Biblio "SEBO"
- Oh! Não há a menor dúvida. Adèle até me disse o nome dele: sire Roncelin! Não deve ser grande peça e, mesmo no Templo, não deve ter muitos afilhados!
Invadido por um turbilhão de pensamentos, Renaud não fez qualquer comentário. Com o olhar fixo no espaço entre as orelhas do seu cavalo, reflectia. A recordação do homem que se abatera como uma ave de rapina sobre o modesto eremitério de Thibaut, chegando ao ponto de profanar o seu repouso eterno, revoltava-o. O facto de aquele homem ter uma irmã e de essa irmã pertencer ao séquito de Margarida atormentava-o porque, tendo descoberto com quem Elvira se parecia, sabia agora por que razão ela lhe desagradara instintivamente... Entretanto, Gilles Pernon, surpreendido com o seu silêncio, perguntou:
- Então, sire Renaud, é tudo o que tendes a dizer à minha notícia?
- De que estavas à espera? Que fosse gritar de alegria? Se queres saber o que penso, tenho medo. Medo por aquela mulher, cuja voz de sereia atrai os espíritos e os corações, estar no séquito de Madame Margarida. O Rei fez bem em lhe impor silêncio.
- Também sou da vossa opinião, mas, que pensais fazer?
- Por agora, nada, mas quando chegarmos ao nosso aquartelamento, na capital desta ilha, vou ter com a dama Hersende e vou avisá-la. Creio que é a pessoa indicada para velar pela vida da Rainha.
- Ela também é da Provença.
- Sim, mas é uma mulher inteligente e que, além disso, dedicou a sua vida ao bem e à salvaguarda daqueles de quem trata. Pelo que sei dela, não deve gostar muito de Elvira de Fos.
- A velha Adèle também não. Ela escarrou quando me disse o nome dela, o que não é sinal de grande ternura.
O chamamento das trombetas fez-se ouvir de novo. Os cavaleiros alinharam ao longo do caminho que o núncio ia seguir assim que pusesse os pés no cais. O prelado apareceu, então, uma silhueta imponente vestida de escarlate, parecendo ainda maior devido à cruz de ouro que segurava nas mãos. A cruz pertencia ao tesouro de relíquias de França e continha um pequeno pedaço da Verdadeira Cruz.
Todos puseram o pé em terra ao mesmo tempo, ajoelhando na poeira. E o coração de Renaud bateu a um ritmo pouco usual, pensando que, talvez em breve, aquele relicário modesto, apesar da sua riqueza, daria lugar à grande cruz enterrada por Thibaut e que ele, Renaud, tinha por missão desenterrar para que um rei cristão pudesse de novo levá-la - emblema sublime! - à frente dos seus exércitos, galvanizando as coragens e atraindo os olhares dos moribundos, proporcionando-lhes, assim, um último conforto...
A ILHA DE AFRODITE
Apesar da inquietação, Renaud nunca mais esqueceria o acolhimento feito em Chipre ao Rei de França, de tal modo foi caloroso, prestável e marcado pela mais generosa hospitalidade e alegria. Enquanto o exército propriamente dito instalava o seu acampamento perto de Limassol, a família real, escoltada pelos seus cavaleiros e pela gente do seu serviço, tomava, sob a liderança do Rei Henrique I, o caminho de Nicósia, a capital, distante uma dúzia de léguas.
Caminharam ao longo de olivais de folhagem prateada, de bosques de árvores de incenso, de cedros de cuja madeira os artesãos da ilha faziam arcas e móveis de odor delicado e que nunca apodreciam, de laranjais e bosques de limoeiros sob o olhar maravilhado dos recém-chegados. Transpuseram os montes Trodoos, a mãe-de-água cujo cume mais alto é o monte Olimpo, cobertos por um espesso manto de pinheiros de odor vivificante. Pararam nos mosteiros onde rezaram - longamente! - diante de estranhas imagens do Senhor, da Virgem Maria e de santos ao mesmo tempo rígidos e sumptuosos, com rostos austeros e olhos enormes, fixos e dilatados, contrastando com a profusão de cores vermelhas e douradas que os vestiam. O tempo estava divinamente doce, o céu de um azul deslumbrante com umas pequenas nuvens brancas que ainda lhe exaltavam mais a cor e, nas vinhas, os camponeses, vestidos com roupas de algodão vermelhas ou azuis, colhiam as gordas uvas cheias de sumo, porque era a época das vindimas.
Ao chegar a Nicósia, um grande “oásis” cor-de-rosa estendido ao longo do vale de Pedieos e cercado pelas plumas azuis das palmeiras e flechas negras dos ciprestes, as pessoas da cidade acorreram ao seu encontro com pequenos ramos de mirto aspergidos com água de rosas, que entregavam a cada um dos viajantes em sinal de boas-vindas, mas também... de amor: aquela antiga tradição remontava ao culto de Afrodite e apesar de o país guardar numerosos vestígios bizantinos e de a população ser grega, a língua franca era correntemente falada. De tal modo que, ao penetrar na capital daquele reino fora do comum, os cruzados tiveram a impressão de estar em casa de gente amiga, quase em casa própria. Aliás, os reis Lusignan, que reinavam no país há mais de meio século, misturavam o velho sangue francês de Poitou ao dos Anjou-Ardennes, assim como ao do dos condes de Champagne, este possuindo um toque exótico do fluxo vital dos imperadores bizantinos!
O Rei Henrique I era a imagem perfeita de um soberano franco em terras do Oriente. De boa estatura mas bastante “avantajado”, o suficiente para ter o cognome de Henrique, o Gordo, sedutor quanto baste, rosto afável, barba castanha e olhos azuis, valente cavaleiro, bom companheiro e soberano sensato, reunia nas suas veias o sangue mais nobre do antigo reino franco de Jerusalém, já que era neto, por parte da mãe Alix, da Rainha Isabel (1) e do seu terceiro marido Henrique de Champagne e, por parte do pai, Hugo I de Chipre, neto de Amarico de Lusignan - ele próprio quarto marido de Isabel - e da sua primeira mulher Eschiva d'Ibelin. Rei de Chipre, acumulava, desde o ano anterior - 1247 - e com a bênção do Papa Inocêncio IV, a Coroa de Jerusalém, recuperada ao universal Imperador Frederico II, que a atribuíra a si próprio ao casar com a neta, ainda na puberdade, da Rainha Isabel - sempre ela! - e do seu segundo marido Conrado de Montferrat. Na época, Frederico já tinha sido excomungado e como ninguém queria colocar a Coroa na sua cabeça ímpia, colocou-a ele próprio, decretando-se ao mesmo tempo soberano de Chipre, onde deixara um exército de ocupação que
(1) Ver Thibaut e a Cruz Perdida.
Henrique I conseguira vencer, lançando-o ao mar no dia 15 de Junho de 1232. Depois disso, o combate com Inocêncio IV tomou as proporções conhecidas, fulminando de novo este último o Imperador Frederico com o Anátema no concílio de Lyon e libertando oficialmente, ao mesmo tempo, Chipre do torniquete alemão. Assim, foi o Rei legítimo de Jerusalém que Luís de França apertou nos braços no castelo de Limassol.
Renaud, por seu lado, não precisou de fazer grandes cálculos - se bem que os descendentes dos diversos maridos da deslumbrante Isabel, cujo retrato não abandonava o seu coração, compusessem genealogicamente um ramo espesso! - para concluir que o Rei Henrique era seu primo direito porque a sua mãe, Melisanda e a de Henrique, Alix, eram meias-irmãs. A questão de tirar partido disso não se punha, evidentemente, mas o jovem achava aquilo divertido e, instintivamente, achou simpático aquele homem que varrera com tanta limpeza os fanáticos do Imperador herético e que sabia receber tão bem.
Nicósia encantou-o, como encantou aqueles dos seus companheiros que nunca tinham visto uma cidade oriental. O jovem viu varandas floridas, galerias, terraços onde uma pessoa se podia estender para respirar o ar da noite, ruelas cobertas, à sombra das quais se acumulavam peças de cobre trabalhado, tecidos bordados, móveis, especiarias, vinhos, açúcar, azeite e ervas aromáticas, tudo riquezas de mercadores certamente opulentos. Renaud também soube que, apesar de nenhuma muralha rodear a cidade, esta não deixava de estar cuidadosamente guardada de dia e de noite por patrulhas bem armadas, e munidas de flautas e tamborins. Além disso, como o maior temor dos habitantes era o fogo, podia ver-se, um pouco por toda a parte, grandes vasos cheios de água, sempre prontos a serem atirados para as chamas. As casas estavam ornamentadas com tapetes e tecidos cintilantes e de todos os terraços as mulheres, vestidas e ornamentadas com o melhor que tinham - e que era muito! - lançavam flores e ramos de mirto sobre os recém-chegados Às portas do palácio, a Rainha Estefânia, filha do Rei da Arménia Hetoum I, foi ao encontro das damas com o seu séquito para as conduzir aos seus alojamentos onde poderiam descansar, ao mesmo tempo que os dois Reis e os seus cavaleiros, a pedido de Luís, se dirigiam à catedral próxima a fim de dar graças.
Dedicada à Santa Sabedoria de Deus - Sophia em grego - era um vasto santuário de três naves cuja construção fora começada pela Rainha Alix e que ainda não estava terminada. Os operários que trabalhavam habitualmente no triplo portal ajoelharam-se, com o mestre-de-obras à frente, diante do Rei de França que, abandonando o protocolo, abraçou Eudes de Montreuil, felicitando-o pela obra já realizada. Então, foi cantada uma missa com o entusiasmo de um Te Deum, após o que, por fim, se dirigiram para o palácio, onde se puderam refrescar enquanto esperavam pelo faustoso jantar: papa-figos em molho de vinagrete, hortulanas enroladas em folhas de videira, carneiro assado com especiarias, porco marinado em coriandro, peixe temperado em azeite e salsichas com alho, para além dos legumes e dos doces de mel ou de açúcar, especialidades da ilha, tudo regado com deliciosos vinhos locais que subiram à cabeça de mais de um.
Como era seu hábito, Renaud bebeu moderadamente. Apesar de gostar de vinho, nunca permitia que ele fosse superior à sua vontade, fazendo-lhe perder o sentido da realidade. O jovem desconfiava, tanto mais quanto os habitantes da ilha eram capitosos e dados à embriaguez. Foi o caso de Gerard de Fresnoy, completamente embriagado, que foi preciso transportar até ao leito. Croisilles e Renaud encarregaram-se disso, ao mesmo tempo que outros cavaleiros prestavam o mesmo serviço a outras recentes vítimas de Baco. Para os do séquito mais chegado do Rei e do seu irmão Carlos, a dificuldade era menor porque pernoitavam no palácio. O mesmo não acontecia com o príncipe Roberto e os seus cavaleiros. Esses recebiam a hospitalidade da faustosa residência d'Ibelin, morada da maior família de Chipre e que só estava separada do castelo pelo convento dos Dominicanos. Um arranjo devido ao facto de a sua mulher não o acompanhar, que não agradara nada ao conde d'Artois, que fervia em pouca água. Fiel aos seus princípios, Roberto não gostava nada de se afastar do Rei por pouco que fosse e deu-o a saber, mas acalmou-se rapidamente ao ver abrirem-se diante de si as portas de uma sumptuosa casa, na soleira da qual estava o mordomo-mor do reino para os receber: Balduíno dlbelin, conde titular de Jafa e a sua mãe, uma mulher de idade ainda bela e de porte real que, nascida com o nome de Melisanda d'Arsuf, era a viúva de um homem cuja memória era venerada no que restava do antigo reino de Jerusalém: João dlbelin, o “sire de Beirute”, cuja valentia protegera as cidades francas da costa Síria contra todos os predadores (1), tendo o último sido o Imperador Frederico II, que tivera de se inclinar perante a sua calma determinação. Perante a maneira como se inclinaram, pedindo-lhe que se considerasse em sua casa numa residência admirável cheia de fontes, pátios e jardins, Roberto compreendeu que lhe estavam, na realidade, a conceder uma honra especial: ele era o primeiro hóspede que a velha dama aceitava, não só depois da morte do seu filho mais velho, Balian II, desaparecido um ano antes, como também depois da do seu ilustre marido.
- Sentir-vos-eis aqui, monsenhor, mais livre do que no palácio - disse-lhe ela como conclusão das palavras de boas-vindas, que completavam as do seu filho.
Era uma coisa agradável de ouvir. No entanto, levar logo na primeira noite para debaixo do tecto daquela grande dama um bêbedo a gesticular, que se obstinava em berrar uma canção de caserna bem devassa, chocou curiosamente um príncipe habitualmente indulgente para com um pecado ao qual se entregava muitas vezes.
- Courtenay e Croisilles, arranjai-vos para o desembriagar antes de o levardes! Esta noite, não quero que nenhum dos meus cavaleiros provoque o mais pequeno escândalo - disse-lhes ele, preparando-se para seguir com os homens “válidos” a escolta de portadores de archotes que o esperava.
Era mais fácil de dizer do que de fazer. Depois de lhe terem mergulhado a cabeça numa fonte, Fresnoy continuava bêbedo e continuava os seus clamores, nos quais a melodia não passava de uma recordação.
(1) Para aqueles que leram Thibaut ou a Cruz Perdida, era o filho mais velho de Balian d’Ibelin e de Maria Comnena.
- Onde já se viu uma bebedeira assim? - grunhiu Renaud, irritado. - Começo a acreditar que a única solução é dar-lhe uma cacetada. Pelo menos, cala-se e só temos de o transportar.
- Com outro qualquer, talvez tivésseis razão, mas com este é impossível - respondeu Croisilles, que conhecia bem o seu amigo. - Fresnoy tem um ferimento na cabeça recebido o ano passado num torneio no castelo do seu tio, o conde de Ribemont. Ele obrigou-me a jurar que guardaria segredo porque temia que monsenhor Roberto não o quisesse trazer para a cruzada. A pensar nos combates que vêm aí, mandou acolchoar ainda mais o elmo. Um golpe na cabeça nua pode ser muito mau...
- Nesse caso, é preciso procurar um sítio... um albergue, por exemplo, para ele acabar a noite. Parece-me que há um na rua vizinha...
Pegando de novo no seu fardo, os dois cavaleiros aprestavam-se a dobrar o canto da rua em questão, marcado pela pequena estátua de um santo diante da qual ardia uma lamparina, quando uma mulher pareceu destacar-se da parede e tocou no braço de Renaud:
- Acompanhai-me, messire! Perto daqui está uma dama que vos quer falar...
- Uma dama? Que dama?
- Deve ser uma cortesã - disse Croisilles, rindo.
- Eu disse uma dama! - disse de novo a desconhecida. - E que vos conhece, messire de Courtenay...
O tom era severo, assim como o traje. Vestido e véu escuros enquadrando um rosto de uns cinquenta anos de traços tão comuns que Renaud não se recordou de os já ter visto:
- Como pode ela conhecer-me, quando acabo de chegar? Quem sois vós?
- Sou a serva dessa dama. Ela própria vos dirá o seu nome. Acrescento que ela vos espera... e que o albergue onde queríeis ir está fechado. Tendes medo?
- De quê, senão de acordar a cidade inteira se continuarmos aqui mais tempo? - respondeu Renaud colocando a mão na boca de Fresnoy que, após um instante de silêncio, voltara a berrar. - Onde vamos? Não muito longe, espero?
- É mesmo ali defronte!
Uma pequena casa com terraço, sem outras aberturas senão uma porta baixa e, no andar superior, uma janela com colunas onde uma luz difusa surgia por trás de uma cortina pouco espessa. Seguindo a mulher, os dois companheiros levaram para lá o seu bêbedo, conseguiram transpor a porta sem se magoarem e sem largarem o fardo e viram-se num pátio interior onde havia uma laranjeira, dois potes de barro com mirto, três escabelos e uma bacia de pedra em redor de uma pequena fonte. Iluminada por uma lâmpada de cobre de três bicos pousada no solo, uma mulher vestida de azul e com uma espessa trança deslizando ao longo do ombro encontrava-se de pé perto da bacia com as mãos no fundo das mangas: era Flore d'Ercri...
Por um momento, Renaud acreditou estar a ser objecto de uma ilusão, de uma semelhança, o que lhe permitiu não se mostrar surpreendido; mas era mesmo ela, como lhe disse o seu lento sorriso que, subindo até aos olhos, os iluminou:
- As minhas felicitações, sire Renaud! Não pareceis espantado com este encontro!
- Mas estou! Estamos a caminho de uma cruzada e as damas também desejam participar para fazerem a peregrinação, protegidas pelas armas...
- É bem pensado... Mas o melhor, por agora, é estender o vosso companheiro neste banco. Depois, apresentar-me-eis o outro, que parece mudo.
Era bem dito: a aparição súbita de uma mulher tão bela tinha provocado, na cabeça de Croisilles, o efeito da cabeça da Medusa... mas mais agradável. O cavaleiro parecia petrificado.
- Dama - disse ele, por fim - eu cairia de boa vontade aos vossos pés de tal modo sois bela, mas, como vedes, é impossível. O nosso amigo está de tal modo embriagado que nem a água fria o faz calar.
Fresnoy, que pedia de beber com uma voz pastosa, cortou-lhe a palavra e fez rir Flore... Desviando Renaud, ela ajudou Croisilles a deitar o bêbedo no banco com uma almofada sob a cabeça, recomendou aos dois companheiros que o mantivessem naquela posição e ordenou à sua serva que fosse buscar uma bacia, toalhas e uma pinga de azeite. - A única solução é fazê-lo vomitar - declarou ela.
Não foram demais para levar a bom termo a operação, tal era a força do paciente, mas conseguiram: a jovem enfiou uma grande malga de azeite pela goela abaixo de Fresnoy e depois, com firme determinação, meteu-lhe um dedo na garganta. O resultado foi milagroso e só tiveram tempo de se desviar enquanto lhe punham a cabeça dentro da bacia. Fresnoy deitou tudo fora como um odre furado e quando terminou, não só não dizia nada como parecia totalmente esgotado. Estenderam-no de novo no banco, lavando-lhe o rosto com água de rosas para anular o odor desagradável.
- Creio - disse Flore após um momento - que já o podeis reconduzir ao seu alojamento sem receio de acordar a cidade inteira.
Mas ser mandado embora assim, sem mais aquelas, não foi do agrado de Croisilles:
- Bela dama - gemeu ele - prestastes-nos uma grande ajuda e eu gostaria que soubésseis que vos estou muito agradecido. O meu nome é Hugo de Croisilles, cavaleiro e...
- ... e quereis saber o meu? - perguntou ela com um sorriso trocista. - E, certamente, também, como conheço o vosso amigo? Bem, ficais a saber que sou... prima dele. O meu nome é Flore... de Baisieux - acrescentou ela com um olhar para Renaud que o desafiava a contradizê-la. - E agora que as apresentações estão feitas, creio que chegou a hora de nos separarmos.
- Posso regressar... para vos saudar?
- A horas convenientes de visita, sem dúvida! Quanto a vós, Renaud, gostaria de vos ver de novo uma vez a vossa missão de caridade terminada.
- Esta noite? - perguntou ele com pouco entusiasmo.
- Peço-vos! Temos de falar e quanto mais cedo melhor!
- Como quiserdes...
Meia hora mais tarde, Renaud, depois de ter deitado Gerard de Fresnoy, que dormia como um corneteiro surdo e de ter deixado Croisilles num estado de reflexão nostálgica, estava de regresso. Flore esperava-o, mas dessa vez no seu quarto, no andar superior. A jovem estava sentada aos pés da cama, ao lado de uma braseira que tinha mandado acender. Tinha-se levantado vento, arrefecendo a noite e anunciando o Inverno. A entrada do cavaleiro, introduzido pela serva, a jovem não se levantou, contentando-se em apontar-lhe uma cadeira ao lado de um tabuleiro de cobre com pernas, sobre o qual estavam dispostos um jarro de vinho, duas taças e um cesto com biscoitos. Com um gesto e sem olhar para ele, ela ofereceu o vinho, mas ele recusou:
- Obrigado. Ainda agora saí do festim que pôs o cavaleiro de Fresnoy no estado em que vistes... e cuja recuperação vos agradeço.
- Sem esta ocasião, teríeis vindo ter comigo quando vos mandei buscar? Porque a minha serva estava à espreita por vós, unicamente...
- Como sabíeis que eu estava cá?
- Vi-vos chegar com os Reis e com monsenhor d'Artois, do qual soube serdes cavaleiro. Mas, sentai-vos! Sois demasiado grande! Embaraçais-me!
- Não tenciono demorar-me.
Estranho diálogo, no qual os olhares se evitavam. Flore brincava com um pedaço de tecido do seu cinto e Renaud contemplava a colcha do leito. Havia entre os dois um embaraço que nem um nem outro parecia desejar dissipar. O silêncio que se seguiu provava-o. Lembrando-se do que Pernon lhe dissera, Renaud sentia-se dividido entre a amizade de outros tempos e a desconfiança actual. Ela mostrara-se boa para ele, prestável e ele tinha dificuldade em acreditar que aquela magnífica criatura - estava ainda mais bela! - tivesse decidido, sem a mínima hesitação, sem a mínima sensibilidade, a morte de uma mulher que se entregara a ela de maneira tão completa. No entanto, não podia ficar ali, assim, até nascer o dia, no meio daquele quarto, onde não tinha nada que estar. Então, o jovem decidiu-se a romper o silêncio:
- Como é possível estardes aqui? - perguntou ele em voz baixa, como se fosse importante para evitar uma catástrofe.
Ela deu uma pequena risada e dessa vez os olhos de ambos encontraram-se. Os de Flore brilharam por um instante com a antiga chama trocista:
- Como toda a gente: apanhei em Marselha um barco de peregrinos que ia para São João de Acra e que passava por Chipre.
- Por quê Chipre?
- Eu sabia que o Rei, os seus irmãos e os mais valentes homens da cruzada se reuniriam aqui. Simplesmente, cheguei antes e não tive dificuldade em alugar esta casa cuja localização era ideal para observar quem entrava e saía do palácio.
- Não é isso que eu estou a perguntar. Como conseguistes fugir de Coucy, já que, tendo sido condenada, devíeis estar bem vigiada?
- Estais ao corrente? Não é de admirar, com o escudeiro que escolhestes. O velho Gilles nunca me enganou!
- Colocai-vos no lugar dele! Quisestes matá-lo!
- Chega-me o meu... E não quis matá-lo: quis, simplesmente, que tivesse medo e que fugisse. Eu já não suportava o seu olhar acusador. Queria saborear em paz a minha felicidade.
- A vossa felicidade? Quando envenenastes quem tinha tanta confiança em vós? Nunca vos julguei capaz de um tal crime.
Subitamente, ela dardejou-o com um olhar dilatado por uma perturbação profunda.
- Nem eu. Deus é testemunha de que, a princípio, eu desejava ser uma dama-de-companhia fiel e leal! Mas tudo mudou quando sire Raul se apaixonou pela dama de Blémont. Nessa época, coloquei-me, com todas as minhas forças, ao lado da esposa enganada. Queria ajudá-la; queria que ela tivesse, enfim, a criança que impediria que fosse repudiada em benefício da outra. Mas, depois, a outra matou-se durante uma caçada...
- E vós ajudastes?
- Não. Ao ponto a que cheguei, não haveria razão para o esconder se fosse verdade. O marido é que, se calhar, ajudou, mas eu não procurei saber. Simplesmente, aquela morte inesperada revelou-me o que eu escondia a mim mesma há muito tempo: o amor que sentia por Raul. Um amor que se pôs subitamente a arder bem alto e com força, como uma planície para a qual se lança um tição. Queria-o para mim... e consegui! Oh, Deus, como nos amámos! Noites inteiras... e também dias, quando me juntava a ele no calor da estufa ou sobre a erva de um bosque no decurso de uma caçada! Ele retribuiu a fome que eu tinha dele e eu alimentei-a.
- Com encantos e magia? - perguntou Renaud com um desdém que ela lhe devolveu levantando-se bruscamente e erguendo com as duas mãos o vestido, por baixo do qual estava nua...
- Achais que, com o corpo que tenho, preciso de filtros? Quando estávamos junto de outras pessoas, eu sentia o seu olhar nos meus seios, no meu ventre, antecipando as carícias que trocaríamos mais tarde. Ele estava louco por mim e eu por ele... Mas, depois, tudo acabou quando ele soube a verdade.
- Sire Raul ficou tão horrorizado que vos condenou à fogueira!
- Que permitiu que me condenassem seria mais exacto, mas perguntastes-me como me consegui evadir de Coucy...
- Como foi?
- Foi ele, meu caro, por um subterrâneo. Também me deu ouro, ordenando-me que fosse para longe, para o mais longe possível, para que nunca mais me visse... Mas antes, fizemos amor pela última vez.
- E que concluístes?
- Que ele nunca me esqueceria - lançou ela com orgulho. - Oh, eu obedeci-lhe, como sois testemunha. Parti para muito longe... mas para onde o poderia encontrar de novo..
- Não o encontrareis - disse Renaud com severidade. - Foi por desgosto e repugnância por si mesmo que veio para a cruzada. É o perdão de Deus que ele procura, antes, talvez, da morte como soldado de Cristo. E vós não tendes o direito de vos meterdes de través.
- Não compreendeis! Eu não posso viver sem ele... nem ele sem mim!
- Talvez seja por isso mesmo que ele quer morrer?... Tenho a impressão de que está doente...
A angústia invadiu subitamente o belo rosto de Flore:
- Doente?... Eu sou capaz de o curar.
- Não me parece. É o remorso que o rói.
- Ou o desgosto? Renaud! Por favor! Eu fui vossa amiga, fiel e dedicada. Não me devolveis uma migalha dessa amizade?
- Só desejo servir-vos - disse ele, um pouco mais calmo - mas na condição de ninguém vir a sofrer...
- E o meu sofrimento? Não quereis saber dele?
- Sabeis bem que sim. Ninguém, como eu, deseja ver-vos feliz... mas não a qualquer preço! Esqueceis que essa felicidade, que tanto lamentais, foi paga com a vida de outra mulher?
- O amor é o bem supremo. O amor justifica tudo.
- Não o crime! Mas, que quereis de mim, donzela Flore?
- Que me ajudeis! O Rei Luís está a reunir as suas forças para a cruzada em Chipre, o que não demorará muito tempo, para evitar o mau tempo no mar. E eu, que não sou Rainha, nem princesa, nem mulher de um grande senhor, vou ficar aqui. Ora, eu quero partir com a hoste!
- A menos que entreis para o serviço de uma das damas nobres, parece-me impossível... e eu não tenho poder para vos ajudar. Se a condessa d'Artois estivesse connosco, talvez fosse possível, mas monsenhor Roberto veio só. Quanto a Madame d'Anjou, não tenho acesso a ela... e menos ainda à Rainha Margarida. Mas que isso não vos impeça de tentar a sorte, esperando que ninguém vos reconheça.
- Há outra solução: casai comigo!
Ele teve um sobressalto. Ela seria inconsciente?
- Certamente que não. Não vejais nisto uma ofensa - acrescentou o jovem mais docemente - mas eu não tenho qualquer bem, senão aquilo que monsenhor Roberto dá aos seus cavaleiros sem terras...
- Tenho eu o suficiente pelos dois!
- Não me parece! Além disso, eu tenho de construir um nome... que ficaria desonrado perante todos se a verdade se viesse a saber.
