Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RELATO DE UM NÁUFRAGO / Gabriel Garcia Márquez
RELATO DE UM NÁUFRAGO / Gabriel Garcia Márquez

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A 28 de Fevereiro de 1955 foi dada a notícia de que oito membros da tripulação do contratorpedeiro Caldas, da Marinha de Guerra da Colômbia, tinham caído à água e desaparecido por causa de uma tempestade no mar das Caraíbas. O navio viajava de Mobile, Estados Unidos, onde tinha sido submetido a reparações, para o porto colombiano de Cartagena, onde chegou sem atraso duas horas depois da tragédia. A procura dos náufragos foi imediatamente iniciada, com a colaboração das forças norte-americanas do canal do Panamá, que exercem funções de controlo militar e se dedicam a outras obras de caridade no Sul das Caraíbas. Ao fim de quatro dias desistiu-se da busca, e os marinheiros perdidos foram declarados oficialmente mortos. Uma semana mais tarde, porém, um deles apareceu moribundo numa praia deserta do Norte da Colômbia, depois de permanecer dez dias sem comer nem beber numa balsa à deriva. Chamava-se Luis Alejandro Velasco. Este livro é a reconstrução jornalística do que ele me contou, tal como foi publicada um mês depois do desastre pelo diário El Espectador de Bogotá.

O que não sabíamos, nem o náufrago nem eu, quando procurávamos reconstruir minuto a minuto a sua aventura, era que aquela pesquisa esgotante nos haveria de conduzir a uma nova aventura que causou uma certa agitação no país, que a ele lhe custou a sua glória e a sua carreira e que a mim podia ter-me custado a pele. A Colômbia estava então sob a ditadura militar e folclórica do general Gustavo Rojas Pinilla, cujas duas façanhas mais célebres foram uma matança de estudantes no centro da capital, quando o exército desbaratou aos tiros uma manifestação pacífica, e o assassínio pela polícia secreta de um número nunca estabelecido de aficionados dominicais, que assobiavam à filha do ditador na praça de touros. A imprensa era censurada e o problema diário dos jornais da oposição era encontrar assuntos sem germes políticos para entreter os leitores. Em El Espectador, os encarregados deste honorável trabalho de padaria eram Guillermo Cano, director, José Salgar, chefe de redacção, e eu, repórter de serviço. Nenhum de nós tinha mais de trinta anos. Quando Luís Alejandro Velasco chegou pelos seus próprios pés para nos perguntar quanto é que lhe pagávamos pela sua história, recebemo-lo como aquilo que era: uma notícia mais que ultrapassada. As Forças Armadas tinham-no sequestrado várias semanas num hospital naval, e só tinha podido falar com os jornalistas do regime e com um da oposição que se tinha disfarçado de médico. A história tinha sido muitas vezes contada aos bocados, fora manipulada e pervertida, e os leitores pareciam estar fartos de um herói que se alugava para anunciar relógios, porque o dele não se atrasara na intempérie; que aparecia em anúncios de sapatos, porque os dele eram tão fortes que não os conseguira desmanchar para os comer, e em muitas outras porcarias de publicidade. Tinha sido condecorado, tinha feito discursos patrióticos pela rádio, tinham-no mostrado na televisão como exemplo para as gerações futuras, e tinham-no passeado entre flores e música por meio país para que assinasse autógrafos e as rainhas de beleza o beijassem. Arrecadara uma pequena fortuna. Se vinha ter connosco sem que o chamássemos, depois de o termos procurado tanto, era previsível que já não tivesse muito que contar, que seria capaz de inventar qualquer coisa por dinheiro, e que o governo lhe tinha assinalado muito bem os limites da sua declaração. Mandámo-lo pelo mesmo caminho por onde viera. De repente, sob o impulso de um pressentimento, Guillermo Cano apanhou-o nas escadas, aceitou o trato e pôs-mo nas mãos. Foi como se me tivesse dado uma bomba-relógio.

A minha surpresa foi constatar que aquele rapaz de vinte anos, maciço, mais com cara de trompetista que de herói da pátria, tinha um instinto excepcional da arte de narrar, uma capacidade de síntese e uma memória espantosas, e dignidade genuína suficiente para se rir do seu próprio heroísmo. Em vinte sessões de seis horas diárias, durante as quais eu tomava notas e atirava perguntas ardilosas para detectar as suas contradições, conseguimos reconstruir o relato compacto e verídico dos seus dez dias no mar. Era tão minucioso e apaixonante, que o meu único problema literário seria conseguir que o leitor acreditasse nele. Não foi só por isso, mas também por nos parecer justo, que concordámos escrevê-lo na primeira pessoa e assinado por ele. Esta é, na realidade, a primeira vez que o meu nome aparece vinculado a este texto.

A segunda surpresa, que foi a melhor, tive-a no quarto dia de trabalho, quando pedi a Luis Alejandro Velasco que me descrevesse a tempestade que provocou o desastre. Consciente de que a declaração valia o seu peso em ouro, replicou-me com um sorriso: «Não houve tempestade nenhuma.» Assim era: os serviços meteorológicos confirmaram-nos que aquele tinha sido mais um dos Fevereiros mansos e diáfanos das Caraíbas. A verdade, nunca publicada até então, era que o navio dera um grande balanço por causa do vento no mar forte, a carga mal estivada no convés soltara-se, e os oito marinheiros tinham caído ao mar. Essa revelação implicava três faltas gravíssimas: primeiro, era proibido transportar carga num contratorpedeiro; segundo, foi por causa do excesso de peso que o navio não pôde manobrar para salvar os náufragos; e terceiro, era carga de contrabando: frigoríficos, televisores, máquinas de lavar. Era evidente que o relato, tal como o contratorpedeiro, levava também mal-amarrada uma carga política e moral que não tínhamos previsto.

A história, dividida em episódios, foi publicada em catorze dias consecutivos. O próprio governo festejou a princípio a consagração literária do seu herói. Depois, quando a verdade foi publicada, teria sido uma argolada política impedir que a série continuasse: a circulação do jornal subira quase para o dobro, e havia em frente do edifício um grupo de leitores à disputa que compravam os números atrasados para ficarem com a colecção completa. A ditadura, de acordo com uma tradição muito própria dos governos colombianos, conformou-se com remendar a verdade com a retórica: desmentiu num comunicado solene que o contratorpedeiro levasse mercadoria de contrabando. Procurando uma forma de fundamentarmos as nossas acusações, pedimos a Luis Alejandro Velasco a lista dos seus camaradas de tripulação que tivessem máquinas fotográficas. Apesar de muitos passarem férias em diferentes locais do país, conseguimos encontrá-los para comprar as fotografias que eles tinham tirado durante a viagem. Uma semana depois de publicado em episódios, apareceu o relato integral num suplemento especial, ilustrado com as fotografias compradas aos marinheiros. Ao fundo dos grupos de amigos no alto-mar, via-se, sem a menor possibilidade de equívoco, inclusivamente com as suas marcas de fábrica, as caixas de mercadoria de contrabando. A ditadura acusou o toque com uma série de represálias drásticas que haveriam de culminar, meses depois, no encerramento do jornal.

Apesar das pressões, das ameaças e das mais sedutoras tentativas de suborno, Luis Alejandro Velasco não desmentiu uma linha do relato. Teve de abandonar a Marinha, que era o único trabalho que sabia fazer, e mergulhou no esquecimento da vida vulgar. Menos de dois anos depois a ditadura caiu e a Colômbia ficou à mercê de outros regimes mais bem vestidos, mas não muito mais justos, enquanto eu iniciava em Paris este exílio errante e um pouco nostálgico que tanto se parece também com uma balsa à deriva. Ninguém voltou a saber nada do náufrago solitário, até há uns poucos meses quando um jornalista extraviado o encontrou por detrás de uma secretária numa empresa de autocarros. Eu vi a fotografia: aumentou de peso e de idade e nota-se que a vida lhe passou por dentro, mas que lhe deixou a aura serena do herói que teve a coragem de dinamitar a sua própria estátua.

Há quinze anos que eu não tinha voltado a ler este relato. Parece-me bastante digno de ser publicado, mas não consigo compreender a utilidade da sua publicação. Se se imprime agora em forma de livro é porque eu disse sim sem pensar muito bem, e não sou um homem de duas palavras. Deprime-me a ideia de que aos editores não lhes interesse tanto o mérito do texto como o nome com que está assinado, que por muito que eu não goste é o mesmo de um escritor na moda. Felizmente, há livros que não são de quem os escreve, mas de quem os sofre, e este é um deles.

 

 

 

 

COMO ERAM OS MEUS CAMARADAS QUE MORRERAM NO MAR

A 22 de Fevereiro, anunciaram-nos que regressaríamos à Colômbia. Estávamos há oito meses em Mobile, Alabama, Estados Unidos, onde o A.R.C. Caldas fora submetido a reparações electrónicas e do seu armamento. Enquanto reparavam o navio, nós, os membros da tripulação, recebíamos uma instrução especial. Nos dias de folga fazíamos o que fazem todos os marinheiros em terra: íamos ao cinema com a namorada e juntávamo-nos depois no Joe Palooka, uma taberna do porto, onde bebíamos whisky e armávamos uma bronca de vez em quando.

A minha namorada chamava-se Mary Address, conheci-a dois meses depois de estar em Mobile, por intermédio da namorada de outro marinheiro. Embora ela tivesse uma grande facilidade em aprender castelhano, penso que Mary Address nunca soube porque é que os meus amigos lhe chamavam «Maria Direcção». Sempre que eu vinha folga convidava-a a ir ao cinema, embora ela preferisse que a convidasse a ir comer gelados. Entendíamo-nos no meu meio inglês e no seu meio espanhol, mas entendíamo-nos sempre, no cinema ou a comer gelados.

Só uma vez é que não fui ao cinema com Mary: na noite em que vimos Os Revoltados do «Caine». Tinham dito a um grupo dos meus camaradas que era um bom filme sobre a vida num draga-minas.

Por isso é que o fomos ver. Mas o melhor do filme não era o draga-minas, mas sim a tempestade. Todos concordámos em que o indicado num caso como o dessa tempestade era modificar o rumo do barco, como fizeram os amotinados. Mas nem eu nem nenhum dos meus camaradas alguma vez estivéramos numa tempestade como aquela, de maneira que nada no filme nos impressionou tanto como a tempestade. Quando voltámos para dormir, o marinheiro Diego Velásquez, que estava muito impressionado com o filme, pensando que daí a poucos dias estaríamos no mar, disse-nos: «Então e se nos acontecesse uma coisa como aquela?»

Confesso que eu também estava impressionado. Em oito meses tinha perdido o hábito do mar. Não sentia medo, pois o instrutor tinha-nos ensinado a defendermo-nos num naufrágio. No entanto, não era normal a inquietação que eu sentia naquela noite em que vimos Os Revoltados do «Caine».

Não quero dizer que começasse a pressentir a catástrofe a pari ir desse instante. Mas a verdade é que nunca tinha sentido tanto medo face à proximidade de uma viagem. Em Bogotá, quando era criança e via as ilustrações dos livros, nunca me ocorrera que alguém pudesse encontrar a morte no mar. Pelo contrário, pensava nele com muita confiança. E desde que ingressara na Marinha, há quase doze anos, nunca sentira qualquer perturbação durante as viagens.

Mas não me envergonho de confessar que senti qualquer coisa muito parecida com o medo depois de ter visto Os Revoltados do «Caine». Deitado de barriga para cima no meu beliche - o mais alio de todos - pensava na minha família e na travessia que tínhamos de efectuar antes de chegarmos a Cartagena. Não conseguia adormecer. Com a cabeça apoiada nas mãos ouvia o suave bater da água contra o cais, e a respiração tranquila dos quarenta marinheiros que dormiam na mesma coberta. Debaixo do meu boliche, o primeiro-marinheiro, Luís Rcngilo, ressonava como um trombone. Não sei o que é que ele sonhava, mas certamente que não teria conseguido dormir tão descansado se soubesse que oito dias depois estaria morto no fundo do mar.

A inquietação durou-me toda a semana. Aproximava-se o dia da viagem com alarmante rapidez e eu procurava infundir segurança a mim próprio através da conversa com os meus camaradas. O A.R.C. Caldas estava pronto para partir. Durante esses dias falava-se com mais insistência das nossas famílias, da Colômbia e dos nossos projectos para o regresso. Pouco a pouco ia-se carregando o navio com ofertas que trazíamos para as nossas casas: rádios, frigoríficos, máquinas de lavar e fogões, especialmente. Eu trazia um rádio.

Perante a proximidade da data de partida, sem conseguir libertar-me das minhas preocupações, tomei uma decisão: assim que chegasse a Cartagena abandonaria a Marinha. Não voltaria a submeter-me aos riscos da navegação. Na noite antes de partir fui despedir-me de Mary, a quem pensei comunicar os meus receios e a minha decisão. Mas não o fiz, porque lhe prometi voltar e ela não teria acreditado em mim se lhe tivesse dito que estava disposto a nunca mais navegar. A única pessoa a quem comuniquei a minha decisão foi ao meu amigo íntimo, o segundo-marinheiro Kamón Herrera, que me confessou que também tinha decidido abandonar a Marinha assim que chegasse a Cartagena. Partilhando os nossos receios, Ramón Herrera e eu fomos com o marinheiro Diego Velásquez beber um whisky de despedida ao Joe Palooka.

Pensávamos beber um whisky, mas bebemos cinco garrafas. As nossas amigas de quase todas as noites sabiam da nossa viagem c decidiram despedir-se, embebedar-se e chorar como prova de gratidão. O director da orquestra, um homem sério, com uns óculos que não lhe permitiam parecer um músico, tocou em nossa honra um programa de mambos e tangos, julgando que era música colombiana. As nossas amigas choraram e beberam whisky de dólar e meio a garrafa.

Como naquela última semana nos tinham pago três vezes, nós resolvemos não olhar a gastos. Eu, porque estava preocupado e queria embebedar-me. Ramón Herrera porque estava alegre, como sempre, porque era de Arjona e sabia tocar tambor e tinha uma habilidade singular para imitar todos os cantores da moda.

Um pouco antes de nos retirarmos, um marinheiro norte-americano aproximou-se da mesa e pediu licença a Ramón Herrera para dançar com o seu par, uma loira enorme, que era a que menos bebia e a que mais chorava - sinceramente! O norte-americano pediu licença em inglês e Ramón Herrera deu-lhe um encontrão, dizendo em espanhol: «Não percebo a ponta dum como!»

Foi uma das melhores broncas de Mobile, com cadeiras partidas na cabeça, rádio-patrulhas e polícias. Ramón Herrera, que conseguiu assentar duas cachaçadas ao norte-americano, regressou ao barco à uma da madrugada, a imitar Daniel Santos. Disse que era a última vez que embarcava. E, na verdade, foi a última.

Às três da madrugada de 24 de Fevereiro o A.RC. Caldas zarpou do porto de Mobile, rumo a Cartagena. Todos sentíamos a felicidade de regressar a casa. Todos trazíamos prendas. O cabo Miguel Ortega, artilheiro, parecia o mais alegre de todos. Penso que nunca nenhum marinheiro foi mais sensato que o cabo Miguel Ortega. Durante os seus oito meses em Mobile não esbanjou um dólar. Todo o dinheiro que recebeu investiu-o em presentes para a sua mulher, que o esperava em Cartagena. Nessa madrugada, quando embarcámos, o cabo Miguel Ortega estava na ponte, precisamente a falar da mulher e dos filhos, e não era por acaso, pois nunca falava de outra coisa. Trazia um frigorífico, uma máquina de lavar roupa automática, um rádio e um fogão.

Doze horas depois o cabo Miguel Ortega estaria deitado no seu beliche a morrer de enjoo. E setenta e duas horas depois estaria morto no fundo do mar.

Os Convidados da Morte

Quando um navio zarpa dá-se a ordem: «Pessoal aos seus postos de faina.» Cada um permanece no seu posto até o navio sair do porto. Silencioso no meu posto, em frente da torre dos torpedos, que via perderem-se no nevoeiro as luzes de Mobile, mas não pensava em Mary. Pensava no mar. Sabia que no dia seguinte estaríamos no golfo do México e que nesta altura do ano era uma rota perigosa. Antes do amanhecer não vi o primeiro-tenente Jaime Martínez Diago, segundo-oficial de operações, que foi o único oficial a morrer na catástrofe. Era um homem alto, corpulento e silencioso, que eu vira muito poucas vezes. Sabia que era natural de Tolima e uma excelente pessoa.

Em contrapartida, nessa madrugada vi o primeiro-sargento Júlio Amador Caraballo, segundo-contramestre, alto e bem constituído, que passou perto de mim, contemplou por um instante as ultimas luzes de Mobile e dirigiu-se ao seu posto. Acho que foi a última vez que o vi no navio.

Nenhum dos tripulantes do Caldas manifestava com mais estrépito a sua alegria por regressar que o sargento Elias Sabogal, chefe de máquinas. Era um lobo do mar. Pequeno, de pele curtida, robusto e conversador. Tinha cerca de quarenta anos e penso que passou a maior parte deles a conversar.

O sargento Sabogal tinha motivos para estar mais contente que ninguém. Em Cartagena esperavam-no a mulher e os seus seis filhos. Mas só conhecia cinco: o mais novo tinha nascido enquanto nos encontrávamos um Mobile.

Até ao amanhecer a viagem foi perfeitamente calma. Numa hora tinha-me acostumado novamente à navegação. As luzes de Mobile perdiam-se na distância por entre a neblina de um dia tranquilo, e a oriente via-se o Sol, que começava a erguer-se. Agora não me sentia inquieto, mas sim cansado. Não tinha dormido em toda a noite. Tinha sede. E uma má recordação do whisky.

Às seis da manhã saímos do porto. Então foi dada a ordem: «Volta à faina. Pessoal de quarto ocupa os seus postos.» Assim que ouvi a ordem dirigi-me para a coberta. Debaixo do meu beliche, sentado, estava Luis Rengifo, esfregando os olhos para acabar de acordar.

— Onde é que estamos? - perguntou-me Luis Rengifo.

Disse-lhe que acabávamos de sair do porto. Depois subi para o meu beliche e procurei adormecer.

Luis Rengifo era um marinheiro completo. Tinha nascido em Choco, longe do mar, mas tinha o mar no sangue. Quando o Caldas entrou em reparação em Mobile, Luis Rengifo não fazia parte da sua guarnição. Encontrava-se em Washington a fazer um curso de armamento. Era sério, estudioso e falava inglês tão correctamente como castelhano.

A 15 de Março graduara-se como engenheiro civil em Washington. Ali se casara, com uma senhora dominicana, em 19S2. Quando o contratorpedeiro Caldas ficou reparado, Luis Rengifo veio de Washington e foi incorporado na guarnição. Dissera-me, poucos dias antes de sair de Mobile, que a primeira coisa que faria ao chegar à Colômbia seria tratar das coisas para que a sua esposa se mudasse para Cartagena.

Como ele não viajava há tanto tempo, eu tinha a certeza de que Luis Rengifo iria sofrer de enjoos. Naquela primeira madrugada da nossa viagem, enquanto se vestia, perguntou-me:

- Ainda não enjoaste?

Respondi-lhe que não. Rengifo disse, então:

Daqui a duas ou três horas hei-de ver-te com a língua de fora.

Assim vou ver-te eu a ti - disse-lhe. E ele respondeu:

No dia em que eu enjoar, nesse dia enjoa-se o mar.

Deitado no meu beliche, procurando conciliar o sono, voltei a lembrar-me da tempestade. Renasceram os meus receios da noite anterior. Outra vez preocupado, voltei-me para onde Luis Rengifo acabava de se vestir e disse-lhe:

Tem cuidado. Não vá acontecer que a língua te castigue.

 

Os Meus Últimos Minutos a Bordo do «Barco Lobo»

«Já estamos no golfo», disse-me um dos meus camaradas quando me levantei para almoçar, a 26 de Fevereiro. No dia anterior tinha sentido um pouco de receio pelo tempo do golfo do México. Mas o contratorpedeiro, apesar de balançar um pouco, deslizava com suavidade. Pensei com alegria que os meus receios tinham sido infundados e saí para o convés. A silhueta da costa tinha desaparecido. Só o mar verde e o céu azul se estendiam à nossa volta. No entanto, a meio do convés, o cabo Miguel Ortega estava sentado, pálido e desfigurado, lutando contra o enjoo. Aquilo já tinha começado antes. Mesmo antes de terem desaparecido as luzes de Mobile, e durante as últimas vinte e quatro horas, o cabo Miguel Ortega não tinha conseguido manter-se de pé, apesar de não ser um novato no mar.

 

Miguel Ortega tinha estado na Coreia, na fragata Almirante Padilla. Tinha viajado muito e estava familiarizado com o mar. No entanto, apesar de o golfo estar calmo, foi preciso ajudá-lo a mover-se para que pudesse fazer o quarto. Parecia um agonizante. Não conseguia tolerar qualquer espécie de alimentos e nós, os seus camaradas de quarto, sentávamo-lo na popa ou no meio do convés, até ser recebida a ordem de o transferirmos para a coberta. Então deitava-se de barriga para baixo no seu beliche, com a cabeça para fora, à espera do vómito.

Creio ter sido Ramón Herrera quem me disse, no dia 26 à noite, que a coisa iria ficar rija nas Caraíbas. De acordo com os nossos cálculos, sairíamos do golfo do México depois da meia-noite. No meu posto de guarda, em frente da torre dos torpedos, eu pensava com optimismo na nossa chegada a Cartagena. A noite estava clara, e o céu, alto e redondo, estava cheio de estrelas. Desde que ingressara na Marinha que tomara o gosto de identificar as estrelas. Nessa noite satisfiz-me, enquanto o A.R.C. Caldas avançava serenamente para as Caraíbas.

