Sheila, que ficara furiosa e não lho ocultara.
‑ Até agora tem‑te corrido tudo muito suavemente, meu querido marido. A integridade é uma coisa muito bonita, mas não se podem pagar contas com ela. Se alguma vez tivesses tido de lidar com crianças maltratadas, confusas e violentas, como eu, saberias o que é ter de fazer os mais humildes e desagradáveis dos trabalhos para não morrer de fome.
‑ Não sejas melodramática.
‑ Quem está a ser melodramático és tu. Sacrificar tudo para manter acesa a chama sagrada da literatura. Está bem, permanece puro e demos três vivas à preciosa integridade de Roger Damon. Conheço‑te muito bem e, por isso, não penso nem por um instante que sejas capaz de modificar fosse o que fosse por minha causa. Volta para o santuário pelintra do teu escritório, fuma o teu cachimbo e espera que transponha a porta o próximo T. S. Elliot e te unja com um contrato assinado.
‑ Sheila ‑ dissera tristemente, perturbado com aquele eco do que Mr. Gray lhe dissera da sua última conversa com o filho e do desprezo com que este afirmara que o pai se contentava com viver toda a sua vida num canto, de côdeas. ‑ Sheila, nem pareces tu, a falar assim.
‑ Há uma coisa que te posso garantir, meu querido marido ‑ replicara ela, asperamente: ‑ é que a pobreza é uma maneira segura de mudar o tom de voz de uma senhora.
Tinha sido depois disso que ele enveredara pela bebida e pelas noitadas com os rapazes, como Sheila dizia sardonicamente. «Qualquer desculpa serve numa tempestade», pensara ele, demasiado honesto consigo mesmo para tentar ilibar‑se de toda a culpa.
Ao lembrar‑se de tudo isso e do obstinado ressentimento do rosto de Sheila, que persistia havia meses, pensara ainda: «Ela é uma camponesa e está a portar‑se como uma camponesa.» Era horrível, desagradava‑lhe, e embora não tivesse a certeza de como as coisas iriam acabar, estava certo de que não suportaria aquilo mais tempo.
Estava sentado à secretária, a conferir tristemente as suas contas e a pensar, ressentido, na maneira como Sheila lhe afastara a mão na cama, na noite anterior, quando o telefone tocara. Era Julia Larch. Damon tentara disfarçar a surpresa da voz quando ela anunciara o seu nome.
‑ Tenho estado a pensar que foi muito agradável conhecê‑lo, a noite passada, e como seria ainda mais agradável voltar a encontrá‑lo.
‑ É muito amável, Mrs... Mrs. Larch ‑ redarguira Damon.
‑ Sonhei consigo pouco antes de acordar, esta manhã. ‑ Rira suavemente. ‑ Foi há cerca de dez minutos.
‑ Espero que o sonho tenha sido agradável ‑ dissera Damon, que começava a sentir‑se embaraçado e esperava que Oliver, na sua secretária, não adivinhasse o que estava a ser dito do outro lado do fio.
Ela rira de novo.
‑ Foi muito sexy ‑ afirmara.
‑ É uma boa notícia.
‑ E pensei: não seria uma boa maneira de acabar as minhas férias em Nova Iorque se você viesse ao meu quarto imediatamente, antes de eu ter tempo de esquecer o sonho, e fizesse amor comigo?
‑ Bem, eu... eu... É muito tent...
‑ Estou no Hotel Borden, na Rua 39, leste. O quarto é o 426. A porta estará aberta. ‑ E desligara.
Damon desligara também, devagar, penosamente consciente do muito que a voz baixa o excitara, depois de semanas de abstinência.
‑ Alguma coisa importante? ‑ perguntara Oliver.
‑ Alguém a despedir‑se, apenas.
Ficara mais cinco minutos a olhar para os tristes números da página que tinha à sua frente e depois levantara‑se, saíra e atravessara a cidade para a rua 39, leste, e para a porta do quarto de hotel que estaria aberta à sua espera.
Estava ainda a pensar nesse telefonema de havia quase onze anos e no dia que se seguira, enquanto abria caminho pela multidão de transeuntes da hora do almoço da 6.a Avenida. Na cama, Julia Larch demonstrara não ser nem pálida, nem deslavada, nem tímida, e quando a noite caíra ele tinha tido mais orgasmos do que em qualquer outro dia ou noite da sua vida, mesmo quando era um jovem de 18 anos.
Fosse ou não por coincidência, depois disso a sua sorte melhorara inesperadamente. Um cliente cujos dois livros anteriores tinham sido mal recebidos e não se tinham vendido nada bem, escrevera um romance que permanecera nas imediações do meio da lista dos best‑sellers durante dois meses; Damon assinara um contrato para um jornalista co‑escrever uma autobiografia com uma estrela de cinema e conseguira obter um adiantamento esplêndido, e uma tia sua de Worcester morrera e deixara‑lhe dez mil dólares em testamento. Passara‑lhe a necessidade de beber e Sheila, desconfiando ao princípio de que se tratava apenas de uma fase passageira, acabara por voltar a ser a velha Sheila e pedira‑lhe desculpa do seu mau génio. Deixou de ser necessário estender as mãos para ela na cama, porque era ela quem lhas estendia.
Ao recordar agora tudo isso, Damon datava a sua felicidade dos últimos dez anos a partir do dia em que subira ao quarto de Julia Larch. No entanto, a lembrança dos últimos dias fazia‑o sentir que começara para ele uma nova era escura e fria, uma era de equipamento electrónico e admoestações, de homens que lidavam com o assassínio, uma era de recordações vergonhosas, iniciada pela presença constante dos mortos. Sabia que naquela tarde se ia embebedar. Sabia também que Sheila, cuja confiança nele como bom provedor tinha sido restaurada, lhe perdoaria.
Chegou à loja que vendia equipamento electrónico e olhou para a montra, maravilhado com o ilimitado engenho da humanidade que tão inteligentemente resolvera os problemas mais abstrusos que a natureza colocara à sua frente para produzir os minúsculos computadores, os rádios, os toca‑cassetes e os pequenos aparelhos de televisão. Antes de entrar, decidiu que compraria um aparelho para atender chamadas, para o telefone de sua casa, mas não o dispositivo com o qual poderia transformar‑se num peripatético estúdio de gravação. «Não fui feito para espiar», pensou, com justa indignação. No entanto, embora o não confessasse a si próprio, sabia que estava apenas a ser supersticioso. Se se munisse do necessário para registar o som, quando Zalovsky voltasse a telefonar sentir‑se‑ia impelido a encontrar‑se com ele. Sem o dispositivo, não haveria nenhuma boa razão para ver o indivíduo.
Entrou e dirigiu‑se a um balcão onde um empregado estava a atender um cliente.
‑ Quero um que seja pequeno e suficientemente leve para o poder meter na mala, quando viajo ‑ dizia o cliente.
Damon estremeceu, ao ouvir a voz. Era a voz do homem que frequentara aulas de representar com ele, antes da guerra, e que fora seu companheiro de navio e amigo íntimo na Marinha Mercante, do homem que compartilhara um apartamento com ele durante vários anos: Maurice Fitzgerald. Na altura em que Damon tomava a decisão de desistir de representar, Fitzgerald já se saía muito bem no palco e era muito procurado. Tinham continuado a ser bons amigos, apesar de Damon ter abandonado o teatro, mas no fim tinham‑se separado friamente. A sua amizade sofrera estragos irreparáveis e Damon não fora à festa de despedida de Fitzgerald e da sua ‑ dele, Damon ‑ recente amante, Antoinetta Bradley, na véspera da partida de ambos para Londres. Mas agora, ao ver o rosto familiar e garboso sob o boné irlandês de tweed, a frieza desapareceu e foi substituída pelo calor da velha camaradagem dos dias a bordo e do apartamento de solteiros. Em Londres, com a sua sonora voz irlandesa e a sua aptidão para representar qualquer papel, Fitzgerald fizera uma carreira sólida, como bom segundo actor. Apesar dos seus talentos, soubera que nunca seria uma estrela. Era baixo e o seu rosto, maleável e malicioso, teria sido útil a um comediante de burlesco. Jamais lhe poderiam chamar belo ‑ nem a própria mãe a tal se atreveria, conforme costumava dizer com um sorriso melancólico.
Damon sentiu‑se tentado a aproximar‑se do homem, que estava de costas para ele, bater‑lhe no ombro e dizer: «Para a coberta, marinheiro.» Mas sentiu um estranho e perturbador formigueiro em todo o corpo e recordou‑se do seu encontro com o homem que julgara ser Mr. Gray, o que o levou a decidir esperar pela oportunidade de voltar a olhar bem para o indivíduo, antes de falar. Um encontro por semana como o que tivera com o falso Mr. Gray era suficiente para qualquer pessoa.
Mas quando o homem se virou, Damon viu que era Fitzgerald: não o jovem que conhecera, de cabelo preto e rosto sem rugas, mas um homem mais ou menos da sua idade, com suíças grisalhas a espreitarem do boné.
‑ Diabos me levem! ‑ exclamou Fitzgerald. ‑ Roger Damon!
Enquanto apertavam a mão, Damon compreendeu que, de qualquer modo, por medo de fantasmas, não teria sido o primeiro a falar.
‑ Que fazes, de volta ao velho país?
‑ Entro numa peça que começa a ensaiar amanhã. Não imaginava que regressar a Nova Iorque me causasse tal emoção. Haverá um homem de alma tão morta que, etc., etc... E encontrar‑te assim, logo no segundo dia, é a cobertura do bolo. ‑ Olhou afectuosamente para Damon e acrescentou: ‑ Estás com bom aspecto, Roger.
‑ E tu também.
‑ Um pouco esfiampado nas costuras... ‑ Tirou o boné e tocou na cabeça. ‑ Cabelo grisalho. Linhas de preocupação à volta dos olhos. Os próprios olhos que deixaram de ser brilhantes e inocentes... Bem, agrada‑me ver que também conservas o teu cabelo. ‑ Sorriu. ‑ Dois galos velhos. Coros nus, em ruínas, onde altas horas os doces pássaros cantam, e tudo isso.
‑ Não pareces nada velho.
Damon dizia a verdade. Fitzgerald parecia ter, no máximo, uns 50 anos, embora fosse vários meses mais velho do que Damon.
‑ O facto de estar sob o olhar do público... Opera maravilhas, às vezes de modo desesperado, no sentido de conservar a ilusão da juventude.
‑ Senhor ‑ disse o empregado, que estivera pacientemente parado a observar os dois homens ‑. leva o aparelho?
‑ Levo, obrigado. ‑ Fitzgerald pôs um cartão de crédito em cima do balcão. ‑ Que vieste comprar a esta casa de magia?
‑ Vim apenas ver, e não comprar. ‑ Damon não queria ter de explicar a Fitzgerald por que motivo precisava de um aparelho que gravasse mensagens telefónicas e servisse de pretexto para não se atender pessoalmente o telefone. ‑ Creio que este reencontro pede uma bebida, não achas?
Fitzgerald abanou a cabeça, penalizado.
‑ Com os diabos, homem, tenho um almoço com o produtor do espectáculo! Não devemos fazer esperar os patrões, bem sabes. Mesmo assim, já estou atrasado.
‑ E se jantasses amanhã à noite em nossa casa? Gostaria que conhecesses a minha mulher. ‑ Fitzgerald conhecera Elaine e felicitara Damon por se ter livrado dela, mas partira para Londres muito antes de o amigo casar pela segunda vez.
‑ Parece‑me formidável. A que horas e onde?
‑ Às oito horas. Espera, vou‑te dar a minha morada. Tirou o livrinho de apontamentos ao qual arrancara uma página para dar a Schulter a morada de Julia Larch e escreveu a sua própria morada para Fitzgerald. As habitações locais e nomes de amigos e inimigos, arrancados de um livro de apontamentos de vinte cêntimos. Trabalho de poeta, como Shakespeare observara.
‑ Antes de ires... ‑ começou Damon, hesitante ‑ ... a Antoinetta veio contigo?
Fitzgerald olhou‑o de modo estranho.
‑ Morreu num acidente de avião ‑ respondeu, em voz sem timbre. ‑ Há dez anos. O aparelho despenhou‑se no mar da Irlanda. Não se salvou ninguém.
‑ Lamento ‑ murmurou Damon, atrapalhado. ‑ Lamento muito.
Fitzgerald encolheu os ombros.
‑ A sorte dos dados... Ah, eu bem tento mostrar‑me despreocupado a esse respeito! Pensava que me passaria, mas nunca passou. ‑ Tentou sorrir. ‑ Não faz sentido pensar nisso.
Fez um pequeno gesto ambíguo. A afastar o assunto? A recusar a compaixão? Damon não compreendeu. Saíram juntos para a avenida.
‑ Então até amanhã às oito ‑ despediu‑se Fitzgerald. ‑ Diz à tua mulher que como seja o que for.
Saltou agilmente para um táxi. Damon viu o veículo afastar‑se e depois voltou a entrar na loja, dirigiu‑se ao mesmo balcão e comprou o instrumento para registar mensagens telefónicas.
Em seguida, com o aparelho numa caixa embrulhada, entrou no bar mais próximo e pediu a primeira bebida da tarde, a pensar nos bons e maus bocados que ele e Fitzgerald tinham passados juntos.
Entre eles contavam‑se as longas noites no Downey's Restaurant ou no Harold's Bar, onde os actores se reuniam depois de os seus espectáculos saírem de cena e ele e Fitzgerald discutiam fosse com quem fosse que aparecesse acerca dos diferentes talentos de O'Neill, Odets, Saroyan, Williams, Miller e George Bernard Shaw. Fitzgerald, que tinha uma memória prodigiosa, fazia citações de qualquer deles, ou de outros quaisquer, para provar os seus pontos de vista. Examinavam estilos de representar e Fitzgerald pusera aO Método, como era exemplificado pelo Teatro de Grupo, o nome de «Escola de Resmungos de Nova Iorque». O seu pai era irlandês e frequentara a Trinity, em Dublim, e legara ao filho uma maneira de falar agradável e musical, que podia erguer‑se a alturas shakespeareanas ou descer a um cadenciado sotaque irlandês, quando citava passagens de Joyce.
Apesar da sua estatura e do rosto de cómico, atraía as raparigas e estavam sempre duas ou três presentes, a pedir‑lhe que recitasse os seus poemas favoritos ou um dos grandes solilóquios, o que Fitzgerald fazia com serena paixão e admirável clareza, por muito bêbedo que na altura estivesse.
Também tinha grande talento para escolher raparigas que sabiam cozinhar e levava‑as triunfalmente para o apartamento, a fim de prepararem banquetes de boeuf bourgignon, fritto misto e paio à 1'orange. Quando conhecia uma rapariga capaz de cozinhar melhor do que a candidata ao título desse momento, despedia esta cruelmente e chamava à nova la Maitresse de la Maison. Damon perdera o conto dos nomes das Maitresses de la Maison que tinham tido enquanto compartilhavam o apartamento. A primeira vez que Damon levara Antoinetta ao apartamento, Fitzgerald perguntara imediatamente.
‑ Sabe cozinhar?
Antoinetta olhara interrogadoramente para Damon e indagara:
‑ Quem é este indivíduo peculiar?
‑ Não o contraries. Ele tem uma mania acerca de cozinhados.
‑ Pareço uma cozinheira? ‑ insistira Antoinetta.
‑ Pareces a deusa a erguer‑se da espuma ‑ respondera Fitzgerald ‑, e a espuma é feita de mousse de chocolate.
Antoinetta rira‑se.
‑ A resposta é não. Não sei. definitivamente, cozinhar. Que sabes tu fazer?
‑ Sei distinguir um falcão de um serrote e um soufflé achatado de um bife do lombo. ‑ Virara‑se para Damon e perguntara‑lhe: ‑ Que mais sei fazer?
‑ Discutir, dormir até tarde e fazer as traves do tecto vibrar quando recitas Yeats.
‑ Conhece Nos Campos da Flandres? ‑ perguntara Antoinetta. ‑ Recitei‑o uma vez no auditório da escola, quando tinha 10 anos. Deram vivas quando acabei.
‑ Aposto que sim ‑ comentara Fitzgerald, antipaticamente.
Damon conhecia Antoinetta suficientemente bem para perceber que ela estava a brincar, a vingar‑se de lhe terem perguntado se sabia cozinhar. Mas Fitzgerald não admitia que se brincasse com a poesia. Voltara‑se para Damon e aconselhara‑o:
‑ Não cases com a dama, bom amigo. ‑ Nunca explicara a Damon se o dissera por Antoinetta não saber cozinhar ou por ele não ter gostado da alusão a Nos Campos da Flandres.
No fim, pensou Damon ao pedir uma segunda bebida, seguira o conselho de Fitzgerald. Não casara com Antoinetta.
Devia ter avisado Antoinetta, antes de a levar a casa, de que Fitzgerald estava no seu elemento com os poetas irlandeses. Se o tivesse feito, ela poderia ter evitado o desdém de Fitzgerald e este ter‑se‑ia interessado por ela desde o princípio e poupado aos três muitos aborrecimentos.
A maior admiração de Fitzgerald pela poesia estava reservada à de William Butler Yeats, e durante a lenta viagem através do Atlântico, em comboio, ele e Damon paravam à proa do Liberty ship, que ia cortando as longas vagas do Atlântico Norte e entoavam os versos atormentados do poeta. Fitzgerald recitava Navegando para Bizâncio como um mimo especial nas noites em que parecia estarem fora de perigo e em que o mar estava calmo.
Damon ouvira o poema tantas vezes que naquele momento, de pé num bar da 6.a Avenida, pôde murmurá‑lo com o sotaque irlandês de Fitzgerald.
Murmurou‑o porque não queria que os outros frequentadores do bar pensassem que era doido, a falar sozinho.
Esse país não é para velhos, não! Os jovens enlaçados estreitamente; Aves dos bosques, cascatas de salmão; O peixe e a carne que, perpetuamente, Falam de tudo, no esplendor do Verão, Quanto é gerado, nasce e por fim morre. E enquanto a música sensual decorre, Dela cativos, esquecem por completo Os momentos de perene intelecto. (*)
Fitzgerald chorava de mansinho quando chegava ao fim da primeira estância, e Damon sentiu lágrimas nos próprios olhos ao recordar esses momentos.
Fitzgerald parecia saber de cor todo o Shakespeare, e nas noites de lua cheia, quando os navios do comboio se recortavam no horizonte como alvos perfeitos para as alcateias de submarinos, recitava com sardónica coragem o solilóquio de Hamlet, depois da primeira saída de Fortinbras:
Exorta‑me o exemplo, imenso como a Terra: Contempla, além, a hoste impetuosa e vasta Que um príncipe gentil vai conduzir à guerra E a quem a ambição divina inflama e arrasta. Zombando do invisível, do arcano futuro, Expõe o destino vão, fugaz e inseguro, De a quantos a fortuna, a morte e o perigo
[afrontam
Por uma casca de ovo. Argumentos não
[contam
Que o justifiquem pois é vil deixar
[dormentes
(*) A tradução dos versos é de Mascarenhas Barreto.
Vinte mil homens, cadáveres iminentes, Por uma fantasia, por um logro da fama. Irão para a sepultura, como se fora a cama, na luta vil, efémera, p'la glória de um
[evento!
Nenhuma causa pode ser a razão coerente; E nem p'rà campa basta o inteiro continente Para tantos chacinados. Oh! Que o meu
[pensamento
Se torne sanguinário... ou sem merecimento! (*)
Uma noite, logo após ele ter recitado o solilóquio, um navio do seu comboio tinha sido torpedeado. O navio explodira e eles tinham visto, desesperados, as chamas e a sinistra coluna de fumo brilhante, enquanto o navio se afundava. Era a primeira vez que viam um dos seus navios destruídos e Fitzgerald soltara um soluço seco e depois dissera, em voz suave: «Bom amigo, somos a casca de ovo e esta noite todos os pensamentos no mar e nas suas profundezas são sanguinários.»
Depois dominara‑se e recitara de A Tempestade, num tom irónico:
Jaz o teu pai a cinco braças afundadas E em coral se lhe transformam as ossadas; Já os seus olhos se fazem pérolas, nos
[limos.
Que nada dele se perca, mas se torne Em algo rico que o oceano adorne. E de hora a hora, as ninfas dobram sinos: Dlim‑dlão!
Escutai seus hinos! Dlim‑dlão! (*)
Em seguida, Fitzgerald ficara um momento silencioso. Depois dissera: «Shakespeare, o discurso para todas as ocasiões. Não viverei para representar Hamlet. Ah, vou para baixo! Se formos atingidos por um torpedo, não me digas.»
(*) A tradução dos versos é de Mascarenhas Barreto.
Tinham tido sorte, nunca tinham sido atingidos por nenhum torpedo e haviam regressado a Nova Iorque alegres, jovens e ansiosos por reatar o trabalho para que tinham nascido, como Mr. Gray dissera noutra ocasião. Fora então que tinham decidido compartilhar um apartamento. Encontraram um perto do rio Hudson, num bairro onde as ruas eram na sua maioria ocupadas por negociantes de carros usados e por armazéns. Era um andar velho, quase em ruínas, que tinham mobilado com móveis desirmanados e atravancado de livros e cartazes teatrais, um andar que as raparigas que constantemente chegavam e partiam tentavam pôr em ordem.
Como Damon, Fitzgerald tinha sido casado antes da guerra, mas recebera uma carta da mulher em que ela admitia estar apaixonada por outro homem com o qual queria casar. «Foi um divórcio frio», dizia ele. «Os laços legais foram quebrados em Reno, quando eu estava abaixo da Islândia, no Atlântico Norte.»
Jurou que nunca mais voltaria a casar e quando uma mulher que resistira a três meses no apartamento lhe tornara evidente que queria que casasse com ela, declamara‑lhe, na presença de Damon, o arremedo de um poema heróico de uma peça em que representara: «Tenho sido intrujado por mulheres, despojado por mulheres, repelido por mulheres, divorciado por mulheres, rejeitado por mulheres, seduzido, detido e traído por mulheres. Seria necessária a força de Shakespeare para descrever as minhas relações com mulheres. Fui o Mouro desmourado, o Dinamarquês desdenhado, Troilus tramado, Lear delirante, Falstaff falsificado. Próspero depenado, Mercutio com um buraco duas vezes tão fundo como um poço e cinco vezes tão largo como a porta de uma igreja... ‑ tudo por mulheres!»
Depois depositara na fronte da mulher um beijo casto e perguntara: «Dei‑te uma vaga ideia dos meus sentimentos sobre o assunto?»
Ela rira‑se como ele esperava e não voltara a levantar a questão. Placidamente, continuara a frequentar o apartamento juntamente com os bandos sucessivos de outras raparigas.
Para conservarem a sua amizade, Fitzgerald e Damon tinham um acordo tácito segundo o qual cada um deixava em paz as raparigas que o outro levasse para casa, e isso deu resultado, mesmo nas festas mais loucas, até Damon aparecer com Antoinetta, que não tardou a tornar‑se um ponto fixo das suas vidas, a dormir três ou quatro vezes por semana com Damon e a ir ao extremo de preparar uma refeição para todos nos pouco frequentes intervalos em que Fitzgerald estava sem cozinheiras.
No silêncio do meio da tarde do bar de Nova Iorque, livre de submarinos, mas presa de outros perigos, Damon pediu nova bebida. «Duplo, desta vez», disse ao barman. Apesar de não ter comido nada desde o pequeno‑almoço e de estar a beber com o estômago vazio, o uísque não lhe produziu qualquer efeito. Sentia‑se sóbrio e melancólico, a recordar os exuberantes anos perdidos e, por fim, o bocado verdadeiramente mau que passara com Fitzgerald.
Damon percebeu que se passava qualquer coisa quando chegou ao apartamento depois do trabalho. Estava uma noite de Inverno polar em Nova Iorque. A caminhada do escritório de Mr. Gray até ali deixara‑o gelado até aos ossos e ele vinha desejoso de uma bebida e do calor do lume que esperava Fitzgerald tivesse acendido.
Mas não havia nenhum lume aceso e Fitzgerald estava de olhos vermelhos e ainda de roupão, sinal de que não saíra todo o dia. Andava agitadamente de um lado para o outro, na sala, com um copo na mão, e bastou a Damon um olhar para perceber que ele passara a tarde a beber, coisa que nunca fazia quando tinha de ir para o palco, como acontecia naquela noite.
Fitzgerald pareceu assustado quando Damon entrou na sala.
‑ Oh! ‑ exclamou, e levantou o copo. ‑ Apanhaste‑me em flagrante. Crime imperdoável num actor: apresentar‑se ao serviço sob a influência...
‑ Há algo errado, Maurice?
‑ O que está errado é que eu sou um merda, se isso se pode considerar errado nos tempos que correm. Bebe um copo comigo. Vamos ambos precisar disso, esta noite.
‑ O pano sobe daqui a menos de três horas, Maurice.
‑ Sou capaz de representar o meu papel nessa peça caçadora de dinheiro da Broadway mesmo de olhos fechados ‑ respondeu Fitzgerald, desdenhosamente. ‑ E também posso permitir que o pano suba sem mim e deixar a assistência adivinhar quem falta.
‑ Deixa‑te de tretas, Maurice. Que se passa?
‑ Está bem, ama seca. ‑ Fitzgerald aproximou‑se da mesa onde tinham as garrafas, o gelo e os copos. ‑ Deixa‑me preparar‑te uma bebida. As criadas fugiram todas. E já não era sem tempo.
As mãos tremiam‑lhe enquanto preparava a bebida para Damon e refrescava a sua. O gargalo da garrafa bateu na borda dos copos. A entornar uísque de ambos os copos, atravessou a sala na direcção de Damon. Este pegou num copo, bebeu um golo e sentou‑se.
‑ Isso mesmo, bom amigo, senta‑te. A conversa talvez seja longa.
‑ Está bem, Maurice. Que é?
‑ É a Antoinetta. Ou, para ser mais correcto, é a Antoinetta e o teu bom amigo Maurice Fitzgerald, cujo nome não podia ser mais certo: Filho bastardo de Gerald.
‑ Não precisas de soletrar ‑ declarou Damon calmamente, embora tivesse de lutar contra o impulso de estrangular o homem ao lado de quem sobrevivera à guerra e festejara centenas de noites hilariantes.
‑ Não tinhas desconfiado?
Damon percebia que Fitzgerald tentava parecer contrito, mas devido ao muito que bebera a expressão do rosto devasso de cómico era de zombaria.
‑ Não, não tinha desconfiado.
‑ Bem‑aventurados os inocentes deste mundo negro. ‑ Subitamente, Fitzgerald atirou o copo para a lareira vazia: o uísque entornou‑se pelo chão fora e o copo estilhaçou‑se contra a parede do fundo da chaminé.
‑ Há quanto tempo dura isso entre vocês? Damon ainda conseguia falar em voz baixa. Não queria pormenores nem explicações; só desejava livrar‑se daquele rosto corado e sardónico voltado para ele. Mas as palavras saíram automaticamente.
‑ Há um mês. O tempo suficiente para uma senhora se decidir.
‑ Cristo! ‑ exclamou Damon. ‑ Ela dormiu comigo todo este fim‑de‑semana e a noite passada, com os diabos, contigo no quarto ao lado!
‑ Amor omnia vincit ‑ declamou Fitzgerald. ‑ Ou talvez ao contrário: Omnia amor vincit. Homens e mulheres, bom amigo, homens e mulheres. Feras da selva.
‑ Vais casar com ela?
‑ Provavelmente, a seu tempo. Há conveses a desimpedir, sentimentos a expressar.
Tinha um já longo romance com uma das cozinheiras que levara para casa e que lhe era pegajosamente devotada. Damon calculou que esse era um dos conveses a desimpedir.
‑ Não há pressa em correr para a igreja ‑ acrescentou Fitzgerald. ‑ No fim, farei de Antoinetta uma mulher honrada.
‑ És um merda ‑ afirmou Damon, azedamente.
‑ Eu disse‑o primeiro, mas não me importo de ser citado. Onde diabo está a minha bebida?
‑ Atiraste‑a para a lareira.
‑ Oh, o fantasma perdido e chorado pelo vento de uma garrafa de scotch! Das obras de Thomas Wolfe, famoso escritor americano. Uma pedra, uma folha, uma porta não encontrada. Mais do famoso escritor. Meu Deus, nunca me consigo esquecer de nada! Que fardo! Não me esquecerei de ti, bom amigo.
‑ Obrigado ‑ resmungou Damon, e levantou‑se. ‑ Vou fazer as malas e sair daqui para fora.
Fitzgerald estendeu a mão para o deter.
‑ Não podes. Eu é que tenho de me ir embora.
‑ Não estou louco por viver num bordel. Especialmente depois de descobrir o que significa a luz encarnada na janela.
‑ Um de nós tem de ficar ‑ lembrou Fitzgerald. ‑ Ainda falta um ano para o nosso arrendamento terminar.
Damon hesitou. Não podia pagar a renda de outro apartamento, para onde fosse viver, e metade da renda daquele, ao mesmo tempo.
‑ Tenho uma pró... proposta a fazer ‑ disse Fitzgerald. ‑ Atiremos uma moeda ao ar. O que perder fica e paga a renda toda.
Damon suspirou.
‑ Está bem.
‑ Tens uma moeda? Os meus trocos estão todos na mesa do meu quarto e eu detesto a ideia de te deixar sozinho nem que seja por um minuto, bom amigo.
‑ Cala a boca, Maurice ‑ ordenou Damon, enquanto levava a mão à algibeira e tirava 25 cêntimos. ‑ E se voltares a chamar‑me bom amigo, parto‑te os queixos. Eu atiro a moeda, tu escolhes.
‑ Coroas.
Damon atirou a moeda ao ar, apanhou‑a na palma da mão e manteve‑a tapada durante bons dez segundos com a outra mão. Depois levantou a mão. Fitzgerald estava inclinado, para ver a moeda. Deixou fugir a respiração, num assobio baixo.
‑ Caras. Perdi. Fico. A sorte dos dados. Baixas aceitáveis, como os militares dizem tão delicadamente quando traçam planos para a próxima invasão que custará apenas dezoito mil vidas. Lamento, Roger.
Damon atirou‑lhe a moeda e ele não fez nenhum gesto para a apanhar, deixou‑a bater‑lhe na testa antes de cair no chão.
Em seguida, Damon foi fazer as malas. Não se demorou muito tempo e quando saiu do quarto ouviu Fitzgerald a cantar no chuveiro, a preparar‑se para o espectáculo da noite.
«A boas cinco braças jaz Antoinetta», pensou Damon, e dirigiu‑se com o copo para a ponta do balcão, porque entrara um grupo de homens e começara a discutir em voz alta a respeito de um espectáculo de televisão de que um deles era o representante do patrocinador e os outros encarregados da publicidade e gente de uma maneira ou de outra ligada ao programa.
«A boas cinco braças», voltou a pensar Damon. «Há coral no mar da Irlanda?» Nunca mais voltara a ver Antoinetta e a ferida sarara havia muito tempo e a dupla deserção da rapariga deixara‑o livre para casar com Sheila, abençoada mulher, amante e leal companheira, muitos anos depois. Fitzgerald prestara‑lhe um favor, embora na altura nem ele nem Damon o tivesse sabido. Antes da festa de despedida de Fitzgerald e Antoinetta Bradley, para a qual Damon fora convidado e a que não comparecera, tinha recebido uma carta de Fitzgerald, na qual o seu ex‑amigo escrevera: «Perdoa‑me.
Amo‑te como a um irmão e não sou dos que empregam a palavra irmão a torto e a direito. Mas os irmãos estão destinados a lixarem‑se uns aos outros. Caim, por exemplo. Sê feliz. Espero que da próxima vez que nos virmos possamos abraçar‑nos.»
Bem, naquela tarde fora «a próxima vez» em que se tinham encontrado e se Damon fosse um homem habituado a tais gestos entre homens, teria abraçado o seu velho e desleal amigo. Quando Maurice fosse jantar a sua casa na noite seguinte, recordar‑lhe‑ia a sua carta e abraçá‑lo‑ia.
Entretanto, o uísque produzira efeito e o mundo estava a enevoar‑se. Por nenhuma razão que soubesse explicar, tentou repetir a primeira estância de «Navegando para Bizâncio», mas tropeçou nas palavras, não se lembrou dos versos do meio e sorriu estupidamente enquanto pedia ao barman. com grande dignidade: «A conta, por favor.»
Sob a influência, como Fitzgerald dissera, deixou o aparelho de atender chamadas telefónicas em cima do balcão. Naquele momento não estava a pensar em Zalovsky nem no tenente Schulter.
Nunca teve a oportunidade de abraçar Fitzgerald. Quando abriu o New York Times, na manhã seguinte, deparou‑se‑lhe a fotografia de Maurice Fitzgerald na primeira página e, ao lado, a história. «Maurice Fitzgerald, o famoso actor cuja carreira se prolongou por mais de 40 anos, primeiro nos palcos americanos e depois nos ingleses, teve um ataque cardíaco e perdeu a consciência no restaurante onde almoçava com o produtor teatral, Mr. Nathan Brown. Conduzido de ambulância ao Lenox Hill Hospital, chegou já morto.»
Damon pousou o jornal na mesa, ao lado da chávena do café, e olhou sem ver através da janela, para a casa do outro lado da rua. Depois baixou a cabeça e tapou os olhos com a mão.
Sheila, que estava sentada à sua frente à mesa do pequeno‑almoço, compreendeu pela sua expressão que acontecera alguma coisa.
‑ Que é, Roger? ‑ perguntou, inquieta. ‑ Sentes‑te bem? ‑ Empalideceste muito, de repente.
‑ Maurice morreu logo depois de eu o ter visto, ontem à tarde.
‑ Oh, pobre homem! ‑ exclamou Sheila, e pegou no jornal.
Deu uma vista de olhos ao pequeno título, no fundo da folha, e depois leu a curta notícia.
‑ Tinha só 65 anos ‑ murmurou.
‑ A minha idade ‑ disse Damon. ‑ Tempo de partir.
‑ Não digas isso! ‑ protestou Sheila, vivamente. Damon compreendeu que ia romper em incontroláveis soluços. Para os conter, disse um gracejo hediondo:
‑ Bem, perdeu uma boa refeição, esta noite.
QUANDO chegou ao escritório, a primeira coisa que fez foi pedir desculpa a Oliver da sua explosão da véspera.
‑ Oh, toda a gente tem o direito de demonstrar um certo aborrecimento, de vez em quando! ‑ exclamou Oliver, embaraçado com o pedido de desculpa. ‑ A Sheila pareceu‑me tão preocupada... e, para dizer a verdade, eu também estava preocupado. ‑ Sorriu agarotado a Damon. ‑ Um pouco de mau génio purifica o ar.
‑ Bem, agora a Sheila já sabe tudo... ou pelo menos tudo quanto eu sei. Por isso, já não precisa de receber boletins diários do escritório. ‑ Damon falou sem irritação, mas Oliver compreendeu.
‑ Como queira, chefe ‑ murmurou. ‑ Omerta, como dizem na Sicília: o código do silêncio. Mas se alguma vez precisar da minha ajuda...
‑ Obrigado. Não há novidade.
Damon procurou o número de Nathan Brown, o produtor, e telefonou‑lhe. Teve de esperar muito tempo.
‑ Lamento muito tê‑lo feito esperar, Mr. Damon ‑ disse a telefonista, quando ele a informou do seu nome. Parecia agitada e quase em lágrimas. ‑ Esta manhã, aqui... Está a telefonar toda a gente, de todo o mundo. Pode imaginar como estão as coisas no escritório. Vou ligá‑lo a Mr. Brown.
Ouviram‑se alguns estalidos na linha e depois Brown atendeu.
‑ As últimas palavras que ele disse foram a seu respeito ‑ informou. ‑ «Encontrei um velho amigo maravilhoso, antes de vir almoçar», disse‑me. «É um sinal de sorte. Roger Damon, conhece?...» E antes que eu pudesse responder começou a escorregar da cadeira, de um modo assustador, e foi parar ao chão sem eu ter sequer tempo de estender a mão para o ajudar. O restaurante tornou‑se subitamente silencioso como um túmulo e eu creio que um criado chamou uma ambulância, pois ouvi a sereia mal tinham decorrido alguns segundos, ao que me pareceu, embora naquele momento, curiosamente, não tivesse qualquer noção do tempo. Os homens da ambulância fizeram o que puderam, mas foi inútil e levaram‑no. Foi uma perda terrível para todos nós... Um homem tão excelente e talentoso...
‑ Quem está a tratar do funeral? ‑ A caminho do escritório, Damon conseguira dominar os nervos e falava sem emoção.
‑ Quando regressei do hospital ao escritório, depois de tudo acabar, tive a ideia de telefonar para o seu número de Londres ‑ informou Brown. ‑ Atendeu uma senhora. Eu não sabia quem era, se era a mulher dele ou qualquer outra coisa; por isso, perguntei‑lhe e ela disse que era uma amiga, uma amiga muito íntima, e acrescentou saber que Maurice queria ser sepultado em Inglaterra. Tomei nota do nome dela. Posso dar‑lho, assim como o número do telefone, no caso de lhe querer telefonar.
‑ Quero ‑ respondeu Damon. ‑ Quem está a tratar das formalidades?
‑ Eu ‑ disse Brown. ‑ Ou, pelo menos, a tentar. É tão complicado! ‑ Parecia muito preocupado e inseguro; esperara o início dos ensaios e afinal chegara quando o pano descia no último acto da última noite. ‑ Gostaria de ver o corpo? Está no...
‑ Não ‑ interrompeu Damon. ‑ Não gostaria de ver o corpo, obrigado.
O conhecimento de que o seu amigo estava morto era o máximo que podia suportar; não queria ser confrontado com o facto frio e mortal. O seu amigo era agora apenas uma recordação numa caixa comprida; não se importaria de viajar sozinho para junto da senhora que atendera o telefone da sua casa de Londres quando ele estava fora da cidade e que tomaria agora plena posse do homem que, enquanto vivera com ela, estivera possuído pela recordação de uma mulher afogada no mar da Irlanda havia muito tempo. Seria cruel impor‑lhe a presença de um velho amigo americano que podia ir‑se inadvertidamente abaixo e contar histórias do passado do morto que ela não queria ouvir.
‑ Sabe qual era a religião dele? ‑ perguntou Mr. Brown.
‑ Católica. Mas não muito firme. Duvido que acreditasse naquela história da Virgem.
‑ Nos tempos que correm... ‑ Brown suspirou, triste pelo declínio da fé desde Moisés e Jesus Cristo. ‑ No entanto, pedi ao padre, no hospital, que lhe administrasse a Extrema Unção. Pelo sim, pelo não, compreende?
‑ Não lhe fez mal nenhum. ‑ Damon não se lembrava de Fitzgerald ter ido alguma vez à missa.
‑ Pensei que talvez fosse adequado se organizássemos uma espécie de cerimónia em memória dele, dentro de uma ou duas semanas. Num pequeno teatro. Uma coisa não sectária. Ele era muito popular entre os actores, apesar de a maior parte da sua carreira ter decorrido em Inglaterra. Fez algumas gravações de Shakespeare para a BBC. Podíamos passar uma dessas coisas, escolher algumas pessoas para fazerem o seu elogio... Como seu mais velho amigo estaria...?
‑ Desculpe, mas não ‑ cortou Damon, a lembrar‑se dos discursos de Fitzgerald na noite em que tinham atirado a moeda ao ar para ver quem ficava com o apartamento; duvidava que até a audiência não sectária reunida em memória de Fitzgerald gostasse de os ouvir.
‑ Ele tinha um hino favorito? Ou um poema?
‑ Quando o conheci, era Navegando para Bizâncio. Mas o seu gosto pode ter mudado desde então.
‑ Consideraria a hipótese de o ler, Mr. Damon?
‑ Não, arranje um actor. Se eu o lesse, ele daria voltas na sepultura.
Mr. Brown soltou uma gargalhada curta e triste.
‑ No teatro não estamos habituados a tal modéstia ‑ disse. ‑ A propósito, tem por acaso entre os seus clientes um jovem e brilhante dramaturgo que esteja à espera de iniciar carreira e precise de um produtor?
O negócio como de costume, até quando amigos mortos estavam a ser embarcados em aviões para atravessarem um oceano. O espectáculo tem de continuar. Apaga‑se a entrada prevista e aguarda‑se a corrida seguinte.
‑ Infelizmente, não. Mr. Brown suspirou.
‑ Terei de cancelar a produção da peça que íamos começar a ensaiar. Não há ninguém que me pareça capaz de o substituir.
Aquilo era bom para a sua pedra tumular: «Aqui jaz Maurice Fitzgerald. Insubstituível.»
‑ Tem à mão o número do telefone da senhora de Londres?
‑ Tenho‑o aqui mesmo. ‑ Brown deu o número a Damon, que o escreveu num livro de apontamentos. ‑ Não esqueça que há uma diferença horária de seis horas. Eu acordei‑a. Pareceu‑me espantosamente calma, quando lhe telefonei. Fleuma britânica. Em circunstâncias similares, a minha mulher rasgaria o vestido e esgatanharia a carne. Costumes diferentes, características raciais. Mas, suponho, igual desgosto.
Damon conhecera o homem apenas casualmente e vira peças boas e más produzidas por ele, mas naquele momento compreendeu que gostava dele. Fora confrontado com responsabilidades desagradáveis e não lhes virara a cara.
‑ Informe‑me quando fizerem a tal cerimónia em memória dele ‑ pediu‑lhe Damon. ‑ Gostaria de estar presente.
‑ Com certeza. Bem, obrigado. É um dia triste para todos nós.
Damon sentiu‑se invadido por uma onda de fadiga acompanhada de sonolência, como se estivesse narcotizado. Olhou invejosamente para o sofá de cabedal estalado que ocupava uma das paredes do escritório desde os primeiros tempos de Mr. Gray e que só era utilizado quando havia duas ou mais pessoas no escritório, para conferências. Que esperanças ali tinham sido manifestadas, quantos insucessos tinham sido confirmados!
‑ Oliver, importa‑se de dizer a Miss Walton que não ligue para nós? Tenho de me deitar e tentar dormir uns minutos.
‑ Com certeza. ‑ Oliver pareceu preocupado; nunca nenhum deles tinha dormido no sofá. ‑ Você está bem, Roger?
‑ Só um pouco ensonado. Passei uma noite má.
Oliver deu o recado a Miss Walton e Damon estendeu‑se no sofá. Adormeceu imediatamente, mas o sono não foi repousante. Teve um sonho confuso e aterradoramente erótico. Estava numa grande cama onde nunca dormira, com Antoinetta Bradley, jovem e voluptuosa, e Julia Larch, a murmurar obscenidades, ambas a fazer amor com ele com um abandono perverso. Maurice Fitzgerald, vestido e com o aspecto que tivera na loja de aparelhos electrónicos, na véspera, estava parado de copo na mão, a olhar sardonicamente para o espectáculo que se lhe oferecia, e o pai de Damon, sorridente e a acenar convidativamente, estava na sua balaustrada, banhado pela sua luz dourada.
Quando abriu os olhos, Damon estava mais cansado do que quando se deitara, abalado pela visão de volúpia, traição e acusação, pelo concupiscente entretecer de mortos e vivos que o seu subconsciente tinha conjurado em poucos segundos de sono.
Oliver olhava‑o, preocupado, da sua secretária.
‑ Não foi grande sono, esse ‑ comentou. ‑ Emitiu sons terríveis.
‑ Estive a sonhar ‑ respondeu Damon, a esfregar os olhos. ‑ Esta noite voltarei a ler Freud.
‑ Parecia que estava a chorar...
‑ Não estava nada a chorar. Pelo contrário. Dirigiu‑se para a sua secretária. As pernas pesavam‑lhe como chumbo. Carregou no botão do seu telefone, levantou o auscultador e disse a Miss Walton que atendia de novo chamadas.
‑ Telefonou um Mr. Schulter há bocadinho ‑ informou a secretária. ‑ Disse‑lhe que o senhor estava ocupado e ele deixou um número. ‑ Miss Walton repetiu o número e ele tomou nota.
Pelo menos, pensou, Schulter não aparecera no sonho. Tinha‑lhe sido poupado isso. Em vez de pedir a Miss Walton que marcasse o número, fez ele próprio a ligação. Não queria que a secretária especulasse acerca do que ele teria a tratar com um detective da força policial de Nova Iorque.
Quando uma voz de homem disse, pelo telefone, «Homicídios», compreendeu que procedera com acerto ao fazer pessoalmente a chamada.
‑ Tenente Schulter ‑ pediu ao homem. ‑ Fala Mr. Damon, a pedido do tenente.
‑ Olá, Mr. Damon. ‑ A voz de Schulter pareceu‑lhe, pelo telefone, muito parecida com a de Zalovsky. ‑ Tenho algumas notícias para si. Consultámos o computador a respeito de Mr. McVane e descobrimos um McVane que vive perto de si, na West Broadway. É provavelmente o mesmo. Foi preso em seguimento de uma queixa de uma professora de jardim infantil de uma escola da parte baixa de Manhattan, que não gostou do facto de ele andar sempre a rondar à volta das crianças. Quando o revistaram, foi‑lhe encontrada uma grande faca de caça presa à barriga de uma perna.
‑ Foi para a cadeia?
‑ Apanhou uma pena suspensa de seis meses por trazer uma arma escondida ‑ informou Schulter. ‑ Vamos investigá‑lo. Se encontrarmos outra vez a arma na sua pessoa, cumprirá os seis meses.
‑ Obrigado, tenente.
‑ E o senhor, tem algumas notícias para mim? Recebeu mais chamadas?
‑ Não. Continuo à espera.
‑ Já fez aquelas listas que lhe pedi?
‑ Estou a trabalhar nelas.
‑ No seu lugar, não demoraria muito tempo a fazê‑las.
‑ Tê‑las‑ei ao seu dispor daqui a um dia ou dois. Schulter rosnou, como se não acreditasse que Damon as tivesse dentro de um dia ou dois.
‑ Falei com o meu amigo de Gary. Ele procederá a umas... hum... averiguações. Qual foi a palavra que o senhor usou?
‑ Discretas.
‑ Exactamente. Pedi‑lhe que fizesse umas perguntas pela calada, sem transformar o assunto num caso federal. Disse‑me que tem visto o tal Larch, que é treinador de râguebi e tudo o mais, e acrescentou que o indivíduo goza de simpatias, ganhou três épocas seguidas.
‑ Isso faz‑me sentir muito melhor ‑ comentou Damon, mas compreendeu logo que tinha cometido um erro, pois Schulter rosnou de novo, mais alto do que anteriormente; não era um homem a quem a ironia divertisse no exercício das suas funções.
‑ A propósito ‑ perguntou o tenente ‑, comprou o material electrónico que lhe aconselhei?
Damon lembrou‑se pela primeira vez de que deixara o embrulho no bar, na tarde anterior.
‑ Sim, comprei uma máquina de atender chamadas. ‑ Não achou aconselhável dizer ao detective que poucas horas depois de a ter comprado a esquecera num bar cheio de gente.
‑ Para que raio serve isso? ‑ indagou Schulter, irritado. ‑ Pensa que Mr. Zalovsky vai deixar uma mensagem dizendo que tenciona exercer chantagem sobre você ou meter‑lhe uma bala na cabeça?
‑ O empregado disse‑me que as únicas máquinas que tinha para gravar conversas telefónicas emitiam um bip que avisava quem telefonava de que estava a ser gravado. Para que serve isso?
‑ Há uma coisa que me agrada, Mr. Damon: é que o senhor não esteja a servir sob as minhas ordens na brigada. Está bem, ligue a maldita máquina e veremos o que acontece. Quando tiver as tais listas, telefone‑me.
Ouviu‑se um clic muito forte, como se Schulter tivesse batido com o auscultador no descanso. Damon olhou pensativamente para o sofá e levantou‑se.
‑ Tenho de sair durante alguns minutos ‑ disse a Oliver. ‑ Ontem esqueci‑me de uma coisa num bar e só agora me lembrei.
Uma vez ao ar livre, sentiu‑se grato por poder afastar‑se do escritório, da mórbida tentação do sofá e dos olhares curiosos e intrigados que Oliver lhe lançava constantemente, quando pensava que ele não estava a ver.
Eram apenas onze horas, mas o bar já tinha uma freguesia matinal de devotados bebedores da vizinhança. O barman era o mesmo que o tinha servido na véspera. Quando lhe perguntou se alguém tinha entregado um embrulho de que ele se esquecera e deixara no balcão, no dia anterior, o homem olhou‑o inexpressivamente.
‑ Eh, Eddie! ‑ chamou, a dirigir‑se ao colega que estava a servir os clientes do lado da frente do bar. - Ontem encontrámos algum embrulho? Este cavalheiro diz que o deixou aqui... A que horas foi?
‑ Quatro, cinco horas, mais ou menos ‑ respondeu Damon.
‑ Ele pensa que foi às quatro, cinco horas. Eddie. O segundo barman abanou a cabeça.
‑ Que eu saiba, não ‑ respondeu.
‑ Que ele saiba, não ‑ repetiu o primeiro barman, como se pensasse que Damon era surdo. ‑ Lamento. Toma alguma coisa?
‑ Parece‑me uma ideia razoável.
‑ Que lhe dará prazer, senhor? ‑ Agora que Damon se tornara num cliente, o homem tornou‑se profissionalmente cortês.
O que lhe daria prazer, pensou Damon, seria deixar aquele bar, aquela cidade, e ir para uma terra estrangeira distante, onde as pessoas que morressem fossem todas desconhecidas dele, deitar‑se numa praia e ouvir as ondas murmurar, vindas de milhares de milhas de oceano não navegado.
‑ Um scotch com soda ‑ pediu.
Os mortos instalaram‑se ao lado dele, no sosssegado bar matinal. «Que lhes dará prazer, senhoras e senhores? Uma pinga de Jack Daniel's com umas gotas de água da fonte de Lurdes? Antoinetta, uma caneca de água do mar, com um gostinho de arruda? Maurice, velho declamador de Shakespeare, uns bolos e cerveja preta? Mr. Gray, outro conhaque reforçado com nepente para esquecer o seu filho mercador? Mrs. Larch, apesar de viva e de sangue na guelra em Gary, Indiana, intrometendo‑se em sonhos entre túmulos, que me diz a uma taça de néctar de uma manhã carnal na Rua 39, leste, ou a uma taça de champanhe na 6.a Avenida para festejar um aniversário?»
Damon abanou a cabeça, irritado com a fantasia. Voltou ao mundo dos vivos. McVane com a sua faca; Sheila a deitar café à mesa do pequeno‑almoço; Elaine, com o rosto levantado, o cabelo pintado de tom magenta e o novo namorado; Mrs. Dolger, com os direitos de autora a entrar, inclinada para as suas tartes a cozer no forno; o tenente Schulter entre os judeus assassinados, a pedir listas de homens e mulheres deste mundo real e corpóreo que poderiam entrar em qualquer momento no bar, de arma na mão, dispostos a matar.
«Mr. Damon, outro scotch?
«Uma ideia razoável, Mr. Damon, neste momento e neste lugar, e nestas circunstâncias. Outro scotch, por favor.»
Apenas cinco breves dias antes, ele tinha sido um homem razoavelmente feliz, de saúde robusta, contente com o seu casamento, confortável na sua casa, respeitado na sua profissão, calcorreando destemidamente as ruas de Nova Iorque fosse qual fosse o tempo que fizesse e a todas as horas do dia e da noite, sem nunca ter falado com um polícia a não ser para lhe pedir instruções, com a recordação dos seus mortos suavizada pelo tempo e a consciência de que as gerações se sucediam umas às outras em ritmos inevitáveis e eternos. Depois um homem que, tanto quanto sabia, nunca vira, metera uma moeda de 10 cêntimos numa ranhura, marcara um número e as sepulturas tinham‑se aberto. Agora ele dirigia‑se a fantasmas em pleno dia e soubera que uma mulher a quem amara jazia no fundo do mar havia dez anos sem que ele o suspeitasse. Encontrara um amigo que em tempos lhe chamara irmão, recordara um dos mais dolorosos momentos da sua vida, apertara a mão do amigo em grata reconciliação e convidara‑o para um jantar que nunca seria servido porque o amigo caíra morto entre um prato e outro num restaurante da moda, minutos depois do aperto de mão.
«Miss Otis Lamenta.» Canção popular. Não pode vir tomar chá. Ousaria voltar a apertar a mão de algum homem? Poderia exigir que todas as ranhuras fossem abolidas e todas as moedas de 10 cêntimos retiradas da circulação? Poderia andar pelas ruas de olhos vendados, para não reconhecer na carne homens que havia muito se tinham transformado em ossos descarnados? Poderia ordenar a si mesmo que exercesse censura sobre os seus sonhos? Não era apenas um agente de livros, peças e histórias, brandas e inofensivas ficções em que, quando se chorava a morte de uma personagem bastava virar a página? Ou seria antes um secreto e terrível agente de algum cliente desconhecido, um intermediário que negociava em morte e cujo contacto real ou imaginário fazia dele o profeta e o arquivo inconsciente da dissolução passada e futura?
Transformara‑se num sonar psíquico, a sondar as profundezas dos sonhos em busca de terríveis intrusos, a encontrar os vultos de antigos barcos naufragados, a escutar irónicos e enganosos ecos que podiam ser baleias, cardumes de vairões, cantos de golfinhos, vozes de sereias a falar uma linguagem desconhecida, mas todos a dizerem: «Acautela‑te.»
Não era Hamlet; o fantasma do seu pai não o repreendia nem o instigava à vingança das cinzentas ameias do sono, mas permanecia silencioso naquela estival luz solar, com um brinquedo infantil na mão, a chamá‑lo. Não era um grego antigo, não navegara com Ulisses; as sombras de camaradas de armas e parentes que tinham sido privados dos seus devidos ritos fúnebres não tinham nada a exigir‑lhe da sua última morada no outro mundo.
Era um homem de hoje, racional, convencido, como os seus contemporâneos que tinham sondado os limites extremos do Universo, de que era um descendente de lagartos e macacos, um homem nem favorecido nem desfavorecido por deuses ou deusas primitivos, um explicador científico de fenómenos, um homem que acreditava no que podia tocar, ver, cheirar ou deduzir de factos conhecidos, e sentia‑se arrastado para um mar árctico, envolto em nevoeiro, de necromancia.
Lembrou‑se da conversa no estúdio de Gregor. «Acredita na precognição?»
«Acredito em tudo que não pode ser provado.»
Seria apenas um letreiro na estrada para qualquer Auschwitz sobrenatural onde estava a ser posta em prática uma solução final para pessoas que ele tinha amado, ou que o tinham amado, ou cuja vida mal roçara a dele na sua passagem separada, estaria a ser punido ou a ser o instrumento da punição? E se era qualquer dessas coisas ou ambas, por que razão? Quebra de confiança, algumas horas de fornicação casual, a geração de bastardos? Auto‑satisfação, a negligência egoísta do sofrimento da humanidade em todos os continentes do planeta?
Enquanto o vigésimo século após a morte de Cristo se aproximava do fim, quem fazia as normas e que eram elas?
