Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
REMÉDIO FATAL
A paciente era uma senhora Idosa rija que não se matava com facilidade.
- Hospital St. Ninian - anunciou a jovem do P. B. X. - O Dr. Beaumont? Um momento, por favor, que' vou ligar... Hospital St. Ninian... Enfermeira Forman?... Está a tocar... Hospital St. Ninian?... Das Consultas de Psiquiatria não respondem. Quer aguardar?
A resposta a esta pergunta simples provocou uma vermelhidão de ofensa nas faces da telefonista, mas, como tinha sido bem treinada, limitou-se a sugerir, num tom impessoal e desprendido, que voltasse a tentar mais tarde, se o desejasse.
- Hospital St. Ninian...
A funcionária, que se chamava Shirley Partridge, desenvolvera uma voz monótona muito diferente daquela em que se exprimia no dia a dia - que era de Calleshire pura-, para utilizar no emprego. Isto, à semelhança do antiquado cubículo onde trabalhava, servia para a separar do mundo real em mais de um sentido.
- Hospital St. Ninian...- Atendeu a chamada seguinte com a mesma prontidão firme de um robô programado. - Enfermaria Barnesdale? De momento, a linha está ocupada. Quer aguardar, ou prefere voltar a tentar mais tarde?
Consultou o relógio e ponderou se seria demasiado cedo para desenroscar a cápsula da garrafa-termo' de café.
- Hospital St. Ninian... O secretário clínico de Mr. McGrew? Vou ligar... Mr. Maldonson? Ainda não chegou, senhora enfermeira.
Ela sabia que Mr. Maldonson, chefe dos consultores de obstetrícia e ginecologia, não se encontrava no hospital, porque a sua assistente, Dr.' Marion Teal, já perguntara por ele duas vezes, naquela manhã.
- Hospital St. Ninian... O Dr. Byville? Não. Ele pediu que dissesse que, se não estivesse em Berebury, o poderiam encontrar na Comissão de Segurança de Drogas, em Calleford, toda a manhã.
Shirley Partridge orgulhava-se de se manter ao corrente do paradeiro de todos os médicos do hospital, pois nunca se sabia quando- a sua presença seria necessária com urgência.
- P.B.X.?...-Era a sua resposta usual a uma chamada proveniente de uma linha interna, sistema do velho hospital que não tinha ainda sido totalmente automatizado. - O Dr. Meggie? Ainda não chegou. - Voltou a cabeça escassos centímetros para poder ver melhor o quadro do movimento hospitalar. A linha correspondente ao Dr. P. E. L.
Meggie, médico consultor, indicava claramente OUT (1), apesar de já passar das dez horas da manhã de uma trabalhosa sexta-feira.
Como ela sabia perfeitamente, o referido cirurgião tinha sempre consulta às sextas-feiras de manhã. Também não ignorava - embora não o revelasse ao desconhecido que perguntava por ele - que Martin Friar, infortunado assistente do Dr. Meggie, fora avisado de que o substituiria nesse dia.
Sabia igualmente que o facto ocasionaria certa perturbação na rotina de Friar - dividido entre um irrefutável excesso de trabalho e o desejo de possuir maior experiência. Estava igualmente ciente de que os pacientes que tinham vindo para consultar o insigne clínico ficariam' desapontados ao deparar-se-lhes o seu assistente. No entanto, a telefonista encarava as duas ocorrências com naturalidade, por não constituírem problemas que lhe dissessem' respeito. Não fazia parte do seu temperamento apoquentar-se com os dos outros.
Ambas as pessoas em causa gozavam da sua simpatia.
O chefe dos assistentes tinha aspecto de cansado ainda antes de começar a trabalhar, naquela manhã, e, naturalmente, os pacientes da clínica não gostariam que os ludibriassem ao serem atendidos por alguém que, segundo eles, pelo menos, e numa metáfora médica, ainda tinha as fraldas húmidas. Além disso, não apreciariam mais do que Shirley a maneira como ele trajava.
(1) OUT, ausente, ou IN, em serviço. (N. do T.)
"Informalmente", era a forma como ela a descrevera à mãe. "Nem ao menos um casaco..."
Ora, o "seu" Dr. Meggie era muito diferente. Usava sempre um fato escuro de listras brancas por baixo da bata branca imaculada. E nunca era visto no hospital, ao entrar, de manhã, sem o laço e uma flor na botoeira. "Uma fresca todos os dias", comunicava Shirley à mãe, repetidamente. Aquela semana, tratava-se dos cravos amarelos mais pequenos que jamais vira.
Atrasado ou não para as consultas, segundo ela o Dr. Paul Meggie era um Grande Homem e, na sua abalizada opinião, os pacientes tinham muita sorte se o conseguiam sequer vislumbrar. Só isso - pousar os olhos nele - contribuía para que muitos se sentissem muito melhor. Constava lá em cima, no hospital, que lhe bastava entrar na enfermaria para que a atmosfera se alterasse instantaneamente.
Electrizava-a, segundo afirmavam algumas enfermeiras. - Hospital St. Ninian... Acidentes e Emergência?... Com certeza, imediatamente!-Atendiam com prontidão, naquela unidade, o que sempre era alguma coisa. - Hospital St. Ninian... Enfermaria Lorkyn?... Vou ligar. - Por qualquer razão de antiquário' antigo, as enfermarias tinham sido baptizadas com nomes de médicos notáveis do século XVI. - Está a tocar...
Não havia nada de eleotrizante na maneira como o Dr. Martin Friar entrou na clínica da consulta externa, naquela manhã. O chefe dos assistentes do Dr. Meggie estava tão fatigado, que quase renunciaria, sem a mínima hesitação, à sua profissão em troca de uma noite de sono ininterrupto. Dirigiu-se para o consultório com os passos lentos e bem medidos de quem conserva conscientemente as reservas de emergias que lhe restam.
- Há muita gente, hoje, enfermeira? - perguntou, distraidamente.
- Nem por isso - respondeu ela, cordialmente, distorcendo um pouco a realidade e consciente de que ele se sentiria melhor, depois do intervalo do café.
- Algum caso interessante?
- Talvez um ou dois dos novos.
Colocou diante do médico a pasta de cartolina referente a um' novo paciente. A visão de registos pouco numerosos nunca deixava de dispor bem os médicos jovens, tal como' um maço volumoso lhes provocava um suspiro de desespero. Estes últimos costumavam' pertencer aos chamados pacientes de "coração contraído", pela excelente razão de que produziam exactamente essa sensação no peito dos extenuados clínicos. Os de poucas folhas ofereciam ao menos a oportunidade de elaborar um diagnóstico interessante...
O chefe dos assistentes pegou na ficha em branco de um novo paciente.
- Mrs. Mabel Allison, de Great Rooden? Isso não fica na província? Muito bem, enfermeira. Conceda-me apenas meio minuto para ler a carta de referência do generalista e mande-a entrar.
Na mesma altura, Shirley Partridge atendia mais uma chamada, de uma origem diferente das anteriores.
- Bom dia, Tracy - proferiu, pois não havia necessidade de perguntar quem se encontrava do outro lado daquela linha.
Com efeito, tratava-se de uma ligação directa entre o Hospital St. Ninian, situado na costa, em Kinnísport, e o Hospital-Geral Distrital de Berebury, vila com' feira, no centro do rural Calleshire.
O Hospital de Berebury era de deslumbrante construção recente, com equipamento sofisticado e tudo o que a tecnologia médica podia sonhar em nome do progresso. O de St. Ninian, por outro lado, não passava de uma velha instituição para os pobres - e, pormenor pouco abonatório das suas características -, que fora um albergue antes do advento do Serviço Nacional de Saúde. É certo que se havia restaurado até onde se podia considerar humanamente possível - afinal hoje um artista passava os dias a decorar o átrio da entrada principal com pinturas murais coloridas-, mas persistia o aspecto geral do edifício de tijolo vermelho que denunciava um passado mais austero.
- És tu, Shirl? - perguntou a voz no outro extremo do fio.
Os dois hospitais eram' dirigidos em tandem por uma autoridade de saúde unificada. Partilhavam o pessoal consultor- o que não representava um problema - e alguns dispositivos-, fonte de uma elevada percentagem do rancor. Em teoria e numa emergência em que as camas escasseavam, recebiam os pacientes um do outro, embora tal não acontecesse com frequência.
E nunca sem algumas delicadas negociações sobre as listas de espera.
- Escuta, Shirl - prosseguiu Tracy, a qual, como Shirley se queixava à mãe com regularidade, não revelava o respeito apropriado pelas pessoas mais velhas. - Tens aí o Dr. Beaumont?
Shirley Partridge não necessitou de consultar o quadro do pessoal de atendimento para responder. O Dr. Edwin Beaumont era sempre pontual a chegar, como tinha acontecido nesse dia. Ela própria o vira entrar e contornar cautelosamente o pintor, que de momento trabalhava na parede do átrio principal.
"Pintor, não", recordou-se.
Artista.
- Óptimo - apressou-se Tracy a acrescentar. - Liga-me para lá, o mais rapidamente possível. As médicas estão a comportar-se como se o dia de hoje não existisse e o de amanhã ainda menos...
As enfermeiras do novo Hospital-Geral de Berebury não desfrutavam de nomes que lembrassem um passado médico histórico. Eram conhecidas pelo que se passava no seu seio, o que, como os próprios pós-modernistas não hesitavam em admitir, originava alguns momentos embaraçosos.
- ...e a enfermeira Pocock tem a paciência no fio, porque não consegue localizar nenhuma - concluiu Tracy.
- É para já.
Na realidade, Shirley estava preparada para se lhes queixar do cheiro de tinta no átrio, responsável pelas suas difíceis digestões - o termo "estômago" não se empregava no seu quotidiano doméstico-, mas teria de ficar para outra oportunidade.
- Está ligado. - Por muito que desaprovasse as maneiras demasiado livres da colega, apressou-se a introduzir a cavilha no respectivo lugar.
- Obrigadinha.
A jovem Tracy costumava aproveitar os momentos livres para revelar a Shirley as actividades a que se dedicara na véspera com o actual namorado-enfim, quase todas-, mas reconheceu que o momento não era o mais apropriado.
- O Dr. Beawnont não tardará a esclarecer o assunto - observou Shirley, confidencialmente, após o estabelecimento da ligação. Na verdade, simpatizava com ele. Trajava sempre de forma irrepreensível, além de que tratava as telefonistas com a maior delicadeza. - Qualquer que ele seja.
- Algo relacionado com um dos pacientes do Dr. Byville - informou a outra, encarando as palavras como uma pergunta. - Ele seguiu para Calleford, esta manhã, para uma daquelas curiosas reuniões da Comissão Regional, pelo que está incontactável.
- Suponho que é onde o Dr. Meggie também se encontra - murmurou Shirley, que não gostava de saber o que se passava e não queria que parecesse o contrário.
- Também ainda não apareceu, hoje.
- Bem, aqui é que ele não está - declarou Tracy, com uma leve risada. - O nosso Colin tem tentado contactar com ele pelo telefone, desde que chegou, esta manhã.
- Nova risada. - Perguntei-lhe se queria que indagasse nas floristas mais próximas... sem o conhecimento da Bunty.
- O Dr. Meggie disse que não viria - replicou Shirley, em tom repressivo. Toda a gente sabia que Paul Meggie, que enviuvara cerca de dois anos atrás, requestava uma atraente viúva, com visível desagrado de sua filha, Bunty.
- Admira que não informasse também o vosso Dr. Hulbert.
No fundo, desaprovava o emprego do nome de baptismo dos médicos por alguém que não pertencesse a essa profissão.
- Então, pelo menos não se encontra na Pepita de Ouro - volveu Tracy, desrespeitosamente.
- Desculpa, mas tenho de atender outra chamada - articulou Shirley, comprimindo os lábios.
Pepita de Ouro era o nome pelo qual o pessoal não médico se referia à clínica onde se efectuava todo o trabalho especializado. - Estou?... Sim, é do Hospital St. Ninian... Enfermaria Hateher? Um momento, por favor. Não desligue.
Não se desligar da realidade era exactamente o que o Dr. Edlwim Beaumont tentava fazer nesse momento. O facto de procurar realizá-lo pelo telefone em nada o beneficiava.
- Como está o paciente, neste momento? - perguntou, com uma calma profissional que pretendia ser exemplar e tranquilizadora.
- Ofegante, desorientado e com acentuada cianose - explicou a jovem estagiária, do outro extremo do fio.
Dilys Chomel sabia perfeitamente que devia ter dito "dispneica" em vez de "ofegante", mas, para ser franca, ela própria sentia uma certa falta de ar.
- Hum...
- Desculpe incomodá-lo, doutor, mas não consegui contactar com o Dr. Meggie. - Apoiava-se conscientemente à secretária, no gabinete da enfermeira Pocock. Ao mesmo tempo, reflectia que teria de enfrentar a sua primeira morte, mais cedo ou mais tarde, se queria tornar-se, um dia, médica. Só que não contava com que fosse naquela manhã. - Trata-se de Mrs. Muriel Galloway- acrescentou. - Pu-la a oxigénio e preparei uma goteira salina, para o caso de precisarmos de um linha.
- Muito bem-aprovou ele, em tom normal corrente, também destinado a servir de exemplo da atitude médica correcta em momentos de tensão.
- Não gostei nada dos seus olhos arregalados - apressou-se a continuar a jovem estagiária, a qual na perturbação do momento, se esquecera do sinónimo médico para esse sintoma de um paciente. Assim, engoliu em seco e aventurou ingenuamente:-Ou da maneira como crispa os dedos nos lençóis da cama.
- Focilação - elucidou ele, que encarava os seus deveres didácticos para com os novatos mais a sério do que o ausente Dr. Byville, pouco propenso a tiradas dessa natureza.
- Ah... - murmurou Dilys Chomel, e recordou-se com surpresa de que aprendera que esse gesto de um paciente era com frequência precursor da morte, não na escola médica, mas no liceu, nas aulas de Literatura Inglesa. - Com certeza...
Acudia-lhe agora ao pensamento que tinha sido a descrição de William Shakespeare da morte de Sir John Falstaff que tinha presente no espírito, na Enfermaria das Médicas, enquanto contemplava a sua agonizante paciente, e não as insípidas notas clínicas dos compêndios. O poeta e dramaturgo descrevera o nariz do moribundo Falstaff "aguçado como uma pena" e o "sorriso nas pontas dos dedos" mais memorávelmente do que qualquer autor de livros de medicina.
- Com certeza, doutor, com certeza - repetiu.
- Que lhe estão a administrar? - quis saber o Dr. Beaumont, que substituía os colegas Byvílle e Meggie somente durante a sua ausência dos dois hospitais e, naturalmente, não tinha o Imortal Bardo no pensamento, naquele momento.
A estagiária enumerou uma longa lista de medicamentos, após O que ele indicou:
- Dê-lhe um statim diurético intramuscular e providencie para que os familiares sejam prevenidos.
Fazia-o mais para que ela não se conservasse inactiva do que com qualquer esperança de inverter um curso imparável.
- Sim, senhor - assentiu Dilys, ainda surpreendida com o que vira.-Agora, ela tenta agarrar corsas inexistentes.
- Carpologia- esclareceu o médico, quase com rispidez.- Nós, por outro lado, cara amiga, tentamos agarrar-nos a tábuas de salvação não menos irreais. Mrs. Galloway está a morrer e você tem- de avisar a família e deplorar a situação, mas nada mais podemos fazer por ela.
- Perfeitamente, doutor. Muito obrigada. - Ela fez uma pausa e começou: - Doutor...
- Sim?
- Receio que haja outra coisa - informou em voz pouco segura.
- O quê? - inquiriu o Dr. Beaumont, com impaciência cuidadosamente controlada.
- Creio que esta paciente... Mrs. Muriel Galloway... participava no Protocolo Cardigan.
- Raios e coriscos!-bradou pouco profissionalmente e sem reflectir.
Os médicos argumentam, claro, que um membro da sua classe mau profissional é uma impossibilidade.
Não eram apenas os Drs. Byville e Meggie que não estavam contactáveis nos seus hospitais.
- Não, Drª Teal, Mr. Maldonson ainda não chegou - anunciou Shirley Partridge pela terceira vez, desde que entrara de serviço.
Vira a médica percorrer o átrio de entrada de St. Ninian em impaciente vaivém, naquela manhã, de expressão cansada e ansiosa, e agora voltava a telefonar. A telefonista sabia perfeitamente que não era qualquer emergência de obstetrícia a causa de semelhante tensão. Devia-se à atitude indesejável de Mr. Maldoson, seu chefe.
- Ah...-A voz da Drª Teal parecia privada de energia. - Então, vou ter de... Importa-se de ligar para este número?...
- Está a tocar - entoou Shirley.
- Depois - insistiu a médica, com desalento -, irei esperá-lo à entrada. - Mais para consigo do que para a telefonista, acrescentou: - De qualquer modo, aqui já não posso fazer mais nada.
A assistente de obstetrícia, que tinha estado no turno da noite toda a semana, sentia-se suficientemente exausta para se sentar num dos bancos do átrio de entrada, onde adormecera, porém agora achava-se demasiado enervada para que isso voltasse a acontecer. "Repousa enquanto podes" constituía a divisa de alguém de espírito tranquilo, e o de Marion Teal nem de longe desfrutava de tranquilidade. O que não hesitava de fazer era descarregar parte da cólera e irritação engarrafadas resultantes do aberto misoginismo de Mr. Maldomson sobre alguém... preferivelmente do sexo masculino.
O artista, Adrian Gomm, embora, sem dúvida, de aspecto assaz epiceno, era o homem mais próximo e quase fora do seu alcance, num escadote.
- Importa-se que lhe faça umas perguntas sobre o seu trabalho? - indagou ela, levantando um pouco a voz, para que a ouvisse com clareza.
Sempre era uma coisa que Mr. Maldonson nunca fizera acerca do seu. A única que parecia interessar-lhe era obrigá-la a sair de serviço tão tarde, todas as manhãs, que todos os seus meticulosos preparativos para os cuidados infantis ficavam alterados.
- Não. Faça as que quiser.
- É tudo muito simbólico, não concorda?
- É essa a ideia geral - assentiu Gomm.
- Não é St. Ninian, no topo?
A figura de um santo distintamente substancial trajado de branco, com um halo dourado e tudo, encontrava-se espraiada ao longo de toda a parte superior do mural, com os braços a abarcar benevolentemente a pintura.
- Acertou em cheio.
Marion Teal não conseguiu impedir a leve vermelhidão das faces.
- Mas os outros hábitos brancos... os vazios...
- Sim?
- Não percebo o que fazem na pintura.
- É natural que não perceba - disse o pintor, com ar negligente, do poleiro acima dela.
- E são todos diferentes-persistiu ela.
Era estupidez sentir-se tão em desvantagem, só porque tinha de olhar para cima. Ele não se dispunha sequer a increpá-la como Mr. Maldonson. Este não gostava de ver mulheres envolvidas na medicina - pelo menos, na secção de obstetrícia - e não perdia uma oportunidade de o deixar bem claro.
- Pois são - admitiu o pintor, laconicamente. Marion Teal retrocedeu um passo e contemplou o mural mais minuciosamente.
- Aquele abaixo do santo, à esquerda, parece mais uma bata de operação.
- E é. Enrugou a fronte.
- O que não entendo é a razão pela qual os cordões conduzem ao longo hábito branco pousado a seu lado, na parte inferior.
- Não?
- Mais simbolismo?
O hábito acabado de mencionar constituía o oposto - quase uma imagem de espelho - ào do santo no topo do mural. Ao passo que, embora os braços do santo se estendessem para a frente e para baixo, os do hábito em baixo inclinavam-se para cima, numa pose implorativa, como se suplicasse ajuda.
- O de baixo é uma mortalha - explicou Adrian Gomm, aplicando a trincha à parede.
- Ah... estou a compreender. - Ela olhou em volta. - Então, e o outro hábito?
- O do lado direito?
- Sim. É uma camisa de forças, ou coisa parecida? Esperava tornar-se, um dia, consultora de obstetrícia e ginecologia - daí a importância de Mr. Maldonson nas perspectivas da sua carreira - e não psiquiatra, além de que nunca vira uma camisa de forças.
- Isso também é simbólico - revelou ele, de algures à altura da cabeça. -Se observar com atenção, verificará que os cordões se atam ao hábito do santo e à mortalha, como os da bata de operação do outro lado.
- Mas o que é? - perguntou Marion, involuntariamente interessada.
- Uma coisa chamada sambenito - explicou Gomm, puxando para cima as calças de ganga salpicadas de tinta.
- É a primeira vez que oiço esse nome - confessou ela, enquanto parte da sua preocupação com Mr. Maldonson se extinguia.
- Era uma túnica usada pelos hereges antes de serem queimados na fogueira.
Não pôde evitar um estremecimento. Talvez estivesse a exagerar as proporções do seu problema.
- Em todo o caso - prosseguiu o pintor, franzindo os lábios cinicamente-, os que vestiam batas de operação morriam com frequência sem bênção, não lhe parece?
- Isso, não sei - murmurou ela, voltando para junto da porta de entrada, de onde veria Mr. Maldonson, quando chegasse.
Se chegasse.
Em contrapartida, para o Dr. Martin Friar, o dia apresentava-se cada vez mais prometedor.
Com efeito, diagnosticara algo de interessante na consulta em que substituía o ausente Dr. Meggie, e, como a enfermeira-chefe do departamento de consultas externas previra, ficara mais animado depois disso... e de tomar o seu café, claro.
- Há quanto tempo se sente assim, Mrs. Allison? - perguntou ele à paciente, uma camponesa corpulenta de uma das aldeias mais rurais da região de Calleshire.
A resposta deixou-o perplexo:
- Mais ou menos desde o dia de São Miguel (1), doutor.
- Hum... E depois?
(1) 29 de Setembro. (N. do T.)
- Depois, a seguir ao Natal, aumentou. E ficava muito cansada, cada vez que tentava fazer alguma coisa.
- Refere-se aos trabalhos domésticos?
Ela olhou-o com perplexidade.
- Bem, isso e cuidar d'as galinhas e dos gansos. Chegou ao ponto de nem conseguir agachar-me para recolher os ovos. Pelo menos, sem que a dor aumentasse. - Fitou o médico com intensidade, ansiosa por que se elucidasse totalmente acerca da dor. - Depois, quando fui ajudar o meu marido com as ninhadas das porcas, à noite, fiquei muito esquisita e tivemos de chamar o médico. Uma coisa que não fazia desde que os nossos filhos eram pequenos.
- Estou a ver...
O Dr. Friar inscreveu algumas palavras na ficha em branco. Criara-se na vila e não compreendia bem as urgências da vida rural.
- Depois, houve as compras, doutor.
- Que aconteceu com as compras? - inquiriu, pois também não compreendia bem essa parte.
- Levá-las, claro - retorquiu Mrs. Allison, de momento esquecida de se deixar impressionar pelo ambiente à sua volta. - As compras de uma semana não pesam pouco, pode crer. E ainda é um estiraço da paragem da camioneta, em Great Rooden, até à herdade, no topo da colina, depois de ter nos pés toda uma manhã no mercado de Berebury.
O assistente pegou no esfigmomanómetro, enquanto ela olhava em redor, impressionada e apreensiva em partes iguais. Embora sem intenção, a Clínica de Consultas Externas exercia por vezes o mesmo efeito, nas pessoas não familiarizadas com ela, que a Sala de Justiça, no Palácio dos Doges de Veneza: dizia-se que o facto de a percorrer de um extremo ao outro influía decisivamente na mente dos que eram submetidos a julgamento.
Com o cansaço já quase totalmente dissipado, o Dr. Friar perguntou:
- Foi então que voltou a ter essa sensação?
- Exacto - respondeu Mrs. Allison, distraidamente, pois fixava os olhos nas mãos dele. - Que tenciona fazer com essa coisa?
- Apenas colocá-la em volta do seu braço. Garanto-lhe que não doi nada. - Ele pegou no estetoscópio. - Depois, vou auscultar esse relógio que tem dentro do peito.
- Já não é o que era - queixou-se ela.
- Pois não.
- E, às vezes, os tornozelos incham, durante a noite.
- Sim, é natural. - Martin Friar baixou os olhos para os volumosos tornozelos e sapatos de cordões e tornou a inscrever algo na ficha. A tensão arterial era elevadíssima, como previra. Também não gostava da cor dos lábios, mas não se pronunciou a esse respeito. Ao invés, perguntou:-Como se sente, após um repouso?
- Repouso? - Mrs. Allison olhou-o como se se exprimisse num' idlioma desconhecido. De súbito, o rosto iluminou-se e acrescentou:-Ah, refere-se aos domingos! - (Ele não tinha em mente apenas esse dia da semana, mas deixou-a continuar). - Bem, há sempre a alimentação do gado, claro, embora descanse os pés durante a tarde.
Expôs parte das pernas inchadas. - Mas isso não influi na dor, cá para cima.
- Hum... - fez o médico, mais uma vez.
- Foi por isso que o meu médico recomendou que viesse à consulta do hospital.
- Fez muito bem - assentiu, ao mesmo tempo que reflectia que o colega a devia ter enviado alguns meses atrás. - Porque - acrescentou com firmeza - creio que lhe poderemos ser úteis.
- Eu não queria vir, sabe - explicou ela, sem o ouvir-, porque - nunca tinha estado num hospital.
- Um dos seus problemas - prosseguiu Martin Friar, que também não a escutava - consiste em que as artérias endureceram, por assim dizer, adqiriram rugosidades, como acontece à canalização da água antiga, e o sangue não pode circular como necessita.
O rosto da mulher desanuviou-se.
- A água é muito pesada, para os nossos lados, e às vezes sinto fortes palpitações.
- É compreensível - admitiu ele, sem se dar ao trabalho de lhe dissipar a confusão. - Ora bem. Precisamos de tentar dissolver os resíduos que se acumularam nas artérias sem termos de recorrer a uma operação.
- Não gostava nada de ser operada - articulou Mrs. Allisom, automaticamente.
- Há dois tratamentos que lhe podemos aplicar. Acontece que, de momento, estamos... quem está é o Dr. Meggie, na realidade... a testar um novo, aqui, em St. Ninian.
- Quem diria! - articulou, apropriadamente impressionada.
- Gostaríamos, pois, de a incluir numa dessas experiências, prescrevendo-lhe um tratamento com as novas cápsulas, para depois estudarmos o resultado.
Ela assentiu com uma inclinação de cabeça, embora não compreendesse.
- Nem eu próprio saberei qual das duas drogas vai tomar - continuou ele, com um' sorriso cativante. - Assim, não serei minimamente influenciado pelo que disser a seu respeito, quando as receitar.
- Obrigada, doutor-murmurou ela, ainda mais mistificada.
Viera a St. Ninian para ser influenciada, e não compreendia o motivo por que ele não lhe receitava alguma coisa e garantia que seria óptimo para se curar, como costumava fazer o seu médico assistente.
- Chama-se uma experiência cega, para não recorrer à designação técnica mais complicada - esclareceu ele, com o sorriso profissional que adoptava desde que completara o curso. - Mas não precisa de se preocupar com a mecânica envolvida.
- Essas cápsulas vão atacar as dores que tenho de vez em quando? - quis saber Mrs. Allison, temporariamente ofuscada pela ciência e, por conseguinte, concentrada em algo que não compreendia.
- Talvez - concedeu Martin Friar, prudentemente, e acrescentou: Em todo o caso, devo preveni-la de que podem excitá-la um pouco. Se isso acontecer, não pare de as tomar. Volte cá e comunique-nos o facto.
- Muito bem, doutor.
Estendeu a mão para uma embalagem de cápsulas previamente preparada, inscreveu o nome dela e um número no rótuto e reproduziu-os num livro de registo.
- Agora, Mrs... Allison, não é?... tem de assinar este impresso.
Ela procurou na carteira e meneou levemente a cabeça.
- Lamento, doutor, mas não trouxe os óculos de ver ao perto.
- Não tem importância - assegurou-lhe o médico, com desprendimento. - Diz apenas que lhe expliquei os pormenores desta experiência clínica que vamos efectuar e compreendeu tudo. Vê a linha ponteada? Óptimo. Escreva o seu nome ao longo dela, e a enfermeira também assinará.
- Na minha letra habitual?
- Com certeza - assentiu, preenchendo a parte que lhe dizia respeito, a qual indicava que o consentimento para participar na experiência fora obtido após a explicação dos riscos e efeitos secundários possíveis.- Gostávamos que voltasse dentro de um mês, Mrs. Allison. É natural que a receba o Dr. Meggie e não eu, nesse dia.
Ela aquiesceu, com um movimento de cabeça. De qualquer modo, fora o Dr. Meggie que viera consultar.
- Não se esqueça, porém, de lhe comunicar que foi recrutada... se me permite a expressão... para participar no Protocolo Cardigan.
- Protocolo Cardigan - repetiu, para consigo.
O Dr. Friar experimentava uma desculpável sensação de satisfação com o resultado da consulta. Mrs. Allison era uma candidata ideal para o teste da nova droga, e o Dr. Meggie ficaria certamente satisfeito com ele.
- Vou pôr uma marca especial na sua ficha para o alertar, quando a receber - revelou à mulher.
A categoria e processo dos médicos não são mais científicos que o nome do seu alfaiate.
- Safa, que isto dói!-bradou o jovem no imaculado e novo Departamento de Acidentes e Emergências do Hospital de Berebury. - Dói como um raio!
Darren Clements jazia no divã de um cubículo circundado por uma cortina, o braço esquerdo rodeado por toalhas empapadas em sangue e olhos arregalados, numa combinação pouco saudável de medo, cólera e dor. A fronte achava-se perlada de gotas de transpiração. Havia igualmente um elemento, na sua expressão, encontrado frequentemente nas pessoas que enfrentam pela primeira vez uma sensação invulgarmente penosa, de surpresa absoluta.
- Lastimo imenso, Mr. Clements - disse a Drª Dilys Chomel, médica de serviço no referido departamento até à próxima manhã de segunda-feira-, mas os seus ferimentos necessitam de assistência imediata.
O paciente estremeceu, quando pousou os olhos nas mãos que avançavam na sua direcção. Acto contínuo, soergueu-se de um salto e as toalhas soltaram-se.
- Que vai fazer com essa agulha?
- Injectar-lhe um anestésico local na pele em volta do corte, para não sentir os pontos que lhe vou aplicar.
- No lugar de onde ela viera, os jovens guerreiros da idade de Darren Clements procuravam regularmente a dor que exigia um maior estoicismo do que a actual, para a sua iniciação nos rituais d'a virilidade. Com um olhar de escassa comiseração ao seu actual paciente, observou:
- Pode infectar, se não for tratado da forma conveniente e sem demora.
- Estou ao corrente disso - replicou ele, quase com rispidez, o rosto naturalmente magro endurecido pelas presentes circunstâncias. - A mão enfiou pelo telhado de vidro... Cuidado! Sabe o que está a fazer, suponho?... Ai!
- A radiografia não indica a presença de qualquer vestígio de vidro no ferimento - explicou Dilys Chomel, prosseguindo calmamente a suturação do largo rasgão.- Nesse aspecto, pelo menos, teve sorte.
- Sorte?! Hei-de processar a Gilroy's Pharmaceuticals por empregar vidro frágil no telhado.
Absteve-se de salientar que, se se tivesse introduzido um pouco mais no telhado, talvez fosse o seu último acto neste mundo. Ao invés, porém, lembrou-lhe:
- E também não houve qualquer corte nos tendões. De contrário, teria de ser submetido a grande cirurgia ou...
Ele empertigou-se.
- Nada disso seria necessário se...
- Ou perder a utilização da mão para toda a vida - completou a Drª Chomel.- Importa-se de a virar para mim?
Darren Clememts enrugou a fronte numa carranca de revolta, mas acabou por obedecer.
- Mesmo assim, a cirurgia não está definitivamente posta de parte. Farei o melhor possível, mas pode contar com uma cicatriz...
- Que conservarei, muito obrigado.
À semelhança de muitos outros feridos por uma boa causa, não se sentia avesso a ficar com uma prova disso na sua pessoa.