Penso que um velho marinheiro, que tenha viajado por todo o mundo, consegue saber em que mar é que se encontra pelo balanço que o navio dá. A experiência nesse mar onde fiz as minhas primeiras missões indicou-me que estávamos nas Caraíbas. Olhei para o relógio. Eram zero horas e trinta minutos. As zero horas e trinta minutos de 27 de Fevereiro. Mesmo que o navio não balançasse tanto, eu saberia que estávamos nas Caraíbas. Mas balançava. Eu, que nunca sentira enjoos, comecei a sentir-me inquieto. Senti um estranho pressentimento. E sem saber porquê, lembrei-me então do cabo Miguel Ortega, que estava lá em baixo, no seu beliche, deitando o estômago pela boca.

Às seis da manhã, o contratorpedeiro balançava como uma casca de ovo. Luis Rengifo estava acordado, num beliche por debaixo do meu.

- Gordo - disse-me ele. - Ainda não enjoaste?

Disse-lhe que não. Mas manifestei-lhe os meus receios. Rengifo, que, como eu disse, era engenheiro, muito estudioso e bom marinheiro, fez-me então uma exposição dos motivos pelos quais não havia o menor perigo de que, no mar das Caraíbas, acontecesse um acidente ao Caldas. «É um barco lobo do mar», disse-me. E lembrou-me que durante a guerra, naquelas mesmas águas, o contratorpedeiro colombiano tinha afundado um submarino alemão.

«É um navio seguro», dizia Luis Rengifo. E eu, deitado no meu beliche, sem conseguir dormir por causa dos balanços do navio, sentia-me seguro com as suas palavras. Mas o vento era cada vez mais forte a bombordo, e eu imaginava como é que estaria o Caldas no meio daquela ondulação tremenda. Nesse momento lembrei-me de Os Revoltados do «Caine».

Apesar de o tempo não ter variado durante todo o dia, a navegação era normal. Quando fiquei de quarto pus-me a fazer projectos para quando chegasse a Cartagena. Escreveria a Mary. Pensava escrever-lhe duas vezes por semana, pois nunca tinha sido preguiçoso para escrever. Desde que ingressara na Marinha que escrevia todas as semanas à minha família de Bogotá. Escrevi aos meus amigos do bairro Olaya cartas frequentes e longas. De maneira que ia escrever a Mary, pensei, e calculei em horas a conta do tempo que nos faltava para chegar a Cartagena: faltavam-nos exactamente 24 horas.

Aquele era o meu penúltimo quarto.

Ramón Herrera ajudou-me a arrastar o cabo Miguel Ortega para o seu beliche. Estava cada vez pior. Desde que saíramos de Mobile, há três dias, que não tinha ingerido qualquer alimento. Quase não conseguia falar e tinha o rosto verde e desfigurado.

 

Começa o Baile

O baile começou às dez da noite. Durante todo o dia, o Caldas balançara, mas não tanto como naquela noite de 27 de Fevereiro em que eu, acordado no meu beliche, pensava com pavor nas pessoas que estavam de quarto ao convés. Eu sabia que nenhum dos marinheiros que ali estavam, nos seus beliches, conseguira conciliar o sono. Um pouco antes da meia-noite disse a Luis Rengifo, men vizinho de baixo:

- Ainda não enjoaste?

Como calculara, Luis Rengifo também não conseguia dormir. Mas apesar do balanço do barco, não tinha perdido o bom humor. Respondeu:

- Já te disse que no dia em que eu enjoar, nesse dia até o mar enjoa.

Era uma frase que repetia com frequência. Mas naquela noite quase não teve tempo de a acabar.

Eu disse que sentia inquietação. Disse que sentia qualquer coisa muito parecida com medo. Mas não tenho a menor dúvida do que senti à meia-noite de 27, quando através dos altifalantes foi dada uma ordem geral: «Todo o pessoal passa para o lado de bombordo.»

Eu sabia o que significava essa ordem. O barco estava a adornar perigosamente a estibordo e tentava-se equilibrá-lo com o nosso peso. Pela primeira vez, em dois anos de navegação, tive verdadeiro medo do mar. O vento assobiava, lá em cima, onde o pessoal do convés devia estar encharcado e a tiritar.

Assim que ouvi a ordem saltei do beliche. com muita calma, Luis Rengifo pôs-se de pé e foi para um dos beliches de bombordo que estavam desocupados, porque pertenciam ao pessoal que estava de quarto. Agarrando-me aos outros beliches, tentei caminhar, mas nesse instante lembrei-me de Miguel Ortega.

Não conseguia mover-se. Quando ouviu a ordem tinha tentado levantar-se, mas caíra novamente no seu beliche, vencido pelo enjoo e pelo esgotamento. Ajudei-o a levantar-se e coloquei-o no seu beliche de bombordo. com a voz apagada disse-me que se sentia muito mal.

- Vamos tentar que não faças o quarto - disse-lhe eu.

Pode parecer uma piada de mau gosto, mas se Miguel Ortega tivesse ficado no seu beliche agora não estaria morto.

Sem ter dormido um minuto, às quatro da madrugada do dia 28, os seis do pessoal de quarto reunimo-nos na popa. Entre eles Ramón Herrera, meu camarada de todos os dias. O oficial de quarto era Guillermo Rozo. Aquela foi a minha última missão a bordo. Sabia que às duas da tarde estaríamos em Cartagena. Pensava dormir assim que saísse de quarto, para poder divertir-me nessa noite em terra firme, depois de oito meses de ausência. Às cinco e meia da madrugada fui passar revista aos entrefundos, acompanhado de um grumete. Às sete rendemos o quarto para tomarmos o pequeno-almoço. Às oito voltaram a render-nos. Exactamente a essa hora entreguei o meu último quarto, sem novidade, apesar de o vento estar a refrescar e de as ondas, cada vez mais altas, rebentarem na ponte e banharem o convés.

Na popa estava Ramón Herrera. Ali estava também, como vigia de quarto, Luis Rengifo, com os auscultadores postos. No meio do convés, recostado, agonizando com o seu eterno enjoo, estava o cabo Miguel Ortega. Nesse sítio sentia-se menos o balanço. (Conversei uns instantes com o segundo-marinheiro Eduardo Castillo, despenseiro, solteiro, bogotano e muito reservado. Não me lembro do que é que falámos. Só sei que não nos voltámos a ver a partir desse instante senão quando se afundou no mar, poucas horas depois.

Ramón Herrera estava a apanhar uns cartões para se tapar com eles e tentar dormir. Com o balanço era impossível descansar nos beliches. As ondas, cada vez mais fortes e altas, rebentavam no convés. Entre os frigoríficos, as máquinas de lavar e os fogões, bem peados à popa, Ramón Herrera e eu deitámo-nos, bem apertados, para evitar que uma onda nos arrastasse. Deitado de barriga para cima eu contemplava o céu. Sentia-me mais tranquilo, deitado, com a segurança de que dali a poucas horas estaríamos na baía de Cartagena. Não havia tempestade; o dia estava perfeitamente claro, a visibilidade era total e o céu estava profundamente azul. Agora nem sequer as botas me apertavam, pois tinha-as trocado por uns sapatos de borracha depois de ter rendido o quarto.

 

Um Minuto de Silêncio

Luís Rengifo perguntou-me as horas. Eram onze e meia. Há uma hora que o navio tinha começado a adornar, a inclinar-se perigosamente para estibordo. Através dos altifalantes foi repetida a ordem da noite anterior: «Todo o pessoal para bombordo.» Ramón Herrera e eu não nos mexemos, porque já estávamos desse bordo.

Pensei no cabo Miguel Ortega, que um momento antes eu vira a estibordo, mas quase no mesmo instante vi-o passar a cambalear. Deitou-se a bombordo, agonizando com o seu enjoo. Nesse instante o navio inclinou-se pavorosamente e adormeceu. Aguentei a respiração. Uma onda enorme rebentou sobre nós e ficámos encharcados, como se tivéssemos acabado de sair do mar. com muita lentidão e dificuldade o contratorpedeiro recuperou a sua posição normal. No seu posto, Luis Rengifo estava lívido. Disse, nervosamente:

- Que gaita! Este navio está a adormecer e não quer endireitar.

Era a primeira vez que via Luis Rengifo nervoso. Ao pé de mim, Ramón Herrera, pensativo, totalmente molhado, mantinha-se silencioso. Houve um instante de silêncio total. Depois, Ramón Herrera disse:

- No momento em que mandarem cortar cabos para lançar a carga ao mar, eu sou o primeiro a cortar.

Eram onze horas e cinquenta minutos.

Eu também pensava que de um momento para o outro mandariam cortar as amarras da carga, «alijar a carga». Rádios, frigoríficos e fogões teriam caído à água assim que tivessem dado a ordem. Pensei que nesse caso teria que descer à coberta, pois na popa estávamos seguros porque tínhamos conseguido segurar-nos entre os frigoríficos e os fogões. Sem eles a onda ter-nos-ia arrastado.

O navio continuava a defender-se da ondulação, mas cada vez adornava mais. Ramón Herrera tirou um toldo e cobriu-se com ele. Uma nova onda, maior que a anterior, voltou a rebentar sobre nós, que já estávamos protegidos pelo toldo. Segurei a cabeça com as mãos, enquanto a onda passava, e meio minuto depois ouviram-se os roncos dos altifalantes.

«Vão dar a ordem de cortar a carga», pensei. Mas a ordem foi outra, dada com voz segura e calma: «Pessoal que está no convés, envergar coletes.»

Calmamente, Luis Rengifo segurou nos auscultadores com uma mão e pôs o colete com a outra. Como depois de cada onda grande, eu sentia primeiro um grande vazio e depois um profundo silêncio. Vi Luis Rengifo que, com o colete posto, voltou a colocar os auscultadores. Então, fechei os olhos e ouvi perfeitamente o tique-taque do meu relógio.

Ouvi o relógio durante um minuto, aproximadamente. Ramón Herrera não se mexia. Calculei que devia faltar um quarto para o meio-dia. Duas horas para chegar a Cartagena. O navio pareceu ficar suspenso no ar por um segundo. Tirei a mão para fora para ver as horas, mas nesse instante não vi o braço, nem a mão, nem o relógio. Não vi a onda. Senti que o navio adornava completamente e que a carga em que me apoiava estava a escorregar. Pus-me de pé numa fracção de segundos e a água chegava-me ao pescoço. Com os olhos esbugalhados, verde e silencioso, vi Luis Rengifo que tentava levantar-se, erguendo os auscultadores. Entao a água cobriu-me totalmente e comecei a nadar para cima.

Procurando chegar à superfície, nadei para cima pelo espaço de um, dois, três segundos. Continuei a nadar para cima. Faltava-me o ar. Asfixiava. Tentei agarrar-me à carga, mas a carga já lá não estava. Já não havia nada em redor. Quando cheguei à superfície não vi à minha volta nada que não fosse mar. Um segundo depois, aí a cem metros de distância, o navio surgiu de entre as ondas, deitando água por todos os lados, como um submarino. Só então me apercebi de que tinha caído ao mar.

 

Vendo Quatro dos Meus Camaradas a Afogar-se

A minha primeira impressão foi a de estar absolutamente sozinho no meio do mar. Mantendo-me à superfície vi que outra onda rebentava em cima do contratorpedeiro e que este, a cerca de duzentos metros do lugar em que me encontrava, se precipitava num abismo e desaparecia da minha vista. Pensei que se tinha afundado. E um momento depois, confirmando o meu pensamento, surgiram à minha volta numerosas caixas da mercadoria com que o contratorpedeiro tinha sido carregado em Mobile. Mantive-me a flutuar entre caixas de roupa, rádios, frigoríficos c toda a espécie de utensílios domésticos que saltavam confusamente, batidos pelas ondas. Nesse instante não tive nenhuma Ideia precisa do que estava a acontecer. Um pouco atordoado, agarrei-me com força a uma das caixas flutuantes e estupidamente pus-me a contemplar o mar. O dia era de uma claridade perfeita. Exceptuando a forte ondulação produzida pelo vento c n mercadoria dispersa na superfície, não havia nada naquele lugar que parecesse um naufrágio.

De repente, comecei a ouvir gritos próximos. Através do assobio cortante do vento reconheci perfeitamente a voz de Júlio Amador Caraballo, o alto e bem constituído segundo-contramestre, que gritava a alguém:

- Agarre-se aí, por baixo do salva-vidas.

Foi como se nesse instante tivesse acordado de um profundo sonho de um minuto. Apercebi-me de que não estava sozinho no mar. Ali, a poucos metros de distância, os meus camaradas gritavam uns para os outros, mantendo-se a flutuar. Rapidamente comecei a pensar. Não podia nadar para lado nenhum. Sabia que estávamos a quase duzentas milhas de Cartagena, mas tinha o sentido de orientação confuso. No entanto, ainda não sentia medo. Por momentos pensei que poderia estar agarrado à caixa indefinidamente, até que viessem em nosso auxílio. Tranquilizava-me saber que, à minha volta, outros marinheiros se encontravam em iguais circunstâncias. Foi então que vi a balsa.

Eram duas, emparelhadas, aí a uns sete metros de distância uma da outra. Apareceram inesperadamente na crista de uma onda, do lado onde os meus camaradas gritavam. Pareceu-me estranho que nenhum deles tivesse conseguido alcançá-las. Num. Segundo, uma das balsas desapareceu da minha vista. Hesitei entre correr o risco de nadar para a outra ou manter-me seguro, agarrado à caixa. Mas antes de ter tido tempo de tomar uma decisão, dei comigo a nadar para a última balsa visível, cada vez mais distante. Nadei durante três minutos. Por instantes deixei de ver a balsa, mas procurei não perder a direcção. Bruscamente, um golpe de mar pô-la ao meu lado, branca, enorme e vazia. Agarrei-me com força ao entrançado e tentei saltar para o interior. Só consegui à terceira tentativa. Já dentro da balsa, arquejante, fustigado pelo vento, implacável e gelado, endireitei-me com esforço. Então, vi três dos meus camaradas em volta da balsa, tentando alcançá-la.

Reconheci-os imediatamente. Eduardo Castillo, o despenseiro, agarrava-se com força ao pescoço de Júlio Amador Caraballo. Este, que estava de quarto quando ocorreu o acidente, tinha o colete salva-vidas posto. Gritava: «Agarre-se com força,

Castillo.» Flutuavam entre a mercadoria dispersa, a uns dez melros de distância.

Do outro lado estava Luis Rengifo. Poucos minutos antes tinha-o visto no contratorpedeiro, tentando elevar-se com os auscultadores levantados na mão direita. Com a sua serenidade habitual, com essa confiança de bom marinheiro com que dizia que primeiro que ele se enjoaria o mar, tirara a camisa para nadar melhor, mas perdera o colete. Mesmo que não o tivesse visto, tê-lo-ia reconhecido pelo seu grito:

- Gordo, rema para este lado.

Rapidamente, agarrei nos remos e tentei aproximar-me deles. Júlio Amador, com Eduardo Castillo agarrado com força ao seu pescoço, aproximava-se da balsa. Muito mais além, pequeno e desolado, vi o quarto dos meus camaradas: Ramón Herrera, que me fazia sinais com a mão, agarrado a uma caixa.

 

Só Três Metros!

Se tivesse tido que decidir, não saberia por qual dos meus camaradas começar. Mas quando vi Ramón Herrera, o da bronca cm Mobile, o alegre rapaz de Arjona que poucos minutos antes estava comigo na popa, comecei a remar com desespero. Mas a balsa tinha quase dois metros de comprimento. Era muito pesada naquele mar encrespado e eu tinha de remar contra o vento. Julgo que não consegui fazê-la avançar um metro sequer. Desesperado, olhei outra vez à minha volta e Ramón Herrera já tinha desaparecido da superfície. Só Luis Rengifo nadava com segurança cm direcção à balsa. Eu tinha a certeza de que a alcançaria. Ouvira-o ressonar como um trombone, por debaixo do meu beliche, e estava convencido de que a sua serenidade era mais forte que o mar.

Em compensação Júlio Amador lutava com Eduardo Castillo para que ele não se soltasse do seu pescoço. Estavam a menos de três metros. Pensei que se se aproximassem um pouco mais poderia estender-lhes um remo para que se agarrassem. Mas nesse instante uma onda gigantesca suspendeu a balsa no ar e vi, do cimo da crista enorme, o mastro do contratorpedeiro, que se afastava. Quando voltei a descer, Júlio Amador tinha desaparecido, com Eduardo Castillo agarrado ao pescoço. Sozinho, a dois metros de distância, Luis Rengifo continuava a nadar serenamente para a balsa.

Não sei porque é que fiz aquela coisa absurda: sabendo que não podia avançar, meti o remo na água, como que a tentar evitar que a balsa se mexesse, como que a tentar pregá-la no sítio. Luís Rengifo, cansado, parou uns instantes, levantou a mão como quando segurava com ela os auscultadores e gritou-me outra vez:

- Rema para cá, gordo!

O vento soprava na mesma direcção. Gritei-lhe que não podia remar contra o vento, que fizesse um último esforço, mas tive a sensação de que não me ouviu. As caixas de mercadorias tinham desaparecido e a balsa bailava de um lado para o outro, batida pelas ondas. Em instantes fiquei a mais de cinco metros de Luis Rengifo e perdi-o de vista. Mas apareceu do outro lado, ainda sem desesperar, mergulhando contra as ondas para evitar que o afastassem. Eu estava de pé, agora com o remo ao alto esperando que Luis Rengifo se aproximasse o suficiente para lhe poder chegar. Mas então notei que se cansava, desesperava.

Voltou a gritar-me, já a afundar-se:

- Gordo... Gordo!

Remei, mas... continuava a ser inútil, como da primeira vez. Fiz um último esforço para que Luís Rengifo chegasse ao remo, mas a mão levantada, aquela que poucos minutos antes tinha tentado evitar que os auscultadores se afundassem, mergulhou nesse momento para sempre, a menos de dois metros do remo...

Não sei quanto tempo fiquei assim, parado, fazendo equilíbrio na balsa, com o remo levantado. Examinava a água. Esperava que de um momento para o outro surgisse alguém na superfície. Mas

o mar estava limpo e o vento, cada vez mais forte, batia contra a minha camisa com um uivo de cão. A mercadoria tinha desaparecido. O mastro, cada vez mais distante, indicou-me que o contratorpedeiro não se tinha afundado, como julgara a princípio. Senti-me tranquilo: pensei que dali a momentos viriam buscar-me. Pensei que talvez algum dos meus camaradas tivesse conseguido alcançar a outra balsa. Não havia razão para que não o tivessem conseguido. Não eram balsas equipadas, porque a verdade é que nenhuma das balsas do contratorpedeiro estava equipada. Mas no total havia seis, além dos botes e das baleeiras. Pensava que seria inteiramente normal que alguns dos meus camaradas tivessem chegado às outras balsas, como eu chegara à minha, e que talvez o contratorpedeiro andasse à nossa procura.

De repente apercebi-me do Sol. Um Sol quente e metálico, do pico do meio-dia. Estonteado, ainda sem ter recuperado completamente, olhei para o relógio. Era meio-dia em ponto.

 

Sozinho

A última vez que Luis Rengifo me perguntara as horas, no contratorpedeiro, eram onze e meia. Vi novamente as horas às onze e cinquenta, e ainda não tinha acontecido a catástrofe. Quando olhei para o relógio na balsa, era meio-dia em ponto. Pareceu-me que tudo já tinha acontecido há muito tempo, mas na realidade só tinham decorrido dez minutos desde o instante em que vira o relógio pela última vez, na popa do contratorpedeiro, e o instante em que chegara à balsa e tentara salvar os meus camaradas, e fiquei ali, imóvel, de pé na jangada, vendo o mar vazio, ouvindo o cortante uivar do vento e pensando que passariam pelo menos duas ou três horas até me virem salvar.

«Duas ou três horas», calculei eu. Pareceu-me um tempo desproporcionadamente longo para estar sozinho no mar. Mas tentei resignar-me. Não tinha alimentos nem água e pensava que antes das três da tarde a sede seria abrasadora. O sol queimava-me na cabeça, a pele começava a arder, seca e endurecida pelo sal. Como na queda tinha perdido a boina, voltei a molhar a cabeça e sentei-me na borda da balsa, enquanto não me viessem salvar.

Só então senti a dor no joelho direito. As minhas calças grossas de cotim azul estavam molhadas, de maneira que tive dificuldade em as enrolar até acima do joelho. Mas quando consegui senti-me sobressaltado: tinha uma ferida funda, em forma de meia-lua, na parte inferior do joelho. Não sei se tropecei na borda do navio. Não sei se fiz a ferida ao cair ao mar. Só sei que não me apercebi dela senão quando já estava sentado na balsa, e que apesar de me arder um pouco, tinha deixado de sangrar e estava perfeitamente seca, penso que por causa do sal marinho. Sem saber em que pensar, pus-me a fazer um inventário das minhas coisas. Queria saber com que é que contava na solidão do mar. Em primeiro lugar, contava com o meu relógio, que funcionava com precisão e para o qual não conseguia deixar de olhar de dois em dois ou de três em três minutos. Tinha, além do meu anel de ouro, comprado em Cartagena no ano anterior, o meu fio com a medalha da Nossa Senhora do Carmo, também comprado em Cartagena a outro marinheiro por trinta e cinco pesos. Nos bolsos não tinha mais nada a não ser as chaves do meu armário do contratorpedeiro, e três cartões que me tinham dado num armazém de Mobile, num dia do mês de Janeiro em que fui fazer compras com Mary Address. Como não linha que fazer, pus-me a ler os cartões para me distrair enquanto não me viessem salvar. Não sei porque é que me pareceu que eram como uma mensagem em «ligo que os náufragos atiram ao mar dentro de uma garrafa, penso que se naquele instante tivesse tido uma garrafa, teria d ido lá dentro um dos cartões, a brincar aos náufragos, para ssa noite ter qualquer coisa divertida para contar aos meus amigos em Cartagena.

