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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RELAÇÕES PERIGOSAS / Amanda Quick
RELAÇÕES PERIGOSAS / Amanda Quick

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Os olhos do intruso tinham um brilho frio. Com mão vigorosa, o homem varreu mais uma fila de vasos da prateleira: os objectos frágeis caíram no chão e partiram-se em cacos. O homem encaminhou-se para um escaparate de estatuetas.

- Aviso-a de que deve despachar-se, Mrs. Lake - disse ele, fazendo incidir a sua acção violenta num conjunto de frágeis Pãs, Afrodites e sátiros de barro. - A carruagem vai partir dentro de quinze minutos e garanto-lhe que a senhora e a sua sobrinha vão seguir nela, com ou sem bagagem.

Lavinia observava-o do fundo da escada, impotente para impedir a destruição da sua mercadoria.

- O senhor não tem o direito de fazer isso. Vai arruinar-me.

- Pelo contrário, minha senhora, estou a salvar-lhe a vida - con trapôs ele, derribando, com a ponta da bota, uma urna decorada à etrusca. - Embora não espere que me agradeça por isso.

Lavinia estremeceu ao ouvir o impacto da urna no chão, apercebendo-se de que era inútil invectivar o lunático. O homem estava decidido a destruir-lhe a loja e ela não dispunha de nenhum meio para o impedir. Há muito que aprendera a reconhecer os indícios que aconselhavam uma retirada táctica. Porém, nunca aprendera a suportar serenamente os arreliadores reveses da sorte.

 

 

 

 

- Se estivéssemos em Inglaterra, Mr. March, mandá-lo-ia prender.

- Sim, mas não estamos em Inglaterra, pois não, Mrs. Lake?

Tobias March agarrou num centurião de pedra pelo escudo e puxou-o para a frente: o romano caiu sobre a espada. - Estamos em Itália e não pode deixar de fazer o que lhe digo.

Era-lhe inútil discutir. Lavinia compreendeu que prolongar a dis cussão era perder o pouco tempo de que dispunha para fazer as malas, mas a infeliz tendência para a teimosia, a qual constituía uma boa parte da sua natureza, não lhe permitia abandonar o campo de batalha sem reagir.

- Bastardo! - disse ela entre os dentes.

- Não, em termos legais - March varreu outra fila de vasos de barro para o chão. - Mas eu compreendo o que quer dizer.

- Obviamente, não é um cavalheiro, Tobias March.

- Não vou discutir essa questão consigo - disse ele, empurrando um busto nu de Vénus. - Mas tão-pouco estou a tratar com uma grande senhora, pois não?

Lavinia encolheu-se, quando o busto caiu: as Vénus nuas tinham muita saída com a clientela.

- Como pode atrever-se? O facto de eu e a minha sobrinha nos termos visto abandonadas aqui em Roma e obrigadas a montar um negócio, para sobrevivermos, não é razão para nos insultar.

- Basta! - O homem voltou-se para a encarar. À luz da lanterna, a cara dele, ameaçadora, era mais fria do que os traços de qualquer das estátuas de pedra. - E agradeça o facto de eu ter chegado à conclusão de que não passa de uma ingénua e involuntária cúmplice do criminoso que eu persigo, e não um membro do gangue de ladrões e assassinos.

- Eu tenho apenas a sua palavra quanto aos malfeitores utilizarem a minha loja para trocarem mensagens e, francamente, Mr. March, dado o seu comportamento grosseiro, sinto-me inclinada a não acreditar no que me diz.

O homem tirou uma folha de papel do bolso.

- Nega que isto estava escondido num dos seus vasos?

Lavinia olhou para o pedaço de papel. Pouco antes, pasmada, observara o homem a partir um belo vaso grego e a retirar dele uma mensagem que parecia ser o relatório de um meliante para o seu criminoso patrão, qualquer coisa a respeito de um negócio com uns piratas ter sido levado a cabo com êxito.

- Não é, decerto, culpa minha se um dos meus clientes depositou uma mensagem pessoal nesse vaso - disse Lavinia, erguendo o queixo.

- Não apenas um cliente, Mrs. Lake. Há muito tempo que os criminosos utilizavam a sua loja.

- E como é que sabe disso?

- Há cerca de um mês que eu vigio este local e as suas próprias movimentações, Mrs. Lake.

Lavinia ficou com um olhar espantado, claramente chocada com a revelação, expressa em tom casual.

- Quer dizer que passou o último mês a espiar-me?

- No início, assumi que a senhora era uma activa participante da rede que Carlisle montara aqui em Roma. Só mais tarde, após aturada observação, é que cheguei à conclusão de que, provavelmente, desconhecia o que os seus pretensos clientes tramavam.

- Isso é ultrajante.

O homem fitou-a com ar irónico.

- Quer dizer que, afinal, sabia o que eles andavam a fazer nas suas frequentes visitas?

- Não estou a dizer nada disso - Lavinia apercebia-se de que estava a elevar a voz, mas nada podia fazer quanto a isso. Nunca na sua vida se sentira tão cheia de raiva e tão assustada. - Eu acreditava que eles eram honestos coleccionadores de antiguidades.

- Acreditava, deveras? - O olhar dele pousou num conjunto de potes de vidro, de um verde baço, perfeitamente alinhados numa estante alta. - E a senhora, Mrs. Lake, é honesta?

Lavinia ficou hirta.

- O que é que quer significar com isso?

- Nada em especial. Só que noto que a maior parte dos artigos expostos nesta loja são imitações baratas de artefactos antigos. Pouco há aqui realmente antigo.

- Como é que pode saber? - disparou ela. - Nada me induz a acreditar que o senhor é um perito em antiguidades. Essa sua afirmação é grotesca. Não se queira fazer passar por conhecedor, depois de tudo o que fez ao meu estabelecimento.

- Tem toda a razão, Mrs. Lake. Eu não sou um perito em antiguidades, sou um simples homem que presta serviços.

- Conversa fiada. Por que é que um simples homem que presta serviços haveria de vir a Roma em perseguição de um criminoso chamado Carlisle?

- Eu estou aqui a mando de um dos meus clientes, o qual me encarregou de investigar o que se passou com um homem chamado Bennett Ruckland.

- E o que é que se passou com esse homem chamado Bennett Ruckland?

Tobias fitou-a fixamente.

- Foi assassinado aqui em Roma. O meu cliente acredita que isso aconteceu porque ele sabia demasiado a respeito da organização secreta controlada por Carlisle.

- Uma história inverosímil!

- De qualquer modo, é a minha história e é a única que interessa por ora. - disse ele, atirando outro vaso ao chão. - E só lhe restam dez minutos, Mrs. Lake.

Não havia escapatória. Lavinia agarrou num conjunto de saias e começou a subir as escadas, mas parou a meio, detida por uma interrogação.

- O negócio de investigar assassínios por conta de clientes parece-me uma profissão muito estranha - disse ela.

March escaqueirou uma lamparina romana.

- Não mais estranha do que a de vender antiguidades falsas.

Lavinia ficou inflamada.

- Já lhe disse que não são falsas. Trata-se apenas de reproduções para serem vendidas como recordações.

- Chame-lhes o que quiser. Para mim, não passam de imitações fraudulentas.

Lavinia sorriu ligeiramente.

- Mas acabou de dizer que não é perito neste tipo de artefactos e que é um simples homem que presta serviços!

- Restam-lhe apenas oito minutos, Mrs. Lake.

Lavinia segurou no pendente de prata que tinha ao pescoço, como fazia sempre que os seus nervos eram sujeitos a grande pressão.

- Não consigo decidir se é um monstro ou apenas um loucoexclamou ela.

Ele fitou-a com um sorriso frio, mordaz.

- Acha que há grande diferença?

- Não.

Era uma situação impossível: Lavinia tinha de lhe conceder a vitória. Com uma abafada exclamação de raiva e de frustração, voltou-se e correu pela escada acima. Quando chegou ao pequeno quarto, iluminado por um candeeiro, viu que, ao contrário dela, Emeline aproveitara bem o tempo que lhes fora concedido. Havia duas malas grandes abertas, bem como uma enorme. As malas mais pequenas já se encontravam abarrotadas.

- Ainda bem que aparece - soou a voz abafada de Emeline, a cabeça enfiada no guarda-vestidos. - Por que é que demorou tanto?

- Estive a tentar convencer Mr. March de que não tinha o direito de nos pôr na rua a meio da noite.

- Ele não nos está a pôr no meio da rua - Emeline afastou-se do guarda-vestidos, com um pequeno vaso antigo nos braços. - Até tem uma carruagem preparada, com dois homens armados, para nos retirar sãs e salvas de Roma e nos conduzir a Inglaterra. É um gesto generoso da parte dele.

- Isso não quer dizer nada. A atitude dele nada tem de generoso. Garanto-te que ele está metido num grande conluio e tudo o que quer é ver-se livre de nós.

Emeline atarefava-se a embrulhar o vaso num vestido de bombazina.

- Ele está convencido de que nos encontramos em grande perigo, por via desse tal Carlisle que tem utilizado a nossa loja para enviar e receber mensagens dos seus acólitos.

- Não sejas tola. Só dispomos da palavra dele a afirmar que existe tal criminoso a operar aqui em Roma. - Lavinia abriu um armário: um belo e bem constituído Apolo olhou para ela lá de dentro. - Pela minha parte, não acredito muito no que este homem nos diz. E desconfio que o que ele pretende é utilizar este local para os seus desígnios obscuros.

- Estou convencida de que o que ele diz é verdade - Emeline meteu o vaso embrulhado numa das malas. - E se for verdade, ele tem razão: estamos realmente em perigo.

- Se houver um gangue de malfeitores implicado neste caso, não me surpreenderia que este Tobias March fosse o chefe. Ele afirma ser um simples homem que presta serviços, mas, para mim, há algo nele claramente diabólico.

- O seu temperamento, tia Lavinia, está a dar largas à sua imagi nação. E sabe bem como avalia mal as coisas quando se deixa dominar pela imaginação.

O som de barros partidos ecoava pela escada acima.

- Diabo do homem! - exclamou Lavinia.

Emeline interrompeu a sua tarefa e inclinou a cabeça, escutando.

- Parece ser intenção dele dar a entender que fomos vítimas de vândalos e de ladrões, não acha?

- Ele referiu que mais valia destruir a loja toda para o Carlisle não suspeitar que tinha sido descoberto - Lavinia esforçava-se por retirar o Apolo do armário -, mas desconfio de que se trata de mais uma das suas mentiras. Se queres que te diga, o homem está a divertir-se lá em baixo. É completamente louco!

- Não acredito nisso - Emeline foi buscar outro vaso ao guarda- vestidos. - De qualquer modo, ainda bem que guardámos as verdadeiras antiguidades cá em cima, para as resguardar dos ladrões.

- É a nossa única sorte, neste verdadeiro pesadelo - Lavinia envolveu o Apolo com os braços e retirou-o do armário. - Tremo toda quando penso o que lhes poderia ter acontecido se as tivéssemos expostas lá em baixo. March tê-las-ia, decerto, destruído.

- Se quer saber, acho que o aspecto mais feliz de tudo isto é o facto de Mr. March se ter apercebido de que não pertencemos à rede de Carlisle. - Emeline embrulhou um pequeno vaso numa toalha e meteu-o na mala grande. - Tremo ao pensar o que nos teria feito se achasse que nós éramos cúmplices dos verdadeiros meliantes e não simples ingénuas inocentes.

- Dificilmente nos poderia fazer pior do que destruir a nossa única fonte de rendimento e escorraçar-nos de casa.

Emeline olhou para as velhas paredes de pedra que as rodeavam e comentou, com um ligeiro ar de desdém:

- Dificilmente se pode chamar uma casa a este desagradável quartito. Não vou ter saudades nenhumas dele.

- Vais ver que vais ter saudades dele, quando nos encontrarmos em Londres sem dinheiro e obrigadas a ganhar a vida nas ruas.

- Não vai acontecer nada disso - Emeline afagou o vaso envolto em roupa que tinha nas mãos. - Vamos vender bem estas antiguidades quando chegarmos a Inglaterra. Coleccionar vasos antigos e estatuetas está muito na moda, como sabe. Com o dinheiro que arranjarmos, vamos poder alugar uma casa.

- Não por muito tempo. Teremos muita sorte se, com estas antiguidades, arranjarmos dinheiro para sobreviver durante seis meses. E, quando gastarmos esse dinheiro, ficaremos numa situação desesperada.

- A tia vai descobrir qualquer outra coisa para fazermos, como sempre. Veja como nos governámos bem quando a nossa patroa fugiu com o seu simpático conde e nos abandonou aqui em Roma. A sua ideia de montarmos um negócio de antiguidades foi simplesmente brilhante.

Lavinia conseguiu, com muita força de vontade, não se pôr a chorar de frustração. A confiança de Emeline na sua capacidade de recuperar dos desaires da vida enlouquecia-a.

- Ajuda-me aqui com este Apolo, por favor - disse ela. Emeline olhou com ar dubitativo para a grande estátua nua que Lavinia tentava arrastar pelo quarto.

- Isso vai ocupar a maior parte do espaço da última mala. Talvez fósse melhor deixá-lo aqui e levar outras coisas mais pequenas.

- Este Apolo vale dúzias de vasos. - Lavinia parou no meio do quarto, amparando a estátua, exausta pelo esforço. - É a nossa peça mais valiosa, temos de a levar connosco.

- Se a metermos na mala, ficamos sem espaço para os seus livros. Lavinia sentiu um mal-estar no estômago e olhou bruscamente para a prateleira que continha os livros de poesia que trouxera consigo de Inglaterra. Pensar em deixá-los ali era-lhe quase insuportável.

- Posso substitui-los - disse ela, agarrando com mais força a estátua. - Mais tarde.

Emeline hesitava, observando o rosto de Lavinia.

- Tem a certeza? Eu sei o que eles significam para si.

- O Apolo é mais importante.

- Muito bem.

Emeline avançou e agarrou nas pernas do Apolo.

Passos pesados soaram na escada. Tobias March apareceu à porta do quarto, olhou para as malas e, depois, para Lavinia e Emeline.

- Têm de partir já - disse. - Não posso arriscar que fiquem aqui nem mais uns minutos que sejam.

Lavinia tinha vontade de lhe atirar um dos vasos à cabeça.

- Eu não vou deixar aqui este Apolo. Ele pode ser a nossa salvação para não cairmos num bordel, quando regressarmos a Londres.

Emeline fez uma careta.

- Francamente, tia Lavinia, não exagere!

- Não estou muito longe da verdade! - exclamou Lavinia.

- Dêem-me cá o raio da estátua! - Tobias avançou para elas e alçou a estátua nos braços. - Eu meto-a na mala.

Emeline sorriu, prazenteira.

- Muito obrigado. Ela é, na verdade, muito pesada.

Lavinia emitiu um som de desagrado.

- Não lhe agradeças Emeline, ele é o causador disto tudo.

- Tenho muito prazer em ajudar - disse Tobias, colocando a estátua na mala. - Mais alguma coisa?

- Sim, mais uma coisa - disse Lavinia, prestamente. - Aquela urna junto à porta. É uma peça excepcional.

- Não cabe na mala. - Tobias levantou a tampa da urna e olhou lá para dentro. - Há que escolher entre o Apolo e a urna. Não podem levar as duas coisas.

Lavinia semicerrou os olhos, subitamente desconfiada. Tenciona ficar com ela, não é? Quer roubar-me a minha urna.

- Garanto-lhe, Mrs. Lake; que não estou nada interessado na sua urna. Quer levá-la ou o Apolo? Escolha, e já.

- O Apolo - murmurou Lavinia.

Emeline apressou-se a enfiar um roupão e alguns sapatos em volta do Apolo.

- Acho que estamos prontas, Mr. March.

- Sim, estamos prontas. - Lavinia lançou a Tobias um sorriso gelado. - Completamente prontas. E só espero que um dia tenha a oportunidade de lhe pagar todo este seu trabalho nocturno, Mr. March.

March baixou a tampa da mala.

- Isso é uma ameaça, Mrs. Lake?

- Assuma o que quiser - Lavinia agarrou a bolsa com uma das mãos e o casaco de viagem com a outra. - Vamos, Emeline, antes que Mr. March decida deitar a casa abaixo em cima de nós.

- Não há razão para ser tão desagradável - Emeline pegou também num casaco e numa boina. - Dadas as circunstâncias, acho que Mr. March se está a comportar com admirável serenidade.

Tobias inclinou a cabeça.

- Aprecio muito a sua compreensão, Miss Emeline.

- Não deve levar muito a sério as observações da minha tia - disse Emeline. - A sua personalidade é de tal natureza que, quando se sente pressionada, tem a tendência de agir apenas com o temperamento.

Tobias fitou de novo Lavinia com o seu olhar frio.

- Eu apercebi-me disso.

- Peço-lhe a sua compreensão - continuou Emeline. - Para além de todos os nossos problemas desta noite, vemo-nos obrigadas a deixar aqui os livros de poesia, o que, para ela, significa uma decisão muito difícil. A minha tia gosta muito de poesia, compreende.

- Oh, por favor, Emeline! - Lavinia lançou o casaco pelos ombros e caminhou decididamente para a porta. - Recuso-me a ouvir essa conversa ridícula. Uma coisa é certa, Mr. March: de repente, sinto uma enorme vontade de me ver livre da sua presença.

- Fico magoado, Mrs. Lake.

- Não tanto como eu desejaria.

Lavinia parou no meio da escada e voltou-se para olhar para ele: March não parecia magoado. Em boa verdade, parecia magnificamente em forma. A facilidade com que transportava a enorme mala certificava a sua excelente condição física.

- Pela minha parte, estou ansiosa por voltar. - Emeline apressou-se a sair para a escada. - A Itália é um belo país para se visitar, mas eu tenho saudades de Londres.

- Também eu - Lavinia afastou o olhar dos ombros largos de Tobias March e continuou a descer as escadas. - Esta nossa aventura foi um verdadeiro desastre. Quem, afinal, é que teve a triste ideia de viajarmos como acompanhantes de Mrs. Underwood?

Emeline aclarou a voz.

- A ideia foi sua, minha querida tia.

- Da próxima vez que eu tiver uma ideia tão estranha como essa, peço-te que me faças cheirar vinagre, para eu recuperar o senso.

- Tenho a certeza de que, na altura, ter-vos-á parecido uma ideia brilhante - disse Tobias March, atrás delas.

- Na verdade assim foi - disse Emeline em tom neutro. - Pensa como será delicioso passarmos uma temporada em Roma, dizia a minha tia. Rodeadas por todas aquelas maravilhosamente inspiradoras antiguidades, dizia ela. Tudo pago por Mrs. Underwood, dizia ela. E vamos viver em grande estilo, com pessoas de alta qualidade e de bom gosto, dizia ela.

- Basta, Emeline! - travou-a Lavinia. - Sabes perfeitamente que se tratou de uma experiência enriquecedora.

- Em muitos aspectos, imagino eu - disse Tobias March, com demasiado à-vontade -, a julgar por algumas descrições que ouvi a respeito das festas de Mrs. Underwood. É verdade que essas festas terminavam em orgias?

Lavinia cerrou os dentes.

- Concedo que houve um ou outro incidente mais infeliz.

- As orgias eram de certo modo desregradas - declarou Emeline. Eu e a minha tia víamo-nos obrigadas a fecharmo-nos nos quartos até elas terminarem. Mas o mais terrível de tudo foi quando, uma manhã, ao acordarmos, descobrimos que Mrs. Underwood tinha fugido com o seu conde, deixando-nos abandonadas e sem dinheiro, num país estrangeiro.

- Apesar de tudo - acrescentou Lavinia, intencionalmente - conseguimos sobreviver e tudo nos estava a correr bem até que o senhor, Mr. March, decidiu interferir nos nossos assuntos pessoais.

- Acredite, Mrs. Lake, que ninguém o lamenta mais do que eu - disse Tobias.

Lavinia parou ao fundo das escadas, para olhar para a loja cheia de cacos dos vasos e das estatuetas. Ele tinha destruído tudo, pensou ela. Não escapara um único vaso. Em menos de uma hora, o homem tinha desfeito uma loja que levara cerca de quatro meses a montar.

- É impossível que lamente tanto como eu, Mr. March. - Lavinia apertou a bolsa contra si e caminhou por entre o entulho para a porta.

- Na verdade, meu caro senhor, quanto a mim, este desastre é inteira mente culpa sua.

Ainda não nascera o dia quando, por fim, Tobias March ouviu abrir a porta das traseiras. Esperava nas escadas, às escuras, pistola na mão. Um homem, com uma lanterna a meia-luz, surgiu do quarto de trás, parando de repente, ao ver os estragos.

- Rasparta!

O homem pousou a lanterna no balcão e avançou a observar os cacos de um grande vaso.

- Rasparta! - murmurou de novo, olhando em volta, a mirar os objectos partidos. - Rasparta o inferno!

Tobias March desceu um degrau.

- Procura alguma coisa, Carlisle?

Carlisle ficou hirto. À débil luz da lanterna, o seu rosto parecia uma fria máscara diabólica.

- Quem é você?

- Não me conhece. Um amigo de Bennett Ruckland incumbiu-me de o procurar.

- Ruckland. Claro, devia ter adivinhado.

Carlisle teve um gesto rápido, erguendo o braço, pistola na mão, preparado para disparar sem hesitação.

Tobias March estava atento. Premiu o gatilho da sua pistola, mas a explosão falhou. Apercebeu-se de imediato de que a pistola encravara. Meteu a mão no bolso, agarrando a segunda pistola, mas era demasiado tarde.

Carlisle disparou.

Tobias March sentiu a perna esquerda fugir-lhe debaixo do corpo. Largou a pistola intacta e agarrou-se ao corrimão, conseguindo evitar cair pelas escadas abaixo.

Carlisle preparava-se já para disparar a sua segunda pistola. Tobias March tentou subir as escadas de costas, mas não conseguia mover- se adequadamente. Voltou-se e arrastou-se escadas acima utilizando as mãos e a perna direita, tal um caranguejo. O pé direito escorregou em algo molhado: sabia que era o sangue a escorrer-lhe da anca.

Em baixo, Carlisle movia-se cautelosamente para o fundo das escadas. Tobias March sabia que a única razão que o levava a não disparar era porque, na penumbra, não o distinguia bem.

A escuridão era a sua única esperança.

Agarrou-se ao corrimão e, mal ou bem, conseguiu lançar-se para a porta do quartito. A mão embateu-lhe na pesada urna que Lavinia se vira obrigada a abandonar.

- Não há nada mais irritante do que uma pistola que se encrava, não? perguntou Carlisle sarcástico.

Carlisle subia agora as escadas, mais depressa, mais confiante.

Tobias March agarrou na urna, voltou-a sobre a tampa arredondada e inspirou lentamente. A dor começava a arder-lhe na perna esquerda.

- O homem que o mandou procurar-me avisou-o de que, possivelmente, não iria voltar vivo a Inglaterra? - perguntou Carlisle, a meio das escadas. - Ele disse-lhe que sou um ex-membro do Clube Azul? E sabe o que isso significa, caro amigo?

Ia ter apenas uma oportunidade, pensou Tobias March. Havia que esperar pelo momento exacto.

- Não sei quanto lhe pagaram para me caçar, mas, fosse quanto fosse, não foi o suficiente. Você foi um tolo em aceitar a incumbência.

- Carlisle chegara quase ao cimo das escadas. Havia um laivo de exci tação na sua voz. - Isso vai custar-lhe a vida.

Tobias March atirou a pesada urna, com toda a força que ainda lhe restava. O bojudo artefacto deslizou com estrondo em direcção às escadas.

- O que é isso? - Carlisle estacou no último degrau. - Que barulho é este?

A urna embateu-lhe em cheio nas pernas. Carlisle soltou um grito de dor. Tobias March ouviu-o arranhar a parede, na tentativa de recuperar o equilíbrio, mas sem resultado. Houve uma série de pancadas surdas, enquanto Carlisle caía escadas abaixo. Os gritos cessaram repen tinamente, ao fundo das escadas.

Tobias March arrancou o lençol da cama, rasgou uma longa tira e atou-a na perna esquerda. A cabeça girou-lhe à volta quando se ergueu. Cambaleou e quase desmaiou a meio das escadas, mas conseguiu manter-se em pé. Carlisle jazia estendido ao fundo das escadas, o pescoço torcido num ângulo anormal. Os pedaços da urna estavam espalhados em redor dele.

- A senhora optou pelo Apolo, se queres saber - segredou Tobias March para o homem morto. - E foi, claramente, a opção certa. A senhora tem uma bela intuição.

 

O homenzinho nervoso que lhe vendera o diário avisara-o de que a chantagem é uma ocupação perigosa. Algumas das informações contidas no diário do criado podiam levar à morte

de um homem. Mas também o podiam tornar rico, pensava Holton Félix. Há anos que vivia do jogo. Estava habituado a arriscar e há muito tempo que aprendera que nada ganham os aos que não têm a decisão e a coragem necessárias para lançar os dados.

Não era nenhum tolo, dizia para si próprio, molhando a pena no tinteiro e preparando-se para terminar a mensagem. Não pretendia manter- se na chantagem por muito tempo. Abandoná-la-ia logo que juntasse dinheiro suficiente para pagar as dívidas mais prementes.

Iria, porém, conservar o diário, pensou. Os segredos que continha poder-lhe-iam ser úteis mais tarde, se voltasse a ver-se de novo em má situação.

A pancada na porta sobressaltou-o. Olhou para a última linha da ameaça que acabara de escrever. Uma gota de tinta manchara a palavra infeliz, Ficou irritado ao ver a frase manchada. Tinha orgulho na clareza e argúcia das suas mensagens. Esforçava-se sempre por harmonizar cada mensagem ao respectivo receptor. Poderia ser um escritor célebre, talvez um Byron, não o obrigassem as circunstâncias a frequentar as casas de jogo para sobreviver.

Uma velha raiva apossou-se dele. Tudo teria sido muito mais fácil, se a vida não tivesse sido tão injusta com ele. Se o pai não se tivesse deixado matar num duelo por uma disputa à mesa de jogo; se a mãe desesperada e desesperadora não tivesse sucumbido a umas febres quando ele tinha apenas dezasseis anos. Quem sabe até onde poderia ter chegado? Quem sabe quão alto poderia ter subido, tivesse ele tido algumas das vantagens de que tantos outros disfrutavam? Em vez disso, via-se reduzido à chantagem e à extorsão. Um dia, porém, havia de alcançar a posição que merecia, jurava. Um dia.

Soou outra pancada na porta. Um dos seus credores, sem dúvida: tinha dívidas em todas as casas de jogo da cidade.

Amarrotou a carta na mão e ergueu-se abruptamente. Atravessou a sala até à janela, afastou a cortina e espreitou lá para fora. Não viu ninguém. Quem batera à porta um momento antes desistira de se ver atendido. Parecia, porém, haver um embrulho junto da porta.

Abriu a porta e inclinou-se para apanhar o embrulho. Viu apenas de relance a orla de uma pesada capa, quando a figura saiu da sombra. O ferro assentou-lhe na nuca com força mortal. Para Holton Félix, o mundo terminou num instante, cancelando todas as suas dívidas.

 

O cheiro a morte era inegável. Lavinia conteve a respiração à entrada da sala, iluminada pelo fogo da lareira, e remexeu, ansiosa, na bolsa, à procura de um lenço. Aquela era uma

possibilidade que não havia contemplado nos seus planos. Tapou o nariz com o quadrado de tecido bordado e dominou a premência de voltar costas e fugir dali.

O corpo de Holton Félix estava estendido no chão, em frente da lareira. Ao princípio não distinguiu nenhuma ferida, mas, depois, verificou que havia qualquer coisa horrivelmente errada na forma do crânio.

Era evidente que alguma outra vítima das chantagens de Félix chegara antes dela. Félix não era um patife muito inteligente, pensou ela. Afinal, ela própria conseguira descobrir a sua identidade, pouco depois de haver recebido a primeira mensagem de extorsão da parte dele, embora pouca ou nenhuma experiência tivesse na sua nova ocupação de investigadora privada.

Descoberta a morada do homem, falara com algumas criadas e cozi nheiras que trabalhavam nas vizinhanças. Tendo sabido que Félix tinha o hábito nocturno de sair e de frequentar as casas de jogo, dirigira-se ali naquela noite com a intenção de vasculhar o seu domicílio. Esperava poder encontrar o diário a que ele se referia nas mensagens.

Observou a pequena sala, a incerteza a revolver-lhe o estômago. O lume continuava a arder vivamente na lareira, mas ela sentia suores frios a percorrerem-lhe a espinha. Agora, que fazer? Ter-se-ia o assassino dado por satisfeito com a morte de Félix, ou teria tido tempo de vasculhar os pertences do patife e de encontrar o diário?

Só havia uma forma de responder a essas questões, pensou ela. Tinha de prosseguir com o seu plano original de rebuscar o domicílio de Félix.

Forçou-se a mover-se. Teve de fazer um esforço de vontade para afastar a invisível cortina de horror que envolvia a cena infernal.

A trémula luz das brasas imprimia sombras fantasmagóricas nas paredes. Tentou não olhar para o corpo estendido no chão.          Respirando o mais lentamente possível, considerou onde iniciar as buscas. Félix mobilara a casa de maneira muito parca, o que não surpreendia, dada a sua tradição ao jogo. Vira-se, decerto, obrigado a vender um candelabro ou uma mesa para pagar dívidas. As criadas com          quem falara haviam-lhe afiançado que constava que Félix andava sempre sem cheta. Algumas haviam mesmo acrescentado que ele era um oportunista sem escrúpulos e que não olhava aos meios para arranjar dinheiro.

A chantagem era, muito provavelmente, apenas um dos execráveis

esquemas que Félix utilizava na sua vida de batoteiro. Obviamente, um estratagema desastroso.

Olhou para a secretária junto da janela e decidiu começar por ali, embora suspeitasse que o assassino já teria vasculhado as gavetas. Era, certamente, o que ela teria feito no lugar dele.

Circundou o corpo de Félix cautelosamente, afastando-se dele quanto possível, e dirigiu-se para o seu objectivo. O tampo da secretária estava coberto com a profusão de coisas habitual, incluindo uma faca de aparar penas e um tinteiro. Havia, também, areia para secar a tinta e um pratinho de metal para o lacre.          

Inclinou-se para abrir a primeira das três gavetas do lado direito da secretária e ficou gelada ao sentir, nos finos cabelos da nuca, um arrepio de premonição.        

O abafado mas inegável arrastar de uma bota soou atrás dela.

O medo apossou-se dela, roubando-lhe o ar. O coração batia-lhe tão celeremente que se questionou se não iria desmaiar pela primeira vez na sua vida.

O assassino estava ainda ali.

Uma coisa era certa, não podia dar-se ao luxo de um desmaio. Horrorizada, olhou um instante para a secretária, em busca de uma

arma para se defender. Estendeu uma mão. Os dedos apertaram convulsivamente o cabo da pequena faca de aparar penas. Parecia muito pequenina e muito frágil, mas era tudo de que dispunha.

Segurando a faca, voltou-se para encarar o assassino. Viu-o logo, recortado na obscura porta que dava para o quarto de dormir. Conseguia distinguir a silhueta da capa, mas a cara estava encoberta pelas sombras.

Ele não se mexeu para reduzir a curta distância entre eles. Antes permanecia ali, negligentemente encostado à ombreira da porta, de braços cruzados no peito.      

- Se quer saber, Mrs. Lake - disse Tobias March -, eu tinha a impressão de que um dia nos tornaríamos a encontrar, mas quem iria dizer que seria nestas interessantes circunstâncias?

Lavinia teve de engolir duas vezes em seco, antes de conseguir falar. Quando, por fim, conseguiu pronunciar algumas palavras coerentes, a voz saiu-lhe partida e num fio.

- Foi o senhor que matou este homem?

Tobias March olhou para o corpo.

- Não. Eu cheguei aqui depois do assassino, como aconteceu consigo. Pelo que pude verificar, Félix foi morto à porta da casa. O assassino deve tê-lo arrastado para dentro.

As novidades não a sossegaram.

- E o que está aqui a fazer?

- Era o que lhe ia perguntar - disse ele -, mas acho que já sei a resposta. É uma das vítimas da chantagem de Félix, não é?

Momentaneamente, a raiva de Lavinia superou-lhe o medo.

- A horrorosa criatura enviou-me duas notas esta semana. A primeira na segunda-feira, colocada por debaixo da porta da cozinha. Não acreditei nos meus olhos quando li o que me exigia. Ele queria cem libras. Está a imaginar? Cem libras para garantir o seu silêncio. Depois de todos os meus infortúnios.

- A respeito de quê prometia ele o seu silêncio? - Tobias March observava-a atentamente. - Meteu-se em mais sarilhos depois que nos encontrámos pela primeira vez?

- Como se atreve? Isto é tudo culpa sua e só sua!

- Culpa minha?

- Sim, Mr. March. Culpo-o de todo este sarilho - disse Lavinia, apontando para o corpo no chão com a faquinha de aparar as penas. Este homem tentou chantagear-me a respeito do caso de Roma. Ameaçou-me de revelar tudo.

- Ah, sim? Isso é muito interessante - Tobias March ficou estra nhamente contraído e alerta. - E o que é que ele sabia exactamente?

- Já lhe disse. Ele sabia de tudo. Ameaçou-me revelar que eu tinha aberto uma loja em Roma frequentada por um bando de criminosos. Insinuava que eu era cúmplice dos seus esquemas e que permitia aos assassinos utilizarem o meu estabelecimento como um posto de comunicações. Chegou ao ponto de inferir que eu era, muito provavelmente, amante do chefe do gangue.

- Era tudo o que ele dizia na mensagem?

- Tudo? E não lhe basta? Mr. March, apesar do seus esforços, eu e a minha sobrinha conseguimos sobreviver ao seu assalto à nossa loja, em Roma. Com dificuldade.

Tobias March inclinou a cabeça.

- Eu sempre pensei que iria erguer-se de novo. A senhora tem um espírito que dificilmente se deixa afundar.

Lavinia ignorou a observação.

- Na verdade, as coisas estão a correr bem, por ora. Tenho esperança de poder proporcionar uma verdadeira temporada a Emeline. Com um pouco de sorte, ela pode vir a conhecer um cavalheiro aceitável, que case com ela e que a possa manter ao nível a que eu desejo vê-la elevar-se. Vivemos uma época delicada, se compreende o que eu quero dizer. Não posso permitir que o nome dela seja manchado pela mínima maledicência.

- Compreendo.

- Seria um dano irreparável, se Félix pusesse a circular que ela, em tempos, tinha estado envolvida numa loja que prestava serviços a malfeitores, em Roma.

- E imagino como os seus planos de lançar Miss Emeline nos círculos da alta sociedade londrina ficariam prejudicados, se constasse que ela era sobrinha da amante do chefe de um bando de criminosos.

- Prejudicados? Ficaria tudo desfeito. Isto é tão injusto! Eu e Eme line não tínhamos nada a ver com esses criminosos, nem com o homem que diz chamar-se Carlisle. Não percebo como alguém, com um mínimo de sensibilidade, possa acreditar que eu e a minha sobrinha nos pudéssemos dar com assassinos e ladrões.

- Eu, durante algum tempo pensei isso, no início do caso, se se recorda.

- O que não me surpreende - disse ela, irritada. - Eu estava a falar de pessoas com sensibilidade. Esse conjunto dificilmente o inclui a si, Mr. March.

- Ou Holton Félix, aparentemente - Tobias March tornou a olhar para o corpo. - Acho, porém, que é melhor adiarmos esta discussão sobre a minha falta de sensibilidade para outra altura, quando tivermos mos tempo de examinar os meus defeitos em pormenor. Por ora, temos outros problemas. Suponho que estamos ambos aqui com o mesmo objectivo.

- Não sei o que o trouxe aqui, Mr. March, mas vim em busca de um certo diário que, possivelmente, pertencia ao criado de Mr. Carlisle, o homem que o senhor afirma ser o chefe do gangue de criminosos de Roma. - Lavinia fez uma pausa, franzindo o sobrolho. - O que é que o senhor sabe acerca deste assunto?

- Conhece o dito antigo: Nenhum homem é herói para o seu criado. Segundo parece, o fiel servidor de Carlisle mantinha um registo particular dos mais terríveis segredos do patrão. Depois da morte de Carlisle.

- Carlisle morreu?

- Exactamente. Como dizia, depois da morte de Carlisle, o criado vendeu o diário, para pagar a viagem de regresso a Inglaterra. Foi, porém, morto, aparentemente por um assaltante, antes de sair de Roma. Pelo que pude apurar, o diário foi vendido duas vezes, depois disso. Em ambos os casos, os detentores temporários sofreram acidentes fatais.

- Tobias March indicou o corpo de Félix com a cabeça. - E, agora, temos uma terceira morte associada ao maldito diário.

Lavinia engoliu em seco.

- Meu Deus!

- Assim é.

Tobias March afastou-se da porta do quarto, dirigindo-se para a secretária.

Lavinia observava-o, inquieta. Havia qualquer coisa de estranho na sua maneira de andar, pensou ela. Um ligeiro, mas notório arrastar da perna. Um coxear, na verdade. Ia jurar que, da outra vez que o vira, ele não tinha aquela hesitação no andar.

- Como é que conseguiu saber tanta coisa acerca do diário? - perguntou ela.

- Eu tenho andado nas últimas semanas no rasto do maldito objecto. Segui-o através do continente. Cheguei a Inglaterra há poucos dias.

- Por que é que tem andado atrás dele?

Tobias March abriu uma das gavetas.

- Entre outros interessantes boatos, acredito que ele contém informações que poderão responder a algumas questões postas pelo meu cliente.

- Que género de questões?

Tobias March olhou para ela por cima do ombro.

- Questões que envolvem traição e assassínio.

- Traição?

- Sim, durante a guerra. - Tobias March abriu outra gaveta e remexeu nos papéis que continha. - Não tenho tempo para entrar em pormenores. Explico mais tarde.

- Não me diga que falhou a sua missão em Roma, Mr. March. Certamente, depois do que nos fez sofrer naquela noite horrível, terá recebido o seu prémio, ou não? O que é que aconteceu, realmente, a esse Carlisle? O senhor afirmou que ele iria aparecer na loja para recolher a mensagem do acólito.

- Carlisle apareceu depois da senhora sair.

- E então?

- Escorregou e caiu pelas escadas abaixo.

Lavinia abriu os olhos, incrédula.

- Escorregou e caiu?

- Os acidentes acontecem, Mrs. Lake. Há escadas muito traiçoeiras.

- Ora, ora. Era o que eu pensava. O senhor perdeu a mão depois de eu e Emeline sairmos, não foi?

- Surgiram algumas complicações.

- Obviamente. - Por qualquer razão, apesar da terrível situação, Lavinia sentia uma satisfação perversa em atribuir-lhe a culpa de tudo o que lhe acontecia. - Devia ter descortinado a verdade logo após a primeira mensagem de Holton Félix. Apesar de tudo, as coisas estavam a correr-nos bem, até então. Devia ter-me apercebido de que, ao surgirem problemas, o senhor devia estar na origem deles.

- Com os demónios, Mrs. Lake, não é altura de me invectivar. A senhora não sabe nada das implicações deste caso.

- Tem de admitir, Mr. March, que este problema com o diário do criado é tudo culpa sua. Se o senhor tivesse dominado adequadamente a situação, em Roma, não estaríamos agora aqui os dois.

Tobias March ficou tenso. À luz infernal do lume da lareira os olhos dele tinham um brilho ameaçador.

- Afirmo-lhe perentoriamente que a serpente que dominava o bando de víboras em Itália está morta. Infelizmente, a morte dele não pôs termo ao enredo. O meu cliente quer ver o caso completamente esclarecido e contratou-me para isso. E isso é, precisamente, o que tenciono fazer.

- Estou a perceber - disse Lavinia, friamente.

- Carlisle fora, em tempos, membro de uma organização criminosa denominada o Clube Azul, um gangue cujos tentáculos se estendiam pela Inglaterra e pela Europa. Durante muitos anos, a organização foi dirigida por um chefe que se apelidava a si próprio Azure.

Lavinia sentia a boca seca. Por razões inexplicáveis, acreditava que o que ele dizia era verdade.

- Isso é muito teatral.

- Azure era o chefe inquestionado da organização, mas, pelo que pudemos apurar, morreu há cerca de um ano e o Clube Azul

tem andado num caos desde então. Azure tinha dois poderosos lugares- tenente, Carlisle e outro homem cuja identidade continua um mistério.

- Azure e Carlisle desaparecidos, presumo que o seu cliente quer que descubra a identidade do terceiro homem?

- Sim, e o diário pode conter essa informação. Com um pouco de sorte, pode também indicar-nos quem era Azure e esclarecer outras questões. Percebe, agora, o perigo que tudo isto envolve?

- Sim, sim.

Tobias March agarrou num maço de papéis.

- Em vez de estar para aí parada, por que é que não se torna útil?

- Útil, como?

- Eu não tive a oportunidade de vasculhar o quarto de dormir antes da sua chegada. Agarre numa vela e veja se descobre alguma coisa no quarto. Eu vou continuar a busca aqui.

O primeiro impulso de Lavinia foi mandá-lo para o diabo, mas, depois, pensou que ele tinha razão. Afinal, segundo parecia, andavam ambos em busca do mesmo. As vantagens de dividirem a tarefa de vasculhar o domicílio de Félix eram óbvias. Além disso, havia outra premente razão para seguir as instruções dele: indo para o quarto não teria o ensanguentado corpo à frente dos olhos.

- já pensou, decerto, que, muito provavelmente, a pessoa que matou Mr. Félix terá encontrado o diário e tê-lo-á levado consigo - disse Lavinia, agarrando numa vela.

- Se for esse o caso, os nossos problemas ficam extremamente complicados - disse Tobias March, fitando-a com um olhar frio. - Um passo de cada vez, Mrs. Lake. Vamos ver se conseguimos encontrar o raio do diário, pois isso simplificar-nos-ia a vida.

Ele tinha razão, pensou ela. March era irritante, provocador e muito impertinente, mas tinha razão. Um desaire de cada vez. Era a única maneira de encarar a questão. E era, em boa verdade, a maneira como ela encarava a vida.

Dirigiu-se rapidamente para o quarto adjacente à sala de entrada. Viu um livro em cima da mesinha-de-cabeceira. Espalhou-se nela um formigueiro de excitação: talvez estivesse com sorte.

Atravessou o quarto para ver o título à luz da vela. The Ediication ofa Lady. Na expectativa de que a capa de couro envolvesse um diário manuscrito, abriu-a e folheou algumas páginas. O desapontamento apagou a pequena chama de esperança. O volume era um romance recente e não um diário pessoal.

Recolocou o livro na mesinha-de- cabeceira e dirigiu-se ao lavatório. Pouco tempo levou a examinar as pequenas gavetas. Continham apenas as coisas que habitualmente se encontram em semelhante lugar: uma escova e um pente, artigos de barbear, sabões e uma escova de dentes.

A seguir, tentou o guarda-fatos. Continha uma série de camisas caras e três casacos em moda. Claramente, quando lhe corriam bem as coisas à mesa de jogo, Félix gastava os ganhos em roupa cara e de estilo. Provavelmente, considerava isso um investimento.

- Encontrou alguma coisa? - perguntou Tobias March da sala.

- Não - disse ela. - E o senhor?

- Nada.

Ouviu-o arrastar uma peça de mobiliário na sala. Ele estava a ser rigoroso na busca.

Lavinia abriu as gavetas do guarda- fatos e descobriu, apenas, roupa interior e gravatas. Fechou as portas do guarda-fatos e olhou em redor da peça, escassamente mobilada. O desespero apossou-se dela. O que é que ia fazer, se não conseguissem encontrar o documento que levara Félix a tentar chantageá-la?

O olhar dela pousou outra vez no volume encadernado a couro, sobre a mesinha-de-cabeceira. Não se via mais nenhum livro naquela casa. Se não fora The Education of a Lady, dir-se-ia que Félix não era dado a entreter-se com literatura. Contudo, conservava o único romance junto da cama.

Atravessou o quarto lentamente para dar mais uma vista de olhos ao livro. O que teria levado um batoteiro a interessar-se por um romance escrito, sem sombra de dúvida, para jovens solteiras?

Agarrou de novo no livro e folheou mais umas tantas páginas, agora lendo uma ou outra frase, aqui e ali. Não demorou muito a perceber que, decididamente, o romance não tinha sido escrito para edificação de jovens solteiras.

as suas elegantes e esculturais nádegas

estremeceram na expectativa do meu látego de veludo.

- Meu Deus! - exclamou Lavinia, fechando abruptamente o livro. Um pedaço de papel flutuou para o chão.

- Encontrou alguma coisa de interesse? - inquiriu Tobias March da sala.

- Absolutamente nada.

Olhou para o pedaço de papel que pousara na ponta da sua meia-bota. Tinha qualquer coisa manuscrita. Eventualmente, Félix gostara tanto do livro que resolvera tomar notas, pensou ela com um esgar de desagrado. Baixou-se para apanhar o papel e leu as palavras nele rabiscadas. Não eram notas sobre The Education ofa Lady, mas um endereço. Hazelon Square, número catorze.

Por que haveria Holton Félix de guardar um endereço naquele romance?

Lavinia ouviu o ligeiro mas revelador deslizar da bota de Tobias March no chão da sala. Num impulso, enfiou a nota na bolsa e voltou-se para a porta. Ele apareceu à entrada do quarto, a figura recortada pela luz do lume mortiço da lareira.

- E então?

- Não encontrei nada que, nem mesmo remotamente, se pareça com um diário - disse ela firmemente e, pensou, honestamente.

- E eu tão-pouco - disse Tobias March, observando o quarto de Félix com expressão amarga. - É muito tarde, temos de ir embora. Segundo parece, quem matou Félix teve a presença de espírito para levar o diário.

- O que não me surpreende. Era, certamente, o que eu faria, nas mesmas circunstâncias.

- Hum!

- Que está a pensar? - perguntou ela, franzindo a testa Tobias March fitou-a.

- Estou a pensar que, segundo parece, temos de esperar por um gesto do novo chantagista.

- O novo chantagista? - O choque deixou-a hirta por momentos. Teve de fazer um esforço para fechar a boca. - Deus do Céu, o que é que está a dizer? Acha que o assassino de Félix tenciona tomar o lugar dele como chantagista?

- Se existir uma expectativa de ganhar dinheiro com o empreendimento, e tenho a certeza de que há essa expectativa, então, temos de assumir que a resposta à sua pergunta é afirmativa.

- Inferno!

- Penso o mesmo, mas devemos considerar o aspecto positivo. Mrs. Lake.

- Não consigo vislumbrar nenhum.

Tobias March dirigiu-lhe um sorriso jocoso.

- Repare, Mrs. Lake, nós conseguimos encontrar Holton Félix independentemente um do outro, não foi?

- Félix era um tolo e um incompetente que deixava atrás de si todo o género de pistas. Não tive a mínima dificuldade em subornar o garoto que ele utilizava para entregar as suas mensagens de extorsão.

O garoto deu-me a morada dele em troca de umas quantas moedas e de um pedaço de rolo de carne.

- Bem visto da sua parte - Tobias March olhou para o outro quarto, onde se encontrava o corpo do homem morto, em cima da carpete, em

frente da lareira. - Porém, não acredito que quem assassinou Félix seja tão inepto como ele. Por isso, minha senhora, acho que era melhor unirmos as nossas forças.

Lavinia foi invadida por uma onda de alarme.

- O que é que está a querer dizer com isso?

- Estou certo de que compreende o que quero dizer - disse Tobias March, tornando a olhar para ela. - A senhora pode ser tudo, mas não é de compreensão lenta.

Fora-se a esperança dela de que ele desejasse que seguissem caminhos separados, depois daquele encontro.

- Oiça bem - disse Lavinia em tom abrupto. - Eu não tenho, nem de longe, a mínima intenção de formar consigo seja que tipo for de associação, Mr. March, porque sempre que o senhor me aparece, causa-me todo o género de sarilhos.

- Só houve, até agora, duas ocasiões em que nos vimos obrigados a passar algum tempo na presença um do outro.

- E ambas foram desastrosas, graças a si.

- Isso é sua opinião - Tobias March avançou para ela e agarrou-lhe firmemente um braço, com a enorme mão enluvada. - Do meu ponto de vista, é a senhora que possui um talento notável para complicar situações de forma inacreditável.

- Francamente, senhor, isso é demais. Faça o favor de me largar!

- Receio não o poder fazer, Mrs. Lake - Tobias March conduziu-a para fora do quarto e através da sala - dado que nos encontramos ambos enredados nesta teia, tenho de insistir em que trabalhemos juntos para a desenredar.

 

- Não posso acreditar que tenha encontrado Mr. March outra

vez. E nessas estranhas circunstâncias! - Emeline pousou a chávena de café e olhou para Lavinia, sentada em frente à mesa do pequeno- almoço. - Que extraordinária coincidência!

- Não foi nada disso, a crer no que ele diz - Lavinia bateu com a colher no pires. - Segundo ele, os casos de chantagem estão ligados ao caso de Roma.

- Ele acha que Holton Félix era membro da organização criminosa chamada o Clube Azul?

- Não. Aparentemente, Félix entrou na posse do diário mais ou menos por uma questão de acaso.

- E, agora, alguém o tem - Emeline ficou com ar pensativo. - Possivelmente, a pessoa que assassinou Félix. E Mr. March continua a investigar. Ele é, realmente persistente, não acha?

- Bah! Ele fá-lo por dinheiro. Sempre que alguém se dispõe a pagar-lhe para ele se pôr a investigar, tem todo o interesse em ser persistente. Embora eu não entenda que razões levam o seu cliente a continuar a pagar-lhe os serviços, depois da incompetente actuação dele em Roma.

- Sabe perfeitamente que devemos estar-lhe agradecidas pela forma como ele orientou as suas investigações em Roma. Qualquer outro, na posição dele; podia ter concluído que nós éramos, também, membros do gangue de malfeitores, e tinha actuado de harmonia com essa conclusão.

- Qualquer um encarregado dessas investigações teria de ser louco para imaginar que estávamos envolvidas em actividades criminosas.

- Sim, claro - disse Emeline, cordata -, mas podemos, facilmente, considerar que, qualquer outro, menos inteligente, menos cavalheiro do que Mr. March, podia ter concluído que nós éramos membros do gangue.

- Não sejas tão pressurosa a atribuir essas qualidades a Tobias March. Eu, pela minha parte, não confio nele.

- Sim, apercebo-me disso. Mas porquê?

Lavinia ergueu os braços.

- Por amor de Deus, eu encontrei-o, ontem à noite, na cena de um crime.

- E ele encontrou a tia no mesmo local - apontou Emeline.

- Sim, mas ele chegou lá antes de mim e Félix já estava morto quando eu lá cheguei. Quanto a mim, foi March que o matou.

- Oh, duvido muito.

Lavinia fitou-a intensamente.

- Como é que podes dizer isso? March informou-me de moto próprio que Carlisle não tinha sobrevivido ao encontro de Roma.

- Recordo-lhe que me falou de um infeliz acidente nas escadas.

- Essa é a versão de March. Não ficava nada surpreendida se viesse a saber que a morte de Carlisle não foi nada acidental.

- Bem, isso não é, de modo nenhum, o que mais interessa agora, pois não? O importante é que o patife morreu.

Lavinia hesitou um momento.

- March quer que eu o ajude a encontrar o diário. Quer que unamos os nossos esforços.

- Isso faz sentido. Se estão ambos determinados a encontrá-lo, por que não associarem-se?

- March tem um cliente que lhe paga para isso. Eu não. Emeline observou- a por cima da chávena de café.

- Talvez Mr. March concorde em dar- lhe parte do dinheiro que recebe do cliente. A tia adquiriu grande talento a negociar, em Itália.

- Eu já tinha pensado nisso - admitiu Lavinia serenamente. Porém, a ideia de me associar a March inquieta- me.

- Não me parece que tenha outra opção. E, para nós, seria muito embaraçoso se começassem a circular, aqui em Londres, boatos acerca dos incidentes de Roma.

- Tu tens uma queda para o eufemismo, Emeline. Isso seria muito mais do que embaraçoso. Isso destruiria a minha nova carreira, para não falar da oportunidade de te introduzir na sociedade.

- A propósito da sua carreira, a tia, ontem à noite, mencionou a Mr. March a natureza da sua nova profissão?

- Claro que não! Por que haveria eu de fazê-lo?

- Pensei apenas que, na intimidade do cenário em que a tia e March se encontraram, talvez se tivesse sentido inclinada a abrir-se com ele.

Não havia intimidade nenhuma naquele cenário. Por amor de Deus, Emeline, havia um homem morto aos nossos pés!

- Sim, claro.

- E ninguém se torna íntimo em tais circunstâncias.

- Compreendo, compreendo.

- De qualquer modo, a última coisa que eu pretendo é tornar-me amiga de March, seja de que maneira for.

- Está a elevar a voz, querida tia. Sabe bem o que isso significa.

Lavinia pousou a chávena no pires com estrépito.

- Significa que os meus nervos têm estado sujeitos a grande pressão.

- Isso é bem verdade, mas, em minha opinião, é óbvio que a sua única opção é fazer o que Mr. March sugere, associando-se com ele na busca do diário.

- Nada me consegue convencer de que associar-me com esse homem constitua uma opção sensata.

- Tenha calma, minha tia - disse Emeline docemente. - Está a perznitir que a sua impressão pessoal acerca de Mr. March interfira na sua razão.

- Presta atenção ao que te digo: Tobias March está, de novo, a jogar seu próprio jogo, como fez quando tivemos o infortúnio de toparmos com ele em Roma.

- E que espécie de jogo seria esse? - perguntou Emeline, denunciando certo exaspero.

Lavinia fez uma pausa, considerando a pergunta.

- É muito possível que ele queira encontrar o diário pelas mesmas razões que Holton Félix o queria: extorsão e chantagem. A colher de Emeline soou ao embater no pires.

- Não me venha dizer que, de verdade, pensa que Mr. March pode actuar como chantagista. Recuso-me a acreditar que ele tenha alguma coisa em comum com uma criatura como Holton Félix.

- Nós nada sabemos acerca de Tobias March. - Lavinia apoiou as

mãos na mesa e ergueu-se. - Sabe-se lá o que ele faria se conseguisse apoderar-se do diário?

Emeline ficou calada.

Lavinia cruzou as mãos atrás das costas e pôs-se a caminhar em redor da mesa.

Emeline suspirou.

- Pois bem, não posso avançar-lhe nenhuma razão que a leve a confiar em Mr. March, a não ser o facto de ele nos ter feito chegar sãs e salvas a Inglaterra, depois do desastre de Roma. O que lhe deve ter custado uma pequena fortuna!

- Ele queria ver-se livre de nós. E, de qualquer modo, duvido que tenha sido ele a pagar as despesas da nossa viagem. Tenho a certeza de que apresentou a conta ao cliente.

- Talvez, mas insisto em que a tia não tem outra opção. É, certamente, preferível trabalhar com ele do que ignorá-lo. Desse modo, encontrar-se-á em posição de tomar conhecimento do que ele descobrir.

- E vice-versa.

A expressão de Emeline endureceu um pouco. Uma ansiedade incaracterística surgiu-lhe no olhar.

- Tem algum outro plano?

- Ainda não sei bem - Lavinia parou na sua caminhada em redor da mesa e levou a mão ao bolso do vestido, retirando o pedaço de papel que caíra de The Education of a Lady, examinando o endereço nele inscrito. - Mas tenciono vir a saber.

- De que é que dispõe?

- De uma pequena pista, a qual pode não conduzir a nada. - meteu o endereço no bolso. - Mas, se for esse o caso, posso, então, tomar em consideração as vantagens de uma associação com Tobias March.

- Ela encontrou qualquer coisa, naquele quarto - Tobias March ergueu-se da cadeira onde estava sentado e caminhou para a frente da secretária, encostando-se nela. - Tenho a certeza disso. Eu dei por isso na altura. Um brilho demasiado inocente naqueles olhos, acho eu. Absolutamente descabido naquela mulher.

O cunhado, Anthony Sinclair, ergueu os olhos das profundezas de um enorme volume que tratava de antiguidades egípcias, estendendo-se na cadeira com a negligência fácil de um jovem saudável de vinte e um anos.

Anthony mudara-se para a sua própria casa havia um ano. Por uns tempos, Tobias March pensara que ia sentir a falta dele, pois Anthony vivia com ele desde criança, quando ele, Tobias, casara com a irmã de Anthony, Ann. Após a morte de Ann, Tobias tudo fizera para acabar de criar o rapaz e habituara-se a tê-lo junto de si. A casa iria parecer-lhe estranha, pensara ele.

Contudo, duas semanas depois de se ter instalado na sua nova casa a pouca distância, tornou-se óbvio que Anthony considerava a casa de Tobias uma extensão do seu domicílio. De facto, estava sempre ali à hora das refeições.

- Descabido? - repetiu Anthony em tom neutro.

- Lavinia Lake não tem nada de inocente.

- Bem, disseste-me que ela era viúva.

- E podemos, apenas, conjecturar acerca da sorte do marido - disse Tobias com alguma compunção. - Não me surpreenderia se viesse a saber que ele passou os últimos dias de vida preso a uma cama, num qualquer sanatório particular.

- Esta manhã, já aludiste uma centena de vezes às tuas suspeitas em relação a Mrs. Lake - disse Anthony mansamente. - Se tinhas a certeza de que ela descobrira alguma pista, ontem à noite, por que é que não a confrontaste com isso?

- Porque, obviamente, ia negar. Ela não está nada interessada em cooperar comigo e, a menos que a agarrasse pelos pés e lhe desse um ou dois safanões, para lhe despejar os bolsos e a bolsa, não tinha maneira de provar que ela descobrira alguma coisa.

Anthony ficou calado, mantendo-se sentado, quedo, mirando Tobias com uma expressão inquisitiva.

Tobias cerrou os dentes.

- Não digas nada!

- Acho que não posso deixar de dizer. Por que é que não abanaste a senhora, para fazer aparecer o que pensavas que ela descobrira?

- Raios. Falas como se agarrar mulheres respeitáveis pelos pés fosse o meu comportamento normal em relação ao sexo oposto.

Anthony ergueu o sobrolho.

- Já tenho tido ocasião de te apontar, por mais de uma vez, que o teu comportamento, no que diz respeito às mulheres, carece de algum refinamento, embora, de modo geral, se enquadre nos limites que um cavalheiro deve observar. Com a excepção de Mrs. Lake: quando te referes a ela, cais sempre no exagero da extrema rudeza.

- Mrs. Lake é uma criatura muito especial - disse Tobias. - Excepcionalmente decidida, excepcionalmente teimosa e excepcionalmente difícil. Faz cair qualquer homem normal em exageros.

Anthony balançou a cabeça com ar compreensivo.

- É sempre muito irritante vermos os nossos traços mais pronunciados claramente estampados noutra pessoa, não é? Especialmente quando a outra pessoa pertence ao chamado sexo fraco.

- Aviso-te, Anthony, de que não estou com disposição de te servir de fonte de divertimento.

Anthony fechou com um gesto sereno o enorme livro que estivera a ler.

- Essa tua obsessão pela senhora remonta aos incidentes de Roma, há três meses atrás.

- Obsessão é um grande exagero da tua parte, sabe-lo bem.

- Acho que não. Whitby pôs-me ao corrente dos teus delírios e das tuas divagações, enquanto tratava da febre que a ferida na perna provocou. Disse-me que mantinhas longas e incoerentes conversas com Mrs. Lake. E, desde que regressaste a Inglaterra, arranjas motivo para mencionar o nome dela pelo menos uma vez por dia. Eu diria que isso se parece muito com uma obsessão.

- Eu vi-me obrigado, durante cerca de um mês, a andar atrás do raio da mulher em Roma, vigiando todos os seus movimentos - Tobias agarrou-se aos entalhes da secretária. - Experimenta seguir uma mulher por todo o lado, por tão longo período de tempo, observando cada pessoa que cumprimenta na rua, cada compra que faz. E interrogando-te sempre se ela é cúmplice dos assassinos ou se, pelo contrário, se enccontra em risco de ser uma das vítimas. Posso garantir- te que isso dá cabo da cabeça a um homem.

- Por isso é que eu falo de obsessão.

- Obsessão é um termo demasiado pesado - disse Tobias, coçando distraidamente a anca esquerda. - Mas lá que ela causa uma profunda impressão, isso posso garantir-te.

- Isso torna-se evidente - disse Anthony, apoiando o tornozelo esquerdo no joelho direito e endireitando a dobra das calças de bom corte. - Está a doer-te a perna?

- Está a chover lá fora, se queres saber. E, quando o tempo fica húmido, dói-me sempre um pouco mais.

- Não há razão para te irritares comigo - disse Anthony com um sorriso. - Guarda o teu mau humor para a senhora que o provoqa. Se os dois chegarem a associar-se, vais ter muitas ocasiões de o descarregar.         

- A simples ideia de uma associação com Mrs. Lake causa-me arrepios na espinha. - Fez uma pausa, ao ouvir um leve toque à porta do estúdio. - Sim, Whitby, o que é?        

A porta abriu-se, nela aparecendo a pequena, mas esmerada figura do homem que servia Tobias como criado, cozinheiro, mordomo e, quando necessário, como médico. Apesar do ocasionalmente precário estado das receitas da casa, Whitby arranjava maneira de se apresentar sempre elegante. Perante Whitby e Anthony, Tobias March sentia-se sempre em desvantagem, no que à indumentária masculina dizia respeito.

- Lorde Neville deseja falar com o senhor - disse Whitby no tom rebuscadamente ominoso que empregava quando se via obrigado a anunciar pessoas de alto nível.

Tobias March sabia que Whitby não considerava que essas pessoas, em virtude do seu estatuto social, fossem superiores, aproveitando para revelar, na circunstância, a sua tendência para o melodrama: Whitby havia falhado a sua aspiração de se tornar actor.

- Diz-lhe que entre, Whitby. Whitby desapareceu da porta.

Anthony ergueu-se da cadeira, pondo-se de pé.

- Raio de azar! - disse Tobias baixinho. - Detesto dar más notícias aos clientes. Isso irrita-os. E nunca se sabe se eles vão desistir de nos pagar.

- Não me pareçe que, neste caso, Neville tenha outras opçõesdisse Anthony, igualmente em voz baixa. - Não há mais ninguém para quem se possa voltar.

Um homem alto, bem constituído, quarentão, entrou na sala, não se preocupando em disfarçar a sua impaciência. Tudo nele evidenciava riqueza e linhagem aristocrática, desde as feições de falcão, à forma como envergava o fato por medida e às botas lustrosas.

- Bom dia, caro senhor. Não o esperava tão cedo - disse Tobias March, endireitando-se e apontando uma cadeira com a mão. - Faça o favor de se sentar.

Neville não correspondeu às formalidades. Fitou a cara de Tobias March intensamente, o olhar mortiço.

- Pois bem, March, eu recebi a sua mensagem. Que raio aconteceu ontem à noite? Tem notícias do diário?

- Infelizmente, quando eu lá cheguei já tinha desaparecido - disse Tobias March.

Um ligeiro torcer dos lábios tornou perfeitamente claro o desapontamento de Neville.

- Maldição! - exclamou ele, descalçando uma luva. A pedra preta encastoada no anel grosso da mão direita brilhou quando passou os dedos pelo cabelo. - Eu esperava ver este caso resolvido rapidamente.

- Eu topei com algumas pistas - disse Tobias March, apostado em projectar uma imagem de experiência profissional e de confiança.      Espero poder encontrá-lo em breve.

- Tem de encontrá-lo o mais depressa possível. Muita coisa depende disso.

- Eu tenho consciência disso.

- Claro, claro que tem - Neville dirigiu-se para a mesa do brandy e agarrou no frasco. - Eu sei que temos mútuo interesse em encontrar o raio do diário - disse ele, fazendo uma pausa, com o frasco na mão e olhando para Tobias March. - Posso?

- Sem dúvida, com todo o gosto.

March tentou não pestanejar ao ver a quantidade de brandy que Neville deitou no copo. O artigo era muito caro, mas, geralmente, ser agradável com os clientes compensava.

Neville deu duas rápidas goladas e pousou o copo.

- Tem de o encontrar - insistiu ele, fixando Tobias March com uma expressão severa. - Tem de o encontrar, March, porque, se o diário cai em mãos erradas, podemos nunca mais vir a saber quem era, realmente, Azure. E, pior ainda, ficaremos sem saber o nome do único membro sobrevivente do Clube Azul.

- Dentro de duas semanas, no máximo, entregar-lhe-ei o diáriodisse Tobias March.

- Mais quinze dias? - Neville olhou para ele com uma expressão apavorada. - Isso é impossível, não posso esperar tanto tempo.

- Tudo farei para o descobrir o mais rapidamente possível. Não posso prometer mais nada.

- Maldição! Cada dia que passa é mais um dia em que o diário pode ser perdido ou destruído.

Anthony agitou-se e, delicadamente, pigarreou.

- Lembrar-lhe-ia, senhor, que foi em resultado dos esforços de Tobias que tomou conhecimento da existência do diário e de que ele se encontrava aqui em Londres. Isso é bastante mais informação do que a de que dispunha há um mês atrás.

- Claro, claro. - Neville percorria a sala a grandes e nervosas passadas, massajando as têmporas. - Tem de me desculpar, March. Não tenho dormido bem, desde que sei da existência do diário. Quando me ponho a pensar naqueles que morreram na guerra, por motivo das iníquas actividades desses criminosos, dificilmente consigo dominar a minha raiva.

- Ninguém deseja encontrar o maldito diário mais do que eudisse Tobias March.

- E se, quem quer que o tenha, o destrói antes que possamos apossar-nos dele? Os dois nomes ficam perdidos para sempre.

- Duvido muito que, quem quer que esteja na posse do diário, o destrua - disse Tobias March.

Neville deixou de esfregar as têmporas e franziu o sobrolho.

- O que é que lhe dá essa certeza?

- A única pessoa que admissivelmente deseja o diário destruído é o membro sobrevivente do Clube Azul e é muito pouco provável que seja ele quem o possui. Para qualquer outra pessoa, o diário vale muito dinheiro, como fonte de chantagem. Para quê desbaratar potenciais proventos?

Neville ficou pensativo.

- A sua lógica parece sólida - admitiu por fim, a contragosto.

- Conceda-me um pouco mais de tempo - disse Tobias March. Eu vou encontrar-lhe esse diário. Talvez, depois, passemos ambos a dormir melhor.

 

Trabalhava sempre junto à lareira. O calor do lume, a água quente de uma panela e o calor natural da mão humana amaciavam a cera, permitindo-lhe modelá-la e dar-lhe forma.

No início, a modelação cabia ao polegar e ao indicador. Exigia uma mão forte e segura, para modelar a cera espessa e flexível. Na fase inicial da criação, trabalhava de olhos fechados, fiando-se no apurado sentido de tacto para formar a imagem. Depois, utilizava uma afiada e aquecida ferramenta para acrescentar os pequenos e finos pormenores, essenciais para imprimir vigor, energia e realismo à obra.