Por piedade, o jovem não acrescentou que dar o seu nome tão belo, tão recente ainda, a uma assassina, lhe repugnava. Mas talvez ela o tenha compreendido porque, num impulso, se sentou a seus pés numa almofada de seda, de modo a que o seu olhar pudesse mergulhar no decote do seu vestido e que o seu nariz se enchesse com os eflúvios da sua pequena bola de perfume alojada entre os seios, na ponta de um finíssimo fio.
- Nesse caso, fazei de mim vossa amante! Em nome do amor, também isso é permitido e a vossa reputação aumentaria: eu sou suficientemente bela para isso! Faríeis os outros invejosos e quando o barão Raul ficar comigo de novo... bem, a vossa honra não terá empalidecido.
A jovem pousou-lhe uma mão no joelho, que se pôs a acariciar, ao mesmo tempo que a sua voz se fazia mais terna, mais íntima:
- Sejamos amantes, Renaud! Que, ao menos, eu possa pagar com prazer a ajuda que me ides dar...
Ele sentiu-se de repente em perigo. Pernon tinha razão: nenhum macho, normalmente constituído, ficava insensível ao encanto daquela estranha rapariga. Ela exalava uma sensualidade natural, como outras o suor. Com um movimento brusco, o jovem levantou-se.
- Bela ideia, na verdade! Esperais provocar o ciúme do barão Raul, ao ponto de ele me desafiar? Um duelo no meio de uma cruzada? E que havia eu de dizer ao Rei?
O jovem disse o Rei, mas estava a pensar na Rainha. Qualquer coisa lhe dizia que aquele género de situação lhe faria horror, mas não contou com a subtil perspicácia de Flore:
- Continuais apaixonado por Madame Margarida?
- Não creio que isso vos diga respeito.
- E continuais virgem, como sempre que um homem sonha alto e pensa vir a ser digno da mulher amada cultivando a castidade?
Renaud estava capaz de a esbofetear, mas, subitamente, o ridículo daquela situação pareceu-lhe tão evidente que desatou a rir:
- Vós sois capaz de tudo para conseguir os vossos fins, não é verdade? Por que não vos ofereceis, também, para me tirardes a virgindade? Mas chegais tarde, minha querida! Monsenhor Roberto já tratou disso! Ele preocupa-se muito com a saúde física e moral dos seus cavaleiros...
Ela encolheu os ombros, desdenhosa:
- Uma rapariga de bordel, suponho?
- Evidentemente! Algumas são bem bonitas e monsenhor Roberto utiliza-as quando a condessa está impedida. Foi ele que escolheu por mim.
Aliás, o jovem guardava uma bela recordação daquela iniciação. Nicole, a rapariga que conhecera em casa de Gila, a coxa, perto da tapada de Bruneau, em Paris, era loura, jovem, fresca, meiga e alegre. Ela ensinara-o a fazer amor enquanto ria e ele voltou várias vezes, só ou acompanhado, o que satisfizera Roberto d'Artois:
- Esses encontros são uma boa precaução contra as meiguices das damas e das donzelas, que eu sei serem mais putas do que as putas, mas muito mais perigosas e muito mais caras! Evidentemente, o nosso sire Luís não pensa da mesma maneira, acha que as putas são criaturas do inferno. Se não receasse um motim, tenho a certeza que as atiraria todas ao Sena como se fossem ninhadas de gatas recém-nascidas - dissera ele com uma daquelas suas risadas estridentes que o tornavam irresistível.
Por esse passo que dera, Renaud estava-lhe reconhecido, porque o desembaraçara do aguilhão da carne e dos seus pensamentos perturbadores. Doravante, podia amar a Rainha evitando sujar a sua imagem com pensamentos que, levados àquele ponto, se tornavam quase de lesa-majestade. Ele não esquecia, de facto, o que suportara na base das muralhas de Pontoise enquanto ela dava à luz o seu pequeno Filipe. E sabia que sempre a desejaria desde que mantivesse aperreados os cavalos selvagens da sua imaginação.
Subitamente, Renaud teve consciência do silêncio súbito entre Flore e ele. Ela levantara-se e de braços cruzados e encostada a uma coluna do leito, olhava para o exterior como se se tivesse esquecido da sua presença. Pensando que tinham dito tudo, o jovem dirigiu-se para a porta, mas ouviu:
- Esta tarde, quando o Rei Henrique trouxe os seus hóspedes, não vi o barão Raul...
- Nem vereis, a menos que queirais ir a Limassol, onde ele preferiu ficar.
- Porquê?
- Ele não gosta do brilho das recepções reais e das festas. Prefere esperar que regressemos ao mar e faz companhia a um outro viúvo, esse inconsolável: o conde de La Marche, Hugo de Lusignan, que chora a antiga Rainha de Inglaterra, Isabel. Eles entendem-se bem e montaram acampamento perto um do outro.
Se Flore ficou decepcionada, não o deu a entender e o seu olhar era indecifrável quando perguntou:
- Continuais a não me querer ajudar?
- Eu não disse que não quero, simplesmente não vejo como poderei fazê-lo... Foi uma loucura terdes vindo até aqui e, na verdade, não sei que conselho vos possa dar: ir a Limassol pode ser um grande risco. Se o barão estivesse sozinho, não teríeis dificuldade em retomar o vosso domínio sobre ele, mas os cavaleiros estão com ele e, certamente, todos eles vos conhecem...
Flore não respondeu e desviou o olhar para que ele não visse as lágrimas que o estavam a enevoar.
- Ide-vos embora! - disse ela surdamente. - Não passais de um ingrato! Quando vos acudi, não fiz perguntas a mim própria para saber se aquele fedelho tinha ou não morto o pai e a mãe. Vós tínheis o ar de uma criança perdida e agradáveis-me. Por isso, não hesitei...
Apesar de ela lhe ter dito para se ir embora, ele ficou imóvel, atingido no coração por uma censura que achou merecida. Aquela rapariga fizera tudo - e sem o conhecer de lado nenhum! - para o tirar de uma situação terrível. Quem era ele para lhe dar uma lição? Ela estava só num país estrangeiro e do qual não poderia esperar grande coisa. O jovem aproximou-se de Flore e segurou-lhe na mão, que virou para lhe beijar a palma num gesto íntimo onde havia algum sentimento:
- Eu volto! Por agora, não decidais nada!
Renaud não sabia o que poderia fazer para lhe valer no curto espaço de tempo em que ficaria na ilha, mas contava com um pouco de sono para pôr ordem nos seus pensamentos forçosamente enevoados depois de um festim e de um começo de noite muito movimentado. Como, sobretudo, pagar a sua dívida a Flore sem desencadear a cólera do seu escudeiro? Felizmente, Gilles Pernon desaparecera antes de se dirigirem ao palácio, pressionado, sem dúvida, pela vontade de provar os vinhos de Chipre com tão boa reputação, e como não o encontrou quando regressou à residência d'Ibelin, concluiu que devia estar numa taberna qualquer. O que, para aquela noite, era preferível, mas que exigiria uma explicação, Antes de adormecer, Renaud pensou que a melhor maneira seria expor o problema tal qual ele se apresentava e pedir-lhe, muito simplesmente, a sua opinião.
Mas quando o dito Pernon - aliás fresco como uma alface e totalmente lúcido! - o foi acordar ao nascer do Sol, não havia tempo para grandes conversas: o príncipe Roberto e os seus cavaleiros tinham de ir ao palácio ter com o Rei, que queria falar-lhes.
Pensando que se tratava de uma partida iminente para a Terra Santa doravante tão próxima, Renaud apressou-se, não sem sentir uma certa inquietação: se a partida estava para breve, que solução para Flore D'Ercri? Tinha de ser uma solução compatível com a sua própria consciência: se ajudasse a jovem a desviar Raul de Coucy do seu arrependimento para voltar a cair no pecado, cometeria um pecado mortal: mas se abandonasse aquela infeliz, só Deus sabia do que ela seria capaz! Já totalmente acordado, compreendeu que se comprometera por piedade e que não sabia o que fazer... De qualquer maneira, prometera regressar para a ver. Bem, essa promessa, pelo menos, podia cumpri-la. Entretanto, havia de ter uma ideia qualquer.
O que Luís IX tinha para lhes dizer consternou-o de tal modo que esqueceu Flore por momentos: assim que os grandes barões - como o duque de Borgonha e o príncipe Afonso - chegassem a Chipre, rumariam ao... Egipto!
Apesar do respeito que tinham pelo Rei, o protesto foi geral:
- O Egipto? - grunhiu o núncio, Eudes de Châteauroux - quando estamos apenas a vinte léguas de São Simeão, o porto de Antioquia? Esqueceis que estamos aqui para reconquistar a terra de Cristo e que não temos nada a ver com o Egipto, onde a Sagrada Família esteve, sem dúvida, algum tempo, fugindo aos massacres de Herodes. Mas essa ligação... não tem grande interesse!
A sua declaração foi aprovada por numerosas vozes, uma das quais era a de Roberto d'Artois, que estava morto por defrontar o Infiel:
- Sire, meu irmão, nós podemos partir amanhã, estaremos na Terra Santa dentro de dois dias e podemos cair em cima daquela canalha logo a seguir!
Luís deixou a tempestade amainar, contentando-se em observar tudo com o seu olhar azul, tranquilo como um lago:
- Monsenhor, e vós, meu irmão, penso que estais pouco a par do actual estado do império deixado por Saladino. É verdade que o reino de Jerusalém se compôs pouco a pouco depois do reinado duvidoso de Frederico II e, sobretudo, da cruzada conduzida por Ricardo da Cornualha e pelo conde de Champagne. Mas em Agosto de 1244, os Turcos Kwarezmiens, expulsos pelos Mongóis, abateram-se como uma nuvem de gafanhotos sobre Jerusalém, a Santa, que conquistaram. O ano passado voltámos a perder Tiberíades e Ascalon. No entanto, neste momento, está tudo nas mãos, novamente, desde 1245, do sultão Al-Salih Ayub, que no seu reino, no Egipto, conseguiu acrescentar Damasco, onde repousa para a eternidade o corpo do seu tio-avô Saladino. Aos francos só lhes resta uma estreita faixa litoral, enquanto Al-Salih Ayub continua no seu palácio do Cairo. Além disso, está velho e dizem que doente. Portanto, é no coração do seu império que é preciso atacá-lo. Caído o Egipto nas nossas mãos, teremos uma excelente moeda de troca, porque não o entregaremos senão contra o reino de Jerusalém! Inteiro!
- É bem pensado - admitiu o núncio - mas por que não desembarcar na Síria e seguir dali para o Egipto?
- Gastando as nossas forças em combates incertos e em marchas esgotantes através do deserto? Os nossos navios, em três dias, levam-nos ao delta do Nilo. Além disso, a hoste não está completa: temos de esperar pelo nosso irmão bem-amado Afonso de Toulouse, que deve trazer tropas de socorro e também pelo nosso primo da Borgonha. Isto para só falar nos mais importantes.
- Se eles tardam, a estação avança demais e o mar fica mau - exclamou Roberto. - Vamos passar o Inverno aqui?
Ao ouvir aquele tom impaciente, mesmo desdenhoso, Luís franziu o sobrolho:
- Aqui, oferecem-nos, durante o tempo que for preciso, uma hospitalidade tão grande quanto generosa. Devemos apreciá-la mostrando-nos reconhecidos, meu irmão. Sabei que, além disso, os nossos planos foram feitos há muito tempo, estando tudo previsto. Tendes mais alguma coisa para dizer?
- Muito bem! Se bem compreendi, sempre pensastes atacar o Egipto! E nunca dissestes nada? Porquê?
- Por várias razões. Primeiro, para deixar o Imperador Frederico na expectativa. Ele é tão amigo dos Muçulmanos que era capaz de os prevenir...
- Um soberano cristão contra outro soberano cristão?
- Ninguém pode dizer se ele ainda o é. O Anátema que o Santo Padre lhe lançou não parece preocupá-lo muito. A segunda razão tem a ver com vós mesmo, meu irmão... e com os vossos pares. Algo me diz que teríeis sido menos ardente nos vossos preparativos... Acrescentemos, por fim, que a nossa mãe, cuja ausência nos é cruel, aprovou plenamente estas decisões!
Levantando-se da alta cadeira onde estava sentado, na sala dos Bravos, ao lado do trono de Chipre que, por discrição, o Rei Henrique não estava a ocupar, Luís observou por alguns momentos a assembleia instável dos seus pares e cavaleiros:
- Resta-nos - disse ele - rezar para que aqueles por quem esperamos se juntem a nós rapidamente. Se chegaram nos próximos dias, a partida antes da chegada do Inverno talvez seja possível, mas nada será deixado ao acaso e não desembarcaremos no Egipto senão com um grande e belo exército para termos a certeza da vitória final! E agora vamos rezar para que Nosso Senhor esteja sempre connosco, sem a ajuda de Quem nada se pode fazer! Peçamos-Lhe também que vos dê paciência - acrescentou ele, sorrindo para Roberto, cujo rosto ainda estava vermelho de cólera. - É uma virtude primordial! E muito apaziguadora!
Aquelas novas disposições - que aparentemente não eram tão novas quanto isso! - tiveram, pelo menos, a vantagem de libertar, no imediato, o espírito de Renaud do problema colocado por Flore d'Ercri. Tinha margem de manobra e foi isso que, naquela mesma noite, foi explicar à jovem depois de uma discussão tempestuosa com Gilles Pernon:
- Ela matou a dama Filipa, expulsou-me, seduziu messire Raul e quereis ajudá-la? - exclamou o velho escudeiro de olhos esbugalhados. - Santo Deus! Sire Renaud, perdestes o juízo?
- Não, mas não esqueço. Ela ajudou-me num mau momento da minha vida e, se sobrevivi, foi em grande parte graças a ela.
Não tenho o direito de a abandonar porque tenho uma dívida e quero pagá-la.
- Permitindo-lhe deitar de novo a fateixa ao barão? Ela só lhe fez mal!
- Ela ama-o com um amor verdadeiro e quer impedir que ele se mate, como é sua intenção!
- Mais vale morrer do que perder a honra! O que lhe acontece se ficar com ela! Quanto a mim, sou vosso servidor e já vos devo demasiado, para estar agora a querer dar-vos uma lição. Também não vos posso impedir de fazer o que quereis, mas peço-vos que não me ordeneis que me ocupe dela! Sou capaz de a estrangular!
- E eu que queria o teu conselho!
- Não o seguiríeis. Fazei como quiserdes e eu não farei nada para vos contrariar, mas mais nada. Já que a ela não lhe parece faltar nada e como não tem medo de se ver repudiada, deveríeis deixar tudo nas mãos de Deus... ou nas dela! Se ela acha que é suficientemente forte para recuperar o barão, bem, que o faça abertamente e que vá ter com ele a Limassol...
Renaud não insistiu e encarregou Croisilles, que se encontrava por vezes com ela, que anunciasse a notícia à jovem.
Apesar de algumas velas terem aparecido no horizonte nos dias que se seguiram, pertenciam apenas a barcos isolados, não às grandes naus de guerra de que estavam à espera. O tempo, menos bom antes de se tornar francamente mau com os ventos de Outono, era o responsável por aquele vazio, à excepção dos barcos de pescadores, que só uma tempestade convenceria a ficar em terra. Os cruzados iam-se habituando à ideia de passar o Inverno em Chipre. Sobretudo as damas, cujo modo de vida da ilha, semioriental, as encantava. Com aquela temperatura, a maior parte das vezes clemente, era muito mais agradável visitar os jardins e as ruas sempre tão animadas de Nicósia, galopar até à costa ou até caçar quando o vento local, o melten (1) fazia voar os toucados, em vez de se verem na poeira dos combates, no meio do sangue derramado e dos gritos de agonia. Margarida e a sua
(1) Vento de norte que sopra no mar Egeu no Verão.
irmã Beatriz adoravam percorrer as lojas profundas e frescas onde se acumulavam as jóias, as ervas aromáticas, os tecidos de ouro e de seda, os tecidos grosseiros, as especiarias, o algodão, os bordados, os paramentos e todas as maravilhas que os artesãos produziam.
Mas havia duas ou três tendas de que elas gostavam particularmente porque nunca tinham visto nada parecido e que eram as dos mercadores de “candis”, guloseimas à base de açúcar de cana que gozavam de grande prosperidade na ilha. Era um prazer para as duas princesas poderem elas mesmas comprar cornetos de frutas cristalizadas, pétalas de rosa endurecidas pelo açúcar, amêndoas estaladiças sob uma delgada película do mesmo açúcar e tantas outras coisas requintadas cujo único defeito era fazer-lhes, por vezes, doer os dentes... As duas jovens divertiam-se como duas crianças. A Rainha Estefânia acompanhava-as de vez em quando e essas lojas passaram a ser o ponto de encontro elegante da cidade.
Renaud não fora dos últimos a aperceber-se disso e quase todos os dias ia vadiar para o bendito bairro só para ter a felicidade de avistar a Rainha e de a saudar. Ela já o conhecia bem e, como recompensa, o jovem recebia sempre um sorriso e algumas palavras. A jovem até o apresentou à condessa Beatriz que, dotada de uma franqueza bem provençal, não hesitou em o declarar “encantador”. E o jovem corou, tanto mais que Margarida aprovou. Único ponto negro naqueles encontros: a presença constante de Elvira de Fos. Se bem que nunca tivessem trocado qualquer palavra, a antipatia entre os dois era quase palpável. A poetisa tinha uma maneira de o fixar com os seus olhos sem reflexo que lhe dava a impressão de estar pregado a um pelourinho. E quando ela, por fim, desviava o olhar, a sua longa boca sinuosa esboçava um sorriso igualmente indecifrável. Nessas ocasiões, Renaud ficava com a impressão gelada de se encontrar perante uma serpente. Ela parecia-se muito com o irmão e quando o jovem via Margarida afastar-se apoiada naquela mulher, tinha vontade de gritar um aviso, de se atirar para o meio delas a fim de afastar da sua amada aquela criatura que ele juraria ser nefasta.
Renaud conseguiu encontrar-se com a dama Hersende e não lhe escondeu o seu sentimento, feliz por constatar que ela partilhava a sua opinião.
- Eu tento evitá-lo - suspirou a médica - porque a donzela Elvira nunca fez, ou disse, algo que possa dar lugar à menor crítica. Ela é dedicada, prestável, está sempre de bom humor e, quando canta, é sublime. Não, não tenho nada a reprovar-lhe, mas é mais forte do que eu: ela tem um não-sei-quê que me inquieta. Ora, Madame Margarida demonstra por ela, a cada dia que passa, uma amizade cada vez maior... e eu cada vez lamento mais o facto de a donzela Sancie de Signes nos ter deixado.
- O que é estranho é o facto de ela nunca mais ter regressado. Ela adorava a Rainha e queria sempre segui-la para toda a parte...
- Mas tinha de obedecer ao seu pai e agora está casada.
- Casada? Com quem se terá ela casado? Ela era tão feia, a pobrezinha! É verdade que é de uma família nobre e rica...
- Tão feia, tão feia! E pronto, os homens são assim. O seu olhar é sempre superficial! Não importa, houve um que gostou dela, porque a desposou.
- Com o objectivo de conseguir filhos? Que lhe faça bom proveito! Enfim, no que diz respeito ao assunto de que estávamos a falar, vós estais numa posição que vos permite velar...
- Eu não estou sempre junto da Rainha. Também trato do Rei, de toda a família e do séquito, sem contar com os servos. A velha Adèle também está presente, mas não tem andado nada bem e as duas damas que vestem a Rainha são umas galinhas. Precisávamos de mais alguém. Entretanto, farei o melhor que puder. Mas, talvez estejamos a deixar voar demasiado as nossas imaginações? Que achais?
- Não creio...
Um encontro, alguns dias mais tarde, distraiu por alguns momentos Renaud das suas preocupações.
O jovem regressava da catedral onde ganhara o hábito de ir para ver Eudes de Montreuil, admirar o seu trabalho e conversar com ele. Uma maneira simples de prolongar a amizade com o seu irmão, com quem se assemelhava: o mesmo olhar, o mesmo sorriso e a mesma intransigência no trabalho. A mesma preocupação com a perfeição. Entre os dois, o entendimento fez-se quase sem palavras. O escultor era sensível à admiração indisfarçada do cavaleiro e este ao contentamento que podia ler no rosto tranquilo mas já marcado pelas rugas, onde se incrustava a poeira da pedra, do jovem mestre-de-obras... O tempo passava depressa quando estavam juntos; assim, naquela noite, Renaud apressava-se a regressar ao palácio d'Ibelin, onde os dois Reis, as Rainhas e algumas pessoas do seu séquito eram esperados para o jantar, quando viu vir na sua direcção um pequeno grupo bastante bizarro.
A cabeça cavalgava um senhor que ele conhecia de vista e que, aliás, passava dificilmente despercebido devido às suas roupas de um verde-maçã alegre com que gostava de se vestir: era o jovem mordomo-mor de Champagne, messire Jean de Joinville, um rapaz de vinte e três ou vinte e quatro anos que ganhara recentemente reputação entre os chefes do exército por se ter atrevido a dizer ao Rei que já não tinha dinheiro e que os dez cavaleiros que trouxera consigo ameaçavam deixá-lo e regressar a casa porque tinham medo de morrer de fome. Luís, não só o escutara com benevolência como lhe dera, através do seu tesoureiro, uma bela soma, acrescentando que se encarregaria, doravante, dos seus cavaleiros famélicos. Assim, o sorriso regressara ao seu rosto redondo, amável fachada de uma grande cabeça de cabelos castanhos que nem o elmo conseguia disciplinar. Na ocasião, conduzia pela brida uma mula transportando uma jovem mal vestida, que parecia prestes a cair a cada passo da sua montada de tal maneira parecia cansada. Não se podia dizer que tivesse bom aspecto! Uma outra mulher, que parecia ser uma serva, seguia-a montada num burro. Quanto ao escudeiro do sire de Joinville, seguia a pé, já que o seu cavalo era ocupado por uma personagem que, subitamente, se pôs a agitar os braços com grandes gritos de alegria:
- Renaud de Courtenay! Meu amigo Renaud! Que prazer ver-vos!
O jovem reconhecera-o e correu para ele sem se preocupar com os outros:
Guillain D'Aulnay! Louvado seja Deus! Por que milagre?
Mas já o habitual companheiro de Balduíno II tinha saltado para terra e corria de braços abertos. Os dois homens abraçaram-se dando grandes palmadas nas costas um do outro com um entusiasmo que fez erguer uma sobrancelha reprovadora em sire Joinville e depois também a outra quando este constatou que o reencontro se arriscava a durar muito tempo:
- Hum! Não vos estais a esquecer, sire d'Aulnay, de quem está à espera, com uma paciência bem caridosa, que acabeis com esses abraços todos? - disse ele num tom irritado que rompeu o encanto.
Os dois homens separaram-se e Aulnay, confuso, levou o seu amigo até junto da dama tão dolente, diante da qual se inclinou profundamente:
- Que a nossa grande soberana se digne perdoar-me um momento de emoção e me permita apresentar-lhe o cavaleiro Renaud de Courtenay, que tão bem serviu o vosso nobre marido como escudeiro quando fomos a Roma e tirámos de lá Sua Santidade o Papa Inocêncio!
Completamente atordoado, Renaud viu-se a saudar aquela mulher jovem sem aparência, loura e um pouco insignificante, vestida de qualquer maneira com uma sobreveste e que, salvo erro, não era outra senão a mulher de Balduíno II, aquela Maria de Brienne cuja coragem, dignidade e porte verdadeiramente real ele ouvira gabar várias vezes. A jovem passara, certamente, por uma grande provação para estar naquele estado e um pensamento horrível atravessou-lhe o espírito: estaria ela viúva, tendo o querido Balduíno desaparecido na flor da idade? Era evidente que ela não estava de luto, mas as roupas miseráveis não significavam nada.
A dama desfez-se em lágrimas quando ouviu a apresentação de Renaud:
- Um antigo servidor do meu querido marido só pode ser uma coisa agradável - gemeu ela. - Ele precisa tanto de apoio!
Maria de Brienne virou-se para pedir um lenço à sua acompanhante enquanto o mordomo-mor de Champagne, cortando a palavra a Aulnay, explicava que a nau que transportava a Imperatriz para Chipre fora levada por um golpe de vento no momento em que ela desembarcava no porto de Paphos, perto do acampamento de Limassol, onde o Imperador se encontrava então com o seu primo Erard de Brienne, que também era primo da náufraga. Porque era, efectivamente, uma náufraga e que tinha grande necessidade de ajuda feminina. Ao ver-se na areia, ela tivera a ideia de enviar o seu escudeiro, o sire de Jauny, ao campo dos cruzados na esperança de, justamente, encontrar o sire de Brienne e ele próprio. Eles tinham-se precipitado e enquanto Joinville encontrava montadas para levar o mais rapidamente possível a pobre mulher para Nicósia, Brienne ficava em Paphos para ver se, por acaso, um outro golpe de vento não traria de volta a nau imperial...
- Esperemos que não se tenha esmagado num rochedo qualquer! As gentes de Pophos viram-no ser arrastado para o largo em direcção à costa Síria, como se fosse levado pela mão de Deus. Quanto à barca que trazia a Imperatriz para terra, virou-se devido a uma grande vaga que - graças a Deus! - a atirou sobre a areia com a sua acompanhante. Os sires d'Aulnay e de Jauny tiveram de nadar para se lhe juntarem. E agora tende paciência porque é preciso separaramo-nos! Temos de ir ter com o Rei e, sobretudo, com a Rainha! Sabeis onde estão?
- Devem jantar esta noite na residência d'Ibelin, onde está alojado monsenhor d'Artois. Não sei se já lá estão, porque eu estou atrasado. O melhor é seguirdes-me! Se eles ainda não tiverem chegado, a dama dlbelin tomará conta da Imperatriz...
Mas os soberanos já lá estavam e a entrada em cena da pobre Maria tomou proporções dramáticas. A soberana foi rodeada, confortada, levada pelas princesas para os aposentos das damas para lhe darem banho, vestir como convinha ao seu estatuto e, finalmente, conduzirem-na à mesa, onde foi tratada como a Rainha da noite, apagando-se voluntariamente Margarida e Estefânia para lhe dar o primeiro lugar. A princípio, ela sentiu-se feliz, mas naquela atmosfera elegante, faustosa e plena de alegria - em Chipre o gosto pelas festas era uma parte essencial da vida - pareceu apagar-se pouco a pouco como uma lâmpada com falta de azeite e, finalmente, desatou a soluçar:
- Oh, meu Deus, estou eu aqui, no meio do luxo e da abundância enquanto o meu pobre senhor...
Foi Guillain que informou Renaud sobre a situação pouco brilhante do Imperador. O regresso de Balduíno com o que conseguira obter em matéria de tropas e ouro provocara algum alívio, mas somente um pouco. As tréguas com Vatatzès, o Imperador de Nicéia, tinham expirado recentemente e este último não perdera tempo, pondo-se em marcha. Reconquistou várias cidades e teria atacado Constantinopla se, justamente, Balduíno não tivesse chegado. O Imperador forçou Vatatzès, que aliás se encontrava doente, a regressar a casa, mas compreendeu rapidamente que, no fundo, aquilo não era senão um recuo momentâneo para depois dar um salto maior e que, à excepção de Constantinopla, livre momentaneamente, a situação não era melhor do que quando partira para o Ocidente. As tropas que o tinham ajudado a regressar dispersavam-se, quer para se juntarem à cruzada, quer para regressarem aos seus países de origem. De qualquer maneira, não seria possível continuar a pagar-lhes durante muito tempo já que o ouro que tinham trazido fundira-se como neve ao sol com as necessárias reparações das muralhas e o apuramento de determinadas contas:
- O Imperador está reduzido a expedientes para arranjar dinheiro - suspirou Aulnay. - Até vendeu o chumbo que cobre os palácios imperiais e até... empenhou o filho Filipe aos Vene-zianos... Uma espécie de refém a pensar no futuro!
