Tempestuoso, como habitualmente, Frank Minello entrou de supetão no escritório de Miky Grogan, diretor do “Morning News”.
— Chefe! — gritou. — Quer saber da úl...?
Miky Grogan lançou um grito, empalideceu, deu um salto em sua cadeira, os papéis que tinha na mão voaram pelos ares e seus óculos quase caíram sobre a mesa, ficando retidos por puro milagre na ponta de seu nariz. Além disso, bateu com os joelhos na mesa, o cinzeiro saltou, o charuto caiu sobre outros papéis... Depois, subitamente, tornou-se inerte, como se o tivesse fulminado um raio. Mas tinha um aspecto triste, deprimido e olhava lastimavelmente para Minello, que clareou a garganta, enrubesceu e procurou sorrir, conseguindo apenas fazer uma careta.
— Ih! Parece que se assustou, chefe?
— Oh, não... — suspirou Grogan. — Dou saltos assim sempre que entra alguém em minha sala.
Suas últimas palavras tinham já um tom mordaz. Seus olhos haviam endurecido.
— Mmm... Sinto muito, chefe...
Grogan tornou a suspirar.
— Frank — disse mansamente: — por que diabo há de ser você o melhor jornalista esportivo dos Estados Unidos?
— Oh! — Minello ergueu o queixo, levou a mão à gravata e sorriu lisonjeado. — Pensa isso de mim, de verdade, chefe?
— De verdade. O que eu disse está certo... Lamentavelmente certo, Frank.
— La... lamentavelmente? Ué! O senhor tem o melhor jornalista esportivo da nação e diz que lamentavelmente? Que tem de lamentável isso?
— Tem. Porque se você não fosse o melhor... eu o punha no olho da rua agora mesmo! — acabou gritando.
Minello retrocedeu um passo, sobressaltado.
— Puxa! Também não é pra tanto...
— Claro — sorriu Grogan, como um lobo hipócrita. — Não é pra tanto. Frankie, meu filho, Você sabe que tomo todos os dias uma porção de pílulas de cores diferentes?
— Sei, sim — riu Minello. — Brigitte e eu já comentamos isso algumas vezes. Pílulas para dormir, para acordar, para comer, para não comer...
— Pois é. É mesmo divertido, não?
— Bem... já que está tão amistoso, confesso que sim, que Brigitte e eu algumas vezes fazemos brincadeiras por causa das suas pílulas. Ah, chefe, devia tê-la visto outro dia imitando o senhor...! Rimos todos como loucos.
— Quem são todos?
— Todos os deste andar, claro. Puxa, como nos rimos! Foi engraçado mesmo! Brigitte é única para imitar as pessoas.
— Até eu quase acho graça — grunhiu sinistramente Grogan. — Sabe você que uma dessas pílulas é pra acalmar meus nervos?'
— Sei, sim: a vermelha.
— Ah, de modo que sabe, hem?
— Claro...
Miky Grogan desferiu um soco na mesa, bruscamente rubro de cólera.
— Então, como diabo se atreve a entrar aqui sem mais nem menos, gritando, batendo com os pés como um bisonte? Fora! Fora daqui, já, imediatamente!
— Está bem, chefe. Já estou indo... — saiu da sala e, dois segundos depois, ouviu-se uma tímida batida na porta, que se abriu pra mostrar novamente o simpático rosto do jornalista esportivo. — Dá licença, chefe?
Miky Grogan fechou os olhos e apertou os punhos.
— Entre — resmungou.
Minello entrou e disse:
— Chefe: adivinhe de quem recebemos uma carta.
— De quem? — suspirou Grogan, acomodando-se na cadeira.
— De Brigitte!
— Ah... ótimo, ótimo. É consolador saber que, pelo menos, ela tem usado sua máquina... embora não seja para escrever os artigos sobre essa coroação!
— Mandará, certamente... Bem, a carta vem de Ausvânia, claro... Quer que a leia?
— Eu lhe agradeceria muito — disse Grogan, sarcástico. — Os analfabetos sempre agradecem essas pequenas atenções de seus amigos.
— Ah, ah! Essa é muito boa, chefe! Muito boa, mesmo! Uma tirada genial!
Miky Grogan tornou a fechar os olhos.
— Que diz a carta? — resmungou.
Minello refestelou-se numa das poltronas, acendeu um cigarro e olhou-sorrindo as folhas datilografadas. Começou:
Queridos meus:
Espero que estejam todos bem, aturando com resignação esse... Mmm... Bem, o princípio não tem nada de interessante...
— Leia desde o princípio! — trovejou Grogan.
— Bem, já que o senhor manda... Começo novamente...
Queridos meus:
Espero que estejam todos bem, aturando com resignação esse velho e enrugado tirano que nos dá ordens com voz estentórica e expressão furibunda. Deem-lhe pílulas de minha parte.
Minello apertou fortemente os lábios, mas o riso escapou-lhe pelo nariz, junto com a fumaça, o que o fez engasgar e ficar com os olhos cheios de lágrimas. Quando recuperou a voz e a visão, Grogan continuava imóvel, olhando-o torva- mente.
— Que mais diz nossa simpática espiã? — indagou em tom frio.
Aqui estou, neste maravilhoso país da Europa Central, alternando minhas atividades jornalísticas com visitas a casas de modas. Ainda ontem, na “Boldia”, uma das lojas mais bonitas e luxuosas do continente, vi um modelo simplesmente delicioso. De inverno, claro, pois aqui quase nunca faz calor. Vê-se neve nas montanhas durante quase o ano inteiro e o ar frio chega à cidade, mantendo a temperatura sempre baixa, exceto durante dois meses. Mas, como eu dizia: que modelo encantador! Fechadinho, todo em mohair azul, com uma linda rosa vermelha bordada no peito... e vocês sabem como gosto das rosas vermelhas! É fechadinho, mas tem um decote sensacional, em forma de triângulo, quase audacioso. Ah, queridos! Creio que não poderei deixá-lo aqui...
— Toda a carta é assim? — cortou Grogan.
— Não, não... Fala de outras coisas. Logo em seguida...
Estou confortavelmente instalada no “Hotel Carsia”, que é uma coisa fabulosa, podendo ser comparado com vantagem ao “George V” de Paris. Grandes salões, suítes confortabilíssimas com vista para as montanhas nevadas e o lago, uma sala de jantar que é um sonho... O serviço é inexcedível e, como o Idioma oficial aqui é o vânio, bastante parecido com o alemão, não tenho problemas de nenhuma espécie. Os vânios são todos muito amáveis e estão contentíssimos com a próxima festa do país, ou seja, a coroação de seu rei, Sua Majestade Sandor m. Os preparativos parecem que mantêm ocupados os cinco milhões de habitantes deste simpático embora um pouco frio país. Uma grande semana para Ausvânia, certamente! Coroado o rei, haverá grandes festejos e todo o mundo será feliz, pois enfim ás coisas estarão definidas e perfeitamente estabilizadas em Ausvânia. Espero enviar outro artigo sobre o país e a coroação...
— Espera enviar um que outro artigo! — bramiu Grogan. — É capaz de ter esquecido que está em Ausvânia justamente porque a mandei lá para escrever um artigo diário, acompanhado de fotografias e... Isso não vai ficar assim! — rugiu.
— Foi lá para trabalhar, para fazer uma reportagem completíssima sobre a coroação! E se nossos leitores não tiverem as melhores informações a este respeito, eu... eu... eu...!
— Fará o quê? — sorriu Minello,
— Continue!
Espero enviar um que outro artigo sobre o país e a coroação, mas levarei muitas coisas para contar a vocês pessoalmente. Tudo e tão maravilhoso, que não basta a palavra impressa para explicá-lo.
Esta manhã tivemos uma conferência de imprensa, nada menos que com o rei, no Palácio Real Algo fabuloso, esse palácio! Uns jardins do tamanho de toda Manhattan, com formosas flores de outono, gramados intermináveis, grandes abetos centenários, estátuas, pérgulas e pavilhões. No centro, o pátio, todo de pedra, magnífico. Data dó século XIV, segundo fui informada. Seus salões são algo excepcional, nunca vi nada parecido! A guarda real compõe-se de homens atléticos... que usam calções curtos e casaca vermelha e empunham velhas alabardas de lâminas cintilantes. O protocolo é rígido, mas a nós, jornalistas provenientes de todas as partes do mundo, estão sendo feitas amáveis concessões. Antes da conferência, o primeiro camareiro do rei interessou-se pessoalmente por todos nós, pedindo que lhe comunicássemos qualquer desejo no sentido de tornar mais agradável nossa permanência em Ausvânia. Sua Majestade Sandor III pareceu-me um tipo raro, como nunca vi nenhum. Tem 40 anos, mas aparenta 35, no máximo. É bonito, elegante e tão nobre de porte que ninguém duvidaria ja-1 mais de sua realeza. Tem um ar sério, mas sabe sorrir de um modo encantador. É de uma amabilidade e simpatia perfeitas. Respondeu todas as perguntas que lhe foram formuladas. Nos aturou durante quase três horas, a mim e a outros quase trezentos jornalistas que enchíamos o vasto Salão de Conferências. Ele é um rei tão convincente, que até eu mesma estou desejando sua coroação.
Depois foi-nos permitido entrar, de dez em dez, na Sala da Coroa, onde esta se acha exposta dentro de uma vitrina. E pudemos também tirar fotografias. Foi realmente um dia cheio, algo fatigante, mas produtivo do ponto de vista jornalístico.
Agora, enquanto esperamos o grande Dia da Coroação, podemos fazer o que nos agrade: esquiar, permanecer no hotel, entrevistar personalidades do reino etc. Somos sempre magnificamente atendidos em tudo.
Só uma coisa...
A porta da sala de Grogan se abriu e apareceu o chefe de redação, do “Moming News”. Trazia nas mãos um grande envelope azul e outro me¬nor, branco. Parecia disposto a dizer alguma coi¬sa, mas Grogan o fulminou com o olhar.
— Que diabo quer você agora?
— Desculpe, chefe, é que acaba de...
— Espere! Não vê que estou ocupado? Prossiga, Frank.
Só uma coisa me aborrece neste lugar: a presença de William Esley, nosso gorducho e tedioso colega do “New York Daily”. O homenzinho grudou-se a mim no aeroporto de Nova Iorque, quando coincidimos tomar o mesmo avião, e até agora não consegui desgrudá-lo. Manda-me flores ao hotel, me convida para janta- res, almoços, passeios a cavalo... Parece estar convencido de que vou enlouquecer de amor por ele. Gorducho, calvo, baixote, tão rosado aos cinquenta anos... Pelo jeito, terei que suportá-lo até que passe o Dia da Coroação, e isso chega a deprimir-me um pouco. Gostaria de ser mal-educada a ponto de mandá-lo ao diabo. É um pobre idiota que me enche na verdade, mas esperamos que minha paciência não se esgote.
Aluguei um pequeno carro muito bonito importado da Alemanha e com ele percorro as curtas distâncias de Ausvânia... quando William. Esley me deixa. Não quero ir com ele desde que no outro dia, num simpático albergue de montanha aonde fomos jantar, insistiu em que passássemos a noite lá, num só quarto do albergue, claro...
— A cara desse eu rebento, tão logo ele regresse a Nova Iorque! — explodiu Minello. — Estarei aqui à espera!
— Eu também! — disse outro jornalista.
— E eu — acrescentou Grogan. — Que mais diz ela, Frankie?
...do albergue, claro. Disse-lhe que, quando eu sentisse frio na cama, chamaria minha avozinha para que me pusesse um cobertor elétrico.
Quanto ao mais, tudo maravilhoso. Pretendo amanhã dar um passeio de barco pelo lago e espero desviar o Esley, que se proclama o melhor remador do mundo.
Perdoem-me não prolongar esta, mas foi um dia pesado, sinto-me cansada e vou dormir... sozinha, claro.
Muitos, muitos beijos para todos, com a grande saudade da colega e amiga, BRIGITTE
— Parto a cara desse idiota, repito! — ameaçou Minello.
— Que mais diz, Brigitte? Nada?
— Nada mais. Parece-lhe pouco? Que patife...!
— Eu? — saltou Grogan.
— Não, chefe... Refiro-me a esse gorducho do Esley, nosso “querido” colega do “New York Daily”.
— É um bom jornalista — resmungou Grogan.
— Aposto que ele enviou qualquer coisa ao seu jornal: artigos, fotografias... Estou certo de que ele teve tempo para trabalhar.
— Bem...
— E era vez disso, que fez nossa ágil jornalista Brigitte Montfort? Nada! Absolutamente nada!
— Mister Grogan... — começou o chefe da redação.
— Cale-se!
— Mas é que...
— Cale-se! Ah, mas vou mandar a essa Brigitte um telegrama fulminante. Mando-a lá para trabalhar, tirar fotografias de tudo, informar sobre os preparativos e o ato solene da coroação... e fica passeando pelo país num carro alugado, que custará uma fortuna ao jornal! Vai receber um telegrama que...!
— Mmm... Mister Grogan...
— Mas que diabo quer você? Fale de uma vez e volte ao seu trabalho.
— Pois não — disse o outro jornalista, colocando sobre a mesa de Grogan os dois envelopes.
— Há alguns minutos terminei de ler o conteúdo deste envelope azul. Veio de Ausvânia, enviado por uma tal de Brigitte Montfort. Trata-se de um excelente resumo da história do país, sua política atual, sua economia, seu folclore, seu nível e sistema de vida. Fala de suas escolas, de seu pequeno exército, da população civil. Está escrito de uma forma tão clara e completa, que nossos leitores ficarão conhecendo "Ausvânia perfeitamente. Há também uma série de laudas sobre a entrevista. coletiva concedida pelo rei ao jornalistas estrangeiros, conferência que Brigitte gravou e mandei datilografar aqui. Ha um artigo especial sobre Sandor III, a capital de Ausvânia e o comportamento de seus habitantes às vésperas da coroação. Há muito tempo não publicávamos coisa tão boa.
Minello olhou torvamente para Grogan.
— Engula a pílula, resmungão! — disse entre os dentes.
Grogan tinha enrubescido. Não sabia para onde olhar nem o que fazer com as mãos.
— Bem... — evadiu ele. E repetiu: — Bem, bem, bem... Algo mais, talvez?
— Sim senhor: Esta madrugada chegaram umas fotografias, também de Ausvânia, pelo rádio...
— E por que ninguém me disse nada, posso saber? — gritou Grogan.
— Porque uma das fotos tem uma nota escrita a mão por Brigitte, que diz: “Não mostrar as fotos ao Furibundo até que chegue também meu trabalho escrito. Beijos.”
— Ah-ah!...— riu Minello, feliz como um querubim.
— Muito bem! — rugiu Grogan. — E prestam essas fotografias?
— Excelentes. Algumas parecem tiradas de um ângulo especial, como... Clandestinamente, diria eu. Fotos muito expressivas do palácio, da corte, de gente do povo em atitudes espontâneas. Também há fotografias do lago de albergues de montanha, da neve nestas montanhas, de flores, de ruas da capital, dos festejos pre-coroação. Cada uma delas comentada de um modo objetivo e ameno, bastante simpático.
— Que pílula deseja tomar, chefe? — perguntou rindo, Minello.
— Fora! Fora daqui os dois, para que eu possa ler tudo isto tranquilamente, antes de mandar à impressão!
— Que telegrama enviará a Brigitte agora? De felicitações?
— Não! Pode ser que tenha trabalhado um pouco, mas estou certo, certíssimo de que está fazendo um vidão por lá... Como sempre!
— Se puser novamente as mãos em mim, Esley, eu atiro você dentro do lago. Juro!
— Oh, Brigitte, você não está sendo justa comigo! Só queria fechar melhor o seu casaco de pele... Faz um bocado de frio neste lugar!
— Pois eu não sinto.
— Ah, querida, é que você não pode sentir frio nunca. Estou certo de que seu corpo tem calorias para...
— Esley: continue remando. Para mim, chega por hoje. Já conheço bastante o lago.
— Mas é muito cedo ainda! — quase tiritou William Esley, o gorducho, calvo e baixote jornalista nova-iorquino.
— Pois ainda tenho que escrever um artigo especialmente dedicado ao príncipe Karl de Ausvânia, irmão mais moço do rei. Não seria cortês de minha parte omitir um personagem tão importante deste hospitaleiro país[1]. Por favor, Esley: não me obrigue a jogá-lo dentro d’água.
— Não ficou combinado que você me chamaria Willie, simplesmente?
— Oh, sim... Pois bem, Willie: quero voltar já.
William Esley parecia decepcionado, mas empunhou os remos, embora com pouco entusiasmo, impulsionando o barco para o embarcadouro. Sobre as montanhas distantes, o sol da tarde tinha um belo tom rosado, brilhante. O ar era frio, mas seco. Uma vestimenta adequada e um casaco de pele abrigavam bem Brigitte. Diante dela, no barco, William Esley, gorducho e calvo, parecia uma foca envolta em pele de urso.
Uma brisa leve chegava das montanhas. Tão leve, que a água apenas se movia. Um cristal azul, rosado onde as montanhas nevadas se refletiam. Era aquele um lugar maravilhoso, bucólico, típico de alta montanha, muito parecido com a Suíça. Quase idêntico, na verdade.
Esley procurava mais conversa, sempre em tom malicioso de conquistador que não se dá por vencido, fazendo cômicos esforços por parecer atraente, dominador, mundano e especialista no trato com as belas mulheres.
Mas, quando chegaram ao bonito embarcadouro, Brigitte nem sequer sabia sobre que ele lhe estivera falando. Aceitou sua mão para sair do barco, mas retirou-a quando Esley a quis reter para caminharem, assim de mãos dadas, até o carro que ela alugara.
— Quer que eu guie? — ofereceu-se, como se fosse um grande corredor de pistas internacionais.
— Não senhor — cortou Brigitte. — Você irá no assento de trás, com as mãos quietas.
— Ora, vamos, Brigitte! Dir-se-ia que você me considera um... uma espécie de rapaz descarado.
— Você é descarado, mas não um rapaz. Suba.
— Vou junto com você?
Brigitte pôs-se a rir.
— Está bem... — concedeu. — Mas se não conservar as mãos quietas, iremos contra um abeto. Entendido?
Entraram no carro, ela ao volante, suspirando aliviada. Dentro de vinte minutos, poderia livrar-se de William Esley. Estaria sozinha em sua suíte e pediria que lhe mandassem o jantar. Embora tendo que fugir, que esconder-se, não aturaria mais William Esley. Ponto final.
Chegaram à cidade, pouco depois ao hotel e Esley apressou-se a saltar do carro, a contorná-lo pela frente, abrir a porta e estender a mão.
— Chegamos — disse.
— Já sei. Eu guiei o carro, Esley.
— Willie... — suplicou ele. — Apenas Willie. Jantaremos juntos, não?
— Mmm... Naturalmente — sorriu Brigitte.
— Não poderia fazê-lo sem sua companhia, Willie.
— ótimo! Irei buscar você às...
— Não, não. Espere-me na sala de jantar. De acordo?
— Preferiria...
— Eu sei. Preferiria entrar em minha suíte, ficar sozinho comigo e tentar alguma cena íntima. Por favor, Willie, não seja tão... tenaz.
— Quem não persegue não caça — sorriu Esley.
— Pensa assim? Bem, pois continue perseguindo-me. E para que não perca a pista, lhe direi que, até a hora do jantar, estarei em minha suíte. E não admitirei visitas. Até logo.
— Não quer tomar alguma coisa no bar, em minha companhia?
— Em outra ocasião.
Deixou William Esley plantado no vestíbulo e foi apanhar a sua chave. Quando se dispunha a afastar-se, voltou-se para o encarregado da portaria, como quem recorda alguma coisa.
— Ah! Amanhã não estarei no hotel. Partirei cedo para a Suíça e lá passarei o dia para entrevistar os vizinhos de Ausvânia e a respeito da coroação... Alguma novidade?
— Bem... — murmurou o homem. — Temo que não' poderá ir amanhã à Suíça, miss Montfort.