 

A Minha Primeira Noite Sozinho no Mar das Caraíbas

Às quatro da tarde o vento acalmou. Como eu só via água e céu, como não tinha pontos de referência, decorreram mais de duas horas até eu me aperceber de que a balsa estava a avançar. Mas na realidade, a partir do momento em que me encontrei dentro dela, começara a mover-se em linha recta, empurrada pelo vento, a uma velocidade maior do que aquela que eu teria podido imprimir-lhe com os remos. No entanto, não fazia a menor ideia da minha direcção nem posição. Não sabia se a balsa avançava para a costa ou para o interior do mar das Caraíbas. Esta última hipótese parecia-me a mais provável, pois sempre considerara impossível o mar atirar para terra alguma coisa que tivesse penetrado duzentas milhas, e menos ainda se essa coisa fosse algo tão pesado como um homem numa balsa.

Durante as minhas primeiras duas horas segui mentalmente, minuto a minuto, a viagem do contratorpedeiro. Pensei que se tivessem telegrafado para Cartagena, teriam dado a posição exacta do sírio em que ocorrera o acidente e que a partir desse momento teriam enviado aviões e helicópteros para nos salvarem. Fiz os meus cálculos: em menos de uma hora os aviões estariam ali, a dar voltas sobre a minha cabeça.

A uma da tarde sentei-me na balsa a perscrutar o horizonte. Soltei os três remos e pu-los no interior, preparado para remar na direcção era que aparecessem os aviões. Os minutos eram longos e intensos. O sol queimava-me a cara e as costas e os lábios ardiam-me, curtidos pelo sal. Mas naquele momento não sentia sede nem fome. A única necessidade que tinha era a de que aparecessem os aviões. Já fizera o meu plano: quando os visse aparecer procuraria remar na sua direcção, depois, quando estivessem por cima de mim, pôr-me-ia de pé na balsa e faria sinais com a camisa. Para estar preparado, para não perder um minuto, desabotoei a camisa e continuei sentado na borda, perscrutando o horizonte por todos os lados, pois não fazia a menor ideia da direcção em que apareceriam os aviões.

E assim chegaram as duas horas. O vento continuava a uivar, e por cima do uivo do vento eu continuava a ouvir a voz de Luis Rengifo: «Gordo, rema para este lado.» Ouvia-a perfeitamente,   como se ele estivesse ali, a dois metros de distância, procurando chegar ao remo. Mas eu sabia que quando o vento uiva no mar, quando as ondas rebentam de encontro às escarpas, uma pessoa continua a ouvir as vozes que recorda. E continua a ouvi-las com enlouquecedora persistência: «Gordo, rema para este lado.»

Às três comecei a desesperar. Sabia que àquela hora o contratorpedeiro estava no cais de Cartagena. Os meus camaradas, felizes com o regresso, dispersariam dali a poucos momentos pela cidade. Tive a sensação de que todos estavam a pensar em mim, e essa ideia infundiu-me ânimo e paciência para esperar até às quatro. Mesmo que não tivessem telegrafado, mesmo que não se tivessem apercebido de que tínhamos caído à água, dariam por isso no momento de atracar, quando toda a tripulação tinha de estar no convés. Isso podia ter sido às três, o mais tardar; imediatamente teriam dado o aviso. Por muito que os aviões tivessem demorado a descolar, cm menos de meia hora estariam a voar para o local do acidente. E por isso às quatro horas - o mais tardar às quatro e meia - estariam a voar por cima da minha cabeça.

Continuei a perscrutar o horizonte, até ao momento em que o vento parou e me senti envolvido por um imenso e surdo rumor. Só então é que deixei de ouvir o grito de Luis Rengifo.

 

A Grande Noite

A princípio parecera-me que era impossível permanecer três horas sozinho no mar. Mas às cinco, quando já tinham decorrido cinco horas, pareceu-me que ainda podia esperar mais uma hora. 0 Sol estava a descer. Ficou vermelho e grande no ocaso, e então comecei a orientar-me. Agora sabia por onde é que apareceriam on aviões: pus o Sol à minha esquerda e olhei em linha recta, sem me mexer, sem desviar a vista um só instante, sem me atrever a pestanejar, na direcção em que Cartagena devia ficar, segundo u minha orientação. Às seis doíam-me os olhos. Mas continuava d olhar. Inclusivamente depois de ter começado a escurecer, continuei a olhar com uma paciência dura e rebelde. Sabia que nessa altura não veria os aviões, mas veria as luzes verdes e vermelhas, avançando na minha direcção, antes de ouvir o barulho dos seus motores. Queria ver as luzes, sem pensar que dos aviões não poderiam ver-me na escuridão. De repente, o céu ficou vermelho e eu continuava a perscrutar o horizonte. Depois ficou cor de violetas escuras e eu continuava a olhar. De um lado da balsa, como um diamante amarelo no céu cor de vinho, fixa e quadrada, apareceu a primeira estrela. Foi como um sinal. Imediatamente depois, a noite, cerrada e tensa, abateu-se sobre o mar.

A minha primeira impressão ao aperceber-me de que estava Imerso na escuridão, de que já não conseguia ver a palma da minha mão, foi a de que não conseguia dominar o terror. Pelo barulho da água contra a borda, sabia que a balsa continuava a avançar lenta, mas incansavelmente. Mergulhado nas trevas apercebi-me.

Então, de que não tinha estado tão sozinho nas horas do dia. Estava mais sozinho na escuridão, na balsa que não via, mas que sentia por debaixo de mim, deslizando surdamente sobre um mar espesso e povoado de animais estranhos. Para me sentir menos só pus-me a olhar para o mostrador do meu relógio. Eram sete menos dez. Muito tempo depois, para aí umas duas ou três horas, eram sete menos cinco. Quando o ponteiro dos minutos chegou ao número doze eram sete em ponto e o céu estava cerrado de estrelas. Mas a mim parecia-me que tinha decorrido tanto tempo que já eram horas de começar a amanhecer. Desesperadamente, continuava a pensar nos aviões.

Comecei a sentir frio. É impossível permanecer seco um minuto dentro de uma balsa. Inclusivamente quando uma pessoa se senta na borda meio corpo fica dentro de água, porque o chão da balsa pende como uma canasta, mais de meio metro por debaixo da superfície. Às oito da noite a água era menos fria do que o ar. Eu sabia que no chão da balsa estaria a salvo de animais, porque a rede que protege o chão impede que eles se acerquem. Mas isso aprende-se na escola e acredita-se na escola, quando o instrutor faz a demonstração num modelo reduzido da balsa, e uma pessoa está sentada num banco, entre quarenta camaradas e às duas da tarde. Mas quando se está sozinho no mar, às oito da noite e sem esperanças, pensa-se que não há qualquer lógica nas palavras do instrutor. Eu sabia que tinha meio corpo metido num mundo que não pertencia aos homens, mas sim aos animais do mar, e apesar do vento gelado que me fustigava a camisa não me atrevia a mexer-me da borda. Segundo o instrutor, esse é o lugar menos seguro da balsa. Mas, com tudo isso, só ali é que me sentia mais longe dos animais: aqueles animais enormes c desconhecidos que ouvia passar misteriosamente junto da balsa.

Nessa noite tive dificuldade em encontrara Ursa Menor, perdida num confuso e interminável emaranhado de estrelas. Nunca tinha visto tantas. Em toda a extensão do céu era difícil encontrar um ponto vazio. Mas a partir do momento em que localizei a Ursa Menor não me atrevi a olhar para outro lado. Não sei porque é que me sentia menos sozinho a olhar para a Ursa Menor. Em Cartagena, quando estávamos de folga, sentávamo-nos na ponte de Manga, de madrugada, enquanto Ramón Herrera cantava imitando Daniel Santos, e alguém o acompanhava com uma guitarra.

Sentado na beira da pedra, eu descobria sempre a Ursa Menor, pura os lados do Cerro de Ia Popa. Nessa noite, na borda da balsa, senti-me por instantes como se estivesse na ponte de Manga, como se Ramón Herrera estivesse ao meu lado, cantando acompanhado por uma guitarra, e como se a Ursa Menor não estivesse a duzentas milhas de terra, mas sobre o Cerro de Ia Popa. Pensava que àquela hora alguém estaria a olhar para a Ursa Menor em Cartagena, como eu a olhava no mar, e essa ideia fazia com que me sentisse menos sozinho.

O que tornou mais longa a minha primeira noite no mar foi o não ter acontecido absolutamente nada. É impossível descrever uma noite numa balsa, quando nada acontece e se tem terror dos animais, e se tem um relógio fosforescente para o qual é impossível deixar de olhar um só minuto. Na noite de 28 de Fevereiro que foi a minha primeira noite no mar - olhei para o relógio minuto a minuto. Era uma tortura. Desesperadamente resolvi tirá-lo, guardá-lo no bolso para não estar pendente das horas. Quando me pareceu que era impossível resistir, faltavam vinte minutos para as nove da noite. Ainda não sentia sede nem fome e tinha a certeza de que conseguiria resistir até ao dia seguinte, quando viessem os aviões. Mas pensava que iria enlouquecer com o relógio. Cheio de angústia, tirei-o do pulso para o pôr no bolso, mas quando fiquei com ele na mão lembrei-me de que o melhor era atirá-lo ao mar. Hesitei tini instante. Depois senti terror: pensei que estaria mais sozinho sem o relógio. Voltei a pô-lo no pulso e continuei a olhar para ele, minuto a minuto, como naquela tarde tinha estado a olhar para o horizonte à espera dos aviões; até que me doeram os olhos.

Depois da meia-noite senti vontade de chorar. Não tinha dormido um segundo, mas nem sequer tentara. Com a mesma esperança com que naquela tarde esperei ver aviões no horizonte, estive naquela madrugada à procura de luzes de barcos. Permaneci longas horas a perscrutar o mar, um mar calmo, imenso e silencioso, mas não vi uma única luz diferente das estrelas. O frio foi mais intenso durante as horas da madrugada e parecia-me que o meu corpo se tinha tornado resplandecente, com todo o sol da tarde incrustado debaixo da pele. com o frio ardia-me mais. O joelho direito começou a doer-me depois da meia-noite e sentia como se a água tivesse penetrado até aos ossos. Mas isso eram sensações remotas. Pensava mais nas luzes dos barcos do que no meu corpo. E pensava que no meio daquela solidão infinita, no meio do escuro rumor do mar, não precisava senão de ver a luz de um barco, para dar um grito que se teria ouvido a qualquer distância.

 

A Luz de Cada Dia

Não amanheceu lentamente, como em terra. O céu ficou pálido, desapareceram as primeiras estrelas e eu continuava a olhar primeiro para o relógio e depois para o horizonte. Apareceram os contornos do mar. Tinham decorrido doze horas, mas parecia-me impossível. E impossível que a noite seja tão longa como o dia. É preciso ter passado uma noite no mar, sentado numa balsa c a contemplar um relógio, para se saber que a noite c incomensuravelmente mais longa do que o dia. Mas do repente começa a amanhecer, e então uma pessoa sente-se demasiado cansada para saber que está a amanhecer.

Foi o que me aconteceu naquela primeira noite da balsa. Quando começou a amanhecer já nada me importava. Não pensei nem na água nem na comida. Não pensei em nada até o vento começar a ficar morno e a superfície do mar ficar lisa e dourada. Não tinha dormido um segundo em toda a noite, mas naquele instante senti como se tivesse acordado. Quando me espreguicei na balsa os ossos doíam-me. Doía-me a pele. Mas o dia estava resplandecente e morno, e no meio da claridade, do barulho do vento que começava a levantar-se, eu sentia-me com forças renovadas para esperar. E senti-me profusamente acompanhado na balsa. Então, pela primeira vez nos vinte anos da minha vida, senti-me perfeitamente feliz.

A balsa continuava a avançar, não podia calcular quanto é que linha avançado durante a noite, mas tudo continuava a ser igual no horizonte, como se não me tivesse movido um centímetro. Às sete da manhã pensei no contratorpedeiro. Eram horas do pequeno-almoço. Pensava que os meus camaradas estavam sentados à mesa a comer uma maçã. Depois levar-nos-iam ovos. Depois carne. Depois pão e café com leite. A boca encheu-se-me de saliva e senti uma picada leve no estômago. Para distrair aquela ideia mergulhei no fundo da balsa até ao pescoço. A água fresca nas costas queimadas fez-me sentir forte e aliviado. Fiquei assim bastante tempo, submerso, a perguntar-me porque é que fui para a popa com Ramón Herrera, em vez de me deitar no meu beliche. Reconstruí minuto a minuto a tragédia e considerei-me um estúpido. Nilo havia qualquer razão para que eu tivesse sido uma das vítimas: não estava de quarto, não tinha obrigação de estar no convés. Pensei que tinha sido tudo por causa do azar e então voltei a sentir um pouco de angústia. Mas quando olhei para o relógio voltei a tranquilizar-me. O dia avançava rapidamente: eram onze e meia.

 

Um Ponto Preto no Horizonte

A proximidade do meio-dia fez-me pensar outra vez em Cartagena. Pensei que era impossível não terem dado pelo meu desaparecimento. Até cheguei a lamentar o ter alcançado a balsa, pois imaginei por instantes que os meus camaradas tinham sido salvos, e que o único que andava à deriva era eu, porque a balsa tinha sido empurrada pelo vento. Até atribuí ao azar o facto de ter alcançado a balsa.

Não tinha ainda acabado de amadurecer esta ideia quando julguei ver um ponto no horizonte. Levantei-me com o olhar fixo naquele ponto negro que avançava. Eram onze e cinquenta. Olhei com tanta intensidade, que por momentos o céu se encheu de pontos luminosos. Mas o ponto negro continuava a avançar, directamente para a balsa. Dois minutos depois de o ter descoberto comecei a ver perfeitamente a sua forma. À medida que se aproximava pelo céu, luminoso e azul, lançava cintilações metálicas ofuscantes. Pouco a pouco foi-se definindo entre os outros pontos luminosos. Doía-me o pescoço e já não suportava o brilho do céu nos olhos. Mas continuava a olhar para ele: era brilhante, veloz e vinha directamente para a balsa. Nesse instante não me senti feliz. Não senti uma emoção transbordante. Senti uma grande lucidez e uma serenidade extraordinária, de pé na balsa, enquanto o avião se aproximava. Calmamente, tirei a camisa. Tinha a sensação de que sabia qual era o preciso instante em que devia começar a fazer sinais com a camisa. Permaneci um minuto, dois minutos, com a camisa na mão, à espera de que o avião se aproximasse um pouco mais. Vinha directamente para a balsa. Quando levantei o braço e comecei a agitar a camisa, ouvia perfeitamente, por cima tio barulho das ondas, o crescente e vibrante ruído dos seus motores.

 

Eu Tive Um Camarada a Bordo da Balsa

Agitei a camisa desesperadamente, durante cinco minutos pelo menos. Mas depressa me apercebi de que me tinha enganado: o avião não vinha para a balsa. Quando vi o ponto negro crescer pareceu-me que iria passar por cima da minha cabeça. Mas passou muito distante, e a uma altura da qual era impossível que me vissem. Depois deu uma longa volta, tomou a direcção do regresso e começou a perder-se no mesmo sítio do céu por onde tinha aparecido. De pé na balsa, exposto ao sol ardente, estive a olhar para o ponto negro, sem pensar em nada, até que se apagou por completo no horizonte. Então, voltei a sentar-me. Senti-me infeliz, mas como ainda não tinha perdido a esperança, decidi tomar precauções para me proteger do sol. Em primeiro lugar não devia expor os pulmões aos raios solares. Era meio-dia. Estava exactamente há 24 horas na balsa. Deitei-me de caras para o céu na borda e pus a camisa húmida no rosto. Não tentei dormir porque sabia o perigo que me ameaçava se adormecesse na borda. Pensei no avião: não estava muito seguro de que andasse à minha procura. Não me fora possível identificá-lo.

Ali, deitado na borda, senti pela primeira vez a tortura da sede. A princípio foi a saliva espessa c a secura na garganta. Levou-me a querer beber água do mar, mas sabia que me prejudicava.

Poderia beber um pouco, mais tarde. De repente esqueci-me da sede. Ali mesmo, por cima da minha cabeça, mais forte que o barulho das ondas, ouvi o ruído de outro avião.

Emocionado, pus-me de pé na balsa. O avião aproximava-se, por onde tinha vindo o outro, mas este vinha directamente para a balsa. No instante em que passou sobre a minha cabeça voltei a agitar a camisa. Mas ia demasiado alto. Passou de largo; foi-se; desapareceu. Depois deu a volta e vi-o de perfil sobre o horizonte, voando na direcção em que tinha chegado: «Agora andam à minha procura», pensei. E esperei na borda, com a camisa na mão, que chegassem novos aviões.

Alguma coisa tinha percebido dos aviões: apareciam e desapareciam por um mesmo ponto. Isso significava que ali era terra. Agora sabia para onde me dirigir. Mas como? Por mais que a balsa tivesse avançado durante a noite, devia estar ainda muito longe da costa. Sabia em que direcção a encontrar, mas desconhecia em absoluto quanto tempo devia remar, com aquele sol que começava a fazer-me bolhas na pele e com aquela fome que doía no estômago. E sobretudo, com aquela sede. Cada vez me era mais difícil respirar.

Às doze e trinta e cinco, sem que eu tivesse reparado em que momento, chegou um enorme avião negro, com pontões de amaragem, e passou rugindo por cima da minha cabeça. O coração deu-me um salto. Vi-o perfeitamente. O dia era muito claro, de maneira que pude ver nitidamente a cabeça de um homem a espreitar na cabina, examinando o mar com uns binóculos pretos. Passou tão baixo, tão perto de mim, que me pareceu sentir no rosto a aragem forte dos seus motores. Identifiquei-o perfeitamente pelas letras das suas asas: era um avião do serviço da guarda-costeira da Zona do Canal.

Quando se afastou a trepidar para o interior das Caraíbas não duvidei um só instante de que o homem dos binóculos me tinha

visto a agitar a camisa. «Descobriram-me!», gritei, feliz, ainda a agitar a camisa. Louco de emoção, pus-me a dar saltos na balsa.

 

Tinham-me Visto!

Em menos de cinco minutos, o mesmo avião preto voltou a passar na direcção contrária, à mesma altura que da primeira vez. Voava inclinado sobre a asa esquerda e na janelinha desse lado vi de novo, perfeitamente, o homem que examinava o mar com os binóculos. Voltei a agitar a camisa. Agora não a agitava desesperadamente. Agitava-a com calma, não como se estivesse a pedir auxílio, mas como que a lançar uma emocionada saudação de agradecimento aos meus descobridores.

À medida que avançava pareceu-me que ia perdendo altura. Por momentos voou em linha recta, quase ao nível da água. Pensei que estivesse a amarar e preparei-me para remar para o lugar onde ele descesse. Mas um instante depois voltou a tomar altura, deu a volta e passou pela terceira vez por cima da minha cabeça. Então não agitei a camisa com desespero. Esperei que estivesse exactamente sobre a balsa. Fiz-lhe um breve sinal e esperei que passasse novamente, cada vez mais baixo. Mas aconteceu exactamente ao contrário: ganhou altura rapidamente e perdeu-se por onde tinha aparecido. No entanto, não tinha por que me preocupar. Tinha a certeza de que me tinham visto. Era impossível não me terem visto, voando tão baixo e exactamente sobre a balsa. Calmo, despreocupado e feliz, sentei-me a esperar.

Esperei uma hora. Tinha tirado uma conclusão muito importante: o ponto onde apareceram os primeiros aviões estava sem dúvida sobre Cartagena. O ponto por onde desapareceu o avião preto estava sobre o Panamá. Calculei que remando em linha recta, desviando-me um da direcção do vento, chegaria aproximadamente à estância balnear de Tolú. Esse era mais ou menos o ponto intermédio entre os dois pontos por onde desapareceram os aviões.

Tinha calculado que dali a uma hora estariam a salvar-me. Mas a hora passou sem que nada acontecesse no mar azul, limpo e perfeitamente calmo. Passaram mais duas horas. E outra e outra, durante as quais não me movi um segundo da borda. Estive tenso, a perscrutar o horizonte sem pestanejar. O Sol começou a descer às cinco da tarde. Ainda não tinha perdido as esperanças, mas comecei a sentir-me inquieto. Tinha a certeza de que me tinham visto do avião preto, mas não percebia como é que tinha decorrido tanto tempo sem que me viessem buscar. Sentia a garganta seca. Cada vez me era mais difícil respirar. Estava distraído, a olhar para o horizonte, quando, sem saber porquê, dei um salto e caí no centro da balsa. Lentamente, como que a caçar uma presa, a barbatana de um tubarão deslizava ao longo da borda.

 

Os Tubarões Chegam às Cinco

Foi o primeiro animal que vi, quase trinta horas depois de estar na balsa. A barbatana de um tubarão infunde terror porque se conhece a voracidade da fera. Mas realmente nada parece mais inofensivo do que a barbatana de um tubarão. Não parece uma coisa que faça parte de um animal, e menos ainda de uma fera. E verde e áspera, como a casca de uma árvore. Quando a vi passar a contornar a borda, tive a sensação de que tinha um sabor fresco e um pouco amargo, como o de uma casca vegetal. Já passava das cinco. O mar estava sereno ao entardecer. Outros tubarões se aproximaram da balsa, pacientemente, e andaram a vaguear até anoitecer por completo. Já não havia luz, mas sentia-os rondar no escuro, rasgando a superfície calma com o fio das suas barbatanas.