- Como é possível?
- Para os Venezianos, o comércio está antes de tudo e o facto de terem um futuro Imperador como penhora, submetido à sua política, pode ser uma boa coisa. Oh, meu amigo, vivemos dias difíceis e eu sinto-me feliz por o vosso destino ter tomado um caminho diferente...
- Quase que me fazeis sentir arrependido, já que devo muito ao Imperador e gosto muito dele. Mas não vos atormenteis. O Rei Luís é demasiado generoso para não assistir parentes seus na desgraça. Estou certo que quando regressardes a Constantinopla...
- Nós não vamos regressar a Constantinopla. O nosso sire Balduíno está à espera de ajuda, mas não quer que a sua mulher regresse. Terminada a sua missão aqui, ela vai - nós vamos! - para França, onde vai gerir ela mesma as terras de Courtenay que lhe restam. A Imperatriz só regressará quando as coisas tiverem entrado na ordem... se algum dia entrarem.
- E vós ides segui-la? Para gerir algumas propriedades, vós, que sois marechal do império?
- Oh, eu sou um velho solteirão! Nem mulher, nem filhos! Toda a minha família está em França... e o império, quanto a mim, não durará muito mais tempo.
- Nesse caso, vinde connosco ao Egipto combater o Infiel! E talvez fazer fortuna! Ainda sois demasiado jovem para vos pordes à lareira... e eu sinto-me tão feliz por vos reencontrar!
Como Renaud previa, Luís IX e Henrique I fizeram os possíveis para consolar a pobre soberana. Estava fora de questão dividir, por pouco que fosse, o exército a caminho da cruzada, mas vários cavaleiros comprometeram-se, por escrito - e Roberto d'Artois foi um deles, com os seus - a ir combater por Balduíno uma vez atingido o objectivo da sua guerra santa: conquistar o Egipto e trocá-lo pelo antigo reino franco de Jerusalém. Um arranjo que satisfez toda a gente e fez regressar o sorriso ao rosto da Imperatriz.
Quando chegou o Natal, Luís abandonou as delícias de Nicósia, demasiado amolecedoras para o seu gosto, para se juntar ao seu exército em Limassol e passar com eles aquela Natividade tão cara aos corações cristãos, mas que o afastamento do país natal podia tingir de nostalgia. Os seus irmãos fizeram o mesmo, assim como a Rainha Margarida e a irmã: mas, terminadas as festas, as damas, acompanhadas por Carlos d'Anjou, regressaram à capital, tendo o Rei e o conde d'Artois decidido não mais abandonar a hoste até ao dia da partida. A sua presença constante revelava-se necessária, já que a estadia daquela massa imensa de homens na ilha de Afrodite se estava a tornar, não só difícil como inquietante: clima demasiado suave, inacção e também deboche, já que todas as prostitutas da ilha se tinham deslocado para o acampamento.
Sabendo que não regressaria a Nicósia, Renaud foi ver Flore, a quem visitava de tempos a tempos, tentando fazer com que a jovem renunciasse ao seu projecto de se integrar na cruzada. Até ali, fracassara a despeito dos argumentos utilizados e ela contribuíra com a sua quota-parte porque, uma noite, recebeu-o no leito. Doente, segundo disse a serva ao recebê-lo à porta! De facto, ela esperava-o deitada na sua cama de lençóis de seda púrpura, rodeada de defumadores onde ardia o mirto, vestida apenas com uma musselina branca transparente, que a sua pele tornava cor-de-rosa e com os seus longos cabelos louros de suaves vagas sedosas. Surpreendendo a surpresa do jovem, ela não disse uma palavra, contentando-se em estender-lhe os braços, e ele não resistiu. Pernon tinha razão: aquela rapariga era tão bela que era capaz de provocar... o próprio Rei, por mais santo que fosse, e o cavaleiro tinha atrás de si uma continência muito longa. Fizeram amor com uma espécie de furor que permitiu ao jovem, mesmo no auge da loucura, apreciar a arte daquela mulher e o domínio que ela era capaz de exercer sobre um homem. Ao mesmo tempo, o jovem pensava que talvez aquilo fosse uma maneira de o fazer compreender, ao fazer dele seu amante, que estava pronta a esquecer Raul de Coucy. O regresso a terra firme mostrar-se-ia singularmente decepcionante...
Quando, de madrugada, antes de a deixar, ele se inclinou para lhe dar um último beijo, ela desatou a rir:
- Esta noite foi admirável e se eu não gostasse tanto do meu senhor Raul, escolher-te-ia a ti. Sempre me agradaste, mas... não consegues fazer-me esquecê-lo...
- Portanto, isto não passou de uma simples experiência? - perguntou ele, vexado.
- Podes chamar-lhe assim. Tens de concordar que entrei no jogo com toda a minha alma, mas quando o amor também joga, nada prevalece contra ele!
- Fico feliz por te ter podido ser útil! - lançou ele, ferido, se bem que não o quisesse admitir. - Conheço cortesãs mais honestas do que tu!
O jovem partira batendo com a porta e aquele fora o seu último encontro. Se a voltasse a ver antes de partir, seria para lhe dizer definitivamente adeus. No entanto, não a encontrou, nem a ela nem à serva. A casa estava fechada, sem reflexos, e só ao recuar na rua é que ele avistou, por trás das janelas, as portadas de madeira. As duas mulheres estavam ausentes e Renaud pensou que talvez não regressassem. Pelo que sentiu um alívio, apesar de continuar a sentir uma certa inquietação. Teria Flore, finalmente, compreendido que ofendia o Senhor com a sua busca obstinada? Ou, cansada de não conseguir nada, partira simplesmente para limassol para tentar a sua sorte com Raul? Teria de se certificar uma vez chegado ao acampamento...
A celebração do Natal foi grave e comovente, plena de uma piedade profunda, da qual o Rei dava um belo exemplo. Sob um céu de um azul profundo e picado de estrelas, as mesmas que brilhavam sobre Belém protegendo a vinda ao mundo do Redentor, o cardeal núncio celebrou a missa campal da meia-noite junto ao mar, num altar iluminado por velas cujas chamas faziam cintilar o ouro dos vasos sagrados e o aço das armaduras. Aqueles homens, vestidos de ferro, cantaram-na com um ardor que a transformou, ao mesmo tempo, na mais apaixonada e mais humilde das invocações. As vozes sonoras enchiam a noite, juntando-se às das pessoas dos arredores reunidas sob os pinheiros e os eucaliptos. E quando, por fim, chegou o momento da comunhão, aqueles homens choraram, mas de alegria e por se sentirem fraternalmente unidos na mesma esperança e no mesmo desejo de contribuir para a glória de Deus. Porque a magia do Natal se estendia sobre todos...
À esquerda do altar, um grupo de cavaleiros de grandes mantos brancos com a cruz vermelha bordada, cabeças nuas mostrando os cabelos rapados e os rostos barbudos, formava uma massa compacta e impressionante: os Templários. À frente, o Grão-Mestre da Ordem, vindo de Acra, onde se encontrava a casa-mãe desde que Saladino, ao conquistar Jerusalém, lhes devastara o convento-mor, purificado com água de rosas e devolvido ao culto de Alá com o velho nome de mesquita Al-Aksa - a Longínqua, tão querida do Profeta! - e transformara a sua magnífica igreja em cavalariça.
O Grão-Mestre daquela admirável ordem de cavalaria disseminada agora por toda a Europa, mas que continuava agarrada àquele pedaço de terra do antigo reino franco, era Guilherme de Sonnac, um ancião imponente de força ainda temível, um daqueles cavaleiros corajosos cobertos de cicatrizes e de almas forjadas no inferno das batalhas... Vinha fazer a paz com o Rei de França, ou antes, refazê-la, já que um grave diferendo os opusera no último Outono. De facto, a política do Templo - que não reconhecia nenhum soberano senão o Papa! - era, senão oposta, pelo menos infinitamente mais flexível do que a de Luís IX. Os Templários, fiéis à sua diplomacia muito particular, mantinham relações secretas com certos emires influentes. Assim faziam, outrora, os últimos reis de Jerusalém e o conde de Trípoli, que ao apoiar as rebeliões dos atabegs de Mossul ou de Alepo, contrariava as ideias imperialistas de Saladino, mantendo a Síria afastada do Egipto. Guilherme de Sonnac propusera em Outubro, a Luís, pô-lo em contacto com os príncipes muçulmanos mais ou menos hostis à dinastia dos Aiúbidas, a fim de criar uma diversão enquanto a frota ia atacar o Egipto. O Grão-Mestre foi muito mal recebido.
Fervendo de indignação por um cavaleiro cristão, um Grão-Mestre do Templo, ter ousado propor-lhe que se entendesse com os Infiéis, Luís, que considerava aparentemente a diplomacia como uma sucursal da mentira, censurou Guilherme de Sonnac com uma rara energia e proibiu-o formalmente de receber qualquer emissário dos Turcos sem a sua autorização. Furioso por se ver tratado daquela maneira, o Grão-Mestre engoliu a resposta insolente que teria, talvez, criado o irreparável e regressou a Acra, levando com ele o Grão-Mestre de França, Renaud de Vichiers, que viera com o Rei e que acabava de ser eleito marechal do Templo em cabido restrito. No entanto, deixava Luís um pouco inquieto: se o Templo, os seus navios, os seus monges-guerreiros e o seu apoio financeiro faltassem, as dificuldades poderiam aumentar. Assim, os seus conselheiros arranjaram maneira de fazer com que o velho Grão-Mestre se encontrasse de novo com o jovem Rei. O Natal não era a época das reconciliações? E, pouco antes da missa, os dois homens tinham-se abraçado...
Naturalmente, o exército estava a par da história daquele diferendo e anunciou-o à sua maneira pretendendo que “o Grão-Mestre do Templo e o sultão do Egipto se entendiam tão bem que tinham misturado o sangue na mesma escudela”. Renaud, por seu lado, não acreditava naquela estranha ligação de sangue, difícil de admitir. Mas esteve distraído durante toda a missa, porque na primeira fila de templários tinha reconhecido Roncelin de Fos...
Aquilo foi um choque. A comendadoria de Joigny dissera que ele partira para a Terra Santa, mas Renaud não estava preparado para o encontrar ali, a apenas alguns passos e no séquito imediato de Guilherme de Sonnac. Mas foi obrigado a engolir a cólera e o desejo de se atirar a ele para o obrigar a confessar o sacrilégio cometido no túmulo de Thibaut. A santidade do momento, do local e da circunstância e a presença do Rei proibiam-lhe a menor reacção hostil e, terminada a missa, teve de se resignar a vê-lo afastar-se com os seus irmãos na impecável formação que os Templários apresentavam sempre em público...
Gilles Pernon também o tinha visto. Assim que os assistentes começaram a dispersar e o Rei se dirigiu para a igreja da Santíssima Trindade para nela passar a noite, ele foi buscar os cavalos antes de ir ter com o seu senhor:
- Suponho que vamos segui-los? - perguntou ele, apontando para o grupo de mantos brancos ainda visível. - Estive a informar-me: a comendadoria deles é a três léguas daqui, um enorme torreão no meio das vinhas chamado Kolossi (1).
- Gostaria muito, mas seria inútil. Repara!
De facto, Guilherme de Sonnac e os que o rodeavam estavam a entrar para uma barca para regressar à galera-mãe da Ordem, (1) que estava fundeada na baía de Akrotiri. Roncelin de Fos era um deles.
- Vão terminar lá a noite - suspirou Renaud - e depois da missa da manhã o Grão-Mestre vai regressar a Acra. Quanto a subir a bordo para reclamar justiça, é impossível. Ninguém se protege tão bem como os Templários...
- Mas amanhã, a caminho da igreja, ou no regresso?
Os Templários ocupavam-no com desprezo por qualquer direito, já que o castelo tinha sido doado aos Hospitalários pelo Rei Henrique I de Lusignan.
- Tu és mais impetuoso e irreflectido para a tua idade do que um poldro - disse Renaud com um meio sorriso. - Tens de pensar que não temos a mínima prova e que, se Roncelin é o homem que eu penso, é muito capaz de mentir e será a sua palavra contra a minha.
- Perante o Rei e monsenhor Roberto, seria antes a vossa contra a dele! É verdade que o nosso sire Luís não nos perdoaria se criássemos um incidente com o Templo, logo agora que as coisas se arranjaram. E como o Grão-Mestre e os seus cavaleiros se devem juntar a nós quando partirmos para o Egipto, mais vale esperar até lá chegarmos. Quando os acampamentos estiverem montados, será mais fácil isolar aquele miserável e fazê-lo falar... A menos que um golpe de sorte...
O que não aconteceu. Como se adivinhasse que havia uma ameaça no ar, Roncelin de Fos manteve-se sempre a cinco passos de Sonnac, no séquito imediato composto pelos dignitários. Coisa que, visivelmente, ele era... E a galera com a cruz vermelha estampada nas velas partiu tranquilamente para São João de Acra...
Pouco depois do Natal chegaram aos ouvidos dos cruzados umas estranhas notícias pela boca de um dominicano francês, André de Longjumeau, que fora até aos montes do Cáucaso visitar os Mongóis e informar-se sobre os cristãos daquelas longínquas paragens, que se dizia existirem até nos exércitos dos descendentes de Gengis Khan. Pouco depois, juntaram-se a ele dois viajantes de região de Mossul - também eles cristãos! - a quem o chefe mongol Baidju entregara uma mensagem para o Rei de França, mensagem essa surpreendente porque evocava a possibilidade de uma aliança entre os francos e os mongóis contra os filhos do Islão. Aquela notícia suscitou entusiasmo, salvo por parte do Rei, que a recebeu com desconfiança. No entanto, por cortesia para com o khan, o monarca mandou preparar uma tenda-capela decorada com cenas da vida de Cristo e entregou-a a André de Longjumeau para que lha levasse. Quanto aos acordos propostos, a distância entre os eventuais interlocutores era demasiado grande para que os pudessem discutir legitimamente e Luís esperava deixar Chipre muito antes de o dominicano cumprir a sua missão, porque a estadia na ilha começava a pesar-lhe.
O exército estava imobilizado junto ao mar há muito tempo. Os costumes relaxavam-se e, sobretudo, a doença começava a grassar. Declarou-se uma epidemia de disenteria, o flagelo dos exércitos ocidentais no Oriente! A doença levou perto de quatrocentos cavaleiros e soldados sem poupar os grandes senhores como o sire de Bourbon, o conde de Vendôme e o nobre João de Montfort que, chegado em Outubro com o visconde de Châteaudun, morreu antes do fim do Inverno. Era preciso acabar com aquilo. O Rei queria ter partido em Fevereiro, mas os ventos eram contrários e, sobretudo, os contingentes que ele esperava não havia meio de chegarem. Era preciso ter paciência, o que enraivecia Roberto d'Artois e a maior parte dos seus homens. Renaud aproveitou o regresso ao acampamento para se reaproximar do sire de Coucy. O barão Raul reservou-lhe um acolhimento pleno de bondade e até se mostrou feliz por ver nele um companheiro de cruzada:
- A minha pobre mulher enganou-se a vosso respeito e eu também - disse-lhe ele - mas agradecerei sempre a Deus por ter feito justiça e por vos ter conduzido ao lugar que o irmão Adam vos reservava.
Renaud pôde constatar que ele se transformara num homem de extrema piedade e que o conde de La Marche nunca o abandonava. Uma piedade tranquilizadora, porque era incompatível com uma qualquer influência de Flore.
Aliás, nem ele, nem Pernon, nem sequer Gerard de Fresnoy, que a chegara a cortejar em Nicósia e que se mostrava desolado com o seu desaparecimento, viram qualquer rasto dela:
- Deve ter ouvido a voz da sabedoria e deixou a ilha - acabou por concluir Renaud.
E agradeceu a Deus por isso.
Entretanto, na Primavera, as coisas compuseram-se. Afonso de Poitiers continuava a não chegar com o exército complementar, mas, transportados por vinte e quatro navios, chegaram o duque Hugo de Borgonha e o príncipe de Morée, Guilherme de Villehardoiun, que passara o Inverno em casa daquele. Acompanhavam-nos quatrocentos cavaleiros e Luís alegrou-se. Por fim, o Rei de Chipre, arrastado pelo exemplo, pegou na cruz com os seus mais importantes barões e, dessa vez, todas as esperanças eram permitidas: a cruzada ia ser poderosa e valorosa.
A aproximação da grande partida foi, para a Imperatriz de Constantinopla, o sinal para a sua. Maria de Brienne levou consigo a promessa de que, vencido o Egipto, iriam tratar do assunto de Balduíno, ajudando a gerir os interesses do seu marido. Naturalmente, Guillain d'Aulnay partiu com ela. Renaud sentiu alguma pena: esperava que o seu amigo seguisse a cruzada e Guillain também, mas as vicissitudes sofridas pela pobre Maria, aquando da sua chegada a Chipre, obrigavam o fiel marechal a não a abandonar à sua sorte nos caminhos que a esperavam:
- Se Deus quiser, ver-nos-emos por ocasião do vosso regresso - disse ele a Renaud, abraçando-o. - A Imperatriz só sairá de Courtenay se o nosso sire Balduíno a chamar e, bem entendido, eu estarei com ela: mas, se não estiver, podereis saber notícias minhas em casa do meu irmão mais velho, Gautier, no castelo de Moussy, perto de Dammartin, na estrada que vai de Paris a Soissons. Já vos falei dele, parece-me?
- Conheceis a minha memória: não esquecerei!
- Não vos esqueçais, sobretudo, de regressar vivo...
Na véspera do embarque, quando a Rainha Margarida e as princesas regressavam ao castelo de limassol, Roberto d'Artois preveniu Renaud de que a sua cunhada desejava falar-lhe. Este mergulhou de imediato numa espécie de turbilhão de estupor e encantamento. Há semanas que não via Margarida e a ideia de se aproximar dela deixava-o muito perturbado. “Ela” queria falar-lhe! De quê? Na verdade, não tinha importância. O que contava era que ela ainda se lembrava dele e isso era a coisa mais maravilhosa que lhe podia acontecer! O jovem precipitou-se para o castelo. Não sem se assegurar, antes, de que o seu traje estava limpo e de que a sua cabeleira loira não estava demasiado em desordem.
O jovem encontrou a Rainha num daqueles pátios-jardins que faziam um dos encantos do Oriente. Sentada entre uma tina de pedra onde chorava uma fonte e um arbusto de rosas espessas como couves, bordava qualquer coisa com fios de seda vermelhos e azuis, aos quais as suas belas mãos acrescentavam fios de ouro, e não levantou a cabeça quando Eudeline de Montfort, a sua dama-de-companhia preferida, introduziu o cavaleiro antes de se afastar para se juntar a Elvira de Fos, ocupada a afinar o seu alaúde perto de uma glicínia. Renaud pôs um joelho em terra e esperou com o coração a bater com toda a força.
Estava tão próximo de Margarida que podia cheirar o seu perfume de jasmim misturado com o das rosas vizinhas. Tão próximo que podia contar as pequenas pérolas que lhe ornamentavam o colo e as amplas mangas do seu vestido de seda branca. A jovem Rainha usava um simples véu sobre os belos cabelos castanhos, entrançados numa única trança pouco apertada que lhe caía sobre um ombro e onde tinha presa uma rosa. Estava tão deslumbrante que Renaud sentiu a sua emoção aumentar. Se ela não lhe falasse imediatamente, faria uma asneira qualquer, do género beijar os seus pés ou pousar-lhe a cabeça nos joelhos... Mas ela endireitou-se e sorriu-lhe:
- Mandei-vos vir aqui para vos repreender, cavaleiro. Por que razão deixastes a vossa pobre e encantadora prima enregelada e sozinha em Nicósia quando nós estávamos aqui?
Renaud caiu das nuvens:
- A minha prima? Eu tenho uma prima?
- Na realidade, não, porque era prima da vossa mãe adoptiva, mas vai dar ao mesmo e conheceis-vos desde a infância.
Depois, elevando subitamente a voz:
- Aproximai-vos, Flore de Baisieux!
A indignação pôs o jovem de pé quando ele viu sair detrás da roseira a mulher de quem julgava ter-se visto livre e que se encaminhava na sua direcção com pequenos passos e os olhos modestamente postos no chão.
- Minha prima? - repetiu ele sem conseguir sair do estupor, mas não teve tempo de dizer mais nada.
Com uma alegria maliciosa, Margarida continuou:
- Vamos, não fiqueis zangado! Ela disse-me tudo!
- A sério?
- Mas, é claro! Ela disse-me como, sozinha no mundo, vos pediu que a deixásseis seguir a cruzada para ir rezar aos Lugares Santos e como recusastes dizendo que não era lugar para uma mulher...
- E continuo a pensar. A menos que se seja Rainha ou que se vá para um convento - grunhiu ele, dardejando a imprudente criatura com um olhar furioso.
Mas reencontrou o olhar dela e leu nele uma súplica de tal modo desesperada que a sua cólera baixou de tom. A Rainha, entretanto, continuava:
- Ela também disse como, perante a vossa recusa, tomara a iniciativa de vos preceder em Nicósia com o objectivo de esperar ali a nossa chegada... a vossa chegada. E também que, mais uma vez, recusastes - acrescentou ela com uma súbita severidade que fez ferver Renaud. - Assim, veio ter comigo quando a abandonastes - sim, é o termo - para seguir o meu cunhado, que regressava ao acampamento.
- Madame... - começou Renaud à beira de uma apoplexia. Mais uma vez, ela interrompeu-o:
- Não ides censurá-la, espero? Quando se está tão longe do país natal, é preciso que os compatriotas se aproximem. Ela agiu muito bem e, se há algum pecado, é um pecado de amor e o amor desculpa tudo! Ela vai ficar comigo!
Era o cúmulo! Eis que a velhaca ousara pretender-se apaixonada por ele! E Margarida, a sua Margarida tão ardentemente amada, que aprovava, quase a abençoava! Só faltava que lhe pedisse para casar com aquela galdéria pronta a qualquer comédia para conseguir os seus fins!
Nesse instante, a donzela de Fos aproximou-se com o seu instrumento na mão:
- O alaúde já está afinado, Madame, se quiserdes ouvir de novo a vossa canção...
Elvira sorria, mas o seu olhar de lagarto não cessava de ir de Renaud para Flore e de Flore para Renaud. E, de repente, este mudou de opinião. Saudou muito direito e com a mão no coração:
- Agradeço à Rainha a sua bondade! Posso, antes de me retirar, dizer algumas palavras à minha... prima?
- Mas, é claro! Ide, Flore!
Ele agarrou-a pela mão e arrastou-a em passo de corrida até ficarem fora dos aposentos senhoriais. Ali, Renaud parou e deixou sair:
- Fizestes pouco de mim e eu devia denunciar-vos - troou , ele. - Mas como tivestes a audácia de vos introduzir junto da Rainha, ides servir para qualquer coisa! Entre as damas dela há uma mulher de quem eu desconfio...
- Elvira de Fos - completou Flore. - Só pode ser ela e eu partilho a vossa desconfiança. Ela tem um não-sei-quê que não me agrada.
- Sois inteligente. Talvez de mais, para meu gosto, mas, na ocorrência, prefiro assim. Então, escutai bem: caso aconteça alguma coisa à Rainha, sois vós a responsável!
- É injusto, mas compreendo-vos. Amai-la, não é verdade? Sei-o desde que encontrei aquele retrato...
- Mais uma vez, o retrato não é dela e eu não considero a mentira uma arte. Mas é verdade: amo-a! No ponto a que chegámos, mais vale dizer tudo. Portanto, como tivestes a audácia de vos aproximardes, velai por ela! Se não...
Ela pousou-lhe no ombro uma mão apaziguadora e ergueu uns olhos onde, pela primeira vez, não havia qualquer sombra.
- Velarei! - prometeu ela. - Estou em dívida para convosco...
MANSURAH
Na véspera do dia de Pentecostes os passageiros da Montjoie voltaram a subir a bordo e dirigiram-se para a língua de terra que protegia a baía de Limassol para se juntarem à frota cujos navios tinham fundeado em Paphos ou nos portos da costa sul. Uma frota enorme: cerca de mil e oitocentos navios, grandes e pequenos, naus de guerra, galeras, barcaças e outros barcos e foi, na verdade, um belo espectáculo, parecendo o mar estremecer com todas aquelas velas de cores vivas, em redor das quais voavam as aves marinhas. Sob os respectivos estandartes, as forças do Oriente latino e as de França, sua mãe pátria, iam combater por Deus!
Por que razão, mal estava a frota toda reunida, desabou a tempestade, atirando uma parte dos barcos para diversos pontos da costa Síria? Sem demasiados estragos, felizmente, mas foi, mesmo assim, uma aventura desagradável, que retardou a partida. Em poucas palavras, dois terços foram parar a São João de Acra, Caiffa ou Cesareia, de onde só lhes restava voltar a partir com algum atraso para se juntarem, no Egipto, ao Rei e ao núncio, que tinham sido seguidos pelos Grão-Mestres do Templo e do Hospital.
Foi, portanto, a 30 de Maio de 1249 que a Montjoie içou o ferro.
Cinco dias mais tarde, as vagas azuis deixaram transparecer o aluvião amarelo lançado pelo delta do Nilo e os navios chegaram à vista de Damiette, que o Rei escolhera para abordar a terra do Egipto e abrir-lhe as portas do Cairo.
Era, de facto, o ponto mais estratégico do país pela sua situação entre o braço mais importante do Nilo e o grande lago Menzaleh, aberto para o mar através de duas “bocas”. Porto principal frequentado por numerosos mercadores porque o caminho fluvial permitia chegar à capital mais facilmente do que por Alexandria, situada mais a oeste e que teria obrigado a uma travessia pelo deserto. Enfim, a vasta praia situada a oeste da cidade permitia o desembarque dos barcos mais pequenos. Dividido em dois pela ilha de Mahalot, o Nilo corria entre aquela praia e a cidade, mas estava ligado a ela por duas sólidas pontes flutuantes.
Eram mais ou menos nove horas da manhã quando o Rei, depois de ter ordenado que lançassem ferro, mandou ir a bordo os seus barões para decidir com eles o próximo desembarque. De facto, Luís foi o único a falar. Atacariam no dia seguinte muito cedo, o que permitiria preparar as barcas de fundo chato e outras barcaças, onde tomariam lugar para chegar a terra. O Rei também ordenou que cada um pusesse a sua alma em paz com o céu confessando-se sinceramente e redigindo o seu testamento:
- Porque não sabemos quem regressará vivo e devemos preparar-nos para morrer se isso agradar a Nosso Senhor.
Em seguida, todos regressaram às suas bases mais sérios do que à chegada. Até Roberto d'Artois deixou de brincar e se retirou para ditar as suas últimas vontades com o belo rosto alegre curiosamente sombrio.
- Neste dia sou novamente pai de um filho do qual não sei nada - confiou ele a Renaud, que ficou preocupado com aquela súbita melancolia - e talvez nunca o veja...
- Esses pensamentos são muito tristes, monsenhor e ficam-vos mal!
- Tens razão. Em vez de pensar em morrer, é melhor pensar em lutar com deve ser! E, na verdade, não me estou a reconhecer. Deve ser deste país! Não me agrada, mas não me perguntes porquê.
- Talvez porque é apenas uma terra infiel... e não a Terra Santa, com a qual sonhamos há muito tempo!