— Não? Por quê? Alguma avalancha, ou... ?
— Não, não. As estradas estão em perfeitas condições, e os aviões... Tudo está bem. Mas foram fechadas as fronteiras.
— Brigitte olhou-o incredulamente.
— Como? — perguntou estupefata.
— Ninguém poderá abandonar o país, até nova ordem. Fechadas as fronteiras, impedidas as saídas de trens e aviões... O país está fechado, miss Montfort.
— Mas... Não compreendo. Isto é inaudito! Por quê?
— Ignoro. É bastante desagradável, reconheço.
A espiã internacionalíssima, esta vez cumprindo inocente missão jornalística em Ausvânia, contraiu as sobrancelhas.
— Simplesmente inaudito. A quem deverei eu procurar para que me autorize a... ?
O homem moveu negativamente a cabeça.
— Impossível. Completamente impossível. Ninguém sairá de Ausvânia até nova ordem.
— Mas, por quê? — insistiu Brigitte.
— Lamento não poder informá-la, pois ignoro. Nem me parece que alguém tenha conhecimento...
— Espero que se deem conta das complicações diplomáticas que isto pode acarretar a Ausvânia.
— Tem razão. O fato é lamentável. Mas eu estou apenas cumprindo instruções.
— Sim, claro. Bem, obrigada pela informação. Por favor, desejo jantar em minha suíte.
— Pois não.
— E peça-me uma ligação para Nova Iorque, para o...
— Desculpe. Estão suspensos os telefonemas internacionais. Sinto muito, miss Montfort.
Brigitte pestanejou. Que estava acontecendo ali, em Ausvânia? Que significava aquilo de fechar as fronteiras, de proibir voos e viagens para fora do país, de proibir chamadas internacionais? Certamente sucederia o mesmo com relação ao telégrafo, aos correios, a qualquer meio de comunicação com o exterior. Que tinha acontecido? Fosse o que fosse, não seria ela, uma espiã, quem daria escândalo com protestos ou coisas parecidas. Estava demasiado acostumada com fatos daquela natureza para estranhá-los e muito menos irritar-se. A única coisa que podia fazer era aceitar tudo... e manter os olhos bem abertos. Se algo acontecia em Ausvânia, ela, a agente “Baby”, era obrigada a deixar de lado a jornalista Brigitte Montfort e atuar a seu modo, informar-se de tudo.
— Está bem. Não esqueça o meu jantar.
— Claro que não, miss Montfort.
Brigitte olhou para o bar do hotel, onde William Esley estava contando qualquer coisa, muito sorridente, a um jornalista inglês. De certo, o estúpido indivíduo se estava jactando de coisas que não tinham acontecido...
Subiu à sua suíte, entrou e fechou a porta. Dirigiu-se ao quarto, pensativa. Abriu o armário e pendurou o casaco. Teria que mudar de roupa; não ia ficar no hotel com calças de lã grossa, jérsei de gola roulée e botas. Felizmente, a cale- fação era boa e poderia vestir-se normalmente.
Tirou do armário um de seus vestidos, que jogou sobre a cama. Justamente então viu o objeto que havia sobre a cabeceira desta, um objeto retangular, quase a metade de uma carteira de cigarros, porém metálico. Brigitte necessitava de muito menos de um-segundo para saber o que era aquilo: um rádio de bolso.
A menos que fosse uma bomba, por exemplo, camuflada.
Olhou a coisa com desconfiança, após aproximar-se até poder ouvir perfeitamente qualquer ruído de mecanismo dentro do pequeno aparelho... na hipótese de que existisse tal mecanismo.
Mas não era assim. Apanhou o rádio e, então, viu o papel que havia debaixo, muito dobrado. Era um anúncio da representação, na ópera Real de Ausvânia, de “Marion ou la Belle du Tricorne”, do suíço Pierre Wissmer. A representação era justamente naquela noite e corria por conta dos melhores intérpretes europeus do momento.
Que aconteceria lá? Por que lhe mandavam aquele anúncio? Queriam que ela assistisse à ópera?
Apertou o botão de chamada do pequeno rádio e murmurou:
— Alô! Quem quer entrar em contato comigo? Alô!
Não teve resposta. Apertou o botão que desligava o rádio e experimentou ao contrário, isto é, utilizando para a chamada o que parecia para desligar, pois a conexão dos transistores poderia estar trocada. Mas não. Tudo normal no pequeno rádio.
— Quem é? — insistiu ainda Brigitte. — Alguém deseja me dizer alguma coisa? Estão me escutando?
Nenhuma resposta. De seu estojo de toalete sacou uma pequena lima para unhas, de ponta reta, utilizando-a como chave de parafuso. Em menos de dois minutos o rádio estava aberto. Não havia nada de especial nele, nada que pudesse oferecer perigo. Simplesmente um rádio de bolso. Fechou-o e experimentou mais uma vez, novamente ficando sem resposta.
Deixou o rádio sobre a cama e olhou pensativamente o anúncio da ópera Real. Foi ao telefone e falou com a portaria:
— Sou miss Montfort, suíte 319.
— ...
— Quero uma localidade para a ópera Real, esta noite. Podem se encarregar de obtê-la?
— ...
— Oh! Bem, por difícil que seja, agradeceria muito que tentassem. Não importa qual seja o: lugar. Também não importa o preço.
— ...
— Muito obrigada. Por favor, avisem se conseguirem arranjar.
— ...
— O jantar? Sim, em minha suíte, por favor. Obrigada. Um momento! A que horas começa a representação?
— Está bem. Obrigada.
Desligou, deixou o anúncio junto ao rádio de bolso e despiu-se. Guardou o vestido que tinha escolhido antes e tirou do armário outro, de noite, bem como os sapatos, uma única joia, roupa interior. Tudo preparado, mergulhou na banheira cheia de água quente, tomou depois um chuveiro frio e pôs uma elegante bata de tom azul-claro, disposta a esperar o jantar.
Ainda chamou duas vezes pelo rádio, mas sem obter resposta. Evidentemente, quem quer que tivesse deixado ali o pequeno aparelho estava em apuros, ou impedido no momento. De outro modo, era absurdo que não respondesse. Mas, além dessa dedução lógica, havia outra ainda, não menos lógica: quem deixara o rádio sabia que Brigitte Montfort não era apenas uma jornalista, mas algo mais. Uma espiã, pelo menos. Saberia também que ela era a agente “Baby”?
Que estava acontecendo, tão inesperadamente, no maravilhoso, tranquilo e feliz reino da Ausvânia?
Mandaram-lhe a jantar às sete e meia. As oito, chamou-a ao telefone o encarregado da portaria externando seu sincero pesar por não ter conseguido nenhuma localidade para a ópera Real. A lotação estava esgotada, completamente. Todos os seus esforços tinham sido infrutíferos.
Às oito e meia, bateram na porta da suíte. Olhou para lá, em dúvida. Pelo jeito que as coisas estavam tomando, aquela batida podia significar perigo....
— Sou eu, Brigitte: Willie. Por favor, abra.
Com efeito: um perigo. Um perigo do tipo idiota. ,
— Desculpe, Willie — disse, sem abrir: — sinto-me um pouco indisposta.
— Tenho uma boa notícia para você. Abra, por favor.
Era tenaz, teimoso como uma mula. Suspirando, Brigitte abriu a porta e defrontou o gorducho, calvo e baixote William Esley. Muito engraçado em seu smoking, mas impecável, perfeito. Exibia um desses fastidiosos sorrisos de homem capaz de qualquer empreendimento.
— Posso entrar? — sorriu astutamente.
E levantou alto dois retângulos de papel, de tom vermelho, como se fossem a bandeira de seu triunfo.
— Estou muito cansada, Willie, de verdade.
Esley a devorava com os olhos, que embora diminutos queriam atravessar a já por si leve e transparente bata de Brigitte.
— Cansada demais, para ir à ópera Real? — perguntou com ares de gladiador romano vitorioso no circo.
— A... ópera Real?
Esley tornou a agitar os dois retângulos de papel vermelho.
— Voilá — disse em aceitável francês: — duas localidades magníficas. Poderíamos ocupar sozinhos um pequeno camarote muito perto do palco. Oh, devo pedir-lhe perdão por não ter comparecido à sala de jantar, mas estava ocupadíssimo procurando entradas para a ópera... E consegui.
— Bem... Eu tampouco fui à sala de jantar, Willie. Na verdade, não me sentia bem e jantei aqui mesmo... melhor: comi alguma coisa. Como lhe ocorreu que eu gostaria de ir à ópera?
— Não ocorreu a mim, mas a você mesma. Ouvi quando pediu à portaria que lhe arranjassem uma entrada. E lancei-me à procura de duas, por minha própria conta. Sei que você não pôde conseguir nenhuma, embora oferecesse qualquer preço. Mas, querida Brigitte, aqui estou eu!
Brigitte olhou quase amavelmente para o irritante e fátuo gorducho. Esteve tentada a dizer- lhe que se quisesse entrar na ópera aquela noite o conseguiria de qualquer modo, mas, realmente, não valia a pena complicar a vida.
— Você é maravilhoso, Willie! Claro que eu pagarei a minha...
— Por favor! — exclamou ele, indignado. — Tenho um grande prazer em convidá-la, Brigitte. Só que não nos poderemos entreter muito. A representação é às dez, mas você terá que preparar-se e, já se sabe — piscou um olho: — as damas exigem tempo para essas coisas.
Brigitte poderia também dizer-lhe que dez minutos lhe bastariam para estar completamente pronta, mas bem sabia o que William Esley desejava, de modo que sorriu com encanto e de modo prometedor.
— Assim é — admitiu. — Você poderá esperar por mim no...
— Não podarei esperá-la aqui? Talvez você necessite de ajuda em algum pequeno detalhe...
— Não será necessário. Mas pode esperar-me aqui, se quiser... Sente-se em qualquer lugar.
— Bem... Em sua cama, se não se importa.
— Mister Esley...
Tinha fechado a porta e Esley adiantou-se impetuosamente para ela, quase tartamudeando:
— Willie... Simplesmente Willie, queri...
Brigitte recuou, como a mocinha que se esquiva à apaixonada acometida de um homem. Só que “Baby” sabia como derrubar uma pessoa do modo mais inocente: William Esley desequilibrou-se e fez como se nadasse, tentando por todos os meios se agarrar a alguma coisa... Mas não havia nada e ele caiu no chão de barriga, rolando graciosamente pelo tapete. Brigitte esteve a ponto de soltar uma gargalhada, mas conteve-se.
— Oh, Willie, mas que foi isto?
— Não sei... O tapete...
Estava vermelho como um tomate. Pôs-se de pé, pretendendo fazê-lo de um salto ágil e elegante, em consequência do qual teria tombado novamente se ela não o segurasse por um braço.
— Cuidado, Willie!
Soltou-o e dirigiu-se ao quarto. Esley lançou-se rapidamente atrás dela e seus olhos pareceram sair das órbitas quando ela se dispôs a tirar a bata. Mas Brigitte repreendeu-o com um dedo, apanhou a roupa interior sobre a cama e entrou no banheiro. William Esley e seu rotundo abdome trotaram para lá e, quando ela ia fechar a porta, pôs um pé entre esta e o batente, ao mesmo tempo em que arvorava um sorriso à Clark Gable.
— Não precisa mesmo de ajuda?
Brigitte contraiu as sobrancelhas. Abriu um pouco mais a porta, ele retirou o pé para poder penetrar melhor no banheiro e a porta se fechou diante de seu nariz, com força.
— Uaaaiii...! — gritou o gorducho.
Quer dizer, a porta se teria fechado de todo, se a mão de Esley não estivesse apoiada ao marco. Com o que, após receber um golpe no nariz, teve a mão comprimida contra o batente.
— Uaaaiii...!
Ficou com a mão sob uma axila e com a outra palpando o nariz, enquanto a porta, livre de qualquer obstáculo, fechava-se completamente.
Brigitte reapareceu três minutos mais tarde. Esley estava sentado aos pés da cama, com o olhar fixo naquela porta. E seus olhos miúdos tomaram a arregalar-se ao verem “Baby” só com aquelas duas brevíssimas peças íntimas. Levantou-se, tartamudeando algo por completo ininteligível, e iniciando a carga contra a jorna- lista-espiã, que abriu de novo a porta do banheiro, desviou-se para um lado... e William Esley encontrou-se sozinho lá dentro, diante do espelho, contemplando um rosto bochechudo e estupefato, que era dele mesmo. Ficou tão atônito, tão sem saber como tinham acontecido as coisas, que quando saiu Brigitte já tivera tempo para começar a pôr o vestido, de costas para ele.
— Deixe que eu puxo o fecho para cima...
Tinha outra vez passado à carga, mas, justamente quando chegava às costas de Brigitte, esta se voltava, erguendo delicadamente a mão, como se recusasse a gentil oferta...
— Não é preciso, Willie. Eu sozinha posso...
Plaf!
A mão de Brigitte foi de encontro a uma das bochechas de Esley e, apesar da “delicadeza” do movimento, o gorducho deu consigo sentado no chão, perplexo, incrédulo, perdido no mundo de sua obesa insignificância.
— Oh, Willie, mas que coisa! Ia dizer-lhe que... Mas deixe-me que o ajude. E desculpe-me.. .
Em dois segundos, Esley encontrou-se sentado numa das poltronas do quarto. E diante dele, completamente vestida, olhando-o amavelmente, sua colega, a jornalista do “Morning News”.
— Você está bem, Willie?
— Sim, sim... Creio que estou. Nunca... nunca me aconteceram tantas coisas ao mesmo tempo...
— Deve ter sido castigo por sua perversidade. Deixe que eu ponha um pouco de batom nos lábios, e estarei pronta. Depois, saiamos daqui: você é perigoso, demais para uma jovem indefesa, dentro de um quarto fechado, Willie.
William Esley quis sorrir ufanamente, mas qualquer coisa passou por sua cabeça: o primeiro tombo, o golpe no nariz, a porta contra seus dedos, o tapa e a segunda queda sobre o tapete... Bem: ele não tivera sorte, eis tudo.
Mas assistiria à ópera com Brigitte. E depois, na volta, as coisas lhe sairiam de outra maneira. Claro que sim!
— Muito bem, Willie: aproveitemos esses dois lugares para a ópera Real de Ausvânia.
Puderam deixar o pequeno carro relativamente perto da ópera Real e não demoraram a chegar, a pé, passeando tranquilamente, ao grande e luxuoso vestíbulo do teatro, em cujo teto resplandeciam lustres do mais puro cristal.
Continuamente se detinham carros diante da ópera, dos quais desciam personalidades oficiais e gente de importância. As damas ostentavam suas peles de vison, de chinchila e via-se em seus pescoços, mãos e orelhas o cintilar de preciosas joias. Os cavalheiros, trajados a rigor, pareciam todos elegantes e atraentes. Por toda parte sorrisos, gestos corteses. Um caudal de luz, partindo do vestíbulo, inundava a Avenida dos Reis, principal artéria da cidade.
O ambiente não podia ser mais refinado e alegre, mas, entre todos aqueles sorrisos, Brigitte Montfort procurava sinais de preocupação. Preocupação que devia existir, forçosamente. Não se fecham fronteiras sem grave motivo. Desejava-se dar a impressão de que nada ocorria, de que tudo continuava normal. Mas, efetivamente, ela captou mais de um Indício de preocupação, de tensão inclusive, no olhar de algumas pessoas. E mais de um discreto conciliábulo entre homens que representavam o governo vânio, aos quais tinha conhecido no palácio.
Havia o temor de uma revolução, talvez? De algum atentado vindo do exterior?
Porque, indubitavelmente, algo inesperado estava acontecendo... ou tinha acontecido.
A fugaz ideia de que talvez o atentado já se tivesse produzido, o que o rei estivesse ferido, passou pela mente de “Baby”. Se assim era, ele não poderia cumprir aquela noite seu último ato de comparecimento público antes da coroação. Coisa que também era estranha pois, ao que parecia, a decisão de assistir ao espetáculo fora tomada por Sandor III à última hora. Pretendia o monarca, assim agindo, contribuir a que tudo desse uma impressão de normalidade e alegria? Por que não fora sabido a tempo que o rei iria comparecer à ópera Real? Por que essa decisão de intima hora?
— Entramos?
— Hem? Ah, um momento Willie, por favor. Não é lindo tudo isto?
— Sem dúvida. Lembra o Metropolitan Opera House, em seus bons tempos... so que é mais luxuoso.
— Sim, muito mais... Você nota alguma coisa estranha no ambiente?
Ele ergueu as sobrancelhas, surpreso.
— Alguma coisa estranha? O quê?
— Não sei... Algo.
— Tolice — sorriu Esley, condescendente —, tolice...
— Bem, talvez eu...
— Uma flor? Uma orquídea? — Ofereceram por trás de Brigitte.
Voltou-se vivamente, abrindo a boca para uma exclamação de assombro que não chegou a emitir. Esley também se tinha voltado e, por um instante, olhou carrancudo para o encurvado ancião de cabelos brancos que mostrava nas mãos algumas caixas de celofane, com orquídeas.
Mas em seguida Esley congratulou-se por poder dispensar mais uma gentileza à sua belíssima colega.
— Quer uma orquídea, Brigitte? Parecem muito bonitas.
— Muito bonitas, cavalheiro — disse o ancião, voz cansada. — Eu mesmo as cultivo em minha estufa de Kamptus Lakus. Cem monarchs, apenas. Picará muito bem em sua bela esposa.
William Esley sorriu, absolutamente satisfeito e lisonjeado. Não era para menos: o homem que parecesse ter por esposa uma mulher como aquela poderia considerar-se muito feliz.
— Ficamos com uma, está claro.
— A mais bela orquídea... para a mais bela dama. Esta: é a mais formosa, senhora. Obrigado, cavalheiro. Bom divertimento.
Inclinou-se torpemente e afastou-se, seguido pelo olhar atento de Brigitte, oferecendo: “Uma flor? Uma orquídea?”
— Não vai colocá-la? — indagou Esley.
— Oh, sim... Será melhor entrarmos. Irei ao toucador para colocar devidamente a orquídea.
— Posso poupar-lhe esse trabalho. Coloco-a eu mesmo...
— Willie, se continuar com essas ideias de jerico, não deixarei outra vez que o confundam com meu marido. De acordo?
— Bem, não creio que seja fácil aos outros deixar de pensar isso, Brigitte. Formamos um par Impressionante.
Brigitte mordeu os lábios para não rir. Esley era uma polegada mais baixo do que ela, gorducho o rubicundo. Quem a julgasse casada com semelhante tipo não lhe estaria fazendo favor, muito pelo contrário.
— É mesmo... — teve que rir. — Formamos um par impressionante! Entremos. Espere-me no camarote. Irei assim que tiver colocado a orquídea. Você foi muito gentil, Willie.
— Ora... Você merece muito mais do que isso!
Brigitte tomou-lhe o braço e, ambos sorridentes, passaram ao segundo vestíbulo, ainda mais imponente que o primeiro. Também estava cheio de gente elegante, que fazia comentários em voz suave. Um rumor discreto, tranquilo, estendia-se por toda a ópera Real de Ausvânia.
— Acompanho-a...
— Não, não. Isso é feio, Willie. Espere-me no camarote, por favor.
— Está bem. Resigno-me.
Brigitte chegou ao toucador, quase vazio então.
No entreato, a coisa seria diferente. Dirigiu-se a um dos compartimentos, entrou e fechou a porta. Retirou a orquídea da caixa de celofane, examinando-a minuciosamente até encontrar a delgada tira de microfilme presa ao caule. Desprendeu-a suavemente e fixou a orquídea na borda do decote.
Depois tirou o binóculo da bolsa e moveu a rosca de graduação ótica ao máximo. Pôs a tira de microfilme sobre uma das lentes e olhou contra a luz do compartimento. Era como um desses pedaços de filme que todas as crianças têm alguma vez, e nos quais se vê perfeitamente a cena, olhando a contraluz. Em cores, Brigitte pôde ver com nitidez o que continha o microfilme.