A partir desse momento não voltei a sentar-me na borda depois das cinco da tarde. No dia a seguir, no outro dia e ainda dali a quatro dias, teria experiência suficiente para saber que os tubarões são uns animais pontuais: chegariam um pouco depois das cinco e desapareceriam com a escuridão.

Ao entardecer, a água transparente oferece um belo espectáculo. Peixes de todas as cores aproximavam-se da balsa. Enormes peixes amarelos e verdes; peixes raiados de azul e vermelho, redondos, minúsculos, acompanhavam a balsa até ao anoitecer. Às, vezes havia um relâmpago metálico, um jacto de água sanguinolenta saltava pela borda e os bocados de um peixe desfeito pelo

tubarão flutuavam uns segundos junto à balsa. Então, uma incalcu1ável quantidade de peixes mais pequenos precipitava-se sobre os desperdícios. Naquele momento eu teria vendido a alma pelo pedaço mais pequeno das sobras do tubarão.

Era a minha segunda noite no mar. Noite de fome e de sede e de desespero. Senti-me abandonado, depois de me ter agarrado obstinadamente à esperança dos aviões. Só nessa noite é que concluí que com a única coisa que contava para me salvar era com a minha vontade e com os restos das minhas forças.

Havia uma coisa que me espantava: sentia-me um pouco fraco, mas não esgotado. Estava há quase quarenta horas sem água nem alimentos e há mais de duas noites e dois dias sem dormir, pois tinha estado acordado toda a noite anterior ao acidente. No entanto, sentia-me capaz de remar.

Voltei a procurar a Ursa Menor. Fixei o olhar nela e comecei a remar. Havia vento, mas não corria na mesma direcção que eu tinha de imprimir à balsa para navegar em direcção à Ursa Menor, que, segundo os meus cálculos, brilhava exactamente sobre o Cerro de la Popa.

Pelo barulho da água sabia que eslava a avançar. Quando me cansava cruzava os remos e recostava a cabeça para descansar.

Depois agarrava nos remos com mais força e com mais esperança. À meia-noite continuava a remar.

 

Um Camarada na Balsa

Quase às duas horas senti-me completamente esgotado. Cruzei os remos e tentei dormir. Nesse momento a sede tinha aumentado. A fome não me incomodava. Incomodava-me a sede. Senti-me tão cansado que apoiei a cabeça no remo e dispus-me a morrer. Foi então que vi, sentado no convés do contratorpedeiro, o marinheiro Jaime Manjarrés, que me mostrava com o indicador a direcção do porto. Jaime Manjarrés, bogotano, é um dos meus amigos mais antigos na Marinha. Muitas vezes pensava nos camaradas que tentaram abordar a balsa. Perguntava-me se teriam alcançado a outra balsa, se o contratorpedeiro os teria recolhido ou se os aviões os teriam localizado. Mas nunca pensava em Jaime Manjarrés, sorridente, primeiro a apontar-me a direcção do porto e depois sentado no refeitório, à minha frente, com um prato de frutas e ovos mexidos na mão.

A princípio foi um sonho. Fechava os olhos, dormia durante breves minutos e aparecia sempre, pontual e na mesma posição, Jaime Manjarrés. Por fim decidi falar com ele. Não me lembro o que é que lhe perguntei. Também não me lembro o que é que ele me respondeu. Mas sei que estávamos a conversar no convés e de repente veio o golpe da onda, a onda fatal das onze e cinquenta e cinco minutos, e acordei sobressaltado, agarrando-me com todas as minhas forças ao entrançado para não cair ao mar. Mas antes do amanhecer o céu escureceu. Não consegui dormir mais porque me sentia esgotado, inclusivamente para dormir. No meio das trevas deixei de ver a outra ponta da balsa. Mas continuei a olhar para a escuridão, tentando penetrá-la. Foi então que vi perfeitamente, na ponta da borda, Jaime Manjarrés, sentado, com o seu uniforme de trabalho: calças e camisa azuis, e a boina ligeiramente inclinada sobre a orelha direita, onde se lia claramente, apesar da escuridão: A.R.C. Caldas.

Olá - disse-lhe eu sem me sobressaltar. De certeza que Jaime Manjarrés estava ali. De certeza que ali tinha estado sempre.

Se isto tivesse sido um sonho não teria qualquer importância. Sei que estava completamente acordado, completamente lúcido e que ouvia o assobio do vento e o barulho do mar por cima da

minha cabeça. Sentia a fome e a sede. Já não tinha a menor dúvida de que Jaime Manjarrés viajava comigo na balsa.

- Porque é que não bebeste bastante água no navio? - perguntou-me.

- Porque estávamos a chegar a Cartagena - respondi-lhe.

- Estava deitado na popa com Ramón Herrera.

Não era uma aparição. Eu não sentia medo. Parecia-me uma palermice ter-me antes sentido sozinho na balsa, sem saber que outro marinheiro estava comigo.

- Porque é que não comeste? - perguntou-me Jaime Manjarrés.

Lembro-me perfeitamente que lhe disse:

- Porque não me quiseram dar comida. Pedi que me dessem maçãs e gelados e não mos quiseram dar. Não sei onde é que os tinham escondidos.

Jaime Manjarrés não respondeu nada. Ficou silencioso por momentos. Voltou a apontar na direcção em que ficava Cartagena. Eu segui a direcção da sua mão e vi as luzes do porto, as bóias da baía a bailarem sobre a água. «Já chegámos», disse eu, e continuei a olhar intensamente para as luzes do porto, sem emoção, sem alegria, como se estivesse a chegar depois de uma viagem normal. Pedi a Jaime Manjarrés que remássemos um pouco. Mas ele já ali não estava. Tinha-se ido embora. Eu estava sozinho na balsa e as luzes do porto eram os primeiros raios do Sol. Os primeiros raios do meu terceiro dia de solidão no mar.

 

Um Barco de Salvamento e Uma Ilha de Canibais

A princípio fazia a conta dos dias pela recapitulação dos acontecimentos: o primeiro dia, 28 de Fevereiro, foi o do acidente. O segundo, o dos aviões. O terceiro foi o mais desesperante de todos: não aconteceu nada de especial. A balsa avançou impulsionada pelo vento. Eu não tinha forças para remar. O dia ficou nublado, senti frio e como não via o Sol perdi a orientação. Nessa manhã não teria podido saber donde é que vinham os aviões. Uma balsa não tem popa nem proa. É quadrada e às vezes navega de lado, gira sobre si mesma imperceptivelmente, e como não há pontos de referência não se sabe se avança ou retrocede. O mar é igual por todos os lados. Às vezes deitava-me na parte posterior da borda, em relação ao sentido em que a balsa avançava. Cobria o rosto com a camisa. Quando me levantava, a balsa tinha avançado para onde eu me encontrava deitado. Então eu não sabia se a balsa tinha mudado de direcção nem se tinha girado sobre si mesma. Algo semelhante me aconteceu com o tempo depois do terceiro dia.

Ao meio-dia decidi fazer duas coisas: primeiro, fixei um remo numa das extremidades da balsa, para saber se avançava sempre num mesmo sentido. Segundo, fiz com as chaves, na borda, um risco para cada dia que passava, e marquei a data. Tracei o primeiro risco e pus um número: 28.

Tracei o segundo risco e pus outro número: 29. Ao terceiro dia, junto ao terceiro risco, pus o número 30. Foi outra confusão. Eu julgava que estávamos no dia 30 e na realidade era 2 de Março. Só dei por isso ao quarto dia, quando duvidei se o mês que acabava de se concluir teria 30 ou 31 dias. Só então me lembrei de que era Fevereiro, e mesmo que agora pareça uma palermice, aquele erro confundiu-me o sentido do tempo. Ao quarto dia já não estava muito seguro das minhas contas em relação aos dias em que já andava na balsa. Eram três? Eram quatro? Eram cinco? De acordo com os riscos, fosse Fevereiro ou Março, já havia três dias. Mas não tinha muita certeza, tal como não tinha a certeza se a balsa avançava ou retrocedia. Preferi deixar as coisas como estavam, para evitar novas confusões, e perdi definitivamente as esperanças de me virem salvar.

Ainda não tinha comido nem bebido. Já não queria pensar, custava-me organizar as ideias. A pele, abrasada pelo sol, ardia-me terrivelmente, cheia de bolhas. Na Base Naval o instrutor tinha-nos advertido que se devia procurar a todo o custo não expor os pulmões aos raios do Sol. Essa era uma das minhas preocupações. Tinha tirado a camisa, sempre molhada, e amarrara-a à cintura, pois incomodava-me o seu contacto com a pele. Como tinha quatro dias de sede e já me era materialmente impossível respirar e sentia uma dor profunda na garganta, no peito e por debaixo das clavículas, ao quarto dia bebi um pouco de água salgada. Essa água não acalma a sede, mas refresca. Tinha demorado tanto tempo a bebê-la porque sabia que da segunda vez devia beber menos quantidade, e só quando tivessem passado muitas horas.

 

Todos os dias, com assombrosa pontualidade, os tubarões chegavam às cinco. Havia então disputa em volta da balsa. Peixes enormes saltavam fora da água e poucos momentos depois ressurgiam feitos cm bocados. Os tubarões, enlouquecidos, precipitavam-se surdamente contra a superfície ensanguentada. Ainda não tinham tentado partir a balsa, mas sentiam-se atraídos por ela porque era de cor branca. Toda a gente sabe que os tubarões atacam de preferência os objectos brancos. O tubarão é míope, de maneira que só consegue ver as coisas brancas ou brilhantes. Essa era outra recomendação do instrutor:

- É preciso esconder as coisas brilhantes para não chamar a atenção dos tubarões.

Eu não levava coisas brilhantes. Até o mostrador do meu relógio é escuro. Mas ter-me-ia sentido tranquilo se tivesse tido coisas brancas para atirar à água, longe da balsa, no caso de os tubarões terem tentado saltar. Para prevenir, a partir do quarto dia estive sempre com o remo preparado para me defender, depois das cinco da tarde.

 

Barco à Vista!

Durante a noite atravessava um remo na balsa e tentava dormir. Não sei se isso aconteceria apenas quando estava a dormir ou também quando estava acordado, mas todas as noites via Jaime Manjarrés. Conversávamos por breves minutos, sobre qualquer coisa, e depois desaparecia. Já me tinha habituado às suas visitas. Quando o Sol nascia, eu imaginava que eram alucinações. Mas de noite não tinha a menor dúvida de que Jaime Manjarrés estava ali, na borda, a conversar comigo. Ele também tentava dormir, na madrugada do quinto dia. Cabeceava em silêncio, recostado no outro remo. De repente pôs-se a perscrutar o mar. Disse-me:

Olha!

Eu ergui o olhar. A uns trinta quilómetros da balsa, avançando no mesmo sentido do vento, vi as intermitentes, mas inconfundíveis luzes de um barco.

Há horas que náo me sentia com forças para remar. Mas ao ver as luzes, endireitei-me na balsa, agarrei nos remos com força c tentei dirigir-me para o barco. Via-o avançar lentamente, e por instantes não só vi as luzes do mastro, como a sombra do mesmo avançando contra os primeiros fulgores do amanhecer.

O vento oferecia-me uma forte resistência. Apesar de ter remado com desespero, com uma força que não me pertencia depois de mais de quatro dias sem comer nem beber, acho que não consegui desviar a balsa nem um metro da direcção que o vento lhe imprimia.

As luzes estavam cada vez mais distantes, comecei a suar. Comecei a sentir-me esgotado. Daí a vinte minutos as luzes tinham desaparecido por completo. As estrelas começaram a apagar-se e o céu tingiu-se de um cinzento intenso. Desolado no meio do mar, larguei os remos, pus-me de pé, fustigado pelo vento gelado da madrugada e durante breves minutos pus-me a gritar como um louco.

Quando vi novamente o Sol, estava outra vez recostado no remo. Sentia-me completamente extenuado. Agora não esperava a salvação por lado nenhum e sentia vontade de morrer. No entanto, algo estranho me acontecia quando sentia vontade de morrer: começava imediatamente a pensar num perigo. Esse pensamento infundia-me esperanças renovadas para resistir. Na manhã do meu quinto dia, estava disposto a desviar a direcção da balsa fosse por que meio fosse. Lembrei-me de que se continuasse na direcção do vento chegaria a uma ilha habitada por canibais. Em Mobile, numa revista cujo nome tinha esquecido, li o relato de um náufrago que foi devorado pelos antropófagos. Mas não era nesse relato que eu pensava. Pensava cm El Marinero Renegado, um livro que eu li em Bogotá, há dois anos. Era a história de um marinheiro que durante a guerra, depois do seu barco chocar contra uma mina, conseguiu nadar até uma ilha próxima. Lá permanece vinte e quatro horas, a alimentar-se de frutas silvestres, até que os canibais o descobrem, deitam-no numa panela de água a ferver e cozem-no vivo. Comecei a pensar instantaneamente nessa ilha. Já não conseguia imaginar a costa senão como um território povoado de canibais. Pela primeira vez durante os meus cinco dias de solidão no mar, o meu terror mudou de direcção: agora não tinha tanto medo do mar como da terra.

Ao meio-dia fiquei recostado na borda, em letargia devido ao sol, à fome e à sede. Não pensava em nada. Não tinha o sentido do tempo nem da direcção. Tentei pôr-me em pé, para experimentar as forças, e tive a sensação de que não podia com o meu corpo.

«É este o momento», pensei. E, na realidade, pareceu-me que aquele era o momento mais temível de todos os que o instrutor nos tinha explicado: o momento de me amarrar à balsa. Há um instante em que já não se sente a sede nem a fome. Um momento em que não se sentem nem as implacáveis mordidas do sol nem a pele empolada. Não se pensa. Não se tem qualquer unção dos sentimentos. Mas ainda não se perdem as esperanças. Ainda resta o recurso final de soltar os cabos do entrançado e amarrarmo-nos à balsa. Durante a guerra muitos cadáveres foram encontrados assim, decompostos e picados pelas aves, mas fortemente amarrados à balsa.

Pensei que ainda tinha forças para esperar até à noite sem necessidade de me amarrar. Deslizei até ao fundo da balsa, estiquei as pernas e permaneci submerso até ao pescoço várias horas. Ao contacto com o sol, a ferida do joelho começou a doer-me. Foi como se tivesse acordado. E como se essa dor me tivesse dado uma nova noção da vida. Pouco a pouco, ao contacto da água fresca, fui recuperando as forças. Então senti uma forte picada no estômago e a barriga mexeu -se, agitada por um barulho longo e profundo. Temei suportá-lo, mas foi-me impossível. Com muita dificuldade levantei-me, desapertei o cinto, desci as calças e senti um grande alívio com a descarga da barriga. Era a primeira vez em cinco dias. E pela primeira vez em cinco dias os peixes, desesperados, bateram contra a borda, tentando partir os sólidos cabos da malha.

 

Sete Gaivotas

A visão dos peixes, brilhantes e próximos, revolvia-me a fome. Pela primeira vez senti um verdadeiro desespero. Pelo menos agora tinha um isco. Esqueci-me da extenuação, agarrei num remo e preparei-me para esgotar os últimos vestígios das minhas forças com uma pancada certeira na cabeça de um dos peixes que saltavam contra a borda, num regatear furioso. Não sei quantas vezes descarreguei o remo. Sentia que em cada pancada acertava, mas esperava inutilmente localizar a presa. Havia ali uma terrível disputa de peixes que se devoravam entre si, e um tubarão de pança para cima, a tirar um suculento partido na água agitada. A presença do tubarão fez-me desistir do meu propósito. Decepcionado, larguei o remo e deitei-me na borda. Dali a poucos minutos senti uma terrível alegria: sete gaivotas voavam sobre a jangada.

Para um faminto marinheiro solitário no mar, a presença das gaivotas é uma mensagem de esperança. Em geral, um bando de gaivotas acompanha os barcos, mas só até ao segundo dia de navegação. Sete gaivotas sobre a balsa significavam a proximidade da terra.

Se tivesse tido forças ter-me-ia posto a remar. Mas estava extenuado. Mal me conseguia manter uns poucos minutos de pé. Convencido de que estava a menos de dois dias de navegação, de que me estava a aproximar de terra, bebi outro bocado de água na concha da mão e voltei a deitar-me na borda, de caras para o i in para que o sol não me desse nos pulmões. Não tapei a cara i mi a camisa porque queria continuar a ver as gaivotas que voavam lentamente em ângulo agudo, adentrando-se no mar. Era a uma da tarde do meu quinto dia no mar.

Não sei em que altura é que ela chegou. Eu estava deitado na balsa, aí por volta das cinco da tarde e dispunha-me a descer para o interior antes de os tubarões chegarem. Mas então vi uma pequena gaivota, assim do tamanho da minha mão, que voava em volta da balsa e parava por breves minutos na outra ponta da borda.

A boca encheu-se-me de uma saliva gelada. Não tinha forma de capturar aquela gaivota. Nenhum instrumento, excepto as minhas mãos e a minha astúcia, aguçada pela fome. As outras gaivotas tinham desaparecido. Só restava aquela pequena, cor de café, de penas brilhantes, que dava saltos na borda.

Mantive-me absolutamente imóvel. Parecia-me sentir pelo meu ombro o fio da barbatana do tubarão pontual que desde as cinco devia estar ali. Mas decidi correr o risco. Nem sequer me atrevia a olhar para a gaivota, para que ela não reparasse no movimento da minha cabeça. Vi-a passar, muito baixa, por cima do meu corpo. Vi-a afastar-se, desaparecer no céu. Mas eu não perdi a esperança. Não me ocorria como é que iria despedaçá-la. Sabia que tinha fome e que, se permanecesse completamente imóvel, a gaivota passearia ao alcance da minha mão.

Esperei mais de meia hora, penso. Vi-a aparecer e desaparecer várias vezes. Houve um momento em que senti, junto da minha cabeça, a barbatana do tubarão a desfazer um peixe. Mas em vez de medo senti mais fome. A gaivota saltitava pela borda. Era o entardecer do meu quinto dia no mar. Cinco dias sem comer. Apesar da minha emoção, apesar de o coração me bater forte dentro do peito, permaneci imóvel, como um morto, enquanto sentia a gaivota aproximar-se.

Eu estava estendido na borda, com as mãos nas coxas. Tenho a certeza de que durante meia hora nem sequer me atrevi a pestanejar. O céu estava a ficar brilhante e maltratava-me a vista, mas não me atrevia a fechar os olhos naquele momento de tensão. A gaivota estava a bicar nos sapatos.

Tinha passado uma longa e intensa meia hora, quando senti que a gaivota tinha parado na minha perna. Suavemente, bicou-me as calças. Eu continuava absolutamente imóvel quando me deu uma bicada seca e forte no joelho. Estive quase a saltar por causa da ferida. Mas consegui suportar a dor. Depois, deslizou até à minha coxa direita, a cinco ou seis centímetros da minha mão. Então, cortei a respiração e imperceptivelmente, com uma tensão desesperada, comecei a deslizar a mão.

 

Os Desesperados Recursos de Um Faminto

Se uma pessoa se deitar numa praça com a esperança de capturar uma gaivota, pode estar ali toda a vida sem conseguir. Mas a cem milhas da costa é diferente. As gaivotas têm o instinto de conservação afinado em terra firme. No mar são animais confiantes.

Eu estava tão imóvel que provavelmente aquela gaivota pequena e brincalhona que poisou na minha coxa julgou que eu estava morto. Eu estava a vê-la na minha coxa. Bicava-me nas calças, mas não me fazia mal. Continuei a deslizar a mão. Bruscamente, no preciso instante em que a gaivota se apercebeu do perigo e tentou levantar voo, agarrei-a por uma asa, saltei para o interior da balsa e preparei-me para a devorar.

Enquanto esperava que ela poisasse na minha coxa, tinha a certeza de que, se conseguisse capturá-la, a comeria viva, sem lhe tirar as penas. Estava faminto e a própria ideia do sangue do animal me exaltava a sede. Mas quando a tive nas mãos, quando senti a palpitação do seu corpo quente, quando vi os seus redondos e brilhantes olhos pardos, tive um momento de vacilação.

Certa vez estava eu no convés com uma carabina, tentando caçar uma das gaivotas que seguiam o barco. O mestre do contratorpedeiro, um marinheiro experiente, disse-me: «Não sejas infame. A gaivota para o marinheiro é como ver terra. Não é digno de um marinheiro matar uma gaivota.» Eu lembrava-me daquele momento, das palavras do mestre, quando estava na balsa com a gaivota capturada, disposto a dar-lhe morte e a esquartejá-la. Apesar de estar há cinco dias sem comer, as palavras do mestre ecoavam nos meus ouvidos, como se as estivesse a ouvir. Mas naquele momento a fome era mais forte do que tudo. Agarrei na cabeça do animal com força e comecei a torcer-lhe o pescoço, como a uma galinha.

Era demasiado frágil. A primeira volta senti que ficavam destroçados os ossos do pescoço. À segunda volta senti o seu sangue, vivo e quente, a jorrar por entre os meus dedos. Tive pena. Aquilo parecia um assassínio. A cabeça, ainda palpitante, desprendeu-se do corpo e ficou a tremer na minha mão.

O jorro de sangue na balsa sublevou os peixes. A branca e brilhante barriga de um tubarão passou a roçar pela borda. Nesse momento, um tubarão, enlouquecido pelo cheiro do sangue, pode cortar com uma mordida uma lâmina de aço. Como as suas mandíbulas estão colocadas debaixo do corpo, tem de se voltar para comer. Mas como é míope e voraz, quando se volta de barriga para cima arrasta tudo o que encontrar à sua passagem. Tenho a impressão de que nesse momento o tubarão tentou investir contra a balsa. Aterrorizado, deitei-lhe a cabeça da gaivota e vi, a poucos centímetros da borda, a tremenda concorrência daqueles animais enormes que disputavam uma cabeça de gaivota, mais pequena que um ovo.