Em sua opinião, o efeito final da peça acabada dependia sempre dos pequenos pormenores: a curva do queixo, as pregas do vestido, a expressão do rosto.

Embora a atenção de quem observava a obra não se fixasse nesses ínfimos elementos, esses pedacinhos de realidade eram os factores que provocavam o choque de compreensão que constituía a marca da grande obra de arte.

Sob as suas mãos, a cera tépida parecia pulsar, como se o sangue corresse por debaixo da superfície macia. Não havia material mais perfeito para captar a imitação da vida. Nenhum tão ideal para preservar o instante da morte.

 

Lavinia parou sob os frondosos troncos de uma árvore, para confirmar o endereço no pedaço de papel. O número catorze de Hazelton Square encontrava-se no meio de uma fila de

belas e elegantes casas, fronteiras a um dos lados do luxuriante e verde parque. Colunatas elegantes e modernas lâmpadas a gás marcavam a enhada de cada residência.

Ao ver duas esplêndidas carruagens à espera, na rua, apossou-se dela uma impressão de inquietação. As carruagens tinham atrelados cavalos lustrosos e bem aparelhados. Os cocheiros que seguravam as rédeas vestiam dispendiosas librés. Enquanto observava, uma senhora desceu os degraus da entrada do número dezasseis. O vestido de passeio cor-de-rosa, a peliça a condizer, provinham, obviamente, de uma modista que trabalhava para uma clientela de gente rica e de grande classe.

Não era aquela, de modo nenhum, o tipo de vizinhança que esperava encontrar ao dirigir-se ali, pensou Lavinia. Era difícil imaginar que Holton Félix conhecesse, para não falar em ousar chantagear, gente que morava em local tão elegante.

Examinou as residências com atenção. Não lhe ia ser fácil abrir caminho para uma daquelas casas pela porta da frente. Contudo, não lhe parecia que tivesse outra opção senão tentar: o endereço que tinha na mão era a única pista de que dispunha. Tinha de começar por algum lado.

Forçando-se à tarefa, atravessou a rua e subiu os degraus de már more da entrada do número catorze. Ergueu a pesada argola de bronze e deixou-a cair com o que ela esperava ser uma batida autoritária.

Passos abafados soaram no hall. Um momento depois a porta abriu- se. Um criado de ar imponente, de constituição semelhante à de um touro, mirou-a. Lavinia viu, pela expressão dos olhos dele, que se preparava já para lhe fechar a porta na cara. Num gesto rápido, estendeu-lhe um dos novos cartões em relevo que mandara imprimir recentemente.

- Por favor, apresente este cartão à sua patroa - disse ela vivamente. - É muito urgente. O meu nome é Lavinia Lake.

O criado olhou desdenhosamente para o cartão. Nitidamente, tinha grandes dúvidas acerca da sensatez de o aceitar.

- Vai ver que está à minha espera - acrescentou Lavinia em tom sereno. Era pura mentira, mas foi o que lhe veio à cabeça no momento.

- Pois bem, minha senhora - disse o criado, afastando-se para a deixar entrar para o hall -, faça o favor de esperar aqui.

Lavinia respirou fundo e apressou-se a entrar. Transpusera a primeira barreira, pensou, já estava dentro da casa.

O criado desapareceu na penumbra do hall. Lavinia aproveitou o ensejo para examinar a peça onde se encontrava. As lajes pretas e brancas a seus pés e os sofisticadamente emoldurados e dourados espelhos nas paredes patenteavam bom gosto e grande fortuna.

Lavinia ouviu os passos do criado e suspendeu a respiração. Quando o viu, apercebeu-se logo de que o cartão funcionara.

- Mrs. Dove vai recebê-la. Por aqui, por favor, minha senhora. Lavinia tornou a respirar normalmente. A parte mais fácil correra bem. Agora, ia ter de encarar a infinitamente mais delicada tarefa de persuadir uma estranha a falar-lhe de chantagem e de assassínio.

Foi introduzida numa grande sala de estar, decorada em tons de amarelo, verde e dourado. Os sofás e poltronas eram estofados a seda, às riscas. Pesados cortinados verdes, presos com faixas amarelas, enquadravam a vista do parque. Os passos de Lavinia soavam abafados no espesso tapete tecido nos mesmos tons.

Uma mulher espantosamente elegante estava sentada num dos sofás dourados. Tinha um vestido cinzento-pálido, debruado a preto, de corte de grande estilo. O cabelo apanhado atrás, de modo gracioso, realçava-lhe o pescoço esbelto. A uma certa distância, podia facilmente ser tomada por uma mulher de uns trinta anos, mas, ao aproximar-se, Lavinia notou as linhas finas aos cantos dos olhos inteligentes e uma inegável flacidez no pescoço e no queixo, outrora, sem sombra de dúvida, bem firmes. Havia laivos de prata no cabelo cor de mel. A senhora estava mais próxima dos quarenta e cinco do que dos trinta e cinco anos.

- Mrs. Lake, minha senhora - disse o criado, inclinando-se respeitosamente.

- Faça o favor de entrar, Mrs. Lake, e de sentar-se.

As palavras foram pronunciadas numa voz fria e refinada, mas Lavinia discerniu a tensão que havia nelas. Aquela mulher devia viver sob grande tensão.

Sentou-se numa poltrona de riscas douradas e tentou dar o ar de estar acostumada a conversar rodeada de mobiliário tão fino. Receava bem que o seu vulgar vestido de musselina, em tempos de um vivo castanho- averznelhado, a traísse. A recente tentativa de o tingir para recuperar a cor inicial não tinha sido por completo bem sucedida.

- Muito obrigada por me receber, Mrs. Dove - disse Lavinia.

- Como podia eu recusar perante um cartão de visita tão intrigante? - disse Joan Dove, erguendo as bem arqueadas sobrancelhas. Posso perguntar- lhe como é que sabe o meu nome, quando eu estou bem ciente de que nunca nos encontrámos?

- Não há nenhum segredo em relação a isso. Bastou-me, muito simplesmente, perguntar a uma das velhotas, no parque, e ela logo me informou que a senhora era viúva e que vivia, aqui, com uma filha.

- Pois claro - murmurou Joan -, as pessoas gostam de falar.

- Na minha nova ocupação, tiro partido, com frequência, dessa tendência.

Joan batia distraidamente com o cartão no braço do sofá.

- Qual é, precisamente, Mrs. Lake, a natureza da sua ocupação?

- Explicar-lhe-ei mais tarde, se continuar interessada. Antes, porém, permita-me que lhe diga a razão para esta minha visita: acho que temos, ou tivemos, melhor dizendo, um conhecimento comum, Mrs. Dove.

- E quem seria esse conhecimento comum?

- O nome dele era Holton Félix.

As sobrancelhas de Joan uniram-se num franzir de delicado espanto. E abanou a cabeça.

- Não conheço ninguém com esse nome.

- Com certeza? Mas eu encontrei o seu endereço num livro que ele tinha à cabeceira da cama.

Lavinia percebeu que despertara a completa e concentrada atenção de Joan, mas não sabia se era bom sinal. Estava, porém, lançada, disse Lavinia para si própria. Não podia recuar. Uma mulher com a sua pro fissão tinha de ser ousada.

- Num livro à cabeceira da cama? - Joan estava muito quieta no sofá, o olhar fixo. - Coisa estranha!

- Em boa verdade, isso é muito menos estranho do que a sua profissão. Ele era um chantagista.

Houve um instante de silêncio.

- Era? - repetiu Mrs. Dove com um ligeiro ênfase.

- Quando vim a conhecer Mr. Félix, ontem à noite, já ele estava morto. Assassinado, para ser mais precisa.

Joan ficou ligeiramente mais contraída. A reacção traduziu-se num pequeno, involuntário ofego e num ligeiro estreitar dos olhos, mas Lavinia apercebeu-se de que a interlocutora recebera um choque.

Joan recuperou rapidamente, tão rapidamente que Lavinia ficou na dúvida se não teria julgado mal a reacção à notícia da morte de Félix.

- Assassinado, diz - disse joan, como se Lavinia tivesse feito um comentário banal acerca do tempo.

- Sim.

- Tem a certeza?

- A certeza absoluta. Não é o género de coisas em que nos possamos enganar - Lavinia juntou as mãos enluvadas. - Mrs. Dove, vou ser franca. Eu pouco sei a respeito de Holton Félix, mas o que sei não concede nenhum crédito à sua memória. Ele tentou chantagear-me. E eu vim a sua casa perguntar-lhe se era, também, uma das suas vítimas.

- Isso é uma pergunta absolutamente ultrajante - disse Joan vivamente. - Como se eu pudesse ceder a chantagens!

Lavinia inclinou a cabeça ligeiramente, em polida e evidente concordância.

- Eu repeli igualmente a tentativa de extorsão. Na verdade, foi por ter ficado irritada que me dei ao trabalho de descobrir a morada de Mr. Félix. Foi por isso que fui a casa dele ontem à noite. Tive o cuidado de escolher uma hora da noite em que esperava não o encontrar em casa.

Joan parecia involuntariamente fascinada.

- O que é que a levou a fazer semelhante coisa?

Lavinia teve um ligeiro encolher de ombros.

- Fui lá com a intenção de encontrar um certo diário que Mr. Félix afirmava possuir. Ele, afinal, tinha ficado em casa. Porém, antes de eu chegar, já tinha recebido a visita de alguém.

- O assassino?

- Sim.

Houve, de novo, um curto, tenso silêncio, em que Joan parecia tomar em consideração o que acabara de ouvir.

- Isso foi realmente aventureiro da sua parte, Mrs. Lake!

- Senti que não podia deixar de agir com ousadia.

- Bem - disse, por fim, Joan -, segundo parece, o seu problema resolveu-se por si, com a morte do chantagista.

- Pelo contrário, Mrs. Dove - disse Lavinia, sorrindo friamente. O caso tornou-se mais complicado. Note bem: eu não consegui encontrar o diário em casa de Mr. Félix, o que me leva a concluir que quem o tem é o assassino ou - Lavinia fez, delicadamente, uma pausa - a assassina, como pode muito bem ser o caso.       

Joan não era nada de compreensão lenta, como Lavinia pôde verificar. Percebeu logo a implicação, o que pareceu diverti- la.        

- Não acredita, certamente, que eu seja a pessoa que matou Mr. Félix e que sonegou o diário - disse Joan.

- Eu tinha uma esperança que fosse. Como compreende, isso tornaria as coisas muito mais simples e directas.

Os olhos de Joan brilharam com uma expressão estranha.

- A senhora é uma mulher nada comum, Mrs. Lake. A ocupação

a que se referiu há pouco tem alguma coisa a ver com os palcos de Drury Lane e de Convent Garden?

- Não, Mrs. Dove, de modo nenhum. Embora eu não me exima a

representar um pouco, de quando em vez.

- Compreendo. Bem, a conversa é muito interessante, mas garanto-lhe que nada sei acerca de assassínios e de chantagens. - Joan olhou abertamente para o relógio de sala. - Meu Deus, é já tão tarde. Receio ter de lhe pedir que se retire: eu tenho uma prova na minha modista, esta tarde.

Aquilo não estava a correr bem. Lavinia inclinou-se ligeiramente para a frente.

- Mrs. Dove, se estava a ser chantageada por Holton Félix e se não é a pessoa que o matou, encontra-se numa posição muito precária e eu posso prestar-lhe auxílio.

Joan lançou-lhe um olhar de polida estupefacção.

- O que é que quer dizer com isso?

- Temos de considerar a possibilidade de que a pessoa que matou Holton Félix e que roubou o diário possa, também, pôr-se a chantagear.

- Espera novas ameaças?

- Mesmo que não surjam novas ameaças, permanece o facto de que alguém possui o maldito diário. E isso é uma circunstância muito perturbadora, não acha?

Joan pestanejou uma vez, sem qualquer outro sinal de que o quadro pintado por Lavinia a alarmasse.

- Não quero ofendê-la, Mrs. Lake, mas está a falar como alguém que necessitasse de internamento em Bedlam.

Lavinia apertou as mãos com força.

- Holton Félix devia saber alguma coisa a seu respeito, minha senhora. Não vejo outra razão para ele ter o seu endereço metido num romance asqueroso, cujo tema era o deboche de uma jovem inocente.

O furor transpareceu na expressão de Joan.

- Como se atreve a insinuar que eu pudesse conhecer semelhante indivíduo? Tenha a bondade de retirar-se imediatamente, Mrs. Lake, ou terei de chamar um lacaio para a levar daqui para fora.

- Por favor, Mrs. Dove, ouça o que lhe digo. Se é uma das vítimas da chantagem de Holton Félix, deve ter informações que, com as que eu já possuo acerca do caso, podem permitir- me identificar quem quer que seja que, agora, está na posse do diário. E estará, decerto, tão interessada como eu em recuperá-lo, minha senhora.

- Está a perder o seu tempo.

- Por uma pequena importância, que cubra as minhas despesas e compense o tempo que eu dispensar ao assunto, estou à sua disposição para investigar o caso.

- Basta! É, claramente, uma louca. - Os olhos de Joan estavam duros como pedras preciosas. - Insisto em que se retire, ou terei de mandar pô-la na rua.

Eis o resultado do contacto directo, pensou Lavinia. Não era fácil angariar clientes na sua nova profissão.

Ergueu-se da poltrona com um suspiro de frustração.

- Eu vou retirar-me, Mrs. Dove, mas fica com o meu cartão: se, acaso, reconsiderar, tenha a bondade de me procurar. Sugiro, contudo, que não demore muito. O tempo é precioso.

Lavinia dirigiu-se rapidamente para a porta e saiu da sala. No hall, o criado lançou-lhe um olhar gélido e abriu-lhe a porta da frente.

Lavinia apertou os laços do chapéu e desceu os degraus da entrada. O céu estava cor de chumbo. Com a sorte com que estava, ia certamente apanhar chuva antes de chegar a casa.

Atravessou a rua e açodou-se através do parque. Detestava admiti-lo, mas Emeline tinha razão. A sobrinha avisara-a de que, quem quer que fosse a pessoa que morava em Hazelton Square, estaria pouco disposta a admitir ser vítima de chantagem e muito menos disposta a contratar uma pessoa para proceder a uma discreta investigação acerca do caso.

Havia que imaginar outro esquema, pensou Lavinia. Dobrou uma esquina e entrou numa viela entre duas filas de casas. Tinha de haver uma maneira de convencer Joan Dove a confiar nela. Estava convencida de que aquela mulher sabia muito mais do que dera a entender durante a curta entrevista.

As sombras na pequena viela escureceram de repente. Um arrepio, que não tinha nada a ver com a chuva iminente, percorreu-lhe a espinha. Sentia a presença de alguém atrás dela.

Acaso fora um erro ter tomado aquele caminho, mas fora o que tomara quando viera e não topara, então, com nada minimamente perigoso. Parou e voltou-se, repentinamente.

A grande e indistinta silhueta de um homem, com uma pesada capa, encobria grande parte da pouca luz que entrava na estreita passagem.

- Veja só, Mrs. Lake, vir encontrá-la aqui - Tobias March aproximou-se dela. - Tenho andado à sua procura por todo o lado.

Quando, pouco depois, entrou no pequeno hall da casa de Clare-mont Lane, Lavinia continuava furiosa. Tobias March estava com ela.        

Mrs. Clinton apareceu, limpando as grandes mãos competentes às pontas do avental.

- Finalmente, minha senhora. Estava com medo que não chegasse

a casa antes de começar a chover - disse ela, olhando para Tobias March com indisfarçada curiosidade.

- Felizmente, consegui evitar uma grande molha - disse Lavinia, tirando o chapéu e descalçando as luvas. - E isso foi a única coisa que hoje me correu bem. Como vê, Mrs. Clinton, temos um hóspede inesperado. Acho que tem de preparar um tabuleiro de chá e trazê-lo para o estúdio.

- Sim, minha senhora.

Com um último e perscrutador relance de olhos a Tobias March, Mrs. Clinton voltou-se e dirigiu-se para as escadas que desciam para a cozinha.

- E não se ponha a gastar o chá fresco que eu comprei esta semana - gritou Lavinia atrás dela. - O antigo que aí temos é mais barato e serve muito bem.

- A sua generosa hospitalidade é enternecedora - declarou Tobias March.

- A minha generosa hospitalidade é reservada para quem convido

para minha casa - disse Lavinia, pendurando o chapéu num cabide e voltando-se para atravessar o hall. - E não para quem se convida a si próprio.

- Mr. March - Emeline debruçava-se do corrimão das escadas -, muito prazer em vê-lo de novo.

Tobias March olhou para cima e sorriu pela primeira vez.

- Afianço-lhe que o prazer é todo meu, Miss Emeline.

Emeline desceu as escadas num repente.

- Também conseguiu descobrir o endereço de Hazelton Square? Foi aí que se encontrou com a minha tia?

- De certo modo - disse Tobias.

- Ele seguiu-me até Hazelton Square - disse Lavinia, entrando no pequeno estúdio. - Andou a espiar-me, como fez em Roma. É, na verdade, um hábito muito irritante.

Tobias March entrou na sala confortável.

- Seria um hábito perfeitamente desnecessário, se me tivesse informado das suas intenções.

- A que propósito havia eu de fazer semelhante coisa? Tobias March encolheu os ombros.

- Porque, se o não fizer, vou continuar a segui-la.

- Isto é demais. Absolutamente insuportável - Lavinia dirigiu-se rapidamente para a sua secretária e sentou-se na cadeira. - O senhor não tem o direito de se intrometer nos meus assuntos pessoais.

- Não obstante, é precisamente o que tenciono fazer - ripostou Tobias March, sentando-se na maior poltrona da sala, sem esperar que o convidassem a isso. - Pelo menos até ver o caso do diário esclarecido. Por isso, sugiro-lhe firmemente que coopere comigo, Mrs. Lake. Quanto mais depressa unirmos os nossos esforços, mais depressa chegaremos a uma conclusão satisfatória.

- Mr. March tem razão, tia Lavinia - apontou Emeline, entrando no estúdio e sentando-se na cadeira que restava. - Faz todo o sentido trabalharem juntos na resolução do caso, como já tive ocasião de lhe dizer esta manhã.

Lavinia mirou ambos, os olhos muito abertos. Estava encurralada e sabia-o. Unir os esforços era pura lógica. Não utilizara ela a mesma argumentação com joan Dove, havia pouco?

Encarou Tobias, cerrando um pouco os olhos.

- Como é que vou saber que posso confiar em si?

- Não há forma de saber. - Ao contrário do sorriso que dirigira a Emeline, o que dirigiu a Lavinia não era nada caloroso, antes de fria jocosidade. - Do mesmo modo que eu não tenho forma de saber se posso, ou não, confiar em si. Não enxergo, porém, nenhuma alternativa para qualquer de nós.

Emeline aguardava, ansiosa.

Lavinia hesitava, esperançada numa inspiração, mas nada lhe ocorreu.

- Raio de azar! - exclamou ela, batendo com o punho no tampo da secretária. - Raio de azar!

- Eu sei o que sente - disse Tobias em tom neutro. - Frustração é a palavra que lhe vem à mente, não é?

- Em boa verdade, a palavra frustração não exprime toda a profundidade do sentimento que neste momento se apodera de mim. Lavinia inclinou-se para trás e agarrou os braços da cadeira com firmeza.

- Muito bem, meu caro senhor, considerando que toda a gente insiste em que é o mais sensato e o mais lógico, estou preparada para encarar a possibilidade de uma associação.

- Excelente! - os olhos de Tobias tinham um brilho de triunfo que ele não tentou esconder. - Isso torna as coisas muito mais simples e eficientes.

- Duvido muito - disse Lavinia, inclinando-se bruscamente para a frente. - Contudo, estou disposta a tentar a experiência. Pode começar o senhor.

- Começar?

- Sim, a mostrar a sua boa fé - disse Lavinia, dirigindo-lhe o sorriso mais sedutor que, dadas as circunstâncias, conseguiu compor. Diga-me o que sabe a respeito de Joan Dove.

- Quem é Joan Dove?

- Ora! Eu já sabia - Lavinia voltou-se para Emeline. - Estás a ver? É inútil. Mr. March sabe ainda menos do que eu. Não consigo ver que vantagem tenho em associar-me com ele.

- Calma, tia Lavinia. Tem de dar uma oportunidade a Mr. March.

- Acabo de lhe dar uma oportunidade, mas ele é completamente inútil.

Tobias March olhou para Lavinia com uma expressão de profunda humildade.

- Eu acho que tenho algo para lhe oferecer, Mrs. Lake. Lavinia nada fez para ocultar a sua descrença.

- Tal como?

- Presumo que Joan Dove seja a identidade da pessoa que vive em Hazelton Square.

- Brilhante dedução, caro senhor.

Emeline pestanejou perante o sarcasmo, mas Tobias não pareceu ficar abalado.

- Admito que nada sei a respeito dela - disse ele -, mas não será difícil reunir uma vasta gama de informações, em relativamente pouco tempo.

- Como é que pretende fazer isso? - perguntou Lavinia, involunta riamente curiosa. Tinha ainda muito que aprender acerca da sua nova profissão, recordou a si própria.

- Eu disponho de uma rede de informadores, aqui em Londresdisse Tobias.

- Quer dizer, espiões?

- Não, nada disso. É, muito simplesmente, um grupo de associados dispostos a vender informações, quando se lhes apresenta a oportunidade.

- Isso, a mim, soa-me a gangue de espiões.

Ele ignorou o comentário.

- Eu posso começar a investigar, mas deve concordar que é uma perda de tempo estar a duplicar a sua acção. Se me contar o que apurou hoje, as coisas avançarão muito mais depressa.

- A nossa conversa foi, em certa medida, de natureza limitada. Emeline teve uma expressão de surpresa.

- Tia Lavinia, não me diga que conseguiu falar com essa Joan Dove? Lavinia abanou a mão num gesto casual.

- Falei, sim. Apresentou-se-me uma oportunidade e eu aproveitei-a.

- Mas tinha-me afirmado que ia apenas localizar a casa e observá-la durante algum tempo, para ver se descobria alguma coisa - Emeline tinha uma expressão preocupada. - Não me falou nada em entrar na casa.

Pela primeira vez, Tobias March parecia muito irritado, parecia, mesmo, um pouco perigoso.

- Mrs. Lake, até agora ainda não nos disse se conseguiu, realmente, falar com Joan Dove.

- Para mim era evidente que ela era, muito provavelmente, mais uma das vítimas da chantagem de Holton Félix. - Lavinia sentia a fria desaprovação de Tobias, mas fez por ignorá-la. - Decidi malhar no ferro enquanto quente.

- Mas, tia Lavinia.

- Mas o que é que lhe disse? - interrompeu Tobias, em tom de voz por demais calmo.

- É óbvio, Mr. March, que a minha tia aproveitou a oportunidade, não só para obter informações acerca do mistério, mas também para angariar um cliente - disse Emeline, em certa medida para pôr Lavinia à prova.

- Cliente? - exclamou Tobias, espantado.

- Basta, Emeline - disse Lavinia em tom firme. - Não há necessidade nenhuma de pôr Mr. March a par dos meus assuntos pessoais.

- Pelo contrário - disse Tobias - garanto-lhe que tenho o máximo interesse em saber tudo a seu respeito. Até o mínimo pormenor tem interesse para mim.

Emeline franziu o sobrolho para Lavinia.

- Dadas as circunstâncias, não vejo como pode ocultar o assunto a Mr. March. De qualquer modo, ele acabará por saber a verdade, mais cedo ou mais tarde.

- Posso afiançar-lhe que será mais cedo do que mais tarde - disse Tobias. - Que raio se passa aqui, minha senhora?

- Estou, pura e simplesmente, a tentar assegurar um modo de vida, para mim e para a minha sobrinha, que não envolva vender-me na rua - disse Lavinia.

- E como é que vai assegurar esse modo de vida?

- O facto de eu ter de adoptar uma nova profissão é tudo culpa sua, Mr. March. Foi por sua causa que eu me vi obrigada a meter-me num novo empreendimento, o qual, por ora, não produziu grande rendimento, devo acrescentar.

Tobias March pôs-se de pé.

- Que raio é essa sua nova profissão?

Emeline olhou para ele com um ar gentilmente reprovador.

- Não há razão para alarme, Mr. March. Tenho de admitir que a nova profissão da minha tia é um pouco inusitada, mas não tem nada de ilícito. Em boa verdade, ela inspirou-se em si.

- Rasparta! - exclamou Tobias, dando dois passos para junto da secretária e espalmando as mãos no tampo. - Diga-me do que é que se trata.

Tobias March falara num tom de voz tanto mais perturbador para Lavinia quanto era extremamente suave. Lavinia hesitou um momento, depois abriu a pequena gaveta central da secretária e retirou dela um dos seus novos cartões. Sem uma palavra, colocou-o sobre a polida superfície de mogno, em frente dele, por forma a que pudesse vê-lo facilmente.

Tobias baixou os olhos. Lavinia seguiu-lhe o olhar, lendo silencio samente com ele:

INVESTIGAÇÕES PARTICULARES

MÁXIMA DISCRIÇÃO

Lavinia manteve-se calada.

- Que raio de ideia! - exclamou Tobias March, agarrando no cartão. - Meteu-se na minha actividade. O que é que a levou a pensar que tinha qualificações para isso?

- Tanto quanto pude apurar, é uma profissão que não exige quali ficações especiais - disse Lavinia. - Basta uma certa aptidão para fazer muitas perguntas.

Tobias semicerrou os olhos.

- Tentou convencer Joan Dove a contratá- la para descobrir o diário, foi isso?

- Sim, sugeri-lhe que era do interesse dela pagar-me para eu proceder a averiguações acerca do caso.

- A senhora é completamente maluca, ou quê?

- É curioso que ponha em causa a minha sanidade mental, Mr. March. Há três meses atrás, em Roma, tinha eu sérias dúvidas a respeito da sua.

Com um gesto da mão, Tobias March lançou o cartão para cima da secretária. O cartão flutuou no ar e pousou no tampo mesmo em frente de Lavinia.

- Se não é doida - disse ele, inflexível -, deve ser uma perfeita idiota. Não tem noção nenhuma dos danos que pode ter causado, pois não? Não faz ideia nenhuma do perigo que este caso envolve.

- Claro que sei que existe algum perigo, pois tive ocasião de ver o crânio de Mr. Félix, ontem à noite.

Tobias March rodeou a secretária com surpreendente rapidez, dado o seu coxear, e, inclinando-se, agarrou Lavinia pelos braços, arrancando-a da cadeira e erguendo-a no ar.

Emeline saltou da sua cadeira.

- Que está a fazer à minha tia, Mr. March. Faça o favor de a largar. Ele ignorou-a. Toda a sua atenção estava concentrada em Lavinia.

- A senhora, Mrs. Lake, é uma criancinha louca e intrometida. Faz a mais pequena ideia do que pôs em causa? Há meses que ando a estender a minha rede e vem a senhora e deita tudo a perder numa única tarde.

A raiva patente no olhar dele fez secar a boca de Lavinia. A consciência de que ele tinha o poder de a enervar atiçou-lhe a irritação.

- Largue-me, Mr. March!

- Não a largo enquanto não concordar com uma associação.

- Para que quer trabalhar comigo, se tem tão fraca opinião a meu respeito?

- Nós vamos trabalhar juntos, Mrs. Lake, porque o que hoje aconteceu prova que não posso correr o risco de permitir que aja sozinha. A senhora tem de ser supervisionada.

Lavinia não gostou do teor da declaração.

- Realmente, Mr. March, o senhor não pode manter-me no ar indefinidamente.

- Não se fie muito nisso.

- O senhor não é um cavalheiro.

- Já referiu esse facto anteriormente. Concorda ou não em trabalharmos juntos no que respeita ao diário?

- Eu não tenho nenhum interesse em formar uma aliança consigo. Contudo, como não posso movimentar-me sem tropeçar em si, estou disposta a unir esforços e a trocar informações.

- Decisão sensata, Mrs. Lake.

- Não obstante, devo insistir em que se exima deste género de comportamento grosseiro.

Ele não a estava a magoar, mas ela sentia bem a força das mãos dele.

Sem uma palavra, Tobias March baixou-a até os pés dela tocarem no chão, logo a largando.

Lavinia compôs a saia e levou uma mão ao cabelo. Sentia-se confusa, furiosa e sem fôlego.

- Isto é ultrajante. Aguardo as suas desculpas, Mr. March.

- Peço-lhe desculpa, minha senhora, mas há algo em si que desperta o meu pior lado.

- Esta associação não começa nada bem - comentou Emeline.

Lavinia e Tobias voltaram-se ambos para encararem Emeline, porém, antes de algum deles falar, a porta abriu-se: Mrs. Clinton entrava no estúdio com o tabuleiro do chá.

- Eu sirvo o chá - disse Emeline rapidamente, correndo para agarrar o tabuleiro.

Quando Emeline acabou de encher as três chávenas, já Lavinia se dominara. Tobias mantinha-se junto da janela, as mãos apertadas atrás das costas, olhando para o minúsculo jardim. Na posição dos ombros eram ainda visíveis os resíduos do seu mau humor imprevisível e perigoso. Lavinia pensava que o facto de ele não fazer mais comentários acerca de perfeitos idiotas era bom sinal.

Quando a porta se fechou atrás de Mrs. Clinton, Lavinia bebeu uma revigorante golada de chá e pousou a chávena no pires com mão precisa.

O tiquetaque do alto relógio soava pesadamente no profundo silêncio.

- Vamos começar de novo pelo princípio - disse Tobias, directo. O que é que disse, exactamente, a Mrs. Dove.

- Eu falei-lhe sem rodeios.

- Oh, diabo! Lavinia aclarou a garganta

- Disse-lhe, simplesmente, que tinha sido objecto de chantagem e que seguira uma pista até à casa do chantagista, para, afinal, verificar que

alguém lá chegara antes de mim. Expliquei-lhe que o diário que Holton Félix mencionava nas suas mensagens tinha desaparecido e que eu encontrara o endereço dela metido num livro asqueroso no quarto dele.

Tobias March voltou-se repentinamente, encarando-a.

- Era, então, isso o que encontrou naquele quarto. Eu sabia que tinha encontrado qualquer coisa. Por que raio não mo disse?

- Mr. March, se vai continuar a invectivar-me a todo o momento, não vamos a lado nenhum.

A queixada dele estava tensa, mas ele não retorquiu.

- Continue.

- Infelizmente, é quase tudo o que tenho para contar. Disse-me nada saber a respeito de chantagens, mas estou convencida de que era uma das vítimas de Holton Félix. Ofereci-lhe os meus serviços e ela recusou-os. E eu saí.

Não havia motivo, pensou Lavinia, para referir que fora obrigada a sair sob a ameaça de ser escorraçada.

- Disse-lhe que eu estava consigo ontem à noite? - perguntou Tobias.

- Não. Nada lhe disse quanto ao seu envolvimento no caso.

Tobias March ficou, por momentos, em silêncio, a reflectir e, depois, dirigindo-se à pequena mesa junto da poltrona grande, pegou na sua chávena.

- Disse que ela é viúva, não é assim?

- Sim. Uma velhota, no parque, disse-me que o marido dela morrera há cerca de um ano, pouco depois do noivado da filha ter sido anunciado numa grande festa.

Tobias fez uma pausa, a chávena a meio caminho do pires. Brilhava-lhe nos olhos um profundo interesse.

- A velhota disse-lhe como é que ele tinha morrido?

- Falou-me de uma doença súbita, enquanto visitava as suas propriedades, acho eu. Não me preocupei em saber pormenores.

- Compreendo.

Tobias March colocou a chávena no pires com todo o cuidado.

- Disse que ela não admitiu ser vítima de chantagem.

- Sim - Lavinia hesitou um momento. - Ela não me disse, na verdade, se tinha recebido ameaças de extorsão, mas os seus modos convenceram-me de que sabia muito bem do que eu estava a falar. Acho que ela anda desesperada e não me surpreenderia se viesse a ter notícias dela muito em breve.

 

Era ainda cedo, quando Tobias March entrou no seu clube, na tarde desse dia. O ambiente silencioso era apenas perturbado pelo débil roçagar das páginas dos jornais, por chávenas a embater em pires e pelo ocasional tinir de uma garrafa de Porto num copo. A maior parte das cabeças que se viam acima dos espaldares das grandes e bem estofadas poltronas eram aureoladas de cinzento.

Àquela hora, a maior parte dos presentes tendiam para uma idade em que um homem dedica mais tempo ao whist e aos fundos financeiros do que a amantes e a modas. Os membros mais jovens do clube estavam a praticar tiro ao alvo na carreira do Manton, ou de visita aos seus alfaiates.

As respectivas mulheres e amantes estavam, sem dúvida, ocupadas nas compras, pensou Tobias. As duas categorias de mulheres eram, muitas vezes, clientes das mesmas modistas e das mesmas lojas. Já se tinha ouvido falar da esposa de um cavalheiro se encontrar cara a cara com a sua joaninha, em frente da mesma peça de tecido. Nessas circunstâncias, a esposa tinha a obrigação de ignorar a presença da rival.

Porém, se acontecia a esposa em causa ser de temperamento nervoso e feroz como o de Lavinia, pensava Tobias, a peça de musselina arriscava- se a ficar toda rasgada antes do fim do encontro. Por qualquer razão a imagem divertiu-o, apesar da sua sombria disposição. Depois, ocorreu-lhe que, despachada a amante, Lavinia iria, sem dúvida, encurralar o marido, o qual iria, pela certa, apanhar ainda mais. Tobias deixou de sorrir.

- Ah, eis-vos, finalmente, March - Lorde Crackenburne baixara o jornal e espreitava Tobias por cima dos aros dos óculos. - Tinha a esperança de o ver hoje.

- Boa tarde, Lorde Crackenbume - Tobias sentou-se na poltrona, do outro lado da lareira. Distraidamente, pôs-se a esfregar a perna direita. - Foi muito sensato em sentar-se aqui à lareira. Não está dia para se andar a correr a cidade. A chuva encheu as ruas de lama.

- Há mais de trinta anos que não me aventuro a coisa tão extenuante como andar a correr a cidade. - As sobrancelhas de Crackenburne ergueram-se e baixaram-se, por cima dos óculos. - Prefiro deixar que o mundo venha ter comigo.

- Sim, eu sei.

Crackenburne vivera, mais ou menos, ali, no clube, desde a morte da sua querida mulher, havia uns dez anos. Tobias preocupava-se em visitá-lo com frequência.

A amizade deles datava de há cerca de vinte anos, quando Tobias, recém-saído de Oxford e sem dinheiro, se tinha candidatado ao lugar de homem de confiança de Crackenburne. Ainda hoje, não percebia por que é que um nobre, um homem de linhagem impecável, de grande fortuna e pessoalmente ligado aos membros de mais elevado nível da sociedade, tinha decidido contratar um jovem inexperiente, sem grandes referências e sem família. Sabia, porém, que permaneceria eternamente grato pela confiança que Crackenburne nele depositara.

Tinha deixado de gerir as finanças e os negócios de Crackenburne havia cerca de cinco anos, quando se dedicara à investigação particular, mas continuava a dar grande valor aos conselhos e ao bom senso do ancião. Além disso, o pendor de Crackenburne para passar a maior parte do seu tempo no clube tornava-o uma preciosa fonte de informações. Parecia saber sempre tudo o que corria em voz baixa.

Crackenburne fez soar o jornal, ao passar de página.

- Diga-me lá o que é que sabe a respeito dessa história que para aí anda da morte de um batoteiro, ontem à noite?

- Essa pergunta impressiona-me - disse Tobias, com um sorriso contrafeito. - Como é que soube disso? Vem nos jornais?

- Não. Ouvi para aí uma conversa à mesa de jogo, esta manhã. Reconheci o nome de Holton Félix porque você me tinha falado nele há dois dias. Ele morreu, de facto?

- Sem sombra de dúvida. Alguém lhe esmagou o toutiço com um objecto pesado.

- Hum! - Crackenburne tornou a olhar para o jornal. - E que é feito do diário que Neville o incumbiu de encontrar?

Tobias estendeu as pernas para a lareira.

- Quando cheguei à cena do crime, já tinha desaparecido.

- Isso foi azar. Suponho que Neville não gostou nada de ouvir isso.

- Não, nada mesmo.

- Tem alguma ideia onde procurar, a seguir?

- Ainda não, mas já fiz saber aos meus informadores que continuo interessado em qualquer informação que a ele me conduza - Tobias hesitou. - E houve um desenvolvimento.

- De que tipo?

- Vi-me obrigado a estabelecer uma associação e o meu sócio já topou com uma pista que se afigura útil.

Crackenburne ergueu os olhos do jornal, o olhar murcho a brilhar de espanto.

- Um sócio? Está a referir-se a Anthony?

- Não. Anthony é o meu assistente eventual e tenciono mantê-lo nesse papel. Já lhe expliquei que não o quero ver demasiado envolvido na minha actividade.

Crackenburne comentou, meio irónico:

- Embora ele goste do trabalho.

Tobias cruzou os dedos e pôs-se a observar o lume.

- Isso não interessa. Não é carreira para um cavalheiro. É apenas um degrau acima de espião e o rendimento é, para dizer o mínimo, imprevisível. E eu prometi a Ann que tudo faria para que o irmão seguisse uma carreira respeitável e segura. O grande receio dela era que ele acabasse nas salas de jogo, como o pai.

- O jovem Anthony já mostrou interesse por alguma carreira respeitável e segura? - perguntou Crackenburne secamente.

- Ainda não - admitiu Tobias -, mas ele tem apenas vinte e um anos. Por ora, a atenção dele navega livremente por inúmeras matérias, incluindo ciências, antiguidades, arte e poesia de Byron.

- Se tudo isso falhar, você pode sugerir-lhe que se dedique a caçar uma fortuna.

- Receio bem que as oportunidades de Anthony vir a conhecer uma herdeira rica, para já não falar em casar, são extremamente diminutas - disse Tobias. - Mesmo que, por mero acaso, ele viesse a travar conhecimento com uma, a fraca opinião que ele faz das jovens que só se preocupam com vestidos e com mexericos deitaria tudo a perder.

- Bem, se eu fosse a si, não me preocuparia muito com o futuro dele - disse Crackenburne. - A minha experiência ensinou-me que os jovens tendem a tomar as suas próprias decisões e que, no fim de contas, tudo o que podemos fazer é desejar-lhes boa sorte na vida. Mas fale-me lá desse seu sócio.

- Bom, não se trata de um sócio, mas de uma sócia, que se chama Mrs. Lake. Talvez se recorde de que já lhe falei nela.

Crackenburne abriu e fechou a boca e, depois, ficou de novo de boca aberta, atónito.

- Por amor de Deus, não me diga que se trata da mesma Mrs. Lake com quem se encontrou em Itália?

- Exactamente a mesma. Segundo parece, constava da lista das vítimas de chantagem de Holton Félix - Tobias mirou o lume da lareira por cima dos dedos cruzados. - E lança-me a culpa por isso.

- Não me diga - Crackenburne ajustou os óculos, pestanejando inúmeras vezes. - Eh, eh, eh, isso é que se chama uma coincidência!

É muito pior do que isso. Para mim, é um raio de uma complicação, pois ela resolveu dedicar-se à actividade de investigações particulares, mediante honorários. - Tobias pôs-se a bater com as pontas dos dedos. - Segundo parece, inspirando-se em mim.

- Isso é espantoso, isso é absolutamente espantoso! - exclamou Crackenburne, abanando a cabeça. Parecia dividido entre a ironia e o espanto. - Uma senhora escolher a mesma estranha profissão que você inventou para si. Concordo que é de deixar um homem completamente atónito.

- Garanto-lhe que o facto de ficar atónito foi apenas um dos inúmeros efeitos desagradáveis que a notícia me causou. Porém, dado que ela persiste na busca do diário por sua conta e risco, não me resta alternativa senão associar- me a ela.

- Sim, sem dúvida - aquiesceu Crackenburne, avisadamente. - É a única maneira de a ter debaixo de olho e de controlar-lhe a actuação.

- Não acredito muito que alguém consiga controlar Mrs. Lake - disse Tobias, fazendo, depois, uma pausa. - Mas eu não vim aqui para lhe falar dos meus problemas com a minha sócia. Vim cá para lhe perguntar uma coisa.

- O que é que quer saber?

- O senhor tem muitos conhecimentos na alta sociedade e ouve dizer muita coisa. O que é que sabe a respeito de uma tal Joan Dove, que habita em Hazelton Square?

Crackenburne reflectiu, por momentos, na pergunta. Depois, dobrou o jornal e pô-lo de lado.

- Confesso que não sei grande coisa. O casal Dove não frequentava muito a alta sociedade e não se falava muito deles. Há cerca de um ano, acho eu, a filha ficou noiva do herdeiro Colchester. E Fielding Dove morreu pouco depois.

- É tudo o que sabe acerca da senhora?

Crackenburne fixou o olhar no lume flamejante.

- Ela estava casada com Dove há uns vinte anos. Havia entre eles uma considerável diferença de idades. Ele devia ter para aí mais uns vinte e cinco anos do que ela, talvez mesmo uns trinta. Não sei donde é que ela surgiu, nem sei nada a respeito da família dela. Mas uma coisa eu posso afiançar-lhe.

Tobias ergueu um sobrolho, num silêncio atento.

- com a morte de Fielding Dove - disse Crackenburne com ênfase -, joan Dove herdou inúmeros interesses financeiros. Ela é, hoje, uma mulher extremamente rica.

- Riqueza significa poder.

- Sim - confirmou Crackenburne - e, quanto mais rica e mais poderosa uma pessoa se sente, mais disposta a fazer o que for necessário para enterrar os seus segredos.

Chovia ainda abundantemente quando a elegante carruagem parou em frente do número sete de Claremont Lane. Lavinia espreitou atrás do cortinado e viu um musculoso lacaio, numa elegante libré, descer para abrir a porta da carruagem, erguendo um guarda-chuva.

Um espesso véu ocultava a cara da mulher que desceu do veículo, mas Lavinia sabia que havia apenas uma senhora das suas relações que se podia dar ao luxo de possuir uma tão dispendiosa equipagem e com algum motivo para sair de casa, sob tão rigorosas condições de tempo.

joan Dove trazia nas mãos um pacote embrulhado em pano, subindo rapidamente os degraus da entrada.

Apesar do atento lacaio e do seu guarda-chuva, as meias-botas e as pontas da elegante capa cinzenta de joan estavam encharcadas, quando ela foi introduzida no pequeno e confortável estúdio.

Lavinia logo a fez sentar-se junto à lareira, sentando-se na poltrona em frente dela.

- Chá, por favor, Mrs. Clinton Lavinia deu a ordem em tom seco, tentando fazer parecer que, receber visitas de tal distinção, era hábito quotidiano em Claremont Lane. - O chá novo.

- Sim, minha senhora, é para já.

Mrs. Clinton estava intimidada, quase caindo ao tentar fazer uma vénia ao retirar-se da sala.

Lavinia voltou-se para Joan, procurando um comentário adequado à circunstância.

- A chuva parece estar para durar - disse ela, logo corando, perante a banalidade. Não era, decerto, maneira de impressionar bem um cliente, pensou ela.

- Sim, assim parece - disse Joan, erguendo a mão enluvada e levantando o véu.

Qualquer ulterior comentário a respeito do mau tempo feneceu na garganta de Lavinia, quando viu a cara pálida e o olhar apavorado de Joan. Alarmada, levantou-se num repente, agarrando na campaínha colocada no lintel da lareira.

- Sente-se mal, minha senhora? Quer cheirar vinagreta?

- A vinagreta não me vai ajudar nada. - A voz de Joan era surpreendentemente uniforme, dado o pavor nos olhos. - Mas acho que a senhora pode ajudar-me, Mrs. Lake.

- O que é que se passa? - perguntou Lavinia, tornando a sentar-se. Que aconteceu depois da nossa conversa.

- Isto apareceu à minha porta, há cerca de uma hora - disse Joan, desfazendo deliberadamente o pacote que trazia nas mãos.

O tecido abriu-se revelando um pequeno quadro em cera, numa moldura com cerca de trinta centímetros de lado. Lavinia tornou a erguer-se e, tomando o pequeno quadro das mãos de Joan, levou-o para junto da janela, onde a luz era melhor, examinando aí a cena artística e finamente lavrada ao pormenor.

O ponto fulcral do quadro era uma pequena, mas meticulosa escultura de mulher, num vestido verde, caída no chão de uma sala, a cara voltada e oculta. A parte de cima do vestido tinha um golpe profundo nas costas e a barra tinha três orlas de folhas, adornadas de pequenas rosas.

Porém, o que mais atraiu a atenção de Lavinia foram as madeixas de cabelo verdadeiro utilizado na minúscula escultura: eram louras, com fios de prata. Tal como o de Joan, pensou ela.

Lavinia ergueu os olhos do quadro.

- Isto é um invulgar e excelente trabalho de cera, mas não compreendo por que mo traz.

- Observe a figura da mulher - disse Joan, apertando com força as mãos no colo. - Não vê uma mancha vermelha no chão, por baixo dela?

Lavinia tornou a olhar para o quadro.

- Parece ser um lenço carmesim, ou talvez um pedaço de seda vermelha - disse Lavinia, sentindo um arrepio, ao compreender, por fim, o que aquilo queria dizer. - Santo Deus!

- Sim - disse Joan - é uma mancha de tinta vermelha sob a figura. Pretende, obviamente, representar sangue. A mulher está morta. Trata-se de uma cena de assassínio.

Lavinia baixou lentamente o pequeno quadro e procurou o olhar de Joan.

- A figura da mulher pretende representá-la a si - disse Lavinia. Isto é uma ameaça.

- É o que eu acho - disse Joan, mirando o quadro nas mãos de Lavinia. - Esse vestido verde é o que eu usava na festa de noivado da minha filha.

Lavinia fez uma pausa, reflectindo.

- E vestiu-o noutras ocasiões? - perguntou por fim.

- Não. Eu mandei-o fazer especialmente para essa festa. Não tive oportunidade de o tornar a vestir.

- Quem quer que compôs esta figura viu, portanto, o vestidodisse Lavinia, observando, uma vez mais, a figura de mulher. – Quantas pessoas estiveram presentes nessa festa.

Joan teve uma expressão de desânimo.

- A lista de convidados continha mais de trezentos nomes.

- Oh! Isso constitui uma longa lista de suspeitos.

- Sem dúvida. Graças a Deus que a minha filha se encontra fora, este mês. Isto ia preocupá-la imenso. Ela ainda não recuperou bem da morte do pai.

- Onde se encontra ela?

- Está de visita a uns parentes do noivo, no Yorkshire. E eu queria ver este caso resolvido antes de ela regressar a Londres. Espero que possa iniciar as suas averiguações imediatamente.

Havia que ter muito cuidado, ao lidar com pessoas de classe elevada, pensou Lavinia. Dispunham de meios para pagar, mas eram, também, propensas a não pagar as contas.

- Está disposta a pagar-me honorários para que eu descubra a iden tidade da pessoa que lhe enviou isto? - perguntou Lavinia, cautelosamente.

- Para que haveria eu de vir aqui, senão para isso?

- Claro, claro.

As pessoas de alta estirpe eram, também, extremamente bruscas e exigentes, pensou Lavinia.

- Mrs. Lake, a senhora disse-me que se encontrava já a investigar este caso. O que me disse e o seu cartão deram-me a entender que se dispunha a aceitar uma incumbência da minha parte. Continua nessa disposição?

- Sim, sim - disse Lavinia, pressurosamente. - Continuo disposta a isso e terei muito gosto em aceitar essa incumbência, Mrs. Dove.

É, talvez, chegada a altura de discutir os meus honorários.

- Não vale a pena perdermos tempo com isso. Não me interessa quanto me cobre pelos seus serviços, desde que me satisfaçam. Quando tiver concluído a sua tarefa, apresente-me a conta, seja ela qual for:

Garanto-lhe que será liquidada - disse Joan com um sorriso frio. Pode perguntar a quem tem negócios comigo, ou a qualquer fornecedor da minha casa, todos lhe dirão que as minhas contas são liquidadas escrupulosa e pontualmente.

Ser-lhe-ia fácil confirmar a veracidade daquela declaração, pensou Lavinia. Entretanto, o que menos lhe interessava era estragar o negócio, irritando a cliente com uma discussão acerca de honorários.

- Vamos, então, pôr-nos em acção. Tenho de lhe fazer algumas perguntas e espero que não ache que estou, desnecessariamente, a imiscuir-me na sua vida particular.

Interrompeu-se, ao ouvir o som da porta da frente a abrir-se. Joan ficou tensa e relanceou o olhar para a porta fechada do estúdio.

- Tem outra visita, Mrs. Lake, segundo parece. Insisto em que não diga a ninguém as razões que me trouxeram aqui hoje.

- Não se preocupe, Mrs. Dove. Deve ser a minha sobrinha que regressa de uma visita à sua nova amiga, Priscilla Wortham. Lady Wortham convidou-a para tomar chá esta tarde. Levou a gentileza ao ponto de enviar a carruagem buscar Emeline.

Lavinia esperava não ter parecido que se estava a vangloriar. Sabia que um convite da parte de Lady Wortham pouco significava para quem, como Joan Dove, frequentava os meios da alta sociedade. O convite para o chá, contudo, representava um êxito social para Emeline.

- Compreendo - disse Joan, com o olhar fixo na porta do estúdio. Uma voz masculina, por demais familiar, soou no hall.

- Não se incomode, Mrs. Clinton, eu sei o caminho.

- Azar! - murmurou Lavinia. - Sempre inoportuno! Joan olhou rapidamente para ela.

- Quem é?

A porta do estúdio abriu-se e Tobias March entrou, parando ao ver Joan Dove e fazendo-lhe uma vénia surpreendentemente graciosa.

- Minhas senhoras - disse ele, endireitando-se e erguendo um sobrolho interrogativo na direcção de Lavinia. - Vejo que fez progressos na minha ausência, Mrs. Lake. Excelente.

- Quem é este cavalheiro? - perguntou Joan de novo, muito seca, desta vez.

Lavinia presenteou Tobias com o seu olhar mais reprovador.

- Permita-me que lhe apresente o meu sócio, Mrs. Dove.

- Não me tinha falado num sócio.

- Ia, justamente, falar-lhe nele - disse Lavinia suavemente. - Este cavalheiro é Tobias March. Auxilia-me nas minhas averiguações.

- Em boa verdade - disse Tobias, com um olhar significativo para Lavinia -, é Mrs. Lake que me auxilia.

Joan observou-o atentamente, dirigindo, depois, o olhar para Lavinia.

- Não compreendo nada.

- É, na realidade, muito simples - disse Lavinia, voltando ostensi vamente as costas a Tobias. - Mr. March e eu estamos associados neste caso. E é um bom negócio para si, Mrs. Dove. Como minha cliente, disfruta dos serviços de ambos, sem custo adicional.

- Dois pelo preço de um - ajudou Tobias.

Lavinia compôs o que ela esperava ser um sorriso tranquilizador.

- Mr. March tem bastante experiência nestas matérias. E garanto-lhe que é muito discreto.

- Bom. - Joan hesitava. Não parecia muito convencida, mas era, nitidamente, uma mulher sem grandes alternativas. - Muito bem.

Lavinia voltou-se para Tobias e passou-lhe o quadro de cera para as mãos.

- Mrs. Dove veio aqui hoje porque acaba de receber isso. Acha que é uma ameaça de morte e eu concordo com ela. O vestido da figura é exactamente igual a um dos seus vestidos e, como pode verificar, o cabelo é da mesma cor do dela.

Tobias examinou o quadro durante bastante tempo.

- É estranho. Um chantagista, geralmente, ameaça expor um velho segredo, mas não envia ameaças de morte. Não é lógico matar uma fonte de rendimentos.

Houve um curto e tenso silêncio. Lavinia trocou um olhar com Joan.

- Mr. March parece ter razão - disse Lavinia, a contragosto.

- Sim, sim, parece - disse Joan, com uma expressão pensativa. Lavinia notou que a sua cliente observava Tobias com muito mais interesse do que patenteara momentos antes.

Tobias baixou o quadro.

- Por outro lado, temos de ter em consideração que estamos a lidar com um novo tratante, alguém que já cometeu um assassínio. E este assassino pode, muito bem, achar que uma ameaça de morte é um método mais eficaz de induzir a vítima a pagar.

Joan aquiesceu com a cabeça.

Era altura de retomar o domínio da situação, pensou Lavinia.

Tobias estava a assumir o comando.

- Tenho de lhe fazer uma pergunta muito pessoal, Mrs. Dove disse ela para Joan.

- Quer saber o que é que Holton Félix encontrou no diário que o levou a pensar que eu estaria disposta a pagar-lhe o silêncio, não é?

- Sim, seria uma grande ajuda se soubéssemos qual era a ameaça

específica.

Joan lançou um novo olhar avaliador a Tobias. Depois, olhou para Lavinia um momento.

- Vou ser o mais breve possível - disse, por fim. - Eu encontrei-me sozinha no mundo, tinha os meus dezoito anos, e vi-me obrigada a

empregar-me como governanta. Aos dezanove anos, cometi o erro de entregar o meu coração a um homem, visita frequente da casa onde estava empregada. Acreditava estar apaixonada e assumia que os meus sentimentos eram inteiramente correspondidos. E fui louca ao ponto de me deixar seduzir.

- Estou a compreender - disse Lavinia serenamente.

- Ele trouxe-me para Londres e instalou-me numa pequena casa.

E tudo correu bem durante uns meses. Na minha ingenuidade, acreditava que iríamos casar. - Na boca de Joan surgiu um sorriso amargo. Descobri o meu erro quando vim a saber que ele estava noivo de uma herdeira rica. Ele nunca tivera a intenção de casar comigo.

Lavinia fechou uma das mãos em punho.

- Homem miserável.

- Sim - disse Joan -, mas trata-se de uma história bastante comum.

Por fim, ele abandonou-me, claro. Fiquei desesperada e sem recursos.

Ele deixou da pagar a minha renda. Sabia que tinha de largar a casa no fim do mês. O meu amante nada me dera que eu pudesse empenhar ou vender e eu não pensara em obter dele senão promessas. E não podia arranjar outro lugar de governanta, pois não tinha boas referências.

- E o que é que fez, então? - perguntou Lavinia, mansamente.

Joan passou o olhar para além dela, fixando a janela, como se houvesse algo na chuva persistente que a fascinasse.

- É-me hoje difícil pensar nisso - continuou calmamente -, mas, na altura, fiquei muito deprimida. Todas as noites, durante uma semana, saía a passear junto ao rio, pensando em acabar com o pesadelo, mas acabava por voltar sempre a casa, de madrugada. Acho que me faltou a coragem.

- Antes pelo contrário - disse Lavinia firmemente -, demonstrou uma notável força de vontade, resistindo ao rio. Quando temos o espirito em baixo, é-nos difícil pensar em suportar mais um dia, para não falar numa vida inteira.

Lavinia sentiu o olhar de Tobias pousado nela, mas não olhou para ele.

joan lançou-lhe um olhar rápido, indefinido, e fixou de novo os olhos na chuva.

- Uma noite, ao voltar do rio, encontrei Fielding Dove à porta de casa, à minha espera. Eu tinha estado com ele diversas vezes, no decurso da minha ligação com o meu amante, mas não o conhecia bem. Disse-me, claramente, que estava interessado numa ligação comigo. Disse que já tinha pago a minha renda e que não tinha que me preocupar mais. Joan sorriu amargamente. - Assumi que ele pretendia ser o meu novo protector.

- E o que é que fez? - perguntou Lavínia.

- Custa-me a crer, agora, mas, não sei como, recuperei o meu orgulho. Disse-lhe que não andava à procura de um amante, mas que muito apreciaria um empréstimo que prometia pagar-lhe o mais brevemente possível. Para meu espanto, fez que sim com a cabeça e perguntou-me em que tencionava eu aplicar os fundos.

Tobias sentou-se numa cadeira, um pouco pesadamente.

- E Dove emprestou-lhe o dinheiro.

- Sim - disse Joan, sorrindo animosamente. - E aconselhou-me a investir. Coloquei o dinheiro num empreendimento imobiliário que ele me recomendou. Encontrámo-nos e conversámos muitas vezes, enquanto se construíam as casas e as lojas. Considerava Fielding um bom amigo. Quando as casas foram vendidas, uns meses depois, eu recebi o que me pareceu ser, na altura, umapequena fortuna. Enviei de imediato uma mensagem a Fielding, informando-o de que estava em condições de lhe pagar.

- Como é que ele reagiu? - perguntou Lavinia.

- Veio ter comigo e pediu-me em casamento. - Nos olhos de joan havia sombras de memórias. - É claro que, nessa altura, eu estava francamente apaixonada por ele e aceitei o seu pedido.

Lavinia sentiu a mistura húmida nos olhos, fungando duas vezes, numa vã tentativa de evitar que as lágrimas lhe escorressem pela cara. Tobias e Joan olharam para ela.

- Desculpe, Mrs. Dove, mas a sua história é muito tocante - disse Lavinia.

Puxou um lenço do bolso e limpou rapidamente as lágrimas. Depois, assoou- se o mais discretamente possível.

Baixou o pequeno quadrado de tecido bordado e viu que Tobias March a olhava com ar irónico. Lançou-lhe um olhar de desprezo. Obviamente, o homem não possuía uma sensibilidade refinada. Porém, isso já ela sabia, recordou a si própria, metendo de novo o lenço no bolso.

- Desculpe-me, Mrs. Dove, mas devo concluir que Holton Félix a ameaçou de divulgar a sua ligação anterior ao casamento? Joan baixou o olhar para as mãos e aquiesceu.

- Sim.

- Que miserável! - exclamou Lavinia.

- Hum! - fez Tobias.

Lavinia lançou-lhe, de novo, um olhar reprovador, mas ele não lhe prestou atenção.

- Sem ofensa, minha senhora, não vejo bem como é que essa ameaça podia provocar grande escândalo - disse ele. - No fim de contas, o caso terminara havia mais de vinte anos.

Joan ficou tensa.

- A minha filha está noiva do herdeiro Colehester, Mr. March. Se sabe alguma coisa dessa família, terá conhecimento de que a avó, Lady Colehester, controla a maior parte da fortuna e é muito rigorosa e arrogante. O mais pequeno indício de escândalo era mais do que suficiente para ela convencer o neto a cancelar o casamento.

Tobias encolheu os ombros.

- Nunca iria pensar que um escândalo tão antigo pudesse causar muita agitação.

Joan estava hirta, na poltrona.

- Só eu posso ajuizar do risco que o caso envolve. O meu marido ficou deleitado com a aliança com os Colehester. Não me esqueço da felicidade que transparecia nos seus olhos, enquanto dançava com Maryanne, na festa de noivado. E, quanto à minha filha, ela está profundamente apaixonada. Não vou permitir que nada se interponha ao seu casamento, compreende, Mr. March?

Lavinia não deu tempo a Tobias de responder.

- O senhor tem todo o direito de ter dúvidas, mas peço-lhe que as guarde para si. O que é que o senhor sabe acerca das alianças matrimoniais que se estabelecem em certos meios.

Para surpresa de Lavinia, Joan sorriu.

- Eu compreendo - murmurou Joan.

- Asseguro-lhe, Mrs. Dove - adiantou Lavinia, pressurosa -, que o facto de Mr. March não frequentar os círculos mais exclusivos não o inibe de bem conduzir as suas averiguações. - Lavinia olhou para Tobias:

- Não é assim?

- De modo geral, consigo descobrir o que preciso de saber - disse Tobias.

Lavinia tornou a dirigir-se a Joan.

- E garanto-lhe que vamos pôr-nos em campo imediatamente.

- E por onde tenciona começar? - perguntou Joan, nos olhos uma genuína curiosidade.

Lavinia levantou-se e dirigiu-se à mesinha onde Tobias colocara o quadrinho em cera, examinando-o de novo, notando os finos pormenores.

- Isto não é, de modo nenhum, obra de um amador - disse ela, lentamente. - Acho que devemos começar por pedir a opinião a alguns artistas que trabalham em cera. Todos eles têm estilos e métodos dife rentes. Com um pouco de sorte, vamos encontrar algum que reconheça as particularidades desta estatueta.

Tobias olhou para ela com mal disfarçada surpresa.

- Isso não é má ideia. Lavinia ficou calada.

- E como é que vai descobrir os nomes desses peritos em escultura de cera? - perguntou joan, sem tomar consciência da peça que se representava à sua volta.

Lavinia passou um dedo lentamente pela moldura do quadro.

- Vou, para já, aconselhar-me com a minha sobrinha acerca disto. Emeline, desde que chegou a Londres, tem percorrido museus e galerias de todo o género e deve saber quais os que exibem esculturas em cera.

- Muito bem - disse Joan, levantando-se graciosamente e ajustando as luvas. - Vou deixá-la entregue à sua tarefa - acrescentando, após uma pausa: - A menos que me queira perguntar mais alguma coisa?

- Apenas uma coisa - disse Lavinia, hesitando, em busca de coragem. - Mas receio que me julgue presunçosa.

Joan pareceu ligeiramente divertida.

- Na realidade, Mrs. Lake, não consigo imaginar pergunta mais presunçosa do que a do motivo por que estava a ser vítima de chantagem.

- Bem, a questão é que a minha sobrinha tem recebido um certo número de convites, graças a Lady Wortham, mas Emeline necessita de vestidos novos, para continuar a acompanhar Priscilla. Dispor-se-ia a ter a bondade de me indicar o nome da sua modista.

Lavinia quase que advinhava que Tobias estava a erguer os olhos para o tecto, mas ele teve o bom senso de ficar calado.

Joan mirou Lavinia com ar pensativo.

- Madame Francesca é uma modista muito cara.

- Bem, quanto a isso, tenho um plano para financiar um ou dois vestidos.

- E devo avisá-la de que ela só aceita novas clientes por recomendação.

A esperança de Lavinia esboroou-se.

- Compreendo.

Joan dirigiu-se para a porta.

- Mas terei muito prazer em recomendá-la a si.

Pouco depois, mostraram o pequeno trabalho em cera a Emeline.

- Eu começaria por contactar Mrs. Vaughn, em Hal Crescent Lane - disse Emeline, examinando o quadro com expressão perturbada. Ela é, de longe, a melhor artista em cera de Londres.

- Nunca ouvi falar dela - disse Lavinia.

- Possivelmente, porque ela não tem muitas encomendas.

- Porquê? - perguntou Tobias.

Emeline ergueu os olhos do quadro.

- Vão perceber porquê, quando virem os trabalhos dela.

- Felicito-a por ter conseguido arranjar uma cliente que lhe pague as despesas que este caso comporta - disse Tobias March, todo refastelado no assento da carruagem de aluguer. - É sempre agradável saber que, quando acabamos uma missão, podemos apresentar a conta a alguém.

- Mas estive quase a perdê-la, por sua causa - disse Lavinia, acon chegando-se melhor na resistente capa de lã, para se resguardar da fria humidade. - O senhor não podia ter sido mais grosseiro!

Tobias sorriu com ar de froça.

- Ao menos, não me pus a perguntar-lhe o nome da modista. Lavinia ignorou o comentário, olhando intencionalmente pela janela da carruagem.

Londres parecia uma aguarela com inúmeras sombras cinzentas. As pedras da calçada brilhavam, encharcadas, sob um céu de chumbo. A chuva constrangera muita gente a não sair de casa e as poucas pessoas que se aventuravam a desafiar o tempo corriam de porta em porta para se abrigarem. Os cocheiros encolhiam-se nas boleias, embrulhados nos capotes de várias abas, os chapéus enterrados até às orelhas.

- Quer ouvir um conselho? - perguntou Tobias em tom suave.

- De si? Não estou particularmente interessada.

- Mesmo assim, vou dar-lhe um de bom senso, o qual deve tomar em consideração, se pretender seguir nesta profissão.

Involuntariamente, Lavinia afastou a sua atenção das ruas sombrias. Ele tinha experiência, havia que reconhecer, pensou ela.

- Que conselho é que me quer dar?

- Não é boa ideia chorar quando um cliente lhe conta a história da sua vida, pois isso dá a impressão de que acredita em tudo o que ele diz. E, segundo a minha experiência, os clientes, geralmente, têm tendência a mentir. Não há, por isso, razão para os encorajar a mentir, perante as lágrimas.

Lavinia ficou de olhos abertos, espantada.

- Quer com isso dizer que acha que Mrs. Dove nos mentiu? Tobias encolheu os ombros.

- Os clientes mentem sempre. Se continuar nesta profissão, vai ver que é coisa comum.

Lavinia agarrou as abas da capa com força.

- Não acredito, nem um bocadinho, que Mrs. Dove tenha inventado aquela história.

- Como é que pode saber? Lavinia soergueu o queixo.

- Tenho um apurado sentido de intuição.

- Tenho de acreditar na sua palavra.

Ele tinha o condão de a irritar sempre, pensou Lavinia.

- Permita-me que lhe diga, caro senhor, que os meus pais eram ambos peritos em mesmerismo e que eu, desde tenra idade, fui assistente deles. Depois da morte deles, durante algum tempo ganhei a minha vida dispensando tratamentos terapêuticos e a intuição é um requisito indispensável nesse campo. Na verdade, o meu pai não se cansava de afirmar que eu tinha uma queda para aquela arte.

- Com os demónios, associei-me a uma praticante de magnetismo animal. O que é que eu fiz para merecer isto?

Lavinia sorriu vagamente.

- Ainda bem que acha graça, mas isso não altera o facto de que acredito na história de Mrs. Dove - disse Lavinia, acrescentando, depois de uma pausa: - Pelo menos, na maior parte dela.

Tobias tornou a encolher os ombros.

- Concedo que, possivelmente, ela não inventou a história toda. Acho que ela é bastante esperta para saber que, tecendo o factual com a ficção, uma história soa mais genuína.

- É muito cínico, Mr. March.

- Isso é uma virtude, nesta profissão.

Lavinia semicerrou os olhos.

- Afianço-lhe uma coisa: ela não mentiu, ao referir-se ao amor pelo marido.

- Se se mantiver na profissão por algum tempo, vai aperceber-se de que todos os clientes mentem quando falam de amor.

A carruagem parou, antes de ela poder retorquir. Tobias abriu a porta e preparou-se para descer, mas não desceu prontamente para a rua, notou ela, antes descendo do veículo com o ar de quem lhe dói alguma coisa. Porém, quando se voltou para a ajudar a descer, tinha o rosto impassível.

Um ligeiro choque de alerta apossou-se dela quando sentiu a firmeza da mão dele. Permitiu que ele a conduzisse para o abrigo de uma porta e tentou disfarçar o sentimento de inquietação, fingindo interessar-se atentamente pelas redondezas.

Half Crescent Lane era uma apertada travessa em curva. Torcia-se por um estreito vale, densamente sombrio, formado por indistintas paredes de pedra. Não era nunca, decerto, um local ensolarado, mas, num dia como aquele, estava envolto em trevas lúgubres.

Tobias bateu à porta firmemente. Soaram passos lá dentro. Um mo mento depois, apareceu uma governanta velha que pousou o olho estrábico em Tobias.

- O que é que quer? - inquiriu a alta voz, como fazem as pessoas duras de ouvido.