Conteve uma exclamação ao ver, em primeiro lugar, o príncipe Karl, irmão do rei de Ausvânia. Elegante, bonitão, louro e sorridente. Tinha dez anos menos que Sandor III, isto é, trinta, e ocupava o cargo de Presidente do Conselho de Ministros, ao que parecia por merecimento próprio, não por possuir sangue real. Brigitte simpatizara desde o primeiro momento com aquele homem de esplêndida figura, talvez menos inteligente do que o irmão, porém mais afável, mais acessível, menos... real. Era simplesmente um rapaz de excelente aparência, com um físico de desportista e tão alegre quanto lhe permitia o protocolo.
E então?
Que significava o fato de que ele estivesse no microfilme?
Moveu este delicadamente para baixo e apareceu outro quadro. Era também o príncipe de Ausvânia, caminhando e voltando ligeiramente a cabeça. Ia por uma rua, mas Brigitte não pôde identificá-la. Que fazia o irmão do rei e Presidente do Conselho de Ministros caminhando sozinho, por uma rua qualquer?
O terceiro quadro mostrou novamente o príncipe, com o que o interesse de “Baby” aumentou. Sempre caminhando pela rua, parecia apressado e era visível que o fazia com toda a discrição para não ser reconhecido.
Outro quadro. Karl parado na rua, olhando uma casa muito velha. Pelo menos, voltado de costas para a câmara e defrontando aquela casa.
Outro quadro. Certo: aquela era a casa, pois se via Karl empurrando a porta.
Outro quadro. Somente a porta daquela casa.
Outro quadro. Karl de Ausvânia saindo da casa.
Outro quadro. Um primeiro plano do número da casa: 17.
Outro quadro. Primeiro plano da placa da rua: Mirka Strissa.
Fim.
Bem... Que tinha ido fazer o príncipe Karl naquela casa número 17 de Mirka Strissa?
Talvez fosse muito fácil de averiguar. Ela guardou o microfilme, colocou o binóculo em graduação normal e recorreu ao pequeno rádio de bolso, do qual tinha decidido não se separar, esperando a qualquer momento poder entrar em contato com a pessoa que o tinha deixado sobre seu leito. Uma pessoa capaz disso... e de muitíssimo mais. Infinitamente mais.
Apertou o botão de chamada e do outro lado, três segundos depois, admitiam o contato.
— VI o microfilme — murmurou Brigitte. — Diga-me o que ocorre. Estou no escuro.
A resposta foi:
— Uma flor? Uma orquídea?
— Entendo! — disse ela, sorrindo.
Fechou o rádio, guardou-o e saiu do toucador, quase sem reparar na orquídea. Claro que não poderia dedicar muito tempo a “Marion ou la Belle du Tricorne”, de Wissmer. Seu objetivo imediato era fazer uma visita ao número 17 de Mirka Strissa. Enquanto ela se preparava para assistir à ópera, o microfilme fora revelado e, estava claríssimo, a intenção de seu comunicante era entregá-lo no teatro. Daí a indicação de que devia assistir ao espetáculo. Quer dizer, chegar à ópera Real para receber o microfilme. O resto devia correr por sua conta... e esperava- se que fizesse o que tinha que fazer. Isso implicava em que seu comunicante, por qualquer motivo, não podia ou não queria aproximar-se de Mirka Strissa é deixava esse trabalho para ela.
Precisava abandonar imediatamente a ópera Real. Mas... oh, fatalidade! Quase esbarrou com William Esley, que a aguardava impaciente, nervoso.
— Por que demorou tanto? — perguntou ele.
— O rei aparecerá em seu camarote a qualquer momento! Depressa!
Tomou-a pela mão, fazendo-a subir rapidamente a escada de mármore branco. Ao chegarem ao patamar, Esley ofegava- e parecia sufocado. Um lacaio de meias compridas e cabeleira branca surgiu diante deles, olhando-os com mal contido desagrado, tomou as localidades da mão de Esley e levou-os imediatamente ao camarote, que com efeito ficava muito perto do palco. Os primeiros acordes da Marcha Real soavam naquele momento e Sandor III de Ausvânia fazia sua aparição.
Todos estavam de pé. Durante um minuto prosseguiu a marcha solene. Ao cessar, todo o teatro prorrompeu em aplausos ao rei, que correspondeu com inclinações de cabeça, sorrindo amavelmente, com aquela parcimônia tão sua, tão distinta e nobre.
Quando ele se sentou, a ópera Real readquiriu seu aspecto costumeiro. Atrás do rei, ainda de pé, havia alguns homens. Brigitte reconheceu alguns ministros, um general e o príncipe Karl, sorridente, olhando satisfeito para todos os lados. Estava muito atraente, impecável, exibindo da melhor forma seu brilhante aspecto de homem sadio e feliz. Parecia um desses homens que, falando, são capazes de convencer qualquer um de que as estrelas são pequenas lâmpadas que os anjos acendem à noite...
O espetáculo teve início, mas Brigitte não podia prestar atenção, não queria fazê-lo. Naquele momento, havia coisas mais importantes em que pensar que a excelente obra de Pierre Wissmer.
Mas, fosse como fosse, não pôde descobrir o menor indício de inquietude ou preocupação no semblante de Sandor III, nem no do príncipe Karl, nem no dos ministros ou generais. Em ninguém. Todos contentes e felizes. Entretanto, estavam fechadas as fronteiras e interrompidas as comunicações com o exterior, e em sua bolsa havia um pequeno rádio e um intrigante microfilme...
— Willie... — murmurou.
— Que é? — perguntou ele.
— Não me sinto bem. Vou ao toucador.
— Mas... agora?
— Lamento... Não é preciso que me acompanhe.
— Mas...
— Nos veremos no intervalo. Até logo.
Saiu do camarote, levando a capa de pele de vison, sem fazer o menor ruído, sem despertar a mínima atenção. Mal acabara de sair, o mesmo lacaio que os havia acomodado apareceu diante dela.
— Deseja alguma coisa, senhora? — perguntou solícito.
— Não... Não, obrigada. Estou um pouquinho tonta.
— Deseja que chame um médico?
— Oh, não. Vou apenas sair por alguns minutos. Um pouco de ar fresco me fará bem.
— Quer que a acompanhe? Posso lhe ser útil em alguma coisa?
— Agradeço sua gentileza... Não... Darei um pequeno passeio e voltarei.
— Acompanho-a até a saída, se me permite.
— Sim... Isso sim, obrigada.
Embaixo, no vestíbulo, outro lacaio aproximou-se pressurosamente, interessando-se pelo caso. Seu companheiro informou-o a respeito e também ele se ofereceu para o que quer que fosse. Com um sorriso de agradecimento, Brigitte encontrou-se no primeiro vestíbulo. Dali afastou-se lentamente, como quem, com efeito, se dispõe a dar um passeio para refrescar a cabeça, Mas tão logo saiu da ópera Real, apertou o passo.
Chegou ao seu carro, entrou e sacou imediatamente uma planta da cidade. Procurou no índice, encontrou Mirka Strissa e localizou-a na planta. Picava quase fora do quadro urbano e não parecia de modo algum o lugar onde o irmão do rei podia ter amizades, julgando por sua situação e pelo aspecto da rua, visto no microfilme. Um microfilme a cores, coisa que só podia empregar um autêntico espião de primeira classe.
Por muito que procurasse pelas imediações do carro, não viu o ancião que vendia orquídeas.
Recorreu ao rádio, mas sua chamada ficou sem resposta.
Muito bem. Estava completamente tranquila a respeito: ele sabia às maravilhas o que estava fazendo. E esperava que também ela fizesse o que devia fazer. Nem mais nem menos.
De modo que pôs o veículo em marcha e sorriu quando, ao mover a mão esquerda para girar o volante, a orquídea presa a seu peito roçou-lhe levemente o queixo.
De fato, pensou sorrindo, era preciso ter a imaginação de um agente secreto de primeira classe para estabelecer contato por meio de uma orquídea.
Parou o carro duas ruas antes de Mirka Strissa. Deixou-o numa zona de sombra e avançou a pé, cautelosamente. Não se via ninguém por aquelas ruas afastadas, com moradia de pessoas humildes, que se retiravam cedo para descansar. E já eram... Quase onze horas.
O chão, empedrado, tinha um brilho úmido, e nele refletia-se a iluminação de um modo tristonho, quase lúgubre. Na verdade, um ambiente muito diverso do da Avenida dos Reis, com sua faustosa ópera Real.
Deteve-se na esquina anterior à da casa número 17. Claro que se alguém a visse, em sua capa de vison, teria uma surpresa. Decidiu rodear o pequeno e irregular quarteirão para surgir pelos fundos, mais perto da casa que lhe interessava.
E ao alcançar o outro lado viu-se defrontando; uma velha mansão quase em ruínas, cujas janelas estavam abertas. Sem hesitar um segundo, entrou por uma daquelas janelas e encontrou-se imersa numa obscuridade densa, que cheirava a... Sim, a graxa, a óleo queimado. Acendeu a pequena lanterna camuflada em sua esferográfica de ouro e lobrigou um velho carro desmantelado, coberto de pó. Viu depois um rato deslizando rapidamente para o seu buraco.
Continuou em frente, percorreu um corredor e cruzou uma cozinha cujo teto apresentava orifícios pelos quais podia ver as estrelas. Depois um pátio cheio de caixotes, velhos pneus gretados, gastos. Peças de carros: para-lamas, para-choques, partes de capôs...
Havia um muro de pedras no fundo, também quase completamente derruído pelo tempo, possivelmente pelas chuvas e geadas. Do outro lado, um pátio maior, que tinha um telheiro a um lado. E ao fundo deste pátio, a casa 17 de Mirka Strissa, estava certa. Além disso, tinha calculado bem. Saltou o velho muro, atravessou o pátio e chegou à parte braseira da casa 17.
Penetrar nesta foi coisa fácil para a agente “Baby”, que utilizou o sistema de escalada, com ruptura da vidraça de uma janela e subsequente acionamento do trinco.
Novamente o fino jato de luz da camuflada lanterna. Estava num quarto do andar de cima.
Não havia roupas na cama, nem qualquer outro indício de que a casa estivesse habitada.
Saiu do quarto e encontrou-se num corredor. À esquerda, uma escada de madeira, que rangeu quando ela pôs o pé no primeiro degrau. Desceu lentamente, um pouco preocupada pela falta de uma arma.
Chegou ao térreo sem maior novidade que mais alguns rangidos dos velhos degraus de madeira. Aquilo parecia... um misto de sala de jantar e salão. Era isso exatamente. Via-se uma espessa camada de pó cobrindo tudo. E a pergunta teria que ser formulada em sua mente de espiã: que fora fazer em semelhante lugar o irmão do rei?
Entrevistar-se com alguém? Uma mulher? Esta última ideia lhe pareceu tão descabelada, que sorriu. Não, aquele não seria o lugar onde um membro da família real marcaria encontro com uma dama. Devia dispor de melhores locais e meios para uma entrevista dessa espécie.
Deu uma olhadela à cozinha, mas nada lhe pareceu digno de interesse ali. Depois, uma espécie de saleta, com uma estante aceitável, mesa de escritório, duas poltronas, cortinas... Tudo cheio de pó.
A única coisa que não estava empoeirada ali era o homem.
O homem caído de bruços sobre a mesa, com os braços pendentes aos lados. Apoiava a face sobre o pó. Tinha os olhos muito abertos, cristalizados num olhar sem vida. Usava roupa comum e, sobre uma cadeira, via-se um sobretudo que devia pertencer-lhe, sem dúvida. Estava sentado na beira de uma velha poltrona giratória, grotescamente suspenso entre esta e a mesa.
Brigitte aproximou-se, iluminando em cheio aquele rosto cadavérico. Claro que não o conhecia. Sua idade era de uns quarenta anos, talvez um pouco mais. Tinha um rosto enérgico e inteligente. Com cuidado, segurou-o pelos cabelos e lhe ergueu a cabeça, evitando sacudidelas ou| movimentos bruscos que o teriam feito tombar| no chão.
Tal como esperava, no peito estavam as manchas de sangue. Tinha recebido três balaços, todos sobre o coração. Deixou aquela cabeça cair de novo, lentamente. O cadáver apresentava já uma considerável rigidez, de modo que, considerando isto e o clima de Ausvânia, a morte deveria ter ocorrido umas cinco horas atrás. Talvez quatro, ou seis. Mas não menos de quatro nem mais de seis. A rigidez post-mortem também tem suas | regras.
Abriu o casaco do morto e meteu a mão no bolso interno direito, retirando-a com uma carteira que deixou sobre a mesa. Revistou os outros bolsos, conseguindo também um isqueiro, chaves, um maço de cigarros suíços marca “Stel”... Ia apanhar tudo de sobre a mesa, quando a luz de sua lanterna deu em algo que certamente era bem mais interessante que tudo aquilo: umas palavras escritas, tremulamente, no pó que cobria a mesa. Contraiu as sobrancelhas, aborrecida, pois não as podia ler bem, não as entendia... Era qualquer coisa como “Rakora Kois”... “Roka- ria Kais”...
Não podia entender bem. Mas, evidentemente, o homem morto não tivera morte instantânea. E pudera escrever aquilo sobre o pó que cobria a mesa. As palavras estavam à direita de seu lívido rosto, de modo que Brigitte levantou a mão correspondente do cadáver e enfocou a luz sobre o dedo índex. Não havia pó ali. Tampouco nos outros dedos. Nem nos da outra mão. Bem... talvez a mão do homem tivesse roçado sua roupa ao cair fazendo o pó desprender-se.
Abriu a carteira e encontrou um cartão de identidade: Rodol Armenayer, quarenta e um anos, solteiro, natural de Ausvânia, advogado, residente em Woltofa Strissa, 229.
Bem. Tinha ali, muitas coisas: um cadáver, um microfilme mostrando o príncipe Karl ao entrar naquela casa, um endereço, um país cujas comunicações com o estrangeiro eram interrompidas... e uma próxima coroação. Como ligar tudo isto? Como ligar tudo entre si e, também, com um rei que assiste impávido à representação de uma ópera?
Um leve rangido que no momento não identificou chegou-lhe aos privilegiados ouvidos. E quando o identificou teve um brusco sobressalto. Um carro! Um carro Se havia detido diante da casa!
Meteu precipitadamente na bolsa tudo o que encontrara no cadáver de Rodol Armenayer, apagou o que estava escrito sobre a mesa, limpou os dedos na roupa do morto e saiu a toda a pressa da saleta.
Agora já não se ouvia o carro, mas sim pisadas fortes, como de pés calçando botas. Umas pisadas vigorosas, firmes. Como um som de um reduzido desfile militar. Soldados? Chegavam soldados vânios àquela casa?
Estava atravessando às carreiras o salão-sala de jantar quando a porta se abriu bruscamente e um homem entrou, voltando-se e dizendo, em voz contida:
— Acendam as lanternas depois de entrar, não antes.
Ele entrou primeiro, decidido. Fora se ouviam mais pisadas marciais. O som da porta de um carro ao fechar-se.
O homem entrou tão decididamente, que Brigitte não pôde nem sequer tentar esconder-se. Quase houve um encontrão no centro da escura peça. O homem deu um pulo, num sobressalto muito justificado quando suas mãos tocaram na finíssima pele de vison.
— Que...
Brigitte lançou a mão direita, velozmente, rígida, contra a garganta do homem. Ouviu-se um golpe seco, um ronco entrecortado... e aquele alto e robusto oficial caiu de costas, como fulminado, seu corpo batendo surdamente contra o velho assoalho.
— Capitão! — chamaram. — Que aconteceu?
Surgiu uma luz, apontando primeiro para o chão, mas logo para a frente, à altura do peito de um homem. Então, Brigitte já estava em cima, no corredor para o qual davam os aposentos do primeiro andar.
No momento em que entrava no quarto por onde se introduzira na casa, as luzes de duas lanternas se cruzavam embaixo, procurando. Uma delas baixou diretamente para onde jazia o oficial vencido numa fração de segundo pela agente “Baby”.
— Cap...!
Brigitte fechou a porta e correu para a janela. Saiu por esta e deslizou pelo grosso cano da calha até o pátio. Bastante abafado, um grito de aviso, uma ordem certamente, chegou até ela, mas não pôde entendê-la. Saltou o muro, atravessou o outro pátio, em seguida a velha casa em ruínas. Segundos depois alcançava a rua, pela janela quebrada que utilizara para entrar.
Tirou os sapatos e pôs-se a correr, rua cima, logo virando a esquina para sair na rua onde deixara seu carro... enquanto pela outra esquina da que acabava de abandonar apareciam dois soldados, fuzil na mão, fazendo ressoar suas botas no calçamento úmido.
William Esley lançou uma exclamação ao vê-la.
— Onde se meteu você? Procurei-a no toucador e disseram-me que lá não estava...
— Saí para dar um passeio.
— Sim, eu já sei disso! Mas como é possível que...?
— Por favor, Willie... por que se excita tanto? Não lhe parece normal que eu tenha saído para tomar um pouco de ar fresco? Eu lhe disse que não estava me sentindo bem.
— Mmm... Bom, não sei... Já vai começar o segundo ato...
— Ótimo. Espero assisti-lo em melhores condições.
— Eu... desculpe, Brigitte. Sente-se melhor agora?
— Sim, muito melhor. Este passeio pelos arredores da ópera fez-me um bem extraordinário.
— Felizmente. Eu estava preocupado, acredite.
Brigitte sorriu docemente.
— Você é muito carinhoso comigo, Willie. Eu não mereço tantas atenções de sua parte.
— Pois eu lhe reservo maiores atenções ainda.
— Willie... Willie, solte-me... Estamos no vestíbulo da ópera Real, não em minha suíte... ou na sua. Como foi o primeiro ato?
— Suponho que muito bem. Não tolero ópera.
— Oh? Mas eu pensei...
— Se estou aqui é por você, para não deixá-la só num país desconhecido, numa cidade estranha.
— Eu lhe agradeço tanto!
— Não acho que você esteja acostumada a essas coisas...
— Que coisas?
— Oh, ficar sozinha em lugares estranhos. Imagino que sem minha companhia você se sentiria.... deprimida, sem saber o que fazer...
— Como você tem razão, Willie querido... Mas parece que já devemos voltar ao camarote.
Com efeito, as últimas campainhadas soavam no vasto vestíbulo, e as belas e elegantes damas, com seus elegantes, impecáveis cavalheiros encaminhavam-se para suas localidades respectivas.
O espetáculo ia continuar
— Foi uma noite muito agradável, Willie. Muito obrigada por suas atenções... e boa-noite.
— Como! — exclamou Esley. — Não me convida para entrar?
Brigitte, a ponto de introduzir a chave na fechadura da suíte, voltou-se, olhando surpreendida para o gorducho e calvo colega.
— Para que, Willie?
— Bem... Podíamos tomar uma taça de champanha. Em todas as suítes há bebidas e...
— Isso quer dizer que também você tem champanha, não?
— Mas não gosto de beber sozinho.
— Pois eu sim.
— Uma taça... — implorou Esley. — Só uma taça. E lhe prometo portar-me bem, Brigitte. Prometo — ergueu a mão. — Palavra de honra.
Ela suspirou desconsolada.
— Está bem, Willie. Entre.
Abriu, entrou e ele fez o mesmo, olhos brilhantes, quase esfregando as mãos e pouco menos que lambendo os beiços. Foi direto ao armário-bar, abriu-o e voltou-se para Brigitte.
— Eu sirvo o champanha. Alguma preferência? Oh, enquanto isso, você pode se por mais à vontade, se quiser.
— É o que vou fazer. E, por favor, não entre no meu quarto.
— Prometido, prometido. Bem... Vejamos o que há aqui, Mmm... Cliquot, Pomery, Champs Êlisées, Don Perignon 55, Montel... Puxa! Isto aqui está bem sortido de verdade, Brigitte... Papagaios!