Qual era a mensagem para ele em tudo aquilo? Quem lhe podia dizer, que mulher, ou camarada, ou padre, ou rabino, ou cigana lha podia revelar? Havia na Brigada de Homicídios um detective que podia descodificá‑la para ele, pô‑la em inglês sem retoques, de todos os dias, para lhe dizer o que era? E ele queria realmente saber? Traria nas costas, como os negociantes de diamantes judeus mortos, o letreiro: Venham buscar‑me?
O empregado do bar pôs outro copo no balcão, defronte dele. Não se lembrava de o ter pedido, mas ficou satisfeito com a solicitude do homem. Sorveu a bebida, a pensar: «Tenho de fazer uma lista qualquer para o tenente Schulter.» Por onde começar? Era necessário ser ordenado. Tirou o livro de apontamentos da algibeira e escreveu na página da esquerda: Possíveis inimigos ‑ profissionais, e na página da direita: Possíveis inimigos ‑ pessoais. «Agora», pensou, satisfeito, «estou a avançar. A organização é tudo. Estabeleci categorias, como o Gregor diria.»
Bebeu outro golo do copo. Quem alguma vez o ameaçara abertamente? Passo número um. Felicitou‑se pela clareza e lógica do seu pensamento. Candidato número um. Fechou os olhos, a lembrar‑se de uma sala de tribunal. Tinha sido convocado como testemunha num processo de difamação. A verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade, assim Deus me ajude. O próprio Deus tinha sido difamado durante milénios. O nome do homem era Machendorf. Tinha sido seu cliente, era um indivíduo taciturno, magro e moreno, ainda novo, de rosto fechado contra o mundo.
Damon servira de agente para os dois primeiros romances de Machendorf, que tinham sido publicados. Eram romances grosseiros e cheios de violência, mas a escrita possuía uma certa honestidade áspera, que não podia ser ignorada, e Damon achara que o relato de Machendorf do lado odioso da vida americana tinha o direito de ser ouvido.
O homem portara‑se correctamente, embora sem gratidão, e Damon não conseguira gostar dele. Mas se representasse só pessoas de que gostava, teria tido de fechar a agência ao fim de seis meses.
Depois o manuscrito do terceiro romance de Machendorf, que Damon acabara de ler na noite anterior, encontrara‑se em cima da secretária, como uma barreira entre ele e o seu cliente, com Machendorf a olhá‑lo carrancudamente.
Enquanto ainda estava a trabalhar no livro, Machendorf dissera a Damon: «Agora os pulhas vão ter de se endireitar e tomar consciência. Se os críticos tiverem o senso com que nasceram, reconhecerão que têm nas mãos um Céline americano.»
Mas Damon compreendera, ao chegar às últimas linhas do livro, que ninguém no seu perfeito juízo aclamaria Machendorf como o Céline americano ou o americano qualquer coisa.
Dera bons conselhos ao homem. Dissera‑lhe que não tentasse publicar o livro.
Ficção ou não, o protagonista era uma figura pública, de hábitos bem conhecidos. Machendorf interpretara‑o com perfeição. A personagem seria reconhecida logo a partir da primeira página por quase toda a gente que lesse os jornais da cidade de Nova Iorque. O indivíduo chamava‑se John Berkely e Machendorf chamara‑lhe temerariamente James Berkin. Berkely era um ousado negociante de propriedades e erguera três ou quatro dos mais prestigiosos prédios de escritórios do centro de Manhattan. Tinha uma cavalariça de puros‑sangues e era casado com uma mulher bonita, que tinha sido estrela de cinema. Entretinha‑se a patrocinar certas peças e era frequentemente fotografado, de braço dado com a mulher, nas estreias mais espectaculares e no círculo de vencedores de várias corridas, todo sorridente e a dar palmadinhas desajeitadas no pescoço dos cavalos triunfantes, em corridas com apostas muito publicitadas.
Insensatamente, como empurrado para a própria destruição por algum demónio malévolo, Machendorf dera à personagem do livro a sua profissão, a sua cavalariça, a sua mulher estrela de cinema e o seu pendor para investir no teatro.
No livro, Machendorf fizera dele uma figura má, antipática e odiosa. Berkin e as outras personagens, também copiadas da vida real e movendo‑se nos mesmos círculos que Berkely‑Berkin, eram descritos numa prosa sinistra, escatológica e aviltante, do género que se encontra em graffiti nos lavabos públicos.
Antes da publicação do seu primeiro livro, Machendorf trabalhara no escritório de Berkely e fora despedido. A sua animosidade pulsava em cada linha. Talvez o homem fosse mesmo mau, talvez não. Damon encontrara‑o diversas vezes em festas de noites de estreia, mas mal se tinham cumprimentado e Damon não o conhecia o suficiente para o julgar. No entanto, embora a descrição da personagem e os seus vários interesses estivessem próximo da realidade, algumas das acções que Machendorf o punha a cometer eram invenções claras selvaticamente apresentadas, e não restavam dúvidas no espírito do agente literário do que qualquer júri decidiria a respeito do escritor.
Machendorf escutara num silêncio sufocante enquanto Damon lhe explicava, o mais brandamente possível, que estaria em maus lençóis, em muito maus lençóis, mesmo, se publicasse o livro ou o mostrasse sequer a editores.
‑ O que está a tentar dizer ‑ observara por fim Machendorf ‑ é que não o enviará com o nome da agência.
‑ Não o enviarei, ponto final.
‑ Ganhou uma quantidade de dinheiro comigo.
‑ Não uma quantidade. Algum. ‑ Os dois livros que Machendorf escrevera antes daquele tinham tido ambos um êxito moderado.
‑ Recusa‑se portanto a representar‑me.
‑ Recuso. Neste livro, não o represento. Não tenho interesse nenhum em ser processado por milhões de dólares.
‑ É um pulha cobardolas ‑ acusara Machendorf azedamente. ‑ Nunca mais porá os olhos em nada do que eu escrever, diga o contrato o que disser. Porque não se limita a representar livros infantis ‑ Bobby e Joan no Acampamento de Verão a Brincar aos Doutores, e outras merdas do género? É mais ou menos para isso que tem estaleca.
E o mesmo se aplica àquele panasca albino que tem a trabalhar para si e a lamber‑lhe o cu.
‑ Se eu fosse mais novo, atirava‑o de pantanas por causa disso. Agora vou mostrar‑lhe o que penso do seu contrato.
O homem olhara‑o furiosa e silenciosamente enquanto Damon se levantava, ia a um ficheiro, o abria, procurava entre as diversas pastas e tirava alguns papéis com ar oficial, presos uns aos outros.
‑ Isto é o seu contrato, Mr. Machendorf ‑ dissera, e começara a rasgar as páginas.
Machendorf observara‑o a sorrir sardonicamente. As mãos de Damon tremiam e ele tinha dificuldade em rasgar mais do que uma folha de cada vez do papel grosso.
‑ Para os diabos com isso ‑ resmungara. ‑ Espero que tenha percebido. ‑ Atirara o resto dos papéis para o chão, para os pés de Machendorf, e acrescentara: ‑ Agora saia do escritório.
‑ Quero o meu manuscrito ‑ respondera Machendorf.
‑ Aqui o tem. ‑ Damon empurrara a rima grossa e certinha de papel para o extremo da secretária. ‑ Polui a sala.
Machendorf pegara no manuscrito e passara cariciosamente a mão pela capa.
‑ Traficante de carne do caraças ‑ dissera. ‑ Dez por cento. É um bom número para você. Dez por cento de nada. Rir‑me‑ei de si quando este livro sair e eu ler as críticas sentado no meu iate.
‑ Se eu fosse seu amigo e desejasse o seu bem, esperaria que mais ninguém no mundo lesse esse livro e muito menos que o publicasse. Mas como não sou seu amigo espero que a primeira casa onde o mostre o aceite e lhe faça a maior publicidade possível, porque isso será o seu fim. Agora, se me dá licença, tenho de ir à casa de banho. Creio que preciso de vomitar.
Deixara o homem no escritório, mas empurrara a porta de modo que ficasse aberta, ao sair, para que tanto Miss Walton como Oliver Gabrielsen pudessem ver se se metesse na cabeça de Machendorf vandalizar a secretária ou as prateleiras de livros, como vingança final.
Oliver olhara‑o interrogadoramente. Fora a primeira vez que Damon lhe pedira para deixar a sala enquanto falava com um cliente.
‑ Que acon... ‑ começara Gabrielsen a perguntar. Damon fizera um gesto com a mão, a interromper a pergunta. Precisara realmente de vomitar; não se tinha tratado de uma simples força de expressão. Saíra apressadamente do escritório, metera pelo corredor e chegara à retrete mesmo a tempo, com o vómito a subir‑lhe à garganta.
Vomitara até ficar com o corpo sacudido por convulsões secas, lavara as mãos e a cara e enxaguara a boca.
Quando regressara ao escritório, Machendorf tinha saído e Gabrielsen estava à sua secretária.
‑ Mas afinal que aconteceu? ‑ perguntara Gabrielsen. ‑ Machendorf parecia ter acabado de engolir um barril de pregos, quando se foi embora.
‑ Gostaria de lhos ter metido na boca um por um ‑ redarguira Damon. ‑ Cante Aleluia e risque um cliente.
O desejo de Damon tinha sido satisfeito. O livro fora publicado, ainda que não pela primeira casa a que Machendorf o mostrara. O director literário da firma que publicara os outros dois livros de Machendorf telefonara a Damon duas semanas depois da cena no escritório e dissera‑lhe que tinha o manuscrito de Machendorf em cima da secretária.
‑ De que trata a história? ‑ perguntara. ‑ E por que motivo não recebemos o livro por seu intermédio, como de costume?
‑ Porque não pergunta ao autor?
‑ Perguntei.
‑ Que lhe respondeu ele?
‑ Que você era um velho idiota, que perdera o tacto e que ele o despedira.
Damon rira‑se.
‑ Leu o manuscrito?
‑ Li o bastante para saber que não lhe tocaremos. O nosso seguro nunca cobriria nada que se aproximasse da importância que Mr. Berkely poderia obter se fosse para o tribunal. Além do mais, é uma porcaria grosseira.
‑ Essas foram duas das razões pelas quais disse a Machendorf que não voltaria a representá‑lo. A outra razão foi o facto de ele ser um homem muito desagradável.
‑ Já tinha calculado, Roger, mas queria ouvi‑lo da sua boca. Obrigado. O manuscrito de Mr. Machendorf será devolvido pelo correio esta tarde.
O livro tinha saído seis meses depois, publicado pelo editor de material pornográfico que tinha tentado convencer Damon a trabalhar para ele. «Merecem‑se um ao outro», pensara Damon com satisfação quando vira o anúncio da publicação. Os críticos habituais quase não se lhe tinham referido, mas as colunas de mexericos tinham‑lhe dispensado vasta e maliciosa atenção. Um mês depois da publicação, os advogados de Mr. Berkely tinham processado conjuntamente Machendorf e o seu editor e exigido uma indemnização de dez milhões de dólares. Damon e Oliver Gabrielsen tinham celebrado o facto com um almoço tranquilo no Algonquin, no dia em que o Times publicara a história.
Damon não ficara surpreendido quando os advogados de Berkely lhe tinham pedido que depusesse como testemunha do seu cliente, e ele respondera que teria muito gosto. Não era um homem vingativo, mas achava que o comportamento de Machendorf merecia castigo. Não se importara de ter de esperar no tribunal enquanto o processo se arrastava e os depoimentos das outras testemunhas, chamadas antes dele, eram reproduzidos com relevo nos jornais, diariamente. Os advogados, pelas suas próprias razões, estavam a guardá‑lo para o fim.
Quando fora finalmente chamado para depor e prestar juramento, o julgamento aproximava‑se do fim. Evitara propositadamente olhar para a mesa onde Machendorf e o seu editor estavam sentados com os seus advogados. Não quisera ver o escritor antes de depor. Desejara falar calma e justamente, sem malevolência, e receara que se visse aquele rosto odioso fosse incapaz de afastar a animosidade do tom da sua voz, enquanto falasse.
Após as perguntas preliminares destinadas a estabelecer a sua identidade perante o tribunal, o advogado de Berkely perguntara‑lhe:
‑ Mr. Damon, durante quantos anos foi agente de Mr. Machendorf?
‑ Seis anos.
‑ Representou‑o na venda dos seus outros dois livros?
‑ Representei.
‑ Já não o representa. É verdade?
‑ É.
‑ Posso pedir‑lhe que diga ao tribunal em que circunstâncias se separaram?
‑ Não gostei do livro. Achei‑o desagradável.
‑ Houve alguma outra razão?
‑ Não queria estar neste tribunal como um dos acusados, em vez de como testemunha.
Tinham soado risos na sala e o juiz bateu uma vez com o martelo.
‑ Porque pensou que haveria qualquer razão para supor que, se continuasse a sua associação com Mr. Machendorf, poderia ser um dos acusados?
Damon pensara um momento. Recordara a última conversa que tivera com Mr. Gray antes de ele morrer.
‑ Seria o vaso, o meio, a conduta, se quiser, do trabalho difamatório de um escritor e igualmente responsável ‑ respondeu, utilizando a frase de Mr. Gray.
‑ Muito obrigado ‑ agradecera o advogado. ‑A testemunha é sua ‑ acrescentara, dirigindo‑se ao advogado da parte contrária.
O advogado de Machendorf abanara lentamente a cabeça e Damon descera do lugar das testemunhas. Quando passara pela mesa onde Machendorf estava sentado, a tomar apontamentos, o indivíduo olhara‑o, com o rosto deformado pelo ódio, e murmurara:
‑ Filho da puta, puseste o último prego no caixão. Mas pagas‑me!
‑ Estou todo a tremer ‑ respondeu Damon, a sorrir.
Pediu terceira bebida, ao balcão. Aquilo passara‑se havia mais de três anos e o tribunal atribuíra uma indemnização de quatro milhões de dólares a Berkely, dois milhões a pagar pelo autor e dois pelo editor. O tribunal arrestara todos os bens de Machendorf e o editor pornográfico declarara falência, abandonara o negócio e arranjara emprego como vendedor de espaço publicitário numa das mais repreensíveis revistas para homens. Machendorf desaparecera da circulação, embora Damon tivesse ouvido dizer, havia algum tempo, que percorrera a via sacra com um novo romance em que ninguém pegara.
Três anos eram muito tempo, mas um homem que no tribunal lhe dissera: «Filho da puta... Mas pagas‑me!», e que posteriormente tivera boas razões para crer que tinha sido corrido da sua profissão por um homem que depusera contra ele, era um bom candidato a ser incluído na lista dos inimigos profissionais.
Damon escreveu o nome de Machendorf na página do lado esquerdo do livro de apontamentos.
DAMON olhou pensativamente por cima do balcão. Ao longo da parede do fundo havia um espelho comprido, que reflectia a sua imagem. O espelho era velho e estava estalado e escuro, quase da cor do ferro. Achou o seu rosto distante e insubstancial, como se flutuasse numa névoa instável e sombria. «Se tenho de beber», pensou, «devo ir para um bar mais agradável.» Mas mal tocara na última bebida. «Não devo desperdiçar dinheiro. Posso necessitar de todo quanto tenho, em breve.»
O livro de apontamentos continuava aberto à sua frente e ele olhou e viu a página da direita ainda em branco, apenas com o cabeçalho, ao alto: Inimigos Possíveis ‑ Pessoais.
Nunca lhe passara pela cabeça que tivesse inimigos pessoais. Machendorf era outra coisa, mas mesmo assim Damon não pensara nele durante mais de um ano. A memória era uma coisa traiçoeira e esquecer era muitas vezes o meio que a mente tinha de se defender de dores passadas e do pesar por oportunidades perdidas.
Inimigos pessoais. Agora que estava a forçar‑se a lembrar‑se, escreveu dois nomes: Frank Eisner e, entre parênteses, Melanie Deal.
Conhecera Melanie Deal havia cerca de ano e meio.
Era secretária de um produtor teatral chamado Proctor e fora ao escritório com uns contratos que o produtor mandara redigir pelo seu advogado para uma peça intitulada Uma Maçã para Helena, escrita por um dos clientes de Damon. A tarde estava no fim e Oliver Gabrielsen e Miss Walton já tinham saído. O próprio Damon estava a vestir o sobretudo para sair também quando a rapariga chegara. Era jovem e bonita, dos seus 22 ou 23 anos, segundo lhe parecera, com basto cabelo castanho com madeixas louras à frente, como se ela passasse longas horas deitada na praia, ao sol. Os olhos também eram castanhos, mas com uma cintilação de qualquer outra cor que os fazia parecer um bocadinho estranhos, fora do vulgar, prontos para rir intimamente de qualquer piada incessante que só ela compreendia. Damon já a vira uma vez, quando ele e Oliver tinham ido ao escritório de Proctor a fim de discutir os termos do contrato para a peça. Quando tinham saído juntos, Oliver dissera:
‑ Uf! Viu aquela rapariga? Ali há perigo.
‑ Não notei nada. E o patrão dela disse‑me que era muito eficiente. Oliver rira‑se.
‑ Roger, está a ficar velho. O patrão não foi capaz de tirar os olhos dela durante todo o tempo em que a rapariga esteve na sala, e quando ela se levantou e voltou para o seu gabinete os olhos dele despiram‑na praticamente, ali mesmo. Tinha a língua quase literalmente de fora e parecia um caso de frustração terminal. Miss Deal pode ser eficiente no escritório, mas aposto que é muito mais eficiente na cama. Se quer que seja franco, ao fim de cinco minutos eu próprio me sentia muito frustrado.
‑ Devo estar realmente a ficar velho, como disse ‑ observara Damon, a sorrir. ‑ Não achei nada de especial nela.
Tinha sido essa rapariga que fora ao escritório quando Damon estava a vestir o sobretudo para sair. Devido ao que Oliver dissera a respeito dela, e também levado por um hábito antigo que julgara ter perdido depois da dama ibérica, após a qual se entregara a uma monogamia sem complicações, Damon olhou‑a com mais interesse do que mostrara da primeira vez que a vira e achou que Oliver tivera razão para ficar tão perturbado por causa dela. Fomes da mente, assim como da carne. Ninfa, nas tuas orações sejam todos os meus pecados lembrados... Desceram juntos no elevador, depois de ele ter fechado o escritório à chave, e Damon disse:
‑ Geralmente, à tarde, paro para tomar uma bebida, a caminho de casa. Quer fazer‑me companhia?
Ela olhou‑o com um brilho divertido nos olhos, a mostrar que não era estranha às propostas iniciais dos homens.
‑ Seria muito agradável, Mr. Damon ‑ respondeu, afectadamente. ‑ Estava à espera que me convidasse, ‑ A sua voz era um pouco rouca e condizia com a sua aparência, e Damon desconfiou que ela a treinava, quer numa escola de representar, quer com um professor ou uma professora de canto.
Na sala do Algonquin, aonde a levara, apesar de não ser esse o lugar que costumava frequentar para a sua primeira bebida depois do dia de trabalho, verificou que não se enganara.
‑ A razão por que esperava que me convidasse para uma bebida ‑ disse ela, a beber golinhos de vinho branco ‑, deve‑se ao meu desejo de falar consigo acerca da Maçã.
Ele sorriu um pouco da presunção da rapariga de que eram ambos profissionais, denunciada pelo hábito universal da gente de teatro de abreviar os títulos das peças.
‑ Não sou verdadeiramente uma secretária ‑ continuou. ‑ Só trabalho com Mr. Proctor entre uma peça e outra. ‑ Falava por impulsos pequenos e rápidos, como se as palavras lhe borbulhassem irreprimivelmente na garganta.
‑ Já participou nalguma?
‑ Nalgumas. Fora da Broadway. Muito, muito fora. Equity Library. Teatro de Verão. Produções da Escola Dramática. Podunk. ‑ A sua voz zombava dela própria. ‑ A habitual estrada pedregosa para o estrelato. Alguma vez me viu?
‑ Creio que não. Ou melhor, tenho a certeza. Se a tivesse visto no palco estou certo de que me lembraria de si. ‑ A sua galantaria impedia‑o de dizer outra coisa.
‑ Deviam erguer um monumento do lado de fora do Sardi's.
Com uma chama eterna. À actriz desconhecida. ‑ Riu‑se sem azedume. ‑ A última peça em que participei foi no centro da cidade. Homem Mais Homem.
‑ Vi a peça ‑ disse Damon. ‑ Mas saí ao fim dos primeiros dez minutos.
Lembrava‑se bem. A peça terminara logo após a noite da estreia, que fora aquela em que ele e Sheila a tinham ido ver. Não disse à rapariga por que motivo saíra.
‑ Você deve ter entrado depois disso.
‑ Entrei no segundo acto. Não perdeu nada. Tive uma grande cena no segundo acto. Mas não obtive críticas: os críticos saíram todos no intervalo. ‑ Riu‑se alegremente.‑ E a minha mãe e o meu pai também. Eu também teria saído se não tivesse assinado um contrato.
‑ Lembro‑me da noite.
Tinha sido convidado pelo produtor, um homem chamado Guilder que ele só conhecia de reputação, que aliás não era boa. Era um jovem muito rico, pertencente a uma família que tinha minas no Colorado e patrocinara alguns espectáculos, todos fracassados. A sua reputação não provinha nem da sua fortuna nem da sua carreira no teatro. Fora preso por agressão criminosa, com intenção de matar, depois de ter arranjado um rapaz novo num bar e de o ter espancado brutalmente no seu apartamento Alegara que o jovem lhe fizera propostas homossexuais e ele, furioso, o agredira. Tivera advogados hábeis e muitíssimo bem pagos, e embora praticamente toda a gente que se encontrava no tribunal soubesse que o próprio Guilder tinha tendências homossexuais, no mínimo, com um certo gosto pela brutalidade, tinha sido absolvido.
Numa entrevista aos jornais, Guilder verberara indiscriminadamente os produtores de teatro de Nova Iorque pela sua timidez, pela sua escolha de material e pelas suas encenações, e anunciara que de futuro produziria peças ele próprio, sem sócios. Homem Mais Homem tinha sido a sua primeira produção independente, fora da Broadway e num teatro próximo do apartamento de Damon, e como não tinham nada melhor que fazer na noite da estreia haviam utilizado os bilhetes oferecidos, numa decisão de última hora, mais por curiosidade do que por esperança de que a produção lhes proporcionasse grande prazer.
Mas não estavam preparados para o que viram. A peça era acerca de um travesti e dos seus amigos, e embora Damon, segundo a moda dos tempos, fosse neutro no respeitante a homossexuais e convidasse frequentemente para jantarem em sua casa clientes que o eram, a linguagem escatológica e a exibição sorrateira de nudez foram de mais para ele. Levantou‑se no meio da primeira cena e disse a Sheila, sabendo bem o que estava a fazer: «Anda, vamo‑nos embora. Já estou farto. É porcaria pura.»
Estavam sentados à frente, no teatro, e Damon falou alto e claramente e subiu a coxia, com Sheila atrás. Antes de chegarem à saída, outros casais seguiram o seu exemplo, alguns deles a gritarem para o palco.
Guilder estava parado de pé ao fundo do teatro, quando os Damons passaram por ele. Damon reconheceu o indivíduo por fotografias que vira nos jornais e numa pose poética na capa do programa, mas passou por ele sem dizer nada.
A peça caiu nessa noite, depois de apenas um espectáculo.
‑ Nunca vi um homem tão furioso ‑ dizia Melanie Deal. ‑ Disse ao elenco que você destruíra deliberadamente a peça, consciente de que toda a gente, ou praticamente toda a gente, que assistia à estreia sabia quem você era e a influência que tinha. No segundo acto já não restava nem um crítico. A razão do seu procedimento, disse ele, devia‑se ao facto de ser maricas às escondidas e não poder suportar ver a verdade no palco, mas jurou aos actores que ia arruiná‑lo no teatro e obrigá‑lo a voltar a abrir valas, que era o lugar que lhe pertencia. ‑ Deu uma gargalhadinha. ‑ Ele arruinou‑o?
‑ Como vê ‑ respondeu Damon, a sorrir. ‑ Ainda me posso dar ao luxo de pagar uma bebida a uma senhora bonita no Algonquin. Embora tenha ouvido alguns rumores de que ele andava a dizer mal de mim pela cidade e tenha por duas vezes oferecido mais do que produtores que queriam levar à cena peças de autores representados por mim e depois as não tenha encenado. ‑ Damon encolheu os ombros. ‑ Temos de contar com os meninos ricos mimados no teatro. Ninguém o leva a sério e se eu fui realmente responsável pela queda da peça deviam dar‑me uma medalha por utilidade pública. Mr. Guilder não me interessa.
É uma pessoa sem importância nenhuma. Mudemos de assunto, para qualquer coisa mais pertinente, sim? De que quer falar comigo a respeito da Maçã?
‑ Quando esteve a falar do elenco, no escritório... descreveu qual deveria ser o aspecto de Helena, como ela deveria fazer o papel... ‑ Continuava a falar por impulsos breves. ‑ Bem, eu pensei: «Aquele homem simpático está a descrever‑me...»
Damon voltou a sorrir.
‑ Talvez eu tenha sido... digamos... subconsciente‑mente influenciado. ‑ Estava a gostar do pequeno flirt. ‑ Falou a Mr. Proctor a respeito de um teste para o papel?
Ela abanou vigorosamente a cabeça, com o cabelo basto e brilhante a girar à roda do seu rosto.
‑ Mr. Proctor só me vê de duas maneiras: como secretária e como objecto sexual. ‑ No rosto pequeno e bonito reflectia‑se uma alegria maliciosa. ‑ Só me consegue imaginar a escrever à máquina ou na cama. ‑ Riu roucamente, com o riso um pouco descontrolado. ‑ Nenhuma esperança, Nova Jérsia. Diga‑lhe, se ele por acaso perguntar.
‑ Que significa isso?
‑ No Verão representei em Nova Esperança, Nova Jérsia. Correu tudo mal. Todas as vezes que iniciávamos os ensaios de uma nova peça, alguém dizia: «Nenhuma esperança, Nova Jérsia.» A frase tornou‑se uma maneira de dizermos que não havia uma probabilidade num milhão.
Damon começou a sentir o primeiro formigueiro eléctrico do desejo e lamentou não ter saído do escritório mais cedo e encarregado Oliver de fechar a porta. No dia seguinte teria de dizer ao rapaz que o seu patrão não era tão velho como parecia.
‑ Mr. Proctor ‑ continuou a rapariga ‑ tem o seu gosto e a sua experiência em alta conta. Sempre que o senhor lhe manda uma peça, ele lê‑a logo, sem se importar com o que possa ter na secretária à espera. Se lhe disser uma palavra a meu favor, ele escutará.
As palavras continuavam a sair‑lhe da boca em catadupas ofegantes e ela estava inclinada para a frente, de modo que ele não podia deixar de reparar na forma provocante dos seus seios soltos, sem soutien, debaixo da camisola justa.
Oferendas generosas, pensou tristemente a lembrar‑se da sua juventude, numa bandeja ritual. Compreendia agora o olhar extasiado de Proctor enquanto tentava negociar contratos com Melanie Deal à vista.
Perturbado, pediu outra bebida, para evitar perder o controlo das coisas. A rapariga bebeu o resto do vinho de um trago e ele pediu que lhe servissem outro copo. Ela estava afogueada, do vinho e da velocidade e veemência com que estivera a falar.
‑ Bem... ‑ disse ele, a olhar à volta da sala, para ver se estava alguém que o conhecesse e fosse capaz de espalhar que o velho Roger Damon se dedicava agora ao roubo de berços... Mas não reconheceu ninguém e descontraiu‑se um pouco. ‑ Bem ‑ repetiu ‑, ainda falta muito tempo para a escolha do elenco. E também ainda não há encenador. E o autor tem de escrever de novo todo o primeiro acto.
‑ Sei tudo isso ‑ declarou ela, impaciente. ‑ Mas se bichanar a coisa ao ouvido de Mr. Proctor, eu esperarei.
‑ Aconselho‑a, Miss Deal, a...
‑ Melanie.
‑ Aconselho‑a, Melanie ‑ repetiu, a tentar parecer paternal ‑, a não recusar quaisquer papéis que porventura lhe ofereçam enquanto estivermos à espera de iniciar a produção.
‑ Só desejo uma oportunidade de dar provas. ‑ Agora falava ansiosamente, inclinada para a frente e a apertar‑lhe o antebraço com uma força surpreendente. ‑ E a única coisa que o senhor terá de fazer será sugerir. ‑ Afastou o cabelo da testa branca e alta. ‑ Olhe ‑ disse, num desafio, a inclinar a cabeça para trás e de olhos cintilantes ‑, sou ou não sou a rapariga que descreveu no escritório?
‑ É linda ‑ respondeu docemente, e depois tentou dominar‑se e tornar o cumprimento banal acrescentando um paternal: ‑ minha querida. ‑ Ouviu um relógio dar horas, algures. ‑ Está a fazer‑se tarde e a minha mulher não tarda a preocupar‑se.
Sheila nunca se preocupava com as horas a que ele chegava a casa, vindo do escritório, desde que fosse antes das oito ou que lhe tivesse telefonado a avisar que se demoraria uma hora ou duas, mas ele queria parecer um homem submisso à mulher diante daquela rapariga tentadora e tão jovem que poderia ser sua filha. Pelo menos.
‑ Moro perto de si ‑ disse ela. ‑ Procurei o seu nome na lista telefónica, depois de ter ido lá ao escritório, outro dia. ‑ Riu‑se e ele notou de novo algo selvagem e descontrolado no seu riso. ‑ Podemos ir juntos. Eu moro na Rua 23, oeste.
‑ Bem... ‑ murmurou ele, já sem saber se estava satisfeito ou arrependido por a ter convidado para uma bebida. ‑ Geralmente vou a pé.
‑ Sou uma grande andarilha ‑ afirmou, sem lhe deixar alternativa. ‑ Sou uma das andarilhas mais notórias de Nova Iorque. E não vou de saltos altos para o trabalho.
‑ Está bem ‑ resignou‑se ele.
Sentia necessidade de ar fresco e duvidava de que ela tentasse algo ousado numa artéria pública, às seis e meia da tarde.
‑ Se é isso que quer, vamos juntos.
‑ É isso que quero. Sou uma miúda persistente, não sou? ‑ perguntou, triunfante, com os dentes perfeitos a brilhar no rosto juvenil.
‑ Irá longe, Melanie ‑ comentou Damon, enquanto pagava ao criado. ‑ No teatro e fora dele.
‑ Pode apostar nisso!
Ajudou‑o a vestir o sobretudo, deu‑lhe uma palmadinha no ombro e saíram do hotel, ela com a mão a agarrar possessivamente o cotovelo dele.
O anoitecer tornara‑se agreste e caía uma chuva miudinha. Damon pensou que seria sadismo obrigar uma rapariga daquelas, com o encantador cabelo desprotegido, e os bonitos mocassins, e as meias finíssimas nas pernas bonitas e compridas, a caminhar mais de quilómetro e meio debaixo de chuva. Esperou um momento à entrada do hotel e depois disse:
‑ Não está noite para andar a pé.
‑ Não me importo ‑ afirmou ela. ‑ Deixai soprar o vento norte, deixai os céus desabar!
‑ Tem um lenço para proteger o cabelo, ou qualquer coisa?
Abanou a cabeça.
‑ Estava sol quando saí para o trabalho, esta manhã.
‑ Vamos de táxi... se conseguirmos arranjar algum. Nesse momento, um táxi chegou, parou diante do
hotel e apeou‑se um casal. Melanie largou o braço de Damon, correu através do passeio e segurou a porta em ar de desafio, antes que o homem que acabara de sair pudesse fechá‑la e antes também que uma mulher que vira o táxi virar a esquina para a Rua 44, e correra atrás dele a acenar e a gritar: «Táxi, táxi!», pudesse alcançá‑lo.
‑ Sacana de azar, senhora ‑ disse Melanie, ferozmente vencedora, quando a mulher se aproximou, ofegante.
A rapariga fez impacientemente sinal a Damon para se mexer. Ele atravessou o passeio e, ao subir para o táxi, disse, envergonhado, à mulher:
‑ Lamento, minha senhora.
‑ A gente nova, hoje em dia... ‑ resmungou a mulher, a ofegar. ‑ Bárbaros. Uma linguagem!
Melanie entrou no táxi e deu a sua morada ao motorista. Aninhou‑se ao lado de Damon e pôs a mão na sua coxa.
‑ É um prenúncio ‑ declarou.
‑ O quê?
‑ Termos arranjado este táxi numa noite de chuva. Com um milhão de pessoas a correr atrás deles nas ruas de Nova Iorque.
‑ Um bom prenúncio ou um mau prenúncio?
‑ Bom, pateta!
‑ Não foi assim tão bom para aquela pobre mulher.
‑ Velha gorda ‑ comentou Melanie friamente, sem prestar atenção ao facto de o homem sentado a seu lado ter pelo menos mais 20 anos do que a velha gorda.‑Seja aonde for que ela vá, não está ninguém à sua espera. É supersticioso? A respeito de prenúncios e coisas assim?
‑ Sou. Calço sempre primeiro o sapato esquerdo, quando me visto, de manhã, e saio pelo lado esquerdo da cama. ‑ Riu‑se. ‑ Com a minha idade!
‑ Não é assim tão velho.
‑ Minha querida jovem, se acordasse apenas uma manhã a sentir os ossos estalar como os meus, não diria isso.
‑Digo‑lhe uma coisa, Mr. Damon ‑ redarguiu, a afagar‑lhe a coxa. ‑ É um dos homens mais atraentes de Nova Iorque, seja qual for a sua idade.
‑ Meu Deus!
‑ Gostaria de ouvir o que diversas outras senhoras que conheceu me disseram a seu respeito?
‑ De maneira nenhuma!‑A sensação que sentira no escritório, quando a olhara bem pela primeira vez, atingira uma voltagem alarmante.
‑ Mas eu digo‑lhe, da mesma maneira. ‑ Riu‑se, traquinas e maliciosa. ‑ Senhoras da minha classe de representar. Senhoras maduras. Conhecedoras da vida. Que sabem do que falam. Três delas. Bem conservadas. Estávamos a beber café juntas, num intervalo das aulas. A conversa derivou para sexo. Conversa de vestiário de senhoras. ‑ Soltou de novo a gargalhada ligeiramente selvagem.
‑ Preferia que ficasse por aí, Melanie ‑ disse Damon, com toda a dignidade de que foi capaz.
‑ Não arme em puritano. ‑ Levantou a mão da coxa dele e depois bateu‑lhe vivamente na perna com um dedo.
‑ Não pega, depois do que ouvi dizer a seu respeito. Por coincidência, todas as três senhoras tiveram ligações consigo.
‑ É impossível, minha querida pequena ‑ declarou, agitado. ‑ Não quero saber o que elas disseram nem quem são. ‑ Mentia: pela maneira como ela falava, sabia que lhe ia dizer coisas lisonjeiras e que lhe recordariam agradáveis momentos do passado.
‑ Todas as pequenas estavam a classificar os seus vários amantes ‑ prosseguiu Melanie. ‑ Quem era o melhor, quem era o pior, coisas desse género. Se eu lhe dissesse os nomes das senhoras, ficaria a saber que elas tinham muitos pontos de comparação. O voto foi unânime para o cimo da lista: você era, de longe, o melhor homem para ir para a cama da cidade. ‑ Riu‑se de novo.
‑ Os piores que elas tinham conhecido eram os próprios maridos.
Não pôde deixar de se rir também. Quando o riso passou, disse:
‑ Isso foi há muito tempo. ‑ Imaginava quem eram as damas. ‑ Eu era mais novo e mais activo, nesse tempo.
‑ Não foi assim há tanto tempo. E deixe de falar de idade. O meu amante actual tem 50 anos. É corretor na Wall Street e tem uma placa de platina na cabeça. Levaram‑lhe o alto da tola na Coreia, onde foi um grande herói. Tem um baú cheio de medalhas e armas por toda a casa, que trouxe de lá. Bem, ele já não é nenhum herói, ninguém lhe daria medalha nenhuma fosse pelo que fosse e de vez em quando pensa que está numa trincheira ou lá o que era na Coreia e julga que eu sou um chinês a aproximar‑me sorrateiramente dele. É mais grisalho do que você e passamos bocados formidáveis juntos.
‑ Parece ser o sonho de uma rapariguinha tornado realidade ‑ comentou Damon, secamente.
‑ Eu tenho uma fixação pelo pai e adoro ‑ declarou Melanie.
‑ Bem, eu não tenho nenhuma filha, nem nenhuma fixação pela filha, e também adoro. ‑ Tentou em vão parecer irritado. ‑ Não toco em ninguém além da minha mulher sabe Deus há quanto tempo.
A rapariga ignorou as suas palavras e avançou com a mão pela sua perna acima, por baixo do sobretudo.
‑ Estou a atirar‑me a si, Mr. Damon ‑ disse sem rodeios e sem emoção.
Ele estendeu a mão e agarrou‑lhe firmemente o braço, para que a mão dela não continuasse a subir. Estava simultaneamente encantado e aborrecido com a franqueza brusca da rapariga, aborrecido porque havia uma probabilidade, mais até do que isso, de ela se estar a oferecer não pela sua reputação entre as senhoras da classe de representação, mas sim para o utilizar como alavanca, para o levar a sugerir a Proctor que a escolhesse para o papel na peça.
‑ Nos meus tempos, as senhoras esperavam que as convidassem.
Ela não tentou avançar mais com a mão. Mas respondeu:
‑ Estes já não são os seus tempos, Mr. Damon, e eu não sou uma senhora. Gosto de escolher, não de ser escolhida. Gostaria que tivéssemos uma ligação romântica longa e langorosa, a partir desta noite. Tardes passadas juntos à socapa, saltadas a estalagens da província nos fins‑de‑semana...
‑ Tardes à socapa, é muito romântico ‑ comentou ele, ironicamente.
Mas ela ignorou a ironia.
‑O clima dos tempos. Pode‑se ser pragmático e romântico ao mesmo tempo ‑ afirmou, calmamente.‑ Não lute contra as coisas. E não me diga que não foi escolhido antes.
Damon lembrou‑se de Julia Larch.
‑ Talvez ‑ murmurou, mas não acrescentou qualquer informação acerca do hotel da Rua 39. ‑ Mas as senhoras guardavam segredo disso. Regras do jogo. Tinham a delicadeza de permitir que fosse eu a dar o primeiro passo. E o segundo e o terceiro.
‑ Tempos diferentes, costumes diferentes. Não ouviu falar da Revolução Sexual? ‑ Um candeeiro da rua iluminou‑lhe a cara em cheio, mas ela pareceu jovem, encantadora e vulnerável sob a luz.
‑ Deixe o velho ir em paz ‑ disse Damon, brandamente.
‑ Nunca o deixarei em paz. ‑ Voltou a rir‑se, recusando o sentimentalismo, e olhou pela janela. ‑ Meu Deus, estou quase em casa!
Como se isso fosse um sinal, atirou‑se por cima das pernas dele, puxou‑lhe a cabeça para baixo e beijou‑o. Os seus lábios eram macios e activos e ela cheirava maravilhosamente. Foi um longo beijo e a rapariga só largou Damon quando o táxi parou defronte da casa onde vivia. Endireitou‑se, ajeitou o casaco e olhou‑o, com o rosto inundado pela malícia que nunca deixava de estar presente, debaixo da superfície.
‑ Última oportunidade: quer subir? Ele abanou tristemente a cabeça.
‑ Arrepender‑se‑á.
‑ Tenho a certeza disso. Ela encolheu os ombros.
‑ Passe um alegre serão doméstico com a sua mulher.
Não precisa de lhe dizer que é um bom homem; tenho a certeza de que ela o sabe.
Saltou do táxi e subiu a correr os degraus exteriores da casa, esbelta, graciosa, ligeira, produto do clima especial dos seus tempos. O clima dele era diferente.
Damon viu‑a afastar‑se invadido por uma onda de tristeza e depois deu a morada ao taxista e recostou‑se no estofo, a imitar cabedal, do banco, que tresandava a anos de fumo de cigarro, fechou os olhos e tentou lembrar‑se dos nomes das três senhoras que, desconfiava, tinham compartilhado o intervalo para o café com Melanie Deal.
Da próxima vez que a viu estava parada no átrio do edifício do seu escritório, quando ele descia, vindo do trabalho. Passara uma semana.
Tinha um lenço na cabeça e o seu rosto parecia tenso e preocupado. Desta vez, pensou Damon, se Oliver a visse não se sentiria tentado a perguntar: «Meu Deus, viu aquela rapariga?»
‑ Preciso de falar consigo, Mr. Damon ‑ disse, sem preliminares. ‑ A sós. Está em apuros. Posso acompanhá‑lo?
‑ Com certeza.
Deu‑lhe o braço e saíram para a rua. Automaticamente, ele encaminhou‑se na direcção da 5.a Avenida. Estava uma bonita tarde de Primavera, com os últimos clarões do sol a iluminarem o lado oriental do céu, e as pessoas que os rodeavam, libertas do trabalho diário, pareciam todas esfusiantes de secreta alegria, como se saboreassem a sua liberdade e a perspectiva da noite que as esperava.
Caminharam um bocado em silêncio. A rapariga ia taciturna, a morder os lábios.
‑ Porque estou em apuros? ‑ perguntou Damon, serenamente.
‑ Fiz uma coisa horrível. Imperdoável, embora espere que me perdoe. ‑ Parecia uma criança assustada.
‑ Que coisa horrível foi essa?
‑ Falei‑lhe do meu amante, o de cinquenta anos... o corretor da Wall Street.
‑ Falou.
‑ Chama‑se Eisner.
‑ Não o conheço ‑ disse Damon, vivamente. ‑ Que tem ele a ver comigo?
‑ Diz que o vai matar. É isso que ele tem a ver consigo.
Damon parou e olhou para a rapariga.
‑ Está a brincar, não está? Ela abanou a cabeça.
‑ Nem um bocadinho ‑ afirmou.
‑ Por que motivo quer matar‑me um homem que nunca vi? ‑ perguntou, incrédulo.
‑ Está doido de ciúme. Talvez por causa da placa de platina que lhe puseram na cabeça, na Coreia.
‑ Mas eu nunca... quero dizer, consigo...‑tartamudeou Damon.
‑ Eu disse‑lhe que sim. Disse‑lhe que estava doida por si e você por mim.
‑ Por que diabo fez uma coisa dessas? ‑ Damon estava cheio de uma cólera fria e ficou satisfeito ao ver que a sua voz e a sua expressão tinham feito a rapariga tentar desviar‑se dele. Puxou‑a bruscamente para si.
‑ Ele esbofeteou‑me numa festa. ‑ Ela agora chorava. ‑ Pensou que estava a namoriscar com alguém. Bateu‑me diante de mais de vinte pessoas. ‑ A sua voz tornou‑se de súbito desafiadora e dura. ‑ Não permito que me façam coisas dessas. Não o permito a ninguém. Quis magoá‑lo, e magoei‑o. Você foi o primeiro que me veio à cabeça, e ele sabe quem você é e que é bastante mais velho do que eu. Isso revolveu a faca na ferida.
‑ Bom trabalho‑comentou Damon, sardonicamente. ‑ Bem, o que tem a fazer é voltar para esse idiota e explicar‑lhe tudo, dizer‑lhe que mentiu, que não temos nada a ver um com o outro e que eu, pelo menos, estou certíssimo de que nunca teremos. Ele pode guardar o raio da arma, voltar para a Wall Street e deixar de ser um grande parvo.
‑ Isso não servirá de nada ‑ afirmou ela, a tentar conter as lágrimas e a parecer mais do que nunca uma garotinha assustada. ‑ Já lhe disse tudo isso a noite passada, que tinha mentido. Não me acreditou. Continuou sentado na sua sala, a lubrificar a automática que trouxe da Coreia.
Damon respirou fundo.
‑ Está bem ‑ disse, muito sério ‑, se ele está tão empenhado nisso, diga‑lhe esta noite que amanhã, ao meio‑dia em ponto, caminharei para norte na 5.a Avenida, no quarteirão que fica defronte do Saks, desarmado. Que os soldados disparem e se arrume o assunto. E agora ‑acrescentou, com uma fúria gelada ‑ deixe‑me em paz e nunca mais volte a aparecer‑me. ‑ Largou‑lhe o braço e estugou o passo pela avenida abaixo, direito a casa.
No dia seguinte, chegara à esquina da 5.a Avenida com a Rua 49 ao meio dia exacto. O tempo estava agradável e soalheiro e as raparigas dos escritórios próximos, que tinham saído para o almoço, e as mulheres que entravam e saíam dos luxuosos estabelecimentos, pareciam ter vestido todas cores garridas para confirmarem o advento da Primavera. Não era nem o lugar nem a hora para um homem estar à espera com uma arma nem para outro aguardar a execução.
Damon endireitara os ombros e, lenta e deliberadamente, percorrera o quarteirão. Levara quatro minutos. Ninguém o abordara. Não houvera tiros. Melodrama, pensara desdenhosamente. Teatro, Fantasias de amor. A louca e ambiciosa rapariguinha a fingir‑se tão moderna e tão adulta. O pobre filho da mãe com a placa de platina na cabeça a lubrificar a arma ostensivamente, para armar em valente aos olhos dela.
Conhecia um bom restaurante na Rua 63 e dirigira‑se para lá, a gozar o sol primaveril e a apreciar as montras das lojas e as cores vivas dos vestidos das mulheres por quem passava, enquanto caminhava despreocupadamente para o restaurante, onde se regalara com um almoço requintado e dispendioso e uma garrafa inteira de vinho.
Reparou que tinha o copo vazio, disse para consigo. «Que diabo!», e pediu outro uísque. Sabia que não voltaria para o trabalho naquele dia e que, se queria aguentar‑se até à noite, o uísque o ajudaria.
Não voltara a ver Melanie, nem a ouvir falar dela, desde a conversa na 5.a Avenida, já lá ia mais de um ano. Nunca encontrara Mr. Eisner, o corretor da Wall Street com a placa de platina na cabeça, as armas e o baú cheio de medalhas.
A produção de Uma Maçã para Helena fora por água abaixo e o autor ainda estava a tentar reescrever o primeiro acto.
No entanto, se um homem afirmara que o mataria, o facto de não ter comparecido defronte do Saks para cumprir a ameaça não era nenhuma garantia permanente de imunidade. O estúpido acto de bravata, tipo escuteiro, parecera‑lhe na altura uma vitória e Damon apreciara o seu almoço, mas um homem armado podia pensar duas vezes quanto a abater a tiro um rival sob o sol do meio‑dia, entre a multidão da principal avenida da cidade de Nova Iorque, e decidir dar tempo ao tempo, aguardar uma oportunidade menos pública, esperar, alimentar o seu sonho de vingança durante meses, anos. O ciúme era a mais permanente das emoções e não irrompia e morria em 24 horas. Damon tinha a certeza de que o tenente Schulter gostaria de saber daquele episódio. O corretor fizera jus ao seu lugar, pensou Damon, na lista de inimigos pessoais, e talvez Melanie Deal, estouvada e imprevisível, de lá devesse constar também, ao lado dele. De qualquer maneira, ela merecia um telefonema.
Procurou na algibeira dinheiro para o telefone, mas depois parou. Mr. Eisner não tinha sido o único homem mencionado por ela como tendo‑o ameaçado. Damon lembrou‑se do que Melanie Deal lhe dissera a respeito da peroração de Guilder ao seu elenco de actores no fim da noite de estreia de Homem Mais Homem. Guilder prometera arruiná‑lo e nesse sentido fizera o mal que o dinheiro e a calúnia permitiam. Não tivera êxito e o fracasso talvez lhe tivesse roído suficientemente a alma para o impelir para acções mais directas. Damon ignorara‑o, afirmara que não tinha importância nenhuma. Fizera mal. Na situação em que presentemente se encontrava, nenhuma pista, por fraca e ténue que parecesse, podia ser excluída. E não se podia ignorar o poder de um jovem rico, dementado e frustrado, que escapara por um triz a uma longa pena de prisão por agressão criminosa com intenção de cometer assasínio, de mais a mais se tinha fortuna para contratar assassinos pagos.
Não podiam restar dúvidas a esse respeito, pensou Damon, ao encontrar duas moedas de dez cêntimos na algibeira. Melanie Deal merecia um telefonema.
Deixou o copo do uísque no balcão e dirigiu‑se para o
fundo do bar, onde havia uma cabina telefónica. Procurou o número na lista de Manhattan, recordado de que ela morava na Rua 23 e recordado também do suave contacto dos seus lábios, no táxi, e da sua frase: «Tenho uma fixação pelo pai e adoro.»
Marcou o número, mas respondeu‑lhe uma voz mecânica: «O número que marcou já não está em serviço.» Recuperou a moeda e pensou um momento. Sabia que podia ligar para o escritório de Proctor e perguntar como poderia comunicar com a rapariga, mas lembrou‑se do que Oliver dissera a respeito de Proctor praticamente a ter despido com o olhar, no escritório, e achou que seria embaraçoso averiguar por esse lado. Sabia Deus o que se teria passado entre eles, apesar de ela ter dito: «Nenhuma esperança, Nova Jérsia», a despeito das probabilidades do produtor com ela.
Pensou mais um bocado e depois procurou o número de Equity, o sindicato dos actores. Ela devia fazer parte dos seus ficheiros e quando ele indicasse o seu nome saberiam que estava relacionado com o teatro e que o seu interesse era legítimo, e dar‑lhe‑iam o número do telefone da rapariga. Enquanto marcava, pensou: «Bem, não é assim tão legítimo.»
Demorou algum tempo até encontrar a pessoa que lhe poderia dar a informação que desejava, mas finalmente ouviu a voz de uma mulher que conhecia.
‑ Sofia ‑ disse, depois da troca de cumprimentos ‑, precisava de entrar em contacto com uma actriz chamada Melanie Deal. Um autor dos meus pensa que a pode utilizar numa peça que está a escrever ‑ mentiu.
‑ Oh! ‑ Seguiu‑se uma longa pausa. ‑ Ela morreu há três meses, em Chicago. Andava em tournée com uma reposição e foi vítima de um acidente de viação. Um actor bêbedo ao volante e as estradas geladas... Foi uma pena. Era uma jovem brilhante e com futuro. Lamento muito. Era sua amiga?
‑ Não, verdadeiramente...
«Chicago», pensou. «Acrescenta mais uma aos meus sonhos.» Depois desligou.
VOLTOU a si no chão. Cheirava a cerveja entornada e a beatas de cigarros e charutos, ouvia‑se uma babel de vozes e rostos fitavam‑no ansiosamente. Alguém dizia: «Não lhe mexam, pode ter o pescoço partido.» Por instantes pensou que tivesse desmaiado e tentou pedir desculpa aos rostos que se inclinavam para ele, mas não conseguiu encontrar as palavras. Depois lembrou‑se. Quando voltara da cabina telefónica para onde deixara o copo e o livro de apontamentos aberto, dois homens gritavam um com o outro, perto dele. Lembrava‑se que era qualquer coisa acerca de dinheiro. Depois um deles, o mais baixo, com uma cara de macaco enfezado, agarrara numa garrafa de cerveja que estava no balcão e ameaçara com ela o outro homem, que se esquivara e recuara, passando por Damon, a gritar: «Sacana ladrão!» e a proteger a cabeça.
‑ Então, então... ‑ dissera Damon e estendera instintivamente a mão para o braço do homem com a garrafa de cerveja, a fim de pôr cobro à luta.
Falhara, o homem brandira ferozmente a garrafa e esta batera na testa de Damon, que caíra sobre o balcão, atordoado. Depois devia ter‑se ido abaixo das pernas e escorregado para o chão.
Um líquido morno e viscoso pingava‑lhe para os olhos e para a boca, com um gosto a sal. Sentou‑se. Os rostos por cima dele oscilaram contra o tecto de folha amachucado. «Estou bem», disse em voz pastosa, a limpar os olhos e a boca e depois a olhar para a mão. Ao vê‑la suja de sangue, disse, sem sentido: «O sangue do cordeiro. Se não se importam...» Sentiu‑se embaraçado por ser o centro da atenção de toda aquela gente desconhecida que entrara no bar apenas para beber um copo tranquilo antes do almoço. Homem que detestava cenas, estava a ser protagonista, ou vítima, de uma. Mãos ajudaram‑no a levantar‑se. Agarrou‑se ao balcão, para não se deixar cair de novo. Reparou que o livro de apontamentos estava manchado de um vermelho‑ferrugem húmido. O sangue do cordeiro a manchar papel, o material essencial da sua vida, agora o altar do sacrifício. O carneiro na moita.
‑ Amigo ‑ disse o barman ‑, a primeira lição é: não sejas árbitro quando a pancadaria começa num bar.
Damon sorriu tristemente.
‑ Hei‑de lembrar‑me disso. Onde está o homem que me fez isto?
‑ Foram‑se ambos embora há muito tempo ‑ respondeu o barman, ‑ Cavalheiros respeitáveis. ‑ O tom era resignado. ‑ O tipo que o atingiu deixou uma nota de dez dólares antes de se pirar. ‑ Mostrou a nota. ‑ Ele disse que lamentava, que quem queria matar era o outro tipo. Estavam ambos muito bem vestidos. Hoje em dia já não se pode dizer nada pelo aspecto das pessoas.
Uma mulher veio a correr da cozinha com um estojo de primeiros socorros.
‑ É melhor sentar‑se ‑ disse a Damon. ‑ Deixe‑me limpar‑lhe esse golpe.
Antes de ela o conduzir para uma cadeira, viu a sua imagem reflectida no espelho atrás do balcão. Fitou‑o o mesmo fantasma. O espelho estava tão escuro que não reflectia sangue.
Deixou‑se cair numa cadeira e a mulher começou a limpar‑lhe a testa com um pano molhado, que fazia arder o golpe, enquanto o murmúrio das vozes diminuía e os bebedores voltavam a pegar nos seus copos.
‑ Não tem muito mau aspecto ‑ disse a mulher.
Era gorda e preta e cheirava a óleo de fritar, mas as suas mãos eram firmes e delicadas, enquanto o tratavam. As mãos de Sheila no hospital, pensou.
‑ Graças a Deus a garrafa não se partiu! ‑ exclamou a mulher. ‑ Como se sente?
‑ Bem.
Não sentia grande coisa, a não ser que a sala se movia em ondas à sua volta e, não sabia como, a palavra Chicago repetiu‑se, chegando‑lhe aos ouvidos através do murmúrio baixo das vozes. Nunca tinha perdido a consciência e achou que a sensação não era desagradável. Lembrou‑se de cair, como que de uma grande altura. Isso também não tinha sido desagradável, mas antes eufórico. Há uma primeira vez para tudo, pensou, grato pelas mãos suaves e pelo pano molhado que lhe limpava a testa, os olhos e a boca.
‑ Vai ficar bom, meu querido ‑ dizia a mulher, enquanto lhe punha um pequeno penso e o prendia com adesivo. ‑ Lamento, no entanto, não poder fazer nada no tocante às suas roupas. Telefone à sua mulher antes de ir para casa, a avisá‑la que não parece exactamente o mesmo que parecia quando saiu esta manhã.