Tobias piscou os olhos e deu um passo atrás.

- Queremos falar com Mrs. Vaughn.

A governanta pôs uma mão em concha no ouvido.

- O quê?

- Estamos aqui para falar com a escultora de cera - disse Lavinia, pronunciando as palavras pausadamente.

- Têm de comprar bilhete - anunciou a governanta com voz rachada. - Mrs. Vaughn já não deixa ninguém entrar na galeria sem pagar bilhete. Havia muita gente que se aproveitava, se querem saber. Diziam que tinham uma encomenda, mas, depois de estarem cá dentro, punham-se a ver as esculturas e, a seguir, iam-se embora.

- Nós não viemos ver as esculturas - disse Lavinia elevando a voz. - Viemos falar-lhe de outro assunto.

- já tenho ouvido muitas desculpas, mas, agora, nenhuma serve. Ninguém entra sem pagar bilhete.

- Está certo - disse Tobias, depositando umas moedas na mão da mulher -, acha que isso chega para dois bilhetes?

A governanta olhou para as moedas.

- Chega sim, meu senhor, chega bem - disse ela, recuando para os deixar entrar.

Lavinia entrou no pequeno e mal iluminado hall, seguida por Tobias. Quando a porta se fechou, as sombras intensificaram-se.

A governanta avançou por um escuro corredor.

- Por aqui, façam o favor.

Lavinia olhou para Tobias. Ele fez-lhe sinal com a mão, indicando-lhe que seguisse à frente dele. Sem uma palavra, seguiram a governanta até ao fim do corredor, onde ela abriu uma porta, com um floreado teatral.

- Façam o favor de entrar - berrou ela. - Mrs. Vaughn vai aparecer dentro de momentos.

- Muito obrigada - disse Lavinia, entrando na debilmente iluminada sala e parando bruscamente, ao ver uma série de gente ali reunida. - Não sabia que Mrs. Vaughn tinha tantos visitantes.

A governanta deu uma risada e fechou a porta, deixando Lavinia e Tobias na sala abarrotada de gente.

Pesados reposteiros tapavam as duas estreitas janelas, impedindo a entrada da pouca luz que poderia penetrar por elas. A única iluminação provinha de duas velas de um grande e cinzelado candelabro colocado em cima do piano. Havia uma acentuada frieza no ambiente, a qual parecia emanar das densas sombras em redor dos visitantes. Lavinia deu-se conta de que não havia lume na lareira.

Os outros visitantes estavam uns de pé e outros sentados, nas mais diversas posições. Um homem, com um laço elegante, lia serenamente recostado numa cadeira, embora não tivesse por perto nenhuma vela que incidisse sobre a página. Tinha as pernas negligentemente cruzadas nos calcanhares.

Uma mulher, confortavelmente gorda, com um vestido de mangas compridas, orlado de um franzido branco, ocupava o banco do piano. Sobre o vestido tinha um grande avental branco. O cabelo grisalho estava apanhado num grosso nó, sob uma touca de laços. Os dedos erguiam-se no ar por sobre as teclas, como se tivesse acabado de tocar uma peça e se preparasse para iniciar outra.

Junto da lareira apagada estava sentado um homem com um cálice de brandy na mão. Perto dele, dois outros cavalheiros estavam entregues a uma partida de xadrez.

Havia uma quietude sinistra na comprida e estreita sala. Nenhuma cabeça se voltara para olhar os novos visitantes. Ninguém se mexia. Ninguém falava. O piano permanecia silencioso. Era como se toda a gente na sala tivesse sido congelada para sempre num momento de civilizada actuação.

- Santo Deus! - exclamou Lavinia.

Tobias passou por ela e dirigiu-se para junto dos jogadores da interminável partida de xadrez.

- Espantoso! - disse ele. - Tenho visto muitos trabalhos em cera mas nunca vi nenhum tão próximo da vida real como estes.

Lavinia aproximou-se lentamente da figura que lia um livro. A cabeça de cera estava inclinada num ângulo realista, os olhos de vidro parecendo absortos no que estava impresso na página. Havia um ligeiro franzido nas sobrancelhas e nas mãos de veias marcadas surgiam finos pêlos.

- Só lhes falta falar - murmurou Lavinia. - Noto que as veias têm um leve tom azul. E repare na palidez da cara daquela mulher. É inquietante, não acha?

- A sua sobrinha disse-nos que muitos artistas usam roupas e jóias e outros artigos verdadeiros, para completar o efeito de uma imagem viva. - Tobias aproximou-se de uma mulher num vestido à moda. Os dedos da mão da figura brineavam negligentemente com um leque. A mulher parecia sorrir divertida. - Mrs. Vaughn, porém, domina a sua arte com mestria, é uma artista que não precisa de utilizar truques. Estas estátuas estão magnificamente modeladas.

A figura de avental e de touca, sentada ao piano, fez uma vénia.

- Obrigada, caro senhor - disse ela com uma alegre risada. Lavinia teve um ligeiro tremor, recuando um passo e embatendo num dandy que olhou para ela de sobrolho franzido. Lavinia saltou para o lado, como se a figura tivesse erguido um braço para a agarrar. No movimento, quase deixou cair o pacote que tinha nas mãos. Conseguiu recuperar o equilíbrio, sentindo-se tola. Depois, sacudiu as abas da capa e compôs um sorriso polido.

- Mrs. Vaughn, presumo? - perguntou ela vivamente.

- Sim, sim.

- Eu sou Mrs. Lake e este senhor é Mr. March.

Mrs. Vaughn ergueu-se do banco do piano, o sorriso fazendo-lhe aparecer covinhas na cara.

- Bem-vindos à minha sala de exposições. Convido-os a examinar as minhas figuras o tempo que quiserem.

Tobias inclinou a cabeça.

- As minhas felicitações, minha senhora. Tem aqui uma colecção que é uma maravilha.

- A sua admiração é extremamente gratificante, meu caro senhor - disse Mrs. Vaughn, olhando para Lavinia com um brilho divertido nos olhos - mas algo me diz que Mrs. Lake tem uma opinião mais reservada.

- Não, de modo nenhum - disse Lavinia muito depressa. - Simplesmente, os seus trabalhos causam uma impressão. inesperada. Melhor dizendo, surpreendente. Quero dizer, é como se a sala estivesse cheia de gente que está. bem. que está.

- Gente que não está propriamente viva, mas que ainda não está propriamente morta, é isso que quer dizer?

Lavinia sorriu debilmente.

- A sua perícia é impressionante.

- Muito obrigada, Mrs. Lake, mas quero crer que a senhora é uma daquelas pessoas que não se sente muito à vontade perante as minhas obras.

- Oh, não, de nenhum modo, só que as suas figuras parecem mesmo vivas.

Mesmo cadáveres, seria uma expressão mais adequada para as descrever, pensou Lavinia, mas não queria parecer crítica. A mulher era, apesar de tudo, uma artista e sabia-se como os artistas são excêntricos e temperamentais.

As covinhas tornaram a surgir na cara de Mrs. Vaughn, a qual fez um gesto tranquilizador com a mão.

- Não tenha receio de me ofender, Mrs. Lake, eu sei bem que o meu trabalho não agrada a toda a gente.

- Mas é, sem sombra de dúvida, um trabalho interessante - disse Tobias. - Contudo, tenho a impressão de que não pretendem encomendar-me um retrato de família, pois não?

- É muito perspicaz, Mrs. Vaughn - disse Tobias, observando o elegantemente modelado pescoço da mulher do leque. - É talvez por isso que as suas figuras se assemelham tanto à vida.

Mrs. Vaughn soltou outra risada bonacheirona.

- Orgulho-me de alguma capacidade para ver a verdade que jaz sob a superfície. E tem toda a razão, essa capacidade é a chave para executar um retrato realista. Porém, é necessário mais do que isso para imprimir a impressão de vida a uma figura. Exige muito trabalho de pormenor: as pequenas linhas aos cantos dos olhos, a adequada implantação das veias, de modo a que pareçam pulsar com sangue. Esse género de coisas.

Tobias aquiesceu com a cabeça.

- Sim, compreendo.

Lavinia pensou no extraordinário grau de pormenor do quadro de cera que sobraçava e ficou muito tensa. E se a sorte os tivesse conduzido directamente ao assassino? Através da sala, cruzou o olhar com Tobias. Ele abanou a cabeça ligeiramente.

Lavinia respirou fundo para se descontrair. Ele tinha razão. Era demasiada coincidência terem vindo ter com a assassina para a interrogarem acerca da ameaça de morte que ela enviara. Mas, afinal, quantos peritos em cera haveria em Londres? Não podiam ser muitos. E Emeline tinha colocado Mrs. Vaughn, sem hesitação, à cabeça da lista dos mais hábeis.

Como se tivesse lido o pensamento de Lavinia, Mrs. Vaughn olhou para ela com uma expressão de compreensão, sorrindo abertamente.

Lavinia afastou as teias de inquietação que lhe cobriam os sentidos. Que se passava com ela? Estava a deixar o caos apossar-se do seu pensamento. Era impossível imaginar aquela pequena mulher, cheia de bonomia, no papel de assassina.

- Nós viemos aqui, justamente, para a consultar a respeito disso disse, por fim, Lavinia.

- A respeito dos pormenores artísticos? - perguntou Mrs. Vaughn radiante. - Fascinante. Não há nada que eu mais goste de discutir do que a minha arte.

Lavinia colocou o quadro em cima de uma mesa próxima.

- Ficar-lhe-emos muito gratos, se quiser ter a bondade de examinar este trabalho e dizer-nos o que souber a respeito do artista que o criou.

- O trabalho não está assinado? - exclamou Mrs. Vaughn, aproximando- se da mesa. - Coisa rara.

- Quando examinar o quadro vai perceber por que é que o artista não o assinou - disse Tobias secamente.

Lavinia desatou o fio que atava o tecido. O embrulho abriu-se revelando a cena desagradável.

- Oh! - Mrs. Vaughn retirou um par de óculos do bolso do avental e colocou-os na ponta do nariz, sem tirar os olhos do quadro. - Oh!

Linhas de perturbação surgiram-lhe entre as sobrancelhas. Agarrou no quadro e atravessou a sala com ele, para o colocar em cima do piano. Lavinia seguiu-a, ficando atrás de Mrs. Vaughn e vendo as velas do candelabro a lançarem um raio de luz sobre a sala de baile em miniatura e sobre a mulher morta de vestido verde.

- Posso considerar que isto não pretende representar uma cena de uma peça ou de um romance? - perguntou Mrs. Vaughn, sem afastar os olhos do quadro.

- Considera muito correctamente - disse Tobias, vindo juntar-se a Lavinia. Nós achamos que se trata de uma ameaça e queríamos saber quem foi o artista que executou esse trabalho.

- Claro - disse Mrs. Vaughn, suspirando. - Claro, compreendo perfeitamente esse vosso desejo. Há muita malevolência nesta pequena peça. Muita raiva. Muito ódio. Foi-lhe enviado a si, Mrs. Lake? Não, não pode ser. O cabelo é louro, a tornar-se prata. A senhora é bastante mais jovem e o seu cabelo é ruivo, não é?

Tobias lançou um olhar enigmático ao cabelo de Lavinia.

- É muito ruivo.

Lavinia fez-lhe uma carranca.

- Não é altura para comentários pessoais.

- Era apenas uma observação.

Era mais do que uma observação, pensou Lavinia. Seria Tobias um daqueles homens que detestam mulheres de cabelo ruivo? Se calhar era um daqueles que acreditam na parvoíce do temperamento fogoso e intempestivo das ruivas.

Mrs. Vaughn ergueu o olhar do quadro.

- Como é que este quadrinho lhes foi parar às mãos?

- Foi colocado à porta de uma pessoa nossa amiga - disse Tobias.

- É estranho - Mrs. Vaughn hesitava. - Tenho de reconhecer que a peça está muito elegantemente modelada, apesar do seu carácter extremamente desagradável.

- Já alguma vez viu trabalhos com esta qualidade? - perguntou Lavinia.

- Para além dos meus trabalhos, quer a senhora dizer? Digo-lhe que não - Mrs. Vaughn retirou lentamente os óculos do nariz. - Nunca vi. E devo dizer-lhe que faço questão de visitar regularmente as galerias e as exposições dos meus concorrentes. Lembrar-me-ia desta perícia, se já tivesse topado com ela.

- Devemos assumir, então, que o artista não se expõe ao público? - perguntou Tobias.

Mrs. Vaughn franziu o sobrolho.

- Eu não afirmaria isso, caro senhor. Seria muito difícil a um artista com este talento não exibir a sua arte. Todo o artista sente a necessidade de mostrar a sua obra e de a ver apreciada.

- E dificilmente pode ganhar a vida se o não fizer - disse Lavinia. Mrs. Vaughn abanou a cabeça vivamente.

- Não é meramente uma questão de dinheiro, Mrs. Lake. Se o artista for rico, não é o dinheiro que lhe interessa.

- Compreendo - disse Lavinia, olhando para os fascinantes trabalhos em redor.

- Não existem, de facto, hoje em dia, muitos artistas peritos em modelar a cera - continuou Mrs. Vaughn. - Receio bem que o trabalho em cera esteja a declinar rapidamente do nível de verdadeira arte para um tipo de entretenimento que atrai, principalmente, crianças em idade escolar, sedentas de sangue, e pequenos aprendizes. E culpo, por isso, o que se passou em França. Todas aquelas máscaras de morte que Madame Tussaud se viu obrigada a fazer, depois da acção da guilhotina. Isso im primiu no público um gosto pela arte que hoje produz terrível inquieta ção a quem a vê.

Como se o trabalho dela não produzisse o mesmo género de inquietação, pensou Lavinia.

- Muito obrigada por nos ter dado a sua opinião acerca deste trabalho - disse Lavinia, pegando no quadro e começando a embrulhá-lo.

- Tinha a esperança de que nos indicasse alguma pista, mas, pelo que parece, temos de procurar noutro lado.

A cara redonda de Mrs. Vaughn perdeu muito da bonomia que lhe brilhava nos olhos.

- Espero que sejam prudentes.

No rosto de Tobias surgiu uma expressão de interesse.

- Que quer dizer com isso, minha senhora?

Mrs. Vaughn observou Lavinia a dar um nó no embrulho.

- Quem quer que modelou esse quadro tinha a clara intenção de induzir terror em quem o recebeu.

Lavinia recordou o pavor que vira no olhar de Mrs. Dove.

- Se era essa, de facto, a intenção do artista, garanto-lhe que foi bem sucedido.

Mrs. Vaughn manteve a expressão grave.

- Lamento não poder indicar-vos o nome do artista que compôs esse quadro, mas digo-vos que procuram alguém embuído de enorme desejo de vingança, ou mesmo de castigo. Em minha opinião, só existe uma coisa capaz de provocar semelhante ódio.

Lavinia ficou tensa.

- E o que é, Mrs. Vaughn?

- O amor - Mrs. Vaughn sorriu de novo, o brilho nos olhos. O amor é, na verdade, a mais perigosa das emoções.

Toda a gente, hoje em dia, tem fortes convicções acerca do amor, pensou Lavinia.

 

- Não sei o que se passa consigo, Mr. March - declarou Lavinia, ao transpor a porta do estúdio, pouco depois -, mas acho que preciso de qualquer coisa de natureza medicinal para apaziguar os nervos. Mrs. Vaughn e a sua impressionante colecção deixaram-me em péssimo estado.

Tobias fechou deliberadamente a porta e olhou para ela.

- Por uma vez, Mrs. Lake, estamos completamente de acordo.

- Acho que, na circunstância, um bule de chá não basta. Precisamos de um tónico mais forte.

Atravessou a sala e abriu um armário de madeira de carvalho, revelando um frasco de vidro, quase cheio.

- Estamos com sorte - disse ela, agarrando no frasco. - Acho que encontrei um remédio para o que nos achaca. Se se ocupar da lareira, eu preparo dois copos.

- Muito obrigado.

Tobias dirigiu-se para a lareira e ajoelhou-se com dificuldade, uma expressão tensa na cara. Lavinia franziu a testa, o frasco de xerez inclinado para um cálice.

- Magoou-se na perna?

- Um pequeno passo em falso - disse ele, concentrado em atiçar o lume. - A perna sarou bem, mas dias como o de hoje trazem-me à mente o erro que cometi.

- Erro?

- Não há razão para se preocupar, Mrs. Lake. - Terminada a tarefa, Tobias agarrou-se ao lintel da lareira e ergueu-se. Quando se voltou para Lavinia, nada lhe transparecia no rosto. - Isto não é nada, garanto-lhe.

Era evidente, para Lavinia, que ele não lhe queria dar mais expli cações e, na verdade, ela não tinha nada a ver com o estado da perna dele. Além disso, não tinha nenhuma razão para sentir o mínimo de simpatia por Tobias March. Contudo, não deixava de experimentar uma certa preocupação.

Ele devia ter visto algo nos olhos dela, pois os dele endureceram, irritados.

- O xerez dará conta do problema.

- Não há motivo para se irritar comigo - disse Lavinia, enchendo o segundo cálice. - Eu estava, apenas, a ser bem educada.

- Entre nós, minha senhora, não há necessidade de delicadezas.

Somos sócios, se bem se lembra.

Lavinia estendeu-lhe um dos cálices.

- Existe alguma regra na profissão que estabeleça que os sócios não devem ser bem educados?

- Existe, sim - disse Tobias, bebendo uma boa porção do cálice numa golada. - Acabo eu de a inventar.

- Estou a perceber.

Lavinia bebeu um gole do seu cálice. A calidez do xerez teve um efeito revigorante no seu espírito e no seu temperamento. Se o homem não gostava que se preocupassem educadamente com ele, não era ela que iria perder tempo com o assunto. Dirigiu-se, decidida, para uma das poltronas junto à lareira e deixou-se cair nela com um suspiro de alívio. O calor das chamas secou a humidade gelada que tinha colada ao corpo desde que saíra do estabelecimento de Mrs. Vaughn.

Tobias sentou-se na grande poltrona em frente dela, sem esperar por convite.

Ficaram sentados em silêncio durante alguns minutos, saboreando o vinho dos cálices. Tobias pôs-se a esfregar a perna. Passado algum tempo, Lavinia começou a ficar inquieta.

- Se a perna lhe dói muito posso aliviar-lhe a dor com um tratamento de mesmerismo.

- Nem pense nisso - disse ele. - Não quero ofendê-la, Mrs. Lake, mas não tenciono, de modo nenhum, permitir que me ponha em transe.

Lavinia ficou tensa.

- Como quiser, mas não há razão para ser rude.

Tobias compôs uma expressão de contrição.

- Queira desculpar, minha senhora, mas eu não acredito nos chamados poderes do mesmerismo. Os meus pais eram cientistas e concordavam com os resultados da investigação conduzida por Franklin e Lavoisier. A ideia de induzir transes terapêuticos pelo poder do olhar uu com magnetes é completamente absurda. E as demonstrações desse género de coisas só servem para entretenimento de ignorantes.

- Ora! O inquérito foi realizado há mais de trinta anos, e em Paris. Se fosse a si, não lhe daria muito crédito. Terá notícia de que isso não impediu o crescente interesse do público pelo magnetismo animal.

- Tenho notícia desse facto - disse Tobias -, o qual nada abona quanto à inteligência do público em geral.

Se fosse sensata, deixaria a conversa morrer ali, pensou Lavinia, mas não conseguiu resistir à curiosidade.

- Disse-me que os seus pais eram cientistas?

- O meu pai realizava experiências em electricidade, entre outras coisas. E a minha mãe era douta no campo da química.

- Que interessante. Eles continuam a fazer experiências.

- Não, morreram ambos numa explosão do laboratório. Lavinia conteve a respiração.

- Que coisa horrível!

- Pelo que pude avaliar pela última carta que me escreveram, acho que tinham tido a ideia de combinar os dois campos de pesquisa, decidindo realizar uma série de experiências envolvendo certas substâncias voláteis e um aparelho eléctrico. O que se revelou desastroso.

Lavinia estremeceu.

- Felizmente o senhor não ficou ferido na explosão.

- Na altura eu estava em Oxford. Fui a casa para os enterrar.

- Voltou a Oxford depois da morte deles.

- Isso não foi possível - disse Tobias, apertando o cálice nas mãos. A explosão destruiu a casa e não havia dinheiro. Os meus pais tinham utilizado todos os seus recursos no financiamento da sua última grande experiência.

- Compreendo - disse Lavinia, recostando a cabeça no espaldar da poltrona. - Trágica história, a sua!

- Tudo aconteceu há muito tempo - Tobias bebeu outra golada de xerez e baixou o cálice. - E os seus pais?

- Foram convidados para fazer uma série de demonstrações na América e aceitaram. O navio em que seguiam afundou-se. Ninguém se salvou.

- Lamento a sua perda - disse ele, com voz sentida, depois perguntando: - Disse-me que os assistia, nas demonstrações. Por que é que não estava com eles?

- Eu tinha acabado de me casar e a pessoa que tinha convidado os meus pais não se dispôs a pagar mais duas passagens. E, de qualquer modo, John não estava muito interessado. Ele era poeta, compreende, e achava que a América não se coadunava com o exercício de uma séria reflexão metafísica.

Tobias aquiesceu com a cabeça.

- E tinha razão. Quando é que o seu marido morreu?

- Ano e meio depois de casarmos. Sucumbiu a umas febres.

- Os meus sentimentos.

- Obrigada.

Cerca de dez anos após a morte do marido, a doce e gentil recordação que Lavinia tinha de John tomara o carácter de um sonho antigo, pensou ela.

- Desculpe a pergunta - disse Tobias -, mas o seu marido chegou a publicar alguma coisa?

Lavinia soltou um suspiro.

- Não, embora a sua obra fosse brilhante.

- Claro.

- como acontece com frequência com os génios, não era devidamente apreciada.

- Tenho ouvido dizer que é caso comum - disse Tobias que, após uma pausa, adiantou: - Posso saber como é que sobreviviam financeiramente? O seu marido tinha alguma outra fonte de rendimento?

- Durante o nosso casamento, era eu que suportava a casa, com os tratamentos de mesmerismo. Depois da morte de john, mantive-me na profissão alguns anos.

- Por que é que a abandonou?

Lavinia bebeu um gole de xerez, baixando depois o cálice.

- Houve um incidente infeliz, numa pequena aldeia do Norte.

- Que género de incidente?

- Não gosto de falar nisso. Basta que lhe diga que decidi mudar de profissão.

- Compreendo. E quando é que Emeline passou a viver consigo?

- Há seis anos, quando os pais dela morreram num acidente de carruagem - Era altura de mudar de assunto, pensou Lavinia. - Emeline disse-nos que, quando víssemos os trabalhos de Mrs. Vaughn, compreenderíamos por que é que ela não tinha muitas encomendas, e eu acho que compreendo o que ela queria dizer.

- Ah, sim?

- Há um género de arte que é demasiado realista. Acho que as esculturas dela são. - Lavinia hesitou, em busca do termo apropriado -, acho que são inquietantes.

- Talvez seja da própria natureza da cera. - Tobias olhou para o resto de xerez no cálice com ar pensativo. - É um material que não é inatamente frio como a pedra ou o gesso, nem, tão- pouco, permite uma imagem a duas dimensões, como a pintura. E nada se parece tanto com a pele humana como a cera, quando bem modelada e adequadamente colorida.

- Reparou que Mrs. Vaughn vai ao extremo de usar pêlos verdadeiros nas mãos, nas pálpebras e nas sobrancelhas?

- Sim, dei por isso.

- O trabalho dela é exímio, mas eu não desejaria ter uma das suas figuras aqui sentada - Lavinia estremeceu. - Uma coisa é ter um retrato de um avô, pendurado sobre a lareira, e outra coisa é ter uma escultura dele, de tamanho natural, sentada numa cadeira, no nosso estúdio.

- Tem toda a razão - disse Tobias, olhando para o lume, meditativo. As chamas preencheram o silêncio que se estabeleceu entre eles. Passado um pouco, Lavinia levantou-se e foi buscar o frasco de xerez ao aparador. Tornou a encher os cálices e tornou a sentar-se. Desta vez, deixou o frasco em cima da mesa, próximo dela.

Lavinia pôs-se a pensar na circunstância de ter ali Tobias com ela, no estúdio. Nada tinham em comum, disse para consigo. A não ser que levasse em conta um chantagista assassinado, um diário roubado e um acordo de trabalho em comum que em breve terminaria.

Era, porém, difícil não levar essas coisas em conta, concluiu ela. Pouco depois, Tobias estendeu a perna esquerda no que parecia ser uma tentativa de ficar mais cómodo.

- Proponho que regressemos ao nosso problema - disse ele. - Tenho estado a pensar em como é que devemos proceder. Admira-me que Mrs. Vaughn não nos tenha podido ajudar. Toda aquela conversa a respeito do amor e do ódio foi inútil.

- É o que resta saber.

- De qualquer modo, não nos apontou nenhuma pista. Não estou muito certo de que essa história de contactarmos os donos dos museus de cera nos leve a algum lado.

- Tem uma ideia melhor? - perguntou Lavinia abruptamente. Tobias hesitou.

- Eu fiz saber aos meus informadores que estou disposto a pagar bem qualquer informação acerca do diário, mas devo confessar que, até agora, nada consegui por esse lado.

- Por outras palavras, não tem uma ideia melhor por onde começarmos.

Tobias bateu com as mãos nos braços da poltrona, erguendo-se bruscamente.

- Não - disse ele -, não tenho uma ideia melhor Lavinia olhou para ele hostilmente.

- Então, não perdemos nada em falar com os donos dos museus.

- Sim, acho que não - disse ele, agarrando-se ao rebordo do lintel e olhando para ela com uma expressão enigmática. - Mas acho que é melhor ser eu a estabelecer esses contactos sozinho.

- O quê?

Lavinia largou o cálice em cima da mesinha e levantou-se num salto.

- Não pense sequer em fazê-lo sozinho. Nem quero ouvir falar nisso.

- Lavinia, a situação está a ficar cada vez mais complicada e perigosa. Para mim, torna-se evidente que não vai ser fácil resolvê-la e não me agrada a ideia de a ver demasiado envolvida.

- Eu já estou por demais envolvida. Não se esqueça de que, para além de ter uma cliente que me paga para averiguar o caso, eu era uma das vítimas da chantagem de Holton Félix.

- Eu continuaria, evidentemente, a consultá-la e a mantê-la informada.

- Conversa fiada. Eu sei o que pretende - disse Lavinia, pondo as mãos nas ancas. - Está a tentar roubar-me a cliente, não é?

- Raios, Lavinia, não me interessa nada a sua cliente, estou é a tentar garantir a sua segurança.

- Eu sou perfeitamente capaz de tomar conta de mim própria, Mr. March. Em boa verdade, tenho vindo a fazê-lo há uns bons anos a esta parte. Isso é um truque para lançar mão à minha cliente e isso eu não vou permitir.

Ele tirou a mão do rebordo da lareira e agarrou-lhe o queixo meigamente.

- É, na verdade, a mulher mais teimosa e mais difícil que jamais conheci.

- Vindo da sua parte, tomo isso como um cumprimento. A calidez dos dedos dele deixaram-na imóvel, como que em transe. Apossou-se dela uma percepção que, na sua intensidade, era quase dolorosa. De repente, sentiu a cabeça leve.

Ele estava demasiado perto, pensou ela. Tinha de recuar e pôr alguma distância entre eles. Estranhamente, porém, não parecia conseguir motivar a vontade a fazê-lo.

- Há uma coisa que eu desejo perguntar- lhe - disse ele calmamente.

- Se está a pensar em roubar-me a cliente, pense duas vezes.

- Não tem nada a ver com joan Dove - disse ele, mantendo os dedos no queixo de Lavinia. - Quero saber se me leva a mal pelo que aconteceu em Itália.

Teria ficado de boca aberta, pensou ela, se ele não lhe estivesse a segurar no queixo.

- Não percebo.

- Ouviu bem o que eu disse.

- Não compreendo onde quer chegar - murmurou ela.

- Nesse caso, somos dois - disse ele, erguendo a outra mão e afagando-lhe a cara. - Leva-me a mal pelo que aconteceu em Roma?

- Podia, na verdade, ter conduzido o assunto de maneira menos ultrajante.

- Não havia tempo para isso. Eu expliquei-lhe que tinha sido avisado havia pouco que Carlisle tencionava actuar nessa mesma noite.

- Desculpas, eram tudo desculpas.

- E leva-me a mal por isso?

Lavinia ergueu as mãos.

- Não, eu não lhe levo a mal. Acho que podia ter procedido de maneira mais civilizada, mas reconheço que as boas maneiras não são o seu forte.

Ele passou o polegar pelo lábio inferior dela.

- Diga-me outra vez que não me leva a mal.

- Pois bem, não lhe levo a mal. Tenho consciência de que, nessa noite, se encontrava exausto.

- Exausto?

Lavinia sentia-se um pouco tonta. Demasiado xerez com o estômago vazio, certamente, pensou, humedecendo os lábios.

- Compreendi que, à sua maneira louca, chegara à conclusão de eu e Emeline corríamos algum risco. Já atribuí as culpas ao seu estado de espírito na altura - disse ela.

- E que me diz do meu estado de espírito agora?

- Como?

- Eu devo estar tão doido agora como estava naquela noite em Itália - disse ele, aproximando-se mais dela -, embora por razões muito diferentes.

Tobias colou a boca à dela.

Devia ter recuado, pensou Lavinia, mas agora era demasiado tarde. As poderosas mãos dele apertaram-lhe a cara. O beijo pareceu a Lavinia que lhe explodia pelos sentidos. Ele estreitou o enlace. Intensa sensação apossou-se dela. Mal se tinha em pé. Era como se fosse uma escultura de cera colocada demasiado perto do lume. Algo dentro dela estava a ponto de derreter. Para se suster, viu-se obrigada a apoiar as mãos nos ombros dele.

Quando a sentiu a agarrar-se, ele suspirou e envolveu-a com os braços, estreitando-a até os seios dela se esmagarem contra o peito dele.

- Deus me perdoe, não sei porquê, mas desejava fazer isto desde Itália - murmurou-lhe ele contra a boca.

As palavras não tinham nada de poético, pensou ela, mas, por qualquer razão, achou-as quase intoleravelmente fascinantes. Estava espantada com a violência das emoções que a invadiam.

- Isto é uma loucura - teria caído se não estivesse agarrada a ele. É uma completa loucura.

- Sim, é uma loucura - corroborou ele, passando-lhe a mão pelo cabelo e inclinando-lhe a cabeça por forma a beijar-lhe a orelha. - Mas

estamos ambos de acordo em que eu sou meio louco.

Lavinia ofegou, quando o sentiu a beijar-lhe o pescoço.

- Não, não, acho que é do xerez.

- Não é nada do xerez - disse ele, deslizando um joelho por entre as pernas dela.

- Tem de ser do xerez - disse ela, estremecendo sob a onda de desejo de que o sentia possuído. - Vamos, decerto, lamentar isto, quando recuperarmos do efeito do vinho.

- Não é nada do xerez - repetiu ele.

- Claro que é. Que outra. ui! - exclamou ela, retraindo-se quando ele, muito cuidadosa, mas deliberadamente, lhe mordeu o lobo da orelha. - Por Deus, que pensa que está a fazer?

- Não é do raio do xerez.

Ela já estava sem fôlego.

- Não vejo nenhuma outra razão para nos comportarmos desta estranha maneira. Como se estivéssemos realmente interessados um no outro!

Ele ergueu a cabeça bruscamente, nos olhos a irritação lutando com uma mais cálida emoção.

- Tem sempre de pôr tudo em causa?

Lavinia recuou, finalmente, o passo que pensara dever dar minutos antes. Tratou de recuperar o fôlego. Sentia as pontas do cabelo solto atrás. O lenço de pescoço soltara-se.

- Pelos vistos, nem sequer este género de coisas conseguimos fazer de maneira educada e civilizada - murmurou ela.

- Este género de coisas? É isso que chama ao que acaba de acontecer entre nós?

- Bem - disse Lavinia, ajustando um gancho no cabelo - o que é que lhe quer chamar?

- Nalguns círculos chamam-lhe paixão.

Paixão. A palavra roubou-lhe o fôlego outra vez. E, depois, a rea lidade explodiu-lhe na mente.

- Paixão? - Lavinia ardia em fúria. - Paixão? Pensou em seduzir-me para ficar com a minha cliente? É o que isto tudo quer dizer?

Uma terrível quietude invadiu o estúdio. Por momentos, ela pensou que ele não ia responder. Ele contemplou-a com um olhar impenetrável, durante o que parecia uma eternidade. Por fim, movimentou-se. Caminhou para a porta do estúdio e abriu-a, fazendo uma pausa no limiar da porta.

- Acredite, Lavinia - disse ele -, que nunca me ocorreria lançar mão de paixão ou de sedução para a influenciar, dado que é uma mulher que põe as questões de dinheiro acima de tudo.

Ela saiu para o hall e fechou a porta demasiadamente devagar. Lavinia escutou os passos dele no soalho de madeira, ficando imóvel até o ouvir sair da casa. Quando a porta da frente se fechou, sentiu-se como se tivesse saído de um transe de mesmerismo. Aproximou-se, então, da janela e ficou a olhar lá para fora, para o jardim ensopado em água, durante muito tempo.

Tobias tinha razão numa coisa, pensou ela, passado algum tempo. Não fora o xerez.

O beijo foi um erro, pensou ele, ao subir os degraus da entrada do clube. O que é que lhe passara pela cabeça?

Teve um estremecimento. O problema é que não andava a pensar claramente e permitira que a agitada amálgama de irritação, frustração e desejo levasse a melhor ao seu bom senso.

Entregou o chapéu e as luvas ao porteiro e encaminhou-se para o salão principal.

Neville estava pesadamente afundado numa poltrona, junto de uma janela, um copo de clarete na mão, a garrafa por perto. Ao vê-lo, Tobias parou, considerando se não seria melhor sair. Neville era a última pessoa que estava interessado em encontrar naquele dia. Não tinha boas notícias para lhe dar e Neville não gostava de más notícias.

Como que adivinhando, Neville ergueu a cabeça para beber e viu Tobias. As sobrancelhas negras uniram-se, numa carranca.

- Eis-vos, March. Estava à espera que aparecesse, pois quero falar consigo.

Relutantemente, Tobias mudou de direcção e atravessou o salão, indo sentar-se na poltrona em frente da de Neville.

- É um bocado cedo para o ver aqui - disse Tobias. - Entrou para fugir à chuva?

- Não, foi mais para me revigorar - retorquiu Neville, lançando um olhar significativo ao copo que tinha na mão. - Tenho de encarar uma tarefa desagradável hoje à noite.

- Que tarefa é essa?

- Decidi acabar o meu caso com Sally - disse Neville, bebendo novo trago de clarete. - Ela tornou-se muito exigente. Todas se tornam exigentes, mais cedo ou mais tarde, não é?

Tobias teve de pensar uns momentos, para o nome lhe dizer alguma coisa. Depois recordou-se de Neville se referir à actual amante.

- Ah, sim, Sally - disse Tobias, pela janela observando a chuva a cair na rua. - Pelo que me tem dito dela, diria que um par de bugigangas basta para a amaciar.

Neville soprou, em sinal de desacordo.

- Terão de ser umas belas bugigangas, e bem caras, para a convencer a terminar o caso sem cenas desagradáveis. Ela é uma gananciosa.

A curiosidade fez Tobias afastar o olhar da chuva, para observar o rosto de Neville.

- Para quê acabar com a ligação? Pensava que apreciava a companhia de Sally.

- Oh, ela é uma criatura bastante agradável - disse Neville, piscando os olhos. - Muito viva e muito criativa, se percebe o que quero dizer.

- Acho que já me tinha mencionado essas qualidades.

- Infelizmente, toda essa energia e criatividade exigem muito de um homem - disse Neville, suspirando. - Detesto admiti-lo, mas já não sou o jovem que fui. Além disso, ultimamente as exigências dela quanto a jóias tornaram-se excessivas. Ofereci-lhe uns brincos o mês passado e ela teve o desplante de me dizer que as pedras eram muito pequenas.

Sally era uma profissional, pensou Tobias. Notara, certamente, que Neville andava a ficar inquieto. Ciente de que o caso estava a chegar ao fim, apressava-se em obter do admirador tanto quanto pudesse, antes que ele a largasse.

Tobias sorriu, bem-humorado.

- Uma mulher nas condições de Sally tem de se preparar com antecedência para a reforma, pois não tem direito a pensão.

- Ela pode voltar para o bordel onde a encontrei - Neville hesitou, semicerrando os olhos. - Talvez queira tomar o meu lugar, han? Sally vai ficar livre, em busca de um benfeitor, a partir desta noite, e eu posso, pessoalmente, certificar a sua experiência na cama.

Não estava nada interessado, pensou Tobias, em herdar a amante de outro homem, por mais viva e criativa que fosse. De qualquer modo, duvidava que Sally ficasse sozinha por muito tempo. Pelos comentários que Neville fizera a respeito dela nos últimos meses, devia ser esperta.

- Pelo que me conta, não chego para ela - disse Tobias, secamente.

- Ela é um artigo de primeira qualidade, mas não tão cara como as da alta - Neville bebeu do seu clarete e baixou o copo. - Desculpe, March, não vou maçá-lo mais com este assunto. E estou muito mais interessado em saber que progressos fez. Há notícias do malvado diário?

Tobias escolheu as palavras cuidadosamente. Por experiência, sabia que os clientes eram, muitas vezes, receptivos à linguagem da caça e da pesca.

- O que lhe posso dizer é que descobri um rasto e que o cheiro se acentua.

Uma excitação febril iluminou os olhos de Neville.

- O que é que você sabe? O que é que descobriu?

- Prefiro não ser muito específico, por ora. Mas digo-lhe que espa lhei isco na água e tem havido umas mordidelas. Dê-me mais uns dias para eu agarrar o peixe e retirá-lo da água.

- Rasparta, homem, porquê tanto tempo? Temos de encontrar o raio desse diário o mais depressa possível.

É chegada a altura de correr um risco calculado, pensou Tobias.

- Se não está satisfeito com o meu trabalho, senhor, tem toda a liberdade de escolher outra pessoa para prosseguir as averiguações.

Neville ficou com uma expressão de frustração.

- Não há mais ninguém a quem possa confiar este caso e que me garanta absoluta discreção. E você sabe isso tão bem como eu.

Tobias soltou a respiração que não notara estar a reter.

- Tenha calma, senhor. Vou ter notícias para si muito em breve.

- Espero bem que sim - Neville pousou o copo vazio e ergueu-se da poltrona. - Lamento, mas tenho de sair. Tenho de ir a uma joalharia.

- Presente de despedida para Sally?

- Sim, sim. Um belo colar, modéstia à parte, que me vai custar bom dinheiro, mas acho que temos de pagar os nossos prazeres, não é?

Avisei o joalheiro que passava por lá hoje a buscá-lo e não quero correr o risco de chegar tarde.

- Qual é o risco, se chegar tarde?

Neville tornou a soprar.

- Barton contou-me que encomendou uma pregadeira de safiras ao mesmo joalheiro, para a amante, no mês passado. Negligenciou, porém, pagá-lo em devido tempo. O joalheiro, então, decidiu enviar a pregadeira a casa de Barton, onde foi entregue a Lady Barton.

Tobias esboçou um sorriso.

- Um perfeito acidente, claro.

- Foi o que afirmou o joalheiro - Neville encolheu os ombros. Seja como for, não estou disposto a correr o mesmo risco. Adeus, bom dia, March. Avise-me logo que saiba alguma coisa a respeito do diário, a qualquer hora do dia ou da noite.

- De acordo.

Neville fez uma inclinação de cabeça e dirigiu-se para a porta da frente do clube.

Tobias permaneceu sentado, observando as carruagens que passavam na rua encharcada. A melancolia lá de fora parecia passar através dos vidros da janela, envolvendo-o numa névoa cinzenta.

Era interessante pensar que uma amante pudesse ser a solução para a corrosiva inquietude que o invadia, sempre que pensava em Lavinia Lake. Mas ele sabia que não. O beijo daquela tarde confirmara-lhe o seu grande receio. Uma cama e uma mulher predisposta, cuja paixão tinha de ser comprada, não bastavam para aliviar os acessos do seu profundo desejo.

Passado pouco tempo, levantou-se e encaminhou-se para a sala de café. De caminho, agarrou num jornal abandonado numa mesa.

Crackenburne estava no seu pouso habitual, junto à lareira. Nem levantou os olhos do The Times.

- Eu vi Neville à espera, na outra sala. Ele conseguiu encurralá-lo?

- Sim - disse Tobias, deixando-se cair numa poltrona. - Mas, se não se importa, apreciaria que não empregasse essa linguagem de caça, pois isso faz-me lembrar a conversa que acabei de ter com Neville.

- E que novidades é que lhe deu?

- Digamos que dei a entender que as coisas estão a correr bem.

- E estão?

- Não, não estão, mas não vi razão para lhe dizer.

- Hum. - O jornal restolhou, nas mãos de Crackenbume. - E Neville ficou satisfeito com o seu suposto avanço?

- Acho que não, mas, felizmente para mim, ele tinha mais com que se preocupar. Ele tenciona informar, hoje à noite, a sua actual amante de que já não está interessado nos seus serviços. E foi a caminho de um joalheiro buscar uma jóia que torne, espera ele, a separação mais suportável.

- Ah, sim! - exclamou Crackenburne, baixando lentamente o jornal, uma expressão especulativa no olhar. Resta esperar que a sua última querida não venha a ter a mesma sorte que a anterior.

Tobias fez uma pausa, o jornal meio aberto nas mãos.

- O que é que quer dizer com isso?

- Há uns meses atrás, Neville separou-se de outra amante. Acho que a manteve numa casa de Curzon Street cerca de um ano, antes de se cansar dela.

- E então? Não é nada incomum um homem na posição de Neville e com o seu estatuto social manter uma amante. O contrário é que seria incomum.

- Isso é verdade, mas é um bocado estranho que uma delas se atire ao rio, poucos dias depois de ele ter rompido com ela.

- Suicídio?

- É o que dizem. Obviamente, a mulher ficou com o coração partido. Tobias dobrou o jornal lentamente e colocou-o no braço da poltrona.

- Isso é difícil de acreditar. Neville tem-me dito, e repetido, que escolhe as suas amantes entre as internas dos bordéis. Profissionais, portanto.

- Sim, na verdade.

- Essas mulheres, geralmente, não são dadas a sentimentalismos. E duvido que cometam o erro de se apaixonarem pelos homens que lhes pagam as contas.

- Sinto-me inclinado a concordar - disse Crakenburne, voltando ao jornal. - No entanto, há uns meses atrás, o que se dizia era que ela se tinha suicidado.

 

Na tarde do dia seguinte, Tobias March chegou a Claremont Lane pouco depois das duas. Preparou-se para descer mal

a carruagem parou, agarrando-se à porta quando a dor lhe subiu pela perna esquerda. Respirou fundo e a dor aliviou. Firmou-se bem e conseguiu descer para o pavimento da rua.

- Estamos com sorte - disse Anthony, descendo agilmente atrás dele. - A chuva parou.

Tobias olhou para o céu de chumbo.

- Não por muito tempo.

- Já alguma vez te disse que uma das coisas que mais admiro em ti é a tua natureza optimista? Tens o género de temperamento que faz surgir o sol onde quer que estejas.

Tobias não se dignou responder. A verdade é que estava com uma disposição terrível e tinha consciência disso. E a causa não era a dor na perna. Era um pressentimento que o invadia.

Acordara com aquela estranha sensação, extremamente desagradável. Um homem com a idade dele e com a experiência que tinha devia dominar melhor os seus sentimentos, dizia para consigo. A sua ansiedade de ver Lavinia era mais própria de um jovem da idade de Anthony, a caminho de um encontro com a namorada.

A inquietação de Tobias transformou-se em surpresa e logo em grande irritação, quando viu a outra carruagem de aluguer parada em frente da casa.

- Que raio vai ela fazer? - exclamou ele, parando.

Anthony sorriu.

- Segundo parece, a tua sócia tem os seus próprios planos para hoje.

- Diabos a levem! Eu enviei-lhe uma mensagem, esta manhã, informando-a de que estaria aqui às duas.

- Talvez Mrs. Lake não se sinta obrigada a obedecer aos teus caprichos - lançou Anthony, sem grande esperança de o apaziguar.

- A ideia de visitarmos mais museus de figuras de cera foi dela - disse Tobias, dirigindo-se para a entrada da casa. - Se lhe passou pela cabeça que eu iria permitir que ela os visitasse sozinha, mais vale perder essa ideia.

A porta do número sete abriu-se exactamente quando Tobias e Anthony chegavam ao primeiro degrau da entrada.

Lavinia apareceu, na sua familiar capa castanha de lã e de botas. Estava de costas voltadas para a rua e falava para alguém lá dentro.

- Cuidado, Emeline, esta é a melhor do lote.

Sem voltar a cabeça, Lavinia recuou cautelosamente. Tobias viu que ela pegava numa das pontas de um volumoso pacote envolto em tecido.

Um momento depois, surgiu Emeline, o lustroso cabelo preto parcialmente coberto por um chapelinho azul pálido que lhe emoldurava a cara bonita. Carregava a outra ponta do comprido objecto amortalhado.

- É muito pesada - dizia ela, olhando para baixo, a ver onde punha os pés. - Talvez fosse melhor vendermos uma das outras.

Anthony inspirou fundo. Tobias ficou especado.

Ignorante da presença dos dois homens ao fundo das escadas, Lavinia continuava a manobrar o pacote recuando.

- Nenhuma das outras peças nos rende tanto como esta - disse Lavinia. - Tredlow deu a entender que conhecia um coleccionador disposto a pagar bom preço por um Apolo em boas condições.

- Continuo a dizer que não devíamos vender esta estátua só para comprar uns vestidos.

- Tens de considerar os vestidos como um investimento, Emeline. Já te expliquei isso muitas vezes. Nenhum jovem conveniente notará a tua presença, se fores ao teatro com um vestido velho e fora de moda.

- E eu já lhe disse que um homem que não veja a pessoa que há em mim, por debaixo da roupa, tanto me faz que dê pela minha presença como não.

- Tolice. Sabes muito bem que ficarás perdida se permitires a algum homem ver a pessoa por debaixo da tua roupa, antes de estares convenientemente casada.

Emeline riu-se.

- Ela é um riacho radioso dançando à luz do sol - segredou Anthony. Tobias soltou um suspiro. Sabia perfeitament que Anthony não se referia a Lavinia.

Observou as duas mulheres a descerem os degraus. O contraste físico entre a tia e a sobrinha não podia ser mais acentuado. Emeline era alta, grácil e elegantemente formada. Lavinia era muito mais baixa e mais pequena em todas as dimensões. Tinha sido extremamente fácil mantê-la suspensa no ar, recordou ele.

- Onde é que vão? - perguntou Tobias.

Lavinia teve um pequeno estremecimento de espanto e voltou-se para o encarar. O embrulho que segurava nos braços inclinou-se precariamente. Anthony deu um salto heróico para a frente e agarrou a ponta da estátua antes dela cair nos degraus.

Lavinia abriu os olhos para Tobias.

- Veja só o que ia fazendo! Se eu tivesse deixado cair a estátua a culpa era toda sua.

- É o costume - disse Tobias polidamente.

- Prazer em vê-lo, Mr. March - exclamou Emeline com um sorriso caloroso.

- O prazer é meu, Miss Emeline. Permita-me que lhes apresente o meu cunhado, Anthony Sinclair. Anthony, Miss Emeline e a sua tia, Mrs. Lake. Acho que já te tinha falado nestas senhoras.

- Muito prazer - disse Anthony, conseguindo fazer uma pequena vénia sem largar a estátua. - Dê-me licença - acrescentou Anthony, agarrando sozinho na estátua e libertando Emeline.

- O senhor é muito rápido - disse Emeline, olhando-o prazenteiramente. - Acho que o Apolo teria agora uma racha horrível, se não tivesse corrido a socorrê-lo.

- Estou sempre pronto a ser útil a uma senhora - declarou Anthony, olhando para Emeline como se ela estivesse em cima de um pedestal, adornada de asas.

Lavinia insistia com Tobias.

- Esteve quase a causar um desastre - dizia ela. - Como se atreve a espiar uma pessoa dessa maneira?

- Eu não estava a espiar. Cheguei aqui exactamente à hora que mencionei na minha mensagem desta manhã. Recebeu essa mensagem, não recebeu?

- Recebi, sim, Mr. March. Recebi a sua ordem real. Mas, como não se preocupou em perguntar se a hora da sua visita era uma hora conveniente, não me preocupei em informá-lo de que era inconveniente.

Deliberadamente, Tobias aproximou-se dela.

- Se bem me lembro, foi a senhora que insistiu em contactarmos mais donos de museus.

- Sim, fui eu, mas surgiu algo mais importante.

Ele aproximou-se mais.

- O que é que é mais importante do que prosseguir com as averiguações?

Ela não recuou.

- Nada mais, nada menos, do que estar em jogo o futuro da minha sobrinha, Mr. March.

Emeline fez uma careta.

- Em minha opinião, isso é um exagero, tia.

Anthony olhou para ela, francamente preocupado.

- O que é que aconteceu, Miss Emeline? Em que posso ajudar?

- Duvido que possa ajudar, Mr. Sinclair - disse ela, nos olhos um brilho divertido. - O Apolo tem de ser sacrificado.

- Porquê?

- Pelo dinheiro, claro. - Emeline riu- se. - O problema é que eu fui convidada para ir ao teatro amanhã à noite, na companhia de Lady Wortham e da filha. E a minha tia Lavinia encara isso como uma oportunidade de me expor em frente de alguns cavalheiros elegíveis que, coitados, não suspeitam que ela está a lançar os olhos sobre eles.

- Estou a ver - disse Anthony, com uma expressão sombria.

- A minha tia Lavinia está convencida de que é fundamental um vestido moderno para expor a minha mercadoria da maneira mais vantajosa. E chegou à conclusão de que há que sacrificar o Apolo, para obter os fundos necessários.

- Há-de desculpar-me, Miss Eveline - disse Anthony com grave galanteria -, mas um homem que não se aperceba de que os seus encantos singulares melhor se vêem sem um vestido terá de ser um perfeito idiota.

Houve uma pequena pausa. Todos olharam para Anthony que, de repente, ficou todo vermelho.

- Eu queria dizer que os seus encantos são. encantadores, com ou sem vestido - gaguejou ele.

Ninguém comentou.

Anthony parecia lançado, agora.

- Isso quer dizer, Miss Emeline, que ficaria espectacular com um simples avental.

- Obrigada - murmurou ela, os olhos a bailarem-lhe. Anthony parecia querer enfiar-se pelo chão. Tobias foi em soccorro dele.

- Bem, se já acabámos com o tema dos encantos de Miss Emeline, proponho que voltemos à questão de como vamos executar uma série de tarefas esta tarde. Sugiro que Miss Emeline e Mrs. Lake levem a efeito os seus planos de sacrificar o Apolo. Anthony, tu e eu vamos falar com os donos dos museus de cera.

- De acordo - disse Anthony.

- Um momento - pediu Lavinia, colocando-se à frente de Tobias, uma suspeita no olhar. - Eu nunca disse que não queria participar nas entrevistas.

Tobias sorriu.

- Tem de desculpar-me, Mrs. Lake, mas fiquei com a impressão de que tinha coisas mais importantes a fazer, esta tarde.

- Não há razão para não tratarmos de ambas as coisas - disse ela mansamente. - Emeline vai a uma conferência sobre antiguidades egípcias, com a sua amiga Priscilla Wortham. Eu tenciono deixá-la no Instituto e depois, seguir para a loja de Mr. Tredlow para tratar da venda do Apolo. Efectuada a venda, podemos tratar das entrevistas e, quando terminarmos as entrevistas, voltamos a passar pelo Instituto, a buscar Emeline.

O olhar de Anthony brilhou de entusiasmo.

- Terei o máximo prazer, Miss Emeline, em acompanhá-la à conferência, a si e à sua amiga. Se quer saber, eu interesso-me muito por antiguidades egípcias.

- Ah, sim? - Emeline desceu gracilmente os degraus e dirigiu-se para a carruagem. - Acaso já leu o recente artigo de Mr. Mayhew?

- Sim, claro - Anthony tratou de acompanhá-la. - Em minha opinião, Mayhew tem excelentes deduções, mas acho que não tem razão acerca do significado das cenas inscritas nas paredes dos templos que examinou.

- Concordo consigo - disse Emeline, afastando-se para permitir a Anthony instalar a estátua na carruagem. - Para mim, torna-se claro que a chave são os hieróglifos. Enquanto não forem adequadamente decifrados, não conseguiremos entender o significado das pinturas.

Anthony inclinou-se para dentro do veículo, para colocar a estátua no chão.

- A completa decifração da pedra de Rosetta é a nossa única esperança. - A voz dele soava abafada, do interior do veículo. - Ouvi dizer que Mr. Young tem feito progressos nesse campo.

Lavinia observava o par, as sobrancelhas formando uma linha pen sativa, por cima do nariz fino.

- Hum. - fez ela.

- Ponho as mãos no fogo por Anthony - disse Tobias em voz baixa. A sua sobrinha fica absolutamente segura na companhia dele.

Lavinia aclarou a voz.

- Suponho que não exista nenhuma hipótese de herança em relação a ele? Uma pequena propriedade em Yorkshire, por exemplo?

- Nem sequer uma pequena casa de campo em Dorset - disse Tobias, sorrindo bem disposto. - As finanças de Anthony estão num estado semelhante ao meu.

- E esse estado seria? - perguntou ela com delicadeza.

- Precário. Como a senhora, dependo de clientes que aceitem os meus serviços para assegurar a minha sobrevivência. E Anthony, ocasionalmente, ajuda-me.

- Estou a perceber.

- Bem - disse Tobias -, vamos tratar dos nossos assuntos, ou pretende ficar o resto da tarde, aqui no meio da rua, a informar-se da minha situação financeira?

Lavinia continuava com os olhos postos em Emeline, a qual continuava a viva discussão com Anthony. Por momentos, Tobias pensou que ela não tinha ouvido a pergunta. Depois ela pareceu sacudir os pensamentos que a distraíam. Quando se voltou para ele, tinha de novo nos olhos o brilho de aço de franca determinação que lhe era habitual.

- Não desejo perder nem mais um momento com as suas finanças, Mr. March. Não tenho nada a ver com isso. Já basta que me preocupe com as minhas.

- Belo Apolo, Mrs. Lake - disse Edmund Tredlow, tocando num músculo de pedra da bem esculpida anca. - É, na verdade, muito belo. Acho que vou poder dar-lhe tanto como o que lhe dei pela Vénus, no mês passado.

- Este Apolo vale muito mais do que a Vénus - retorquiu Lavinia, circundando a estátua e colocando-se do outro lado. - Sabe tão bem como eu. É genuína e está em muito bom estado.

Tredlow abanou a cabeça várias vezes. Por detrás das lentes dos óculos, um brilho astuto, de negociante, ardia-lhe nos olhos. Lavinia sabia que ele se estava a divertir imenso, mas não podia dizer o mesmo de si própria. Muita coisa dependia daquele negócio.

Tredlow era um homenzinho amarrecado, perenemente amarrotado, com uma predilecção por suspensórios fora de moda e colarinhos sem goma. Parecia tão antigo e tão cheio de pó como as estátuas que tinha na loja, raros cabelos grisalhos despontando-lhe na cabeça calva, a barba espigada como sebe mal aparada.

- Não me interprete mal, minha senhora - Tredlow apalpou as nádegas do Apolo. - A estátua está, na verdade, em muito bom estado. Acontece é que, ultimamente, há poucos pedidos de Apolos e não vai ser fácil encontrar um coleccionador interessado. Posso ficar com ele parado alguns meses, antes de o conseguir vender.

Lavinia rangeu os dentes, por trás de um sorriso frio. Tredlow podia muito bem dar-se ao luxo de saborear o processo de regateio, pois, para ele, o negócio era também um jogo. Para ela, porém, a tensa dança em que se envolviam, sempre que ela ali ia, era sublinhada por um desespero que tinha de dissimular a todo o custo.

Tobias assistia às negociações muito afastado, encostado, negli gentemente, a um pedestal de mármore, com um ar de aborrecimento estampado na cara, mas ela sabia que ele escutava cada palavra da conversa com aguçado interesse. Era enfurecedor. Afinal de contas, era por causa dele que ela se via obrigada a estar ali a regatear com Tredlow, tal peixeira.

- Não quero abusar da sua simpatia e da sua generosidade - disse Lavinia mansamente. - Se pensa, realmente, que não consegue encontrar um comprador capaz de apreciar a perfeição desta estátua, acho que tenho de procurar noutro lado.

- Eu não disse que não a conseguia vender, só disse que isso pode levar muito tempo - Tredlow fez uma pequena pausa. - Mas, claro, se se dispuser a deixá-la à consignação.

- De modo nenhum, a minha intenção é vendê-la hoje - disse Lavinia, ostensivamente ajustando as luvas, como que preparando-se para sair.

- E não posso perder mais tempo aqui. Vou falar com Prendergast, talvez ele disponha de uma clientela mais seleccionada.

Tredlow fez que não com a mão.

- Não há motivo para fazer isso, minha senhora. Como lhe disse, o mercado não anda bom para Apolos, mas, em nome das nossas boas e já antigas relações, vou tentar encontrar um coleccionador para este.

- Pense bem, de modo nenhum lhe quero arranjar problemas.

- Não há problema - disse ele, com o seu sorriso de gnomo. - Temos feito os dois bastantes negócios nos últimos três meses e estou disposto a reduzir o meu lucro ao mínimo no seu Apolo, por consideração para consigo.

- Nunca me passaria pela cabeça pedir-lhe que reduzisse o seu lucro - disse Lavinia, apertando os laços do chapéu. - Na verdade, nunca me perdoaria se pensasse, um momento que fosse, que tirara partido das nossas mutuamente agradáveis relações de negócio, Mr. Tredlow.

Tredlow olhou para o bem-parecido Apolo com expressão pensativa.

- Pensando melhor, acho que conheço um cavalheiro disposto a pagar bom dinheiro por esta estátua. E não é muito inclinado a discutir o preço.

Lavinia dissimulou o suspiro de alívio e presenteou-o com um sorriso aberto.

- Eu tinha a certeza de que conheceria o coleccionador certo, dado que é um perito neste campo.

- Tenho alguma experiência - disse Tredlow, modestamente. E, agora, falemos do preço, minha senhora.

Não demoraram muito a chegar a um montante conveniente.

Tobias tomou o braço de Lavinia, ao saírem da loja.

- Bem conduzido - disse ele.

- O que Tredlow me deu pelo Apolo dá para pagar os vestidos que mandei fazer a Madame Francesca.

- Negociou muito bem.

- Aprendi umas coisas a respeito da arte de negociar, enquanto estive em Itália - disse Lavinia, sem esconder a sua satisfação.

- Diz-se que viajar é aprender.

Lavinia sorriu friamente.

- Felizmente, eu e Emeline conseguimos salvar alguns dos nossos melhores espécimes, na noite em que o senhor vandalizou a nossa loja e nos pôs na rua. Mas ainda lamento ter lá deixado aquela bela urna.

- Pessoalmente, acho que teve uma decisão muito sensata ao preferir trazer o Apolo.

Os ressurreicionistas azafamavam-se em redor da tumba, à meia-noite. A débil incandescência de uma lanterna iluminava a cena macabra, revelando as pás e as cordas utilizadas para retirar o caixão recentemente enterrado. Um carro aguardava na penumbra.

- Mais um corpo roubado, a caminho de uma escola médica na Escócia - disse Tobias, bem-humorado. - É tranquilizador verificar que o progresso da ciência moderna não pode ser travado.

Lavinia estremeceu e olhou mais atentamente para as figuras que compunham o quadro. Em termos de qualidade, as estátuas de cera do Museu Huggett eram semelhantes às que ela e Tobias haviam visto nos outros dois estabelecimentos que tinham visitado naquela tarde. Os artistas tinham lançado mão a cicatrizes, chapéus e capas a flutuar, para ocultar a fraca modelação das figuras. O efeito horrendo era largamente conseguido através do aspecto realista do caixão e da sombria iluminação.

- Devo reconhecer que as figuras aqui são muito mais melodramáticas do que as que vimos antes - disse Lavinia.

Deu-se conta de que falara num sussurro, mas não sabia porquê. Ela e Tobias eram as únicas pessoas no museu, mas algo da espessa obscuridade que ali pairava e o horrendo dos quadros perturbavam-na de um modo que não lhe acontecera nas outras exposições.

- Huggett tem obviamente uma tendência teatral - disse Tobias, caminhando ao longo da coxia sombria e parando em frente do próximo quadro iluminado, o qual representava uma cena de duelo. - E parece ter uma predilecção especial pelo sangue.

- A propósito de Mr. Huggett, ele está a demorar-se muito, não lhe parece? Há já há bastante tempo que o bilheteiro o foi chamar.

- Vamos dar-lhe mais uns minutos - disse Tobias, avançando para outra fila de quadros.

Vendo-se só, Lavinia apressou-se a segui-lo, dando apenas um relance de olhos a um assassino condenado à forca, antes de dobrar o canto e quase colidir com a sólida figura de Tobias.

Ficou de olhos abertos para a cena de morte que lhe atraiu a aten ção. Representava um homem estendido numa cadeira, junto a uma mesa de jogo. A cabeça da figura estava caída para a frente, de tal modo que, não só veiculava uma perturbante e correcta imitação da morte, como convenientemente disfarçava a falta de mestria artística na modelação da cara. Um dos braços caía-lhe de lado. A figura do assassino estava representada à beira da cena, pistola de cera na mão. Viam-se cartas espalhadas no tapete.

Lavinia olhou para a legenda bem dessenhada: Uma Noite Numa Casa de Jogo.

- Tenho a impressão de que não vamos ver aqui nada que não tenhamos visto nos outros museus - disse ela.

- Possivelmente, não - disse Tobias, examinando a cara do assassino e abanando a cabeça. - Mrs. Vaughn tinha razão, ao afirmar que a maior parte dos museus de cera satisfazem o desejo do público por cenas de horror, em vez de lhes incutirem o gosto por obras de arte.

Lavinia olhou para as filas de cenas sangrentas que se distinguiam por entre as sombras: ladrões de sepulturas, assassinos, prostitutas em agonia e criminosos violentos enchiam a vasta sala. A qualidade das figuras podia não ser grande coisa, pensou ela, mas o proprietário tinha sido bem sucedido em criar um ambiente de horror. Não o queria admitir a Tobias, mas aquela sala estava a contundir-lhe os nervos.

- Acho que estamos a perder o nosso tempo - disse ela.

- Talvez - disse Tobias, avançando para a cena de um homem a estrangular uma mulher com um lenço. - Contudo, já que aqui estamos e é o último museu da lista, podemos aproveitar para falar com Huggett, antes de nos irmos embora.

- O que é que isso interessa? - exclamou Lavinia, seguindo atrás dele. Fez uma careta para o quadro ao ler o título: A Herança. - Tobias, acho mesmo que devemos sair, e já.

Tobias olhou para ela de modo estranho. Só então ocorreu a Lavinia que o tinha tratado pelo nome próprio, pela primeira vez. Sentiu um calor subir por ela e deu graças pela luz escassa.

Não era que não tivessem um certo grau de intimidade, pensou ela.

Afinal de contas, eram sócios. E havia aquele beijo, na véspera, embora ela se tivesse esforçado por não pensar no interlúdio apaixonado.

- O que é que se passa consigo? - perguntou Tobias, nos olhos um brilho divertido. - Não me diga que estas figuras lhe afectam os nervos.

Nunca a imaginaria o género de pessoa que sucumbe perante figuras tenebrosas num museu de cera.

Nada como aquele ultraje lhe teria fortificado tanto o espírito.

- Os meus nervos estão em excelentes condições, muito obrigada, e não sou, certamente, o género de pessoa que se deixa influenciar por exposições como esta.

- Claro que não, claro que não é.

- Só que não vejo razão para ficar aqui à espera de um proprietário que não tem tempo para atender duas pessoas que pagaram bom dinheiro, para comprar bilhetes para esta horrorosa atracção.

Lavinia chegou ao fim de uma coxia e viu uma estreita escada de caracol que conduzia ao andar superior.

- Gostava de saber o que é que Mr. Huggett tem lá em cima.

Um som deslizante no escuro atrás dela fê-la estacar, tensa. Uma voz baixa e sibilante soou.

- A galeria do andar de cima é só para cavalheiros.

Lavinia rodou, espreitando a obscuridade.

À fraca e bruxuleante luz que iluminava uma cena de crime próxima, Lavinia conseguiu distinguir um homem alto, esqueleticamente magro.

A pele da cara surgia esticada sobre os ossos. Os olhos eram cavernas.

Alguma faísca de calor que alguma vez ali tivesse brilhado há muito se extinguira, decerto.

- Eu sou Huggett. Disseram-me que queriam falar comigo.

- Mr. Huggett - disse Tobias -, eu sou March e esta senhora é Mrs. Lake. Agradecemos ter-se disposto a falar connosco.

- O que é que pretendem de mim? - sibilou Huggett:

- Queríamos pedir-lhe a opinião sobre um trabalho de cera - respondeu Tobias.

- Tentamos encontrar o artista que executou isto - disse Lavinia, erguendo a pequena cena de morte e retirando o tecido. - A nossa expectativa é que possa reconhecer o estilo, ou qualquer outra característica do trabalho que nos possa indiciar o nome do artista.

Huggett olhou para o quadro. Lavinia observou-lhe a cara de cadáver atentamente. Ia jurar que viu surgir um débil luzir de reconhecimento, mas que desapareceu num instante. Quando Huggett ergueu a cabeça, não havia nenhuma expressão na cara.

- Belo trabalho - sibilou ele. - Mas não creio que conheça o artista.

- O tema parece coadunar-se com o seu museu - disse Tobias. Huggett fez um gesto com a mão ossuda.

- Como pode verificar exibo estátuas a meio-tamanho natural, não pequenos quadros.

- Se, acaso, lhe ocorresse um nome, depois de sairmos, dê-nos, por favor, notícia para esta morada - disse Tobias, estendendo-lhe um cartão. - Posso garantir-lhe que não perderá o seu tempo.

Huggett hesitou, antes de aceitar o cartão.

- Quem é que se dispõe a pagar por essa informação?

- Alguém que anseia por conhecer o artista - disse Tobias.

- Compreendo - disse Huggett, enrolando-se em si próprio e recuando para a obscuridade. - Vou pensar no assunto.

Lavinia avançou.

- Só mais uma coisa, Mr. Huggett, se não se importa. Não chegou a explicar-nos o que se passa no andar de cima. O que é que exibe ali?

- Já lhe disse, é só para cavalheiros - murmurou Huggett. - O que se exibe ali não é próprio para senhoras - completou ele, desaparecendo nas sombras, antes de ela poder fazer mais perguntas.

Lavinia olhou de novo para a escada em espiral.

- O que é que acha que ele tem lá em cima?