- É possível e pergunto a mim próprio se o meu irmão fez bem em nos trazer aqui. Deve ser mais difícil morrer aqui... mesmo a olhar para a Verdadeira Cruz!
Renaud não hesitou senão um instante antes de fazer a pergunta que lhe queimava os lábios:
- A propósito, monsenhor, posso perguntar-vos de onde vem essa Verdadeira Cruz que Monsenhor o núncio traz consigo? Quando eu era pequeno, ouvi o meu pai dizer que em tempos os Reis de Jerusalém combatiam transportando-a à sua frente quando o reino estava em perigo. Ele descreveu-a como grande e magnífica, cobrindo com ouro e pedras preciosas um grande fragmento da madeira do suplício de Nosso Senhor. A que nos acompanha parece-me bem pequena...
- É possível. Nem sequer pensei nisso. O que sei é que a nossa relíquia faz parte das que o Imperador Balduíno empenhou em Veneza e que o Rei meu irmão resgatou. Pensas que existe outra?
- Aquela de que falo foi enterrada por dois templários nos Cornos de Hattin, poucas horas da desastrosa batalha de Tiberíades. Saladino gabou-se de a ter encontrado, mas um dos seus emires tinha-o enganado, mandando executar uma cópia com uma madeira sem valor. Ao saber disso, o sultão ter-se-ia desfeito dela com desprezo...
Roberto não escondeu a sua surpresa e olhou para o seu jovem cavaleiro com um olhar um tanto diferente...
- Como é que sabes isso?
-Já vo-lo disse: através de um relato do meu pai. Foi ele que enterrou a Cruz. E também foi ele que disse a verdade a Saladino.
- Por Deus! Por que nunca me disseste isso?
- Estava à espera que a cruzada partisse e estou como vós: desiludido por estar aqui em vez de em São João de Acra, ou em Tiro, a caminho de Jerusalém!
- Havemos de ir! - decidiu o conde, reencontrado o ardor e com a voz subitamente vibrante de esperança. - Prometo-te que vamos e que, tu e eu, havemos de ver se o teu pai disse a verdade.
- Ele não sabia mentir!
- E... disse-te onde ela está escondida?
- Disse. E eu fiz voto de a encontrar!
- Então, vamos juntos! Mas, até lá, é preciso que o Rei não saiba nada! Ele tem de acreditar, para bem da sua alma, que a nossa cruz é a mesma que estava no Santo Sepulcro. Assim, a sua surpresa será esplêndida quando lha levarmos!
- Não importa! Se esta vem de Bizâncio, deve ser autentica!, mesmo que seja só um bocado muito pequeno!
- Sim, no fim de contas! Mas, depois de conquistarmos Damiette, tens de me contar tudo pormenorizadamente... Por agora, vamos à confissão!
E o conde foi ter com o seu capelão.
De madrugada, no dia seguinte, todos os homens, nos diversos navios da hoste flutuante, se prepararam para o que ia acontecer.
Na Montjoie, o Rei ouviu missa com os seus e depois armou-se, ordenando que todos fizessem o mesmo. Luís despedira-se na véspera de Margarida, que subira a borda da Reme com a sua irmã e as damas, tendo o núncio acompanhado o Rei como convinha para os rudes combates do assalto. A leste, o dia começava a nascer quando se procedeu ao embarque nos diversos barcos previstos para o efeito. A Auriflama, a grande flâmula vermelha conquistada em Saint-Denis, foi a primeira a partir na barcaça onde estavam os senhores João de Beaumont, Mateus de Marly e Godofredo de Sergines. Seria ela a marchar à cabeça do exército, como exigia a tradição. Luís desceu para uma barcaça nor-manda com o núncio que, uma vez a bordo, ergueu bem alto o relicário da “Verdadeira Cruz” para que todos a pudessem ver na glória de uma aurora sumptuosa.
Roberto d'Artois e os seus cavaleiros estavam numa embarcação semelhante. A aproximação da batalha fazia com que o príncipe resplandecesse e de vez em quando lançava um sorriso fugitivo a Renaud que ia a seu lado e que, no espaço de uma noite, parecia ter-se tornado o seu melhor amigo depois de terem tido ambos uma grande conversa. O jovem também se sentia feliz, apesar de não poder deixar de olhar para a Reine, fundeada. Os véus que as mulheres agitavam desde o momento da partida dos barcos eram cada vez menos visíveis e o jovem deixou de virar a cabeça, para só olhar em frente. Aquilo que ia viver era a sua primeira batalha e esperava-a com a mesma alegria dramática que sentira na manhã em que fora armado cavaleiro: era no combate que o cavaleiro realmente nascia. Em breve saberia quanto valia ao certo. Como se comportaria o sangue estranho e contraditório que devia aos seus antepassados. Se era bisneto de Saladino, também o era de Joscelin de Courtenay, o conde cobarde de Edessa e de Turbessel, que entregara Acra sem combater. Felizmente, erguia-se entre eles a silhueta orgulhosa de Thibaut, o irmão de armas e de coragem do sublime Balduíno, o leproso...
Ao ver aproximar-se a terra de África, teve um pensamento bizarro: o de que era, ele, Renaud de Courtenay, mais próximo do grande Sultão do que o velho que reinava agora no Cairo e que descendia, esse, do irmão mais velho de Saladino. E pelo que soubera em Chipre durante aquele longo Inverno, não havia mais semelhanças entre aquele velho, Al Salih-Ayub, e o conquistador de um império, e entre Joscelin de Courtenay e ele próprio. Dizia-se que o Sultão era quase tão negro de pele como a sua mãe, uma escrava sudanesa, e de alma ainda mais tenebrosa. O facto de detestar as artes e as letras seria um mal menor se não fosse também arrogante, duro, cruel até ao extremo, ganancioso e lúgubre ao ponto de as pessoas se perguntarem se restaria nele alguma gota do nobre sangue curdo dos seus antepassados... E também se dizia que estava a morrer...
Entretanto, a excitação do combate próximo varreu rapidamente os sonhos de Renaud. Tanto mais que, ao aproximarem-se da praia, puderam ver que esta não estava vazia. O que era lógico! Ao mesmo tempo, explodiu uma algazarra selvagem: Tímbales e coros sarracenos faziam vibrar o ar ainda tépido da manhã, ao mesmo tempo que um exército aos uivos se alinhava sob os estandartes dourados do Sultão:
- Aquele demónio deve ter sido prevenido - grunhiu Robert. - Gostava de saber quem terá sido o maldito traidor!
Um velho guerreiro, cuja viagem não era a primeira e do qual Roberto ignorava o nome, troçou:
- Não é difícil de adivinhar, monsenhor! O emir que comanda aqui chama-se Fakhr-el-Din. Reconheço o seu estandarte. Ele é um amigo de longa data do Imperador Frederico II...
- Um soberano cristão a dar informações a um príncipe infiel? Não é possível!
- Com Frederico tudo é possível. Ele é o inimigo do Papa, o inimigo de tudo o que é cristão. Aquele alemão é sectário de Maomé...
- Bem, vamos chegar a roupa ao pêlo aos amigos dele! Fá-lo-emos pagar depois!
As galeras, mais rápidas e mais manobráveis graças à força de braços que as propulsionavam, chegaram repentinamente à praia. O Rei mandara colocar nelas os besteiros, cujo tiro protegeria os cavaleiros forçosamente a pé. O esplendor de uma delas provocou a admiração do exército. Toda pintada com brasões dourados sobre fundo vermelho, sussurrante com os seus pendões e estandartes e lançada a toda a velocidade pelos seus trezentos remadores abrigados por trás dos escudos armoreados, chegou à areia devolvendo aos muçulmanos a algazarra, de tal modo os seus tambores trovejavam e as suas trombetas berravam a plenos pulmões: era o navio do conde de Jafa, João II d'Ibelin...
A barcaça que transportava a Auriflama já estava em terra e o emblema espetado no chão. Ao ver aquilo, o Rei não suportou não estar junto dela e sem ouvir o que lhe diziam para o reter, saltou para a água de escudo em frente do peito, de elmo coroado na cabeça e de lança na mão. Na água até às axilas, marchou contra o inimigo.
Berrando “Ao Rei”, Roberto d'Artois saltou de imediato e Renaud seguiu-o. O impulso do príncipe foi tal que se viu diante do seu irmão para o proteger. Entretanto, o exército muçulmano lançava-se sobre aqueles que já estavam na praia. Ao ver aquilo, estes espetaram as pontas dos seus escudos na areia e enterraram os cabos das lanças em diagonal, o que deteve a carga dos cavalos inimigos, dos quais alguns já tinham perecido, tendo-se atirado com demasiado ímpeto ao mar. Os francos, por sua vez, desembarcaram os seus cavalos enquanto os seus combatentes a pé protegiam a operação e, finalmente, quando a cavalaria carregou por sua vez, a batalha foi breve e os muçulmanos correram para as pontes de barcos, retirando na direcção de Damiette... e esquecendo-se de fazer saltar as ditas pontes. Coisa que os cavaleiros do Rei se apressaram a aproveitar com a satisfação de ver as tropas do emir Fakhr-el-Din fugirem para sul. Entre Damiette e os cruzados já não havia nada senão as fortes muralhas eriçadas de torres e de fossos. Um prisioneiro informou que o Sultão tinha enviado, para a defesa da cidade, uma tribo árabe, os Banu-Kinana, cujos guerreiros eram os mais terríveis de todos. Os cruzados dispuseram-se a cercar a cidade e o Rei ordenou que fosse erguida a sua grande tenda vermelha, perto da que servia de capela e da do núncio. Todos se apressaram e em breve o acampamento, com as suas tendas de seda azul, vermelha, verde ou multicor, esticadas em chuços de carvalho e presas por boas cordas de cânhamo, brilhavam sob as muralhas de Damiette como um campo de flores fantásticas. Naturalmente, todos agradeceram a Deus por lhes ter dado aquela vitória e foi enviado um mensageiro a bordo da Reine. As damas desembarcariam, certamente, dentro de pouco tempo.
A noite foi calma. Quando os odores das cozinhas se dissiparam, nada mais se ouviu senão o passo ferrado dos soldados de guarda e o grito alternado dos vigias. Uma noite bela e clara como acontece muito em África, com milhares de estrelas que pareciam maiores do que noutro sítio qualquer. Os astros reflectiam-se nas águas do Nilo, franjado pelos grandes caules cabeludos de uma planta desconhecida a que davam o nome de papiro... Ao largo, as lanternas dos navios ancorados rendiam as lamparinas celestes.
Quando o dia nasceu, o que surpreendeu, primeiro, foi o silêncio da cidade. No alto dos minaretes, nenhum muezin, entre o céu e a terra, chamava para a oração como na véspera ao fim da tarde e, nas muralhas, não se via nenhuma sentinela, nenhuma arma reflectia o Sol nascente...
Luís IX observou o fenómeno e decidia que era preciso ir ver quando, subitamente, surgiu um homem que tomaram, primeiro, por um sarraceno devido ao seu traje e figura morena, mas que era, de facto, um cristão de credo copta. O que ele tinha para dizer era extraordinário. Segundo ele, para além dos seus irmãos e dos prisioneiros da cidadela, não havia nenhum habitante dentro de Damiette. Mesmo os terríveis Banu-Kinana tinham retirado com os outros para montante do rio. As portas de Damiette estavam abertas.
Era uma coisa de tal modo enorme que o Rei se recusou, a princípio, a acreditar, encorajado por Eudes de Châteauroux, o núncio, que não estava longe de ver naquilo uma armadilha. Mas o homem não desarmou:
- Se achais que vos enganei, podeis sempre matar-me - observou ele - e vingar-vos também nos meus, mas estou tranquilo.
- Então, por que esperamos? - exclamou Roberto d'Artois. - Eu e os meus cavaleiros vamos à frente e...
- Calma, meu irmão! - disse o Rei. - A primeira praça pertence-me...
Luís IX deu ordem de marcha e deixando no acampamento uma guarda conveniente, colocou-se à cabeça dos seus barões, dirigindo-se para a ponte de barcos para fazer a sua entrada na cidade que, de facto, estava deserta. Nem um único homem a defender as portas! Além disso, aperceberam-se rapidamente de que os fugitivos não tinham levado nada dos seus bens. Havia ali uma quantidade incrível de armas e de munições, de víveres e de objectos de toda a espécie, assim como riquezas das casas, abertas como se os seus ocupantes tivessem simplesmente partido para ir dar uma volta ou tivessem ido ao mercado. Única manifestação de mau humor, alguém lançara fogo ao bazar e tiveram alguma dificuldade em apagá-lo. Mas Deus devia ser o primeiro a ser servido e o núncio e o Rei foram tomar posse da grande “maomeria” em tempos dedicada à Virgem por João de Brienne e que se apressaram a purificar para que pudessem cantar de imediato um vibrante Te Deum.
De facto, Luís não se lembrava de ter conseguido uma vitória tão rápida e tão completa. Um dia, bastara um único dia para que uma cidade lhe caísse nas mãos, forte e rica, uma cidade que até João de Brienne levara dezoito meses a conquistar! Como era possível não ver a mão divina no terror que atingira os guerreiros cujo valor era conhecido de todos?
Quanto tiveram a certeza de que não restava nenhum habitante senão os coptas agrupados num bairro em redor da sua igreja e os prisioneiros que se apressaram a libertar e dos quais muitos se colocaram ao serviço dos seus libertadores, mandaram buscar a Rainha, as princesas e todas as damas para que elas se viessem instalar nas mansões que lhes tinham escolhido. Como o Sultão possuía um palácio em todas as suas cidades importantes, o de Damiette, que não era imenso mas que era bem defendido por uma cidadela, calharia à família real. E foi sob as aclamações do exército inteiro que elas atravessaram o acampamento e as pontes para penetrar em Damiette quando o calor do dia já era menor. Elas olharam com surpresa para aquela cidade estrangeira cujo branco-cru contrastava com o verde-escuro das grandes palmeiras, para os seus minaretes, para as suas ruelas estreitas e frescas e para aqueles odores estranhos onde a pimenta, a canela e o perfume delicado das flores de lótus do Nilo se misturavam com o cheiro do azeite quente, do peixe seco ou apodrecido e de muitos outros cheiros indefiníveis para as narinas ocidentais. Mas a frescura da casa que lhes calhou encantou Margarida, assim como o jardim interior plantado com palmeiras e flores de lótus cor-de-rosa crescendo numa tina ao nível do solo. A Rainha sentia-se, sobretudo, feliz por deixar o navio, o seu movimento perpétuo e os seus fedores obrigatórios, que o vento vindo do mar nem sempre expulsava e que transformavam a sua nova gravidez mais penosa. A fadiga marcava o seu rosto deslumbrante e essa condição não escapou a Renaud quando ela passou diante dele. O jovem ficou preocupado, tanto mais que Hersende, que estava junto dela, se precipitou para a amparar no momento em que ela pousou no solo os seus pequenos pés calçados com umas delicadas botinas vermelhas. Renaud também viu chegar Flore, respondeu ao seu sorriso triunfal com um encolher de ombros irritado e partiu à procura dos novos aquartelamentos de monsenhor Roberto.
Todos se instalaram com o à-vontade dos homens de guerra, habituados a mudar de domicílio de um dia para o outro, passando sem esforço da terra nua de um acampamento para as lajes de mármore de uma casa rica e regressando à areia ou à terra batida logo no dia seguinte, se necessário. Enquanto o grosso do exército se instalava no acampamento, o núncio assentava os penates, com os seus capelães e os seus servos na casa próxima da igreja de Notre-Dame. O Rei de Chipre na opulenta mansão de um mercador fugido, o príncipe de Morée e o duque de Borgonha numa espécie de depósito de caravanas onde encontraram todo o espaço essencial sem contar com as provisões e, por fim, alguns grandes barões, como o conde de Soissons, noutras residências agradáveis e abandonadas. Apenas o condestável Humberto de Beaujeu, os Templários, os Hospitalários e os sires de menor importância ficaram no acampamento, tendo os príncipes confiado as suas tendas à guarda dos seus cavaleiros.
Renaud oferecera-se para guardar o estandarte de Roberto, na esperança de provocar, enfim, um recontro com Roncelin de Fos. Artois recusou terminantemente, não desejando afastar-se dele fosse a que preço fosse:
- Tenho medo que um acaso qualquer te separe de mim - declarou ele. - E, sem ti, não saberia onde procurar a Cruz depois de reconquistarmos a Palestina...
Não havia nada a responder àquilo, tanto mais que o jovem se sentia comovido com aquela preferência concedida por um senhor ao qual se ligara devido à sua louca bravura, à sua generosidade, à sua alegria, ao seu arrebatamento, à sua temível franqueza e até às suas cóleras que o levavam, por vezes, a gestos incongruentes. Gestos esses que Renaud soubera pelo sirede Joinville, aquele curioso mordomo-mor de Champagne que acudia em socorro de imperatrizes errantes mas que não hesitava em pedir dinheiro ao Rei: por exemplo, o jovem Roberto, na ocasião com treze anos, enfiara um queijo na cabeça do grande conde Thibaut de Champagne, chamando-o de cobarde porque ousara pegar em armas contra a sua mãe, regente na época... Além de outros grandes feitos do género, provocados pelas indignações do príncipe. Sim, Renaud gostava daquele Roberto e a ideia de ir com ele, um dia, em busca da Cruz perdida, encantava-o... preferindo evitar a recordação da espécie de troca que lhe impusera o Papa Inocêncio. Teria tempo para pensar nisso depois de cumprida a sua missão!
O jovem ficou, portanto, com ele no que passou a ser conhecido como o “palácio”.
Essa atitude valeu-lhe, no dia seguinte ao fim da tarde, quando procurava a frescura nas margens do Nilo, encontrar-se com Raul de Coucy que, fiel ao hábito adquirido em Chipre, não quisera abandonar o acampamento:
- Ando à vossa procura desde ontem - disse-lhe o barão com um mau humor que lhe fazia tremer a voz. - Não é fácil encontrar-vos!
- Porque procurais mal, sire barão. Monsenhor nunca passa despercebido e eu ando quase sempre com ele.
- Oh, muito cómodo! Isso não me impedirá de vos pedir satisfações.
- Todas, se me disserdes de que se trata.
- Como se não soubésseis? - rangeu Coucy. - Ousastes introduzir no séquito da Rainha, com um nome falso, aquela miserável Flore d'Ercri, fazendo-a passar por vossa prima! Aquela feiticeira, aquela assassina, aquela...
-... aquela mulher que tanto amastes e que continua a amar-vos! Senão, por que razão a salvastes da fogueira? - perguntou Renaud com uma calma que pareceu apaziguar Raul.
- Estou a ver que estais a par da minha vida e gostaria de saber a que propósito! A menos que sejais amante dela... É isso, não é? Ela é vossa amante e ela traz-vos pelo beicinho? Eu mato-vos - acrescentou ele levando a mão ao punho da espada e tirando-a da bainha.
Renaud encolheu os ombros:
- Matai-me, se isso vos acalma! Não nego que a desejei, mas penso que esse sentimento é comum a todos aqueles que se aproximam dela. Também não a amo... mas devo-lhe muito. Ela foi a única a ajudar-me quando não passava de um miúdo perseguido por uma falsa acusação e atirado para uma masmorra e depois para as mãos de um atormentador!
- Foi por isso que a ajudastes?
- Mas eu não a ajudei, barão! Ela foi ter com a cruzada a Chipre. Mais exactamente a Nicósia, onde alugou uma casa modesta perto do palácio real. Foi lá que a vi... e que ela me disse...
- Disse-vos que matou a minha mulher e o meu filho? Disse-vos...
- Que vos amava mais do que a ela própria, mais do que a sua salvação eterna! Que vos desejava com toda a força de um amor insensato e que não suportava a ideia de estar longe de vós, E que foi a Chipre à vossa procura. Apesar de esperar encontrar-me...
- Porquê?
- Porque pensava que eu lhe era devedor. Ela queria que eu a fizesse entrar para o serviço de uma princesa, ou até da Rainha, para poder seguir-vos. Ao que eu me recusei...
- Estais a dizer-me que ela queria recuperar-me ficando o Inverno todo em Nicósia? Por que não veio para limassol? Havia muitas putas em redor do acampamento. Não teria qualquer dificuldade em arranjar um lugar!
- Não a insulteis gratuitamente. Sabeis muito bem que ela não é prostituta e que foi o seu amor que a levou ao crime. Quanto a ir ao acampamento, ela temia os vossos cavaleiros e receava pela própria vida. Era por isso que queria entrar para o serviço de uma grande dama. Eu fiz o que pude para a dissuadir, porque a condessa d'Artois, a única de quem poderia esperar alguma coisa, quanto a mim, ficou em França. Quando o Rei decidiu regressar ao acampamento, ela desapareceu da casa onde vivia e eu pensei que tinha ido para Limassol para tentar a sorte junto de vós, mas não foi e eu confesso que fiquei aliviado. Até ao dia em que soube que a Rainha tinha recolhido uma prima minha chamada Flore de Baisieux...
- E vós aceitastes? Por que não a denunciastes?
- Denunciar? Essa palavra é muito feia e o acto em si mais feio ainda, afortori quando se trata de uma mulher...
- Ser cúmplice de uma mentira e deixar uma assassina pavonear-se junto de Madame Margarida não vos atormenta a consciência? É o suficiente para desonrar a hoste inteira, serdes expulso da cavalaria e do reino para sempre...
- O reino está muito longe! - exclamou Renaud, que começava a ficar irritado com o furor do barão: parecia-lhe soar como um sino rachado. - Além disso, é preciso ter descaramento. Se não a tivésseis ajudado a fugir de Coucy - sem vos esquecerdes de fazer amor com ela uma última vez para poderdes ficar com uma boa recordação! - não estaríamos aqui os dois a discutir. Podíeis ter-lhe evitado a fogueira com uma facada, ou com umas gotas do seu melhor veneno. Eu limitei-ma a pagar uma dívida a quem me valeu quando todos me abandonavam. Até vós, que sabíeis com quem estáveis a lidar, já que a caução do irmão Adam deveria ter sido suficiente para vós! Portanto, quem sois vós para reprovar a minha conduta? Denunciai-a vós mesmo, mas não conteis comigo para esse acto vergonhoso!
A reacção de Courtenay surpreendeu Coucy pela sua violência. A sua, por seu lado, estava mais calma.
- Eu sei que passastes um mau bocado e eu devia pedir-vos desculpa em meu nome e no da minha mulher, mas tentai compreender! Eu amei aquela mulher para além de mim próprio e pensava que, sendo em parte culpado, mesmo involuntariamente, me redimia de certo modo salvando-lhe a vida. Fi-la jurar que iria para longe...
- Foi o que ela fez - disse Renaud com ironia.
- Mas não para esperar por mim! Eu tinha a certeza de que nunca mais a veria e quando descobri que outro homem a tinha ajudado com uma mentira...
- Pensastes que esse outro homem fizera dela sua amante?
- Ela é muito bela e vós sois muito sedutor - murmurou o barão, desviando o olhar para esconder a verdade, mas Renaud tinha compreendido:
- Não foi a indignação que vos fez vir ter comigo, sire Raul, foi o ciúme mais banal. Continuais a amar aquela criminosa, aquela feiticeira. Ela tem razão quando diz que a fome que tendes um pelo outro nunca se apaziguará.
- É verdade. Confesso, mas o inferno é meu e não quero que a Rainha...
- Ela não tem nada a temer de Flore! Ficais a saber que, ao aceitar calar-me, impus uma condição: ela terá de velar de perto por Madame Margarida, que eu creio estar em perigo. Até lhe disse que, se lhe acontecesse alguma coisa, torná-la-ia responsável... e que pagaria com a vida!
- Em perigo? Qual?
- Isso não vos diz respeito! E agora, fazei o que quiserdes, mas pensai no que vos acabo de dizer! Acrescento que não sou amante de Flore, nem eu, nem outro qualquer!
O olhar que se cruzou com o do jovem pareceu brilhar de alívio e Coucy suspirou antes de se afastar:
- Vou pensar nisto, cavaleiro, e tentar esquecer esta paz do coração que pensava ter conseguido...
- Paz ilusória... visto que continuais a amá-la!
- Sim! Mas receio bem que para condenação da minha alma! Renaud não teve tempo de lhe lembrar que só Deus podia julgar e que tinha sempre a possibilidade de se virar para Ele. Raul de Coucy acabava de desaparecer na sombra dos grandes papiros com um roçagar parecido com o do vestido de uma mulher.
Enquanto, no Cairo, o velho Sultão descarregava a sua cólera sobre os fugitivos de Damiette e sobretudo sobre os emires dos Banu-Kinana, enforcando-os a todos, na cidade tão facilmente conquistada os francos, esquecendo um pouco o carácter sagrado da sua empresa, começavam a levar uma vida agradável. Damiette regurgitava de riquezas e sobretudo de comida e os senhores cruzados deram grandes banquetes e promoveram outros festejos, aos quais se juntavam em breve todas as raparigas bonitas de costumes fáceis atraídas pela fortuna. Ao ver aquilo, o Rei preferiu ir viver para o campo de Maalot com os seus soldados e com as Ordens de cavalaria, deixando o palácio à disposição de Margarida, grávida, e das damas. Na realidade, o monarca não sabia bem que decisão tomar e o Conselho que se reuniu na sua grande tenda púrpura estava muito agitado. Se tivesse escutado o entusiasmo de Roberto e a sua própria vontade, teria continuado e carregado sobre o Cairo. Alguns dos seus conselheiros, como o Grão-Mestre do Templo, desejavam apoderar-se primeiro de Alexandria para melhor sufocar o Egipto com a posse dos seus dois pulmões mediterrânicos. Luís dizia que não a uns e a outros porque o roía uma dupla inquietação. Primeira, o seu irmão, Afonso de Poitiers, que sabia estar em Chipre, não tinha ido ter com ele. Segunda, estava-se no fim do mês de Junho e as cheias anuais do Nilo aproximavam-se. Em breve, o rio, transportando a sua colheita de lodo e de detritos, mas também de especiarias e de madeiras preciosas arrancadas às profundezas de África, transbordaria das suas sete embocaduras, inundando tudo para enriquecer as culturas do delta. Não podiam ficar atolados naquelas terras transformadas em pântanos, que tinham sido a causa da perda do exército de João de Brienne. Ficaram, portanto e o Rei matou a sua impaciência fazendo erguer fortificações e ornamentando a nova igreja de Notre-Dame enquanto levava, no acampamento, a vida austera de que gostava.
Uma vida não muito fácil e que contrastava penosamente com a dolce vita de Damiette. Roído pelas úlceras e por uma tuberculose pulmonar, com as pernas demasiado inchadas para o suportarem, El Aziz-Ayub, o Sultão, não estava inactivo. Pequenos destacamentos dos seus homens atormentavam o campo cristão, introduzindo-se de noite, depois da passagem das patrulhas a cavalo, sob as tendas mais afastadas e assassinando os soldados adormecidos sem defesa: o Sultão não prometera dar um besante por cada cabeça cristã que lhe levassem? Ao mesmo tempo, este, apesar de moribundo, abandonava a sua cidadela do Cairo, obra admirável de Saladino, para se dirigir a Mansourah, a fortaleza na confluência do Nilo e do Tanis, que barrava o caminho da sua capital. Ali, reuniu um sólido exército de Mamelucos, cujo treino feroz ele próprio vigiava a partir do seu leito pútrido de agonizante...
O campo cristão acabou por ter de novo noites mais tranquilas graças às patrulhas, mais numerosas e a pé, que o Rei ordenou, mas, ao mesmo tempo que o país se cobria de água lodosa onde os crocodilos nadavam em liberdade, o aborrecimento e o enervamento instalavam-se.