‑ Adoro‑a, senhora ‑ declarou Damon. ‑ Gostaria de a levar para casa comigo.
A mulher riu‑se, com um riso sonoro e rico.
‑ Há muito tempo que não ouvia isso, e tenho ajudado alguns janotas muito mais gravemente feridos do que o senhor. Agora fique aqui sentado um bocado, à espera de poder andar um pouco.
Mas Damon levantou‑se. Tinha a sensação angustiante de que, se ficasse na cadeira, não voltaria a poder levantar‑se. Por um acto puro de vontade, evitou cambalear.
‑ Vou só acabar a minha bebida ‑ disse, a esforçar‑se para falar claramente.
A mulher olhou‑o, compadecida.
‑ Com a sua idade, querido! No seu lugar, deixaria os novos resolverem as suas brigas sozinhos. ‑ Guardou o rolo de ligadura e o adesivo no estojo de primeiros socorros. ‑ Se precisar de ajuda, estou na cozinha. Chamo‑me Valeska.
‑ Valeska ‑ disse, encantado com o nome e curioso quanto à sua origem ‑, é o meu anjo, o meu anjo negro. A minha mulher tem mãos como as suas. Permita‑me... ‑ Inclinou‑se e beijou a testa alta e sem rugas, debaixo do cabelo grisalho.
Ela voltou a rir‑se, com o mesmo riso profundo e sonoro.
‑ Lá quanto às mãos e ao anjo, não sei, mas quanto ao negro percebo ‑ disse, e voltou para a cozinha.
Damon olhou severamente à sua volta, a proibir os outros frequentadores do bar de o ajudarem. Constrangidos, os homens que se encontravam mais perto dele olharam para outro lado e fizeram questão de concentrar a atenção nos copos. Principalmente, pensou, a olhar ameaçadoramente para os homens que estavam agora de costas para ele, nada de compaixão nem de piadas acerca do velho que tinha infringido o código de não interferência naquilo a que a senhora negra chamara as brigas dos mais novos. Reparou que, quase por uma acção reflexa, o espaço próximo do lugar onde estivera de pé estava desimpedido de outros bebedores. Caminhou, quase com passo firme, da cadeira para o balcão, onde se encontrava o seu copo com o livro de apontamentos ainda aberto e manchado de sangue a seu lado. Notou que não acontecera nada ao copo, na barafunda, mas que o gelo se derretera. O primeiro golo foi quase de pura água gelada.
‑ Barman ‑ chamou, em voz firme ‑, outra bebida, por favor.
O empregado pareceu preocupado.
‑ O senhor tem a certeza? Talvez tenha algum traumatismo e o álcool provocará uma grande reacção.
‑ Um Black and White ‑ insistiu Damon. ‑ Se faz favor.
O homem encolheu os ombros.
‑ A cabeça é sua ‑ resmungou, enquanto deitava o uísque num copinho e dava a Damon outro copo com gelo e uma pequena garrafa de soda.
Damon bebeu devagar e sentiu as forças restauradas. Uma transfusão de scotch, esse sustentador da vida. «Talvez», pensou de copo na mão, «doravante me torne um bêbedo diário». Com o lenço, limpou as páginas manchadas do livro de apontamentos, os nomes de Machendorf, Melanie Deal e Mr. Eisner encobertos por sangue coagulado. Quando pediu a conta, o barman respondeu‑lhe:
‑ Foi por conta da casa, Mister.
‑ Como o senhor desejar. Obrigado.
Dirigiu‑se firmemente para a porta, consciente das manchas cor de ferrugem do colarinho e do casaco e dos olhares de soslaio dos homens que estavam ao balcão.
Decorreu muito tempo antes de passar um táxi vazio, e enquanto estava parado na berma do passeio, a fazer sinais inúteis a táxis que passavam, viu um rapazinho dos seus doze anos atravessar a rua a correr, a esquivar‑se dos carros que avançavam, velozes. O rapaz levava uma luva de basebol. Damon lembrou‑se de um instantâneo que o pai lhe tirara quando ele era da idade do rapaz e tinha regressado a casa depois de um jogo de basebol. Recordou o cheiro da erva recém‑cortada do campo exterior. O rapaz estava em cabelo e sorria atrevidamente ao táxi que se aproximava, e era moreno e tinha exactamente a mesma constituição magra e forte que Damon tivera na sua idade. Por momentos, pensou que a sua própria fotografia tinha ganhado vida e quase correu para salvar o rapaz de um táxi que avançava veloz e ruidosamente. Mas, mesmo a tempo, o rapaz chegou em segurança ao passeio e depois virou‑se e achatou o nariz com o dedo, a troçar do motorista. «Eu podia ter sido morto», pensou Damon, confuso. Abanou a cabeça e voltou‑se para deixar de ver aquele rosto juvenil, sorridente, familiar e atrevido que podia ter sido o seu quando tinha a mesma idade.
Quando chegou a casa, sentiu‑se aliviado por verificar que Sheila não estava. Às vezes, a mulher vinha a pé da escola infantil, para almoçar. Assim teria tempo de mudar de roupa antes de ela o ver.
Foi à casa de banho e olhou para a cara reflectida no espelho. Sob o avermelhado da sua pele curtida pelo tempo pareceu‑lhe detectar um tom esverdeado, e viu debaixo dos olhos curiosas manchas quase brancas.
Depois lembrou‑se do rapaz com a luva de basebol a fintar o táxi. Voltou à sala e começou a procurar um velho álbum de fotografias que não via havia anos. Ele e Sheila nem sequer tinham máquina fotográfica, e quando amigos deles o fotografavam, ficava abismado com os sinais de velhice do seu rosto. Se lhe davam uma dessas fotografias, dizia «obrigado» e rasgava‑a imediatamente.
Envelhecer era um declínio muito triste, sem necessidade de se manter um registo exacto e ano a ano do processo.
Encontrou o álbum debaixo de uma pilha de New Yorkers antigas. Todas aquelas Notas e Comentários, toda aquela prosa elegante, toda aquela ficção concisa e silenciosa, todas aquelas biografias corteses, aquelas caricaturas engraçadas, aquelas críticas de livros e peças havia muito esquecidos... Nunca relera as revistas e duvidava que alguma vez o fizesse, mas continuava a guardá‑las, muito bem empilhadas na prateleira do fundo da comprida estante a abarrotar. Talvez tivesse medo de reler até as suas histórias e os seus ensaios favoritos. Fazê‑lo recordá‑lo‑ia de tempos mais alegres, velhos amigos que tinham desaparecido e de editores da revista a quem apresentara o trabalho de alguns dos seus clientes, que tinham sido os homens mais inteligentes e corteses e que, não sabia como, haviam desaparecido da sua vida.
Passou a mão caridosamente, tristemente pela rima de 25 cm de revistas e depois retirou o álbum fotográfico do seu lugar debaixo daquele impressionante monumento de papel a anos de trabalho intensivo, êxitos e fracassos, daquele abafado, transitório e fraco clamor pela imortalidade.
«Sou casada com um armazenador de papel», dissera uma vez Sheila. «Um dia entro aqui, quando estiveres a trabalhar, e deito fora toda essa papelada que tens acumulado, antes de ficarmos sepultados sob uma montanha de papel impresso.»
Sacudiu o pó do álbum, sentou‑se à secretária defronte da janela, onde a luz era boa, e abriu o álbum. Teve dificuldade em encontrar a sua fotografia com a idade de 12 anos. Tinha colocado as fotografias no álbum ao acaso, para despejar os grandes sobrescritos onde tinham estado guardadas sem qualquer ordem. Estava preso em casa com a perna num aparelho de gesso, depois de sair do hospital, ainda não casara com Sheila e tentava pôr o apartamento em ordem antes do casamento. Já tinham passado mais de 20 anos e ele não se lembrava de ter visto o álbum desde então.
Percorreu as folhas frágeis e estaladas. Havia fotografias do seu pai, jovem e musculoso, da sua mãe com o cabelo curto, no estilo dos anos 20, de Maurice Fitzgerald e ele encostados à amurada do navio, com Fitzgerald todo sorridente e a parecer vistoso e elegante mesmo com as calças grossas e o casaco de lã de marinheiro. Boas cinco braças. Damon recordou o som da voz do amigo quando dissera essas palavras e a sua amargura ao dizer‑lhe, quando o barco seguinte do comboio fora afundado: «Nós somos a casca de ovo. Não me digas se formos atingidos por um torpedo.»
Virou algumas páginas e parou a admirar uma fotografia de Sheila tirada pouco antes de casarem em Jones Beach, num dia de Verão: soberba num fato de banho preto, justo. Suspirou e demorou‑se a ver essa página Depois voltou‑a e encontrou a sua fotografia que procurava.
Estudou cuidadosamente o instantâneo. A luva de basebol que usava era pequena, ao contrário das luvas grandes e palmadas presentemente em uso, mas tirando isso o rapaz da fotografia e o rapaz que tinha visto na 6.a Avenida podiam ser gémeos.
Olhou pensativamente pela janela, a pensar se tinha realmente visto o rapaz ou se fora uma miragem, uma partida da memória depois da pancada que levara na cabeça. O barman avisara‑o de que a última bebida lhe poderia causar uma grande reacção, e talvez tivesse tido razão. Fechou o álbum, levantou‑se e foi metê‑lo debaixo da rima de revistas antigas. O passado, pelo menos de momento, ficava bem sepultado debaixo de papel impresso.
Depois foi ao quarto e mudou de roupa. Em seguida desceu a escada e meteu a camisa e a gravata sujas de sangue no latão do lixo e levou as calças e o casaco para a lavandaria, a fim de serem limpos a seco. Resolveu não falar a Sheila da briga no bar. O penso que tinha na testa era pequeno e ele podia dizer que, ao levantar‑se da cadeira, batera com a cabeça no candeeiro da secretária, no escritório, e que Miss Walton lhe pusera o penso.
Quando voltou da lavandaria teve consciência de que tinha fome e procurou no frigorífico se havia alguma coisa que pudesse almoçar. Mas depois achou que não seria sensato deixar indícios de que fora a casa a meio do dia, coisa que nunca fazia durante a semana de trabalho.
Não queria ter de dar a Sheila mais explicações do que as absolutamente necessárias.
Quando se preparava para sair bateram à porta. Àquela hora do dia, não haveria nenhum motivo para que pessoas conhecedoras dos horários dele e de Sheila supusessem que estaria alguém no apartamento. Ficou um momento especado, imóvel, e depois aproximou‑se em bicos de pés da lareira e tirou um atiçador do conjunto de utensílios que lá se encontravam. Voltaram a bater repetidamente à porta e depois a campainha começou a tocar sem parar, como se quem se encontrava do lado de fora estivesse encostado ao botão.
Com o atiçador casualmente suspenso da mão, como se tivesse estado a limpar a lareira e, distraidamente, se houvesse esquecido de o largar, gritou: «Já lá vou», e foi abrir a porta. Encontrou um homem forte, de fato‑macaco.
‑ Desculpe incomodá‑lo, Mr. Damon, mas o senhorio disse que a sua mulher lhe telefonou a informar que o seu intercomunicador da porta principal não funciona.
‑ Ah, sim! ‑ respondeu Damon, mas continuou a agarrar firmemente no atiçador.
‑ Temos estado a consertá‑lo, o meu companheiro e eu ‑ explicou o homem ‑, e queria experimentar, para ver se está bom. Posso entrar?
‑ Com certeza ‑ Damon recuou e bloqueou a entrada para a sala. ‑ O botão do trinco e o intercomunicador ficam junto da porta.
O homem acenou com a cabeça, carregou no botão e depois ligou o interruptor do intercomunicador.
‑ Sim? ‑ perguntou uma voz através do intercomunicador, uma voz que soou cava e mecânica, como as vozes das câmaras de eco dos filmes de terror.
‑ Estou no apartamento dos Damons ‑ informou o electricista. ‑ Ouves‑me bem?
‑ Roger ‑ respondeu a voz, e Damon surpreendeu‑se pela primeira vez com o facto de o seu nome ser utilizado por sectores inteiros da sociedade moderna para indicar que as comunicações estavam perfeitas e claras.
‑ Óptimo ‑ disse o electricista. ‑ Vou já para baixo e podemos ir almoçar. ‑ Voltou‑se para Damon e acrescentou: ‑ Pronto.
Agora, se toda a gente que entrar no prédio utilizar o aparelho, não será surpreendido por visitantes indesejáveis.
‑ Muito obrigado ‑ agradeceu Damon, enquanto abria a carteira e tirava duas notas de dólar, que deu ao homem. ‑ Tome, para beberem uns copos.
O homem aceitou o dinheiro e sorriu.
‑ Ficara combinado que viríamos de manhã, porque a sua senhora disse que a mulher a dias estaria no apartamento. Ainda bem que não pudemos vir mais cedo, pois as mulheres a dias não dão dinheiro para uma pinga. Olhe...‑Tirou a carteira e escolheu um cartão manchado.‑ Se alguma vez precisar de algum trabalho de electricista, telefone‑nos e viremos logo.
‑ Obrigado. Bom apetite para o almoço.
O homem saiu e Damon olhou para o cartão que tinha na mão. «Acme Eletrical Appliances», leu. «P. Danusa.» «Homem simpático», pensou. «Devia ter‑lhe dado cinco dólares.» Da próxima vez que Danusa batesse à porta, não correria o risco de levar uma pancada de atiçador na cabeça. Damon repôs o atiçador no seu lugar e depois fez menção de sair, mas deteve‑se porque se lembrou de que, quando mudara de roupa, despejara os bolsos e deixara o revelador livro de apontamentos em cima da cómoda do quarto. Foi buscá‑lo, verificou que já estava seco e meteu‑o na algibeira. Ainda não acabara a sua lista. Além disso, não o podia deixar por ali abandonado, para Sheila o descobrir.
Quando saiu do apartamento, fechou a porta com duas chaves: uma da antiga fechadura e a outra da fechadura supostamente à prova de ladrões que Sheila mandara instalar logo após o seu almoço com Oliver Gabrielsen. No entanto, rejeitara a ideia da porta de aço e da tranca. «Recuso‑me a viver como se estivéssemos em guerra», dissera, «só por causa de um telefonema maluco. Se alguém chegar até aqui», acrescentara, toda inflamada pela sua hereditariedade siciliana, «arranjarei uma maneira de lhe tratar da saúde.»
Damon sorriu, ao recordar as palavras da mulher. Mr. P. Danusa tivera sorte em não ter sido Sheila quem abrira a porta, de atiçador na mão. Se tivesse sido, era muito possível que estivesse caído no chão do vestíbulo, naquele momento, com o crânio fracturado.
Damon caminhou para a periferia de olhos baixos, para não reconhecer ninguém, vivo ou morto, jovem ou velho, na multidão que passava. Em vez de ir directamente para o escritório, almoçou apressadamente e depois voltou à loja de equipamento electrónico que ficava perto da Rua 50. O empregado reconheceu‑o e ficou surpreendido quando ele lhe pediu uma máquina para atender chamadas telefónicas.
‑ Não comprou uma ontem? ‑ perguntou.
‑ Comprei.
‑ Tem alguma coisa que não funcione bem? Se estiver defeituosa pode trazê‑la.
‑ Não está defeituosa. Esqueci‑me dela num bar.
‑ Que pena! ‑ O empregado olhou demoradamente para o penso que Damon tinha na testa e depois foi buscar outra máquina. ‑ São 96 dólares e 80 cêntimos.
Damon deu‑lhe um cartão de crédito e assinou o talão. O perigo, pensou enquanto o empregado embrulhava a caixa, era um luxo caro.
Desta vez não entrou em nenhum bar. Já tinha a sua conta de bares e bebida, pelo menos para aquele dia. Voltou para o escritório e não deu quaisquer explicações acerca da sua longa ausência a Miss Walton ou Oliver, embora ambos o tivessem olhado interrogadoramente.
‑ Que é isso, Roger? ‑ perguntou Oliver, a bater na testa.
‑ A bossa da sensatez ‑ respondeu Damon secamente, e sentou‑se à secretária e começou a ler dois contratos que Miss Walton lá pusera.
Antes do jantar, nessa noite, ele e Sheila desligaram a extensão telefónica do quarto e ligaram a máquina de atender chamadas ao telefone da sala, e Sheila gravou a fórmula necessária: «Mr. e Mrs. Damon não estão em casa neste momento. Se deseja deixar algum recado, queira aguardar pelo bip e dizer o seu nome e número de telefone. Terá 30 segundos para gravar o recado. Obrigada.»
Olharam constrangidos um para o outro, enquanto Sheila carregava no botão para se certificar de que a gravação ficara compreensível. Sem o dizerem, sabiam ambos que a máquina era uma nova intrusão na sua vida, uma capitulação perante a realidade, perante a ideia de que um tal Mr. Zalovsky existia e tinha de ser mantido à distância.
‑ As maravilhas dos tempos modernos ‑ comentou Sheila ironicamente. ‑ Como pudemos viver sem isto até agora? Vamos jantar.
Preparara a refeição e a mesa estava posta, mas Damon disse:
‑ Apetece‑me jantar fora. Deixa isso para amanhã.
‑ Mas não disse que se ficassem em casa se arriscavam a passar a maior parte da noite a olhar receosos para a máquina de atender o telefone.
‑ Tens a certeza de que estás em condições? ‑ Sheila aceitara a explicação do penso na testa, mas notara que ele tomara duas aspirinas ao chegar a casa.
‑ Já não te dói a cabeça?
‑ Não. ‑ Damon nunca tomava remédios e tinham tido de procurar no apartamento todo um velho frasco de aspirinas que a mulher a dias colocara atrás de umas garrafas, no armário da cozinha. ‑ Além disso, gostava de ir ao cinema depois do jantar. Ouvi dizer que Breaker Morant vai nas imediações e toda a gente que viu o filme lhe faz as melhores referências.
Com o jantar, o filme e umas duas bebidas num bar a seguir, poderiam ficar fora de casa até cerca da uma da manhã. Seis ou sete horas de tréguas, em que se entregariam aos problemas de criaturas de ficção em vez de aos seus.
Jantaram bem e Sheila, como acontecia sempre que jantava fora, sozinha, com o marido, mostrou‑se cheia de vivacidade e contou anedotas engraçadas acerca das crianças da escola infantil e das suas mães. Estavam bem dispostos quando ocuparam os seus lugares imediatamente antes de o filme começar.
O filme era tudo quanto tinham dito dele e até mais, e viram‑no ambos fascinados, como duas crianças privilegiadas e cheias de respeitoso temor. Damon tinha a convicção de que estavam a ver uma obra‑prima.
Era um termo Que quase nunca utilizava e em que raramente pensava, mas compreendeu pelo silêncio tenso do cinema esgotado QUe a sua opinião era compartilhada pelo resto da assistência, que irrompeu em aplausos quando o filme chegou ao fim, coisa que nunca vira nem ouvira na passagem rotineira de um filme num cinema da vizinhança. Sheila, Que ele não se lembrava de ter visto chorar num cinema, chorava desta vez, no fim, quando os dois soldados, sentados em cadeiras num grande campo e recortados no sol nascente, foram executados pelo pelotão de fuzilamento.
«Meu Deus», pensou Damon, a enxugar as próprias lágrimas, «que coisa maravilhosa é o talento e quantas vezes é mal utilizado!» Apesar de o filme ser a respeito dos processos corruptos, dos insensíveis propósitos políticos e da cega e omniprevalecente malevolência da espécie humana, que tinham conduzido à morte inevitável dos dois oficiais, ele sentiu a onda de elação e gratidão das pessoas que o rodeavam. Catarse através da compaixão e do terror, pensou, apesar de talvez apenas um punhado de espectadores presentes ter alguma vez ouvido ou lido a frase ‑
mas depois do espectáculo e quando já estavam no seu bar local, a tomar as bebidas, Damon começou a reflectir sombriamente no filme. Apesar de ter sido magnífica, aquela noite não fora a indicada para o ver, pelo menos no caso dele. Claro que os dois actores que tinham caminhado para a morte calma e corajosamente, com disciplina e marcial dignidade, se tinham levantado de onde estavam caídos, depois dos coups de grace e de o realizador ter gritado: «Cortar!» Tinham‑se rido de algum gracejo que alguém dissera e com certeza tinham saído, com a melhor das disposições, para celebrarem com uma cerveja, visto tratar‑se de uma produção australiana, e ido em seguida estudar o papel para a filmagem do dia seguinte.
Que gracejos estava ele preparado para dizer, que papel teria de preparar para amanhã, que realizador estaria à mão para gritar «Cortar!» e deter a acção?
NOS últimos dias, pensou, tinha estado mergulhado em morte e em pensamentos de morte. Zalovsky, com o seu aviso; Harrison Gray, cujo nome era afinal George; Antoinetta e Maurice Fitzgerald; Gregor com a sua bomba de neutrões; Melanie Deal, vítima de um condutor bêbedo. Obra‑prima ou não, teria feito melhor se tivesse comprado bilhetes para uma comédia musical inofensiva na qual ninguém morresse e que terminasse com um fim feliz, num clamor de som, enquanto o pano descia.
Sentiu o livro de apontamentos manchado de sangue na algibeira. Isso era a realidade e não a fórmula para dramaturgos gregos pré‑cristãos; havia terror, ali, na sua algibeira, mas não piedade e nenhuma catarse.
Sheila também estava séria e ele calculou que os seus pensamentos deviam ser muito parecidos com os dele. Pressentindo‑o, estendeu a mão e pegou na dela. Sheila apertou‑lha com força e tentou sorrir, mas ele viu que estava quase a chorar.
Quando chegaram a casa passava da uma hora. Como que por uma atracção magnética, os olhos de ambos fixaram‑se na máquina de atender chamadas.
‑ Vamos para a cama ‑ disse Sheila. ‑ Deixa a maldita coisa em paz até de manhã.
Tinha sido um dia longo e cansativo e Damon adormeceu quase imediatamente, a abraçar ao seu o corpo quente e nu de Sheila. «Sheila, escudo», murmurou imediatamente antes de o sono o vencer.
Os sonhos atormentaram‑no e ele debateu‑se para acordar. Quando o conseguiu, estava a tremer. Cuidadosamente, desviou‑se de Sheila, que dormia tranquilamente, e levantou‑se da cama. Vestiu um roupão de lã e foi, descalço, para a sala. Não acendeu a luz, mas sentou‑se à secretária, defronte da janela, e olhou para a rua deserta, em baixo. O relógio da secretária marcava quatro horas.
Recordou os sonhos que tivera. Preparava‑se para um funeral, vestia o fato de sarja azul‑escura. Estava um botão a cair, na extremidade de uma manga, e ele puxara‑o, para não o perder. O botão não se soltara, mas toda a manga do casaco lhe ficara na mão, do meio do antebraço para baixo. Lembrava‑se de, no sonho, ter ficado ligeiramente divertido com o caso, mas acordado não achava graça nenhuma. Lembrava‑se de o produtor Nathan
Brown ter aludido ao rasgar de vestuário, quando tinham falado de Maurice Fitzgerald pelo telefone e da reacção da mulher que atendera a sua chamada, no apartamento de Londres.
Damon sentiu um calafrio. O sono não era, como Shakespeare descrevera, o tricotar da manga emaranhada dos cuidados.
Outro sonho, que se seguira imediatamente a esse como o esbater rápido de um filme, tinha sido mais intrigante. Lembrava‑se de que começara de um modo que não tinha nada de especial: perdera a carteira e procurara‑a por todos os cantos de uma grande casa que não conhecia. Encontrara o pai a descer a escada. O pai era um homem jovem e sadio e ele próprio tinha a sua idade actual, mas isso não parecera ter importância nenhuma no sonho. Com o pai estava o seu irmão Davey, que tinha morrido, mas no sonho não era como fora, um garoto de 10 anos quando morrera, mas sim um homem adulto que inexplicavelmente se transformara no tenente Schulter, de sobretudo, barba azulada, pequeno chapéu ridículo e tudo.
Explicara que perdera a carteira e que precisava de dinheiro para comprar umas coisas. O pai tinha‑se rido e continuara a descer a escada, enquanto dizia descuidadamente ao tenente Schulter, por cima do ombro: «Davey, dá alguma massa ao miúdo.» Schulter tirara uma jigajoga de plástico qualquer e estendera‑a a Damon: «Estão aí uns trocos», dissera, e seguira o pai. Damon olhara para o peculiar porta‑moedas, mas não encontrara nenhuma ranhura nem descobrira qualquer maneira de retirar as moedas que continha. Correra atrás do pai e de Schulter, e gritara que o porta‑moedas não continha dinheiro suficiente para o que ele queria comprar e que, de qualquer modo, não havia nenhuma maneira de o tirar. O pai e Schulter estavam a subir uma ladeira de neve acumulada ao lado da estrada e nenhum deles olhara para trás enquanto Damon tentava alcançá‑los, sempre a escorregar na neve gelada e com a voz a soar‑lhe desesperadamente aos próprios ouvidos.
Quase acordara então, mas o sono apoderara‑se de novo dele, precisamente quando tinha a sensação de estar a nadar das profundezas de qualquer elemento que lhe não era familiar para uma luz que brilhava muito acima, na superfície, mas afundara‑se de novo.
Depois disso devia ter dormido algum tempo calmamente, porque o sonho que se seguira não estava ligado como os outros dois tinham estado. Não se lembrava como o sonho começara, mas subitamente tivera consciência de que estava a sangrar, não de qualquer ferida, mas sim de quase todos os poros do seu corpo: da testa, do peito, da barriga, do pénis, dos joelhos, dos tornozelos e das solas dos pés. O sonho tinha parecido tão real que ao acordar ele passara imediatamente as mãos pela cabeça e pelo corpo, para estancar o desordenado fluxo de sangue. As mãos tinham ficado secas. Ficara alguns momentos hirto na cama, a escutar a plácida respiração de Sheila e admirado de a mulher conseguir continuar a dormir com tanta agitação tão perto dela.
Acredita em precognição? Precognição de quê?
Depois levantara‑se silenciosamente da cama, pois sabia que naquela noite não haveria mais sono para ele.
Ainda estava sentado às sete da manhã, quando o despertador tocara na mesa‑de‑cabeceira do lado de Sheila e a ouvira ir à casa de banho e o som da água a correr. Depois Sheila aparecera a bocejar, de roupão de banho azul, beijara‑lhe "o alto da cabeça e dissera:
‑ Bons dias. Estás levantado há muito tempo?
‑ Há apenas alguns minutos ‑ mentiu.
‑ Dormiste bem?
‑ Como um prego.
Olharam ambos para a máquina de atender chamadas ligada ao telefone, na secretária.
‑ Bem, acho que o melhor é vermos se alguém telefonou ‑ disse Sheila a olhá‑lo ansiosamente, e ele percebeu que ela desejava que respondesse que podia esperar para outra altura.
‑ Também acho melhor ‑ respondeu, o mais casualmente que pôde.
Sheila ligou a máquina. Passou a gravação da sua voz, depois ouviram o bip e a seguir uma voz de homem, uma voz que Damon ouvira só uma vez, mas que sabia nunca mais esqueceria: «Fala Zalovsky, Mrs. Damon. A mensagem é: diga ao seu marido que ando na cola dele.»
Sheila desligou a máquina.
‑ Maravilhosa invenção, não é? ‑ comentou. ‑ Bacon e ovos?
‑ Sim, bacon e ovos ‑ respondeu Damon.
- ESTOU a telefonar‑lhe cedo, para o apanhar antes de sair para o escritório ‑ disse Sheila a Oliver Gabrielsen, mais de uma semana depois de terem almoçado juntos. ‑ A sua mulher está aí?
‑ Foi comprar pão fresco para o pequeno‑almoço, graças a Deus. Também preciso de lhe falar. Tencionava telefonar‑lhe para a escola.
‑ Podemos almoçar juntos?
‑ Onde quiser.
‑ No mesmo lugar, à uma hora.
‑ Lá estarei ‑ prometeu Oliver.
Oliver esperava‑a no restaurante, a poucos quarteirões da escola, quando Sheila chegou. Levantou‑se, beijou‑a na face e depois recuou um passo e observou‑a com atenção.
‑ Bem sei, bem sei ‑ disse ela. ‑ Estou horrível.
‑ Não digamos horrível ‑ discordou Oliver, enquanto se sentavam um defronte do outro à pequena mesa. ‑ Digamos que não está no seu nível habitual.
‑ Tem sido uma semana difícil.
‑ Faço ideia. Também me calha alguma coisa no escritório.
‑ Como, por exemplo?
A criada aproximou‑se e anotou o que queriam. Quando ela se afastou, Sheila repetiu a pergunta: ‑ Como, por exemplo?
‑ Bem, ele senta‑se à secretária como uma alma penada. Mal cumprimenta, de manhã. Levou para o escritório o que parece um álbum fotográfico, tira‑o vezes sem conta da gaveta e fica horas seguidas, pelo menos é a impressão que dá, a olhar para uma página. Uma vez tive de ir à sua secretária com um memorando e ele tapou a página com a mão, como se eu estivesse a tentar roubar‑lhe um segredo militar. Faz alguma ideia do que ele estará a ver?
‑ Há séculos que não tenho álbuns fotográficos em casa ‑ respondeu Sheila.
‑ Quando não está a fazer isso ‑ prosseguiu Oliver‑, guarda o álbum na gaveta do fundo da secretária, a única que fecha à chave, e pega numa carta, num papel qualquer, e fica a olhá‑lo. Geralmente, ele e eu almoçamos juntos duas ou três vezes por semana. Há mais de uma semana ‑ fez na segunda‑feira ‑, limita‑se a levantar‑se por volta da uma hora e a sair sem dizer água vai. Acontece o mesmo no tocante a bebidas depois do trabalho. Temos sorte se dá as boas‑noites antes de sair. E durante o dia, quando lhe fazemos uma pergunta, leva que tempos para responder, ou parece não ouvir, e temos de a repetir antes de ele se sacudir e nos olhar como se o tivéssemos acordado de um sonho.
Sheila acenou com a cabeça. ‑ Acontece o mesmo em casa, comigo. Faz alguma ideia do motivo?
‑ Não
‑ Ele não disse nada a respeito de um telefonema?
‑ Não.
‑ O nome de Zalovsky diz‑lhe alguma coisa?
‑ Nunca o tinha ouvido.
‑ Bem, para que você possa ajudar, acho que é tempo de saber o que se passa ‑ disse Sheila. ‑ Começou tudo há dez noites, quando fui passar o fim‑de‑semana fora. Ele contou‑me que, cerca das quatro da manhã, quando estava a dormir, o telefone tocou. Alguém que disse chamar‑se Zalovsky ameaçou‑o, disse que era de Chicago, que ele tinha sido um mau rapaz ‑ foram essas as palavras que empregou: mau rapaz ‑ e que tinha agora de pagar por isso. Acrescentou que o esperava à esquina da nossa rua e que era uma questão de vida ou de morte.
‑ Jesus! ‑ exclamou Oliver, com o rosto pálido muito sério. ‑ Roger foi?
‑ Não. Desligou. Eu contei‑lhe, quando almoçámos juntos, a maneira estranha como ele se comportava, depois disso, e você falou‑me da arma.
‑ Bem, pelo menos ele ainda não arranjou a arma, que eu saiba. O impresso ainda está em cima da sua secretária. Esse tal Zalovsky voltou a telefonar?
‑ Uma vez, há quatro noites. Deixou uma mensagem na nossa máquina de atender.
‑ Não sabia que tinham uma máquina de atender ‑ confessou Oliver, surpreendido.
‑ Agora temos. ‑ Contou a Oliver de que constava a mensagem.
Estiveram calados enquanto a criada lhes servia a comida que tinham pedido. Quando ela se afastou, Oliver disse:
‑ Pode ter a certeza de que eu também agiria de maneira peculiar se recebesse chamadas dessas no meio da noite. Faz alguma ideia de quem poderá ser? E do motivo por que telefonará?
‑ Nenhuma, absolutamente. E se o Roger desconfia, não me diz. Foi por isso que quis falar consigo. Deve haver algum segredo que nunca se manifesta em público. ‑ Pegou num pãozinho, intrigada e infeliz. ‑ É um homem tão simpático! Aonde quer que vá, as pessoas parecem sempre satisfeitas por o ver, quando entra numa sala. Claro que se pode tratar de alguma mulher de quem nunca ouvi falar. Mesmo agora, apesar de já ter a idade que tem. Ele nunca demonstra que tem consciência disso, mas parece transpirar sexo. E essa é uma maneira segura de arranjar problemas. Senti‑o na primeira vez em que o vi, todo engessado numa cama de hospital. Aonde quer que vá, as senhoras ainda se juntam todas à sua volta. E, consciente ou não, ele não resistia a tirar proveito disso, de tempos a tempos. Claro que eu o soube sempre, e tenho a certeza de que você também...
Oliver tentou sorrir, mas conseguiu fazer apenas uma careta desagradável.
‑ Bem, pelo que eu vi, foram mais as ofertas que recusou do que as que aceitou.
‑ Pequeno elogio ‑ comentou Sheila. ‑ Seja como for, resignei‑me a isso. E nos últimos anos, pelo menos, não tem havido disso. Tentei convencê‑lo de que os telefonemas não significavam nada, de que era algum chalado que escolhera o seu nome na lista telefónica e telefonava, como uma brincadeira doentia. Mas não consigo convencê‑lo. Algures, no seu passado, aconteceu alguma coisa. Alguém quer que ele sofra e ele sabe‑o e, por isso, procede como procede... ‑ Começou a comer sem apetite. ‑ Pensei que talvez você soubesse alguma coisa que eu ignorasse, inimigos que nunca conheci ou em que nunca pensei, sequer.
Oliver mexeu‑se, pouco à vontade.
‑ Bem, ele chegou ao escritório depois do almoço
‑ tarde ‑, passara a maior parte da manhã fora, vinha pálido e tinha um penso na testa. Quando lhe perguntei o que fora, respondeu‑me secamente que era a bossa da sensatez. Desconfiei, naturalmente, que alguém o agredira, mas não era da minha conta...
Sheila acenou com a cabeça.
‑ Ele mentiu‑me a esse respeito. Disse que tinha batido com a cabeça no candeeiro da secretária e que Miss Walton lhe pusera o penso.
‑ Nem sequer temos pensos rápidos no escritório ‑ redarguiu Oliver. ‑ E quando ele voltou nessa tarde, atrasado, muito depois da hora do almoço, trazia um fato diferente do da manhã.
‑ Recebi‑o ontem. Quando fui à lavandaria buscar uma camisola minha, disseram‑me que tinham lá um casaco e umas calças que o meu marido lá deixara a semana passada. Ele costuma deixar sempre essas coisas para mim. Nem sequer fazia ideia de que ele sabia onde era a lavandaria. ‑ Olhou vivamente para Oliver. ‑ Mais alguma coisa?
Oliver hesitou.
‑ Não quero ser desleal com o Roger. Se ele decide não lhe dizer o que se passa na sua cabeça, não quero ser eu a dar‑lhe as notícias.
‑ De que se trata? ‑ perguntou Sheila, severamente. ‑ Se ele não pode ajudar‑se a si mesmo, nós somos os únicos que podemos ajudá‑lo.
Oliver suspirou.
‑ Acho que tem razão. Bem, há dois dias, quando ele saiu para almoçar, tive de ir buscar uma carta que recebêramos de um cliente do Oeste e a que ele me dissera que respondesse, Não costuma proceder assim. Quando uma carta lhe é dirigida, costuma responder‑lhe pessoalmente e sem perda de tempo, mas nos últimos dias... ‑ Oliver deixou a frase inacabada. ‑ Geralmente, mantém a secretária arrumadíssima, tudo no seu lugar. Mas desta vez estava numa grande desordem, com papéis por toda a parte, apontamentos de moradas, autorizações por assinar, tudo qual de baixo, qual de cima. Tive de procurar, para encontrar a carta em questão. Quando a encontrei e lhe peguei, debaixo dela estava um livro de apontamentos aberto. Reparara que ele estivera a olhar para o livro toda a manhã e depois o afastara, como que irritado. ‑ Calou‑se, cada vez menos à vontade. ‑ Francamente, Sheila, se ele pensasse que era alguma coisa que você deveria saber, ter‑lhe‑ia dito pessoalmente.
‑ Você está casado há mais de dez anos, Oliver, e ainda não sabe nada acerca do casamento! De que espécie de livro de apontamentos se tratava?
‑ Era o que ele traz sempre na algibeira ‑ respondeu Oliver, relutante. ‑ Coisas que não quer esquecer, ideias para artigos em revistas, moradas, coisas assim. Bem, estava aberto e não tinha nem moradas nem apontamentos nas páginas. ‑ Respirou fundo, como se quisesse arranjar forças para o que ia dizer. ‑ Numa página, Roger tinha escrito: Possíveis Inimigos ‑ Profissionais. Na outra: Possíveis Inimigos ‑ Pessoais. E debaixo de cada título havia alguns nomes.
‑ Quais eram os nomes?
‑ Só consegui ler um, do lado profissional: Machendorf. Deve lembrar‑se, o Roger depôs contra ele naquele processo de difamação.
‑ O Roger deporia contra a própria mãe se lhe parecesse ser esse o seu dever ‑ resmungou Sheila. ‑ E os outros nomes?
‑ Não consegui percebê‑los.
‑ Porquê?
‑ Estavam sujos de sangue.
As reverberações das últimas palavras de Oliver pareceram ecoar entre eles, perturbá‑los e reduzi‑los durante vários momentos ao silêncio.
Depois Sheila falou:
‑ Ou não há mais nada a dizer, ou há muito mais a dizer. Que lhe parece?
‑ Que há muito mais a dizer.
Sheila acenou afirmativamente e depois levantou a mão para o impedir de falar, pois vira uma mulher, a segurar pela mão uma garotinha, que se aproximava a sorrir da mesa deles.
‑ Mrs. Damon ‑ disse a mulher ‑, vejo que conhece os mesmos restaurantes que eu. Encanta‑me vê‑la. Phyllis ‑ puxou a mão da filha ‑, diz adeus a Mrs. Damon.
‑ Vi‑a toda a manhã ‑ respondeu a garota. ‑ Já lhe disse adeus.
Sheila riu‑se e disse a Oliver, que estava de pé, à espera de ser apresentado:
‑ Phyllis é uma das alunas da escola. Uma das melhores alunas, não és, Phyllis?
‑ A mãezinha acha que não ‑ respondeu a miúda, e deitou um olhar zangado à mãe.
‑ Phyllis, não sei onde foste buscar essa ideia ‑ protestou a mulher.
‑ Fui buscá‑la a si.
Sheila voltou a rir‑se e depois apresentou Oliver à mulher, cujo apelido era Gaines. Feitas as apresentações, Mrs. Gaines começou a afastar‑se, a puxar pela mão da filha, mas depois voltou para trás e disse:
‑ Tenho muita pena de não a ter visto na outra noite. Gostaria de lhe ter apresentado o meu marido.
‑ Onde? ‑ perguntou Sheila.
‑ No concerto. Vi lá Mr. Damon, no intervalo, e supus que a senhora tivesse ido retocar o rosto, ou qualquer coisa.
‑ Em que noite foi isso?
‑ Na sexta‑feira. Quando tocaram o Requiem de Mozart. Não foi maravilhoso?
‑ Maravilhoso ‑ repetiu Sheila.
‑ Diz adeus como deve ser a Mrs. Damon, Phyllis.
‑ Vejo‑a amanhã de manhã ‑ respondeu a garota.
‑ A Phyllis não gosta de excessivos formalismos ‑ comentou Sheila, a sorrir. ‑ Já o tinha notado.
Mrs. Gaines encolheu os ombros, desanimada.
‑ A lógica das crianças. Foi um prazer conhecê‑lo, Mr. Gabrielsen. ‑ Depois conduziu a garota para uma mesa do outro extremo do restaurante.
‑ Garota esperta ‑ observou Sheila. ‑ Só espero que não venha a parecer‑se com a mãe.
Após uma pausa, Oliver comentou:
‑ A maneira como você disse «maravilhoso» àquela senhora foi engraçada.
‑ Acha? Deve ter sido. Sabe, eu não fui ao concerto de sexta‑feira e o Roger também me não disse que ia. Telefonou a dizer que ia jantar e depois a um ensaio com um dos vossos clientes.
‑ Porque faria ele uma coisa dessas? Faz alguma ideia?
‑ Pode ter sido por causa de Mozart.
‑ Mas que teria isso a ver com a invenção de uma história para lhe dizer? Um concerto não é a mesma coisa do que um encontro com outra mulher.
‑ Este concerto específico ‑ disse Sheila, devagar ‑ pode ter sido como um encontro. O último trabalho de Mozart, o Requiem, foi encomendado pelo conde von WalseggStupach, para ser cantado numa missa em memória da sua defunta mulher. ‑ A voz de Sheila tornou‑se um murmúrio. ‑ Dies Irae. Lacrimosa. Outro género de encontro. Lembre‑se de que o Roger nasceu católico, embora pouco tenha feito a esse respeito desde então.
Oliver passou a mão pelo rosto, a cobrir as sobrancelhas brancas quase invisíveis e os olhos claros e perturbados.
‑ Que azar, encontrar aquela mulher aqui! Sheila encolheu os ombros.
‑ Ela mora nas imediações e a escola fica perto. Provavelmente, a preguiça não a deixou fazer o almoço. De resto, os encontros acabam geralmente por ser descobertos, de uma maneira ou de outra. Está‑me a fazer falta uma bebida. ‑ Fez sinal à criada. ‑ Vou beber um calvados ‑ disse a Oliver. ‑ Tive um namorado que combateu na Normandia, durante a guerra, e me deu a conhecer o calvados. Dizia que costumava encher o cantil com essa aguardente, pois tornava a guerra suportável. Como estava quase sempre a chover, não havia falta de água. Que toma você?
‑ O mesmo.
‑ Dois calvados ‑ disse Sheila à criada. Acabaram de beber o café enquanto esperavam que
a mulher lhes levasse os dois copos.
‑ À sua ‑ brindou Sheila, erguendo o copo, quando a criada se afastou. ‑ Se o Roger está a fazer listas dos seus inimigos, talvez fosse boa ideia se fizéssemos também uma dos nossos. Manchada ou não de sangue. ‑ Sorriu tristemente. ‑ Tenho um candidato. Na minha própria família. Um sobrinho, filho da minha irmã. Chama‑se Gian‑Luca Sciacca. Passou um mau bocado no Vietname e foi gravemente ferido. Quando voltou, tomava heroína. O pai pô‑lo fora de casa e o rapaz foi para uma clínica, a fim de perder o hábito. Esteve lá mais de um ano. Depois, um dia, apareceu à nossa porta. Jurou que já não se drogava, mas que estava sem dinheiro e precisava de um lugar onde ficar enquanto procurava emprego. Discuti o assunto com Roger, mas foi naquela altura em que estávamos a atravesssar um mau período, financeiramente, e não podíamos dar‑lhe o dinheiro para pagar um hotel. Roger sugeriu que o deixássemos ficar connosco até arranjar emprego. Foi um aborrecimento, porque o nosso quarto de hóspedes não tem uma verdadeira cama, tem apenas um sofá que o Damon utiliza quando tem que fazer em casa ou cartas para escrever. Gian‑Luca teve de dormir no sofá. Não houve novidade nas primeiras duas semanas, embora nunca fosse agradável tê‑lo sempre em casa. É um jovem macambúzio e desarrumado, descontente e com uma grande má vontade contra o mundo. Arranjou emprego numa empresa de fretes, mas foi despedido quando teve uma discussão com o capataz e lhe bateu com uma chave inglesa. ‑ Sheila abanou tristemente a cabeça, ao recordar a tensão que a presença de Gian‑Luca constituíra para o seu casamento. ‑ Depois disso, deixou de procurar emprego e creio que começou a desenrascar‑se nas ruas. Desconfiei de que andava a injectar outra vez heroína e suponho que o Roger desconfiou do mesmo. A seguir, começaram a desaparecer coisas do apartamento ‑ uma cafeteira de prata, alguma porcelana antiga, uma bandeja de prata que Mr. Gray nos dera como presente de casamento, uma comprida faca de trinchar com cabo de osso... e outras coisas.
‑ Suspirou. ‑ Durante algum tempo, Roger não se apercebeu de que estavam a desaparecer coisas. Os problemas eram muitos e eu não tinha coragem de lhe dizer que o meu sobrinho nos estava a roubar desalmadamente para a sua dose diária.
‑ Pobre Sheila ‑ murmurou Oliver, suavemente.
‑ Pobres todos nós, incluindo o Gian‑Luca.
‑ Que fez Roger quando descobriu?
‑ Foi uma noite memorável ‑ respondeu Sheila, a tentar falar em tom ligeiro, mas sem o conseguir. ‑ Houve uma discussão terrível, com Gian‑Luca a jurar pela saúde da mãe que já não se drogava e que nunca roubara nada na sua vida. Roger disse‑lhe que saísse imediatamente, pois de contrário chamaria a Polícia. Gian‑Luca recusou‑se a sair. Deitou‑se no sofá da sala, cruzou os braços e disse que dali não se mexeria. Roger não disse nada. Limitou‑se a aproximar‑se do sofá e a levantar Gian‑Luca em peso. O rapaz estava tão magro e fraco que uma criança lhe poderia pegar, e o Roger é um dos homens mais fortes que conheço e terrível quando se zanga. «Abre a porta», ordenou‑me, com o rapaz a debater‑se‑lhe nos braços. Eu abri a porta e Roger levou‑o para o patamar e atirou‑o pela escada abaixo. Gian‑Luca não se magoou, mas ficou furioso. Caiu cerca de meio lanço de degraus antes de conseguir levantar‑se. Depois cerrou o punho a Roger e gritou‑lhe: «Há‑de pagar‑me isto, seu WASP (*) filho da puta! Você e a porca gorda da sua mulher!» A habitual conversa à roda da mesa do jantar da família.
‑ Sorriu tristemente. ‑ Roger começou a descer a escada, comigo a agarrá‑lo para evitar que matasse o rapaz, e Gian‑Luca assustou‑se e fugiu. E pronto.
‑ Como acabou?
‑ Como eu disse. Nunca mais o voltámos a ver. Mas a mãe dele telefonou‑me passados alguns meses, a chorar, para me dizer que Gian‑Luca tinha sido preso quando ameaçava uma senhora no Bronx com uma grande faca de trinchar, enquanto lhe tentava tirar a mala. A senhora,
(*) Abreviatura de White anglo‑saxon protestant (Protestante branco anglo‑saxónico). Usa‑se geralmente com referência a qualquer cidadão branco americano sem qualquer etnia específica ou identidade religiosa. (N. da T.)
porém, era uma mulher polícia e ele foi condenado a três anos de prisão. Suponho que a faca era a que nos tirara da cozinha. De qualquer modo, os três anos terminaram há quatro meses e eu creio que ele anda de novo à solta, a encher o nome da família de glória. Acho que merece um lugar na lista pessoal.
‑ Também me parece ‑ concordou Oliver. ‑ Alguma vez disse ao Roger que ele tinha sido preso?
‑ Não. Fiz mal, suponho, mas não queria ressuscitar antigas e desagradáveis recordações. Vou dizer‑lhe esta noite. Também lhe vou dizer que desligue a máquina de atender chamadas e marque um encontro com Zalovsky, da próxima vez que ele telefonar. Roger é um homem corajoso e saberá enfrentar as coisas se souber exactamente de que se trata. Como tem sido agora, está num vazio. Naturalmente, vê ameaças em todos os lados, não sabe para que lado se voltar e está a ser destruído. Finjo que não reparo, mas ele debate‑se, a dormir, como se lutasse com sombras nos sonhos, e passa levantado quase metade de todas as noites.
‑ Começa a notar‑se no seu aspecto ‑ observou Oliver. ‑ Nunca o vi tão tenso e esgotado. E o trabalho vai‑se amontoando sem que ele lhe toque. Eu tento fazer o mais que posso, mas sou soldado raso e não oficial e quando há necessidade de tomar uma verdadeira decisão é ele que tem de a tomar. No entanto... ‑ pareceu preocupado. ‑ Não me agrada a ideia de ele correr o tipo de risco a que você aludiu, de se encontrar sozinho com quem quer que seja o indivíduo, na escuridão de algum lugar deserto...
‑ Não irá sozinho ‑ garantiu Sheila. ‑ Eu irei com ele.
‑ Sheila ‑ protestou Oliver ‑, o indivíduo pode ser um assassino.
‑ Nesse caso, ficaremos a sabê‑lo. Mas diga lá. quem tem você para acrescentar à galeria dos malandros?
‑ Receio não ter nada muito útil... Também lá poria o Machendorf. É bruto, foi criado como um rafeiro e se é possível julgar alguma coisa pelo modo como um homem escreve, há muitíssima violência nele. Tirando isso... ‑ Franziu os lábios, a reflectir, e pareceu um garoto pensativo.
‑ Tirando isso, o único que me vem à cabeça é Gillespie.
‑ Isso é uma surpresa. Roger tem‑no em alta conta.
‑ Tinha em alta conta. Depois do seu primeiro livro, que foi uma beleza. Depois ele perdeu a tramontana. Maníaco depressivo, paranóico, esquizofrénico, tudo e mais alguma coisa. Quando levou o segundo livro, Roger pensou que se tratava de uma maluqueira qualquer. Quis que eu o lesse também, antes de falar com o tipo. Era pura parvoíce, 300 páginas de tolices sem qualquer sentido. E quando foi ao escritório para falar connosco a respeito do livro, ele também não fazia qualquer sentido. Suponho que estava num dos seus períodos de mania, ria‑se constantemente e andava pelo escritório a agitar os braços e a gritar que o livro era o que de melhor se fizera depois de Joyce e que tinha a certeza de que ganharia o Prémio Nobel com ele. Depois, sem nos dar tempo a dizer fosse o que fosse, começou a contar‑nos que andava a ser perseguido pelo FBI e pela CIA, e pelos Russos e pelos Judeus, porque sabia segredos atómicos que lhe queriam arrancar pela tortura. Pessoas davam informações contra ele, tinha muitos amigos de duas caras implicados numa conjura gigantesca contra ele. Sabia quem eram. O seu Dia de Juízo havia de chegar. Mas entretanto tinham virado a mulher contra ele e ela tentara interná‑lo num manicómio, e como não conseguira deixara‑o e levara os dois filhos com ela. Foi um destes dias! Uf!
‑ Em que mundo vivemos! ‑ comentou Sheila. ‑ Que espécie somos! Temos dias como esse, assistimos a cenas como a de Roger a atirar pela escada abaixo um rapaz doente e fraco, depois tomamos banho, saímos para jantar, vamos a um concerto, ouvimos Beethoven, apreciamos uma peça, compramos um jornal a caminho de casa, pomos o jornal de parte para ler ao pequeno‑almoço depois de olharmos para os títulos que gritam uma chacina na índia, um ataque aéreo no Líbano, a queda de um avião de que resultaram duzentos mortos... Fazemos amor, ressonamos, preocupamo‑nos com o nosso saldo bancário, esquecemo‑nos de nos recensear para votarmos, preparamo‑nos para umas férias... ‑ Fez uma careta, como se recordasse sem prazer todas as suas férias, e depois abanou a cabeça e perguntou: ‑ Que fizeram a esse pobre louco e ao seu manuscrito?
‑ Que teria você feito?
‑ Exactamente o que você e o Roger fizeram ‑ respondeu Sheila, fatigada ‑, fosse lá o que fosse.
‑ Tentámos acalmá‑lo. Dissemos‑lhe que leríamos o seu livro, mas que precisaria de um certo trabalho antes de o mostrarmos ao editor, que não compreendêramos algumas passagens...‑Oliver pegou no cálice de calvados, ergueu‑o para a luz e fitou‑o, como se, ali na pálida essência dourada da maçã, o primeiro fruto, pudesse encontrar qualquer solução para o dilema de Gillespie... ‑ Ele aceitou o que dissemos jovialmente. Chamou‑nos amigos tristemente presos à terra e disse que era natural que não compreendêssemos o seu livro, que tinha sido escrito para almas melhores e mais sensitivas que habitariam o mundo em séculos vindouros. Na realidade, afirmou, encantava‑o que não pudéssemos compreender o livro, pois se o tivéssemos compreendido saberia que falhara; nós só o compreenderíamos quando tivéssemos morrido muitas vezes e regressado muitas vezes em novas encarnações. Tudo isto intercalado por grandes gargalhadas. «Estou a honrá‑los», disse. «Vocês são os mensageiros da minha apoteose. Entreguem o livro a Charles Bernard, no escritório do meu editor, ele tem um toque de inspiração divina e vocês serão recordados nos anais da literatura durante toda a posteridade.»
Depois declamou o soneto todo... você sabe, aquele que tem um verso que diz: Nem bronze ou pedra sobreviverão a este forte poema...
‑ Roger não me contou uma palavra disso.
‑ Ele nunca contou nada a ninguém e fez‑me jurar que também guardaria silêncio absoluto. Não queria agravar os problemas do homem espalhando a notícia de que ele perdera por completo o juízo. É esta a primeira vez que menciono o assunto a alguém.
‑ Que disse Roger ao próprio Gillespie?
‑ Que lhe podia ele dizer? ‑ Oliver encolheu os ombros. ‑ Disse que entregaria pessoalmente o manuscrito na manhã seguinte. Depois, com o maior tacto possível, sugeriu que talvez fosse útil Gillespie ter uma pequena conversa com um psiquiatra. Gillespie olhou‑o, desconfiado.
Os psiquiatras estavam conluiados com eles, declarou, escavavam o cérebro dos escritores e só deixavam o crânio vazio. Depois olhou para um relógio que trazia no pulso esquerdo, em seguida para outro que usava no pulso direito e por fim tirou um terceiro da algibeira e consultou‑o também. Murmurou, como se nos estivesse a dizer um grande segredo: «O tempo de Washington, o tempo de Moscovo e o tempo de Jerusalém», confidenciou‑nos com uma piscadela de olho. «São horas de ir andando», acrescentou e, mais a dançar do que a andar, saiu do escritório.
‑ Roger entregou o livro a Mr. Bernard na manhã seguinte? ‑ perguntou Sheila.