- ...que talvez tenha de manter oculta, para a eventualidade de alguém atribuir o corte no pulso a uma tentativa de suicídio. - A Drª Chomel tornou a inclinar-se para a frente. - Agora, apresente o outro lado, por favor. Isto já não vai doer tanto.
Ele emitiu um grunhido, mas comprazeu-a.
- Ainda estão lá fora?
- Quem?
- Os polícias, naturalmente - proferiu, entre dentes. - Querem saber quem se encontrava comigo... mas escusam de pensar que o revelo.
- E quem quer que eles fossem, como não estão aqui, depreendo que não sofreram ferimentos - comentou a médica, secamente. - Ou limitaram-se a fugir e deixá-lo enfrentar as consequências?
- Escaparam-se - declarou Clements, com dignidade.
- E você foi apanhado... isto agora pode doer um pouco... em flagrante?
- Foi o único motivo por que me capturaram. E, para sua informação, dói muito e não pouco.
- Lamento, mas estou quase a terminar.
- De resto - continuou, fungando com desdém-, não podia fugir, com' a mão assim. Deixava um rasto de sangue com um quilómetro de largura. - Estremeceu no momento em que a Drª Chomel aplicou mais um ponto natural. - Até a Polícia conseguiria localizar-me.
Embora não conhecesse bem Calleshire, ela ouvira falar da Gilroy's Pharmaceuticals em Staple St. James. Suspirou e, com uma réstia de compaixão, perguntou:
- Pode saber-se que drogas consome?
- Drogas? Nenhuma!-O jovem arregalou os olhos, indignado.
- Não é obrigado a dizer-mo - volveu ela, com naturalidade-, mas por que tentou introduzir-se lá, se não para se abastecer?
- Qual história! Sou um activista dos direitos dos animais e não um drogado. - Clememts endireitou-se até onde lhe era possível e acrescentou com gravidade: - Pretendíamos soltar alguns macacos.
- Não, inspector - asseverava, mais ou menos à mesma hora, George Gledhill, químico chefe da Gilroy, nas instalações em Staple St. James -, não foi libertado nenhum, desta vez. Os imbecis não chegaram a esse ponto.
- Óptimo - disse o inspector-detective Sloan, com veemência.
A última incursão na Gilroy pelos Activistas dos Animais de Calleshire redundara em macacos infectados com um produto cujo longo nome ele não conseguira fixar - mas que soava pouco agradavelmente - dispersos pela região e com o perigo de propagarem a sua doença. No entanto, coubera à Polícia a indesejável tarefa de os capturar.
E o mais rapidamente possível.
- Graças ao novo sistema de alarme que instalámos em fins de Janeiro, conseguimos ludibriar os invasores - declarou Gledhill, um indivíduo baixo, atarracado, habituado a tomar decisões.
- Folgo em sabê-lo - disse Sloan, que acrescentou prosaicamente: - Pode afirmar-se que a prevenção é melhor do que a cura, tanto no mundo da Polícia como no médico.
O outro exibiu um leve sorriso.
- Não diga nada aos médicos, mas duvido que funcione para eles. E ainda bem, provavelmente, ou eu ficaria sem trabalho.
- Não creio que tenha de se apoquentar nesse sentido, pelo menos para já. Tal como eu. - O Inspector C. D. Sloan, conhecido como Christopher Denmis para a esposa e família e, por motivos óbvios, como "Andrajoso" para os amigos e colegas da Corporação, era chefe do minúsculo Departamento de Investigação Criminal da Divisão "F" da Polícia do Condado de Calleshire. Assim, todos os crimes perpetrados na vila de Berebury e redondezas eram-lhe depositados nas mãos. -Penso que continuará a haver trabalho para ambos durante algum tempo.
- No entanto, houve alguns problemas com o sistema de alarme - admitiu Gledhill.
- Sim? - A nova não agradou a Sloan. Da última, vez que haviam sido libertados, os macacos não se tinham dado bem com o tempo frio. - Na parte eléctrica?
O interpelado abanou a cabeça com veemência.
- Não, os próprios macacos. Os espertalhões descobriram a maneira de o desligar. E desligaram-no.
- Esperamos interrogar um homem relacionado com a tentativa de assalto, ainda esta manhã. Deixei um agente à espera, no hospital. Tenho de passar pela Central e depois sigo também para lá.
Na realidade, as coisas não se desenrolaram com essa simplicidade. O inspector tinha uma mensagem à sua espera. O superintendente desejava falar com ele, assim que chegasse.
- Ah, até que enfim, Sloan! Entre. - Leeyes ergueu os olhos do documento na sua frente. - E sente-se. Acaba de ocorrer algo de singular no Hospital Berebury.
- Sim? - proferiu o inspector, apenas consciente de que era sexta-feira e acalentava a esperança de dispor de um fim-de-semana prolongado há muito merecido.
- É claro que se pode tratar de um falso alarme.
- Que aconteceu, concretamente? - perguntou, também consciente de que se exprimia como um médico.
O superintendente pegou numa folha de mensagens e agitou-a no ar, - Houve lá uma morte, esta manhã.
- De que espécie? - inquiriu Sloan, desconfiado. Decerto estavam habituados a casos fatais, nos hospitais. Aliás, ele sabia que os termos "morto" ou "teve alta" figuravam sob a mesma epígrafe, nos seus registos. Assim, erguendo uma sobrancelha, sugeriu: - Correu mal mais uma das operações de desafio à morte de Mr. Daniel McGrew?
Leeyes abanou a cabeça.
- Desta vez, não está envolvido o descuidado cortador da área, graças a Deus. Trata-se de um caso médico.
- Mas que correu mal?
- Não se sabe. Pelo menos, para já. Ainda é cedo.
- E o problema? - Na experiência de Sloan, nunca era demasiado cedo para conhecer a natureza exacta do imbróglio.
- Uma morte, pelo menos - informou o superintendente, numa inflexão enigmática.- De uma mulher idosa. Mas quanto à natureza do problema, ainda não me posso pronunciar, por escassez de elementos.
- Inesperada?
Se existia um factor de relevo entre as mortes que interessavam ou não à Polícia, costumava ser, embora nem sempre, esse.
- Não.
- Então, por que temos de nos envolver?
- A situação não é assim tão simples.
"Nunca é", reflectiu Sloan, mas absteve-se de o dizer em voz alta. Não merecia a pena.
- No entanto - reconheceu Leeyes, não sem uma ponta de relutância-, os familiares admitem que foram advertidos desde longa data de que a mãe estava na iminência de morrer. É praticamente a única coisa em que concordam-acrescentou, com' um certo azedume.
- E daí? - urgiu o inspector, ciente de que aquilo tanto podia ser um bom sinal como mau.
- Foram devida e apropriadamente convocados antes de ela morrer. Não há qualquer razão de queixa, nesse aspecto.
- Desculpe, mas ainda não compreendi que papel desempenhamos nesse cenário - declarou, inclinando-se para a frente. Afinal, talvez conseguisse o fim-de-semana prolongado.
- Não estou totalmente convencido de que nos interesse. E é aí que reside o busílis. Primeiro, há necessidade de esclarecer esse ponto. - O superintendente entregou-lhe' a folha de papel e acrescentou significativamente: - Ocupe-se disso com o detective Crosby.
- Sim, senhor.
- Porque, se ele andar consigo, não estará aqui.
- Sem dúvida - murmurou Sloan, com um suspiro de resignação.
- E não o quero na Central hoje nem mais um minuto do que o indispensável.
- Obrigado - agradeceu, sem pestanejar. - Compreendo. De momento, encontra-sse no hospital para recolher as declarações de um activista... de um libertador.
Leeyes resmungou qualquer coisa de contundente sobre todos os activistas antes de indicar:
- Averigue se estamos interessados nessa morte no hospital, de preferência antes que o filho da extinta...
- Procurou entre a papelada em cima da secretária. - Tenho o nome algures... Ah, ei-lo! Gordon Galloway, filho de Mrs. Muriel Ethel Galloway.
O inspector-detective Sloan permitiu-se um suspiro íntimo e anotou os dois nomes numa página em branco da sua agenda, ao mesmo tempo que as perspectivas do fim-de-semana se atenuavam.
- E averigue-o - insistiu o superintendente-, antes que se meta na cabeça desse Gordon Galloway que deve procurar o coroner ou a Imprensa, sem nos consultar.
- Com que então, a situação está nesse ponto, hem?
- observou Sloan, pensativamente. Em •qualquer dos casos, os problemas poderiam surgir e ambos prometiam investigações delicadas.
- O que Gordon Galloway pretende - Leeyes fez rolar os olhos na direcção do tecto - é, longe vá o agoiro, acção.
- Sim, senhor.
"Como os activistas dos direitos dos animais", reflectiu o inspector.
- E exige que seja imediatamente. Se não puder ser antes... - Neste ponto, o superintendente alterou o seu tom para uma paródia de uma pessoa pretensamente importante: - é um homem d'e negócios e o seu tempo preciosíssimo.
- Que há exactamente que não o satisfaz? - quis saber Sloan, sem se impressionar. Os homens de negócios que determinavam o preço do seu tempo, e do de mais ninguém, não constituíam uma fauna estranha nos seus diversos inquéritos. - Estamos ao corrente disso?
- Os cuidados médicos que a falecida mãe recebeu... ou antes, não recebeu... no Hospital Berebury.
- Existe algum motivo para que isso figure na nossa alçada? - persistiu. O tempo da Polícia também era valioso, embora não estivesse em moda dizê-lo, no actual clima social. - O corpo médico goza de fama apreciável, nesse estabelecimento... à excepção de Mr. McGrew, claro - apressou-se a acrescentar.
Não era injustificadamente que esse clínico desfrutava de larga popularidade no comando de Calleshire, com a designação de Dan, o Perigoso.
- Galloway alega que os médicos foram criminosamente negligentes no tratamento da falecida mãe - salientou Leeyes.
- O quê? Todos?
- Bem, sobretudo o clínico da casa.
O inspector alisou a página da agenda e insistiu:
- Baseado em quê, precisamente?
- Em quatro razões.
- Quatro? - O motivo afigurava-se-lhe exagerado.
- Não consegui arrancar-lhe mais do que isso - grunhiu o superintendente. - O homem estava um pouco excitado.
- Mesmo assim...
- Em primeiro lugar - ergueu um dedo para começar a enumerar-, a médica que se ocupava da mãe dele, Drª Dilys Chomel.
O inspector conservou-se calado. O misogirasmo do seu superior hierárquico era demasiado conhecido na Central para justificar qualquer comentário.
- Em segundo - outro dedo foi juntar-se ao anterior -, ela é muito jovem.
Havia exactamente o mesmo problema na Corporação com os polícias recén-admitidos, cada vez mais jovens. O "desejado detective Crosby constituía um exemplo típico. Nem sequer tinha o aspecto apropriado às funções que desempenhava e ainda menos actuava nessa conformidade. Talvez fosse também o caso da Drª Chomel.
- Em terceiro - proferiu Leeyes, continuando a recitar a ladainha de Gordon Gallaway-, ela usa jeans.
- Ah... - murmurou o inspector, veterano de numerosíssimos processos no tribunal. - Isso não deve ter pesado a seu favor.
- Em quarto e último - concluiu o superintendente, no tom de quem lança um trunfo na mesa-, não é inglesa.
Embora por uma margem reduzida, a sua xenofobia excedia a assaz intensa nmisoginia. Sloan limitou-se a baixar os olhos para os papéis que tinha na mão, e, transcorrido um momento, observou:
- Não se trata propriamente de um estendal de provas esmagadoras.
- Pois não - concedeu o outro, com inesperada prontidão. - Mas aguarde o resto.
E o inspector aguardou.
- O que Gordon Galloway me disse, nem sabe... pelo menos, julgo que não, se porventura não foi ele, claro... é que, uma hora depois de a mãe morrer, esta manhã, recebemos um telefonema anónimo...
- Não me diga...
- Que o nosso telefonista localizou numa cabina perto do hospital...
Sloan enrugou a fronte.
- Para comunicar que essa mulher, Muriel Galloway, tinha sido incluída na experiência de uma droga, ao dar entrada no hospital.
Tornou a abrir a agenda, enquanto Leeyes acrescentava pausadamente:
- Uma experiência que a pessoa que telefonou...
- Homem ou mulher?
- Mulher, segundo pareceu ao nosso telefonista, embora sem ter a certeza. Era uma voz abafada, provavelmente disfarçada através de um lenço.
Sloan escreveu algo na agenda.
- Uma experiência que a pessoa que telefonou - terminou o superintendente, cancelando, de uma vez por todas, o fim-de-semana prolongado do subordinado-considerou muito perigosa e pode ter sido a causa da morte.
A teoria de que todo o indivíduo vivo tem um valor infinito é, legislativamente, impraticável.
A princípio, o administrador do Hospital Berebury pensou que o Inspector Sloan e o detective Crosby o procuravam por causa dos roubos constantes na área da cozinha do estabelecimento, comunicados repetidamente à Polícia.
- Têm continuado, inspector. Na própria cozinha, quando não é na copa. - Contraiu as faces num trejeito de impotência.- Prová-lo, claro, é outra história.
- Sem dúvida. - Sloan endossava estas palavras com veemência, As suas suspeitas recaíam sobre um dos cozinheiros, chamado Dave, de expressão quase angelical. - Mas não é isso que nos traz.
O administrador, condicionado para receber más notícias, aguardou resignadamente que o nome de Daniel McGrew fosse mencionado.
- Uma médica? -ecoou, surpreendido. - Não costumamos receber... - Interrompeu-se, tossiu discretamente e acrescentou:-Os doutores Byville e Meggie têm as suas camas aí.
- Gostaríamos de trocar algumas palavras com quem se ocupou da falecida Mrs. Muriel Galloway - declarou Sloan, enganadoramente receoso.
O administrador premiu um botão no telefone em cima da secretária e perguntou pela enfermeira-chefe Pocock.
- Mrs. Galloway era paciente do Dr. Byville - informou, minutos depois, com uma expressão apreensiva. - Não estava presente, ao princípio da manhã, e o Dr. Meggie devia substituí-lo...
- Devia? - O inspector captou a palavra saliente sem dificuldade.
- Aparentemente - prosseguiu o outro, franzindo o cenho'-, como ninguém conseguiu localizá-lo, a enfermeira entrou em contacto com o Dr. Beaumont, de Kinnisport, e preveniu o clínico da casa antes de Mrs. Galloway expirar.
- O segundo suplente - observou o detective Crosby, em regra mais interessado pelo futebol do que pelos hospitais.
- E onde se encontrava o Dr. Byville? - quis saber Sloan, desejoso de que o subordinado também se interessasse minimamente pela detecção.
- Em Calleford, a fazer uma apresentação na reunião da Comissão de Segurança de Drogas - esclareceu o adiministrador.
- Fale-me mais disso - urgiu o inspector.
- Não me refiro ao tipo de drogas que costumam interessar à Polícia - explicou o interlocutor, com um leve sorriso condescendente. - Trata-se das nossas. Procedemos a muitas experiências dessa natureza aqui, no Hospital Berebury, para a Gilroy, laboratório de produtos farmacêuticos em Staple St. James. Decerto sabe ao que me refiro...
Sloan admitiu que sabia perfeitamente.
- Sim, claro - acrescentou o administrador. - Esquecia-me dos activistas dos direitos dos animais.
- Que são, na realidade, muito activos - acudiu Crosby, que tomara nota das declarações impenitentes de Darren Clements.- Para não falar dos macacos, que também' não são nada pacíficos.
- Não temos qualquer responsabilidade pelo... num... trabalho aí executado-disse o administrador-, mas...
- Mas? - encorajou Sloan.
- Preocupamo-nos naturalmente com o rigoroso cumprimento das directrizes em todas as experiências efectuadas.
- Naturalmente.
- Por conseguinte...
- Por conseguinte, gostávamos de conversar com o Dr. Byville- cortou o inspector, com brandura.
- A enfermeira Pocock diz que já entrou.
- Se puder conceder-nos um momento...
O Dr. Byville, ao menos, não se deixou iludir pelos modos aparentemente receosos de Sloan e mostrou-se assaz descontraído e mesmo algo brusco.
- Muriel Gailoway? - proferiu, imperturbável. - A causa da morte foi exactamente a que indiquei no relatório. Não subsistia a mínima dúvida no meu espírito, quando assinei a certidão de óbito, e continua a não subsistir.
O inspector murmurou algo de indistinto - e pouco claro - sobre familiares insatisfeitos.
- Na minha opinião - replicou o médico, sem a menor hesitação-, não havia bases clínicas para praticar um post mortem. - Olhou Sloan
significativamente e continuou:
- Nem, tanto quanto sei, razões de qualquer outra natureza.
- A sua mirada pousou por instantes no detective Crosby, antes de concluir: - Pode, claro, haver outros factores que desconheço.
O inspector absteve-se de comentar as últimas palavras e, ao invés, perguntou:
- Não lhe pareceu, portanto, um óbito que merecesse ser comunicado ao coroner?
- Sem dúvida que não - redarguiu Byville, com firmeza.
- Não me foram referidas quaisquer circunstâncias suspeitas. Havia mais de uma semana que a paciente estava internada, quando morreu. Não se verificara nenhuma intervenção cirúrgica, nem mesmo anestesia. Que outra coisa poderia haver para justificar a comunicação que refere?
- Confesso que não... - começou o interpelado. Mas o especialista ainda não terminara.
- Nem a mulher estava mortalmente faminta, quando baixou ao hospital ou algo do género.
- Pois não - assentiu Sloan, quase timidamente.
- Apenas causas naturais - volveu o outro, em tom terminante.
- Não havia, pois, motivos para supor que a morte de Mrs. Galloway estivesse de algum modo relacionada com qualquer método ou tratamento médico que recebeu?
- Muito pelo contrário. Posso garantir-lhe que, sem o tratamento recebido, teria morrido meses... se não anos... antes. Com efeito, ela sofria desde longa data de incapacidade congestiva do coração.
- Compreendo...-O inspector fez uma pausa, com a agenda e a esferográfica preparadas. - Esse tratamento incluía porventura uma nova droga que estava a ser testada na paciente?
O médico enrugou a fronte e soltou uma risada seca.
- Ah, é isso que o preocupa? Na verdade, Muriel Galloway figurava numa experiência clínica, como a maioria dos pacientes de problemas cardíacos do hospital. Não há segredo algum a esse respeito.
- Uma experiência clínica...
Sloan inscreveu a expressão na agenda. Costumava ser outra espécie de experiências que lhe acudiam mais facilmente ao pensamento, mas estava sempre disposto a aprender.
- Uma experiência clínica - reiterou Byville, numa inflexão neutra - com a designação de código de Cardigan, devidamente organizada e aprovada pelas Comissões de Ética Regional e Hospitalar, conduzida pelo cardiologista de Kinnisport, Dr. Meggie, em obediência a um rigoroso protocolo por elas estabelecido...
- Ah... - murmurou o inspector, tornando a escrever.
- ...com um composto fornecido pela firma Gilroy
(Berebury) Limited, sociedade de produtos farmacêuticos situada em Staple St. James, decerto conhecida da Polícia e dos vândalos defensores dos direitos dos animais - concluiu o médico, franzindo levemente os lábios.
- Essa nova droga- aventurou Sloan, abstendo-se de mencionar os problemas relacionados com os elementos acabados de mencionar-que experimentavam em Mrs. Gal-loway...
- O termo correcto é "testar" e não "experimentar" - corrigiu o outro, secamente. - As experiências efectuam-se em amimais.
- Seja, testavam-rectificou o inspector, cujo objectivo não consistia em se envolver numa luta de vocábulos apropriados ou não.
- Posso garantir-lhe que a sua inclusão no Protocolo Cardigan não teve a mínima influência na morte. Ela não sobreviveria, de qualquer modo.
O detective Crosby voltou-se para o especialista e observou inocentemente:
- Mas também não a salvou.
- De facto, receio bem que não.
Sloan, sempre polícia acima e abaixo de tudo, formulou uma pergunta muito mais importante, para ele:
- Nem lhe acelerou a morte?
- Na minha opinião, não. Nem mesmo se lhe fosse administrado em primeiro lugar. Não me posso pronunciar a esse respeito, claro.
-Não sabe?
- Não.
- Mas disse...
- O que eu disse, inspector - interrompeu Byville, friamente- foi que Muriel Galloway participava na experiência clínica.
- E daí?
- Daí que podem não ter chegado a administrar-lhe a droga.
- Está-me a dizer-articulou Sloan, em cujo espírito começava a fazer-se luz - que havia comprimidos neutros?...
- Estou a dizer-lhe - contrapôs Byville, com firmeza - que todo o protocolo contém naturalmente diferentes controlos.
- Nessa conformidade, Mrs. Galloway pode ter tomado apenas comprimidos inofensivos?
Ao mesmo tempo que pronunciava estas palavras, o inspector reflectia que essa faceta da situação exigiria uma explicação mais pormenorizada ao superintendente.
- Inertes é uma descrição mais apropriada do que inofensivos.
- Inertes - concedeu, por entre os dentes cerrados. - Por conseguinte, ela pode ter tomado somente comprimidos inertes...
- Pode, de facto...
- Sim?
- Por outro lado, pode ter acontecido o contrário.
Os seus dentes achavam-se agora cerrados tão firmemente, que se admirava de que os outros não os ouvissem ranger.
- Costumam atirar uma moeda ao ar? - tornou a intervir o detective Crosby, com todos os sinais de sincero interesse. - Cara dão-lhe o comprimido inerte, cruz optam pelo outro?
O médico não tinha aspecto de jamais ter atirado coisa alguma ao ar, salvo porventura uma panqueca na cozinha, e isto muito tempo atrás.
- O controlo é aplicado indistintamente em ambos os casos - declarou com
veemência. - Como se se tratasse de um' teste.
Sloan não nutria simpatia pelos casos de teste na lei e, embora não estivesse familiarizado com os de natureza médica, começava a convencer-se d'e que não lhe agradariam.
- Mas a negação de uma nova droga capaz de salvar a vida pode ser igual e potencialmente- perigosa.
- Com certeza. Mas isso é muito diferente - apressou-se Byville a advertir. - A partir do momento em que estamos certos da sua eficácia, negá-la aos doentes contrariaria toda a ética profissional.
- E?...
- E as experiências de comparação dos controlos seriam imediatamente abandonadas e a nova droga administrada a todos os pacientes condicionalmente.
- Como o determinam? - perguntou Crosby.
- Essa nova droga... - principiou Sloan, consultando os apontamentos.
- Provisoriamente denominada Cardigan - informou o especialista.
- Fale-me um pouco dela - convidou o inspector, esperançado em que o médico não recorresse a termos muito longos.
Este último descontraiu-se visivelmente, enquanto expunha o que a classe médica esperava conseguir com as propriedades medicinais da droga chamada Cardigan.
- Também tem um número composto, pois estas coisas fazem-se todas por meio de computadores, hoje em dia. Não há lugar para a inspiração pura e simples, mas nada mais lhe posso revelar nesse sentido. - Esboçou um sorriso. - Não é o meu bebé, sabe?
Sloan assentiu com um movimento de cabeça. Na Central, quase tudo tinha um número e era efectuado por meio do computador, hoje em dia, mas ainda não fora descoberto um substituto mecânico do cheiro da prevaricação algures.
Ou o nariz capaz de o detectar.
Às vezes, claro.
Nem sempre.
No entanto, por enquanto não tinha a certeza do cheiro - se ele existia - de coisa alguma.
Tal como não sabia se a abordagem do tipo "apoia-te à cancela" para resolver um problema era melhor do que introduzir no computador todos os dados existentes no mundo e premir determinadas teclas.
O Dr. Byville continuava a falar:
- Mas aconselho-os, meus senhores, a falar com o verdadeiro perito. Naturalmente, o Dr. Paul Meggie, na sua qualidade de cardiologista consultor da Administração do hospital, é o principal responsável do funcionamento do Protocolo Cardigan.
Infelizmente, segundo informou o administrador, pesaroso, após mais vinte minutos ao telefone, o Dr. Meggie não estava disponível para ser entrevistado. Acabou por transpirar - quando o monólogo pôde ser finalmente interrompido-que ninguém no hospital fazia a menor ideia do actual paradeiro do referido médico.
Quem mais sentia a ausência do Dr. Paul Meggie naquele momento - não sem a sua própria surpresa - era o seu assistente.
Primeiro, o Dr. Martin Friar acolhera com satisfação a oportunidade de se ocupar, sem ajuda, dos pacientes da sua consulta e depois ficara quase eufórico ao atender um telefonema da Enfermaria Barnesdale sobre um caso que podia perfeitamente ser de endoeardite bacteriana. Dada a ausência do Dr. Meggie, pontificara, prescrevera e prognosticara - na verdade, desempenhara, de um modo geral, o papel de clínico especialista a que tão ardentemente aspirava.
Agora, porém, era diferente.
Acabava de se aclimatar à nova e aprazível situação, quando recebeu uma chamada de um generalista na província. O Dr. Angus Browne desejava que o Dr. Meggie efectuasse uma visita domiciliária urgente a Mr. Abel Granger e deixou bem claro que, como o referido médico estava incontactável, deveria comparecer o próprio Dr. Friar.
Foi então que as dificuldades deste último principiaram.
- Larking? - proferiu, perplexo. - Onde fica isso?
- Siga pela estrada de Cullingoak desde Kirmisport e corte à esquerda a seguir ao botequim - informou o Dr. Browne. - A Willow End Farm situa-se ao fundo de um caminho à sua direita. Mantenha os olhos bem abertos na bifurcação, se não quer precipitar-se na ribeira. Estarei na casa, pois o paciente não se encontra em estado de abandonar a cama.
- Mas...
- Prometi à família uma segunda opinião - acrescentou o generalista, com uma certa Impaciência - preciso dela já. Amanhã, pode ser tarde.
- Bem, conte comigo - prometeu Friar. - Não me custa nada passar por aí.
No entanto, surgiu um problema, quando chegou ao local.
Não saber o que fazer com as mãos constituía apenas uma parte da dificuldade. Na realidade, não lhe serviam para nada, nas actuais circunstâncias. O assistente conhecia a sua primeira experiência de assistir à morte de um homem na sua cama, sem o benefício do apoio hospitalar. Não tardou a compreender - ele, Martin Friar, e não o moribundo - quem carecia desse tipo d'e apoio. No local onde se encontrava, não podia refugiar-se no gabinete da enfermeira-chefe ou atrás do Dr. Meggie. O homem já não podia ser ajudado por ninguém neste mundo, sem a mínima possibilidade de qualquer alternativa.
Assim, deparou-se-lhe a experiência de assistir à actuação de um médico de clínica geral com larga prática num cenário doméstico: de pé numa espaçosa cozinha de uma residência rural, em torno de uma mesa de tampo imaculado, uma família silenciosamente ansiosa, pendente de cada palavra de Martin Friar, mas sem ignorar o médico do moribundo-, do qual esperava o verdadeiro conforto. O assistente decidiu que podia aprender muito limitando-se a escutar o Dr. Angus Browne.
- Um homem notável, o pai deles - dizia este último, diante dos filhos adultos, enquanto a esposa do paciente continuava onde se mantivera nos últimos sete dias e noites: à cabeceira do marido. - Construiu a herdade praticamente do nada.
O filho mais velho assentiu com uma inclinação de cabeça, - Recebeu todos os cuidados possíveis - acrescentou o médico. - Tudo o que necessitava.
Uma filha exalou um leve suspiro de dor.
- Um rei não teria recebido melhores - prosseguiu Angus Browne.
Um historiador talvez suspeitasse da existência de ironia nesta asserção, pois vários monarcas tinham sido submetidos a tratamentos médicos que só serviam para lhes aumentar o desconforto e acelerar a partida deste mundo, porém a família do paciente aceitou-a pelo seu valor facial.
Martin Friar aquiesceu gravemente. Diversos reis de cuja existência estava ao corrente ter-se-iam conservado no trono muito mais tempo, se a mesma atenção tivesse sido paga aos seus níveis electrólitos que os do agricultor moribundo, mas reconheceu que o momento não era o apropriado para ventilar o facto.
- É a mãe que me preocupa - disse o filho mais jovem. - Há quase uma semana que não se despe.
Angus Browne observou sapientemente:
- Não ficaria grata a quem' a afastasse de junto do teu pai, neste momento.
- Mas se ela continua assim vai-se abaixo, douto - protestou o rapaz.
O generalista meneou a cabeça e, com a sabedoria da longa experiência, asseverou:
- Não vai, Christopher, enquanto' o teu pai a necessitar. Podes ter a certeza.-Fez uma pausa e acrescentou significativamente:-já não falta muito, hem, Dr. Friar?
Este esforçou-se por assumir uma expressão solene.
- Receio bem' que não.
- O pai está, pois, a chegar ao final da viagem - articulou Simon, o filho mais velho, cujas funções na herdade estavam na iminência de se alterar radicalmente, com' o início de novas responsabilidades.
- Teve uma actuação meritória em toda a partida, mas creio que está prestes a soar o apito final do árbitro - replicou obliquamente Browne, que se voltou em seguida para o colega. - Não lhe parece, Dr. Friar?
O interpelado concordou com uma inclinação de cabeça. Na verdade, era a única coisa que podia fazer.
- Em todo o caso - salientou Browne -, o coração tem uma capacidade notável para continuar a palpitar.
O filho mais jovem voltou a encontrar a língua. E ficou surpreendido ao descobrir como estava seca.
- Quando... - Humedeceu os lábios. - Pode-se prever quanto falta?
- Pouco - informou Browne, com brandura, no momento em que se ouvia aproximar um carro.
- Deve ser o reitor - disse a filha, tirando o avental e dirigindo-se apressadamente para a porta. - É melhor deixá-la aberta, não acham?
O Dr. Browne acompanhou Martin Friar através da porta das traseiras, enquanto o representante do outro mundo- entrava pela da frente - a que raramente se abria e pela qual o caixão não tardaria a sair.
- Obrigado por ter vindo - agradeceu o médico local, quando se encontraram fora do campo auditivo dos outros.
- Não havia nada que eu pudesse fazer.
- Havia, sim - declarou, inesperadamente. - Agora que teve oportunidade de ver o paciente, pode ir dizer ao seu chefe que não me agrada absolutamente nada essa nova droga que ele anda para aí a distribuir.
Os médicos têm a sua utilidade, real e imaginária.
Na aldeia de Staple St. James, a ausência do Dr. Paul Meggie também tinha sido notada pela Gilroy Pharmaceuticals (Berebury) Ltd.
- Lamento, Al - disse George Gledhill, químico-chefe da firma. -Ele queria encontrar-se consigo, durante a sua visita.
- Estes luminares médicos atrasam-se sempre - comentou Al Dexter, com desprendimento. Era director da empresa de produtos químicos Dexter Palindome (Luston) e, apesar das suas palavras, gostava de ver os outros cometer deslizes. - Não há nada a fazer.
- Descanse, que acabará por aparecer - acudiu Mike Itchen, subchefe químico e cientista residente da Gilroy, com o ar de indiferença que cultivava assiduamente.- É raro faltar a um compromisso.
Al Dexter tornou a levar aos lábios a bebida que antecedia o almoço.
- O pior é que uma pessoa nunca pode localizar os médicos. Limitam-se a dizer que tiveram uma chamada de emergência.
- Sem dúvida. - George Glidhill consultou o relógio.
- De qualquer modo, não vamos esperar por ele para começar a comer - acrescentou, impelindo a cadeira para trás.
Os médicos com inclinação para as pesquisas no campo das drogas podiam ser recrutados sem dificuldade para os programas clínicos... com a devida remuneração, naturalmente. As cozinheiras aceitáveis resultavam mais difíceis de encontrar e, sobretudo, de conservar... com ou sem remuneração. A da Gilroy era estupenda, e todos os visitantes apreciavam as suas iguarias.
- Por mim, não há inconveniente - disse Al Dexter, automaticamente. - Ainda bem que vocês conseguiram vir, ao menos. Parece que tiveram uma manhã agitada.