A primeira coisa que tratei de fazer foi depená-la. Era excessivamente leve e os ossos tão frágeis que podiam despedaçar-se com os dedos. Tentava arrancar-lhe as penas, mas estavam coladas à pele, delicada e branca, de tal forma que a carne se desprendia com as penas ensanguentadas. A substância negra c viscosa nos dedos e causou-me uma sensação de repugnância,

É fácil dizer que depois de cinco dias de fome uma pessoa é capaz de comer qualquer coisa. Mas por mais faminto que se esteja sente-se nojo de um amontoado de penas e de sangue quente, com um intenso cheiro a peixe cru e a sarna.

A princípio, tentei depená-la cuidadosamente, com um certo método. Mas não contava com a fragilidade da sua pele. Ao tirar-lhe as penas começou a desfazer-se-me nas mãos. Lavei-a dentro da balsa. Desfi-la de um só esticão e a presença dos seus intestinos rosados, das suas vísceras azuis, revolveu-me o estômago. Levei à boca uma tira de coxa, mas não consegui engoli-la. Era insípida. Pareceu-me que estava a mastigar uma rã. Sem conseguir dissimular a repugnância, atirei o pedaço que tinha na boca e mantive-me um longo bocado imóvel, com aquela massa de penas e ossos sangrentos na mão.

A primeira coisa que me ocorreu foi que aquilo que eu não conseguia comer me serviria de isco. Mas não tinha nenhum material de pesca. Se ao menos tivesse tido um alfinete. Um bocado de arame. Mas não tinha nada além das chaves, do relógio, do anel c dos cartões do armazém de Mobile.

Pensei no cinto. Pensei que podia improvisar um anzol com a fivela. Mas os meus esforços foram inúteis. Era impossível improvisar um anzol com o cinto. Estava a anoitecer e os peixes, enlouquecidos pelo cheiro do sangue, davam saltos em volta da balsa. Quando escureceu totalmente atirei à água os restos da gaivota e deitei-me para morrer. Enquanto preparava o remo para me deitar ouvia a surda guerra dos animais a disputarem os ossos que1 eu não conseguira comer.

Penso que nessa noite teria morrido de esgotamento e desespero. Um vento forte levantou-se desde as primeiras horas. A balsa dava saltos, enquanto eu, sem pensar sequer na precaução de me amarrar aos cabos, jazia exausto dentro de água, apenas com os pés e a cabeça de fora.

Mas depois da meia-noite houve uma mudança: nasceu a Lua. Desde o dia do acidente foi a primeira noite. Sob a claridade azul, a superfície do mar ganha um aspecto espectral. Nessa noite Jaime Manjarrés não veio. Fiquei sozinho, desesperado, abandonado à minha sorte no fundo da balsa.

No entanto, cada vez que o ânimo esmorecia, acontecia qualquer coisa que fazia renascer a minha esperança. Nessa noite foi o reflexo da Lua nas ondas. O mar estava picado e em cada onda parecia-me ver a luz de um barco. Há duas noites que tinha perdido as esperanças de que um barco me salvasse. No entanto, ao longo de toda aquela noite tornada transparente pelo luar

- a minha sexta noite no mar - fiquei a perscrutar o horizonte desesperadamente, quase com tanta intensidade e tanta fé como na primeira. Se agora me encontrasse nas mesmas circunstâncias morreria de desespero: agora sei que a rota por onde a balsa navegava não é rota de barco nenhum.

 

Eu Era Um Morto

Não me lembro do amanhecer do sexto dia. Tenho uma ideia nebulosa de que durante toda a manhã fiquei prostrado no fundo da balsa, entre a vida e a morte. Nesses momentos pensava na minha família e via-a tal como me contaram agora que esteve durante os dias do meu desaparecimento. Não me apanhou de surpresa a notícia de que me tinham prestado honras fúnebres. Naquela minha sexta manhã de solidão no mar, pensei que tudo isso estava a acontecer. Sabia que tinham comunicado à minha família a notícia do meu desaparecimento. Como os aviões não tinham voltado sabia que tinham desistido da busca e que me tinham declarado morto.

Nada disso era falso, até certo ponto. Em todos os momentos tentei defender-me. Sempre encontrei um recurso para sobreviver.

Um ponto de apoio, por insignificante que fosse, para continuar à espera. Mas ao sexto dia já não esperava nada. Eu era um morto na balsa.

À tarde, pensando que rapidamente seriam as cinco e os tubarões voltariam, fiz um desesperado esforço por me endireitar para me amarrar à borda. Em Cartagena, há dois anos, vi na praia os restos de um homem, desfeito pelo tubarão. Não queria morrer assim. Não queria ser dividido em bocados no meio de um monte de animais insaciáveis.

Iam ser as cinco. Pontuais, os tubarões estavam ali, a rondar a balsa. Endireitei-me com esforço para desatar os cabos do entrançado. A tarde estava fresca. O mar, calmo. Senti-me ligeiramente tonificado. Subitamente, vi outra vez as sete gaivotas do dia anterior e essa visão infundiu-me renovados desejos de viver.

Nesse instante teria comido qualquer coisa. A fome incomodava-me. Mas era pior a garganta desfeita e a dor nos maxilares, endurecidos pela falta de exercício. Precisava de mastigar qualquer coisa. Tentei arrancar tiras de borracha dos meus sapatos, mas não tinha com que as cortar. Foi então que me lembrei dos cartões do armazém de Mobile.

Estavam num dos bolsos das minhas calças, quase completamente desfeitos pela humidade. Fi-los em bocados, levei-os à boca e comecei a mastigar. Aquilo foi como que um milagre: a garganta aliviou um pouco e a boca encheu-se-me de saliva. Lentamente, continuei a mastigar, como se fosse pastilha elástica. A primeira mordidela doeram-me os maxilares. Mas depois, à medida que mastigava o cartão que guardei sem saber porquê desde o dia em que saí a fazer compras com Mary Address, senti-me mais forte e optimista. Pensava continuar a mastigá-los indefinidamente para aliviar a dor dos queixais. Mas pareceu-me uma tontice atirá-los ao mar. Senti descer ate ao estômago a minúscula papa de cartão moído e a partir desse instante tive a sensação de que me salvaria, de que não seria desfeito pelos tubarões.

 

A Que É Que Sabem os Sapatos?

O alívio que senti com os cartões aguçou-me a imaginação para continuar à procura de coisas para comer. Se tivesse tido uma navalha teria despedaçado os sapatos e teria mastigado tiras de borracha. Era o que dava mais nas vistas do que tinha à mão. Tentei separar com as chaves a sola branca e limpa. Mas os esforços foram inúteis. Era impossível arrancar uma tira dessa borracha solidamente fundida no tecido.

Desesperadamente, mordi no cinto até me doerem os dentes. Não consegui arrancar nem um bocado. Nesse momento devo ter parecido uma fera, tentando arrancar com os dentes bocados dos sapatos, do cinto e da camisa. Já ao anoitecer, tirei a roupa, completamente encharcada. Fiquei em calções. Não sei se atribuir isso aos cartões, mas quase imediatamente depois estava a dormir. Na minha sétima noite, talvez por já estar habituado à incomodidade da balsa, talvez por estar esgotado depois de sete noites de vigília, adormeci profundamente durante longas horas. Às vezes uma onda acordava-me; dava um salto, alarmado, sentindo que a força da pancada me arrastava para a água. Mas imediatamente depois recuperava o sono.

Por fim amanheceu o meu sétimo dia no mar. Não sei porque é que tinha a certeza de que não seria o último. O mar estava calmo e nublado, e quando o Sol nasceu, aí pelas oito da manhã, sentia-me reconfortado pelo bom sono da noite recente. Contra o céu de chumbo e baixo passaram sobre a balsa as sete gaivotas.

Dois dias antes tinha sentido uma grande alegria com a presença das sete gaivotas. Mas quando as vi pela terceira vez, depois de as ter visto durante dois dias consecutivos, senti renascer o terror. «São sete gaivotas perdidas», pensei. E pensei com desespero. Todo o marinheiro sabe que às vezes um bando de gaivotas se perde no mar e voa sem direcção durante vários dias, até que seguem um barco que lhes indica a direcção do porto. Talvez aquelas gaivotas que eu tinha visto durante três dias fossem as mesmas todos os dias, perdidas no mar. Isso significava que a rainha balsa se encontrava cada vez a maior distância de terra.

 

A Minha Luta com os Tubarões por Um Peixe

A ideia de que em vez de me aproximar da costa estivera a entrar no mar durante sete dias fez desmoronar a resolução de continuar a lutar. Mas quando uma pessoa se sente à beira da morte agarra-se ao instinto de conservação. Por várias razões, naquele dia - o meu sétimo dia - era muito diferente dos anteriores: o mar estava calmo e escuro; o sol que me abrasava a pele era morno e sedativo e uma brisa ténue empurrava a balsa com suavidade e aliviava-me um pouco das queimaduras.

Os peixes também eram diferentes. Escoltavam a balsa desde muito cedo. Nadavam superficialmente. Eu via-os com clareza: peixes azuis, pardos e vermelhos. Havia-os de todas as cores, de todas as formas e tamanhos. Navegando junto a eles, a balsa parecia deslizar sobre um aquário.

Não sei se depois de sete dias sem comer, à deriva no mar, uma pessoa se chega a acostumar a essa vida. Parece-me que sim. O desespero do dia anterior foi substituído por uma resignação pastosa e sem sentido. Eu tinha a certeza de que tudo era diferente, de que o mar e o céu tinham deixado de ser hostis, e que os peixes que me acompanhavam na viagem eram peixes amigos. Os meus velhos conhecidos de sete dias.

Nessa manhã não pensei em arribar a lado nenhum. Tinha a certeza de que a balsa tinha chegado a uma região sem barcos, onde até as gaivotas se extraviavam.

Pensava, porém, que depois de ter estado sete dias à deriva, acabaria por me acostumar ao mar, ao meu angustiante método de vida, sem necessidade de aguçar o engenho para subsistir. Apesar de tudo tinha subsistido uma semana contra ventos e marés. Porque é que não podia continuar indefinidamente numa balsa? Os peixes nadavam na superfície, o mar estava limpo e sereno. Havia tantos animais bonitos e vistosos em volta da embarcação que me parecia que os podia agarrar aos punhados. Não havia nenhum tubarão à vista. Com confiança, meti a mão na água e tentei agarrar um peixe redondo, de um azul-brilhante, de não mais de vinte centímetros. Foi como se tivesse atirado uma pedra. Todos os peixes mergulharam precipitadamente. Desapareceram na água, momentaneamente agitada. Depois, pouco a pouco, voltaram à superfície.

Pensei que precisava de um pouco de astúcia para pescar com a mão. Debaixo de água a mão não tinha a mesma força nem a mesma habilidade. Seleccionava um peixe do monte. Tentava agarrá-lo. E realmente agarrava-o. Mas sentia-o fugir entre os meus dedos, com uma rapidez e uma agilidade que me desconcertavam. Estive assim, paciente, sem me apressar, tentando capturar um peixe. Não pensava no tubarão, que talvez estivesse ali, no fundo, à espera que eu mergulhasse o braço até ao cotovelo para o levar com uma dentada certeira. Até pouco depois das de/ estive ocupado na tarefa de capturar o peixe. Mas foi inútil. Mordiscavam-me os dedos, primeiro suavemente, como quando beliscam num isco. Depois com mais força. Um peixe de meio metro, liso e prateado, de afiados dentes pequenos, arranhou-me a do polegar. Então apercebi-me de que os mordiscos dos outros peixes não tinham sido inofensivos. Em todos os dedos tinha pequenas arranhadelas a sangrar.

 

Um Tubarão na Balsa!

Não sei se foi o meu sangue, mas momentos depois havia uma revolução de tubarões em volta da balsa. Nunca tinha visto tantos. Nunca os tinha visto dar mostras de semelhante voracidade. Saltavam como golfinhos, perseguindo e devorando peixes junto à borda. Atemorizado, sentei-me no interior da balsa e pus-me a contemplar o massacre.

A coisa ocorreu tão violentamente que não me apercebi em que momento é que o tubarão saltou fora da água, deu uma forte rabanada, e a balsa, oscilando, mergulhou na espuma brilhante. No meio do fulgor do golpe de mar que rebentou contra a borda consegui ver um relâmpago metálico. Instintivamente, agarrei num remo e pus-me a desferir o golpe de morte: tinha a certeza, de que o tubarão se metera na balsa. Mas em poucos instantes vi a barbatana enorme que se destacava pela borda e apercebi-me do que tinha acontecido. Perseguido pelo tubarão, um peixe brilhante e verde, aí com meio metro de comprimento, tinha saltado para dentro da balsa. Com todas as minhas forças desferi o primeiro golpe de remo na sua cabeça.

Não é fácil matar um peixe dentro de uma balsa. A cada pancada a embarcação oscilava; ameaçava dar uma volta sobre si mesma. O momento era tremendamente perigoso. Precisava de todas as minhas forças e de toda a minha lucidez. Se desferisse as pancadas loucamente a balsa podia voltar-se. Eu cairia na água agitada de tubarões famintos. Mas se não batesse com precisão, a presa escapava-se-me. Estava entre a vida e a morte. Ou caía entre as fauces dos tubarões, ou tinha quatro libras de peixe fresco para saciar a minha fome de sete dias.

Apoiei-me firmemente na borda e desferi o segundo golpe. Senti a madeira do remo incrustar-se nos ossos da cabeça do peixe. A balsa oscilou. Os tubarões sacudiram-se debaixo do piso. Mas eu estava firmemente encostado à borda. Quando a embarcação recuperou a estabilidade, o peixe continuava vivo, no meio da balsa. Na agonia, um peixe pode saltar mais alto e mais longe que nunca. Eu sabia que o terceiro golpe tinha de ser certeiro ou perderia a presa para sempre.

De um salto fiquei sentado no piso, assim teria maiores probabilidades de o agarrar. Tê-lo-ia capturado com os pés, entre os joelhos ou com os dentes, se tivesse sido necessário. Agarrei-me firmemente ao piso. Procurando não errar, convencido de que a minha vida dependia daquele golpe, deixei cair o remo com todas as minhas forças. O animal ficou imóvel com o impacto e um fio de sangue escuro tingiu a água da balsa.

Eu próprio senti o cheiro do sangue. Mas também os tubarões sentiram. Pela primeira vez, nesse instante, com quatro libras de peixe à minha disposição, senti um terror incontido: enlouquecidos pelo cheiro do sangue, os tubarões lançavam-se com todas as suas forças contra o piso. A balsa oscilava. Eu sabia que de um momento para o outro se podia virar sobre si mesma. Seria coisa de segundos. Em menos do que dura um relâmpago eu seria despedaçado pelas três fieiras de dentes de aço que um tubarão tem em cada mandíbula.

No entanto, o acosso da fome era então superior a tudo. Apertei o peixe entre as pernas e apliquei-me, oscilando, à difícil tarefa de equilibrar a balsa cada vez que sofria uma nova arremetida das feras. Aquilo durou vários minutos. De cada vez que a embarcação estabilizava, eu deitava pela borda fora a água ensanguentada. Pouco a pouco a superfície ficou limpa e as feras acalmaram. Mas tinha de ter cuidado: uma pavorosa barbatana de tubarão - a maior barbatana de tubarão ou de qualquer outro animal que vira na minha vida - sobressaía mais de um metro por cima da borda. Nadava calmamente, mas eu sabia que, se sentisse de novo o cheiro do sangue, daria uma sacudidela que poderia virar a balsa. Com grandes precauções, dispus-me a desmanchar o meu peixe. Um animal de meio metro está protegido por uma dura crosta de escamas. Quando tentamos arrancá-las sentimos que estão agarradas à carne como lâminas de aço. Eu não dispunha de nenhum instrumento cortante. Tentei tirar-lhe as escamas com as chaves, mas nem sequer consegui fazer com que se separassem. Entretanto, apercebi-me de que nunca tinha visto um peixe como aquele: era de um verde-intenso, com escamas sólidas. Desde criança que relacionei a cor verde com os venenos. É incrível, mas apesar de o estômago me palpitar dolorosamente com a simples perspectiva de um bocado de peixe fresco, tive um momento de hesitação perante a ideia de que aquele estranho animal fosse um animal venenoso.

 

O Meu Pobre Corpo

No entanto, a fome é suportável quando não se tem esperanças de encontrar alimentos. Nunca tinha sido tão implacável como naquele momento em que eu, sentado no fundo da balsa, tentava rasgar a carne verde e brilhante com as chaves.

Ao fim de poucos minutos compreendi que precisava de agir com mais violência se na realidade queria comer a minha presa. Pus-me de pé, pisei-lhe a cauda com força e meti-lhe o cabo de um dos remos nas guelras. Tinha uma carapaça grossa e resistente, Escarafunchando com o cabo do remo consegui por fim destroçar-lhe as guelras. Apercebi-me de que ainda não estava morto. Dei-lhe outra pancada na cabeça. Depois tentei arrancar-lhe as duras lâminas protectoras das guelras e nesse momento não soube se o sangue que corria pelos meus dedos era meu ou do peixe. Eu tinha as mãos feridas e em carne viva nas pontas dos dedos.

O sangue voltou a agitar a fome dos tubarões. É difícil acreditar que naquele momento, sentindo à minha volta a fúria das bestas famintas, sentindo repugnância pela carne ensanguentada, estive quase a deitar o peixe aos tubarões, como fizera com a gaivota. Sentia-me desesperado, impotente perante aquele corpo sólido, impenetrável.

Explorei-o minuciosamente, procurando as suas partes moles. Por fim encontrei um resquício debaixo das guelras; com o dedo comecei a tirar-lhe as tripas. As vísceras de um peixe são moles e inconsistentes. Diz-se que se se der um forte puxão à cauda de um tubarão, o estômago e os intestinos saem expelidos pela boca. Em Cartagena vi tubarões pendurados pela cauda com uma enorme, escura e viscosa massa de vísceras pendente das mandíbulas.

Felizmente, as vísceras do meu peixe eram tão moles como as dos tubarões. Em instantes tirei-as com o dedo. Era uma fêmea: entre as vísceras havia uma série de ovas. Quando ficou completamente estripado dei-lhe a primeira mordidela. Não consegui penetrar a camada de escamas. Mas à segunda tentativa, com forças renovadas, mordia desesperadamente, até que me doeram os maxilares. Então consegui arrancar o primeiro bocado e comecei a mastigar a carne fria e dura.

Mastigava com nojo. Sempre me repugnou o cheiro a peixe cru. Mas o sabor é ainda mais repugnante: tem um remoto sabor a chontaduro cru, mas mais insípido e viscoso. Nunca ninguém comeu um peixe vivo. Mas quando mastigava o primeiro alimento que chegava à minha boca em sete dias, tive pela primeira vez na minha vida a repugnante certeza de que estava a comer um peixe vivo.

O primeiro bocado produziu-me alívio imediato. Dei uma nova mordidela e voltei a mastigar. Um momento antes tinha pensado que era capaz de comer um tubarão inteiro. Mas ao segundo bocado senti-me cheio. A minha terrível fome de sete dias ficou aplacada num instante. Voltei a sentir-me forte, como no primeiro dia.

Agora sei que o peixe cru acalma a sede. Antes não sabia, mas observei que o peixe não só me tinha aplacado a fome como também a sede. Estava satisfeito e optimista. Ainda me restava alimento para muito tempo, dado que apenas tinha dado duas mordidelas num animal de meio metro.

Decidi embrulhá-lo na camisa e deixá-lo no fundo da balsa para que se mantivesse fresco. Mas antes tinha de o lavar. Distraidamente, agarrei-o pela cauda e mergulhei-o uma vez por fora da borda. Mas o sangue estava coagulado entre as escamas. Era preciso esfregá-lo. Ingenuamente voltei a mergulhá-lo. E foi então que senti a investida e o barulho violento das mandíbulas do tubarão. Agarrei na cauda do peixe com todas as minhas forças. O esticão da fera fez-me perder o equilíbrio. Bati com força contra a borda, mas continuei a agarrar o meu alimento. Defendi-o como uma fera. Não pensei, nessa fracção de segundos, que uma nova mordidela do tubarão me podia arrancar o braço pelo ombro. Voltei a puxar com todas as minhas forças, mas já não havia nada nas minhas mãos. O tubarão tinha levado a minha presa. Enfurecido, louco de desespero e de raiva, agarrei então num remo e dei uma pancada terrível na cabeça do tubarão, quando voltou a passar ao pé da borda. A fera deu um salto. Virou-se furiosamente e com uma só dentada, seca e violenta, despedaçou e engoliu metade do remo.

 

Começa a Mudar a Cor da Água

Com o remo partido, desesperado pela fúria, continuei a bater na água. Tinha necessidade de me vingar dos tubarões que me haviam arrebatado das mãos o único alimento de que dispunha. Iam ser cinco da tarde do meu sétimo dia no mar. Daí a momentos viriam os tubarões em massa. Eu sentia-me forte com os dois bocados que consegui comer, e a ira ocasionada pela perda do resto do peixe dava-me um estranho ânimo para lutar. Havia mais dois remos na balsa. Pensei trocar por outro o remo partido pela dentada do tubarão para continuar a batalhar com as feras. Mas o instinto de conservação foi mais forte que o furor: pensei que poderia perder os outros remos e não sabia em que momento é que podia precisar deles.

O anoitecer foi igual ao de todos os dias. Mas a noite foi mais escura. O mar estava de tempestade. Ameaçava chuva. Pensando que de um momento para o outro poderia dispor de água potável, tirei os sapatos e a camisa, para ter onde a apanhar. Era o que em terra firme se chama «uma noite de cães». No mar deve chamar-se «uma noite de tubarões».