Brigitte acabava de surgir na porta do quarto, novamente com aquelas duas diminutas peças íntimas, tal como ele já a vira antes de irem à ópera Real.
— “Don Perignon 55”? — perguntou ela.
— Sim, sim... puxa, Brigitte, você está fulminante!
Ela se aproximara do bar e contemplava fixamente a garrafa de champanha “Perignon 55”.
Era verdade, ali estava. Ao lado havia uma caixa de cortiça, que abriu. Gelo seco. E também um pequeno pacote envolto em papel colorido, com um laço azul. Abriu-o e viu o pequeno recipiente de vidro, contendo meia dúzia de cerejas bem vermelhas, perfeitas, brilhantes.
— Santo Deus! — murmurou Esley. — O que me está custando portar-me como um cavalheiro...
— Continue assim — sorriu ela, distraída. — Continue assim, Esley, que ganhará um prêmio. Não gosto de fazer as coisas... à força.
— Compreendo — disse roucamente o gorducho. — Abro o “Perign..
— Não! Qualquer outra garrafa, menos esta. Vou vestir uma bata.
— Oh, mas isso não é necessário. Você está simplesmente...
Mas Brigitte havia regressado ao quarto, dirigiu-se diretamente ao banheiro, abriu a porta umas polegadas e introduziu lentamente a mão, movendo graciosamente os dedos. Uma forte mão de homem, tisnada pelo sol, apareceu e segurou a de Brigitte puxando-a para dentro. Encontrou-se imediatamente nos braços do homem, oferecendo-lhe emocionada os lábios.
— Um! — murmurou.
Aquele perfeito atleta, de olhos negros e brilhantes, apertou-a contra ò peito e sua boca viril colou-se aos temos lábios de “Baby”, num beijo ao qual ela correspondeu com toda a alma, enquanto se enlaçava a seu pescoço.
— Eu sabia... sabia que era você, Um, meu querido!
Número Um, o melhor espião de todos os tempos[2], ex-agente da CIA, perguntou com um sorriso trocista:
— Que faremos com seu galã gorducho?
— Dou um fora nele, Um — sorriu Brigitte. — Imediatamente!
Beijou-lhe os lábios e saiu do banheiro. Vestiu a bata, aparecendo na sala quando já William Esley tinha servido duas taças e parecia um tanto impaciente.
— Oh, você resolveu cobrir-se...
Parecia decepcionado. Brigitte, rindo, apanhou uma das taças e nela apenas umedeceu os lábios. Esley esvaziou a sua, olhando-a intensamente, com os miúdos olhos fulgurando.
— Willie — disse ela —, pressinto que esta noite me vai ser difícil escapar de você. Portanto, vou lhe propor um trato.
Esley sorriu como quem já ganhou a partida. Deixou a taça e aproximou-se de Brigitte, mãos estendidas.
— Aceito — disse roucamente. — Seja qual for o trato aceito.
— Muito bem. É uma espécie de aposta. Vou dar-lhe uma oportunidade, uma só, para... aceitar sua grata companhia esta noite. Mas só se você ganhar, é claro.
— Como? — indagou Esley, palpitante. — Diga-me como!
— Dê-me o seu lenço... Obrigada. Agora, vire-se de costas para mim. Assim... Feche os olhos.
— Que... que vai fazer?
— Vendar-lhe os olhos. Depois vou ficar ainda mais à vontade do que antes... Compreende? Esta bata, apesar de tão fina, está me dando calor... E eu não gosto de sentir calor, está me compreendendo, Willie?
— Sim, sim! — quase ganiu ele.
— Bem. Seus olhos já estão vendados, Willie. Não se mova. Estou tirando a bata... Pronto. E agora, Willie, você tem que me encontrar, com os olhos vendados. Se não conseguir dentro de um minuto, você irá embora daqui, muito quietinho. De acordo?
— De acordo!
Willie Esley estava assanhadíssimo.
— Pois vamos começar... Já!
Ele estendeu as mãos para frente.
— Aqui... — sussurrou Brigitte. — Aqui. Willie...
O jornalista se orientou. Oh, sabia, muito bem que ela lhe daria uma colher de chá, disso não havia dúvida.
— Aqui, Willie...
Outra meia volta; sempre com as mãos estendidas. Era divertido e excitante aquele jogo! A qualquer momento ele agarraria no escuro uma mulher seminua, talvez nua, nuinha, completamente...
— Willie... — chamou ela, num doce murmúrio.— Willie querido...
Outra meia volta, e ele precipitou-se para onde havia soado a voz de Brigitte, tão perto dele que era impossível lhe escapasse aquela vez. Afinal de contas, era o que ela queria: ser agarrada. Mas como era deliciosamente brincalhona...!
Esley chocou-se contra uma parede, ao mesmo tempo em que lhe pareceu ouvir o ruído de uma porta ao fechar-se. Cambaleou, recuperou o equilíbrio e chamou, tenso, mas carinhoso:
— Brigitte... Garota levada, onde você se escondeu?
— Algum embaraço, cavalheiro?
Por um instante, William Esley ficou petrificado. Depois tirou rapidamente o lenço dos olhos e enrubesceu quase a ponto de rebentar. Diante dele, um elegante casal que, conforme tudo indicava, também tinha assistido à ópera. Ambos o contemplavam entre assustados e divertidos, e evidentemente muito assombrados.
Esley estava no corredor do hotel. Olhou para a porta de Brigitte, fechada. Se um raio tivesse caído naquele momento, fulminando-o instantaneamente, o rubicundo jornalista sé consideraria muito feliz.
— Algum embaraço? — insistiu o outro.
— Não... Eu... Obrigado... Estávamos brincando.
— Ah.
— Com licença... Boa-noite...
— Boa-noite, cavalheiro.
— Você foi muito cruel — riu Número Um. — Teria bastado dizer-lhe que tinha... outra entrevista.
— Esse sujeitinho vem me amolando há dias — disse Brigitte. — Merecia coisa ainda pior — tornou a beijá-lo profundamente, depois suspirou. — Champanha, cerejas, gelo seco... Vi logo que só poderia ser você.
— Sou muito previdente — afastou-a para olhá-la de cima a baixo, lentamente, seriamente, sem perder um detalhe daquela maravilha. — Você está mais bela que nunca, “Baby”.
— E você tão atraente como sempre, Um. Continua sendo Angelo Tomasini, aos olhos do mundo... normal?
— Continuo. Você sabe onde encontrar-me sempre.
— Mas não esperava que isto acontecesse aqui. O que é que há? Por que você me obrigou a trabalhar?
Número Um beijou-lhe os lábios, depois o pescoço, os ombros...
— Você sabe — murmurou: — uma espiã é sempre uma espiã. Espero que não se tenha aborrecido.
— Não me aborrece o trabalho — disse ela com suave ironia. — Você é quem diz que nunca mais ajudará ninguém, que está desiludido da espionagem... Ou será que mudou?
Um encolheu os ombros. Soltou-a, espalhou o gelo seco em torno da garrafa de “Perignon 55” e fez esta girar dentro do pequeno balde prateado, para que esfriasse rapidamente. Brigitte destampou o vidro que continha as cerejas, colocando-o junto do champanha. Insistiu:
— Você mudou?
— Não. Sinto decepcioná-la, mas para mim o mundo continua sendo uma imensa lata de lixo.
— De um modo geral, estou de acordo com você. Venha, sente-se a meu lado. Deixe que o champanha esfrie mais... — Um sentou-se e ela tomou-lhe as mãos nas suas. — Você está querendo me ajudar em alguma coisa? Porque a verdade é esta: não sei nada de nada.
— É você quem vai me ajudar esta vez — sorriu ele. — Esteve no número 17 de Mirka Strissa?
— Claro. Por que não foi lá você mesmo?
— Estava... protegendo o rei.
— Protegendo?
— De longe. Nunca se sabe. Que conseguiu lá?
— Havia um homem morto. Trouxe comigo tudo quanto tinha nos bolsos. Um momento.
Fo ao quarto e tomou com sua bolsa, da qual retirou um por um os pertences do homem assassinado, passando-os ao amigo, que após examinar tudo atentamente, murmurou:
— Rodol Armenayer... Não sei quem era. Você teve algum contratempo?
— Um muito pequeno — disse ela, sorrindo.
— Ainda bem. Não era meu desejo incomodar você. Mas tenho que ficar perto de Sandor III. Tampouco podia responder suas chamadas pelo rádio.
— Compreendo isso, Um. Diga-me... você foi contratado pelo rei para... algo especial?
— Não. Estou trabalhando por gosto.
— Oh! — assombrou-se realmente Brigitte. — Estava convencida de que os serviços de Número Um eram caríssimos.
— São. Sobretudo para a CIA. Você sabe? — um frio sorriso apareceu em seus lábios. — Não há muito, fiz um trabalho para a MVD soviética. O preço foi alto.
— Quanto? — indagou “Baby”.
— Quinhentos mil dólares.
— Fantástico! Você conseguiu que os russos lhe pagassem tanto? Espero que tenha adotado as precauções de sempre e que sua personalidade continue bem acobertada.
— Que acha você? — sorriu ele.
— Acho... — Brigitte deu-lhe um beijo. — Sim, acho que você é ainda o número um da espionagem. E duvido muito que jamais apareça outro como você. Sinto-me muito feliz por tê-lo como amigo... amigo pessoal. Você ainda guarda rancor à CIA?
— Ainda e para sempre. Agora comigo é assim: quem quiser meus serviços terá que pagar-me um alto preço.
— De certo modo, também estou de acordo. Mas, se não compreendi mal, você está trabalhando, ou algo parecido, para o rei da Ausvânia gratuitamente.
— Bem, parece que ainda me resta um pedaço muito pequeno de coração, de sentimentos humanos... Certa vez, numa escapada que tive que fazer desde a Rússia, passei por Ausvânia qual raposa perseguida por toda uma matilha. Naquela ocasião, Sandor III me salvou a vida. Não ele, pessoalmente. Mas quando os russos, que me sabiam ferido e encurralado perto do lago, pediram permissão para entrar, esta permissão lhes foi negada. Recorreram ao rei e este disse que um homem ferido, embora espião, estaria sempre a salvo em seu país. Cinco dias mais tarde, na fronteira com a Suíça, ainda em más condições físicas, fui capturado pelos guardas que a guarneciam. Entretanto, havia lá uma ordem expressa de Sandor III: Caminho livre para quem quisesse sair do país, inclusive sem passaporte.
— Sim — murmurou Brigitte. — Minha impressão a respeito desse homem é a mesma, Um. Parece-me um grande sujeito.
— Não sei. Nem me importa. Mas nunca esqueço uma dívida. E menos desse calibre. Você bem o sabe, pois sabe que, por me ter salvado uma vez a vida, eu morrerei se for preciso para salvar a sua.
Brigitte suspirou.
— Creio que a CIA fez com você o pior negócio de toda sua história. Mas, como somos espiões, aceitaremos isso com resignação. E agora, diga-me: qual é o perigo concreto que está correndo seu amigo Sandor III?
— Concreto, nenhum. Só que roubaram a coroa.
— A... a coroa... real? — balbuciou ela, estupefata.
— Que outra? — sorriu Um. — Foi roubada, é tudo. Mas temo alguma ação direta contra Sandor III. Por isso, estou em Ausvânia há duas semanas, atento a tudo, na medida do possível.
— Mas como você sabe que roubaram a coroa? Ora, vamos, Um, isso é impossível!
— Está achando que eu sou dos que se enganam? — perguntou ele, rindo.
— De acordo — riu também Brigitte: — roubaram a coroa. E agora?
— Você e eu temos que recuperá-la. É de todo necessário. Nem em cem anos se poderia fazer outra coroa como essa. E é preciso ter em conta que, se Sandor III não se coroar nó dia marcado, sua coroação só será possível dentro de dois anos. Tempo demais, considerando certas tendências de facções existentes no país.
— Uma revolução?
— Não sei. Mas sei que há pessoas importantes às quais não agrada a monarquia. Qualquer pretexto lhes poderá servir para derrubar o rei e assumir o governo. E a mim isso não agrada. Ausvânia está bem como está. Além do que, devo alguma coisa a Sandor... Vai me ajudar, “Baby”?
— Está claro que vou. Agora entendo por que foram fechadas as fronteiras e suspensas as comunicações com o exterior. Agora compreendo tudo. Mas como, puderam roubar a coroa? Você fala como se me estivesse contando o roubo de uma joia qualquer. Estive no Palácio e pareceu- me que não é fácil entrar nem sair de lá.
— Sem dúvida. Portanto, para nós, a solução é tão simples como sórdida: há um traidor. Ou vários.
— Sim. O príncipe Karl, talvez? Por isso você o manteve sob vigilância e acompanhou-o comi uma microcâmara?
— Parece um rapaz honesto e feliz — admitiu Um. — Que acha você dos rapazes honestos e felizes, “Baby”,
— Que às vezes são espiões, ou assassinos...! Acaso o desaparecimento da coroa poderá trazer algum benefício ao irmão do rei?
— Nenhum em absoluto.
— Então...?
— Bem... Vi o príncipe Karl sair quase clandestinamente do palácio. E segui-o. Até Mirka Strissa número 17.
— Que horas eram quando entrou lá?
— Mmm... Cinco e meia, talvez. Há quanto tempo estava Rodol Armenayer morto?
— Aproximadamente desde as cinco e meia. A respeito do pequeno contratempo que tive lá, pois foram alguns soldados sob o comando de um capitão, ao qual tive que golpear. Escapei bem, sem me comprometer. Entraram decididamente na casa. Creio que sabiam muito bem o que tinham que encontrar e, possivelmente, retirar de lá.
— O Exército... — murmurou Um. — É possível que Karl visse o cadáver e mandasse uns quantos soldados para removê-lo, sem escândalo.
— Sim, é possível. Ah, outra coisa, querido: na mesa sobre a qual estava debruçado Armenayer, havia algo escrito. Parece evidente que foi ele mesmo quem o escreveu, sobre o pó, apesar de não haver nenhum em seus dedos.
— Que estava escrito?
— Não sei bem. Qualquer coisa assim como “Rakora Kois”, òu “Rokaria Kais”... Desculpe, mas não estava escrito com muita clareza. Dizem-lhe alguma coisa essas palavras?
— No momento, não. Mas pensarei nelas. Evidentemente, devem constituir uma pista. Você tem algo planejado para amanhã?
— Minha ideia era entrevistar o príncipe Karl — sorriu Brigitte. — Estou aqui como jornalista e o irmão do rei pode ser um assunto interessante para os leitores.
— Sem dúvida. Acredita que poderá chegar até ele?
“Baby” sorriu como uma menina travessa.
— Sou capaz de jurar que isso agradaria a você, Um.
— Assim é.
— Então, ninguém me poderá impedir de chegar até o príncipe.
— Eu sei. Quanto a mim, investigarei Rodou Armenayer, bem como essas palavras que escreveu sobre a mesa antes de morrer. É possível que esclareçamos alguma coisa.
— Possível? — riu Brigitte.
— Bem, parece que se vão intervir “Baby” e Número Um, a coisa está mais que decidida, não é?
— Deve estar, modéstia à parte... Você acha que a Rússia tenha alguma coisa a ver com isso?
— Não — afirmou categoricamente Um. — Claro que não. Eu teria sabido a tempo. Não podemos culpar os russos por todas as coisas esquisitas, politicamente falando. Na verdade, parece que eles não veem com maus olhos a Sandor III. Não. Não creio que tenha sido coisa da Rússia. Parece mais uma questão nacional.
— Pois tratemos de resolvê-la. Para mim, basta que você estime o rei. Intervirei para valer. O champanha não está gelado ainda?
— Talvez não.
— De qualquer modo, quero brindar ao nosso encontro e dizer a você que, como das outras vezes, me sinto muito feliz.
Número Um beijou-a longamente nos lábios.
— Eu também... — murmurou. — Mas suponho que seria bonito demais que dois espiões como nós se unissem... definitivamente.
— Em matrimônio? — sorriu Brigitte.
— Não há melhor matrimônio que o que duas pessoas decidem por si mesmas. De qualquer modo, somos da mesma religião e não tenho nada contra a situação legal tanto civil como religiosamente. Não sou... monstruoso a tal extremo, Brigitte. Vou servir o champanha.
Tirou a garrafa do gelo, encheu duas taças e jogou em cada uma a correspondente cereja. Brigitte tomou um gole e assentiu com a cabeça.
— Está bem gelado. Você sempre prevê tudo, Um?
— Responda você mesma: alguma vez deixei algo por conta do azar?
— Só nossas entrevistas — sussurrou ela.
— Sim. Você crê que a própria vida é que une as pessoas, não o desejo, às vezes equivocado, dessas mesmas pessoas?
— Creio.
Número Um terminou sua taça, deixou-a sobre a mesinha e olhou para Brigitte, pensativo.
— Já vou. Tenho o disfarce do velho vendedor de orquídeas no banheiro, de modo que...
— Deixe isso para amanhã.
— Voltar durante o dia pode ser perigoso.
— Voltar? Eu queria dizer para você retirar-se de madrugada. Poderá então levar o disfarce. Você estava muito simpático, Um.
— Está querendo que eu fique?
— Estou.
— Impossível. Acredite que sinto muito, miss Montfort, mas Sua Alteza não pode receber ninguém. Absolutamente ninguém.
O coronel chefe da guarda do Palácio Real parecia na verdade consternado. Mas sua negativa era firme, categórica. Estava quase em posição de sentido diante de Brigitte, na entrada principal do palácio, um tanto atormentado por ter que se mostrar tão estritamente severo.
— Bem Entretanto, coronel, estou certa de que Karl não se negaria a receber-me se soubesse o motivo de minha visita.
— Lamento, miss Montfort. Mas não há audiências.
— Não desejo parecer-lhe obstinada, coronel. Mas devo entrar... O senhor teria inconveniente em fazer chegar um envelope às mãos de Sua Alteza?
— Um envelope?
Brigitte tirou-o da bolsa, mostrando-o.
— Este envelope. Peço-lhe que seja entregue a Sua Alteza. Se depois de recebê-lo o príncipe Karl recusar ver-me, não insistirei mais. Mas rogo-lhe que me conceda, esta oportunidade.
— Bem... Não sei... Afinal, isto poderia ser considerado como... vindo pelo correio, não é assim?
— É assim — sorriu Brigitte.
— Perfeito — suspirou aliviado o elegante e ainda jovem coronel da Guarda Real. — Mandarei o envelope a Sua Alteza. Enquanto isso, peço-lhe que... Bem...
— Não permanecerei aqui, na entrada. Voltarei dentro de meia hora, coronel.
— Ótimo. Muito obrigado, miss Montfort.
— Sua alteza está à sua espera, miss Montfort.
O coronel da Guarda Real parecia feliz por não ter qúe formular outra negativa à formosa visitante. Mais ainda: uma carruagem a aguardava atrás do Corpo da Guarda, com dois lacaios na boleia e outros dois atrás. O pequeno carro que Brigitte havia alugado para seus deslocamentos teve que ficar fora dos terrenos do palácio.
A carruagem deslizava maciamente pela terral vermelha, entre espessa relva verde. No céu havia nuvens pesadas, escuras e, em contraste, tudo tinha um tom branco leitoso, que parecia pressagiar iminente nevasca.
Na porta do palácio havia seis soldados de guarda, imponentes em suas casacas vermelhas, suas velhas alabardas reluzentes. Mas um oficial jovem, alto, apolíneo, desceu apressadamente ai escada até a carruagem para ajudá-la a apear.
Ato contínuo, perfilou-se marcialmente.
— Capitão Barno Willon, miss Montfort. Tenho instruções para conduzi-la até Sua Alteza.
— Muito obrigada.
Aquele jovem capitão pisava forte. E combinando isto com o hematoma que tinha na garganta, Brigitte esteve a ponto de rir. Barno Willon teria certamente uma grande surpresa se soubesse que aquela delicada jovem de olhos azuis era quem o havia derrotado na noite anterior, derrubando-o com um só golpe.