- Tenho a impressão de que, se subisse essas escadas - disse Tobias, pegando-lhe no braço -, ia encontrar uma exposição de nus em cera, em posições eróticas.

Lavinia pestanejou.

- Oh! - exclamou, olhando uma última vez para as escadas e deixando-se conduzir por Tobias, em direcção da saída.

- Ele sabe alguma coisa a respeito do nosso quadrinho - disse ela baixinho. - Eu notei um pequeno sinal de reconhecimento quando ele o examinou.

- É capaz de ter razão - disse Tobias, encaminhando-a para a porta. - Eu também notei algo de estranho na reacção dele.

Lavinia sorriu de alívio, quando saiu para a chuva miudinha. A carruagem em que tinham vindo aguardava na rua.

- Ainda bem que o cocheiro esperou por nós. Não me apetecia nada ir a pé com esta chuva.

- A mim tão-pouco.

- Acho que tivemos uma tarde proveitosa, não acha? Eu bem lhe dizia que valia a pena falar com as pessoas familiarizadas com os variados estilos de trabalho em cera. Graças à minha ideia, sentimos, finalmente, um certo cheiro. É altura de fazer soar as trompas.

- Se não se importa, preferia que evitasse o uso desnecessário do vocabulário dos campos de caça - disse Tobias, abrindo-lhe a porta da carruagem. - Acho-o irritante.

- Ora, deixe-se disso - disse Lavinia, estendendo-lhe a mão e subindo exuberantemente para a carruagem. - Está mas é mal disposto porque foi a minha brilhante ideia que fez avançar a investigação. Admita que está aborrecido porque nenhum dos seus iscos lhe trouxe peixe.

- Tão-pouco aprecio a gíria da pesca - disse Tobias, agarrando-se ao rebordo da porta e alçando-se para dentro do veículo. - Se estou mal disposto é porque não me agrada ver tantas questões sem resposta.

- Anime-se, homem! A julgar pelo brilho nos olhos de Huggett, desconfio que vamos ter notícias em breve.

Tobias contemplou a tabuleta por cima da porta do Museu Huggett.

- O brilho que notou no olhar dele pode não significar interesse pelo nosso dinheiro.

- Que outra coisa havia de ser?

- Medo.

 

A capa de couro estava encarquilhada e carbonizada por acção das chamas. Muitas das páginas estavam queimadas e encaracoladas, mas havia bastantes pedaços no meio das cinzas para permitir a Tobias concluir, sem sombra de dúvida, que estava a olhar para os restos do diário do criado.

- Rasparta!

Remexeu nas cinzas com o atiçador. Estavam frias. Quem quer que tivesse queimado o diário dera tempo às brasas morrerem, antes de enviar a mensagem.

Olhou em redor do pequeno quarto. Era óbvio que ninguém ali vivia com carácter permanente, mas havia bastante lixo espalhado para se perceber que o quarto era frequentado por quem fazia a sua vida na rua. Pôs-se a pensar se o livro não teria sido queimado noutro lado e, depois, trazido para ali e atirado para a lareira.

Não sabia quem lhe tinha enviado a informação, mas duvidava que tivesse sido algum dos seus informadores habituais, pois nenhum se apresentara a reclamar-lhe o pagamento.

Alguém, porém, muito desejara que ele encontrasse ali o diário, naquela noite.

Felizmente, encontrava-se no clube, quando a mensagem chegara, pouco antes. Saíra de imediato, grato por o mau tempo e a hora tardia da noite lhe proporcionarem uma desculpa para não avisar Lavinia. Ela ia ficar danada quando ele a acordasse para lhe contar o que tinha encon trado, mas teria de compreender que a questão de tempo era essencial.

Tobias olhou em volta, à procura de alguma coisa onde pudesse meter o diário queimado e viu um saco vazio a um canto. Não levou muito tempo a recolher os restos do perigoso documento.

Quando acabou, apagou a fumarenta vela de sebo que descobrira no quarto, agarrou no saco e dirigiu-se à janela. Não havia nenhuma razão para prever sarilhos. No fim de contas, alguém se tinha dado a muito trabalho para garantir que ele encontraria o diário. Havia, porém,

mais gente em busca do mesmo, por isso, a prudência aconselhava-o a tomar precauções.

A chuva que não parara de cair toda a noite transformara a estreita travessa num riacho: A débil incandescência de uma lanterna que emanava de uma janela em frente pouco penetrava na densa obscuridade.

Tobias observou as sombras na travessa, para ver se alguma se mexia. Passado pouco tempo, concluiu que, se alguém vigiava a entrada da casa, essa pessoa não se encontrava no seu campo de visão.

Tirou, então, a capa. Depois de atar os atilhos do saco, pendurou-o ao ombro. Certo de que a carga ficava a seco, tornou a vestir a capa e saiu do pequeno quarto. Não havia ninguém nas escadas. Desceu para a porta e avançou para o poial. Aguardou uns momentos no ínfimo abrigo da porta. Nenhuma das sombras na travessa se mexeu.

Cerrando os dentes, enfiou-se no riacho sujo que era a travessa. As pedras do pavimento mostraram-se extremamente escorregadias. Em tais circunstâncias, não podia confiar muito na perna esquerda, por isso, para se equilibrar, apoiou a mão enluvada à encharcada parede de pedra à sua esquerda.

A Água oleosa salpicava-lhe as biqueiras das botas em que Whitby labutara tão valentemente para as pôr a brilhar. Não seria a última vez que ele se veria obrigado a recuperar calçado muito maltratado, pensou Tobias.

Caminhou muito cautelosamente para o fim da travessa. Esperava que a carruagem que o trouxera o aguardasse na rua contígua. Numa noite como aquela, pouca esperança havia de agarrar outra carruagem.

A meio caminho do objectivo, Tobias sentiu outra presença na travessa. Deu mais um passo, apoiou-se bem na mão esquerda e voltou-se num repente.

A figura de um homem de capa e de chapéu surgiu recortada na débil luz da lanterna que iluminava a janela. A visão era-lhe vagamente familiar. Tobias ia jurar que já vira aquela capa e aquele chapéu naquela noite, à saída do clube.

O homem estacou, quando viu que Tobias parara. Depois, a figura virou-se e pôs-se a correr em sentido contrário. A água espirrava-lhe sob os pés. O som ecoava pela travessa.

- Rasparta!

Tobias lançou-se em perseguição do homem. A dor atacou-lhe a perna. Cerrou os dentes e fez por ignorá-la.

Era tempo perdido, pensou, esforçando-se por manter o equilíbrio. Com aquela perna traiçoeira não tinha a mínima possibilidade de agarrar o fugitivo. E teria muita sorte se não caísse de borco na água escura.

As botas escorregavam e deslizavam nas pedras encharcadas, mas, de qualquer modo, conseguiu manter-se em pé, por duas vezes socorrendo-se das mãos mesmo a tempo.

O fugitivo, porém, também estava com problemas. De repente balançou, agitando os braços. A capa flutuava, enquanto tentava recuperar o equilíbrio. Um objecto que transportava fez estrépito ao cair no chão. Soou a vidros partidos. Uma lanterna apagada, pensou Tobias.

A figura fugitiva foi ao chão pesadamente. Tobias estava quase junto dele. Atirou-se para a frente e conseguiu agarrar uma das pernas do homem. Apoiou-se na perna do homem para se erguer e aplicar-lhe uma punhada. Sem grande resultado, pois o homem continuou a debater-se furiosamente.

- Quieto, ou levas uma facada - disse Tobias rudemente. Não tinha nenhuma faca consigo, mas o homem não tinha maneira de saber.

Houve um lamento e, depois, o homem deixou-se afundar na água da chuva.

- Eu estava só a fazer o que me mandaram, meu senhor. Juro pela alma da minha mãe que estava só a cumprir ordens.

- Ordens de quem?

- Da minha patroa.

- Quem é a tua patroa?

- Mrs. Dove.

 

- Eu recebi uma mensagem - disse Joan Dove, pegando no delicado bule de porcelana - e mandei Herbert ver o que se passava. Pelos vistos, ele chegou um pouco depois de si, Mr. March, e viu-o sair do edifício. No escuro, não pôde reconhecê-lo e tentou segui-lo. E o senhor pressentiu-o e deitou-o ao chão.

Lavinia estava tão danada que não conseguiu falar, limitando-se a observar Joan a servir o chá na louça da China. O acto tinha tudo da perícia graciosa que se espera de uma abastada e bem-educada senhora a servir o chá da tarde às suas visitas. Não eram, porém, três horas da tarde. Eram três horas da manhã. E ela e Tobias não tinham ido ali para ouvir mexericos acerca dos últimos escândalos ocorridos na cidade. Tinham ido para confrontarem Mrs. Dove.

Até então, Lavinia fizera a despesa toda da conversa. Tobias estendera-se numa poltrona, uma expressão de pétrea na cara, e pouco falara. Lavinia estava preocupada com ele. Tobias tinha passado por casa a mudar de roupa, antes de se dirigir a casa dela com os restos do diário, mas ela sabia que a sua aparente calma era enganadora. Ele tivera uma noite agitada e ela ia jurar que a perna o estava a incomodar.

- O que é que rezava a mensagem? - perguntou Tobias, num raro contributo para a conversa.

joan patenteou apenas uma ligeira hesitação ao pousar o bule.

- Não era uma mensagem escrita. Um rapazito apareceu à porta e disse que o que eu queria se encontrava no número dezoito de Tartle Lane. E logo despachei Herbert.

- Basta, Mrs. Dove - a fúria de Lavinia explodiu. - Se não nos quer dizer a verdade, assuma-o.

A boca de Joan endureceu.

- Por que duvida de mim, Mrs. Lake?

- A senhora não recebeu nenhuma mensagem. Pura e simplesmente, mandou Herbert seguir Mr. March, não foi?

O olhar de Joan ficou frio.

- Por que havia eu de fazer isso?

- Porque esperava que Mr. March recuperasse o diário e, quando o fizesse, pretendia que Herbert lho roubasse, não é esta a verdade?

- A verdade, Mrs. Lake, é que não estou habituada a ver a minha palavra posta em dúvida.

- Ah, sim? - exclamou Lavinia, sorrindo friamente. - Coisa estranha. Mr. March desconfia que a senhora nos tem mentido desde o início. E eu estava disposta a acreditar na sua história, ou, pelo menos, na maior parte dela. Contudo, agora parece-me que esteve sempre a utilizar-nos para os seus fins e isso é intolerável.

- Não compreendo por que está tão zangada - as palavras de Joan tinham um acento de reprovação. - Ninguém magoou Mr. March esta noite.

- Nós não somos peões no seu tabuleiro, Mrs. Dove. Nós somos

profissionais.

- Sim, claro.

- Mr. March arriscou a vida para ir àquela travessa e entrar naquela casa. E estava a trabalhar por sua conta. Mas eu estou convencida de que o seu criado, Herbert, ia tentar arrancar o diário a Mr. March à força, se achasse que ele o tinha encontrado.

- Garanto-lhe que não tinha nenhum desejo que Mr. March, ou qual quer outra pessoa, se magoasse. - A voz de Joan tinha agora um acento diferente. - Eu mandei Herbert vigiá-lo. Foi tudo.

- Eu sabia. De facto, mandou-o espiar Mr. March.

Joan hesitou.

- Pareceu-me uma atitude prudente.

- Ora, ora! - Lavinia endireitou os ombros: - Mr. March tem razão. A senhora mentiu-nos desde o princípio e eu, por mim, perdi a paciência. Nós terminámos a nossa missão, minha senhora: o diário foi recuperado. Está completamente ilegível, como pode verificar, mas, ao menos, já não causa mais danos.

Joan franziu a testa ao olhar para os restos carbonizados do diário, os quais enchiam uma grande salva de prata.

- Mas os senhores não podem interromper as averiguações agora - disse ela. - Quem quer que destruiu o diário, decerto o leu antes.

- Talvez - disse Lavinia -, mas torna-se claro para Mr. March e para mim que destruir o diário foi a maneira de alguém nos dizer que o caso estava encerrado. Suspeitamos que quem o fez era uma das vítimas de Holton Félix, muito provavelmente a pessoa que o matou.

Tobias olhou para a salva.

- Acredito que a mensagem pretende veicular mais do que a mera certeza de que não haverá mais ameaças de chantagem.

- O que é que quer dizer com isso? - perguntou Joan de imediato. Tobias não tirava o olhar pensativo do livro carbonizado.

- Tenho a impressão de que nos estão a dizer em termos precisos para terminarmos as nossas averiguações acerca deste caso.

- E a ameaça de morte que eu recebi? - perguntou Joan.

- Esse é o seu problema, agora - disse Lavinia. - Talvez consiga encontrar alguém para tratar dele.

- Hum, Lavinia - murmurou Tobias.

Ela ignorou-o.

- Dadas as circunstâncias, não posso consentir que Mr. March continue a correr riscos por sua causa, Mrs. Dove. Espero que com preenda.

Joan ficou tensa.

- Tudo o que a preocupava era o diário, porque continha também os seus segredos. Agora que foi encontrado, dá-se por satisfeita em receber o meu dinheiro e abandona o caso.

Lavinia pôs-se de pé num salto, inflamada.

- Pode guardar o raio do seu dinheiro!

Pelo canto do olho viu Tobias pestanejar. Foi para trás do sofá e agarrou-se ao elegantemente torneado rebordo de madeira com ambas as mãos.

- Mr. March correu grandes riscos por sua causa, esta noite - frisou ela. - Pelo que ele se apercebeu, podia ter caído numa armadilha. O assassino podia estar à espera dele no quarto onde encontrou o livro. Não admito que ele continue um trabalho tão perigoso para uma cliente que nos mente.

- Como se atreve? Eu não lhes menti.

- Mas tão-pouco nos disse a verdade toda, pois não? A irritação lampejou no rosto de joan, mas logo foi dominada.

- Eu disse-lhes tudo o que achei que precisavam de saber.

- E depois encarregou um homem de nos espiar. Usou Mr. March. Não vou tolerar isso - Lavinia rodopiou e fixou o olhar em Tobias. É altura de sairmos.

Tobias, obedientemente, alçou-se da poltrona.

- Está a ficar tarde, não é? - disse ele mansamente.

- Sim, sim, está a ficar tarde.

Lavinia esgueirou-se da sala de visitas e encaminhou-se, através do hall, para a porta, Tobias atrás dela. O criado com ar de touro abriu-lhes a porta para a noite húmida.

Lavinia parou de repente, quando viu que a carruagem que os trouxera não estava ali. Em seu lugar, estava uma brilhante carruagem castanha.

- A senhora deu instruções, quando os senhores chegaram, para mandar embora a carruagem, pois desejava que regressassem a casa no seu coche - disse o criado, em tom neutro.

Lavinia pensou na desagradável conversa que acabara de se travar na sala de visitas. Duvidava que joan Dove ainda se sentisse tão generosa.

- Oh, acho que não podemos aceitar.

- Podemos, podemos - disse Tobias, agarrando-lhe firmemente o braço. - Acho, Mrs. Lake, que já falou bastante esta noite. Pode estar disposta a andar à chuva à procura de uma carruagem, mas espero que concorde comigo. Eu prefiro seguir na confortável carruagem de Mrs. Dove, se não se importa. Para mim foi uma longa noite.

Lavinia pensou no que ele tinha passado e sentiu remorso.

- Sim, concordo - disse ela, apressando- se a descer os degraus de pedra. Se se despachassem, pensou ela, conseguiam meter-se na carruagem antes de joan pensar em revogar a ordem.

Um lacaio corpulento ajudou Lavinia a subir para a luxuosa carruagem. A luz interior revelou macios estofos de veludo castanho e cómodas mantas para resguardar do frio. Agarrou numa delas mal se sentou e apercebeu-se de que tinha sido aquecida com uma escalfeta. Tobias sentou-se ao lado dela. Havia uma tensão nos movimentos dele que a preocupou. Interrompeu o gesto de apertar a manta envolvendo os joelhos e, em vez disso, cobriu com ela as pernas de Tobias.

- Muito obrigado.

Havia uma certa rudeza na expressão de gratidão.

Lavinia franziu a testa.

- Notou que Mrs. Dove tem uma série de homens corpulentos ao seu serviço?

- Notei, sim - disse Tobias. - Parece um pequeno exército.

- Sim, parece. Gostaria de saber por que sente ela necessidade. Lavinia interrompeu-se ao ver que ele metia a mão por baixo da manta para esfregar a perna.

- Não se magoou ao subjugar Herbert, pois não?

- Não se preocupe com isso, Mrs. Lake.

- Não se pode admirar que me preocupe, dadas as circunstâncias.

- Tem mais com que se preocupar, minha senhora - disse Tobias, fazendo uma pausa significativa. - Dadas as circunstâncias.

Lavinia aconchegou-se na manta e enterrou-se no assento de veludo. As implicações do que acabara de acontecer vieram-lhe ao espírito.

- Percebo o que quer dizer - disse ela morosamente. Tobias ficou calado.

- Acho que disse adeus ao melhor cliente que tive até hoje.

- Acho que sim. Não só isso, como recusou o pagamento dos serviços prestados até aqui.

- Há muito a apontar ao género de clientes que se podem dar ao luxo de nos fazer regressar a casa numa bela e confortável carruagem.

- Isso é um facto - disse Tobias, esfregando a perna. O silêncio caiu pesadamente entre eles.

- Bem - disse por fim Lavinia -, não podíamos agir de outro modo. Não podíamos, certamente, continuar a investigar por conta de uma cliente que nos ocultava informações vitais e enviava gente a espiar- nos.

- Não percebo por que não? - disse Tobias.

- O quê? - Lavinia endireitou-se no assento. - Está doido? O senhor podia ter sido magoado ou ferido gravemente esta noite. Estou convencida de que Herbert tencionava tirar-lhe o diário à força.

- Eu não tenho dúvidas de que Herbert tinha instruções para me sacar o diário se eu conseguisse recuperá-lo. No fim de contas, o principal objectivo dela é esconder os seus segredos.

Lavinia reflectiu sobre o assunto.

- Há, obviamente, algo no diário que ela não quer que ninguém saiba, incluindo nós. Algo potencialmente mais danoso do que os pormenores de uma aventura amorosa com mais de vinte anos.

- Eu avisei-a. Todos os clientes mentem.

Lavínia tornou a aconchegar-se na manta e tornou a reflectir por momentos.

- Está-me a parecer que Mrs. Dove não foi a única pessoa que, esta noite, se furtou a ser inteiramente franca - disse ela, por fim.

- Não a entendo.

Lavinia acalorou-se.

- Por que é que não me avisou logo que recebeu a mensagem no seu clube? Eu tê-lo-ia acompanhado esta noite. Não tinha o direito de ir sozinho.

- Não havia tempo. Não se sinta melindrada. Eu estava com tanta pressa que nem tentei avisar Anthony.

- Anthony?

- Geralmente é ele que me acompanha, nestes casos. Mas ele tinha ido ao teatro e eu sabia que era muito difícil fazer-lhe chegar uma mensagem a tempo.

- E, por isso, foi sozinho.

- Na minha opinião profissional, a situação requeria acção imediata.

- Conversa fiada.

- Eu já desconfiava que ia ser essa a sua reacção - disse Tobias.

- O senhor foi sozinho porque não tem o hábito de trabalhar com um sócio.

- Nada disso. Eu fui sozinho porque não havia tempo a perder. Fiz o que achei que era melhor e acabou-se.

Lavinia não se dignou responder. O silêncio tornou a pesar no interior da carruagem.

Pouco depois, Lavinia notou que ele continuava a massajar a anca.

- Acho que forçou a perna quando correu atrás do criado de Mrs. Dove.

- Acho que sim.

- Posso fazer alguma coisa?

- Eu de modo nenhum tenciono permitir que me ponha em transe, se é a isso que se refere.

- Muito bem, já que insiste em ser casmurro acerca do assunto.

- Sou, sim, sou casmurro. Sou até um perito no que a casmurrice diz respeito.

Lavinia desistiu e voltou ao silêncio. Ia ser uma viagem longa, não só porque começara a chover mais fortemente, mas também porque as ruas estavam a ficar pejadas àquela hora. Os bailes elegantes e os brilhantes serões terminavam. As pessoas regressavam às suas casas e mansões. Os jovens libertinos, bêbedos, estavam a ser corridos das casas de jogo, dos bordéis e dos clubes, trepando para todo o tipo de veículos que encontravam para regressarem a casa.

Inúmeros cavalheiros estariam, sem dúvida, a pedir que os levassem a Convent Garden, onde podiam encontrar prostitutas que, a troco de umas moedas, subiriam para as carruagens, a proporcionar-lhes uns momentos de prazer ilusório. As viaturas que aceitavam esses clientes, iriam cheirar a azedo na manhã seguinte.

Lavinia torceu o nariz ao pensar nisso. Havia, de facto, muito a dizer de um cliente que se podia dar ao luxo de fazer alguém regressar a casa na sua carruagem.

Ao lado dela, Tobias mexeu-se ligeiramente no assento, acomodando-se melhor. A perna intacta dele pressionou por momentos a anca dela. Ela tinha a certeza de que o breve contacto fora inteiramente casual, mas foi quanto bastou para pôr em brasa os seus já agitados nervos. A recordação do enlace apaixonado no estúdio dela alvoroçou-lhe os sentidos.

Aquilo era uma loucura. Pôs-se a pensar se Tobias teria o hábito de parar em Convent Garden a caminho de casa, altas horas da noite. De todo o modo, duvidava. Ele devia ser mais selectivo, decidiu. Mais exigente.

O pensamento divagante conduziu-a a uma ainda mais perturbadora questão. Que género de mulher preferiria Tobias?

Apesar do beijo do estúdio, tinha a certeza de que não pertencia ao tipo de mulher que ele, geralmente, achava atractivo. Tinham-se visto juntos por acaso, empurrados pelas circunstâncias. Não fora por ele se sentir atraído pelos seus encantos ou fascinado pela sua conversa bri lhante. Ele não a vislumbrara no meio de um salão de baile apinhado de gente, tendo ficado deslumbrado com a sua beleza. Em boa verdade, dada a pequena estatura dela, era mesmo pouco provável que ele a vislumbrasse num salão apinhado de gente.

- Largou a cliente por minha causa, não foi? - perguntou Tobias. A pergunta; caindo no profundo silêncio, sobressaltou-a, fazendo-a sair da divagação.

- Era uma questão de princípio - murmurou ela.

- Acho que não. Largou-a por minha causa.

- Gostaria que deixasse de se repetir. É um mau hábito estar sempre a repetir frases que acho irritantes.

Mas não é essa a questão.

- E qual é a questão?

Ele deslizou uma mão por trás do pescoço dela e aproximou os lábios da boca dela.

- Não posso deixar de pensar como se irá sentir de manhã, quando tomar consciência de que, por minha causa, recusou os belos honorários que Mrs. Dove lhe iria pagar.

Não era nos honorários perdidos que ela iria pensar de manhã, reflectiu Lavinia. Era antes o fim da sua inquietante associação com Tobias que lhe iria ocupar o pensamento. O diário tinha-os juntado e, agora, já não existia diário.

Vieram-lhe finalmente ao espírito as pesadas consequências dos acontecimentos da noite. Apossou-se dela uma vaga sensação de destino amargo. Podia não tornar a ver Tobias.

Percorreu-a um intenso sentimento de perda. Que se passava com ela? Devia dar graças por saber que ele em breve sairia da sua vida, já que lhe fizera perder bom dinheiro. Porém, por qualquer razão, tudo o que sentia era pena.

Com um soluço meigo, soltou-se da manta e envolveu-lhe o pescoço com os braços.

- Tobias.

A boca dele uniu-se ansiosamente à dela.

O beijo anterior deixara brasas em combustão lenta. Ao contacto da boca dele, agora, as chamas irromperam num abrasador e deslumbrante fogo. Nenhum enlace de homem jamais tinha tido semelhante efeito nela. O que ela conhecera com John, anos atrás, fora um doce soneto de delicados e imateriais sentimentos, demasiado etéreos para este mundo. Porém, o que ela experimentava, agora, nos braços de Tobias, enchia-a de sensações emocionantes, indescritíveis.

Tobias afastou a boca da dela e percorreu-lhe o pescoço com beijos. Lavinia caiu sobre os estofos de veludo, a capa espalhada por baixo dela. Sentiu a mão dele nas pernas e perguntou-se como é que ele o conseguira fazer, por baixo da capa e da saia do vestido, sem ela ter dado por isso.

- Mal nos conhecemos - murmurou ela.

- Pelo contrário - disse ele, deslizando os dedos cálidos pela coxa dela. - Aposto que descobri mais coisas a seu respeito em Roma do que muitos maridos sabem a respeito das respectivas mulheres.

- Acho isso difícil.

- Posso provar-lho.

Lavinia beijava-o avidamente.

Como é que o vai provar?

- Vejamos, por onde hei-de começar - disse ele, colocando-lhe uma mão por trás e desapertando-lhe o corpete. - Sei que gosta de dar longos passeios. Em Roma, devo ter andado quilómetros atrás de si.

- São saudáveis. Os longos passeios fazem muito bem à saúde. Tobias baixou-lhe o corpete do vestido.

- Sei que aprecia a poesia.

- Claro, viu os livros que eu tinha em Roma.

Tobias tocou o pendente de prata que ela tinha ao pescoço e, depois, pôs-se a beijar-lhe um seio rijo.

- Sei que se recusou a ser amante de Pomfrey.

Aquela informação era um balde de água fria. Lavinia ficou hirta, as mãos nos ombros dele, o olhar fixo nele.

- Sabe do Pomfrey?

- Toda a gente em Roma sabe da vida de Pomfrey. Ele seduziu quase todas as viúvas de Roma e um bom número de mulheres casadas - disse Tobias, beijando-lhe o vale entre os seios. - A senhora, porém, recusou redondamente as pretensões dele.

- Lorde Pomfrey é um homem casado.

Meu Deus, soava a afectação, até aos ouvidos dela.

Tobias ergueu a cabeça, os olhos brilhando à baça luz das lanternas.

- Mas é, também, muito rico e dizem que muito generoso com as amantes. Podia tornar-lhe a vida bem mais agradável.

Lavinia estremeceu.

- Eu não consigo imaginar coisa mais desagradável do que ser amante de Pomfrey. O homem bebe exageradamente e quando está cheio de copos perde as estribeiras. Uma vez, vi-o agredir um homem que o censurava por estar bêbedo.

- Eu estava lá quando ele a viu no mercado e ouvi-o tentar persua di-la a instalá-la num apartamento.

Lavinia ficou mortificada.

- Ouviu essa conversa embaraçosa?

- Não era particularmente difícil ouvir a sua resposta à oferta dele - disse Tobias com um sorriso nos lábios. - Fê-lo em voz bem alta, se bem recordo.

- Eu fiquei furiosa - disse Lavinia, fazendo uma pausa. - Onde é que estava?

- Estava à porta de uma loja - disse Tobias, a mão subindo pela perna dela. - Estava a comer uma laranja.

- E lembra-se desse pormenor?

- Eu lembro-me de tudo acerca desse momento. Depois de Pomfrey partir com o rabo entre as pernas, apercebi- me de que aquela laranja era a mais saborosa que alguma vez tinha comido. Nada, antes, me tinha sabido tão bem.

Tobias pousou a mão sobre a zona quente e húmida entre as pernas dela.

Lavinia sentiu o calor percorrer-lhe a parte de baixo do corpo, pondo-a a tinir e a tremer numa tempestade de sensações. Pela lúbrica satisfação estampada nos olhos de Tobias, apercebeu-se de que ele sabia perfeitamente o que lhe estava a fazer. Era altura de inverter os papéis.

- Bem, pelo menos, agora sei alguma coisa a seu respeito - disse ela, agarrando-se firmemente aos ombros dele. - Agora sei que adora laranjas.

- Sim, gosto bastante. Mas em Itália dizem que não há fruta que se possa comparar a um figo maduro.

Ela quase se engasgou num engulho que era um misto de irritação e de riso. Vivera bastante tempo com Mrs. Underwood para saber que, em Itália, figo maduro era um termo popular para designar o sexo de uma mulher.

Tobias tapou-lhe a boca com a dele, silenciando-a. Usou a mão para a fazer chegar à beira de uma sensação que ela nunca experimentara. Quando ela se pôs a tremer e a gemer nos braços dele, desapertou as calças. E logo se colocou entre as pernas dela, deslizando devagar, persistentemente, para o corpo dela, preenchendo-a por completo. Sem aviso, a grande tensão no interior dela explodiu subitamente em fragmentos cintilantes de intensa sensação que nenhum poeta podia, sequer, tentar descrever.

- Tobias! - exclamou ela, cravando as mãos nas costas dele. - Ai, Tobias, Tobias!

Um riso manso e rouco, mais um gemido, na verdade, soltava-se da boca dele.

Ela envolveu-o com os braços, repetindo o nome dele uma e outra vez. Ele valeu-se do seu peso para se enterrar mais profundamente nela. Sob as mãos dela, os músculos das costas dele ficaram tensos e rígidos. Lavinia sabia que ele estava próximo da sua própria explosão. Impulsivamente, estreitou-o ainda mais contra si.

- Não - murmurou ele.

Para assombro de Lavinia, ele afastou a boca da dela e arrancou-se rudemente, sem cerimónia, do corpo dela. Teve uma exclamação abafada e uma convulsão violenta.

Lavinia enlaçou-o, enquanto ele se esvaía sobre a capa dela.

 

Tobias recuperou o domínio lentamente. A carruagem continuava a andar, apercebeu-se ele. Não precisava de se erguer por enquanto. Podia disfrutar a doce macieza dela por mais

algum tempo.

- Tobias!

- Han?

Lavinia moveu-se um pouco por baixo dele.

- Acho que estamos a chegar a minha casa.

- Já estava à espera disso - disse ele, pousando a mão num dos seios de Lavinia. Era firme e muito bem torneado. Uma perfeita maçã.

Era melhor não voltarem ao tema da fruta. Lavinia devia ter razão, deviam estar a chegar a Claremont Lane.

- Depressa, Tobias - disse ela, meneando-se agitadamente debaixo dele. - Temos de nos compor. Pense quão embaraçoso seria se um dos lacaios de Mrs. Dove nos visse neste estado.

O alarme no tom de voz dela fê-lo sorrir.

- Acalme-se, Lavinia.

Tobias sentou-se relutantemente, parando apenas para depositar um beijo na parte interior da coxa dela.

- Tobias!

- Eu estou a ouvi-la, Mrs. Lake, mas também a podem ouvir o cocheiro e o lacaio na boleia, se não baixa o tom de voz.

- Depressa - Lavinia sentou-se, compondo o corpete. - Devemos estar a chegar a todo o momento. Oh, espero que não tenhamos sujado os estofos de Mrs. Dove. O que é que ela ia pensar?

- Não me preocupa muito o que Mrs. Dove possa pensar - disse Tobias, inalando o cheiro penetrante que a recente paixão deles deixara no ambiente fechado da carruagem. - Lembre-se que ela já não é sua cliente.

- Por amor de Deus, ela é uma mulher refinada - disse Lavinia, ajustando o pendente de prata com um pequeno gesto ansioso. - Estou certa de que não está habituada a ver a sua linda carruagem tratada como uma reles viatura de aluguer.

Tobias olhou para ela, não evitando um impulso de intensa satisfação. A luz amarelada da lanterna dançava-lhe no cabelo revolto, produzindo faíscas vermelhas e douradas. As faces dela estavam coradas. Havia em toda ela um brilho cálido, revelador.

Depois notou o pânico nos olhos dela.

- Está embaraçada, não é? - perguntou ele. - Receia que Mrs. Dove ache que não é uma senhora, se vier a descobrir o que se passou aqui.

Lavinia estava entregue a uma luta atroz com o corpete.

- Ela, muito provavelmente, ia pensar que não sou muito diferente das mulheres que se passeiam em Convent Garden, altas horas da noite.

Tobias encolheu os ombros, por demais saciado para dar grande importância ao assunto.

- O que é que lhe interessa o que ela possa pensar de si, agora?

- Dar azo a que ela pense que eu sou uma doidivanas não é o género de impressão que uma pessoa deseja deixar num cliente.

- Ex-cliente.

Lavinia ficou com uma expressão séria.

- Sim, mas a informação pessoal conta muito nesta profissão. Dificilmente podemos pôr anúncios nos jornais. Temos de contar com as boas referências dos clientes satisfeitos.

- Pessoalmente, eu, por ora, estou completamente satisfeito. Isso conta?

- De modo nenhum. É meu sócio, não é um cliente. Não me arrelie, Tobias. Sei muito bem que não posso dar azo a Mrs. Dove se pôr a dizer às distintas amigas que eu não passo de uma.

- Não é nada disso - interrompeu-a ele. - E sabemos ambos isso. Portanto, para quê fazer um cavalo de batalha da questão?

Lavinia pestanejou, como que surpreendida com a pergunta simples.

- É uma questão de principio.

Tobias abanou a cabeça para cima e para baixo.

- já há pouco se referiu aos princípios. Reconheço que é uma preocupação sua. Mas, aqui, não se trata de uma questão de princípio. É uma questão de senso comum. Não a quero ver cair no hábito de atirar o dinheiro dos clientes à cara deles. Se, acaso, Mrs. Dove decidisse enviar-lhe os seus honorários, apesar do que lhe disse esta noite, sugiro-lhe firmemente que os aceite.

Lavinia deixou de lutar com o corpete e lançou-lhe um olhar feroz.

- Como se atreve a achar a questão minimamente divertida.

- Desculpe-me, Lavinia - disse ele, indo por detrás dos ombros dela e ajustando-lhe o vestido -, mas parece estar a ceder a um ataque de histeria.

- Como é que me pode acusar de histeria? Eu estou preocupada com a minha reputação. Uma preocupação razoável, se quer saber. Não estou interessada em ver-me obrigada a mudar outra vez de profissão. Seria uma grande maçada.

Tobias sorriu.

- Afianço-lhe, Mrs. Lake, que, se alguém se atrever a pôr em dúvida a sua honra, eu defendê-la-ei até ao campo de duelo.

- Está determinado a não levar a questão a sério, não está?

- A sua capa pode, talvez, ter ficado inutilizada, mas vai ver que os estofos estão em excelentes condições. E, se não estiverem, o cocheiro tratará de os pôr impecáveis, logo pela manhã. Faz parte do trabalho dele.

- A minha capa! - O súbito alarme roubou-lhe o calor das faces. Ficou nitidamente pálida. Ergueu-se desajeitadamente do assento e reti rou a capa dos estofos. - Oh!

- Lavinia.

Lavinia sentou-se no assento em frente e sacudiu as dobras da capa. Erguendo-a em frente dela, ficou de olhos abertos para o tecido, consternada.

- Oh, não! Isto é horrível. Absolutamente horrível.

- Lavinia, a perda da cliente ter-lhe-á afectado os nervos? Ela ignorou o comentário. Abrindo a capa, patenteou uma mancha escura e húmida.

- Veja o que fez à minha capa, Tobias. Manchou-a toda. Não tenho maneira de explicar esta mancha. Só me resta limpá-la sem que ninguém lá em casa dê por isso.

A exagerada preocupação dela com a capa e com os estofos estava a dar-lhe cabo da boa disposição, pensou ele. O acto de amor tinha sido para ele a mais regozijante experiência desde há muito tempo. E apostaria um elevado montante em como ela tinha, também, ficado amplamente satisfeita. Na verdade, a surpresa que envolvera a voz dela, quando atingira o clímax, convencera-o de que não lhe era familiar o orgasmo sexual. Contudo, em vez de se entregar, depois, à satisfação do prazer mutuamente partilhado, estava preocupada com o raio de uma mancha.

- Felicitações, Lavinia. Faz uma impressionante Lady Macbeth. Estou, porém, certo de que, quando reflectir bem sobre a questão, vai concordar que é muito melhor ter a evidência do nosso recente exercício na sua capa do que noutro lado qualquer.

Lavinia olhou, inquieta, para os estofos ao lado dele.

- Sim, claro. Seria terrível se o assento estivesse manchado, mas, como disse, parece que não.

A carruagem estava a abrandar. Tobias afastou a cortina e viu que tinham chegado a Claremont Lane.

- Eu não mereferia aos estofos.

- Realmente, meu caro senhor, onde é que uma mancha como esta teria tanta importância como nos estofos de Mrs. Dove.

Ele fixou os olhos dela, mas não disse nada.

Lavinia ergueu o sobrolho. A confusão perpassou-lhe pela cara, um segundo antes da compreensão lhe iluminar os olhos.

- Sim, claro - disse ela em tom neutro.

O olhar dela desviou-se do dele, concentrada em embrulhar a capa.

- Não há razão para ficarmos embaraçados, Lavinia. Temos ambos experiência da cama conjugal. Nenhum de nós acabou de sair da escola.

Lavinia olhou fixamente pela janela.

- Sim, claro.

- Enquanto estamos no assunto, falemos francamente. Como se pode verificar pelo raio da mancha na sua capa, tomei a única precaução de que dispunha, dadas as circunstâncias. - Depois acrescentou, abrandando a voz: - Sabemos ambos, porém, que nada nos garante que não haja consequências indesejadas.

As mãos dela apertaram a capa dobrada.

- Sim, claro.

- Se acaso ocorrerem, far-me-á o favor de as discutir comigo, de acordo?

- Sim, claro.

Desta vez, Lavinia soltou a litania num tom duas oitavas acima do tom normal da sua voz.

- Confesso que fui dominado pela ardência do momento. Da próxima vez, porém, vou estar mais preparado. Vou precaver-me com alguns artigos, antes de nos entregarmos a este género de coisas.

- Oh, chegámos - disse ela, num tom demasiado vivo. - Por fim, em casa.

O lacaio corpulento abriu a porta da carruagem e baixou o degrau para Lavinia descer. Ela movimentou-se para a porta como se fosse a saída de emergência de um edifício a arder.

- Boa noite, Tobias.

Tobias inclinou-se e agarrou-lhe uma mão.

- Lavinia, tem a certeza de que está bem? Não me parece nada bem.

- Ah, sim?

O sorriso que ela lhe dirigiu por sobre o ombro brilhava como aço polido. Um sorriso muito à Lavinia, concluiu ele, não sabendo se era bom sinal.

- Foi uma noite muito agitada - lançou ele, cautelosamente. - Os seus nervos ficaram, decerto, afectados.

- Não vejo por que haveriam os meus nervos de ficar afectados. No fim de contas, apenas perdi o meu único cliente e vi a minha bela capa estragada. Vou ter de me preocupar, nos próximos dias, com matéria extremamente pessoal.

Ele fixou-lhe os olhos.

- Pode culpar-me das suas preocupações.

- Oh, sim, vou culpá-lo - disse ela, estendendo a mão ao lacaio. Sem sombra de dúvida, as minhas dificuldades vão dar à sua porta. Mais uma vez, os meus problemas são culpa sua.

Por que é que tudo que envolvia Lavinia era sempre tão complicado, pensava Tobias ao entrar, pouco depois, no seu estúdio, enchendo um bom cálice de brandy e enterrando-se na sua poltrona favorita. Olhou morosamente para o lume mortiço na lareira, visões de uma capa manchada dançando-lhe à frente dos olhos.

A porta abriu-se atrás dele.

- Por fim, chegaste - exclamou Anthony, irrompendo na sala, laço desfeito e camisa aberta. - Parei aqui a caminho de casa, há cerca de uma hora, para saber se tinhas notícias. Entretanto, comi um pedaço da tarte de salmão de Whitby. Devo confessar que tenho saudades da comida dele.

- Como é que podes ter saudades? Fazes aqui a maior parte das refeições, para não falar das petiscadas nocturnas.

- Não quero que te sintas só - disse Anthony, sorrindo. - E não gosto de te saber fora até tão tarde. Uma noitada interessante, imagino eu?

- Encontrei o diário.

Anthony assobiou baixinho.

- As minhas felicitações. Presumo que arrancaste as páginas de particular interesse para ti, para Mrs. Lake e para a vossa cliente.

- Não houve necessidade de as retirar. Alguém se tinha encarregado de o atirar ao lume, antes de eu o encontrar. Os restos permitiam identificá-lo, mas já não prejudicavam ninguém.

- Estou a perceber - Anthony passou a mão pelo cabelo, enquanto ponderava a informação. - Quem quer que matou Félix e roubou o diário quis dar-te a entender, claramente, que podias pôr fim às averiguações, não é isso?

- Acho que sim.

- Disseste-me, no início deste caso, que o diário fazia menção a muita gente, portanto qualquer uma dessas pessoas podia ter morto Holton Félix.

- Exacto.

- Como reagiu Neville á notícia.

- Ainda não o informei dos últimos desenvolvimentos - disse Tobias. Anthony parecia curioso.

- O que é que vais fazer a seguir?

- A seguir? O que vou fazer a seguir é ir para a cama.

- Eu estava para ir para casa, quando ouvi aquela bela carruagem parar à tua porta - disse Anthony com um sorriso trocista. - E, de início, pensei que se tinham enganado na morada. Depois vi-te sair.

- A carruagem é da cliente de Lavinia. - Tobias, bebeu um pouco de brandy. - Ex-cliente, a partir desta noite.

- Porque encontraram o diário?

- Não. Porque Lavinia despediu-se. E disse a Mrs. Dove que recusava os honorários que haviam concertado.

- Não compreendo - Anthony foi postar-se junto do lume a extinguir-se. - A que propósito é que Mrs. Lake havia de recusar os honorários?

Tobias bebeu mais brandy e baixou o copo para o braço da poltrona.

- Fê-lo por minha causa - disse ele.

- Por tua causa?

- Por uma questão de princípios, percebes? Anthony lançou-lhe um olhar desconcertado.

- Não, não percebo. Sem ofensa, Tobias, mas o que dizes não faz grande sentido. O que é que estiveste a beber esta noite?

- Não o suficiente - Tobias bateu com um dedo no cálice. - Lavinia despachou a cliente culpando-a por me ter colocado em dificuldade esta noite.

- Explica, por favor.

Tobias explicou. Quando terminou, Anthony observou-o longamente.

- Bem, bem, bem - disse Anthony, por fim.

Tobias não conseguiu encontrar uma resposta inteligente, por isso ficou calado.

- Bem, bem, bem - disse Anthony outra vez.

- Lavinia tem carácter. E Mrs: Dove conseguiu que ela o evidenciasse, esta noite.

- Nitidamente.

Tobias engoliu o resto do brandy do cálice.

- Acho que, a esta hora, a minha sócia já está arrependida.

Anthony arqueou uma sobrancelha.

- Por que é que dizes isso?

- As últimas palavras dela, ao sair da carruagem, foram para me assacar a culpa de tudo o que lhe acontece.

Anthony abanou a cabeça, aquiescendo.

- Considero uma conclusão avisada da parte dela.

- Acho que te ouvi dizer que estavas prestes a ir para casa.

- Estás com uma das tuas más disposições, não estás? Tobias fez uma pausa, reflectindo.

- Acho que sim.

Anthony examinou-o da cabeça aos pés com uma expressão interessada.

- Disseste que mudaste de roupa depois da briga na travessa, não foi?

- Sim.

- Então, posso assumir que o facto de estares tão amarrotado se deve a outra e mais recente escaramuça?

Tobias semicerrou os olhos.

- Se achas que eu não estou bem disposto agora, continua com as tuas zombarias e vais ver como a minha má disposição pode ser muito desagradável.

- Ah, agora chegamos ao fundo da questão. Beijaste Mrs. Lake e ela esbofeteou-te.

- Mrs. Lake - disse Tobias, acentuando as palavras -, não me esbo feteou.

Anthony olhou para ele, os olhos muito abertos.

- Não pode ser - murmurou ele. - Não me digas que tu. que tu, realmente. Com Mrs. Lake? Na carruagem? Mas ela é uma senhora. Como pudeste fazê-lo?

Tobias olhou para ele. Fosse o que fosse que Anthony viu na cara dele, o que é certo é que foi o suficiente para engolir em seco e desviar o olhar para as brasas na lareira.

O relógio de sala soava, persistentemente, a caminho da aurora. Tobias enterrou-se mais na poltrona. Era irritante ser admoestado por um homem mais novo que nunca na vida estivera seriamente envolvido com uma mulher.

Pouco depois, Anthony aclarou a voz.

- Sabes que ela tenciona ir ao teatro amanhã à noite - disse ele, fazendo uma pausa e olhando para o relógio. - Na realidade, esta noite. De qualquer modo, tu devias ir também. Ela e Emeline vão estar na companhia de Lady Wortham e da filha. Ficava-te bem ires cumprimentá-las ao camarote.

Tobias juntou as pontas dos dedos.

- Achas?

- E não tenhas receio - disse Anthony muito mansamente. - Não me passaria pela cabeça deixar-te sozinho, entregue a ti próprio. Precisas obviamente de um guia. Terei muito prazer em acompanhar-te ao teatro.

- Ah, afinal é isso.

Anthony compôs um ar de perfeita inocência.

- Como?

- Queres ir ao teatro amanhã porque sabes que Miss Emeline vai lá estar. E queres uma desculpa conveniente para ires ao camarote dos Wortham.

A expressão de Anthony ensombrou-se.

- Emeline vai ser exposta no mercado matrimonial amanhã à noite. Lavinia quer atrair um cavalheiro conveniente para ela, como sabes.

- O Apolo sacrificado.

- Exactamente. E Emeline é tão encantadora e tão viva de espírito que receio que o esquema de Lavinia dê fruto.

Tobias estremeceu.

Anthony fez uma pausa, nitidamente preocupado.

- Dói-te muito a perna, esta noite?

- Não é a minha perna que me incomoda. É a referência a fruta. Estava, na verdade, a sentir a perna perfeitamente cómoda naquele momento, pensou Tobias. O brandy, sem dúvida. Porém, agora que pensava no assunto, apercebia-se de que deixara de sentir a habitual incomodidade desde muito antes. Desde que começara a cena de amor com Lavinia. Não há nada como um pouco de distracção para um homem esquecer dores e penas, pensou ele, sombrio.

Anthony estava confundido.

- Não percebi nada. O que é que se passa com a fruta?

- Não interessa. E, se fosse a ti, não me preocupava muito com os esquemas de Lavinia. Emeline é uma jovem interessante e pode atrair alguma atenção, mas, quando começar a correr que não tem nada para herdar, as sagazes mamãs da cidade vão fazer tudo para que os filhos não olhem muito na direcção dela.

- Isso pode ser assim, mas há que ter em conta os libertinos e os sedutores profissionais. Sabes tão bem como eu que nenhuma jovem está a salvo deles. Para eles, seduzir jovens inocentes é um desporto.

- Lavinia sabe proteger Emeline - Tobias recordou o comportamento sereno de Emeline em Roma. - Em boa verdade, tenho a impressão de que Miss Emeline sabe muito bem tomar conta de si própria.

- Contudo, prefiro não correr riscos. - Anthony agarrou o lintel da lareira com força. - E como os meus objectivos se afiguram idênticos aos teus, podemos perfeitamente unir esforços neste projecto.

Tobias expirou profundamente.

- Somos um bom par de tolos.

- Fala por ti - Anthony dirigiu-se alegremente para a porta. - Eu vou comprar os bilhetes logo pela manhã.

- Anthony?

- Sim.

- Já te disse que os pais de Lavinia eram praticantes de mesmerismo.

- Não, mas Miss Emeline referiu-se a isso, acho eu. Porquê?

- Há pouco tempo, andaste interessado no assunto. Achas que é possível um exímio praticante dessa arte pôr um homem em transe sem ele se dar conta disso?

Anthony sorriu devagar.

- É perfeitamente possível que um homem de espírito fraco seja vulnerável à perícia de um muito eficiente praticante. Não imagino porém, nem por um momento, que um homem dotado de uma vontade forte e resoluta, e com apurado sentido de observação, possa, alguma vez, cair em transe.

- Tens a certeza?

- A não ser que ele queira, claro. Anthony passou rapidamente pela porta, fechando-a atrás de si. Tobias ouviu-o rir enquanto atravessava o hall e até sair.

 

- Que se passa consigo, esta manhã? - perguntou Emeline, estendendo a mão para a cafeteira. - Acho-a muito estranha.

- Tenho o direito de estar estranha - disse Lavinia, servindo-se de ovos. Estava, também, com estranho apetite, apercebeu-se ela. Tinha acordado com um apetite extremamente saudável. Efeito, sem dúvida, de todo aquele exercício na carruagem. - Já te disse que fiquei sem a cliente.

- Teve toda a razão em terminar o contrato com Mrs. Dove - disse Emeline, servindo-se do café. - Ela não tinha nada que mandar espiar Mr. March. O que é que ela pretendia com isso?

- Tenho quase a certeza de que ela queria que o criado encontrasse o diário primeiro, ou que o tirasse à força a Mr. March. Ela queria aquele diário ansiosamente. E não queria que nós lêssemos as passagens que se referiam aos seus segredos.

- Mas ela já vos tinha contado tudo?

Lavinia ergueu as sobrancelhas.

- Sinto-me inclinada a concordar com Mr. March. Acho que podemos assumir que os segredos de Mrs. Dove comportam muito mais factos do que os pormenores de uma conduta leviana num passado distante.

- Mas isso já nada interessava, com o diário destruído.

- Sim, e eu talvez tenha sido demasiado impetuosa ao lançar-lhe o dinheiro à cara - disse Lavinia lentamente.

Os olhos de Emeline animaram-se.

- Era uma questão de princípio - disse ela.

- Sim, isso era. Mr. March era um sócio muito difícil, mas era meu sócio neste caso. Eu não podia permitir que um cliente o tratasse como um peão e o utilizasse a seu bel-prazer. Uma pessoa tem o seu orgulho.

- Foi o seu orgulho ou o orgulho de Mr. March que a motivou, ontem à noite? - perguntou Emeline secamente.

- Isso, agora, não interessa. O resultado é que, hoje, já não tenho cliente.

- Não se preocupe, hão-de aparecer outros.

O arreigado optimismo de Emeline era, por vezes, muito irritante, reflectiu Lavinia.

- Já pensei que Mr. March vai, decerto, receber os honorários do seu cliente e que, eventualmente, devia dividi- los comigo. Que achas?

- Acho que sim - disse Emeline.

- Possivelmente, vou falar-lhe nisso - Lavinia pôs-se a mastigar os ovos, com um ar absorto, distraidamente ouvindo o som dos cascos e das rodas de carruagens na rua. - Se queres que te diga, apesar de ser muitas vezes difícil tratar com ele, Mr. March foi muito útil neste caso. Afinal de contas, foi ele quem encontrou o diário.

Emeline olhou para ela com desperta curiosidade.

- O que é que está a pensar, tia Lavinia?

Lavinia teve um elaborado encolher de ombros.

- Tenho andado a pensar que podemos ter mútuo interesse em, ocasionalmente, colaborarmos de futuro.

- Bem. - uma estranha expressão surgiu nos olhos de Emeline:Isso é uma ideia fascinante.

A ideia de uma futura associação com Tobias era estimulante, mas, também, assustadora, concluiu Lavinia. Era melhor mudar de assunto.

- Cada coisa de sua vez - disse ela com firmeza. - Hoje devemos concentrar a atenção na tua ida ao teatro.

- Na nossa ida ao teatro.

- Na verdade, foi muita amabilidade da parte de Lady Wortham ter-me convidado também.

Emeline ergueu as sobrancelhas.

- Eu acho que ela tem muita curiosidade a seu respeito. Lavinia franziu a testa.

- Espero que não lhe tenhas falado nas minhas anteriores profissões.

- Claro que não.

- E tão-pouco da minha actual profissão, espero?

- Não, de modo nenhum.

- Ainda bem - Lavinia descontraiu-se ligeiramente. - Não acredito que Lady Wortham considerasse qualquer das minhas profissões muito adequada.

- Nos meios que ela frequenta não existem profissões adequadas para senhoras - apontou Emeline.

- Tens razão. Esta noite, vou aproveitar a ocasião para dar a enten der que tu dispões de uma modesta, mas segura, herança.

- Isso não é propriamente dar a entender, isso é mais da natureza de uma mentira.

- Ninharias - disse Lavinia, agitando uma mão. - Não te deves é esquecer da última prova com Madame Francesca, esta manhã.

- Não vou esquecer-me, esteja descansada - Emeline hesitou, uma expressão preocupada vincando-lhe a testa, habitualmente desanuviada.

- A propósito desta noite, tia Lavinia, espero que não tenha demasiadas esperanças. Tenho a certeza de que não vou ter grande sucesso.

- Tolice. Vais ficar encantadora no teu vestido novo. Emeline teve um sorriso amargo.

- Não tão encantadora como Priscilla Wortham que é, afinal, como bem sabe, a razão por que a mãe dela é tão amável comigo. Ela acha que, estando eu ao lado de Priscilla, lhe realço os dotes de beleza.

- Eu não dou um figo pelos esquemas de Lady Wortham. - Lavinia calou-se, constrangida. Depois, aclarou a voz e tentou outra expressão. - Não me interessa nada o que Lady Wortham concebeu para apresentar Priscilla da melhor maneira. Como mãe, é essa a sua missão. Acontece é que, com esse seu esquema, proporciona-nos uma oportunidade preciosa e eu tenciono agarrá-la a mãos ambas.

A porta da sala do pequeno-almoço abriu-se sem aviso prévio. Mrs. Chilton apareceu, no olhar uma acentuada expressão de excitação.

- Mrs. Dove está aqui, minha senhora. A senhora recebe visitas a esta hora?

- Mrs. Dove?

O pânico invadiu Lavinia. Tobias enganara-se, ao garantir que não havia manchas nos estofos da carruagem. À luz débil, não notara, decerto, a mancha incriminatória. Assumiu que Joan Dove vinha pedir compensação pelo dano causado nos estofos da sua dispendiosa carruagem. Quanto é que custaria reparar os estofos de uma carruagem daquelas?

- Minha senhora, introduzo-a na sala de visitas ou no estúdio?

- O que é que ela quer? - perguntou Lavinia agressivamente. Mrs. Chilton pareceu admirada.

- Bem, quanto a isso, minha senhora, nada sei. Ela apenas pediu para falar com a senhora. Quer que a mande embora?

- Não, claro que não - Lavinia respirou fundo e incitou-se a si própria: era uma senhora, sabia lidar com aquelas situações. - Eu vou recebê-la. Leve-a, por favor, para o estúdio.

- Muito bem, minha senhora - disse Mrs. Chilton, desaparecendo da porta.

Emeline ficou pensativa.

- Aposto que Mrs. Dove vem insistir em pagar-lhe os honorários pelos seus serviços.

Lavinia recobrou algum ânimo.

- Achas que sim?

- Que outra razão poderia haver?

- Bem.

- Acaso, vem também apresentar desculpas.

- Duvido.

- Tia Lavinia! - exclamou Emeline, a testa franzida. - O que é que se passa? Eu acho que devia estar toda contente por ela vir aqui trazer-lhe o dinheiro que lhe deve.

- Contente? - Lavinia dirigiu-se lentamente para a porta. - Toda contente.

Conseguiu deixar Mrs. Dove à espera uns minutos, antes da espera se tornar insuportável. E tentou parecer polidamente despreocupada e desanuviada ao entrar no estúdio. Uma senhora, enfim.

- Bom dia, Mrs. Dove. Isto é uma surpresa, não a esperava. joan estava de pé, em frente da estante, aparentemente tendo estado a observar os volumes arrumados nas prateleiras. Envergava um vestido cinzento claro, obviamente desenhado por Madame Francesca por forma a realçar-lhe, discretamente, a figura elegante e o cabelo louro e prateado. O véu do chapéu a condizer estava dobrado atractivamente sobre a aba. A expressão nos olhos de Joan era, como sempre, ilegível.

- Vejo que gosta de poesia - disse Joan.

Apanhada de surpresa pelo comentárío inesperado, Lavinia lançou um olhar rápido à estante.

- Actualmente já não tenho muitos livros. Vi-me obrigada a abandonar bom número deles quando regressei, um pouco apressadamente, de uma recente viagem a Itália. Vou levar algum tempo a recompor a minha biblioteca.

- Desculpe-me por vir incomodá-la tão cedo - disse Joan -, mas não dormi nada esta noite e os meus nervos não suportavam mais demoras.

Lavinia descobriu uma passagem para a fortaleza que era a sua secretária.

- Sente-se, por favor.

- Obrigada - agradeceu joan, sentando-se numa poltrona em frente da secretária. - Vou directamente à questão. Quero pedir-lhe desculpa pelo que aconteceu ontem à noite. A minha única justificação é não confiar inteiramente em Mr. March. E, por isso, achei que era melhor vigiá-lo.

- Compreendo.

- Vim, também, insistir em pagar-lhe os honorários que lhe devo. A senhora e Mr. March foram, afinal, bem sucedidos. Não é culpa vossa o diário ter sido destruído.

- Acaso até é melhor assim - disse Lavinia cautelosamente.

- É capaz de ter razão. Contudo, mantem-se uma questão em aberto.

- Quer saber quem lhe enviou o pavoroso quadrinho em cera, não é?

- Não posso ficar descansada enquanto não souber a resposta a isso - disse joan. - E desejo que continue as suas averiguações acerca do assunto.

Joan não fora ali para se queixar de danos na carruagem. Estava ali para pagar o que devià e para contratar novos serviços.

Lavinia sentou-se mais bruscamente do que desejaria. De repente, a manhã parecia muito mais clara, apesar da chuva. Fez um esforço para disfarçar o alívio compondo um ar profissional. Ostensivamente, espalmou as mãos sobre o tampo da secretária.

- Compreendo.

- E concordarei, se achar necessário aumentar os seus honorários, para a compensar do que considera ter sido a minha incapacidade para ser completamente franca no caso do diário.

Lavinia aclarou a voz.

- Dadas as circunstâncias.

- Sim, claro - disse Joan. - Diga quanto.

Se fosse sensata, pensou Lavinia, agarrava aquela segunda oportu nidade, lançava um montante qualquer que lhe viesse à cabeça e punha uma pedra no que se passara. Porém, a recordação do risco a que Tobias estivera sujeito levou-a a insistir.

Contra o próprio julgamento, fixou Joan com um olhar firme.

- Se continuarmos a trabalhar para si, Mrs. Dove, devo tornar-lhe claro que não pode haver mais interferências da sua parte. Não posso permitir que Mr. March seja seguido como se fosse um ladrão ou um vilão. Ele é um profissional, tanto como eu.

Joan ergueu uma sobrancelha.

- Mr. March é importante para si, não é?

Não ia morder aquele anzol, pensou Lavinia.

- Estou certa de que compreenderá que tenho um forte sentido de responsabilidade em relação a Mr. March, dado que ele é meu sócio.

- Compreendo. Um sentido de responsabilidade.

- É isso mesmo. E, agora, Mrs. Dove, dá-me a sua palavra de que não vai mandar ninguém esconder-se nas sombras, enquanto Mr. March procede às averiguações necessárias?

Joan hesitou, mas, depois, inclinou a cabeça ligeiramente.

- Dou-lhe a minha palavra em como não tornarei a interferir.

- Muito bem - disse Lavinia, com um sorriso frio. - Vou, então, enviar uma mensagem a Mr. March. Se ele não puser nenhuma objecção a continuarmos as averiguações, eu aceito o contrato.

- Algo me diz que Mr. March não hesitará quanto a continuar na qualidade de seu associado neste caso, pois, ontem à noite, fiquei com a impressão de que ele não concordava com o modo como me atirou o dinheiro à cara.

Lavinia sentiu o calor subir-lhe ao rosto.

- Eu não lhe atirei o dinheiro à cara, Mrs. Dove. Não literalmente. Joan sorriu, mas não disse nada.

Lavinia recostou-se na cadeira.

- Pois bem, acredito que tenha razão quando diz que Mr. March se disporá a continuar a averiguar o caso. Partindo dessa convicção, tenho de lhe fazer algumas perguntas. Isso poupa-nos tempo.

Joan inclinou a cabeça, concordando.

- Sim, pois claro.

- Temos de assumir que, quem quer que queimou o diário e o deixou onde Mr. March o pudesse encontrar, está a dizer- nos que a chantagem terminou. Suspeito que não irá receber mais mensagens da pessoa que lhe enviou o trabalho em cera. Acho que deve ter perdido o gosto pela chantagem.

- É capaz de ter razão. O conhecimento de que eu contratara profissionais para averiguarem o caso deve, certamente, tê- lo alarmado, obrigando-o a abrigar-se na sombra. Contudo, preciso de saber quem é. - Joan teve um sorriso amargo. - Não posso tolerar que me enviem ameaças de morte.

- Claro que não. Se estivesse na sua pele, sentiria o mesmo. Ontem à noite, na cama, pensei nalguns aspectos da situação. E ocorreu-me que poderia tratar-se de mais qualquer coisa do que simples chantagem. Não fique ofendida, mas tenho de lhe perguntar uma coisa.

- O que é?

- Antes de responder, espero que pense bem e que seja franca. Lavinia hesitou, procurando a forma mais delicada de pôr a questão. Há alguma razão para que alguém deseje feri-la.

Nenhuma emoção se espelhou nos olhos de Joan. Nem surpresa, nem irritação, nem medo. Inclinou simplesmente a cabeça, como se já esperasse a pergunta.

- Não me lembro de nada que eu tenha feito que pudesse levar alguém a desejar matar-me - disse ela.

- A senhora é uma mulher muito rica. Terá empreendido alguns negócios que tenham causado a alguém pesados prejuízos financeiros?

Pela primeira vez, um laivo de emoção surgiu no olhar de Joan. Era uma expressão triste, saudosa, rapidamente velada.

- Durante muitos anos, estive casada com um homem muito sensato e muito inteligente que geria os meus negócios, e os dele, muito brilhantemente. Aprendi muito com ele, acerca de investimentos e de assuntos financeiros, mas não creio que alguma vez venha a ser tão eficiente como ele nessas matérias. Tenho feito o que posso depois da morte de Fielding, mas é tudo muito complicado.

- Compreendo.

- Ando ainda assoberbada com muitos aspectos dos investimentos e dos negócios que ele me deixou. Contudo, tenho a certeza de que nada fiz, desde a sua morte, que se tenha traduzido em prejuízo financeiro para alguém.

- Desculpe-me a insistência, mas não há nada na sua vida pessoal que possa estar envolvido? Alguma coisa de natureza romântica, talvez?

- Eu estava profundamente apaixonada pelo meu marido, Mrs. Lake. Fui-lhe fiel durante todo o nosso casamento e não estabeleci nenhuma relação de carácter íntimo depois da sua morte. Não vejo nenhuma razão de natureza pessoal para alguém me ameaçar.

Lavinia fixou os olhos nos dela.

- Porém, uma ameaça de morte é uma coisa muito pessoal, não acha? Muito mais pessoal do que a chantagem, a qual é mais da natureza de uma transacção.

- Sim, isso é verdade - Joan ergueu-se da poltrona. A encantadora saia do vestido não precisou de ser ajustada, caiu instantaneamente em graciosas dobras. - É por isso que lhe peço que prossiga com as suas averiguações.

Lavinia pôs-se de pé e começou a rodear a secretária.

- Vou mandar uma mensagem a Mr. March de imediato.

- Joan dirigiu-se para a porta.

- A senhora e Mr. March são muito apegados, não são? Inexplicavelmente, a ponta do sapato de Lavinia embateu no tapete, fazendo-a tropeçar. Teve de agarrar-se à secretária para recuperar o equilíbrio.

- Trata-se, apenas, de uma relação de carácter profissional - disse ela; o tom de voz um pouco elevado, pensou. Por demais forçado.

Endireitando-se, correu para abrir a porta.

- Isso surpreende-me - disse Joan, com um ar polidamente divertido. - A julgar pela sua preocupação pela segurança e bem-estar dele, ontem à noite, diria que tinham ambos uma relação pessoal, para além da profissional.

Lavinia escancarou a porta.

- A minha preocupação com ele não é mais do que o sentimento que qualquer pessoa tem por um sócio.

- Sim, claro - Joan saiu para o hall, mas depois parou. - Ah, já me esquecia. Esta manhã, o meu cocheiro disse-me que tinha encontrado uma coisa no assento da carruagem.

Lavinia ficou com a boca seca. A mão apertou a maçaneta da porta. Sabia que, provavelmente, estava a ficar horrivelmente corada, mas nada podia fazer quanto a isso.

- No assento, disse - conseguiu ela dizer baixinho.

- Sim, e acho que é sua - Joan abriu a bolsa e retirou dela um quadrado de musselina dobrada, estendendo-o a Lavinia. - Minha é que não é.

Lavinia ficou de olhos abertos para o tecido: era o lenço que levava ao pescoço, na véspera. Nem dera pela sua falta. Num impulso, levou a mão à garganta.

- Obrigada - disse ela, arrancando o lenço da mão de Joan. - Não me apercebi de que o perdera.

- Temos de ter cuidado numa carruagem - disse Joan, baixando o véu da aba do chapéu. - Especialmente à noite. Na obscuridade, é, por vezes, difícil ver claramente. E podem-se perder coisas valiosas.

Lavinia enviou a mensagem a Tobias, pouco depois de Joan ter partido na sua elegante carruagem castanha.

 

Caro senhor,

Acabo de receber um novo pedido da parte da minha antiga cliente, a qual deseja que prossigamos as averiguações. Tenho a promessa dela de que respeitará certas regras estritas. Está interessado em reassumir a sua qualidade de meu associado, no sentido de prosseguirmos com este caso?

Atentamente, Mrs. L.

 

A resposta dele chegou-lhe menos de uma hora depois.

 

Cara Mrs. L.

Garanto-lhe, minha senhora, que terei muito prazer em assumir qualquer qualidade que lhe convenha, neste nosso caso.

Atentamente, M.

 

Lavinia ponderou a curta mensagem durante muito tempo. Por fim, concluiu que era melhor não tentar ver nenhum significado oculto no que Tobias escrevera, considerando que ele não era muito dado a subtilezas nos contactos com ela.

O homem não era um poeta, no fim de contas.

 

- Destruído, disse? - Neville parecia muito confundido com a notí cia. - Raio. Completamente queimado?

- Se fosse a si, baixava um bocado a voz - disse Tobias, relanceando significativamente o olhar em redor da sala do clube, ligeira mente abarrotada. - Nunca sabemos quem possa estar a ouvir-nos.

- Sim, tem razão - Neville abanou a cabeça, embaraçado. - Esqueci- me disso. O facto é que estou absolutamente espantado com o desenrolar dos acontecimentos. Não restava nada?

- Foram poupadas apenas umas poucas páginas. Acho que com a intenção de me permitir confirmar que se tratava do diário que procurá vamos.

- Mas todas as páginas contendo referências aos membros do Clube Azul. estavam ilegíveis?

- Eu examinei as cinzas cuidadosamente - assegurou-o Tobias. Não havia nada de interesse nelas.

- Maldição! - Neville fechou a mão em punho, mas o gesto tinha algo de teatral. - Isso significa que o caso está encerrado, não é?

- Bem.

- É muito frustrante, claro. Eu tinha muito interesse em saber o nome do membro sobrevivente do Clube Azul, o homem que foi traidor durante a guerra.

- Compreendo.

- Com a destruição do diário, nunca mais vamos conhecer esse nome, como tão-pouco vamos conhecer a identidade de Azure.