Antes das nove começou a soprar o vento gelado. Tentei resistir no fundo da balsa, mas não foi possível. O frio penetrava-me até ao fundo dos ossos. Tive de pôr a camisa e os sapatos, e de me resignar à ideia de que a chuva me apanharia de surpresa e não teria com que apanhar a água. A ondulação era mais forte do que na tarde de 28 de Fevereiro, dia do acidente. A balsa parecia uma casca no mar picado e sujo. Não conseguia dormir. Tinha mergulhado na água até ao pescoço, porque o ar estava cada vez mais gelado. Tremia. Houve uma altura em que pensei que não conseguia resistir ao frio e comecei a fazer exercícios de ginástica, para procurar ganhar calor. Mas era impossível. Sentia-me muito fraco. Tinha de me agarrar com força à borda para evitar que a forte ondulação me atirasse à água. Tinha a cabeça apoiada no remo desfeito pelo tubarão. Os outros estavam no fundo da balsa.

Antes da meia-noite o vendaval aumentou, o céu ficou denso e de uma cor cinzenta profunda e o ar húmido, mas não tinha caído nem uma única gota. Poucos minutos depois da meia-noite, uma onda enorme - tão grande como a que tinha varrido o convés do contratorpedeiro - levantou a balsa como uma casca de banana, levou-a primeiro para cima e numa fracção de segundos fê-la dar uma volta sobre si.

Apercebi-me de tudo quando estava na água, a nadar para cima, como na tarde do acidente. Nadei desesperadamente, vim à superfície e senti-me morrer de terror: não vi a balsa. Vi as enormes ondas negras sobre a minha cabeça e lembrei-me de Luis Rengifo, um homem forte, um bom nadador bem alimentado que não conseguiu chegar à balsa a dois metros de distância. Tinha-me desorientado e estava a procurar a balsa pelo lado contrário. Atrás de mim, mais ou menos a um metro de distância, a balsa apareceu na superfície, leve, batida pelas ondas. Alcancei-a em duas braçadas. Duas braçadas dão-se em dois segundos, mas aqueles foram dois segundos eternos. Tão assustado estava que de um salto me encontrei a arquejar, completamente molhado, no fundo da embarcação. O coração dava pulos dentro do peito e não conseguia respirar.

 

A Minha Boa Estrela

Não tinha nada a dizer contra a minha sorte. Se aquela cambalhota tivesse sido às cinco da tarde, os tubarões ter-me-iam feito em bocados. Mas à meia-noite os animais estão em paz. E muito mais quando o mar está picado.

Quando me senti novamente na balsa tinha agarrado o remo que o tubarão desfizera. A coisa aconteceu com tanta rapidez que todos os meus movimentos foram instintivos. Mais tarde lembrei-me que ao cair à água o remo me tinha batido na cabeça e que o tinha capturado quando começava a afundar-me. Foi o único remo que ficou na balsa. Os outros dois tinham ficado no mar.

Para não perder nem sequer aquele pedaço de pau despedaçado pelos tubarões, amarrei-o com força com um dos cabos soltos do entrançado. O mar continuava bravo. Daquela vez tinha tido sorte. Talvez se a balsa voltasse a dar a volta eu não conseguisse alcançá-la. Pensando nisso desapertei o cinto e atei-me com força aos cabos do entrançado.

As ondas continuaram a atirar-se contra a borda. A balsa dançava no mar bravo e turvo, mas eu estava seguro, amarrado com o meu cinto ao entrançado. O remo também estava seguro. Fazendo esforços para não deixar que a embarcação se virasse outra vez, pensava que tinha estado quase a perder a camisa e os sapatos. Se não tivesse sido o frio, estariam no fundo da balsa quando esta deu a volta sobre si, e teriam caído ao mar juntamente com os dois remos.

É perfeitamente normal que uma balsa dê uma volta sobre si num mar picado. É uma embarcação feita em cortiça e forrada com uma tela impermeabilizada com tinta branca. Mas o piso não é fixo, pois fica pendurado da moldura de cortiça, como uma canasta. A balsa pode dar voltas na água, mas o piso recupera imediatamente a posição normal. O único perigo é o de perder a balsa. Por isso, eu pensava que enquanto estivesse amarrado ao entrançado a balsa podia dar mil voltas sem perigo de eu a perder.

Isso era verdade. Mas havia algo que eu tinha perdido de vista: um quarto de hora depois da primeira, a balsa deu uma segunda e espectacular volta sobre si. Primeiro senti-me suspenso no ar gelado e húmido, fustigado pelo vendaval. Vi perante os meus olhos o abismo e compreendi de que lado é que a balsa ia dar a volta. Tentei navegar para o outro lado para equilibrar a embarcação, mas impediu-mo a forte correia de couro amarrada ao entrançado. Em instantes compreendi o que se estava a passar: a balsa tinha-se voltado por completo. Eu estava no fundo, amarrado firmemente à borda. Estava a afogar-me e as minhas mãos procuravam em vão a fivela do cinto para a abrir.

Desesperadamente, mas procurando não me atordoar, tentei abrir a fivela. Sabia que não dispunha de muito tempo: em bom estado físico consigo permanecer mais de oitenta segundos debaixo de água. Tinha deixado de respirar a partir do momento em que me senti no fundo da balsa. Já tinham passado pelo menos cinco segundos. Percorri com a mão a cintura e penso que em menos de um segundo encontrei o cinto. Noutro segundo encontrei a fivela. Estava tão bem ajustada ao entrançado que eu tinha de me suspender da balsa com a outra mão para aligeirar a pressão.

Levei muito tempo a encontrar onde me agarrar com força. Depois ergui-me a pulso com o braço esquerdo. A mão direita encontrou a fivela, orientou-se rapidamente e desapertou a correia. Mantendo a fivela aberta deixei cair novamente o corpo para o fundo, sem me soltar da borda, e numa fracção de segundos senti-me livre do entrançado. Sentia que os meus pulmões rebentavam. com um último esforço agarrei-me à borda com as duas mãos; ergui-me com todas as minhas forças, ainda sem respirar. Involuntariamente, com o meu peso, não consegui outra coisa senão virar de novo a balsa. E eu voltei a ficar debaixo dela.

Estava a engolir água. A garganta, desfeita pela sede, ardia-me terrivelmente. Mas eu mal me apercebia. O importante era não soltar a balsa. Consegui pôr a cabeça de fora. Apanhei ar. Sentia-me esgotado. Não acreditei ter forças para subir para a borda. Mas estava ao mesmo tempo aterrorizado, metido na água que poucas horas antes tinha visto infestada de tubarões. Com a certeza de que naquele dia seria o último esforço que devia fazer na minha vida, apelei aos meus últimos vestígios de energia, levantei-me na borda c caí exausto no fundo da balsa.

 

Não sei quanto tempo estive assim, deitado de cara para cima, com a garganta dorida e as pontas dos dedos a palpitarem-me profundamente, em carne viva. Só sei que tinha duas preocupações ao mesmo tempo: que os pulmões descansassem e que a balsa não voltasse a dar a volta.

 

O Sol do Amanhecer

Assim amanheceu o meu oitavo dia no mar. Foi uma manhã tempestuosa. Se tivesse chovido não teria tido forças para apanhar a água. Mas sentia que a chuva me teria tonificado. No entanto, não caiu nem uma gota, apesar de a humidade do ar ser como que um anúncio da chuva iminente. O mar continuava picado ao amanhecer. Só acalmou depois das oito da manhã. Mas nessa altura nasceu o Sol e o céu recuperou a sua cor azul intensa.

Completamente esgotado, inclinei-me sobre a borda e bebi vários sorvos de água do mar. Agora sei que é conveniente para o organismo. Mas nessa altura ignorava-o, e só recorria a ela quando a dor na garganta me desesperava. Depois de sete dias sem beber água, a sede é uma sensação diferente; é uma dor profunda na garganta, no esterno e especialmente debaixo das clavículas. E é o desespero da asfixia. A água do mar aliviava-me a dor.

Depois da tempestade o mar amanhece azul, como nos quadros. Perto da costa vêem-se flutuar mansamente troncos e raízes arrancados pela tempestade. As gaivotas saem a voar sobre o mar. Nessa manhã, quando o vento parou, a superfície da água ficou metálica e a balsa deslizou suavemente em linha recta. O vento morno reconfortou-me o corpo e o espírito.

Uma gaivota grande, escura e velha, voou por cima da balsa. Então não pude duvidar que me encontrava perto de terra. A gaivota que eu capturara uns dias antes era um animal jovem. Nessa idade têm uma formidável capacidade de voo. Podem ser encontradas a muitas milhas da costa. Mas uma gaivota velha, grande e pesada como a que voava sobre a balsa no meu oitavo dia era daquelas que não se afastavam cem milhas da costa. Senti-me com forças renovadas para resistir. Tal como nos primeiros dias, pus-me a perscrutar o horizonte. Grandes quantidades de gaivotas aproximavam-se por todos os lados.

Senti-me acompanhado e alegre. Não tinha fome. Com mais frequência que antes bebia sorvos de água do mar. Sentia-me acompanhado no meio daquela quantidade de gaivotas que voavam em volta da minha cabeça. Lembrei-me de Mary Address. «Que será feito dela?», perguntava-me, recordando a sua voz quando me ajudava a traduzir os diálogos dos filmes. Precisamente nesse dia - o único em que me lembrei de Mary Address sem qualquer motivo, apenas porque o céu estava cheio de gaivotas - Mary estava no templo católico de Mobile a assistir a uma missa pelo descanso da minha alma - segundo Mary me escreveu para Cartagena - que foi dita no oitavo dia do meu desaparecimento. Foi pelo descanso da minha alma. li agora também acredito que foi pelo descanso do meu corpo, pois naquela manhã, enquanto eu me lembrava de Mary Address e ela assistia a uma missa em Mobile, eu sentia-me feliz no mar, vendo as gaivotas que anunciavam a proximidade de terra.

Durante quase todo o dia estive sentado na borda, a perscrutar o horizonte. O dia era de uma claridade espantosa. Tinha a certeza de que veria terra de uma distância de cinquenta milhas. A balsa ganhara uma velocidade que dois homens com quatro remos não conseguiriam imprimir-lhe. Navegava em linha recta, ramo que impulsionada por um motor, numa superfície lisa e azul.

Depois de estar sete dias numa balsa, uma pessoa é capaz de notar a mudança mais imperceptível na cor da água. A 7 de Março, às três e meia da tarde, reparei que a balsa entrava numa zona onde a água não era azul, mas sim de um verde-escuro. Houve um instante em que vi o limite: deste lado, a superfície azul que tinha visto durante sete dias; do outro, a superfície esverdeada e aparentemente mais densa. O céu estava cheio de gaivotas que passavam a voar muito baixo. Eu sentia o forte bater das asas por cima da minha cabeça. Eram indícios inequívocos: a mudança na cor da água, a abundância de gaivotas, indicaram-me que naquela noite devia permanecer acordado, pronto a descobrir as primeiras luzes da costa.

 

Perdidas as Esperanças... até A Morte

Não tive necessidade de me forçar a dormir durante a minha oitava noite no mar. A velha gaivota poisou na borda desde as nove e não se separou da balsa em toda a noite. Eu estava recostado no único remo que me restava: o pedaço destroçado pelo tubarão. A noite era tranquila e a balsa avançava em linha recta para um ponto determinado. «Aonde é que iria chegar?», perguntava-me, convencido pelos indícios - a cor da água e a velha gaivota de que no dia seguinte estaria em terra firme. Não tinha a menor ideia do lugar para onde é que a balsa se dirigia impulsionada pelo vento.

Não tinha a certeza de que a embarcação tivesse conservado a direcção inicial. Se tinha seguido o rumo dos aviões era provável que chegasse à Colômbia. Mas sem uma bússola era impossível saber. Se tivesse estado a viajar para o Sul, em linha recta, chegaria sem dúvida às costas colombianas das Caraíbas. Mas também era possível que tivesse estado a viajar para o Norte. Nesse caso não fazia a menor ideia da minha posição.

Antes da meia-noite, quando caía vencido pelo sono, a velha gaivota aproximou-se a bicar-me a cabeça. Não me fazia mal.

Bicava-me suavemente, sem me maltratar o couro cabeludo. Era como se estivesse a acariciar-me. Lembrei-me do mestre do contratorpedeiro, aquele que me disse que era uma indignidade um marinheiro matar uma gaivota, e senti remorsos pela pequena gaivota que matei inutilmente.

Perscrutei o horizonte até de madrugada. Nessa noite não esteve frio. Mas não consegui descobrir qualquer luz. Não havia sinais da costa. A balsa deslizava por um mar calmo e tranquilo, mas não havia à minha volta uma luz diferente da das estrelas. Quando me mantinha perfeitamente quieto, a gaivota parecia dormir. Baixava a cabeça, parada na borda, e mantinha-se também imóvel durante longo tempo. Mas assim que eu me mexia dava um salto e punha-se a dar-me bicadas na cabeça.

De madrugada mudei de posição. Deixei a gaivota do lado dos pés. Senti-a bicar-me os sapatos. Depois senti-a aproximar-se pela borda. Permaneci imóvel. A gaivota ficou completamente imóvel. Depois poisou perto da minha cabeça, também imóvel. Mas assim que mexi a cabeça começou a bicar-me o cabelo, quase com ternura. Aquilo tornava-se um jogo. Mudei várias vezes de posição. E várias vezes a gaivota se moveu para o lado da minha cabeça. Já ao amanhecer, sem necessidade de agir com cautela, estendi a mão e agarrei-a pelo pescoço.

Não pensei em matá-la. A experiência da outra gaivota indicava-me que seria um sacrifício inútil. Tinha fome, mas não pensava saciá-la naquele animal amigo, que me tinha acompanhado durante toda a noite sem me fazer mal. Quando a agarrei estendeu as asas, sacudiu-se bruscamente e tentou libertar-se. Em instantes, cruzei-lhe as asas por cima do pescoço para a privar da sua mobilidade. Então, levantou a cabeça e à primeira luz do dia vi os seus olhos, transparentes e assustados. Se em algum momento pensasse em fazê-la em bocados, ao ver os seus enormes olhos tristes teria desistido do meu propósito.

O Sol nasceu cedo, com uma força que pôs o ar a ferver desde as sete. Eu continuava deitado na balsa, com a gaivota agarrada com força. O mar era ainda verde e espesso, como no dia anterior, mas não havia em lado nenhum sinais da costa. O ar era sufocante. Então, soltei a minha prisioneira, que sacudiu a cabeça e saiu disparada para o céu. Momentos depois tinha-se juntado ao bando.

O Sol foi muito mais abrasador naquela manhã - a minha nona manhã no mar - do que em todos os dias anteriores. Apesar de eu ter tido cuidado para que nunca me desse nos pulmões, tinha as costas empoladas. Tive de tirar o remo em que me apoiava e mergulhar na água, porque já não conseguia aguentar o contacto da madeira nas costas. Tinha os ombros e os braços queimados. Nem sequer podia tocar na pele com os dedos, porque sentia como se fossem brasas vivas. Sentia os olhos irritados. Não conseguia fixá-los em ponto nenhum, porque o ar se enchia de círculos luminosos e ofuscantes. Até àquele dia não me tinha apercebido do estado lamentável em que me encontrava. Estava desfeito, em chagas devido ao sal da água e ao sol. Sem qualquer esforço arrancava dos braços longas tiras de pele. Depois ficava uma superfície vermelha e lisa. Um instante depois sentia o espaço sem pele palpitar dolorosamente e o sangue brotava-me pelos poros.

Não me tinha apercebido da barba. Há onze dias que não a fazia. A barba espessa chegava-me ao pescoço, mas não podia tocar nela, porque me doía terrivelmente a pele, irritada pelo sol. A ideia do meu rosto emagrecido, do meu corpo empolado, fez-me recordar o muito que tinha sofrido naqueles dias de solidão c desespero. E voltei a sentir-me desesperado. Não havia sinais da costa. Era meio-dia e voltei a perder a esperança de chegar a leria. Por muito que a balsa avançasse era impossível chegar A praia antes do anoitecer, pois não tinham aparecido àquela hora, por lado nenhum, os perfis da costa.

 

Uma alegria elaborada em doze horas desapareceu num minuto, sem deixar rasto. As minhas forças caíram. Desisti de todas as minhas preocupações. Pela primeira vez em nove dias deitei-me de barriga para baixo, com as costas abrasadas expostas ao sol. Fi-lo sem piedade pelo meu corpo. Sabia que se permanecesse assim, antes do anoitecer asfixiaria.

Há um instante em que já não se sente dor. A sensibilidade desaparece e a razão começa a embotar-se até que se perde a noção do tempo e do espaço. De barriga para baixo na balsa, com os braços apoiados na borda e a barba apoiada nos braços, senti a princípio os impiedosos mordiscos do sol. Vi o ar cheio de pontos luminosos, durante várias horas. Por fim fechei os olhos, extenuado, mas nessa altura já o sol não me ardia no corpo. Não sentia sede nem fome. Não sentia nada, além de uma indiferença geral pela vida e pela morte. Pensei que estava a morrer. E essa ideia encheu-me de uma estranha e obscura esperança.

Quando abri os olhos estava outra vez em Mobile. Fazia um calor asfixiante e tinha ido a uma festa ao ar livre, com outros camaradas do contratorpedeiro e com o judeu Massey Nasser, o empregado do armazém de Mobile onde nós, os marinheiros, comprávamos roupa. Era aquele que me tinha dado os cartões. Durante os oito meses em que o navio esteve em reparação, Massey Nasser dedicou-se a atender os marinheiros colombianos, e nós, como prova de gratidão, não comprávamos noutro armazém a não ser no dele. Ele falava espanhol correctamente, apesar de, segundo nos disse, nunca ter estado num país de língua castelhana.

Nesse dia, como quase todos os sábados, estávamos nesse café ao ar livre onde só havia judeus e marinheiros colombianos. Num estrado de madeira dançava a mesma mulher de todos os sábados. Tinha a barriga despida e o rosto coberto por um véu, como as dançarinas árabes dos filmes. Nós aplaudíamos e bebíamos cerveja enlatada. O mais alegre de todos era Massey Nasser, o empregado judeu do armazém de Mobile, que vendeu roupa fina e barata a todos os marinheiros colombianos.

Não sei quanto tempo é que estive assim, embotado, com a alucinação da festa de Mobile. Só sei que de repente dei um salto na balsa e estava a entardecer. Então, vi, aí a uns cinco metros de distância, uma enorme tartaruga amarela com uma cabeça manchada e uns olhos fixos e inexpressivos como duas gigantescas bolas de vidro, que olhavam para mim com espanto. A princípio julguei que era outra alucinação e sentei-me na balsa, aterrorizado. O monstruoso animal, que media aí uns quatro metros da cabeça ao rabo, mergulhou quando me viu mexer, deixando um rasto de espuma. Eu não sabia se era realidade ou fantasia. E ainda não me atrevo a dizer se era realidade ou fantasia, apesar de durante breves minutos ter visto nadar aquela gigantesca tartaruga amarela diante da balsa, levando de fora de água a sua espantosa e pintada cabeça de pesadelo. Só sei que - fosse realidade ou fosse fantasia - teria bastado que ela tocasse na balsa para a ter feito girar várias vezes sobre si mesma.

A tremenda visão fez-me recuperar o medo. E nesse instante o medo reconfortou-me. Agarrei no bocado de remo, sentei-me na balsa e preparei-me para a luta com aquele monstro ou com qualquer outro que tentasse voltar a balsa. Iam ser cinco horas. Pontuais, como sempre, os tubarões saíam do mar para a superfície. Olhei para o lado da balsa onde anotava os dias e contei oito riscos. Mas lembrei-me de que não tinha anotado o daquele dia. Marquei-o com as chaves, convencido de que seria o último, e senti desespero e raiva perante a certeza de que me era mais difícil morrer do que continuar a viver. Nessa manhã tinha optado entre a vida e o morte. Tinha escolhido a morte, e no entanto continuava vivo, com o bocado de remo na mão, disposto a continuar a lutar pela vida. A continuar a lutar pela única coisa que já não me interessava nada.

 

A Raiz Misteriosa

No meio daquele sol metálico, daquele desespero, daquela sede que pela primeira vez começava a ser insuportável, aconteceu-me uma coisa incrível: no centro da balsa, enredada nos cabos da malha, havia uma raiz vermelha como as raízes que esmagam em Boyacá para fazer tinta, e cujo nome não me lembro. Não sei desde quando estava ali. Durante os meus nove dias no mar não tinha visto uma fímbria de erva na superfície. E, no entanto, sem que eu soubesse como, aquela raiz estava ali, enredada nos cabos da malha, como outro anúncio inequívoco da terra que eu não via por lado nenhum.

Tinha cerca de trinta centímetros de comprimento. Faminto, mas já sem forças para pensar na minha fome, mordi despreocupadamente a raiz. Soube-me a sangue. Deitava um óleo espesso e doce que me refrescou a garganta. Pensei que tinha sabor a veneno. Mas continuei a comer, a devorar o bocado de pau retorcido, até não ficar uma lasca.

Quando acabei de comer não me senti mais aliviado. Ocorreu-me que aquilo era um ramo de oliveira, porque me recordei da história sagrada: quando Noé largou a pomba para ela voar, o animal regressou à arca com um ramo de oliveira, sinal de que a água tinha voltado a desocupar a terra. Eu pensava que o ramo de oliveira da pomba era como aquele com que acabava de distrair a minha fome de nove dias.