Por fim, o rio regressou ao seu leito, deixando atrás de si o lodo gerador de riqueza. Por fim, no dia de São Miguel, as velas do conde de Poitiers surgiram no horizonte azul. Por fim, iam poder partir, escapar àquele inferno de calor estagnado - que a proximidade do mar permitia, mesmo assim, atenuar - e aos mosquitos portadores de febre que ninguém era capaz de vencer... :
Instalou-se no campo, assim como na cidade, uma alegre rivalidade e os cânticos substituíram as canções de taberna. Todos se lembraram de que os combates futuros seriam para a glória de Deus e trataram de se pôr em paz com Ele.
A partida foi fixada para o dia de Santa Catarina, 25 de Novembro, portanto. Na véspera, Luís entregou a guarda de Damiette à sua mulher. Estava fora de questão levar as damas para os perigosos campos de batalha. As damas ficariam na cidade onde não lhes faltaria nada, guardadas pelos capitães genoveses ou pisanos dos navios da hoste, assim como pela população copta. Margarida conservou, evidentemente, o seu pessoal doméstico e um velho cavaleiro, o sire d'Escayrac, encarregado de “velar pelo seu ventre”. A jovem esperava um filho e ia assumir o governo de Damiette.
Foi por volta da meia-noite que uma das patrulhas encarregadas da segurança do campo encontrou o corpo de Flore d'Ercri, dita Flore de Baisieux. Com os grandes olhos muito abertos para uma eternidade que parecia surpreendê-la, jazia na areia meio escondida pelos caniços, pregada ao solo como uma grande borboleta azul pelo longo punhal egípcio que lhe trespassava o coração.
Os arqueiros da patrulha, nessa noite, pertenciam ao conde d'Artois. Foi este, portanto, que aqueles foram prevenir, acrescentando que lhes parecia ter visto a vítima no meio das damas da Rainha.
Incapaz de dormir, como lhe acontecia muitas vezes na véspera de uma batalha, Roberto jogava xadrez com Renaud. Ambos seguiram o oficial, tendo o cuidado de fazer o menos barulho possível. Chegado junto do corpo que, por respeito, tinham coberto com o próprio véu, mas que reconheceu pelo vestido azul, Renaud sentiu um baque no coração. O jovem acocorou-se e teve um choque ao constatar que era mesmo Flore que estava ali estendida, morta, na sua frente. Roberto, a quem nenhuma rapariga escapava, também a identificou:
- É uma das donzelas da minha cunhada! Até é, creio, uma prima tua afastada, Renaud?
Este teve apenas uma leve hesitação: se não queria desencadear um escândalo terrível poucas horas antes da partida do exército, tinha de continuar a mentir:
- Sim - suspirou ele. - Era minha prima... ou antes, prima da minha mãe adoptiva: Flore de Baisieux. Pertencia ao serviço da Rainha... e eu pergunto a mim próprio o que andava a fazer aqui, longe do palácio!
- Talvez te quisesse dizer adeus pela última vez... e com muita ternura? Se eu não soubesse que era a tua querida, ter-me-ia aproximado dela! Que beleza!
- Não, monsenhor! Na verdade... não gostava muito dela e conheço tanto como vós a razão por que ela veio até ao Egipto.
- Se não foi por ti, foi por outro. Resta saber quem é esse outro... e se ele não se declarar, temos pouco tempo para o procurar. O dia não vem longe...
Renaud limitou-se a encolher os ombros e a abanar a cabeça. Ele sabia qual era o nome que lhe vinha espontaneamente ao espírito, mas não tinha o direito de o pronunciar. Fora com Coucy, evidentemente, que ela viera ter... O jovem acabou por resmungar:
- Devido ao seu estatuto, só pode ter sido um cavaleiro e, seja ele qual for, isso não nos dirá quem a matou. Certamente não foi o seu... amante! Todos nos confessámos e comungámos. Um crime destes depois de ter recebido a hóstia?
De facto, o jovem tentava convencer-se, lutando contra o terrível pensamento que lhe enchia o espírito: Coucy, para acabar definitivamente com aquele amor, no qual via a sua perda, não teria desferido pessoalmente o golpe libertador? Não o vira comungar! Graças a Deus, os pensamentos do conde d'Artois iam noutra direcção. Com delicadeza, Roberto retirou o punhal da chaga e examinou-o à luz de um archote.
- E inútil procurar mais. Eu já vi uma lâmina semelhante a esta. Os Sarracenos chamam-lhe handjar. Pertence, sem dúvida, a um daqueles assassinos que o danado do sultão está sempre a enviar contra nós e dos quais temos tanta dificuldade em defender-nos... O acaso quis que, desta vez, ele encontrasse uma mulher sem defesa. Uma bela vítima para oferecer a Alá, o sanguinário! Mas fica tranquilo, havemos de o fazer pagar esta morte cem vezes!
Enquanto o conde dava ordens para que procurassem uma padiola para levar a jovem para junto de Margarida, que trataria do seu funeral, Renaud ficou a olhar para o belo rosto, do qual fechou os olhos com um gesto pleno de doçura. Aquele rosto não exprimia medo, exprimia espanto. Além disso, o punhal era uma arma cara! Não era surpreendente que o assassino, sendo muçulmano, o tivesse abandonado deliberadamente no corpo de uma simples mulher? A menos que fosse para desviar as suspeitas na direcção do campo cristão? Quanto mais pensava, mais achava que a mão assassina não pertencia a um sectário de El Aziz-Ayub...
Em silêncio, o jovem seguiu com o seu príncipe a padiola transportada por dois soldados, deixando a patrulha prosseguir a sua ronda. A sua chegada ao palácio provocou um grande rebuliço, mas não conseguiram ver Margarida. O cavaleiro d'Escay-rac, e mais ainda a dama Hersende, recusaram-se a acordá-la.
- Ela acaba de adormecer - explicou a médica. - O desgosto pela partida próxima do marido! É preciso poupá-la. Quanto a essa pobre donzela de Baisieux, conhecia-a pouco. Era uma pessoa muito fechada, se bem que muito dedicada à Rainha. Além disso, este palácio é como um moinho: todos podem sair e entrar quando lhes apetece, mas até agora nunca me tinha apercebido de que a donzela Flore se ausentava de noite. Se calhar, foi despedir-se de alguém? - acrescentou ela olhando para Renaud...
- De mim, não! - cortou o jovem. - Eu estive a jogar xadrez com monsenhor Roberto...
- Nesse caso, não estou a ver! Mas regressai ao campo. Eu vou chamar o capelão e encarregar-me deste pobre despojo. Madame Margarida será prevenida após a partida da hoste e ordenará, então, o funeral. Sinto-me desolada por vós, sire Renaud!
Ele agradeceu tocando-lhe na mão e depois ajoelhou-se junto do corpo para uma curta prece, que terminou pousando um beijo naquela bela e pura fronte, que ninguém imaginaria ter abrigado tantas tempestades...
- Rezaremos por ela! - disse Roberto d'Artois, apoiando uma mão no ombro do seu escudeiro. - Vem! Temos de regressar ao campo. Falarei disto ao Rei quando formos a caminho... Ou antes, não. Não lhe vou dizer nada! É um presságio demasiado mau haver sangue derramado na véspera de uma batalha.
- Os antigos gregos e romanos derramavam-no antes de partirem para a guerra - observou Hersende, pensativa. - Esperavam, assim, atrair os favores dos deuses.
- Deus Todo-Poderoso só aceita o sangue daqueles que combateram pela Sua causa - ripostou Roberto com altivez. - O dos inocentes faz-Lhe horror. Não vou dizer nada ao Rei, meu irmão! O seu espírito está demasiado elevado para o enlamearmos com misérias humanas! É a nós que pertence tirar vingança dos Infiéis pela morte desta infeliz!
- ... e rezar por ela! - concluiu Renaud, assustado com o pensamento de que Flore não tinha nada de inocente e que a morte se apoderara dela sem lhe dar tempo de se arrepender...
Não evitara ela a fogueira dos homens apenas para arder eternamente na fogueira do Inferno? A ideia era-lhe odiosa, mas o jovem apercebeu-se de que, junto dele, um outro se preocupava mais com a realidade do que com as cogitações sobre o Além.
Quando acabou de afivelar os sacos de Renaud, Gilles Pernon foi procurá-lo:
- Podeis passar sem mim durante algum tempo, sire Renaud? Eu gostava de ficar aqui depois de partirdes...
- Tu? Queres desertar na véspera dos combates? - sussurrou o jovem, estupefacto. - Custa a crer!
- Não. Eu gostava de tentar descobrir quem matou aquela rapariga... Não gostava dela e até lhe tinha rancor pelo que me fez, mas um assassínio, assim tão cobarde, repugna-me.
O olhar subitamente muito duro do cavaleiro fixou-se no do velho escudeiro:
- Sinto-me feliz por sabê-lo. Por momentos, pensei que tinhas sido tu!
O golpe atingiu o alvo. O couro tisnado de Pernon ficou com uma curiosa cor acinzentada, ao mesmo tempo que, com a emoção, uma grossa veia azul lhe batia na têmpora:
- Oh não!... Não, messire! Não podeis acreditar numa perversidade dessas! Ou então, não me conheceis e, na ocorrência... não precisais de um servidor de que desconfiais.
- Não te zangues! O pensamento apenas me aflorou o espírito. Mas, por que queres ficar? A partir do momento em que partamos, o assassino escapa-te. Não acreditas que o barão de Coucy...
- Esse? Oh não! Destroçado entre o arrependimento e o desejo que tinha por ela, era capaz de o ter feito, mas teria matado com as próprias mãos, ou com o seu punhal, nunca com um punhal árabe...
- E quem te diz que o assassino não é um daqueles que se metia nas tendas, de noite?
- Não teria deixado a arma para trás. Querem fazer-nos acreditar que o crime foi cometido por um muçulmano surpreendido por Flore, mas eu creio que é nesta cidade que eu tenho hipótese de o descobrir. É um punhal bem bonito, não achais? - acrescentou Pernon, tirando o objecto da sua cota de couro.
- Foste tu que o tiraste?
- Sou muito hábil com os dedos - sorriu Pernon com modéstia. - Subtraí-o enquanto levavam a defunta... e tenho a impressão de que me vai dizer muita coisa...
Renaud reflectiu por um instante:
- Nesse caso, faz como quiseres! E esconde-te onde quiseres. Direi alto e bom som que deves ter adormecido depois de teres estado a beber numa taberna qualquer. Poderás sempre ir ter comigo quando souberes o que queres... Mas tem cuidado!
Quando a cruzada se pôs em marcha no dia seguinte, ignorava que o Sultão das úlceras estava morto há já cinco dias na sua fortaleza de Mansurah e essa ignorância prolongar-se-ia ainda por muito tempo graças à presença de espírito e energia de uma mulher, a sua favorita, a bela Sahdjar ed-Door. Com o acordo dos eunucos e também do emir Fakhr el-Din, que comandava o exército, ela conseguiu guardar segredo da morte do ancião. De facto, o seu único filho e herdeiro, Turan-Shah, encontrava-se, então, muito longe, nas suas terras da Mesopotâmia e era preciso, não só preveni-lo, como dar-lhe tempo de chegar. Se soubesse da sua morte, o Rei de França ter-se-ia, talvez, precipitado, o que não aconteceu.
Luís temia, bem entendido, a rede de canais e águas vivas que sulcavam o delta do Nilo. O monarca ordenou que se marchasse com lentidão para assegurar às suas tropas uma maior protecção. Assim, decidiu seguir a margem direito do rio ao ritmo dos barcos de pequena tonelagem que o subiam paralelamente ao exército para assegurar o reabastecimento, ao mesmo tempo que se protegia de uma ofensiva inimiga lançada da margem esquerda. Ora, os remos tinham de lutar contra a corrente e, por vezes, contra o vento, não fazendo, muitas vezes, mais de uma légua por dia enquanto avistavam os esquadrões de mamelucos galopando no horizonte. Naquele ritmo, levariam um mês a atingir o seu objectivo. Tudo aquilo provocava o furor dos guerreiros francos, assolados pela impaciência. E mais ainda entre os templários que, segundo a tradição, iam à frente com a Cruz, seguidos imediatamente pelos esquadrões do conde d'Artois...
Então, produziu-se uma explosão quando estavam mais ou menos a meio caminho. Foi a 6 de Dezembro, dia de São Nico-lau. Uns turcos atacaram subitamente o grupo de templários do marechal Renaud de Vichiers e fizeram um dos cavaleiros cair do cavalo. Ao ver aquilo, Vichiers, apesar de o Rei ter proibido o combate, ficou verde de cólera e gritou:
- A eles, por Deus! Porque não sou capaz de suportar uma coisa destas!
O marechal esporeou o cavalo, arrastou consigo os seus irmãos e como os cavalos estavam frescos, contrariamente aos do inimigo, os “pagãos” foram mortos ou atirados ao rio num total de seiscentos. De facto, os templários, como o resto do exército, ardiam de impaciência perante a lentidão daquela campanha. Por fim, atingiram o futuro teatro das operações, que era exactamente o mesmo do tempo de João de Brienne: o triângulo de terras fortemente irrigadas limitado a norte pelo lago Menzaleh, a oeste pelo Nilo e a sudeste pelo canal Bahr es-Seghir, que estava ligado ao Tanis. Era por trás da profunda vala deste último que se erguia a praça-forte de Mansurah, que barrava a estrada do Cairo. Entre os dois, as forças egípcias de Fakhr el-Din.
Para as atingir era preciso atravessar e, para atravessar, a única solução era passar por cima do canal. Ergueu-se o acampamento e começaram os trabalhos de aterro.
Durante a interminável viagem, Raul de Coucy aproximara-se curiosamente de Roberto d'Artois, cujos furores exacerbados pareciam encontrar eco nele, mas, sobretudo, de Renaud de Courtenay. Desde o dia da partida, até à paragem da noite, este, incapaz de calar a sua indignação, atirara-lhe à cara a morte de Flore, acusando-o quase de a ter assassinado em termos que, em tempos normais, teriam provocado um frente-a-frente de espada na mão. Mas arrependera-se de imediato ao ver o rosto descomposto do barão, compreendendo que a sua surpresa era total. Em seguida, em vez de uma resposta colérica, vira as lágrimas no seu rosto. Raul afastara-se com o dorso curvado sob o peso daquela estranha maldição que o amor lhe infligira.
No dia seguinte, Renaud, incapaz de suportar a ideia de ter sido o provocador de um tal sofrimento, foi ter com ele e, com palavras simples, pediu-lhe desculpa por uma linguagem demasiado viva. Depois, os dois homens encontravam-se de boa vontade para falar disto ou daquilo, muitas vezes para escutar uma terceira personagem que Coucy conhecia bem: o monumental sire de Joinville cuja esposa, Alix de Grandpré, prima direita do conde de Soissons, vizinha próxima e amiga, era um pouco sua parente.
Aquele Joinville era um rapaz curioso. Devia o seu título de mordomo-mor de Champagne ao facto de marchar à cabeça dos cavaleiros dessa região, já que representava o conde-suserano, ausente naquela cruzada. Aquele título fazia dele uma alta personagem e ele sentia-se ingenuamente satisfeito. Bom companheiro e grande folgazão - o Rei, em Chipre, censurara-o por gostar tanto de vinho! - adorava o fausto, a cor verde, as peles cinzentas, com as quais ligavam bem a sua tez fresca e os cabelos louros um tanto arruivados, as jóias - o seu selo era uma magnífica sardónica - e as belas histórias, sobretudo as dos grandes feitos de armas... Desde os dezoito anos que votava pelo Rei Luís, que entretanto raramente via, uma espécie de devoção, porque era, também ele, profundamente cristão, assim como uma admiração sem limites dado que, no seu espírito, o Rei já tinha a auréola dos santos, coisa que ele nunca teria. O que não deixava de ser curioso, já que olhava para as coisas e para as pessoas com um olhar muitas vezes perspicaz, mas onde a caridade cristã não reinava. Cavaleiro valente, além disso, a natureza dotara-o de uma força pouco comum, de um riso sonoro e de um sentido do conforto avançado para o seu tempo. Foi assim que, tendo visto que sob o Sol do Oriente o pesado elmo cilíndrico equivalia a colocar na cabeça uma marmita, mandou confeccionar um chapéu de ferro forrado de tela e munido de abas que colocava sobre o carnal de malha e que lhe permitiam respirar à vontade, ao mesmo tempo que protegia um pouco os olhos do Sol brilhante. Muitos lançavam um olhar desdenhoso para aquele chapéu pouco habitual, mas Joinville não queria saber. O Rei, esse, contentara-se em sorrir meio divertido, meio sonhador, e isso chegou-lhe.
Os trabalhos de drenagem do canal revelaram-se rapidamente inúteis e até perigosos, se bem que Luís tenha mandado proteger os trabalhadores com um sistema de torres de madeira e catapultas. Foi então que travaram conhecimento com o fogo grego, os potes de nafta inflamada que incendiavam tudo aquilo em que tocavam, provocando ferimentos cruéis e que continuavam a arder mesmo dentro de água.
- Aquilo é uma máquina do diabo! - exclamou Joinville, benzendo-se três vezes quando viu chegar o primeiro e constatou os efeitos.-Aquilo parece um tonel de vinho com uma cauda a arder do tamanho de uma lança! E faz o barulho de um trovão, ou... ou de um... dragão voador!
A noite ficara tão clara como em pleno dia. Assim, quando os homens avistavam um daqueles engenhos malditos, punham-se de joelhos e colocavam os cotovelos no solo. Apenas o Rei permanecia de pé e, com as lágrimas nos olhos, estendia os braços para o céu, pedindo:
- Meu Deus! Cuidai da minha gente!
Como os desígnios do Senhor eram impenetráveis, Deus serviu-se deles para lhe ceder um dos piores agentes que pode haver: o traidor!
Um beduíno com falta de dinheiro, que revelou a Luís que existia uma passagem a vau a leste da sua posição, num local que os defensores de Mansurah não vigiavam muito ou mesmo nada, porque as margens, naquele sítio, eram escarpadas.
Na noite de 7 para 8 de Fevereiro o Rei, deixando o campo à guarda do duque de Borgonha, dirigiu o seu exército para a passagem no maior silêncio e começou a fazê-lo passar o canal. O que não foi fácil, justamente porque as margens eram altas e escorregadias e a operação demorou bastante tempo. De madrugada ainda não tinha terminado.
As ordens de Luís eram precisas: antes de se lançar o ataque ao campo egípcio, era preciso esperar que todos tivessem passado. Ora, esperar era uma palavra que Roberto d'Artois já não suportava. Com os templários, ele formava a guarda avançada, mas mal os seus cavalos galgaram a margem, o conde subiu para o seu e arrastando atrás de si os seus cavaleiros, lançou-se à rédea solta sobre as tendas inimigas sem sequer um olhar para os templários, pelos quais passou como um relâmpago. Aquela fúria foi rentável: em poucos minutos e com um som de tempestade, o campo foi varrido e aqueles que não foram massacrados procuraram a salvação na fuga em direcção a Mansurah, cujas portas se abriram para eles...
Espumando, berrando “A eles, a eles!” a plenos pulmões, Roberto parecia um demónio de guerra. A sua espada fazia voar as cabeças à sua volta como a foice de um mondador num campo de trigo. O próprio emir Fakhr el-Din foi abatido por ele. No momento do irresistível ataque, o chefe egípcio estava no seu banho e tingia a sua barba com hena. O emir saíra para o exterior e, todo nu, tendo tido apenas o tempo para pegar nas suas armas, atirara-se para cima do seu cavalo para defrontar Artois. Fakhr el-Din era um homem valente, um guerreiro temível, mas contra a espécie de furor sagrado que se apoderara de Roberto, não podia fazer nada. A espada deste apanhou-lhe o flanco. O emir caiu na lama sangrenta diante do cavalo de Renaud que, levado pela exaltação daquele combate a galope onde se dissolviam todas as impaciências, seguia o seu príncipe como uma sombra. O jovem pôs pé em terra, pegou na cimitarra dourada pousada sobre o seu antebraço e, segurando-a pela ponta, ofereceu-a a Roberto, cujos olhos brilhavam. Este ordenou:
- Que levem esse corpo e que lhe prestem as honras devidas ao seu estatuto e bravura... E tu, Renaud, monta! Continuamos!
Guilherme de Sonnac, o Grão-Mestre do Templo que chegava naquele momento, ao ver que o príncipe se ia lançar na direcção da entrada da cidade, quis detê-lo:
- O ataque ia começar, monsenhor! - censurou-o ele - e perante o que conseguistes deixa de ter grande importância, mas não deveis prosseguir mais, isso seria ultrapassar as ordens do Rei!
- Por Deus, Grão-Mestre, saí-me da frente e deixai-me passar! Tenho de continuar o que comecei. Eu sou o irmão do Rei! A vós, cabe-vos seguir-me se não sois um cobarde!
Sob o insulto, o grande ancião empalideceu e levou a mão à espada:
- Os Templários não costumam ter medo, conde d'Artois! Por isso, marcharemos convosco... Mas sabei que nenhum de nós regressará!
- Isso só Deus é que sabe! Batei-vos e vivei! Que mais?
O condestável Humberto de Beaujeu chegava nesse instante com uma dezena de cavaleiros:
- O Rei ordena-vos que pareis, monsenhor! Tendes de esperar por ele! Ele exige-o! - gritou ele.
- E eu não espero por nada nem por ninguém! Nem por ele! Dentro de alguns instantes serei senhor de Mansurah e oferecer-lha-ei para maior glória de Deus!
Sem querer ouvir mais nada, fez virar a sua montada e aos berros, para juntar de novo a sua gente, correu à desfilada na direção da cidade. Roberto estava convencido de que a morte de Fakr el-Din ia entregar-lha de mão beijada. Mas, de facto, com os seus seiscentos cavaleiros, atirou-se de cabeça baixa para uma armadilha porque, dentro de Mansourah estava Baybars...
Aquele que seria um dia o Sultão el-Malik el-Zhir Rukn ed-Din al-Salih al-Baybars não passava ainda do chefe dos besteiros do defunto El-Ayub. Ele não era egípcio, nem sírio, nem curdo como Saladino. Era um kiptchak nascido no Turquestão cuja mãe tinha, como todo o país, sofrido o assalto dos Mongóis e dos quais recebera o sangue antes de ser vendido como escravo em Damasco. Enviado para o Cairo, fizera-se notar pela sua coragem, pela sua inteligência e pela sua crueldade fria perante o velho sultão al-Salih, do qual se tornara guarda-costas antes de receber o comando dos besteiros com o título de emir. Tinha, então vinte e sete anos...
A carga de Roberto d'Artois que, levado pelo ímpeto, atravessara Mansourah de um lado ao outro, quebrou-se contra os seus mamelucos, por cima dos quais flutuava o leão passante do seu estandarte. O dédalo de ruelas separou os seus cavaleiros e os do Templo em vários grupos que, apresentando-se numa ordem dispersa, não foram difíceis de rechaçar. Roberto teve de recuar sem, no entanto, interromper o combate. O conde bateu-se como um leão furioso, esperando apenas aguentar até que o irmão viesse em seu socorro, mas a luta era muito desigual. Com lágrimas de raiva a caírem-lhe pelas faces abaixo ao abrigo do seu elmo, o sangue e a poeira maculando-lhe a cota de armas com a flor-de-lis, recuou pouco a pouco por aquelas ruelas que pareciam animadas por vida própria, porque os habitantes associavam-se ao combate, abrigados por trás das paredes. Um após outro, os cavaleiros sucumbiam sob as flechas disparadas dos telhados e as pedras lançadas das janelas:
- Escondei-vos, monsenhor! - gritou Renaud cujo escudo acabava de evitar que levasse com um pedregulho. - Só até o Rei chegar!
- O conselho é bom! Aquela casa...
Os dois cavaleiros puseram pé em terra e, deixando ir os cavalos, correram na direcção do edifício com Croisilles, Fresnoy e alguns outros. Mas às arrecuas e sem deixarem de espadeirar, porque os mamelucos vinham sobre eles. Bateram-se no corredor, depois no pátio interior contra uma força cada vez mais pressionante... Subitamente, uma flecha entrou-lhe no pescoço e o príncipe compreendeu que não sairia dali, que ia morrer. O sangue jorrou, sujando a seda azul da sua túnica, mas Roberto não caiu, empurrando até Renaud, que o queria apoiar:
- Não! Foge!
- Eu?...Fu...
- Foge! Estou-te a dizer! É preciso... que o Rei saiba... e que me perdoe! É preciso... que a Cruz seja... encontrada! Tu, sozinho!... Por trás de nós... uma escada... o terraço!
Os homens ainda de pé que, ao vê-lo ferido, tentavam protegê-lo, caíram um após outro. Com uma coragem inaudita, Roberto d'Artois combatia ainda, mas a sua voz não passava de um grito rouco quando berrou:
- Vai-te embora!... É uma ordem! Ao Rei...
Aquele esforço supremo fê-lo abater-se sobre as lajes da galeria que rodeava o pátio. Então, Renaud, já na sombra daquela abóbada com arcadas, abrigou-se por trás do tronco da palmeira que crescia no pátio, arrancou o elmo e atirou-se pela escada designada enquanto que, com um grito de vitória, um guerreiro de turbante e de pele escura cortava a túnica com flores-de-lis para a agitar como uma bandeira e levá-la a Baybars. Mais tarde, soube-se que aquele homem estava persuadido de ter morto o Rei de França, o que desviou a atenção de todos de tudo aquilo que ainda podia mexer naquela casa...
Esta ressoava como um tambor com os urros de triunfo quando Renaud conseguiu chegar ao terraço onde terminava a escada. O jovem viu-se subitamente ao ar livre com os telhados planos da estreita cidade e as torres da sua cidadela a seus pés e, para lá das muralhas, a paisagem de água e terra, as nuvens de poeira e o barulho surdo das armas. Viu-se, sobretudo, frente a um jovem vestido com uma túnica suja e rasgada e com um trapo a fazer de turbante na cabeça, sentado e abraçando uma bilha com os braços magros.
O cavaleiro viu-se perdido. Aquele rapaz ia gritar por socorro. Por outro lado, a ideia de matar uma criatura sem defesa e visivelmente miserável era-lhe penosa. Mas como parlamentar quando existe a barreira da língua? Renaud preparava-se, colocando a espada sangrenta entre si e o rapaz, para tentar saltar para o telhado vizinho quando o petiz falou na língua de Homero com a qual o jovem se familiarizara durante o tempo passado junto de Balduíno. - Tu és franco?
- Sim, mas...
- Bebe! Deves estar a precisar!
O petiz acabava de mergulhar uma escudela na sua bilha, que continha água e estendeu-lha. Era um milagre e Renaud tinha demasiada sede para discutir. Bebeu com um prazer que não se recordava de ter tido e devolveu a escudela.
- Obrigado! Mas, quem és tu?
- O meu nome era Basile Léandros antes de ser escravo - respondeu ele mostrando a coleira de ferro. - Se queres falar, não podemos ficar aqui. O patrão e os outros criados estão na batalha, mas não devem tardar a regressar...
- E tu sabes para onde ir? - perguntou Renaud com um olhar em redor.
- Sei. Para além! - respondeu Basile estendendo um braço demasiado fino para um pequeno minarete por cima de um edifício cinzento que tinha um ar vetusto. - É uma antiga capela copta, construída há muito tempo e que já não serve. Mas, por baixo, há um subterrâneo que vai dar à parte de fora das muralhas...