Depois de percorrer longos corredores e alguns salões, o Capitão Willon se deteve diante de uma porta. Vigiavam-na dois guardas altíssimos, de rosto inescrutável, que pareciam estátuas cona suas alabardas um tanto inclinadas. Bateu naquela porta e um rapaz ruivo, rosto sorridente apareceu.
— É ela, capitão? — inquiriu.
— É.
— Está bem. Pode retirar-se. Tenha a bondade de entrar, miss Montfort.
Brigitte entrou. Encontrou-se numa vasta sala, no fundo da qual havia uma solene porta de duas folhas. O rapaz conduziu-a até lá, puxou um cordão de seda vermelha e empurrou as duas folhas da porta.
— Sua Alteza a espera.
Brigitte passou a outra sala maior ainda, cujas paredes estavam cheias de quadros e cujo chão ostentava ricos tapetes, de origem persa, evidentemente. Uma ampla janela abria para os jardins do palácio. Havia poltronas, um sofá, algumas mesas lavradas. O príncipe Karl estava de pé junto à janela, magnífico em seu uniforme azul- horizonte, altivo, mas sem dar a impressão de pretender sê-lo. Aproximou-se de Brigitte, sorridente, com um ligeiro aceno de cabeça.
— Miss Montfort?
Brigitte fez uma reverência discreta e, quando ergueu a cabeça, Viu diante dela a mão de Sua Alteza. Colocou a sua sobre a dele, e o irmão do rei levou-a até perto da janela. Deixou-a lá, sentou-se e então ela fez o mesmo. Karl indicou a mesinha mais próxima.
— Um cigarro?
Brigitte aceitou-o, olhando aquela mão firme enquanto ele lhe oferecia a chama de seu isqueiro.
O príncipe apanhou o envelope. Sacou o microfilme, a carteira de Rodol-Armenayer, suas chaves, tudo quanto ela retirara dos bolsos do cadáver encontrado em Mirka Strissa 17.
— Devo admitir, miss Montfort, que me surpreende ao extremo o fato de tudo isto estar em seu poder. Como o conseguiu?
— Tudo me foi entregue por um amigo.
— Que amigo?
Brigitte sorriu cortesmente... e foi só. Karl sorriu também.
— Nós, os vânios — disse amavelmente —, também temos um sistema de espionagem. Pouca coisa. Isso por nos sentirmos seguros, protegidos. Somos simples amadores, diria eu. O que não deixa de ser singular, pois temos perto de nós a Rússia, a Alemanha, a Tcheco-Eslováquia, a Romênia... Mas suponho que seja norte-americana, miss Montfort.
— Com efeito.
— É uma espiã?
— Bem, Alteza, no fundo, todos os jornalistas são um pouco espiões.
— É verdade — sorriu Karl. — Qual foi o seu propósito ao enviar-me... estas coisas?
— Meu amigo é... um homem especial, Alteza. Está. disposto a ajudar o irmão de Vossa Alteza.
— Ajudar Sandor? Como? Em quê?
— Recuperando a coroa.
O príncipe Karl empalideceu ligeiramente, mas seu sorriso persistiu. Parecia como cravado em seu bonito rosto.
— Recuperar... a coroa...? — murmurou tenso.
— Foi o que eu disse. Entretanto, Alteza, meu amigo pensa que pouca coisa conseguirá sem auxilio. Neste país estranho para ele, embora conheça toda a Europa e boa parte do resto do mundo...
— Ele é um espião?
— O melhor, Alteza. É um homem infalível.
— Tão bom assim?
— Principalmente quando está disposto a trabalhar por uma pessoa amiga. Ele deve alguma coisa a Sua Majestade o rei Sandor III. Não me pergunte o que deve, pois não estou autorizada a revelá-lo.
— Compreendo. Como sabe ele que... que roubaram a coroa?
— Ignoro. Sabe, eis tudo.
— Ainda não saíram os jornais — comentou Karl.
— Não compreendo.
— Esta tarde será publicada a notícia do roubo da coroa. Ocorreu ontem, mas julgamos que seria possível recuperá-la sem alarmar o povo de Ausvânia. Não obstante, chegamos à conclusão de que convém seja conhecido o fato. Convém que o saibam, para que todos, um por um, apoiem nosso esforço para recuperá-la. A notícia sairá esta tarde no órgão oficial de Ausvânia.
— Compreendo.
— Entretanto, seria conveniente recuperar antes a coroa. Pensa que o seu amigo poderia conseguir isso?
— Poderia.
— Antes que seja divulgada a notícia?
— Isso não sei. Possivelmente tudo dependerá da ajuda que ele possa receber.
— Ajuda de minha parte?
— É o que esperamos.
— E quanto à sua intervenção pessoal, miss Montfort? Por que se dispõe a ajudar-nos também?
— Porque — sorriu “Baby” — os amigos de meus amigos são amigos meus, Alteza.
— Ah. Nobre atitude a sua. Que espera seu amigo de mim?
— Quer saber quem era Rodol Armenayer, a que se dedicava, que fazia naquela casa de Mirka Strissa, quem o matou e por quê. E quer saber o que foi fazer Vossa Alteza lá. Também quer uma relação de pessoas mais chegadas ao palácio, mas que presumivelmente não estejam de acordo com a coroação de Sua Majestade, Eu temo que meu amigo queira saber demasiadas coisas.
— É o que parece. Rodol Armenayer? Bem, era um dos melhores homens com que contava nosso serviço secreto. Dedicava-se a isso e ao exercício de sua profissão de advogado.
— Vossa Alteza é multo amável. Pode me informar algo mais?
— Informar? Não. Não no sentido de que informar seja dizer algo que se conhece muito bem. Lamento. Tudo quanto posso dizer é o pouco que sei. E não espero que pareçam informes a... ao seu amigo.
— Ele compreenderá isto, Alteza. Continue, por favor.
— Bem. Armenayer, como lhe disse, era um dos nossos melhores homens do serviço secreto. Quanto às suas outras perguntas, só poderei respondê-las com o que sei. Quer dizer, o que eu mesmo fiz: recebi um... digamos surpreendente chamado de Armenayer, marcando um encontro naquela casa de Mirka Strissa, para seis da tarde, se antes não fosse possível...
— Já tinham roubado a coroa?
— Já.
— Pôr isso, Vossa Alteza aceitou comparecer a encontro tão estranho?
— Exato. O resto é simples e lamentável. Pui lá, a porta estava aberta, entrei. Logo após, encontrava Rodol Armenayer... morto. Creio que tal coisa me deixou atordoado. Saí de lá a toda a pressa.
— Não tocou em nada?
— Não, não.
— Por quê?
— Não sei. Creio que estava... um pouco assustado. Talvez isso a decepcione com relação a mim.
— Em absoluto. Só os loucos e os mortos não se assustam, Alteza. Enviou soldados para que recolhessem o cadáver a uma hora... prudente?
— Com efeito. O Capitão Barno teve um pequeno contratempo de índole pessoal. Suponho que seu amigo tenha sido o causador.
— Não sei a que se refere Vossa Alteza.
— Claro — sorriu o príncipe Karl, — No momento, devia estar na ópera, não?
— Assisti ao espetáculo, realmente. E tive o privilégio de ver Sua Majestade e Vossa Alteza.
— Agradou-lhe a representação de “La Belle du Tricorne”?
— Não muito. Pareceu-me que a intérprete forçava em excesso a voz. Deu-me a impressão de estar resfriada.
— De fato — aprovou Karl. — Tem um ouvido perfeito, miss Montfort. Mas, perdoe-me, meu interesse agora está concentrado em outros assuntos, de maneira que deixaremos a ópera de lado... para melhor ocasião. Diga-me: como espera seu amigo recuperar a coroa?
— Ignoro.
— Suponho que pede alguma coisa por isso.
— Nem um centavo... Quero dizer, nem um monarch, Alteza.
— Hum... É assombroso!
— Para Vossa Alteza, talvez. Não para mim. Conheço o meu amigo muito bem.
Karl acendeu um cigarro, aproximou-se da janela e permaneceu ali algum tempo, pensativo. Quando se voltou, havia um sorriso de desconcerto em seus lábios.
— Bem. É surpreendente isto, não lhe parece, miss Montfort? O irmão do rei de Ausvânia conversando com uma jornalista enviada por um espião. Não é... protocolar, certamente. Mas em certas ocasiões o protocolo é uma tolice, não acha?
— Se Vossa Alteza o diz...
— Por que seu amigo não pede nada? Por gratidão ao rei?
— Justamente.
— Ele é vânio?
— De Ausvânia? Não. É americano.
— Realmente? Mais assombroso ainda. Creio que lhe disse tudo quanto sei, miss Montfort. A respeito do paradeiro da coroa, ignoro-o completamente. E não me ocorre nenhuma pista que possa ajudar a ninguém. Mas ofereço-lhe minha ajuda incondicional. Tudo isto é surpreendente, na verdade. Mas nas circunstâncias atuais, creio que até um rei, em benefício de seu país e da paz interna, está na obrigação de aceitar a ajuda direta e pessoal de um determinado espião. Por minha parte, qualquer auxílio seu e de seu amigo será bem recebido... Que diz você, Sandor?
Olhava atrás de Brigitte, que se voltou velozmente, na verdade, surpreendida. Teria sido muito feio, sem dúvida, que um rei se dedicasse á escutar atrás de uma porta ou uma cortina, mas Sandor III de Ausvânia levantou-se de uma grande poltrona cujo espaldar estivera voltado para Brigitte, de modo que esta não o pudera ver. Nem lhe ocorrera suspeitar sua presença.
Mas tão logo o viu, fez uma reverência de corte, com toda a seriedade, impressionada diante daquele homem de rosto nobre e olhar sereno, direto, inteligente.
— Majestade!
— Temo haver quebrado um pouco o protocolo — sorriu amavelmente Sandor III. — Espero que me perdoe, miss Montfort.
— Oh, Majestade, não é necessário que...
— Sua atitude é na verdade extraordinária. E a de seu amigo... Nem sequer eu mesmo posso saber quem é ele?
— Sinto imenso, Majestade. Eu ignoro seu nome. Só posso dizer a Vossa Majestade que há anos ele era conhecido em toda a Europa pelo nome pouco corrente de Número Um.
— Ah! Sim, sim... E esse homem é seu amigo?
— Assim é, Majestade.
— Mas se não estou equivocado, Número; Um... — pareceu um pouco perplexo. — Bem, eu diria que por todo o continente correu a notícia de que Numero Um, o melhor espião de todos os tempos, tinha morrido.
— Ele vive, Majestade.
— Francamente, miss Montfort, estou confuso. Não entendo isto... Mas Karl tem razão. Se fosse por mim, pessoalmente, o roubo da coroa de Ausvânia não me preocuparia em absoluto. Está avaliada em dez milhões de monarchs, mas esse valor material não me impressiona. Nem impressionaria meu país. Entretanto, consta-me que Karl mobilizou todo o serviço secreto vânio... sem resultado, até o momento. Entendo que Número Um me oferece resultados?
— Assim é, Majestade.
— Assombroso. Receio que minha ajuda pessoal seria insignificante... Além do que, não posso sair por aí à procura de minha coroa...
— Não, Majestade — sorriu Brigitte.
— Claro que não — sorriu também o rei.
— Portanto, repito o que disse meu irmão: qualquer auxílio seu e de seu amigo será bem recebido. E para o bom êxito de seu trabalho, podem recorrer a este palácio sempre que necessitem; Dinheiro, dados informativos, armas, homens dispostos a qualquer coisa...
— Meu amigo sempre trabalha só, Majestade.
— É um sistema infalível para não fracassar jamais. Talvez se eu mesmo tivesse vigiado minha coroa ela não fosse roubada.
— Espero que Vossa Majestade tenha compreendido que houve uma traição em palácio.
— É evidente, miss Montfort. Mas... quem foi o traidor? Não me atreveria a acusar ninguém. Quando chegar à saída do palácio, receberá uma autorização especial para entrar e sair dele sempre que queira. E creia que nunca esqueceremos a ajuda que nos está oferecendo, triunfe ou não em seu empenho. E meu agradecimento constará dos anais de Ausvânia, para informação dos reis que me sucederem. Obrigado por sua bondade.
— Roubaram a coroa!
William Esley irrompeu na suíte de Brigitte, gritando, agitando o jornal. Estava sufocado, o rosto bochechudo mais vermelho que nunca. Parecia mal poder respirar.
Brigitte fechou a porta, aborrecida consigo mesma por tê-la aberto sem perguntar quem batia. Esley plantou-se no centro da pequena sala, esgrimindo o jornal como se fosse um tacape.
— Roubaram a coroa! — tornou a gritar.
— Já ouvi, Willie. Suponho que seja uma brincadeira sua.
— Brincadeira nada! Veja, leia isto...!
Ela não teve mais remédio que tomar o jornal, dar uma olhadela às grandes manchetes e adotar a atitude entre consternada e assombrada que convinha1.
— É inaudito! — exclamou. — Mas isto á espantoso, Willie...!
— Completamente espantoso! E desde ontem Ausvânia está sem comunicação com o resto do mundo!
— É impossível! Isto não pode ser!
— Pois é um fato! Claro que apresentarei o protesto enérgico! Não se pode fazer semelhante coisa com jornalistas americanos!
— Claro que não. Mas é terrível... terrível, Willie.
Esley acalmou-se e ergueu um braço protetoramente.
— Você não precisa se preocupar, Brigitte: aqui estou eu.
— Obrigada, Willie... Creio que esta notícia me transtornou... Você me perdoa aquilo da noite passada?
William Esley franziu a testa e enrubesceu. Mas logo se dominou.
— Suponho que... que você teve medo de mim... das consequências de minha impetuosidade...
— Oh, sim! Você é um homem tão perigoso... Tive que agir daquela maneira, pois não queria escutar suas palavras. Se lhe tivesse permitido falar, creio que você acabava me convencendo...
— Ah, sim?
— Sou apenas uma mulher, Willie. E você... sabe ser um homem. Creio que não ficaria bonito eu lhe dizer o que penso a seu respeito.
— Por que não? — sorriu Esley, fazendo pose.
Bem.
Em algum lugar da suíte soou um estranho zumbido, muito breve. Brigitte não pareceu ter ouvido, mas Esley ergueu a cabeça.
— Que foi isso?
— O quê, Willie?
— Esse zumbido... Parecia o toque discreto de uma cigarra. Você não ouviu?
— Não... ou melhor sim; pareceu-me ouvir qualquer coisa no quarto... Não, eu diria que no banheiro.
— Não, não. Foi aqui, bem perto de nós. Você está certa de que não ouviu?
— Sim, mas como disse, deve ter vindo do banheiro.
— Não creio que viesse de lá, mas irei olhar. Nestas circunstâncias, qualquer coisa pode ser perigosa. É até possível que nós, jornalistas, estejamos sob o controle de microfones ou coisas assim, pois podem suspeitar qualquer cumplicidade de nossa parte no roubo da coroa real.
— Que imaginação a sua, Willie! — riu Brigitte. — Eu acho que não é nada, mas... ficarei mais tranquila se você for ver.
— Compreendo — fanfarronou Esley.
Deixou-a sozinha na sala e, imediatamente, ela se dirigiu ã mesinha onde se via sua bolsa e dois livros abertos. Tirou o rádio da bolsa e admitiu a chamada.
— Um! — sussurrou.
— Espero você cá embaixo, no meu carro.
— Não demoro.
Guardou o rádio, apanhou a chave da suíte, saiu desta e fechou por fora, sorrindo travessamente. Desceu a toda a pressa e, segundos depois, estava na rua. Dobrou a esquina da direita, viu o imponente “Alfa-Romeo” esportivo e meteu-se dentro. Número Um ofereceu-lhe um cigarro recém-aceso e deu a partida, afastando-se rapidamente daquele lugar.
— Parece que chamei num mau momento — comentou risonho.
— Esley estava comigo. Tive que deixá-lo trancado em minha suíte.
— Bom... Isso pode significar que, se não lhe ocorrer telefonar para a portaria, pedindo que mandem abrir a porta, você ainda o encontrará lá em seu regresso.
— Não, por Deus! — assustou-se Brigitte. — Espero que ao menos tenha imaginação para isso.
— O mau é que a gerência não formará muito boa opinião de você.
— Esperemos que Willie saiba dar uma explicação convincente de sua presença em meus aposentos. Como passou você o dia?
— Muito bem. Descobri o que Rodol Armenayer escreveu exatamente sobre o pó da mesa: “Rikoria Kals”. É a única coisa parecida com as palavras que você me disse. Não acha que lá poderia estar escrito “Rikoria Kals”?
— Sem dúvida. Isso forma sentido?
— É o nome de uma vila de montanha, no outro lado do lago. Está no catálogo telefônico.
— A quem pertence?
— Não consegui saber ainda. No catálogo há apenas o nome da vila. E creio saber por que.
— Deixe-me que colabore — sorriu Brigitte: — é uma vila de aluguel e, como seus ocupantes mudam com muita frequência, o proprietário que a aluga optou por fazer constar do catálogo o nome dela, ao invés do dele. Assim, ao dizer que seu telefone é o de “Rikoria Kals”, o locatário do momento evita muitas confusões.
— Exato — sorriu Um. — Dá gosto trabalhar com você. Como se foi com o príncipe de Ausvânia?
— Bem. Vi também o rei.
— Não! — Um olhou-a vivamente. — O que você não conseguir ninguém consegue, “Baby”. Mas como foi possível essa audiência?
Brigitte explicou a entrevista com os personagens reais, sem esquecer um só detalhe. Quando terminou, Número Um assentiu com a cabeça.
— Sandor III é um homem pouco comum. Você tem permissão para entrar e sair do palácio a seu gosto?
— Atrevi-me a pedir duas. A de você está em nome de Ivan Ivanov.
— Um nome russo — sorriu Um, divertido. — Você tem um formidável senso de humorismo. Não creio, entretanto, que esses passes sirvam para nada.
— Supõe-se que somos pessoas comuns — riu Brigitte. — E que, portanto, para entrar e sair do palácio precisamos de autorização especial. Por que vexar o rei demonstrando-lhe que podemos ir lá sempre que quisermos e como quisermos?
— Sim, ele sofreria uma decepção — tomou a sorrir Um. — Quando sairmos da cidade, aumentarei a marcha, pois do contrário chegaríamos a “Rikoria Kals” já de noite.
— E isso não seria o mais conveniente?
— Gostaria de bater umas fotografias, antes de chegar lá.
— Ah. Mmm... Passei esta tarde consultando alguns livros muito interessantes sobre o protocolo em Ausvânia.
— Não me diga que, se o rei perde sua coroa, o depõem e colocam seu irmão no trono.
— Pelo contrário, se a alguém interessa recuperar essa coroa é ao príncipe Karl; até mesmo mais que ao rei.
— Como se entende isso?
— Se a coroa não aparecer, nada acontecerá de grave. Sandor III continuará seu reinado... salvo, claro, que parte da população se aborreça e opte por rebelar-se. Em cujo caso, os resultados seriam imprevisíveis e, portanto, estariam fora de nossas teorias. Agora, se o rei morrer sem ter sido coroado...
— Subiria ao trono o príncipe Karl?
— Você parece que desconfia dele — observou Brigitte.
— Bem, você sabe qual a minha opinião a respeito do mundo e seus habitantes.
— Uma imensa lata de lixo... Talvez você tenha razão. Mas não neste caso, neste momento, pelo menos. Acontece que se Sandor III morrer sem ter sido coroado, o reino ficará durante dez anos sob o mando de um Conselho de Regência. Dez anos é o tempo que se supõe necessário para preparar o rei seguinte, que seria primogênito do falecido; não havendo descendência direta, seria rei o parente mais próximo, no caso de reunir as condições necessárias.
— Karl deve reuni-las, sem dúvida.
— Sem dúvida. Mas não creio que ele achasse interessante esperar dez anos para subir ao trono. No caso de Karl estar jogando sujo com seu irmão, deveria deixar que fosse coroado. Deste modo, se Sandor morresse pouco depois, ele ocuparia o trono imediatamente.