Pode-se esperar um ano no mar, mas há um dia cm que já é impossível suportar mais uma hora. No dia anterior tinha pensado que iria amanhecer em terra firme. Tinham decorrido vinte e quatro horas e só continuava a ver água e céu. Já não esperava nada. Era a minha nona noite no mar. «Nove noites de morto», pensei com terror, com a certeza de que àquela hora a minha casa do bairro Olaya, em Bogotá, estava cheia de amigos da família. Era a última noite do meu velório. Amanhã desarmariam o altar e pouco a pouco ir-se-iam acostumando à minha morte.

Nunca até àquela noite tinha perdido uma remota esperança de que alguém se lembrasse de mini e tentasse salvar-me. Mas quando me lembrei de que aquela noite devia ser para a minha família a nona da minha morte, a última de me velarem, senti-me completamente esquecido no mar. E pensei que nada melhor me podia acontecer do que morrer. Deitei-me no fundo da balsa. Quis dizer em voz alta: «Já não me levanto mais.» Mas a voz apagou-se-me na garganta. Lembrei-me do colégio. Levei à boca a medalha da Nossa Senhora do Carmo e pus-me a rezar mentalmente, como supunha que àquela hora o estaria a fazer a minha família na minha casa. Então, senti-me bem, porque sabia que estava a morrer.

 

Ao Décimo Dia, Outra Alucinação: Terra

A minha nona noite foi a mais longa de todas. Tinha-me deitado na balsa e as ondas batiam suavemente contra a borda. Mas não era dono dos meus sentidos. E em cada onda que rebentava junto da minha cabeça eu sentia repetir-se a catástrofe. Diz-se que os moribundos «voltam a percorrer os seus passos». Algo disso me aconteceu naquela noite de recapitulação. Eu estava outra vez no contratorpedeiro, deitado entre os frigoríficos e os fogões, na popa, com Ramón Herrera, e a ver Luis Rengifo de quarto, numa febril recapitulação do meio-dia de 28 de Fevereiro. De cada vez que a onda batia contra a borda eu sentia que a carga deslizava, que ia para o fundo e que nadava para cima, tentando alcançar a superfície.

Minuto a minuto, os meus nove dias de solidão, angústia, fome e sede no mar repetiam-se então, nitidamente, como num ecrã de cinema. Primeiro a queda. Depois os meus camaradas, a gritarem em volta da balsa; depois a fome, a sede, os tubarões e as recordações de Mobile a passarem numa sucessão de imagens. Tomava precauções para não cair. Via-me outra vez na popa do contratorpedeiro, tentando amarrar-me para que a onda não me arrastasse. Amarrava-me com tanta força que me doíam os pulsos, os tornozelos e sobretudo o joelho direito. Mas, apesar dos cabos solidamente atados, a onda vinha sempre e arrastava-me para o fundo do mar. Quando recuperava a lucidez estava a nadar para cima. A sufocar.

Dias antes tinha pensado amarrar-me à balsa. Naquela noite devia fazê-lo, mas não tinha forças para me pôr de pé e ir buscar os cabos do entrançado. Não conseguia pensar. Pela primeira vez em nove dias não me apercebia da minha situação. No estado em que me encontrava naquela noite há que considerar como um milagre o não ter ido para o fundo do mar arrastado pelas ondas. Não teria visto. A realidade confundia-se com as alucinações. Se uma onda tivesse voltado a balsa, talvez eu tivesse pensado que era outra alucinação, sentisse que caía outra vez do contratorpedeiro - como sentira tantas vezes naquela noite - e num segundo teria caído ao fundo para alimentar os tubarões que durante nove dias tinham esperado pacientemente junto à borda.

Mas novamente nessa noite a minha boa sorte me protegeu. Estive sem sentidos, a recapitular minuto a minuto os meus nove dias de solidão e agora vejo que ia tão seguro como se tivesse estado amarrado à borda.

Ao amanhecer, o vento ficou gelado. Tinha febre. O meu corpo ardente estremeceu, penetrado até aos ossos pelo arrepio. O joelho direito começou a doer-me. O sal do mar tinha-o mantido seco, mas continuava vivo, como no primeiro dia. Sempre tivera o cuidado de não o magoar. Mas nessa noite, deitado de barriga para baixo, ia com o joelho apoiado no piso da balsa, e a ferida latejava dolorosamente. Agora tenho razões para pensar que a ferida me salvou a vida. Como no meio duma névoa, comecei a sentir a dor. Estava a aperceber-me do meu corpo. Senti o vento gelado contra o meu rosto febril. Agora sei que durante várias horas estive a dizer uma série de coisas confusas, a falar dos meus camaradas, a comer gelados com Mary Address num sítio onde havia musica estridente.

Depois de inúmeras horas senti que a cabeça me estalava. As têmporas latejavam e doíam-me os ossos. Sentia o joelho em carne viva, paralisado pelo inchaço. Era como se o joelho fosse maior, muito maior do que o meu corpo.

Apercebi-me de que estava na balsa quando começou a amanhecer. Mas nessa altura não sabia há quanto tempo estava naquela situação. Lembrei-me, fazendo um esforço supremo, que tinha traçado nove riscos na borda. Mas não me lembrava de quando é que tinha traçado o último. Parecia-me que tinha decorrido muito tempo desde aquela tarde em que comera uma raiz que encontrei enredada nos cabos da malha. Tinha sido um sonho? Ainda tinha na boca um sabor doce e espesso, mas quando fazia uma recapitulação dos meus alimentos não me lembrava dela. Não me tinha reconfortado. Comera-a toda, mas sentia o estômago vazio. Estava sem forças.

Quantos dias tinham passado desde então? Sabia que estava a amanhecer, mas não conseguia saber quantas noites tinha estado exausto no fundo da balsa, à espera de uma morte que me parecia mais esquiva do que a terra. O céu ficou vermelho, como ao entardecer. E esse foi outro factor de confusão: então não soube se era um novo dia ou um novo entardecer.

 

TERRA!

Desesperado pela dor do joelho tentei mudar de posição. Quis voltar-me, mas foi-me impossível. Sentia-me tão esgotado que me parecia impossível pôr-me de pé. Então, movi a perna ferida, levantei-me com as mãos apoiadas no fundo da balsa e deixei-me cair de costas, de barriga para cima, com a cabeça apoiada na borda. Evidentemente, estava a amanhecer. Olhei para o relógio. Eram quatro da madrugada. Todos os dias a essa hora perscrutava o horizonte. Mas já tinha perdido as esperanças de terra. Continuei a olhar para o céu, a vê-lo passar de vermelho-vivo para azul-pálido. O ar continuava gelado, sentia-me com febre e o joelho latejava com uma dor penetrante. Sentia-me mal por não ter conseguido morrer. Estava sem forças, mas completamente vivo. E aquela certeza causou-me uma sensação de desamparo. Tinha julgado que não passaria daquela noite. E, contudo, continuava como sempre, a sofrer na balsa e a entrar num novo dia, que seria um dia mais, um dia vazio com um sol insuportável e um cardume de tubarões em volta da balsa a partir das cinco da tarde.

Quando o céu começou a ficar azul olhei para o horizonte. Por todos os lados estava a água verde e tranquila. Mas em frente da balsa, na penumbra do amanhecer, encontrei uma longa sombra espessa. Contra o céu diáfano encontravam-se os perfis dos coqueiros.

Senti raiva. No dia anterior tinha-me visto numa festa em Mobile. Depois, vira uma tartaruga amarela, e durante a noite estivera na minha casa de Bogotá, no colégio La Salle de Villa-vicencio e com os meus camaradas do contratorpedeiro. Agora estava a ver terra. Se quatro ou cinco dias antes tivesse sofrido aquela alucinação teria ficado louco de alegria. Teria mandado a balsa para o diabo e ter-me-ia deitado à água para alcançar rapidamente a margem.

Mas no estado em que eu me encontrava, está-se prevenido contra as alucinações. Os coqueiros eram demasiado nítidos paro serem verdadeiros. Além disso, não os via a uma distância constante. Às vezes parecia-me vê-los mesmo ao lado da balsa. Mais tarde parecia-me vê-los a dois, três quilómetros de distância. Por isso não sentia alegria. Por isso é que reafirmei o meu desejo de morrer, antes de as alucinações me enlouquecerem. Voltei a olhar para o céu. Agora era um céu alto e sem nuvens, de um azul-intenso.

Às quatro e quarenta e cinco, viam-se no horizonte os resplendores do Sol. Antes tinha sentido medo da noite, agora o Sol do novo dia parecia-me um inimigo. Um gigantesco e implacável inimigo que me vinha morder a pele ulcerada, enlouquecer de sede e de fome. Amaldiçoei o Sol. Amaldiçoei o dia. Amaldiçoei a minha sorte que me tinha permitido suportar nove dias à deriva em vez de permitir que eu tivesse morrido de fome ou esquartejado pelos tubarões.

Como voltava a sentir-me incómodo, procurei o bocado de remo no fundo da balsa para me encostar. Nunca consegui dormir com uma almofada muito dura. No entanto, procurava com ansiedade um bocado de pau destroçado pelos tubarões para apoiar a cabeça.

O remo estava no fundo, ainda amarrado aos cabos do entrançado. Soltei-o. Ajustei-o devidamente às minhas costas doridas, e a cabeça ficou apoiada por cima da borda. Foi então que vi claramente, contra o Sol vermelho que começava a levantar-se, o longo e verde perfil da costa.

Eram quase cinco horas. A manhã era perfeitamente clara. Não podia haver a menor dúvida de que a terra era uma realidade. Todas as alegrias frustradas nos dias anteriores - a alegria dos aviões, das luzes dos barcos, das gaivotas e da cor da água - renasceram então atropeladamente, à vista de terra.

Se àquela hora tivesse comido dois ovos estrelados, um bocado de carne, café com leite e pão - um pequeno-almoço completo do contratorpedeiro - talvez não me tivesse sentido com tantas forças como depois de ter visto aquilo que eu acreditei que realmente era a terra. Levantei-me de um salto. Vi, perfeitamente, à minha frente, a sombra da costa e o perfil dos coqueiros. Não via luzes. Mas à minha direita, aí a uns dez quilómetros de distância, os primeiros raios do Sol brilhavam com intensidade metálica nas escarpas. Louco de alegria, agarrei no meu único bocado de remo e tentei impulsionar a balsa até à costa, em linha recta.

Calculei que haveria uns dois quilómetros da balsa até à margem. Tinha as mãos desfeitas e o exercício maltratava-me as costas. Mas não tinha resistido nove dias - dez com o que estava a começar - para renunciar agora que estava com a terra em frente. Suava. O vento frio do amanhecer secava-me o suor e provocava-me uma dor extenuante nos ossos, mas continuava a remar.

 

Mas, Onde É Que Está a Terra?

Não era um remo para uma balsa como aquela. Era um bocado de pau. Nem sequer me servia de sonda para tentar averiguar a profundidade da água. Durante os primeiros minutos, com a estranha força que a emoção me imprimira, consegui avançar um pouco. Mas depois senti-me esgotado, levantei o remo por instantes, contemplando a exuberante vegetação que crescia em frente dos meus olhos, e vi que uma corrente paralela à costa impulsionava a balsa para as escarpas. Brilhavam sob o primeiro sol da manhã como uma montanha de agulhas metálicas. Felizmente estava tão desesperado por sentir terra firme debaixo dos meus pés que não dei asas à esperança. Mais tarde soube que eram os baixios de Punta Caribana, e que se tivesse deixado que a corrente me arrastasse teria ficado destruído contra as rochas.

Tentei calcular as minhas forças. Precisava de nadar dois quilómetros para chegar à costa. Em boas condições posso nadar dois quilómetros em menos de uma hora. Mas não sabia quanto tempo conseguia nadar depois de dez dias sem beber c sem comer nada além de um bocado de peixe e uma raiz, com o corpo empolado pelo sol e o joelho ferido. Mas aquela era a minha última oportunidade. Não tive tempo para pensar. Não tive tempo para me lembrar dos tubarões. Larguei o remo, fechei os olhos e atirei-me à água.

Ao contacto com a água gelada, senti-me reconfortado. A partir do nível do mar perdi a visão da costa. Assim que entrei na água apercebi-me de que tinha cometido dois erros: não tinha tirado a camisa nem tinha apertado os sapatos. Procurei não me afundar. Foi essa a primeira coisa que tive de fazer, antes de começar a nadar. Tirei a camisa e amarrei-a com força em volta da cintura. Depois, apertei os cordões dos sapatos. Então, sim, comecei a nadar. Primeiro desesperadamente. Depois com mais calma, sentindo que a cada braçada se me esgotavam as forças, e agora sem ver a terra.

Não tinha avançado cinco metros quando senti que se rebentara o fio com a medalha da Nossa Senhora do Carmo. Parei. Consegui apanhá-la quando ela começava a afundar-se na água verde e agitada. Como não tinha tempo de a guardar nos bolsos, apertei-a com força entre os dentes e continuei a nadar.

Já me sentia sem forças e, no entanto, ainda não via terra. Então, voltou a invadir-me o terror: talvez, certamente, a terra tivesse sido outra alucinação. A água fresca tinha-me reconfortado e eu estava outra vez na posse dos meus sentidos, nadando desesperadamente para a praia de uma alucinação. Já tinha nadado muito. Era impossível regressar à procura da balsa.

 

Uma Ressurreição em Terra Estranha

Só depois de estar a nadar desesperadamente durante quinze minutos é que comecei a ver terra. Ainda estava a mais de um quilómetro. Mas não tinha então a menor dúvida de que era a realidade e não uma miragem. O Sol dourava a copa dos coqueiros. Não havia luzes na costa. Não havia nenhuma povoação, nenhuma casa visível do mar. Mas era terra firme. Era menos de vinte minutos estava esgotado, mas sentia-me com a certeza de chegar. Nadava com fé, tentando não permitir que a emoção me fizesse perder o controlo. Estive meia vida na água, mas nunca como nessa manhã de 9 de Março compreendera e apreciara a importância de ser bom nadador. Sentindo-me cada vez com menos força, continuei a nadar para a costa. À medida que avançava via mais claramente o perfil dos coqueiros.

 

O Sol tinha nascido quando pensei que podia tocar no fundo. Tentei fazê-lo, mas ainda havia bastante profundidade. Evidentemente, não me encontrava em frente de uma praia. A água era funda até muito perto da margem, de maneira que tinha de continuar a nadar. Não sei exactamente quanto tempo nadei. Sei que, à medida que me aproximava da costa, o sol ia aquecendo por cima da minha cabeça, mas agora não me torturava a pele, estimulava-me os músculos. Nos primeiros metros a água gelada fez-me pensar em cãibras. Mas o corpo aqueceu rapidamente. Depois, a água era menos fria e eu nadava cansado, como entre nuvens, mas com um ânimo e uma fé que prevaleciam sobre a minha sede e a minha fome.

Via perfeitamente a espessa vegetação à luz do morno sol matinal, quando procurei o fundo pela segunda vez. Ali estava a terra debaixo dos meus sapatos. É uma sensação estranha a de pisar a terra depois de dez dias à deriva no mar.

No entanto, apercebi-me logo de que ainda me faltava o pior. Estava totalmente esgotado. Não conseguia manter-me em pé. A onda de ressaca empurrava-me com violência para o interior. Tinha a medalha da Nossa Senhora do Carmo apertada entre os dentes. A roupa, os sapatos de borracha, pesavam-me terrivelmente. Mas mesmo nessas tremendas circunstâncias se tem pudor. Pensava que dentro de breves momentos poderia encontrar-me com alguém. E então continuei a lutar contra as ondas de ressaca, sem tirar a roupa, que me impedia de avançar, apesar de sentir que estava a desmaiar por causa do esgotamento.

A água chegava-me um pouco acima da cintura. Com um esforço desesperado consegui chegar até me dar nas coxas. Então, decidi arrastar-me. Cravei os joelhos e as palmas das mãos em terra e impulsionei-me para diante. Mas foi inútil. As ondas faziam-me retroceder. A areia miúda e afiada fez-me mal à ferida do joelho. Naquele momento eu sabia que estava a sangrar, mas não sentia dor. As polpas dos meus dedos estavam em carne viva. Mesmo sentindo a dolorosa penetração da areia entre as unhas cravei os dedos na terra e tentei arrastar-me. De repente, fui novamente assaltado pelo terror: a terra, os coqueiros dourados sob o Sol, começaram a mover-se em frente dos meus olhos. Pensei que a terra me estava a engolir.

No entanto, aquela imprecisão deve ler sido uma ilusão ocasionada pelo esgotamento. A ideia de que eslava sobre areia movediça infundiu-me um ânimo desmedido - o ânimo do terror e dolorosamente, sem piedade e com as minhas mãos descarnadas, continuei a arrastar-me contra as ondas. Dez minutos depois todos os sofrimentos, a fome e a sede de dez dias, se tinham encontrado atropeladamente no meu corpo. Estendi-me, moribundo, sobre a terra dura e morna, e fiquei ali sem pensar em nada, sem dar graças a ninguém, sem me alegrar sequer por ter alcançado à força de vontade, de esperança e de implacável desejo de viver, um pedaço de praia silenciosa e desconhecida.

 

As Marcas do Homem

Em terra, a primeira impressão que se tem é a do silêncio. Antes de uma pessoa se aperceber de alguma coisa está submerso num grande silêncio. Um momento depois, distante e triste, percebe-se o batimento das ondas contra a costa. E depois, o murmúrio da brisa entre as palmeiras dos coqueiros infunde a sensação de que se está em terra firme. E a sensação de que nos salvámos, ainda que não se saiba em que lugar do mundo nos encontramos.

Outra vez de posse dos meus sentidos, deitado na praia, pus-me a examinar aquelas paragens. Era uma natureza brutal. Instintivamente procurei as marcas do homem. Havia uma cerca de arame farpado aí a uns vinte metros do local em que me encontrava. Havia um caminho estreito e retorcido com marcas de animais. E junto ao caminho havia cascas de cocos partidos. O mais insignificante rasto da presença humana teve para mim naquele instante o significado de uma revelação. Desmedidamente alegre, apoiei a face na areia morna e pus-me a esperar.

 

Esperei durante dez minutos, aproximadamente. Pouco a pouco ia recuperando as forças. Já passava das seis e o Sol já se tinha posto totalmente. Junto ao caminho, entre as cascas partidas, havia vários cocos inteiros. Arrastei-me até eles, encostei-me a um tronco e prendi o fruto liso e impenetrável nos meus joelhos. Como cinco dias antes fizera com o peixe, procurei ansiosamente as partes moles. A cada volta que dava ao coco sentia a água bater no seu interior. Aquele som gutural e profundo revolvia-me a sede. O estômago doía-me, a ferida do joelho estava a sangrar e os meus dedos, em carne viva, latejavam com uma dor lenta e profunda. Durante os meus dez dias no mar não tive nunca a sensação de enlouquecer. Tive-a pela primeira vez naquela manhã, quando dava voltas ao coco procurando um ponto por onde o penetrar, e sentia bater entre as minhas mãos a água fresca, limpa e inatingível.

Um coco tem três olhos, em cima, ordenados em triângulo. Mas é preciso descascá-lo com um machete para os encontrar. Eu só dispunha das minhas chaves. Inutilmente, insisti várias vezes, tentando penetrar a áspera e sólida casca com as chaves. Por fim, declarei-me vencido. Atirei o coco com raiva, ouvindo chocalhar a água lá dentro.

A minha última esperança era o caminho. Ali, ao meu lado, as cascas esmigalhadas indicavam-me que alguém devia vir apanhar cocos. Os restos demonstravam que alguém vinha todos os dias, subia aos coqueiros e depois se entretinha a descascar os cocos. Aquilo demonstrava, além disso, que estava perto de um lugar habitado, pois ninguém percorre uma distância considerável só para levar uma carga de cocos.

Eu pensava nestas coisas, encostado num tronco, quando ouvi - muito distante - o latido de um cão. Pus-me em guarda. Alertei os sentidos. Instantes depois, ouvi claramente o tilintar de qualquer coisa metálica que se aproximava pelo caminho.

Era uma rapariga negra, incrivelmente magra, nova e vestida de branco. Trazia na mão uma panelinha de alumínio cuja tampa, mal ajustada, se ouvia a cada passo. «Em que país é que eu estou?», perguntei-me, vendo aproximar-se pelo caminho aquela negra com tipo jamaicano. Lembrei-me de San Andrés e Providencia. Lembrei-me de todas as ilhas das Antilhas. Aquela mulher era a minha primeira oportunidade, mas também podia ser a última. «Perceberá castelhano?», disse para mim próprio, tentando decifrar o rosto da rapariga que distraidamente, ainda sem me ver, arrastava pelo caminho as suas poeirentas chinelas de couro. Estava tão desesperado por não perder a oportunidade, que tive a absurda ideia de que se lhe falasse em espanhol não me perceberia; que me deixaria ali, estendido à beira do caminho.

- Hello, Hello! - disse-lhe, angustiado.

A rapariga virou-se e olhou para mim com uns olhos enormes, brancos e espantados.

- Help me! - exclamei, convencido de que ela me estava a perceber.

Ela hesitou uns momentos, olhou em volta e desatou a correr pelo caminho, espantada.

 

O Homem, o Burro e o Cão

Senti que iria morrer de angústia. Por momentos vi-me naquele sítio, morto, despedaçado pelos abutres. Mas, depois, voltei a ouvir o cão, cada vez mais perto. O coração começou a dar pancadas, à medida que se aproximavam os latidos. Apoiei-me na palma das mãos. Levantei a cabeça. Esperei. Um minuto. Dois. E os latidos ouviram-se cada vez mais próximos. De repente só ficou o silêncio. Depois, o bater das ondas e o rumor do vento entre os coqueiros. A seguir, no minuto mais longo que recordo na minha vida, apareceu um cão esquálido, seguido por um burro com dois amásios. Aliás deles vinha um homem branco, pálido, com chapéu de cana e as calças enroladas até ao joelho. Tinha uma carabina cruzada nas costas.