- Há alguém a inspeccionar o telhado, neste momento - explicou o químiico-chefe, indirectamente. - Aqueles jovens patetas tiveram' muita sorte em não morrer.
- Se não foram além disso... de correr esse risco... vocês não têm nada com que se preocupar, suponho - observou Dexter.
- O Executivo da Saúde e Segurança, para já, e os tipos dos seguros... - começou Mike Itchen, que se preocupava com tudo por natureza.
- Queria eu dizer que, se só lhes interessavam os macacos, vocês não têm qualquer problema.
Gledhill olhou-o com intensidade.
- Crê que podiam ter sido gatunos?
- Sim, é o que me preocuparia - admitiu o outro, que não tinha aspecto de se apoquentar com coisa alguma. - Seria um bom pretexto para se introduzirem nas instalações... os direitos dos animais... se procurassem outra coisa.
Gledhill e Itchen evitaram entreolhar-se.
- Na minha experiência - prosseguiu Dexter, em tom autoritário-, as pessoas estão predispostas para acreditar em tudo sobre os activistas dos direitos dos animais.
- Aprofundaremos o assunto - asseverou Itchen no tom neutro a que costumava recorrer ultimamente, acompanhado de uma expressão similarmente anódina.
- Julgo que continuam a trabalhar na Naomite? - insistiu Dexter.
Gledhill olhou rapidamente em volta, como se todos os outros pudessem ter ouvido.
- Ainda está na fase embrionária. Por enquanto, não surgiu nada de notável.
- Talvez, mas eles não o sabem, pois não?
- E também não se fez nada na Comissão de Ética, esta manhã - lembrou Itchen, com ar sombrio. - Foi apresentada apenas uma proposta, prontamente rejeitada.
Prevaleceu um tipo de ética diferente, enquanto Al Dexter se abstinha de indagar acerca da nova proposta da Gilroy. Encontrava-se ali animado de outras intenções, e, se os dois químicos pretendiam falar-lhe do mais recente composto da sua firma, não hesitariam em fazê-lo. De contrário, não lhe interessava inteirar-se.
- Tal como o último esforço de Byville - declarou o químico-chefe, em tom pesaroso. - Reconheço que persistência não lhe falta.
Dexter arqueou as sobrancelhas, com uma expressão interrogativa.
- Não quiseram servir-se das nossas experiências do APX 125, Al. - George Gledhill abanou a cabeça. - É pena, sobretudo porque Byville ansiava por testar o composto refinado. Diz que está quase a consegui-lo, com possibilidades de efeitos secundários realmente satisfatórios.
- Ele não sabe enfrentar as comissões - afirmou Itchen, com veemência. - Coloca-as de sobreaviso mal abre a boca para falar.
- Mas vai bem encaminhado no caso do baço. Especializou-se no seu tratamento, ultimamente. Talvez tenhamos alguma coisa para si, em breve, nesse aspecto, Al.
- Em todo o caso, é uma nódoa em termos de relações públicas - argumentou Itchen, ainda preocupado com a reunião da comissão. - Não compreende que tem de convencer a Comissão de Segurança de Drogas antes de poder avançar. - Fungando desdenhosamente, acrescentou:
- Para isso, quer examinar todos os pacientes de Calle-shire sem baço. Assim como alguns com baço, imaginem!
- Se vocês acham que podem monopolizar o mercado - sugeriu Al Dexter, simplesmente-, então façam-no.- Era esse espírito que tornava os oportunistas milionários.
- Isso está muito bem para vocês - replicou Mike Itchen.
A Dexter Palindome (Luston) não era uma empresa de investigação química, mas de manufactura. Não tinha de desperdiçar a sua substância em programas de pesquisas e desenvolvimento, que consumiam dinheiro como se fosse água. Limitava-se a processar o que os entendidos consideravam merecedor de ser produzido e deixava os empreendimentos arriscados para os outros. Os seus empregados mais bem remunerados não eram minimamente investigadores, mas engenheiros de produção e peritos de marketing.
- Não me parece que alguém esteja interessado em monopolizar o mercado - volveu George Gledhil, piedosamente.
Não considerou conveniente acrescentar que, com; as patentes e licenças, se tornava desnecessário, nos tempos actuais.
- No caso de Roger Byville, trata-se mais de uma questão de interesse.
- E não é um' campo muito movimentado, como alguns outros - observou Itchen.
- Suponho que o Zé povinho não compreende o baço - aventurou Al Dexter.
- Pode repeti-lo - tornou Mike Itchen, que descobrira que os membros leigos da Comissão de Ética eram os mais difíceis de enfrentar. Preferia haver-se com um cientista. A menos que se tratasse de um homem- de negócios, naturalmente.
- Afinal, o que não lhes agradou nas experiências da APX 125? - quis saber Dexter, com curiosidade.
- Tudo - informou o químico-chefe, levantando-se quase com brusquidão. - Bem, vamos comer.
Uma curiosa mescla de altruísmo e perspicácia para os negócios tinha levado os fundadores da firma Gilroy Pharmaceuticals (e eram homens que só agora começavam a aposentar-se) a adquirir uma enorme mansão vitoriana. Decorria a época em que esse tipo de construções constituía uma espécie de droga no mercado habitacional do pós-guerra.
- A sala de jantar fica mesmo em frente - lembrou Mike Itchen a Dexter.
Seria absolutamente impróprio chamar-lhe refeitório. O salão de Staple St. James não era suficientemente imponente para preservação e tinham-no convertido em escritórios e laboratórios de pesquisa muito antes de os revivalistas vitorianos se encontrarem interessados ou organizados para protestar.
- Que sala de jantar a vossa! - declarou Dexter, devidamente impressionado com um tecto pintado reminiscente dos piores excessos do período neoclássico francês.
- Os vitorianos construíam' para perdurar - comentou Mike Itchen, com a sua primeira revelação de entusiasmo.
- Conseguimos descobrir uma utilidade para quase todo o recheio, à excepção do labirinto-revelou George Gledhill orgulhosamente, encaminhando-se para o recanto preparado para os visitantes. - Vocês mencionam uma coisa, que nós temo-la. Estábulos, câmara frigorífica, copa, lavandaria, estufas, adegas... a propósito, toma Borgonha branco, Al?... um lago, uma gruta...
- Uma quê?
- é onde vivia o homem mau do jardim. - Assumiu uma expressão solene. - Nesses tempos, nenhum jardim realmente antigo se considerava completo sem um eremita.
- Não me diga. - Dexter voltou a um tópico que considerava mais interessante. - Essa vossa Comissão de Ética costuma incomodá-los muito?
- Depende. - Itchen franziu o sobrolho.
- No sentido do tipo que apresenta o produto - sugeriu o outro, pois a natureza humana era igual em qualquer parte do mundo. - Ou de outras coisas.
- Bem, você sabe como são as comissões.
- Tem razão - mentiu.
Não havia comissões incorporadas na estrutura da Dexter Palindome (Luston). O processo de tomada de decisões era delegado a um nível do tipo de roedores de unhas. A parte financeira situava-se o mais longe possível da pirâmide de gestão, e todo o trabalho potencialmente inaproveitável seguia o seu curso muito antes de figurar na folha de previsões de alguém.
- São o diabo - admitiu o químico-chefe, já que se dirigia a um empreiteiro e não a um rival de negócios.- Como se pode aprovar que milhares de pessoas sofram e morram de alguma condição intratável e considerar errado que um pobre diabo?...
- Que, de qualquer modo, morreria - interpôs Itchen, com uma ponta de cinismo.
- ...seja utilizado para tentar encontrar a cura do mesmo mal? É uma coisa que escapa à minha capacidade de compreensão.
- Vivemos num mundo injusto - reconheceu Dexter, ambiguamente.
- Para já- resmungou Gledhill, ainda irritado- com a rejeição daquela manhã -, a Comissão mostra-se sempre totalmente negativa.
- Não é um produto dos seus membros, claro.
- Quanto ao pessoal da Segurança dos Medicamentos...
- Nunca se nota o mais remoto vislumbre de entusiasmos a esse respeito.
- É esse o seu mal - asseverou Gledhill. - Só lhes interessa manter as mãos limpas.
- E destestam as críticas - insistiu Itchen.
- Porque não têm nada de notável. É aí que reside a diferença.
- Exacto- assentiu o químico-chefe, com um leve encolher de ombros.
- E vocês têm - acrescentou o outro, com simplicidade.- O Cardigan.- Pronunciou o nome com visível satisfação.
O rosto de Gledhill iluminou-se subitamente.
- Sem' a menor dúvida. Assim como o Dr. Paul... um cravo fresco na botoeira... Meggie. Onde diabo se terá metido, hoje?
O detective Crosby traçou uma linha mais ou menos recta na sua agenda depois de interrogar o infortunado Darren Clements, no Departamento de Acidentes e Emergêncea. No fundo, não adiantara muito. O jovem achava-se claramente mais preparado para o martírio do que para divulgar os nomes dos seus confederados.
- Eu, cortá-los rentes aos meus camaradas? - proclamou.- Deixe-se de brincadeiras. Procurem-nos vocês.
- Pode estar certo de que o faremos - prometeu Crosby, sem se perturbar. - Arrebanhámos todos os macacos, da última vez, e a inteligência do seu grupo fica muitos furos abaixo.
Foi encontrar a Drª Dilys Chomel mais cooperante, embora não compreendesse o objectivo do interrogatório. Além de se achar ainda algo confusa, o detective não se exprimia com a clareza necessária.
- Havia uma paciente idosa, na secção feminina, esta manhã, vitimada por paragem cardíaca...
- Mrs. Galloway? - disse a médica, que não contara com a presença da Polícia, na sequência da "sua" primeira morte. - Sim, faleceu... quero dizer... - Interrompeu-se bruscamente. Acabava de se aperceber de que reagia como a mulher dos versos infantis que havia engolido uma mosca e começara a tragar outras criaturas de dimensões crescentes até chegar a um cavalo, a qual também morrera, naturalmente. Assim, em voz algo trémula, tentou rectificar: - É claro que faleceu. Era muito velha.
- É o que nos interessa saber. - Crosby inscreveu mais algumas palavras na agenda. - Foi, portanto, de causas naturais?
- Com certeza - aquiesceu a Drª Chomel, secamente.
- Tentou algum método de reanimação?
- Não.
- Não o fazer, quando existem meios para tal, é criminoso- lembrou ele, num tom acusador.
- De modo algum-. É criminoso não o fazer, quando existem motivos para tal.
Disto, pelo menos, ela tinha a certeza absoluta. Com efeito, passara a prestar particular atenção às suas leituras sobre a ética médica desde que, na terra natal em África, se assumia uma atitude muito diferente em quase todas as situações similares. Em particular, a sobrevivência de bebés do sexo feminino nascidos em famílias que só os desejavam do sexo oposto.
- A decisão de não reanimar converte um médico em juiz, júri e carrasco - persistiu Crosby, que, de qualquer modo, detestava o ambiente dos hospitais.
- Isso é eutanásia - ripostou a médica, com firmeza, decidindo, já que o interlocutor parecia solidamente arreigado à ética, não revelar a regra simples do Dr. Paul Meggie em reanimar os pacientes em situação terminal ou muito idosos.
Essa forma de proceder não escrita fora-lhe comunicada pelo seu predecessor, quando viera substituí-lo.
- Mas primeiro tem de consultar o Dr. Meggie - advertiu, em tom significativo.
- Mas só se dispõe de meio minuto - protestou.- Quando tiver localizado o doutor, a paciente talvez já não viva.
- Vejo que compreendeu logo à primeira - murmurou ele, dirigindo-lhe um olhar de comiseração e afastando-se para subir ao degrau seguinte da pouco firme escada que compreendia o gorduroso poste da sua carreira médica.
Na terra de onde Dilys Chomel viera, também encaravam os cuidados a prestar aos idosos de uma maneira muito diferente.
Tratavam-nos com carinho.
- O coroner determinou um exame post mortem, a pedido da Polícia - informou Crosby.
- O consultor...-começou ela, reflectindo que, nos hospitais, os consultores figuravam logo a seguir ao Todo-Poderoso.
- O coroner determinou um exame post mortem - repetiu o detective. - Aos olhos da corporação policial, o coroner representava a Coroa, pelo que se sobrepunha hierarquicamente, sem dificuldade, aos chefes da Polícia e consultores do hospital. - E vim indagar o paradeiro do corpo do extinto.
- Se não foi entregue à família, deve estar no Campo de Potter.
- Como disse?
- Desculpe. É o nome que o pessoal daqui dá à morgue, para o poder mencionar diante dos pacientes sem os impressionar. Não sabia?
Crosby ponderou que impressionar os clientes não constituía uma das preocupações na Central da Polícia. Aí, gostassem ou não, a sala de interrogatórios era isso mesmo, sem eufemismos. Em todo o caso, continuava intrigado.
- Disse Campo de Potter?
- É da Bíblia. - A cultura missionária fora útil à Drª Chomel. - Encontrará a referência no Evangelho segundo São Mateus.
- Continuo a não...
- O Campo de Potter era onde sepultavam os forasteiros. O corpo de Mrs. Galloway estará aí, se ainda não o levaram do hospital.
E estava, com efeito.
O funcionário da morgue prometeu a Crosby que seria enviado ao Dr. Babe, patologista consultor, sem demora, para o post mortem.
O detective agradeceu-lhe e preparava-se para sair, quando o homem lhe perguntou se o Dr. Meggie já tinha aparecido. Acrescentou que era contra o seu costume não se encontrar num ou no outro dos hospitais, a impor a sua 'autoridade, como habitualmente.
- Não, mas creio que não deixará de aparecer.
- Ele e a sua detestável botoeira...-O funcionário fungou com desdém. - Quem se julgará?
- Deus - aventurou Crosby, com desprendimento.- Como todos eles.
Os médicos, se não são melhores que os outros homens, também não se podem considerar piores.
- Obrigado por ter falado à minha assistente da paragem cardíaca no Hospital Berebury, esta manhã - murmurou Roger Byville, ao encontrar-se com o Dr. Beaumont, no antiquado elevador do Hospital St. Ninian, tentando dissimular que já não se recordava do nome da paciente. - Foi o seu primeiro trabalho cá na casa e ainda lhe falta alguma experiência.
- Não tem nada que agradecer - replicou o outro, polidamente -, embora já não houvesse nada a fazer.
A cabina Imobilizou-se com um estalido quase sinistro no primeiro piso e saíram duas enfermeiras e um técnico de patologia.
- Em todo o caso, a família mostra-se um pouco Inconformada - volveu Byville, quando os dois médicos ficaram sós.
- Ah, sim?
O Dr. Edwin Beaumont inclinou levemente a cabeça, num gesto de compreensão. Eram os familiares de Mr. Daniel McGrew que costumavam proceder assim.
Pour cause.
- Exigem um post mortem - grunhiu o outro, premindo um botão com força desnecessária.
- Servirá para que fiquem descansados.
- Oxalá que sim. - Soltou uma risada seca. - Já estiveram na Polícia.
O Dr. Beaumont arqueou as sobrancelhas e decidiu não sair no piso a que se destinava.
- Baseados em quê? - perguntou cautelosamente, enquanto a cabina prosseguia na marcha ascendente.
- Só Deus o sabe. - Byville' contraiu as faces num trejeito indefinido. - Só faltava que procurassem o editor do jornal local. Havia de delirar com isso.
- Seria extremamente lamentável - observou o colega, no seu habitual tom prudente.
- Sem dúvida. - Em contraste com a maioria dos internos dos dois hospitais, Roger Byville era uma pessoa controlada e fria, mas naquele momento parecia acalorado. - Já basta a indesejável publicidade que o St. Ninian está a receber com as bizarrias daquele maníaco, o McGrew. Não precisamos de mais.
Beaumont olhou o indicador do elevador e suspirou.
- De facto, o nosso Dan não contribui para a boa imagem da casa.
Byville enrugou a fronte.
- Não compreendo por que ainda não o "queimaram". Dá má fama ao estabelecimento, para não falar da profissão.
- Em todo o caso, não é pele do nosso nariz - salientou o outro, ignorando a máxima de Edmund Burke, segundo a qual para que o mal floresça basta que os homens bons não façam nada.
- Ainda bem.
- Constou-me que nem os Três Homens Sagazes sabem que destino lhe hão-de dar.
- Nunca perfilhei essa ideia - declarou Byville, desdenhosamente.- Alguém egocêntrico como Dan, o Perigoso, ser verberado por três colegas de profissão por não executar o seu trabalho da forma conveniente...
- Bem...
- ...e ficar calado e quieto como uma ostra... Afigura-se-me altamente improvável.
- Exacto - concordou Beaumont, embora não fosse bem assim que ele descreveria a atitude dos três distintos cirurgiões convocados, quando um médico de Calleshire dava sinais daquilo que se designava eufemisticamente por "deficiências humanas". - Exacto - repetiu.
- E continuo sem entender por que tenho de pagar pesados prémios de seguro para defesa médica, para impedir palhaços como o McGrew de se envolverem em apuros.
- Nem eu. - Fez uma pausa e, com maior veemência do que a situação exigia, acrescentou: - Essa sua paragem cardíaca...
- Sim?
- Provocará problemas?
- Só se eu não o puder evitar - garantiu Byville.- Sei que ela fazia parte do Protocolo Cardigan, mas não foi isso que a matou.
- É claro que não - apressou-se Beaumont a assentir.
- Foi o que afirmei à Polícia.
- Apesar disso, o Paul não vai gostar...
- Pois não. Nem pouco mais ou menos. O nosso Paul orgulha-se dos seus preciosos resultados dos testes.
Reflectiu que era uma maneira de encarar a questão, mas absteve-se de o ventilar em voz alta.
Roger Byville ergueu os olhos, quando, finalmente, a cabina se deteve no piso do topo do Hospital St. Ninian.
- Tem uns momentos livres, Edwin? Aguarda-me um baço interessante na enfermaria Lorkyn. Acompanhe-me para o examinarmos juntos, se dispõe de tempo. Um jovem de vinte e cinco anos, que está internado há duas semanas, insistiu em ser transferido de Berebury, para a família o poder visitar. Receio que a sua condição não seja famosa.
- És tu, Shirl? - A linha interna de Berebury no P. B.X. de St. Ninian entrou em actividade. - Fala a Tracy.
Shirley Partridge completou uma ligação com a enfermaria Barnesdale e atendeu o Hospital Berebury.
- Quem disseste? Ah, o Dr. Meggie? - Moveu a cabeça para ver melhor o quadro de serviço. - Não, Tracy, ainda não chegou.
- Há aqui alguém à sua procura.
- Então, não tem sorte. Lamento.
- Sobre qualquer coisa relacionada com a secção das médicas.
- Querem increpá-lo, aposto.
- Não é "querem" - esclareceu Tracy, saboreando a troca de palavras. - Trata-se da Polícia, Os agentes seguem neste momento para aí.
- Eu informo-os, quando chegarem - prometeu Shirley, a qual se mostrava quase tão indiferente como a classe médica ao minimizar a importância dos dramas humanos quotidianos.
- Estão esperançados em contactar com ele imediatamente.
- Talvez não seja assim tão fácil-advertiu, franzindo os lábios. - Parece que toda a gente está empenhada em falar com ele, hoje, e ninguém sabe onde se encontra. Não deixou recado, e já tentei em todos os lugares habituais. E também não consigo localizar Miss Meggie.
- Tentaste o campo de golfe?
Bunty Meggie, filha do médico em causa, depois de se encontrar praticamente grudada ao telefone desde a morte da mãe, fora libertada da absorvente tarefa pelo advento do telemóvel.
- Ou a Viúva Alegre - acrescentou Tracy. - Talvez ainda esteja com ela.
Shirley Partridge corou.
- A meio da manhã? - redarguiu, empertigando-se.- Não acredito.
- Quanto a mim, não é daquelas pessoas que se encontram visíveis antes do meio-dia. Meia tonelada de maquilhagem não se aplica num abrir e fechar de olhos.
- Mais alguma coisa? - inquiriu, algo friamente.
- Um paciente da Pepita de Ouro que não há maneira de se calar, porque o velho Merrylegs ainda não a foi ver hoje.
- É alguma coisa grave? Tracy fungou com desdém.
- Muito! Se não lhe derem alta a tempo, vai ter de pagar o alojamento de mais uma noite, que não é barato, como sabemos.
- Meu Deus... -Shirley parecia assaz apreensiva. A clientela privada do Dr. Meggie era-lhe extremamente cara.--Não é costume dele - admitiu, a meia voz.
- É claro que não.
- Sobretudo se prometeu passar por lá.
Não só o Dr. Meggie não se encontrava em qualquer dos hospitais - segundo o Inspector Sloan estabelecera rapidamente-, como não tardou a transpirar que faltara a um importante compromisso à hora do almoço na Gilroy's Pharmaceuticals, em Staple St. James.
- Importante? - repetiu Sloan, com alguma brusquidão. Os polícias trabalhavam' num campo em que o almoço era considerado uma ocorrência casual e não regular e quase obrigatória.
- Foi o que o químico-chefe de lá me disse - informou a secretária clínica do Dr. Meggie, com uma ponta de perversidade. - Mr. Gledhill parecia contrariado, quando telefonou. Segundo entendi, veio alguém' de Luston propositadamente para falar com ele.
- Talvez o Dr. Meggie se esquecesse.
- Nem pensar. De resto, eu própria lhe recordei o encontro, ontem.
- Nesse caso, estava registado na agenda dele?
- Não, estava na minha, -Ela apontou para a sua secretária. -Era esperado em Staple St. James à uma hora, após as consultas da manhã.
- Para almoçar?-insistiu o inspector, consciente de que ele e o detective' Crosby tinham os estômagos vazios.
- Segundo depreendi, era para discutir os progressos do Protocolo Cardigan durante a refeição.
- Então, era um almoço de trabalho.
Ela voltou a apontar, agora para uma cesta vazia em cima da secretária.
- Levava sempre os registos do computador com os resultados, quando ia para casa.
Sloan detestava os computadores.
- Bem... - Ela hesitou. -Mostra-se sempre muito cauteloso sobre a confidencialidade.
O inspector teria preferido que o Dr. Meggie não tornasse essa confidendalidade extensiva ao seu paradeiro desse dia. Sloan prometera a um velho amigo perito em jardinagem que o visitaria em Cullingoak, no dia seguinte, para admirar a sua nova estufa de roseiras.
Sobretudo para contemplar um espécime novo denominado Celeste, que já se achava em plena floração, apesar de o mês de Maio ainda se encontrar nos primeiros dias, cujo odor era, segundo o amigo, incomparável.
De momento, porém, o desaparecimento do Dr. Paul Meggie tinha um odor menos atraente e ressonâncias distintas do Maria Celeste {1}, que era algo de muito diferente.
Por fim, tomou nota do endereço do médico e retirou-se com Crosby.
Tal como uma úmica rotação de um caleidoscópío altera a imagem, mas mantém as mesmas componentes, a morte do velho Abel Granger, em Willow End Farm, Larking, naquele dia, provocou um novo cenário nas disposições da sua família imediata.
A idosa Mrs. Granger, que não enfrentava a morte pela primeira vez, uniu as mãos do marido sobre o peito imóvel, fechou-lhe os olhos e cobriu com o seu melhor lençol de algodão egípcio o rosto do homem que fora o seu companheiro constante durante cerca de cinquenta anos. O filho mais velho, Simon, afastou-se para telefonar ao Dr. Angus Browne e à Morton & Sons, agência funerária de Berebury, enquanto a irmã tentava convencer a mãe a repousar um pouco.
(1) Nome de um navio que, em 1929, foi encontrado deserto, à deriva, no Atlântico. A mesa estava posta para várias pessoas e alguns pratos ainda mornos. O mistério nunca foi esclarecido. (N. do T.)
O filho mais jovem, Christopher Granger, para quem, até então, a morte não passara de uma entidade desconhecida, calçou as botas, assobiou para chamar o cão da casa e saiu. Era mais espaço para respirar do que o ar puro que sentia que necessitava, todavia a terra faz as suas próprias exigências aos que vivem dela, pelo que se dispunha a proceder a um levantamento consciente - ainda que algo atrasado - dos hectares pertencentes à família. Havia alguns bois a pastar na área mais distante, que careciam sempre de alguma vigilância, e, se descobrissem uma maneira de se escapar, não a negligenciariam.
Quanto mais se afastava da casa, mais aliviado se sentia. É claro que, mais tarde, teria de enfrentar a mãe. Acalentava a esperança de que ela não se entregasse à dor, quando o visse, e, por outro lado, desejava o contrário. No fundo, não sabia concretamente o que preferia. A sua única certeza consistia em que não tinha pressa de regressar. A irmã desenvolveria intensa azáfama, enquanto Simon se concentraria em fazer as coisas apropriadas. De momento, Christopher apenas pretendia dispor de uns minutos de isolamento para pensar.
Por último, chamou o cão e decidiu voltar para casa pelo caminho mais longo - aquele que seguia a par da ribeira e atravessava o pequeno bosque de salgueiros. Foi então que avistou o carro.
Encontrava-se na passagem que conduzia à cancela, e ele julgou ouvir o motor em actividade.
Estugou o passo. Alguém que se dirigia à herdade - talvez o cangalheiro, pois o veículo apresentava todo o aspecto de lhe pertencer, já que esses indivíduos costumavam auferir lucros muito mais elevados que os agricultores, nos tempos actuais - e enveredara pelo caminho errado, rua encruzilhada. Muitos automobilistas cometiam esse erro, se não estavam familiarizados com o percurso que conduzia à casa da herdade. Por conseguinte. Christopher iria abrir a cancela, de contrário o carro não poderia inverter a marcha, com o curso de água, num dos lados, e o canal para o moinho, no outro.
À medida que se aproximava, obtinha a certeza de que o motor estava em actividade, pelo que acenou ao condutor, que decerto acabava de chegar.
- É só um momento, enquanto abro a cancela, para lhe facilitar a manobra - advertiu.
O homem atrás do volante não respondeu. Ao invés, parecia inclinado para a frente, como se observasse alguma coisa no tablier.
O jovem acercou-se, com curiosidade crescente e o cão no encalço.
O filho do agricultor acabado de falecer podia não ter qualquer experiência da morte de um ser humano, porém o primeiro contacto com ela acentuou-se rapidamente.
Não lhe acudiu a mínima dúvida de que se achava na presença de uma pessoa sem vida, depois de o ver claramente. Na realidade, o que o convenceu foi menos o aspecto do corpo do que a presença de um tubo flexível que partia do de escape em direcção à janela quase fechada atrás do banco do condutor.
Sem reflectir, Cbristopher abriu a porta desse lado e introduziu a mão para desligar o motor. Ao mesmo tempo, o corpo do homem inclinou-se nessa direcção. Ele amparou-o tão automática e habilmente como se fosse de uma ovelha. Ao mesmo tempo, descortinou uma pasta de plástico pousada no lugar ao lado do do condutor.
Recobrando o ânimo e tremendo levemente, regressou a casa em passos rápidos.
As palavras que tivera tempo de ler na capa da pasta, "Protocolo Cardigan", nada significavam para ele.
Na altura.
A sineta nocturna, esse instrumento de tortura.
- O quê? -bradou o Superintendente Leeyes, ao telefone da Central da Polícia de Berebury em ligação com o Hospital St. Ninian, em Kinnisport.
- Apareceu o Dr. Meggie - repetiu Sloan.
- Não era sem tempo - grunhiu o outro. - Procuraram-no durante toda a manhã, tempo que julgo mais do que suficiente.
- Morto.
- Aquele fulano, Gordon Galloway, voltou ao ataque... - anunciou, mas interrompeu-se bruscamente. - Que acaba de dizer, Sloan?
- O Dr. Meggie foi encontrado morto.
- Ah, sim?...
- No seu carro.
- Examine-o - determinou. - E o corpo, também.
- Por meio de um tubo proveniente do de escape.
- Alguma nota de suicídio?
- Não, senhor. - Apenas uma pasta de plástico que contém os resultados das experiências a que se dedicava com uma droga qualquer.
- Remorso? - sugeriu, com curiosidade.
- Ainda é cedo para uma conclusão segura.
- Na verdade, não acredito que qualquer deles o sinta. Ficam- todos isentos desse sentimento, na escola médica.
- É muito provável. - O inspector aclarou a garganta.
- Seguimos já para Larking.
Escolhera as palavras meticulosamente. Se Crosby partisse para lá com a sua pressa habitual, sempre que pegava no volante, não haveria a mínima garantia de chegarem ao seu destino inteiros - ou sequer de alcançarem a Willow End Farm.
- Não deixe o Crosby fazer ultrapassagens alucinadas - recomendou Leeyes.- As viaturas da Polícia são muito dispendiosas.
- Tentarei - prometeu Sloan, que acrescentou:-É claro que a morte do Dr. Meggie pode não ter qualquer ligação com a de Mrs. Galloway.
- é o que você tem de averiguar - foi a réplica seca.
- O Dr. Byville não se mostrava preocupado com a dela, quando o procurei, em Berebury.
- Isso pode não significar nada - volveu, numa inflexão sombria. - Lembre-se de que os médicos estão tão habituados a ver pacientes morrer-lhes nas mãos que reagem de uma forma muito diferente da das pessoas normais.
- Mas salientou que Mrs. Galloway morreria, de qualquer modo.
- Pois sim... Convém não esquecer, Sloan, o telefonema anónimo que recebemos na Central a mencionar que ela tinha sido tratada com um produto estranho. Não há nada de rotineiro nisso.
- Não me esquecerei - asseverou o inspector, mas no momento imediato apagava-se-lhe da memória.
Esqueceu-se absolutamente de tudo, quando o detective Crosby pousou as mãos no carro da Polícia e enveredou por estradas destinadas a carroças de transporte de feno.
Um leve movimento do caleidoscópio também modificou todo o cenário para o Dr. Martin Friar. Até se inteirar da notícia sobre o Dr. Meggie, o assistemte-chefe do Hospital Kinnisport sentiu-se quase eufórico.
E isto porque tivera uma conversa estimulante - para não dizer revigorante - com' Adrian Gomm, o artista que se ocupava do mural do átrio de entrada do hospital.
- Confesso que não estou a ver onde pretende chegar - declarou ao deter-se à saída, a caminho da Enfermaria Lorkyn, para examinar a obra.
O artista, que usava o tipo de cabelos compridos que estimulam os piores instintos nos outros homens, encolheu os ombros e replicou em tom quase ofensivo:
- É natural que não veja.
- Não se destina a ser compreendido pelos outros?
- Isso é com eles. - Gomm conservava-se de costas para o médico e continuava a pintar. - Há carradas de significado, para quem tiver olhos para ver.
Havia na realidade muito para ver no semiconcluído mural, em que as intermináveis arcadas de torres segundo o estilo de Giambattista Piranesi eram desafiadas pelo de Maurits Cornelis Escher.
Martin Friar, tão revoltado como qualquer ser humano ante a insinuação de que não possuía o olhar apurado do verdadeiro entendido em arte, espreitou para cima por entre as pernas do artista e observou em tom provocador:
- Quanto a mim, parecem os Ciclos do Inferno.
- É essa a ideia - foi a resposta glacial.
- Segundo o princípio de que a beleza se encontra no olhar do observador?
- Beleza? - Adrian Gomm voltou-se para encarar o interlocutor, ao mesmo tempo que pousava a trincha e o fitava com uma expressão de beligerância surpreendente num- indivíduo de aspecto tão epiceno.- Beleza? Para o caso de não o saber, isto é um hospital e não um jardim de recreio. A beleza acha-se ausente. Devia estar ao corrente do facto. Suponho que trabalha cá? - Contemplou Friar do alto da plataforma de trabalho. - Creio que já o vi por aí.
- Sem dúvida que trabalho - redarguiu o médico, com vigor. - E de que maneira!
O outro olhou-o com intensidade.
- É, porventura, o abrutalhado que conduz aquela médica ao desespero? Chega atrasado todas as manhãs propositadamente para lhe atrapalhar a vida. Em caso afirmativo, digo-lhe que...
- Não, de modo algum!-cortou com prontidão. - Esse é o Dr. Maldonson., - Bem, se descobriu alguma beleza aqui, em St. Ninian, abstraindo essa médica, Mrs. Teal, tem o olhar mais arguto que o meu. Quanto a mim, este cavernoso edifício há muito que devia ter sido demolido.