‑ Entregou. Ele cumpre sempre as suas promessas, até mesmo a loucos varridos. Bernard perguntou‑lhe o que pensava do livro e Roger respondeu: «Não lhe dou nenhuma opinião. Leia‑o.» Passados dois dias, Bernard telefonou. Disse que o livro era impenetrável ‑ foi essa a palavra que empregou: impenetrável. É um homem decente e podia ter dito muito pior. Na manhã seguinte, recebemos o livro devolvido por mensageiro especial. Não fazíamos nenhuma ideia de onde Gillespie estava a viver, ele dissera‑nos que tinha uma série de casas seguras e que nunca dormia na mesma cama duas noites seguidas. Só nos restava esperar. Por fim, Gillespie voltou ao escritório. Estava um dia de chuva e ele apresentava‑se sem sobretudo nem chapéu e dava a impressão de ter sido içado do fundo do mar. Disse que vinha buscar o seu adiantamento. Quando Roger o informou de que não havia nenhum adiantamento e que o manuscrito tinha sido devolvido, começou por aceitar a situação filosoficamente. «Eles têm olhos», disse, «mas não vêem.» Depois mostrou‑se desconfiado. Bernard era um amigo falso, tinha‑o julgado mal. E também tinha julgado mal Roger. A cabala, afirmou, tinha muitas raízes ruins, sempre a alastrar, mas o Dia de Juízo chegaria e a árvore seria derrubada. O seu vocabulário tornara‑se de súbito quase bíblico. Meteu o sobrescrito numa velha caixa de papelão e saiu. Chovia ainda mais do que quando chegara e se percorreu dois quarteirões debaixo daquele dilúvio o seu manuscrito deve ter ficado transformado numa polpa encharcada e ilegível, dentro da caixa de cartão. ‑ Oliver acabou de beber o seu calvados. ‑ Outro? ‑ perguntou.
‑ Não, obrigada. Esse é o fim da saga de Mr. Gillespie?
‑ Não. Cerca de uma semana depois voltou ao escritório e pediu outra vez o seu adiantamento. Não se barbeara desde a última visita e devia ter andado a dormir em bancos de jardins e estalagens de indigentes, pois as suas roupas estavam imundas e rotas. Felizmente, Roger estava ausente nessa altura e eu disse que não sabia de nada a respeito do adiantamento. «Diga a Roger Damon», ordenou‑me Gillespie, «que será melhor estar cá da próxima vez que eu vier.» Perguntei‑lhe quando seria isso. «Quando o livro me mandar», respondeu, e saiu. Mas não foi para casa, onde quer que fosse a sua casa naquele momento. Foi ao escritório de Bernard e perguntou‑lhe pelo adiantamento, e quando Bernard lhe respondeu que não haveria nenhum adiantamento empunhou uma pistola e começou a apontá‑la ameaçadoramente, enquanto gritava pedaços de poesia de toda a espécie e citava passagens do seu livro, segundo Bernard me disse. Por sorte, uma secretária viu o que se passava e chamou a Polícia. Quando os agentes chegaram, Gillespie riu‑se deles e atirou‑lhes a pistola. Era uma pistola de brincar. Levaram‑no para o Bellevue, a fim de o submeterem a exame psiquiátrico, mas ele mostrou‑se o mais lúcido, convincente e modesto possível e eles soltaram‑no ao fim de poucos dias. Nunca mais o vimos nem ouvimos falar dele.
Sheila fechou os olhos, pesarosa.
‑ Detesto pensar onde Mr. Gillespie se encontra neste momento e o que está a fazer.
‑ Também eu ‑ confessou Oliver, tristemente. ‑ Mas nós não podemos fazer nada. A não ser... ‑ fez uma pausa ‑ ...a não ser pensar que da próxima vez que ele vá ao escritório poderá não ser de brincar a pistola que leVe na algibeira.
QUANDO voltou à escola, depois do almoço, Sheila encontrou um telegrama à sua espera. Era do médico da mãe, em Vermont, a informá‑la de que ela estava em estado grave. Tivera uma trombose e encontrava‑se no hospital, em Burlington.
Sheila telefonou para o escritório do marido, mas Miss Walton disse‑lhe que Mr. Damon ainda não voltara do almoço; Mr. Gabrielsen, porém, vinha a entrar naquele momento. Desejava falar com ele?
‑ Sim ‑ respondeu Sheila.
Depois, quando Oliver atendeu, contou‑lhe do telegrama e pediu‑lhe que dissesse a Roger que telefonasse para o apartamento, para onde ela ia a fim de fazer a mala, antes de partir para Vermont num dos aviões da Allegheny Airlines. Se ele não chegasse antes de ela partir para o aeroporto, deixar‑lhe‑ia um bilhete em casa.
‑ Oliver ‑ acrescentou, em voz perturbada ‑, não quero abusar da sua amizade, mas custa‑me deixar Roger sozinho numa altura destas, tanto mais que não sei quanto tempo estarei ausente. Acha que poderia recebê‑lo em sua casa durante alguns dias? Não o quero sozinho no apartamento, sobretudo à noite, e sei que ele se recusará a ir para um hotel.
‑ Com certeza, Sheila, eu tentarei. Mas não lhe posso garantir nada. Hoje em dia, ele nem parece ouvir o que lhe digo, quando falo com ele. Mas farei o que estiver ao meu alcance. Pedir‑lhe‑ei que fique connosco
ou oferecer‑me‑ei para ficar eu com ele até você voltar. O que quiser, Sheila.
‑ É um querido amigo, Oliver.
‑ Espero que corra tudo bem em Vermont.
‑ Obrigada.
Desligou, meteu‑se num táxi para o apartamento e a primeira coisa que fez quando chegou foi pôr a funcionar a máquina e começou a meter coisas numa mala. Esperou enquanto pôde. Por fim, escreveu um bilhete apressado a Roger e deixou‑o na mesinha defronte da porta, no vestíbulo. Correu pela escada abaixo e fez sinal a um táxi, para a levar ao aeroporto.
Damon almoçou sozinho num restaurante onde não era conhecido. Naquela tarde, não lhe apetecia ver ninguém com quem tivesse de falar. Tivera outro sonho intrigante na noite anterior e queria tentar compreender o seu significado sem que o incomodassem. No sonho, estava numa grande festa com Sheila, rodeado por muita gente, toda ela desconhecida. O jantar era volante e as pessoas andavam de um lado para o outro, com pratos de comida. Esta era complicada e rica, mas muito boa. De súbito, chegara o pai dele. Mas não era o homem rosado e sorridente do sonho repetitivo de Damon, nem o homem jovem e despreocupado que dissera ao seu irmão Davey, que não sabia como se transformara no tenente Schulter: «Dá‑lhe algum dinheiro, Davey.» Agora o seu pai tinha uma idade mais ou menos compreendida entre o homem novo desse sonho e o homem mais velho do outro. Emagrecera, tinha uma expressão irritada e sarcástica no rosto, e Damon ficou surpreendido ao vê‑lo, porque o seu pai devia estar na cadeia. Damon não sabia por que motivo estivera o pai na cadeia nem como conseguira de lá sair, e por isso perguntou:
‑ Como é que está cá fora, pai?
‑ Ontem soltaram 120 presos ‑ respondeu o pai, enquanto olhava desagradavelmente para os outros convidados.
Depois aproximou‑se de Sheila e perguntou‑lhe:
‑ Ainda és minha mulher ou já não és?
‑ Claro que ainda sou tua mulher ‑ respondeu Sheila.
‑ Então porque estás a comer toda esta jana requintada? ‑ O pai tirara‑lhe o prato da mão e inclinara‑o, para que a maior parte da comida caísse, numa pasta grossa, no chão.
Talvez o sonho tivesse continuado, mas Damon não se lembrava de mais nada.
Sentado, solitário e agitado, no restaurante barulhento, continuava a tentar compreender o que o sonho significava. O seu pai nunca cometera crime nenhum; tinha sido sempre muito amigo, até mesmo excessivamente amigo, do seu filho sobrevivente; morrera antes de Damon ter conhecido Sheila; nunca tentara apropriar‑se de nenhuma das namoradas do filho, e fora abençoado com as maneiras mais delicadas e corteses que se pudesse imaginar. Seria possível que depois da morte, com a corrupção do corpo, se verificasse também uma corrupção da alma? Ou estaria ele, Roger Damon, a modificar subconscientemente, enquanto dormia, a imagem que conservava do pai, a transformar o homem terno e amorável que conhecera numa figura carrancuda e desagradável, a fim de rejeitar a tentação de se juntar a esse fantasma outrora sorridente, que parecia chamá‑lo?
E que significaria o número 120?
Fechara os olhos e tapara‑os com as mãos, inclinado para a mesa, a fim de se isolar dos outros frequentadores do restaurante. Estava tão profundamente mergulhado em recordações e conjecturas que quase se sobressaltou quando ouviu a voz da criada perguntar:
‑ O senhor deseja mais alguma coisa?
‑ Não, obrigado. A conta, por favor.
Pagou a refeição, deixou uma gorjeta e pediu que lhe trocassem um dólar, pois queria fazer um telefonema e não desejava fazê‑lo no escritório, para Oliver não ouvir nenhuma parte da conversa. O telefonema era para o tenente Schulter. Tentara comunicar com o tenente todos os dias, desde a manhã em que ele e Sheila tinham encontrado a mensagem telefónica de Zalovsky, mas todas as vezes que telefonara o homem da Brigada de Homicídios que o atendera dera‑lhe a mesma resposta:
‑ O tenente Schulter não está disponível.
‑ Sabe quando estará disponível?
‑ Não, senhor. Quer dizer o seu nome?
‑ Não, obrigado. Voltarei a telefonar.
Encontrou um bar, entrou, pediu um uísque para demonstrar as suas honestas intenções, deixou o copo no balcão e dirigiu‑se para o fundo da sala, onde havia uma cabina telefónica.
Desta vez teve sorte. Ligaram‑no imediatamente ao detective, cuja voz áspera pareceu arranhar o auscultador:
‑ Fala o tenente Schulter.
‑ Tenente, telefonei há alguns dias, mas...
‑ Estive fora da cidade, a tratar de um caso. Alguma novidade, do seu lado?
Damon contou‑lhe da mensagem telefónica.
‑ Ah! Há quatro dias, disse?
‑ Sim.
‑ Mais nada, desde então?
‑ Não. Nem uma palavra.
‑ Provavelmente está a ficar cansado do jogo ‑ comentou Schulter. ‑ Já o manteve acordado noites suficientes e agora, se calhar, anda a telefonar a cinco ou seis outras pessoas. No seu lugar não me preocuparia muito. ‑ Damon percebeu que Schulter estava a ficar enfadado com o caso. ‑ Não se pode fazer grande coisa, por enquanto. Se quiser, pode ir à esquadra local e apresentar queixa contra pessoa desconhecida, por telefonemas obscenos e ameaçadores, embora eu duvide que o possam ajudar mais do que eu. Devem ser feitas umas dez mil chamadas dessas por noite, em Nova Iorque. Já acabou de elaborar a sua lista?
‑ Estou a trabalhar nela ‑ respondeu Damon, a sentir‑se como um aluno atrasado, que não fizera os trabalhos de casa e tinha sido descoberto na aula.
‑ Se acontecer alguma coisa, telefone‑me ‑ disse o tenente. ‑ A propósito, investigaram aquele tipo, McVane. Nada, por esse lado. Os vizinhos dizem que não sai de casa à noite há mais de um ano e não foi encontrada na sua residência nenhuma faca, nem sequer com que se pudesse cortar um bife.
‑ Obrigado, tenente ‑ agradeceu Damon, mas o detective já tinha desligado.
Voltou ao balcão, bebeu metade do uísque, pagou‑o e deixou uma grande gorjeta para o barman. «Quem sabe», pensou sardonicamente, «quando um barman se pode tornar nosso inimigo?»
Mas não lhe apetecia voltar ainda para o escritório. Sabia que tinha sido desagradável nos últimos dias, que fora brusco com Miss Walton e erguera uma invisível parede de silêncio entre a sua secretária e a de Oliver Gabrielsen. Além disso, ralhara a Miss Walton por lhe ter passado uma chamada telefónica de um homem que sabia que ele detestava e tentava evitar, e para rematar a descompostura dissera‑lhe que só aceitava telefonemas da mulher e de Mr. Schulter.
A atmosfera do escritório reflectia tudo isso. Quando Oliver falava com Miss Walton era em voz baixa, e quando ele transpunha a porta do escritório, mesmo que nenhum deles estivesse, no momento, a falar, o silêncio parecia tornar‑se mais intenso.
Parado ao balcão a olhar para o resto do uísque, que não beberia, sentiu‑se envergonhado consigo mesmo por descarregar os seus problemas nos ombros dos seus amigos leais, que não podiam compreender nada. Acudiu‑lhe uma ideia e a sua boa disposição voltou: compraria um presente para Miss Walton e outro para Oliver e levar‑lhos‑ia como uma oferta de paz, um reconhecimento de culpa e uma promessa de comportamento mais camarada no futuro. Comprar para os outros, tentar encontrar o presente exacto que daria prazer aos fiéis, era um antídoto da autocompaixão. Por pensar em fiéis, também compraria qualquer coisa para Sheila.
As ruas, depois de sair do bar, pareceram‑lhe mais luminosas do que antes, e sentiu‑se melhor do que em qualquer momento desde aquela noite de sábado em que atendera o telefone da mesa‑de‑cabeceira.
Primeiro, Miss Walton. Pobre mulher, era tão gorda que não arranjava nada vaporoso e feminino que a tornasse mais atraente, e a única jóia que a vira usar era uma pequena cruz de ouro que trazia sempre ao pescoço, suspensa de um fio delgado. Imaginou que o Saks devia ter qualquer coisa capaz de lhe agradar. Teria de encontrar uma caixeira compreensiva. Enquanto se dirigia para o armazém, deu um estalo com os dedos. Já sabia o que procuraria. Miss Walton tinha sempre frio no escritório. Tanto ele como Oliver gostavam do máximo de ar puro possível, e quando trabalhavam mantinham a temperatura o mais baixa que podiam sem gelar. Miss Walton usava sempre uma grossa camisola de lã no trabalho, como uma queixa muda quanto aos gostos dos seus patrões no clima de Nova Iorque. Também a usava no Verão, com uma segunda camisola por baixo, quando o ar condicionado estava ligado. Era a mesma desde que Damon se lembrava, um casaco de lã feio, castanho‑escuro, que ela própria tricotara. Como ao longo dos anos de trabalho no escritório se fora tornando cada vez mais gorda, devia ter tricotado muitos para neles acomodar o volume crescente, mas eram sempre do mesmo estilo e do mesmo feio castanho‑escuro. Damon resolveu comprar‑lhe um casaco de lã, visto parecer ser esse o género de que ela gostava, mas de uma cor mais alegre.
Estugou o passo, satisfeito consigo próprio. A velha cabeça estava a funcionar, pensou. Em dez dias, era a primeira decisão que tomava não relacionada com o Problema, como agora pensava no caso, com maiúscula e tudo.
Reinava no armazém uma espécie de agradável zumbido feminino. Mulheres faziam compras, tranquilamente. Era agradavelmente diferente da nota aguda dos restaurantes onde as mulheres se congregavam para almoçar, restaurantes que ele próprio evitava o mais possível. Encontrou a seção onde vendiam camisolas de senhora. Quando a simpática e jovem caixeira negra que o atendeu lhe perguntou: «De que tamanho, senhor?», depois de ele ter descrito o que procurava, Damon ficou encravado. Sabia o número dos casacos que Sheila usava, e ela era forte e o 42 servia‑lhe. Tanto quanto podia calcular, Miss Walton tinha quase o dobro do volume da mulher, embora não fosse tão alta. Não percebia grande coisa de roupas de mulheres, mas sabia que não podia pedir o tamanho 84!
‑ Bem, não estou bem certo... ‑ Colocou as mãos defronte do peito, a fazer um semicírculo que, pelos seus cálculos, devia ser o espaço que o seio de Miss Walton ocupava. ‑ Diria que ela é mais ou menos deste tamanho, nestas imediações.
A caixeira riu‑se, mostrando os dentes brilhantes, e ele riu‑se também. Comprar e vender era um empreendimento divertido, um elo amigável entre raças.
‑ Lamento, mas o senhor não encontrará nada que se aproxime disso aqui. Aconselho‑o a experimentar a secção de homens.
‑ Obrigado ‑ agradeceu, e dirigiu‑se para os elevadores, a pensar: «Quem quer que contrate o pessoal para o armazém merece ser felicitado.»
Encontrou um casaco de malha de casimira azul‑claro demasiado grande para ele, quando o experimentou, mas comprou‑o porque o caixeiro lhe garantiu que, se não servisse à senhora, ela poderia ir lá com ele e trocá‑lo. Achou o preço desmedidamente elevado, mas não estava com disposição para se preocupar com dinheiro. De qualquer modo, pagaria com um cartão de crédito Saks e a conta só seria apresentada no fim do mês, o que adiaria a dor.
Já que estava na secção masculina, achou que podia aproveitar e procurar qualquer coisa para Oliver Gabrielsen. Sabia o número do sócio, porque Sheila lhe comprara uma camisola para esquiar, no Natal.
Passeou, feliz, ao longo das coxias e dos cabides de fatos e casacos, a saborear o pequeno feriado para fazer compras e compreendendo finalmente como as mulheres podiam passar tardes inteiras entregues a semelhante actividade que, percebia‑o agora, se podia transformar num vício terrível.
Comprou um casaco de flanela azul com botões de latão para Oliver e pediu que o embrulhassem também como presente.
‑ Mais nada, senhor? ‑ perguntou o caixeiro. ‑ Não deseja nada para si?
Damon hesitou um momento.
‑ Porque não? ‑ Estava toda a gente a ter grandes ideias, naquela tarde! ‑ Que sugere?
‑ Temos uma nova colecção de casacos de bombazina. Estão nas nossas montras, esta semana. Duram quase eternamente e são muito úteis, sobretudo para quem passa algum tempo no campo.
‑ Sim, compreendo. ‑ Outra ideia esplêndida. ‑ Espero viver no campo em tempo completo, brevemente. ‑ De súbito, a ideia de que poderia reformar‑se e viver a admirar o Sound, em Connecticut, que até então tinha sido apenas uma fantasia ociosa para um futuro vago, transformou‑se em realidade.
‑ Se quiser fazer o favor de me seguir ‑ disse o homem, e conduziu‑o a uma armação comprida, da qual os casacos estavam suspensos. ‑ Que tamanho? Talvez 46?
‑ Lisonjeia‑me. ‑ A tarde estava a tornar‑se cada vez melhor. ‑ O 54 estará mais perto da realidade.
O caixeiro pareceu duvidar, mas tirou um casaco de bombazina de cor natural.
‑ Vamos experimentar este, quanto ao tamanho, está de acordo?
Assentava perfeitamente.
‑ É muito mais encorpado do que parece ‑ comentou o homem.
‑ Ai de mim! Queira fazer o favor de mandar entregar ‑ pediu, e deu ao homem o endereço. ‑ A entrega terá de ser feita de manhã, quando a empregada está em casa. Avisá‑la‑ei para o esperar.
Tirou de novo o cartão de crédito da carteira. O casaco tinha sido mais caro do que qualquer fato completo que jamais comprara. Mas a verdade é que não comprava um fato havia seis anos. «A inflação», pensou, despreocupado. Era sorrir e aguentar. Reparou que a carteira estava velha e estalada. Já nem se lembrava havia quanto tempo a tinha.
‑ Onde é a secção de artigos de cabedal, por favor?
‑ Em baixo ‑ respondeu o caixeiro.
A assobiar baixinho, Damon dirigiu‑se à secção de artigos de cabedal e comprou uma carteira de pele de porco. A inflação, verificou, também não poupara os artigos de cabedal. Não importava.
‑ Embrulho para presente? ‑ perguntou o empregado.
‑ Não, é para mim. Meto‑a apenas na algibeira, se não se importa.
Pôs a velha carteira em cima do tampo da vitrina onde as carteiras estavam expostas e despejou‑a ‑ cartões de crédito, carta de condução, cartão de segurança social, contas, prova da sua existência e de que era um cidadão no país da sua escolha... Arrumou tudo cuidadosamente na carteira nova, que depois meteu na algibeira do peito. Ao voltar‑se para sair, o caixeiro perguntou‑lhe:
‑ O senhor desculpe, mas que quer que faça a esta? ‑ Mostrou a carteira velha e estalada, a pegar‑lhe como se lhe estivesse a sujar os dedos.
‑ Deite‑a fora ‑ respondeu Damon, impante. Depois lembrou‑se de Sheila. Não se podia esquecer do comandante naquela fiesta de auto‑apaparicamento. Ela ficaria furiosa se soubesse que, às vezes, a tratava mentalmente por «comandante». Estava firmemente convencida que na casa de ambos todas as decisões eram tomadas por consentimento mútuo. O que não era verdade.
‑ A propósito ‑ disse ao caixeiro ‑, sabe dizer‑me onde fica a secção das peles?
O homem informou‑o e ele meteu‑se de novo no elevador, a transportar sem esforço as caixas com a camisola de Miss Walton e o casaco de Oliver. Roger Damon, portador de paz entre as nações, distribuidor de ouro, boa vontade e harmonia, a nascer no mundo do Saks.
A caixeira que o cumprimentou na secção de peles era uma interessante senhora de cabelo grisalho muito bem penteado, a qual explicou que, em virtude de ser Primavera, os stocks estavam desfalcados, mas que mesmo assim teria prazer em mostrar ao cavalheiro o que havia.
A estação do ano não importava a Damon. Sheila ainda por cá estaria muitos invernos. Vira, na secção de revista do Sunday Times, um anúncio de peles para desportos. Sheila podia suportar um pouco de desporto, parecia‑lhe.
‑ Está aqui uma coisa de marta de criação ‑ disse‑lhe a elegante senhora.
Era um casaco claro à três quartos, com cinto e uma gola em xaile. Damon não conseguia imaginar a que tipo de desporto poderia qualquer mulher dedicar‑se com um casaco daqueles, mas não perguntou. Também não perguntou a que desporto a marta se entregara no rancho onde fora criada. O que lhe interessava é que não se tratava de uma espécie em perigo e, por conseguinte, os seus princípios lógicos não estavam a ser violados.
Achou que a elegante senhora era mais ou menos da idade, do tamanho e da figura de Sheila.
‑ Importa‑se de o vestir, para eu ver como lhe fica? ‑ perguntou Damon. ‑ A minha mulher é mais ou menos
da sua altura e, se bem me recordo ‑ tentou sorrir sem parecer atrevido ‑, tem mais ou menos a mesma... enfim, a mesma constituição. ‑ Depois, para conquistar a eterna boa vontade da secção de peles do Saks, acrescentou: ‑ Ela é bela. ‑ Não acrescentou que enquanto a empregada tinha cabelo grisalho‑prateado o cabelo da sua mulher era preto reluzente e faria um contraste mais acentuado com a cor do casaco.
O casaco ficava maravilhosamente na senhora grisalha, que andava para trás e para diante a passá‑lo, puxava a gola de xaile para cima, a fim de cobrir as orelhas, enfiava as mãos nas algibeiras fundas e abria‑o todo, como as asas de uma borboleta, para mostrar o forro de seda furtacores.
‑ Fico com ele ‑ disse Damon. A mulher olhou‑o vivamente.
‑ Não deseja ver outros casacos? E o preço?
‑ Não ‑ respondeu Damon, e acrescentou, estupidamente: ‑ Estou com pressa.
‑ Muito bem.
Não era tarde para regateios. Juntara‑se finalmente à tribo de americanos mais civicamente orientada, a dos consumidores insaciáveis. Sentia‑se a pairar no ar. Compra, compra, compra e liberta‑te cantando de todos os teus problemas...
Despreocupadamente, com um floreado, assinou o talão do seu cartão de crédito, esse tóteme da tribo, sem olhar para o preço, e combinou com a empregada que ela mandaria entregar o casaco entre as nove e o meio‑dia da manhã seguinte.
Ao sair pela porta do rés‑do‑chão do armazém, pensou momentaneamente em ir ao escritório e entregar os presentes a Miss Walton e a Oliver. Mas apoderara‑se dele o êxtase de gastar, que nunca antes experimentara nem apreciara. A tarde mal começara e os tesouros da Cidade Imperial cercavam‑no por toda a parte, à espera do seu cartão de crédito.
Trauteou uma ária da comédia musical Camelot, lembrando‑se das palavras da melodia «O Alegre Mês de Maio» e a cantar mentalmente os versos: «tempo para todos os frívolos caprichos, próprios ou imp...»
Riu alto, o que levou um casal que ia a passar a olhá‑lo interrogadoramente. Ainda estavam apenas em Abril. Mas já não faltava muito tempo, pensou. Devido a circunstâncias fora do seu controlo, estava um pouco adiantado em relação à estação. Aonde ir agora, que espécie de estabelecimento visitar? Decisão grave. O eco da canção, dentro da sua cabeça, decidiu por ele. Saiu da 5.a Avenida e desceu a rua na direcção da Madison Avenue e da grande loja de música da esquina. Música, apaziguadora do peito selvagem, era o que se seguia na agenda. Não soube quanto tempo se demorou no estabelecimento a passar em revista o catálogo, com o empregado que o atendia a tornar‑se cada vez mais afável à medida que ele dizia os nomes dos discos que queria ‑ «os últimos quartetos; Beethoven, meu pai, meu irmão; Chopin, polaco ardente e de dedos leves, inimigo da Rússia; Mozart, essa fonte estonteante; Liszt, esse sombrio retórico; Brahms, um suspiro profundo e tremendo do meio da Europa; Mahler e Richard Strauss, o mundo perdido de Viena; Poulenc, ligeiro e com sons de sino, e sem ter recebido o crédito que merecia pelo que escrevera ‑ tant pis‑; Elgar, Ives, entrem no século XX, rapazes; Gershwin, os sons estrepitosos e azuis das ruas de Nova Iorque; Copland, bailarinos apalaches. ritmos do Oeste, os frenéticos ritmos maias do México; Shostakovich, Stravinsky, era essa a alma russa? Peçam a Lénine ou a Tolstoi que respondam.» A lista tornava‑se cada vez maior e o vendedor cada vez mais bem disposto.» Precisamos de alguns dos grandes solistas. Artur Rubinstein, para começar, Casais, Stern, Schnabel ‑ apesar de ser uma gravação antiga ‑, Horowitz, Segovia para o flamengo, Rostropovich para comparar com Casais. Não se vá já embora, meu jovem, ainda temos de considerar a ópera. O Falstaff de Verdi, para começar, Cosi Fan Tutte e, naturalmente, A Flauta Mágica. Falarei com a minha mulher e voltarei amanhã, para escolher mais algumas. Omito o Wagner, se não se importa. Bem, talvez Os Mestres Cantores. E não devemos esquecer os maestros... Bernstein, Karajan, Toscanini. Você parece ser um daqueles jovens que estão actualizados quanto aos novos; confiarei em si para me aconselhar alguns dos melhores...
«Acho que chega para um dia, meu jovem. Mas seria uma blasfémia submeter toda essa gloriosa antologia de som ao velho e fanhoso gira‑discos da sala. Deixe‑me ouvir um dos modelos mais recentes...» Escutou vários gira‑discos. Aqueles hábeis japoneses! Cada um dos discos dava a impressão de que a orquestra estava na sala, pura, sonora, não oriental. Imaginou‑se sentado no alpendre da casinha do tio Biancella, no Connecticut, transformado num cavalheiro provinciano com o casaco de bombazina que lhe tinham garantido duraria quase eternamente, a olhar para o lençol dourado do Sound ao pôr‑do‑sol, a envelhecer ao som de vozes angélicas, mil gloriosos instrumentos a tocar só para o seu ouvido. O aparelho que escolheu não foi o mais barato, nem o mais caro. Passou um cheque, sem se importar com a importância, e disse ao empregado, que entretanto começara a sonhar que se tornaria pelo menos um vice‑presidente da empresa proprietária da loja, disse‑lhe que tivesse o cuidado de mandar entregar tudo de manhã. Depois saiu, imensamente satisfeito consigo próprio.
Ficou surpreendido. O sol estava baixo, já passava das seis horas da tarde. Nova Iorque era um cento de granos, canyons, vítima da erosão da torrente de humanidade, e o Sol uma estrela moribunda que descia nos prados de Nova Jérsia. Todos os grandes armazéns já tinham fechado até ao outro dia. Mas enquanto estivera a escolher a música que desejava ouvir repetidamente no seu último ano, achara que quereria ter consigo no Connecticut certos livros que tinham desaparecido da sua estante e alguns novos que nunca tivera tempo de ler durante a sua vida activa. Claro que poderia mudar, ficar apavorado com o que gastara naquela tarde, regressar à sua habitual parcimónia, ter de se resignar, nos seus anos de declínio, apenas com a recordação dos livros, que tinham desaparecido ou daqueles que pedira emprestados a amigos ou requisitara, e devolvera, em bibliotecas públicas. Por sorte, lembrou‑se de que as grandes livrarias da 5.a Avenida ficavam abertas até tarde. Quando chegara pela primeira vez a Nova Iorque, esta era uma cidade de amantes de livros, com livrarias em quase todas as ruas transversais, grandes lojas poeirentas onde empregados velhos, de óculos, respondiam, quando lhes perguntavam por determinado volume: «Ah, julgo saber onde poderei encontrá‑lo!», e depois afastavam‑se pelo meio de prateleiras rangentes, para reaparecerem dez minutos depois com algum exemplar para uso escolar de On Reconciliation with the Colonies, de Burke, ou uma primeira edição de Barrak Room Ballads, de Kipling. «Todas as melhores coisas são arrastadas pela maré do tempo», pensou, «devastadas pela nostalgia. Não mais, não mais, diz o corvo. Nunca mais».
«Não olhes para trás. Pensa em frente. As gerações têm as suas exigências próprias. O espaço tornou‑se um dos bens mais queridos deste pequeno e congestionado afloramento de pedra cercada de água.» «Esgotado» podia muito bem ser o nome de todas as casas editoras com quem agora negociava. «Não me digas em números lamentosos que quando Scott Fitzgerald morreu, nenhum dos livros que ele escrevera podia ser encontrado, a não ser por preços exagerados e por negociantes de livros raros que publicavam pequenos anúncios nas últimas páginas de The Nation e The New Republic. Não percas tempo a pensar no facto de que o maior bestseller do ano passado já foi feito em tiras, como papel velho.»
No entanto, aqui e ali ainda se podiam encontrar tesouros. Elaborou mentalmente a lista, enquanto percorria a 5.a Avenida. A lista era enorme. Detido por uma luz de trânsito, meditou finalmente no que fizera toda a tarde, no que ainda estava a fazer. Estivera a construir uma parede de coisas, permanentes ou semipermanentes, à sua volta e à volta daqueles a quem amava, cada um à sua maneira ‑ Sheila com um casaco para a proteger do vento durante muitos invernos futuros; Miss Walton, robusta e perene flor à sua secretária, aquecida agora durante muitas estações, depois da eventual partida dele; Oliver, chique no seu casaco azul para futuros festejos em Long Island; ele, no seu casaco de bombazina com a garantia de que duraria quase eternamente, e com as centenas, os milhares de concertos que levaria anos a ouvir, e a conhecer completamente, e a assimilar. Os livros que acabava de incluir na sua lista mental, juntamente com os da sua estante a abarrotar, exigiriam décadas de serenas tardes e serões, para serem todos lidos. Estava a achatar o nariz à morte, a Zalovsky, apostara no futuro no espaço de algumas horas de uma tarde de Abril, e encaminhava‑se para a livraria euforicamente, sorrindo mesmo para consigo ao pensar que, ainda que Zalovsky conseguisse pôr a mão no dinheiro que ele tinha, a soma encontrar‑se‑ia imensamente diminuída pelas compras daquele dia.
Significativamente, não comprara um televisor, embora o que tinham em casa fosse pequeno, emitisse uma imagem instável e fossem mais as vezes que estava avariado do que a funcionar. A televisão não avançava no futuro. Era de hoje. do imediato, deixava o amanhã desgarrado. Quando se mudasse para o Connecticut, ofereceria o televisor à Cruz Vermelha.
Na livraria, encomendou primeiro a colecção completa da poesia de Yeats, em memória de Maurice Fitzgerald, para Oliver Gabrielsen ler quando não estivesse nas festas elegantes, com o seu casaco azul. Hesitou, sem saber o que haveria nas prateleiras que pudesse ser útil a Miss Walton. Não poderia usar o casaco de casimira 24 horas por dia. Escolheu os poemas de Emily Dickinson ‑ secas palavras de consolação da Nova Inglaterra, através de um século e de solteirona para solteirona, para tornarem as solitárias noites de Nova Iorque suportáveis ao terno e submisso espírito encerrado naquele monte de gordura.
A primeira coisa que pediu para si próprio foi a grande edição em dois volumes do Oxford English Dictionary, integral, impresso num tipo tão pequeno que era fornecido com uma lente, para se poderem ler as palavras. No fim de contas, pensou, a desculpar‑se da extravagância, as palavras eram o seu ofício e se neste século havia alguma coisa que podia ser considerada permanente, era a língua inglesa.
Depois pediu um bonito exemplar da Bíblia do Rei Jaime, em caracteres grandes e elegantes. A sua estava velha e usada, as páginas estavam a amarelecer e as letras pareciam tornar‑se mais pequenas a cada ano que passava.
Em seguida, desordenadamente, pediu o Don Quixote; a colectânea de ensaios de Ralph Waldo Emerson; os Diários Goncourt; O Paraíso Perdido, de Milton; Nicholas Nickeby; Os Irmãos Karamazov; A Revolta das Massas, de Ortega; Auden; Os Mortos Confederados, de Lowell; a imensa biografia de Robert E. Lee, de Freeman, e para contrabalançar as memórias do general Grant; os livros onde se encontrassem Tamburlaine, de Marlowe, e o Dr. Fausto (as torres altíssimas de Ilium ‑ doce Helena, torna‑me imortal com um beijo) e pensou tristemente no sentido em que a palavra topless (*) era usada hoje em dia. Depois disso, a poesia de Hugo e Rimbaud, em francês. Longas horas de incursões numa nova língua que verdadeiramente não falava desde o seu último ano de colégio. Quem sabe? Ele e Sheila poderiam querer viajar no Inverno, quando o clima marítimo é difícil de suportar. Os Diários de Londres, de Boswell, seriam outra espécie de viagem.
Tirando os de Hugo e Rimbaud, já comprara a maior parte dos livros anteriormente, ou requisitara‑os em bibliotecas, ou emprestara‑os a amigos que tinham prometido devolver‑lhos e se tinham esquecido. Devemos coleccionar o passado, preciosa bagagem.
A lista que entregou ao empregado que o atendia alcançou finalmente mais de cem títulos. Uma mera gota no mar ilimitado da literatura, abrangendo os séculos entre os autores dramáticos gregos e Saul Bellow. Talvez passasse por lá no dia seguinte, disse ao empregado, e encomendasse mais alguma coisa. Que o êxtase continuasse. Querida Mrs. Genivieve Dolger, que, com a sua Threnody, tornara aquela tarde possível! Abençoado fosse o seu sentimental e doméstico coração, que todas as suas tartes ficassem tostadinhas e deliciosas! Que Zalovsky praguejasse quando as suas visões de abastança mal ganha, que provavelmente agora considerava sua legítima herança, fossem diminuindo. Que a sua voz lamuriasse em mendicação em vez de rosnar em ameaça. De pé junto do balcão, a percorrer a longa lista de livros que iriam ser seus, Damon decidiu, quase jovialmente, que desligaria a máquina de atender chamadas, atenderia pessoalmente
(*) A palavra topless ‑ hoje usada para significar os fatos de banho e outro vestuário com os seios à mostra ‑ é a mesma utilizada em «altíssimas». (N. da T.)
o telefone, concordaria friamente em encontrar‑se com Zalovsky da próxima vez que ele telefonasse e iria temerária e desdenhosamente ao seu encontro, fosse a que horas fosse e aonde fosse. Naquela tarde comprara um amuleto, um encantamento que o protegeria. Era desrazoável, bem sabia, mas era o que sentia e estava preparado para agir de conformidade.
Disse ao empregado que embrulhasse como presentes os livros para Oliver e para Miss Walton. Aos outros livros guardá‑los‑ia, nas suas caixas de cartão, no espaço fechado à chave da cave onde arrecadavam coisas. Só abriria as caixas quando se mudassem para o Connecticut, pois de contrário Sheila choraria desesperada do enorme espaço adicional que iriam ocupar no atravancado apartamento.
Saiu da loja a sorrir, regalado, da perspectiva de toda a leitura que tinha à sua frente, e preparava‑se para virar para o centro, na direcção de casa, quando lhe ocorreu que enquanto, durante a tarde, se abastecera de alimento para o espírito, se esquecera da carne. Havia um excelente estabelecimento de vinhos e licores na Madison Avenue, que ele frequentava em ocasiões especiais, porque tinha a maior gama de garrafas de Nova Iorque. Estugou o passo, para lá chegar antes de a loja fechar. No interior, passeou entre as prateleiras, a ler os grandes nomes dos rótulos: Montrachet, Château Lafite, Mouton‑Rothschild, La Tache, Corton Charlemagne, Moèt‑Chandon, Dom Perignon, Château Petrue e Château Margaux. Os nomes ressoavam como sinos matrimoniais na sua cabeça.
«Sim, meu jovem, pode tomar nota da encomenda. Uma caixa deste, uma caixa daquele, três caixas de Lafite. Sei que não estará bom para beber antes que passem pelo menos oito anos. Não tenho uma adega capaz, para o acondicionar na cidade, mas pode guardá‑lo no seu armazém até eu o poder levar. Tenciono mudar‑me em breve para a minha casa no Connecticut, que tem uma excelente adega. Oh, é difícil, se não ilegal, transportar vinhos ou aguardentes através de fronteiras estaduais?! Não importa. Quando chegar a ocasião, alugarei um camião U‑Haul para levar as caixas; terei de transportar ao mesmo tempo uma grande quantidade de livros, quadros e outras coisas assim; não prevejo quaisquer problemas. E suponho que tem algum champanhe no frigorífico? Levo duas garrafas de Mumm's. Por favor, embrulhe‑as com cuidado. Levo‑as agora comigo.»
Com um floreado, assinou um cheque de dois mil seiscentos e setenta e três dólares e quarenta cêntimos e saiu do estabelecimento, com as frias garrafas de champanhe acrescentadas aos embrulhos que continham os presentes para Oliver e Miss Walton, presentes que só poderia entregar no dia seguinte porque àquela hora o escritório já estava fechado. Carregado como estava, o estirão até casa seria cansativo; por isso, fez sinal a um táxi. O champanhe ainda estaria na temperatura adequada quando abrisse a primeira garrafa para Sheila e para si.
Quando abriu a porta do apartamento, gritou: «Sheila!» Mas não obteve resposta. A luz do vestíbulo estava acesa e, ao pousar os embrulhos, Damon viu o bilhete com a letra da mulher, na mesinha.
Querido Roger: a minha mãe teve uma trombose e encontra‑se em estado grave. Tenho de ir a Burlington, onde ela está hospitalizada. Tentei telefonar‑te para o escritório, mas às quatro horas, como ainda não tivesses chegado, tive de correr para apanhar o avião. O Oliver quer que fiques com eles até eu voltar ou, se isso não te agradar, ficará ele aqui no apartamento contigo. Por favor, não sejas obstinado a este respeito. E, também por favor, não penses em vir para junto de mim. Um hospital com uma velhota moribunda que não desejaria ver‑te em melhores ocasiões não é lugar para ti, agora. Além disso, telefonei à minha irmã e ela também lá estará, com o seu antipático marido, e eu sei o que sentes por eles. Ela disse‑me que a irmã da minha mãe, a minha tia que é mãe do Gian‑Luca, também irá para lá, e esse seria um encontro que gostaria de te evitar e que com certeza não te atrai. Telefona‑me apenas para a Holiday Inn de Burlington, para que eu saiba que estás bem. E reza pela minha mãe.
Amor, Sheila
Lentamente, largou o bilhete. A elação que sentira durante toda aquela tarde desaparecera, substituída por um sentimento de culpa. Enquanto andara a gastar dinheiro como um prospector de petróleo texano cujo poço começara a jorrar o ouro negro, Sheila precisara dele e ele não estivera presente. Não gostava da sogra e ela com certeza nunca tinha gostado dele, mas não queria que morresse. Não queria que ninguém morresse. Nem que ninguém, e especialmente Sheila, se visse confrontado com a morte naquela semana.
Foi à sala e acendeu a luz. Reparou que a máquina de atender chamadas tinha sido desligada e lembrou‑se de que ele próprio tinha decidido desligá‑la assim que chegasse a casa. Telepatia. Sentou‑se pesadamente e olhou para o telefone. Desafiou‑o a tocar. Não tocou.
Estendeu o braço, levantou o auscultador, ligou para a telefonista e pediu uma ligação para as Informações de Vermont, a fim de lhe darem o número da Holiday Inn (*) de Burlington. Não era um nome nada apropriado para um hotel onde uma pessoa estava à espera de saber se a sua mãe ia viver ou morrer. Noutros tempos, os Americanos tinham sido mais hábeis a dar nomes aos lugares: Tombstone(**), Arizona; Death Valley(***); Laughing Water(****). A língua, como tantas outras coisas, estava em declínio.
Sheila pareceu calma quando atendeu o telefone. Disse que já estivera no hospital e acabava de voltar ao hotel para se registar e comer qualquer coisa. O estado da mãe era estacionário.
‑ Seja o que for que isso signifique ‑ acrescentou. ‑ Tem o lado esquerdo paralisado, não pode falar e não sei se me reconheceu ou não. Ninguém imaginaria que os vegetarianos tivessem ataques destes ‑ riu‑se, asperamente. ‑ A comer toda aquela erva para nada, coitada.
‑ Sheila, minha querida, tens a certeza de que não queres que eu vá para aí?
(*) Estalagem de Férias. (N. da T.)
(**) Pedra Tumular. (N. da T.)
(***) Vale da Morte. (N. da T.)
(****) Água Risonha. (N. da T.)
‑ Tenho a certeza absoluta ‑ respondeu a mulher, em tom firme. ‑ Já telefonaste ao Oliver?
‑ Não. Acabo de chegar ao apartamento.
‑ Mas telefonas‑lhe?
‑ Telefono.
‑ Não vais ficar sozinho no apartamento esta noite, pois não?
‑ Não, prometo‑te.
‑ Roger... ‑ hesitou.
‑ Que é?
‑ Hoje almocei com o Oliver... ‑ deixou a frase em suspenso, como se não tivesse a certeza de como continuar.
‑ E então? ‑ Damon compreendeu que, mesmo que tivessem falado de qualquer outra coisa durante o almoço, o assunto principal tinha sido ele.
‑ O Oliver viu por acaso o teu livro de apontamentos, Roger. Deixaste‑o aberto na secretária.
‑ E depois?
Não se podia zangar. Ele e Oliver iam constante e casualmente à secretária um do outro.
‑ Estava aberto e ele viu o começo das tuas duas listas ‑ inimigos profissionais e inimigos pessoais. Só conseguiu decifrar um nome, o de Machendorf. Imagino por que motivo começaste essas listas, mas...
‑ Eu explico‑te quando te vir, minha querida ‑ prometeu Damon, em tom muito brando.
‑ O que te quero dizer, o que te devo dizer, é que o Oliver e eu começámos também uma possível lista, nossa. Detesto dizer isto pelo telefone, mas nunca se sabe... um dia mais tarde pode ser demasiado tarde...
‑ Creio que cobri o terreno completamente ‑ disse Damon, arrependido de não ter já desligado o telefone.
‑ Não creio que tu ou o Oliver possam...
‑ Lembras‑te do Gian‑Luca? ‑ interrompeu‑o Sheila.
‑ A mãe dele está cá e eu perguntei‑lhe por ele. Desapareceu‑lhes da vista. Tanto quanto alguém sabe. pode ter morrido. Mas mesmo assim...
‑ Estarei em guarda contra o Gian‑Luca, se alguma vez ele aparecer ‑ prometeu Damon, desejoso de terminar a conversa.
‑ Mais uma coisa ‑ persistiu Sheila. ‑ O Oliver falou‑me daquele Mr. Gillespie que endoideceu...
‑ Nunca mais apareceu ‑ interrompeu‑a Roger, impacientemente. ‑ Para ser franco, tenho a impressão de que ninguém ‑ ninguém daqueles em que tu e o Oliver pensaram e ninguém daqueles em que eu pensei ‑ tem alguma importância. Talvez ninguém tenha importância nenhuma, ou se trate de alguém aparecido não se sabe de onde, de alguém que... ‑ sentiu‑se um pouco atrapalhado. ‑ Bem, é difícil exprimir o que penso por palavras. Alguém que seja desconhecido, um espírito ruim qualquer, e poderemos descobri‑lo amanhã ou nunca. Amor, tens preocupações que te cheguem. Esquece este assunto por enquanto, por favor.
‑ Está bem. Promete‑me só, mais uma vez, que não ficarás sozinho esta noite.
‑ Está prometido. Uma coisa...
‑ Que é? ‑ Sheila pareceu receosa, como se aquele uma coisa só pudesse ser mais uma ralação.
‑ Amo‑te ‑ disse Damon.
‑ Oh, Roger! ‑ exclamou, em voz entrecortada. ‑ Jurei que não choraria. Boas noites, meu amor. Tem cuidado contigo.
Damon pousou o telefone, fechou os olhos e pensou na mesquinha velha vegetariana que nunca gostara dele e que se encontrava imobilizada, e finalmente emudecida, numa cama de hospital. Não era um mês de sorte, aquele. Os problemas apareciam aos montes. Lembrou‑se do ditado francês: jamais deux sans trois. Bem, Sheila e ele já tinham tido os seus dois. Deviam estar preparados para o terceiro. E porquê só dois sem três? Porque não três sem quatro? Dez sem vinte?
Abriu os olhos e abanou a cabeça, para expulsar as especulações pessimistas. Estava grato a Sheila por não querer que fosse para seu lado, por o poupar ao pântano do desgosto da sua família, à irmã desmazelada com o marido antipático e à tia chorona cujo filho ele atirara pela escada abaixo.
Lembrou‑se da morte do seu pai, logo a seguir à guerra, no hospital de New Haven. A mão envelhecida a procurar a sua, o último laço familiar a desatar‑se.
Bem, se Sheila tinha ido visitar a família, pensou, era boa altura para ele próprio ir também fazer uma visita. Marcou o número de Oliver Gabrielsen,
‑ Meu Deus ‑ disse Oliver, preocupado ‑, onde diabo esteve?
‑ Andei por aí. Precisava de fazer uns recados.
‑ Sabe o que aconteceu à mãe de Sheila...
‑ Sei. Acabo de falar com a minha mulher. A mãe encontra‑se em estado estacionário.
‑ Quer vir para cá? ‑ convidou Oliver. ‑ Ou prefere que eu vá para sua casa?
‑ Nem uma coisa, nem outra.
‑ Roger ‑ insistiu Oliver, suplicante ‑, não pode ficar sozinho em sua casa esta noite.
‑ Não ficarei. Vou sair da cidade durante alguns dias.
‑ Quer dizer‑me para onde vai?
‑ Não. Mantenha o escritório em funcionamento. EU darei notícias.
Desligou. Oliver teria de esperar pelo seu casaco de flanela azul.
NA manhã seguinte levantou‑se cedo e foi directamente do motel, que ficava à saída de Ford's Junction, para o cemitério. O cemitério ladeava a linha da via férrea de Nova Iorque, New Haven e Hartford, de um lado, e uma das duas ruas principais, do outro. Estava bem tratado, mas devido à sua situação entre o comércio e o transporte não constituía um adorno para a cidade, embora os seus habitantes não tivessem apresentado quaisquer queixas, que se soubesse. A população do cemitério crescera consideravelmente desde a última vez em que Damon lá estivera, aquando do funeral do pai.
A área reservada à família Damon tinha três pedras tumulares e espaço para uma quarta, a sua. O pai tinha sido um homem meticuloso e amigo da família. Damon olhou para as três sepulturas, a da mãe, a do irmão Davey e a do pai, reverdecidas pela erva de Abril, que começava a romper. Não assistira ao funeral da mãe porque ela morrera quando ele estava no mar. E os pais tinham‑no achado demasiado novo para assistir ao do irmão.
Não havia mais Damons no cemitério porque o pai emigrara do Ohio para Ford's Junction quando era novo.
Se tivessem perguntado a Damon por que motivo, passados tantos anos sem visitar as sepulturas da família, o fizera precisamente naquela manhã, teria tido dificuldade em responder. Sabia que tinha alguma coisa a ver com os sonhos recorrentes que tinha ultimamente e em que o pai figurava, e na sua idade era mais ou menos natural pensar na morte e num lugar de repouso final; mas a sua decisão de alugar um carro e seguir para Ford's Junction na noite anterior, depois da conversa telefónica com Sheila, tinha sido quase automática, instintiva. Agora que se encontrava ali, a prestar homenagem a pessoas a quem amara, sentiu um alívio da tensão, um sentimento melancólico, mas não pesaroso, de paz que não foi perturbado pelo barulho de um comboio que seguia para sul, para New Haven, nem pelos sons de trabalho e conversas vindos das proximidades, onde dois homens estavam a abrir uma nova sepultura ‑ o cheiro a terra fresca, gredosa e primaveril, desafiava a morte ou, pelo menos, tornava‑a suportável.
Três boas pessoas que lhe pertenciam. O pai, bondoso, honrado e esforçado trabalhador; a mãe, um bordão em que sempre se pudera apoiar; o irmão, tão novo que não tivera tempo de pecar. Família, família...
Sim, tinha sido uma boa ideia ter vindo de carro de Nova Iorque à terra da sua infância, para comungar com a sua única família e verificar com os seus olhos que as suas modestas sepulturas permaneciam receptáculos decentes e adequados daquelas almas irrepreensíveis e amadas.
No dia seguinte a ter ouvido o Requiem de Mozart, tinha procurado o texto da missa. A sua memória era boa e o seu latim escolar fora suficiente para lhe permitir fixar a primeira parte. Disse‑a mentalmente, por cima das sepulturas:
Requiem aeternam dona eis, Domine, et lux
perpetua luceat eis.
Te decet hymnus, Deus, In Sion, et tibi reddetur
votum in Jerusalém.
Exaudi orationem meam, as te omnis caro veniet.
Saltou a repetição dos primeiros três versos da missa e murmurou as duas últimas, sombrias e ressonantes frases: «Kyrie eleison, Christe eleison.»
Honra o teu pai e a tua mãe, como o Senhor Deus te ordenou, para que os teus dias possam ser prolongados e tudo te corra bem.
Com um sentimento de vergonha por, durante tantos anos, ter deixado o cuidado das sepulturas a outros, saiu do cemitério, entrou numa florista próxima, comprou alguns ramos de lilases brancos que tinham florido cedo, voltou ao cemitério e, cuidadosamente, encostou os fragrantes e frágeis ramos às três pedras tumulares. «Repousai, almas gentis», pensou, «e intervinde por mim.»
... e tudo te corra bem...
Era impossível impedir que alguma forma de egoísmo se intrometesse até mesmo no mais devoto dos actos.
Com um último olhar para trás, saiu do cemitério e, lentamente, conduziu o carro alugado através da cidade.
Mergulhado agora no passado, resolveu visitar os lugares da sua feliz infância e mocidade, um velho a alimentar as nascentes da memória, a recordar os tempos em que tinha sido descuidado e sem feridas, para contrabalançar, ao menos durante um dia, os golpes e a erosão da idade. Iria à sua velha casa, decidiu, a casa onde nascera e onde vivera dezoito anos, antes de partir para o colégio, e onde depois não voltara a viver. Passaria pelo liceu que frequentara, recordaria a aula de latim, os versos de O Velho Marinheiro que o professor de inglês lera alto, o baile onde dançara pela primeira vez com uma rapariga, o campo de râguebi onde ovacionara a equipa em frias tardes de Outubro... «Talvez», pensou, «consulte a lista telefónica e veja se alguns dos amigos que julgara seriam meus camaradas para a vida inteira, mas que depressa esqueci, ainda vivem na cidade.»
Agora tinha de pensar nos vivos, ou nos ainda vivos. Seguiu na direcção do hotel e, adiando o pequeno‑almoço, telefonou para Holiday Inn, em Burlington.
A voz de Sheila, pelo telefone, soou‑lhe grave:
‑ Ainda está mais ou menos na mesma. Os médicos dizem que é um bom sinal. Médicos... ‑ suspirou.‑ Agarramo‑nos às suas palavras, tentamos interpretá‑las sob a melhor luz possível, pomos neles a nossa fé... Eles não têm a culpa, mas acontece sempre assim. E tu? Como estás tu?
‑ Óptimo.
‑ O Oliver está contigo?
‑ Não. Meti‑me num carro para Ford's Junction, a noite passada. Estou no motel de lá. Pareceu‑me que poderia ser útil sair de Nova Iorque uns dias.
‑ Ford's Junction ‑ disse ela, quase em tom de censura. ‑ Não tinhas já muito que recordar, sem isso?
‑ Tive uma manhã muito recompensadora. Acredita. Afinal, foi uma boa ideia.
‑ Espero que sim ‑ redarguiu Sheila, embora parecesse duvidosa. ‑ Escuta, não posso estar ausente da escola mais do que uns dois ou três dias. Fica onde estás ou vagueia por onde te apetecer, mas não regresses a Nova Iorque enquanto eu não puder regressar também. Tenho estado a pensar... As férias da Páscoa começam para a semana e nós podemos ir para Old Lyme, instalar‑nos e descontrair‑nos por lá sem ver vivalma durante uns dez dias. Estamos ambos a precisar de férias e se acontecer alguma coisa drástica à minha mãe, Burlington não fica assim tão longe. Não te parece uma boa ideia?
‑ Bem... ‑ começou a dizer qualquer coisa acerca do trabalho, mas ela interrompeu‑o:
‑ Pensa no assunto. Não tens de decidir já. Telefona‑me amanhã de manhã e voltaremos a falar um pouco mais no caso. Prometi ao médico que estaria no hospital antes das dez. Por favor, cuida de ti, meu querido. E deixa os teus mortos em paz.
Primeiro seguiu na direcção da casa onde nascera e onde vivera até partir para o colégio. Ao meter o carro na rua familiar, afrouxou ao passar pela casa do velho Weinstein. Como as outras casas erguidas atrás de relvados bem tratados, todas elas de madeira, era modesta e antiquada, com um agradável alpendre à frente e decorada com arabescos de madeira estilo vitoriano. Mas despertava recordações especiais a Damon. Manfred Weinstein, da mesma idade que ele, tinha sido o seu amigo mais íntimo desde a idade dos dez anos até se terem separado para irem para colégios diferentes. Manfred fora um dos melhores atletas da cidade, uma autêntica vedeta, o shortstop(*) da equipa de basebol do liceu.
(*) OPosição, no campo de basebol, entre a segunda e a terceira bases ou, como neste caso, o jogador que ocupa esse lugar. (N. da T.)
Gorducho e com um ar enganosamente mole, tinha cabelo louro muito claro, nariz arrebitado e uma pele rosada e infantil que nem as tardes ao sol conseguiam bronzear. Possuidor de uma voz incongruentemente alta para a sua idade, durante os jogos conseguia‑se ouvi‑lo gritar, acima do barulho da multidão, a encorajar o lançador. Era um estudante muito regular, com gosto pela leitura ‑ principalmente Dumas e Jack London ‑, mas fanaticamente empenhado em aperfeiçoar‑se como jogador de basebol. Como bom amigo, Damon, que não era grande atleta, passava longas tardes a atirar‑lhe grounders(*) que Weinstein interceptava graciosamente até eles serem as únicas figuras do campo de recreio deserto, enquanto o crepúsculo descia sobre a cidade. Entre os seus amigos, predizia‑se confiantemente que Weinstein acabaria por ir parar às grandes ligas. Damon lembrou‑se de que nunca vira o nome do amigo nas notícias dos jornais referentes a algum jogo da Liga Nacional ou da Liga Americana, e perguntou a si mesmo o que teria corrido mal.