Assim que apareceu na volta do caminho olhou para mim com surpresa. O cão, com a cauda levantada e direita, aproximou-se de mim a farejar-me. O homem permaneceu imóvel, em silêncio. Depois, baixou a carabina, apoiou a culatra em terra e ficou a olhar para mim.

Não sei porquê, pensava que estava em qualquer lado das Caraíbas menos na Colômbia. Sem estar muito seguro de que ele me entendesse, decidi falar em espanhol.

- Senhor, ajude-me! - disse-lhe.

Ele não respondeu logo. Continuou a examinar-me enigmaticamente, sem pestanejar, com a carabina apoiada no chão. «A única coisa que me falta agora é que ele me dê um tiro», pensei friamente. O cão lambia-me a cara, mas eu já não tinha forças para o afastar.

- Ajude-me! - repeti, ansioso e desesperado, pensando que o homem não me entendia.

- O que é que tem? - perguntou-me com uma entoação amável.

Quando ouvi a sua voz apercebi-me de que, mais que a sede, a fome e o desespero, me atormentava o desejo de contar o que me tinha acontecido. Quase a afogar-me com as palavras, disse-lhe sem respirar:

- Eu sou Luis Alejandro Velasco, um dos marinheiros que caíram no dia 28 de Fevereiro do contratorpedeiro Caldas, da Armada Nacional.

Eu julgava que toda a gente era obrigada a conhecer a notícia. Julgava que assim que dissesse o meu nome o homem se apressaria a ajudar-me. No entanto, não se perturbou. Continuou no mesmo sítio, a olhar para mim, sem se preocupar sequer com o cão, que me lambia o joelho ferido.

- É marinheiro de galinhas? - perguntou-me, pensando talvez nas embarcações de cabotagem que traficam com porcos e aves de capoeira.

- Não. Sou marinheiro de guerra.

Só então é que o homem se mexeu. Cruzou novamente a carabina nas costas, atirou o chapéu para trás, e disse-me: «vou levar um arame ao porto e volto por si.» Senti que aquela era outra oportunidade que se me escapava. «De certeza que vai voltar?», perguntei-lhe com voz suplicante.

O homem respondeu que sim. Que voltava com certeza absoluta. Sorriu amavelmente e reatou a marcha atrás do burro. O cão continuou ao meu lado, a farejar-me. Só quando o homem se afastava é que me ocorreu perguntar-lhe, quase com um grito:

- Que país é este?

E ele, com uma extraordinária naturalidade, deu-me a única resposta que eu não esperava naquele instante:

- Colômbia.

 

Seiscentos Homens Levam-Me para San Juan

Voltou, como tinha prometido. Antes que eu começasse a esperar por ele - não mais de quinze minutos depois -, regressou com o burro e os canastos vazios e com a rapariga negra da panelinha de alumínio, que era a sua mulher, segundo soube mais tarde. O cão não se tinha mexido do meu lado. Deixou de me lamber a cara e as feridas. Deixou de me farejar. Deitou-se ao meu lado, imóvel, meio a dormir, até que viu o burro aproximar-se. Então, deu um salto e começou a abanar a cauda.

- Não consegue caminhar? - disse-me o homem.

- Vou ver - disse-lhe. Tentei pôr-me em pé, mas ia a cair de bruços.

- Não consegue - disse o homem, impedindo que eu caísse. Ele e a mulher puseram-me em cima do burro. E segurando-me por debaixo dos braços fizeram andar o animal. O cão ia à frente a dar saltos.

Por todo o caminho havia cocos. No mar tinha suportado a sede. Mas ali, em cima do burro, a avançar por um caminho estreito e retorcido, ladeado de coqueiros, senti que não conseguia aguentar mais um minuto. Pedi para ele me dar água de coco.

- Não tenho machete - disse o homem.

Mas não era verdade. Levava um machete à cintura. Se naquele momento eu tivesse estado em condições de me defender, ter-lhe-ia tirado o machete à força e teria descascado um coco e comê-lo-ia inteiro.

Mais tarde percebi porque é que o homem se recusou a dar-me água de coco. Tinha ido a uma casa situada a dois quilómetros do lugar em que me encontrou, tinha falado com as pessoas de lá e estas avisaram-no para não me dar nada de comer antes de um médico me ver. E o médico mais próximo estava a dois dias de viagem, em San Juan de Urabá.

Em menos de meia hora chegámos à casa. Uma rudimentar construção de madeira e telhado de zinco à beira do caminho. Havia lá três homens e duas mulheres. Todos eles me ajudaram a descer do burro, levaram-me para o quarto e deitaram-me numa cama de cânhamo. Uma das mulheres foi à cozinha, trouxe uma panelinha com água de canela fervida e sentou-se na beira da cama, a dar-me colheradas. Com as primeiras gotas senti-me desesperado. Com as segundas senti que recuperava o ânimo. Então já não queria beber mais, mas contar o que me tinha acontecido.

Ninguém tinha notícia do acidente. Tentei explicar-lhes, contar-lhes toda a história para que eles soubessem como é que eu me tinha salvado. Eu julgava que a qualquer sítio do mundo a que eu chegasse se saberia da catástrofe. Decepcionou-me saber que me tinha enganado, enquanto a mulher me dava colheradas de água de canela, como a uma criança doente.

Insisti várias vezes em contar o que é que me tinha acontecido. Impassíveis, os quatro homens e as outras duas mulheres permaneciam aos pés da cama, a olharem para mim. Aquilo parecia uma cerimónia. Se não fosse a alegria de estar a salvo dos tubarões, dos inúmeros perigos do mar que me tinham ameaçado durante dez dias, teria pensado que aqueles homens e aquelas mulheres não pertenciam a este planeta.

 

Engolindo a História

A amabilidade da mulher que me dava de beber não permitia confusões de qualquer espécie. De cada vez que eu tentava narrar a minha história, dizia-me:

- Esteja calado agora. Depois conta-nos.

Eu teria comido o que tivesse tido ao meu alcance. Da cozinha chegava ao quarto o bem cheiroso fumo do almoço. Mas foram inúteis todas as minhas súplicas.

- Depois de o médico o ver, damos-lhe de comer - respondiam.

Mas o médico não chegou. De dez em dez minutos davam-me colherezinhas de água de açúcar. A mais nova das mulheres, uma menina, enxugou-me as feridas com panos de água morna. O dia ia decorrendo lentamente. E lentamente ia-me sentindo aliviado. Tinha a certeza de que me encontrava entre gente amiga. Se em vez de me darem colheradas de água de açúcar tivessem saciado a minha fome, o meu organismo não teria resistido ao impacto.

O homem que me encontrou no caminho chama-se Dámaso Imitela. Às dez da manhã de 9 de Março, no mesmo dia em que cheguei à praia, foi até ao casario próximo de Mulatos e regressou à casa do caminho em que eu me encontrava com vários agentes da polícia. Eles também desconheciam a tragédia. Em Mulatos ninguém sabia da notícia. Ali não chegam os jornais. Numa loja, onde fora instalado um motor eléctrico, há um rádio e um frigorífico. Mas não se ouvem os noticiários da rádio. Segundo soube depois, quando Dámaso Imitela avisou o inspector da polícia que me tinha encontrado exausto numa praia e que dizia pertencer ao contratorpedeiro Caldas, ligaram o motor e durante todo o dia estiveram a ouvir os noticiários de Cartagena. Mas já não se falava do acidente. Só às primeiras horas da noite é que se fez uma breve referência ao caso. Então, o inspector da polícia, todos os agentes e sessenta homens de Mulatos puseram-se em marcha para me prestarem auxílio. Um pouco depois da meia-noite invadiram a casa e acordaram-me com as suas vozes. Acordaram-me do único sono tranquilo que tinha conseguido conciliar nos últimos doze dias.

 

Antes de amanhecer a casa já estava cheia de gente. Toda a Mulatos - homens, mulheres e crianças - se tinha mobilizado para me ver. Aquele foi o meu primeiro contacto com uma multidão de curiosos que nos dias posteriores me seguiriam por todo o lado. A multidão levava candeeiros e lanternas de pilhas. Quando o inspector de Mulatos e quase todos os seus acompanhantes me removeram da cama, senti como se me arrancassem a pele queimada pelo Sol. Era um verdadeiro atropelo.

Estava calor. Sentia que asfixiava no meio daquela multidão de rostos protectores. Quando cheguei ao caminho um monte de candeeiros e lanternas eléctricas iluminaram o meu rosto. Fiquei cego no meio dos murmúrios e das ordens do inspector da polícia, dadas em voz alta. Já não via a hora de chegar a um sítio qualquer. Desde o dia em que caí do contratorpedeiro que não tinha feito outra coisa senão viajar com rumo desconhecido. Nessa madrugada continuava a viajar, sem saber por onde, sem imaginar sequer o que pensava fazer comigo aquela multidão diligente e cordial.

 

A História do Faquir

É longo e difícil o caminho do lugar onde me encontraram até Mulatos. Deitaram-me numa padiola pendurada em dois longos paus. Dois homens em cada ponta de cada um dos paus levaram-me por um longo, estreito c retorcido caminho iluminado pelos candeeiros, íamos ao ar livre, mas eslava tanto calor como num quarto fechado, por causa dos candeeiros.

Os oito homens revezavam-se de meia em meia hora. Então davam-me um pouco de água e bocadinhos de bolacha de soda. Eu teria gostado de saber para onde é que me levavam, o que é que pensavam fazer comigo. Mas ali falava-se de tudo. Toda a gente falava, menos eu. O inspector, que dirigia a multidão, não permitia que ninguém se aproximasse de mim para falar comigo. Ouviam-se gritos, ordens, comentários a longa distância. Quando chegámos à longa ruazinha de Mulatos, a polícia não foi suficiente para conter a multidão. Eram aí umas oito horas da manhã.

Mulatos é um casario de pescadores, onde não há telégrafo. A povoação mais próxima é San Juan de Urabá, onde duas vezes por semana chega uma avioneta vinda de Montería. Quando chegámos ao casario pensei que tinha chegado a algum lado. Pensei que teria notícias da minha família. Mas em Mulatos estava apenas a meio do caminho.

Instalaram-me numa casa e toda a povoação fez fila para me ver. Eu lembrava-me de um faquir que vi há dois anos em Bogotá, por cinquenta centavos. Era preciso fazer uma longa fila de várias horas para ver o faquir. Só se avançava meio metro cada quarto de hora. Quando se chegava à sala onde estava o faquir, metido numa urna de vidro, já não se desejava ver ninguém. Desejava-se sair daquilo quanto antes para mexer as pernas, para respirar ar puro.

A única diferença entre o faquir e eu era que o faquir estava dentro de uma urna de vidro. O faquir estava há nove dias sem comer. Eu estava há dez no mar e há um deitado numa cama, num quarto de Mulatos. Eu via passar rostos à minha frente. Rostos brancos e negros, numa fila interminável. O calor era terrível. E eu sentia-me então suficientemente recuperado para conseguir ter um pouco de sentido de humor e pensar que podia estar alguém à porta a vender bilhetes para ver o náufrago.

Na mesma padiola em que me levaram a Mulatos, levaram-me a San Juan de Urabá. Mas a multidão que me acompanhava tinha-se multiplicado. Não iam menos de seiscentos homens. Iam, além disso, mulheres, crianças e animais. Alguns fizeram a viagem de burro. Mas a generalidade fê-la a pé. Foi uma viagem de quase um dia. Levado por aquela multidão, pelos seiscentos homens que se revezaram ao longo do caminho, eu sentia que ia recuperando as minhas forças paulatinamente. Penso que Mulatos ficou desocupado. Desde as primeiras horas da manhã que o motor eléctrico ficou a funcionar e o receptor de rádio a invadir o casario com a sua música. Aquilo era como uma feira. E eu, o centro e a razão da feira, continuava deitado na cama, enquanto a povoação inteira desfilava para me conhecer. Foi essa mesma multidão que não se resignou a deixar-me partir sozinho, e que foi a San Juan de Urabá, numa longa caravana que ocupava toda a largura daquele caminho tortuoso.

 

Durante a viagem eu sentia fome e sede. Os bocadinhos de bolacha de soda, os insignificantes sorvos de água, tinham-me restabelecido, mas ao mesmo tempo haviam-me aumentado a sede e a fome. A entrada em San Juan fez-me lembrar as festas das aldeias. Todos os habitantes da pequena e pitoresca povoação, varrida pelos ventos do mar, vieram ao meu encontro. Já se tinham tomado medidas para evitar os curiosos. A polícia conseguiu deter a multidão que se juntava nas ruas para me ver.

Foi esse o fim da minha viagem. O doutor Humberto Gómez, o primeiro médico que me fez um exame pormenorizado, deu-me a grande notícia. Não ma deu antes de acabar o exame, pois queria ter a certeza de que eu estava em condições de a poder aguentar. Dando-me uma palmadinha no rosto, sorrindo amavelmente, disse-me:

- A avioneta está pronta para o levar para Cartagena. A sua família está lá à sua espera.

 

O Meu Heroísmo Consistiu em não Me Deixar Morrer

Nunca julguei que um homem se convertesse em herói por estar dez dias numa balsa, suportando a fome e a sede. Eu não podia fazer outra coisa. Se a balsa tivesse sido uma balsa dotada com água, bolachas aglomeradas à pressão, bússola e instrumentos de pesca, certamente que estaria tão vivo como estou agora. Mas havia uma diferença: não tinha sido tratado como um herói. De maneira que o heroísmo, no meu caso, consistira exclusivamente em não me ter deixado morrer de fome e de sede durante dez dias.

Eu não fiz qualquer esforço para ser herói. Todos os meus esforços foram para me salvar. Mas como a salvação veio envolta numa auréola, premiada com o título de herói como um bombom com surpresa, não me resta outro recurso senão suportar a salvação, como ela viera, com heroísmo e tudo.

Perguntam-me como é que se sente um herói. Nunca sei o que responder. Pela minha parte, eu sinto-me o mesmo que antes. Não mudei nem por dentro nem por fora. As queimaduras do Sol deixaram de me doer. A ferida do joelho cicatrizou. Sou outra vez Luis Alejandro Velasco. E isso chega-me.

Quem mudou foram as pessoas. Os meus amigos são agora mais amigos que antes. E imagino também que os meus inimigos sejam mais inimigos, embora não pense que os tenha. Quando alguém me reconhece na rua fica a olhar para mim como para um animal raro. Por isso visto à civil, até que as pessoas se esqueçam que estive dez dias sem comer nem beber numa balsa.

A primeira sensação que se tem, quando se começa a ser uma pessoa importante, é a sensação de que durante todo o dia e toda a noite, em qualquer circunstância, as pessoas gostam que falemos de nós próprios. Apercebi-me disso no Hospital Naval de Cartagena, onde puseram um guarda para que ninguém falasse comigo. Três dias depois sentia-me completamente restabelecido, mas não podia sair do hospital. Sabia que quando me dessem alta teria de contar a história a toda a gente, porque, segundo me diziam os guardas, tinham chegado à cidade jornalistas de todo o país para me fazerem reportagens e tirarem-me fotografias. Um deles, com um impressionante bigode de 20 centímetros de comprimento, tirou-me mais de 50 fotografias, mas não lhe permitiram que me perguntasse nada relacionado com a minha aventura.

Outro, mais audacioso, disfarçou-se de médico, enganou a guarda e entrou no meu quarto. Obteve uma ressonante vitória, mas passou um mau bocado.

 

História de Uma Reportagem

No meu quarto só podiam entrar o meu pai, os guardas, os médicos e os enfermeiros do Hospital Naval. Um dia entrou um médico que eu nunca tinha visto. Muito novo, com a sua bata branca, óculos, e fonendoscópio pendurado ao pescoço. Entrou intempestivamente, sem dizer nada.

O sargento de serviço de guarda olhou para ele perplexo. Pediu-lhe que se identificasse. O jovem médico revistou todos os bolsos, baralhou-se um pouco e disse que se tinha esquecido dos seus papéis. Então, o sargento de serviço de guarda avisou-o de que não poderia conversar comigo sem uma autorização especial do director do estabelecimento. De maneira que ambos foram ter com o director. Dez minutos depois regressaram ao sítio onde eu estava.

O sargento entrou à frente e fez-me uma advertência: «Deram-lhe autorização para o examinar durante quinze minutos. E um psiquiatra de Bogotá, mas a mim parece-me que é um repórter disfarçado.»

- Porque é que acha isso? - perguntei-lhe.

- Porque está muito assustado. Além disso, os psiquiatras não usam fonendoscópio.

No entanto, tinha conversado durante quinze minutos com o director do hospital. Tinham falado de medicina, de psiquiatria. Falaram em termos médicos, muito complicados, e rapidamente se entenderam. Por isso, deram-lhe autorização para falar comigo durante quinze minutos.

Não sei se foi pela advertência do sargento, mas quando o jovem médico entrou novamente na minha sala já não me pareceu um médico. Também não me pareceu um repórter, se bem que até àquele momento nunca tivesse visto um repórter. Pareceu-me um padre disfarçado de médico. Penso que não sabia como começar. Mas o que realmente acontecia era que estava a pensar na maneira de afastar o sargento da guarda.

- Faça-me o favor de me arranjar um papel - disse-lhe.

Ele deve ter pensado que o sargento iria buscar o papel ao escritório. Mas tinha ordens para não me deixar sozinho. E assim, não foi buscar o papel, mas saiu para o corredor e gritou.

- Oiça, traga já papel para escrever.

Momentos depois veio o papel de escrever. Tinham decorrido mais de cinco minutos e o médico não me tinha feito ainda nenhuma pergunta. Só quando o papel chegou é que começou o exame. Entregou-me o papel e pediu-me que desenhasse um navio. Eu desenhei o navio. Depois pediu-me que desenhasse uma casa de campo. Eu desenhei uma casa o melhor que pude, com um campo de bananeiras ao lado. Pediu-me que assinasse. Foi então que eu me convenci de que era um repórter disfarçado. Mas ele insistiu que era médico.

Quando eu acabei de desenhar, ele examinou os papéis, disse algumas palavras confusas e começou a fazer-me perguntas sobre a minha aventura. O sargento de serviço de guarda interveio para recordar que não era permitido aquele tipo de perguntas. Então examinou-me o corpo, como os médicos fazem. Tinha as mãos geladas. Se o sargento tivesse tocado nelas, tê-lo-ia posto dali para fora. Mas eu não disse nada, pois o seu nervosismo e a possibilidade de ele ser um repórter causavam-me grande simpatia. Antes de acabarem os quinze minutos da autorização saiu disparado com os desenhos.

A bronca que se armou no dia seguinte! Os desenhos apareceram na primeira página de El Tiempo, com setas e legendas. «Aqui ia eu», dizia uma legenda, com uma seta que indicava a ponte do navio. Era um erro, porque eu não ia na ponte, mas na popa. Mas os desenhos eram meus.

Disseram-me para rectificar. Que podia processá-lo. Pareceu-me absurdo. Eu sentia uma grande admiração por um repórter que se disfarçava de médico para poder entrar num hospital militar. Se ele tivesse encontrado a maneira de me fazer saber que era um repórter eu teria sabido como afastar o sargento da guarda. Porque a verdade é que nesse dia eu já tinha autorização para contar a história.

 

O Negócio da História

A aventura do repórter disfarçado de médico proporcionou-me uma ideia muito clara do interesse que os jornais tinham na história dos meus dez dias no mar. Era um interesse de toda a gente. Os meus próprios camaradas me pediram que eu a contasse muitas vezes. Quando vim a Bogotá, já quase completamente restabelecido, apercebi-me de que a minha vida tinha mudado. Receberam-me com todas as honras no aeródromo. O presidente da República deu-me uma condecoração. Felicitou-me pela minha façanha. A partir desse dia soube que continuaria na Armada, mas agora com a patente de cadete.

Além disso, havia algo com que eu não contava: as propostas das agências de publicidade. Eu estava muito agradecido ao meu relógio, que trabalhou com precisão durante a minha odisseia. Mas não pensei que aquilo servisse para alguma coisa aos fabricantes de relógios. No entanto, deram-me quinhentos dólares e um relógio novo. Por ter mastigado uma certa marca de pastilhas elásticas e o dizer num anúncio, deram-me mil dólares. Quis a sorte que os fabricantes dos meus sapatos, pelo facto de o dizer noutro anúncio, me dessem dois mil pesos. Para que permitisse transmitir a minha história pela rádio, deram-me cinco mil. Nunca pensei que fosse bom negócio viver dez dias de fome e de sede no mar. Mas é: até agora recebi quase dez mil pesos. No entanto, não voltaria a repetir a aventura nem por um milhão.

A minha vida de herói não tem nada de particular. Levanto-me às dez da manhã. Vou a um café para conversar com os meus amigos, ou a alguma das agências de publicidade que estão a elaborar anúncios com base na minha aventura. Quase todos os dias vou ao cinema. E sempre acompanhado. Mas o nome da acompanhante é a única coisa que não posso revelar, porque pertence à reserva do sumário.

Todos os dias recebo cartas de todo o lado. Cartas de gente desconhecida. De Pereira, assinado com as iniciais J.V.C., recebi um extenso poema, com balsas e gaivotas. Mary Address, que encomendara uma missa pelo descanso da minha alma quando eu me encontrava à deriva no mar das Caraíbas, escreve-me com frequência. Mandou-me um retrato com dedicatória que os leitores já conhecem.

Contei a minha história na televisão e através de um programa de rádio. Além disso, contei-a aos meus amigos. Contei-a a uma velhinha viúva que tem um volumoso álbum de fotografias e que me convidou a ir a sua casa. Algumas pessoas dizem-me que esta história é uma invenção fantástica. Eu pergunto-lhes: então, o que é que eu fiz durante os meus dez dias no mar?

 

 

                                                                  Gabriel García Marquez

 

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades