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REGRESSO A PEYTON PLACE / Grace Metalious
REGRESSO A PEYTON PLACE / Grace Metalious

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

REGRESSO A PEYTON PLACE

 

Algumas vezes o Inverno chega gradualmente ao norte da Nova Inglaterra, de modo que existe um elemento de ordem e sequência nas variadas fases que anunciam o advento da estação fria.

 

Quando as primeiras neves aparecem, por fim, ninguém já fica surpreendido, de tanto que se esperou pela sua chegada. O Inverno, assim anunciado, começa invariavelmente por um forte nevão - enormes flocos caindo a meia madrugada até que, por volta do meio-dia, tudo está coberto de um extenso e alvíssimo lençol. O céu clareia depois da hora do almoço e, ao tempo da escola fechar, a meio da tarde, já o sol brilha, fazendo escorrer dos beirais das casas enormes gotas de neve derretida.

 

Então, dizem os velhos: «Isto não atura. Na, ainda não é desta vez».

 

A gente nova anda desapontada e um tanto apreensiva: talvez afinal seja verdade que os Invernos de que falam os velhos não mais voltam a Nova Inglaterra.

 

Esses Invernos tremendos surgem usualmente depois de um Verão seco e cálido. A chuva começa a cair precisamente depois do Dia de Trabalho - chuva fria e tocada a vento, parda e destruidora. Depois dela já não há que esperar   Outono   que valha,   desses   Outonos gloriosos de folhas vermelhas e doiradas.

 

A mancha dos arvoredos passa subitamente de verde para castanho-esbranquiçado e a chuva arranca as folhas dos ramos em rápidas e fulminantes arremetidas.

 

Depois da chuva o solo enregela num abrir e fechar de olhos e eis os dias iguais, hoje, amanhã, depois, frios e cinzentos - até que chega a neve.

 

Então começa ela: surge feita de fina poeira a cair dum céu escuro, imensa nuvem que dir-se-ia não ter fim. Mas não se acumula nos caminhos e nas ruas da cidade enquanto o vento não se fartar de a sacudir, juntando-a em redor dos postes- e dos troncos das árvores em alvíssimos montículos. Por volta da hora de jantar o vento morre e neva ainda, mas tão ligeiramente agora, que as crianças receiam que a poeira gelada leve toda a vida a encher-lhes as palmitas das mãos.

 

Os mais velhos, esses, lembram-se de outros Invernos. São principalmente aqueles que olham para os manómetros dos queimadores de gasóleo de aquecimento. Certificam-se prudentemente se os radiadores dos seus carros estão bem atestados de antigelo e sabem que, antes de anoitecer no dia seguinte, o vento há-de recomeçar.

 

Os caloríferos não se usam na Nova Inglaterra apenas pelo ar que têm de quente hospitalidade: toda a gente que pensa um pouco sabe que, inesperadamente, pode muito bem calhar um Inverno daqueles em que ao primeiro embate do vento e da neve os postes da corrente quebram que nem palhas ressequidas.

 

Os mais precavidos dispõem de pequenos fogões a lenha nas caves, para evitar que a água gele nas canalizações e conservam os depósitos de lenha bem atulhados de cavacas e acendalhas.

 

Quanto aos novos, sentam-se ao lume a encerar os esquis e a magicar qual será a altura da neve em Francónia, na manhã seguinte.

 

Deste modo foi que o Inverno chegou no segundo ano depois que Allison MacKenzie regressou a Peyton Place. Eram quatro horas de uma tarde de Novembro e Allison estava junto da janela do quarto de dormir quando reparou no primeiro floco de neve.

 

«Talvez seja amanhã» - pensou. «Talvez que amanhã Brad telefone e me diga: Vendi o teu original, Allison. O teu romance foi aceite e vai ser publicado na Primavera».

 

A mercearia de Ephraim Tuttle ficava na Rua do Olmeiro - a de maior movimento em Peyton Place - num ponto a meio caminho do Banco Citizens National e da Farmácia Prescott - na esquina da Rua do Bordo.

 

Através da montra da frente os velhos que por ali se entretinham durante todo o Inverno espreitavam, pensativos, o edifício pardo do Tribunal e os bancos desertos do jardim onde, pelo tempo soalheiro, pachorreavam horas e horas.

 

No Verão a mercearia do Tuttle constituía uma espécie de atracção turística por se tratar de um dos poucos velhos armazéns que ainda existiam pela Nova Inglaterra onde se podia comprar excelente queijo de Cheddar em fatias ou à libra, cortado ali mesmo, da enorme forma. Tuttle vendia, igualmente, chocolates e rebuçados de licor ao cêntimo e, por uns patacos, podia levar-se um «pickle» gigante, suficientemente azedo para nos embotar os dentes e deles havia uma enorme barrica num canto escuro das traseiras.

 

Todos os anos, precisamente depois do 30 de Maio

- Dia dos Mortos da Guerra, Ephraim Tuttle organizava grandes saldos a que chamava «Campanha do Verão». Por essa altura retirava das caves uma porção de peças de ganga e algodão de cores berrantes e espanejava-as em garridas montanhas ao longo do balcão - costume que já vinha do pai e do avô nos tempos em que não se usava o «pronto a vestir».

 

De vez em quando aparecia um freguês que lhe levava alguns metros para cortinados mas, as mais das vezes, os tecidos permaneciam intactos sobre o balcão até ao Dia do Trabalho, quando Ephraim os mandava para Ginny Stearns lavar e engomar. Enrolados e metidos em sacos de plástico voltavam às caves do armazém, para mais um Inverno.

 

- Desperdício de espaço - censurava Clayton Frazier pôr todo esse pano estendido no balcão principal. Para quê? Já ninguém compra nada que se veja.

 

- Mas   alegra   a   casa,   valha-nos   isso - respondia Ephraim. - Os veraneantes gostam de cores alegres. É o que eles chamam «atmosfera».

 

Com o começo do Inverno, porém, a mercearia do Tuttle voltava ao que sempre fora: uma espécie de grande armazém poeirento e escuro onde se podia comprar praticamente tudo - desde que houvesse paciência suficiente para o encontrar. Esse labirinto heterogéneo de mercadorias compreendia revistas ilustradas e rebuçados para a tosse, limpa-orelhas e obsoletos óculos de sol, tomates em sacos de celofane e peixe à libra às quintas-feiras, ovos - que o cliente retirava ele próprio das caixas de cartão e contava à dúzia para dentro do saco das compras, luvas de pelica e tabaco para cachimbo, pastilhas de Alka-Seltzer, milho torrado e semanários religiosos...

 

Logo que o tempo mudou de vez, Ephraim Tuttle desligou as enormes ventoinhas suspensas do tecto, cansadas de zumbir durante todo o Verão em vagarosos e intermináveis rodopios, e instalou o velho fogão barrigudo, a carvão e lenha. Mas só depois de ter retirado o toldo circular da montra que há longos meses a escudava e ter começado a juntar cuidadosamente velhos caixotes de madeira capazes de servirem de assentos é que os velhos que ocupavam os bancos do largo, junto do Tribunal, se convenceram verdadeiramente de que era chegado o tempo de atravessarem a rua e recolherem-se debaixo de telha, aguardando o Inverno.

 

- Temos neve hoje, - observou Clayton Frazier - o diabo s’não...

 

- Vai sendo tempo, vai - acrescentou um dos homens que estava sentado, com os pés em cima da base do fogão. Novembro. E a gente já sabia que este ano ia nevar mais cedo...

 

- Na que sabia! - retorquiu Clayton, sentando-se na cadeira reservada para ele. - Que não tenho visto eu, tempo mais frio do que este em que a neve só aparece lá para Janeiro velho... Bem, mas desta, neva pela certa, tão certo q’nin o Inferno!

 

- Olha, - disse outro - lá não cai neve, aposto! - e esperou que alguém se risse.

 

- E como é que tu sabes disso, John? - chasqueou Clayton. - Tens andado por lá, heim ?

 

Desta riram todos à volta do fogão e Clayton, satisfeito, puxou do cachimbo e acendeu-o, grave.

 

A porta do armazém abriu-se de repelão deixando entrar uma lufada de ar gelado que arrefeceu a conversa. Clayton Frazier olhou para o estranho que entrara e a única coisa que revelou o seu descontentamento foi que tirou imediatamente o cachimbo da boca. E todos sabiam que Clayton não tivera ainda tempo de aspirar uma fumaça que lhe agradasse o suficiente para afastar o cachimbo.

 

- Ephraim! - exclamou o forasteiro. Ephraim levantou os olhos lentamente:

 

- Heim ?... - resmungou. - Em que posso ser-lhe útil ?

 

- Então, Ephraim - continuou o outro com um largo sorriso - Deus bendito, pois não se lembra de mim ?

 

Todos estavam fartos de saber quem era o estranho; nenhum, porém, fez o mais ligeiro gesto de aproximação.

 

- Sou Gerry Gage! - disse o estranho com um sorriso enorme, enquanto dava palmadas nos ombros de Ephraim. Trabalho na S. S. Pierce C.° de Boston. Então não se lembra? Fui eu que ajudei a deslindar aquele caso do marinheiro assassinado pela filha. Recorda-se agora?

 

- Filha, não, enteada - corrigiu Frazier, hostil, voltando a colocar o cachimbo na boca.

 

- Bem, fosse lá o que fosse - respondeu Gerry Gage. De qualquer maneira,   fui eu que me lembrei de o ter transportado para aqui.

 

- Hum, hum - resmungou Clayton.

 

Houve um silêncio e o forasteiro esfregou uma das mãos enluvadas na mala das amostras.

 

- Bem, - disse, depois de um bocado. - Precisa de alguma coisa, Ephraim? Tenho aqui a sua lista e é só dizer...

 

- Mande o costume, - respondeu Ephraim secamente. Gerry Gage exasperou-se de súbito.

 

- Afinal, senhores, - exclamou - eu apenas fiz aquilo que supunha ser de justiça. Em boa verdade não tinha a menor intenção de me meter no assunto. Foi por casualidade que me referi ao tal fulano da marinha que me pedira boleia para aqui. Como podia eu adivinhar que estava a falar precisamente com o xerife? Foi ele que pegou no caso! Tudo o que fiz foi de boa intenção, afinal.

 

O xerife Buck McCracken piscou-lhe os olhos:

 

- Porque não trata antes dos seus negócios. - Mas não falou em tom de interrogação.

 

Gerry começou a marcar com um lápis algumas parcelas indicadas numa lista.

 

- Não vejo   razão para estarem   todos contra mim

- respondeu calmamente. - Nada fiz de mal, longe disso.

 

- Ninguém em Peyton Place está contra si, que eu saiba,   Sr.   Gage, - respondeu   Clayton   Frazier. - Apenas acontece que há pessoas que falam por sete e isso já enjoa, heim.

 

- Escute - disse Gerry Gage. - Sei exactamente onde pretende chegar. Creia que no meu ofício também encontro muita gente desse género. Mas então, que diabo, o mundo é composto de tudo! - acrescentou tão sentenciosamente como se fosse ele o primeiro homem a descobrir tamanha verdade.

 

- Hum, hum - resmungou Clayton.

 

- A propósito - continuou Gerry - depois deste caso de assassínio pedi que me transferissem para outra zona. E fui atendido. A Companhia compreendeu. Quero dizer, depois daquela publicidade toda, etc. Desde que os polícias me deitaram a mão para me fazerem uma série de perguntas sobre Lucas Cross nunca mais cá voltei.

 

Ninguém respondeu palavra e, à medida que os segundos passavam, Gage ia-se sentindo cada vez menos à vontade.

 

- Bem, mudando   de assunto, que há de novo por cá ? - perguntou finalmente. - Novidades de Peyton Place ? Depois desse malfadado caso não tornei a ver este nome num jornal.

 

- Nada de nada - respondeu Frazier.

 

- O quê ? - perguntou Gerry.

 

- Nada! - repetiu Clayton Frazier. - Está a ouvir ? Nada de novo em Playton Place, amigo. Tudo na mesma.

 

Para os olhos inexperientes de um estranho talvez pudesse parecer que Clayton dizia a verdade. Peyton Place tinha o mesmo ar de sempre: uma pequena cidade encantadora e sossegada, alheia a distúrbios. No pasmo da tarde adiantada de Inverno as montras iluminadas das lojas e as janelas das casas olhavam umas para as outras e para o resto do mundo com ares amigáveis e inocentes.

 

A guerra acabara e as fábricas Harrington tinham deixado a azáfama de vinte e quatro horas diárias de produção a que as obrigavam as exigências de insaciáveis contratos, mas tal sucedia, de resto, em quase toda a parte. Leslie Harrington vivia ainda solitário na sua enorme casa da Rua do Castanheiro e, embora a idade e a perda do filho único, Rodney, o tivessem amaciado um pouco, era ainda o mesmo Leslie Harrington - uma verdade de que Peyton Place inteira estava ciente e farta.

 

Descendo a Rua do Castanheiro, ao lado de Leslie, o Dr. Mathew exercia ainda a clínica e o amigo do médico, Seth Buswell, continuava, tal como dantes, a escrever editoriais para o Peyton Place Times. A casa de Charles Partridge, o advogado, mantinha-se vazia: nem o dinheiro nem a mulher tinham logrado povoá-la de algum modo, com alguma parcela de calor e amor. Nenhuma das velhas famílias se retirara da cidade e tão pouco alguém viera de fora nos últimos tempos - conforme escrevia Seth Buswell - pelo menos em quantidade bastante para agitar o estagno, para acrescentar o quer que fosse.

 

Não, nada, absolutamente nada tinha mudado em Peyton Place. Nada, pelo menos, que alguém pudesse ter interesse em confiar a um estranho. Mudanças, se as houvera, seriam por certo restritas à situação particular de alguns indivíduos e, portanto, apenas a eles diziam respeito. Nada pois, que se bisbilhotasse a um forasteiro.

 

«Bah» - fez Gerry Gage quando saiu da mercearia de Tuttle e entrou no carro - «nada de novo emPeyton Place... Diabo, aquela rapariga que matou o pai, foi, sem dúvida, o maior acontecimento que por aqui se registou ou há-de registar!»

 

Gerry Gage conduziu o automóvel pela Rua do Olmeiro abaixo em direcção à auto-estrada que levava a White River e sentia-se, à medida que se afastava, imensamente feliz por se dirigir, enfim, a uma cidade onde ao menos havia um hotel e um bar, colegas e assuntos interessantes a discutir, anedotas a contar.

 

Na «Progressiva do Vestuário» à esquina da Rua do Olmeiro, Selena Cross acabava de cobrir o balcão de uma enormidade de blusas de saldo. Então, olhando a rua, reparou num floco de neve colado ao vidro da montra. Deixou o balcão intrigada e dirigiu-se à janela do estabelecimento para se certificar de que o que vira era realmente um floco de neve e enquanto olhava através da vidraça avistou um automóvel com a matrícula de Massachusetts, correndo na direcção de White River. Por um instante admirou-se, como qualquer habitante de uma pequena cidade como Peyton Place, de que pudesse haver alguém de tão longe que viesse parar ali. Mas o carro de Gerry Gage afastara-se entretanto e a rapariga não pensou mais nele.

 

«Está realmente a cair neve», observou. «Tenho de ir depressa para casa ter com o Joey».

 

Olhou de novo para outro floco que batera no vidro e reparou em dois vultos que se apressavam, cruzando o espaço focado pelos seus olhos. Durante um segundo, exactamente, o coração galopou-lhe no peito e logo ela se voltou, apressadamente, de costas para a montra.

 

Lá fora as duas figuras acabavam de dobrar a esquina da Rua do Bordo e desapareceram.

 

- Anda, querida - disse Ted Cárter para a rapariga cujo braço segurava. - Não quero que a minha mulherzinha gele no primeiro Inverno que passa em Peyton Place.

 

A rapariga sorriu para ele:

 

- Lembra-me para comprar um par de sapatos rasos amanhã, querido. Com essas pernas sem fim que tens não te posso acompanhar de saltos altos. Vi ali uma loja, «A Progressiva qualquer coisa». Amanhã vou lá comprá-los!

 

Ted Cárter deixou de sorrir e apressou ainda mais o passo.

 

- Na «progressiva do Vestuário» não vendem calçado - disse, segurando o braço da esposa apertado ao seu e fazendo um esforço tremendo para não pensar em Selena.

 

Selena Cross tinha acabado precisamente de apagar as luzes do estabelecimento quando a porta da frente bateu e Michael Rossi entrou.

 

- Eh, Selena! - exclamou ele - «temos neve o diabo s’não» como dizem os nativos por cá... -Sacudiu os ombros do sobretudo onde a neve tinha já deixado uma ligeira camada de poeira branca e ficou-se parado a olhar para a rapariga.

 

- Olá, Mike - respondeu Selena - como vai a Connie ?

 

- Rija, - respondeu ele - e trago ordens terminantes para te levar comigo para casa. Connie costuma fazer uma bebida especial para o dia das primeiras neves. Rum quente, batido com manteiga, hum? Anda, veste o casaco; tenho o carro lá fora.

 

Selena afastou os olhos. - Não posso, - respondeu tenho que ir para casa ter com o Joey. Está a nevar.

 

- Selena,   - disse   Mike   meigamente,   - anda   daí comigo. Tudo há-de correr bem. Quando vi que ia nevar recomendei ao Joey que fosse para nossa casa logo que saísse da escola. Já lá deve estar, com a Connie e a Allison. Anda Selena.

 

A rapariga olhou-o, com os olhos mais negros do que nunca, dum negro que reflectia medo, horror e sofrimento.

 

Mike trouxe-lhe o casaco e ajudou-a a vesti-lo. Havia nos gestos dele algo daquela importuna gentileza de uma enfermeira para com um convalescente.

 

- Vamos - insistiu. - Ficas também para jantar. Depois levo-os a casa, se quiserem.

 

As mãos de Selena tacteavam febrilmente os botões do casaco e, enquanto saíam os dois da loja, foi experimentar a fechadura da porta antes de seguir com Mike para o carro.

 

Os anos não pesavam muito a Mike Rossi: tinha ainda os ombros largos e proeminentes sob o tecido preto do sobretudo e, se bem que o busto acusasse um ligeiro estreitamento, só a esposa reparava nesse pormenor e dele troçava na intimidade do quarto de dormir.

 

- Então, o meu «deus grego»? Parece que está um pouco velho e barrigudo ? - troçava Constance, sorrindo-lhe de um modo que, sabia, ele interpretaria como um desafio.

 

Mike pegou-lhe nas mãos e apertou-lhas de encontro ao peito.

 

- Barrigudo, hein ? - respondeu a rir. Sorria-lhe nos olhos, retribuindo-lhe o desafio.

 

- Mas vaidoso - continuou ela - sempre a pavonear-se como um garnisé.

 

Constance libertou-se dele e tentou fugir para a casa de banho. Mas não foi suficientemente rápida: Mike agarrou-a de novo ,e levantou-a em peso enquanto ela esperneava, sorrindo, de encontro a ele.

 

- Quem é que se pavoneia? - perguntou.-Retira o que disseste ou faço-te chiar todo o dia.

 

- Não, não e não - gemeu Constance, amimada, sem parar de espernear, enquanto as mãos dele lhe percorriam todo o corpo.

 

De um repelão o pijama desabotoou-se e Mike começou a despir-lho.

 

- Pára, pára com isso imediatamente! - Constance tentava em vão mostrar-se severa.

 

Enquanto a beijava Mike começou a desabotoar-lhe o casaco de pijama; lentamente descobriu-lhe os ombros e ela baixou os braços para que ele caísse no chão. Então, nua, pegou nela e levou-a para a cama.

 

- Não   passas   afinal   de   um   grande   sátiro   grego, Mike- disse Constance e ficou surpreendida por ouvir o tom chocado da própria voz. «Pareço uma noiva assustada», reflectiu.

 

Os lábios de Mike afagavam-lhe os seios, sentia a carícia da boca dele. - E tu - murmurou Mike - és simplesmente uma pura e ingénua esposazinha de Peyton Place.

 

- Mas que pensas tu que vais fazer, Mike, um velho da tua idade ? - dizia-lhe Constance em voz baixa no mesmo tom de desafio.

 

- Tentar corromper-te - respondeu ele, e, quando se inclinou para ela, Constance, dobrou o corpo e deitou-lhe os braços em volta do pescoço.

 

- Pede-me «isso» - implorou ele com a voz embargada.

 

- O quê, eu pedir-te ? Nunca.

 

- Ainda hás-de pedir - disse Mike - podes crer que ainda.

 

- Obriga-me então, - respondeu Constance - obriga-me a pedir-te querido -   e logo, rapidamente: - Agora, Mike, agora!

 

- Vá, amor, pede-me então agora!

 

Constance arqueou o corpo e abateu-o de novo num desesperado esforço para mantê-lo ainda mais unido ao dele. Com ambas as mãos puxou-o violentamente para si e, perdida, atirou a cabeça para trás.

 

- Mas pede - repetia ainda a voz de Mike, distante e selvagem.

 

E ela pediu. Ou antes, as palavras saíram-lhe do fundo da garganta, angustiadas, como as últimas que ela fosse capaz de articular.

 

No fim ele aninhou-a na curva do braço e Constance sentiu-se estranhamente segura, a salvo de todos os perigos do mundo.

 

- Ainda não conseguiste deitar-te primeiro que eu murmurou ela aconchegando-se-lhe ao ombro.

 

- Não é muito cavalheiresco - respondeu Mike. Afagou-lhe os cabelos e sorriu no escuro. - De resto, apenas os velhos conseguem fazer isso.

 

Constance fez um gesto de assentimento e precisamente antes de adormecer disse ainda:

 

- Mas os deuses gregos nunca se fazem velhos, toda a gente o... sabe.

 

Mike beijou-a amorosamente e ficou a pensar: «não há no mundo coisa que chegue a isto: dormir ao lado da mulher que amamos no nosso próprio leito, na nossa própria casa».

 

Habitavam ainda a mesma moradia branca de janelas verdes, a que toda a gente teimava chamar «Vivenda MacKenzie» - apesar do casamento de Constance com Michael Rossi.

 

- Não te apoquentes com isso, querido, - dissera-lhe Constance um dia. -Já toda a gente sabia que eu tomara o nome de MacKenzie e ainda lhe chamavam «Vivenda Standish». Não te rales. Mais tarde hão-de aprender e todos dirão «Vivenda Rossi».

 

- Oxalá eu ainda seja vivo - respondeu Mike tristemente.

 

Mike tinha procurado Leslie Harrington, que sabia, melhor que ninguém em Peyton Place, avaliar uma propriedade.

 

- Diga-me,   Leslie - perguntou - quanto   pensa   que vale a casa de Constance?

 

- A casa de Constance? - inquiriu Harrington intrigado. - Porque diabo me vem fazer uma pergunta dessas, Mike? Não me diga que vai sair de Peyton Place com a Connie e a Allison?

 

- Mas para que está você a meter-se na minha vida? Ouça, Leslie, se lhe interessa saber, não, não vamos sair daqui, nem Allison nem Constance nem eu. E agora, diga-me: quanto supõe valer a casa?

 

- Bem - hesitou   Leslie - o   valor   das   propriedades subiu um bocado com a guerra, etc. Ora a casa de Constance, bem estimada como está, vale bem, deixe-me ver. Hum, talvez uns dezoito mil e quinhentos dólares...

 

- Deus do céu! - exclamou Mike. - Dezoito mil e quinhentos dólares? Onde diabo pensa o senhor que estamos? Em Dálias, Downtown?

 

Leslie Harrington calou-se e sorriu:

 

- Bem, tem razão. Mas se eu fosse a Constance não a dava por menos um cêntimo...

 

Depois disto Mike dissera a Constance:

 

- Querida, queres tu vender-me a tua casa por - Deus nos ajude - dezoito mil e quinhentos dólares ?

 

- Mas por que razão te hei-de eu vender a casa ? - perguntou ela, pasmada.

 

- Não te importes, querida. Responde só se vendes ou não.

 

- Pois sim, vendo.

 

Então Mike reuniu, cêntimo por cêntimo, todas as economias que vinha fazendo e pagou uma parte. Com dinheiro emprestado liquidou o restante e quando tudo ficou arrumado pegou numa chapa nova com o seu nome gravado e correu a procurar Leslie de novo.

 

- Leslie - perguntou ele - a casa é minha,   agora ? Leslie Harrington sorriu e respondeu:

 

- Exactamente, Mike, a casa é sua. E a Constance não ficou mal, digo-lhe eu.

 

- Bem, então, se a casa me pertence realmente, desejo oferecê-la à minha mulher, como prenda de anos...

 

A cadeira de Leslie quase que tombou para a frente.

 

- Mas que diabo está a dizer? - perguntou.

 

- A casa é minha - respondeu Mike calmamente. E agora quero oferecê-la a Constance.

 

- Ora aqui está a coisa mais disparatada que ouvi em toda a minha vida! - resmungou Leslie. - É o cúmulo! Não tinha necessidade alguma de fazer toda esta brincadeira, Mike! Bastaria apenas mudar a chapa para o seu nome, e pronto!

 

- Não seria bem a mesma coisa, Leslie - observou Mike.

 

E assim foi. Mike Rossi mandou fazer uma tabuleta e mostrou-a a Constance: «SAIBAM TODOS PELA PRESENTE que eu, Michael Rossi de Peyton Place, Estado de New Hampshire, pela importância de um dólar e outros bens de valiosa estima pagos a mim por Constance Standish MacKenzie Rossi, de Peyton Place, Estado de New Hampshire, dou e concedo à mesma Constance, herdeiros e sucessores, a totalidade absoluta desta propriedade, terreno, edifício e eventuais melhoramentos posteriores nela praticados, sita em Peyton Place, Estado de New Hampshire». Constance rompeu em lágrimas:

 

- Tonto, querido tonto. Não tinhas necessidade nenhuma de fazer tantos disparates.

 

Mas as lágrimas eram de orgulho e felicidade e ela abraçou-o com todas as suas forças.

 

- Obrigada, querido.

 

- Bem - respondeu   Mike   fazendo-lhe   uma   careta.

 

- Não vale a pena chorares mais. Ouve: pensas que começarão finalmente a chamar «Vivenda Rossi» à nossa casa?

 

Constance aproximou-se do armário e começou a preparar-lhe uma bebida, pensativa.

 

- Para ser   franca,   não - respondeu carinhosamente.

 

- Não creio. Pelo menos agora.

 

Sorveu um golo da bebida e estendeu-lhe o copo.

 

- Mas eu sei, querido, e é o bastante. Chamar-lhe-ei «Vivenda Rossi» toda a minha vida.

 

O carro de Mike aproximava-se da casa que ele comprara para dar de presente à esposa. Coisa estranha, a casa nunca lhe dera a impressão de lhe pertencer senão depois de a ter oferecido a Constance. Isto, talvez, porque tinha pago caro pelo direito de a poder dar.

 

- Aqui estamos - disse Mike e Selena olhou em volta, de olhos parados e medrosos. A voz dele tinha-a de súbito transportado à realidade gelada de Peyton Place. Nos seus permanentes devaneios mantinha-se afastada uma eternidade das coisas que a rodeavam. Só esses sonhos diurnos podiam protegê-la - sentia-o - do horror das suas recordações.

 

Selena percorreu o passeio em frente da «Vivenda MacKenzie» e a porta da frente abriu-se, de súbito, deixando aparecer o sorriso encantado de Allison.

 

- Selena! - gritou a rapariga. - Santo Deus, querida, o que nós temos esperado por uma visita tua! Olá, Mike - e aproximou o rosto para Selena beijar.

 

- Trouxeste o leite ?

 

- Sim, querida filha - respondeu Mike dando-lhe palmadas. - Todos para dentro! Está frio e vai nevar, o diabo s’não...

 

- Olá, querido! - exclamou Constance aproximando-se, e abraçou-os a ambos. - Entrem e fechem a porta, se fazem favor. Agora escutem: a «minha» bebida este ano ficou divinal, não imaginam! Basta um cálice apenas e já ninguém se constipa. É um segredo muito meu e não sei se sabem que a minha trisavô era feiticeira. Remédio garantido contra as gripes e espíritos malignos... - Pousou a mão no braço de Selena.

 

Selena Cross olhou através da sala para o irmão, Joey, que estava sentado à espera dela. A sala de estar era clara e confortável. As labaredas do fogão enchiam tudo de sombras ténues e bamboleantes.

 

- Chega-te para aqui e senta-te, Selena - pediu Constance.

 

Selena, porém, conservou-se de pé no limiar da porta e Joey levantou-se.

 

- Eh, Joey! - exclamou.

 

- Eh, Selena - respondeu ele. - Está a nevar.

 

- Pois está, Joey, está a nevar...

 

Houve uma pequena pausa porque nem Mike, Constance ou Allison conseguiram descobrir alguma coisa para dizer. A presença da rapariga trouxera por um momento uma sombra de tristeza àquela salinha alegre e quente porfilhavam todos da sua amargura, conservavam-se à volta de Selena como guarda-costas receosos de assassinos; mas sentiam-se incapazes de dizer ou fazer o quer que fosse que pudesse aliviá-la do peso das recordações que a possuíam. Por fim Mike quebrou a tensão e arriscou:

 

- Bom Inverno para beber um batido. E para ti, Joey, tenho uma dúzia de chocolates.

 

Selena segurava Allison pela mão e acabou por sentar-se pesadamente numa cadeira, junto do lume.

 

- Muito obrigada - exclamou para si própria. - Muito e muito obrigada por ainda gostarem de mim. São as únicas pessoas do mundo que se preocupam comigo, creio.

 

Não era esse o género de amor que ela desejava mais ardentemente, mas enfim, sempre era melhor que nada.

 

Eram pouco mais de onze horas dessa mesma noite quando Mike Rossi parou o carro defronte da casa dos Cross e Selena saiu com o Joey.

 

- Eu entro um pouco contigo, Selena - disse Mike.

- Vou ajudar o Joey a acender o lume.

 

Selena deteve-o com um gesto:

 

- Não, Mike, obrigada. Nós cá nos arranjamos. Obrigada, no entanto.

 

Mike não insistiu:

 

- Muito bem, então.

 

- Vai lá dentro acender a luz, Joey - disse Selena, e logo que o irmão voltou costas aproximou-se de Mike:

 

- Boa noite, - disse - agradeça por mim a Constance mais uma vez. Foi uma grande amabilidade dela receber-nos. Diga-lhe que na próxima vez sou eu a convidá-los.

 

- Com muito prazer, querida Selena, sabes muito bem. Adeus, - despediu-se Mike.

 

Selena esperou que ele desse a volta com o carro e logo que ele desapareceu encaminhou-se para a porta.

 

- Já acendi o lume - disse Joey.

 

- Vamos fazer chocolate - disse Selena.

 

- E uma partidinha de xadrez no fim, Seleninha.

 

- Já é muito tarde, Joey, e olha que amanhã tens escola.

 

- A não ser que continue a cair neve toda a noite...

 

- Está bem, então - respondeu Selena cedendo e dirigiu-se à cozinha. - Não faz mal.

 

«Não seria preferível se falássemos um pouco sobre aquilo ?», interrogou-se Selena enquanto aquecia o leite. «Mas que palavras poderei eu dizer para me aliviar deste peso?»

 

A primeira vez que nevara depois da morte de Lucas Cross ainda Selena não tinha compreendido exactamente o que lhe acontecera. Era noite adiantada, recordava-se ela. Tudo começou como hoje, com os primeiros flocos de neve a bater de encontro à vidraça da montra da loja de Connie. Selena tinha-os observado já, e lembrava-se bem de que, subitamente, se achara possuída dum profundo e inexplicável sentido de pânico. Correra ao telefone para chamar Constance Rossi.

 

- Hoje tenho de fechar um pouco mais cedo - articulou, incapaz de evitar que a voz lhe tremesse.

 

- Selena! Que há, Selena ? Estás mal ? Eu corro aí num instante!

 

- Oh, não, por favor, senhora MacKenzie - gritou.

- Não é nada. É apenas que está a cair neve e tenho de sair já por causa do Joey.

 

- Apressa-te, Mike - ela ouviu Constance dizer para o marido. - Vai buscar o carro. Tenho que ir ver Selena!

 

- Que aconteceu? - perguntou Mike.

 

- Não sei - respondeu Constance. - Mas Selena parecia transtornada. Até me chamou «senhora MacKenzie». Explicou apenas que tinha de ir para casa por causa do Joey, por estar a cair neve.

 

Porém, quando Constance e Mike chegaram ao armazém já a casa estava às escuras.

 

- Oh, querido! - gemeu Constance. - Vamos depressa! O   carro escorregava na neve fresca enquanto Mike mudava de direcção e se encaminhava para casa de Selena. Foram encontrá-la a correr pelo caminho enlameado que conduzia à barraca dos Cross, o casaco desabotoado, solto ao vento.

 

- Espera, - gritou Mike - espera aí, Selena!

 

A rapariga, porém, não o ouviu. De longe viram-na cair e levantar-se de novo e quando Mike e Constance se meteram no carro para a seguir, já ela tinha entrado em casa.

 

Joeys Cross estava de joelhos diante do lume, atiçando a fogueira como sempre fazia durante o Inverno, para que a irmã encontrasse a sala quente e confortável quando voltasse do frio. Desta vez, porém, o corpo do rapazinho estava rígido e tinha os olhos esbugalhados. Selena curvou-se para o irmão e ambos ficaram ajoelhados junto do lume. Amparavam-se mutuamente como se receassem cair e Joey disse a chorar: - Selena, Selena, Selena!

 

Ela tentou cobrir-lhe a boca com os dedos trémulos e soluçou: - Oh, Joey, Joey.

 

- Ele vai voltar - murmurou o rapaz com a voz embargada de pavor. - Ele há-de voltar, Selena.

 

- Não, Joey, não querido, ele nunca mais poderá voltar de onde está.

 

Mas todo o corpo lhe tremia quando se arriscava a olhar para trás, por sobre o ombro, apavorada. Constance chegara, entretanto, conservando-se muda ao fundo da sala mas Mike tinha voltado atrás para fechar a porta e, por isso, tudo o que Selena viu foi a silhueta negra do corpo dele de encontro à claridade exterior e começou a gritar doidamente.

 

Como louca, empurrou Joey para trás e de um golpe rápido pôs-se de pé, erguendo com os dedos crispados o atiçador da lareira.

 

- Selena! - gritou Mike correndo para ela. - Larga já isso!

 

Agarrou-a pelos pulsos, torceu-lhos e o atiçador caiu no chão enquanto a rapariga chorava convulsivamente.

 

- Deixa-me, Lucas, oh, por amor de Deus, deixa-me! Mike Rossi deu-lhe bofetadas no rosto e manteve-lhe os braços estendidos para a segurar se ela caísse para a frente, desmaiada.

 

Joey levantou-se, ainda pálido.

 

- Vá-se embora! - disse ele a Mike. - Eu sei cuidar de minha irmã.

 

- Tu sentas-te quieto e calado - respondeu Mike e levou Selena para um enxergão. - Constance, traz um lençol : vamos levá-los connosco.

 

E, depois disso, sempre que começava a cair neve e o vento se levantava uivando lugubremente em tardes de invernia, Mike Rossi costumava ir procurar Selena e Joey e levá-los para a sua casa. Eles, porém, nunca ficavam de noite com Mike, Constance e Allison. Quando se fazia tarde e o vento amainava, Selena costumava levantar-se e dizer: «Vamos Joey. São horas de irmos para casa».

 

Selena levou as chávenas de chocolate quente para a salinha de estar.

 

- Vou-te deixar sem fôlego - disse ela enquanto se sentava junto do tabuleiro de xadrez,   defronte de Joey.

 

- Experimenta se és capaz, espertalhona - respondeu o irmão bem humorado.

 

O vento assobiava nas fendas dos taipais e eles pretendiam não ouvir quando uma tábua rangia ou o lume crepitava.

 

- Hoje vi o Ted Cárter - disse Selena.

 

- Sim - respondeu Joey.

 

- Ia com a mulher...

 

- Fazem um rico par, deixa - afirmou Joey. - Porque não voltam eles para Boston ou lá donde vieram?

 

- Ted não’ é de Boston - disse Selena com ênfase.

- É de Peyton Place. Pelo menos é o que ele sempre disse.

 

- Ted sempre disse uma porção de coisas que não eram verdade...

 

- Não te preocupes - observou Selena. - Não gosto de te ouvir falar assim, Joey!

 

- Ted é um rato, - acrescentou o rapaz - um rato de duas caras.

 

- Pára com isso! - exclamou Selena.

 

- Como podes tu pensar nesse Ted depois do que ele te fez ? - perguntou Joey.

 

- Fez o que supunha ser justo e não se fala mais nisso. «O fim», pensou Selena; «a vida tem muitos fins. Talvez que Ted tenha procedido de boa fé. De qualquer modo, dói». Selena moveu, distraída uma pedra de xadrez para o centro do tabuleiro recordando-se da última vez que falara com o Ted. Fora precisamente na altura em que a guerra tinha acabado e ele regressava a Peyton Place, para ver os pais, depois de uma ausência de seis meses em Harvard, onde frequentava a Faculdade de Direito.

 

- Posso ver-te hoje, Selena - disse-lhe ele pelo telefone.

 

- Claro, Ted. Vem cá por volta das oito horas.

 

- Ted Cárter deseja visitar-me - disse ela ao Joey. Serena não tinha segredos para o irmão. Tinham compartilhado mais que o bastante para que pudessem ocultar-se mutuamente qualquer coisa. - Não gostarias de ir ao cinema, Joey, ou a outro lado qualquer?

 

- Mas esse... - respondeu Joey,   com desprezo,   evitando de lhe pronunciar o nome. - Vais permitir que ele entre nesta casa depois do que te fez, quando tu...

 

- Quando   eu   fui   julgada - acabou   Selena: - Joey, nunca tenhas receio de fazer menção a isso. Não é bom pensar muito numa coisa e nunca falar dela.

 

- E depois se o Ted te convida para ires com ele?

- perguntou Joey exasperado. - Que vais tu dizer?

 

Selena voltou-se e simulou ajeitar as flores da jarra:

 

- Não sei, Joey - respondeu. - Talvez diga que sim...

 

- Doidos! vocês são doidos, - exclamou Joey, desgostoso. - Tu vales uma dúzia de Ted Cárters, Selena.

 

Ela tocou-lhe com os nós dos dedos na testa, com meiguice. - És orgulhoso! - disse sorrindo.

 

Joey saiu de casa para ir ao cinema, tão entusiasmado como se fosse ao dentista. E Selena ficou à espera de Ted, respirando a custo perante a perspectiva de o encontrar de novo. Sabia que estava a cometer um terrível erro, mas mentia-se a si própria e conservava uma longínqua, uma ténue esperança. Mais do que tudo no mundo desejava estar de novo com ele! O desespero da sua vida destroçada fizera-a habituar-se ao pensamento de que só com Ted a seu lado poderia ainda ser feliz.

 

- Foi uma longa ausência, Selena - começou ele. Ficou-se de costas para a porta de entrada, a rodar nervosamente o chapéu novo com as pontas dos dedos.

 

Selena indicou-lhe uma cadeira e notou, constrangida, a relutância com que ele esquadrinhava a casa. Percebeu claramente que Ted não vinha por amor e tão-pouco por desejo; era apenas a sua consciência de oriundo da Nova Inglaterra que o importunava.

 

- Não sabia que tu e eu nos teríamos que preocupar com finuras sociais - disse Selena com um sorriso irónico.

- Mas se é assim que pensas, muito bem. - Depois, afectando a voz como uma rapariguinha a imitar um adulto, disse, fazendo mesuras:

 

- Oh, Ted, sim, exactamente, foi uma longa ausência! Que vamos beber?

 

- Eu não bebo! - protestou Ted. - E não sabia que tu bebias...

 

A voz dele tinha um tique de sentimónia que a exasperava :

 

- Pois porque não hei-de eu beber ? Só porque o Lucas era bêbedo? É onde queres chegar?

 

- Selena, por amor de Deus, não pretendo dizer nada disso.

 

- Então, que pretendes tu ?

 

- Já não sei - murmurou ele nervosamente. O à-vontade de Selena enervava-o. Davam-lhe ganas de se lançar de joelhos, declarar-se culpado, pedir perdão. Contudo, disse apenas:

 

- Essa história de cocktails sempre me pareceu uma coisa afectada e ridícula.

 

- Ah, mas eu não ia dar-te nenhum cocktail, Ted. São oito horas e pensei que gostasses de tomar um brande para te ajudar a fazer a digestão do jantar pantagruélico que a mamã te deve ter servido antes de te deixar sair de casa...

 

- Não, obrigado - respondeu ele indiferente. Sentou-se numa cadeira, com as mãos sobre os joelhos. Inclinou-se para ela mas conservava o olhar remoto, parecendo isolado pelo sentimento de culpa que Selena despertava nele.

 

Selena deitou brande num copo enorme. - Bem, pelos nossos dias felizes! - Sorveu um pouco, esperando que a ironia dos seus gestos não lhe passasse despercebida. - Suponho que também não fumas?

 

- Não.

 

- Bem, eu fumo, - respondeu desdenhosa, e acendeu um cigarro. - Que te trás por cá, Ted ? - perguntou.

 

Ted levantou-se e dirigiu-se para uma das janelas da frente. Meteu as mãos nos bolsos e inclinou a cabeça para trás, como se tentasse desentorpecer os músculos do pescoço.

 

- Penso em casar - disse medroso. - Encontrei uma rapariga em Boston...

 

Selena não respondeu palavra. Silenciosamente retirou o copo dos lábios e pousou o cigarro no cinzeiro.

 

- Está bem - murmurou   depois,   com   a voz   ainda firme.

 

Ted voltou-se e fez o gesto de estender as mãos, como se esperasse por invisível auxílio.

 

- Ainda não o   disse   a ninguém,   Selena, - acrescentou. - Queria que fosses a primeira pessoa a sabê-lo.

 

- Oh, para que te incomodas tanto ? - perguntou Selena, depois, cheia de raiva: - Porquê ?

 

- Peyton Place é uma terra pequena... Toda a gente vai falar e não queria que soubesses disto pelos outros.

 

- Que coisa reles, Ted. Não tens vergonha?

 

- Selena, por amor de Deus não faças as coisas piores do que são.”

 

- Ah, custa-te? - perguntou. - Mas porquê? Quando compareci no tribunal já sabia que o grande Ted Cárter não iria casar com uma assassina. Não vejo motivo para sentires agora receio de me falar da tua nova namorada, Ted.

 

- Conheces bem os meus sentimentos a teu respeito, Selena - respondeu Ted com a voz estrangulada. - Nunca mudei de pensar, podes crer. Passámos juntos dias felizes, tu e eu, mas não podemos infelizmente, compartilhar o nosso futuro.

 

- Não te atrevas a vir a minha casa fazer-me discursos bonitos - gritou Selena exasperada, levantando-se de punhos cerrados. - Toda a gente sabe a conta em que tu me tens. É tarde para explicações.

 

- Selena, queres fazer o favor de te sentar um pouco. Vou tentar fazer-te compreender.

 

- Nada tens a explicar, Ted - replicou ela cansadamente.- Porque não te vais embora?

 

Ele pôs-lhe as mãos no rosto - Selena, peço-te, senta-te.

 

A rapariga encolheu os ombros e sentou-se, agitando o brande à roda do copo.

 

- Selena, sabes que sempre ambicionei fazer-me advogado, - continuou Ted. - Não um advogado qualquer, como o velho Charlie Partridge, por exemplo, mas um advogado de classe...

 

- Houve tempo em que não achavas o Charlie tão mau como isso - interrompeu Selena. - Claro, já lá vai, quando tu ainda não sonhavas ir para Harvard e ele estava em posição de te ajudar.

 

Ted simulou não ouvir esta observação mordaz, pois nada tinha a responder. Era verdade, Ele melhor que ninguém, sabia quanto isso era verdade.

 

- Não é o facto de ir para Harvard que podia, por si só, fazer de mim um grande advogado - continuou. - Precisava de apoio. Precisava de alguém de importância que me desse a mão.

 

- Começo a perceber... - respondeu Selena deitando mais brande no copo. - A tua namorada de Boston não será, por feliz acaso, filha de algum advogado da moda?

 

Ted cravou os olhos nos pés. Todos os argumentos que tinha arquitectado enquanto se encaminhava para casa de Selena lhe pareciam agora repugnantes e vergonhosos. De cara a cara com a realidade de Selena as maquinações e pretextos baseados em motivos de ordem profissional revelavam-se tão sórdidos como infantis. Mas, já que tinha começado, não podia voltar atrás. No fundo ele sabia que a sua salvação estaria em Selena, mas sentia-se incapaz de acertar tal solução. Não podia ser. Apunhalava-se com este pensamento. Não podia ser. A culpa era do Destino, que não dele. «É com este argumento» - pensou humilhado - «que os fracos preservam o seu orgulho».

 

- Chama-se Jennifer Burbank. O pai é John Burbank da «Burbank, Burrel & Archibald», uma das maiores firmas de advogados de Boston.

 

Selena deitou a cabeça para trás e começou a rir histericamente.

 

- Pare,   senhor   Ted - exclamou. - Não   diga   mais. Com que então Jennifer Burbank! A maior firma de advogados de Boston! - tentou deixar de rir mas teve medo, pois tinha a certeza de que, se deixasse de rir, começaria a chorar.

 

- Selena, por favor, - implorou Ted.

 

Selena sossegou. Sacudiu a cabeça e os longos cabelos negros escorregaram-lhe dos ombros para as costas. Agora já não corria mais o risco de chorar. Os olhos de púrpura tornaram-se-lhe escuros, quase totalmente negros, e a boca que Ted tantas vezes beijara, vermelha e doce, deixava transparecer um doloroso sorriso apenas perceptível.

 

«Santo Deus», pensou Ted olhando-a, «agora faço uma ideia do ar que ela devia ter quando matou o Lucas. Nunca pensei que Selena pudesse olhar desta maneira».

 

- Fala-me   dela,   Ted - disse   Selena brandamente.

- Como é? Pequena, loira, com uma pele rosada e clara e seios frescos como limões?

 

- Selena!

 

- Oh, mas tem cuidado com essa, Ted! - continuou Selena com voz excessivamente controlada e doce. - Algumas dessas meninas de famílias ricaças de Boston são terrivelmente delicadas, como sabes. Cuidado com o tipo fino. Peyton Place matava-a. Não há sangue azul que aguente os nossos invernos.

 

- Não viremos morar para Peyton Place - respondeu Ted, calmo. - Quando acabar o curso em Harvard ficarei a trabalhar na «Burbank».

 

- Então, diga-me, doutor Cárter, e os senhores Burbanks sabem, por acaso, alguma coisa de nós ? «Nós» - quero dizer - tu, eu e o Lucas ? Ou deixaram de ler os jornais quando o Henry Adams morreu?

 

- Sabem apenas que andámos ambos a estudar...

 

- Hum, hum - troçou Selena. - «A estudar», hein? Nunca reparaste, Ted, que só as pessoas que frequentam escolas particulares dizem que andaram «a estudar» com este ou aquele? Já reparaste, Ted? O resto, nós, os pobres de Cristo que frequentámos as escolas públicas gratuitamente dizemos sempre «na escola». Bem, muito me alegra verificar que depressa aprendeste a linguagem da tua nova família. De resto seria para mim um desgosto se eles te considerassem um «casca grossa».

 

- Selena, fazes o favor de mudar de assunto ? Não será possível falarmos como velhos amigos ? Não pareces tu, Selena.

 

- Talvez não seja a mesma Selena, Ted. Talvez tenhas razão, não seja eu. De facto vou deixar de sê-lo. Não quero ser a antiga Selena, boa, doce, amiga de toda a gente. E, sobretudo, Ted, não quero mais ser tua amiga.

 

A voz dela deixara de ser doce. Irrompia-lhe da garganta, torturada e áspera.

 

- Veste o casaco e sai daqui! - gritou.

 

Ted levantou-se e viu Selena deitar mais brande no copo. Vestiu precipitadamente o casaco e ficou indeciso em frente dela.

 

- Não me dás um beijo de despedida? - implorou.

 

- Fora daqui! -gritou Selena. -Não quero voltar a ver-te.   Fazes-me vómitos, compreendes? Preferia beijar esterco. E agora, rua!

 

Ted saiu e Selena ficou sentada durante largo tempo, segurando com ambas as mãos o copo do brande. Depois levantou-se, dirigiu-se cansadamente para a cozinha e vazou o líquido no lava-loiça, como se a presença de Ted o houvesse contaminado.

 

Estava sentada numa cadeira de braços quando Joey entrou.

 

- Que aconteceu ? - perguntou ele imediatamente.

 

- Ele vai casar - respondeu Selena calma. - Com uma rapariga chamada Jennifer Burbanka, de Boston.

 

Joey olhou para a irmã e começou a desabotoar o casaco.

 

- Custa-te, Selena ? - perguntou.

 

Ela enrolou o tricot e pô-lo na caixa.

 

- Um pouco, - respondeu levantando-se para ir fazer café.

 

O «rei negro» de Joey fez clic-cli-clí sobre o tabuleiro de xadrez e «comeu» três peões» de Selena.

 

- Com   este   faz   oito   jogos   a   meu   favor - disse ele. - Quem é que me ia agora tirar o fôlego, Selena ?

 

- Sei lá - respondeu ela.

 

O relógio em cima do fogão bateu duas horas.

 

- Duas da madrugada! - exclamou Selena. - Já para a cama!

 

Joey pôs-se de pé e espreguiçou-se.

- Parece-me que vou buscar um lençol e dormir aqui mesmo no sofá - disse pachorrentamente. - Vou guardar a fogueira.

 

- Muito   bem,   Joey - respondeu   Selena   beijando-o.

- Boas noites!

 

O vento caíra e, mal se notava agora. Pelos rectângulos escuros das janelas, Joey contemplava os flocos de neve que não cessariam mais de cair em toda a noite. Experimentou uma vez mais a fechadura da porta e deitou uma cavaca no lume.

 

Selena permaneceu acordada, voltada para a janela, aguardando a primeira claridade da madrugada, impaciente pela demora do dia que tardava em dissolver a ameaça da noite. «Gostaria de ser uma criança» - pensou. «Gostaria de acreditar ainda em fantasmas e casas assombradas e ter medo. Assim, são as minhas recordações que me assustam, que enchem de pavor esta maldita casa». Começou a chorar silenciosamente sobre o travesseiro. Pensava em Ted mas não era por causa dele que chorava: Ted era apenas e só o símbolo de tudo quanto tinha perdido. «Resta-me apenas», dizia para si própria, «a solidão».

 

Era dia claro e o vento sibilava de novo quando ela e o Joey lograram adormecer.

 

«Talvez aconteça hoje», pensou Allison MacKenzie ao acordar. Há mais de dois meses que esse pensamento lhe acudia todas as manhãs.

 

Saltou da cama e correu a fechar a janela do quarto à frialdade da madrugada e deteve-se arquejante, aconchegando a gola do roupão enquanto contemplava sem respirar o quadro de beleza que se lhe deparava lá fora. Por um momento apoiou a fronte ao vidro gelado como que num esforço para despertar inteiramente dos sonhos nocturnos e trocá-los pelos do dia. De facto, passava os dias em permanentes devaneios, sonhando a cada passo com o telefonema do seu agente literário, Bradley Holmes, que tardava demasiado; via o seu livro impresso e publicado e antegozava a fama e a glória que se lhe sucederiam.

 

Nevava ainda e o vento levantava enormes nuvens de neve em pó, erguendo-as no ar como gigantescas plumas. Tudo o que Allison lograra descortinar era branco, limpo e macio, dando-lhe a impressão excitante de que todo o mundo se tornara subitamente novo e puro e que nada de mau poderia já acontecer nele.

 

Allison dirigiu-se de mansinho, descalça, para a porta do quarto e entreabriu-a. Sentiu logo como que a carícia de pequenos dedos invisíveis de calor subindo pelas escadas e envolvendo-lhe os rins. Saltou para o leito e mergulhou sob os cobertores à espera que o quarto aquecesse.

 

«O resto do mundo dorme ainda a esta hora», - pensou recordando-se dessa impressão da sua infância - «e eu já estou acordada!»

 

Quase a seguir sentiu-se quente, animada e segura de si própria, muito mais ainda do que em pequena, nos seus esconderijos. Porque, agora, aprendera já a não ter medo quando chegava o momento de regressar ao mundo acanhado da realidade. «O tempo que passei em Nova Iorque», pensava, «deu-me, pelo menos, essa lição». A sua experiência com Brad, esse breve e intenso interlúdio, lograra fazê-la adulta e segura. Sabia, no fundo, que não era uma coisa nem outra mas esforçava-se continuamente por se convencer disso. «Quando damos muito do pouco que possuímos», pensava, «necessário se torna salvar alguma coisa das ruínas, não importa se pouco, mas importa, ainda que seja uma mentira».

 

«Vai nevar o dia inteiro», pensou, «eu vou levantar-me e devorar um grande pequeno almoço e ajudar a mamã enquanto o pai não sai para a escola. Por enquanto não sou ainda uma escritora famosa. Não passo, neste momento, da filha de minha mãe».

 

Allison nunca chamava pai a Michael Rossi. Algumas vezes, de brincadeira, chamava-lhe «Papá», esperando que ele compreendesse quanto, de verdade, esse tratamento lhe saía do coração. Normalmente chamava-lhe apenas Mike. No entanto, quando pensava nele, dizia sempre «o meu pai» para si própria. Começara como que para experimentar se isso lhe provocaria algum sentimento de remorso por constituir até certo ponto, uma deslealdade para com Allison MacKenzie. Era como se Allison MacKenzie nunca houvesse sido realmente seu pai, apenas um homem com quem a mãe tivera uma infeliz aventura de amor, há muitos anos, muitos anos.

 

- Nunca tive, francamente, pena dele - dissera-lhe a mãe. - Amei-o e ele foi bom para mim. E nasceste tu.

 

É muito mais do que a maioria das mulheres tem a sorte de conseguir.

 

De princípio, quando a animosidade de Allison para com a mãe atingira o auge, havia uma palavra dolorosa que repetia muitas vezes para si própria. Bastarda.

 

Pensava que iria morrer de vergonha e de horror. Soube, porém, guardar o seu segredo tão bem como a própria mãe. Trazia-o consigo de noite e dia. «Bastarda», «filha de pai incógnito» - palavras que lhe saltavam diante dos olhos nas páginas de todos os livros que lia; pareciam impressas num tipo mais carregado. Pior do que isso, durante a fase mais dura da crise por que passara, atormentava-a a ideia de que essas palavras tinham sido escritas por um desígnio superior e misterioso, unicamente para a torturar.

 

A ninguém ousou contar a história do seu nascimento, nem mesmo a Stephanie Wallace, a companheira de quarto em Nova Iorque ou a Brad Holmes, o primeiro amante.

 

Durante as semanas e meses de sofrimento interior que sucederam ao seu regresso a Peyton Place muitas vezes se interrogou ansiosamente do que para ela significava esse Bradley Holmes. Sentia-se incapaz de arrumar as ideias acerca dele, de o identificar no esquema da sua vida. Poderia classificá-lo de amante? - interrogava-se. Mas a palavra amante implica amor e, do seu lado, ele não existira. Não. Bradley fora apenas e simplesmente o primeiro homem aquele que a iniciara no sexo, que algo lhe roubara e dera, também. Esta razão tinha para Allison grande importância, pois Bradley constituíra, por outro lado, alguém que, apesar de tudo, ela nunca mais poderia esquecer. Afeita ao convencionalismo dos seus escritos, Allison não conseguira ainda libertar-se inteiramente do preconceito de que a mulher casa necessariamente com o primeiro homem a quem se entrega.

 

Gastara uma infinidade de tempo a odiar Brad quando, afinal, era a ele que devia o ter começado a compreender a fraqueza de sua mãe e a amá-la de novo. Sabendo-se, agora, frágil e capaz de um deslize, nada mais teria a esperar de outrem que, no caso da mãe, representava uma força sobre-humana.

 

Allison notou um bulício ao fundo das escadas e logo a seguir uma gargalhada de Constance lhe encheu o quarto. Constance e Mike nunca se levantavam separadamente como de resto nada faziam um sem o outro, ou tinham segredos entre si. Se alguma vez Allison precisasse de argumentar para se certificar de quanto Constance e Mike se amavam, bastar-lhe-ia observá-los juntos, agora: pareciam crianças da escola, lá em baixo, a fazer café na cozinha.

 

- É indecente - rira-se Allison, pois a mãe costumava tomar banho enquanto Mike fazia a barba.

 

- Que hei-de eu fazer ? - desculpou-se ele - a tua mãe sempre me escandalizou com essas coisas. E suponho mesmo que o pior ainda está para vir.

 

- Que tenho eu que te possa escandalizar, meu menino, só se for...-respondeu Constance fazendo um gesto algo deselegante. - No dia em que tu te escandalizares vai ser Feriado Nacional!

 

Quando Allison desceu, atraída pelo cheiro a café e toucinho frito, a primeira coisa que viu foi a mãe, vestida com um ropão azul-pálido, a cabeça loura recortada de encontro à moldura da janela caiada de neve. Os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas como sempre que via qualquer coisa de belo.

 

- Bom dia, querida - exclamou Constance beijando-a no rosto. - Não está uma manhã maravilhosa ?

 

- Esta manhã faço de ajudante de cozinha-   disse Mike quando Allison lhe deu o rosto a beijar. - Vai um beijinho só, ou dois?

 

- Dois! - exclamou Allison, afogueada subitamente de afecto e da certeza magnífica de que o dia lhe iria correr maravilhosamente.

 

- Hoje é que vai acontecer. É hoje, mamã! - gritou, e quase dançava à volta do fogão enquanto enchia uma chávena de café.

 

- Oh! querida, espero que sim - respondeu Constance,

- Sonhaste com isso ?

 

- Não, mas tenho cá uma fé - respondeu Allison, sentando-se à mesa da cozinha. - Hoje Bradley Holmes vai-me telefonar de Nova Iorque. «Hélio, Allison», vai ele dizer. E eu respondo: Hélio Brad! Depois ele:   «Tenho notícias formidáveis para te dar, Allison!   Vendi   o   teu original!» Nessa altura, manhã, se eu não desmaiar, desato a chorar, pelo menos, e ele tem de te dizer a ti a quem vendeu o manuscrito. E depois, tens de chamar Mike porque eu também não serei capaz, e logo que ele vier diz-lhe que vá lá abaixo buscar as garrafas de champanhe que estão guardadas e iremos comemorar.

 

Mike assumiu um ar cerimonioso, com a chávena de café levantada, e disse:

 

- Eu fico assim e digo: «à saúde de Allison MacKenzie e do seu best-seller, O Castelo de Peyton. A seguir, minha senhora, será o abraço de parabéns.

 

- A seguir - disse Constance - tenho de andar depressa e convidar todas as pessoas amigas: «Agradecemos a fineza de virem a nossa casa. Estamos a celebrar uma festa em honra da famosa escritora Allison MacKenzie». Mas o Mike tem de começar a servir cerveja porque o champanhe não dá para tanta gente...

 

- Oh,   diabos! - gritou   Mike   de   súbito - deixámos queimar os ovos! - Os três riram gostosamente e Allison observou:

 

- Desceste à terra por causa de três reles ovos queimados. Que prosaico! - Ela preferia continuar o sonho e disse: - Não seria de facto maravilhoso se Brad conseguisse encontrar um editor para o meu romance?

 

- Claro que há-de conseguir,   minha   querida - respondeu Constance. - Todos teremos o maior prazer com isso, especialmente tu, claro. Não só porque és talentosa, querida, mas porque bem o mereces, depois de tanto trabalho.

 

- Há-de acontecer - disse Mike - e não tardará muito, afianço-te. Agora vamos comer. São quase horas de eu ir para a escola!

 

«Depois de tanto trabalho»!, pensou Allison. Era verdade embora não exprimisse tudo o que custara escrever um romance. Anos a escrever e a tarefa ingrata de escrever de novo. Mas o que mais lhe custara não fora exactamente escrever o livro, senão o peso da dúvida. A dúvida enlouquecia-a, desfiava-lhe os nervos, roubava-lhe o sono e o repouso. Serviria de alguma coisa tanto trabalho? Encontraria um editor? Nunca tivera confiança no seu próprio julgamento, sequer. Um trecho que se lhe afigurava perfeito lido à noite parecia-lhe, de dia, digno apenas do caixote do lixo. Chorava sobre essas páginas, tanto, pensava algumas vezes, como uma mãe por um filho ingrato.

 

O Castelo de Peyton era o fruto de dois longos anos de trabalho. Quando da primeira vez regressou a casa, na altura do julgamento de Selena Cross, trouxe consigo o desespero de se sentir falhada como escritora. Na verdade, embora tivesse conseguido manter-se escrevendo contos para revistas, o seu primeiro romance fora um autêntico fracasso. Bradley Holmes dissera-lhe sem rodeios que não conseguiria vender-lho e que, mesmo que porventura o conseguisse, não lhe interessava fazê-lo. A publicação de um trabalho de baixo nível literário acarretar-lhe-ia mais prejuízos do que proveitos - dissera-lhe redondamente.

 

- Experimenta outra vez, - sugeria Brad - até que tenhas mais idade e maior experiência.

 

Quando voltou, Allison pensava tristemente que tinha adquirido maior experiência, embora tivesse, praticamente, a mesma idade.

 

David Noyes, que ela conhecera em Nova Iorque, foi a única pessoa a quem Allison revelou a sua breve aventura com Bradley Holmes e foi também David que veio a Peyton Place para tentar confortá-la.

 

- Doeu-me   como   o   fogo   do   inferno - dissera-lhe ele. - Nenhum homem gosta de ouvir a mulher que ama confiar-lhe   experiências   sexuais   com   outro,   Allison.   As mulheres por vezes pensam que sim, mas enganam-se. - Calou-se por um momento e disse: - Acabou-se, Allison. Entre tu e Brad nada mais existe. E os tempos que vão seguir-se serão para ti os piores da tua vida pois terás de reunir uma a uma as peças do teu vaso quebrado.

 

- Oh, David e como? É sempre fácil dar conselhos como esses, altissonantes mas vagos. O que eu pretendo é que me ajudes. Sê específico. Não necessito de conselhos. Suponho que me faz falta uma receita, simplesmente.

 

- Trabalha! - respondeu-lhe David. - Poderá parecer trivial mas é princípio certo. Mata essa cabeça a trabalhar, Allison. Trabalhar numa tarefa da nossa escolha é uma das maiores felicidades que a vida nos pode oferecer. Ainda é melhor remédio que o próprio tempo.

 

Por fim Allison respondera-lhe que ia tentar.

 

- E nós? - perguntou-lhe depois ele com os olhos desvairados e suplicantes.

 

- Nada acerca de nós, David. Não agora. Ainda não. Nunca, quem sabe. Talvez que, quando pensares nisto um pouco mais reflectidamente, não fiques tão seguro de que queres o que os outros deixam. - Voltou a cabeça contraindo os lábios com força num desesperado esforço para segurar as lágrimas. Não conseguiu, porém, saber ao certo se elas eram de saudades do Brad ou de pena do David.

 

- Descança - respondeu ele secamente. - Não sou coleccionador de virgindades.

 

- Escrevo-te depois, David. Talvez eu mude de pensar quando regressar ao meu trabalho. Talvez ele e o tempo, juntos consigam modificar-me. Por mim, só, sinto-me incapaz.

 

E assim David Noyes regressara a Nova Iorque e Allison resolvera desfazer os nós do embrulho que continha a sua obra, disposta a recomeçar.

 

O Castelo de Peyton contava a história de Samuel Peyton, um rico negro que desposara uma rapariga branca, logrando escapar ao ostracismo a que esse facto o votaria construindo um castelo numa das colinas ao sul de Peyton Place. Sobre este fundo edificaria Allison a história de uma pequena cidade muito semelhante a Peyton e aos indivíduos que nela viviam.

 

Quando terminou a sexta versão, Allison apressou-se a enviá-la a Bradley e logo no dia seguinte ele lhe telefonou. Não é normal um agente literário conceder toda a sua atenção tão repentinamente ao trabalho de um estreante, novo, inexperiente e desconhecido, sabia Allison.

 

- Allison,   é   magnífico! - gritou   Bradley   entusiasmado. - Vou vendê-lo, tenho a certeza!

 

- Até que enfim! - suspirou ela laconicamente, demasiadamente farta do manuscrito para cuidar do que iria ser feito dele. Fizera o melhor do seu esforço e agora, nas mãos dos outros, já o trabalho não lhe pertencia inteiramente, afigurava-se-lhe.

 

- Ouve - perguntou Brad - Peyton Place é mesmo como a descreves?

 

- Suponho que sim, mas porquê?

 

- Bem, por nada. Deve ser um autêntico fosso de víboras...

 

- Peyton Place não é pior nem melhor do que qualquer outra pequena cidade,   Brad.   Tão-pouco o livro   fala   de Peyton Place. São todas o mesmo, as terras pequenas.

 

- Descansa as mãos agora, minha criança - terminou Brad. - Brevemente dar-te-ei notícias.

 

E cada dia depois, Allison acordara sempre com o mesmo pensamento: Talvez seja hoje.

 

- Tenho que dar uma arrumadela a essa sala de estar, hoje - disse Constance. - Parece um autêntico estábulo.

 

A sala não se parecia nada com um estábulo. Constance, porém, era uma dona de casa meticulosa e o menor indício de pó era o bastante para a fazer pegar no aspirador.

 

- Ainda anteontem passaste tudo à escova, mamã - protestou Allison.

 

- Não importa - respondeu Constance. - Não posso dar festas em honra de uma escritora numa sala cheia de lixo.

 

- Então vou lá   fora   limpar o passeio - respondeu Allison - e tirar as teias de aranha que me fazem entrar estas ideias impossíveis no miolo logo que acordo de manhã.

 

E saiu, entregando-se à sua tarefa. Segurando o cabo da pá com as mãos enluvadas esperava que um trabalho tão maquinal como aquele de remover a neve lhe aliviasse e o espírito saturado de pensar em excesso no romance e no seu futuro. Chegara finalmente à conclusão que o livro era algo mais do que um romance, um passatempo, um trabalho: toda a a sua vida dependeria agora dele. Apenas conseguiria identificar-se a si própria, de futuro, como a autora de O Castelo de Peyton. Se o não fosse, não seria coisa alguma.

 

Eram onze e meia quando reentrou em casa. Sacudiu a neve dos sapatos e nesse momento o telefone tocou. Allison levantou o aparelho da extensão da cozinha.

 

- Hélio, Allison? - Era Bradley Holmes.

 

«Não, não pode ser», disse para si própria, repetidas vezes. «Os desejos não se realizam tão facilmente».

 

- Sim, Brad - respondeu, tentando não trair o intenso nervosismo.

 

- Senta-te querida - disse ele. - Senta-te que vais ouvir coisas maravilhosas que eu tenho para te contar.

 

«Não pode ser, não pode ser. Meu Deus, fazei que seja»!

 

- Está? Allison? Ouves-me?

 

- Sim, Brad, eu ouço-te. Não fales tão alto.

 

- Vendi o teu original! - berrou ele.

 

Constance estava a fazer a cama da filha quando a ouviu gritar:

 

- Mamã, mamã! Anda cá!

 

- Santo   Deus! - exclamou   Constance. - Se   calhar feriu-se!

 

Allison estava a chorar ao telefone. - Sim - soluçava - eu ouço-te Brad, eu ouço-te.

 

- Deus bendito!   Não pode ser exactamente assim!

- gritou Constance, pegando no auscultador. - Fala Constance Rossi - disse. - Que aconteceu ?

 

- Foi a Jackman. Vendi o romance de Allison a Jackman - explicou Brad. - Diga-lhe que venha a Nova Iorque no domingo.