Weinstein tinha ido para o Arnold College, em New Haven, que preparava estudantes para carreiras como professores de educação física. Damon, que já planeava atacar a Broadway como actor, fora para a Carnegi Tech, que tinha uma escola dramática altamente considerada. No Verão, Manfred jogara na apagada liga de Cape Cod, que ia buscar os seus jogadores aos colégios da Nova Inglaterra, enquanto Damon arrancara empregos em vários teatros, nos circuitos estivais.
Quando a guerra rebentara, Manfred alistara‑se nos Fuzileiros e Damon escolhera a Marinha Mercante, porque a sua família já se encontrava em dificuldades financeiras e o dinheiro que podia ganhar como marinheiro mercante era necessário para manter os seus pais à tona de água. Quando voltara a Ford's Junction a fim de assistir ao funeral do pai, Damon ouvira dizer que Manfred tinha sido gravemente ferido em Okinawa e ainda estava a ser tratado num hospital naval.
Ao olhar para a casa de Weinstein, enquanto passava vagarosamente, sentiu uma punhalada de desgosto pelo facto
(*) Basebol. Bola batida que rola ou ressalta pelo chão. (N. da T.)
de a estreita amizade de rapazes se ter dissipado devido aos acidentes do tempo e da geografia. Ignorava o que fizera Manfred da sua vida e até se era vivo ou morto. Perguntou a si mesmo se se reconheceriam, se por acaso se cruzassem na rua.
O rápido e jovem shortstop não era o único habitante da casa em que estivera interessado. A irmã de Manfred, Elsie, um ano mais velha do que o irmão, tinha sido a primeira rapariga com quem Damon fora para a cama, quando ela tinha 18 anos e Damon 17. Era uma rapariga de rosto suave, loura e de olhos azuis, um pouco roliça como o irmão, mas de um modo atraente. Tímida e romântica, apesar de o seu nariz ligeiramente arqueado, delgado e comprido lhe dar um ar de beleza exótica, quase severa, parecia mais velha do que era. Tinha sido uma das melhores estudantes da escola, uma devoradora de livros, e ajudara o irmão e Damon a prepararem‑se para o exame de História, que era o seu prato forte. Confidenciara a Damon que desejava estudar na Sorbonne de Paris e viajar pela Europa, para ver os lugares acerca dos quais tinha lido ‑ Azincourt, o Campo de Ouro, os campos de batalha de Napoleão, a igreja de San Juan de Luz onde Henrique IV casara com a princesa de Espanha e onde Velásquez morrera... Damon tivera uma paixoneta por ela desde os 10 anos e ficara estonteado com a sua sorte quando a beijara pela primeira vez e mais tarde lhe permitira deitar‑se com ela.
Como Damon, ela era virgem e o seu romance tinha sido canhestro e breve. Fora breve porque, depois da segunda vez em que tinham feito amor, apressadamente porque se encontravam no quarto dele e não sabiam quando os seus pais regressariam, Damon, inexperiente e tímido e apenas com uma vaguíssima ideia das precauções que Elsie tomava, lhe perguntara o que faria se descobrisse que estava grávida.
‑ Mato‑me ‑ respondera ela, calmamente.
Ao recordar essa tarde, Damon reflectiu na drástica mudança de costumes e padrões de comportamento adolescente que varrera a América desde o seu tempo de estudante liceal. Não tinha filhos, exceptuando o de Julia Larch, mas entre os amigos com filhos adolescentes ouvira falar de rapazes que, ainda sem idade para votar, tinham levado para casa raparigas para fins‑de‑semana casuais, com os pais presentes, e de mães que iniciavam as filhas no uso da pílula a partir do seu 15º aniversário. Não sabia se a mudança tinha sido para melhor ou para pior, se o amor, no fim de contas, apresentava por esse facto um saldo positivo ou negativo, mas duvidava que uma rapariga de 18 anos, dos tempos actuais, anunciasse a sua decisão de se matar por causa de uma gravidez.
De qualquer modo, aterrado com o que ela dissera, não voltara a tocar em Elsie, e depois de ela ter terminado o liceu um ano à frente dele e de ter partido da cidade para um emprego de Verão em Boston, a que se seguiria a faculdade, também não voltara a vê‑la. Manfred nunca dera a entender que estava ao corrente da ligação entre o seu melhor amigo e a sua irmã, e Damon perguntou a si mesmo naquele momento, ao passar pela casa que conhecera tão bem como a sua própria, se Manfred se calara por ignorância ou por tacto.
Habituado à alteração constante das paisagens e da qualidade dos bairros da Cidade de Nova Iorque desde a guerra, sentiu‑se maravilhado com o facto de aquela rua ter permanecido na mesma, tranquila, com o ar de ter sido cem anos exactamente como era agora e provavelmente de o vir a ser outros cem anos. A única diferença era que as árvores tinham crescido enormemente ao longo dos passeios desde que lá estivera da última vez. Quando se aproximou da sua casa, encontrou‑a exactamente como a recordava, com a diferença de que a última vez que a vira, aquando do funeral do pai, estava pintada de branco e agora estava‑o de castanho‑escuro com portadas vermelhas. O pai deixara‑lha em testamento, mas as hipotecas que sobre ela pesavam eram tão grandes que Damon, na altura ainda a tentar encontrar um modesto lugar no teatro, em Nova Iorque, compreendera que mesmo com o rendimento que poderia obter se conseguisse alugá‑la, não poderia efectuar os pagamentos anuais devidos. Vendera‑a e, com o dinheiro da venda, tivera a sorte de poder pagar as últimas dívidas do pai.
Os anos anteriores à morte do pai não tinham sido prósperos para o velho doente, e as suas tentativas para manter viva a sua fábrica de brinquedos da vizinha New Haven, para onde fora diariamente de comboio durante tantos anos, esgotara‑lhe os recursos que tivera de reserva. Quando morrera, não tinha nada.
Damon parou o carro, apeou‑se e olhou para a casa. O relvado estava bem tratado e no alpendre da frente estavam um carrinho de bebé e uma bicicleta.
De dois em dois anos, Damon ajudara o pai a caiar a casa toda e o barracão das traseiras, onde o pai costumava fazer os brinquedos que concebia, pequenos modelos de carroças puxadas por cavalos, com os arneses de couro meticulosamente feitos à escala e minúsculas fivelas de latão; modelos metálicos, de corda, de locomotivas antigas, com tênderes de carvão e carruagens, pequenos cavalos de balanço, soldados de folha com uniformes revolucionários e da Guerra Civil, a que não faltavam carabinas nem artilharia puxada a cavalos.
O pai tinha sido hábil de mãos e modesto de ambições, e se no fim dissera ao filho, no leito de morte, que desperdiçara a sua vida a fazer coisas fúteis, insignificâncias, a verdade é que Damon se lembrava das horas que ele passara a assobiar todo contente no barracão, enquanto talhava madeira e pintava delicadamente uniformes em miniatura.
O interior da casa estivera sempre tão geometricamente arrumado como o seu exterior e os terrenos circundantes. A mãe tinha sido uma dona de casa escrupulosa, e apesar de passar três tardes por semana no pequeno escritório contíguo à oficina de New Haven, às voltas com os livros de contabilidade, a conferir facturas e a escrever cartas, a casa cheirava sempre bem e estivera sempre impecável. Ao recordar a escrupulosa ordem característica da Nova Inglaterra em que fora criado, Damon sorriu, mal‑grado seu, pensando no horror que a sua mãe sentiria se visse a balbúrdia empoeirada de livros e discos na qual o seu filho se habituara a viver nos últimos anos.
Conteve o desejo de se aproximar e bater na porta da frente, apresentar‑se, ver quem lá vivia agora e talvez dar uma vista de olhos ao interior. A nostalgia podia transformar‑se facilmente em masoquismo, e ele não era masoquista. Quando se preparava para arrancar de novo, a porta da frente abriu‑se e saiu um rapaz de cabelo preto. Usava calças de bombazina e camisola desportiva e levava na mão uma luva de basebol.
Damon fitou‑o vivamente. Podia ser o mesmo rapaz que vira a correr entre os táxis na 6.a Avenida, ou o gémeo do rapaz do álbum fotográfico que tinha sido ele próprio. O rapaz tirou a bicicleta do alpendre, montou‑a, olhou curiosamente para Damon, que continuava sentado no carro estacionado, e partiu a pedalar.
Damon abanou a cabeça, impaciente consigo próprio e com as partidas que o tempo e a memória lhe andavam a pregar. Arrancou e voltou o carro para trás, na direcção de onde viera.
Thomas Wolfe fora inexacto ao escrever que não se pode regressar a casa, pensou Damon. Wolfe voltara a casa, mas depois da sua morte. Podia‑se voltar a casa. mas era mais sensato não o fazer.
Quando subia lentamente a rua, viu um homem mais ou menos da sua idade a cavar um canteiro de flores, defronte da casa de Weinstein. O homem tinha cabelo grisalho ralo e o roliço infantil tornara‑se gordura dura no meio do corpo, mas isso não impediu Damon de o reconhecer, mesmo à distância de 20 metros. Era Manfred Weinstein.
Damon hesitou, antes de travar. Passados tantos anos, que poderiam dizer um ao outro? Teriam os homens adultos traído as promessas mudas que tinham unido dois rapazes? Sentir‑se‑iam ambos embaraçados, envergonhados, decepcionados um com o outro? Tinham‑se separado casualmente, no dia a seguir às cerimónias do fim de curso do liceu. «Voltaremos a ver‑nos. Dá notícias. Felicidades.» «Claro.» O que, à superfície, parecera uma temporária separação de Verão, alargara, aprofundara‑se, tornara‑se um precipício, uma falha geológica, um abismo. Havia alguns abismos que talvez fosse melhor deixar em paz, não tentar transpor.
Damon tinha o pé, hesitante, no pedal do travão. Tirou‑o e começou a acelerar. Mas era tarde de mais.
‑ Homem! ‑ Era Manfred Weinstein que se dirigia em grandes passadas para ele, ainda a segurar a enxada. Roger Damon!
Damon saiu do carro e durante um momento ficaram imóveis, a fitar‑se e a sorrir estupidamente. Depois deram um aperto de mão. Weinstein largou a enxada e abraçaram‑se, coisa que nunca tinham feito nem em garotos nem em jovens.
‑ Que diabo fazes aqui? ‑ perguntou Weinstein.
‑ Vim visitar‑te ‑ respondeu Damon.
‑ Continuas a ser o mesmo mentiroso do caraças!
‑ A voz de Weinstein continuava profunda e alta e Damon desejou que não houvesse vizinhos facilmente escandalizáveis, que pudessem ouvir como Weinstein acolhia o seu companheiro da mocidade. ‑ Tenho café no fogão. Entra. Temos muito tempo que recuperar, tu e eu.
Sentaram‑se à mesa de madeira esfregada da cozinha de Weinstein, onde a mãe deste, que Damon recordava como uma mulher alta e gorda sempre de avental azul engomado e enfeitado de renda branca, costumara dar‑lhes leite e biscoitos quando eles regressavam depois de jogar à bola, à tarde. Naquela altura, beberam canecas de café de uma cafeteira que Weinstein conservava quente atrás do fogão. Vivia sozinho. Enquanto estivera no hospital, depois da guerra, o pai vendera a loja de vestuário onde Manfred trabalhara depois de concluído o curso do colégio.
Damon interrompeu o fluxo de reminiscência para perguntar:
‑ Mas porque vendias tu gravatas e smokings? Pensei que ias ser jogador.
‑ Também eu ‑ redarguiu Weinstein, tristemente.
‑ Andava a ser observado pelos velhos Dodgers de Brooklyn e pelos Red Sox quando cometi uma estupidez.
‑ Isso não parece teu.
‑ É o que tu pensas. Podia construir um arranha‑céus com os meus erros. Como toda a gente, creio.
‑ Que fizeste, afinal?
‑ Estava a jogar a minha última época em Arnold. Estávamos a ganhar sete a três, o jogo disputava‑se sobre gelo e toda a gente procedia com cautela, menos o chalado do teu amigo Manfred. Uma bola foi parar à minha direita, mas longe de mais para a terceira base, e eu atirei‑me e consegui agarrá‑la, mas fiquei desequilibrado e era um lançamento comprido e difícil para o primeira base. Devia ter‑me limitado a segurar a bola e deixar o tipo marcar o pontito, pois não queria dizer nada. Em vez disso, como um idiota, fiz o lançamento através do meu corpo e precisamente quando larguei a bola senti e ouvi qualquer coisa estalar no meu ombro. Lá se foi a carreira.
Num segundo. ‑ Suspirou. ‑ Quem precisa de um shortstop com um braço morto? Em lugar de jogar nos Campeonatos Mundiais, acabei, como disseste, a vender gravatas e smokings a ranhosos de Yale. Como o meu pai dizia, um homem precisa de comer. Ele sabia muitos ditos sensatos como esse. ‑ Weinstein sorriu. ‑ De qualquer modo, estou contente por ele ainda estar vivo, em Miami, com quase 90 anos, alegre viúvo entre as damas geriátricas, com a minha mãe afastada definitivamente do caminho. Ainda me manda suculentas pepitas de filosofia da Cintura do Sol. Casei depois da guerra. Foi um casamento muito bom, pelos padrões dos casamentos. A minha mulher era uma boa dona de casa e não chateava ‑ ou pelo menos já não me lembro se chateava ou não. Deu‑me dois miúdos simpáticos, um rapaz e uma rapariga, que já são adultos e trabalham na Califórnia. Mudemos de assunto ‑ decidiu, bruscamente. ‑ Havia anos que não pensava, nem um segundo, naquilo de New Haven. Sei o que se passa contigo, li o que os jornais têm dito a teu respeito. Agora estás a cavalgar alto, hem?
‑ Média altitude. Uma boa mulher, a segunda. Cometi um erro e depois disso tive cuidado. Não tive filhos... ‑ lembrou‑se de Julia Larch e acrescentou: ‑ Que eu saiba.
‑ Devia ter ido visitar‑te, depois do que os jornais disseram.
‑ Gostaria que tivesses ido. Por amor dos velhos tempos.
‑ Velhos tempos... Acabam‑se num segundo. ‑ Weinstein fechou momentaneamente os olhos e depois fez um gesto com a mão, como para afastar teias de aranha imaginárias. ‑ Soube que quando vieste à cidade para o funeral do teu pai perguntaste por mim. Pensei escrever‑te, mas andava tão atarefado a tentar manter‑me vivo que não me sobrava tempo para mais nada.
‑ Quanto tempo estiveste no hospital?
‑ Dois anos.
‑ Meu Deus!
‑ Não foi muito mau. Ninguém me dava tiros e aproveitei para me instruir. Como não tinha mais que fazer, lia tudo a que conseguia deitar a mão.
Damon achou‑o velho, com as linhas duras do rosto frouxas. O garboso shortstop desaparecera havia muito tempo,
‑ Os Fuzileiros... ‑ murmurou Weinstein, melancólico. ‑ Alistei‑me na primeira semana depois do Porto das Pérolas. Vendia fatos na loja do meu pai em New Haven e não me pareceu que lá devesse continuar quando os Americanos iam combater os nazis. ‑ Sorriu amargamente. ‑ Nunca vi nenhum alemão. Tudo quanto vi foi uma quantidade de pequenas caras amarelas. O problema judaico... ‑ Fez uma careta. ‑ Mostrar aos goyim que os Judeus têm tomates, mesmo que isso signifique vê‑los arrancados a tiro. Talvez os Israelitas tenham modificado um pouco isso. ‑ Encolheu os ombros. ‑ Nunca sabemos quando estamos a proceder certo ou errado. Cheguei a sargento artilheiro. Há por aí uma estrela de bronze, em qualquer lado. Creio que ma deram por estar vivo. ‑ Riu baixinho. ‑ Quando finalmente saí do hospital, a ideia de ser caixeiro na loja de outro homem qualquer não me atraiu muito. Um amigo meu, da minha equipa, era polícia na força policial de New Haven e convenceu‑me a entrar para a corporação. Não foi uma vida má. Tinha um significado especial para mim. Não quero parecer George Washington nem um almirante reformado de olhos raiados de sangue, mas podemos lutar pelo nosso país de diferentes maneiras. Posso ser sentimental, mas quando pomos a vida em jogo assumimos certas responsabilidades. Se este país se desmoronar, será pela ilegalidade. Assaltos em pleno dia, rixas raciais, assassínios, políticos a roubar para a esquerda e para a direita, bairros inteiros em chamas para receber o seguro, miúdos a brincar aos cow‑boys e aos índios com especiais de sábado à noite, a comprarem droga aos quilos e depois a berrarem por causa do recrutamento, a National Riffle Association a certificar‑se de que todo o idiota nervoso tem um arsenal guardado em casa, pessoas a conduzir carros como se fossem apaches na senda da guerra... ‑ Falava em voz forte, que ecoava através da casa. ‑ Estive na brigada de trânsito durante uns tempos e quando mandava parar pessoas que iam a 140 km/hora através da cidade e lhes recordava que o Connecticut tinha um limite de velocidade horária de 90 km, olhavam‑me como se tivesse acabado de lhes dizer que a mãe era uma prostituta e faziam tudo menos linchar o governador, pois pensavam que o limite de velocidade era ideia dele e que insultara a honra do estado em virtude de este ter passado a ter, de repente, a taxa de acidentes mais baixa da América. ‑ Riu‑se. ‑ Pareço um pregador num encontro revivalista de apanhadores de algodão. Mas se não acreditamos na lei, não acreditamos em nada. Vi muitos polícias corruptos, mas isso não modifica a ideia. De resto, o trabalho agradava‑me. Talvez me tivesse habituado a viver junto de armas e de homens duros... ‑ acrescentou, quase como se se desculpasse. ‑ De qualquer modo, reformei‑me há uns cinco anos. A pensão não é má, tenente detective... Já se acabou tudo, bom, mau ou indiferente. Trabalho no jardim, jogo um pouco de golfe, arbitro jogos da Liga Juvenil, vou até ao campo do liceu tentar mostrar aos shortstops como devem entrar no buraco para grounders profundas, uma vez por outra visito os pequenos na Califórnia... Chocalho nesta velha casa, que é quilómetros grande de mais para mim, mas a cidade é simpática, é o único lar que conheci e detesto a ideia de a deixar... ‑ Riu‑se de novo, de mansinho. ‑ Aí tens, Roger, os dois minutos da vida de Manfred Weinstein. Não há muito que dê para um livro, pois não?
‑ Da maneira como expuseste as coisas, não. Manfred soltou uma pequena gargalhada.
‑ Uma das razões por que sempre gostei de ti foi por nunca teres permitido que me enchesse de vento, nem mesmo na época em que atingi .356, no meu ano de caloiro. Agrada‑me verificar que não mudaste.
‑ Conheço outro polícia que esteve nos Fuzileiros ‑ disse Damon, a compreender subconscientemente que estivera a comparar o brando velho que estava sentado à sua frente, à mesa da cozinha, e que parecia o benigno avô de qualquer pessoa, e o ríspido e empedernido tenente Schulter. ‑ Um homem chamado Schulter.
Weinstein pareceu surpreendido.
‑ Ouvi falar dele. Recebíamos memorandos seus. Homicídio, Nova Iorque.
‑ É esse o homem.
‑ Que raio tens tu a ver com um detective de Homicídios?
Damon suspirou.
‑ É uma história comprida.
‑ Dispomos do dia todo. Pelo menos eu disponho. - Agora havia um brilho duro nos olhos de Weinstein
e, por instantes, Damon viu o sargento artilheiro, o detective de grande cidade, e calculou que não devia ter sido agradável lidar com Manfred Weinstein quando ele investigava um caso.
‑ Bem, começou por um telefonema...
Depois Damon contou tudo: a ameaça de Zalovsky, o recado deixado na máquina de atender o telefone, as conversas com Schulter, as listas ‑ tudo menos os seus sonhos, o encontro na rua com um homem que morrera havia anos, o rapaz com a luva de basebol na 6.a Avenida e que voltara a ver havia escassos minutos, a montar numa bicicleta três portas abaixo da casa onde se encontravam. Weinstein escutou atentamente, a perscrutar o rosto do amigo enquanto ele falava, como se procurasse pistas, e a dar a impressão de que, embora fisicamente fossem tão diferentes, psiquicamente Weinstein e Schulter compartilhavam muitas características. Aquilo a que os Franceses chamavam la déformation du métier. Afinal, lembrava‑se de mais francês do que imaginava.
‑ Na realidade ‑ prosseguiu Damon ‑, as pessoas em que a minha mulher e eu pensámos como possibilidades não valem grande coisa como ameaças. Podem antipatizar comigo o suficiente para desejarem aborrecer‑me um bocado, mas mais nada. Tentei apenas desenterrar alguns nomes para o Schulter. Para dizer a verdade, Manfred, a minha impressão é de que toda esta coisa foi inventada ‑ disse, sabendo que estava a repetir‑se. ‑ Para descobrir de quem se trata, acho que tanto me vale usar uma dessas tábuas dos espiritas como escolher um nome ao acaso na lista telefónica. Se não estivéssemos no século XX, experimentaria a religião e pediria ao papa que exorcismasse o Demónio. Demónio, Damon... Há uma certa semelhança, não há?
‑ Que sentes intimamente, nas tripas? ‑ perguntou Weinstein. ‑ Eu guiar‑me‑ia por isso.
Damon hesitou, pensou nos sonhos e nas aparições dos dias e das noites decorridos desde o primeiro telefonema.
‑ Creio que anda por aí alguém que me quer matar ‑ respondeu.
‑ Isso é suficientemente simples para mim. Como vais resolver o assunto quando voltares a Nova Iorque?
‑ Já decidi. Da próxima vez que ele telefonar, sejam que horas forem do dia ou da noite, irei ao seu encontro. Acabarei com o caso de uma vez por todas.
‑ Disseste isso ao Schulter?
‑ Ainda não.
‑ Tencionas dizer‑lhe?
‑ Tenciono.
‑ Queres saber o que ele dirá quando o informares?
‑ Havia uma nota ríspida na voz de Weinstein. ‑ Dirá exactamente o que te vou dizer agora: estás doido. Além de tudo o mais, o tipo estará armado. E provavelmente, ainda por cima, é chalado de todo. Terias sorte se ele se limitasse a raptar‑te e a esconder‑te em qualquer lado à espera do dinheiro do resgate, se é dinheiro que pretende. Não sei o que tens andado a fazer nem o que tens lido ultimamente, mas não sabes que, hoje em dia, as pessoas se esfaqueiam e baleiam por toda essa América por causa de um lugar de estacionamento, um dólar e uns trocos, um maço de cigarros, ou porque alguém é branco e outro alguém é preto?
‑ Tenho de resolver o assunto de uma maneira ou de outra, Manfred ‑ teimou Damon. ‑ Está a dar comigo em louco. Tenho a impressão de estar a viver numa casa assombrada e de, algures, alguém estar a espetar alfinetes num boneco, numa praga de vodu, e que o boneco sou eu.
Weinstein levantou‑se, deitou café na caneca de Damon e depois na sua. Repôs a cafeteira no fogão e adoçou o café. O bater leve da colher contra a caneca era o único som que se ouvia na casa vazia. Inclinou a cabeça para trás e olhou preocupadamente para o tecto, como se estivesse absorto em profundos pensamentos, a tentar resolver qualquer problema complicado. Esfregou o lado da cara e a barba de um dia produziu um som áspero contra a palma da sua mão.
Damon observava‑o em silêncio, meio arrependido de ter saído do carro para sobrecarregar aquele velho amigo acidentalmente reencontrado com o seu problema, mas ao mesmo tempo aliviado por estar a compartilhá‑lo com um homem que levava a peito a sua sobrevivência e que passara uma boa parte da vida a lidar com criminosos e a metê‑los na prisão.
Por fim, Weinstein falou vivamente e com autoridade:
‑ Não há maneira nenhuma... não há maneira nenhuma de te encontrares sozinho com quem quer que é. Escuta o que vamos fazer: vamos juntos para Nova Iorque e eu ficarei contigo. Noite e dia...
‑ Mas... ‑ começou Damon a protestar.
‑ Nem mas, nem meio mas.
‑ Podem passar semanas, meses, antes de o homem me telefonar. Talvez até nem volte a telefonar. Não posso afastar‑te da tua casa, expor‑te ao perigo...
‑ Uma coisa que não me falta é tempo ‑ interrompeu‑o Weinstein.
‑ O apartamento é pequeno. A Sheila e eu dormimos numa cama de casal. O único lugar que te poderia oferecer para dormires seria o sofá do pequeno quarto que utilizo para trabalhar...
‑ Tenho dormido em terreno mais duro. De resto, devo‑te um favor depois de todas aquelas tardes que perdeste a lançar‑me grounders.
‑ Que grande favor! ‑ exclamou Damon, ironicamente. ‑ Não existia nenhum perigo de seres morto se eu batesse mal na bola.
‑ Bebe o teu café, que está a ficar frio ‑ disse Weinstein, enquanto sorvia o dele. ‑ Não tenho nada que fazer aqui... e agrada‑me a ideia de tirar mais um filho da puta das ruas. ‑ Sorriu, como uma criança satisfeita. ‑ Será um prazer. Se ele criar problemas, terei a minha pistola comigo. ‑ Voltou a sorrir, agora maldosamente, como se estivesse a prometer a si próprio um mimo especial. ‑ Já é tempo de tirar esta peida velha da prateleira. Até já me sinto mais novo! É melhor telefonares à tua mulher e dizeres‑lhe que vais levar um hóspede. Aliás, também é tempo de eu conhecer a dama.
‑ Está bem, está bem ‑ concordou Damon. ‑ Se queres proceder como um grande idiota, fico‑te grato.
‑ Quando queres ir? Tens mais alguma coisa a fazer aqui na cidade?
‑ Não, realmente. Fiz o que vim cá fazer ‑ respondeu Damon, a pensar nos ramos de lilases nas sepulturas. ‑ Andava apenas a admirar as vistas, quando te
encontrei.
‑ Obrigado por nada, velho compincha ‑ agradeceu Weinstein, a sorrir. ‑ Só preciso de me barbear e vestir como um cavalheiro e lubrificar a pistola. Já te despediste do quarto?
‑ Não.
‑ Se vieres buscar‑me daqui a uma hora, estarei pronto. Tens a certeza de que sabes o caminho de regresso?
‑ Se me perder, perguntarei o caminho, Manny. Damon sorriu. Weinstein tornara claro que ninguém o podia tratar por Manny em vez de Manfred, e Damon só o fizera duas ou três vezes, quando estava exasperado com o amigo ou pretendia arreliá‑lo. Depois falou com mais gravidade:
‑ Pensas realmente que precisarás de uma arma?
‑ Não estamos na Inglaterra, Roger. Nos Estados Unidos da América os polícias usam armas. Se as deixassem em casa 24 horas, teríamos outra Véspera de São Bartolomeu em todas as cidades do país.
‑ Alguma vez mataste alguém? ‑ Damon arrependeu‑se logo de ter feito semelhante pergunta.
‑ Estive nos Fuzileiros. Não estávamos lá para jogar pinguepongue ‑ respondeu Weinstein, e pareceu divertido.
‑ Referia‑me à vida civil.
‑ Vida civil é coisa que não existe para os polícias. Dois. Matei dois homens naquilo a que chamas vida civil. Só posso dizer que o mereceram. E ganhei uma medalha por cada um dos sacanas. Não te preocupes. Não dispararei se não tiver de disparar. E tentarei restringir os estragos ao mínimo.
‑ Com uma coisa estou satisfeito, velho shortstop: que estejas do meu lado. ‑ Damon levantou‑se e Weinstein levantou‑se também. ‑ Escuta, Manfred, já te devia ter perguntado uma coisa...
‑ O quê? ‑ Weinstein olhou‑o, desconfiado.
‑ Como está a Elsie?
‑ Morta ‑ respondeu o outro sem rodeios. ‑ Mudou de religião, tornou‑se cientista cristã, recusou‑se a ir ao médico e morreu há dezasseis anos. Mais perguntas? ‑ A sua voz tornara‑se áspera.
‑ Não. ‑ Mais um sonho, pensou Damon, outra sombra no cortejo. ‑ Ela alguma vez foi à Europa?
‑ Não. Casou com um merda, em Boston, um gajo que nunca aguentou um emprego mais de duas semanas, e teve de o sustentar. Era um escritor de meia‑tigela que fazia muito barulho com o facto de ser ateu e troçava dos Judeus porque, dizia, tinham imposto a praga do cristianismo ao mundo ‑ palavras textuais. A Elsie teve de me segurar mais de uma vez para evitar que desse uma tareia ao filho da puta. Creio que ela se tornou cientista cristã por causa dele. O idiota ainda vive. Sacana de azar. A última vez que ouvi falar dele fiquei a saber que organizava aqueles grupos onde toda a gente apalpa toda a gente. As coisas em que as pessoas caem quando deixam de acreditar em Deus! E tu, Roger? ‑ perguntou, provocador.
‑ Meio por meio.
‑ Sempre é melhor que zero a zero ‑ comentou Weinstein. ‑ Se eu mudasse de religião seria para me tornar católico. Eles perdoam aos pecadores, e todos nós podemos usar um pouco de perdão. Esfalfei‑me a tentar convencer a Elsie de que, se não queria continuar a ser judia, devia procurar os padres. É uma religião que tem forma e rituais e uma história profunda, e pelo menos a música é melhor nas igrejas. ‑ Riu amargamente. ‑ Porque se separaram vocês?
‑ Preferia não dizer. ‑ Não se podia contar a um homem religioso que, com a idade de 18 anos, a irmã ameaçara cometer suicídio por causa das consequências de uma ligação amorosa com o melhor amigo dele.
‑ Bem, evitaste muitos problemas a ti mesmo. Ela era uma grandíssima idiota. Em muitas coisas. Agora pira‑te daqui para fora. E guia com cuidado. Não quero que partas o pescoço e me prives de me divertir. Eu acompanho‑te ao carro.
Saíram para a rua soalheira e Damon meteu‑se no automóvel. Antes de ligar o motor, olhou pensativamente para Weinstein.
As rugas da idade, dos desgostos e da violência estavam profundamente gravadas no seu rosto, mas os frios olhos azuis eram juvenilmente límpidos.
‑ Eras um rapaz tão sossegado e pacífico! ‑ comentou ‑ Não me lembro de te ter visto metido numa briga. Quem imaginaria que virias a transformar‑te num pássaro
velho tão duro?
- Eu ‑ respondeu Weinstein, a sorrir.
NO motel, Damon ligou para o seu escritório e falou com Oliver.
‑ Onde está você? ‑ perguntou‑lhe o sócio, preocupado (quando estava nervoso, como naquele momento, a voz de Oliver tornava‑se alta e aguda).
‑ Fora da cidade. Mas não muito longe. Chegarei depois do almoço.
‑ Como está a mãe de Sheila?
‑ Na mesma. A Sheila tem de continuar em Burlington pelo menos até quarta‑feira.
‑ Fica comigo e com a Doris esta noite ou quer que eu vá para sua casa?
‑ Nem uma coisa, nem outra.
‑ Roger, a sua mulher vai ficar zangada comigo ‑ disse Oliver, em tom de censura. ‑ Vai pensar que os abandonei, a você e a ela... e culpar‑me‑á se lhe acontecer alguma coisa.
‑ Não pensará coisa nenhuma e não culpará ninguém. Tenho um amigo que vai ficar comigo.
‑ Não está a inventar isso, pois não?
‑ Alguma vez lhe menti?
‑ Só às vezes.
‑ Desta vez, não minto ‑ respondeu Damon, a rir.
‑ O Proctor telefonou e quer que você lhe telefone. Diz que é importante. Tem de tomar uma decisão antes do fim‑de‑semana.
‑ Ligue para ele e diga‑lhe que eu telefono esta tarde. E deixe de se preocupar.
‑ Tentarei ‑ prometeu Oliver, sem convicção. Damon desligou, acabou de fazer a mala, pagou a conta e foi buscar Weinstein para a viagem até Nova Iorque.
Quando chegaram ao apartamento, Damon ficou surpreendido por encontrar o vestíbulo cheio de caixas empilhadas, de livros e discos, além das caixas contendo o casaco de peles para Sheila, os presentes para Oliver e Miss Walton, o casaco de bombazina que comprara para si próprio e as duas garrafas de champanhe que levara para casa e que já não estavam frescas, evidentemente. Tinha‑se esquecido da sua fúria aquisidora e não se lembrara de deixar instruções à mulher da limpeza acerca do que devia fazer às coisas.
‑ Que é isto, homem? ‑ perguntou Weinstein. ‑ Manhã de Natal?
‑ Ontem comprei umas coisas... ‑ Teria sido apenas na véspera? Parecia‑lhe que tinham passado meses. ‑ Algumas coisas necessárias à vida. Livros, discos, coisas assim.
‑ Que é aquilo? ‑ perguntou Weinstein, a apontar para uma grande caixa.
‑ Deve ser o gira‑discos que encomendei.
‑ Mas que estás tu a fazer? A preparar‑te para um ataque nuclear?
Damon riu‑se.
‑ Não é assim tão grave. São coisas que levarei para a nossa casa de Old Lyme. ‑ No caminho, falara a Weinstein da casa e dissera‑lhe também por que motivo não veria Sheila naquela noite. ‑ É para quando me retirar para as florestas, para me recordar como era a civilização da grande cidade.
‑ A civilização da grande cidade seria muito mais suportável se fosse apenas isso ‑ comentou Weinstein secamente.
Dirigiram‑se para a sala, com Weinstein a olhar apreciadoramente em seu redor, e por fim entraram no pequeno aposento onde Damon costumava trabalhar.
‑ Lamento, mas será aqui que terás de dormir ‑ disse Damon, a apontar para o sofá estreito e curto.
‑ Felizmente, não cresci tudo quanto tinha a crescer... Serve. Desde já te aviso de que ressono.
‑ Fecharei a minha porta.
‑ A minha mulher costumava dizer que o meu ressonar se ouvia em Poughkeepsie. Uma porta é uma bagatela. A propósito, notei que tens duas fechaduras na porta principal e que a de cima é nova. Colocaste‑a há pouco tempo?
‑ Depois do primeiro telefonema.
‑ Quantas pessoas têm chaves?
‑ Apenas a Sheila, eu e a mulher a dias.
‑ Talvez fosse boa ideia eu falar com a mulher a dias. Damon riu‑se.
‑ É uma negra grande e gorda, com uma formidável voz de contralto. Canta no coro da sua igreja, no Harlém. Já fomos ouvi‑la diversas vezes. Trabalha para nós há 15 anos e costumamos deixar por aí dinheiro, as jóias da Sheila... Nunca tocou em nada. A única coisa errada que deve ter feito em toda a sua vida é desafinar quando está constipada.
‑ Está bem ‑ disse Weinstein. ‑ Podemos riscar um contralto. No entanto, não confies muito em fechaduras.
‑ Não confio. É por isso que estou contente por te ter cá. mesmo com o risco de não conseguir dormir.
Nesse momento o telefone começou a tocar em ambas as linhas, na do quarto e na da sala. Weinstein olhou interrogadoramente para Damon.
‑ Vais atender?
‑ Com certeza. O meu amigo de Ma Bell nunca telefona de tarde.
Era Sheila:
‑ Telefonei para o motel de Ford's Junction e disseram‑me que tinhas partido. Calculei que estarias em casa a esta hora. O Oliver está contigo?
‑ Não.
‑ Prometeste‑me que não estarias no apartamento sozinho ‑ lembrou‑lhe, zangada.
‑ Não estou sozinho, tenho um velho amigo comigo. Lembras‑te de Manfred Weinstein, de Ford's Junction? Falei‑te dele, de quando fomos miúdos juntos. Sucede que ele é detective reformado e teve a bondade de se agarrar a mim como uma sanguessuga, por amor dos velhos tempos. E está bem armado. ‑ Damon falava em tom ligeiro, como se ter um convidado que usava um coldre axilar com uma pistola de cano curto, calibre .38, fosse uma coisa muito divertida.
‑ Não estás a inventar? ‑ perguntou Sheila, desconfiada. ‑ Para eu não me preocupar?
‑ Vou deixar‑te falar com ele. Manfred, vem falar com a dona da casa.
‑ Minha senhora ‑ disse Weinstein, com o vozeirão do costume ‑, permita que lhe agradeça a sua hospitalidade.
Se o volume fosse tranquilizador, Sheila deveria sentir‑se tranquilizada, pensou Damon. O amigo soava como um baixo de 100 kg.
Weinstein escutou um momento e Damon, que estava parado ao lado dele, captou a ansiedade da voz de Sheila, embora não conseguisse compreender as suas palavras.
‑ Não se preocupe, minha senhora, ele estará tão em segurança como um bebé nos braços da mãe. Espero ter o prazer de a conhecer muito em breve. ‑ Passou o telefone a Damon. ‑ Ela quer falar contigo.
‑ Roger, é muito amável da parte de Mr. Weinstein oferecer‑se para tomar conta de ti, mas eu gostaria de poder regressar imediatamente e ver com os meus olhos. A mãe continua na mesma. Comatosa, dizem os médicos, seja o que for que isso realmente significa. Vem um grande especialista de Boston, na terça‑feira, e eu tenho de ficar cá pelo menos até ele a examinar. Telefonei para a escola e disseram‑me que estão a passar bem sem mim. É agradável sabermos que não somos indispensáveis. ‑ Riu‑se ironicamente.
‑ A mim és‑me indispensável.
‑ E tu a mim, que pensas que és? ‑ A voz de Sheila descera para um murmúrio. ‑ Mr. Weinstein não vai fazer nada temerário, pois não?
‑ Só te posso dizer que em rapaz ele era muito cuidadoso ‑ respondeu Damon, a tentar brincar ‑, e que quase não envelheceu. Não te apresses a regressar por minha causa. Estou bem. Como o Manfred disse, estou como um bebé nos braços da mãe.
‑ Gostaria de poder acreditar nisso ‑ redarguiu Sheila, angustiada. ‑ Enfim, não te embebedes com o teu amigo detective.
‑ Ele só bebe café.
‑ Não bebas demasiado café. ‑ A recomendação foi feita como quem diz um gracejo triste.
‑ E tu não te portes como uma mãe judia ‑ redarguiu Damon, num gracejo ainda mais triste; mas Sheila riu‑se, embora com pouca convicção.
‑ Passa bem, querido. E telefona muitas vezes. É o único raio de luz nesta escuridão.
‑ Desejo que o especialista de Boston ajude.
‑ Não está ninguém muito optimista. O pior será se ela tiver de ficar assim, como está agora. Durante meses, anos... ‑ A voz de Sheila entrecortou‑se. ‑ É horrível. Tenho medo de entrar no quarto dela. Recordo‑a constantemente como uma mulher jovem e bonita. E ainda por cima aqui está a chover. Como está em Nova Iorque?
‑ Bom tempo. Um pouco enevoado.
‑ Diverte‑te com o teu amigo. Ainda bem que o encontraste. Diz‑lhe que gostei do som da sua voz, que gosto de um homem que fala alto e claro. Diz‑lhe também que espero não tenha de utilizar a arma.
‑ Dir‑lhe‑ei.
‑ Agora tenho de me despedir. Estou a falar de uma cabina do hospital e está uma senhora à espera, para telefonar também. ‑ Infantilmente, mandou‑lhe um beijo pelo telefone.
Damon desligou, devagar.
‑ As coisas não estão a correr muito bem em Burlington, pois não? ‑ perguntou Weinstein, que observara as várias expressões do rosto de Damon, enquanto ele falava ao telefone.
‑ Velhice... ‑ A mãe de Sheila era poucos anos mais velha do que ele e a triste palavra de Damon foi dita tanto em intenção dele como dela.
‑ Que queres que eu faça agora? Posso ajudar‑te a arrumar toda aquela cangalhada do vestíbulo... e ligar o gira‑discos. Tenho muita habilidade para fazer coisas desse género, em casa, e lembro‑me de que em rapaz eras um desajeitadão.
‑ Não mudei ‑ assegurou‑lhe Damon. ‑ A Sheila não me deixa colocar sequer uma lâmpada. Mas estou com fome e apetecia‑me almoçar. ‑ Tomara o pequeno‑almoço cedo e já passava da uma hora da tarde. ‑ E tenho de levar o carro à agência Hertz.
Depois acho que será melhor aparecer no escritório. Há dias que faço gazeta e o trabalho deve estar empilhado na minha secretária.
‑ óptimo ‑ redarguiu Weinstein. ‑ Também tenho fome e gostaria de ver como é o teu escritório, de ter uma pequena conversa com o teu sócio...
‑ Não exageres. Eu já o enervei bastante. ‑ Damon lembrou‑se, envergonhado, do seu comportamento nas últimas semanas. ‑ Tenho sido uma alma penada, no escritório, e ele é um rapaz tímido, estudioso e muito meu amigo, e eu receio que ele pense que estou a perder o juízo.
‑ Não te preocupes ‑ tranquilizou‑o Weinstein. ‑ Não haverá nenhum terceiro grau. ‑ Depois acrescentou: ‑ Por enquanto.
Quando chegaram ao escritório, depois do almoço, Damon apresentou Weinstein como um cavalheiro que ia fazer umas leituras suplementares para eles, pois desde o êxito de Threnody o volume dos manuscritos que chegavam mais do que duplicara. Mr. Weinstein faria a sua leitura no escritório, durante algum tempo, para se habituar à sua rotina. Damon sabia que a explicação parecia peculiar, mas era melhor do que dizer aos seus companheiros de trabalho que de um momento para o outro se podiam encontrar na linha de fogo de um tiroteio.
Depois deu a Miss Walton e a Oliver os seus presentes.
‑ Sei que tenho sido praticamente impossível de aturar nos últimos dias ‑ explicou ‑, e isto é apenas uma modesta tentativa para os recompensar disso.
Miss Walton tentou conter as lágrimas, com êxito moderado, quando abriu a caixa e viu o casaco de malha de casimira. O queixo tremeu‑lhe quando beijou timidamente Damon, coisa que só costumava fazer quando ele lhe dava as broas em dinheiro, no Natal. Insistiu em vestir imediatamente a prenda.
‑ Que maneira delicada de me dizer que esta coisa velha e andrajosa ‑ levantou desdenhosamente o volumoso casaco castanho‑escuro, feito à mão, que usara durante quase dois anos ‑ era uma ofensa para a vista!
‑ Meteu o casaco velho no cesto dos papéis, deu uma gargalhadinha e acrescentou: ‑ Adeus, miserável farrapo! Oliver rasgou o embrulho do livro de Yeats antes de olhar para a caixa maior, com o casaco azul, que Damon lhe dera ao mesmo tempo. Como de costume, notou Damon, interessado, os livros estavam à frente de tudo o mais, para o seu sócio albino. Oliver olhou repreensivamente para Damon, quando leu o título.
‑ Roger, julgava que eu não tinha um exemplar do Yeats em casa?
‑ Aposto dez dólares em como, quando o procurar, verificará que alguém lho pediu emprestado e se esqueceu muito convenientemente de o devolver.
Oliver riu‑se.
‑ Por pensar nisso, há realmente muito tempo que não o vejo.
Depois abriu a caixa grande, tirou o casaco e vestiu‑o. Assentava perfeitamente. Despiu‑o e foi pendurá‑lo no armário, com todo o cuidado.
‑ É bom de mais para os dias de semana ‑ observou. ‑ É uma prenda extravagante, Roger, mas estou contente por você ter «entrado». No entanto, vai‑me custar dinheiro... ‑ Sorriu, grato, e Damon receou que ele também estivesse à beira das lágrimas. ‑ A minha mulher vai ficar com inveja e terei de comprar um igual para ela.
‑ Não lhe custará um cêntimo. Eu compro um para ela, também ‑ decidiu Damon, esbanjador. ‑ Pela maneira como o tenho tratado, calculo que você deve ter sido difícil de aturar em casa, ultimamente. Diga‑lhe que é uma oferta de paz do patrão. E agora vamos lá trabalhar.
Depois escolheu na rima de manuscritos um romance de mil e duzentas páginas de alguém cujo nome lhe era totalmente desconhecido e deu‑o a Weinstein, que já se instalara no sofá que ficava voltado para a porta.
‑ Toma ‑ disse Damon. ‑ Isto deve manter‑te ocupado o resto da tarde.
Depois despiu o casaco, pendurou‑o e sentou‑se à secretária. Viu que Weinstein conservava o casaco vestido e desejou que Oliver não especulasse quanto à razão do formalismo do indivíduo. Quando Weinstein saiu alguns minutos do escritório para ir ao lavatório, Oliver foi à secretária de Damon e disse em voz baixa, para que Miss Walton não o ouvisse:
‑ Onde descobriu aquele tipo?
‑ É um velho amigo meu. Especializou‑se em literatura inglesa e é particularmente bom em ficção policial.
‑ Não tem nada tipo literário.
‑ Nem você. Hoje em dia, há tipos literários de todos os tamanhos.
‑ Quanto lhe pagamos? ‑ Uma vez por outra, Oliver tentava comportar‑se como um sócio.
‑ Nada. Veremos como ele se safa. Até tomarmos uma decisão definitiva, pagar‑lhe‑ei do meu próprio bolso. Oliver começou a protestar, mas Damon calou‑o:
‑ É justo que assim seja. Se estamos sobrecarregados de trabalho é porque eu descurei tudo durante tanto tempo. Caluda. Ele vem aí.
Pouco antes da hora de encerramento do escritório, Schulter telefonou.
‑ Tenho algumas notícias para si, Damon. Pode encontrar‑se comigo daqui a dez minutos? No mesmo lugar da outra vez.
O tom da voz do detective causou a Damon um calafrio de apreensão.
‑ Pois sim. Levarei um amigo, se não se importa.
‑ Ele sabe calar‑se?
‑ Garanto‑lho.
‑ Dez minutos ‑ repetiu Schulter, e desligou. Estava sentado no bar, com o mesmo sobretudo abotoado até acima e o ridículo e minúsculo chapéu. Parecia ominoso e ameaçador, quando Damon e Weinstein entraram. Não se levantou para os cumprimentar nem estendeu a mão quando Damon lhe apresentou Weinstein. Limitou‑se a rosnar qualquer coisa e a sorver o seu café. A criada aproximou‑se e Weinstein pediu um café. Damon pediu uma cerveja. Sempre que falava com Schulter ficava com a garganta seca.
‑ Mr. Weinstein sabe quem o senhor é ‑ informou Damon. ‑ Numa base profissional.
‑ Que quer dizer com isso? ‑ perguntou Schulter, desconfiado. ‑ Profissional?
‑ Foi detective da força policial de New Haven. Agora está reformado. Conheço‑o desde garoto. Veio viver comigo... enfim, ser uma espécie de guarda‑costas... até o nosso pequeno problema se resolver.
Schulter olhou com novo interesse para Weinstein, que olhava em seu redor, muito atento, a registar tudo: os outros clientes e os movimentos da criada e do empregado do balcão.
‑ Está armado? ‑ perguntou Schulter.
‑ Estou ‑ respondeu Weinstein, agora a olhá‑lo e a sorrir ao de leve.
‑ Acho melhor.
‑ Cortesia do Departamento de Polícia de New Haven.
‑ Importa‑se que me informe a seu respeito em New Haven?
‑ Não me importo nada. O primeiro nome é Manfred.
‑ Nunca ouvi falar de nenhum detective chamado Manfred.
‑ Há uma primeira vez para tudo. ‑ Weinstein sorriu um pouco mais.
‑ Quais são as suas notícias, tenente? ‑ perguntou Damon.
Schulter esperou que a criada pousasse o café de Weinstein e a cerveja de Damon. Quando ela se foi embora, disse:
‑ É a respeito dos Larches. Mrs. Larch foi internada num manicómio há dois dias.
‑ Oh, Cristo! ‑ exclamou Damon.
A apreensão que sentira ao falar com Schulter pelo telefone justificava‑se. Desde o primeiro telefonema de Zalovsky, a tragédia alastrava à sua volta como as ondas cada vez mais distanciadas provocadas pelo arremesso de uma pedra a um lago. E ele era a pedra.
‑ Encontraram‑na a passear‑se na rua toda nua ‑ informou o tenente. ‑ Veio a saber‑se que se tratava com um psiquiatra havia um ano. O psiquiatra diz que ela é esquizofrénica. Achei que você devia saber.
‑ Obrigado ‑ agradeceu Damon, tristemente.
‑ A propósito ‑ prosseguiu Schulter ‑, o psiquiatra diz que Mrs. Larch nunca falou ao marido acerca de quem era o pai do filho. Foi tudo invenção dela. Mr. Larch
continua a ser doido pelo miúdo, segundo afirmam todos os vizinhos.
‑ Mais uma vez, obrigado. Weinstein parecia intrigado.
‑ Quem é Mrs. Larch, Roger? E que tem ela a ver contigo e com o tenente?
‑ Depois explico‑te.
‑ Você tem algumas novidades, Damon? ‑ indagou Schulter. ‑ Mais algum telefonema?
Damon abanou a cabeça.
‑ Nenhuma novidade. Nenhum telefonema.
‑ Aconselho‑o a manter a sua mulher afastada do caminho durante uns tempos. ‑ Não era um conselho, mas sim uma intimação.
‑ Neste momento, ela encontra‑se fora da cidade.
‑ Tente mantê‑la onde está. Bem... ‑ Schulter levantou‑se e enfiou o absurdo chapéu na cabeça, com força. ‑ Vou andando. Detective ‑ disse a Weinstein, com laivos de malícia na voz ‑, não dê nenhum tiro na perna quando puxar do brinquedo.
‑ Tentarei evitá‑lo ‑ redarguiu Weinstein, afavelmente. ‑ Não cometi erros nenhuns. até agora.
Schulter olhou para baixo, carrancudo.
‑ Espero que tenham sorte. Acabem de beber. Informem‑me se acontecer alguma coisa.
Damon e Weinstein seguiram com o olhar as costas largas e provocantes do detective, enquanto este saía do bar.
‑ Um gajinho cordial, não é? ‑ comentou Weinstein. ‑ Não parece ser admirador da força policial de New Haven. Agora fala‑me de Mrs. Larch.
Damon contou‑lhe. Weinstein escutou‑o em silêncio. Enquanto falava, Damon via a expressão de crescente reprovação do rosto do amigo. Quando acabou, o detective disse:
‑ Para um homem adulto, não há dúvida de que procedeste como um grandíssimo idiota! Deixaste a gaita pensar pela família. Tiveste sorte em a mulher ter dito apenas ao psiquiatra. Caso contrário, não censuraria o marido se ele viesse por aí abaixo para te meter uma bala no corpo.
‑ Não sejas um chato de um rabino ‑ redarguiu Damon, irritado.
‑ Nunca te escapuliste para passar uma tarde com uma rapariga? Se me disseres que não, não te acredito.
‑ Pelo menos tive cuidado. Não tenho filhos ilegítimos com o nome de outro homem por aí à solta.
‑ És um felizardo. Reza pela salvação da minha alma da próxima vez que entrares numa sinagoga.
‑ Acalma‑te, compincha ‑ pediu Weinstein. ‑ O que está feito, está feito. O que é preciso agora é planearmos o que devemos fazer.
‑ Tens razão ‑ concordou Damon, ligeiramente apaziguado.
‑ Pensas que isto podia ser a última gota de água para o marido? ‑ perguntou Weinstein. ‑ A mulher no manicómio e tu com o retrato nos jornais e histórias a alardear que és um grande homem e estás a ganhar um balúrdio de massa?
‑ Quem sabe? Penso que lhe devia telefonar.
‑ Para quê? ‑ perguntou Weinstein, surpreendido.
‑ Para lhe dizer a verdade, por exemplo. Certos homens ‑ como eu, por exemplo ‑ têm o hábito de examinar a sua consciência.
‑ Consciência uma porra! ‑ barafustou Weinstein, impaciente. ‑ Que vem a ser isto? O Yom Kippur, o Dia da Expiação dos goyim? Se, antes, o gajo teve alguma razão para te dar um tiro, seria dez vezes mais provável que o fizesse se lhe telefonasses. O homem já tem problemas suficientes. Só para satisfazeres uma ideia louca e egotista de como um sedutor correcto se deve comportar, ias pôr‑lhe outra macaca às costas. De resto, pelo que disseste, a dama tinha mais de 21 anos e sabia muito bem o que estava a fazer. E como diabo sabes que onze outros gajos não molharam a pena ao mesmo tempo?
‑ Claro, é uma possibilidade ‑ admitiu Damon.
‑ Muito mais do que uma possibilidade. Ela pode estar gagá agora, mas não estava gagá há onze anos. Disseste ao Schulter que eu era o teu guarda‑costas. Estou a ver que tenho de ser também o teu guarda‑miolos. Damon estava abalado com a veemência de Weinstein e, ao mesmo tempo, magoado com as suas sarcásticas referências à sua consciência.
O amigo da mocidade tornara‑se um acusador e, por momentos, lamentou que o tivesse reconhecido quando ia a passar de carro pelo relvado onde Manfred estava a cavar um canteiro de flores.
‑ Falas como um chui ‑ comentou. ‑ Se o crime não consta realmente dos livros, mesmo que esteja a acontecer debaixo do teu nariz viras a cabeça e olhas para o outro lado.
‑ Tens toda a razão, falo como um chui ‑ admitiu o amigo. ‑ E um chui não anda por aí a inventar chatices. Se a consciência te atormenta, faz um donativo a um orfanato qualquer. Ou confessa‑te e admite que pecaste, mas não tencionas voltar a pecar, e mete uma nota de dez dólares na caixa das esmolas. ‑ Não havia quaisquer vestígios de amizade adolescente na sua voz. ‑ Mais uma coisa: e a tua mulher? Que pensas que ela fará? Achas que dirá: «Bem‑vindo ao lar, estou encantada por teres finalmente uma família»? Cresce, Roger, cresce. Já estás bem enterrado, não tornes o buraco ainda mais fundo.
‑ Estás a falar demasiado alto ‑ observou Damon. ‑ As pessoas estão a olhar para nós, para verem acerca de que é a berraria. Talvez chegue uma altura em que ela tenha de saber, e então falarei.
‑ Espero que nunca precises de ter essa conversa. E se precisares, certifica‑te de que não estou presente. Caminharam rapidamente para o centro da cidade, no crepúsculo que se adensava, ambos em silêncio. Quando chegaram à Rua 14, a irritação de Damon diminuíra. Olhou de soslaio para o amigo. O rosto de Weinstein estava marcado por vincos fundos de obstinação. ‑ Eh, shortstop, tréguas?
A expressão de Weinstein não se modificou logo. Depois o ex‑detective sorriu.
‑ Com certeza, velho compincha ‑ respondeu, e deu umas palmadinhas no braço de Damon.