- A maternidade - alegou, raciocinando rapidamente.
- Há beleza em depositar um recém-nascído nos braços da mãe. Também a torna bela, por feia que seja - acrescentou, surpreendido por ter reparado no facto e recordado.
- Isso é da Natureza e não da Medicina - insistiu Gomm. - Vocês não podem candidatar-se ao crédito daquilo que é natural, embora eu verificasse que o fazem na maior parte das vezes. - Tornou a voltar as costas a Friar e reatou o trabalho, apesar de indicar por cima do ombro:
- Se abrir bem os olhos, verá que atribuí todo o realce à Natureza.
O médico volveu obedientemente os olhos para o fundo do colorido mural e aventurou:
- Vermes?
- Uma das experiências médicas e tribulações de Job - referiu o outro, que parecia concentrado nos contornos em forma de amêndoa do topo do lado direito da parede.
- Ah, então recorre à religião, nem?
- A arte não conhece limites. - Passou a mão manchada de tinta pela fronte. -Tenho liberdade artística absoluta. De contrário, não aceitava o trabalho, tal como o doutor não permitiria que alguém lhe Indicasse o que devia receitar aos seus pacientes.
- Que está a colocar nessa coisa em forma de elipse?
- Chama-se mandorla e estou a pintar Christus Medicus nela, se lhe interessa mesmo saber.
- Não me diga! - murmurou Friar.
- Deus como Médico do seu Povo. - Gomm inclinou o ombro na direcção do lado esquerdo do mural e continuou:- Aquele é o sector científico, mas ainda não o terminei.
- Estou a ver.
- Mas há outra coisa relacionada com o que faço nesta parede.
- O que é?
- Este mural continuará aqui, depois de todo o seu trabalho estar morto e sepultado. - O artista contemplou a sua obra com orgulho. - E as pessoas continuarão a procurar-lhe um significado. Algumas - acrescentou gratuitamente, limpando desta vez as mãos às calças de ganga - conseguirão encontrá-lo.
- Pronto, recebi a mensagem.
O médico começou a afastar-se, mas, de súbito, deteve-se, o olhar atraído por uma figura sinistra agachada na parte inferior esquerda do mural. Era meio animal, meio homem - um demónio peludo com chifres e cascos, mas rosto humano. Ele quase juraria - decerto não se tratava de um produto da sua imaginação - que o semblante era o do médico-chefe de St. Ninian, o Dr. Daniel McGrew.
- O meu pai, morto?
A jovem que acudira a abrir a porta da casa de quatro frentes nos arrabaldes de Kinnisport ainda usava o equipamento de golfe.
- Receio bem' que sim.
Bunty Meggie estava agora sentada, absolutamente imóvel, num sofá d'a sala, enquanto o Inspector Sloan e o detective Crosby lhe faziam perguntas.
- Estão a dizer-me que houve um acidente? - acabou por perguntar, olhando de um para o outro.
- Não - replicou o primeiro, reflectindo que disso, pelo menos, não havia a menor dúvida.
Ela abanou a cabeça, como se pretendesse repelir a triste nova.
- Não foi acidente?
- Não. Lamento ter de lhe comunicar que o seu pai foi encontrado morto no seu carro.
O facto de se tratar da viatura do Dr. Meggie que se encontrava junto da ribeira constituíra uma das coisas mais fáceis de confirmar. Crosby conseguira-o com prontidão.
- Nesse caso... - apressou-se ela a concluir.
- Com um tubo que conduzia do escape ao interior do carro - esclareceu Sloan.
- Com o motor ainda a funcionar - acudiu Crosby, sempre disposto a ser útil.
Bunty Meggiie cerrou repentinamente os punhos, com uma expressão de cólera.
- Aquela mulher! - exclamou. - Foi ela! Tenho a certeza!
- Qual mulher?
Se havia alguma coisa que o inspector aprendera com prontidão era se devia ou não puxar da agenda. A actual situação exigia que a conservasse na algibeira.
- Ela levou-o a isso - gemeu Bunty Meggie.- Eu sabia que o conseguiria!
- Mas quem? - insistiu Sloan.
- Obrigou-o a escolher entre nós - asseverou ela, rangendo os dentes. - Foi muito esperta, a megera!
- Quem? - tornou ele a perguntar.
- Coitado do meu pai!-Bunty Meggie começou a balouçar-se, como se tentasse consolar-se. - Eu devia ter calculado que o esforço seria excessivo para ele.
- Acha que devia?
- Eu tinha de partir, entende? - Ela olhou-o com uma expressão de ansiedade. - Era-lhe indiferente para onde.
- Partir? Para onde?
- Para qualquer parte. - Principiou a soluçar com intensidade. - Coitado do meu pai! - repetiu. - Ela portou-se como a malvada que é.
- Preciso de saber a quem se refere.
- A Mrs. Glawari.- Fez uma pausa para engolir com dificuldade. - Queria que eu a tratasse por Hannah, mas recusei. Chamava-lhe sempre Mrs. Glawari, o que não era do seu agrado.
- E quem é Mrs. Hannah Glawari? - persistiu Sloan, pacientemente, embora começasse a pensar que podia adivinhar.
- A mulher que queria vir para cá e mandar em casa de minha mãe.
Inclinou levemente a cabeça, ao fazer-se-lhe luz no espírito.
- Eu também não permitia que tratasse o meu pai por "Paul" - prosseguiu ela. - Pelo menos, quando falava comigo. - Nova pausa. - Renunciei a muito para regressar a casa e cuidar dele, quando a minha mãe faleceu, e ela... ela... queria tirar-me tudo.
- Casando com o Dr. Meggie? - sugeriu o inspector, enquanto a interlocutora assentia com um movimento de cabeça. - Por conseguinte...
Foi interrompido por Crosby, que se inclinava para a frente, ansioso por dizer algo.
- Por conseguinte, quando o viu pela última vez? - perguntou, com a ênfase apropriada.
A interpelada voltou o rosto compungido para ele, fungou e articulou:
- Ontem à noite.
- Não foi hoje, ao pequeno-almoço?
Abanou a cabeça.
- Não o vi, nessa altura. Foi chamado cedo, esta manhã. A campainha do telefone acordou-me.
- Mais ou menos a que horas?
Afastou uma madeixa dos olhos, antes de responder:
- Por volta das cinco. Começava a raiar o dia. Pouco depois, ouvi o motor do carro e voltei a adormecer.
- Continue - urgiu Sloan, enquanto Crosby transferia a sua atenção para uns trofeus de prata num armário de vidro, no outro lado da sala.
- Mais tarde, quando me levantei, saí para participar num torneio de golfe - continuou ela. - O meu parceiro e eu devíamos iniciar a partida.
- O seu pai costumava receber chamadas de emergência como essa durante a noite?
- Sim, de vez em quando - assentiu com prontidão. - Esta era de uma herdade algures em Larking. Não me recordo do nome.
- Como o sabe?
- O endereço estava escrito no bloco junto do telefone. Inteirei-me quando fui fazer a cama. Ainda lá está.
- Depreendo, pois - observou o inspector-, que ao ver que o seu pai não aparecia, telefonou ao Hospital Kinnisport para comunicar que ele não estaria presente nas consultas desta manhã?
Bunty Meggie ergueu os olhos e sacudiu a cabeça.
- Não, não o fiz. Se ele quisesse que eu procedesse assim, tinha-me deixado um bilhete. Era o que fazia sempre.
Não há nada tão perigoso como um mau médico.
Na Gilroy's Pharmaceutical, em Staple St. James, o químico-chefe, o seu adjunto e a especialista de relações públicas estavam reunidos em conferência. George Gledhiill e Mike Itchen estudavam a melhor maneira de divulgar a notícia da intrusão na sede da firma pelos Activistas dos Animais de Calleshire. Pamela Gallop, perita na matéria, explicava-lhes qual era essa maneira, mas não conseguia progressos apreciáveis. A limitação dos prejuízos raramente é bem aceite.
- Activistas!-vociferou George Gledhill, pela enésima vez. - Supunha que não eram capazes de activar sequer uma máquina de sumos de fruta. Nenhum dos seus membros tem um mínimo de miolos.
- Se tivéssemos a certeza disso, daríamos um importante passo em frente - observou Itchen, significativamente.
- Aconselha, portanto, a esquecer o episódio, Pamela? - perguntou George Gledhill, relutante em aceitar o ponto de vista do outro.- Refiro-me em termos de relações públicas, claro.
- Um silêncio digno, etc. e tal? -opiniou Mike Itchen.
- Creio que é a melhor posição para nós - assentiu a especialista. - De resto, desta vez não temos de procurar macacos extraviados.
Registou-se um estremecimento de repulsa colectivo ao evocar o episódio. Fora então que a Imprensa aludira à doença do macaco verde.
- Convém abordar o assunto o mínimo possível - recomendou Pamela. - Não é uma boa notícia.
Itchen concordou com uma inclinação de cabeça.
- A meu ver, quanto menos se falar disso melhor.
- A Polícia não deixará de intervir, agrade-nos ou não - grunhiu Gledhill.
Pamela Gallop indicou a pasta de plástico na sua frente.
- Devo um almoço ao editor do jornal de Berebury.
- Suponho que optarão por assalto a propriedade alheia - aventou Itchen, com ares de entendido. Fazia parte do seu credo não se surpreender com nada do que acontecia nos dias correntes.
- Quebraram o telhado e Darren Clements entrou da forma mais difícil - lembrou Gledhill.
- Esperemos que as folhas sensacionalistas não explorem o caso - disse Pamela, esquecendo-se momentaneamente de que lhe competia Impedir que tal acontecesse.
Naquele momento, uma secretária entrou na sala e, ofegante, anunciou:
- Desculpe a interrupção, Mr. Gledhill, mas a recepcionista do Dr. Meggie acaba de telefonar.
- Até que enfim o nosso homem dá sinais de vida - replicou Gledhill.- Que desculpa apresenta?
- Não se trata disso - informou a jovem, de olhos arregalados. - Foi encontrado morto no seu carro. A Polícia pensa que se trata de asfixia provocada por óxido de carbono.
- Com mil diabos!-explodiu ele. - Por que carga de água fez uma coisa dessas?
- E a recepcionista pediu-me para lhe dizer que o Dr. Meggie tinha consigo os documentos do Protocolo Cardigan, agora nas mãos da Polícia.
Pamela Gallop não foi a única a notar que a notícia foi acolhida pelo químico-chefe e o seu adjunto com um pesar temperado por ansiedade aguda.
A alteração da imagem' do caleidoscópio também modificou todo o futuro para Mrs. Hannah Glawari.
Encontrava se agora sentada num sofá da sua imaculada sala de estar, dominada pelo choque, uma das casas da época vitoriana perto da Igreja de St. Faith, sobranceira ao velho mercado. O detective Sloan estava ciente de que não devia reparar no leve tremor das mãos da mulher, a qual se esforçava por dissimulá-lo. No entanto, o da voz resultava mais difícil de dominar.
- Coitadiinho do Paul... - murmurava. - Estava dividido, inspector. Muito dividido. Eu notava-o perfeitamente. A Bunty é tão horrivelmente possessiva, no que toca ao pai!
- As filhas costumam sê-lo - sentenciou Sloan, que só tinha um filho.
- Mas também precisava de mim.
- Com certeza, minha senhora.
- Há coisas que uma filha não pode fazer, e ela não o compreendia.
- Pois não, minha senhora.
Ao mesmo tempo que prestava atenção à sua interlocutora, pelo canto do olho observava Crosby, empoleirado precariamente numa cadeira de fundo estofado. Na realidade, parecia demasiado grande para o aposento e ainda mais para o móvel em que se equilibrava.
- E um homem na situação do Paul necessita de uma esposa - acrescentou Mrs. Glawari.
O inspector aquiesceu com um gesto. Ainda era cedo para determinar se uma mulher na situação dela necessitava de um marido. Todavia, suspeitava de que era esse o caso.
Naquele momento, acudiu uma expressão de melancolia aos olhos dela.
- Em alguns aspectos, ele podia considerar-se ainda jovem.
- Acredito, minha senhora.
Quando Sloan teve oportunidade de ver o Dr. Paul Meggie, deparou-se-lhe um homem acentuadamente idoso, mas reconheceu para consigo que o pormenor não se revestia de importância para as investigações.
- E gostava de mim. - A voz dela tornara-se muito mais trémula.
- Não duvido, minha senhora - proferiu o inspector, numa inflexão neutra.
Ao mesmo tempo, abarcava sem dificuldade a diferença entre a assaz feminina sala que o rodeava e a simplicidade mais espartana do domicílio do extinto Meggie, onde, aparentemente, os confortos do lar não pareciam constituir um requisito de primeira necessidade.
E existia uma disparidade ainda mais notória entre a bem trajada mulher na sua frente e a indumentária desportiva de Bunty Meggie. Sloan não tinha dificuldade em calcular que um médico extrovertido consciente da sua imagem preferiria-a a seu lado em público. E, muito provavelmente, também na vida privada.
- Tenho a certeza de que o Paul me amava. - Mrs. Glawari fazia rodar um anel no dedo médio da mão esquerda e contemplava-o pensativamente. - Não se cansava de o repetir. De resto...
- De resto? - encorajou Sloan, enquanto reflectia que, se Crosby se desequilibrasse da cadeira, o admoestaria seriamente.
- De resto, uma mulher sabe sempre essas coisas. Sempre.
- Acredito, minha senhora. - A sua esposa, Margaret, sabia-o porque ele lho dizia. Sempre.
A princípio, Crosby parecia não saber o que fazer com os joelhos. Voltava-os, primeiro para um lado e depois para o outro, até que optara por rodeá-los com os seus longos braços e entrelaçar os dedos. Nesse momento, soltou uma das mãos, a fim de apontar para uma fotografia emoldurada.
- Suponho que é ele? - perguntou, em tom de conversa.
Hannah Glawari expeliu o ar em longo e lacrimejante suspiro.
- Sim, é o meu Paul.
Só que já não era o Paul dela, ponderou o detective. Morrera como pai de Bunty Meggie e presumivelmente, ficara tudo por aí. Em seguida, encheu-se de coragem para fazer uma pergunta penosa à amargurada mulher.
- Desculpe, minha senhora, mas... enfim... foi abordada a hipótese do casamento?
- Seria no início do Verão. O Paul achava que era a melhor altura, porque nos achávamos no auge do estio das nossas vidas. - E desfez-se irreprimivelmente em lágrimas.
Repelindo mentalmente o impulso para se mostrar consolador, o inspector voltou a concentrar-se no dever profissional. Quando se retiraram da residência de Hannah Glawari, indicou ao subordinado:
- Indague qual é o solicitador do Dr. Meggie.
- Perdão?...
- Averigue se o nosso doutor fez testamento a contar com o casamento ou alterou o já existente, se é que havia algum.
- Desculpe, inspector, mas qual o interesse disso?
- Não se pode mover um processo a um homem por quebra de promessa - explicou Sloan, irritavelmente.- Percebeu agora?
- Levar um homem ao suicídio não é delito, por enquanto - salientou o Superintendente Leeyes, com ênfase.
- Decerto que não.
Como o dever impunha, Sloan apresentara o relatório do andamento das investigações ao superior, antes de apurar o resultado do post mortem.
- Em todo o caso - acrescentou Leeyes, fazendo deslizar os dedos pelo queixo pensativamente-, não estou convencido de que não devesse ser.
- Sim, talvez um dia. - O inspector reflectiu que havia numerosas acções que eram legais e más. A sua avó, por exemplo, uma frequentadora assídua da igreja, mostrava-se irredutível acerca dos pecados e pouco veemente no caso de estacionamento do seu carro em lugar proibido. - Na verdade, ainda não temos a certeza absoluta de que o Dr. Meggie se suicidou.
- Ah!...
Neste ponto do diálogo, passou a escolher as suas palavras com o maior cuidado.
- Segundo a filha, ele recebeu uma chamada pelo telefone, cerca das cinco da manhã, para que fosse ver um paciente na Willow End Farm, em Lartóng.
- Sim? - Leeyes acrescentou significativamente: - Terá sido mesmo assim?
- Vivia de facto lá um agricultor idoso chamado Granger, que estava gravemente doente e acabou por morrer, nesse mesmo dia.
- Já são três mortes.
- Sim, senhor.
Segundo parecia, só por mera casualidade não houvera uma quarta, A Drª Dilys Chomel revelara a Crosby que o vidro causador dos ferimentos de Darren Clements na mão e braço se cravara perigosamente perto de uma artéria vital.
- Alegra-me verificar que não se esqueceu da mulher do Hospital Berebury - comentou o superintendente, secamente.
- Não a esqueci, com efeito. Nem do filho. Combinei encontrar-me com ele, Gordon Galloway, esta tarde. Depois de ouvirmos o que o Dr. Dabbe tem para nos dizer sobre a extinta.
- Willow End Farm, em Larking - repetiu, com' uma expressão pensativa, alterando de novo a pontaria das suas baterias. - Não foi aí que o médico apareceu morto?
- Sim, senhor. Só que ninguém o chamou.
- Como assim? - Ergueu a cabeça com um movimento brusco. - Explique-se.
- Seguindo as suas declarações, tanto os familiares do agricultor... os Granger... como o médico do paciente... Angus Browne... não telefonaram a Meggie às cinco desta manhã para que fosse ver Abel Granger.- Sloan voltou uma página da agenda. - Browne contactou de facto com ele, mas muito mais tarde.
- Isso faz incidir uma luz nova no cenário - concedeu o superintendente.
- Significa que quem transmitiu a mensagem...- aventurou o inspector.
- Ou disse que a mensagem foi recebida...
- Sim, é uma coisa que teremos de aprofundar.- Aceitou a contribuição do superior sem hesitar. - Significa que quem fez com que ficasse registada no bloco junto do telefone da cama do extinto sabia que o velho Abel Granger estava doente com gravidade suficiente para justificar a chamada do médico hospitalar.
- E o próprio Paul Meggie também não o ignorava e acudiria. Lembremo-nos de que os médicos nem sempre consideram necessária a sua comparência.
- Esse não faltaria.
Sloan revelou ao superintendente que o Dr. Browne dissera que Abel Granger - à semelhança de Muriel Galloway - fora um dos escolhidos para participar nas experiências com a droga que tinha o nome de código Cardigan.
- Cada vez estou a gostar menos do cheiro disto - confessou Leeyes, tamborilando com os dedos no tampo da secretária.
- Tal como eu.
Na verdade, o inspector não supusera por um único instante que gostaria. E aproveitou para acrescentar outra coisa que também não desfrutaria do seu agrado:
- Alguém telefonou ao Hospital Kinnisport, de manhã cedo, para comunicar que o Dr. Meggie não compareceria, e...
- E?...
- E Bunty Meggie jura que não foi ela. Refiro-me à filha do médico encontrado morto no carro.
Shirley Patridge, que atendera o telefonema no seu P. B. X., tinha a certeza de que se tratava de uma mulher, como comunicou ao detective Crosby.
- A voz era um pouco rouca, como se estivesse constipada - acrescentou, e a isto se resumia tudo o que sabia.
- Mas era a filha do Dr. Meggie?- insistiu ele, que tivera acesso ao pequeno cubículo de vidro somente depois de um encontro algo contundente, à entrada do hospital, com o artista Adrian Gomm.
Nesse aspecto, Shirley já não se mostrara tão segura.
- Pense-insistiu Crosby.
- Não conheço muito bem a voz de Miss Meggie - alegou ela, sentindo-se posta em causa profissionalmente. - É raro telefonar para cá. Pelo menos, desde que o pai aderiu ao telemóvel.
- Mas alguém o fez.
- Isso, sem a menor dúvida. Recebi a mensagem e transmiti-a imediatamente ao Dr. Friar. Era ele que precisava de saber, para substituir o Dr. Meggie na consulta
externa.
O detective assumiu de súbito uma expressão astuciosa.
- Quem- telefonou mencionou o Dr. Friar pelo nome, ou foi você que tomou a iniciativa de o prevenir?
- Ela disse claramente que lhe devia transmitir o
recado.
- Mas não pediu para falar com ele?
- Não.
- Exactamente a que horas foi isso? Shirley abanou a cabeça lentamente.
- Tenho de pensar um pouco.
- Então, pense - ordenou Crosby.- É importante.
- Tem a possibilidade de o perguntar ao próprio Dr. Friar.
- Já o fiz.
O assistente fora acordado pelo telefonema e voltara a adormecer imediatamente. Por conseguinte, não fazia a menor ideia da hora a que isso acontecera.
- Foi cedo - arriscou Shirley.
- Mas a hora...
- Muito' cedo.
- Estava mais alguém presente? O tipo esquisito que pinta o átrio, por exemplo?
- Apenas a Drº Teal. Passou por aqui várias vezes, depois de sair de serviço, às sete e meia.
- A mulher telefonou antes ou depois de você ver a doutora?
- Antes, de certeza absoluta - afirmou, enquanto o rosto se desanuviava. - Foi mesmo antes de começarem os telefonemas para Niobe, o que acontece sempre muito cedo.
- Quem é Niobe?
- Não se trata de uma pessoa, mas do nome de uma das enfermarias. Pelo menos - observou, recordando-se de algo-, julgo que foi uma figura histórica. São todas baptizadas com nomes de médicos célebres...
- E Niobe foi um médico?
- Não. - Meneou a cabeça com veemência. – Mas quando procuravam um nome para uma nova enfermaria, alguém sugeriu que se chamasse Niobe.
- Porquê?
- É aquela em que se trata a infertilidade...
- E daí?
- Niobe é alguém da mitologia grega que tinha muitos filhos e escarneceu de outra deusa sem nenhum... A Drª Teal explicou-me tudo. - Shirley fez uma pausa. - As senhoras aí admitidas têm de medir a temperatura de manhã cedo, para saberem se devem vir nesse dia.
Tudo depende...
O detective Crosby corou e retirou-se apressadamente.
Devia ser obrigatório os médicos usarem uma chapa metálica com as palavras: 'Lembrem-se que também sou mortal."
Uma das muitas coisas que a Drª Dilys Chomel achava difícil na sua situação de interna do Hospital Berebury era a variedade de funções que lhe exigiam.
Tão depressa dispensava conselhos profissionais úteis a pacientes, com pessoas muito mais velhas do que ela suspensas das suas palavras, como, no momento imediato, corria atrás do Dr. Byville, reduzida às suas verdadeiras
proporções, com todas as sugestões sobre diagnósticos e tratamentos sujeitos a comentários e críticas. A aprendizagem por humilhação era uma característica bem conhecida na profissão.
E, entretanto, esforçava-se por permanecer nas boas graças da enfermeira-chefe Pocock, que dirigia a enfermaria das médicas havia mais tempo do que alguém conseguia recordar e cuja boa vontade exercia influência radical numa vida tranquila.
Ora, a vida, naquele momento, não se podia considerar tranquila.
- Há mais alguém nesta enfermaria que participe no Protocolo Cardigan?
O Dr. Byville inteirara-se do sucedido' ao Dr. Meggie e regressara prontamente à enfermaria das médicas do Hospital Berebury.
- A fibrilação ventricular da cama sete.
A paciente em causa tinha nome, claro, porém Dilys Chomel esquecera-o e duvidava de que o Dr. Byville alguma vez o tivesse sabido.
- Só Deus sabe o que há por detrás de tudo isto, mas não me agrada - disse este último, irritado.
- Nem a mim - permitiu-se observar Dilys Chomel, que nunca gostara do Protocolo Cardigan, embora jamais lhe houvessem pedido a opinião.
- E a razão pela qual o Meggie fez aquilo...
Ela nunca o vira tão animado, pois em regra encarava quase tudo com desprendimento.
- Com efeito...-articulou Dilys Chomel, que nunca dedicara muito tempo ao suicídio, nas suas cogitações, pois as diligências para permanecer viva absorviam-lhe demasiadas horas e energias.
- Comece por retirar a fibrilação ventricular do Protocolo e aumente a dosagem das outras drogas, se for necessário.
- Perfeitamente, doutor.
- Mas tenha muito cuidado. Pode haver alguns problemas com o Cardigan que não conhecemos.
- Compreendo.
Byville descointraiu-se, por um momento.
- Palpita-me que vai haver o diabo por causa disto.
- Sim, senhor. Vamos... quero dizer... Há alguma coisa que?...
Interrompeu-a com brusquidão:
- Mais alguém está ao corrente?
- Nã... não, senhor...-gaguejou ela. - Pelo menos, desde que Mrs. Galloway morreu.
- Já veio alguma informação do patologista?- inquiriu Byville, inclinando a cabeça na direcção geral do respectivo laboratório.
Dilys Chomel abanou a sua.
- Até agora, não.
- Providencie para que ma entreguem, assim que chegar. - Ele olhou para os dois lados do corredor. - é melhor indicar-me quais são os casos do Dr. Meggie, aqui. Terei d'e o substituir, até que encontrem alguém para preencher o lugar, o que não vai ser fácil.
Ela apressou-se a elucidá-lo, até que voltou à condição de um dos pacientes do próprio Byville, naquela enfermaria.
- Estou um pouco preocupada com Mrs. Aileen Hathersage. É o baço da cama da extremidade e...
- Os baços são sempre preocupantes - admitiu ele, enrugando levemente a fronte.-Tem algum corpo de Homell-Jolly?
- Não sei, doutor - disse ela, hesitante, ao mesmo tempo que se esforçava por recordar o que eram os corpos Homell-Jolly.
Sabia que se tratava de algo observado no sangue, mas não conseguia fazer uma ideia concreta da sua natureza. Lamentava não ter coragem para puxar do seu pequeno vatte mecum e consultá-lo.
- Então, inteire-se - ordenou Byville.- De que padece ela?
- Não tenho bem a certeza. Só sei que se sente mal, hoje. - Apesar da sua ingenuidade, Dilys Chomel já aprendera tudo sobre as litotes da linguagem profissional, ou seja, de médico para médico. Consistia em ficar aquém da realidade de uma forma quase artística. Nesse contexto, "sentir-se mal" significava atravessar um momento de certa gravidade. No mesmo contexto, "estar a piorar" equivalia a moribundo. - Está muito pior do que ontem - acrescentou, com certo desconforto.
Ele encolheu os ombros ossudos quase imperceptivelmemte.
- Foi submetida a uma espleneotomia, já não sei porquê, o ano passado.
- Deveu-se a uma ruptura num acidente de viação - lembrou Dilys, que se encontrava de serviço quando a paciente ingressara no hospital. - Não conseguiam estancar a hemorragia.
- Por outras palavras, perdeu o baço e agora faz-lhe falta. Uma situação nada famosa, realmente.
- Com certeza, doutor, mas...
- E não podemos repor-lho.
- É claro que não, doutor.
- Espero que, um dia, os barbeiros descubram uma maneira de resolver cenários destes, mas não é para já.
- Pois não.
A enfermeira-chefe Pocock tivera de explicar a Dilys a razão pela qual o Dr. Byville chamava barbeiros aos cirurgiões. Desde então, ela esquadrinhara as ruas de Berebury à procura de uma barbearia. A outra tentara, sem êxito, levá-la a compreender por que motivo os médicos se consideravam sempre superiores àqueles.
- E Mrs. Hathersage tornou-se muito atreita a infecções desde então.
- Eu compreendo isso, doutor, mas...
- E continuará assim até morrer. Algumas autoridades afirmam que a imunidade melhora com o tempo, mas ainda estou à espera de uma prova palpável disso.
Invulgarmente corajosa, ela declarou:
- Receio que o que lhe estamos a administrar não exerça efeitos notáveis.
- De facto, parece que não.
- Mas...
- A maior parte dessas pessoas morre de uma infecção incontrolável.
- Mrs. Hathersage não está a reagir ao tratamento.
- Uma infecção vulgar numa pessoa sem baço torna-se grave com notável rapidez. É o mal dela... - Byville interrompeu-se ao ouvir os blips do seu localizador.- Diga ao marido que falo com ele mais tarde. Depois de a visitar e não antes. É uma coisa que não tardará a aprender, Drª Chomel. Não transmitirmos novas antes de os familiares visitarem um paciente. Elucidam-se à saída, para terem tempo de ponderar a situação e ensaiar uma expressão impassível antes da visita seguinte.
- Obrigada, doutor...
Mas ele já puxara do telemóvel.
- Gledhill? Sim, já sei. Na verdade, trata-se de uma má notícia. O quê?... Bem, vou já ter consigo. - Voltou-se para Dilys.- Tenho de ir à Gilroy, em Staple St. James. Se não conseguir contactar comigo, ligue a Martin Friar, em Kinnisport. Terá de substituir o Paul na consulta externa.
O Dr. Dabbe, patologista consultor no Hospital Berebury, recebeu o Inspector Sloan e o detective Crosby nos seus domínios com a afabilidade usual.
- Estão a manter-me muito ocupado hoje, meus senhores. Dois casos policiais num- único dia.
- Ainda não temos a certeza de que Muriel Galloway figura nessa epígrafe - advertiu Sloan, prudentemente.- Há um post mortem devido à existência de certas alegações de que morreu em resultado das experiências com determinada droga.
- É o que acontece à maioria dos pacientes - observou Dabbe, jovialmente.
- Receio não estar...
- Pode dizer-se que todas as pessoas que morrem quando estão a ser medicadas participavam em experiências com drogas.
- A sério, doutor?
- Bem, são experimentadas drogas que não resultam.
- Uma espécie de tentativa abortada? - interpôs finalmente interessado.
- Exacto - confirmou o patologista.
- Ou ensaio e erro?
- Mais ou menos. - O Dr. Dabbe, estendeu a mão para a sua bata verde.
Sloan não estava interessado em discutir com' ele. De qualquer modo, achava-se em melhor posição para saber de que falava.
- Também se lhe chama "tratamento empírico" - acrescentou o médico.
- O que se alega no caso de Muriel Galloway é que a sua morte foi acelerada pela participação daquilo a que chamaram, segundo me informaram, Protocolo Cardigan e porventura a droga nele experimentada.
- Ah!-exclamou o patologista, assumindo uma expressão alerta. - Um ponto interessante, Sloan. E quem pode ter a certeza disso, sobretudo agora que o Dr. Meggie também morreu?
- Crê-se que ele o ignorava.
- Emtão, quem o pode afirmar?
- Constou-me que os químicos farmacêuticos da Gilroy, em Staple St. James, têm uma lista dos frascos de cápsulas numeradas que continham a substância designada por Cardigam.
- A qual pode ou não ser perigosa - ponderou Dabbe, colocando na cabeça o gorro verde.
- Assim como dos frascos numerados com cápsulas de aspecto idêntico, que continham uma substância inerte.
- E provavelmente o infortunado Meggie tinha uma lista de pacientes e dos números dos frascos que foram utilizados, - Precisamente, doutor - assentiu Sloan.
- Sem saber exactamente o destino exacto que lhes deram? - acudiu Crosby, que detestava os post mortem e nunca ansiava por que principiassem.
- Nem mais. E depreendo que as coisas só se esclareciam no final da experiência.
- Pelo menos, foi o que me garantiram. - O inspector aclarou a garganta e prosseguiu:-A Gilroy possui um conjunto de números e nós... a Polícia... conservamos a lista do Dr. Meggie, até ver.
Fez uma pausa, enquanto o patologista arqueava uma sobrancelha.
- Fo'i encontrada no carro dele - acrescentou Sloan. - A seu lado, no banco. Os nossos técnicos ainda estão lá. Traremos o corpo para que o retalhe, o mais depressa possível.
- Coitado do Meggie... -O Dr. Dabbe meneou a cabeça, contristado.
- Sem dúvida - assentiu Sloan.
- Enfim. - O patologista assumiu um ar mais profissional.- Ocupemo-nos da senhora.
Passou quase uma hora, primeiro que ele se endireitasse e começasse a descalçar as luvas de borracha.
- Inoperância do ventrículo esquerdo e degeneração do miocárdio- anunciou com desprendimento.
- Causas naturais. - O inspector reflectiu que isso o ajudaria a enfrentar Gordon Galloway.