— Compreendo. Bem... Parece lógico que o príncipe queira recuperar á coroa, a fim de que seu irmão seja coroado na data marcada. Essa coroação de Sandor III confirmaria Karl como seu sucessor. Não é assim?
— Exatamente. Portanto, não parece provável que Karl tenha nada a ver com o roubo da coroa. É o maior prejudicado, na verdade, posto que se Sandor morresse ele teria que esperar dez anos para ocupar o trono... se considerado apto pelo Conselho de Regência. Por outro lado, após a coroação de Sandor, Karl será automaticamente seu sucessor. Isto, claro está, se Sandor III não casar e tiver descendentes.
— Parece que o nosso príncipe tem poucas probabilidades de ocupar esse trono, já que Sandor III está muito interessado em certa princesinha europeia. E consta que, uma vez coroado, ele a pedirá em casamento.
— De onde se depreende que é absurdo desconfiar de Karl, em qualquer sentido. Entretanto, há uma coisa curiosa na história de Ausvânia... uma lenda.
— Uma lenda?
— Diz essa lenda que, um dia, a coroa de Ausvânia será maldita e, então, deverá trocar de cabeça. Repare bem que a lenda não diz nada sobre um descendente, mas apenas que a coroa “trocará de cabeça”, uma vez materializada a maldição.
— Não estou entendendo. Que vem a ser isso de “materializar-se a maldição"?
— Bem, parece que na maioria dos casos as maldições originam mortes. Você esteve todo o dia fora da cidade?
— Praticamente, sim.
— Eu ouvi pedaços de conversas entre populares. Tenho a impressão de que consideram o desaparecimento da coroa como o princípio dessa maldição. Por consequência, há quem esteja convencido de que Sandor III não viverá muito tempo.
— Isso é absurdo.
— Para nossa mentalidade fria e objetiva, sim. Nós não acreditamos em maldições, nem em bruxas, nem em marcianos... Mas nem todo o mundo pensa como Número Um e “Baby”.
— De tudo isso, deduzo que se Sandor III morrer ninguém estranhará muito.
— Exato.
— Querida, eu tampouco estranharia que Sandor III morresse, caso lhe metam algumas balas no corpo, ou lhe atirem uma bomba, ou o envenenem...
— Não, não, Um! Não. A morte de que se trata seria... mmm... mágica.
— Mágica! — riu Número Um.
— Quero dizer que seria fulminante, por causas naturais ou... sobrenaturais. Mas não por motivo conhecido. Seria o cumprimento da maldição, simplesmente. Sandor III morreria sem intervenção de nenhuma espécie. Morte natural... por maldição.
— Parece uma anedota inglesa — sorriu Um — é preciso muito senso de humorismo para rir.
Brigitte riu, inclinou-se um pouco para o lado, até ficar apoiada no ombro de Um, que passou um braço pelos dela, manejando o volante só com a outra mão.
— Lá está.
Tinha deixado o carro mais atrás, pata se aproximarem a pé da vila de montanha. Era muito bonita, estava bem cuidada, tinha um jardim espaçoso, garagem separada, um grande pórtico de madeira.
Diante da casa via-se um carro grande, preto.
— Parece que há visitas em “Rikoria Kals” — murmurou Brigitte.
— Ou talvez os moradores estejam para sair de carro.
— Sim. Mas, seja como for, veremos alguém abandonar a casa. Tem a câmara preparada?
Um assentiu com a cabeça. Tinha na mão uma câmara com possante objetiva. Brigitte levava um binóculo, que também retirara de sob o assento do carro, onde Número Um dispunha de um verdadeiro arsenal e laboratório.
Detiveram-se entre um espesso grupo de abetos, através dos quais via-se perfeitamente a vila e seu jardim. Agacharam-se os dois e “Baby” orientou imediatamente o binóculo para a casa.
— Todas as janelas têm as cortinas fechadas — murmurou. — Não se vê ninguém. Não sai fumaça da chaminé. A garagem está fechada. Parece não haver vivalma.
— Esperaremos — disse Um.
Ela baixou o binóculo e sorriu. Um se sentara, costas apoiadas num tronco e ela sentou-se diante dele.
— Vou ficar gelada — comentou.
Ele abraçou-a, por trás, apertando-a contra seu peito. Beijou-lhe a nuca e ela virou a cabeça, erguendo-a um pouco. Um prescindia de mais explicações a respeito daquele gesto, de modo que a beijou.
— Alguém está saindo — avisou Brigitte.
Enfocou imediatamente o binóculo para a porta da casa. Por cima de seu ombro apareceu a poderosa objetiva da câmara de Um.
— São dois homens Não, três. Um deles está sem capote. Parece que ficará na casa...
Clic. Ouviu-se o disparo da câmara, em cima de seu ombro.
— Estão se despedindo. Os dois encapotados têm cada um uma pasta de couro...
Clic.
— Detêm-se. Parece que suspeitam algo... mas é impossível que nos vejam. O outro...
Clic.
— Sim. Também se voltou. As duas pastas de couro parecem idênticas. Dirigem-se para o carro.
Clic.
— Parece que o mais alto o conduzirá. O carro é um “Mercedes 220”... Move-se... Pode-se ver bem a placa, Um.
Clic.
— O outro está no pórtico, saudando com a mão, olhando para todos os lados...
Clic.
— Volta-se... Entra na casa. Fechou a porta.
O carro — o binóculo desloca-se — afasta-se pelo desvio, para oeste. Parece que tomarão a estrada 17, rumo à Suíça... É isto. Não passarão pela cidade, mas pelo norte dela... Afastam- se... Afastam-se...
Baixou o binóculo e voltou-se para Um.
— Não poderão sair do país — disse. — Para onde seguem, então?
— Vamos para o meu carro, depressa.
Levantaram-se e correram para onde tinham deixado o “Alfa Romeo” de Número Um, que indicou o volante a Brigitte.
— Vou na parte de trás, revelando as fotos.
— Não precisaremos de cópias — disse ela. — Revele o filme, simplesmente. É o mesmo sistema do microfilme que me mandou?
— É. Deveria ter usado a “Polaroid” para obter fotos instantâneas, mas ignorava quantas teria que tirar e sua carga é reduzida... Não vá muito depressa e evite as sacudidelas.
— Bem. Oxalá isto nos leve a alguma parte. A coroação será amanhã, às doze. Temos muito pouco tempo.
— O suficiente para nós. Não se aproxime muito deles.
— Querido — sorriu docemente Brigitte: — sou a agente “Baby”, lembra-se?
Número Um olhou-a fixamente, com um sorriso amável quase infantil, que só uma pessoa no mando Já tinha visto: a própria Brigitte. Era um homem carrancudo, sério, extremamente varonil.
— Lembro-me.
E beijou-a nos lábios.
— Vamos lá.
— Pronto o filme?
— Sim. Vejamos quem são estes personagens... Ainda estamos na estrada 17?
— Ainda. Diretamente para a fronteira, querido.
— Terão que deter-se em algum lugar, pois sabem que não poderão sair do país. Vá com cuidado... Vejamos o primeiro... Não, não o conheço. Refiro-me ao que ficou em “Rikoria Kals”. Agora, o mais alto... Tampouco... Não o conheço. O terceiro...
Número Um lançou uma exclamação e tirou o visor luminoso de diante dos olhos.
— Conhece o terceiro? — indagou Brigitte.
Um não respondeu. Tornou a colocar o aparelho diante da vista e concentrou toda a sua atenção no rosto daquele homem.
— Sim, é ele... Estou certo de que é ele!
— Quem?
— Fedor Sikovian.
— Russo?
— Claro... Mas não imagine nada disso. Fedor Sikovian fugiu da Rússia há dois anos e desde então nada se tomou a saber a respeito dele.
— Mas não é um espião?
— Nunca foi. Era um engenheiro eletrônico e e físico.
— Você tem certeza?
— Absoluta. Conheci-o em Moscou, há três anos. Então já circulavam rumores de que ele queria sair da Rússia, mas ignoro por que, a CIA; proibiu que me aproximasse dele, no momento. Depois tive que fazer um trabalho no Cairo e durante meses me aconselharam a não entrar na Rússia... Eu ainda estava na CIA. Finalmente, encontrando-me em Hamburgo, soube que Sikovian tinha escapado.
— Físico e engenheiro eletrônico... Não compreendo. Que papel pode representar esse homem no caso da coroa de Ausvânia?
— Não sei. Nenhuma ideia nessa linda cabeça?
— Nenhuma. A menos que ele tenha sido personagem central de uma astuta manobra de espionagem, concebida há dois anos.
— Duvido. Mas tudo é possível em nossa profissão. Quer ver a cara deles?
— Já os vi com o binóculo. Não conhece nenhum mais?
— Nenhum. Quem serão? Talvez sejam vânios. Pelo menos, tem que ser vânio o que ficou na vila, suponho.
— Talvez o mais alto também seja russo — sugeriu Brigitte.
— Sim, talvez. Que...?
“Baby” tinha freado em seco e Um foi arremessado contra o para-brisa. Amorteceu o choque a com uma das mãos e olhou para frente, na direção que ela indicava. Ao longe, na noite esbranquiçada que ameaçava neve, viam-se luzes vermelhas traseiras do outro carro. Quer dizer, só uma.
— Estão virando para a direita. Já não se dirigem à fronteira.
— Mas estamos bem perto dela, apenas a três ou quatro quilômetros... Há um hotel por aqui — recordou-se Um. — É pequeno e chama-se... “Vandar”. Exatamente: “Hotel Vandar”. Continue... E vire também para a direita. Imagino que estejam dispostos a alojar-se aqui, à espera... À espera de quê?
— Que abram a fronteira, naturalmente.
— Sim, sim, mas... isso pode ainda demorar vários dias, ou semanas. Eles não podem saber. Por que abandonar uma bonita vila, que fica somente a escassos oitenta quilômetros da fronteira, para vir a um hotel esperar permissão de sair?
— Devem querer sair logo que abram a fronteira. Três ou quatro quilômetros percorrem-se em poucos minutos.
— De fato. Mas pode ser arriscado para eles esperar talvez uma semana que a fronteira seja aberta. Em “Rikoria Kals” estariam mais seguros e ninguém lhes prestaria atenção.
— Talvez saibam que não precisarão esperar muito — disse Brigitte.
— Pois terão que fazê-lo, a menos que a coroa seja recuperada.
Olharam-se. E só com se olhar, entenderam-se perfeitamente.
— Eu ficarei por aqui — decidiu Número Um.
— Vai sentir um bocado de frio...
— Já suportei frios piores que o de Ausvânia. Fico. Você volta a toda a velocidade e... suponho que não precisa de minhas instruções.
— Não — sorriu “Baby”.
Número Um vestiu um grosso casaco, meteu num bolso interno sua automática silenciosa e também o rádio, embora fosse pouco prováveis que alcançasse a distância em que se encontraria Brigitte. Esta ficou com tudo o mais que o carro continha, incluídas as fotos tiradas hora meia antes. Ele tomou-a pelos ombros e ela entreabriu os lábios para receber seu beijo.
Não houve mais palavras.
Um saltou do carro e Brigitte manobrou para dar a volta e empreender o trajeto para a cidade. Saudou Um com a mão, vendo-o esfumado através do vidro do para-brisa. Do céu caíam já alguns flocos de neve.
— Adeus... — murmurou Brigitte, sabendo; que ele não a ouvia. — Adeus, meu amor...
E afastou-se dali. Ambos sabiam que estavam fazendo o que deviam fazer, mas às vezes... às vezes custa um bocado ser espião.
Príncipe Karl recebeu-a num pequeno salão particular. Estava na verdade surpreendido. E, ao mesmo tempo, esperançado.
— Observo que não demorou muito a utilizar seu passe especial, miss Montfort.
— Alteza, não temos tempo a perder. É possível que eu saiba onde está a coroa.
— Onde? — sobressaltou-se Karl.
— Num lugar chamado “Rikoria Kals”. E se não está lá tenho ainda outro lugar para procurá-la.
— Que lugar?
— Ainda não sei com exatidão — mentiu. — Meu amigo está seguindo outra pista. Mas inicialmente, deveríamos procurá-la em “Rikoria Kals” Sabe onde fica?
— Não. Pelo menos não me lembro.
— É uma vila de montanha, perto da margem do lago. Conhece estes homens? Permita-me que lhe prepare o visor. Pode olhar agora, Alteza.
O príncipe obedeceu, ainda assombrado. Olhou pelo visor e imediatamente lançou uma exclamação:
— Torkio!
— Quem? — excitou-se Brigitte. — Vossa Alteza o conhece?
— É Torkio Kirw, um de nossos melhores homens do serviço secreto. Não compreendo... Que tem a ver ele com...?
Continue olhando, Alteza, por favor. Diga-me se conhece os outros dois... conhece-os?
— Não... Não, não.
— Nenhum dos dois?
— Não... Espere: suponho que me confundo...
— Crê conhecer um deles? Qual?
— Eu diria que este é Max Heimut Dinkle.
— Quem? — indagou Brigitte.
— Max Heimut Dinkle... Um famoso joalheiro alemão, que há pouco mais de um ano esteve em Ausvânia. Aqui no palácio! Foi chamado para conversar com Sandor a respeito de uma joia que ele queria mandar fazer para sua futura esposa. Sandor desejava algo tão especial, que não se puseram de acordo. Dinkle fez pelo menos uma dúzia de desenhos, mas terminou dando-se por vencido. Então, Sandor recorreu a um joalheiro francês, de Paris. Essa joia...
— Perdão, Alteza. Isso não interessa agora. Max Dinkle teve algo a ver com a coroa?
— Não. Em absoluto... Bem, foi-lhe permitido olhá-la algumas vezes.
— Olhá-la, apenas?
— Apenas. Não compreendo isto... Max Helmut Dinkle e Torkio Kirw... Que têm a ver um com o outro? Quem é o terceiro homem?
— Ignoro — mentiu Brigitte. — Mas meu amigo o saberá, mais cedo ou mais tarde. Está vigiando os dois.
— Em “Rikoria Kals”?
— Não. Foi atrás deles. E eu vim dizer a Vossa Alteza que talvez a coroa esteja em “Rikoria Kals”.
— Em cujo caso, será necessário ir buscá-la. Eu me encarrego disso, miss Montfort!
— Pode ser muito perigoso — murmurou o príncipe Karl.
— Se Vossa Alteza se arrisca, eu também posso fazê-lo — sorriu “Baby” com expressão ingênua. — Além disso, gostaria de estar presente ha recuperação da coroa, tirar algumas fotografias... Oh, se Vossa Alteza permitir, claro. Sou jornalista e para mim seria um grande êxito proporcionar ao meu jornal uma reportagem exclusiva.
— Compreendo — sorriu Karl. — E creio que não lhe podemos negar essa oportunidade. De acordo, virá conosco. A caminho, capitão Willon!
Barno Willon saudou rigidamente e dirigiu-se ao carro da frente, ocupado já por cinco soldados, um ao volante. Atrás, o carro em que iriam, exclusivamente, Brigitte e o príncipe, com o chofer. Depois, mais três carros, cada um deles com seis soldados.
Silenciosamente, os cinco veículos abandonaram os terrenos do palácio. Karl tomara precauções para que tudo se fizesse discretamente, sem alarmar ninguém, sem que se notasse nenhum movimento inusitado.
A noite estava agora um pouco branca, devido aos flocos de neve que caíam mansamente, como uma música silenciosa.
— O capitão Willon — disse sorrindo o príncipe — é de uma fidelidade a toda prova. Por isso o enviei para recolher o cadáver de Rodol Armenayer, sempre desejando ser discreto. Agora me arrependo de ter noticiado o roubo da coroa.
— Ainda não a recuperamos, Alteza — lembrou Brigitte.
— É verdade. Mas se o fizermos, poderíamos ter evitado o grande desgosto por que está passando toda a Ausvânia, além de uma série de complicações diplomáticas. Bem... Tudo perderá a importância se esta mesma noite conseguirmos reaver a coroa... Mas como foi que conseguiu chegar até “Rikoria Kals”?
— Coisas de meu amigo...
— De Número Um?
— Dele, claro. Quando esteve na casa de Mirka Strissa viu algo escrito na mesa sobre a qual estava debruçado o cadáver de Armenayer, E antes de retirar-se, apagou tudo, pois ignorava quem ia chegar. Depois esteve procurando o significado daquelas palavras... e encontrou a vila de montanha chamada “Rikoria Kals”. Foi até lá, fotografou os dois homens, veio dizer-me que devia avisar Vossa Alteza e deu-me as fotografias. Em seguida dirigiu-se à fronteira, conforme me disse.
— Bem. Se seu amigo não tivesse apagado essas palavras escritas no pó, o capitão Willon as teria visto... e talvez a estas horas já tivéssemos a coroa, miss Montfort.
Brigitte mordeu os lábios, aparentando perfeitamente uma grande consternação.
— Lamento, Alteza.
— Peço-lhe que me perdoe — murmurou Karl, como se estivesse descontente consigo mesmo. — De um modo ou de outro, jamais um estrangeiro fez tanto por Ausvânia. Por favor, perdoe-me.
— Naturalmente, Alteza.
Os carros tinham parado. O príncipe saltou e estendeu a mão para ajudar Brigitte. O capitão Barno Willon chegou quase correndo, procedente do primeiro carro, e perfilou-se com um seco entrechocar de calcanhares.
— Às ordens de Vossa Alteza!
— Obrigado, capitão. Distribua os homens de acordo com o combinado, cercando completamente a casa. Eu irei lá.
— Alteza! — alarmou-se Willon. — Não deveria fazer isso. Pode ser muito perigoso!
— Capitão Willon, está sugerindo que não devo fazer nada para recuperar a coroa de minha pátria?
— Não... Não, Alteza. Mas...
— Agradeço sua boa intenção. Mas nessa casa há um homem, ao menos, que pertence a nosso serviço secreto. E tenho algumas perguntas a fazer-lhe.
— Posso ir com Vossa Alteza e levar alguns soldados...
— Não. Primeiro, falarei com Torkio Kirw. Depois... veremos.
Barno Willon hesitou um momento, preocupado.
— Espero que Vossa Alteza leve uma arma, pelo menos.
— Uma arma, capitão? Bem... Talvez fosse conveniente.
— Vossa Alteza é exímio caçador, possui excelente pontaria... Peço-lhe que aceite minha pistola.
— De acordo. Mas oxalá não tenha que usá-la. Disponha seus homens, capitão. E quero o máximo silêncio. Dentro de cinco minutos, eu irei a essa casa.
— Procurarei estar o mais perto possível de Vossa Alteza.
Tornou a bater com os calcanhares e afastou-se. Brigitte viu os soldados que deslizavam para a casa, silenciosamente, como sombras escuras sob a branca neve. Em menos de três minutos, pareceu que não havia ninguém ali. Apenas diante deles, a menos de duzentos metros, a luz de “Rikoria Kals”. Brigitte tinha pendente do pescoço a câmara fotográfica, com o flash pronto para funcionar.
— É uma imprudência, Alteza — murmurou.
— Já morreu Rodol Armenayer, um de nossos melhores homens. Quero fazer o possível para evitar mais mortes.
— Quem estiver na casa não terá tantas contemplações, Alteza. É evidente que eles, junto com mais alguém do palácio, planejaram tudo. Rodol Armenayer descobriu isso, marcou um encontro com Vossa Alteza na casa de Mirka Strissa... e foi assassinado antes do poder dizer o que sabia.
— Sim... Parece evidente. Parece, apenas, miss Montfort. Virá comigo no carro? De outro modo, temo que suas fotografias não saiam muito interessantes.
— Refere-se a uma possível... peleja, Alteza?
O príncipe Karl contraiu as sobrancelhas e olhou a pistola que lhe entregara o capitão Willon.
— É uma possibilidade que não se deve desdenhar. E embora não seja muito próprio de um membro da família real, digo-lhe que gostaria de fazer um pouco de justiça por minha própria mão. O que mais detesto na vida são os traidores. Venha no carro. Mas não sala dele, para sua própria segurança.