- Considerando que ele morreu há cerca de um ano, talvez isso já não tenha importância - disse Tobias.

Neville franziu a testa e pegou na garrafa de clarete.

- Acho que tem razão. Eu teria pago muito para lançar as mãos ao diário, mas, no fim de contas, o essencial é que o Clube Azul deixou de existir como organização criminosa.

Tobias recostou-se na poltrona e uniu as pontas dos dedos.

- Subsiste um pequeno problema.

Neville interrompeu o gesto de encher o copo e perguntou, bruscamente:

- Qual?

- Quem quer que destruiu o diário deve tê-lo lido.

Neville sobressaltou-se, visivelmente.

- Lido. Raio, claro que o leu. Não tinha pensado nesse aspecto.

- Há alguém que sabe quem era realmente Azure. E essa mesma pessoa conhece, também, a identidade do membro restante do Clube Azul.

A garrafa de clarete tremeu um pouco na mão de Neville.

- Raios o partam, homem, você tem razão.

- Quem quer que seja, pode não ter nenhuma intenção de revelar os segredos do diário. Aliás, presumo que era isso que nos queria dar a entender, ao montar o esquema para eu encontrar as páginas queimadas - Tobias fez uma pausa, deliberadamente. - Contudo, ele sabe as respostas às nossas questões. Isso torna-o perigoso.

- Bem. - Neville pousou a garrafa com cuidado. - Bem, isso é uma verdade. O que é que sugere?

- Eu estou disposto a prosseguir com as minhas averiguações sobre o caso - disse Tobias, sorrindo. - Se estiver disposto a pagar-me os honorários.

 

Ninguém podia negar que Priscilla Wortham era uma jovem extremamente atraente. Porém, naquela noite, na opinião de Lavinia, estava um pouco exagerada no elegante vestido vermelho de musselina.

A experiência que adquirira nas visitas ao estabelecimento de Madame Francesca, nos últimos dias, haviam-lhe ensinado muita coisa, pensou. A modista tinha opiniões muito precisas a respeito de moda, com as quais Lavinia não hesitara em concordar. Graças ao que aprendera, em consequéncia da encomenda dos vestidos para ela e para Emeline, Lavinia podia dizer, por exemplo, que havia demasiados recortes na orla do vestido de Priscilla.

Por outro lado, o cabelo claro de Priscilla estava empilhado dema siado alto, numa profusão de caracóis artisticamente dispostos, ornamentados com um sem número de flores vermelhas, cujo tom condizia com o do vestido. As luvas eram, também, muito vermelhas.

Com tudo aquilo, concluía Lavinia, Priscilla parecia um bolo de creme, com uma cobertura de gelado vermelho. Emeline levava-lhe a melhor, no camarote do teatro.

Sentada ao lado de Priscilla, por insistência de Lady Wortham, Emeline era o perfeito contraste da amiga. Lavinia suspirara de alívio ao notar que a tirânica Madame Francesca estava correcta, ao insistir num vestido simples, num algodão verde do Egipto pouco visto. O cabelo escuru de Emeline estava apanhado numa elegante e bem arranjada composição que lhe realçava os belos olhos inteligentes. As luvas eram num tom um pouco mais escuro do que o do vestido.

O sacrifício do Apolo valera a pena, pensou Lavinia, toda orgulhosa, ao acenderem-se as luzes para o intervalo. Ao início da noite, a grande preocupação dela era se Lady Wortham não iria olhar para Emeline mais como uma concorrente do que como um simples adorno de Priscilla. O receio, porém, logo se revelou sem fundamento. Lady Wortham lançara um olhar ao vestido simples e de corte elegante de Emeline e não se preocupara em disfarçar o alívio, achando que não

fazia sombra ao vestido de Priscilla.

As duas jovens tinham já sido objecto de bom número de olhares admirativos naquela noite. Lady Wortham estava nitidamente deleitada. Obviamente, acreditava que os olhares eram dirigidos à filha. Lavinia, pelo seu lado, tinha a certeza de que boa parte deles se dirigiam a Emeline.

- Um belo espectáculo, não acha? - disse Lavinia para Lady Wortham.

- Tolerável - Lady Wortham baixou a voz, para que Emeline e Priscilla não a ouvissem por sobre o rumor das conversas que enchia o teatro. - Mas acho que devo dizer-lhe que o vestido da sua sobrinha é demasiado austero para uma jovem. E aquele estranho tom de verde! Nada consentâneo. Tenho de lhe dar o nome da minha modista.

- É muita amabilidade da sua parte - disse Lavinia, introduzindo um tom de desculpa na voz -, mas estamos muito satisfeitas com a nossa.

- É pena. - O olhar desaprovador de Lady Wortham pousou, por momentos, no próprio vestido de cetim de Lavinia. - Como costumo dizer, uma boa modista vale o seu peso em ouro.

- Isso é verdade - disse Lavinia, abrindo o leque.

- Estou certa de que a minha nunca lhe recomendaria esse tom de púrpura. Sobretudo com esse seu cabelo ruivo.

Lavinia cerrou os dentes. Foi salva da obrigação da resposta porque o pesado reposteiro de veludo do camarote se abriu, surgindo Anthony, muito elegante no fraque de bom corte e no laço elaboradamente composto.

- Espero não incomodar - disse ele com uma graciosa vénia. Queria apresentar os meus respeitos a todas as encantadoras senhoras deste camarote.

- Anthony, quero dizer, Mr. Sinclair - disse Emeline com um sorriso aberto -, é um prazer vê-lo aqui.

Lady Wortham baixou a cabeça, agradada, um brilho de satisfação no olhar agudo.

- Queira sentar-se, Mr. Sinclair.

Anthony pegou numa cadeira e colocou-a com precisão entre Emeline e Priscilla. Os três jovens logo se lançaram numa viva discussão a respeito da peça. Voltaram-se cabeças nos camarotes vizinhos.

Lavinia trocou um olhar cúmplice com Lady Wortham. Nunca iriam ser amigas, pensou, mas, naquele momento, eram aliadas. Tinham ambas consciência de que, no mercado matrimonial, nada despertava mais interesse em relação a uma jovem do que ver-se um jovem apresentável a cortejá-la. Anthony era um bom trunfo para o camarote.

- Onde está Mr. March? - perguntou Emeline, numa pequena pausa na conversa.

- Deve vir aqui dentro em pouco - disse Anthony, com um relancear de olhos para Lavinia. - Disse-me que queria, primeiro, dar uma palavra a Neville.

A informação despertou a atenção de Lavinia.

- Lorde Neville está cá esta noite?

- Sim, está naquele camarote ali em frente - disse Anthony, incli nando a cabeça casualmente na direcção de um camarote do outro lado do teatro. - Está sentado ao lado da mulher. E Tobias está lá com eles. Espero que ele aqui venha, quando terminar a conversa.

Lavinia pegou nos seus binóculos de ópera e apontou-os na direcção indicada por Anthony. Viu Tobias e suspendeu a respiração. Era a primeira vez que o via desde o encontro na carruagem de Mrs. Dove. Ficou apavorada com a sensação de excitação que dela se apossou.

Ele acabava de entrar no camarote de Neville. Enquanto olhava, Tobias inclinou-se polidamente para a mão de mulher de vestido azul de bom corte.

Lady Neville parecia andar nos seus quarenta anos. Lavinia exami nou-a por momentos e concluiu que era uma daquelas mulheres para quem se tinha inventado a expressão uma mulher elegante. Era uma senhora alta, de nobre postura que, na juventude, devia ter sido considerada trivial. Possuía o tipo de feições que, na maturidade, adquirem uma qualidade de patrícia. O vestido tinha um corte de estilo elegantemente rigoroso, o que levou Lavinia a pensar se não seria uma das clientes de Madame Francesca. Mesmo à distância, as jóias no pescoço e nas orelhas brilhavam tanto como as luzes do teatro.

O aspecto do homem enorme, pesadamente constituído, sentado ao lado dela parecia ter amadurecido de modo directamente oposto ao da sua mulher. Lavinia não tinha dúvidas de que Lorde Neville devia ter tido, quando jovem, uma impressionante e atlética compleição. Porém, as feições bem desenhadas haviam-se tornado duras e grosseiras, de um modo desagradável que revelava deboche e autocomplacência.

- Conhece Lorde e Lady Neville? - perguntou Lady Wortham com indisfarçado interesse.

- Não, não conheço - disse Lavinia. - Ainda não tive esse prazer.

- Compreendo.

Sentindo que ela e Emeline tinham descido uns pontos na consideração da anfitriã, Lavinia tentou recuperar um pouco do terreno perdido.

- Mas conheço muito bem Mr. March - apontou ela. Meu Deus, devia estar, realmente, muito desesperada. Quem havia de dizer que se veria na contingência de recorrer ao nome de Tobias num lance frenético para elevar o seu próprio estatuto social?

- Hum. - Lady Wortham olhou para o outro camarote com um olhar especulativo. - Mr. March é o cavalheiro que está a conversar com Neville?

- Sim.

- Não o conheço, mas, se tem relações tão familiares com Lorde Neville, deve ser um cavalheiro aceitável.

- Hum. - Lavinia pôs-se a pensar o que pensaria Lady Wortham da aceitabilidade de Tobias, se soubesse o que ele tinha feito na carruagem, na noite anterior. - E a senhora, tem relações com Lorde e Lady Neville?

- Ao longo dos anos, eu e o meu marido temos recebido convites para os mesmos bailes e festas que Neville e sua mulher - disse Lady Wortham, friamente vaga. - Bem vê, frequentamos os mesmos círculos.

Lérias, pensou Lavinia. Receber convites para os mesmos acontecimentos sociais não significava uma apresentação formal, e ambas sabiam isso. Anfitriãs desesperadas enviavam rotineiramente convites para toda a genté da alta sociedade, mas isso não queria dizer que toda a gente os aceitasse.

- Compreendo - murmurou Lavinia. - Portanto, não conhece, realmente, Lorde e Lady Neville?

Lady Wortham eriçou-se.

- Em boa verdade, eu e Constance fomos apresentadas na mesma temporada. Lembro- me muito bem dela. Na altura, ela era extremamente vulgar, para dizer o mínimo. Se não fosse a enorme herança, teria ficado na prateleira.

- Neville casou com ela pela fortuna? - perguntou Lavinia, curiosa.

- Claro - Lady Wortham soprou, delicadamente. - Toda a gente sabia isso, na altura. Não havia absolutamente mais nada a recomendar Constance. Não era bonita e não tinha nada bom gosto.

- Mas parece ter adquirido esse bom gosto - disse Lavinia. Lady Wortham ergueu os binóculos e espreitou para o outro lado do teatro.

- Os diamantes imprimem essa virtude a uma mulher - disse éla, baixando os binóculos. - Mr. March já saiu do camarote. Quando ele chegar, vamos ter uma bela reunião aqui.

Lady Wortham estava quase a esfregar as mãos de contente, sorrindo antecipadamente à ideia de dispor de um segundo cavalheiro para expor ao lado de Priscilla, pensou Lavinia.

O reposteiro de veludo abriu-se de novo. Mas não foi Tobias quem entrou no camarote.

- Mrs. Lake! - Lorde Pomfrey lançou-lhe um olhar ardente, um pouco ofuscado pelo óbvio estado de embriaguês. - Pareceu-me vê-la do outro lado do teatro. Que sorte tornar a encontrá-la. Tenho pensado em si desde Itália.

As palavras saíam-lhe arrastadas e não se aguentava bem em pé. O choque de o tornar a ver, após tantos meses, pregou Lavinia ao assento por alguns segundos. Mas não era a única pessoa imobilizada pela entrada de Pomfrey. Ao lado dela, sentiu Lady Wortham ficar rígida como uma pedra.

A sua anfitriã tinha, claramente, conhecimento da reputação de Pomfrey como um debochado por mulheres, pensou Lavinia. Ele não era, decididamente, o género de cavalheiro apresentável que ela desejava no camarote junto da inocente filha. Lavinia compreendi-a. Ela própria não tinha particular interesse em ver Pomfrey próximo de Emeline, fosse onde fosse.

O socorro surgiu galantemente da parte de Anthony. Olhou de relance para Lavinia e ergueu-se de imediato, cortando o passo a Pomfrey.

- Acho que não nos conhecemos - disse Anthony.

Pomfrey olhou-o de cima a baixo e, aparentemente, tomou a decisão de o despachar.

- Pomfrey - disse ele com voz arrastada. - Eu sou um bom amigo de Mrs. Lake - acrescentou, voltando-se para Lavinia com um sorriso que mais parecia um esgar nojento. - Posso dizer, mesmo, um amigo íntimo. Nós dávamo-nos muito bem em Itália, não é verdade, Lavinia?

Lady Wortham soltou um profundo suspiro.

Era tempo de dominar a situação, pensou Lavinia.

- Está enganado, meu caro senhor - disse ela bruscamente. - Nós não nos dávamos bem. O senhor era amigo era de Mrs. Underwood, acho eu.

- Foi ela, de facto, quem nos apresentou - concordou Pomfrey num tom repleto de implicações sensuais. - E estou-lhe muito grato por isso. Soube alguma coisa dela depois de ela ter fugido com o conde?

- Não, não sei de nada - disse Lavinia friamente. - Segundo me lembro, o senhor é casado. Como está Lady Pomfrey?

Pomfrey não ficou abalado com a referência à sua sofredora esposa.

- Está com uns amigos numa casa de campo, acho eu - Pomfrey olhou para Emeline e para uma Priscilla de olhos muito abertos. - Não me apresenta às suas encantadoras amigas?

- Não - disse Lavinia.

- Não - disse Anthony.

As pestanas de Lady Wortham piscaram.

- Isso não é possível.

Anthony avançou um passo.

- Como pode ver, o camarote está apinhado, caro senhor. Tenha a bondade de sair.

Pomfrey ficou irritado.

- Não sei quem você é, mas está no meu caminho.

- E é onde tenciono ficar.

Muitas cabeças se voltavam para eles. Lavinia via os raios de luz reflectidos pelas lentes em diversos pontos ao redor do teatro. As pessoas estavam a apontar-lhes as lunetas de cabo comprido e os binóculos de ópera. Duvidava que alguém pudesse ouvir o que diziam, mas era evidente o ambiente de tensão que pairava no camarote dos Wortham.

O crescente horror de Lady Wortham também era indubitável. Lavinia quase sentia a sua anfitriã a desfazer- se, perante a cena que se desenrolava, com a sua adorada Priscilla no centro do palco.

- Saia do meu caminho - disse Pomfrey em tom bastante sereno.

- Não - disse Anthony, em voz baixa e firme, fazendo lembrar Tobias. - Tem de sair imediatamente.

A cólera surgiu no olhar de Pomfrey.

Lavinia sentiu um nó no estômago. Anthony estava a ter uma atitude que, se tudo se complicasse, podia levá-lo a um duelo. Tinha de pôr cobro àquilo.

- Saia daqui, Pomfrey - disse ela. - Imediatamente.

- Não vou sair daqui sem que me dê a honra de me convidar a visitá-la - disse Pomfrey. - Amanhã à tarde seria óptimo.

- Amanhã à tarde não é, de modo nenhum, óptimo para mimdisse Lavinia.

- Eu posso esperar mais um dia para renovar a nossa íntima relação. No fim de contas, já esperei vários meses.

Lady Wortham fez uma valorosa tentativa para assumir o comando.

- Nós aguardamos outra visita, Pomfrey. E não dispomos, de facto, de espaço para o termos aqui. Espero que compreenda.

Pomfrey examinou Emeline e Priscilla com uma expressão desagradável. Depois, voltou-se para Lady Wortham e fez-lhe uma vénia algo desequilibrada.

- Não vou sair daqui sem prestar os meus respeitos a estas encantadoras jovens. E insisto numa apresentação. Quem sabe se um dia não as vou encontrar num baile ou num serão. Posso querer solicitar-lhes uma dança.

A ideia de apresentar aquele reputado debochado à filha levou à cara de Lady Wortham uma imprópria cor avermelhada.

- Receio que isso seja impossível - disse ela.

Anthony fechou os punhos, braços tensos aos lados.

- Saia, senhor. Imediatamente.

Os olhos de Pomfrey ficaram cheios de raiva. Voltou-se para Anthony com o ar de um buldogue a enfrentar um cãozinho.

- Você está a irritar-me. Se não sai da minha frente, vou ter de lhe dar uma lição de boas maneiras.

Lavinia ficou gelada. A situação estava a ficar sem controlo.

- Na verdade, Pomfrey, você é que está a ser extremamente cansativo - disse ela. - Não percebo como é que gosta de fazer essa triste figura.

Apercebeu-se, de imediato, de que fora demasiado longe. Pomfrey não era, de modo nenhum, um homem equilibrado, recordou. Quando bebia, era imprevisível e predisposto à violência.

A fúria brilhou nos olhos de Pomfrey, mas o reposteiro abriu-se antes de poder responder ao insulto de Lavinia. Tobias entrou no ca marote.

- Mrs. Lake não está correcta, Pomfrey - disse Tobias serenamente. Você não está a ser cansativo. Já avançou muito para a fase de perfeito maçador.

Pomfrey sobressaltou-se perante o ataque inesperado, mas logo se recompôs, na cara uma expressão de espanto, mas, também, de inflamada fúria.

- March? Que raio está você a fazer aqui? Não tem nada a ver com isto.

- Ah; isso pensa você, mas eu tenho muito a ver com isto - disse Tobias, olhando-o nos olhos. - Espero que entenda o que quero dizer.

Pomfrey ficou inflamado.

- O quê? Você e Mrs. Lake? Nunca ouvi falar de uma ligação entre os dois.

Tobias lançou-lhe um olhar tão frio que Lavinia ficou admirada que Pomfrey não caísse congelado no chão.

- Pois bem, agora já ouviu falar da nossa ligação, não ouviu? - disse Tobias.

- Ouça lá - rugiu Pomfrey -, eu conheci Mrs. Lake em Itália.

- Mas não muito bem, obviamente, caso contrário saberia que ela o considera um grande maçador. E se é incapaz de sair do camarote pelo seu próprio pé, terei muito gosto em ajudá-lo a sair.

- Raio, isso é uma ameaça?

Tobias considerou a pergunta um momento e, depois, inclinou a cabeça, aquiescendo.

- Sim, acho que sim.

A cara de Pomfrey ficou alterada.

- Como é que se atreve.

Tobias encolheu os ombros.

- Ficaria admirado como é fácil ameaçá-lo, Pomfrey. Mesmo muito fácil. Eu diria, até, que é a coisa mais natural.

- Vai pagar-me por isto, March.

Tobias sorriu.

- Acho que posso suportar o preço.

Pomfrey ficou todo vermelho, as mãos a abanar. Lavinia ficou aterrorizada, pensando que ele estava prestes a lançar um repto formal.

- Não - exclamou ela, já meio erguida da cadeira - Não, espere, Pomfrey, não faça isso. Não o vou permitir.

Pomfrey, porém, não lhe prestou atenção, concentrado que estava em Tobias. E, em vez de confirmar os receios dela, com um repto à pistola de madrugada, espantou toda a gente lançando um repentino e potente soco ao abdómen de Tobias.

Tobias devia estar à espera do soco, pois recuou, escapando por um triz ao punho de Pomfrey. O rápido movimento, porém, afectou-lhe o equilibrio. Lavinia viu que a perna esquerda lhe falhava. Tobias agarrou a orla do reposteiro em busca de apoio, mas o pesado reposteiro revelou-se incapaz de suportar o peso dele, soltando-se de várias das argolas que o seguravam ao varão e ficando pendente.

Tobias cambaleou contra a parede.

Priscilla soltou um gritinho. Emeline pôs-se de pé. Anthony praguejou baixinho e postou-se em frente das duas jovens, numa tentativa fútil de lhes ocultar o triste espectáculo da violência masculina.

Tobias deslizava para o chão no preciso momento em que o punho de Pomfrey chocava com a parede, com um rangido estridente. Pomfrey soltou um gemido de dor abafado e pôs-se a esfregar a mão com a palma da outra.

Lavinia ouviu um eshanl o rumor. Levou uns momentos a compreender que a multidão se manifestava, aplaudindo o espectáculo. A julgar pelas exclamações de incitamento, as pessoas pareciam apreciar mais aquele entretenimento do que o que se passara até ali no palco, pensou ela.

Ouviu atrás de si um gemido, seguido de um baque pesado. Quando olhou para trás, viu que Lady Wortham caíra da cadeira e estava esten dida, de costas, no chão.

- Mamã - exclamou Priscilla, correndo para ela. - Oh, meu Deus, espero que se tenha lembrado de trazer a vinagreta.

- A minha bolsa - ofegou Lady Wortham. - Depressa! Tobias agarrou o balaústre e firmou-se nele para se pôr em pé.

- Talvez fosse melhor terminarmos isto num local mais apropriado, Pomfrey. A alameda em frente do teatro servia bem.

Pomfrey ficou a pestanejar em frente de Tobias. Parecia ter-se apercebido da gritaria ululante da multidão. A raiva nos olhos metamorfoseara-se numa expressão de pasmo. Diversos homens na plateia berravam-lhe, incitando-o a aplicar outro murro.

A raiva batia-se com a humilhação, enquanto irrompia em Pomfrey a consciência de que se envolvera num escândalo público.

Por fim, as forças da humilhação venceram.

- Arrumamos isto noutra ocasião, March.

Pomfrey inspirou entrecortadamente, depois rodopiou e saiu do camarote, cambaleante.

A multidão sublinhou o seu desapontamento com um coro de assobios. No chão, Lady Wortham tornou a gemer.

- Mamã? - Priscilla agitava o frasco de vinagreta junto ao nariz da mãe. - Como se sente?

- Nunca fui tão humilhada na minha vida - gemeu Lady Wortham. Não vamos poder aparecer em público o resto da temporada. Mrs. Lake arruinou-nos.

- Oh, meu Deus! - exclamou Lavinia.

Era tudo culpa dele, pensou Tobias. Uma vez mais. Um silêncio de funeral enchia a carruagem. Anthony e Emeline estavam sentados em frente de Tobias e de Lavinia. Nenhum deles pronunciara uma palavra desde que haviam saído do teatro. De quando em vez, olhavam para Lavinia, logo afastando o olhar, incapazes de encontrar palavras de consolo.

Lavinia estava sentada muito direita, cabeça virada, a olhar a noite pela janela. Tobias sabia que ela lhe assacava as culpas do que acontecera.

Forçou-se a agir cavalheirescamente.

- Peço-lhe desculpa, Lavinia, por lhe ter estragado os planos para esta noite.

Lavinia produziu um pequeno e inarticulado som e procurou um lencinho na bolsa. Tobias olhou, espantado, ao vê-la levar aos olhos o tecido arrendado.

- Diabo, Lavinia, está a chorar?

Lavinia soltou outro som estranho e enterrou o rosto no lencinho.

- Olha o que tu fizeste - disse Anthony, inclinando-se para a frente. Mrs. Lake, eu e Tobias não sabemos como exprimir-lhe quanto lamentamos o que aconteceu esta noite. Mas afianço-lhe que nenhum de nós pensou, alguma vez, em causar-lhe o mínimo pesar.

Lavinia encolheu-se, um estremecimento percorrendo-lhe o corpo todo, mas não retirou o lenço da cara.

- Pomfrey é um homem horroroso, tia Lavinia - disse Emeline gentilmente. - E sabe isso melhor do que ninguém. Foi uma infeliz circunstância ele ter aparecido esta noite, mas dada a triste figura que ele fez, não sei, realmente, que mais poderiam ter feito Mr. March e Anthony.

Lavinia abanou a cabeça, calada.

- Eu sei que esperava que eu atraísse alguma atenção esta noite.

- Ao menos nisso fomos bem sucedidos - disse Tobias secamente. Lavinia assoou-se audivelmente ao lenço.

Anthony abriu os olhos para Tobias.

- Esta é uma ocasião pouco apropriada para revelares a tua estranha noção de humor. Mrs. Lake acha que está confrontada com um irrecuperável desastre e com muita razão. Eu penso que não é arriscado afirmar que a cena desta noite, no camarote de Lady Wortham, vai ser o tema principal das conversas às mesas do chá servido amanhã. Para não falar dos comentários nos clubes.

- Peço perdão - murmurou Tobias.

Não conseguiu pensar em mais nada para dizer. Já vira Lavinia com os mais variados estados de espírito, mas havia nela uma resistência que lhe parecia inabalável. Aquela, porém, era a primeira vez que a via a soluçar. Nunca imaginaria que ela pudesse entregar-se a um ataque de choro perante um mero fiasco social. Sentia- se perdido, sem entender nada.

- Bem, no que me diz respeito, não foi propriamente um desastre - disse Emeline vivamente.

Lavinia murmurou qualquer coisa incompreensível.

Emeline suspirou.

- Eu sei que se esforçou muito para incutir em Lady Wortham a ideia de me convidar para ir ao teatro, esta noite. E não esqueço que sacrificou o Apolo por estes vestidos amorosos. Lamento que as coisas não tenham corrido como esperava, contudo, eu tinha-lhe dito que não me sentia particularmente entusiasmada em ser colocada em exposição.

- Hum - fez Lavinia para o lenço.

- Não foi por culpa de Mr. March que Pomfrey fez aquela figura de asno - insistiu Emeline. - Na verdade, não é justo que o culpe a ele, ou a Anthony, pelo que aconteceu.

- Por favor não chore mais, Mrs. Lake - disse Anthony. - Estou certo de que os comentários vão cessar depressa. No fim de contas, Lady Wortham não ocupa uma posição particularmente elevada na alta sociedade. O assunto vai ser esquecido rapidamente.

- Nós vamos também ficar arruinadas, tanto como Lady Wortham - murmurou Lavinia para dentro do lenço. - Não o podemos evitar. Duvido que um único cavalheiro aceitável procure Emeline, amanhã. Mas o que está feito, está feito.

- As lágrimas não remedeiam nada - disse Emeline, preocupada. Realmente, só a tia, para se pôr a chorar por uma coisa destas.

- Mrs. Lake tem tido os nervos sujeitos a grande tensão, ultimamente - recordou-lhes Anthony.

- Não chore mais, Lavinia - interveio Tobias. - Está a enervar-nos a todos.

- Receio que não possa evitá-lo - disse Lavinia, erguendo lentamente a cabeça e revelando os olhos húmidos. - Aquela expressão na cara de Lady Wortham! Acho que nunca vi nada tão hilariante na minha vida.

Lavinia encostou-se ao canto do assento, entregue a novo ataque de riso.

Olharam todos para ela, espantados.

Emeline ficou de boca aberta. Anthony começou a arreganhar um sorriso. No momento a seguir, estavam todos a rir.

Algo se descontraiu no interior de Tobias. Já não se sentia como se fosse para um funeral.

- Ah, aí vem você, March - Crakenburne baixou o jornal e mirou Tobias por cima dos óculos. - Ouvi dizer que foi responsável por uma cena muito divertida no teatro, ontem à noite.

Tobias deixou-se cair numa poltrona próxima.

- Tagarelice primária e má-língua despudorada.

- Ora, ora - contrapôs Crackenburne. - Não vai conseguir que essa sua versão dos acontecimentos venha a pegar, com todo um teatro cheio de testemunhas. Há quem pense que Pomfrey o vai desafiar.

- Por que iria fazê-lo? Ele foi claramente o vencedor.

- Foi o que me disseram - Crackenburne fez uma pausa. - Como é que aquilo aconteceu?

- O homem teve lições de boxe com o próprio Jackson. Eu não tinha hipótese nenhuma.

- Hum. - As bastas sobrancelhas de Crackenburne uniram-se sobre o grosso nariz. - Brinque à vontade com o assunto, mas tenha cuidado com Pomfrey. Ele tem uma reputação de violência, quando está com os copos.

- Agradeço o conselho, mas acho que não corro o perigo de ser desafiado por Pomfrey.

- Concordo consigo. Não me parece que ele o convide para um duelo. Pomfrey só terá coragem para o desafiar se estiver embriagado. E, mesmo se o fizesse, tenho a certeza de que retiraria o repto, logo que os efeitos da bebida passassem. No fundo, ele não é apenas um tolo, é, também, um cobarde.

Tobias encolheu os ombros e sorriu.

- Então, por que é que está preocupado comigo?

- Porque o acho bem capaz de lançar mão de outros meios para se vingar de si. - Crackenburne ergueu, de novo, o jornal para a frente dos olhos. - Aconselho-o a, durante algum tempo, se inibir de longos passeios à noite, sozinho. e a afastar-se de locais mal iluminados.

 

Lavinia puxou a touca larga para cima dos olhos e ajeitou o cachecol de lã de forma a ocultar-lhe as feições. O avental que levava por cima do vestido muito remendado era o que Mrs. Chilton usava quando esfregava os soalhos. Meias espessas e sapatos grosseiros completavam o disfarce.

Olhou para a mulher sentada num banco junto da lareira, mulher que conhecia apenas como Peg.

- Tem a certeza de que Mr. Huggett vai estar ausente toda a tarde? - perguntou Lavinia.

- Sim - disse Peg, mastigando uma empada. - Huggett tem tratamento todas as quintas. O único que fica aí é o moço, o Gordy, mas não se preocupe com ele, pois vai ficar à entrada, a vender bilhetes. Se não se for entreter com a namorada, lá para trás.

- Que tratamentos anda Mr. Huggett a fazer?

Os olhos de Peg bailaram.

- Vai a um desses gajos que usam o magnetismo animal para tirar as dores das juntas e isso.

- Mesmerismo?

- Sim, ele sofre muito de reumatismo.

- Estou a perceber - Lavinia levantou o balde com água suja. Bem, então vou andando. - Entretanto, parou, voltando-se para trás. Que tal estou, Peg?

- Um espectáculo - disse Peg, pegando noutra empada. - Se não sou besse que é uma senhora, ficava preocupada que quisesse roubar-me o lugar.

- Não se preocupe, eu não quero o seu lugar - Lavinia agarrou no cabo do esfregão todo sujo. - Como lhe disse, a minha única intenção é ganhar a aposta que fiz com um amigo.

Peg lançou-lhe um olhar cúmplice.

- É uma boa maquia, não?

- O bastante para valer a pena eu pagar-lhe para me deixar levar por diante esta mascarada - disse Lavinia, subindo os degraus que davam do quartito de Peg para a travessa. - Dentro de uma hora devolvo-lhe estas coisas.

- Esteja à vontade - Peg inclinou-se para trás no banco e esticou as pernas dormentes. - Não é primeira vez que eu empresto o meu balde e o meu esfregão por uma hora ou duas, embora seja a primeira vez que me dizem que é para ganhar uma aposta.

Lavinia parou no último degrau e voltou-se rapidamente. - Mais alguém lhe pediu para tomar o seu lugar? - Sim - Peg teve uma risada asmática. - Eu tenho um arranjinho com umas mocinhas ambiciosas. Vou contar-lhe um pequeno segredo. A velha Peg faz mais dinheiro a alugar o balde, o esfregão e essas coisas do que o que recebe do unhas-de-fome que é o Huggett, essa é que é a verdade. Como é que julga que consegui arranjar este quartito?

- Não compreendo. Como é que alguém se dispõe a pagar-Ihe para esfregar soalhos em seu lugar?

Peg piscou-lhe o olho.

- Alguns dos clientes ficam muito excitados quando visitam a galeria ao cimo das escadas de caracol. As figuras expostas dão desejos de praticar um pouco de desporto e, se houver uma criadita predisposta por perto, ficam todos contentes em dar-lhes umas moedas para as lubrificar, se entende o que quero dizer.

- Acho que compreendo - disse Lavinia, dominando um estremecimento. - Não precisa de entrar em pormenores. Eu não vim aqui interessada nesse negócio. Não é o meu ramo.

- Não, claro que não - Peg engoliu um pedaço de empada e limpou a boca com a mão suja. - A senhora é uma dama. Alugou- me o balde e o esfregão por brincadeira e para ganhar uma aposta, não porque a sua próxima refeição depende disso.

Lavinia não conseguiu pensar em nada para responder àquilo. Sem mais palavras, saiu para a estreita travessa.

Não levou muito tempo a percorrer a curta distância que a separava do Museu Huggett, perto de Convent Garden. Encontrou a passagem que dava para as traseiras do estabelecimento. A porta de trás estava aberta, como Peg dissera.

Segurando o esfregão e o balde de água suja, Lavinia inspirou fundo e entrou. Viu-se num hall sombrio. A porta da esquerda, que Peg informara ser o escritório de Huggett estava fechada à chave.

Soltou a respiração que retivera. O proprietário do museu parecia, de facto, ter-se ausentado por algum tempo. A escassamente iluminada galeria do rés-do-chão estava quase vazia, como parecia estar no dia em que ela e Tobias a haviam percorrido. Nenhum dos raros clientes olhou para ela.

Passou pela cena do roubo do túmulo e pela do homem enforcado. Ao fundo da sala, encontrou as escadas em espiral.

Pela primeira vez, desde que, naquela manhã, lhe ocorrera a ideia de investigar a galeria superior de Huggett, hesitou.

Donde estava, não conseguia distinguir a porta ao cimo das escadas que Peg lhe descrevera, pois estava oculta pela penumbra. Uma picada de inquietação subiu por ela.

Não era boa altura para um ataque de nervos, pensou. Não ia enfrentar nenhum perigo. Ia, tão-só, dar uma olhadela à galeria. O que é que podia correr mal?

Irritada consigo própria, sacudiu o formigueiro de inquietação, apertou o balde e o esfregão contra si e subiu num repente a escada de caracol.

Quando chegou ao patamar, viu a sólida porta de madeira. Estava fechada à chave, como Peg previra. A mulher da limpeza explicara-lhe que os clientes só entravam mediante um pagamento adicional. Aparentemente, nenhum o fizera, naquela tarde.

Isso tornava as coisas mais simples, reconfortou-se Lavinia. Tirou o aro de ferro de um dos bolsos e introduziu uma das chaves na fechadura. Houve um som áspero e arranhado quando a porta se abriu. Os gonzos guinchavam muito.

Hesitantemente, entrou na sala, deixando a porta fechar-se atrás dela. A sala não estava iluminada, mas entrava luz pelas altas e estreitas janelas, suficiente para permitir a Lavinia ver o letreiro em frente dela.

 

               CENAS DE UM BORDEL

 

As formas volumosas de estátuas em cera, de tamanho natural, emergiam das sombras em redor dela.

Lavinia pousou o balde e o esfregão e caminhou para a primeira cena. Na penumbra, conseguia distinguir as costas musculosas de uma figura masculina nua. A figura parecia envolvida numa violenta luta com outra figura.

Olhou de mais perto e viu, chocada, que a outra figura era a de uma mulher meio despida. Ficou de olhar fixo, pasmada, por segundos. Por fim, apercebeu-se de que as figuras estavam entregues a um acto sexual.

Nenhuma das figuras parecia arrebatada com a experiência. Na verdade, havia uma sugestão de violência na cena que fez a pele de Lavinia arrepiar-se. Era uma imagem de violação e de luxúria. O homem tinha um ar brutal. A mulher parecia estar em agonia. O horror torcia-lhe as feições.

Não eram, porém, as expressões nas caras das figuras que prendiam o olhar de Lavinia. Era, antes, o facto de estarem eximiamente modeladas. Quem quer que tivesse feito aqueles trabalhos em cera era muito mais talentoso do que aqueles que tinham esculpido as cenas mórbidas do andar de baixo.

Este artista rivalizava em talento com Mrs. Vaughn. Lavinia sentiu a excitação explodir dentro dela.

Aquele artista podia, perfeitamente, ter modelado o quadro com a ameaça de morte que Joan Dove recebera. Não admirava, pois, que Huggett parecesse sobressaltado quando vira o quadrinho.    Não podia, porém, tirar conclusões precipitadas, recomendou Lavinia a si própria. Precisava de uma evidência clara, algo que ligasse aque les trabalhos à ameaça de morte.

Dirigiu-se à próxima cena e parou para a examinar. A cena era a de uma mulher seminua, ajoelhada em frente de um homem nu que a violava por trás.

Lavinia afastou o olhar dos órgãos genitais do homem, enormes e pormenorizadamente reproduzidos, procurando pequenas pistas que lhe pudessem confirmar as suspeitas. Era, contudo, difícil, em parte pela diferença de escalas. O quadrinho era muito mais pequeno do que aquelas figuras em tamanho natural. Não obstante, havia algo na lubricamente esculpida figura feminina que fazia lembrar a imagem da mulher de vestido verde, caída no chão do salão de baile.

Devia ter trazido Mrs. Vaughn comigo, pensou Lavinia. Com o seu olhar experiente, a artista não teria dificuldade em discernir as semelhanças entre aquelas figuras e a do quadrinho.

Se houvesse, realmente, semelhanças.

Lavinia dirigiu-se a outra cena. Tinha de estar muito segura, mesmo muito segura, das suas deduções, antes de confrontar Tobias com a sua teoria, pensou ela.

Um som abafado de botas ecoou fora da sala. Abalada; Lavinia desviou a atenção da exposição e voltou-se para enfrentar a porta.

- Vamos ver, se estiver aberta - dizia a voz de um homem, abafada pela porta -, poupamos o dinheiro do bilhete. O tipo da entrada não vai dar por isso.

Lavinia correu para o balde e para o esfregão, ouvindo um som metálico e rangente ao abrir-se o trinco.

- Estamos com sorte. Alguém se esqueceu de fechar a porta à chave.

A porta abriu-se antes de Lavinia poder agarrar o balde. Dois homens entraram na sala, rindo de expectativa.

Lavinia ficou queda, na sombra projectada pelas figuras mais próximas.

O mais baixo dos dois homens caminhou tacteante para a primeira cena.

- As luzes estão apagadas.

O homem mais alto fechou a porta e pôs-se a olhar para a penumbra da sala.

- Cada cena tem uma lamparina, segundo me lembro.

- Aqui está - disse o mais pequeno, inclinando-se para acender uma lamparina.

A luz trémula bailou no balde e apanhou a ponta do avental e da saia de Lavinia. Tentou esconder-se melhor na sombra, mas era demasiado tarde.

- Olá! O que é que achas que temos aqui, Danner? - a luz da lamparina revelava perfeitamente o olho zarolho do homem alto. - Parece que uma das figuras de cera ganhou vida.

- A mim parece-me mais uma coisinha bem viva. Bem me dizias tu que já tinhas encontrado aqui mulheres de limpeza muito amáveisdisse o mais pequeno, olhando para Lavinia com crescente interesse. Mas, com aquela roupa, é difícil ver que aspecto tem.

- Nesse caso, terenos de a convencer a tirar a roupa - disse o homem alto, agitando umas moedas na mão. - O que é que dizes, minha querida? Quanto é que queres por um pouco de acção?

- As minhas desculpas, meus senhores, mas tenho de me ir embora - disse Lavinia, dirigindo-se para a porta. - Já esfreguei o soalho, como vêem.

- Não tenhas pressa, rapariga - disse o alto, agitando cada vez mais as moedas, num gesto que acreditava ser de incitamento. - Eu e o meu amigo podemos oferecer-te uma ocupação mais interessante e mais lucrativa.

- Não, muito obrigada. - Lavinia agarrou o esfregão pelo cabo e ergueu-o à sua frente, como se fosse uma espada. - Não é esse o meu ramo, por isso vou deixar os senhores entregues ao que aqui se encontra exposto.

- Acho que não vamos deixar-te sair tão depressa - disse Danner, um tom de ameaça na voz. - Aqui o meu amigo diz-me que a natureza das esculturas é tal que melhor as apreciamos na companhia de uma rapariga bonita.

- Mostra lá a tua cara. Tira essa touca e esse cachecol e deixa-nos olhar bem para ti.

- O que é que interessa se é bonita, ou não? Levanta mas é as saias, rapariga.

- Não me toquem - disse Lavinia, procurando a maçaneta da porta. O desejo claramente aguçado pela perseguição, Danner avançou.

- Não vais sair sem nós te provarmos.

- Não tenhas medo - disse o mais alto, atirando uma moeda na direcção de Lavinia. - Estamos dispostos a pagar bem.

Os dedos de Lavinia encontraram a maçaneta de ferro e fecharam-se em redor dela.

- Acho que ela quer mesmo ir-se embora - disse o mais alto. Deve ser qualquer coisa que tu tens, Danner, que lhe ofende a delicada sensibilidade.

- Uma gaja reles como ela não tem nada a ver com sensibilidades delicadas. Vou ensiná-la a não me torcer o nariz.

Danner atirou-se para a frente, para agarrar Lavinia, mas ela aplicou-lhe com o esfregão sujo e molhado na barriga.

- Estúpida putéfia! - exclamou Danner, cambaleando para trás e parando fora do alcance do esfregão. - Como te atreves a atacar-nos?

- O que é que se passa contigo, rapariga? - O homem mais alto parecia estar a perder a paciência. - Estamos dispostos a pagar os teus serviços.

Lavinia não disse nada, continuando a apontar-lhes o esfregão, enquanto abria a porta.

- Volta para aqui - disse Danner, avançando de novo para ela, os olhos postos na arma improvisada.

Lavinia lançou o esfregão mais uma vez na direcção dele, obrigando-o a recuar, praguejando viciosamente.

- Que raio de merda julgas tu que estás a fazer? - rosnou o alto, preferindo, contudo, permanecer fora do alcance do esfregão.

Aproveitando a oportunidade, Lavinia largou o esfregão e lançou-se para a escada de caracol, agarrando-se bem ao corrimão ao descer os degraus torcidos.

Atrás dela, Danner rugia furiosamente, ao cimo das escadas.

- Grande puta! Que é que tu pensas que és?

- Deixa-a ir - aconselhou-o o companheiro. - O que não faltam são gajas, aqui perto. Vamos encontrar uma simpática para ti, depois de vermos a exposição.

Lavinia não parou quando chegou ao rés-do-chão. Atravessou o hall das traseiras, abriu a porta e correu para a passagem.

Começou a chover, justamente quando ela subia os degraus da entrada do número sete de Claremont Lane. A última gota no copo, pensou ela, para completar aquela tarde extremamente penosa.

Utilizou a chave para entrar em casa. Quando entrou no hall, o odor a rosas era tão intenso que quase desmaiou.

- Que raio se passa aqui?

Olhou em redor, enquanto retirava o cachecol. Cestos e vasos com flores estavam dispostos em cima da mesa, com um pequeno prato cheio de cartões de visita.

Mrs. Chilton apareceu, limpando as mãos ao avental. Tinha um sorriso nos lábios.

- Começaram a chegàr pouco depois da senhora ter saído. Parece que, afinal, Miss Emeline atraiu alguma atenção.

Lavinia ficou deleitada com a notícia.

- Isto foi enviado pelos admiradores?

- Sim.

- Mas isso é uma maravilha!

- Miss Emeline não parece lá muito impressionada - observou Mrs. Chilton. - O único cavalheiro de quem fala é Mr. Sinclair.

- Ah, sim? Bem, isso não tem importância - disse Lavinia, desfazendo-se do cachecol. - O importante é que a horrível cena no camarote de Lady Wortham não arruinou, obviamente, os meus planos.

- Assim parece - disse Mrs. Chilton, olhando para a indumentária de Lavinia com ar desaprovador. - Espero que ninguém a tenha visto entrar pela porta da frente. A senhora mete medo.

Lavinia estremeceu.

- Sim. Acho que devia ter entrado pela porta da cozinha. A questão é que eu tive uma tarde muito desagradável e depois, ao chegar a casa começou a chover e, quando cheguei à porta, tudo o que pensei é que queria entrar em casa, ir para o meu estúdio quentinho e pôr-me a beber um cálice de xerez.

Mrs. Chilton ficou de olhos abertos.

- A senhora vai ter de subir as escadas e de mudar-se, primeiro.

- Não, não acho que seja necessário, só a capa e o cachecol é que estão molhados. O resto da minha roupa está seca, felizmente. Uma dose medicinal de xerez é mais importante, neste momento.

- Mas, minha senhora.

Soaram passos no andar de cima.

- Tia Lavinia! - exclamou Emeline, debruçada do balaústre. - Graças a Deus, está de volta. Estava a começar a ficar preocupada. Correu-lhe bem?

- Sim e não - Lavinia pendurou a capa esfarrapada num cabide. O que é que se passa com estes ramalhetes?

Emeline teve um encolher de ombros.

- Aparentemente, Priscilla e eu estamos vagamente na moda. Lady Wortham enviou uma mensagem, há uma hora atrás. Deduzo que está tudo perdoado. E convida-me a acompanhá-la, e à filha, a um concerto, esta noite.

- Isso são excelentes notícias - Lavinia fez uma pausa, pensando rapidamente. - Temos de pensar no vestido que vais levar.

- Não tenho muito por onde escolher. Madame Francesca fez-me apenas um, próprio para a ocasião. - Emeline agarrou as saias e pôs-se a descer as escadas a correr. - O vestido agora não interessa. Conte-me lá o que aconteceu no museu.

Lavinia soprou o ar, devagar.

- Eu vou contar-te tudo, mas tens de jurar-me que, em nenhuma circunstância, contas seja o que for a Mr. March.

- Oh! - Emeline parou ao fundo das escadas. - Alguma coisa correu mal, não foi?

Lavinia atravessou o hall em direcção ao estúdio.

- Digamos que as coisas não correram como eu desejava. Na cara de Mrs. Chilton surgiu uma expressão de alarme.

- Por favor, minha senhora, vai ter de mudar de roupa antes de entrar no estúdio.

- Eu preciso muito mais de um cálice de xerez do que de mudar de roupa, Mrs. Chilton.

- Mas.

- Mrs. Chilton tem razão, tia Lavinia - disse Emeline, correndo atrás dela. - Tem, realmente, de ir lá acima.

- Lamento que a minha indumentária as ofenda a ambas, mas esta é a minha casa e eu uso o que quiser no meu próprio estúdio. Queres ouvir a minha história, ou não?

- Claro que a quero ouvir - disse Emeline. - Tem a certeza de que está bem?

- Foi por pouco, mas tenho o prazer de declarar que escapei incólume.

- Incólume? - A voz de Emeline revelava crescente preocupação. Meu Deus, tia Lavinia, o que é que aconteceu?

- Surgiu um problema inesperado. - Lavinia passou rapidamente pela porta do estúdio e dirigiu-se directamente para o armário do xerez.

Como te disse, não podes contar nada da história a Mr. March. Ele nunca mais se calava.

Tobias ergueu o olhar do livro que folheava, junto da janela.

- Isso promete ser uma história interessante.

Lavinia parou a um passo do armário do xerez.

- Que raio está a fazer aqui?

- Estava à sua espera - Tobias fechou o livro e olhou para o reló gio. - Cheguei há vinte minutos e disseram-me que estava fora.

- Era exactamente onde eu estava - disse Lavinia, abrindo o armário, agarrando no frasco e enchendo um cálice de xerez. - Fora.

Tobias lançou um olhar indolente à indumentária de Lavinia.

- Foi a um baile de máscaras?

Lavinia quase se engasgou com o xerez que tinha na boca.

- Claro que não.

- Decidiu, então, aumentar os seus rendimentos, trabalhando como mulher da limpeza?

- Não, não se ganha muito com isso - Lavinia bebeu outro gole de xerez, saboreando a calidez do vinho. - A não ser que uma pessoa se disponha a esfregar outras coisas, além dos soalhos.

Emeline olhou para ela com ar preocupado.

- Por favor, tia, não nos mantenha em suspenso. O que é que aconteceu no Museu Huggett?

Tobias cruzou os braços e encostou-se à estante.

- Voltou ao Museu Huggett? Vestida dessa maneira?

- Sim - Lavinia atravessou o estúdio, o copo na mão, e enterrou-se numa poltrona. Estendeu as pernas em frente dela e examinou as meias grossas. Ocorreu-me que podia haver interesse em observar qual era o género dos trabalhos em cera expostos no andar de cima. Huggett parecera-me muito reservado a respeito deles.

- Ele foi reservado dada a natureza do tema artístico da exposição.

- A voz de Tobias revelava impaciência. - Por razões óbvias, não estava interessado em explicar a uma senhora que tinha uma galeria repleta de cenas eróticas, no andar de cima.

- Cenas eróticas em cera? - Emeline parecia intrigada. - É muito estranho.

Tobias olhou para ela, perturbado.

- As minhas desculpas, Miss Emeline. Eu não devia ter-me referido ao assunto. Não é bem o género de coisas para se falar diante de jovens solteiras.

- Não se preocupe com isso - disse Emeline, jovialmente. - A tia Lavinia e eu aprendemos muita coisa a respeito desses assuntos durante a nossa estada em Roma. Mrs. Underwood era uma mulher muito vivida, se quer saber.

- Sim, eu sei - disse Tobias, mansamente. - Toda a gente em Roma estava a par das suas tendências.

- Estamos a fugir ao assunto - disse Lavinia vivamente. - Não foi apenas a reacção de Huggett, quando lhe perguntei o que tinha no andar de cima, que me pareceu estranha. Já tínhamos os dois notado, se se lembra, que ele tinha reconhecido qualquer coisa na ameaça de morte. E, esta manhã, acordei a pensar se não seria porque ele tinha algumas esculturas do mesmo artista no andar de cima.

Tobias ficou hirto.

- Não me diga que foi ao estabelecimento de Huggett ver essas esculturas?

- Fui, sim.

- Porquê?

Lavinia fez um gesto vago com a mão que segurava o cálice.

- Já lhe disse. Queria examinar a qualidade da modelação. Paguei à mulher que lá faz a limpeza para me dar a chave e entrei na galeria com este disfarce.

- E então? Obviamente, viu as esculturas. Acha que as estátuas que lá viu foram modeladas pelo mesmo artista que modelou a ameaça de morte.

- Para ser franca, não posso afirmá- lo.

- Por outras palavras, a insensatez da mascarada foi uma absoluta perda de tempo - Tobias abanou a cabeça. - Eu podia ter-lhe dito isso, se se tivesse dignado pedir-me a opinião, antes de levar a cabo o seu esquema.

- Eu não disse que foi uma perda de tempo - retorquiu Lavinia, olhando para ele por sobre a borda do cálice. - As figuras de Huggett são de tamanho natural e, com a diferença de escalas, afigurou-se-me difícil chegar a uma conclusão segura. Acho, porém, que há algumas semelhanças.

Tobias começava a ficar intrigado, contra vontade.

- Acha que sim?

- Sim. O bastante para me convencer de que vale a pena pedir a Mrs. Vaughn para as examinar e dar-nos a sua opinião - disse Lavinia.

- Estou a compreender - Tobias aproximou-se da secretária, apoiou- se a ela e, distraidamente, pôs-se a massajar a perna esquerda. - É uma visita difícil de levar a efeito. Huggett não estará nada disposto a cooperar, mesmo que não tenha nada a esconder. No fim de contas, significava permitir que uma senhora visitasse a galeria do primeiro andar. Era uma atitude muito comprometedora, mesmo sendo ela uma artista.

Lavinia encostou a cabeça ao espaldar da poltrona, a pensar em Peg e na sua fonte de receita suplementar.

- A mulher da limpeza de Huggett costuma alugar as chaves da galeria, nos dias em que Huggett vai aos tratamentos de reumatismo.

- Não percebo - disse Emeline. - Como é que alguém se dispõe a pagar pela chave, para se introduzir na galeria, quando pode, muito simplesmente, pagar o seu bilhete?

- Ela não aluga as chaves aos visitantes que pretendem ver as esculturas - disse Lavinia com precisão. - Aluga-a a mulheres que ganham dinheiro vendendo os seus favores aos cavalheiros que compram bilhete para visitar a galeria do primeiro andar.

As sobrancelhas de Emeline ergueram-se.

- Prostitutas, quer a tia dizer?

Lavinia aclarou a voz e evitou, cautelosa, o olhar de Tobias.

- Segundo Peg, os cavalheiros que visitam a galeria do primeiro andar sentem-se frequentemente dispostos a entreterem-se com mulheres que exercem a sua profissão por ali perto. É algo que tem a ver com a excitação provocada pelos objectos expostos, acho eu.

Tobias agarrou-se à secretária e ergueu o olhar para o tecto, mas não disse nada.

- Estou a perceber - disse Emeline, apertando os lábios e conside rando, por momentos o que a tia dissera. - Teve muita sorte em não haver visitantes na galeria, quando lá esteve com esse disfarce, não acha? Podiam tê-la confundido com uma prostituta.

- Hum. - fez Lavinia, sem se comprometer.

- Teria sido uma situação muito embaraçosa - acrescentou Emeline.

- Hum. - fez de novo Lavinia, bebendo um gole de xerez.

Tobias olhou para ela intensamente.

- Lavinia?

- Hum?

- Presumo que não havia visitantes na galeria superior quando entrou.

- Tem razão - concordou ela prestamente. - Não havia lá ninguém quando eu entrei.

- Estou, também, a assumir que não entrou nenhum visitante enquanto lá esteve, ou estarei enganado?

Lavinia suspirou profundamente.

- Acho que é melhor saíres, Emeline.

- Porquê?

- Porque o resto da conversa não é apropriado para os teus ouvidos inocentes.

- Ora, ora. O que é que pode ser mais impróprio do que o tema das esculturas eróticas?

- A linguagem de Mr. March, quando se zanga.

Émeline pestanejou.

- Mas Mr. March não está zangado.

Lavinia bebeu o resto do xerez e pousou o cálice.

- Mas vai ficar daqui a pouco.

 

Tobias ainda fervia quando entrou no seu estúdiio, uma hora mais tarde. Anthony, sentado à secretária, olhou para ele com interesse. A expressão do seu rosto mudou, primeiro, para alarme e, depois, para jocosa resignação. Largou a pena, recostou-se na cadeira e cruzou os braços.

- Discutiste outra vez com Mrs. Lake, não foi? - perguntou Anthony, sem preâmbulo.

- Que tens tu a ver com isso? - rosnou Tobias. - A propósito, essa é a minha secretária. Se não te importas, gostava de me servir dela esta tarde.

- Deve ter sido uma discussão particularmente acesa, desta vez - disse Anthony, erguendo-se calmamente e saindo da secretária. - Um destes dias, vais demasiado longe e ela vai dissolver a sociedade.

- Por que haveria ela de fazer isso? - Tobias tomou posse da secretária e sentou-se. - Ela sabe perfeitamente que precisa de mim.

- Como tu precisas dela. - Anthony foi até junto do globo terrestre, instalado num tripé, ao lado da lareira. - Mas se continuas a importuná-la, ela pode decidir que é melhor trabalhar sozinha.

Tobias experimentou uma ligeira inquietação.

- Ela é cansativa e impulsiva, mas não é completamente parva. Anthony apontou-lhe um dedo.

- Ouve o que te digo. Se não aprendes a tratá-la com o respeito que é devido a uma senhora, ela vai perder a paciência contigo.

- Achas que eu devo tratá-la com o respeito devido a uma senhora?

- Claro que sim.

- Deixa-me, então, dizer-te umas coisas a respeito do comportamento de uma verdadeira senhora - disse Tobias serenamente. - Uma senhora não se veste de mulher da limpeza, para se introduzir numa sala cheia de esculturas eróticas em cera, sala essa exclusivamente reservada a cavalheiros. Uma senhora não se coloca deliberadamente numa situação em que pode, facilmente, ser tomada por uma reles prostituta. Uma senhora não assume riscos em que se vê obrigada a defender a sua honra com um esfregão.

Anthony olhava para ele de olhos muito abertos.

- Isso é incrível! Estás a dizer-me que Mrs. Lake esteve em perigo, esta tarde? É por isso que estás tão irascível?

- Sim, é precisamente isso que te estou a dizer.

- Raios! Isso é terrível. E ela está bem?

- Sim - Tobias rangeu os dentes. - Graças ao esfregão e à presença de espírito dela. Teve de rechaçar dois homens que a tomaram por uma prostituta.

- Felizmente não é pessoa dada a desmaios, perante uma crise - disse Anthony, comovido. - Com um esfregão? - A admiração iluminou o olhar de Anthony. - Temos de reconhecer que é uma mulher cheia de recursos.

- Não é isso que está em causa. A questão, aqui, é que ela nunca se deveria ter colocado em semelhante situação.

- Mas tu fartas-te de dizer que Mrs. Lake tem um espírito muito independente.

- Espírito independente é uma expressão que, neste caso, peca muito por defeito. Mrs. Lake é incontrolável, imprevisível e muito teimosa. Não aceita orientações, nem conselhos, a menos que lhe convenha. Nunca sei o que ela vai fazer a seguir e ela só se preocupa em informar-me quando já é demasiado tarde para a travar.

- Decerto, do ponto de vista dela, tu tens os mesmos defeitosdisse Anthony secamente. - Incontrolável. Imprevisível. E nunca notei que sentisses necessidade de a informar do que fazes, antes de agires.

Tobias sentiu a queixada contrair-se.

- Que raio estás tu a dizer? Não há razão nenhuma para a informar dos meus movimentos. Conhecendo-a, como a conheço, ia insistir em acompanhar-me, sempre que eu quisesse falar com um dos meus informadores e isso seria, muito frequentemente, impossível. Eu não poderia levá-la, por exemplo, a estabelecimentos como O Grifo e ela, tão-pouco, pode entrar nos meus clubes.

- Por outras palavras, tu nem sempre ínformas Mrs. Lake das tuas movimentações porque sabes que isso iria provocar uma discussão.

- Precisamente. E uma discussão com Lavinia é, muitas das vezes, um exercício fútil.

- Isso quer dizer que, por vezes, sais derrotado.

- A mulher é extremamente difícil.

Anthony não disse nada, mas as sobrancelhas dele ergueram-se num comentário silencioso.

Tobias pegou numa pena e espetou-a no mata-borrão. Por qualquer razão, sentia-se obrigado a defender-se.

- Mrs. Lake esteve quase a ser violentada, esta tarde - disse ele calmamente. - Tenho todo o direito de estar danado.

Anthony fixou o olhar nele bastante tempo e, depois, para espanto de Tobias, inclinou a cabeça em sinal de compreensão.

- O medo, por vezes, tem esse efeito sobre nós - observou Anthony.

- Não te censuro por estares profundamente impressionado com isso. Vais, decerto, ter pesadelos, esta noite.

Tobias não disse nada, mas bem receava que Anthony tivesse razão.

 

Lavinia ergueu a cabeça das suas notas, quando Mrs. Chilton intro duziu Anthony no estúdio.

- Bom dia, Mr. Sinclair.

Anthony fez-lhe uma vénia.

- Muito obrigado por se dignar receber-me, Mrs. Lake. Lavinia compôs um sorriso afável, tentando evitar que ele se apercebesse de que estava a conter a respiração.

- Tenho muito gosto em recebê-lo. Sente-se, por favor.

- Se não se importa, prefiro ficar de pé - Anthony tinha na cara uma expressão de resoluta determinação. - Isto é um pouco difícil para mim. Na verdade, é a primeira vez que o faço.

Os receios dela confirmavam-se.

Lavinia susteve um suspiro, afastou as notas e preparou-se para enfrentar um pedido formal da mão de Emeline.

- Antes que comece, Mr. Sinclair, deixe-me dizer-lhe que o consi dero um cavalheiro admirável.

Anthony pareceu ficar espantado com o elogio.

- É muita bondade da sua parte, minha senhora.

- Acaba de fazer vinte e um anos, creio.

Anthony franziu o sobrolho.

- O que é que a minha idade tem a ver?

Lavinia aclarou a garganta.

- É verdade que algumas pessoas são mais maduras do que a idade indicia. É, certamente, o caso de Emeline.

O olhar de Anthony brilhou de súbita admiração.

- Miss Emeline é, em boa verdade, espantosamente inteligente para uma pessoa de qualquer idade.

- Contudo, não tem mais do que dezoito anos.

- Sim, sim.

Aquilo não estava a correr bem, pensou Lavinia.

- A questão é que eu não quero que Emeline tenha muita pressa em casar-se.

O olhar de Anthony brilhou de contentamento.

- Não posso deixar de concordar consigo, Mrs. Lake. Miss Emeline tem muito tempo para pensar nisso. Seria um grave erro, para ela, ficar comprometida muito cedo. Um espírito brilhante, como o dela, não deve entregar-se muito cedo aos constrangimentos do casamento.

- A esse respeito estamos de acordo.

- Miss Emeline deve viver ao seu próprio ritmo.

- Tem muita razão.

Anthony endireitou os ombros.

- Porém, embora eu muito admire Miss Emeline e embora me dedique a fazê-la feliz.

- Não sabia que se preocupava com isso.

- Com muito prazer - assegurou Anthony. - Mas, como dizia, não vim cá para falar do futuro de Miss Emeline.

A sensação de alívio que Lavinia experimentou era quase estonteante. Segundo parecia, não ia ter de contrariar um amor de jovem. Descontraiu-se e sorriu abertamente para Anthony.

- Nesse caso, Mr. Sinclair, qual é o assunto que o traz cá.

- Tobias.

Algum do profundo alívio evaporou-se dela.

- Que se passa com ele? - perguntou Lavinia, apreensiva.

- Eu sei que ele discutiu consigo esta tarde.

Lavinia fez um gesto casual com a mão.

- Ele irritou-se, e então? Não foi, de modo nenhum, a primeira

vez.

Anthony aquiesceu, pesaroso.

- Tobias teve sempre uma tendência para a brusquidão e nunca gostou de tolos à volta dele.

- Eu não me considero uma tola, Mr. Sinclair. Nos olhos de Anthony transpareceu o horror.

- Eu não quis sugerir semelhante coisa, Mrs. Lake.

- Obrigada.

- O que eu queria dizer é que parece haver, na natureza da sua associação com ele, algo que tem um efeito provocatório no temperamento dele.

- Se veio aqui pedir-me para não o tornar a irritar, receio que esteja a perder o seu tempo. Garanto-lhe que não o irrito deliberadamente. Mas, como acaba de dizer, parece haver algo na natureza da nossa associação que tem nele um efeito de detonador.

- É isso mesmo - Anthony deambulava para diante e para trás, em frente da secretária. - A questão é que eu desejava que não o julgasse muito severamente, Mrs. Lake.

A declaração concedeu uma pausa a Lavinia.

- Como? - lançou ela.

- Afianço-lhe que, apesar do ar rude, Tobias é um homem generoso - Anthony parou em frente da janela. - Ninguém o sabe melhor do que eu.

- Eu tenho bem consciência de como o admira.

Na boca de Anthony surgiu um trejeito amargo.

- Mas nem sempre o admirei. Na verdade, ao princípio, quando a minha irmã casou com ele, acho que detestei Tobias durante algum tempo.

Lavinia ficou muito queda e atenta.

- E porquê?

- Porque eu sabia que Ann tinha sido forçada a casar com ele.

- Ah, sim?

Lavinia não queria ouvi-lo dizer que Tobias tinha casado com Ann por a ter engravidado, pensou ela, receosa.

- Ela casou com ele por minha causa e, também, por causa dela. E eu ressentia-me pelo sacrifício dela. E, por uns tempos, encarei Tobias como o vilão da peça.

- Acho que não estou a perceber - disse Lavinia.

- Quando os nossos pais morreram, eu e a minha irmã fomos viver com uns tios. A minha tia Elizabeth não ficou nada satisfeita por ter de nos receber. Quanto ao meu tio Dalton, era o género de pessoa vil que se aproveitava das criadas, das governantas, ou de qualquer outro elemento indefeso do sexo feminino que lhe surgisse à frente.

- Estou a ver.

- O infame tentou seduzir Ann. Ela rechaçou as investidas dele, mas ele era muito insistente. Ann protegia-se dele, à noite, escondendo-se no meu quarto. Durante uns quatro meses, vimo-nos obrigados a trancar a porta. A minha tia sabia o que se passava e, por isso, empenhava-se em ver Ann casar-se. Um dia, Tobias veio visitar o meu tio, por uma questão de negócios.

- Mr. March conhecia o seu tio?

- Nessa época, ele ganhava a vida como intermediário de negócios. Tinha um certo número de clientes e, ultimamente, o meu tio Dalton tornara-se um deles. A minha tia aproveitou a visita de Tobias como pretexto para convidar uns vizinhos para jantar e para um serão de cartas. E, no fim, convenceu-os a passarem a noite lá em casa, em vez de se meterem à estrada. Ann pensou que estava segura, com tanta gente em casa e, por isso, dormiu no quarto dela.

- E o que é que aconteceu?

- Para abreviar, a minha tia arranjou maneira de a minha irmã se ver colocada numa situação que, segundo proclamou, comprometia Tobias.

- Meu Deus! Como é que ela conseguiu fazer isso?

Anthony tinha o olhar fixo no jardim.

- A minha tia destinou a Tobias o quarto ao lado do de Ann. Havia uma porta adjacente que, claro, estava trancada. Porém, bem cedo pela manhã, a minha tia entrou no quarto de Ann e destrancou a porta. Depois, armou uma grande cena, em que proclamou, perante os hóspedes, que Tobias entrara, obviamente, no quarto de Ann e a seduzira.

Lavinia estava pasmada.

- Mas isso é absolutamente ridículo.

Anthony sorriu amargamente.

- Sim, claro que é, mas toda a gente sabia que Ann estava desonrada aos olhos dos vizinhos. A minha tia insistiu numa proposta de casamento. Eu estava convencido de que Tobias ia escusar-se a deixar-se imiscuir na tramóia: Eu era um rapazinho, na altura, contudo, era evidente para mim, já então, que ele não era o tipo de homem que se pudesse forçar a fazer o que não queria. Porém, para minha surpresa, ele disse a Ann para fazer a mala.

- Tem toda a razão, Mr. Sinclair - disse Lavinia gentilmente. - Tobias não teria aceitado a exigência da sua tia se não estivesse disposto a aceitá-la.

- O facto de ele querer levar Ann não foi o mais surpreendente. O mais espantoso é que me disse para eu ir, também, fazer a mala. Ele salvou-nos a ambos, naquele dia, embora só mais tarde me apercebesse disso.

- Compreendo - Lavinia pensou no que teria sentido um rapazinho ao ser levado por um estranho. - Deve ter tido muito medo.

Anthony sorriu.

- Não por mim. No que me dizia respeito, tudo era melhor do que viver com os meus tios. Mas estava muito preocupado com o que Tobias podia fazer a Ann quando a tivesse em seu poder.

- Ann tinha medo de Tobias?

- Não, nunca - Anthony sorriu, ao recordar algo pessoal. - Ele era o cavaleiro dela, com a sua armadura brilhante, e isso desde o princí pio. Acho que ela se apaixonou por ele a meio do caminho rural e, cer tamente, antes de chegarmos à estrada principal para Londres.

Lavinia encostou o queixo à mão.

- Talvez essa fosse uma das razões por que não se afeiçoou logo a Tobias. Até aí, era o primeiro nas afeições da sua irmã.

Anthony pareceu confundido com a observação e, depois, franziu a testa.

- É capaz de ter razão. Nunca tinha considerado esse aspecto.

- Mr. March casou logo com a sua irmã?

- Em menos de um mês. Ele deve ter-se apaixonado por ela à primeira vista. Nem podia deixar de ser. Ela era encantadora, tanto por fora, como por dentro. Era a mais gentil das criaturas. Bondosa, graciosa, amável, doce. Demasiado perfeita para este mundo.