 

«Jackman - repetiu Constance estupidamente. - «Domingo».

 

- Diga-lhe   que   me   telefone   depois - recomendou Brad. - Preciso de saber em que comboio ou avião ela vem. Vou esperá-la. E diga-lhe que já reservei aposentos no «Plaza». Jackman vai deixar tudo para seguir com o livro, suponho eu. Tenho a impressão de que a sua Allison não tardará a ter que hospedar-se nos melhores hotéis e acho conveniente que se vá habituando ao ambiente.

 

- Sim, senhor Holmes, obrigada senhor Holmes, adeus, senhor Holmes - articulou Constance.

 

A Rua do Castanheiro era uma larga avenida arborizada, paralela à Rua do Olmeiro, um quarteirão a sul da da via principal. Sempre fora e havia de ser considerada a «melhor» de Peyton Place.

 

Todas as terras têm a sua «Rua do Castanheiro». Pelos verões mais tórridos as Ruas do Castanheiro são sempre um pouco mais frescas do que as outras. As casas que as orlam indicam sempre, de um modo irrefutável, que ao tempo da sua construção, era fácil manter um exército de criados - porque os havia muitos e baratos - e que, obviamente, os seus donos dispunham de meios para os manter. Aos olhos dos moradores das outras ruas essas casas magníficas revestem sempre um ar de mistério, pensa-se instintivamente em portas secretas e salas invioláveis.

Nunca houve o menor risco de que um estranho indesejável pudesse alguma vez acolher-se à Rua do Castanheiro: cada grande casa repousa cercada de todos os lados por terrenos pertencentes ao augusto proprietário. Terra Santa, essa, assenhorada desde remota data pelas famílias que outrora tinham vindo aconchegar-se à sombra do Castelo de Samuel Peyton, ainda novo.

 

Os homens que moravam na Rua do Castanheiro eram da primeira casta de Peyton Place. Homens de dinheiro e posição social, cabeças a quem competia o governo da cidade. Reuniam-se em casa do Dr. Matthew Swain todas as sextas-feiras à noite para jogar o «poker» e essas reuniões constituíam uma velha tradição em Peyton Place.

 

- Governar uma cidade como Peyton Place não é coisa que se faça à custa de dinheiro - disse o Dr. Matthew Swain para o amigo Seth Buswell. - Há aí tipos que abandonam as fábricas logo que sentem dois patacos no bolso...

 

- Vagabundos ingratos - exclamou Leslie Harrington, antes que Seth tivesse tempo para responder.

 

- A cidade não lhe dá emenda nem lhe arromba a língua afiada - disse Seth ao acaso, referindo-se a ele.

 

- Quatro ases! - interrompeu Charles Partridge. Charles Partridge metia-se sempre na conversa quando via as coisas a azedar; mas desta vez não tinha já necessidade do seu papel de pacifista entre Leslie e Seth, visto que ambos se insultavam agora unicamente por hábito, pois tinham acabado por esquecer a animosidade que os opusera nos primeiros tempos.

 

Depois da morte de Rodney Harrington filho único de Leslie, os seus amigos da Rua do Castanheiro olhavam apreensivos para o rico industrial de moagem. De um dia para o outro Leslie Harrington deixara de ser o duro homem de negócios que sempre fora para se transformar numa fraca imitação de si próprio. Até mesmo aqueles que o odiavam sentiam por ele um certo dó.

 

- É castigo - diziam muitos em Peyton Place, alguns com tamanha satisfação que pareciam convencidos de que o castigo era o resultado dos seus esforços.

 

- Talvez, mas de qualquer maneira, foi uma grande infelicidade para o velho,   assim tão de repente - consideravam outros. De boca em boca as novidades de Peyton Place davam vida aos mortos e presença aos ausentes. Os nomes de Rodney e Betty Anderson, por exemplo, eram agora mais falados do que no tempo em que ambos viveram em Peyton Place. As vozes roucas dos velhos entoavam por todos os cantos da cidade uma infindável ladainha.

 

- Talvez. Mas ia apostar que há aí quem não tenha grande pena dele.

 

- Sim ? Então quem ?

 

- Olha, John e Berit Anderson, da Rua do Freixo.

 

- De acordo. Foi o mesmo que expulsar a rapariga daqui, o que Leslie fez. Não podemos censurar os Anderson por não terem agora pena dele.

 

- Que diabo   será   feito dessa Betty ?   O pai nunca diz palavra acerca dela. É como se morta fosse.

 

- Bem, quando o filho de Leslie a desonrou, aquilo, para o John, foi como se lha tivessem matado.

 

- É, é. Esses suecos também têm o seu capricho tal como a gente...

 

- Talvez que a moça viva lá para Rutland. Ela não tinha lá uma tia?

 

- Na... O Jared Clarke já foi a Rutland muita vez e podes crer que se o Jared a tivesse visto por lá que dizia logo para aí...

 

Aventavam-se muitas hipóteses em Peyton Place, sobre o que teria sido feito de Betty Anderson, como sempre acontece quando uma rapariga sai da cidade por idênticos motivos. Mas o que ninguém sabia, nem sequer os homens da Rua do Castanheiro, a quem normalmente nada escapava de tudo o que sucedia em Peyton Place, era que Leslie Harrington tinha organizado uma investigação particular a expensas suas para tentar descobrir o paradeiro da rapariga que, antes, desejava ver sumida sem deixar rasto. Não se dirigia a Buck McCraken porque o xerife de Peyton Place tinha fama e proveito de fazer pouco e falar muito. Se tivesse solicitado os serviços do Departamento de Pessoas Desaparecidas eles haveriam certamente de mandar gente à cidade encher tudo de perguntas o que Leslie, principalmente, procurava evitar. Quanto a detectives particulares não os havia em Peyton Place nem em todo o Estado e mesmo que os houvesse, de nada adiantaria: também não fariam nada sem perguntas. Parecia, assim, que Leslie Harrington tinha falhado, mas o falhanço era um luxo que ele nunca se permitira até então, nem desejaria experimentar jamais. Se houvesse uma solução ele a encontraria, sem dúvida, custasse o que custasse.

 

- Então Leslie ? - exclamou Matthew Swin - estás a jogar cartas ou a dormir?

 

- Tenho que ter cuidado contigo, Matt - troçou ele deitando algumas moedas para o centro da mesa. - Corta!

 

- Não posso! - exclamou Matthew Swain desgostoso.

- Sempre tiveste uma sorte danada, Leslie.

 

«Nem sempre», pensou ele. «Nem sempre».

 

- Hoje vi Ted Cárter - disse Charles Partridge. - Ia com a mulher. Bonita moça.

 

- Hum...-resmungou o médico.

 

- Confessa lá, Matt - disse Leslie. - Tens uma espinha na garganta com esse Ted só porque ele não casou com a Selena. Afinal...

 

- Afinal, grande burro - disse o Dr. Swain - não é da tua conta nada disso. Vamos, joga!

 

- Um rapazinho como Ted,   sempre a tentar fazer qualquer coisa pela vida e ser alguém! - continuou Leslie como se o não tivesse ouvido. - Francamente que ninguém o pode censurar. Teria feito bem se continuasse a viver em Peyton Place, lá nisso concordo, mas essa rapariga não era pessoa para viver com ele numa terra como esta. Toda a gente tem boa memória, aqui.

 

- Têm, sem dúvida - disse Seth Buswell - e não se lembram só de assassínios, Leslie. Há ainda outras coisas que eles por aí nunca esquecem...

 

- Que   diabo   pretendes   insinuar,   Seth? - perguntou Leslie, tocado. - Deita isso cá para fora, homem! Vale mais desabafar em vez de estares calado toda a noite.

 

Seth deixou cair as cartas sobre a mesa:

 

- Se queres saber, digo-te: Lembram-se também de Betty Anderson e do filho! - exclamou irritado.

 

Leslie fitou Seth como se ele o tivesse esbofeteado.

 

- Agora,   vamos - interrompeu   Charles   Partridge tudo está morto e sepultado. Pedra no assunto. Não vale a pena estarem com isso agora. Vamos às cartas.

 

- Quem é que começou ? - perguntou Seth em voz baixa. - A mim o que me parece é que o senhor Leslie Harrington, antes de começar a falar da vida alheia devia olhar um pouco para dentro.

 

Leslie pousou as cartas lentamente e fitou Seth nos olhos.

 

- Há dois anos - murmurou pausadamente - que ando à procura dessa rapariga, Seth Buswell.

 

Os três homens olharam para ele incrédulos mas não havia dúvidas: a verdade espelhava-se nas duas súbitas rugas que se desenharam no rosto de Leslie.

 

- E para quê ? - perguntou Matthew Swain afavelmente.

 

- Por causa do meu neto, Matt - suspirou Leslie. Por causa dele. O filho de Betty é o último Harrington e não sei onde ele está!

 

- Mas porque não nos pediu que o ajudássemos, Leslie? - perguntou Charles. - Não sabíamos de nada...

 

- Bem, eu nunca seria capaz de bulir um dedo para te ajudar, Leslie - exclamou Seth exasperado. - Qual é a tua ideia? Queres encontrar a rapariga para lhe roubares o filho, não?

 

- Seth! - exclamou Matthew Swain. - Está calado um pouco. Então, Leslie, querias tomar conta deles ambos?

 

Leslie olhou para as mãos.

 

- Claro... - respondeu por   fim. - Era   esse o   meu intento. Mas fiz tudo o que pude e não consegui encontrá-la em parte alguma.

 

- E que foi que tu fizeste, Leslie ? - perguntou Charlie.

 

- Santo Deus! Fui, até, falar com a negregada família dela, eu! Se eles sabiam alguma coisa não mo quiseram dizer. E Betty nunca teve nenhuma tia em Rutland, afinal.

 

- Nada mais ? - perguntou Seth, ainda desconfiado dos verdadeiros motivos de Leslie.

 

- Diabo, que mais poderia eu fazer ? - respondeu ele.

- Ouve, Seth, sei que me fica mal dizê-lo mas eu não podia resolver o assunto com Buck McCracken! E quanto ao Departamento de Pessoas Desaparecidas nada feito. Iriam encher Peyton Place de polícias e perguntas. Pensei, também, num detective particular, mas seria a mesma coisa. Estou com medo, digo-te!

 

Era uma palavra que Seth nunca esperaria ouvir da boca de Leslie Harrington. Com medo. E começou a compreender um pouco do vazio que enchia a vida de Leslie.

 

- Mas nós ainda poderemos ajudar-te - disse finalmente.

 

- Como? Que poderemos fazer? - perguntou Leslie.

 

- Podemos publicar anúncios nos jornais - disse Seth.

 

- Ora! - respondeu   Leslie   decepcionado. - Isso   foi uma das primeiras coisas que eu tentei. Publiquei anúncios em todos os jornais desde a costa canadiana até Boston! Seth inclinou a cadeira para trás.

 

- Leslie - disse - entra em qualquer casa da Rua do Freixo, ou pergunta aos teus operários e vê quais são os jornais que eles lêem. Não compram o Boston Herald ou o Concord Monitor. Compram o Boston Record ou mesmo o New York Daily News e outros do género. São os jornais onde eles devoram todas as histórias de faquistas de Harlem e vigaristas de Back Bay e os mexericos de Nova Iorque e Hollywood. Tenho a certeza de que Betty Anderson, esteja onde estiver, lê algum desses jornais.

 

- Mas   também   pode   suceder   que   não   repare   nos anúncios pessoais - lembrou Matthew Swain. - Há muita gente que nunca os lê.

 

- Talvez...-disse Seth - mas lê Winchell, tenho a certeza. Leslie, podias comprar um pouco de espaço na mesma página da coluna de Winchell em todos os jornais que o publicam...

 

- Isso   vai-te   custar   algum   dinheiro,   Leslie - disse Charles Partridge, que, como se dizia, tinha mais cuidado com o dinheiro dos outros do que com o próprio.

 

- Vamos combinar isso, Seth ? Telefonamos aos jornais ? - perguntou Leslie.

 

- Vamos - respondeu ele. - Mas não daqui. Depois de manhã tenho que ir a Manchester e, de lá, trato do caso.

 

- Veremos agora! - disse Leslie para os amigos, com um sorriso.

 

Apenas ele e Charles saíram, Matthew Swain, bebeu mais um cálice e estendeu a garrafa a Seth.

 

- Que pensas de tudo isto, Seth ? - perguntou. - Achas que o tipo diz a verdade?

 

Roberta pôs-lhe a mão no ombro, detendo-a suavemente.

 

- Fica antes sentada enquanto tomas o teu cafezinho, querida - disse. - É só um minuto.

 

- Mas eu gostava tanto de te ajudar! - protestou Jennifer enfadada.

 

«Mais um defeito desta Jennifer», pensou: «sempre a questionar por qualquer bagatela. Ted nunca foi assim. As únicas vezes que ele se mostrou teimoso foi quando se apaixonou por Selena Cross. Mas livrou-se dela, felizmente, e não voltaria a cair noutra. Jennifer, porém, que lhe tinha dado a impressão de ser doce e tratável enquanto Ted a namorava, tinha afinal uns modos tão teimosos que poderiam vir a ser a causa de grandes aborrecimentos se não a corrigissem a tempo». Naquele momento, contudo, não valia a pena preocupar-se.

 

- Está bem, então - sorriu Roberta. - Porque não vão vocês para a cozinha, fazer café? Gostaria de beber uma chávena dele fresco quando voltar para baixo.

 

Roberta subiu as escadas, resmungando muito para si e abriu as camas. A seguir dirigiu-se através do corredor para o quarto que fora sempre o de Ted e que ele agora ocupava com Jennifer quando vinham a Peyton Place passar o fim de semana. Isso fora uma das ideias de Jennifer. Roberta, ao princípio, tinha destinado às «crianças», como ela chamava a Ted e Jennifer, o quarto grande dos hóspedes, próximo do seu, mas Jennifer tivera uma das suas birras.

 

- Ouve querida - disse-lhe Roberta - o   quarto que era do Ted fica ao fundo do corredor e a casa de banho é deste lado. Não é muito cómodo, como vês. Vocês ficam muito melhor no outro quarto, ao pé do meu.

 

- É muito amável, mãe - respondeu Jennifer. - Mas na verdade eu preferia o quarto de Ted. Não é, Ted?

 

- Para mim é indiferente - respondeu ele.

 

Ted não viu os olhos que Jennifer lhe deitou mas Roberta reparou bem.

 

- Mas não é indiferente para mim - retorquiu Jennifer amuada. - Gosto do teu velho quarto, Ted. Tem muito de ti e gosto de imaginar que és ainda um rapazinho pequeno quando dormimos lá.

 

Ted pôs-lhe o braço em volta do pescoço.

 

- Como achares melhor, querida - sorriu.

 

Roberta preparou a cama no quarto de Ted não deixando de pensar no que teria Jennifer a esconder para preferir um quarto isolado a um canto, em casa da própria família.

 

«Já sei! É para dizer mal de mim à vontade!» O pensamento acendeu-se como um relâmpago no cérebro de Roberta. Era um aviso do céu, esse pensamento. «Ela fala de mim! Quer voltar o meu filho contra mim»!

 

Bem, mas Roberta não era pessoa que se deixasse domar facilmente. Não! Mas também não seria conveniente declarar guerra aberta antes de saber ao certo quem tinha pela frente. E não foi muito difícil encontrar uma solução.

 

Enquanto abria o enorme leito do casal instalado no quarto de Ted, Roberta sorria satisfeita com os seus pensamentos. Colocou uma colcha aos pés da cama e entrou furtivamente no quarto ao lado. Era um quarto pequeno, mobilado apenas com uma cama estreita, uma cómoda e uma cadeira, e fora, primeiramente, utilizado pela criada quando o Dr. Quimby, o primeiro marido de Roberta, era vivo. Nos últimos tempos usava-o como arrecadação de roupas, loiças e outras coisas que iam passando ao rol de velharias com o decorrer dos anos.

 

Harmon Cárter e Ted ficariam admirados se tivessem visto o pequeno leito agora arranjado e o respiradouro aberto. Este fora objecto de cuidadosa observação de Roberta, que o examinara de ambos os quartos. Quando estava escuro na arrecadação ninguém poderia ver, a não ser que andasse de gatas por debaixo da cama, que a grelha tinha sido rodada e os orifícios estavam abertos. Roberta passara, pois, a dormir no quarto improvisado sempre que Ted e Jennifer pernoitavam em Peyton Place. Em seis meses tinha ouvido muitas coisas. Sabia, por exemplo, que Ted não tinha a menor queixa a fazer do apartamento que habitava com Jennifer em Cantabrígia. Era um belo apartamento, espaçoso e soalheiro. Roberta já o vira, mas Ted não se sentia muito à vontade só porque o pai de Jennifer pagava a renda.

 

- Que diabo! - exclamava às vezes. - Faz-me sentir dependente.

 

- Que poderíamos nós fazer? - perguntava Jennifer.

- Querias ir morar para algum quarto mobilado e sustentar-me lá com o dinheiro que ganhasses a vender refrescos nas horas vagas?

 

- Conheço muitos rapazes que ganham a vida desse modo e não são menos do que eu - respondeu Ted. - O trabalho nunca matou ninguém. Sempre trabalhei.

 

- E que fazias tu se depois baixasses as médias ? - perguntou Jennifer. - A firma do papá não aceita colaboradores com médias baixas no curso. Não quero dizer que não aceitem um Cárter bonito de vez em quando, mas não é regra. Oh, querido, não compreendes que qualquer dia há-de ser «Burbank, Burrel, Archibald & Cárter»? Não é maravilhoso ?

 

- «Burbank, Burrell, Archibald & Cárter» - articulou Ted embevecido - sim, querida. Vou fazer tudo para isso, enquanto estou a tempo.

 

Roberta escutava, satisfeita, do outro lado da grade: o seu Ted nunca fora um rapaz de vistas curtas e não corria o risco de vir a sê-lo, agora. E afinal os Burbanks não os sustentavam sozinhos. Ela e Harmon também contribuíam com um avultado cheque todos os meses. Vezes houve que Roberta não escutou com a mesma satisfação. Uma noite Jennifer interrogou Ted acerca de Selena:

 

- Estiveste apaixonado por ela? - perguntou.

 

No seu esconderijo Roberta conteve a respiração enquanto a resposta de Ted tardava:

 

- Não - respondeu ele por fim,   e Roberta deixou escapar um suspiro silencioso - Andámos os dois por aí durante algum tempo mas é tudo.

 

- Ela é bonita?

 

- Sim, é.

 

- Mais do que eu ?

 

- Querida, nenhuma mulher no mundo é mais bonita do que tu!

 

- Roberta escutara desavergonhadamente o seu Ted fazer amor com a esposa e de uma vez teve pena dele. Jennifer devia ser, talvez, um pouco fria e, em certas alturas, parecia assustada mesmo, obrigando-o a gastar horas seguidas para a acalmar e convencê-la, por fim. «Com o Harmon as coisas não tinham corrido tão difíceis», lembrava-se Roberta, sorrindo no escuro. Restava-lhe a consolação de que essas coisas também não convinham em excesso a um rapaz que tem que passar a vida de volta com os livros. Felizmente que Harmon nunca fora estudante...

 

Em seis meses Roberta escutara as «crianças» atentamente e, de que tivesse a certeza, apenas três vezes Ted tivera relações com a esposa. Quando isso acontecera o seu Ted tinha aparecido exausto e pálido no dia seguinte. «Sim», pensava Roberta, «ainda bem que ela era fria».

 

Roberta nunca sentiu qualquer espécie de vergonha ou de remorso de espiar o Ted com a esposa. Ted era seu filho, o seu filho único, e achava-se no direito absoluto de velar por ele, de verificar que tudo corria na devida ordem. Se algo o apoquentasse, ela desejava sabê-lo; e se Jennifer tentasse afastá-lo da mãe, também lhe assistia o direito de o saber. Não se deu por satisfeita de verificar que durante todo aquele tempo Jennifer não fizera a mais ligeira crítica sobre a sua pessoa. Podia ainda vir a fazê-lo, quem lhe garantia o contrário?

 

- Hum! - exclamou Roberta ao entrar na   sala   de estar   encolhendo-se   exageradamente. - Vamos   ter   outra noite de frio. Ainda está a nevar. Já não abro as janelas hoje.

 

- Excepto   as   nossas - exclamou   Jennifer   sorrindo.

- Casei com um entusiasta do ar puro.

 

Harmon comentou:

 

- Quente ou fria vai-me saber bem a cama. Hum... Roberta aproximou o rosto do dele para que a beijasse.

 

- Não me demoro nada - disse.

 

Quando ela subiu as escadas eram dez horas e Ted jogava o gamão com Jennifer junto do lume. Às dez e meia, na altura em que atravessou o corredor a caminho da arrecadação, ainda distinguiu as vozes deles, lá em baixo. Roberta Cárter entrou no pequeno quarto, fechou a porta cuidadosamente e meteu-se sem ruído entre os lençóis quentes do acanhado leito. À meia-noite menos um quarto ouviu Ted acender as luzes do quarto ao lado.

 

Jennifer Burbank Cárter tinha vinte e dois anos de idade e nunca até ali - depois de seis meses de casada ousara despir-se diante do marido.

 

- Não é decente - dizia-lhe categórica.

 

Jennifer crescera rodeada de coisas e pessoas «decentes». Havia Burbanks em Boston quase há tanto tempo como Cabots e Lowells e os padrões de conduta da família não tinham variado de há duas centenas de anos. Uma senhora nunca deveria exibir-se - nunca.

 

De uma vez, Jennifer, quando tinha apenas doze anos, fora com a mãe fazer compras e numa das casas a rapariguinha observou uma moça esplêndida de cabelos loiros e lábios carnudos e vermelhos que mascava pastilhas elásticas enquanto observava uma vitrina com jóias de fantasia. Jennifer reparou nos seios da rapariga, erectos e enormes sob a blusa apertada, e deteve-se um pouco, a mirá-la.

 

A senhora Burbank ficou vermelha como um tomate quando reparou e agarrando-lhe pelo braço, disse-lhe:

 

- Nunca vi tão pretensiosa exibição de vulgaridade na minha vida! Lembra-te, Jennifer, só as mulheres reles se valem assim do corpo para impressionar.

 

- Mas, mamã...

 

- Não discutamos, Jennifer. Sabes que tenho razão. Quando tiveres mais idade hás-de compreender.

 

Depois disso Jennifer habituou-se a considerar o corpo apenas como uma coisa que é necessário manter limpa e oculta. Cresceu e um dia houve que a modista da mãe lhe tirou umas medidas. Não tardou que descobrisse aos pés da cama uma caixa contendo uma dúzia de corpetes de cetim e rendas. Mais tarde apareceu outra caixa com cintas para toilettes de cerimónia mas nunca houve, entre mãe e filha, a mais pequena referência a essas peças de vestuário íntimo.

 

Aos dezasseis anos, no último ano que passou numa escola de meninas «bem» de Boston, teve como colega de quarto uma rapariga chamada Anne Harvey. Anne era um ano mais velha que ela e o pai dirigia uma das maiores casas de câmbio do estado de Massachusetts.

 

Anne era exageradamente alta e musculosa mas tão alegre e sociável que as outras raparigas da escola nunca arriscavam o mais ligeiro comentário. Admiravam-na e nomearam-na capitã da equipa de voleibol e presidente da academia escolar. Todas queriam ser a «melhor amiga» de Anne mas ela escolheu Jennifer.

 

As duas tornaram-se inseparáveis. Iam juntas para toda a parte se bem que Jennifer nunca sentisse muito estáveis as suas relações com a amiga. Existia nela um espírito de competição assaz exagerado e Jennifer tinha a preocupação de nunca ultrapassar Anne no quer que fosse, porque Anne tinha dezenas de maneiras de lhe fazer ver que na escola existiam muitas outras capazes de dar um dedo das mãos para estarem no lugar de Jennifer.

 

Numa tarde de Primavera Jennifer estava só no quarto que compartilhava com Anne. Dispunha-se a mudar de roupa para um passeio quando a amiga entrou inesperadamente. Jennifer correu assustada em busca do roupão.

 

- Oh,   Anne - exclamou   a   gaguejar   de   embaraço.

 

- Não esperava por ti agora!

 

- Não te rales comigo, querida, - respondeu Anne.

- Venho apenas buscar um livro.

 

- Se soubesse que vinhas, ter-me-ia vestido na casa de banho, mas...

 

- Por amor de Deus, Jennifer - exclamou Anne com afectada exasperação. - Não é o fim do mundo ver-te nua. Somos ambas mulheres, ora.

 

Jennifer voltou-lhe as costas, confusa, e quando tentava vestir-se precipitadamente tropeçou no vestido e caiu.

 

- Tem cuidado! - exclamou Anne correndo para ela e agarrando-lhe os pulsos. - Magoaste-te ?

 

Jennifer nem podia mexer-se.

 

- Não - respondeu. - Não foi nada.

 

Anne, contudo, conservou-a segura pelos pulsos.

- Assustaste-te, mulher! - murmurou, observando-a.

 

Jennifer continuou imóvel mas manteve-se de costas para Anne enquanto a amiga lhe acariciava a pele macia.

 

- Que maravilhosa pele a tua! - murmurou-lhe Anne ao ouvido. De repente sentiu que as mãos dela a apertavam mais, quase magoando-lhe os pulsos.

 

- Larga-me! - gritou Jennifer enjoada. - Que disparate!

 

As mãos de Anne abrandaram a pressão mas os dedos não paravam de lhe acariciar a pele. Jennifer ouvia atrás de si a respiração cada vez mais intensa da amiga e notou, intrigada, que Anne tremia. Contudo, conservou-se imóvel como pedra e, sem compreender como, sabia que Anne estava a fazer um esforço terrível para a segurar e, ao mesmo tempo, acariciá-la.

 

- Oh, que bela que és! - exclamou Anne, e começou a soluçar. - Tão flexível, bem feita e bela!

 

Então Jennifer voltou-se. Afastou-se das mãos de Anne e correu a refugiar-se sob os cobertores do leito.

 

Anne aproximou-se e pôs-se de joelhos junto da cama, com os olhos molhados de lágrimas:

 

- Sim, meu amor, és tão bela! - repetia. - Tão bela! Subitamente   beijou-a na   boca,   num   longo   beijo   e quando levantou a cabeça, Jennifer fitou-a agastada:

 

- Por amor de Deus, Anne - protestou. - Não sejas tão nojenta!

 

Anne afastou-se do leito como se lhe tivessem batido e Jennifer levantou-se lentamente. Atravessou o quarto e foi buscar o vestido, mas não o vestiu. Deteve-se bem em frente de Anne, nua, e disse:

 

- Agora tenho que ir tomar banho outra vez - e dirigiu-se para a casa de banho com o vestido ao ombro.

 

Enquanto se lavava ouvia Anne a chorar. Voltou ao quarto enquanto se enxugava e observando-a a mirá-la vestiu-se devagar e cuidadosamente.

 

- Vou sair um pouco - disse, logo que acabou de se vestir. - Espera aqui e não vás jantar sem mim.

 

E Anne esperou. Não apenas nesse dia mas todos os dias seguintes, sempre que Jennifer estava disposta a dizer-lhe que esperasse. Esperava pelas raras ocasiões em que Jennifer permitia que lhe tocasse, aguardando pacientemente que a amiga se despisse para depois, a uma ordem dela, lhe escovar o cabelo, sentada nua em frente do toucador. Anne enchia-a de presentes e, na sua depravada vileza, prontificava-se gostosamente a satisfazer-lhe os inúmeros caprichos. Só uma vez se revelou:

 

- Não preciso de ti, não julgues! Há por aí muitas que gostariam de estar no teu lugar.

 

- É verdade ? - perguntou Jennifer franzindo o sobrolho- Muitas? Aqui na escola?

 

- Sim, aqui na escola.

 

- Hum. Miss Fenwick saberá disso ? Que pensas tu, Anne?

 

- Não me venhas com ameaças veladas - respondeu irritada. - Não te atreves a insinuar que serias capaz de lho dizer!

 

- Quem sabe ? - exclamou Jennifer. - Talvez seja, e talvez não. Depende. Não sou da tua espécie, sabe-lo muito bem. É melhor que procures outra. Não faltam por aí rapazes que também me acham atraente. E sempre são homens.

 

Anne estremeceu.

 

- Sei qual é a tua espécie - disse. - Não creio que sejas capaz de fazer o quer que seja com um homem, Jennifer. Prezas demasiado a tua virgindade e não creio que a troques por menos de uma aliança de casamento...

 

- Não sejas ingénua, querida - exclamou Jennifer com um sorriso malicioso. - Aprendi muito desde que te conheço. Li muitos livros, livros de todos os géneros. O homem é a criatura mais fácil de enganar que existe no mundo e não quero saber tanto da virgindade como tu supões, pela simples razão de que não vale a pena.

 

- Que   queres   dizer   com   isso ? - perguntou   Anne furiosa. - Já tiveste relações com algum homem ? - Agarrou Jennifer pelos ombros e sacudiu-a - Já? Responde!

 

- Tira as mãos de cima de mim, Anne! - exclamou Jennifer friamente. - Não tens nada com a minha vida. Não disseste que tinhas muitas que gostavam de ocupar o meu lugar? Pois então, some-te da minha vista!

 

- Oh, santo Deus! - gritou Anne. - Não disse isto para te ofender, querida! Perdoa-me. Não o disse por mal, Jenny. Diz-me que nunca conheceste um homem, querida, diz-me!

 

Jennifer repeliu o braço de Anne.

 

- Não. Não é verdade, pelo menos até agora. Mas não me aborreças com isso ou terei que arranjar maneira de saber se me falta alguma coisa...

 

Anne Harvey e Jennifer Burbank continuaram as «maiores amigas» durante o resto do ano na escola e, depois, no Verão seguinte, Jennifer encontrava-se frequentemente com ela. No entanto tinha sempre resposta para as miseráveis perguntas de Anne.

 

- Tenho   de   passar   a   sair   com   rapazes - disse-lhe Jennifer. - Que dirão de mim os meus pais se não saio com um homem de vez em quando, com a idade que tenho?

 

- Não, Jennifer! Não posso suportar que faças isso!

 

- Não sejas nojenta - respondeu Jennifer impaciente.

- Aborreces-me com essas baboseiras. Se ando com rapazes é porque sinto necessidade disso.

 

Quando, porém, Jennifer afirmava à amiga que nunca tivera relações sexuais com homem algum, Anne não sentia grande dificuldade em acreditar, já porque desejava ardentemente que assim fosse, já porque a própria aparência da amiga parecia confirmar as suas afirmações. Qualquer outra pessoa acreditaria, de resto. Nada de voluptuoso havia na aparência de Jennifer, nenhum desses sinais óbvios de que os homens andam à espreita. Não tinha os seios grandes, nem as ancas largas, nem a boca sensual, não era, enfim, o que eles chamam «uma boa peça».

 

Porém, como a maior parte das mulheres frígidas, Jennifer necessitava de homens e procurava-os. Não era, contudo, a luxúria que motivava o seu procedimento, senão o ódio. Para Jennifer o acto sexual não era uma coisa partilhada com alguém, uma comunhão de amor. Nada repartia com os companheiros, usava-os, apenas. No fim, repelia-os enjoada, desgostosa não de si própria mas deles. Conhecera o primeiro homem aos dezasseis anos, um pescador português, já passado dos quarenta, de grandes mãos calosas e rosto escuro e seco. Durante uma semana encontrou-se com ele na praia, todas as noites.

 

Depois dele foi uma série interminável de rapazinhos da escola, nos bancos traseiros dos seus automóveis. Nunca saía duas vezes com o mesmo nem sequer lhes falava mais. Depois daquilo, deixavam de existir.

Nem mesmo os colegas da escola que lhe apalpavam os seios acreditavam depois, reparando nela, que o tinham conseguido. Não porque Jenifer tivesse modos inocentes e virginais, mas o seu porte irrepreensível sugeria ao mais experiente tratar-se de uma rapariguinha que não seria capaz sequer de beijar um homem. De cabeça levantada, as feições correctas e distintas não deixava perceber o menor traço de grosseria, fazendo pasmar quantos a tinham conhecido no assento traseiro de um carro. Esta era Jennifer Burbank, sem nada de comum com aquela outra criatura desavergonhada, grosseira e reles das aventuras nocturnas pelas matas dos arredores.

 

Fora o pai de Jennifer quem a tinha apresentado a Ted Cárter. O Dr. Burbank tinha notado o excelente comportamento de Ted na Faculdade e considerava-o um dos mais prometedores alunos. O rapaz, um dia veio tomar chá com eles e Jennifer estudara-o pormenorizadamente. Reparou nos modos respeitosos com que ele se dirigia aos pais mas viu muito mais do que isso. Observando-o compreendeu que Ted seria precisamente o género de homem capaz de todos os sacrifícios para obter o sucesso com que sonhava. Sorriu satisfeita atrás da chávena e disse para si própria: «Bem, menino Ted, se é o que tu queres vamos fazer andar as coisas». O pensamento de quanto ele teria de pagar pelo triunfo pessoal dava-lhe desde já uma satisfação infinitamente maior do que a perspectiva imediata de um anel de noivado, enfim, de um salvo-conduto social.

 

O casamento foi anunciado algumas semanas depois. Na primeira noite da lua de mel, Jennifer experimentou com Ted todos os truques de sadismo de que usara com Anne. Repelia-o, deixava-o aproximar-se para o repelir de novo e só transigiu quando ele, exausto, lho suplicou humildemente; e então fez-lhe compreender que lhe ofertava algo de infinito valor. Ted, por isso, nunca suspeitou da virgindade da sua noiva nem muito menos que ela o atraiçoava algumas semanas mais tarde, depois do seu regresso das índias Orientais onde tinha passado a lua de mel. Ted nunca se atreveria, de facto, a suspeitar da filha do senhor Dr. Burbank e ela sabia-o. Jennifer sabia também que Ted não casara com ela, senão com o dinheiro do pai e, sendo assim, haveria de o ter bem seguro, saberia manejá-lo, estivesse ele certo.

 

- Deixa-me meter na cama antes de abrires as janelas, querido - disse-lhe. - Estes Invernos de Peyton Place são mais frios que os da Sibéria.

 

- Não abro as janelas ainda - respondeu Ted. - Não quero que te constipes.

 

- Mas olha que já é tarde, querido. E tu disseste que querias ir patinar amanhã de manhã.

 

Ted meteu-se na cama junto dela.

 

- Amanhã vou patinar, não esta noite - respondeu com uma ponta de malícia.

 

- Algumas vezes pareces insaciável - disse Jennifer a despropósito, sorrindo.

 

- Abre um pouco a tua boca, querida.

 

- Não!

 

- Eu obrigo-te.

 

- Não quero que me beijes assim. Não sei.

 

- Aprendes!

 

- Tens de me ensinar, então.

 

Sempre que o pobre Ted fazia amor com a esposa tinha que a seduzir primeiro, e, embora isso o excitasse, também lhe fazia perder a paciência. Perguntava a si próprio quando se resolveria ela a deixá-lo livremente, duvidando angustiado se alguma vez Jennifer viria a desejá-lo tanto como ele a desejava. Algumas vezes, quando estava só, lembrava-se saudoso de Selena - o modo como ela lhe abria os braços e a boca se lhe oferecia!

 

Quando, porém, estava com Jennifer não conseguia pensar em outra coisa que não fosse ela. Vira-se já obrigado a tomá-la à força, rasgando-lhe as roupas e segurando-a até ela ficar estendida no leito, nua e fatigada, à mercê dos seus olhos e das mãos dele. Dessas vezes dominava-o um sentimento de vergonha e, no fim, pedia-lhe que o desculpasse. Mas, num canto escuro do seu pensamento sentia, mau grado seu, que quanto mais difícil Jennifer se fazia mais ele a apreciava depois de a dominar pela violência. Era uma disputa sem palavras, ele procurando-a e ela repelindo-o, intimamente resolvida a enfurecê-lo, para que ele a possuísse como um animal selvagem. Nada, pois a enojava mais do que os pedidos de perdão que o ingénuo Ted lhe dirigia.

 

Jennifer usava camisas de dormir que a ocultavam do pescoço aos pés e Ted via-se obrigado a lutar diariamente para que a esposa condescendesse em despir-se. Jennifer parecia terrivelmente envergonhada de se mostrar e enovelava-se com as mãos, como uma avezita assustada, sempre que Ted lhe descobria os seios para os beijar.

 

- Não - gritava enquanto ele porfiava em lhe desabotoar a camisa. - Não faças isso. Apaga ao menos a luz, querido!

 

- Está bem, eu apago - articulava ele, engasgado.

 

- Ensina-me então isso de beijar com a boca aberta. Abre-me agora a boca, se és capaz!

 

- Anda cá.

 

Safava-se dos braços dele e compunha de novo a camisa.

 

- Não - respondia. - Hoje não me tocas. Ele puxava-a à força.

 

- Não sejas má - implorava. - Não sejas arisca. Jennifer ria-se na cara dele.

 

- Olhem para o grande Dr. Cárter a pedir-me favores. Deita-te, meu menino, que a mamã vai dar-te o biberão...

 

Ted saltava do leito e tirava-lhe os cobertores de cima.

 

- Espera, minha fêmea aluada...

 

Arregaçava-lhe a camisa por cima dos seios e cingia-lhe o corpo até a deixar cheia de marcas vermelhas. Ela suspirava de prazer.

 

- Agora   percebo,   minha   cabrinha! - disse-lhe   Ted uma vez. - Tu fazes de propósito! - e esfregou-lhe os lábios com força nos dela, segurando-a imóvel - tu gostas assim, à bruta!

 

Jennifer, então, revelou-se insaciável. O corpo estremecia-lhe convulsivamente e os olhos metiam medo de tão dilatados.

 

- Bate-me! - berrava   como   doida. - Corta-me!   Mata-me!

 

- É o que eu te devia fazer! - respondeu Ted - gostava de te matar aos poucos!

 

Chicoteou-a com o cinto nas costas até que as nádegas e as coxas ficaram cheias de vergões e depois, quando se enlaçaram no espasmo, os lábios estavam manchados com sangue dos ombros dele que Jennifer mordia furiosamente, até que desmaiou.

 

- Santo Deus, o que eu fiz! - exclamou Ted cheio de medo.

 

Começou a soluçar.

 

- Nunca mais te faço isto, queridinha, nunca mais. Meu Deus, não passo de um animal. Perdoa-me, Jenny, perdoa-me!

 

Adormeceu exausto logo a seguir e durante largo tempo Jennifer, acordada, sorriu no escuro. Apalpou os vergões que lhe ardiam nas coxas esfregando-se com os dedos repetidamente até que a dor abrasou intensamente o corpo, fazendo-lhe ranger os dentes de alto, no silêncio do quarto. Esperneou agitando convulsivamente o corpo nu de encontro aos cobertores, magoando-se e, quando sentiu os maxilares rígidos, acendeu-se-lhe entre as coxas doridas, de novo, o fogo do desejo.

 

- Outra vez! - exclamou sacudindo Ted. - Outra vez.

 

Ted, porém, não acordou. Dormia, excitado de novo, e procurou com a mão os seios de Jennifer. Por fim, ela adormeceu também.

 

No acanhado leito da arrecadação, Roberta cerrou os lábios num esforço desesperado para não chorar. Estava exausta de horror e do esforço ingente que fizera para se conservar calada, enquanto os observava.

 

«Eu sabia», pensou lacrimosa. «Eu sabia que esta maldita rapariga tinha qualquer coisa de estranho. É doida, a obrigar o meu pobre Ted a fazer tais barbaridades»!

 

«Ted nunca foi desse género de rapazes, foi sempre puro e sossegado. Santo Deus, que poderei eu fazer pelo meu filho?».

 

Esperou ainda mais uma hora e saiu do quarto para junto de Harmon, mas não conseguiu adormecer. Tremia-lhe o corpo de horror.

 

«É doida. Jennifer é louca. Dá cabo do pobre Ted. Tenho de fazer alguma coisa, mas o quê?». Quando, porém, o sol apareceu no outro dia, um dia cinzento e ameaçador, não encontrara ainda resposta às suas orações.

 

«Vou tentar recordar-me de todos os pequenos pormenores», pensou Allison MacKenzie enquanto o comboio fugia rapidamente da estação de Peyton Place. «Tudo deverá ficar bem definido, é claro, para que eu possa, quando for velha, recordar cada pequeno detalhe. Muitíssimas coisas nos acontecem que nós dizemos: «Nunca mais me esquecerei disto». Contudo, esquecemos. A imagem desfaz-se com o tempo e, por fim, resta-nos uma memória confusa de um pouco de tudo. Suponho que é por esta razão que há quem guarde jornais e revistas. Mas eu vou recordar-me de tudo, mais tarde, mesmo sem escrever um diário. Quando for velha lembrar-me-ei perfeitamente do dia em que deixei Peyton Place para assinar o contrato do meu primeiro livro».

 

Allison deitara-se tarde na véspera da partida e, mesmo à hora a que recolheu ao leito, sentia-se incapaz de dormir e permaneceu acordada durante largo tempo. Quando se chegou à janela do quarto, daí a pouco, os cumes das árvores cobertas de neve ofereciam já uma extravagante coloração de cor-de-rosa.

 

Para Este o céu tinha a cor de uma pálida rosa de Inverno. Allison respirou fundo o ar gelado e quase doce e julgou sentir-lhe o’ gosto com a ponta da língua.

 

Humedeceu os dedos e esfregou-os na camada ligeira de neve que cobria o vidro do exterior da janela. A neve colou-se-lhe às mãos e ela levou-as gulosamente à boca.

 

«Vai fazer sol e frio», pensou, «e nada há-de mudar durante a minha ausência. Tudo estará na mesma quando eu voltar».

 

Correu para baixo, e dirigindo-se à cozinha para fazer café, deteve-se enquanto colocava a cafeteira no fogão.

 

«Excepto eu», pensou subitamente. «Eu voltarei mudada. Não serei a mesma».

 

De um relance compreendeu quanto útil e importante seria olhar para tudo, agora, e fixar na memória tudo o que via. Sentou-se desajeitadamente à mesa da cozinha. A mãe tinha sempre uma toalha amarela sobre aquela mesa e um bule de cobre pintalgado de flores.

 

«Ela faz isto», pensou divertida, «para que nestes dias nublados tenhamos uma mesa cheia de sol. Nunca antes me tinha lembrado disto! E olha, na sala de estar as cores são brandas e moderadas para que nos apeteça recostar para trás e pôr os pés em cima da mesa, enquanto nos quartos o seu tom doce não ressalta à vista de quem precisa de dormir. Todas as cortinas são autênticas molduras. Tenho que me lembrar do aspecto que os objectos que me rodeiam me oferecem hoje».

 

O bico do gás produziu um ligeiro silvo e o café começou a correr para fora.

 

- Bolas! - gritou Allison de um salto.

 

- Em   que   nuvem   estavas? - perguntou   Constance entrando na cozinha. - Cheira a café por toda a casa.

 

- Estava   a   pensar   que   tenho   que   andar   depressa

- exclamou Allison.

 

- Senta-te e bebe o café descansada - disse Constance, sorrindo. - Faltam mais de duas horas para o comboio partir!

 

- Bom dia, famosa escritora - disse Mike Rossi entrando. - Bom dia, mamã do grande génio!

 

Constance beijou-o.

 

- Bom dia,   «Fala-barato-logo-de-madrugada-que-não-deixa-dormir-ninguém!»

 

- Já estás assim a esta hora ? - perguntou Mike. - Isto é que vai ser um dia!

 

- Isso vai! - exclamou Allison. - E tenho de me ir vestir.

 

- Tens que comer alguma coisa primeiro - disse Constance.

 

- Não sou capaz - objectou Allison. - Vou vomitar no comboio se me ponho a comer. Vamos, mamã, também tens que te vestir.

 

Mike e Constance levaram-na à estação.

 

- Para Nova Iorque ? - perguntou o Sr. Rhodes. - De ida e volta?

 

- Não - disse Mike.

 

- Sai mais barato de ida e volta - recomendou o Sr. Rhodes. - Quanto tempo é a demora ?

 

- De quem ? - perguntou Mike.

 

- De Allison, pois de quem havia de ser ? - exclamou ele. - Não é ela que vai ?

 

- É.

 

- A ver como se vende o livro, hein! -

 

- Então não leva a vida toda a vendê-lo. Fica mais barato o bilhete de ida e volta...

 

- Mas Allison pode querer vir de avião, de automóvel ou mesmo a pé, se lhe der na bolha.

 

- Não faz diferença. Se não voltar de comboio devolve-se a importância do regresso.

 

Está bem, pronto! - exclamou Mike exasperado. - Um bilhete de ida e volta para Nova Iorque. - Este sujeito fez-me andar por aí às voltas no dia em que cheguei a Peyton Place - disse Mike logo que saíram para a gare - e nunca o vi com bons olhos. Como diabo sabe ele o que a Allison vai fazer a Nova Iorque?

 

- Ora - disse Constance - toda a gente o sabe, admiras-te?

 

- Não - admitiu Mike. - Mas nunca consegui   descobrir como estas coisas acontecem. Se alguém arrota na Rua do Castanheiro em dois segundos a notícia já chegou aos ouvidos do moço de armazém da moagem de Leslie.

 

- Não sejas vulgar - disse Constance.

 

- Sei que o sou - respondeu Mike.

 

Allison estava distante e, de súbito, ouviu o silvo do comboio ainda longe.

 

«Vem agora a atravessar o rio», pensou, «e o arco da ponte recorta-se sombrio contra o céu. Neste momento

um passageiro deve ter olhado pela janela para o castelo de Samuel Peyton, lá no alto.

 

- Que castelo será aquele ?

 

- Então não conhece ? É o castelo de Samuel Peyton

- respondeu o condutor. - Foi dele que veio o nome à cidade de Peyton Place, lá adiante, vê?»

 

Allison conservava-se direita, ao frio, olhando e escutando até que os carris começaram a ressoar e o comboio surgiu da curva, correndo ao encontro dela através dos bancos da neve.

 

O condutor vinha sobre a plataforma entre duas carruagens, inclinado para fora, agarrado ao varão com uma das mãos enluvadas e um pé fora dos estribos. No boné reluzia uma chapa de metal com os dizeres: «Caminho de Ferro de Boston & Maine».

 

- Peyton Place! - exclamou. - Peyton Place!

 

A voz do homem pareceu ecoar através do longo túnel de neve e levantar-se à volta de Allison, dando-lhe uma sensação de inefável melancolia.

 

- Adeus,   querida - disse Constance. - Tem cuidado contigo e telefona-me logo que chegues!

 

Allison voltou-se para a mãe impetuosamente.

 

- Adeus,   mamã - disse   abraçando-a. - Sim,   telefono.- E voltando-se para Mike:

 

- Adeus papá... Mike beijou-a.

 

- Até breve, querida, boa sorte!

 

As malas estavam já sobre a plataforma e o condutor ajudou-a a subir.

 

- Olha não te esqueças de ir ao Saks buscar as minhas blusas - exclamou Constance. - Levas aí as medidas e as cores.

 

- PARTIDA!

 

«Volta para trás, Allison» - pensou ela tomada de súbito pânico. «Volta à tranquilidade de que desfrutas e segura-te a ela com ambas as mãos. Corre!» Estava sobre a plataforma e o comboio começara já a andar. A mãe acenava-lhe da gare, com o sol de Inverno a iluminar-lhe os cabelos doirados. «Salta, Allison! Corre!» Mike conservava um braço levantado abraçando Constance com o outro. «Sai, Allison!».

 

- Há lugares na carruagem da frente, menina - disse o condutor abrindo-lhe a porta.

 

E então já seria tarde. Allison sentou-se a uma janela e voltou-se rapidamente para acenar à mãe e a Mike.

 

- Não   te   esqueças   de   me   telefonar - gritava   ela ainda. - Adeus, querida!

 

Mas Allison já não podia ouvi-la, via apenas os lábios da mãe moverem-se e as mãos ainda a acenar. Então perdeu-a de vista à medida que o comboio aumentava de velocidade.

 

«Sono a menos e café a mais», pensou, «tenho que repousar». Mas não descansou enquanto não chegou a Boston e tomou o rápido de Nova Iorque. «Que ridícula incerteza»! censurava-se. «Como se eu fosse ausentar-me por dez anos em vez de dez dias, apenas. Nem sequer a neve terá tempo de se derreter e tudo estará, portanto, na mesma, absolutamente na mesma. Que disparate!»

 

Almoçou no vagão-restaurante e regressou ao seu lugar; o comboio deslizava velozmente, embalando a sua ansiedade e os seus receios.

«Vou para Nova Iorque», pensou alvoroçada. «Sou escritora, não uma qualquer, dessas que fazem histórias para revistas, mas uma romancista. Criei a minha posição!»

 

O nervosismo abandonara-a finalmente e repousou, enquanto contemplava a paisagem gelada correndo lá fora.

 

Lembrou-se do encontro que tivera com Norman Page, no dia anterior.

Tinham chocado um com o outro à porta do escritório de Seth Buswell.

 

- Mas disse que não vinha de tarde - disse Norman.

- Mas não ponho cá os pés. Isto tem de ser comemorado, Allison! Vamos para o «Hyde’s» que eu pago-te um café. É uma notícia maravilhosa a publicação do teu romance. Maravilhosa! Estou tão contente!

 

Atrás do vidro da janela do escritório, Seth Buswell olhou para o relógio e fez um ameaçador gesto de «venha cá» ao rapaz. Allison deitou-lhe a língua de fora e Seth ficou-se a rir. Atravessaram ambos a rua e dirigiram-se para o restaurante.

 

Norman Page fartara-se das muletas e Peyton Place em peso maravilhara-se de tão prontas melhoras:

 

- Tem sete foles, o rapaz - diziam.

 

- Parece! Ninguém diria que foi ferido na guerra.

- Deve ter sido uma coisa terrível, esse ferimento!

 

- Talvez. Mas pôs-se bom num abrir e fechar de olhos. Anda como qualquer de nós!

 

Quando Peyton Place falava de Norman, o Dr. Matthew Swain e Seth Buswell afastavam-se da conversa, não ousando sequer olhar um para o outro com receio de traírem o terrível segredo que compartilhavam com ele e a mãe, Evelyn.

 

- Com Evelyn - dizia Seth à socapa para Matthew podemos nós estar descansados, que nunca se descai. Tantas vezes repetiu essa patranha, a tanta gente e durante tanto tempo, que ela própria está convencida de que o seu Normanzinho foi mesmo baleado na guerra...

 

- Quanto menos se falar da coisa, melhor - respondeu o médico.

 

Norman Page não recebera qualquer ferimento nas pernas durante a guerra. Na verdade tinha ficado isento do serviço militar como psico-neurótico e a mãe fizera sozinha a viagem para Nova Iorque a fim de o trazer para casa. Fora buscá-lo directamente ao Hospital Militar e metera-o num hotel antes de regressar a Peyton Place para o industriar sobre o que deveria fazer e dizer de regresso à sua terra natal. Norman fora gravemente ferido na guerra, com a perna direita praticamente desfeita com um tiro. Teria que praticar no uso das muletas que lhe comprara e nunca enquanto vivesse iria dizer a alguém deste mundo que tinha sido licenciado como psico-neurótico, ou por outra qualquer razão que não fosse o ferimento da perna. Norman protestara energicamente e ela gritara-lhe:

 

- Queres que toda a gente de Peyton Place te chame doido? Pensa em mim, Norman. Poupa-me esse desgosto!

 

E Norman, fraco como sempre, doente, fatigado e «ferido» tinha regressado a Peyton Place como um herói.

 

O médico percebeu imediatamente que nada de especial havia com a perna de Norman. Confiara ao amigo Seth as suas suspeitas e ambos se tinham posto imediatamente em contacto com um médico do exército, velho amigo e colega de Matthew. Assim, descobriram toda a verdade e fizeram tudo o que puderam para proteger o pobre rapaz. Nada de fotografias do herói de Peyton Place no jornal de Seth, não fosse algum outro jornal reproduzi-las.

 

- Se tal acontecesse seria facilmente reconhecido por algum colega - lembrou Matthew Swain.

 

Assim a lenda de que Norman era um herói persistia ainda em Peyton Place. Norman começara por substituir as muletas por uma simples bengala e, por fim nem esta sequer usava já, não deixando por isso de caminhar direito e firme. Evelyn Page estava tão convencida da verdade das suas mentiras que, sempre que o tempo mudava, perguntava ansiosa ao filho: «Como vão as tuas pernas?» Norman respondia naturalmente: «Fixes, mamã».

 

- Fala-me do teu livro - pediu, enquanto Corey Hyde colocava duas chávenas de café diante deles.

 

- Não há muito para contar, em boa verdade, - respondeu Allison. - Fiz a revisão completa do livro que escrevi em Nova Iorque antes de regressar a Peyton Place e agora o meu agente conseguiu vendê-lo. Parece muito simples, contado assim.

 

- E quem? - perguntou Norman. - Quem o comprou?

 

- A casa de Lewis Jackman & C.°, de Nova Iorque.

 

- Nunca ouvi falar dela - disse Norman - mas isso não quer dizer nada, claro.   De editores conheço apenas Lippincott, de Filadélfia e Little Brown, de Boston.

 

- Jackman é uma casa pequena-disse Allison.-Brad, o meu agente, Bradley Holmes, diz que ainda é melhor pois tem mais tempo para imprimir o meu livro.

 

- E esse teu livro é sobre quê, Allison ?

 

- Bem, é sempre difícil dizer qual o assunto de um livro... Fala de uma pequena cidade e da vida dos seus habitantes. Uma cidadezinha   do Norte   da Nova   Inglaterra...

 

- Como Peyton Place, talvez...

 

- Sim, se quiseres-respondeu Allison defensiva.-Mas posso-te garantir que a cidade de que fala O Castelo de Peyton é uma cidade como qualquer outra por aí.

 

- E como   sabes   tu assim tanto a respeito do que vai nas pequenas cidades ? - perguntou Norman, positivo.

- Nunca viveste senão em Peyton Place...

 

- Não sejas idiota, Norman - disse Allison aborrecida. - As cidades pequenas   são todas iguais,   sem tirar nem pôr.

 

De súbito foi como se ambos tivessem recuado aos tempos de infância, quando andavam na escola e se sentavam nos bancos à beira do Connecticut, discutindo pessoas, livros e palavras:

 

- Recordas-te,   Norman? - perguntou Allison gentilmente. - Recordas-te quando um dia te levei ao meu esconderijo secreto, lá para os lados do fim da estrada?

 

- Se   me   recordo...-respondeu   Norman   em   voz baixa. - Recordo-me bem, Allison.

 

- Tu beijaste-me...

 

- Sim.

 

Allison animou-se e sorriu.

 

- Bem - disse - não vale a pena falarmos em segredo disso. Foi há tanto tempo...

 

- Tu usavas rabo de cavalo - murmurou ele como se Allison   nada tivesse   dito - e os malmequeres   faziam-te sombras amarelas na cara...

 

- Tenho que me ir embora - disse Allison. - Amanhã vou para Nova Iorque e ainda me falta arranjar um milhão de coisas...

 

- Sim - disse Norman. - Claro. - Os olhos humedeceram-se-lhe   de   lágrimas. - Boa   sorte,   Allison.   Não   te esqueças de voltar para junto de nós, depois.

 

Allison inclinou-se sobre a mesa e pousou as mãos nas dele.

- Nunca me esquecerei de vocês, Norman - murmurou meigamente. - E hei-de voltar.

 

A caminho de casa, Allison perguntava a si própria se o triunfo teria já começado a mudá-la. Os malmequeres do fim da estrada, o beijo de Norman, tudo parecia tão remoto e infantil! Era um outro mundo; e ela era agora uma criatura absolutamente diferente, não já a pequena Allison feita mulher mas outra, uma nova Allison. Por vezes sentia a impressão de que se criara a si mesma tal como criara as personagens de O Castelo de Peyton.

 

O comboio sacudiu-se numa curva e Allison bateu com a fronte no vidro da janela.

 

- Nova   Haven!   Nova   Haven - exclamou   o   condutor. - Nova Haven!

 

«Santo Deus», pensou ela levantando-se e passando a mão pela testa, «ainda falta tanto!» Ajeitou a saia e acendeu um cigarro, tentando tirar da boca o mau gosto de ter dormido.

 

«Detesto ver esta neve espezinhada e cheia de manchas negras», pensou de mau humor, enquanto o comboio ganhava de novo velocidade. «Diabo, dói-me a cabeça».

 

Dirigiu-se ao toucador e engoliu duas aspirinas com um pouco de água e regressou ao seu lugar. Desfolhou desinteressadamente uma revista. Trazia uma das suas histórias: Mariana Disse Talvez. Completa com uma ilustração a quatro cores. Leu-a do princípio ao fim e atirou com a revista para debaixo do banco.

 

«Que viagem mais escusada!» - pensou aborrecida. Mas nisto os olhos avivaram-se-lhe. «Não. Desta vez sou uma escritora, tudo vai ser diferente comigo. Agora, quando alguém de Peyton Place quiser saber como eu ganho a vida, responderei que escrevo e já não falarão mais no caso».

 

A notícia da publicação do romance de Allison tinha chegado rapidamente a Peyton Place. Allison reclinou a cabeça no encosto do assento e, sorrindo, imaginou os comentários :

 

- A Allison MacKenzie foi para Nova Iorque e dizem que escreveu um livro!

 

- Ouvi dizer que um tipo de lá se encarregou de o publicar.

 

- Quem é o fulano ? Talvez aquele figurão do Neu> York Times.

 

- Hum, não sei. Um destes tipos que trabalham a vender livros.

 

- E de que fala o livro da Allison?

 

- Também não sei. Chama-se O Castelo de Peyton e suponho que é qualquer coisa relacionada com o castelo lá de cima.

 

- Sim, parece. Tem jeito.

 

- O que não me parece é que possa haver alguém capaz de escrever um livro inteiro sobre um maldito negro que casou com uma branca e o diabo por aí fora.

 

- Realmente é para admirar.

 

- Bem, a Allison MacKenzie, não me admira: sempre teve inclinação para tirar coisas da cabeça.

 

- Pois sim. Uns chamam a isso escrever, outros mentir. Veja qual é mais verdade.

 

- Quando uma pessoa inventa coisas e escreve um livro a respeito delas já não se chama propriamente dizer mentiras, acho eu.

 

- Para mim é o mesmo.

 

- Na, que não é: escrever é o que se chama uma arte criadora...

 

- Olha para ele!   Onde diabo foste tu desencantar palavras tão finas?

 

- Elise Thornton, a professora, é que me disse isto, palavra de honra! Diz que escrever é arte, como pintar um quadro.

 

- Mentir, uma arte! Allison foi sempre uma grande mentirosa.

 

- A mim o que me parece - acrescentou Clayton Frazier para mudar a conversa - é que nenhum de vocês percebe nada do assunto. Vocês a discutir livros! Ninguém aqui viu um livro há menos de trinta anos!

 

- Mas o de Allison hei-de lê-lo.

 

- Também eu.

 

- Conversa,   conversa - resmungou   Clayton   Frazier. Allison sorria e um rapaz sentado defronte dela sorriu também e ofereceu-lhe cigarros.

 

- Não, obrigada.

 

- ESTAÇÃO CENTRAL, A SEGUIR - gritou o condutor.

 

Allison pôs-se de pé de um salto e ajeitou o vestido. Quando o comboio parou foi uma das primeiras pessoas a sair e levou ela própria as malas só para não estar à espera de que algum dos funcionários viesse ao seu encontro. Quando chegou ao vestíbulo principal doíam-lhe os braços. Deteve-se ao avistar Holmes que vinha ao seu encontro.

 

«Pensei que já me tinha esquecido da cara dele», recordou-se alarmada! «Mas afinal não esqueci. Vou ver se consigo passar sem que ele me veja»!

 

Voltou-se e baixou os olhos mas era tarde: Brad tinha-a descoberto.

 

- Olá, querida! - exclamou. - Pensei que nunca mais voltavas!

 

- Olá,   Brad! - respondeu   Allison   com   a   voz   trémula.- Aqui estou!

 

Lewis Jackman era um homem alto e magro de quarenta e cinco anos. Tinha um rosto cavernoso e duro e cabelos negros e macios. A voz era extremamente grave e doce e Allison comparava-o a Abraão Lincoln, em novo.

 

Havia na sua fisionomia qualquer coisa de estranho e cativante, de juvenil e melancólico.

 

Lewis olhava-a com os olhos negros e perscrutadores:

 

- Sabe, menina MacKenzie, depois de vinte anos passados a falar com autores e a ler manuscritos, adquiri, creio, um pouco daquela habilidade que me permite fazer uma ideia do escritor através da sua obra. Devo, porém, confessar-lhe que desta vez falhei redondamente!   Não fui capaz de imaginar o género de pessoa que iria conhecer. Há no seu livro uma energia e uma curiosidade irrefutavelmente juvenis; mas há, também, um longo rosário de experiências vividas. Agora, que a vejo, tudo o que posso dizer é que me sinto ainda mais desnorteado. E, claro, orgulhoso de ser eu o editor de uma obra tão notável, menina MacKenzie.

 

- Obrigada, senhor Jackman - respondeu Allison.

 

- Preciso,   contudo,   de fazer uma análise completa, página por página, com a sua colaboração e muito gostaria que essa análise fosse realmente perfeita.

 

Começou a folhear o manuscrito - essas páginas tão familiares a que ela dera toda a sua vida.

 

- É que - continuou ele - há algumas pequenas alterações a fazer, que, segundo creio, darão ao livro maior unidade.

 

- Alterações ? - exclamou   Allison   voltando-se   para Brad. - Não me falaste que tinha de fazer alterações - protestou.

 

- Sabes, não é hábito um editor sugerir alterações. Jackman tem muita experiência, podes confiar nele.

 

- Mas que alterações ? - perguntou Allison dirigindo-se a Jackman.

 

Ele folheou algumas páginas e Allison sentiu vontade de o esbofetear. Era como se o livro fosse um filho seu e Jackman o tratasse com desprezo.

 

- Há certas passagens, menina   MacKenzie,   onde   o seu livro soa um pouco forçado, não sei se me compreende...

 

- Não, não compreendo, senhor Jackman - exclamou Allison.

 

Jackman colocou uns óculos enormes e negros sobre o nariz:

 

- Aqui, por exemplo - disse. - No capítulo catorze temos um pobre demente que se enforca. Não está mal mas creio que melhor estaria se eliminássemos alguns pormenores excessivamente mórbidos. Não acho necessário descrever com tanto realismo o corpo a balouçar na extremidade da corda, e tão-pouco o aspecto do cadáver, com a língua estendida e os olhos fora das órbitas, etc. E isto porque, além de ter sido descrito imensas vezes, não é, a meu ver, de muito bom gosto...

 

Allison deu um pulo.

 

- Não me importa se isto foi descrito em todos os livros que se publicaram até hoje nem muito menos o que o senhor considera mau gosto. Acontece que o que escrevi sucedeu realmente assim, seja de bom ou mau gosto!

 

- Menina MacKenzie - disse Jackman - creia que compreendo perfeitamente   o   seu   estado   de   espírito.   Todos os autores pensam o mesmo do seu primeiro livro. É como se eu lhe tratasse mal um filho, não é verdade?

 

Allison sentou-se.

 

- Como o sabe ? - perguntou.

 

- Tenho publicado livros - respondeu Jackman   sorrindo. - Ouça, Allison. Posso chamar-lhe Allison, simplesmente? Allison, não vou pedir-lhe, como de resto nunca pedi a ninguém, que faça alterações com o que não concorde inteiramente. Penso, no entanto, que se pudéssemos conversar um pouco sobre estes pormenores insignificantes conseguiríamos não só fazer deste trabalho um bom livro mas um livro expeccional. Podemos tentar?

 

Allison concordou, um tanto envergonhada pela sua atitude infantil.

 

- Muito bem - disse. - Vamos a isso!

 

Passaram o resto da tarde discutindo pormenores. Em muitos casos Allison recusou-se a ceder e Jackman teve que concordar. Vezes houve que Allison perdeu a paciência e Brad teve que intervir.

 

- De quem é o livro, afinal? Se vocês sabem tão bem de livros porque não escrevem um?

 

Mas, não obstante isso, a tarde correu bem. Allison e Jackman assinaram, finalmente, o contrato e logo que saíram, Brad disse-lhe:

 

- Preciso de uma bebida!

 

- Vamos beber,   então - respondeu ela. - Eu pago!

 

- Não pagas nada - respondeu Brad pegando-lhe no braço. - Não deixes que o dinheiro te suba à cabeça, rapariga. Ainda tens muito que esperar por outro cheque.

 

- Esperar ? - perguntou Allison enquanto ambos admiravam o crepúsculo maravilhoso de Nova Iorque. - Quanto tempo pensas que levará Jackman a publicar o livro?

 

- Nos fins de Abril, talvez. Tens o resto do Inverno todo para fazeres as correcções que combinaram. Sim, talvez em Abril.

 

- Tanto   tempo! - exclamou   Allison   decepcionada.

- Pensei que não fosse tanto. Não demoro muito a fazer as correcções...

 

- No entanto conta com Abril - respondeu Brad. - Se for antes, tanto melhor.

 

- Onde é que vamos?

 

- Ao Oak Bar, do «Plaza» - respondeu Brad. - É já ali. Allison, não compreendo por que motivo não quiseste hospedar-te num hotel. Não podes passar o resto da vida a viver num apartamento acanhado a abarrotar de gente.

 

- Para mim, serve, Brad - respondeu Allison. - Sinto-me muito bem onde estou e gosto da companhia de Steve Wallace.

 

- Steve, - troçou Brad - que ridículo nome para uma rapariga! Estarias muito melhor aqui, no «Plaza».

 

- Fica perto   da Stephanie e envergonho-me - disse Allison sorrindo. - Além disso não gosto de morar sozinha em hotéis.

 

Sentaram-se lado a lado numa poltrona de pele, ao fundo de uma sala recolhida e luxuosa. Brad ergueu o copo e brindou:

 

- Ao teu sucesso, querida. Que seja maravilhoso tudo aquilo que te acontecer!

 

- Obrigada! - respondeu Allison, bebendo. Pousou o copo e olhou à sua volta. - É uma linda sala!

 

- Sim, - respondeu   Brad. - Devíamos   beber   antes champanhe, mas estou a guardá-lo para depois...   Hei-de levar-te ao «21»!

 

Allison não respondeu.

 

«Um homem sem nervos», pensou. «Procede como se fòssemos apenas velhos amigos, como se nada tivesse havido entre nós». Allison sentia as faces afogueadas só de se lembrar do modo como se tinham conhecido. Tremia-lhe a mão quando, de novo, levou o copo aos lábios.

 

Via o Brad a beijá-la. Censurando-a por o fazer como uma criança e ensinando-a como uma mulher deve beijar. Brad a despi-la, a olhá-la, a fazê-la desejar que ele a devorasse com os olhos. Brad com as palavras de sedução nos lábios e uma técnica de amar tão perfeita e experimentada que o simples toque dos seus dedos era já uma perversão. E ela, já sem a vergonha do primeiro contacto, já sem dor e sem receio, a querê-lo mais e mais vezes, a apertar-se contra o corpo dele, a acariciá-lo - tal como ele lhe ensinara - até que Brad, de novo ardente de desejo, a tomava outra vez. E as palavras de amor que lhe dirigia até que ele, subitamente, disse uma coisa que a fez despertar brutalmente para a realidade: «Sou casado, Allison, não sabias?».

 

O copo de Allison estava vazio e Brad fez um sinal ao criado.

 

- Queres jantar comigo, Allison?

 

- Não - respondeu   ela   prontamente. - Hoje   não posso, tenho um encontro. Oh, Brad! Estou atrasada!