- Que fazes tu aqui, nesse caso? Se tens um meio de fuga, porque ficas aqui à espera... não sei de quê?
- Esperava que conquistásseis a cidade. Queria ver no que ia dar... Mas, agora, vem! Temos de ir... Bebe mais um pouco antes de partirmos!
Renaud obedeceu. Basile também bebeu. Em seguida, abandonando a sua bilha, deu um impulso e, com um salto ligeiro, passou para o terraço vizinho, onde se acocorou de imediato. Renaud imitou-o e continuaram: Um salto, uma paragem num sítio abrigado e depois mais um salto...
Por baixo deles, o massacre continuava num pandemónio de gritos, de quedas de corpos e de fragor das armas. Encarniçada na matança, a população de Mansurah não pensou, por um instante sequer, em olhar para o que se passava nos seus telhados. Os dois fugitivos chegaram assim ao telhado da antiga capela, tão plano como tudo em redor. Tal como nas outras casas, do terraço descia uma escada junto do minarete meio arruinado. Pouco depois, Renaud e o seu guia mergulhavam nas estranhas escuras, poeirentas mas divinamente frescas do antigo santuário copta. O pequeno edifício estava apoiado em quatro pilares maciços e foi ao pé de um deles que Basile se foi sentar, convidando com um gesto o seu companheiro a fazer o mesmo...
- Vamos esperar aqui até que seja noite - disse ele. - Será mais prudente. Sabes, a entrada para a cripta é ali, por trás do altar e é de lá que parte o subterrâneo...
- Se sabes tudo isso, por que ficaste?
- Estava à espera de crescer: tem de se levantar uma laje que é muito pesada para mim - suspirou Basile. - Além disso, antes de chegar a tua armada, dentro da cidade ou lá fora, tanto faz: muçulmanos e mais muçulmanos, sempre muçulmanos... E eu tenho uma coleira de escravo...
Era fácil de compreender. Renaud contentou-se em passar a mão pela cabeça hisurta do petiz.
- Para onde irias se tivesses o caminho livre?
- Para casa, para Alexandria. O meu pai era lá comerciante de tapetes bordados, mas teve a infelicidade de desagradar ao governador da cidade porque o seu comércio ia muito bem. Então, acusaram-no de roubar e até de ter morto um dos guardas do emir. Foi executado e a minha mãe, as minhas irmãs e eu fomos vendidos como escravos... Não sei o que foi feito delas...
A voz do petiz falhou ao pronunciar as últimas palavras e Renaud, tanto mais desolado quanto aquela era um pouco a sua história, quis pousar um braço fraterno sobre o ombro do seu pequeno companheiro, mas sentiu-o retesar-se, recusando assim a sua compaixão e ele não insistiu. Encostou-se a uma parede e limitou-se a esperar pacientemente. Mesmo naquele asilo de paredes espessas, a algazarra que se ouvia era terrível... Esquecendo que aquele lugar sagrado se tornara muçulmano, pôs-se a rezar em silêncio...
Fora daquelas paredes, a batalha recomeçou. O Rei de França acabava de passar o canal quando os mamelucos, desembaraçados da guarda avançada que acabavam de aniquilar, correram para ele uivando como lobos. O seu corpo de batalha estava cortado do campo onde os besteiros permaneciam com o duque de Borgonha. Luís adivinhou o que se tinha passado e, dominando a sua inquietação, compreendeu que a menor perda de sangue-frio podia ser fatal. Deu a si próprio um instante de reflexão, deteve o seu cavalo no alto de uma pequena elevação para poder dominar a situação e Joinville que, ferido, estava a ser tratado à beira do canal, nunca mais esqueceria a imagem daquele rei-cava-leiro que, naquele dia, ia dar verdadeiras provas do seu valor: “Nunca, disse ele, e até o escreveu mais tarde, vi um tão belo cavaleiro. Parecia, acima da sua gente, com o elmo dourado e coroado na cabeça e com a espada alemã na mão...”
O Rei deu ordem para que cerrassem fileiras, que não oferecessem qualquer falha ao carrossel que, à maneira mongol, girava em redor deles crivando-os de flechas. Em seguida, ordenou à carga, arrastando-a atrás de si e mergulhando no ninho de vespas assassinas que, surpreendida pela violência do choque e não tendo tempo de recarregar os arcos, caíam como espigas de milho sob a lâmina da sua espada. O seu exemplo galvanizou as tropas e conseguiu tamanhos prodígios sem ser atingido uma única vez que os seus cavaleiros esforçaram-se até se ultrapassarem a si próprios para serem dignos dele.
Combatendo sempre, ele esforçou-se por subir o Bahr es-Seghir para dirigir a batalha de frente para o campo onde o duque de Borgonha alinhava os seus besteiros. O Rei estava em toda a parte ao mesmo tempo e por dez vezes quase foi capturado, particularmente num determinado momento em que seis mamelucos o cercaram, apoderando-se da brida do seu cavalo. Com grandes estocadas, conseguiu soltar-se...
O duque de Borgonha, achando que era preciso aproximar os seus besteiros, mandara construir à pressa uma ponte e foi quando o Sol já se estava a pôr que estes se alinharam no outro lado do canal. O exército infiel bateu, então, em retirada, abandonando as tendas diante das portas da cidade. A vitória era dos cruzados. Os cruzados eram, agora, senhores dos dois campos. Trataram dos feridos, enterraram os mortos e o campo zumbia com as preces. Restavam os que tinham tombado em Mansurah, entre os quais Luís temia que estivesse o seu irmão preferido.
A confirmação chegou demasiado cedo e por duas vezes, antes mesmo de Renaud de Courtenay e o seu jovem companheiro aparecerem cobertos de terra e de arranhões. Das sombras da noite surgiu o Grande Comendador dos Hospitalários, João de Rosnay, que um milagre expulsara da armadilha de Baybars antes de as portas se fecharem de novo. Coberto também ele de sangue e perdendo o seu pelos numerosos ferimentos, aproximou-se do Rei e beijou-lhe a mão que segurava a espada com lagrimas nos olhos:
- Sire João - perguntou Luís com uma voz que o Rei se esforçou por fortalecer - tendes notícias do nosso irmão d'Ar-tois? Ele foi feito prisioneiro?
- Sire, já que Deus fez de mim o portador de uma tal notícia, peço-vos perdão. A esta hora, monsenhor Roberto deve estar junto d'Ele, no paraíso...
Seguiu-se um silêncio e depois Luís murmurou:
- O Senhor Deus deve ser adorado pelo que ordena.
A sua voz foi cortada por um soluço e, sem falsa vergonha, o Rei começou a chorar aquele valoroso cavaleiro tão louco, que ele amava mais do que nenhum outro... E não houve ninguém que não se sentisse emocionado por ver o fulgurante herói daquele dia abandonar-se à sua dor como o mais humilde dos seus súbditos.
E voltou a saber quando de madrugada um ordenança dos postos avançados lhe levou Renaud, que transportava nos braços o pequeno Basile. O homem e o petiz estavam sujos de meter medo e completamente esgotados de fadiga: a passagem do subterrâneo, que desabara e quase os enterrara vivos, revelara-se mais difícil do que o previsto.
- A vossa gente deve ser capaz de o reabrir, sire - disse Renaud subitamente desejoso de atenuar com aquela boa notícia a dor inscrita no rosto magro do Rei. - E Mansurah será vossa...
Mas Luís, apesar de admitir o valor da informação, recusou deixar-se distrair do seu desgosto. O que ele queria ouvir era o relato dos últimos instantes de Roberto, daquele último combate que, com a maior parte dos cavaleiros já abatidos, levara até ao fim na proporção de um contra dezenas. E Renaud assim fez, esforçando-se por não omitir nenhum pormenor para melhor gravar a cena no espírito daquele que a reclamava.
O Sol nascia quando ele terminou. O campo acordava. Aqueles que a gravidade dos seus ferimentos não pregava à terra estiravam os seus corpos doridos sob os lorigões de aço que não tinham tirado para dormir. Luís pousou uma mão compassiva no ombro de Renaud:
- Tenta repousar um pouco antes que o inimigo regresse à carga! Agradeço-te e, doravante, serás um dos meus cavaleiros! Quanto à criança que te ajudou, vou enviá-la à Rainha com um dos barcos de reabastecimento...
- Aqueles demónios devolver-vos-ão o corpo de monsenhor Roberto? - ousou ele perguntar...
- É minha intenção pedi-lo.
O que fez. No seu tempo, Saladino teria entregue o príncipe morto com o aparato devido ao seu estatuto e coragem, mas Baybars não era Saladino: o emir mandou atirar o cadáver do alto das muralhas enquanto o combate recomeçava. Já de noite, os soldados de Champagne tinham perseguido uma patrulha de cavaleiros mamelucos. O confronto duraria ainda dois dias, dois dias durante os quais o Rei esteve em toda a parte ao mesmo tempo, libertando aqui o seu irmão Carlos de um cerco e mergulhando ali a grande espada no mais espesso da batalha, para finalmente retomar a táctica de que se servira na praia de Damiette: as lanças dos seus cavaleiros espetadas no solo, quebrando o assalto furioso dos cavaleiros de Alá...
As portas da fortaleza fecharam-se de novo sobre o inimigo severamente batido... e não voltaram a abrir-se.
Foi somente quando tudo estava terminado que contaram os mortos de Mansurah. As perdas eram muitas. Trezentos cavaleiros tinham perecido com Roberto d'Artois e mais duzentos e noventa templários, entre os quais e à cabeça, como tinha previsto, o velho Grão-Mestre Guilherme de Sonnac. Tinham morrido Erard de Brienne, Juão de Chérizy, Rogério de Rozoy, o inglês Guilherme de Salisbury! Mortos também Gerard de Fresnoy e Hugo de Croisilles! Por fim, Raul de Coucy.
O POEMA DA MADRESSILVA
A morte estranha daquela que considerava a donzela de Baisieux afectou profundamente Margarida. Não porque tivesse tido tempo de se afeiçoar àquela desconhecida, mas para além da impressão penosa deixada pela morte de um ser jovem e belo - como digna filha do Sul, a Rainha era sensível à beleza a um ponto extremo - a partida da hoste tirara-lhe os meios de poder saber quem fora o assassino. Como o repetia de boa vontade Elvira de Fos, o local onde
tinham encontrado o seu cadáver apontava para a evidência de um dos guerreiros do campo.
- Ela devia ter um apaixonado e a aproximação da partida deve tê-la levado ao campo para um último adeus. A pobre criatura, em vez de encontrar o amor, encontrou a morte.
- Isso são palavras de poetisa - ripostou a dama Hersende - mas é mal pensado. O punhal que a matou era sarraceno: foi ele que assinou o crime. Qualquer um daqueles espiões assassinos que o nosso sire teve tanto trabalho em purgar do campo a pode ter encontrado no seu caminho e assassinado...
- O punhal não passa de um engodo e, pela minha parte, inclino-me mais para uma história de amor mal terminada: um guerreiro que ela pretendia seguir e que ele não queria... - sugeriu Elvira.
- Ora vamos! A vossa hipótese supõe um movimento de cólera, um ódio súbito que não se coaduna com a escolha da arma. Um dos nossos - admitindo que seja possível, no que eu não acredito! - ter-se-ia servido do que estivesse ao seu alcance: uma adaga... uma arma nossa. A vossa ideia evoca uma premeditação indigna...
- Talvez! As armas que se podem encontrar aqui são belas, ricamente trabalhadas, tentadoras e eu sei de mais de um cavaleiro que comprou pelo menos uma. Quanto àquela infeliz, ela não tinha no mundo, suponho, senão um único parente: esse jovem cavaleiro Courtenay, que é muito sedutor... Talvez...
- Talvez nada! - cortou a Rainha, entrando num estado de cólera que a ela própria espantou. - O cavaleiro Courtenay não é dos que matam mulheres!
- No entanto, pareceu-me ter ouvido dizer... Não me lembro bem onde, que ele foi em tempos acusado de ter morto a mãe adoptiva, que era prima da donzela Baisieux...
- Uma acusação de que foi legitimamente ilibado por Sua Santidade o Papa em pessoa, pelo que não vejo qual seria o seu interesse em absolver um pecado tão grave, o pior de todos!
- Sem dúvida, sem dúvida! - murmurou Elvira que pegara no seu alaúde e acariciava docemente as cordas, mas sem lhes provocar qualquer som. - Imploro à Rainha que não se irrite comigo por querer fazer luz sobre este triste assunto. Em Chipre, tive a impressão de que o cavaleiro Courtenay não se sentia muito feliz por ver a sua prima juntar-se ao nosso círculo de damas. Esta não escondeu que desejava muito seguir a cruzada... enquanto ele era contra.
As poucas notas ligeiras que Elvira produziu com a sua arte habitual não tiveram qualquer efeito lenitivo em Margarida.
- Chega! - cortou ela. - Se quereis continuar comigo, evitareis, no futuro, propósitos desse género! Desagradam-me e irritam-me...
- Oh! Não era minha intenção e suplico à Rainha que me conceda o seu perdão - gemeu a cantora baixando modestamente as pálpebras.
Em seguida, como Margarida, sem lhe responder, se levantasse para dar alguns passos no jardim interior para o qual se abria o seu quarto e chamava para junto dela a inteligente e até um pouco enfadonha Eudeline de Montfort, Elvira, sem se mexer do tapete onde estava sentada, tocou, como que por inadvertência, a música composta por ela para um dos poemas de Maria de França, uma jovem poetisa que vivia em Inglaterra e do qual a Rainha Leonor enviara uma cópia à sua irmã Margarida três anos antes. Era o poema da Madressilva, inspirado na bela e dolorosa história do cavaleiro Tristão e da Rainha Isolda.
Hersende, ocupada então a bordar uma pequena camisa para o bebé que estava para vir, apurou o ouvido ao reconhecer a ária, mas não disse nada. Elvira contentava-se em trauteá-la de boca fechada. As palavras surgiram subitamente, negligentes mas compreensíveis:
“... Os seus corações eram como a madressilva que se agarra à aveleira...” De novo o ronronar melodioso e depois:”... Meu amor, assim somos nós. Nem vós sem mim nem eu sem vós...”
Irritada - a audácia daquela rapariga era inconcebível! - Hersende picou-se com a agulha, deixou cair a minúscula pela de lingerie para não a manchar de sangue e, autoritariamente, tirou o alaúde das mãos da cantora.
- No vosso lugar, eu cantaria outra coisa! Dir-se-ia, palavra de honra, que andais à procura de sarilhos!
- Porquê? Não dizem que só a verdade pode ferir?
- Mas quando não é, torna-se numa calúnia. O que vos desaconselho vivamente. Devíeis saber que a Rainha não tem paciência e que a sua gravidez, juntamente com o afastamento do marido, a torna irritadiça! Não abuseis do prazer que ela tem em vos ouvir!
- Como quiserdes! - suspirou Elvira. - Era apenas uma brincadeira, não quis irritar ninguém. Vós sois nossa conterrânea e devíeis saber que, na nossa terra, os trovadores cantam ao desafio os belos amores corteses que não se cumprem...
- Sim, eu sei! No entanto, podeis acreditar no que vos digo! Cantai outra coisa! O nosso sire não é o Rei Marc e Madame Margarida ama o seu marido!
Na verdade, Hersende afirmava-o com tanto mais força quanto não estava mais segura do que antes da estadia na ilha de Afrodite. E, sobretudo, depois da entrada em cena da pobre Flore de Baisieux. Com ela, a imagem do jovem Renaud introduzira-se no séquito da Rainha. Esta - a médica não o ignorava! - sempre se interessara pelo jovem. Primeiro por espírito de contradição contra Branca de Castela. Depois, por causa do amor que lhe votava a pequena Sancie de Signes, da qual nada se sabia há muito tempo. A deslumbrante beleza da “prima” dera uma nova dimensão à atracção que Renaud podia exercer sobre uma mulher, nem que ela fosse Rainha. E Hersende já tinha perguntado a si própria várias vezes se a mulher de Luís IX, a despeito do amor que sentia pelo marido, não sonharia, por vezes, com aquele belo cavaleiro cuja tez morena contrastava tão bem com os seus cabelos claros. Ele, ela sabia-o desde a noite de Poissy, ardia por Margarida com uma chama ardente, apaixonada. E a paixão de um tal homem, por uma jovem há muito limitada ao simples papel de reprodutora, representa uma grande atracção...
Margarida também ouvira a audaciosa canção, mas não tivera a coragem, nem a vontade, de protestar. Seria dar demasiada importância à maligna intenção, indignando-se fora de tempo com aquela obra-prima do amor cortês de que gostava tanto, assim como dos outros poemas da sua irmã poetisa . Na época, até se tinha rido: não podia havia qualquer comparação entre ela e Isolda, a loura, assim como não podia haver qualquer comparação entre o homem de idade que era o velho Rei Marc e os trinta anos de Luís, o seu real marido. Mas as coisas tinham insensivelmente mudado e se sentira uma profunda alegria por deixar a França, nascida, sobretudo, por se ver livre da sua sogra dominadora, a viagem e a longa estadia em Chipre tinham-lhe demonstrado que, com ou sem Branca de Castela, a existência junto de Luís estaria sempre submetida a todas as austeridades de uma vida quase monástica. Naquela ilha perfumada, onde as pessoas se sentiam atraídas para a doçura da vida e para o amor, Luís não esquecera por um só instante que travava uma guerra santa e que não estava numa viagem de recreio. Tudo tinha de estar virado para Deus, para Nossa Senhora, para a Santa Igreja e Margarida suspeitava que o seu marido a tinha engravidado para que se mantivesse afastada da vida da corte e das festas. Durante muito tempo, porque admirava e continuava a amar o seu marido, se bem que com menos ardor do que antigamente, proibira a si própria pensar no cavaleiro de Courtenay cujo segredo, como mulher perspicaz e demasiado feminina que era, não podia ter deixado de aperceber. Aquele homem amava-a com uma paixão que ela gostaria de ver em Luís, como no tempo da escadaria de Poissy. Há olhares que não enganam...
Mas nem um, nem outro, estavam ali naquele momento, tinham ido conquistar uma cidade que diziam ser fabulosamente rica com o objectivo de a trocarem por Jerusalém, ao passo que ela estava ali em Damiette, numa cidade na qual não sabia o que lhe aconteceria em caso de derrota, a dois meses do nascimento do filho e com um punhado de mulheres mais ou menos firmes, uma irmã sujeita às primeiras náuseas, uma cunhada, Joana de Toulouse, que se isolava e que bocejava a maior parte do tempo e um velho cavaleiro que não se afastava um passo dela senão à noite, quando dormia diante da sua porta. Como defesa: capitães e tripulações da frota, italianos com os quais não sabia se poderia contar em caso de problemas graves. E se uma daquelas mulheres fosse vergonhosamente assassinada como a pobre Flore de Baisieux? Margarida de Provença era corajosa; sempre o fora, mas, agora, tinha medos irracionais, pesadelos, nos quais, para escapar a uma morte terrível, corria a procurar refúgio nos braços de um homem que não era o Rei...
Nos dias que se seguiram, a jovem Rainha foi-se sentindo um pouco mais tranquila. As notícias trazidas pelos barcos de reabastecimento eram boas: após a lenta marcha, Luís conseguira, pessoalmente, uma grande vitória. O Rei destruíra o exército do Sultão que, aliás - agora sabia-se! - acabava de morrer. Faltava conquistar a fortaleza de Mansurah, diante da qual o Rei parecia disposto a montar cerco. Infelizmente, a mensagem também fazia menção à morte de Roberto d'Artois, massacrado na cidade com a maior parte dos seus cavaleiros e a quase totalidade dos templários (1). E Margarida sentiu uma dor profunda. Primeiro porque gostava muito daquele cunhado fogoso, ousado e um pouco cabeça no ar, mas que amava a vida e que a vivia com uma generosidade louca. Depois, porque temia saber o que queria
(1) Restaram apenas três.
dizer o termo vago “a maior parte”. Ela sabia que Renaud nunca estava longe de Roberto e o sol de Primavera pareceu-lhe menos claro e os lótus do Nilo, que ela aprendera a amar, menos perfumados... Por todos aqueles mortos, que não eram todos seus conhecidos, ordenou o luto, as orações e mandou celebrar missas. A vitória parecia-lhe menos bela e o futuro ameaçador.
O correio seguinte ainda foi tranquilizador. Tudo ia bem apesar de haver no acampamento um certo número de doenças, coisa com que Margarida se assustou e, por algum tempo, esqueceu Renaud. Os fortes calores começavam e ela conhecia demasiado bem a fragilidade dos intestinos do marido. Uma nova disenteria podia ser-lhe fatal. Assim, esperou com impaciência novas notícias, mas não recebeu nenhuma... e o que os que pilotavam as barcas de reabastecimento disseram - pelo menos aqueles que conseguiram regressar! - era mais do que inquietante.
Turan-Shah, o novo Sultão, que se pensava estar longe, regressara ao Cairo sem tambores nem trombetas; posto ao corrente da situação, tomara de imediato uma decisão mais do que perigosa. O que era preciso era cortar o reabastecimento ao imprudente que permanecia nas margens do Bahr es-Seghir e, para isso, mandou transportar em dorso de camelos um certo número de barcos desmanchados, que foram montados de novo uma vez no Nilo, entre Damiette e Mansurah. Quanto à fortaleza, confiava nos seus defensores para a aguentarem ainda durante muito tempo, mas, sobretudo, no estado de saúde do inimigo. Se as damas de Damiette soubessem ao certo o que o Sultão planeava, teriam ficado aterrorizadas. No decurso dos dias, de facto, a hoste ia-se deteriorando.
Durante a semana seguinte à vitória, trataram-se os feridos e enterraram-se os mortos, aqueles que todos os dias subiam à tona do Bahr es-Seghir e que iam bater contra a ponte construída pelo duque de Borgonha, entre o campo que lhe fora confiado e o do Rei. Em breve havia tantos que Luís alugou os serviços de uma centena de arruaceiros para se desembaraçar deles. Estes fizeram uma separação, atirando para o Nilo os cadáveres muçulmanos e tirando os dos cristãos para os enterrar em grandes valas entretanto cavadas.
Infelizmente e desde o ataque louco de Roberto d'Artois, estava-se na Quaresma e todos estavam obrigados a comer apenas vegetais e peixe. Como os primeiros eram cada vez mais raros, tiveram de comer o peixe pescado do sítio onde ele estava, quer dizer, no canal. Pescaram lotas... que se tinham alimentado copiosamente dos corpos que a batalha lhes oferecera. O resultado não se fez esperar: o paludismo - era preciso não esquecer os mosquitos! - o escorbuto, a disenteria e o tifo abateram-se sobre o exército. E tudo porque tinham decidido ficar.
Teria sido mais sensato não se obstinarem em abrir a estrada do Cairo. Teria sido preferível regressar a Damiette, reforçar as defesas da cidade e, talvez, conquistar Alexandria. Teria sido uma moeda de troca mais do que suficiente para conseguir a restituição dos Lugares Santos, mas Luís - o pecado do orgulho? - considerava que o seu dever lhe proibia o que teria parecido uma retirada. E permaneceram naquele local durante cinquenta e cinco dias enquanto a epidemia devastava tudo, ajudada pela fome quando os barcos de reabastecimento deixaram de poder passar. Ao mesmo tempo, tiveram de se defender dos destacamentos de cavaleiros mamelucos, que apareciam subitamente e giravam em volta do campo, deixando sempre mais alguns cadáveres abandonados...
Quando Luís caiu, por sua vez, doente - e foi um milagre ter aguentado até ali - compreendeu, enfim, que deixariam todos os ossos diante de Mansourah se não decidisse o regresso à costa, à alimentação sadia e à vida... Deitaram os doentes - um dos quais era Joinville! - nos poucos barcos que não tinham conseguido passar a barragem de Turan-Shah e que tinham regressado ao campo. E o calvário começou...
A longa coluna de soldados quase moribundos com as gengivas a sangrar, as peles inchadas e os intestinos liquefeitos, pôs-se em marcha. Formava, assim o ordenara o Rei, uma massa tão compacta, tão cerrada e tão eriçada de chuços e lanças que as cargas dos mamelucos e as suas flechas não a conseguiram abalar. Ardendo de febre e torturado pela enterite, Luís preferira cavalgar na retaguarda para manter toda a gente sob o seu olhar, mas tinha de descarregar os intestinos tantas vezes que rasgou as bragas para não as sujar nas inúmeras vezes em que tinha de pôr pé em terra e essa ginástica acabou por esgotá-lo. No entanto, a sua coragem permaneceu intacta, assim como a sua fé na missão.
Chegaram mais ou menos a meio do caminho, próximo da barragem dos barcos muçulmanos. Foi então que o Rei perdeu a consciência e aqueles que o assistiam o melhor possível, Godofredo de Sergines, Gaucher de Châtillon1 e Renaud, conseguiram, a tempo, segurá-lo, antes que o Rei caísse do cavalo. Estavam nas proximidades de uma pequena aldeia que parecia deserta e levaram-no para a primeira casa que viram. No interior dormia uma mulher estendida no solo, que começou aos gritos, encolhida, quando estenderam Luís. Por mais incrível que pudesse parecer, era uma “burguesa de Paris” que estava ali não se sabia porquê, mas que, quando percebeu, ao mesmo tempo que gemia uns grandes “infelizmente”, tratou de cuidar do seu Rei que, na verdade, já parecia para lá dos cuidados humanos. O punhado de homens que o acompanhavam - o seu capelão, o seu cozinheiro Ysambart e os três cavaleiros mais o pequeno Basile que, obstinadamente, se recusara a abandonar Renaud - estavam persuadidos de que ele não veria de novo o pôr do Sol e o capelão preparou-se para dizer a oração dos agonizantes.
Naquele instante trágico entre todos, Basile achou que devia dar a sua opinião àquele que considerava doravante o seu senhor:
- Ele vai morrer - sussurrou ele, apontando para a longa forma jazendo num leito de ocasião ainda vestida com o lorigão de aço e a cota de malha com as flores-de-lis. - E nós vamos ser feitos prisioneiros. Não achas que devíamos fugir?
- Fugir? - grunhiu Renaud, sem se preocupar em falar a língua grega. - Um cavaleiro não foge. Sobretudo face ao inimigo e diante do seu Rei moribundo.
O jovem falara em voz baixa, mas Luís ouviu-o e chamou-o. A sua voz era fraca e o jovem pôs-se de joelhos para o poder ouvir. Ao ver aquele rosto cor de cera, esvaziado da sua substân-
(1) Para quem leu Thibaut ou a Cruz Perdida, o parentesco entre este Châttillon e o senhor do Kerak de Moab é muito longínquo.
cia pelo mal que o roía e cuja pele se colava aos ossos das faces, teve dificuldade em reter as lágrimas, o que o fez fungar.
- Ainda é... muito cedo para chorar - murmurou o Rei. - Espero... que Deus me dê ainda... forças para me curar. Mas a Rainha tem de ser prevenida. Vai dizer-lhe que deve... defender Damiette... por todos os meios! É a nossa única hipótese. E agora escuta essa criança... que tem muitos recursos... e foge!
- Quereis que vá dizer à Rainha...
- Sim... mas não lhe digas nada sobre o meu estado. Se chegou a minha hora, ela sabê-lo-á... mais tarde ou mais cedo! Vai! Veste-te de camponês, conseguirás passar.
