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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REI RATO / China Miéville
REI RATO / China Miéville

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

REI RATO

 

Posso me espremer entre os prédios através de espaços que você sequer consegue ver. Posso seguir você tão de perto que minha respiração provoca arrepios na sua nuca e você nem vai me ouvir. Posso escutar os músculos em seus olhos se contraindo quando suas pupilas se dilatam. Posso me alimentar da sua imundície e viver na sua casa e dormir debaixo da sua cama e você só ficará sabendo se assim eu quiser.

Eu subo acima das ruas. Todas as dimensões da cidade estão abertas para mim. Suas paredes são minhas paredes e meu teto e meu chão.

O vento chicoteia meu sobretudo e o som é como o de roupa secando no varal. Mil arranhões tingem meus braços de eletricidade enquanto escalo telhados e ando entre densos bosques de chaminés. Tenho coisas a tratar esta noite.

Derramo-me como mercúrio pela beirada de um edifício e deslizo pelas calhas até o beco quinze metros abaixo. Escorrego silenciosamente por montes de lixo sob a luz sépia dos postes e quebro o lacre dos esgotos, arrancando o tampo de metal do asfalto sem um ruído.

Agora estou na escuridão, mas ainda posso ver. Posso ouvir o rugir da água através dos túneis. Estou até a cintura em sua merda, posso senti-la repuxando, posso cheirá-la. Conheço muito bem estes caminhos.

Estou indo para o norte, submerso na corrente; patinhando, me agarrando às paredes e tetos. Coisas vivas silvam e saltam para sair do meu caminho. Teço meu caminho pelos corredores úmidos sem hesitar. A chuva tem sido irregular e incerta, mas toda a água de Londres parece ansiosa para chegar ao seu destino esta noite. Os rios de tijolos do subterrâneo estão inchados. Eu mergulho sob a superfície e nado no escuro nauseante até que chega o momento de emergir e surgir das profundezas, pingando. Sem ruído, retorno às ruas.

Elevando-se sobre mim estão os tijolos vermelhos do meu destino. Uma grande massa escura interrompida por quadrados de uma luz irrelevante. Um brilho fraco na sombra dos beirais chama a minha atenção. Equilibro-me na esquina do edifício para facilitar a minha subida. Mais lento agora. O som da televisão e o cheiro de comida escoam pela janela; a mesma janela da qual me aproximo agora, que agora estou arranhando com minhas longas unhas, raspando; um som como o de um pombo ou um galho, um som intrigante, uma isca.

 

                   VIDRO

 

Os trens que entram em Londres chegam como navios que singram os telhados. Passam entre torres esticadas para o céu como animais marinhos de pescoços compridos, os grandes cilindros de gás chafurdando pelo mato sujo como baleias. Nas profundezas abaixo estão fileiras de pequenas lojas e franquias obscuras, cafés com a pintura descascando e comércios curvados no interior dos arcos que sustentam a passagem dos trens. As cores e curvas dos grafites marcam todas as paredes. Janelas dos andares superiores passam tão perto que os passageiros podem espreitar o interior de pequenos escritórios vazios e as prateleiras das lojas. Podem imaginar os contornos das pin-ups nas paredes, nos calendários.

 

É aqui que tocam os ritmos de Londres, na planície que se alastra entre os subúrbios e o centro.

 

Aos poucos as ruas ficam mais largas e os nomes das lojas e cafés tornam-se mais familiares; as estradas principais são mais salubres; o tráfego é mais denso; e a cidade se levanta para encontrar os trilhos.

 

No final de um dia de outubro um trem fez esta viagem rumo a King’s Cross. Tendo ao lado apenas o ar, ele avançou ao longo dos ermos do norte de Londres, a cidade crescendo debaixo dele na medida em que se aproximava da Holloway Road. As pessoas lá embaixo ignoravam sua passagem. Apenas as crianças olhavam para cima na direção do ruído e alguns dos muito jovens apontavam. Quando o trem se aproximou da estação, desceu abaixo do nível dos telhados.

 

Havia poucas pessoas no vagão para ver os tijolos emergirem ao seu redor. O céu desapareceu acima das janelas. Uma nuvem de pombos levantou-se de um esconderijo ao lado dos trilhos e zarpou para o leste.

 

O turbilhão de asas e corpos chamou a atenção de um jovem atarracado na parte traseira do compartimento. Ele vinha tentando não olhar abertamente para a mulher sentada à sua frente. Grossos por causa do alisante, seus cabelos tinham sido esticados a partir de seus caracóis originais e se apertavam como cobras em sua cabeça. O homem interrompeu sua furtiva observação quando percebeu os pássaros e passou as mãos pelo seu próprio cabelo, cortado bem curto.

 

O trem estava agora abaixo das casas. Provocou uma ferida através de um sulco profundo na cidade, como se os anos de passagem por ali tivessem desgastado o concreto sob os trilhos. Saul Garamond relanceou mais uma vez para a mulher sentada à sua frente e voltou sua atenção para as janelas. A luz no vagão as havia transformado em espelhos e ele fitou a si mesmo, o rosto pesado. Além de seu rosto estava uma camada de tijolos, vagamente visíveis, e depois disso os porões das casas que se erguiam como penhascos dos dois lados.

 

Fazia dias que Saul tinha estado na cidade. Cada chacoalhar dos trilhos o levava para mais perto de casa. Fechou os olhos.

 

Lá fora, o talho por onde os trilhos passavam ficou mais largo à medida em que a estação se aproximava. As paredes de cada lado eram pontuadas por alcovas escuras, pequenas cavernas cheias de lixo a poucos metros dos trilhos. Silhuetas de guindastes arqueavam sobre a linha do horizonte. As paredes em torno do trem se abriram. Trilhos serpenteavam para os dois lados enquanto o trem desacelerava e cortava seu caminho para King’s Cross.

 

Os passageiros se levantaram. Saul jogou sua bolsa por cima do ombro e se arrastou para fora do vagão. O ar gelado se estendia até os limites da grande abóbada no teto. O frio o sobressaltou. Saul se apressou através dos edifícios, em meio às multidões, desfiando seu caminho entre nós de pessoas. Ainda tinha um longo caminho a percorrer. Dirigiu-se para o metrô.

 

Podia sentir a presença da população ao seu redor. Depois de dias em uma barraca na costa de Suffolk, o peso de dez milhões de pessoas tão próximas a ele parecia fazer o ar vibrar. O metrô estava cheio de cores berrantes e carne nua, enquanto as pessoas iam para clubs1 e festas.

 

Seu pai provavelmente estaria esperando por ele. Ele sabia que Saul estava voltando e iria certamente fazer um esforço para ser acolhedor, dispensando sua habitual noite no pub para cumprimentar o filho. Saul já se ressentia por isso. Sentiu-se sem tato e cruel, mas desprezava as tentativas vacilantes de seu pai em se comunicar. Ele era mais feliz quando os dois evitavam-se. Ser grosseiro era fácil e soava mais honesto.

 

No momento em que o trem do metrô explodiu para fora dos túneis da Linha Jubilee já estava escuro. Saul conhecia o percurso. A escuridão transformava os escombros atrás da Finchley Road em uma mal vislumbrada terra de ninguém, mas foi capaz de preencher os detalhes que não podia ver, até mesmo as pichações e grafites. Burner. Nax. Coma. Já conhecia os nomes dos intrépidos rebeldezinhos que ali portavam seus marcadores mágicos; e sabia onde eles haviam estado.

 

A grandiosa torre do cinema de Gaumont State se projetava para o céu à sua esquerda, um monumento totalitário bizarro entre as quitandas baratas e outdoors da Kilburn High Road. Saul podia sentir o frio através das janelas e se embrulhou em seu casaco enquanto o trem se aproximava da estação Willesden. Os passageiros já escasseavam. Saul deixou apenas uns poucos para trás quando saiu do vagão.

 

Fora da estação ele se juntou à multidão para enfrentar o frio. O ar cheirava levemente a fumaça de alguma fogueira próxima, alguém limpando seu quintal. Saul partiu ladeira abaixo rumo à biblioteca.

 

Parou em uma lanchonete e comeu enquanto caminhava, movendo-se lentamente para evitar derramar o molho de soja ou os legumes sobre si mesmo. Saul estava triste pelo sol já ter se posto. Willesden se presta a pores-do-sol espetaculares. Em um dia como hoje, com poucas nuvens, seu horizonte baixo deixava a luz inundar as ruas, encharcando as mais estranhas fendas; janelas que, posicionadas frente a frente, refletiam os raios infinitamente entre si mesmas e os enviavam em direções imprevisíveis; fileiras e fileiras de tijolos brilhavam como se iluminadas por dentro.

 

Saul chegou às ruas mais transversais. Cambaleou pelo frio até que a casa de seu pai surgisse diante dele. Terragon Mansions era um feio quadrado vitoriano, baixo e de aparência intimidadora para o seu tamanho. Era fronteado por um jardim: uma faixa de vegetação suja frequentada apenas por cães. Seu pai morava no andar de cima. Saul olhou para o alto e viu que as luzes estavam acesas. Subiu as escadas e deixou-se entrar, olhando para a escuridão dos arbustos e matos dos dois lados.

 

Ignorou o enorme elevador de grades de aço, não querendo que seus gemidos o anunciassem. Em vez disso rastejou lances de escada acima e suavemente destrancou a porta de seu pai.

 

O apartamento estava congelando.

 

Saul estacou no hall e escutou. Podia ouvir o som da televisão por trás da porta da sala de estar. Ele esperou, mas seu pai ficou em silêncio. Saul estremeceu e olhou em volta.

 

Ele sabia que deveria entrar, deveria despertar seu pai do sono; e chegou mesmo a alcançar a porta. Mas parou e olhou para seu próprio quarto.

 

Zombou de si mesmo, aborrecido; mas, de qualquer forma, rastejou para lá.

 

Podia pedir desculpas pela manhã. Eu pensei que você estava dormindo, papai. Ouvi você roncando. Cheguei bêbado e caí na cama. Estava tão exausto que não teria sido uma boa companhia de qualquer maneira. Ele apurou os ouvidos e escutou somente as vozes de um dos programas noturnos de debates que seu pai tanto amava, abafadas e pomposas. Saul virou-se e deslizou para seu quarto.

 

O sono veio facilmente. Saul sonhou que estava frio e acordou uma vez no meio da noite para puxar seu edredom para mais perto. Sonhou com pancadas, um forte barulho de batidas, tão alto que o tirou do sono e então ele percebeu que era real, o som estava lá. A adrenalina correu através dele, fazendo-o tremer. Seu coração chacoalhou e ele cambaleou para fora da cama.

 

Estava gelado no apartamento. Alguém estava batendo na porta da frente.

 

O barulho não parava e o estava assustando. Ele tremia, desorientado. Ainda não estava claro. Saul olhou de relance para seu relógio. Passava um pouco das seis. Avançou às cegas pelo hall. O horrível bang bang bang era incessante e agora ele também podia ouvir gritos, distorcidos e ininteligíveis.

 

Ele lutou para se controlar e gritou:

 

– Quem é?

 

A batida não parou. Gritou novamente e desta vez uma voz se levantou acima do barulho.

 

– Polícia!

 

Saul lutou para limpar os pensamentos. Com um pânico súbito, pensou no pequeno punhado de maconha escondido em sua gaveta, mas aquilo era absurdo. Não era nenhum chefão das drogas, ninguém iria desperdiçar uma batida no meio da madrugada com ele. Estava se aproximando para abrir a porta, seu coração ainda em lágrimas, quando de repente lembrou-se de verificar se aquelas pessoas eram o que afirmavam, mas era tarde demais; a porta voou para trás e o jogou ao chão enquanto uma torrente de corpos vertia para o apartamento.

 

Calças azuis e sapatos grandes tomavam tudo à sua volta. Saul foi puxado para que ficasse de pé. Ele começou a atacar os intrusos. A raiva aumentou com o medo. Tentou gritar, mas alguém deu-lhe um soco no estômago e ele se dobrou. Vozes reverberavam em todos os lugares ao redor dele, sem fazer sentido.

 

       – ... frio pra cacete...

 

       – ... babaquinha arrogante...

 

       – ... merda de vidro, cuidado aí...

 

       – ... filho dele ou o quê? Ele deve estar doidão...

 

E acima de todas essas vozes ele podia ouvir a previsão do tempo, os tons alegres de uma apresentadora matinal de televisão. Saul lutou para virar-se e encarar os homens que o seguravam tão apertado.

 

– Que merda tá acontecendo? – ele engasgou. Sem falar, os homens o empurraram para a sala de estar.

 

A sala estava cheia de policiais, mas Saul olhou diretamente através deles. Primeiro viu a televisão: a mulher de terno claro o avisava de que hoje iria fazer frio novamente. Sobre o sofá havia um prato de massa congelada e um copo de cerveja cheio até a metade estava no chão. Rajadas de ar frio o atingiram e ele olhou para a janela, para além das casas. As cortinas ondulavam dramaticamente. Viu que cacos de vidro se espalhavam pelo chão. Quase não restava vidro na moldura da janela, apenas alguns fragmentos em torno das bordas.

 

Saul curvou-se com terror e tentou se forçar a ir até a janela.

 

Um homem magro vestido à paisana se virou e o viu.

 

– Para a delegacia agora – ele gritou para os captores de Saul.

 

Saul foi girado em seus calcanhares. O cômodo rodopiou ao redor dele como se estivesse em um brinquedo de parque de diversões; as fileiras de livros e pequenas fotos de seu pai correndo diante de si. Esforçou-se para se virar.

 

– Papai! – gritou. – Papai!

 

Foi puxado sem esforço para fora do apartamento. A escuridão do corredor foi ferida por estilhaços de luz que se derramavam para fora das portas. Saul viu rostos cheios de incompreensão e mãos segurando roupões enquanto era transportado para o elevador. Vizinhos de pijama olhavam para ele. Berrou para eles quando passou.

 

Ele ainda não conseguia ver os homens que o seguravam. Gritou com eles, implorando para saber o que estava acontecendo, pedindo, ameaçando e reclamando.

 

– Onde está meu pai? O que está acontecendo?

 

– Cala a boca.

 

– O que está acontecendo?

 

Algo bateu em seus rins, de leve, mas com a ameaça de uma força maior. “Cala a boca.” A porta do elevador se fechou atrás deles.

 

– O que aconteceu com meu pai, porra?!

 

No instante em que tinha visto a janela quebrada, uma voz dentro de Saul havia falado calmamente. Ele não tinha sido capaz de ouvi-la com clareza até agora. Dentro do apartamento, o arrastar brutal das botas e os palavrões a haviam sufocado. Mas aqui, para onde tinha sido arrastado, no relativo silêncio do elevador, ele podia ouvi-la sussurrando.

 

Morto, ela disse. Papai está morto.

 

Seus joelhos fraquejaram. Os homens atrás dele o seguraram na posição vertical, mas estava completamente fraco. Ele gemeu.

 

– Onde está meu pai? – pediu.

 

A luz do lado de fora era da cor das nuvens. Estrobos azuis giravam sobre uma massa de carros de polícia, manchando os edifícios monótonos. O ar congelado clareou os pensamentos de Saul. Ele puxou desesperadamente os braços que o seguravam enquanto lutava para ver sobre as cercas que rodeavam Terragon Mansions. Viu rostos olhando para baixo pelo buraco que tinha sido a janela de seu pai. Viu o brilho de um milhão de cacos de vidro que cobriam a grama moribunda. Viu uma massa de policiais uniformizados congelados em um diorama ameaçador. Seus rostos se voltavam para ele. Um deles segurava um rolo de fita coberta de avisos de cena do crime, uma fita que ele desenrolava ao redor de estacas fincadas no solo, circunscrevendo um pedaço da terra. Dentro da área escolhida, viu um homem ajoelhado diante de uma forma escura no gramado. O homem olhava para ele, como todos os outros. Seu corpo obscurecia a coisa desmazelada. Saul foi levado embora antes que pudesse ver mais.

 

Foi empurrado para um dos carros, agora tonto, pouco capaz de sentir qualquer coisa. Sua respiração era muito rápida. Em algum ponto do trajeto algemas foram encaixadas em seus pulsos. Gritou outra vez para os homens à frente, mas o ignoraram.

 

As ruas passaram por eles.

 

Puseram-no numa cela, deram-lhe uma xícara de chá e roupas mais quentes: um cardigã cinza e calças de veludo cotelê que fediam a álcool. Saul sentou-se, encolhido nas roupas de um desconhecido. Esperou por um longo tempo.

 

Deitou-se na cama, enrolado dentro do fino cobertor.

 

Às vezes ouvia a voz dentro dele. Suicídio, ela dizia. Papai cometeu suicídio.

 

Às vezes argumentava com ela. Era uma idéia ridícula, algo que seu pai nunca faria. Em seguida, ela o convencia e ele começava a hiperventilar e entrar em pânico. Fechou os ouvidos para a voz. Manteve-a calada.

 

Não iria escutar os boatos, mesmo se viessem de dentro dele.

 

Ninguém tinha dito por que estava lá. Sempre que ouvia passos do lado de fora, gritava, às vezes xingando, exigindo saber o que estava acontecendo. Algumas vezes os passos paravam e a grade da porta era levantada. “Pedimos desculpas pelo atraso”, uma voz dizia. “Falaremos com você assim que for possível” ou “Cala a porra da boca.”

 

– Vocês não podem me manter aqui – gritou em dado momento. – O que está acontecendo? – Sua voz ecoou por corredores vazios.

 

Saul sentou-se na cama e fitou o teto.

 

Uma fina rede de fendas se espalhava a partir de um dos cantos. Saul as seguiu com os olhos, deixando-se fascinar.

 

Por que você está aqui?, a voz lá dentro sussurrou nervosamente. Por que eles querem você? Por que não falam com você?

 

Saul sentou-se e olhou para as rachaduras e ignorou a voz.

 

Depois de um longo tempo, ouviu a chave na fechadura. Dois policiais uniformizados entraram, seguidos pelo homem magro que Saul tinha visto no apartamento de seu pai. O homem vestia o mesmo terno marrom e a mesma capa feia de couro curtido. Ele encarou Saul, que devolveu seu olhar por debaixo do cobertor sujo, abandonado e patético e agressivo. Quando o homem magro falou, sua voz era muito mais suave do que Saul teria imaginado.

 

– Sr. Garamond – disse ele. – Sinto muito ter que lhe contar que seu pai está morto.

 

Saul olhou fixamente para ele. Até aí, isso era óbvio, claro; ele teve vontade de gritar, mas as lágrimas o impediram. Tentou falar através da torrente que saía de seus olhos e nariz, mas não pôde emitir nada além de um soluço. Chorou ruidosamente por um minuto; em seguida, lutou para se controlar. Ele aspirou as lágrimas de volta como um bebê e limpou o nariz ranhoso em sua manga. Os três policiais o observaram impassíveis até que conseguisse se controlar um pouco mais.

 

– O que está acontecendo? – ele resmungou.

 

– Eu esperava que você pudesse nos contar, Saul– disse o homem magro. Sua voz permanecia quase impassível. – Sou o detetive-inspetor Crowley, Saul. Agora, vou lhe fazer algumas perguntas...

 

– O que aconteceu com meu pai? – Saul interrompeu. Houve uma pausa.

 

– Ele caiu da janela, Saul – disse Crowley. – É bem alto. Não acho que ele tenha sofrido. – Houve uma pausa. – Você não percebeu o que tinha acontecido com seu pai, Saul?

 

– Eu pensei que alguma coisa... eu vi no jardim... Por que estou aqui? – Saul tremia.

 

Crowley apertou os lábios e chegou um pouco mais perto.

 

– Bem, Saul, primeiro, me desculpe por tê-lo feito esperar tanto tempo. Tem estado muito agitado aqui. Imaginei que alguém fosse vir aqui e cuidar de você, mas parece que ninguém fez isso. Sinto muito por isso. Vou ter uma palavra com eles.

 

“Quanto ao porquê de você estar aqui, bem, estava tudo muito confuso por lá. Recebemos um telefonema de um vizinho dizendo que havia alguém caído na frente do prédio; entramos, lá estava você; não sabíamos quem você era... fácil ver como tudo fugiu ao controle. Enfim, para encurtar a história, você está aqui porque esperamos que possa nos contar a sua versão.”

 

Saul olhou para Crowley.

 

– Minha versão? – gritou. – Minha versão do quê? Eu cheguei em casa e meu pai...

 

Crowley o acalmou, as mãos para cima, aplacando, assentindo.

 

– Eu sei, eu sei, Saul. Mas acontece que temos que entender o que aconteceu. Quero que você venha comigo. – Deu um sorriso triste quando disse isso. Olhou para Saul sentado na cama; sujo, fedorento, em roupas de um estranho, confuso, belicoso, choroso e órfão. O rosto de Crowley vincou-se com o que parecia ser preocupação.

 

– Quero lhe fazer algumas perguntas.

 

1 Nightclubs; locais com pistas de dança.

 

Certa vez, quando tinha três anos, Saul estava sentado nos ombros de seu pai, voltando do parque para casa. Passaram por um grupo de trabalhadores que consertavam uma estrada e Saul enrolou as mãos nos cabelos de seu pai e inclinou-se e fitou a panela de alcatrão borbulhante para a qual o pai apontava: o pote fervilhante no furgão e o grande bastão de metal que eles usavam para misturar tudo. Seu nariz se encheu com o espesso cheiro de alcatrão e assim que Saul olhou para a gosma fervilhante ele se lembrou do caldeirão da bruxa em João e Maria e foi agarrado pelo súbito terror de cair no alcatrão e ser cozinhado vivo. E Saul se contorceu para trás e seu pai parou e perguntou a ele qual era o problema. Quando compreendeu, ele tirou Saul de seus ombros e andou com ele até os operários, que se apoiaram em suas pás e sorriram zombeteiros para a criança ansiosa. O pai de Saul inclinou-se e sussurrou um encorajamento em seu ouvido e Saul perguntou aos homens o que era o alcatrão. Os homens contaram que iriam espalhar aquilo em uma camada fina e colocar na estrada e mexeram o alcatrão enquanto seu pai o segurou. Ele não caiu lá dentro. Ainda estava com medo, mas não tanto como antes, e entendeu por que seu pai o tinha feito descobrir mais sobre o alcatrão – e ele tinha sido corajoso.

 

Uma caneca de chá com leite coagulava devagar na frente dele. Um policial de ar entediado estava junto à porta da sala vazia. Um resfolegar rítmico e metálico era emitido pelo gravador em cima da mesa. Crowley sentava-se à sua frente, de braços cruzados, o rosto impassível.

 

– Fale-me sobre seu pai.

 

O pai de Saul era atormentado por um desesperado embaraço sempre que seu filho chegava em casa com garotas. Era muito importante para ele não parecer distante ou antiquado e, em um erro de cálculo terrível, tentava colocar à vontade as convidadas de Saul. Ficava aterrorizado por achar que iria dizer a coisa errada. A luta para não escapulir para seu quarto o enrijecia. Permanecia de pé na entrada, constrangido, um sorriso amargo preso ao seu rosto, a voz firme e séria enquanto perguntava às apavoradas meninas de quinze anos como estavam indo na escola e se gostavam de lá. Saul olhava de soslaio para seu pai e mentalizava para que ele saísse. Ficava olhando furiosamente para o chão enquanto o pai, impassível, discutia sobre o tempo e aulas de Inglês de secundaristas.

 

– Ouvi dizer que vocês discutiram algumas vezes. É verdade, Saul? Conte-me sobre isso.

 

Quando Saul tinha dez anos, a hora de que ele mais gostava eram as manhãs. Seu pai saía cedo para trabalhar nas ferrovias e Saul tinha meia hora para si mesmo no apartamento. Ele costumava passear observando os títulos dos livros que seu pai deixava jogados por todas as superfícies: livros sobre dinheiro e política e história. Seu pai sempre prestava muita atenção a como Saul estava indo em História na escola, perguntando o que os professores haviam dito. Inclinava-se sobre sua cadeira, encorajando Saul a não acreditar em tudo o que seu professor de História lhe contasse. Costumava empurrar livros para o filho, olhar para eles, se perder em devaneios, pegá-los de volta, folhear as páginas, murmurar que Saul talvez fosse jovem demais. Perguntava ao filho o que pensava sobre os temas abordados. Levava as opiniões de Saul muito a sério. Algumas vezes essas discussões entediavam Saul. Mais frequentemente o faziam se sentir incomodado com a súbita confusão de ideias, mas inspirado.

 

– Seu pai alguma vez o fez sentir-se culpado, Saul?

 

Alguma coisa se envenenou entre os dois quando Saul tinha uns dezesseis anos. Tinha certeza de que isso era um embaraço que iria passar, mas uma vez que criou raízes a amargura não foi embora. O pai de Saul se esqueceu de como conversar com ele. Não tinha nada mais a ensinar e nada mais a dizer. Saul teve raiva da decepção do pai. Seu pai ficou desapontado com sua preguiça e sua falta de fervor político. Saul não conseguia fazer seu pai se sentir à vontade – e seu pai se decepcionava com isso. Saul parou de ir às passeatas e manifestações e seu pai parou de pedir que fosse. De vez em quando havia uma discussão. Portas batiam. Mas em geral, não havia nada.

 

O pai de Saul era péssimo em aceitar presentes. Nunca levou mulheres para o apartamento quando o filho estava lá. Quando um Saul de doze anos foi ameaçado na escola, o pai entrou lá sem aviso prévio e pregou um longo sermão para os professores, para profundo constrangimento de Saul.

 

– Você sente falta de sua mãe, Saul? É triste por não tê-la conhecido?

 

O pai de Saul era um homem baixo, com ombros poderosos e o corpo como uma grossa pilastra. Tinha ralos cabelos grisalhos e olhos cinzentos.

 

No Natal anterior, ele havia dado a Saul um livro de Lênin. Os amigos de Saul riram de quão pouco aquele homem que envelhecia conhecia seu filho, mas Saul não sentiu nenhum escárnio – apenas perda. Entendeu o que seu pai tentava lhe oferecer.

 

Seu pai queria resolver um paradoxo. Tentava extrair sentido do fato de seu brilhante e bem-educado filho deixar que a vida viesse até ele, ao invés de arrancar dela o que queria. Entendeu somente que seu filho estava insatisfeito. Isso lá era verdade. Na adolescência, Saul tinha sido um clichê vivo, mal-humorado e à deriva no tédio. Para seu pai, isso só podia significar que Saul estava paralisado perante um futuro apavorante e enorme, o todo de sua vida, o todo do mundo. Saul tinha emergido, passara ileso dos vinte, mas seu pai e ele nunca mais seriam capazes de conversar de verdade.

 

Naquele Natal, Saul sentou-se na cama e brincou com o pequeno livro em suas mãos. Era uma edição com encadernação de couro ilustrada com austeras xilogravuras de trabalhadores em suas labutas, uma peça bem bonita. Que Fazer?, exigia o título. Que fazer com você, Saul?

 

Ele leu o livro. Leu as exortações de Lênin de que o futuro deve ser agarrado, obtido com luta, moldado – e ele sabia que seu pai estava tentando explicar o mundo para ele, tentando ajudá-lo. Seu pai queria ser sua vanguarda. O que paralisa é o medo, seu pai acreditava, e o que gera o medo é a ignorância. Quando aprendemos, não temos mais medo. Isto é alcatrão e isto é o que ele faz; e este é o mundo e isto é o que ele faz, e isto é o que podemos fazer para ele.

 

Houve um longo período de perguntas suaves e respostas monossilábicas. Quase imperceptivelmente, o ritmo do interrogatório cresceu. Eu estava fora de Londres, Saul tentou explicar, eu estava acampando. Cheguei tarde, por volta das onze, fui direto para a cama, não vi meu pai.

 

Crowley foi insistente. Ignorou os queixosos subterfúgios de Saul. Ficou gradualmente mais agressivo. Perguntou a Saul sobre a noite anterior.

 

Crowley incansavelmente reconstruía a rota de Saul para casa. Saul sentia-se como se tivesse levado um tapa. Foi conciso, lutando para controlar a adrenalina que corria por ele. Crowley empilhava carne sobre as esqueléticas respostas que Saul lhe oferecia, vagando por Willesden com tal detalhe que Saul mais uma vez espreitava suas ruas escuras.

 

– O que você fez quando viu seu pai? – Crowley perguntou.

 

Eu não vi meu pai, Saul queria dizer, ele morreu sem que eu o visse, mas ao invés disso escutou a si mesmo a lamentar algo inaudível, como uma criança petulante.

 

– Ele o deixou irritado quando você o encontrou à sua espera? – Crowley disse, e Saul sentiu o medo se espalhar por ele a partir da virilha. Ele balançou a cabeça.

 

– Ele o deixou irritado, Saul? Vocês discutiram?

 

– Eu não o vi!

 

– Vocês brigaram, Saul? – uma sacudida de cabeça, não. – Vocês brigaram? – Não. – Brigaram?

 

Crowley esperou muito tempo por uma resposta. Em dado momento, apertou os lábios e rabiscou algo em um bloco. Olhou para cima e encontrou os olhos de Saul, desafiando-o a falar.

 

– Eu não o vi! Eu não sei o que você quer... Eu não estava lá! – Saul estava com medo. Quando, implorou para saber, eles iriam deixá-lo ir? Mas Crowley não disse.

 

Crowley e o policial o levaram de volta para a cela. Haveria outros interrogatórios, eles o avisaram. Ofereceram-lhe comida, que, em um ataque de petulância honrada, ele recusou. Não sabia se estava com fome. Sentiu como se tivesse esquecido de como perceber isso. – Quero dar um telefonema! – Saul gritou enquanto os passos dos homens morriam ao longe, mas não retornaram e ele não gritou novamente.

 

Saul deitou-se no banco e cobriu os olhos.

 

Estava com uma aguda consciência de todos os sons. Podia ouvir a tatuagem de pés no corredor muito antes de passarem pela sua porta. Conversas abafadas de homens e mulheres brotaram e morreram enquanto caminhavam por ali; uma gargalhada soou repentinamente de outra parte do edifício; carros estavam em movimento mais ao longe, seus murmúrios filtrados por árvores e muros.

 

Por muito tempo Saul ficou escutando. Iriam deixá-lo dar um telefonema?, ele se perguntou. Para quem iria ligar? Estaria preso? Mas esses pensamentos pareciam ocupar muito pouco de sua mente. Na maior parte do tempo, apenas se deitou e escutou.

 

Muito tempo se passou.

 

Saul abriu os olhos com um sobressalto. Por um momento não esteve bem certo do que tinha acontecido.

 

Os sons estavam mudando.

 

A profundidade parecia estar sangrando para fora de todos os ruídos do mundo.

 

Saul ainda podia reconhecer o que tinha ouvido antes, mas tudo estava vazando para apenas duas dimensões. A mudança foi rápida e inexorável. Como os curiosos ecos de guinchos que preenchem as piscinas, os sons estavam claros e audíveis, mas vazios.

 

Saul sentou-se na cama. Um ruído alto de arranhões o assustou: o barulho de seu peito contra o cobertor áspero. Ele podia ouvir a batida de seu coração. Os sons de seu corpo estavam cheios como sempre, não afetados pelo estranho vampirismo sônico. Pareciam artificialmente nítidos. Saul sentiu-se como uma colagem inepta afixada sobre o mundo. Moveu a cabeça lentamente de um lado para o outro, tocou as orelhas.

 

Um débil tamborilar de botas soou no corredor, lívido e ineficaz. Um policial passou pela cela, com passos não convincentes. Saul ficou de pé timidamente e olhou para o teto. A rede de fendas e linhas na pintura parecia se alterar, inquieta, as sombras em um movimento imperceptível, como se uma luz tênue estivesse sendo movida pela sala.

 

A respiração de Saul era rápida e rasa. O ar parecia elástico e esticado e tinha gosto de poeira.

 

Saul se moveu, cambaleou, tonto pela cacofonia de seu próprio corpo.

 

Acima dos murmúrios esmaecidos, passos lentos se tornaram audíveis. Como os sons que Saul fez, estes passos cortavam através do sussurro ambiente sem esforço, deliberadamente. Outros passos soaram apressadamente nas duas direções, mas o ritmo daqueles pés não se alterou. Moviam-se firmemente em direção à sua porta. Saul podia sentir as vibrações no ar ressecado.

 

Sem pensar, ele recuou para um canto da sala e fitou a porta. Os pés haviam parado. Não ouviu nenhuma chave na fechadura, mas a maçaneta se dobrou e a porta foi aberta.

 

O movimento parecia ter durado muito, muito tempo, a porta lutando caminho adentro pelo ar subitamente glutinoso. As queixas das dobradiças, emagrecidas pela doença, se propagaram muito depois da porta ter parado de se mover.

 

A luz do corredor era brilhante. Saul não podia identificar a figura que pisou em sua cela e gentilmente fechou a porta.

 

A figura ficou imóvel, até onde Saul podia perceber.

 

A luz da cela realizava apenas um trabalho rudimentar sobre o homem.

 

Como o luar ela esboçou nada mais que um contorno. Dois olhos cheios de escuridão, um nariz afilado e uma boca apertada.

 

Sombras caíam sobre o rosto como teias de aranha. Ele era alto, mas não muito alto; os ombros estavam comprimidos como se enfrentassem o vento, uma postura defensiva. O rosto vago era magro e marcado; os longos cabelos negros eram lisos e despenteados, caindo sobre os ombros tensos em coágulos desarrumados. Um casaco disforme de um cinza indiscriminado caía sobre roupas escuras. O homem enfiou as mãos nos bolsos. Seu rosto estava ligeiramente voltado para baixo. Olhava para Saul debaixo de suas sobrancelhas.

 

Um cheiro de lixo e animais molhados enchia a sala. O homem permaneceu imóvel, observando Saul do outro lado da sala.

 

– Você está seguro.

 

Saul teve medo. Mal tinha visto a boca do homem se mexer, mas o áspero sussurro ecoou em sua cabeça como se aqueles lábios estivessem a um centímetro de seu ouvido. Demorou um pouco para que entendesse o que tinha sido dito.

 

– O que você quer dizer? – ele disse. – Quem é você?

 

– Você está seguro agora. Ninguém pode alcançá-lo agora. – Um forte sotaque londrino, um ranger agressivo e dissimulado sussurrou bem no ouvido de Saul. – Eu quero que você saiba por que está aqui.

 

Saul sentiu-se tonto, engoliu a saliva espessa pelo catarro criado pela atmosfera. Ele não, ele não entendia o que estava acontecendo.

 

– Quem é você? – Saul assobiou. – É da polícia? Onde está Crowley?

 

O homem jogou a cabeça no que poderia ter sido uma negativa, um choque ou uma risada.

 

– Como você entrou? – exigiu Saul.

 

– Passei me arrastando por todos os menininhos de azul na ponta do pé, escorreguei na maciota na maior e me esquivei pelo caminho até esse seu cafofo esquisito. Você sabe por que está aqui?

 

Saul assentiu pateticamente.

 

– Eles acham...

 

– Os policiais acham que você matou seu papai, mas você não fez isso, eu sei. Claro, você vai gastar um bom tempo pra fazer com que acreditem nessa historinha...1 mas eu sei que não fez.

 

Saul estava tremendo. Afundou na cama. O fedor que tinha entrado com o homem era avassalador. A voz continuou, implacável.

 

– Estive observando você com cuidado, sabe. Checando coisas. A gente tem muita coisa pra falar, sabe. Eu posso... fazer um favor.

 

Saul estava absolutamente desnorteado. Seria esse um maluco vindo das ruas? Alguém doente da cabeça, muito cheio de álcool ou vozes para fazer algum sentido? O ar continuava tenso como a corda de um arco. O que esse homem sabia sobre seu pai?

 

– Eu não sei que porra é você – disse ele lentamente. – E eu não sei como você entrou nesse...

 

– Você não entende. – O sussurro ficou um pouco mais rude. – Escuta, camarada. Nós estamos fora daquele mundo agora. Mais duas pessoas e nada mais de coisas de pessoas, entendeu? Olha pra você – a voz enrouqueceu com nojo. – Sentado aí nesses trapos emprestados que nem um idiota, esperando pacientemente pra ser levado até os boiolas2. Acha que eles vão ser gentis com as suas encheções de saco? Vão enjaular você até que apodreça, menino idiota. – Houve uma longa pausa. – E então eu apareço, que nem um maldito anjo da guarda. Solto sua carcaça, sem problema. Aqui é onde eu moro, entendeu? Esta é a cidade onde eu moro. Ela compartilha todos os pontos da sua e deles, mas nenhuma das suas propriedades. Eu vou aonde quero. E tô aqui para explicar umas coisas pra você. Bem-vindo à minha casa.

 

A voz preencheu a pequena sala, sem dar a Saul espaço ou tempo para pensar.

 

O rosto sombrio se inclinou sobre Saul. O homem estava chegando mais perto. Movia-se em pequenas arrancadas, o peito e os ombros ainda tensos, aproximou-se pelos lados, ziguezagueou um pouco, chegou um pouco mais perto vindo de outra direção, sua postura ao mesmo tempo furtiva e agressiva.

 

Saul engoliu em seco. Sua cabeça estava leve, a boca ressecada. Lutou para cuspir. O ar estava árido e tão cheio de tensão que quase podia ouvi-lo, um lamento fraco como se o som da dobradiça da porta nunca tivesse se extinguido. Não conseguia pensar, apenas escutar.

 

A fedorenta aparição moveu-se um pouco para fora das sombras. O sobretudo sujo estava aberto e Saul teve um relance de uma camisa cinza mais leve por baixo, decorado com linhas de flechas pretas apontando para cima, condenado chic.

 

O ângulo da cabeça do homem era orgulhoso, os ombros esquivos.

 

– Não há nada que eu não saiba sobre Romeville, entende. Nem sobre Gay Parrí3, nem Cairo, nem Berlim, nem nenhuma cidade, mas Londres é especial pra mim, tem sido por muito tempo. Para de olhar pra mim e viajar, menino. Você não vai entender. Eu tenho rastejado por esses tijolos desde quando eram celeiros, depois moinhos, depois fábricas e bancos. Você não está olhando para uma pessoa, rapaz. Você deveria se considerar sortudo por eu estar interessado em você. Porque estou te fazendo um grande favor. – O monólogo rabugento do homem pausou teatralmente.

 

Aquilo era loucura, sabia Saul. Sua cabeça girava. Nada daquilo significava coisa alguma; eram palavras sem sentido, ridículas, ele deveria rir, mas algo no ar coalhado segurou sua língua. Ele não podia falar, não podia zombar. Percebeu que estava chorando, ou talvez seus olhos estivessem apenas umedecidos pela atmosfera estagnada da sala.

 

Suas lágrimas pareciam perturbar o intruso.

 

– Para de se lamentar sobre o seu pai gordo – ele cuspiu. – Acabou tudo, e você tem coisas mais importantes pra se preocupar.

 

Ele fez mais uma pausa.

 

– Podemos ir?

 

Saul olhou para cima com severidade. Finalmente alcançara sua voz.

 

– Do que você está falando? O que você quer dizer? – Ele estava sussurrando.

 

– Podemos ir? Eu disse. É hora de cair fora, é hora de se mandar, de vazar, de escapulir. – O homem olhou em volta conspiratório e escondeu a boca por trás das costas da mão em um melodramático sussurrar de palco. – Estou libertando você. – Endireitou-se um pouco e balançou a cabeça, aquele rosto indistinto balançando com entusiasmo. – Basta dizer que seu caminho e o meu se cruzam neste momento. Já tá o maior breu lá fora, dá pra sentir o cheiro, e parece que eles se esqueceram de você. Sem Tommy Tucker pra você4, ao que parece, por isso vamos dar adeus a esse moquifo graciosamente. Você e eu temos negócios a tratar, e esse não é o lugar para a sua realização. E se esperarmos muito mais tempo eles já terão engaiolado você como um bom membro do clube dos patricidas e comido a chave. Não há justiça aqui, eu sei. Então, deixa eu te perguntar mais uma vez... podemos ir?

 

Ele poderia fazer isso, percebeu Saul. Com uma admiração aterrorizada, percebeu que estava indo embora com essa criatura, que iria seguir esse homem, cujo rosto não podia ver, para dentro da delegacia, e os dois escapariam.

 

– Quem... o que... é você?

 

– Já te digo isso.

 

A voz tomou Saul e o fez perder as forças. O rosto magro estava a centímetros do seu, recortado pela lâmpada. Tentou enxergar através da escuridão ofuscante e discernir características mais claras, mas as sombras eram teimosas e sutis. As palavras o mesmerizaram como um feitiço, hipnóticas como dance music.

 

– Você tá na presença da realeza, camarada. Eu vou pra onde vão os meus súditos – e os meus súditos estão em toda parte. E aqui nas cidades existe um milhão de fendas para o reino deles. Eu preencho todos os espaços entre elas.

 

“Deixa eu te falar de mim.

 

“Eu posso ouvir as coisas não ditas.

 

“Eu conheço a vida secreta das casas e a vida social das coisas. Leio nas entrelinhas das paredes.

 

“Eu moro na velha cidade de Londres.

 

“Deixa eu te dizer quem eu sou.

 

“Eu sou o chefão do crime. Sou aquele que fede. Sou o chefe dos fuçadores de lixo, eu vivo onde você não me quer. Sou o intruso. Eu matei o usurpador, eu te levo sob minha custódia. Matei metade do seu continente uma vez. Eu sei quando seus navios estão afundando. Posso quebrar suas armadilhas em meu joelho e comer o queijo na sua cara e te deixar cego com o meu mijo. Eu sou o que tem os dentes mais duros do mundo, sou o menino que usa suíças. Sou o Duce dos esgotos, eu controlo o subsolo. Eu sou o rei.”

 

Em um movimento súbito, virou-se para a porta e derrubou o casaco dos ombros, revelando o nome grosseiramente gravado em estêncil preto na parte de trás da camisa, entre as fileiras de flechas.

 

– Eu sou o Rei Rato.

 

1 No original, “you’ll have a fine time getting them to Adam and Eve that”. Adam and Eve é uma expressão do dialeto urbano cockney, falado por ingleses das classes proletárias, que muitas vezes rimam com o seu sentido original. No caso de “Adam and Eve”, “believe”: “acreditar”.

2 No original, “waiting patiently to get took before the Barnaby”. Na gíria cockney, Barnaby pode significar alguém “flagrantemente homossexual”.

3 Romeville e Gay Paree: versão cockney dos nomes das cidades de Londres e Paris. Londres é chamada de Romeville por ter se iniciado como uma cidade romana, Londinium.

4 “No Tommy Tucker for you, it seems”. Tommy Tucker é um personagem das velhas cantigas infantis, como em “little tommy tucker sang for his supper” (“pequeno Tommy Tucker cantou para ganhar sua ceia”), representando alguém que ganha aquilo que merece. O personagem ultrapassou o âmbito das cantigas e virou uma figura retratada por grafiteiros e grupos de urban art, como um símbolo do artista e do revolucionário. Essa ambiguidade mescla bem os temas de fantasia e urbanidade de Miéville.

 

Bem longe, ao sul, em algum ponto no coração da cidade, uma sirene soou pesarosamente. O cheiro de fumaça ainda pairava no ar. Misturou-se aos gases dos exaustores e à baforada do lixo, que a noite havia tornado frios e até mesmo refrescantes.

 

Acima dos sacos pretos e ruas desertas subiam as paredes da região norte de Londres; acima das paredes, os telhados de ardósia; e, acima das ardósias, duas figuras: uma de pé sobre a ponta do telhado da delegacia como um alpinista, a outra agachada na sombra das antenas.

 

Saul apertou os braços em torno do corpo. A improvável figura de seu salvador assomou acima dele. Estava ferido. Suas roupas emprestadas tinham se esfregado no concreto muitas vezes durante a fuga, até que sua pele ficou ralada e sangrando, impressa em um baixo-relevo de tecido de algodão.

 

Em algum lugar nas entranhas do edifício sob seus pés estava a cela que há pouco havia desocupado. Pensou que a polícia já deveria ter percebido seu desaparecimento a essa altura.

 

Imaginou-os correndo freneticamente, procurando por ele, olhando para fora das janelas e enchendo toda a área com carros.

 

Ainda na cela, a figura grotesca que se apresentava como Rei Rato empalou Saul com suas declamações grandiloquentes e absurdas, tirando sua respiração e nublando seus pensamentos. Depois, fez mais uma pausa, arqueando os ombros ossudos defensivamente. E mais uma vez aquele convite, casual como um amante entediado em uma festa.

 

– Podemos ir?

 

Saul estaqueou, o coração fazendo seu corpo tremer, ansioso por seguir as instruções. Rei Rato esgueirou-se até a porta e gentilmente deu um puxão, abrindo-a, desta vez em silêncio. Com um movimento brusco, enfiou a cabeça na apertada fresta entre a porta e a soleira, torceu a cabeça exageradamente nas duas direções, depois levou a mão para trás sem se voltar e acenou para Saul. Algo mágico tinha vindo para tirá-lo dali e Saul seguiu em frente com culpa e esperança e excitação.

 

Rei Rato virou-se brevemente quando ele se aproximou e sem aviso jogou-o por cima dos ombros, como um bombeiro levando um ferido. Saul deixou escapar um latido de surpresa, mas Rei Rato apertou seu corpo contra o dele, deixando-o sem ar e chiando: – Calado.

 

Saul ficou quieto enquanto Rei Rato esgueirava-se com facilidade. Ele sacolejava para cima e para baixo enquanto a figura fedorenta marchava para fora da sala. Saul escutou.

 

Sua cabeça estava espremida contra as costas do outro. O cheiro de sujeira e animais o soterrou. Ouviu um gemido muito fraco quando a porta foi empurrada para que se abrisse mais. Fechou os olhos. A luz do corredor da delegacia brilhou, vermelha, através de suas pálpebras.

 

O ombro magro de Rei Rato fincou-se no estômago de Saul.

 

Através da carne da sua barriga, sentiu Rei Rato parar, depois caminhar macio para a frente sem fazer o menor ruído. Saul manteve os olhos bem fechados. Sua respiração vinha apenas em começos. Podia ouvir o tumulto, bem baixo, de pessoas à sua volta. Sentiu a pressão da parede sobre ele. Rei Rato estava abraçando as sombras.

 

De algum lugar à frente deles vieram passos, rápidos e implacáveis. A parede raspou os flancos de Saul enquanto Rei Rato afundou rapidamente para uma posição agachada e ali ficou, congelado. Saul prendeu a respiração. Os passos chegaram cada vez mais perto. Saul queria gritar sua culpa, sua presença, qualquer coisa para quebrar a tensão insuportável.

 

Com uma leve brisa e um momento de calor, as pegadas passaram.

 

A forma acinzentada voltou a se mover, um braço enrolado com força em torno das pernas de Saul. Rei Rato estava encurvado pelo peso do corpo imóvel de Saul, como um ladrão de sepulturas.

 

Rei Rato e sua carga passaram em silêncio pelos corredores. Mais e mais vezes passos se aproximaram, vozes, risadas. Toda vez Saul prendia a respiração; Rei Rato ficava imóvel enquanto as pessoas passavam impossivelmente perto, ao alcance do toque, sem vê-los.

 

Saul manteve os olhos fechados. Através de suas pálpebras ele podia ver as mudanças entre trevas e luz. Espontaneamente, sua mente desenhou um mapa da delegacia, interpretando-a como uma terra de contrastes gritantes e repentinos. Aqui há monstros, pensou, e sentiu-se ridiculamente perto de rir. Tornou-se extremamente consciente dos sons. Os ecos que ouvia ajudavam em sua cartografia sem forma, crescendo e minguando; as salas e corredores por onde foi carregado cresciam e encolhiam. Outra porta rangeu e se abriu e Saul foi mantido imóvel.

 

Os ecos esvaziavam a sala, mudavam de direção. O sacolejar do seu corpo aumentou. Sentiu-se içado para cima.

 

Saul abriu os olhos. Estavam em um estreito lance de escadas cinzentas, mofadas e mal iluminadas. Sons abafados vinham de cima e de baixo. Seu libertador carregou-o vários lances acima, andar após andar, janelas e portas sujas, em algum momento finalmente parando e dobrando seu corpo para que Saul pudesse desmontar. Saul lutou para sair do ombro ossudo e olhou em volta.

 

Tinham chegado ao topo do edifício. À sua esquerda havia uma porta branca através da qual batidas em um teclado podiam ser ouvidas. Não havia outro lugar para ir. Por todos os outros lados estava a parede suja.

 

Saul virou-se para seu companheiro. – E agora? – ele sussurrou.

 

Rei Rato girou e observou as escadas. Diretamente à sua frente estava uma grande janela gordurosa, muito acima do pequeno mezanino onde as escadas mudavam de direção.

 

Enquanto Saul observava, a figura cinzenta inclinou a cabeça e farejou a extensão de ar entre eles e a janela, a três metros de distância. Em uma explosão de movimento febril, fechou as mãos sobre o corrimão e saltou, montando nele, pé direito plantado abaixo do esquerdo, perfeitamente imóvel e equilibrado sobre o plástico inclinado. Parecia unir seus ombros, contraindo músculos e nervos incansavelmente um a um. Parou por um momento, o rosto astuto e obscuro contorcido em um sorriso ou uma careta, depois irrompeu para a frente em uma agitação silenciosa de membros, por um momento preenchendo o vão entre o mezanino e o teto. Ele voou pelo ar, agarrou as maçanetas da janela e pôs o pé na borda do pequeno parapeito. E, tão subitamente como havia se movido, ficou quase imóvel, uma forma bizarra de braços abertos sobre o vidro. Seu sobretudo era a única coisa em movimento, balançando suavemente.

 

Saul arfou, pousou a mão sobre sua boca, olhou temeroso por cima do ombro para a porta próxima.

 

Rei Rato estava se desenrolando sinuosamente. Seus membros longos se desembaraçaram e sua mão esquerda tranquilamente raspou a tranca da janela. Com um clique e uma rajada de frio, a janela se abriu. Com a mão direita ainda apoiada no peitoril, a bizarra aparição retorceu o corpo, puxando-o pouco a pouco através da estreita abertura. Ele se fez impossivelmente fino enquanto se espremia pela faixa vertical de escuridão que era tudo o que a janela tinha sido construída para abrigar. Sua passagem foi encantada como a de um gênio da lâmpada, agarrando-se tão apertado à moldura externa como tinha feito do lado de dentro, apoiado em poucos centímetros de madeira a uma altura de cinco andares; os olhos nublados fitavam Saul através do vidro sujo.

 

Apenas a mão direita do Rei Rato permanecia dentro da delegacia de polícia. Ela acenou para Saul. Do lado de fora, a figura negra respirou neblina sobre o vidro e então escreveu com o dedo indicador da mão esquerda. Escreveu ao contrário, de forma que as palavras apareceram da maneira certa para Saul.

 

Agora você, escreveu e esperou.

 

Saul tentou escalar até o corrimão. Saltou, ineficaz, as pernas escorregando para o chão. Agarrou-se desesperadamente e começou a tentar subir de novo, mas o peso de seu corpo o puxou. Estava começando a ofegar.

 

Olhou para a figura magra na janela. Aquela mão ossuda ainda se estendia para ele. Saul desceu até o mezanino. Achatando seu corpo o máximo que podia até o parapeito da janela, o outro balançou a mão para baixo, na direção de Saul, buscando alcançar o chão. Saul olhou para a pequena abertura sob a moldura da janela: não tinha mais de vinte centímetros de largura. Olhou para si mesmo. Era largo, um pouco carnudo. Colocou as mãos na cintura, olhou para a janela lá em cima novamente, olhou para a coisa esperando por ele do lado de fora e balançou a cabeça.

 

A mão estendida para ele agarrou o ar impaciente, apertava o nada em espasmos. Não aceitaria um não como resposta. Em algum lugar abaixo deles no prédio, uma porta bateu e duas vozes entraram na escadaria. Saul olhou sobre o corrimão, viu os pés e os topos das cabeças dois andares abaixo. Pulou de volta para fora do campo de visão. Os homens subiam na direção dele. A mão ainda tentava agarrá-lo; lá fora, o rosto sombrio estava distorcido.

 

Saul posicionou-se embaixo da mão, esticou os braços para cima e pulou.

 

Dedos fortes o pegaram em torno do pulso esquerdo, apertaram, escavando em sua carne. Ele abriu a boca para gritar, conteve-se, sibilou. Foi rebocado silenciosamente pelo ar, um pacote de sangue e carne e roupas. Outra mão deslizou em torno de seu corpo, um pé calçando botas se posicionou firme embaixo dele. Como seu vigoroso benfeitor o estava segurando? Saul entortou-se no ar e viu a janela se aproximando. Virou a cabeça para um lado, sentiu os ombros e o peito se travarem no espaço apertado. Mãos deslizavam sobre seu corpo, procurando apoio, facilitando sua passagem para o mundo exterior. Ele estava escorregando através da janela agora, seu estômago pressionado dolorosamente contra a tranca presa na moldura; mas se moveu sem problemas por aquele corte estreito e para o choque do ar frio lá fora.

 

Impossivelmente, foi liberto.

 

O vento o esbofeteou. Um hálito quente fez cócegas no seu pescoço.

 

– Suba – veio a ordem sussurrada, enquanto Saul era puxado para o ar. Saul subiu. Passou as pernas em torno da cintura fina do Rei Rato e jogou os braços sobre os ombros ossudos.

 

Rei Rato ficou de pé na estreita saliência, as botas agarradas precariamente à tinta da parede. Saul, que era muito maior, empoleirou-se nas costas dele, gelado de terror. A mão direita do Rei Rato segurava a moldura da janela; a mão esquerda estava agarrada a uma fenda absurdamente pequena acima de sua cabeça. Sobre eles subia uma extensão de tijolos de um a dois metros de altura, coroada por uma tira de calhas de plástico. Acima disso estava o telhado, as telhas íngremes demais para serem vistas.

 

Saul virou a cabeça. Seu estômago se lançou como uma âncora. Cinco andares abaixo dele estava o concreto cheio de lixo de um beco frio. O choque da vertigem fez Saul sentir-se mal. Sua mente gritava para que colocasse os pés no chão. Não é possível que ele se segure!, pensou. Não é possível que ele se segure! Sentiu o corpo ágil se mexer sob ele e quase gritou.

 

Saul ouviu vagamente as vozes na escadaria se aproximarem da janela, mas recuaram de repente assim que se sentiu em movimento de novo.

 

Rei Rato ergueu a mão direita da moldura da janela e alcançou um prego enferrujado na parede, de propósito há muito esquecido, envolvendo os dedos ao redor dele. Moveu então sua mão esquerda, que rastejou velozmente por caminhos invisíveis nos tijolos e argamassa até parar de repente e agarrar um ponto aparentemente arbitrário na superfície. Os dedos captavam pistas invisíveis e possibilidades da arquitetura.

 

Os pés com botas deram um passo para fora da saliência. Saul foi torcido para um lado enquanto Rei Rato jogou o pé direito por cima do ombro, sustentando a si mesmo e à sua carga usando apenas as juntas cerradas de seus dedos brancos. Seus pés tatearam na parede, investigando como tentáculos de polvo, até que encontraram uma oportunidade e se prenderam em alguma aberração menor, alguma imperfeição do tijolo.

 

Rei Rato alcançou aquele ponto com a mão direita, agarrando; depois a esquerda, depois a direita, desta vez segurando a borda da calha de plástico preto que marcava a fronteira entre tijolos e telhas. Ela rangeu queixosamente, mas, imperturbável, ele a agarrou com as duas mãos. Puxou os joelhos para a altura do estômago, os pés firmemente plantados contra os tijolos; pendurou-se com firmeza por um momento e então empurrou para cima com suas coxas, como um nadador.

 

Saul e Rei Rato deram uma cambalhota no ar. Saul ouviu-se lamuriar enquanto a parede, o beco lá embaixo, as luzes dos prédios, os postes de luz e as estrelas giravam em torno de sua cabeça. As calhas estalaram enquanto Rei Rato se agarrava a elas, as mãos no centro do círculo que seu corpo descrevia. Soltou a calha, os pés encontraram o telhado inclinado; dobrou-se para baixo para abafar o som e, torcendo seu corpo, caiu deitado sobre o telhado. Quase sem parar, escalou pelas telhas acima como uma aranha, com Saul segurando nele com tanta força que parecia que jamais conseguiria se soltar.

 

Rei Rato caminhou de quatro até a dobra do telhado, suas botas pesadas sem emitir som algum. Como um equilibrista na corda bamba a surreal figura então rastejou rapidamente ao longo do topo do telhado em direção às chaminés e a uma torre de apartamentos mais além. O terror tinha cimentado Saul ao seu corpo, seus dedos torcidos no tecido do sobretudo fedorento com a tenacidade do rigor mortis. Mas Rei Rato soltou-o com facilidade e balançou-o para fora de seus ombros, depositando-o, tremendo, sob a sombra da chaminé.

 

E ali Saul deitou.

 

Ficou ali tremendo durante vários minutos, com a forma pouco clara do homem magro que fez aquelas coisas impossíveis de pé acima dele, ignorando-o. Saul podia sentir uma parte de si mesmo entrando em choque, tremendo com um frio terrível, fora de qualquer proporção em relação ao vento da noite.

 

Mas o espasmo passou, a ameaça diminuiu.

 

Algo na insanidade daquela noite o acalmou. De que adiantou ter medo?, se perguntou. Tinha cancelado todo o bom senso meia hora antes e, com isso fora do caminho, estava livre para simplesmente mergulhar naquela noite carregada.

 

Gradualmente, Saul parou de arquejar. Ele se abriu. Olhou para Rei Rato, que ficou parado fitando a enorme torre acima deles.

 

Saul massageou-se com as mãos, depois, prendendo a respiração, levantou-se, um pé plantado de cada lado do vértice do edifício, oscilando com golfadas de vertigem. Firmou-se com a mão esquerda contra uma chaminé e relaxou um pouco. Rei Rato pôs os olhos sobre ele por um momento; em seguida, flanou para poucos metros mais longe, equilibrando-se no topo do telhado.

 

Saul olhou para o horizonte de Londres. Uma onda de euforia o atingiu e, em um crescendo, ele se balançou e ganiu com uma risada incrédula.

 

– É inacreditável! Que porra estou fazendo aqui em cima? – Girou a cabeça para olhar Rei Rato, que mais uma vez o estudava com olhos imprecisos. Rei Rato apontou brevemente sobre a massa de chaminés e Saul voltou-se, percebendo que aqueles olhos, afinal, não estavam fixos sobre ele. A lateral da torre de apartamentos mais além estava repleta de luzes.

 

– Olhe para eles – disse Rei Rato. – Nas janelas.

 

Saul olhou e viu, aqui e ali, figuras minúsculas passando apressadas, reduzidas a meros fragmentos de cor e movimento. No centro do edifício, um retalho de sombra permanecia quieto: alguém se inclinava para fora da janela de um dos apartamentos olhando para os montes e colinas de telhas nas quais Saul e Rei Rato estavam, coloridas de bronze em sua camuflagem noturna.

 

– Diga adeus para tudo isso agora – disse Rei Rato.

 

Saul virou a cabeça para encará-lo, zombeteiro.

 

– Aquele carinha ali, parado olhando, é o mais perto que você já chegou disso até agora. O lugar pra onde ele está olhando agora – não, nem está olhando, tem apenas um vislumbre, uma sugestão, sente uma provocação no canto dos olhos –, esse lugar é a sua casa agora, menino.– A emoção estava disfarçada no rosnar grave de Rei Rato, mas parecia satisfeito, como quem fez um trabalho bem feito. – O que resta, isso é só o meio do caminho pra você agora. Todas as ruas principais, os quartos da frente e o resto, é tudo só enchimento, é só palha, isso não é a cidade real. Você entra nela pela porta dos fundos. Eu vi você nas janelas, à noite, no finalzinho das luzes. Olhando pra fora, brincando de olhe-mas-não-toque. Bom, você tocou agora. Todos os lotes vagos e tal – esse é o chão que você pisa agora, sua área, sua toca, Saul. Isso é Londres.

 

“Você não pode voltar atrás agora, né? Fica comigo, garoto. Vou tomar conta de você.”

 

– Por que eu? – disse Saul lentamente. – O que você quer de mim? –, ele parou, lembrando-se, pelo que parecia ser a primeira vez em horas, porque ele estava na delegacia. – O que você sabe sobre o meu pai?

 

Rei Rato se virou e olhou para Saul com aquelas feições, já tão obscuras, agora invisíveis sob o luar. Sem tirar os olhos de Saul, afundou lentamente até que se sentou de pernas abertas sobre o cume do telhado, como um cavaleiro.

 

– Chega aí, camarada, que eu vou te contar a história. Você não vai gostar.

 

Saul abaixou-se cuidadosamente, encarando Rei Rato, e puxou-se para a frente até ficar a apenas meio metro de distância dele. Se alguém pudesse vê-los, Saul percebeu, os teria tomado por dois colegiais, figuras desajeitadas de uma história em quadrinhos, sentados com as pernas balançando. A alegria de Saul tinha se dissipado sem aviso prévio, como havia chegado. Ele engolia em seco, ansioso. Lembrava do pai. Essa era a chave para tudo, pensou; esse era o catalisador, a lenda que extrairia sentido das coisas surreais que o haviam apanhado aos borbotões.

 

Rei Rato falou e, tal como tinha acontecido na cela da polícia, sua voz assumiu um ritmo, uma monotonia desorganizada como o zumbido de uma gaita de fole. O sentido e o significado do que ele dizia se esgueiravam para a cabeça de Saul tanto por insinuação quanto por uma compreensão mais consciente.

 

– Isto aqui, Rome-vill, Londres, esta é a minha mansão, mas eu fico sempre onde quer que meus pequenos cortesãos encontrem grãos e lixo para mocozar1. E eles cumprem minhas ordens, porque eu sou o rei deles. Mas nunca estive sozinho, Saul; não, nunca foi desse jeito. Ratos acreditam em suas dádivas, em expelir ninhadas, quanto mais bocas pra furtar, melhor.

 

“O que você sabe sobre sua mãe, Saul?”

 

A pergunta o pegou de surpresa.

 

– O... o nome dela era Eloise... Ela era, uh, uma enfermeira... Ela morreu quando eu nasci, alguma coisa deu errado...

 

– Viu alguma lembrança? 2

 

Saul sacudiu a cabeça em confusão.

 

– Lembranças: retratos, fotos...

 

– É claro... ela é baixa e bem morena, bonita... Pra quê isso? O que você quer dizer?

 

– Às vezes, meu velho guri3, às vezes há ovelhas negras, bagunceiros, se é que me entende. Eu apostaria um bom dinheiro que você e seu pai estavam se atracando nas gargantas um do outro, às vezes, não tô certo? Não se davam tão bem como você esperava? Bom, você acha mesmo que com os ratos não é assim?

 

“Ela sempre foi de alta classe, sua mãe. Teve muito a oferecer ao seu papai, e ele a ela. Que beleza era ela, voluptuosa, quem teria deixado passar essa?” Rei Rato terminou sua frase com um floreio, torceu a cabeça e olhou para Saul de soslaio.

 

– Sua mãe fez uma escolha, Saul. Enfermeira! Isso foi uma piadinha insolente. Solte um ladrão pra pegar um ladrão, dizem, não é, e assim, do mesmo jeito, foi com ela. Era só entrar em algum lugar, dar umas cafungadas4 e sua mãe já sabia exatamente quantos ratos estavam lá, e onde. Reincidente, traidora, eles a chamaram, mas acho que é o tal poder do amor...

 

Saul estava incrédulo, olhando e encarando Rei Rato.

 

– Ela não foi feita pra figuras que nem você. Você a fez bater em retirada com a sua chegada. Você é um rapaz grande e forte, filho, mais forte do que provavelmente pensa. Há muito que você pode fazer que você não sabe. Aposto que olhou pra fora de todas aquelas janelas, à noite, por muito mais tempo e com muito mais intensidade do que qualquer um dos seus camaradas. Acho que você vinha esboçando como chegar a esta cidade, na real, por um longo tempo.

 

“Você quer saber quem fez aquilo com o seu velho, eu sei. Isso é que é petulância, quer dizer, aquele corpo esmagado na frente de casa, no jardim.

 

“Quem fez isso... ele estava atrás de você. Seu velho só ficou no caminho.

 

“Você é um garoto especial, Saul, tem sangue especial nas veias, e há alguém na cidade que gostaria de vê-lo derramado. Sua mãe era minha irmã, Saul.

 

“Sua mãe era um rato.”

 

1 No original, “found grain and rubbish to Tea Leaf”. Na gíria cockney, são usadas como substitutas palavras que rimam com as originais. Neste caso, “tea leaf” (folhas de chá) substituem “thief” (roubar).

2 No original, “Seen any Beechams?”. No jargão cockney das ruas, “beecham” ou “Beau Beecham” é uma pessoa apegada demais à figura materna; um “filhinho da mamãe”. Também pode denominar os objetos maternos.

3 No original, “me old China”.

4 No original, “one sniff of the I Suppose”: “uma cheirada com o nariz”. Mais uma vez, a substituição por uma palavra que rima com a original, “nose” (nariz).

 

Com essa alegação insana pairando no ar, Rei Rato balançou de volta sobre a carne de seu traseiro e calou-se.

 

Saul sacudiu a cabeça e lutou entre a incredulidade, a excitação e a repulsa.

 

– Ela era... o quê?

 

– Uma... merda... de um rato – Rei Rato falou lentamente. – Ela se arrastou pra fora dos esgotos porque ficou caidinha pelo seu pai. Mais trágico do que Romeu e Julieta. E ela era de sangue real, também, mas mesmo assim se mandou. Só que não conseguiu me despistar. Eu costumava vir vê-la uma vez ou outra; ela dizia que eu deveria ficar na minha. Quis deixar a velha vida pra trás, mas quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza. Não pôde ignorar o direito de primogenitura, entendeu? O sangue fala mais alto e o sangue dos ratos guincha.

 

Em algum lugar no negrume lá embaixo, um carro-patrulha acelerou, cuspindo luz azul.

 

– E desde que sua mãe foi pra baixo da terra eu tenho dado uma olhada em você: tentando te manter longe de confusões. Pra que serve a família, Saul? Mas parece que deu mais ou menos na mesma. Não se pode escapar do próprio sangue, Saul. Pelo jeito você foi encontrado – e seu pai teve que cair.

 

Saul sentou-se, quieto, olhando sobre os ombros de Rei Rato. As palavras, a mortal revelação entregue com pouco mais que um floreio, abriram uma porta dentro dele. Podia ver seu pai em centenas de imagens. E, como pano de fundo para todas aquelas memórias congeladas, Saul visualizava um poderoso e gordo corpo caindo em câmera lenta pelo ar da noite, a boca em um bocejo distendido por choque e terror, olhos revirados em uma busca frenética por segurança, cabelo ralo tremulando como a luz de velas, bochechas tremendo com a súbita mudança na gravidade, remando inutilmente com aquelas pernas grossas, centelhas dentadas de vidro girando ao seu redor enquanto ele voava em direção ao gramado escuro, o solo endurecido pelo gelo como a tundra.

 

A garganta de Saul travou-se e ele deixou escapar um pequeno som de dor. As lágrimas o espantaram com sua velocidade, inundando sua visão instantaneamente.

 

– Oh pai... – ele soluçou.

 

Rei Rato ficou enfurecido.

 

– Esquece isso, você não vai dar um tempo, porra?

 

Sua mão espalmou-se e ele bateu levemente no rosto de Saul.

 

– Ei. Ei. Chega, caralho.

 

– Não fode! – Saul encontrou sua voz enquanto fungava, chorava e limpava o nariz na manga do pulôver dado pela polícia. – Dá um tempo. Me deixa em paz...

 

Saul reincidiu em lágrimas pelo seu pai. Em sua solidão, bateu na própria cabeça, fechou bem os olhos como se estivesse sendo torturado, gemeu ritmicamente enquanto socava sua testa.

 

– Sinto muito pai me desculpe me desculpe... – ele cantava em meio ao choro silencioso. Suas palavras saíam deturpadas e confusas pelo isolamento e uma terrível raiva primitiva. Passou os braços em volta da cabeça, desesperado e sozinho em cima da telhado.

 

Pelo espaço entre seus braços, viu que Rei Rato não estava mais sentado na sua frente, mas tinha se levantado sem fazer um ruído e de alguma forma alcançado o outro lado do telhado, onde estava de pé olhando para Londres, evitando encarar Saul, cuja tristeza o irritava tanto. O corpo de Saul moveu-se soluçando, ao passo em que ele olhava por trás de suas mãos para a estranha figura empoleirada entre dois afloramentos de tijolos, Rei Rato. Seu tio.

 

Saul cambaleou para trás, ainda chorando, até sentir a pressão úmida da chaminé em suas costas. Olhou por cima do ombro e viu um ponto onde duas chaminés se encontravam, perto da borda do telhado, deixando um espaço entre elas, um cubículo no qual penetrou com uma rápida contorção. Encolheu-se neste pequeno espaço, isolado do céu e da vertiginosa queda nas laterais do edifício, fora da vista de Rei Rato. Estava tão cansado, a exaustão encharcava seus ossos. Ficou deitado de lado na inclinada e apertada câmara que tinha encontrado e cobriu a cabeça com as mãos. Chorou um pouco mais até que suas lágrimas tornaram-se mecânicas, como uma criança que esquece por que está chorando. Saul ficou ali, no declive de telhas sob as chaminés, sem comida em seu corpo, nas roupas arruinadas de outra pessoa, solitário e totalmente confuso, até que, espantosamente, adormeceu.

 

Quando acordou, o céu ainda estava escuro, com uma débil franja parda no leste. Não houve tempo para caprichosos estados matinais, nem espreguiçares lentos ou confusão, ou lerdas lembranças de onde estava e por quê. Abriu os olhos sobre os tijolos vermelhos e percebeu com um estremecimento de claustrofobia que estava cercado – e que enrolado em torno dele estava Rei Rato. Ele se levantou, pondo-se fora daquele abraço sem paixão, utilitário. Os olhos de Rei Rato estavam abertos.

 

– Dia, menino. Meio frio nessas primeiras horas. Achei que seria melhor partilhar um pouco de calor pra ajudar na soneca.

 

Rei Rato desenrolou-se e levantou-se, esticando cada membro individualmente. Agarrou o topo da chaminé mais alta e pendurou-se pelos braços, as pernas balançando. Olhou lentamente de um lado para outro, examinando o extenso breu urbano, antes de escarrar ruidosamente um bocado de catarro chaminé abaixo. Só então relaxou os braços e deixou-se cair no telhado de novo. Saul lutou com seus pés, que escorregavam na ladeira. Limpou ranho e remelas do seu rosto.

 

Rei Rato voltou-se para ele.

 

– Nós nunca terminamos nosso bate-papo. A gente foi... interrompido a noite passada. Você tem muita coisa pra aprender, camarada, e tá olhando pro professor, goste disso ou não. Mas, antes de tudo, vamos cair fora daqui. – Ele gargalhou: um ladrar sujo, gutural, que fez cócegas na orelha de Saul. – Eles estavam na tua cola ontem à noite1. Nenhuma sirene, percebe – não queriam avisá-lo, imagino, mas estavam frenéticos: carros e policiais correndo por aí com seus traseiros azuis, perdendo a linha, e o tempo todo eu estava aqui em cima espiando os rabos deles. – Deu nova gargalhada; o barulho dela, como tudo o que ele emitia, soando como se estivesse a poucos centímetros da orelha de Saul. – Oh, sim, sou um ladrão da mais alta estirpe. – Disse essa frase final com entonação afetada, como se declamando as falas em uma peça.

 

Saiu em disparada até a borda do telhado, impossivelmente firme naquele ângulo íngreme. Agarrado às calhas, perambulou um pouco ao redor da beirada, até que encontrou o que estava procurando. Virou-se e fez um gesto para que Saul o seguisse. Saul moveu-se ao longo do cume do telhado de gatinhas, com medo de se mostrar às telhas cinzentas de péssimo aspecto. Chegou ao ponto diretamente acima de Rei Rato e ali esperou.

 

Rei Rato mostrou os dentes. – Deslize pra baixo – sussurrou.

 

Com as duas mãos, Saul agarrou o pequeno cume de concreto no qual estava montado e balançou lentamente a perna até que todo o seu corpo estivesse deitado sobre o declive logo acima de Rei Rato. Neste ponto seus braços se rebelaram e não queriam soltá-lo. Rapidamente mudou de ideia e tentou puxar-se de volta pelo cume do telhado, mas seus músculos estavam paralisados pelo terror. Preso na superfície escorregadia, entrou em pânico. Seus dedos frágeis perderam a aderência.

 

Por um longo e doentio momento ele escorregou em direção à morte, até que encontrou a mão forte de Rei Rato. Foi colhido abruptamente, arrancado do telhado e rebocado para lá e para cá em um movimento terrível até ser largado com força em uma escada de incêndio de aço, logo abaixo.

 

O ruído da sua aterrissagem foi abafado e imaterial. Acima dele, Rei Rato sorria. Ainda se pendurava na beira do telhado pela mão esquerda, a direita estendida ao longo da escada onde havia depositado Saul. Enquanto Saul observava, ele se soltou e caiu pela curta distância até a grade de ferro da plataforma, suas grandes botas toscas pousando sem um só ruído.