- Sem qualquer margem de dúvida - confirmou Dabbe. - Tinha uma prótese no quadril e as amígdalas e os adenóides foram removidos em criança, mas nada mais. O que seria de esperar numa mulher desta idade, com o seu historial médico.
- Não há sinais de testes de drogas?
- Nenhum sinal de alguma que lhe tenha provocado a morte - especificou-, mas examinarei melhor as secções e espécimes que recolhi Pelo menos, não existe nada de macroscópico...
- Macro... - O detective Crosby experimentava as dificuldades habituais, enquanto escrevia na sua agenda.
- É o contrário de microscópico, amigo. Refere-se ao que se pode observar à vista desarmada.
Os apontamentos do Inspector Sloan eram' mentais. E já suspeitava que havia algo na situação que escapava à vista, desarmada ou não.
- Safa, que tardaram!-vociferou Leeyes, quando os dois homens regressaram à Central da Polícia de Berebury.
- É verdade - reconheceu Sloan.
O escritor - George Bernard Shaw, segundo lhe parecia- que dissera que nunca pedia desculpa não podia ter conhecido o superintendente, mas as suas palavras aplicavam-se igualmente à actualidade.
- O filho da mulher que morreu...
- Gordon Galloway?
- Esse mesmo. Está à sua espera.
- Muito bem.
- Há quase uma hora.
- Hum...
- E pior que uma barata.
Excepcionalmente, Leeyes não exagerava. Com efeito, Gordon Galloway estava fulo e deixou bem claro que não se achava habituado a que o fizessem esperar.
- Confesso que não compreendo para que pago impostos e todas as taxas adicionais, inspector - principiou, com os ares próprios de um indivíduo atarefado.
- Tem razão - assentiu Sloan, resistindo à tentação de o remeter ao Município, onde decerto o elucidariam.
- Em especial, quando acontece uma coisa como esta.
É intolerável.
- Sem dúvida.
- Absolutamente inconcebível. Não há outro termo para descrever a situação. Inconcebível. Ainda por cima, no próprio dia em que a minha mãe faleceu, quando a submetiam a um teste.
- O patologista... - começou, mas não continuou.
- Em primeiro lugar, descubro que utilizam a minha pobre mãe como se fosse uma cobaia, nos seus últimos dias na Terra...
- Fui informado...
- Depois, chegado a casa vindo do hospital, depara-se-me o insulto supremo.
- Desculpe, onde disse?
- Em casa.
- Em casa? - Sloan puxou da agenda, reflectindo que aquilo era diferente.
- Enquanto a minha esposa e eu nos encontrávamos no hospital a tratar dos... preparativos acerca da minha mãe, que sucedeu?
- O quê? - inquiriu, consciente de que não gostaria de estar na pele da secretária do interlocutor.
- Na porta da nossa garagem.
- Que havia na porta da sua garagem? - Pensando melhor, Sloan não desejaria trabalhar para Gordon Galloway em qualquer capacidade.
- O... grafito. A todos os títulos inadmissível.
- Que dizia?
No fundo, havia grafitos e grafitos. E provavelmente o abismo de gerações entre Gordon Galloway e quem o escrevera.
- Nada menos que: "Não às experiências com amimais."
- Mais alguma coisa?
- Chamavam-me... a mim!... colaborador dos médicos.
Tratam pessoas que se proclamam capazes de curar enfermidades, como se fossem cartomantes.
- E daí? - perguntou o Superintendente Leeyes.
- Enviei o Crosby de novo ao hospital para perguntar à Drª Chomel se a procuraram ou fez algum telefonema sobre Muriel Galloway, enquanto aplicava os pontos a Darren Clements e de modo que ele ouvisse.
- Não basta inteirar-se a respeito do rapaz. Será necessário interrogar todos os outros componentes do seu grupo.
- Estamos a tratar disso...
- Aposto que descobrirão que qualquer deles pode ter escrito aquilo na porta da garagem de Gordon Galloway. - O superintendente fungou com desdém. - Isto, claro, se sabem escrever.
Sloan abordou outra faceta do assunto: - Creio que apuraremos que o coroner exigirá o post mortem a Abel Granger, de Willow End Farm.
- Ah, sim? - Leeyes arreganhou os dentes. - E tenciona explicar-me porquê, ou aguarda que eu o deduza sozinho?
- Também participava no Protocolo Cardigan.
- Estou a ver... E, como morreu, você pensa...
- Não sou eu que penso, mas o Dr. Angus Browne, que se recusa a assinar a certidão de óbito. Em particular, depois de tomar conhecimento do sucedido ao Dr. Meggie.
- Estupendo!-grunhiu, enrugando a fronte.
- O Crosby não obteve nada de interessante da telefonista do Hospital St. Ninian. Ela limitou-se a dizer que recebeu uma chamada de manhã cedo a comunicar que o Dr. Meggie não compareceria ao serviço.
- Sim, isso há-de servir-nos de muito...
- Exacto. - Sloan baixou os olhos para a agenda. - Tanto quanto pudemos determinar, a última pessoa com a qual ele falou ao abandonar o hospital, ontem à noite, foi um artista...
- Um' artista? - As abundantes sobrancelhas de Leeyes arquearam-se com prontidão.
- ...que pinta um mural no átrio de entrada.
- Não é costume recorrerem a artistas para esse tipo de trabalhos.
- Trata-se de qualquer coisa relacionada com um esquema para alegrar o ambiente dos hospitais com... bem... esforços artísticos.
- Que está ele a pintar, concretamente?
- Esta manhã, por exemplo, ocupava-se de ratos...
- Ratos?!
- Sim, de laboratório.
- Não descortino minimamente...
- Adrian Gomm... é o nome do artista... diz que recorre a eles porque também fazem parte da medicina.
- Fazem parte da medicina? - rugiu o superintendente.
- Sim, senhor.
- Ouvi falar de xaropes de certos roedores para a tosse convulsa, mas julgava que agora já não se recorria a remédios tão primitivos. Que papel desempenham os ratos no cenário actual?
- Ele alega que são sofredores na causa da medicina. Assim, acha que o seu mural deve representar o bom e o mau da medicina moderna. No fundo, pretende que o mural é alegórico.
- Bem, sempre é alguma coisa. Pelo menos, melhor do que uma pessoa ter de contemplar actos de cirurgia de peito aberto. - Fez uma pausa e olhou o subordinado com uma ponta de apreensão. - Ou também figura isso?
- Por enquanto, não - informou Sloan, prudentemente. - Para já, Inclui o bem à direita e o mal à esquerda. Diz que é tradicional, como no palco.
- Talvez o seja também na arte, mas deixe-me recordar-lhe que aqui, na Central da Polícia, o mal nos rodeia por todos os lados.
- Com certeza - aquiesceu o inspector, sem pestanejar.
- Como estava a dizer, o artista revelou que trocou algumas palavras com o Dr. Meggie à saída e parecia muito bem disposto.
- Em que parte do mural está a colocar os ratos? - quis saber Leeyes.
- No meio.
- São sarapintados, ou algo do género?
- Não, senhor. Brancos.
- Então, ainda não decidiu em que lado os vai pôr?
- Não se trata disso. - Sloan respirou fundo e acrescentou:- Diz que escolheu o meio do mural, porque são componentes de pesquisas boas e más.
- Diga-me uma coisa, por favor. Que deduz o detective Grosby de tudo isto?
- Nada de especial - declarou, com- sinceridade.
O Dr. Angus Browne, de Larking, talvez dissimulasse a realidade, quando conversou com a família do seu paciente na Willow End Farm-, mas não manifestou a menor hesitação, perante os polícias que o procuraram no consultório.
- Não, inspector, não fui chamado para ir ver Abel Granger, a noite passada, e só contactei com o Dr. Meggie para que viesse mais tarde, durante o dia. A primeira mensagem que recebi dos familiares verificou-se por volta das nove da manhã.
- Em que consistia? - perguntou Sloan, que começava a estar muito interessado em todas as mensagens enviadas e recebid'as naquela manhã.
- Em que o velho Abel passara mal a noite e convinha que o fosse ver, o mais depressa possível.
- E fê-lo? - interpôs o detective Crosby, erguendo os olhos da agenda, ao mesmo tempo que reflectia que os médicos de clínica geral que conhecia não costumavam revelar-se tão prontos a acudir a uma chamada.
- Sim. De qualquer modo, tencionava passar por lá, hoje. Ele estava a ir-se abaixo rapidamente.
- Sabe quem lhe telefonou?-volveu Sloan.
- Só podia ser a filha. Mrs. Granger não abandonava a cabeceira do marido, e os rapazes deviam estar a trabalhar na herdade.
Inscreveu algumas palavras na agenda e insistiu:
- Portanto, confirma que não só não o chamaram antes disso como não telefonou ao Dr. Meggie, às cinco da manhã, para lhe pedir que viesse ver o seu paciente?
- Em absoluto. - Angus Browne contraiu as faces num trejeito algo fatalista. - Não pediria a um homem atarefado como ele que visitasse alguém em situação terminal irreversível, sobretudo a uma hora tão matutina. De resto, já o examinara na consulta externa do hospital, semanas atrás, e declarara que não havia nada a fazer.
- Excepto incluí-lo no Protocolo Cardigan - salientou
Sloan.
- Bem, tratava-se apenas de uma cartada remota que talvez lhe fizesse bem.
- Mas não mal?
- Não compreende o que estou a dizer, inspector? - O médico começou a tamborilar com os dedos no tampo da secretária. - O homem não tinha recuperação possível. Por conseguinte, a sua inclusão no Protocolo Cardigan não o podia prejudicar. Mas isso não significa que esteja disposto a assinar um documento a asseverar que não teve a menor ligação com a sua morte. Só o farei depois de obter a certeza absoluta.
Sloan mudou de rumo antes que Crosby principiasse a criar interesse pela faceta ética da situação.
- Diz o senhor que não chamaria o Dr. Meggie às cinco da manhã para visitar um caso terminal irreversível.
- Precisamente.
- Mas, se o fizesse, ele teria comparecido?
- Com certeza - respondeu o médico, sem hesitar.- Isso é outra coisa, muito diferente.
O inspector suspirou. Duvidava que alguma vez viesse a conseguir assimilar os eufemismos das acções recíprocas dos médicos. Enquanto havia obviamente um equilíbrio da parte de um generalista entre decidir ou não chamar um interno de um hospital, essa distinção não existia quando se tratava da sua comparência a uma chamada.
- Mas pediu-lhe que viesse mais tarde - recapitulou, satisfeito consigo próprio por ter detectado um ilogismo.
- Decerto, mas não foi para observar o paciente - retrucou Angus Browne, com uma ponta de rispidez.
- Não?
- Foi por causa dos familiares.
- Ah...
- E por minha, também.
- Como assim?
- Para a eventualidade de eles pensarem que o doente não recebera os cuidados suficientes. Há pessoas que reagem assim, após um óbito. - Compreendo.
Sloan não mentia, pois esse tipo de problema também se levantava na Central. Provocado por pessoas como Gordon Galloway.
- Não a esposa - continuou o médico. - Essa conhecia perfeitamente o cenário. Refiro-me sobretudo ao filho mais novo...
- Christopher Granger... o que descobriu o corpo do Dr. Meggie?
- Exacto. É um pouco altruísta, e coisas do género.
- Que coisas do género?
Constituía um lamentável comentário à civilização dos tempos correntes os polícias terem de se mostrar desconfiados dos altruístas, todavia Sloan verificara que, quando se viam entre a espada e a parede, reagiam com a mesma agressividade que qualquer outra pessoa. E visavam, de preferência, os mesmos lugares.
- Teve atritos com os caçadores, o ano passado.
- Sim?
- Convenceu o pai a não os deixar entrar na propriedade. Note-se que o velho Abel já não se achava em condições de se envolver em controvérsias contundentes. Depois, o Christopher passou a pressionar o irmão para converter a herdade à produção orgânica.
Sloan empertigou-se subitamente, enquanto sentia o interesse avolumar-se.
- Foi então que a situação começou a aquecer?
- É uma maneira de pôr a questão - concedeu o médico, com uma expressão enigmática.
O Dr. Roger Byville imobilizou o carro no recinto de estacionamento da Gilroy's Pharmaceuticals, em Staple St. James, e encaminhou-se, no habitual passo firme e bem medido, para a entrada do edifício, sendo introduzido imediatamente no gabinete do químico-chefe.
- Roger! - George Gledhill levantou-se no momento em que Byville surgiu. - Já sabe o que aconteceu ao Paul, com certeza.
- Sei. - O interpelado olhou-o impassivelmente.
- E então?
- Então, o quê?
Desfrutava da vantagem de um treino médico, pelo que não se deixou pressionar para emitir um comentário imediato.
- Por que fez ele uma coisa daquelas?
- Isso, não sei - replicou, sentando-se. - Mas decerto nos inteiraremos, a seu devido tempo. A verdade acabará por emergir.
- Emergir?!-bradou Gledhill. - Com a breca, homem, como pensa que vamos?...
- Talvez deixasse uma carta - aventou o outro, com uma calma que o químico-chefe considerava desconcertante.
- Bem... É possível.
- A experiência ensinou-me que quase todos os suicidas o fazem.
- Sim, claro. - Gledhill serenou um pouco. - Você safoû-o melhor do que eu.
- Na verdade, pode ter deixado duas. Dadas as circunstâncias.
- Não compreendo. Que quer dizer com isso?
- É fácil de compreender. O Paul, coitado, achava-se na situação suicida clássica. E merecia-a, diga-se de passagem.
- Continuo a não enxergar...
- Foi 'apanhado entre uma rocha e uma superfície dura.
- Cardigan e... que mais?
- Não me refiro ao Cardigan - declarou Byville, vigorosamente-, mas aos seus problemas domésticos.
- Ah... - A expressão de Gledhill deixava transparecer perplexidade. - Não sabia que os tinha.
- Havia, por um lado, uma mulher muito ambiciosa - informou Byville, com o desprendimento usual - e, por outro, uma não menos determinada filha.
O rosto do químico-chefe registava um alívio quase cómico, ao declarar:
- Desconhecia isso. Era o Cardigan que me preocupava.
- Porquê?
- Podia ter havido... Sabe ao que me refiro.
No entanto, o médico não se mostrava inclinado para o ajudar com palavras. - Não, não sei.
- Não esqueçamos que os cientistas também são humanos - volveu Gledhill obliquamente, embora não se recordasse de um único momento em que tivesse vislumbrado indícios de humanidade em Roger Byville.
- Bem, o Meggie era na verdade humano - admitiu este último, com uma risada seca. - Quanto a mim, isso representava metade do seu problema.
O outro abanou a cabeça.
- Não, o que me apoquenta é a possibilidade de nem tudo estar a correr bem, no Procolo Cardigan.
- Em que sentido?
- Há sempre muita pressão para que se apresentem resultados - recordou Gledhill, ignorando convenientemente o facto de alguma dessa pressão provir da Gilroys Pharmateuticals - Divulgados ou morre - concordou o médico. - É esse o nome do jogo.
- Têm surgido resultados fictícios, em alguns casos. Assim como não menos fictícios pacientes.
- E substâncias fictícias - realçou, sem comiseração.
- Mas não dispomos dos referentes ao Cardigan, conpilados pelo Meggie. Estão em poder da Polícia.
- Ah, sim, o Cardigan - murmurou, como se acabasse de lhe ocorrer algo. Que substância disse você que era?
- Um composto da fágara alcalóide e... - O queixo do químico-chefe ergueu-se subitamente. - Julgo preferível ficarmos por aqui, Roger. Pelo menos, até vermos os resultados do Paul.
Não tentes viver eternamente, porque não o conseguirás.
A atmosfera de uma casa enlutada assume uma qualidade própria, e o Inspector Sloan conservava os olhos bem abertos para detectar sinais sinceros do facto, quando ele e Crosby voltaram a visitar a residência do falecido Dr. Paul Meggie. A quietude de uma morte recente era por de mais evidente. Bunty Meggie parecia continuar sentada no lugar e posição da véspera, e algumas chávenas de chá vazias constituíam' a única indicação visível da passagem do tempo desde então.
Ela não mudara de vestuário e deixava o telefone tocar interminavelmente.
- Não há ninguém que me interesse escutar - explicou, quando o som intermitente começou mais uma vez.
- Pode ser importante - advertiu Sloan.
- E também pode ser ela - redarguiu a jovem, com animosidade.
Era o único sinal de animação que exteriorizava. O tom da voz indicava que a realidade da morte do pai se lhe entranhara no espírito. Respondia às perguntas dos polícias de uma forma remota, desinteressada, mas sem hesitações. Sim, era filha única. Houvera outro bebé - um rapaz-, mas fora aquilo que a mãe descrevera eufemisti-camente como "nascido a dormir".
- O meu pai sempre desejou um filho - acrescentou, apaticamente.
Declarou ter a certeza de que a caligrafia da nota que o chamava a Willow End Farm era dele e encontrou sem dificuldade algumas outras amostras do seu punho para as compararem.
Sloan guardou-as cuidadosamente na pequena pasta de plástico de que se fazia acompanhar, enquanto Crosby, surpreendido, observava:
- Consigo ler a letra sem dificuldade!
- Ele escrevia com muita clareza - disse Bunty Meggie. - Para um médico.
- Importa-se de me fornecer a descrição dos seus movimentos desta manhã, depois de ouvir o carro do seu pai partir? - sugeriu o inspector.
- Voltei a adormecer, mas tinha acertado o alarme do despertador para muito cedo, porque a minha parceira e eu...
- Parceira? - interrompeu, reflectindo que surgia um vocábulo com um novo significado (1).
(1) Partner, que, em inglês, tanto pode significar parceiro como sócio. (N. do T.)
Ela corou e, com uma ponta de embaraço, explicou:
- Refiro-me à minha parceira de golfe.
- Ah...
- Tínhamos combinado participar na primeira partida desta manhã. - Fez uma pausa e afastou o cabelo para trás. - É curioso como a manhã parece distante.
O tempo como percepção e como dimensão eram duas coisas distintas. Sloan sabia-o, porque constituíra um tema que o Superintendente Leeyes tivera de debater numa das suas aulas de educação de adultos - e indagara o ponto de vista de todos os agentes que prestavam serviço na Divisão "F". Isso acontecera antes de ele ter sido convidado a abandonar a sala por causa de um mal-entendido sobre Galileu, a velocidade e a inclinação da Torre de Pisa.
- Tomou o pequeno-almoço, antes de sair?
- Sim, e abundante, porque sabia que o necessitaria. Não se pode disputar uma partida de golfe até ao fim em Kinnisport com o estômago vazio. É um campo muito difícil.
- Com certeza que não. Outra coisa: o seu pai comeu antes de sair?
- Creio que não. - Ela abanou a cabeça com veemência. - Se alguém precisava dele às cinco da manhã, devia tratar-se de um assunto urgente, pelo que não se deteria a comer.
O inspector concordava inteiramente, e começava a inteirar-se de que realmente alguém precisara do Dr. Meggie, mas não, afigurava-se-lhe, para o consultar como médico.
- Além disso - acrescentou Bunty Megge - , teria deixado a loiça por lavar. Fazia-o sempre.
Pela segunda vez nesse dia, Sloan e o detective Crosby assistiam a uma autópsia. E, embora se pudesse afirmar que ambos haviam comido algo nesse intervalo, o inspector duvidava que o tivesse digerido.
O Dr. Dabbe recebeu-os com cortesia irrepreensível.
- Esta casa sente-se honrada como mais uma visita vossa.
Em seguida, afastou o lençol do rosto do finado Paul Meggie, e Sloan contemplou-o pela segunda vez. Enquanto o Dr. Dabbe encarava o corpo do antigo colega com aparente equanimidade, ele considerava o que se lhe deparava com desprendimento profissional. Nunca vira o homem vivo, mas, apesar de morto, não lhe custava admitir que possuíra uma personalidade voluntariosa.
- Era um bom médico? - acabou por perguntar, enquanto ponderava que as feições de Paul Meggie lhe recordavam a máscara da morte de Agaimennon que ornamentara o corredor do seu colégio. Na verdade, não podiam ser todos tão maus como Dan McGrew, o Perigoso, de contrário já não haveria ninguém vivo em Calleshire.
- Parvo não era, de certeza - apressou-se o Dr. Dabbe a responder. - Adquirira a qualidade rara denominada perspicácia clínica, ingrediente que não abunda, nos tempos actuais. Um parecer ponderado e seguro reveste-se de particular importância num médico.
Sloan Inclinou levemente a cabeça. Havia polícias com perspicácia profissional... e outros sem nenhuma. E o parecer ponderado não se podia ensinar-embora lhe custasse a crer, ele aprendera-o da maneira mais difícil.
- Posso garantir-lhes, meus senhores, que os bons clínicos constituem uma raridade, nestes dias mecanizados - acrescentou o patologista.
- Mecanizados? - estranhou Crosby. - Na medicina?
- Sim, há os raios-X, computadores e outros métodos técnicos, mas apesar de tudo isso, o Meggie era um excelente profissional, sem ter de recorrer a eles. Na verdade, poucos pormenores lhe escapavam - concluiu, na sua versão de homenagem póstuma a um colega.
- Pormenores esses que não lhe passariam despercebidos, doutor? - aventurou Sloan.
- Exacto.
Crosby, sempre empenhado em protelar a incisão inicial, perguntou ao patologista o que sentia ao ter de retalhar o corpo de alguém das suas relações.
Dabbe dirigiu-lhe uma mirada penetrante, antes de explicar:
- Não é diferente de examinar o de outra pessoa qualquer. Em medicina, não há lugar para sentimentalismos.
Sloan, que chegara à mesma conclusão no exercício da sua profissão, abriu a boca para dizer precisamente isso, porém o detective antecipou-se.
- Deve haver alguma coisa que o Impressiona, doutor.
- Crosby! - advertiu o inspector. - Peço desculpa que o meu colega se deixasse vencer pela curiosidade, doutor - continuou numa inflexão rígida, decidindo que ajustaria contas com o subordinado no ambiente tranquilo do seu gabinete.
- Não tem nada de que se desculpar - replicou Dabbe, debruçando-se sobre o corpo sem vida, para iniciar o exame exterior. - É uma boa pergunta. O rapaz tem toda a razão. Todos temos um calcanhar de Aquiles. Não vejo inconveniente em revelar que o meu são os carros.
- Os carros? - repetiu Sloan, perplexo.
- Não gosto de os ver destruídos - admitiu o outro, sem dúvida um dos maiores "aceleras" vivos de Calle-shíre. - Uma boa viatura é uma coisa bela. Provoca-me um arrepio na espinhal-medula, quando vejo uma amolgada.
- O que a mim não agrada...-começou o inspector.
- E se avisto um no fundo de uma ravina... - O patologista estremeceu e tornou a baixar a cabeça. - Acho-o um espectáculo obsceno.
Nunca ocorrera a Sloan que um carro também- podia ter uma faceta íntima.
Parecia que tinham passado apenas alguns minutos, quando Dabbe se endireitou e proferiu no seu tom habitual:
- Vêem o rubor de Outubro na cara dele? Para mim, é o sinal inequívico de envenenamento de óxido de carbono.
- Ah...-Sloan estava perfeitamente inteirado da natureza do rubor de Outubro: ninhos de aves nas chaminés no Verão e lume de gás de aquecimento na lareira, no Outono. Resultado: óxido de carbono a envenenar as entranhas de seres humanos. - Constou-me que ele estava a contas com um dilema familiar.
No entanto, o patologista não o escutava, de novo debruçado sobre a mesa de autópsias - ou post mortem, para quem preferisse a designação técnica -, porém agora a sua atitude alterara-se. Pegou numa lupa e reatou o exame ao rosto de Paul Meggie, concentrando-se na boca e lábios.
A atmosfera da sala alterou-se como que para acompanhar a maneira de proceder do Dr. Dabbe. A imobilidade da sua concentração era quase palpável, e Sloan descobriu-se a conter o alento involuntariamente'. Se Crosby pronunciasse uma única palavra que fosse naquele momento, não hesitaria em o mandar calar vigorosamente. Por fim, o patologista pousou a lupa e declarou:
- Não tenho a certeza absoluta, mas creio que há pequenas marcas de queimaduras em torno da boca.
- Marcas de queimaduras? - repetiu o inspector, consciente de que o facto incutia uma dimensão nova à situação.- Então, e o óxido de carbono? Havia um tubo que conduzia do escape ao interior do carro. Eu próprio "o vi.
O outro assumiu uma expressão grave.
- Penso que descobriremos que as marcas de queimaduras precederam o envenenamento pelo óxido de carbono.
- Mas...
- Na verdade, julgo que podemos postular que o facilitaram.
O inspector não era uma pessoa que costumasse recorrer a rodeios, pelo que replicou:
- Lamento, doutor, mas não compreendo.
- Nem eu próprio, totalmente - admitiu o patologista, ccontemplando o corpo do homem que conhecera, mas acho que estamos perante queimaduras de segundo grau.
- Marcas de queimaduras? - exclamou o Superintendente Leeyes.- Exactamente, onde pretende chegar, Sloan?
- O patologista é da abalizada opinião de que uma substância ainda não identificada foi aplicada ou contactou de algum modo com...
- Troque isso por miúdos.
- Por meio de um pulverizador. Fungou desdenhosamente e indicou:
- Continue.
- Contactou de algum modo com a área em torno da boca e nariz do extinto imediatamente antes da sua morte.
- Nesse caso, ele afirma por outras palavras...
- Sugere - corrigiu o inspector, voltando a folha dos seus apontamentos - que a aplicação da referida substância... líquida ou gasosa, ainda não o apurou..: se destinou a tornar a vítima incapaz de qualquer movimento, enquanto o óxido de carbono do escape do carro exercia o seu nefando efeito.
- Ah, sugere? - rugiu Leeyes.- Acalenta alguma suspeita da natureza dessa substância?
- Adiantou duas possibilidades: um agente de controlo de distúrbios ou clorofórmio.
- Por conseguinte - concluiu, inevitavelmente-, não se trata de suicídio.
- Pois não. - O facto tornara-se aparente a Sloan no Templo da Morte, ou laboratório de post mortem.
- Nem acidente - acrescentou o superintendente - ou causas naturais.
- Exacto. O Dr. Dabbe diz que o extinto era particularmente saudável para a sua idade.
- O que nos conduz ao homicídio - grunhiu.
- Muito provavelmente.
- Não me agrada.
- Nem a mim - reconheceu o inspector, embora se referisse à perda agora irremediável do seu fim-de-semana prolongado. Ao mesmo tempo, e a esse respeito, observou:- Há qualquer coisa acerca deste fim-de-semana.
- O quê?
Tossiu discretamente e continuou:
- O Dr. Dabbe revelou-nos, sem, naturalmente, se mostrar de modo algum menos profissional ou ético. que...
Leeyes, por seu turno, revelou sem reservas o que pensava da subscrição de ética médica.
- Sem dúvida - concordou prontamente Sloan. - As marcas de queimaduras podem considerar-se mínimas...
- E daí?
- Se o corpo de Paul Meggie tivesse sido encontrado mais tarde... digamos, à noite ou no dia seguinte... o que, uma vez que estava num caminho pouco frequentado...
- Deixe-se de rodeios, homem.
- Com certeza. Ou se o Dr. Dabbe decidisse que não devia proceder à autópsia devido à circunstância de conhecer Meggie pessoalmente...
- Não o supunha susceptível a esse ponto. Absteve-se de reagir ao comentário e prosseguiu:
- O seu substituto, que é do outro extremo de Calleshire, teria de se ocupar do post mortem...
- E depois?
- Ouvi dizer que esse patologista costuma não ligar aos pequenos pormenores...
- Ah, estou a ver! É o Dan McGrew, o Perigoso, do mundo da patologia! Era aí que pretendia chegar?
- Mais ou menos. É claro que não resultará tão perigoso, se for um patologista a operar e não um cirurgião.
- Que disparate! - discordou o superintendente. - A lei é muito mais importante que uma vida individual. Esquece que a Polícia é a protectora do tecido social deste país? E se o homicídio não for reconhecido como tal, onde iremos parar!
- Devia ter sido esse homem a examinar o extinto - asseverou Sloan.
- Então, por que não o fez?
- Conduz o seu Westerly, na Regata de Kinoisport, durante todo o fim-de-semana.
- Quem estava ao corrente disso?
- Todos os que leram o jornal local de ontem - informou, com uma réstia de melancolia. - Venceu a do ano passado, e o periódico publicou um artigo a seu respeito.
Operar é sempre mais seguro.
Em termos puramente cronológicos, Martin Friar era cerca de um ano mais velho que Dilys Chomel. Do ponto de vista médico, todavia, aproximava-se rapidamente da meia idade.
Não obstante, nem ele próprio, apesar de mais experiente, achava que podia prescindir de algum apoio, com a morte iminente, na Enfermaria Lorkyn, de um jovem paciente. Assim, telefonara ao departamento das médicas do Hospital Berebury... e obtivera Dilys Chamei, em vez do Dr. Byville.
- Encontra-se na Gilroy - informou ela. - É para alguma coisa urgente?
- Trata-se daquele baço do Dr. Byville que transferimos para aqui, o outro dia, a fim de se encontrar mais perto da família. Recorda-se?
- Sim, muito bem.
A Drº Chomel não se esquecera unicamente porque, na altura, ficara satisfeita por ter menos um paciente incapacitado para cuidar.
- Não se safa - continuou Martin Friar. - Por conseguinte, já concordei que o levassem.
- Temos aqui uma mulher em condições similares. Está-se a ir abaixo a olhos vistos.
- O baço do meu paciente teve complicações com a quimioterapia.
- A "minha" mulher sofreu um acidente de viação.
- Que lhe estão a dar? - Fez uma pausa, enquanto Dilys enumerava uma série de medicamentos. -Ao meu também. Na verdade, há uma mulher nesta enfermaria que está a melhorar com uma medicação diferente, mas o velho Byville não me deixa recorrer antes a essa. Diz que a mudança de cavalos terapêuticos a meio de uma corrida pode resultar clinicamente perigoso.
- Decerto não o é mais do que a morte - objectou ela.
- Não se convença disso.
Friar já aprendera que, no hospital, havia numerosas coisas piores para um médico do que um paciente moribundo. Algumas das quais para o próprio paciente.
- O Dr. Byville não sugeriu a prescrição de algo de diferente para a mulher em causa - explicou a médica. - Portanto, o que quer que seja, não pode ser tão benéfico como você pensa. - Fez uma pausa, antes de perguntar, quase receosamente: - Ouviu falar do que aconteceu ao Dr. Meggie?
- Sem dúvida, e confesso que fiquei surpreendido. Nunca o supus capaz de um acto daqueles.
- Nem eu. Parecia sempre bem disposto, muito seguro de si.
- Sim, sempre.
- Imagino que aconteceu alguma coisa a que não resistiu.
.- Nunca se sabe... - Neste mundo, sucede o mais inesperado - atreveu-se ela a filosofar.
- É uma grande verdade - admitiu Friar. - Constou-me que havia uma femme fatale nos bastidores. - Ainda não atingira os trinta anos e considerava a ideia de um casamento de pessoas de meia idade levemente risível.
- Aquilo a que poderíamos chamar um velho sátiro - disse Dilys Chomel, inesperadamente.
- Talvez. - Ele decidiu mudar de tom. - Ou pode tratar-se de outra coisa, muito diferente.
- O quê, por exemplo?
- Esteve cá a Polícia a perguntar que pacientes participavam no Protocolo Cardigan. Suponho que não tarda a passar por aí.
Ela aventurou uma pergunta:
- Que lhe parece que há de errado no Cardigan?
- Alguma coisa - redarguiu Friar, evasivamente. - Mas não me pergunte o quê.
A Polícia não seguia para o Hospital Berebury, mas para a Gilroy's Pharmaceutical, em Staple St. James. Não sem alguma dificuldade, Sloan convencera Crosby de que as numerosas curvas da estrada não constituíam o cenário ideal para excessos de velocidade. A sua discreta chegada conseguiu surpreender visivelmente o químico-chefe e o adjunto.