Antes de saírem para jantar, ajudou Damon a transportar os livros para a cave e a arrumar os discos. Damon pendurou o casaco de Sheila no armário da mulher e Weinstein começou a armar o braço do gira‑discos e a torcer um arame para a antena do rádio. Não demorou muito tempo. Damon preparou uma bebida e saboreou‑a placidamente, depois de pôr a tocar o primeiro disco, o concerto triplo de Beethoven.
A meio do disco, o telefone tocou. Damon retesou‑se.
‑ Atende, anda ‑ disse‑lhe Weinstein.
Damon pousou o copo, aproximou‑se do telefone, hesitou com a mão no ar e por fim levantou o auscultador.
‑ Estou.
‑ Fala Oliver. Telefono apenas para lhe dizer que se tivesse apostado a respeito do Yeats, você teria ganhado. ‑ Riu‑se. ‑ Procurei em toda a parte: não está cá em casa. É um bibliotecário batido, velho sócio. Até segunda‑feira. Passe um bom fim‑de‑semana. Nós vamos para os Hamptons, de manhã, e quero informá‑lo de que o casaco vai ter a sua primeira saída.
Weinstein, que estivera a observá‑lo atentamente, perguntou, quando ele desligou:
‑ Então?
‑ Era Oliver Gabrielsen. A respeito de um livro.
‑ Escuta, Roger. Eu nunca atenderei o telefone. Se o tipo telefonar, não quero que ele saiba que está outro homem cá em casa.
‑ Tens razão.
‑ E não escutarei pelo segundo telefone. Não quero que ele ouça um segundo estalido.
‑ Não me teria lembrado disso.
‑ O teu negócio é outro ‑ disse Weinstein, a acenar com a cabeça.
‑ Estou a aprender depressa.
‑ Infelizmente. Espero que não tenhas de ir demasiado longe... que não passes a desconfiar de tudo e todos, sempre, como eu. Onde é a tua cozinha? Queres que prepare o jantar para nós? Desde que a minha mulher morreu, tive de aprender a ser bom cozinheiro.
‑ Não há nada cá em casa. E eu quero homenajear‑te, como convidado bem‑vindo, com um excelente jantar francês que não seja cozinhado por um detective.
‑ Eu vou sem fazer alarido, senhor agente ‑ respondeu Weinstein. ‑ Podes mandar entrar as bailarinas.
Não havia bailarinas, mas Weinstein abriu alegremente caminho através de uma malga de sopa de cebola e de um bife marchand de vin. O criado olhava‑o desdenhosamente, enquanto servia, porque Weinstein pedira um café puro assim que se sentara e depois pedira outro para empurrar o bife, enquanto Damon se regalava com meia garrafa de vinho tinto da Califórnia.
Weinstein comeu desalmadamente, devorou meia dúzia de fatias de pão com a comida e encheu a boca de garfadas de batatas fritas. Mas no fim da refeição, que coroara com uma grande fatia de tarte de maçã com sorvete e mais uma chávena de café, recostou‑se na cadeira e disse:
‑ Ah, podia ter feito verdadeira justiça a esta comida quando era jovem, ainda tinha o que se chama apetite e só dispunha de dinheiro para comer em cafetarias! Bem, se o trabalho vai ser assim, não me importarei se o tipo não aparecer antes de eu ter 90 anos! Ah, Roger ‑ baixou a voz, sentimentalmente ‑, fomos tão bons amigos... todos aqueles anos! ‑ Fez um gesto largo e envolvente com as mãos, como se quisesse abarcar todas as décadas perdidas. ‑ Porque tivemos de esperar que acontecesse uma coisa chata para nos voltarmos a ver?
‑ Porque a espécie humana nunca tem a devida consciência dos seus valores, troca‑os sempre ‑ respondeu Damon, soturnamente.
Nessa noite, o ressonar de Weinstein fez jus à descrição que a mulher dele fizera e a casa ecoou com o crescendo e o diminuendo regulares da respiração do visitante. Damon dormiu sem ter sonhos. Sem despertador para o acordar, visto ser sábado e não precisar de ir trabalhar, dormiu quase até às dez horas, coisa que nunca lhe acontecera desde que, ainda na Marinha Mercante, estivera de licença após uma viagem em que seis navios do seu comboio tinham sido afundados.
O fim‑de‑semana decorreu'agradavelmente. Damon descobriu que o amigo era um grande cinéfilo, com um apreço especial por filmes acerca de criminosos e assassinos, e ria hilariantemente nos momentos mais sérios da película, quando detectives resolviam o caso a tiro com os suspeitos ou desvendavam infalivelmente enredos tão complicados que ninguém na assistência, e muito menos Weinstein, percebia patavina. Nos intervalos, regalava Damon com histórias da sua própria vida na corporação. Damon ficou a saber, em dois dias, que New Haven não era apenas a sede da Universidade de Yale. Apreciou os dois dias e deixou de lamentar ter passado pela casa dos Weinsteins precisamente quando o seu velho amigo começava a preparar o seu jardim para as plantações da Primavera.
No domingo à noite, Weinstein insistiu em fazer pessoalmente o jantar, um estufado ianque com puré de batata, ervilhas, molho grosso e bolo de maçã para sobremesa. Com um avental à volta da avantajada cintura, mangas arregaçadas a revelar os antebraços fortes e cabeludos e a coronha da pistola a espreitar do coldre axilar preso ao peito, constituía um espectáculo incongruente na pequena cozinha, atarefado entre tachos e panelas e depois a limpar tudo perfeitamente, como o mais experiente dos chefes cozinheiros. Damon deu consigo a rir da cena, quando entrou na cozinha atraído pelos odores que pairavam no apartamento. Weinstein olhou‑o com cara de poucos amigos.
‑ Onde está a graça? ‑ resmungou.
‑ Em ti ‑ respondeu Damon, apaziguador. – Cheira deliciosamente.
‑ Rações de miséria. Devias provar as minhas refeições quando tenho à mesa comensais realmente apreciadores.
Depois do jantar, foram a um bar abaixo da Washington Square. Estava fraco, mas agradavelmente iluminado, e embora os outros bebedores ao longo do comprido balcão de mogno quase desaparecessem na distância, havia luz suficiente para ver os rostos mais próximos. Ao fundo, numa prateleira alta, havia um televisor. O aparelho estava ligado, mas sem som, misericordiosamente.
O proprietário, Tony Senagliago, era um adepto do beber sério, com gravidade. Embora estivesse disposto a satisfazer o gosto dos seus clientes pelas ofertas das cadeias de televisão, indo ao ponto de lhes proporcionar imagens silenciosas que projectavam constantemente na sala um trémulo arco‑íris de cores, compreendia que os seus melhores fregueses gostassem de beber em silêncio ou em tranquila conversa com os seus amigos. Não era um bar frequentado por pessoas à procura de raparigas ou homens. Às mulheres sozinhas, em pares ou em tercetos, eram oferecidas mesas só para elas, o mais cortesmente possível. Quando elas insistiam em ficar de pé ou sentar‑se ao balcão, Tony dizia, com ar pesaroso: «Bem, não há nenhuma lei que o proiba...», e arranjava maneira de os seus barmen as servirem com a maior letargia possível. Não tinha medo nenhum de que lhe chamassem porco chauvinista machista, e Damon simpatizava com ele e admirava‑o por isso. Era um leitor sério, e nos bons velhos tempos da Village muitos escritores tinham tido conta no seu estabelecimento, como ele dizia. Quando aparecia no escritório um livro particularmente bom, Damon entregava sempre uma cópia a Tony e depois de o homem o ler escutava com respeito as suas opiniões.
‑ Lugar simpático ‑ observou Weinstein a olhar em redor enquanto se instalavam nos tamboretes altos do balcão, ao lado um do outro.
- Passei aqui muitas tardes e muitas noites agradáveis ‑ disse Damon. ‑ Que te daria prazer? ‑ perguntou, lembrando‑se do barman do bar da 6.a Avenida onde se esquecera da máquina de atender chamadas telefónicas e onde o tinham posto sem sentidos quando tentava deter uma briga. Este bar era melhor, pensou, e a ocasião mais feliz.
Para variar, Weinstein pediu uma cerveja. Enquanto Damon sorvia o seu scotch com soda e Weinstein a sua cerveja, este disse:
‑ Creio que uma cerveja não me matará. Embora os médicos jurem que basta uma colher de chá da droga para que um alcoólico comece a escorregar de novo para a fossa.
‑ Tu? ‑ perguntou Damon, surpreendido. ‑ Alguma vez foste um bebedor?
‑ Digamos que bebia ‑ respondeu Weinstein, gravemente. ‑ Estampei‑me contra uma árvore, com a minha mulher no carro, e jurei que não voltava a beber. Foi há oito anos. Sabias que a minha mãe tinha garrafas de gim escondidas pela casa toda?
‑ Não.
‑ Pois tinha.
Damon abanou a cabeça, pasmado. Aquela perfeita e maternal senhora, de avental azul com renda, que lhes servira leite e biscoitos à tarde. A rua onde vivera em rapaz não tinha sido, afinal, tão inocente como a julgava nas suas recordações.
Depois do desacordo de sexta‑feira à noite, não tinham voltado a falar de Julia Larch e do seu filho. Damon tinha a impressão de que Weinstein estava convencido de que ele ganhara essa discussão e de que Damon desistira da ideia de comunicar com o marido de Julia. Weinstein era, obviamente, um homem que não estava habituado a perder, quando discutia.
‑ Beber ‑ dizia Weinstein ‑ é como andar de bicicleta: podemos deixar de o fazer durante muito tempo, mas nunca esquecemos como se faz. ‑ Tinha acabado de beber a primeira cerveja e pedia segunda. ‑ Se eu pedir terceira ‑ disse a Damon ‑, tens autorização minha para me partires o braço.
‑ Isso torna‑te mais humano ‑ comentou Damon. ‑ Finalmente, uma fraqueza.
‑ Se a fraqueza é humana ‑ observou Weinstein sombriamente ‑, sou tão humano como os que o são. ‑ Depois mudou bruscamente de assunto: ‑ Não creio que estejamos a enganar o teu Oliver Gabrielsen.
‑ Que queres dizer?
‑ Quando saíste do escritório para falar com Miss Walton, ele perguntou‑me porque não despia o casaco. Estava calor no escritório, alegou, e eu ficaria mais à vontade. E enquanto esteve a falar comigo não tirou os olhos do volume debaixo do meu ombro. Perguntou‑me também onde me graduei em literatura.
‑ Que lhe respondeste?
‑ Inventei um lugar em Oclaoma. Tenho de ver se não me esqueço do nome, no caso de ele voltar a perguntar‑me: Butnam Christian University. Butnam era o nome do meu chefe na Polícia.
Damon riu‑se.
‑ Se conheço bem o Oliver, ele vai investigar. E se te disser que tal universidade não existe?
‑ Respondo‑lhe que fechou durante a guerra.
‑ Não seria mais fácil dizer‑lhe simplesmente a verdade? Ele está ao corrente da maior parte do que se passa. A minha mulher informou‑o.
Weinstein pareceu irritado.
‑ Que história é essa entre ti e a verdade? Uma espécie de obsessão? Alguma vez ouviste a frase: «necessidade de saber»?
‑ Ouvi. Utilizaram‑na no Projecto Manhattan, quando estavam a fazer a bomba atómica. Dizer às pessoas apenas o que é necessário para fazerem o seu trabalho e mais nada.
‑ É uma boa norma. Em toda a parte. No governo, no trabalho policial, no casamento... Achas que a tua mulher tem necessidade de saber o que se passou entre ti e essa maluca de Indiana?
‑ Neste momento, não ‑ respondeu Damon.
‑ Que queres dizer com isso de neste momento não? Nem neste momento, nem nunca. Disseste‑me que o teu tem sido um bom casamento. Que diabo de senso haveria em estragá‑lo?
‑ Deixemos o assunto por uns tempos, está bem?
Mas, por falar de casamento, por que motivo não voltaste a casar?
‑ Gostaria de responder que sou homem de uma só mulher... Mas seria mentira. O casamento... ‑ Encolheu os ombros e bebeu um longo golo da segunda cerveja. ‑ Quem casaria comigo? Um polícia velho e gordo, com uma cara como a praia de Iwo Jima e com uma pensão, que chega à justa para viver de carne e batatas. Que te parece que conseguiria arranjar? Uma professora solteirona, rejeitada por todos os homens que conheceu; uma viúva de cabelo pintado e tetas até à cintura, que põe anúncios no jornal a pedir um cavalheiro com gostos similares; uma divorciada com cinco filhos, habituada a chuis porque o seu marido foi polícia de trânsito? Não... ‑ Bebeu um grande golo e acabou a cerveja. ‑ Tenho muito respeito por duas coisas: por mim próprio e pelo sexo. Perderia ambas se dissesse uma sacana de uma palavra: «Sim.» ‑ Olhou fixa e soturnamente para o copo vazio pousado no balcão à sua frente.‑ A religião judaica diz que quando uma esposa morre o marido deve casar com a irmã dela. Eu era muito amigo da minha mulher e não me teria importado de fazer isso.
‑ Então porque não fazes?
‑ A minha mulher não tinha nenhuma irmã. ‑ Riu‑se asperamente, como um actor a rir‑se da sua própria piada.
Quando o último som do riso emudeceu, Damon perguntou:
‑ És judeu praticante? ‑ Nunca notara quaisquer sinais particulares de religiosidade em casa dos Weinsteins.
‑ Bem... ‑ Weinstein tornou‑se imediatamente sério. ‑ Como carne de porco e a única vez que entrei numa sinagoga foi para fazer uma prisão, mas não restam dúvidas nenhumas quanto a eu ser judeu, quer goste, quer não. Li a Bíblia, mas... ‑ Abanou a cabeça. ‑ Praticante, não... não creio que ninguém me possa chamar isso. A religião... ‑ franziu a testa, como se tivesse dificuldade em exprimir os sentimentos por palavras.‑ A religião é como uma enorme nuvem redonda, com um mistério escondido no interior. ‑ Afastou as mãos, como se estivesse a segurar um grande globo invisível. ‑ Tão grande como o planeta, talvez até como o sistema solar, talvez tão grande de extremo a extremo que só possa ser medida em anos‑luz. E todas as religiões se vão arrastando do lado de fora da nuvem, lançando uma um olhar rápido a parte do que está no exterior, obtendo outra um vislumbre de outra parte num abrir e fechar de olhos, e por aí fora, mas sem que ninguém consiga ver o que está no coração da nuvem. Ou, como o caraças do meu cunhado, o ateu, costumava dizer, talvez seja tudo uma invenção para consolar a espécie humana, porque toda a gente sabe que vamos morrer e a religião impinge‑nos a Grande Mentira. Que é a Grande Mentira, perguntas. A imortalidade. ‑ Fez uma careta, como se a cerveja que acabara de beber lhe tivesse azedado no estômago. ‑ Era um tipo tão convencido que apetecia dar‑lhe um pontapé no cu. Uma coisa que não consigo suportar é ver pessoas convencidas de qualquer coisa que não podem provar com números ou aritmética, ou pelo menos com testemunhas especializadas. Digamos que, pela parte que me toca, o júri ainda não voltou para se pronunciar.‑ Brincou distraidamente com o copo em cima do balcão. ‑ Consolo. Não é uma má palavra. Mas o que sei ao certo a respeito de mim próprio é que me tornei um velho desgostoso. Nada me consola. Não me consola o facto de ir morrer. Nem de tu ires morrer. Uma coisa de que nunca me consolarei, tenho a certeza, é da morte da minha mulher. E se realmente vier a dar‑se o caso de ter uma alma imortal, esse será o pior de todos os castigos. Não quero, de maneira nenhuma, levantar‑me quando a trompa soar para o Julgamento Final. Quanto a perdão, como disse outro dia, um pouco de perdão faz jeito a todos nós... mas eu ainda não perdoei a mim próprio aquele desastrado lançamento, e já lá vão quase 50 anos. Ah!... ‑ Fez um gesto de impaciência. ‑ Conversa acervejada da hora de ir para a cama. ‑ Pediu outra cerveja ao empregado. ‑ Roger, adio a autorização para me partires o braço até à próxima cerveja. ‑ Tentou sorrir. ‑ Talvez devas perguntar ao Schulter, quando o vires, que é que o consola, a ele. Desculpa, estou a falar de mais. Acerca de coisas em que sou entendido como o caraças.
Vivo há tanto tempo sozinho que quando saio acompanhado perco o tento na língua.
‑ Eu sou casado e não vivo só ‑ observou Damon ‑, mas também perco frequentemente o tento na língua. Só queria que me ouvisses quando começo a falar de Ronald Reagan ou do teatro da Broadway. ‑ Falara em tom ligeiro, a tentar dissipar a melancolia de Weinstein, mas compreendeu que não conseguira.
‑ O mundo... ‑ disse Weinstein, tristemente. Abanou a cabeça e não continuou, como se, pelo menos naquela noite, a enormidade do mal do mundo estivesse além das suas faculdades de descrição. Virou um momento a cabeça, para ver o que se passava no écran do televisor. Era o anúncio de uma empresa cervejeira. Havia cenas brilhantemente fotografadas de homens robustos, uns brancos e outros negros, a trabalhar numa torre de petróleo, a suar saudavelmente sob o sol brilhante enquanto transportavam tubos, uniam juntas e se debatiam com válvulas gigantes. Depois, à medida que o sol se punha num clarão dourado, os homens paravam de trabalhar, largavam as ferramentas, punham os casacos de cotim e os blusões ao ombro e dirigiam‑se todos contentes para um bar onde, entre risos silenciosos e palmadas nas costas, lhes serviam espumosos copos de cerveja, que não eram vistos a beber por causa das leis da publicidade televisiva.
‑ Mas que trafulhice! ‑ rosnou Weinstein. ‑ O trabalhador americano, alegre e inter‑racial. Quem julgam que estão a intrujar? ‑ Acabou de beber a cerveja, num enorme golo. ‑ Vamo‑nos embora daqui para fora.
Era quase meia‑noite quando chegaram ao apartamento e Weinstein estava a bocejar. Antes de se dirigir para a pequena divisão onde dormia, disse:
‑ Desculpa a minha conversa fiada, no bar. De manhã serei melhor companhia. Dorme bem, rapaz.
Quando Damon se meteu na cama e apagou a luz, o ressonar do amigo já vibrava em todo o apartamento.
Acordou‑o o retinir do telefone. Estivera a dormir profundamente e teve a sensação de nadar através de águas negras para chegar à superfície.
Teve consciência de que o ressonar vindo do outro quarto parara. O mostrador luminoso do relógio da mesa‑de‑cabeceira marcava três e vinte.
‑ Damon? ‑ Reconheceu a voz. ‑ Zalovsky. Preciso de o ver. Dispõe de dez minutos. Estou perto de você...
‑ Espere um momento. Ainda estou a dormir.
Viu a porta do quarto abrir‑se e aparecer Weinstein, de pijama, recortado na luz que vinha da entrada.
‑ Ouça com atenção ‑ ordenou Zalovsky. ‑ Estarei à sua espera daqui a dez minutos, como disse. Em Washington Mews. Sabe onde é, espero.
‑ Sei onde é.
‑ É um lugar escuro e sossegado, para uma conversa séria. Se sabe o que lhe convém, não tente nenhuma gracinha. Considere‑se avisado.
‑ Estou avisado. Zalovsky desligou.
‑ Era ele ‑ informou Damon, ao repor o telefone
no descanso.
‑ Já tinha percebido.
‑ Está em Washington Mews. Passámos por lá esta noite, no regresso do bar. Entra‑se à saída da 5.a Avenida, imediatamente antes de se chegar ao largo. Há cancelas para peões, na outra extremidade.
‑ Sigo‑te. Talvez uns 70 ou 80 metros atrás.
‑ Dá‑me um pouco de tempo para falar com ele, descobrir o que quer realmente de mim ‑ pediu Damon, enquanto começava a vestir‑se.
‑ Não te preocupes. Estarei lá quando precisares de mim. Como te sentes, rapaz? Nervoso?
‑ Nem por isso. Curioso, principalmente.
‑ Excelente. ‑ Weinstein voltou ao seu quarto, para
se vestir.
Não saíram do prédio juntos. Weinstein esperou no átrio do rés‑do‑chão quase um minuto, após Damon ter saído, e depois saiu também e começou a seguir o amigo, quando este virava a esquina para a 5.a Avenida.
Havia muito pouco trânsito na avenida. Ocasionalmente, passava velozmente um carro. Damon ultrapassou as únicas pessoas à vista, dois bêbedos enlaçados pelos ombros, a cantar roufenhamente enquanto se dirigiam com passos pouco firmes para o centro da cidade. Cantavam «As the Caissons Go Rolling Along», e Damon calculou que teriam estado juntos na tropa.
Damon caminhava depressa, a sentir a cabeça desanuviada e uma grande calma. Não olhou para trás, para ver se Weinstein o seguia. Quando chegou à entrada de Washington Mews, parou. A pequena rua, que na realidade era mais um beco do que uma rua, estava quase às escuras, palidamente iluminada apenas pela ténue claridade de uma única janela com a luz acesa, perto da entrada. Damon não viu nenhum movimento em nenhum ponto da rua, que tinha somente uns cem metros de comprimento. Caminhou pelo meio dela, na direcção das cancelas do outro lado.
O som dos dois bêbedos a cantar aproximou‑se, quando se acercaram da entrada da rua, e Damon receou que, por um acaso inesperado e infeliz, um ou ambos vivessem numa das bonitas casas que ladeavam a rua empedrada. Estava a cerca de 20 metros da última casa quando uma sombra, que era apenas uma sombra ligeiramente mais carregada na escuridão, se desprendeu da entrada pouco funda de uma porta.
‑ Muito bem ‑ disse a voz sua conhecida ‑, pode parar aí.
Damon não conseguia ver a cara do homem e só podia calcular o seu tamanho e a forma do seu corpo.
‑ Finalmente ‑ disse, em tom gelado. ‑ Que diabo de história vem a ser esta?
‑ Disse‑lhe que não se lembrasse de nenhuma gracinha, não disse? ‑ A sombra aproximou‑se mais dele.
‑ Estou aqui, não estou? Sozinho. ‑ Damon reprimiu o desejo quase irresistível de se voltar um momento, para ver se Weinstein estava visível.
‑ Aqueles são seus amigos?
‑ Aqueles quem?
‑ Aqueles dois tipos que vêm a cantar.
‑ Não sei quem são. Dois bêbedos. Passei por eles no caminho para cá.
‑ Julga‑se muito esperto, não julga? Bêbedos! Onde aprendeu esse truque?
O barulho da canção aumentara e ecoava entre os edifícios.
Damon virou‑se. Os dois homens tinham parado à entrada do Mews, duas sombras escuras recortadas na luz fraca dos candeeiros da 5.a Avenida. Os bêbedos pareciam estar a fazer uma serenata aos habitantes do Mews. Depois uma sombra destacou‑se da parede de um dos edifícios próximos da entrada e foi apanhada pela claridade da única janela iluminada da rua. Era Weinstein. ‑ Foda‑se! ‑ praguejou Zalovsky, ao mesmo tempo que empurrava violentamente Damon, que chocou, meio caído, com uma porta.
Ouviu‑se um enorme barulho quando Zalovsky disparou. Damon viu Weinstein cair, atirou‑se a Zalovsky e empurrou‑o para um lado. Soou outro tiro. Ouviu‑se um grito de dor e Damon viu um dos cantores cair no chão. No mesmo momento, a luz iluminou as janelas da casa defronte da qual ele e Zalovsky estavam a lutar. Zalovsky era fortíssimo e soltou o braço das mãos de Damon. A luz estava atrás dele e Damon não conseguia ver‑lhe as feições. Zalovsky ofegava ruidosamente.
‑ Grande sacana ‑ rosnou. ‑ Não te safas com esta.
Damon começou a correr na direcção da entrada do Mews. Percorrera apenas cerca de metro e meio quando soou outro tiro. Mas desta vez vindo da sua frente. Weinstein, ajoelhado nas pedras da rua, tinha disparado. Damon ouviu um grito abafado de Zalovsky e depois o ruído de metal a cair nas pedras. Parou e voltou‑se. Zalovsky corria em sentido contrário, na direcção das cancelas das traseiras do Mews. Corria a segurar o braço direito, de modo desajeitado, mas rápido. Em dois segundos transpôs as cancelas e desapareceu.
Damon correu para onde Weinstein se encontrava, agora deitado de costas e já não ajoelhado, com o sangue a alastrar, negro, nas pedras da rua.
Ao longe, ouviu‑se o silvo da primeira sereia da Polícia.
‑ Já pode entrar ‑ disse o médico. ‑ Mr. Weinstein
Já está consciente e pergunta por si. Mas não se demore mais do que alguns minutos, por favor.
Damon estava sentado com o tenente Schulter na pequena sala de espera do andar da Unidade de Cuidados Intensivos do hospital para onde Weinstein e o cantor bêbedo atingido pela segunda bala de Zalovsky tinham sido levados. O cantor não pedira para ver ninguém: chegara morto ao hospital.
Tinha sido um longo dia. O tiroteio verificara‑se pouco depois das três e meia da manhã e agora eram sete horas da tarde. Primeiro outros detectives tinham interrogado Damon, enquanto Weinstein estava na mesa operatória, e depois aparecera Schulter e encarregara‑se do assunto. Felizmente, a polícia conseguira manter todos os jornalistas fora do hospital, mas Damon fazia uma ideia do que teriam sido as primeiras páginas dos jornais. Só conseguira telefonar a Sheila à uma hora da tarde, mas ela partira de Vermont e deveria chegar de um momento para o outro.
Schulter mostrara‑se surpreendentemente delicado e insistira em mandar vir sanduíches e café para Damon, enquanto lhe pedia repetidamente que descrevesse todos os movimentos de todos os protagonistas do tiroteio. Havia um rasto de sangue, dissera Schulter a Damon, do lugar onde a arma que Zalovsky usara tinha sido encontrada até às cancelas e daí até à beira do passeio de Waverly Place. Uma testemunha vira um homem
atirar‑se para um automóvel que lá estivera estacionado e partir. Infelizmente, a testemunha não reparara na matrícula do carro. Mais infelizmente ainda, Damon não sabia dar uma descrição do atacante, a não ser que lhe parecera de altura mediana, era entroncado e muito forte, cambaleara e quase caíra quando tinha sido atingido, mas conseguira aguentar‑se e afastar‑se. A bala devia ter‑lhe penetrado no flanco direito ou no braço direito, porque ele empunhava a arma com a mão direita e largara‑a imediatamente, após ser atingido.
‑ Não irá muito longe com um grande buraco no corpo ‑ dissera Schulter. ‑ E em breve, muito em breve, terá de arranjar um médico para o remendar e nós estaremos na sua cola dez minutos depois de ele sair do médico ou do hospital.
‑ Desejo‑lhe a maior das sortes ‑ dissera Damon. ‑ E a mim também. ‑ Não se sentia tão confiante como Schulter.
Weinstein tinha sido atingido no joelho, que ficara destroçado. Perdera rapidamente uma grande quantidade de sangue, e Schulter mostrara‑se maravilhado com o facto de, mesmo assim, ter sido capaz de disparar um tiro e atingir o homem, na luz ténue e incerta. O tenente pouca ou nenhuma importância ligara à morte do homem que cantara «As the Caissons Go Rolling Along» na entrada da 5.a Avenida de Washington Mews. Era o género de coisa que acontecia todos os dias em Nova Iorque, comentara. «A lei das probabilidades», fora a frase que empregara. Era óbvio que Schulter considerava os espectadores de casos assim como uma espécie normalmente em perigo.
Damon não o disse, mas achou que a balança actuaria pela qual o tenente avaliava as probabilidades de sobrevivência das pessoas era muito diferente da sua. No seu caso, a lei das probabilidades, nas últimas duas semanas, tinha sido monstruosamente infringida. Era verdade que o cantor matinal fora a primeira pessoa com a qual ele tivera alguma coisa a ver ao dirigir‑se para o encontro com Zalovsky, se passar por um bêbedo na 5.a Avenida, no meio da noite, podia ser descrito nesses termos, mas a estatística de Schulter não incluía as outras vítimas da lista de Damon, tais como Maurice Fitzgerald, Melanie Deal, Elsie Weinstein, Julia Larch, a mãe de Sheila e o próprio Manfred Weinstein. Sabia que estava a ser neurótico e mórbido, mas não podia deixar de sentir que quem estivesse de qualquer modo relacionado com Roger Damon podia ser uma vítima sem para tal precisar de ser realmente morto no local ou nas passadas duas semanas. O homem que tinha sido morto fora identificado. Chamava‑se Bryant e viera a Nova Iorque de Tulsa, Oclaoma, para assistir a uma conferência de quadros seguradores. Damon recordou‑se da tirada de Maurice Fitzgerald a respeito de baixas aceitáveis e perguntou a si mesmo se Schulter incluiria o infortunado Mr. Bryant entre elas.
Weinstein jazia pálido e imóvel na cama hospitalar, com tubos de drenagem e transfusão ligados ao corpo por meio de agulhas intravenosas. Tinha as faces chupadas e a sua figura inerte debaixo do lençol parecia ter igualmente minguado, mas os seus olhos, agora profundamente afundados nas órbitas, estavam alerta. Era o único doente do quarto.
‑ Como vai isso? ‑ perguntou‑lhe Damon, em voz baixa.
‑ Respiro ‑ respondeu Weinstein, baixinho.
‑ O médico disse‑me que ficarás bom.
‑ Aposto que ele diz isso a todas as pequenas. ‑ Weinstein tentou sorrir.
‑ De qualquer modo, poderás andar daqui a uns dois meses ‑ continuou Damon.
‑ Para ir aonde? E tu?
‑ Estou óptimo. Ileso.
‑ A sorte dos irlandeses. ‑ Weinstein estendeu a mão para apertar a do amigo, mas a pressão foi fraca. ‑Estava preocupado contigo. O filho da puta conseguiu fugir, não conseguiu?
‑ Conseguiu. Mas não irá longe, na opinião do Schulter. Acertaste‑lhe. Não poderá correr muito.
‑ Devia tê‑lo abatido com aquele tiro. Aquela maldita terceira cerveja! ‑ lamentou Weinstein, amargamente.‑ Depois começaste a correr direito a mim, encobriste‑o e não pude disparar segunda vez. Suponho que a seguir perdi a consciência.
Que grande guarda‑costas! Noite de amadores na Dixie.
‑ De qualquer maneira, salvaste‑me a vida. Se isso te pode servir de algum conforto.
‑ Conforto! ‑ Um som que talvez fosse uma gargalhada saiu dos lábios pálidos. ‑ Ouvi um dos tipos que estavam a cantar atrás de mim gritar. Também foi atingido?
‑ Morreu...
‑ Oh, Cristo! ‑ gemeu o ferido. ‑ Ficaste ao menos a saber alguma coisa? Quem é o sacana? Que quer?
‑ Nada. Ele estava desconfiado, pensava que os dois tipos que estavam a cantar me protegiam, e depois viu‑te.
‑ Acontece sempre uma coisa que não é possível prever... ‑ murmurou Weinstein, em voz rouca. ‑ Dois gajos que regressavam a casa de uma festa e se encontraram de repente no lugar errado e à hora errada. Sorte. ‑ Retirou a mão da de Damon. ‑ Desculpa, não posso falar mais. Encheram‑me de drogas, creio que me querem mais ou menos a dormir durante duas semanas. Cuida de ti. E não te preocupes comigo. Eu... ‑ Fechou os olhos e mergulhou num sono induzido por drogas.
Damon sentiu‑se aliviado por sair da Unidade de Cuidados Intensivos com o seu silencioso ar de tensão, as suas enfermeiras atentas a écrans nos quais impulsos eléctricos desenhavam linhas brilhantes e irregulares que descreviam a vida e a morte dos corpos grotescamente ligados, unidos por tubos de plástico a máquinas que ele vislumbrava através das portas abertas de outros quartos. «A mortalidade», pensou, ao passar pelos resíduos de humanidade reunidos na unidade, «é o ramo de negócio, aqui.»
Sheila esperava por ele com Oliver, que estava mais pálido do que nunca. Telefonara a Oliver de Vermont e ele fora esperá‑la ao aeroporto. A sua mala de viagem estava no chão, a seus pés, e a ansiedade marcava‑lhe profundamente o rosto. Abraçou Damon quando ele entrou na sala e apertou‑o silenciosamente a si.
Não podiam fazer mais nada por Weinstein naquela noite e Damon estava a cair de fadiga. Por isso, com uma última recomendação ao médico para que, no caso de surgir alguma crise durante a noite, lhes telefonar para casa de Oliver, onde este convencera Sheila de que deveriam ficar, seguiram Schulter através do labirinto de corredores até uma pequena porta das traseiras, a fim de evitarem os repórteres da entrada principal. Agora que tinha a prova de um homem assassinado e dois gravemente feridos, o ar de enfado de Schulter em relação ao problema de Damon dera lugar a uma solicitude quase paternal, e o tenente não voltou a falar de chalados que faziam dez mil chamadas telefónicas obscenas por noite em Nova Iorque. Insistiu em acompanhá‑los no táxi que os levou ao apartamento de Oliver, na parte alta da cidade, e ajudou Damon a apear‑se, como se ele fosse um inválido.
‑ Não se preocupe ‑ disse, ao despedir‑se defronte da porta do prédio ‑, aquele indivíduo não está em condições de voltar a incomodá‑lo. Se precisar de mim para alguma coisa ou se se lembrar seja do que for que lhe pareça eu deva saber, tem o número do meu telefone. Nos próximos dias será necessário assinar alguns depoimentos, mas mais nada. Ninguém vai transformar o sucedido num caso federal.
E acrescentou, dirigindo‑se a Sheila:
‑ Mrs. Damon, cuide bem do seu marido. É um homem muito valente e teve um dia terrível.
Levou a mão ao ridículo chapéu, voltou para o táxi e partiu.
Doris Gabrielsen era uma mulher pequenina, roliça e loura, com uma inflexão de voz peculiar, que fazia todas as suas frases subir, no fim. Era uma afectação que noutra altura teria aborrecido Damon, mas naquele momento a visível preocupação da mulher com o que lhe acontecera e o calor da sua recepção fizeram‑no sentir‑se grato. Havia flores a esperá‑los no quarto dos hóspedes e não se viam quaisquer jornais em lado nenhum, o que demonstrava tacto. A mesa estava posta com carnes frias, queijo e salada de batata, e Mrs. Gabrielsen deu a Damon um scotch com pouca soda, antes de se sentarem para comer. Serviu bebidas aos outros e a si própria e, antes de beber, ergueu o copo e brindou:
‑ A melhores dias. E à saúde de Mr. Weinstein.
‑ Ámen ‑ disse Oliver.
O uísque queimou, ao descer pela garganta de Damon, mas passado um ou dois minutos o efeito fez‑se sentir, uma sensação agradável de distanciação, quase de sonho, uma sensação que era confortante e relaxante, a impressão de que já não era responsável por si próprio, de que se encontrava noutras e mais seguras mãos e de que fora liberto da necessidade de tomar decisões.
Não tinha fome, mas comeu como uma criança obediente e bebeu sequiosamente a cerveja fresca que Doris lhe serviu.
Depois da refeição, disse:
‑ Espero que me desculpem, mas estou completamente estoirado. Tenho de me deitar um bocado.
‑ Com certeza ‑ respondeu Doris. Sheila acompanhou‑o ao quarto dos hóspedes e ajoelhou para lhe descalçar os sapatos, quando ele se sentou na beira da cama. Quase não falara desde que o abraçara no hospital, como se receasse que algumas palavras soltassem uma torrente de angustiosa emoção que até àquele momento represara dentro dela.
‑ Descansa, querido ‑ disse, depois de o tapar com um cobertor. ‑ E não penses em nada. Tens bons amigos. Vou a casa com o Oliver, buscar uma mala com as coisas de que precisas.
Ele estendeu o braço, pegou‑lhe na mão e beijou‑a. Todo o corpo dela pareceu estremecer, como que dilacerado por um soluço lancinante, mas não houve lágrimas. Inclinou‑se e beijou‑o na testa.
‑ Dorme bem ‑ disse, e depois apagou a luz e saiu do quarto.
Damon fechou os olhos e mergulhou quase imediatamente num sono de exaustão, sem sonhos.
Quando acordou, não soube por momentos onde estava. Mas viu Sheila sentada ao lado da cama, a fitá‑lo, iluminada por um delgado raio de luz que entrava pela porta ligeiramente entreaberta. Não se ouvia qualquer som no apartamento. Sentia‑se agoniado. Tinha uma sensação de ardor no meio do peito e sabia que estava prestes a vomitar. Levantou‑se da cama com dificuldade.
‑ Desculpa ‑ disse em voz pastosa, com a língua ainda presa pelo sono. ‑ Vou vomitar.
Sheila ajudou‑o a sair da cama e começou a acompanhá‑lo na direcção da casa de banho dos hóspedes, que tinha a porta aberta e estava suavemente iluminada. Mas Damon fez‑lhe sinal para retroceder, entrou depressa na casa de banho e fechou a porta. Vomitou o jantar, juntamente com a maior parte das sanduíches e do café que ingerira durante o dia. Gargarejou, lavou os dentes com a escova e a pasta que Sheila colocara na prateleira por cima do lavatório e depois lavou a cara com água fria. Sentindo‑se melhor, voltou ao quarto.
‑ Creio que a salada de batata não se dá bem comigo ‑ disse a Sheila.
Ela soltou uma gargalhada seca e perguntou:
‑ E assassínios, dão?
Mal‑grado seu, Damon quase se riu, também.
‑ Que horas são? ‑ perguntou.
‑ Duas e meia da manhã.
‑ Tempo para despir esta roupa. E tu também. Enquanto se despia, o cheiro a suor retardado e medo e o persistente odor do hospital assaltaram‑lhe as narinas. Amontoou tudo quanto usara debaixo da janela aberta e meteu‑se na cama, nu. Reparou que as duas camas do quarto de hóspedes tinham sido puxadas o mais possível uma para junto da outra por Doris, que visitara frequentemente os Damons e reparara que dormiam juntos. Súbita e inacreditavelmente, Damon sentiu um grande desejo de fazer amor e quando Sheila saiu da casa de banho em camisa de dormir, disse‑lhe:
‑ Despe essa coisa e deita‑te comigo.
Só precisaram da segunda cama na manhã seguinte, quando acordaram.
Damon não saiu do apartamento de Gabrielsen durante uma semana. Sentia que seria incapaz de enfrentar um repórter, um desconhecido, de atender um telefonema, ler um contrato ou decidir sozinho o que deveria comer num restaurante. Sheila, que tivera de voltar para o trabalho, conseguia visitar diariamente Weinstein no hospital e regressava todas as noites com notícias tranquilizadoras a respeito da sua recuperação. Oliver tomava conta do escritório, mas além de dizer a Damon que todos os conhecidos telefonavam todos os dias para a agência a perguntar como ele estava e a desejar‑lhe felicidades.
não aludia aos negócios que ia fazendo. Mentia também lealmente quando alguém lhe perguntava onde Damon estava e respondia a todos que não sabia. «É surpreendente», acrescentava, «como é fácil desaparecer da vista das pessoas em Nova Iorque.» Parecia ter envelhecido visivelmente nos últimos dias e Damon até tinha a impressão de detectar algumas cãs no cabelo louro‑pálido do sócio.
Ninguém levava jornais para casa e Damon sentia‑se grato por isso. Esperava que o seu estado de espírito se modificasse, eventualmente, mas por enquanto não tinha interesse nenhum em saber o que se passava no mundo, o que dissera o presidente no seu discurso mais recente, de que novo crime fora a CIA acusada, que peça se estreara na Broadway ou fora dela, quanto subira a taxa de juro e quem morrera na manhã anterior.
Por sorte, a época de basebol começara e ele via os jogos hora após hora, numa espécie de transe de frequentador de peão, sem torcer por nenhuma equipa em particular, contentando‑se com ver provas tão evidentes de rapidez e perícia juvenis e vitalidade americana no pequeno écran. Quando chegava a hora dos noticiários,
desligava.
Os outros fingiam que também não tinham interesse nenhum pelo que se passava no mundo e nunca ligavam casualmente o televisor. Ele aceitava a sua solicitude meio entorpecido, como uma criança doente. Quando não estava a ver os jogos de basebol, passava horas sentado com um livro aberto, sem nunca virar uma página. Doris, que ao princípio tentara mostrar‑se animada, alegre e faladora, não tardou a aceitar o facto de que Damon só queria que o deixassem em paz, e andava silenciosamente pela sua própria casa, esforçando‑se por não o incomodar. Durante o dia, quando os outros estavam ausentes, servia‑lhe as refeições num tabuleiro, para que pudesse comer sozinho. Aprendeu também depressa que era inútil perguntar‑lhe o que queria almoçar ou jantar e passou a elaborar as ementas sozinha. Punha uma rosa e meia garrafa de vinho no tabuleiro, juntamente com a comida. Nos primeiros dois ou três dias ele bebeu uns golos de vinho, mas a sensação de queimadura que lhe causava no estômago levou‑o a desistir.
Não disse nada a respeito do que considerava uma indisposição psíquica, nem a Doris nem a Sheila, e embora Oliver tivesse abastecido o pequeno bar da sala com o seu uísque preferido, nunca tocou nas garrafas bem alinhadas. Sheila não fez qualquer comentário à sua súbita abstinência.
Se sonhava de noite ou durante as longas sestas que dormia de tarde, quando acordava não se lembrava. Dormia todas as noites na pequena cama, com Sheila nos braços, como um animal a procurar calor no corpo do seu irmão, no pino do Inverno. No fim da primeira semana, Sheila disse‑lhe que tudo indicava que Weinstein poderia sair do hospital, de muletas e engessado, claro, dentro de cerca de dois meses. Confessou‑lhe que se tornara muito amiga de Weinstein nas longas conversas que tinha diariamente com ele e não podia suportar a ideia de que voltasse para casa sozinho, sem ter ninguém que tomasse conta dele no grande casarão vazio. Dissera‑lhe que quando ele estivesse em condições de sair do hospital o levaria de carro, com Damon, à grande casa de Old Lyme, onde ele poderia convalescer e Damon não teria de enfrentar as perguntas e as manifestações de simpatia dos seus amigos nem as exigências do escritório. Ao princípio, contou a Damon, Weinstein não quisera ouvir falar em tal coisa; tomava conta de si mesmo havia anos e não queria ser um fardo para eles só porque se saíra tão mal da sua missão de proteger Roger. Mas Sheila dissera‑lhe que a missão ainda não estava cumprida ‑ Weinstein poderia levar a sua arma, para o caso de Zalovsky ter amigos que estivessem desejosos de o vingar, ou até de o próprio Zalovsky poder aparecer, apesar da convicção de Schulter de que, vivo ou morto, Zalovsky não estaria em condições de fazer mais mal.
Sheila não perguntou a Damon se aprovava ou desaprovava o seu plano, e Damon não fez perguntas nem apresentou quaisquer sugestões. Tão‑pouco perguntou como estava a mãe de Sheila. Estava metido num casulo de egoísmo de doente, e embora soubesse que, eventualmente, teria de retomar as rédeas da sua vida, essa altura ainda não chegara.
Sensitivamente, Sheila não tentava arrancá‑lo à sua hermética letargia nem animá‑lo. Ele compreendia ‑ e supunha que ela também ‑ que os seus nervos estavam esfrangalhados; e não podia fugir dos seus fantasmas, nos dias silenciosos nem nas noites escuras, nem dos seus múltiplos mortos e feridos. Embora tentasse parecer o mais sereno e agradável possível, só ele sabia o esforço que isso lhe custava e como uma palavra errada o faria irromper em lágrimas ou raiva. Não dizia a Sheila que o atormentava a sensação de que nada fora concluído, um pressentimento de mal, a impressão de que tudo quanto acontecera até então era uma antevisão, uma sugestão enigmática e sardónica de catástrofe, de tragédia futura.
Também não dizia a Sheila que vomitava cada vez mais frequentemente depois das magras refeições que conseguia ingerir. Tinha a certeza de que Doris, que se afastava religiosamente do seu caminho, não suspeitava de que o seu hóspede sofria de algo mais do que dos efeitos do abalo que tivera.
Uma coisa de cada vez, pensava Damon. «Quando recuperar a energia necessária para sair deste apartamento, irei secretamente a um médico, dir‑lhe‑ei que o meu sangue e os meus ossos estão em derrocada e que preciso finalmente das certezas da ciência.»
Aconteceu mais cedo do que ele esperara e não houve ocasião para segredo.
Na manhã do oitavo dia depois do tiroteio, acordou cedo, tomado de fortes dores de estômago. Penosamente, esforçando‑se por não acordar Sheila, saiu da cama e, todo dobrado, com os nós dos dedos a tocar no chão para evitar cair, encaminhou‑se para a casa de banho. Escapou‑lhe um gemido involuntário. Entrou cambaleante na casa de banho, mas não teve nem a força nem a vontade para fechar a porta. Não levantou a cabeça quando sentiu a mão de Sheila na testa, a ampará‑lo, e a ouviu dizer:
‑ Não te preocupes, querido, eu estou aqui. Pouco depois, Oliver estava também na casa de banho. Damon sentiu‑se envergonhado da sua nudez e não foi capaz de olhar para ver se Sheila enfiara ou não um robe. A voz de Oliver soou distante, como se ecoasse num corredor vazio, quando perguntou:
‑ Qual é o número do seu médico?
Foi também em voz quase irreconhecível que Sheila respondeu:
‑ Ele não tem nenhum médico. ‑ Damon reconheceu um protesto de vinte anos na voz da mulher. ‑ E o meu médico é um ginecologista.
Sem saber porquê, Damon achou a resposta cómica e, dobrado para a sanita, ouviu‑se rir.
‑ Vou telefonar ao nosso ‑ decidiu Oliver. ‑ Espero que não esteja ausente da cidade.
‑ Não é necessário. ‑ Damon sentiu a dor deixá‑lo subitamente e a garganta livre do garrote dos espasmos. ‑ Estou bem. ‑ Endireitou‑se e, com dignidade, vestiu o robe que estava pendurado na porta da casa de banho.
Olhou uma vez para Sheila, sentiu‑se grato por ela ter tido tempo de enfiar um robe e depois desviou os olhos, porque a expressão do olhar e da boca da mulher o assustou.
‑ Vou‑me deitar e dormir um bocado, mais nada.
‑ Não sejas tão irritantemente espartano ‑ disse Sheila severamente, ao pegar‑lhe no braço e conduzi‑lo para a cama.
Uma vez deitado, sentiu os músculos descontrairem‑se, o estômago deixar de se lhe revolver e a punhalada da dor desaparecer. Sorriu encorajadoramente a Oliver e a Sheila, parados junto dele.
‑ Estou óptimo. Para dizer a verdade, tenho uma fome terrível. Acham que me podem arranjar sumo de laranja, café e torradas?
O médico era um homem alto, idoso e interessante, chamado Brecher, de cabelo grisalho e uma atitude brusca, de quem não admitia tolices, que inspirava confiança. Não pareceu pensar que o caso fosse muito grave.
‑ Um pouco de repouso e dieta durante alguns dias, um pouco de Maalox antes das refeições e nada de preocupações... ‑ Assumiu um ar severo, como se as preocupações fossem uma das piores doenças que conhecera em muitos anos de prática de medicina na Cidade de Nova Iorque. ‑ Se fizer isso, ficará como novo.
Damon sentiu‑se grato por Oliver ter tido o bom senso de escolher um clínico geral sensato e antiquado.
em vez de um dos modernos técnicos que mandavam imediatamente os pacientes para o hospital e os sujeitavam à gama completa da tortura médica, incluindo visitas de especialistas, cada um dos quais descobria que o pobre padecente era, nem mais nem menos, vítima da doença que ele era perito em diagnosticar desde que saíra da escola médica. Damon agradeceu profusamente ao médico e garantiu‑lhe que naquele momento se sentia melhor do que se sentira em meses, enquanto o rosto de Sheila se tornava cada vez mais soturno e a descrença dos seus olhos visível como uma bandeira desfraldada ao vento. Aliviado com a garantia que o médico dera da insignificância da sua doença e com a modéstia do tratamento que prescrevera, a nuvem que pairara sobre a alma de Damon dissipou‑se como uma névoa matinal ao sol e ele achou mesmo que era altura de pôr fim ao que reconhecia agora, envergonhadamente, como uma fraqueza hipocondríaca. Sentiu‑se impaciente por se levantar e tratar de evitar que o seu negócio fosse por água abaixo sob a direcção hesitante, ainda que devotada, de Oliver. Quando o médico saiu, Sheila, que o acompanhara à porta, regressou com o rosto mais carregado do que nunca.
‑ Procedes como uma criança ‑ disse‑lhe. ‑ Um rapazinho muito macho, que leva um soco no nariz, no recreio, sangra por todo o lado e afirma que não lhe dói. Que sabes a teu respeito? Nem sequer olhas nunca para o espelho, a não ser quando te barbeias. Podes enganar um médico, mas não enganas a tua mulher. Tens dores, e quanto mais depressa o admitires, melhor. Estás doente e nem toda a representação do mundo me convencerá do contrário. Falaremos do assunto quando eu voltar do trabalho, logo à noite.
Com os profundos olhos escuros tempestuosos, saiu e bateu com a porta.
«Admirável mulher», pensou Damon, recostado nas almofadas. «Com razão ou sem ela, não hesita em dizer o que pensa.»
Mas não falaram dos seus sintomas quando, nessa tarde, Sheila regressou do trabalho. Ela chegou com os olhos inchados e vermelhos, como se tivesse passado horas a chorar.
Gregor Khodar telefonara‑lhe para a escola, depois de ter tentado ligar para o apartamento sem obter resposta. Ebba Khodar tinha sido morta nessa manhã por uma bomba montada num automóvel estacionado, quando passava por um banco numa rua de Roma. Não restara nada identificável, dissera Gregor a Sheila, que valesse a pena enterrar.
Nessa noite, na cama, abraçado a Sheila que se encontrava misericordiosamente inconsciente após uma dose de comprimidos para dormir, Damon lembrou‑se da lei das probabilidades de Schulter. O tenente esquecera‑se de incluir a cidade de Roma na sua estatística.
Com Sheila a dormir nos seus braços no quarto às escuras, Damon permitiu‑se finalmente chorar. Que advertências, perguntou‑se na sua angústia ‑ angústia pelo seu amigo e por si próprio ‑, ignorara aquela terna e simples mulher?
ESTAVA a tentar escrever uma carta a Gregor. Já amarrotara três folhas de papel, que atirara para o cesto dos papéis, e ia na quarta tentativa. Tinha o cérebro entorpecido, bloqueado, com todas as percepções enevoadas. Era inútil, pensou, a olhar para a folha de papel, tentar exprimir por palavras o que sentia a respeito do que acontecera em Roma, e preparava‑se para amarrotar de novo o papel quando bateram timidamente à porta do quarto de hóspedes.
‑ Entre ‑ respondeu.
‑ Custa‑me incomodá‑lo, Roger ‑ disse Doris ‑, mas o Dr. Brecher está ao telefone e gostaria de falar consigo.
‑ Obrigado ‑ agradeceu Damon, e seguiu‑a ao átrio, onde o telefone se encontrava numa mesa.
Quando ela saiu do átrio, para o deixar falar à vontade com o médico, Damon reparou que Doris estava completamente vestida, de saia e casaco de malha, com o cabelo bem penteado e a maquilhagem feita, embora fossem apenas dez horas da manhã. Desde que ele e Sheila estavam no apartamento dos Gabrielsens, nunca a vira de robe nem com o cabelo despenteado e compreendeu que aquele arranjo matinal era para seu benefício, para que não sentisse que estava a interferir num certo desarranjo agradável de dona de casa. Teria de a compensar pelo seu tacto, pensou. Mas noutra altura qualquer.
Levantou o auscultador e disse:
‑ Dr. Brecher?
‑ Mr. Damon, passei a noite toda a pensar em si. Tenho a impressão de que não descreveu todos os sintomas do que poderá estar a afectá‑lo. Por exemplo, alguma parte do que vomitou era preta?
Damon hesitou um momento. Era verdade, uma ou duas vezes notara pequenas manchas pretas, mas tinha estado a beber café e atribuíra a cor a esse facto.
‑ Não, realmente. ‑ Depois do que acontecera a Ebba Khodar, preocupar‑se com um dúbio mau funcionamento do seu próprio corpo parecia‑lhe uma frivolidade cruel.
‑ Por favor, Mr. Damon ‑ insistiu o médico ‑, isto pode ser muito importante. Não quero parecer uma velha chata, mas é frequente um homem como o senhor, que toda a vida gozou de esplêndida saúde, ter tendência para não ligar importância aos sintomas, para ignorar o que considera um momento de desconforto temporário.
‑ Bem, doutor, agora que mencionou o pormenor, lembro‑me de que vi de facto essas pequenas manchas. Algumas vezes e não muitas. Na verdade, neste momento não sinto absolutamente nada. ‑ Tinha a certeza de que o Dr. Brecher, por muito grandes que fossem os seus dotes, não poderia imaginar como a frase era correcta.
‑ Para tranquilidade de todos ‑ declarou o médico ‑ e principalmente sua, precisa de um exame muito mais minucioso do que eu posso fazer‑lhe. Vou‑lhe marcar uma consulta para o Dr. Zinfandel, no Boylston General Hospital. É um dos diagnosticadores mais brilhantes da cidade e eu só me sentirei tranquilo depois de ele o ver.
‑ Parece‑me um exagero por causa... ‑ Damon calou‑se, pois uma dor súbita, um latejar quente no estômago, dificultou‑lhe momentaneamente a fala. ‑ Pois sim, doutor. Obrigado pela sua atenção. Irei à consulta.
‑ A minha secretária telefonar‑lhe‑á a dizer‑lhe quando deverá consultar o Dr. Zinfandel. Se ele chegar à conclusão de que não é nada, o meu espírito, o seu e o da sua mulher ficarão descansados. Valerá a pena o tempo que vai perder.
‑ Obrigado, doutor ‑ agradeceu de novo Damon, e desligou.
Voltou para o quarto de hóspedes e sentou‑se à pequena secretária onde estivera a tentar escrever a carta a Gregor. Olhou fixamente para as poucas palavras que conseguira alinhar no papel e surpreendeu‑o a sua caligrafia, que parecia estranha, toda tremida e quase ilegível. Apoiou os cotovelos na secretária, amparou a cabeça com as mãos e fechou os olhos.
Na manhã seguinte estava no Boylston General Hospital, no coração de Manhattan. O hospital alastrava por uma parte tão grande da cidade, era tão gigantesco, que, se todas as camas contidas no interior das suas altas paredes de pedra estivessem ocupadas, nas ruas da cidade não deveria haver ninguém levantado, a tratar da vida, ninguém que não estivesse atacado por uma ou outra doença.