 

O coração de Saul ainda estava apressado pelo medo, mas sua recente precipitação indigna o irritara.

 

– Eu... eu não sou um saco de batatas, merda – sussurrou em bravatas espúrias.

 

Rei Rato sorriu. – Você nem sabe pra onde fica o lado de cima, seu medrosinho. E, até que tenha aprendido mais um pouco, isso é exatamente o que você é.

 

Os dois se arrastaram escada abaixo, passando por porta após porta, descendo para o beco.

 

A aurora chegou logo. Rei Rato e Saul abriram caminho entre as ruas crepusculares. Assustado e excitado, Saul meio que esperava que seu companheiro repetisse as escapadas da noite passada e observou de um lado a outro as calhas e tetos de garagens, os acessos aos caminhos dos telhados. Mas desta vez permaneceram em terra firme. Rei Rato levou Saul através de canteiros de obras e estacionamentos desertos, por passagens estreitas disfarçadas de becos sem saída. Sua rota foi escolhida com um instinto que Saul não compreendia e não passaram por nenhum pedestre madrugador.

 

A escuridão diminuiu. A luz do dia, pálida e anêmica, já tinha feito o que podia para as sete da manhã.

 

Saul encostou-se na parede de um beco. Rei Rato parou emoldurado pela entrada da viela, o braço direito estendido tocando de leve os tijolos, a luz do dia ao fundo transformando-o em silhueta como o protagonista de um filme noir.

 

– Eu tô morrendo de fome – disse Saul.

 

– Eu também, filho, eu também. Tô morrendo de fome há um bom tempo. – Rei Rato inclinou-se para fora do beco. Olhava fixamente para uma linha indefinível de tijolos vermelhos, ao redor de um terraço. Cada telhado tinha em seu topo um dragão ameaçador: pequenos lampejos de entusiasmo no barro, agora quebrados e esfarelados. Suas feições lavadas pela chuva ácida.

 

Naquela manhã, a cidade parecia feita de ruas distantes.

 

– Tá legal – murmurou Rei Rato. – Hora da boia.

 

Rei Rato, com a figura sorrateira como a de um vilão vitoriano, pisou cuidadosamente a partir do ponto onde se escondia. Ergueu o rosto para o ar. Enquanto Saul observava, farejou forte duas vezes, torceu o nariz, virou o rosto um pouco para um lado. Gesticulando para que Saul o seguisse, Rei Rato saiu em disparada para a rua deserta e mergulhou em um vão entre duas casas. Na extremidade havia um muro de sacos pretos de lixo.

 

– Sempre siga o seu nariz.2– Rei Rato sorriu brevemente. Estava agachado no final da viela estreita, uma forma arqueada no fundo de um abismo de tijolos. Os muros à sua volta eram inescrutáveis, ininterruptos por janelas.

 

Saul aproximou-se.

 

Rei Rato estava rasgando um saco plástico. O rico cheiro de podridão foi liberado. Rei Rato mergulhou o braço no buraco e tateou lá dentro em uma perturbadora paródia de cirurgia. Puxou da ferida uma caixa de poliestireno. Ela pingava folhas de chá e gema de ovo, mas o logotipo de um hambúrguer ainda era visível. Rei Rato colocou-a no chão, alcançou o interior do saco de novo e puxou uma casca úmida de pão.

 

Ele empurrou o saco para o lado e alcançou outro, rasgando-o até que se abrisse. Desta vez sua recompensa foi a metade de uma torta de frutas, achatada e embebida em serragem. Ossos de frango e chocolate esmagado, restos de flocos de milho e arroz, cabeças de peixe e batatas fritas mofadas, os sacos produziram tudo isso, desaguando-os em uma pilha fedorenta no concreto.

 

Saul observou o monte de ruínas de alimentos crescer. Colocou a mão sobre sua boca.

 

–Você deve estar brincando – disse, engolindo.

 

Rei Rato olhou para ele.

 

– Pensei que você estivesse com fome.

 

Saul balançou a cabeça em horror, sua mão ainda firme sobre a boca.

 

Saul franziu o cenho para a pergunta. Rei Rato enxugou as mãos molhadas em seu sobretudo, acrescentando novos tons ao padrão de camuflagem das manchas escondidas no tecido cinza escuro. Ele cutucou a comida.

 

– Você não consegue se lembrar – disse ele, sem olhar para Saul. – Você não consegue se lembrar porque você nunca fez isso. Nunca vomitou nada. Você esteve doente, aposto, mas não como outros sujeitos. Nenhum resfriado ou espirro; só alguma doença esquisita que o fazia tremer por dias, uma ou duas vezes. Mas, mesmo assim, nenhum sinal de vômito. – Ele finalmente encontrou os olhos de Saul e sua voz caiu de tom. Sibilou para ele, algo parecido com vitória em sua voz. – Sacou? Sua barriga não vai se revoltar. Não vai enjoar comendo porco, nem se coberto de reboco; sem bile de chocolate pegajosa e doce em seu travesseiro na noite depois da Páscoa; nada de frutos do mar jogados sobre o piso, nem depois dos balanços do carro. Você tem sangue de rato nas veias. Não há nada que não possa digerir.

 

Houve um longo momento de silêncio enquanto os dois se entreolharam.

 

Rei Rato continuou.

 

– E tem mais. Não há gororoba que você recuse. Disse que estava morrendo de fome. Eu também; já faz um tempinho. Bom, aqui vamos nós. Tá sentado confortavelmente? Vou te ensinar o que é ser rato. Olhe para todo esse rango que o seu tio juntou pra você. Disse que estava morrendo de fome. Aqui está o lanche.

 

Rei Rato pegou a torta de frutas sem tirar os olhos de Saul. Levantou-a lentamente até a boca. Pedaços úmidos caíram de sua mão, passas umedecidas pelo longo tempo marinando em plástico preto. Ele abocanhou-a, migalhas irrompendo de sua boca enquanto exalava de satisfação.

 

Ele estava certo. Saul não conseguia lembrar-se de uma só vez em que houvesse vomitado. Sempre comeu muito, mesmo para a sua compleição, e nunca foi capaz de simpatizar com pessoas que colocavam seu alimento para fora. Histórias sobre larvas contadas enquanto ele comia risoto o deixavam inabalado. Nunca tinha sofrido após consumir muito açúcar ou gordura ou álcool. Isso nunca lhe tinha ocorrido antes; ele entendia quando os outros se queixavam de que alguma coisa os tinha deixado enjoados, mas nunca parara para pensar no que significava isso ou se era verdade.

 

Agora estava tirando fora aquelas camadas de hábito. Ficou observando Rei Rato comer. A figura magra não tirava os olhos dele.

 

Já fazia horas e horas desde que Saul tinha comido. Investigou a própria fome.

 

Rei Rato continuou mastigando. O cheiro de comida em colapso era esmagador – Saul olhou para as sobras e restos amontoados na frente dos sacos, as manchas de mofo, as marcas de mordida e a sujeira.

 

Começou a salivar.

 

Rei Rato continuou comendo.

 

Quando abriu a boca molhada, pedaços de bolo eram visíveis. – Você pode comer carne de pombo raspada da roda de um carro – disse ele. – Isto aqui é um rango bom.

 

A barriga de Saul rosnou. Agachou-se diante do monte de comida. Cautelosamente, pegou o hambúrguer inacabado. Cheirou. Estava frio há muito tempo. Podia ver as marcas de dentes através do pão. Escovou-o, limpou-o da sujeira o melhor que pôde.

 

Era úmido e pegajoso, a saliva ainda brilhava onde tinha sido mordido.

 

Saul colocou-o perto de sua boca. Deixou a mente brincar com a sujeira do lixo, esperando que seu estômago revirasse. Mas isso não aconteceu.

 

Sua mente ainda era tomada pelas admoestações ouvidas há muito tempo – não toque, é sujo, tire isso da boca; mas seu estômago, seu estômago se manteve firme. O cheiro da carne era sedutor.

 

Ele quis se sentir mal. Lutou pela náusea.

 

Deu uma mordida. Enrolou a língua na carne, abriu caminho entre as fibras. Sondou, provando a sujeira e a decadência. Pedaços de cartilagem e gordura se abriram em sua boca, misturando-se com sua saliva.

 

O hambúrguer era delicioso.

 

Saul engoliu e não se sentiu enjoado. Sua fome, ressentida, exigia mais. Deu outra mordida e outra, comeu cada vez mais e mais rápido.

 

Sentiu que algo o abandonava. Obteve sua força daquela carne velha e fria, comida que tinha se rendido a outras pessoas e à decomposição, e agora a ele. Seu mundo mudou.

 

Rei Rato assentiu com a cabeça e continuou a comer, pegou alguns punhados e empurrou-os boca adentro sem olhar para eles.

 

Saul estendeu a mão para uma asa de frango gordurosa.

 

Na rua, a apenas seis metros de distância, crianças apareciam em uniformes escolares grandes demais. Os tijolos e os sacos mantinham Saul e Rei Rato escondidos. Olhavam para cima quando as crianças passavam, em breves pausas no seu lanche.

 

Ficaram em silêncio enquanto comiam. Quando terminaram, Saul lambeu os beiços. O gosto de sujeira e carniça era muito forte em sua boca, e ele examinou esse fato com atenção, ainda imaginando por que aquilo não revirava seu estômago.

 

Rei Rato aninhou-se dentro dos sacos e puxou o casaco sobre o corpo.

 

– Sentindo-se melhor agora? – perguntou.

 

Saul fez que sim. Pela primeira vez desde sua súbita libertação, sentia-se calmo. Podia sentir os ácidos do estômago começando a trabalhar dentro dele, partindo a comida velha que havia devorado. Sentiu moléculas correndo para fora de seu intestino, carregando a estranha energia das ruínas de ceias e almoços de outras pessoas. Estava mudando de dentro para fora.

 

Minha mãe era como essa criatura, disse para si mesmo, essa coisa furtiva. Minha mãe era como esse mendigo de rosto magro com poderes mágicos. Minha mãe era um espírito, ao que parece, um espírito sujo. Minha mãe era um rato.

 

– Você não pode voltar atrás, sabe disso. – Rei Rato olhou para Saul por sob as pálpebras. Saul já há muito tempo tinha desistido de tentar encontrar sentido em suas características. A luz não caía em cheio sobre o rosto de Rei Rato, não importava onde ele estivesse. Saul relanceou para ele novamente, mas seus olhos não encontraram nenhum novo detalhe.

 

– Eu sei – disse.

 

“Eles acham que você deu cabo do seu pai e vão te caçar por causa disso. E, agora que você escapou por debaixo das barbas deles, vão querer arrancar as suas tripas.”

 

A cidade havia ficado perigosa. Saul sentiu-a bocejar diante dela, infinitamente mais vasta do que tinha imaginado, irreconhecível e furtiva.

 

– Mas, então... – disse Saul lentamente. Então, o que é Londres?, pensou. Se você pode ser o que você é, o que é Londres? Que é o mundo? Eu entendia tudo errado. Então lobisomens e trolls espreitam debaixo das pontes, nos parques? Quais são as fronteiras do mundo? – Então... o que eu faço agora?

 

– Bom, você não vai ter sua velha vida de volta, então vai ter que ir pra frente. Eu vou ter que te ensinar a ser rato. Você tem muita coisa a seu favor, filho. Prenda a respiração e fique bem firme, congelado como uma estátua... você fica invisível. Mova-se da forma certa, com graça nas pontas dos pés, você mal vai fazer algum ruído. Você pode ser como eu. No que diz respeito a você agora, para cima não é mais área proibida e para baixo não há nada a temer.

 

Não importava mais que ele não pudesse entender tudo. Inacreditavelmente, as palavras de Rei Rato retiraram a hesitação de Saul. Sentia-se crescer, mais forte. Estendeu os braços. Sentiu vontade de gargalhar.

 

– Sinto como se pudesse fazer qualquer coisa – disse. Estava tomado.

 

– Você pode, meu filho. Você é um menino rato. Só precisa aprender os truques. Vou te ajudar a ficar cascudo.3 Você e eu, juntos, somos dinamite. Temos um reino para recuperar.

 

Saul havia ficado de pé e olhava para a rua mais além. Ao ouvir as palavras de Rei Rato, ele se virou lentamente e olhou para a figura magra encasulada em plástico preto.

 

– Recuperar? – disse em, tom baixo. – Recuperar de quem?

 

Rei Rato meneou a cabeça. – Tempo – disse ele –, para usar uma palavra ao seu alcance. Por mais que eu odeie mijar no seu lanche, você está esquecendo de uma coisa. Você está nessa agora porque o seu velho deu aquele salto ornamental de seis andares – Rei Rato jovialmente ignorou o olhar horrorizado de Saul – e ele fez isso, a velha múmia,4 no seu lugar. Há algo lá fora que quer a sua cabeça, camarada, e é bom você ficar esperto e não se esquecer disso.

 

Saul tremeu nos joelhos. – Quem? –, ele sussurrou.

 

– Bom, essa é a questão, não é? Essa é a pergunta. E aí é aquela história: quem armou a ratoeira?

 

1 No original, “They were going hell for leather for you last night”. No jargão cockney, “hell for leather” significa “em uma velocidade espantosa”.

2 No original, “Always follow your I Suppose”.

3 No original, “We’ll cut your teeth”. Em linguajar cockney, “cut the teeth” (cortar os dentes) é ganhar experiência, aprender como o mundo funciona.

4 No original, “the old codger”. No jargão das ruas, “codger” significa alguém muito velho. É um acrônimo de “coffin dodger”, ou seja, alguém que vem “escapando do caixão”.

 

                         A NOVA CIDADE

 

Fabian tentava ligar para Natasha, mas sem sucesso. Ela havia tirado o fone do gancho. A notícia sobre o pai de Saul foi se espalhando entre seus amigos como um vírus, mas Natasha havia conseguido permanecer imune por algum tempo.

 

Era pouco depois do meio-dia. O sol estava brilhante, mas frio como a neve. Os sons de Ladbroke Grove eram filtrados ao longo das ruelas até o primeiro andar de um apartamento em Basset Road. Deslizaram pelas janelas e encheram a sala da frente, um murmúrio de cães e vendedores de papel e carros. Os sons eram fracos; eram o que se passava por silêncio na cidade.

 

No apartamento, uma mulher estava imóvel em frente a um teclado. Era baixa e de rosto severo, com sobrancelhas escuras que se encontravam acima de um nariz de cimitarra. Os longos cabelos eram escuros, a pele, pálida. Seu nome era Natasha Karadjian.

 

Natasha estava com os olhos fechados, ouvindo as ruas lá fora. Estendeu a mão e apertou o botão de ligar do seu sampler.1 Houve um baque de estática quando os alto-falantes clicaram para a vida.

 

Passou as mãos sobre as teclas e o cursor. Já estava imóvel por um minuto ou dois. Mesmo sozinha, sentiu-se constrangida. Natasha raramente deixava as pessoas assistirem enquanto criava sua música. Tinha medo de que a achassem pretensiosa, com sua preparação em silêncio e de olhos fechados.

 

Batucou uma mensagem em um punhado de pequenos botões, girou o cursor; seu espólio musical foi exibido no visor LCD. Rolou a tela pela seleção de sons e sacou uma de suas linhas de baixo favoritas, em uma entomologia digital. Ela havia arrancado aquele baixo de um velho reggae esquecido, sampleado, preservado, e agora o puxava de volta, o colocava em loop e dava-lhe uma nova vida. O som zumbi viajou pelas entranhas da máquina e saiu pelos cabos, através do grande estéreo negro em sua parede, explodindo pelos enormes alto-falantes.

 

O som preencheu o cômodo.

 

O baixo estava aprisionado. O sample2 terminava assim que o baixista estava prestes a atingir um crescendo e a expectativa era audível enquanto as cordas se aproximavam de algo indefinido, de um floreio... então, uma pausa e o ciclo começava de novo.

 

Essa linha de baixo estava no purgatório. Explodia em um surto recorrente de excitação, à espera de uma liberação que nunca chegava.

 

Natasha balançou a cabeça lentamente. Esse era o breakbeat,3o ritmo da música torturada. Ela amava aquilo.

 

As mãos se moveram de novo. Uma batida sincopada se juntou ao baixo, pratos ruidosos como insetos. E então o loop.

 

Natasha mexeu seus ombros no ritmo. Os olhos arregalados enquanto procurava entre seus cadáveres, seus sons em conserva, até encontrar o que queria: um trecho de trompete de Linton Kwesi Johnson, um lamento de Tony Rebel, um grito de Al Green. Deixou-os cair em sua composição. Eles se mesclaram à perfeição com o baixo esférico, as batidas ruidosas.

 

Aquilo era jungle.4

 

O filho do house5, o filho do raggamuffin6, o filho do dancehall7, a apoteose da música negra, a trilha sonora drum and bass para uma Londres de conjuntos habitacionais e paredes sujas, jovens negros e jovens brancos, meninas armênias.

 

A música não fazia concessões. O ritmo foi roubado do hip hop, nascido do funk8. As batidas eram rápidas, rápidas demais para dançar a não ser que você estivesse conectado. Era a linha de baixo, que você seguia com os pés; a bassline deu ao jungle a sua alma.

 

E acima da linha de baixo estava o outro lado do jungle: o agudo. Acordes roubados e gritos que cavalgavam as ondas de baixo como surfistas. Eram fugazes e brincalhonas, fragmentos de som que surgiam piscando e deslizavam sobre a batida, traçando seus contornos, então piscavam até ir embora.

 

Natasha meneou a cabeça de satisfação.

 

Podia sentir o baixo. Conhecia-o intimamente. Buscou mais sons para colocar no topo, queria algo perfeito, um leitmotiv que se entrelaçasse pelas batidas.

 

Conhecia as pessoas que dirigiam os clubes e elas sempre tocavam suas músicas. As pessoas gostavam muito de suas faixas, lhe davam respeito e trabalho. Mas sentia uma vaga insatisfação com tudo o que escrevia, mesmo quando a sensação era perpassada por orgulho. Quando terminava uma faixa, não sentia purgação ou alívio, apenas um ligeiro desconforto. Natasha saía por aí, saqueando as coleções de discos de seus amigos em uma tentativa de achar os sons que queria roubar; ou criava seus próprios sons em seu teclado, mas nunca a tocavam tanto quanto o baixo. O baixo nunca se evadia dela; bastava buscá-lo e ele pingava de seus alto-falantes, completo e perfeito.

 

A faixa se aproximava de um crescendo agora: Gwan, exortou uma voz sampleada, Gwan gyal9. Natasha quebrou a batida, extraindo o ritmo, aparando-o. Arrancou a carne dos ossos da melodia e os samples ecoaram na caixa torácica, na barriga da batida. Come now… we rollin’ this way, mdebwoy…10 Emudeceu os sons, um a um, até que só restasse o baixo. Ele havia introduzido a canção; também a fez despedir-se.

 

O cômodo ficou em silêncio.

 

Natasha esperou um tempo até que o silêncio urbano de crianças e carros penetrasse em seus ouvidos novamente. Olhou para o cômodo ao redor. Seu apartamento possuía uma cozinha pequena, um banheiro minúsculo e o belo quarto grande onde estava agora. Havia colocado sua magra coleção de gravuras e pôsteres nos outros quartos e na sala; as paredes ali estavam quase nuas. O próprio quarto estava vazio, exceto por um colchão no chão, a desajeitada estante preta que sustentava seu estéreo e seu teclado. Cabos e fios pretos cruzavam o chão de madeira.

 

Esticou a mão e colocou o telefone de novo no gancho. Estava prestes a entrar na cozinha quando a campainha tocou. Natasha atravessou a sala até a janela aberta e se inclinou para fora.

 

Um homem estava parado em frente à sua porta, olhando para cima, diretamente para seus olhos. Teve o breve vislumbre de um rosto magro, olhos brilhantes e longos cabelos loiros, antes de trazer o corpo de volta para a sala e descer as escadas. Não parecia ser uma testemunha de Jeová ou um encrenqueiro.

 

Andou pelo encardido corredor do edifício. Através do vidro ondulado da porta da frente, podia ver que o homem era muito alto. Abriu a porta com um puxão, permitindo a entrada de vozes da casa ao lado e da luz do dia que inundava a rua.

 

Natasha olhou para aquele rosto estreito. O homem tinha cerca de dois metros de altura, passando-a em quase trinta centímetros, mas era tão magro que parecia que sua cintura iria se partir em dois a qualquer momento. Tinha, provavelmente, uns trinta anos, mas era tão pálido que ficava difícil dizer. Seu cabelo era de um amarelo doentio. A palidez do rosto era exagerada por sua jaqueta de couro preta. Teria parecido bem doente se não fossem seus brilhantes olhos azuis e seu ar de inquieta animação. Começou a sorrir antes mesmo da porta estar totalmente aberta.

 

Natasha e seu visitante olharam um para o outro, ele sorrindo, ela com uma expressão cautelosa, interrogativa.

 

– Genial – ele disse subitamente.

 

Natasha encarou-o.

 

– A sua música – disse ele. – Genial.

 

A voz do homem era mais profunda e rica do que ela teria imaginado pela sua silhueta tão delgada. Um pouco ofegante, como se estivesse correndo para pegar as palavras. Olhou para ele e seus olhos se estreitaram. Aquela era uma forma muito bizarra de começar uma conversa. Ela não entendia.

 

– O que você quer dizer? – disse, sem alterar a voz.

 

Ele sorriu, desculpando-se. Suas palavras desa-celeraram um pouco.

 

– Estava ouvindo sua música – ele disse. – Passei por aqui na semana passada e escutei você tocando lá em cima. Vou te dizer, fiquei aqui embaixo parado com a boca aberta.

 

Natasha estava embaraçada e surpresa. Abriu a boca para interromper, mas ele continuou.

 

– Eu voltei e escutei de novo. Me deu vontade de sair dançando aqui no meio da rua! – riu. – Então ouvi você parar no meio da música e percebi que na verdade alguém estava tocando enquanto eu escutava. Pensei de início que fosse um disco. Foi emocionante perceber que você estava lá em cima realmente fazendo a música.

 

Natasha finalmente falou.

 

– Isso é bem... lisonjeiro. Mas você bateu na minha porta só para me dizer isso? – O homem a deixava nervosa com aquele sorriso animado e a voz ofegante. Apenas a curiosidade a impedia de fechar a porta. – Eu não tenho um fã-clube ainda.

 

Ele a fitou e a natureza do seu sorriso mudou. Até aquele momento tinha sido sincero, quase infantil na sua empolgação. Lentamente, os lábios se fecharam por uma fração a mais, escondendo os dentes. Endireitou as costas longas e suas pálpebras deslizaram até a metade dos olhos. Inclinou a cabeça ligeiramente para um lado, sem tirar os olhos dela.

 

Natasha sentiu uma onda de adrenalina. Olhou para ele em choque. A mudança que tinha percebido era extraordinária. Ele a encarava agora com um olhar tão sexual, tão casualmente íntimo, que ela teve vertigens.

 

Ela ficou furiosa. Balançou a cabeça um pouco e se preparou para bater a porta. Ele a manteve aberta. Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, a arrogância dele tinha sumido e a aparência anterior estava de volta.

 

– Por favor – disse ele, rapidamente. – Me desculpe. Não estou me explicando direito. Estou nervoso porque eu... vinha tentando tomar coragem para falar com você.

 

“Você entende”, ele continuou, “o que você está tocando é bonito, mas às vezes parece um pouco – não fique com raiva – um pouco inacabado. Eu meio que sinto que os agudos não estão... funcionando muito. E eu não diria isso para você, só que eu também toco um pouco e então pensei que talvez pudéssemos nos ajudar um ao outro.”

 

Natasha deu um passo atrás. Sentia-se intrigada e ameaçada. Sempre era muito reservada em relação a sua música, recusando-se a discutir sobre isso com quase todo mundo, exceto com os amigos mais próximos. As intensas mas vagas frustrações que sentia eram raramente verbalizadas, como se ao fazer isso fosse dar-lhes forma. Optou por mantê-las à distância, obscurecidas, tanto de si mesma quanto dos outros, e agora esse homem parecia desembrulhá-las com uma naturalidade enervante.

 

– Você tem uma sugestão? – ela disse, da maneira mais ácida que pôde. Ele levou uma mão para trás e pegou uma caixa preta. Balançou-a na frente dela.

 

– Isso pode soar um pouco arrogante – disse ele – e eu não quero que você pense que eu acho que posso fazer melhor do que você. Mas, quando ouvi sua música, eu soube que poderia complementá-la. – Ele desabotoou o fecho da caixa e abriu-a ali mesmo. Ela viu uma flauta desmontada.

 

– Eu sei que você pode achar que sou maluco – ele antecipou às pressas. – Você acha que o que você toca é totalmente diferente do que eu toco. Mas... eu tenho procurado baixos como os seus por mais tempo do que você acreditaria.

 

Ele falou sinceramente agora, as sobrancelhas franzidas enquanto mantinha um certo olhar. Ela olhou para trás teimosamente, recusando-se a ser intimidada por essa aparição à sua porta.

 

– Eu quero tocar com você – ele disse.

 

Aquilo era estúpido, Natasha disse a si mesma: ainda que esse homem não fosse arrogante até dizer chega, não se pode acompanhar Jungle com flauta. Fazia tanto tempo que ela tinha visto um instrumento tradicional que sentiu uma rajada de dèja vu: imagens suas, aos nove anos de idade, batendo no xilofone na orquestra da escola. Flautas significavam entusiasmadas cacofonias nas mãos de crianças ou a paisagem exótica da música erudita, um mundo intimidador de grande beleza mas de uma exclusão social perversa, do qual ela nunca havia sabido as senhas.

 

Mas, para sua surpresa, esse estranho magricela a tinha impressionado. Ela queria deixá-lo entrar e ouvi-lo tocar sua flauta em seu quarto. Queria ouvi-lo tocar sobre algumas das suas linhas de baixo. Bandas indie dissonantes tinham feito isso, claro: My Bloody Valentine11 usou flautas. E, se o resultado a havia deixado impassível como o resto daquele gênero, com certeza a aliança em si não era mais improvável do que esta. Ela percebeu que estava intrigada.

 

Mas não iria simplesmente deixá-lo entrar. Tinha a reputação de ser intimidadora. Não estava acostumada a sentir-se tão desarmada, e suas defesas se ativaram.

 

– Escute – disse lentamente. – Eu não sei o que você acha que o qualifica para falar das minhas faixas. Por que eu deveria tocar com você?

 

– Tente uma vez – disse ele, e mais uma vez aquela mudança repentina inundou suas maneiras, o mesmo sorriso enrolado na ponta dos lábios, as mesmas pesadas pálpebras indiferentes sobre os olhos.

 

E Natasha ficou subitamente furiosa com aquele babaquinha pretensioso de escola de arte, lívida, ainda que há pouco estivesse fascinada; e ela se esticou para frente e para cima na ponta dos pés, até que seu rosto estivesse o mais perto possível do dele; levantou uma sobrancelha e então disse: – Acho que não.

 

Bateu a porta na cara dele.

 

Natasha subiu de volta as escadas. A janela estava aberta. Ficou ao lado dela, perto da parede, olhando para a rua lá em baixo sem se colocar à vista. Não podia ver sinal algum do homem. Caminhou lentamente até o seu teclado. Sorriu.

 

OK, seu merda arrogante, pensou. Vamos ver se você é bom.

 

Ela abaixou o volume ligeiramente e puxou um outro ritmo de sua coleção. Desta vez, a bateria chegou quebrando tudo, vinda de lugar nenhum. O baixo surgiu perseguindo-a, preenchendo a caixa e emoldurando o som com um pano de fundo funky. Adicionou alguns gritos minimais e fragmentos de metais, transformou em loop um momento de trompete, mas os agudos foram subjugados; uma oferta para o homem lá fora; era tudo uma questão de ritmo.

 

Os beats fizeram loop uma vez, duas vezes. Então, veio navegando da rua um fino fragmento de música, um trinado de flauta que imitou a repetição em loops de sua música, mas elaborou sobre si mesmo, mudando um pouco a cada ciclo. Ele estava de pé embaixo de sua janela, seu instrumento montado às pressas nos lábios.

 

Natasha sorriu. Ele tinha se saído bem em sua arrogância. Ela teria ficado decepcionada com o contrário.

 

Ela descascou a música até sobrar apenas o beat e o deixou em loop. Chegou para trás e escutou.

 

A flauta deslizava sobre a bateria, provocando a batida, tocando apenas o necessário para que pudesse se ancorar e, em seguida, transportar-se. De repente, tornou-se uma série de sons pulsantes em staccato. Assobiou entre bateria e baixo, ora chorando como uma sirene, ora gaguejando como código Morse.

 

Natasha estava... não maravilhada, talvez, mas impressionada.

 

Fechou os olhos. A flauta subia e mergulhava; enchia com carne o esqueleto de sua música de uma maneira que ela nunca teria conseguido. A vida na música ao vivo era exuberante e neurótica e aquilo tirou fagulhas do baixo redivivo, a muito viva dança com os mortos. Havia uma promessa nessa tensão.

 

Natasha assentiu. Estava ansiosa para ouvir mais, para alimentar aquela flauta com a sua música. Sorriu ironicamente. Iria admitir a derrota. Desde que ele se comportasse, desde que não houvesse muitos daqueles olhares íntimos, ela admitiria que queria ouvir mais.

 

Natasha passeou silenciosamente de volta escada abaixo. Abriu a porta. Ele estava parado a poucos metros, a flauta nos lábios, olhando para o alto, para a sua janela. Parou quando a viu e baixou as mãos. Nem vestígio de um sorriso agora. Parecia ansioso por aprovação.

 

Ela inclinou a cabeça e deu-lhe um olhar enviesado. Ele, imóvel.

 

– OK – disse ela. – Vou aceitar. – Ele finalmente sorriu. – Natasha. – Ela mostrou a si mesma com o dedo.

 

– Pete – o homem alto disse.

 

Natasha abriu passagem e Pete entrou em sua casa.

 

1 Sampler: instrumento capaz de gravar digitalmente sons ambientes ou fragmentos sonoros, armazenando-os para que possam ser tocados em um teclado e/ou repetidos por um sequenciador.

2 Sample: o fragmento sonoro gravado por um sampler. O som “sampleado”.

3 Breakbeat: literalmente, “batida quebrada”. É um fragmento sonoro de uma bateria, que faz a passagem de um compasso para outro. A “virada” da bateria. Em certos tipos de música eletrônica, o breakbeat deixa de ser mera “virada” e se torna a própria base rítmica, o tapete sobre o qual a música trafega. É a célula de gêneros como jungle, hip hop e breakbeat.

4 Jungle: gênero de música eletrônica surgido em Londres no início dos anos 90, composto de breakbeats (normalmente de 160 a 190 BPM, batidas por minuto), linhas de baixo bem graves e ocasionais sons subgraves. O drum and bass é uma variação, para alguns, mais domesticada e jazzística.

5 House: gênero de música eletrônica que se originou em Chicago, em meados dos anos 80. Tem influências de soul, funk e disco, com uso de baixo sintetizado, bateria eletrônica e efeitos sonoros como reverb e delay.

6 Também chamado de ragga, o raggamuffin é um subgênero do reggae, com uso de instrumentos eletrônicos e samples, além de vocal falado influenciado pelo dancehall.

7 Estilo de música jamaicana, variação mais esparsa do reggae, com instrumentos digitais.

8 Hip hop: sub-cultura negra surgida em Nova York nos anos 70, através de artistas como Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash. Inclui o rap (o canto falado), o breakdance e o grafite, além de um estilo de se vestir. Não confundir com o rap pop atual. Funk: estilo de black music criada nos anos 60 por nomes como James Brown, em uma mistura dançante e suingada de soul music e jazz.

9 Gwan gyal: algo como “go, girl” ou “going, girl?”, em sotaque jamaicano. Literalmente, “vai, garota” ou “como vai, garota?”.

10 “Come now… we rollin’ this way, mdebwoy”; “Vamos lá... é assim que se dança, meu garoto”, em sotaque jamaicano (“mdebwoy” = “my dear boy”).

11 My Bloody Valentine: banda de rock da virada dos anos 80 para os 90, seminal em sua mistura de melodias e distorção. Expoentes do rock shoegazer.

 

Fabian tentou de novo o número de Natasha e outra vez deu ocupado. Ele praguejou e bateu o telefone. Deu meia-volta, vagou sem rumo. Tinha falado com todos que conheciam Saul, exceto Natasha, e ela era a pessoa que mais importava.

 

Fabian não queria fofocar. Assim que soube do pai de Saul, pegou no telefone, quase antes de perceber o que estava fazendo, e começou a espalhar a notícia. Em dado momento, correu para comprar um jornal, antes de recomeçar com o telefone. Mas isso não era fofoca. Sentia um forte senso de dever. Isso, acreditava, era o necessário a ser feito.

 

Tirou o casaco, amarrou seus dreadlocks finos em um rabo de cavalo. Era o bastante, pensou. Iria até Natasha, dizer a ela em pessoa. Era uma boa viagem de Brixton até Ladbroke Grove, mas a ideia do ar frio no rosto e nos pulmões era sedutora. Sua casa parecia opressiva. Passara horas ao telefone aquela manhã, as mesmas frases de novo e de novo – seis andares de altura... Os canas não me deixam falar com ele e as notícias foram abafadas. Estava saturado pela morte do velho. Fabian queria espaço. Queria arejar a cabeça.

 

Enfiou uma página de jornal no bolso. Era capaz de recitar de cor os dados relevantes: Notícias do dia. Um homem morreu em Willesden, norte de Londres, ontem, depois de cair pela janela do sexto andar. A polícia não confirmou se considera a morte suspeita. O filho da vítima está ajudando nas investigações. A acusação gritante desta última frase só faltava morder.

 

Deixou seu quarto e foi para a sala suja da casa que dividia. Alguém estava gritando lá em cima. O carpete imundo e mal-ajambrado sempre o irritava; agora o fazia se sentir violento. Enquanto lutava com a sua bicicleta, olhou para as paredes mal-lavadas, o corrimão quebrado. A presença da casa pesava sobre ele. Irrompeu pela porta da frente com um suspiro de alívio.

 

Fabian cuidava mal da sua bicicleta, deixando-a cair quando desmontava, arremessando-a contra paredes. Foi rude com ela. Jogou-se em cima dela agora com uma brutalidade irracional e zarpou para a rua.

 

As ruas estavam cheias. Era um sábado e as pessoas se amontoavam nas ruas, indo e voltando do mercado de Brixton, determinadas em sua viagem de ida e lentas no caminho de volta, carregadas de roupas baratas e coloridas e grandes frutas. Trens rugiam, competindo com os sons da soca, reggae, rave, rap, jungle, house e os gritos: toda a colagem de ritmos do mercado. Rudeboys1 com calças bizarras se agrupavam em esquinas e lojas de música, braços cruzados. Homens de cabeça raspada em camisetinhas apertadas e fitas vermelhas anti-AIDS se dirigiam para Brockwell Park ou o café The Brixtonian. Embalagens de alimentos e tablóides televisivos grudavam nos tornozelos. Os caprichosos sinais de trânsito eram uma piada de mau gosto: pedestres pairavam como suicidas na beira da calçada, lançando-se para a frente ao menor sinal de uma lacuna. Os carros faziam ruídos raivosos e aceleravam, ansiosos para escapar. Impassíveis, as pessoas os viam passar.

 

Fabian dobrava as rodas da bicicleta em meio aos corpos. A ponte ferroviária passou sobre ele; um pouco à frente, a torre do relógio lhe dizia que era o meio da manhã. Pedalou e caminhou de forma intermitente após a estação de metrô, rodou de bicicleta ao longo da Brixton Road e, novamente, sobre Acre Lane. Não havia multidões aqui e nem reggae. Acre Lane era bem larga. Os edifícios que continha eram separados, esparsos e baixos. O céu sempre foi muito grande sobre Acre Lane.

 

Fabian saltou de volta sobre sua bicicleta e partiu pelo ligeiro declive em direção a Clapham. De lá, ele quebraria na Clapham Manor Street, voaria um pouco pelas ruas transversais até Silverthorne Road, uma íngreme onda senoidal de pequenas indústrias e casas peculiarmente suburbanas entalada entre Battersea e Clapham, um conduto que levava diretamente a Queenstown Road, cruzando a Chelsea Bridge.

 

Pela primeira vez naquele dia Fabian sentiu a cabeça clarear.

 

Mais cedo naquela manhã um desconfiado policial havia atendido o telefone de Saul, exigindo o nome de Fabian. Ultrajado, Fabian desligou. Telefonou para a delegacia de polícia de Willesden, mais uma vez se recusando a dar o seu nome, mas exigindo saber por que policiais estavam atendendo no telefone de seu amigo. Foi só quando ele concordou e disse a eles quem era que lhe contaram que o pai de Saul tinha morrido e que Saul estava com eles – mais uma vez essa frase dissimulada –, ajudando com as investigações.

 

Primeiro, não sentiu nada além de choque; depois, rapidamente, a sensação de um erro monstruoso.

 

E um grande medo. Porque Fabian compreendeu imediatamente que seria fácil para eles acreditar que Saul tinha matado seu pai. E, de imediato, soube sem qualquer equívoco ou dúvida que Saul não tinha feito isso. Mas estava com muito medo, pois só ele sabia, porque conhecia Saul. E não havia nada que pudesse dizer aos outros para ajudá-los a compreender.

 

Queria ver Saul; não entendia por que a voz do policial tinha mudado quando ele exigiu isso. Disseram que poderia demorar algum tempo antes que pudesse falar com Saul, que Saul estava bem no meio de um interrogatório, sua atenção totalmente voltada para o caso e que Fabian teria mesmo que esperar. Havia alguma coisa que o homem não estava lhe contando, Fabian sabia, e ficou assustado. Deixou seu número de telefone, garantiram-lhe que seria contatado assim que Saul estivesse livre para falar.

 

Fabian acelerou ao longo de Acre Lane. À sua esquerda passou um edifício branco extraordinário, uma massa de torres sujas e surradas janelas art déco. Parecia deserto há muito tempo. Na escada se sentavam dois meninos, afundados em enormes jaquetas que declaravam lealdade a times de futebol americano que nenhum dos dois tinha visto jogar. Estavam alheios à grandeza apagada de seu assento. Um deles estava de olhos fechados, encostado na porta como um pistoleiro mexicano barato de um western spaghetti. Seu amigo falava animadamente com a própria mão, o minúsculo celular escondido nas volumosas dobras da manga. Fabian sentiu a excitação da inveja materialista, mas afugentou-a. Aquele era um impulso ao qual resistia.

 

Eu não, ele pensou, como sempre fazia. Ele poderia esperar um pouco mais. Não serei mais um negro com um celular, mais um encrenqueiro com “Traficante” escrito na testa em letras que só a polícia é capaz de ler.

 

Levantou-se no assento da bicicleta, pedalou forte para baixo e partiu em disparada para Clapham.

 

Fabian sabia que Saul odiava a decepção de seu pai. Fabian sabia que Saul e seu pai não conseguiam conversar. Fabian tinha sido o único dos amigos de Saul que o tinha visto manusear aquele livro de Lênin várias e várias vezes, abrindo-o e fechando-o, lendo a inscrição de novo e de novo. A letra do seu pai era apertada e controlada, como se estivesse tentando não quebrar a caneta. Saul tinha posto o livro no colo de Fabian, tinha esperado enquanto seu amigo o lia.

 

“Para Saul. Isso sempre fez sentido para mim. Com amor da Velha Esquerda.”

 

Fabian se lembrou de ter olhado para o rosto de Saul. Sua boca estava fechada, seus olhos pareciam cansados. Ele tomou o livro do colo de Fabian e o fechou, acariciou a capa, colocou-o na estante. Fabian sabia que Saul não tinha matado o pai.

 

Cruzou Clapham High Street, uma confluência de restaurantes e lojas de caridade, e deslizou para as ruas transversais, balançando entre os carros estacionados até emergir em Silverthorne Road. Começou a descer a longa ladeira em direção ao rio.

 

Sabia que Natasha poderia estar trabalhando. Sabia que poderia virar na Basset Road e ouvir o bum distante do drum and bass. Ela estaria debruçada sobre seu teclado, girando botões e apertando teclas com a concentração de uma alquimista, fazendo malabarismo com longas sequências de zeros e uns e transformando-os em música. Ouvindo e criando. Era com isso que Natasha gastava todo o seu tempo. Quando não estava concentrada no material de origem, atrás do balcão das lojas de discos dos amigos, atendendo clientes em um eficiente modo de piloto automático, estava reconstruindo o mesmo material em faixas que batizava com títulos agressivos de uma só palavra: Arrival; Rebellion; Maelstrom.

 

Fabian acreditava que era a concentração de Natasha que a fazia tão assexuada para ele. Ela era atraente de uma maneira feroz e nunca ficou sem pretendentes, principalmente nos clubes, em especial quando se espalhou que a música que estava tocando era sua; mas Fabian nunca soube dela ter ficado muito interessada, mesmo quando levava alguém para casa. Sentiu-se blasfemo apenas por pensar nela em um contexto sexual. Fabian era o único que tinha essa opinião, garantiu seu amigo Kay, um alegre palhaço arruinado pelas drogas que babava lascivamente por Natasha sempre que a via. A música era o lance, dizia Kay, e a intensidade era o lance, o jeito descuidado era o lance. Assim como uma freira, era a promessa do que estava sob o hábito.

 

Mas Fabian só conseguia sorrir como um cordeiro para Kay, absurdamente embaraçado. Psicólogos amadores em toda a Londres, Saul incluso, não perderam tempo em decidir que ele estava apaixonado por Natasha; mas Fabian não achava que era esse o caso. Ela o enfurecia com o seu rigor de estilo e seu solipsismo, mas pensou que a amasse. Só que não da maneira que Saul queria dizer.

 

Virou sob a imunda ponte ferroviária de Queenstown Road, aproximando-se rapidamente de Battersea Park. Estava pedalando em uma ladeira, correndo em direção a Chelsea Bridge. Fez um retorno com casual arrogância, abaixou a cabeça e subiu em direção ao rio. À direita de Fabian surgiam as quatro chaminés da Estação de Energia de Battersea. Seu teto havia desaparecido há muito tempo, parecia uma relíquia bombardeada, sobrevivente de uma blitz. Uma grande tomada virada para cima, se esforçando para sugar voltagem das próprias nuvens, um monumento à energia.

 

Fabian explodiu veloz no sul de Londres. Desacelerou e olhou para o Tâmisa, para além das torres e grades de aço que o cercavam, mantendo-o aconchegante na Chelsea Bridge. O rio enviava fragmentos de luz solar fria em todas as direções.

 

Deslizou sobre o espelho d’água como um esquiador em um lago, pequeno diante das vigas e parafusos que ostensivamente sustentavam a ponte. Equilibrou-se por um momento entre o Banco Sul e o Banco Norte do rio, a cabeça erguida para que pudesse enxergar a água por sobre as laterais da ponte, para ver as barcaças negras que nunca se moviam, à espera de navios cargueiros há muito esquecidos; suas pernas em silêncio, pedalando para Ladbroke Grove.

 

O percurso para a casa de Natasha levou Fabian para além do Albert Hall e através de Kensington, que ele detestava. Era um lugar sem alma, um purgatório preenchido apenas por transeuntes ricos vagando sem propósito pela Nicole Farhi ou Red or Dead.2 Acelerou pela Kensington Church Street para Notting Hill e através da Portobello Road.

 

Era dia de feira livre, a segunda da semana, projetada para arrancar dinheiro dos turistas. Mercadorias que haviam custado cinco libras na sexta-feira eram agora oferecidas por dez. O ar era espesso com casacos berrantes e mochilas e frases em francês e italiano. Fabian maldisse em silêncio e avançou lentamente através da multidão. Virou à esquerda na Elgin Crescent e depois à direita, saindo perto do apartamento da Bassett Road.

 

Uma rajada de vento manchou o ar com folhas marrons. Fabian deslizou rua adentro. As folhas agitaram-se ao seu redor, algumas presas em seu casaco. Árvores cada vez mais baixas se alinhavam com a pista. Fabian desmontou ainda em movimento e caminhou para o apartamento de Natasha.

 

Ele podia ouvi-la trabalhando. A batida fraca do drum and bass era audível no final da rua. Enquanto caminhava, levando a bicicleta ao seu lado, Fabian ouviu o som de asas. A casa de Natasha estava cheia de pombos. Cada protuberância e beirada estava acinzentada com seus corpos rotundos e inquietos. Alguns estavam no ar, pairando nervosamente ao redor das janelas e frontões, instalando-se, desalojando seus pares. Mudaram de posição e cagaram um pouco quando Fabian parou na porta diretamente abaixo deles.

 

O ritmo de Natasha estava alto agora e Fabian podia ouvir algo de diferente, um som claro como o de pífaros ou de uma flauta, cheio de energia e exuberância, acompanhando o baixo. Ele parou e escutou. A qualidade deste som era diferente daquele dos samples e ele não estava preso a nenhum loop. Fabian suspeitou que estava sendo tocado ao vivo. E por uma espécie de virtuoso.

 

Tocou a campainha. O bum eletrônico do baixo parou de repente. A flauta hesitou por um segundo ou dois. Assim que o silêncio caiu, a comitiva de pombos subiu em massa para o céu com a brusquidão do pânico, circundou uma vez como um cardume de peixes e desapareceu ao norte. Fabian ouviu passos na escada.

 

Natasha abriu a porta e sorriu.

 

– E aí, Fabe – disse ela, levantando seu punho direito fechado para tocar no dele. Assim ele o fez, enquanto se abaixava para colocar um braço em torno dela e beijar sua bochecha. Ela fez o mesmo, mas sua surpresa era evidente.

 

– Tash – ele sussurrou, em saudação e em advertência. Ela percebeu algo em sua voz e chegou para trás, mantendo os ombros dele em suas mãos. Seu rosto se aguçou de preocupação.

 

– O quê? O que aconteceu?

 

– Tash, é Saul. – Havia contado a história tantas vezes hoje que tinha se tornado um autômato, apenas verbalizando as palavras, mas desta vez foi difícil de novo. Molhou os lábios.

 

Natasha começou. – O que é, Fabe? – sua voz fendida.

 

– Não, não – disse ele apressadamente. – Saul está bem. Bom, eu acho... Ele está com os canas.

 

Ela balançou a cabeça em confusão.

 

– Ouça, Tash... O pai de Saul... ele morreu. – Ele se apressou, antes que ela pudesse entender mal. – Ele foi morto. Foi jogado de uma janela duas noites atrás. Eu acho... acho que a polícia pensa que Saul fez isso. – Enfiou a mão no bolso e tirou a notícia amarrotada. Natasha leu.

 

– Não – disse ela.

 

– Eu sei, eu sei. Mas acho que ouviram falar dele e do velho discutirem e tal e... sei lá.

 

– Não – disse Natasha novamente. Os dois ficaram muito quietos, olhando um para o outro. Enfim, Natasha se moveu. – Olha – ela disse –, vamos entrar. É melhor a gente conversar. Tem um cara aqui...

 

– O que está tocando flauta?

 

Ela sorriu de leve. – É. Ele é bom, né? Vou me livrar dele.

 

Fabian fechou a porta atrás de si e seguiu-a escada acima. Ela ia alguns metros à frente e, quando ele se aproximou da porta de entrada, ouviu vozes.

 

– O que está acontecendo? – Era a voz de um homem, abafada e ansiosa.

 

– Um amigo está com problemas – Natasha estava dizendo. Fabian entrou no quarto esparso, cumprimentou com a cabeça o homem alto e loiro que viu por sobre o ombro de Natasha. O homem tinha a boca entreaberta e dedilhava nervosamente seu rabo de cavalo. Em sua mão direita estava uma flauta de prata. Olhou de cima a baixo para os dois na porta.

 

– Pete, Fabian. – Natasha fez um gesto vago entre os dois em uma introdução superficial. – Desculpe, Pete, mas você vai ter que ir. Preciso falar com Fabe. Algumas coisas aconteceram.

 

O loiro assentiu com a cabeça e rapidamente recolheu suas coisas. Enquanto fazia isso, falou rapidamente.

 

– Natasha, você quer fazer isso de novo? Eu senti como se estivéssemos... realmente nos entendendo.

 

Fabian ergueu as sobrancelhas.

 

O homem alto se espremeu para passar por Fabian sem tirar os olhos de Natasha. Ela estava claramente distraída, mas sorriu e acenou com a cabeça.

 

– Sim. Com certeza. Você quer me deixar seu número ou algo assim?

 

– Não, eu apareço de novo.

 

– Você quer o meu número, então?

 

– Não. Eu passo por aqui e, se você não estiver, passo por aqui novamente. – Pete parou na frente da escada e voltou-se. – Espero vê-lo novamente, Fabian – disse.

 

Fabian assentiu distraído, depois olhou nos olhos de Pete. O homem alto o encarava com uma intensidade peculiar, exigindo uma resposta. Os dois ficaram assim por um momento, até que Fabian aquiesceu e balançou a cabeça mais claramente. Só então Pete pareceu satisfeito. Desceu as escadas, seguido por Natasha.

 

Os dois estavam falando, mas Fabian não conseguia ouvir nenhuma das palavras. Franziu a testa. A porta bateu e Natasha voltou para o quarto.

 

– Ele é meio esquisito, né? – Fabian perguntou.

 

Natasha assentiu com veemência. – Só, cara, tá me entendendo? Eu joguei com ele no início, tava ficando meio metido a esperto.

 

– Dando em cima?

 

– Tipo isso. Mas não parava de falar de como queria tocar comigo e fiquei intrigada; ele começou a tocar lá fora. Era bom, então deixei que entrasse.

 

– Deu uma humilhada sutil, né? – Fabian sorriu brevemente.

 

– Com certeza. Mas ele toca... ele toca como uma merda de um anjo, Fabe. – Ela estava animada. – É completamente doido, você tá certo, eu sei, mas tem alguma coisa muito certa em como ele toca.

 

Houve um curto silêncio. Natasha beliscou o casaco de Fabian e puxou-o para a cozinha.

 

– Eu preciso de um café, cara. Você precisa de um café. E eu preciso saber do Saul.

 

Na rua estava o homem alto. Ele olhou para a janela, a flauta bamba em sua mão. Suas roupas se torciam com o vento. Estava ainda mais pálido no frio, na frente das árvores escuras. Permanecia quase imóvel. Observou as pequenas variações de luz enquanto os corpos se moviam para dentro e fora da sala de estar. Inclinou seu ouvido um pouco, tirou a franja dos olhos, torceu uma mecha de cabelo entre os dedos. Seus olhos eram da cor das nuvens. Levantou lentamente a flauta até os lábios, tocou um refrão rápido. Um pequeno grupo de pardais voou dos galhos de uma árvore, circundando-o. O homem abaixou a flauta e observou enquanto os pássaros desapareciam.

 

1 O termo “rudeboy” teve origem na Jamaica dos anos 60, designando delinquentes juvenis. Nos anos 80, na Inglaterra, foi cooptado pela cultura two-tone, passando a denominar os fãs de ska. Finalmente, no século XXI, o termo tornou-se, também na Inglaterra, gíria de rua para identificar pessoas envolvidas em aspectos da cultura underground (similar ao termo “gangsta” nos EUA).

2 Nicole Farhi e Red or Dead: grifes de roupas caras, com apelo ao público nouveau riche.

 

Dois olhos amarelecidos pela morte se arregalavam estupidamente. Todas as imperfeições do corpo humano eram ampliadas pela total imobilidade. Crowley deu uma boa olhada naquele rosto, observando os poros largos, as pústulas, os pelos que saíam das narinas, o resto de barba sob o pomo-de-adão que a navalha tinha ignorado.

 

A pele se dobrava debaixo do queixo e virava um carretel enrolado, um novelo de carne torcida para secar. O corpo estava de bruços, membros em posições desconfortáveis e a cabeça virada para o teto, em um giro de quase 180 graus. Crowley endireitou-se e enfiou as mãos nos bolsos para disfarçar sua tremedeira. Ele se virou e encarou sua comitiva: dois policiais corpulentos, cujos rostos eram retratos fiéis da repulsa incrédula, apenas um pouco mais móveis do que o de seu companheiro caído.

 

Crowley passeou pela pequena sala até chegar ao quarto. O apartamento estava cheio de pessoas ocupadas, fotógrafos, patologistas. Pó para impressões digitais assentava-se no ar em finas películas, como camadas geológicas.

 

Ele espreitou pela moldura da porta do quarto. Um homem de terno estava agachado diante de uma figura sentada com as pernas abertas, apoiada contra uma parede. Crowley olhou para o homem sentado e fez um pequeno ruído de nojo, como se visse comida estragada. Olhou para a bagunça desastrosa do rosto da outra figura. O sangue se espalhava por toda a parede. O uniforme do homem morto estava encharcado dele, rígido como um casaco impermeável.

 

O médico de terno retirou os dedos tateantes daquela sangrenta confusão e olhou para Crowley, que estava atrás dele.

 

– Você é...?

 

– Inspetor-detetive Crowley. O que aconteceu aqui?

 

O médico apontou para a figura meio debruçada. Sua voz era totalmente distante, demonstrando o profissionalismo defensivo que Crowley já havia notado antes em outras mortes desagradáveis.

 

– Hm, esse sujeito, guarda Barker, não? Bem... ele foi atingido no rosto, basicamente, com muita rapidez e muita força. – Levantou-se e passou as mãos pelos cabelos. – Acho que ele veio até essa parte do cômodo, abriu a porta e foi esmurrado por um... um caminhão, que o mandou para a parede e depois para o chão; nesse ponto nosso atacante pulou sobre ele, malhando-o mais um pouco. Uma ou duas vezes com os punhos, eu acho, e depois com uma vara ou um bastão ou algo assim; vários hematomas longos e finos nos ombros e pescoço. E o volume dos danos aqui... – Indicou um corte em particular na polpa salpicada de ossos que era o rosto.

 

– E o outro?

 

O médico balançou a cabeça e piscou várias vezes.

 

– Nunca tinha visto isso antes, para ser franco. Ele teve o pescoço quebrado, o que soa bastante simples, mas... bem, meu Deus, você já olhou pra ele, né? – Crowley fez que sim. – Eu não sei... você tem alguma ideia de como é forte o pescoço humano, inspetor? Não é tão difícil quebrar um pescoço, mas alguém girou o dele para o lado contrário... E tiveram que deslocar completamente todas as vértebras, para evitar que a tensão na carne não movesse a cabeça de volta para a frente. Eles não só giraram a cabeça para trás, mas a puxaram para cima enquanto faziam isso. Você está lidando com alguém muito, muito forte e, me arrisco a dizer, que saiba karatê ou judô ou alguma coisa assim.

 

Crowley apertou os lábios.

 

– Não há nenhum sinal de luta; eles foram rápidos. Page abre a porta e tem seu pescoço bagunçado em meio segundo, faz um pouco de barulho. Barker vai em direção à porta do quarto e...

 

O médico olhou para Crowley, que estava em silêncio. Crowley balançou a cabeça em despedida e voltou para seus companheiros. Herrin e Bailey ainda estavam olhando para a implausível figura do guarda Page.

 

Herrin ergueu os olhos quando Crowley se aproximou.

 

– Puta que pariu, meu Deus, senhor, é que nem aquele filme...

 

– O Exorcista. Eu sei, policial.

 

– Mas, tipo, toda virada pra trás, senhor...

 

– Eu sei, detetive, agora não pense mais nisso. Estamos indo.

 

Os três se agacharam para passar por baixo das marcações de fita adesiva que selavam o apartamento e fizeram o caminho de volta pelas entranhas do edifício. Lá fora, um grande pedaço de grama ainda estava cercado pela fita que lacrava o apartamento acima. Brutais gotas de vidro ainda enchiam a terra.

 

– Não parece possível, senhor – disse Bailey, quando se aproximavam do carro.

 

– Como assim?

 

– Bem, eu vi Garamond quando ele entrou. Um cara até grande, mas nenhum Schwarzenegger. E, por Deus, ele não parecia ser capaz de... – Bailey falou depressa, ainda muito chocado.

 

Crowley concordou enquanto contornava o carro.

 

– Eu sei que nunca se deve permitir fazer julgamentos sobre quem é “desse tipo” e quem não é, mas tenho que admitir: fiquei chocado com Garamond. Pensei: “Tá, sem problema. Discute com o pai, há uma luta, ele o empurra para fora da janela e, em choque, vai para a cama.” Um pouco estranho, eu admito, mas, quando alguém está bêbado e assustado, faz coisas estranhas.

 

“Mas eu certamente não imaginei que ele fosse o pequeno Houdini que acabou se revelando. E quanto a isso...”

 

Herrin concordava veementemente.

 

– Como ele fez isso? Porta aberta, a cela vazia, ninguém vê, ninguém ouve nada.

 

– Mas tudo isso – continuou Crowley –, isso é uma grande... surpresa. – Deixou escapar a palavra com certo nojo. Falou lentamente, a voz parando momentaneamente entre cada palavra. – O que eu interroguei na noite passada foi um homenzinho assustado, confuso, fodido. O que quer que tenha escapado da delegacia era um tipo de mestre do crime e o que matou Page e Barker era... um animal.

 

Apertou os olhos e tamborilou suavemente no volante. – Mas tudo isso é muito esquisito. Por que nenhum dos vizinhos ouviu nada do que aconteceu entre ele e o pai? Sua história de que estava acampando bate? – Herrin fez que sim. – Podemos imaginar que tenha chegado a Willesden por volta das dez horas; o Sr. Garamond atingiu o chão lá pelas dez e meia, onze. Alguém deveria ter ouvido. Como está indo com o resto da família?

 

– Por enquanto nada – disse Bailey. – A mãe morreu há muito tempo, você sabe, e ela era órfã. Os avós paternos estão mortos; não há tios, uma tia na América que ninguém vê há anos... Vou tentar agora os amigos dele. Alguns já estiveram telefonando. Vamos ficar na cola deles.

 

Crowley grunhiu em assentimento enquanto desciam na delegacia. Colegas diminuíram o passo quando ele passava e olharam tristemente para ele, querendo dizer algo sobre Page e Barker. Antecipou-se a eles com acenos tristes de cabeça e então seguiu em frente. Não tinha desejo algum de compartilhar seu choque.

 

Voltou à sua mesa, dando goles na gororoba da máquina de café. Crowley entendia cada vez menos o que estava acontecendo. Aquilo o inquietava. Na noite anterior, quando descobrira que Saul tinha escapado de sua cela, ele havia ficado roxo de raiva, lívido – mas tinha emitido os ruídos corretos, feito as coisas certas. Aquilo tinha sido uma enorme cagada, claro, e ele iria ter umas palavrinhas muito sérias com certas pessoas, da mesma forma que o governador havia tido umas palavras com ele. Enviara alguns homens para investigar a escuridão de Willesden; Saul não poderia ter ido longe. Como precaução, tinha enviado Barker para se juntar a Page na entediante tarefa de tomar conta da cena do crime, apenas para o caso de Saul ser estúpido a ponto de voltar para casa.

 

O que ele parecia ter feito. Mas não o Saul que havia interrogado; não conseguia acreditar nisso. Aceitou que cometera erros; era capaz de avaliar mal as pessoas, mas não daquela forma. Não acreditava. Algo tinha enlouquecido Saul, dado a ele a força do insano e o transformado da pessoa que Crowley tinha interrogado para o assassino devastador que havia imposto tal carnificina no apartamento.

 

Por que ele não havia fugido? Crowley não conseguia entender. Enfiou os dedos nos olhos, amassando-os até que doessem. Podia visualizar a cena: Saul tinha retornado ao apartamento, desorientado e trôpego, talvez para expiar sua culpa, para tentar se lembrar. Quando abriu a porta e viu os homens de uniforme ele deveria ter corrido ou caído no chão chorando, negado saber de qualquer coisa, choramingado.

 

Ao invés disso ele tinha avançado na direção do guarda Page, tomado sua cabeça nas mãos e a girado, em menos de um segundo. Crowley estremeceu. Seus olhos estavam fechados, mas aquela imagem brutal não lhe dava trégua.

 

Saul tinha discretamente fechado a porta atrás dele e encarado o guarda Barker, que com certeza o teria olhado em momentânea confusão; dera-lhe um soco que o fizera voar dois metros para trás, seguido o corpo subitamente mole e batido no rosto de forma sistemática até que virasse uma coisa quebrada, sangrenta, despedaçada.

 

O guarda Page era um homem estúpido e atarracado, meio novo na força. Era tagarela, sempre contando piadas idiotas, que eram muitas vezes racistas, apesar de sua namorada – Crowley sabia – ser mestiça. Barker era um eterno soldado, tinha sido policial por muito tempo, mas não conseguia captar a mensagem e mudar de carreira. Crowley não tinha conhecido bem nenhum dos dois homens.

 

Uma sobriedade desagradável pesava sobre a delegacia: não era bem um choque, mas quase uma incerteza sobre como reagir. As pessoas não estavam acostumadas com a morte.

 

Crowley colocou a cabeça entre as mãos. Não sabia onde Saul estava e não sabia o que fazer.

 

Nuvens de aparência gordurosa deslizavam sobre o beco onde Rei Rato e Saul se sentavam, digerindo. Tudo parecia sujo para Saul. Suas roupas e rosto e cabelo estavam manchados pela porcaria de um dia e meio e agora a sujeira estava dentro dele. Enquanto ela lhe dava sustento, também coloria o que ele via; mas olhou ao redor e encarou seu novo e manchado mundo como se fosse o centro de sua atenção. Não lhe infligia horror algum.

 

A pureza é um estado negativo e contrário à natureza, Saul tinha lido uma vez. Aquilo fazia sentido para ele agora. Podia ver o mundo claramente em todas as suas impurezas naturais e sobrenaturais, pela primeira vez em sua vida.

 

Tinha consciência de seu próprio cheiro: a acridez velha do álcool salpicado há muito tempo sobre suas roupas, o muco da calha do telhado, comida podre; mas havia algo de novo sob tudo aquilo. Um gosto de animal em seu suor, parecido com aquele cheiro que tinha entrado em sua cela junto com o Rei Rato duas noites atrás. Talvez estivesse em sua mente. Talvez não houvesse nada além de débeis restos de desodorante, mas Saul acreditava que podia sentir o cheiro do rato em seu interior querendo sair.

 

Rei Rato recostou-se nos sacos de lixo, olhando para o céu.

 

– O que rola – disse ele em seguida –, é que eu e ti devemos escapulir. Captou?

 

Saul concordou. – Você tem uma história pra me contar – disse.

 

– Eu sei – disse Rei Rato. – Mas não posso me exercitar nesse particular ainda. Tenho que te ensinar a ser rato. Seus olhos mal abriram ainda; você ainda é uma coisinha choramingas e sem pelos. Então... – Ficou de pé. – Que me diz da gente se retirar? Guarda um pouco de rango lá pro subsolo. – E empurrou um punhado de restos de torta de frutas para dentro dos bolsos.

 

Rei Rato voltou-se para a parede atrás dos sacos de lixo. Procurou o ângulo reto no tijolo onde a parede se encontrava com um dos lados do beco estreito; cravou os dedos dentro dele daquela sua maneira impossível e começou a escalar o muro. Balançou no topo, seis metros acima, os pés delicadamente pisando no espaço entre rolos de arame farpado enferrujado como se fossem flores. Agachou-se entre eles e gesticulou para Saul.

 

Saul aproximou-se da parede. Cerrou os dentes e projetou a mandíbula inferior para fora, confrontativo. Empurrou-se contra aquele canto o máximo que podia, sentindo sua carne moldar-se ao redor do espaço. Esticou os braços para cima. Como um rato, pensou; espremer-se e movimentar-se e içar-se como um rato. Seus dedos apertaram os vãos entre os tijolos e ele içou a si próprio com uma força prodigiosa. Seu rosto inchou com o esforço, os pés raspavam na parede, mas estava progredindo caminho acima à sua própria maneira indigna. Soltou um resmungo e ouviu um silvo de admoestação vindo de cima dele. Empurrou o braço direito para cima de novo, o cheiro úmido de suor de rato mais evidente do que nunca debaixo dos braços. Suas pernas falharam, ele tremeu e caiu, foi pego e puxado para dentro do emaranhado de fios esfarelantes.

 

– Nada mal, menino rato. Não é uma maravilha o que você pode fazer com um pouco de gororoba decente na barriga? Você chegou até bem perto do topo.

 

E Saul sentiu orgulho de sua escalada.

 

Abaixo deles havia um pequeno pátio cercado por todos os lados por paredes e janelas sujas. Para os novos olhos de Saul, a sujeira robusta do local era quase vibrante demais para a vista. Cada canto fervilhava com as manchas da decadência que se espalhava; um ponto fraco da cidade que tinha sido anexado sem perdão pelas forças da sujeira. Uma desconcertante fileira de bonecas que se desfaziam lentamente no mesmo local onde tinham sido deixadas, de costas para a parede, olhava para uma rodela cor de chumbo no canto do pátio. Um bueiro.

 

Rei Rato expirou pelo nariz, triunfante.

 

– Lar – assobiou. – Para o palácio.

 

Pulou do alto do muro, pousando já agachado sobre o bueiro, rodeando-o. Não fez nenhum som enquanto tocava o concreto. O sobretudo caía ao redor dele, envolvendo-o como uma poça gordurosa. Olhou para cima e esperou.

 

Saul olhou para baixo e sentiu os antigos medos. Enrijeceu-se, engoliu em seco. Fez força para se convencer a saltar, mas as pernas haviam travado, dobradas de medo; ficou cada vez mais exasperado enquanto se preparava para aterrissar ao lado de seu tio. Respirou uma, duas vezes, muito profundamente, ficou de pé, balançou os braços e lançou-se sobre a forma que esperava por ele.

 

Viu cinzas e vermelhos de tijolos e concreto girarem em câmera lenta à sua volta, moveu o corpo, preparando a aterrissagem, assim que viu o sorriso de Rei Rato se aproximar a toda velocidade; então o mundo deu um forte solavanco, os olhos e dentes se sacudiam em seu rosto, e ele tinha descido. Seus joelhos empurraram todo o ar para fora de seu estômago, mas ele sorriu com alegria assim que superou os espasmos de sua barriga e puxou o ar para seus pulmões. Tinha voado, tinha aterrissado sem danos. Estava descascando sua humanidade como uma pele velha de cobra, arrancando-a com as unhas em grandes nacos. Era tão rápida essa impressão de uma nova forma em seu interior.

 

– Você é um bom menino – disse Rei Rato, ocupando-se com o metal no chão.

 

Saul olhou para cima. Viu figuras se movendo por trás das janelas lá no alto, imaginou se alguém poderia vê-los.

 

O grunhido londrino do Rei Rato tinha assumido um tom didático. – Preste atenção, ratinho. Isso aqui é a entrada para a sua morada cerimonial. O todo de Rome-vill é seu por direito, você é da realeza. Mas há um palácio especial, a verdadeira toca do rato, e dá pra se mandar pra lá através dessas vigias. – Indicou a tampa de metal. – Observe.

 

Os dedos do Rei Rato passearam pelo disco de ferro como um datilógrafo virtuoso, investigando sua superfície. Virou a cabeça de um lado para o outro, empinou-a por um momento, depois subitamente enrijeceu o corpo e escorregou os dedos por vãos infinitesimais entre o disco e o buraco no chão. Era como um truque de mágica: Saul não conseguiu ver o que tinha acontecido, nem como os dedos tinham se encaixado, mas lá estavam eles, puxando, entre os vãos.

 

A tampa de bueiro girou com um grito de ferrugem. Houve um golpe de vento sujo quando Rei Rato a soltou do chão.

 

Saul olhou para o poço. Os ventos em espiral do pátio arrancavam pedaços do vapor rico em aromas que emergia do buraco. O esgoto gorgolejava de escuridão; parecia transbordar, escorrer para fora do furo no concreto e obscurecer o solo. O cheiro de compostos orgânicos ondulou para fora. Quase invisível, uma escada cravada nos tijolos subterrâneos mergulhava para fora do campo de visão. Onde se prendia à parede o metal tinha oxidado e vazado em profusão, fazendo o esgoto sangrar ferrugem. O som de um ralo fluxo de água era ampliado pelos túneis bocejantes, gerando um bizarro ecoar de gotas.

 

Rei Rato olhou para Saul. Fechou a mão em um punho, estendeu um dedo indicador e sua mão descreveu um elaborado e tortuoso caminho através do ar, circulando alegremente, até descer em uma espiral e repousar apontando para o esgoto. Rei Rato estava na beirada da abertura. Deu um passo sobre o buraco e caiu através do pavimento. Houve o pequeno eco de um som úmido.

 

A voz do Rei Rato emergiu do subsolo.

 

– Venha pra baixo.

 

Saul espremeu seus quadris através do buraco.

 

– Não vai deixar furo – disse Rei Rato lá de baixo e riu brevemente. Saul se atrapalhou com a tampa de metal. Estava metade dentro, metade fora do esgoto. Afundou sob o peso do metal. Segurou-a acima de sua cabeça e desceu. A luz desapareceu.

 

Saul tremia no frio do esgoto. Seus pés golpeavam o metal. Deu um passo em falso quando seus pés bateram no chão úmido. Afastou-se da escada e esfregou-se na escuridão. O ar soprava e assobiava; a água gelada inundou seus sapatos.

 

– Onde está você? – ele sussurrou.

 

– Observando – veio a voz do Rei Rato. Ela se movia ao seu redor. – Espere. Você vai ver. Você nunca tentou isso, guri, então segura a onda. O escuro não é nada pra você.

 

Saul ficou imóvel. Suas mãos eram invisíveis diante dele.

 

Formas se moviam à sua frente. Pensou que fossem reais, até que os corredores começaram a emergir da escuridão e percebeu que as outras formas passageiras, indistintas nasciam em sua mente. Foram dissipadas assim que Saul começou a ver.

 

Viu a imundície dos canos. Viu a energia que eles continham sendo despejada para fora, uma luz cinzenta que não apresentava cores, mas iluminava os túneis úmidos. Diante dele, um estudo em perspectiva: as paredes da passagem, incrustadas de merda e algas, encontravam-se ao longe. Atrás dele e à sua direita mais túneis, e em toda parte o cheiro, a podridão e as fezes, o fedor pungente de urina, mijo de rato. Torceu o nariz, os pelos de sua nuca se eriçaram.

 

– Sem preocupação – disse Rei Rato, uma figura saturada de sombras, encharcada nelas, uma massa de trevas. – Algum mané marcou terreno e fez um sinal, mas somos a realeza. Seu território não significa porra nenhuma pra nós.

 

Saul olhou em torno. Um fino filete de água suja escoava por seus pés. Cada movimento seu parecia desencadear uma explosão de ecos. Estava em um cilindro curvo de tijolos de dois metros de diâmetro. De todas as partes vinham ruídos de água corrente e pedras caindo e sons orgânicos de guinchos e arranhões, atingindo seu pico, morrendo e sendo substituídos; sons muito distantes eram sobrescritos por aqueles mais próximos, um palimpsesto de ruído.

 

– Quero ver sebo nessas canelas, pode ficar aí mudinho o quanto quiser – disse Rei Rato. Aquilo assustou Saul. Sua voz vagueou pelos túneis, explorando cada canto. – Quero ver você mover a sua bunda, escalar com rapidez. Quero ver você nadar. A aula começou.

 

Rei Rato virou-se para a mesma direção que Saul. Apontou para a escuridão cinzenta.

 

– Nós vamos praquele lado. E vamos partir na rapidez. Então mostra que é atleta e tenta me acompanhar. Pronto, meu velho?

 

Saul tremia de excitação, o frio agora irrelevante, e agachou-se em uma posição de largada.

 

– Vamos lá, então – disse ele.

 

Rei Rato virou-se e partiu como um raio.

 

Saul nem sentiu as pernas se moverem quando o seguiu. A batida rápida e leve que ouvia era de seus próprios passos; Rei Rato não fazia som algum. Saul podia sentir seu nariz balançar e teve vontade de gargalhar.

 

Arquejou de contentamento. Rei Rato era um borrão mal definido à sua frente, o sobretudo açoitando vagamente o vento fétido. Túneis passavam dos dois lados, a água o salpicava. Rei Rato desapareceu de repente, cortando bruscamente à esquerda por um pequeno túnel onde a pressão da água era maior, insistindo em formar rodamoinhos em volta das pernas de Saul. Puxou as pernas para cima, para fora da correnteza.

 

Rei Rato voltou a cabeça por um segundo, um flash de carne pálida. Abaixou-se enquanto corria e forçou uma parada repentina. Esperou brevemente que Saul o alcançasse, então se lançou por um claustrofóbico túnel de menos de um metro de altura. Saul não hesitou, mas saltou atrás dele.

 

A respiração de Saul e o som de sua carne sobre os tijolos ecoaram de volta para ele, de maneira alta e íntima como se só existissem em sua mente. Tropeçou, lama manchando suas pernas, numa carreira bagunçada e eficaz ao longo do túnel.