— Assim farei, Alteza.
Entraram ambos no carro e Karl tomou o volante. O soldado-chofer tinha-se unido aos outros, fuzil na mão. Armas modernas, automáticas, funcionando praticamente como metralhadoras.
Em poucos segundos, o carro se detinha diante da casa. Karl certificou-se de que a pistola não era visível sob seu espesso capote com gola de pele e saltou, fazendo sinal a Brigitte para que se inclinasse, se ocultasse. Ainda não subira ele ao pórtico, quando a porta da casa se abriu e um homem que não era Torkio Kirw apareceu no umbral.
— Alteza! — exclamou. — Que... ?
— Quero falar com Torkio — disse friamente Karl. — Entremos. Sei que está em casa.
— Com efeito. Naturalmente, mas...
O príncipe já tinha passado pelo homem, entrando na casa. O outro parecia assustado, excitado. Fechou a porta... Brigitte colocou-se mais comodamente no assento, olhando para a janela iluminada. Mas, como antes, as cortinas estavam fechadas, de modo que não se podia ver nada do interior da vila. A neve continuava caindo mansamente.
Preparou a câmara fotográfica, com o flash, realmente disposta a tirar quantas fotos pudesse... supondo-se que acontecesse algo interessante.
Soou um disparo dentro da casa. Chegou com clareza aos ouvidos de “Baby”, que se encolheu no assento e ergueu imediatamente a câmara, orientando-a para a porta, mas desviando-a a toda a velocidade para a janela quando esta saltou em pedaços. O clarão do flash iluminou brevemente Karl, saindo da casa pelo pouco protocolar meio de saltar pela janela, levando os vidros e as cortinas por diante... e alguns tiros por trás.
Sua Alteza rolou pelo chão, gritando ao sentir que vários estilhaços de vidro se cravaram em seu ombro. As cortinas pareciam uma rede que tivesse apanhado um grande peixe, e Karl fazia esforços desesperados para libertar-se dela, no chão, enquanto na casa se ouviam gritos e um homem surgia no pórtico quase ao mesmo tempo que outro ficava claramente visível, enquadrado na janela, revólver na mão.
O da janela foi o primeiro a disparar contra Karl, justamente quando este se punha em pé e corria, para abrigar-se no carro. Possivelmente teve a vida salva graças à intervenção de Brigitte, que utilizou a única arma de que dispunha: o flash. Disparou-o apontando para aquele homem e o clarão intenso o sobressaltou no momento em que atirava, de modo que a bala acertou somente no braço do príncipe, fazendo-o girar com força e chocar-se contra o carro, para depois cair de costas.
O da porta tinha atirado contra Brigitte, contra o clarão. A bala bateu no vidro da porta, rebentou-o, passou roçando por sua face, bateu no vidro da outra porta e perdeu-se na noite.
E ao mesmo tempo, tudo isso em menos de dois segundos, os flocos de neve pareceram rebentar entre os clarões e estampidos.
Encolhida no assento do carro, Brigitte viu os dois homens estremecer ao receberem as rajadas de balas. Viu o da janela saltar para trás, peito e rosto ensanguentados. Viu o outro como que cravado no batente da porta, sacudindo-se a cada novo balaço que recebia, até seus joelhos dobrarem e ele cair completamente crivado de projéteis.
“Baby” saltou do carro e ajoelhou-se junto ao príncipe, que tentava levantar-se, o braço esquerdo inerte, sangrando. Ao redor deles ouviam-se fortes pisadas de botas militares. Soou a voz peremptória do capitão Willon.
— Está bem? Alteza?
— Não sei... — murmurou Karl. — Sem dúvida, não muito apresentável para uma fotografia.
Brigitte sorriu ante a fortaleza de ânimo daquele homem.
— E por que não? Posso tirar uma, Alteza?
Barno Willon chegava naquele momento, branco como a neve. Cravou-se no solo ao chegar junto de Karl e ergueu um braço ante a câmara de Brigitte.
— Não! — proibiu.
— Deixe-a, capitão — sorriu crispadamente o príncipe. — Ela merece esta permissão... e muito mais. Ajude-me a levantar... E que miss Montfort tire as fotografias que quiser.
Willon ajudou Sua Alteza e instalou-o no assento dianteiro do carro.
— Vossa Alteza está ferido e conviria...
— Mande que revistem a casa, capitão. Todos. Dirija essa busca. E que não seja negligenciado nenhum recanto.
— Vossa Alteza acredita que a coroa esteja lá?
— Estou convencido. Revistem bem tudo! E retirem os cadáveres... Tive que matar Torkio Kirw. Era um traidor! Ao ver-se descoberto, quis disparar contra mim... Quis disparar contra o irmão do rei! Vá, capitão.
— Às ordens de Vossa Alteza!
Brigitte estava fotografando tudo. Os clarões de seu flash faziam cintilar a neve que se ia acumulando sobre a terra vermelha, sobre as flores e a relva, sobre os galhos dos abetos.
Os cadáveres foram retirados da casa. Três homens, ao todo. Karl olhava-os sombriamente quando Brigitte tirou a fotografia, de lado, enquadrando os cadáveres e o príncipe real de Ausvânia.
Quando achou que já tinha fotos suficientes, aproximou-se de Karl e ofereceu-lhe um cigarro, que ele se apressou a aceitar. O sangue gotejava de sua mão esquerda e em seu ombro estavam ainda cravados alguns pedaços de vidro, que ela tirou cuidadosamente.
Terminava de fazê-lo quando o capitão Willon saiu precipitadamente da casa, gritando a plenos pulmões: — A coroa!
Em dois saltos veio colocar-se diante do príncipe. Em suas mãos, numa bandeja de prata, brilhava a coroa de Ausvânia.
Sandor III olhou fixamente para Brigitte.
— Na verdade não lhe posso pagar isto... de nenhum modo, miss Montfort?
— Estou paga, Majestade — respondeu ela, sorrindo.
O príncipe Karl estava sendo atendido pelo médico do palácio, nos aposentos privativos do rei. A exceção do médico e do capitão Willon, ninguém mais havia ali com os dois membros da família real. Sobre uma mesinha via-se a coroa, ainda na bandeja de prata. Logo seria examinada pelos melhores joalheiros do país, que já tinham sido chamados a toda pressa para verificar uma possível falsificação.
Sandor m parecia inconformado com a negativa de “Baby”.
— Mas eu gostaria de fazer algo em retribuição ao que fez por mim. Algo... O que quer que seja, miss Montfort.
— Nada, Majestade — ela tomou a sorrir. — Quer dizer...
— Ah! — exclamou o rei. — Diga-me, por favor. De que se trata?
— Bem... Dois pequenos favores, Majestade: Um, que as fotografias por mim obtidas sejam exclusivas do meu jornal pelo prazo de dois dias. Minha carreira jornalística será grandemente beneficiada com isso... dentro do “Morning News”, pois só meu diretor saberá que foram tiradas por mim. O contrário seria aparecer um pouco como... uma espiã. As fotografias serão atribuídas a uma agência inexistente, assim como um ou dois artigos especiais. Pode conceder-me isso, Majestade?
— Disse-lhe para pedir o que quisesse, miss Montfort.
Obrigada, Majestade. O segundo favor é ainda mais simples. Apenas que Vossa Majestade aceite esse pequeno presente.
Estendeu a mão com o pequeno rádio de bolso que lhe dera Número Um. Sandor III ficou um pouco assombrado diante de tal presente, mas sorriu com aquela sua expressão tão cordial e humana.
— Afinal sou eu quem está ganhando presente, ao invés de dar.
— Não tem muito valor. Mas peço-a Vossa Majestade para que não se separe nem um segundo deste aparelho.
— Não compreendo — o rei pestanejou.
— Posso contar com isso?
— Sim... Sem dúvida.
— Então é tudo, Majestade. Com sua permissão, retiro-me.
— O capitão Willon a...
— Não é necessário. Tudo está em calma agora. Ah! Quando Vossa Majestade dará ordem para que sejam abertas as fronteiras?
— Amanhã, o mais cedo possível, a fim de que possam entrar em Ausvânia os convidados que ainda não chegaram. Espero que estará presente à minha coroação, miss Montfort.
— Não perderia este ato por nada no mundo.
Brigitte fez uma reverência, e recuou até a porta, acompanhada pelo elegante capitão Willon, que já se via, pelo menos, com os galões de coronel. Antes de sair, captou ainda o olhar de agradecimento de Sandor III e o sorriso especial, um pouco dolorido, de Karl.
Na antecâmara estavam os mais importantes personagens do reino, que receberiam ordem real para não comentar em absoluto a intervenção da “jornalista” Brigitte Montfort na recuperação da coroa.
Fora, no grande corredor, uma guarda reforçada, através da qual Barno Willon, ereto como um cipreste, acompanhou “Baby”. Foi com ela até o “Alfa Romeo” de Número Um e, lá, saudou-a com uma de suas sonoras batidas de calcanhares.
— Sempre às suas ordens, miss Montfort.
— Muito obrigada, capitão — sorriu ela. — Tornaremos a ver-nos, espero.
— Será um prazer.
Brigitte pôs o carro em marcha e o oficial deu um passo atrás, com outra batida de calcanhares. Segundos depois, o “Alfa Romeo” rodava para a saída do palácio.
E uma vez transpostos os grande portões, Brigitte pisou o acelerador até o fundo, disposta a obter o máximo de velocidade do formidável carro de Número Um.
Tinha que correr muito, avisá-lo a tempo. Porque, no fundo, de sua inteligência, a agente “Baby” estava convencida de que aquele caso não havia terminado com a recuperação da coroa real.
O carro deteve-se com uma brusca freada, mas ainda deslizou alguns metros sobre a camada de neve que cobria o asfalto. Brigitte lançou um feixe de luz para á frente, com os faróis. Depois os apagou, parou o motor e acendeu um cigarro.
O hotel podia ser visto a cem metros. Havia apenas uma luz na entrada. Nem uma só nas janelas. Ou na sala de jantar com vista para as nevadas montanhas do sul. Unicamente a neve acompanhava Brigitte em sua espera silenciosa e tensa, quase angustiada. A ideia de que havia chegado tarde foi como um impacto brutal em seu coração. Apagou o cigarro, sempre olhando para frente. Decorridos apenas dois minutos, sua impaciência era tão grande que esteve tentada a tocar a buzina, ou lançar outro sinal com os faróis. Optou por disparar o flash, projetando sobre a neve um vívido resplendor azulado.
E quase no mesmo instante ouviu a pequena pancada no vidro da outra porta. Abriu-a, suspirando. Número Um sentou-se a seu lado.
— Tirando fotografias? — brincou ele.
— Um, já temos a coroa. Foi... terrivelmente fácil. Mas não creio que esteja tudo resolvido. Minha opinião...
Número Um a fez calar beijando-a nos lábios. Depois olhou-a sorridente.
— Está disposta a fazer uma pequena escalada?
— Que aconteceu?
— Venha. Entraremos no hotel sub-repticiamente. É uma coisa feia, mas temos que fazê-la.
Brigitte não perguntou nem disse mais nada. Saltou, fechou o carro e colocou-se junto de Um, quase tiritando. Ele passou-lhe um braço pelos ombros e caminharam para o silencioso hotel. Dando justamente para onde estacionará o carro, havia um balcão corrido, de madeira, a uns três metros e meio de altura. Número Um enlaçou as mãos, cruzando os dedos, e curvou-se um pouco. Brigitte tampouco precisava explicação para isto. Pôs o pé direito na espécie de estribo formado por aquelas mãos, agarrou-se aos ombros de Um e assentiu com a cabeça.
— Já.
Ele lançou-a para cima, com toda a força de seus braços fortíssimos, ao mesmo tempo em que Brigitte se impulsionava também com a perna esquerda. Resultado: um salto incrível, quase um voo, suficiente para que as mãos dela agarrassem a borda inferior do balcão. Três segundos depois, achava-se neste, olhando para baixo, para Número Um, que após escalar a parede de grandes pedras, numa técnica de homem-mosca, agarrou-se também à borda do balcão. Balançou o corpo com um movimento pendular e depois, aproveitando o impulso de regresso, passou por sobre a balaustrada e caiu silencioso como um felino ao seu lado.
Foi até a porta-janela que dava para o balcão e empurrou-a, simplesmente. Brigitte entrou e ficou imóvel. Um certificou-se de que as cortinas estavam bem corridas, depois de fechar a janela. Brigitte percebeu que ele se afastava. Segundos depois, acendeu-se a luz.
E o que surgiu aos olhos de “Baby” não era absolutamente agradável.
Havia dois homens estendidos no chão, outro na cama. Os do chão estavam mortos, caídos um por cima do outro, como se fossem lixo. O de baixo tinha os olhos abertos e um fio de sangue lhe escorria da boca. O outro estava caído de bruços por cima, com uma feia mancha de sangue num lado da cabeça.
Sem se perturbar, ela adiantou-se até o que estava na cama. Tinha duas manchas de sangue no peito, mas seu pulso era ainda perceptível, embora extremamente débil. Este homem era Fedor Sikovian. Os outros dois, os do chão, eram completamente desconhecidos para Brigitte.
— E o outro? — perguntou. — Chama-se Helmut Dinkle. Alemão. É um joalheiro.
— Era — sussurrou Um. — Está morto em seu quarto. E Fedor Sikovian não viverá muito. De quando em quando diz uma palavra, mas não consigo compreender. Fala em russo, naturalmente. Mas nem mesmo um russo poderia entender o que ele diz.
— Que se passou exatamente?
— Dediquei-me a vigiar a porta do hotel, até que me ocorreu a ideia de que talvez o perigo já estivesse dentro. E assim era, infelizmente. Primeiro entrei para ver Helmut Dinkle. Fiquei alerta por não haver reação quando eu mexia na fechadura com a gazua. Ao abrir, já esperava algo assim e vim correndo até aqui. Creio que quase cruzei no corredor com esses dois — indicou os cadáveres no chão. — Entrei neste quarto justamente quando estavam atirando contra Fedor Sikovian. Eles me ouviram, talvez tenham ficado nervosos e não foram tão eficientes como com Helmut Dinkle. Tive que matá-los.
— Não acho que você deva lamentar esse fato.
— Em absoluto. Sempre é uma boa coisa eliminar assassinos.
— De maneira que eles estavam esperando Sikovian e Dinkle?
— Evidentemente.
— Você os revistou?
— São vânios. Deixei tudo em seus bolsos, mas não se preocupe: nada lhe dirão seus documentos e objetos de uso pessoal. Em compensação, é interessante o conteúdo das pastas de Sikovian e Dinkle. Dê uma olhadela — indicou-as, sobre uma cadeira. — Estavam com documentos falsos, é claro. Fedor Sikovian tinha documentação suíça: Helmut Dinkle, holandesa.
Brigitte tinha aberto uma das pastas. Cédulas americanas. Dólares. A outra continha o mesmo.
— Quanto? — perguntou.
— Quinhentos mil cada uma.
— Boa paga... se tivessem podido aproveitá-la. Você está bem, Um? Completamente bem?
— Completamente — sorriu ele. — Se não me mataram aquela vez em Atenas, é que sou mesmo duro na queda. Além disso, não lhes dei tempo para nada. Como foram as coisas em “Rikoria Kals”?
— Havia três homens, que se supõe fossem traidores. O príncipe matou um e os outros dois foram mortos pelos soldados que nos acompanharam. Karl entrou sozinho, pois queria...
Brigitte contou o sucedido a Um, enquanto este acendia dois cigarros para ambos. Quando terminou o relato, ficaram pensativos, até que Número Um murmurou:
— Todos mortos... Todos os que intervieram nisto morreram: Rodol Armenayer, Torkio Kirw e os outros dois, Fedor Sikovian, Max Helmut Dinkle, estes dois aqui... Foi uma boa limpeza.
— Não me agrada — comentou Brigitte. — Nada disto me agrada, Um.
— Há algo estranho, sem dúvida — admitiu Um. — Mas... quê? Morreram os traidores, a coroa foi recuperada. Tudo terminou e já não há mais pistas.
Brigitte indicou Fedor Sikovian, cuja palidez era já a de um cadáver.
— Resta ele. É um homem muito forte. Talvez se salve...
— Impossível — negou Um. — De todo impossível. Não poderá ver o novo dia. Nem mesmo se chamássemos um médico. A única coisa que podemos fazer é esperar. Talvez diga algo que forme sentido.
Brigitte sentou-se na beira da cama e tomou a mão de Fedor Sikovian. Mal lhe notava o pulso, mas este às vezes parecia acentuar-se, bater mais rapidamente. Um homem forte, na verdade, contudo...
— Fedor... — murmurou docemente. — Fe-dor, está me ouvindo?
Não. Fedor Sikovian, no momento, não podia ouvi-la.
— Que horas são?
— Sete e meia. Logo será um dia e teremos que sair daqui, Brigitte.
Ela tornou a segurar a mão do ferido. O pulso continuava fraquíssimo. Tocou-lhe a testa e achou-a fria...
— Vá... Valentina... É você, filha?
A voz de Fedor Sikovian era rouca e baixa, apenas audível. Brigitte trocou um olhar veloz com Número Um e inclinou-se para o rosto do russo.
— Sim, sou eu — sussurrou. — Sou Valentina, pai.
— Não coma... tanto chocolate...
— Não, pai — Brigitte falava em russo. — Não comerei tanto chocolate.
— Sua mãe dizia... o chocolate não é bom para...
Calou-se. Número Um também se tinha inclinado sobre ele, quase com a orelha colada à sua boca.
— Pai — chamou docemente Brigitte: — que aconteceu com a coroa de Ausvânia?
— A coroa... foi roubada...
— Sim, eu sei. Quem roubou?
— Cinco... cinco homens muito importantes... do palácio... E eu tinha que... que...
Calou-se novamente. Súbito, abriu os olhos, que fixaram o teto, inexpressivos.
Brigitte tornou a passar a mão por sua testa. Sabia que aquilo reavivava a lembrança de Valentina, a filha de Sikovian.
— Pai, que aconteceu com a coroa? Por que lhe deram tanto dinheiro americano?
— É... para nós, filha... Iremos para... o Canadá, como... como sempre sonhamos.
— Sim, sim, pai. Diga-me: que fez você com a coroa? Que tem você a ver com ela? E o joalheiro alemão? Vocês fabricaram uma coroa falsa, pai?
Um sorriso crispou os lábios secos do moribundo.
— Não... Não... Centígrados... Temperatura do corpo...
Perdiam-se as palavras no estertor da agonia. Brigitte estava quase suando de angústia. .
— Pai, não compreendo...
— Graus centígrados... Trinta e seis e meio... A pérola maior...
Brigitte e Número Um trocaram um desesperado olhar de desconcerto.
— A pérola maior da coroa, pai? — perguntou ao azar.
— Claro... O corpo humano tem... tem...
— Trinta e seis graus centígrados de temperatura — disse rapidamente Brigitte. — Que mais? Que mais, pai?
— A coroa... pérola... Joalheiro fez também... bom trabalho... Pérola... abre... abre... colocar a coroa...
A voz deixou de ouvir-se, sendo substituída pelo rouco estertor de Fedor Sikovian, cujos olhos continuavam fixos no teto. Depois todo o ruído cessou.
— Está morto — disse Brigitte.
— Temos que ir embora. Já nada podemos fazer aqui, Brigitte. Aproveitemos estes últimos minutos de escuridão.
Apanhou as duas pastas e indicou a porta-janela. Brigitte assentiu com a cabeça. Um apagou a luz do quarto, depois abriu a janela e saíram ambos. Ele atirou as duas pastas por sobre a balaustrada e pendurou-se à mesma, o corpo para fora, os pés a menos de dois metros do chão. “Baby” também transpôs a balaustrada, deslizou pelo corpo de Um como se este fosse uma corda e deixou-se cair levemente sobre a neve. Número Um saltou-se do balcão e amorteceu a queda flexionando as pernas. Apanharam as pastas, correndo para onde ficara o carro, que estava parcialmente coberto de neve. Número Um pôs-se a removê-la com as mãos, enquanto Brigitte entrava no veículo, com as pastas. Pouco depois, Um sentava-se a seu lado.