- O Rei será obedecido... e que Deus no-lo guarde! Transformar Renaud num fellah não foi difícil. A parisiense mostrou-se eficaz. Graças a ela, o cavaleiro, despojado das cotas e do resto do seu equipamento com excepção das bragas, viu a sua camisa de tela rude transformar-se numa túnica sem colarinho nem laços, semelhante às que os camponeses usavam, fendida nos flancos e com as mangas dobradas até aos cotovelos. Já não estava muito limpa, mas sujaram-na ainda mais com terra. Um outro pedaço de tela compôs uma espécie de turbante e como ele não se barbeava há muitos dias, a barba escondia-lhe a parte de baixo do rosto. Quando ficou pronto, todos declararam que estava perfeito. O capelão, que lhe sacrificara as sandálias, até acrescentou que era espantoso o que um turbante era capaz de fazer:
- Dir-se-ia que sois um sarraceno, meu filho!
- É verdade - sussurrou Luís, que seguia a cena com os olhos. - E agora, vai... e que Deus te acompanhe!
Chegada a noite, Renaud e Basile perderam-se no campo, não muito longe do rio que bastava seguir, mas não demasiado perto para evitar os acampamentos dos mamelucos cujas fogueiras oscilavam ao vento da noite...
Entretanto, em Damiette, Margarida via chegar o fim da sua gravidez com pavor. Que seria, quando estivesse com as dores de parto, daquele grupo de mulheres inquietas, mesmo em pânico - com a única excepção de Hersende e de Elvira - que se agarravam a ela, aumentando-lhe, a cada dia que passava, o fardo suplementar dos seus próprios medos? As raras notícias que lhe chegavam eram cada vez menos tranquilizadoras, ela própria vivia dias de angústia e noites de pesadelo. Ao ponto de uma manhã, em que sentiu que o bebé ia sair, ter mandado sair toda a gente do quarto, deixando ficar apenas o velho cavaleiro d'Escayrac.
- É preciso - disse ela - que me prometais solenemente. Se os sarracenos se apoderarem desta cidade, quero que me corteis a cabeça antes de eles me apanharem!
Ele teve um sobressalto:
- A cabeça, Madame? Não será suficiente uma punhalada?
- Dizem que os sarracenos violam as mulheres, por vezes mesmo mortas, mas ninguém viola um cadáver decapitado...
- É verdade, é verdade! Mas, quanto a matar-vos, eu já tinha pensado nisso! E já que é assim, juro por Deus que será feito como a Rainha quer!
Ela agradeceu-lhe com um sorriso pálido e com algumas palavras que não conseguiu acabar. A Rainha sentiu-se trespassada por uma dor que reconheceu imediatamente:
- Dama Hersende! Chamai-a! E também as minhas damas! Mas a médica já acorria: não estava longe e ouvira o grito de Margarida. No instante seguinte, a dama empurrava Escayrac para fora do quarto e começava a orquestrar com autoridade o bailado ritual dos preparativos para o parto. Margarida foi despida pela médica, deitada no seu leito, do qual foram tirados os cobertores e os lençóis, deixando apenas o de baixo, protegido por outro dobrado várias vezes... Como o calor no exterior já era grande, Hersende tomou várias disposições para que o quarto permanecesse fresco e instalou Eudeline de Montfort à cabeceira da Rainha para lhe enxugar o suor da fronte com água de rosas. Só faltava esperar. A médica achava que o bebé não tardaria. Era o sexto que Margarida trazia ao mundo e o trabalho estava a decorrer bem. Foi então que chegou um inimigo inesperado: por volta do meio-dia, o céu ficou laranja-escuro e carregou-se de poeira, ao mesmo tempo que o khamsin, o vento de areia vindo do deserto, começava a soprar com uma força terrível, varrendo a cidade, os barcos no porto e dobrando as palmeiras como simples caniços. Era preciso fechar todos os interstícios para impedir a areia de entrar e esticar em redor do leito os grandes véus brancos que as casas ricas do Oriente utilizavam contra os mosquitos. Mas não conseguiram evitar que uma fina camada de poeira se depositasse em cima de tudo. Assim calafetada e no meio das mulheres veladas como muçulmanas, foi numa atmosfera de fim do mundo que Margarida, ao cabo de seis horas que pareceram seis séculos, deu à luz um rapazinho forte e bem constituído. Como que por encanto, o vento furioso acalmou quando; ele lançou o primeiro grito e aquelas mulheres, perdidas no coração de um país desconhecido e do qual tinham agora medo, viram naquilo um sinal da protecção divina e agradeceram a Deus tanto pelo feliz parto da Rainha como pelo apaziguamento - pelo menos momentâneo! - dos seus medos.
- Como ides chamá-lo, minha irmã? - perguntou a pequena condessa d'Anjou, que tinha ido ter com a Rainha logo após as primeiras dores.
Margarida esforçou-se por sorrir para o rosto doce de Beatriz ainda amarelado pela areia porque, se se sentia feliz por ter mais um filho, também temia vir a temer por ele como temia pelo seu pai:
- O meu querido marido desejaria, penso, que lhe déssemos o nome de João, como o que perdemos, mas...
O seu olhar procurou o livro vindo de Inglaterra, no qual estavam os poemas de Maria de França e suspirou:
- ... ele nasceu num tempo tão triste e doloroso para todos nós que também gostaria que se chamasse Tristão...
Após o que, esgotada pelas horas de sofrimento que acabava de suportar, Margarida adormeceu. Ao fecharem-se, as suas pálpebras deixaram sair uma lágrima, que lhe deslizou ao longo da face...
A Rainha ainda estava muito cansada quando explodiu um grande barulho na cidade e que, subindo a partir do porto, foi bater às portas do palácio. Foi o cavaleiro d'Escayrac que surgiu para o anunciar à Rainha. As damas-de-companhia desta tinham acabado de lhe fazer a toiktte, tinham-lhe levado o recém-nascido e Margarida embalava-o docemente, acariciando-lhe a pequena mecha de cabelos de una louro quase branco que lhe nascia na cabeça:
- Senhora Rainha - exclamou ele - o que está a acontecer é terrível: então não é que os capitães dos navios querem regressar ao mar e deixar-nos aqui? - Eles querem partir? Quando o Rei meu marido lhes confiou a guarda de Damiette e a segurança das damas? Que lhes deu?
Escayrac baixou a cabeça, procurando, sem dúvida, palavras não demasiado cruéis para o que ainda tinha para dizer. Margarida impacientou-se:
- Então? Falai! Que se passa mais?
Pegando na sua coragem com as duas mãos, o velho cavaleiro lançou um grande suspiro e continuou:
- Eles dizem que um cavaleiro mameluco chegou à desfilada pouco antes do nascer do dia e gritou-lhes que, se queriam salvar as vidas, podiam ir-se embora porque o Rei de França foi feito prisioneiro... com a totalidade do seu exército!
- Não é possível! Não pode ser possível!
Subitamente tão branca como os seus lençóis, Margarida estendeu o bebé a Hersende e encostou-se à almofada:
- Só pode ser um boato! Destinado a afastá-los para cortar ao Rei a retirada por mar! Como pode essa gente ser tão estúpida, ao ponto de acreditar numa asneira dessas?
- Eles acreditaram, Madame - disse Escayrac, desviando o olhar cheio de lágrimas. - E eu também estou quase a acreditar... O cavaleiro infiel brandia no ar uma cota de armas azul com flores-de-lis...
- Meu Deus!
Margarida cruzou as mãos no peito e apertou-as com força para dominar a angústia que sentia. A jovem Rainha não disse nada durante alguns instantes, respirando depressa, procurando visivelmente recuperar a calma. E conseguiu. Como Escayrac lhe perguntasse timidamente o que tencionava fazer, ela respondeu com uma voz onde se podia ler uma cólera benfazeja:
- Ide buscar-me essa gente! Quero vê-los aqui, diante de mim. Todos e já!
O ancião compreendeu que era inútil discutir e eclipsou-se para fazer o que lhe ordenavam, ao mesmo tempo que a Rainha mandava que a vestissem com uma longa dalmática azul bordada com flores-de-lis e que lhe fizessem uma única trança no cabelo, aureolada com um círculo de ouro com pérolas e safiras engastadas. Verdadeiramente real, vestida daquela maneira, Margarida encostou-se de novo às almofadas da cama refeita rapidamente. Um quarto de hora depois, Escayrac reaparecia e o quarto encheu-se de homens rudes, vestidos de couro reforçado com placas de aço e cujos olhos instáveis se espantaram com o espectáculo que lhes era oferecido. Eles estavam à espera de ver, no fundo do seu leito, uma jovem trémula que acabara de dar à luz, mas se aquilo era um leito, parecia-se mais com um trono e aquela que o ocupava parecia-se, na verdade, com o que era: uma Rainha! Uma grande mulher, vestida de cinzento-claro, mantinha-se de pé a seu lado com um bebé nos braços. Com eles entrou um odor a mar, a especiarias e a corpos mal lavados. E ali ficaram diante dela com os gorros nas mãos e com a mesma expressão hesitante nos seus rostos diferentes. Margarida sentiu que não venceria facilmente.
- Então, meus senhores - começou ela - dizem-me que quereis partir e abandonar-nos, esquecendo a missão que vos foi confiada pelo Rei meu nobre marido, que vos colocou nas mãos Damiette, a sua população e a segurança da nossa pessoa, assim como a das nossas damas e servidores? Na verdade, custa-me a acreditar!
Um capitão pisano, chamado Gambacorti, saiu da massa compacta. Margarida conhecia-o: era o que comandava a galera Reine. Até então, achara-o simpático, mas não restava grande coisa dessa impressão.
- Mas é verdade, nobre Rainha - disse ele. - Nós não temos mais nada que fazer neste porto senão, talvez, deixar-nos matar. Tudo o que podemos propor é levar-vos connosco, a vós e às vossas damas.
- E por que o faríeis vós?
- O Rei foi feito prisioneiro com o seu exército... Ele está muito doente e foi por os seus soldados o acreditarem morto que se renderam.
- Como é possível estardes tão bem informado, messire Gambacorti, quando eu, a sua mulher, não sei de nada? Falaram-me de um mensageiro mameluco. Por que não veio ele aqui? Tereis contactos secretos com os Infiéis?
- Não temos contactos nenhuns, Madame! O cavaleiro pregou uma carta por intermédio de uma flecha no mastro principal do meu navio. Trago-a aqui. Além disso, ele mostrou uma cota de armas, a do Rei de França!
O capitão entregou a mensagem anunciada escrita em língua franca e que Margarida decifrou sem dificuldade. A carta dizia que Luís IX, moribundo, fora feito prisioneiro e que o levavam para Mansourah, onde ficaria cativo até que o resgate fosse pago... Depois de ler aquilo, ela ergueu a cabeça, mas semicerrou os olhos para que o outro não pudesse ler a dor que lhe ia na alma...
- E é por causa disto que quereis fugir, desertando desta cidade que vos confiaram, assim como a mim? Nesse caso, peço-vos - e a sua voz tornou-se singularmente comovente - não abandoneis Damiette! O Rei meu marido ficaria perdido e com ele todos aqueles que foram feitos prisioneiros. Eu não posso fazer nada retida neste leito onde acabo de dar à luz o meu último filho aqui presente. Não tendes piedade dele? Pelo menos até que eu me possa levantar?
- Senhora Rainha - recomeçou o pisano - nós não somos nenhuns monstros e não vos queremos abandonar. É verdade que podemos ficar até que vos possais levantar, mas então morreremos de fome. Já não temos nada para comer.
- Se é só isso, acalmai-vos! Eu vou mandar comprar as provisões de que os vossos navios e vós mesmos precisais, mas ficais de novo, a partir deste momento, ao serviço do Rei meu marido.
- Nesse caso, esperamos... mas não até que os sarracenos conquistem Damiette: nenhum de nós quer ser degolado ou vendido como escravo.
- Damiette não será entregue senão contra a libertação do Rei. Quando os tratados forem assinados, podereis partir e eu partirei convosco para Acra, onde, espero, me levareis.
- Para Acra? Por que não para França?
- Porque foi lá que combinámos, o Rei e eu, juntar-nos se eu tivesse de deixar Damiette. E agora ide! Vou dar ordens para que vos mandem aquilo que vos falta.
Dominados, os capitães retiraram-se em silêncio e até em bicos dos pés, de tal modo os tinha impressionado aquela bela jovem ao mesmo tempo tão real e tão fraca. Hersende foi entregar o pequeno João Tristão à ama e depois foi ajudar as camareiras a despirem de novo Margarida e a metê-la na cama. Esta estava tão esgotada que quase desmaiou. A médica administrou-lhe um tónico para que a Rainha pudesse dar instruções ao tesoureiro e aos furriéis. Eles deviam fazer o necessário para que os capitães fossem copiosamente reabastecidos.
De novo sozinha com as suas damas, Margarida desatou a soluçar, desesperada, persuadida de que nunca mais veria o seu marido, conhecendo como conhecia a fragilidade dos seus órgãos.
- Como sobreviverá ele privado de cuidados, cativo e rodeado de uma nuvem de inimigos? Se ainda não morreu, não falta muito!
- Eles têm bons médicos - tentou Hersende - e não têm interesse nenhum em deixá-lo morrer. Quando se pode conseguir um resgate... real, não se é estúpido ao ponto não prestar todos os cuidados ao prisioneiro.
Mas Margarida permaneceu surda a qualquer consolação. Assim, Hersende julgou preferível deixá-la chorar. A médica ainda tinha de tratar das mulheres de Carlos d'Anjou e de Afonso de Poitiers, que ainda sabiam menos do que a Rainha acerca dos seus maridos. Beatriz, sobretudo, precisava muito de ajuda. As suas náuseas tinham regressado com a angústia e recusavam-se a ceder.
Se Luís e os seus cavaleiros tinham, de facto, sido feitos prisioneiros, a culpa fora de um “sargento chamado Mareei”, que aparecera subitamente no meio do exército gritando que o Rei estava morto. Essas palavras retiraram toda a coragem àqueles cavaleiros entretanto prontos a sacrificarem-se por ele e, acreditando-se abandonados pelo céu, deixaram-se capturar quase sem luta. Levaram-nos para Mansurah, onde os feridos receberam o golpe de misericórdia, mas encontraram o Rei. Luís, meio-morto, iria viver um calvário, mas com as poucas forças que lhe restavam, conseguiu suportá-lo com doçura e dignidade, pensando, assim, aproximar-se do sofrimento de Cristo.
Colocado, primeiro com os outros, no pátio de um armazém de caravanas, teve, apoiado por Ysambart, de desfilar perante Sahdjar ed-Door, a astuciosa favorita do defunto Sultão e perante o seu novo amante, o emir Djennan el-Din; depois, guardado por um eunuco. Acorrentaram-no, nu, na casa de Ibrahimben-Lok-man. “Ele estava tão doente que os dentes da boca abanavam-lhe e tinha a pele pálida e cheia de manchas. E tinha de tal maneira os intestinos liquefeitos e estava tão magro, que os ossos lhe saíam pelas costas (1). Metia tanta pena que um velho sarraceno lhe pôs por cima a sua sobreveste de pele.
Naquele estado, faziam-lhe perguntas sem cessar, exigindo-lhe que entregasse os castelos do Templo, do Hospital ou mesmo dos barões da Síria. Ao que ele ripostava com uma infinita paciência que não tinha poder para isso. Ameaçaram torturá-lo, partir-lhe as pernas. E ele retorquiu dizendo que, como era seu prisioneiro, podiam fazer dele o que quisessem...
Vencido por tanta grandeza, Turan-Shah abrandou a pressão. De facto, ele visava, sobretudo, o resgate e decidiu-se a cuidar dele. Ordenou que lhe dessem roupas dignas, devolveu-lhe mesmo o seu capelão e o seu livro das Horas. E recomeçaram as discussões.
O Sultão tinha dentes grandes, mas menores do que os do seu emir Baybars que, sedento de poder, achava aquele demasiado mole. Este fomentou uma conspiração com os mamelucos, dos quais era o grande chefe. Quando acabava de oferecer um festim aos seus emires, Turan-Shah foi atacado. O Sultão evitou os primeiros golpes, mas teve de largar a sua arma porque tinha ficado com vários dedos cortados. Então, correu a refugiar-
(1) Joinville, A Vida de São Luís.
-se numa torre de madeira deixada nas margens do Nilo. Os outros pegaram-lhe o fogo. Ele atirou-se ao rio, mas os assassinos perseguiram-no e crivaram-no de flechas. Ferido, pediu ajuda em nome do Profeta, lembrando aos bons muçulmanos o respeito pelas leis, mas Baybars respirava com delícia o odor do seu sangue e quando o sultão, esperando uma mão amiga, se aproximou de uma das margens, encontrou o rebelde em pessoa, que cortou o braço estendido e atirou o membro à água, onde o infeliz Turan-Shah acabou por perder o sangue todo. Uma vez morto, o seu cadáver foi arrastado até à margem, onde foi abandonado até que um severo conselho, fornecido pelo embaixador do califa de Bagdade, o Emir de todos os Crentes, conseguiu convencê-lo a convencer o carrasco a dar-lhe uma sepultura digna daquele de quem descendia. A sua morte marcou o fim, no Egipto, da dinastia fundada por Saladino.
Por um momento, a morte pairou sobre Luís IX e pelos outros prisioneiros. Um dos assassinos, com as mãos cheias de sangue, foi ter com o Rei e perguntou-lhe quanto lhe dava por ter morto o seu inimigo, mas encontrou um olhar ao mesmo tempo calmo, tão calmo e tão determinado que não insistiu e retirou-se, resmungando uma ameaça. Que esteve perto de se realizar, mas, apesar de ser meio selvagem, Baybars não era estúpido e o montante do resgate, acerca do qual o defunto sultão e o seu real cativo quase se tinham posto de acordo, fê-lo reflectir: quatrocentas mil libras pelo conjunto de reféns e a rendição de Damiette pelo Rei. O emir decidiu retomar as negociações...
Enquanto isso, Renaud, quase inconsciente, lutava contra a morte numa pequena koubba (1) quase em ruínas próxima do Nilo. O que lhe acontecera constituía, naquele país, o mais banal dos acidentes. Para aqueles, pelo menos, que não estavam protegidos pelo couro espesso de umas botas ou pelo aço temperado do gambison. Quando, seguido por Basile, não estava a mais de meia
(1) Capela cúbica encimada por uma cúpula construída por cima do túmulo de uma personagem venerada, no Norte de África.
légua de Damiette, encontrou no seu caminho uma serpente morta, que quis afastar com o pé por causa do seu companheiro, mas aquele despojo escondia um animal bem vivo. A espiral cinzenta distendeu-se como uma mola e mordeu-o no tornozelo. O jovem lançou um grito breve, imitado por Basile. Um reflexo fê-lo arrancar a ferroada mortal e atirar o animal ao rio. Em seguida, Renaud olhou para a perna onde duas picadelas azuis, bem nítidas, deixavam escorrer um pouco de sangue... Tendo encontrado víboras na sua infância, sabia mais ou menos como lutar contra o veneno, mas, seria a mesma coisa com aquela raça? Fosse como fosse, era preciso fazer qualquer coisa, senão...
Arrancando a corda de cânhamo que lhe servia de cinto, tirou ao mesmo tempo o punhal que trazia escondido sob a túnica, sentou-se no chão, laqueou o membro ferido no sítio onde começava a coxa e depois, com a ajuda da faca, praticou na pele duas incisões profundas acima e abaixo das marcas azuis. Por fim, já se contorcia para levar as chagas aos lábios quando Basile, que ficara petrificado pelo medo, o deteve:
- Espera! Assim, não conseguirás e eu sei fazer isso!
- Proíbo-te. Se o veneno...
-Já o fiz antes. Um dia, aconteceu o mesmo ao filho do meu patrão e ele obrigou-me...
De facto, sabia. Durante alguns, longos minutos, o jovem sugou o sangue, cuspiu, voltou a sugar e voltou a cuspir, até que a pele ficou seca.
- Esperemos que tenha sido o suficiente - suspirou ele, por fim. - Para o filho do patrão foi, mas a serpente era mais pequena...
- Ainda falta uma coisa. És capaz de fazer uma fogueira? Com pedras?
- Sou. Vais ver!
O petiz arranjou três pedras, um graveto redondo, inseriu uma ponta deste entre aquelas e fê-lo girar entre as mãos sobre um braçado de caniços secos. Pouco depois elevava-se uma pequena chama, que ele alimentou o melhor que pôde enquanto Renaud, que sentia a cabeça a andar à roda, aqueceu nela a lâmina do punhal. Quando esta começou a ficar vermelha, o jovem colocou entre os dentes um grosso talo de caniço mordeu-o e aplicou o ferro na chaga. A dor foi tão atroz que perdeu a consciência...
Daquela inconsciência só saiu para suportar o assalto de um violento acesso de febre. Esta tirou-o da realidade para o mergulhar num universo de pesadelos onde os horrores da epidemia vivida em Mansurah se juntaram à morte dos seus pais adoptivos, de Roberto d'Artois e da figura agonizante do Rei, devastado pela disenteria. Noutros momentos, Renaud via as chamas de uma fogueira, nas quais se contorcia uma mulher que ele pensava ser Flore, mas que, afinal, era Margarida... Depois, eram os demónios, os espectros imundos que faziam nascer nele a repugnância e o terror, mas aos quais não conseguia escapar por falta de forças. Por vezes, sentia algumas melhoras e com elas a sensação de se dessedentar numa fonte fresca... Pouco a pouco, essa sensação começou a aparecer mais vezes, ao mesmo tempo que se afastavam as chamas infernais, às quais se julgava condenado por toda a eternidade.
Então, uma manhã, o grito de um pelicano devolveu-o à superfície do mundo real. O jovem abriu os olhos, viu-se deitado num leito de folhas secas encostado a uma parede por baixo de um tecto meio arruinado. Endireitando-se, pôs de lado a pele de cabra que alguém lhe tinha posto por cima. Também viu que estava só num pequeno edifício em ruínas e que o Sol ia alto. Por um momento, sentiu-se perdido, não conseguindo compreender como fora parar ali... E, bruscamente, a memória devolveu-lhe tudo quando os seus olhos olharam para o pé cujo tornozelo estava envolto num pedaço de tecido de pontas tão solidamente atadas que não as conseguiu desatar... Nesse momento, Basile entrou com uma bilha de água na mão, que quase entornou ao ver Renaud sentado.
-Já estás curado? - exclamou ele com um resto de angústia na voz, como se não conseguisse acreditar. - É mesmo verdade?
- Parece que... sim! Estive muito doente?
- Oh sim! Por momentos, pensámos que não resistirias ao veneno da serpente.
- Pensámos?... Isso quer dizer o quê? Não estavas aqui sozinho?
- Graças a Deus, não! Sem a ajuda do pastor não teria podido fazer grande coisa. Ele ouviu-te gritar quando queimaste o tornozelo e veio ver o que se passava. Eu disse-lhe que estávamos a fugir dos mamelucos, que tu eras meu irmão e ele ajudou-me. Trouxemos-te para aqui, que é um sítio onde ele vem por vezes, quando se afasta demasiado da sua cabana com as cabras. Foi o leite delas que te alimentou e eu trazia aqui mais algum, mas não tinha a certeza de te encontrar! vivo. Ontem, Mourad - é o nome do pastor - disse-me que, se tu passasses a noite, talvez sobrevivesses. E tu passaste! Se soubesses como estou contente!
Com uma mão afectuosa, Renaud desgrenhou a cabeça do miúdo.
- Também eu! E agradeço-te. Estou aqui há muito tempo?
- Há mais de uma semana.
- Meu Deus! E a minha missão?...
Renaud agitou-se e quis levantar-se, mas Basile impediu-o:
- Fica tranquilo! Tenho de tratar do teu pé!
- Ao diabo o meu pé! Já te esqueceste do que disse o Rei? Tenho de prevenir a Rainha, dizer-lhe que Damiette...
- A mulher do teu Rei ainda lá está - disse uma voz enrolada - e Damiette continua a pertencer-lhe!
O pastor acabava de entrar. Um espantoso conjunto de lã grosseira e pele de cabra, ao qual se juntava uma longa barba grisalha. Aquele homem devia ter sido muito alto, mas a idade tinha-o curvado sobre o grande bordão que segurava numa mão e que terminava numa espécie de cruz. Naquele matagal, ao qual se juntavam umas espessas sobrancelhas, era difícil distinguir a vivacidade de dois olhos redondos, negros e brilhantes como dois ónix e que eram de uma incrível juventude. Mais incrível ainda, o homem empregava com à-vontade a língua franca. Perante a surpresa de Renaud e também de Basile, desatou a rir:
- É verdade, jovem, eu também vim de França... há muito tempo. Há muito tempo, quando messire João de Brienne se tornou Rei de Jerusalém e eu combati aqui por Damiette. Até fui ferido, mas uma mulher, uma camponesa, acolheu-me, tratou-me... e eu fiquei com ela. Há dez anos, a cheia levou-a... com a nossa casa... Chorei-a porque era uma boa mulher, mas não reconstruí a casa. Depois, vim para este canto com as minhas cabras... Dir-se-ia que estás melhor?
- Estou, e quero agradecer-te... mas, por que me disseste quem eras?
- Para poder falar contigo. Compreendi rapidamente que eras franco. Fala-se muito quando se delira, mas não disse nada ao petiz. É bom rapaz, tenho a certeza, e gosta muito de ti... Mas é grego e com os gregos nunca se sabe!
- Vamos saber agora! Olha para ele! Já não percebe nada...
- Não tem importância e, para mim, é um verdadeiro prazer reencontrar... a velha língua! E agora vejamos o teu pé!
O pastor ajoelhou-se junto de Renaud e desfez o penso grosseiro, sob o qual estava uma espécie de puré esverdeado que largava um forte odor.
- Cebola! - explicou o pastor. - É boa para as queimaduras e tu queimaste-te bem! Fizeste bem, mas, mesmo assim, por pouco não foste parar ao paraíso dos bravos. E também tiveste sorte.
O homem tirou a camada malcheirosa com uma espécie de tampão feito de fiapos de linho que tinha num pequeno saco pendurado ao pescoço; lavou a chaga com azeite, que cheirava a ranço: o ferimento ainda estava vermelho, mas já não supurava e as crostas castanhas estavam a descolar.
- Está melhor do que eu esperava - disse ele, voltando a deitar o azeite que deixou, primeiro, escorrer e que, depois, deixou cair gota a gota, antes de ligar de novo a perna, mas desta vez com uma folha de figueira e com um pedaço de tecido limpo que fora lavado no Nilo e seco em cima de uma pedra. Terminada a obra, Mourad levantou-se e olhou por um momento para o rosto tenso do seu doente:
- Não estás nada com bom aspecto, sabes? Vais ter de recuperar as forças e, para isso, comer outra coisa que não o leite das minhas cabras com que te tens alimentado até agora. Vou buscar o necessário! Dentro de dois ou três dias já estarás bom.
- Dois ou três dias, quando já perdi tanto tempo? Tenho de me levantar, visto que acabas de me dizer que já estou curado. Tenho de ir a Damiette...
O jovem conseguiu levantar-se, mas teve de se apoiar à parede devido a uma vertigem brusca...
- Estás a ver? Que te-disse eu? - perguntou o pastor, segurando-o para o obrigar a deitar-se de novo no leito de caniços. - Fica quieto! Damiette pode esperar e Madame Margarida também, porque acaba de dar à luz um pequeno macho e ainda não está recomposta. Ela também está à espera que a situação se esclareça para poder partir. Diz-se que as conversações em Mansurah estão a acabar, que os resgates estão fixados e que, dentro em breve, a cidade será restituída. Em seguida, o teu Rei vai ser levado para lá para que esvazie o seu tesouro de guerra nas mãos dos Sarracenos. Ah, já me esquecia! O Sultão morreu...