 

Seu nariz atingiu um pano molhado. Rei Rato havia parado de repente.

 

Saul espreitou por cima do ombro de Rei Rato.

 

– O que foi? – ele silvou.

 

Rei Rato sacudiu a cabeça. Levantou a mão, apontando vagamente.

 

Algo se moveu na fraca luz plúmbea. Duas pequenas criaturas se penduravam para trás e para a frente, inquietas, no labirinto de tijolos. Rastejavam alguns inúteis centímetros em uma direção, depois em outra, sem nunca tirar os olhos das figuras à sua frente.

 

Ratos.

 

Rei Rato estava quase imóvel. Saul hesitou, aturdido.

 

Havia um rato de cada lado da água suja. Moveram-se em concerto, iam juntos para a frente, juntos para trás, uma tentativa de dança, fitando Rei Rato.

 

– O que está acontecendo? – sussurrou Saul.

 

Rei Rato não respondeu.

 

Um dos ratos correu para a frente e sentou-se sobre as patas traseiras, a dois metros de Rei Rato. Moveu as patas da frente de forma agressiva, rangeu, arreganhou os dentes. Voltou a pousar sobre as quatro patas e rastejou um pouco mais para a frente, mostrando os dentes, claramente com medo mas aparentemente com raiva, desdenhoso.

 

O rato pareceu cuspir.

 

Rei Rato subitamente latiu ultrajado e jogou-se para a frente, o braço estendido, mas os dois ratos tinham sumido.

 

Rei Rato retirou-se da lama em silêncio e continuou ao longo do túnel.

 

– Ei, ei, espera aí –– disse Saul, impressionado. Rei Rato continuou andando. – Que merda foi aquela?

 

Rei Rato continuou andando.

 

– O que tá acontecendo? – gritou Saul.

 

– Segura a onda! – gritou Rei Rato, sem se virar. Rastejou para longe. – Agora não – disse, mais calmamente. – Essa é a fonte da minha mágoa. Agora não. Espera até eu te levar pra casa.

 

Desapareceu ao dobrar uma esquina.

 

Saul deixou-se embalar pelos esgotos. Manteve Rei Rato ao alcance de sua visão, perdendo-se nas contorções dos tijolos úmidos. Mais ratos passaram por eles, mas sem insultá-los como os dois primeiros pareceram fazer. Pararam quando viram Rei Rato e então fugiram correndo.

 

Rei Rato os ignorou, serpenteando através do complexo em uma rápida e constante marcha.

 

Saul sentia-se um turista. Examinou as paredes que passavam, lendo o bolor sobre os tijolos. Estava hipnotizado por seus próprios passos. O tempo transcorria como uma sucessão de afluentes de tijolos. Ignorava o frio e se deixava intoxicar pelo cheiro. Ocasionais grunhidos do tráfego eram filtrados pela terra e asfalto acima, bocejando pelos esgotos cavernosos.

 

Rei Rato então parou em um túnel através do qual os dois exploradores tiveram que rastejar. Ele voltou-se para encarar Saul, um truque que parecia impossível naquele espaço minúsculo. O ar era espesso e rescindia a mijo, um mijo em particular, um cheiro forte, familiar, o cheiro que impregnava as roupas de Rei Rato.

 

– Beleza – murmurou Rei Rato. – Então, já se tocou de qual é o seu paradeiro? – Saul sacudiu a cabeça. – Estamos na encruzilhada de Rome-vill, o centro, a minha própria conjunção, debaixo de King’s Cross. Segura a língua e deixa os ouvidos de pau duro: tá ouvindo o rosnar dos trens? Meteu o mapa na cachola? Aprende o caminho. Aqui é aonde você tem que chegar. É só seguir o seu nariz. Marquei bem a minha mansão, tá agradável e forte, dá pra sentir o cheiro dela de qualquer lugar do subsolo. – E Saul teve de repente a certeza de que poderia encontrar o caminho até ali, tão fácil quanto respirar.

 

Mas olhou em volta e pôde ver apenas os mesmos tijolos, a mesma água suja que havia em qualquer outro lugar.

 

– O que – aventurou-se lentamente – existe aqui?

 

Rei Rato empurrou o dedo contra o nariz e piscou.

 

– Eu me recolho no maldito lugar que eu bem entender, mas um rei quer um palácio. – Enquanto falava, Rei Rato estava ocupado com os tijolos abaixo dele, correndo uma longa unha entre eles, criando um crescente verme de sujeira. Traçou um quadrado irregular de tijolos com laterais desiguais que mediam pouco mais de meio metro de comprimento. Fincou as unhas nos cantos e puxou do chão o que parecia ser uma bandeja de tijolos.

 

Saul deu um assobio de espanto para o buraco que havia sido descoberto. O vento soprava sobre o buraco recém-aberto como uma flauta. Olhou para os tijolos que Rei Rato segurava. Eram um artifício, uma peça única de concreto com bordas angulosas sob um fino verniz de tijolo, para que se encaixasse à perfeição e ficasse invisível no chão do túnel.

 

Saul espreitou pela abertura. Uma rampa descia de forma íngreme para além do campo de visão. Olhou para cima, Rei Rato abraçava a tampa, à espera de Saul.

 

Saul pendurou as pernas sobre a beirada da rampa e respirou o ar estagnado. Empurrou-se para a frente com o traseiro e deslizou sob a curva fechada, untada com lodo vivo.

 

Uma vertiginosa carreira abaixo e Saul foi depositado, sem fôlego, dentro de um tanque de água gélida. Gaguejou e cuspiu, esvaziando o gosto de sujeira da boca e esfregando os olhos. Quando os abriu, ficou quase imóvel, a água escorrendo da boca aberta.

 

As paredes se afastaram de repente e violentamente, como se uma temesse a outra. Saul parou no tanque gelado em uma extremidade da câmara. A água o arrastou, uma elipse tridimensional como uma gota de chuva vista de lado, trinta metros de comprimento, com ele aprisionado na extremidade mais fina. Vigas reforçadas com tijolos cruzavam as paredes da câmara e formavam um arco no teto: arquitetura de catedral, dez metros de altura, como a barriga fossilizada de uma baleia há muito sepultada sob a cidade.

 

Saul tropeçou para fora do tanque, deu alguns passos curtos para a frente. A sala era um pouco mais funda nas extremidades, criando um tênue fosso que recebia a água do tanque onde Saul havia sido jogado antes. A cada dois metros, logo acima do fosso, as extremidades circulares dos canos desapareciam, Saul supôs, para dentro do esgoto principal mais acima.

 

Diante dele havia uma passarela suspensa, que subia até a extremidade oposta da câmara, a dois metros e meio do chão – e lá estava o trono.

 

Bem na frente de Saul. Era tosco, de design prático e esculpido com tijolos, como tudo debaixo da terra. A sala do trono estava vazia.

 

Atrás de Saul, algo bateu na água. O som do baque explorou a sala à vontade. Rei Rato veio e parou atrás de Saul.

 

– Muito obrigado, Sr. Bazalgette.1

 

Saul virou a cabeça, sacudiu-a para mostrar que não havia entendido. Rei Rato correu pela passarela e aninhou-se sobre a cadeira. Sentou-se encarando Saul, uma perna jogada sobre um braço de alvenaria. Sua voz chegou tão clara como nunca aos ouvidos de Saul, ainda que não tivesse falado mais alto.

 

– Ele era o cara que planejava, construiu o labirinto todo, no tempo da última rainha. As pessoas devem a ele suas descargas de bosta, e eu... eu posso agradecer a ele pelo meu submundo.

 

– Mas isso tudo... – respirou Saul. – Esta sala... por que ele construiu esta sala?

 

– O Sr. Bazalgette era um cavalheiro engenhoso – Rei Rato guinchou desagradavelmente. – Tive que encher o saco, aluguei as orelhas dele, contei algumas histórias, coisas que eu tinha visto. Tivemos uma conversinha sobre ele e seus hábitos, dos quais nem todos eram desconhecidos para mim. – Rei Rato piscou exageradamente. – Ele era da opinião de que estas histórias deveriam permanecer confidenciais. Chegamos a um acordo. Você não vai encontrar este lugar aqui, minha toca, em nenhuma planta da cidade.

 

Saul aproximou-se do trono de Rei Rato. Agachou-se na frente do assento.

 

– O que estamos fazendo aqui? O que faremos agora? – Saul sentiu-se subitamente cansado de seguir alguém como um discípulo, incapaz de intervir ou de moldar os acontecimentos. – Quero saber o que você quer.

 

Rei Rato olhou para ele sem falar.

 

Saul continuou. – Tem algo a ver com aqueles ratos? – disse. Não houve resposta.

 

– Tem a ver com os ratos? O que foi aquilo? Você é o rei, certo? Você é o Rei Rato. Então, comande-os. Eu não os vi prestando nenhum tributo ou respeito. Me pareceram bem nervosinhos. O que tá acontecendo? Chame os ratos, faça-os vir até você.

 

Não houve som algum na sala. Rei Rato continuou a encará-lo.

 

Finalmente, ele falou. – Ainda... não.

 

Saul esperou.

 

– Não vou fazer isso... ainda. Eles ainda estão... contrariados... comigo. Não vão fazer o que eu disser por enquanto.

 

– Há quanto tempo eles estão... contrariados?

 

– Setecentos anos.

 

Rei Rato pareceu uma figura patética. Escondeu-se em sua característica combinação de atitudes defensivas e arrogância. Pareceu solitário.

 

– Você... não é bem o rei, é?

 

– Eu sou o rei! – Rei Rato ficou de pé, cuspindo na figura abaixo dele. – Não ouse falar assim comigo! Eu sou o rei, eu sou o único, o punguista, o ladrão, o chefe desertor!

 

– Então o que tá acontecendo? – gritou Saul.

 

– Algo... deu... errado... Era uma vez. Ratos têm memórias compridas, sabe? – Rei Rato bateu na cabeça. – Eles não esquecem as coisas. Guardam tudo na cachola. Isso é tudo. E você tá envolvido, bonitão. Isso tudo tá ligado com aquele que quer você morto, o camarada que apagou a merda do seu pai.

 

Merda do seu pai, disseram os ecos por muito tempo.

 

– O que... quem... é ele? – disse Saul.

 

Rei Rato olhou sinistramente para ele com olhos repletos de escuridão.

 

– O Caça-Ratos.

 

1 Joseph Bazalgette, 1819-1891; engenheiro civil inglês responsável pela criação da rede de esgotos do centro de Londres, em 1858, o que foi essencial para livrar a cidade das epidemias de cólera.

 

                   AULAS DE RITMO E HISTÓRIA

 

Logo depois de Fabian ter ido embora, Pete apareceu. Tal rapidez era suspeita. Em outra situação isso teria irritado Natasha, mas ela queria esquecer Saul, ainda que por um curto período.

 

Ela e Fabian tinham conversado até tarde na pequena cozinha. Fabian sempre comentava sobre a abordagem meio minimalista de Natasha em relação à decoração, reclamando que aquilo o deixava desconfortável, mas naquela noite tinham outras coisas em mente. A leve tensão do drum and bass chegava até eles vinda do estéreo no cômodo ao lado.

 

Na manhã seguinte, Natasha levantou-se às oito, arrependida pelos cigarros que havia filado de Fabian. Este se desenrolou do saco de dormir que ela havia lhe emprestado assim que ouviu sua agitação. Não tinham mais nada a dizer sobre Saul. Estavam entorpecidos e cansados. Fabian partiu rapidamente.

 

Natasha perambulou cozinha afora tirando a roupa de dormir, jogando um suéter disforme sobre os ombros. Ligou o aparelho de som, colocou a agulha sobre o vinil que estava no prato. Era uma coletânea de músicas do ano passado, já com alguns meses de idade, o que a tornava um velho clássico no mundo em rápida mutação do drum and bass.

 

Passou as mãos pelos cabelos, puxando os emaranhados de forma brutal.

 

Pete tocou a campainha. Adivinhou que era ele.

 

Estava cansada, mas o deixou entrar. Enquanto ele tomava café, ela se apoiou na mesa e o observou. Achava-o feio, a pele pálida e os membros finos. Também não era nenhum guru de estilo. O mundo do jungle podia ser elitista. Ela sorriu levemente ao imaginar os rudeboys e hard-steppers1 no clube AWOL sendo apresentados a esta aparição subensolarada, com direito a flauta.

 

– O que você conhece de drum and bass? – ela perguntou.

 

Ele balançou a cabeça. – Não muito, na verdade...

 

– Dá pra ver. Quando você tocou ontem foi impressionante, mas tenho que te dizer que é meio esquisito misturar flautas ou outras merdas com jungle. Pra fazer isso funcionar vamos ter que fazer tudo com cuidado.

 

Ele concordou, o rosto cômico de concentração. Natasha quase desejou uma repetição do seu extraordinário desempenho da véspera, aquele súbito sorriso intrujão. A alternativa era tão servil, tão desesperado para agradar, que só conseguiu nauseá-la. Se esse dia não corresse bem, ela decidiu, não iria querer mais nada daquilo.

 

Suspirou. – Não vou armar nada com você se não souber algo sobre a música. Só porque a porra do General Levy tem um single2 no top ten e alguns babacas de escola de arte começam a escrever sobre jungle, aí qualquer coisa que aparece com uma batida marcada vira “jungle”. Até a porra do Everything But the Girl! – Cruzou os braços. – Everything but the Girl3 não é jungle, né?

 

Ele balançou a cabeça. Era claro que nunca tinha ouvido falar de Everything but the Girl.

 

Ela fechou os olhos e engoliu um sorriso.

 

– Tá bom. Tem muita coisa rolando em jungle: tem o intelligent jungle, tem o hardstep, techstepping, jazz jungle...4 Gosto de todos, mas não consigo fazer faixas hardstep. Meio sinistro demais. Se quiser hardstep, procure Ed Rush ou Skyscraper ou alguém assim, OK? Faço coisas mais na linha do Bukem, DJ Rap,5 essas coisas. – Natasha se divertia enormemente, ensinando, vendo aqueles olhos dardejarem freneticamente. Ele não tinha ideia do que ela estava falando.

 

– Os DJs começaram a trazer músicos para os shows; Goldie traz um baterista, coisas assim. Algumas pessoas não gostam disso, acham que jungle deve ser só digital. Não tenho problemas com isso, mas também não tenho planos imediatos de arrastar você pro palco. O que estou interessada em fazer é deixar você tocar por um tempo e samplear alguma coisa da flauta para preencher as músicas. Fazer loops com ela, cortar e colar e tal.

 

Pete concordou. Já mexia na mala, montando a flauta.

 

Saul acordou na sala do trono sob a cidade. Sentou-se encolhido de frio, abaixo da forma imóvel do Rei Rato, rijo em seu trono. Assim que Saul abriu os olhos, Rei Rato levantou-se. Estava esperando que Saul despertasse.

 

Comeram e deixaram a câmara pela escada de tijolos que se afastava por trás do trono, emergindo para o esgoto principal por uma porta escondida. Saul seguiu Rei Rato pelos túneis e desta vez prestou atenção à sua localização, seus movimentos, criou um mapa na cabeça, seguiu a si mesmo.

 

A água corria em volta deles enquanto uma garoa atingia as expansões urbanas acima e escorria pelos seus recessos. Deslizou sobre os tijolos, em um súbito dilúvio de óleo. As paredes ali eram revestidas de gordura, cheias de resíduos brancos translúcidos.

 

– Restaurantes –, chiou o Rei Rato enquanto saltava; Saul o seguiu para evitar o muco escorregadio. Podia sentir o cheiro daquilo enquanto passava correndo, o fedor de fritura velha e manteiga rançosa. Ficou com fome. Passou um dedo ao longo da parede enquanto corria, chupou a gosma grudenta que tinha pego e riu, ainda maravilhado e excitado com sua fome por comida velha.

 

Saul podia ouvir coisas escapando freneticamente do seu caminho. Os corredores eram recheados de ratos, mordiscando as paredes e os abundantes detritos alimentares, fugindo quando se aproximavam. Rei Rato assobiou e o caminho à frente deles ficou livre.

 

Os dois deixaram o subsolo, emergindo em uma ruela de Piccadilly, atrás de uma grande pilha fedorenta de comida jogada fora, efluentes gastronômicos expelidos pelos grã-finos de Londres.

 

Comeram. Saul devorou uma mistura esmagada de peixe velho frio em um pouco de molho bem forte, Rei Rato engoliu pedaços de tiramisù e polenta.

 

E então para cima dos telhados, Rei Rato subindo por uma escada de encanamentos de ferro e tijolos quebrados. Depois de tê-la usado, seu propósito ficou claro. Saul enxergou através da realidade vulgar, discerniu as possibilidades. Arquitetura alternativa e topografia foram se afirmando. Seguiu sem hesitação, deslizando por telhas e correndo sem ser visto sobre o horizonte.

 

Quase não falavam. De vez em quando, Rei Rato parava e olhava para Saul, examinava seus movimentos, aprovava ou indicava uma forma mais eficaz de subir ou se esconder ou saltar. Fizeram seu caminho sobre bancos e atrás de editoras, dissimulados e invisíveis.

 

Rei Rato sussurrou descrições obscuras por entre os dentes. Acenou para os edifícios por onde passavam e murmurou para Saul, insinuando a sombria verdade sobre os arranhões nos muros, os vãos que interrompiam as fileiras de chaminés, o destino dos gatos que se espalhavam à sua aproximação.

 

Ziguezaguearam para dentro e fora do centro de Londres, escalando, rastejando, movendo-se atrás das casas e entre elas, sobre escritórios e sob ruas. A magia tinha entrado na vida de Saul. Não mais importava se ele não entendia.

 

Tudo isso ficava a um milhão de quilômetros de distância do mundo cafona dos truques de mágica. Sua vida era serva de outro encantamento, um poder que tinha se esgueirado para dentro de sua cela na delegacia e o possuído, uma magia suja, crua, um encanto que fedia a mijo. Aquilo era vodu urbano, sustentado pelos sacrifícios dos atropelamentos, dos gatos e pessoas morrendo na pista, um I Ching de comes e bebes derramados e roubados, uma Cabala de sinais de trânsito. Saul sentia o Rei Rato observá-lo. Ficava tonto com uma energia rude, secular.

 

Comeram. Correram para o norte, além de King’s Cross e Islington, a luz já dando a entender que logo iria embora. Passaram Hampstead, Saul ainda não estava cansado, empanturrando-se de tempos em tempos nos caixotes de lixo das vielas. Rapidamente margearam Hampstead Heath, fora do intrincado mundo pavimentado. Fizeram o retorno e encontraram seu caminho por parques e ao longo de rotas de ônibus até as fronteiras do mundo financeiro, a City.

 

Saul e Rei Rato estavam atrás de um café na esquina da High Holborn com a Kingsway. Longe, ao leste, ficava a floresta de arranha-céus, onde tanto dinheiro era feito. Um enorme edifício atarracado estava diante deles, uma Gormenghast financeira,6 um brutamontes de aço e concreto que parecia ter crescido a partir dos edifícios à sua volta. Era impossível definir onde começava e terminava.

 

Longe dali, em Ladbroke Grove, Pete espreitou por cima do ombro de Natasha. Ela indicou uma minúscula tela cinza em seu teclado, as batidas saindo em cascata dos alto-falantes. Foi calibrando os agudos, brincando com sons. Os olhos claros de Pete pulavam de tela para alto-falante para flauta.

 

Fabian saiu da delegacia de polícia de Willesden, xingando em descrença. Caiu para o jargão, para a gíria americana, os palavrões.

 

– Cuzão filhodaputa cagão escroto branquinho porco prego bunda mole de merda.7

 

Lutou com seu casaco e zarpou em direção à estação do metrô. A polícia tinha chegado para pegá-lo sem aviso, sem deixá-lo pegar sua bicicleta.

 

Ainda murmurava palavrões em sua raiva. Precipitou-se ladeira abaixo rumo ao subsolo.

 

Kay estava debaixo da janela de Natasha, se perguntando o que ela havia feito com sua música, onde tinha achado aquele som de flauta.

 

– Não acho que ele saiba de alguma coisa, senhor – disse Herrin.

 

Crowley concordou vagamente com a cabeça. Não estava escutando. Onde você está, Saul?, ele pensou.

 

Quem é o Caça-Ratos?, Saul se perguntava. O que quer me matar? Mas Rei Rato tinha afundado na melancolia depois de mencionar aquele nome e não diria mais nada. Haverá tempo para isso, disse ele. Eu não quero te assustar.

 

Rei Rato e Saul viram o sol ficar vermelho sobre o Tâmisa. Saul se viu escalando sem medo os grandes cabos da ponte ferroviária de Charing Cross, olhando por sobre o rio. Abraçou o metal. Trens se contorciam lá embaixo como vermes iluminados.

 

Sul, e desataram a correr secretamente por Brixton, quebraram a oeste para Wimbledon.

 

Rei Rato contou mais e mais histórias sobre a cidade enquanto passavam. Suas afirmações eram loucas e poéticas, irreais, sem sentido. Seu tom era casual como o de um motorista de táxi.

 

O passeio pareceu terminar de repente, e deram a volta rumo a Battersea. Saul estava alegre. Seu corpo pulsava com exaustão e poder. A cidade é minha, pensou. Sentia-se obstinado e intoxicado.

 

Chegaram a um bueiro em um estacionamento deserto e Rei Rato ficou de lado. Saul limpou a poeira do disco de metal. Manuseou-o de forma desajeitada, pressionou os dedos em torno dele. Sentia-se forte. Seus músculos estavam tensos com o esforço contínuo daquele dia, e ele esfregou-os em um movimento que teria sido narcisista não fosse o seu evidente espanto. Agarrou o metal, sentiu seus poros abertos com suor e sujeira e então os flexionou; aquilo o revigorava.

 

A tampa rangeu por um momento e irrompeu de seu encaixe.

 

Saul latiu em triunfo e mergulhou na escuridão.

 

A música que vinha da janela de Natasha era de Hydro,8 reconheceu Fabian. Havia se acalmado um pouco no tempo que tinha levado para chegar a Ladbroke Grove. O céu ferveu no tempo das batidas.

 

Bateu na porta. Natasha veio até ele, abrindo a porta, um pequeno sorriso congelado porem sua expressão severa.

 

– Tash, cara, você não vai acreditar nessa merda. Tá tudo cada vez mais estranho.

 

Ela pôs-se de lado para que ele passasse. Assim que terminou de subir as escadas ele ouviu as frases lacônicas de Kay.

 

– ...vou lá uma vez ou duas por mês, você sabe, e é só Goldie e essas porras e eles vão lá às vezes... E aí, Fabian, qualé, cara?

 

Kay sentava na beirada da cama e olhava para ele. Pete sentava-se meio retesado em uma cadeira trazida da cozinha.

 

O rosto amigável de Kay era desprovido de preocupação, alheio ao estado de Fabian. Sentou-se com o mesmo sorriso vago, aberto, enquanto Natasha voltava e entrava no cômodo.

 

Pete estava claramente desconfortável, mas manteve os olhos em Fabian, sem piscar, até Natasha chegar.

 

Fabian fez uma pausa antes de falar.

 

– Acabei de passar a tarde com aqueles porcos escrotos. Ficaram me falando umas merdas o tempo todo, a porra do dia inteiro, “O que pode nos contar sobre Saul?” E eu falava pros filhos da puta de novo e, caralho, de novo, eu não sei.

 

Natasha sentou-se de pernas cruzadas sobre o colchão.

 

– Eles ainda acham que Saul matou o pai?

 

Fabian riu teatralmente.

 

– Ah, Tash, cara, não, não, não, chega disso, isso não é nada, essa é a menor das preocupações agora. – Chupou os dentes e puxou um jornal amassado de sua bolsa, balançando-o na frente deles. A notícia tinha sido bem manuseada; as tintas, borradas. – Vocês não vão extrair muita coisa disso aí – disse enquanto eles seguiam o jornal com os olhos. – Só o básico. Deixa eu mandar a real. Saul sumiu. Ele escapou.

 

Fabian riu de forma desagradável das expressões pasmas de Kay e Natasha. Ele antecipou suas exclamações.

 

– Não, peraí, cara, tem mais. Dois policiais foram mortos no apartamento do pai de Saul, bem arrebentados. E parece que... eles acham que foi Saul quem fez isso. Tão doidos pra achar ele. Vão vir pra cima de vocês todos, logo vai ser a vez de vocês. Com todas as perguntas de merda.

 

Ninguém falou.

 

Apenas os loops de Hydro preenchiam o cômodo.

 

1 Fãs do subgênero do jungle conhecido como hardstep.

2 General Levy: vocalista londrino de ragga, que fez sucesso em 1994 com a faixa Incredible, de M-Beat, para a qual gravou o vocal. Caiu no ostracismo após afirmar em entrevista para a revista inglesa The Face que “Eu controlo o jungle atualmente”. Single: compacto. Disco de vinil de menor duração, com uma ou duas faixas de cada lado.

3 Everything But the Girl: banda surgida nos anos 80, originalmente mesclando pós-punk e bossa nova; ressurgiu no final dos anos 90 com faixas em ritmo jungle produzidas por DJs de house, como Todd Terry (como o sucesso Missing).

4 Subgêneros do jungle: intelligent jungle também é chamado de ambient jungle, atmospheric jungle ou artcore: jungle com influências de lounge, jazz e ambient music. Uma versão com menos influência da ambient music seria o jazz jungle. Hardstep é caracterizado pela produção mais crua e pelo clima mais urbanoide; é menos quebrado, com batidas mais espaçadas, porém mais pesadas. Artistas incluem DJ Hype e DJ Zinc. Techstepping ou techstep possui influências de industrial e techno e um clima mais sombrio e pesado, influenciado pela ficção científica; faz muito uso de sintetizadores e ruídos sampleados. Artistas incluem Ed Rush, Optical e Dom + Roland.

5 Ed Rush e Skyscraper; artistas do gênero hardstep (Rush também cria no subgênero techstep). DJ Rap é uma famosa DJ de drum and bass, enquanto LTJ Bukem, criador da série Logical Progression, é um dos expoentes do chamado intelligent drum and Bbass (embora, como a maioria dos artistas de jungle, se oponha ao uso deste rótulo, que considera pretensioso).

6 Castelo Gormenghast, dos livros do autor de fantasia e Mervyn Peake. Aparece nos romances Titus Groan (1946), Gormenghast (1950) e Titus Alone (1959). É um vasto castelo bem ao centro do recluso e remoto reino de mesmo nome. Peake é uma das maiores influências de escritores como China Miéville e Jeff VanderMeer.

7 No original, “Bambaclaht motherfucker shithead blabddaht whitebread pig chickenshit piss-artist fuckers”. A frase reúne diversos xingamentos da subcultura jungle londrina, do hip hop americano e do underground jamaicano. Bambaclaht: o palavrão bumbaclot, com sotaque jamaicano. Pano ou trapo usado para limpar a região anal. Na Jamaica, é usado como “Fuck!”, ou seja, como expressão de raiva ou surpresa. Whitebread: gíria londrina. Um “whitebread” (pão branco) é um “babaquinha incapaz de demonstrar qualquer espécie de atitude típica de um negro decente”. Um “branquelo”. Chickenshit: jargão militar da Segunda Guerra Mundial (literalmente, “merda de galinha”). A palavra é usada para denotar situações ou pessoas paralisadas por regras burocráticas consideradas ridículas ou desnecessárias. Piss-artist: literalmente, “artista de mijo”. Gíria do underground que denota uma pessoa incapaz de beber grandes quantidades de álcool sem passar mal, vomitar ou desmaiar.

8 Hydro: artista de drum and bass. É mais uma das alcunhas de Ben Settle, também (mais) conhecido pelo nome artístico de Ed Rush.

 

Rei Rato havia sumido.

 

Saul estava deprimido. Sentia-se empanturrado de sobrenatural e surreal.

 

Estava agachado atrás do trono de Rei Rato. Havia deitado lá após a épica jornada por Londres, saciado e exausto. Naquela noite, tinha acordado e pego no sono várias vezes e, quando se levantou, Rei Rato havia partido.

 

Saul levantou-se e perambulou pela sala. Ouvia o som de gotejar e de uivos distantes.

 

Rei Rato tinha afixado um pedaço de papel imundo ao trono.

 

Volto já, dizia. Fica aí.

 

Sozinho, Saul sentiu-se irreal.

 

Era difícil acreditar que ele existia independentemente de Rei Rato, que Rei Rato não era uma invenção de sua imaginação, ou Saul da dele. Saul sentiu um início de pânico.

 

Sozinho, ficou subitamente doente com a evasão de Rei Rato. O que era o Caça-Ratos? Ele queria saber. Rei Rato não diria. Sua correria pela cidade tinha sido em sua maior parte em silêncio. Quando Rei Rato estava ao seu lado, Saul reconhecia, ele tinha sido um cúmplice de seu disfarce; e Saul tinha estado ocupado escutando o rato dentro dele acordar.

 

Mas, sozinho, percebeu que havia passado um bom tempo desde que tinha pensado na morte de seu pai. Que havia sido omisso em seu luto. A morte de seu pai era o fulcro. Entendê-la era saber o que queria matá-lo, saber por que os ratos não obedeciam ao seu rei.

 

Com Rei rato ao seu lado, Saul tinha visto uma cidade nova. O mapa de Londres tinha sido rasgado e redesenhado de acordo com os critérios de Rei Rato. Sozinho, Saul subitamente temeu que a cidade já não existisse.

 

Ficar aqui?, pensou. Foda-se isso.

 

Saul subiu para fora da sala e entrou no esgoto.

 

O vento soprava através dos túneis. Saul ficou perfeitamente imóvel e escutou. Não podia ouvir Rei Rato em lugar algum. Ele recolocou no lugar a porta da saída escondida e seguiu adiante cautelosamente.

 

Assim que deixou o túnel lateral que escondia as entradas e saídas da sala do trono, o forte cheiro do mijo de Rei Rato se dissipou. Três ratos perambulavam fora do túnel, movendo-se nervosamente, reparando nele. Não tinha medo, mas incertezas. Parou e observou.

 

Um dos três correu para um pouco mais à frente e balançou a cabeça em um movimento chocantemente humano. Saul partiu pelos esgotos, tremendo de ansiedade. Sozinho, o esgoto era um mundo diferente do que Rei Rato lhe mostrara, mas Saul não tinha medo. Caminhou por uma colcha de retalhos olfativa, e o cheiro de mijo lhe contava histórias. O rato que mijou aqui era agressivo e ficava com raiva rápido; o que mijou aqui era um discípulo; esse outro aqui comeu demais, e sua comida favorita era frango.

 

Saul podia sentir a cidade acima dele. Sentia linhas e direções o puxarem. Seguiu o repuxar geomântico.

 

Por trás dele, Saul escutou um tamborilar. Voltou-se e, na não luz acinzentada, viu que três ratos o seguiam. Parou, imóvel, e os observou. Pararam a dois metros de distância e desviaram, sem tirar os olhos dele. Enquanto observava, mais dois ratos saltaram de um cano que se projetava para dentro do túnel e se juntaram aos seus companheiros.

 

Saul recuou um pouco e os ratos o seguiram, mantendo a distância. Um deles guinchou alto e logo foi acompanhado pelos outros, uma cacofonia dissonante que foi imitada ao longo dos túneis próximos. Pequenos pés correram de todos os lados em sua direção. O guinchar reverberava ao redor da cabeça de Saul.

 

Mais ratos começaram a se reunir ao seu redor, vindos dos túneis laterais e das trevas vizinhas. Vinham em grupos de dois e três e dez e, embora não tivesse medo deles, eram em um número esmagador. Não havia luz para ser refletida nas centenas de olhos que o rodeavam; permaneciam apenas pequenos pontos de escuridão no breu geral, que o focavam a partir da efervescente massa de corpos que preenchia o túnel à sua volta.

 

Os guinchos continuavam. Enchiam a sua cabeça.

 

De repente, em meio à sua apreensão, Saul sentiu uma explosão de excitação. Ficou confuso com a sensação, que parecia estranha e fora do lugar. E percebeu que não era sua a excitação, mas dos ratos; ele compreendia sua comunicação aguda, podia sentir o que sentiam.

 

Foi inundado por emoções alheias.

 

Saul tremeu e voltou-se. Não havia nada que diferenciasse o que estava adiante do que estava atrás, tudo estava tomado pelos pequenos olhos e os corpos dos ratos. As vozes dos animais eram trêmulas, afáveis, implorando.

 

Saul fugiu da pressão do som, inundado pelo pânico. Virou-se e pulou sobre a massa de corpos, que se abria em pequenas ilhas de chão e esgoto sob seus pés quando pisava, caudas meneadas para fora do caminho. As vozes ficaram subitamente queixosas. Eles o seguiram.

 

Saul correu pelos túneis e os ratos precipitaram-se atrás dele. À sua frente, viu uma escada na parede. Pulou, agarrou-a. Os ratos saltaram, arranhando o degrau inferior. Saul sentiu uma onda de alívio quando olhou para baixo, para aquelas faces inescrutáveis.

 

Subiu e forçou a tampa de metal, espiando pela fresta. A saída era margeada por um gramado alto. Saul subiu das profundezas e emergiu em uma clareira entre arbustos sombrios. Estava em um parque abandonado. Acima do barulho distante do trânsito havia sons mais próximos de pássaros. Saul viu água diante dele, um lago retorcido com ilhas.

 

Árvores emolduravam seu campo de visão. Viu uma forma além da fronteira arbórea: uma enorme cúpula dourada encimada por uma lua crescente. A mesquita central de Londres, polida pela luz dos postes. Ao sul, pôde ver o estilete fino da Telecom Tower. Estava em Regent’s Park.

 

Saul circundou o lago e deslizou silenciosamente através das sebes e árvores e grades.

 

Saiu no interior da cidade escura.

 

Caminhou para o sul até a Baker Street. Luzes ondulavam furiosamente sobre as faces dos edifícios quando os carros passavam. Faróis o enquadraram em seu brilho quando um furgão velho veio em sua direção e seguiu em frente. O coração de Saul acelerou por um bom tempo mesmo depois do veículo ter sumido.

 

Virou na Marylebone Road.

 

Pessoas vinham até ele, vindas de todas as direções. Levou um instante para perceber que elas também se afastavam quando passavam por ele, que estavam simplesmente andando na rua. A respiração de Saul vacilou um pouco quando soltou o ar. Enfiou as mãos nos bolsos e partiu para oeste.

 

O primeiro homem a passar por ele vestia blazer e jeans, camisa de rúgbi dobrada, afagando a barriga distendida. Olhou por um momento para Saul e então seus olhos focalizaram algo além dele.

 

Olhe para mim!, Saul gritou em sua cabeça. Eu sou um rato! Dá pra ver? Sentem o cheiro? O homem deve ter percebido o fedor que exalava das roupas de Saul, mas era muito pior do que o que coloria a passagem de um bêbado? O homem não se virou para observar Saul, que parou para vê-lo se afastar. Voltou-se e encarou a próxima pessoa que se aproximava, uma jovem asiática com um vestido curto e apertado. Deu um trago no cigarro quando passou por ele. Não lhe deu nem uma olhadela.

 

Saul riu, volúvel. Foi ultrapassado por trás por um negro baixinho, pela frente por um grupo de adolescentes cantando e, em seguida, por um homem muito alto de óculos, por trás por um homem de terno que caminhava, depois corria, depois caminhava até seu destino.

 

Ninguém percebeu Saul.

 

À frente dele, o fluxo interrompido do tráfego noturno erguia-se, cortando a Edgware Road. Voltava brevemente para a terra e então se levantava, voando novamente. Esta era a Westway, o vasto elevado que se estendia sobre Londres. Mil toneladas de asfalto impossivelmente suspenso, ela disparava sobre Paddington e Westbourne Grove, com a cidade espalhada por todos os lados. No oeste, sobre a Latimer Road, ela se contorcia em uma intrincada bagunça de rampas elevadas e saídas. Livrava-se dessa confusão e continuava, finalmente retornando à terra do lado de fora da prisão de Wormwood Scrubs.

 

Saul examinou a Westway. Passava pela estação de Ladbroke Grove, onde morava Natasha. As regras da cidade já não lhe diziam respeito. A proibição contra pedestres na Westway não se aplicava aos ratos.

 

Desviou-se dos carros esparsos e precipitou-se para o canteiro central, correndo declive acima e contornando a barreira, com veículos dos dois lados zumbindo ao passar por ele.

 

Podia ouvir, vindos lá de baixo, gritos distantes que saíam das casas pintadas de mostarda. Obscenas luzes piscantes precipitavam-se para longe. Os motoristas não podiam vê-lo. Era uma figura escura, totalmente imune ao frio, as costas dobradas, os braços afastando os obstáculos, puxando-o para a frente. Movia-se como um vilão de desenho animado que tomou anfetaminas, escondendo-se de forma rápida e exagerada.

 

Quatro grandes blocos atarracados subiam como dedos gordos em volta da Westway: blocos de torres marrons que a tudo supervisionavam em pontos de luz desiguais. O som do tráfego era um crescendo rítmico e constante, maré alta sem vazantes, nunca morrendo.

 

Isolado no centro desta larga estrada, Saul não podia ver as ruas abaixo dele. Não podia olhar para as janelas ou sobre a borda da Westway em busca de transeuntes noturnos. Estava sozinho com os carros anônimos e o horizonte. A cidade inteira havia se tornado horizonte, pontuado por torres gordas.

 

À sua esquerda, os elevados das linhas de metrô de Hammersmith e da City assombravam a Westway, a apenas alguns metros de distância. Um trem passou, se sacudindo. Com um jorro de adrenalina, Saul imaginou-se atravessando a estrada em corrida e saltando, agarrando-se a ele enquanto passava e montando-o como um peão de rodeio, mas teve a repentina impressão de que, quase certamente, não conseguiria dar esse salto, não ainda, e ficou parado vendo o trem seguir para Ladbroke Grove.

 

Seguiu a passagem do trem sobre a Westway até que pôde ver a estação de Ladbroke Grove pairando no ar à sua esquerda. Estava tão perto que provavelmente poderia pular até a plataforma. Saul perscrutou os faróis à sua direita e arremessou-se pela estrada, passando como um casaco jogado ao vento diante dos parabrisas dos motoristas assustados. Espremeu-se contra a barreira e inclinou-se.

 

Logo além da estação, Ladbroke Grove ainda pulsava com as batidas das ghetto-blasters.1 Um grupo de jovens se recostava, de forma estudadamente cool, do lado de fora do edifício Quasar. Faziam o seu melhor para intimidar os transeuntes. Donos de mercearias 24 horas paravam em suas portas e conversavam uns com os outros, com os clientes, com os taxistas. As ruas não comportavam uma multidão, mas passavam longe de estar vazias. De seu precário esconderijo, Saul observou.

 

Sem ser notado, subiu sobre a barreira e pendurou-se de costas para ela, debruçado sobre as ruas. Saboreou sua própria indiferença.

 

Era um salto fácil até a calha do outro lado, pouco mais de um metro, e conseguiu fazer isso sem ruídos. Desceu para a cobertura baixa em forma de cunha entre a estação e o elevado e deslizou para a sombra ameaçadora da Westway. Subiu por beirais mofados. Três dias atrás, pensou enquanto saltava para o chão, eu era pesado e humano. E agora, pensou enquanto saía das trevas grafitadas para a própria Ladbroke Grove, sou um rato e posso viajar como quiser. Despertei tão rápido.

 

Não fez nenhum esforço para se esconder, estava até um pouco arrogante, e os grupos de jovens que tomavam a calçada o olharam mas o deixaram passar, torcendo os narizes às suas costas. Caminhou em meio a conversas em inglês com sotaque, em árabe e em português.

 

Dobrou na Basset Road e trotou até a casa de Natasha. As luzes estavam apagadas. Ele xingou e girou sobre os calcanhares, afastando-se para uma árvore em frente à janela. Inclinou-se sobre ela e cruzou os braços, pensando se deveria acordá-la ou não.

 

Saul não tinha ilusões. Nunca poderia voltar atrás, havia se tornado um rato. Não havia jeito de voltar para aquele mundo. Mas tinha vivido lá uma vez e sentia saudades dos amigos.

 

Enquanto ficava ali parado, tentando se decidir, uma figura desajeitada veio pela rua. Com uma excitação repentina, Saul reconheceu a marcha trôpega. Quando o homem se aproximou da casa de Natasha e diminuiu o passo, Saul pôs as mãos em concha sobre a boca e sussurrou:

 

– Kay.

 

Kay deu um pulo e olhou em volta, confuso. Saul sussurrou novamente. Kay olhou direto para ele por um momento e então olhou à sua volta, comicamente nervoso.

 

Saul saiu do esconderijo na árvore.

 

– Meu Deus, Saul, cara, você quase me deu um ataque do coração! – disse Kay suspirando de alívio. – Você tava invisível debaixo daquela merda de árvore e sua voz tá toda estranha... – Parou de repente, balançou a cabeça e colocou as mãos no rosto.

 

– Porra, cara! – ele sussurrou, olhando freneticamente ao seu redor. – O que aconteceu? Como diabos você tá? Acabei de saber das merdas todas! Meu Deus! O que aconteceu?

 

Saul aproximou-se dele, que bateu em seu ombro e apertou sua mão.

 

– Sério, Kay, você não iria acreditar nessa merda. Não tô te enrolando, cara, é que... Nem eu mesmo entendo.

 

O rosto de Kay se contorceu.

 

– Que fedor é esse, cara? É você? Não quero ofender, cara, mas...

 

– Eu tô... me escondendo.

 

– Onde? No esgoto, caralho? – Saul não disse nada e os olhos de Kay se arregalaram. – Puta que pariu! Você está lá? Eu não tava falando sério... – Saul o cortou.

 

– É, bom, você soube que eu fugi da minha cela? Tenho que me esconder, cara, a polícia acha que matei meu pai.

 

Kay fitou-o por um momento.

 

Saul ficou horrorizado.

 

– Não porra, eu não fiz isso. Meu Deus, você precisa me perguntar isso?

 

Toda a conversa sobre perseguição e crime e captura o estava deixando nervoso e ele recuou para a escuridão sob a árvore, puxando Kay.

 

– Então o que você está fazendo? – disse Kay.

 

– Ah... – Saul foi vago. – Tenho que encontrar alguma coisa que prove que eu não fiz isso. – Não podia explicar que nunca poderia voltar.

 

– E os dois policiais? – Saul olhou para Kay, sem expressão. – Os que empacotaram no seu apartamento.

 

Saul olhou para ele em horror crescente.

 

– Você não sabia?

 

– Mas que merda aconteceu? – Saul sacudiu sua lapela. Kay recuou, torcendo o nariz.

 

– Eu não sei, eu não sei. Fabian veio até a Tash mostrando um jornal. A polícia ficou interrogando ele o dia inteiro, disseram que os dois que vigiavam seu apartamento foram espancados e morreram. Eles acham que foi você, cara.

 

Kay disse aquilo sem malícia. Podia ver que Saul não sabia nada sobre o crime e sentiu somente preocupação, sem suspeitar.

 

– Você... sabe... você sabe quem... – continuou.

 

– Não, mas acho que conheço alguém que sabe. Merda! – Saul passou as mãos pelos cabelos. – Merda, eles vão me caçar como nunca agora! Merda!

 

Ele vai me contar, pensou, tomado pela raiva. Chega de silêncios petulantes. Quando eu encontrar Rei Rato ele vai ter de me dizer quem está fazendo isso e por quê, e foda-se isso de esconder coisas de mim.

 

Voltou-se para Kay.

 

– O que está acontecendo, cara? Por que você está aqui?

 

Kay apontou para a rua.

 

– Eu estava no pub com Tash e Fabe e esse carinha com quem a Tash começou a criar algumas músicas. A gente mal dormiu... ficamos todos falando de você, cara. – Sorriu debilmente. – Percebi que tinha deixado minha bolsa na Tash e ela me deu as chaves. Vou voltar em um minuto. Você quer vir? – Saul hesitou e Kay começou a incitá-lo. – Vamos, cara, todo mundo tá preocupado pra caralho com você, cara. Fabe tá bem mal.

 

Saul pensou em Fabian e sentiu uma onda de nostalgia. Sua amizade parecia terrivelmente distante. Queria ir até o pub, mas ficou subitamente aterrorizado. Não tinha mais nada em comum com essas pessoas, ainda que precisasse desesperadamente delas; que sentisse sua falta. O que poderia dizer, contar para eles? E a polícia... já estava interrogando-os. Depois desses últimos assassinatos, correria o risco de incriminá-los?

 

– Eu... não posso, Kay. Eu sou procurado, cara, não posso dar bobeira em pubs e coisas assim. Tenho que me manter em movimento. Mas... diz a eles que estou sentindo falta deles e prometo que vou tentar vê-los. E, Kay... diga-lhes que, se não souberem de mim por algum tempo, não precisam se preocupar... Estou tentando arrumar as as coisas. OK? Diz isso a eles?

 

– Tem certeza de que não quer ir até lá?

 

Saul sacudiu a cabeça.

 

Kay concordou com um aceno lateral de cabeça.

 

– Então... pelo menos me diga o que está acontecendo. Como diabos você saiu da prisão?

 

Saul chegou a rir um pouco.

 

– Era só uma cela e... realmente não posso explicar agora. Sinto muito, mesmo.

 

– Você está se cuidando?

 

– Kay... Eu não posso, certo? Por favor, pare, cara. Não posso explicar isso.

 

– Mas você tá bem? – Kay estava preocupado. – Você não parece tão bem. Como eu disse, sua voz está toda... estranha, e você cheira... como...

 

– Eu sei, mas não posso falar sobre isso. Prometo que vou me cuidar. Tenho que ir, cara. Sinto muito. Diga a eles que os amo. – Tocou brevemente no ombro de Kay e caminhou para a escuridão, virando breu.

 

Kay ficou debaixo da árvore, acenando. Seus olhos fitaram atentamente quando Saul saiu do círculo de sombras e encontrou mais escuridão junto aos muros das casas.

 

– Toma cuidado, cara – disse Kay, bem alto, na direção dele.

 

Saul já estava fora de sua visão.

 

Kay ficou um instante sob a árvore e então caminhou lentamente até a porta da frente de Natasha e entrou. Estava profundamente confuso. Algo estava obviamente muito errado com Saul, mas não conseguia dizer o quê. O homem tinha se transformado em uma espécie de ninja, por exemplo; caminhou meros cinco metros para longe dele e ficou invisível. E sua voz... rouca e, de alguma forma... próxima.

 

Aquilo tinha mexido com os nervos de Kay, deixado-o com um pouco de medo. Estava claro que Saul não sabia nada sobre os policiais mortos, mas Kay se viu imaginando se ele não estaria de alguma forma envolvido sem saber. Havia certamente um toque de psicopatia nele esta noite: os olhos bem escuros, sua voz e o jeito intenso, e aquele fedor...! O cara deveria estar vivendo em merda de porco. Estaria realmente enfiado nos esgotos? Como se fazia para sequer entrar neles?

 

Teve medo pelo seu amigo.

 

Encontrou sua bolsa na sala de estar às escuras e deixou o apartamento, trancando a porta atrás de si. Estava ansioso para contar aos outros sobre a sua reunião. Pelo menos Saul estava... bem, vivo, se não OK.

 

Saiu para a rua e virou à esquerda, ainda balançando a cabeça em confusão. Alguma coisa emergiu de um rasgo de escuridão atrás dele e moveu-se com rapidez. Kay não ouviu nada. Metal girou brevemente e algo longo e duro rachou a parte de trás de sua cabeça. Kay engasgou sem ar e caiu para a frente, foi agarrado, peso morto, pendurado como um cadáver, antes mesmo de bater no chão.

 

O sangue jorrou e encharcou sua bolsa, gotejando no interior, manchando as capas dos discos de Ray Keith e Omni Trio.2

 

1 Enormes rádios portáteis, usados por breakdancers e grafiteiros.

2 Ray Keith: DJ e produtor da cena breakbeat britânica nos anos 80 e 90, transitou da acid house ao jungle. Omni Trio: pseudônimo do produtor Rob Haigh, criador de drum and bass, ambient e música experimental.

 

Saul viu os gordos pilares da Westway surgirem ao fundo mais uma vez.

 

Virou à direita, contornando o grande e escuro elevado, perambulando lentamente para oeste. Não sabia para onde ir. Voltou os olhos para o chão, buscando um bueiro. Talvez devesse se esconder, procurar Rei Rato novamente. Não sabia se conseguiria encontrar seu caminho de volta pelos esgotos até a sala do trono. Não queria ver os ratos. Eles o tinham irritado com suas súplicas. Queriam alguma coisa dele.

 

Alguns transeuntes da madrugada passaram por ele. Saul queria parar para comer, sentar e pensar um pouco. Não estava cansado. Lembrou-se de repente dos policiais que tinham morrido em seu apartamento e estremeceu.

 

Estava sendo atraído pelo emaranhado de concreto do entroncamento da Westway, uma confusão de curvas arrebatadoras que pairavam acima do solo como uma ameaça iminente. Embaixo dos novelos de aço e asfalto o governo tinha criado quadras de basquete e futebol, uma parede para escaladas e barras fixas. Durante o dia, a área ficava repleta de gritos de jovens jogadores alheios ao concreto acima e à sua volta, espraiado por todas as direções com uma grandiosidade funcional, ocluindo a luz direta e obscurecendo o céu.

 

Saul jogava sem rumo em meio à escuridão. Olhou para o alto, para a barriga da Westway. O tráfego acima soava muito distante.

 

Serpenteou por aberturas nas cercas de aço trançado que cercavam os campos de futebol. O vento era calmo debaixo do elevado. Parou e escutou-o fustigar os cantos daquele terreno isolado.

 

Havia um outro som.

 

Um arrastar fraco e rápido ecoou sem alarde entre os pilares.

 

Saul virou-se e moveu a cabeça bruscamente como se algo o cercasse. Deu um passo atrás. O pânico borbulhava dentro dele. O Caça-Ratos!, pensou, e correu para o fraco brilho dos postes de luz.

 

Girou sobre os calcanhares, procurando desesperadamente uma saída daquela escuridão. Algo cruzou seu campo de visão, um corpo negro que desceu das sombras sobre ele, das fendas na parte inferior da Westway. Oscilou à sua volta, rápido demais para o olho acompanhar, livre das restrições da gravidade, movendo-se em todas as direções através do ar. A respiração de Saul estava rápida quando ele se virou e correu.

 

Algo deslizou pelo ar mais acima e voou sobre sua cabeça em uma parábola perfeita, com uma graça e velocidade que eclipsariam qualquer ginasta ou artista de circo. A massa escura curvou-se sobre a terra e ficou parada, pousando levemente seis metros à sua frente. A forma agachada saltou, espichando pernas e braços de repente, como um boneco de caixa de surpresas.

 

Um homem alto e gordo balançava diante de Saul, seus braços e pernas esticados como que antevendo um abraço.

 

Saul freou e recuou, voltando-se de repente e correndo de volta para a escuridão de onde tinha vindo. Tentou se lembrar de como se esconder, tornar-se um rato, mas o terror congelara sua habilidade.

 

Quando se abaixou atrás de uma quadra de tênis, uma forma transitória passou, voando por cima da rede, e ali estava o homem diante dele novamente, os braços estendidos. Uma fina corda suspensa em algum ponto acima parecia ter se distendido e roçou em Saul ao fazer o caminho de volta.

 

Saul mudou de direção e desapareceu atrás de um muro de escalada. Ouviu algo chiando às suas costas. Saul ofegou ao correr, sua força-de-rato impulsionando-o mais rápido do que jamais havia se movido. Sua pele se arrepiava de medo. À sua frente vislumbrou árvores velhas e descascadas. Havia uma abertura estreita entre duas das cercas de arame, e mais além estava o jardim de um conjunto habitacional.

 

Correu para a fenda e precipitou-se por ela, sem fazer muito barulho, quando alguma coisa pegou seu tornozelo e o jogou como uma árvore derrubada em direção ao chão de concreto.

 

Foi pinçado a pouca distância do solo antes do baque e ficou pendurado no ar por um momento. Finas cordas se esticavam ao longo do seu caminho, presas dos dois lados às cercas de aço. Uma o fez tropeçar e outra o aparou pelo peito. Xingou freneticamente e se esforçou para ficar de pé, puxando a corda que, de alguma maneira, tinha se enrolado em seu tornozelo. Abriu caminho adiante e viu formas alongadas mais à frente: mais cordas, um bosque delas em seu caminho. Como não as tinha visto antes?

 

Esforçou-se para passar sobre elas, mas era tudo muito confuso; algumas estavam tão frouxas que saíam em sua mão e enrolavam-se nele, outras tão apertadas que vibravam como uma corda de baixo quando o afastavam. Caiu de novo, pego nesta cama de gato. Não conseguia se mexer. Estava pendurado em um ângulo de quarenta e cinco graus, de cabeça para baixo, a um metro e meio do chão.

 

Saul ouviu passos. Sacudiu a cabeça, desembaraçando-se freneticamente, girou no meio da rede para ficar de frente para o caminho que tinha acabado de fazer, dando as costas para os mal-humorados arbustos que havia tentado alcançar.

 

O homem parou na entrada da pequena abertura.

 

A luz das lâmpadas distantes lutava para iluminá-lo, reluzindo de leve em sua pele. Usava apenas bermudas pretas nas pernas esguias. Não parecia ser afetado pelo frio. O homem tinha pele muito escura e uma enorme barriga protuberante que escondia sua cintura, mas braços e pernas ridiculamente longos e finos, os músculos ficando firmes a cada movimento. Sua barriga era inchada, globular, mas tensa como uma bolha. Mal sacudia quando ele se moveu lentamente na direção de Saul, que viu um grosso rolo de corda branca suja ao redor de seu ombro esquerdo.

 

– Não crie mais problemas, criança, ou vou te esmagar.

 

A voz era arranhada e aguda, vibrando com entonação caribenha. Parecia bem próxima do seu ouvido, como a de Rei Rato.

 

O homem movia-se em pequenos estouros. Avançou rapidamente alguns metros, então parou para examinar Saul, avançou de novo. Enquanto se aproximava, desenrolava a corda em seu ombro.

 

Saul sacudiu-se violentamente para se livrar do emaranhado de corda, que parecia apenas ficar mais apertada. Começou a berrar.

 

O homem estava quase em cima dele, deu-lhe um violento tapa no rosto que fez Saul parar de gritar instantaneamente. Sua cabeça balançou. Estava tonto e seu rosto latejava.

 

– Falei pr’você calaboca, guri! – O homem chupou os dentes.

 

A cabeça de Saul balançou para a frente e ele apertou os olhos. O homem debruçou-se sobre ele. Saul estava profundamente amedrontado. Forçou as mãos, tentou empurrá-las através das cordas para repelir o ataque que tinha certeza que viria. Agitou-se em seus grilhões e abriu a boca para gritar novamente.

 

O homem estendeu a mão rápido como uma serpente e empurrou os dedos contra a boca de Saul. Saul tentou morder, mas o homem abriu os dedos e com força desumana forçou a boca de Saul a ficar aberta. Então puxou a corda estendida sobre seu ombro usando apenas a mão livre. Enrolou-a em volta da cabeça de Saul uma, duas vezes, enfiou-a em sua boca como uma mordaça.

 

Murmurou para si mesmo em dialeto.

 

Enquanto falava, o homem puxou a corda e apertou-a habilmente em torno da cabeça de Saul, escondendo a metade inferior do rosto. Saul miou freneticamente por trás dessa máscara enquanto seus olhos dardejavam de um lado para outro.

 

O homem puxou os braços de Saul, torcendo a corda em torno deles e puxando com firmeza, prendendo-os atrás das costas. Puxou Saul para fora da pequena viela. Saul cambaleou e correu até que seus pés foram puxados e caiu. Tinha chegado ao fim da corda que o amarrava. Deslizou para trás, pelo concreto. O homem estava enrolando-o.

 

Saul foi posto de pé e virou-se para encarar o seu captor. Com a boca bloqueada, Saul respirava freneticamente pelo nariz, borrifando salpicos de ranho sobre as cordas. Olhos negros fitavam os seus, que estavam molhados de medo.

 

– Você vem comigo lá pro rato. Tem vodu brabo solto aí.1

 

Girou a corda sobre a cabeça de Saul como um cowboy de filme. Os rolos deslizaram pelo ar e enrolaram-se no corpo de Saul. O homem girou-o, apertando os laços, e deixou corda sobrando para que pudesse rodá-lo como um pião. Inclinou-se e passou a corda pelas pernas de Saul, até que todo o seu corpo estivesse oculto em uma mortalha de corda branca imunda.

 

Apenas os olhos de Saul podiam se mover. Sentia uma pulsação nos braços e pernas enquanto seu coração se esforçava para bombear o sangue pelas obstruções que cortavam sua carne.

 

O homem cortou a corda com os dentes e amarrou a ponta nos pés de Saul. Parou diante de Saul e olhou para ele, balançando a cabeça.

 

– Sem bobagem e gritaria agora, né?

 

Saul começou a arremessar-se para a frente, mas o homem o pegou e, para horror de Saul, girou-o no ar, jogando-o em suas costas. Colocou Saul naquela posição tão facilmente como Rei Rato havia feito. Saul sentiu-se como um novelo de poeira. O homem pegou mais corda de seu ombro e a enrolou várias vezes em torno de seu prisioneiro, prendendo-o com mais firmeza. Saul estava impotente diante daqueles largos músculos achatados, seus olhos voltados para trás. Suas pernas estavam retorcidas para cima em uma curva apertada. Pendia dos ombros e da cintura do homem, a corda cortando a pele de seu captor, que não parecia sentir dor. Saul balançou de forma terrível e ridícula quando seu raptor subitamente correu através da escuridão.

 

Percorreu o submundo abaixo da Westway em alta velocidade, um percurso violento e oscilante. Atalhos escondidos recuavam diante dos olhos de Saul. O homem abaixo dele deu uma guinada de repente e Saul viu o horizonte escuro cair à sua volta. Estavam no ar. Os olhos de Saul se arregalaram e ele deu um grito abafado, a baba escorrendo para baixo do queixo atrás das cordas.

 

Voaram pelo ar, deram uma pausa e voltaram para trás, depois giraram, um pêndulo a três metros do chão. Estavam suspensos, agarrados a uma corda, Saul percebeu. O homem começou a subir.

 

O homem movia-se facilmente, a curva em suas costas sugeria que estava usando os pés e as mãos. O ritmo era totalmente suave. As quadras de esporte desapareceram lá embaixo e, quando balançavam de um lado a outro, vistas do oeste de Londres entravam e saíam do campo de visão de Saul. O barulho ocasional de tráfego estava mais perto agora.

 

Chegaram ao topo da corda. Saul estava virado para o lado oposto ao da estrada principal, para ruas transversais mal-iluminadas. O homem agarrou-se à cerca divisória e zarpou ao longo da lateral da Westway. O estômago de Saul tamborilava de medo. Não havia nada entre ele e o chão. Viu as ruas lá embaixo se curvarem para mais perto dele e uma luz fraca reluzir em um filamento, um fio que passava por cima da chaminé de uma casa e se aproximava rapidamente.

 

Estavam em frente à casa agora e ele teve mais um vislumbre da fina linha de luz. Estava próxima, contorcendo-se em sua direção.

 

De repente, ele estava caindo.

 

Mas o chão parou de correr na sua direção e ele balançou no ar. Estava olhando diretamente para baixo, a Westway rugindo a poucos metros acima e atrás dele. O fio que tinha visto era outra corda, com uma das extremidades amarrada ao telhado e a outra nas grades da grande estrada acima. O homem estava descendo a corda agora, de cabeça para baixo, mão ante mão, saltando timidamente ao deslizar com rapidez rumo à intrincada escuridão dos telhados.

 

Saul rezou para que a corda fosse forte.

 

E então desceram e Saul foi girado. Ouviu um estalo alto e, quando o homem se voltou, Saul viu que ele tinha partido a corda atrás deles, escondendo sua passagem.

 

Estavam sobre os topos das casas, outra corrida suspensa através de Londres. O homem desviava dos obstáculos e precipitava-se sobre os telhados de forma ainda mais rápida que Rei Rato.

 

Quarteirões fugiam abaixo deles. Lá atrás, Saul via a monolítica Westway se encolhendo.

 

O homem saltou para a frente e balançou-se perigosamente sobre uma estrada que bloqueava seu caminho. Saul percebeu com terror que estavam em outra corda, amarrada horizontalmente entre os edifícios, mas desta vez moviam-se sobre ela, andando na corda bamba mais rápido do que Saul podia correr.

 

O ar escapava dele graças aos movimentos rápidos de seu captor e às cordas que apertavam seu peito. Abaixo deles Saul viu um caminhante solitário se deslocar nervosamente pelas vielas, alheio ao louco equilibrismo circense logo acima.

 

Com um salto, o homem escuro deixou a corda, pousou no telhado em frente, partiu a trilha atrás deles.

 

Moviam-se a uma velocidade insana sobre as ruas, percorrendo uma rede de cordas já amarradas. Passaram por pastagens e por uma propriedade rural, saltando telhados baixos e precipitando-se de forma insanamente veloz sobre terraços de tijolos. Saul se sacudia de horror, incapaz de ver o que seu captor estava fazendo.

 

Desceram correndo uma ribanceira de matagal rumo a uma linha férrea e zarparam ao longo dos dormentes de madeira. Saul observou os trilhos se afastarem em curvas atrás deles.

 

Mais uma vez a passagem foi interrompida quando o homem escuro escalou a lateral de uma ponte que passava sobre a linha férrea e o canal que a contornava. Aceleraram por uma área industrial, um conjunto de prédios baixos e surrados e empilhadeiras imóveis. Saul estava hipnotizado pela progressão vertiginosa sobre as casas. Havia sido capturado, não sabia por quem e nem o que iria acontecer com ele.

 

O ruído da cidade tornou-se estranhamente distante. Entraram em um pátio cheio de carros velhos esmagados e achatados, pilhas deles como camadas geológicas: estratos de velhos Volvos, Fords e Saabs. Os carros se amontoavam ao redor, deixando apenas ruelas estreitas por onde passar.

 

Zarparam por essas vielas.

 

De repente o homem parou e Saul ouviu uma outra voz: uma voz estranha, vaidosa e musical, colorida por um sotaque europeu que ele não soube identificar.

 

– Você o achou, então.

 

– É, cara. Peguei o lambedor de virgens mais ao sul, não é longe, você sabe.

 

Ninguém mais falou. De repente, Saul sentiu escorregar os nós que o seguravam e caiu no chão como uma jaca. Ainda estava amarrado com força em seu próprio novelo de corda. O homem gordo o pegou e o carregou nos braços como uma noiva.

 

Saul teve um vislumbre do recém-chegado: magro e muito pálido, de cabelos ruivos, nariz pontiagudo e aquilino e olhos arregalados. Saul foi carregado até seu destino: um enorme contêiner de aço, como uma gigantesca caçamba de lixo, a três metros de altura, sobre o qual pairava uma estrutura amarela parecida com um guindaste.

 

Seus olhos ficaram irrequietos enquanto era carregado, viu os carros todos achatados à sua volta e percebeu que aquilo era uma prensa de carros, que a tampa do contêiner escuro deveria descer sobre o que quer que fosse colocado lá dentro e esmagá-lo, espremê-lo como uma flor até ficar bidimensional. E enquanto era levado inexoravelmente até aquilo Saul arregalou os olhos de horror e começou a se debater, a gritar através de sua mordaça.

 

Sacudiu-se pateticamente nos braços do homem, tentou rolar para fora de seu aperto, mas o homem segurou-o firme e chupou os dentes com nojo, sem alterar o passo; não importavam os frenéticos zumbidos de protesto ou os movimentos desesperados de Saul. O homem transportava Saul por sobre o ombro; Saul fitou por um momento os olhos de aparência insana do ruivo atrás deles. Foi carregado, dobrando e desdobrando a cintura pateticamente, até que o homem alto levou-o para cima e ele oscilou na beirada do sinistro contêiner cinza... ficou pendurado em silêncio e imóvel por um momento... e caiu, adentrando as sombras daquelas paredes de metal, sentindo o ar frio e parado, batendo no chão cheio de cicatrizes.

 

Aterrissou com força sobre fragmentos de metal e vidro que se espalhavam no escuro.

 

Apenas por ser um rato ainda não estava inconsciente ou morto, pensou entre gemidos. Lutou para se sentar, filetes de sangue tingindo as cordas que o prendiam. Algo se aproximou dele, passos ecoando no chão de metal; tentou se virar, tornando a cair e batendo a cabeça. Sentiu que era agarrado pelos ombros e puxado para cima. Abriu os olhos e fitou um rosto reluzindo malignamente para ele, um rosto escuro, mais negro que as sombras no mortal triturador de carros, um rosto fervendo de raiva, dentes crispados, linhas marcadas ao redor da boca e o mau cheiro familiar de animais velhos molhados e lixo corroído pela raiva.

 

Rei Rato olhou para ele e cuspiu em sua cara.

 

1 No original, “There some bad obeah loose now”. Assim como o vodu, a santeria e o candomblé, a obeah (ou obea) é uma prática de feitiçaria com raízes que remontam à África. A obeah é típica de alguns países do Caribe, como Jamaica, Barbados e Trinidad e Tobago. O personagem que aparece neste capítulo fala com um fortíssimo sotaque jamaicano, como alguns MCs de jungle.

 

A cusparada escorregou em torno do nariz de Saul. Seu olhar ricocheteava nas paredes do triturador, indo e voltando, preso. Rei Rato o encarou com firmeza e raiva. Por que ele estava irritado, Saul se perguntou, os pensamentos se aglomerando um ao redor do outro em sua cabeça. O que estava acontecendo? Os dois tinham sido capturados pelo Caça-Ratos, era por isso que estavam ali, prestes a ser esmagados, então por que Rei Rato permanecia ali dentro? Não estava amarrado como Saul. Por que não saltava para fora daquela caixa e salvava a ambos – ou fugia?

 

Com a respiração rápida e feia aos ouvidos, Saul viu a pesada tampa pairando no alto, repugnante em seu potencial, cheia de impulso reprimido. Rei Rato tentou atrair a atenção dele, murmurou alguma coisa; mas, em seu pânico, Saul encarou o tio brevemente, depois olhou para a tampa, olhou para baixo e de novo para cima, antecipando a descida daquilo.

 

Rei Rato o sacudiu e rosnou, um quieto grito de raiva.

 

– Com que diabos você acha que tá brincando? Eu saio pro meu barro matinal,1 pra procurar uns víveres, te deixo dormindo que nem um bebê e o que acontece? Você sobe e cai fora.

 

Saul sacudiu a cabeça freneticamente e Rei Rato, impaciente, arrancou a corda em volta do seu rosto, libertando-o. Saul balbuciou, respirou fundo, espirrando muco e saliva e um pouco de sangue em Rei Rato.

 

Rei Rato não se moveu nem se limpou.

 

Em vez disso, deu um tapa na cara de Saul.

 

Saul sentia-se tão injuriado, tão machucado e ensanguentado, que a pancada em si não era nada, mas sua raiva e confusão transbordaram. Expirou e a respiração se transformou em um longo grito, um berro de frustração. Contorceu-se e sentiu os músculos inflarem contra as cordas.

 

– O que você está fazendo? – gritou.

 

Rei Rato colocou a mão sobre a boca de Saul.

 

– Poupe o papo furado, seu merdinha. Não me banque o incompreendido. Nunca mais saia por aí sozinho que nem um babaca, entendeu? – Estava rijo, encarando Saul, empurrando-o forte com a mão, ilustrando o que queria dizer. – Se importa de compartilhar os porquês e ondes de sua pequena exibição, ahn?

 

A voz de Saul emergiu abafada por trás da mão de Rei Rato.

 

– Só quis dar uma volta, só isso; não fui atrás de confusão. Estive aprendendo, não? Ninguém me viu e eu escalei como... você teria ficado orgulhoso.

 

– Chega de falar merda! – berrou Rei Rato. – A confusão tá de olhos arregalados pra você, filho. Tem um malandro por aí que te quer morto. Como eu disse, você é procurado, uma presa, alguém está à caça do seu rabo... e do meu.

 

– Então me diga que porra está acontecendo – cuspiu Saul, apontando o queixo para o rosto de Rei Rato. Houve um longo silêncio. – Você fala e fala sempre em enigmas como se tivesse saído de uma porra de uma fábula e eu não tenho tempo pra esperar que você me explique qual é a moral! Algo está atrás de mim? Beleza. O quê? Me diga, explique pra mim que merda está acontecendo ou cale-se.

 

O silêncio voltou, mais longo.

 

– Ele tá certo, rato. Precisa saber o que acontece. Não pode mantê-lo no escuro. Ou não vai poder se proteger.

 

A voz do homem que o carregara desde a Westway veio do alto e Saul olhou para cima para encontrá-lo agachado como um macaco no canto do esmagador de carros. Enquanto observava, o ruivo apareceu de repente ao lado do homem negro, com as pernas balançando para dentro do contêiner, como se tivesse pulado lá de baixo e aterrissado perfeitamente sobre o traseiro.

 

– E quem são eles? – disse Saul, apontando a dupla com a cabeça. – Pensei que o Caça-Ratos tivesse me capturado. Eu estava andando tranquilo e de repente esse sujeito me transforma numa trouxa e me carrega por aí. Pensei que fosse me esmagar nesta coisa.

 

Rei Rato não olhou para os homens sentados na beirada, nem quando um deles falou.

 

– Não só Caça-Ratos, sabe, menino. Aquele que quer você, ele é o Caça-Ratos e o Caça-Pássaros e o Caça-Aranhas e o Caça-Morcegos e o Caça-Homens e o caça tudo quanto é coisa.

 

Rei Rato lentamente concordou com a cabeça.

 

– Então, me diga – disse Saul. – Escute o seu amigo. Eu preciso saber, porra. E me tire dessas coisas!

 

Rei Rato alcançou um bolso interno do sobretudo e puxou uma faca automática. A lâmina emergiu de seu cabo com um snikt e ele a enfiou entre as amarras de Saul e puxou. As cordas caíram. Rei Rato virou a cabeça e andou até o final do contêiner. Saul abriu a boca para falar, mas a voz de Rei Rato surgiu das trevas, antecipando-o.

 

– Não quero mais porra nenhuma de palavra inútil saindo da sua boca, menino. Vou te mandar todo o discurso então, meu filho, se é isso que vai calar essa sua onda errada.

 

Saul via vagamente que ele tinha se virado para encará-lo. Os três homens o observavam em fileira: os dois acima – um agachado, outro balançando as pernas como uma criança e um embaixo, no canto, com um olhar fulminante.

 

Saul empurrou as cordas para longe e encostou-se no canto oposto, apoiado nos joelhos, como proteção para o seu corpo brutalizado; escutou.

 

– Diga alô pros meus camaradas – disse Rei Rato. Saul olhou para cima. O homem que o havia capturado ainda estava imóvel, acocorado.

 

– O nome é Anansi, guri.

 

– O velho Anansi – acrescentou Rei Rato. – O cavalheiro que provavelmente salvou sua pele do rufião que anda por aí à sua caça.

 

Saul conhecia o nome Anansi.2 Lembrou de si mesmo sentado em um quieto círculo, cercado por outros pequenos corpos, todos sugando leite morno de garrafas também pequenas, ouvindo seu professor de Trinidad contar para a turma coisas sobre a aranha Anansi. Não conseguia se lembrar de mais nada.

 

O ruivo agora estava de pé, equilibrado sem esforço na fina borda de metal. Curvou-se em um cumprimento exagerado, jogando um braço para trás. Usava calças sociais cor de vinho, perfeitamente passadas, camisa branca engomada e suspensórios pretos, com uma gravata floral. Suas roupas eram impecáveis e elegantes. Novamente falou naquele sotaque peculiar, uma mistura de todas as entonações europeias de que Saul podia lembrar.

 

– Loplop apresenta Loplop – disse.

 

– Loplop, aliás, Hornebom, Pássaro Superior – disse o Rei Rato.3 – Nós nos conhecemos há muito tempo, nem sempre como amigos. Quando vi que você tinha escapulido, chamei este par de camaradas. Você nos colocou numa série de contendas, filho. E ainda quer a história do Caça-Ratos.

 

– Caça-Aranhas – disse Anansi suavemente.

 

– Caça-Pássaros – cuspiu Loplop.

 

A voz de Rei Rato havia acalmado Saul. Rei Rato relaxou.

 

– Todos temos nossos admiradores, você sabe, seus tios ’Nans e Loplop e eu. Loplop perseguiu um pintor por algum tempo e eu sempre gostei de um trecho ou dois de versos. Se sabe alguma coisa de poesia talvez já conheça esta história, porque já a relatei antes para outra pessoa, que a anotou pra contar pra filharada – chamou de história de criança. Não me importei. Pode chamá-la do que quiser. Ele sabia que era pra valer.