- Só mais uma ou duas perguntas, meus senhores - anunciou o inspector, civilmente.
- Como, por exemplo? - George Gledhill fitou-o com desconfiança.
- Paul Meggie era o único médico que testava o Protocolo Cardigan?
- Sim e não - respondeu, evasivamente.
- Pode explicar-se melhor? - insistiu Sloan, ponderando que "sim e não" era uma expressão pouco apropriada para aplicar à circunstância de o Dr. Meggie estar morto.
- Era o único que se poderia descrever, de momento, empenhado activamente na segunda face do Cardigan.
- Importa-se de falar da primeira? - Do lugar em que se encontrava sentado, o inspector avistava a velha estufa onde os macacos viviam em temperaturas semitropicais.
- Antes de passarmos à segunda.
- Desenrolou-se no ano passado. - Gredhill estava longe de parecer satisfeito. - Procedemos às experiências habituais por todo o país: uma prospecção estatística e demográfica apropriada.
- Não esqueça o aspecto sociológico - interpôs Mike Itchen, que acompanhava o diálogo com profunda atenção.
- Na minha experiência, ninguém costuma esquecer-se desse aspecto - esclareceu Sloan, com uma expressão sombria.
- Pois não - concedeu Gledhill. - Bem, os resultados da primeira fase foram aquilo a que poderíamos chamar distintamente equívocos.
- Não provaram nem desaprovaram a eficácia do composto - traduziu Itchen.
- E, em face disso?...
- Em face disso, o Mike, aqui presente, concebeu o que podemos designar por uma segunda fase mais elegante.- revelou Gledhill.
- Mais clínica e quimicamente discriminatória - esclareceu o seu adjunto.
- E - prosseguiu o químico-chefe, com confiança crescente - Paul Meggie... por ser da região e estar interessado... procedeu a experiências com um teste piloto.
- Está-me a dizer que o Dr. Meggie era o único médico envolvido nele? - perguntou Sloan.
A temperatura do gabinete de Gledhill já era consideravelmente inferior à da estufa dos macacos, mas ainda se reduziu mais, quando declarou:
- Creeio bem que sim.
- Quando devia ele entregar-lhes o resultado desse teste piloto?
- Hoje, durante o almoço - informou o químico-chefe, em voz quase estrangulada.
- O que significa - tornou Sloan, que parecia concentrado no que se passava do outro lado da janela - que, agora, ninguém o sabe. - Fez uma breve pausa. - Que é aquela curiosa sebe, lá fora?
- Um labirinto - revelou Gledhill, distraidamente. - Não, não significa que ninguém conhece o resultado, mas apenas que o desconhecimento se manterá até que o vejamos e comparemos com os nossos registos.
- Saberemos então se o teste piloto foi bem sucedido - acrescentou Mike Itchen.
- Se o Dr. Meggie o completou antes de morrer - salientou o químico-chefe.
- Existe também a possibilidade - observou o inspector, com desprendimento-, uma possibilidade puramente teórica, claro, de ele o haver completado e não ter gostado.
O detective Crosby olhou à sua volta e sugeriu, de olhar brilhante:
- Ou que completou as pesquisas e houve outra pessoa que não gostou do resultado.
- Então? - inquiriu o Superintendente Leeyes. O seu fim-de-semana era sagrado, ainda que tal não acontecesse em relação ao dos seus subordinados, e estava ansioso por abandonar a Central. - Espero que as investigações estejam a registar progressos.
- Começámos por estabelecer uma série de parâmetros - anunciou Sloan, implicando generosamente que Crosby também participara nas diligências. - E apurámos igualmente que a Gilroy dispõe de alguns métodos de protecção pessoal nas suas instalações sob a forma de pulverizadores propulsores.
- Que receiam eles? - quis saber Leeyes, com interesse.- Ratos ou homens?
Na Gilroy's Pharmaceuticals, fora informado de que a principal preocupação, quando atacada pelos liberacionistas dos animais, não consistia em deixar escapar as moscas da fruta, porque dava a impressão de que um reactor nuclear de reprodução rápida não continha Drosophila bifurca para o efeito. O que, aparentemente, resultava muito útil nas pesquisas.
Sloan decidiu não repisar o assunto com o superintendente e comunicou, ao invés, que ele e Crosby tinham visitado o Clube de Golfe de Kinniport.
- Confirmámos que Miss Bumty Meggie participou numa competição durante toda a manhã.- Consultou a agenda. - Dão-lhe o nome de partida de quatro bolas. Está certo? - perguntou, pois não praticava esse desporto, ao contrário de Leeyes, razão pela qual os fins-de-semana deste último eram tão invioláveis.
- O que não está certo é que deixem as mulheres disputar uma partida tão cansativa. Não devia ser permitido.
Sloan reflectiu que sabia de memória tudo o que o seu superior achava que não devia ser permitido. Neste caso, porém, havia mais alguma coisa.
- Atrasam os jogadores que as seguem - acrescentou o superintendente, com o seu habitual didactismo. - A comissão devia pôr termo a isso, imediatamente.
- Segundo a sua capitoa, Miss Meggie chegou cerca das sete e quarenta e cinco e efectuou a primeira jogada às oito exactas. As jogadoras Intervieram com intervalos de cinco minutos, e o campo esteve encerrado a todos os outros praticantes até às nove e meia.
- Eu não lhe disse? Não devia ser permitido!
- Por conseguinte - continuou o inspector -, os movimentos de Miss Meggie estão justificados a partir do momento em que chegou ao clube, após o trajecto desde sua casa ou de onde quer que viesse.
- Sugere, porventura, que pode ter sido ela quem?... - inquiriu Leeyes, semicerrando os olhos.
- O Crosby está a medir a distância entre a casa do Dr. Meggie e o local onde apareceu morto.
- E você, suponho - observou, com uma ponta de amargura-, está a contar com a rapidez do seu detective?
- Estabelece igualmente a distância exacta entre a Willow End Farm e o campo de golfe de Kinnisport, para ver se, a uma velocidade que não despertasse a atenção...
- A propósito de despertar a atenção, deixe-me dizer-lhe que o Inspector Harpe afirma que o detective Crosby...
- Ela podia ter coberto a distância - garantiu Sloan, consciente de que o colega acabado de mencionar era chefe da Divisão de Tráfego e não um admirador da forma de conduzir de Crosby.
- Julgo que está agora a falar de velocidades normais?
- Sim, senhor. - A alusão à combinação de velocidade, tempo e distância voltou a conjurar o espectro de Galileu. pelo que se apressou a acrescentar: - Não sei se é relevante, mas a capitoa das senhoras disse que Bunty Meggie jogou com o seu handicap (1) na competição em que participaram, esta manhã.
Por qualquer razão misteriosa, estas palavras mereceram a aprovação de Leeyes.
- Muito bem, Sloan. Note que uma partida de quatro bolas é tão lenta, que uma pessoa dispõe de tempo para recuperar.
- Sim?
Entretanto, o inspector reflectia que Bunty Meggie não lhe parecera o tipo de mulher de se deixar convencer com facilidade. Todavia, tratou de reedificar a ideia: a recordação da morte recente do pai decerto influíra na alteração do seu temperamento.
Apresentou a verdadeira questão ao detective Crosby, quando se encontraram na cantina, um pouco mais tarde.
- Como deve recordar, o assunto também foi abordado na poesia infantil intitulada "Elegia à Morte de Cock Robin".
Na sua juventude, nunca lhe passara pela cabeça a relação íntima entre as poesias infantis e o crime.
- Bunty Meggie pode ter coberto a distância nesse -tempo - asseverou Crosby, puxando da agenda. - De Larking a Kinnisport...
- Hum... - murmurou Sloan, levando a chávena de chá fumegante aos lábios.
- Apesar de o piso não ser grande coisa até chegar a...
- "Eu, disse a pomba" - citou. - O que importava era a identidade da pomba.
(1) Desvantagem imposta a um jogador, a fim de o colocar em pé de igualdade com outros que lhe são inferiores. (N. do T.)
Mas estava a falar sozinho, porque o detective fora buscar mais biscoitos.
- "Choro o meu amor" - declamou para o lugar vago a seu lado.- "Serei a principal carpideira."
- Eram os últimos - informou Crosby, pousando o prato de biscoitos na mesa.
- Não podemos esquecer também Hannah Glawari - murmurou Sloan, pensativamente.
Os médicos têm tanta honra e consciência como qualquer outra classe de homens - nem mais nem menos.
Nos hospitais, os sábados também são diferentes dos outros dias da semana. Shirley Partridge não se importava de trabalhar nesse período. A pressão dos telefonemas era menos intensa, o que lhe permitia trocar algumas palavras com quem passava no átrio de entrada. Os sábados também eram diferentes para a Drª Marion Teal. O inimigo das mulheres, Mr. Maldonson, não necessitava de a atrasar para se ocupar do filho, porque nesses dias o marido estava em casa. Aquela manhã, ela abandonara o hospital à hora apropriada, sem ter de aguardar que ele se dignasse dispensá-la.
Os sábados não diferiam de qualquer outro dia para o artista Adrian Gomm. Era a condição da iluminação que determinava o seu trabalho e não o calendário, e nessa ocasião a luz podia considerar-se boa. Estava mais ou menos a meio do escadote, quando o Dr. Edwin Beaumont entrou e se deteve, como era seu hábito, para observar os progressos registados no mural.
- Ah, começou a ocupar-se de uma das serpentes! - proferiu ao reconhecer algum velho simbolismo médico.
- E não do nosso velho amigo do Jardim do Éden - replicou o outro, com um sorriso. - Introduzi a Grande Divisória ontem.
- O eixo - disse Edwin Beaumont, apreciativamente.
- E tratarei da outra serpente, assim que terminar esta.
- Caduceu.
- Luz e sombra, consciente, macho e fêmea, princípio e fim - recitou Gomm.
- Juventude e velhice, Verão e Inverno, passado e futuro, morte e vida - completou o médico. - A propósito, tenho de ir andando. Preciso de observar alguém, na Enfermaria Barnesdale. - Bateu com as pontas dos dedos na vidraça do cubículo de Shirley Partridge, ao passar. - Algum recado para mim?
Mas não havia nada à sua espera, pelo que se encaminhou para o decrépito elevador e, depois, para o consultório em que atendia os seus pacientes. Atravessava um' dos corredores alcatifados silenciosos, quando avistou uma figura familiar à sua frente.
- Ah, Roger!-Estugou o passo, até que o alcançou. - Calculei que o encontraria aqui. Há alguma novidade sobre a morte do Paul?
O Dr. Byville deteve-se e abanou a cabeça.
- Que eu saiba, não. Em todo o caso, tive de atender um longo telefonema da infortunada Buoty, ontem à noite.
- Ela deve precisar de desabafar com alguém.
- Queria que lhe revelasse tudo sobre o malfadado Protocolo Cardigan. O pai não lhe tinha dito uma única palavra, naturalmente.
- Acha que foi isso que o conduziu ao suicídio?
- Não faço a menor ideia.
- Estava um pouco acabrunhado com' o assunto.
- Expliquei à Bunty que ele era a única pessoa em condições de a poder elucidar sobre algo de importante. Se é que havia alguma coisa dessa natureza. Quem sabe?
O Dr. Edwin Beaumont pousou os dedos no queixo num gesto de reflexão. Era um movimento que sempre impressionava favoravelmentte os pacientes, os quais se convenciam de que ponderava o seu estádio.
- Parece-lhe que há alguma faceta obscura no Cardigan? - acabou por perguntar.
- Não vejo como o podemos determinar, nesta altura.
- Talvez não, de facto. Em todo o caso, é de lamentar o que aconteceu.
- Com certeza - concordou Byville, em tom incisivo, - Abstraindo tudo O' resto, o Paul era a pessoa indicada para proceder ao estudo do resultado das experiências. Agora, vai haver uma solução de continuidade só Deus sabe durante quanto tempo.
- Vão tardar uma eternidade a arranjar um locum tenens (1)- reconheceu o outro, sempre hostil à Administração.
(1) Substituto. (N. do T.)
- Já estão a falar de reorganizar as nossas obrigações. O que, como sabemos perfeitamente, significa mais trabalho. Muito mais trabalho.
- Há o assistente-chefe, Friar.
- Serve de muito... - articulou Byviíle, em tom de desdém. - Fez-me vir mais cedo, esta manhã, porque o baço que lhe mostrei em Lorkyn estava a morrer, apesar de eu lhe haver dito ontem que o homem não tinha a mínima hipótese de se safar. Nos tempos que correm, é escusado esperar que o público compreenda que não podemos salvar todos os doentes, mas sempre supus que um assistente-chefe já tivesse chegado a essa conclusão.
- Ouvi dizer que o post mortem àquele paciente de Angus Browne, em Larking... o da herdade onde foi encontrado o Paul... indicou a inexistência de qualquer anormalidade, apesar de participar no Protocolo Cardigan.
- Como o sabemos? - perguntou, irritavelmente.- Como pode alguém saber quem participa no quê, numa experiência dessa natureza.
- Depois, Roger. Podem determiná-lo depois.
- Não quando a Polícia possui um conjunto de registos e os fulanos da droga o outro. -Soltou uma risada seca. - Sabia que eles os colocaram sob guarda preventiva? Gledhili, da Gilroy, está pior que uma barata.
- Sabemos o que o Cardigan compreende?
- É um composto de fágara e outra substância qualquer, cujo nome a Gilroy não acha conveniente divulgar neste momento.
- Fágara... - repetiu Beaumont, pensativamente. - Seria muito interessante administrá-la com um catalisador e medir a reacção. É claro que haveria ainda mais interesse em utilizá-la com um sinérgico.
- Quanto a mim - Roger Byville baixou a voz-, o agente sinérgico no meio de tudo isto é uma viúva chamada Hamnah Glawari. Não só por proporcionar uma mudança mas também para ela própria se modificar.
- Sinergia pura - murmurou Beaumont, enquanto a enfermeira que tinha a cargo a clínica se aproximava. - Tenho de me lembrar de consultar os textos para me elucidar sobre a fágara. Creio que se trata de um alcalóide...
Os sábados também eram muito diferentes dos restantes dias da semana na Central da Polícia. E isto principalmentte porque o Superintendente Leeyes quase nunca aparecia. O Inspector Sloan, sentado atrás da secretária do seu modesto gabinete, sentia-se grato pela pequena graça, embora - sábado ou não - reconhecesse que a prematura e perfumada rosa "Celeste" estivesse destinada a nascer sem testemunhas e desperdiçar a sua fragrância na estufa deserta do amigo, sem a sua presença, além de que Crosby chegara tarde.
- Teve mais alguma ideia, depois de ir para casa, ontem à noite? - perguntou Sloan.
- Quando vou para casa, desligo-me do serviço - esclareceu o detective, em tom de censura.
- Nesse caso, acudiu-lhe alguma ideia nova, esta manhã? Como, por exemplo, quem convirá entrevistar a seguir.
Enrugou a fronte durante alguns segundos e sugeriu:
- Talvez Christopher Granger.
- O filho do agricultor acabado de falecer?
- Foi ele que descobriu o corpo do médico. Por conseguinte, dispôs de tempo para fazer o que quis com ele.
- Podemos estabelecer se se levantou e saiu muito cedo, ontem de manhã - admitiu Sloan, tomando nota.- NO entanto, os restantes familiares deviam estar demasiado preocupados com o velho para reparar nos movimentos do rapaz.
- Christopher Granger pode ter previsto que o Dr. Meggie se inteiraria do grau de gravidade do pai.
- De acordo.
E a única coisa que precisava de fazer era indicar-lhe que cortasse à direita, na bifurcação da estrada, e não à esquerda.
- Por outro lado, não sabemos se o extinto reconheceu a voz ao telefone, já que não está vivo para nos elucidar. - O inspector voltou a inscrever algo na agenda.
- Alguém o atraiu ao seu tenebroso destino-observou Crosby, em tom apropriadamente sepulcral.
- E o motivo? - insistiu Sloan, que também se dedicara a conjecturas durante a noite.
- Talvez não gostasse de ver o pai submetido a experiências de resultado dúbio. - A falta de objectividade deste comentário foi acentuada pelas palavras subsequentes.- Pareceu-me um pouco rebelde, por assim dizer.
- Os rebeldes, para usar a sua terminologia, não se manifestam assassinando pessoas. Só em casos extremos.
- O rapaz pertence a um desses grupos defensores dos direitos dos amimais, e nunca se sabe o que eles poderão fazer, no caso de serem pressionados.
Para Sloan, haveria sempre um mistério que o intrigava - o motivo da desumanidade do homem para os seus semelhantes. E, na sua opinião, a crueldade para com os animais figurava na mesma categoria de completa e total inexplicabilidade. Na sua posição como homem e polícia, considerava ambas indesculpáveis.
- A autópsia a Abel Granger revelou apenas paragem cardíaca - contrapôs, consciente de que o momento não era oportuno para discutir o assunto com o detective.
Este último, no entanto, fungou com desdém.
- O patologista que está a substituir o Dr. Dabbe não seria capaz de descobrir uma agulha num agulheiro.
- Isso é um facto ou uma opinião?
- Não sabia, inspector? É quem utilizam quando os pacientes de Dam, o Perigoso, morrem na mesa de operações.
Semelhante cinismo sobre a profissão médica numa pessoa tão jovem não parecia lícito, e Sloan argumentou:
- Então, e o gás aturdidor?
- Toda a gente o utiliza, hoje em dia - replicou Crosby, com desprendimento.
- Excepto nós - salientou o inspector, quase acalorado. Os sprays paralisantes tinham efeito muito mais rápido do que o presidente da Câmara no topo dos degraus de acesso ao município a ler a lei contra os distúrbios em público à multidão de excitados. Assim como mais eficiente.
- Não se recorda? - volveu o detective. - A Gilroy queixou-se do roubo de alguns recipientes de gás aturdidor, após um dos assaltos de que foi vítima. Era de uma variedade veterinária e servia para incapacitar os macacos, a fim de não se evadirem.
- E os activistas dos direitos dos animais alegaram que pretendiam apoderar-se do gás e não dos macacos.
- Sim, recordo-me bem - admitiu Sloan, secamente. - Tentaram- mover um processo à Gilroy por agressão comum, e não o conseguiram por uma unha negra.
- Nunca se sabe de que lado sopra o vento, com os magistrados.
- Pois não. - Reflectiu que a sua fé decrescente nos juizes constituía apenas um sinal de que na polícia havia demasiado tempo. - Outra coisa: tem mais algum candidato a ser interrogado, depois de Christopher Granger?
- Há Darren Clements e o seu bando - anunciou Crosby, com prontidão. - Nunca vi um' homem tão persistente. Estou convencido de que procurava alguma coisa em especiial, na Gilroy.
- Problemas? - sugeriu o inspector.
- Essa história do Cardigan. que vem constantemente à baila... - O detective interrompeu-se, com uma expressão pensativa. - Talvez ele e os seus comparsas também estejam envolvidos.
- Tanto quanto sei, todas as experiências efectuadas com o Protocolo Cardigan só incluíram seres humanos.
Crosby afastou o argumento com um gesto largo.
- Aquele pretensioso homem de negócios cuja mãe morreu ontem...
- Gordon Galloway.
- ...tinha umas palavras curiosas escritas nas suas paredes.
- Palavras de ordem contra as pesquisas com animais.
- Exacto. Conversei com aquela médica jovem de penteado esquisito...
- Dilys Chomel.
- Recebeu um telefonema sobre Muriel Galloway ao alcance dos ouvidos de Darren Clements. Estava a aplicar-lhe "gatos" na sala das Urgências, quando a chamaram da enfermaria, porque Mrs. Galloway tinha morrido.
Sloan olhou através da janela durante um longo momento. Havia um fio que atravessava toda a tapeçaria das actividades em torno da morte do Dr. Meggie e parecia, como quer que se encarasse, conduzir a atenção da Polícia ao Protocolo Cardigan... ou seria à Gilroy's Pharmaceuticals?
- E não esqueça que alguém nos chamou a atenção para o facto de Muriel Galloway participar nas experiências.
Ao mesmo tempo, perguntava-se que papel desempenhava ela em todo o cenário, apesar de a sua morte ter sido aquilo a que o Dr. Dabbe ficara encantado em' considerar natural. Ainda não fazia a menor ideia, mas havia d'e o descobrir.
- Foi também uma mulher que ligou ao P. B. X. do Hospital Kinnisport para comunicar que o Dr. Meggie não compareceria ao serviço. A telefonista não tem a menor dúvida a esse respeito, apesar da simpatia que, segundo parece, ele lhe merecia.
- Há médicas que são alvo de semelhantes inclinações, mas não me pergunte porquê. Nunca se verifica esse tipo de reacção para com os polícias. Ora bem: tem mais alguém em mente para interrogar?
- A filha do médico - declarou Crosby, sem hesitar. - Qualquer pessoa podia ter voltado àquela casa em Kinnisport, procedente da Willow End Farm, recolhido as garrafas de leite ou qualquer outra encomenda deixada à porta e chegado ao campo de golfe como habitualmente, antes das oito.
- E onde arranjaria ela o spray de gás aturdidor?
- É um artigo de autodefesa comum. Pode comprar-se em qualquer lugar do Continente. Ou, atendendo a que o pai era médico, talvez houvesse clorofórmio em casa. Suponho que não me vai perguntar o motivo?
- Pois não. - Sloan fez uma pausa. - Mais alguém para procurarmos?
- A Viúva Alegre - declarou o detective, sem hesitar.
- Por que motivo?
- Peço desculpa, mas esquecia-me de lhe dizer. Visitei a firma Puckle and Nunoery, como me indicou.
- Refere-se à de advogados do extinto?
- Exacto. Segundo Puckle, com quem falei, o Dr. Meggie redigira um testamento, para a eventualidade de voltar a casar.
- Ah...
- Mas não o assinou. - Crosby respirou fundo. - Ela podia não estar ao corrente desse pormenor.
- É verdade.
- E talvez tivesse combinado encontrar-se com ele na Willow End Farm.
- Como explica a mensagem encontrada junto da cama?
- Uma tentativa para nos despistar. Os encontros românticos têm de ser misteriosos. E esse endereço iludiria a filha.
- E Mrs. Glawari - ponderou Sloan, pensando em voz alta num rumo diferente - podia estar ao corrente de que Paul Meggie tinha um paciente moribundo na Willow End Farm, porque ele lho revelara.
- Podia dar-se o caso de se encontrarem sempre aí. É um local romântico, Junto de um curso de água, e tudo isso.
No entanto, não havia nada de romântico na cena que ele contemplara junto da ribeira da herdade. Absolutamente nada. Apenas um homem de meia idade morto, um carro em perfeito estado e o trajo dispendioso e elegante impróprios de um desenlace prematuro. Não obstante, via-se forçado a reconhecer que a pequena clareira no meio dos salgueiros constituiria um lugar excelente para um encontro secreto.
- E o motivo? - perguntou, mais uma vez.
- O Dr. Meggie podia ter dito a Mrs. Glawari que afinal não tencionava desposá-la, porque não queria deixar a filha singrar na vida pelos seus próprios meios.
- É uma possibilidade, sobretudo se nos lembrarmos de que não existe fúria tão implacável como a de uma mulher despeitada.
- Isso não sei, mas não estou a ver nenhum príncipe encantado interessado na nossa Bunty. - Crosby não se conteve de franzir levemente o nariz. - Com aquelas pernas...
- Talvez tenha razão.
- E creio que Mrs. Glawari não gostaria de se inteirar de que a filha figurava em primeiro lugar nas preocupações do Dr. Meggie.
- Decerto que não. - Sloam levantou-se para sair. - Isso confere um significado novo à expressão femme fatale, hem? Bem, vamos.
O que pretendemos é conforto, tranquilidade, alguma coisa a que nos agarrarmos, nem que seja uma palha. E os médicos podem proporcioná-lo.
Embora o sábado não fosse, habitualmente, um dia de trabalho na Gilroy's Pharmaceuticals- excepto para aqueles que cuidavam dos animais-, naquela manhã George Gledhill e Mike Itchen encontravam-se na firma de Staple St. James. Fora assegurado ao Inspector Sloan que não havia o menor inconveniente em o receber, com a sua versão dos números de referência do Protocolo Cardigan.
- Obteve os valores registados nos relatórios encontrados no carro do Dr. Meggie? - perguntou Sloan a Crosby, quando se aproximavam da velha mansão.
- Fotocópias, como determinou, inspector. Os nossos técnicos continuam entretidos a examinar os originais.
Sloan emitiu um grunhido. Ainda não tinha bem a certeza, na actual fase das diligências, de como conseguiriam descobrir se os números haviam, ou não, sido manipulados. Ou, em caso afirmativo, por quem. No entanto existiam especialistas em quantidade suficiente na Corporação para desvendar qualquer mistério.
- Só contêm as impressões digitais de Paul Meggie - acrescentou o detective.
- Bem, antes isso que nada, suponho.
- Ah, e uma da sua secretária, na capa de plástico.
- Enrugou a fronte num esforço de memorização. - Os entendidos dizem que não há indícios de os números terem sido adulterados, mas vão proceder a novo exame para se certificarem.
- Muriel Galloway e Abel Granger figoram na lista?
- Identificados com um número junto do nome, além de algumas anotações sobre o andamento das experiências.
- Pouco animador, aparentemente.
- Só não há qualquer alusão quanto à composição do que lhes administravam.
- Talvez venhamos a descobri-lo - aventurou S(oan, sem grande convicção.
Os dois químicos aguardavam-nos no átrio da entrada principal.
- Achei conveniente conversarmos na sala de reuniões - disse Gledhill, enquanto avançavam no largo corredor de solo de mármore. - Ninguém a utiliza, hoje.
Por fim, entraram num aposento espaçoso construído no estilo renascentista anglo-francês. Havia colunas dóricas no lado oposto à entrada e, numa das paredes laterais, um imponente quadro de registo ricamente emoldurado.
- Era a sala de bilhares - explicou Gledihill.- Destinava-se a manter os jovens cavalheiros da casa afastados das criadas.
- E das donzelas - acrescentou Itchen.
- Compreende-se - assentiu Sloan, com ar austero.- Ora bem. Temos aqui um apanhado das notas do Dr. Meggie e gostaríamos de saber se os dois pacientes que faleceram ontem e participavam no Protocolo Cardigam receberam a substância do teste ou um placebo (1).
George Gledhiil mostrava-se preparado para prestar os devidos esclarecimentos, mas foi Mike Itchen quem desenrolou os registos do computador.
- Se me indicarem os números da lista de Meggie... Trata-se da sua primeira série, como devem calcular.
Crosby fez deslizar o dedo ao longo da folha de papel e principiou:
- Galloway, Muriel, 4203.
Itchen respondeu Placebo, e Sloan perguntou-se então a razão pela qual a Polícia recebera um telefonema anónimo a informar que ela figurava no programa da droga e alguém considerara conveniente escrever grafitos contra as pesquisas na porta da garagem do seu filho.
- E Granger, Paul, 3940 - continuou Crosby.
- Esse recebia a substância - informou Itchen. - Mas morreram ambos - observou Sloan, secamente.
(1) Substância administrada em vez do medicamento real, sen o conhecimento do paciente sobre a sua verdadeira natureza. (N. do T)
- De qualquer modo, estavam condenados - retorquiu prontamente Gledhill.
- No fundo, não tinham nada a perder - apoiou Itchen.
- Paul Meggie insistia sempre em escolher os candidatos de qualquer pesquisa que tinha de efectuar - esclareceu o químico-chefe. - Foi isso que o tornou o especialista mais indicado para os actuais testes.
- Consciencioso e discriminativo - acudiu Itchen, como um coro grego.
- Por conseguinte, o Protocolo Cardigan não beneficiou minimamente Abel Granger - resumiu Sloan. Começava a pensar que o Dr. Meggie também não lucrara nada com ele, mas tratava-se de uma situação diferente. - Posto isto - acrescentou, como quem demonstrava um teorema-, talvez Muriel Galloway não tivesse perdido nada em não participar.
- O Dr. Meggie inclui... incluiu alguma coisa a esse respeito, nas suas notas? - quis saber Gledhill.
O inspector espreitou por cima do ombro de Crosby.
- Apenas que ambos sofreram uma perda de peso imediata e considerável. Nada mais.
O químico-chefe inclinou a cabeça, com uma expressão de compreensão.
- Isso ajudaria, no caso de paragem cardíaca.
- Menos trabalho para o coração - tentou Itchen ironizar.
- Como deve compreender, inspector, preferiríamos um feedback mais positivo do Dr. Meggie. - Gledhill reclinou-se na cadeira. - Aqui, na Gilroy, figuramos à testa da investigação médica.
- Estou ciente disso.
Sloan reflectiu que, por sua vez, à testa das diligências para descobrir um assassino, não descortinava, por enquanto, um futuro muito sorridente.
- Tudo seria um mar de rosas, se nos concentrássemos apenas em medicamentos da fase final - referiu Gledhill.
- Drogas para os moribundos? - perguntou Crosby, regressado subitamente à vida.
- Não, nada disso. Esses medicamentos foram devidamente testados e a sua eficácia comprovada.
- As vezes, chamam-lhes drogas "eu também" - contribuiu Itchen.
- Aproveitam as pesquisas de outrem, quando a patente expira - explicou o químico-chefe.
- Mas na Gilroy não se faz isso? - aventurou Sloan, registando o facto de que a firma desejava ser considerada pura como a neve recén-caída.
- De modo algum - confirmou Gledhill. - Nunca.
- Aqui, só nos dedicamos à química pura - declarou Itchen.
- E à investigação original. Não entramos em competição genérica.
- Tencionam revelar-me finalmente os nomes dos ingredientes activos, ou temos nós de proceder às análises?
- inquiriu o inspector.
- Nós informamo-los - assentiu Gledhill, sem hesitar.
- Não há qualquer problema, nesse aspecto.
- Trata-se fundamentalmente de um alcalóide de uma planta argentina da família das rutáceas denominada fágara, que combinamos com um dos inibidores de enzimas conversoras da angiotensão - recitou Itchen.
Se esperava impressionar os dois polícias com termos técnicos, equivocara-se. Crosby mostrava-se enfastiado, e não era a primeira vez que Sloan se via confrontado com semelhante estratagema por indivíduos ainda mais atilados que aqueles interlocutores.
- Estamos esperançados em que facilite toda a fibrilação atrial - acrescentou Gledhill. - Mas reconhecemos que ainda é cedo...
A mãe do inspector, assídua frequentadora da igreja nos seus tempos, insistia sempre em que todas as coisas pareciam puras aos puros. No entanto, ele duvidava que a Gilroy's Pharmaceutical - por puros que fossem os seus cientistas - figurasse nessa categoria. Não foi, porém, isso que o impediu de deixar nas mãos de Gledhill e Itchen a cópia dos resultados das experiências do Dr. Meggie, quando solicitaram que o fizesse.
Foi o odor do medo, captado pelas suas apuradas narinas de detective.
O que era diferente para Mrs. Hannah Glawarí não consistia propriamente no sábado. Era a manhã. A sua toilette constituía uma operação prolongada, e tornava-se óbvio que a chegada dos dois polícias a interrompera. Com efeito, apresentava um aspecto vagamente desmazelado, quando os introduziu na sala de estar.
- Receio que ainda seja um pouco cedo para mim - observou, com um leve sorriso de desculpa.
- Lamentamos o incómodo, minha senhora - replicou Sloan-, mas gostávamos de esclarecer um ou dois pontos.
Embora ela não fosse, claramente, ingénua para acreditar naquelas palavras, enveredou pela atitude da delicadeza.
- Perfeitamente - murmurou. - Queiram sentar-se.
- Como sabe - começou o inspector-, analisamos a morte do Dr. Paul Meggie.
Não sabia explicar a si mesmo a razão pela qual "analisar" parecia um termo mais anódino do que "investigar", mas assim sucedia.
- Alegra-me sabê-lo - declarou Mrs. Glawari, com uma certa ênfase que não passou despercebida a Sloan. - Que pretende saber, concretamente?
- Se tem carro...
- Um pequeno bate-latas.
- E se conhece o local onde foi encontrado o corpo do Dr. Meggie.