 

- Já pedi outra bebida para ti, de modo que esperas só um minuto. Com quem vais jantar?

 

Allison exasperou-se de súbito com a fleuma de Brad.

 

- Com David Noyes - respondeu.

 

- Ah, sim, o David - disse ele sorrindo. - Sabes que depois da tua última estadia em Nova Iorque o David não parava de me telefonar. Parecia completamente transtornado e queria que eu lhe dissesse se sabia a razão da tua partida para Peyton Place.

 

- E tu que lhe disseste ? - perguntou Allison queimando-o com os olhos.

 

- David Noyes - murmurou Brad como se não a tivesse ouvido - um grande talento, esse rapaz. É pena que o trabalho não lhe renda muito, coitado. Mas enfim, nem tudo pode correr bem a um homem...

 

- Que lhe disseste ? - repetiu Allison.

 

- Que lhe disse? - exclamou Brad. - Que havia eu de lhe dizer? Disse-lhe que estavas farta de Nova Iorque e ias para casa, descansar um bocado.

 

Allison ficou furiosa.

 

- Muito obrigada, Brad - disse. - Mas não é preciso teres tanto cuidado com a minha reputação. Eu própria contei ao David tudo o que se passou entre nós. Escrevi-lhe uma carta.

 

- Oh! - exclamou Brad soprando a bebida. - E que disse o teu jovem ciumento a respeito disso?

 

- Como podes tu proceder assim, Brad - perguntou Allison com a voz trémula - como se nada tivesse acontecido entre nós?

 

- E que foi que aconteceu, afinal ? Que foi, Allison, tão terrível que estejas agora a tremer, quase a explodir de raiva ? - perguntou Brad deixando de ser amável e sorridente, tão irritado, quase, como ela. - Pois eu vou dizer-te o que «aconteceu»: perdeste a virgindade e transformaste-te numa mulher adulta!   Perdeste todas essas lindas ilusões que trazias na cabeça sobre o sexo e deixaste de pensar nele vinte e quatro horas por dia. Passaste a ser uma escritora

- encontraste a realidade. Tens algo de que te lamentar ? Não, Allison! Ganhaste muito mais do que perdeste.

 

- Odeio-te,   Bradley - murmurou   Allison   secamente.

- Odeio-te!

 

- Não, não creio - respondeu Brad pousando-lhe a mão no braço para evitar que ela se fosse embora. - Sentes-te insultada só porque eu não colhi a flor da tua virgindade como uma pérola de valor inestimável, mas não me odeias. Nunca me poderás odiar, Allison. Pelo contrário, ainda me amas e eu ainda te amo e entre nós as coisas ficarão assim, para sempre. Ainda temos as nossas próprias razões.

 

- Tenho   que   sair   já - interrompeu   Allison   impaciente. - Deixa-te estar, eu tomo um táxi.

 

- Não penses nisso, eu vou contigo.

 

Enquanto atravessava o vestíbulo do «Plaza», Allison reparou nas belas mulheres, magnificamente vestidas que conversavam tranquilamente nas poltronas. Estavam perfeitamente à vontade, no próprio elemento. Lugares como aquele faziam parte da rotina do seu dia a dia. Para elas nada havia de maravilhoso e de exótico em ir ao «Plaza» beber qualquer coisa. «Serei eu alguma vez assim?».

 

Desciam as escadas quando o porteiro abriu a porta de um Rolls-Royce. Saiu dele uma mulher envolta num longo casaco de peles que deixava ver apenas uma das mãos, enluvada. Era a mais bela mulher que Allison vira alguma vez. Passou junto de Allison, ignorando-a. Se não fosse o perfume tê-la-ia tomado por um fantasma.

 

Brad tocou no braço de Allison.

 

- Rita Moore, a actriz - segredou-lhe ele. Depois sorriu e esperou a reacção de Allison, enquanto esta observava de soslaio a famosa artista.

 

- Não demorará muito, Allison - disse ele - que te dês com pessoas do género de Rita. E dois meses depois dirás que as celebridades te enjoam...

 

«Não acredito», pensou Allison ao entrar no táxi, «as Ritas Moores estão uma eternidade afastadas de mim. Estou morta e sepultada na minha obscuridade».

 

Nessa mesma noite jantava com David Noyes num canto recolhido de um pequeno restaurante de Greenwich Village. Tinha vestido simplesmente uma saia e um casaco de malha e David trazia uma camisa de género desportivo. Tinham escolhido aquele restaurante porque Allison sentia-se farta de se vestir de cerimónia e conviver com gente elegante, depois de ter passado a tarde com Bradley e Lewis Jackman.

 

- Ora vejamos - disse David ao entrar no apartamento de Steve Wallace, pegando no envelope que Allison levava.

 

Allison estendeu-lho. O envelope continha uma cópia do contrato que tinha assinado naquela tarde.

 

- Olá,   menina! - exclamou   Steve. - Estás   morta! Entra que eu vou preparar-te um duche quente. Precisas de molho. Contratos, hein?

 

Allison mergulhou gostosamente debaixo da água tépida e perfumada e sentiu os nervos acalmarem-se-lhe. Pensou na expressão amargurada de Lewis Jackman e nas palavras ásperas e contundentes de Brad. Poderia a vida ser reduzida à equação materialista de Brad? Pensava que não.

 

- Allison - gritou David da casa de banho. - É maravilhoso! Digas o que disseres de Bradley Holmes, ainda não há como ele para desencantar contratos. Anda daí, preciso de te falar!

 

- Mas   não   me   apetece   falar,   David - respondeu Allison. - Apetece-me ir jantar a qualquer parte,   a um restaurante pequeno e modesto onde não tenha que ir bem vestida e possa beber uma garrafa de vinho. Depois, talvez me apeteça falar. Steve pode ir connosco?

 

- Não - respondeu David. - Hoje anda a entreter um dos seus amigos dos arredores...

 

- Vai-te   matar! - respondeu   Steve   arremessando-lhe uma revista.

 

Allison saiu da casa de banho metida no roupão de Steve e com uma toalha enrolada à cabeça.

 

- Não podes vir connosco? - perguntou-lhe.

 

- Não, minha jóia. Tenho de facto um encontro. Mas este não é dos arredores - disse Steve. - Diz-me que vai fazer de mim a maior estrela da televisão. Não acredito uma palavra dele, claro, mas o tipo é sócio do «El Marocco» e que hei-de eu fazer?

 

Allison acabou de saborear o último pedaço do frango e inclinou-se para trás na poltrona estofada. O candeeiro sobre a mesa deitava um ligeiro fio de fumo e as vozes das outras pessoas sussurravam à sua volta. A alegria do seu triunfo era tão intensa que a fazia sentir-se isolada e intangível.

 

- Nunca pensei que tivesse tanta fome - disse sorrindo a David.

 

David encheu-lhe o copo de vinho.

 

- É maravilhoso, não é? - disse. - Não há outro prazer que se lhe compare, excepto o de ter na mão um exemplar do nosso primeiro livro. Mas assinar um contrato de publicação é qualquer coisa de novo para ti. - Sorriu e levantou o copo. - Já fiz isso quatro vezes - acrescentou - e sinto sempre a mesma estranha sensação.

 

- Faz-me   sentir   prestável - disse   Allison,   tentando encontrar a palavra mais adequada para descrever precisamente o que sentia. - É como se as pontas soltas do fio da minha vida se tivessem apertado num primoroso nó...

 

- E a respeito de alterações?

 

- Não houve, afinal, alterações essenciais, de importância. Brad pensa que Jackman publicará o livro até à Primavera.

 

- Rever um original é o trabalho mais danado deste mundo! É como se nos obrigassem a fazer uma viagem através de locais onde não desejássemos voltar, onde tudo é árido, cheio de lixo.

 

- Não penso o mesmo, David - disse Allison sorrindo. -- Tu pensas assim porque és um génio. Eu não. Sou medíocre e, por isso, acho-me satisfeita com o fraco trabalho que fiz.

 

- Deixa-te   de   modéstias - respondeu   David. - Não és medíocre e, se o fosses, nunca o confessarias. Esse é o trabalho dos críticos.

 

Allison pousou o copo e fixou vagamente as pequenas chamas alaranjadas das velas. O entusiasmo abandonava-a, mas sentia-se preparada para perdê-lo, sabia de antemão que ele não duraria muito tempo. Ao passo que a euforia dos primeiros momentos se dissipava - «como se a transpirasse pelos poros», pensou - surgiam as dúvidas.

 

- Algumas vezes assusto-me, David.

 

- Todos nós nos assustamos.

 

- E se ninguém compra o livro ? E se ninguém gosta dele, mesmo que o compre?

 

- Nesse caso nada mais tens a fazer do que tentar de novo. - Deitou-lhe mais vinho no copo. - Anda, bebe e não te apoquentes. Estamos a comemorar no fim de contas. Não te apetece ir ao cinema, ou a qualquer lado?

 

- Não - respondeu Allison. - Fiquemos antes aqui, a conversar.

 

- Sou uma alma caridosa. De que vamos conversar, então ?

 

- Não   importa - respondeu   Allison. - De   qualquer coisa, de tudo.

 

- Já te esqueceste do Brad ? - perguntou David. Allison pegou num cigarro.

 

- Suponho que nada tenho a esquecer - respondeu.

- Começo por nunca o ter amado.

 

Mas Allison podia verificar, pelo modo como o coração se lhe apressou, que mentia, que não o esquecera ainda. A recordação do que tinham passado juntos ainda tinha força para a perturbar.

 

- Foi isso que ele te disse?

 

- Não. O que ele disse foi que eu ainda o amava um pouco e também ele a mim.

 

- Histórias! - exclamou David. - Esse Brad pode ser um bom agente mas é o maior farsante que há em Nova Iorque!

 

- Por ter dito o que disse ?

 

- Ama-te, o Brad! - exclamou David exasperado. - Lá que lhe apeteça dormir contigo ainda uma ou duas vezes, concordo, mas o amor dele não passa daí.

 

- Pára   com   isso - respondeu Allison esmagando   o cigarro entre os dedos. - Não quero falar desse assunto.

 

- Porquê ? - perguntou David. - Magoa-te ? Envergonha-te? Dá-te vontade de fugir?

 

- Não - exclamou Allison. - Não   digas mais uma palavra.

 

- Não posso calar-me assim tão facilmente, Allison murmurou David desesperado, em voz baixa. - Tenho que saber o que há acerca de mim, sabes bem. - Afastou o cinzeiro e fixou nele os olhos, como se procurasse no fundo cromado. - Há muito que eu espero, Allison. Preciso terrivelmente de saber!

 

- Hoje não, David. Vamos sair daqui.

 

«Ainda não estou pronta», pensou Allison. «Brad é como um veneno lento que me anda cá dentro. Tenho primeiramente que me libertar dele. De outro modo não poderei amar outro».

 

- Fiquemos um pouco mais tempo, - respondeu David.

- Arrumemos o assunto.

 

- Qual assunto?

 

- O nosso. Tu e eu.

 

- David, pelo amor de Deus deixemos agora as coisas no pé em que estão. Será que não podemos continuar a ser apenas amigos, como dantes?

 

- Há quanto tempo to disse, Allison. Há dois anos. E continuo a gostar de ti. Não pretendo ser mais um malfadado amigo teu: quero-te e quero-te como tu és, haja o que houver. Quero casar contigo mas, se não quiseres, quero que sejas minha, mesmo assim.

 

- Oh, David - suspirou ela. - Estou tão fatigada que não consigo pensar. Vamos para casa!

 

Estenderam-se enlaçados sobre o sofá do apartamento de Steve. Allison repousou a cabeça no ombro de David e afagou-lhe os cabelos.

 

- David?

 

- Dize.

 

- Beija-me!

 

Ele pegou-lhe no rosto com ambas as mãos e aproximou-o dos lábios. Começou a beijá-la, docemente, cuidadosamente, como se tivesse receio de a amedrontar e Allison pôs-lhe os braços à volta do pescoço. David procurou a língua dela com a sua e pousou-lhe a mão nos seios, afagando-lhos. De súbito Allison começou a beijá-lo sofregamente. Abriu os lábios e apertou-os contra ele, deixando-se cair, lentamente até ficar estendida. Os dedos de David acariciavam-na com ímpeto, agora, sob o casaco de malha.

 

- Mas   não   aqui,   querida - murmurou-lhe   ele   ao ouvido. -   não hoje: mais tarde, quando estiveres livre, segura.

 

- Mas eu estou livre! - mentiu Allison, desejosa agora de que ele a possuísse. Queria-o precisamente como um contraveneno para afastar Brad, para ter um pretexto.

 

- O que tens é dó de mim, apenas - disse David.

 

- Não é isso que eu quero.

 

Allison levantou-se e abotoou o casaco.

 

- Irra, David! - exclamou exaltada. - Deixa-te de me dizer o que eu penso e não penso e o que devia pensar!

 

- Jogo tudo por tudo,   Allison - respondeu David.

 

- Quero-te inteiramente, toda ou nada! Quero que te dês sem receio, sem que estejas a pensar no fantasma do Brad.

 

Allison rompeu a chorar.

 

- Faz-me um favor, David! - soluçou. - Espera mais algum tempo. Só uns dias mais, talvez.

 

- Espero, querida. É um velho hábito meu, esperar.

- Abraçou-a e continuou: - Vamos, Allison, deixa de chorar. Tudo há-de correr bem. Eu estou aqui.

 

Allison adormeceu encostada a ele e assim Steve Wallace os encontrou quando entrou em casa, à uma da manhã.

 

Aquele Inverno passou lento, agonizante. Parecia a Allison que cada polegada do chão, o próprio tempo, se tinham quedado empedernidos, sob as mãos geladas do vento.

 

Allison MacKenzie tinha acabado a revisão do manuscrito e antes do Natal enviara-o a Lewís Jackman. Trabalhara pacientemente, com a minúcia de um artista e a frieza de um cirurgião. A resposta de Jackman continha apenas duas palavras.

 

«Bom trabalho».

 

Em Janeiro, Bradley Holmes telefonou-lhe: Jackman projectava publicar o livro a dez de Abril.

 

- Passaste um bom Natal ? - perguntou-lhe ele.

 

- Muito bom - respondeu Allison. - Steve Wallace e David vieram passar as férias comigo.

 

- Outra vez esse David ? - inquiriu Brad. - Cada vez que falo contigo ou te encontro tenho a impressão de tropeçar nele.

 

- E isso aborrece-te, Brad ?

 

- Não muito.

 

- Bem. A mim também não. Gosto de o sentir perto de mim, sabes?

 

- Porque não arranjas antes um cantche francês ? - perguntou Brad. - Ao menos não terias que o ouvir papaguear...

 

Allison desligou o telefone.

 

A visita de David e Steve constituíra um intervalo agradável para Allison, quebrando por uns dias o ritual monótono da sua existência em Peyton Place. Deu grandes passeios com ele e falou-lhe dos seus projectos. Caminhavam de mãos dadas e apertadas mas isso, sentia ela, passava de uma manifestação de amizade.

 

No dia de Natal convidara Seth Buswell e o Dr. Matt Swain para jantar. Apetecia-lhe ter junto de si, de novo, as duas pessoas que tanto significavam agora para ela, numa tentativa para conjugar o passado com o presente. Não suportava a ideia de que pudesse haver tamanho precipício entre as duas fases da sua existência. Não desejava que assim fosse: queria poder mover-se facilmente de Peyton Place para Nova Iorque sem que a assaltasse qualquer sombra de estranheza.

 

Os velhos amigos e o novo deram-se bem. Seth falou com David sobre literatura durante horas, falou como se nunca mais tivesse oportunidade de o fazer. E, com júbilo, Allison viu que o médico e Steve, sentados lado a lado no sofá, se entretinham encantados com as últimas histórias da televisão. Matt Swain durante esse tempo nunca tirou os olhos do rosto jovem e atraente da amiga.

 

Quando eles regressaram a Nova Iorque, Allison encontrou Matt Swain na Rua do Olmeiro, de volta da farmácia.

 

- Allison, - disse ele - gostei muito desses teus amigos.

- Especialmente da Stephanie... - respondeu Allison sorrindo.

 

O médico olhou por sobre a cabeça de Allison para as colinas inóspitas e varridas pela invernia que circundavam a cidade.

 

- Há qualquer coisa no rosto dessa rapariga, Allison

- disse. - Não sei o que é. Qualquer coisa que me responde cá dentro. Quando olho para ela sinto-me de novo jovem, e, ao mesmo tempo, velho. Talvez que ela me lembre a juventude e me faça compreender quão distante me encontro dela. - Sorriu para Allison como que para se desculpar.

 

- Mas não está ainda velho, doutor - protestou Allison.

 

- Quem me dera que não! Oh, santo Deus. como eu gostaria que tivesses razão!

 

Agora que acabava de se libertar de Brad, Allison afastou o telefone para o lado e deteve-se de olhos parados para a janela. Via, mesmo sem olhar, esse Inverno pardo e descarnado que pairava lá fora.

Toda a gente estava já saturada do Inverno; ele perdera a graça da novidade. No entanto, todos continuavam a falar do tempo talvez por não haver, em Peyton Place, mais em que falar.

 

- Este é dos antigos.

 

- Olé! Não vejo neve desde há cinquenta anos.

 

- Isso é o que toda a gente diz todos os anos - respondeu Clayton Frazier. - Cada raio de Inverno que passa é sempre o pior dos últimos cinquenta!

 

- Bem, mas este ano é verdade. Vem nos almanaques. Dizem que quando o sol vier, a neve terá duzentas e sessenta polegadas para derreter. Vai haver inundações por toda a parte.

 

- Quais inundações! - exclamou Clayton. - Não há nada!

 

- Pois não! Com toda essa neve a escorrer água.

 

- O Connecticut não sai do leito. Nunca saiu - respondeu Clayton Frazier categórico. - E pronto!

 

- Vais ver, cabeça de burro teimoso, vais ver.

 

Mas Clayton Frazier tinha razão. Não houve inundações.

 

Um sol extemporâneo surgiu para os fins de Janeiro e a neve começou a derreter, a pouco e pouco. Em Fevereiro pouco ou nada restava dela e, a meados de Março, já toda a gente andava de cabeça no ar, satisfeita porque, afinal, a Primavera voltava. Desta vez, porém, o seu aparecimento fazia-se sentir mais lento, talvez, que dos outros anos.

 

No dia 25 Allison recebeu seis exemplares do seu livro e a primeira coisa que fez quando viu o que continha o embrulho foi chorar.

 

Compreendia agora o que David Noyes queria dizer quando lhe falara da emoção que é ter-se na mão o primeiro livro. Rasgou a cinta com alvoroço e contemplou a sua fotografia impressa na contracapa. Depois acariciou as capas do livro elegantemente encadernadas a preto.

 

O Castelo de Peyton, leu. E por baixo: «MacKenzie». Ficou-se a olhar o livro de olhos esgazeados, imóveis, cheios de lágrimas. Eis o resultado de anos de trabalho, esta coisa pequena e compacta que apertava entre as mãos.

 

- A coisa mais maravilhosa que vi na minha vida!

- disse Constance, começando também a chorar.

 

- Cá estamos todos outra vez - disse Mike. - Gasto uma fortuna em lenços de assoar.

 

- Mas falo a sério, Mike - disse Constance. - Nunca vi um livro bonito.

 

-Nem eu! - respondeu ele pondo-lhe o braço à volta do pescoço.

 

- E é meu - exclamou Allison! - Meu. Não há ninguém de permeio entre este livro e eu. Ninguém o fez, ninguém me disse para o fazer. É obra minha.

 

- Se isto   continua   assim acabamos por ir comprar champanhe - disse Mike.

 

Allison não prestou atenção à nota que Lewis Jackman lhe enviara juntamente com dois livros.

 

«Tomei a liberdade», dizia ele, «de enviar exemplares do seu livro a algumas pessoas de Peyton Place. Considero as suas reacções a mais valiosa publicidade».

 

«Quem se importa com a publicidade?», pensou Allison. «Lewis que venda os livros. Por mim, nada mais me interessa que escrevê-los».

 

A seguir escreveu dedicatórias nos seis exemplares que recebera. «Para David, com todo o meu amor - Allison». «Para minha mãe e Mike, com amor e gratidão». «Para Selena Cross, com a amizade de - Allison». «Para o Dr. Matthew Swain, que sabe de cor poemas sobre a eternidade - com a amizade de Allison». «A Seth Buswell, a quem devo o primeiro dinheiro ganho a escrever, com a gratidão de - Allison MacKenzie». Guardou para si o sexto volume. Tencionava colocá-lo sobre a mesinha de cabeceira, de modo que, todos os dias ao despertar, pudesse vê-lo.

 

Às seis da tarde Seth Buswell telefonou ao médico.

 

- Matt! Já o leste ? - perguntou com a voz embargada de emoção.

 

- Li o quê,   santo Deus ? - perguntou Matt.

 

- O livro de Allison!

 

- Ah, não.   Ainda não, - respondeu   Matt pacientemente. - Tenho o meu trabalho, Seth. Tenho muito mais que fazer senão estar sentado o dia inteiro a ler histórias.

 

-- Matt, vai ser o fim do mundo, aqui em Peyton Place!

 

- Mas que diabo estás tu a fazer ?

 

- Ela «apanhou-nos» a todos, Matt, a cidade em peso.

 

- Não percebo, Seth, apanhou o quê ?

 

- Cada personagem é o retrato disfarçado de um de nós - respondeu Seth.

 

- Pára com isso - respondeu Matt. - Allison não faria uma coisa dessas!

 

-Mas   fez!   Não   digo   que   fosse   intencionalmente - continuou Seth. - Mas, Santo Deus, Matt, toda a gente vai pensar que sim. Violência, incesto, crime, suicídio, uma dúzia de factos verídicos, que todos nós conhecemos, Matt!

 

- Ora! Isso não acontece só em Peyton Place, como sabes.

 

- Matt, não discutamos. Senta-te e lê o livro. É tudo o que te posso dizer. Marion Partridge recebeu também um exemplar dos editores. Querem que ela lhes transmita as impressões sobre o livro. Pois Marion acaba de me telefonar e a opinião dela é que Allison seja expulsa da cidade!

 

- Essa Marion sempre foi zaragateira - disse Matthew Swain. - É de nascença. Bem, vou começar já a ler o livro.

 

- Matt?

 

- Hein?

 

- Telefona-me logo que terminares. Não importa a que horas. Quero ouvir o que tens a dizer.

 

Matthew Swain acendeu o lume na sala de estar. Preparou uma bebida e, de pijama e pantufas, atirou-se ao livro.

 

«Há uma pequena cidade ao Norte de Nova Inglaterra» - começou ele a ler - «onde durante todo o ano as colinas que a rodeiam são verdes, revestidas de pinheiros. Na mais alta delas, como uma jóia no cimo de uma coroa, vê-se o Castelo de Peyton».

 

Matthew Swain leu até às três e um quarto da madrugada, e, logo que terminou, pegou no telefone:

 

- Seth ? Pois eu digo-te, homem, que tudo poderia ter acontecido em qualquer outra pequena cidade. Não tem que ser forçosamente aqui.

 

- Matt,   viveste em Peyton Place toda a tua vida. Conheces porventura alguma outra cidade de Nova Inglaterra onde haja um castelo?

 

- Bem, não. Mas poderia haver, que diabo. Não há nenhuma lei que limite os castelos a Peyton Place!

 

- Diz isso à Marion Partridge ou a qualquer outra como ela - respondeu Seth. - Espera e verás, Matt.

 

- Eu sei - insistiu ele. - Mas tenho a impressão de que, apesar de tudo, não vai haver sarilho por causa do livro. Oxalá.

 

- Estás convencido ? - perguntou Seth.

 

- Bem, Seth, para ser franco, receio bem que tenhas razão. Receio bem que acabe aí o mundo quando o livro for publicado.

 

Allison esperava. Agora que o livro estava em vias de publicação nada mais tinha a fazer do que esperar. Não conseguia trabalhar. Planeara começar a escrever o segundo livro mas depressa desistiu. Verificou que seria impossível ocupar-se de alguma coisa de novo antes de saber como a crítica e o público receberiam o seu primeiro esforço. Allison não se aborrecia, esperava apenas, com uma dose de resignação fora do normal. Em semelhantes circunstâncias costumava ceder a uma vaga de impaciência que a assaltava, dando-lhe ganas de bater com a cabeça nas paredes do quarto, como se elas constituíssem uma barreira à realização dos seus desejos.

 

O romance, enquanto o escrevia, parecera-lhe uma tarefa interminável; não podia imaginar que um dia a rima de papéis manuscritos empilhados sobre a mesa de trabalho pudesse vir a desaparecer. Agora, sentia-se convalescente de misteriosa doença, reconfortando-se a si própria com o pensamento de que tudo estava passado. Sentou-se à janela e contemplou Peyton Place, a parte do mundo que melhor conhecia. Reconheceu que durante os últimos dois anos andara afastada da vida, num certo sentido: não fizera parte activa do mundo, de corpo e alma, limitara-se ao papel de um observador, à parte. Receara que esse papel ficasse constituindo uma característica permanente do seu carácter, perguntando a si própria se o repúdio a que votara David Noyes não seria fruto do receio de entrar de novo na vida real, apaixonadamente.

 

Todos os dias estudava carinhosamente o exemplar de O Castelo de Peyton interrogando-se, ansiosamente: «Qual será o seu destino?» «A obscuridade», pensou. Era esse o destino de tantos livros. Ignorava que em Nova Iorque todo um mecanismo complexo e extraordinário se pusera já em movimento e o livro agora, já não lhe pertencia; tão-pouco o seu destino dependia da sorte, pura e simplesmente. Por isso respondia um homem de quem ela nunca ouvira falar: Paul Morris.

 

Paul Morris era um sujeito baixo e atarracado, de cabelos curtos, olhos castanhos e um sorriso que, dizia-lhe, seria capaz de fazer suspirar uma freira. Andava pelos trinta anos e os últimos dez gastara-os em Nova Iorque, como perito de relações públicas.

 

Aos dezoito anos Paul tinha conseguido um vantajoso contrato numa pequena agência de publicidade, apresentando-se como graduado da Universidade de Colúmbia. (Mais tarde revelou que o contacto mais próximo que tivera com a Universidade fora uma excursão de autocarro por Morningside Drive). Os seus estudos na verdade, limitavam-se ao segundo ano de uma escola algures em Bronx.

 

Aos vinte, Paul chegara à conclusão de que sabia tudo o que é possível saber de publicidade e deixou o emprego para entrar, com excelentes referências, para a secção de propaganda de uma das mais importantes estações de rádio de Nova Iorque. Fora aí, segundo ele próprio confessava, que tinha logrado encontrar-se a si próprio. Subira rapidamente e, em menos de três anos, era chefe do departamento de publicidade, casado com uma cantora famosa e morador num dos melhores bairros do East Sixties.

 

Dois anos depois estabeleceu-se por conta própria, conquistando desde logo as preferências dos maiores nomes com quem tinha trabalhado na rádio e que iriam constituir os pioneiros da televisão.

 

«Paul Morris-Publicidade e Relações Públicas» lia-se na porta do seu gabinete particular. Para agradar a um cliente, Paul Morris seria capaz de tudo e fazia o quer que fosse melhor que ninguém. Um dos principais era um tal Jerry Baldwin, proprietário de um vasto programa de televisão «Divirta-se com Tio Jerry». Baldwin era um alcoólico e tarado sexual, que se «divertia» apenas com moças de menos de quinze anos. Pois competia a Paul cuidar de que nenhuma das aventuras de Baldwin pudessem causar sombra de escândalo. Paul interviera muitas vezes em socorro de Baldwin, minutos antes da chegada da polícia, quando o seu estimado cliente se via a braços com algum sarilho num bar de má nota, arrastando-o a espernear e a berrar obscenidades para dentro do automóvel, recorrendo inúmeras vezes à bolsa para acalmar os pais de adolescentes ultrajadas.

 

- Vê se ganhas juízo - dizia-lhe. - Um dia apareces com o pescoço cortado e as cabeças não se compram na loja!

 

Outro dos «magníficos» clientes de Paul era um ex-gangster de nome Manny Kubelsky que, com a idade, se transformara em cidadão respeitável e tudo fazia para que o mundo inteiro o soubesse.

 

Paul começou por lhe fazer notar que as suas obras de caridade eram uma mina para os jornais de mexericos. Aconselhou-lhe um excelente professor que lhe limpou do vocabulário o familiar calão do East Side e um bom alfaiate que teve o condão de transformar um gangster num pacato cidadão de Madison Avenue. Trocou-lhe o longo Cadillac preto por um Buick médio de cor cinzenta e modificou-lhe a decoração do apartamento mais de acordo com o que conviria a um vulgar homem de negócios bem sucedido.

 

- Não te convém essa ostentação, Manny - dissera-lhe Paul.

 

- Qual ostentação, meu cabeça de burro! - respondera Manny, ainda não refeito do desgosto de perder o Cadillac. - Não posso viver como um vagabundo!

 

- Eu sei o que faço - respondera-lhe Paul pacientemente.

 

Muitas vezes sucede que indivíduos deste género nunca perdoam a quem sabem estarem ao corrente dos seus mais íntimos segredos e dos seus vícios ocultos. Mas esse não era o caso de Morris com os seus clientes. Para estes Paul era tudo, desde ama-seca a padre-confessor, e nele confiavam cegamente. Paul obtinha-lhes empregos, publicava-lhes o nome e a fotografia em jornais e revistas, conseguia-lhes primeiras filas em noites de estreia e livrava-os de sarilhos.

 

- Que faço eu por si ? - perguntava-lhes Paul muitas vezes. - Tudo ou nada, dependendo do seu ponto de vista. Mas se quer que eu faça, isso custar-lhe-á dinheiro, e muito!

 

Quando Lewis Jackman começou a compreender que no livro de Allison estava uma obra que, mercê de publicidade intensa e inteligente poderia transformar-se de um momento para o outro num best-seller, correu a procurar Paul Morris. Esse pressentimento fora largamente confirmado com as opiniões de críticos a quem enviaram exemplares para apreciação:

 

«Faz de Caldwell um menino de coro».

 

«A Estrada do Tabaco com um sotaque americano».

 

«Terreno. Real. Verdadeiro».

«Magnífico!»

 

Estas eram as opiniões dos críticos. De parte das pessoas de Peyton Place a quem tinha igualmente mandado exemplares havia, por outro lado, um mutismo agoirento.

 

Paul Morris leu os comentários e observou uma fotografia de Allison MacKenzie.

 

- É uma criança - disse a Lewis Jackman.

 

- Exactamente - respondeu ele.

 

- Mas eu li o livro. Uma criança não poderia tê-lo escrito.

 

- Mas escreveu. É extraordinário, não acha?

 

- De facto! O rosto de uma menina de escola e o talento experiente de um escritor amadurecido. Talvez tenhamos aqui ambas as coisas.

 

- É exactamente o que penso, Paul. Achas que podes fazer alguma coisa?

 

Paul Morris sentou-se meditativo, batendo com um lápis nos dentes.

 

- Podes trazê-la aqui ? - perguntou finalmente.

 

- Creio que sim. O que facilita as coisas é que Allison deseja tanto como eu transformar este livro num sucesso literário.

 

- Telefona-lhe já - disse Paul. - Eu espero. Diz-lhe que precisas dela aqui depois de amanhã, por uns quatro ou cinco dias.

 

Jackman pegou no telefone e ligou a Allison MacKenzie. Depois de alguns minutos de conversação voltou-se para Paul Morris e fez-lhe sinal: «ela vem». Continuou ainda a falar e quando acabou parecia radiante:

 

- Não só vem - exclamou - mas está entusiasmada com o nosso plano.

 

- Belo! - respondeu Paul. - Logo que voltar ao meu escritório marcarei as entrevistas.

 

- Um esclarecimento prévio: - disse Jackman - Allison

é simpática, amável e fácil de convencer. Mas quando lhe dá para torcer fica uma yankee selvagem, desconfiada e intratável.

 

Paul sorriu.

 

- Tu pagas-me e o meu trabalho é resolver semelhantes problemas, Jackman. Deixa o caso comigo.

 

- Por mim não me incomodo - respondeu Jackman e, embora sorrisse, havia uma inflexão especial na sua voz, como que uma advertência. - Sei muito bem que és capaz de te haver com ela.

 

«Tens carradas de razão», pensou Paul quando saiu do escritório de Jackman. De facto, embora tivesse dezenas de clientes, a tarefa que agora se lhe deparava constituía para ele algo de novo. Jackman abria-lhe um caminho inexplorado e ele estava decidido a fazer tudo por tudo pelo livro de Allison.

 

-- Milhares de livros são publicados em cada ano - dizia Paul à esposa. - Se conseguir um trabalho espectacular desta vez, outros contratos virão. É uma mina de oiro!

 

Allison recebera o telefonema de Jackman na cozinha, onde bebia café com Mike e Connie, Observando-a, enquanto ela falava, Constance compreendeu quanto Allison andava desanimada. «O simples facto de falar com alguém de Nova Iorque dá-lhe nova vida»... E um pensamento encheu-a de pânico: «poderá Allison voltar a ser feliz em Peyton Place?»

 

- Jackman precisa de mim em Nova Iorque - exclamou Allison pousando o aparelho. - Vou ser entrevistada para um jornal qualquer e para a televisão. Jackman diz que o meu livro despertou muito interesse e quer falar-me urgentemente.

 

-- Oh, querida, isso é maravilhoso! - exclamou Constance. - E quando vais ? --Depois de amanhã.

 

- Deus bendito! - exclamou Constance. - Que estamos aqui nós parados a fazer! Vamos arranjar-te alguma coisa que vestir!

 

Michael Rossi nada disse mas franziu ligeiramente o sobrolho quando Allison e Constance deixaram a sala. Ouvia-as lá em cima, sorridentes e barulhentas, enquanto tratavam dos vestidos.

 

«Não gosto disto», pensou, «não gosto mesmo nada disto!»

 

Observava, contrafeito, o fervor temerário e infantil que Allison demonstrava na sua luta pelo triunfo. Não desejava vê-la desiludida. Lera o livro e, ao contrário de Constance, não se deixara cegar pelo amor paternal que lhe dedicava. Sabia bem que a sua publicação não poderia deixar de lhe acarretar desgostos numa terra como Peyton Place, sabia que aqueles que, com razão ou sem ela, se considerassem atingidos, não lhe perdoariam facilmente. Surpreendia-se, por vezes, a desejar instintivamente que o livro passasse despercebido. Receava que Allison ignorasse as consequências de semelhante triunfo e quão destrutivo ele poderia ser.

 

Nada disse, porém, a Allison ou a Constance, receoso de não conseguir encontrar resposta para as perguntas que elas lhe iriam fazer. Não sabia bem porque pensava assim; sentia apenas uma vaga apreensão e esse sentimento levava-o a desejar que Allison nunca saísse de Peyton Place. Mais tarde desejaria desesperadamente ter pensado de alto, tão bem fundada era a sua ansiedade.

 

Quando desembarcou na Estação Central de Nova Iorque, Allison descobriu imediatamente Lewis Jackman. Bastaria a elevada estatura dele para que Allison o reconhecesse mesmo que se tivesse esquecido das suas feições. Vira-o apenas uma vez mas o rosto de Jackman, moreno e belo, era difícil de uma mulher esquecer. Jackman ficou tão impressionado pela juventude de Allison que se esqueceu de retirar a mão quando se cumprimentaram. Ela percebeu-lhe nos olhos uma tão intensa comoção que sentiu um baque no peito.

 

- Reservei-lhe um quarto no «Algonquin» - disse ele de nossa conta, evidentemente. Fica perto de tudo e tem um «cheiro» a literatura que você não deixará de apreciar...

 

Falava numa voz extremamente doce e quente mas as suas palavras eram impessoais; portava-se como um homem decidido a não permitir que coisa alguma interferisse nos seus assuntos.

 

- Li umas coisas acerca do «Algonquin» - respondeu Allison. - As personagens ainda lá se juntam para falar mal de tudo e de todos?

 

- Não, agora já não - sorriu Jackman. - Mas há, evidentemente, os fantasmas dos maldizentes de outros tempos. O hotel está pejado deles. De resto, recomendei ao gerente que lhe desse um quarto com fantasma garantido...

 

Estavam sentados no vestíbulo do hotel tomando um cocktail quando apareceu Paul Morris.

 

- Hélio, Allison - exclamou ele com o seu famoso sorriso. - Li o seu nome e acho-o simplesmente terrífico. Gostei dele tremendamente!

 

- Oh, muito obrigada! - respondeu Allison, saboreando aquelas palavras de admiração que, sabia, nunca se cansaria de ouvir.

 

«Belo homem», pensou. «Nada daquilo que eu esperava. Afinal que esperava eu?», perguntava a si mesma e sorriu com a própria pergunta. «Ouvi falar de Morris a Jackman e esperava a clássica caricatura do homem da publicidade cinematográfica: enormes óculos de tartaruga preta, cabelo comprido e negro, modo nervoso e apressado, tiques».

 

Paul Morris começou a falar-lhe da Nova Inglaterra, das cidades que visitara e nas férias que, em rapaz, tinha passado no campo e em menos de quinze minutos Allison tinha a impressão de que escutava um velho amigo de infância. Este era um dos talentos de Paul, porquanto, na verdade, a única vez que tinha ido a Nova Inglaterra fora para «pescar» uma sua cliente, uma velha actriz com um fraco pelo copo, e conduzi-la a um teatro de Boston. Vira-se obrigado a passar lá o fim de semana fechado num hotel junto da Estação do Norte e, quando finalmente conseguira sair, tinha jurado pelos deuses todos que não seria em vida que uma actriz vagabunda o faria voltar a Nova Inglaterra.

 

- Amanhã vai almoçar com Jim Brody - disse Paul.

- Já ouviu falar nele ?

 

- Penso que sim - respondeu Allison. - Não é um que escreve uma coluna num jornal qualquer?

 

- Num jornal qualquer...-disse Morris - em mais de seiscentos jornais por toda a América! Pois ele vai entrevistá-la.

 

As mãos de Allison começaram-lhe a tremer. - Como irei eu arranjar que dizer a Jim Brody?

 

- Arranja, descanse - disse Paul Morris. - Limite-se a ser Allison MacKenzie, simplesmente. Agora ouça: trata-se de   uma   entrevista   importantíssima!   Não   apenas   porque Brody é uma celebridade mas porque, Allison, é a sua estreia em público. Que vai levar vestido?

 

- Tenho alguns vestidos comigo - respondeu - e minha mãe emprestou-me uma estola...

 

- Hum! - resmungou   Paul. - Nada   de   cerimónias. Quero que apareça vestida com simplicidade, que tenha o ar de uma rapariguinha inocente e agarotada. Venha. Vamos lá acima ver umas coisas.

 

Subiram os três ao quarto de Allison e Paul examinou minuciosamente o seu guarda-roupa. Allison pensou que com qualquer outra pessoa se sentiria embaraçada. Mas Paul tinha uns ares tão profissionais que a faziam sentir-se à vontade. Finalmente Paul escolheu um vestido de lã cinzenta com um colarinho branco.

 

- Este - disse.

 

- Mas esse vestido é muito velho! - protestou Allison.

 

- Tem mais de dois anos e trouxe-o unicamente para vestir em casa e no comboio, porque não se vinca com facilidade...

 

- Este mesmo - repetiu Paul decididamente. - E nada de peles. O casaco que tinha lá em baixo serve perfeitamente.

 

Antes que Allison compreendesse o que lhe acontecia, Paul Morris pegara numa escova e começara a penteá-la.

 

- Penteados à moda, muito menos... - disse. - Arranje uma fita e faça um rabo de cavalo.

 

- Santo Deus! - exclamou Allison. - Já não uso esse penteado desde os catorze anos!

 

- Precisamente - respondeu   Paul   com   um   sorriso.

 

- E nada de pinturas, apenas um pouco de baton. Tem um cor-de-rosa?.

 

- Não.

 

- Eu trago-lhe um quando vier buscá-la - disse Paul.

 

- Estarei de volta às doze e trinta.

 

- Mas eu não quero aparecer em público como uma menina da escola - protestou Allison quase a choramingar.

- Quero aparecer bonita!

 

Paul pôs-lhe amigavelmente o braço nos ombros:

 

- Querida Allison - disse - vai ser um sucesso esmagador, o seu. A América tem escritoras elegantes e famosas, escritoras de idade avançada, escritoras donas de casa, escritoras   formadas   em Universidades;   mas   faltava-lhe uma escritora menina, gaiata e bonita e Allison MacKenzie vai preencher essa lacuna. Confie em mim, sim?

 

Allison fitou-o nos olhos escuros e meigos.

 

- Muito bem, então - disse - às doze e trinta estarei pronta.

 

- E deite-se cedo, hoje - recomendou Paul à saída.

- Quero que pareça ter dormido doze horas, amanhã.

 

Quando ele se retirou, Allison voltou-se para Lewis Jackman:

 

- Pensa que andarei bem ? - perguntou ansiosa.

 

- Minha querida Allison - exclamou ele - não pense nisso. Deixe tudo ao cuidado de Paul.

 

Agora, porém, que Paul se retirara, as dúvidas assaltavam-na de novo.

 

- Será   necessário   tudo   isto ? - perguntou   ela   a Jackman - quero dizer, esta comédia, que não irá convencer ninguém ?

 

- A publicidade é uma arte delicada, Allison. Pagamos uma fortuna a Paul Morris para a fazer convenientemente. Ele é um perito neste campo e o melhor que temos a fazer é deixar tudo nas suas mãos. Quer vender livros, não quer, Allison ?

 

- Sem dúvida! - respondeu ela.

 

- Então faça simplesmente tudo e como Paul disser. Repito, ele é um entendido.

 

Allison aproximou-se da janela e olhou para baixo. Nova Iorque rodeava-a, expectante. «Como que à espera de quem a conquiste», pensou. Sentou-se na beira do leito e acendeu um cigarro. Encostou as almofadas à cabeceira e, pela primeira vez depois que chegara, descansou e sentiu-se segura de si. «Até agora», pensou, «tenho desempenhado um papel, o papel de romancista novata que desce a Nova Iorque à cata de um editor. Demasiado irreal».

 

- Nunca pensei que as coisas sucedessem assim - disse a Jackman.

 

Ele sorriu; puxou uma cadeira para a beira do leito e sentou-se.   «Como um médico», pensou ela,   sorrindo-lhe.

 

- Não é hábito - respondeu   ele. - Usualmente um escritor passa um mau bocado. Não tanto porque o problema seja, de facto, complexo, senão porque os escritores não aprendem facilmente, a aceitar os factos.

 

- Explique-me isso - pediu Allison.

 

- É muito simples, Allison. Publicar um livro é um negócio como qualquer outro. O fim em vista é o lucro financeiro. Livros são coisas que se vendem e compram. A única diferença entre um bom editor e um mau editor é que o primeiro tem o hábito de imaginar que se pode ganhar dinheiro publicando bons livros...

 

- De que espécie é você ? - Allison queria chamar-lhe Lewis, simplesmente, mas não tinha coragem.

 

- Sempre me supus dos bons - respondeu ele com um sorriso. - É que os editores têm muitos pontos de semelhança com os autores. Só depois de muitos anos de actividade editorial pude aceitar a verdade dos factos. Suponho que, no meu fervor de jovem acreditava que uma casa editora era uma espécie de instituição de caridade à qual os escritores incipientes confiavam os seus trabalhos. Tive de me convencer à minha custa de uma verdade fundamental da vida que é: «negócios são negócios» em tudo e com livros também. Se a minha firma tivesse falido não lhe poderia ser de grande utilidade, agora.

 

- Você, Jackman, tem o dom de fazer que as coisas mais ilógicas pareçam, na sua boca, a própria razão.

 

Jackman sorriu. Allison olhou para ele, admirada de qualquer coisa, não sabia o quê. De súbito compreendeu.

 

É a primeira vez que o vejo sorrir abertamente, Lewis - exclamou.

 

- Suponho que ando um pouco desabituado. - Pegou-lhe nas mãos, afectuosamente, e acrescentou:

 

- Venha mais vezes a Nova Iorque, Allison, e demore-se mais tempo! Parece que o seu convívio me faz bem.

 

Permaneceram ambos em silêncio, fitando-se nos olhos. Jackman foi o primeiro a desviá-los.

 

- Você, Allison, tem qualquer coisa que me toca cá dentro - murmurou. - Mas não tenho o direito de lho dizer. Sou casado e o meu filho é quase da sua idade...

 

Allison voltou a mão e as suas palmas tocaram-se. Ele inclinou-se e, inesperadamente, beijou-a, num beijo que a impressionou, repassado de gentileza, de paixão de longe reprimida.

 

- Oh, até os seus beijos sabem a juventude!-murmurou ele numa voz estranhamente doce, como se lhe dissesse um segredo. - Até os seus beijos sabem a juventude. - Aproximou-se dela ainda mais e Allison pensou: «não me oponho, para quê? Eu quero». Abriu os braços e apertou-o contra o peito.

 

Não disseram uma palavra, sequer, como se ambos compreendessem que para isso haveria uma infinidade de tempo, depois. Agora desejavam-se mutuamente, numa insaciável fome de amor. Ele despiu-a e as mãos tremiam-lhe como a um adolescente. Notando-o, Allison permitiu-se, por um instante, um sentimento de triunfo egoísta. Quando se despiram e os seus corpos tocaram, Allison retraiu a respiração como se mergulhasse inesperadamente num lago gelado.

 

Jackman acariciava-lhe os seios apaixonadamente e ela entregou-se-lhe com um suspiro. Ele possuiu-a com um entusiasmo juvenil que a deixou surpresa e exausta. Sentia, embriagada, os lábios dele beijando-lhe as pálpebras e invadi-la uma sensação de alívio, balbuciando ininteligíveis palavras de amor.

 

Mais tarde Jackman levou-a a um restaurante e os olhos dele, fitando-a, faziam-na sentir-se a mulher mais feliz do mundo.

 

- És tão bela - repetia ele numa voz que a custo lhe chegava aos ouvidos, como se viesse de longa distância.

 

- Até agora só os meninos sonhadores me têm dito isso- disse Allison sorrindo.

 

- Então é porque eu também sou um menino sonhador, minha querida. - O rosto dele tornou-se sombrio: a palavra «menino» fizera-lhe acudir ao pensamento a sua idade, o dobro da de Allison. Ela adivinhou-lhe os pensamentos e disse:

 

- Tu és novo, Lewis. Quando estás comigo, pelo menos. Um homem só é verdadeiramente velho quando tiver esgotado a sua capacidade de amar.

 

- Quem me dera que fosse a verdade, Allison! Isso far-nos-ia iguais. Não. Amei tanto em cinquenta anos como tu em metade desse tempo. Quero que saibas isso, Allison, não só porque tens o direito de o saber mas também porque to quero dizer.

 

Contou-lhe, então, a história do seu casamento sem amor com uma esposa neurótica.

 

- Casei novo - disse - e cheio de esperanças. Porque a amava, supus que ela haveria de mudar. Mas enganei-me. Podíamos ter-nos divorciado há mais de vinte anos mas, nessa altura, nasceu o nosso filho e durante muito tempo vivi apenas para ele e esqueci.

 

Lewis mostrava-se tão pouco habituado a falar de si próprio que se quedou embaraçado.

 

- Pus   de   parte   toda   a   esperança   de   felicidade acrescentou. - Continuámos a tolerar-nos. Agora o meu filho está num colégio e ela continua a habitar o seu mundo privado, um mundo que ela criou na sua imaginação doente. Loucura, poderia dizer, mas não é decente. As mulheres de boas famílias não enlouquecem, têm «neuroses». Só as pobres enlouquecem, hoje.

 

Olhou para as mãos de Allison sobre as suas e continuou:

 

- Decerto concluíste já que vivo com minha mulher por compaixão. Mas não me deixes causar-te a impressão de que o meu procedimento é nobre - acrescentou, fazendo sarcasmo à própria custa. - Não procedo movido por qualquer sentimento de coragem e espírito de sacrifício, Allison. Acredita que, pelo contrário, sou levado apenas pela minha fraqueza. Coragem seria, para mim, deixá-la. Até agora, porém, não tive alento para tanto. Como um fraco contento-me em esperar que um dia ela se suicide ou sofra um acidente. Alimento esse estúpido sonho de que a libertação me «aconteça» sem exigir qualquer acção da minha parte.

 

- Talvez, querido, talvez - disse Allison tentando reanimá-lo.

 

-Oh, Allison, não me deixes pensar deste modo cobarde. Nada acontece senão o que nós próprios fizermos acontecer!

 

- Mas eu não me importo, Lewis. Ama-me simplesmente e tudo correrá bem!

 

Ele sorriu-lhe amorosamente. Por detrás do sonho de amargura que lhe toldava os olhos, Lewis observou embevecido como ela era jovem, maravilhosamente jovem.

 

Nessa noite Allison dormiu nos braços dele e nada deste mundo seria capaz de a amedrontar.

 

Pouco antes das treze horas do dia seguinte, Allison encontrava-se num bar da Terceira Avenida, o «Kelly’s», com Paul Morris. O chão era feito de pequenos ladrilhos hexagonais e nas paredes havia obsoletos candeeiros a gás, adaptados a electricidade.

 

- Há vinte anos que Brody aqui vem frequentemente

- disse Paul - e tanto bastou para que este restaurante ficasse célebre.

 

- Vivi   em Nova Iorque durante um ano e nunca ouvi falar dele - respondeu Allison.

 

Paul levantou o copo e ficou calado por uns momentos. Depois disse:

 

- Olhe, minha jóia,   não pretendo pôr-lhe na boca as palavras que vai dizer ao Brody, nem tirar-lhas, tão-pouco. Mas não lhe diga que já viveu em Nova Iorque!

 

- E se ele me perguntar?

 

- Bolas - respondeu Paul, e fez-lhe um gesto para que não falasse. - Ouça, você parece-me ser uma garota espertaEscreveu um livro que não só foi publicado sem dificuldade mas constitui um grande sucesso literário. Você, Allison, sabe falar quando quer. Pois com o Brody é preciso que saiba falar melhor do que nunca na sua vida. Não lhe diga que viveu em Nova Iorque. Outra coisa: durante a guerra ele ganhou o prémio Pulitzer como correspondente de guerra na Itália. Não se esqueça de fazer referência a esse facto. Poucas pessoas o sabem e essa é a maior glória de Jim Brody.

 

- E como o sabe você,   Paul ? - perguntou Allison.

 

- Segredo profissional - disse ele sorrindo. - Mas eu vou-lhe contar. Antes de marcar esta entrevista li tudo o que pude acerca do nosso grande Jim Brody. Estudei todos os pormenores com tanto cuidado que lhe posso dizer a cor dos pijamas que ele prefere.

 

Jim Brody era um homem de elevada estatura e presença agradável, grande apreciador de boa comida e «boas» anedotas. Quando entrava no «Kelly’s» toda a gente se voltava para o cumprimentar. Um criado, pressuroso, retirava a chapa de «Reservado» de uma das «melhores» mesas enquanto outro colocava nela um gigantesco copo de cerveja, sem lhe darem tempo para despir o casaco.

 

- Vamos, minha jóia, sorria! - cochichou Paul Morris.

- Sorria!

 

- Não posso - segredou Allison. - Estou muito maçada.

 

- Faça como quiser - respondeu Paul   conduzindo-a para a mesa de Brody-

 

- Olá! - exclamou   ele   mal   olhando   para   Allison enquanto Morris a apresentava. - Sente-se.

 

Allison sentou-se ao lado de Paul Morris. «Que homem paradoxal», pensou Allison observando Brody. «Tão grande e com esta cara bondosa de São Bernardo. Menos os olhos, frios e perscrutadores.

 

- Cerveja ? - perguntou Brody.

 

- Bebo uma - respondeu Paul Morris. - Miss MacKenzie não bebe...

 

«Como pode este tipo mentir com tão grande à-vontade?», admirava-se Allison, impressionada, pois acabavam de beber um Martini duplo, no bar.

 

- Então que idade tem, minha menina ? - perguntou Brody.

 

Antes que ela pudesse abrir a boca para responder, Paul ripou de um papel do bolso e estendeu-lho:

 

- Escrevi aqui alguns dados biográficos de Allison, Jim. Pensei que simplificasse as coisas...

 

- Dezanove anos, hein? - disse voltando-se para ela. Allison ficou sem fala. Tinha vinte e três e ia abrir a boca para dizer quando Brody fez nova pergunta:

 

- Pois dava-lhe menos. Escreve há muito tempo?

 

- Desde que saí da escola - respondeu.

 

- Hum... Conseguiu publicar tudo?

 

- Escrevi apenas histórias insignificantes para revistas.

 

- Que espécie de histórias ?

 

- Oh, as do estilo. Banalidades para senhoras ociosas. Brody sorriu.

 

- Tenha cuidado com as palavras quando falar das mulheres americanas - disse. - uma porção delas não perde uma palavra daquilo que escrevo.

 

- Não as mesmas que lêem os meus contos, certamente, - respondeu Allison. - O senhor escreve coisas reais para pessoas reais.

 

- E as suas histórias, não são reais ?

 

- Suponho que sim, para a espécie de público que as lê. Para mim, porém, nunca o foram. Nos meus contos todas as heroínas são loiras esculturais de olhos verdes e todos os heróis são altos e morenos, de queixo fendido e «smoking» branco.

 

Brody deitou a cabeça para trás, perdido de riso, e Paul deu um pequeno beliscão a Allison por debaixo da mesa, felicitando-a.

 

- Bem, mas no seu romance não há dessa gente - respondeu Brody. - Li-o a noite passada. Onde é que uma garota da sua idade foi aprender tantas obscenidades?

 

Allison exasperou-se subitamente, vexada:

 

- Lamento imenso   que ache o meu   livro   obsceno, senhor   Brody - respondeu. - Nunca   foi   minha   intenção fazer pornografia. Tentei apenas relatar a verdade e dar ao leitor esclarecido a pintura de uma pequena cidade como eu a vejo. O que acontece em O Castelo de Peyton acontece em toda a parte e sempre esperei que um homem suficientemente elucidado para merecer um Pulitzer, compreendesse...

 

- Oh - exclamou Brody com um   sorriso   deleitado.

- Pois sabe dessa história do Pulitzer ?

 

- Sei - mentiu Allison, pedindo a todos os santos que assim fosse. - Lembro-me muito bem: o seu retrato veio em todos os jornais.

 

«Afinal não é tão difícil como eu supunha», pensou surpreendida. «Sou capaz de mentir tão bem como Paul, desde que me obriguem a fazê-lo».

 

- Pois   tem   boa   memória,   minha   menina! - disse Brody. - A maioria das pessoas crescidas já se esqueceu disso. - Um criado colocou-lhe outro copo de cerveja diante dele e Brody levou-o aos lábios.

 

- Diga-me, menina MacKenzie - continuou ele limpando um bigode de espuma, - Que irão dizer os seus conterrâneos do livro?

 

- O que já disseram - respondeu Allison. - Jackman, o meu editor, enviou exemplares a diversas pessoas de Peyton   Place e   a notícia   espalhou-se como um rastilho de pólvora.

 

- E que disseram eles ? - perguntou Brody.

 

- Disseram que me expulsariam da cidade - respondeu Allison com a voz alterada. - Disseram que minha mãe teria que vender o estabelecimento, que o meu pai devia abandonar o emprego e sairmos todos de Peyton Place para não voltar.

 

- E vocês, fizeram isso ?

 

- Nunca! - exclamou   Allison. - Nasci   em   Peyton Place e lá hei-de viver enquanto me aprouver!

 

Brody olhou-a demoradamente.

 

- Nasci numa pequena cidade, também, em Indiana - disse. - E posso garantir-lhe que quando as coisas chegam a esse ponto as pessoas podem tornar-nos a vida insuportável, se quiserem.

 

- Eu sei - respondeu Allison.

 

Brody esvaziou o copo e pegou noutro.

 

- Bem, voltemos à primeira pergunta. Não a fiz com precisão de modo que vou repeti-la: onde é que uma rapariga de dezanove anos foi aprender tanta coisa, sobre crime, vileza e perversão sexual ?

 

- Se nasceu numa pequena cidade não necessita de me fazer perguntas dessas, senhor Brody - respondeu Allison.

 

- Nas terras pequenas não há segredos.

 

- Nesse caso aprendeu em Peyton Place tudo o que sabe ?

 

- Não foi o que eu disse, exactamente. Apenas lhe fiz notar como é o ambiente duma pequena cidade.

 

- A menina é obstinada, não é?

 

- Como quiser, senhor Brody-respondeu ela.-Tentei dizer a verdade.

 

Mandaram servir o jantar e Brody fez-lhe mais algumas perguntas de acaso sobre Peyton Place e os seus habitantes.

 

- Deve ser uma terra curiosa - disse ele quando se levantaram para sair. - Um dia destes hei-de ir por lá...

 

Quando Brody saiu, Paul Morris pegou na mão de Allison e apertou-lha.

 

- Óptimo, minha querida, foi magnífico! Allison estava fatigada e aborrecida.

 

- Que ideia foi essa de lhe dizer que eu tinha dezanove anos ? - perguntou. - Tenho vinte e três e você sabe-o muito bem!

 

- Então, menina, é publicidade! - respondeu Morris.

- As histórias que lêem sobre esta ou aquela personalidade são coisas que se fabricam à secretária de um escritório como o meu. Veja: acredita uma palavra de todos esses mexericos que se lêem nas revistas, sobre as estrelas de cinema? Acredita que as nossas provocantes sereias andem todas e sempre na casa dos vinte?

 

- Nunca me incomodei grandemente por sabê-lo - respondeu Allison com aspereza.

 

- Pois   então   comece    a   incomodar-se! - retorquiu Paul. - A publicidade tem a missão de criar no público uma ilusão sobre um lugar, uma coisa ou uma pessoa. Uma ilusão em que o público acredite porque o público gosta de acreditar. A publicidade é um meio de vender a mercadoria e a mercadoria pode ser um hotel de Miami, uma caixa de pó de sabão ou um ser humano. Vamos vendê-la, Allison, porque, se o fizermos bem, poderemos, em compensação, vender milhões de livros seus!

 

Allison olhou-o aterrorizada.

 

- Não sou coisa que esteja na montra de uma loja

- exclamou. - Sou uma pessoa, sou Eu!

 

Paul pegou-lhe no braço.

 

- Querida - disse - sei-o tão bem como você, e toda a gente do mundo o sabe. Você é uma pessoa. Mas o que vamos é fazer de si uma pessoa especial. Uma pessoa que milhões de outras pessoas possam reconhecer facilmente. Hão-de conhecer o seu nome, o seu retrato e o seu livro. Em   suma,   vamos   tentar transformar Allison MacKenzie numa celebridade!

 

- Agora que já tenho outra vez «idade» para beber, quero um Martini.

 

- Sinto muito, mas não pode. Daqui em diante as pessoas que aqui estão poderão lembrar-se de que a viram sentada à mesa com Jim Brody e que a viram beber. Creio que ele vai dizer que você não bebe e não poderá fazer seja o que for que contrarie essa ilusão.

 

- É ridículo! - exclamou Allison.

 

- Não é bem assim - respondeu Paul. - Não é certo que as coisas em Peyton Place acontecem como as descreve no seu livro?

 

- Sem dúvida - respondeu Allison. - Mas nunca tive intenção de...

 

- Olhe, pequena, quer vender os livros ou não quer ?

 

- Sim, mas continuo a não ver... De novo ele a interrompeu:

 

- Deixe isso comigo. E fale para toda a gente do modo como eu a ensinei a falar com Brody. Faça o que eu lhe disser e transformaremos O Castelo de Peyton no maior acontecimento literário de todos os tempos.

 

Olhou para o relógio.

 

- Vamos - disse - temos que estar na C. B. S. dentro de vinte minutos. Vai ser entrevistada por Jane Dodge.

 

- Já ouvi falar dela - respondeu Allison. - Possui uma voz encantadora.

 

- É certo - respondeu Paul. - A voz de um anjo e a alma de uma autêntica megera... Vamos. Talvez consigamos apanhar um táxi. Quando falar com Jane - recomendou Paul antes de entrarem no estúdio - não diga mal das revistas femininas, organizações femininas, de nada feminino. Jane é a «mulher» profissional e isso tem-lhe valido uma fortuna, aliás.

 

Jane Dodge ostentava um chapéu enorme, luvas pretas e tinha diante de si uma fascinante cigarreira de ébano. Estava tão afectada e vestida com tamanha precisão e esmero que mais pareceu a Allison uma boneca laboriosamente fabricada.

 

- Por amor   de Deus,   Jake - gritava   ela,   enquanto Paul Morris lhe apresentava Allison - quando conseguirás tu preparar as coisas? Vais passar toda a noite a apertar parafusos ?

 

- Está quase pronto, Jane-disse o homem chamado Jake.

 

Jane voltou-se para Allison.

 

- Olá, querida - disse - vamos ver se esse malandro nos arranja as coisas de uma vez.

 

Percorreu com os olhos perscrutadores a nota que Paul Morris lhe dera e murmurou, lendo-a:

 

- «Dezanove anos. Peyton Place. Filha única. Primeiro livro».

 

Allison, de pé, observava-a, contendo a respiração.

 

- Está tudo pronto, Jane - disse Jake.

 

Jane Dodge voltou-se para ele a um sinal e começou a falar na sua voz grave e doce que Allison tão bem conhecia:

 

- E agora, minhas senhoras - disse Jane ao microfone - é com o maior prazer que vos apresento uma rapariguinha que conheci há alguns anos na Nova Inglaterra. Chama-se Allison MacKenzie e tem apenas dezoito anos! Mas esta minha amiga arranjou maneira de nos fazer a cabeça em água a todas. É autora de um sucesso literário, O Castelo de Peyton e, amigas, se não tiveram ainda oportunidade de ler este maravilhoso livro, aconselho-as a deixarem os pratos por um instante e irem ao livreiro mais próximo. Bem. Bom dia, Allison, como está, minha querida...

 

Quando a entrevista terminou, Allison sentia os joelhos a tremer e a coisa que mais desejava era sair imediatamente daquele estúdio quente e abafado para o ar livre.

 

- Paul, querido - disse Jane Dodge - deixa aí um exemplar para mim.

 

Paul retirou um livro da pasta e colocou-o sobre a secretária de Jane.

 

- Muito obrigada, Jane - disse ele. - Foi uma grande entrevista.

 

Allison, porém, não tirara os olhos do exemplar que Paul colocara sobre a mesa.

 

- Ainda não o leu ? - perguntou ela a Jane.

 

Jane olhou-a atónita e começou a rir às gargalhadas.

 

- Minha   filha - disse - com   estes   dias   a   «mata-cavalos» que tenho passado como havia eu de ler livros?

 

Quando saíram, Allison voltou-se para Paul.

 

- Conheço lenhadores que não usam o vocabulário desta mulher - disse - e, quanto a hipocrisia, as donas de casa de Peyton Place são crianças inocentes ao pé de Jane Dodge.

 

- É verdade - respondeu Paul afectuosamente. - Mas milhares de senhoras ouvem todos os dias programas de Jane. E, amanhã, quando ligarem os aparelhos, ouvir-te-ão a ti! Estou a vê-las a correr à livraria comprar O Castelo de Peyton só porque Jane lhes recomendou que o fizessem. É que, Allison, quem for amigo da «querida Jane» é amigo de todas elas.

 

«Que raio de negócio, tudo isto», pensou Allison enfastiada. «E faço parte da comédia, eu. Deixei-me arrastar sem a mínima resistência. Quero que o meu livro seja lido, quero que ele seja acontecimento. Por isso faço estas coisas nojentas. Como é fácil uma pessoa tornar-se mentirosa quando tem um pretexto, quando se pode justificar com as suas intenções!»

 

Paul chamou um táxi mas Allison disse que preferia ir a pé. As últimas palavras dele quando se afastaram foram: «Allison, vamos vender carradas de livros, verás!»

 

Enquanto atravessava a cidade, ao encontro de David, sentiu uma ponta de ódio contra Paul Morris. «Mas ele não tem culpa», pensou a seguir. «Apenas faz o seu trabalho. E fá-lo espantosamente bem. Sou eu a culpada. Transformei-me numa reles negociante. Sou eu quem não cumpre o seu dever. O meu lugar seria em Peyton Place com Mike e Constance, a escrever livros».

 

Agora já não era apenas a excitação da publicação do primeiro livro que a impedia de trabalhar. Era também Lewis Jackman. Pela primeira vez desde que encontrara Paul Morris no «Kelly’s» Allison pensava em Lewis, tão atarefada tinha andado com esse estúpido negócio da publicidade. Agora, enquanto caminhava pela rua cheia de gente apressada, com a Primavera a flutuar no ar que respirava, acudiu-lhe à memória a voz dele e o contacto das suas mãos. «É a única coisa que realmente conta», disse para consigo, «mais do que toda essa gente mentirosa que não me deixa em paz- O que nasceu entre Lewis e mim - o amor - isso, apenas, importa».

 

Dirigindo-se ao café onde David a esperava pensou nele com um baque de remorso. «Mas porquê?» interrogava-se, «não está na nossa mão escolher o objecto do nosso amor. O coração escolhe sozinho. Os apaixonados encontram sempre uma desculpa para o sofrimento que causam aos outros», pensou. «E a desculpa é sempre, também, o amor».

 

Encontrou-se com David num pequeno café italiano do West Fifties, um lugar sombrio, iluminado por candelabros românticos colocados em cima de mesas de mármore. As paredes eram forradas de pano vermelho-escuro que absorvia a pouca luz que se desprendia das velas. Havia espelhos manchados de amarelo pela idade, onde ela se via reflectida, numa imagem imprecisa e escura, como vista através de espesso fumo. Ao fundo via-se o único objecto brilhante, uma máquina de café, enorme e com efeitos de prata. Quando o empregado baixava um dos longos manípulos, o vapor silvava através dos depósitos de café e o delicioso elixir saía gota a gota pela torneira de prata para as minúsculas chávenas.

 

David observava Allison desde o momento em que ela entrou e se deteve a procurá-lo com os olhos e enquanto se dirigia para a mesa que ocupava. Reparou que os movimentos de Allison denotavam segurança nova e sorriu. «A nossa pequena Allison cresce a olhos vistos», observou. Ela deixou-se cair fatigada na cadeira que David lhe indicou e, enquanto o criado lhes servia o café, contou-lhe as novidades. Falou-lhe de Paul Morris, de Brody e Jane Dodge.

 

David escutou-a em silêncio, não desejando interrompê-la. Allison estava demasiado cheia de si para notar a irritação que se apoderava dele e ficou surpreendida quando, por fim, David exclamou com a voz a tremer de raiva: - Tu a vender livros? Não te metas tu também nesse maldito negócio, Allison! És uma escritora, não um palhaço da rádio e da televisão! Não corras imbecilmente atrás de qualquer repórter idiota de terceira categoria!

 

- Cala a boca, David - exclamou ela, mais ofendida ainda porque as palavras de David pareciam o eco dos próprios pensamentos. - Se não te importas com o que acontece aos teus livros importo-me eu com o destino dos meus. De que serve escrevê-los, se ninguém os lê, como te acontece a ti?

 

- O público descobre sozinho um bom livro - retorquiu David, - e o Castelo de Peyton é um bom livro. O público chegaria tarde ou cedo a essa conclusão sem ser necessário que os jornais andassem cheios de publicidade idiota, apregoando aos quatro ventos que o teu romance é um compêndio de pornografia.

 

- Qual pornografia! - explodiu Allison. - O livro não é pornográfico.

 

- Não precisas de mo dizer a mim - respondeu David.

- Sei bem que não. Mas a espécie de gente que lê a página de Brody? Não esperes que eles vejam a beleza que o teu livro encerra. Vão comprá-lo e lê-lo, sim, mas com o faro nas tuas descrições eróticas, por ele apregoadas.

 

- Mete-te na tua vida - respondeu Allison.

 

David levantou-se. Tirou do bolso um recorte de jornal e atirou para cima da mesa.

 

- Lê isto enquanto está quente - disse. - A tua entrevista com Brody vem na última tiragem da noite. Como vês, o nosso amigo não perdeu tempo. Nem tu. Conseguiste o que pretendias,   Allison:   o   triunfo com um T grande!   Será interessante ver o que vais fazer dele ou de ti. - Sorriu amargamente e continuou: - Parece que pouco ou nada teremos a dizer um ao outro doravante, Allison.

 

Saiu. Allison deteve-se imóvel por um momento e depois começou a ler a página de Brody.

 

«Se houver pais que tenham pressa de ensinar às filhas certas verdades escabrosas do dia a dia, aconselho-os a mudarem-se para qualquer cidadezinha de província, como Peyton Place. Tal é o caso da pequena Allison MacKenzie, autora precoce de um livro sensacional, O Castelo de Peyton. Aqui está um romance que brada aos céus». O artigo terminava com estas palavras: «E que dizer da aventura da pequena Allison, que escalou a montanha da respeitabilidade da Nova Inglaterra para revelar a podridão oculta? O estabelecimento da mãe está à beira da falência; o pai, director da Universidade local, perdeu o emprego. Não penso, contudo, que a jovem MacKenzie tenha muito com que se preocupar: O Castelo de Peyton logrou desde já fazê-la rica e famosa».

 

Allison quedou-se, doente de raiva pela traição de Brody. Depois rasgou o jornal em bocadinhos e fez uma bola com eles. «Se é assim que o jogo se faz», pensou resoluta, «veremos quem leva a melhor».

 

Nos primeiros cinco dias da sua estadia em Nova Iorque, Allison concedeu novas entrevistas a representantes da Imprensa e da rádio e duas na televisão. Transformara-se, desde logo, numa figura polida e segura de si. Aprendera a esgrimar habilmente com as palavras, pensando-as duas vezes antes de responder. Estudava tão cuidadosamente as suas afirmações que o mais consciencioso repórter as aceitava incondicionalmente.

 

Numa noite, que foi, afinal, a última que passou em Nova Iorque, foi jantar com Lewis a um restaurante recentemente aberto, um lugar fabuloso que, de momento, era o último grito da moda. Um desses restaurantes caros de pós-guerra onde o dinheiro, praticamente, não conta. A lista era tão extensa que pouca gente tinha paciência para a ler inteiramente e apenas os gourmets profissionais a entendiam. Havia criados para traduzir e para servir!

 

O chefe de mesa conduziu Allison e Lewis para uma das «melhores» mesas, reservada para celebridades, junto de um lago de mármore branco com um repuxo ao centro, donde corriam fios multicores de água, semelhantes a árvores exóticas.

 

- É uma honra a sua presença nesta casa, Miss MacKenzie - disse ele oferecendo a Allison uma cadeira. Allison concedeu-lhe o sorriso adequado, que o sucesso lhe ensinara.

 

- Sinto-me   orgulhoso   de   ti,   Allison - disse   Lewis.

- Ainda não há um mês eras uma escritora. Hoje és autora de um livro...

 

O sorriso de Jackman, repassado de amor, tirava às palavras o que elas continham de lamentavelmente verdadeiro mas Allison compreendeu-o e sorriu amargamente.

 

«Foi isto há apenas cinco   dias?»   interrogou-se ela, admirada. Recordou-se da sua inocência ultrajada ao descobrir que nem Jane Dodge, sequer, lera o seu livro. De todos quantos a tinham entrevistado apenas um jornalista afirmava ter lido O Castelo de Peyton. Todos, no entanto, gastavam rios de tinta a falar dele, com ares de entendidos.

 

Os pensamentos de Allison foram subitamente interrompidos pelo aparecimento de um corpulento indivíduo que lhe pediu que escrevesse um autógrafo sobre uma lista, oferecendo-lhe uma caneta de ouro.

 

- É para minha mulher... - disse. Os homens que lhe pediam autógrafos desculpavam-se com as esposas. Allison assinou a ementa e devolveu-lha com um sorriso.

 

«Como tudo isto é vazio, fútil e ridículo, desprovido de significado», pensou. «E, contudo, repassado de um interesse irresistível! Só um santo ou um louco seriam capazes de se retirarem do mundo da celebridade para uma torre de marfim». A celebridade, detestável embora, era algo que Allison sempre ambicionara desde os tempos de menina quando, com Selena, coleccionava revistas de Hollywood.

 

Tomara, pois, uma resolução: se fosse coisa que se pagasse estaria disposta a fazê-lo. Não seguiria os caminhos de David: era jovem, mas não tanto que acreditasse ser a arte coisa que se possa cultivar na obscuridade, uma planta de estufa.

 

Enquanto Lewis encomendava o jantar, Allison recordava-se do dia em que tinha atravessado a cidade para se encontrar com David Noyes no café. Pensava nesse incidente muitas vezes. A celebridade, a certeza de que era observada onde quer que estivesse, tornara-a cuidadosa consigo própria e desconfiada. «Faço isto de livre vontade», interrogava-se frequentemente, «ou será a minha posição que o exige?»

 

Não sabia exactamente se provocara a discussão com David, se não teria entrado no café desejando intimamente cortar relações com ele. David era um símbolo do seu passado, dos tempos em que Allison não passava de uma obscura escritora lutando por qualquer coisa que sentia faltar-lhe. Agora, ultrapassara-o.

 

Allison surpreendia-se, por vezes, a pensar, nos raros momentos que dispunha agora para pensar, em que a celebridade lhe dera um amadurecimento fantasticamente rápido e precoce. Fazia-a lembrar-se das rosas cuja floração é provocada em estufas, de acordo com as exigências do mercado. Essa maturidade, porém, embora apressada artificialmente, parecia-lhe de certo modo real. Dera-lhe maior sensibilidade e um mais intenso e apurado poder de observação.

 

Assim, reparava’ agora em pequenas coisas que antes lhe teriam passado despercebidas. O caso de David, por exemplo: a sua irritação no café, compreendia Allison era motivada, em parte, por inveja: David invejava-lhe o sucesso que a ele se afigurava fácil. David trabalhava há muitos anos, publicara quatro livros e o resultado material de toda a sua obra não podia comparar-se à fortuna que, de uma só vez, batia à porta de Allison. Esse pensamento tornara-o invejoso e hostil, precisamente quando ela mais tinha necessidade da sua compreensão.

 

Para Allison isso fora mais uma lição da complexidade da vida. David, compreendendo subitamente o próprio fracasso em face do triunfo de Allison, transformara-se, do mesmo modo que esse triunfo a transformara a ela.

 

«Devia haver uma maneira de dosear, de disciplinar a glória», pensava Allison, enquanto o criado lhe servia o consommé de uma terrina de prata. «Em doses adequadas, segundo a capacidade de cada um. Nem de menos nem de mais». Mas sabia que isso era impossível. «A vida não é coisa que se controle, que se molde assim aos nossos desejos!»

 

Quando o terceiro caçador de autógrafos a interrompeu, Allison disse a Lewis:

 

- Sinto que sou uma fraude, Lewis, já não sou eu própria, a pequena Allison MacKenzie de Peyton Place. Porque não hão-de os outros descobri-lo?

 

- Porque andam cegos, Allison. É que eles não te conheceram tal como és. Quando te observam, vêem em ti a mulher famosa, a figura criada por Paul Morris, jornalistas e entrevistadores.

 

Lewis pegou-lhe no braço. Não costumava fazê-lo muitas vezes; em público mostrava-se muitas vezes circunspecto, pretendendo mostrar que as suas relações eram apenas as de autor e editor.

 

- Nada de mau te poderá suceder, Allison, enquanto não esqueceres aquilo que na verdade és.

 

- Nunca me esquecerei, Lewis.

 

- Também penso que não, querida. Penso que o teu senso comum te protegerá e, por isso, não me preocupo muito contigo. E tu, Allison, faz outro tanto: tenta a todo o custo gozar a felicidade do momento presente enquanto ela dura. Como não desconheces, certamente, não há bem que sempre dure...

 

«Enquanto a felicidade dura»... Allison repetia para si a frase de Lewis. Soava-lhe aos ouvidos como uma sereia de alarme.

 

- Amo-te por muitas razões, Lewis - disse - e uma delas é pelo maravilhoso talento que possuis para me deitar um balde de água fria na cabeça, no momento oportuno.

 

- Também eu te amo, querida - respondeu ele - e este vinho e - apontando Allison - os teus olhos, fazem-me desejar sair daqui imediatamente. Quero estar a sós contigo.

 

Allison pegou na mala.

 

- Recomenda ao motorista que vá depressa... - disse-lhe sorrindo, sem tirar os olhos dele.

 

Alguns minutos depois estavam no táxi e Lewis dizia ao condutor:

 

- Depressa, homem, vamos ver um doente...

 

- Há muitos por aí, freguês - respondeu ele a rir.

- A Primavera é a estação mais doentia do ano. Tenham cuidado!

 

Allison dominou com dificuldade uma gargalhada e escondeu o rosto no ombro de Lewis. Ele beijou-lhe os cabelos e acariciou-lhe o rosto.

 

Quando entraram no quarto de Allison, embora tivessem passado a tarde juntos, olharam-se com uma saudade apaixonada. Na veemência do desejo mútuo lançaram-se, meio despidos, nos braços um do outro.

 

Depois fumaram no escuro e pairaram até amanhecer. Allison revelou-lhe que ia alugar um apartamento em Nova Iorque.

 

- Quero estar perto de ti, querido. Quero estar ao teu dispor quando me desejares. O casamento não é coisa indispensável para mim.

 

«Agora não, não é», pensou Lewis. «Mas há-de ser, há-de ser». Apesar do abismo que os separava Lewis tinha ainda uma esperança. Mas concordou com ela e nada lhe disse dos seus planos.

 

Quando Allison despertou, ao meio-dia, Lewis tinha saído. Em cima da mesa de cabeceira estava um bilhete: «Querida, só o ver-te ao meu lado quando acordei esta manhã me pôde convencer que tudo isto não foi apenas um sonho, que, aliás, seria o mais belo da minha vida».

 

Allison sorriu e guardou o papel. Mandou servir o pequeno almoço na cama e pediu à telefonista uma chamada para Peyton Place. Ia dizer a Mike e Constance que ficava definitivamente em Nova Iorque.

 

Saboreava uma taça de sumo de laranja quando o telefone tocou. Era Constance. A voz de Allison era rejubilante quando disse:

 

- Não é maravilhoso, mamã? O Castelo de Peyton saiu há apenas vinte dias e já foi incluído na lista dos best-sellers do Times e do Tribune!

 

- Estou   felicíssima,   querida! - respondeu Constance.

 

- Mãe? Que há? Pressinto que há qualquer coisa que não corre bem, mamã. Conheci-o na tua voz...

 

- Oh, querida - a voz de Constance quebrou. - O contrato de Mike não foi renovado!

 

- O quê?

 

- É verdade. Todos os outros professores obtiveram novos contratos para o próximo ano, excepto Mike. Anda desesperado.

 

- Mas porquê ? - perguntou Allison. - Disseram-lhe, ao menos, o motivo?

 

- Disseram-lhe   simplesmente que   seria melhor   que arranjasse emprego noutro lado qualquer.

 

- Que pretextos idiotas! - exclamou Allison revoltada.

 

- Não te incomodes, querida - disse Constance. - Peço-te, no entanto, que venhas cá logo que possas. Andamos a pensar em sair de Peyton Place.

 

Allison fez as malas de seguida e antes de deixar o hotel telefonou a Paul Morris.

 

- Sabe qual foi o resultado de toda a sua estúpida publicidade ? - perguntou. - O meu pai perdeu o emprego.

 

- O quê ? - gritou Paul.

 

- Foi afastado. Arrumado. Despedido. Percebe?

 

- Allison, deixe-se estar onde está! Vou aí num instante.

 

- Não se mace. Parto para minha casa dentro de um minuto.

 

- Allison, pelo amor de Deus, que sucedeu? Diga-me.

 

- Não há mais a dizer - respondeu Allison a chorar.

 

- Mike não pode ficar em Peyton Place, eis tudo! Terão que se mudar, terão que vender o estabelecimento.

 

- Allison, lamento profundamente - murmurou Paul.

 

- Suponho que, nesse caso, é melhor que vá. Por estes dias telefono-lhe para Peyton Place.

 

Allison telefonou seguidamente a Lewis, mas ele não estava no escritório e apenas lhe pode deixar uma mensagem impessoal à secretária.

 

Como Paul Morris fazia notar mais tarde, o afastamento de Mike Rossi não poderia ter ocorrido em melhor altura, apesar de tudo. Os jornais não tinham que dizer e pegaram na história com ambas as mãos. Antes de Allison chegar a casa já as primeiras páginas dos grandes diários de Boston estavam cobertas de enormes títulos, falando dela e da família:

 

ESCÂNDALO EM PEYTON PLACE, lia-se, e, depois, vinha a história. Segundo a Imprensa, «Michael Rossi fora afastado do cargo de Director da Universidade de Peyton Place porque a enteada, a jovem Allison MacKenzie, escrevera um livro chocante sobre uma pequena cidade de Nova Inglaterra». Paul Morris observava, depois, que o título do livro de Allison aparecia em todas as colunas.

 

Allison folheava nervosamente os jornais enquanto o comboio avançava para Peyton Place.

 

«O que eu ando a fazer, Santo Deus», soluçava.

 

Chegara o mês de Maio e o vasto empreendimento de transformar o Norte de Nova Inglaterra numa gigantesca pousada de verão tinha começado.

 

Ao longo da «Costa Escarpada» do Maine, no «Coração da Região dos Lagos» e «No Alto das Montanhas Brancas» de New Hampshire e «Entre as Colinas Verdes» de Vermont, as vivendas de verão lavavam a leve camada de tinta que começaria a estalar e a cair lá para fins de Julho. Os proprietários de pequenos hotéis despregavam pranchas das janelas e perguntavam a si próprios se as cadeiras da esplanada poderiam aguentar mais uma época.

 

Qualquer cidadezinha que tivesse o quer que fosse de interesse turístico enchia-se de cartazes e letreiros apregoando aos possíveis visitantes quartos ao dia, à semana, ao mês e à época enquanto os hotéis de maior classe publicavam anúncios discretos no Times de Nova Iorque que diziam «Sugestões para as suas férias», etc.

 

Arrelvavam-se campos de golfe, consertava-se o pavimento dos courts de ténis limpavam-se piscinas e estofavam-se a cretone novo cadeiras de esplanadas.

 

Os serviços municipais contratavam pessoal extraordinário para limpar das ruas montanhas de papel de forrar casas e garrafas de cerveja deixadas pelos veraneantes do ano anterior, enquanto, nas lojas, se marcavam os preços com vinte por cento de aumento. O Norte de Nova Inglaterra preparava-se assim, para trabalhar na única indústria de que dispunha: o turismo. em Peyton Place, Ephraim Tuttle certificava-se de que a ventoinha do tecto continuava em perfeitas condições de funcionamento e montava o toldo circular na montra da frente do estabelecimento. Indiferente às censuras de Clayton

 

Frazier e dos outros velhos que durante o Inverno não tinham arredado pé do fogão, Ephraim retirou, como de costume, as peças garridas de algodão de dentro dos sacos de plástico e estendeu-as a todo o comprimento do balcão principal.

 

- Alegra a casa - disse defensivamente, como em todas as Primaveras. - A malta do Verão gosta é de cores berrantes...

 

- Que   raio   de   disparate,   Ephraim - resmungava Clayton.

 

- Está bem - rematava ele, concordando. - É disparate. No entanto, começou a desmontar o velho fogão a

 

lenha e carvão nessa mesma tarde, e os velhos retiraram-se de novo para os bancos do jardim, defronte do Tribunal, do outro lado da rua. A Época começara pois, oficialmente, em Peyton Place.

 

Peyton Place não era ponto turístico na verdadeira acepção da palavra, pois não possuía nem lago, nem praia, nem montanhas. Mas os veraneantes, a caminho de Vermont, das Montanhas Brancas ou, mesmo, do Canadá, demoravam-se um pouco em Peyton Place.

 

Os visitantes mórbidos olhavam uns para os outros fazendo caretas e recordavam que «foi aqui que aquela rapariga matou o pai» e afrouxavam os carros ao passarem pela casa do Lucas. «O pai, não, o padrasto. E enterrou-o no curral das ovelhas, logo atrás da casa».

 

Neste ano, porém, ficavam-se a olhar para o Castelo de Samuel Peyton.

 

- Lá está o tal castelo de que fala o livro de Allison MacKenzie - diziam.

 

- Já o leste?

 

- Claro, e gostei muito. Cem por cento realista.

 

- Ouvi dizer que a gente daqui anda em guerra por causa desse livro.

 

- Já sei. O pai da pobre rapariga até perdeu o emprego por via disso. Afinal estas coisas só provam o que eu sempre disse: Nova Inglaterra é um belo local para visita mas não gostaria de cá viver, livra!

 

- A estreiteza de vistas é qualquer coisa de fantástico por estes sítios, ao que dizem.

 

- Não há dúvida. E se eu fosse Allison MacKenzie nunca seria capaz de esquecer tamanho desgosto. Esta gente tem alma de pedra.

 

- E dizem que Allison MacKenzie é uma jóia de rapariga. Vi-a na televisão e, na verdade, tem cara disso.

 

- Trouxe um exemplar de O Castelo de Peyton comigo quando resolvi passar por Peyton Place e gostaria de saber onde ela mora. Talvez Allison o autografasse.

 

- Perguntemos a alguém.

 

- Talvez àqueles velhotes além, sentados no banco. O automóvel azul-pálido estacionou junto do edifício do Tribunal e o grupo dos velhos começou a mirar disfarçadamente as duas mulheres que tinham saído do carro e se aproximavam. Usavam ambas calções brancos, iguais, e blusa às riscas e tinham as unhas dos pés pintadas de vermelho vivo e brilhante. Calçavam sandálias de tiras com saltos que martelavam o pavimento e tinham o rosto queimado do sol. Usavam óculos escuros de forma estranha, semelhantes a borboletas, de armações vermelhas e traziam no carro uma porção de malas a estalar de cheias. Pararam diante de Clarence Mitchell que ocupava o banco mais próximo. Embora com os olhos semicerrados, Clarence observava o carro com matrícula de outro Estado. Retirou do bolso um canivete e um pedaço de madeira e começou a cortá-lo, fingindo-se muito ocupado.

 

- Olha, um par de beldades à tua procura - disse o vizinho do lado.

 

- Cinquentonas pelo menos e vestidas como bonecas de quinze! Que descaramento!

 

- Até se vê daqui que trazem espartilhos rijos que nem ferro, debaixo das blusas - disse Clarence a adivinhar.

 

- Não me admira nada, homem. Se assim não fosse, chegavam-lhe as mamas ao fundo da barriga...

 

- Desculpe - disse uma das senhoras a Clarence. Chamo-me Mrs. James Delafield e esta minha amiga é Mrs. William Cameron - fez uma pausa mas, quando viu Clarence recomeçar a cortar o bocado de madeira, continuou: - Gostaríamos imenso de saber onde mora Allison MacKenzie! Podia fazer o favor de nos dizer?

 

Clarence levantou os olhos, de novo.

 

- Quem ?

 

- Allison MacKenzie - repetiu a senhora James Delafield.

 

Clarence assumiu um ar intrigado.

 

- Nunca ouvi falar em MacKenzies por aqui, madame, e tu, John?

 

John Barton empurrou o chapéu para os olhos e olhou para elas.

 

- Na! - respondeu. - Ninguém   daqui   dá   por   esse nome, que eu saiba!

 

- Mas o senhor com certeza que a conhece! - protestou a William Cameron.--É a escritora célebre! Escreveu um livro muito famoso, um best-seller.

 

- Best-seller o quê ? - perguntou Clarence.

 

- Um livro - disse a James Delafield. - Um livro de grande expressão, de que toda a gente fala, O Castelo de Peyton.

 

- Não entendo lá muito disso de livros, madame - respondeu Clarence, pegando de novo no canivete.

 

A mulher conservou-se indecisa durante um momento e Clayton Frazier, que até aí se mantivera calado, disse:

 

- Porque não experimentam ver na lista dos telefones ? Creio que se houver cá em Peyton Place alguém com o nome de MacKenzie deve vir na lista.

 

O rosto das mulheres animou-se.

 

- Pois é verdade! Porque não nos lembrámos nós disso, Elaine ?

 

A William Cameron sorriu para Clayton Frazier e disse:

 

- Tem razão, muito obrigada. Queira desculpar. Uma risada quase imperceptível percorreu os bancos

enquanto as duas senhoras entraram num estabelecimento e saíram de novo, dirigindo-se para o carro, logo a seguir. Não havia na lista dos telefones de Peyton Place nenhum assinante com o nome de MacKenzie. Desapontadas foram-se embora.

 

- Bem, ao menos estas não trabalham para os jornais

- disse Clarence. - Sempre a fazerem perguntas e a tirar retratos. Têm essa a seu favor.

 

- Pois têm. Mas uma pessoa ser chateada duas vezes também é de mais.

 

- Mas olha que foi pior desta vez do que quando da morte de Lucas Cross.

 

- Está bem. Mas desta vez o falatório durou menos.

 

- Não tens que te queixar, Clayton. Foste bem amiguinho desse tipo do jornal de Boston, da primeira vez...

 

- E da última também - respondeu Clayton. - Bom tipo esse Tom Delaney.

 

- Governavas-te em Nova Iorque tu, Clayton. Sempre com o retrato nos jornais.

 

- Lá isso - respondeu Clayton afectadamente, ajeitando o chapéu para cima dos olhos - é porque, segundo dizem, sou um «espécime típico de Nova Inglaterra, com a face esculpida no granito da minha terra natal». Li eu, no Daily Recorã!

 

Os outros riram. Deixaram-se ficar descansados ao sol, observando o tráfego da Rua do Olmeiro.

 

O tumulto e o escândalo provocado pelo livro de Allison e o sensacionalismo cuidadosamente fabricado pela publicidade de Paul Morris tinham sido breves mas decisivos. Seis semanas depois da sua publicação O Castelo de Peyton ascendera ao primeiro lugar na lista dos livros de maior venda em todo o país. No fim da segunda semana de Julho, Bradley Holmes telefonou a Allison para lhe dar a maior de todas as notícias.

 

- Allison ?

 

- Sim, Brad.

 

- Vendi o argumento a Hollywood! Allison deixou-se cair no sofá.

 

- A Hollywood ? - gritou. - Mas Brad, isso é fantástico, incrível! Não sei como irão eles fazer um filme do livro, mas, no entanto, é maravilhoso!

 

- E não me perguntas por quanto o vendi ? - perguntou Brad impaciente.

 

- Oh - respondeu Allison com um sorriso - nem me lembrei.

 

- Duzentos mil dólares! - exclamou Brad com a mesma reverência que empregaria para dizer «em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo».

 

Allison mal podia respirar.

 

- Brad, pelo amor de Deus! Nem posso acreditar!

 

- É verdade. Dez por cento para Jackman e outros dez para mim, ficas ainda com cento e sessenta mil dólares!

 

- É incrível. É indecente, mesmo.

 

- Não penses nisso. Quando pagares ao fisco vais dizer que a única indecência de tudo isto é o Governo. Podes dar um salto a Nova Iorque,   sexta-feira, para assinares o contrato?

 

- Suponho que sim, se é necessário.

 

- Como vão as coisas em Peyton Place ?

 

- Na mesma. Ainda ninguém me fala, ou quase, e Mike está desempregado...

 

- Vocês tencionam mudar-se?

 

- Não. Estamos todos de acordo neste ponto. Mike anda a tentar conseguir um emprego em qualquer terra próxima daqui, mas, por enquanto, nada conseguiu ainda.

 

- Não se preocupem, Allison - disse Brad. - Nós por aqui vendemos milhares de livros.

 

- Eu sei - respondeu Allison. E sabia também que se lhe perguntasse qual o preço do livro obteria dele uma resposta vaga.

 

Allison sentou-se fatigada à secretária, defronte de um cesto de cartas. A princípio considerava excitante receber cartas de admiradores. Uma palavra de louvor ao seu romance bastava para a fazer feliz. Agora abria indiferentemente dezenas de cartas repassadas de admiração entusiástica pelo seu trabalho. De todo o país havia quem lhe escrevesse, felicitando-a pelo talento e pela coragem de que dera provas, arrostando com a fúria de uma cidade inteira para, com desassombrada verdade, lhe dissecar a podridão.

 

Havia, contudo, cartas desfavoráveis, também, na maioria anónimas, onde lhe diziam que «O Castelo de Peyton era um romance medíocre e ordinário, bom apenas para o caixote do lixo». Muitas dessas cartas vinham repletas de obscenidades enquanto, noutras, lhe propunham casamento. Alguns ofereciam-se para vir a Peyton Place «libertá-la de toda essa lama». Allison e Constance separavam as «boas» das «más» e, à noite, Mike divertia-se a ler estas em voz alta, dando à voz inflexões tão cómicas que Allison e Constance não podiam deixar de rir às gargalhadas.

 

Allison, porém, embora achasse graça, sofria. As cartas desfavoráveis eram como que a cavidade de um dente em que a língua se introduzia involuntariamente. Por vezes sentia-se deprimida e as lágrimas velavam-lhe os olhos. Parecia-lhe estar o mundo inteiramente composto por mulheres que liam O Castelo de Peyton e a odiavam. Constance, também fervia de raiva impotente.

 

- Que descaramento - gritava exasperada. - Olha esta carta, Allison!

 

- Allison - comentou Mike calmamente - uma mulher que tem a coragem de escrever estas palavras é doente. Doente de despeito e inveja. Não chores.   Pode parecer ridículo este conselho mas é caso para teres dó.

 

- Mas porque me odeiam, Santo Deus! - exclamava Allison a chorar, como uma menina da escola a quem não deixassem ir a um passeio. - Que mal lhes fiz ?

 

- Escreveste um livro famoso e tornaste-te rica - disse Mike.

 

Allison regressava a Peyton Place havia cerca de um mês, compartilhando do involuntário exílio de Constance e Mike. Passava as noites sem dormir, vagueando à volta da casa, incapaz de se deitar ou de ler. A madrugada encontrava-a invariavelmente sentada à mesa da cozinha, a escrever longas cartas a Lewis Jackman. Roía-se de saudades dele. Na solidão de Peyton Place o amor de Lewis impregnava-lhe os pensamentos. Vivia para as suas cartas, e todos os dias elas lhe chegavam às mãos repletas de paixão.

 

Tanto Mike como Constance aconselharam-na a voltar para Nova Iorque, garantindo-lhe que não havia razões que a retivessem ali. Mas Allison não se dispunha a deixá-los. Fora a causadora dos seus dissabores e sabia que a sua presença junto dos pais constituía um acto de devoção de que eles necessitavam desesperadamente.

 

Nada lhes contara do sucedido com Lewis. Era um segredo que a ninguém revelara ainda. Guardava-o no fundo da alma com um receio supersticioso de que, se dele falasse, tudo se esvairia como um sonho cor-de-rosa.

 

Peyton Place transformara-se num campo solidamente dividido. Havia quem fosse contra ou a favor de Allison MacKenzie mas não existia o meio termo. A maioria, porém, voltava-se assustadoramente contra ela. Aqueles que tinham feito coisas piores que as descritas em O Castelo de Peyton eram os primeiros a atacá-la.

 

- Como sabe ela tantas poucas-vergonhas ? A não ser que se esteja a ver ao espelho.

 

- Allison nunca viu essas coisas em Peyton Place.

 

- Sempre me pareceu que esse Rossi se governava com ela, o figurão. Foi ele quem a ensinou.

 

- Quem havia de dizer que Constance permitia uma coisa dessas em sua casa.

 

- Allison sempre foi descarada e mentirosa.

 

- O que eles merecem todos é que os ponhamos a andar daqui para fora...

 

- Claro. Rossi já não trabalhará mais um dia em Peyton Place.   Isso garanto eu - dizia Roberta Cárter. - Marion Partridge e eu tomamos conta dele.

 

E foi mesmo assim. Charles Partridge fora eleito para o Conselho escolar e quando se falou de Rossi e do seu contrato, o velho Charles não teve coragem de se opor aos desejos da mulher e de Roberta.

 

- Rossi não ensinará mais aqui, Charles - disse-lhe.

- E está o assunto arrumado. Roberta e eu votamos contra ele e nada poderás fazer.

 

- Peyton Place sempre foi uma cidade decente - disse Roberta - e com uma escola decente. Allison MacKenzie não aprendeu aquela linguagem de obscenidades na nossa Universidade nem foi aqui que lhe ensinaram tamanhas poucas-vergonhas. A juventude de Peyton Place, o que sabe, aprendeu-o em casa.

 

«Excepto Ted», pensou, com um nó na garganta, como sempre que se lembrava do que sucedia ao filho com a esposa, Jennifer. «Ted, até casar, foi sempre um rapaz educado e bom. Em casa nunca lhe ensinaram senão decência e boas maneiras. Foi essa Jennifer que lhe ensinou as maldades que ele agora demonstra saber».

 

- Tens muita razão, Roberta - concordou Marion. Acredita-me nos meus juízos. Sempre disse ao Charles que Constance MacKenzie não era tão santa como aparentava. Nunca mais ponho os pés lá na loja, digo-to eu. Bem bastou quando ela meteu lá essa assassina da Selena Cross. Quanto mais ensinar à filha semelhantes baixezas.

 

- Oh, calem-se, por amor de Deus! - exclamou Charles desgostoso.

 

- Charles - disse Marion friamente. - Não há razão para estares com essa cara e a falar em Deus ainda por cima! Pareces uma personagem desse maldito livro.

 

- Digo «pelo amor de Deus» desde que aprendi a falar.

 

- Pois eu - disse Roberta - não admitiria esse género de palavras ao Harmon.

 

- Tenho a impressão - retorquiu Charles num acesso de espírito pouco habitual - que você também empregava «esse género de palavras» nos tempos do velho doutor Quimby...

 

- Charles! - exclamou   Marion   reprovativamente. Basta!

 

- Não te incomodes, Marion - disse Roberta. - Charles sabe muito bem que não é próprio falar mal dos mortos.

 

- Oh, por amor de Deus... -repetiu Charles. Nesse momento o Dr. Swain entrou na secretaria da escola e exclamou:

 

- Logo que acabe o sermão quero-lhe dizer uma palavrinha   acerca da renovação   do contrato   de Mike Rossi.

 

- Já vem tarde - respondeu Roberta.

 

- O   assunto   já   foi   votado - acrescentou   Marion.

 

- O Conselho escolar opõe-se à renovação do contrato!

 

Charles Partridge encolheu os ombros para Matt Swain, dando-lhe a perceber que tentara, mas sem resultado.

 

- Já que estou aqui - continuou Matt - suponho que posso vender o meu peixe, apesar de tudo.

 

- Se tem alguma coisa a dizer,   diga-o na reunião

- exclamou Roberta.

 

Matt fingiu-se despercebido.

 

- Senhor associado... - disse com ironia,   e Charles respondeu prontamente:

 

- A Assembleia reconhece o Dr. Matt Swain... Matt conservou-se encostado à mesa defronte de Marion e Roberta.

 

- Parece que não estão satisfeitos com Allison MacKenzie só porque teve o desassombro de vos fazer ver ao espelho. Querem atacá-la na pessoa de Mike Rossi, castigando um inocente pela coragem de defender a filha.

 

O Dr. Swain meteu as mãos nos bolsos, inclinou-se para a frente, baixou os olhos para a mesa e continuou:

 

- Já vão longe os tempos em que os nossos antepassados,   os fundadores de Peyton Place, pensavam que a coragem era uma virtude! - Levantou a voz: - Agora pergunto-vos, minhas senhoras, vamos nós, doravante, premiar a cobardia? Uma vez que a coragem se transformou num crime aos vossos olhos, proponho que se levantem estátuas aos homens de Peyton Place que batem nas mulheres e abandonam os filhos...

 

Roberta agitou-se pouco à vontade na sua cadeira, com os lábios cerrados. Era como se pensasse que, fechando a boca, não ouviria as palavras cáusticas de Matt Swain.

 

- Há alguns anos - continuou ele - receava que Peyton Place estivesse demasiadamente afastada do resto do mundo. Agora, porém, receio o contrário. Receio que nos aproximemos em excesso dessa loucura - e pior do que isso - que assola o nosso país hoje mdia. A rádio e a televisão constituem uma calamidade nacional. Parece-me que, infelizmente, também nós de Peyton Place, vamos entrar em cena, e da pior maneira. Oxalá me engane...

 

Roberta tossiu e Marion tentou olhar para Charles Partridge. O Dr. Swain, porém, não lhes deu tempo.

 

- Por amor de uma vingança - continuou - estamos agora a fazer coro com essa loucura. Estamos a retroceder aos tempos da perseguição que fazem a vergonha das páginas da História. Nós, que nos prezávamos do nosso individualismo, estamos a exigir aos outros que abdiquem da sua personalidade a nosso favor. Ou pensam à nossa maneira, ou fazem o que nós fazemos ou vão para o exílio!

 

Voltou-se para Charles e acrescentou numa voz fatigada:

 

- É tudo o que eu lhe queria dizer, Charlíe. A única esperança que me resta é que um dia, mais tarde ou mais cedo, olhemos para o que fizemos e tenhamos, ao menos, a coragem de nos envergonharmos de nós próprios. Muito obrigado, minhas senhoras, pela vossa amável indulgência.

 

Voltou-se e saiu imediatamente da sala, deixando Roberta e Marion incapazes de articular uma palavra.

 

- Adia-se a audiência ? - gracejou Charles.

 

Marion e Roberta não eram, contudo, as únicas mulheres de Peyton Place que tinham deixado de fazer compras na «Progressiva do Vestuário» de Constance MacKenzie. Muitas outras, que até aí frequentavam o estabelecimento, iam agora a Concord e a Manchester desculpando-se que as filhas faziam o mesmo. Ocasionalmente um cliente entrava a medo no armazém para comprar um par de peúgas, mas a grande maioria afastara-se.

 

- Não desistirei até à falência - afirmava Constance, resolvida a manter a loja aberta. -Não tarda que arranjem mais em que pensar e então virão de novo. Quanto mais não seja para me falar dos últimos mexericos.

 

Matthew Swain não ocultava a sua repulsa pelo acontecimento a quem o queria ouvir. E os que não o escutavam voluntariamente eram por vezes forçados a isso e, então, Matt não tinha papas na língua.

 

- Por que diabo anda tão escandalizada ? Você pode tapar os olhos à cidade com a sua inocência. A mim é que não.

 

Assim o médico, atirando-lhes à cara com este ou aquele pequeno escândalo, tirava aos pacientes toda a vontade de abrirem a boca, de futuro, sobre O Castelo de Peyton.

 

Seth Buswell, de acordo com a tradicional prudência do Peyton Place Times não tomou qualquer partido. Limitou-se a publicar apenas as críticas favoráveis ao livro e as cartas elogiosas que lhe eram enviadas. Manteve essa atitude não obstante a diminuição da publicidade e o cancelamento de numerosas assinaturas. Allison nunca viria a sabê-lo, porém, se Norman Page não lho tivesse revelado.

 

- Hoje cancelaram quinze assinaturas. Se isto assim continua, Allison, não sei se o Seth poderá continuar com o jornal.

 

Allison foi imediatamente procurar Seth Buswell.

 

- Estou-lhe muito grata por tudo o que tem feito, Seth - disse. - Mas por favor não se arruine por minha causa. Publique a crítica adversária. Toda a gente sabe que a há por todo o lado. Quanto às cartas desfavoráveis vou mandar-lhe um saco delas.

 

Seth sorriu:

 

- Vou tentar aguentar-me - respondeu. - Vamos até ao «Hydes». Pago-lhe um café.

 

- Muito obrigada - respondeu Allison humildemente.

 

- Não se preocupe, Allison. Vem aí o Verão. Muita coisa vai acontecer e haverá muita gente estranha de quem falar.

 

- Espero que sim - respondeu ela, pegando-lhe no braço enquanto atravessavam a Rua do Olmeiro.

 

Com o decorrer das semanas a Primavera foi-se transformando lentamente no Verão e as palavras proféticas de Seth Buswell transformaram-se, também, em realidade.

 

Numa tarde de sábado, aos seis anos de idade, Timothy Randlett fez uma imitação de Al Jolson interpretando «Mammy». Foi o bastante para convencer a mãe, Peg Randlett, as tias, tios e primos que presenciaram o espectáculo na sala de estar, digerindo uma pesada refeição, de que o pequeno Timothy tinha nascido para actor.

 

- Sempre o achei diferente de todos os outros - disse Peg Randlett ao marido, Sam. - Esta criança é privilegiada.

 

Sam Randlett era um dos seis irmãos e quatro irmãs e o único que, dentro deles, tinha conseguido triunfar de algum modo. Era capataz numa fábrica de cerveja em Newark e ganhava o que a família classificava de bom ordenado. Mas, quando a mulher começou a gastar dinheiro «à larga» no dizer das irmãs e dos cunhados com lições de dança e dicção para o pequeno Timothy, revoltou-se:

 

- O dinheiro não cai do céu, Peg - exclamou. - Sai-me do pêlo. Custa-me ver-te a deitá-lo fora com semelhantes maluqueiras.

 

- Sam - respondeu ela - devias envergonhar-te de ti próprio! Um homem da tua posição a opor-se ao futuro do filho.

 

- Deus do céu! Achas futuro vestir o rapaz de veludo e fazê-lo dar espectáculo diante da família, todos os sábados? Não me ralo de te dizer, já que estamos a falar, o que a minha irmã Helene pensa dele. Pois acho-o tonto! Basta vê-lo sempre de nariz no ar, em vez de ir brincar com os primos como todas as crianças da idade dele.

 

- Helene não tem coração - respondeu Peg. - Olha para os filhos dela e para o marido: uma chusma de idiotas que passam a vida a invejar-te a ti e ao Tim.

 

- Basta, Peg - rugiu Sam. - Helene é minha irmã e não abras a boca contra ela.

 

- Então   diz-lhe   que   não   meta   o   nariz   na   minha vida - replicou Peg. - Se é assim tão boa, que lhe preste.

 

- Pois eu digo-te que não estou disposto a aturar isto - retorquiu Sam. - Fazes do rapaz um maricas, é o que é.

 

- Tim há-de ser um grande actor quando for crescido - disse Peg. - E nem tu nem os teus irmãos todos juntos o impedirão, enquanto eu for viva. Espera e verás, Sam Randlett. Um dia hás-de-te arrepender.

 

Quando Tim fez nove anos os planos de Peg estavam feitos e refeitos.

 

Um dia, de acordo com eles, enquanto Sam estava na fábrica, preparou as malas e meteu-se com o filho num táxi. Fez uma breve paragem no Banco donde retirou todo o dinheiro da conta do casal e tomou o comboio para Hollywood, Califórnia.

 

Tim Randlett possuía uma longa madeixa de cabelos negros, enormes olhos azuis-esverdeados e a cândida palidez de um menino de coro. Embora de inteligência apenas regular, tinha, para a idade, notáveis dotes histriónicos, e era uma criança dócil e obediente. Acima de tudo isso era dotado, como um produtor de Hollywood fez notar, de uma preciosa habilidade natural para... chorar. Um importante estúdio contratou-o para actuar num filme, no papel de um pobre órfão recolhido e amado por um velho capitão de navios, num farol perdido, até que as autoridades o procuram, no propósito de o retirar desse meio selvagem, inadequado à educação de uma criança. Sucede, porém, que a visitadora social é jovem e bela e o vizinho mais próximo do farol, um marinheiro que ajuda o velho capitão, é, igualmente, jovem e elegante. Ambos descobrem, depois, que o capitão é nem mais nem menos que o pai da mãe do menino, que aos dezasseis anos, fugira da casa paterna com um lenhador dos arredores. O fim emocionante do filme mostrava o pobre orfãozinho ao colo daquele que agora reconhecia ser o seu avô, dando as mãos à gentil visitadora e ao seu jovem noivo, o marinheiro, enquanto grossas lágrimas de gratidão lhe caem dos grandes olhos negros e olheirentos.

 

O filme chamava-se O Pequeno Capitão do Mar e fez de Tim Randlett um astro que brilhou intensamente no firmamento de Hollywood até aos quinze anos, idade em que passou a ser um ex-prodígio, de longas pernas, ombros largos e borbulhas.

 

Peg regressou, então, a Nova Iorque, com o filho. Alugou um apartamento e cuidou de completar a educação do seu Timmothy. Mas não foi fácil. Vivenda de vinte divisões, com piscinas e quinze criados às ordens custam dinheiro em Hollywood, para não falar dos automóveis com chauffeurs de libré, peles, jóias e fatos de encomenda. Tim tinha agora dezasseis anos e pouco dinheiro restava. Os produtores e directores que dantes cumulavam Peg de dinheiro e atenções, durante a breve carreira de Tim, recusavam-se agora a falar com ela e havia uma porção de gente ordinária a maçá-la com ninharias como renda da casa, conta do gás e água, etc. Peg Randlett morreu quando Tim fez dezanove anos, odiando-o por lhe ter proporcionado tudo quanto ambicionara e tudo lhe ter feito perder, precisamente quando lhe começava a tomar o gosto. Mas Peg devia ter sido mais paciente, pois Tim, pouco tempo depois, iniciou a longa e laboriosa tarefa de regresso a si próprio e à sua arte serôdia.

 

Nos quinze anos que se seguiram, Tim Randlett trabalhou arduamente. Actuou em óperas publicitárias, fez de Voodoo, o Mágico, em intermináveis folhetins radiofónicos e desempenhou pequenos papéis na Broadway e outros em companhias ambulantes. Com o advento da televisão começou a ter emprego quase permanente mas, apesar disso, saía todos os anos de Nova Iorque, no Verão para ingressar em teatros em digressões pela província. Em barracões de palcos improvisados, tendas e velhos teatros, num formigueiro de actores falhados e actrizes decrépitas, em festas de clubes provincianos e espectáculos de variedades, Tim Randlett brilhava a grande altura.

 

Andava pelos trinta e seis anos quando assinou o contrato com a Companhia Barrows para actuar no Teatro Barn, em Silver Lake, a oito milhas ao norte de Peyton Place. Estava havia três dias em Silver Lake quando Seth Buswell o procurou para uma entrevista:

 

Sou do Peyton Place Times - explicou Seth. - Não é um grande jornal, nos moldes de um citadino, mas, enfim, cá vamos. Pelo menos, farei publicidade gratuita à sua peça. Tim acabava precisamente de tomar um banho demorado e encontrava-se na praia do lago a enxugar-se com uma toalha. Era alto, esguio e extremamente elegante e belo. O seu corpo fazia pensar muitas mulheres e era a inveja dos homens velhos e barrigudos. O cabelo, negro-escuro, começara a tornar-se grisalho dos lados, mas o rosto, profundamente moreno e jovem, conservava-se atraente. Seth Buswell, observando-o, apalpou instintivamente a barriga descomunal e suspirou.

 

- Claro - respondeu Tim Randlett. - Já tenho ouvido falar de Peyton Place. Suponho que toda a gente conhece essa terra de nome, depois da publicação de O Castelo de Peyton. Você conhece a rapariga que escreveu esse livro?

 

- Desde criança - respondeu Seth.

 

- Maravilhoso - exclamou Tim. - Gostaria imenso de a ver. Pode-me arranjar um encontro?

 

- É possível - disse Seth. - Quer dar uma volta comigo por Peyton Place? Podemos ir conversando pelo caminho...

 

- Dê-me só dez minutos para me vestir.

 

Seth sentou-se num cepo de árvore e observou o actor a correr agilmente em direcção a uma casa no outro lado da praia. Deu uma olhadela ao relógio e suspirou de novo.

 

«Nada que chegue a um homem destes para que um homem como eu se sinta velho, gordo e idiota» - pensou.

 

Nessa tarde Selena Cross fechou as portas do estabelecimento de Constance MacKenzie e atravessou a rua para ir ao «Hyde’s» jantar sozinha. O Joey fora a uma excursão da escola e não voltaria a casa antes das nove e meia e Selena não gostava de estar sozinha em casa.

 

- Boa tarde, Selena - disse Corey Hyde enquanto ela se sentava num banco. - O Joey ? Foi às moças, hein?

 

- Nada   disso.   Foi   com   os   colegas   para   Meadow Ponde - respondeu.

 

- E como vão as coisas lá pela loja, melhor ?

 

- Vamos indo - respondeu Selena secamente, deixando transparecer uma ligeira sombra de enfado na voz.

 

Passara um dia interminável na loja, quente como um forno, para vender apenas, em nove horas de trabalho, uma blusa, dois pares de peúgas e um gancho para o cabelo!

 

- É uma vergonha, digo eu - respondeu Corey. - Tudo isto por causa de um livro.

 

- Que tem para o jantar, senhor Hyde ? - interrompeu Selena. - Estou morta de fome.

 

- Caldeirada - respondeu Corey, um pouco despeitado pela falta da sociabilidade de Selena.

 

- Mais nada ?

 

- Não. Há aí umas costeletas de porco, se quiser, mas não lhe convêm. Muito gordas. Os de fora que as comam. Arranjam-se também uns filetes de peixe, mas de conserva.

 

Selena suspirou e afastou os longos cabelos negros do pescoço.

 

- Pode fazer-me uma salada ? Uma salada de pepino com qualquer coisa fria.

 

- Muito bem - respondeu Corey. - Posso arranjar-lhe uns mariscos, se quiser. Mas não acho indicado para uma rapariga que trabalhou um dia inteiro...

 

Selena não fez caso da observação de Corey.

 

- Traga a salada, senhor Hyde - disse. - Salada de pepino com mariscos e um copo grande de chá gelado. Abriu um livro e começou a ler.

 

- Hum! - resmungou Corey   dirigindo-se à   cozinha.

- Esta Selena não anda boa. Não se lhe pode dizer nada.

 

E tinha razão. Mais tarde Selena admitia que, de facto, não andava boa. Tornara-se excessivamente susceptível, na opinião de Corey e, a si própria, considerava-se mentalmente débil. Até com o pobre do Joey.

 

- Andas esquisita, Selena - dizia ele. - Isso deve ser febre da Primavera...

 

- Febre da Primavera no Verão ? - perguntou-lhe Selena.

 

- Não te faças desapercebida. Eu queria dizer-te que me parece que andas aluada mas estava a ver se to dizia polidamente.

 

Não foi fácil para Selena admitir que, de facto, andava diferente, neurasténica, impossível. Aborrecia-se com o emprego, consigo própria e com a vida. Era um tédio enorme onde havia uma confusa sensação de pavor. Sucedeu que saiu algumas vezes para jantar fora na companhia de um ou outro viajante, dos que vinham à loja. A notícia, claro, voou, mas todos sabiam que Selena não dormia fora de casa, tanto mais que, na maioria das vezes, os seus companheiros eram homens idosos e respeitáveis. Havia também Peter Drake, o jovem advogado que tomara a sua defesa no caso de Lucas Cross. Saíam muitas vezes para ir ao teatro, a Boston. Jantavam juntos em restaurantes ou em casa dela e, com certo alívio, Selena verificava que ele e Joey se entendiam bem. Sempre que Peter a convidava para sair, porém, maçava-a com propostas de casamento. Mas a resposta era sempre a mesma.

 

- Não posso, Peter.

 

- Não estás comprometida com outro, pois não, Selena ?

 

- Sabes tão bem como eu.

 

- Já não pensas no Ted Cárter, claro?

 

- Não. Nem sequer consigo pensar nele para o detestar.

 

- Selena, eu amo-te.

 

- Eu sei. E é pena, Peter.

 

- Não será tudo isto por causa desse maldito caso do Lucas Cross? Não terás tu receio de mim, só porque sou um homem, ou qualquer coisa desse género?

 

- Peter, queres fazer o favor de te deixar de psiquiatria de pataco?   Lucas não era um homem,   era uma besta. Nunca pensei nele como um homem e o que dele me ficou na memória nada tem que ver com as minhas simpatias. E agora deixas-me em paz, sim ?

 

- Selena, de que estás à espera ? Que pretendes tu na vida?

 

- Não sei, confesso-te. Não sei o que se passa comigo, Peter.

 

- Amo-te, Selena. Não te peço que me ames de igual maneira, já. Mas casemos. Talvez que com o tempo...

 

- Não posso, Peter. Gostaria que isso fosse possível, mas não.

 

Apesar de tudo as visitas de Peter Drake constituíam, por vezes, um alívio. Repousava a cabeça no ombro dele e confiava-lhe as suas preocupações. «Se casássemos», pensava, «seria bom para mim. E para o Joey, também». Contudo, de outras vezes em que o tédio a envolvia como um colete de forças, pensava que Peter não passava de um vulgar maçador, com toda essa ridícula paixão por ela. «Quem me dera que isso lhe passasse, que encontrasse por aí uma rapariga bonita e me deixasse em paz», suspirava.

 

«Sou uma desgraçada» - pensava, supliciando-se de bom grado. «Peter é um excelente rapaz, bom, carinhoso, e o meu dever seria casar com ele ou deixá-lo de vez».

 

O tempo, porém, ia passando; Peter repetia o seu pedido e Selena continuava a dizer não...

 

Por vezes Selena acordava alta noite repassada de suor, sentindo o pulsar vertiginoso do coração.

 

«Que se passa comigo ?» - interrogava-se no silêncio, apavorada. «Onde irei eu parar? Será que a vida é isto, apenas, sempre?»

 

Surpreendia-se por outras vezes, numa atitude de expectativa mas não sabia explicar a si própria por que esperava, por quem, porquê.

 

- Ora aqui tem - exclamou Corey Hyde colocando o prato diante dela. - Salada de mariscos. Essa maionese chega ?

 

- À vontade, senhor Hyde - respondeu Selena. - Obrigada.

 

- Coma tudo, hein! Faz-lhe bem.

 

Precisamente quando pegava no garfo, Seth Buswell parou o carro defronte do «Hyde’s».

 

- Não conheço as usanças lá donde vem - disse ele a Tim Randlett - mas aqui em Peyton Place são horas de jantar. Antes de uma hora, mais ou menos, não podemos ir ver Allison MacKenzie. Venha. Arranjo-lhe aqui umas sanduíches.

 

- Bom - respondeu Tim sorridente. - Vamos lá fazer uma extravagância esta noite...

 

Selena Cross levantou a cabeça quando viu abrir a porta da sala de jantar.

 

- Olá! Não é sorte? - exclamou Seth.-Assim podemos jantar na tua companhia, Selena!

 

Selena mal olhou para Seth. Os olhos prenderam-se-lhe no homem que o acompanhava e já não pôde despregá-los dele. Costumava reparar em todos os pormenores de uma pessoa quando a via pela primeira vez, desde o tom das feições ao porte e vestuário. Mas naquele desconhecido nada via além dos olhos: eram verde-azulados, duma cor que ela classificava para si própria de «cor da felicidade». Olhos daqueles costumava admirá-los nas fotografias de pessoas célebres, talentosas e belas, distinguidas pela natureza com toda a gama de dotes físicos e espirituais, de que os olhos constituíam o único reflexo exterior, um extra da generosidade dos deuses.

 

- Selena - disse   Seth   Buswell -,   apresento-te   Tim Randlett. Tim, Selena Cross...

 

Foi como se Seth tivesse colocado um trampolim que a impelisse para o belo desconhecido.

 

- Como   está,   senhor Randlett - disse   sorridente. Bem, Seth, sentem-se por favor.

 

- Tim Randlett trabalha no teatro, de Verão, em Silver Lake - explicou Seth.

 

- Eu sei - respondeu Selena. - E para ele: - Já o vi no cinema, senhor Randlett.

 

Tim sorriu.

 

- Devia ser uma menina muito pequena...-disse.

- Foi há tantos anos!

 

- Não há muitos - respondeu Selena - a minha amiga Allison MacKenzie e eu costumávamos ir ao cinema todos os sábados.

 

- A propósito de Allison - arriscou Seth, dando uma olhadela ao relógio - o melhor é jantarmos num instante e...

 

- Bem - interrompeu Tim Randlett sorrindo - se tem muita pressa de a ver,   senhor Buswell,   o melhor é ir andando...

 

Voltou-se para Selena e perguntou:

 

- Posso jantar consigo ?

 

Selena fechou o livro sem se incomodar a marcar a página e levantou os olhos para ele.

 

- Sim - respondeu. - Terei muito prazer...

 

«E foi então que compreendi que estava «a mais» como se diz» - explicava mais tarde Seth Buswell a Matthew Swain, enquanto beberricavam.

 

- Mas quem diz ? - perguntou Matthew um pouco caturra com os efeitos da bebida.

 

- Ninguém, tenho um dedo que adivinha, Matt. Não que me tenha metido na conversa deles, mas percebi o suficiente.

 

- Ouve Seth - respondeu Matt - tu és um dos raros espécimes que ainda existem do «anjinho» inato. Tenho a certeza que se um dia te aparecesse uma boneca que te piscasse o olho fugirias a sete pés.

 

- És um velho má-língua...

 

- Talvez - respondeu   Matt. - Mas   vejo   as   coisas. Nunca seria tão estúpido que deixasse Selena com um actor pescado algures. Sabes lá quem ele é?

 

Seth agitou as pedras de gelo à roda do copo.

 

- Pareceu-me um rapaz bastante decente - respondeu.

 

- Que entendes tu por bastante decente ?

 

- Bem, o mesmo que tu. Educado, bem-falante.

 

- Por fora - respondeu Matthew Swain. - Na aparência. Mas que sabes tu das qualidades desse Tim Randlett?

 

- Não tive muito tempo para o conhecer - respondeu Seth. - E, mesmo que tivesse e ele saísse um pirata, pouco ou nada poderia fazer. Logo que eles olharam um para o outro, Matt, o ar entre eles ficou capaz de provocar uma descarga eléctrica.

 

- Falas   como   um   poeta   adolescente - resmungou Matthew. - Essas coisas já não acontecem.

 

Seth Buswell esgotou o copo e encheu-o de novo.

 

- Isso é o que tu pensas, Matt - respondeu por fim.

- Tanto que acontecem que eu estava lá e vi com os meus próprios olhos!

 

O asfalto das ruas de Peyton Place amolecia sob o calor do Verão e os saltos dos transeuntes marcavam-nas em todos os sentidos com pegadas em forma de U.

 

As margens do lago de Green Meadow regurgitavam de crianças buliçosas e barulhentas e todo o santo dia as cigarras sibilavam estridulamente nas pernadas das árvores. O Verão era ideal, bem temperado de sol e chuva e, por isso, todo o lado Norte da Nova Inglaterra reverdecia com uma exuberância verdadeiramente tropical.

 

Um verde pesado e maduro dominava toda a paisagem para surpresa dos próprios camponeses empedernidos, habituados demasiado ao aspecto débil e atrofiado da vegetação, à mingua de sol.

 

- Chega a fazer pasmar uma pessoa - pensava Kenny Stearns de alto, colhendo outra rosa vermelha de um canteiro furiosamente carregado.   Olhou para o verde espesso do relvado e viu a macieira tão ajoujada de frutos entumecidos que os ramos se esganchavam no chão.

 

- Vejam isto - exclamou sozinho. - Chega a ser de mais, salvo seja. Parece uma porca com as tetas inchadas!

 

Era fácil, nesse ano, deitar ao Verão excepcional as culpas de tudo o que acontecia em Peyton Place. Nas Fábricas Harrington os operários esqueciam-se das máquinas e ficavam-se pasmados a olhar pelas janelas enquanto Leslie, desesperado, amaldiçoava o tempo. Muitas adolescentes que até então tinham defendido tenazmente a sua prezada virgindade entregavam-se agora, com suspiros de prazer angustiado, à sofreguidão ardente dos namorados. Regressavam vencidas a casa, de noite, cheias de arranhões dos fenos eriçados de silvas e os braços ardentes de picadas de mosquitos.

 

Como bem observava Matthew Swain para Seth Buswell, havia uma fortuna espalhada por todos os recantos dos bosques de Peyton Place só em moedas de três vinténs... Os maridos culpavam as esposas, as mães culpavam os filhos, os rapazes culpavam as raparigas e todos atribuíam as culpas ao tempo, responsabilizando-o por tudo excepto o comportamento de Selena Cross. Para ela não havia desculpa possível em Peyton Place.

 

- Quem é o fulano?

 

- Um actor qualquer, de Silver Lake.

 

- Veio de Nova Iorque para aqui ?

 

- Parece que é dos filmes...

 

- Hum. Uma rapariga como Selena devia ter mais cuidado. Afinal de contas já não é nenhuma criança.

 

- Isso não. Começou cedo a aprender.

 

- Pensei que uma rapariga como ela tivesse um pouco mais de vergonha. Mas não. Anda por aí a divertir-se com ele na cara de toda a gente.

 

Para Selena Cross o Verão apresentava-se tão deliciosamente agradável que, por outro lado, não a fazia sofrer. Sentia pena de não poder reter cada minuto de felicidade que passava, de ter que deixar correr as horas e os dias.

 

- Quando   era mais nova - disse - pensava que já sabia tudo o que havia a saber sobre o amor.

 

- E que mais sabes tu agora, querida ? - perguntou Tim, afagando-lhe os braços. - Agora que és uma «velha» de vinte e cinco anos.

 

- Sei que ignorava uma coisa até agora - respondeu Selena encostando-lhe a fronte ao rosto.

 

Permaneceram durante longo tempo sentados na praia de Silver Lake, falando de amor e acariciando-se.

 

- É uma tortura - disse Tim, beijando-lhe os cabelos estar junto de ti e poder tocar-te apenas aos bocadinhos, a tua boca, os teus olhos, as tuas pernas... É uma modalidade exasperante de masoquismo.

 

A voz de Tim, como sempre, calou-lhe bem no fundo e todo o corpo lhe estremeceu de excitamento.

 

- Eu coro quando tu me falas desse modo, Tim? - perguntou.

 

- Não, nem por isso. Ficas como se estivesses queimada do sol.

 

- Selena! Se não te levantas imediatamente e não vens comigo, vai haver uma linda cena aqui mesmo na praia porque eu vou despir-te o fato de banho dentro de... três segundos!

 

Selena levantou-se.

 

- Vamos então, querido - disse, e encaminhou-se para o carro.

 

Desde o seu encontro com Tim no «Hyde’s» ela sabia como as coisas se iriam passar entre ambos e interrogava-se, também, como terminariam, porquanto, desde o princípio, tinha a intuição de que a sua ligação com ele seria breve e transitória. A paixão que os unia era demasiado efémera para constituir alicerces sólidos sobre que edificar.

 

- Vamos a pé - dissera-lhe Tim nessa primeira noite logo que acabara de jantar.

 

E ela tinha ido com ele, imediatamente. Lá fora ele pegara-lhe nas mãos e assim se tinham dirigido para o parque.

 

- Há   noites   como   estas   nas   ilhas   dos   mares   do Sul - disse Tim.

 

- Oh! - exclamou Selena. - Conta-me como é uma ilha dos mares do Sul!

 

- As   noites   são   assim,   exactamente - murmurou Tim - escuras e carregadas de estrelas. Aspiramos os perfumes de milhares de flores diferentes ao mesmo tempo e isso   faz-nos   sentir   um   prazer inebriante.   Estamos   numa praia de areias brancas e o oceano é apenas um murmúrio aos nossos pés, macio e amigável, nada que nos possa assustar. Sentimo-nos capazes de estender o braço e apanhar a lua, se quiséssemos, e sabemos que ela seria macia como um novelo de algodão entre os nossos dedos...

 

- Encantador - murmurou Selena meigamente - gostaria de ir lá, um dia.

 

Tim baixou os olhos para ela.

 

- Mas tu estás lá agora, querida - disse. - Não o sentes ?

 

- É mesmo, mesmo como isto?

 

- Suponho que sim.

 

- Supões ? Então não sabes ?

 

- Bem,   nunca lá estive, exactamente, mas tenho a certeza de que será assim.

 

Selena endireitou-se vivamente no banco que ocupavam.

 

- Queres tu dizer que nunca estiveste numa ilha dos mares do Sul, que tens estado a inventar tudo isso da lua e das flores?

 

Tim sorriu.

 

- Claro - respondeu - estava   apenas   a   fantasiar... Selena sorriu decepcionada e respondeu no escuro:

 

- És tal e qual Allison MacKenzie. Costumava fazer o mesmo quando andávamos na escola. Falava, falava nas coisas mais fantásticas e quando via que eu acreditava em tudo desatava a rir e a dizer que era tudo inventado.

 

- Então é porque a tua amiga é mais sincera do que eu - respondeu Tim. - Algumas vezes invento coisas tão verosímeis que eu próprio quase que acredito nelas e, depois, não tenho a coragem de confessar a verdade.

 

Permaneceram sentados largo tempo, com as mãos enlaçadas e Selena repousando a cabeça no ombro dele. Tim contou-lhe como trabalhava em Nova Iorque e Hollywood e falou-lhe dos seus projectos.

 

- A fama tem apenas um grande inconveniente - disse ele. - Depois de a termos conseguido uma vez, nada mais podemos fazer sem ela.

 

- Será esse, de verdade, o único defeito de ser famoso ? - perguntou Selena.

 

- Suponho que sim - respondeu ele. - Não creias em todos esses disparates que se lêem nos livros sobre os inconvenientes da   celebridade.   Não   acredites   nas estrelas de cinema quando afirmam que é penoso ser-se rico, célebre e procurado.   Sofrem apenas a falta de intimidade mas deixam-nas a sós durante cinco minutos e lá estão elas a telefonar para os agentes, perguntando-lhes onde podem encontrar este ou aquele.

 

- E tu, também? - perguntou Selena.

 

- Não - respondeu Tim. - Sou franco neste assunto.

 

- E é só nesse assunto que és franco ?

 

- Não, Selena, vou também ser franco contigo. Passava da meia-noite quando se encaminharam para casa de Selena.

 

- Entra um pouco e fala com o Joey - pediu ela.

 

- Gostaria imenso de o encontrar - respondeu Tim -, tanto como aos teus pais e a qualquer pessoa que esteja relacionada contigo.

 

Selena sentiu-se empalidecer.

 

- Os meus pais morreram - murmurou. - E não tenho ninguém a não ser o Joey.

 

Tim reparou na expressão dela.

 

- Desculpa - disse - mas gostaria então de ver o Joey. E tenho que apanhar um táxi.

 

- Um táxi ? - perguntou Selena.

 

- Sim - respondeu Tim - Tenho que voltar a Silver Lake de qualquer modo.

 

- Mas como vieste tu parar aqui ?

 

- Com o jornalista. Como se chama ele ?

 

- Seth Buswell - respondeu Selena. - E tenho uma má notícia a dar-te. Não há táxis em Peyton Place. Pensei que tivesses carro.

 

- Não faz mal - respondeu Tim, enquanto entravam na sala de estar-, fico no hotel.

 

- Não em Peyton Place - disse Selena. - Aqui não acreditamos muito em hotéis. Atraem turistas...

 

- Olá - exclamou Tim.

 

Joey Cross olhou para ele um bocado.

 

- Olá - respondeu depois.

 

- Joey - disse Selena - este é Tim Randlett.

 

- Já sabia - respondeu ele.

 

- Sabia ? - perguntou   Tim   sorrindo. - Será verdade que a minha minúscula fama já chegou a Peyton Place?

 

- Na - respondeu Joey sorrindo também. - Disseram-me aí que a Selena tinha ido ao «Hyde’s» com Tim Randlett.

 

- Aí está, Tim - disse Selena dirigindo-se à cozinha para preparar café--, a história de Peyton Place. Joey, vai à cómoda buscar alguns cobertores e dois lençóis.   Tim Randlett fica connosco esta noite.

 

- Não está mal - respondeu Joey. - Amanhã toda a cidade terá de que conversar.

 

Mais tarde, nessa noite, Selena conservava-se acordada na cama, incapaz de dormir. O silêncio era tão pesado por toda a casa que tudo quanto ouvia era o ruído da própria respiração. Não conseguia descansar, cada nervo do corpo tenso, sentindo a proximidade de Tim, adormecido no divã da sala de estar. Uma sombra de ressentimento invadiu-a.

 

«Como pode ele dormir ?»- interrogava-se irritada, tanto com ele como consigo própria.

 

Alguns minutos mais tarde, porém, ouviu um ligeiro ruído. Tim tossiu levemente e Selena, a seguir, ouviu o ruído do isqueiro. Sorriu no escuro e, por fim, conseguiu adormecer.

 

Em menos de uma semana Peyton Place de pouco ou nada falava que não fosse de Selena e Tim Randlett. Tim passava com ela todos os momentos livres e, como Constance costumava ir à loja todos os dias, Selena podia passar mais tempo fora.

 

- Ao menos é bom para o negócio - disse Constance a Mike. - Toda a gente vai ao estabelecimento para tirar nabos da púcara com Selena.

 

- Quando é que nos encontramos com ele ? - perguntou Mike.

 

- Na quarta-feira - respondeu Connie. - Vêm ambos jantar connosco.

 

- Óptimo - disse Allison entrando. - Quero fazer-lhe uma quantidade de perguntas acerca de Hollywood.

 

- Sempre gostava de saber quem foi o ilustre linguareiro de Peyton Place que se encarregou de dizer a Tim Randlett tanta coisa acerca de Selena Cross...

 

- Não sei - respondeu Connie - mas qualquer pessoa o poderia ter feito.

 

E assim, na verdade, tinha sido. Era costume do Teatro Barn empregar alguns rapazes e raparigas todos os anos, como aprendizes. A troco de um salário razoável pintavam cenários, faziam de figurantes, olhavam pelos utensílios e materiais e ocupavam-se, enfim, desses pequenos serviços incompatíveis com a dignidade dos actores.

 

Entre eles havia uma rapariga de White River, alta, de enormes pernas, chamada Helen Dowd, que tinha observado Tim Randlett no momento em que o vira desembarcar em Silver Lake e, desde aí, resolvido caçá-lo. Quando observou que ele se dirigia todos os dias a Peyton Place não perdeu tempo e contou-lhe, com abundantes pormenores a história de Selena.

 

- O Lucas era o padrasto. Matou-o a sangue frio. Lucas era marinheiro e tinha vindo passar a licença a casa. Pois ela matou-o com as tenazes da lareira e enterrou-o no curral das ovelhas.

 

- E porquê ? - perguntou Tim acendendo um cigarro e soprando o fumo pachorrentamente, aos anéis.

 

- Porque havia de ser ? - perguntou Helen exasperada pela fria reacção de Tim.

 

- Pois, por que razão Selena matou o padrasto?

 

- Oh, bem, no julgamento falou-se de incesto. Pelo menos foi como lhe chamaram. Mas há muita gente em Peyton Place que não acredita uma palavra de tudo isso. Talvez que o Lucas Cross fosse bêbedo mas há quem não ache que ele fosse capaz de fazer tal coisa À enteada.

 

Tal coisa, o quê? - perguntou Tim. Helen embatucou.

 

- Então não sabe? Aquilo que eu disse, incesto.

 

- E você, acredita ? Helen exasperou-se.

 

- Não suponha que sou tola. Afinal, se digo isto, é para seu bem.

 

No dia seguinte Tim foi à Biblioteca Pública de White River e leu os números antigos dos jornais de Boston que traziam a história do caso de Selena e Lucas Cross. Quando terminou, sentou-se um bocado a fumar, fitando distraidamente a poeira em suspenso numa réstea de sol. Sem saber o que acontecia, a personalidade e o carácter de Tim iam-se ageitando ao novo aspecto que o seu caso com Selena tomava agora.

 

A personalidade de um actor é, por vezes, comparável a um quadro preto. Em presença de um novo papel escreve-se nele uma nova versão do seu carácter, o qual dura enquanto a peça se representa. Finda ela, tudo se apaga, e o quadro fica de novo limpo, pronto para nova inscrição.

 

Ao sair da Biblioteca de White River nessa tarde, Tim compreendeu que devia procurar Selena. Não lhe diria abertamente que sabia tudo acerca do seu passado, não, mas procederia, no entanto, de modo que ela o percebesse. Mostrar-se-ia amável, dominando-a contudo, ensiná-la-ia a não ter medo de confiar nele. Restituir-lhe-ia assim, pensava, a fé no amor e nos homens. E correu para Peyton Place, cheio de um sentimento de caridade compassiva, da emoção de um jovem forte e viril, dominado por uma sensação de ultraje perante a lembrança de Lucas Cross.

 

Selena viu-o aproximar-se e notou nele uma diferença subtil, se bem que não conseguisse saber bem em quê.

 

- Eh - disse ela. E aborreceu-se com o tom petulante da própria voz.

 

- Olá, querida.

 

Saíram de Peyton Place sem uma palavra e Selena voltou-se para ele.

 

- Onde vamos ? - perguntou.

 

- Para um lugar que eu conheço - respondeu ele. Selena sentiu a pele arrepiar-se-lhe nos braços, não

 

obstante o calor do sol de Julho.

 

A vivenda onde morava Tim Randlett era fresca e sossegada. De muito longe, para lá da outra margem do lago, chegava-lhe aos ouvidos o eco dos gritos dos banhistas e tudo estava impregnado de sol, de água e do perfume dos pinheirais. Selena voltou-se e quedou-se defronte da lareira limpa e vazia.

 

- Para que me trouxeste aqui ? - perguntou.

 

- Ora,   porque   nunca   te   beijei - respondeu   Tim.

 

- E quando o faço não gosto de estar dentro de um automóvel, ao balcão de uma loja ou num banco de jardim.

 

- Aproximou-se dela sem lhe tocar.

 

- Quero beijar-te aqui, a sós, sem ninguém a intrometer-se e suponho que é, também, o que tu queres.

 

- O que eu quero é ir para a minha casa - respondeu Selena num murmúrio, assustada.

 

Carinhosamente ele pôs-lhe as mãos nas faces.

 

- Selena - disse - olha para   mim. - Fitou-a   longamente nos olhos. - Quem sou eu ? Como me chamo ?

 

- Tu... és Tim - respondeu ela, estranhando a pergunta, e os olhos ’pareciam o oceano. - És Tim Randlett!

 

- Sim - respondeu ele. - Sou Tim Randlett. Sou Tim e amo-te. - Abraçou-a, sem deixar de a fitar nos olhos. - Sou Tim - repetiu - não sou Lucas Cross!

 

- Cala-te!-gritou   Selena,   e tentou   afastá-lo vivamente.

 

Ele porém, segurava-a apertada e com uma das mãos percorria-lhe o corpo.

 

- Não   quero   magoar-te,   querida - disse   repetidas vezes - mas não tenhas medo de mim. Eu amo-te, Selena.

 

Ela acabou por deixar de tremer.

 

- Tim - disse. - Tim.

 

- Querida - murmurou ele meigamente.

 

Beijou-a ao de leve, com os lábios unidos em curtos beijos, afagando-a como se ela fosse uma gata assustada que ele pudesse acalmar. Despiu-a vagarosamente, quase com excessiva lentidão e quando a pegou ao colo para a estender na cama era ainda como se ela fosse a mesma gata, sossegada agora, capaz, porém de lhe escapar de um salto, a todo o momento, tomada de novo de súbito pânico. Fê-la olhar para ele mas não disse uma palavra, enquanto lhe acariciava as coxas e lhe passava as mãos, docemente, no ventre. Viu-lhe os olhos enormes sombrearem-se mais e mais, acariciando-a sempre, até que de súbito, ao beijá-la abriu os lábios sôfregos já, e com a língua lhe percorreu a boca procurando a dele. Só então os dedos lhe procuraram os bicos dos seios, torneando-lhes uma e outra vez até que Selena, de olhos cerrados, se entregou.

 

- Abre os olhos - disse Tim. - Selena, abre os teus olhos!

 

Possuiu-a movendo-se de leve sobre ela e, exultante, reparou como os olhos de Selena eram selvagens, e a boca se lhe contraía, como se para gritar. Era como se um dique se tivesse rompido dentro dela e lutasse contra uma gigantesca onda de prazer. Depois cedeu e na violência desse momento único, extático, quedou-se sem vida.

 

Mike Rossi levou uma semana para descobrir que não gostava de Tim Randlett.

 

- Não   sei   porquê - dizia   em   resposta   à   pergunta de Constance. - Há qualquer coisa nele que me faz pensar. Parece-me um camaleão...

 

- Tim não é tal coisa! - respondeu ela. - Pelo contrário, é um belo rapaz e, quanto a mim, estou muito satisfeita com o namoro de Selena.

 

- Concordo contigo - disse Allison sorrindo. Connie, porém, como Mike fazia notar muitas vezes,

 

possuía um sentido de curiosidade insaciável.

 

- Camaleão? Que queres dizer com isso?

 

- Fala   para   cada   pessoa   de   um   modo   diferente - explicou Mike já arrependido de ter falado. - E as manekas dele variam, também, conforme as pessoas com quem fala. Enfim, é como se mudasse de cor.

 

- Mike é ciumento, é o que é - disse Constance para Allison. - Tem ciúmes de Tim porque ele é jovem e, talvez porque dorme com Selena...

 

- Mamã! - gritou Allison escandalizada. - Como sabes tu que fazem isso?

 

- O quê ? - perguntou Connie inocentemente, olhando as unhas.

 

- Sabes muitíssimo bem o quê - disse Allison. - Vamos, responde!

 

Connie encolheu os ombros.

 

- É uma coisa que nós, mulheres, adivinhamos umas nas outras. E Selena não me engana. Tem cara de quem dorme com um homem.

 

- Francamente, mamã!

 

- Mas é verdade, Allison - respondeu Connie, defensivamente.- E não só dorme mas...

 

- Isso não me interessa - interrompeu Allison bruscamente. - A única coisa que conta é a felicidade de Selena. E se Tim Randlett a faz feliz, tanto melhor para ela.

 

Mike levantou-se.

 

- Esta conversa toda faz-me sono - disse. - E que tal uma cerveja gelada ?

 

- Sabes, Mike - perguntou Allison da cozinha, levantando a voz para que ele a ouvisse -, o Peter Drake também não gosta de Tim Randlett.

 

- Pois que esperavas ? - perguntou Connie. - Pensas que havia de ficar satisfeito por ter um rival? Há anos que ele está apaixonado por essa rapariga, coitado.

 

- O que Peter disse foi apenas que acha o Tim muito gabarola - disse Allison - e nisso estou inteiramente de acordo com ele.

 

- Talvez - disse Mike voltando da sala de estar com três copos de cerveja. - Não é que eu tenha razões para lhe chamar gabarola pois não creio que ele o seja intencionalmente,   com Selena, pelo menos.   Mas desconfio   dele, acho-o pouco sincero.

 

- Vocês vivem em Peyton Place há demasiado tempo

- disse Allison com um sorriso -, transformaram-se em dois nativos e, por isso, desconfiam de Tim só porque ele leva uma existência pouco ortodoxa. É actor.

 

- E não apenas por isso - respondeu Connie. - Allison, estás feita uma mexeriqueira, tu.

 

- De a-c-o-r-d-o - respondeu Mike, separando as sílabas exageradamente.

 

Não era, porém, Mike Rossi a única pessoa que não via com bons olhos as relações de Tim Randlett com Selena. O Dr. Matthew Swain encontrara-a certo dia na Rua do Olmeiro e, como disse mais tarde a Seth Buswell quase que a não reconheceu. Selena mostrava-se radiante, sorrindo a propósito de tudo e de nada.

 

- Viva, Matt - exclamou.

 

(Era a primeira vez na vida que não lhe chamava «Doutor»).

 

- Olá,   viva   Selena! - respondeu   ele. - Santo   Deus, rapariga,   estás muito bem disposta esta manhã.   Nem é preciso perguntar-te como tens passado... Vê-se logo!

 

- E   sinto-me   generosa,   também... - sorriu   Selena

 

- vamos ali ao «Hyde’s» beber um café.

 

Matthew Swain deixou Corey Hyde servir o café e depois disse em voz baixa:

 

- Estás apaixonada por ele, Selena ?

 

- Por ele, quem?

 

Mas o médico não se riu.

 

- Por Tim Randlett - disse.

 

- Sim - respondeu ela - estou, Matt.

 

- Sempre pensei que estes actores de Verão estivessem menos tempo em cada terra... -disse o médico, acendendo o cachimbo.

 

- Primeiramente - respondeu Selena - Tim não é um «actor de Verão». É um profissional disputadíssimo que trabalha todo o ano. As companhias em digressão costumam, de facto, ir a várias terras durante o Verão. Mas o teatro de Silver Lake está a representar um reportório este ano a título experimental e sob a direcção de Tim.

 

- Compreendo - respondeu Matt - e que vai ele fazer, depois disso?

 

- Matt, já lhe disse. Representar não é uma ocupação eventual para Tim Randlett. Depois, no Inverno, irá trabalhar para Nova Iorque.

 

Matthew   Swain   respirou   fundo. - Vais   com   ele ?

- arriscou.

 

Selena olhou para o fundo da chávena e respondeu:

 

- Não sei, Tim ainda não mo pediu.

 

- E se ele to pedir, vais?

 

Ela levantou os olhos e fixou-os no médico.

 

- Vou - disse com firmeza. - E, se ele não me pedir que o acompanhe, irei na mesma!

 

-E o Joey?

 

- O Joey vai comigo para onde eu for.

 

- E que diz ele de tudo isso? Selena sorriu.

 

- Deixe-se de perguntas, Matt, Joey gosta tanto dele como eu, quase. Dão-se ambos às maravilhas.

 

- Já disseste isso a Peter Drake?

 

O rosto de Selena turvou-se por um momento.

 

- Não, mas hei-de dizer.

 

- Há-de lhe custar...-murmurou o médico.

 

- Matt, que hei-de fazer ? É superior às minhas forças. Nunca tive intenção de magoar o Peter mas ele sabe bem que eu não o amo e nunca o amei.

 

- Mas ele ama-te.

 

- Matt - respondeu Selena - que pretende dizer com isso? Por favor, desabafe e diga tudo de uma vez.

 

Ele olhou-a demoradamente.

 

- Conhecemo-nos há muitos anos, Selena - disse por fim. - Pretendi apenas assegurar-me de que não irás apanhar uma decepção. É só o que me interessa de tudo isto. Afinal de contas ninguém, nenhum de nós, sabe quem é esse Tim Randlett, permite-me que desabafe.

 

Selena exasperou-se.

 

- Não, não   sabem nada dele - exclamou. - Não   é de Peyton Place e, por isso, é suspeito. Muito bem, e por que diabo não houve ninguém que desconfiasse desse virtuoso habitante de Peyton Place que era Lucas Cross? Diga-me!

 

- Selena - respondeu Matt, fazendo com a mão o gesto de acalmar - eu não quis dizer nada que te ofendesse. Apenas me parece...

 

- Eu sei muito bem o que lhe parece - interrompeu ela furiosa. - Estão escandalizados porque sabem que eu durmo com ele, não é? Você e toda a gente de Peyton Place. Pois bem, fique-se com esta: eu durmo com Tim Randlett todas as noites, Matt. Aproveito todas as oportunidades para me deitar com ele e acho sempre pouco.

 

- Selena - respondeu o doutor calmamente - já nos conhecemos há muito. Não tentes assustar-me.

 

Selena suspirou.

 

- Desculpe,   doutor - respondeu, voltando a tratá-lo como sempre costumava - mas eu gosto dele. Não posso evitá-lo. Se Tim não casar comigo suponho que vou morrer de desgosto!

 

Matthew Swain levantou-se e pôs-lhe a mão no ombro:

 

- Se ele não te propuser casamento - disse - manda-o ter comigo. É porque está doente.

 

No fim da primeira semana de Agosto aconteceram tantas coisas ao mesmo tempo, que - como refletia Constance - era impossível prever como tudo iria acabar.

 

Mike recebeu e aceitou um convite para leccionar História na Universidade de White River; Allison foi convidada a ir para Hollywood, como «assistente técnica» da produção de um filme baseado no argumento de O Castelo de Peyton e Betty Anderson regressou a Peyton Place.

 

- Ainda bem - dizia Selena a Tim. - Agora vão falar de mais alguém e talvez nos deixem em paz!

 

Assim passou o mês de Agosto. Dias pesados e tórridos que faziam os lavradores olhar pasmados para os campos a abarrotar de frutos maduros. Começaram a segunda colheita de feno, enquanto em todos os celeiros do norte de Nova Inglaterra as mulheres preparavam afanosamente cestos e caixas para acondicionar tantos frutos sazonados. Os batatais ofereciam um estendal de folhas mirradas e amarelas, pois os tubérculos enormes e gordos, a irromper do solo, lhes sugavam a seiva até à última gota. Por toda a parte os jardins deslumbravam a gente na sua floração nunca vista de pujança e colorido.

 

Os velhos andavam desconfiados de tantas promessas da natureza.

 

- Hum, isto não dura muito. Vamos pagá-las um dia, olé!

 

Os novos, porém, pasmavam da magnificência desse Verão, tão contentes como se tivessem recebido, cada um deles, um presente individual. Esqueciam-se dos anos anteriores, chuvosos e tristes e depois de alguns dias apenas enchiam-se da esperança ridícula de que todos os verões dos anos seguintes seriam precisamente como aquele.

 

- Bem, graças a Deus que já não teremos necessidade de vender a casa - dizia Connie ao marido. - White River fica tão perto que podes deslocar-te cá e lá com relativa facilidade.

 

- Antes de mais - respondeu Mike - tenho de ler alguns livros. Estava bem longe de imaginar que iria ensinar história a um rancho de miúdos traquinas. Querem lá saber da guerra de   1812   e   da Declaração da Independência!

 

Connie e Allison faziam algumas visitas a Boston para escolher um guarda-roupa digno de Hollywood e toda a gente de Peyton Place andava em brasas com o regresso de Betty Anderson e com o que iria fazer Leslie Harrington.

 

Ninguém, pois, tinha tempo ou vontade de pensar em Selena Cross e, para os fins de Agosto, ninguém já, com excepção de Joey e Peter Drake reparava na mudança que, gradualmente, se operava na rapariga. Apagara-se-lhe dos olhos o fulgor da felicidade que a trouxera alheia a tudo e todos, e o rosto velara-se-lhe de tristeza, desfigurado, quase. Até o brilho metálico dos cabelos negros parecia ter desaparecido, deixando-os baços e sem vida.

 

- Por amor de Deus, Selena - disse-lhe Peter Drake.

 

- Não - replicou ela secamente - não é nada.

- Que se passa contigo? Estás doente?

 

- Não - replicou ela secamente - não é nada. Joey, também, andava preocupado. Selena, pensava, só tivera aquele aspecto   abatido quando o corpo de Lucas Cross estava enterrado atrás da casa, logo ali ao pé deles.

 

- Por favor, Selena, vamos ao doutor Matthew!

 

- Isto não é nada - insistia ela - é do calor, Joey, não vês?

 

A Peter Drake, contudo, Joey confiava as suas suspeitas:

 

- É por causa do Tim Randlett, Peter. Ele fez-lhe alguma partida. E ela não desiste de andar com ele!

 

- Tim Randlett, não, - respondeu Peter - ele diz que gosta de Selena.

 

- Não sei - respondeu Joey numa voz perturbada mas é qualquer coisa relacionada com ele.

 

- Tim propôs-lhe casamento?

 

- Parece que sim - respondeu Joey - e ela aceitou. Mas agora não quero eu.   A princípio achei tudo bem. Agora, não.

 

Peter Drake fechou os olhos por um momento, como se pensasse que, assim, poderia afastar toda a amargura que o pensamento de Selena lhe causava.

 

- Nada podemos fazer, nada, Joey - disse. - A não ser esperar.

 

Chovia torrencialmente em grossos bagos de água que martelavam as ruas e passeios como moedas de prata. Betty Anderson segurava o filho pela mão enquanto o comboio rolava vertiginosamente para Peyton Place. O condutor trazia um guarda-chuva que abriu quando o comboio parou, abrigando Betty e o pequeno Roddy enquanto desciam para a plataforma. Tentou ajudar a criança a descer, estendendo o braço mas Betty afastou-lho.

 

- Deixe, que eu faço isso - disse, e, enquanto ele se afastava para trás,   um pouco   confuso,   acrescentou mais delicadamente:

 

- Ele não gosta de ser pegado por pessoas que não conhece.

 

- Há   crianças assim - respondeu o   condutor - que idade tem ele? Cinco?

 

- Fá-los no mês que vem - respondeu Betty.

 

- Tenho mais de quatro anos e meio - disse Roddy empertigando-se. - Dantes   tinha   só   quatro e meio,   mas agora tenho mais.

 

O condutor sorriu.

 

- Está muito bem - disse - já quase que podes levar as malas da mamã...

 

- Não - respondeu Roddy, pondo-se muito sério. - Eu não levo nada. Levo só a minha Wendel, e chega.

 

- Esta é que é a Wendel ? - perguntou o condutor, estendendo a mão para uma pequena girafa que Roddy apertava com ambas as mãos.

 

- É - respondeu ele. - Esta é que é a Wendel e está fatigada da viagem, coitada. Mas quando o meu avô chegar, a Wendel vai no carro. Ela gosta muito de andar de automóvel.

 

- E tu,   também gostas de andar no carro do   teu avô ? - perguntou o condutor.

 

- Não sei - respondeu Roddy.

 

- Vem, querido - disse Betty - aqui está frio. Vamos lá para dentro.

 

- Adeus! - disse Roddy ao condutor.

 

O homem acenou-lhe enquanto subia para o comboio e Betty encaminhou-se com o Roddy para o edifício da estação. Não se voltou quando o comboio se pôs de novo em movimento, mas teve a impressão de que o perdia.

 

«Faria melhor se voltasse imediatamente para trás», pensou, «se desaparecesse para bem longe daqui. Que asneira, ter voltado a Peyton Place! Devo ter um parafuso a menos».

 

A estação não mudara absolutamente nada, observava. Sempre o velho casarão, tal como o tinha visto cinco anos antes.

 

«Apenas   tudo mais velho,   claro»,   pensava olhando para as casas próximas, «mas o mesmo! Como eu, suponho». Roddy olhava para o tecto desmesuradamente alto da sala de espera.

 

- É aqui que mora o meu avô ? - perguntou.

 

- Não, filho - respondeu Betty. - Aqui é a estação onde as pessoas compram os bilhetes para irem nos comboios. O teu avô mora numa casa. Uma casa muito bonita e muito grande. A maior da Rua do Castanheiro.

 

- E vamos dormir para lá ? - perguntou ele a esfregar os olhos com os nós dos dedos. - Wendel está com sono.

 

- Ainda não sei - respondeu Betty com esforço. Acabava de avistar Leslie Harrington que se aproximava dela, acompanhado de Charles Partridge.

 

«Deve andar preocupado», observou Betty com desdém, «para trazer o advogado à trela... Filho da puta!»

 

Foi Charles que a saudou primeiro e lhe estendeu a mão. Porque Leslie ficara pasmado a olhar para o pequeno Roddy. «Eu sabia», pensava deslumbrado. «Este menino é a cara do meu filho!»

 

E era verdade. Roddy tinha o mesmo rosto moreno, a mesma robusta constituição de Roddy Harrington.

 

- Olá, Betty - exclamou por fim. - Bem-vinda a Peyton Place, à tua casa!

 

- Não é uma casa - disse Roddy. - É onde a gente vai de visita.

 

Leslie hesitou e, embora falasse para a criança, fixou os olhos em Betty.

 

- Bem, mas talvez depois de nos visitar gostem tanto que resolvam ficar.

 

Betty olhou Leslie Harrington.

 

- Não conte muito com isso - respondeu.

 

- Tu é que és o meu avô ? - perguntou Roddy. Leslie teve a impressão de receber um soco no estômago.

 

«Velho idiota», censurou-se a si próprio.

 

- Sou! - respondeu logo que o conseguiu fazer. Sou o teu avô.

 

- E nós vamos dormir na tua casa muito bonita e muito grande ? -, perguntou Roddy.

 

Leslie olhou para Betty, imóvel e indiferente.

 

- Sim - respondeu - tenho um quarto especial em minha casa, pronto para vocês.

 

- Wendel está cansada - disse Roddy.

 

- Wendel   é   uma   girafa   muito   bonita - respondeu Leslie. - Tens razão, ela está muito cansada. - Baixou os olhos para o neto e disse, estendendo-lhe os braços: - Anda, vou levar-vos a ti e à Wendel no meu carro, e vamos depressa para casa pô-la na cama.

 

- Não o pegue ao colo! - exclamou Betty secamente, detendo-o com a mão. - Roddy não gosta que lhe peguem ao colo pessoas que não conhece.

 

Roddy, porém, correu para o avô.

 

- Não faz mal - disse. - Wendel quer que a levem também.

 

- Pois   claro - respondeu   Leslie tomando a criança nos braços.

 

Betty seguiu-os enquanto saíam da estação e apenas Charles Partridge notou, nos olhos dela, uma expressão azeda de contrariedade.

 

«A mesma Betty de sempre» - pensou e, olhando Leslie Harrington, - «sempre o mesmo Leslie, também. Consegue precisamente tudo aquilo que lhe apetece. Mas suponho que fazia melhor em não tentar comprar esta rapariga. Já o fez, em tempos, mas agora Betty sabe muito mais e não vai ser tão fácil como da primeira vez».

 

- Guias tu, Charlie ? - perguntou Leslie entrando no carro. - Eu tenho de ir aqui para segurar a Wendel...

 

«Fazias melhor se te deixasses desses truques idiotas», pensou Betty enquanto batia a porta do carro com força. «Já levaste a melhor comigo uma vez, mas ficou-me de emenda. E cinco anos em Nova Iorque também ensinam muita coisa».

 

Os últimos cinco anos não tinham sido, de facto, muito fáceis para Betty Anderson. Restava-lhe a consolação de que, pelo menos, nunca tinha esperado que o fossem. A princípio, quando perdeu as esperanças de que Roddy Harrington casaria com ela e viu que tudo quanto obteria dos Harringtons seria uma parca indemnização de duzentos e cinquenta dólares apenas, ficara desesperada. A família também não a iria ajudar muito, sabia. Encontrava-se, pois, entregue a si própria e nada poderia fazer senão lutar pela vida, sozinha.

 

«Felizmente que nunca fui de choradeiras», pensava ela no comboio a caminho de Nova Iorque. «Se o fosse, inundaria tudo, agora».

 

Sentia-se, por outro lado, satisfeita consigo própria. Não estava ainda grossa nem se sentia mal e isso facilitar-lhe-ia o trabalho.

 

Quando chegou a Nova Iorque conseguiu arranjar emprego antes mesmo de ter onde dormir. Depois, com o futuro imediato momentaneamente assegurado, procurou encontrar um quarto. Conseguiu-o, por fim e, embora ele fosse bastante escuro e deprimente, agradava-lhe o preço. Consolou-se, porém, com o pensamento de que não iria ficar ali toda a vida. Logo que estivesse livre da criança, procuraria um emprego melhor e, porque não, um homem de dinheiro que casasse com ela. Não contava que viria a gostar do filho nem muito menos que viria a gostar imensamente dele mesmo antes de o ter.

 

Trabalhava num restaurante onde os clientes davam boas gorjetas e sobretudo, pensava, aliviada, eram fáceis de contentar, o que para ela era uma grande sorte pois não se sentia talhada para criada de servir.

 

Estava constantemente a esquecer-se disto ou daquilo, um guardanapo, um copo de água, uma colher. Mas Betty tivera sempre o dom de sorrir amavelmente quando era preciso e os clientes eram, na maioria, homens. Assim ela, com um sorriso e um rebolar de ancas fazia-lhes esquecer as deficiências do serviço, pelo menos enquanto eles a olhavam pelas costas, apreciativamente. No fim até as gorjetas eram mais generosas.

 

Quando algum a convidava para sair, exibia a mão esquerda onde brilhava uma aliança de casamento e dizia-lhes que o marido tinha um metro e noventa de altura e ombros largos que nem paredes. Seria capaz, seria, com um sorriso gaiato, de matar o D. Juan que se atrevesse a cortejá-la enquanto ele estava ausente no serviço militar. Mas, pela cara que fazia, todos ficavam com a certeza de que, embora as coisas não fossem exactamente como ela dizia, Betty só seria capaz de se deixar seduzir por um homem da sua escolha.

 

«Se me vejo livre deste empecilho», pensava agastada, «tudo será diferente».

 

Uma tarde, porém, quando despia a farda para sair, sentiu uma dor aguda no ventre que a deixou sem fôlego, não propriamente de dor, senão de surpresa.

 

«Vai ser bonito», pensou alarmada.

 

Foi a pé todo o caminho para casa e logo que chegou despiu-se e estendeu-se na cama. Cobriu o ventre com as mãos e esperou. De novo sentiu como que uma navalhada e percebeu claramente os movimentos da criança sob a pele da barriga.

 

Betty não sabia exactamente em que momento se decidira a ter o filho. Mais tarde, pensando nisso, chegou à conclusão de que fora quando sentiu o primeiro sinal de vida dentro do seu ventre. Essa resolução forçara-a a uma alteração radical dos planos que estabelecera e Betty, que nunca abandonava os seus problemas, sentou-se imediatamente no leito e começou a refazê-los.

 

Em menos de uma semana encontrou um especialista de obstetrícia que se prontificou a assisti-la até final pela módica quantia de setenta e cinco dólares. Reservou-lhe um quarto na maternidade e explicou-lhe quanto lhe custaria exactamente o internamento durante cinco dias.

 

- Tem alguém que cuide de si depois do nascimento da criança, quando voltar para casa, senhora Harrington?

- perguntou o médico tratando-a pelo nome que ela lhe dera.

 

- Tenho - respondeu   Betty,   disfarçando um   sorriso amargo que lhe aflorou aos lábios. - Tenho a minha família, evidentemente.

 

Passou os meses seguintes a aprender tudo o que dizia respeito aos cuidados a ter com o bebé. Comprou fraldas e vestidos e decidiu-se a não comprar lençóis nem biberões. O bebé dormiria com ela na mesma cama e alimentá-lo-ia do peito. Passou a comer apenas uma refeição por dia - a que lhe davam no restaurante - e começou a esconder pão, queijo e bolos na mala para comer em casa, à noite, sem fazer despesa. Em vez de água passou a beber leite: água tinha ela em casa. Assim poupava, um a um, cada cêntimo que podia e abriu uma conta no Banco para pagar o internamento na maternidade e manter-se algumas semanas depois do nascimento do filho enquanto não pudesse deixá-lo só.

 

«Rodney Harrington Júnior!» pensou. «É como eu lhe vou chamar. Tem todo o direito a esse nome. Peyton Place e as más línguas que vão para o diabo!»

 

Felizmente para ela o proprietário do restaurante, um italiano, era pai de seis filhos. A mulher, dizia, sempre trabalhara até ao derradeiro instante e isso nunca lhe tinha feito mal algum. Assim permitiu a Betty que continuasse ao serviço mesmo grossa como andava, dando-lhe amiúde conselhos amigáveis e não lhe permitindo que fizesse grandes esforços.

 

- Quando precisar de alguma coisa, chama-me - dizia-lhe - e não se aflija. Faz bem a uma mulher andar de pé nesse estado. Torna as coisas mais fáceis quando chegar a hora.

 

A mulher do italiano dizia:

 

- Não se apoquente, menina. O seu marido não está presente mas eu irei visitá-la, descanse. E, depois, ajudá-la-ei quando tiver o menino.

 

- Hoje em dia - comentava o italiano - é uma brincadeira para uma mulher ter um filho! - e, contando pelos dedos: - zuta! para a maternidade! Zuta, o éter, zuta, a criança. Já está!

 

A criança nasceu no fim de Outubro e as coisas correram precisamente como Betty tinha planeado. O parto foi facílimo não obstante o volume do pequeno Roddy, e os seios de Betty rebentaram de leite para o alimentar. Desde o início Roddy foi um bebé sossegado, que nunca chorava a não ser quando tinha fome ou estava molhado e, à medida que as semanas passavam, crescia a olhos vistos. Aos três meses Betty compreendeu que era altura de retomar o trabalho. Tinha ainda vinte e um dólares e sessenta e sete cêntimos no Banco.

 

No quarto vizinho ao dela vivia uma mulher chamada Agnes Carlisle, e Betty e ela tinham-se tornado grandes amigas.

 

Agnes era professora aposentada, que lutava todos os meses para conseguir manter-se com a parca reforma que recebia e, portanto, mostrou-se felicíssima com a pequena quantia que Betty lhe ofereceu para tomar conta do menino.

 

- É tão bom que não me dará muito trabalho - dizia carinhosamente. - E, mesmo que desse, não me importaria. É um amor de criança!

 

Betty, por vezes, achava graça à pobre senhora, de cabelos brancos e rosto austero, inclinada sobre o berço de Roddy a falar-lhe com voz amimada.

 

- É mesmo a cara do pai - dizia Betty.

 

Os anos passaram velozmente. Quando Roddy fez três anos os italianos, montaram um novo restaurante noutro local da cidade e Betty ficou como governanta do antigo. Ganhava agora um salário apreciável e pensava, por vezes, em deixar o quarto escuro e acanhado onde morava. Mas Roddy gostava tanto de Agnes Carlisle como ela dele, e Agnes ensinava-o a ler e a escrever para que, quando ele chegasse à idade de ir para a escola, já estivesse adiantado.

 

- Com o nosso sistema escolar não há outro remédio

- dizia Agnes. - Só ensinando as crianças antes. Deixe o Roddy ao meu cuidado.

 

Assim Betty deixou-se ficar. Mantinha relações com uma porção de homens mas, como dizia Agnes, não pensava em casar.

 

- Gosto da vida que tenho - dizia. - Nada de complicações. Basta-me o Roddy e o meu trabalho.

 

Agnes era a única pessoa de Nova Iorque que sabia que Betty não era casada. Nunca ela falava de casamento a homem algum, excepto quando eles lhe começavam a falar a sério. Então «confessava-lhes» que já fora casada e que não estava disposta a fazer tamanho disparate pela segunda vez.

 

Foi no dia 4 de Julho que Agnes viu o anúncio de Leslie Harrington num jornal que cobria a mesa. Ela, Betty e Roddy tinham acabado de chegar de um passeio. Betty estava na cozinha a fazer café.

 

- Este é divertido - disse Agnes.

 

- Este, o quê ? - perguntou Betty olhando por cima do ombro dela.

 

- Este   anúncio,   aqui - respondeu   Agnes   apontando com o dedo.

 

- Leia-mo - pediu Betty - esqueci-me de pôr gelo no leite do Roddy e se ele repara começa a resmungar.

 

-«Betty,   onde estás ?»- leu Agnes de alto.

 

- O quê ? - exclamou ela voltando-se surpresa.

 

- É o que diz aqui - respondeu Agnes - «Betty onde estás? Responde-me logo que vejas este anúncio. Urgente. Leslie Harrington, Caixa Postal n.° 213, Peyton Place Times».

 

Betty deixou-se cair no banco aos pés de Agnes.

 

- Esta agora!. - exclamou.

 

- O quê, isto refere-se a ti ? - perguntou Agnes pasmada.

 

- Sim,   respondeu   Betty - é... - hesitou e voltou-se para a criança que olhava solenemente ora Agnes ora a mãe. - É o avô do Roddy... -disse baixando a voz.

 

- Roddy o quê ? - perguntou ele.   Depois,   olhando para o conteúdo do copo, choramingou - gelo...

 

Betty retirou um pedaço de gelo do seu café e deitou-o no copo do Roddy.

 

- E não lhe escreves ? - perguntou Agnes.

 

- Ainda não sei. Veremos.

 

- Estás   louca ? - perguntou   ela. - Disseste-me   que Leslie Harrington era milionário e agora não respondes? É bem tempo de ele fazer alguma coisa pelo Roddy.

 

- R-o-d-d-y! - exclamou a criança alegremente. Agnes sorriu.

 

- Vês? Já sabe soletrar!

 

- Não sei que faça - continuou Betty.

 

- Não sejas idiota. Se ele quer fazer alguma coisa pelo pequeno, deixa-o fazer! Ou queres ficar aqui sepultada toda a vida? E o Roddy, também? Aproveita o que puderes. Não faças como eu.

 

Betty olhou para Agnes durante algum tempo. Viu-se a si própria, envelhecida, a viver solitária num quarto escuro. A viver de patacos e de medo.

 

- Não vou escrever, não - disse. - Primeiro quero ver se ele fala a sério quando diz que me quer encontrar. Vou experimentar telefonar-lhe.

 

Pediu uma ligação, sorrindo maldosamente à ideia de Leslie Harrington a falar com ela alvoroçado, por um barulhento aparelho de Peyton Place.

 

- Que pretende de mim, Leslie ? - perguntou logo que lhe ouviu a voz.

 

Leslie hesitou por um momento.

 

- Que venhas para casa, para a tua casa.

 

- Não é isso um pouco de falta de carácter da sua parte, Leslie Harrington?

 

- Ando à tua procura há anos - suspirou ele.

 

- E para quê ? - perguntou Betty secamente - houve tempo em que procurava ver-se livre de mim...

 

- Betty - respondeu Leslie, e ela quase que se comoveu com o tom suplicante da voz dele. - Como está o bebé ?

 

- Bem, ele já não é assim um bebé... Vai fazer cinco anos.

 

- Um rapaz! - exclamou Leslie e, durante uns momentos, o telefone calou-se, deixando-lhe perceber a respiração opressa. - Um rapaz! Como se chama ?

 

- Rodney Harrington Júnior! - exclamou Betty com ênfase. E ficou à espera que ele protestasse.

 

- É maravilhoso, Betty - respondeu Leslie.

 

Betty ficou tão admirada que retirou o auscultador do ouvido e olhou para ele, como se procurasse, dentro, ver o rosto alvoroçado de Leslie.

 

- Betty, por amor de Deus - repetia ele - promete-me que vens!

 

- Tenho que ir pensar nisso - respondeu ela.

 

- Mando-te um cheque para as despesas da viagem.

 

- Lá isso sei eu! - retorquiu Betty com um sorriso irónico.

 

- Vou já pô-lo no correio. Qual é a tua morada, Betty?

 

- Nada feito - respondeu ela. - Só me faltava agora vê-lo por aqui atrás de mim! Disse-lhe que vou pensar e vou. Telefono-lhe no fim desta semana.

 

- Dá-me ao menos o número do teu telefone - implorou Leslie.

 

- Pois não! - exclamou Betty desligando o aparelho. A semana seguinte foi um inferno para Betty. Toda a vida tinha odiado a indecisão e Agnes complicava ainda mais as coisas com os seus intermináveis queixumes.

 

«Deixa de pensar só   em ti!   Pensa no   teu   filho».

 

«Queres passar o resto da vida como criada de servir?»

 

«Eu não duro sempre, como sabes. Quem olhará pelo menino ?»

 

«Roddy é uma das crianças mais inteligentes que tenho conhecido em toda a minha vida. Queres privá-lo de um futuro condigno?»

 

«E se adoecer? Que será dele?»

 

Betty não suportava mais.

 

- Por amor de Deus, Agnes. Queres fazer o favor de calar a boca por um minuto? Nem consigo pensar!

 

- Não tens nada que pensar - respondeu Agnes decididamente.- Telefona ao velho. Faz as malas. Vai!

 

Por fim, Betty telefonou a Leslie Harrington.

 

- Vou pedir oito dias de licença - disse. - Podemos ir aí visitá-lo mas só por cinco dias. Os outros são para as viagens.

 

- Dás-me, então, o teu endereço para te mandar o cheque ?

 

- Não - respondeu Betty. - Já pensei em tudo. E não suponha que vai dispor de mim por causa de um cheque. Se vou aí visitá-lo é apenas porque, apesar de tudo, sempre é avô do meu filho. E ele tem o direito de conhecer o avô. Mas olhe que é só por isso.

 

- Diz-me em que comboio vens.

 

- Está bem, depois lhe direi.

 

O automóvel de Leslie Harrington deu a volta no extenso carreiro de brita que circundava a casa.

 

- Cá estamos! - exclamou Leslie. - Olha, o Roddy está a dormir!

 

- Cá estamos de facto - reparou Betty.

 

Decorrera mais de metade do mês de Agosto quando Selena começou a notar uma subtil e quase imperceptível mudança em Tim Randlett. Fazia-lhe constantemente perguntas acerca do seu passado e, se não lhe respondia, irritava-se.

 

- Ouve, quero que sejas minha mulher, Selena. Entre marido e mulher não deve haver segredos. Se os houver não há casamento.

 

Selena, porém, ouviu apenas a primeira frase.

 

- Que disseste, Tim? - perguntou-lhe incrédula, reprimindo a custo a excitação que se apoderava dela.

 

- Disse que quero que sejas minha mulher e...

 

Ela pôs-lhe a mão nos lábios.

 

- Não digas mais nada, Tim, repete o que disseste! Tim sorriu e pegou-lhe nos braços.

 

- Querida - murmurou   sublinhando   as   palavras.

- Dás-me a honra de seres minha mulher?

 

- Oh,   sim! - respondeu   Selena - sim,   sim,   sim!

 

Quando ?

 

- Lá para Outubro ou Novembro, quando acabar o meu trabalho em Silver Lak. Iremos para Nova Iorque, alugaremos um apartamento...   Depois hei-de levar-te ao «Tif£any’s» e hei-de comprar-te o maior diamante que lá houver.

 

- Amo-te, - disse Selena com meiguice - juro-te que não há no mundo ninguém que ame como eu te amo.

 

- Não   jures   falso...-respondeu   ele - porque   eu também te amo assim.

 

Selena acreditava em Tim Randlett, não obstante os olhares frios que, por vezes, surpreendia nele, assustada.

 

- Fala-me   desse Ted Cárter - pediu Tim   inesperadamente.

 

- Não há nada a contar - respondeu Selena – fomos amigos desde os tempos da escola e houve um dia em que deixámos de o ser. E pronto, é tudo.

 

- Mentes, Selena.

 

Ela voltou-se para Tim, surpreendida.

 

- Não sou mentirosa! - protestou.

 

- Dormiste alguma vez com o Ted?

 

--Tu estás doido? - exclamou ela exasperada.

 

- Não levantes a voz, Selena. Porque é que estás tão exaltada se tens a consciência limpa?

 

- Estou exaltada porque tu não só duvidas da minha palavra como ainda te atreves a pensar tais coisas de Ted Cárter e de mim.

 

- Bem, querida, - respondeu Tim com um sarcasmo que a feriu mais ainda - encaremos os factos, porque não ? Não fui o primeiro, paciência!

 

- Estás a portar-te como um garoto! - exclamou ela voltando-lhe as costas.

 

Tim Randlett portava-se de facto como um garoto, muitas vezes, Quando não representava um papel qualquer, no palco ou fora dele, assumia o ar de galã amimado e petulante que representara em Hollywood e, pior que tudo, não acreditava na infantilidade do seu procedimento, supondo-se, pelo contrário, um homem injustamente lesado, com pleno direito de fazer valer os seus interesses. Quando alguém o acusava ,de inexperiente perdia por completo o domínio de si próprio ou lutava afanosamente para corrigir na opinião alheia aquilo que classificava de impressão errada.

 

- Não estou a ser garoto,   mulher - disse de mau humor. - Falo-te assim porque te amo e quero estar ao corrente de todos e quaisquer factos que te digam respeito.

 

- Então não podes esperar um pouco,   até que eu me sinta em condições de te contar tudo?

 

- Claro,   Selena - respondeu   ele. - Não   é   pressa. Temos o resto das nossas vidas para falarmos e conhecermo-nos mutuamente.

 

Depois destas pequenas discussões as coisas voltavam a ficar bem entre ambos mas, dentro em pouco, Tim recomeçaria invariavelmente. Selena desgostava-se sobretudo porque ele dava a impressão de escolher precisamente os momentos que se seguiam às suas manifestações de amor.

 

- Que faziam vocês, tu e o Cárter, durante todo esse tempo em que foram tão amiguinhos ? - perguntou com uma ponta de ironia.

 

- Precisamente o que fazem todos os rapazes e raparigas dessa idade - respondeu ela, pedindo em silêncio a Deus que Tim não torcesse a boca que ela acabava de beijar com aquele sorriso sarcástico que lhe era peculiar. - íamos para a escola, para bailes e falávamos de casamento. Coisas de garotos.

 

- E nunca se beijaram?

 

- Beijámos - respondeu ela.

 

- Ah! A verdade começa a vir ao cimo. E ele beijava-te bem?

 

- Tim - respondeu ela calmamente - que te interessa a ti falar de semelhante assunto? Dá-te muito abalo pensar que já houve algum rapaz que me beijou?

 

- Responde à minha pergunta! - ordenou ele.

 

- Não sei, se me beijava bem ou mal, se queres que te diga - respondeu Selena. - Ted foi o único rapaz de Peyton Place que eu beijei quando era já um pouco crescida, de modo que não sei estabelecer comparação.

 

- Não me digas que numa terra como Peyton Place os rapazes e as raparigas não brincam ao «jogo do beijo?» Queres convencer-me disso, a mim?

 

Selena levantou-se bruscamente e puxou pelo vestido, compondo-se.

 

- Por amor de Deus, Tim - gritou - queres acabar já com isso? Estás a tornar-te impossível!

 

- Mas diz: brincavam ou não brincavam ?

 

- Brincavam a quê?

 

- Ao «jogo do beijo»?

 

- Claro que brincávamos. Todos os garotos brincavam.

 

- Então mentiste-me descaradamente quando me disseste que Ted Cárter foi o único rapaz de Peyton Place que te beijou!

 

- Isso   é   o   cúmulo,   Tim - gritou   Selena. - Como queres tu que eu me lembre de todos os rapazes que entraram nesses jogos?

 

- Se não me disseste a verdade acerca de beijos, Deus sabe em que outras coisas me terás mentido!

 

- És um doente - exclamou Selena.

 

- Não grites, querida - respondeu ele com uma paciência de enlouquecer - não sou eu só o doente. As pessoas que mentem aos outros e a si próprias também o são.

 

- Eu não minto - disse Selena com serenidade - Nunca o fiz nem vou agora fazê-lo.

 

Começou a vestir-se, voltando a cabeça para que ele não visse as lágrimas que ela não pôde evitar.

 

- Que estás a fazer? - perguntou Tim.

 

- O que vês. A vestir-me - respondeu ela. - Vou para casa imediatamente.

 

Tim acercou-se de Selena. Voltou-lhe a cabeça com as mãos para que ela o olhasse de frente e beijou-a com sofreguidão nos olhos molhados.

 

- Querida - murmurou arrependido. - Sou um idiota. Não queria fazer-te chorar. Perdoa-me!

 

- Não falemos mais nisso - respondeu Selena mas preciso realmente de voltar para casa.

 

Tim lançou-lhe os braços em volta do pescoço, apertando-a a si estreitamente.

 

- Não digas isso - respondeu com a voz trémula de medo. - Nunca digas que me deixas. Se te perdesse não poderia viver mais!

 

- Mas tenho que me ir embora - respondeu ela, fatigada. - Não posso tolerar semelhantes discussões, o teu sarcasmo e as tuas calúnias. Estou farta, Tim!

 

- Por   favor,   Selena - implorou ele, agora com   as lágrimas nos olhos, também. - Perdoa-me que eu não volto a dizer nada.

 

E Selena, uma vez mais, perdoou-lhe. Abraçou-o com ternura e murmurou, soluçando encostada ao peito dele:

 

- Não vale a pena pedires-me, Tim. Perdoo-te, claro que te perdoo. Nunca seria capaz de te deixar e tu bem o sabes. O pensamento de viver sem ti é qualquer coisa de terrível, que eu não posso suportar. Nunca, nunca te deixarei!

 

Assim as coisas ficaram bem, de novo. Selena, contudo, achou-se instintivamente alerta, aguardando que, de um momento para o outro, a discussão surgisse. Esta expectativa mantinha-a nervosa e excitada no receio constante de ver surgir os sintomas da tempestade eminente. Conservava-se acordada até alta noite incapaz de dormir, interrogando-se angustiosamente se a curiosidade mórbida de Tim não iria afectá-la gravemente. A única conclusão tranquilizadora a que chegava era que, não tendo o hábito de viver do passado, teria sempre esse recurso providencial para sobreviver. Lembrava-se mau grado os seus esforços desesperados e os seus terríveis pesadelos acudiam-lhe à memória imagens há muito sepultadas: via a mãe, Nellie, pendendo morta da corda, com o rosto enegrecido e os olhos congestionados. De outras vezes era um gigantesco Lucas Cross que a perseguia e alcançava. Então gritava com todas as forças até que Joey vinha e a despertava.

 

- O tempo - dissera-lhe Matthew Swain - cura todas as feridas.

 

Assim acontecera, felizmente. Ao passo que os anos passavam, esses pesadelos foram-se tornando menos frequentes e por fim cessaram de todo. Apenas nos princípios do Inverno, quando apareciam as primeiras neves, a assaltava um vago temor. Isto, até que se apaixonara por Tim Randlett. Depois, os pesadelos tinham voltado e com eles o pavor de um passado mal extinto, as longas noites de insónia. Não tardaria muito, pensava alarmada, que Tim lhe falasse de Lucas, do suicídio da mãe e do julgamento. Então, teria que desenterrar de novo esse passado hediondo para lho relatar em pormenor.

 

«Não quero pensar nisso», dizia para consigo, soluçando na cama. «Se ele me fizer perguntas, deixo-o!»

 

Mas sabia que o não faria, perguntasse ele o quer que fosse. E as noites em claro iam-se tornando mais e mais longas.

 

- Que tens,   Selena? - perguntava Joey preocupado. Mas Selena não encontrava resposta para lhe dar.

 

«Procurarei manter-me calma» prometia. «Para que sofrer com estas coisas? Tim ama-me».

 

E assim era, de facto. Tim Randlett amava-a verdadeiramente, à sua maneira e não era, tão-pouco um homem cruel. Apenas se imaginava agora no papel de um psiquiatra, convencido de que os tenebrosos segredos de Selena eram como que um veneno a empestar-lhe a alma, veneno que acabaria por a destruir a ela e, além disso, a ele. Tinha-se na conta de grande médico espiritual e considerava o prazer de arrancar a Selena, um a um, cada pequeno pormenor, comparável apenas à alegria do cientista que, mercê de aturada investigação, logra fazer uma importante descoberta. Assim nunca podia compreender quanto de perverso e cruel havia na sua curiosidade doentia.

 

«Apenas quero o teu bem» - dizia-lhe.

 

Selena acreditava-o. Que mais poderia ela fazer?

 

Numa tarde, nos fins de Agosto, estavam sentados no sofá da sala de estar. Selena repousava a cabeça no colo de Tim e ele afagava-lhe os cabelos meigamente. Selena sentia-se como vogando sobre uma nuvem, como sempre que se deitavam juntos e permaneciam, depois, enlaçados. Estava prestes a adormecer, feliz, quando ele pediu:

 

- Fala-me do Lucas.

 

Por um momento conservou-se imóvel, possuída dessa estupefacção que se segue a choque terrível. «Aconteceu o pior», pensou num relâmpago. «Tudo o mais que vier terá de ser de menos importância». Mas o coração começou a bater-lhe fortemente no peito e todo o corpo lhe tremia.

 

- Pára com isso, Tim - gritou. - Não quero falar de Lucas nem de nada que lhe diga respeito!

 

- Tens que falar, querida - respondeu ele com enervante mansidão. -   É a única maneira de te livrares dele.

 

Selena fez um esforço para se levantar mas Tim segurava-lhe os longos cabelos e não a deixou.

 

- Larga-me! - berrou fora de si.

 

- Querida,   não te assustes tanto! - disse ele quase divertido. - Acredita no teu Tim, eu apenas quero o teu bem. Tens que falar nisso, Seleninha. Não podes passar o resto da vida com todo esse ódio a envenenar-te por dentro.

 

- Já não odeio o Lucas - respondeu ela. - Deixei de o odiar no dia em que o matei.

 

- Isso não é verdade - disse Tim.

 

Desta vez ela logrou levantar-se tão de súbito que Tim se deixou cair para trás perplexo... Selena ficou de pé defronte dele, fitando-o com os olhos verdes a faiscar de ódio:

 

- Como diabo sabes tu disso ? - gritou. - Tu e a tua infância amaricada, as tuas fitas reles e essa estúpida mania de brincar aos psiquiatras? Nada sabes da vida, da realidade. Pois muito bem. Vais ouvir tudo acerca do Lucas. Talvez que o que te vou contar te cure dessa doentia presunção.

 

- Não grites, querida, não grites - respondeu Tim no tom paciente e conciliatório que a exasperava até às lágrimas.

 

- Grito até me apetecer! - berrou Selena a explodir de raiva. - Queres então ouvir a história do Lucas Cross ? Pois ouve. Lucas era um porco, um bêbedo, o maior filho de puta que jamais vestiu calças. Quando eu tinha catorze anos bateu-me até me fazer desmaiar e então despiu-me em pêlo e violou-me. Depois daí não sei quantas vezes mandou o meu irmão Joey sair de casa, me fechou à chave e se pôs em cima de mim.

 

Selena, de pé, inclinava-se para Tim com os punhos cerrados enquanto gritava. Ele pegou-lhe nos pulsos e tentou fazê-la sentar a seu lado, no sofá.

 

- Querida, por favor - implorou assustado pela mudança que se operava nela.

 

Selena libertou-se e arranhou-o quando ele tentava levantar-se.

 

- Senta-te!-berrou. - Quiseste ouvir e hás-de ficar aí quieto enquanto eu não acabar. Quando o Lucas me batia e eu desmaiava isso não era o pior. O pior era quando eu ficava apenas atordoada, mas consciente, e ele me amarrava antes que eu pudesse fugir e me levava para a cama, para me ter pela força. Então eu tinha que suportar cada segundo interminável desse tormento odioso, quando ele, tresandando a suor me dilacerava a carne com o sexo desmesurado a resfolegar em cima de mim como um borrasco! Isso era infinitamente pior. Então, Tim, pareces impressionado? Não gostas de pormenores mórbidos? A minha mãe sabia... Não sei como, mas sabia. As vezes olhava para mim com uns olhos que me diziam tudo. Ah, mas o Lucas era cauteloso, diabolicamente cauteloso, que pensas ? Esperava pacientemente que ela saísse de casa para o trabalho e só depois me procurava. Lucas era forte, Tim, mais forte e mais alto do que tu. E quase sempre eu ficava cheia de sangue quando ele se punha em mim. Fiquei grávida dele e provoquei um aborto.

 

Todo o corpo lhe tremia e a voz rolava-lhe penosamente da garganta.

 

- Não que fosse necessário - continuou, e a voz parecia agora um pouco mais branda - isso do aborto, quero dizer. Lucas não era meu pai de sangue. Talvez a criança nascesse normal, talvez não fosse idiota ou deformada. Lucas costumava dizer isso em cima de mim.

 

- «Não és minha filha, não és minha filha». Excitava-se com esse pensamento, como se eu fosse uma estranha. Não, eu não tinha necessidade de provocar um aborto, mas fi-lo. Lembro-me bem. Sangrei abundantemente dessa vez. Mas o Lucas, ah, o Lucas também sangrou quando dei cabo dele, quando o matei. O sangue escorria dele como água dum chafariz, e eu não parei de lhe bater!

 

Os olhos de Selena fulguravam e a boca dir-se-ia um golpe na palidez do rosto.

 

- Matei-o - murmurou - bati-lhe na cabeça, bati, bati, bati até que o vi morto e saboreei cada um desses momentos. Quando acabei, a cabeça dele parecia um ovo e pela primeira vez depois de tantos anos eu me senti feliz. Lucas estava morto, como minha mãe, como o meu filho!

 

Deteve-se e ficou de pé ainda, com os braços pendentes de exaustação e os cabelos negros sobre o rosto.

 

- É isto que tanto querias ouvir ? - perguntou finalmente sem olhar para ele.

 

Tim acercou-se dela e Selena pode ouvir-lhe o arfar da respiração opressa. Quando levantou os olhos, mal pôde crer no que via. Os olhos dele faiscavam e as mãos, trémulas, procuravam-na.

 

- Meu amor - murmurou Tim numa voz rouquejante, estranha.

 

Então apertou-a a si e ela pôde sentir, atónita, quanto ele estava excitado.

 

- Pois então tu lembras-te? - rouquejou - tu lembras-te como ele era alto e forte e másculo, hein? Como um touro. Nunca mais o pudeste esquecer, minha fêmea!

 

Selena, apertada contra o peito de Tim, tentou em vão levantar o joelho. Não conseguiu mover-se.

 

- A mulher nunca esquece o primeiro homem - continuava ele - principalmente quando foi violada...

 

As mãos de Tim percorriam-lhe os contornos do corpo, brutalmente, magoando-a sob o vestido leve de verão. Quando a beijou, fê-lo ainda mais brutalmente, como se quisesse devorá-la. Selena dobrou-se e empurrou-o, cheia de nojo.

 

- Aqui está o que tu querias, o que sempre quiseste, ser violada, como o Lucas te violou. Sempre que eu estive contigo, querendo-te com a minha estúpida delicadeza, estavas tu a pensar no Lucas e a recordar-te de como era forte e brutal. Pois bem, também eu sou capaz de te possuir do modo que desejas. Assim!

 

Mas quando tentou derrubá-la sobre a carpete, Selena conseguiu inesperadamente libertar-se dele. Pulou por sobre a mesa diante do fogão de sala e pegou na pesada tenaz de ferro que ali estava, como que à sua espera.

 

- Eu mato-te! - berrou quando Tim se acercou dela.

- Não dês nem um passo, ou eu mato-te!

 

Tim, porém, não a escutava. Aproximou-se e quando tentou agarrá-la, Selena descreveu um arco com a tenaz e abateu-a pesadamente sobre ele. Se Tim não se tivesse afastado um pouco no derradeiro instante, a tenaz tê-lo-ia atingido em cheio na nuca. O ferro abateu-se sobre o seu ombro e ele caiu desamparadamente sobre a mesa e rolou para o chão estatelando-se de encontro ao pavimento de pedra defronte do fogão.

 

Por um momento permaneceu imóvel e nesses breves segundos Selena contemplou as próprias mãos e viu-as engalfinhadas na tenaz. Horrorizada observou como o braço se lhe erguia maquinalmente para bater de novo e, nesse instante, Tim levantou-se rouquejando. Selena fitou-o e, a seguir, olhou de novo a arma que conservava apertada na mão.

 

«Quase» gritou-lhe uma voz interior. «Quase. Quase que o matei!».

 

Voltou-se e fugiu apavorada. Correu através do bosque verde e amarelo sob o sol de Verão, até à estrada de Peyton Place.

 

«Quase», insistia a mesma voz, e ela não parou de correr até que tudo se turvou na sua frente e a poeira da estrada se lhe aconchegou ao rosto.

 

Em Setembro, Allison saiu de Peyton Place para Nova Iorque onde tencionava demorar-se uma semana antes de partir para Hollywood. Isso iria obrigá-la a chegar ao estúdio dois dias mais tarde mas ela considerava mais importante passar uma semana ininterrupta na companhia de Lewis, uma semana de amor.

 

«A distância não afecta o amor», pensava, recordando-se de tantas semanas de separação, dois longos meses em que, de Lewis, apenas recebia cartas. Contudo, embora essa ausência não lhe fizesse minguar a paixão que a impelia para ele, não conseguia já lembrar-se inteiramente das suas feições. Sabia que, por isso, os primeiros minutos do seu encontro seriam constrangidos e hesitantes, como se Lewis fosse um desconhecido, quase.

 

Olhou através da janela do comboio para a paisagem familiar. O Verão arrastava-se por Setembro adentro e o fogo do Outono não lograra ainda consumir ou tocar sequer a frescura exuberante dos campos.

 

«Que Verão que tinha sido, esse!» - pensava. «Tantas promessas de beleza e felicidade destruídas. Selena encontrada semilouca à beira duma estrada; Mike despedido e escorraçado; Seth Buswell e Matt Swain postos à margem por terem ousado defender Allison MacKenzie».

 

Peyton Place tinha sido um campo de batalha nesses últimos meses. Allison não sabia exactamente se partia derrotada ou vitoriosa. «Um pouco de ambas as coisas» - pensava. Na verdade, Mike acabara por conseguir uma colocação e ela, pelo menos, não cedera a ninguém. Estava no auge da sua carreira e o triunfo excedera tudo quanto ousaria esperar.

 

Allison não se habituara ainda a relacionar esse triunfo com a prosperidade material. Para ela a celebridade apresentava-se na sua imaginação, desde o início, como qualquer coisa vaga, um sonho doirado feito de um misto de sucesso pessoal e de independência. O dinheiro era o aspecto menos importante. «Sou uma mulher rica», dizia consigo às vezes. Fazia-o numa tentativa de se convencer a si própria da veracidade desse facto. Mas nunca conseguira obter qualquer resultado dessa tentativa. Não podia crer, não podia imaginar-se tal, não conseguia identificar-se com a ideia que fazia de uma mulher rica.

 

«Só as velhas são ricas», pensava, repelindo a ideia de uma Allison MacKenzie milionária. Não desejava encarar esse novo aspecto da sua personalidade, não suportava que ele interferisse com o único que apreciava, o de uma Allison MacKenzie escritora.

 

Detestava mais do que tudo vir a tornar-se numa entidade corpórea, interminavelmente envolvida com a turba-multa de notários e procuradores, precisamente o género de pessoas que a iriam assediar agora em Nova Iorque. Decidira confiar esses cuidados a uma pessoa de confiança e não pensar mais neles. «Os problemas materiais são incompatíveis com a arte e escrever é a única função digna do escritor».

 

-Talvez que afinal David tivesse razão. O seu procedimento não fora decerto devido aos verdadeiros motivos mas não deixara por isso ele de falar verdade. Ao escritor compete única e simplesmente escrever. Daí em diante, decidiu, seria essa a sua única ocupação, ao diabo com entrevistas e publicidade.

 

O condutor picou-lhe o bilhete e fez algumas observações amáveis sobre o tempo, enaltecendo o Verão que findava. «Sou um elo de ligação entre Peyton Place e Nova Iorque», pensou Allison. Olhou à sua volta, para os bancos estofados de verde e vazios, quase todos. Sentia-se como que proprietária do comboio.

 

«Devíamos viajar todos de comboio» - dizia ela numa imaginária conversa com Lewis. «É um dos poucos meios de transporte onde podemos entrar em nós próprios responder às nossas perguntas interiores e fazer julgamentos sinceros sobre nós e os outros. É muito perigoso pensar noutra coisa que não seja o trânsito quando viajamos de automóvel e os aviões são excessivamente rápidos para podermos reflectir um pouco».

 

Reclinou a cabeça no assento e fechou os olhos entregando-se alvoroçada a deliciosos pensamentos sobre o que iria ser o encontro com Lewis. «A fome de amor», reflectia, «é tão real e torturante como o desespero animal de comer».

 

Sorriu, pensando no que dizia Constance se soubesse que ela, a sua Allison, andava metida com um homem casado. Constance, lembrando-se do passado, pensaria decerto que era praga da família, uma tara que transmitira à filha e de que deveria sentir-se culpada e responsável.

 

«Eis a diferença entre as nossas duas gerações», reflectia. «Constance sentia-se culpada, exprobava-se do pecado de ter sido amante de um homem casado. Ela, Allison, não. Aceitava os factos: considerava isso um simples arranjo prático e agradável da sua vida, e mais ainda, o melhor que a vida lhe oferecera até ao presente».

 

Levantou-se, excitada pelos próprios pensamentos. Até quando? Não estaria a esquecer-se de que o seu caso com Lewis era apenas uma aventura transitória, para ser dentro em breve substituída por uma felicidade mais duradoira e consistente? Afastou logo esse pensamento incómodo. «Não sou nenhuma cigana», disse consigo. «Não sou uma vagabunda. Haja o que houver encontrei a felicidade, Lewis é a minha felicidade e vou-me segurar a ela com ambas as mãos».

 

Em Boston mudou de comboio. Enquanto atravessava a gare sorria. «Estou a embotar», pensou. «Ainda há pouco tempo esta viagem de Peyton Place para Nova Iorque era uma aventura emocionante, uma experiência nova, a realização de um sonho doirado. Agora, porém, é qualquer coisa que eu já posso fazer de olhos fechados, indiferente. Será assim em todas as coisas» ? interrogava-se inquieta. «Será isto viver?»

 

Da Grande Estação Central, Allison dirigiu-se directamente para o hotel residencial onde reservara previamente um apartamento. Subindo Park Avenue, rodeada de malas, tentava apagar dos lábios o sorriso magoado a que se habituara. «Deixa-te de escrúpulos», dizia a si própria. «Alivia essa consciência, Allison, descansa! Afinal tudo isto não te foi oferecido numa bandeja de prata. Ganhaste-o com o trabalho das tuas mãos. Agora, goza-o tranquilamente».

 

O apartamento que alugara ficava no vigésimo andar. Entrou no enorme salão todo decorado a branco e ouro, precedida pelo bagageiro e sob os olhares reverentes do empregado de recepção.

 

O gerente seguiu-a pressuroso, abriu de par em par as enormes janelas que davam para o terraço e mostrou-lhe a casa de banho quase tão grande como o quarto. Havia ainda uma pequena cozinha completamente apetrechada onde ela poderia, se quisesse, preparar as suas refeições.

 

Quando ficou só, olhou-se no espelho gigantesco do toucador como que para assegurar-se de que era realmente ela, Allison MacKenzie. «Que lugar maravilhoso!» Depois dirigiu-se ao telefone e ligou para Lewis.

 

- Cá estou - disse - queres vir jantar?

 

- Tenho   que   esperar pela   hora   do   jantar para   te ver ? - perguntou ele. - Vou imediatamente. Saio pelas traseiras, se é que a porta ainda funciona. Não faço uso dela desde 1936, quando os credores faziam horas na sala de espera...

 

- Oh, Lewis, como eu gostava de ter visto isso, querido!

 

- Também eu gostaria que visses e que te vissem! Ficariam todos tão encantados contigo que não pensariam mais nas contas... Ouve, amor, sei que sou terrivelmente indisciplinado e que todos os meus autores me vão escrever cartas venenosas, mas, paciência! Vou sair já e dentro de vinte minutos estou aí.

 

- Vem imediatamente,   querido! - desligou antes de acrescentar: «Não temos tempo a perder». Esse pensamento acudiu-lhe inesperadamente, não sabia porquê.

 

Despiu-se num relance. Queria tomar banho e preparar-se para o receber. Mandaria servir o jantar no terraço, com velas na mesa e champanhe gelado. De lá, poderiam contemplar Nova Iorque inteira sem que ninguém os visse. Porque o segredo dos seus amores furtivos fazia-os ainda mais deliciosos.

 

Quando Lewis bateu à porta ainda ela estava a meio dos preparativos. Não teve outro remédio senão vestir à pressa um roupão e ir abrir, ainda com o cabelo molhado e sem maquilhagem.

 

- Não olhes para mim! - ordenou sorridente. - Não estou decente.

 

Ele sorriu também.

 

- É o mesmo que dizer a quem tem sede que não beba água...

 

Abraçou-a efusivamente e puxou-a a si com força. Quando se beijaram, Allison deixou-se tomar nos braços dele e suspirou:

 

- Oh, Lewis, que saudades eu tinha de ti!

 

- As mesmas que eu tinha tuas, querida. Como tens passado ?

 

Allison escapou-se dos braços dele e disse:

 

- E eu que queria estar vestida e arranjada quando tu chegasses! Olha como estou!

 

- Vejo bem - respondeu Lewis.

 

- Tencionava mandar servir o jantar no terraço, com candelabros de cristal e champanhe...

 

- Depois pensamos nisso - respondeu ele com o sorriso pacato habitual.

 

De novo se lançaram nos braços um do outro, apaixonadamente. Lewis acariciou-lhe os seios sob o roupão e, agarrados correram para a cama. Allison sentiu os joelhos a tremer.

 

- Aperta-me querido. Nunca me deixes.

 

- Nunca - respondeu ele e esta palavra fez-lhe eco no peito.

 

«Nunca» pensou repetindo a palavra em silêncio. «O amor faz-nos dizer tanta palavra louca, ridícula, impossível! E, o que é pior, faz-nos crer nelas».

 

Allison repousou o peito no rosto de Lewis, como que para não ver nele os cabelos grisalhos, os sinais da idade. Ouvia-lhe o coração a pulsar de encontro aos lábios. «Nunca», também ela pensou, «quanto tempo significará?». E começou a chorar.

 

- Que tens, amor, que é ? - perguntou Lewis. - Porque choras? - acariciou-lhe os cabelos sobre a nuca paternalmente.

 

- Não é nada, Lewis - respondeu ela. Tomou-lhe a cabeça entre as mãos e devorou-o com beijos, como   se quisesse, pela intensidade do seu amor, recompensar-se de tantos anos que passara sem o conhecer.

 

Atormentava-a o pensamento de que não havia tempo a perder e, devido à disparidade de idades, teria de resumir a um breve espaço de tempo todo o amor e a experiência que a vida não lhe proporcionara até aí. Acariciava-o com as mãos, beijava-o com fúria e sob o corpo dela sentia-o estremecer de prazer. Quando ele a procurou, foi como se tivesse enlouquecido. Cobriu-a com o corpo duro e segurou-lhe os braços contra o leito com força para que ela não pudesse mover-se.

 

«Esta é a única verdade», pensou Allison no fim, «esta expressão de amor. Tudo o resto não conta».

 

Ficaram estendidos lado a lado e Allison observou o crepúsculo que se acentuava, mergulhando o quarto em sombras. Os dias agora eram mais curtos. O Verão despedia-se suavemente e o Outono fazia-se anunciar mas, pensava, iria encontrar-se de novo com o sol, na Califórnia e o seu Verão seria mais extenso algumas semanas.

 

Lembrando-se da sua própria viagem voltou-se para Lewis e beijou-o. - Como estás, querido ? - perguntou.

 

- Tenho algumas possibilidades de ficar bom...-ironizou ele. - Creio que não é caso para perder as esperanças. Se tiver um pouco de cuidado comigo talvez amanhã, por volta das onze horas, possa voltar a casa pelo meu pé...

 

Allison sorriu.

 

- Acho que seria melhor pores as forças à prova imediatamente, Lewis. Se o criado vem por aí e nos apanha creio que a minha reputação não irá muito longe...

 

Lewis sentou-se na cama.

 

- O criado? Qual criado?

 

- O que nos vem trazer o jantar, Lewis. Tens alguma preferência especial ?

 

- Tenho, tenho - exclamou ele saltando da cama e correndo para a casa de banho - espera que eu me vista...

 

Uma hora mais tarde, quando o gerente do hotel chegou acompanhado de um chefe de mesa e de um criado, este empurrando um carro com o jantar em pratos cobertos, Allison e Lewis estavam sentados, decentes e cerimoniosos, nas cadeiras de ferro do terraço.

 

O chefe de mesa abriu o champanhe, o criado serviu a refeição sem o menor ruído de pratos e talheres e o gerente assistiu às operações aprumado e ansioso. Era daquele género de homens, pensou Allison, que estão sempre à espera de que aconteça o pior. Quando o criado dispôs os pratos na mesa, Allison disse:

 

- Muito obrigada, eu sirvo o resto.

 

O trio curvou respeitosamente as cabeças, não sem que o gerente desse a tudo um último e preocupado olhar. Parecia receoso de que o terraço abatesse. Pareceu no entanto ficar convencido de que tal não sucederia por enquanto e despediu-se com um prazenteiro bon appétit.

 

- O homem dá-me a impressão de que tem desgosto de Peyton Place não ter uma bandeira - comentou Allison.

- Tenho a certeza de que a poria no cimo do hotel para que todos soubessem que Allison MacKenzie está entre os hóspedes...

 

Lewis sorria ainda à lembrança dos três homens graves e dignos, a curvarem-se em uníssono antes de deixarem o terraço.

 

- Nova Iorque está cheia de aparições - disse. - Transformou-se no último refúgio dos fantasmas de mais de metade da Europa. Esses três homens, por exemplo, morreram em Budapeste em 1935. Nova Iorque é o paraíso para onde emigram as almas.

 

- Pois o fantasma-chefe trabalhou muito bem desta vez - respondeu Allison.

 

Depois da sopa fria comeram filetes com molho béarnaise, vmaigrette de alcachofras e salada de legumes. Terminaram o champanhe com morangos silvestres a cheirar a campo e ao sol de Verão.

 

De pé, junto do parapeito, enquanto tomavam café, contemplaram Nova Iorque palpitante de luz e vida, sob eles.

 

«Momentos como estes compensam-nos de tudo» - pensou Allison sem saber ao certo o que essas palavras significavam. «Momentos como estes fazem que valha a pena sofrer a agonia do triunfo». Mas logo se interrogou, ansiosa.

- «Será tudo isto verdade? - Será compensador o preço que pagamos? A mentira das nossas vidas, o desespero dos amigos?»

 

Pensou no David. Doía-lhe pensar nele. Via-o solitário no seu quarto de solteiro, a poucos minutos dali, curvado sobre o trabalho. Talvez nunca o tivesse compreendido, talvez a integridade de que ele dera provas fosse real, e o desprezo a que a votara fosse sincero e fundamentado e não inveja do seu triunfo, ofendido simplesmente por verificar que esse triunfo era o alvo, tudo quanto Allison ambicionava. David acreditava no seu talento. Decidiu que lhe havia de telefonar. Convidá-lo-ia para jantar com ela e Stephanie no dia seguinte.

 

Lá em baixo o Central Park oferecia um aspecto murcho e fatigado, depois de três longos meses de luta contra o Verão tórrido.

 

- Devíamos pedir ao Município que desse umas férias ao Central Park - ironizou Lewis. - Está demasiado velho e cansado para continuar a viver na cidade...

 

- Vou   fazer   um   requerimento   amanhã - respondeu Allison.

 

Lewis apoiou a chávena no parapeito e, inclinando-se para ela, beijou-a na boca meigamente.

 

- Quanto a mim - disse - não preciso de mais nada, além de ti, Allison. És o meu sol, o ar que respiro.

 

Lewis ficou com ela até à meia-noite. Falaram, falaram de amor, e, como noivos, repetiam inúmeras vezes as mesmas palavras: ficariam a viver juntos. «Allison alugaria um apartamento em Nova Iorque quando regressasse de Hollywood. Em Outubro já estaria de volta. Iria a Peyton Place visitar Constance e Mike e regressaria a Nova Iorque para começarem a sua vida em comum.

 

- Não é fácil pôr em prática planos deste género

- disse Lewis. - Raras vezes as coisas correm bem. Oxalá que...

 

- Porque me falas dessas coisas ? - perguntou Allison.

 

- Pois temos que encará-las, pesar com antecedência os prós e os contras da nossa situação. Só assim conseguiremos resultados duradoiros.

 

- Sei o que estás a pensar, Lewis. - Receias que eu me farte depressa, que não me bastes. Que comecemos a discutir, eu a pedir-te que te divorcies para casarmos, etc. Querido, julgas que eu não considerei já todos esses pontos? Pensei em tudo. Tu és tudo o que eu quero!

 

- Deus queira que penses sempre assim, Allison. Espero, da minha parte, não proceder com egoísmo. Também medi bem os pontos fracos do nosso caso, enquanto estiveste em Peyton Place. Espero não me mostrar nunca exigente.

 

- E eu espero que o sejas, querido.

 

- Não me refiro a essas exigências. Falo das exigências de...   bem, de um amante egoísta, não propriamente de amor, compreendes ?

 

Lewis agitou o brande no cálice, um pouco confuso.

 

- Suponho que é isto o que eu quero dizer, Allison: quando a minha idade constituir de certo modo um obstáculo entre nós, não me toleres por compaixão, nem que eu to peça.

 

- Oh,   querido, - exclamou Allison apertando-o nos braços. - Não penses   em   tais   coisas   agora.   Tu não és velho, Lewis.

 

- Ele sorriu por um momento e respondeu:

 

- Por enquanto não,   de facto.   Suponho que, como muita gente, tenho um medo exagerado da velhice. Tenho o estúpido receio de que em breves anos me levantarei da cama e, vendo-me ao espelho, terei que dizer a mim próprio: «Estás velho, Lewis». Os homens são presunçosos e enganam-se a si mesmos durante muitos anos. Mas há-de vir o dia em que o mais presunçoso de todos terá que abrir os olhos e encarar a verdade. Os ossos não lhe permitirão mentir durante mais tempo...

 

- Não falemos disso agora, Lewis querido. Por favor mudemos de assunto. Vivamos o dia presente, aqui, agora. Deixemos o futuro para as velhas que escrevem horoscópios. Quanto a mim quero viver cada dia da vida e tu não terás, a meu lado, outro remédio senão fazer o mesmo. Porque, Lewis, nunca mais nos separaremos.

 

Lewis saiu passava já da meia-noite e Allison, fatigada do dia que começara de madrugada em Peyton Place e terminara tarde em Nova Iorque, deitou-se. Abriu as janelas de par em par e aspirou o ar frio da noite, Os ruídos do trânsito perdiam-se na distância e o silêncio parecia crescer até ela, vindo do parque deserto, envolvendo-a, até que se deixou dormir.

 

Na manhã seguinte mandou servir o pequeno almoço no terraço. Eram apenas oito horas. «Uma provinciana autêntica que sou», reflectiu. «Toda satisfeita de não ter ainda adquirido o hábito de se levantar tarde para beber simplesmente um café».

 

Sentia-se bem disposta por ter acordado cedo. Detestava tomar à pressa a refeição matinal e não dispensava o sossego do primeiro cigarro, o melhor de todo o dia. Debruçada no parapeito observou os camiões de irrigação molhando o asfalto e deixando as ruas, se não mais limpas, mais frescas, pelo menos.

 

A partir das oito e meia havia cada vez mais gente que saía dos edifícios, um formigueiro interminável, devorado pelas bocarras das entradas do metropolitano. Allison sorria, achando graça a essa multidão que ia e vinha cada vez mais apressada à medida que se aproximava das nove horas.

 

As dez, envergando um vestido de tweed, Allison tomou um táxi estacionado defronte do hotel e o porteiro correu, solícito, a fechar-lhe a porta.

 

- Sabe uma coisa, minha senhora ? - perguntou o motorista - os porteiros dos hotéis são as únicas pessoas que eu conheço que sabem fechar a porta de um carro. Não batem com elas e fecham-nas sempre à primeira. Se toda a gente aprendesse a fechá-las os meus táxis durariam o dobro...

 

Allison passou a manhã em escritórios de notários, advogados e agentes, tratando de pôr nas mãos deles a administração dos seus rendimentos, agora consideráveis. Acenava afirmativamente a cabeça quando lhe explicavam isto e aquilo; no entanto, por mais que tentasse escutá-los, os seus pensamentos andavam bem longe. Contudo, sabia que tratava com homens honestos e competentes e, portanto, não faria mal se não compreendesse. Talvez fosse até melhor, pensava. Ao menos não seria aos olhos deles o amador ignorante.

 

À tarde foi fazer compras e escolheu o género de roupas que até então apenas tinha conseguido invejar. Quase sempre era reconhecida e as facilidades que lhe ofereciam ultrapassavam toda a expectativa.

 

- Mas eu prefiro pagar já. Vou passar-lhe um cheque...

 

Dava-lhe vontade de rir pensar que, agora que tinha dinheiro no bolso, não precisava dele. Bastar-lhe-ia se quisesse, dar a morada. O nome pagava tudo.

 

Quando voltou ao apartamento encontrou-o já repleto de caixas que a criada abria, arrumando o conteúdo. Descalçou os sapatos e estirou-se no sofá. «Nunca serei capaz de me adaptar a isto», suspirou.

 

O telefone tocou: era Stephanie. Um produtor da televisão acabara de telefonar: «é só um instante, Allison. Mas temos que ensaiar esta noite, infelizmente. Talvez fosse boa ideia jantarmos as duas...»

 

Stephanie estava com pressa, também. Voltaria a telefonar no dia seguinte, prometeu, e marcariam um encontro.

 

«Adoro esta Stephanie», pensou Allison. «Praticamente é a única pessoa a quem o meu sucesso não fez diferença alguma»- Porque muitos havia que a invejavam como se o triunfo de Allison os estorvasse de singrar na vida; ela, porém, não conseguia compreender tal atitude.

 

«Ainda se me tivesse saído a sorte grande ou qualquer tio rico me tivesse deixado uma herança», pensava. «Mas não. Construí com as minhas mãos. Nada me foi dado gratuitamente». E pensava revoltada nas dezenas de cartas que recebera, de pessoas que pensavam que o seu triunfo as impediria de conseguir outro igual.

 

Suspirou e sentando-se no sofá ligou para Lewis Jackman. Contou-lhe como passara o dia e que David teria afinal de vir sozinho jantar com ela uma vez que Stephanie não podia. - Importavas-te de alterar os teus planos e aparecer também ?

 

- Telefono-te logo - respondeu ele. - Talvez apareça aí por volta da meia-noite, se não estiveres muito fatigada. Até lá entretém-te com o David, querida. Ele dar-te-á uma quantidade de informações sobre Hollywood, como sabes. Esteve lá uns tempos. Claro, não sei se isso te adiantará muito. Mas o David tem umas ideias muito especiais acerca de Hollywood. Depois conversamos.

 

Logo que desligou, telefonou de novo para o gerente e encomendou um jantar para dois, para as oito horas.

 

Antes de David chegar preparou um banho perfumado. No frasco, as gotas eram de cor de âmbar mas, na água da banheira, transformara-se em espuma de púrpura. Ficou estupefacta com o perfume.

 

Quando David chegou encontrou-a vestida com um simples vestido negro, cuja severidade era apenas minguada por uma rica guarnição de veludo em volta dos punhos. O cabelo, penteado para trás, dava-lhe um novo aspecto.

 

«Parece um pouco mais mulher», pensou ele, «e mais bela do que nunca».

 

- Fiquei admirado quando ouvi a tua voz esta manhã, Allison - disse - e terrivelmente feliz também, claro. Agradeço-te por teres posto fim a esta ridícula situação. Tudo foi por minha culpa. Naquele dia em que nos encontrámos no café, recordas-te? Bem, Allison, confesso que tinha ciúmes. Tenho dado a mim próprio toda a espécie de desculpas diferentes para   justificar a minha atitude,   mas em vão. Apenas e simplesmente o velho ciúme, nada mais. Perdoa-me Allison.

 

- Nada tenho a perdoar-te, David. Agora vamos beber e teremos umas horas para conversar. Não falemos mais disso.

 

Terminado o jantar e enquanto tomavam o café, a conversa recaiu sobre a próxima viagem de Allison a Hollywood. Nessa altura todos os passados ressentimentos estavam já desfeitos graças ao esplêndido jantar e sobretudo ao esplêndido vinho que os fizera aquecer. Os «fantasmas húngaros» tinham cumprido bem a sua missão e, às dez horas, evaporaram-se levando o carro cheio de pratos vazios e deixando David e Allison a sós com o café e o brande.

 

- Vais odiar Hollywood - disse David. - Uma chusma de pantomineiros e plagiadores.

 

- Apesar de tudo, vou - respondeu Allison. - Brad já me avisou.

 

- E afinal que julgas tu que vais fazer ?

 

- Bem. Vou supervisar a produção de um filme. Vou dirigir a adaptação do meu livro, orientar os figurinistas, etc. Parece-me que é isso.

 

- Allison - disse   David   com   veemência - eles   vão divertir-se à tua custa! De facto não precisam de ti para nada. O que pretendem é, simplesmente, servir-se de ti do teu nome como reclame. Hão-de fazer que te julgues importante. Convidando-te para reuniões mundanas, hão-de lisonjear-te de toda a maneira, para que tu, quando regressares a Nova Iorque, digas a quem quiser ouvir que Hollywood é isto mais aquilo.

 

Allison sorriu.

 

- Bem, se é isso o que eles querem hão-de pagá-lo caro. Vinte e cinco mil dólares por semana e todas as minhas despesas. Como vês...

 

David encolheu os ombros.

 

- No entanto tu não irás gostar, Allison, tenho absoluta certeza de que não.

 

- Talvez tenhas razão, David, mas tenho que fazer pela vida. Além disso ficarei com uma experiência nova.

 

- Penso   apenas em ti - continuou David. - Espera que eles te comecem a fazer o livro em pedaços. Depois dar-me-ás razão. Tenho a certeza de que não serás capaz de suportar tal coisa. Não és diferente dos outros.

 

- Mas não   possuo   a   tua   alma   sensível   de   artista, David - respondeu   ela. - Sei   que   O   Castelo   de Peyton continua à frente das listas. E, com o que me irão pagar pela adaptação ao cinema, suponho que não me importarei com o que quer que eles façam do livro.

 

- Faço votos para que não te arrependas - murmurou David em voz baixa. Allison, de súbito, sentiu-se vexada.

 

- Eu sei que,tens razão, David. Mas tenho de olhar por mim.

 

- Depois conta-me - pediu ele.

 

- Está bem, David, eu telefono-te. Já que o estúdio paga todas as minhas despesas, posso fazê-lo com a consciência tranquila.

 

David sorriu.

 

- Mudaste muito, Allison. Mas no fundo, és ainda a rapariguinha de Peyton Place, sempre preocupada em manter a consciência   limpa.   Nesse aspecto   não   creio   que   sejas alguma vez capaz de mudar nem que te façam uma operação cirúrgica.

 

O hotel era um imenso edifício de três andares, construído em semicírculo, de mármore branco e de vidro, no meio de um vasto relvado cuidadosamente manicurado, recortado por grandes canteiros de flores dispostos simetricamente.

 

Allison saiu ao terraço da suite que ocupava no nono andar e, olhando a paisagem, perguntava a si própria se alguma vez poderia haver coisas como lixo, por exemplo, em Beverly Hills... Eram dez da manhã e tudo, lá em baixo, em todas as direcções, estava tão limpo e ordenado, como se o mundo tivesse sido feito de novo naquele instante. O telefone tocou no salão e ela correu para o aparelho através das portas de vidro que davam para o terraço e foi atender. O salão, enorme, parecia um cenário de teatro, repleto de móveis modernos, carpetes brancas e pinturas abstractas. Os maples e sofás eram estufados a púrpura e tudo se harmonizava maravilhosamente.

 

- Está lá - respondeu.

 

- Estás pronta ? - perguntou a voz de Bradley Holmes.

 

- Como sempre - respondeu Allison. - Tenho estado a admirar tudo isto e nem sei em que planeta estou, Brad. É magnífico!

 

- Depois hás-de ver como é o estúdio - disse ele sorrindo. - E então é que vais pasmar.

 

- Estou ansiosa - respondeu ela. - Vens a caminho ?

 

- Chego aí num instante - disse Brad, desligando. Minutos depois bateu à porta e entrou.

 

- É realmente «fino»... - exclamou, olhando à volta.

- Os tipos trabalham bem. Pois o meu apartamento não é nada que se compare a isto, claro.   Sou eu que pago...

 

Allison pôs o chapéu e calçou as luvas brancas.

 

- Não gostas muito de Hollywood, pois não ? - perguntou ela.

 

- Ninguém   de Nova Iorque gosta   de   Hollywood, Allison - respondeu Brad, enquanto se encaminhavam para o ascensor. - Embora na maioria das vezes isso seja fachada, há muita gente que daria os olhos da cara para vir para aqui e passar a vida a clamar contra os filmes e os artistas. Não, por mim não gosto de Hollywood mas não abro a boca. Ganha-se muito dinheiro cá e eu recebo a minha parte.

 

- David odeia Hollywood - disse Allison.

 

- Claro - respondeu Brad - mas esse também nunca irá muito longe.

 

Um importante Cadillac parou defronte da entrada principal e um motorista fardado saiu para abrir a porta a Allison e Brad.

 

- Como vês - disse ele - pequenas coisas como esta de ir num Cadillac custam muito dinheiro. Se as quisermos, teremos de sacrificar qualquer outra. David nunca foi capaz de ceder uma polegada. Estive aqui com ele há uns anos: era impossível. Os Estúdios Miracle tinham-lhe pago uma quantia bastante razoável pela adaptação do seu terceiro livro, embora a edição vulgar nunca tivesse atingido três mil exemplares sequer. Pediram-lhe que ajudasse na adaptação. Pois bem, foram duas semanas que eu não queria passar outra vez, essas em que estive com ele. David mostrou-se, desde o princípio, obstinadamente agarrado aos seus pontos de vista, intransigente, surdo a tudo e qualquer sugestão apresentada pelo realizador e por outros argumentistas e escritores. Tencionávamos ficar em Hollywood umas oito semanas mas, ao fim da segunda, David saiu do hotel, embebedou-se e meteu-se no avião para Nova Iorque. Podes crer Allison, foi um   sarilho   explicar isso no estúdio. Afinal,   porém, chegaram à conclusão de que seria ainda mais fácil trabalhar sem ele.

 

- David aconselhou-me a não vir...

 

- É claro - respondeu Brad. - Ouve, querida, não compreendo como ainda te incomodas com pessoas do género desse David. Presentemente és uma celebridade, não o ignoras. Que falta te faz a amizade de um escritor obscuro, inconformista, como David Noyes?

 

- David é um grande escritor! - exclamou ela. - Não é célebre, não é bem pago, mas é grande. E tu sabe-lo.

 

- Sei - admitiu Brad. - Mas também sei que se ele tivesse feito uma pequena concessão e seguido os meus conselhos, os seus livros sairiam aos milhares.

 

- David não tem faro comercial. É puro, ainda - disse Allison.

 

- Aí está o privilégio dos escolhidos - comentou Brad sorrindo. Tinham chegado ao estúdio.

 

O automóvel parou defronte de um edifício de pedra branca que fazia lembrar uma casa dos subúrbios de Nova Iorque.

 

À entrada do parque relvado estava uma tabuleta de ferro forjado onde se lia: ARTHUR TISHMAN.

 

- Santo Deus! - exclamou Allison. - É aqui o escritório do Tishman?

 

- É - respondeu Brad. - Luxuoso, mas é.

 

- Dava para uma família de cinco pessoas, à vontade! Na divisão que poderia servir de sala de entrada, se a moradia fosse destinada a habitação, havia apenas uma secretária e duas estantes mas estas tão artificialmente dispostas e arrumadas que a custo se notavam, por entre ondas de brocado e magníficos quadros a óleo. À secretária estava sentada uma rapariga que Allison considerou a mais bela mulher que até então vira na sua vida. Não era alta mas tinha formas esculturais e o cabelo mais parecia uma nuvem de ouro fundido. Trajava severamente de veludo negro, com pulseiras de prata em ambos os pulsos e minúsculos sapatos de calfe preto.

 

- É uma honra para mim, Miss MacKenzie - disse, levantando-se   para   cumprimentar   Allison. - Chamo-me Gloria Muir e sou secretária de Arthur Tishman.

 

- Muito prazer - respondeu Allison.

 

Miss Muir tinha um acentuado sotaque inglês. «Faria inveja a Laurence Olivier...», pensou Allison.

 

- Como está, senhor Holmes ? - disse depois. - Folgo imenso em vê-lo de novo.

 

- É maravilhoso voltar à Califórnia - respondeu Brad. «Mentiroso...», pensou Allison.

 

- O   senhor   Tishman   espera-os - disse   Miss Muir.

 

- Façam o favor de me acompanhar.

 

Tishman era alto e pesado e tinha o aspecto de um jovem Sidney Greenstreet. Vestia calças escuras e uma espalhafatosa camisa de desporto que fez pasmar Allison.

 

- Brad! - exclamou ele aproximando-se da vasta secretária. - É um prazer voltar a ver-te por cá! Pensei que nunca mais voltasses a Hollywood, rapaz.

 

Os dois homens apertaram-se as mãos e antes que Brad tivesse tempo de apresentar Allison, Tishmann voltou-se para ela:

 

- E esta menina é a causadora de todo este sarilho, hein ? - exclamou   sorrindo   amigavelmente,   enquanto   lhe estendia   a   mão. - Miss   MacKenzie,   dá-me   uma   grande honra...

 

- Muito prazer em conhecê-lo, senhor Tishman. É estupendo viver aqui- respondeu Allison, cerimoniosa.

 

Tishman pegou-lhe no braço.

 

- Apresento-lhe   Conrad   Blanding,   o   nosso   director

 

- disse - e Joel Parkingson, o nosso argumentista.

 

Conrad Blanding usava óculos de aros grossos e escuros e sorria com os dentes todos, mas Joel Parkingson não sorriu de maneira nenhuma. Curvou-se maquinalmente e voltou a sentar-se, com os olhos obstinadamente fixos numa folha de papel que segurava na mão.

 

- Desejam tomar uma bebida qualquer ? - perguntou Tishman. - Café, por exemplo ?

 

- Talvez   café,   sim - respondeu Allison   sentando-se num sofá estofado a pele.

 

As paredes do escritório eram revestidas de nogueira, e numa delas via-se um cartaz de cores berrantes, ricamente emoldurado.

 

- Um dos melhores de Lautrec, não lhe parece, Miss MacKenzie?-perguntou Tishman.

 

Allison hesitou no que dizer.

 

- Oh - respondeu. - Sim, claro.

 

Alguns minutos depois Miss Muir entrou empurrando um carro de prata onde brilhava um serviço de café também de prata.

 

- Posso servir ? - perguntou.

 

- Se faz favor - respondeu Allison.

 

- Sim, se faz favor, Miss Muir - acrescentou Tishman. Seguiu-se uma pequena cerimónia durante a qual os homens se conservaram em silêncio enquanto Miss Muir enchia as chávenas.

 

- Agora nós, Miss MacKenzie - disse Tishman, recostando-se na poltrona. - A propósito, posso chamar-lhe Allison, simplesmente?

 

- Porque não, senhor Tishman ? - respondeu ela.

 

- Bom. A amizade é a base dos bons negócios. Eu, Allison, sou Arthur e - inclinou-se vagamente em direcção ao argumentista e ao director - estes são Joel e Conrad. Bem, Allison, temos trabalhado imenso à volta do seu livro e já fizemos uma espécie de argumento cinematográfico dele.

 

Allison olhou na direcção de Joel Parkingson mas este não levantou os olhos. Continuava sentado e parecia mais aborrecido que nunca.

 

- Gostaria de ver esse argumento - disse Allison.

 

- Decerto - respondeu Arthur Tishman. - Queremos precisamente que leve uma cópia consigo. Leia-o já esta noite e amanhã falaremos de novo e discutiremos pormenores. Mas, por favor, não pense que o trabalho que fizemos é o que se chama um bom argumento. De modo algum. Aqui o Joel acaba precisamente de lhe introduzir algumas alterações. Não vai ser muito fácil mas penso, e Conrad concorda comigo, que o trabalho de Joel constitui uma esplêndida base para o que pretendemos fazer. O argumento final seguirá as mesmas linhas do presente trabalho mas a Allison há-de compreender melhor que ninguém quão ingrata e trabalhosa é a tarefa de limar arestas, justamente o que vamos levar a cabo.

 

Arthur Tishman deu a Allison, desde logo, a impressão de ser um homem habituado a mandar, o que a assustou um pouco. Cedo, porém, compreendeu que Tishman, no entanto, se enervava na presença dela e que, por isso, não conversava, discursava. Era como se tivesse decorado previamente as palavras e as lesse a correr como um mau actor.

 

Allison sabia a história simples de Tishman: de origem obscura trabalhara duramente e fora bem sucedido. Tudo quanto possuía agora era obra das suas mãos. Por isso sentia por ele uma admiração intuitiva.

 

- Por agora basta de negócios - exclamou ele. - Temos aí uma semana terrível, minha querida: hoje à noite irá   encontrar-se   com   Harold   Jenks,   o   nosso   publicista. Os jornais trazem-no pelos cabelos desde que se espalhou a notícia da sua chegada. Depois, amanhã de manhã, temos um encontro marcado para si com o nosso fotógrafo, um dos melhores. E, finalmente, à tarde, há um jantar em sua honra em minha casa. Toda a gente relacionada com a produção do filme lá estará e mais uma porção de celebridades, creio. É preciso ter vistas largas.

 

- Mas eu tinha planeado...-começou Allison. Brad levantou-se.

 

- Magnífico, Arthur - disse. - Como sempre pensaste em tudo e da melhor maneira!

 

- Tem de ser assim - respondeu Arthur. - «A eficiência livra-nos das úlceras». Esta fórmula é muito minha mas não faço segredo dela, como vêem...

 

Allison seguia no carro para o hotel, sentada ao lado de Brad, quando se lembrou que nem Conrad nem Joel lhe tinham dirigido uma só palavra. Apenas Tishman abrira a boca.

 

- Vês ? - disse Brad. - Não custou nada!

 

- Não, de facto - concordou Allison. - Mas também pouco adiantámos.

 

- Aguarda - disse Brad. - Vais ter muito que fazer. O carro parou, desta vez defronte dum edifício de pedra que fazia lembrar um posto dos correios de qualquer pequena cidade. Brad ajudou-a a descer e conduziu-a para o escritório de Harold Jenks.

 

Este era baixo e barrigudo, com o cabelo negro e encaracolado e um nariz adunco que teria feito as delícias de qualquer caricaturista nazi.

 

- Muito prazer - respondeu maquinalmente e sem se levantar quando Brad a apresentou.

 

- Sente-se,   sente-se - acrescentou, indicando-lhe uma cadeira. - Acabam de chegar ?

 

- Não - respondeu Allison. - Viemos a noite passada.

 

- Falaram ao Tishman ?

 

- Falámos. Há pouco, antes de virmos para aqui.

 

- Você é atraente. Atraente, elegante e tudo o mais. Isso vai servir-lhe de muito, sabe?

 

Mediu Allison da cabeça aos pés e carregou num botão.

 

- Mandem cá o Joe Borden - disse pelo intercomunicador.

 

O homem entrou no aposento mas Jenks não o apresentou. Limitou-se a fazer um aceno para ele. - Allison MacKenzie - disse, como se indicasse um artigo qualquer no balcão de uma loja. - Escreve. Temos de arranjar uma história qualquer para os jornais. O costume. Leve-a a dar uma volta por aí e faça qualquer coisa antes de ela se ir embora.

 

Allison sentia-se agora não apenas um artigo sobre o balcão de uma loja, mas um artigo que fora recusado por um comprador em perspectiva.

 

- É   melhor   tirar   algumas   fotografias - continuou Jenks olhando para   o   relógio. - Não posso   deixar que os jornais tomem a iniciativa. Vá já ao fotógrafo com ela, Borden.

 

- Mas o senhor Tishman disse que eu ia ao fotógrafo só amanhã - protestou Allison. - Não posso ser fotografada agora. Tenho o cabelo que nem uma vassoura, as luvas sujas e estou fatigadíssima.

 

Jenks sorriu:

 

- Temos aí um batalhão de pessoas que ganham a vida a incomodar-se com esses pormenores - respondeu.

- Vá. Acompanhe o Borden que ele tratará de tudo.

 

- Mas   eu   não   quero   ser   fotografada! - exclamou Allison. - De manhã, ainda vá, mas agora...

 

Jenk apoiou as palmas das mãos no tampo da secretária com um gesto de infinita paciência:

 

- Escute, Allison, - disse - nessa mesma cadeira onde está sentada estiveram grandes figuras. Marilyn Monroe, Lana Turner, Rita Hayworth... todas elas. Sei o que estou a fazer! Tenha a bondade de não me complicar as coisas e tudo correrá bem em Hollywood.

 

«Creio que tem razão», pensou Allison finalmente impressionada com o profissionalismo de Jenks. Era de facto um homem que sabia do seu ofício como poucos, melhor do que ninguém. Como Tishman, Jenks não devia a outrém nada do que possuía. De resto a era dos «padrinhos» findara, havia muito, em Hollywood.

 

Assim Allison foi penteada, maquilhada e fotografada. A seguir foi de novo penteada, maquilhada e fotografadaO fotógrafo olhava-a como se a observasse ao microscópio e, enquanto isso, resmungava palavras ininteligíveis. Quando acabou, Allison estava prestes a chorar.

 

- Quem me dera nunca ter vindo - suspirou quando finalmente se apanhou no hotel. - David tinha razão!

 

- Deixa lá - consolava-a Brad. - Estás apenas fatigada.   Depois de uma bebida e um bom jantar,   ficarás melhor, vais ver.

 

As nove e meia Allison acabou de jantar e olhou cheia de gratidão para Brad.

 

- Tinhas razão - disse. - Porto-me como uma garota. Se me fazem festas e me enchem a barriga deixo de chorar. É triste, não é?

 

Brad sorriu.

 

- És maravilhosa - respondeu. - E com essa dose de bom-humor ficas encantadora.

 

- A única coisa que me encanta a mim, neste momento - respondeu ela - é a perspectiva de uma boa cama, larga e macia.

 

- Então não vai ler o argumento?

 

- Isso é enquanto tomo banho - respondeu ela.

 

- Telefono-te, amanhã, às nove horas - disse Brad, ao sair. - Tomamos juntos o pequeno almoço.

 

Dez minutos depois Allison encheu a banheira de água muito quente, perfumou-a e preparou-se para se banhar, descansar e ler. Decorrida uma hora, quando terminou a leitura do argumento, sentia-se bem longe de ter descansado. Joel Parkingson omitira no argumento aquilo que ela considerava o melhor do romance. Por outro lado, havia páginas e páginas de diálogos ocos e insípidos e caracterizações que lhe pareciam mais do que ridículas, deploráveis.

 

«Não há outro remédio», pensou com os olhos cheios de lágrimas. «Não me importo. Vendi-me a eles e estou à sua mercê. Que me adianta sofrer?»

 

Contudo não conseguia dominar-se, sofria. E com esse sofrimento veio-lhe a única defesa que ela pudera construir contra um mundo demasiadamente ocupado com ela. Construíra, desde o início, cuidadosamente, a trincheira da indiferença em que se refugiava agora, ciente de que iria necessitar de algo onde se ocultar.

 

- Não   tardará   muito - prevenira-a   Lewis - talvez quando a tiragem atingir a casa dos cem mil, que não venha a ser chique dizer mal de O Castelo de Peyton, Allison. E então ninguém deixará de o fazer.

 

-- Mas não compreendo, Lewis - respondera. - As primeiras críticas eram favoráveis. Não direi já lisonjeiras, mas boas.

 

- Isso   era   no   princípio - tinha   respondido   Lewis.

 

- Mas há muita gente estúpida neste mundo. Os críticos da moda divertem-se a «descobrir» pessoas e coisas e a princípio não se fartam de os enaltecer. Mas quando o grande público imbecil começa a partilhar no seu entusiasmo a «descoberta» deixa de ter interesse para os descobridores. Então viram a casaca. - E imitou a voz de um crítico muito conhecido, sempre a falar numa voz repassada de fadiga.

 

- Capri, Allison,   costumava ser o lugar preferido dessa gente para «descansar». Por isso regurgita de indesejáveis.

 

Allison sorriu.

 

- E que dirão eles agora,   acerca de O Castelo de Peyton? - perguntou ansiosa. - Que era um bom livro mas que, «inesperadamente» deixou de o ser?

 

O rosto de Lewis sombreou-se.

 

- Precisamente - respondeu. - Já o ouvi em mais de uma centena de cocktails e, acredita, nunca poderás fazer nada contra essa gente. São eles que fabricam as opiniões do público e isso dá-lhes uma posição inatacável e poderosa.

 

- Mas   eu   não   sou   a   vítima   indicada - respondeu Allison - e creio que não perderão o seu tempo precioso a falar de mim.

 

- Receio muito que sim - respondeu Lewis. - E   se o fizerem, irá doer-te um pouco, Allison.

 

- Ora Lewis, não te incomodes com isso.

 

E assim aconteceu realmente. Um dos mais encarniçados detractores escrevera em tempos uma crítica favorável. Agora, na mesma revista comentava:

 

«Century Films acaba de adquirir os direitos de adaptação do livro O Castelo de Peyton de Allison MacKenzie, um chorrilho de obscenidades e de estupidez. Tudo o que podemos dizer é que Hollywood deve lutar com uma invulgar falta de argumentos».

 

Allison ficou estupefacta. Começou a procurar ouvir conversas em reuniões e lugares públicos.

 

- Não, não li O Castelo de Peyton - ouviu dizer a uma dama que   anteriormente se referira ao   livro,   num programa de televisão, como «excitante» - apenas lhe dei uma vista de olhos, mas, minha cara amiga, que estopada!

 

O director de uma cadeia de televisão, que tentara adquirir os direitos do livro, concedeu uma entrevista a um importante jornal, em que afirmou: «Não compreendo como se deixam passar ignorados tantos bons livros enquanto O Castelo de Peyton foi classificado como best-seller.

 

Apenas com Lewis, Allison se abria um pouco, e, mesmo com ele, tinha o cuidado de não trair o desgosto que a dominava. Na maioria das vezes, porém, desabafava consigo própria.

 

- O público gosta de criar os seus heróis - respondera-lhe Lewis. - Por vezes penso que o faz com o cínico objectivo de os derrubar depois, impiedosamente. Faz lembrar uma criança que constrói uma casa com caixas de fósforos, cuidadosamente, para a destruir, apenas terminada, com o mesmo prazer.

 

- Não me importa - respondeu Allison com uma indiferença forçada. - É maravilhoso   ser-se célebre enquanto a glória dura. E, afinal, que importância tem haver quem diga mal do meu livro?

 

Allison chorou silenciosamente sobre o travesseiro.

 

«Não me importo!» soluçava. «O estúdio comprou-mo. Recebi dinheiro. Agora o livro pertence-lhes e nada tenho a ver com ele».

 

Às nove e meia do dia seguinte, quando Bradley Holmes veio para tomar com ela o pequeno almoço, Allison tinha o ar de quem nunca chorou uma lágrima em toda a sua vida.

 

- Leste o argumento ?

 

- Li.

 

- Que tal ? Assustaste-te ?

 

- É a coisa mais ridícula e disparatada que alguém poderia ter escrito.

 

- Bem, não é o fim do mundo - respondeu Brad.

- Arthur bem te disse que isso era uma primeira tentativa, apenas.

 

- Mas também disse que seria a base e que essa base não seria alterada - respondeu Allison revoltada. - Se é assim, o público vai ter com que se rir em todos os cinemas da América!

 

- Vamos,   Allison,   não   exageres - respondeu   Brad.

 

- Não pode ser assim tão mau como dizes. Allison encolheu os ombros.

 

- Então lê-o!

 

- Não tenho tempo agora - disse ele olhando para o relógio. - Temos de nos apressar. Vamos imediatamente para o estúdio.

 

- O melhor é ir imediatamente para o aeroporto, para te ser franca. Quanto mais cedo sair daqui, melhor.

 

- Pareces o David Noyes a falar. Anda daí, Allison, deixa-te de birras.

 

A caminho do estúdio, Allison, sentada no banco traseiro do automóvel, refugiou-se no seu pequeno mundo interior. Era agora um mundo de ódio, esse. Odiava Hollywood, Tishman, o argumentista, todos. Tishman, pensava, comprara-lhe o livro porque o admirava e o supunha capaz de dar um bom filme; mas agora ia alterá-lo e que poderia ela fazer? Lembrou-se dos diálogos forçados, intermináveis, e estremeceu. O filme iria chamar-se O Castelo de Peyton, «baseado no romance de Allison MacKenzie»... Contudo nada poderia fazer. Sabia bem que no mundo de Arthur Tishman, como no mundo da Broadway, o facto de ser autora do livro, embora nada tivesse a ver com a adaptação cinematográfica, responsabilizá-la-ia pelo filme, até certo ponto. E, depois de ler o argumento de Tishman, não lhe restavam dúvidas de que ele redundaria no mais absoluto fracasso, de que o público iria abandonar as salas desiludido e revoltado.

 

Quando entrou com Brad no estúdio de Tishman encontrou-o sentado à secretária a examinar uma pasta que continha esboços dos primeiros figurinos e escrevendo, à margem das folhas, observações a tinta vermelha. Notou que Tishman possuía uma caligrafia cuidada, que lhe lembrava os escritos dos monges. «Tenho a mania da grafologia» pensou.

 

«Tishman não é nenhum frade e o convento mais próximo de Hollywood fica a um milhão de milhas daqui.»

 

Arthur Tishman fitou demoradamente Allison sob as enormes sobrancelhas. Começou a rodar distraidamente a cadeira da direita para a esquerda e de súbito parou.

 

- Brad - disse - porque não vai ao Departamento de Publicidade ver que tal está o trabalho do Jenks? Apetecia-me dar uma volta por aí, com Allison.

 

- Claro - respondeu Brad. - Uma boa ideia, Arthur. Allison olhou para Brad e pensou: «Erraste a vocação.

 

Davas um excelente criado particular».

 

Logo que ele saiu, Arthur voltou-se para Allison. Aproximou-se da porta e ela, instintivamente seguiu-o.

 

- Gosta de andar a pé ? - perguntou.

 

- Gosto.

 

- Também eu. O pior é que leva muito tempo. Tishman calou-se e Allison seguiu-o, pensativa. «Que espécie de homem será este, tem a caligrafia de um monge, veste como um marciano». Tishman envergava uma camisa desportiva estampada com enormes palmeiras que lhe atravessavam o peito e cujas sombras lhe desciam até ao estômago. «Pensa que andar a pé é coisa que leva muito tempo e está convencido de que vai fazer um bom filme deste incrível argumento».

 

Ao fim de cinco minutos tinham deixado o mundo real e Allison sentiu-se subitamente uma Alice no País das Maravilhas. Junto de um grupo de velhas casas típicas do Sul erguia-se a fachada imponente do palácio de Versalhes; e logo que passaram adiante, encontraram-se na rua principal de uma pequena cidade, dessas que Hollywood se habituou a considerar «típicas». Seis cowboys, com os olhos ensombrados de verde e os lábios pintados, caminhavam atrás deles, com os cavalos pelas rédeas.

 

Quando saíram da «cidade típica», Allison viu à sua direita um lago artificial. Um barco de remos, tripulado por três actores encharcados, lutava com as vagas. De uma torre uma voz exclamou: «Muito bem! desliguem a tempestade!» As máquinas que produziam o vento pararam, a tempestade amainou e os actores saíram do barco e patinharam para a margem, com a água pelos joelhos.

 

- Quando vir esta cena na tela - disse Arthur - ficará convencida de que foi filmada em pleno oceano. E, se o director tiver «garra» e o produtor for imaginativo, você acreditará piamente na odisseia destes náufragos de trazer por casa.

 

Entraram numa cidade do Oeste. Havia a clássica «rua principal» cheia de poeira, o escritório do xerife, o saloon, o armazém e os passeios de madeira. Allison esperava a cada momento ver surgir Gary Cooper, alto e esguio, a sair cautelosamente do escritório do xerife.

 

Arthur empurrou as portas basculantes do saloon e entraram. A luz do sol filtrava-se através de inúmeros buracos no tecto. O espelho enorme, atrás do balcão, reflectia-os. Vendo a sua imagem, Allison sentiu-se deslocada, fora do tempo, uma intrusa no passado americano.

 

Sentou-se a uma das mesas e Arthur inclinou-se para o bar.

 

- Já viu este cenário em mais de uma centena de filmes, Allison. Mas de cada vez o aspecto era diferente. Apenas algumas alterações sem importância, uma mudança de luz e de rostos e aí está um bar diferente. Basta que haja um produtor engenhoso que nos mostre as coisas de um novo ângulo e o objecto ou o lugar mais familiares apresentar-se-ão como outros, inteiramente diferentes.

 

Atravessou o salão e sentou-se junto dela.

 

- Quero dizer-lhe, Allison, que sei o que pensa do argumento. Pensa que arruinámos o seu livro e diz lá para si: «Não me importaria que tivessem adulterado a minha história se ao menos conseguissem fazer das ruínas um argumento razoável. Mas este é estúpido, insípido, sem imaginação».

 

Allison abriu a boca para falar mas Arthur continuou:

 

- Muitas cabeças trabalham na realização de um filme, Allison. Mas depois de vinte anos de experiência cheguei à conclusão de que o mais difícil de fazer é um bom argumento. Saber lê-lo, vê-lo e ouvi-lo. À primeira vez- E depois, saber julgá-lo, avaliar se ele poderá dar um bom filme ou apenas um filme medíocre.

 

Calou-se e começou a passear por entre as mesas. Depois parou de costas para a porta.

 

- É difícil de lhe explicar, tudo isto. Você lê o nosso argumento como uma romancista. Não pode fazê-lo. Terá de lê-lo como uma máquina de filmar, uma máquina dotada de um cérebro humano. Ouça, Allison, conhece a expressão «magia do teatro»?

 

Allison acenou afirmativamente.

 

- Na acepção vulgar essa expressão significa o glamour do teatro, a aura, o apelo espectacular. Quando, porém, os entendidos falam de teatro, essa magia quer dizer uma coisa inteiramente diversa. Para estes, magia do teatro é essa coisa misteriosa e inexplicável que «acontece» entre o encenador e os actores. A magia reside nessas linhas insípidas e ocas que se transformam em nobres e significativas palavras revelando a existência de subtilezas de que nem sequer suspeitávamos. Foi um grande erro seu pretender que o argumento de um filme fosse literário. Até porque ele nunca poderia sê-lo. As suas qualidades terão necessariamente que ser extra-literárias.

 

Tishman aproximou-se mais e ocupou uma mesa defronte dela.

 

- Procura,   acaso, um   argumento   susceptível   de ser lido como quem lê um romance? Pois eu, pelo contrário, procuro um que se veja como se vê um filme. Desculpe, Allison, sou um velho maçador. Mas sei o que digo quando falo de filmes. Se assim não fosse, há muito que não estaria aqui. Quer fazer-me o favor de confiar em mim?

 

Allison não respondeu. Pensava apenas e apesar de tudo no seu romance mutilado. Aproximou-se da janela e olhou para fora: numa rua poeirenta caminhava um estranho cortejo de homens envoltos em longas vestes brancas e descalços. Um deles levava pela arreata um jumento branco. Dirigiam-se para o local das filmagens de um filme bíblico.

 

Era um dos mais extravagantes espectáculos que lhe fora dado presenciar ver esses cristãos primitivos caminhando ao longo de uma rua do Far-West... Tudo ali estava errado e, contudo, fazia sentido. Compreendeu, de súbito, que essa gente era capaz das coisas mais mirabolantes. Se quisessem poderiam reproduzir em Los Angeles a cidade de Nova Iorque ou a cidade planetária do porvir. Desde os tempos de menina que esses magos a enfeitiçavam. Porque duvidar agora do seu talento?

 

Voltou-se e sorriu para Arthur Tishman.

 

- Penso que tenho andado doente. Deve ser do que se chama «doença do escrito», ou seja, arrogância. Trabalhamos a sós durante tanto tempo que acabamos por nos imaginarmos as únicas pessoas capazes de criar. E, o que é pior, que não precisamos de ninguém...

 

- Só os mercenários se não prezam do seu trabalho

- respondeu Arthur.

 

Pegou no braço de Allison e começaram a caminhar em direcção aos escritórios. Junto da porta do estúdio de som duas damas da corte da Imperatriz Eugénia, de saias de balão e cabeleiras empoadas, falavam do seu cantor favorito de rock-and-roll. Pela primeira vez Allison começara a reparar, excitada, no extraordinário poder criador de Hollywood e, enquanto Arthur falava, começava a compreender um pouco do aspecto técnico do trabalho de fazer um filme.

 

- Esperamos fazer de O Castelo de Peyton um grande filme, Allison - disse-lhe ele enquanto entravam no carro. Não apenas um bom filme. Amanhã estaremos à sua inteira disposição. Gostaria de ouvir as suas ideias.

 

Junto do estúdio de Jenks, Brad entrou no carro. Apenas fechou a porta, estendeu a Allison um enorme envelope de tela.-As tuas fotografias! - disse sorrindo.

 

Allison abriu o envelope e olhou para elas. Dificilmente se reconheceu. Era o seu retrato mas havia nele qualquer coisa de misterioso, uma estranha beleza que espelho algum lhe poderia revelar. Sorriu e pensou: a magia tomou conta de mim».

 

- A máquina fotográfica olhou-me com olhos de apaixonado - disse sorrindo a Bradley.

 

Depois devolveu-lhe as fotografias. Por qualquer motivo sentia-se embaraçada de olhar para elas. Era como se a surpreendessem praticando uma fraude.

 

Ao fim da segunda semana, Allison libertara-se inteiramente dos preconceitos que trouxera para Hollywood.

 

Na verdade havia em Beverly Hills mais piscinas do que em qualquer outra cidade do mundo; as casas eram todas magníficas cópias de castelos espanhóis ou velhos palacetes ingleses; e Hollywood atraía as mais belas mulheres e também os mais belos homens. Mas a grande verdade acerca de Hollywood, que perdoava toda essa ostentação, era o trabalho interminável e árduo de fazer filmes. Allison nunca vira ninguém trabalhar, como ali, com tamanha energia e tão furioso entusiasmo criador! Filmar, para eles, era o ar que respiravam, esquecidos da suas próprias existências, confundindo na vida real e no palco os seus amores, casamentos e divórcios.

 

Os filmes eram, para Hollywood, o que para Detroit são os automóveis. Da janela do escritório avistava-se uma extensa área dos estúdios. Camiões e carrinhas subiam e desciam num vaivém constante, carregados de cenários e guarda-roupas. Centenas de pessoas agitavam-se nesse pequeno mundo, cada uma delas entregue à sua tarefa particular. Serventes, figurantes, actores de nomeada e directores de cena trabalhavam em conjunto, empenhados na mesma actividade de cujo sucesso dependiam as suas vidas e a reputação dos seus nomes.

 

Allison, sentada à sua mesa de trabalho, passou a primeira semana a ler o argumento. Lia-o com os olhos abertos agora, mercê das lições de Tishman que partilhara com ela a experiência adquirida depois de longos anos de trabalho.

 

Assim, passagens do argumento que à primeira vista se lhe tinham afigurado arbitrárias e caprichosas, via-as agora como necessárias e razoáveis adaptações. Compreendia, por exemplo, a necessidade que determinada cena que descrevera como passada no Verão surgisse no filme decorrendo em pleno Inverno. O frio, a paisagem hirsuta, o branco e preto da neve e das árvores despidas constituíam, na verdade, um cenário mais de harmonia com o clima emocional que se pretendia.

 

Avistou-se com o figurinista e deu-lhe algumas opiniões sobre o trabalho. Descobriu apenas erros de menor importância, o género de erros que ninguém, de resto, notaria, excepto os peritos.

 

Saía do estúdio às cinco horas e regressava ao hotel. Este era, sobretudo, aquilo que mais de acordo estava com a ideia que, em miúda, fazia de Hollywood. No átrio, junto da piscina, enxameava uma multidão de beldades que não se limitavam a esperar pacientemente que algum realizador as «descobrisse» mas que, efectivamente trabalhavam arduamente para isso, dia e noite. Havia, também senhoras de idade, ricas viúvas que passavam duas horas por dia em salões de beleza e tinham sempre a acompanhá-las o inevitável menino «bem», elegante, obsequioso.

 

Allison conseguia já distinguir um agente só pelo andar e, de um golpe de vista, podia dizer se estava na presença de um escritor desempregado ou de um director em busca de contrato. Em pouco tempo inteirou-se de todos os mexericos e podia dizer, tão bem como a criada do quarto, o motivo por que tal famosa estrela se ia divorciar e quem era o outro homem.

 

Todos os dias telefonava a Lewis. Falavam durante cinco ou dez minutos e apressavam-se para conseguirem dizer tudo um ao outro acerca do seu amor, dos seus planos e do que tinham feito no dia anterior,. Chegou, por fim, o dia em que Allison pôde gritar:

 

- Oh, querido! Amanhã é o último dia e poderei finalmente voltar para junto de ti. Reservo um lugar no avião para as seis horas da manhã seguinte e, assim, ainda estarei contigo antes da hora do almoço.

 

Nessa noite, a última, Arthur Tishman deu uma festa em sua honra. Desejava que Allison pudesse encontrar-se com Rita Moore, sabendo-a uma artista da sua predilecção.

 

Brad regressava a Nova Iorque no fim da primeira semana e Allison seguiu sozinha no assento traseiro do Cadillac do estúdio, com a fronte apoiada no braço. Sorria, «Faço tudo isto tão naturalmente já», pensou, «como se o tivesse feito durante toda a vida.»

 

Vestia um simples vestido negro e usava o cabelo penteado para trás. Como único ornamento, um pequeno alfinete de diamantes, «a única jóia que comprara com o novo dinheiro», pensava. Para si própria dizia sempre «o novo dinheiro». Vira esse alfinete um dia numa montra de Beverly Hills e decidira-se a comprá-lo. Sabia que, de futuro, essa jóia ficaria sempre a sua favorita, acontecesse o que acontecesse, por ser a primeira que comprava com o dinheiro proveniente do seu triunfo. À medida que o carro se aproximava da residência de Tishman, Allison apalpava o alfinete. Sentia-se segura.

 

A casa de Arthur Tishman era uma das mais antigas. Muito diferente do moderno estilo da Califórnia, fazia lembrar um palacete dos subúrbios de Long Island, uma relíquia extravagante, um dinossauro da idade do gelo, símbolo do passado senhorial de Hollywood. Arquitecturalmente era meio espanhola meio Tudor sem que isso, contudo, resultasse em mau gosto. Como sucede tantas vezes com as construções americanas dos princípios deste século, a vulgaridade da arquitectura tornara-se, depois de tantos anos, encantadora. «Uma casa», concluiu Allison, «onde daria gosto viver». Na verdade não oferecia esse aspecto pouco hospitaleiro das construções funcionais dos pós-guerra, divididas em quartos acanhados e tectos opressivamente baixos.

 

O carro parou por fim defronte de uma graciosa escadaria de pedra de degraus baixos e ladeada por uma balaustrada esculpida. Arthur veio ao seu encontro e ajudou-a a descer.

 

Passados cinco minutos já tinha tomado duas bebidas e fora apresentada a mais de vinte pessoas. Não fixou, porém, um nome sequer, excepto o de artistas que já conhecia.

 

Entre eles encontrou um actor que fora em tempos um dos seus favoritos, tinha ela, recordava-se, exactamente catorze anos. Era pálido, de cabelo um pouco raro, mas, na tela, aparentava a mesma elegância de sempre.

 

Engolira as duas primeiras bebidas numa tentativa desesperada de vencer o nervosismo que lhe causava o encontro com tantas celebridades. Mas em vão. Confusa, olhou à volta na esperança de encontrar Rita Moore. Onde estaria Rita Moore ?

 

Conversava-se animadamente. Pôs de lado o copo e saiu para o terraço. Aí aspirou profundamente o ar puro. «Preciso de arejar as ideias», reflectiu. Caminhou até ao fundo, enervada com o ruído que os saltos faziam no pavimento.

 

No aposento contíguo à sala de estar superiluminada brilhava uma acolhedora luz de âmbar e Allison, espreitando por uma das janelas, viu que era a biblioteca. Experimentou a porta, abriu-a e entrou furtivamente. Era uma sala enorme e abobadada, com um maciço fogão de pedra. Ao longo das paredes alinhavam-se intermináveis filas de livros luxuosamente encadernados.

 

«Até parece que não foram lidos», pensou.

 

Quando se aproximava das estantes, uma cabeça espreitou por detrás de um sofá de pele e desapareceu de novo. Mas esse instante bastou para que Allison reconhecesse o rosto famoso e belo de Rita Moore.

 

- É alguém de carne e osso ou o fantasma de Norma Talmadge ? - perguntou ela detrás do enorme sofá.

 

- Pelo menos de osso... -respondeu Allison. Aproximou-se do sofá e olhou para Rita Moore. Sorriu e disse-lhe:

 

- Folgo muito em ver que tem um corpo, Rita, que não é apenas uma voz...

 

- Dantes, tinha - respondeu Rita baixando os olhos.

 

E que corpo que eu tinha! Quando me vejo nos filmes antigos nem acredito que essa mulher seja eu!

 

- Ainda está em forma, Miss Moore.

 

A boca de Rita curvou-se num sorriso melancólico.

 

- Obrigada! Vendia-lho por um pataco se me desse em troca a sua juventude.

 

Estendeu a mão para a garrafa de brande sobre uma pequena mesa mas não lhe chegou. Allison pegou na garrafa e deitou-lhe um pouco de líquido no copo.

 

Rita bebeu-o como quem toma um remédio, como alguma coisa que tinha que tomar porque lhe fazia bem. Fez uma careta e exclamou:

 

- Santo Deus, como estou saturada, saturada de corpo e alma. Já não posso com festas. Quando me convidam, a primeira coisa que faço, ao chegar, é ver onde ficam as saídas. Em vinte anos de experiência aprendi que a biblioteca é o sítio ideal para se estar só. Muita gente, a maior parte, tem medo dos livros. Ler um livro, para eles, é sinal de que têm de estar sós durante algumas horas. E no nosso meio estar só é uma coisa medonha.

 

Encheu de novo o copo. O cabelo louro-doirado reflectia a luz e brilhava como uma jóia. Tinha o rosto ossudo e o ângulo das faces acentuava-se em duas sombras diagonais. Os olhos eram verde-mar e vestia de verde-escuro com efeitos a ouro. O vestido cingia-lhe o corpo tão justamente como uma segunda epiderme e sobre a proeminência dos seios opulentos a pele mostrava-se rija e leitosa.

 

- Você deve ser Allison MacKenzie - disse Rita. Deve ser porque nunca a vi e porque me parece ser a única pessoa no meio de toda esta gente que tem cara de ser capaz de escrever um livro. Especialmente um bom livro como é O Castelo de Peyton.

 

- Muito obrigada! -respondeu Allison.

 

- Por favor não me agradeça, minha querida. Faz-me lembrar o meu segundo marido. O meu segundo marido era da espécie de homens que estão sempre de chapéu na mão a dizer «obrigado». Era humilde, mas de uma humildade arrogante.

 

Allison sorriu. Não que tivesse vontade de rir; sorria porque Rita era tal qual como esperava que ela fosse.

 

- O   meu   segundo   marido   levou-me   ao   altar   com Brahms e whisky - acrescentou Rita. - Pobre diabo...

 

- Porque diz isso ? - perguntou Allison.

 

- É porque seduzir-me foi a única coisa de bom que ele soube fazer na vida. Além de tocar violino, claro.

 

- Quantos maridos teve? - perguntou Allison. Rita sorriu.

 

- Não costuma ler revistas de mexericos ? Allison sorriu, por sua vez, e abanou a cabeça:

 

- Agora já não leio, mas dantes não fazia outra coisa. Quando andávamos na escola, Selena Cross e eu, comprávamos todos os números do Photoplay e do Silver Screen. Depois de os lermos recortávamos as figuras e fazíamos álbuns. Suponho que todas as crianças fazem isso, de resto.

 

- Em Hollywood talvez - respondeu Rita. - Bem, tive quatro!

 

- Quatro quê ?

 

- Maridos - respondeu Rita. - Não   foi o que perguntou ?

 

- Quatro! - exclamou Allison estupefacta.

 

- Bem, ao menos casei sempre com os homens de quem gostava - respondeu ela, um pouco enfadada. - Conheço por aí muitas que se metem na cama com qualquer um. Ao menos eu fiz as coisas legalmente...

 

- Pois eu suponho que nunca me casarei - respondeu Allison.

 

Rita deitou mais brande no copo.

 

- E porque não? Tem alguma coisa contra o casamento ?

 

- Quero que tudo continue tal como está - respondeu Allison com uma dureza invulgar na voz.

 

Rita olhou-a severamente e perguntou:

 

- Bem, não acha que é ainda muito criança? Allison voltou-se surpreendida.

 

- Que pretende dizer com isso?

 

- Precisamente o que disse - respondeu Rita combativamente. - Pensa que já sabe tudo, com essa idade, não pensa ?

 

- Santo Deus - objectou Allison. - Que foi que eu disse?

 

- Que gostava de deixar as coisas tal como estão - respondeu Rita. - Você adora ser famosa, ter atingido a meta que muitos nunca conseguem atingir, amealhar todo esse dinheiro que dia a dia lhe vai caindo do ar, pensar que é todo seu.

 

- E que mal há nisso ? - perguntou Allison - está na mesma situação, Miss Moore. Não me diga que detesta ser famosa e rica?...

 

Rita olhou para dentro do copo e ficou por uns momentos pensativa.

 

- Olhe que não sei - respondeu. - Não sei bem se o desejo ou se o detesto ou se apenas me mantenho indiferente. ..

 

Allison sorriu.

 

- Conheci um homem em Nova Iorque. Chama-se Paul Morris e é bastante conhecido. Talvez você tenha ouvido falar nele.

 

- Morris? Ouvi.

 

- Pois bem. Paul falou-me dessa «indiferença» das pessoas célebres que lastimam a própria celebridade. Classificou-as de fingidas. Se, na verdade, não se vangloriassem da fama e do dinheiro, teriam muito onde se refugiar, se quisessem, para que ninguém mais   lhes pusesse a vista em cima.

 

- Eu vou-lhe contar umas coisas acerca disso - respondeu Rita. - Creia-me, Allison, que o posso fazer muito melhor que esse seu amigo Paul Morris, que nunca passou da obscuridade a não ser como sombra de alguém.

 

Inclinou-se para trás e sorveu um trago.

 

- Suponho que já teve que chegar à conclusão, quando era mais nova, de quê a fama e o dinheiro são as coisas que mais justa e frequentemente se ambicionam?

 

- Por mim, não - respondeu Allison irritada. Rita fitou-a com dureza.

 

- Não   tente   iludir-me,   criança!-exclamou. - Sei muita coisa a seu respeito, muita! Conheço-a tão bem como se fosse sua irmã gémea. Era daquele género de raparigas que se sentem a mais sempre que estão num grupo de outras. E odiava-as por isso. Inconscientemente começou a pensar qualquer coisa como: «eu lhes farei ver...». E fez.

 

- Podia governar-se como psiquiatra de bairro, Miss Moore - disse Allison enchendo um copo de brande.

 

- Não se zangue comigo, minha querida - respondeu Rita suavemente. - Somos da mesma cepa, afinal. De onde diabo pensa que eu saí? Pois bem, vou-lhe dizer: de uma barraca algures nas florestas da Grécia. Meu pai era lenhador e minha mãe era velha e cansada antes mesmo de casar. Também ela era filha de lenhadores e tudo o que sabia na vida era trabalhar, trabalhar sem destino, como uma escrava. Nunca meti os pés num par de sapatos antes dos catorze anos e, mesmo assim, os primeiros que tive, eram desirmanados. Apesar de tudo consegui ir para a escola. Calou-se por um momento, bebeu avidamente e encheu de novo o copo.

 

- A professora era uma mulher idosa. Não se preocupava grandemente com o nosso aproveitamento mas enfim, pouco mais poderia fazer com a idade que tinha. Fazia lembrar uma passa de ameixa, seca e enrugada. Uma vez, a propósito de Geografia, falou-nos de Paris e o rosto iluminou-se-lhe por uns momentos num ar tão deslumbrado que quase nos pareceu bonita. Depois mostrou-nos fotografias, as figuras mais belas que vi em toda a vida, e falou-nos do que seria uma viagem de barco a Paris.

 

Rita encostou a cabeça às costas do sofá e fixou o tecto como que para olhar o passado mais confortavelmente.

 

- Precisamente nesse dia e nessa hora meteu-se-me na cabeça a ideia de ir a Paris e, garota estúpida como era, não calei a boca. Disse-lhe logo que ainda havia de ir a Paris e ela desatou a rir. Respondeu-me, sempre às gargalhadas, que as filhas dos lenhadores nunca saíam da Geórgia, quanto mais fazerem viagens à Europa... Mas eu sabia melhor do que ela. Havia de ir a Paris! E fui, há cinco anos. Com quatro malas de porão e dezasseis de mão, duas criadas e um cão-de-água. Sob o Arco do Triunfo parei a recordar-me dessa velha bruxa lá nos confins da Geórgia e fiz-lhe uma figa. Realizara o meu sonho e de que maneira! Ia na companhia do meu terceiro marido, Jay Keating. Suponho que deve ter ouvido falar dele...

 

- Sim - respondeu Allison - ouvi- É um actor inglês.

 

- Qual carapuça! - exclamou Rita. – Nasceu em SSouth Dakota. Um amor-perfeito além do mais.

 

- Um quê?

 

- Amor-perfeito - repetiu Rita. - Um exemplar típico.

 

Durante a viagem de regresso cacei-o fechado no meu camarote com o dispenseiro de bordo. Mas isso não é coisa que se leia numa revista de mexericos, claro. Chamámos à coisa «incompatibilidade» e divorciámo-nos logo que desembarcámos no Reno. Foi esta flor o número três. Levantou o copo.

 

- Pela celebridade! - exclamou. - Brinde sempre pelo sucesso quando pensar que, além dele, nada mais conseguirá.

 

- Não é inevitável que seja sempre assim - respondeu Allison. - Conheço muita gente que fez um casamento feliz não obstante a celebridade.

 

- Talvez - respondeu Rita - quando o homem é, pelo menos, tão famoso como a mulher. Mas quando é ela que tem um nome já não é tão fácil. Uma vez num milhão de casos! Comigo não sucedeu e eu estava certa disso desde o princípio. Era já casada quando comecei a ser alguém. O meu primeiro marido chamava-se Alan. Uma criança grande, uma jóia. Trabalhava na Companhia dos Telefones de Los Angeles e casei com ele porque me deixei acreditar que o amava. Mas o meu mal era fome. E solidão. E Alan alimentava-me e fazia-me companhia. Até certa altura, claro. Mas eu tinha os meus planos, grandes planos, e não estava disposta a ter um marido À ilharga a pisar-me os calcanhares. Além disso tinha um corpo que me poderia ajudar imenso e não me desagradava mesmo nada mostrá-lo fosse a quem fosse desde que visse resultado nisso. Alan não gostou das fotografias em que eu apareci vestida com a roupa de Eva... Protestava quando eu saía para me encontrar com o meu agente e nunca conseguiu compreender que eu tivesse necessidade de ser vista aqui e ali, nos lugares do estilo. Queria-me em casa. E foi o fim.

 

Rita sorriu de novo, tristemente.

 

- Senti-me perdida, dessa vez. Chorei durante as seis semanas que fui passar a Nevada mas o meu agente, Charlie Bloom ensinou-me o jogo. Que escolhesse: ou um colar de diamantes ou um marido. Naturalmente escolhi o colar. Sabe quem é Charlie Bloom?

 

- Não - respondeu Allison.

 

- O maior agente em Hollywood. Agora trabalha para todos os grandes nomes. Mas quando começou comigo não era ninguém. Apenas um rapazinho elegante e educado que sabia as respostas todas e tinha mais miolo que os Sete Sábios juntos. Vestiu-me uma camisola justa e uma saia ainda mais justa e ensinou-me a caminhar ondulando as ancas e com os seios espetados sob a camisola. Depois mudou-me o nome. De Alice Johnson tornei-me Rita Moore. E ai de quem me chamasse Alice diante dele! Alice Johnson era um nome vulgar.   Hollywood levou dez anos para compreender que Rita Moore podia fazer algo mais que esticar o peito e rebolar os quadris. Foi então que me tornei estrela. Contudo, há três anos, casei de novo, com John Gresham. John era na verdade um querido: sabia tocar piano e dizia-me que eu tinha uns olhos onde se podia morrer afogado, que o meu corpo era um braseiro, etc. E foi um inferno, pois acabámos por casar.

 

- Só porque era bem-falante ? Rita encolheu os ombros.

 

- Não. Ele obrigou-me a isso.

 

- Hum, mas creio - respondeu Allison - que as mulheres não se podem dar ao luxo de fazer uma coisa dessas sob pressão.

 

- E como diabo sabe você disso ? - perguntou Rita. John era um artista, deixe que lhe diga. Sabia o que fazia. Antes de casarmos houve alturas em que estivemos deitados durante horas. Mexia, palpava, beijava até me fazer perder a cabeça mas nunca levava nada ao fim. Dizia-me que queria esperar que nos casássemos primeiro porque, explicava, «eu era tão pura que ele não tinha coragem de fazer isso sem sermos marido e mulher...» E, que remédio, casámos.

 

Calou-se para acender um cigarro. Allison não desviava os olhos dela.

 

- John era estupendo na cama, honra lhe seja feita. Algumas vezes era magnífico, mesmo. Chegámos a estar deitados o dia inteiro, calcule. Era um perito. Conhecia todos os truques e quando eu os supunha acabados e perguntava a mim própria o que havia de fazer, aparecia ele com mais uma novidade. Mas houve um dia em que tive de regressar ao meu trabalho e deixei-o, desempregado. Contudo não me deixou de visitar. Apenas entrava, despia-me ali mesmo, dava-me de beber e brincava comigo. Era divertido. Mas fartou-se. O ano passado deixou de brincar comigo e passou a divertir-se antes com o meu dinheiro. Fugiu com cinquenta mil dólares antes que eu o pudesse impedir. E, mais uma vez, fui esquecer para Nevada.

 

Rita fitou em Allison os olhos verdes, inquietos e tristes:

 

- Agora pode voltar para Nova Iorque e dizer a esse seu amigo como é na verdade a alegria de ser célebre. Passe a vida a imaginar que quando o for terá tudo quanto ambicionar. Mas desde já fique sabendo: o caminho do sucesso é estreito de mais para dois. Terá de percorrê-lo só.

 

Encheu outra vez o copo e segurou-o contra a luz, tentando ver através do líquido escuro.

 

- Só - murmurou. - Penso que é a palavra mais triste do mundo! Instale-se no mais luxuoso hotel; beba o seu café de manhã, contrate uma maçagista para lhe esfregar as costas e de noite a sua cama parecer-lhe-á tão grande como o Texas e tão fria como o Alasca. Mas é célebre!

 

Engoliu a bebida de um trago e olhou para Allison:

 

- Não se esqueça, Allison, você é uma escritora famosa! Um sucesso sem precedentes! E veja de quanto lhe valeu.

 

Quando entrou de novo no quarto do hotel, já noite avançada, o esplendor do ambiente pareceu-lhe de súbito execrável e de mau gosto. Atirou com a mala para o chão, através da sala. Acertou na parede por cima do toucador e caiu no soalho, estrondosamente, no meio de uma porção de frascos de perfume e boiões de creme partidos. Apetecia-lhe partir um a um os vidros das janelas e desfazer em tiras os cortinados de púrpura. Apetecia-lhe fazer qualquer coisa de selvagem e destrutivo que a abalasse, que a fizesse voltar à realidade; à compreensão de si mesma que se lhe afigurava perdida irremediavelmente.

 

Triunfara na vida mais do que poderia ter imaginado algum dia. Contudo, nunca se sentia, como agora, tão apreensiva acerca do futuro e tão receosa do presente.

 

Deixou-se cair num sofá e chorou. «Que vai ser de mim? Serei eu, daqui a dez anos, outra Rita Moore, pensando no meu quarto divórcio e no meu quinto marido? Oh, Lewis querido, toma conta de mim, nunca me abandones!»

 

Allison regressou a Peyton Place nos fins de Outubro, depois de uma semana em Nova Iorque com Lewis. Vira-se na necessidade de explicar a Constance que essa demora era indispensável por motivos de ordem material. Enquanto o comboio corria para Peyton Place, lembrou-se de que o seu caso com Lewis se tinha transformado num segredo pecaminoso. Não desejava ter segredos para com a mãe mas sabia que Constance ficaria desgostosa e, talvez, terrivelmente inquieta se viesse a saber que a filha andava envolvida com um homem casado. Apetecia-lhe desesperadamente poder sentar-se junto de Constance e falar-lhe do assunto, mas, para bem de Constance, achava preferível não o fazer.

 

Peyton Place estendia-se pacatamente sob a abóbada azul do céu de Outubro. Folhas vermelhas esfarrapadas pendiam indecisas dos ramos quase despidos das árvores. «Como galhardetes de invernia iminente», reflectia Allison. O ar não era frio mas sentia-se já nele o bafo do Inverno. A neve iria cair por certo no Dia do Armistício e, no Dia de Graças, já a cidade estaria vestida de branco.

 

Mal saíra do comboio e logo os braços de Constance e Mike a envolveram num abraço de boas-vindas. As lágrimas afloravam-lhe aos olhos; sentia-se culpada como se os tivesse atraiçoado ficando uma semana com Lewis. Constance conduziu-a para o carro que esperava lá fora e Mike seguiu-as, levando as malas.

 

Constance e Allison sentaram-se no banco de trás. Pegou na mão da filha e fitou-a nos olhos como para ver se essas semanas em Hollywood a teriam modificado. Pelo retrovisor, Mike observava-as e não conteve uma gargalhada:

 

- Tem cuidado, Allison - disse. - Quando chegarmos a casa ela põe-te no microscópio.

 

- Vai-te matar - exclamou Constance sorrindo-lhe ao espelho.

 

- Ela afiançava - continuou ele - que tu quando voltasses virias «made in Hollywood», de cabelos platinados e um reportório de, pelo menos, três divórcios mexicanos...

 

Allison voltou-se para Constance.

 

- Tenho trabalhado tanto - disse - que nem para me corromper houve tempo, mamã.

 

- Conta-me novidades de Rita Moore - pediu Mike.

 

- É tudo o que lhe interessa, vês? - disse Constance. Este velho, agora, não sonha com outra coisa. Rita Moore. Rita Moore. Estou sempre à espera de mais tarde ou mais cedo encontrar fotografias dessa Rita debaixo do travesseiro dele.

 

- Posso estar velho - retorquiu Mike - mas não tanto. Sei muito bem governar-me sem fotografias.

 

- Mike! - exclamou Allison. - Francamente nunca ouvi ninguém falar como vocês, nem mesmo em Hollywood.

 

Mike e Constance começaram a rir. Ela apertou a mão de Allison. - Estou muito feliz por teres voltado, querida!

 

O carro aproximou-se da casa. Allison olhou-a com amor. «Se ao menos Lewis me viesse ver, se estivesse comigo aqui...»

 

Entraram na cozinha, «a mais quente e acolhedora cozinha que vira na sua vida», pensava Allison.

 

- Depois arrumo as coisas - disse. - Agora vou beber uma chávena do teu café, mamã.

 

- Levo as malas lá para cima - disse Mike - e depois vou à cidade buscar umas coisas para a tua mãe. - Curvou-se um pouco e beijou Allison na fronte. - Bem-vinda a tua casa, querida - disse.

 

«Porque será que me sinto sempre aliviada quando regresso a casa?», admirava-se Allison. «Peyton Place é uma pequena cidade, provinciana e boateira. Contudo, em parte alguma encontro sentimento de segurança e de paz. E porque será que eu prefiro o inverno? Será porque ele me obriga a permanecer em casa, quente e segura, enquanto a tempestade ruge lá fora?»

 

Allison contemplou por uns momentos a paisagem triste que se avistava da janela da cozinha e voltou a cabeça, contrafeita.

 

- Estás fatigada, querida? - perguntou Constance colocando sobre a mesa a cafeteira e duas chávenas.

 

- Não - respondeu     Allison. - Apenas     preguiçosa.   Admiro-me de como me sinto melhor em Peyton Place do que em qualquer outro lugar, mamã. - Encolheu os ombros: - Suponho que é devido à minha inexperiência. Mas, seja como for, gosto de me aninhar no casulo desta casa enquanto a vida levanta ventos e tempestades de encontro à minha concha protectora... Que tal esta «tirada»? Profunda e psicológica, hein?

 

Connie sorriu com vontade.

 

- Não sei muito de psicologia, querida, apenas sei que sou feliz quando tu o és e infeliz quando o não és. Talvez que eu tenha um complexo qualquer, não sei.

 

Allison estreitou-a de encontro ao peito e pegou na chávena do café.

 

- Penso que hoje não te apetece visitar ninguém - disse Constance. - Convidei a Selena, Joey e o Peter Drake para jantarem connosco, amanhã.

 

- Oh, não sabia que o Peter ainda estava em cena...

 

- Agora   mais   que   nunca - disse   Connie. - Selena nunca me contou o que houve entre ela e Tim Randlett, mas o que sei é que logo que ele se afastou, apareceu o Peter pronto a colar os cacos...

 

- Gostaria   imenso   que   Selena   casasse - observou Allison. - Ou então que saísse de Peyton Place. É uma mártir, aqui. De resto que poderá uma rapariga esperta como ela conseguir em Peyton Place? Nada!

 

Connie sorriu.

 

- Talvez Selena pense o mesmo da sua terra, apesar de tudo-Talvez se considere de certo modo segura e em paz aqui, como tu, e tenha receio de perder essa segurança indo para outro lado qualquer...

 

- Mas que segurança tem Selena aqui ? - perguntou Allison. - Coitada! Tem de olhar por si própria e pelo irmão, o Joey. E nada possui além do emprego no armazém.

 

- E   Peter   Drake - acrescentou   Constance. - Talvez seja bom para ela as coisas terem acabado com esse Tim como acabaram. Creio que Mike tinha razão quando falava dele.

 

Connie encolheu os ombros.

 

- Já não sei - disse. - Sempre gostei do Tim, e muito. Apesar de tudo era a última oportunidade de Selena. Não creio que depois do que se passou ela tenha vontade de se apaixonar segunda vez por alguém de fora.

 

Fez uma pausa e olhou inquisitivamente para Allison.

 

- A propósito de amor, que é feito de David Noyes ? Allison fixou os olhos na chávena vazia.

 

- Não sei - respondeu simplesmente.

 

Apetecia-lhe confessar a Constance que não era em David Noyes que pensava mas em Lewis Jackman. David, porém, forneceria um excelente meio de disfarçar a questão, e Allison começou a falar dele.

 

- Está seriamente apaixonado por ti, como sabes...

 

- Não é dele que eu duvido, mamã, é de mim. Connie suspirou.

 

- Suponho que não há mãe que não anseie ver uma filha bem casada e feliz - murmurou. - E eu não sou diferente das outras.

 

- David é um homem que andou por todo o lado e fez de tudo um pouco- disse Allison. - Esteve num safarí na África, fez esqui na Suíça e arranjou, até, com que o prendessem só para escrever um livro sobre isso. Quanto a mim, sou uma criança! Não estive em parte alguma e nada fiz de nada. David, com a experiência que tem, pode perfeitamente aspirar a casar-se, comprar uma casa aqui mesmo em Peyton Place e passar o resto da vida a escrever. Mas eu?...

 

- Mas tu ainda há pouco me disseste que nunca te sentias tão feliz como quando estás aqui - objectou Connie.

 

- E é verdade - concordou Allison. - Mas acho que seria uma atitude egoísta da minha parte. Desejo poder vir aqui sempre que me apeteça. Mas quero, também, poder partir a qualquer momento. Cada coisa a seu tempo. E não poderia fazê-lo se casasse com David.

 

- E que mal haveria nisso ? Pior seria se casasses com um homem que não quisesse saber de ti.

 

Allison suspirou.

 

- Eu sei isso - respondeu. - Mas também não posso contentar-me com a expriência dele, viver dela.

 

Calou-se e olhou para Constance.

 

- Sabes qual é o meu mal ? Querer tudo. Tenho fome de experiência, cada olhar, cada gesto, cada sensação da vida.

 

Mas não quero nada que me faça sofrer. - Levantou-se e aproximou-se da janela. - Como vês, mamã, é impossível! Ninguém pode ter verdadeira experiência da vida sem sofrimento.

 

Connie encheu de novo as chávenas. «Allison amadureceu muito num ano», pensou, «mas, sob alguns aspectos, é ainda a mesma menina romântica de antes».

 

- Compreendo perfeitamente que desejes esperar - disse. - Mas   gostaria   que   David   viesse   passar   o   feriado connosco.

 

- Está a escrever outro livro - respondeu Allison. E quando David anda com um livro em mãos nem o diabo do inferno o convence a largar a máquina de escrever- Talvez lá para o Natal já tenha acabado. Mas a Stephanie vem cá no Dia de Graças. E se não te importasses, mamã, gostaria de convidar o meu editor para vir também - acrescentou apressadamente.

 

Constance voltou-se e olhou-a.

 

- Referes-te a Lewis Jackman?

 

- Sim - respondeu Allison. - Gostaria que ele viesse a Peyton Place.

 

- Acho bem, querida. Podes convidar as pessoas que desejares.

 

Constance fez uma pausa para acender um cigarro e fitou Allison através da chama minúscula do fósforo:

 

- Ele é casado, não é?

 

- Lewis Jackman? É. E já tem uns bons quarenta...

 

- Bem - acrescentou Constance - a idade não importa. Há homens que são mais jovens aos quarenta do que outros aos vinte...

 

Allison sorriu.

 

- Onde aprendeste tu isso, mamã ?

 

- Querida - respondeu Constance. - Há coisas que a gente aprende só de viver no meio delas, com os olhos abertos. Não precisamos de experiência pessoal para sabermos que enquanto há homens que nascem velhos, outros, pelo contrário, são rapazinhos aos sessenta.

 

- Bem - respondeu Allison. - Afinal isto nada tem que ver com Lewis Jackman. Para mim ele é apenas o meu editor e um homem encantador, também. Pouco me interessa que seja velho ou novo, casado ou solteiro.

 

- Conheces a mulher dele? - perguntou Constance.- Ela também vem?

 

- Suponho que não - respondeu Allison baixando os olhos para a chávena. - Parece que só faz visitas ao psiquiatra.

 

- Oh, compreendo - disse Constance. - Coitada dela! Olhou disfarçadamente Allison e estudou-a. Não compreendia porque ela se enervava tanto de falar acerca de Lewis e porque baixara os olhos quando se referia à mulher dele. Havia um milhão de perguntas que Constance gostaria de fazer à filha e só mercê de um aturado esforço conseguia dominar esse desejo. «Não te precipites» - recomendava a si própria. «Quando Allison estiver pronta para te contar a verdade, fá-lo-á, decerto».

 

Constance tinha a certeza de que algo sucedia. A paixão de uma jovem por um homem de idade é, quase sempre, uma coisa poderosa. Perguntava a si própria se o facto de Allison nunca ter conhecido o pai não poderia ter uma relação directa com isso. Talvez que Lewis Jackman lhe proporcionasse o que a falta de um pai lhe roubara.

 

Mike voltou. Entrou de roldão na cozinha ajoujado com dois enormes embrulhos de mercearia. Depois sentou-se à mesa com elas, levantou a chávena vazia e disse a Constance:

 

- Recompensa-me, querida. Fui um menino bonito, Constance encheu-lhe a chávena.

 

- Vê. Achas que chega para te compensar?

 

- Pergunta-mo depois - respondeu ele. Allison sorriu.

 

- Às vezes dá-me a impressão de que vocês os dois são meus filhos - disse. Depois perguntou ao Mike como ia o emprego na escola de White River.

 

Ele fez uma careta.

 

- Se a minha cara metade me pudesse manter pelo menos tão bem como até agora, despedia-me já hoje...

 

Connie pôs-lhe o braço sobre os ombros.

 

- A culpa é tua. Se tivesses engolido o teu orgulho e a tua presunção quando o Conselho Escolar de Peyton Place te pediu desculpa e te disse que podias voltar, não terias agora razão de queixa...

 

- Como foi isso ? - perguntou Allison.

 

- Aconteceu logo que saíste de cá - explicou Constance. - Mike foi dispensado e isso provocou um burburinho medonho. Até a própria Roberta Cárter teve medo. Depois aconteceu que o substituto de Mike não se deu bem no lugar e...

 

- Vieram ter comigo - explicou Mike. - Roberta e o velho Charlie, de chapéu na mão, imagina! A propósito, deixa-me dizer-te que ela fica muito melhor com o chapéu na mão do que com ele na cabeça... Ofereceram-me o meu antigo lugar.

 

- Mike respondeu-lhes que não o aceitava enquanto não concordassem com algumas condições que ele tinha a propor.

 

- Faz-lhes bem ficar de molho durante um ano - comentou Mike. - Além disso precisam de muito tempo para se resolverem a dar-me tudo quanto eu pedi.

 

- E que foi que pediste ? - perguntou Allison.

 

- Só isto: título formal de posse e um aumento de cem dólares no fim do ano durante os próximos cinco anos - disse Mike.

 

- Charlie Partridge concorda com tudo - disse Connie. - Mas não é capaz de convencer Marion. Roberta não diz que sim nem que não.

 

- Veremos... - murmurou Mike.

 

- Sim, veremos,   mas quando ? - perguntou Allison.

 

- Em Março, quando expirar o contrato actual.

 

- Graças a Deus que é em Março... - disse Allison. Em Abril a brigada de exteriores de Hollywood vem cá e não creio que façam alguma coisa para melhorar as nossas relações públicas com Peyton Place!

 

- Mas eles vêm realmente a Peyton Place? - perguntou Connie.

 

- Vêm - disse Allison. - Deus nos ajude a todos...

 

- Ouvi dizer que foi uma autêntica batalha parlamentar o encontro das guardas avançadas de Hollywood com os representantes de Peyton Place...-disse Mike. - O enviado de Arthur Tishman, um tal Blanding...

 

- Conrad Blanding - acrescentou Allison. - Conheço-o, é o director...

 

- Pois esse Blanding explicou a Tom Perkins que o estúdio necessitava apenas de filmar exteriores na cidade durante algumas semanas e que, em troca, gastariam aqui, durante esse tempo, mais de cem mil dólares. Mas o velho Tom não ficou muito impressionado.

 

- Nem podia ficar - comentou Connie. - Tom é novo-inglês até à medula. «O que bastou ao trisavô há-de bastar aos bisnetos».   Ninguém tira da cabeça desta gente esse preconceito estúpido de que o progresso é pernicioso. Não sei mesmo como o Tom não organizou já bandos armados de machados para destruir todos os aparelhos de televisão em Peyton Place...

 

- Deixa-te de me interromperes com essas conversas subversivas - disse Mike. - Se não tens cuidado, ainda sou escorraçado daqui à pedrada. - Voltou-se para Allison e continuou:

 

- Perkins respondeu ao Blanding que a cidade tinha conseguido manter-se durante uma porção de anos sem o auxílio de Hollywood e que,   segundo as suas previsões, continuaria a não necessitar do dinheiro deles pelo menos durante mais de dois séculos...

 

- Eu bem avisei Tishman - disse Allison - mas ele olhou para as fotografias do Castelo e tomou uma resolução. E quando Arthur Tishman toma uma resolução nem o diabo consegue demovê-lo...

 

- Bem, isso daria a Peyton Place uma bela oportunidade para mexericar - disse Mike. - E até talvez Marion Partridge fosse contratada como figurante.

 

- Qual figurante? - exclamou Connie. - O papel de bruxa principal! Nem sequer precisaria de caracterização.

 

- E talvez se esquecesse de mim e do meu emprego

- acrescentou Mike num tom de exagerada paciência enquanto esperava que Connie o deixasse falar.

 

- Pequeno - disse ela - podias ajudar-me a fazer o jantar enquanto Allison vai lá acima desfazer as malas... E tu tens tempo de passar pelo sono - disse para Allison. - Precisas de descansar um pouco.

 

- Talvez durma uma hora - respondeu Allison dirigindo-se para o quarto.

 

Era o mesmo quarto, exactamente como Allison se lembrava dele, exactamente como o tinha imaginado durante essas noites solitárias dos hotéis de luxo em Nova Iorque e na Califórnia. Um quarto simples, cheio de recordações da infância.

 

A bagagem, que Mike dispusera ordenadamente aos pés do leito, parecia-lhe uma violação do espírito simples daquele quarto. Era nova e cheia de coisas novas. Nada tinha que ver com a Allison MacKenzie a quem ele pertencera, a Allison que ia com Selena ao cinema, que falava e pensava com Norman e acalentava sonhos como só as crianças podem conceber.

 

A bagagem afigurava-se-lhe um impiedoso exemplo de quanto a sua vida tinha mudado. Deitou-se na cama e pensou: «Vivo em dois mundos agora, sou uma pessoa vivida. Há o mundo de Peyton Place e nunca fora dele me poderei sentir tanto em minha casa. E há um mundo exterior, Nova Iorque e Hollywood, onde desempenho puramente um papel como qualquer actriz».

«Excepto Lewis. Ele é o único aspecto genuíno e puro deste outro mundo».

 

Quando descera do avião em La Guardiã, Lewis esperava-a. Durante todo o trajecto até à cidade tinham conservado as mãos dadas, de olhos nos olhos, como se nunca se saciassem da imagem um do outro.

 

No hotel onde reservara uma suite, o gerente esperava-a no vestíbulo e deu-lhe efusivamente as boas-noites. Uma turba-multa de paquetes correu a buscar a bagagem ao carro. Quando finalmente os deixaram sós, com uma garrafa de champanhe a gelar num balde de prata, telefonara a Constance.

 

Só depois disso Lewis a tomou nos braços. Era como se ambos estivessem à espera de afastar do seu caminho todos os pequenos nadas que os pudessem distrair, para que coisa alguma e ninguém viesse interrompê-los no momento em que se entregassem um ao outro.

 

- Meu Deus, querida - exclamou Lewis. - Que saudades eu tinha de ti!

 

- Oh, eu sei - respondeu Allison.

 

- Não podia dormir de noite - continuou ele. - Falar-te pelo telefone, contigo, tão distante de mim, era uma tortura. No entanto não podia deixar de o fazer, claro, sempre era melhor do que nada.

 

- Mas agora, querido, vamos passar uma semana juntos. Depois do Dia de Graças estarei contigo de novo. Até lá, porém, tenho que passar algum tempo com Constance e Mike. Preciso de estar com eles um pouco também. Estas últimas semanas foram exaustivas, Lewis.

 

Ele abriu a garrafa de champanhe.

 

- Vou começar por te retemperar as forças com isto - disse. - Tem muitas vitaminas, como sabes.

 

Allison sorriu-lhe e percorreu com os olhos a sala enorme, de proporções magnificamente equilibradas. Tinha-se transformado na sua segunda casa, não pela grandeza mas pelas horas que nela passara com Lewis. As portas do terraço, fechadas, separavam-nos do frio exterior. Tinham retirado a mesa e as cadeiras de ferro pintado de branco e o terraço estava deserto e hostil.

 

Pegou num copo para que Lewis o enchesse e beberam ambos sem dizer palavra. Apenas os olhos falaram. Allison sentiu o líquido gelado explodir-lhe na boca repassando-lhe todo o corpo de ondas de calor.

 

Depois de beber o segundo copo, afastou-se dos braços de Lewis e, pegando na garrafa, entrou para o quarto. Lewis despiu-a e, quando ela ficou nua na frente dele ergueu o copo e brindou pela sua beleza. Deitados, beberam o resto da garrafa, enlaçados por debaixo do lençol, Lewis com o braço à volta do pescoço dela.

 

- Mando vir mais uma garrafa, querido ? - perguntou Allison.

 

- Achas que é preciso ? Allison sorriu:

 

- Nem precisávamos deste, querido. Mas o champanhe é realmente delicioso. - Contudo Lewis já não escutava. Estreitou-a fortemente a si e mordeu-lhe as orelhas até a fazer gritar. Allison sufocava e afastou o lençol. Murmuravam palavras de amor. Fechou os olhos e quando ele a cobriu com o seu corpo, Allison sentiu que todo o seu mundo rodopiava em redor. Lançou-lhe os braços, erguendo-se de encontro a ele, freneticamente.

 

«Nunca houve nada como amar», pensava, «nunca, nunca!» Esticou-se com violência para cima e, num instante, todos os pensamentos a abandonaram para cederem o lugar ao acto supremo do amor. Depois quedou-se, exausta, nos braços de Lewis, com os olhos cerrados, repletos de felicidade.

 

No dia seguinte ao do regresso de Allison a Peyton Place, Peter Drake foi à garagem buscar o carro e dirigiu-se a casa de Selena para a levar a passear com ele e o Joey. Estava frio e o vento arrancava as últimas folhas das árvores torturadas.

 

A Rua do Olmeiro estava deserta. A única coisa em movimento era uma folha esfarrapada de jornal, rodopiando no ar de encontro à esquina do Banco. Peter pensava que nunca tinha visto tamanha desolação em toda a sua vida.

 

«A casa de Constance deve estar quente e agradável, agora», pensou. «Talvez Selena possa descansar um pouco hoje». Havia ainda outra esperança no seu espírito mas essa não a formulou sequer. Talvez ela se tenha esquecido desse Tim Randlett. Talvez se decida hoje se, afinal, quer casar comigo ou não...

 

Peter Drake era considerado em Peyton Place como um rapaz «bem lançado». Não era muito alto mas possuía ombros largos. Tinha o cabelo castanho-escuro e a cor dos olhos harmonizava-se perfeitamente. Como modesto Delegado do Ministério Público, porém, não estava tão «bem lançado» como se dizia. Ao seu escritório vinham apenas os clientes que Charles Partridge estava muito ocupado para receber. Casos insignificantes e pouco dinheiro, quase sempre. O único meio de que dispunha para melhorar um pouco a sua precária situação financeira era percorrer as terras vizinhas e tomar conta de pequenos litígios locais. Inclinava-se, porém, obstinadamente, para Peyton Place.

 

Peter nunca supusera que as coisas iriam suceder desse modo.. Quando tomara a seu cargo a defesa de Selena, acusada de ter assassinado Lucas Cross, tinha prometido a si próprio que esse seria o seu último caso na Nova Inglaterra. Terminado ele, hesitara. O lugar numa firma de advogados em Connecticut, onde durante bastante tempo tinham esperado por ele, estava agora preenchido e algumas semanas antes renunciara a outro emprego, numa firma de Massachusetts.

 

«Devo estar maluco», dizia para si próprio muitas vezes, arrependido, durante os anos que se seguiram.

 

Mas o que ele estava era apaixonado por Selena e tinha esperanças de que ela, mais tarde ou mais cedo, lhe corresponderia.

 

A princípio esperava pacientemente que ela se restabelecesse da medonha experiência com o Lucas Cross. Depois esperava que Selena esquecesse o abandono de Ted Cárter. Agora aguardava que ela deixasse de pensar em Tim Randlett...

 

- Não compreendo - confessara ele uma vez a Constance Rossi. - Amo-a e sempre hei-de amá-la e não há nada que eu possa fazer, absolutamente nada. E não pense que não tenho tentado conquistá-la por todos os meios ao meu alcance. Quase que me empreguei já longe daqui. Quase me apaixonei por outra. Quase me convenci de que nada havia entre mim e ela. Quase. Mas nunca fiz verdadeiramente nada!

 

- Já lhe falou disso a ela, alguma vez ? - perguntou Constance.

 

- Quantas vezes! - respondeu Peter. - E Selena diz-me sempre que não pense mais nela, que não é mulher para um homem   como   eu... - Encolheu   os   ombros,   desesperado. - Nunca passamos disto. Continuarei a esperar, até que...

 

Peter parou o carro defronte da casa de Selena e encaminhou-se para lá.

 

- Faça favor de entrar, Conselheiro - gritou Selena abrindo-lhe a porta de par em par. - Seja bem-vindo!

 

Segurava um copo na mão e Peter percebeu que não era o primeiro que bebia.

 

- Olha, Joey, aqui vem o herói conquistador - exclamou ela. - Prepara-lhe uma bebida. Não fiques aí de pé, homem! Entra.

 

Nas costas dela, Joey olhou Peter significativamente e encolheu os ombros enquanto lhe enchia um copo.

 

- Anda cá, Joey - disse Selena. - Enche também o meu, sim? Tenho de acabar de me vestir.

 

- Estás encantadora, Selena - exclamou Peter. Por um momento ela olhou-o com altivez.

 

- Não mintas, Peter. Pareço uma bruxa, sabes muito bem.

 

Voltou-se e entrou rapidamente no quarto fechando a porta atrás de si.

 

- Quando   começou   ela com   isto,   Joey - perguntou Peter.

 

Joey estendeu-lhe o copo.

 

- Suponho que não anda boa. Desde a noite passada que não come. Quando ontem cheguei a casa, dei com ela sentada ali, com as luzes apagadas e um copo de brande na mão.

 

«Tudo começara no fim de Agosto», recordava-se Peter. Depois daí não se passara um único dia que não se embriagasse.

 

- Não se inquiete muito com isso - tinha-lhe dito Constance. - As mulheres têm uma maneira peculiar de esquecer desilusões de amor. Selena é uma rapariga demasiadamente sensível. Dê-lhe tempo. Ela há-de curar-se.

 

Contudo o tempo passava e Selena não dava sinais de cura. Tinha começado a beber para varrer as ideias, como dizia ao Joey, e Peter surpreendera-a já meio embriagada numa sala das traseiras do armazém.

 

- Por amor de Deus, Selena - exclamou. - Que pensas que diria Connie se soubesse?

 

Selena olhou-o com desprezo e replicou.

 

- Mete-te na tua vida! Se Connie Rossi tem alguma objecção a fazer ao modo como eu governo a loja, que mo diga!

 

- Estás a portar-te como uma criança irresponsável, Selena - respondeu Peter irritado. - O álcool nunca serviu para resolver os problemas de ninguém.

 

- Talvez não - respondeu ela. -- Mas serve para nos ajudar a esquecer, pelo menos.

 

Desesperado, Peter consultou o Dr. Swain.

 

- Creia-me Peter, - respondeu o médico - ou me engano muito ou a ética é uma linda história. Mas sei tanto disso como você. Um casal de turistas de Ohio encontrou Selena desmaiada numa valeta e, como Peyton Place era a povoação mais próxima, trouxeram-na para o hospital. Tinha o rosto arranhado e apanhara muito sol. Mas, exteriormente, nada havia de gravidade. No dia seguinte tentei descobrir o que se tinha passado com ela mas nada consegui apurar: não dizia uma palavra. Esse tipo Tim Randlett veio ao hospital para a visitar mas quando disse a Selena que Tim estava lá fora à espera, ela voltou o rosto para a parede e respondeu-me que não queria vê-lo. Tim Randlett,   a princípio não acreditou mas acabou por se ir embora. Joey contou-me que ele foi a sua casa logo que Selena teve alta no hospital e que Selena tinha chamado o xerife Bruck McCracken, queixando-se de que havia um homem a persegui-la, que a livrasse dele. Depois ouvi dizer que o teatro de   Silver   Lake   tinha   fechado.   Por   alturas   do   Dia   do Trabalho, lembro-me bem, fui a Silver Lake à procura desse Tim.   Fechou-se que nem um ouriço quando   comecei   a fazer-lhe perguntas: não queria falar. E nunca mais soube nada, a não ser que o tipo tinha abalado para Nova Iorque. Em boa hora, pensei então.

 

- Mas Selena deu em beber! - disse Peter.-   Bebe demasiado, doutor, de dia e noite!

 

Matthew Swain ficou perturbado.

 

- Vou falar com ela - disse pensativo. Mas não adiantou.

 

- Não se preocupe, doutor - respondeu ela - deixe-se estar sossegado lá na Rua do Castanheiro e esqueça-se de que Selena Cross existe.

 

Matthew Swain sentiu-se estremecer. Lembrou-se daquela noite, há muito tempo, em que tentara proteger Nellie Cross quando Lucas, embriagado, lhe batia. Uma jovem Selena acercara-se dele e dissera-lhe tal como agora:

 

«Vá para casa, doutor. Vá para a Rua do Castanheiro. Ninguém o chamou aqui».

 

- Selena, eu apenas procuro ajudar-te. Ela encheu outro copo.

 

- Doutor, há pessoas que nascem deformadas, não há ? Só com uma perna, um braço, ou cegas?

 

- Sim, há - respondeu Matthew Swain.

 

- Pois bem, que admira então que haja outras que nasçam com o espírito deformado?

 

- Onde queres chegar? - perguntou Matt. Selena sorriu.

 

- Refiro-me aos maus instintos, o desejo de matar, por exemplo.

 

- Selena, tudo isso foi há muito tempo. Fizeste apenas o que tinhas a fazer para te defenderes. Qualquer outra pessoa teria feito o mesmo. Esquece tudo isso.

 

Selena sorveu o líquido que restava no copo.

 

- É melhor que vá para casa - respondeu secamente. Afinal não o chamei.

 

Matthew Swain levantou-se para sair,   mas deteve-se junto da porta.

 

- E queres resolver tudo a beber? Selena encolheu os ombros.

 

- É o que Peter diz sempre - exclamou. - E eu sempre concordo com ele. Apenas lhe respondo que o álcool, embora não resolva nada, amacia as coisas, pelo menos. Adeus, doutor. - E voltou-lhe as costas.

 

- Estou pronta, Peter, - exclamou alegremente - vamos. Trazes-me o casaco, Joey, enquanto acabo de beber?

 

- Claro - respondeu o rapaz.

 

- Talvez não fosse má ideia levarmos uma garrafa cá de casa... Talvez o Mike se esqueça... -disse Selena.- Não há coisa mais insípida do que uma reunião sem bebidas.

 

- Mike tem uma garrafeira bem fornecida, podes estar descansada - disse Peter.

 

- Deixa-te de piadinhas, meu querido.

 

- Não é piada - respondeu Peter.

 

- Nem que seja, não me importa - respondeu ela. Podes dizer o que te der na gana, que não te tapo a boca.

 

A tarde pareceu interminável a Peter. Selena quase que não comeu durante o jantar, mas o copo esteve sempre cheio.

 

Na cozinha Allison disse em voz baixa a Constance:

 

- Porque não me contaste o que havia com Selena ?

 

- Pensei que ela mudasse, querida - respondeu Constance.

 

- Há quanto tempo começou ela a beber desta maneira ?

 

- Depois que o Tim Randlett a deixou.

 

- Santo Deus!

 

- Sim - respondeu   Connie. - Deus   queira   que   ela mude quanto antes.

 

- Já alguém tentou falar com ela sobre isso?

 

- Todos nós tentámos. Mas sem resultado.

 

- E que diz o Peter ?

 

- Está à espera que ela deixe de beber, como todos nós. Que mais pode ele fazer?

 

- Eh! Vocês as duas! - exclamou Selena entrando na cozinha. - De que estão a murmurar ?

 

- De ti -respondeu Allison voltando-se para ela com um sorriso.- Estávamos a pensar quanto tempo ainda irás tu fazer esperar o pobre do Peter.

 

Selena sentou-se num banco da cozinha.

 

- Bebamos qualquer coisa - disse. - As três.

 

- Claro -respondeu Constance. - Deixa-me ir levar o café aos homens, e tratarei logo disso. Allison, arranja um pouco de gelo, sim? Há uma garrafa de Bourbon nesse armário aí...

 

- Sim - exclamou Selena apenas   sorveu o primeiro trago - pobre, pobre Peter! Ama-me, como sabem. Sabes disso, Allison, não?

 

- Sim, sei. Peter tem esperado imenso tempo. Selena começou a chorar.

 

- Pobre Peter...

 

- Não chores, minha querida, - disse Connie. - Tudo acabará em bem.

 

- Impossível! - exclamou Selena. - Nunca.

 

- Cala-te Selena - disse Connie. - Não quero que eles te oiçam.

 

Selena acalmou-se.

 

- Não - respondeu - também não quero que eles me oiçam chorar.

 

Baixou a cabeça sobre os braços e começou a soluçar como se o coração lhe estalasse. Allison aproximou-se dela e pousou-lhe a mão sobre os ombros curvados. Ela e Connie olhavam uma para a outra mas ambas sabiam que nada poderiam fazer.

 

Mais tarde, já noite, Joey saiu para ir ao cinema, com alguns amigos e Peter Drake levou Selena a casa. O vento estava agora mais forte; sentia-o assobiar contra o carro.

 

- Acende-me   o   lume - pediu   ela   apenas   entraram na sala de estar. - Um lume grande, bonito e alegre, capaz de afastar o escuro de todos os cantos da casa.

 

Pendurou cuidadosamente o casaco nas costas de uma cadeira e disse:

 

- Vou fazer uma bebida para nós.

 

Peter ia a responder: «não bebeste já o suficiente?» Mas calou-se e começou a tratar do lume.

 

- Não, ainda não bebi o suficiente - respondeu Selena à pergunta que ele esboçara apenas, com os olhos. - Não há bebida bastante para mim, em todo o mundo, Peter.

 

O lume começou a atear-se alegremente e ele sentou-se e estendeu a mão para o copo que Selena lhe oferecia.

 

- Não te posso convencer - murmurou. - De modo que o melhor é beber também...

 

- Quando te deixas de missionar ? - perguntou Selena.

 

- Se achas que não me podes convencer, não te apoquentes. É só vestir o casaco e pores-te a andar. Sabes onde é a porta.

 

- Não estejas a brigar comigo por tudo e por nada, Selena.

 

- Quem é que está a brigar ? Farta de brigas estou eu. Tenho para uma vida inteira.

 

- Queres conversar um pouco ? - perguntou ele. Selena sorriu sem vontade:

 

- Fazes-me lembrar uma pessoa que eu conheci em tempos - disse   Selena, - sempre   a   espiolhar.   Sempre   a meter o nariz onde não era chamado.

 

Bebeu o brande de um trago.

 

- «Fala-me disso, Selena» - e fazia voz de homem.

 

- «Que se passa contigo, Selena?» «Conta-me, Selena, far-te-á bem desabafar».

 

Encheu de novo o copo e exclamou:

 

- Estou farta, farta de conversar!

 

- Eu não estava a espiolhar, não era essa a minha intenção - protestou Peter.

 

- Estavas, sim senhor! Toda a gente de Peyton Place o faz. Afinal que pretendem de mim? Queres saber se eu dormia com ele? Dormia, sim. Queres saber se eu o amava?

 

Amava, sim. - A voz de Selena levantou-se gradualmente.

- Queres que eu te diga se já o esqueci ? Pois fica sabendo que não.

 

Peter observava-a. Estava pálida e as lágrimas corriam-lhe dos olhos enquanto gritava mais e mais de alto.

 

- Queres   saber porque o deixei? Como,   quando   e porquê ?

 

Nesse momento a porta abriu-se, com o vento, talvez. Peter tinha-a deixado mal fechada quando entraram e o vento bateu-a de encontro à parede, ruidosamente.

 

Selena pôs-se de pé de um salto, soprando a bebida enquanto o copo se desfazia em estilhas no chão. Numa fracção de segundo voltou-se e agarrou nas tenazes da lareira.

 

- Nem um passo! - berrou. - Se te aproximas mais, mato-te!

 

Peter segurou-a e durante algum tempo Selena deteve-se imóvel, olhando fixamente o quadrado vazio da porta, a mesma porta que numa noite como aquela emoldurara a figura gigantesca do Lucas Cross.

 

- Não está aqui ninguém, querida - disse Peter. - Ninguém!

 

As tenazes soltaram-se dos dedos encrespados e ela começou a soluçar. Peter voltou-se para si e estreitou-lhe o rosto de encontro ao peito.

 

- Ainda queres saber como nos deixámos ? - soluçou ela. - Tentei matá-lo, Peter, e por pouco que o não fiz. Tim era como o Lucas. Agarrou-me e eu tentei matá-lo!

 

Peter apertava-a com força ao peito enquanto Selena não deixava de chorar.

 

- Tentou despir-me, o Tim - continuou. - Disse que eu queria era ser violada e pôs-se a imitar o Lucas.

 

- Está bem, meu amor - disse Peter. - Não chores mais. Está tudo acabado.

 

- Que se passa   comigo,   Peter? - exclamou   Selena. -Porque me acontecem tão horríveis coisas, porquê? Que tenho eu que faça os homens tratar-me tão brutalmente?

 

Peter beijou-lhe os cabelos macios.

 

- Não é por culpa tua, querida. Apenas tens má sorte, eis tudo.

 

Todo o corpo de Selena tremia.

 

- Bebo e torno a beber - soluçou ela. - E para quê ? De nada me vale. Não consigo esquecer que tentei matar Tim Randlett, que o não matei, como ao Lucas, por acaso, um simples acaso.

 

Peter conduziu-a devagar para o sofá e pegou-lhe nos braços.

 

- Peter, ando tão assustada! Há qualquer coisa má dentro de mim.

 

- Não há nada, querida - respondeu Peter, limpando-lhe os olhos meigamente com o lenço. - Não penses mais nisso. Vamos querida, deixa de chorar.

 

Um suspiro mais profundo sacudiu-a e ele quedou-se um pouco.

 

- Reages à violência com violência - disse Peter. - Há pessoas assim, como sabes. - Ergueu-lhe a cabeça e fitou-a nos olhos: - Tenho que me lembrar disso, de futuro, - murmurou, sorrindo - não vá eu ter a infeliz ideia de fazer de mau contigo...

 

- Tu és bom, Peter - respondeu ela aconchegando-se, já tranquila. - Não mereço um homem como tu.

 

Peter sorriu e beijou-lhe os cabelos.

 

- Mereces o melhor de tudo - respondeu afagando-a.

 

«É isto de que eu preciso», pensou Selena, «é isto que sempre me faltou: amor delicado como o de Peter. Com ele nunca mais terei medo».

 

Os dedos de Peter acariciavam-na percorrendo-lhe o corpo, suavemente, como se tentassem afastar dela o fantasma do passado.

 

- Quando casarmos, - murmurou-lhe ao ouvido - será o começo das nossas vidas. Verás, Selena, que tudo o que aconteceu até agora nada terá que ver connosco! Seremos outras pessoas, diferentes, tanto como se tivéssemos nascido de novo. E tudo se passará longe daqui, num outro mundo.

 

Peter compreendia-a como ninguém. Selena ansiava com toda a sua alma libertar-se, poder oferecer-se pura como uma criança. Os braços dela apertavam-no estreitamente e o rosto molhado de lágrimas oferecia-se-lhe para que ele o beijasse.

 

«Será esta, verdadeiramente, a primeira vez que amo», pensava.

 

Puxou-o para trás e alongaram-se num estreito amplexo sobre o sofá. Depois Selena ajeitou ao seu o corpo dele e Peter, hesitante, acariciou-a nas coxas e levantou a mão para lhe afagar os seios, levemente. Abriu os lábios e beijou-a e ouviu-a suspirar quando lhe levantou o vestido. Ela envolveu-o com os braços e apertou-o a si.

 

- Oh,   Selena   querida - murmurou,   e   calou-se   sem fôlego.

 

Começou a despi-la. Selena sentia-se desmaiar, sentia-se como se o mundo lhe faltasse debaixo dos pés. Tapou os olhos com as mãos e a seguir, em delírio, levantou-as para ele, implorantes.

 

- Quero-te - conseguiu dizer.

 

Com a chegada do Outono vinham os dias de trovoada, carregados e eléctricos, e Roberta Cárter sentia-se invariavelmente mais decidida e empreendedora. Era como se a lassidão dos dias quentes a fosse abandonando à medida que as folhas iam caindo das árvores do quintal. Esfregava as mãos mentalmente e pensava: «Agora que o Verão acabou vamos lá tratar da vidinha».

 

Olhou à volta. A limpeza sem mácula da sala de estar dava-lhe uma sensação de contentamento com as próprias qualidades de dona de casa. Mas isso não lhe bastava. Havia qualquer coisa que não estava bem. Embora Ted e Jennifer tivessem partido para Cambridge nos fins de Setembro, parecia-lhe sentir ainda a presença odiosa dessa horrível criatura em sua casa.

 

«Tenho que me ver livre dela», pensava Roberta. E, reflectiu, pensava-o a sério.

 

Havia mais de um ano que se esforçava por isso mas não tinha conseguido. Ted fazia orelhas moucas a qualquer crítica e Harmon, tão diabolicamente inteligente quando em tempos a ajudara a resolver as coisas com o velho. Dr. Quimby, em nada a auxiliava no que dizia respeito a Jennifer.

 

- Acho que é boa rapariga - limitava-se a dizer.

 

- Também o Dr. Quimby era bom - respondia Roberta - e tu achaste maneira de compreender que era necessário afastá-lo do nosso caminho.

 

- Isso era uma coisa muito diferente - replicava Harmon.

 

O Dr. Quimby, naquele tempo o único médico em Peyton Place antes da vinda de Matthew Swain, era velho e rico quando Roberta começara a trabalhar em sua casa como governanta, secretária e companheira. Roberta e Hermon namoravam-se mas, com o pouco dinheiro que ele ganhava como guarda-livros de Leslie Harrington, o casamento era impossível. Foi então que Harmon Cartes concebeu o seu plano.

 

O que havia a fazer era simples e, sem a trapaça desse resultado, ele e Roberta não poderiam encarar o futuro de cara levantada. Roberta não precisara de muitos argumentos para o por em prática. Aceitou a proposta de casamento do velho Quimby e este fez, acto contínuo, um novo testamento a seu favor. Depois ficaram ambos, ela e Harmon, à espera que o velho morresse. Por sorte não tiveram que esperar muito. Peyton Place, depois do casamento do velho, tornava-lhe a existência intolerável. Toda a cidade se ria dele e se afastava, mesmo os clientes mais antigos e assíduos, recusando-se a consultá-lo.

 

Roberta e Harmon dormiam juntos nas barbas dele e o Dr. Quimby, certo dia, meteu na boca o cano do revólver e suicidou-se.

 

Em menos de um ano Roberta e Harmon estavam casados e iniciavam a longa batalha de reabilitação aos olhos escandalizados de Peyton Place. Com o tempo foram gradualmente conquistando um grau de respeitabilidade adequado à sua posição. Havia, evidentemente, pessoas de boa memória que nunca deixavam de falar mas, em cada ano que passava, a história de Roberta e Harmon tinha cada vez menos interesse, e, para bem deles, iam surgindo outros casos que lhe disputavam as atenções dos murmuradores.

 

De muito lhes valeu, também, o facto de Ted Cárter se revelar tão excelente rapaz. Assim o escândalo morreu, foi sepultado e o povo não se lembrou mais dele.

 

Roberta Cárter, porém, não esqueceu. Recordava-se claramente do quanto lhe tinha custado transformar-se em alguém de respeito, como boa mãe, boa esposa e um exemplo para a comunidade. E eis que, agora, vinha essa Jennifer desviar-lhe o filho do bom caminho para o transformar num tarado com a sua sexualidade pervertida e anormal.

 

«Tenho que me livrar dela», dizia Roberta consigo.

 

Porém, durante o ano anterior, construíra e desfizera dezenas de projectos. Nenhum daria resultado. Ted era tão prisioneiro de Jennifer como se estivesse enclausurado na mais segura cela de Alcatraz. Jennifer era doida e fá-lo-ia endoidecer e isso, aos olhos de Peyton Place, era pior do que ser ladrão ou assassino.

 

«Tenho que me ver livre dela», pensava Roberta.

 

No fim do Verão decidiu-se, finalmente, a adoptar um projecto já anteriormente posto de lado como infrutífero e perigoso. Enquanto limpava o pó das carpetes, ia planeando.

 

Jennifer voltaria a Peyton Place por ocasião do feriado do Dia de Graças. «Tenho que a matar», pensava, «e de um modo tal que ninguém tenha a menor suspeita».

 

Decidiu-se, pois, à leitura de folhetins policiais. Mas não os comprava na livraria de Peyton Place, não. Andava oito milhas até uma cidade próxima e ia adquiri-los a uma loja onde ninguém a conhecia. De volta a Peyton Place fechava-se à chave na casa de banho e entregava-se à leitura.

 

Durante o dia, enquanto o Harmon estava no escritório, escrevia o enredo de cada história e tomava nota das «pistas» que, nesta e naquela, tinham levado o assassino às mãos da polícia. Assim resolveu pôr de lado, por excessivamente suspeitos e perigosos, os assassínios por estrangulamento, veneno, punhalada e tiro. Portanto, como Jennifer não era do género de pessoas capazes de se suicidar, restava-lhe a conclusão de que a sua estimada nora apenas poderia morrer por «acidente».

 

Embora Jennifer andasse muitas vezes de automóvel, Roberta não ousava pensar em fazer qualquer coisa que pudesse provocar um desastre fatal. Na verdade, sempre que ela vinha a Peyton Place, poucas vezes andava só no carro. A «coisa» teria que suceder quando Jennifer estivesse sozinha. Se Roberta, Harmon ou Ted entrassem em cena, de qualquer modo, incorreriam forçosamente em temíveis suspeitas.

 

Roberta leu o fim de mais uma novela policial e suspirou profundamente. Não iria ser fácil mas enfim, nunca tivera esperanças de que o fosse. Havia muita coisa a fazer, desde já. Seria da maior conveniência fabricar uma história sobre a «amizade de Roberta Cárter e Jennifer». Peyton Place teria de ser impressionado antecipadamente com a magnanimidade de Roberta.

 

Quando tudo estivesse consumado e Jennifer morta, as pessoas deveriam poder afirmar: «Que pena! E logo aconteceu uma coisa destas à Roberta Cárter: tão boa pessoa e tão amiga de Jennifer!».

 

Roberta possuía uma habilidade especial para sondar a opinião pública. Quando, duas semanas após a reabertura das aulas, descobriu que a cidade estava descontente com o actual director da escola, começou imediatamente a trabalhar para reintegrar Mike Rossi no desempenho das suas funções anteriores e, com o apoio da sua melhor amiga, Marion Partridge, fez saber a Charles que apoiaria cem por cento o regresso de Mike Rossi à presidência do Conselho Escolar no ano seguinte, quando os contratos fossem revistos.

 

- Foi uma injustiça, diz toda a cidade, - confidenciava ela a Charles - afastar Mike Rossi só porque Allison escreveu um livro. Mas daí lavo as minhas mãos. Por minha vontade ele tinha continuado no lugar.

 

E Charles Partridge, o pacifista de Peyton Place, não só fingiu esquecer-se de que Roberta fora uma das mais encarniçadas inimigas de Mike como ainda se mostrou agradecido por esta inesperada atitude.

 

- O povo não se esquecerá facilmente da injustiça com que tratámos Mike Rossi - acrescentou Roberta. - Fizemos uma triste figura mas não há nada que não tenha remédio.

 

- E quanto mais cedo melhor - aquiesceu Charles.

 

Roberta começou a fazer frequentes visitas à «Progressiva do Vestuário» onde não só fazia agora de novo todas as suas compras, mas também procurava cativar a simpatia de Constance e Selena.

 

- Oh, querida - dizia-lhe Roberta - que alegria me dá o teu namoro com Peter Drake! Um rapaz com sorte, sem dúvida...

 

- Não sei que bicho lhe mordeu - comentou Selena logo que Roberta saiu. - Não a sabia tão amável. Faz-me enjoar!

 

- Talvez tenha mudado, Selena. Afinal de contas já não é nenhuma rapariga. Vai sendo tempo.

 

- Hum... Continuo a não me fiar nela.

 

Mas, ao passo que as semanas decorriam, até Selena teve que admitir que Roberta Cárter estava mudada. Em Outubro, Mike Rossi aceitou o lugar que lhe foi oferecido mediante as condições que apresentou ao Conselho Escolar. Toda a cidade, salvo raras excepções, tinha ficado impressionada com o caso de Mike. Uma das excepções era Marion Partridge e, a bem da Justiça, como diria a toda a gente, Roberta cortou relações com a sua velha amiga.

 

Às vizinhas mais íntimas Roberta explicava: «Tenho imensa pena de perder uma amiga como Marion. Mas tudo sacrificarei aos interesses da nossa escola». As amigas levavam para casa estas nobres palavras e dentro em pouco toda a gente concordava que Roberta Cárter era bondade em pessoa. Vinham cumprimentá-la e ela, a propósito de escolas e crianças, lamentava-se de que Jennifer não lhe tivesse dado ainda um neto, «o sonho da minha vida!»

 

«É pena!», diziam entre si as mulheres de Peyton Place. «Ainda se Ted e Jenny fossem pessoas que tivessem problemas de dinheiro, mas pelo contrário. Sabe Deus como Roberta e o marido são generosos para com eles...»

 

Por outro lado Roberta ia espalhando a notícia de que o seu filho, Ted, desejava regressar a Peyton Place para se estabelecer como advogado apenas terminasse os estudos em Harvard e, se até aí alguém havia que pudesse ter dúvidas acerca da respeitabilidade dos Carters, agora não. Peyton Place adorava o jovem nativo que saía para longe em busca da sabedoria e regresso à terra natal para a colocar à disposição dos seus conterrâneos.

 

- Ted foi sempre um rapaz de assento - dizia a cidade - um excelente moço.

 

- E ainda bem. O velho Charlie Partridge não dura sempre e precisamos de alguém que o substitua quando morrer.

 

Roberta tomou deste modo todas as providências para que o filho a não desmentisse. Quando alguém em Peyton Place se referia ao seu regresso definitivo para ali exercer a sua profissão de advogado, Ted embora tivesse vontade de dizer que nunca pensara em se estabelecer em Peyton Place, sorria e acrescentava modestamente:

 

- Tenho ainda muito que estudar antes disso... E não vai ser muito fácil para uma cabeça dura como a minha...

 

No fim do Verão, Roberta compreendeu que era chegado o momento de actuar. Os pais de Jennifer falavam de uma viagem pela Europa para as «crianças» e Ted estava, evidentemente, encantado com a perspectiva.

 

«Tenho de descobrir um processo rápido e seguro», pensava Roberta alarmada.

 

Dia e noite permanecia fechada à chave com os seus romances policiais e o bloco de apontamentos. Pesava os prós e os contras dos seus projectos. Não podia arriscar-se a levantar suspeitas, não podia deixar pistas. Assim elaborou um meticuloso horário do dia em que o acidente deveria acontecer. Quando terminou, fechou o bloco na gaveta da mesinha de cabeceira e suspirou aliviada.

 

Agora tudo estava pronto. Faltava apenas pôr em execução o projecto. Conseguira descobrir maneira de se livrar de Jennifer com simplicidade e segurança. Sentou-se por uns instantes com a cabeça apoiada nas mãos fechadas. No cérebro ecoavam-lhe ainda as palavras terríveis que ouvira Jennifer dizer ao seu Ted na última noite que tinha dormido em Peyton Place.

 

Ouvia distintamente os suspiros lascivos de Jennifer:

 

- És insaciável, rapariga - protestou Ted.

 

- Mais! - segredou ela - quero mais! Oh, que porcaria de homem és tu? Não podes?

 

Ted sorriu:

 

- Se não chego para ti, paciência. Espera pelos modelos do próximo ano, talvez haja um que te sirva.

 

Roberta, do seu esconderijo, ouviu o leito ranger quando Jennifer se sentou e se encostou à cabeceira.

 

- Parece que vou arranjar um garoto de quinze anos disse.

 

Ted sorriu. Para ele aquelas palavras de Jennifer nada tinham de extraordinário na boca dela. Achava natural que a fortuna e a posição social dêem a uma rapariga o direito de dizer tais disparates.

 

Roberta, porém, ficou tão impressionada que por instantes mal pôde respirar. Não suportava o pensamento de que o seu Ted fosse um marido enganado, de quem os amigos troçam e têm dó. Pensou no velho Dr. Quimby e, por um momento, acreditou no castigo divino. Ted pagava agora os pecados da mãe.

 

A voz gelada de Jennifer fez-se ouvir de novo.

 

- Talvez fosse melhor que eu arranjasse três rapazinhos em vez de um. Claro, seria muito melhor!

 

- E onde vais tu arranjá-los assim, com essa facilidade ? - perguntou Ted.

 

- Ora, é o que falta por aí - respondeu ela com um tom de autoridade. - Por exemplo, o rapazinho de cabelo encaracolado que vem trazer as mercearias. Garanto-te que, pela maneira como ele olha para mim, não seria muito difícil convencê-lo... É aborrecido estar todo o dia sozinha naquele malfadado apartamento, Ted. Não seria encantador estar na cama com ele uma hora ou duas de manhã, todos os dias?

 

Ted não respondeu.

 

- Pois claro que seria, Ted. Seria delicioso. A ideia de corromper um rapazinho inocente é para mim a coisa mais excitante do mundo! E à tarde, poderia fazer um pequeno arranjo com aquele encantador garoto do ascensor. É italiano. Sai às duas. Não gostarias de saber que a tua Jennifer tinha um pequeno criadito fardado para a servir todas as tardes enquanto tu não estás?

 

Ted deu uma gargalhada, uma gargalhada forçada e desconfortável.

 

- Esses adolescentes - continuava a voz de Jennifer são um portento de energia viril, não sabias? Torna-se, até, necessário ensiná-los a não desperdiçar essa maravilhosa força. Li em Kinsey, Ted que um rapazola de quinze anos é capaz de fazer isso quatro ou cinco vezes numa hora! E alguns ainda mais. Não seria emocionante, Ted?

 

Jennifer não esperou que ele respondesse e continuou:

 

- Não me parece que seja capaz de esperar por esses novos modelos de que tu falas... Vou é arranjar um par desses rapazinhos inexperientes. Não te importavas muito, não?

 

- Dorme que é melhor - respondeu Ted.

 

- Não, Ted,   tenho a certeza de que não te preocuparias. Talvez não gostasses, a princípio, mas só porque isso iria ferir o teu orgulho de homem, ou lá o que é. Mesmo assim, não farias nada, pois não? Desde que não te falte dinheiro e fama e o teu nome continue gravado na porta, que te interessa a ti o quer que eu faça! Estás disposto a pôr tudo de lado, tenho a certeza.

 

- Por favor, Jennifer! - exclamou Ted. - Cala a boca e dorme!

 

Seguiu-se um silêncio e, pouco depois, ambos adormeceram, como toda a gente em Peyton Place. Excepto Roberta Cárter. Deixou-se ficar na arrecadação com os punhos cerrados contra a boca e os olhos arregalados, fixos no tecto baixo.

 

«Vou matá-la!» - rouquejou - «tenho que a matar. Ela não diz aquilo por dizer, não, a bácora. Vai mesmo fazê-lo, se é que não começou já. Eu mato-a.»

 

Os cavalheiros da Rua do Castanheiro encontravam-se reunidos, como habitualmente, em casa de Seth Buswell, para o poker das sextas-feiras. Seth colocou uma garrafa de brande sobre o tampo do armário e encheu quatro copos com gelo enquanto Leslie Harrington distribuía as cartas para a primeira jogada.

 

- Temos outro Inverno à porta - exclamou Mattew Swain, sentando-se.

 

- Parece que sim - disse Seth. - O Ephraim já montou o fogão e arrumou o pano.

 

- Onde raio se meteu um ano ? - exclamou Charles Partridge. - Parece que ainda ontem estivemos aqui a falar do livro de Allison MacKenzie. E isso já foi em Abril!

 

- É sinal de que já estamos velhos - acrescentou Matthew. - O tempo, agora, passa num ai. Mas bem me lembro do trabalhão que dava um dia a passar, quando era rapaz.

 

- É preciso boa memória para te lembrares do que fazias em rapaz... - comentou Leslie Harrington.

 

- Obrigado, avôzinho - respondeu Matt. - Bem, tu de há um ano para cá’ deixaste de envelhecer...

 

- Tenho que me guardar por causa do meu neto - respondeu Leslie. - É um diabinho!

 

- Como está a Betty ? - perguntou Seth.

 

- Fixe - respondeu   Leslie. - Suponho   que   resolveu finalmente ficar a viver em Peyton Place.

 

- Belo - disseram Matthew e Seth ao mesmo tempo. Charles Partridge calou-se. Excepto o próprio Leslie,

 

Charles era a única pessoa em Peyton Place que sabia quanto ele sofrera às mãos de Betty Anderson nos últimos tempos.

 

- Cinco belas espadas negras - exclamou alegremente Seth Buswell; e arrebanhou as moedas empilhadas no centro da mesa.

 

«Espadas», pensou Charles Partridge. «Eis a paga de Betty. Pobre Leslie!»

 

Rodney Harrington Júnior não constituíra problema, recordava Charles. O pequeno afeiçoara-se tanto ao avô como se o tivesse conhecido desde sempre e ele, evidentemente, não via outra coisa além do neto. O pequeno Rodney era a imagem viva do pai e, cada vez que o via, as rugas pareciam desaparecer do rosto de Leslie- Não eram apenas os amigos em Peyton Place que se davam conta disso, Betty Anderson notava-o, também, e sorria satisfeita, fazendo mentalmente os seus projectos. Ao fim de duas semanas, o tempo que considerou suficiente para dar a Leslie a ilusão de que ficaria para sempre, começou inesperadamente a preparar as malas para sair de Peyton Place.

 

- Tenho o meu emprego e não quero perdê-lo - respondeu aos protestos do velho.

 

- Mas tu não tens necessidade de trabalhar, Betty. Nada te faltará enquanto aqui estiveres!

 

Betty olhou-o fixamente:

 

- Ouça,   Leslie, governei-me muito bem   sem o   seu dinheiro antes de ter o meu filho e mesmo depois. Não precisamos nada de si.

 

Leslie humilhou-se:

 

- Eu sei, Betty, mas preciso eu de vocês.

 

- Oh, isso é mau - respondeu ela. - Você deveria ter precisado de nós quando me pôs fora do seu escritório com dois patacos no bolso e um filho na barriga!

 

- Betty, - implorou Leslie - farei o que tu quiseres, juro-te!

 

- Já lhe disse, não precisamos de si - exclamou Betty continuando a arrumar as coisas.

 

Por fim prometeu-lhe ficar outra semana e o pobre Leslie respirou de novo. Porém, no sábado seguinte, Betty começou mais uma vez a fazer as malas.

 

- Por amor de Deus, Charlie - disse Leslie a Charles Partridge - faz qualquer coisa!

 

- Que queres tu que eu faça - perguntou ele. - Legalmente não tens o menor direito sobre a criança.

 

- Diabo, sempre é o meu neto.

 

- Não, Leslie - respondeu Charles. - Betty e o teu filho nunca foram casados. E depois, não podes sequer alegar que Betty não estima o filho, ou qualquer coisa assim. Portanto, nada podes fazer. A não ser, claro, esperar que ela mude de ideias e resolva ficar de sua livre vontade.

 

- Bem, fala então com ela - pediu Leslie. - Faz-lhe ver que é melhor para a criança ficar em minha casa. Não me importo que os diabos a levem, a ela. Mas que deixe o Roddy comigo.

 

- Betty nunca deixaria o filho - respondeu Charles.

- Se queres o menino, tens de querer a mãe. Eu falo com ela.

 

- Que o traz por cá? - perguntou Betty Anderson quando Charles foi visitá-la.

 

- Ouça, Betty, - começou ele - se você ficasse nesta casa não teria necessidade de trabalhar e o Leslie tomaria conta do Roddy.

 

- Eu sei cuidar do meu filho e de mim - respondeu Betty. - Sempre soube. E quanto a trabalhar não me ralo de ganhar o meu pão. Esta casa, senhor Charles, faz-me vómitos. Parece um museu bolorento.

 

- Creio que Leslie concordaria em deixá-la viver aqui separadamente - arriscou Charles preocupado se não estaria a exagerar as facilidades. - Enfim, não vejo que ele possa fazer qualquer objecção.

 

- Também não quero isso - respondeu Betty. - Quero viver na minha própria casa-

 

Charles engoliu em seco.

 

- Mas Leslie quer que você e o menino vivam aqui com ele.

 

Betty encolheu os ombros:

 

- Nada feito.

 

- Não quer ficar, pelo menos, até ao Natal ? - perguntou Charles.

 

- Nem por sombras.

 

- Até ao fim do mês?

 

- Também não.

 

Charles foi ter com Leslie e disse-lhe o que Betty exigia para ficar em Peyton Place.

 

- Uma casa! - rugiu ele. - Que diabo de defeito tem a minha casa? Chegava para instalar um quartel!

 

Charles deixou cair as mãos num gesto de desalento,

 

- Nada mais posso fazer, Leslie. É isso o que ela quer.

 

- Então que vá para o diabo! - berrou ele. Porém, no dia seguinte, Betty começou de novo a preparar-se para sair e Leslie correu a chamar Charles.

 

- Arranja-lhe uma casa - disse fatigado. - Ela que a escolha.

 

E deste modo Betty Anderson se tornou proprietária de uma esplêndida moradia na Rua do Loureiro.

 

- Boa para vir passar as minhas férias... - observou ela a Charles.

 

- Férias ?   Que quer dizer com isso ? Não tenciona ficar a viver aqui?

 

- De quê ? - perguntou Betty. - Leslie supõe então que eu sou rica para viver de papo para o ar, como ele, não ?

 

- Leslie está disposto a manter o Roddy - disse Charles. - Quanto a você pode trabalhar aqui e manter-se, como deseja-

 

- Trabalhar, onde? - vociferou Betty. - Na moagem do Leslie? Como o meu pai? Não, obrigada!

 

- Mas nós supúnhamos...

 

- Quero lá saber do que vocês supõem - cortou Betty exasperada. - Não pensem que vou ganhar uma miséria a trabalhar na moagem para Leslie Harrington. Se tiver que trabalhar para comer, vou para Nova Iorque. E não tarda. Deixe-me só fazer as malas.

 

Por fim Leslie Harrington fixou-lhe uma pensão vitalícia de dois mil e quinhentos dólares e fez um depósito de mais dez mil a favor do neto. Além disso concordou em dar a Betty um salário de cem dólares por semana e comprar-lhe um automóvel novo todos os anos.

 

- Por escrito- exigiu Betty. Charles Partridge preparou os papéis e Leslie assinou-os.

 

- Ainda mais uma pequena coisa - disse Betty antes de assinar. - Tenho uma amiga em Nova Iorque que costumava tomar conta do Roddy enquanto eu saía para o emprego. Quero que ela venha para me fazer companhia e tratar do menino.   Leslie tem que lhe pagar...   cinquenta dólares por semana.

 

Assim Agnes Carlisle veio viver para Peyton Place com Betty Anderson. Leslie concordara em pagar-lhe o salário. Em troca de quanto deu a Betty foi-lhe reconhecido o direito de visitar o neto as vezes que quisesse e de o ter consigo um dia inteiro em cada semana. No caso de Betty Anderson casar seriam mantidas as pensões dela e do Roddy mas Leslie, sem perder os seus direitos, ficaria desobrigado de lhe pagar o salário semanal.

 

Betty Anderson recostou-se confortavelmente na sua nova sala de estar e Agnes preparou-lhe uma bebida. As duas mulheres tiraram os pés dos sapatos e sorveram pacatamente os Martinis-

 

- Agora posso respirar! - disse Betty. - Quem fala em casar ?

 

- Eu não te dizia, Betty ? - perguntou Agnes, presumida. - Disse-te que lhe escrevesses, ou não te disse?

 

- Disseste - aquiesceu Betty - e foi a melhor ideia que tiveste em toda a tua vida.

 

- Por amor de Deus, Charles, - exclamou Leslie Harrington com dureza - estás a jogar cartas ou que diabo estás a fazer? Estamos à espera que nos digas se cortas ou não!

 

Charles Partridge despertou e olhou para as cartas.

 

- Passo! - respondeu.

 

- Uma carta - disse Leslie para Seth.

 

«O velho Leslie a querer passar por forte», pensou Charles. «E é capaz de ganhar, não me admira. Geralmente consegue tudo quanto quer. Mesmo que lhe custe os olhos da cara».

 

Às onze horas Leslie Harrington e Charles Partridge despediram-se de Matthew Swain e Seth Buswell.

 

- Vamos um pouco a pé - pediu Leslie quando saíram.

 

- Aonde ? - perguntou Charlie. - É tarde e sinto-me fatigado.

 

- Vamos só dar uma volta pela casa de Betty - insistiu Leslie. - Quero ter a certeza de que tudo corre bem antes de ir para a cama.

 

- Fazes isso todas as noites, não, Leslie? Ele acenou afirmativamente.

 

- Nunca se sabe, Charles. Talvez um dia apanhe essa viborazinha com a boca na botija...

 

- Leslie! - exclamou Charles escandalizado.

 

- Oh, não faças barulho - respondeu Leslie- Conheces-me há tempo suficiente para não te amofinares comigo. Vamos embora.

 

Os dois homens desceram lentamente a Rua do Castanheiro e deram a volta pela do Loureiro.

 

A casa de Betty estava escura e silenciosa. Leslie deteve-se a olhar para as janelas fechadas como se pudesse ver através delas, penetrar no coração frio e impiedoso de Betty Anderson, a mãe do seu neto. Não era apenas o amor do Roddy que fazia Leslie aparentar vinte anos mais novo durante esse tempo. Era também o cheiro de uma batalha que havia no ar. Leslie debatia-se com Betty numa guerra de nervos. Nada havia para o rejuvenescer como um bom combate.

 

Olhou demoradamente para a casa e pensou: «Ganhaste a primeira partida, Betty Anderson, mas a guerra apenas começou. Não hei-de morrer ainda sem ter o meu neto o morar comigo em minha própria casa».

 

O comboio precipitava-se na distância que separava Lewis Jackman de Allison MacKenzie. Lewis sentou-se na carruagem-salão, impaciente com a bebida e com a lentidão dos ponteiros do relógio. As rodas do comboio, também, pareciam mover-se a passo. Observou a água a condensar-se no exterior do copo e olhou de novo para o relógio.

 

Sentada junto dele ia Stephanie. Allison apresentara-lha durante a semana que passara com ele em Nova Iorque depois de regressar de Hollywood. Tinham-se encontrado à partida da Estação Central e viajado juntos durante oito horas. «E tantas, ou pouco mais, foram as palavras que trocámos, oito», reflectia Stephanie. «Se não o conhecesse, haveria de supor que este homem anda apaixonado ou qualquer coisa assim»-

 

- Olá! Por aqui ? - exclamou uma voz feminina atrás dele. Antes mesmo de se voltar para ver quem era, Lewis sentiu uma profunda animosidade contra a intrusa que lhe vinha interromper o fio dos pensamentos.

 

- Viva - disse Stephanie sem interesse.

 

- Lembro-me muito bem de você - exclamou a rapariga. - Não é Stephanie, uma amiga de Allison ?

 

- Sou.

 

A rapariga não parecia incomodar-se com a frieza de Stephanie.

 

- Sou Jennifer Cárter - disse. - O meu marido está aí a chegar, não tarda. Posso sentar-me ao seu lado?

 

Stephanie tinha uma vontade enorme de lhe dizer que não, mas respondeu:

 

- Claro - e apresentou-a a Lewis.

 

- Cá está o Ted - exclamou Jennifer. E voltando-se para o marido: - Querido, não te lembras de Stephanie? Allison apresentou-no-la no Natal.

 

- Claro que me lembro. Como está, Miss Stephanie?

 

- Também vai para Peyton Place visitar Allison, senhor Jackman ? - perguntou Jennifer.

 

- Sim, vou - respondeu ele.

 

Os olhos da rapariga estavam brilhantes, com uma agudeza que fazia Lewis lembrar os duma cabra. Embora bonita, Jennifer tinha qualquer coisa de desagradável, talvez bonita de mais. O rosto era excessivamente rubicundo, o queixo um tanto agressivo e os olhos vasculhavam tudo ao mesmo tempo sem cessar, parecendo, no entanto, ficar pregados a tudo quanto viam.

 

- Allison deve ser realmente uma escritora muito importante para que um editor tão ocupado como o senhor venha para tão longe da civilização! - disse Jennifer, e os olhos fixaram-se nos de Lewis implorando uma resposta.

 

- E é, de facto - respondeu Lewis. E o modo simples e desprovido de ênfase como disse essas palavras deu-lhe uma grande autoridade-

 

Jennifer soltou uma gargalhada.

 

- Pensar que a pequena Allison de Peyton Place é uma escritora importante!... É difícil tomá-la a sério.

 

- Jennifer! - exclamou Ted. - Não digas disparates!

 

- Não sejas ridículo, Ted - respondeu ela. - Que mal há no que eu disse se corresponde exactamente àquilo que eu penso?

 

Ted olhou à volta, comprometido.

 

- Que vamos beber?

 

- Boa   ideia! - exclamou   Jennifer. - Eu   quero   um whisky com soda.- Voltou-se de novo para Lewis: - Há quanto tempo tem Allison em tão grande conta ? - perguntou com a mesma persistência que caracterizava as suas perguntas anteriores.

 

- Há muito - respondeu ele numa voz que não a incitava a continuar.

 

- Depois que ela ganhou fama e começou a ter dinheiro a potes, ou antes?

 

- Antes, minha senhora - respondeu Lewis pacientemente. - Muito antes. - Olhou para Stephanie e levantou-se.

 

- Penso que é tempo de voltarmos para os nossos lugares. - Fez uma ligeira vénia a Jennifer e a Ted e murmurou:- Se nos permitem...

 

Quando eles se afastaram, Jennifer soltou uma gargalhada e disse de alto:

 

- É o que os homens dizem sempre que não querem falar mais.

 

- Jennifer! - exclamou Ted.

 

- Oh, pára com essa «Jennifer»! - respondeu ela de mau modo. - Pareces um disco partido- Sorveu ruidosamente um gole da bebida, e acrescentou: - Allison não arranjou grande coisa: Lewis ainda é mais bicho do mato do que tu.

 

- Talvez se tenha aborrecido com a tua bisbilhotice

- respondeu Ted com mais espírito que habitualmente tinha com Jennifer.

 

- Não sou bisbilhoteira - protestou ela - apenas me interesso pelas pessoas conhecidas.

 

- Seja como for, - respondeu Ted - Lewis é o editor de Allison, nada mais.

 

- Isso é o que tu pensas!

 

- Porque é que não há-de ser? Que diabo sabes tu?

 

- Deixa-te de disparates, doutor. É cá um dedo que me adivinha...   Os grandes editores de Nova Iorque não vêm a Peyton Place com essa facilidade só por causa de um manuscrito.

 

- Sabes, Jennifer ? És uma peste - disse Ted reclinando-se aborrecido no assento. - És uma intrometida.

 

Tinha razão. Jennifer era uma dessas pessoas que não sabem fazer visitas sem meter o nariz em todo o lado, nas mesas de cabeceira e nos armários das casas de banho. Sempre que tinha uma oportunidade lá ia ela bisbilhotar gavetas e prateleiras. Assim descobriu, radiante de satisfação, que uma sua amiga, solteira, tinha no quarto uma boa porção de preservativos e outra recebia montões de cartas de credores importunos. Sabia que o melhor amigo do pai usava uma cinta de borracha e sempre que o via, mal podia conter o riso, principalmente quando descobriu que a mulher dele mantinha fogosa correspondência com um violoncelista francês.

 

Jennifer também não ignorava que a sogra Roberta dera ultimamente em ler romances policiais de cordel e que Harmon coleccionava cartas de jogar com fotografias pornográficas. Sabia que os Carters tinham um depósito de dezasseis mil dólares no Citizens National Bank e uma apólice de seguros de vida de cinquenta mil e ainda, que Roberta deitava pós no café do marido quando desejava ver-se livre dele à noite. Mas essas descobertas não eram nada em compensação com outra que fizera recentemente, tão fantástica que ela mal podia acreditar: sempre que vinha com Ted para Peyton Place, Roberta escondia-se no quarto contíguo ao deles, uma velha arrecadação, e daí escutava tudo quanto diziam e faziam à noite antes de adormecer!

 

- Não sei se é dos ares, - dizia Ted para a esposa, uma noite - mas quando chegas a Peyton Place ficas mais aluada que uma gata em Janeiro.

 

Jennifer sorriu:

 

- A culpa é tua - respondeu e começou a pensar que mais poderia descobrir para o excitar a fazê-lo procurá-la de novo. Apeteciam-lhe coisas esquisitas e bestiais, variantes desconhecidas, agora que sabia que do outro lado da parede Roberta estava de ouvido atento ao menor ruído. Resfolgava exageradamente debaixo dele, gemia e gritava, elevando a voz:

 

- Ai, que me magoas. Mas deixa, não pares agora, querido, mais, mais fundo!

 

Apesar do barulho que propositadamente fazia, parecia-lhe ouvir, quando gritava, o respirar ofegante de Roberta, no quarto contíguo.

 

- Outra vez, Ted - gemia. - Outra vez, querido. Ted passou-lhe as mãos pelo corpo arquejante e lamentou-se.

 

- Santo Deus, Jennifer, que tens tu esta noite?

 

Ela pensando que Roberta estava a escutar, sorriu no escuro do quarto e respondeu:

 

- Nada querido, amo-te. Mas não te preocupes se não podes: limita-te a olhar para mim que eu trato do resto...

 

«Roberta escutava-os», pensou. «Seria segredo delicioso para compartilhar com ele, mas não. Ted nunca poderia compreender. Se lho contasse nunca mais se atreveria a tocar-lhe em casa da mãe».

 

Assim nada lhe disse. Limitou-se a olhar Roberta nos olhos à queima-roupa, na manhã seguinte. Com um sorriso mau, perguntou:

 

- Que tem, mãe ? Parece que não dorme de noite.

 

- Na verdade não dormi - respondeu Roberta um tanto embaraçada. - Talvez fosse por causa daquela maldita chávena de café ao deitar...

 

- Pois eu dormi que nem um anjinho - exclamou Harmon, satisfeito.

 

«Pudera, não!» pensou Jennifer, recordando-se do cartuxo de pós que descobrira na gaveta da mesinha de cabeceira de Roberta.

 

Roberta fechava tudo à chave mas não era muito esperta no modo como o fazia. Guardava uma argola com todas as chaves da casa debaixo do travesseiro e Jennifer não tivera muito trabalho para lhes descobrir o esconderijo.

 

À medida que o comboio se aproximava de Peyton Place, Jennifer sorria para dentro do copo de Martini e pensava no que haveria de novo em casa dos sogros. Desde Agosto que não via os Carters e já devia haver uma porção de novos segredos para descobrir.

 

Começou a queixar-se de dores de cabeça logo que o comboio passou a Concord e quando chegaram a casa em Peyton Place já ele sabia que Jennifer apenas queria deitar-se e beber um copo de chá frio na cama com uma aspirina.

 

- Que pena! - comentou Roberta condoída - e logo hoje que tencionávamos jantar fora!

 

- Por causa de mim não deixem de ir, por amor de Deus - disse Jennifer. - Vão os três.

 

- Claro que não - protestou Ted. - Não vou deixar-te aqui sozinha em casa, cheia de dores.

 

- Não sejas tonto, querido - replicou Jennifer com afectação - não teimes comigo. Se dizes que não queres ir com o pai e a mãe, obrigas-me a sair também. Por favor, querido, não me faças tal coisa!

 

Por fim Ted capitulou e saiu acompanhado de Harmon e Roberta. Jennifer esperou até que deixou de ouvir o ruído do carro e então saiu tranquilamente da cama e dirigiu-se alvoroçada para o quarto de Roberta. Vasculhou nas gavetas do Harmon sem descobrir nada de novidade e nas de Roberta pouco mais. Apenas o conhecido cartuxo de sedativos. Ficou decepcionada. Meteu os dedos debaixo do travesseiro do lado de Roberta e teve outra surpresa desagradável: as chaves tinham mudado de poiso.

 

Estas contrariedades abriram-lhe as asas do excitamento e começou a inspeccionar metodicamente o quarto. Tinha uma rara habilidade para descobrir esconderijos e, por isso, pôs de parte os locais que Roberta poderia obviamente ter escolhido. Meteu as mãos em todos os bolsos, levantou cortinados e passou a vistoriar a casa de banho. Quando acabou, sem qualquer resultado, deteve-se um momento e concentrou todo o seu esforço mental, tratando adivinhar onde diabo poderia Roberta ter escondido as chaves.

 

No momento seguinte correu esperançada para a gaveta das toalhas. Os dedos toparam uma caixa de pó de sabão que Roberta utilizava para lavar meias e roupas interiores de nylon e não tardou a palpar, dentro, o molho das chaves. Retirou-o cuidadosamente do pó sacudindo as mãos para não deixar vestígios dele no soalho que a pudessem denunciar e soltou uma gargalhada de triunfo.

 

Abriu primeiramente um velho armário de cedro colocado no vestíbulo superior mas dentro nada encontrou a não ser lençóis, uma garrafa de aguardente encertada e sessenta e oito dólares, tudo em notas de dois dólares. Deixou tudo tal como estava e fechou a gaveta. «A sogra, pois, bebia o seu copito de aguardente à socapa e poupava notas de dois dólares! Corriqueiro», pensou. Desceu as escadas e abriu a gaveta da secretária da sala de estar. Havia a inevitável colecção de letras, cheques cancelados e cartas por responder. Jennifer examinou os papéis um por um, sem interesse, e olhou o relógio: a família estaria de volta em menos de meia hora. Abriu a gaveta do fundo esperando um novo desapontamento mas os olhos caíram-lhe sobre um estafado bloco-notas que não tinha visto quando da sua primeira visita. «Eis uma novidade», pensou satisfeita.

 

Pegou nele e o rosto empalideceu-lhe à medida que lia: Roberta escrevera um plano para a assassinar! Um plano tão simples e tão estúpido que, no entanto, poderia resultar por si mesmo. O coração galopava-lhe no peito e não parou de ler enquanto não ouviu o carro lá fora. Os Cárteres tinham voltado.

 

Num relâmpago fechou a gaveta e correu pelas escadas acima. Mergulhou as chaves no pó de sabão e meteu-as no quarto. Antes de se deitar, olhou através da janela precisamente a tempo de ver Roberta a subir o passeio. «Velha bruxa», pensou. «Bácora ciumenta! Vais ver a surpresa que eu tenho guardada para ti!»

 

Deitada na cama ouviu os passos de Ted a subir as escadas.

 

«Vai ser um memorável Dia de Graças», pensou. Roberta planeara assassiná-la no dia seguinte.

 

Allison, Mike e Constance permaneceram sentados à mesa com os hóspedes na véspera do Dia de Graças, Stephanie aninhava-se sobre a carpete junto do fogão e Lewis estava sentado numa poltrona. Allison observava satisfeita como Mike simpatizava com Lewis. Tinham começado o serão a falar de política e literatura mas a conversa degenerara pelos vistos: agora falavam de Jennifer.

 

Stephanie descreveu a cena do comboio e acrescentou:

 

- Conheço bem esse tipo de raparigas. Nova Iorque está cheia de Jennifers. Pequenas desavergonhadas da alta roda. Polidas e doiradas por fora e vazias como chávenas por dentro.

 

Lewis sorria, divertido com a linguagem colorida de Stephanie.

 

- Também tenho conhecido muitas - disse. - São de facto típicas, essas meninas-bem. Nascem convencidas de que podem fazer e dizer tudo o que lhes apetecer porque o dinheiro do papá chega para comprar tudo e todos. Espero que me perdoem,   senhoras presentes, mas nunca na minha vida encontrei homem algum, e na minha profissão tenho-os encontrado de todo o género, tão arrogante como essas mulheres o são.

 

- Porque será ? - perguntou Mike.

 

- Suponho que o fenómeno tem uma explicação muito simples - continuou Lewis. - Talvez seja porque, enquanto os homens partem do princípio de que, se tomarem atitudes demasiadamente arrogantes, poderá vir alguém que lhes parta o nariz, as mulheres, claro, não tem essa preocupação...

 

- Pode   dizer o que   quiser   dela -- disse   Constance.

- Não me oponho, é uma estranha. Nunca vi rapariga tão metediça e vaidosa. Mas isso ainda não é o pior. Jennifer é uma criatura fria e insensível. Seria capaz de fazer a coisa mais monstruosa sem a menor sombra de remorso. Mike levantou-se.

 

- Se eu encher os copos outra vez a todos, prometem mudar   de conversa? Não   acho que   a vida privada de Jennifer Cárter seja o melhor assunto para discutir a esta hora da noite. Suponho que terei sonhos mais agradáveis se falarmos, por exemplo, de vampiros...

 

Copo.

 

- Por mim, prometo - disse Stephanie. E estendeu o Pouco depois subiram as escadas e dirigiram-se aos seus quartos. Allison dormiria com Stephanie, e Lewis no quarto dos hóspedes, próximo do delas. Atormentava-a pensar, deitada na cama, que Lewis dormiria ali mesmo ao pé, separado dela apenas por uma estreita parede.

 

Como se lhe lesse no pensamento, Stephanie murmurou:

 

- O teu amigo Lewis é um belo homem. - E depois de um suspiro: - Porque será que todos os homens simpáticos já são casados?

 

- Um dia hás-de encontrar um homem simpático e solteiro - respondeu Allison.

 

- Talvez - murmurou Stephanie - mas até lá levarei uma vida solitária. - E acrescentou: - Sou uma rapariga de princípios, Allison, mas estou farta deles. Se não tivesse uma noção exagerada do meu próprio valor, aceitaria o primeiro homem que me pedisse a mão. O pior é que não é a mão que eles me pedem...

 

Allison sorriu.

 

- Não te apoquentes inutilmente, querida. Mais tarde ou mais cedo hás-de encontrar um homem capaz de te ver através dessa tua bela e inacessível concha o magnânimo coração que tens lá dentro. Então, minha amiga será o teu fim e o dele.

 

- É a primeira vez e provavelmente a última que me sinto quase elogiada por me classificarem de fraude...

 

- Oh,   Stephanie, não quis dizer uma coisa dessas. Não és uma fraude, sabe-lo muito bem. Tens-te mantido na defensiva, todas nós o fazemos. Deus o sabe Stephanie, depois da minha experiência desde a publicação do livro nunca poderia sequer sonhar em dizer que serias uma decepção para um homem,   uma   fraude,   digamos. Seria a história da panela que diz ao tacho« chega-te para lá que me enferrujas».

 

- Porque dizes isso, Allison ? - perguntou Stephanie franzindo o sobrolho.

 

Allison respondeu:

 

- Lewis diz que quase todos os escritores pensam assim. Sentem-se inesperadamente distinguidos do público anónimo e quando lhes sucede escreverem um livro que obtém um êxito fora do vulgar, que é lido e comentado por milhões de pessoas não podem acreditar que isso seja apenas o resultado   do seu talento.   Assim começam a conjecturar, no íntimo das suas consciências perturbadas, se essa gente” não andará iludida. Sentem-se, numa palavra, uma fraude.

 

- E isso passa-se contigo, também, Allison ?

 

- Não sei bem, Steve. Na verdade não sei. Com uma ou duas excepções importantes sinto que toda a minha vida é irreal e fraudulenta, agora. Preciso de voltar ao trabalho, de começar quanto antes a escrever outro livro.

 

- E porque não o fazes? Esta casa é o lugar ideal para trabalhar.

 

- Não é muito fácil, Stephanie. Às vezes penso que é porque a vida se me tornou terrivelmente excitante. O êxito transforma a vida numa coisa tão deliciosa que já não podemos perder um momento dela. Talvez por isso a gente de Hollywood receie tanto a solidão, por uma hora só que seja. E tem razão: trabalham tão duramente para o seu triunfo, que consideram um crime não saborear cada minuto de glória, enquanto ela dura.

 

- Sabes o que queres, Allison?

 

- Sei   tudo! - respondeu   ela. - Tudo.

 

Stephanie calou-se e pouco depois Allison ouvia-lhe a respiração regular e viu que ela adormecera. Pensou em Lewis tão perto e tão inacessível. «E se fosse ter com ele?», pensou. «Mas não, não posso. Não em casa de Constance». Por fim, exausta de tanto matutar, adormeceu profundamente.

 

Pareceu-lhe que tinham passado apenas alguns minutos quando mais tarde abriu os olhos à claridade do dia e ouviu o som remoto da voz de Constance na cozinha a preparar o almoço especial do Dia de Graças. Vestiu-se rapidamente e correu a descer as escadas para ir ajudar a mãe.

 

Mike estava sentado à mesa da cozinha junto de Constance. Bebiam o café e cochichavam. Pareceu-lhe ouvir mencionar o nome de Lewis.

 

Constance viu-a aproximar-se e perguntou:

 

- Que andas tu por aí a fazer tão cedo ?

 

- Venho   ajudar-te   a   fazer   o   almoço - respondeu Allison.

 

- Ainda bem que estás disposta a trabalhar - exclamou Mike sorrindo. - Temos aí um trabalhinho indicado para ti. Requer inteligência e noção de responsabilidade.

 

- Não sei se será indicado para uma pessoa da idade de Allison, Mike - disse Constance piscando-lhe o olho.

 

- Vamos dar-lhe uma oportunidade - respondeu Mike. E depois, para Allison: - Tens coragem e espírito de iniciativa? Queres fazer uma carreira brilhante? Senão, não és indicada para o lugar.

 

Allison sorriu:

 

- Que par de jarras que vocês são! Muito bem. Tenho coragem e espírito de iniciativa. Quero triunfar na vida. Qual é o trabalho?

 

Mike apontou para o forno do fogão:

 

- Vês aquela janelinha de vidro? Allison acenou afirmativamente.

 

- Pois a tua missão é a seguinte: puxas uma cadeira para junto do fogão, sentas-te e espreitas o peru pela janelinha. É preciso não o deixar fugir!

 

- Vê lá,   Mike.   Penso que é muito trabalho para ela... - disse Connie. - Allison não tem muita prática de guardar perus...

 

- É um lugar’ de futuro - disse Mike. - Mantém a tua decisão, Allison. - Apontou para uma cadeira. - Senta-te. Bebe uma chávena de café bem quente e toma uma resolução.

 

- Guardamos o lugar vago até te decidires - acrescentou Constance.

 

- Malucos - exclamou Allison desatando a rir.

 

- Preguiçosa! - disse Mike. - Aparece aqui a uma hora destas e ainda tem o descaramento de se oferecer para ajudar, depois do trabalho pronto!

 

- Porque não me acordaram mais cedo ? - perguntou Allison.

 

- Porque - respondeu Constance - somos do género de pais que gostam de se sacrificar pelos filhos. E de lhes falar disso, depois.

 

- Sim, e bastantes desgostos tivemos por causa de ti - acrescentou Mike.

 

Allison levantou-se e beijou-os.

 

- Porque é este beijo? - perguntou Mike.

 

- Por não serem desse género de pais - respondeu ela.

 

Em casa dos MacKenzie o Dia de Graças começou com sorrisos e continuou alegre até noite. Allison nunca tinha visto Lewis tão feliz; o rosto reflectia a alegria de viver e o prazer de estar na companhia de pessoas que estimava. Ficou sentado ao lado de Allison, ao almoço, e, no meio da conversação animada apertava-lhe as mãos de vez em quando, por debaixo da mesa. Por vezes fazia-o com tanta força que quase a magoava mas exprimia, no entanto, o seu contentamento e gratidão pelo convite que Allison lhe dirigia.

 

Lewis dissera em tempos a Allison que tinha perdido já todas as esperanças de vir a ser feliz, antes de a conhecer. Durante todo o dia os olhos dele fixaram-na com tão evidente reflexo de paixão que Allison receou que Constance e Mike compreendessem.

 

O almoço demorou duas horas e era tarde avançada já quando se levantaram da mesa. Allison tinha planeado dar um passeio a pé com Lewis. Queria mostrar-lhe a mata do fim da estrada e o panorama da cidade, queria, sobretudo, partilhar com ele todos os seus segredos e recordações.

 

- Tencionava levar Lewis até ao fim da estrada - disse ela a Mike e Constance - mas agora é já um pouco tarde para irmos lá. Não tarda que anoiteça.-Voltou-se para Lewis. - É pena, Lewis, mas não temos realmente tempo.

 

- Qual não tens? - exclamou Mike. - Levem o carro. Em dez minutos estão lá e poderão voltar para casa antes de escurecer.

 

- Boa ideia - exclamou Allison, admirada de não se ter lembrado disso. O carro dar-lhes-ia, ainda, maior isolamento. E essa seria a única oportunidade de estarem um pouco a sós antes da partida de Lewis para Nova Iorque, na manhã do dia seguinte.

 

À porta, com o capuz de alpaca do casaco comprido na cabeça, chamou Constance e Stephanie.

 

- Esperem por mim, hein ? Não quero que comecem a lavar a loiça antes de eu chegar...

 

- Preguiçosa - gritou-lhe Mike quando ela e Lewis iam já a caminho.

 

Logo que ambos se afastaram, Mike admitiu que estava enfrascado até às orelhas e apeteceu-lhe uma pequena soneca. Levantou-se e começou a subir as escadas. Do patamar voltou-se e exclamou com um sorriso:

 

- Eh, Connie, ouve. Promete-me que não começas a lavar a loiça antes de eu acordar, sim?

 

Constance pegou no saco do guardanapo e atirou-lhe com ele. Lá de cima Mike exclamou:

 

- Má pontaria !

 

- É um homem maravilhoso - comentou Stephanie.

 

- É, é - respondeu Constance - mas não lhe diga que eu lhe disse.

 

Constance e Stephanie começaram a levantar a mesa e a levar os pratos para o lava-loiças. Steve vestia umas calças de tecido leve, a imitar pele de leopardo e mais parecia uma gata pachorrenta. Enquanto lavavam a loiça, começaram a falar da vida alheia. Steve perguntou por Selena.

 

- Vai casar com Peter Drake - respondeu Connie.

 

- É verdade?-perguntou Steve visivelmente encantada.

 

- É   verdade - respondeu   Connie - lá   para   Junho, quando o Joey acabar a formatura.

 

- Oh, estou tão satisfeita por saber isso - exclamou Steve. - Uma rapariga tão bonita e que tem sido tão infeliz, coitada.

 

- E ainda não sabe tudo - disse Connie. - Infeliz e bem infeliz. Já alguma vez ouviu falar em Nova Iorque num tal Tim Randlett, um actor?

 

- Ele ? - exclamou Steve. - Jesus, se o conheço! É uma das maiores pestes que tenho conhecido.

 

- Pois bem, passou aqui todo o Verão, o ano passado, e pregou uma bela peça à pobre da Selena. E ela, coitada, apaixonou-se por ele.

 

- Oh,   não   pode   ser! - exclamou   Steve. - Vou-lhe contar umas coisas desse tipo. É o maior gabarola que há debaixo do sol.

 

- Gabarola ? - perguntou Connie recordando-se das palavras do Mike acerca de Tim Randlett.

 

- Exactamente, gabarola, pedante. Supõe-se um astro. Nunca se convenceu de que, apesar de ser capaz de chorar um dia inteiro e disso lhe ter feito ganhar potes de dinheiro em Hollywood, nos bons tempos, não passa de um actor de trazer por casa. Quem supõe que ele se julga? Laurence Olivier, pelo menos! Uma vez trabalhei com ele num programa de televisão. Creia, Connie, Tim é nojento. Considera-se irresistível. Representa vinte e quatro horas por dia e tenho a certeza de que até debaixo do chuveiro faz «carinhas». Resolveu considerar-me «a provinciana desorientada no meio de uma grande cidade» e, sem se fazer rogado, impingiu-me uma teoria de conselhos sobre a maneira de me conduzir e de evitar as falsas amizades... Uma peste. De boa se livrou a pobre Selena! Tenho-o visto representar com mulheres os papéis mais diversos: o pai, o amigo, o vil sedutor e o irmão. Qual deles escolheu Tim com Selena?

 

- Não sei bem - respondeu Connie pensativa. - Mas deve ter sido um papel terrível. Cheguei a pensar que Selena morresse.

 

- Então estava na maré dos vilões - respondeu Steve.

- Canalha!

 

- Bem - disse Connie - tudo acabou já, graças a Deus. Agora Selena vai casar com Peter Drake. Fico só à espera que tu e Allison...

 

- Cá por mim estou à espera de um produtor rico-disse Steve. - Portanto, devo morrer solteira porque todos os produtores são casados. Até parece que já nascem comprometidos!

 

Logo que acabaram de lavar a loiça, levaram a cafeteira e duas chávenas para a sala de estar e sentaram-se ao lume. Permaneceram silenciosas e quietas, olhando as formas belas e estranhas que as labaredas tomavam, contentes com a paz e o silêncio que reinava em toda a casa.

 

No fim da estrada Allison e Lewis sentados no carro contemplavam Peyton Place, como uma cidade de brinquedo lá em baixo, a seus pés. As casas pareciam ter absorvido a quietude parda do céu. «Como túmulos», pensou Allison, e estremeceu.

 

Lewis estreitou-a.

 

- Não sei porquê, minha querida, - disse - mas faz-me tristeza olhar para Peyton Place daqui. Parece tão abandonada!

 

- É do tempo - respondeu Allison. - Eu também me sinto triste. É a melancolia do Outono. Embora todos nós saibamos que uma nova estação é de certo modo, um começo, o Outono afigura-se-nos sempre um fim. Tanta coisa que morre!...

 

Lewis tomou-lhe o rosto entre as mãos e fitou-a meigamente. Depois, muito ao de leve, beijou-a nos olhos e na boca.

 

- Amo-te, Lewis - murmurou Allison.

 

- Oxalá que me digas isso sempre, querida.

 

- Tenho a certeza de que o nosso amor não morrerá, Lewis. E quem me dera nunca morrer, também!

 

Ele sorriu.

 

- Parece que o Outono não te faz apenas melancólica, Allison. Estás hoje tão mórbida, querida.

 

- Eu sei. Mas tenho a certeza de que isso me passará logo que volte ao meu trabalho. Quando escrevo, esqueço-me do dia em que estou, do mês e do ano.

 

- Espero que não te esqueças de mim...

 

- Nem que o quisesse, querido - respondeu ela. Abriu o casaco e apertou Lewis de encontro ao peito.

 

- Com que então a namorar dentro de um automóvel...

- disse ela sorrindo. - Sinto-me uma menina de escola. Não que tenha feito isso quando andava na escola, entenda-se...

 

Olhou à volta, para a negrura da paisagem do fim da estrada, enquanto as mãos de Lewis a acariciavam.

 

- Nunca me lembro de ter gostado de nenhum rapaz a esse ponto - continuou pensando alto, mais do que falando. - Os meus devaneios ocupavam-me o tempo todo. Creio que não tinha vagar para namorar. Foi aqui que tudo começou. Lewis, aqui no fim da estrada. Às vezes penso que nunca teria escrito O Castelo de Peyton se não existisse o fim da estrada.

 

Sorriu feliz no casulo quente que tinha feito no canto do carro de Mike. As mãos de Lewis vagueavam-lhe livremente por todo o corpo. Allison colou-lhe a boca ao ouvido e com a língua tentou fazer-lhe cócegas. As mãos dele apertaram-na mais por um momento. Depois soltaram-se e Lewis disse:-Conta-me mais coisas.

 

- Uma vez   um rapaz   chamado   Norman beijou-me aqui - disse ela.

 

- Olha que sou terrivelmente ciumento - respondeu Lewis, e Allison sentiu o bafo quente dele enquanto ria.

 

- Mas, em compensação, lembra-te: se não houvesse um fim da estrada nunca haveria um livro meu, Nova Iorque e Lewis Jackman, editor.

 

- Não - respondeu ele. - Recuso-me a admitir que isso fosse impossível. Se tu não tivesses existido eu inventava-te!

- Inclinou-se e beijou-lhe a camisola no sítio em que se avolumavam os bicos dos seios.

 

Allison afagou-lhe a cabeça, reclinou-se no assento e fechou os olhos. As mãos de Lewis moviam-se lentamente sobre ela. Tinha a cabeça deitada para trás e os olhos semicerrados.

 

- Fala para mim - pediu ele.

 

- Não posso - murmurou Allison. - Oh, Lewis, não posso.

 

Beijou-o e procurou com a língua a dele. Lewis mordeu-a levemente e ela gemeu com a doçura da dor. Quando ele a fez chegar ao auge do prazer ela afastou-o. Lewis tinha os lábios secos e a voz tremia-lhe.

 

- Quero-te, mas toda - suspirou.

 

Allison não tinha consciência da própria voz nem atentava nas palavras apaixonadas que lhe saíam da boca. Sentia-se mergulhada na escuridão e esses sons, vagos e distantes, eram ininteligíveis aos seus ouvidos.

 

Quando abriu os olhos achou-se deitada nos braços dele. A noite tinha caído e uma exígua lua de Inverno projectava sobre eles uma luz aguada. As sombras das árvores enchiam de intermináveis manchas negras a estrada e a encosta da colina.

 

- Meu Deus - exclamou Allison em voz baixa, incrédula. - Pensei que tínhamos conseguido tudo, já do amor.

 

Lewis sorriu e não respondeu.

 

- Nunca pensei que houvesse algo de melhor ainda, depois do que já tivemos - disse Allison. Reclinou o rosto no peito dele e sentiu-lhe o coração pulsar de encontro aos lábios. - Será sempre assim, Lewis ? - perguntou numa voz indecisa, assustada. - Sempre melhor e melhor? Será? Penso que não. Morreria se fizéssemos isto muitas vezes.

 

Lewis beijou-lhe os cabelos e respondeu sorrindo:

 

- Não é caso para te assustares, querida. Os seres humanos são curiosos: habituam-se tão rapidamente ao prazer como à dor.

 

- Sinto-me feliz por te ter conhecido, Lewis. - Apertou-lhe os braços em volta do pescoço. - Tomas sempre conta de mim, querido?

 

- Sempre - prometeu ele.

 

- Dentro de algumas semanas voltarei a Nova Iorque - continuou Allison - e então estarei ao teu lado para tomar conta de ti, também. Hei-de passar um ano nesse maravilhoso quarto branco e doirado a trabalhar de dia e a amar-te de noite.

 

Sentou-se e acendeu um cigarro.

 

- Lewis, - continuou - pensas que esse homenzinho que faz de gerente se importará de tu vires ao meu apartamento todas as noites?

 

Lewis sorriu.

 

- Tu, Allison, és simultaneamente a mais artificial e a mais ingénua das mulheres que jamais conheci. A resposta é: sim, o gerente importa-se; e: não, ele não dirá nada.

 

- E porque não dirá ele nada ? - quis Allison saber.

 

- Porque tu pagas tanto dinheiro pela hospedagem que ele terá interesse em não se importar. Eis a razão. Desde que não façamos barulho nem incomodemos os outros hóspedes, nunca lhe ouviremos uma palavra de protesto. O gerente de um hotel de luxo, como aquele, é um indiferente profissional. Uma das primeiras lições que lhe deram na escola foi de como e de quando fazer vista grossa, elegantemente.

 

Allison sorriu.

 

- E também deve ter aprendido a sair no momento oportuno. No exame devem tê-lo obrigado a recuar numa sala cheia de gente, sempre a fazer mesuras e vénias e a sair sem tropeçar nos móveis...

 

- E doutorou-se a fazer sinais com os dedos - continuou Lewis. - Quando ele os apontou àqueles dois «fantasmas húngaros» que nos serviam, os dedos tiveram o efeito de tiros de pistola, não reparaste?

 

Calaram-se sorridentes. Tudo lhes parecia delicioso. Nem sequer a paisagem negra de Nova Inglaterra parecia deprimi-los, agora, Peyton Place brilhava como um diamante perdido no fundo do vale. Allison imaginou que poderia dizer qual daquelas casinhas miniaturais era a sua e imaginava Mike, Constance e Steve acocorados à roda do lume. Estariam eles a falar de Lewis e dela?

 

- Em que estás a pensar querida ? - perguntou Lewis.

 

- Estava a lembrar-me de que talvez estejam a falar de nós...

 

- Se não voltamos depressa - disse Lewis - poderás ter a certeza disso.

 

- Bem, eu sei - suspirou ela. - Mas odeio ter que sair daqui. É tão pacato isto, querido. E é a única oportunidade que temos de estar sós antes do Ano Novo. - Beijou-o levemente. - Mas compreendo que tu, depois de te teres governado comigo, não penses senão em regressares à civilização...

 

- Eis o que somos nós os homens - disse Lewis sorrindo. - Depois de um bocado bem passado pomos a mulher na prateleira dos cacos velhos...

 

Allison pôs o carro em andamento.

 

- Então espera que venha o Inverno, ao menos. Não seria razoável pores-me de lado durante o bom tempo...

 

Começaram a descer a estrada cheia de curvas que levava a Peyton Place. Lewis ligou a telefonia do carro e inclinou-se para o tablier, concentrado na música, enquanto Allison notava que havia qualquer coisa de anormal no funcionamento do automóvel. Na curva grande tentou reduzir a velocidade mas os travões não obedeceram; o carro apenas ziquezagueou perigosamente. Conseguiu descrever a curva e retirou o pé do travão. O carro seguiu normalmente e Allison suspirou de alívio.

 

- Estás a ouvir? - perguntou Lewis. Reclinou-se no assento para saborear música sinfónica de uma emissora de Boston.

 

Allison tocou o acelerador ao de leve com a ponta do pé; queria aumentar um pouco a velocidade para a subida que se aproximava. O carro precipitou-se para a frente de súbito, numa velocidade inesperada. «Que diabo será isto?», perguntou a si mesma. De novo pisou o travão e de novo o carro oscilou. Aliviou a pressão do pé, e pela velocidade do carro compreendeu o que se passava: o acelerador estava preso!

 

Aproximava-se uma descida e o potente automóvel seguia a sessenta milhas à hora! Desorientada tentou soltar a alavanca do acelerador batendo-lhe de lado com o pé. Não o conseguiu, porém, e a velocidade encheu-a de pavor, sentindo-se impotente para dominar o carro. Agarrou o volante com firmeza e observou apavorada a curva que se aproximava velozmente. Lewis assustou-se:

 

- Não achas que seria melhor...

 

Nesse momento Allison apoiou o pé com toda a força sobre o travão e erguendo-se sobre ele manteve a alavanca encostada ao fundo. Sentiu-se um forte cheiro a borracha queimada.

 

- Que se passa, Lewis? - gritou, cheia de pavor. Num relâmpago o carro galgou fora da estrada e

 

começou a rolar sobre si mesmo pela encosta.

 

Allison fechou os olhos e pensou: «Meu Deus, quantas voltas darei ainda antes de morrer?»

 

Estava sentada na cozinha com Mike e Constance. Ambos bebiam café e riam com as piadas dele. «Nunca os deixarei», pensou. «São tão bons, tão bons!»

 

- Allison, Allison! - dizia Constance - Allison querida!

 

Abriu os olhos. Árvores negras curvavam-se sobre a sua cabeça e a lua pousava num galho alto, como um pássaro de fogo. Levantou-se bruscamente e olhou à volta, cheia de assombro e pavor.

 

- O carro! - exclamou. - O carro. Tenho que encontrar o Lewis. Lewis, meu querido!

 

Sentiu invadi-la uma dor aguda; não se aguentou de pé e caiu sobre os joelhos.

 

- Lewis!-chamou-Lewis! Já vou, querido, vou tomar conta de ti.

 

Ergueu de novo a cabeça e avistou o carro. E arrastou-se para ele.

 

Jennifer não tirava os olhos de Roberta do outro lado do enorme peru do Dia de Graças. «Porca sanguinária», pensou. «Venham-me dizer agora que sou intrometida! Ainda bem! Se o não fosse, estaria morta dentro de vinte e quatro horas!»

 

Roberta serviu o café, sorriu e falou das pessoas que tinham ido à igreja de manhã.

 

- E tu, querida? dormiste uma boa soneca, não? Jennifer, a pretexto de uma dor de cabeça, ficara mais uma vez em casa enquanto o resto da família tinha ido ao serviço religioso solene do Dia de Graças.

 

- Não consegui dormir - lamentou-se - de modo que decidi ler...

 

Ficou à espera de ver a reacção de Roberta mas a sogra permaneceu calma.

 

Depois do almoço, Harmon e Ted saíram para casa de uns amigos onde se demorariam até à noite a jogar cartas e a beber. Roberta e Jennifer ficaram, pois, sozinhas em casa.

 

- Parece-me que vou dormir um pouco... - disse Jennifer.- Estas almoçaradas de vocês fazem-me uma soneira...

 

- Vai, vai minha querida - disse Roberta. - Eu vou escrever umas cartas.

 

«Calculo...», pensou Jennifer.

 

Jennifer subiu as escadas e quando Roberta, meia hora depois, espreitou pela porta entreaberta do quarto, parecia profundamente adormecida. Roberta fechou a porta com cuidado e dirigiu-se ao roupeiro do vestíbulo.

 

«Bendito sejam as fechaduras bem oleadas», pensou Jennifer, esgueirando-se para a casa de banho.

 

Pela abertura estreita do respiradouro viu Roberta pegar na caixa de pó de sabão e procurar a argola das chaves. Depois ouviu-a descer apressada pelas escadas. Jennifer, tão silenciosa como ela, seguiu-a. Pela porta da sala de estar espreitou Roberta a abrir a gaveta do fundo da secretária. Viu-a quedar-se verde de surpresa e precipitar-se de novo para a gaveta, vasculhando-a desesperadamente. Quando Roberta se voltou, Jennifer estava atrás dela, erecta, segurando ostensivamente o fatídico bloco de notas.

 

- É disto que anda à procura ? - perguntou com ênfase. Roberta ergueu-se de um salto, tão pálida que Jennifer, por um momento, receou que a velha fosse desmaiar.

 

- Como descobriste isso ? -perguntou trespassada de horror.

 

- Ora, abrindo essa gaveta, minha querida mãe, - respondeu Jennifer.- Diga-me, mamã - perguntou, vincando os lábios num sorriso mau, - estava realmente convencida que esta trapaça daria resultado?

 

- Dá-me esse bloco! - gritou Roberta desvairada.

 

- Ainda não, querida mãezinha - disse Jennifer com uma calma de enlouquecer. - Sabe, intrigava-me o motivo por que deu em ler essas novelas policiais de três o vintém. Não acho que um romance de cordel lhe fique mal nas mãos, mas, francamente, nunca a imaginaria a ler sucata desta...

 

- Não sei do que está a falar - tartamudeou Roberta.

 

- Oh, oh, sabe muitíssimo bem - replicou Jennifer. Avançou um pouco para ela ainda com o mesmo sorriso terrível nos lábios:

 

- Tem ciúmes de mim, você! - disse. - Cada vez que o Ted e eu íamos para a cama, você ia esconder-se no quarto ao lado para ouvir o que dizíamos e fazíamos. O ciúme obececou-a e queria matar-me! Queria matar-me, hein?

 

Roberta recuou um passo e apoiou-se na secretária como se tivesse levado uma pancada na cabeça.

 

- És doida! - rouquejou, tentando gritar. Porém, apenas emitiu um som abafado.

 

Jennifer soltou uma sonora gargalhada.

 

- Eu é que sou doida, hein ? - exclamou. - Veja, leia o que escreveu aqui e verá qual das duas é mais doida.

- Abriu o bloco e começou a ler em voz alta:

 

«Uma e meia: Jennifer sobe as escadas para ir dormir a sesta. Duas e meia: acordo-a para lhe dar uma chávena de café (contendo uma dose excessiva de pós para dormir). Três horas: sugiro uma visita às meninas Page. Três e meia: Jennifer e eu vamos à garagem e entramos no carro (vou de luvas). Ponho o motor a trabalhar e digo que me esqueci dos óculos. Ela fica no carro e eu volto a casa. (O motor continua a trabalhar). Quatro horas: Jennifer adormece e eu sento-a no lugar do condutor e volto para casa. Cinco e meia: Ted e Harmon chegam e encontram-me deitada (finjo que durmo). Depois descobrem Jennifer morta dentro do carro».

 

Jennifer fechou o bloco de notas com uma palmada.

 

- E lá ia eu desta para melhor sem mais nem menos, hein, minha querida? Que estupidez...

 

Roberta tinha-se deixado cair sobre uma poltrona junto da secretária.

 

- És uma má mulher - repetia sem cessar. - Má, diabólica !

 

- Ao menos nunca planeei matar ninguém - retorquiu Jennifer. - E agora, sabe que vou fazer ?

 

Roberta olhou para ela estupidamente.

 

- Vou lá acima buscar o casaco. Depois meto este precioso bloco no bolso, pego no carro e vou dizer à polícia...

 

Deu alguns passos resolutos na direcção da porta e Roberta levantou-se de um pulo para a seguir, conforme Jennifer calculava.

 

Jennifer correu pelas escadas acima seguida de Roberta e quando chegou ao patamar esperou que ela subisse até ao último degrau.

 

- Mas francamente, estava mesmo convencida de que este plano imbecil daria resultado? - perguntou, desdenhosa, estendendo-lhe o bloco de maneira que ela quase o alcançasse.

 

Roberta inclinou-se subitamente para lho arrancar da mão, como Jennifer esperava, e, no mesmo segundo, Jennifer deixou-o cair no chão, apoiou as mãos nos ombros dela e empurrou-a com toda a força. Com um grito Roberta tombou de cabeça para trás e Jennifer, friamente, observou que ela bateu duas vezes com a cabeça na parede antes de se estatelar no fundo das escadas. Pareceu-lhe uma eternidade o tempo que ela levou a cair. Conservou-se imóvel no patamar e o único ruído que se ouviu nesse momento foi o eco do grito de Roberta. Jennifer desceu calmamente os degraus e passou por cima do corpo. Curvou-se para lhe observar o pulso; mas, pelo ângulo da cabeça, sabia que Roberta tinha o pescoço partido e estava morta.

 

Voltou a subir as escadas e queimou o bloco na casa de banho. O coração batia-lhe apressadamente pois sabia que não poderia falhar. Contudo, mesmo que Roberta estivesse apenas ferida, tranquilizava-se, não haveria perigo, pois ela, sabendo-a de posse do bloco, nunca se atreveria a abrir a boca para a acusar.

 

Sorriu enquanto as cinzas da última folha se desfaziam na água do sanitário. Dirigiu-se ao quarto, descalçou os sapatos e as meias e tirou o ligueiro, como fazia sempre que ia dormir a sesta. O leito estava ainda desfeito de se ter deitado nele à espera da visita de Roberta.

 

Despiu-se e, apenas em cuecas, desceu lentamente as escadas, passando sobre o cadáver de Roberta sem o olhar, sequer. Aproximou-se do telefone e deteve-se um instante antes de levantar o auscultador. Depois ligou e conteve a respiração enquanto pôde. Quando falou com Ted, a voz saiu-lhe impetuosa, num suspiro enorme.

 

- Um acidente - gritou. - Ted, vem imediatamente! A tua mãe...

 

Roberta Cárter foi a enterrar três dias depois e toda a gente de Peyton Place apresentou condolências à família enlutada.

 

«Que pena!» - dizia a cidade. - «Era a bondade em pessoa. E tão amiga de Jennifer!»

 

«Um golpe duro para ela». «Era tão dada com a sogra. Roberta não se fartava de me gabar a mulher do Ted».

 

«Eu sei. Roberta contava os dias um a um à espera que Jennifer lhe desse um neto».

 

«Que desgraça. E é tão raro ver uma sogra dar-se tão bem com a nora...»

 

Na sexta-feira seguinte Ted e Jennifer tomaram o comboio para Boston. Como dizia Harmon, Ted não podia ficar para sempre em Peyton Place. Tinha de pensar na sua carreira. Jennifer ia de luto e sob o enorme véu preto do chapéu escondia um pequeno sorriso. Ted reparou nele enquanto a ajudava a subir para a carruagem. Instintivamente sentiu-se estremecer. Não sabia porquê, mas no coração nascia-lhe uma suspeita pavorosa. Passaria o resto da vida - da sua vida triunfal e próspera - debruçado sobre essa negra dúvida.

 

Allison sabia que Lewis estava morto. Mesmo no fundo nebuloso do seu delírio o sabia. Quando a tinham levado inconsciente para o banco do hospital chamara repetidas vezes por ele até que Matt Swain chegou e lhe injectou um sedativo.

 

Agora, decorrida uma semana, Constance e Mike não arredavam pé da sua cabeceira. Allison continuava sob a acção do sedativo e Constance olhava o rosto ferido da filha, com os olhos rasos de lágrimas. Segundo Matt Swain, Allison tinha partido quatro costelas e uma vértebra do pescoço e sofrera graves contusões em todo o corpo. Constance, porém, sabia que o olhar angustiado de Allison, e os tremores que a sacudiam não eram devidos aos sofrimentos físicos. Allison debatia-se em pesadelos terríveis.

 

Todas as noites e manhãs Constance e Mike vinham sentar-se junto do leito. Matt apenas lhes permitia que a visitassem durante as horas regulamentares. Senão, Constance não arredaria pé dali.

 

- É nova - consolava Matt. - Há-de curar-se depressa, verá...

 

- Não são as costelas partidas que me fazem pensar

- disse Constance.

 

- E o que é que julga que me faz pensar a mim, Connie ? - perguntou Matt. - Julga que eu sou tonto ?

 

- Desculpe, doutor - disse Constance.

 

- Antes fosse isso - rematou ele. E saiu apressadamente para o corredor com a bata a flutuar em volta das pernas.

 

Stephanie demorou-se em casa dos Rossi durante a primeira semana e depois teve que regressar a Nova Iorque, prometendo, no entanto, voltar logo que Constance e Allison precisassem dela. Quando se despediu de Constance choraram ambas e Mike, incapaz de se dominar, tentou consolá-las:

 

- Tudo há-de correr bem.

 

Foi no segundo dia após o acidente que Mike trouxe o relatório da polícia sobre as causas que o motivaram.

 

- O acelerador preso - explicou. - Allison não tinha experiência suficiente para saber que bastaria ter levantado a alavanca do acelerador com o bico do pé. Em vez disso carregou nela, tentando soltá-la. Mas, claro, não deu resultado. Constance escutava-o silenciosa.

 

- A julgar pelo rasto dos pneus, - continuou Mike - a Polícia supõe que Allison tentou parar o carro carregando a fundo nos travões. E perdeu o controle do automóvel. Devia ir a mais de noventa milhas à hora, nesse momento.

 

- Santo Deus! - exclamou Constance.

 

- Eles sabem o local onde o carro saiu da estrada

- acrescentou Mike - mas não podem calcular quantas voltas deu ele sobre si mesmo. Quatro ou cinco, até embater nas árvores.

 

O automóvel estava completamente destruído e o corpo de Lewis foi encontrado entre os destroços. Allison fora cuspida, caíra sobre um tufo de relva e rolara até ao fundo do barranco. Um automóvel conduzindo um grupo de estudantes passou no local alguns minutos depois do acidente, quando Allison tentava em vão abrir a porta desmantelada para retirar Lewis.

 

Allison sabia que ele tinha morrido. Agitava a cabeça sobre a almofada, tentando sacudir o terror dos seus pensamentos. Revivia o instante horrível em que se sentira impotente para dominar o carro, enquanto ele rodava vertiginosamente com os pneus a chiar. Nada podia fazer, nada!

 

- Lewis! - gritara. - Lewis, que se passa ? Lembrava-se de como se agarrara ao volante com todas as forças, tentando dominar o carro. E, depois, o fim. Hora após hora a recordação desses momentos pavorosos perseguia-a. E, no fundo da sua inconsciência, no íntimo do seu ser, a certeza de que Lewis estava morto.

 

Na segunda semana após o internamento, de manhã cedo, à hora em que as enfermeiras apagam as luzes, Allison despertou finalmente e encontrou o doutor Matt Swain sentado junto do leito, atento.

 

- Bom dia, Allison - murmurou ele. Nunca na sua vida tentara falar a alguém tão docemente.

 

Allison começou a chorar: as lágrimas assomavam-lhe aos olhos e escorriam-lhe pelas faces.

 

- Diga-me, doutor, - pediu com voz fraca - diga-me!

 

- Tu sabes - respondeu Matt tristemente.

 

- Mas diga-me!

 

- Ele morreu, Allison. Lewis morreu, minha querida. Matt pegou-lhe na mão. Ela retirou-a.

 

- Não quero ouvir nenhuma das suas consoladoras palavras, doutor - disse. - As palavras de nada me valem.

- A voz extinguiu-se-lhe e fechou os olhos.

 

- Allison, - disse Matt Swain - quer tu me ajudes quer não, procurarei fazer-te bem. Não tenhas dúvidas acerca disso.

 

Constance trouxe-lhe livros e revistas e voltou no dia seguinte. Allison não lhes tocara. E o mesmo sucedia com a comida que as enfermeiras lhe traziam.

 

Matt Swain entrou no quarto e ficou de pé junto da porta, esperando em silêncio que ela erguesse os olhos. Depois disse, fixando-a:

 

- Se queres suicidar-te, Allison, há outros processos mais simples e menos dolorosos de o fazer!

 

Esperou que ela respondesse. Allison, porém, fechou outra vez os olhos e voltou a cabeça para o lado.

 

Matt falou de novo, com propositada brutalidade. Ele ficou impressionado com o tom áspero da própria voz:

 

- Neste hospital quem manda sou eu! A minha vontade, aqui é a lei. Quando voltares para tua casa, faz o que muito bem entenderes, nada terei a ver com isso. Mas não sairás daqui enquanto eu o não ordenar.

 

Pôs as mãos atrás das costas e inclinou-se para ela. O estetoscópio pendia-lhe no rosto como um nariz preto e a bata branca, desabotoada, parecia uma tenda.

 

- Dou-te a escolher, Allison: ou comes o que te dão, segundo a minha receita, ou mando amarrar-te as mãos ao leito e dou-te injecções para te alimentar artificialmente. Escolhe!

 

Fez um sinal e uma enfermeira que aguardava junto da porta entrou empurrando um carro com comida. Afastou o leito um pouco da parede, sem hesitar, e dobrou-o. Involuntária mas inexoravelmente Allison ficou sentada. Matt aproximou-se da janela e abriu os cortinados, inundando o quarto de luz. A enfermeira colocou o tabuleiro sobre a cama, junto de Allison.

 

Ela olhava para os pratos como se dentro deles houvesse algo de perigoso e indesejável.

 

«Se isto não der resultado» pensava Matt, «não sei que diabo hei-de fazer mais». E em voz alta:

 

- A tua mãe vai ficar radiante quando souber que comeste alguma coisa, Allison.

 

Ela não o olhou. Pegou na colher e, lentamente, começou a comer.

 

Matt Swain saiu do quarto. No corredor encostou-se a uma parede e bateu com os nós dos dedos na testa. «Se não fosses médico, poderias dar um excelente comediante», disse consigo, congratulando-se pelos resultados obtidos.

 

Em Dezembro, Mike veio buscá-la ao hospital no carro novo que a companhia de seguros lhe tinha dado. Allison coxeava um pouco mas, com a ajuda dele, caminhou até ao carro. Quando Mike abriu a porta começou a chorar copiosamente. Reclinou a cabeça no ombro dele e soluçou:

 

- Oh, Mike, não posso, não quero entrar mais num automóvel. É superior às minhas forças!

 

Ele falou-lhe meigamente ao ouvido, como uma mãe a um filho e sentou-a a seu lado. Depois, conduzindo devagar, levou-a para casa.

 

Constance preparara-lhe uma cama no sofá da sala de estar e acendera um bom lume no fogão. Allison olhou à volta como se nunca tivesse entrado naquela casa.

 

«Se ao menos ela me contasse toda a verdade», pensava Constance olhando amorosamente a filha, com o coração a galopar-lhe no peito. «Ou se ao menos eu tivesse coragem para lhe confessar que sei tudo...»

 

Deitada no sofá, entre os olhares ansiosos e desvelados de Mike e Constance, Allison entregava-se aos mais sombrios pensamentos. Sentia que o corpo a traíra, restabelecendo-se. E sentia também que traía Lewis por continuar a viver, quando ele tinha morrido.

 

David e Stephanie escreveram-lhe e Bradley Holmes e Arthur Tishman enviaram-lhe flores. Mas não respondeu a ninguém. Lia muito. Constance escreveu a David e a Brad e mantiveram uma cadeia ininterrupta de notícias. Durante o dia Allison vagueava pela casa, de quarto para quarto, acabando sempre por se deitar no sofá, que considerava agora o seu refúgio protector.

 

«Como o fim da estrada, quando era pequena», pensava. «O fim da estrada! Fora-o na verdade, para o pobre querido Lewis».

 

Por vezes reflectia: «Agora estás livre! Tens toda a experiência que a vida pode dar e que tu ambicionavas. Podes ir para onde quiseres, ver tudo, fazer tudo. És livre, livre».

 

Porém, repelia logo esses pensamentos, cheia de remorsos. «Era como se dançasse sobre a campa de Lewis». E odiava-se por os ter consentido.

 

Duas semanas antes do Natal, Constance e Mike perguntaram-lhe se queria que David e Stephanie viessem fazer-lhe companhia durante as férias. Allison abanou a cabeça:

 

- Não desejo ver ninguém, por enquanto.

 

À noite Mike e Constance, deitados, ouviam o som dos passos indecisos de Allison vagueando pela casa ou sentiam-na a beber café na cozinha. Todas as manhãs, ao levantar, Connie encontrava uma chávena suja no lava-loiças e uma pilha de livros sobre a mesa. Allison apenas conseguia dormir tomando comprimidos.

 

- Tenho fé em Allison - respondeu o doutor Swain à pergunta ansiosa de Constance. - Apenas temos de ter muita paciência, Connie, até que passem os maus dias.

 

Connie concordou.

 

- Connie, - disse Matt - pode responder-me que me meta na minha vida, mas diga-me: havia alguma coisa entre Allison e Lewis Jackman?

 

- Meta-se na sua vida, Matt... - respondeu Connie, e sorriu, o que já não fazia havia semanas.

 

Recordando depois, Connie pensou que tinha sido provavelmente Matt quem quebrara o gelo e pusera de novo as coisas a girar. Caminhou para casa de ânimo mais leve e, quando abriu a porta, ficou mal impressionada com o cheiro a bafio que enchia todas as salas. «Parece uma clausura», pensou. «Isto não está bem. Tenho de fazer qualquer coisa».

 

Quando entrou na sala de estar deparou com Allison estendida no sofá, olhando pensativamente para o tecto de olhos vazios. Dirigiu-se à cozinha e pôs o café ao lume. Chegou à porta da sala e disse para Allison:

 

- Estou a aquecer café, meu amor. Queres uma chávena?

 

- Tanto me faz.

 

- Bem, querida, bebe uma chávena comigo! Gosto de companhia.

 

Encheu duas chávenas e trouxe-as para a sala, colocando-as sobre a mesinha junto do sofá de Allison. Ela sentou-se.

 

- Está frio lá fora - disse Constance. - Parece-me que vai nevar. Estou ansiosa por que este ano passe e Mike deixe de andar a caminhar todos os dias para White River. São apenas nove milhas, é certo, mas durante o inverno é maçador.

 

Allison não respondeu. Connie sorveu o café.

 

- Hum, está bom! Estava a precisar de qualquer coisa quente. Queres um chocolate?

 

- Não, mamã, obrigada.

 

Connie levantou os olhos e reparou que os primeiros flocos de neve daquele ano batiam de encontro às vidraças. Allison seguiu-lhe o olhar, viu a neve e ergueu-se. Aproximou-se da janela e ficou a olhar para o exterior.

 

Tinha perdido peso. O rosto perdera o último lampejo de frescura juvenil. Olhando-a, Connie pensava comovida: «És agora uma mulher, Allison». Aproximou-se também da janela e ambas se quedaram lado a lado a olhar para a neve que caía lá fora do céu baixo e pesado da tarde.

 

- Porque será que a neve é sempre maravilhosa, mamã ? - perguntou Allison, quase sem saber que falava de alto.

 

- Talvez porque tem o condão de nos recordar a infância, sempre, - respondeu Connie, - os dias em que o mundo era um mistério e a vida um sonho doirado e sem fim...

 

- Para mim acabou o sonho - murmurou Allison e, lançando os braços em volta do pescoço da mãe começou a chorar amargamente. Constance estreitou-a ao peito e afagou-lhe os cabelos.

 

- Chora, minha criança - murmurou. - Chora! Segurou a filha nos braços e pensou: «Estas lágrimas que lhe caem dos olhos levam consigo o que restava desse sonho de infância. Talvez que ao choque de termos nascido se siga o choque tremendo de compreendermos que somos adultos, enfim, que temos de aceitar a idade, as responsabilidades e a certeza da morte».

 

- Oh, mamã! - chorava Allison. - Eu amava-o; Eu amava-o.

 

Constance, então, conduziu-a pela mão para o sofá. Olharam para o fogão incandescente e Allison, finalmente, contou a Connie tudo acerca de Lewis.

 

Quando acabou, Constance beijou-a afectuosamente e enxugou-lhe as lágrimas. Depois disse:

 

- Agora, Allison, deves viver para ele. E não creio que sejas a primeira mulher a tomar essa decisão. Não tens um filho para amar, como eu tenho a ti. Mas possuis o teu talento. Começa a trabalhar de novo, querida.

 

- Vou tentar, mamã, vou tentar.

 

E tentou, de facto, nos dias seguintes. Enquanto a neve caía a toda a volta, permanecia sentada horas e horas à máquina de escrever, com os olhos abertos fixos na folha de papel branco. Mas o pouco que escrevia, rasgava-o depois. Era difícil regressar ao seu mundo, pensava. Outras vezes acabava por cobrir a folha de desenhos.

 

- Agora, pelo menos, tenta trabalhar - dizia Connie a Mike - e fala um pouco mais.

 

Mike, agora, ficava todo o dia em casa, pois as férias do Natal tinham começado e a sua presença agradável fazia imenso bem a Allison. Passavam horas sentados à mesa da cozinha a falar dos projectos dela e da sua incapacidade para começar a escrever o segundo livro.

 

- Talvez isto passe, esta febre do «segundo livro».

 

- Talvez - concordou Mike - mas eu suponho que escrever é como outro trabalho qualquer: quando o deixamos de parte durante um longo período leva tempo, depois, primeiro que nos aclimatemos. O teu caso não é muito diferente do de um carregador, por exemplo: se estiver dois meses sem transportar grandes pesos os músculos entorpecem-se e é preciso um grande esforço para retomar o trabalho.

 

- As vezes penso que já escrevi tudo, que já não tenho nada para contar...

 

Mike sorriu:

 

- Mesmo que nunca tivesses saído de Peyton Place, só aqui não te faltaria matéria para escrever durante toda a vida.

 

No dia de Natal, rodeados de pedaços de cordão doirado e folhas de papel de embrulho dos presentes, estavam a jantar quando alguém bateu à porta. Mike franziu o sobrolho e levantou-se. Connie perguntou:

 

- Quem poderá ser, Mike ?

 

- Talvez alguma criança que ande por aí a brincar

- respondeu ele. E inclinando-se, beijou-a e disse:

 

- Um Feliz Natal para ti, querida!

 

- Oh, se ao menos eu tivesse alguma coisa de jeito para dar...-disse Constance dirigindo-se para   a porta.

 

Continuaram a bater e Mike exclamou:

 

- Lá vou, lá vou!

 

Houve um prolongado silêncio quando a porta se abriu. Depois ouviram Mike dizer:

 

- Oh, ou é Rita Moore ou a mais adorável aparição que se possa imaginar!

 

Allison pôs-se de pé num salto quando ouviu as gargalhadas cristalinas de Rita Moore.

 

- Nem podia ser outra pessoa - disse em resposta ao olhar interrogativo da mãe.

 

Rita entrou na sala. Vestia um casaco preto debruado a pele e um colar de pérolas, enormes, emoldurava-lhe o rosto encantador mas áspero de frio.

 

- Oh, que prazer em ver-te sã e salva! - exclamou, dirigindo-se a Allison. - Ouvi dizer em Nova Iorque que estavas de pés para a cova... -E antes que Allison pudesse responder, Rita voltou-se para Mike e estendeu-lhe um cesto que trazia: - Isto, senhor MacKenzie, está cheio de champanhe e penso que não é preciso deitar-lhe gelo. O táxi que me trouxe de White River para aqui tinha refrigeração.

 

- Táxi ? - exclamou Allison admirada. - Como conseguiste arranjar quem te trouxesse a Peyton Place na noite de Natal?

 

- Não só arranjei quem me trouxesse, minha querida,

- respondeu Rita - ainda mais:   o homem está para aí em casa de um compadre qualquer à espera de me levar a tempo de apanhar o comboio para Boston. Custa-me a brincadeira apenas vinte e cinco dólares adiantados, um autógrafo e o meu melhor sorriso.

 

Mike estava de pé junto dela, segurando o cesto com o champanhe.

 

- Podia ter telefonado, Miss Moore. Seria para mim um grande prazer ir buscá-la...

 

- Oh, senhor MacKenzie, - exclamou Rita - como é amável!

 

- É sempre assim, o Mike - disse Constance. - Um benemérito!

 

- Já adivinhaste, Rita, que são os meus pais... -disse Allison. - Mike e Constance Rossi.

 

- Rossi? - exclamou Rita. Voltou-se para Mike: - E eu a chamar-lhe MacKenzie... desculpe!

 

- Não   tem   importância - respondeu   Mike. - Claro que, se fosse outra pessoa a dizer isso, matava-a...

 

Pegou no cesto com as garrafas e dirigiu-se para a cozinha.

 

Rita sentou-se à mesa com eles.

 

- E agora - perguntou Allison - que diabo fazes tu por estes lados?

 

- Bem. Estava em Nova Iorque quando ouvi falar no teu acidente e decidi ter este ano um Natal à antiga, um Natal Branco, e um lauto jantar... Foi por isso que vim. Além do mais, tenho, uma curiosidade terrível de conhecer de perto o cenário do teu romance.

 

- Que tal achas o cenário?

 

- Nova Inglaterra, cem por cento. Pavoroso - respondeu Rita. - Acertei ? Pelo menos tudo me parece ser de acordo com o que eu imaginava. Parece bruxedo...

 

Mike voltou da cozinha com o champanhe e quatro copos.

 

- Quando   acabarmos   de   beber   esta   garrafa,   Miss Moore, - disse Mike - creio estar em condições de lhe dizer quanto a adoro. Rita, aqui mesmo na presença da minha mulher, dir-lho-ei!

 

- É assim mesmo que deve ser - respondeu Rita. - Nada de segredos com a esposa...

 

- É também o que eu penso - respondeu Mike.

 

- E depois da segunda - disse Constance - estarás em condições de tirar a camisa e mostrar à nossa hóspede as tatuagens. Pelo menos aquela que diz: «Rita e Mike - para sempre».

 

- Não sejas ingénua, querida - respondeu Mike. - Eu e Rita tencionamos ausentar-nos para parte incerta durante um ano ou dois. Mas voltarei definitivamente para junto de ti, claro.

 

- É o que se chama dedicação - disse Connie. E pensava consigo: «Dá-me vontade de te beijar, Rita Moore. Porque a minha Allison está alegre, sorri».

 

Allison, de facto, estava viva de novo e porque Rita entrara inesperadamente naquela casa, trazendo consigo um eco do mundo exterior. Esse mundo era aquele de que Allison tentava esconder-se, que ela receava encarar de novo, de frente. Oferecera-lhe a glória que ela temia e o amor que terminara tão tragicamente.

 

Quando acabaram a segunda garrafa, Connie disse para Rita:

 

- Sei que isso lhe partirá o coração, mas vou à cozinha e levo o Mike comigo. Suponho que quererá estar um pouco a sós com a Allison...

 

- E eu suponho que me vais levar para lavar pratos.

- Encaminhou-se para a cozinha e antes de sair disse: - Preparem-se para ajudar a apanhar os cacos...

 

- São uns amores, ambos - disse Rita. - Tiveste mais sorte do que muitos de nós.

 

Allison fez com a mão um gesto que significava: «Isso é o que tu pensas» e sorriu amargamente.

 

- Cheia de dó de ti própria, menina? Estampaste-te, mataste o teu amante e agora tens pena de que o mundo todo não tenha morrido contigo.

 

- Estou a tentar voltar a escrever, Rita. Mas as ideias é que não vêm...

 

Allison apoiava as mãos sobre a mesa. Rita aproximou-se dela e deu-lhe palmadas com os dedos longos e finos.

 

- Virão, sim - respondeu categoricamente, acentuando cada palavra com um bater dos dedos. - Têm de vir. Esta é a última lição da tua vida, a prova final! É isto o que a glória significa para pessoas como nós. Depois de tudo perdermos, amigos, amantes e maridos, teremos sempre o nosso trabalho. Ele é a única coisa perdurável nas nossas vidas. E quando traírmos o nosso talento, então poderemos dizer adeus a tudo e voltar ao caos original.

 

Esvaziou o conteúdo da garrafa para dentro dos dois copos.

 

- Tenho que regressar a White River - disse. - O meu apaixonado chauffeur está para aí gelado que nem um pinguim. Além disso o meu marido está à minha espera no hotel...

 

- Casaste outra vez, Rita ?

 

- Casei, há duas semanas, jóia. Se não andasses na lua terias ouvido falar nisso.

 

- És feliz com ele, Rita?

 

- Bem - respondeu ela - já não sei o que isso significa exactamente. Digo-te, querida, vivemos juntos, compreendemo-nos mutuamente. E a diferença entre ele e os outros é encantadora e surpreendente. Quero dizer, Jím não é um príncipe nem um mendigo. É, contudo, o meu primeiro marido que trabalha para ganhar o seu pão. Já é muito bom.

 

- Estou contente pela tua lembrança de me vir visitar, Rita - disse Allison. - Fez-me bem conversar contigo.

 

- Mas que te disse eu de novo ?

 

- Fizeste-me   lembrar - respondeu   Allison - que   o mundo ainda não está cheio de monstros à espera de me devorarem. Demonstraste-me que o trabalho poderá afugentar todos os fantasmas que me rodeiam.

 

- Pelo amor e pelo trabalho! - exclamou Rita erguendo o copo.

 

- Hurra! - exclamou Allison.

 

A buzina do táxi fez-se ouvir lá fora, num silvo inesperado que sacudiu o silêncio da neve. Mike e Constance voltaram da cozinha e ele ajudou Rita a vestir o casaco. Rita beijou afectuosamente Allison e despediu-se.

 

- Há muita gente a pensar em ti, querida. Nunca o esqueças.

 

Allison chegou à janela e ficou a vê-la caminhar pelo passeio de neve endurecida até ao táxi que a esperava. Pareceu-lhe sentir o frio da noite através do vidro e encolheu-se.

 

«Nunca me hei-de esquecer, Rita», disse sozinha, «e não te desapontarei».

 

Ficou ali até que o táxi se perdeu de vista. Depois entrou na cozinha e olhou para Mike e Constance:

 

- Vou lá para cima trabalhar. Se for preciso, estarei no meu quarto.

 

Constance sorriu:

 

- Nós cá nos governaremos sem ti, meu amor. Ficaram ambos a olhá-la enquanto subia as escadas.

 

Constance suspirou aliviada e Mike pegou-a nos braços.

 

- Feliz Ano Novo, minha querida. Tenho um pressentimento de que vai ser um grande novo ano.

 

                                                                                Grace Metalious  

 

                      

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