 

“Eu não morei sempre na Smoke, você sabe.4 Morei por toda parte. Eu estava aqui quando Londres nasceu, mas era uma pobreza, só restos magros, por isso juntei meu rebanho e icei velas por um bom tempo. Sua mãe estava se divertindo em algum outro lugar, então caí fora pra Europa pra dar uma olhada naquela boa gente, tocando o horror com os bichos pra todo lado aos montes e comigo na cabeça, eu e meu sobretudo elegante. Uma balançada da minha cauda e as enormes fileiras de Rattus iam pra oeste, leste, pra onde eu dissesse. Nós corremos pela roça,5 através dos campos da França, os morros altos da Bélgica, as terras baixas perto de Arnhem e seguimos até a Alemanha – não que esses fossem os nomes que eles usavam.

 

“Quando a gente viu, já estava por aí, com as barrigas roncando. Encontramos um lugar onde John Barleycorn tinha sido bem generoso...6 A safra era alta e dourada, madura e pronta pra colheita. A gente deu uma olhada.7 ‘Sim’, falei. ‘Isso vai servir’; seguimos em frente, marchando mais lentamente, na busca por um lugar onde a gente pudesse se assentar.

 

“Atravessamos uma floresta, todos juntos colados em mim, o chefe, que não tinha medo de xongas, andando na moral por dias e noites. Perto de um rio vimos uma cidade, lugarejo não muito rico, claro, mas com silos rangendo de tão cheios e casas detonadas com centenas de buracos, alcovas e recantos, beirais e porões, centenas de cantinhos onde um rato combalido poderia descansar a carcaça.

 

“Dei a ordem. Pra lá marchamos. O populacho deixou cair as bolsas e os queixos, todos amedrontados e nervosos. Logo perderam a cabeça, correram pra lá e pra cá, emitindo sons terríveis como se fossem gatos escaldados... Éramos uma falange impressionante: nós forçamos sem parar até que a cidade inteira foi encurralada por mim e meus meninos e meninas. Tocamos os cidadãos, que guinchavam, como se fossem gado até a praça, onde ficaram segurando seus patéticos pertences e crianças. A gente estava cansado, na estrada por muito tempo, mas partimos pra cima, orgulhosos, e nossos dentes eram magníficos.

 

“Tentaram dar cabo da gente, golpeando com tochas acesas e umas pás ridículas. Então arreganhamos os dentes, mordemos bem fundo; correram gritando como uns maricas almofadinhas, desapareceram rapidinho da vista. Ficamos com a praça só pra gente. Chamei as tropas para dar ordens. ‘Certo’, eu falei, ‘marcha rápida. Esta cidade é nossa. Este é o Ano Um: este é o Ano do Rato. Espalhem-se, deixem sua marca, subam no palco, tomem seus lugares, comam até encher; quem vier criando caso, mandem pra mim.’

 

“Uma só invasão de corpinhos ágeis e macios – e a praça esvaziou.

 

“Ratos no pub, nas casas, privadas, pastos e pomares.8 Mostramos pra eles como eram as coisas. Eu flanava pelos lugares e ninguém ousava dizer uma palavra, todo mundo sabia quem mandava ali. Qualquer cidadão que levantasse a mão contra um dos meus era logo derrubado. As pessoas pescaram logo as regras.

 

“E foi assim que os ratos chegaram a Hamelin.

 

“Saul, Saul, você devia ter visto a gente. Bons tempos, meu chapa, os melhores. A cidade era nossa. Eu fiquei gordo e elegante. Enfrentamos os cachorros e matamos os gatos. O som mais alto daquela cidade era o de ratos falando, conversando e fazendo planos. As ruas eram minhas, as casas eram minhas;9 se cozinhavam um rango, o primeiro pedaço era nosso. Era toda minha, meu Reino, meu melhor momento. Eu era o Chefão, eu fazia as regras, eu era tira, júri e juiz e, quando a ocasião exigia, era o Executor da Lei.

 

“Nossa cidadezinha ficou famosa e os ratos peregrinaram pra lá, pra se juntar à pequena Shangri-lá que tínhamos erigido e onde nós é que cantávamos de galo. Eu era o chefe.

 

“Isso foi até aquele facínora, aquele bastardo, aquele menestrel peripatético escroto, aquele merda estúpido e cafona com seus objetos ridículos, aquele fresquinho afetado passar pela cidade.

 

“Ouvi falar dele pela primeira vez quando uma das minhas garotas me contou que tinha uma bicha com o prefeito, toda furtiva, vestindo um casaco de duas cores. ‘Alô’, falei, ‘estão prestes a tentar alguma falcatrua. Eles acham que têm um truque na manga.’ Me preparei pra estragar os planos deles, mas deu tudo meio errado.

 

“Primeiro foi só uma nota.

 

“Música, algo no ar. Mais uma nota e agucei os ouvidos pra ouvir o que estava acontecendo. Elegantes cabecinhas marrons apareceram em todos os buracos da cidade.

 

“Então soou a terceira nota – e começou o apocalipse.

 

“De repente, escutei uma coisa: tripas sendo arrancadas e colocadas em uma bacia, uma bacia enorme. Conseguia até mesmo vê-la! Ouvi maçãs caindo em uma prensa e meus pés começaram a avançar. Escutei alguém deixando guarda-louças entreabertos e era como se uma ceia tivesse sido preparada na despensa do próprio Diabo... a porta estava escancarada e conseguia sentir o cheiro do rango lá dentro, tinha que encontrá-lo, tinha que comer aquilo tudo.10

 

“Segui em frente e pude ouvir um estrondo, um tremor, um galope de cem milhões de pequenos pés; vi o ar à minha volta se agitar com meus amiguinhos, todos gritando de alegria. Também conseguiam ouvir a comida.

 

“Saltei de um dos telhados para a rua. Mergulhei em uma torrente de ratos, todos os meus menininhos e menininhas, minhas amantes e meus soldados, grandes e gordos e pequenos e marrons e pretos e rápidos e velhos e lentos e brincalhões e todos eles, todos nós atrás daquela comida.

 

“E enquanto marchava, faminto, senti de repente um estranho horror nas entranhas. Usei minha cabeça e vi que não havia comida alguma para onde estávamos indo.

 

“‘Parem’, gritei, mas ninguém escutou. Apenas bateram em meu traseiro tentando passar. ‘Não’, berrei; e aquele fluxo famélico simplesmente se abriu em torno de mim, reunindo-se depois.

 

“Senti a fome crescendo; desatei a correr e afundei meus dentes11 na madeira da porta mais próxima, o mais forte que pude, me segurando pela boca. Minhas pernas estavam dançando, queriam aquela música, aquela comida. Mas minha boca estava segurando forte. Senti a mente afrouxando e então roí mais um pouco, travando a mandíbula... mas veio o desastre.”

 

“Arranquei um pedaço da porta. Minha boca se soltou e, antes que você pudesse dizer ‘faca’, já tinha voltado para o fluxo dos meus pensamentos; minha cabeça costurava as idéias para dentro e para fora da fome e da alegria por aquele rango que não conseguiria saborear. E o desespero – eu era o Rei Rato, sabia o que estava acontecendo comigo e com meu povo, mas ninguém iria me ouvir. Algo terrível estava pra acontecer.

 

“Pra frente marchamos, querendo ou não, e do canto do olho podia ver as pessoas debruçadas nas janelas; os sacanas estavam aplaudindo, torcendo, gostando daquilo. Trotávamos no ritmo da música, as quatro patas imponentes e marciais atrás daquele... abominável som de flauta, as caudas balançando como metrônomos.

 

“Podia ver pra onde estávamos indo; uma pequena jornada até os subúrbios, que eu já havia feito várias vezes, em um caminho mais curto para os silos de grãos além das muralhas. E lá atrás dos silos, inchado por causa das chuvas, gritando como o mar, rugindo e se atirando campo abaixo, largo e rochoso, sujo de turfa, lama e chuva, estava o rio.

 

“Já podia ver sobre a ponte o suíno tocando sua flauta, com aquela roupa estúpida. Sua cabeça balançava pra cima e pra baixo e dava pra perceber um sorriso revoltante enquanto tocava. As primeiras fileiras de ratos já estavam na ponte; podia vê-los marchar calmamente até a beirada, nem um pio de inquietação, os olhos ainda apertados em busca daquela adorável montanha de comida que estavam seguindo. Vi que se preparavam e gritei para que parassem, mas era que nem mijar contra o vento; já estava feito.

 

“Deram um passo além dos muros de pedra da ponte e caíram na água.

 

“Uma poderosa cacofonia de guinchos teve início embaixo da ponte, mas nenhum dos irmãos e irmãs conseguiu ouvir. Ainda escutavam a dança dos docinhos e fatias de bacon.

 

“Os próximos da fila saltaram sobre seus companheiros, e mais e mais – o rio se agitou. Não suportei; podia ouvir os gritos, cada um deles uma lâmina nas minhas entranhas, meus meninos e meninas morrendo de bobeira na água, lutando pra manter suas carcaças sobre as ondas. Todos bons nadadores, mas não tinham sido feitos pr’aquilo. Podia ouvir os gemidos e guinchos enquanto os corpos eram levados rio abaixo, e mesmo assim minhas malditas pernas continuavam se movendo. Fiz força contra as fileiras, tentei voltar, ir um pouco mais lentamente que os outros; senti-os passando por mim. O simplório na ponte olhou pra mim, aquela flauta infernal ainda presa à sua boca – e ele viu quem eu era. Pude ver que ele viu que eu era o Rei Rato.

 

“E sorriu ainda mais e se curvou pra mim quando passei marchando pela ponte e me joguei no rio.

 

Loplop assobiou e Anansi murmurou algo entre suspiros. Os três se fecharam, relembrando.

 

“O rio estava gelado e o toque na água clareou a minha cabeça. Cada mergulho era logo seguido por um guincho, um gemido, enquanto meus pobres amiguinhos lutavam pra manter os focinhos no ar, pensando ‘Que merda eu tô fazendo aqui?’ e então ficavam ocupados morrendo.

 

“Mais e mais corpos saltavam pra se juntar a eles, mais e mais pelos ficavam encharcados, sentindo o puxão do rio, afundando, remexendo as garras em todas as direções em pânico, rasgando as barrigas e os olhos uns dos outros, arrastando irmãos e irmãs pro frio gélido debaixo d’água.

 

“Dei coices pra escapar. Havia uma massa frenética de nós levantando espuma, uma ilha de corpos de ratos, lutando e matando pra subir no topo, as fundações morrendo e desaparecendo lá embaixo.

 

“A água tapou meus ouvidos. Só conseguia ouvir o entra e sai da minha respiração, entrei em pânico e perdi o controle, engolindo água, vomitando e respirando bile. As ondas me esmagavam, me jogando contra as rochas, e por todos os lados ratos morriam aos milhares e milhares. Podia isolar o ruído da flauta. Era desprovida de magia ali no rio, apenas um barulho choramingas. Dava pra ouvir os mergulhos de mais ratos pulando na água pra morrer; era interminável e impiedoso. Gritos e sons de asfixia por toda parte; corpinhos rígidos passavam como boias no porto do inferno. Aquilo era o fim do mundo, pensei; a água fedorenta encheu meus pulmões e afundei.

 

“Tudo eram cadáveres.

 

“Mexiam-se com o inchaço pós-morte e, pelos meus olhos semicerrados, pude vê-los ao redor, boiando debaixo d’água, em cima de mim enquanto eu afundava e embaixo também, de onde manchas marrons se aproximavam. E lá na escuridão, quando as últimas bolhas de ar foram expelidas de mim, pude ver a casa mortuária sob o rio, os campos de extermínio, as negras rochas pontiagudas que eram um matadouro de ratos, pilha sobre pilha de cadáveres, pequenos bebês sem pelo e velhos machos cinzentos, ratazanas matronas e jovens combativos, os fortes, os doentes, uma massa infinita de morte mudando de lugar com a corrente.

 

“E eu, sozinho, olhando na cara do holocausto.

 

Ratos afogados flutuavam diante de Saul. Os ouvidos pulsavam como se seus pulmões lutassem por ar.

 

A voz de Rei Rato voltou e o tom sem vida que havia assombrado suas descrições tinha sumido.

 

– E eu abri os olhos e disse: ‘Não’.

 

“Chutei de repente e deixei o cataclismo para trás. Estava sem ar, não se esqueçam, então meus pulmões gritavam de dor, cada batida do coração era uma chicotada; subi da quietude na direção da luz e escutei os gritos através do rio, acima de mim. Me movi pra cima e pra longe e enfim empurrei meu rosto pro ar.

 

“Suguei-o como um viciado. Estava ávido.

 

“Virei minha carcaça e vi que ainda estava acontecendo, as mortes continuavam, mas a espuma estava mais baixa e não havia mais ratos caindo do céu. Vi o homem com sua flauta se afastando.

 

“Não reparou que era observado.

 

“E decidi, enquanto observava, que ele tinha que morrer.

 

“Me arrastei pra fora do rio e deitei debaixo de uma pedra. Os gritos dos moribundos continuaram por algum tempo e depois pararam; o rio varreu todas as evidências pra longe. E me deitei e respirei fundo e jurei vingança pela minha Nação Rato.

 

“O poeta me chamou de César, o que viveu pra atravessar a nado. Mas aquele não foi o meu Rubicão. Foi o meu Estige.12 Eu deveria ter morrido. Deveria ter sido mais um rato afogado. Talvez eu seja. Tenho pensado nisso. Talvez eu nunca tenha escapado, talvez seja apenas o ódio que escoou para os meus ossos o que me anima e mantém de pé.

 

“Tive uma certa satisfação, ainda que pequena, com os filhos bastardos de Hamelin. Os babacas estúpidos tentaram enrolar o Flautista e tive o prazer de observar aqueles escrotos choramingas, que tinham aplaudido quando fomos expulsos, gritando nas ruas, parados como se estivessem colados no chão, enquanto seus pirralhos dançavam pra longe ao som da flauta. E tive a pequena alegria de sorrir quando a bicha enrustida fez a montanha se abrir para que aquelas crianças entrassem. Porque aqueles fedelhinhos13 foram pro inferno, sem nem mesmo ter morrido, sem ter feito nada de errado – e seus pais de merda sabiam disso.

 

“Isso foi um prazer, como eu disse.

 

“Mas era aquele maldito menestrel que eu queria. Ele era o culpado. É com ele que certas contas serão acertadas.”

 

Saul estremeceu com o mal na voz de Rei Rato, mas refreou-se antes de protestar quanto à inocência das crianças.

 

– Ele sumiu com todos os pássaros do céu e me insultou até que fiquei louco com minha impotência – Loplop falava no mesmo tom sonhador do Rei Rato. – Voei para um hospício, esquecendo de mim mesmo, pensando que era nada mais do que um maluco que se julgava Rei dos Pássaros. Por muito tempo apodreci na gaiola até que me lembrei e voei de novo.

 

– Ele tirou tudo que era escorpião e também minhas crianças do palácio lá em Bagdá. Me chamou com um flautim e minha mente se foi; aí me surrou, esmagou, machucou feio. E todas as aranhinhas, elas viram – Anansi falou sussurrando.

 

Os três foram emasculados, seu poder retirado sem cerimônia pelo Flautista. Saul lembrou o desprezo, as cusparadas dos ratos no esgoto.

 

– É por isso que os ratos não obedecem a você – murmurou, olhando para Rei Rato.

 

– Quando Anansi e Loplop foram capturados, alguns viveram para vê-los sofrer, ver Loplop perder a razão, Anansi ser torturado. Deram testemunho do martírio dos monarcas. Era claro pra qualquer mané que tivesse olhos pra ver.

 

“Minhas tropas, não viram nada. Cada um deles foi pego. E afogamento não deixa marcas ou lanhos que provem que houve luta. Se espalhou a notícia pelas cidades e roças que o Rei Rato tinha fugido, abandonado seu povo no rio transbordante. E me destronaram. Idiotas de merda! Nem têm a manha de viver sem mim. É anarquia, sem controle. Deveríamos dirigir a Smoke, mas em vez disso é o caos.14 E já estou sem a minha coroa por mais de meio milhar de anos.”

 

Quando ouviu isso, Saul pensou nos ratos suplicantes, pedintes que o cercaram debaixo das calçadas. Não falou nada.

 

– Anansi e Loplop ainda governam, de forma incerta, submissa e intimidada, mas têm seus reinos. Eu quero o meu.

 

– E se – Saul falou lentamente – você derrotar o Flautista, acha que os ratos voltarão para você.

 

Rei Rato ficou em silêncio.

 

– Ele vaga pelo mundo – disse Loplop categoricamente. – Não esteve aqui por uma centena de anos, desde que me jogou na gaiola. Soube que ele tinha voltado quando chamei todos os meus pássaros uma noite, não muito tempo atrás, e eles não vieram. Só há uma coisa que pode deixá-los surdos ao meu comando: a maldita flauta.

 

– Às vezes as aranhas fogem pra longe de mim como se obedecessem a outro. O Badman voltou pra cidade, pra valer, e quer pegar o rato de jeito dessa vez.15

 

– Ninguém jamais escapou, entende, meu filho, além de mim – disse Rei Rato. – Ele deixou Loplop e Anansi partirem, depois de humilhá-los, deixando claro pra eles quem era o mandachuva, na opinião dele. Mas eu, ele queria minha pele. Sou aquele que conseguiu escapar. E por setecentos anos ele vem tentando consertar o erro. E, quando descobriu que eu tinha um sobrinho, foi à sua procura. Ele está na sua cola agora. Qualquer coisa vale pra acertar contas.

 

Anansi e Loplop se entreolharam, depois fitaram Saul.

 

– O que é ele? – susurrou Saul.

 

– Ele é cobiça – disse Anansi.

 

– Avareza – disse Loplop.

 

– Ele existe para possuir – disse Rei Rato. – Precisa atrair coisas pra si, e é por isso que ficou tão irritado com meu truque de desaparecimento. Ele é o espírito do narcisismo. Precisa provar seu valor consumindo a tudo e a todos.

 

– Pode enfeitiçar qualquer coisa – disse Anansi.

 

– Tem uma fome perpétua – disse Loplop. – É insaciável.

 

– Ele pode escolher, entende? – disse Rei Rato. – Vou chamar os ratos? Os pássaros? As aranhas? Cachorros? Gatos? Peixes? Raposas? Visons? Crianças? Pode atrair quem quiser, encantar qualquer coisa que imaginar. Basta escolher e aí tocar a melodia certa. Tudo ele pode escolher, Saul, exceto uma coisa.

 

– Ele não pode encantá-lo, Saul.Você é rato e humano, mais e menos de cada. Atraia os ratos e a pessoa em você ficará surda ao chamado. Atraia os homens e o rato vai tremer a cauda e correr. Ele não pode enfeitiçá-lo. Você é um problema duplo. É o meu coringa, meu trunfo. Um ás na mesa. Você é o pior pesadelo dele. Não pode tocar duas músicas ao mesmo tempo, Saul. Não pode te encantar.

 

“Não, você ele quer só matar.”

 

Ninguém falou. Três pares de olhos escuros trespassavam Saul.

 

– Mas não há necessidade de pânico, filho. As coisas vão mudar por aqui – Rei Rato cuspiu de repente. – Olha, meus amigos e eu estamos de saco cheio. Chega. O Flautista deve a Loplop o fato de ter tido sua mente roubada. Anansi aqui foi torturado, ainda sente dor nas pernas todas – e na frente do seu próprio povo. Quanto a mim... O filho da puta me deve porque roubou meu país e quero ele de volta.

 

– Vingança – disse Loplop.

 

– Vingança – disse Anansi.

 

– Vingança é o certo – disse Rei Rato. – Melhor esse Flautista de merda se proteger de tudo quanto é magia animal.

 

– Vocês três... – disse Saul. – Quantos são? Para atacá-lo.

 

– Há outros – disse Loplop –, mas não aqui, não para fazer o trabalho. Tibault, Rei dos Gatos, está preso em um pesadelo, uma história contada por um homem chamado Yoll. Kataris, Rainha Cadela, que corre com os cães, desapareceu, ninguém sabe onde.

 

– Sr. Bub, Lorde das Moscas, é um assassino matreiro e não posso trabalhar com ele – disse Anansi.16

 

– Há outros, mas somos nós, o núcleo duro, os sofredores, que temos contas a ajustar – disse Rei Rato. – Vamos levar a guerra até ele. E você pode nos ajudar, filho.

 

1 No original, “Off I go for my constitutional”. No dialeto urbano cockney, “constitutional” é a proverbial ida ao banheiro, notadamente de manhã.

2 Anansi, o trapaceiro, é uma aranha esperta e inteligente. Uma das figuras mais importantes do folclore caribenho e do oeste da África.

3 Loplop é o nome de um pássaro que aparece nas gravuras, pinturas e colagens do artista surrealista Max Ernst. Também era um alter ego de Ernst, que o adotou como uma espécie de animal totêmico. Loplop aparece em dois romances-colagens (livros ilustrados surrealistas) de Ernst, no papel de narrador: La Femme 100 Têtes e Une Semaine de Bonté, este último citado por Miéville como um dos cinco livros que mais o influenciaram.

4 No original, “Smoke”. Londres é conhecida como “The Old Smoke”, apelido carinhoso dado à cidade devido ao fog que algumas vezes a recobre.

5 No original, “dews-a-vill”: gíria do período elizabetano que denota a área rural.

6 John Barleycorn: Um pequeno leprechaun que visita o quarto de quem bebeu muito. Ele põe um pé no queixo e outro no nariz do bêbado que dorme e defeca; depois, bate na testa do dorminhoco com seu bastão. Isso explica o gosto ruim na boca e a dor de cabeça que acompanham a ressaca.

7 No original, “We took a Butcher’s”. No dialeto cockney antigo, “take a butcher” é “dar uma olhada”, “ver de perto”. Mais uma gíria cujo sentido se explica pela rima: “take a look” rima com “butcher’s hook” (“gancho do açougueiro”).

8 No original, “Rats in the rub-a-dubs, the houses, the kazis, the dews-a-vill, the orchards”. “Rub-a-dub”: gíria cockney rimada, siginifica “pub”; “khazis” é gíria derivada da palavra “carsey”, jargão cockney do século 19 que significa “toalete”.

9 No original, “The grain was mine, the gaffs were mine”. “Grain”: perímetro urbano; ruas, praças, prédios. Jargão de arquitetura. “Gaff”: gíria para “casa”.

10 Aqui (como em outros pontos deste capítulo) o autor cita o poeta inglês Robert Browning e sua versão em versos para a fábula do Flautista de Hamelin. No original, Miéville escreve: “Suddenly I could hear something: a body scraping tripe from a bowl... (***) I heard apples tumbling into a press, and my plates start moving forward. I could hear someone leaving cupboards ajar”. As frases e expressões usadas remetem a The Pied Piper of Hamelin e ao trecho que relata que apenas um rato sobreviveu ao truque engendrado pelo Flautista:

 

                   From street to street he piped advancing,

                   And step for step they followed dancing,

                   Until they came to the river Weser

                   Wherein all plunged and perished!

                     – Save one who, stout as Julius Caesar,

                     Swam across and lived to carry

                   (As he, the manuscript he cherished)

                     To Rat-land home his commentary:

                     Which was, “At the first shrill notes of the pipe,

                     I heard a sound as of scraping tripe,

                     And putting apples, wondrous ripe,

                    Into a cider-press’s gripe:

                     And a moving away of pickle-tub-boards,

                     And a leaving ajar of conserve-cupboards,

                     And a drawing the corks of train-oil-flasks,

                     And a breaking the hoops of butter-casks;

                     And it seemed as if a voice

                   (Sweeter far than by harp or by psaltery

                     Is breathed) called out, ‘Oh rats, rejoice!’”

 

Com esta escolha, Miéville faz com que Rei Rato nos conte em primeira pessoa – e desta vez em prosa – aquilo que já havia relatado em poesia na obra original de Browning. Não é à toa que, no início deste capítulo, Rei Rato seja descrito como alguém que “sempre gostou de um trecho ou dois de versos”.

 

11 No original, “my Hampsteads”. No jargão cockney rimado, significa “teeth” (dentes), pois rima com o nome do bairro Hampstead Heath.

12 Júlio César atravessou o Rio Rubicão, na atual Itália, em 49 a.C. Leis proibiam que soldados romanos cruzassem o rio em ações militares. Ao fazer isso para voltar para casa com suas legiões, César realizou um ato de guerra. Na mitologia grega, o Rio Estige leva ao reino dos mortos, o Hades.

13 No original, “those little Dustbins”. No jargão rimado cockney, “dustbin” significa “pessoa de origem judaica”, porque “dustbin lid” rima com a palavra “Yid”(abreviatura de “Yiddish”, ídiche). É ligeiramente rude, ainda que o cockney privilegie mais a sonoridade em detrimento de seu significado dicionarizado.

14 Londres.

15 Badman: bandido, gângster, na gíria jamaicana.

16 O citado “Sr. Bub” é Beelzebub, antiga entidade semita mais tarde transformada em demônio pelas religiões judaico-cristãs. Algumas vezes retratado com a forma de uma mosca.

 

O que despertou Kay foi a batida rítmica do sangue em sua cabeça. Cada golpe que acertava a parte de trás de seu crânio emitia vibrações de dor através do osso.

 

Seus olhos racharam uma capa de remela. Abriu-os e não viu nada além de trevas. Piscou, tentou concentrar-se na vaga geometria que se delineava nas sombras. Sentiu que algo se estendia à sua frente.

 

Kay estava gelado. Gemeu e levantou a cabeça, um movimento acompanhado por um crescendo de dores, torceu o pescoço e tentou se mover. Os braços doíam e percebeu que estavam esticados sobre ele, bem presos e sem roupas. Abriu os olhos e viu rolos de uma corda grossa e suja ao redor dos pulsos, desaparecendo na escuridão acima. Estava pendurado, seu peso dragando-o com força, puxando a pele de suas axilas.

 

Tentou torcer o corpo para examinar sua posição, mas de repente foi detido, seus pés se recusaram a obedecer. Balançou a cabeça, ainda grogue, e olhou para baixo. Viu que estava nu, o pau murcho e diminuto por causa do frio. Notou a mesma corda em volta de seu tornozelo, espalhando-se por seus pés. Estava preso em um apertado salto petrificado, era uma estrela em forma de X pairando no escuro, a dor nos pulsos e tornozelos e braços começando a ser registrada. Rajadas de vento o atingiam, provocando arrepios.

 

Kay estremeceu, piscou com força, tentou descobrir onde estava, baixou o olhar novamente para os pés. À medida que o ar frio começou a atravessar a crosta de dor em sua cabeça, tomou conhecimento da fraca luz difusa ao seu redor. Formas se aclaravam nas sombras abaixo de seus pés pendentes: linhas finas, concreto, parafusos, madeira. Trilhos de trem.

 

Sua cabeça foi para cima. Tentou jogá-la para trás, para ver por cima dos ombros.

 

Deu um grito de choque, que ecoou para trás e para frente no ambiente fechado.

 

Atrás dele, iluminada por pequenas lâmpadas fracas que babavam uma luz bege, se estendia uma plataforma de metrô coberta de poeira e pequenos pedaços de lixo. A escuridão diante dele parava de repente acima de sua cabeça, onde os tijolos do túnel começavam. Os tijolos se arqueavam para baixo pelos dois lados. À sua direita havia um muro, à sua esquerda a beirada da plataforma. As cordas que o prendiam se estendiam até o meio do arco, enroladas em enormes pregos fincados de forma tosca na velha alvenaria.

 

Dependurava-se cruciforme na entrada do túnel, de onde emergiam os trens.

 

O grito de Kay ecoou em volta e em volta dele.

 

Balançou-se em vão, tentou se soltar dos nós. Seu medo era completo. Estava totalmente vulnerável, suspenso pelado na rota das locomotivas.

 

Gritou e gritou, mas ninguém veio.

 

Virou a cabeça o máximo que pôde. Seus olhos pulavam freneticamente de superfície para superfície, em busca de alguma pista que lhe dissesse onde estava. As paredes da estação eram negras; a linha acima dos espaços para cartazes – todos vazios – era negra. Aquela era a Linha Norte. Na ponta do seu limitado campo de visão, viu a borda curvada de um sinal de metrô, o círculo vermelho cortado por uma linha azul contendo o nome da estação. Forçou mais a cabeça, ignorando a dor no pescoço e no crânio, tentando empurrar os ombros para fora do caminho com o queixo, desesperado para ver onde estava. Enquanto vibrava para lá e para cá, o sinal se movia para dentro e fora de sua visão. Teve vislumbres das duas palavras que ele continha, uma sobre a outra.

 

         gton ent… ington scent… rnington rescent…

 

Mornington Crescent. A estação fantasma, a estranha zona entre Euston e Camden Town na decrépita Linha Norte: a bizarra, suja e pequena estação do metrô que tinha sido fechada para reparos em algum momento do final dos anos oitenta e nunca tinha sido aberta novamente. Os trens desaceleravam quando passavam, de modo a não criar um vácuo no espaço vazio, e os passageiros podiam vislumbrar a plataforma. Algumas vezes cartazes pediam desculpas e prometiam uma breve retomada do serviço; em outras, obscuras peças de equipamento para curar estações de metrô enfermas estavam espalhadas pelo concreto abandonado. Na maioria das vezes não havia nada, apenas os sinais proclamando o nome da estação na luz fraca. Levava uma semivida, nunca sendo finalmente colocada para descansar, assombrada pela promessa improvável de que um dia voltaria a funcionar.

 

Atrás dele, Kay ouviu passos.

 

– Quem está aí? – gritou. – Quem é? Me ajuda!

 

Quem quer que fosse estava parado na plataforma, fora da sua visão, enquanto ele tentava se voltar. A cabeça de Kay se torcia violentamente sobre seu ombro esquerdo. Os passos aproximaram-se. Uma figura alta surgiu, lendo algo.

 

– Tudo bem, Kay? – disse Pete, sem olhar para cima. Riu enquanto lia. – Meu Deus, não são avessos a um pouco de pretensão, esses caras, não? – Pegou o que estava lendo e Kay viu que era Drum’n’Bass Massive 3!, um CD que Kay tinha acabado de comprar. Kay lutou para falar, mas de repente sua boca estava seca de terror. – “Rudeness ME manda um alô para: a Rough an’ Ready Posse, Shy FX,” blá blá blá, “e galera do Norte, do Sul, do Leste, do Oeste, lembrem-se... It’s a London Someting! Urban-style ghetto bass!”1 – Pete olhou para cima, sorrindo. – Isso é uma bobagem, Kay.

 

– Pete... – Kay finalmente disse, com voz rouca. – O que está acontecendo? Me solta daqui, cara! Como cheguei aqui?

 

– Bom, eu precisava te fazer algumas perguntas. Estou preocupado com uma coisa. – Pete afastou-se, ainda lendo. Na outra mão segurava a mochila de Kay. Guardou o CD e tirou outro. – “Jungle versus the Hardsteppers”. Pf! Tenho um monte de termos pra aprender se quiser tocar com Natasha, não?

 

Kay lambeu os lábios. Estava suando, mesmo tremendo de frio. A pele estava escorregadia de medo.

 

– Como você me colocou aqui, cara? – gemeu. – O que você quer?

 

Pete voltou-se para ele, trocou o CD, agachou-se na plataforma à esquerda de Kay. Sua flauta, Kay percebeu, estava presa no cinto como um sabre.

 

– É cedo ainda, Kay, provavelmente nem são cinco horas. A Linha Norte ainda não começou a funcionar. Achei que gostaria de saber. E, sim, o que eu queria... bem. Quando eu saí do bar, pouco depois de você, também me dirigi para o apartamento de Natasha; queria ter uma palavra ou duas com você. Checar o que você sabe. Me interessei muito por todas essas histórias que tenho ouvido sobre o seu amigo que está em apuros e decidi tentar encontrar você sozinho – para ver o que poderia me dizer sobre ele.

 

“Então, quando fui na sua direção, contra o vento, senti um cheiro muito particular, um que alguém que estou tentando rastrear usou uma vez. E me ocorreu que talvez o seu camarada conhecesse o cara que eu procuro!” Sorriu de maneira sensata e deitou a cabeça para um lado.

 

– Pois então. Você esbarrou com seu amigo na noite passada, não foi?

 

Kay engoliu em seco.

 

– Sim... mas, Pete... me deixa descer... por favor. Te conto tudo se você... por favor, cara... isso tá realmente me assustando.

 

O cérebro de Kay estava em disparada. Não conseguia pensar graças à dor em sua cabeça. Pete era louco. Engoliu em seco novamente. Tinha que fazê-lo tirá-lo dali, tinha que fazer isso agora. Kay não conseguia formular os pensamentos de forma clara, tão esmagador era o jorro de adrenalina provocado pelo medo. Tremia violentamente.

 

Pete meneou a cabeça.

 

– Não me surpreende que isso o assuste, Kay. Onde está o seu amigo?

 

– Você quer dizer Saul? Eu não sei, cara, eu não sei. Por favor...

 

– Onde está Saul?

 

– Só me desce daqui, caralho!

 

Kay perdeu o controle e começou a chorar.

 

Pete balançou a cabeça, pensativo.

 

– Não. Entenda, você ainda não me contou onde Saul está.

 

– Eu não sei, juro que não sei! Ele, ele, ele disse que estava... – Kay pensou desesperadamente em algo para dizer a Pete, algo que pudesse salvá-lo. – Por favor, me deixa ir!

 

– Onde está Saul?

 

– Os esgotos! Ele disse alguma coisa... ele fedia. Perguntei onde ele tinha estado e ele falou dos esgotos... – A cintura de Kay se torcia, as pernas puxando violentamente a corda forte.

 

– Mas isso é interessante – disse Pete, inclinando-se para a frente. – Ele disse alguma coisa sobre onde nos esgotos? Porque muitas vezes suspeitei de que... esse cara que procuro os utilizasse.

 

Kay estava chorando.

 

– Não, cara, ele não disse mais nada... por favor... por favor... ele estava estranho, a voz estava estranha, ele fedia... não quis me dizer nada... Por favor, me deixa descer.

 

– Não, Kay, não vou deixar você descer – a voz de Pete ficou, de repente, chocantemente brutal. Levantou-se e caminhou na direção de Kay. – Ainda não. Entenda, quero saber tudo o que você sabe sobre o seu amigo Saul, porque é importante para mim. Quero saber tudo, Kay, capeesh?

 

Kay balbuciou, tentou pensar no que sabia. Gritou algo sobre esgotos, repetiu que Saul estava fedorento, que estava se escondendo nos esgotos. Ficou sem mais nada para dizer. Choramingou e retorceu-se, pendurado.

 

Pete estava tomando notas, balançando a cabeça com interesse vez ou outra e depois escrevendo cuidadosamente em um pequeno bloco.

 

– Me fale sobre a vida de Saul – disse sem olhar para cima.

 

Kay contou sobre o pai de Saul, o socialista gordo de quem todos eles tinham rido; sobre a breve e desastrosa tentativa de Saul de morar com uma namorada; seu regresso para casa, temporário, ele dissera, sempre temporário pelos dois anos seguintes. Kay continuou falando, sobre os amigos de Saul, sobre sua vida social, jungle, os clubes e, enquanto falava, lágrimas rolavam pelo seu rosto. Estava pateticamente ansioso por agradar. Choramingava a cada respiração. Não tinha mais nada a dizer e estava com medo, porque Pete parecia satisfeito com ele quando contava sobre Saul, e tudo que Kay conseguia pensar era que deveria manter Pete feliz. Mas realmente não tinha nada mais a dizer.

 

Pete suspirou e colocou o bloco no bolso. Relanceou para o relógio.

 

– Obrigado, Kay – disse. – Imagino que você deva estar se perguntando o que significa tudo isso, o que eu quero. Temo que eu não vá te explicar isso. Mas você me ajudou muito. Os esgotos, ahn? Já tinha imaginado, mas ninguém quer ir se metendo em merda a menos que tenha certeza de que é necessário, não é? Não é lá bem a minha praia, entende? Vou ter que tirá-lo de lá. – Fez uma careta afetada.

 

– Talvez... talvez... você... possa... me... deixar... ir... – Kay forçou as palavras a passarem pelos seus dentes, que batiam. O corpo tremia com pequenos soluços e cada palavra de Pete lhe dava calafrios.

 

Pete olhou para ele e sorriu.

 

– Não – disse após um momento de hesitação. – Acho que não.

 

Os gritos de Kay recomeçaram, dispararam ao longo do túnel à sua frente, ricochetearam à sua volta. Ameaçou, bajulou, implorou, e Pete o ignorou e continuou a falar no seu tom coloquial.

 

– Você não me conhece, Kay. Sei fazer um truque. – Puxou a flauta de seu cinto. – Vê isto? – Kay continuou implorando. – Posso tocar isto e fazer o que eu quiser vir até mim. Basta tocar as notas certas e posso trazer as baratas à nossa volta, os ratos, qualquer coisa perto o suficiente para ouvir. E é uma sensação tão boa fazê-los vir até mim. – Cantou a última frase e, ao som daquela simpatia exagerada, aquele escroto tom adocicado, Kay vomitou.

 

– E eu estava olhando para esses túneis e pensando no quanto eles parecem buracos de minhoca – Pete continuou. – Se eu tocar isto, o que você acha que eu poderia chamar?

 

Pete levou a flauta aos lábios e começou a tocar uma música estranha e monótona, um hipnótico canto fúnebre que se lamentava sem rodeios sobre as exortações ininteligíveis de Kay.

 

Kay olhou para dentro da boca do túnel.

 

Atrás dele, a melodia continuava e Kay podia ouvir a batida dos pés de Pete, que dançava à sua própria melodia.

 

O vento soprou ao redor de Kay, batendo em seu rosto vindo de algum lugar distante.

 

Nas profundezas da escuridão diante dele algo rosnou.

 

Kay estava pendurado como um brinquedo obsceno, nu e roliço na escuridão sonolenta do subsolo.

 

O vento soprou com mais determinação e o rugido soou outra vez. Kay gritou em desespero, sentiu-se relaxar com o terror, ceder aos nós que o prendiam, sentiu o mijo correr entre suas pernas. A música continuava.

 

Houve um som de aço sendo golpeado e os trilhos se dobraram e se moveram sob o peso do que se aproximava. O vento começou a atingir Kay agora, empurrando seu cabelo para o lado do rosto. Pedaços de papel e sujeira vieram rodopiando da escuridão, cercando-o, grudando-se nele; a areia encheu seus olhos e boca; ele lutou e cuspiu para livrar-se daqueles restos, consumido por um desespero medonho de se ver.

 

O rosnar subia e descia, transformou-se em ruído, começou a afogar a flauta, alheia a ele. A grande presença correu em sua direção.

 

Luzes tinham surgido ao longe, duas luzes brancas sujas que pareciam rastejar em sua direção, pareciam determinadas a jamais chegar. Eram só o vento e o barulho que se moviam em alta velocidade, raciocinou desesperadamente; mas, mesmo enquanto tinha esse pensamento, viu o quão mais próximas as luzes de repente estavam e contorceu-se e lutou e gritou orações a Deus e Jesus.

 

Estava agora em um tornado e as luzes de repente correram em sua direção. O uivo e o ribombar ecoaram por todo o túnel com uma estranha fúria melancólica, um rugir vazio. Os trilhos estavam visíveis como linhas brilhantes iluminadas por aquelas luzes. O imundo branco amarelado do primeiro trem do dia na Linha Norte tornou-se evidente diante dele, o vidro à frente do condutor ainda uma mera fenda preta. Ele deve me ver, pensou Kay. Ele vai parar! Mas a grande superfície plana movia-se inelutavelmente para a frente a uma velocidade horrível, deslocando o ar, enchendo o vento de sujeira. A velocidade era insuportável, pensou Kay, bastava parar, mas as luzes continuavam vindo, não havia trégua, o uivo do túnel tornou-se um rugido sepulcral, as luzes eram tão brilhantes que o cegaram, ele olhou para cima gritando, ainda ouvindo a flauta, sempre a flauta atrás dele, olhou para os reflexos envernizados no para-brisas, teve um vislumbre de seu pequeno corpo ridículo arreganhado como um modelo médico, depois olhou através daquilo, através do seu reflexo boquiaberto, para dentro do olhar incrédulo do condutor que se abatia sobre ele, descrença e horror manchados em seu rosto, os olhos espantados, Kay pôde ver o branco dos olhos do homem...

 

O vidro da frente do trem explodiu como uma vasta bolha de sangue. O primeiro trem do dia na Linha Norte chegou à estação de Mornington Crescent e fez uma parada não programada, gotejando.

 

1 Posse: uma posse ou crew é o nome dado a um grupo de artistas da contracultura negra, seja drum’n’bass ou hip hop. DJs, vocalistas, grafiteiros, breakdancers. Shy FX é o pseudônimo do inglês Andre Williams, um dos pioneiros do drum’n’bass. Norte, Sul, Leste, Oeste: diversas áreas de Londres. North London, etc. It’s a London Someting: “É direto de Londres”, em tradução muito livre. Nome de um documentário sobre a cena jungle londrina de 1994. Gheto-bass: drum’n’bass do gueto. Urban-style: estilo urbano, das ruas.

 

                   SANGUE

 

Dias vieram e passaram na cidade. Nos esgotos, nos telhados, sob as pontes do canal, em todos os espaços abarrotados de Londres, Rei Rato e seus camaradas realizavam conselhos de guerra.

 

Saul sentava e escutava enquanto as três figuras improváveis murmuravam.

 

Muito do que diziam não fazia sentido para ele: referências a pessoas e lugares e acontecimentos que não podia compreender. Mas entendia o suficiente daquela discussão rosnada para saber que, apesar de suas declarações grandiosas de hostilidade, nem Rei Rato, nem Loplop, nem Anansi tinham ideia alguma de como proceder.

 

A prosaica verdade era que estavam com medo. Às vezes, as discussões se acaloravam e acusações de covardia choviam entre os três. Essas acusações eram verdadeiras. As discussões sem fim, os esboços de planos, os protestos de raiva e de combatividade, tudo era frustrado pelo fato de que os três sabiam que em qualquer confronto um deles estaria condenado.

 

Assim que o Flautista levasse a flauta aos lábios, ou mesmo apertasse os lábios para assobiar, ou talvez meramente cantarolasse, um deles seria controlado, um deles seria coagido para o outro lado. Seus olhos se esmaeceriam e começaria a lutar contra seus aliados, os ouvidos tomados pelos apetitosos sons de comida e sexo e liberdade.

 

Anansi ouviria gordas moscas voando lentamente perto de sua boca; e o deslizar de pés apaixonados aproximando-se por torres de teias para acasalar. Fora isso que ouvira em Bagdá, quando o Flautista o espancara sem piedade.

 

Loplop sabia que ouviria o estalar de filamentos filiformes como se raízes de grama fossem empurradas para o lado e vermes suculentos tateassem cegamente para a luz, para o seu paladar. Ouviria o zunir do ar como se voasse sobre a cidade, os chamados de boas-vindas das mais belas aves do paraíso.

 

E Rei Rato uma vez mais ouviria as portas das despensas do inferno se abrindo.

 

Nenhum dos três queria morrer. Era uma missão que envolveria a destruição certa de um deles. A força de autopreservação animal parecia superar sua vontade, mesmo para arriscar as chances de um em três. Não haveria autossacrifícios sentimentais nessa luta.

 

Saul estava vagamente ciente de que era um elemento essencial naquela discussão, que, no fim das contas, ele era a arma que teria de ser empregada. Aquilo ainda não o assustava, já que não conseguia sequer começar a levar a ideia a sério.

 

Alguns dias, Loplop e Anansi desapareciam. Saul ficava com Rei Rato.

 

Cada vez que caminhava ou escalava ou comia sentia-se mais forte. Olhava para baixo, sobre Londres, após escalar a lateral de uma torre de gás e pensava “Como cheguei até aqui?” com alegria. As viagens por Londres tornavam-se mais raras, mais esporádicas. Saul ficou frustrado. Estava se movendo mais rápido e mais silencioso. Queria perambular, deixar sua marca – literalmente, às vezes, já que havia descoberto o prazer de urinar seu mijo de cheiro forte contra as paredes, sabendo que aquele canto agora era seu. Sua urina foi mudando, assim como sua voz.

 

Rei Rato estava sempre perto quando Saul acordava. Após a euforia inicial de uma nova existência perpendicular ao mundo das pessoas que havia deixado para trás, Saul estava desanimado com a velocidade com que seus dias se misturavam. A vida de um rato era maçante.

 

Momentos isolados ainda o enchiam de adrenalina, mas tais momentos não mais se fixavam.

 

Sabia que Rei Rato estava à espera. Suas ferozes discussões sussurradas com seus camaradas se tornaram o ponto focal da vida de Saul. Em chiados graves e tons soprados, os três discutiam furiosamente se as teias de Anansi segurariam o Flautista e qual a melhor forma de manter a flauta longe dele e se aranhas ou pássaros constituiriam uma melhor cobertura. Rei Rato foi ficando furioso. Estava sozinho; não poderia contribuir com tropas para batalha alguma. Os ratos o haviam esnobado e ignoravam seus comandos.

 

Saul tornou-se mais quieto, aprendendo mais sobre as três criaturas que constituíam seu círculo.

 

Estava sozinho em um telhado, certa noite, sentado de costas para um duto de ar condicionado, enquanto Rei Rato vasculhava o beco abaixo em busca de alimentos, quando Anansi surgiu diante dele, na lateral do prédio. Saul ainda estava nas sombras e Anansi olhou direto para ele por um momento, depois passeou com os olhos pelo telhado.

 

Estou ficando melhor nisso, pensou Saul, com indulgente orgulho. Nem mesmo ele pode me ver agora.

 

Anansi adiantou-se furtivamente, sob escuras nuvens vermelhas que entravam e saíam do interior uma da outra. Ameaçaram chuva. Anansi se agachou sobre o telhado, despido da cintura para cima, como sempre, apesar do frio. Enfiou a mão no bolso e tirou um punhado de algo brilhante, uma massa de pequenos corpos que se mexiam, zumbindo. Esmigalhou os insetos na boca.

 

Saul arregalou os olhos em fascínio, mesmo fazendo uma careta. Não se surpreendeu com o que viu. Pensou poder ouvir o zumbido de asas de madrepérola abafado pelas bochechas de Anansi, até que as bochechas se retesaram e viu Anansi chupar com força, sem mastigar, mas apertando os lábios e trabalhando a boca como se sugasse o caldo de um chiclete gigante.

 

Houve um fraquíssimo som de algo sendo esmagado.

 

Anansi abriu a boca e deixou sair a língua enrolada em forma de um U apertado. Soprou agudamente, como se através de uma zarabatana, e uma cascata de quitina disparou pelo telhado, espalhando-se perto dos pés de Saul; as partes desidratadas dos corpos de moscas e tatuzinhos e formigas.

 

Saul ficou de pé e Anansi assustou-se um pouco, os olhos se arregalando por um momento.

 

– O qu’éisso, pequeno – disse calmamente, olhando para Saul. – Nem te vi aí. Tu é menino quieto.

 

Loplop era mais difícil de surpreender. Costumava surgir de repente atrás de chaminés e caixotes de lixo, ondulando seu casaco dândi atrás de si. Sua passagem era sempre invisível. Ocasionalmente, olhava para cima e gritava “Oy!” para o firmamento, e um pombo, ou um bando de estorninhos, ou um sabiá, rodopiava para fora das nuvens, obedecendo ao seu chamado, e nervosamente empoleirava-se em seu pulso.

 

Ele olhava para o pássaro, depois brevemente para Saul ou quem quer que o observasse, e sorria de satisfação. Olhava de relance para o pássaro, subitamente imperioso, e latia um comando para ele, sob o qual o animal parecia se encolher e fazer reverência, balançando a cabeça e curvando-se. E então Loplop tornava-se um rei justo e bom, sem tempo para tais demonstrações pueris de poder, e dava murmúrios tranquilizadores para seu súdito, despachando-o, vendo-o desaparecer com um olhar de nobre bênção.

 

Saul achava que Loplop ainda era um pouco maluco.

 

E Rei Rato, Rei Rato era o mesmo: rabugento e cockney e irritável e de outro mundo.

 

Kay não reapareceu com as chaves de Natasha e ela foi obrigada a acordar sua vizinha de baixo, com quem tinha deixado chaves extras.

 

Era a cara de Kay se perder por aí e esquecer que estava com as chaves, e ela esperou que ele telefonasse com aquele seu alegre pedido de desculpas. Ele não ligou. Depois de alguns dias, ela tentou seu número e seus colegas de apartamento disseram que não o viam há muito tempo. Natasha estava sinceramente chateada. Depois de mais alguns dias, mandou fazer novas chaves e resolveu cobrar dele o valor do serviço, quando ressurgisse.

 

A polícia foi procurá-la. Foi levada para a delegacia e interrogada por um homem quieto chamado Crowley, que perguntou repetidas vezes e de formas diferentes se ela tinha visto Saul depois do seu desaparecimento. Perguntou se ela achava se Saul seria capaz de matar. Perguntou o que ela achava do pai de Saul, a quem ela nunca tinha encontrado, e o que Saul pensava dele. Perguntou a ela o que Saul achava da polícia. Perguntou o que ela achava da polícia.

 

Quando a deixaram partir, voltou fervilhando para casa, para encontrar um bilhete de Fabian em sua porta, dizendo que estava esperando por ela no pub. Voltou com ele para casa, onde fumaram um baseado e, ao som dos risos abruptos de Fabian, compuseram uma nova peça de jungle no sequenciador dela, usando um monte de samples de The Bill. Batizaram a música como Fuck You Mister Policeman Sir!.1

 

Pete estava aparecendo mais e mais. Natasha estava esperando que ele desse em cima dela, algo que parecia acontecer com a maioria dos caras com quem ela andava por algum tempo. Ele não o fez, o que foi um alívio para ela, já que estava completamente desinteressada e não queria ter que lidar com seu constrangimento.

 

Ele ouvia mais e mais drum and bass, fazendo comentários cada vez mais astutos. Ela sampleou sua flauta e a usou em suas músicas. Gostava do som que ele fazia; havia um quê de orgânico naquilo. Normalmente, para os sons principais do topo da música, ela simplesmente criaria alguma coisa com seus poderes digitais, mas a desumanidade que aqueles ruídos possuíam, uma qualidade com que ela frequentemente se deleitava, estava começando a cansá-la. Gostava dos sons da flauta, a pequena pausa para respiração, a sugestão de vibração quando ela reduzia a sua velocidade, as imperfeições infinitesimais que eram a marca registrada do animal humano. Fez com que o baixo começasse a seguir a trilha da flauta.

 

Ainda estava fazendo experimentações, criando várias trilhas de áudio sem ele. Depois de algum tempo, ela concentrou seus experimentos com a flauta em uma só trilha. Às vezes, eles tocavam juntos, ela criando uma trilha de bateria, uma linha de baixo, algumas interjeições, e ele improvisando por cima. Gravou essas sessões para aproveitar algumas ideias e começou a formar uma noção de como poderiam tocar juntos: uma sessão de jazz jungle, o mais novo e controverso subgênero do cânone do drum and bass.2

 

Mas por agora se concentrava na música que tinha batizado de Wind City.3 Retornava a ela dia após dia, ajustando-a, acrescentando camadas de graves, alterando a flauta, criando loops com ela.

 

Tinha uma ideia clara do clima que procurava, as batidas neuróticas do Public Enemy, especialmente em Fear of a Black Planet, a sensação de um agudo que olhasse constantemente sobre o próprio ombro. Pegou a harmonia da flauta e esticou-a. A repetição faz com que os ouvintes ganhem consciência das intenções do artista e Natasha fez com que a flauta protestasse bastante, vindo de volta e de volta e de volta em sua nota mais pura, até que a pureza se tornasse um testemunho de paranoia, não um som doce de inocência.4

 

Pete amava o que ela estava fazendo.

 

Ela não o deixava ouvir a música até que estivesse terminada, mas às vezes cedia à sua insistência e tocava um trecho para ele, uma frase de quinze segundos. A verdade é que, embora fingisse preocupação, gostava da sua reação encantadora.

 

– Ah, Natasha – dizia ele enquanto ouvia –, você realmente me entende. Mais do que eu acho que você pensa.

 

Crowley ainda era assombrado pela cena do assassinato em Mornington Crescent.

 

Houve uma espécie de blecaute das notícias; uma rede de sigilo em que a morte da vítima desconhecida tinha sido relatada, mas as complexidades, escondidas. Havia uma expectativa vã e desesperada de que, remoendo os fatos inacreditáveis no âmbito privado, retendo-os, poderiam vir a ser compreendidos.

 

Crowley não acreditava que aquilo iria funcionar.

 

O crime não estava ligado à sua investigação, mas Crowley tinha chegado a examinar a cena. As circunstâncias sobrenaturais que cercavam o assassinato o lembraram das peculiaridades do desaparecimento de Saul e do assassinato dos dois policiais.

 

Crowley tinha estado na plataforma, o trem ainda esperando poucas horas após um condutor histérico ter relatado algo que não fazia sentido. Um breve exame da cena mostrou à polícia que o “homem flutuante” do condutor havia sido suspenso por uma corda à entrada do túnel. Um cabo desfiado ficou pendurado no tijolo. Os poucos passageiros tinham sido evacuados e o condutor estava com um advogado em outra parte da estação.

 

A frente do trem estava incrustada de sangue. Havia restado muito pouco do corpo para a identificação.

 

Registros dentais seriam inúteis graças ao esmagamento provocado pelo avanço inexorável de metal e vidro sobre o rosto da vítima.

 

Não havia como escapar desse crime, estava por toda a sua volta: na plataforma, salpicando as paredes, carbonizado no trilho elétrico, manchado pela gravidade ao longo de todo o comprimento do primeiro vagão. Nenhuma câmera havia registrado a passagem do criminoso ou da vítima. Tinham ido e vindo de forma invisível. Era como se as estacas de metal e os tufos ensanguentados de corda, a carne em ruínas, tudo houvesse sido conjurado espontaneamente de dentro dos túneis escuros.

 

Crowley trocou palavras com o detetive a cargo do caso, um homem cujas mãos ainda tremiam desde sua chegada à cena do crime, há uma hora ou mais. Crowley tinha apenas tênues motivos para ligar o crime às suas próprias investigações. Mesmo a selvageria estava errada. O assassinato dos policiais tinha parecido um ato de enorme raiva, mas um ato espontâneo, brutalmente eficiente. Essa era uma imaginativa peça de sadismo, ritualística, como um sacrifício a algum deus perigoso. Havia sido planejada para extrair da vítima sua dignidade e qualquer vestígio de poder. Assim que teve esses pensamentos, Crowley perguntou-se se o homem – tinham encontrado carne que lhes dizia que era um homem – estivera acordado e consciente quando da chegada do trem, e torceu o rosto, sentindo-se momentaneamente nauseado de horror.

 

E ainda, no entanto, apesar das diferenças, Crowley se viu ligando os crimes em sua mente.

 

Havia algo na facilidade infernal com que a vida tinha sido tomada, uma sensação de poder que parecia permear os locais dos assassinatos, o conhecimento certo e absoluto de que nenhuma dessas vítimas, nem por um segundo, tivera a menor chance de escapar.

 

Pediu ao estremecido detetive de Camden que o contatasse caso houvesse qualquer avanço, insinuando que seria capaz de realizar conexões com outros crimes.

 

Agora, dias depois, Crowley ainda visitava Mornington Crescent quando dormia, suas paredes caoticamente repintadas, matadouro chique, o tapete vermelho desenrolado, medonha decoração orgânica.

 

Estava convencido de que os três (quatro?) assassinatos que investigava continham segredos. Havia mais naquela história, muito mais do que eles sabiam. Os fatos eram gritantes, mas ainda queria acreditar que Saul não tinha cometido os crimes. Buscou refúgio em uma firme, ainda que nebulosa, crença de que algo grande estava acontecendo, algo ainda inexplicável – e que, o que quer que Saul estivesse fazendo, de algum modo não era responsável. Se seria absolvido por um súbito despertar de loucura, pelo controle de outra pessoa ou o que quer que fosse, Crowley não sabia.

 

1 The Bill: série policial da TV inglesa. Fuck You Mister Policeman Sir!: algo como “Sim, Senhor Policial, Vá Se Foder”.

2 Jazz jungle: subgênero do drum and bass que utiliza samples de velhas faixas de jazz. É acusado por alguns de ser leve, mainstream e domesticado demais. Foi a vertente do jungle que chegou às rádios, inclusive no Brasil, por ser mais leve e menos quebrada. Trilhas de áudio: um compositor de música eletrônica usa softwares (ou hardwares) sequenciadores, que dividem a música em trilhas, uma para cada instrumento. Uma trilha para o baixo, uma para o bumbo, outra para um sample etc, como uma espécie de notação em ordem cronológica da esquerda para a direita.

3 Wind City: Cidade do Vento.

4 Public Enemy: seminal grupo de rap americano do final dos anos 80, criador de um hip hop politizado, subversivo e barulhento, com camadas e camadas de samples. No álbum Fear of a Black Planet, sons agudos sampleados de naipes de metais e outras fontes de áudio são usados em loops neuróticos.

 

Por um bom tempo Pete pediu que Natasha o levasse a um clube de jungle. Ela achava a insistência irritante e perguntava por que ele não podia ir sozinho, mas ele reclamava que era um novato na cena, que se sentia intimidado (o que era, com justiça, bem razoável, dada a atmosfera em muitos clubes). Sua valentia permanecia do lado certo, o da mera reclamação.

 

Deu a ela uma ou duas boas desculpas. Não sabia aonde ir – e, se seguisse as terríveis recomendações da Time Out,1 terminaria como uma figura solitária em alguma noite de hardcore techno ou destino semelhante. Natasha, por outro lado, conhecia a cena e podia entrar em qualquer uma das melhores noites de Londres sem pagar. Bastava cobrar favores, vários deles criados ainda nos primeiros dias da cena; conhecia os nomes e os rostos, era legítima.

 

Algo estava rolando na Elephant and Castle. A AWOL Posse estava se juntando com a Style FM em um armazém próximo da linha férrea.2

 

Todo mundo ia estar lá, era o que ela tinha ouvido. Um DJ que conhecia, chamado Three Fingers, telefonou para ela e pediu-lhe que aparecesse, levando uma ou duas músicas; ele as tocaria. Ela poderia tocar alguns vinis também, se quisesse.

 

Ela não ia levá-lo àquela festa, mas talvez a ideia não fosse de todo má. Já fazia um mês desde que tinha saído à noite de verdade e a insistência de Pete era um bom e decente motivo para que se mexesse. Three Fingers colocou o nome dela e de “mais um” na lista de convidados.

 

Fabian disse imediatamente que também iria. Parecia pateticamente grato pela ideia. Kay permanecia incomunicável e, pela primeira vez desde que ele tinha desaparecido, há uma semana ou mais, Natasha e Fabian sentiram o início de uma certa apreensão. Mas aquilo foi esquecido por um momento, enquanto faziam os preparativos para a incursão ao sul de Londres.

 

Pete estava em êxtase.

 

– Sim sim sim! Fantástico! Tenho esperado por isso há muito tempo!

 

O moral de Natasha afundou assim que ela se viu forçada ao papel de babá do jungle.

 

– Tá, bom, não quero te desapontar nem nada, Pete, mas quero que você saiba que não vou tomar conta de você lá nem coisa parecida. Tudo bem? A gente vai lá, eu escuto, você dança, você vai embora quando quiser, eu vou embora quando quiser. Não vou lá pra te apresentar o lugar, entende o que eu quero dizer?

 

Ele olhou para ela de forma estranha.

 

– É claro. – Sua testa franziu. – Você tem umas ideias estranhas em relação a mim, Natasha. Não quero ficar colado em você a noite toda e não vou... fazer você pagar nenhum mico, OK?

 

Natasha sacudiu a cabeça, irritada e envergonhada. Estava preocupada de que ter um geek branquelo magricela atrás dela pudesse arruinar suas credenciais como figura emergente do drum and bass. Mal tinha consciência daqueles pensamentos e o fato de terem sido apontados com franco bom humor a deixou na defensiva e mal-humorada.

 

Pete estava sorrindo para ela.

 

– Natasha, eu vou porque descobri um novo tipo de música que nem sabia que existia, e é uma música que – mesmo que eu não tenha o visual correlato – acho que posso usar; e provavelmente posso fazer. Presumo que o mesmo aconteça com você, já que ainda não parou de gravar comigo.

 

“Portanto, não se preocupe com a possibilidade de eu fazer com que você pareça menos funky na frente dos seus amigos. Só estou indo para ouvir a música e ver a cena.”

 

Depois do último ataque de discussões, Anansi desapareceu. Loplop permaneceu na área por mais um dia ou dois, mas acabou seguindo a aranha em sua obscuridade.

 

Rei Rato estava de péssimo humor.

 

Saul dirigiu-se para os esgotos, com cuidado para não derrubar o saco de comida que carregava. Escolheu com cuidado seu caminho pelos túneis. Chovia nas ruas acima, uma garoa constante de água suja e ácida que corria para dentro dos túneis e girava em volta dos pés de Saul, tentando puxá-lo para baixo; um fluxo de mais de meio metro de altura, em movimento rápido e fluido, o habitual cheiro morno de composto orgânico quase inteiramente dissipado.

 

Rei Rato nada tinha feito para encontrar comida e Saul, impaciente com sua autopiedade, havia deixado a sala do trono e saído à cata. As rédeas de Rei Rato sobre ele estavam afrouxando. A coleira neurótica que tinha mantido durante tanto tempo chegava ao fim. À medida que seu humor piorava, sua determinação em manter Saul ao alcance enfraquecia.

 

Saul sabia o que isso significava. Seu valor para Rei Rato não era medido através do sangue. Ele não havia sido resgatado por ser um sobrinho, mas porque era útil; porque sua peculiar origem significava que era uma ameaça ao poder do Flautista. Enquanto a campanha contra o Flautista se dissolvia em lutas e disputas mesquinhas, covardia e medo, a existência de Saul significava menos e menos para Rei Rato. Sem um plano de ataque, como ele poderia empregar sua arma escolhida?

 

Saul escolhia seu caminho através dos túneis alagados quando ouviu um som. Em uma fenda no concreto havia uma rata encharcada, seus bebês cegos guinchando na escuridão atrás dela.

 

Estava parada, vacilante, sobre a beirada cinzenta, olhando para a torrente de água. Estava a apenas uns quinze centímetros acima das águas, que subiam, e o confortável oco em que vivia estava à beira de se tornar um túmulo selado pela água. Ela olhou para cima através do túnel. No lado oposto havia outro buraco, um corredor acidental que subia para longe das profundezas.

 

A rata levantou-se sobre as patas traseiras para cheirar Saul e emitiu um grito peculiar.

 

Ela subia e descia na escuridão, evitando encará-lo, mas claramente consciente de sua presença. Novamente ela fez um som, um guincho longo, expurgado do escárnio que geralmente colore as vozes dos ratos.

 

Ele parou bem à frente dela e jogou seu saco plástico por cima do ombro.

 

A rata estava pedindo.

 

Ela estava implorando por ajuda.

 

O tom do guincho era suplicante e Saul se lembrou da profusão de ratos que o haviam seguido duas semanas antes, ratos que pareciam movidos por fome e desespero, ansiosos em demonstrar respeito por ele.

 

Não aqui, era o sentimento que se derramava da rata suja encolhida abaixo dele. Não aqui, não aqui!

 

Saul estendeu o braço e ela pulou em sua mão. Uma cacofonia de guinchos infantis de ratos saiu dos buracos no concreto e Saul mergulhou a mão mais fundo na pedra apodrecida. Pequenos corpos foram empurrados para sua mão, onde ficaram se enroscando. Fechou os dedos delicadamente em uma gaiola de proteção e tirou a mão, a pequena família tremendo enquanto o nível das águas subia.

 

Cruzou o túnel e colocou-os na borda, onde a mãe poderia levar os bebês para fora de perigo. Ela se afastou balançando a cabeça, o tom dos seus ruídos era outro, o medo desaparecera.

 

Chefe, ela disse a ele, Chefe, antes de girar e puxar sua família para fora da vista, na escuridão.

 

Saul recostou-se na parede ensopada.

 

Sabia o que estava acontecendo. Sabia o que os ratos queriam. E viu que Rei Rato não iria gostar.

 

No momento em que chegou à entrada da sala do trono, a água estava se movendo mais rápido e o nível continuava subindo. Remexeu sob a superfície em busca da placa de tijolo que escondia a rampa, puxou-a e ela se abriu com um abrupto e explosivo arroto; deslizou através da cascata de água para a sala escura abaixo, fechando a porta atrás de si.

 

Caiu no tanque, aterrissou brevemente sobre o traseiro, levantou e caminhou para tijolos mais secos. Atrás dele, a água escorria para a sala e pela parede, caindo pelo encaixe imperfeito da entrada de tijolos, mas a câmara era tão grande e as comportas escondidas tão eficientes que o fosso em torno da ilha central de alvenaria se tornava apenas um pouco mais largo. Seriam necessários dias de chuva incessante para realmente ameaçar o ar da sala do trono. Rei Rato estava sentado, meditabundo, sobre sua grandiosa cadeira de tijolos.

 

Saul olhou para ele. Vasculhou os sacos plásticos.

 

– Aqui – disse e lançou um pacote de papel para o outro lado da sala. Rei Rato pegou-o com uma mão, sem olhar para cima. – Um pouco de falafel – disse Saul –, um pedaço de torta, um pouco de pão, um pouco de fruta. Digno de um rei – acrescentou em provocação, mas Rei Rato ignorou.

 

Saul sentou de pernas cruzadas na base do trono. Seu pacote continha o mesmo que o de Rei Rato, com ênfase maior nos componentes açucarados da refeição. A gula por doces dele tinha sobrevivido à sua passagem para o mundo dos ratos. A riqueza que a podridão emprestava às frutas era um prazer ao qual se entregava com a maior frequência possível.

 

Remexeu na bolsa e puxou um pêssego, cuja superfície era uma imensa contusão. Comeu, olhando o tempo todo para o taciturno Rei Rato.

 

– Eu tô cansado dessa merda – ele finalmente deixou escapar. – O que há com você?

 

Rei Rato virou para olhar para ele.

 

– Fecha a matraca. Você não sabe de porra nenhuma.

 

– Você fede a autopiedade, sabia? – Saul deu uma risada súbita. – Você não me vê agindo assim, e se tem alguém com motivos para estar... temperamental... sou eu. Primeiro, você me arranca da minha vida e me transforma em algum tipo de... pesadelo de merda... Mas foda-se, tudo bem, vou fazer isso, e fiz um trabalho bem decente, não foi? E agora, justo quando tenho que aprender a lidar com as regras da minha vida como Saul, Príncipe Rato, você fica todo tristonho e entra numas. Que merda está acontecendo? Você... me reanima, me deixa preparado para sabe-se lá que merda e então você cai desse jeito. O que devo fazer?

 

Rei Rato estava olhando para ele com desprezo, pouco à vontade.

 

– Você não tem ideia do que está fazendo, seu merdinha...

 

– Não me diga! Meu Deus! E que merda você quer que eu faça? O meu papel aqui é te motivar de novo? Devo te dar uma sacudida? Fazer você agir novamente? Bem, foda-se! Se você quiser sentar no seu rabo de rato e choramingar, tudo bem. E Seu Aranha e Loplop podem juntar-se a você, vocês são todos a mesma coisa. Mas eu tô fora!

 

– Tem alguma sugestão, seu merdinha desbocado? – silvou Rei Rato.

 

– Sim, tenho. Vocês, seus babacas, têm que ser menos cagões. É isso. Vocês todos estão com medo, e estão com medo porque todos querem um plano que garanta que seus respectivos rabos não estejam na reta. Bem, isso não vai acontecer! Vocês todos reconhecem que o Flautista é tão sinistro que vocês terão que dar cabo dele, que esta é a Batalha Final – desde que nenhum de vocês entre na luta pra valer. E, já que estamos falando nisso, tive a distinta impressão de merda de que era eu quem deveria conduzir a luta pra vocês, mas mesmo assim estão com o rabo entre as pernas porque não conseguem chegar a uma conclusão de como fazer isso sem nenhum risco de contra-ataque ou sei lá o quê. Bem, podem parar de contar comigo, foda-se! – Saul foi subindo o tom até quase o de uma ira divina.

 

– O Flautista te quer morto também! – assobiou Rei Rato.

 

– Sim, foi o que você disse. Bom, ao contrário de você, talvez eu faça alguma coisa quanto a isso!

 

Houve um longo silêncio. Saul esperou um instante, depois falou de novo.

 

– Os ratos querem que eu assuma.

 

Houve um longo silêncio e Rei Rato girou a cabeça lentamente para olhá-lo.

 

– Quê?

 

– Os ratos. Nos esgotos. Às vezes, nas ruas, ou onde quer que seja. Sempre que você não está por perto. Eles vêm a mim, andam em volta, se ajoelham e aí guincham, e estou começando a entender o que eles estão falando. Querem que eu assuma. Querem que eu seja o chefe.

 

Rei Rato se levantou, ficou de pé no trono.

 

– Seu pequeno ingrato. Seu ladrãozinho, seu bostinha, seu bastardo, vou curtir o seu couro, é meu, entende, meu...

 

– Então tome uma atitude, seu babaca ultrapassado! – Saul estava de pé, encarando-o, o rosto logo abaixo do de Rei Rato, suas salivas formando um fogo cruzado. – Eles não te querem de volta. E não vão te aceitar até você... se redimir. Essa parece ser a moral nesta merda toda.

 

Saul virou e zarpou para a saída.

 

– Estou indo embora. Não sei quando voltarei, mas não espero que você se importe, porque você não acha que pode me usar neste momento. Enquanto eu estiver fora, recomendo que pense cuidadosamente em fazer alguma coisa. Use Loplop, use Anansi, juntem-se e rastreiem o filho da puta. Quando estiver disposto a mexer o traseiro, talvez possamos conversar. – Virou-se para encarar Rei Rato. – Ah, e não se preocupe com o seu Reino Mágico. Não quero ser o Rei Rato, nem agora, nem nunca, então nem me perturbaria. Vou encontrar meus amigos ou algo assim. Estou cansado de você.

 

Saul virou-se e saiu da sala, foi brevemente coberto por água suja e passou para os esgotos.

 

Enquanto Saul percorria os reinos subterrâneos mais acima, Rei Rato tremia de raiva, as mãos puxando o sobretudo. Pouco depois, seus movimentos cessaram e ele se sentou.

 

Meditava.

 

Saltou para ficar de pé de novo, com um propósito pela primeira vez em dias.

 

– OK, filho, lição aprendida. Então, vamos começar a pescaria – murmurou para si mesmo.

 

Correu para fora da sala, de repente se movendo como quando Saul o vira pela primeira vez, sinuoso, rápido e caótico.

 

Passou rapidamente, em silêncio, pelas camadas de terra, enquanto Saul ainda lutava para encontrar seu caminho. Rei Rato emergiu em uma rua escura. Do outro lado, vultos passavam para dentro e fora do foco das lâmpadas sem brilho, mantendo os olhos fixos no caminho.

 

Ficou imóvel, os olhos escondidos se contraindo imperceptivelmente. Olhou em volta. Seus olhos se arrastaram até o topo do muro à sua frente. Seguiu esse movimento, um pé subindo em um arco lento, curvando-se de volta à terra em uma parábola exagerada, a parte superior do corpo balançando ligeiramente. Olhou para cima, abriu os braços, agarrou o muro de tijolos como um amante. Silenciosamente, escalou a lateral do edifício, as botas encontrando um apoio impossível, as mãos agarrando imperfeições invisíveis. Puxou as mãos para trás, contraindo os músculos dos braços e fixando a atenção na escuridão abaixo do beiral.

 

Seus braços se desenrolaram e dispararam. Algo vibrou desesperadamente e uma família de pombos sujos estourou das sombras, perturbada em seu sono. Desapareceram no ar atrás dele. Retirou a mão e trouxe com ela uma das aves, aprisionada firme, as asas tentando se abrir, incapaz de escapar.

 

Rei Rato baixou o rosto em direção ao seu cativo, que parou de se debater. Segurou-o bem apertado, olhou fundo em seus olhos.

 

– Você não tem motivo pra ter medo de mim, pombinho – silvou. A ave estava imóvel, esperando. – Quero que me faça um favor. Vá encontrar o seu chefe, espalhar as novas. Rei Rato quer Loplop. Mande-o me procurar.

 

Rei Rato libertou sua presa. Ela balançou para o ar, rodando e deslizando sobre Londres. Rei Rato observou-a partir. Quando não podia ver mais nada, virou as costas e desapareceu na cidade escura.

 

1 Time Out: revista inglesa.

2 Elephant and Castle: cruzamento de ruas no sul de Londres, no bairro de Southwark. AWOL Posse: grupo de DJs, músicos e produtores de festas que estão na ativa desde 1992. Sob a sigla AWOL (A Way Of Life), reuniram-se figuras como Micky Finn, Trevor Fung, Darren Jay e vários nomes do jungle. Organizaram no Paradise Club uma das primeiras festas de jungle/drum and bass, quando o gênero ainda era ignorado pela mídia. Inovaram ao criar uma festa em um local fechado em uma época em que as festas ainda eram ilegais e ao ar livre. Style FM: importante e finada rádio pirata londrina especializada em jungle, na ativa até o final dos anos 90.