Ela abanou a cabeça com veemência.
- Eu sei que as pessoas costumam frequentar os lugares com associações agradáveis, quando pretendem pôr termo à vida - proferiu, com alguma dignidade. - Mas quanto mais penso nisso menos apropriado me parece ao temperamento do Paul.
- E também gostaríamos de ter uma gravação da sua voz, Mrs. Glawari.
- O tom de voz corrente? - perguntou ela, um pouco hesitante.
- Precisamente. Ligue o gravador, Crosby.
Dilys Chomel passou a manhã de sábado numa agonia de indecisão. A paciente do Dr. Byville, agora sem o baço, afundava-se rapidamente, o que resultava assustador de contemplar. O dilema da médica consistia em decidir se devia, ou não, telefonar a Byville, para o elucidar da situação.
Ele de certo reagiria de forma tempestuosa e não deixaria de a verberar. Infelizmente, o médico estava disponível e de serviço, aquele fim-de-semana, o que significava que ela não podia procurar o mais abordável Dr. Beaumont, o que era deplorável. Constituiria uma infracção à ética médica, muito mais perigosa do que a morte de qualquer número de pacientes em situação crítica.
A enfermeira-chefe Pocock também não lhe podia valer, pois pertencia à velha escola que considerava todos os jovens médicos ignorantes e insensatos. Quanto a ela, se o Dr. Byville dissera que a paciente morreria, nada poderia alterar semelhante diagnóstico. Até explicou às suas enfermeiras que não havia nada de censurável no facto de se lhes deparar um doente morto, "desde que não esteja frio".
Por conseguinte, Dilys Chomel não encontraria ajuda ou conforto nessa fonte.
Ao invés, telefonaria ao Dr. Friar em Kinnisport para partilhar os seus temores com ele, que decerto compreenderia a sua posição. Com efeito, também tivera um moribundo na sua enfermaria. Um jovem, ainda por cima.
- Vê um, faz um, ensina um - murmurou gravemente, enquanto se dirigia ao telefone mais próximo.
Mas a telefonista do Hospital St. Ninian não conseguiu localizar o Dr. Martin Friar e, quando a desalentada médica regressou à sua enfermaria, a paciente sem baço expirara.
O detective Crosby também não obtinha progressos nas suas diligências. Sloan mandara-o interrogar Darren Clements e os seus companheiros defensores dos direitos dos animais, e encontrara o grupo num obscuro café perto da estação de caminho-de-ferro de Berebury, em torno de uma mesa ao fundo da sala, com os semblantes juvenis dominados por expressões graves.
- Olha o nosso amigo pés chatos! - exclamou Clements, apontando com a mão envolta em ligaduras.
- Mais respeito pelas autoridades - advertiu o detective.
- Suponho que não há ainda nenhuma lei que nos proíba de frequentar um' café? - observou um jovem de óculos com um bloco de apontamentos na sua frente.
"Sem dúvida o espertalhão do bando", reflectiu Crosby.
- Não, mas há uma contra a conspiração para infringir a Lei, ou não era isso que vocês tinham em vista?
- Então, e as pessoas que assassinam animais? - guinchou uma rapariga de calça de treino encimada por algo que parecia um frou-frou. - Essas não a infringem?
- Provocar sofrimento desnecessário é de facto uma infracção - admitiu Crosby. - Aos animais, bem entendido - apressou-se a acrescentar, estranhando intimamente que o mesmo princípio não se aplicasse aos seres humanos.
- Vá dizer isso às raposas, antes de ensanguentarem alguém com o seu próprio sangue - acudiu outra jovem.
- E às ovelhas levadas para a imolação, naqueles terríveis transportes - volveu a outra, cujo frou-frou tremia de indignação.
- Para não falar dos macacos da Gilroy - salientou Clements. - Gostava que o mantivessem em jaulas exíguas, como eles?
Não sem um esforço notável, o detective absteve-se de explicar com exactidão quem gostaria de ver encerrado em jaulas. O rapaz de óculos e bloco de apontamentos tinha todo o aspecto de um advogado de feira e dirigente de massas, pelo que resolveu não se arriscar a ventilar a sua opinião.
- Talvez lhe pareça que as pessoas podem fazer o que lhes apetece, desde que não assustem os cavalos - disse o espertalhão.- É uma citação, para o caso de não saber.
Crosby não ignorava que se tratava exactamente dos sentimentos da Divisão da Polícia Montada, mas preferiu não entrar em esclarecimentos daquela natureza.
- Não esqueçamos os porcos engordados em herdades para a matança - observou outro membro do grupo, que usava um brinco de ouro.
- Os porcos são todos iguais - anunciou o rapaz de óculos.- Também é uma citação - apressou-se a acrescentar, por não gostar da expressão que acabava de assomar ao rosto de Crosby. - Foi George Orwell que o disse e não eu.
- Isso não interessa agora - declarou o detective, magnânimo. - O que pretendo saber é se Christopher Granger, de Larking, faz parte deste grupo.
- Porquê?
- Não é de vossa conta, Faz ou não?
- Não somos obrigados a dizê-lo - retorquiu o jovem de óculos.
- Obstruir a acção da justiça na execução do seu dever é um delito.
- Fez, durante uns tempos - admitiu Clements.
- Depois, acagaçou-se- explicou a jovem do frou-frou, com um trejeito de desdém.
- Nesse caso, já não os acompanha? - insistiu Crosby, puxando da agenda.
- Deixou de aparecer, quando as coisas começaram a aquecer - informou uma das outras jovens.
- Mais ou menos quando vocês começaram a Invadir as instalações da Gilroy?
- Não, quando lhe apeteceu. Vivemos num país livre, ou não sabia?
- Excepto no que se refere aos animais! - bradou outra.
- Talvez ignorem que costumavam levar os animais a julgamento, quando matavam alguém ou roubavam - redarguiu o detective.
- Não acredito! -vociferou Clements, indignado.- Está a entrar connosco.
O jovem de óculos inclinou a cabeça com alguma relutância.
- Ele tem razão. Celebravam autênticos julgamentos, com um magistrado e jurados. Incrível, nem?
- Bárbaros! - grunhiu uma das raparigas.
- Repugnante - corroborou a outra.
- Que faziam, quando os consideravam culpados? - quis saber Clements.
- Enforcavam-nos - disse Crosby, que complementou a informação sem pestanejar, enquanto se levantava: - E depois comiam-nos.
Shirley Partrídge tomara o habitual café do meio da manhã e até pudera trocar algumas palavras com o artista que pintava as paredes do átrio do Hospital St. Ninian, o qual se mostrava excepcionalmente comunicativo e atencioso, como não deixaria de revelar à mãe, mais tarde.
Ela dizia-lhe que as cores da parte inferior do mural lhe pareciam simplesmente "divinais", embora os ratos não figurassem entre os animais da sua predilecção, quando soou o sinal de alarme.
Acto contínuo, voltou a concentrar-se no P. B. X., enquanto se ouviam passos apressados nos pisos superiores.
- Alarme! Enfermaria Lorkyn!-Activou todos os mecanismos de emergência. - Paragem cardíaca'.
Automaticamente, emitiu chamadas para os Drs. Byville e Beaumont, para a eventualidade de ainda estarem no hospital. E ligou o bliper do assistente-chefe, pois sabia que o Dr. Friar se encontrava presente e de serviço.
Vendo que não obtinha resposta, repetiu a chamada.
Como o resultado dos seus esforços não se alterasse, insistiu mais algumas vezes.
Minutos mais tarde, recebia um telefonema angustiado da Enfermaria Lorkyn.
- Não pode parar com o bliper do Dr. Friar, por amor de Deus? Está a enlouquecer-nos.
- Muito bem, se acham...-começou ela, friamente.
- É ele que está com a paragem cardíaca!'-balbuciou uma enfermeira. - Receamos que tenha morrido!
Muitas pessoas norteiam-se pela velha regra de que, se não podes ter em ti aquilo em que acreditas, deves acreditar no que tens.
- Morto? - bradou o Superintendente Leeyes, revoltado. - Não pode ser!
- Paragem cardíaca - informou Sloan, sucintamente. Não partilhava das inibições da Drª Dilys Chomel sobre incomodar os altos e poderosos Quando não estavam de serviço e apressara-se a comunicar ao seu superior hierárquico a infausta nova acerca do Dr. Martin Friar, fosse ou não sábado de manhã. A decisão, contudo, de modo algum contribuiu para melhorar a sua popularidade.
- E você está mais próximo de efectuar uma prisão terminante?
- Bem, limpámos algum mato rasteiro - explicou obliquamente, enveredando pelo vernáculo vegetal. - Creio que a Viúva Alegre não tem culpas no cartório... pelo menos, no caso que nos interessa... porque só teria a lucrar se Paul Meggie vivesse para assinar o testamento que a firma Puckles, Muckle and Nunnery redigia, na eventualidade de um casamento.
- Partindo do princípio de que eIa Ignorava que não tinha sido assinado-salientou o superintendente, sempre pronto a encontrar uma objecção.
- Quanto à filha - persistiu o inspector-, só teria a perder com a assinatura do documento. - Acrescentou a sua própria objecção, antes que Leeyes o fizesse: - Partindo do princípio de que ela ignorava a realidade.
- Não sei ao certo o que se passa, mas não me agrada.
- Pode tratar-se de causas naturais - declarou, também sem saber ao certo o que se passava e convencido de que tão-pouco lhe agradaria-, embora ninguém se pronunciasse, pelo menos até agora, no sentido de que Martin Friar padecesse de alguma coisa.
- E ainda não sabemos se o Protocolo Cardigan teve alguma relação com as duas mortes de ontem.
- Ou com a de Muriel Galloway, porque, segundo os registos da Gilroy, não estava a tomar a droga do teste. Quanto a Abel Granger...
- Sim?
- O Dr. Dabbe recolheu alguns espécimes para uma análise suplementar, pelo que ainda não sabemos nada sobre isso.
- Onde pára o competente patologista desta região?
Sloan consultou o relógio antes de responder:
- Mais ou menos ao largo do Cabo Cranberry.
- Onde?!
- Rumo a Cunlife Gap,
- Está-me a dizer - balbuciou o superintendente, quase apoplético-, que se encontra-a bordo de um barco?
- Sim, em direcção ao mar alto, numa importante regata.
- Não tem radiotelefone?
Referia-se a algo de uma tecnologia obsoleta, porque se opunha, por princípio, às novas técnicas sofisticadas.
- Tentámos entrar em contacto com ele através desse meio, mas tudo indica que não se fez acompanhar de qualquer dispositivo do género.
- Então, incumbiremos um helicóptero de o localizar. É altura de justificar o dinheiro que o Estado lhe paga.
- Duvido seriamente qye o Dr. Dabbe considere a possibilidade de abandonar o barco.
- Bem, seja o que for que suceder, não permita que o imbecil do seu substituto toque sequer num dedo daquele cadáver, até ao regresso do patologista efectivo.
- Com certeza que não - assentiu Sloan, embora tivesse dificuldade em descortinar como conseguiria cumprir a ordem.
- Não se trata de morte devida a causas naturais, até ao momento que Dabbe o proclamar. Entendido?
- Sem dúvida. - E referiu cautelosamente: - O Administrador do hospital onde o Dr. Friar trabalhava revelou-me que a morte por paragem cardíaca não é invulgar nos tempos actuais, resultante do excesso de trabalho e pressão intensa a que os médicos assistentes estão sujeitos.
O superintendente, cuja familiarização com a natureza dos administradores hospitalares não era elevada, limitou-se a emitir um grunhido.
- Estava incumbido de... enfim... olhar pela loja, por assim dizer, em virtude da morte repentina do Dr. Meggie, além de executar as suas tarefas usuais pelo Dr. Byville e parte das do Dr. Beaumont.
- Morreu de repente?
- Telefonou ao seu superior, o Dr. Byville, para ir ver um paciente moribundo, esta manhã, acompanhou-o numa breve visita à enfermaria e adoeceu pouco depois.
- Estão a morrer demasiadas pessoas, para o meu gosto - comentou Leeyes.
- E - prosseguiu Sloan, implacávelmente-, tanto quanto conseguimos apurar, algumas morreriam, em qualquer dos casos.
O superintendente opinou que esse pormenor não lhes dizia directamente respeito e avançou com a sua apoteose sobre o assunto:
- O que interessa é determinar se morreram fora do prazo previsto. Ou se foi porque alguém lhes acelerou a marcha. Faz parte da lei, Sloan. Devia sabê-lo perfeitamente.
- Decerto, senhor. - O inspector não duvidava de que seria aquele o ponto de vista legal. Era a mais pragmática posição médica que o preocupava. Acabara por duvidar de que coincidissem. - O problema é que só a morte do Dr. Meggie nos merece aquilo a que podemos chamar reservas válidas, até agora.
- Reservas válidas? -explodiu o outro.- As pessoas morrem como moscas à nossa volta e você apoquenta-se com reservas válidas? O cenário lembra um matadouro, com a diferença de que não há derramamento de sangue. Aconselho-o a acelerar as investigações, para obter resultados positivos.
Os sábados não se apresentavam tão diferentes na herdade como no hospital ou na Central da Polícia. Eram mais as estações do ano que alteravam a rotina do que quaisquer divisões arbitrárias provocadas pelo homem. Christopher e Simon Granger tinham atribuições diferentes, a que se dedicavam durante a manhã, enquanto a mãe e a filha casada transferiam parcialmente os pensamentos acerca do homem morto para o respectivo funeral.
Não mencionada, mas suspensa sobre a segunda geração, havia uma miasma de incerteza relativa ao testamento do falecido. Como lhe pareceria inconveniente discutir o assunto antes de sepultado junto dos antepassados, no cemitério de Larking, passavam o tempo imersos num hiato neutro, cada um entregue às suas próprias cogitações.
A idosa Mrs. Granger pensava sobretudo - e sem afecto - na esposa de Simon, pois sabia que teria de lhe entregar o lar. Achava-se, no entanto, suficientemente elucidada sobre o papel da esposa do agricultor para saber que era demasiado pesado para a sua mãe, pelo que fixara as atenções num pequeno bangaló com aquecimento central perto da igreja de Larking, onde havia espaço suficiente para Christopher, se quisesse acompanhá-la.
Simon Granger não tivera a sensatez necessária para afastar a esposa do campo de operações, até ver. Havia muito tempo para ocupar o lugar que lhe competia, quando a mãe divulgasse as suas intenções. Entretanto, enquanto inspeccionava o feno, especulava intimamente sobre as disposições testamentárias do pai. Quaisquer que elas fossem, achava que a irmã seria a mais beneficiada. Receberia a sua parte e regressaria a casa, para se reunir ao marido e filhos, sem qualquer preocupação.
Christopher, por seu turno, foi inspeccionar os bois, ao mesmo tempo que ponderava se Simon desejaria adquirir a sua parte e estudava a ideia do que faria, se tal acontecesse. Sabia agora, com uma nova convicção inesperada, que nunca quereria comprar a do irmão e ficar vinculado a dívidas num futuro cujo termo não descortinava.
Na realidade, preferiria vender a sua a imergir numa situação de semelhante natureza.
Com algum capital, poderia sustentar-se um ou dois anos, enquanto concretizaria aquilo que sempre ambicionara: frequentar um colégio de arte e pintura.
Perguntou-se se Simon sugeriria, ao invés, o pagamento da sua parte do rendimento da herdade. Seria uma proposta a considerar, melhor para ele, Simon, do que recorrer ao banco - na eventualidade de o pai haver providenciado nesse sentido, claro. Restavam depois a mãe e a irmã. O progenitor fora um homem duro, mas justo. Talvez não houvesse necessidade de se preocupar nesse sentido, pois decerto procedera como se lhe afigurara melhor para a família e a herdade.
Nesse dia, decidiu dirigir-se à cerca dos bois pelo caminho mais elevado e percorreu a colina sobranceira ao vale da ribeira. Deteve-se no topo e contemplou a pequena área de pasto junto dos salgueiros, onde, no dia anterior, avistara o carro. Agora, já não se encontrava lá, porque, ao anoitecer, a Polícia o levara.
Restava apenas o pequeno espaço de relva e marcas de pneus a indicar onde a viatura estivera e morrera um homem. Descortinou uma sugestão de movimento pelo canto do olho e avistou um carro pequeno - parecia um brinquedo, àquela distância-, que percorria o caminho de acesso à herdade.
Apesar de se encontrar longe, pôde certificar-se de que era o veículo castanho em que o reitor se transportava. Christopher Granger conservou-se hesitante por uns momentos, até que começou a encaminhar-se para casa.
Havia uma coisa que precisava de comunicar à Polícia.
Até a lendária calma profissional do Dr. Byville parecia ter ficado abalada pela morte repentina do seu assistente.
- Há menos de duas horas que estive a falar com ele - declarou a Sloan e Crosby, depois de chamado do consultório da clínica privada para comparecer à presença dos dois polícias no Hospital Kinnisport. - Confesso que ainda não me habituei à ideia.
- Suponho, pois, que se achava então no estado normal? - aventurou o inspector.
Encontravam-se os três no gabinete da enfermeira-chefe da Enfermaria Lorkyn, onde o Dr. Martin Friar expirara.
O médico deixou transcorrer um momento, antes de responder:
- Sim: e não. Falou-me vagamente de recear que tivesse contraído uma infecção, embora não pudesse abandonar o serviço, dadas as circunstâncias.
- Ah...
- Disse que sentia uma espécie de contracção no peito, mas estava em condições de continuar a trabalhar até ao final do turno. - Nova pausa. - Referiu que tinha tomado uma aspirina, ou qualquer outro comprimido de efeito equivalente, pois não queria recorrer a antibióticos até ter a certeza...
- De que a gravidade do seu estado o justificava?
- aventou Sloan.
- Exacto. Recei que estivesse a chocar uma trombose coronária. - Byville começou a rabiscar num bloco de apontamentos em cima da secretária da enfermeira-chefe.
- Reconheço que, na altura, não me preocupei muito, mas agora... - Meneou a cabeça. - No fundo, não me surpreende. A morte do Paul Meggie decerto o tinha impressionado fortemente...
- Como é fácil de compreender - concedeu Sloan.
- E devo reconhecer que a morte desta manhã, na enfermaria, não foi agradável
- Esse paciente também participava no Protocolo Cardigan?
- Não, foi um caso de baço e não de coração. Uma situação totalmente diferente e a quilómetros de distância do sistema cardíaco, em termos anatómicos.
- Com certeza.
No fundo, ele não abarcava exactamente, nem pouco mais ou menos, a situação. A anatomia ensinada aos polícias - que a prática tornava mais fácil de assimilar - era de uma natureza assaz básica. Em mais do que um sentido.
- Temos de aguardar o post mortem para nos certificarmos - continuou Byville, com uma expressão apreensiva. - Pode ter sofrido um aneurisma aórtico, por exemplo, ou uma daquelas condições do tipo bomba de relógio, que têm o condão de acontecer sem ninguém suspeitar da sua existência. - Enrugou a fronte. - Começam a falar na literatura da Síndrome da Morte Súbita dos Adultos.- Encolheu os ombros. - Não adianta estar com conjecturas, inspector.
- Pois não - concordou Sloan.
Naquele momento, a porta abriu-se para dar passagem à enfermeira-chefe, e ele apressou-se a pedir-lhe desculpa pela utilização do seu gabinete.
Não se tratava da profissional de meia idade e ar austero típico. Pelo contrário, era jovem e não estava pouco alarmada. Quando a viu entrar e deter-se no meio da sala, como se não soubesse o que fazer, o inspector não conseguiu determinar a qual dos dois tencionava dirigir-se e, na realidade, ela evitou os olhos de ambos e cravou os seus no chão, quando falou:
- Trata-se dos frascos do Protocolo Cardigan...
- Que têm? - perguntou o Dr. Byville, em tom incisivo.
- Desapareceram três do armário de medicamentos da enfermaria - anunciou a enfermeira-chefe, quase ofegante.
- Acabo de o verificar.
- O pateta! - proferiu o médico, em tom compassivo.
- O pobre pateta!
Tudo o que se pode dizer da popularidade dos médicos é que, até existir uma alternativa praticável à confiança cega neles, a verdade a seu respeito é tão terrível que não nos atrevemos a encará-la.
- E agora, para onde? - perguntou o detective Crosby, enquanto os dois polícias desciam a escada de pedra do velho hospital de Kinnisport.
- Para o carro-indicou Sloan, em voz tensa. - Preciso de me sentar e reflectir.
- Muito bem. - Crosby deteve-se no átrio, por força do hábito, a fim de contemplar o mural. Fixou os olhos no que estava então a ser pintado e indagou: - Isso é um vaso?
- Trata-se daquilo a que chamam alambique - informou Adrian Gomm do alto do escadote. - É o tipo de recipiente em que tentavam vender o segredo da vida eterna, nos tempos de Chaucer.
- Parece que ainda não o encontraram - comentou Sloan. - Pelo menos, neste hospital.
- Um pormenor insignificante como esse não os impedia de tentar vendê-lo - replicou o artista, jovialmente. - Vocês devem sabê-lo bem. As pessoas continuam a ser crédulas como dantes.
- Isso é diferente...
Crosby parecia disposto a argumentar, enquanto o inspector o puxava pela manga.
- O carro estacionado à entrada é o vosso? - volveu Adrian Gomm, espreitando por uma janela elevada. - Há uns miúdos em volta, como se estivessem interessados em experimentar a sua capacidade de resistência.
O incentivo foi mais eficaz que as tentativas de Sloan, o qual não tardou a encontrar-se sentado na relativa privacidade da viatura da Polícia. O superintendente teria de ser informado, naturalmente, mas não antes de ele tentar esclarecer um ou dois pontos.
Instalara-se no banco da frente e estendeu as pernas até onde lhe foi possível.
- Há qualquer coisa algures que nos escapa, Crosby. As peças do puzzle não se ajustam, por muito que lhes procuremos o espaço apropriado. - Hesitou, enquanto reflectia em voz alta.- Há quase elementos em excesso que não se adaptam.
- Uma bola de cristal podia ser-nos útil - sugeriu o detective.
- E uma das coisas que não entendo é o papel desempenhado pela mulher do caso.
- Cherchez la femme - aventurou, vagamente.
- Todos os telefonemas que não conseguimos identificar foram efectuados por uma mulher, recorda-se?
- Com a breca! Bumty Meggie é a única que satisfaz os requisitos de meio, motivo e oportunidade.
- Por que se indignaria acerca dos direitos dos animais e inscreveria grafitos na porta da garagem de Galloway?
- Uma diversão?
- Creio que seria útil dispor de uma gravação das vozes de todas, incluindo a de Shirley Partridge, a qual nos telefonou muito rapidamente, quando o Dr. Friar sofreu o colapso. Em circunstâncias correntes, teríamos tardado séculos a inteirar-nos... Ah, e as das raparigas pertencentes ao grupo de Darren Clements.
- Essas não falam - disse o detective, com veemência.
- Guincham.
- Assim como da Drº Dilys Chomel - continuou Sloan.
- A moça do P. B. X. disse que contactou com Martin Friar mais de uma vez durante o dia, pois recordava-se de ter feito a ligação...
Crosby alterou a posição do ombro por baixo do canto de segurança.
- Falei com a médica a esse respeito e afirmou que se limitaram a discutir o paciente sem baço, falecido na Enfermaria Lorkyn, esta manhã. Parece que ela o conhecia, porque o homem tinha sido internado no Hospital Berebury e depois transferido para o St. Ninian, pouco antes de morrer.
- Mas não esqueça que a Drª Chomel também cuidava dos pacientes do Dr. Meggie que participavam no Protocolo Cardigan.
- Talvez isso seja igualmente uma manobra de diversão.
- Quanto à Viúva Alegre...
- Ela pode tê-lo arrastado para o seu fim. A ele e outras pessoas.
- Vozes de sereias - comentou Sloan, distraidamente.
- Desculpe?...
- As sereias eram ninfas do mar a cujas canções os homens não podiam resistir. Atraíam os marinheiros contra os rochedos.
- O Christopher Granger é um pouco ingénuo - observou Crosby, cuja linha de raciocínio não era muito difícil de acompanhar-, mas a sua voz não tem nada de especial.
- O Dr. Byville admite a possibilidade de Martin Friar se dedicar por sua conta a experiências no Protocolo Cardigan.
Depois de se considerar suficientemente bem' instalado no assento do condutor, começou a sintonizar distraidamente o rádio.
- Numa tentativa para se celebrizar averiguando o que haveria de errado no Cardigan? Era a isso que ele se referia?
- Não seria a primeira vez que um caso dessa natureza se verificaria - salientou o inspector, enquanto a sua mente recuava à biblioteca do colégio que frequentara.
Havia lá uma pintura do Dr. Edward Jenner a vacinar o filho contra a varíola. O que surpreendera Sloan fora o facto de não existir o menor sinal na tela da imagem de uma angustiada e protestante mãe a assistir à cena. A sua própria mãe nunca permitiria que um médico experimentasse um fármaco novo nele a título de teste, e supunha que a maioria das mulheres, no lugar de Mrs. Edward Jenner, reagiria de forma similar. Talvez esse médico não tivesse revelado à esposa o que tencionava fazer ao filho. Seria uma maneira de superar a dificuldade. Actualmente, davam a isso o nome de "consentimento informado", se a memória não o atraiçoava.
- Há pessoas capazes de tudo para atingirem a notoriedade - observou Crosby, em tom de censura.
- O incentivo é a fama - concordou Sloan.
Se a tela ainda se encontrava lá, a actual geração de estudantes provavelmente pensava que se tratava da iniciação de um jovem por um passador de droga.
O rádio entrou subitamente em actividade e soou a voz nasalada do polícia na Central de Berebury:
"Acaba de chegar uma mensagem de Christopher Granger, da Willow End Farm, Larking..."
- Escuto - declarou Crosby, endireitando-se no assento e estendeu a mão para a chave da ignição.
"Segundo ele", prosseguiu a voz, "pretende falar com o Inspector Sloan sobre o falecido Dr. Paul Meggie."
- Ah, pretende? - murmurou Sloan, fora do campo auditivo do microfone. - Nesse caso, ouçamos o que tem para dizer.
Na realidade, a conversa com Christopher Granger tornou-se mais fácil devido à sua ansiedade por revelar o que desejava. As palavras brotavam-lhe da boca em catadupa.
- Importa-se de repetir isso? - sugeriu o inspector, num tom que procurou tornar tão formal quanto possível.
- Desculpe - volveu prontamente o jovem. - Julgava que tinha compreendido.
- Creio que sim - admitiu Sloan, com uma expressão sombria.
- Quando se me deparou o carro do Dr. Meggie... embora na altura não soubesse a quem pertencia, naturalmente...
- Já percebi essa parte - cortou. - Continue.
- Havia uma coisa em cima da pasta de plástico que vocês levaram.
- Siga.
- Era um pedaço de papel rijo... quase cartolina... com um slogan escrito.
- Que dizia?... - urgiu, com a esferográfica preparada. Christopher Granger teve a gentileza de se mostrar embaraçado.
- "Abaixo os testes nos animais estúpidos." - Hesitou, antes de acrescentar: - Estava escrito a vermelho, como se fosse sangue, com gotas a escorrer das letras.
Naquele momento, o único sangue que Sloan tinha vontade de sugar era o do interlocutor, porém a longa experiência profissional permitiu-lhe guardar segredo do facto.
- Eu sei que não lhe devia ter tocado, mas não pensei...
- Isso é verdade. Não pensou. Mas agora fez-se-lhe luz no espírito, nem?
- Só sabia que estava farto dos remoques de todos na herdade devido às minhas ideias sobre a crueldade para com o gado, e já não aguentava mais, com o meu pai moribundo e tudo o resto...
- O menino da mamã típico - comentou Crosby, quando abandonavam a Willow End Farm.
- Podia, ao menos, ter guardado o papel, para os nossos técnicos o examinarem - grunhiu Sloan. - Infelizmente .para nós, preferiu lançá-lo à ribeira.
- Em todo o caso, duvido que ficássemos mais elucidados quanto às investigações.
- Podíamos comparar a caligrafia com os grafitos na porta da garagem de Gordon Galloway. - Fez uma breve pausa. - Já reparou que o único indício palpável que temos são umas pequenas bolhas em torno da boca do Dr. Meggie?
- E o corpo de mais um médico.
- Com as causas da morte por enquanto desconhecidas. E assim continuarão, até que o Dr. Dabbe desembarque.
- Há também o Protocolo Cardigan - lembrou Crosby, abrandando a velocidade na encruzilhada da estrada.- Seguimos para a Central?
- É o melhor - assentiu o inspector, sem entusiasmo, ao mesmo tempo que reflectia que o Superintendente Leeyes teria de voltar a ser incomodado num sábado. E era mais que certo que não lhe agradaria. A citação de que tantas vezes o cântaro ia à fonte que deixava lá a asa aplicava-se sem dificuldade ao seu superior. - Quanto ao Protocolo Cardigan, Mrs. Galloway não tomou a substância do teste e morreu: enquanto Abel Granger estava sob o seu efeito e seguiu o mesmo caminho. Quanto a Martin Friar, pode ou não tê-la tomado e pode ou não haver morrido de uma overdose dela, se o fez.
- Isso deve provar alguma coisa - aventurou o detective, calcando o pedal do acelerador.
- Sem dúvida - aquiesceu Sloan.- Só falta saber o quê.
- Que a pessoa que escreveu aquelas palavras na porta da garagem de Gordon Galloway e nos telefonou para comunicar que ela participava no teste da droga ignorava que não era assim ou pretendeu convencer-nos dissso.
- É uma possibilidade - admitiu, com imparcialidade. - Ou se uma pessoa escreveu o slogan e outra telefonou, nenhuma delas cometeu o crime.
Crosby tentou outra hipótese.
- O Protocolo Cardigan não terá nada a ver com os crimes?
- É outra possibilidade, embora alguma coisa produzisse uma diferença enorme no caso de Martin Friar. Mas o quê?
- Três doses de Cardigan? - sugeriu, avistando um transporte de leite à sua frente e preparando-se para o ultrapassar na perigosamente estreita estrada.
- Como não adiantámos irem mais um passo nas Investigações - observou o inspector, secamente -, não tenho pressa especial de chegar a Berebury e ainda menos de me apresentar ao Criador.
- Com certeza - articulou Crosby, sem efectuar a menor tentativa para abrandar a velocidade e completando a manobra. - Não se preocupe.
- Por conseguinte, não há necessidade de se dedicar a habilidades com o volante, como se quisesse impressionar os amigos numa festa.
- Ah, desculpe, inspector. sentia-me distraído.
No entanto, Sloan já não o ouvia. Começou subitamente a pensar em festas. No Natal anterior, coubera-lhe ir buscar o filho a uma reunião com outras crianças, enquanto a esposa, Margaret, efectuava algumas compras de última hora. Como chegara demasiado cedo, vira o Pai Natal voltar as costas aos miúdos por uns momentos e tornar a enfrentá-los. Despira o fato vermelho, desembaraçara-se da barba postiça e ficara envolto num conjunto de cetim branco, convertendo se na fada no topo da árvore de Natal. Só quando voltou a falar -agora numa inflexão feminina aguda - as crianças se convenceram do que uma varinha de condão podia fazer.
Não fora uma varinha de condão que tornara uma voz masculina numa feminina, e aquele pai dera-se ao trabalho de averiguar o que completara o truque da festa.
Algumas inspirações do gás hélio.
Quando Sloan regressou à realidade, o transporte de leite ficara para trás e o atractivo da estrada desimpedida exercia o efeito habitual na velocidade imprimida por Crosby.
- Mudei de ideias - anunciou o inspector. - Não vamos para Berebury, mas para Staple St. James.
Esteve Quase a acrescentar que não poupasse as energias do carro, mas recordou-se a tempo de quem o conduzia e absteve-se.
Queria viver o soficiente para capturar um assassino.
O homem que pratica o mal hábil, enérgica e magistralmente, vai-se tornando mais seguro de si e intrépido com cada crime que comete.