Numa palavra, exactamente o contrário de mim, pensou Lavinia.

- Mas Tobias receava que o que ela sentia porele fosse apenas por gratidão e que depressa fenecesse - prosseguiu Anthony.

- Compreendo.

- Disse a Ann que não era obrigada a casar com ele e que, tão- pouco, queria que ela fosse sua amante. Porém, fosse qual fosse a decisão dela, garantiu-nos que tomaria conta de nós.

- Mas ela gostava dele.

- Sim - Anthony observou o desenho do tapete por um momento e, depois, olhou para Lavinia com um sorriso triste, desolado. - Tinham menos de cinco anos de casados, quando ela e o bebé morreram de uma febre. Tobias ficou com um cunhado de treze anos.

- Perder a sua irmã deve ter sido um duro golpe para si.

- Tobias teve muita paciência comigo. No final do primeiro ano do casamento eu já o idolatrava - Anthony agarrou-se ao espaldar de uma poltrona. - Mas fiquei louco com a morte de Ann. Culpava-o da morte dela, compreende.

- Compreendo, sim.

- Ainda hoje me surpreende que ele não me tenha mandado de volta para os meus tios, nos primeiro5 meses depois do funeral, ou que não me tenha internado numa escola. Tobias diz-me que isso nunca lhe passou pela cabeça, pois já se habituara a ter-me junto dele.

Anthony voltou à janela e ficou calado, aparentemente mergulhado nas suas recordações.

Lavinia pestanejava, para se livrar da humidade que lhe toldava a vista. Por fim, deixou de esforçar-se e tirou um lenço da gaveta de cima da secretária, levando-o rapidamente aos olhos, fungando. Quando se sentiu recomposta, pousou as mãos em cima da secretária e esperou. Anthony continuava calado.

- Posso fazer-lhe uma pergunta? - disse Lavinia, pouco depois.

- Sim, o que é?

- Tenho-me questionado acerca do coxear de Mr. March. Ia jurar que ele não tinha esse defeito quando o encontrei em Roma.

Anthony olhou para ela surpreendido.

- Ele não lhe contou o que aconteceu? - Anthony teve um sorriso sentido. - Claro que não, ele não lhe ia contar. Carlisle meteu-lhe uma bala na perna, nessa noite. Foi uma luta de morte. Tobias escapou por um triz, mas passou semanas a recuperar dos efeitos da ferida. Receio que ele vá ter de coxear durante muito tempo, talvez para o resto da vida.

Lavinia ficou de olhos abertos para ele, pasmada.

- Estou a compreender - murmurou por fim. - Não podia imaginar. Meu Deus!

Houve outro silêncio prolongado.

- Por que é que me está a contar essas coisas? - perguntou Lavinia, quebrando o silêncio.

Anthony teve um pequeno sobressalto e olhou para ela.

- Queria que compreendesse.

- Que compreendesse o quê?

- Tobias. Ele não é como os outros homens.

- Eu sei isso muito bem.

- É que ele teve de se haver sozinho no mundo, compreendeAnthony continuou, ingenuamente. - Falta-lhe um pouco de polimento.

Lavinia sorriu.

- Eu acho que não há nenhuma espécie de polimento que modifique o carácter de Mr. March.

- O que eu quero que entenda é que, embora as maneiras dele não sejam o que deviam ser, quando está na presença de senhoras, ele tem excelentes qualidades.

- Por favor, não se ponha a debitar a lista das extraordinárias qualidades de Mr. March, isso seria uma maçada para nós ambos.

- Receio que não seja tolerante com a irritabilidade dele e com a sua ocasional falta de maneiras.

Lavinia espalmou as mãos em cima da secretária e ergueu-se da cadeira.

- Mr. Sinclair, garanto-lhe que estou perfeitamente à vontade com a irritação de Mr. March e com a sua falta de maneiras.

- Está mesmo?

- Sem dúvida - Lavinia saiu da secretária para o acompanhar à porta. - É natural. O meu temperamento é idêntico. Pergunte a quem me conheça bem.

 

Tinha pensado que ele talvez reconsiderasse, mas estava no ramo havia muito tempo para esperar que tal acontecesse. A experiência dizia-lhe que, quando um cavalheiro punha fim

à ligação com uma amante, raramente voltava atrás. A gente rica depressa se fartava, reflectia ela. Passavam a vida à procura de caras novas, no que eles gostavam de chamar o meio mundano. De quando em vez, porém, um homem avisado tomava consciência de que fora demasiado precipitado ao terminar uma ligação.

Sally sorriu satisfeita e meteu o bilhete no bolso que cosera na parte de dentro da capa. Era uma bela capa, presente dele. Ele fora bastante generoso com ela. Pagara-lhe a renda da agradável casinha onde ela vivera nos últimos meses e dera-lhe algumas belas jóias. Conservava a pulseira e os brincos em lugar seguro no seu quarto, sabendo que era tudo o que possuía para evitar regressar ao bordel onde ele a encontrara.

Recusava-se a vender as jóias para pagar a renda. Aqueles eram os melhores anos de trabalho da vida dela e não iam durar muito. Tencionava tirar proveito deles. A ideia era juntar o máximo possível de presentes valiosos de um certo número de homens. Quando perdesse a beleza e a juventude, utilizaria as jóias para financiar uma reforma descansada.

Vangloriava-se da capacidade que tinha para gerir as suas finanças. Tinha-se esforçado arduamente para sair das ruas de Convent Garden, onde se via obrigada a servir os clientes em carruagens ou no portal mais próximo. A vida era muito perigosa e, com frequência, brutalmente curta, nessa escala da profissão. Conseguira entrar para a relativa segurança de um bordel e, agora, encontrava-se já ao nível das cortesãs com casa posta. O futuro afigurava-se-lhe brilhante. Talvez um dia conseguisse ter um camarote na ópera, como as mais famosas colegas de profissão.

Começara, nos últimos dias, discretamente em busca de um novo protector, na esperança de encontrar um antes de se vencer a renda, no fim do mês. Prometera, contudo, a si própria não correr para uma nova ligação, mesmo que isso significasse ter de largar a sua casinha. Conhecia casos de mulheres que haviam cometido o erro de aceitarem a primeira oferta, na ânsia de manterem as finanças equilibradas. No seu desespero, muitas vezes aceitavam ligações com homens que vinham a revelar-se violentos, ou que as obrigavam a fazer coisas que toda a gente sabia que eram antinaturais. Estremeceu ao recordar uma conhecida sua que se ligara a um nobre que a obrigava a entregar-se sexualmente aos amigos.

Percorreu rapidamente a coxia sombria, não prestando grande atenção às figuras lugubremente iluminadas. Estava ali em trabalho. Olhou de relance um homem enforcado e fez uma careta. Se alguma vez estivesse inclinada a visitar um museu de figuras de cera, não era certamente aquele que escolheria. Na opinião dela, aquelas figuras eram demasiado depressivas.

Ao fundo da sala sombria, encontrou a estreita escada de caracol. Segurou nas saias e nas pontas da comprida capa e subiu rapidamente as escadas. As instruções que recebera eram precisas.

A pesada porta ao cimo das escadas não estava fechada à chave, rangendo nos gonzos de ferro quando ela a abriu. Entrou na debilmente iluminada sala e olhou em redor. Embora não gostasse das figuras lá de baixo, tinha curiosidade em ver o que havia naquela sala. Tinha ouvido falar no orgulho que Huggett tinha na sua galeria única, reservada a cavalheiros.

O letreiro colocado à entrada estava elegantemente pintado a azul e a dourado. Avançou um passo e inclinou-se para o ler à fraca luz.

 

               CENAS DE UM BORDEL

 

Ora, ora, que tema mais gasto, murmurou para si própria, num tom depreciativo, talvez por se tratar do seu ramo.

Aproximou-se da cena iluminada mais próxima e examinou as figuras de um homem e de uma mulher, retorcendo-se numa cama, num enlace lúbrico. A cara do homem era dura e intensa, quase brutal, a atingir o clímax. Empurrava-se contra a companheira, os músculos das nádegas e das costas contraídos de modo muito realista.

O corpo da mulher tinha sido modelado numa voluptuosa entrega, sem dúvida de modo a despertar o interesse do comum visitante. Grandes seios e bem torneadas coxas, que emulavam as estátuas da antiga Grécia, estavam a par de uns pés pequenos e elegantes. Foi, porém, a cara da mulher que atraiu a atenção de Sally. Havia algo nos seus traços que lhe era familiar.

Ia aproximar-se mais, para ver melhor, quando ouviu um ligeiro raspar na penumbra atrás dela. Desviou a atenção das estátuas.

- Quem está aí?

Ninguém falou, nem se mexeu, na espessa sombra. Sem razão aparente, o coração começou a acelerar-lhe. As mãos dela ficaram frias e húmidas. Ela conhecia aqueles sinais, pois já os experimentara, de tempos a tempos, quando andava nas ruas. Certos homens que se aproximavam dela provocavam-lhe aquela estranha reacção. Seguira sempre a sua intuição e declinara servir aqueles que a faziam sentir aquilo, mesmo que isso significasse passar fome um dia ou dois.

Ali, porém, não era, decerto, nenhum estranho a querer levá-la para uma carruagem. Era, certamente, o homem que lhe pagara a renda nos últimos meses. Fora ele que lhe pedira para se encontrar com ele ali. Não havia razão para aquela ansiedade.

Sentiu um arrepio de frio. Por qualquer razão, lembrou-se de repente do que se comentara no bordel, a respeito da anterior amante dele se ter suicidado. Algumas das suas colegas mais românticas diziam que a mulher ficara com o coração partido e encaravam aquilo como uma tragédia. Mas a maior parte abanara a cabeça, perante a tolice da sensibilidade de alguma delas se sobrepor ao bom senso.

Ela própria pensara muito no caso, na altura. Conhecera bem a anterior amante dele. Alice não lhe parecera do tipo de cometer a imprudência de se apaixonar pelo protector.

Afastou a recordação da pobre e desgraçada Alice. Mas outro arrepio de medo a estremeceu. Devia ser da natureza das figuras, pensou. Afectavam-lhe os nervos.

Não havia razão para se alarmar. Aquilo era uma brincadeira dele.

- Sei que estás aqui, meu belo garanhão - disse ela, forçando um sorriso. - Recebi a tua mensagem, como vês. E tenho saudades tuas.

Ninguém surgiu das sombras.

- Mandaste-me vir aqui para imitarmos estas cenas? - disse ela rindo como ele gostava. Depois, cruzou as mãos atrás das costas e cami nhou pela coxia entre as cenas. - És muito mauzinho, meu garanhão, mas sabes que eu gosto de te fazer as vontades.

Não houve resposta.

Parou em frente da figura mal iluminada de uma mulher de joelhos, perante um homem cujo membro concedia grande crédito à imaginação do artista. Fingiu examinar o rígido órgão com muita atenção.

- Na minha opinião - declarou ela - o teu é maior do que este. Era uma mentira, claro, mas mentir ao cliente era uma faceta essencial da sua profissão. - Bem, eu posso estar esquecida da dimensão exacta, mas terei muito prazer em tornar a medi- lo. Na verdade, é uma fascinante maneira de passarmos a noite. Que te parece, meu belo garanhão?

Ninguém respondeu.

As pulsações não sossegavam, antes pareciam aumentar. Tinha as mãos viscosas. Mal conseguia encher os pulmões de ar.

Já bastava. Não podia continuar a bater-se com os velhos medos das ruas. Algo estava errado ali.

O instinto apossou-se dela. Deixou de resistir ao impulso de fugir. Já não lhe interessava saber se o antigo protector queria ou não restabelecer a ligação. Só queria fugir daquela sala.

Voltou-se e correu pela coxia. Na escuridão, não via a porta da galeria, mas sabia onde ela estava.

Houve um repentino movimento ao fundo da penumbra, à sua direita. A primeira e louca ideia que lhe veio à cabeça era que uma das figuras estava viva. Depois distinguiu o brilho de um pesado ferro.

Um berro subiu-lhe pela garganta. Sabia, agora, que nunca chegaria à porta. Voltou-se, erguendo as mãos numa vã tentativa de aparar o golpe. Cambaleou para trás. O pé tropeçara num balde pousado no chão. Perdeu o balanço e caiu. O balde voltou-se, espalhando água suja pelo chão.

O assassino aproximou-se, erguendo o ferro para o golpe mortal. Nesse instante, Sally compreendeu repentinamente por que é que lhe parecera familiar a figura da primeira cena. A figura tinha as feições de Alice.

 

Grifo era quente e seco, mas isso era tudo o que se podia dizer em favor da fumarenta taberna. Contudo, enquanto abria caminho por entre a multidão, Tobias pensava que essas qualidades eram, decididamente, uma grande virtude numa noite húmida e cheia de nevoeiro.

O lume na enorme lareira ardia com uma vivacidade infernal, ilu minando o estabelecimento com uma luz diabólica e brilhante. As criadas eram todas raparigas grandes, mamalhudas e abundantes. A semelhança das suas figuras não era pura coincidência. Smiling Jack, o dono, gostava delas assim.

Tobias tinha mudado de roupa para a ocasião. Vestido com umas calças de estivador muito gastas, casaco a condizer, um boné deformado e botas pesadas, despertava pouca atenção no meio dos rudes clientes de O Grifo. O incómodo arrastar da perna completava-lhe bem o disfarce, pensou ele. Muitos dos que o rodeavam ganhavam a vida de forma violenta, para além de ilegal. Coxos como ele era coisa vulgar. Como as cicatrizes e mãos falhas de dedos. Palas nos olhos e pernas de madeira viam-se também liberalmente distribuídas entre a assistência.

Uma criada de enormes seios travou o passo a Tobias, com um sorriso encorajador.

- O que é que vais beber hoje, bonitão?

- Eu venho falar com Smiling Jack - murmurou Tobias. Fazia questão de falar o menos possível com as criadas e com os clientes de O Grifo. O grosseiro sotaque das docas que ele adoptava naquelas visitas era aceitável em pequenas frases, mas podia fazer perigar a sua segurança em conversas prolongadas.

- Jack está na sala lá atrás - disse a criada, apontando o fundo da taberna com uma piscadela de olho. - É melhor bateres antes de abrir a porta - acrescentou, metendo-se no meio da multidão, o tabuleiro com as canecas erguido acima da cabeça.

Tobias abriu caminho pelo meio das mesas e dos bancos. Ao fundo da taberna encontrou o estreito corredor que conduzia à peça a que Smiling Jack chamava o seu escritório. Percorreu o corredor e parou em frente da porta.

O guincho abafado de uma risada feminina soou através da grossa porta de madeira. Tobias bateu com força.

- Desaparece, sejas quem fores. - A voz de Jack trovejou como uma descarga de carvão. - Estou a tratar de negócios.

Tobias agarrou na maçaneta da porta e rodou-a. A porta abriu-se para dentro. Tobias encostou-se à ombreira e olhou para Smiling Jack.

O volumoso proprietário de O Grifo estava sentado a uma secretária alquebrada, a cara enfiada nos enormes seios nus de uma mulher escarranchada nas suas pernas. As saias da mulher estavam levantadas até à cintura, expondo as avantajadas nádegas.

- Recebi a tua mensagem - disse Tobias.

- És tu, Tobias? - Smiling Jack ergueu a cabeça e espreitou. - É um bocado cedo, não achas?

- Não.

Jack suspirou e deu uma palmada no rabo da companheira.

- Daqui pra fora, rapariga. O meu amigo tá cheio de pressa e, tou a ver, sem paciência esta noite.

A mulher soltou uma risada.

- Não te preocupes comigo, Jack - disse ela, meneando as nádegas. - Eu fico aqui sentada e continuo o que começámos, enquanto vocês falam dos vossos negócios.

- Isso não é possível, minha querida - Jack soltou novo suspiro de pesar e, mansamente, tirou-a do colo. - Ias distrair-me e eu não me concentrava no assunto.

A mulher riu-se outra vez, pôs-se em pé e baixou as saias. Piscou o olho para Tobias e saiu lentamente. As ancas generosas moviam-se roliçamente, atraindo a atenção de ambos os homens até ela fechar a porta. A risada dela ecoou no corredor.

- Uma nova empregada - disse Jack fechando as calças. - Acho que vai servir bem.

- Ela parece ser muito bem disposta - disse Tobias sem se preocupar com sotaques, pois ele e Jack eram velhos conhecidos.

Tobias sabia, por exemplo, a história que estava na origem da grotesca cicatriz que propiciara o nome de Smiling Jack. A ferida da facada tinha sido cosida por uma fraca costureira, tendo cicatrizado num esgar de cadáver, desde o canto da boca de Jack até à orelha.

- Sim, lá isso é - Jack ergueu o enorme arcabouço e apontou a Tobias uma das cadeiras com costas de tabuinhas junto da lareira. Senta-te, homem. Está uma noite fria. Vais beber do meu melhor brandy para aqueceres.

Tobias agarrou numa das incómodas cadeiras de madeira, junto da lareira, virou-a ao contrário e sentou-se, cruzando as mãos atrás das costas, tentando ignorar a dor na perna.

- O brandy é uma boa ideia - disse ele. - Que notícias tens tu para mim?

- Há uma série de coisas que talvez te interessem. Primeiro, pedis te-me para descobrir alguma coisa acerca das antigas amantes de Neville.

- Jack encheu dois cálices de brandy. - Acho que topei com uma ou outra coisa que podem ser interessantes.

- Estou pronto a ouvir.

Jack estendeu um dos cálices a Tobias e tornou a sentar-se à secretária.

- Disseste-me que Neville tem o hábito de escolher as amantes entre as mulheres dos bordéis, em vez de se dedicar às gajas da alta, e tens razão.

- E então?

- Não sei se ele prefere as mais baratas, mas uma coisa te posso dizer: quando uma mulher saída de um bordel se atira ao rio, as autoridades não lhe dão grande importância. - Jack sorriu. A expressão torceu a cicatriz numa remota imitação de ironia. - Alguns até dirão que ainda bem. É menos uma prostituta a vender os seus favores.

Tobias apertou os dedos em redor do cálice.

- Estás a querer dizer-me que mais do que uma das amantes de Neville acabou no rio?

- Não sei quantas se atiraram ao rio depois de ele as pôr de lado, mas duas, pelo menos, parecem ter sido incapazes de suportar o coração partido. Uma mulher chamada Lizzy Prather suicidou-se há cerca de ano e meio e, há uns meses atrás, uma rapariga chamada Alice foi, também, sacada do rio. Há rumores acerca de outras três que também puseram fim à vida.

Tobias bebeu um gole do revigorante brandy.

- É difícil acreditar que tantas mulheres tenham sucumbido à melancolia, depois de Neville as deixar.

- É isso mesmo. - A cadeira de Jack rangeu em protesto, quando ele se inclinou para trás. Ignorando o aviso, Jack cruzou as mãos por cima da barriga volumosa. - Mas olha que, às vezes, acontece. Há sempre umas tolas que, de facto, se convencem de que encontraram o verdadeiro amor num homem rico e que ficam com o coração partido. A maioria, porém, sabe o que as espera, quando se envolvem com homens da classe de Neville. Sacam-lhes tudo quanto podem e derivam para outro lado, quando verificam que têm de pagar, de novo, as contas.

- Um negócio satisfatório para ambas as partes.

- Sim - Jack bebeu uma grande golada de brandy, pousou o cálice e limpou a boca com a mão. - Mas ouve o resto, a parte mais interessante do caso.

- Conta lá.

- A última querida de Neville, Sally, também desapareceu. Ninguém a vê desde ontem à tarde.

Tobias ficou todo atento.

- O rio?

- É cedo para saber. Ainda não ouvi dizer que o corpo dela tenha sido retirado da água, mas pode acontecer dentro em pouco. O que te posso garantir é que desapareceu. E se as minhas fontes não a encontram, ninguém a encontra.

- Rasparta! - exclamou Tobias, esfregando a perna. Smiling Jack deixou a notícia assentar, antes de continuar.

- Há mais uma coisa que talvez te interesse.

- A respeito de Sally?

- Não - Jack baixou a voz, embora não houvesse mais ninguém no compartimento. - Diz respeito ao Clube Azul. Andam por aí uns rumores.

Tobias endireitou-se.

- Já te disse que o Clube Azul acabou. Azure e Carlisle morreram ambos e o terceiro homem pôs-se em acção, mas não por muito tempo. Vou deitar-lhe a mão em breve.

- O que tu dizes pode ser verdade, mas o que eu ouço é que estalou uma pequena guerra privada.

- Entre quem?

Jack encolheu os ombros.

- Não te sei dizer. Mas o que ouvi é que o vencedor pretende assumir o comando do que resta do Clube Azul. Isto é, tenciona refazer o império que se desmoronou com a morte de Azure.

Tobias ficou a olhar para as chamas durante muito tempo, pensando naquilo.

- Fico a dever-te estas informações - disse ele por fim.

- Sim - Jack sorriu o horrível sorriso. - Mas eu não fico preocupado. Sempre foste de boas contas.

O nevoeiro adensara enquanto estivera lá dentro. Tobias parou à porta. As luzes da taberna reflectiam-se na névoa redemoinhante que pairava na rua. A sinistra luninosidade laranja era estranhamente bri lhante, mas não revelava nada.

Passado pouco, lançou-se para a rua, resistindo ao impulso de puxar a gola da velha capa para as orelhas. A lã espessa opor-se-ia ao frio, mas ia, por outro lado, reduzir-lhe a visão lateral e abafar os pequenos ruídos da noite. Naquelas redondezas era prudente poder contar com todos os sentidos.

Avançou rapidamente na fraca claridade reflectida pelo nevoeiro e meteu-se na profunda escuridão à sua frente. Parecia não haver ninguém por ali. O que não era para admirar, numa noite assim, pensou ele.

Uma vez fora da luminosidade lúgubre de O Grifo, conseguíu distinguir um pequeno e débil círculo de luz suspenso no ar. Pensando que devia ser a lanterna de uma viatura, dirigiu-se para lá, pelo meio da rua, afastado dos becos e dos portais escuros.

Contudo, apesar das suas precauções, o único aviso que ouviu foi o leve deslizar de um homem a correr atrás dele. Um assaltante.

Dominou o instínto de se voltar e enfrentar o assaltante, sabendo muito bem que aquele era apenas uma distracção. Os gatunos, em Londres, geralmente trabalhavam aos pares.

Derivou para o lado, procurando a protecção de uma parede para se encostar. A dor subiu-lhe pela perna, mas a súbita mudança de direcção serviu os seus objectivos, apanhando o homem de surpresa.

- Raio, já o perdi!

- Acende a lanterna. Acende-a depressa, ou nunca mais o encontramos neste raio de nevoeiro.

A questão estava resolvida, pensou Tobias. Eram, de facto, dois assaltantes. As vozes ásperas marcavam a posição deles.

Retirou a pistola do bolso e esperou.

O primeiro homem praguejava alto, esforçando-se com a lanterna. Quando a luz surgiu e brilhou, Tobias utilizou-a como alvo, premindo o gatilho.

O disparo da arma estoirou na rua. A lanterna escaqueirou-se.

O assaltante berrou e largou a lanterna. O óleo chamejou alto, ao espalhar-se nas pedras do pavimento.

- Rasparta, o gajo tem uma pistola.

O segundo assaltante parecia desolado.

- Bem, ele já a disparou. Agora já não lhe serve de nada.

- Alguns trazem duas pistolas.

- Só quando estão à espera de sarilhos. - O primeiro assaltante aproximou-se da luz produzida pelo óleo espalhado da lanterna, um esgar demoníaco na cara e gritou a alta voz: - Oh tu, que te escondes no nevoeiro, nós viemos só entregar-te uma mensagem.

- E não leva muito tempo - disse o outro, também a berrar. - Queremos é ter a certeza de que levas a mensagem a sério.

- Onde é que ele está? Não consigo ver nada.

- Está calado e ouve, meu parvo.

Porém, o veículo ao fundo da rua estava agora em movimento. O matraquear das rodas e o estrépito dos cascos no empedrado soavam ruidosamente na noite. Tobias aproveitou o ruído para se movimentar.

Tirou a capa remendada e pendurou-a num gradeamento de ferro.

- Raio de azar, o gajo do lixo vem nesta direcção - rosnou um dos assaltantes.

A carroça do lixo não, pensou Tobias, avançando para interceptar o veículo. Porfavor, que não seja a carroça do lixo. Tudo menos isso.

A lanterna sacolejante estava quase em frente dele. A figura na boleia gritava e batia com as rédeas na garupa do cavalo, incitando-o a um trote vivo. Tobias agarrou-se a um apoio de mão quando a carroça passou por ele.

O cheiro amargo do conteúdo da carroça atingiu-o como uma punhalada. O homem do lixo trabalhara arduamente na sua tarefa de despejar baldes e de recolher o lixo das casas e das lojas da vizinhança.

Tobias tentou suster a respiração, enquanto se alçava para a movente carroça.

- Não podias ter arranjado outra coisa? - perguntou ele, sentando-se ao lado do cocheiro.

- As minhas desculpas - disse Anthony, continuando a incitar o cavalo com as rédeas. - Quando a tua mensagem me chegou às mãos, já havia pouco tempo. E não consegui agarrar uma carruagem. Numa noite destas, andam todas ocupadas.

- Lá está ele - ouviu Tobias gritar um dos assaltantes. - Ali, junto ao gradeamento. Estou a ver-lhe a capa.

- Tive de começar a pé. - Anthony elevou a voz por cima do estrépito dos cascos. - Cruzei-me com um homem do lixo e ofereci-lhe dinheiro para utilizar a carroça. Prometi devolvê-la dentro de uma hora.

- Agora agarrámos-te - soou outro berro dos assaltantes. Ecoavam passos no empedrado.

- Que raio de coisa é esta? Ele escapou. Deve estar no raio da carroça do lixo.

Um disparo troou na noite. Tobias pestanejou.

- Não te preocupes - disse Anthony. - Acho que não vai ser difícil arranjar uma capa tão remendada como aquela.

Um segundo disparo troou no nevoeiro. O cavalo do homem do lixo não aguentou mais. Aquilo não devia fazer parte da sua rotina nocturna. O animal espetou as orelhas, inclinou-se para a frente e lançou-se num galope.

- Ele vai escapar-se, digo-te eu. E se não o agarramos, ninguém nos paga o trabalho.

Quando deixaram de ouvir os assaltantes, Tobias disse, para ninguém em particular:

- Parecia um plano bem simples. Tudo o que pedi foi que arranjasses uma carruagem e me esperasses na rua, junto de O Grifo, para o caso de surgir algum problema que me obrigasse a uma retirada rápida.

- Uma adequada precaução, dada a natureza da vizinhançaAnthony agitava as rédeas, desempenhando o papel de cocheiro com entusiasmo. - Pensa no que podia ter acontecido se não me tivesses enviado a mensagem.

- Se queres saber, por qualquer razão nunca me ocorreu que irias escolher uma carroça do lixo.

- Um homem tem de trabalhar com o que tem à mão. Foste tu quem me ensinou isso. - Anthony sorriu. - Quando não consegui encontrar uma carruagem, vi-me forçado a inventar. E pensei que demonstrava espírito de iniciativa.

- De iniciativa?

- Sim. Aonde é que vamos, agora?

- Primeiro, vamos devolver este esplêndido coche ao seu dono e pagar-lhe pela sua utilização. E, depois, vamos direitinhos a casa.

- Ainda não é tarde. Não queres passar pelo teu clube?

- O porteiro nunca me deixaria entrar. No caso de não teres notado, estamos ambos necessitados de um bom banho.

- És capaz de ter razão.

Uma hora mais tarde, Tobias, saído do banho, enxugou-se com uma toalha, diante do lume da lareira, e vestiu o roupão. Desceu as escadas e encontrou Anthony, também lavado de fresco, vestido com a camisa e as calças de reserva que conservava no seu antigo quarto.

- E então? - Anthony estava afundado numa poltrona, as pernas estendidas para a lareira. Nem virou a cabeça, quando Tobias entrou. Vamos discutir o assunto. Achas que eram verdadeiros gatunos?

- Não. Eles disseram qualquer coisa a respeito de serem pagos para entregarem uma mensagem - disse Tobias, enfiando as mãos nos bolsos do roupão.

- Um aviso?

- Aparentemente.

Anthony abanou a cabeça devagar.

- De alguém que não quer que prossigas com as averiguações?

- Eu não tive tempo de lhes perguntar. É muito possível que a mensagem fosse de alguém que deseja que eu cesse a minha investigação. Mas há outro suspeito.

Anthony olhou para ele com ar de concordância.

- Pomfrey.

- Eu não dei muito crédito a Crackenburne, quando me avisou a respeito dele. Mas podia estar com a razão, quando me disse que Pomfrey era bem capaz de tentar vingar-se do que aconteceu no teatro.

Anthony reflectiu naquilo durante algum tempo.

- Isso faz sentido. Pomfrey não é do género de fazer as coisas de maneira honrosa - Anthony fez uma pausa. - Vais informar Mrs. Lake do que aconteceu esta noite?

- Por quem me tomas? Por um lunático? É claro que não vou informar nada Mrs. Lake a respeito desta aventura.

Anthony aquiesceu, abanando a cabeça.

- Era o que eu pensava. Não lhe vais contar nada porque não queres que ela fique ansiosa quanto à tua segurança.

- Não tem nada a ver com isso - disse Tobias vivamente. - Não lhe vou contar nada a respeito do ataque daqueles dois homens, porque tenho a certeza de que ela ia aproveitar a ocasião para me fazer uma longa prelecção.

Anthony não se preocupou em disfarçar o seu divertimento.

- Como a que lhe fizeste quando soubeste que ela tinha ido ao Huggett, disfarçada de mulher da limpeza, e se meteu num sarilho?

- Precisamente. Considero que me seria extremamente desagradável ver-me na posição de receptor desse género de chicotadas.

Lavinia estava a meio do pequeno-almoço, quando ouviu Tobias no hall.

- Não se incomode, Mrs. Chilton. Eu conheço bem o caminho. Emeline pegou na faca da manteiga, sorrindo.

- Parece que temos uma visita.

- Não há dúvida que aprendeu bem o caminho da nossa casaLavinia levou uma garfada de ovos à boca. - Que quererá ele a esta hora? Se julga que tenho paciência para tornar a ouvir as suas prelecções, é melhor pensar duas vezes.

- Tenha calma.

- É impossível ter calma com Mr. March. Ele tem o especial condão de enervar as pessoas - Lavinia parou de mastigar, ao vir-lhe uma ideia à mente. - Santo Deus, terá acontecido alguma coisa terrível?

- Qual quê? Pela voz, Mr. March parece perfeitamente em forma.

- Eu referia-me às nossas averiguações.

- Se fosse esse o caso, teria enviado uma mensagem.

- Não te fies muito nisso - disse Lavinia sombriamente. - Como te disse em Itália, Mr. March joga o seu próprio jogo.

A porta abriu-se. Tobias entrou na salinha de pequeno-almoço, enchendo o pequeno e aconchegado espaço com a energia e a força da sua presença masculina. Lavinia engoliu os ovos num repente e tentou ignorar o pequeno tremor de alerta que lhe agitava os nervos.

O que é que havia nele que lhe provocava aquelas alfinetadas de excitação que a percorriam, perguntava-se ela. Não era um grande homem. Ninguém diria que era bonito. Era raro preocupar-se em ter as maneiras refinadas que uma pessoa espera da parte de um cavalheiro e, nitidamente, precisava de outro alfaiate.

Acima de tudo, embora parecesse estar interessado nela de modo terreno, ela não sabia se ele gostava muito dela. Não era que partilhassem interesses etéreos e metafísicos, pensava ela. Não havia poesia naquela associação. Pelo contrário, era uma questão de negócio e um género espectacular de luxúria. Espectacular pelo menos no que lhe dizia respeito, emendou ela. Não sabia se era alguma coisa fora do normal para Tobias.

Lavinia interrogava-se se a estranha sensação que sentia na presença de Tobias era sintoma de um ataque de nervos. Não seria de admirar, pensava ela, dada a pressão a que ultimamente andava sujeita.

Irritada com essa possibilidade, amarrotou ferozmente o guardanapo no colo e olhou para ele.

- O que é que o traz por cá tão cedo, Mr. March?

O sobrolho dele ergueu-se perante o acolhimento agressivo.

- Bom dia, Lavinia.

Emeline fez uma careta.

- Não ligue, Mr. March. A minha tia não dormiu bem esta noite. Sente-se, por favor. Quer tomar café?

- Obrigado, Miss Emeline. Uma chávena de café é bem vinda. Lavinia observou a cautela com que ele se sentou na cadeira.

- Esforçou outra vez a perna? - perguntou ela, a testa franzida.

- Um pouco de exercício a mais, ontem à noite - disse ele, sorrindo para Emeline, ao receber dela a chávena de café. - Não há razão para se preocupar.

- Eu não estou preocupada - afirmou Lavinia, em tom arrogante. Apenas curiosa. O que decide fazer com à sua perna é assunto que só a si diz respeito.

Ele olhou para ela com um ar divertido.

- Completamente de acordo com essa sua declaração, minha senhora. Subitamente, a recordação de como as pernas dele tinham deslizado por entre as suas, naquela noite na carruagem, relampejou-lhe no cérebro. Lavinia olhou para ele por sobre a mesa e viu, com horrível certeza, que ele também estava a pensar no interlúdio apaixonado.

Receando estar a ficar com uma embaraçosa cor avermelhada, meteu rapidamente outra garfada de ovos na boca.

Emeline, jovialmente alheada das implicações, sorriu gracilmente para Tobias.

- Andou a dançar, ontem à noite?

- Não - disse Tobias. - A minha perna não se dá bem com a dança. Envolvi-me noutro género de exercício.

Lavinia apertou os dedos que seguravam o garfo com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos, imaginando que Tobias teria estado com outra mulher.

- Eu vou ter um dia muito ocupado - disse ela bruscamente. Não quer explicar-nos o que o impeliu a visitar- nos a esta hora tão matutina?

- Em boa verdade, eu também vou estar muito ocupado. Era melhor compararmos os nossos planos.

- Pela minha parte, tenciono falar com Mrs. Vaughn, para saber se ela se dispõe a dar-me uma opinião acerca dos trabalhos que Huggett expõe na galeria de cima - disse Lavinia.

- Ah, sim? - Tobias dirigiu-lhe um sorriso polidamente interrogativo. - E como é que tenciona introduzi-la na sala, se ela se dispuser a lá ir? Vai disfarçá-la de mulher da limpeza?

A atitude condescendente dele aguilhoou-a.

- Não, na verdade, pensei noutra maneira de entrar na galeria. Acho que é possível subornar o rapaz que vende os bilhetes.

- Está a falar a sério?

- Estou, sim - disse ela, mimoseando-o com um pequeno sorriso de triunfo.

Ele pousou a chávena no pires pesadamente.

- Sabe muito bem que não quero que vá àquela galeria sozinha.

- Não estarei sozinha, estarei acompanhada por Mrs. VaughnLavinia fez, delicadamente, uma pausa. - E está convidado a acompanhar-nos, se quiser.

- Obrigado - disse ele secamente. - Aceito.

Houve um pequeno silêncio. Tobias estendeu o braço por cima da mesa e serviu-se de uma tosta. Lavinia teve uma rápida visão de dentes brancos, quando ele trincou a tosta.

- Mas ainda não nos disse o que o trouxe aqui - recordou Lavinia incisivamente.

Tobias mastigava, pensativo.

- Vim ver se queria acompanhar-me numas averiguações a respeito de uma mulher chamada Sally Johnson.

Quem é Sally Johnson?

- Era a mais recente amante de Neville. Desapareceu anteontem.

- Não estou a compreender. - De qualquer modo, ele atraíra-lhe a atenção. - Acha que tem ligação com o nosso caso?

- Não o posso afirmar ainda - no olhar de Tobias havia uma sombra -, mas tenho a tsrrível impressão de que pode haver alguma ligação.

- Estou a perceber - Lavinia adoçou um pouco. - É simpático da sua parte vir aqui esta manhã, para me informar dos seus planos e para me pedir para o acompanhar.

- Ao contrário da maneira clandestina como orientou a sua visita ao Huggett ontem, não é? - Tobias abanava a cabeça. - Sim, mas isso só quer dizer que eu levo mais a sério o nosso acordo de actuarmos como sócios.

- Não é nada disso - Lavinia batia com os dentes do garfo na borda do prato: - O que é que se passa, Tobias? Por que é que me está a pedir para o acompanhar hoje?

Tobias engoliu outro pedaço de tosta e fixou Lavinia com um olhar firme.

- Porque, se tiver a sorte de encontrar Sally, vou querer falar com ela. E não tenho dúvida de que ela se abrirá mais facilmente a uma mulher do que a um homem.

- Eu sabia, eu sabia. - Uma desolada satisfação assentou-lhe no estômago. - Veio aqui esta manhã, não porque quisesse que trabalhássemos como sócios, mas porque precisa de mim nas suas averiguações. O que é que espera de mim? Que ponha Sally em transe mesmérico e a coaja a falar?

- Por que é que põe sempre os meus motivos em causa?

- No que se refere a si, caro senhor, prefiro proceder com a máxima precaução.

Ele sorriu debilmente, os olhos a brilharem.

- Nem sempre, Lavinia, nem sempre. Já a vi abrir uma ou duas excepções a essa regra.

 

A casa era uma construção estreita com dois andares e cozinha na cave. As vizinhanças não eram das melhores, pensou Lavinia, mas havia muito sossego.

Não lhes levou muito tempo a confirmar que Sally Johnson não se encontrava em casa. Tobias estava preparado para essa eventualidade.

Lavinia estava ao lado dele no pequeno espaço abaixo do nível da rua, observando-o a introduzir a ponta de metal de uma ferramenta entre a porta da cozinha e a ombreira.

- Neville não parece ter sido muito generoso com Sally - comentou Lavinia. - Isto não é grande casa.

A madeira e o ferro gemiam, com a força cautelosa que Tobias aplicava na ferramenta.

- Tomando em consideração que Neville a retirou de um bordel, esta casa deve ter-lhe parecido um palacete - disse ele.

- Sim, suponho que sim.

A porta abriu-se.

Lavinia envolveu-se melhor na capa, apertando-a contra si, e espreitou para o corredor escuro.

- Espero que não tropecemos noutro corpo. já estou farta de cadá veres - disse ela.

Tobias entrou à frente.

- Se Sally teve a mesma sorte das duas predecessoras, muito pro vavelmente o seu corpo encontra-se no rio, e não aqui.

Lavinia estremeceu e seguiu-o.

- Isso não faz sentido. Por que haveria o seu cliente de matar a amante?

- Obviamente, não há uma resposta razoável a essa pergunta.

Mesmo que ele tivesse despachado a mulher, o que é que isso teria a ver com a ameaça de morte a Mrs. Dove, ou com o Clube Azul?

- Ainda não sei. Talvez nada. Talvez muito.

Lavinia parou no meio da cozinha, torcendo o nariz perante o cheiro a carne estragada.

- Apercebe-se de que está a dizer que o seu cliente é um mentiroso e um assassino?

- Já lhe disse que todos os clientes mentem - Tobias abriu um cesto de vegetais e olhou lá para dentro. - É uma das razões por que é prudente obter um avanço dos honorários, quando se aceita um encargo.

- Não me vou esquecer disso - disse Lavinia, abrindo um armário e examinando o interior. - Mas já deve ter uma teoria acerca das razões que levariam Neville a matar as amantes, ou não?

- Uma das possibilidades é que ele seja completamente louco.

- Sim - disse Lavinia, com um arrepio.

- Mas há outro motivo plausível - Tobias largou a tampa do cesto e olhou para ela. - Um homem que mantém uma mulher numa casa discreta como esta, fá-lo porque pretende passar muito tempo na companhia dela.

Lavinia franziu a testa.

- Possivelmente muito mais tempo do que o que passa com a mulher legítima.

- Precisamente - Tobias lançou-lhe um olhar enigmático. - Dado que a maior parte dos casamentos na alta sociedade são feitos em razão do dinheiro, não surpreende que os maridos sintam que a relação com a amante é, de longe, muito mais íntima do que a que têm com a mulher legítima.

Ele chegava ao fundo da questão. Lavinia voltou-se, o sobrolho erguido.

- Acredita, realmente, que Neville, quando se cansa das amantes, as mata porque receia que elas saibam demais a respeito dele? Que género de segredos pode ele ter que o tenham induzido a matar três mulheres, para as silenciar?

- Vou ser franco consigo - Tobias fechou uma gaveta e começou a subir as escadas que levavam ao rés-do-chão da casa. - Por ora, não sei o que pensar. Sei, apenas, que, pelo menos duas e, possivelmente, três das mulheres com quem Neville manteve estreitas relações, durante os últimos dois anos, morreram. Supostamente, pela própria mão.

- Suicídio. - Lavinia relanceou um olhar inquieto à cozinha e apressou-se a segui-lo. - Mas não temos a certeza de que Sally Johnson tenha seguido o exemplo das outras duas.

Tobias chegou ao hall e desapareceu para dentro da sala de estar.

- Considero que, dadas as circunstâncias, devemos assumir o pior. Lavinia deixou-o no rés-do-chão, continuando a subir as estreitas escadas para o primeiro andar.

Demorou pouco mais de um minuto ou dois, no quarto de Sally, para concluir que Tobias estava errado acerca de um pormenor. Voltou-se e correu para o topo das escadas.

- Tobias.

Ele apareceu no hall e olhou para cima.

- O que é?

- Eu não sei o que aconteceu a Sally, mas posso garantir-lhe uma coisa: ela levou as suas coisas antes de desaparecer. O guarda-vestidos está vazio e não há malas debaixo da cama.

Tobias subiu as escadas e chegou ao patamar onde ela estava. Lavi nia afastou-se, para o deixar passar para o quarto. Quando lá entrou, atrás dele, viu que Tobias examinava o interior do guarda-vestidos.

- Possivelmente, alguém que a conhecia e que sabia que ela desaparecera veio aqui e roubou-lhe tudo - disse ele calmamente. - Não fico nada surpreendido por verificar que os amigos de Sally não passam de uns oportunistas.

Lavinia abanou a cabeça.

- Não. Se tivesse sido um ladrão, muito provavelmente teria deixado o quarto numa grande desordem. Mas está tudo bem arrumado. Quem empacotou as coisas de Sally conhecia muito bem o quarto.

Tobias observou atentamente a mobília.

- Neville conhecia muito bem o quarto. Pode ter querido ocultar alguma evidência de assassinato.

Lavinia dirigiu-se ao lavatório e olhou para a grande bacia.

- Sim, mas, nesse caso, ter-se-ia desfeito desta roupa cheia de sangue e desta água na bacia.

- Que raio é isso? - Tobias atravessou o quarto em três passadas e olhou para as manchas escuras na roupa e para a água avermelhada. Será que ele a matou aqui e tentou, depois, limpar o sangue das mãos?

- Não há mais sinal nenhum de sangue no quarto. Está tudo muito arrumado e limpo - Lavinia hesitou, pensando: - Existe outra possibili dade, Tobias.

- Qual é?

- Pode ter havido uma tentativa de matar Sally e ela ter sobrevivido. Pode ter vindo a casa, lavado a ferida, agarrado nas suas coisas e, depois, desapareceu.

- Indo esconder-se em qualquer lado, é isso?

- Sim.

Ele observou de novo o quarto.

- Tem razão numa coisa. Não há sinais de luta neste quarto.

- O que quer dizer que terá sido atacada noutro lado. - Acalentando a sua teoria, Lavinia dirigiu-se rapidamente para a porta. – Temos de falar com a vizinhança. Talvez alguém tenha visto Sally regressar a casa e partir de novo.

        Tobias abanou a cabeça.

- É uma perda de tempo. O meu informador garantiu-me que ninguém tornou a ver Sally desde que ela desapareceu.

- Se calhar, o seu informador não falou com toda a gente das vizinhanças. Nestes casos, há que proceder com extremo rigor.

- Jack é um homem muito rigoroso.

Lavinia avançou para as escadas.

- Eu sei, Tobias, que lhe vai ser difícil acreditar nisto, mas os homens nem sempre pensam em tudo.

Para surpresa dela, ele não se pôs a discutir, seguindo-a escadas abaixo. Saíram da casa pela porta da cozinha.

Lavinia parou no meio da rua, examinando as duas filas de casas baixas.

A rua estava deserta àquela hora. A única pessoa à vista era uma velha embrulhada numa capa. Levava um cesto com flores num dos braços. Nem olhou para eles, quando por eles passou, a atenção concentrada numa conversa que parecia manter com um invisível acompanhante.

- As rosas são muito vermelhas - murmurava ela. - Já te disse, as rosas são demasiado vermelhas. Vermelhas cor de sangue, é o que elas são. Vermelhas cor de sangue. Demasiado vermelhas. Não consigo vender rosas tão vermelhas. As pessoas ficam nervosas. Não as consigo vender, já te disse.

A pobre mulher era louca, pensou Lavinia. Havia muitas como ela, nas ruas de Londres.

- Uma candidata a Bedlam - disse Tobias serenamente, quando a velha se afastou.

- Sim, talvez. De qualquer modo, não anda por aí a matar gente como parece fazer o seu cliente.

- Boa observação. Pergunto-me o que é que isso nos pode dizer acerca do estado da mente de Neville.

- Apenas que consegue disfarçar melhor a sua loucura do que esta pobre mulher.

A expressão de Tobias ficou mais séria.

- Devo afirmar-lhe que Neville sempre me pareceu um homem de mente perfeitamente sã.

- O que só o torna muito mais perigoso, não é assim?

- Talvez. Mas ocorre-me agora que estamos a falar dele como se tivéssemos a certeza de que ele matou as três mulheres - disse Tobias.

- Mas, de facto, ainda não o sabemos.

- Tem muita razão. Estamos a ser precipitados - Lavinia examinou o aspecto das portas de entrada das casas. - As governantas e as criadas costumam ser as melhores fontes de informação. Espero que tenha trazido bastantes moedas consigo.

- Por que é que sou eu sempre a entrar com o dinheiro necessário às nossas averiguações.

Lavinia caminhou decidida para a primeira das portas de cozinha.

- Pode pôr isso na conta do seu cliente.

- É muito possível que o meu cliente se venha a revelar um dos vilões da peça. Se for esse o caso, posso ter grande dificuldade em cobrar os meus honorários. Teremos, então, de incluir este género de despesas na conta da sua cliente.

- Deixe-se de lamúrias - disse Lavinia, descendo os degraus. Não me distraia.

Ele ficou no passeio a observá-la.

- Uma questão, antes que bata à porta. Tente não dar muito a entender que está disposta a pagar as informações, a menos que tenha a certeza de que obtém algo de útil. De contrário, vamos ficar sem moedas antes de chegarmos ao fim do quarteirão e sem nada de útil que nos compense.

- Eu tenho alguma experiência de regateio, se bem se lembra. Lavinia levantou a argola e deixou-a cair delicadamente. A criada que atendeu dispôs-se de boa vontade a tagarelar acerca da mulher que morava em frente e que tinha o hábito de receber um cavalheiro à noite. Mas não a via há dois dias.

Lavinia obteve o mesmo resultado na porta a seguir e na outra, depois dessa.

- É inútil - declarou ela, quarenta minutos mais tarde, depois de falar com a última criada, na última casa da rua. - Ninguém viu Sally. Contudo, continuo convencida de que ela voltou a casa, o tempo sufi ciente para tratar da ferida e fazer a mala.

- Pode não ter sido ela quem voltou - disse Tobias, agarrando no braço de Lavinia e encaminhando-se com ela para a casinha de Sally.

Talvez tenha sido Neville que cá veio recolher as coisas dela para parecer que ela tinha partido em viagem.

- Isso é uma tolice. Se ele quisesse fazer parecer que ela tinha partido para o campo, tinha retirado a comida da cozinha. Nenhuma mulher que feche a sua casa por um longo período de tempo deixa carne e vegetais a apodrecer na cozinha.

- Neville é um homem muito rico. Sempre teve criadas e governantas a preocuparem-se com o governo da sua casa. Provavelmente, não entra numa cozinha há mais de vinte anos.

Lavinia ficou a ponderar aquilo.

- É capaz de ter razão. Mas continuo a pensar que foi Sally quem voltou naquela noite.

Tobias apertou-lhe o braço.

- Não estará a insistir na sua versão dos acontecimentos porque não quer imaginar Sally morta?

- Claro que sim.

- Mas nem sequer conhece a mulher - apontou Tobias. - Ela é uma

prostituta que, pelo que se sabe, ganhava a vida num bordel, antes de conseguir atrair a atenção de Neville.

- O que é que isso importa?

O canto da boca de Tobias torceu-se um pouco.

- Absolutamente nada, Lavinia - disse ele mansamente. - Absolutamente nada.

Distraidamente, Lavinia observava a vendedeira de flores louca.

A velha estava parada em frente da casinha de Sally. A conversa com

o acompanhante parecia estar mais acalorada.

- Não consigo vender rosas tão vermelhas, já te disse. Não há maneira de vender rosas cor de sangue. Ninguém as quer, não percebes.

Lavinia parou de repente, forçando Tobias a parar.

- A vendedeira de flores - segredou Lavinia.

Ele olhou de relance para a velha.

- O que é que se passa com ela?

- Ninguém quer as rosas de sangue.

- Olhe para a capa dela - disse Lavinia. - É muito fina, não acha?

Contudo, é uma mulher claramente muito pobre.

Tobias encolheu os ombros.

- Alguém teve pena dela e deu-lhe uma capa.

- Espere aqui - Lavinia fê-lo largar-lhe o braço. - Vou falar com ela.

- De que lhe vai servir? - murmurou ele. - Ela é louca.

Lavinia ignorou-o, aproximando-se devagar da vendedeira de flores, não a querendo alarmar.

- Bom dia - disse-lhe Lavinia gentilmente.

A vendedeira teve um sobressalto e, depois, abriu muito os olhos para Lavinia, como que a objectar por ela lhe interromper a conversa.

- Hoje só tenho rosas vermelhas para vender - anunciou ela. E ninguém quer rosas vermelhas cor de sangue.

- Vendia rosas à mulher que vivia nesta casa? - perguntou Lavinia.

- Ninguém quer rosas cor de sangue.

Como é que se conversa com uma vendedeira de flores louca, interrogava-se Lavinia. Porém, louca como parecia ser, a velha tinha conseguido evitar ser levada para Bedlam. Isso significava que conseguia ganhar a vida a vender flores. O que, por outro lado, significava que possuía alguma capacidade rudimentar para o negócio.

Lavinia fez soar as moedas que Tobias lhe dera.

- Eu quero comprar as suas rosas cor de sangue - disse Lavinia.

- Não. - A mulher agarrou o cesto das flores com as duas mãos. Ninguém as quer.

- Eu quero - disse Lavinia, estendendo as moedas.

- Ninguém quer comprar as minhas rosas cor de sangue. - Um brilho astuto surgiu no olhar da mulher. - Eu sei o que tu queres.

- Ah, sabe?

- Queres a minha capa, não é? Não queres as rosas vermelhas. Ninguém quer rosas cor de sangue. Queres é a minha capa.

- A sua capa é muito bonita.

- Quase sem sangue nenhum. - A velha sorriu, vaidosa, revelando a falta de inúmeros dentes. - Só um bocadinho no capuz.

Santo Deus, pensou Lavinia. Fica calma. Não a confundas com muitas perguntas. Convence-a a passar-te a capa para as mãos.

- A minha capa não tem nenhum sangue - disse Lavinia cautelosamente. - Por que não trocamos?

- Oh, oh. Agora queres trocar, é. Bem, isso é interessante. Ela não a quis por causa do sangue. Também ninguém quer rosas cor de sangue.

- Eu quero.        

- Costumava comprar-me rosas. - A velha olhou para o cesto. - Mas naquela noite não quis rosas. Era por causa do sangue. Disse-me que escapou por um triz.

A pulsação de Lavinia acelerou.

- Ela escapou?

- Sim. - A velha sorriu. - Mas estava cheia de medo. Foi esconder-se. Quis a minha capa velha. Não tinha sangue, percebes.

Lavinia levou a mão ao pescoço e desapertou a capa, tirando-a dos ombros e estendendo-a à mulher, com as moedas.

- Dou-lhe esta bela capa e estas moedas pela sua capa. A vendedeira de flores olhou atentamente para a capa de Lavinia.

- Parece velha.

- Está ainda em muito bom estado, garanto-lhe.

A louca espetou a cabeça e, depois, sacou a capa das mãos de Lavinia.

- Vamos lá a ver bem o que tu me ofereces, minha rica.

- Não tem nenhum sangue - disse Lavinia mansamente. - Nem uma única gota.

- Pode ser que não - disse a velha sacudindo a capa e voltando-a do avesso. - Ah, tem aqui uma mancha. - A velha observou a mancha mais de perto. - Parece que alguém a esteve a esfregar.

Lavinia ouviu um som abafado que podia, muito bem, ter sido uma risada de Tobias. Teve o cuidado de não olhar para ele.

- Mal se nota - disse ela firmemente.

- Eu cá notei.

- Essa pequena mancha na minha capa tem muito menos importância do que as manchas de sangue na sua - disse Lavinia por entre os dentes. - Está interessada no negócio ou não?

A cara enrugada da vendedeira de flores contraiu-se numa expressão de desdém.

- Achas que eu sou maluca, minha rica? A minha bela capa vale muito mais do que tu me ofereces por ela, e tu sabes bem.

Lavinia inspirou fundo e fez por não mostrar o seu desespero.

- O que é que quer mais? A velha soltou uma risada.

- A tua capa, as moedas, as tuas botas e está feito.

- As minhas botas? - Lavinia olhou automaticamente para elas. Mas eu preciso delas para ir para casa.

- Não te preocupes, minha rica, eu dou- te os meus sapatos. Não têm nenhum sangue. Mesmo nenhum. Não são como as rosas. - O brilho de astúcia desapareceu dos olhos da louca. A névoa sonhadora cobriu-os de novo. - Ninguém quer comprar rosas com sangue, percebes.

- Refiz o meu diagnóstico - disse Tobias, ajudando Lavinia a subir para a carruagem. - Já não acho a vendedeira de flores completamente louca. Pelo contrário, acredito que ela é uma sua rival no que respeita ao regateio de um negócio.

- Ainda bem que acha graça - Lavinia deixou-se cair no assento e examinou demoradamente os sapatos velhos que calçava. Tinham buracos na sola e estavam descosidos em diversos pontos. - Aquelas botas eram quase novas.

- Não foi a única que saiu mal da bela troca que fez - Tobias içou- se para a carruagem e fechou a porta. - Havia alguma necessidade de lhe dar todas aquelas minhas moedas?

- Achei que, já que perdia a minha capa e as minhas botas, você também devia contribuir.

- Espero que esteja contente com a troca - disse Tobias, sentando-se em frente de Lavinia e olhando para a capa nas mãos dela. - O que é que pensa que vai descobrir nessa capa?

- Ainda não sei - Lavinia examinou as dobras da capa. - A vendedeira de flores tinha razão a respeito do sangue. Virou o capuz do avesso e susteve a respiração. - Veja. Isto é sinal de uma ferida na cabeça, não acha?

Os olhos de Tobias semicerraram-se, ao ver o sangue seco.

- É o que parece. As feridas na cabeça sangram muito, mesmo que pequenas.

- Portanto, a minha teoria de que Sally sobreviveu ao ataque e voltou a casa, para recolher as suas coisas, pode estar correcta.

- E faz sentido ela ter trocado de capa com a vendedeira de flores - disse Tobias, pensativo. - Sally veio de um meio de indigentes e deve ter voltado para lá, para se esconder. Uma peça de roupa cara só servia para despertar uma atenção indesejada sobre ela, em semelhante vizinhança.

- Sim, Tobias. Acho que estamos no bom caminho. Lavinia viu o bolso pregado no interior da capa e meteu lá a mão. Os dedos roçaram num pedaço de papel.

- Tudo o que sabemos é que a última amante de Neville escapou à sorte das outras - disse Tobias. - A capa serve para confirmar a con clusão a que chegou no quarto de Sally, mas não nos fornece mais informações, nem nos indica uma nova direcção.

Lavinia estava de olhos abertos para o bilhete que acabara de retirar do bolso da capa.

- Pelo contrário - murmurou ela. - Conduz-nos de volta ao Museu Huggett.

 

- Raiva e dor - disse Mrs. Vaughn, tranquilamente. - Dor e raiva. É surpreendente.

As palavras foram pronunciadas tão baixinho que Lavinia mal as conseguiu ouvir. Olhou para Tobias, em pé ao lado dela, ao fundo da mal iluminada galeria. Ele estava calado, a atenção fixada em Mrs. Vaughn.

Huggett pairava ansioso junto da porta, um esqueleto preparado para se esconder na penumbra, matraqueando, à primeira oportunidade.

- Isto é muito impróprio - murmurava ele. - Nunca imaginei estas estátuas a serem vistas por senhoras. Esta galeria destinava-se só a cavalheiros, como vos disse.

Ninguém lhe prestou atenção. Mrs. Vaughn dirigiu-se lentamente para a próxima cena e parou a observar as figuras.

- Eu não reconheço as caras destas mulheres, mas posso garantir- lhes que são cópias de gente viva - Mrs. Vaughn hesitou. - Ou, talvez, morta.

- Máscaras de morte, é o que quer dizer? - perguntou Tobias.

- Isso não posso afirmar. Há três maneiras de obter uma semelhança em cera. A primeira, a que eu utilizo, é esculpir as figuras como se trabalha em pedra ou com gesso. A segunda é fazer uma impressão em cera da cara de uma pessoa viva e usá-la como modelo para a escultura. E a terceira é, claro, fazer uma máscara de morte.

Lavinia examinou a cara da mulher torcida de dor, ou de êxtase, na cena próxima dela.

- As feições de uma máscara de morte não seriam menos, digamos, animadas. Um cadáver não areceria, decerto, tão cheio de vida.

- Um modelador de cera exímio pode, talvez, tornar os traços de uma máscara de morte e utilizar a impressão para recrear a imagem de uma cara ainda viva.

- Não é nada próprio - Huggett torcia as mãos ossudas. - As senhoras não deviam estar aqui.

Ninguém olhou para ele.

Tobias aproximou-se de um dos trabalhos em cera e examinou a cara de uma das figuras masculinas.

- E que pensa das figuras masculinas aqui expostas? Acha que foram modeladas a partir de gente viva, ou morta?

Mrs. Vaughn olhou para ele, as sobrancelhas erguidas.

- As feições das figuras masculinas foram todas tiradas do mesmo modelo, não notou?

- Não - Tobias olhou para uma das figuras masculinas mais de perto. - Não tinha notado isso.

Admirada, Lavinia observou as feições violentamente contorcidas de uma das figuras masculinas.

- Acho que tem toda a razão, Mrs. Vaughn.

- Duvido que os homens que visitam esta galeria gastem muito tempo a examinar as caras das estátuas masculinas - disse Mrs. Vaughn secamente.

- A atenção deles prende-se, com certeza, com outros aspectos dos quadros.

- Mas as caras das mulheres são distintas - disse Lavinia, aproximando-se de outra cena. - São individualizadas. Todas as cinco.

- Sim - disse Mrs. Vaughn. - Eu também diria isso. Lavinia olhou para Tobias.

Ele ergueu o sobrolho.

- A resposta é não. Não reconheço nenhuma delas. Lavinia corou e aclarou a garganta.

- E a figura masculina?

Tobias abanou a cabeça, decisivo.

- Não o conheço - disse ele, voltando- se bruscamente para Huggett. Quem é que lhe vendeu estes trabalhos em cera.

Huggett recuou. Os olhos abriram-se-lhe nas órbitas. Foi deslizando até embater na porta.

- Ninguém mos vendeu - disse ele, parecendo ao mesmo tempo apavorado e ofendido. - Juro-lhe.

- Obteve-os de alguém - Tobias avançou um passo para ele. A menos, claro, que seja você o artista?

- Não - Huggett engoliu em seco e dominou um pouco os nervos. Eu não sou artista. Não fui eu quem modelou estas figuras.

- Quem foi que as criou?

- Eu não sei, meu caro senhor, essa é a inteira verdade - lamentou-se Huggett.

Tobias percorreu a distância que o separava de Huggett.

- Como é que as conseguiu?

- Há um acordo - Huggett começou a balbuciar. - Quando uma está pronta, recebo uma mensagem para ir buscá-la a uma certa morada.

- Que morada é essa?       

- Nunca é a mesma - disse Huggett. - Geralmente é um armazém

junto ao rio, mas nunca é o mesmo armazém.     

- Como é que as paga?     

- É isso que tento explicar-lhe, caro senhor - disse Huggett servilmente. - Eu não as pago. O acordo é que eu as posso ter de graça desde que as exponha publicamente.         

Tobias apontou para a colecção.        

- Qual destas cenas foi a última que recebeu.      

- Essa aí - Huggett apontou, com um dedo a tremer, para uma cena     

próxima. - Recebi a mensagem há para aí uns quatro meses, a informar-me de que estava pronta.   

Lavinia lançou um olhar à figura da mulher fixada num horror de êxtase e estremeceu.         

- Não tornou a receber nenhuma mensagem do artista? - perguntou Tobias.

- Não - disse Huggett. - Mais nenhuma.

Tobias fixou-o com um olhar frio.

- Se receber alguma comunicação do artista, informa-me imediatamente. Compreende?

- Sim, sim - guinchou Huggett. - Imediatamente.

- Já o avisei. Este caso envolve assassinatos.

- Não me quero ver envolvido em assassinatos - afirmou Huggett. Sou um mero comerciante inocente que tento ganhar a minha vida.

Lavinia trocou um olhar com Mrs. Vaughn.

- já nos tinha dito que um artista deste nível gosta de ver o seu trabalho exposto ao público.

Mrs. Vaughn aquiesceu.

- É muito natural. Aparentemente, este artista não tem necessidade de ganhar dinheiro com as suas criações.

- Estamos, portanto, a falar de uma pessoa de avultados recursos financeiros - disse Tobias.

- É o que eu penso - disse Mrs. Vaughn. - Só uma pessoa com outras fontes de rendimento se pode dar ao luxo de criar e de oferecer tão grandes e tão bem modelados trabalhos.

- Uma última questão, se não se importa - disse Lavinia.

- Com certeza, minha querida - Mrs. Vaughn estava radiante. Não me importo nada. Na verdade, esta experiência está a ser muito interessante.

- Acha que o artista que criou estes trabalhos pode ser o mesmo que esculpiu a ameaça de morte que lhe mostrámos, no outro dia?

Mrs. Vaughn olhou para a cara angustiada da figura mais próxima.

- Sim, sim - murmurou ela. - Acho que sim. Penso que é muito possível que o artista seja o mesmo.

Tobias encostou-se a um dos pilares de pedra que suportavam o tecto da artística ruína gótica e espraiou o olhar pelo jardim mal tratado.

A ruína tinha sido construída há uns anos atrás. O arquitecto quisera, sem dúvida, acrescentar um pormenor gracioso àquela zona do parque. Um local de serena contemplação da essência tranquilizadora da natureza.

Aquela porção do parque, porém, nunca atraíra muito o público. Como resultado, a ruína e o jardim e a sebe adjacentes tinham caído em declínio. A relva não tratada tinha-se tornado erva selvagem, tecendo um véu natural que escondia a ruína do olhar de quem quer que deambulasse naquela zona do parque.

Tobias tinha topado com a amortalhada ruína há muito tempo atrás. Ia ali algumas vezes, quando queria pensar tranquilamente. Aquela era a primeira vez que levava alguém à ruína que se habituara a considerar o seu retiro particular.

Parara de chover, mas das árvores ainda pingavam gotas. A carruagem que conseguira agarrar à saída do Museu Huggett aguardava numa vereda do parque. Pelo menos, ele esperava que aguardasse. Não lhe agradava a ideia de ter de levar Lavinia a casa a pé. A perna estava a doer-lhe.

- Temos uma série de coisas, na aparência desligadas, em que pensar - disse ele. - As mortes ou o desaparecimento de algumas das amantes de Neville, os trabalhos em cera e os rumores de uma guerra pelo domínio do que resta do Clube Azul. E pode haver elos de ligação entre elas.

- Concordo! - Lavinia estava de pé junto de outro pilar, de braços cruzados. - E acho que os elos são óbvios.

- Os nossos clientes.

- Ambos nos têm mentido desde o início do caso. Tobias aquiesceu.

- Sim.

- Ambos tentam utilizar-nos para os seus fins secretos.

- Com toda a evidência.

Lavinia olhou para ele.

- Chegou a altura de os confrontarmos.

- Sugiro que comecemos pela sua cliente.

- Estava à espera que dissesse isso - Lavinia suspirou. - Acho que Mrs. Dove não vai gostar nada. Provavelmente, despede-me.

Tobias endireitou-se e pegou-lhe num braço.

- Se lhe serve de consolo, acho que Neville não me vai pagar nada.

- Vou ter de vender outra estátua para pagar a renda da casa e o salário de Mrs. Chilton - disse Lavinia.

- Uma das coisas que admiro em si, Lavinia, é que arranja sempre recursos.

Joan Dove, sentada no sofá às riscas, ficou tão hirta e tão direita que Lavinia pensou que podia, facilmente, ser tomada por uma das figuras modeladas por Mrs: Vaughn.

- Como? - disse Joan, no tom gélido de uma mulher pouco habituada a ser questionada. - O que é que está a insinuar?

Tobias mantinha-se calado. Olhou para Lavinia dando-lhe a entender que confiava nela para orientar a cena desagradável. Afinal, a cliente era dela.

Lavznia encontrou o olhar dele e, depois, ergueu-se da poltrona, indo postar-se junto de uma das janelas da sala. O cabelo ruivo dela contrastava vivamente com o verde-escuro dos reposteiros.      

- Acho que a pergunta foi bastante directa - disse ela serenamente. -    

Perguntei-lhe se, em tempos, se env olveu com Lorde Neville. É ele o homem que a seduziu e a abandonou há vinte anos atrás? Joan não respondeu. O silêncio gélido que emanava dela ameaçava gelar a sala toda.

- Santo Deus, Joan - Lavinia voltou-se para ela, a ira a chamejar-lhe nos ollios. - Não quer compreender o que se passa? Nós temos

boas razões para acreditar que Neville matou, pelo menos, duas das suas antigas amantes. Talvez mesmo mais. A última pode estar viva, mas, se estiver, é apenas por sorte.

Joan não di se nada.

Lavinia pôs-se a caminhar na sala.

- Nós sabemos que Sally Jonhson visitou o Museu Huggett pouco antes de desaparecer. Há nesse museu uma galeria que expõe trabalhos em cera brilhantemente executados. A ameaça que recebeu foi executada por um perito em modelar cera. Nós acreditamos que o artista que os criou a todos é o mesmo. Portanto, o que é que se passa?

- Basta, Lavinia. - A boca de Joan estava contraída. - Não deve zangar-se comigo. Eu sou sua cliente, lembre-se?

- Responda à minha pergunta - Lavinia parou no meio do tapete em frente de joan. - Teve uma ligação com Neville?

Joan hesitou.

- Sim. Tem razão. Ele foi o homem que me seduziu e que me abandonou, já lá vão todos esses anos.

Por momentos, ninguém na sala se moveu ou falou.

Por fim, Lavinia soltou um longo suspiro.

- Eu sabia - disse ela, deixando-se cair na poltrona mais próxima. Eu sabia que tinha de haver um elo de ligação.

- Não consigo perceber como é que esse segredo tão antigo pode ter a ver com uma questão de mortes - disse Joan.

Tobias olhou para ela.

- Neville parece encontrar-se num processo de se desfazer das suas antigas amantes. Pelo menos duas mulheres, com quem ele manteve relações íntimas, morreram nos últimos dois anos. Há mais três que se pensa que morreram e uma que desapareceu.

Joan franziu a testa.

- Por que é que ele as haveria de matar.

- Não temos a certeza - disse Tobias -, mas pensamos que, possivelmente, receia que elas saibam demais a respeito dele.

- O que é que elas poderiam saber que o levasse a pensar que tinha de as matar?

- Vou ser franco consigo, Mrs. Dove - disse ele. - Tenho quase a certeza de que Neville era membro de uma organização criminosa conhecida como o Clube Azul. Um gangue muito secreto e, durante muitos anos, muito poderoso. Era dirigido por um homem que se apelidava a si próprio de Azure e pelos seus lugar-tenentes.

- Estou a ver - Joan olhou para ele sem expressão. - Que coisa estranha.

- O Clube Azul começou a desfazer-se após a morte de Azure ocorrida há uns meses atrás. Um dos lugar-tenentes, chamado Carlisle, morreu há três meses em Itália.

Joan franziu a testa.

- Tem a certeza disso?

Tobias sorriu friamente, não tirando os olhos da cara dela.

- Sim, estou absolutamente certo da sua morte.

Joan olhou fugazmente para Lavinia.

- Portanto, só resta um membro do Clube Azul e pensam que esse homem é Lorde Neville.

- Sim - disse Lavinia. - Mr. March esperava que o diário do criado lhe fornecesse a prova.

- Mas o diário foi convenientemente destruído antes que eu o pudesse ler - disse Tobias.

Lavinia pôs-se a examinar as pontas dos dedos.

- É possível que Neville tenha matado Holton Félix, destruindo o diário, e tenha arranjado maneira de Mr. March o encontrar. Mas também é possível que tenha sido outra pessoa a fazer tudo isso.

- Quem? - perguntou Joan. Lavinia olhou-a nos olhos.

- A senhora.

Houve um momento de silêncio chocante.

- Não compreendo - murmurou Joan. - Por que haveria eu de fazer isso?

- Porque queria desesperadamente esconder um segredo que constava do diário - disse Lavinia.

- O facto de eu ter tido um caso com Neville? - Os olhos de Joan brilharam de divertida ironia. - Admito que prefiro manter essa ligação em segredo, mas garanto-vos que não me arriscava a matar ninguém para o conseguir.

- Não é a tagarelice a respeito do caso com Neville que a preocupa - disse Lavinia. - É o facto de que Azure era o seu marido. Joan ficou de olhos abertos para ela.

- É louca?

- Amava-o muito, não amava? - continuou Lavinia, quase gentilmente. - Deve ter sido um grande choque, quando recebeu a primeira nota de chantagem de Holton Félix, informando-a de que Fielding Dove tinha sido o chefe de uma organização criminosa secreta. Dava tudo para manter a informação enterrada, não dava? Era a honra e o bom-nome do seu marido que estavam em causa.

Durante alguns segundos, a cor desapareceu da cara de Joan. Depois voltou, num vermelho de raiva.

- Como se atreve a insinuar que o meu marido estava envolvido nesse. nesse Clube Azul? Quem julga que é para sequer sonhar com semelhante acusação?

- Contou-me que, após a morte do seu marido, se viu mergulhada numa teia financeira muito complexa. Referiu, até, que ainda está a separar as diversas pontas da meada - disse Lavinia.

- Eu expliquei-lhe que ele era um investidor brilhante.

- Um conjunto de investimentos complexos pode muito bem servir de capa a actividades criminosas - disse Tobias calmamente.

Joan fechou os olhos.

- Têm razão. Holton Félix enviou-me, de facto, uma nota, ameaçando-me de expor o papel de Fielding como o cabecilha de um vasto império criminoso - Joan ergueu as pestanas para revelar a desolada certeza. - Mas a ameaça baseava-se numa mentira.

- Tem a certeza disso? - perguntou Lavinia mansamente.

- Não é possível - disse Joan, as lágrimas a luzirem-lhe nos olhos. Fielding e eu vivemos juntos durante vinte anos. Eu ter-me-ia apercebido, se ele fosse um criminoso. Não me podia ter escondido semelhante coisa durante tanto tempo.

- Muitas mulheres ignoram as actividades financeiras dos maridos durante todo o tempo de casamento - disse Lavinia. - Não sei dizer-lhe quantas viúvas eu conheço que se sentiram perdidas, depois do funeral dos maridos, porque não percebiam nada das suas finanças.

- Recuso-me a crer que Fielding fosse esse Azure de que falam - disse Joan calmamente. - Têm alguma prova?

- Nenhuma - anuiu Tobias prontamente. - E, como tanto Azure e o seu marido já morreram, não tenho interesse nenhum em vasculhar o assunto. Quero, porém, desmascarar Neville.

- Compreendo - murmurou Joan.

- De preferência, antes que ele a mate a si também - disse Lavinia. Joan ficou de olhos abertos.

- Acha que foi ele que me enviou a ameaça de morte?

- É muito possível - disse Tobias. - Ele não é nenhum artista, mas pode ter encomendado a um modelador de cera o quadrinho que recebeu.

- Mas para quê avisar-me das suas intenções?

- O homem parece ser um assassino - disse Lavinia. - Quem é que pode saber o que se passa na mente dele? Talvez pretenda atormentá-la, ou puni-la, de alguma maneira.

Tobias afastou-se da janela.

- Mais provavelmente, pretende colocá- la numa situação mais vulnerável. A senhora tem um pequeno exército à sua volta, Mrs. Dove. O seus lacaios estão, obviamente, preparados para muito mais coisas do que apenas carregar copos de champanhe em salvas de prata.

Joan soltou um suspiro.

- O meu marido era muito rico, Mr. March, e teve o cuidado de escolher homens capazes de nos proteger a nós e às nossas coisas.

- É possível que Neville tenha enviado a ameaça para a enervar disse Lavinia. - Espera, talvez, que fique ansiosa e descuidada, acabando por cometer algum erro que a coloque à mercê dele.

- Mas ele não tem razão nenhuma para me matar - insistiu Joan.

- Mesmo que seja um criminoso, há vinte anos eu não sabia nada das suas actividades. Devem saber isso.

Tobias olhou para ela.

- Se estivermos correctos, se esteve, realmente, casada com Azure, Neville tem razão para recear que conheça muitos segredos perigosos.

Joan apertou as mãos no colo.

- O meu marido não era Azure, garanto-lhes.

A negação fora mais hesitante, desta vez, pensou Lavinia.

- Nós pensamos que sim - disse Lavinia. - E, se assim for, corre grande perigo.

Muito da dor e da ofensa desapareceu do olhar de Joan.

- Acham, realmente, que Neville matou essas mulheres?

- Pelo menos é o que parece - disse Tobias. - E começo a pensar que ele encomendou os trabalhos em cera da galeria de Huggett como uma espécie de recordação macabra dessas mortes.

Joan estremeceu.

- Que género de artista se disporia a executar semelhantes trabalhos?

- Um artista generosamente pago não faz muitas perguntas - disse Lavinia. - Ou um que tema pela própria vida. Recorde-se que Madame Tussaud foi forçada a fazer as máscaras dos guilhotinados porque estava presa.

Houve um silêncio prolongado.

- Tenciono fazer uma busca na casa de Neville, esta noite - disse Tobias, pouco depois. - Temos de pôr fim a este caso, e rapidamente. Preciso de provas do envolvimento dele em actividades criminosas e não vejo óutra maneira de as obter. Enquanto não pusermos fim ao caso, não pode correr riscos. Sugiro que permaneça aqui, na segurança da sua casa.

Joan hesitou e, depois, abanou a cabeça.

- O baile dos Colchester é esta noite. É um dos acontecimentos da temporada a que não posso faltar.

- Pode, decerto, enviar as suas desculpas?

- É impossível. Lady Colchester ficaria muito ofendida se eu não aparecesse. Como lhes disse, ela é a avó do noivo da minha filha e é a tirana da família. Se se irritar comigo, vinga-se em Maryanne.

Tobias viu a simpática compreensão nos olhos de Lavinia e resmungou silenciosamente. Pensou que ninguém compreende melhor os perigos e as ciladas ao forjar-se um bom casamento do que alguém que se encontra envolvido em empreendimento semelhante. Sabia, mesmo antes de ela abrir a boca, que já tinha perdido a batalha.

- Santo Deus - disse Lavinia. - Acha que Lady Colchester era capaz de chegar ao ponto de levar o noivo de Maryanne a desfazer o noivado.

A expressão de Joan contraiu-se.

- Não lhe sei dizer. Só sei que não vou pôr em risco o futuro de Maryanne simplesmente porque tenho medo de assistir a um baile, esta noite.

Lavinia voltou-se rapidamente para Tobias.

- Mrs. Dove vai estar acompanhada pelos lacaios na ida e no regresso. Uma vez no palacete dos Colchester, vai ficar rodeada de muita gente. Vai estar em perfeita segurança.

- Não gosto nada disso - disse ele, consciente de que estava a perder tempo.

Lavinia ficou, de repente, com um ar radiante.

- Tenho uma ideia.

Tobias pestanejou e, distraidamente, esfregou a perna.

- Claro que tem - disse ele. - Está sempre a ter ideias.

 

A casa estava vazia e silenciosa, quando, pouco depois, Tobias nela entrou, acompanhando Lavinia. Tanto melhor, pensou ele, para a séria prelecção que tencionava administrar-lhe.

- Mrs. Chilton foi hoje visitar a filha - explicou Lavinia, pendurando o chapéu num cabide. - E Emeline foi ouvir uma conferência sobre antiguidades com Priscilla e Anthony.

- Eu sabia disso. Anthony disse-me que as ia acompanhar - Tobias colocou o chapéu e as luvas sobre a mesa do hall e olhou para ela. Lavinia, tenho de falar consigo.

- Venha para o estúdio - ela ia já a meio caminho. - Vamos acender a lareira. Vai ficar um ambiente muito confortável para mais uma das nossas discussões.

- Maldição.

Não havia nada a fazer. Tobias seguiu-a para o estúdio. Ela tinha razão. A pequena sala era um sítio muito mais agradável para uma discussão do que o hall. Ocorreu-lhe que se sentia muito comodamente naquela aconchegada salinha com as paredes cobertas de estantes de livros. Quando nela entrou, teve a estranha sensação de estar em casa. Grande tolice, claro.

Observou Lavinia a sentar-se calznamente na cadeira da secretária. Era notório o ar de satisfação que emanava dela.

Tobias agachou-se em frente da lareira, estremecendo com a dor na perna, e acendeu o lume.

- Está muito contente com aquela atrevida manipulação, não está? - disse ele.

- Vamos lá, Tobias, sugerir a Mrs. Dove que eu e Emeline a acom panhássemos ao baile dos Colchester foi uma solução muito razoável para um difícil dilema. Era óbvio que ela estava determinada a ir ao baile. Assim, eu posso vigiá-la.

Tobias sorriu de mau humor.

- Foi um golpe de sorte Mrs. Dove não ter considerado nenhum problema arranjar convites adicionais para duas amigas de Bath que, acontecia, tinham vindo visitá- la.

- Ouviu bem o que ela disse. Mesrno que não conseguisse arranjar os convites, não era nenhum problema levar duas pessoas com ela. O baile dos Colehester é tão concorrido que ninguém ia notar dois hóspedes a mais.

- Não consegue evitar vangloriar-se tanto? É irritante, esse seu regozijo.

Lavinia lançou-lhe um olhar inocente.

- Estou a dar-me a estes incómodos para proteger a minha cliente.

- Não se ponha a dizer que fez a sua generosa oferta apenas para puder vigiar Joan Dove. - A perna voltou a protestar quando ele se pôs em pé. - Conheço-a muito bem, minha senhora. Aproveitou a oportunidade para arranjar um convite para a sua sobrinha estar presente naquele baile. Lavinia sorriu, satisfeita.

- Foi, realmente, um golpe de sorte, não foi? Imagine, esta noite, Emeline vai estar presente num dos mais importantes acontecimentos da temporada. Vai ver quando Lady Wortham ouvir falar disso. É uma boa paga para as constantes alusões aos favores que faz a Emeline.

Tobias estava quase divertido, apesar da sua disposição.

- Lembre-me para nunca me intrometer entre uma casamenteira e um convite para um acontecimento social importante.

- Deixe-se disso, Tobias. Ao menos, assim, sabemos que Mrs. Dove vai ficar em segurança esta noite - Lavinia fez uma pausa; - Embora não fosse provável que Neville a tentasse matar no meio do maior baile da temporada.

Tobias reflectiu no que ela acabara de dizer.

- Parece, de facto, uma situação inadequada para um assassinato. Contudo, dados os hábitos de reclusão de Mrs. Dove e o facto de, quando sai de casa, ir sempre acompanhada por aqueles lacaios enormes, um assassino desesperado pode pensar que não tem outra opção.

- Não se preocupe. Eu tê-la-ei sempre debaixo de olho no baile Colehester - Lavinia chegou-se para a frente e descansou o queixo na palma da mão. A expressão nos olhos dela ficou mais sombria. - Estava a falar a sério quando disse que tencionava fazer uma busca na casa de Neville, esta noite?

- Sim. Precisamos de respostas a algumas questões rapidamente e não vejo outro local onde possa procurá-las.

- E se ele estiver em casa?

- Estamos no pico da temporada - disse Tobias. - Dado o seu nível social, Neville e a mulher estão fora de casa quase todas as noites. E eu sei que Neville raramente regressa a casa antes da madrugada, mesmo nos meses mais calmos.

Lavinia torceu o nariz.

- É bastante óbvio que Neville e a mulher não têm grande prazer na companhia um do outro.

- A esse respeito, têm muito em comum com outros casais da alta sociedade. Considerando isso, a minha experiência diz-me que, quando os criados de uma casa sabem que os patrões vão ficar fora grande parte da noite, muitos deles se escapam durante umas horas. É muito provável que a mansão esteja quase vazia esta noite. Os poucos membros do pessoal que lá permaneçam devem ater-se à zona deles. Vai ser fácil lá entrar sem que se dêem conta.

Lavinia ficou calada. Tobias olhou para ela.

- O que é que se passa?

Lavinia pegou numa pena e começou a bater com a extremidade na palma da mão.

- Não gosto desse seu plano, Tobias.

- Porquê?

Lavinia hesitou e largou a pena. Pôs-se de pé e olhou para ele, o olhar inquieto.

- Isso não é o mesmo que fazer uma busca na casinha de Sally Johnson - disse ela calmamente. - Chegámos à conclusão de que Neville é, quase de certeza, um assassino. A ideia de o imaginar a rebuscar-lhe a casa perturba-me imenso.

- A sua preocupação é tocante. E não pouco surpreendente. Não tinha a noção de que se preocupasse tanto com a minha segurança. Tinha a impressão de que, para si, eu era, sobretudo, um grande maçador.

Sem aviso, ela encrespou-se.

- Não se ponha a brincar com isto. Estamos a tratar com um homem que pode ter matado várias mulheres.

- E que, muito provavelmente, encomendou o assassínio de Bennett Ruckland - disse Tobias mansamente.

- Ruckland? O homem morto em Itália?

- Sim.

- Mas disse-me que Carlisle se encarregara disso.

- Neville e Carlisle conheciam-se muito bem, dada a ligação deles ao Clube Azul. Suspeito que Neville lhe pagou uma boa maquia para que Ruckland nunca voltasse a Inglaterra.

- Está tão determinado em descobrir provas que receio que incorra em riscos insensatos. Por que não leva Anthony consigo? Podia servir-lhe de guarda-costas.

- Não. Eu quero que Anthony vá ao baile Colchester. Pode ajudá-la a vigiar Joan Dove.

- Sou perfeitamente capaz de vigiar joan. Acho que é melhor Anthony ir consigo.

Tobias teve um ligeiro sorriso.

- É muito simpático da sua parte preocupar-se comigo, Lavinia, mas, se alguma coisa correr mal, console-se com a ideia de que é tudo culpa minha. Como sempre, segundo a sua opinião.

- Está a querer fugir ao assunto.

- Bem, estou, sim. Não vejo que a conversa nos possa levar a algum lado.

- Tobias, não se ponha a provocar-me, ou não serei responsável pelos meus actos.

Os punhos fechados de Lavinia e a súbita tempestade nos olhos dela deram a entender a Tobias que a fraca tentativa de a animar falhara o alvo.

- Lavinia.

- Não é uma questão de assacar culpas. É uma questão de senso comum.

Tobias segurou-lhe a cara com as mãos.

- Ainda não notou, minha senhora, que, no que nos diz respeito, o senso comum é muito incomum?

Ela agarrou-lhe os pulsos com os dedos.

- Prometa-me que vai ter muito cuidado esta noite.

- Dou-lhe a minha palavra quanto a isso.

- Prometa-me que não entra lá se houver o mínimo sinal de que Neville está em casa.

- Garanto-lhe que Neville não vai estar em casa esta noite – disse ele. - Na verdade, é muito provável que ele e a mulher apareçam no baile dos Colchester. Vai, provavelmente, vê-lo muito mais do que eu.

- Isso não basta. Prometa-me que não entra se houver lá alguém.

- Lavinia, eu não posso prometer isso.

Lavinia soltou um suspiro.

- Já sabia que me ia dizer isso. Prometa-me.

- Já basta de promessas. Prefiro um beijo.

Os olhos dela brilharam, de zanga ou de paixão, ele não sabia qual, esperando que fosse paixão.

- Estou a tentar conversar a sério - disse ela.

- Quer ou não beijar-me?

- Não é esse o objecto da nossa discussão. Estamos a falar de você arriscar a vida.

Ele passou os polegares ao longo do queixo dela. A macieza e doçura da pele dela deliciaram-no.

- Beije-me, Lavinia.

Ela pôs-lhe as mãos nos ombros, os dedos cravados no tecido do casaco. Ele não sabia se ela o queria empurrar ou estreitar.

- Prometa-me que terá senso.

- Não, Lavinia. - Ele beijou-lhe ao de leve a testa e, depois, o nariz.

- Não me peça isso. Não posso prometer-lhe isso.

- Conversa. Claro que pode.

- Não - Tobias abanou a cabeça ligeiramente. - Eu perdi o senso a primeira vez que a vi numa rua de Roma.

- Tobias! - Lavinia susteve a respiração. - Isto é uma loucura. Nós nem gostamos especialmente um do outro.

- Fale por si, minha senhora. Quanto a mim, acho que gosto cada vez mais de si, apesar do seu talento para me enfurecer tão facilmente.

- Gosta? - disse ela, abrindo muito os olhos. - Gosta de mim? Tobias sentiu uma picada percorrer-lhe o corpo. Quase ouvia Anthony a censurá-lo.

- Talvez gostar não seja a palavra adequada às circunstânciasdisse ele.

- Gostar é uma palavra que se emprega para designar o que sentimos por um amigo, ou por uma tia amorosa. ou por um cãozito.

- Então, não é decerto a palavra apropriada - disse ele. - Porque os sentimentos que nutro por si não têm nada a ver com os que dedico aos amigos, às minhas tias ou aos cães.

- Tobias.

Ele tocava-lhe na zona deliciosamente doce da parte de trás do pescoço, onde uns fios de cabelo se soltavam dos ganchos.

- Eu desejo-a, Lavinia. Não me lembro de alguma vez ter desejado tanto uma mulher. É uma dor persistente no estômago.

- Que maravilha. Dou-lhe dores de barriga - Lavinia fechou os olhos, percorrida por um tremor. - Sempre sonhei conseguir provocar esse efeito excitante num homem.

- Anthony diz que eu não sei lá muito bem tratar com mulheres. Talvez as coisas se tornassem mais simples se se calasse e me beijasse.

- Você é realmente um homem impossível, Tobias March. - Nesse aspecto somos iguais. Você é, certamente, a mulher mais impossível que conheci na vida. Beija-me ou não?

Algo relampejou nos olhos dela. Podia ser ofensa, ou frustração, ou paixão. As mãos dela saíram-lhe dos ombros e rodearam-lhe o pescoço. Pôs-se em bicos dos pés e beijou-o.

Ele abriu a boca na dela, saboreando-a, procurando a ânsia que descobrira na noite da carruagem. Ela estremeceu e estreitou-o. O desejo i dela fez chamejar o fogo ardente no sangue dele.

- Tobias!

Ela deslizou-lhe os dedos pelo cabelo e beijou-o com uma premência crescente.

- Há algo em si que me faz sentir sob o efeito de uma potente droga - murmurou ele. - Estou cada vez mais adito.

- Oh, Tobias!

Desta vez o nome dele era um abafado grito estrangulado, suspirado para a garganta dele.

Ele apertou as mãos em redor das costas dela, por baixo dos seios, e ergueu-a contra o peito. Ela soltou um som meigo, erótico, que avivou as chamas que o percorriam.

Avançou, carregando com ela. Ela pousou as mãos de novo nos ombros dele e continuou a salpicá-lo de beijos quentes e húmidos.

Quando chegou com ela junto da secretária, baixou-a até a sentar nela. Segurou-a com uma das mãos e abriu as calças com a outra. Quando o sexo dele se soltou, ela baixou as mãos e agarrou-o.

Ele fechou os olhos e cerrou os dentes, perante a ânsia que ameaçava consumi-lo. Quando conseguiu dominar-se, abriu os olhos e viu que ela estava corada de excitação, fremente de expectativa.

Afastou-lhe as pernas e levou a mão à pele macia e nua acima das meias. Ajoelhou-se num joelho em frente dela e beijou-lhe o interior da coxa direita. Depois avançou, aproximando-se insistentemente do objectivo.

- Tobias! - Ela agarrou-lhe o cabelo. - O que é que está a. Não não me beije aí. Por favor, Tobias, você não deve.

Ele ignorou os chocados protestos dela. Quando ele lhe tocou na macia e sensível borda da protuberância com a ponta da língua, ela calou-se. O último protesto esvaneceu-se num ofego abafado.

Tobias introduziu os dedos nela e afundou o beijo. Ela ficou quase em silêncio, como se não respirasse. Tobias sentiu a contracção dela dissolver-se numa série de pequenos frémitos.

Quando a crise passou, ele ergueu-se e enlaçou-a. Ela encostou-se a ele elanguescida.

- Aprendeu isso em Itália? - balbuciou-lhe ela para o pescoço. Dizem que não há nada como viajar para completar uma educação.

Ele não achou que a pergunta requeresse uma resposta. Tanto fazia, pois tão-pouco acreditava que conseguisse travar uma conversa lúcida.

Moveu-se entre as pernas de Lavinia e envolveu-lhe as luxuriantes e arredondadas nádegas com as mãos. Ela ergueu a cabeça do ombro dele e sorriu lentamente. Os olhos dela eram como mares muito profundos, percorridos por quentes e tentadoras correntes. Ele não conseguia largá- los.

- Olhos de uma praticante de mesmerismo - murmurou ele. - De facto, hipnotizou-me.

Ela tocou-lhe no lóbulo da orelha com a ponta de um dedo. Depois, passou-lhe o dedo pelos lábios, sorrindo. Ele mergulhou no feitiço.

Estava prestes a mergulhar nela.

O som da porta da frente a abrir-se, seguido do som abafado de vozes no hall travaram-no, quando ia introduzir-se na aconchegada quen tura de Lavinia.

Ela contraiu-se nos braços dele.

- Oh, meu Deus - disse ela subitamente. - Tobias.

- Raio! - exclamou ele, encostando a testa à dela. - Não me diga que.

- Acho que Emeline regressou mais cedo do que eu pensava. - O pâ nico emergia da voz dela. Lavinia batia nele ineficazmente. - Temos de nos recompor rapidamente. Ela vai entrar dentro de momentos.

O transe quebrara-se.

Tobias cambaleou para trás, atarefando-se com as calças.

- Tenha calma, Lavinia. Acho que não há nada desarrumado.

- Precisamos de ar fresco aqui.

Lavinia saltou da secretária, compôs as saias e correu para a janela, abrindo-a de par em par. Uma brisa fria e húmida entrou no estúdio, fazendo crepitár o lume da lareira.

Tobias achou graça.

- Está a chover, não sei se notou.

Ela voltou-se e lançou-lhe um olhar reprovador.

- Estou perfeitamente ciente disso.

Tobias sorriu. Depois, ouviu uma voz familiar vinda do hall.

- Achei a parte da conferência de Mr. Halcomb dedicada às ruínas de Pompeia muito fraca - dizia Anthony.

- Concordo. Duvido que ele tenha ido mais longe nas suas investigações do que o Museu Britânico.

Lavinia ficou hirta.

- O que é que eles pensam que estão a fazer? Meu Deus, se algum vizinho os viu entrar juntos numa casa deserta, Emeline está arruinada. Completamente arruinada.

- Oiça, Lavinia.

- Eu trato disto. - Caminhou para a porta do estúdio e abriu-a. O que é que se passa aqui?

Anthony e Emeline, no meio do hall, paxaram.

- Boa tarde, Mr. March - disse Emeline.

- Miss Emeline.

Anthony parecia preocupado.

- Aconteceu alguma coisa, Mrs. Lake?

- Não têm senso? - perguntou ela, furiosa. - Emeline, acho muito bem que Mr. Sinclair te acompanhe até à porta, mas convidá-lo a entrar quando não está cá ninguém? O que é que te passou pela cabeça?

Emeline parecia espantada.

- Mas, tia Lavinia.

- E se algum dos vizinhos vos visse entrar?

Anthony trocou um olhar com Emeline. Depois, na cara surgiu-lhe uma expressão de compreensão.

- Vamos a ver se percebo bem - disse ele. - Está preocupada por eu poder ter sido visto a entrar com Miss Emeline em casa, sem estar cá ninguém para a acompanhar, é isso?

- Precisamente - Lavinia colocou as mãos nas ancas. - Dois jovens solteiros a entrar numa casa juntos? O que é que os vizinhos vão pensar?

- Permita-me que lhe aponte uma pequena falha na sua lógicadisse Emeline serenamente.

- E qual é essa falha, diz-me lá?

- A casa não estava vazia. A tia e Mr. March estavam cá. É difícil imaginar companhia mais apropriada.

Houve um curto silêncio embaraçoso, enquanto a observação assentava. Tobias conseguiu dominar uma gargalhada. Olhou para Lavinia, perguntando-se quando é que ela iria dar-se conta de que reagira de modo exageradamente violento à inocente entrada de Anthony e de Emeline.

Ser quase apanhado em falso tem, muitas vezes, esse efeito, reflectiu ele.

Lavinia soprava, muito corada, e, por fim, lançou mão do único argumento que lhe restava.

- Está tudo muito bem, Emeline, mas vocês não sabiam que nós cá estávamos.

- Bem, quanto a isso - disse Anthony timidamente -, nós sabíamos que estavam cá em casa. O lacaio de Lady Wortham acompanhou Emeline até à porta. Quando ela a abriu com a chave, viu o chapéu e as luvas de Tobias e a sua capa. Disse a Lady Wortham que estavam os dois em casa e a boa senhora autorizou-me a entrar com Emeline, antes de partir com Priscilla.

- Estou a perceber - disse Lavinia debilmente.

- É evidente que não nos ouviram chegar na carruagem de Lady Wortham - disse Emeline. - Como tão-pouco me ouviram a dizer-lhe que estavam cá em casa.

- Não, não ouvimos - Lavinia clareou a garganta. - Não ouvimos nada. Estávamos ocupados no estúdio.

- Deviam ter a atenção concentrada num assunto muito absorvente - disse Anthony, com um bem disfarçado sorriso inocente. - Porque nós fizemos muito barulho, não foi, Miss Emeline?

- Sim, sim. Fizemos bastante barulho - disse Emeline. - Não con sigo perceber como não nos ouviram.

Lavinia abriu a boca, mas não saiu palavra. Fechou a boca rapida mente. O púrpura da cara dela transformara-se em vermelho retinto.

Uma expressão travessa surgiu nos olhos de Emeline.

- De que é que estavam a tratar que tanto os fascinava para não nos ouvirem quando chegámos?

Lavinia inspirou fundo.

- De poesia.

 

Lavinia estava com joan no abrigo relativamente sossegado do patamar de uma janela, observando o salão de baile repleto. Estava dividida entre a preocupação com Tobias e um sentimento de triunfo. Como não havia nada que pudesse fazer quanto à preocupação, entregava-se ao regozijo do seu último êxito social.

O baile Colchester era o máximo que ela podia desejar como cenário para Emeline. O salão estava decorado à chinesa, com uma amálgama de motivos etruscos e indianos. Espelhos e dourados tinham sido dispostos em brilhante profusão, para acentuar o efeito. Vestida com o vestido azul-turquesa que Madame Francesca estipulara para semelhante ocasião, o cabelo escuro levantado de maneira adequada e decorado com pequenos ornamentos, Emeline estava tão elegante e exótica como as jovens que a rodeavam.

- Felicitações, Lavinia - murmurou Joan. - O jovem que acaba de convidar Emeline para dançar é herdeiro de um título?

- Propriedades?

- Sim, bastantes, creio eu.

Lavinia sorriu.

- Ele parece ser encantador.

- Sim - Joan olhou para o jovem par. - Felizmente, o jovem Reginald não saiu ao pai. O que não surpreende, dadas as circunstâncias.

- Não estou a entender.

joan sorriu friamente.

- Reginald é o terceiro filho Bolling. O primeiro foi encontrado morto num beco, junto a um bordel. Diz-se que foi assaltado por um gatuno que nunca foi apanhado.

- Dá-me a impressão de que não acredita nessa história. Joan teve um pequeno e gracioso encolher de ombros.

- Não era segredo nenhum que ele gostava muito de raparigas jovens. Há quem diga que foi esfaqueado por um parente de uma das jovens que seduziu. Talvez um irmão mais velho.

- Se foi isso que aconteceu, não tenho pena nenhuma do primogénito Bolling. O que é que aconteceu ao segundo filho?

- Esse tinha o hábito de beber e de frequentar os meios mal afamados, em busca de distracções. Uma noite, foi encontrado de cara metida numa poça de água, à porta de uma conhecida casa de jogo. Afogado numas polegadas de água, segundo dizem.

Lavinia estremeceu.

- Família nada feliz.

- Ninguém sonhava, claro, que o jovem Reginald viesse a herdar o título. Sobretudo, Lady Bolling. Em boa verdade, tendo cumprido a sua obrigação, depois de dar ao marido um herdeiro e um substituto, seguiu o seu próprio caminho, após o nascimento do segundo filho.

Lavinia olhou para joan.

- Arranjou um amante?

- Sim.

- E está a insinuar que o amante é o pai de Reginald?

- Eu acho que é muito provável. Ele tem o cabelo e os olhos escuros da mãe, por isso é impossível saber quem é o pai. Mas eu acho que me recordo que os dois primeiros filhos tinham o cabelo e os olhos claros.

- Quer dizer que o título acaba por ir parar ao filho bastardo de outro homem que não Bolling.

Tais acidentes ocorriam com mais frequência do que as pessoas reconheciam, reflectiu Lavinia. Na alta sociedade, onde os casamentos se faziam por uma variedade de razões, que não por afeição, era de esperar que um certo número de herdeiros viesse a tomar posse dos seus bens por caminhos ínvios.

- Francamente, na minha opinião, neste caso ainda bem - disse Joan. - Há algo de errado no sangue dos homens da linha Bolling. Têm uma tradição de acabar mal, pelas suas próprias fraquezas. O próprio Bolling entrega-se desesperadamente aos deleites do ópio. É de admirar que ainda não tenha sucumbido a uma dose excessiva.

Lavinia lançou a Joan um breve, mas inquisitivo olhar. Não era a primeira história de má-língua que ouvia da companheira, naquela noite. Talvez fosse uma certa sensação de tédio, induzida pela forçada associação com ela, que levava Joan a contar uma série de rumores e de segredos acerca das suas congéneres. Lavinia ficara a saber, na última hora, mais a respeito dos pontos fracos e dos escândalos da alta socie dade do que soubera nos últimos meses.

- Para uma senhora que não frequenta muito a alta sociedade - disse Lavinia cautelosamente -, parece excepcionalmente bem informada acerca do que se passa nos altos círculos.

joan apertou os dedos em redor do leque. Houve apenas uma pequena hesitação antes de inclinar a cabeça, anuindo.

- O meu marido fazia questão de se manter informado acerca dos rumores que podiam afectar as operações financeiras. Por exemplo, ele investigou minuciosamente o passado do herdeiro Colchester, antes de aceitar o pedido da mão de Maryanne.

- Isso é natural - disse Lavinia. - Eu faria o mesmo, se um jovem mostrasse um grande interesse pela minha sobrinha.

- Lavinia?

- Sim?

- Acha possível, realmente, que o meu marido me tenha ocultado a verdade acerca das suas actividades criminosas, todos aqueles anos?

O carácter ansioso da pergunta fez humedecer os olhos de Lavinia. Pestanejou rapidamente para limpar a vista.

- Acho que ele deve ter feito tudo para lhe ocultar os seus segredos, Joan, porque a amava muito. Ele não queria que a senhora soubesse a verdade. De facto, deve ter pensado que estaria mais segura se não soubesse nada.

- Por outras palavras, queria proteger-me?

- Sim.

Joan sorriu tristemente.

- Isso era mesmo dele. As grandes preocupações dele foram sempre com o bem-estar da mulher e da filha.

Anthony surgiu do meio da multidão, um copo de champanhe em cada mão.

- Com quem está Emeline a dançar?

- Com o herdeiro Bolling - Lavinia pegou num dos copos. - Conhece- o?

- Não - Anthony relanceou o salão por sobre o ombro. - Espero que lhe tenha sido convenientemente apresentado.

- Claro - Lavinia teve pena dele. - Não se preocupe. Ela não pro meteu a próxima dança a ninguém em particular. Tenho a certeza de que terá muito prazer em dançar consigo.

A expressão de Anthony ficou desanuviada.

- Acha que sim?

- Tenho a certeza disso.

- Obrigado, Mrs. Lake, muito obrigado - disse Anthony, voltando-se, depois, para observar o baile.

Joan baixou a voz, para que apenas Lavinia a ouvisse.

- Eu acho que ouvi Emeline prometer a próxima dança a Mr. Proudfoot.

- Eu assumo a responsabilidade. Vou dizer que me enganei ao tomar nota dos nomes.

Joan fixou o olhar em Anthony, todo concentrado no baile.

- Desculpe-me um conselho, Lavinia, mas não posso deixar de salientar que, se não acha Mr. Sinclair aceitável para seu futuro sobrinho, não me parece que esteja a proceder bem ao encorajá-lo a dançar com Emeline.

- Eu sei. Ele não tem dinheiro, nem título, nem propriedades, mas devo confessar que gosto muito dele. Além disso, vejo como ele e Emeline se sentem felizes quando estão juntos. Estou decidida a proporcionar à minha sobrinha uma temporada ou duas e a oportunidade de conhecer jovens aceitáveis, mas, no final, será ela a decidir.

- E se ela escolher Mr. Sinclair?

- Eles são ambos bastante inteligentes, se quer saber. E algo me diz que, entre um e o outro, não morrerão à fome.

 

O palacete estava mergulhado na escuridão, salvo por uma lareira a brilhar debilmente, em baixo, junto das cozinhas. Tobias mantinha-se na sombra, na parte de trás do hall principal, à escuta. Ouviu risadas abafadas e a gargalhada bêbeda de um homem, à distância. Dois membros do pessoal da casa tinham, obviamente, encontrado algo mais interessante para fazer do que escapulirem-se.

A presença deles ali em baixo não era problema, decidiu Tobias. Não havia razão para rebuscar naquela parte da casa. Um homem da classe de Neville nada se interessava pela zona da casa que constituía o domínio dos criados. Não lhe ocorreria, decerto, ir esconder segredos num local onde raramente entraria.

Em boa verdade, pensava Tobias, enquanto avançava pela penumbra que enchia o hall, Neville não se ia dar a grandes trabalhos para esconder alguma coisa em casa. No fim de contas, era ali dono e senhor.

- Santo Deus! - disse Lavinia para joan. - Acabo de ver Neville e a mulher no meio da multidão.

- Não admira - Joan parecia divertida com a expressão franzida de Lavinia. - Já lhe tinha dito que toda a gente que é gente vai aparecer esta noite, sob pena de ofender Lady Colchester se o não fizer.

- Ainda não consigo acreditar que aquela velha e doce senhora, que nos saudou à entrada, detenha o poder de aterrorizar a alta sociedade.

- Ela governa com mão de ferro - disse Joan, sorrindo. - Mas parece gostar muito da minha filha e eu gostaria que as coisas se mantivessem assim.

Pela parte dela, pensou Lavinia, Lady Colchester tão-pouco quereria perder a enorme herança que Maryanne levaria para os cofres dos Colchester. Decidiu, porém, não mencionar o óbvio. Quanto mais alto se estava na sociedade, mais altas eram as apostas nos casamentos. Enquanto ela própria, Lavinia, se esforçava por fazer Emeline saborear o gosto de uma verdadeira temporada, na esperança de ela atrair a atenção de um jovem capaz de lhe proporcionar um certo nível de conforto, Joan estava envolvida numa estratégia mais parecida com um assunto de estado.

Tornou a vislumbrar Neville no meio da multidão e pensou que ainda bem que ele estava ali. Queria dizer que não estava em casa, onde Tobias o poderia acidentalmente encontrar, no meio da sua busca.

Pôs-se a perguntar-se o que é que teria atraído Joan em Neville, anos atrás.

Como se lesse na mente dela, Joan respondeu-lhe à pergunta.

- Eu sei que ele hoje tem o desagradável aspecto do libertino des regrado que há anos se entrega a prazeres sem sentido, mas garanto-lhe que, quando o conheci, era um homem muito atraente, muito bonito e encantador.

- Compreendo.

- Ao olhar para trás, eu devia ter visto a marca da ganância e do egoísmo oculta sob a aparência, mas a verdade é que só me apercebi do seu verdadeiro carácter quando já era demasiado tarde. Mesmo agora, considero difícil imaginá-lo a matar mulheres.

- Porquê?

Um pequeno, pensativo franzir juntou as pálpebras de Joan.

- Ele não era do género de sujar as próprias mãos.

- É, por vezes, difícil perceber o que vai no coração das pessoas, quando se é jovem e não se tem muita experiência do mundo. - Lavinia hesitou. - Importa-se que eu lhe faça uma pergunta extremamente pessoal?

- O que é?

Lavinia aclarou a voz

- A senhora não frequenta muito a alta sociedade, mas, obviamente, tem havido ocasiões em que se deve ter encontrado com Neville em público. Como é que se comportam, nessas ocasiões?

Joan sorriu, com o que parecia ser puro divertimento.

- Vamos, em breve, conhecer a resposta a essa sua pergunta. Lorde e Lady Neville encaminham-se para aqui. Deseja que lhos apresente?

 

Frustrado, Tobias fechou a relação das despesas diárias da casa e meteu-a na gaveta da secretária. Afastou-se, erguendo a vela mais alto, para que a luz incidisse mais longe nas sombras do estúdio. Rebuscara cada recanto da sala, mas não encontrara a mínima alusão a assassínio ou conspiração.

Neville tinha segredos. E tinham de estar algures naquela casa.

Era muito estranho ver-se apresentada a um assassino. Lavinia seguiu o exemplo de Joan. Um sorriso frio e algumas palavras murmuradas, ditas com ar displicente. Não pôde, contudo, deixar de notar que Neville não fixava os olhos semicerrados de Joan.

Constance, clara e afortunadamente ignorante do passado que o marido partilhara com Joan, encetou de imediato uma conversa simpática.

- As minhas felicitações pelo noivado da sua filha - disse ela, calorosa, para Joan. - É um belo arranjo.

- O meu marido e eu ficámos muito felizes - disse Joan. - Lamento imenso que Fielding não esteja vivo para dançar com ela no casamento.

- Compreendo. - Os olhos de Constance estavam cheios de simpatia. - Teve, porém, a satisfação de saber que o futuro dela ficava assegurado.

Enquanto ouvia a conversa de Joan e de Lady Neville, Lavinia examinava a cara voltada de Neville. Ele olhava para alguém, apercebeu-se. Havia algo de desagradável no olhar dele. Muito discretamente, voltou-se um pouco para seguir a direcção do olhar dele.

Um choque apertou-lhe o estômago quando viu que ele observava Emeline que, a alguma distância, conversava com Anthony e um pequeno grupo de jovens. Como que sentindo perigo, Anthony olhou na direcção dela. Os olhos dele cerraram-se, quando viu Neville.

- Que vestido amoroso, Mrs. Lake - disse Constance. - Parece uma criação de Madame Francesca. Eu acho que o trabalho dela é único, não acha?

Lavinia conseguiu compor um sorriso.

- Absolutamente. Presumo que seja cliente dela?

- Sou, sim. Há anos que sou cliente dela - Constance lançou-lhe um olhar polidamente inquisitivo. - Ouvi dizer que é de Bath?

- Sim.

- Eu tenho estado muitas vezes em Bath, a águas.

- É uma cidade encantadora, não é?

Ia ficar louca, se tivesse de continuar com aquela conversa inane, pensou Lavinia. Onde estaria Tobias? Já devia ter voltado ao baile.

As risadas e as gargalhadas lá de baixo não podiam chegar ali acima, onde estava localizado o quarto de Neville. Tobias pousou a vela no toucador. Rapidamente, metodicamente, começou a abrir e a fechar gavetas e armários.

Minutos depois, encontrou a carta numa pequena gaveta, no interior do guarda-fatos. Pegou nela e levou-a junto do toucador, onde tinha colocado a vela.

A carta era dirigida a Neville e assinada por Carlisle. Relacionava despesas, custos e honorários do encargo assumido e levado a cabo em Roma.

Tobias apercebeu-se de que estava a olhar para o contrato que significava a confirmação da morte de Bennett Ruckland.

Neville pegou no braço da mulher.

- Queiram desculpar-nos, minhas senhoras, mas estou a ver ali Bennington, junto às escadas, e preciso de falar com ele.

- Claro, claro - murmurou Joan.

Neville arrastou a mulher para o meio da multidão. Lavinia seguiu- os com os olhos, tentando não perder de vista o casal. Depressa se apercebeu de que Neville não se dirigia para as escadas. Em vez disso, largou Constance num grupo de mulheres que conversavam junto à entrada do bufete e dirigiu-se para o fundo do salão.

- Desculpe-me a pergunta - disse Lavinia -, mas não consigo deixar de pensar se foram ao extremo de convidar Neville e a mulher para o baile de noivado da vossa filha?

Para surpresa de Lavinia, Joan pôs-se a rir.

- Fielding disse-me que não tínhamos necessidade de convidar Lorde e Lady Neville. E eu fiquei toda contente por Neville não constar da minha lista de convidados.

- Compreendo isso muito bem.

- Bom - disse Joan -, agora já percebeu como se encara o vexatório problema de tratar socialmente um antigo amante que pode, também, ser um assassino.

- Agiu como se não se tivesse passado nada.

- Precisamente.

Tobias meteu a carta no bolso interior da casaca, apagou a vela, atravessou o quarto e abriu a porta. Escutou atentamente por momentos. Como não ouviu nenhum som provindo do hall, saiu do quarto.

A estreita escada destinada aos criados ficava ao fundo do corredor. Encontrou-a e começou a descer para o fundo poço de sombras.

Quando chegou ao rés-do-chão, parou outra vez. Silêncio era tudo o que emanava do andar de baixo. Os dois homens que ele ouvira, ou tinham adormecido, ou encontrado outra ocupação, em vez de rir e gargalhar. Ele suspeitava que fosse a segunda alternativa.

Mal abriu a porta da estufa, uma das volumosas sombras no hall destacou-se da parede. Havia o luar suficiente para distinguir o brilho da pistola na mão do homem.

- Alto aí, ladrão!

Tobias atirou-se para o chão, rolou pela abertura da porta e foi embater num canteiro de pedra. A dor atravessou-lhe a perna esquerda, mas não era uma bala, era apenas o por demais familiar protesto da sua ferida, por isso ignorou-a.

- Bem me parecia ter ouvido alguém na escada de trás. A pistola explodiu, partindo um pote de barro. Tobias tapou os olhos com um braço, para os proteger.

O homem largou a pistola vazia e lançou-se pela porta. Tobias pôs-se de pé, cambaleante, mal evitando a carga. Outra dor lancinante foi todo o aviso que teve antes da perna se ir abaixo. Inclinou-se para a frente, em busca de apoio.

O homem já estava em pé. As mãos enormes nas extremidades dos braços esticados pareciam garras.

- Acabaram-se os teus truques.

Tobias conseguiu agarrar-se a um banco de trabalho. Os nós dos dedos roçaram num pote com um feto volumoso. Agarrou no pesado objecto com os braços.

O homem estava a menos de dois passos quando Tobias lhe descarregou o feto no ombro e na cabeça. Foi ao chão como um touro bravo.

Um silêncio profundo envolveu a estufa. Tobias endireitoú-se apoiado no banco e pôs-se à escuta. Não ouviu passos, nem gritos de alarme.

Momentos depois, afastou-se do banco e dirigiu-se, a coxear, para a porta que dava para o jardim. Pouco depois estava na rua. Não havia nenhuma carruagem à vista.

Era o raio da sorte. Ia ser uma longa caminhada até à mansão Colchester. Como única compensação, não chovia.

 

- Onde está ele? - Lavinia pôs-se em bicos dos pés, tentando espreitar por cima das cabeças das pessoas. - Não consigo ver Neville, Emeline.

Emeline não precisava de se pôr em bicos de pés para ver.

- Nem eu. Talvez tenha entrado na sala do bufete.

- Há momentos vi-o a falar com um dos lacaios. - As palmas das mãos de Lavinia latejavam. - Agora desapareceu. E pode ter saído.

- Por que é que está surpreendida? - perguntou Joan. - Neville, certamente, só pretendia fazer uma breve aparição no baile. Este género de acontecimentos são excessivamente maçadores para a maior parte dos cavalheiros. Nesta altura, já ele está a caminho de uma casa de jogo ou, talvez, de um bordel, à procura de uma nova amante.

A imagem vívida do sangue no capuz da capa de Sally perpassou na mente de Lavinia.

- Que pensamento horrível!

- Acalme-se - Joan observava-a com uma expressão preocupada. Acho que começou a ficar muito ansiosa na última meia hora.

Porque não consigo deixar de me afligir com Tobias, pensou Lavi nia. Não era, porém, questão de proclamar os seus receios pessoais em voz alta. Tão-pouco havia razão para ficar demasiado preocupada com o súbito desaparecimento de Neville do salão de baile. Joan estava a ser correcta na avaliação da situação.

Contudo, a perda da sua peça de caça deixava-a inquieta. Anthony surgiu diante dela, desta vez com um copo de limonada na mão, que estendeu a Emeline.

Lavinia interpelou-o.

- Viu Neville na sala do bufete?

- Não - Anthony voltou-se para examinar a multidão. - Vi Lady Neville quando voltava para aqui, mas não vi o marido. Mas disse-me que não o largava de vista, enquanto eu ia buscar a limonada.

- Ele desapareceu.

A expressão de Anthony ensombrou-se. Lavinia sabia que ele, tanto como ela, ficava preocupado com a notícia.

- Tem a certeza? - perguntou ele.

- Sim. E não gosto nada disto - disse Lavinia baixinho. - É quase uma e meia. Tobias já devia ter terminado a sua tarefa e ter voltado para junto de nós.

- Concordo - disse Anthony, com ar grave.

- Eu disse-lhe para o levar a si com ele. Anthony anuiu com a cabeça.

- Já me disse isso, uma ou duas vezes, esta noite.

- Ele nunca me ouve.

Anthony pestanejou.

- Se lhe serve de consolo, Tobias tem o hábito de fazer tudo como lhe apetece.

- Isso não o desculpa. Somos sócios neste caso, por isso, ele devia prestar mais atenção, quando lhe dou o meu conselho ou a minha opinião. Vou ter de lhe dizer umas coisas quando ele decidir aparecer.

Anthony hesitou.

- Ele pode ter passado pelo clube antes de vir aqui, para se aconselhar com um amigo.

- E se não for esse o caso?

- Temos de ser razoáveis. A busca pode ter levado mais tempo do que Tobias esperava. - Anthony fez uma pausa, a testa franzida. - Eu posso arranjar uma carruagem e passar por lá, a ver se há algum sinal de que ele ainda lá esteja. Se não estiver, posso passar pelo clube.

Ela não era a única a estar a ficar alarmada, pensou Lavinia. Anthony estava a tentar parecer sereno, mas também estava inquieto.

- É uma boa ideia - disse ela. - Dada a multidão aqui reunida esta noite, deve haver imensas carruagens na rua, à espera de clientes.

Anthony pareceu aliviado, perante a decisão dela.

- Muito bem, então vou - disse ele, voltando-se para sair. Emeline tocou-lhe na manga, com uma expressão preocupada nos olhos.

- Vai ter cuidado?

- Com certeza. - Pegou-lhe na mão e inclinou-se galantemente para ela. - Não se preocupe comigo, Emeline, vou ter muito cuidado. - Voltou-se, depois para Lavinia. - Tenho a certeza de que está tudo a correr bem.

- Não correrá tudo bem com Mr. March, se eu descobrir que passou pelo clube, em vez de vir directamente para aqui.

Anthony sorriu forçadamente para Lavinia e apressou-se a partir, pelo meio da multidão.

Joan interpelou Lavinia, com ar também preocupado.

- Acha que pode ter acontecido alguma coisa a Mr. March?

- Eu não sei o que pensar - admitiu Lavinia. - Mas o facto de ele não aparecer aqui à hora que combinámos, juntamente com a circunstância de Neville ter desaparecido, preocupa-me muito.

- Não percebo por que é que liga as duas coisas. Neville não sabe, possivelmente, que Mr. March foi a casa dele.

- É a circunstância de Neville ter desaparecido, após ter falado com aquele lacaio um momento antes, que me preocupa - disse Lavinia lentamente. - Como se tivesse recebido uma mensagem e agisse de acordo com ela.

- A espera está a ficar intolerável - disse Emeline. - Não há nada que possamos fazer?

- Há, sim - disse Joan com autoridade. - Temos de agir como se nada ocorresse fora do normal. Prometeu a próxima dança a Mr. Geddis, não foi? Pois bem, ele encaminha-se para aqui.

Emeline suspirou.

- Neste momento, dançar é a última coisa que me apetece. Como posso eu manter uma conversa educada com Mr. Geddis, se estou preocupada com Anthony?

- Dizem que Mr. Geddis tem um rendimento de quinze mil libras por ano - disse Joan secamente.

Lavinia tossiu para o champanhe. Quando se dominou, sorriu para Emeline.

- Não te faz mal nenhum dançar com Mr. Geddis. Em boa verdade, é o que deves fazer.

- Porquê? - perguntou Emeline.

- Porque é a melhor forma de mantermos a aparência de que nada de mal está a acontecer, como sugeriu Mrs. Dove. - Lavinia fez figas subreptícias com os dedos enluvados. - Vai, vai dançar com ele. Deves comportar-te como qualquer outra jovem presente neste baile.

- Está bem, se tanto insiste.

Emeline compôs um corajoso sorriso para o elegante jovem que se inclinou diante dela. Ele gaguejou polidamente e conduziu-a para o meio do baile.

Lavinia chegou-se mais a Joan.

- Quinze mil por ano, foi o que disse?

- É o que oiço dizer.

Lavinia observou Geddis a deslizar com Emeline no salão de baile.

- Ele parece ser um jovem bem simpático. Há algum sangue mau na família?

- Que eu saiba, não.

- Ainda bem.

- Mas não me parece que ele consiga concorrer com o jovem Anthony - disse Joan.

- Acho que tem razão.

A valsa terminou uns minutos depois, deixando Emeline e o seu par ao fundo do salão. Enquanto esperava que o par voltasse para junto delas, Lavinia pôs-se a olhar para o pequeno relógio pregado na bolsa.

- Tenha calma - disse Joan serenamente. - Estou certa de que Mr. March está bem. Ele parece-me perfeitamente apto a tomar conta de si próprio.

Lavinia pensou na perna ferida de Tobias.

- Ele comete muitos erros de cálculo.

Joan ficou pensativa.

- Está, realmente, muito preocupada com ele, não está?

- Eu não concordei nada com a ideia da busca em casa de Neville - disse Lavinia. - Na verdade, opus-me. - Lavinia calou-se bruscamente, quando viu quem se atravessava no caminho de Emeline e de Mr. Geddis.

- Santo Deus!

- O que é? O que é que se passa?

- Pomfrey. Olhe. Acho que está a tentar convencer Emeline a dançar com ele.

Joan seguiu o olhar de Lavinia até onde Emeline e Mr. Geddis enfrentavam Pomfrey.

- Sim, estou a ver - Joan fez um trejeito com a boca. - Espero que não esteja embriagado. Pomfrey costuma fazer figura de asno quando está com copos.

- Eu sei bem isso. Não posso permitir que ele faça outra cena aqui, no baile dos Colchester - Lavinia fechou o leque e avançou. - Tenho de pôr cobro a isto. Volto já.

- Tenha calma, Lavinia. Digo-lhe que Lady Colchester não admite comportamentos desagradáveis no seu salão de baile.

Lavinia não respondeu. Meteu-se entre a multidão, o mais discretamente possível. Mas avançar não era tarefa fácil. Perdeu de vista o seu objectivo diversas vezes, quando pessoas grandes lhe apareciam à frente.

Quando, finalmente, alcançou, um pouco ofegante, o fundo do salão, viu que Emeline dominara a situação. Pomfrey já se afastava, sem sequer notar a aproximação de Lavinia.

Os olhos de Emeline tinham um ar divertido.

- Está tudo bem, tia. Pomfrey queria, apenas, apresentar desculpas pelo que aconteceu no teatro.

- Só fez o que devia - disse Lavinia, voltando-se e olhando para as costas de Pomfrey.

Emeline sorriu para o confundido Mr. Geddis.

- Muito obrigada, caro senhor.

- O prazer foi meu.

Geddis pegou na mão que Emeline lhe estendia, fez uma vénia e afastou-se para o meio da multidão.

Lavinia observou a partida dele.

- Parece muito simpático.

- Tente não mostrar o regozijo - disse Emeline. - É embaraçoso.

- Anda, temos de voltar para junto de Mrs. Dove. Ela está à nossa espera.

Lavinia abriu o caminho pela borda do salão, seguida por Emeline. Quando venceram a última barreira de hóspedes, contudo, viram que o patamar da janela estava vazio, vendo-se apenas um lacaio que recolhia os copos usados.

Lavinia parou, o pânico invadindo-a.

- Desapareceu!

- Tenho a certeza que anda por perto - disse Emeline, tranquili zadora. - Não se ia embora sem lhe dizer nada.

- Desapareceu, digo-te - Lavinia agarrou numa cadeira próxima e pôs-se em cima dela. - Não a vejo em lado nenhum.

O lacaio olhou para ela, espantado.

Emeline voltou-se, procurando entre a multidão.

- Nem eu. Talvez tenha ido à sala de jogo.

Lavinia agarrou as saias e saltou da cadeira. E interpelou o lacaio:

- Não viu aqui uma senhora com um vestido cinzento prateado? Estava aqui em pé, há um minuto ou dois.

- Vi, sim, minha senhora. Entreguei-lhe a mensagem e ela partiu. Lavinia e Emeline cruzaram um olhar. Depois, voltaram-se ambas para o Lacaio.

- Que mensagem? - perguntou Lavinia.

O pobre lacaio estava aterrorizado. O suor brotava-lhe na testa.

- Eu não sei o que dizia, minha senhora. Estava escrita num pedaço de papel, mas eu não li. Mandaram-me entregar-lha e foi o que fiz. A senhora olhou para o papel e foi-se embora.

Lavinia avançou um passo para ele.

- Quem é que lhe deu a mensagem?

O lacaio engoliu em seco e recuou um passo. O olhar inquieto

passou de Lavinia para Emeline e, de novo, para Lavinia.

- Foi um dos lacaios contratados para esta noite que me deu a mensagem. Não o conheço. E ele não me disse quem lhe dera a mensagem.

Lavinia voltou-se para Emeline.

- Eu vou por aqui e tu vais por aí. Encontramo-nos do outro lado do salão.

- Está bem - disse Emeline, voltando-se para partir.

- Emeline - Lavinia agarrou-a por um braço, para lhe fixar a aten   ção. - Não sais do salão de baile em nenhuma circunstância, estás a ouvir?

Emeline aquiesceu e meteu-se no meio da multidão.

Lavinia rodopiou e pôs-se a abrir caminho pelo aglomerado de gente, do lado do terraço do comprido salão. Estava a chegar à sala do bufete quando lhe ocorreu que abarcaria melhor o salão da galeria superior que o circundava.

Mudou de direcção e dirigiu-se para a escadaria. Vários sobrolhos se ergueram ao avançar, decidida, aos empurrões, pelo aglomerado de gente. Houve alguns protestos rudes, mas a maior parte das pessoas ignorava-a.

Chegou às escadas e conseguiu, por um esforço de vontade, não as subir a correr. Quando chegou à galeria, agarrou-se ao balaústre e olhou para baixo.

Não havia sinal do vestido cinzento-prateado de Joan, entre as centenas de brilhantes cetins e sedas que enchiam o salão. Forçou-se a pensar logicamente. E se houvesse algo na mensagem que obrigasse Joan a abandonar a segurança do salão de baile?

Voltou-se e atravessou a galeria, para as janelas que davam para o vasto jardim. Abriu uma e olhou para fora. Os arbustos e as sebes junto da casa estavam iluminados pela luz que emanava das janelas francesas que se alinhavam no terraço contíguo ao salão de baile. A iluminação porem não chegava longe. Muita da paisagem plantada permanecia na escuridão. Conseguia, apenas, distinguir a forma volumosa de um enorme monúmento de pedra. Sem dúvida, uma homenagem ao falecido marido de Lady Colchester.

Um ligeiro movimento junto a uma sebe prendeu-lhe a vista. Virou a cabeça rapidamente e vislumbrou um vestido claro de cetim. Na penumbra, era impossível distinguir a cor do vestido, bem como a cara da mulher, mas algo no andar e o facto da senhora estar sozinha indicaram a Lavinia o que ela queria saber.

Pensou em gritar para a figura apressada, mas duvidou que Joan a ouvisse, com o barulho dos risos e da música.

Voltou-se e viu umas pequenas escadas ao fundo da galeria e correu para lá. Um lacaio com um tabuleiro de canapés apareceu quando ela se preparava para descer.

- Estas escadas dão para o jardim?

- Dão, sim, minha senhora. Há uma porta ao fundo das escadas.

- Obrigada.

Agarrou-se ao corrimão e serviu-se dele para não cair, ao mergulhar nas escadas.

Encontrou a porta ao fundo das pequenas escadas, abriu-a e saiu para a penumbra fria. Não havia ninguém por perto. Os hóspedes que procuravam um pouco de ar fresco confinavam-se ao terraço.

Ocorreu-lhe que, se a mulher de vestido claro continuasse na direc ção em que seguia há momentos, iria dar ao monumento. O memorial de pedra era um local de escolha natural como ponto de encontro, naquele vasto jardim.

Agarrou as saias e pôs-se a correr para o monumento, afastando-se das luzes. Os risos e o som da música desvaneciam-se, à medida que se internava para o meio das sèbes e das plantas bem aparadas. O chão de gravilha avançava pela penumbra. Lavinia sentia as pedrinhas através das solas finas dos sapatos de baile.

Rodeou uma sebe mais alta do que ela e viu as colunas do monumento. O interior cavernoso estava mergulhado em negra escuridão. Algo se moveu no rio profundo de noite que corria no interior da entrada do monumento e que desapareceu com o bater de uma enorme asa de morcego.

Lavinia abriu a boca para chamar por Joan, mas parou antes de pronunciar uma palavra.

A forma de asa de morcego podia muito bem ser a aba de uma capa. Quem estava no interior da ruína não era Joan. Nem tinha a certeza de que fosse uma mulher. Talvez fosse um homem à espera de uma senhora com quem combinara um encontro.

Manteve-se por momentos na sombra espessa da sebe, de repente apercebendo-se de que estava frio. Pelo canto do olho, teve o vislumbre de um raio de luar sobre cetim claro.

Joan surgiu da frondosa ramagem junto do monumento, parando perto de uma das colunas de pedra. Depois, dirigiu-se para a entrada escura.

Subitamente, Lavinia compreendeu.

- Não, Joan, não! - Lavinia correu para ela. - Não entre aí. Sobressaltada, joan voltou-se num repente.

- Lavinia? O que é que.

Houve um movimento súbito no interior da entrada do monumento.

- Cuidado!

Lavinia agarrou o braço de Joan e puxou- a do pilar. Uma figura envolta numa capa e de chapéu surgiu do monumento e desapareceu na profunda escuridão do vasto jardim: O luar brilhou, um instante, no que parecia ser um ferro comprido.

- Se fosse a si, nem sequer pensaria em persegui-lo - disse Joan. Algo me diz que Mr. March não aprovaria.

- Houve, claro, uma razão para eu ter corrido para o jardim, sem lhe ter dito nada, Lavinia - disse Joan com ar cansado. É que recebi uma mensagem a dizer que a minha filha corria perigo de morte e que devia dirigir-me, de imediato, ao monumento do jardim, para me darem mais pormenores. Acho que me deixei tomar pelo pânico.

- E não lhe ocorreu que a mensagem era uma armadilha para a afastar da segurança do salão de baile? - perguntou Tobias.

Lavinia, sentada no assento de veludo em frente dele, lançou-lhe um olhar que ele reconheceu imediatamente. Sabia muito bem que empregara um tom rude, mas queria lá saber se tinha ofendido a sensibilidade de Joan.

Não estava nada bem disposto. Quando, pouco antes, entrara no salão de baile dos Colchester, acompanhado por Anthony, e descobrira que, tanto Joan, como Lavinia, tinham desaparecido, ficara capaz de dei tar a casa abaixo. Fora Emeline que evitara que ele fizesse uma cena verdadeiramente memorável. Emeline estivera à procura de Lavinia e de joan na galeria e acabara de ver o par a regressar do jardim.

Tobias arrastara-os a todos imediatamente dali para fora, mandando vir a elegante carruagem de Joan sem sequer lhe pedir licença. Joan não protestara, quando ele os empurrou para dentro do veículo.

Só quando estavam todos em segurança dentro da carruagem é que Lavinia lhe fez o relato crispado dos acontecimentos no salão de baile e no jardim. A fria satisfação que ele experimentara ao encontrar a carta no guarda-fatos de Neville evaporara-se imediatamente.

Tudo o que pensava, naquele momento, era que Joan, não só tinha assumido um grande risco ao ir ao jardim mergulhado na escuridão da noite, como tinha levado Lavinia a correr grande risco.

Distraidamente, levou a mão à anca, procurando aliviar a dor incó moda. A elegante e bem cuidada carruagem de joan era, de longe, muito mais confortável do que o trem de aluguer que Anthony agarrara para o sacar da rua, mas os assentos macios em nada contribuíam para lhe apaziguar o ânimo.

- Eu não sou uma mulher estúpida, Mr. March - disse Joan, olhando lá para fora, pela janela da carruagem. - Tive consciência de que a mensagem podia ser uma cilada, mas implicava uma ameaça à minha filha. Não tive alternativa senão obedecer. Eu estava desvairada.

- Uma reacção perfeitamente natural - disse Lavinia, apaziguadora. - Qualquer pai faria o mesmo. E não apenas um pai, devo acrescentar. - Lavinia dirigiu um olhar significativo a Tobias. - O que é que faria se recebesse uma mensagem a dizer-lhe que Anthony se encontrava em grande perigo?

Anthony emitiu um som estranho, que podia ser um abafado ataque de riso.

Tobias engoliu em seco. A resposta era óbvia para todos eles. Que faria ele se recebesse uma mensagem indicando que Lavinia se encontrava em dificuldade? Ele sabia, também, a resposta a essa pergunta.

Não havia que continuar naquela linha de argumentação, pensou ele. Lavinia estava firmemente disposta a defender a sua cliente.

- Parece-me evidente - disse Lavinia, decididamente apostada em mudar de assunto -, que Neville moveu os cordelinhos todos esta noite. Não me admirava nada que ele tivesse convencido Pomfrey a apresentar desculpas a Emeline, para criar uma distracção.

As sobrancelhas de Emeline uniram-se, numa expressão pensativa.

- Acha que ele arranjou maneira de receber uma mensagem ele próprio, como Mrs. Dove?

- É o que parece, não é? Isso serviu- lhe de desculpa para abandonar o salão de baile. Se alguém perguntasse por ele, haveria um certo número de pessoas a confirmarem que ele tinha recebido uma mensagem e se vira obrigado a sair.

- Mas ele saiu pela porta da frente - disse Anthony.

- O que quer dizer que um dos lacaios lhe levou a capa e o chapéu - disse Lavinia. - O que lhe permitiu, também, ir à carruagem buscar o ferro que ia utilizar como arma.

Emeline inclinava a cabeça, concordando.

- Sim, isso faz sentido. E ter-lhe-ia sido fácil dirigir-se ao jardim sem ser visto. A área é muito extensa, deve haver inúmeros sítios onde se pode saltar o muro.

- E quando, eventualmente, descobrissem o meu corpo, não haveria nada a ligar Neville à minha morte - disse Joan mansamente.

Tobias viu Lavinia tremer ligeiramente.

- Tudo encaixa - disse Anthony. - Neville tentou matá-la como matou as outras mulheres. E talvez pensasse, também, em atirar o seu corpo para o rio. Podia transportá-lo na carruagem muito facilmente.

Joan lançou-lhe um olhar estranho.

- Tem uma imaginação muito viva, caro senhor.

Anthony fez uma careta, embaraçado.

- Perdão, minha senhora.

Na boca de Joan surgiu uma expressão amarga.

- Não posso deixar de perguntar-me se ele pretendia encomendar a minha máscara de morte ao seu artista exclusivo. Imaginem, a minha cara podia acabar numa dessas estátuas eróticas do Museu Huggett.

Por momentos, ninguém falou.

Joan voltou-se para Tobias, os olhos tristes e sem brilho.

- Segundo parece, o senhor e Lavinia estão correctos na análise que fazem. Vejo-me forçada a concluir que Neville é, de facto, um assassino e, muito possivelmente, um membro do Clube Azul a que se referiu. Dificilmente posso acreditar que o meu marido fosse o chefe de uma organização criminosa, mas já nada faz sentido. É evidente que Neville pensa que eu sei demasiado e pretende silenciar-me.

Pouco depois, Lavinia sentava-se na cadeira da sua secretária, Anthony agachava-se para acender a lareira, Emeline sentava-se numa das cadeiras de leitura e Tobias abria o armário do xerez.

Lavinia observou-o a encher dois cálices. Algo na maneira como se movia deu-lhe a entender que a perna lhe doía muito. Não era para admirar, com todo o exercício a que ele se dedicara naquela noite.

- Acham que Joan Dove fala verdade quando afirma que nunca soube que o marido era Azure? - perguntou Anthony, a ninguém em particular.

- Quem o pode saber? - disse Tobias, colocando um dos cálices na secretária, em frente de Lavinia. - Os cavalheiros da alta sociedade raramente falam dos seus assuntos, financeiros ou não, com as mulheres. Como disse Lavinia, as viúvas são, muitas vezes, as últimas a conhecerem os pormenores dos seus haveres. É muito possível que Dove tenha mantido a mulher na ignorância das suas actividades criminosas.

- Ela sabia - disse Lavinia mansamente.

Houve uma pausa de espanto. Olharam todos para ela. Lavinia encolheu os ombros.

- Ela é uma mulher muito inteligente. Amava-o profundamente e eles estavam estreitamente ligados. Ela tinha de saber, ou, pelo menos, de suspeitar que Fielding Dove era Azure.

Emeline baixou a cabeça.

- Concordo.

- Em qualquer dos casos, ela nunca vai admitir isso - disse Tobias.

- E não podemos censurá-la por isso - disse Lavinia. - No lugar dela, eu faria tudo o que pudesse para ocultar a verdade.

- Com medo da má-língua? - perguntou Tobias, com terno interesse.

- Não - disse Lavinia. - Mrs. Dove é perfeitamente capaz de enfrentar uma tempestade de má-língua.

- Tem razão - disse Tobias.

- Há outras razões que levam uma mulher a fazer tudo para preservar o bom nome do marido - disse Lavinia.

Tobias ergueu uma sobrancelha.

- Tais como?

- Amor. Devoção - Lavinia fixou o cálice diante dela. - Esse género de coisas.

Tobias pôs-se a observar as chamas na lareira.

- Sim, claro. Esse género de coisas.

Houve outro longo silêncio. Desta vez, foi Emeline que o quebrou.

- Ainda não nos disse, Mr. March, o que descobriu em casa de Neville, esta noite - disse ela.

Tobias encostou-se ao lintel da lareira.

- Encontrei uma carta que implica Neville na morte de Bennett Ruckland. Segundo parece, pagou a Carlisle um bom montante, para que Ruckland fosse assassinado em Roma.

Anthony assobiou baixinho.

- Portanto, o caso está arrumado.

- Quase - disse Tobias, bebendo mais um pouco de xerez. Lavinia franziu a testa.

- O que é que quer dizer com isso? O que é que se passa? Tobias olhou para ela.

- É chegada a altura de a pôr a par dos antecedentes deste caso. Lavinia semicerrou os olhos.

- Faça o favor, caro senhor.

- Bennett Ruckland era um explorador e investigador de antiguidades. Durante a guerra, passou bastante tempo em Espanha e na Itália. A sua profissão, ocasionalmente, colocava-o em situação de coligir informações úteis à Coroa.

- Que género de informações?

Tobias fez girar o xerez no cálice.

- No decurso do seu trabalho, por vezes vinha a tomar conhecimento das rotas dos barcos franceses, ouvia rumores acerca dos movimentos de suprimentos militares e de tropas. Esse género de coisas.

Emeline parecia intrigada.

- Por outras palavras, era um espião?

- Exacto - Tobias fez uma pausa. - O seu contacto em Inglaterra, o homem a quem passava as informações, era Lorde Neville.

Lavinia ficou hirta.

- Oh, meu Deus!

- As informações que Ruckland fornecia a Neville, via uma rede de correios, eram para ser transmitidas às autoridades competentes. E, de facto, muitas foram-no.

- Mas nem todas?

- Assim foi. Ruckland, porém, só descobriu a verdade depois da guerra. Há cerca de um ano, regressou a Itália para prosseguir as suas investigações académicas. Enquanto lá estava, um dos seus antigos informadores falou-lhe em certos rumores, acerca do destino de um determinado carregamento de mercadorias que haviam sido despachadas de Espanha pelos franceses, já no fim da guerra. O destino pretendido era Paris. Ruckland conseguira obter pormenores acerca da rota secreta e, na altura, transmitira-os a Neville.

- Mantimentos militares? - perguntou Emeline.

Tobias abanou a cabeça.

- Antiguidades. Napoleão apreciava-as muito. Quando invadira o Egipto, por exemplo, levara com ele uma hoste de cientistas para estudarem os artefactos e os templos egípcios.

- Toda a gente sabe isso. A pedra de Rosetta era um desses artefactos que, afinal, se encontra, agora, nas nossas mãos, são e salvo disse Anthony.

- Continue a sua história - disse Lavinia. - Que género de antiguidades constituíam esse carregamento a que se referiu?

- Eram coisas muito valiosas. Entre elas, havia uma colecção de objectos antigos de joalharia que as tropas de Napoleão tinham encon trado escondidos, num convento em Espanha.

- E o que é que aconteceu?

- O carregamento de antiguidades e de jóias desapareceu, na viagem para Paris - disse Tobias. - Ruckland presumiu que Neville arranjara maneira de o carregamento ser interceptado e levado para Inglaterra. E, de certo modo, foi o que aconteceu.

Lavinia franziu o sobrolho.

- O que é que quer dizer com isso?

- As antiguidades desapareceram, como estava planeado - disse Tobias. - Porém, depois de falar com o seu antigo informador, o ano passado, Ruckland começou a suspeitar que Neville tinha ficado com o carregamento para ele próprio. Pôs-se a averiguar. Uma questão levou a outras.

Lavinia expirou o ar lentamente.

- Ruckland descobriu o que se passava com o Clube Azul, foi isso?

- Sim. Não se esqueçam de que ele tinha uma grande experiência como espião. E dispunha, ainda, da rede de antigos informadores que utilizara durante a guerra. Começou a remexer nas pedras e encontrou serpentes.

Lavinia bebeu um pequeno gole de xerez.

- Uma das quais se chamava Lorde Neville?

- Ruckland veio a saber que Neville não só roubara um certo número de carregamentos valiosos, como atraiçoara a sua pátria em várias ocasiões, vendendo segredos militares britânicos aos franceses.

- Neville era um traidor?

- Sim. E, bem ligado ao mundo do crime, dada a sua associação com o Clube Azul, também ele dispunha de informadores. Alguns meses atrás, soubera que Ruckland procedia a averiguações a respeito das suas actividades e se acercava da verdade. Combinou, então, com o outro membro sobrevivente do Clube Azul, Carlisle, a maneira de se livrar de Ruckland. - A expressão de Tobias endureceu. - A questão custou a Neville dez mil libras.

Lavinia ficou de boca aberta.

- Dez mil libras? Para matar um homem? Mas isso é uma fortuna. Todos sabemos que há nas cidades da Europa, incluindo Roma, facínoras que matariam por um punhado de moedas.

- As dez mil libras não foram, apenas, o custo da morte de Ruckland - disse Tobias calmamente. - Constituíam, também, um prémio, dada a situação delicada de Neville. Carlisle sabia que Neville pagaria qual quer preço para obter silêncio.

- Sim, claro - murmurou Lavinia. - Um criminoso a chantagear outro. Há uma certa ironia nisso, não há?

- Talvez - disse Tobias. - De qualquer modo, Neville deve ter ficado muito aliviado, quando o caso foi arrumado. Com Ruckland morto, podia prosseguir com os seus planos para dominar o que restava da organização do Clube Azul, aqui em Inglaterra.

Anthony olhou para Lavinia.

- Mas o que Neville não sabia era que Ruckland já participara as suas suspeitas a uns certos cavalheiros altamente colocados. Quando ele foi assassinado em Roma, perceberam imediatamente que não tinha sido uma morte de acaso.

- Hum!. - Lavinia espalmou as mãos em cima da secretária e olhou sombriamente para Tobias. - Eu sabia. Eu sabia que havia muita coísa que não me contava. Neville nunca foi seu cliente, pois não?

Tobias expirou o ar lentamente.

- Bem, isso depende do ponto de vista.

Lavinia apontou-lhe um dedo.

- Nem pense em ocultar-me a verdade, agora. Quem é que o contratou para investigar a morte de Ruckland?

- Um homem chamado Crackenburne.

Lavinia voltou-se para Emeline.

- Eu bem te dizia que Mr. March andava a jogar o jogo dele, não dizia?

Emeline sorriu.

- Sim, tia Lavinia, disse-me qualquer coisa desse género. Lavinia voltou-se de novo para Tobias.

- Donde é que vem a sua ligação com Neville?

- Quando começaram a correr rumores acerca do diário do criado, pouco depois da morte de Carlisle, vi uma oportunidade de apertar a teia em redor de Neville. Contactei-o, na minha qualidade de intermediário e de oportunista, e pu-lo a par dos perigosos rumores oferecendo-lhe os meus serviços para encontrar o diário.

- Neville ficou desesperado por encontrar o diário - explicou Anthony. - Não sabia o que constava dele, mas receava que o implicasse.

- Desconfio que, pouco depois de me ter contratado para encontrar o diário, Neville tenha recebido uma das mensagens de chantagem de Holton Félix - disse Tobias. - Descobriu a morada de Félix, como você, Lavinia, e eu próprio, mas chegou lá primeiro, matou-o e levou o diário.

- Não lhe podia, porém, contar isso, portanto, deixou-o prosseguir com as suas averiguações e, quando achou oportuno, arranjou maneira de que encontrasse o diário reduzido a cinzas - concluiu Lavinia.

- Foi isso, sim.

Lavinia olhou-o nos olhos.

- Tobias, quando Lorde Neville regressar esta noite a casa, vai aperceber-se de que alguém lá entrou. O lacaio com quem lutou vai informá-lo.

- Sem dúvida.

- Ele vai suspeitar de si. E pode achar que sabe demais. Há que arrumar a questão imediatamente. Esta noite já.

- É curioso que diga isso - Tobias bebeu o resto do xerez e pousou o cálice. - precisamente, o que tenciono fazer.

 

O candeeiro a gás assinalava a entrada do bordel. O débil halo de luz não vencia a escuridão envolta em nevoeiro.

Tobias mantinha-se na sombra e viu a porta abrir-se.

Neville surgiu, parando para puxar a gola da capa, a tapar-lhe as orelhas, e, depois, desceu os degraus da entrada, sem olhar para os lados, caminhando rapidamente para a carruagem que o esperava na rua. O cocheiro, na boleia, embrulhado no pesado capote de várias abas, esperava, imóvel e em silêncio.

Tobias saiu das sombras e parou a uns passos de Neville, mantendo- se, contudo, fora do pequeno feixe de luz do candeeiro a gás.

- Vejo que recebeu a minha mensagem - disse ele.

- Que raio é isto?

Neville parou e voltou-se num repente, levando a mão ao bolso da capa. Quando viu que era Tobias, distendeu-se um pouco.

- Que raio, March, você pregou-me um susto. Devia ter mais cuidado ao aproximar-se de um homem nesta zona da cidade. Arrisca-se a levar um tiro.

- A esta distância e com esta luz, era pouco provável que a sua pistola atingisse o alvo, especialmente se disparasse do bolso da capa.

Neville resmungou, mas não tirou a mão do bolso.

- Eu recebi a sua mensagem, mas pensei que nos íamos encontrar no clube. Do que é que se trata? Tem notícias para me dar? Descobriu quem matou Félix e levou o diário?

- Eu estou farto desse jogo - disse Tobias. - De qualquer modo, não vai ter tempo para continuar a jogá-lo.

Neville franziu o sobrolho.

- Oh, homem, do que é que está a falar?

- O jogo acaba aqui. Esta noite. Não vai haver mais morte nenhuma.

- O que é que está a querer dizer? Está a acusar-me de assassínio?

- De vários assassínios - disse Tobias. - Incluindo o de Bennett Ruckland.

- Ruckland? - Neville recuou um passo, puxando a mão do bolso e revelando a pistola que empunhava. - Está louco. Eu não tive nada a ver com a morte dele. Eu estava aqui em Londres, quando ele morreu. E posso prová-lo.

- Sabemos ambos que encomendou a morte dele - Tobias olhou de relance para a pistola que Neville lhe apontava e, depois, tornou a olhar para a cara dele. - Quando chegar a casa esta noite, vai ficar a saber que alguém se introduziu lá enquanto esteve fora.

Os olhos de Neville encheram-se de raiva.

- Você!

- E encontrei uma carta que constitui uma prova evidente contra si. Neville parecia espantado.

- Uma carta?

- Dirigida a si e assinada por Carlisle. Resumindo muito sucintamente o esquema da morte de Ruckland.

- Não. Isso é impossível. Absolutamente impossível - Neville levantou a voz para chamar pelo cocheiro. - Eh, tu aí! Agarra na tua pistola e vigia este homem. Ele está a ameaçar-me.

- Sim, meu senhor.

O cocheiro afastou as abas do capote. A luz brilhou no cano de uma arma.

A pistola na mão de Neville deixou de tremer. Sentia-se mais seguro, agora que sabia que o cocheiro estava preparado para o defender.

- Vamos lá a ver essa carta que diz ter encontrado - rosnou Neville.

- Só por curiosidade - disse Tobias, ignorando a exigência -, quanto é que ganhou com os seus negócios com os franceses, durante a guerra? Quantos homens é que morreram por causa das informações que vendeu a Napoleão? O que fez ao tesouro roubado no convento espanhol?

- Não pode provar nada. Nada mesmo. Está a tentar assustar-me. Não existe nenhum registo dos meus negócios com os franceses. Foi tudo destruído, conjuntamente com a carta que diz ter encontrado. Nem essa existe, digo-lho eu.

Tobias sorriu ligeiramente.

- Eu entreguei-a a um cavalheiro altamente colocado que me pareceu ter ficado muito interessado.

- Não!

- Diga-me uma coisa, Neville, chegou a acreditar, realmente, que conseguiria assumir a posição de Azure, como chefe do Clube Azul?

Algo estalou na expressão de Neville. A raiva explodiu.

- Vá para o inferno, March. Eu sou o novo chefe do Clube Azul.

- Matou Fielding Dove, não matou? A doença súbita que o vitimou na última visita que fez às propriedades era veneno, não era?

- Eu tinha de me livrar dele. Dove começou a fazer averiguações depois da guerra terminar, compreende. Não sei o que despertou a atenção dele para os meus negócios com os franceses, mas ficou furioso quando soube deles.

- Ele dirigia uma vasta organização criminosa, mas, no fundo, era um inglês leal, é isso? Era incapaz de trair.

Neville encolheu os ombros.

- Ora, ora. Durante a guerra não se opôs a que eu e Carlisle tirássemos partido de certas oportunidades de investimento que foram aparecendo. Havia muito dinheiro a ganhar, suprindo os militares com armas, equipamentos, cereais e mulheres. E, além disso, havia os carregamentos de jóias e de ouro roubados a agarrar, quando tínhamos acesso a certas informações.

- Negócio era negócio. Azure, porém, não toleraria a venda de segredos britânicos. E descobriu o que você tinha feito.

- Sim - Neville firmou a mão na pistola. - Felizmente, tomei conhecimento a tempo que ele se dispunha a mandar-me matar e agi em conformidade. Não tinha alternativa senão matá-lo, e depressa. Era uma questão de sobrevivência.

- Isso é verdade.

- E tive a vantagem da surpresa, compreende. Ele nunca soube que eu fora avisado de que ele pretendia matar-me. Mesmo assim, há dez ou quinze anos atrás não teria sido fácil despachá-lo. Mas Azure estava a ficar velho, compreende. Estava a perder a têmpera.

- Chegou a pensar, na verdade, que era capaz de dirigir uma organização como o Clube Azul?

Neville empertigou-se.

- Eu, agora, sou Azure. Sob a minha orientação e direcção o Clube Azul vai tornar-se muito mais poderoso do que nos tempos de Dove. Dentro de um ano ou dois, vou ser o homem mais poderoso da Europa.

- Napoleão pensava o mesmo. Veja como acabou.

- Não vou cometer o erro de me imiscuir em política. Limitar-me-ei aos negócios.

- Quantas mulheres é que matou?

Neville contraiu-se.

- Sabe das prostitutas?

- Sei que tentou ligar uma série de pontas de fio e, ao fazê-lo, matou várias mulheres inocentes.

- Ora. Elas não eram inocentes; eram prostitutas. Nem família tinham. Ninguém deu pela falta delas.

- Mas não quis que elas desaparecessem completamente, pois não? Quis guardá-las como troféus. Como é que se chama o artista que contratou para fazer aqueles trabalhos em cera da galeria de Huggett?

Neville soltou uma gargalhada.

- Também sabe dos trabalhos em cera? Interessantes, não são? Tenho de confessar, March, que estou impressionado com a sua perícia. Nunca pensei que fosse tão hábil na sua profissão.

- Não havia razão para as matar, Neville. Elas não constituíam nenhuma ameaça para um homem da sua posição. Ninguém ia acreditar nelas, contra a palavra de um cavalheiro.

- Eu não posso correr riscos. Algumas dessas prostitutas são por demais espertas. Era bem possível que tivessem vindo a saber muita coisa a meu respeito, no decurso da nossa ligação. - Neville fez um trejeito com a boca. - Um homem, por vezes, fala demasiado, quando, depois de beber umas garrafas de vinho, se encontra nos braços de uma mulher sensual, disposta a satisfazer-lhe os caprichos.

- Não conseguiu silenciá-las todas. Já tornou a ver Sally, ou ouviu falar dela, recentemente?

- A puta conseguiu escapar, mas hei-de encontrá-la - afirmou Neville. - Não se pode esconder para sempre.

- Não foi a única que lhe escapou. Joan Dove também sobreviveu à tentativa que perpetrou sobre ela.

A declaração impôs a Neville uma pausa prolongada, levando-o a apertar ainda mais a pistola.

- Sabe, então, também dela. Tem andado a escavar bastante. Tão fundo que conseguiu escavar a própria sepultura.

- Tem razão para ter medo dela, Neville. Ao contrário das outras, é inteligente, poderosa e bem guardada. Esta noite foi descuidada e quase a agarrou, mas ela não volta a cometer o mesmo erro.

Neville praguejou de desdém.

- Joan não é melhor do que as outras. Quando acabei a minha ligação com ela era uma prostituta. E nem era grande coisa. Fartei-me dela em poucos meses. Custou-me a acreditar, quando Dove casou com ela. Com a fortuna e o poder de que dispunha, podia ter escolhido uma rica herdeira.

- Ele gostava dela.

- Ela foi a sua única fraqueza. É por isso que tenho de me livrar dela, compreende. É muito provável que, durante os vinte anos que durou o casamento, tenha sabido que ele era o cabecilha do Clube Azul. Tenho de assumir que ela sabe muita coisa a respeito da actuação da organização.

- Não vai ter tempo de se preocupar com o que Joan Dove sabe - disse Tobias. - Para si, acabou-se. Agora, se não se importa, eu e o meu assistente vamos tomar conta de si.

- Assistente!

- Aqui, na boleia - disse Anthony, gritando baixinho. Neville soltou um rouco grito de alarme, voltando-se tão depressa que cambaleou, quase perdendo o equilíbrio. Começou a apontar a pistola para o novo alvo, mas parou, quando viu a arma na mão de Anthony.

Tobias sacou a pistola que trazia no bolso da capa.

- Segundo parece, tem duas opções, Neville - disse Tobias calma mente. - Pode ir para casa e esperar que uns cavalheiros de posição ele vada, e que desempenharam altos cargos durante a guerra, o visitem amanhã, ou pode desaparecer de Londres e nunca mais cá aparecer.

Anthony apontava-lhe firmemente a pistola.

- É uma escolha interessante, não é?

Neville balançava, com a raiva impotente. A atenção dele vagueava entre as duas pistolas que lhe apontavam.

- Filho da mãe! - Estava quase incoerente. - Enganou-me desde o princípio. Só pensava em destruir-me.

- Tive alguma ajuda - disse Tobias.

- Há-de pagar-mas. - A voz de Neville tremia. - Eu sou o chefe do Clube Azul e tenho muito mais poder do que pode imaginar. Hei-de vê-lo morto por isto.

- Ficaria muito mais preocupado com essa perspectiva, se não fosse o facto de saber que, amanhã de manhã, ou está morto, ou a caminho de França.

Neville soltou um grito de raiva. Depois, voltou-se e desapareceu na noite. Os tacões das botas rangiam ocamente nas pedras.

Anthony olhou para Tobias.

- Queres que vá atrás dele?

- Não - Tobias guardou a pistola no bolso. - Ele, agora, é um problema de Crackenburne, não nosso.

Anthony olhou para o sítio onde Neville tinha desaparecido no nevoeiro.

- Quando lhe falaste nas opções, esqueceste-te de mencionar uma. A maioria dos cavalheiros, na situação dele, daria um tiro na cabeça, para poupar as famílias ao escândalo da prisão e do julgamento.

- Tenho a certeza de que, se Crackenburne e os seus amigos encontrarem Neville em casa, quando lá forem amanhã, não deixarão de lhe sugerir essa atitude.

Crackenburne baixou o jornal, quando Tobias se sentou na poltrona em frente dele.

- Ele não estava em casa quando Bains e Evanstone lá foram esta manhã. Disseram-lhes que ele tinha ido visitar as propriedades no campo.

Tobias ergueu as sobrancelhas perante o raro tom de gravidade que detectou na voz de Crackenburne. Olhou-lhe para os olhos meio fechados e vislumbrou o aço frio que só poucos notavam, sob a aparência benigna e ausente.

Tobias estendeu as pernas para a lareira.

- Tenha calma, senhor. Algo me diz que Neville vai tornar a aparecer.

- Maldição. Eu disse-lhe que não gostava do seu plano de o confrontar, ontem à noite. Para que havíamos de avisar o filho da mãe?

- Eu disse-lhe que as provas contra ele eram escassas. Uma simples carta, que ele podia afirmar ser forjada. Tinha de ouvir a confirmação da boca dele.

- Pois bem, você obteve a confissão que desejava, mas nós acabámos por perdê-lo. Dentro em pouco, vamos ficar a saber que ele se pavoneia em Paris, ou em Roma, ou em Bóston. O exílio não é castigo suficiente para os crimes dele. Traição e mortes. Caramba, o homem é um demónio.

- Mas está acabado - disse Tobias. - Isso é que importa.

 

A pequena vivenda atrás do velho armazém parecia não estar habitada havia anos. Sem pintura, as janelas rachadas e encardidas, parecia prestes a cair. O único sinal de que alguém entrava regularmente na pequena construção era o cadeado na porta. Não estava enferrujado.

Lavinia torceu o nariz. O cheiro do rio era muito forte e desagradável, ali junto das docas. A névoa agarrada ao velho armazém fedia. Lavinia examinava a delapidada estrutura diante deles.

- Tem a certeza de que é esta a morada? - perguntou ela. Tobias estudou a pequena planta que Huggett desenhara.

- Isto é o fim da passagem. Para a frente, só temos o rio. Tem de ser este o local.

- Muito bem.

Ela ficara espantada quando Tobias lhe aparecera à porta, pouco antes, dizendo-lhe que recebera uma mensagem de Huggett. A nota era breve e directa.

 

         Mr. M.

Disse-me que pagava qualquer informação acerca de um certo modelador de cera. Queira dirigir-se a esta morada o mais breve possível. Creio que obterá alguma coisa do actual ocupante. Pode enviar o que me prometeu para o meu estabelecimento.

     Seu, P. Huggett

 

Tobias guardou o papel e encaminhou-se para a porta.

- Está aberta. - Tirou a pistola do bolso da capa. - Afaste-se daí. Lavinia.

- Duvido que Mr. Huggett nos tenha atraído a uma cilada. - Porém, fez o que ele lhe dizia, afastando-se para o lado, de modo a não servir de alvo a quem estivesse no interior da casita. - Ele está ansioso por receber a compensação.

- Sinto-me inclinado a concordar, mas não quero correr mais riscos. já me apercebi de que nada neste caso é seguro, como, por vezes, se afigura.

Incluindo tu - pensou ela. Tu Tobias March foste a maior surpresa de todas.

Tobias encostou-se à parede e, depois, estendeu um braço, abrindo a porta. Silêncio e o sinistramente familiar cheiro a morte foi tudo o que emanou da casa.

Lavinia embrulhou-se melhor na capa que Emeline lhe emprestara.

- Tinha tanta esperança que não encontrássemos mais cadáveres! Tobias olhou lá para dentro, baixando, depois, a pistola. Guardou a pistola no bolso e entrou na casa. Lavinia seguiu-o, relutantemente.

- Não precisa de entrar - disse Tobias, sem se voltar. Lavinia engoliu em seco, para evitar o cheiro a morte.

- É Lorde Neville?

- Sim.

Lavinia viu-o avançar dentro da casa, virar à esquerda e desaparecer nas sombras. Ela avançou até à soleira da porta, mas não entrou. Donde estava, via o bastante. Tobias estava de cócoras, junto a uma forma escura estendida no chão. Havia uma poça de sangue seco, por baixo da cabeça de Neville. Perto da mão direita, via-se uma pistola. Uma mosca zuniu.

Lavinia desviou o olhar rapidamente, os olhos pousando num oleado que cobria um volumoso objecto, com protuberâncias, colocado a um canto.

- Tobias.

- O que é? - Ele olhou para cima, franzindo a testa. - Eu disse-lhe que não precisava de entrar aqui.

- Há qualquer coisa ali ao canto. E acho que sei o que é. Lavinia entrou na vivenda e atravessou o chão de madeira para chegar à forma amortalhada. Tobias não disse nada, observando-a atentamente enquanto ela puxava o oleado para o lado.

Olharam ambos para o meio acabado trabalho em cera que apareceu à vista deles. A toscamente moldada figura de uma mulher, entregue a um lascivo acto sexual com um homem, era indubitavelmente semelhante às esculturas da galeria de Huggett. O rosto da mulher não estava completo.

Uma variedade de ferramentas e de equipamento estavam cuidadosamente arrumados em cima de um banco de trabalho. Os carvões apagados na lareira testemunhavam do recente lume aceso para amaciar a cera.

- Tudo muito limpo e arrumado - Tobias levantou-se com dificuldade. - O assassino e traidor suicidou-se.

- É o que parece. E o que é feito do misterioso artista? Tobias examinou o trabalho inacabado.

- Acredito que não haverá mais encomendas para esculturas destinadas a serem exibidas, exclusivamente a homens, na galeria especial de Huggett.

Lavinia estremeceu.

- Gostava de saber que tipo de ligação tinha Neville com o artista? Acha que podia ser uma das suas antigas amantes?

- Acho que, provavelmente, nunca obteremos uma resposta a essa pergunta. E, se calhar, é melhor assim. Estou mais do que disposto a pôr ponto final no assunto.

- Portanto, finalmente acabou - disse Joan Dove, olhando para Lavinia, do outro lado do comprido tapete azul e dourado. - Fico muito contente de ouvir isso.

- Mr. March falou com o cliente dele, o qual lhe assegurou que o escândalo seria reduzido ao mínimo. Far-se-á circular que Neville sofrera, recentemente, alguns severos revezes financeiros e que, desesperado, pôs termo à vida. Não vai ser fácil para a mulher e para a família, mas é preferível isso do que vir a saber-se que era um assassino e um traidor.

- Especialmente quando se descobrir que os revezes financeiros de Lorde Neville não eram, nem de longe, tão severos como ele julgava, quando deu o tiro na cabeça - disse Joan, baixinho. - Algo me diz que Lady Neville vai ficar muito aliviada quando verificar que, afinal, não está arruinada.

- Sem dúvida. Acontece que o cliente de Mr. March lhe deu a entender que o escândalo era abafado, não só para proteger a mulher e a família de Neville, mas também por outras razões. Segundo parece, certos cavalheiros, altamente colocados, não estão nada interessados em que se saiba que, durante a guerra, foram completamente ludibriados por um traidor. Preferem fazer de conta que nada se passou.

- Exactamente o que se espera da parte de gente altamente colocada, não é assim?

Lavinia sorriu.

- Na verdade.

Joan aclarou a voz, delicadamente.

- E os rumores de que o meu marido seria o chefe de um império criminoso?

Lavinia olhou para ela com um olhar firme.

- Segundo Mr. March, esses rumores morreram com Neville.

A expressão de Joan iluminou-se.

- Muito obrigada, Lavinia.

- Não pense mais nisso. Faz tudo parte do serviço. Joan estendeu a mão para o bule.

- Sabe uma coisa, nunca pensaria que Neville fosse capaz de dar um tiro na cabeça, nem mesmo para proteger a honra da família.

- Nunca se sabe - disse Lavinia - o que um homem é capaz de fazer, quando sujeito a grande pressão.

- Isso é bem verdade - disse Joan, servindo-se de chá com elegante graciosidade. - E suspeito que os cavalheiros altamente colocados o terão sujeito a grande pressão.

- Alguém o terá feito - Lavinia levantou- se, ajeitando as luvas. Bem, se me desculpar, vou andando - disse ela, voltando-se para sair.

- Lavinia!

Lavinia parou e olhou para trás.

- Sim?

Joan observava-a, sentada no sofá.

- Estou-lhe muito grata por tudo o que fez por mim.

- Pagou-me os meus honorários e, além disso, apresentou-me à sua modista. Considero-me amplamente compensada.

- Contudo - disse Joan intencionalmente -, eu considero-me em dívida para consigo. Se houver alguma coisa que eu possa fazer para a recompensar, espero que tenha a bondade de vir ter comigo sem hesitação.

- Bom, dia Joan.

Ela estava a ler Byron quando, na tarde desse dia, ele veio buscá-la. Ele pediu-lhe para o acompanhar ao parque. Ela concordou, fechando o volume de poesia e pondo-o de lado. Foi buscar o chapéu e a peliça e saíram juntos.

No caminho para a ruína gótica não falaram.

Quando lá chegaram, ele sentou-se ao lado dela num banco de pedra e pôs-se a olhar para o jardim luxuriante. O nevoeiro dissipara-se, permitindo ao sol aquecer o dia com uma agradável temperatura.

Ele pensava como havia de começar.

Foi Lavinia quem falou primeiro.

- Fui visitá-la esta manhã - disse Lavinia. - Encarou o assunto com toda a serenidade. Agradeceu-me por lhe ter salvo a vida e pagou-me.

Tobias encostou os braços nas pernas, deixando cair as mãos entre os joelhos.

- Crackenburne já fez chegar ao meu banco os meus honorários.

- É sempre agradável receber o salário a tempo e horas. Tobias olhava para a profusão de flores e de brilhantes folhas verdes que enchiam o jardim selvagem.

- Sim, sim.

- Agora, está tudo acabado.

Tobias ficou calado. Ela lançou-lhe um olhar de soslaio.

- Passa-se alguma coisa?

- O caso Neville está arrumado, como você disse. - Tobias olhou para ela. - Mas acho que alguns assuntos, entre nós, não estão resolvidos.

- O que é que quer dizer com isso? - Lavinia cerrou um pouco os olhos. - Oiça lá, se não está satisfeito com os honorários que recebeu do seu cliente, o problema é seu. Foi você que fez o contrato com Cra ckenburne. Certamente, não está à espera que eu partilhe consigo o que recebi de Mrs. Dove.

Era demasiado. Ele virou-se e agarrou-a pelos ombros.

- Rasparta, Lavinia, isto não tem nada a ver com dinheiro. Ela pestanejou, mas nada fez para se libertar.

- Tem a certeza disso? - perguntou ela.

- Absoluta.

- Bem, então, que história é essa dos assuntos não resolvidos entre nós?

Ele deslizou as mãos nela, saboreando a macieza da curva dos ombros e tentando encontrar as palavras certas.

- Eú acho que trabalhámos bastante bem em sociedade - disse ele.

- Trabalhámos, sim senhor. Especialmente se tomarmos em consideração os difíceis obstáculos que tivemos de ultrapassar. E começámos muito mal, se se lembra.

- Sim, o encontro junto do cadáver de Holton Félix.

- Eu estava a pensar na noite em que me destruiu a loja, em Roma.

- Em minha opinião, os acontecimentos de Roma constituíram um pequeno mal-entendido. Mas nós já falámos nisso, não falamos?

Os olhos dela brilharam.

- De certo modo. Eu vi-me obrigada a inventar uma nova profissão por causa desse pequeno mal-entendido. Devo, porém, confessar que a minha nova profissão é muito mais interessante do que a anterior.

- É a respeito da sua nova profissão que eu queria falar consigodisse Tobias. - Presumo que pretende continuar nela, apesar do meu conselho?

- Decididamente, pretendo continuar com esta minha nova ocupação - declarou-lhe ela. - É muito estimulante e excitante, para não dizer que, ocasionalmente, é muito proveitosa.

- Então, como lhe ia dizer, é muito provável que, eventualmente, venha a considerar que é útil uma futura associação entre nós os dois.

- Acha que sim?

- Eu acho que é muito provável que possamos vir a ser úteis um ao outro.

- Como colegas?

- Sim. E sugiro que trabalhemos como sócios de novo, quando surgir uma oportunidade - disse ele, determinado a obter dela uma resposta afirmativa.

- Sócios. - disse ela, em tom neutro.

Mulheres como ela eram capazes de enlouquecer um homem, pensou ele, mas dominou-se.

- Quer pensar na minha sugestão?

- Vou pensar bem nisso.

Ele puxou-a para si.

- Por ora, isso basta-me - segredou-lhe ele para a boca. Ela envolveu-lhe a cara com as mãos enluvadas.

- Ah, sim?

- Sim. Mas garanto-lhe que tudo farei para a convencer a dar-me uma resposta afirmativa.

Ele desfez-lhe os laços do chapéu e tirou- lho. Uma de cada vez, pegou-lhe nas mãos e descalçou-lhe as luvas. Levou a palma da mão direita dela aos lábios e beijou a pele macia.

Ela pronunciou o nome dele tão baixinho que ele mal o ouviu, metendo-lhe, depois, os dedos pelos cabelos e beijando- o na boca. Ele apertou-a contra si e sentiu-a ceder, vibrante e inquieta, à medida que a paixão se acendia. Ela aninhou-se nele, enchendo-o de grande e intenso desejo.

Ele estendeu-se no banco de pedra e puxou-a para cima dele, levantando-lhe as saias, pondo à vista as ligas que lhe prendiam as meias. Ela desfez-lhe o laço e começou a desapertar-lhe a camisa. Quando ela lhe espalmou as mãos no peito nu, ele soltou um profundo suspiro.

- Adoro senti-lo - disse ela, inclinando a cabeça e beijando-lhe o ombro. - É revigorante tocá-lo, Tobias March.

- Lavinia!

Ele tirou-lhe os ganchos do cabelo e ouviu-os cair no chão de pedra. Ela cobria-o de beijos, fazendo-o pensar que, se dispusesse de pena e de tinta, podia escrever um poema.

Quando conseguiu desapertar as calças, ela tremia toda nos braços dele. Quando ele a baixou meigamente do banco e a deitou no chão, ela envolveu-o com as pernas elegantes. A ele já não lhe apetecia escrever poesia. Não havia, concluiu ele, nenhuma maneira de pôr em palavras experiência tão arrebatadora como aquela.

Ela apertou-se languidamente contra ele, erguendo um pouco a cabeça.

- Era isto o que queria dizer, ao falar em fazer tudo para me convencer a dar-lhe uma resposta afirmativa à sua sugestão de uma futura sociedade?

- Hum, sim - disse ele, as mãos mergulhadas no fogo desgrenhado do cabelo dela. - Acha que apresentei um argumento convincente?

Ela sorriu e ele viu-se de súbito imerso no sedutor e profundo oceano dos olhos dela.

- O argumento que apresentou foi muito convincente. Como lhe disse, vou pensar bem no assunto.

 

Lavinia observou a sua imagem no espelho de provas com um olhar crítico.

- Não acha o decote muito ousado?

Madame Francesca franziu a testa.

- O decote está perfeito. Foi desenhado de forma a vislumbrar-se o peito.

- Um vislumbre muito grande.

- Tolice. É, apenas, uma discreta sugestão. - Madame Francesca tocou na fita que ornava o corpete. - Como o peito da senhora não é muito grande, desenhei o vestido de forma a levantar dúvidas, não para as esclarecer.

Lavinia brincou, duvidosa, com o medalhão de prata.

- Se tem a certeza.

- A certeza absoluta, minha senhora. Tem de confiar em mim, nestas questões - Madame Francesca franziu o sobrolho para a costureira de joelhos no chão aos pés de Lavinia. - Não, não, não, Molly. Não prestaste atenção ao desenho. É só uma barra de flores na orla do vestido, não duas. Duas era um exagero, para Mrs. Lake. Demasiado pesado. A senhora não é alta, como vês.

- Sim, minha senhora - balbuciou Molly, a boca cheia de alfinetes.

- Vai lá buscar o meu caderno dos esboços - ordenou Madame Francesca. - Para veres de novo o meu desenho.

Molly pôs-se de pé e saiu a correr.

Lavinia mirou-se ao espelho.

- Sou muito baixa e o meu peito não é muito grande. Na verdade, Madame Francesca, fico admirada como se dispõe a perder o seu tempo comigo.

- Faço-o para agradar a Mrs. Dove, claro. - Madame Francesca, num gesto dramático, levou a mão ao peito generoso. - Ela é uma das minhas melhores clientes. Faço tudo o que posso para lhe agradar acrescentou, pestanejando. - Além disso, a senhora é um desafio à minha perícia, Mrs. Lake.

Molly voltou à sala de provas, trazendo o grosso caderno. Madame Francesca tirou-lho das mãos, abriu-o e começou a folhear as páginas. Lavinia vislumbrou um vestido verde que lhe era familiar.

- Espere. Aquele era o vestido que desenhou para Mrs. Dove levar ao baile de noivado da filha, não era?

- Este? - Madame Francesca fez uma pausa para admirar o desenho. - Sim. Um vestido amoroso, não é?

Lavinia examinou-o atentamente.

- São duas barras de rosas, não três. O desenho foi emendado. Retirou uma das barras de rosas, não foi? Vê-se que foi apagada.

Madame Francesca soltou um suspiro.

- Continuo convencida de que Mrs. Dove, com a sua altura elegante, suportava bem as três barras. Ela, porém, insistiu em que retirássemos uma das barras. O que é que podemos fazer, quando uma cliente tão importante faz finca-pé? Temos de nos submeter.

Uma onda de excitação e de horror submergiu Lavinia.

- Dispa-me este vestido depressa, por favor, Madame Francesca. Tenho de ir falar com uma pessoa imediatamente.

- Mas, Mrs. Lake, ainda não acabámos a prova.

- Tire-me este vestido - Lavinia esforçava-se com as presilhas do corpete. - Volto depois para a prova. Arranja-me um pedaço de papel e uma pena, por favor? Tenho de mandar uma mensagem a. ao meu sócio.

Estava outra vez a chover. Não havia carruagens livres. Levou cerca de quarenta minutos a chegar a Half Crescent Lane.

Lavinia parou à porta de Mrs. Vaughn e levantou a argola. Tinha de certificar-se, pensou, batendo com força. Não podiam cometer mais erros. Antes de ela e Tobias colocarem uma pedra sobre aquele traiçoeiro caso, tinha de falar com a única pessoa que estivera sempre com a razão.

Pareceu-lhe uma eternidade, até a parcialmente surda governanta lhe abrir a porta e olhar para ela com o olhar vesgo.

- Sim?

- Mrs. Vaughn está? Tenho de falar com ela imediatamente. É um assunto muito importante.

A governanta ergueu uma mão.

- Tem de pagar a entrada - disse ela em alta voz.

Lavinia resmungou e remexeu na bolsa. Encontrou umas moedas e largou-as na palma da mão endurecida pelo trabalho.

- Aí tem. Diga, a Mrs. Vaughn, por favor, que está cá Lavinia Lake.

- Vou conduzi-la à galeria - A governanta abriu o caminho pelo escuro corredor, cacarejando toda contente. - Mrs. Vaughn vem já.

A governanta parou diante da porta da galeria e abriu-a, com um pequeno floreado. Lavinia entrou rapidamente na sala obscura. A porta fechou-se atrás dela. Ouviu outro cacarejar abafado no corredor e, depois, ficou tudo em silêncio.

Lavinia hesitou, permitindo aos olhos habituarem-se à fraca luz. Percorreu-a uma ligeira inquietação. Lembrou-se que era a mesma perturbadora sensação que experimentara da outra vez. Olhou em redor, esperando que a pulsação voltasse ao ritmo normal.

A sala parecia na mesma, como quando a visitara com Tobias. As lúgubres e realistas esculturas em cera rodeavam-na, imóveis nas variadas poses. Passou pelo homem sentado com o copo na mão e olhou para o piano.

Havia uma figura sentada no banco, olhando atentamente para a pauta de música, as mãos sobre as teclas, mas era um homem, com umas calças fora de moda. Era uma escultura, pensou Lavinia, e não Mrs. Vaughn, imitando uma das suas criações. A artista gostava, acaso, de variar as suas brincadeiras.

- Mrs. Vaughn? - Lavinia avançou entre as figuras, examinando- lhes as caras. - Onde é que está? Eu sei que gosta de pregar partidas e fá-lo muito bem, mas, infelizmente, eu não tenho tempo para brincadeiras. Preciso de falar consigo outra vez, para lhe pedir uma opinião de carácter profissional.

Nenhuma das figuras falou ou se mexeu.

- É muito urgente, Mrs. Vaughn - continuou Lavinia. - É um caso de vida ou de morte.

Olhou para uma escultura em pé, em frente da lareira. Outra escultura nova, pensou Lavinia, não se recordando de a ter visto na visita anterior. A escultura era a de uma mulher com um avental de governanta e uma enorme touca, cujas pregas lhe ocultavam o perfil. Estava um pouco inclinada para a frente, com o atiçador de ferro na mão, como se estivesse a remexer nas brasas mortas da lareira apagada.

Não era Mrs. Vaughn, pensou Lavínia. Era mais alta e não tão cheia de ancas.

- Por favor, Mrs. Vaughn, apareça, se está aqui. Eu não posso perder tempo - Lavinia rodeou o sofá e estacou subitamente, ao ver uma figura estendida no chão, a cara voltada para o tapete. - Meu Deus!

O acentuado tremor das pernas disse-lhe logo que não era uma escultura de cera que tombara. Um horror terrível roubou-lhe o fôlego.

- Mrs. Vaughn!

Pôs-se de joelhos, descalçou a luva e levou os dedos ao pescoço de Mrs. Vaughn. Uma sensação de alívio percorreu-a, quando sentiu um pulsar de vida.

Mrs. Vaughn estava viva, mas inconsciente. Lavinia pôs-se em pé de um salto, na intenção de correr para a porta e pedir ajuda. O olhar pousou na escultura da governanta inclinada para a lareira. A boca de Lavinia ficou seca.

Havia lama nos sapatos da figura.

Por momentos, Lavinia não conseguiu respirar. O único caminho para sair da comprida e estreita sala obrigava-a a passar ao alcance de um golpe do atiçador de ferro. Gritar não ia servir de nada, dado que a verdadeira governanta era meia surda. A sua única esperança era que Tobias tivesse recebido a sua mensagem e chegasse depressa. Entretanto, tinha de distrair a assassina.

- Vejo que chegou cá antes de mim - disse Lavinia calmamente. Como é que o conseguiu, Lady Neville?

A figura junto da lareira mexeu-se e endireitou-se num súbito movimento. Constance, Lady Neville, voltou a cara para ela, erguendo o pesado atiçador. Sorrindo.

- Eu não sou estúpida. Eu sabia que era potencialmente um grande problema, Mrs. Lake. E pus um homem a vigiá-la - Constance moveu-se, bloqueando a passagem para a porta. - Ele interceptou o garoto que mandou à procura de Mr. March. Deu dinheiro ao miúdo para lhe entregar a mensagem e trouxe-ma. Não se iluda com falsas esperanças, Mrs. Lake. Não espere nenhum auxílio.

Lavinia fora recuando, procurando colocar o sofá entre as duas. Levou a mão ao medalhão que trazia ao pescoço.

- É a senhora a artista, não é? Eu vi as suas figuras na galeria de Huggett. São muito incomuns.

- Incomuns? - Constance parecia ofendida. - Não percebe nada de arte. O meu trabalho é brilhante.

Lavinia esforçava-se com o medalhão. Finalmente, ficou-lhe liberto na mão. Ergueu-o em frente de Constance, permitindo que a prata brilhante reflectisse a débil luz da sala obscura.

- Brilhante como o meu medalhão, quer a senhora dizer? - perguntou Lavinia, num tranquilo e sedutor tom de voz. - É bonito, não é? Veja como brilha. Tão brilhante. Tão brilhante. Tão brilhante.

Constance riu-se.

- Acha que pode resgatar a sua vida com esse medalhão? Eu sou uma mulher muito rica, Mrs. Lake. Tenho gavetas cheias de jóias muito mais valiosas. Não quero o seu medalhão para nada.

- É muito brilhante, não acha? - Lavinia fazia o medalhão balou çar, lentamente. O medalhão brilhava e lançava chispas de luz, ao mover- se de um lado para o outro, num arco. - Foi a minha mãe que mo deu. Tão brilhante.

Constance pestanejou.

- Já lhe disse, não me interessam nada essas jóias baratas.

- Como eu dizia, as suas esculturas são muito incomuns, mas falta-lhes a aparência de vida que Mrs. Vaughn imprime às dela.

- Que estupidez! O que é que percebe disso? - A raiva assomou ao rosto elegante de Constance. Olhou de relance para o medalhão e franziu a testa, como se os reflexos de luz que se soltavam dele a irritassem. - Os meus trabalhos em cera são muito superiores a estas esculturas mundanas. Ao contrário de Mrs. Vaughn, não tenho medo de fixar nas minhas obras as mais obscuras e mais extraordinárias paixões.

- Enviou aquela ameaça de morte a Mrs. Dove, não enviou? Apercebi- me disso, esta tarde, quando vi o desenho da modista da versão original do vestido verde. A senhora baseou a figura do seu quadrinho em cera no desenho antes de ele ter sido alterado, não no próprio vestido. Como cliente de Madame Francesca, teve oportunidade de observar o desenho. Mas não chegou a ver a versão final, pois não foi convidada para o baile. Se a tivesse visto, saberia que o vestido só tinha duas barras de rosas na orla, e não três.

- Isso não interessa. Ela é uma prostituta, como as outras amantes dele. Vai morrer, também.

Constance aproximou-se dela.

Lavinia conteve a respiração, mas manteve o medalhão em movimento, não alterando a amplitude do arco.

- Foi a senhora que se encarregou do envenenamento de Fielding Dove, não foi? - perguntou Lavinia no seu tom manso, sedutor.

Constance olhou para o medalhão e, depois, afastou os olhos dele. Como se não o pudesse evitar, olhou para ele outra vez, seguindo-o com o olhar.

- Eu planeei tudo, todos os pormenores. Fi-lo por Wesley, compreende. Fiz tudo por ele. Ele precisava de mim.

- Mas Neville nunca apreciou verdadeiramente a sua inteligência e a sua lealdade, pois não? Tinha-a por garantida. Casou consigo pelo dinheiro e voltou-se logo para outras mulheres.

- As mulheres que ele utilizava como recipientes da sua luxúria não tinham importância. O importante é que Wesley precisava de mim. Ele sabia isso. Nós éramos sócios.

Lavinia pestanejou e quase perdeu o ritmo do balouçar do medalhão. Concentra-te, a tua vida depende disso, disse para consigo.

- Estou a perceber. O medalhão continuava a descrever o arco:

- Eram sócios, mas a senhora era a inteligência.

- Sim, sim. Fui eu que me apercebi de que Fielding Dove andava a investigar as actividades de Wesley durante a guerra. Vi que Dove estava a ficar velho e fraco e percebi que era altura de agir. Uma vez morto Dove, Wesley podia viver tranquilo. Havia só uns nós a desatar. Fui sempre eu quem tratou desse género de coisas por ele.

- Quantas amantes dele é que matou?

- Há dois anos tomei consciência da necessidade de me desfazer dessas reles prostitutas. - Constance tinha os olhos fixos no medalhão.

- E comecei a procurar-lhes o paradeiro. Mas não foi fácil. Tratei da saúde a cinco delas.

- E modelou aquelas estátuas da galeria de Huggett para celebrar os seus êxitos como assassina, não foi?

- Eu tinha de mostrar ao mundo a verdade a respeito daquelas mulheres. Empreguei o meu talento para demonstrar que, no fundo, só existe dor e angústia para as mulheres que se tornam prostitutas. Não existe paixão, nem poesia, nem prazer para elas. Apenas dor.

- Mas a última escapou, não escapou? - perguntou Lavinia. Como é que isso aconteceu? Cometeu algum erro?

- Eu não cometo erros - berrou Constance. - Uma parva de uma mulher da linpeza deixou um balde de água suja junto à porta. Eu escorreguei e caí e a prostituta fugiu. Mas vou agarrá-la, mais cedo ou mais tarde.

- Quem é o modelo do homem das suas esculturas, Constance?perguntou Lavinia mansamente.

Constance pareceu confundida.

- O homem?

Lavinia continuava a balouçar o medalhão.

- A cara do homem em todas as esculturas é a mesma. Quem é ele, Constance?

- É o meu pai - disse Constance, lançando o atiçador ao medalhão, como se o quisesse fazer desaparecer. - O meu pai é o homem que faz sofrer as prostitutas - disse ela, roçando o medalhão com a ponta do atiçador. - Ele fez-me sofrer, compreende? Ele fez-me sofrer tanto!

Lavinia teve de evitar o atiçador duas vezes. Aquilo não estava a correr bem. Conseguiu manter o balouçar do medalhão, mas sabia que era altura de mudar de assunto.

- As coisas corriam bem até Holton Félix se apossar do diário do criado e começar a enviar as mensagens de chantagem, não foi?

- Félix soube pelo diário que Wesley era um dos membros do Clube Azul. - Constance estava agora mais calma, o olhar fixo no medalhão. - Tive de o matar. Foi bastante fácil. Ele era um parvo. Descobri onde morava passados uns dias depois de receber a primeira nota.

- Matou-o e levou o diário.

- Fi-lo para proteger Wesley. Fiz tudo por ele.

Sem aviso, Constance lançou o atiçador num golpe vicioso. Lavinia atirou-se para trás, mal escapando à pancada. A ponta curvada da haste de ferro enterrou-se na cabeça de uma figura de cera. A escultura caiu para o tapete, a cabeça desfeita.

Lavinia colocou-se rapidamente atrás da figura da mulher tímida com um leque na mão, mantendo-a entre ela e Constance, mas estendendo o braço para o lado e tornando a fazer balouçar o medalhão.

Constance olhava para a prata relampejante claramente irritada. Fugia com o olhar, mas os olhos tornavam a fixar-se-lhe no medalhão uma e outra vez. Não estava em transe perfeito, Lavinia sabia-o, mas o medalhão confundia-a.

- Só quando leu o diário é que descobriu que Mrs. Dove e o seu marido tinham sido amantes, não foi? Isso mudava tudo, no que lhe dizia respeito. Podia ignorar as outras mulheres, mas não lhe podia perdoar, a ele, aquela aventura.

- As outras não interessavam - Constance avançou para ela, a cara contorcida. - Eram reles prostitutas. Ele tirava-as dos bordéis, divertia-se com elas uns tempos e, depois, largava-as. Mas joan Dove era diferente.

- Porque era casada com o chefe do Clube Azul?

- Sim. Ela não é como as outras. É rica e poderosa e sabe tudo o que Azure sabia. Quando li o diário, percebi logo que Wesley não precisaria de mim, quando assumisse a posição de Azure, como chefe do Clube Azul.

- Pensou que ele quereria Joan?

- Ela podia dar-lhe tudo o que era de Azure, não é verdade? Os contactos, as ligações, os pormenores das operações financeiras e o próprio Clube Azul. - A voz de Constance subiu para um agudo gemido de desespero. - O que é que eu lhe podia oferecer em troca? Além disso, em tempos, Wesley entregara-se a ela como nunca se entregara á mim.

- Por isso, decidiu que ela também tinha de morrer.

- Se ele a tivesse, já não ia precisar de mim, pois não? Constance lançou de novo o atiçador, mas, desta vez, pareceu alvejar o medalhão balouçante. Lavinia empurrou a escultura da mulher com o leque. O ferro embateu nela, esmagando-lhe a cabeça, e a figura caiu para o chão.

- Mas eu queria que ela sofresse, como me fez sofrer a mimdisse Constance baixinho, os olhos seguindo o medalhão. - Por isso lhe mandei a cena da sua morte em cera. Queria que ela a visse. Queria que ela experimentasse medo.

Arrancou o atiçador da cabeça de cera e ergueu-o de novo em posição de desfechar um golpe. Pareceu a Lavinia, contudo, que o movimento fora, agora, mais lento.

- Por que é que matou o seu marido? - perguntou Lavínia, recuando lentamente, uma mão atrás, procurando agarrar algum objecto.

- Não tinha alternativa. Ele dera cabo de tudo - Constance agarrou o ferro com as duas mãos. - Homem estúpido. Estúpido, estúpido, estúpido e mentiroso. - O peito dela subia e baixava com a força da respiração agitada. Os olhos saltavam do medalhão para Lavinia e vice-versa. - Tobias March montou-lhe uma cilada e Wesley caiu todo nela. Eu estava em casa quando ele voltou naquela noite, depois de March o ter confrontado. Wesley estava tomado por um ataque de nervos. Mandou o criado fazer-lhe as malas e disse-me que tinha de sair do país.

Os dedos de Lavinia roçaram no piano.

- Percebeu, então, que todo o seu trabalho fora em vão.

- Sim. E fingi que ia ajudá-lo a fugir. Acompanhei-o às docas, onde um homem que ele conhecia prometera encontrar-se com ele e metê-lo num barco. Sugeri a Wesley esperarmos na vivenda.

- E deu-lhe um tiro na cabeça.

- Era o que tinha a fazer. Ele tinha estragado tudo. - A cara de Constance estava desfeita. - Eu queria magoá-lo duramente, como fiz com as prostitutas, mas sabia que aquilo tinha de parecer suicídio. Para iludir March e os outros.

- Tenciona, agora, tornar-se a chefe do Clube Azul.

- Sim, agora serei eu Azure - disse Constance, o olhar fixo no medalhão.

- Claro que vai ser. Brilhante, brilhante, Azure.

De repente, Lavinia atirou o medalhão para a escultura mais próxima. Constance seguiu a prata brilhante com os olhos. Lavinia agarrou no candelabro que estava em cima do piano e atirou-o a Constance. O candelabro acertou na cabeça de Constance que, com um grito de dor, largou o atiçador e caiu de joelhos. Levou as mãos à cabeça e gemeu.

Lavinia passou por cima do corpo inconsciente de Mrs. Vaughn, pôs os pés no sofá e saltou-lhe por cima. Quando pousou no chão, correu para a porta.

A porta abriu-se quando ela agarrou na maçaneta. Tobias apareceu em frente dela, uma expressão ameaçadora na cara.

- Que raio se passa aqui? - disse Tobias, agarrando-a, erguendo-a nos braços e olhando em frente.

Lavinia voltou-se, anichada nos braços dele.

Constance estava ainda de joelhos, agora a soluçar.

- Foi sempre ela, não foi? - perguntou Tobias baixinho.

- Sim. Ela julgava que ela e Neville eram sócios, compreende? Mas acabou por matá-lo, porque achou que ele se preparava para infringir os termos do acordo.

- Ela sabia que ele não a amava, mas julgava que tinham uma relação mais forte, mais profunda - disse Lavinia.

- Uma relação metafísica? - joan ergueu as sobrancelhas numa expressão de elegante desdém. - Com um homem com o carácter de Neville? A pobre mulher estava, realmente, muito iludida.

- Eu não sei se ela encarava a relação entre eles em termos metafísicos - disse Lavinia, pousando a chávena de chá. - Mas duvido. Ela falou de uma associação.

- Rasparta - Tobias, enterrado numa poltrona, lançou-lhe um olhar sombrio. - Por que havia ela de usar essa palavra.

- Ela acreditava que se tinha tornado indispensável para ele e que ele compreendia que precisava dela. - Lavinia descansou as mãos nos braços curvos da cadeira e fixou os olhos de Joan. - Ela considerava-se a inteligência orientadora da associação. Era ela que estabelecia a estratégia e que se encarregava dos obstáculos que iam surgindo.

- Foi ela que envenenou Fielding! - disse Joan, olhando para o chá.

- Como Joan disse, ela era completamente louca - murmurou Lavinia.

- Sim - corroborou Tobias, juntando as pontas dos dedos. - Por isso a família a internou num sanatório particular para loucos. Vai lá ficar encarcerada o resto da vida. E ninguém lhe prestará atenção às manias e às fúrias.

Joan ergueu os olhos do chá.

- Foi ela que matou as amantes que Neville largava e que tentou matar-me no baile dos Colchester?

- Durante anos teve de suportar as aventuras de Neville - disse Lavinia. - Mas considerava que elas nada significavam para ele.

Joan teve um sorriso triste.

- De facto, nada significavam.

- Sim - disse Lavinia. - Acho que Constance se convenceu a si própria que a relação dela com Neville transcendia o desejo que ele sentia pelas outras mulheres. O desejo é uma coisa efémera, no fim de contas. E, acho eu, para ela significava dor. Ela não queria a paixão dele.

Tobias murmurou qualquer coisa ininteligível. Lavinia olhou para ele, mas ele não se dignou repetir o que dissera, pondo-se a olhar para o lume da lareira, uma expressão sombria e enigmática na cara. Lavinia voltou-se de novo para Joan.

- Mas acho que, no fundo - disse Lavinia -, Constance odiava as outras mulheres. Quando concebeu a estratégia de colocar Neville como chefe do Clube Azul, ficou com a desculpa de despachar algumas delas, explicando a Neville que elas eram ameaças potenciais às suas pretensões.

- Neville sabia o que ela andava a fazer - disse Tobias. - Mas isso convinha-lhe e acolheu bem as razões dela. Ele até achava as esculturas divertidas. Recordando o nosso encontro na noite em que o induzi a confessar, vejo, agora, que ele nunca admitiu ser o assassino, reconhecendo apenas que sabia que as mulheres tinham sido assassinadas.

- Ele deixava esse género de coisas para Constance - Lavinia fixou o olhar no lume da lareira. - E ela ficava muito feliz por encarregar-se dos pormenores desagradáveis, por ele. Porém, quando leu o diário e ficou a saber que Joan tivera uma relação com ele, não conseguiu dominar o medo e a raiva.

Joan abanou a cabeça com uma expressão de pesar.

- Aquela mulher é claramente uma lunática.

- Os lunáticos forjam a sua própria lógica - recordou-lhe Lavinia. Mas, resumindo, o facto é que ela chegou à conclusão de que a senhora era uma séria ameaça à relação dela com Neville. Tinha receio de que os dois reatassem a ligação íntima, quando Neville assumisse o controlo do Clube Azul.

Joan encolheu os ombros, delicadamente.

- Como se eu desejasse reatar qualquer tipo de ligação com aquele homem horrível.

- Ela amava-o à sua maneira - disse Lavinia. - Não podia imaginar que a senhora não o quisesse.

Tobias mexeu-se, estendendo a perna esquerda para o lume.

- Na cabeça confusa dela, a senhora era a única das antigas amantes dele que podia afastá-lo dela, porque a senhora podia oferecer a Neville tudo e muito mais do que ela podia.

Joan abanou de novo a cabeça.

- Tudo isso é muito triste.

Lavinia aclarou a voz.

- De facto, é. Quando ela leu a mensagem que enviei a Mr. March, esta tarde, compreendeu que eu continuava a investigar. E conseguiu chegar a casa de Mrs. Vaughn uns minutos antes de mim, porque dispunha de carruagem própria. Eu fui obrigada a ir a pé, por causa da chuva. E, chegada lá, atacou Mrs. Vaughn, pondo-a inconsciente.

- Ainda bem que não matou a artista - disse Joan.

- Mrs. Vaughn disse-me que o seu espesso cabelo e a touca amorteceram a pancada. Caiu para o chão, entontecida, mas teve a presença de espírito de fingir que estava morta. Eu cheguei pouco depois, evi tando o golpe de misericórdia.

Joan olhou para Tobias.

- Como é que conseguiu chegar a casa de Mrs. Vaughn tão a tempo, se não recebeu a mensagem de Lavinia?

Tobias sorriu.

- Mas eu recebi a mensagem. O garoto vendeu primeiro a informação ao espia de Lady Neville, mas, como é astuto, procurou-me, depois de concluído o primeiro negócio. Infelizmente, isso implicou que eu recebesse a informação mùito tarde, mas recebi-a.

- Estou a compreender - Joan levantou-se e ajustou as luvas. Bem, agora é que é o fim do caso. Ainda bem que nada sofreu, Lavinia. E estou profundamente grata por tudo o que a senhora e Mr. March fizeram por mim.

- Não tem de quê - disse Lavinia, pondo-se de pé. Joan sorriu.

- Como lhe disse ontem, sinto-me em dívida para convosco. Se houver alguma coisa que eu possa fazer por qualquer dos dois, espero que não deixem de procurar-me.

- Muito obrigada - disse Lavinia -, mas espero que não venha a precisar do seu auxílio.

- Nem eu - disse Tobias, já de pé e dirigindo-se à porta, para a abrir para Joan sair. - Mas apreciamos ambos a sua simpática oferta.

Os olhos de Joan brilharam de secreta ironia.

- Ficaria muito desapontada se não me incluíssem numa das vossas futuras investigações. Se querem saber, acho-as muito interessantes.

Lavinia ficou de olhos abertos, sem fala. Tobias tão-pouco falou. Joan inclinou a cabeça num elegante gesto de despedida, depois voltou-se, atravessando o hall para a porta de entrada, onde Mrs. Chilton a esperava.

Tobias fechou a porta do estúdio e dirigiu-se para o armário do xerez, enchendo dois cálices. Estendeu um a Lavinia sem comentário e tornou a sentar-se na ampla poltrona.

Durante longo tempo permaneceram calados, a observar as chamas na lareira.

- Na noite em que encontrei a carta de Carlisle que inculpava Neville, considerei-me cheio de sorte - disse, por fim, Tobias. - Mas, depois, ocorreu-me que podia ser uma carta forjada, colocada num sítio onde alguém que procedesse a uma busca rigorosa a pudesse encontrar.

- Só uma pessoa que desejasse destruir Neville faria uma coisa dessas.

- É muito possível que Lady Neville tenha posto lá a carta - disse Tobias.

- Primeiro, Lady Neville queria apenas matar Mrs. Dove. Só pensou em matar o marido quando se tornou óbvio que ele lhe arruinara os planos.

- Havia, porém, mais alguém que sabia que eu pretendia proceder a uma busca em casa de Neville, naquela noite. Alguém que podia, eventualmente, dispor das necessárias ligações criminosas para forjar uma carta e a esconder no quarto de Neville.

Lavinia estremeceu.

- De facto, havia. Houve um silêncio.

- Recorda-se de eu mencionar outros rumores a que se referira Smiling Jack? - perguntou Tobias por fim. - Rumores de uma luta pelo domínio do Clube Azul?

- Lembro-me, sim - Lavinia bebeu um pouco de xerez e pousou o cálice. - Mas acho que a história que o seu amigo Jack lhe contou não passa de mexeriquice de meios mal-afamados.

- E deve ter razão. - Tobias fechou os olhos, recostou a cabeça e, distraidamente, massajou a anca. - Mas imaginemos, como curiosidade, que havia alguma verdade nesses rumores de guerra entre criminosos. Podíamos, então, chegar a uma conclusão muito interessante acerca do desfecho desse conflito.

- De facto. - Lavinia fez uma pequena pausa. - De toda a gente que tinha alguma ligação ao Clube Azul, Joan é a única que resta.

- É isso.

Houve outro prolongado silêncio.

- Ela considera-se em dívida para connosco - disse Tobias calmamente.

- Quer que não deixemos de a procurar, se houver algo que possa fazer por nós.

- E acha que seria interessante participar noutra investigação nossa. As chamas crepitavam na lareira com malévola vivacidade.

- Acho que preciso de outro cálice de xerez - disse Tobias, pouco depois.

- E eu também.

No dia seguinte à tarde, Tobias entrou no estúdio de Lavinia com uma grande mala nos braços.

Lavinia franziu a testa ao ver a mala.

- O que é que traz aí?

- Uma pequena recordação da nossa estada em Itália - disse ele pousando a mala no chão e preparando-se para a abrir. - Há muito que tencionava dar-lhe isto, mas temos andado tão ocupados que me tenho esquecido.

Lavinia levantou-se, rodeou a secretária e aproximou-se, curiosa.

- Algumas das estátuas que eu tive de abandonar, espero.

- Não são estátuas - Tobias levantou a tampa da mala e afastou-se. São outras coisas.

Lavinia apressou-se a espreitar o conteúdo da mala, vendo as filas dos bem arrumados volumes, encadernados a couro. Ficou deleitada. Ajoelhou-se e pôs-se a remexer nos livros.

- Os meus livros de poesia! - disse ela, passando a ponta de um dedo pelas letras gravadas na capa de um deles.

- Eu mandei o meu fiel Whitby lá, no dia seguinte. Não pude ir eu próprio por causa da minha perna. Ele empacotou os seus livros.

Lavinia pôs-se de pé, agarrada a um volume de Byron.

- Não sei como vou poder agradecer-lhe, Tobias.

- Era o mínimo que eu podia fazer, dadas as circunstâncias. Como tantas vezes tem afirmado, tudo o que aconteceu naquela noite foi culpa minha.

Ela riu-se.

- É a absoluta verdade. Apesar disso, estou-lhe muito grata. Ele tomou-lhe a cara nas mãos.

- Eu não quero a sua gratidão. Estou muito mais interessado em discutir a continuação da nossa associação. Chegou a pensar no que lhe sugeri há dias?

- De que devíamos trabalhar juntos em certas investigações? Sim, na verdade pensei bastante nessa questão.

- E qual é a sua opinião acerca do assunto? - perguntou ele.

Ela continuava a agarrar o livro firmemente com as duas mãos.

- A minha opinião é que qualquer futura associação entre nós será marcada por inflamados desacordos e acaloradas discussões, para não falar de imensa frustração.

Ele abanou a cabeça, o olhar sombrio.

- Sinto-me inclinado a concordar. Mas devo confessar que acho os nossos inflamados desacordos e as nossas acaloradas discussões singularmente estimulantes.

Ela sorriu e pôs o livro em cima da secretária. Os olhos dela não largaram os dele, enquanto lhe envolvia o pescoço com os braços.

- Também eu - segredou ela. - E a frustração que mencionei?

- Ah, sim, a frustração. Felizmente, existe um remédio para isso - disse ele, passando um polegar pelos lábios dela. - A cura é temporária, mas o remédio pode ser aplicado tão repetidamente quanto necessário.

Ela pôs-se a rir.

Ele beijou-a até ela parar de rir. E, depois, continuou a beijá-la.

 

 

                                                                  Amanda Quick

 

 

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