Estava no consultório do Dr. Zinfandel e sentia‑se um pouco ridículo porque não voltara a ter ataques de coisa nenhuma em mais de 24 horas. Estivera quase decidido a cancelar a marcação da consulta, mas quando o dissera a Sheila a expressão carregada do rosto da mulher advertira‑o de que não voltaria a ter paz enquanto insistisse em que não havia razão para se submeter a um exame. Oliver resolvera também meter‑se no assunto e telefonara ao irmão, que era cirurgião no Cedars‑Sinai Hospital de Los Angeles, e vira confirmada a alta consideração em que o Dr. Brecher tinha Zinfandel.
O Dr. Zinfandel era um homem intenso, baixo, alourado e de nariz pontiagudo, um batedor incansável das selvas das doenças ocultas. Foi minucioso nas perguntas que fez. «Com que intervalos ocorre a dor? Sangue por passagem oral? Movimentos intestinais? Em que idade teve o sarampo? De que morreu a sua mãe? O seu pai? Alguma vez teve hepatite? É alérgico à penicilina? Quantas vezes tem de se levantar durante a noite para urinar? Alguma vez teve sífilis? Gonorreia? Ofega quando sobe escadas? Perdeu ou ganhou peso recentemente? Quantas vezes por semana tem relações sexuais? Por mês? Que operações fez? Submete‑se a um exame geral anual? Quando foi a última vez que consultou um médico antes deste... hum... episódio? Há uns 25 anos?!» Sobrancelhas arqueadas numa manifestação de surpresa e desaprovação. A caneta que o Dr. Zinfandel segurava preenchia rapidamente a ficha. «É beneficiário de Medicare ou Medicaid? Quando notou a dor pela primeira vez? Descreva‑a, por favor. Quais são os seus hábitos alimentares? Tem pendor para comidas condimentadas ‑ picles, chili, pastrami? Como descreveria os seus hábitos de bebedor?»
‑ Moderados.
O Dr. Zinfandel sorriu ironicamente, como que a dizer que já ouvira muitas vezes aquela descrição na sua carreira profissional, que a ouvira de beberrões que matavam o bicho, ao levantar‑se, com um copo cheio de gim; de pacientes que tinham estado hospitalizados com delirium tremens, e de outros que tinham sido demitidos de funções de responsabilidade por causa de almoços com cinco martinis seguidos por três cálices de brande.
‑ Que considera moderado, Mr. Damon?
‑ Uns dois scotches antes do jantar, meia garrafa de vinho com o jantar, uma reunião ocasional...
O sorriso tornou‑se mais cínico e a mão escreveu mais depressa. Mais tarde, Damon veio a saber que o Dr. Zinfandel, apesar de o seu nome descrever a variedade de uva de que se fazia um vinho maravilhoso, era um abstémio fanático, com todo o ódio que podia sentir pelo álcool um filho único que vira a mãe e o pai caídos na valeta, perdidos de bêbedos.
‑ Prossigamos. Viveu sob qualquer tensão excepcional, recentemente?
Damon hesitou. Perguntou a si mesmo se um grande diagnosticador de perturbações internas consideraria uma tentativa de assassínio e a morte pela deflagração de uma bomba da mulher do seu melhor amigo, que afinal eram perturbações externas, como coisas dignas de serem consideradas tensão excepcional.
‑ Sim ‑ respondeu, na esperança de que o bom doutor deixasse as coisas por aí.
‑ Física? Mental? ‑ Damon compreendeu que o bom doutor não estava habituado a deixar as coisas em paz, sem as aprofundar.
‑ Suponho que se lhe pode chamar as duas coisas. Se não se importa, preferia não falar do assunto. ‑ Não queria reviver os momentos em que os tiros tinham ecoado na rua estreita e escura, em que Weinstein caíra e o bêbedo gritara na agonia, ao cair. ‑ Veio tudo nos jornais.
‑ Tenho tanto que fazer que não leio os jornais cuidadosamente. ‑ O Dr. Zinfandel franziu os lábios, satisfeito com a sua vida atarefada.
‑ Digamos que tenho vivido sob grande tensão ‑ disse Damon.
O médico releu rapidamente o que tinha escrito. Parecia ter chegado ao fim do interrogatório. Mas havia outras perguntas que podia ter feito, pensou Damon. Como, por exemplo: em que estado se encontra a sua alma? Pecou? Aquando da morte do seu irmão, de mistura com o seu desgosto infantil, houve uma sensação de ventura por, de futuro, passar a ser um filho único e a receber o amor e a atenção integrais da sua mãe e do seu pai? Acredita em sonhos, no destino, no sobrenatural? Considera‑se um homem com sorte ou com azar? Em que idade consideraria adequado morrer? Faz batota na declaração do imposto de rendimento? Preocupa‑se com dinheiro? Onde preferiria estar quando se desencadeasse uma guerra nuclear? Disse que nunca foi ferido. Acredita realmente nisso? Na sua opinião, existe Deus? Se acredita nisso, pensa que a morte de Ebba Khodar numa rua romana fez parte do plano de Deus para a humanidade? Acredita que eventos a acontecer no futuro projectam, antes, a sua sombra? Concorda com o poeta, quando ele diz: «Não em nudez absoluta, mas arrastando nuvens de glória chegamos?»
Damon observou o médico atentamente, enquanto Zinfandel, de testa franzida e nariz palpitante, perpassava os olhos, como um scanner de radar, pelo que escrevera. Parecia descontente com o que as respostas de Damon sugeriam à sua treinada mente profissional.
‑ Para ser franco ‑ disse Damon ‑, neste momento sinto‑me de perfeita saúde.
O médico acenou com a cabeça, impacientemente. Já tinha ouvido aquela história antes.
‑ Receio que não seja tão banal como pensa ‑ declarou. ‑ A única maneira de termos a certeza de alguma coisa é submetê‑lo a um exame completo ‑ raios X, tomografia axial computorizada, electrocardiograma, análises de sangue, exames à vesícula biliar, ao fígado, aos pulmões, aos rins, amostras de urina e de fezes, etc. Vários dias de vigilância rigorosa. Gostaria de mostrar as radiografias e os resultados das análises a um cirurgião.
‑ Um cirurgião? ‑ Damon sentiu uma súbita secura na boca. ‑ Para que precisaria eu de um cirurgião?
‑ É sempre melhor jogar pelo seguro ‑ respondeu Zinfandel, suavemente. ‑ Cobrir por assim dizer todos os caminhos possíveis. Apesar de todas as nossas máquinas e de todos os nossos diagnósticos técnicos, às vezes a única maneira de termos a certeza é abrir e ver.
«Pelo menos», pensou Damon, «ele não diz que mais vale prevenir do que remediar.»
‑ Não quero alarmá‑lo ‑ prosseguiu Zinfandel, no mesmo tom suave. ‑ O cirurgião estaria apenas de reserva, por assim dizer.
«Se ele volta a repetir a expressão "por assim dizer", levanto‑me e saio do consultório.»
‑ Conhece algum cirurgião que seja especializado em medicina interna e no qual tenha confiança? ‑ perguntou Zinfandel, de caneta preparada para escrever um nome.
‑ Não. ‑ Damon sentiu‑se um pouco envergonhado por ter de admitir que, apesar da ascensão da sua carreira, negligenciara um acessório cultural importante como ter um cirurgião pessoal.
‑ Nesse caso, sugiro‑lhe o Dr. Rogarth. É proeminente no seu campo e opera aqui. Opõe‑se a que o consulte no seu caso?
‑ Estou nas suas mãos, doutor ‑ respondeu Damon humildemente, a pensar: «Este hospital está eivado de proeminência.»
‑ Muito bem. Está preparado para entrar no hospital amanhã ao meio‑dia?
‑ Quando o doutor entender.
‑ Deseja um quarto particular?
‑ Sim.
«Boa e querida Threnody», pensou. Antes da sua publicação, teria pedido a cama mais barata do hospital. A riqueza tinha as suas vantagens. Podia‑se sofrer sem testemunhas e os gemidos que porventura se ouvissem seriam os próprios.
‑ Esteja preparado para ficar um mínimo de três dias.
O Dr. Zinfandel levantou‑se. A consulta estava terminada. Estendeu a mão, enquanto Damon se levantava, também. Quando apertaram as mãos, Damon ficou surpreendido com a tensão do aperto da do médico, como se a sua mão estivesse ligada ao braço por fios eléctricos. Quando conhecesse melhor o Dr. Zinfandel, pensou, ao sair do consultório, teria uma longa lista de perguntas a fazer ao médico a respeito da sua saúde.
Cinco dias depois, estava no agradável quarto particular a ser preparado para uma operação às sete da manhã seguinte, uma operação ao que o cirurgião e o Dr. Zinfandel admitiam poder muito bem ser uma grave úlcera intestinal. Os exames tinham sido desanimadores. O pressentimento do Dr. Zinfandel revelara‑se correcto e as advertências dele e do doutor quanto às consequências de adiar a operação haviam sido sombrias. Oliver telefonara de novo ao irmão e ele dissera que o cirurgião, Dr. Rogarth, tinha excelente reputação. Quando Oliver transmitira essa afirmação ao amigo, Damon sorrira maliciosamente e perguntara‑lhe se se lembrava de ele se gabar de que nunca estivera um dia doente na sua vida.
‑ Ensinou‑me uma lição ‑ acrescentou. ‑ Os deuses não gostam de gabarolices.
Tentou parecer calmo e aceitar tudo de ânimo leve, mas estava em pânico e não gostava nada da sensação que isso causava. Andara tudo a conduzir àquilo, pensou, tudo desde o maldito telefonema.
O Dr. Rogarth não estava em pânico. Corpulento, de faces rosadas e fato cinzento‑pérola, fluiu pelo quarto, qual largo e lento Mississipi humano, com gestos deliberados e papais e frases comedidas e sem pressas. Tinha mãos moles, gorduchas, ao contrário do que se esperaria num proeminente cirurgião. Sentou‑se numa cadeira de espaldar direito, ao lado da cama.
‑ Expliquei o que vamos fazer a Mrs. Damon ‑ anunciou. ‑ Creio que ela compartilha a minha confiança de que tudo correrá bem. O anestesista que o examinou não prevê grandes dificuldades.
Espero que esteja de volta a este quarto, vindo da sala de recuperação, depois da operação, quatro ou cinco horas após ter ido para o teatro operatório. ‑ Recitou a tirada toda como se a tivesse aprendido num manual e fosse capaz de a repetir mil vezes, no seu leito de morte se necessário. ‑ Se desejar fazer algumas perguntas, terei muito prazer em responder‑lhe o melhor que puder.
‑ Sim, desejo fazer uma pergunta: quando poderei voltar para casa?
Um pequeno sorriso triste apareceu fugazmente nos lábios cheios e curvos como os de uma rapariga, qual ondazinha a percorrer placidamente a larga superfície das águas. As pessoas a quem o médico desejava bem e a cujo bem‑estar dedicava a maior parte da sua vida, estavam sempre ansiosas por deixá‑lo na primeira oportunidade, dizia o sorriso.
‑ É impossível ser exacto nessas questões. Os meus cálculos são doze, quinze dias, conforme a sua capacidade de recuperação. Mais alguma pergunta?
‑ Não.
O Dr. Rogarth levantou‑se e endireitou o colete cinzento‑pérola no estômago avantajado.
‑ Aconselho‑o a não comer nada depois das cinco horas desta tarde. Um servente virá rapar‑lhe o ventre e dar‑lhe um clister, ao anoitecer, e ser‑lhe‑á administrada sedação, para a noite. De manhã a enfermeira dar‑lhe‑á uma injecção antes de o senhor sair do quarto, e provavelmente já estará a dormir quando o conduzirem ao elevador. Desejo que passe uma boa noite.
Quando ele deixava o quarto, entrava Sheila, que tinha ido à cafetaria beber um café. Damon contara os cafés que ela tomara: aquele era o sexto, durante a tarde. Geralmente, bebia uma chávena de café de manhã, ao pequeno‑almoço, e isso bastava‑lhe para todo o dia. Era o único indício de tensão que ela se permitia demonstrar. Tinha o rosto calmo e composto e o cabelo cuidadosamente penteado. Sorriu ao Dr. Rogarth, que lhe fez uma ligeiríssima vénia.
‑ Passei por cá apenas para verificar o moral do seu marido, minha senhora ‑ explicou o médico. ‑ Apraz‑me dizer que o acho excelente.
‑ Ele ri das cicatrizes que nunca sentiram uma ferida ‑ disse Damon, em tom ligeiro. «Bravata oca para a galeria», pensou, «exibição para a tribuna, como diria Manfred Weinstein nos seus tempos de jogador de basebol. ‑ É uma primeira vez, para mim.
‑ É um homem de sorte ‑ comentou o Dr. Rogarth.
‑ Pessoalmente, já fui submetido a três operações de grande cirurgia nos últimos quinze anos.
‑ Então é um anúncio ambulante às operações ‑ disse Damon, numa pequena lisonja ao empunhador da faca.
Mas o Dr. Rogarth sorriu tristemente:
‑ Sou demasiado gordo ‑ disse. ‑ Não bebo, quase não como e sou demasiado gordo. ‑ E saiu majestosamente do quarto.
‑ Foi a primeira coisa que disse até agora que pareceu humana ‑ comentou Damon. ‑ Que é gordo.
‑ Sentes‑te bem? ‑ Sheila inclinou‑se para ele e fitou‑o com atenção.
‑ Óptimo. Só acho estúpido estar aqui deitado numa cama no meio da tarde.
‑ Este hospital está aqui há mais de 50 anos ‑ lembrou Sheila. ‑ Não vais modificar a sua rotina em apenas 5 dias. Telefonei ao Manfred. Está todo contente. Manqueja pelo hospital todo e já descobriu uma quadrilha de marijuana. Descobriu também uma enfermeira de 22 anos com a qual pensa seriamente em casar. Disse que gostaria de apostar contigo que sai do hospital antes de ti. Disse que te daria vantagem de oito para cinco.
Damon sorriu.
‑ Talvez tenhamos uma festa de alta juntos.
‑ Eu disse‑lhe que, seja quem for que sair primeiro, ele terá de ficar connosco pelo menos até não precisar de muletas.
‑ Vais ter de avir‑te com dois velhos rabugentos. Porque não arranjas uma enfermeira para te dar uma ajuda?
‑ Vocês podem ser tão rabugentos quanto quiserem ‑ declarou Sheila, decisivamente. ‑ Não preciso de ajuda nenhuma. Conheces‑me. Sou capaz de ser tão rabugenta como qualquer.
‑ Não é mentira nenhuma. ‑ Damon pegou‑lhe na mão.
‑ Quando seguro a tua mão, assim ‑ disse, docemente‑, sinto que não me pode acontecer nenhum mal. Sentiu um espasmo súbito de dor no estômago e involuntariamente apertou a mão de Sheila.
‑ Que foi? ‑ perguntou ela, alarmada.
‑ Nada. ‑ Tentou sorrir. ‑ O último ar da sua graça da salada de batata da Doris.
Desejou que as horas passassem depressa e que a sedação que lhe tinham prometido já tivesse produzido efeito. Pela primeira vez na vida ansiava pela inconsciência.
Passava do meio‑dia e Sheila e Oliver ainda estavam sentados no quarto particular do hospital. Encontravam‑se lá ambos quando Damon fora levado, com um último e sonolento aceno de mão, às sete da manhã. Entretanto, tinham esgotado todas as conversas e ficavam tensos sempre que ouviam passos aproximar‑se pelo corredor. Sheila, que desistira de fumar quando casara com Damon, tinha fumado um maço inteiro de Malboros e o quarto, apesar da porta aberta, estava cheio de fumo. Tanto Rogarth como Zinfandel lhe tinham prometido que viriam falar com ela assim que a operação terminasse.
Já tinham passado mais de cinco horas e nenhum deles aparecera.
Depois o Dr. Rogarth entrou no quarto, ainda com a bata e o barrete verdes da sala de operações e com a máscara de gaze puxada para a testa. Parecia fatigado e grave.
‑ Onde está ele? ‑ perguntou‑lhe Sheila. ‑ Como está? Porque demorou tanto tempo? ‑ A sua voz era áspera, sem qualquer vestígio da habitual civilidade melódica.‑ Disse que a esta hora já aqui estaria...
‑ Lamento, Mrs. Damon. Ele está na Unidade de Cuidados Intensivos. O seu marido é um homem muito doente, muito, muito doente.
‑ Que significa isso?
‑ A operação foi muito mais extensa do que calculávamos ‑ explicou Rogarth, fatigado. ‑ Por favor, tente manter‑se calma. Houve complicações. Verificou‑se que a úlcera estava perfurada e havia uma extensa infecção dos tecidos circundantes da perfuração, os quais tiveram de ser extirpados. Segundo toda a lógica, havia dias que o seu marido deveria gritar de dor...
‑ Não está nos hábitos dele gritar.
‑ Pelos critérios médicos, o estoicismo não é de modo algum uma vantagem ‑ redarguiu o Dr. Rogarth. ‑ Uma operação feita mais cedo teria evitado as complicações que encontrámos. Sangrou tanto... tanto! ‑ O seu olhar vagueou pelo quarto e a sua voz perdeu o timbre. ‑ Era impossível ver com clareza. Estamos a fazer tudo quanto podemos. Está ligado a todos os sistemas de apoio de vida, respirador, transfusões... Agora tenho de voltar. Preciso de conferenciar com o Dr. Zinfandel e com os outros médicos que assistiram. Parece que qualquer coisa recomeçou a sangrar. Temos de esperar que pare por si.
‑ E se não parar? ‑ perguntou Sheila, a atirar as palavras como pedradas.
‑ É por isso que temos de conferenciar. Não temos a certeza de que ele resistisse a outra sessão na sala de operações. Temos de discutir as nossas opções, de esperar que as transfusões sejam suficientes... Continuamos a fazer‑lhas.
‑ Quantas transfusões levou ele até agora? ‑ perguntou Oliver.
‑ Doze.
‑ Meu Deus! E estão a dar‑lhe mais?
‑ É necessário. A tensão arterial desceu tão drasticamente... Têm de compreender, medidas heróicas...
‑ Não percebo muito de medicina ‑ disse Oliver, em voz tão hostil como a de Sheila ‑, mas o meu irmão é cirurgião no Cedars‑Sinai, em Los Angeles, e uma vez disse‑me que as transfusões múltiplas são arriscadíssimas.
Rogarth sorriu tristemente, desvanecida toda a certeza papal.
‑ Concordo com o seu irmão. Mas se ele aqui estivesse, hoje, tenho a certeza de que seria obrigado a tomar as mesmas providências que nós tomámos. Agora tenho de ir. Estão à minha espera... ‑ Dirigiu‑se para a porta.
‑ Quero vê‑lo! ‑ Sheila estendeu a mão e agarrou o braço do médico.
‑ É impossível neste momento, Mrs. Damon ‑ respondeu‑lhe Rogarth, brandamente. ‑ Estão a trabalhar nele. Talvez de tarde, se for à Unidade de Cuidados Intensivos. Não posso prometer nada. Lamento muitíssimo... Acontece tantas vezes... ‑ Pareceu vago. ‑ Tantas vezes! Vamos à procura de uma coisa... e encontramos outra. Uma tal sangueira... O Dr. Zinfandel tentará aparecer por cá e mantê‑los ao corrente da situação.
‑ Ele está consciente? Rogarth encolheu os ombros.
‑É difícil ter a certeza ‑ respondeu, e saiu. Oliver abraçou Sheila.
‑ Ele safa‑se. Sei que se safa. É forte...
‑ O seu marido é um homem muito doente, muito, muito doente ‑ repetiu Sheila monocordicamente, como Rogarth dissera. ‑ Conversa fiada de médicos. Tradução: prepare‑se para o minuto em que ele vai morrer. Em breve.
‑ Ora, ora! ‑Oliver apertou‑a mais a si e beijou‑lhe a testa. ‑ Vou telefonar ao meu irmão. Se alguém nos pode dizer o que deve ser feito, esse alguém é ele.
‑ A cinco mil quilómetros de distância ‑ murmurou Sheila. ‑ Tenho a sensação de que está tudo a cinco mil quilómetros de distância.
Acordou, ou pensou que acordou. Não sentiu dor nenhuma. «Acabou», pensou. «Safei‑me.» Mas não estava na cama. Estava no que parecia um pequeno teatro. Havia uma tela branca ao fundo de um palco elevado. Estava sozinho. Pelo menos, a sua era a única presença que sentia na sala. Não saberia dizer se estava sentado, de pé ou deitado. A tela foi iluminada por uma luz branca e depois apareceu nela uma imagem. Uma fotografia do Dr. Rogarth, de fato cinzento‑pérola e sorridente. Debaixo da fotografia, uma legenda: «Dr. Alexander Rogarth apresenta: A Morte de Roger Damon.»
Damon sentiu‑se furioso. «Isso é uma brincadeira de muito mau gosto», disse, ou pensou, ou poderia ter dito.
Depois teve consciência de que estava deitado, ligeiramente na diagonal, no chão da boca do pequeno palco, enquanto a luz se apagava na tela. Ao lado dele, encontrava‑se deitado Maurice Fitzgerald, no mesmo ângulo. Não tinham o seu tamanho normal, estavam alongados. Eram ambos homens novos e vestiam os dois trajo de noite.
‑ Estão sérios ‑ murmurou Damon, naquela curiosa maneira de falar e não falar ao mesmo tempo que parecia ter adquirido. ‑ Não há bebidas.
Depois teve consciência de que as pernas de um cadáver irrompiam dos bastidores do palco, à sua esquerda. Os dedos dos pés do cadáver estavam pretos e inchados, como se tivessem estado muito tempo amarrados pela base com arame, para interromper toda a circulação do sangue. Um dos pés estava traspassado por um iante buraco negro, no peito do pé. Damon soube que era Cristo que jazia ali, com a ferida do cravo que lhe pregara o pé à cruz. Ele era Cristo e Cristo era ele e estava a ser preparado para o funeral. Invadiu‑o uma mágoa indizível, mas não conseguiu mexer‑se.
O Dr. Rogarth, ainda no seu fato cinzento‑pérola, saiu dos bastidores e tocou no pé enegrecido, nos dedos congestionados.
‑ Como eu pensava ‑ disse Rogarth. ‑ Os dedos dos pés foram congelados por água antediluviana, que nunca congela, mas que transforma em gelo tudo aquilo em que toca.
‑ Creio que ele me reconheceu ‑ disse Sheila a Oliver.
Estavam na pequena sala de espera da Unidade de Cuidados Intensivos. Defronte deles, uma mulher pequena e grisalha, de bonito fato de flanela, chorava docemente. Sheila fora autorizada a entrar e ver Damon alguns minutos, cerca das oito horas da noite.
‑ Os olhos dele estavam abertos e creio que tentou piscar‑me o olho. Com todos aqueles tubos, especialmente os dois que lhe descem pela garganta, não poderia falar mesmo que quisesse. Ainda lhe estão a dar sangue. Está a acumular‑se‑lhe no peito e na cavidade abdominal e ele está inchado, nesses pontos, tem duas vezes o tamanho habitual e continua a aumentar de minuto a minuto. O sangue comprime‑lhe os pulmões e causa‑lhe problemas respiratórios, motivo pelo qual lhe estão a administrar oxigénio. ‑ Falava em voz sem timbre, como se apresentasse um seco relatório anual da Associação de Pais e Professores. ‑ A circulação dos pés parou e ele tem‑nos frios como mármore. Convenci a enfermeira a embrulhar‑lhos num cobertor quente. Seria natural que eles próprios tivessem pensado nisso. Ninguém diz uma palavra de encorajamento. Zinfandel limita‑se a repetir: «O seu marido é um homem muito doente.» Admitiu estarem agora convencidos de que cortaram uma artéria. Até ele me dizer isso, a única coisa que diziam era que havia uma hemorragia excessiva. Proeminentes no seu campo ‑ rematou, amargamente.
Agora estava num barco. Sentia a vibração de grandes motores. Sabia, fosse como fosse, que estavam no barco, algures nas quentes águas do Pacífico, provavelmente ao largo da costa da Indonésia, e que estavam a fazer um filme sob a direcção de Mr. Gray. Mas Mr. Gray não estava lá. Tinha desaparecido. Misteriosa Indonésia. Damon tinha de continuar sem ele.
Desceu do convés. Um homem de casaco branco estava inclinado para um emissor de rádio. O homem, de barba rala acastanhada, era jovem e tinha rosto bondoso. «Na ausência de Mr. Gray», disse‑lhe Damon, «tomo conta da realização do filme. Encarrego‑o de conduzir o navio.» O homem da barba pareceu zangado. «Tenho outras coisas que fazer», protestou.
Uma rapariga eurasiática muito bonita, de feições achatadas, atravessou o aposento. Vestia blue jeans e uma camisa de homem de fralda solta, a esvoaçar. Damon sabia que ela seria a estrela do filme. Deveria cantar, mas quando falou a sua voz era áspera e sem melodia. Damon estremeceu, ao ouvi‑la, «Tem de fazer qualquer coisa à voz dessa rapariga», disse ao homem da barba. «Deixe‑me em paz», respondeu‑lhe o outro, impacientemente. «Não vê que estou ocupado?»
‑ Telefonei ao meu irmão ‑ disse Oliver, na manhã seguinte.
Sheila dormira no quarto particular e Oliver no sofá da sala de espera. Quando algum dos médicos passava por eles, parecia aborrecido.
‑ Ele perguntou se lhe fizeram um arteriograma, para ver de onde é a hemorragia. Fizeram?
Sheila abanou a cabeça, atordoada.
‑ De qualquer modo, ele disse para você lho sugerir. Sabe o que é?
‑ Não.
‑ Nem eu.
‑ Tentarei ‑ prometeu Sheila, a acenar com a cabeça. ‑ Não sei se valerá a pena alguma coisa... os médicos parecem considerá‑lo perdido. Fazem apenas os gestos... Graças a Deus pelas enfermeiras, que não o abandonam nem um minuto. A enfermeira de vela disse que ele não está a produzir corpúsculos sanguíneos, cujo nível está a descer para o ponto crítico. E tem problemas respiratórios. Agora pensam que tem pneumonia. Não param de lhe bombear os pulmões, através de um tubo. Continua com os olhos abertos, mas não parece reconhecer‑me.
Um pouco mais tarde apareceu o Dr. Zinfandel, com os olhos vermelhos de falta de sono e o nariz a tremer nervosamente.
‑ Acho, Mrs. Damon, que deve tentar descansar, para não termos também de a tratar. Não está a fazer bem nenhum ao seu marido, a esgotar‑se desta maneira.
‑ A hemorragia continua? ‑ perguntou Sheila, ignorando o que o médico dissera.
‑ Infelizmente, continua.
‑ Vão tentar fazer‑lhe um arteriograma? Zinfandel olhou‑a, desconfiado.
‑ Que sabe a respeito de arteriogramas, Mrs. Damon?
‑ Nada.
‑ Falou com outros médicos. ‑ O tom era acusador.
‑ Claro que falei. Falarei com mil outros médicos, se pensar que um deles será capaz de salvar a vida do meu marido.
‑ Por sinal ‑ redarguiu Zinfandel, carrancudo‑, decidimos tentar um arteriograma esta manhã. ‑ Depois reassumiu a sua atitude pedante mais cordial, como um professor de colégio infantil: ‑ É um processo mediante o qual se introduz uma agulha numa artéria da virilha e depois se insere um cateter na direcção da lesão suspeita. A seguir injecta‑se material contrastante, uma tinta, se preferir. Quando esse material flui até à fonte do problema, tiram‑se radiografias e, com sorte, ficamos a saber onde é a complicação. Em seguida, introduzem‑se no cateter, sob pressão, pequenas bolinhas de gelatina, para dentro da artéria. Duas, três ou quatro, conforme o caso. Se houver sorte, as bolinhas bloqueiam a ruptura. Não há nenhuma garantia de êxito. Se a hemorragia for estancada, teremos de aguardar diversos dias, para ver se é permanente. Compreendeu tudo bem, Mrs. Damon?
‑ Compreendi, obrigada.
‑ Não sou um desses médicos ‑ declarou o Dr. Zinfandel, orgulhosamente ‑ que gostam de enganar o paciente ou os seus entes queridos. Acredito na virtude de apresentar sempre as coisas como elas são, por muito drástico que possa parecer na altura.
‑ Aprecio que assim seja ‑ murmurou Sheila.
‑ Informá‑la‑ei do resultado, assim que souber. Entretanto, queira aceitar o meu conselho e descanse um pouco.
‑ Mais uma vez obrigada.
Zinfandel saiu da sala. Movimentava‑se pelo hospital a trote, como se esse fosse o único passo que lhe permitia manter‑se a par da morte circundante na área impossivelmente grande que fora confiada aos seus cuidados.
‑ É um cara de cu, se quer que lhe seja franco ‑ disse Oliver‑, mas parece um médico muito bom.
‑ Pois parece ‑ concordou Sheila. ‑ Se ao menos tivesse sido ele quem operou, em lugar do outro!
Estava numa sala de pedra abobadada, no cimo de um edifício. Depois apercebeu‑se de que se encontrava num lugar especial qualquer, numa parte de um hospital. Do outro lado do sítio onde estava deitado havia uma grande sala vivamente iluminada, onde enfermeiras e pessoas suas amigas pareciam estar a dar uma festa, a comer e a beber e a tagarelar alegremente umas com as outras. Ouvia‑se um murmúrio constante de música fúnebre, de diversos toca‑cassetes. Um jovem médico disse: «Esta é um verdadeiro achado. Comprei‑a hoje. Foi a música tocada no funeral do príncipe Alberto da Bélgica. Custou‑me 200 dólares, mas valeu a pena.»
Disse, ou julgou dizer a Sheila, que parecia entrar e sair, flutuante, da sua consciência e estava muito inclinada para ele: «Diz‑lhes que parem com aquela maldita música.»
No mesmo quarto com ele estava um velho. Um jovem negro musculoso de camisola interior, que parecia um ex‑pugilista, batia ferozmente no peito e no abdome do velho. Damon sabia que o velho ia morrer, e assim aconteceu. Sabia também que a seguir seria a sua vez, mas tinha as mãos amarradas uma de cada lado da cama e não podia fazer nada para se defender. O cadáver do velho foi levado e o negro voltou‑se para ele e começou a bater‑lhe ferozmente, com os braços nus e musculosos a sair da camisola interior. De vez em quando, o negro parava de lhe bater e barbeava‑o com uma velha navalha. A cada passagem da navalha, punha um bocadinho de fita adesiva na face de Damon e escrevia nela a data e a hora, com uma esferográfica. Depois voltava a bater‑lhe. Damon recusou‑se a gritar e resignou‑se calmamente a ser morto pelo negro.
Mas ouviu‑se uma gargalhada na sala brilhantemente iluminada do outro lado da sua cama e alguém disse: «Estamos atrasados para a festa. Leva‑o para qualquer lado até amanhã.»
Foi transportado não soube para onde e toda a gente partiu a falar alegremente. Ficou sozinho com luzes vivas a incidir‑lhe dolorosamente nos olhos.
Sheila apareceu, de novo inclinada para ele.
‑ Tens de me tirar daqui para fora ‑ disse ele, embora soubesse que não lhe saía nenhum som da boca.
‑ Querido ‑ pareceu Sheila responder‑lhe ‑, as pessoas pagam muito dinheiro extra para morrer nesta sala.
‑ Ao menos ‑ insistiu ele, mudamente ‑ afasta o negro de mim. Ele vai matar‑me. Eles vão todos matar‑me. Tens de ir à Polícia. O Oliver que telefone ao Times. Ele conhece toda a gente no jornal. E tu também tens de te ir embora. Eles também te matarão.
Sheila desapareceu, a flutuar, e ele tentou dormir, mas a luz viva a incidir‑lhe nos olhos manteve‑o acordado. Havia um grande relógio na parede, mas andava para trás e muito depressa, de modo que os ponteiros do mostrador estavam em constante movimento. «Querem enganar‑me acerca das horas», pensou Damon. «Não querem que eu saiba distinguir o dia da noite.» Era um grande requinte de tortura.
‑ Não pode falar ‑ disse Sheila a Oliver‑, mas arranjou maneira de me dar a entender que queria uma caneta e um papel. Pelo menos o arteriograma deu resultado‑ até agora ‑ e ele parece um bocadinho mais forte. Pode segurar numa caneta e comunicar qualquer coisa. É quase impossível ler o que escreve, mas consegui perceber que pensa que o enfermeiro negro está a tentar matá‑lo. O homem limita‑se a fazer o que lhe mandam: bater‑lhe no peito para desalojar a matéria que se acumula nos pulmões, a fim de ser aspirada e Roger poder respirar. Mas vá lá uma pessoa tentar explicar isso a um homem que está a maior parte do tempo delirante. Sei que é o homem menos racista do mundo, mas creio que algures, dentro de todos nós, irracionalmente... ‑ Encolheu os ombros, desesperada. ‑ De qualquer modo, pedi ao médico que dirige a Unidade de Cuidados Intensivos que mantenha o homem afastado de Roger. Já tem bastante com que se preocupar, mesmo assim. Soube agora que no primeiro dia lhe fizeram 26 transfusões. Ninguém sabe o que o mantém vivo. Os seus rins deixaram de funcionar. Pediram uma derivação para o ligarem a um aparelho de diálise, mas os médicos que fazem isso só poderão começar amanhã de manhã. E em breve terão de lhe tirar o tubo da garganta e fazer uma traqueotomia para que as suas cordas vocais não fiquem destruídas. É o primeiro sinal de esperança... ‑ O seu tom tornou‑se amargamente irónico. ‑ Pensam que há uma probabilidade de ele viver e querem que, se tal acontecer, possa falar. Mas o especialista que trata disso também só vem na segunda‑feira, ou seja daqui a quatro dias, e entretanto pode ser demasiado tarde. Seria lógico pensar que num lugar enorme como este encontrariam qualquer outra pessoa que pudesse fazer essa operação imediatamente. Têm vindo nos jornais tantas histórias acerca de pessoas que a fazem com um canivete no chão de um restaurante, quando alguém se engasga com um bocado de bife... E nem sequer concordam quanto ao nome da operação: um médico chama‑lhe traqueotomia e outro traqueostomia. ‑ Sheila abanou a cabeça, cheia de admiração.
‑ O nome das coisas é importante. A adição ou a subtracção de um simples s pode modificar todo o significado de uma palavra. Como hei‑de saber? Agora arrependo‑me de não ter estudado Medicina, quando era nova, em vez de Psicologia. Então talvez pudesse lutar contra esta terrível e mastodôntica máquina hospitalar.
Oliver ouviu tudo quanto ela disse em silêncio. Fora ver Damon diversas vezes e falara com alguns dos médicos mais novos e com algumas das compreensivas enfermeiras, e embora tivesse ficado alarmado com o aspecto do amigo, sentia‑se inclinado a acreditar nos médicos e nas enfermeiras com quem falara e que lhe tinham dito que, em virtude de ter sobrevivido àqueles horríveis primeiros dias, era muito provável que, eventualmente, se refizesse. Quando telefonava ao irmão, o que fazia diariamente, e descrevia o melhor que era capaz os tratamentos que estavam a ser administrados a Damon, o irmão confirmava que os médicos sabiam o que estavam a fazer. Sheila dava a impressão de estar a dissolver‑se. Fisicamente, parecia ter perdido muito peso, o seu cabelo escuro, outrora reluzente, pendia‑lhe agora, baço, à volta da cabeça, e a sua cara parecia ter‑se aguçado, transformado num cutelo delgado e quebradiço. Tinha sido sempre uma mulher que falara com brevidade e confiança e as suas tiradas desconexas tornavam‑se assustadoras, como se o seu carácter estivesse a desfazer‑se em fragmentos desconhecidos, irregulares e incontroláveis. Oliver gostaria de ter a coragem de lhe sugerir que, para o próprio bem dela e de Damon, talvez fosse boa ideia ausentar‑se do hospital durante dois ou três dias de cada vez. A atmosfera da Unidade de Cuidados Intensivos estava a esmagá‑la e a Damon também. Mas Oliver sabia que não podia sugerir tal coisa. Sheila pensaria que estava a aconselhar‑lhe a fuga, o abandono. Assim, passava quase todo o dia e toda a noite na sala de espera, às vezes a dormitar numa cadeira. Depois acordava num sobressalto e corria para o quarto de Damon, para ver se precisava de lhe dizer alguma coisa. Era verdade ser ela o único elo com o mundo através do qual ele podia comunicar fosse o que fosse, pois só ela conseguia decifrar o que garatujava no papel.
Damon sofria agora de uma sede terrível e escrevia constantemente a palavra água no bloco amarelo que tinha à cabeceira. Os médicos e as enfermeiras diziam que ele recebia todo o líquido necessário intravenosamente e pelo tubo que lhe descia pela garganta para o estômago, através do qual lhe era administrado um pó nutritivo que deveria fornecer‑lhe 1500 calorias por dia. Não lhe permitiam beber porque tudo quanto ele ingerisse oralmente deslizaria logo para os seus extenuados e comprimidos pulmões. A única vez que tinham tentado alimentá‑lo com um pouco de JellO (*) fria, tinham tido de a aspirar imediatamente, intacta. Tinha sido Sheila que arranjara uma dúzia de limões e espremia algumas gotas em pensos embebidos em glicerina, que lhe passsava pelos lábios ressequidos. Ele sorria, ou tentava sorrir, grato, do sabor, como se a leve acidez do fruto lhe desse, pelo menos momentaneamente, a ilusão de lhe apaziguar a sede.
‑ Ele esquecerá tudo isto quando sair daqui ‑ disse Oliver, a procurar palavras de conforto. ‑ Todas as enfermeiras dizem a mesma coisa.
‑ Tortura. ‑ Sheila parecia não ter ouvido o que ele dissera. ‑ Ele escreve sempre essa palavra ‑ tortura ‑ antes de qualquer outra coisa. ‑ Tirou da mala uma folha dobrada de papel amarelo e leu a escrita irregular e quase ilegível, que pareceu a Oliver pegadas de pássaros na areia: ‑ «Sair daqui. Tenho de sair daqui. Chama advogado. O...» É você, Oliver. «O sabe número. Intimação. Habeas corpus. Prisão.»
‑ As enfermeiras disseram‑me que acontece o mesmo com todos ‑ disse Oliver. ‑ Até têm um nome para isso: a síndroma da UCI.
‑ Aliaram‑se a você ‑ disse Sheila, acusadoramente. ‑ Acham‑no engraçado. Tenho visto que bebe café com elas, as acompanha à charcutaria para uma sanduíche. De que lado está, afinal?
‑ Jesus, Sheila! ‑ protestou Oliver, fatigado. Sheila respirou fundo.
‑ Desculpe, Oliver. Perdoe‑me. Já não sei o que digo, hoje em dia.
‑ Não tem importância‑ murmurou ele, a dar‑lhe palmadinhas na mão.
Um médico passou pela sala e Sheila olhou‑o, esperançada. Mas o médico ignorou‑a e entrou na sala de conferências contígua, onde o pessoal se reunia para discutir casos e assistir a prelecções.
‑ Ele começa a parecer um esqueleto ‑ disse
Sheila. ‑ Vêem‑se lhe todos os ossos da cara. Ninguém acreditaria que os braços de um homem ‑ e uns braços tão fortes como os dele eram ,‑ pudessem definhar tão depressa. Parece estar a perder mais de 2 kg por dia, É como se estivesse a desaparecer bocadinho a bocadinho diante dos meus olhos.
(*) Marca comercial de uma sobremesa de gelatina. (N. da T.)
ESTAVA a ser transportado para uma caverna por quatro homens mascarados. Sabia que o chefe dos quatro era Zalovsky, embora não fosse proferida nem uma palavra. A caverna era alta e espaçosa, sombria, talhada na rocha. Ele não se podia mexer, mas uma vez na caverna viu o sarcófago de pedra esculpida que o esperava. Depois percebeu que não ia ser sepultado sozinho. De pé encostada a uma parede, mais alta do que a julgara, majestosa e erecta, envolta num largo vestido cor‑de‑rosa, com o cabelo a cair‑lhe para os ombros e toda ela banhada numa luz malva, imóvel na morte, estava a sua mulher. Mas ele não conseguia lembrar‑se do seu nome. Copélia era o único nome que lhe ocorria e ele repetia‑o mentalmente, irritado. Depois mudou‑o para Cornélia, mas consciente de que também não era esse o nome.
Sentiu uma dor viva na mão e acordou, ou quase, e a caverna e a figura alta, iluminada de luz malva, desapareceram, e ele lembrou‑se de que o nome da sua mulher era Sheila e de que ela estava viva. Sentiu‑se grato ao médico desajeitado que estava a tentar tirar‑lhe sangue da mão para mais análises, pois a dor interrompera o sonho. Era o médico da barba rala que ele tentara nomear responsável pelo navio onde ainda acreditava que estava a navegar. Com a diferença de que, agora, não tinha liberdade de subir e descer entre conveses, estava imobilizado em baixo, a maior parte do tempo alado pelos pulsos.
O rápido relógio que andava para trás, falso no indicar das horas, continuava visível. Era uma engenhoca astuciosa, descobrira, destinada a enganá‑lo e a não o deixar dormir. Forçara‑se a aprender a escrever a palavra dormir quase claramente no bloco amarelo. Quem quer que estivesse de serviço para o torturar, considerava essa a principal prioridade: impedi‑lo de dormir. O néon luminoso brilhava‑lhe sempre nos olhos. Não se lembrava da luz do dia.
Estavam constantemente a picá‑lo com agulhas, para lhe dar ou tirar sangue. As suas veias tinham mirrado e a maioria dos médicos não conseguia encontrar um alvo capaz para as suas agulhas. Os seus braços, as suas mãos e os seus pés estavam pretos e roxos das incessantes tentativas, e ele amaldiçoava o Dr. Zinfandel no seu coração, pois todas as vezes que ele aparecia mandava administrar‑lhe uma transfusão ou tirar‑lhe uma amostra de sangue.
Quem quer que estivesse de serviço parecia ter o direito de lhe tirar sangue ou lhe introduzir um tubo intravenoso, por muito desajeitado ‑ ou desajeitada ‑ que fosse, e ele tornou‑se tristemente grato às pessoas com uma habilidade instintiva, que conseguiam encontrar‑lhe as veias vazias e profundamente enterradas à primeira tentativa. Infelizmente, não se lembrava delas nem dos seus nomes.
Um pelotão variado de médicos parecia interessado nele, cada um relacionado com este ou aquele especialista nalgum obscuro quadro médico organizativo. Médicos para os seus pulmões, para os seus rins, para a sua garganta com o tubo introduzido no ponto onde fora efectuada a traqueotomia, para as chagas causadas por estar deitado e que iam até ao osso e tinham de ser limpas e pensadas constantemente. Urinava através de um cateter, debatia‑se com uma arrastadeira para despejar os intestinos, sem grande êxito, e tinha sonhos em que urinava regaladamente, da maneira normal, e se sentava numa sanita. Estava nu e exposto, era tratado como um bocado de carne num talho e vivia, se a tal se podia chamar viver, num estado de constante humilhação.
Os enfermeiros batiam‑lhe por turnos no peito, para que pudesse expectorar o sedimento que se lhe acumulava nos pulmões. O negro não se aproximava dele, mas Damon via‑o espreitar sorrateiramente do corredor, à espera da sua oportunidade. Voltou a avisar Sheila a respeito do indivíduo e escreveu‑lhe uma frase suplicante, a rogar‑lhe que se dirigisse à Polícia antes que fosse demasiado tarde.
Até que um dia ‑ ou uma noite ‑ ouviu o som de sereias distantes a aproximar‑se e sentiu, triunfante, que o pedido feito à mulher tinha chegado ao seu destino. Viu as enfermeiras e os médicos afastarem‑se apressadamente, deixando ficar apenas o negro, que entrou no quarto, se debruçou para ele e disse: «Eles pensam que vão deixar‑me ficar aqui para aguentar com as culpas todas. Bem, estão enganados. E se você julga que se vai safar, também está enganado.» Foi então que Damon soube que o negro era um agente de Zalovsky que tinha sido introduzido no hospital para acabar o que o outro começara.
Depois o negro sentou‑se‑lhe no peito e começou a armar uma caixa com dinamite mesmo defronte da boca de Damon. «Quando eles entrarem por aquela porta», disse o negro, «esta coisa explode. E você com ela.»
Damon sentiu uma calma gelada, satisfeito por ir morrer tão depressa.
Terminado o seu trabalho, o negro saltou do peito de Damon e desapareceu, deixando‑o sozinho num lugar subitamente silencioso, com as luzes pela primeira vez quase completamente apagadas e as sereias a aproximarem‑se e depois a afastarem‑se, até o silêncio se tornar absoluto.
Abandonado, abandonado, pensou Damon. Sheila tinha‑o traído, não acreditara nele. Ficou envolto em sombras, à espera, lamentando que o engenho não tivesse explodido.
Amarrado e impossibilitado de chamar, tentou repetidamente, com gemidos, sinais feitos com os olhos e pequenos movimentos dos dedos, levar as enfermeiras e os médicos que passavam constantemente pela porta aberta do seu quarto a darem‑lhe qualquer coisa para beber. Passavam por ele como se fosse um mendigo à porta de uma igreja e estivessem com pressa para assistir a um casamento ou a um baptizado.
Agora estava constantemente ligado a um respirador, porque contraíra aquilo que alguns médicos diagnosticavam como pneumonia viral e a que outros chamavam simplesmente congestão ou pulmão parado. Sentia um interesse distante e frio pelo seu estado e pelas tentativas de tratamento a que o sujeitavam, e quando o Dr. Rogarth fez uma das suas raras visitas escreveu em letra de imprensa, no bloco: «Vou morrer?»
O Dr. Rogarth respondeu: «Vamos todos morrer», e Damon tentou virar‑lhe desdenhosamente a cabeça, mas não conseguiu.
Havia um médico que parecia a Damon estar encarregado de privá‑lo de água. Tinha um bigode pendente, húmido e alourado, cabelo louro‑escuro muito comprido, olhos loucos e manhosos e entrava e saía com uma bata branca solta a adejar atrás dele. Trabalhava num misterioso projecto montado à volta de uma carpete persa e que implicava que Damon fosse colocado em poses sugeridas pelas figuras da carpete e fotografado nessas posições. Damon deu consigo especado em areias escaldantes, encostado a monumentos altos e paredes de túmulos, tudo sob um sol implacável, e suspenso de uma árvore nua, numa pequena ilha rodeada por um lago no qual a luz do Sol se reflectia como rajadas de tiros. Era transportado de um lado para outro como por magia, em fracções de segundo, enquanto o médico, a que entretanto Damon alcunhara mentalmente de o Mágico, e que era sempre acompanhado por uma enfermeira mirrada, num uniforme desmazelado, disparava a câmara e assobiava alegremente, baixinho. Fosse como fosse, Damon conseguia comunicar com ele e o Mágico não se fazia rogado para falar, frequentemente com muito bom humor.
‑ Que pretende você, exactamente? ‑ perguntou‑lhe Damon uma vez.
‑ Verá, quando eu acabar ‑ respondeu o Mágico. ‑ Se quer saber a verdade, estou a participar num concurso. Uma revista de viagens oferece um prémio pela fotomontagem que mais se aproximar do espírito e do desenho da minha carpete.
Tem de se habituar a cooperar sem todos esses protestos a respeito de água. como toda a gente.
Foi o primeiro indício de que havia mais alguém que se encontrava sob o poder do Mágico.
‑ Toda a gente deixaria de se queixar se ao menos uma vez os deixassem beber o que lhes apetecesse.
O Mágico riu‑se.
‑ Está bem, deixarei toda a gente beber o que lhe apetecer das dez da manhã até ao meio‑dia. Depois, aí pelas duas horas ‑ fixe bem as minhas palavras‑, estarão outra vez a choramingar por água. ‑ Soltou Damon da árvore e riu‑se quando ele correu para a beira do lago e mergulhou a cara na sua frescura.
Às duas horas em ponto, o Mágico amarrou‑o outra vez e ele tinha mais sede do que nunca e a toda a sua volta ouvia pessoas a lamuriar: «Água, água!» Acima dos lamentos ouviu a gargalhada do Mágico.
De súbito, sem saber como, foi capaz de distinguir a noite do dia. À noite estava num convés inferior do barco e durante essas horas não mantinham as luzes a incidir‑lhe nos olhos. A sua enfermeira nocturna, que ele agora reconhecia, era uma mulher esbelta, de feições delicadas e muito bronzeada pelo sol, com uma voz suave e deliciosa. Um dos médicos, um homenzarrão novo, de pescoço de touro, visitava‑a com frequência quando ela estava de vela à cabeceira de Damon. Disse um gracejo a respeito do bronzeado da mulher: «Gostaria de estar presente, da próxima vez que vá tomar banhos de sol», disse, e riu‑se grosseiramente. Fez outras observações lascivas à mulher. Observações lascivas, repetiu Damon a si mesmo, com desagrado. A criatura tão bonita e delicada. E ficou de coração despedaçado quando uma noite, depois de o médico de pescoço de touro ter entrado no quarto para segredar qualquer coisa ao ouvido da enfermeira, ela se inclinou para ele e lhe disse docemente: «Vou‑me ausentar uns minutos.» Soube para onde ela ia: subir para a cama vazia de algum pobre diabo com o lascivo médico.
Quando deu por si, estava sozinho com o médico num barco descoberto, a navegar através de um lago na direcção de uma ilha.
‑ Sei porque me vai levar para a ilha ‑ disse Damon.
‑ Porque é? ‑ perguntou o médico.
‑ Vai matar‑me lá ‑ respondeu Damon, calmamente. Furioso, o médico tirou da algibeira um objecto de metal reluzente e bateu em Damon com ele. A dor foi intolerável, mas passou num segundo.
‑ Estou aqui para lhe salvar a vida ‑ disse o médico. ‑ Nunca se esqueça disso.
Estava nas profundezas do porão do navio. Tinha as mãos amarradas a uma trave de madeira, à sua frente. Estava ajoelhado defronte da trave e a seu lado encontrava‑se outro homem que nunca vira, também amarrado e ajoelhado. Duas enfermeiras subiam e desciam constantemente uma escada descoberta, que levava a outro convés. Damon reconheceu as duas enfermeiras. Eram Julia Larch e outra que devia ser sua filha. Embora tivesse de haver uma considerável diferença de idades, pareciam exactamente iguais. Não prestavam atenção nenhuma aos gemidos de Damon e do outro homem, que rogavam um golo de água. Por fim, irritada, Julia Larch aproximou‑se. Não evidenciou nenhum sinal de reconhecer que o homem que se encontrava à sua frente era o pai do seu filho. «Terão de beber ao meio‑dia», disse. «Agora calem‑se.»
Estava lá o eterno relógio, mas a funcionar normalmente. Não se conseguia detectar o movimento dos seus ponteiros no grande mostrador. Marcava nove e vinte.
Com um autodomínio sobre‑humano, evitou olhar para o relógio até lhe parecer que tinha passado pelo menos uma hora. Eram nove e vinte e cinco. O homem amarrado ao lado dele gemia cada vez mais alto e sempre que uma ou outra das enfermeiras que eram Julia Larch e a filha apareciam na escada, ele dizia roucamente, através dos lábios inchados: «Água! Água!»
Mas elas não lhe prestavam atenção e continuavam a subir e descer apressadamente a escada, a tratar da sua vida.
Passado um bocado, os gemidos do homem foram‑se tornando mais fracos e ele começou a rolar a cabeça de lado para lado, num ritmo dementado. Damon gostaria de fazer qualquer coisa por ele, nem que fosse sufocá‑lo e acabar‑lhe com o tormento, mas com as mãos amarradas e a língua inchada na boca só podia emitir sons de comiseração semelhantes a grunhidos. Aquele foi o período de tempo mais longo da vida de Damon, mais longo do que a viagem à Europa, mais longo até do que qualquer viagem através do Atlântico Norte, durante a guerra. Finalmente, quando olhou para o relógio, faltava um minuto para o meio‑dia. Olhou para o homem que se encontrava a seu lado. Ouviu um último gemido suave, como o suspiro de um bebé, e a cabeça do homem pendeu para a frente. Estava morto.
Damon ouviu os sinos do barco anunciar o meio‑dia. Julia Larch apareceu com um jarro de água e dois copos. ‑ Onde está o outro? ‑ perguntou.
‑ Morreu.
Observou avidamente, a lamber os lábios, enquanto Julia enchia um copo de água. Olhou para o outro homem. As roupas que o tinham prendido à trave de madeira ainda lá estavam, mas o corpo desaparecera.
‑ Ou o levaram ou transformou‑se em pó e o vento levou‑o ‑ disse Damon estupidamente, a ver Julia pousar o copo cheio de água e o jarro, para lhe poder desatar as mãos.
Com as mãos livres, pegou no copo e despejou‑o e depois estendeu‑o para ser de novo cheio. Sem qualquer expressão no rosto, Julia encheu novamente o copo e ele voltou a despejá‑lo de um trago. Momentaneamente satisfeito, disse a Julia em tom de censura:
‑ Se tivesse vindo dois minutos mais cedo, ele estaria vivo.
Julia encolheu os ombros, com o pequeno rosto inexpressivo impassível.
‑ Normas são normas ‑ respondeu.
Desse momento em diante, pôde beber o que lhe apetecesse. Sheila levava‑lhe seis pequenas latas de sumo fresco de ananás, de cada vez, e ele nunca parecia saciar‑se e maravilhava‑se constantemente com o delicioso sabor tropical do fruto, enquanto o sumo lhe escorria numa torrente gelada pela garganta abaixo. O Mágico e a sua enfezada assistente desapareceram, e o único médico, dos muitos que entravam e saíam da Unidade de Cuidados intensivos, pelo qual Damon tinha alguma simpatia, um homem baixo, com cara de mocho e grandes óculos com aros de massa, que lhe fizera a traqueotomia, informou‑o de que no dia seguinte lhe substituiria o tubo da garganta por outro que lhe permitiria falar, se aprendesse o truque de inspirar enquanto punha o dedo no buraco do tubo e utilizar o ar para dizer algumas palavras. O homem chamava‑se Dr. Levine e prometera a Damon, havia muito tempo, que, eventualmente, ele conseguiria falar normalmente. Era o único dos médicos que lhe tinha dito uma palavra de esperança, motivo por que Damon gostava dele.
Como prometera, o Dr. Levine apareceu na manhã seguinte com o novo tubo. «Primeiro», disse, «tiramos esta engenhoca.» Agarrou no delgado tubo de plástico que estava preso ao saco de pó nutritivo suspenso de um suporte de aço por cima da cabeça de Damon, tubo que, através do nariz, lhe seguia para o estômago. «O Dr. Zinfandel diz que já é altura de começar a comer normalmente.»
Damon observava‑o receosamente. Tinha a certeza de que não seria capaz de comer normalmente e correria o risco de morrer de fome. Mas o Dr. Levine parecia confiante, tirou rapidamente o tubo e deixou‑o pendente do saco, no suporte de aço. Depois pegou no novo tubo de metal através do qual ele poderia respirar e, ocasionalmente, segundo o médico, emitir sons coerentes que poderiam ser interpretados como linguagem e uni‑lo ao resto da espécie humana. «Isto dói um bocadinho, ou talvez muito», avisou. «Mas faz‑se depressa e se eu lhe administrasse um anestésico a agulha doer‑lhe‑ia mais.» Inclinou‑se e, sem cerimónias e habilmente, tirou o antigo tubo encrustado de pus e introduziu o novo. O médico tinha tido razão ao dizer que doeria, mas ele esforçou‑se por não o demonstrar pela expressão do rosto, porque Sheila e Oliver estavam no quarto, a observar ansiosamente.