Sloan ergueu os olhos ao céu como alternativa de contemplar a estrada à sua frente, com Crosby ao volante. A única coisa que proporcionava um desmedido prazer ao detective era conduzir carros velozes velozmente, razão pela qual o Inspector Harpe não o quisera na Divisão do Tráfego. .
Sloan apercebia-se de que o céu estava límpido, à parte algumas nuvens altas, mas soprava vento moderado que sacudia as ramagens das árvores, ingrediente indispensável para a regata em que o Dr. Dabbe participava. O inspector ansiava por que o patologista regressasse ao serviço. Não porque ficasse surpreendido ao inteirar-se de que o jovem Dr. Friar morrera de uma overdose da substância empregada no Protocolo Cardigan. Sabia perfeitamente que o excesso de qualquer coisa - incluindo o álcool - destinada a curar podia resultar fatal. Tão-pouco se admiraria se lhe fosse revelado que sucumbira a paragem cardíaca. Não obstante, a Polícia necessitava de ser informada da realidade, e sem demora.
Tornou a contemplar o céu, com uma expressão pensativa. Embora ignorasse até que ponto eram favoráveis as condições para dois polícias a caminho de uma fábrica de produtos farmacêuticos, o tempo diria se se podiam considerar propícias para a detecção.
Quando o carro abandonou a estrada principal em direcção à aldeia de Staple St. James acudiu ao espírito de Sloan algo que o Dr. Dabbe dissera. O patologista afirmara que considerava Paul Meggie um bom médico. Tratava-se de um facto minúsculo num caso até agora parco de indícios concretos. Conquanto o seu significado-se o tinha - lhe tivesse escapado até agora, o inspector não deixara de o registar na consciência.
- Desculpe, Crosby. Não ouvi o que disse.
Na realidade, nem se dera conta de que o detective falara e haviam chegado à Gilroy's Pharmaceutical praticamente sem o seu conhecimento.
- Por onde entramos? Pela porta das traseiras ou pela da frente?
- Pela das traseiras.
Na natureza das coisas, os polícias tornam-se especialistas na medição de graus de medo. Quando conversara com George Gledhill e Mike Itchen, naquela manhã, Sloan pressentira que enfrentava dois homens receosos. Agora que estavam ao corrente da morte de Martin Friar, o medo acentuara-se notavelmente.
O medo, normalmente, era uma emoção que acudia às pessoas de diferentes maneiras. Havia quem ficasse virtualmente catatóníco, paralisado ao ponto de se tornar mudo perante o mais hábil interrogatório. Outros não paravam de falar, a língua solta por uma ansiedade demasiado intensa para dominar.
No caso vertente, Gledhill inclinava-se para o silêncio e Itchen para a loquacidade. Sloan tomou a decisão táctica de não os interrogar separadamente. Se falasse com um a sós, o outro disporia de tempo para reflectir, o que não desejava que acontecesse.
Sem que o convidassem, instalou-se numa cadeira do gabinete do químico-chefe e declarou com naturalidade que chegara o momento de trocarem impressões.
- Um diálogo profundo - acentuou.
- Acerca de quê? - conseguiu Itchen perguntar, humedecendo os lábios visivelmente secos.
- Comecemos pelo Protocolo Cardigan.
- Não há nada a acrescentar ao que já revelámos - acudiu Gledhill que assumira uma expressão taciturna.
- Qual lhes parece que seria uma dose fatal? - inquiriu o inspector, olhando os dois homens alternadamente. - É claro que os nossos serviços também procederão a uma análise.
Os interpelados entreolharam-se, e foi Gledhill quem acabou por responder.
- Depende fundamentalmente da condição do paciente.
- Suponhamos que se trata de um jovem perfeitamente saudável.
Do lugar em que se encontrava, Sloan podia ver o jardim, por cima do ombro de Gledhill. O labirinto ocupava uma posição proeminente.
- Se a substância fosse ingerida com o estômago vazio... - começou Itchen.
- Sim? - persistiu o inspector.
Decidiu que aquele caso tinha muito em comum com um labirinto. Todos os caminhos, salvo uma excepção, conduziam a becos sem saída. O truque consistia em descobrir o apropriado em cada bifurcação.
Não sem visível relutância, Itchen prosseguiu:
- Julgo que, digamos, meia dúzia de cápsulas bastaria para provocar uma hipotensão fatal.
- Quantas contém cada frasco das do Protocolo Cardigan?
- Dez - informou Gledhill, em voz tensa.
- Esse número aplica-se a cápsulas da substância real e não às de placebo-salientou Itchen, que empalidecia gradualmente.
- Uma espécie de roleta russa, bem? - observou Crosby, com naturalidade.
Ninguém achou graça.
- Está a... postular que foi essa a causa da morte do Dr. Friar? - perguntou Itchen.
- De momento, o que estou é a fazer perguntas sobre várias anomalias - redarguiu Sloan, com uma ponta de rispidez. - Quem mais trabalha para a Gilroy nos hospitais de St. Ninian e Berebury?
Houve algo de quase palpável no modo como os dois químicos se descontraíram ante a alteração do rumo do interrogatório. A tensão de Gredhill atenuou-se e a palidez de Itchen começou a ceder o lugar à coloração normal das faces. Entretanto. Sloan ponderava que se tratava de terreno seguro para ambos. Voltaria ao caminho perigoso dentro de instantes, para os apanhar desprevenidos.
- O Dr. Hulbert encarrega-se de verificar alguns dados - revelou o segundo. - A sua especialidade era a hematologia, mas depois...
- Depois, casou com uma mina de ouro e perdeu o interesse pelo trabalho extraordinário - completou Gledhill.
- E o Dr. Beaumont nunca se mostrou interessado na investigação. Alega que lhe basta o tempo que consagra à boa execução do trabalho corrente e... - Itchen continuava a ser o mais volúvel dos dois.
Estas palavras correspondiam a um tema que o inspector compreendia bem. Na Central da Polícia, havia aqueles que encaravam tudo como uma estatística e os que se dedicavam às diligências práticas - e?... - urgiu.
- O Dr. Byville, claro - prosseguiu Itchen. - Mas, de momento, não executa qualquer trabalho para a Gilroy.
- Apresentou um projecto de investigação à Comissão, o mês passado, mas foi rejeitado - explicou Gledhill.
- Sim?
- Uma experiência de comparação em pacientes de pós-esplenetomia - apressou-se o outro a esclarecer.
- Dispomos de uma droga prometedora para prevenir a placenta praevia - interpôs Itchen -, mas o Dr. Maldonson já ganha demasiado dinheiro para lhe interessar dedicar-se a uma experiência controlada.
- Que tencionam fazer a esse respeito? - Sloan estava sempre interessado em saber como os outros resolviam os seus problemas.
- Vamos recorrer a um homem mais jovem de Luston. George Gledhill inclinou-se para a frente e atreveu-se a proferir:
- Escute, inspector, se há alguma coisa relacionada com as mortes dos Drs. Meggie e Friar que lhe pareça que devemos conhecer...
No entanto, o interpelado não o escutava. Contemplava o labirinto, com a mente longe dali.
De repente, estendeu a mão para a secretária e pegou no telefone.
- Está ligado à rede? - Depois de obter confirmação do químico-chefe, marcou um número de emergência.- Ligue-me ao Hospital Berebury!-bradou. - Preciso falar com a Drª Dilys Chomel. Imediatamente. - Apontou para os dois cientistas. - Vocês ficam. Ligue o motor do carro, Crosby. Temos de actuar rapidamente.
- Não, Tracy. Evidentemente que a Drª Chomel não se encontra aqui - informou Shirley Partridge, no P. B. X. de Kinnisport. - Sabes perfeitamente que ela nunca vem cá
Fez uma pausa, enquanto a interlocutora falava.
- Acredito que seja urgente - acrescentou -, mas não posso fazer nada.
- Já liguei para todas as pessoas que me vieram à cabeça - alegou Tracy, no Hospital Berebury-, mas ninguém sabe onde ela pára. Estou farta de tocar o seu bliper e continuo a fazê-lo, porque o polícia que telefonou parecia desesperado.
- De que se tratará? - murmurou Shirley, pensativamente.
- Em nenhuma enfermaria conseguem localizá-la e, logo por azar, a enfermeira-chefe Pocock está de folga, da parte da tarde.
-E a substituta?
- Não a vejo desde a manhã. Parece que a Drª Chomel ficou muito impressionada, quando soube da morte do Dr. Friar.
- Não a censuro.
Reflectiu que também ficara chocada, mas ainda não fora a casa para contar tudo à mãe.
- Os outros médicos não o conheciam tão bem, claro, porque ele permanecia quase sempre aí, em Kinnesport - salientou Tracy.
- Independentemente do que dissessem a seu respeito - observou Shirley-, era muito jovem para morrer.
- Não pode ir mais depressa? - Desta vez, Sloan não contemplava o céu. - Ela é muito jovem para morrer.
Encarando a pergunta como meramente retórica, Crosby, que conduzia como um alucinado, dobrou uma esquina de uma maneira tão temerária, que, se o Inspector Harpe assistisse, lhe valeria o afastamento da Divisão do Tráfego para sempre.
Enfiou o carro da estrada secundária de Staple St. James para a principal com um mero olhar fugaz nos dois sentidos e calcou imprudentemente o pedal do acelerador antes de perguntar:
- Onde vamos, exactamente?
- Ao Hospital Berebury, à procura de alguém que nos possa indicar o paradeiro da Drª Dilys Chomel.
Inclinou-se sobre o volante, com uma expressão concentrada, disposto a cobrir a distância no mínimo lapso de tempo possível, enquanto o inspector utilizava o rádio do carro para contactar com todos os agentes da Divisão "F".
- Procurem e detenham uma jovem médica africana chamada Dilys Chomel! Tem cerca de um metro e sessenta e cinco de altura e compleição física robusta...-Alterou o tom da voz para se dirigir ao detective. - Como descreveria o cabelo, Crosby?
- Caudas de "ratos", com caracóis. Muitos, a pender em volta da cabeça.
- Talvez sirvam para lhe salvar a vida.
- Como? - quis saber o subordinado, executando, sem a menor dificuldade, um pas de deux entre duas carrinhas.
- Torna-se mais fácil reconhecê-la - explicou Sloan, que voltou a concentrar-se no microfone. - Também interessa localizar a enfermeira-chefe Pocock, do Hospital Berebury. cujo paradeiro momentâneo se desconhece.
Esta última acabou por ser encontrada primeiro e com notável prontidão. Os tripulantes de um carro-patrulha avistaram-na quando saía, uniformizada, a fim de seguir para casa.
- Tragam-na para junto do microfone - implorou o inspector, enquanto Crosby executava uma manobra em slalon, para evitar um engarrafamento iminente. - Preciso de falar com ela urgentemente.
A enfermeira-chefe Pocock poderia ser rigorosa na obediência - e imposição para que fossem obedecidos - aos regulamentos, porém a longa experiência ensinara-a a responder primeiro e reservar as perguntas para depois, ou abster-se mesmo de as fazer.
- Ofereceram boleia à Drª Chomel para se dirigir à vila, esta tarde - anunciou no habitual tom meticuloso e calmo.- Foi alguém a quem ela tinha exprimido o desejo de ver um daqueles postes coloridos que dantes os barbeiros tinham junto da entrada. Calhou trocarmos impressões nesse sentido, uma ocasião, no meu gabinete. Creio que essa pessoa conhecia a existência de um na High Street.
- Em que parte da High Street? - perguntou Sloan, consciente de que aquela artéria de Berebury era longa e, nas tardes de sábado, regurgitava de gente.
No entanto, os conhecimentos da enfermeira-chefe sobre o assunto não abarcavam essa faceta. Costumava frequentar o cabeleireiro da esquina perto da igreja, se a indicação servia para alguma coisa.
- Sei onde fica essa barbearia - disse Crosby, efectuando uma inversão de marcha não menos temerária que algumas das manobras anteriores. - Eu não vou lá, note-se. É daquelas que estão sempre a rebentar pelas costuras de clientela.
- Unissexo? - deduziu o inspector. - Então, situa-se do outro lado da ponte do rio.
- Ele talvez não levasse lá a médica.
- Seria muito perigoso não o fazer. Providenciará para que os vejam juntos aí e depois desembaraça-se dela. Não vá a esse passo de caracol, homem! Não dispomos de todo o dia.
Crosby premiu devida e gostosamente o acelerador e enfiou pela High Street, com a sirena a gemer persistentemente e o farolim azul do tejadilho a piscar.
Mais tarde, ao recordar calmamente a situação, Sloan foi dos primeiros a reconhecer que uma aproximação mais discreta teria sido preferível. Assim, o Dr. Roger Byville ouviu a sirena do carro e voltou a cabeça nessa direcção. Num movimento rápido, desviou a Drª Dilys Chomel com um empurrão e abriu rapidamente caminho por entre os numerosos transeuntes.
Afastando as pessoas da sua frente com absoluta sem-cerimónia, não tardou a ficar bem claro o rumo que seguia. O avanço do veículo ainda se tornou mais difícil em virtude da curiosidade que despertava e levava os peões a imobilizarem-se para o contemplar, com o que contribuíam para obstruir a visibilidade de Sloan.
Por fim, impaciente, este apeou-se e começou a correr em direcção ao rio, no encalço da presa.
- Tome conta da doutora!-gritou a Crosby, enquanto Byville efectuava um derradeiro sprint para alcançar a passagem ao longo da margem da ribeira. - Agarrem-no! - vociferou para a multidão, sem parar de correr.
O médico voltou-se por breves segundos e tentou aumentar a velocidade, a medida que Sloan abreviava a distância que os separava. De súbito, este último conseguiu alcançar a aba do casaco do fugitivo, o qual, no entanto, tratou de o despir rapidamente, pelo que o inspector se descobriu a segurar uma manga vazia.
Sloan perdeu então um precioso segundo, que Byville aproveitou para transpor a vedação metálica.
No momento em que o médico atingiu a água, o inspector viu um jovem na ponte desembaraçar-se do casaco e descalçar os sapatos. Em seguida, equilibrou-se no parapeito como um nadador experiente e lançou-se à ribeira, para recuperar o homem que o precedera.
Os jurados raramente reparam nos factos, e foram instruídos para encarar quaisquer dúvidas sobre a omniscência e omnipotência dos médicos como blasfémias.
- O problema consistia em que quase tudo o que considerávamos importante não tinha qualquer ligação com o caso - explicou o Inspector Sloan.
- Ajudaria a desanuviar as ideias - observou o Superintendente Leeyes, o qual teria podido ensinar uma ou duas coisas a Genghis Khan sobre as técnicas da asserção-, se se abstivesse de falar por enigmas.
Era segunda-feira de manhã, e eles encontravam-se no gabinete deste último, na Central da Polícia de Berebury.
-Perfeitamente. - Sloan agitou a mão sobre um maço de relatórios e blocos de apontamentos. - Deixe-me pôr a questão nos seguintes termos. Nada do que investigávamos tinha a menor relação com a verdadeira causa dos acontecimentos.
- Repita lá isso.
- O mesmo se aplica aos defensores dos direitos dos animais, problemas domésticos do Dr. Meggie e até ao famigerado Protocolo Cardigan. Note-se, porém, que o assassino se esforçou por que parecesse o contrário.
Infelizmente, esta inequívoca afirmação não contribuiu para tornar Leeyes mais feliz.
- Então, como explicarei aos meus superiores o desperdício de tempo em investigações sem qualquer futuro?
- Pode atribuí-lo ao resultado da acção de uma mente altamente treinada - indicou o inspector. - A do Dr. Roger Byville.
Até que ponto essa mente se revelara atilada só começou a tornar-se óbvio para Sloan depois de o médico e o seu salvador terem sido pescados da ribeira, ambos considerávelmente encharcados. O primeiro seguiu directamente para a Central da Polícia sob prisão, enquanto o segundo, ingressava no botequim mais próximo, para iniciar um processo de reanimação através de algumas bebidas apropriadas.
A primeira visita de Sloan, na sequência desse episódio, foi ao Hospital Berebury, onde a abalada, embora perfeitamente colaborante, Drª Dilys Chomel se esforçou por responder às suas perguntas.
- Sim - confirmou, intrigada, embora alerta - admitíamos aqui todos os pacientes do Dr. Roger Byville aos quais era extraído o baço por qualquer motivo.
- Mas não se davam muito bem com o ambiente? - sugeriu o inspector. - Alguns morreram, nem?
Ela assentiu com uma inclinação de cabeça, sacudindo as caudas de "rato".
- Sim, e ele preveniu-me disso. Explicou que estava muito interessado no tratamento dos casos de pós-esplenetomia e esclareceu que eram extremamente propensos a fortes infecções e perderíamos mais do que salvaríamos.
- E, tanto quanto a doutora sabe, o facto pesaria na reputação deste hospital?
Naquele momento, havia funcionários treinados na inspecção de registos a trabalhar no assunto. Sloan não deixara de reparar na satisfação revelada pelo pessoal da enfermaria ao mandar chamar o administrador para trabalhar, num sábado à tarde, com a inevitável interrupção do fim-de-semana.
- Com certeza, inspector. Até o jovem que transferimos para o Hospital Kinnisport morreu.
- Isso foi a causa de tudo.
As primeiras indicações do pessoal especializado que investigava os registos das diferentes enfermarias daquele hospital referiam que os pacientes aí admitidos costumavam sobreviver.
- Não compreendo...
- O Dr. Byville supunha que a doutora vislumbrara a verdade, e daí o perigo que corria.
- Continuo a não...
- E creio podermos depreender que o Dr. Martin Friar, à semelhança do Dr. Meggie, se deu conta do que acontecia - prosseguiu Sloan, reatando a sua linha de raciocínio.
- Mas ainda não sei em que isso consistia. Ele, porém, sabia. Agora.
- Byvílle vira recusado o pedido para efectuar alguns testes de comparação. Creio que é aí que se submetem a observação dois grupos comparáveis de pacientes nas mesmas condições de saúde com duas drogas diferentes.
- Exacto - aquiesceu a Drª Dilys Chomel, começando a recuperar a confiança nas suas faculdades. - Continue.
- Penso que ele administrou aos pacientes do Hospital Kionisport um conjunto de drogas...
- Esses sobreviveram. O Martin inteirou-se disso, como me explicou.
- Enquanto os do Hospital de Berebury tomavam um lote de drogas inteiramente diferentes.
- E morreram - murmurou, com uma expressão de pesar. - Isso posso eu garantir.
- De repente, entrou em cena aquele jovem internado aqui que pediu para ser transferido para Kinnisport, a fim de ficar mais perto da família.
Deu uma palmada na fronte.
- Lembro-me de o Martin dizer que o Dr. Byville ficou fulo.
- Compreende-se porquê - disse Sloan, acalorado. - Isso não só estragava a sua série, como colocava o projecto em risco de ser descoberto por Martin Friar.
A médica olhou-o com perplexidade.
- Está-me a dizer que o Dr. Meggie já suspeitava de alguma coisa?
- Sem dúvida. Estamos convencidos disso. A semelhança da maioria dos médicos consultores, ele tinha camas nos dois hospitais e todos os seus pacientes nas mesmas enfermarias.
- Era um excelente médico - observou, ecoando inconscientemente as palavras do Dr. Dabbe. - Não teria ficado inactivo, se suspeitasse de alguma irregularidade.
- Pois não.
- E o infortunado Martin tão-pouco - acrescentou, convicta.
- Razão pela qual ambos tinham de morrer - declarou Crosby, mais tarde, ao Superintendente Leeyes.- Pelo menos - acrescentou -, para ser rigorosamente sincero, o Dr. Friar não precisava de ser eliminado. - Era um pormenor que continuava a preocupá-lo.
- Que quer dizer com isso?
- Eu devia ter suspeitado muito mais cedo de que só alguém ao corrente do projecto e de que Martin Friar era assistente-chefe do Dr. Meggie telefonaria ao Hospital Kinnisport, sexta-feira de manhã, para substituir o responsável da clínica naquele dia.
- Qualquer pessoa se podia inteirar disso - observou Leeyes, que, ante a surpresa do inspector, prosseguiu: - A Polícia não é perfeita, tal como os médicos também o não são, e constitui um erro crasso imaginar o contrário. Eles perdem pacientes do mesmo modo que nós deixamos escapar culpados, mas o facto não os faz abdicar das suas funções. Aconselho-o a reagir do mesmo modo, Sloan.
- Obrigado, senhor.
- Essa maneira de pensar só serve para suscitar problemas evitáveis. Quanto a mim, há muito a dizer em favor da cura pela fé - salientou, não sem uma ponta de petulância. - E agora explique-me o papel desempenhado pelos dois rapazes de Staple St. James.
- Bem, é uma história longa.
Depois de se despedir da Drª Chomel, sábado à tarde, Sloan regressou a Staple St. James no carro conduzido pelo infatigável Crosby. George Gledhill e Mike Itchen continuavam onde os dois polícias os tinham deixado. Dir-se-ia que haviam' sido transformados em estátuas de pedra, quando Sloan lhes revelou o sucedido ao Dr. Byville. Por outro lado, todavia, a surpreendente nova soltou-lhes a língua.
- Suponho que o patife não se conformou com a nossa recusa - declarou o químico-chefe.
- Sempre se julgou mais atilado que os outros - contribuiu Itchen. - Ficou profundamente transtornado, quando a Comissão de Ética dos Hospitais decidiu que ele não podiia fazer o que pretendia.
- Seria de esperar que parasse com as experiências, quando metade dos pacientes morreu - volveu Gledhill, que julgou oportuno anunciar: - A propósito: também suspendemos, a título definitivo, as nossas com animais.
- Aconselho-os a informar Darren Clements - interpôs Crosby. - Antes que ele e o seu grupo voltem a visitá-los.
- Só para satisfazer a curiosidade - volveu o inspector. - A droga que ele utilizava proveio daqui?
Os dois homens afirmaram peremptoriamente que a Gilroy's Pharmaceuticals nada tivera de comum com isso.
- Para o Protocolo Cardigan, sim - esclareceu Gledhill, sem hesitar. - A substância que Byville empregava... qualquer que ela fosse... nunca. É muito fácil certificarmo-nos, se o desejar, inspector.
- Muito obrigado. - Sloan tossiu discretamente. - Antes de nos retirarmos, gostaríamos de aclarar um ou dois pontos.
- Com certeza - assentiu Gledhill, passando a língua seca pelos lábios ressequidos.
- E conversar com determinada pessoa.
- Quem? - perguntou, com nervosismo.
- O homem que vocês chamaram aqui para se encontrar com o Dr. Meggie, sexta-feira, à hora do almoço.
- Ah, esse!-A sua voz deixava transparecer profundo alívio, enquanto Itchen se descontraía. - Era Al Dexter, da Dexter Palindome, em Luston. Tencionava dar uma vista de olhos ao Protocolo Cardigan, a fim de nos aconselhar sobre possíveis dificuldades de produção, e nada mais.
- E haverá dificuldades?
- Ainda é cedo para o dizer. Muito cedo, mesmo.
- Mas suponho que a experiência foi completada? - perguntou Sloan, inocentemente.
- Decerto, inspector, mas ainda necessitamos de estudar o assunto mais a fundo. Não é verdade, Mike?
- Sem dúvida - confirmou o interpelado.
- Porquê? - insistiu Sloan. - Acabam de me dizer que o encontro com Al Dexter se destinava precisamente ao esclarecimento de quaisquer dúvidas.
- Porque a Polícia ainda tem os estudos do Dr. Meggie em seu poder - explicou Gledhiíl, cuja fronte começava a perlar-se de transpiração. - Precisamos deles antes de podermos passar à fase seguinte.
- Não deixaremos de lhos devolver, quando for oportuno - garantiu o inspector, em tom formal.
Mike Itchen inclinou-se para a frente.
- Quando lhe parece que isso acontecerá?
- Depois de os nossos cientistas os examinarem. Seguiu-se um breve silêncio, até que Gledhill articulou:
- Obrigado, inspector. Talvez voltemos a conversar com Al Dexter, nessa altura.
- Nós, ao invés, Crosby - anunciou Sloan, quando se encontraram de novo na privacidade do seu carro-, vamos conversar com ele imediatamente. Sigamos para Luston. Não gosto que fiquem pormenores por esclarecer.
Mas havia algo mais. O colóquio com Gledhill e Itchen parecera-lhe um pouco o jogo do gato e do rato. Só faltara um grupo de crianças excitadas a gritar: "Quente, quente!... Frio, frio!...", para a ilusão ser completa. A mensagem, quando o nome de Al Dexter tinha sido pronunciado, correspondera a: "Frio, frio!..." Nessa ocasião, os dois homens haviam-se descontraído. Assim, Sloan decidira que não viria o menor mal ao mundo se conversasse com- o indivíduo da Dexter Paliodome, em Luston... o mais depressa possível. Por fim, localizaram-no na sua residência, no sector mais elegante da vila.
- Com certeza, inspector - declarou Dexter, laconicamente. - Estou preparado para produzir o Cardigan para o mundo em geral, assim que a Gilroy der luz verde. Aliás, eles sabem-no.- - Enrugou a fronte. - Tenho a impressão de que desenvolveram um produto aceitávei à escala mundial.
- Ainda bem - disse Sloan, distraidamente.
- E sem efeitos secundários.
- Compreendo. Imagino que isso também é satisfatório?
- Em muitos casos, constituem um verdadeiro problema.- Tamborilou com os dedos no tampo da secretária. - Os efeitos secundários podem- lançar ou destruir um produto.
O inspector admitiu que compreendia que isso pudesse acontecer e os pacientes talvez também não ficassem contentes.
- Por conseguinte, o mais admirável no Cardigan é que não tem nenhum.
- Salvo uma excepção - interveio Crosby, que escutava atentamente, apesar de parecer o contrário.
- Qual? - inquiriu Dexter, arqueando as sobrancelhas.
- Todas as pessoas que participavam nele perderam peso subitamente. - O detective voltou-se para Sloan.- Não se recorda, inspector?
- Então, era isso que eles pretendiam! - explodiu Dexter, transfigurado. - Testavam a Naomite. - Durante alguns segundos, Sloan receou que o homem levasse as mãos ao pescoço de Crosby e o sacudisse com violência. - Repita isso, por favor, e depois mostre-me as provas. É uma coisa que quero ver com os meus próprios olhos!
- Aparentemente - disse Sloan, tentando corajosamente reduzir a perfídia científica a fragmentos assimiláveis pelo superintendente-, Gledhill e Itchen tocavam o seu próprio instrumento à margem das experiências.
- Ah, sim? - grunhiu Leeyes.
- Viajavam no comboio dos testes do Dr. Meggie com o Protocolo Cardigan... sem que o pobre homem o soubesse, claro.
- Como?
- Conduziam um discreto estudo de controlo...
- Para sua própria vantagem, sem dúvida.
- ...de uma substância que tinham desenvolvido chamada Naomite.
- Não se esqueça de que sou um simples polícia e não um galardoado Nobel. - Trata-se do seguinte.
O inspector contava com a vantagem de uma explicação sucinta de Dexter, profundamento interessado nas maquinações secretas de Gledhill e Itchen. Mas não surpreendido.
- Montaram um hábil esquema para testar uma substância sua sob a capa do projecto-piloto perfeitamente legal do Dr. Meggie, devidamente aprovado por todas as autoridades regulamentares.
- Uma manobra inteligente.
- Muito - concordou Sloan.- Ao utilizarem os pacientes escolhidos por Meggie, descobriram uma maneira de obter controlos mais rigorosos e reduzir algumas das variáveis, pelo que não careciam de um estudo tão alargado.
- E aposto que vão alegar que procediam assim no interesse da Humanidade.
- Bem, procuravam o santo Graal de todos os farmacêuticos investigadores.
- A cura do cancro?
- E o tratamento imediato da obesidade. Não duvido de que se tornariam milionários de um dia para o outro.
- E agora, para onde vamos? - perguntou Crosby, quando o inspector se lhe reuniu no carro.
- Para o Hospital Kinnisport. Quero trocar algumas palavras sobre pintura com um artista.
- Ah, esse? - Exibiu uma expressão de desdém.- Tem a cabeça cheia de ideias bizarras.
- Leu o relatório do Dr. Dabbe?
O patologista regressara do fim-de-semana particularmente ben-humorado, com o trofeu da regata na sua posse durante mais um ano.
- Não. Porquê?
- Martin Friar foi envenenado de facto com fágara, assim como com duas ou três outras coisas, - E o Dr. Byville recusa falar. No fundo, é um finório. Limita-se a perguntar pelo seu advogado.
- Tenho a impressão de que isso não vai alterar a situação.
Sloan ainda ficou mais convencido depois de conversar com Adrian Gomm, Este pintara um segundo alambique no outro lado - a metade da esquerda- do mural. Enquanto o primeiro era verde, o segundo apresentava uma tonalidade marcadamente vermelha.
- Chamo a isto uma parábola para a nossa época - declarou, convicto. - Drogas benéficas numa das mãos e malignas na outra.
- Exacto - confirmou o inspector. - Duas faces da mesma moeda, por assim dizer. Recorda-se, por acaso, se se encontrava no topo do escadote, quando o Dr. Byville se separou do Dr. Friar, sábado de manhã?
- Com certeza. -o artista inclinou-se para a frente e aplicou a trincha ao lado esquerdo, o vermelho. - O Dr. Friar acompanhou-o ao carro. Eu diria numa atitude de bajulador, se não os tivesse ouvido conversar no átrio, pouco antes.
- Continue.
- Discutiam um paciente de baço que acabava de morrer numa das enfermarias, e o Dr. Byville assegurava ao colega que não havia motivo para preocupações.- Endireitou-se no escadote. -Eu gostaria de saber que alguém se importava, se esticasse o pernil tão jovem.
- Importava-se o administrador do hospital, se lhe tivesse pago antecipadamente - observou Crosby.
- Que aconteceu a seguir? - insistiu Sloan.
Ao mesmo tempo, reflectia que o assassínio do Dr. Meggie resultaria mais difícil de provar do que o do Dr. Friar, pelo que lhe interessava obter elementos comprometedores mais convincentes do que o envenenamento por óxido de carbono provocado por alguém com acesso ao gás hélio e a um agente de controlo de distúrbios.
- O Dr. Byville convidou-o a acompanhá-lo ao carro, para lhe dar um gole de. qualquer coisa para o revigorar - informou o artista, limpando os dedos manchados de tinta nas não menos manchadas calças.
- Um Mickey Finn (1} - aventurou Crosby.
O inspector deixou transparecer um acréscimo de interesse.
- Decerto avistava daí de cima o parque de estacionamento, pois preveniu-nos dos rapazes que ameaçavam a nossa viatura, da outra vez que estivemos cá.
- É verdade - assentiu Gomm, inconsciente de que naquele momento deixava de ser um mero comentador do bem e do mal na sociedade, para se converter numa espécie de peão no jogo da vida. - O Dr. Byville retirou um frasco metálico do porta-luvas e ofereceu-o ao Dr. Friar, que ingeriu um gole. Sim, vi tudo perfeitamente.
Crosby procedeu à inversão de marcha na direcção de Berebury e não tardou a ultrapassar alguns veículos que, na sua opinião, seguiam a uma velocidade escandalosamente lenta.
- Não acha inteligente a ideia de Byville de utilizar uma substância do Protocolo Cardigan para matar Friar?
(1) Bebida alcoólica a que se juntou uma droga provocadora da perda do sentidos do bebedor. (N. do T.)
- A substância chama-se fágara - esclareceu Sloan, pensativamente. - O Dr. Dabbe crê que talvez tenha algum futuro como droga útil para o coração.
- Bem, resta apenas a parte burocrática das investigações.
- Exacto. O que significa - acrescentou, com brandura - que já não há a mínima pressa, razão pela qual não precisamos de rolar tão velozmente. O caso Cardigan chegou ao fim.
- Muito bem. - Crosby julgou conveniente, por uma questão de amor-próprio, ultrapassar mais uma viatura, antes de declarar: - Estive a pensar e descobri por que lhe chamaram Cardigan.
- Sim? Porquê?
- Porque "cardíaco" significa "relacionado com o coração", como me explicou o Dr. Dabbe. Inteligente, bem?
Catherine Aird
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