— Vamos. Temos quase cem quilômetros de trajeto até a cidade.
O motor respondeu à segunda tentativa. Felizmente, o anticongelante acrescentado ao óleo atuou bem e o ruído do motor foi-se tornando claro, normal. “Baby” tirou o carro do grupo de abetos, dirigindo-se para o caminho. Antes de chegar à estrada 17, o “Alfa Romeo” já tinha patinado meia dúzia de vezes.
— Temos correntes?
— Temos, Mas continue até a estrada. Talvez lá seja mais fácil rodar.
Foi pior. Sobre as camadas de neve comprimida, o carro resvalava mais. Em alguns pontos, a neve tinha-se congelado parcialmente e as derrapagens se sucediam com tal frequência, que Número Um resignou-se.
— Vou colocar as correntes — resmungou.
— Eu ajudo você.
— Não. Está muito frio e não quero...
— Ora, vamos — ela beijou-lhe os lábios, sorrindo. — Você está me tratando como uma boneca de luxo. Por muito frio que faça, minha temperatura corporal será a mesma, não?
Um encolheu os ombros.
— Espero que sim: é uma-temperatura muito agradável.
Apearam os dois rindo. O carro estava a um lado da estrada. Número Um sacou o “macaco” e as correntes, e ambos puseram mãos à obra. Quando terminaram, Brigitte estava transida de frio, de modo que Um empunhou o volante. Tinha parado de nevar, mas o frio era mais intenso. Ao leste via-se uma claridade que anunciava o sol.
— Talvez faça sol às onze — disse “Baby”. — Hoje é um grande dia para Ausvânia e para Sandor III. Deveria fazer sol.
Número Um olhou o relógio.
— Chegaremos quase às dez, já que não podemos ir muito depressa com as correntes.
— Assim teremos tempo de pensar. Que tentava dizer Sikovian com aquelas palavras? Graus centígrados, calor do corpo humano, ou temperatura... A pérola... Colocar a coroa...
— Quem poderá saber que pensamentos havia na cabeça daquele físico?
— Sim, quem? Físico... A Física não tem algo a ver com o calor?
— Bem, não entendo muito dessas coisas, mas, sem dúvida, há temperaturas que produzem determinados fenômenos físicos.
— Que espécie de fenômenos pode produzir a temperatura do corpo humano?
— Não sei. Depende da coisa sobre a qual atue. Não sei.
— Suponhamos que atue sobre uma pérola.
— Pois não aconteceria nada — Um olhou vivamente para Brigitte. — Em que você está pensando?
— Nisto, querido: um famoso joalheiro, um engenheiro eletrônico e físico, uma pérola, a temperatura do corpo humano... E as últimas palavras de Sikovian: colocar a coroa... Quereria ele dizer quando colocar a coroa?
— É possível. Acha você que acontecerá alguma coisa quando Sandor III colocar a coroa?
— Isso quem devia saber era Fedor Sikovian. O certo é que Sandor III, logicamente, terá uma temperatura normal de trinta e seis e meio graus centígrados. Calor e Física. Pérola e Helmut Dinkle... Tudo isto tem que se relacionar de um modo ou de outro. E depois... foi tão fácil recuperar a coroa! Poderiam tê-la retirado do país com um helicóptero, inclusive desmontada... Mas não. Lá estava, muito perto do palácio, numa bandeja de prata... E todos os que intervieram estão mortos... Que sucederá quando Sandor III puser a coroa?
— Talvez lhe caia em cima essa maldição da lenda — sorriu Um.
E naquele mesmo instante estremeceu, voltando a cabeça para Brigitte, que se tinha crispado no assento. Durante uns segundos estiveram assim, estupefatos sem sequer prestar atenção à marcha do carro.
— Depressa — sussurrou “Baby”. — Depressa, Um! E dê-me seu rádio de bolso!
— Majestade?
— Miss Montfort — ouviu-se a voz de Sandor III pelo rádio, — este aparelho é muito útil, mas terá que perdoar-me. Compreenda que não posso...
— Vossa Majestade está só?
— Claro que não! São quase dez horas, miss Montfort. Dentro de uma hora terei que...
— Perdão... Perdão, Majestade, mas deve receber-me antes da cerimónia.
— Impossível... Impossível! Compreenda...
— Majestade, se não tivermos uma entrevista antes da coroação, não haverá tal coroação. Quer dizer, haverá... mas vai ser o fim.
— O fim de quê? Olhe, miss Montfort...
— É sua vida que estou tratando de salvar!
— Ah... Explique-se!
— Não agora, pelo rádio... Além disso, estão nos ouvindo. Mande o capitão Willon receber-me à entrada do palácio e dê-lhe instruções para que me leve, pelo caminho mais direto e discreto, à presença de Vossa Majestade. E ordene que a coroa seja levada aos seus aposentos. Outros- sim, devera estar lá o irmão de Vossa Majestade, bem como os principais membros do Governo.
— Isso é impossível! — exclamou Sandor III. — Sei quanto lhe devo, mas não posso...
— Um rei tudo pode, Majestade. E se não fizer o que lhe peço, Vossa Majestade morrerá hoje mesmo. Estou a caminho do palácio.
O capitão Willon estava esperando-a na entrada e subiu imediatamente ao “Alfa Romeo” quando Brigitte o chamou por sinais.
— Sua Majestade me deu ordem para...
— Eu sei. A toda a pressa, capitão. Indique-me o caminho.
— Para a direita, por favor.
Em menos de três minutos estavam junto do palácio. Barno Willon indicou uma das portas laterais, quase tão grande como a principal. À sua passagem, os soldados da guarda perfilavam-se energicamente. Entraram no palácio e, sempre orientada pelo capitão, Brigitte chegou por uma estreita escada ao primeiro andar. Entraram numa sala não muito grande e Willon abriu uma porta, à direita. Outra sala. Outra porta. Outra porta...
Brigitte fez uma reverência diante do rei da Ausvânia, que a olhava com o cenho cerrado.
— São dez e quinze, miss Montfort. Espero que todo o transtorno que causou em nosso protocolo, em nosso...
— Ficará justificado, Majestade. A coroa...?
Dois homens dos quatorze ou quinze que lá estavam, alguns em uniforme militar e todos em grande gala, afastaram-se. E Brigitte viu a coroa, sobre um almofadão de veludo vermelho com o escudo de Ausvânia nos quatro cantos. Perto dela, ereto, o braço ferido pendente de uma tipoia, mas absolutamente impecável, estava o príncipe Karl, um tanto pálido. Era o herói do momento, o homem que tinha arriscado a vida para recuperar a coroa de seu irmão. Assim diziam todos os jornais do país.
— Majestade, peça a seu irmão que ponha a coroa.
— Como? — exclamou incredulamente o monarca. — Miss Montfort, essa coroa não pode ser usada por ninguém mais que o rei.
— Abdique em seu favor, por uns minutos.
Houve um murmúrio mal contido na sala. Sandor III enrubesceu de irritação.
— Suplico-lhe, miss Montfort, que abandone este aposento. As extravagâncias norte-americanas não se coadunam com nosso sistema de...
— Minha extravagância, Majestade, está salvando sua vida. Eu mesma coroarei o príncipe Karl.
Apanhou a coroa, e esta vez o murmúrio dos presentes foi de horror, de autêntico espanto. Um tiro de canhão naquele aposento real não teria produzido efeitos tão devastadores. O estupor foi tal que ninguém pôde impedir que a coroa ficasse nas mãos de “Baby”, a qual se adiantou um passo para o príncipe.
— Ponha a coroa, Alteza — disse friamente.
Karl retrocedeu um passo, mais pálido que antes.
— Não! Esta mulher deve estar louca...
— Eu mesma a colocarei, Alteza. Por favor, incline a cabeça.
Tinha-se aproximado mais e o príncipe recuou precipitadamente, arregalando os olhos, quase tremendo de horror.
— Não se aproxime! — gritou. — Capitão Willon, retire daqui...!
— Um momento — soou a voz de Sandor III.
— Que está acontecendo, Karl?
— Mande que levem daqui esta mulher! — gritou o príncipe.
Mas Brigitte continuava a avançar e Sua Alteza ia recuando, tão branco como a neve sobre os telhados de Ausvânia. O assombro ante o gesto de Brigitte havia cedido entre os presentes, que agora contemplavam a insólita cena dando-se conta do medo com que o príncipe retrocedia, embora tentasse dissimulá-lo.
— Esta mulher — disse Sandor III — tornou possível a recuperação da coroa. E não pediu nada, pelo que me vejo obrigado a satisfazê-la nesta oportunidade... Abdico em seu favor, Karl.
— Não!
— Por que não? — insistiu o monarca. — Certamente, você será um bom rei... Sempre me pareceu que gostaria bastante de ocupar o trono. Pois bem: você já é o rei. Agora, ponha a coroa na cabeça.
— Não quero ser rei! Não quero! — olhou para Brigitte. — Não se aproxime mais!
— Capitão Willon — ordenou Sandor III — Ajude miss Montfort a coroar meu irmão.
— Às ordens de Vossa Majestade!
— Não! — gritou Karl. — Não, isto é uma loucura, estamos destruindo nosso protocolo nossas regras tradicionais...! Não!
Willon tinha-se aproximado dele, mas Karl saltou, tentando correr para a porta. Um robusto, general de cabelos grisalhos e um não menos robusto civil agarraram-no fortemente, e ajudados por Willon sentaram-no numa poltrona. Karl começou a gritar com todas as forças, mas Sandor III, tão pálido como seu irmão, estava compreendendo pelo menos parte da verdade.
O medo cerrava de tal forma a garganta do príncipe, que ele parecia a ponto de sufocar. Não gritava mais. Seus olhos fixavam desvairados os de Brigitte, tão azuis, mas que agora eram como dois pedaços de gelo. Viu neles tal expressão, que compreendeu uma coisa: aquela mulher não era o que parecia. Dentro dela havia algo terrível, aterrador, tão aterrador que, súbito, ele deixou de reagir.
Trêmulo, viu a coroa sobre sua cabeça, ainda segura por aquelas bonitas mãos femininas.
Lançou um débil gemido quando a coroa cingiu- lhe a fronte.
Por um instante, ficou rígido. Só um segundo Bruscamente, relaxou todos os músculos e sua cabeça pendeu para um lado... Houve um silêncio tétrico, até que um dos presentes se adiantou e tomou a mão do príncipe. Os demais pareciam petrificados, sem fazer caso da coroa, que tinha rolado pelo tapete.
O homem olhou para o rei.
— Está morto, Majestade — anunciou com voz trêmula.
— Então, era eu quem devia morrer...
Brigitte assentiu com a cabeça. Apanhou a coroa por uma de suas pontas e estendeu a mão.
— Preciso de um isqueiro, cavalheiros — pediu.
— Um... um...?
Willon foi quem a atendeu, recebendo em troca um sorriso. Ante a expectativa de todos, Brigitte foi aplicando a chama do isqueiro às grandes pérolas que adornavam a coroa, quase na base. E ao aquecer a quinta, a pérola se abriu e uma agulha finíssima apareceu velozmente, logo tomando a desaparecer quando Brigitte afastou a chama. Aplicou-a mais uma vez à pérola e reapareceu a agulha.
— É uma agulha envenenada — explicou ela.
— Com um veneno fulminante, como puderam verificar. A pérola foi fabricada por Max Helmut Dinkle. Quer dizer: depois de encontrar uma pérola idêntica à primitiva; ele a cortou e escavou, deixando-a completamente oca. Um ano de trabalho, senhores. A agulha e seu mecanismo são obra de Fedor Sikovian, engenheiro eletrônico e físico russo. Juntando os trabalhos desses dois homens, temos esta surpreendente pérola assassina, que se abre, deixando sair a agulha, quando recebe o calor de um corpo humano à temperatura normal. Um trabalho admirável em si mesmo, independente do fim a que se destinava. Um trabalho tão perfeito que nem os joalheiros de Ausvânia puderam notar nada de estranho na coroa, ou nesta pérola em particular. Um trabalho que durou um ano e pelo qual cada um cobrou quinhentos mil dólares americanos. Preço este que foi pago pelo príncipe Karl, Majestade.
Sandor III estava lívido, porém se mantinha sereno.
— O que diz foi comprovado. E agradeço-lhe ter-se incumbido de executar o traidor, miss Montfort. Teria sido terrível para mim condenar à morte meu próprio irmão.
— Ele condenou Vossa Majestade. Cinco homens, que já estão mortos, trabalhavam com ele. Rodol Armenayer era fiel a Vossa Majestade e quando descobriu o que esses cinco homens estavam fazendo, chamou o príncipe a uma casa em Mirka Strissa, sem suspeitar nem remotamente que quem tinha roubado a coroa era o próprio Karl. Assim, este foi lá e matou-o. Posteriormente, disse que o encontrara morto, mas mentia. Matou-o ele mesmo e depois, para que a coroa fosse encontrada, escreveu sobre o pó, na mesa em que deixou debruçado o cadáver de Armahayer, o nome do lugar onde ela estava: “Rikoria Kals”. Estas palavras seriam lidas pelo capitão Willon, se o meu amigo não as tivesse apagado. Mas, como o capitão Willon não pôde fazê-lo, verificou-se uma falha nos planos do príncipe Karl. Entretanto, eu o ajudei, também o meu amigo. Deve ter-lhe parecido muito providencial nossa ajuda e ele não teve dificuldade em matar Torkio Kirw. Saltou pela janela, os outros dois compreenderam que ele os traía e, quando saíram a persegui-lo, foram crivados de balas pelos soldados. O príncipe Karl estava transformado num herói. Um herói ao qual todos pediriam que ocupasse o trono de Ausvânia quando Vossa Majestade morresse no momento de cingir a coroa, vítima da maldição que conta a lenda. Por isso, ele e seus cúmplices no palácio roubaram a coroa: para que Max Helmut Dinkle pudesse engastar a pérola que continha o invento do físico russo Fedor Sikovian. Uma vez feito isto, era preciso reaver a coroa, claro. E quando o rei morresse não teria sido um atentado, nem um assassinato mais ou menos claro. Não. Teria sido pela maldição da coroa. E ninguém poderia ver, entre seus cabelos, a diminuta marca deixada pela agulha envenenada, novamente escondida na perola. Uma maldição que se cumpre, um novo rei. E nenhuma testemunha, já que tinham morrido os de “Rikona Kals”, Fedor Sikovian, Max Helmut Dinkle... E quando os dois homens que mataram o russo e o alemão regressassem, Karl os teria morto também e recuperado o milhão de dólares que deve ter reunido lentamente, em cédulas americanas. Um trabalho longo, elaborado dia após dia, durante um ano ou mais. Um trabalho implacável. Depois, ele seria o novo rei, cumprindo-se a lenda de que a coroa tinha que trocar de cabeça.
— O rei morreu... — murmurou Sandor III. — Viva o rei! Não é isso, miss Montfort?
— Sim, Majestade. Por favor, sua pistola, capitão.
Barno Willon não hesitou um instante. E com sua pistola, Brigitte golpeou aquela pérola mortal, que se desfez em pequenos pedaços, deixando ver o minúsculo aparelho ideado por Fedor Sikovian.
Em seguida, ela recolocou a coroa sobre o almofadão vermelho e olhou para Sandor III.
— O rei morreu, viva o rei! — disse com um sorriso. — Assim dizem os ingleses. Más a fórmula espanhola me parece mais expressiva: rei morto, rei posto. Logo serão onze horas, Majestade.
Sandor III assentiu com a cabeça.
— E seu amigo... Número Um?
— Ele está bem, esperando-me fora do palácio, ou talvez misturado com as pessoas que assistem à coroação. E eu, Majestade, com sua licença, retiro-me — sorriu docemente: — não quero por nada perder esta cerimônia. Aposto que será muito interessante. Quanto à pérola que falta na coroa, ninguém notará. E mais adiante: pérola quebrada, pérola nova. Com a permissão de Vossa Majestade...
Não Se Meter Em Encrencas
O “Alfa Romeo” deteve-se à entrada do amplo saguão do Aeroporto Internacional de Ausvânia. Número Um tirou as mãos do volante e voltou a cabeça para Brigitte.
— Aqui nos despedimos — murmurou.
— Sim... Aqui nos despedimos, Um.
— Não deixou ficar nada?
— Levo minha bagagem e todo o material referente à coroação já está em Nova Iorque, nas mãos de meu carrancudo chefe. Tudo bem, querido. E a coroação foi muito bonita. Pena que o irmão do rei não pudesse comparecer, por infecção mortal do ferimento recebido ao salvar tão heroicamente a coroa.
— Pelo menos — sorriu Número Um, sarcástico — morreu como um herói. Engraçado, você não acha? E o gorducho? Como conseguiu sair de sua suíte?
— Não me fale dele! Espero nunca mais vê-lo. Como saiu de lá? Telefonou para a gerência do hotel.
— Que explicação deu?
— Uma tão longa e complicada que o gerente ainda não sabe se está louco, ou se o louco é William Esley. Se você quer saber, eu mesma não entendi o que ele disse ter contado ao pobre gerente.
— E que disse ele a você?
— Pedi-lhe, desculpas por ter precisado sair precipitadamente, sem me lembrar dele, e disse... Oh, Um, que nos importa o que ele tenha dito, ou o que pensa o gerente?
— Abraçou-se a ele, que a beijou ternamente.
Depois ficaram em silêncio, olhando-se. Brigitte fez uma careta que queria ser um sorriso.
— Faltam poucos minutos para o avião decolar...
— Boa viagem — murmurou Um.
Ela pestanejou. Pareceu a ponto de dizer qualquer coisa, mas subitamente saiu do carro. Dois 6oys do aeroporto se adiantaram, incumbindo-se de sua bagagem. Já no avião, ela inclinou paia a janela e seu rosto defrontou o de Número Um, tostado pelo sol, taciturno, carrancudo.
— Até sempre, Um — murmurou.
Ele fez-lhe um aceno e se afastou.
Neste momento surgiu William Esley, correndo como um louco para o aparelho, com uma pasta na mão. Azar: ele soubera de sua partida. Corria como uma bola de neve, quase rolando. Soprava um vento gelado, forte e o céu estava cinzento. Flocos de neve caíam espaçadamente, com aquela mansidão inigualável, como acariciando a terra.
O gorducho conseguiu tomar o avião e começou a falar, a falar, a falar... Uma aeromoça apareceu a seu lado.
— Miss Montfort?
— Sim.
A aeromoça, sortindo, entregou-lhe uma caixa de celofane, que continha uma orquídea.
— Obrigada...
Um nó na garganta. Olhou pela janela. Número Um estava parado a distância, olhando-a. Alto, forte, os cabelos negros e um tanto longos ao vento, o jérsei negro, o grosso casaco de pele, as mãos nos bolsos, imóvel, viril... só. Com seus pensamentos, seu coração endurecido. Sempre só.
O avião estava se movendo. Número Um foi ficando para trás, mas sempre enchendo as pupilas de Brigitte, que começaram a arder.
Quando o aparelho já estava no ar, quando já não podia ver Número Um, voltou a cabeça para William Esley, olhos brilhantes por aquelas lagrimas que lhe estavam custando tanto esforço conter.
— Você estava dizendo, Willie?
— Estava dizendo que tudo isto foi sensacional e um pouco terrível. Refiro-me ao drama da coroa... Menos mal que nós dois não nos metemos em encrencas.
— Sim... Menos mal.
[1] Como já terá concluído o leitor, Ausvânia não existe. Uma vez mais, Lou Carrigan recorre a um país situado na parte central da Europa (nota do editor)
[2] Em OPERAÇÃO ESTRÊLAS, volume número 41 desta coleção, Número Um vive com “Baby” uma extraordinária aventura.
Lou Carrigan
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