 

Era a primeira vez, desde seu passeio solo ao longo da Westway, em que Saul ficava sozinho por tanto tempo. Sua cautela fora definhando, ameaçando extinguir-se, e ele a alimentou com cuidado, mantendo-a. Ela lhe dava melhores movimentos.

 

Queria sair dos esgotos claustrofóbicos, queria provar o ar frio. A julgar pelo refluxo de água em torno de suas pernas, a chuva lá fora tinha diminuído. Queria sair antes dela ter se dissipado totalmente.

 

Saul confiava no instinto em suas andanças pelo submundo de tijolos. As regras dos esgotos eram diferentes, as diferenças e fronteiras entre as áreas, desfocadas. Acima do solo, sabia onde estava e decidia para onde estava indo. Sob o pavimento, sentia apenas uma vaga atração que o impelia a passar de uma parte da rede de túneis para outra, um zumbido do radar troglodita aparentemente alojado em seu crânio, e seguia o seu nariz. Não sabia se já tinha visitado algum tronco específico do esgoto antes; era irrelevante. Conhecia tudo. Apenas o entorno da sala do trono era particular e todas as estradas do mundo subterrâneo pareciam levar até lá mais cedo ou mais tarde.

 

Agachou-se sob tijolos mais baixos, abriu caminho através de túneis apertados.

 

Saul ouviu o tamborilar de pés à sua volta, gritos isolados de ratos excitados. Viu uma centena de pequenas cabeças marrons espiando por frestas nos tijolos.

 

– Oi, ratos – sussurrou enquanto se movia.

 

À sua frente, viu o metal de uma escada em ruínas, velha e corroída, babando suas partes no fluxo de águas pluviais. Agarrou-a, sentiu-a desmoronar debaixo de si, escalou-a antes que se desintegrasse completamente. Empurrou a tampa para enfiar a cabeça em Edgware Road.

 

Era o fim do crepúsculo. A rua estava cheia de pastelarias libanesas, companhias de táxi e lojas de consertos elétricos em promoção, locadoras de vídeo sujas e armazéns de roupas com placas escritas à mão anunciando seus produtos. Saul olhou por cima de um canteiro de obras ao longo da rua. Ao longe, a oeste, a beirada do céu ainda era de um belo azul brilhante, caindo para o preto. Na base do horizonte, as bordas dos prédios pareciam estranhamente afiadas.

 

Saul deslizou suavemente pelo buraco na calçada, despreocupado, pois sabia que poderia passar sem ser visto ou ouvido desde que continuasse nas sombras, obedecendo as regras. Sutilmente, escorreu pela abertura à espera de uma brecha no fluxo de pedestres, arqueando as sobrancelhas, rolando para fora do buraco no chão junto com o fedor.

 

Chegou a voltar para recolocar a tampa do bueiro no lugar e ouviu uma massa de chiados. Espiando pela beirada, Saul olhou nos olhos de dezenas de ratos, empoleirados precariamente na escada apodrecida.

 

Examinou-os. Eles o observavam.

 

Resmungou e puxou a tampa sobre a abertura, deixando uma fenda de trevas na qual pôs a boca e sussurrou:

 

– Encontrem-me perto das latas de lixo.

 

Em um movimento rápido e estranho, Saul ficou de pé. Enfiou as mãos nos bolsos, vagou pela rua, pelas aglomerações de pessoas. Perceberam sua presença de repente, deram passos para o lado e se distanciaram dele, franzindo a testa para o seu cheiro. Atrás dele, um relâmpago marrom se atirou para fora dos esgotos, seguido por outro, e então por uma massa brusca. Um dos comerciantes percebeu e gritou e toda a atenção se focalizou no bueiro. A essa altura, o fluxo havia quase terminado e os ratos tinham se mesclado aos interstícios da cidade, tornando-se invisíveis.

 

Saul continuava andando no mesmo ritmo quando a rua explodiu num pandemônio atrás dele. As pessoas dispararam para longe do buraco no chão.

 

– Quem foi o babaca que deixou isso aberto? – veio um grito do meio de uma multidão árabe.

 

Saul deslizou para a escuridão no canto da rua.

 

Os ratos já tinham desaparecido e cidadãos de espírito responsável cuidadosamente empurravam a tampa metálica de volta para o seu lugar. Saul virou-se lentamente e encostou-se na parede, pomposo, ainda que apenas para seu próprio benefício. Examinou as unhas.

 

Poucos metros à sua direita estava uma massa de lixeiras, umas caindo sobre as outras e cuspindo sacos plásticos, tudo fedendo levemente a baclava e com manchas de sujeira. Um barulho de agitação veio de dentro dos sacos. Uma cabeça suja de mel despontou da massa de plástico preto. Mais cabeças apareceram em torno daquela.

 

– Conseguiram um pouco de comida, é? – assobiou Saul com o canto da boca. – Isso é bom.

 

Um fraco silvo estridente veio das lixeiras em resposta.

 

A poucos metros de distância, no mundo das pastelarias, aqueles que tinham colaborado em selar os esgotos estavam rindo, inquietos. Filavam cigarros e olhavam em volta nervosamente, para o caso dos ratos voltarem.

 

Saul foi até as lixeiras.

 

– OK, esquadrão – disse calmamente. – Mostrem o que são capazes de fazer. Primeiro beco à esquerda, marcha rápida, silenciosos como... ratos? Foda-se, é mais ou menos isso. Formem fileiras bacanas para mim.

 

Houve um súbito estouro e centenas de torpedos marrons saltaram de seus esconderijos. Saul observou enquanto desapareciam em canos, atrás de muros, dentro da escuridão que escorria dos beirais dos edifícios, nos buracos entre os tijolos. As lixeiras ficaram repentinamente vazias e quietas.

 

Saul virou-se lentamente sobre um dos calcanhares em um movimento deliberado. Arrastou os pés, apanhando-os, soltando-os, caminhando pesadamente ao longo da rua. Olhou para o peito enquanto se movia. Saul estava pensando.

 

Era como se tivesse perdido toda a capacidade de urgência.

 

Saul perguntou-se o que estava tentando obter. Aquilo era vingança? Tédio? Um desafio?

 

Estava se tornando o Rei Rato. Não estava? Era isso o que estava fazendo? Não tinha certeza. Não havia pedido que os ratos o seguissem, mas queria ver o que podia fazer com eles.

 

Tinha consciência de que deveria temer o Flautista, que deveria pensar, formar um plano, mas não podia, não agora. Sentia-se indigno de confiança, confuso, cheio de traição. Rei Rato iria ver só. Rei Rato, que não o seguiu, não tentou detê-lo, não insistiu para que voltasse.

 

Não sabia o que estava prestes a fazer, não sabia para onde ir, quando iria voltar. Mas o próprio vazio que sentia era uma libertação. Por muito tempo, tinha se sentido cheio de culpa por seu pai, cheio da decepção do pai. Depois, tinha ficado cheio de Rei Rato, cheio de receios e espanto.

 

Agora, estava vazio de repente. Sentiu-se muito sozinho. Sentiu-se leve, como se pudesse fugir da gravidade a cada passo. Como se tivesse mijado após um dia segurando a urina ou largado um enorme fardo que havia esquecido que carregava. Sentiu que poderia ser arrastado para longe pelo vento, que tinha que continuar andando. E cada movimento, pela primeira vez de que conseguia se lembrar, pela primeira vez em sua vida, era inteiramente seu.

 

Houve uma gritaria no beco logo à sua frente; xingou e correu para a esquina. Fez a curva na beirada de tijolos e olhou para as sombras. A poucos metros da Edgware Road, uma jovem estava sentada na entrada de uma loja. Tinha o rosto e cabelos castanhos sujos. Estava sentada amontoada em um ensebado saco de dormir azul, apertando-o ao seu redor. O rosto foi atingido pelo horror, a boca esticou-se como se fosse dividir as bochechas. A voz havia sumido. Nem viu Saul. Não conseguia tirar os olhos do muro à frente.

 

Uma cascata de ratos era vomitada, borbulhando, sobre a beirada. O fluxo era quase inaudível, marcado apenas por um baixo ruído branco de arranhões.

 

O saco de dormir escorregou lentamente das mãos da mulher, que ficaram como estavam, congeladas, emoldurando seu rosto. Ratos surgiram à sua volta, olharam para Saul, fizeram sons de súplica, esperando aprovação. Abriram caminho quando ele andou em direção à mulher apavorada.

 

Ela não olhou para ele, ainda incapaz de olhar para qualquer lugar exceto o dilúvio de corpos agitados. Havia mais ratos lá do que Saul tinha visto nos esgotos. Tinham ganho reforços de compatriotas das casas locais. Saul olhou para eles; então, virou-se para a mulher.

 

– Ei, ei – disse suavemente e se ajoelhou diante dela. – Não entre em pânico, shhhhh...

 

Os olhos da mulher piscaram rapidamente para ele e ela encontrou sua voz.

 

– Ah meu Deus tá vendo eles estão vindo me pegar Jesus Cristo...

 

Ela falou em um grito sufocado. Como se não houvesse ar em seus pulmões, como se apenas o medo lhe desse voz.

 

Saul segurou seu rosto com as duas mãos e forçou-a a olhar para ele. Seus olhos eram verdes e muito abertos.

 

– Me escute. Você não vai entender isso, mas não se preocupe. Shhh, shhh, esses ratos são meus. Eles não vão te machucar, entende?

 

– Mas os ratos estão aqui para me pegar e eles vão me pegar e...

 

– Cale a boca! – Houve silêncio por um segundo. – Agora, observe. – Saul segurou sua cabeça com calma e, lentamente, foi para o lado para que a mulher pudesse ver os ratos que esperavam nas sombras e, quando os olhos dela se arregalaram de novo e os músculos ao redor da boca ficaram tensos, Saul atirou a cabeça para trás brevemente e sussurrou:

 

– Desapareçam!

 

Houve uma enxurrada de pés e caudas. Os ratos desapareceram.

 

O beco estava em silêncio.

 

A desorientação penetrou os vincos do rosto da mulher. Olhou de um lado para o outro quando Saul se afastou dela. Esticou o pescoço e olhou nervosamente em volta. Saul caiu de cócoras ao lado dela, sentou-se contra a porta. Olhou à direita e viu as luzes de Edgware Road, a apenas três metros de distância. Mais uma vez, pensou: essas coisas acontecem tão perto da cidade real e ninguém pode vê-las. Acontecem a três metros de distância, em algum outro mundo.

 

Perto dele, a mulher se virou. Sua voz tremia.

 

– Como você fez isso? – Ela ainda falava muito alto.

 

– Eu te falei – disse ele. – São os meus ratos. Vão fazer o que eu disser.

 

– É como um truque? Como ratos treinados? Eles não te assustam?

 

Enquanto falava, seus olhos oscilaram de um lado para o outro. A voz era anormalmente alta e abrupta. Seu pânico passou rápido demais. Falou com ele como se ela fosse uma criança. Saul subitamente compreendeu que aquela mulher provavelmente era uma doente mental.

 

Não a trate como uma criança, pensou com cuidado. Não seja condescendente com ela.

 

– Os ratos não me assustam, não – disse com cuidado. – Eu os compreendo.

 

– Eles quase me fizeram cagar de medo. Pensei que estavam atrás de mim!

 

– Sim, bem, sinto muito por isso. Não sabia que tinha alguém aqui quando os mandei para o beco.

 

– É incrível que você possa fazer isso, quero dizer, fazer ratos fazerem o que você quiser! – Sorriu rapidamente.

 

Houve um silêncio. Saul olhou em volta, mas os ratos permaneciam escondidos. Virou-se para sua interlocutora. Seus olhos dardejavam ao redor como moscas.

 

– Qual é o seu nome? – perguntou.

 

– Deborah.

 

– Eu sou Saul. – Sorriram um para o outro. – Agora que você sabe que os ratos são meus – disse lentamente –, ainda tem medo deles?

 

Ela olhou para ele interrogativamente. Saul suspirou longamente. Não sabia o que iria acontecer em seguida. Realmente não sabia o que estava fazendo. Estava se divertindo com suas palavras, saboreando cada uma delas em sua boca. Era a primeira vez desde o encontro com Kay que falava com um ser humano. Refestelou-se em cada frase. Não queria que a conversa chegasse ao fim.

 

– Quer dizer, eu poderia trazê-los pra fora de novo.

 

– Não sei, quero dizer, eles não são sujos e tudo?

 

– Não os meus. Se eu ordenar, não vão tocar em você.

 

Deborah torceu o rosto para cima. Estava sorrindo, um sorriso doentio e assustado.

 

– Ah você sabe eu não sei quero dizer eu não sei...

 

– Não tenha medo. Olhe. Vou chamá-los aqui pra fora e mostrar que eles fazem o que eu quero. – Voltou a cabeça ligeiramente. Podia sentir o cheiro dos ratos. Eles esperavam fora do campo de visão, agitados. – Cabeças à mostra – disse com firmeza –, só as cabeças.

 

Houve uma agitação nos escombros e centenas de cabecinhas levantaram-se, como focas nas ondas, crânios elegantes sob couro engordurado.

 

Deborah gritou e pôs a mão sobre a boca. Sua cabeça balançou e Saul viu que ela estava rindo.

 

– É incrível... – ela disse por entre os dedos.

 

– Para baixo – disse Saul, e as cabeças desapareceram.

 

Deborah riu, deliciada.

 

– Como você faz isso?

 

– Eles têm que fazer o que eu digo – disse Saul. – Eu sou o chefe, no que concerne a eles. Sou seu príncipe. – Ela olhou para ele, consternada. Saul sentiu-se irresponsável. Perguntou-se se não estava prejudicando-a mais ainda. O que ela precisa é de realidade, pensou, mas logo percebeu que aquilo era realidade, quer alguém gostasse ou não. E queria continuar falando com ela.

 

– Você está com fome, Deborah? – Ela assentiu com a cabeça. – Bem, por que não te dou alguma comida? – Levantou-se e penetrou em Edgware Road, voltando alguns segundos depois com dois bolos, coisas intrincadas e incrustadas com pistaches e açúcar de confeiteiro, que ele colocou no colo de Deborah.

 

Ela mordeu um, lambeu os lábios. Estava obviamente faminta.

 

– Eu estava dormindo – disse ela, o mel abafando sua voz. – Ouvi os ratos no meu sono e acordei. Ah, tudo bem. Fico feliz de estar acordada. Eu não estava dormindo muito bem, na verdade, eu estava sonhando com coisas horríveis.

 

– Despertar para uma praga de ratos não é uma coisa horrível?

 

Ela riu com espasmos.

 

– Só no início – disse ela. – Agora eu sei que eles fazem o que você diz e não ligo tanto. Está muito frio. – Ela havia acabado com os doces. Tinha comido bem rápido.

 

Ouviu-se um leve arranhar. Os ratos estavam ficando impacientes. Saul ladrou uma breve ordem para que ficassem quietos e o som parou. Parece tão fácil, pensou, tão simples tomar o controle desse jeito. Aquilo sequer o excitava.

 

– Você quer ir dormir, Deborah?

 

– O que você quer dizer? – Sua voz mostrou desconfiança, até mesmo medo. Quase choramingou de temor e empacotou-se em seu saco de dormir. Saul estendeu a mão para tranquilizá-la e ela se encolheu para longe dele com horror e ele percebeu com uma estranha sensação que já tinha ouvido essa frase antes, mas falada com uma intenção diferente.

 

Saul sabia que as ruas eram brutais.

 

Perguntou-se quantas vezes ela havia sido estuprada.

 

Moveu as mãos para longe, em sinal de rendição.

 

– Me desculpe, Deborah, não quis dizer nada. É que não estou cansado. Estou sozinho e pensei que a gente poderia dar um passeio. – Ela ainda olhava para ele com olhos aterrorizados. – Eles não vão... eu vou embora, se você quiser. – Ele não queria partir. – Quero te mostrar os lugares. Posso levá-la para qualquer lugar aonde queira ir.

 

– Eu não sei eu não sei o que você quer fazer... – ela gemeu.

 

– Você não quer fazer alguma coisa? – disse ele desesperadamente. – Não está entediada? Juro que não vou tocar em você, não vou fazer nada, só quero alguma companhia...

 

Olhou para ela e a viu vacilar. Adotou uma expressão boba, uma cara de palhaço triste, chorou teatralmente, nauseando a si mesmo.

 

Deborah riu nervosamente.

 

– Por favor – ele disse –, vamos.

 

– Ah... OK... – Ela parecia relativamente feliz, apesar de nervosa.

 

Ele sorriu, tranquilizador.

 

Sentiu-se pouco à vontade, chocantemente desajeitado. Mesmo o mais simples dos maneirismos era um esforço enorme. Estava aliviado por não tê-la afugentado.

 

– Vou te levar até os telhados, se você quiser, Deborah, e vou te mostrar a maneira rápida de se locomover em Londres a pé. Posso... – Fez uma pausa. – Posso trazer os ratos?

 

Traga-os, traga os ratos, ela disse, depois de um pouco de persuasão. Era óbvio que, apesar de seu medo, estava fascinada. Saul deu um longo assobio e os ratos apareceram de novo, ansiosos para mostrar boa vontade.

 

Não sabia como os comandava. Parecia não fazer diferença quais palavras usava, se assobiava ou dava um breve grito. Não conseguiu pensar verbalmente na ordem que desejava dar e teve de fazer um som, mas os ratos pareciam compreendê-lo por empatia, não pela linguagem. Revestiu o som que fez com o espírito de uma ordem a ser obedecida.

 

Fez os ratos se alinharem em fileiras, para deleite de Deborah. Depois fê-los andar para a frente e para trás. Quando já tinha se mostrado e feito os ratos passarem ridículo, extraindo o medo de Deborah, ela pôde até tocar em um deles. Acariciou-o nervosamente enquanto Saul murmurava algo no fundo de sua garganta para manter controle sobre o rato, de modo que não entrasse em pânico, mordesse ou fugisse.

 

– Sem querer ofender nem nada, Saul, mas você fede, sabe – disse ela.

 

– É por causa de onde eu moro. Cheire de novo; não é tão ruim quanto se pensa da primeira vez.

 

Ela se inclinou e cheirou-o, torcendo o nariz e sacudiu a cabeça, desculpando-se.

 

– Você vai se acostumar com isso – disse ele.

 

Depois que ela perdeu o medo, ele sugeriu que partissem. Ela parecia nervosa de novo, mas concordou com um movimento de cabeça.

 

– Para onde? – disse ela.

 

– Você confia em mim? – disse Saul.

 

– Acho que sim...

 

– Então, segure-se em mim. Vamos subir, direto pelos muros.

 

Ela não entendeu a princípio e, quando o fez, ficou apavorada, recusou-se a acreditar que Saul pudesse carregá-la. Ele estendeu a mão para ela gentilmente, lentamente, para não intimidá-la; quando teve certeza de que ela não se importava de ser tocada, ergueu-a facilmente e segurou-a com os braços abertos, sentindo os músculos estalarem com sua força de rato. Ela riu deliciada.

 

Sentiu-se um super-herói.

 

Ratman, pensou enquanto a segurava. Fazendo o bem com seus bizarros poderes de rato. Ajudando os doentes mentais. Levando-os por Londres mais rápido do que merda no esgoto. Zombou de si mesmo.

 

– Viu? Eu disse que conseguia carregar você. Deixe-me colocá-la nas minhas costas.

 

– Mnnnn... – Deborah balançou o rosto de um lado a outro como uma criança lisonjeada, sorrindo um pouco. – MnnnnOK.

 

– Ótimo. Vamos lá. – Os ratos chegaram um pouco mais perto, ouvindo o dinamismo na voz de Saul.

 

Deborah ainda olhava nervosa toda vez que eles se moviam, mas havia esquecido a maior parte de seu medo.

 

Saul inclinou-se e ofereceu-lhe as costas. Ela saiu do saco de dormir.

 

– Devo levar isso? – ela disse, e Saul balançou a cabeça.

 

– Apenas esconda. Vou trazer você de volta pra cá.

 

Deborah subiu cautelosamente nas costas de Saul e ele foi alarmado de novo pelo fato de que somente a tênue ligação dela com a realidade a fazia seguir adiante com o que ele sugeria. Se tivesse abordado a maioria das pessoas com a oferta de levá-las nas costas pelos telhados, ele não teria encontrado respostas tão positivas.

 

A ironia, claro, era que ela estava certa ao confiar nele.

 

Ficou de pé e ela gritou como se estivesse em um passeio no parque de diversões.

 

– Calma, calma – ela gritou, e ele sussurrou para que mantivesse a voz baixa.

 

Entrou pela passagem e por toda a sua volta ouviu o tamborilar de centenas de pés de ratos. Foi assim que cruzei os mundos, pensou, carregado para minha nova cidade nas costas de um rato. O que vai, volta.

 

Parou embaixo de uma janela, sua soleira três metros acima da calçada.

 

– Vejo vocês lá em cima – sussurrou para os ratos, que sumiram em um turbilhão, como antes. Ouviu o arranhar de garras no tijolo.

 

Saul saltou e agarrou a janela e Deborah gritou, um grito que não desapareceu, mas inchou com o medo enquanto seus dedos lutavam por apoio em suas costas. Seus pés balançavam acima do chão, as pontas dos seus sapatos arruinados raspando na parede.

 

Pediu que ela se calasse, mas ela não o fez, e palavras começaram a se formar em seu protesto.

 

– Paraparapara – ela gemeu e Saul, atento a isso, arremessou-se velozmente para o espaço diante da janela, achatou-se contra o vidro e agarrou-se no alto mais uma vez, determinado a puxar Deborah antes que ela pudesse mandá-lo descer.

 

Subiu pelo edifício. Ainda não tão rápido como Rei Rato, mas com tanta facilidade, pensou enquanto subia. O terror havia interrompido a voz de Deborah. Conheço essa sensação, pensou Saul, e sorriu. Acabaria com aquilo o mais rápido que pudesse.

 

O peso dela em suas costas era só uma pequena irritação. Não era uma parede difícil de escalar. Era enfeitada com janelas e fendas e protuberâncias e calhas. Mas Saul sabia que, para Deborah, era apenas um grande tijolo intransponível. O edifício tinha um telhado plano cercado por grades, em uma das quais ele se agarrou e puxou, levantando-se e à sua carga para acima do horizonte.

 

Depositou Deborah sobre o concreto. Ela se agarrou ao chão, a respiração entrecortada.

 

– Ah, olhe, Deborah, me desculpe por te assustar – disse apressadamente. – Eu sabia que você não aceitaria se eu contasse o que pensava em fazer, mas juro, você estava segura, sempre. Não iria colocá-la em perigo.

 

Ela balbuciou de forma incoerente. Ele deixou-se cair ao lado dela e gentilmente colocou uma mão no seu ombro. Ela se encolheu e virou para ele. Ficou surpreso com o rosto dela. Estava tremendo, mas não parecia horrorizada.

 

– Como você consegue fazer isso? – ela arfou. Em torno deles, o terraço de concreto começou a enxamear de ratos, lutando para provar sua ansiosa devoção. Saul pegou Deborah pelos braços e a colocou de pé. Puxou-a pela manga. Ela não tirava os olhos dele, mas se permitiu ser puxada até as grades em torno do terraço. A luz já havia sido totalmente filtrada do céu.

 

Não estavam muito no alto; à sua volta, hotéis e blocos de apartamentos os olhavam de cima, ao passo que também eles viam de cima alguns outros prédios. Estavam no ponto médio das ondulações da linha do horizonte. Emaranhados negros de galhos despontavam em seu campo de visão, em Regent’s Park. Os grafites eram em menor número ali em cima, mas não se dissipavam. Aqui e ali, as tags extravagantes marcavam as laterais dos prédios, medalhas fixadas nos lugares mais inacessíveis. Não sou o primeiro a estar aqui, pensou Saul, e os outros não eram ratos. Admirou-os imensamente, com sua bravura territorial idiota. Escalar aquela parede e grafitar boomboy!!! bem ali, onde terminavam os tijolos, aquele era um ato corajoso.

 

Não é corajoso da minha parte, pensou. Sei que posso fazer isso, sou um rato.

 

Deborah estava olhando para ele. De vez em quando, seus olhos voavam em direção ao horizonte, mas era nele que estava sua atenção. Olhava-o com espanto. Ele olhou de volta para ela. Foi inundado pela gratidão. Era tão bom, tão agradável falar com alguém que não era um rato ou um pássaro ou uma aranha.

 

– Deve ser maravilhoso ser capaz de fazer o que todos os ratos fazem – ela disse, estudando suas enormes fileiras. Tinham ficado um pouco mais para trás, silenciosos e atentos, um pouco inquietos quando não estavam sendo observados, mas calados quando Saul voltava a olhar para eles.

 

Saul riu do que ela disse.

 

– Maravilhoso? Não penso assim. – Não resistiu a reclamar, mesmo que ela não pudesse entender. – Deixe-me contar uma coisa sobre ratos – disse. – Ratos não fazem nada. O dia inteiro. Comem qualquer porcaria velha que encontram, correm por aí mijando nas paredes, trepam ocasionalmente – ou pelo menos acho que sim – e lutam para ver quem vai dormir em qual parte do esgoto. Claro, eles acham que são a razão pela qual o mundo foi inventado. Mas não são nada.

 

– Então, parecem pessoas! – disse Deborah e riu alegremente, como se tivesse dito algo inteligente. Repetiu.

 

– Não são nem um pouco como as pessoas – Saul disse calmamente. – Isso é só um velho mito ultrapassado.

 

Pediu que ela falasse de si mesma e ela foi vaga sobre sua situação. Não explicou sua falta de moradia, resmungando sombriamente sobre não ser capaz de lidar com alguma coisa. Saul se sentiu culpado, mas não estava tão interessado. Não que não se importasse: ele se importava, ficara estarrecido com o estado dela e, mesmo alienado da cidade como estava, sentiu a velha fúria contra o governo na qual tinha sido tão assiduamente treinado por seu pai. Importava-se profundamente. Mas naquele momento queria falar com ela não por quem ela era, mas antes de tudo porque era uma pessoa. Qualquer pessoa. Enquanto ela continuasse falando e ouvindo, não fazia diferença o que ela dissesse. Pediu que falasse de si mesma porque tinha fome de companhia.

 

Ouviu um som repentino de asas batendo, como uma peça pesada de tecido. Sentiu uma breve rajada de vento no rosto. Olhou para cima, mas não havia nada.

 

– Te digo uma coisa – falou. – Esqueça isso de ratos serem maravilhosos. Você quer ir comigo para a minha casa?

 

Ela torceu o nariz de novo.

 

– A que cheira desse jeito?

 

– Não. Eu estava pensando em voltar para a minha casa de verdade, por um tempo. – Parecia calmo, mas sua respiração ficou curta e rápida com a ideia de voltar. Alguma coisa nos comentários dela sobre ratos o lembrou de onde ele viera. Daria um corte em Rei Rato, queria retornar, voltar às origens.

 

Sentia falta do pai.

 

Deborah estava feliz com o convite. Saul colocou-a nas costas novamente e partiu, os ratos a reboque, através de Londres, por um terreno que rapidamente havia se tornado familiar para ele.

 

Às vezes, Deborah afundava o rosto no ombro dele, em outras, se inclinava para trás de forma alarmante e gargalhava. Saul mudava de lado para manter o equilíbrio.

 

Seu avanço não era tão rápido quanto o de Rei Rato ou de Anansi, mas ele se movia veloz. Ficava no alto, relutando em tocar o chão, uma regra meio vaga que lembrava de uma brincadeira infantil. Às vezes, a plataforma de telhados se interrompia e ficava sem opção senão a de precipitar-se prédio abaixo, por uma escada de incêndio, calha ou parede quebrada e correr por um curto espaço de calçada antes de escalar para acima das ruas novamente.

 

Por todos os lugares à sua volta, ouvia o som dos ratos. Eles o acompanhavam, movendo-se por suas próprias rotas, desaparecendo e reaparecendo, entrando e saindo do seu campo de visão, antecipando-o e seguindo-o. Havia algo mais, uma presença da qual estava vagamente consciente: a fonte daquele som de bater de asas. Uma vez ou outra, percebeu esse ruído, um fraco turbilhão de vento ou asas soprando em seu rosto. Estava empolgado e não parou, mas nutriu a vaga sensação de que algo o perseguia.

 

Periodicamente, fazia uma pausa para respirar e olhar em volta. Sua passagem era rápida. Seguia um mapa de luzes, mantendo-se paralelamente à Edgware Road, seguindo-a até chegar a Maida Vale. Foram pelo trajeto do ônibus 98, passando por lugares que conhecia bem, como a torre com uma membrana de vigas vermelhas projetadas sobre o telhado, formando uma gaiola.

 

As construções ao seu redor começaram a perder altura; os espaços entre as torres foram aumentando. Saul sabia onde estavam: na faixa de casas enganosamente suburbanas logo antes da Kilburn High Road. Terra cognita, pensou. Área familiar.

 

Cruzou para o outro lado da rua tão rápido que Deborah mal percebeu. Saul decolou para a escuridão entre as estradas principais, cruzando o vão entre Kilburn e Willesden, ansioso para voltar para casa.

 

Estavam diante de Terragon Mansions. Saul estava assustado.

 

Sentia-se carregado, sem ar. Escutou a calmaria, percebeu que a escolta de ratos tinha evaporado silenciosamente. Estava sozinho com Deborah.

 

Seus olhos se arrastaram pelos tijolos repetitivos, ligando os pontos entre as janelas, muitas já escuras, poucas com luzes atrás das cortinas. Lá em cima, o buraco através do qual seu pai havia caído. Ainda sem conserto, à espera de novas investigações policiais, imaginou, embora agora a ausência estivesse disfarçada por folhas de plástico transparente. Uma pequena borda de vidro quebrado ainda era visível na esquadria da janela.

 

– Tive que sair daqui às pressas – sussurrou para Deborah. – Meu pai caiu daquela janela e eles acham que eu o empurrei.

 

Ela olhou para ele com horror.

 

– E empurrou? – chiou, mas o rosto dele a calou.

 

Andou em silêncio até a porta da frente. Ela estava atrás dele, abraçando-se para espantar o frio, parecendo nervosa. Ele acariciou a porta, fazendo a tranca deslizar sem esforço ou ruído. Saul vagou pelas escadas. Seus pés não emitiam som. Movia-se como que atordoado. Atrás dele vinha Deborah, aos trancos e barrancos, sua efervescência desaparecida junto com a dele. Arrastava os pés como se estivesse se lamentando, mas sem fazer ruído.

 

A porta do apartamento estava cruzada com fita azul. Saul olhou e considerou como aquilo o fazia se sentir. Não violado ou ultrajado, como teria imaginado. Sentiu-se estranhamente tranquilizado, como se aquela fita guardasse sua casa contra estranhos, selando-a como uma cápsula do tempo.

 

Puxou-a delicadamente. Ela saiu em sua mão, tênue e ineficaz, como se estivesse esperando por ele, ansiosa para se entregar. Empurrou a porta e entrou na escuridão onde seu pai tinha morrido.

 

Estava frio, tão frio quanto na noite da chegada da polícia. Ele não acendeu as luzes. A que entrava filtrada das ruas era suficiente. Não perdeu tempo, abriu a porta da sala e entrou.

 

A sala estava vazia, despojada de objetos, mas ele percebeu isso apenas de passagem. Olhou para a janela quebrada, agora bem à sua frente. Desafiou-a para que o perturbasse, abalasse sua força. Era só um buraco, pensou, não era? Não era só um buraco? O plástico oscilava para a frente e para trás com o barulho de chicotes estalando.

 

– Saul, estou com medo...

 

Só então ele se deu conta de que Deborah não conseguia enxergar. Ela permaneceu no limiar da sala, hesitante. Ele sabia o que ela seria capaz de enxergar, sua forma obscura contra o laranja escuro das luzes da rua ao longe. Saul se sacudiu com raiva. Estava usando-a com tanta facilidade que tinha esquecido que ela era real. Atravessou a sala e a abraçou.

 

Envolveu-se em torno dela com um carinho que ela derramou de volta para ele. Não era sexual, mas sentiu que ela esperava que fosse e talvez não tivesse se importado. Mas ele teria se sentido manipulador e baixo e gostava dela e tinha pena dela e era tão, tão grato a ela. Abraçaram-se e ele percebeu que estava tremendo tanto quanto ela. Nem totalmente rato ainda, então, pensou lugubremente. Ela tem medo do escuro, pensou. Qual é a minha desculpa?

 

Havia um livro no meio do chão.

 

Ele o viu de repente, por sobre o ombro dela. Ela o sentiu paralisar e quase gritou de terror, torcendo-se para ver o que o havia chocado. Ele rapidamente a acalmou, desculpando-se. Ela não conseguia ver o livro no escuro.

 

Era a única coisa na sala. Não havia nenhum móvel, nem fotos, telefone ou outros livros, só aquele.

 

Não era coincidência, pensou Saul. Não podiam ter deixado aquilo escapar quando limparam o apartamento. Saul reconheceu-o. Um bloco A4 antigo e muito grosso, de encadernação vermelha, com pedaços de papel escapando de suas páginas; era o álbum de recortes de seu pai.

 

Tinha aparecido regularmente ao longo da vida de Saul. De vez em quando seu pai o arrancava de onde quer que o escondesse e cuidadosamente recortava algum artigo de jornal, murmurando. Colava-o no livro e às vezes escrevia com sua Bic vermelha na margem. Em outras ocasiões não havia um artigo; ele apenas escrevia. Saul sabia que algumas vezes esses rompantes eram provocados por algum acontecimento político, algo sobre o qual seu pai queria gravar suas reflexões, mas em outras vezes não havia estímulo que Saul pudesse perceber.

 

Quando era pequeno, o livro o fascinava e queria lê-lo. Seu pai o deixava ver algumas coisas, artigos sobre guerras e greves e as cuidadosas notas vermelhas ao redor. Mas era um livro privado, explicara, e não deixava Saul examinar tudo. Uma parte dele é pessoal, explicara pacientemente. Uma parte é particular. Uma parte é só para mim.

 

Saul separou-se de Deborah e o recolheu. Abriu-o pela quarta capa. Espantosamente, havia ainda algumas poucas páginas não preenchidas. Folheou-o de trás para frente lentamente, chegando à última página que seu pai tinha escrito. Uma história leve do jornal local sobre um evento de arrecadação de fundos do Partido Conservador, que tinha sofrido um catálogo de desastres: falta de energia elétrica, uma mesma reserva feita em nome de duas pessoas e intoxicação alimentar. Ao lado disso, na cuidadosa letra de fôrma de seu pai, Saul leu: “Deus existe, afinal!!!”

 

Antes disso, uma história sobre a greve de longa duração nas docas de Liverpool e, pela mão de seu pai: “Um bocado de informações vazou pelo tal Muro de Silêncio tão cuidadosamente mantido! Por que essa PORRA é tão ineficaz?!”

 

Saul virou mais uma página em sentido contrário e sorriu deliciado quando percebeu que seu pai tinha ponderado sobre sua coleção da Desert Island Discs. No topo da página estava uma lista de velhas músicas de jazz, todas com cuidadosos pontos de interrogação e abaixo estava o esboço de lista. “Um: Ella Fitzgerald. Qual deles??? Dois: Strange Fruit. Três: All The Time In The World, Satchmo. Quatro: Sarah Vaughan, Lullaby of Birdland. Cinco: Thelonious? Basie? Seis: Bessie Smith. Sete: Armstrong de novo, Mack the Knife. Oito: Internationale. Por que não? Livros: Shakespeare, não quero a maldita Bíblia! Capital? Manifesto Com.? Luxo: Telescópio? Microscópio?”

 

Deborah se ajoelhou ao lado de Saul.

 

– Este caderno foi de meu pai – ele explicou. – Olhe, é muito bacana...

 

– Como é que ele está aqui? – ela perguntou.

 

– Não sei – ele disse após uma pausa. Continuou a virar as páginas enquanto falava, passou por mais recortes, a maioria sobre política, mas aqui e ali simplesmente coisas que haviam chamado a atenção de seu pai.

 

Viu pequenas histórias sobre ladrões de tumbas egípcias, árvores gigantes na Nova Zelândia, o crescimento da Internet.

 

Saul começou a pular nacos de páginas agora, voltando para trás anos de cada vez. Havia mais escritos nos primeiros anos.

 

“7/7/88: Sindicatos. Preciso ler velhas teorias! Tive uma longa discussão hoje no trabalho com David, sobre o sindicato. Ele falou e falou sobre ineficiência e etc., etc. e eu meio que me deixei abater, só fiquei por lá sentado dizendo: Sim, mas solidariedade é vital! E ele não tinha nem um pouco dela. Devo reler Engels sobre os Sindicatos. Tenho vagas lembranças de ter ficado bastante impressionado, mas poderia estar apenas me enganando. Saul ainda muito mal-humorado. Não tenho a minima ideia do que está acontecendo. Lembro de ter visto um livro sobre Adolescentes e Problemas, mas não lembro onde. Vou procurar.”

 

Saul sentiu-se inundado pelo mesmo amor irremediável que sentira ao mostrar a Fabian o livro que seu pai tinha comprado para ele. Ele estava fazendo tudo errado, o velho, mas tudo o que queria era entender. Talvez não houvesse jeito certo de fazer isso. Eu estava errado também, pensou.

 

Para trás, para trás, moveu-se através dos anos. Deborah abraçou-o em busca de calor.

 

Leu sobre a vez em que seu pai tivera uma discussão com um dos seus professores de História sobre a melhor forma de apresentar Cromwell.

 

“Não, tudo bem, talvez não se possa falar de Burguesia para um grupo de crianças de dez anos, mas não se deveria ficar vangloriando-o! Homem terrível, sim (Irlanda e etc. Etc.), mas deveriam deixar clara a natureza da Revolução!”

 

Leu uma referência a uma das namoradas de seu pai – “M.” Não conseguiu se lembrar de nada sobre ela. Sabia que seu pai tinha mantido tais casos fora de casa. Pensou que o pai não tivesse tido envolvimento romântico algum nos últimos seis ou sete anos de vida.

 

Leu sobre sua própria festa de aniversário de cinco anos. Lembrou-se: tinha ganho dois cocares indígenas e uma certa aflição tinha passado pelos adultos, preocupados com a sua reação, mas ele ficou exultante. Teria não apenas uma, mas duas daquelas bonitas coisas com penas... Recordou a alegria. Saul procurava a primeira referência a si mesmo, talvez uma menção à sua mãe morta, que tinha sido cuidadosamente retirada das ruminações de seu pai. Uma data chamou sua atenção: 2/8/72, o único registro do ano de seu nascimento; o nascimento em si aparentemente não fora registrado. Não havia recorte anexo ao registro. Saul franziu a testa enquanto lia as primeiras palavras.

 

“Já se passaram algumas semanas desde o ataque, sobre o qual eu realmente não quero falar. E. é muito forte, graças a Deus. Muitos medos, é claro, becos e etc. etc., mas em geral ela melhora a cada dia. Vivo perguntando a ela se tem certeza disso, acho que devíamos ir à polícia. Você não quer que ele seja pego? Perguntei isso e ela disse: Não, só não quero vê-lo novamente. Não posso deixar de pensar que isso é um erro, mas deve ser decisão dela, é claro. Estou tentando ser o que ela precisa, mas Deus sabe que é difícil. Pior à noite, é claro. Não sei se é melhor confortar/abraçar ou não tocar e ela também parece não saber. Definitivamente, os piores momentos, lágrimas etc. Estou dando voltas. O fato é, E. fez o teste e está grávida. Não é possível ter certeza, claro, mas examinei as datas com cuidado e parece muito provável que seja dele. Discutimos aborto, mas E. não conseguiria. Então, após longas e difíceis conversas decidimos ir em frente. Sem registro, para que ninguém precise saber. Espero que tudo acabe bem. Eu admito, temo pela criança. Ainda não descobri qual será minha própria reação. Devo ser forte por causa de E.”

 

Saul sentiu o peito totalmente vazio.

 

Em algum lugar, Deborah estava falando algo.

 

Ah, como se sentiu estúpido.

 

Viu o que tinha perdido.

 

Menino estúpido, estúpido, pensou, e ao mesmo tempo estava pensando: Você não precisava ter se preocupado, pai. Você era forte pra caralho.

 

Lágrimas vieram do nada aos seus olhos e ele ouviu Deborah novamente.

 

Olha o que você perdeu, pensou. Ela morreu!, pensou de repente. Ela morreu e ainda assim ele fez tudo por mim. Como poderia? Eu a matei, eu matei sua mulher! Toda vez que ele olhou para mim, não estava olhando para o estupro? Não estava olhando para a coisa que matou sua esposa?

 

Menino estúpido, pensou. Tio Rato? Quando teria imaginado isso?, pensou.

 

Mas, mais do que qualquer coisa, não conseguia parar de pensar no homem que o tinha criado, tentado entendê-lo, dado a ele livros que o ajudassem a compreender o mundo. Porque quando ele olhava para Saul, de alguma forma, não via assassinato ou sua mulher perdida ou a brutalidade no beco (e Saul sabia exatamente como aquele atacante tinha surgido, como que do nada, saído das paredes, como ele mesmo se movia). De alguma forma, quando ele olhava para Saul, olhava para seu filho e, mesmo quando o ar entre eles tinha se envenenado e Saul tinha exercido toda a sua calculada indiferença adolescente e fingido não se importar, aquele homem gordo ainda tinha olhado para ele e visto seu filho e tentado entender o que estava errado entre eles. Não tinha nada a ver com a maldita vulgaridade dos genes. Construíra a paternidade com suas ações.

 

Saul não soluçou, mas seu rosto estava molhado. Não era estranho e triste, pensou um tanto histérico, que só ao saber que seu pai não era seu pai ele percebeu quão completamente seu pai ele tinha sido?

 

Está aí uma dialética para você, pai, pensou e sorriu de modo fugaz.

 

Foi só depois de perdê-lo que o recuperou, finalmente, após tantos anos de aridez.

 

Lembrou-se de ser carregado naqueles ombros largos para ver o túmulo de sua mãe. Ele a tinha matado, ele havia matado a esposa de seu pai, e seu pai o tinha pousado suavemente no chão e lhe dado flores para colocar em seu túmulo. Chorou por seu pai, a quem fora dado o assassino de sua esposa, o filho de seu estuprador; que decidira amá-lo afetuosamente, preparara-se para fazê-lo e fora bem-sucedido.

 

E em algum lugar continuava dizendo a si mesmo o quanto era um menino estúpido. Um novo pensamento lhe ocorreu. Se Rei Rato mentira sobre isso, refletiu, e o pensamento partiu, ligando uma sequência de pontos...

 

Se ele mentiu sobre isso, o pensamento disse, sobre o que mais ele mentiu?

 

Quem matou meu pai?

 

Lembrou-se de algo que Rei Rato dissera, muito tempo atrás, no final da primeira vida de Saul. “Eu sou o intruso”, ele dissera. “Eu matei o usurpador.”

 

Na sucessão de palavras o sentido tinha sido afogado, virado mais um vangloriar surreal, uma exultação, fanfarronice exagerada e sem sentido. Mas Saul podia ver de forma diferente agora. Uma rocha fria de fúria caiu em suas entranhas e ele percebeu o quanto odiava Rei Rato.

 

Seu pai, Rei Rato.

 

A porta do apartamento se abriu.

 

Saul e Deborah estavam encolhidos juntos no chão, ela murmurando palavras nervosas de apoio. Olharam para cima no mesmo instante, ao suave rangido das dobradiças.

 

Saul ficou de pé em silêncio. Ainda segurava o livro. Deborah balançou-se, tentou se levantar. Um rosto olhou pela abertura da porta.

 

Deborah agarrou-se a Saul e deu um pequeno gemido de medo. Saul estava preparado para explodir, mas enquanto seus olhos se acostumavam com a escuridão sentiu sua tensão aumentar e ficou ali de pé, confuso.

 

O rosto na porta estava radiante de satisfação, os longos cabelos loiros caindo em cachos desarrumados ao redor de uma boca esticada por uma alegria infantil. O homem deu um passo para dentro da sala. Parecia um bufão.

 

– Pensei que eu tivesse ouvido alguém, pensei, sim! – exclamou. Saul endireitou-se um pouco, a testa franzida. – Tenho esperado aqui noite após noite, dizendo não, vai pra casa, isso é ridículo, ele não vai vir logo aqui, entre todos os lugares, e agora aí está você! – Olhou para o livro na mão de Saul. – E encontrou a minha leitura predileta, também. Queria saber tudo sobre você. Achei que isso poderia me contar um pouco mais.

 

Olhou um pouco mais de perto para os olhos vermelhos de Saul e seu rosto se alargou.

 

– Você não sabia, não é? – Seu sorriso de prazer estava maior do que nunca. – Bem. Isso explica algumas coisas. Achei que você tinha se juntado rápido demais ao assassino de seu, vamos dizer assim, pai. – Saul piscou os olhos. É claro, ele pensou, confuso com a dor, é claro. O homem o observava com atenção. – Pensei que o sangue estivesse falando mais alto, mas, claro, por que diabos ele teria contado a você? – Balançou para trás sobre os calcanhares, enfiou as mãos nos bolsos.

 

– Há um bom tempo que quero falar com você. Certos boatos têm circulado sobre você, sabe! Há anos que é famoso! Tantos lugares, tantas pistas, tantas possibilidades... Tenho estado por toda parte, investigando o crime impossível... Sabe, toda vez que ouvia falar de algum arrombamento estranho, algum assassinato, algo que não se encaixasse, que pessoas não poderiam ter feito, eu corria pra investigar. A polícia pode ser muito útil com certas informações. – Sorriu. – Tantos becos sem saída! E então vim até aqui... – O homem sorriu novamente. – Sabia que era só sentir o cheiro dele que eu encontraria você, Saul.

 

– Quem é você? – Saul finalmente respirou.

 

O homem sorriu agradavelmente para ele, mas não respondeu. Pareceu ter visto Deborah pela primeira vez.

 

– Olá! Meu Deus, que noite você deve estar tendo! – Aproximou-se lentamente enquanto gargalhava. Deborah agarrou-se ainda mais a Saul. Olhou para o homem com os olhos escondidos. – De qualquer forma – ele continuou, estendendo a mão na sua direção –, temo que eu não esteja interessado em você.

 

Agarrou seu pulso e puxou-a para longe de Saul. Só tarde demais Saul compreendeu que aquele homem cortês a tinha tomado dele; sua cabeça se moveu lentamente para baixo procurando por ela, ao passo que sua mente gritava para que olhasse para cima, que se mexesse.

 

Arrastou a cabeça através do ar espesso.

 

Viu o homem aproximar a mão esquerda do cabelo de Deborah; Saul esticou o braço em horror, determinado a intervir, mas o homem – que ainda mantinha um largo sorriso – olhou para ela brevemente e enviou o outro punho com força para o lado de baixo do seu queixo assim que ela abriu a boca para gritar; o impacto dividiu a pele e os ossos de sua mandíbula e fez sua boca fechar tão rápido que o sangue jorrou por entre os lábios, com mordidas fundas na língua. O grito morreu antes de começar, transformado em um suspiro molhado. Enquanto os pés lentos de Saul o arrastavam até ela, o homem girou na ponta dos pés e ergueu o corpo de Deborah pela nuca, fez uma pausa teatral, girou rápido e enterrou seu rosto na moldura da porta.

 

Ele a soltou e voltou-se para Saul.

 

Saul gritou em angústia e descrença, olhando além do homem para a carcaça de Deborah, que escorregou da moldura e caiu no chão da sala. Tremia enquanto as terminações nervosas morriam. Seu rosto achatado e distorcido olhou cegamente para Saul enquanto dançava uma ginástica póstuma, os calcanhares batendo no chão como trovões, sangue e ar borbulhando para fora da boca explodida.

 

Saul gritou e atirou-se contra o homem com toda a sua força de rato.

 

– Vou comer seu coração de merda! – gritou.

 

O homem alto evitou com facilidade a rajada de golpes, ainda sorrindo largamente. Puxou o punho para trás com vontade e enviou-o para o rosto de Saul.

 

Saul viu o golpe chegando e se afastou, mas não foi rápido o bastante e foi atingido na lateral do crânio, cambaleando. Girou, bateu no chão com força. Um som estridente machucou sua cabeça. Virou-se para olhar o homem, que estava parado com os lábios apertados, assobiando de forma alegre e repetitiva. Olhou para Saul e seus olhos brilharam perigosamente. Sem pausa, a música que estava assobiando mudou, tornou-se menos organizada, mais insidiosa. Saul o ignorou, tentou rastejar para longe. O assobio parou.

 

– Então, é verdade – assobiou o Flautista, e sua voz cortês se transformara em algo instável. Parecia que estava prestes a ficar doente, enraivecido. – Droga, nem homem nem rato, não posso mandar em você. Como se atreve como se atreve... – O olhar era selvagem e doentio.

 

– Não posso acreditar que tenha sido tão estúpido a ponto de vir até aqui, menino-rato – disse o Flautista, aproximando-se. Sacudiu-se com força e sua voz se normalizou. – Agora vou matar você e pendurar seu corpo nos esgotos para que seu pai o encontre; e então vou tocar para ele e fazê-lo dançar e dançar, e, quando estiver bem cansado, vou matá-lo.

 

Saul ficou de pé, tropeçou para longe, mandou um pesado chute no saco do Flautista. O Flautista agarrou seu pé e o puxou muito rápido, fazendo-o cair de costas e ficar sem ar. Todo o tempo, continuou falando, amável e animado.

 

– Sou o Senhor da Dança, sou a Voz, e quando digo pule, as pessoas pulam. Exceto você. E aqui está você, prestes a morrer. Seu aborto de merda. Se não dança a minha canção, não pertence a este mundo. Vinte e cinco anos sendo preparada e essa é a arma secreta do rato, a superarma, o mestiço. – Balançou a cabeça e torceu o nariz com simpatia. Ajoelhou-se ao lado de Saul, que lutava para respirar, tentando erguer a cabeça.

 

– Agora vou matar você.

 

Um grito estridente fez os dois olharem para cima. Algo estourou a folha de plástico que encobria a janela com um improvável som de estalo, disparou pela janela arrebentada do apartamento, zarpando pelo ar até o Flautista, batendo em seu corpo com um impacto que o levou voando para longe do corpo inerte de Saul. Saul lutou para pôr-se de pé e viu um homem impecavelmente vestido tentando estrangular o Flautista, que se debateu e mandou o adversário voando de volta pela sala.

 

Era Loplop, com terror nos olhos, gritando para que Saul viesse até ele, agarrando-o e correndo para a janela, até que um som curto e claro o fez estacar. Saul virou-se e viu os lábios apertados do Flautista, que se levantara assobiando. Uma melodia líquida, repetitiva e simples. Loplop estava rijo. Saul viu um olhar de espanto cruzar seu rosto quando se virou para encarar o Flautista, de olhos vivos e em êxtase.

 

Saul se afastou, sentiu a parede às suas costas. Podia ver o corpo de Deborah atrás de Loplop, ver a mancha de sangue escorrendo fartamente pelo chão. À sua esquerda estava o Flautista, que agora avançava, ainda assobiando. Diante dele estava Loplop, vacilando em sua direção, os olhos sem enxergar, os braços estendidos, os pés se movendo no ritmo da canção de pássaro do Flautista.

 

Saul tentou passar por Loplop, não pôde, sentiu sua garganta debaixo daqueles dedos. O Pássaro Superior caiu sobre ele e começou a deixá-lo sem ar, enquanto mantinha no alto o próprio rosto em transe, para escutar a música. Não era pesado, mas seu corpo estava duro como metal. Saul bateu nele, torceu, puxou seus dedos. Loplop estava inatingível, inconsciente. Quando a escuridão começou a surgir nas bordas de sua visão, Saul viu o Flautista no canto da sala, esfregando a garganta, e a raiva trouxe o sangue de volta para o seu rosto, através das garras cruéis de Loplop; abriu os braços e colocou as mãos exatamente como seu pai tinha-lhe advertido que não fizesse, na piscina, mesmo que esteja apenas brincando, Saul, e bateu com as mãos para baixo, batendo palmas com toda a força em torno das orelhas de Loplop.

 

Loplop gritou e curvou-se, arqueando as costas, as mãos tremendo. A força de rato de Saul tinha bombeado o ar bem fundo pelas cavidades auriculares, quebrando as delicadas membranas e enviando bolhas queimando como ácido pela carne rompida. Loplop agitou-se em agonia.

 

Saul rolou para sair debaixo dele. O Flautista o tinha na mira novamente e brandia a flauta como um tacape. Saul mal conseguiu rolar um pouco para fora do caminho e sentiu o objeto esmagar seu ombro em vez do rosto. Esquivou-se de novo e desta vez foi atingido no peito; a dor tirou-lhe o fôlego.

 

Atrás dele, Loplop tropeçava pelas paredes, tateando às cegas, como se seus outros sentidos tivessem-no deixado junto com a audição.

 

O Flautista agarrou a flauta com as duas mãos, montou sobre Saul e prendeu os braços deste no chão com os joelhos, levantando a flauta como uma adaga cerimonial, pronto para cravar aquele objeto pontiagudo no peito de Saul. Saul gritou de horror.

 

Loplop ainda gritava e sua voz misturou-se com a de Saul. A dissonância fez tremer o ar e alguma coisa nas vibrações fez Loplop virar e chutar a flauta das mãos apertadas do Flautista, que gritou de raiva e esticou o braço tentando alcançar a flauta. Loplop puxou Saul de debaixo das pernas do homem e arrastou-o para a janela. Loplop continuou gritando e o som não parou nem quando ele saltou para o parapeito da janela destruída. Ainda estava gritando quando agarrou Saul com a mão direita e saltou para a escuridão.

 

Saul não conseguia escutar seu próprio grito desesperado em meio aos lamentos incessantes de Loplop. Fechou os olhos e sentiu o ar em torvelinho à sua volta; esperou pelo chão, que não veio. Abriu um pouco os olhos e viu uma confusão de luzes, movendo-se muito rápidas. Ainda estava caindo... o único som era o choramingar de Loplop.

 

Abriu bem os olhos e viu que o aperto em volta do seu peito não era horror, mas as pernas de Loplop, e que o terreno não se atirava em sua direção, mas paralelo a ele, e que não estava caindo, mas voando.

 

Sua cabeça estava voltada para trás, de forma que não conseguia ver Loplop enquanto voavam. As pernas do Pássaro Superior, elegante em sua alfaiataria de Savile Row, o envolviam logo abaixo das axilas. Terragon Mansions se afastava atrás deles. Saul viu uma figura magra de pé nas sombras do plástico perfurado do apartamento de seu pai e de alguma forma ouviu um fraco assovio em meio aos gritos de Loplop.

 

Na suja escuridão de Willesden as árvores eram obscuras, um emaranhado de silhuetas fractais do qual agora partiam pombos e pardais e estorninhos, escorraçados de seu sono pela compulsão do feitiço do Flautista. Rodopiaram como lixo por um instante e então seus movimentos tornaram-se precisos e repentinos como uma simulação matemática.

 

Convergiam para o Flautista, implodindo de todos os setores do céu para os seus ombros curvados, e então subiam em massa de novo, de repente desajeitados, tentando voar em harmonia, arrastando o corpo do Flautista pelo ar com eles.

 

– O filho da puta está seguindo a gente! – Saul gritou de susto. Enquanto falava, percebeu que Loplop não podia ouvi-lo, que tudo o que impedia Loplop de juntar-se aos seus súditos no transporte do Flautista era o fato de que Saul o tinha deixado surdo.

 

Saul balançava-se de forma alarmante no abraço apertado de Loplop. As ruas zarpavam lá embaixo. Oscilavam, incertos, entre o céu e a terra congelante. Os lamentos de Loplop agora se transformavam em gemidos; cantava para confortar-se. Atrás deles, um coágulo retorcido de aves arrastava o Flautista pelo ar em sua caçada. Quando algumas das aves caíam, exaustas ou esmagadas, outras corriam para o seu lugar, afundavam as garras nas roupas e na carne do Flautista, batendo umas contra as outras, sustentando-o em uma corrida de borboleta bêbada.

 

O Flautista estava se aproximando.

 

A Lua brilhou brevemente sobre a água e os trilhos de trem muito abaixo. Loplop começou a espiralar para fora do céu.

 

Saul sacudiu as pernas que o seguravam, gritou para que continuasse, mas Loplop estava perto de desmaiar e os gritos em sua cabeça eram tudo o que podia ouvir. Saul vislumbrou uma vasta estrada e uma planície vermelha ondulada abaixo deles, mas elas saíram de seu campo de visão quando o corpo de Loplop girou. O Flautista estava chegando perto, despindo sua comitiva como um homem em frangalhos despiria suas próprias roupas.

 

Caíram. Saul pôde ver uma rede de trilhos de trem se espraiando como um leque e depois o campo vermelho de novo, os tetos colados de uma centena de ônibus vermelhos. Estavam em espiral em direção à estação de Westbourne Park, onde as rotas de ônibus e ferrovias convergiam sobre uma colina, sob a penumbra bocejante da Westway.

 

Forram varridos para dentro daquela sombra e caíram no chão. Saul foi lançado das pernas de Loplop. Rolou de novo e de novo e afinal parou, coberto de poeira e sujeira. Loplop jazia a alguns metros de distância, dobrado em uma posição estranha, os braços em volta da cabeça, o traseiro para o alto, joelhos no chão.

 

Estavam ao lado da escura entrada do terminal de ônibus. Um pouco adiante ficava o pátio, cheio dos ônibus que Saul tinha visto do alto. No edifício cavernoso diante dele estavam centenas de outros. Estavam estacionados bem juntos, um intrincado quebra-cabeças criado e resolvido dia após dia; só saíam da garagem seguindo uma ordem rígida. Cada um estava cercado por seus iguais, a não mais de dois metros de distância para qualquer lado, um labirinto daqueles veículos de aparência ridícula.

 

O terno de Loplop estava enlameado e arruinado.

 

Movendo-se instável pelo céu vinha o Flautista. Saul tropeçou para dentro da câmara abobadada, arrastando Loplop atrás de si. Abaixou-se para se esconder atrás do ônibus mais próximo, que constituía uma das paredes externas do labirinto vermelho. Sacudiu a perna de Loplop e puxou-o para mais perto. Loplop deixou-se cair e ficou imóvel. Respirava com dificuldade. Saul olhou em volta freneticamente. Podia ouvir a tempestade de asas que anunciava a chegada do Flautista e, acima dela, o assobio fino do próprio Senhor da Dança. Houve uma golfada de ar e o Flautista foi arrastado para dentro da sala fria, vomitando penas em seu rastro.

 

O assobio parou. Imediatamente, os pássaros se dispersaram em pânico e Saul ouviu um baque quando o Flautista caiu no teto de um veículo próximo. Por um minuto, não houve nenhum som além dos pássaros fugindo; então, passos se aproximaram pelos tetos dos ônibus.

 

Saul soltou-se das pernas de Loplop e achatou-se contra o ônibus. Arrastou-se de lado, lutando por quietude. Sentiu instintos primitivos despertarem. Estava em silêncio mortal.

 

O ônibus era um velho Routemaster, com uma plataforma aberta na traseira. Saul fez seu caminho em silêncio até essa abertura, enquanto os passos acima se aproximavam. Moviam-se lentamente para cima e para baixo sobre os tetos, pontuados por lacunas quando o Flautista cruzava a ravina entre dois veículos.

 

Saul subiu lentamente as escadas, sem fazer barulho, enquanto os passos se aproximavam. Houve então um novo salto e a vibração da aterrissagem o fez estremecer; o Flautista pulou sobre o ônibus de Saul e andou pelo teto.

 

O ônibus estava às escuras. Saul movia-se continuamente para trás, as mãos esticadas para tocar as fileiras de assentos de cada lado. Agarrou os postes de aço como se o ônibus estivesse em movimento, equilibrando-se. Sua boca pendia aberta de forma estúpida. Olhou para o teto, os olhos seguindo os passos acima. Passaram em uma longa diagonal rumo ao ponto onde ele e Loplop tinham parado. Então, chegaram à beirada e o coração de Saul deu uma guinada para a sua boca quando o corpo do Flautista voou por uma janela à sua esquerda. Congelou-se, mas nada aconteceu. O Flautista não o tinha visto. Saul agachou-se em silêncio, rastejou para a frente, foi até debaixo da moldura da janela, levantou a cabeça apenas o bastante para que pudesse ver, as mãos emoldurando seu rosto, os olhos grandes, como um Chad grafitado em um muro.

 

Abaixo dele, o Flautista estava inclinado sobre Loplop. Tocava-o com uma mão, com a postura de um transeunte preocupado que encontra alguém sentado na rua chorando. As roupas do Flautista estavam retalhadas pelas pequenas garras dos pássaros e tintas de vermelho.

 

Saul esperou. Mas o Flautista não atacou Loplop, apenas deixou-o em sua miséria e silêncio. Parou e então se voltou lentamente. Saul se abaixou e ficou completamente imóvel. Sua mente de repente começou a reviver o grotesco pas-de-deux que tinha visto o Flautista executar com Deborah e ele se sentiu fraco e enraivecido, com nojo de si mesmo – e com medo. Respirou de forma rápida e urgente, com o rosto escondido nos joelhos, abaixado no segundo andar do ônibus, no escuro.

 

E então ouviu um assobio, que vinha da entrada de passageiros no andar de baixo. Sentiu o enorme jorro de energia em seus braços e pernas, provocado pelo medo.

 

A voz do Flautista o chamava, amigável e descontraída como sempre.

 

– Não se esqueça de que posso sentir o seu cheiro, ratinho. – Pés começaram a subir as escadas e Saul, com movimentos rápidos, retrocedeu para a parte dianteira do ônibus. – O quê, você acha que poderia viver, dormir e comer em um esgoto e eu não sentiria o seu cheiro? Francamente, Saul...

 

Uma figura escura apareceu no topo das escadas.

 

Saul ficou de pé.

 

– Eu sou o Senhor da Dança, Saul. Ainda não entendeu, não é? Realmente acha que vai escapar de mim? Você está morto, Saul, só porque não vai dançar a minha música.

 

Havia fúria em sua voz quando disse isso. O Flautista deu um passo à frente e a luz fraca da garagem o atingiu. Era o bastante para os olhos de rato de Saul.

 

O rosto do Flautista era de um branco medonho, cruelmente despojado de cor. O cabelo em cuidadoso rabo de cavalo tinha sido repuxado por mil pequenas garras em frenesi e caía ao redor do rosto e debaixo do queixo e em volta do pescoço como se fosse estrangulá-lo. As roupas tinham sido puxadas e pinçadas e rasgadas e esticadas em todas as direções, uma coletividade de pequenas lesões e por toda parte sangue o tinha respingado, pintando seu rosto leitoso. Sua expressão contradizia a pele arruinada. Encarou Saul com o mesmo olhar relaxado e amável que tinha demonstrado de início, a mesma alegria banal com a qual havia recebido Saul e despachado Deborah; a calma que só havia desaparecido por um instante, quando não conseguira fazer Saul dançar.

 

– Saul – disse, em saudação, e estendeu as mãos.

 

Aproximou-se.

 

– Não sou sádico, Saul – disse, sorrindo. Estendeu a mão enquanto caminhava e, quando tocou em uma das hastes de aço que se erguiam entre os assentos e o teto, agarrou-a, depois segurando-a firme com a outra mão. Começou a torcê-la, seu corpo se distendendo e tremendo violentamente com o esforço; o aço lentamente se dobrou e tentou se esticar, estalou alto. Ele não tirou os olhos de Saul ou alterou sua expressão, nem quando se retesou. Deu um puxão na extremidade da haste e ela se quebrou; surgiu na sua mão um bastão retorcido de metal brilhante.

 

– Não tenho vontade de te machucar – continuou, retomando o ritmo. – Mas você vai morrer, porque não vai dançar quando eu mandar. Então, vai morrer agora. – O delgado bastão girou para baixo brilhando como um arco elétrico e Saul assobiou quando o viu passar, estremeceu sob aquela coisa brilhante com a graça nervosa de um roedor. O bastão lançou para cima grandes pedaços de espuma depois de rasgar uma poltrona com sua ponta áspera.

 

A força do Flautista era espantosa e incontível, ofuscando os pequenos músculos de rato que alimentos roubados tinham despertado em Saul, seu novo poder do qual estava tão orgulhoso. Rolou para longe do bastão e jogou-se para trás, para a parte dianteira do ônibus. Pensou em Deborah e a raiva o sufocou. Seu lado rato e sua humanidade oscilaram violentamente, fustigados pela grande tempestade que era sua ira. Queria arrancar a mordidas a garganta do Flautista e depois bater nele, esmagar sua cabeça, surrá-lo metodicamente com seus punhos e depois rasgar seu estômago, estripá-lo com suas garras afiadas. E não poderia fazer nenhuma dessas coisas, porque não era forte o bastante e o Flautista o mataria.

 

O Flautista endireitou-se um pouco, parou e sorriu para Saul.

 

– Basta – ele disse e correu para a frente, a arma empunhada como uma lança. Saul gritou de medo e raiva e frustração enquanto seus reflexos bestiais o carregaram para o lado no momento do ataque brutal.

 

Não havia como passar pelo Flautista, isso estava claro, então, saltou e empurrou as pernas para baixo, fazendo força sobre uma poltrona, esticou-as de novo como pistões, pulando com força para longe da poltrona, para o lado, acertando o vidro lateral e esticando o corpo para fora como um mergulhador, sentindo a janela cair à sua volta em um milhão de pedaços, levando nacos de sua pele com ela na queda.

 

Voou pelo ar entre o ônibus e seu vizinho, outro da mesma rota, que o havia precedido labirinto adentro. O corpo de Saul passou mais de quatro metros acima do solo e, em seguida, outra parede de vidro se desintegrou sob seus ferozes punhos de rato e seus braços e ombros desapareceram no segundo ônibus antes mesmo de seus pés terem deixado o primeiro; e o colapso explosivo da primeira janela, ainda alto em seus ouvidos, emendou-se com o segundo, e ele atravessou, rolando para fora da poltrona, cacos de vidro chovendo sobre ele como confete.

 

Ainda podia ouvir um som de salpicos lá fora, enquanto as pequenas pepitas de vidro atingiam o chão. Levantou-se, tremendo, ignorou sua pele rasgada e os hematomas profundos. Correu para as escadas na traseira do ônibus. Atrás de si, ouviu um som estranho, um rugido de irritação, exasperação elevada ao ponto da fúria. Houve um som mais alto de estilhaços e, no espelho curvo no topo das escadas, viu outra janela se estilhaçar, viu o Flautista estourar o vidro com os pés e pousar sentado em uma poltrona, a cabeça esticada para ver Saul. Virou-se imediatamente, sem mais conversa, e correu atrás de Saul.

 

Saul desabalou escada abaixo e saiu pela traseira do ônibus, correndo pelos becos escuros entre as laterais dos grandes veículos vermelhos, perdendo-se no labirinto. Parou, agachado, e prendeu a respiração.

 

Ao longe, escutou pés correndo e uma voz gritando:

 

– Que merda está acontecendo?

 

Ah meu Deus, pensou Saul. A porra do guarda. O coração de Saul estava batendo como uma linha de baixo de jungle.

 

Podia ouvir os passos de chumbo do guarda em algum lugar por perto e podia ouvir claramente o chiado e a respiração ofegante do homem. Saul ficou imóvel, tentou escutar além dos sons do guarda, ouvir qualquer movimento que o Flautista fizesse.

 

Não havia nada.

 

Um homem de meia-idade e acima do peso, num uniforme cinza, surgiu de repente no vão entre dois ônibus onde Saul estava. Os dois ficaram parados por um instante, olhando estupidamente um para o outro. Mexeram-se simultaneamente. O guarda se aproximou com um cassetete levantado, abriu a boca para gritar, mas Saul estava sobre ele, debaixo do lento cassetete, tomando-o da mão de seu oponente. Prendeu o braço do homem atrás de seu corpo, manteve sua boca fechada e sussurrou em seu ouvido.

 

– Há um homem muito mau aqui dentro. Ele vai te matar. Vá embora agora mesmo.

 

Os olhos do guarda estavam piscando violentamente.

 

– Você entendeu? – assobiou Saul.

 

O guarda meneou a cabeça com veemência. Olhava em volta sem parar, procurando seu cassetete, profundamente assustado com a facilidade com que tinha sido desarmado.

 

Saul soltou-o e o homem fugiu. Mas, assim que chegou ao final do pequeno beco de ônibus, o som da flauta perfurou o ar e o homem congelou. Na mesma hora, Saul correu até ele, esbofeteou sua cara com força duas vezes, empurrou-o, mas os olhos do homem estavam agora em êxtase, com um olhar fixo, enigmático e muito feliz por sobre os ombros de Saul.

 

Moveu-se de repente, empurrando Saul para o lado com uma força que não possuía antes, e saltitou como uma criança animada para o fundo do labirinto vermelho.

 

– Ah, porra, não! – sussurrou Saul; alcançou-o, puxou-o de volta para trás, mas o homem continuou andando, simplesmente empurrando Saul para o lado sem sequer olhar para ele. A flauta estava mais próxima agora. Saul agarrou-o em um abraço de urso, segurou-o, tentou bloquear seus ouvidos, mas o homem, impossivelmente forte, deu-lhe uma cotovelada na virilha e socou-o habilmente no plexo solar, tirando o fôlego de Saul e fazendo com que se dobrasse em um ato reflexo. Pôde apenas olhar desesperado, lutando para respirar, enquanto o homem desaparecia.

 

Saul se levantou e saiu mancando atrás dele.

 

No coração do labirinto de ônibus havia um espaço vazio. Era uma estranha salinha de metal vermelho e vidro, um claustro monástico de menos de dois metros quadrados. Saul achou um caminho rumo à área central, virou uma esquina e lá estava, nos limites daquela praça.

 

Diante dele estava o Flautista, flauta aos lábios, encarando Saul sobre o ombro do guarda, que saltitava ridiculamente à estridência da flauta.

 

Saul agarrou os ombros do homem por trás e o puxou para longe do Flautista. Mas o guarda se virou e Saul viu que tinha um caco de vidro cravado profundamente em um dos olhos e sangue espesso cobrindo todo o rosto. Saul gritou e o Flautista parou de tocar. O guarda assumiu uma expressão confusa; sacudiu a cabeça, levantou a mão tateante em direção ao seu rosto. Antes que pudesse tocar seu olho, percebeu um clarão prateado às suas costas e caiu como uma pedra. Uma piscina escura e espessa como alcatrão começou a se espalhar muito rapidamente a partir de sua cabeça quebrada.

 

Saul estava imóvel.

 

O Flautista estava à sua frente, limpando a flauta.

 

– Tive que deixar você saber, Saul, o que eu posso fazer – falou em voz baixa e sem olhar para cima, como um professor que está muito decepcionado, mas está tentando não gritar. – Entende, eu percebo que você realmente não acredita no que eu posso fazer. Percebo que você acha que, como não escuta minhas ordens, ninguém mais vai. Queria mostrar a você o quanto eles escutam, entende? Queria que você soubesse. Antes de morrer.

 

Saul saltou para cima.

 

Até mesmo o Flautista olhou com espanto, momentaneamente estupidificado, quando Saul agarrou o grande espelho retrovisor de um dos ônibus próximos, girou ao redor de seu eixo e meteu os pés pela janela dianteira superior. Logo o Flautista estava atrás dele, a flauta enfiada com violência no cinto. Sem tentativas de se esconder desta vez; Saul apenas se atirou através das janelas de novo, saltando o vão para o próximo ônibus e explodindo no segundo andar. Levantou-se e saltou novamente, recusando-se a ouvir seus membros e pele gritando. Repetidas vezes, sempre seguido, sempre ouvindo o Flautista atrás dele, os dois passando através de camadas e mais camadas de vidro, salpicando o chão lá embaixo, uma passagem fantasticamente rápida e violenta pelo ar, Saul desesperado para alcançar os limites do labirinto, ansioso para chegar a algum campo aberto.

 

E, de repente, lá estava ele. Assim que se encolheu para saltar através de outra janela, percebeu que o que via através dela não era apenas mais um ônibus a meio metro de distância, mas sim uma janela na parede da própria garagem; através dela, via uma casa, muito longe. Libertou-se do último ônibus com um salto e alcançou o parapeito da janela, a meio caminho na parede. Entre ele e a casa, uma trilha se recortava pelo solo de Londres, um ermo tomado por linhas férreas. E entre Saul e essas linhas férreas não havia nada além de uma cerca alta de lâminas de aço e uma longa queda.

 

Podia ouvir o Flautista ainda em sua perseguição, pesadas batidas e vibrações balançando a maçaroca de fileiras de ônibus. Quebrou com um chute a última janela. Preparou-se, pulou e agarrou-se na tosca barreira de metal logo abaixo. Aterrissou sobre ela, seu peso fazendo-a tremer violentamente. Segurou-se com força, recuperou o equilíbrio. Inclinou-se um pouco para a frente, olhou para trás, para a janela arrancada. O Flautista apareceu, olhou para fora. Tinha parado de sorrir. Saul começou a descer, agarrado ao próprio metal, uma descida que era uma mistura de agilidade de rato, escorregões controlados e queda.