O novo tubo metálico curvo causava‑lhe uma sensação peculiar na garganta.
‑ Agora... O Dr. Levine tapou o buraco do tubo com o dedo, como um tocador de flauta. ‑ Respire fundo e depois tente falar.
Damon respirou fundo. Percebeu que estava assustado. Apesar do que o médico dissera, tinha a certeza de que não poderia falar. Mas tentou. Para sua surpresa, saiu um som. Depois disse claramente, embora a voz lhe soasse metálica e estranha aos ouvidos:
‑ Levem‑me daqui.
Oliver e Sheila riram‑se. O riso de Sheila foi historicamente alto.
‑ Experimente de novo ‑ pediu o Dr. Levine. Damon abanou a cabeça. Dissera o suficiente para um dia.
Sheila estava sentada na sala de espera do consultório do Dr. Zinfandel. Fora arranjar o cabelo e vestira outra roupa, para substituir a saia e a camisola amarrotadas que não se dera ao trabalho de mudar durante dias. Queria parecer serena e com os nervos firmes dominados, na conversa que sabia ia seguir‑se.
A secretária de Zinfandel disse‑lhe:
‑ Pode entrar.
Sheila levantou‑se, endireitou as rugas da saia e entrou com passo firme no consultório onde Zinfandel ainda estava inclinado para a ficha de um doente que acabara de sair do aposento. Parecia enervado e cansado. Sheila sabia que ele chegava todos os dias ao hospital às cinco da manhã e muitas vezes às onze da noite ainda lá estava. O médico mencionara que tinha mulher e dois filhos e Sheila lamentou‑os, embora nunca tivesse visto nenhum sinal da sua existência e não houvesse nenhuma fotografia da família na secretária de Zinfandel. «Tem a mania de curar», dissera Oliver, e Sheila achava que a descrição se ajustava ao homem magro e sempre a trotar.
Zinfandel ergueu os olhos orlados de vermelho e sorriu brevemente, com o cérebro atravancado por um milhar de moléstias não curadas.
‑ Queira sentar‑se ‑ disse. ‑ Agrada‑me que tenhamos um momento para falar um com o outro. Sabe o que tenho a dizer.
‑ Sei ‑ respondeu Sheila. ‑ E penso que está enganado.
Zinfandel suspirou.
‑ Não o posso tirar da Unidade de Cuidados Intensivos, Mrs. Damon. O seu marido continua a ser um homem muito doente. A sua vida está suspensa por um fio. Não minto aos meus pacientes nem às suas famílias, como sabe, não lhes minto nem oculto nada. É verdade que os pacientes que têm de passar longos períodos na unidade têm tendência para mergulhar numa profunda depressão mental. Mas no caso do seu marido é o corpo que temos de salvar primeiro. Temos os nossos princípios profissionais, a nossa experiência profissional.
‑ Compreendo tudo isso, doutor ‑ disse Sheila, a tentar manter a voz calma ‑, mas eu também sei algumas coisas, depois de viver com ele tantos anos. O meu marido está no ponto mais baixo da sua vida. Perdeu tanto peso que é apenas pele e osso. E continua a perder peso todos os dias. Recusa‑se a comer...
‑ O pó que eu receitei, misturado com leite...
‑ Sei tudo a respeito desse pó. O doutor pode receitá‑lo, mas ele bebe um golo e volta a cabeça para a parede. Eu trago‑lhe petiscos... salmão fumado, caviar, sopas, fruta... A única coisa que toma é sumo de ananás. Quanto tempo acha que poderá sobreviver somente com sumo de ananás? Encontra‑se num estado de letargia fatalista. Procura um pretexto para morrer.
‑ Exagera, Mrs. Damon.
‑ Quero‑o transferir daquela maldita Unidade de Cuidados Intensivos, onde está rodeado por moribundos, pelas máquinas e pela parafernália da morte. Transfira‑o para o seu quarto, faça qualquer coisa, qualquer mudança. Ali, é como um animal selvagem no cativeiro, como aqueles animais que recusam comer atrás de grades e preferem deitar‑se e morrer.
‑ É impossível transferi‑lo ‑ declarou Zinfandel, firmemente. ‑ Ele precisa das máquinas, do respirador, do oxigénio, dos monitores... Precisa que tenhamos sempre presente o estado do seu coração, a sua pulsação, a sua tensão arterial... a sua contagem de glóbulos vermelhos, que continua perigosamente baixa. Pode haver uma emergência de um momento para o outro. Ele precisa de atenção constante, de momento a momento. Deve compreender, Mrs. Damon, que somos responsáveis pela sua vida...
‑ Também eu sou. E ele está a desistir de viver, onde agora se encontra.
‑ Compreendo os seus receios ‑ disse Zinfandel, brandamente. ‑ O seu ponto de vista é subjectivo. Nós não nos podemos permitir esse luxo, temos de tomar as nossas decisões numa base objectiva. Por favor confie em nós.
‑ Não confio ‑ respondeu Sheila, e levantou‑se e saiu do consultório.
Quando Oliver chegou à sala de espera da UCI depois do trabalho, à noitinha, como todos os dias, notou que Sheila estava muito mais perturbada do que quando a deixara na véspera.
‑ Que se passa? ‑ perguntou.
‑ Preciso de falar consigo.
Sheila olhou em redor. Estavam dois outros visitantes na sala e o médico‑chefe, que dirigia na globalidade a unidade, falava baixinho e muito sério com um deles, a um canto.
‑ Não quero falar aqui. Vamos beber um café lá fora.
‑ Ele está pior? ‑ perguntou Oliver, ansiosamente.
‑ Ele está pior todos os dias ‑ respondeu Sheila, e não disse mais nada enquanto não se encontraram sentados num pequeno café perto do hospital, onde por vezes tomavam as refeições e que era frequentado pelas enfermeiras, nas suas folgas de serviço. Naquele momento estava um grupo de três enfermeiras perto da entrada, e Sheila levou Oliver para uma mesa do fundo, onde ficaram sozinhos.
‑ Que se passa? ‑ repetiu Oliver.
A expressão perturbada que se mantinha no seu rosto desde o tiroteio intensificara‑se naquele momento. Sheila achou‑o parecido com um rapazinho que a mãe perdera numa multidão e que tentava conter o choro enquanto olhava os rostos que o cercavam, à procura dela.
‑ Qualquer coisa peculiar ‑ respondeu Sheila. ‑ Não sei exactamente o que é. ‑ Depois contou‑lhe a conversa com Zinfandel. ‑ Se Roger perde terreno todos os dias, parece‑me que a única coisa que faria sentido seria tentar mudar, fazer qualquer outra coisa. Mas os médicos estão a envolver‑me numa muralha de pedra. Fingem que me ouvem, mas não ouvem. Tem algumas ideias?
Um espasmo fez estremecer a cara de Oliver, que emitiu alguns sons incompreensíveis, no fundo da garganta.
‑ Bem ‑ disse, por fim ‑, não a quero preocupar, mas...
‑ Mas o quê?
‑ É apenas uma suposição... ‑ calou‑se de novo.
‑ Continue, Oliver ‑ pediu Sheila, impaciente. ‑ Não esteja com rodeios.
‑ Eles estão a diluir a responsabilidade.
‑ Quem está a diluir a responsabilidade? Que responsabilidade? ‑ Sheila tinha dificuldade em falar baixo.
‑ Todos eles. Os médicos. Sheila, disseram‑mo o mais confidencialmente possível...
‑ Deixe de falar por enigmas, Oliver, pelo amor de Deus!
‑ Bem, conhece aquela enfermeira loura e bonita, a Penny?
‑ Conheço.
‑ Comi uma ou duas vezes com ela ‑ Oliver corou. ‑ É muitíssimo inteligente, além de ser muito atra...
‑ Poupe‑me as descrições ‑ cortou Sheila, brutalmente. - Prossiga.
‑ Lembra‑se de o Roger lhe escrever uma vez a pedir que falasse com um advogado?
‑ Claro que lembro.
‑ Bem. alguém leu o bilhete antas de lho darem. Quero dizer, um deles, dos médicos, leu‑o. Suponho que disse aos outros. Pensam que ele falava no advogado porque você e o Roger vão processar Rogarth, o hospital, toda a gente, por tratamento inadequado. Milhões de dólares.
‑ Roger nunca processaria ninguém na sua vida. Todas as vezes que lê nos jornais acerca de um desses processos, fica furioso. Disse‑me repetidamente que esse hábito está a arruinar a prática da medicina na América.
‑ Você sabe isso e eu também. Mas eles não sabem.
Pelo menos segundo a Penny, não sabem. Estão loucos de medo. A Penny disse‑me ainda mais uma coisa.
‑ O quê?
Oliver olhou para todos os lados, a fim de se certificar de que não se aproximara ninguém sorrateiramente.
‑ Quando o levaram para a UCI depois da operação, um dos médicos de serviço disse: «Mais um dos trabalhos de açougueiro do Rogarth.
‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou Sheila, e acrescentou, acusadoramente: ‑ O seu próprio irmão lhe disse que ele era um dos melhores do país.
‑ Lamento ‑ desculpou‑se Oliver. ‑ Se ele cometeu um erro, foi de boa fé. Se o meu irmão disse que o Rogarth era um dos melhores do país, foi por ter ouvido dizer isso mesmo. Talvez Rogarth o tenha sido em tempos... talvez nunca. ‑ Oliver encolheu os ombros. ‑ Reputações! Há escritores em quem Roger não tocaria, sequer, e que há 20 anos só têm críticas excelentes. Quanto aos médicos... é uma corporação fechada. Falando claro, não têm o hábito de se agatanhar uns aos outros. E a Penny disse‑me ainda mais uma coisa... Quando o Roger foi mandado para a UCI, na folha de cima do relatório da operação estavam três letras. ‑ Hesitou. ‑ Não sei se lhe deva dizer, Sheila...
‑ Que três letras? ‑ O tom da voz de Sheila tornara‑se feroz.
‑ PAP ‑ respondeu Oliver. Sheila franziu a testa.
‑ Que significa isso?
‑ A Penny diz que significa «põe‑te a pau». ‑ Oliver suspirou, como se tivesse tirado um grande peso dos ombros. ‑ Eles sabiam que tinha sido cometido um grande erro e estavam a avisar todos para cerrar fileiras, pois tinham de ocultar a asneira.
Sheila fechou os olhos e depois cobriu‑os com as mãos. Quando retirou as mãos o seu rosto estava empedernido.
‑ Os porcos ‑ murmurou, calmamente. ‑ Os porcos cínicos.
‑ Não dirá nada a este respeito, pois não? ‑ perguntou Oliver, inquieto. ‑ Se descobrem que foi a Penny, correm com ela em dois minutos.
‑ Não se preocupe com a Penny. Eu trato do assunto à minha maneira. Roger sairá daquele maldito lugar amanhã mesmo. Porque não me disse há mais tempo?
‑ De que teria servido? Eles agora estão com medo. De que serviria ao Roger se também estivessem furiosos?
‑ Oliver, não posso voltar ao hospital esta noite. Não sei o que faria ou diria, se voltasse. Gostaria que me levasse a um restaurante agradável, cheio de pessoas saudáveis a saborear uma boa refeição e não a conspirar contra seja quem for, e me oferecesse duas bebidas e uma boa garrafa de vinho. A não ser que tenha um encontro com a bonita Penny.
Oliver corou de novo.
‑ Descemos juntos no elevador, por coincidência ‑ explicou ele, nervosamente ‑, e ela tinha acabado o turno, eram horas de jantar e...
‑ Não se desculpe ‑ interròmpeu‑o Sheila, a sorrir. ‑ O facto de Roger estar no hospital não significa que um homem não possa olhar para uma bonita rapariga de vez em quando. Só lhe peço que vá lá acima e, se Roger estiver acordado, o que não é provável, lhe diga que insistiu para que eu saísse consigo, porque o hospital estava a deitar‑me abaixo. Ele compreenderá. Há um bar ao fundo do quarteirão. Estarei à sua espera, ao balcão. Não fique escandalizado se me encontrar bêbeda, quando chegar.
Quando Zinfandel fez a sua visita habitual às seis horas da manhã seguinte, Sheila estava presente, sentada muito séria na pequena poltrona junto da janela. Como sempre nas visitas matinais, Zinfandel estava bem disposto e transbordante de actividade. Olhou para a papeleta da enfermeira, aos pés da cama, tocou nos dedos dos pés nus de Damon, que já não estavam negros, e perguntou ao paciente como se sentia.
Damon, que entretanto passara a detestar o homem cuja presença ao alvorecer, todas as manhãs, lhe anunciava o começo de outro dia interminável e doloroso, respondeu:
‑ Péssimo.
Zinfandel sorriu, como se aquela demonstração de cólera revelasse que Damon se encontrava no caminho da cura.
‑ Os seus dedos ainda estão gelados ‑ observou, num tom que parecia insinuar que considerava o facto como um sinal de má fé da parte de Damon.
‑ Umas vezes gelam ‑ resmungou Damon ‑, outras, como agora, parecem estar a arder.
‑ Pode ser uma pontinha de gota.
‑ Pelo amor de Deus, não bebo nem um pingo de álcool há mais de um mês!
‑ Uma coisa pode não ter nada a ver com a outra. Vou mandar tirar‑lhe sangue esta manhã e fazer umas análises.
Damon gemeu.
‑ Acha que consegue encontrar alguém que saiba realmente onde estão as veias no corpo humano? Os canalizadores que me tem mandado picam‑me dez vezes seguidas para conseguirem duas gotas de sangue.
‑ As suas veias... ‑ murmurou Zinfandel tristemente. ‑ Não preciso de lhe falar de novo das suas veias. ‑ Pendurou de novo a papeleta aos pés da cama, depois de fazer uma anotação, e virou‑se para sair.
Sheila, que não o cumprimentara nem dissera uma palavra enquanto o médico estivera na sala, levantou‑se.
‑ Desejo falar consigo ‑ disse. ‑ Lá fora. ‑ E seguiu‑o até ao corredor.
‑ Espero que não demore muito ‑ observou o Dr. Zinfandel. ‑ Já estou atrasado.
‑ Quero que Mr. Damon seja transferido para um quarto particular. Hoje.
‑ Impossível. Já lhe expliquei que...
‑ Se ele não for transferido ‑ interrompeu‑o Sheila, sem delicadeza ‑, vou ter com o nosso advogado e arranjo uma autorização do tribunal para o levar para outro hospital. ‑ Reparou no pequeno clarão que brilhou nos olhos do médico, ao ouvir a palavra advogado.
‑ Verei o que posso fazer.
‑ Não verá o que pode fazer. Transferi‑lo‑á até às três horas desta tarde.
‑ Mrs. Damon, está constantemente a forçar‑me a proceder de uma maneira que contraria toda a minha prática e todos os meus princípios. Impõe o tratamento, dá ouvidos aos mexericos das enfermeiras e apresenta‑me pedidos impossíveis. Agora ameaça com um processo...
‑ Às três horas desta tarde ‑ interrompeu‑o Sheila, e voltou para a sala, onde Damon tentava readormecer.
Nessa manhã, Damon teve alucinações pela última vez.
Por uma razão que não lhe foi explicada, autorizaram‑no a andar à vontade pelo navio. O próprio navio mudara. Já não era um modesto cargueiro, mas sim um navio pintado de branco e carregado de passageiros. Estava toda a gente atarefada a fazer as malas e a despedir‑se, porque o navio não tardaria a atracar. Ainda que lho não dissessem, Damon compreendeu que o porto era Seatle. Compreendeu também que embora todas as outras pessoas fossem a terra, ele não desembarcaria.
No meio de grandes apitos, o navio foi amarrado. As enfermeiras, que aprendera a distinguir umas das outras e pelas quais se apercebia de que adquirira um afecto desencantado, passavam por ele, não já de uniforme branco, mas com encantadoras roupas de viagem de todas as cores, o cabelo arranjado, os rostos jovens cuidadosamente maquilhados e os saltos altos a matraquear no convés, enquanto lhe acenavam cordialmente e partiam. Só uma parou para lhe dizer adeus. Era a mais bonita de todas, aquela a quem chamavam Penny. Escorriam‑lhe lágrimas dos olhos azuis de pestanas louras, que lhe deslizavam pelo rosto angelical.
‑ Porque está a chorar? ‑ perguntou, compadecido.
‑ Amo Oliver Gabrielsen ‑ respondeu ela ‑ e ele ama‑me, mas é casado.
‑ Ah, Penny, nasceu para chorar. Há‑de chorar sempre.
‑ Bem sei ‑ disse a rapariga, a soluçar, e depois beijou‑o, com os lábios húmidos e macios, pegou na mala e desceu o portaló.
O médico com pescoço de touro, vestindo agora um blusão com fecho de correr e as palavras «Universidade da Virgínia» atravessadas no peito, parou defronte de Damon e disse‑lhe bondosamente:
‑ Bem, velhote, adeus. Posso trazer‑lhe alguma coisa de terra?
Damon pensou um momento, antes de responder:
‑ Traga‑me uma Coca‑Cola. Com gelo.
‑ Pode ficar descansado ‑ prometeu o médico e apertou‑lhe a mão com tal força como se a sua fosse de aço.
Depois o médico desceu também o portaló e Damon ficou com o enorme navio só para si.
Nessa tarde transferiram‑no para um quarto particular. Damon não perguntou a Sheila como nem porquê tal acontecera, e ela não lho disse. O quarto tinha um chuveiro e uma casa de banho privativa e, usando andadeiras, porque não se podia manter de pé sem elas, Damon sentou‑se na sanita com uma sensação que raiava o êxtase. Quando se despachou, ergueu‑se, apoiado nas andadeiras, e viu‑se ao espelho. O barbeiro do hospital fizera‑lhe a barba, antes de ele sair da UCI, e as linhas do seu rosto estavam cruamente definidas. Do espelho olhava‑o um rosto que mal reconheceu, uma cara de um branco baço esverdeado, com a pele esticada como pergaminho manchado sobre os ossos descarnados e os olhos afundados nas órbitas e desprovidos de todo o brilho. «São os olhos de um morto», pensou Damon e depois, movimentando cautelosamente as andadeiras, alguns centímetros de cada vez, voltou para o quarto onde Sheila e a enfermeira o ajudaram a deitar‑se, levantando‑lhe as pernas, porque ele não tinha forças para o fazer.
Agradou‑lhe verificar que no quarto não havia nenhum relógio.
‑ Trouxe o Times ‑ disse Sheila. ‑ Queres dar‑lhe uma vista de olhos?
Acenou afirmativamente. Abriu o jornal à sua frente. A data não lhe disse nada. Os títulos, idern. A língua podia muito bem ser sânscrito. Deixou o jornal cair para cima da colcha e começou a tossir violentamente. A enfermeira ligou o tubo e desceu‑lho para os pulmões, através do buraco aberto do tubo da traqueotomia, na base do pescoço, e ligou o ar comprimido para drenar os pulmões. Ele habituara‑se ao tratamento, mas aquela era a primeira vez que tinha consciência de como era doloroso.
Sheila levara‑lhe um batido de chocolate, reforçado com sorvete e um ovo cru. Damon tivera uma paixão por batidos de chocolate, quando era rapaz. Bebeu alguns golos e pô‑lo de parte. Sheila pareceu preocupada com a sua recusa e ele teve pena, mas não conseguiu engolir nem mais um golo.
Os pensos do seu peito e do seu ventre tinham sido retirados, mas ele recusava‑se a ver as cicatrizes. As enfermeiras mudavam‑lhe o penso e irrigavam e desinfectavam, quatro ou cinco vezes por dia, a enorme chaga da cama que lhe restava na nádega. Esse tratamento, de que até então mal se apercebera, revelou‑se também dolorosíssimo, o mesmo acontecendo com o espetar de agulhas para a administração de doses intravenosas de antibióticos e para as transfusões de sangue, que continuavam. Lembrava‑se com muita clareza de todas as suas alucinações, mas não tinha a certeza se tinham sido acontecimentos que vivera, realmente, ou que apenas sonhara. Por isso, não falou delas a ninguém. De vez em quando, lamentava que não o tivessem deixado morrer antes e tinha a certeza de que nunca sairia do hospital vivo e que o tempo que lhe restava era um desnecessário prolongamento da agonia.
Desagradava‑lhe a insistência de Sheila e das enfermeiras, que tratavam dele em três turnos de oito horas cada, para o fazerem sair da cama e andar alguns passos várias vezes por dia. Tentava comer, mas a comida que lhe levavam era como lã seca na sua boca, que ele mastigava com esforço e depois deitava fora.
A enfermeira diurna pesava‑o todas as manhãs. Sem interesse, ele verificou que pesava 62,5 kg. Com o passar dos dias, não ganhava nem perdia peso. Quando entrara para o hospital pesava 79,5 kg.
Tinham levado um respirador para o seu quarto, embora o Dr. Zinfandel tivesse dito a Sheila que era impossível consegui‑lo. Mas ela fora ter com a enfermeira‑chefe, ao escritório principal do piso, uma idosa senhora irlandesa com a qual estabelecera relações amigáveis, e a enfermeira rosnara desdenhosamente quando Sheila lhe repetira o que o Dr. Zinfandel dissera. A enfermeira afirmara que podia colocar no quarto todos os aparelhos necessários em trinta minutos. Damon detestava o respirador e a máscara de oxigénio, tinha a sensação de que o iam asfixiar quando lha punham e era preciso segurá‑lo para não a tirar. Oliver aparecia com muita frequência e tentava animá‑lo dizendo‑lhe como as coisas corriam bem no escritório, mas Damon fê‑lo calar‑se dizendo‑lhe: «Não chateie, Oliver», quando o sócio começou a falar de contratos.
Uma coisa de que se lembrava era de a bonita enfermeira Penny chorar no seu sonho, ao despedir‑se quando o navio atracara.
‑ Oliver, vai casar com a Penny? ‑ perguntou.
Oliver ficou abismado.
‑ Não sei de que está a falar ‑ volveu.
‑ Devo avisá‑lo. ‑ O sonho cristalizara, tornara‑se realidade. ‑ A Doris é boa para si. E é uma vencedora. Bonita como é, a Penny é uma das perdedoras eternas do mundo. Você comeria o pão do arrependimento durante o resto da sua vida. ‑ Os mortos, pensou, tinham o direito a uma derradeira palavra sincera.
APESAR dos seus leais esforços para comer a comida com que Sheila tentava seduzi‑lo e para beber os ricos batidos de leite que ela lhe preparava, não conseguia recuperar nenhum do peso perdido e os poucos passos que ia dando no corredor deixavam‑no exausto para o resto do dia. Mas as tensões e o desespero que quase o tinham destruído na UCI tinham‑no abandonado. Agora sentia‑se calmo, resignado com o que porventura lhe estava reservado.
A ideia da morte tornara‑se‑lhe tão familiar que não o alarmava. Achava que se ao menos os médicos e as enfermeiras o deixassem em paz morreria tranquilamente, com um sorriso de contentamento no rosto. A não ser, claro, que as alucinações se tivessem verificado depois de ele ter morrido e sido reanimado pelas maravilhas da medicina moderna. Isso tornaria a frase «a paz do túmulo» uma má piada cósmica, do pior dos gostos. Sessenta e cinco anos não era uma idade má para a passagem final. «Tempo de partir», como dissera uma vez a Sheila quando um dos seus clientes mais velhos se suicidara em Hollywood, por boa e suficiente razão.
Colocando o dedo no buraco do tubo da garganta e recordando‑se das instruções do Dr. Levine a respeito de respirar fundo, perguntou a Sheila se alguma vez tinha realmente morrido e sido depois reanimado.
‑ Não ‑ respondeu a mulher, e ela não era pessoa que mentisse, nem mesmo pela mais grave das razões ‑, nunca.
O Dr. Levine, que Damon passara a considerar o único médico do hospital que sabia curar alguma coisa, entrou casualmente e disse:
‑ Já é tempo de falar como um ser humano. ‑ Sem cerimónias nem preliminares, retirou rapidamente o tubo e, com igual despreocupação, ordenou: ‑ Fale, homem.
Damon olhou, incrédulo, para o rosto de mocho e pensou: «Que tenho a perder?» Depois respirou fundo e disse, com a sua voz normal: «Há 87 anos os nossos antepassados criaram neste continente uma nova nação...»
‑ Ora pronto, já está ‑ disse o Dr. Levine desembaraçadamente, e apertou a mão a Damon. ‑ Esta é a última vez que me vê. Espero que tenha alguma coisa mais interessante a dizer da próxima vez que abrir a boca. ‑ E saiu.
Aproveitando‑se da reencontrada loquacidade, Damon disse a Sheila e à enfermeira, que tinham assistido apreensivamente à operação:
‑ Este quarto está quentíssimo. Liguem o ar condicionado, por favor.
Tinha sido um homem que durante toda a sua vida, excepto nos seus desastrosos anos de aspirante a actor, passara a maior parte do seu tempo a ler e a ouvir outras pessoas falar, mas agora aceitava a mentira de que o dom da fala era o que distinguia a espécie humana do resto do mundo animal.
O quarto estava cheio de flores, dádiva de amigos, clientes, produtores, editores e pessoas variadas que desejavam as suas melhoras, e até Damon ter insistido para que levassem o telefone do quarto houvera pelo menos dez telefonemas por dia, de gente que queria visitá‑lo e animá‑lo. Ele recusara‑se a pegar no telefone e Sheila impedira a entrada a toda a gente, menos a Oliver e a Manfred Weinstein que fora visitá‑lo, a andar pesadamente e com a ajuda de uma bengala, logo no primeiro dia em que saíra do hospital, com a perna mais ou menos curada. Perdera um bocado de peso e as suas faces não estavam tão rosadas como anteriormente, mas saltava aos olhos que não chegara a sua altura de partir.
Weinstein não era homem para estar com trapos quentes.
Ao olhar para o rosto devastado de Damon, perguntou:
‑ Jesus, Roger, quem te deu um tiro, a ti?
‑ A Associação Médica Americana. Quando poderás largar a bengala?
O amigo fez uma careta e lembrou a Damon a expressão do seu rosto quando, aos 17 anos, regressava ao banco depois de ter jogado com a equipa vencedora.
‑ Nesta época não vou roubar muitas bases ‑ disse. Ia à Califórnia visitar o filho, mas prometeu que voltaria assim que soubesse que Damon ia sair do hospital. Estava furioso por a Polícia de Nova Iorque lhe ter confiscado a pistola, em virtude de só ter licença para a usar no Connecticut.
‑ Chuis ‑ comentou, desdenhosamente. ‑ Posso considerar‑me com sorte por não me meterem na cadeia por ter tentado evitar que assassinassem um velho amigo.
Falara com Schulter diversas vezes, mas não havia quaisquer sinais de Zalovsky. A arma não fornecera pistas nenhumas. Segundo Schulter, Zalovsky ficara mais gravemente ferido do que tinham pensado e provavelmente morrera dos ferimentos e tinha sido sepultado pelos membros da família da Mafia a que pertencia. Weinstein pensava que o mais certo era ele estar fora do país, na América do Sul, na Sicília ou em Israel. Era sua convicção que todo o crime organizado estava nas mãos de italianos, cubanos ou judeus, e que Zalovsky, fosse qual fosse o seu verdadeiro nome, tinha sido um simples peão num pequeno «negócio» de extorsão.
‑ Põe‑te bom, galo velho ‑ disse a Damon, antes de partir. ‑ Quero ter qualquer coisa para mostrar como justificação deste caraças deste joelho.
Mas Damon compreendeu pela expressão do seu amigo que Weinstein estava convencido de que nunca mais voltariam a ver‑se.
Oliver defendeu a causa de Genevieve Dolger, que duas vezes por semana enviava enormes cestos de flores para o quarto do doente, deixara miraculosamente de fazer tartes e acabara um novo romance chamado Cadenza, enquanto Damon estava no hospital. Os seus editores tinham‑lhe quadruplicado o adiantamento e Oliver estava a negociar com os editores de livros brochados e com o cinema quantias enormes.
Ela insistia, dizia Oliver, em ver Damon pelo menos uma vez, a fim de lhe agradecer tudo quanto fizera por ela. Antes que seja demasiado tarde, acrescentara Damon, mentalmente.
‑ Ela diz que está loucamente apaixonada por si ‑ disse Oliver, arqueando incredulamente as sobrancelhas quase brancas. ‑ Afirma que é o único homem que em toda a sua vida a fez sentir‑se realmente mulher.
Damon gemeu, mas acedeu a vê‑la. Era justo, pensou, pois não estaria num quarto particular com enfermeiras a tratá‑lo dia e noite se não fora Genevieve Dolger, e não haveria todas as manhãs visitas solícitas de nenhum Dr. Zinfandel, a cem dólares por visita semana após semana, se ela não tivesse escrito Threnody e, agora, Cadenza.
‑ Está bem ‑ resignou‑se. ‑ Mas diga‑lhe que serão apenas dez minutos. E diga‑lhe também que estou muito debilitado para a ouvir dizer que está apaixonada por mim.
Mas antes de ter de suportar o afecto de Genevieve Dolger, Damon teve de avir‑se com outra dama.
‑ A tua ex‑mulher, Elaine Qualquer Coisa, telefonou duas vezes, ontem ‑ dizia Sheila, que acabava de regressar da recepção do piso, onde tinham a amabilidade de anotar recados para ela e para Damon, desde que ele mandara levar o telefone do quarto. ‑ Diz que tem de te ver.
‑ Sparman‑ disse Damon. ‑ Ela disse que casou com um homem chamado Sparman, de que se divorciou há muito tempo.
‑ Que lhe digo?
Sheila nunca conhecera Elaine e Damon percebia que ela não queria conhecê‑la agora. Mas achava que, se ia morrer, o que parecia uma possibilidade cada vez maior, devia a uma mulher que em tempos julgara amar, e com quem tinha sido brevemente feliz quando ambos eram jovens, a satisfação de um último adeus. Além disso, com o namorado batoteiro e as suas relações duvidosas, talvez ela tivesse alguma pista acerca de quem Zalovsky era e só quisesse dizer‑lho pessoalmente. Também conseguira sempre diverti‑lo, de uma maneira ou de outra,
umas vezes inteligentemente e outras nem tanto, e ele sentia necessidade de um pouco de distracção.
‑ Diz‑lhe que gostaria de a ver ‑ respondeu. Compreendeu que a resposta não agradara a Sheila,
mas a verdade é que não podia renegar todo o seu passado por causa de um passageiro momento de desprazer da sua mulher. Sheila começou a dizer qualquer coisa, mas nesse momento entrou no quarto um dos médicos assistentes do especialista de doenças pulmonares. O médico era um jovem bem‑parecido, com cor de quem vivia ao ar livre e um comprido cabelo cor de mogno, muito bem cortado e penteado. Aparecia regularmente todos os dias, olhava apressadamente Damon de longe e dizia inevitavelmente: «Porque não pede à enfermeira que o leve numa cadeira de rodas para o terraço do telhado, a fim de apanhar um pouco de ar puro?» E saía. Também cobrava cem dólares por dia, embora Damon nunca aceitasse o seu conselho, pois os benefícios de algumas inspirações de smog de Nova Iorque e vapores de gasolina não lhe pareciam susceptíveis de ter efeitos benéficos duradouros nos seus pulmões devastados.
Quando Elaine entrou no quarto na tarde seguinte, Damon arrependeu‑se de ter aborrecido Sheila ao dizer‑lhe que deixasse a sua ex‑mulher visitá‑lo. Vinha completamente vestida de preto e, pela primeira vez desde que se conheciam, ele viu‑lhe a cara absolutamente desprovida de maquilhagem de qualquer espécie. O facto de isso melhorar o seu aspecto era anulado pelo ar fúnebre do seu trajo de viúva e pela expressão lúgubre do seu rosto. Sheila tivera o tacto de sair do quarto quando a enfermeira do piso viera anunciar que uma tal Mrs. Sparman se encontrava na recepção.
‑ Meu pobre querido ‑ disse Elaine, e começou a inclinar‑se para lhe beijar a testa, mas ele desviou bruscamente a cabeça. ‑ Teria vindo mais cedo, mas não sabia. Estivemos em Vegas, depois em Nassau, e só regressei a Nova Iorque há dois dias. Que trauma...
‑ Elaine, pareces um corvo com esse raio dessa vestimenta. Deprime‑me. Porque não vais para casa e voltas qualquer outro dia, de lantejoulas, biquini ou outra coisa mais alegre?
‑ Não queria que pensasses que estava a ser frívola ‑ respondeu Elaine, magoada.
‑ Tu és frívola. É a única coisa que ainda aprecio em ti.
‑ Sei como são os doentes... Sob o domínio da dor, ferem os que lhes são mais íntimos e mais queridos.
‑ Não estou sob o domínio da dor ‑ respondeu Damon ‑ e tu não és a minha pessoa mais íntima nem mais querida.
‑ Recuso‑me a sentir‑me ofendida ‑ disse Elaine, com dignidade. ‑ Mas se este simples vestidinho te desagrada, deixei lá fora o casaco, e não é preto.
‑ Vai vesti‑lo ‑ respondeu Damon, que pensou: «Morrer seria fácil se nos deixassem em paz.»
‑ Volto num instantinho.
Elaine saiu do quarto, com as arredondadas barrigas das pernas a brilhar, falsamente juvenis, nas finas meias pretas.
Quando voltou, trazia um casaco cor de laranja‑vivo. com uma gola de raposa vermelha.
«Não têm limite as indignidades que um homem preso a uma cama tem de sofrer», pensou Damon, a pestanejar, quando um raio de sol entrou por uma janela do quarto e iluminou a sua ex‑mulher como uma decoração de Natal.
‑ Está melhor assim? ‑ perguntou ela.
‑ Muito.
‑ Tiveste sempre uma certa irreverência ‑ observou Elaine. ‑ Pensei que, num momento como este... ‑ deixou a frase inacabada.
‑ Não falemos de momentos como este, se não te importas, Elaine.
‑ Rezei por ti esta manhã, antes de vir.
‑ Espero que as tuas orações tenham chegado ao Céu.
‑ Foi na Igreja de São Patrício ‑ esclareceu Elaine, que gostava sempre de dar a conhecer às pessoas que sabia a importância de um bom endereço.
‑ Nem sequer és católica.
‑ Ia a passar na 5.a Avenida. Os católicos também acreditam em Deus.
Elaine era ecuménica, pelo menos.
Se toda a gente compartilhasse as suas flexíveis opiniões teocráticas, pensou Damon, acabar‑se‑iam as guerras religiosas.
‑ É o que eles dizem. Agora deixa‑me fazer uma pergunta: em todas as tuas viagens com o teu namorado ouviste alguma coisa a respeito do meu... enfim, do meu problema?
‑ O Freddie perguntou em toda a parte. A toda a gente que pôde, e ele conhece algumas pessoas muito importantes do... bem, do lado errado da lei, digamos. ‑ Elaine franziu delicadamente os lábios grandes e carnudos, sem pintura.. ‑ Segundo me disse, recebeu alguns olhares muito esquisitos. Foi arriscado para ele, acredita, não são círculos em que seja seguro fazer muitas perguntas, mas o Freddie, por mim, era capaz de caminhar sobre brasas...
‑ E ouviu alguma coisa? ‑ perguntou Damon, impaciente.
‑ Nada.
‑ Está bem. ‑ Damon recostou‑se e fechou os olhos. ‑ Estou terrivelmente cansado, Elaine. Foi bondade da tua parte visitares‑me, mas agora creio que gostaria de tentar dormir um bocadinho.
‑ Roger... ‑ Elaine hesitou, coisa que não era habitual nela. ‑ Há um favor que...
‑ De que se trata? ‑ Continuou de olhos fechados; não queria voltar a ver o casaco cor de laranja.
‑ Lembras‑te daquela fotografia que te dei no teu aniversário, no primeiro ano que estivemos casados?
‑ No único ano que estivemos casados ‑ corrigiu, ainda sem abrir os olhos.
‑ A fotografia de nós dois na praia, que eu tinha mandado ampliar e pôr numa moldura de prata... Lembras‑te?
‑ Lembro.
‑ Eras tão jovem e tão interessante, então! Tem tantas associações... Anseio por tê‑la. Achas que consegues encontrá‑la?
‑ Deixar‑ta‑ei no meu testamento.
Elaine soluçou e ele abriu os olhos para ver se ela estava a fingir ou não. Não estava: rolavam‑lhe lágrimas pelas faces pálidas.
‑ Não era isso o que eu queria dizer ‑ protestou, em tom de censura, por entre soluços.
‑ Tê‑la‑ás, querida ‑ prometeu ele e, docemente, deu‑lhe umas palmadinhas na mão.
‑ Por favor cura‑te, Roger ‑ pediu Elaine em voz trémula. ‑ Mesmo que nunca mais queiras voltar a ver‑me, quero saber que ainda cá estás e és feliz.
‑ Tentarei ‑ respondeu Damon, suavemente. Recostou‑se de novo e fechou os olhos. Quando os abriu momentos depois, Elaine desaparecera.
No dia seguinte, quando a enfermeira foi anunciar que estava na recepção uma Mrs. Dolger, ele disse‑lhe que a trouxesse, mas acrescentou desejar que a enfermeira ficasse no quarto o tempo todo que Mrs. Dolger se demorasse.
Quando a escritora que dera segurança à sua velhice ‑ se é que ia ter velhice ‑ entrou, Damon teve de conter uma exclamação de surpresa. A dona de casa suburbana, pequena e roliça desaparecera e em seu lugar apresentava‑se uma senhora esbelta, muito bem vestida e de cabelo pintado e cuidadosamente penteado. Usava um elegante fato de tweed verde que parecia ter vindo de Paris, com uma mala verde, a condizer, de pele de crocodilo, e devia ter perdido uns 10 kg desde que a vira pela última vez. Perguntou a si mesmo a que tormentos andaria a submeter o marido e os filhos.
A voz, no entanto, permanecera a mesma, modesta, suplicante e grata.
‑ Oh, Roger, tenho telefonado todos os dias e têm‑me dito sempre que estava na lista dos doentes em estado crítico!
‑ Agora já não estou. Está linda, Genevieve.
‑ Tive mão em mim ‑ respondeu, com firmeza. ‑ Fiz dieta, frequentei classes de ginástica e comecei a ler a Vogue. E decidi não me deitar, à noite, sem ter escrito pelo menos dez páginas. Continuo sem saber dizer quanto lhes estou grata, a si e ao Oliver. Ele tem sido uma torre de força com o Cadenza. Embora ‑ apressou‑se a acrescentar ‑ nunca possa haver ninguém como você.
‑ Verei as provas, quando as tiver ‑ disse Damon, esperando que chegassem tarde e que os editores se opusessem a quaisquer modificações em virtude de estarem semanas atrasados em relação à data prevista para a publicação.
‑ Primeiro terá de ficar bom. Isso é o importante. Trouxe‑lhe um presentezinho.
Apesar de elegante no fato de tweed e com a mala de crocodilo e de pesar menos 10 kg do que quando a vira pela última vez, ainda falava timidamente. Tinha colocado uma caixa quadrada na mesa‑de‑cabeceira, quando entrara, e agora pegou‑lhe e abriu‑a.
‑ Sei como a comida do hospital é horrível. Por isso, fiz uma tarte para si. É de maçã. Gosta de maçã? ‑ perguntou, inquieta.
‑ Adoro maçã. ‑ Não lhe disse que não era capaz de engolir quaisquer alimentos sólidos havia quase dois meses.
‑ Acha que podíamos arranjar um prato, uma faca e um garfo? ‑ perguntou Mrs. Dolger à enfermeira. ‑ Gostaria de o ver comer uma fatia de tarte com os meus próprios olhos.
A enfermeira olhou para Damon, em busca de um sinal, e ele acenou‑lhe com a cabeça, afirmativamente. «Hei‑de comê‑la», pensou, «nem que me mate.»
‑ Vamos comprar uma casa nova em Amagansett ‑ informou Mrs. Dolger. ‑ A nossa velha casa fica mesmo na rua e é terrivelmente barulhenta, e não tem nenhum lugar que eu possa chamar verdadeiramente meu, onde possa trabalhar. Além disso, sei que escreverei melhor se tiver uma vista do oceano. Quando estiver tudo resolvido, tem de ir fazer‑nos uma longa e agradável visita. Com a sua mulher, claro.
‑ Amagansett não fica muito longe? Quero dizer, para o seu marido. Com o escritório em Nova Iorque...
‑ Ele reforma‑se no fim do mês. Não terá de continuar a andar de um lado para o outro. Diz que não faz sentido ter uma mulher rica se não se souber usar o seu dinheiro. ‑ Riu agarotadamente. ‑ Quem havia de dizer que eu sustentaria um homem, nesta vida?
A enfermeira voltou com o prato, a faca e o garfo, e Mrs. Dolger cortou uma fatia de tarte.
‑ Espero que tenha saído bem ‑ disse, preocupada. ‑ Com as tartes nunca se sabe, têm lá as suas manias...
A enfermeira levantou a cabeceira da cama e Damon sentou‑se e aceitou o prato oferecido por Mrs. Dolger.
‑ Parece deliciosa ‑ disse, a adiar o momento em que teria de meter um bocado na boca.
‑ Qualquer pessoa pode conseguir que uma tarte pareça boa ‑ observou a visitante. ‑ Mas a beleza das tartes está no sabor ‑ riu‑se de novo, satisfeita com a expressão que encontrara.
Damon respirou fundo e cortou o bocadinho mais pequenino possível do vértice da fatia. Levou‑o desajeitadamente à boca, como se estivesse a escaldar, e começou a mastigar metodicamente. Engoliu. Ficou‑lhe no estômago. E era deliciosa. Até àquele momento, o único sabor que pudera suportar fora o do sumo de ananás. Cortou um bocadinho de tarte muito maior e comeu‑o com deleite. A expressão do rosto de Mrs. Dolger, enquanto o observava, recordou‑lhe as expressões infantis e extasiadas de alguns dos seus clientes que surpreendera a ler uma crítica elogiosa de um livro que tinham acabado de publicar.
Acabou de comer a fatia de tarte.
‑ Bravo! ‑ exclamou a enfermeira que havia semanas tentava meter‑lhe toda a espécie de alimentos pela boca abaixo, sem êxito.
Num súbito impulso de afeição por Genevieve Dolger, Damon disse:
‑ Como outra fatia!
Sabia que era uma bravata ousada e que se arriscava a vomitar tudo depois de Mrs. Dolger sair do quarto, mas achava que tinha de demonstrar a sua gratidão àquela querida e dedicada mulher e que as simples palavras não chegariam.
A escritora sorriu e corou ao mesmo tempo daquele tributo que lhe estava a ser prestado, cortou uma fatia de tarte maior e pô‑la no prato. Ele comeu‑a com o mesmo deleite e não a vomitou.
‑ Quando a manhã me pesar, Miss Medford ‑ disse à enfermeira ‑, aposto que pesarei pelo menos mais um quilograma.
Miss Medford mostrou‑se céptica. Quando o pesara, naquela manhã, o peso mantivera‑se nos escassos 62,5 kg.
Mrs. Dolger partiu numa agitação de pequenos movimentos incertos que não condiziam com o seu novo penteado nem com o elegante fato verde e a mala de crocodilo.
‑ Se eu puder fazer alguma coisa ‑ disse, da porta ‑, seja o que for, meu querido Roger, é só pedir.
Compreendeu que ela não estava apenas a querer dizer‑lhe que lhe faria outra tarte, se a pedisse, e esperou que Miss Medford, que tinha um olho tão vivo como um observador de artilharia da proa, não interpretasse a frase da escritora como algo mais do que uma generosa oferta dos seus serviços de doceira.
Sentiu‑se também aliviado por Sheila ter sido obrigada a ir a Burlington nesse dia, em virtude de a mãe se ter refeito o suficiente da trombose para ir para casa e lhe ter pedido que a ajudasse. Sheila tinha a impressão de que o regresso da saúde da mãe era um sinal de que a tempestade de pouca sorte que nos últimos meses se abatera sobre ela, sobre a mãe e sobre Damon estava finalmente a amainar. Se Sheila pensava assim, Damon sentia‑se feliz por ela. Quanto a ele, o facto de uma velha que sempre o desaprovara poder falar e levantar‑se da cama, no distante Vermont, não lhe parecia um evento que pressagiasse qualquer alívio rápido para os seus males.
Ter sido capaz de comer duas fatias de tarte de maçã, uma atrás da outra, parecia‑lhe muito mais encorajador, mesmo quando, ao ser pesado na manhã seguinte por Miss Medford, verificou que continuava nos 62,5 kg.
SHEILA estava sentada no consultório do Dr. Zinfandel, o qual, do outro lado da secretária, brincava nervosamente com um lápis.
‑ Doutor, não há maneira nenhuma de o fazermos comer enquanto estiver neste hospital. Comeu duas fatias de tarte de maçã que uma amiga lhe trouxe, há uma semana, e nunca mais comeu mais nada, a não ser aquele miserável pó que misturamos com água ou leite, como o doutor mandou.
‑ É sustentador da vida ‑ afirmou Zinfandel. ‑ Tem todas as vitaminas, proteínas, minerais...
‑ Não está a sustentar a vida dele ‑ interrompeu Sheila. ‑ Ele não quer sustentar a sua vida. Temos sorte se conseguimos convencê‑lo a tomar meio copo da mistela por dia. Ele quer ir para casa. Isso sustentar‑lhe‑á a vida.
‑ Não posso assumir a responsabilidade...
‑ Eu assumo a responsabilidade. ‑ A cólera de Sheila, que ela controlava, mas que nem por isso deixava de ser evidente, trabalhava a seu favor. ‑ Se necessário ‑ continuou, servindo‑se da ameaça que conseguira tirar Damon da UCI ‑, procuro o advogado dele, amanhã, e obtenho uma ordem para que o entreguem ao meu cuidado.
‑ Corre o risco de matar o seu marido ‑ lembrou‑lhe Zinfandel, mas ela percebeu que estava vencido.
‑ Aceito esse risco ‑ declarou.
‑ Teremos de proceder a toda uma série de exames.
‑ Dou‑lhe três dias para os fazer ‑ respondeu Sheila, abandonando todas as delicadezas da linguagem civilizada: todo o fingimento desaparecera já; eram antagonistas e o que era vitória para um deles constituía abjecta derrota para o outro.
Damon suportou as radiografias, as tomografias axiais computorizadas e a recolha de sangue para análise sem se queixar nem evidenciar quaisquer sinais de interesse. Sheila não lhe falara da sua conversa com o Dr. Zinfandel, e ele resignara‑se ao facto de não sair do hospital vivo. Continuava a não encontrar qualquer sentido no Times de Nova Iorque e o único alimento que não o fazia vomitar continuava a ser o sumo gelado de ananás. A sua mente divagava e quando Sheila lhe disse que tivera notícias de Manfred Weinstein, da Califórnia, chorou e disse, incoerentemente: «Cometeu um único erro na sua vida», como se o lançamento longo do shortstop tivesse sido culpa dele, Damon. Lembrava‑se de que estivera no seu quarto uma mulher de fato verde, que lhe dera uma fatia de tarde de maçã, mas não se conseguia recordar do seu nome. Miss Medford obrigava‑o a levantar‑se da cama de vez em quando, para caminhar no corredor com a ajuda de uma bengala, mas ele perdia todo o interesse pelos passeios assim que espreitava pela janela do fundo do corredor, e a afirmação da enfermeira de que o seu andar se tornava de dia para dia mais forte, parecia‑lhe a mais banal das informações.
Animou‑se um pouco quando, ao fim de dois dias de radiografias, análises e exames, Sheila lhe disse que os médicos o tinham dado por provisoriamente curado.
Por superstição, Sheila não lhe disse por que motivo fora submetido à série de exames. Para evitar decepcioná‑lo, queria esperar até ao último momento possível antes da sua libertação, para lhe dar a notícia. Por isso, foi Miss Medford a portadora da boa nova:
‑ Vem no jornal desta manhã, Mr. Damon ‑ informou a enfermeira, quando foi substituir a colega da noite, e acenou‑lhe com um exemplar do Daily News. ‑ Uma coluna.
É tudo acerca de uma senhora que escreveu um livro e para a qual a sua agência arranjou um contrato de milhares de milhões de dólares, ou coisa parecida.
‑ Não acredite em tudo quanto lê antes das oito horas da manhã ‑ aconselhou Damon, ainda intrigado com o comportamento gelado do Dr. Zinfandel, às seis da manhã, quando lhe fizera a visita diária.
‑ Diz também que o senhor sai hoje do hospital, depois da sua terrível provação, o tiroteio da 5.a Avenida, como dizem. Pensam que ficou ferido. Não mencionam o Dr. Rogarth.
Miss Medford riu‑se acidamente. Não era admiradora do cirurgião. Nas poucas ocasiões em que ele tinha ido ver Damon quando ela estava de serviço, comportara‑se como se tivesse sido acabada de tirar do congelador de um frigorífico. ‑ Quer ler?
‑ Não, obrigado. Não gosto de contos de fadas. Como é que tolices dessas vão parar aos jornais?
‑ Em todos os hospitais onde tenho trabalhado, há sempre alguém ‑ uma enfermeira, um médico, um servente, um funcionário ‑ que conhece uma pessoa nos jornais ‑ um primo, um namorado, alguém que lhe arranja bilhetes para as estreias em troca de informações. Não julgue que este hospital é uma excepção.
‑ Alguém lhe disse que eu saio hoje?
‑ Não ‑ admitiu Miss Medford. ‑ Nem uma palavra.
‑ Então deixe‑me voltar a dormir. Estava a sonhar agradavelmente que ia a um jogo de râguebi com o meu pai.
Foi só quando Sheila chegou com algumas camisas lavadas e roupa interior, e o tirou da cama e começou a vestir, foi só então que compreendeu o que estava a acontecer e desatou a chorar.
‑ O Oliver está à espera lá em baixo, com um carro que alugou ‑ informou Sheila. ‑ Vamos daqui para a casa de Old Lyme. Não podes subir três lanços de escada para o nosso apartamento e nem o Oliver nem eu te podemos levar ao colo.
A enfermeira insistiu em instalá‑lo numa cadeira de rodas e empurrá‑lo até à entrada de emergência do hospital, embora Damon protestasse, pois queria sair dali apoiado nos próprios pés e tinha a certeza de possuir forças suficientes para isso.
Estava um agradável e soalheiro dia de Primavera e Damon aspirou um grande hausto de ar quando transpôs a porta na cadeira de rodas. Depois, lentamente e com esforço, levantou‑se. Viu Oliver parado junto do carro alugado, a sorrir. Acenou‑lhe alegremente com a bengala que o hospital lhe dera. Viu tudo com uma grande nitidez: Oliver, as folhas novas das árvores que ladeavam o pátio e a forma da sua própria mão a segurar a bengala.
Não se sentia nem doente, nem saudável, mas apenas vibrantemente observador. As cores vivas do mundo exterior obrigavam‑no a semicerrar os olhos. Ouviu a voz baixa de Miss Medford atrás dele, a dar as últimas instruções a Sheila a respeito da chaga da cama, que continuava aberta na nádega. Deu um passo na direcção de Oliver. Depois viu um homem de blusão azul sair de trás de um carro estacionado a seguir ao de Oliver. Damon soube quem era, embora não compreendesse porque sabia. O homem deu dois passos na sua direcção. Damon viu‑lhe a cara. Era flácida e redonda e da cor de massa húmida, com olhos que pareciam ter sido abertos na cabeça do indivíduo com uma broca pneumática. O homem tirou qualquer coisa da algibeira. Era uma pistola, que apontou a Damon.
«Finalmente», pensou Damon, louco de alívio, «vou saber!»
Ecoou um tiro. Damon parou. Alguém gritou. Depois o homem caiu no passeio, a 60 cm do ponto onde Oliver se encontrava com a porta do carro aberta.
Schulter apareceu vindo não se sabia de onde, de arma na mão e com dois outros indivíduos corpulentos, também empunhando armas.
Damon dirigiu‑se calmamente para onde Schulter e os dois homens se aproximavam do indivíduo caído no pavimento. O tenente ajoelhou, encostou o ouvido ao peito do homem e levantou-se.
‑ Está morto ‑ declarou. ‑ Para variar, os malditos jornais publicaram algo útil. Tive o pressentimento de que ele apareceria. ‑ Sorriu de contentamento, como um caçador que acabara de abater um veado gigantesco, cuja armação impressionante daria um maravilhoso troféu para colocar por cima de uma lareira. ‑ Conhece‑o?
Damon olhou para o morto, cujo blusão brilhava, ensanguentado. O rosto estava tranquilo. Nunca o tinha visto antes. Abanou a cabeça.
‑ Podia ter sido qualquer pessoa ‑ disse, estupefacto, a Sheila, que o envolvia nos braços. ‑ Nunca transmitiu a sua mensagem.
Estava sentado no jardim de Old Lyme, a olhar para o Sound. Escurecia, as luzes começavam a brilhar ao longo da costa e a água parecia aço escuro. Ouvia Sheila cantarolar baixinho dentro de casa, enquanto preparava o jantar. Sentiu‑se esfomeado. Além do pequeno‑almoço, do almoço e do jantar, Sheila fazia‑lhe gemadas às onze da manhã, às cinco da tarde e antes de se deitarem, à noite, na velha casa que rangia como um barco ao vento, fora de água. Aumentara 5 kg em duas semanas e andava pelo jardim sem bengala.
Schulter fora visitá‑lo.
‑ Nunca tive conhecimento de uma coisa tão estranha ‑ afirmou. ‑ O homem não tinha com ele a mínima identificação. Nem carta de condução, nem cartão de crédito, nada. Ninguém reclamou o corpo. A arma era uma antiga P38 alemã, que alguns Gl's devem ter trazido da guerra. Pode ter passado por vinte mãos antes de chegar às dele. É tudo quanto sabemos. Mais nada. ‑ O tenente abanou a cabeça, admirado. ‑ Saiu do nada. Do pavimento. Do esgoto. Do nada.
«Do nada», pensou Damon, no crepúsculo. Lembrou‑se de que quisera que lhe permitissem morrer no hospital e de que não tivera medo quando vira o homem armado sair de trás do carro estacionado.
Sheila veio da cozinha, de avental, com dois copos de uísque com soda, um para ele e outro para ela. Damon pegou no seu copo enquanto Sheila se sentava na cadeira a seu lado e olharam ambos para o Sound que escurecia. Ele estendeu a mão para a dela.
‑ Saradora ‑ disse. ‑ Dadora de vida.
‑ Não te tornes sentimental com a velhice. Sou apenas a senhora que te trás o uísque antes do jantar.
‑ Que lugar agradável para se estar ‑ disse Damon, enquanto bebiam juntos.
Irwin Shaw
O melhor da literatura para todos os gostos e idades