 

Olhou para cima rapidamente e viu o Flautista tentando segui-lo. Mas aquilo era demais para ele: não conseguia se segurar naquela cerca, não podia rastejar como um rato faria.

 

– Foda-se! – gritou e levou sua flauta aos lábios. Enquanto tocava, todas as aves começaram a retornar. Concentraram-se uma vez mais em seus ombros.

 

As linhas ferroviárias se curvavam para fora da vista nas duas direções. Acima dele, Saul podia ver edifícios que pareciam se inclinar sobre o vale, pareciam pairar sobre ele. Correu, seguindo os trilhos para leste. Olhou de relance para trás e viu os pássaros se dirigindo para o vulto escuro parado na janela. Saul cambaleava para a frente e quase soluçou de alegria quando ouviu um forte estalo metálico, um chacoalhar contido, e soube que um trem se aproximava. Olhou para trás e viu as luzes.

 

Moveu-se um pouco para o lado, abrindo caminho, correndo ao lado dos trilhos. Rápido!, desejou, enquanto as duas luzes que só conseguia imaginar que eram olhos se aproximavam lentamente. Acima delas, viu a figura de espantalho do Flautista chegar mais perto.

 

Mas agora o trem estava próximo e Saul sorria enquanto corria, as feridas e a pele rasgada se esfregando. Quando o Flautista já estava perto o bastante para que Saul pudesse ver seu rosto, o trem do metrô rugiu ao passar por Saul, que acelerou o ritmo assim que o trem ficou mais lento, durante uma curva, e atirou-se na parte de trás do último vagão, embolando-se com ele como um lutador de judô em uma disputa, enfiando os dedos em fendas e sob saliências do metal.

 

Puxou a si mesmo até o topo e abriu os braços, agarrando-se com firmeza às bordas do telhado assim que o trem começou a aumentar sua velocidade. Saul sentiu o estômago rodar até que olhou para trás, esticou o pescoço e viu, acima, o rosto enraivecido do Flautista, subindo e descendo no ar, contorcido e mesmo assim ainda tocando, levitado por um dossel de pássaros moribundos na fenda que cortava a cidade, aquele túnel sem teto – mas não havia nada que o Flautista pudesse fazer para pegar Saul agora.

 

E enquanto o trem se afastava ainda mais rápido, Saul viu o Flautista se transformar em um boneco de retalhos voador, depois em uma mancha – e então não conseguia mais vê-lo. Em vez disso, olhou para os edifícios à sua volta.

 

Viu luz e movimento dentro deles e percebeu que as pessoas estavam vivas naquela noite, fazendo chá; e escrevendo relatórios e fazendo sexo e lendo livros e assistindo à televisão e lutando e expirando em silêncio na cama, e que a cidade não se importava que ele quase tivesse morrido, que tivesse descoberto o segredo da sua ascendência, que uma força assassina armada com uma flauta estivesse se preparando para matar o Rei dos Ratos.

 

Os edifícios acima eram belos e impassíveis. Saul percebeu que estava muito cansado e sangrando e em estado de choque e que tinha visto duas pessoas morrerem naquela noite, mortas por um poder que não se importava se vivessem ou morressem. E sentiu uma perturbação no ar atrás de si e abaixou a cabeça e deixou sair o ar em um grande soluço; o túnel que se aproximava varreu o lixo, sugando-o para a traseira do trem, e um súbito vento morno o atingiu como uma luva de boxe e toda a luz difusa da cidade sumiu e Saul desapareceu no solo.

 

                   ESPÍRITOS

 

Fabian balançou a cabeça, amassou seus dreadlocks em pequenos cachos ameaçadores. Sua cabeça doía terrivelmente. Estava deitado na cama e fazia caretas para o espelho que mal via sobre a mesa.

 

A pouca distância estava sua “obra em andamento”, como seu tutor insistia em chamar. Os dois terços mais à esquerda da enorme tela eram uma berrante panóplia de tintas spray metálica e acrílica brilhante; o terço à direita era coberto por letras fantasmais, leves linhas a lápis e carvão. Tinha perdido a motivação para o projeto, embora ainda sentisse um certo orgulho quando olhava para ele de novo.

 

Era uma iluminura para a década de 1990, as letras uma síntese cuidadosa de caligrafia medieval e fontes de grafite. A tela inteira, de três por dois metros, consistia de apenas três linhas: “São muitas as vezes em que quero me perder na fé / e jungle é a única coisa à qual posso recorrer, / porque no drum and bass conheço o meu lugar...”

 

Tinha pensado em uma frase que começasse com “S”, porque achava esta uma letra muito agradável para transformar em iluminura.

 

Era bem grande, contida em uma caixa e rodeada por folhas de maconha e alto-falantes e servos modernos, os rudebwoys e gyals,1 uma intrincada paródia, os zumbis sem expressão da arte monástica executados por Keith Haring2 ou um dos artistas do metrô de Nova York. O restante da escrita era quase todo escuro, não puro negro, mas atravessado por tiras de néon e encapsulado em tegumentos berrantes. No canto inferior a escrita escondia a polícia, como demônios: The Man.3 Mas nos dias de hoje os slogans tinham de ser irônicos. Fabian conhecia as regras e não se preocupava em desobedecê-las, então os demônios que subiam do abismo eram ridículos, os piores pesadelos de Santo Antônio e Sweet Sweetback4 combinados.

 

E no canto superior direito, apesar de ainda não desenhados, ficariam os dançarinos, os adoradores que já haviam encontrado seu caminho para fora do lamaçal do desespero urbano, um monótono labirinto de tons de cinza no centro da peça, até o paraíso drum and bass. A dança era feroz, mas teve o cuidado de deixar os rostos parecidos com os dos antigos quadros que estava imitando: plácidos, estúpidos, sem expressão. Porque o individualismo, lembrou de ter explicado zelosamente ao seu professor, não tinha lugar nos clubes de jungle, assim como acontecia nas igrejas do século XIII. Era por isso que amava aquilo e também era isso que o frustrava e às vezes o assustava. Também era esse o motivo do texto ambíguo.

 

Sempre insistia com Natasha que ela deveria fazer uma música realmente política, e ela se negava, alegando não estar interessada, o que o irritava. Então, até que alguém o fizesse, ele continuaria com a sua repreensão carinhosa. Daí a Idade Média, como havia explicado. As necessárias demonstrações de opulência e estilo nos clubes eram tão grandiosas e insípidas como qualquer exemplo de etiqueta da corte, e a reverência com que os DJs eram tratados era quase feudal.

 

De início seu tutor tinha hesitado, parecia pouco convencido com o projeto, até que Fabian insinuou que ele não apreciava a importância do jungle na cultura pop moderna, e isso garantiu o selo de aprovação. Todos os professores em sua escola de arte preferiam morrer a admitir que havia lacunas em seu conhecimento da juventude.

 

Mas era incapaz de se concentrar em “Liturgia Jungle”, mesmo que estivesse orgulhoso do quadro.

 

Era incapaz de se concentrar em qualquer coisa, exceto seus amigos desaparecidos. Primeiro Saul, em um borrão de violência chocante e mistério, depois Kay, em circunstâncias muito menos dramáticas mas não menos misteriosas. Fabian ainda não conseguia realmente se preocupar com Kay, embora já fizesse pelo menos duas semanas desde que ele tinha sido visto, talvez mais. Estava inquieto, mas Kay era tão vago, tão sem rumo e cordial, que qualquer noção de que estivesse em apuros era impossível de ser levada a sério. Era, ainda assim, frustrante e confuso. Ninguém parecia saber para onde ele tinha ido, incluindo seus colegas de apartamento, que estavam começando a ficar ansiosos em relação à sua parte do aluguel.

 

E agora parecia que estava perdendo Natasha. Fabian franziu o cenho para esse pensamento e virou-se na cama, emburrado. Estava irritado com Natasha. Era obcecada por sua música, nos melhores dias, mas quando estava compondo isso se agravava. Estava animada com a música que fazia com Pete, um sujeito que Fabian considerava estranho demais para merecer simpatia. Natasha estava trabalhando em novas faixas para levar para o Junglist Terror, evento que teria lugar em breve no Elephant and Castle. Não telefonava para Fabian já há vários dias.

 

Foi o sumiço de Saul, pensou, que motivou tudo isso. Saul estava longe de ser o líder de uma falange social mas, desde sua extraordinária fuga da prisão, algo que mantinha unidas as amizades de Fabian tinha se dissipado. Fabian estava sozinho.

 

Sentia muita falta de Saul e estava zangado com ele. Estava irritado com todos os seus amigos. Estava irritado com Natasha por não ter percebido que ele precisava dela, por não deixar de lado a porra do sequenciador e falar sobre Saul. Tinha certeza de que ela deveria estar sentindo falta de Saul, mas tinha tanta necessidade de controle que evitara discutir o assunto. Apenas se referia a ele de forma breve e repentina – e depois se recusava a falar mais sobre isso. Contudo, ela o escutava com paciência. Sempre quebrava o contrato social, o intercâmbio de inseguranças e neuroses de um com o outro. Com Natasha, a oferta sempre era de mão única. Ela parecia não saber – ou não se importar – como aquilo o fazia se sentir impotente.

 

E Saul – Fabian estava irritado com Saul. Achava incrível que seu amigo não tivesse entrado em contato com ele. Entendia que algo inacreditável estivesse acontecendo na vida de Saul, que tinha que ser algo muito estranho para que cortasse Fabian completamente, mas mesmo assim aquilo o magoava. E estava desesperado para saber o que estava acontecendo! Às vezes, tinha medo de que Saul estivesse morto, que a polícia o tivesse matado e inventado uma história bizarra para dissipar suspeitas ou que houvesse sido apanhado em algo grande – imagens vagas das Tríades passaram pela cabeça de Fabian, e a facção londrina da Máfia, e Deus-sabe-o-quê – e tivesse sido rotineiramente eliminado.

 

Às vezes, aquela parecia a explicação mais provável, a única coisa que poderia explicar as mortes dos policiais e a fuga de Saul, mas Fabian não podia acreditar que não soubesse nada sobre o envolvimento de seu amigo. Parecia inacreditável. E então foi forçado a considerar a possibilidade de que Saul tivesse matado aqueles homens – e seu pai, algo em que ele não acreditava, com certeza – mas então... o que estava acontecendo?

 

Fabian olhou em volta, em seu quarto, um pincel e capas de discos e roupas e CDs e pôsteres e copos e embalagens e sujeira e papel e livros e almofadas e canetas e telas e pedaços de vidro para esculturas e placas e cartões postais e papel de parede descascando. Estava sozinho e chateado.

 

A vista era tão familiar que Natasha não a enxergava. Era uma tabula rasa, um espaço em branco ao qual podia impor suas músicas. Tinha olhado lá para fora por tantas horas e dias, especialmente depois que Saul desaparecera e Pete surgira, que tinha alcançado uma transcendência quase zen com aquilo. Transcreveu as características da vista em sua mente sob a forma de um grande nada.

 

Primeiro os cortinados, uma reminiscência do mau gosto do inquilino anterior da qual ela nunca havia se preocupado em se livrar. Moviam-se de leve, uma brancura constante com bordas tremulantes. Através desse véu, as árvores, bem na altura em que os ramos começam a saltar do tronco. Desnudas pelo inverno, ostentando galhos negros. Enfim, um filtro de cortina, depois os nós retorcidos da madeira escura e intrincada, uma rede aleatória de galhos e ramos grossos. Depois disso, um poste de luz.

 

Depois de escurecer, quando chovia, sentava-se à janela e metia a cabeça pelos cortinados para olhar a lâmpada através da árvore lá fora. Os raios passavam pela folhagem, iluminando o interior de cada galho, imprimindo à luz da rua uma auréola de finos círculos de madeira iluminada, composta de milhares de pequenas partes molhadas que refletiam a luz. Quando Natasha movia a cabeça, o halo de luz elétrica se movia com ela por trás da árvore. A lâmpada ficava como uma gorda aranha no centro de uma teia de madeira.

 

Agora era dia e a lâmpada não era nada, apenas mais uma forma desbotada além da cortina, uma forma que Natasha não estava enxergando, ainda que olhasse para ela. Mais atrás, as casas do outro lado da rua. O quarto do filho, o pequeno estúdio. A cozinha. Os telhados, as telhas anêmicas, seu vermelho grosseiro invisível de dentro da sala. Atrás dos telhados, os topos dos prédios, as construções que se estendiam ao longo do oeste de Londres, atarracadas e enormes e imponentes. Atrás delas, um céu que era todo nuvem, uma massa de torvelinhos mutáveis cujos detalhes se retorciam e viravam e decaíam, deixando o todo inalterado.

 

Natasha conhecia cada parte desse diorama. Se algo estivesse faltando ou diferente, teria visto imediatamente. Ao invés disso, viu que era como deveria ser e, portanto, não o viu. A cuidadosa listagem que fizera daquelas características tornou-o invisível.

 

Às vezes, sentia como se pudesse flutuar nas nuvens.

 

Não se sentia presa, de forma alguma.

 

Ela pensou em Saul, mas também pensou em linhas de baixo, e se perguntou onde ele estaria, e ouviu uma música deslumbrante se insinuar em sua mente. Perguntou-se onde estaria Pete. Queria ouvir sua flauta. Era hora de terminar alguns dos detalhes de Wind City. Percebeu que não conseguia pensar direito. Já há alguns dias não se sentia segura e disposta. Mas estava ansiosa para samplear mais um pouco de flauta.

 

Natasha queria livrar o quarto, já quase vazio do jeito que estava, de todos os seus objetos estranhos; a cama, o telefone, os copos, tudo que viu de seu travesseiro. Queria fechar a porta e ignorar o resto do apartamento e apenas olhar por aquela janela, para aquela vista, através da interferência diluída e leitosa da cortina. Não queria sons, exceto os pequenos murmúrios da rua e de seu sequenciador, tecendo sua canção, tornando Wind City o que ela queria.

 

Duas semanas atrás, tinha mencionado a música para Fabian quando ele telefonara e ele fizera uma piada com o título: sobre comer feijão demais ou algo igualmente cretino. Ela impusera um fim abrupto à ligação e, ao colocar o fone no gancho, praguejou e xingou-o, disse o quanto ele era um estúpido de merda e grosseiro. Uma parte dela havia tentado avaliar o comentário desapaixonadamente, tentado enxergar pelo ponto de vista dele, mas mesmo tendo compreendido ela viu o quanto ele estava errado. Sua opinião sobre Fabian foi abalada. Talvez ele tenha de escutar a música, concluiu caridosa.

 

Ele não podia ouvir a palavra Vento sem lembrar de suas piadinhas idiotas de ginásio, uma escatologia pueril com a qual não conseguia simpatizar. Era coisa de menino. Como poderia fazê-lo ver o que ela vira quando batizara aquela música, quando a tocara e mexera nela até que a fizesse funcionar tão bem a ponto de sentir um vazio no peito?

 

Para começar, um breve piano tirado de algum lixo swingbeat5 histriônico. Tinha-o despido tão severamente que o havia desumanizado. Isso era diferente da sua abordagem usual. O piano, o instrumento que tão frequentemente arruinava o jungle, fazendo-a pensar em happy house e clubes idiotas de Ibiza, aqui se transformara em um instrumento que sinalizava a destruição de tudo o que era humano neste mundo. Profundamente queixoso e melancólico, mas fantasmagórico. O piano tentou se lembrar da melancolia e a mostrou, como que para aprovação. É isso? Isso é tristeza?, ele perguntou. Não me lembro. E sob o piano ela fez imergir, por uma fração de segundo, subliminar, um sample de estática de rádio.

 

Tinha procurado aquilo por um bom tempo, gravando grandes feixes de som de todas as frequências do rádio, rejeitando-os todos, até encontrar e aprisionar e criar exatamente o que queria. E então usá-lo apenas como insinuação.

 

A batida entrou depois do piano ir e voltar várias vezes, separada por uma grande lacuna, uma ruptura na música. E de início a batida tinha apenas caixas, rápidas e oníricas, e um som como o de um coro brotou e então resolveu-se em orquestração eletrônica, emoção fabricada, uma busca fracassada por sentimento.

 

E então a linha de baixo.

 

Uma programação minimalista, uma só pancada, pausa, outra pancada, pausa, outra, pausa mais longa... pancada dupla e de volta ao início. E por baixo disso tudo ela começou a deixar os pedaços de estática de rádio ficarem um pouco mais longos, e ainda mais longos, e fez um loop com eles de maneira mais e mais randômica, até que viraram uma constante, mudando de refrão sob a batida. Um naco de interferência que soava como se alguém tentasse fugir de uma jaula de ruído branco. Estava orgulhosa daquela estática, que tinha criado após sintonizar uma estação de ondas curtas e então mover o dial por meros milímetros, de forma que os picos e depressões de estalos poderiam ter sido vozes, ansiosas por fazer contato, mas falhando... ou poderiam ter sido só estática.

 

O rádio existia para comunicar. Mas aqui tinha falhado, perdido o rumo, esquecido sua finalidade, como o piano e as pessoas que não conseguiam reclamar a cidade para elas.

 

Porque foi uma cidade que Natasha viu quando escutou. Voava pelo ar a uma velocidade enorme entre vastos prédios em ruínas, tudo cinza, imponente e enorme e aplainado, variegado e vazio, sem dono. Natasha pintou esse quadro com cuidado, levou muito tempo em sua criação, deixando na música uma centena de pistas que sugeriam humanidade, pistas que não levavam a nada, becos sem saída, decepções.

 

E depois que havia sugado o ouvinte para dentro da cidade, solitário, Natasha trouxe o Vento.

 

Uma súbita explosão de flauta imitando o quase falar da estática, um truque que tinha aprendido em um álbum de Steve Reich – só Deus sabe onde tinha escutado aquilo –, no qual fez violinos imitarem vozes humanas. Vieram a estática e a batida e o piano sem alma e enquanto a estática subia e descia a flauta nascia por baixo dela, trêmula, um eco estridente, e então desaparecia. Rajadas de vento soprando lixo das ruas. E de novo. Mais e mais vezes, até que surgiam duas rajadas de flauta, uma sobre a outra. E mais duas se uniam a elas, uma cacofonia de simultâneas forças da natureza, meio musical, meio bestial, artificial, comentário, um intruso na cidade que moldava suas formas com desprezo, esculpindo-a. Um longo e grave lamento da flauta veio lá de baixo, soprando tudo, a única constante, diminuindo o efeito dos outros sons, intimidando, humilhando. Os altos e baixos na estática seguem, são achatados pelo soprar da flauta. O piano segue, cada trinado de notas sendo reduzido até que é uma só nota, como um lento metrônomo marcando o tempo. Então isso também desaparece. As complexidades da flauta são suplantadas e apenas um enorme e singular vento permanece. Flauta, ruído branco, caixas e linha de baixo, estendendo-se por um longo tempo, uma arquitetura ininterrupta de batidas desérticas.

 

Assim era Wind City, uma metrópole imensa, deserta e quebrada, solitária, entrópica, até que um tsunami de ar quebra sobre ela, um tornado de flauta limpa suas ruas, zomba dos patéticos restos de humanidade em seu caminho e os sopra para longe como se fossem aquelas bolas de mato de filmes de faroeste e a cidade fica solitária e livre de toda a sujeira. Até mesmo o fantasma do rádio anuncia o passamento das pessoas, uma vastidão plana de som vazio. As avenidas e parques e subúrbios e o centro da cidade foram tomados, expropriados, possuídos pelo Vento. A propriedade do Vento.

 

Esta era Wind City, o título que fizera Fabian rir.

 

Não conseguiria falar com ele depois de ter feito aquela piada.

 

Pete realmente entendia. Na verdade, quando ele ouviu trechos da música, disse que era ela quem entendia, que ela realmente o compreendia.

 

Pete amava aquela música com uma paixão extraordinária. Ela imaginou que aquilo tivesse algum apelo especial para ele, a ideia do mundo inteiro possuído pelo Vento.

 

O pequeno apartamento em Willesden tinha virado o cenário dos sonhos de Crowley. Já não se deixava enganar por sua arquitetura indefinível. Aquele apartamento era um dínamo. Tinha sido transformado em um gerador de horrores.

 

Estava de cócoras, olhando para mais um rosto arruinado.

 

O apartamento estava mergulhado em violência. Possuía alguma grande força de sedução que atraía pessoas para uma desordem violenta e sangrenta. Crowley se sentiu preso em algum medonho desvio temporal. Cá estamos de novo, pensou, olhando para a máscara destruída e ensanguentada abaixo dele.

 

Houvera a primeira vez, quando ele vira o pai de Saul espatifado no gramado. Não sistematicamente moído dessa forma, é verdade. Talvez tivesse fugido do apartamento. Talvez por isso seus ferimentos houvessem sido menos severos; ele percebera isso, vira que, se tivesse ficado, não iria apenas morrer, mas ser esmagado. Não quis morrer como um inseto, então se atirou pela janela, ansioso por uma morte humana.

 

Crowley balançou a cabeça. Seu raciocínio estava ficando embotado, sem que pudesse fazer nada. Cá estamos nós de novo.

 

Depois Barker, mais um cujo rosto fora destruído, e Page, olhando por cima do próprio ombro, impossível.

 

E agora mais alguém tinha sido partido nesse altar sacrificial. A menina estava caída de costas, o chão à sua volta torpe de tanto sangue. O rosto estava inclinado para dentro, como em uma dobradiça. Crowley olhou para a moldura da porta. Aquele pedaço de madeira, com explosões radiais de sangue e saliva e muco irrompendo para todos os lados, aquela parte da moldura, aquele era o lugar para onde o rosto dela tinha sido empurrado.

 

Crowley recordou vagamente o senso de dever que o impulsionava pelos corredores escuros à noite, enquanto dormia. Ficaria de pé na sala de estar, onde estava agora, olhando para trás, de novo, de novo, como um cachorro correndo atrás do rabo, incapaz de ficar parado porque sabia que, se o fizesse, alguma coisa viria e arrebentaria sua cara...

 

Nunca vira Saul em seus sonhos.

 

Bailey entrou, forçando passagem através do perplexo nó de uniformes.

 

– Nenhum sinal de nada em lugar algum, senhor. Só isso, só aqui.

 

– Herrin achou alguma coisa? – disse.

 

– Ele ainda está falando com o policial que foi chamado à estação de ônibus esta manhã. Vários dos ônibus estão quebrados; e o guarda, eles acham que não foi o vidro no olho que o matou. Foi atingido na cabeça com um bastão longo e fino.

 

– Nosso bastão incomum, mais uma vez – refletiu Crowley. – Fino demais para o gosto da maioria das pessoas; elas gostam de algo que dê uma pancada violenta. É claro, se você é tão forte como o nosso assassino parece ser, quanto mais fino melhor. Menor área de superfície, mais pressão.

 

– Nosso assassino, senhor?

 

Crowley olhou para ele. Bailey parecia confuso e até mesmo acusatório. Crowley podia perceber que ele achava que seu superior estava perdendo a cabeça. A natureza extraordinária dos crimes tinha afetado Bailey de forma oposta à de Crowley. Tinha sido empurrado em direção a um senso comum agressivo, dogmático, determinado a trazer Saul às grades, recusando-se a se deixar intimidar ou ficar surpreso com a carnificina que tinha visto.

 

– O quê? – exigiu Crowley.

 

– O senhor parece incerto. Tem alguma razão para pensar que não foi Garamond?

 

Crowley balançou a cabeça como que para afastar um mosquito, irritado, varrendo o ar. Bailey se retirou.

 

Sim, tenho várias razões, pensou Crowley, porque eu o interroguei e o vi. Quero dizer, meu Deus, olha pra ele, ele não fez isso. E se fez, então aconteceu algo que o transformou naquela noite depois que eu o interroguei e ele mudou tanto que já não é o que eu vi – e nesse caso eu ainda estaria certo, Saul Garamond não fez isso, e eu estou cagando para o que você e Herrin pensam, seus grandes pregos idiotas.

 

Nada se encaixava. O guarda morto em Westbourne Grove fora claramente vítima do mesmo homem que havia matado os dois policiais e aquela menina caída ali, arruinada, só sangue e ossos. Mas a polícia tinha sido chamada à estação de ônibus minutos depois dos moradores de Terragon Mansions reportarem gritos violentos e pancadas vindas dos andares de cima. E Westbourne Park era simplesmente longe demais de Willesden para que fosse alcançado a tempo. Então, quem quer que tenha quebrado todo aquele vidro nos ônibus e o enfiado no olho daquele pobre homem não pode ter sido o mesmo sujeito que destruiu a mulher.

 

Claro, Herrin e Bailey não viam problema algum nisso. Alguém tinha se confundido com a hora. As pessoas em Willesden deveriam ter errado por uma margem de meia hora ou mais. Ou as pessoas em Westbourne Grove, ou ambas tinham errado em quinze minutos ou algo assim. E o fato de que tantos tenham se enganado com a mesma hora, bem, o que você acha que aconteceu então, senhor? Se não foi isso?

 

E claro, Crowley não tinha resposta.

 

Estava intrigado com relatos de música saindo da garagem na hora em que Saul – ou quem quer que fosse – a estava destruindo. Os relatos eram vagos, mas pareciam indicar um som de alta frequência, como uma gaita de foles, uma flauta ou uma harmônica, ou algo assim. Saul não era músico, Crowley sabia disso, embora fosse aparentemente uma espécie de aficionado da dance music, do tipo que sua amiga taciturna, Natasha, tocava. Então, o que eram as flautas?

 

Crowley podia ver o enredo sendo criado para Saul. Saul tinha se tornado um assassino serial. E Saul, por isso, necessitaria de rituais, como o retorno a esse lugar, o local de seu primeiro assassinato, que o tinha enlouquecido. E a reprodução de música no local de um assassinato, como na estação de ônibus, o que era isso além de algo ritualístico? Talvez também tivesse tocado música na morte do homem ainda não identificado no metrô, um crime que Crowley estava certo de fazer parte do mesmo rompante. A conexão com transportes públicos apenas reforçava sua convicção.

 

Então, por que Saul não escutava mais dance music? Por que tinha começado a tocar o que a maioria daqueles que o tinham ouvido descreveu como folk music? Nada daquilo era prova de nada, claro...

 

Mas Crowley não pôde deixar de pensar que poderia ter sido outra pessoa tocando a música na estação de ônibus. Por que não? Por que precisava ser Saul? E se fosse algum outro, zombando dele com essa música tão completamente diferente do gosto do próprio Saul?

 

Crowley endireitou-se repentinamente. Um longo, fino e leve bastão. Feito de metal: o impacto deixara isso claro. Algo que o assassino levava com ele, que usara mais de uma vez. Levara-o de um crime para outro. Onde ele tocara música, ao que parecia.

 

– Bailey! – gritou Crowley.

 

O homenzarrão apareceu, ainda impaciente, ainda irritado com seu chefe.

 

Apenas revirou os olhos para a nova pergunta de Crowley.

 

– Bailey, algum dos amigos de Saul toca flauta?

 

1 Rudebwoys and gyals: “rudeboys and girls”, no sotaque jamaicano. (NdT)

2 Keith Haring: artista plástico novaiorquino dos anos 80, oriundo do grafite.

3 The Man: forma pejorativa de chamar o “sistema”, seja ele o governo, a polícia, as corporações ou as instituições oficiais.

4 Personagem de um filme de blaxploitation de 1971, Sweet Sweetback’s Baadasssss Song, com Melvin Van Peebles, sobre uma prostituta negra que salva um membro dos Panteras Negras de ser preso por policiais racistas.

5 Swingbeat ou new jack swing: subgênero comercial da black music, do final dos anos 80 e início dos anos 90. Misturava as técnicas de produção do hip hop com as melodias e instrumentos do R&B e da dance music mais pop.

 

Bem fundo debaixo de Londres, Rei Rato se refugiava sorumbático nas trevas.

 

Pegou um punhado de comida, carregou-a atirada sobre um ombro como o produto de um assalto. Seus passos eram longos e não deixavam sinal. Espreitou silenciosamente pela água dos esgotos.

 

Os ratos corriam quando se aproximava. As almas mais corajosas ficavam um pouco mais para cuspir nele e provocá-lo. Seu cheiro estava profundamente arraigado no sistema nervoso deles – e tinham sido ensinados a desprezá-lo. Rei Rato os ignorou. Continuou andando. Seus olhos estavam negros.

 

Passou como um ladrão na noite. Incerto. Minimalista. Sujo. Subalterno. Seus motivos eram opacos.

 

Passou debaixo da correnteza suja para desalojar a tampa da sua sala do trono, deslizou pelo breu até a grande câmara em forma de gota. Sacudiu a água em seu corpo e saltou para a sala.

 

Saul veio por trás dele. Agarrou a perna de uma cadeira quebrada que brandiu com uma velocidade incrível, quebrando-a contra a parte traseira do crânio de Rei Rato.

 

Rei Rato voou para a frente e atirou os braços para fora com um estridente latido de dor súbita. Deitou-se, enrolado, segurando a cabeça, recuperando o equilíbrio.

 

Comida se espalhava por todo o chão encharcado.

 

Saul estava sobre ele, tremendo, a mandíbula apertada com força. Brandiu a perna da cadeira de novo e de novo.

 

Rei Rato era maleável como mercúrio. Deslizou de maneira impossível para fora do turbilhão de golpes de Saul e correu para longe, chiando, apertando a cabeça que sangrava.

 

Girou para encarar Saul.

 

O rosto de Saul era um mosaico de hematomas e sangue e carne inchada. Rei Rato estava imóvel. Olhou para Saul com aqueles olhos ocultos. Os dentes estavam arreganhados e brilhavam com uma suja luz amarela. Sua respiração era difícil. As mãos estavam retorcidas em garras ansiosas.

 

Mas Saul o atingiu de novo, antes que aquelas garras pudessem se mover. As mãos e o bastão de Saul o acertavam com força, mas Rei Rato atacou com suas mãos de garras e desenhou linhas no estômago de Saul, abaixo dos restos de sua camisa.

 

Saul falou, murmurando no ritmo dos golpes que tentava acertar.

 

– Então, que merda Loplop estava fazendo lá, ahn? – Pou.

 

Rei Rato deslizou para fora do arco desenhado pelo bastão, que atingiu o chão ruidosamente.

 

– Disse pra ele me seguir, ahn? – Pou. – O que ia fazer? – informar? – Pou. Desta vez a madeira acertou e Rei Rato berrou de ódio.

 

Rei Rato rosnou e cortou Saul com as garras, e Saul gritou e brandiu o bastão com renovada virulência. Os dois escorregaram pela sala escura, deslizando sobre limo e comida, movendo-se ora sobre duas patas, ora sobre quatro. Saul e Rei Rato moviam-se como figuras liminares, pairando entre os estratos evolucionários, bestiais e sapientes.

 

– Então Loplop foi passar uma mensagem, ahn? Pássaro? Passarinho ia avisar onde eu estava, então?

 

De novo os ataques vieram, de novo Rei Rato se moveu, recusando-se a entrar em uma batalha, contente em tirar sangue e escapulir, os dentes ainda visíveis e cruéis.

 

– E se Loplop tivesse dito acidentalmente a alguém onde eu estava, ahn? Sou só uma isca de merda? – Rei Rato aparou o bastão com a mão direita e mordeu-o repentina e violentamente, dissolvendo-o em uma explosão de estilhaços. Saul não parou, mas agarrou Rei Rato pela lapela suja e arrastou-o para dentro do lodo, cobrindo-o.

 

– Bem, não precisava ter se incomodado, seu filho da puta de merda, porque o Flautista estava lá e olha o que ele fez comigo, seu merda. Claro que vocês não estavam prontos, você e ‘Nansi, então o velho coitado do Loplop teve de encará-lo sozinho. – Saul apertou os braços de Rei Rato contra o chão de tijolos e começou sistematicamente a socar-lhe a cara. Mas, mesmo preso daquele jeito, Rei Rato se contorcia e deslizava debaixo dele; vários dos pesados golpes não o acertaram.

 

Saul colocou o rosto bem na frente de Rei Rato, encarando-o através das sombras em seus olhos.

 

– Eu sei que você estaria pouco se fodendo se eu tivesse morrido, desde que eu levasse seu Flautista comigo – silvou. – E eu sei que você matou meu pai, seu maldito estuprador de merda, seu pedaço de cocô – e não a porra do Flautista...

 

– Eu – Rei Rato gritou a palavra para fora e convulsionou, jogando Saul para longe de si e deslizando em um único movimento até ficar de pé no trono, em sua pose característica, soturno e exagerado, mas dessa vez com as garras distendidas e os dentes perigosos arreganhados, encravados em couro negro como um animal selvagem. Saul moveu-se para trás na sujeira, lutou para endireitar-se.

 

Rei Rato falou novamente. – Nunca toquei no seu pai, estúpido. Eu matei o Usurpador.

 

A palavra ficou no ar depois de ter sido dita.

 

Rei Rato falou novamente.

 

– Eu sou seu pai...

 

– Não, você não é, caralho, seu velho escroto de merda degenerado espiritual – respondeu Saul instantaneamente. – Posso ter seu sangue em minhas veias, seu filho da puta estuprador desgraçado, mas você é merda pra mim.

 

Saul deu um tapa na própria testa, rindo amargamente.

 

– Quero dizer, como assim? “Sua mãe era um rato e eu sou seu tio.” Meu Deus, essa foi boa – me enrolando que nem um idiota de merda! E... – Saul fez uma pausa e empurrou violentamente o dedo contra Rei Rato –, e aquele maldito lunático de merda do Flautista que quer me matar só sabe de mim por sua causa.

 

Saulo sentou-se pesadamente e segurou a cabeça entre as mãos. Rei Rato o observava.

 

– Quero dizer, eu fico dizendo que vou resolver isso, certo? – Saul murmurou. – E simplesmente não consigo parar de pensar nisso. Você matou meu pai, seu estuprador de merda, e quando fez isso você deixou alguma porra de espírito das trevas ir atrás de mim, deu a ele a merda do meu endereço e, o quê, ainda tenho que dizer “Papai!”? – Saul balançou a cabeça em desgosto. Sentiu o estômago se retorcer com desprezo e ódio. – Você que vá se foder. Não é assim que as coisas funcionam.

 

– Então, você quer o quê, um pedido de desculpas?

 

Rei Rato era desdenhoso. Andou na direção de Saul.

 

– O que você quer? Somos do mesmo sangue. Faz muito tempo desde que eu parti, desde que você que era um pirralho nos braços daquele gordo. Dava pra ver que você ficaria flácido. Era hora de se juntar ao seu velho pai, o rei punguista. Somos do mesmo sangue.

 

Saul olhou para ele.

 

– Não, filho da puta, não quero merda nenhuma de você. – Saul ficou de pé. – O que eu quero é sair daqui. – Afastou-se por trás do trono, virou o rosto para Rei Rato. – Você que lide com o Flautista por sua própria conta. Ele só me quer por sua causa, sabia? Você andou se gabando a meu respeito, seu merda estúpido. Você tá se fodendo pra isso de família. Você estuprou minha mãe só pra que pudesse ter a sua arma. O Flautista sabe disso; ele me chamou de “a arma secreta”. Eu sei o que sou pra você. Sei que sou uma boa maneira de atacá-lo, porque ele não pode me controlar.

 

“Mas ele só quer me matar por sua causa. Então, só digo uma coisa.”

 

Saul deu meia-volta enquanto falava, rumo à peculiar saída da sala.

 

– Só digo uma coisa. Você lida com o Flautista da melhor forma que puder e eu cuido da minha vida. De acordo?

 

E Saul olhou Rei Rato nos olhos, aqueles olhos que ainda não conseguia ver, e saiu da sala.

 

Acima dos esgotos: no céu, sobre os telhados. Lá fora, no ar. Saul tocou a pele sobre as contusões e a sentiu esticar, tensa e rachada. Olhou para Londres, espraiada à sua frente, desdobrando-se, o submundo ameaçando trespassá-la, romper a tensão da sua superfície. Estava escuro; sua vida era sempre escura agora. Estava se tornando uma criatura da noite.

 

Seu corpo doía. Sua cabeça doía, seus braços estavam arranhados e distendidos, seus músculos queimavam com hematomas profundos. Mas não podia ficar parado. Sentiu uma ânsia desesperada de fazer alguma coisa, de queimar a dor até que saísse de seu corpo. Girou sem rumo em torno de vigas e antenas, com os membros soltos e elegante como um gibão. De repente, estava com muita fome, mas ficou nos telhados por um tempo, correndo e saltando sobre muros baixos e claraboias. Cavalgou os meandros da estação de St. Pancras e correu ao longo da coluna de telhados que se projetava por trás dela como a cauda de um dinossauro.

 

Aquele era o reino dos arcos. Pequenas empresas estranhas travavam uma batalha contra o espaço vazio, abarrotando os improváveis vácuos abaixo das linhas férreas. Proclamavam sua presença com sinais brutos.

 

               MATERIAL DE ESCRITÓRIO BARATO.

               ENTREGAMOS.

 

Saul desceu ao nível da rua. Lutava para canalizar a força do júbilo que o tinha inundado em sua renúncia a Rei Rato. Estava frágil, prestes a explodir em lágrimas ou histeria. Estava fascinado por Londres.

 

Alguém aproximou-se dele em uma esquina: uma mulher de salto alto, podia ouvir, uma alma corajosa caminhando nessa área sozinha à noite. Não queria assustá-la; assim, caiu contra a parede e deslizou até o chão, só mais um bêbado comatoso.

 

Associações com os sem-teto o atingiram e, enquanto os saltos clicavam por ele sem vê-lo, pensou em Deborah e sentiu sua garganta travar. E então era fácil pensar em seu pai.

 

Mas Saul não tinha tempo para isso, decidiu. Saltou de pé e seguiu seu nariz para as lixeiras desse reino estranho, um mundo onde as ruas eram vazias de casas, onde as únicas coisas que o rodeavam eram os comércios peculiares, restos vitorianos.

 

As lixeiras não eram ricas em pilhagens. Sem lixo doméstico, sobrava pouca coisa para elas. Saul rastejou de volta para King’s Cross. Encontrou o caminho para os restos dos restaurantes noturnos e acumulou uma enorme pilha de comida. Imaginou jogos solitários, recusando-se a comer até que tivesse recolhido tudo o que queria.

 

Sentou-se sob a sombra de uma caçamba em um beco sem saída, perto de um delivery chinês, e acariciou a comida que havia coletado, nacos de carne gordurosa e noodles.

 

Saul fartou-se. Comeu como não fazia há dias. Comeu até preencher todas as cavidades dentro de si, até expulsar tudo o que havia sido deixado para trás.

 

Rei Rato o havia usado como isca, mas o plano tinha dado errado. O Flautista tinha antecipado seu plano.

 

Enquanto Saul se empanturrava, sentiu um eco daquela onda de força que o tinha percorrido na primeira vez em que ingerira comida coletada, comida encontrada, comida de rato.

 

O Flautista ainda queria vê-lo morto, é claro, agora mais do que nunca. Não achava que teria que esperar muito tempo até o Flautista vir até ele.

 

Era um novo capítulo, refletiu. Longe de Rei Rato. Fora do esgoto. Comeu até sentir sua barriga perigosamente esticada e então retomou sua posição na linha do horizonte.

 

Saul sentia como se fosse explodir, não de comida, mas de algo que tinha sido liberado dentro de si. Deveria estar maluco, pensou subitamente, e não estou. Não fiquei maluco.

 

Conseguia ouvir sons de todas as partes de Londres, um murmúrio. E, enquanto escutava, o som se dissolveu em seus componentes, carros e discussões e música. Sentiu como se a música estivesse em toda parte, em tudo à sua volta, uma centena de ritmos diferentes em contraponto, uma tapeçaria sendo tecida lá embaixo. As torres da cidade eram agulhas que agarravam os fios de música e os juntavam, apertando-os em torno de Saul. Ele era um ponto fixo, um pregador, um gancho no qual a música era pendurada para secar. Ficou mais e mais alta, rap e música clássica e soul e house e techno e ópera e folk e jazz e jungle, sempre jungle, toda a música construída sobre bateria e baixo,1 no fim das contas.

 

Não tinha ouvido música por semanas, desde que Rei Rato tinha ido até ele, e tinha esquecido disso. Saul se esticou, como se despertasse de um sono. Escutou a música com novos ouvidos.

 

Percebeu que havia derrotado a cidade. Agachou-se no telhado (de qual prédio, ele não sabia) e olhou para Londres de um ângulo a partir do qual a cidade não havia sido feita para ser vista. Tinha derrotado a conspiração da arquitetura, a tirania pela qual edifícios construídos por mulheres e homens haviam tomado o controle de seus criadores, circunscrevendo suas relações, confinando seus movimentos. Esses produtos monolíticos das mãos humanas tinham se voltado contra seus construtores e os vencido com o senso comum, silenciosamente instalando a si mesmos como governantes. Eram tão insubordinados quanto o monstro de Frankenstein, mas tinham realizado uma campanha mais sutil, uma guerra de posições de longe muito mais eficaz.

 

Saul saiu descuidadamente em disparada e percorreu os telhados e paredes de Londres.

 

Não podia adiar seus pensamentos para sempre.

 

Timidamente, considerou sua posição.

 

Rei Rato não estava mais com ele. Anansi só respondia a si próprio, faria o que quer que deixasse a si e ao seu reino mais seguros. Loplop era louco e surdo e talvez morto.

 

O Flautista queria matar todos eles.

 

Saul estava por conta própria. Percebeu que não tinha um plano e sentiu uma paz curiosa. Não havia nada que pudesse fazer. Estava aguardando que o Flautista viesse até ele. Enquanto isso, poderia submergir no underground, poderia investigar Londres, poderia encontrar seus amigos...

 

Estava com medo deles agora. Quando se permitiu pensar neles, sentiu tanta falta deles que doeu, mas não era mais feito do mesmo material que eles e tinha medo de não saber como ser seu amigo. O que poderia dizer a eles, agora que vivia em um mundo diferente?

 

Mas talvez não vivesse em um mundo diferente. Vivia onde queria, pensou de sopetão, furioso. Não fora isso o que Rei Rato dissera, todo aquele tempo atrás? Vivia onde queria e, mesmo que não mais vivesse no mesmo mundo que eles, podia fazer uma visita, não?

 

Saul percebeu o quanto queria ver Fabian.

 

E lembrou também que o Flautista queria matá-lo precisamente porque podia se mover entre os mundos. Teve uma sensação fugaz de solidão quando pensou sobre o Flautista e então percebeu que o cheiro de rato estava em tudo à sua volta, estava sempre ao seu redor. Ficou de pé, lentamente.

 

Percebeu que o cheiro de Londres era o cheiro de rato.

 

Começou a sibilar por atenção e cabeças ágeis saltaram para fora das pilhas de lixo. Latiu uma ordem rápida e as fileiras começaram a se aproximar, timidamente de início e depois com vontade. Gritou por reforços e ondas ardentes de corpos marrons imundos ferveram sobre os lábios do telhado e das chaminés e saídas de incêndio e cantos escondidos, como uma filmagem de líquido derramado exibida de trás para frente; eles se paralisaram ao seu redor, bem juntos, uma explosão congelada em seu início, pairando com reprimida violência, agarrados às suas palavras.

 

Não enfrentaria o Flautista sozinho, percebeu. Teria todos os ratos de Londres ao seu lado.

 

1 Bateria e baixo: no original, “drum and bass”.

 

Algumas vezes, entre colocar comida em sua boca e dormir e o jungle, vendo Pete, Natasha se lembrava de outras coisas.

 

Lembrou-se de algo; tinha a sensação de ser necessária para alguma coisa. Não estava bem certa do que era até que alguém ligou. Ela se atrapalhou com o telefone, confusa.

 

– Yo yo, Tasha!

 

A voz era bizarra, abafada e entusiasmada. Não conseguia reconhecê-la.

 

– Tash, cara, tá aí? É o Fingers. Recebi sua mensagem sobre o Terror e, sim, sem problema. Vamos te colocar no cartaz, fingir que é famosa. Ninguém vai admitir que não ouviu falar de você. – O homem ao telefone gargalhou.

 

Natasha murmurou que não entendia.

 

Houve uma longa pausa.

 

– Olha, Tash, você me mandou um fax, cara – me disse que queria tocar no Junglist Terror... você sabe, há umas duas semanas? Bom, tá tudo bem. Queria saber qual nome você tá usando, porque estamos lançando uns cartazes de última hora. Vamos colar lá por Camden, na sua área também.

 

Qual nome? Natasha se recompôs, refez a ligação de ouvido, fingiu que compreendia o que estava acontecendo.

 

– Coloca como Rudegirl K.

 

Aquele era um nome que ela usava. Era isso que ele queria, o homem? Aos poucos começou a entender. Junglist Terror, perto do Elephant and Castle. Tudo voltou. Sorriu deliciada. Tinha pedido uma chance de tocar? Não conseguia se lembrar, mas poderia tocar Wind City, não se importaria...

 

Fingers desligou. Parecia perturbado, mas Natasha simplesmente prometeu aparecer na data que ele disse e concordou em espalhar a notícia da festa. Segurou o telefone no ouvido por tempo demais depois dele já ter desligado. O barulho a confundiu de novo, até que mãos suaves surgiram ao redor de sua cabeça e a desembaraçaram do aparelho.

 

Pete estava lá, percebeu com um jorro de prazer. Ele colocou o telefone no gancho, virou-a para que olhasse para ele. Ela se perguntava há quanto tempo ele estava com ela. Olhou para ele, sorriu beatificamente.

 

– Esqueci de te falar, Natasha – disse ele. – Acho que devemos aproveitar a oportunidade para mostrar ao mundo o que temos feito. Então, vamos tocar Wind City. OK?

 

Natasha concordou e sorriu.

 

Pete sorriu de volta. Seu rosto; Natasha viu seu rosto. Parecia machucado, viu longas crostas finas adornando-o, mas de alguma forma ela não as percebeu de verdade, ele sorria tão feliz. Seu rosto estava muito pálido, mas sorriu para ela com o mesmo prazer de olhos arregalados que ela sempre associou a ele. Que doce, pensou, tão verde. Ela sorriu.

 

Pete se afastou dela, segurando sua mão.

 

– Vamos tocar umas músicas, Natasha – sugeriu.

 

– Ah, sim – ela suspirou. Isso seria excelente. Um pouco de drum and bass. Poderia se perder naquilo, dissecar as músicas em sua mente, ver como elas se encaixariam juntas. Talvez pudessem tocar Wind City.

 

Todos os amigos de Saul foram levados em conta, exceto o tal de Kay. Enquanto examinava o pedaço de papel que segurava, a sensação de náusea no estômago de Crowley crescia. Temia saber exatamente onde estava Kay.

 

Sentiu-se ridículo, como um policial de algum programa de TV americano, operando em palpites, respondendo a absurdas sensações estomacais. Tinha tentado cruzar os dados que reunira sobre o corpo arruinado no metrô com as informações que tinham sobre o amigo de Saul, Kay, que estava desaparecido agora havia duas semanas.

 

Por um tempo, Crowley tinha jogado com a ideia de que Kay pudesse estar por trás de tudo aquilo. Seria muito mais fácil atribuir a carnificina que tinha visto ao outro ausente daquela história. Guardou suas conjecturas para si mesmo. Sua falta de vontade em ver Saul como o assassino não fazia sentido para aqueles à sua volta, e podia entender por quê. Havia alguma coisa, só uma coisa... os pensamentos giravam e giravam em sua cabeça... não funcionava; tinha visto Saul; havia algo mais acontecendo.

 

Ele comprometia o controle da investigação com a sua inquietação. Estava reduzido a rabiscar notas para si mesmo, trocando favores com técnicos de laboratório, os canais habituais arriscados demais para suas ideias. Não podia se sentar com seus homens e mulheres e debater, trocando possibilidades, porque eles sabiam muito bem quem estavam procurando. Seu nome era Saul Garamond, era um prisioneiro foragido e um homem perigoso.

 

Assim, Crowley fora cortado das discussões, o meio no qual seu melhor trabalho era realizado. Tinha medo de que sem isso suas noções estivessem atrofiadas, fossem meias verdades, sujas com o muco de sua própria mente, que ninguém poderia escovar para ele. Mas não tinha escolha; estava reduzido.

 

Kay como o assassino. Essa era uma das ideias que deveria dispensar. Kay era periférico, não era próximo de nenhum dos protagonistas principais desse drama. Tinha ainda menos motivos do que Saul para qualquer uma daquelas ações. Era ainda menos impressionante fisicamente do que Saul.

 

E, além disso, seu tipo sanguíneo correspondia ao que cobria as paredes da estação de Mornington Crescent.

 

Os fragmentos de mandíbulas que puderam ser analisados pareciam combinar com as de Kay. Nada era certo, não com um corpo tão destruído como aquele tinha sido. Mas Crowley acreditava que sabia quem tinham encontrado.

 

E ainda, ainda não conseguia acreditar que era Saul quem procuravam.

 

Mas não podia falar sobre isso com ninguém.

 

Nem podia compartilhar a pena que sentia, uma pena que foi brotando dentro dele a cada dia, uma pena que ameaçava diminuir seu horror, sua raiva, seu desgosto, seu medo, sua confusão. Uma pena crescente de Saul. Porque se ele estivesse certo, se Saul não fosse o responsável por todas as coisas que Crowley tinha visto, então Saul estaria bem no meio de algo horrendo, um caleidoscópio bizarro de assassinatos sangrentos. E Crowley podia se sentir isolado, podia se sentir separado daqueles à sua volta, mas, se estivesse certo, então Saul... Saul estaria realmente sozinho.

 

Fabian voltou para seu quarto e imediatamente sentiu-se mal de novo. O único momento agora em que não se sentia oprimido pelo isolamento era quando subia em sua bicicleta e passeava por Londres. Estava gastando mais e mais tempo nas ruas, queimando as calorias que ganhava das porcarias que estava comendo. Era um homem magro e as horas e horas na rua estavam descascando seus últimos quilos de carne excedente. Estava sendo reduzido a pele e músculo.

 

Tinha pedalado por quilômetros no frio e sua pele ficou vermelha com a mudança de temperatura. Suava desagradavelmente com o esforço, um suor frio.

 

Tinha ido direto para o sul, além da Brixton Hill, passou pela prisão, através de Streatham, rumo a Mitcham. Subúrbio de verdade, casas cada vez mais baixas, zonas comerciais cada vez mais planas e sem alma. Tinha pedalado para cima e para baixo e ao redor de praças e ao longo de ruas transversais: teve que cruzar o tráfego, esperar sua vez, olhar para trás e agradecer brevemente a quem o deixasse passar, teve que cortar na frente do Porsche e ignorar o fato de que o tinha deixado com raiva...

 

Aquela era a vida social de Fabian agora. Interagia na merda do asfalto, comunicava-se com as pessoas que passavam por ele em carros. Era o mais perto que chegava de um relacionamento agora.

 

Pedalou e pedalou, parou para comprar batatas fritas e chocolate, talvez suco de laranja, comeu sobre o selim, parado do lado de fora das apertadas lojinhas e bancas de jornais que agora frequentava, equilibrando sua bicicleta ao lado das placas desbotadas de anúncios de sorvete e fotocópia barata.

 

E então voltou para a estrada, para as conversas superficiais dos cruzamentos, os flertes perigosos com carros. Não havia isso de sociedade, não mais, não para ele. Tinha sido despojado disso, reduzido a esmolas sociais como sinalização e luzes de freio, a rudeza e cortesia do transporte. Eram as únicas vezes agora que alguém tomava conhecimento dele, modificava seu comportamento por causa dele.

 

Fabian estava tão sozinho que sentia aquilo doer.

 

Sua secretária eletrônica piscou para ele. Apertou o play e a voz do policial Crowley tomou vida. Soou desamparado e Fabian achou que não era apenas efeito da mídia em questão. Fabian escutou com o desprezo e a indignação que sempre sentia quando lidava com a polícia.

 

“...petor Crowley aqui, Sr. Morris. Hmmm... queria saber se você poderia me ajudar de novo com uma ou duas perguntas. Queria falar com você sobre seu amigo Kay e... bom... talvez você possa me ligar.”

 

Houve uma pausa.

 

“Você não toca flauta, toca, Sr. Morris? Será que você ou Saul conhecem alguém que toca?”’

 

Fabian congelou. Não ouviu mais o que Crowley disse. A voz continuou por um minuto e parou.

 

Uma onda de arrepios o engolfou brevemente e passou. Tateou, esfaqueou o botão de rebobinar.

 

“...ossa me ligar. Você não toca flauta, toca, Sr. Morris?”

 

Rewind.

 

“Você não toca flauta, toca, Sr. Morris?”

 

Agoniado pelos dedos dormentes, Fabian avançou a gravação e encontrou o número que Crowley deu. Socou-o no telefone. Por que ele queria saber aquilo?, sua mente implorou.

 

O número estava ocupado e uma agradável voz feminina disse que havia uma fila.

 

– Filho da puta! – Fabian gritou e atirou o fone no gancho.

 

Fabian tremia. Saltou na sua bicicleta, lutou com ela pelo apertado hall de entrada e arremessou-a, pronta para ele, na rua. Bateu a porta. Adrenalina e terror o deixavam enjoado. Cambaleou para a rua e correu para a casa de Natasha.

 

Sem sociabilidade agora. Costurou em meio aos carros, deixando para trás uma cacofonia de buzinas e xingamentos. Girou pelas esquinas em ângulos fechados, afiados, fazendo os pedestres pularem para fora do caminho.

 

Meu Deus, pensou, por que ele queria saber aquilo? O que ele descobriu? O que um homem que toca flauta fez?

 

Estava sobre o rio agora, sabe Deus como, percebeu que arriscava sua vida a cada segundo. Parecia entrar e sair de contrapontos e fugas, não tinha lembrança alguma de ter passado pelas ruas que vinham antes da ponte.

 

O sangue bombeava pelas veias de Fabian. Sentiu tontura. O ar frio o despertou com um tapa na cara.

 

Viu um amontoado de cabines telefônicas acelerando em sua direção. Foi atingido pela súbita noção de seu isolamento, de novo. Apertou os freios e parou a bicicleta de repente, deixando-a cair no chão e andar mais um pouco após ter descido dela. A cabine mais próxima estava vazia e ele saqueou os bolsos atrás de dinheiro, puxou uma moeda de cinquenta pence. Discou o número de Crowley.

 

Disca 999 seu idiota de merda!, advertiu a si mesmo de repente, mas a essa altura o telefone de Crowley já tocava.

 

– Crowley.

 

– Crowley, é Fabian. – Mal podia falar; as palavras engoliam umas às outras em sua ânsia. – Crowley, vá pra casa da Natasha agora. Te vejo lá.

 

– Espere aí, Fabian. Por que isso?– Apenas vá pra lá, filho da puta! A flauta, a porra da flauta! – e desligou.

 

O que ele está fazendo com ela?, pensou Fabian enquanto corria para a bicicleta. Aquele filho da puta esquisito que apareceu do nada, meu Deus! Pensou que ela estivesse tendo um caso com ele, que isso explicava seu comportamento estranho e a obscura sensação de desafio que Fabian sempre tinha percebido vindo de Pete. Mas e se... e se não fosse só isso? O que Crowley sabia?

 

Já estava quase lá, acelerando rumo à casa de Natasha. A luz de Londres o rodeava. Não conseguia sequer ouvir o tráfego, baseava-se apenas em seus olhos para permanecer vivo.

 

Mais uma curva fechada e lá estava Ladbroke Grove. Percebeu distanciadamente que estava encharcado de suor. O dia estava nublado e frio e sua pele úmida estava congelando. Fabian teve vontade de chorar. Sentia-se totalmente fora de controle, como se não pudesse ter influência alguma sobre o mundo.

 

Virou e estava na rua de Natasha. Deserta, como de costume. O zumbido em seus ouvidos se dispersou e lá estava o drum and bass, a trilha sonora da casa de Natasha. Onírica e esparsa, uma música muito triste. Podia senti-la invadindo seu corpo por trás de seus olhos.

 

Livrou-se da bicicleta, deixando-a cair ao lado da porta.

 

Fabian tocou a campainha. Pôs o dedo no botão e não o tirou até ver uma forma se aproximar atrás da porta de vidro.

 

Natasha abriu a porta.

 

Fabian imaginou por um momento se ela estivesse doidona: parecia vaga, os olhos tão nublados. Mas viu o quanto estava pálida, magra, e soube que era mais do que drogas.

 

Ela sorriu quando o viu e olhou para ele com olhos desfocados.

 

– Ei, Fabe, como vai? – Parecia cansada, mas levantou a mão para socar de leve seu punho em um cumprimento.

 

Fabian tomou-lhe a mão. Ela olhou para ele com uma certa surpresa. Ele pôs os lábios perto do ouvido dela.

 

Sua voz, quando falou, era instável.

 

– Tash, cara, Pete tá aqui?

 

Ela olhou para ele, franziu o cenho zombeteiramente, fez que sim.

 

– Sim. Estamos praticando. Pro Junglist Terror.

 

Fabian começou a puxá-la.

 

– Tash, temos que ir. Quero que você venha comigo. Prometo que vou explicar, mas venha comigo agora...

 

– Ah, não. – Não parecia zangada ou perturbada. Mas afastou-se dele com cuidado e começou a fechar a porta. – Tenho que tocar algumas músicas com ele.

 

Fabian empurrou a porta e a agarrou. Manteve sua boca fechada com a mão direita. Ela lutava, os olhos arregalados de repente, mas conseguiu arrastá-la para a porta.

 

Os olhos dele formigavam quando sussurrou para ela:

 

– Tash por favor você não entende ele tem alguma coisa a ver com tudo isso temos que ir embora...

 

– Olá, Fabian! Como vai?

 

Pete tinha aparecido no topo da escada. Olhou para baixo, para os dois, o corpo parado no meio de um passo. Sorria amigavelmente.

 

Fabian congelou, assim como Natasha, em seus braços.

 

Fabian olhou para o rosto de Pete. Estava branco, entrecruzado por horríveis arranhões semicicatrizados, sangrentos e confusos. Ostentava sua expressão alegre afetada de sempre, mas os olhos o traíam agora, um pouco abertos demais, encarando de forma dura demais.

 

Fabian percebeu que estava com muito medo de Pete. Imaginou quanto tempo mais faltaria para Crowley chegar.

 

– Ei, Pete, cara... – murmurou. – Ahn... eu estava querendo... eu e Tash podemos dar uma volta rápida... hm...

 

Pete balançou a cabeça, parecendo divertido e magoado.

 

– Oh, Fabian, vocês não podem ir. Venha ouvir o que temos tocado.

 

Fabian balançou a cabeça e cambaleou para trás.

 

– Natasha? – disse Pete, voltando-se para ela. Assobiou alguma coisa muito rápida. Instantaneamente Natasha girou nos braços de Fabian e torceu a perna, tirando os pés debaixo dele e chutando a porta para que se fechasse, em um só movimento. Ficou parada enquanto ele caía contra a porta. Olhou para ela e viu que seus olhos já tinham recuperado o foco, perdido por poucos segundos.

 

Fabian se atrapalhava com o fecho da porta às suas costas, a boca aberta, as pernas tremendo enquanto se erguia.

 

– Veja, Fabe – disse Pete razoavelmente, descendo em direção a ele. – É simples. – Natasha permaneceu parada e olhou para ele enquanto se aproximava. – Não sei muito bem o que você descobriu ou como e estou impressionado, realmente estou, mas e agora? O que fazer com você? Poderia matá-lo, como fiz com Kay, mas acho que tenho uma idéia melhor.

 

Um pequeno ruído nervoso e assustado saiu da garganta de Fabian. Kay... o que tinha acontecido com ele?

 

– Mas, enfim, a primeira coisa é que acho você deve vir aqui pra cima. – Pete se moveu rumo à sala acima deles, e os fracos sons de jungle que vinham sendo filtrados escada abaixo pareceram inchar, a música melancólica que ele tinha ouvido lá de fora estava subitamente enchendo a cabeça de Fabian. E era uma música tão bela, que o levou totalmente para longe...

 

E o fez pensar em tantas coisas...

 

Estava na escada, percebeu, e depois estava no quarto, mas não se importava com isso, porque o importante era que precisava ouvir aquela música. Tinha alguma coisa nela...

 

Parou e prendeu a respiração, vacilou, sentiu como se estivesse sufocando.

 

O cômodo estava em silêncio. Pete tinha uma das mãos no botão de liga/desliga do sequenciador. Natasha estava parada ao lado dele, com os braços caídos, o mesmo olhar de algo à deriva. Com a mão esquerda, Pete segurava uma faca de cozinha junto à garganta dela. Ela gentilmente mantinha a cabeça levantada.

 

Fabian abriu a boca em horror e gesticulou para os dois, congelados como uma cena de assassinato com bonecos de cera. Emitiu sons incipientes.

 

– Sim sim sim, Fabian. Responda ou corto a garganta dela. – A voz de Pete ainda era comedida, cortês. – Mais alguém está vindo?

 

Os olhos de Fabian voaram pela sala, enquanto tentava avaliar a situação. Berrou quando Pete pressionou a faca na garganta dela e o sangue brotou em volta da lâmina.

 

– Sim! Sim! A polícia está vindo! – Fabian gritou. – E vão levar você, seu filho de uma puta...

 

– Não – disse Pete. – Não, não vão.

 

Soltou Natasha e ela tocou o pescoço, curiosa, o rosto se contraindo, perturbada e confusa por causa do sangue. Ela pegou seu travesseiro e pressionou na lateral do pescoço, observando-o manchar-se de vermelho.

 

Pete manteve os olhos em Fabian. Procurou na parte superior do teclado e recolheu algumas DATs1 que estavam ali.

 

– Tash? – ele disse. – Pegue sua bolsa de vinis e alguns doze polegadas. Vamos dar uma peneirada no material para o Junglist Terror. – Sorriu para Fabian.

 

Fabian disparou para a porta. Escutou um fraco sussurrar e sua panturrilha esquerda explodiu em agonia. Caiu gritando. A faca de cozinha estava cravada profundamente no músculo de sua perna. Tateou com os dedos ensanguentados e gritou assim que recuperou a respiração.

 

– Viu? – disse Pete, parecendo divertido. – Posso fazer você dançar a minha música, mas foda-se, às vezes outros métodos funcionam. – Parou ao lado de Fabian.

 

Fabian fechou os olhos e deitou a cabeça no chão. Estava prestes a desmaiar.

 

– Você vai ao Junglist Terror, não vai, Fabe? – disse Pete. Atrás dele, Natasha silenciosamente juntava suas coisas. – Pode não estar com vontade de dançar agora, mas prometo que vai querer. E poderá me fazer um favor.

 

A leve batida percussiva do drum and bass que soprava em Bassett Street foi lavada, reduzida a nada pelas sirenes. Dois carros de polícia deslizaram até parar do lado de fora da casa. Homens e mulheres uniformizados saltaram e correram para a porta. Crowley ficou ao lado de um dos carros. Atrás dele, os moradores espiavam para fora de suas portas e janelas.

 

– Vocês vieram por causa de toda aquela gritaria? Foi rápido – disse um idoso para Crowley, com aprovação.

 

Crowley desviou o olhar ao sentir o estômago bocejar. Estava enjoado, com um mau pressentimento.

 

Perto da porta, uma bicicleta estava caída na calçada. Crowley olhou para ela enquanto o aríete cuidava da porta. A polícia zarpou escada acima em uma massa confusa. Crowley viu as armas em riste.

 

Um pesado som de pés se fez ouvir na casa, audível da rua. A fraca batida do jungle sofreu uma parada abrupta. Crowley entrou depois da primeira leva até o corredor. Correu pelos degraus e esperou na porta da frente do apartamento.

 

Uma mulher baixa em uma jaqueta à prova de balas aproximou-se dele.

 

– Nada, senhor.

 

– Nada?

 

– Foram embora, senhor. Nem sinal. Acho que deveria ver isso.

 

Ela o levou para dentro do apartamento. Estava lotado de corpos pesados. O ar era cheio de vozes autoritárias, os sons da busca.

 

Crowley olhou em volta para as paredes nuas da sala de estar. Na entrada do cômodo havia uma poça de sangue, ainda úmida e pegajosa. Uma das almofadas brancas do futon tinha uma profunda mancha vermelha.

 

O teclado, o aparelho de som, uma bolsa de mão... tudo estava intacto. Crowley caminhou até o toca-discos. Um single doze polegadas repousava sobre ele. A agulha tinha pulado, jogada para fora de seu curso pela vibração das pesadas botas da polícia. Crowley xingou.

 

Quando falou, sua voz era alta e pingava bile.

 

– Imagino que ninguém tenha visto quanto desse disco já tinha tocado. Não?

 

Todos olharam para ele sem compreender.

 

– Porque assim poderíamos ter visto há quanto tempo eles partiram.

 

Olharam para o lado, mal-humorados. Da próxima vez, você que tente caçar uma merda de um lunático parando para tomar notas, senhor, disseram com cada olhar e gesto.

 

Para o inferno com eles, pensou Crowley, furioso. Que vão para a puta que os pariu. Olhou para o sangue no chão e no travesseiro. Olhou pela janela, para fora. Os policiais detinham a crescente multidão. A bicicleta jazia solitária, ignorada.

 

Fabian, Fabian... pensou Crowley. Eu perdi você, perdi você. Você era a minha pista, Fabian, e agora se foi.

 

Inclinou-se e descansou a cabeça nos braços, no peitoril da janela.

 

Fabian, Natasha, para onde vocês foram?, pensou. E com quem?

 

1 DATs = Fitas DAT (Digital Audio Tape). Tipo de fita que grava sons digitalmente, logo, sem ruído ou perda de qualidade. Usadas em estúdios de gravação nos anos 90, quando HDs (discos rígidos) ainda eram pequenos, caros e lentos demais para áudio.

 

Notas rabiscadas começaram a aparecer nos muros. Em uma letra ao mesmo tempo gótica e iletrada, rogavam para que Saul aceitasse a paz. Eram gravadas no tijolo, rabiscadas a lápis, pulverizadas com aerossol.

 

A primeira, Saul encontrou na lateral de uma chaminé na qual tinha decidido dormir.

 

Escuta, filho, ela dizia. Somos do mesmo sangue e sangue.

 

FALA ALTO ENTÃO VAMO DEIXAR TUDO PRA LÁ. DOIS MELHOR QUE UM TU SABE E NA VERDADE DOIS PODE SER O DIABO.

 

Saul correu os dedos pelos finos arranhões e vasculhou o telhado. O fedor de Rei Rato estava no ar, podia sentir claramente. Os ratos que estavam com ele tinham eriçado os pelos e se preparado para morder ou fugir. Nunca ficava sozinho agora, mas sempre cercado por um grupo cujo número era imutável, ainda que os indivíduos que o formavam mudassem.

 

Saul e sua comitiva se abaixaram no telhado e farejaram o ar. Ele não tinha dormido junto às chaminés naquela manhã.

 

Na noite seguinte, acordou em um canto do esgoto que tinha escolhido e, pintada acima de sua cabeça, estava outra mensagem. Esta era em tinta branca, que tinha pingado e deslizado para baixo das paredes até a água suja, quase deixando as palavras ilegíveis.

 

OLHA TU NÃO TÁ AJUDANDO NINGUÉM SÓ O FLAUTISTA.

 

Fora escrita enquanto estava dormindo. Rei Rato o estava perseguindo, com medo de falar mas desesperado por reconciliação.

 

Saul ficou com raiva. A facilidade com que Rei Rato ainda era capaz de esgueirar-se por perto dele o irritou. Percebeu que era apenas um bebê, um pequeno filhote de rato.

 

Não conseguia pensar se Rei Rato estava ou não certo. Era irrelevante. Já tinha aguentado o suficiente. Rei Rato, o estuprador e assassino, destruidor de sua família, não tinha direito à sua colaboração. Rei Rato lançara o Flautista contra ele, Rei Rato transformara Saul no que ele era. Libertara-o apenas para que entrasse em uma nova prisão.

 

Então foda-se Rei Rato, pensou Saul. Estava cansado de bancar a isca. Sabia que Rei Rato não era confiável.

 

Pensou então no que poderia fazer por conta própria.

 

Por mais que se sentisse livre, por mais que se sentisse poderoso, Saul não sabia o que fazer. Não sabia onde o Flautista vivia. Não sabia quando o Flautista atacaria. Não sabia absolutamente nada, exceto que ele próprio não estava seguro.

 

Saul começou a pensar mais e mais em seus amigos. Passou um bom tempo falando com os ratos, mas eram só espertos, não inteligentes, e sua estupidez o alienava. Lembrou-se de seus pensamentos na noite em que deixara Rei Rato, a percepção de que era sua a decisão de deixar ou não aquele mundo cruzar com o de Fabian e os outros.

 

Queria ver Fabian mais do que qualquer coisa.

 

Uma noite, pediu que os ratos o deixassem sozinho. Obedeceram de imediato, desaparecendo em uma rajada repentina. Saul começou a cruzar a cidade, mais uma vez sozinho.

 

Imaginou se Rei Rato estava com ele, se o estava observando. Desde que o filho da puta ficasse à distância, Saul decidiu, não se importava.

 

Saul atravessou o rio sob a Ponte da Torre. Balançou-se como um macaco ao longo das vigas que infestavam sua parte inferior, um complicado arvoredo de cabos e tubos enormes. No meio, bem no ponto em que a ponte podia se dividir e abrir-se para os navios mais altos, parou e pendurou-se pelas mãos, balançando-se de leve.

 

O céu lhe foi tomado; a grande massa da ponte acima dele era tudo o que podia ver. No canto da visão, edifícios apareciam novamente sobre o rio. Mas em sua maior parte a cidade estava invertida e refratada no Tâmisa, um espelho partido e sinuoso. Luzes brilhavam sobre a água, formas escuras pontuadas por centenas de pontos de luz, as torres da cidade, as luzes distantes do South Bank Centre, muito mais reais para ele, então, do que suas contrapartes no céu acima.

 

Olhou para a cidade abaixo de seus pés. Era uma ilusão. O movimento cintilante das luzes que via não era a cidade real. Faziam parte dela, claro, uma parte necessária... mas as belas luzes, muito mais vivas do que aquelas acima, eram um simulacro. Meramente pintavam a tensa superfície das águas. Abaixo dessa fina camada, a água ainda estava suja, ainda perigosa e fria.

 

Saul apegou-se a isso. Resistia à poética da cidade.

 

Caminhou rápido, fazendo com que os pedestres o ignorassem, sendo nada para eles. Andou pelas ruas como uma cifra, invisível. Às vezes, parava muito quieto e escutava, para ver se estava sendo seguido. Não via ninguém, mas não era tão ingênuo a ponto de pensar que aquilo era conclusivo.

 

Aproximou-se de Brixton pelas ruas transversais, pois não queria correr pela sua gama de luz e multidões. Sua pulsação subiu. Estava nervoso. Não falava com Fabian há tanto tempo, tinha medo de que já não se entendessem. Como ele soaria para Fabian agora? Será que soaria estranho, soaria meio rato?

 

Chegou à rua de Fabian. Uma senhora idosa passou por ele, dobrada sobre si mesma, e então ficou sozinho.

 

Algo estava errado. O ar parecia carregado. Pessoas se moviam por trás das cortinas brancas do quarto de Fabian. Saul ficou imóvel. Olhou para a janela, viu os movimentos vagos de homens e mulheres lá dentro. Andavam de forma incerta, investigando. Com um horror crescente, Saul imaginou-os lá dentro abrindo gavetas, examinando livros, olhando para o quadro de Fabian. Sabia quem se movia daquele jeito.

 

O comportamento de Saul mudou. Antes seus ombros estavam caídos, ele estava preso a uma postura monótona, algo que era visto mas não notado, seu disfarce para as ruas. Agora, desenrolava-se e afundava na direção da calçada. Inclinou-se em um estalo repentino de movimento, ao mesmo tempo já deslizando encostado ao muro baixo. Rastejou através da estreita faixa de jardim, dos pequenos pátios desconexos.

 

Estava realmente invisível agora. Podia sentir isso.

 

Esgueirou-se discretamente ao longo da parede, súbitas explosões de movimento intercaladas com um silêncio sobrenatural. Seu nariz se torceu. Farejou o ar.

 

Saul parou diante da casa de Fabian. Sem emitir som, saltou o muro baixo e pousou já agachado embaixo da janela. Colocou o ouvido na parede.

 

A arquitetura traiu quem estava lá dentro. Vozes ásperas escoavam para fora através de fendas e regatos entre os tijolos.

 

– ...mas não gosto desse maldito quadro...

 

– ...sabe que o detetive tá totalmente perdido nisso. Quero dizer, porra, ele pirou...

 

– ...meu Deus, Morris, por que implicar com ele?... Pensei que fosse um amigo...

 

A polícia falava em um fluxo interminável de banalidades, clichês e palavreado inútil. Seu discurso não servia a propósito algum, pensou Saul em desespero, a nenhuma merda de propósito. Ele ansiava por uma conversa, por comunicação, e ouvir palavras desperdiçadas daquela forma... sentiu vontade de chorar.

 

Havia perdido Fabian. Colocou a cabeça entre as mãos.

 

– Ele foi, menino. Tá com o Homem agora.

 

A voz de Anansi era suave e muito próxima.

 

Saul esfregou os olhos sem abri-los. Respirou profundamente. Finalmente, olhou para cima.

 

O rosto de Anansi pairava em frente ao seu, suspenso de cabeça para baixo. Os olhos estranhos estavam muito próximos, olhando direto para Saul.

 

Saul encarou-o com calma, mantendo o olhar. Então, deixou os olhos deslizarem para cima casualmente, examinando a posição de Anansi.

 

Anansi estava pendurado em uma de suas teias, presa no telhado. Agarrava-a com as duas mãos, sustentando sem esforço seu peso, os pés descalços entrelaçados na fina corda branca. Enquanto Saul observava, as pernas de Anansi se desacoplaram das fibras e giraram lenta e silenciosamente pelo ar. Os olhos fixos nos de Saul, mesmo enquanto seu rosto girava em cento e oitenta graus.

 

Os pés tocaram o concreto com um pequeno tapa.

 

– Você muito bom agora, sabe, criança. Não é fácil te seguir agora.

 

– Por que fez isso? Papai mandou você? – A voz de Saul era fulminante.

 

Anansi riu sem som. Sorriu preguiçosamente, predatório – o grande homem-aranha.

 

– Agora vem. Quero te falar. – Anansi apontou para cima com um dedo comprido. Depois, mão ante mão, pareceu cair corda acima, puxado de repente para fora da vista.

 

Saul deslizou em silêncio para a esquina do prédio e agarrou-a dos dois lados. Alçou-se para fora do chão.

 

Anansi estava à espera. Sentava-se de pernas cruzadas sobre o telhado. A boca se mexia como se estivesse se preparando para dizer algo desagradável. Balançou a cabeça em uma saudação a Saul e indicou com um aceno que ele deveria se sentar à sua frente.

 

Em vez disso, Saul entrelaçou os dedos atrás da cabeça e se afastou. Olhou para o horizonte de Brixton.

 

Havia barulho das ruas por toda parte.

 

– O Sr. Ratão já tá maluco de esperar por você – Anansi falou calmamente.

 

– O filho da puta não devia ter me usado como isca, então – disse Saul equilibradamente. – O filho da puta estuprador não devia ter matado meu pai.

 

– Ratão seu pai.

 

Saul não respondeu. Esperou.

 

Anansi voltou a falar.

 

– Loplop voltou e tá louco da vida com você. Te quer morto de verdade.

 

Saul virou-se, incrédulo.

 

– Por que merda ele tá zangado comigo?

 

– Você deixou ele surdo, sabe, e também deixou ele louco outra vez, louco de cabeça.

 

– Ah, puta que o pariu – cuspiu Saul. – Nós dois estávamos prestes a ser mortos. Ele estava prestes a me matar e se foder todo em seguida. Acho que o babaca do Flautista cansou de brincar com a gente, sabe? Acho que ele só quer que a gente morra agora, todos os reis. Loplop teria morrido, caralho, eu salvei a vida dele...

 

– Sim, cara, mas ele te salvou. Podia ter olhado enquanto o homem-flauta te matava, mas tentou te salvar e você fodeu com o ouvido dele...

 

– Isso é uma grande bobagem, Anansi. Loplop tentou me salvar porque todos vocês... todos vocês... sabem que o Flautista não pode me conter, e todos vocês sabem que sou a única coisa que pode detê-lo.

 

Houve um longo silêncio.

 

– Bom, Loplop louco, de qualquer jeito. Não vai ficando muito perto dele agora.

 

– Ótimo – disse Saul.

 

De novo, uma longa pausa.

 

– O que você quer, Anansi? E o que você sabe sobre Fabian?

 

Anansi chupou os dentes em desgosto.

 

– Você ainda tá verde, menino, verdade. Claro que você tem os ratos tudo do teu lado, mas não sabe o que fazer com eles. Ratos em todo lugar, menino. Aranhas em todo lugar. Eles teus olhos, os ratos. Minhas aranhinhas me falam o que o bandido faz com seus amigos. Você nunca pergunta. Não ligou até agora.

 

– Amigos?

 

Anansi torceu o rosto e olhou para Saul com desdém.

 

– Ele matou o menino gordo. – As mãos de Saul tremularam sobre seu rosto. Sua boca ficou fechada, mas quase vacilou. – Ele tomou o menino preto e a menininha DJ.

 

– Natasha – resfolegou Saul. – O que ele quer com ela... ? Como ele sabe quem são eles... ? Como ele consegue isso? – Saul agarrou a cabeça com as mãos, começou a bater em si mesmo de desespero. Kay, pensou, Natasha, bateu-se mais, o que estava acontecendo?

 

Anansi chegou para mais perto. Mãos fortes agarraram seus punhos.

 

– Para agora! – Anansi estava horrorizado.

 

Animais não machucam a si mesmos, Saul compreendeu. Havia ainda um humano dentro dele, então. Sacudiu-se e parou.

 

– Temos que resgatá-los. Temos que encontrá-los.

 

– Como, menino? Cai na real.

 

A cabeça de Saul rodopiava.

 

– O que ele fez com Kay?

 

Anansi apertou os lábios.

 

– Ele desmantelou o menino.

 

Correram por um tempo, então subiram uma curta ladeira e chegaram a Brixton Rec, o centro esportivo. Podiam ouvir o barulho fraco da MTV vindo da sala de musculação lá embaixo. Saul parou na extremidade do telhado, um pouco à frente de Anansi. Enfiou as mãos nos bolsos.

 

– Você podia ter me contado, sabe... – disse. Ouviu a si mesmo e odiou seu tom lamentoso. Deu meia volta, olhou para Anansi, que estava muito quieto, braços cruzados sobre o peito nu.

 

Anansi chupou os dentes em desprezo.

 

– Tsc, menino, você ainda tá cheio de porcaria até a boca. Você fala de como o Ratão é teu pai? O que me interessa te dizer isso?

 

Saul olhou para ele. Anansi insistiu.

 

– O que me interessa te dizer isso? Hmmm? Olha, menino, criança, me ouve agora. Eu uma aranha enorme, entende? O Ratão, ele um rato. Loplop o pássaro, o Pássaro Superior. Agora você, você um mestiço estranho, verdade, por que a gente ia te falar uma coisa dessa? Te digo só o que quero que tu saiba. Sempre, isso posso te prometer. Sem hipocrisia agora, entende, menino? Não precisa. Animal que nem eu não precisa disso. Você deixa isso pra trás. Pode contar comigo pra ser só confiável, nunca mais do que isso, mas nunca menos do que isso. ‘Tendeu?

 

Saul nada disse. Observou um trem chegar à estação de Brixton e então partir de novo.

 

– Loplop ia contar ao Flautista onde eu estava? Vocês todos iriam atrás dele quando ele tentasse me pegar? – perguntou, finalmente.

 

Anansi deu de ombros, de forma quase imperceptível.

 

Caminharam ao lado da linha férrea, a ferrovia da British Rail que se levantava acima do mercado e das ruas. Perambularam sem falar, rumo a Camberwell. Saul gostou da companhia, admitiu, mas era longe de ser o que tinha esperado para aquela noite.

 

– Como ele conseguiu achar meus amigos? – disse Saul. Tinham se sentado sobre um trepa-trepa no pátio de uma escola qualquer.

 

– Ele procura tudo teus livros e coisas. Encontra uns endereços com certeza.

 

Claro, pensou Saul. Minha culpa.

 

Estava entorpecido. Se ainda fosse humano, percebeu, estaria em estado de choque. Mas não era, não mais; era meio rato e sentiu-se acostumado com a ideia.

 

Anansi estava muito quieto. Não fez nenhuma tentativa de convencer Saul a voltar para Rei Rato ou fazer qualquer outra coisa.

 

Saul olhou-o com curiosidade.

 

– Rei Rato sabe que você está aqui? – perguntou.

 

Anansi assentiu.

 

– Ele pediu que você dissesse alguma coisa? Me levasse de volta?

 

Anansi deu de ombros.

 

– Ele te quer de volta, claro. Você útil, sabe? Mas ele sabe que não adianta falar pra você fazer nada se você não quiser. Você sabe o que ele quer. Se você quiser voltar, vai voltar.

 

– Você... você entende por que eu não vou voltar?

 

Anansi olhou em seus olhos. Gentilmente, balançou a cabeça.

 

– Não, menino, não mesmo. Você pode sobreviver melhor com ele, com a gente, de verdade. E você é rato. Você devia voltar. Mas eu sei que você não pensa desse jeito. Eu não sei o que você é, menino. Você não pode ser rato, você não pode ser homem. Eu não entendo nada de você, mas tudo bem, porque sei agora que nunca vou entender nada de você, nem você de mim. Nós não somos parecidos.

 

De madrugada, depois de terem comido, ficaram em uma entrada para os esgotos. Anansi olhou para trás, planejando seu percurso até o teto do armazém ao lado deles. Olhou de volta para Saul.

 

Saul estendeu a mão. Anansi a agarrou.

 

– Você é a única esperança, menino. Volta pra nós.

 

Saul sacudiu a cabeça e retorceu-se, desconfortável com a intensidade súbita do aperto de mão.

 

Anansi assentiu com a cabeça e soltou a mão.

 

– Te vejo por aí.

 

Voltou-se e atirou uma de suas cordas sobre uma saliência, desaparecendo velozmente parede acima.

 

Saul observou-o partir. Virou-se e examinou onde estava. A grade de um pátio cheio de gigantescas peças de maquinário. Ganhavam um ar solene naquele escuro, pareciam vagamente patéticos. Não havia estradas visíveis e Saul aproveitou o momento de solidão. Então, estendeu a mão sem olhar e arrancou a grade do solo.

 

Hesitou.

 

Sabia que havia pouco sentido em procurar Natasha e Fabian. A cidade era tão grande, os poderes do Flautista tão prodigiosos, que não seria difícil para ele esconder dois seres humanos. Mas também sabia que não podia suportar deixá-los em seu poder. Sabia que tinha de procurá-los, nem que fosse para provar que ainda era meio humano. Porque estava inquieto com sua passividade, sua aceitação, a velocidade com que havia entendido a ausência deles como inevitável, feita, como algo acabado. Estava se tornando embotado. A morte de Kay fora totalmente irreal para ele, mas aquela era uma reação humana. Mais perturbadora para ele era sua reação ao sequestro de seus dois amigos mais próximos pelo Flautista.

 

A aceitação do inaceitável era uma espécie de estoicismo reacionário, uma dinâmica que entorpecia seus sentimentos pelos outros. Sentia aquilo dentro de si, uma crescente percepção, um foco hiper-real no aqui e agora. Aquilo o assustava. Não tinha como enfrentá-lo, não podia decidir o que sentir e o que não sentir, mas podia desafiá-lo com suas ações. Podia mudar tudo ao se recusar a se comportar de acordo com o que sentia. Abominou sua própria reação, seu próprio sentimento. Era uma característica animal.

 

Saul soube que algo estava errado assim que entrou no esgoto.

 

Os sons, sons nos quais havia se acostumado a imergir, estavam ausentes. Quando seus pés tocaram a água corrente ele se agachou, de súbito repleto de energia animal. As orelhas se mexiam. Sabia o que estava faltando. Ao entrar nos esgotos, deveria penetrar uma rede quase inaudível de coçadas e escorregadelas, os ruídos de seu povo. Deveria ouvi-los bem no limite de sua audição-de-rato, subsumi-los em seu interior, torná-los uma parte sua, usá-los para definir seu tempo na escuridão.

 

Os sons estavam faltando. Não havia ratos à sua volta.

 

Abaixou-se sem esforço, deslizando no lodo orgânico. Estava em total silêncio, as orelhas se contraindo. Tremia.

 

Podia ouvir o gotejar constante e suave dos túneis, a rasa corrente de água viscosa, o sussurro lamentoso de mornos ventos subterrâneos, mas seu povo havia sumido.

 

Saul fechou os olhos, ficou imóvel dos dedos dos pés para cima. Suas juntas deixaram de funcionar umas sobre as outras; baniu o som de seu sangue, desacelerou seu coração, dispensou todos os pequenos ruídos do seu corpo. Tornou-se parte do solo do esgoto – e ouviu.

 

A quietude dos túneis o apavorou.

 

Encostou uma orelha suavemente no chão. Podia sentir vibrações de todos os cantos da cidade.

 

Bem ao longe, algo soou.

 

Um som em tons muito altos.

 

Saul ficou de pé num estalo. Suava e tremia violentamente.

 

O Flautista tinha vindo aqui? Estava nos esgotos?

 

Saul correu pelos túneis. Não sabia para onde estava correndo. Correu para matar o tremor das pernas, o terror que sentia.

 

O que ele estava fazendo aqui?

 

Passou correndo por uma escada. Talvez devesse ir embora, talvez fosse tempo de deixar os esgotos e fugir pelas ruas acima, pensou, mas droga, aquele era o seu espaço, seu porto seguro... não deixaria que o tirassem dele.

 

Parou de repente e levantou a cabeça, ouvindo mais uma vez.

 

O som da flauta estava um pouco mais perto agora e ele podia ouvir um arranhar ao fundo, o som de garras no concreto.

 

A flauta escorregava violentamente para cima e para baixo na escala, uma cacofonia de colcheias perseguindo umas às outras em direções loucas. A flauta e as garras estavam estranhamente estáticas. Não chegavam mais perto nem se afastavam.

 

Havia algo estranho naquele som, Saul percebeu. Escutou. Inconscientemente, apoiou-se nas paredes do túnel, abriu os braços, um acima dele, um para o lado, as pernas ligeiramente separadas, cada uma subindo o suave declive do túnel cilíndrico. Estava enquadrado pela passagem.

 

A flauta trinava e agora Saul podia ouvir outra coisa, uma voz que se levantava em angústia.

 

Loplop. Gritando, emitindo gritos sem sentido e desesperados.

 

Saul avançou, seguindo os sons através do labirinto. Permaneciam parados. Achou seu caminho pela escuridão em direção a eles. Loplop ainda berrava de forma intermitente, mas seus gritos não eram dolorosos, nem torturados, mas infelizes. A voz de Loplop se destacou dos arranhões – um arranhar ordeiro, Saul percebeu, um arranhar cronometrado e sobrenatural.

 

Os sons se separavam dele agora apenas por uma parede fina e soube que estava a um mero dobrar de esquina da congregação. Os tremores retornaram ao corpo de Saul. Lutou para se controlar. O terror o tomava. Lembrou-se da velocidade estonteante com que o Flautista se movia, o poder de seus golpes. A dor em seu corpo, a dor que ele tinha conseguido esquecer, ignorar, foi reavivada e correu através dele.

 

Saul não queria morrer.

 

Mas havia algo errado com aquele som.

 

Saul pressionou-se com força contra a parede e engoliu em seco várias vezes. Avançou com cuidado até o entroncamento com o túnel que continha os sons. Estava com muito medo. As loucas modulações da flauta, os gritos aleatórios de Loplop e acima de tudo o arranhar constante e ordenado contra o concreto – tudo continuava como estava minutos antes. Era alto e tão próximo que o apavorava.

 

Olhou em volta. Não sabia onde estava. Em algum lugar bem fundo, sepultado na vastidão do sistema de esgotos.

 

Enrijeceu-se, moveu a cabeça lentamente e em silêncio pela borda da parede.

 

De início, só pôde discernir os ratos.

 

Um campo de ratos, milhões de ratos; uma massa que começava a poucos metros da entrada do túnel e se multiplicava, corpos empilhados sobre corpos, rato sobre rato, uma ladeira acentuada de pequenas barrigas, peitos e pernas quentes. Uma montanha em movimento, substituindo aqueles que caíam por sangue novo, derrotando o impulso da gravidade em nivelar suas laterais impossivelmente íngremes. Os ratos ferviam uns sobre os outros.

 

Moviam-se ao mesmo tempo, moviam-se juntos.

 

Todos juntos moveram os pés dianteiros direitos, depois todos juntos moveram os esquerdos. Em seguida, as patas traseiras, de novo ao mesmo tempo. Enfiavam as garras uns nos outros, arrancando suas peles, pisoteando os jovens e moribundos – mas estavam unidos. Moviam-se juntos, no tempo daquela música horrenda.

 

O Flautista não estava em lugar algum. Do outro lado da montanha-rato, Saul viu Rei Rato. Não podia ver seu rosto. Mas o corpo se movia na mesma batida que seu povo rebelde e dançava com a mesma intensidade desinteressada, o corpo ficando rígido e espasmódico no tempo da música.

 

Loplop gritou de novo e de novo e Saul pôde vislumbrá-lo, uma figura desesperada diante de Rei Rato, agitando os punhos contra o peito de Rei Rato. Empurrou Rei Rato, tentou movê-lo para trás, mas Rei Rato continuou com sua rígida dança zumbi.

 

E, atrás de todos eles, algo pendurado no teto... algo que emergia, Saul pôde ver, a partir de um fosso que levava para os pavimentos acima. Uma caixa preta, balançando em um ângulo ridículo, a alça amarrada a uma corda suja...

 

Um ghetto-blaster.1

 

Os olhos de Saul se arregalaram de espanto.

 

O filho da puta sequer precisa estar aqui, pensou.

 

Tropeçou para dentro do túnel e se aproximou da massa em ebulição. A flauta era medonha, alta e rápida e insana como um jig irlandês tocado no inferno.2 Saul deu um passo à frente. Começou a passar por ratos extraviados. O ghetto-blaster balançava levemente. Saul entrou na massa de ratos. Já eram tantos, todos à sua volta, e tinha pelo menos dois metros para andar. Era como se todos os ratos do esgoto tivessem ido até ali; monstruosos animais de trinta centímetros de comprimento e bebês choramingas, negros e marrons, esmagando uns aos outros, matando uns aos outros na ânsia de alcançar a música. Saul forçou passagem, sentindo os corpos se contorcerem em torno dele. Mil garras o rasgaram, nunca em antagonismo, apenas no êxtase da dança. Debaixo dos ratos que podia ver estavam camadas que se moviam lentamente, cansadas e morrendo, e abaixo destas estavam ratos que já não se moviam. Saul caminhou com mortos até os joelhos.

 

Rei Rato não se virou, ficou onde estava, dançando na cabeça de seu povo mais uma vez. Loplop viu Saul. Gritou e empurrou Rei Rato, lançou-se através da parede viva na direção de Saul.

 

Estava em ruínas. A roupa estava suja e em farrapos. O rosto contorcido, raiva e confusão alternando-se.

 

Vacilou para a frente dois, três passos, então tropeçou sob o peso dos corpos enfeitiçados. Afundou, afogado na massa borbulhante. Saul o ignorou, com desprezo por ele, enojado.

 

Mas também achou difícil se mover; empurrou os ratos, matando, tinha certeza, a cada passo, a contragosto mas inevitavelmente. Adernou, recuperou o equilíbrio. A flauta cacófona era totalmente ensurdecedora. Saul caiu de repente sobre um dos joelhos e os ratos o usaram como trampolim, saltaram dele, tentando voar para o aparelho de som pendurado.

 

Saul xingou, lutou para ficar de pé, caiu novamente. Ficou furioso, conseguiu levantar-se, derramando ratos para os latos. A poucos metros de distância, podia ver a imagem deprimente do corpo de Loplop se sacudindo abaixo da superfície de ratos, tentando ficar de pé sem sucesso.

 

Saul se sacudiu e corpos marrons giraram no ar. Não conseguia alcançar o aparelho de som. Forçou com os pés, que pareciam tão firmes como em areia movediça. Berrou, de repente furioso, empurrou inexoravelmente através da massa de ratos, tropeçou de novo, levantou-se e forçou caminho, passando por Rei Rato, até o ponto onde os ratos eram mais esparsos e o aparelho de som jazia pendurado a dois metros do chão.

 

Esticou-se para alcançá-lo e viu Rei Rato. Parou de se mover, chocado.

 

Rei Rato estava escravizado, o rosto indolente, as pernas balançando vagamente, despojado de dignidade, um filete de baba pingando de sua mandíbula. Saul olhou, fascinado e horrorizado.

 

Odiava Rei Rato, odiava o que ele tinha feito, mas! algo nele estava chocado em vê-lo tão destituído de poder.

 

Saul virou-se e agarrou a caixa balançante, puxou-a com força, partindo a corda.

 

Despedaçou-a contra a parede.

 

A música parou no instante do impacto. Metal e plástico respingaram da caixa quebrada. Bateu-a mais duas vezes contra o concreto. Os alto-falantes explodiram para fora de seus invólucros. Uma fita voou do tape deck arruinado.

 

Saul virou-se e olhou para a multidão reunida.

 

Estavam parados, confusos.

 

Compreensão e recordação pareceram se abater sobre todos eles ao mesmo tempo. Em pânico, uma enxurrada de ratos aterrorizados emitiu um chiado comunal e desapareceu, correndo uns sobre os outros, tropeçando nos que tinham caído.

 

A montanha desmoronou e desapareceu. Ratos em ruínas e mancos tentaram seguir seus companheiros. A primeira onda havia partido; depois a segunda onda, coxeando atrás deles; e a terceira onda, os moribundos, arrastaram-se para longe, patinando em sangue.

 

O chão estava coberto de corpos. Duas, três camadas de cadáveres. Loplop arrastou-se para um canto. Rei Rato olhou para Saul. Saul olhou de volta por um momento, depois voltou sua atenção para o aparelho de som arruinado. Tateou na lama até encontrar a fita.

 

Limpou-a e examinou o rótulo.

 

Flauta 1, dizia. Escrito à mão. Era a letra de Natasha.

 

– Ah, merda – Saul gritou e empurrou a cabeça contra o braço dobrado. – Ah, merda, ah, deixa eles em paz, seu filho da puta – suspirou.

 

Ouviu Rei Rato se aproximar. Saul olhou para cima rapidamente. Rei Rato parecia desconfortável. Movia-se com gestos de deferência, o ressentimento recurvando sua boca. Estava intimidado, Saul compreendeu.

 

Saul balançou a cabeça.

 

– É só barulho para mim – sussurrou. Balançou a cabeça outra vez, viu os olhos de Rei Rato se abrirem mais. – Só barulho.

 

Com um grito, Loplop viu Saul, correu para ele batendo os braços e seus trapos e tropeçou enquanto corria.

 

Rei Rato se mexeu. Saul espertamente saiu do caminho de Loplop e observou o Pássaro Superior escorregar na lama, desabar em uma queda meio sem controle e bater a cabeça na parede.

 

Saul gesticulou para Rei Rato, dançou alguns passos para trás.

 

– Mantenha esse filho da puta sob controle! – gritou.

 

Loplop ainda gritava, ainda berrava coisas incoerentes quando tentou se levantar. Rei Rato caminhou até onde Loplop patinava na lama e agarrou-o pelo colarinho. Puxou-o e empurrou-o pelo chão escorregadio do esgoto. Loplop lutou e choramingou. Na entrada do túnel, Rei Rato agachou-se diante dele, apontou o dedo na cara de Loplop. Saul não sabia se ele estava falando com Loplop ou simplesmente mantendo-o calmo com os olhos. Algum tipo de comunicação ocorreu entre eles.

 

Loplop olhou para além de Rei Rato, para Saul. Parecia assustado e com raiva. Rei Rato fez com que voltasse a olhar para ele e pareceu dizer algo, gesticulando. Os olhos de Loplop voltaram-se de novo para Saul e a mesma raiva o preencheu como antes, mas ele recuou, afastou-se pelos túneis, desapareceu.

 

Rei Rato voltou-se para Saul.

 

Enquanto Rei Rato caminhava de volta em meio aos corpos dos ratos, Saul viu que ele tinha recuperado sua arrogância furtiva. Tinha se recomposto.

 

– De volta, então? – Rei Rato perguntou casualmente.

 

Saul ignorou-o. Olhou para cima, para o fosso do qual tinha arrancado o aparelho de som. Vários metros acima, via-se uma grade e acima dela o monótono negro alaranjado da cidade à noite. Algo estava afixado no interior do estreito fosso.

 

– Então pra quê você tá aqui, chapa? – perguntou Rei Rato, com casualidade desgastada e afetada.

 

– Vai se foder – respondeu Saul calmamente. Estava na ponta dos pés, esticado no túnel vertical. Podia sentir um pedaço de papel batendo com o vento. Agarrou-o, puxou suavemente, mas só conseguiu rasgar um dos cantos.

 

Olhou para baixo por alguns instantes. Rei Rato estava perto dele, as mãos seguras, com incerteza, na altura do peito.

 

Saul olhou para os corpos em volta.

 

– Outra bela demonstração de capacidade de liderança, então, Papai.

 

– Vai se foder, seu mesticinho de bosta, eu mato você...

 

– Ah, dá um tempo, velho – disse Saul, enojado. – Você precisa de mim, você sabe, eu sei, então cala a boca e para com essas ameaças estúpidas. – Voltou a atenção para o túnel. Saltou e agarrou o papel, puxando-o para baixo ao cair.

 

Saiu em suas mãos. Abriu-o.

 

Era um cartaz.

 

Tinha sido desenhado por alguém com Adobe Illustrator, estética ginasial e muito tempo livre. Berrante e confuso, uma mixórdia de fontes e tamanhos, informações aglomeradas e detalhes lutando por espaço.

 

Um desenho tomava a maior parte da folha: um homem grotescamente musculoso de óculos escuros, de pé e impassível atrás de um par de picapes.3 Estava de braços cruzados e a escrita caótica explodia à sua volta.

 

Junglist Terror!!!, exclamava.

 

Uma noite de Extrema Maldade Drum’an’Bass!

 

Entrada 10 libras, exclamava, e dava o endereço de um clube no Elephant and Castle, nos ermos do sul de Londres; e uma data, uma noite de sábado no início de dezembro.

 

Apresentando os maiorais: Three Fingers, Manta, Ray Wired, Rudegirl K, Natty Funkah…

 

Rudegirl K. Aquela era Natasha.

 

Saul deixou escapar um pequeno grito. Inclinou-se ligeiramente, sem fôlego.

 

– Ele está nos contando – sussurrou para Rei Rato. – Está nos convidando.

 

Algo estava rabiscado na parte inferior do cartaz, um adendo em uma estranha letra ornamentada. Também apresentando um convidado especial!, proclamava. Fabe M! 4

 

Meu Deus, ele era patético!, pensou Saul. Afundou lentamente para trás, contra a parede, enquanto agarrava o papel. Fabe M! Olha, ele está tentando brincar, pensou Saul, mas este não é seu ambiente, ele não sabe o que fazer, não sabe jogar com estas palavras...

 

Aquilo o fez se sentir obscuramente confortado. Mesmo na infelicidade de saber que seus amigos estavam nas mãos dessa criatura, esse monstro, esse espírito avarento, sentiu um triunfo na inépcia com que seu adversário tropeçava no jargão. Estava tentando soar indiferente, rabiscando uma adição no estilo drum and bass, mas a linguagem era desconhecida e tinha tropeçado. Fabe M! Soava estúpido e artificial. Queria que Saul soubesse que ele tinha Fabian, que Fabian estaria no clube, mas não estava em seu terreno e a afetação desajeitada mostrava isso.

 

Saul flagrou-se rindo, quase com tristeza.

 

– O bastardo não vai mais brincar. – Esmagou o papel e jogou-o em Rei Rato, que pairava em volta nervoso, ressentido. Rei rato pegou-o no ar. – O filho da puta tá dizendo pra irmos até lá e pegá-los – disse Saul, enquanto Rei Rato abria a folha de papel.

 

Saul empurrou Rei Rato para passar, chutou seu caminho pelos corpos dos ratos mortos.

 

– Ele tá agindo como um vilão de James Bond de merda – disse. – Ele quer a mim. Sabe que eu irei até ele se balançar meus amigos na minha frente.

 

– Então, o que um rato deve fazer? – disse Rei Rato.

 

Saul virou-se e olhou para ele. Soube, meio que de repente, que seus olhos eram ocultos para Rei Rato assim como os de Rei Rato eram para ele.

 

– O que eu vou fazer? – disse Saul lentamente. – Uma armadilha só é uma armadilha se você não souber dela. Se você sabe dela, é um desafio. Vou até lá, claro. Vou ao Junglist Terror. Para resgatar meus amigos. – Podia sentir aquele sentimento dentro dele que o tinha perturbado antes, uma parte dele dizendo foda-se, não vá, não é mais problema seu.

 

Aquele era o sangue de Rei Rato. Saul não quis escutá-lo. Sou o que faço, pensou furioso.

 

Houve um longo silêncio entre os dois.

 

– Sabe de uma coisa? – Saul disse finalmente. – Acho que você deveria vir também. Acho que você vai.

 

1 Ghetto-blaster: rádio portátil enorme, com dois alto-falantes, ícone das cenas hip hop e house dos anos 80 e 90.

2 Jig: Tipo de música e dança folclóricas da Irlanda.

3 Picapes (ou turntables): toca-discos profissionais, para DJs.

4 Em inglês, “Fabe M” soa como Fabian.

 

Esquadrões de ratos se espalhavam por Londres. Saul discursou para eles em becos fétidos, atrás de grandes lixeiras de plástico. Enfureceu-se ao falar para eles sobre o Flautista, contou-lhes que seu dia havia chegado.

 

As imensas fileiras de ratos tremiam, inspiradas. Os focinhos se contorciam; sentiam o cheiro da vitória. As palavras de Saul quebravam sobre eles como marés, levando-os para cima. Comunicava-se com eles através do tom; sabiam que eram comandados e, depois de séculos se escondendo, furtivos, tornaram-se corajosos, inchados com um fervor milenar.

 

Saul ordenou que se preparassem. Ordenou que procurassem o Flautista, que trouxessem informações até Saul, que encontrassem seus amigos. Ele os descreveu, o homem negro e a mulher baixa que eram mantidos como reféns pelo Flautista. Os ratos não se preocupavam com as pessoas capturadas. Significavam nada mais do que uma tarefa definida por Saul.

 

– Vocês são ratos – Saul disse a eles, projetando o lábio inferior e jogando a cabeça para trás, como Mussolini. Olhavam para ele, uma massa mutável de seguidores, observando de todos os cantos do canteiro de obras onde estavam reunidos. – Vocês são os clandestinos, os rastejadores, os assaltantes. Não venham até mim com medo de serem vistos, não venham até mim com medo da vingança do Flautista. Por que ele os veria? Vocês são ratos... se ele os vir, é porque são um fracasso para a sua espécie. Fiquem bem escondidos nas frestas e o encontrem; e me digam onde ele está.

 

Os ratos estavam inspirados. Desejavam segui-lo. Dispensou-os com um gesto e eles se espalharam emitindo bravatas de curta duração.

 

Saul sabia que, além do alcance de sua voz, o medo dos ratos rapidamente voltaria. Sabia que hesitariam. Sabia que reduziriam a velocidade ao escalar as paredes, olhariam em volta ansiosamente em busca dele para que os comandasse e então falhariam. Ele sabia: escapuliriam de volta para os esgotos e se esconderiam até que ele os encontrasse e os persuadisse de novo.

 

Mas talvez um deles fosse corajoso ou sortudo. Talvez um de seus ratos pudesse escalar as paredes que dividiam o santuário do Flautista do mundo exterior e abrir caminho através do arame farpado, correr ao longo das tubulações e cabos, atravessar a terra inóspita e encontrá-lo.

 

Em algum lugar, espremido dentro de uma cobertura com ar-condicionado no topo de um edifício no coração financeiro da City, ou em um buraco coberto de asfalto sob uma ponte ferroviária suburbana, ou em um quarto sem janelas em um hospital vazio depois de Neasden, ou nos cofres de alta tecnologia de um banco a oeste de Hammersmith, ou no sótão em cima de um salão de bingo em Tooting, o Flautista estava aprisionando Natasha e Fabian, passando a semana anterior ao Junglist Terror.

 

Saul suspeitava que o Flautista quisesse evitar o olhar de ratos e aranhas e pássaros. Não tinha medo de seus adversários, mas não havia motivo para anunciar sua presença. Tinha feito seu desafio, contado a eles a noite em que morreriam. O Flautista tinha enviado convites para suas próprias execuções.

 

Talvez ele estivesse preocupado só com Saul, com o mestiço, o homem-rato que não podia controlar, mas devia suspeitar que Anansi também estaria lá, assim como Rei Rato e Loplop. Não eram bravos ou orgulhosos. Não tinham vergonha de recusar desafios. Mas sabiam que Saul era a única coisa que o Flautista não podia controlar, que Saul era a única chance que tinham e que deveriam estar lá para ajudá-lo. Se ele não sobrevivesse, eles também não poderiam.

 

Os ratos se espalhavam por Londres.

 

Saul estava sozinho em meio aos escombros e andaimes.

 

Estava no centro de uma vasta paisagem em ruínas, um canto derrubado de Londres, escondido atrás de tapumes a pouca distância da Edgware Road. Um espaço de doze por doze metros quadrados, acarpetado por tijolos esmagados e pedras velhas e rodeado pelos fundos dos edifícios. Em um dos cantos, uma rude cerca de madeira escondia a rua que ladeava o terreno e acima da cerca erguiam-se as velhas paredes de tijolos de antigas lojas e casas. Saul olhou para elas. Daquele lado as janelas eram rodeadas por grandes molduras de madeira, apodrecidas mas decorativas, projetadas para serem vistas.

 

Por todos os outros lados os muros que o cercavam eram vulneráveis. Constituíam os baixos-ventres dos edifícios, frágeis debaixo da carapaça estética. Fora da vista de suas fachadas, ele estava cercado por grandes extensões planas de concreto, janelas que se espalhavam ao acaso por paredes inexpressivas. Vista de trás, pega de surpresa, a funcionalidade da cidade ficava exposta.

 

Aquele ângulo de visão era perigoso para o observador, assim como para a cidade. Foi só quando a viu a partir daqueles ângulos que ele conseguiu acreditar que Londres tinha sido construída tijolo a tijolo e não nascido de sua própria mente. Mas a cidade não gostava de ser descoberta. Mesmo que ele visse claramente do que ela era feita, Saul sentiu-a levantar-se contra ele. A cidade e ele se enfrentaram. Viu Londres de um ângulo que escondia sua frente, que a deixava com a guarda baixa.

 

Tinha sentido isso antes, quando deixara Rei Rato, quando soubera que tinha se soltado dos vínculos com a cidade; e soubera então que aquilo a tinha feito sua inimiga. As janelas que pairavam sobre ele o lembravam disso.

 

No canto do terreno espreitavam obscuras máquinas de construção, pilhas de materiais e picaretas, sacos de cimento cobertos por plástico azul. Pareciam defensivos e oprimidos. Bem diante deles estavam os restos do edifício que tinha sido demolido. Tudo o que restava era um pedaço de sua fachada, de apenas um tijolo de profundidade, com aberturas, buracos sem vidro onde antes havia janelas. Parecia um milagre que pudesse ficar de pé. Saul caminhou em sua direção ao longo do solo desmanchado.

 

Havia luzes acesas em alguns dos quartos que davam para aquele lado e, enquanto caminhava em silêncio, Saul pôde vislumbrar movimento aqui e ali. Não tinha medo. Não acreditava que alguém pudesse vê-lo; tinha sangue de rato nas veias. E, se o vissem, ficariam surpresos de ver um homem caminhando sob a luz dos postes pelo espaço proibido de um edifício que nascia, mas a quem iriam contar? E se alguém, incrivelmente, chamasse a polícia, Saul poderia simplesmente escalar as paredes e ir embora. Tinha sangue de rato nas veias. Melhor que a polícia trouxesse Racumin, pensou. Teria mais chances.

 

Parou debaixo da fachada isolada. Esticou os braços para cima, preparando-se para subir pela cidade, para juntar-se aos seus emissários em sua busca. Não acreditava que encontraria Fabian ou Natasha ou o Flautista, mas não podia deixar de procurá-los. Concordar com os planos do Flautista seria abolir seu próprio poder, tornar-se um colaborador. Se terminasse por encontrar o Flautista no local que ele tinha especificado, seria arrastado contra a sua vontade. Estaria com muita raiva.

 

Ouviu um barulho acima dele. Uma figura surgiu em uma das molduras de janelas. Saul ficou calmo. Era Rei Rato.

 

Saul não estava surpreso. Rei Rato seguia-o muitas vezes; esperara até que os ratos partissem, então fizera escárnio dos seus esforços, ridicularizando-o com insultos agonizados e incoerentes, com raiva do comportamento dos ratos que uma vez o tinham obedecido.

 

Rei Rato agarrou-se ao seu pequeno poleiro com a mão direita. Agachou-se, o braço esquerdo pendendo entre as pernas, a cabeça abaixada na direção dos joelhos. Ao vê-lo, Saul pensou em um herói de histórias em quadrinhos: Batman ou Demolidor. Com a silhueta na janela em ruínas, Rei Rato parecia a página de abertura de uma graphic novel épica.

 

– O que você quer? – disse Saul, finalmente.

 

Com um vigoroso movimento Rei Rato deslizou da janela, aterrissando aos pés de Saul. Dobrou os joelhos na queda, depois se levantou lentamente diante dele.

 

Seu rosto se contorceu.

 

– Então, que bobagem idiota você tá fazendo agora, guri?

 

– Vai se foder – disse Saul; e deu-lhe as costas.

 

Rei Rato agarrou-o e virou-o de volta para encará-lo. Saul estapeou as mãos do outro, para que se abaixassem, os olhos arregalados e indignados. Houve um horrível momento de desconforto quando Saul e Rei Rato se entreolharam, ombros largos, punhos prontos para atacar. Lenta e deliberadamente, Saul esticou a mão e empurrou Rei Rato pelo peito, jogando-o ligeiramente para trás.

 

A raiva ferveu dentro dele e empurrou Rei Rato de novo, rosnou e tentou fazê-lo cair. Socou-o de repente, com força, e imagens de seu pai percorreram sua mente. Sentiu um desejo desesperado de matar Rei Rato. Ficou chocado em ver o quão rápido o ódio podia tomá-lo.

 

Rei Rato cambaleava ligeiramente no terreno irregular e Saul se abaixou para pegar a metade de um tijolo. Saltou sobre Rei Rato, batendo brutalmente com sua arma.

 

Mirou na cabeça de Rei Rato, acertando e derrubando seu adversário, mas Rei Rato sibilou com raiva quando caiu. Rolou dolorosamente pelo chão estilhaçado e golpeou Saul com as pernas, levando-o para baixo. A luta tornou-se um violento borrão, um turbilhão de braços e pernas, unhas e punhos. Saul não mirava, não planejava; batia com raiva, sentindo golpes e arranhões o contundirem e rasgarem sua pele.

 

O sangue explodiu com um terrível golpe abaixo de seu olho e sua cabeça girou. Atacou com o tijolo de novo, mas Rei Rato não estava ali e o tijolo bateu numa pedra, explodindo em pó.

 

Os dois rolaram e se agarraram. Rei Rato escorregou das mãos de Saul e pairou como uma mosca varejeira, rasgando-o com uma centena de arranhões cruéis e dançando para fora do alcance de Saul.

 

A frustração tomou conta de Saul. Interrompeu de repente seu ataque frenético e gritou um palavrão. Afastou-se por sobre o entulho.

 

Mais uma meia-luta brutal. Não conseguiria matá-lo.

 

Rei Rato era rápido demais, forte demais e não iria se empenhar de verdade contra Saul, pois não correria o risco de matá-lo; Rei Rato queria Saul vivo, por mais que estivesse começando a odiá-lo graças à sua influência sobre os ratos – e por sua recusa em obedecê-lo.

 

Rei Rato gritou com ele, com desprezo. Saul não conseguiu ouvir o que ele disse.

 

Sentiu o sangue correr dos fundos arranhões no rosto e limpou-se enquanto começava a correr, com os pés firmes apesar do terreno. Atirou-se em um dos muros que o cercavam, escalou por sua frágil superfície, escorregando por aquelas janelas sem adornos, deixando uma longa trilha de sangue e sujeira em seu caminho pelo concreto.

 

Olhou rapidamente para trás. Rei Rato sentava-se, senhorial, sobre as enormes pilhas de cimento. Saul afastou-se cada vez mais dele e tomou o rumo do topo de Londres. Olhava em volta enquanto seguia e ocasionalmente parava e ficava imóvel.

 

No topo de uma escola, em algum lugar atrás de Paddington, viu fortes luzes de segurança refletidas em uma ondulante teia de aranha, suspensa de uma das grades que cercavam o edifício. A frágil coisinha estava desocupada e há muito abandonada, mas ele desceu até o solo e olhou em volta. Havia outras pequenas teias embaixo daquela, ainda habitadas, menos visíveis sem o acúmulo de vários dias de poeira.

 

Abaixou os lábios até essas teias e falou com uma voz que ele sabia soar distanciada e íntima, como a de Rei Rato. As aranhas estavam bem calmas.

 

– Preciso que façam o que eu digo, agora – sussurrou. – Preciso que vocês encontrem Anansi, encontrem seu chefe. Digam que estou esperando por ele. Digam que preciso vê-lo.

 

As criaturinhas ficaram imóveis por um longo tempo. Pareciam hesitar. Saul abaixou-se de novo.

 

– Vão em frente – disse – passem o recado.

 

Houve outro momento de hesitação, então as aranhas, seis ou sete delas, pequenas e ferozes, partiram ao mesmo tempo. Deixaram juntas as suas teias, por fios compridos, como forças especiais fazendo rapel, desaparecendo pela lateral do prédio.

 

Fabian estava à deriva nas ondas.

 

Estava preso muito profundamente em sua própria cabeça. Seu corpo se fazia sentir ocasionalmente, com um peido ou uma dor ou uma coceira, mas na maior parte do tempo esquecia que ele estava ali. Não tinha consciência de quase nada exceto o movimento perpétuo, um subir e descer incansável. Não tinha certeza se era o seu corpo ou apenas sua mente que seguia embalada por aquele movimento líquido.

 

Havia um fundo drum and bass naquela ondulação hipnagógica. A trilha sonora nunca parava, a mesma música sombria e desbotada que ouvira das escadas de Natasha.

 

Às vezes, via o rosto dela. Ela se inclinava sobre ele, balançando a cabeça no tempo da batida, os olhos desfocados. Às vezes, era o rosto de Pete. Sentia sopa escorrer por sua garganta e em torno de sua boca e engolia obedientemente.

 

Na maior parte do tempo, ficava deitado e se rendia ao movimento balançante em seu crânio. Não podia ver quase nada quando estava deitado, ouvindo jungle filtrado de algum lugar próximo, o som retorcendo-se ao redor dele no pequeno quarto escuro, opressivo, fedendo a podridão.

 

Passava muito tempo olhando para a sua obra em andamento. Não estava sempre certo de que ela estava ali, mas, quando pensava nela e relaxava ao som da batida, ela invariavelmente aparecia e então ele fazia planos, rabiscava coisas com carvão em cada canto. Alterar essa tela não era fácil. Nunca conseguia se lembrar bem do momento em que desenhava, mas as mudanças apareciam, brilhantes e perfeitas.

 

Tornava-se mais e mais ambicioso em suas alterações, pintando sobre coisas antigas, reescrevendo o texto no centro de sua obra. Em pouco tempo, estava mudada a ponto de ficar irreconhecível, tão fluida e perfeita como computação gráfica; olhou para a legenda, que não conseguia se lembrar de ter escolhido. Wind City, dizia.

 

Fabian engolia a comida que encontrava em sua boca e ouvia a música.

 

Natasha passava a maior parte do tempo com os olhos fechados. Não tinha nenhuma necessidade de abri-los. Seus dedos conheciam cada centímetro de seu teclado e ela passava o tempo tocando Wind City, ajustando-a, transformando-a de maneiras discretas e sutis, para atender às exigências do seu humor.

 

Ocasionalmente, abria os olhos e via com surpresa que estava em ambientes desconhecidos, que estava no centro de um espaço escuro, fedorento, que Fabian dançava horizontalmente, deitado ali perto, com comida ressecada no rosto, e que seu teclado não estava à sua frente, na verdade. Mas quando mexia em Wind City ela mudava de qualquer forma, fazia o que ela queria, então, fechava os olhos e continuava, os dedos voando sobre as teclas.

 

Às vezes Pete vinha e a alimentava e ela tocava para ele o que tinha feito, ainda de olhos fechados.

 

Os ratos tinham desistido, de medo e confusão. Os grandes esquadrões formados no início da noite tinham debandado, se esgueirado para casa nos esgotos, mas aqui e ali as almas mais corajosas continuavam a busca, como Saul havia esperado.

 

Nas ruas de Camberwell, procuraram pelas catacumbas de velhas igrejas. Na Isle of Dogs, correram por Blackwall Basin e varreram o decrépito parque empresarial. Os ratos seguiram seu caminho ao longo da grande fenda da extensão da Jubilee Line, passando por máquinas gigantescas que escavavam túneis através da terra.

 

Seu número diminuiu. Enquanto a noite tombava, mais e mais cediam à fome e ao medo e ao esquecimento. Não conseguiam entender por que estavam correndo tanto. Não se lembravam mais da aparência de suas presas. Um por um, caíram de volta para os esgotos. Alguns foram vítimas de cães e carros.

 

Em pouco tempo, apenas um punhado de ratos ainda estava na busca.

 

– Passarinho me disse que você quer falar comigo, menino.

 

Saul olhou para cima.

 

Anansi descia do galho de uma árvore acima dele. Movia-se com elegância, desmentindo seu tamanho e peso, deslizando suavemente para baixo em uma de suas cordas, totalmente no controle.

 

Saul se inclinou para trás. Sentiu o peso frio da lápide às suas costas.

 

Estava sentado tranquilamente em um pequeno cemitério em Acton. Era um pequeno diminuto junto à linha de metrô de superfície, escondido atrás de uma pequena propriedade industrial. Era supervisionado por todos os lados por uma feia praticidade: um grupo de grotescas fábricas e armazéns suburbanos, desconfortáveis naquela área residencial.

 

Saul tinha vagado pelo oeste de Londres por um tempo e entrara no cemitério para comer e descansar, aqui entre os amontoados mortos urbanos.

 

As lápides eram indefiníveis, apologéticas.

 

Anansi desceu ao chão silenciosamente, a poucos metros dele, passou pelas lápides acinzentadas e agachou-se ao seu lado.

 

Saul olhou para ele, acenou com a cabeça em uma saudação. Não ofereceu a Anansi nenhuma das frutas velhas que tinha coletado. Sabia que não comeria.

 

Saul sentou-se e comeu.

 

– Agora, foi mesmo um passarinho, ‘Nansi? – perguntou suavemente. – Como está Loplop?

 

Anansi sacudiu a cabeça.

 

– Ainda gritando de raiva, menino. Louco, também. Não conseguem entendê-lo, os pássaros dele. Perdeu um reino de novo, acha que você tirou isso dele. – Anansi deu de ombros. – Então não temos nenhum pássaro. Só minhas aranhinhas e os ratos, e você e eu.

 

Saul mordeu uma maçã machucada.

 

– E Loplop? – perguntou e fez uma pausa. – E Rei Rato? Estarão lá com a gente? Vão estar lá quando o atacarmos?

 

Anansi deu de ombros novamente.

 

– Loplop é nada, estando lá ou não. Rei Rato? Você me diz, menino. Ele é seu papai...

 

– Ele vai estar lá – disse Saul calmamente.

 

Os dois ficaram sentados por um tempo. Anansi então levantou-se e caminhou até o parapeito à frente deles; olhou para a linha de trem lá embaixo.

 

– Mandei os ratos para encontrar o Flautista – disse Saul –, mas vão falhar. Provavelmente, estão todos sentados enchendo as barrigas agora. Provavelmente, já esqueceram o que eu queria que fizessem... – Sorriu sem humor. – Vamos ter de enfrentá-lo nos termos dele.

 

Anansi não disse nada. Saul sabia o que ele pensava.

 

Anansi tinha de ir até o Junglist Terror, porque Saul estaria lá. Saul era a única chance que ele tinha de derrotar o Flautista, mas sabia que era uma pequena chance; sabia que estava caminhando para uma armadilha, que indo até lá estaria fazendo exatamente o que o Flautista queria. Mas não tinha escolha. Porque, se não estivesse lá, as chances de Saul de derrotar o Flautista seriam ainda menores, e se Saul falhasse o Flautista teria todos eles, o Flautista caçaria Anansi e o mataria.

 

Era paradoxal. Anansi, Rei Rato, eles eram animais. Preserve a si mesmo, aquela era sua única lei. E essa os obrigaria a ir ao Junglist Terror. Para sua morte quase certa. Porque Saul tinha que ir, por causa de seus amigos humanos, porque Saul estava se recusando a agir como um animal.

 

Saul ia matar Anansi.

 

Ambos sabiam disso. Saul ia matar Anansi e Loplop e Rei Rato e Saul ia morrer, tudo em um esforço para provar que ele não era filho de seu pai-rato.

 

Anansi olhou para Saul e sacudiu a cabeça ligeiramente.

 

Saul devolveu o olhar.

 

– Precisamos falar sobre o que vamos fazer, ‘Nansi – disse. – Vamos fazer alguns planos... não vamos deixar tudo seguir do jeito que esse filho da puta quer.

 

Tinham aranhas, tinham ratos... tinham Saul.

 

O Flautista teria que fazer uma escolha. Um dos exércitos seria derrotado assim que todos entrassem na briga, mas o Flautista teria que fazer uma escolha. Anansi e suas tropas tinham metade das chances de permanecer livres da vassalagem ao Flautista. E também os ratos.

 

Um punhado de ratos ainda vasculhava Londres em busca de... alguma coisa...

 

Não conseguiam se lembrar exatamente do quê.

 

Estes eram o orgulho da nação. Estes eram os mais bravos, mais gordos e mais fortes e mais elegantes, os líderes do bando.

 

Vagueavam fluidos como focas na água.

 

Um deles correu como uma bala gordinha ao longo do Albert Embankment.

 

Vinha das cozinhas do Hospital St. Thomas, perto de Waterloo, ali na margem sul do rio. Havia pego comida para se fortalecer, procurado no sótão e nos porões. Havia corrido como um fantasma pelo hospital, deixando pegadas na poeira espessa, sujando máquinas de diagnóstico obscuras e esquecidas.

 

Tinha passado pelos territórios de outros, mas era um animal grande, enorme, e estava em uma missão da realeza. Não o desafiariam.

 

Não havia encontrado nada. Abriu caminho para fora do edifício.

 

No espaço aberto, correu ao longo da margem do rio rumo à escola de medicina.

 

O Tâmisa brilhava malignamente ao seu lado, escorrendo gordurosamente pela cidade. Na margem oposta estava o Palácio de Westminster, a absurdamente fortificada sede do poder de Londres. Suas muitas luzes piscavam sobre a pele do rio.

 

O rato parou.

 

A Lambeth Bridge assomava por sobre a água diante dele, escurecendo a lama do Tâmisa.

 

Uma forma indistinta balançava carrancuda na água ao lado. Uma antiga barca, uma das várias embarcações que poluíam o rio, abandonadas e ignoradas. Atirava-se delicadamente contra e a favor da maré, pequenas ondas estapeavam suas tábuas gordurosas como crianças petulantes. O cadáver de um barco, sua madeira escura leprosa e apodrecida, uma grande lona jogada sobre ela como uma mortalha.

 

O rato avançou nervosamente; parou, incerto.

 

Distendeu as orelhas. Podia ouvir alguma coisa, leve e sinistra. Emanava de debaixo do pesado tecido impermeável.

 

A barcaça balançava para trás e para a frente. A água estava digerindo-a. Mas, nesse meio tempo, antes que a madeira lascasse e se dissolvesse no Tâmisa, alguém estava a bordo, profanando-a, interrompendo sua longa morte.

 

Duas cordas velhas ainda a amarravam à margem. Uma mergulhava em uma curva elegante abaixo da superfície da água, mas a outra estava quase retesada. Tateante, o rato pisou na amarração. Como um equilibrista na corda bamba, correu sobre a água.

 

Diminuiu a marcha ao se aproximar do barco. Um pressentimento inundou seu pequeno cérebro e ele teria se virado para fugir se pudesse, mas a corda era muito estreita. O rato estava preso à sua escolha, sua coragem impetuosa.

 

A corda estava amarrada como um colar, com grandes contas irregulares projetadas para impedir o progresso de um rato. Mas, incapaz de voltar e temendo a água, o rato foi tenaz. Transportou-se sobre os obstáculos até que restassem poucos metros de corda.

 

Furtivo agora, em silêncio, o rato continuou. O som do barco ficara mais claro agora, uma baixa batida repetida, um leve, melancólico lamento, o ranger da madeira sob corpos em movimento. Com o mais leve dos toques o rato pôs os pés na barca.

 

Rastejou para a lateral, buscando uma lacuna na lona. Sentia vibrações na madeira que não tinham nada a ver com a água.

 

Esgueirando-se abaixo do lábio do barco, o rato encontrou um lugar onde o material estava repuxado para cima, onde podia rastejar por túneis criados entre as dobras do pesado tecido.

 

Abriu caminho por esse labirinto até ouvir murmúrios suaves. Sentiu a lona se abrir à sua volta.

 

Com o nariz se contraindo loucamente, o rato arrastou-se para a frente, olhando furtivamente para dentro do barco.

 

Havia um fedor incrível. Uma mistura de podridão, comida, corpos e alcatrão muito, muito velho. A lona estava esticada e presa em uma moldura que tornava a barcaça uma tenda flutuante. O rato enxergava com a luz fraca de uma lanterna suspensa na moldura. Apontava diretamente para baixo e sua luz ambiente era pobre; tudo no cômodo era vislumbrado, visto pela metade, percebido rapidamente, já que o movimento do barco balançava a lanterna para uma direção e em seguida a fazia pender para outro lado com suas oscilações.

 

Um baque surdo, grave e muito baixo invadia o espaço minúsculo.

 

Num canto, um homem estava deitado no chão. Parecia febril, movia os braços e as pernas como se estivesse dançando, batendo o rosto inquieto de um lado para o outro.

 

Uma mulher estava próxima, de costas para ele. Seus olhos estavam fechados. Balançava a cabeça e mexia as mãos em padrões abstratos exatos à sua frente, os dedos ligeiros, traçando movimentos intrincados.

 

As roupas estavam sujas. Os rostos eram magros.

 

O rato olhou para eles por breves instantes. As descrições de Saul estavam nubladas em sua mente, mas sabia que esses dois eram importantes, sabia que tinha que dizer a Saul o que tinha encontrado. Virou-se para fugir.

 

Um pé bloqueou sua rota de fuga, fechando o caminho através do pano.

 

O rato correu de terror.

 

Correu e correu ao redor da sala, tudo um borrão escuro, entre as pernas da mulher de pé, sob os braços do homem deitado, arranhando loucamente o pano em várias partes, em um frenesi de medo.

 

Então, de repente, ouviu um assobio rápido, uma marcha melódica e alegre, e parou de correr, cheio de admiração e maravilhamento. O assobio fez uma transição suave para os sons do sexo e de uma abundância de alimentos ricos, gordos, caindo no chão, e o rato se virou e marchou na direção do som, ansioso para encontrar todas aquelas coisas boas.

 

Então o assobio parou.

 

O rato fitava os olhos de um homem. Seu corpo foi agarrado rapidamente. Desesperado, mordeu, tirou sangue, atacou selvagemente os dedos que o prendiam, mas eles não afrouxaram.

 

Os olhos o encaravam com uma intensidade lunática. O rato começou a gritar de pavor.

 

Houve um movimento breve e repentino.

 

O Flautista bateu a cabeça do rato contra o chão de madeira e de novo e de novo, até que ela perdesse sua definição, tornando-se apenas um apêndice flácido, indistinto.

 

Segurou o pequeno cadáver junto ao rosto, apertou os lábios.

 

Alcançou o pequeno ghetto-blaster no chão e abaixou o volume ainda mais. Wind City ainda podia ser ouvida, mas agora era quase subliminar.

 

Fabian e Natasha viraram-se simultaneamente, olharam para ele confusos e surpresos.

 

– Eu sei, eu sei – disse ele, tranquilizador. – Vocês terão que ouvir com muita atenção. Tive que abaixar um pouco. Estamos atraindo atenção. Não queremos fazer isso ainda, certo? – Ele sorriu. – Vamos guardar isso para o clube. Certo?

 

Moveu o ghetto-blaster para mais perto com o pé. Pilhas gastas jaziam por toda parte, movendo-se inquietas com a maré.

 

Natasha e Fabian voltaram para suas posições anteriores.

 

Fabian deitou e começou a pintar.

 

Natasha continuou a tocar Wind City. Ambos retesaram as orelhas um pouco – e ouviram o que estavam procurando.

 

Cautelosamente, o Flautista levantou uma ponta da lona. Seus olhos pálidos perscrutaram a escuridão ao redor do barco.

 

Ninguém estava passando pelo Albert Embankment; Pete enxergava graças às luzes das Casas do Parlamento.

 

Estendeu a mão e deixou cair o corpo do rato no Tâmisa.

 

Fez um círculo, uma mancha de escuridão suja entre muitas na água. A maré puxou-o lentamente, conduzindo-o para além de Westminster, carregando o pequeno cadáver para longe, ao leste.

 

                   JUNGLIST TERROR

 

Noite na selva.1

 

Estava no ar. A juventude espertamente vestida que se reuniu no Elephant and Castle podia senti-la no ar.

 

As nuvens estavam baixas e movendo-se muito rápidas, tingidas de vermelho pela luz da rua, ondulando por detrás do horizonte. Londres parecia uma cidade em chamas.

 

Carros de polícia circulavam pelas ruas, efêmeros, passando rápido pelos outros carros que seguiam rumo a Lambeth, o som dos rádios bombando. Os herdeiros do dancehall e do rap, bruscos e lânguidos, e por toda a parte o drum and bass, febril e digno, selvagem e impenetrável.

 

Os motoristas colocavam os braços para fora das janelas abertas, acenando preguiçosamente no tempo da música. Os carros estavam cheios, recheados de roupas de grife e linhas de baixo. Para os que cruzavam a cidade, a noite tinha início nas faixas de pedestre e sinais vermelhos, quando podiam parar, motor ligado, os beats soando, todo o seu refinamento bem visível. Dirigiam de cruzamento a cruzamento, em busca de lugares para parar.

 

Centenas de slogans explodiam das centenas de janelas de carros, os samples e declarações gritadas das faixas clássicas que eram tocadas, centenas de prelúdios para a noite.

 

Mr. Loverman, vieram os gritos, e Check Yo’self. Gangsta. Jump. Fight the Power. There is a Darkside.

 

I could just kill a man.

 

Six million ways to die.2

 

Só tinham olhos uns para os outros naquela noite. Dirigiam e andavam pelas ruas como conquistadores vestindo Karl Kani, Calvin Klein e Kangols.3 Em meio ao cheiro de colônia, homeboys e rudegirls, posses e grupos4 tomavam as ruas ao sul de Waterloo, passando pelos moradores locais intimidados como se fossem sombras.

 

Cumprimentando-se com as mãos fechadas e emitindo sons de desaprovação, as enormes fileiras movimentavam-se pela área. Meninos irlandeses e meninas caribenhas, discretos meninos paquistaneses, gangstas em casacos enormes resmungando em celulares, DJs com sacolas de discos, crianças precoces imitando a indiferença estudada dos mais velhos...

 

Abriam caminho em meio à selva.5

 

Aqui e ali, policiais se escondiam pelas esquinas. Às vezes, eram julgados merecedores de um olhar de desprezo, um sorriso de escárnio, antes que os sinais abrissem e os motoristas seguissem em frente. A polícia os vigiava, sussurrava em seus rádios em códigos incompreensíveis. O ar fervilhava com seus chiados eletrônicos, avisos e profecias não ouvidos pela multidão, soterrados pelos breakbeats urbanos.

 

A noite estava cheia, repleta de pessoas que se encaravam por tempo demais.

 

O armazém brilhava sobre as ruas escuras. Luz se derramava de suas fendas como se fosse uma igreja.

 

As filas se estendiam diante da entrada. Os seguranças, homens enormes vestindo jaquetas, estavam parados de braços cruzados como gárgulas grotescos. Hierarquias feudais se afirmavam: os servos na fila, aos brados nos portões, olhando com inveja para os DJs e os puxa-sacos, os agitadores e mantenedores da cena drum and bass, que passavam casualmente por eles e murmuravam algo para os guardas. Para os mais nobres, nem era necessário conferir a lista de convidados.

 

Roy Kray e DJ Boom, Nuttah e Deep Cover, conhecidos de centenas de capas de CDs e cartazes, tinham entrada garantida, sem hesitação. Mesmo os seguranças ridiculamente desproporcionais demonstravam sua reverência, adotando por alguns momentos uma impassibilidade mais afetada. O droit de seigneur 6 vivia e passava muito bem na Elephant and Castle, naquela noite.

 

Se alguém da multidão tivesse olhado para cima, poderia ter tido um vislumbre de alguma coisa se balançando no céu, aparentemente fora de controle. Um monte de trapos do tamanho de um homem, fustigados pelo ar. Não estava à mercê do vento: nenhum vento mudava de direção tão rápida ou violentamente quanto aquela massa disforme, nenhum vento poderia carregar tal volume.

 

Loplop, o Pássaro Superior, arqueava e girava sobre as ruas, olhando para aquele imundo mapa lá embaixo, olhando para a noite manchada de laranja graças à luz difusa; descendo, subindo, os ouvidos tomados por zumbidos.

 

Não podia ouvir a cidade. Não podia ouvir o grunhido predatório dos carros. Não podia ouvir o tum tum tum que emanava do armazém. Os intrincados capilares e ossos em seus ouvidos tinham estourado e os canais estavam bloqueados pelo sangue seco.

 

Loplop tinha apenas seus olhos e procurou o melhor que pôde, costurando silenciosamente entre os edifícios, pousando sobre cata-ventos e saltando para o céu.

 

O ar ganhava, aos poucos, cada vez mais pássaros. Os poucos que estavam despertos quando Loplop passou gritaram, prometendo sua fidelidade, mas ele não os ouviu. Confusos, levantaram voo dos beirais e dos galhos das árvores, seguindo-o gritando, assustados com seu voo selvagem e com o fato de que ele os ignorava. Enormes e pesados corvos o rodearam. Loplop os viu e gritou sem palavras, agarrando a autoridade que havia perdido.

 

As aves teciam voos elegantes ao redor umas das outras, crescendo em número. Seus olhos dardejaram de um lado para outro em confusão. Em meio a um lento rodopiar, Loplop subiu e acelerou, ziguezagueou e caiu – um pária.

 

As aves não podiam obedecer ao seu general.

 

Em outra região de Londres, mais exércitos também se agrupavam.

 

As paredes e cantos das casas ficavam cada vez mais vazios. De fendas e buracos por toda a cidade, aranhas marchavam. Corriam aos milhões, pequenas manchas se apressavam por pisos sujos e através de jardins, desciam por fios presos aos topos dos edifícios. Rastejavam umas sobre as outras, uma massa abrupta e nervosa de pretos e pardos.

 

Aqui e ali, seus esquadrões eram vistos. Em quartos de crianças e ruelas, a noite era pontuada por gritos súbitos.

 

Várias morreram. Esmagadas, comidas, perdidas. Rastros de quitina e corpos manchados marcavam sua passagem.

 

Alguma coisa se acendeu no fundo dos pequenos cérebros das aranhas. Uma sensação que não era a fome ou o medo ou o vazio que antes ocupavam aquele espaço. Trepidação? Excitação? Reivindicação?

 

As luzes da cidade brilhavam aos pedaços nos múltiplos olhos das aranhas. Olhos juntos e impenetráveis, tão frios e distantes quanto os de um tubarão... exceto esta noite...

 

As aranhas vibravam.

 

Nos ermos do sul de Londres, Anansi assistia dos telhados. Sentia o ar mudando. Saboreava a presença de suas tropas.

 

Os esgotos ferviam de ratos, incitados ao ponto do frenesi.

 

Seu Príncipe Herdeiro havia passado por ali. Saul espalhara a mensagem. Dera ordens, controlara-os, enviara-os em missões.

 

Os ratos percorriam os túneis como um relâmpago ou uma inundação. Afluentes menores escoavam para o veio principal, corpos sobre corpos, gordos e rápidos.

 

Espalharam-se sob as ruas e sobre a linha do horizonte. Sobre a abóbada da cidade, no ar rarefeito, ratos subiam por paredes e entre fendas, arranhavam telhas e chaminés.

 

O rio não era obstáculo: abriram caminho por ele quase sem pausa.

 

Diferentes sujeiras, diferentes grupos, centenas de fedores distintos... todas as tribos de Londres corriam para o sul, roendo sujeira esquecida e tremendo com a adrenalina, prontos para a batalha. Uma enorme sensação de injustiça se codificava em seus genes há anos, comia-os vivos como um câncer e, pela primeira vez, podiam farejar uma cura.

 

Ratos eram cuspidos de centenas de milhares de buracos e convergiam para as vastidões do sul de Londres, uma massa que arranhava e mordia, faminta e amedrontada, tentando ser corajosa.

 

Insidiosamente, furtivamente, os ratos se reuniam em volta do armazém – e esperavam.

 

O armazém era um fio desencapado. Estalava com a energia. Estava cercado por círculos invisíveis, ondas e quadrantes de ratos e aranhas, coroado por pássaros confusos e rodopiantes, penetrado por pessoas.

 

Era um ímã.

 

Loplop ainda assistia do alto.

 

Anansi esquadrinhava os telhados.

 

– Onde ela tá, caralho?

 

Three Fingers, seco e irritado, dirigiu a pergunta a um dos seguranças. O enorme sujeito sacudiu a cabeça. Fingers andava de um lado pro outro, frustrado. O baque sinuoso das linhas de baixo e dos beats se amontoava às suas costas. Sentia como se pudesse reclinar-se para trás sobre o som, sem cair, amortecido, suspenso no ar.

 

Estava na entrada do armazém, olhando para a multidão reunida no pátio. Ficou no degrau mais alto por alguns minutos, à espera de Natasha. Todos os outros DJs tinham chegado. Fingers tivera de mudar um pouco a ordem das atrações, para o caso de Natasha não aparecer. Trotou escada abaixo até o pátio, meteu a cabeça por um vão na cerca de grade e olhou para cima e para baixo na rua.

 

Festeiros arrogantes ainda chegavam de todos os lados, convergindo para o armazém. Parecendo absurdamente monótonos no meio deles, alguns moradores passaram, encararam Fingers e olharam inquietos para o galpão iluminado e barulhento, monstruoso em meio à luz tediosa da rua.

 

Um sujeito alto virou a esquina e se aproximou. Logo atrás dele surgiram duas figuras, um negro magro e uma mulher baixa. Fingers se agitou, forçou os olhos. Era Natasha.

 

– Onde você tava, porra? – gritou Fingers com um sorriso apertado e amigável, mas chateado. Zarpou pela rua rumo a Natasha e seus companheiros.

 

Ela estava incrível. Os cabelos estavam puxados para cima em um rabo de cavalo alto e espiralado. O corpo estava envolto em um minúsculo top vermelho brilhante e a calça era tão justa que parecia pintada em suas pernas. Não usava casaco, nada nos braços finos e na barriga. Deve estar congelando, pensou Fingers. Deu de ombros: nada de rendição ao conforto na guerra do estilo. Mas estava surpreso. Em todas as vezes que tinha visto Natasha atuar como DJ ela estava usando roupas resolutamente discretas, largas, confortáveis e sem graça. Mas não aquela noite. Ouro brilhava em suas orelhas e ao redor de seu pescoço.

 

Fingers parou e esperou que ela fosse até ele.

 

Reparou que ela se aproximava com um andar estranho, um híbrido peculiar que era ao mesmo um desfilar arrogante e um vagar. Notou que usava um walkman, assim como o cara ao lado dela, Fabian. Fingers já o tinha encontrado uma vez. Estava tão montado quanto Natasha e caminhava da mesma maneira. De repente ocorreu a Fingers que os dois poderiam estar doidões. Se ela estivesse viajando e não pudesse tocar...

 

O sujeito alto chegou até ele primeiro e estendeu uma mão, a qual Fingers ficou olhando e então apertou superficialmente. Onde diabos Natasha encontrou esse cara?, pensou. Um sorriso constrangedor, cabelos loiros amarrados em um rabo de cavalo que parecia chegar a machucar e roupas que proclamavam sua indiferença em relação à moda. Incongruentemente, o rosto estava coberto por finos arranhões semicicatrizados. Se não estivesse com Natasha, nunca teria passado pelos seguranças.

 

– Você deve ser Fingers – disse. – Sou Pete.

 

Fingers assentiu rapidamente e virou-se para Natasha. Estava prestes a protestar com ela por sua chegada tardia, mas assim que abriu a boca viu o rosto dela passar da sombra para a luz fraca de um poste e suas queixas morreram, não ditas.

 

A maquiagem era impecável e excessiva, vamp, mas não disfarçava o quanto ela estava magra e pálida. Olhou para ele com olhos que não focalizavam muito bem, sorriu de forma abstrata. Drogas, com certeza, pensou de novo.

 

– Tash, cara – disse inquieto –, você tá bem?

 

Atrás dele podia-se ouvir as batidas do armazém, um pano de fundo para a conversa.

 

Ela inclinou a cabeça, tirou o fone de uma das orelhas. Ele repetiu a pergunta.

 

– Com certeza, cara – disse, e ele ficou um pouco mais tranquilo. A voz soava firme e controlada. – Estamos prontos pra começar.

 

Fingers percebeu que Fabian balançava a cabeça ligeiramente, no tempo da batida que passava pelos fones de ouvido, os olhos desfocados.

 

Natasha seguiu o olhar de Fingers.

 

– Você vai escutar isso mais tarde – disse suavemente. – Pode se juntar a nós. Juro que você vai adorar. Vocês têm um player de DAT aí? Pete trouxe o meu, por garantia. – Fez uma pausa e deu outro sorriso lívido. – Você precisa ouvir o que eu tenho feito. É especial, Fingers.

 

Houve um silêncio que Fingers não soube como preencher. Finalmente, inclinou a cabeça para que o seguissem, virou e caminhou de volta para o galpão.

 

Parecia um longo caminho.

 

Enquanto caminhava ouviu um som breve, um fragmento de ondulações e estalos como uma folha de papel sendo sacudida. Virou-se, mas não viu nada. Pete olhava para o céu, sorrindo.

 

Tonto de excitação e terror, Loplop girava em círculos no ar, atravessando passagens estreitas entre os edifícios, em busca de Anansi. Vislumbrou seu torso nu encaixado debaixo do beiral de um prédio. Loplop pairou diante dele como um beija-flor, gritando incoerentemente. Anansi entendeu. Olhou com raiva e balbuciou algo.

 

Ele está aqui. O Flautista está aqui.

 

Loplop fez que sim, gritou e desapareceu.

 

Anansi sussurrou em sua mão e libertou a minúscula aranha em seu interior. Ela afundou para longe dele pela lateral do edifício, até o fundo de uma calha, onde outras cinco companheiras a aguardavam. Elas acariciaram a recém-chegada com suas pernas longas e poderosas, inclinaram-se e olharam nos olhos umas das outras. Então as seis se viraram e desapareceram, seus caminhos formando um asterisco em expansão, até que cada aranha encontrou outras de sua espécie, à espera, e houve nova e rápida conferência; mais mensageiras se juntavam à multidão de forma exponencial, mais e mais rápido, e a notícia se espalhou entre as aranhas como uma epidemia.

 

Bem em frente ao armazém havia um muro alto, vermelho, o limite de uma fábrica há muito abandonada. Atrás dele havia uma pequena área de matagal e depois disso um alto conjunto residencial, feito de blocos acinzentados, com vista para o galpão e seu pátio.

 

No terraço do topo do edifício, algo se moveu debaixo de uma pilha de papelão velho. Mãos discretas com unhas sujas se esgueiraram cautelosamente para fora da pilha e abriram caminho com cuidado. Dois olhos indistintos espiaram Natasha, Fabian e Pete seguirem Fingers escada acima rumo ao armazém, passarem pelos seguranças e entrarem no edifício.

 

O papelão subiu e então caiu, enquanto Saul ficava de pé.

 

Ficou parado por um instante, respirando profundamente, acalmando-se, desacelerando seu coração.

 

Sua roupa velha, roubada da prisão, flutuava ao seu redor.

 

Fechou os olhos brevemente, balançou sobre os calcanhares e então ficou atento, esquadrinhando o ar em busca de sinais da chegada de Loplop.

 

Havia se escondido, em parte, para o caso de Loplop atacá-lo, mas não só por isso. Loplop não podia falar, não podia conversar com Anansi, não podia fazer novos planos. Deu um sorriso vazio. Como se tivessem chegado a fazer algum plano.

 

Aquela era a noite em que tudo aconteceria. Aquela era a noite em que se libertaria – ou a noite em que morreria. E queria ficar sozinho em Londres, usar a cidade como apoio para sua escalada, sentir-se seguro por sua conta antes que a noite chegasse para ele.

 

E, como sabia que aconteceria, a noite tinha chegado.

 

Era hora de seguir em frente.

 

Inclinou-se para a frente, agarrou a calha com as duas mãos, sacudiu-a vigorosamente, testando sua força.

 

As pernas dobraram-se um pouco, como alavancas; fez uma pausa e em seguida saltou pela beirada do edifício.

 

Saul girou no ar, as mãos se intercalando uma sobre a outra à medida que se movia; arrancou-se de sua trajetória em arco e adotou um forte movimento lateral, limitando sua passagem e deslizando ao longo do cano de água.

 

Escorregou para baixo como se o cano fosse um poste de bombeiros, as mãos e pés imperceptivelmente rápidos, desviando-se dos parafusos que o prendiam à parede.

 

Tocou o solo ressecado e andou por caminhos desconexos em meio a dentes-de-leão e mato, sob a sombra do muro.

 

Saul estalou os dedos imperiosamente. De imediato, uma dúzia de cabecinhas marrons surgiu por trás de tijolos velhos, de buracos na terra, cavidades no muro. Os ratos o observavam, tremendo de excitação e medo.

 

– Está na hora – disse. – Digam a todos que fiquem prontos. Vejo vocês lá. – Parou e disse suas palavras finais com uma excitação contida, uma emoção fatalista. – Podem ir!

 

Os ratos saíram em disparada.

 

Saul correu ao seu lado, supervisionando-os. Corria entre o bando como um símbolo de vitória. Esgueirou-se pelo topo de um muro, invisível. Atravessou a estrada sem ser visto, ora na sombra de um carro, ora espremido contra um prédio, ora como um transeunte; descendo pelas calhas, por sobre o muro e ao longo da lateral do armazém, passando pelas multidões que esperavam sem dar-lhes atenção. O ar estava tomado pelo gosto de álcool e perfume, mas Saul tapou o nariz para isso.

 

Manteve o olfato limpo para cheirar suas tropas.

 

Por cima de uma garagem rebaixada e ao longo de sua claraboia em colapso, uma rampa levava a paredes esfarelantes, presas a fendas esquecidas e beirais de janelas velhas e pesadas. Agarrou-se à borda do telhado levemente inclinado e dobrou as pernas contra a parede. Sentia os tijolos vibrando com os sons graves. Então, como fizera Rei Rato tanto tempo atrás, na primeira noite de Saul entre as feras e antes de provar de sua comida, quando ainda era humano, tomou impulso com as pernas e girou em um círculo perfeito, aterrissando solidamente sobre o telhado do armazém.

 

Deslizou rapidamente telhado acima, rumo às enormes claraboias. Estavam cheias de rachaduras, bastando alguns segundos para que as arrombasse e pusesse de lado, abrindo caminho até um sótão, com o chão de madeira empoeirado pulando com os graves lá de baixo, como se o próprio edifício estivesse ansioso para dançar a música em suas entranhas.

 

Saul parou. Sentia no ar um movimento em massa. Sentia a migração daqueles corpinhos compactos, estava consciente do êxodo de suas tropas das ruas, esgotos e matagais para o prédio brilhante. Sentia o arranhar de garras no concreto, a febril busca por atalhos e falhas na alvenaria.

 

Os ratos e Saul deixaram a relativa segurança dos domínios da noite londrina e entraram no armazém, nas mandíbulas frenéticas do drum and bass, no domínio da fumaça e das luzes piscantes e do hardcore, na toca do Flautista, no coração das trevas, nas profundezas da selva7.

 

As tábuas de madeira tamborilavam sob os pés de Saul: os montes de poeira não repousavam, mas pairavam como uma névoa indistinta ao redor de seus tornozelos. Esgueirou-se pelo longo sótão. Em um canto daquele grande espaço escuro havia um alçapão.

 

Saul deitou no chão e puxou-o muito delicadamente, levantando-o acima das placas adjacentes. Música e luzes coloridas e o cheiro do público se derramaram através da fenda, na qual colocou o olho.

 

As luzes abaixo giravam e mudavam de cor, iluminando e obscurecendo, refletindo-se em globos suspensos e se dissipando ao longo de todo o salão. Atravessavam as trevas, confundindo tanto quanto elucidavam.

 

Um longo caminho abaixo estava a pista de dança. Era uma visão alucinógena, cintilante e que se metamorfoseava como um padrão de fractais, corpos febris em movimento de mil maneiras diferentes. Nos cantos espreitavam os bad boys, balançando as cabeças, não mais do que isso; nenhuma reação à música esmagadora. Na pista, os hard-steppers balançavam os braços, os membros soltos e sincopados; e os que tinham tomado speed ou pó ridiculamente tentavam manter-se em sincronia com as BPM, alternando os pés como lunáticos; as rudegirls, de braços abertos, moviam os quadris lentamente ao som da linha de baixo, uma enxurrada de cores, roupas e nudez. A pista de dança estava lotada, repleta de corpos, decadente e vibrante, emocionante, comunal e brutal.

 

Enquanto observava, uma luz estroboscópica foi ligada, transformando a sala, momentaneamente, em uma série de quadros congelados. Saul podia examinar os indivíduos a seu bel-prazer. Ficou impressionado com a multiplicidade de expressões nos rostos abaixo.

 

O drum and bass parecia querer arrancar o galpão do chão, rumo ao céu. Era implacável, uma sessão devastadora da legítima batida hardcore.

 

Um pouco abaixo, uma passarela de ferro contornava a beirada do salão. Estava deserta. Havia uma escada em um canto, presa sob a passarela e trancada com correntes. Tinha sido projetada para se conectar a outra escada semelhante, logo abaixo. Esse nível mais baixo estava lotado de corpos, pessoas olhando para as que dançavam, três metros abaixo.

 

Saul passeou com os olhos pelo salão. Havia um pequeno movimento no canto oposto.

 

Luzes vermelhas e verdes giravam em volta de uma forma negra suspensa no teto. Anansi pendia suavemente de uma de suas cordas. Os braços e pernas estavam encolhidos de forma impossível. As juntas mal eram visíveis, imóveis e esticadas com o peso.

 

Pendia de um lado para outro, fustigado pelas vibrações sonoras. Saul sabia que o exército de Anansi estava com ele, à sua volta, invisível e a postos.

 

Logo abaixo de Anansi, Saul viu o palco elevado sobre a pista de dança. Sua respiração se acelerou um pouco: lá, emoldurados por dois alto-falantes colossais, estavam os toca-discos.

 

Por trás do palco pendia um enorme grafite: o mesmo DJ grotesco que adornava o cartaz e a legenda Junglist Terror!!!, com uma letra muito grande. Insignificante em comparação com a improvável figura no desenho, o DJ trabalhando atrás dos toca-discos ia e voltava rapidamente da sua caixa de vinis, um par de fones volumosos pressionados contra um dos ouvidos. Movia-se com uma energia controlada e febril. Saul não o conhecia. Enquanto observava, o homem habilmente fez a passagem entre duas músicas. Ele era bom.

 

Às suas costas, Saul sentiu uma língua de rato lamber timidamente a sua mão. Não estava mais sozinho.

 

– Tá bom – sussurrou e acariciou a cabecinha sem olhar para trás. – Tudo bem.

 

Saul abriu o alçapão. Enfiou a cabeça no salão, de cabeça para baixo, rompendo a superfície daquela piscina de música e imergindo nela. Desceu com cuidado até a grade de ferro mais abaixo. As batidas eram avassaladoras. Penetravam em cada fenda da sala. Sentiu como se estivesse se movendo debaixo d’água. Quase teve medo de respirar. Com o canto do olho, viu Anansi perceber sua chegada e levantou a mão.

 

Era sufocante no salão, úmido e pesado como uma floresta tropical. O calor condensado do público o envolveu. Tirou a camisa. Uma sujeira oleosa o cobria. Percebeu que fazia semanas que não via o próprio corpo. A camisa tinha virado seu couro.

 

Lembrou do toque do rato um pouco antes e esticou-se para prender uma das mangas de sua camisa na dobradiça do alçapão aberto. Puxou a outra manga até que ficasse esticada e amarrou-a na grade que rodeava a passarela. Quase imediatamente, dois ratos correram por essa ponte de pano gorduroso e saltaram para o ferro.

 

Outros se juntariam a eles, pensou Saul enquanto os observava correr pela plataforma até encontrar uma rota para baixo.

 

O suor escorreu pelo seu corpo, abrindo canais na sujeira que o cobria. Não sentiu vergonha. Seus padrões tinham mudado.

 

Saul apertou-se contra a parede e se esgueirou para a frente, na direção dos toca-discos, mantendo os olhos fixos no palco mais abaixo. Foi se abaixando enquanto avançava. Quando chegou ao meio do caminho, já estava deslizando pelo ferro frio como uma cobra. Pressionou o rosto contra os vãos na grade, os olhos dardejando urgentemente de um lado para outro. Rastejou lentamente para a frente.

 

Mesmo entre as nuvens penetrantes de colônia, suor, drogas e sexo, Saul sentia o cheiro de rato. As tropas estavam chegando em massa, à espera de seu sinal.

 

Olhou para cima. Anansi sumia e reaparecia sob as luzes piscantes.

 

Uma porta se abriu atrás do palco.

 

Saul enrijeceu-se. Natasha emergiu das profundezas do edifício, para o som e a fúria. Saul prendeu a respiração. Apertou a grade na qual rastejava até machucar os dedos. Ela estava de tirar o fôlego. Mas estava magra, magra demais, e movia-se como se estivesse em um sonho.

 

Onde estava o Flautista? Será que ela estava ali por vontade própria? Saul olhou para ela, consternado. Viu fones de ouvidos em suas orelhas e ficou momentaneamente confuso; como podia escutar um walkman no meio de um clube? Prendeu a respiração, vendo-a mexer a cabeça, movendo-se em um ritmo diferente das outras pessoas. Sabia o que ela estava escutando, sabia que música era.

 

Em uma das mãos ela segurava uma sacola cheia de discos, na outra uma pequena caixa, coisas eletrônicas, cabos. Não pôde ver o que era. Natasha cutucou o DJ no ombro. Ele se virou e cumprimentou-a com as mãos fechadas, gritando animadamente em seus ouvidos. Enquanto ele falava, ela se ocupou em ligar a caixa no sistema de som, balançando a cabeça ocasionalmente. Se era em resposta ao que ele dizia ou à música em seus ouvidos, Saul não pôde discernir.

 

O DJ tirou os enormes fones de ouvido e colocou-os sobre as orelhas de Natasha, esperando que ela retirasse seus pequenos fones de walkman. Como ela não o fez, ele deu de ombros, colocou os fones maiores sobre eles e riu. Desapareceu pela porta de onde Natasha havia emergido.

 

Natasha vasculhou os discos que havia trazido, tirou um, girou-o com elegância e soprou a poeira acumulada sobre ele. Colocou-o sobre o prato do toca-discos e curvou-se sobre ele, girando-o, fazendo-o retroceder com os dedos, ouvindo através da música em seu walkman, mixando as batidas; então ficou ereta, os dedos de prontidão; enfim, deixou uma explosão de piano se derramar do doze polegadas que tinha selecionado para a música que agora chegava ao fim.8

 

Era impossível dizer onde uma começava e outra terminava, a mixagem era perfeita. Puxou o disco para trás, em sentido contrário, deixou-o seguir adiante de novo, puxou-o para trás, brincando com scratches como um old school rapper;finalmente soltou o vinil e tirou o som da primeira música em um movimento suave, liberando a nova linha de baixo.9

 

Afastou-se sem um traço de sorriso nos lábios.

 

Saul sabia que tinha que descer até ela, tirar os fones de sua cabeça e fazê-la entender o perigo que estava correndo. Mas isso devia ser exatamente o que o Flautista queria que fizesse. O queijo em sua ratoeira.

 

A porta se abriu de novo e mais duas figuras apareceram. A primeira era Fabian. Saul ficou chocado, quase pulou e ficou de pé. Fabian estava ainda mais magro e com aparência mais exausta que a de Natasha, algo que sua elegância não conseguia disfarçar. Estava mancando. Como Natasha, usava fones de walkman. Era aquela batida, a melodia que só ele podia ouvir, que impulsionava Fabian.

 

Atrás dele estava o Flautista.

 

Assim que entrou na sala, parou, respirou fundo e deu um enorme sorriso. Abriu os braços como se quisesse abraçar todas as pessoas abaixo dele.

 

Fabian ficou bem perto dele.

 

Saul olhou para Anansi, mais acima. Oscilava em sua corda; a tensão súbita era visível, violentamente, em seu corpo.

 

Atacá-lo?

 

Devemos atacá-lo?, pensou Saul, freneticamente.

 

O que deve ser feito?

 

Anansi e Saul estavam paralisados, presos pelo olhar da serpente. E o Flautista sequer podia vê-los.

 

Natasha se virou e viu seus dois companheiros. Estendeu a mão e o Flautista puxou algo do bolso; jogou-o no palco, para ela. Ao desenhar uma curva no ar, o objeto foi transfixado por um momento em um feixe de luz branca. Pareceu congelar-se, permitindo que Saul o examinasse. Brilhava, uma pequena caixa de plástico, como uma fita cassete, mas menor, mais quadrada...

 

Uma DAT.

 

Uma digital audio tape. Natasha as usava para gravar suas músicas.

 

Saul gritou e ficou de pé de um salto quando a mão de Natasha se fechou em torno da fita.

 

O espaço cavernoso estava tomado pelos sons; seu humilde grito não teve vez. Sequer pôde ouvir a si mesmo na cacofonia de batidas e linhas de baixo. O público continuava a dançar, imperturbável; Natasha se voltou para os toca-discos, Fabian continuou com seus incertos movimentos de rotação... mas o Flautista virou a cabeça bruscamente para aquele som imperceptível, olhou para cima, através daquela cama de gato de feixes de luz, para além dos corpos blasés na passarela inferior, até as sombras no teto, olhando diretamente nos olhos de Saul.

 

O Flautista acenou alegremente e sorriu. Ardia de triunfo.

 

Saul avançou ao longo da passarela e o Flautista gargalhou no palco. O público nada percebia. As batidas pareceram desacelerar; tudo estava mais lento, Saul podia ver a massa de corpos lá embaixo afundar e subir pesadamente.

 

Correu pela passarela de ferro rumo ao canto onde Anansi estava pendurado, paralisado. Olhou Natasha caminhar lentamente pelo chão de grade em direção ao player de DAT que tinha plugado na mesa de som, estendendo a mão que segurava a fita. Saul olhava para cima enquanto se aproximava de Anansi, que balançava de um lado para outro, girando e girando; um pêndulo inútil.

 

Saul não havia parado de gritar. Ululava terrivelmente enquanto corria. Anansi olhou para ele. No instante em que Natasha colocou a fita no player e apoiou um dos lados do fone de ouvido contra o ombro, Saul agarrou a grade com a mão esquerda e saltou para o alto, movendo-se tão lentamente que podia encarar os rostos abaixo dele, todos os indivíduos que compunham aquela massa saltitante. Aterrissou de pés juntos sobre a grade, encolheu-se e saltou com força pelo ar, voando sobre o público como um super-herói.

 

Os olhos de Anansi se arregalaram quando Saul subiu em sua direção, os braços batendo, as pernas encolhidas à sua frente como um atleta de salto triplo. Saul abriu bem os braços e pernas e colidiu com Anansi a doze metros de altura sobre o palco.

 

Agarrou Anansi, abraçou-se a ele. Sentiu-se balançar loucamente para a frente e para trás em pleno ar, ouviu Anansi gritar alguma coisa. A corda que segurava os dois corpos vibrava, perigosamente retesada. Saul berrava nos ouvidos de Anansi.

 

– Pra baixo! – gritou. – Desça agora!

 

Saul sentiu que caía e seu estômago se embrulhou. A descida foi suavizada por Anansi, que manipulou as fibras em sua mão. Mais suave que qualquer praticante de rapel, o homem-aranha e sua carga afundaram rapidamente em direção ao palco.

 

Enquanto caíam, Saul e Anansi giravam em seu centro de gravidade e a sala rodopiava ao redor deles. Saul teve vários vislumbres das pessoas dançando, congeladas, olhando para as figuras que caíam do ar. Algumas pareciam horrorizadas ou confusas, mas a maioria estava rindo, arrebatada por aquele novo entretenimento.

 

– Fujam! Saiam daqui, porra! – gritou Saul, mas o jungle era implacável e ninguém o escutou, exceto Anansi.

 

Saul olhou para baixo, a três metros do palco; afrouxou a mão e caiu de Anansi como uma bomba.

 

Ficou rígido; seu alvo estava bem na trajetória do seu voo. Mesmo com a batida do drum and bass, teve a impressão de ouvir um suspiro coletivo. Mirou enquanto caía e alinhou as pernas, mas o Flautista o estava observando e dançou agilmente para o lado, para longe das devastadoras botas de Saul, que atingiu em cheio o palco de madeira.

 

Cambaleou, mas permaneceu de pé. Os toca-discos eram tão bem instalados que o vinil nem pulou com a sua aterrissagem. Olhou com horror a mão de Natasha apertar o controle de volume do player de DAT, o rosto enrugado contra os fones de ouvido enquanto se preparava para mixar do disco para a fita, à espera do momento certo na batida.

 

Saul saltou em sua direção, pronto para jogá-la para longe dos toca-discos, para machucá-la se necessário; a raiva e o medo o impeliam. Mas, enquanto se aproximava, algo o acertou por trás e ele foi arremessado longe, voando para a lateral do palco. Natasha sequer se virou para olhar.

 

Saul rolou pelo chão, contorceu-se e com um pulo ficou de pé.

 

Fabian já caía sobre ele.

 

Seu amigo não o encarava, mantinha o foco em algo além dos ombros de Saul, como Loplop tinha feito naquela noite no apartamento. Buscava Saul sem parar, os braços estendidos como um zumbi de cinema.

 

Atrás de Fabian, Saul viu Anansi pisar no palco, apenas para que o Flautista imediatamente socasse com força sua boca, jogando-o longe. Mas a atenção de Saul foi atraída pelo mais ínfimo dos movimentos: a mão de Natasha aumentando lentamente o volume.

 

Saul emparelhou com Fabian, tentando correr mais rápido do que ele, superá-lo, mas seu amigo era veloz e girou assim que Saul tentou ultrapassá-lo. Os dois se estatelaram no chão, a mão esticada de Saul passando a centímetros do sapato de Natasha.

 

Ela balançou a cabeça de satisfação e deixou tocar a DAT.

 

Tudo se congelou.

 

Houve um momento sublime. Todos ficaram absolutamente imóveis: o público; os sujeitos que tinham pulado para o palco para apartar as brigas que tinham visto lá; Saul, paralisado de desespero.

 

As batidas que deslizavam insidiosamente dos alto-falantes eram agudas: pratos, nenhuma linha de baixo. Um pequeno trecho de piano chorou melancolicamente.

 

Mas foi a flauta que prendeu a atenção.

 

Uma explosão repentina anunciou a música, um trinado que irrompeu na consciência coletiva do salão e clareou as mentes dos ouvintes. Saul viu Natasha retirar os fones de ouvido e o walkman. Não precisava usá-los agora. Aquela era a música que estava ouvindo. Atrás de Saul, Fabian se levantou e seguiu o exemplo.

 

O trecho de flauta provocou um choque nas pessoas que dançavam, que ficaram submissas, e agora sumia aos poucos, deixando apenas ecos e os sons de estática de rádio, os fantasmas das estações mortas rolando sobre a batida e o piano sem alma. Ainda não havia linha de baixo. Saul não conseguia ficar de pé. Viu que o público começou a sacudir a cabeça e a se libertar das armadilhas da flauta, mas outro rompante tomou o salão e, em uma sincronia comicamente precisa, todos da multidão ficaram eretos, com o olhar absorto.

 

E então de novo. De novo.

 

O Flautista olhou fixamente para Saul, o aspecto amável de seu rosto desmentido pelos medonhos olhos arregalados, ferozes de prazer.

 

– Você está perdendo – declamou para Saul.

 

Saul devolveu-lhe um olhar fixo e sinistro. Levantou o braço teatralmente e chamou a atenção de Anansi, enquanto lutava para ficar de pé. Tremendo, Anansi o imitou.

 

Juntos, abaixaram os braços.

 

– Agora! – berrou Saul.

 

As tábuas do piso e os canos fervilharam de ratos. As ruidosas tropas de Saul explodiram sala adentro, correndo vorazmente entre as pernas paralisadas do público, rumo ao palco. As paredes entraram em erupção quando aranhas brotaram dos poros do edifício e se derramaram como líquido na direção do Flautista.

 

Naquele momento, a linha de baixo de Wind City explodiu pela sala, contida e simples. E cavalgando-a, navegando sobre os vales e picos de batidas e baixo, estava a flauta.

 

O público se movia como uma só pessoa.

 

Moviam-se ao mesmo tempo, dançando novamente, um incrível número de coreografia, pés direitos erguidos juntos, descendo, depois os esquerdos, um estranho sapateado lânguido, braços balançando, pernas rígidas, subindo e descendo ao ritmo da batida, obedecendo à flauta. E cada passo mirava em um rato.

 

Aquilo era guerra.

 

Os ratos agora reagiam, saltando sobre corpos e costas. A unidade sobrenatural das pessoas lentamente se dissolvia à medida em que enfrentavam aqueles inimigos pequenos e cruéis, sem perder o aspecto deslocado de seu olhar.

 

As aranhas alcançaram o palco, acompanhadas pela vanguarda dos ratos; os dois exércitos marcharam na direção do Flautista. Anansi içou-se para o alto e se jogou sobre as costas do Flautista, mas o impacto foi reduzido por homens que saltaram para segurá-lo. Nem olharam para ele. Mantiveram as cabeças meio de lado, para ouvir a música, e fizeram o que a música lhes disse. Com uma força que não era a deles, jogaram Anansi para trás, contra a parede. Ele gritou para suas tropas, gesticulando.

 

Saul deslizou pelo chão na direção dos toca-discos e do player de DAT, a origem da música. No mesmo instante Natasha se virou e carimbou sua mão com o salto alto do sapato. Ele gritou de dor, afastou-se e tentou passar por ela, que o acertou de novo e de novo, mais e mais rápido, até um ponto em que parecia impossível que ela permanecesse de pé.

 

Alguém atrás de Saul o agarrou, levantando-o à força; um súbito acesso de raiva fez com que Saul lhe aplicasse uma cotovelada no rosto. A cabeça pendeu para trás e ficou caída, o corpo cambaleou, mas de alguma maneira foi mantido de pé pela música. Saul virou-se, as mãos como garras, e sua raiva foi dissipada pelo horror. O agressor tinha cerca de dezessete anos, um menino asiático gordinho vestido com sua melhor roupa jungle, agora manchada de sangue. Mesmo com o nariz arrebentado, tentava se manter no ritmo da batida.

 

Saul o empurrou com força para longe da luta.

 

Percebeu que as pessoas se aproximavam lentamente do palco, lutando e arranhando, arremessando ratos e aranhas contra as paredes, rasgando-os com os dentes, o tempo todo posicionando a cabeça de forma a escutar as notas de Wind City. Merda de flauta!

 

Tinha várias camadas, era alienante, assustadora, um pano de fundo de cacofonia.

 

Mais e mais pessoas saltavam para o palco, as roupas entupidas de sangue de ratos e humanos, com fragmentos de pele, os rostos retalhados pelas pequenas garras. Saul podia sentir o gosto de sangue de ratos no ar. Aquilo o enchia de adrenalina.

 

Aranhas e ratos cobriram o palco, enxamearam as pernas de Fabian e das outras pessoas. Fabian golpeava os corpos gordos dos ratos e os esmagava com os pés até que suas pernas, espinhas e crânios rachassem e então se arrastassem para a morte. Ele se estapeava e dançava trocando de pernas, esmagando aranhas na madeira.

 

Saul ouviu Anansi gritando.

 

Voltou-se e rumou mais uma vez para os toca-discos. Fabian chutou-lhe o saco por trás e Natasha carimbou seu ombro. Desviou, evitando ser empalado, mas mãos agarraram suas pernas e o puxaram violentamente pelo chão escorregadio com o sangue de ratos e aranhas esmagadas, carregaram-no para longe de Natasha e do player de DAT e o jogaram contra uma parede. Corpos caíram sobre ele, joelhos desumanamente fortes esmagaram suas costas e foi aprisionado por vários braços e pernas.

 

Saul ouviu Anansi berrando.

 

Olhou para cima, viu o Flautista se curvar sobre Anansi; o homem-aranha era mantido preso por vários bailarinos. Com a cabeça abaixada contra o chão, tudo o que Saul conseguia ver da pista de dança eram as cabeças balançantes das pessoas dançando.

 

Era uma visão do inferno, ratos e aranhas e sangue inundando os condenados.

 

Fabian cambaleou para dentro de seu campo de visão. Saul olhou para ele e depois para Natasha. Estavam invisíveis debaixo de uma segunda pele de aranhas, uma espessa massa deslizante. A maré de aranhas se derramava na direção do Flautista. Anansi continuava berrando.

 

O Flautista olhou em volta, viu que Saul o observava e olhou rapidamente para as aranhas que se aproximavam.

 

– Será que devo lhe mostrar meu novo truque para animar festas? – disse. Sua voz soou próxima e íntima aos ouvidos de Saul, sussurrada através do jungle e da flauta.

 

O Flautista piscou os olhos brevemente para o equipamento de som.

 

Algo mudou na flauta.

 

Os samples estavam em loop e arranjados uns sobre os outros. Enquanto ouvia, Saul percebeu que uma das camadas foi subindo, mudando, transformando-se em staccato, sem fôlego. Anansi ficou subitamente quieto.

 

Assim que chegou aos pés do Flautista, a maré de aranhas parou.

 

Ele está mudando a música! Está mudando a sua escolha!, pensou Saul. Vai pegar as aranhas agora!

 

Mas as pessoas continuaram dançando, mesmo depois que as aranhas começaram a se mover em conjunto, de forma incrível, ondulando com a batida. O círculo de aranhas em torno dos pés do Flautista se expandiu, abriu espaço.

 

Ainda assim, o público não parou de dançar. As aranhas que revestiam os corpos das pessoas se soltaram e correram para o palco. Natasha e Fabian foram descobertos, a pele cheia de picadas e pequenas feridas, aranhas mortas caindo de suas roupas e bocas. Retomaram sua guerra contra os ratos.

 

O Flautista começou a pular, cada vez mais alto, de um pé para o outro, sem tirar os olhos de Saul. Saul olhou para os pés do Flautista. Sempre que pulava, um pequeno grupo de aranhas dançava, no tempo da música, e se posicionava debaixo dele, tomando a forma da sola de cada sapato. Esperavam pacientemente que ele mergulhasse e as destruísse com exatidão. A carnificina de cada passo era planejada pelas próprias aranhas, que se enfileiravam para morrer.

 

– Você vê, Saul? – sussurrou o Flautista por sobre o palco escorregadio, manchado. – Essa é a alegria do jungle. Todas essas camadas... posso tocar minha flauta quantas vezes quiser, ao mesmo tempo...

 

O público continuou dançando e as aranhas a esperar pela morte.

 

Anansi estava sentado, os olhos vidrados com deleite pela música das aranhas em Wind City. Um sorriso idiota se espraiava em seu rosto. O braço esquerdo faltava em seu ombro, o corpo lavado de sangue, o ombro uma massa arruinada de carne e ossos.

 

O Flautista observava a expressão de Saul.

 

– Sim, cruel, eu sei, arrancar as pernas das aranhas, mas essa me causou problemas sem fim.

 

Empurrou a cabeça de Anansi contra o palco.

 

O grito de Saul foi afogado pelo drum and bass e pela flauta. Lutou com violência, mas foi contido facilmente pelas pessoas. Podia senti-las movendo-se ligeiramente ao som da batida, enquanto o seguravam.

 

O Flautista saltou, encolheu as pernas e distendeu-as com toda a força.

 

Ossos racharam e se partiram na cabeça de Anansi.

 

Saul caiu com um uivo.

 

A madeira do palco ergueu-se e cedeu. Algo irrompeu pelas tábuas diante do Flautista. Saul teve um vislumbre momentâneo das costas de alguém, de braços finos que estalaram como chicotes e agarraram os tornozelos do Flautista, puxando-o bruscamente e desaparecendo debaixo do palco.

 

O Flautista havia sumido. A música ainda rolava, Saul ainda estava aprisionado, os ratos ainda lutavam, mordiam e arranhavam, o público ainda reagia e massacrava ratos e dançava, mas o Flautista tinha desparecido.

 

Saul sentia as vibrações de uma grande batalha ser travada debaixo dele. Puxou os braços que o seguravam. Eram obscenamente fortes, mas quase imóveis. Apertavam-no com firmeza, mas não o puniam por seus vãos movimentos de luta.

 

A madeira sob seu estômago balançou como se algo tivesse sido empurrado contra ela. Um pouco para o lado, ouviu uma pancada sistemática; algo batia repetidas vezes nas tábuas. Lascas da madeira que rodeava o buraco no palco caíam suavemente para dentro da escuridão abaixo.

 

Aranhas se derramaram pelo buraco e Saul viu as costas de uma pessoa próxima descer pela escuridão.

 

Saul bateu subitamente na madeira debaixo de seu corpo, enfiou os dedos no pequeno vão entre duas tábuas, ignorando a pele que ficava para trás. Não tinha onde se apoiar, aquele era o ângulo errado, mas a adrenalina lhe deu força e puxou e quebrou as tábuas debaixo de seu corpo. Enfiou os dedos dentro da pequena cavidade e arranhou em busca de apoio. Forçou cada vez mais, puxando a madeira, sentindo a resistência da tábua, e só relaxou quando pregos velhos saltaram de seus ninhos e a prancha de madeira voou para longe.

 

Enfiou a cabeça nas trevas.

 

Ali, rolando na poeira, os olhos frenéticos e lívidos, as veias salientes de fúria, estava o Flautista. E agarrado a ele como uma craca, a palma da mão direita enfiada com força na boca do Flautista, dentes arreganhados e mordendo qualquer dos membros do Flautista que estivesse ao seu alcance, garras arranhando, o velho sobretudo envolvendo os dois corpos como algo vivo, estava Rei Rato.

 

Sua mão jorrava sangue do ponto onde o Flautista mordia, mas não a soltaria daquela boca. Estava coberto de aranhas. Atrás dele, a silhueta fraca de um homem do público, curvada naquele espaço sob o palco, batia-lhe com os braços. Rei Rato rolou de um lado para o outro para evitá-lo, desesperado para ficar fora de alcance.

 

Rei Rato olhou para Saul. Seus olhos imploravam por ajuda.

 

Saul viu os braços do homem girarem em volta do pescoço de Rei Rato, que começou a se dobrar inexoravelmente para trás.

 

Puxou desesperadamente as mãos que o apertavam, lutando com todas as suas forças, arqueando as costas. As mãos o empurravam para baixo; de repente, cedeu a elas, rolou e se espremeu através da estreita fenda na madeira, sendo empurrado para a liberdade por aqueles que tentavam aprisioná-lo, até cair de repente e aterrissar aos pés do Flautista.

 

Gritou de triunfo e se virou.

 

– Me ajuda – sibilou Rei Rato entre os dentes cerrados. Sua cabeça foi puxada para trás em um ângulo grotesco, seus braços perdiam o controle sobre o rival, sua mão tinha que se esforçar cada vez mais para bloquear a boca do Flautista. O homem às suas costas aos poucos o derrotava, tornado sobrenaturalmente forte pela música que os cercava.

 

Saul atacou através de multidões de aranhas dançantes e deu um forte soco na cara do homem que segurava Rei Rato.

 

Assim que o punho o tocou, viu que era Fabian.

 

Saul tinha batido pesado, com toda a sua força-de-rato; a cabeça de Fabian pendeu sobre os ombros de maneira perigosamente rápida, os dentes estilhaçados em sua boca, mas manteve o domínio sobre Rei Rato e continuou a puxar.

 

O Flautista estava quase livre, os dentes rasgando a mão de Rei Rato; por trás dela, borbulhava sangrentamente um urro de triunfo.

 

– Me ajude – repetiu Rei Rato. Saul agarrou-se a Fabian desesperadamente, empurrou-o de todas as formas, com toda a sua força, mas a flauta tinha entrado na alma de Fabian e nada poderia movê-lo. Se aquele soco não fizera o trabalho, Saul sabia que teria que matar Fabian para tirá-lo dali.

 

– Me ajude – disse Rei Rato mais uma vez.

 

Mas Saul hesitou demais e Fabian puxou Rei Rato para longe do Flautista.

 

– Sim! – O Flautista estava em pé diante de Saul, sujo, arranhado e trêmulo, derramando aranhas por todos os lados. Agarrou o colarinho de Saul, levantou-o com braços insanamente fortes, mandou-o voando através do buraco no palco de volta para o calor, barulho e sangue do clube.

 

Saul caiu desajeitado, derrapou pela madeira lascada.

 

O Flautista subiu atrás dele, arrastando Rei Rato pelos cabelos.

 

Wind City estava em loop, de novo e de novo. Saul estava certo de que ocupava toda a fita DAT, talvez com uma hora de duração.

 

– Você perdeu! – gritou o Flautista para Saul. – Você e seu papai e titio aranha e o homem-pássaro, vocês perderam, porque posso tocar minha flauta quantas vezes eu quiser agora. Sua amiga me ensinou, Saul... – Gesticulou com as mãos para as paredes, onde aranhas dançavam em pequenos círculos. Apontou para a pista de dança, onde o público saltava para cima e para baixo ao som de Wind City, encharcado de sangue, pisando em ratos moribundos.

 

Lançou Rei Rato nos braços das pessoas sobre o palco. Rei Rato cedeu, fraco e derrotado.

 

Saul estava esgotado. Sentiu mais mãos o agarrarem. O Flautista vagueou em sua direção e se agachou em sua frente, fora de alcance.

 

– Você vê, Saul – sussurrou. – Não vou apenas matar você. Antes de morrer, Saul, vou fazer com que dance para mim. Você se acha tão especial, não? Bem, eu sou o Senhor da Dança, Saul, e antes de morrer você vai dançar para mim. Por que você acha que deixei seu patético exercitozinho lutar até o último suspiro? – Indicou a pista de dança, onde pequenas batalhas sem brilho ainda estavam em curso, onde os ratos controlados eram sistematicamente destruídos pela dança contínua.

 

– Vê, queria explicar a você, Saul. Você vê como posso fazer as pessoas dançarem e as aranhas? Viu como fiz isso? Bem, posso fazer ratos dançarem, também, Saul. E você é o famoso mestiço, não é? Ahn? O garoto-rato? Ahn? Bem, já estou tocando para as pessoas, Saul, então metade de você está dançando, mesmo que não consiga perceber isso. Então, quando eu começar a tocar para os ratos, Saul, estarei tocando para os dois lados. Entende? Entende, seu filhinho da puta? Eu não sabia o que iria encontrar quando chequei seu livro de endereços, tentando achar você. Só apareci no endereço que tinha coisas rabiscadas do lado... e olha o que achei. Sua amiga Natasha, que me mostrou como fazer minha flauta se multiplicar...

 

O Flautista sorriu e deu um leve tapinha no rosto de Saul, depois recuou para perto dos toca-discos. Natasha ficou por perto, com a roupa arruinada e o rosto coberto de sangue espesso como petróleo.

 

A pista de dança ainda se agitava, mas uma estranha calma se estabeleceu no palco.

 

– Vou tocar para suas duas metades, Saul – disse. – Vou fazer você dançar.

 

Olhou para cima, levantou o dedo como um maestro e a música mudou de novo.

 

A batida se manteve, a linha de baixo ficou inalterada, a estática e o hesitante piano continuaram... só a flauta ganhou corpo.

 

Ao longo das melífluas e pontilhistas linhas de flauta que seduziam o público e as aranhas, um terceiro nível de som criou vida. Uma inquietante democracia de semitons rastejantes e acordes menores, com pausas pontuadas por surreais arroubos de ruídos, música para fazer a pele formigar. Música-de-rato.

 

Por toda a pista de dança, os ratos que não haviam fugido ou morrido ficaram subitamente imóveis.

 

Pelo canto dos olhos Saul viu Rei Rato ficar rígido, os olhos brilhantes e focalizados em alguma coisa fora do campo de visão. E assim que viu isso, Saul sentiu-se idiotizar por completo, ouviu a música, escutou-a com uma onda de maravilhamento, observou com olhos arregalados as explosões de luz ao seu redor, viu através dos alto-falantes e paredes, sentiu sua mente se abrir.

 

Muito, muito longe, ouviu uma risada aguda; viu o Flautista deitado, suspenso no ar pelos braços levantados do público, mas aquilo não o incomodava mais. As mãos que o prendiam tinham sumido. Saul se levantou e andou com lentidão até o centro do palco. A música era tudo em que podia se concentrar agora.

 

Havia alguma coisa que por muito pouco não podia alcançar...

 

Fora do seu alcance... havia uma bela comida...

 

Podia sentir o cheiro... podia sentir o gosto no ar – e sexo, sentiu seu pau ficar duro, sua boca salivava, os pés o impeliam, não precisava pensar para onde ir, a responsabilidade fora-lhe tirada, obedecia à música, duas músicas em uma, o rato e o homem, o brando e o frenético se misturando, preenchendo sua mente.

 

Estava vagamente consciente de Rei Rato ali perto, andando de um lado para o outro com os pés pesados, mas entusiasmado.

 

– Dancem! – A ordem veio do outro lado da pista, onde o Flautista andava sobre os braços da multidão como um atleta, um herói, um ditador.

 

A obediência veio facilmente até Saul. Dançou.

 

Sapateando.

 

Com o fim das lutas, todos na sala podiam dançar, as pessoas e aranhas e ratos que ainda estavam vivos, todos se moviam no ritmo, como um só, enquanto o Flautista gargalhava deliciado. Saul estava vagamente consciente de estar satisfeito, movendo-se em um pequeno círculo, ansioso por comida e sexo e música, orgulhoso de ser parte daquele salão, daquela enorme gestalt.10

 

O Flautista montou sobre os ombros do público por todo o salão em seu triunfo, uma volta de honra, e através de uma névoa feliz Saul viu a figura alta caminhar suavemente de volta para o palco.

 

Saul dançou de alegria, abriu os braços. Era a sua epifania, foi preenchido pela música, dois veios de música, sua mente relaxou e flutuou, os pés se deleitaram com a dança. Olhou para cima e em volta para os corpos que se sacudiam por todos os lados, os rostos dos adoradores... Saul estava em êxtase.

 

O Flautista sorriu – e Saul sorriu de volta.

 

Tinha uma vaga noção de palavras sendo ditas, sentiu os pés o impulsionarem para a frente, ao longo do grande palco, na direção do Flautista, que esperava por ele, algo longo e brilhante em sua mão.

 

– ...a mim...– Saul ouviu entre as batidas. – ...dance para mim... venha...

 

Deu um passo à frente, deslocando-se no ritmo das duas músicas que ouvia, ansioso para dançar.

 

Mas algo estava errado.

 

Houve um momento confuso. Saul hesitou.

 

As duas linhas de flauta eram dissonantes.

 

Saul pôs o pé no palco e tentou dançar, mas uma sombra cruzou sua mente.

 

As flautas rangiam uma contra a outra...

 

Ficou subitamente consciente daquela rouca dissonância. Sua fome e desejo ainda queimavam com força, mas não podia ver, estava cego, puxado para direções diferentes, abalado pela estética antifase das duas flautas.11

 

E enquanto escutava, de pé, parado do lado de fora da música, olhando para dentro, desesperado para voltar, sentiu um grande abismo entre as flautas.

 

E abrindo caminho através desse vão, vibrando em suas entranhas, sempre presente, a base da música, o início e o ponto final do jungle, veio o baixo.

 

Saul ficou parado, imóvel, no centro do palco.

 

A flauta e o baixo lutavam em seu interior.

 

As linhas de flauta giravam ao seu redor, tomavam atalhos que enganavam suas defesas, seduzindo-o, incitando-o a dançar, provocando sua mente-de-rato e sua humanidade. Mas algo em seu interior havia endurecido. Saul se esforçava para alcançar outra coisa. Tentava escutar o baixo.

 

As palavras de centenas de frases percorreram sua mente, os hinos infinitamente sampleados que o hip hop e o jungle tinham dedicado aos sons mais graves.

 

                       DJ! Where’s the bass?

                       Bass! How low can you go?

                       R-r-r-roll the bass…

                       Da bass too dark…

                       Here’s the bass.

                       Here’s how low the bass can go.

                       I… I’ll roll with the bass.

                       Because the bass too dark…12

 

Porque o baixo é sombrio demais pra isso, pensou Saul subitamente, com uma clareza chocante, o baixo é sombrio demais pra sofrer isso, os agudos insubordinados, fodam-se os agudos, foda-se o efêmero, fodam-se os tons mais altos, foda-se a flauta – e, enquanto tinha esses pensamentos, as linhas de flauta se dissolviam em sua mente, tornavam-se pouco mais do que uma leve cacofonia, fodam-se os agudos, pensou, porque quando se dança jungle o que se segue é o baixo...

 

Saul se reencontrou. Sabia quem era. Dançou de novo.

 

Isso era diferente. Estava com raiva, agitava os braços e pernas como armas. Dançou com o baixo, rolou sobre as batidas... ignorou as flautas.

 

Era o baixo que definia o rumo. Era o baixo que fazia a música. Era o baixo que unia o jungle, que cimentava sua comunidade, que construía salas repletas de pessoas dançando, algo muito mais forte do que essa mentalidade de escravos.

 

O Flautista ainda o esperava. Saul viu um sorriso renovado se espalhar pelo seu rosto. Ele vira Saul vacilar. Você quer que eu dance, né?, pensou Saul. Tinha que me ver dançar para você, valsar para a morte... e agora estou dançando, acha que seu agudo venceu, não é?

 

Saul dançou cada vez mais perto do Flautista, que mantinha a flauta próxima do corpo, como uma espada de samurai. Os braços do Flautista estavam retesados.

 

Duas flautas não são o bastante, pensou Saul, zonzo de poder. Continuou dançando, aproximando-se do inimigo. O Flautista sorriu e ergueu a mão direita, que segurava a flauta, levantou-a, tremendo, pronto para atacar.

 

Saul chegou tão perto que poderia tocá-lo.

 

– Agora, dance bem aí, filhote de rato – disse o Flautista suavemente.

 

Balançou a flauta.

 

Estava convencido, arrogante e desastrado; ficou à espera de sua presa, esperando até que caminhasse para o alcance de seu cruel bastão de prata.

 

Em vez disso, Saul avançou para o golpe final.

 

Moveu-se em um borrão à velocidade-de-rato, canalizando todo o seu pânico e sua frenética energia, queimando calorias de alimentos vencidos. Virou-se enquanto avançava e esticou a mão direita, agarrando a flauta e torcendo-a, girando em um círculo completo, puxando o metal frio, rasgando-o para fora dos dedos confiantes do Flautista; levantando o braço esquerdo, olhou por cima do ombro e acertou o cotovelo em cheio na garganta do inimigo.

 

O Flautista cambaleou para trás. Seus olhos se arregalaram e olhou para Saul em descrença. Vomitou, agarrou a garganta, sugou o ar. Saul avançou em sua direção, segurando a flauta. O drum and bass trovejava em seus ouvidos. Não era mais a música do Flautista; era a bateria que ouvia, a bateria e o baixo.

 

– Um mais um é igual a um, filho da puta – disse e bateu a flauta com força sob a mandíbula do Flautista, que cambaleou, mas não caiu. – Não sou rato mais homem, entendeu? Sou maior do que cada um deles e sou maior do que os dois. Sou uma coisa nova. Você não pode me fazer dançar. – Bateu com a flauta contra a têmpora do Flautista, jogando sua figura alta para o outro lado do palco em um jato de sangue, para onde Rei Rato ainda dançava.

 

O Flautista deu uma feia pirueta, mas ainda assim não caiu.

 

Saul avançou sobre ele, atingindo-o de novo e de novo com a flauta, brutal e implacável. Pontuou seu ataque com proclamações.

 

– Devia ter me matado e pronto. Você é forte demais pra mim, mas tinha que ficar convencido. Bom, sou o sangue novo, filho da puta. Sou mais do que a soma das minhas partes.

 

“Você não sabe tocar a minha música e sua flauta não significa merda nenhuma pra mim.”

 

Com o último ataque, o Flautista caiu ao lado de Rei Rato. Suas pernas se dobraram e caiu sentado com força no chão, de costas para uma parede de tijolos. Olhou para Saul, horrorizado e quebrado. O rosto estava esmagado e estragado. O sangue deslizava sobre a prata da flauta. Os olhos do Flautista estavam vidrados de agonia e estava afrontado, ultrajado por esse homem que não queria dançar sua música.

 

Sua respiração arranhou grotescamente em sua garganta. Lutou para falar, sem conseguir.

 

Saul olhou em volta. As silhuetas dançantes que enchiam o salão estavam desacelerando. A flauta estava mudando, diminuindo. Não podia se manter sem a vontade do Flautista. Os rostos das pessoas estavam confusos, as cabeça pendiam como se em um sono inquieto. Os ratos e aranhas começaram a tremer patologicamente à medida em que as linhas de flauta implodiam.

 

Rei Rato caiu no chão e se retorceu em agonia, forçando-se a sair do encanto. Sempre o mais forte, pensou Saul.

 

Olhou de volta para o Flautista, tombado no chão. Com os lábios inchados e os dentes ensanguentados, o Flautista sorriu.

 

Saul segurou a flauta como uma adaga, levantou-a sobre a cabeça.

 

Houve um estrondo infernal no interior das paredes. O palco tremeu. Saul cambaleou.

 

– Mas que porra...? – disse.

 

O chão tremeu e se sacudiu violentamente. Saul caiu para trás.

 

Sobre a cabeça do Flautista uma fenda surgiu na parede, estreita e artificialmente reta, como se aberta por uma enorme navalha. O palco se sacudiu até todas as pessoas do público caírem. Foi somente porque estava em uma fita DAT, a salvo dos caprichos de agulhas e choques, que Wind City não parou.

 

A fenda se alargou e se estendeu para baixo, abrindo os tijolos às costas do Flautista. O buraco na parede se abria para uma escuridão absoluta.

 

O Flautista olhou fixo para Saul com um pequeno sorriso.

 

A escuridão aumentou e sugou o ar da sala. Como se uma janela em um avião tivesse estourado, papéis e roupas e fragmentos de corpos de aranhas rodopiaram pelo ar até as trevas.

 

Ele fendeu uma montanha antes, pensou Saul com urgência, pode abrir uma parede. Está indo para casa.

 

O Flautista permaneceu quase imóvel quando a fenda se escancarou atrás dele, o olho de um furacão de detritos que tomou a sala. Saul firmou bem os pés e ficou de joelhos, disposto a impedir que o Flautista escapasse deste mundo.

 

Então, quando se firmou e agarrou a flauta mais uma vez, pronto para atacar, ouviu um lamento fino e desesperado vindo do abismo que se abria.

 

Uma voz de criança.

 

Saul congelou, horrorizado. O Flautista estava quieto. Não parou de fitar Saul. Não parou de sorrir. A fenda às suas costas já tinha quase meio metro de largura; começou a se contorcer para dentro dela, encarando Saul o tempo todo. O patético lamento parou abruptamente.

 

E quase ao mesmo tempo um coro de horror tomou conta da escuridão, centenas de pequenas vozes gritando, agoniadas, loucas de medo.

 

As crianças perdidas de Hamelin podiam ver a luz.

 

Saul tombou para trás, paralisado de terror.

 

Sua boca se esticou, mas somente meros ruídos escaparam. Estendeu a mão para a fenda na parede, impotente, inútil.

 

O Flautista o viu entrar em colapso – e piscou.

 

Até mais tarde, murmurou, e pôs as mãos nas bordas da fenda; deu um pequeno aceno.

 

Uma coisa rosnante saltou sobre Saul com uma velocidade feroz e arrancou a flauta de suas mãos.

 

Rei Rato agarrou a flauta com as duas mãos e saltou, em um ângulo impossível, do lado de Saul para perto do Flautista. Seus dentes estavam cerrados, seu rugido feroz mal era contido. Seu sobretudo era castigado pelo turbilhão de vento. O Flautista olhou para ele, estúpido e confuso.

 

O rosnado de Rei Rato cresceu, virou um latido frenético; recuou os braços, segurando a flauta como uma lança.

 

Cravou-a no corpo do Flautista com uma força animalesca.

 

O Flautista deu um grito de espanto, ridiculamente afetado, a música e os lamentos das crianças ao fundo.

 

A flauta o perfurou como um balão, penetrou fundo em sua barriga. Seu rosto ficou branco debaixo de todo o sangue. Agarrou os braços de Rei Rato, prendendo-se a eles com toda a sua força, puxando a mão que segurava a flauta para mais perto, olhando Rei Rato nos olhos.

 

Tudo ficou imóvel por um momento. Tudo pendia na balança.

 

O Flautista caiu para trás na escuridão.

 

Rei Rato caiu com ele.

 

Tudo que Saul podia ver era a curvatura das costas de Rei Rato, que pendeu para a frente e parou abruptamente. A fenda começou a se fechar em torno dele; as vozes das crianças eram mais e mais melancólicas e distantes.

 

As costas de Rei Rato se contorceram e seus braços emergiram acima de sua cabeça, mantendo o grande vão aberto por mais meio segundo enquanto se ajeitava, e pulou de volta pela borda do abismo, caindo sobre Saul.

 

Os dois lados da fenda se encontraram e fecharam com um leve ruído.

 

O Flautista tinha sumido. Os gritos das crianças tinham sumido.

 

Só o drum and bass podia ser ouvido.

 

1 Jungle night: no original, trocadilho com o gênero musical jungle.

2 O autor cita diversos trechos de músicas de jungle, dancehall e rap dos anos 80/90. Mr. Loverman (Shabba Ranks), Fight the power (Public Enemy), There is a darkside (Redman) I could just kill a man (Cypress Hill), Six million ways to die (Cutty Ranks, por sua vez sampleado por DJ Cam). Palavras de ordem de toda uma subcultura.

3 Karl Kani: designer de roupas do Brooklyn, em Nova York, conhecido por seu estilo hip hop. Kangols: marca de roupas street wear.

4 Posse: termo urbano para “grupo”.

5 No original, Jungle, com maiúscula, denotando o gênero musical. Optamos nestes casos pela tradução para “selva” para manter o trocadilho com as frases.

6 Droit de seigneur: o “direito do senhor”. Suposta lei medieval que permitia que um senhor feudal tivesse o direito de deflorar as filhas virgens de seus vassalos e servos. Não há registros históricos que realmente comprovem sua existência em algum momento da Idade Média.

7 Idem a nota 5.

8 Doze polegadas: tamanho de um disco de vinil.

9 Scratch: ato de emitir sons com o vinil, girando-o com os dedos sob a agulha do toca-discos. A arte do scratch foi introduzida, ainda que sem esse nome e com proposta distinta, por músicos clássicos das escolas concretistas. Foi aplicada à música pop pelos primeiros rappers, da chamada old school (os criadores do hip hop, dos anos 70 e 80).

10 Termo da psicologia: palavra de origem alemã, significando um processo que integra as suas partes, em oposição à soma destas partes em “todo”.

11 Antifase: fenômeno de áudio que acontece quando duas fontes sonoras similares mas com diferenças de tempo se encontram, gerando uma espécie de cancelamento.

12 Diversos slogans e frases de clássicos do hip hop e do jungle dos anos 80 e 90, a maioria usada em samples. “DJ! Where’s the bass?” (“DJ! Cadê o grave?”); “Bass! How low can you go?” (“Baixo! Quão grave você pode ficar?”; clássica frase da letra de Bring The Noise, do Public Enemy); “Roll the bass” (“Rola o baixo”); “Da bass too dark” (“O baixo é sombrio demais”; nome de uma das primeiras faixas de jungle, do projeto Asylum: Da Bass 2 Dark, de 1995, do seminal selo Metalheadz).

 

Saul estava deitado, exausto, escutando a respiração de Rei Rato.

 

Rolou para longe, rastejou ao longo do palco. Deu uma olhada no salão.

 

As luzes da pista de dança ainda giravam e piscavam sem motivo. Os destroços da sala não pareciam reais. Era uma carnificina de sangue e suor, ratos mortos, aranhas esmagadas, pessoas tombadas. As paredes estavam sujas de mil manchas diferentes. O chão estava escorregadio e abjeto. As pessoas do público estavam por toda a parte, como cadáveres revividos, arruinados e de olhos fechados, mudando de posição à medida que a batida de Wind City continuava e a flauta aos poucos ia sumindo. Havia gente caindo por todo o salão.

 

Saul cambaleou até o equipamento de som e arrancou o player de DAT da tomada. Os alto-falantes emudeceram. Instantaneamente, por toda a sala, pessoas caíram onde estavam, desmaiadas, imóveis como os mortos. Parecia o resultado de um massacre.

 

As aranhas e os ratos que ainda dançavam quando a música parou ficaram imóveis por um instante e então saíram correndo. Abandonaram o salão e sumiram na noite de Londres.

 

Saul olhou pelo salão, procurando seus amigos.

 

Ali perto, sob o corpo pesado de um sujeito enorme, estava Natasha. Puxou-a até que se libertasse, cantarolando baixinho.

 

– Tash, Tash – murmurou, limpando o sangue de seu rosto. Estava arranhada e rasgada, a pele picada com o veneno de milhões de pequenas aranhas, coberta de hematomas e mordidas de rato, mas estava respirando. Mantendo-a deitada, abraçou-a bem apertado e fechou os olhos com força.

 

Fazia tempo que tinha abraçado algum de seus amigos.

 

Ajeitou-a suavemente e saiu em busca de Fabian.

 

Saul o encontrou caído ao lado do buraco que Rei Rato tinha aberto no chão do palco. Quase chorou ao vê-lo. Estava muito machucado, com o rosto esmagado e quebrado, a pele tão arruinada quanto a de Natasha.

 

– Ele vai viver.

 

Saul lançou um olhar cortante na direção da voz áspera de Rei Rato.

 

Rei Rato estava bem ao seu lado, de pé, ocupado em observar Saul socorrer Fabian.

 

Saul tornou a olhar para o amigo.

 

– Eu sei – disse. – O coração está batendo. E está respirando.

 

Era difícil falar. Sua garganta estava apertada com a emoção. Olhou para Rei Rato, gesticulou na direção da parede.

 

– As crianças... – não conseguiu dizer mais nada.

 

Rei Rato concordou bruscamente.

 

– Os merdinhas cujos pais nos expulsaram da cidade – cuspiu.

 

O rosto de Saul se contorceu. Não conseguia falar, não conseguia olhar para Rei Rato. Tremia de raiva e nojo, cerrou os punhos. Ainda podia ouvir os patéticos gritos ecoando pela escuridão.

 

– Fabian – sussurrou. – Você pode me ouvir, cara?

 

Fabian se mexeu de leve, mas não respondeu. É melhor, pensou Saul. Não posso falar com ele agora, aqui, não posso explicar tudo isso. Ele precisa sair daqui primeiro. Não deve ver isso. Saul mal podia suportar a solidão. Queria tanto o seu amigo, mas sabia que deveria esperar.

 

Haverá tempo em breve, pensou e tentou ser forte.

 

Levantou-se, mancando para perto de Rei Rato. Os dois se olharam cautelosamente, depois caíram para a frente, pegando um no braço do outro, apoiando o outro. Um abraço ou uma reconciliação ainda estavam muito distantes, mas foi um momento de conexão. Como os boxeadores exaustos que se apoiam um sobre o outro, ainda inimigos, mas um concedendo ao outro um momento de descanso, gratos por isso.

 

Saul respirou fundo, deu um passo atrás.

 

– Você o matou? – disse.

 

Rei Rato ficou em silêncio. Deu-lhe as costas.

 

– Matou?

 

– Eu não sei... – As palavras pairaram no silêncio da sala. – Acho que sim... a flauta foi fundo dentro dele, sua garganta foi esmagada... Não sei...

 

Saul passou as mãos pelos cabelos, olhou para seu tronco pesado, manchado pela lama do combate. Estava abalado pelo anticlímax e pela incerteza. Mas, no fim, pensou, isso não importa. Ele não pode me atingir. Ele está morto ou moribundo, ou todo fodido e machucado e, se um dia voltar, serei a mesma coisa que sou agora, só que infinitamente mais. Ele não pode me atingir.

 

– Ele não pode atingir você – disse Rei Rato e lambeu os beiços.

 

O corpo de Anansi tinha desaparecido. Rei Rato não parecia surpreso. Olhou de lado a lado pelo tapete de aranhas esmagadas no palco e na pista de dança.

 

– Você nunca vai encontrá-lo – refletiu.

 

Saul olhou para ele e depois ao redor, para a sala. Tremia violentamente. O fedor de sangue de rato pesava no ar e a cada passo Saul caminhava sobre os corpos mortos do exército de Anansi. Algumas das pessoas começavam a se mexer.

 

Sangue decorava as paredes como arte abstrata.

 

– Tenho que sair daqui – sussurrou Saul.

 

Sem palavras, Saul e Rei Rato subiram até o sótão. Rei Rato foi na frente. Saul libertou-se de sua camisa e jogou-a sobre as costas antes de saltar e agarrar as bordas do alçapão, escalando pela passagem.

 

Olhou para trás uma última vez, enfiando a cabeça no enorme e silencioso salão.

 

Luzes vermelhas, verdes e azuis giravam em intrincados eixos, piscando aleatoriamente agora que as batidas tinham cessado. O chão estava coberto de corpos, alguns poucos tremendo levemente. Saul olhou para o palco onde tinha acomodado Fabian e Natasha. Pareciam dormir em paz, lado a lado. Natasha mexeu o braço como se sonhasse e ele caiu sobre o peito de Fabian.

 

Saul perdeu o fôlego. Não conseguiria olhar mais.

 

Seguiu Rei Rato e emergiu da claraboia, piscando os olhos e puxando o ar frio e refrescante. Pareciam ter se passado dias desde que entrara ali, mas o céu ainda estava escuro e as ruas tão desertas como sempre.

 

Era de madrugada, a madrugada da mesma noite. Londres dormia, gorda e perigosa e alegremente alheia ao que tinha acontecido na Elephant and Castle. A viva ignorância da cidade o animava. As coisas continuavam, pensou. Havia um grande conforto nisso.

 

Rei Rato e ele estavam ansiosos em deixar aquelas paredes para trás. Andavam tão rápido quanto podiam, escalando os telhados, arrastando seus membros feridos e estremecendo de dor, mas altivos e animados. Quando já estavam a algumas casas de distância do galpão, Saul parou.

 

Queria pedir ajuda para aqueles que ficaram no clube. Só Deus sabia quantos ossos quebrados e pulmões perfurados e coisas assim estavam à espera naquele salão e ele tinha muito medo do que poderiam ter contraído das suas tropas. Não queria nem pensar na hipótese de algum deles morrer. Não depois daquela noite. Passar por toda aquela loucura, ser possuído, dançar sem parar, apenas para morrer de mordida de rato em um leito... não podia suportar a ideia.

 

Ficou um pouco distante de Rei Rato, no terraço de uma loja de apostas. Casas baixas e anódinas os rodeavam. Saul se deleitou com a banalidade da vista, os telhados cinzentos, os feios anúncios nos outdoors, descascados e datados, os grafites obscuros. Ouviu um trem passar por algum lugar não muito longe.

 

Rei Rato o encarou.

 

– Tá indo, então? – disse.

 

Saul explodiu em gargalhadas com o absurdo eufemismo da despedida.

 

– Sim. – Balançou a cabeça.

 

Rei Rato balançou em resposta. Parecia muito perturbado.

 

– Eu o matei, sabe – disse de repente. – Tirei-o de cena. Não você, você ficou parado. Você o teria deixado fugir, mas eu, não! Pulei com meus dentes afiados e acabei com aquele facínora! – Saul nada disse. Rei Rato o olhou fixamente, sua excitação transbordando. – Mas nenhum rato tava lá pra dar uma olhada – disse lentamente. – Nenhum dos meus meninos e meninas. Não viram nada, todos dançando, em outra, mortos e moribundos.

 

Houve um longo silêncio.

 

Rei Rato apontou brevemente para Saul.

 

– Vão achar que foi você.

 

Saul concordou.

 

Rei Rato começou a tremer. Lutou para se controlar, meteu as mãos na boca, bateu nos flancos do corpo, mas não pôde conter a angústia e a excitação.

 

Agarrou os braços de Saul, com as mãos tremendo.

 

– Conta pra eles – implorou. – Vão acreditar em você. Conta o que eu fiz.

 

Saul fitou aquela figura escura e suja. De seu ângulo de visão, nada de Londres era visível atrás de Rei Rato. Aquele rosto magro e maldefinido era tudo o que podia ver, cercado por nada além do céu, estrelas fracas e nuvens poluídas. Rei Rato era uma ilha no seu campo de visão, operando sob suas próprias regras. Os cantos escuros que escondiam seus olhos estavam fervendo; nada o acalmaria. As nuvens atrás da cabeça de Rei Rato estavam tingidas de vermelho, manchadas pela cidade.

 

Rei Rato implorava por absolvição. Queria seu reino de volta.

 

Saul não o queria. Não queria ser Príncipe Herdeiro de ratos. Não era mais rato do que era um homem.

 

Mas, quando olhou o rosto de Rei Rato, viu uma brutalidade sórdida em um beco. Viu um homem velho e gordo que o amava caindo do céu em uma chuva mortal de vidro.

 

Saul fechou os olhos e lembrou de seu pai. Queria seu pai. Queria tanto falar com ele.

 

Nunca mais poderia falar com ele de novo.

 

Falou muito lentamente, sem abrir os olhos.

 

– Vou dizer às minhas tropas – falou – como você se ajoelhou e implorou ao Flautista por sua vida; e como prometeu a ele todos os ratos que conseguisse matar; e como isso teria acontecido se eu não tivesse lutado bravamente, vencido você e empurrado o Flautista para o inferno empalado em sua flauta.

 

“Vou contar a todos eles que Judas covarde, mentiroso e medroso você foi.”

 

Abriu os olhos quando Rei Rato começou a berrar.

 

– Me dá meu Reino – gritou e agarrou o rosto de Saul. – Seu babaquinha, vou matar você...

 

Saul recuou, desviando-se das garras que o atacavam, e empurrou Rei Rato no peito.

 

– E o que você vai fazer? – sibilou. – Vai me matar? Porque sabe de uma coisa? Não sei se você matou o Flautista! E, se algum dia ele voltar, vai te matar de verdade que nem um verme de merda e vai te fazer dançar e implorar antes de morrer; mas ele não pode me matar...

 

Rei Rato abrandou-se, parou com os ataques frenéticos. Afastou-se de Saul, os ombros caídos, acabado.

 

– Tá vendo? Ele não pode me atacar... – chiou Saul. Empurrou um dedo sobre o peito de Rei Rato. – Você me arrastou para este mundo, assassino, estuprador, pai, você matou meu pai, soltou o Flautista no meu caminho... Não posso te matar, mas pode esquecer essa merda de Reino. É meu – e você precisa de mim no caso dele voltar. Você não pode me matar, por segurança. – Saul riu desagradavelmente. – Eu sei como você trabalha, seu animal de merda. Você antes de tudo. Me mate e você estará matando a si mesmo. Então, vai fazer o quê? Ahn?

 

Saul deu um passo atrás e abriu os braços. Fechou os olhos.

 

– Me mate. Dê o seu melhor.

 

E esperou, ouvindo a respiração de Rei Rato.

 

Finalmente abriu os olhos e viu Rei Rato se esgueirando, movendo-se para a frente e para trás; avançava e se afastava novamente, cerrava e relaxava os punhos.

 

– Seu bastardo! – chiou em desespero.

 

Saul riu de novo, amargo e cansado. Deu as costas a Rei Rato e caminhou até a beirada do telhado. Quando começou a descer, Rei Rato sussurrou novamente.

 

– Se cuida, seu merda – silvou. – Se cuida.

 

Saul desceu por um antigo arco de tijolos e desapareceu no labirinto atrás de uma caçamba de lixo, abriu caminho por um beco estreito e emergiu no sul de Londres.

 

Vagou pelas ruas até encontrar uma escura galeria com vendedores de kebab, bancas de jornais e sapatarias e, ao final, milagrosamente intacta e funcionando, uma cabine telefônica. Discou 999 e mandou a polícia e ambulâncias para o galpão. Deus os ajude, pensou, ao encontrar aquela cena pela frente.

 

Após fazer essa ligação, Saul deixou o aparelho no queixo por um bom tempo, tentando decidir por instinto como agir. Queria fazer mais uma chamada.

 

Ligou para a consulta telefônica e pediu o número da delegacia de Willesden. Disse para a telefonista que sua moeda de uma libra tinha ficado presa na cabine telefônica e que tinha que fazer uma chamada urgente. A telefonista concordou com uma voz entediada, planejada para que Saul percebesse que ela sabia que estava mentindo.

 

A ligação foi atendida por um irritado sargento do turno da noite.

 

Saul achou que o Inspetor-Detetive Crowley estaria disponível. Àquela hora? Saul estava maluco? Qualquer coisa urgente que o sargento pudesse ajudar?

 

Saul pediu para ser transferido para a secretária eletrônica de Crowley. Empacou com o déjà vu de ouvir o tom comedido de Crowley. Não o escutava desde o seu renascimento, a noite seguinte ao assassinato de seu pai.

 

Limpou a garganta.

 

– Crowley, aqui é Saul Garamond. A esta altura você já deve saber da carnificina na Elephant and Castle. Isto é só pra você saber que eu estava lá e dizer pra nem se incomodar em perguntar pra alguém lá o que aconteceu, porque nenhum deles sabe. Não sei como você vai resolver isso... Ah, foda-se, diga que era uma obra de arte performática que deu horrivelmente errado. Sei lá. Enfim, estou ligando pra dizer que eu não matei meu pai. Eu não matei os policiais. Eu não matei o segurança dos ônibus, eu não matei Deborah e eu não matei meu amigo Kay.

 

“Quero avisar que o principal culpado se foi.

 

“Acho que não vamos vê-lo de novo.

 

“Há mais um culpado de uma parte disso tudo, Crowley, e não posso me livrar dele, ainda não. Mas vou ficar de olho nele. Isso eu prometo.

 

“Quero voltar, Crowley, mas sei que não posso. Deixe Fabian e Natasha em paz. Eles não sabem de nada e não me viram. Prestei a todos um favor esta noite, Crowley. Você nunca saberá dessa missa a metade.

 

“Se tivermos sorte, esta será a última vez em que vamos saber um do outro.

 

“Boa sorte, Crowley.”

 

Desligou.

 

Me fale do seu pai, Crowley havia sugerido, todas aquelas semanas atrás. Ah, Crowley, pensou Saul, isso é exatamente o que não consigo fazer.

 

Você não entenderia.

 

Andou pelas ruas escuras, voltando para casa.

 

                   EPÍLOGO

 

Muito abaixo de Londres, em uma rude câmara perto de uma linha do metrô abandonada há cinquenta anos, acessível a partir dos esgotos e encanamentos de centenas de prédios, Saul contou aos ratos a história da Grande Batalha.

 

Estavam encantados. Rodeavam Saul em círculos concêntricos, ratos de toda Londres, aqui um sobrevivente daquela noite, lambendo ostensivamente as cicatrizes, outro se gabando de suas proezas, outros conversando e comentando. Estava seco e não muito frio. Havia pilhas de comida para todos. Saul estava deitado no centro e contava sua história, mostrando as feridas que cicatrizavam.

 

Saul contou ao grupo reunido da traição de Rei Rato, de como tinha se humilhado no chão e oferecido a vida de cada rato de Londres se o Flautista o poupasse. Saul contou a história de como ele próprio tinha ouvido os gritos dos moribundos e quebrado o feitiço do Flautista, empurrando-o para dentro de um vazio com sua flauta infernal enfiada nele; e contou como tinha batido em Rei Rato por desprezo pelo que tinha feito.

 

Os ratos ouviam e balançavam as cabecinhas.

 

Saul advertiu os ratos para que fossem vigilantes, ficassem de olho no Flautista e evitassem as mentiras e tentações do Grande Traidor, Rei Rato.

 

– Ele ainda está nos esgotos – alertou Saul. – Está nos telhados, está sempre por aí e vai tentar conquistá-los, contar mentiras e implorar para que o sigam.

 

Os ratos ouviam atentamente. Não falhariam.

 

Quando Saul terminou a história, sentou-se sobre as coxas e olhou para o círculo de carinhas. Filas e filas de olhos ansiosos, fitando-o, pedindo que os comandasse. Eles o oprimiam.

 

Havia tanta coisa que Saul queria fazer. Tinha uma carta para Fabian no bolso. Fabian deixaria o hospital em breve e encontraria a carta esperando por ele, algumas tentativas de introdução, dicas explicativas e a promessa de contatá-lo quando as coisas se acalmassem.

 

Saul queria encontrar uma base permanente. Havia uma torre vazia em Haringey na qual queria dar uma olhada.

 

Precisava fazer algumas compras. Estava de olho em um veloz computador da Apple, um Mac portátil. Deixar o mundo humano para trás certamente deixava as coisas mais fáceis no que se relacionava a dinheiro.

 

Não poderia voltar à velha vida enquanto os ratos escutassem cada palavra sua e o seguissem por todos os lugares, desesperados para cumprir suas ordens. Sua vingança contra Rei Rato o tinha aprisionado a fileiras intermináveis de seguidores que o adoravam e de quem estava ansioso para escapar. E havia sempre a possibilidade de que os ratos começassem a escutar Rei Rato. Ele estava à solta, escondido, planejando, destruindo. Saul teria que garantir que sua vingança fosse duradoura.

 

Teria que mudar as regras.

 

– Vocês todos deveriam estar orgulhosos de si mesmos – disse. – A nação obteve um grande triunfo.

 

O grupo ficou contente.

 

– É uma nova manhã para os ratos – disse. – É hora dos ratos perceberem sua força.

 

Excitação tomou a assembleia. Que anúncio seria esse?

 

– E é por essa razão que eu abdico.

 

Pânico! Os ratos corriam de um lado para outro, suplicavam. Guie-nos, diziam com seus olhos e gritos e garras, controle-nos.

 

– Ouçam-me! Por que não reclamo de Rei Rato o direito de usar esse nome? Ouçam-me! Abdico porque os ratos merecem algo melhor do que um rei. Os cães têm sua Rainha, os gatos, seu Rei, as aranhas escolherão um outro soberano, todas as nações caem em bajulações diante de seus líderes, mas deixem-me dizer uma coisa a todos vocês... Eu não poderia ter derrotado o Flautista sem vocês. Não precisam de campeões. É hora de uma revolução.

 

Saul pensou em seu pai, seus argumentos fervorosos, seus livros, seu compromisso. Essa é pra você, papai, pensou ironicamente.

 

– É hora de uma revolução. Vocês foram liderados por um monarca durante anos e ele os levou para o desastre. Depois, anos de anarquia e medo, à procura de um novo governante, o medo isolando-os tanto que perderam a fé em sua nação. – Um arrepio percorreu momentaneamente as costas de Saul de cima a baixo. De repente, ficou alarmado. Meu Deus, pensou, eu me pergunto o que estou liberando. Mas era tarde demais para parar e deixou a coisa correr. Sentia-se como um agente da história.

 

– Então, agora que vocês sabem o que podem fazer, jamais se ajoelharão aos caprichos de reis novamente. Não abdico em favor de outro. – Saul fez uma pausa teatral. – Declaro este o Ano Um da República dos Ratos.

 

Pandemônio. Ratos correndo pela sala, apavorados, animados, libertos, horrorizados. E acima do tumulto e da confusão, a voz de Saul continuava seu discurso, já quase no final.

 

– Todos iguais, todos trabalhando juntos, respeito vai para aqueles que o merecem, não para aqueles que o reivindicam... Liberdade, Igualdade... e vamos colocar o “rat” de volta em Fraternidade – concluiu com um sorriso. Desta forma, pensou, talvez eu possa ter um pouco de paz.

 

Ergueu a voz sobre o clamor.

 

– Não sou Príncipe Rato, não sou Rei Rato.... Deixem o Traidor se agarrar a esse título fora de moda se quiser, pateticamente preso ao passado. De agora em diante não há reis – disse Saul.

 

“Sou apenas um de vocês”, disse.

 

“Sou Cidadão Rato.”

 

Sozinho de novo.

 

Já fiz isso antes. Não conseguirão me deter. Se cuida, filhinho.

 

Sou o que está sempre presente. Sou o único que se embrenha. Sou o despossuído, mas voltarei. Sou o porquê de você não conseguir dormir tranquilo em sua cama. Sou o que lhe ensinou tudo o que sabe; mas tenho mais truques na manga. Sou o tenaz, o que trava os dentes, o que não vai desistir, que nunca vai deixar nada para trás.

 

Sou o sobrevivente.

 

Sou Rei Rato.

 

                                                                                China Miéville  

 

                      

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