- Há muito tempo, mas esconderam a notícia.
- Não foi esse. Foi o filho, Turan-Shah. Os mamelucos massacraram-no e agora é o emir Baybars, o mongol, que manda!
- Como é que sabes isso? Estamos praticamente no deserto e no entanto...
- O Nilo! Não imaginas como este rio é conversador. Se te sentares na margem e souberes ouvir, as notícias vêm ter contigo. E agora repousa! Eu volto já...
Quando ele partiu, Basile, que se fora instalar à entrada da koubba como se o que se passava no interior não lhe interessasse, regressou para junto de Renaud. Este sorriu-lhe:
- Algo me diz que estás amuado!
- Não. Estou, simplesmente, triste. Vós faláveis a mesma língua e eu não compreendi nada. Como é que um pastor egípcio...
- Não é a primeira vez que os francos vêm a este país... há mais de trinta anos, Mourad esteve aqui prisioneiro e como era inteligente, aprendeu a língua - respondeu Renaud, que não queria trair o segredo do ancião, apesar de saber que Basile seria incapaz de tirar partido dele. - É parecido contigo, que aprendeste o árabe em casa do teu patrão. A ele, deu-lhe prazer demonstrar-me o que sabia e tu não tens razão nenhuma para estar triste. Ensinar-te-ei a minha língua... e tu ensinar-me-ás o árabe...
- Isso quer dizer que ficarei contigo?
- Vês outra solução? Salvo se em Alexandria...
- Em Mansurah disse-te que não queria voltar para lá - disse o petiz com o rosto subitamente fechado.
- Nesse caso, fico contigo e veremos mais tarde o que havemos de fazer de ti. Não me salvaste ao tirar o veneno da serpente, depois de teres evitado que fosse massacrado? Devo-te, pelo menos, isso e, doravante, somos companheiros. É preciso pedir a Deus que não seja para o pior!
Alimentado com queijo, pão, figos, azeitonas e tâmaras, Renaud recuperou, de facto, as forças, como dissera o pastor. O ferimento cicatrizava satisfatoriamente e ao fim de quarenta e oito horas estava de pé. Para além disso, Mourad recebera do Nilo mais notícias: os acordos estavam concluídos e uma galera devia transportar o Rei a Damiette, para a qual já marchavam os soldados de Baybars no sentido de a recuperar e receber o resgate.
- Isso quer dizer que a Rainha vai ser obrigada a abrir as portas e sofrer, sem defesa, a investida daqueles selvagens? - exclamou Renaud, horrorizado. - Eles são capazes de a violar, assim como às outras damas todas em frente dos próprios maridos! Desta vez, tenho de chegar antes deles!
- Toma! - disse Mourad estendendo-lhe um grande bordão, semelhante ao que ele usava. - Talhei-o para to dar, já que não estás armado! O teu punhal é um pouco curto contra as cimitarras e, pelo menos, ajudar-te-á a caminhar.
- Espero encontrar em Damiette o escudeiro que lá deixei, mas obrigado e obrigado também pelo que fizeste por mim! Gostava de ter qualquer coisa para te dar...
- Diz-me o teu nome: isso chega-me!
- Renaud de Courtenay. E tu, dizes-me o teu... o verdadeiro?
O pastor hesitou levemente e depois, com um brilho divertido no olhar vivo:
- Por que não, no fim de contas? O meu nome era Gaucher de Changy.
- Mas então... eras um cavaleiro? - murmurou Renaud, espantado. - E fizeste-te pastor?
- É verdade! Eu tinha em Champagne uma torre feudal, algumas terras e servos para trabalhar nelas, mas não tinha herdeiros e tinha uma mulher rabugenta. Espero que nunca venhas a saber como uma megera pode transformar a vida de um homem num inferno. A cruzada foi bem-vinda... e Djemila fez de mim um homem feliz. E agora, guarda o segredo!
- É inútil propor-te que pegues de novo em armas?
- É inútil, de facto! Estou demasiado velho... e prefiro as minhas cabras... Mas tu, tem cuidado!
Como única resposta, Renaud apertou-o nos braços calorosamente e depois, apoiado no seu bordão e seguido pela sua pequena sombra fiel, partiu ao longo do rio. Faltava-lhe percorrer, mais ou menos, légua e meia e em breve as muralhas de Damiette, amarelas e brilhantes ao sol claro da manhã, apareciam ao longe, demasiado longe, ainda, para poder distinguir as cores dos estandartes. Nada, na vereda que o jovem percorria, evocava a guerra. O Nilo corria, amplo e sereno. No entanto, àquela mesma hora, desciam-no quatro galeras egípcias, uma das quais transportava o Rei de França, os seus irmãos e os grandes barões que tinham escapado sucessivamente aos combates, à epidemia e aos massacres a que se tinham entregado os mamelucos...
Quando já estavam suficientemente perto e tudo ficou mais nítido, Renaud pôde ver que nenhum estandarte flutuava sobre as torres guardiãs. No entanto, no mar, para lá da ilha de Maalot e da praia onde tinham desembarcado, os navios da hoste continuavam presentes. Outra contradição, as portas estavam abertas, mas a cidade parecia vazia quando o homem e o pequeno entraram nela. Não passava de uma ilusão: os habitantes estavam todos no porto onde estava uma nau acostada e Renaud reconheceu-a com um sobressalto do coração: era a Reine...
- Agarra-te ao meu cinto! - disse ele a Basile. - Temos de passar por aquela multidão para ver o que se passa...
A operação foi mais fácil do que ele pensava. As pessoas pareciam mais um rebanho do que uma multidão normal. Não se mexiam, não diziam nada, contentando-se em olhar com uma espécie de resignação, que Renaud compreendeu melhor quando chegou junto do pontão onde a nau acabava de largar as amarras. Todas as damas vindas de França estavam no convés. Rodeavam Margarida cujo véu azul estava preso pelo círculo de ouro florido e Renaud sentiu-se transportado na direcção dela, cheio de amor e compaixão porque lhe parecia tão frágil e vulnerável apesar do orgulho que lhe mantinha a cabeça tão direita.
Junto dela estava uma ama com um bebé nos braços e também a sua irmã Beatriz, a cunhada Joana, Hersende, sombria e preocupada, Elvira de Fos, a dama de Montfort e também a velha Adèle, que rolava os olhos assustados como se temesse ver os Sarracenos descerem dos telhados das casas com os sabres entre os dentes...
Na pressa de se aproximar, Renaud não prestara atenção àqueles que acotovelava: a sua atenção estava fixa no navio, que já começa a afastar-se. Subitamente, o jovem pensou em voz alta:
- Mas, por que parte ela sem esperar pelo Rei?
O seu vizinho imediato virou-se para ele com uma exclamação de alegria:
- Sire Renaud? Sois mesmo vós - exclamou Gilles Pernon. - Mas, em que estado estais! Por momentos, não vos reconheci...
- É uma longa história. Por que é que a Rainha se vai embora?
- Porque é sensata e prudente. A cidade vai ser restituída e não se sabe a que excessos se entregarão os muçulmanos.
- Sem dúvida, mas ouvi dizer que o Rei vinha com eles. Ela devia esperar por ele.
- Para ser também capturada? Ela vai esperar pelo marido em São João de Acra. E, infelizmente, a outra vai com ela - acrescentou Pernon designando com o queixo o grupo de mulheres na ponte da nau.
Renaud não precisou de perguntar de quem se tratava. A expressão subitamente sombria do seu velho escudeiro indicava Elvira. O velho soldado acrescentou:
- Foi ela que matou Flore d'Ercri. Encontrei no souk o mercador que lhe vendeu o punhal.
- Ela? Mas... porquê?
- Porque a incomodava, sem dúvida, o que prova que as suas intenções não são boas. Ela anda a preparar alguma. Resta saber qual.
- E tu não disseste nada? Não preveniste a Rainha? Gilles Pernon encolheu os ombros:
- A Rainha estava a dar à luz. Não me teria recebido. Nem sequer acreditado. Ela gosta daquela feiticeira, que a engoda com canções. Mas avisei a velha Adèle e ela prometeu-me que diria uma palavra à dama Hersende.
Era um pouco tranquilizador. No entanto, a inquietação de Renaud recusou apaziguar-se. Naquele navio só com mulheres, à excepção da tripulação e de alguns soldados deixados pelo Rei para protegerem a sua mulher, tudo podia acontecer.
- Aquela maldita não devia ir ali! - grunhiu ele. - Tenho de chegar à nau! Tenho de a tirar de lá! Pela força, e eu vou...
O jovem já se ia atirar à água para atingir o navio, sabendo muito bem que, no mar, o menor incidente podia revelar-se catastrófico e, sobretudo, servir para esconder um crime. Mas Pernon adivinhou a sua intenção e segurou-o pela túnica:
- Ficai quieto! Ninguém precisa de vós. Acabo de vos dizer que a dama Hersende e Adèle redobrariam de atenção. Além disso... há mais alguém.
- Quem?
Pernon estendeu o braço:
- Estais a ver aquela mulher envolta em véus cinzentos que está um pouco afastada na parte mais alta do castelo da popa?
O escudeiro designava uma silhueta delgada que parecia envolta em bruma. Muito direita ao longo da espessa amurada pintada de azul-vivo, mantinha o rosto velado para, talvez, o proteger do sol, mas Renaud não teve tempo de fazer a pergunta que lhe veio naturalmente aos lábios. Gilles Pernon já continuava:
- É a dama de Valcroze. Ela chegou de Chipre há uma semana trazida por um navio veneziano que esperava levar daqui tecidos e tâmaras.
- Ah sim? - disse Renaud, nada interessado. - Mas como eu não conheço essa dama...
Naquele instante, um brusco golpe de vento passou pelo porto e encheu as grandes velas da nau onde a cruz pintada de vermelho e dourado inchou. O véu de musselina escapou-se das mãos da nobre dama, libertando ao mesmo tempo uma trança de cabelos cor de fogo. Pernon deu uma pequena risada:
- Eu acho que a conheceis muito bem.
Renaud não respondeu: o jovem olhava para a delgada silhueta feminina que se afastava, com a atenção de quem não ousa acreditar no que os seus olhos vêem. Olhos que não conseguiam, àquela distância, distinguir o rosto da mulher cujo nome lhe foi sussurrado por uma voz secreta:
- Sancie?... Sancie de Signes! É mesmo ela?
- É a dama de Valcroze... Mas também lhe podeis dar esse nome!
- Ela voltou! Oh, meu Deus, que alegria!
Basile, que começava a achar que se tinham esquecido dele, puxou-lhe uma manga:
- É a dama que tu amas?
Renaud olhou para ele sem o ver verdadeiramente, como se acabasse de sair de um sonho.
- Eu... não. É uma... uma amiga - respondeu ele com a impressão de estar a trair uma verdade. Saber de volta o pequeno camafeu provocava-lhe uma alegria demasiado grande para uma palavra tão simples, mas o seu vocabulário grego não lhe forneceu outra.
- E esse aí? - perguntou Pernon, que ainda não tinha reparado no pequeno. - Quem é?
- Outro amigo... e, sobretudo, o meu salvador!
O eco longínquo das trompas, dos tambores e da algazarra petrificou as pessoas que estavam no porto e cortou-lhe a palavra. Viraram-se todos na direcção do Nilo, direcção de onde vinha aquele tumulto todo e em breve apareciam as quatro galeras descendo o rio, uma das quais transportava o Rei cativo...
Levada pelo vento, a nau afastou-se rapidamente...
ENFIM, A TERRA SANTA!
- Não imaginais o que o Rei sofreu às mãos daqueles infiéis - suspirou o sire de Joinville, procurando uma posição mais confortável numa escada do castelo-da-proa onde se sentara na companhia de Renaud. - Quando penso que o arrastaram para Mansurah quase morto só para dar prazer a uma mulher terrível, a favorita do defunto sultão. Ela riu às gargalhadas quando o viu naquele triste estado! Ficais a saber que é uma bela criatura, mas não tem coração. O riso dela parecia o de uma hiena. Quanto ao nosso sire, suportou aquilo tudo de uma maneira... que não sou capaz de descrever, de tal modo admirável!
- Vós também deveis ter sofrido mil mortes a assistir àquela infâmia terrível! Tanto mais que a partilháveis?
- Bem... eu não estava presente. Ferido, doente, estava num dos barcos que levavam para Damiette aqueles que já não podiam montar a cavalo. Puseram-me lá com os outros, mas, antes de ter sido feito prisioneiro, consegui atirar as minhas jóias e as minhas relíquias ao rio! Foi uma coisa bem cruel! Coisas tão belas... das quais eu gostava tanto!
- É verdade, deveis ter sofrido muito!
- Não imaginais a que ponto! E mais ainda quando me contaram o martírio do nosso sire! Ele. é um santo, sabeis? Já há muito tempo que se dizia isso, mas agora tenho a certeza!... Se me permitis, vou-me levantar para dar alguns passos. Sinto um formigueiro nas pernas! Ferimentos mal curados! Ah, doem-me tanto!
Renaud pôs-se de pé e estendeu a mão para o ajudar. Com um “ai” de dor, o mordomo-mor de Champagne endireitou a sua longa carcaça, que perdera muita da sua amplitude. Em seguida, amparados mutuamente, os dois homens avançaram com prudência ao longo da amurada a que acabaram por se apoiar já que o mar, cinzento-escuro, estava agitado. A alguma distância, a galera-mestra do Templo, onde começavam a arrear a grande vela como precaução contra o mau tempo, talhava a sua rota através da espuma das vagas, a tela substituída pelos enormes remos daquela centopeia dos mares. Joinvillle fungou de rancor:
- O Templo! - grunhiu ele. - Desde o pagamento da primeira prestação do resgate que pergunto a mim próprio para onde irão as suas preferências! Eles vivem há tanto tempo no Oriente que estão mais próximos dos Muçulmanos do que dos Cristãos! Sabeis o que aconteceu no momento em que pesavam o ouro do resgate, dez mil libras mais dez mil libras?
- Faltavam, ouvi dizer, alguns milhares de libras!
- Trinta, que o Rei pediu ao irmão Renaud de Vichiers, marechal do Templo, que dirige tudo porque o Grão-Mestre morreu em Mansurah. E ele recusou!
- Recusou? Ao Rei?
- É verdade! Disse que os cofres que os templários tinham a bordo não lhes pertenciam, que eram de particulares e que não tinham o direito de dispor deles. Estive quase a estripá-lo por causa daquela resposta. Então, ele disse-me com um sorriso torcido que se recusava entregar o que tinham, mas que não eram suficientemente numerosos - porque apenas quatrocentos tinham conseguido evitar a armadilha de Mansurah! - para impedir que os despojassem. Pensei que ele estava a fazer troça de mim. Fiquei furioso: desci até ao paiol deles, onde se amontoavam umas grandes arcas hermeticamente fechadas. Ao passar pela ponte, com um machado, anunciei que ia fazer dele a chave do Rei e fiz saltar os ferrolhos... O irmão Renaud, de braços cruzados no peito, olhava para mim com um sorriso divertido, mas não lhe prestei atenção: tirei aquilo de que precisava, nem mais um tostão, e fui entregar o dinheiro ao Rei! Que pensais desta maneira de fazer as coisas?
- Da vossa maneira? O melhor possível. Quanto à dos templários... no fundo, não me surpreende. Pelo que sei - acrescentou Renaud com uma expressão subitamente sombria - eles são uma gente estranha: possuem em França uma infinidade de bailios e comendadorias, mas, no entanto, recusam a autoridade do Rei, pretendendo depender unicamente do Papa! Não é normal e não está certo! As regras da cavalaria exigem que protejamos a Igreja, mas também que amemos e defendamos o país natal. E isso é incompatível com a recusa de reconhecer as leis... e o Rei!
- Ide explicar-lhes isso a eles! Estão inchados de orgulho e têm tanto amor às suas riquezas como à sua independência...
Uma vaga traiçoeira, ao erguer o navio, ergueu também o estômago do mordomo-mor, que arvorou subitamente uma bela cor verde-pálida e que, com um gemido surdo, se içou por cima; da balaustrada para pagar à natureza o tributo que ela exigia.
- Detesto o mar! - queixou-se ele quando acabou, deixando-se cair junto de Renaud que, por aquele lado, não tinha qualquer problema. - E ainda falta o regresso a França!
A voz irritada do Rei interrompeu as suas reflexões desencantadas. Quase imediatamente, Luís apareceu na ponte seguido do seu jovem irmão, Carlos d'Anjou, que gritava quase tão alto como ele enquanto protestava:
- Mas, sire, meu irmão! Não tendes razão para vos encolerizardes desse modo! Jogar ao gamão não é pecado mortal, que eu saiba!
- Num barco cheio de doentes e entregue à graça de Deus, quando tantos dos nossos companheiros gemem ainda nas prisões egípcias, apenas a oração e os cuidados prestados àqueles que sofrem podem agradar aos olhos do Senhor! Utilizai melhor o vosso tempo! - berrou o futuro santo que, no seguimento, atirou borda fora os dados e os tabuleiros.
Em seguida regressou às entranhas da Montjoie.
- Rezar! - lamentou-se Joinville, do fundo da sua miséria... - Nem sequer tenho forças para isso...
Levaram seis dias a chegar a Acra - mais três do que à ida por causa do mau tempo - mas quando a nau passou as torres da entrada do porto sobre as quais flutuava o estandarte de França, o Sol surgiu e varreu as nuvens para sul, iluminando as casas brancas, as vertentes verdejantes das montanhas no horizonte e as vagas apaziguadas que, como que por magia, tornaram a ficar azuis. O navio fora avistado. Os sinos das igrejas puseram-se a tocar uma alegre canção de boas-vindas, ao mesmo tempo que em todas as janelas, em todas as varandas, em todos os terraços se penduravam tapetes e colchas de cores vivas...
“Toda a cidade foi ao seu encontro em procissão: o clero com os seus paramentos sacerdotais, os cavaleiros, os burgueses, os soldados, as damas e as donzelas com os seus mais belos atavios.” Os habitantes da cidade gritavam a sua alegria, entoando antecipadamente para aquele vencido aureolado com o martírio o Te Deum dos vencedores que seria cantado mais tarde. Explodindo de entusiasmo, Acra recebeu Luís triunfalmente e à frente dessa recepção estava Margarida vestida de azul e dourado, transportando nos braços o bebé que ofereceu ao seu marido dobrando ligeiramente o joelho. O casal estava separado há dez meses. Ela resplandecia com toda a sua beleza calorosa: ele, minado pela doença, não passava de uma sombra de si mesmo, mas quando pegou no pequeno João Tristão com as suas longas mãos pálidas para o erguer acima da cabeça para o mostrar à multidão em regozijo, reencontrou, não só o porte, mas pareceu, também, crescer ainda mais, ao mesmo tempo que o seu rosto embaciado irradiava a sua luz interior.
Renaud também se sentia feliz. Por fim, pisava aquela Terra Santa com que sonhava há tanto tempo! Por fim, revia a bela dama que adorava! E de perto, porque quando estivera com ele em Damiette, o Rei, concedendo-lhe o estatuto de escudeiro, o ligara à sua pessoa. Ela teve para ele um olhar de uma doçura tal que o jovem sentiu derreter-se o coração. Nunca ela olhara para ele daquela maneira e ele talvez tivesse cometido a loucura de se lançar a seus pés se não tivesse ouvido Joinville resmungar:
- Sua peste! Não vos sabia tão avançado na amizade da Rainha!
O tom era amargo. Havia nele um ciúme que Renaud teria achado incapaz no amável mordomo-mor de Champagne. A menos que... também estivesse apaixonado pela deslumbrante Rainha?
- Conheci-a antes de vós - disse ele com uma ligeireza destinada a dissipar qualquer ideia de conivência. - Não foi em Chipre que a vistes pela primeira vez?
- De modo nenhum! Tive essa felicidade no dia... 24 de Junho de 1241 em Saumur, por ocasião da festa da investidura como cavaleiro do conde de Poitiers, onde acompanhei o conde Thibaut de Champagne, mais tarde Rei de Navarra! Ah, que bela festa! Nunca vi o Rei tão magnificamente vestido. E a Rainha então!... Mais delicada do que nunca! Eu era muito jovem, ainda, mas nunca mais a esqueci. Ainda por cima porque ela não mudou!
Um enorme suspiro pôs fim a uma confidência que Renaud não comentou, evitando, sobretudo, perguntar o que a dama de Joinville, nascida sob o nome de Alix de Grandpré - da qual, aliás, o marido nunca falava! - pensava daquilo. Mas esqueceu rapidamente o incidente quando uma voz, que ele pensava perdida, lhe disse:
- Então, sire cavaleiro, sempre ofuscado, ao ponto de não verdes mais ninguém quando a Rainha está presente?
O jovem soube instantaneamente qual era o rosto que ia encontrar quando se virou, de tal modo a insolência do tom lhe trazia recordações. No entanto, o que viu surpreendeu-o e como não era suficientemente sofisticado para reprimir as suas reacções, deixou sair:
- Por São Jorge! Dir-se-ia que o nosso gentil camafeu mudou muito!
Os olhos verdes, que ele não se lembrava de serem tão longos porque nunca os vira senão semicerrados, brilharam de cólera:
- Mas vós, em todo o caso, não mudastes! Sempre rústico! Não se pode dizer que saibais retribuir um cumprimento!
Renaud desatou a rir, incrivelmente feliz por ver de novo aquele rosto que pensava apagado definitivamente da sua vida. Era verdade que tinha mudado, mas não ao ponto de merecer ser acrescentado ao número das beldades da corte: o longo nariz, cujas narinas sensíveis pareciam absorver todos os odores, era o mesmo, mas os traços incertos do rosto tinham-se moldado delicadamente, assim como a cor do rosto que, em tempos turva, se desbastara, transformando-se numa delicada pétala de flor na qual uma abelha negligente, ou demasiado apressada, tivesse deixado cair alguns grãos de pólen. As sardas de Sancie não se tinham apagado, mas Renaud via que, agora, iam bem com a sumptuosa cabeleira vermelho-dourada que o discreto toucado redondo de veludo cinzento-claro e o ligeiro véu de musselina mal cobriam. Quanto à grande boca tantas vezes trocista, era agora de uma bela cor rosada, desenhando um arco agradável sobre os seus pequenos dentes tão brancos como antes. Em resumo, apesar de não se poder dizer que Sancie de Signes se tivesse tornado bela, tinha qualquer coisa que forçava o olhar e até o retinha, como Renaud pôde constatar quando, virando-lhe as costas, a jovem - não devia ter mais de dezoito anos! - o deixou ali plantado para seguir o casal real que se afastava. O corpo fino e nervoso sugerido pelo corte do vestido e suportado por umas longas pernas era o de uma falsa magra com curvas encantadoras nos locais onde deviam estar e que um andar gracioso punham em evidência. Renaud, que não segurava nos braços uma mulher há mais de seis meses, surpreendeu-se a imaginá-la com tanta precisão que fez corar a jovem. O jovem ficou confuso, pediu mentalmente perdão a Deus e prometeu a si próprio, na primeira ocasião, pedir perdão à dama de... Como se chamava ela agora? Já não se lembrava, mas, no fundo, não tinha importância porque, para ele, seria sempre Sancie de Signes...
Luís e Margarida instalaram-se no antigo palácio perto do porto, que fora o da Rainha Isabel de Jerusalém e do seu terceiro marido, Henrique de Champagne e depois do quarto, Henrique de Lusignan (1). Fora também naquele local que ela vivera a sua única noite de amor com Thibaut de Courtenay. Noite inolvidável cujo segredo fora revelado a Renaud pelo manuscrito e que dera origem à sua mãe Melisanda. E foi com profunda emoção que o jovem descobriu as grandes salas frescas, os pátios interiores cheios de rosas e de jasmins em flor, as janelas rendilhadas e as lajes preciosas por onde deviam ter deslizado, num frufru
(1) Ver Thibaut ou a Cruz Perdida.
sedoso, as caudas de cetim, de cendal, de cetim ou bordadas, da sua deslumbrante avó. A parecença de Margarida com Isabel tornava a evocação alucinantemente verdadeira. E Renaud pôs-se a sonhar que, uma noite, a porta do quarto da sua amada, que fora o de Isabel, se entreabriria para a passagem silenciosa de um amante e que esse amante seria ele... Depois, o encantamento começaria. O jovem estava tão seguro de saber como amá-la...
Observara, no porto, o encontro de Margarida com o seu marido. Ela, esbelta, delicada e fina a despeito das repetidas maternidades, com aquele rosto fino que as provações não tinham conseguido endurecer. E ele, aquele quase-ressuscitado tão grande, tão magro que até se notava a espinha, aquela figura marcada pela doença, mas também aquele estranho olhar azul que parecia trespassar as pessoas, ver mais longe, mais alto, onde os homens de carne e osso não chegavam. Ele erguera-a para a abraçar quando ela dobrara o joelho e tinham partido juntos na direcção do palácio onde se reconstruiria uma intimidade que Renaud, confessava-o, tinha cada vez mais dificuldade em suportar. Admitindo que tivesse a força necessária, Luís engravidaria uma vez mais a mulher entre duas orações, porque um santo em potência não é capaz de fazer amor sem o pensamento na procriação. E Margarida teria, de novo, diante de si, nove meses de náuseas, de mal-estar e enfraquecimento da sua beleza, enquanto, naquela cidade branca entre o mar e as colinas azuis, verdadeiro paraíso depois do inferno egípcio, tudo incitava ao amor cantado pelos poetas e onde a sua conclusão não devia acontecer senão após um lento e delicioso percorrer de um labirinto de carícias e surpresas... Há mulheres que são dignas de um verdadeiro culto, mas era muito provável que Luís IX não tivesse nenhuma ideia desse género de devoção...
Naquela primeira noite não houve festejos tardios, nem no palácio, nem na cidade. Todos estavam conscientes do estado em que regressara a maior parte dos cavaleiros escapados das masmorras egípcias, dos tormentos da doença ou de ambas as coisas. O jantar foi breve e o casal real retirou-se logo a seguir. A gente do mordomo-mor de Champagne encontrara para este, perto da igreja de São Miguel e na vizinhança de um conjunto de estufas, uma casa pertencente à viúva de um tecelão, na qual ele propôs a Renaud que ficasse. Havia espaço suficiente para os dois e isso permitiria partilhar as despesas. Um pormenor importante para Joinville, que estava quase sem vintém, enquanto que, por parte de Courtenay, esse problema não existia já que, pertencente à casa do Rei, era o tesoureiro que provinha às suas necessidades.
A casa tinha algum encanto. Ordenada em redor de um pátio quadrado coberto de areia amarela onde havia um loureiro rosado de folhagem escura e uma vinha, possuía alguns quartos relativamente pequenos, que abriam para esse pátio coberto por uma tela vermelha que o protegia, durante o dia, dos ardores do sol. Mas, naquela noite, Renaud não tinha sono e deixando Gilles Pernon e Basile a tratarem da instalação, preferiu sair de novo para respirar o ar daquele país há tanto tempo esperado... e também para escapar às recriminações do seu novo companheiro de existência que, tendo reencontrado terra firme, estava mais doente do que no barco e parecia decidido a não se satisfazer com nada...
O jovem desceu até à margem e, tal como fizera em Aigues-Mortes, passeou durante um bocado antes de se sentar encostado a uma pilha de toros de madeira para contemplar Acra que, do sítio onde estava, podia ver na sua quase totalidade. Renaud lembrava-se muito bem do que o seu avô escrevera acerca da época do grande cerco de 1190-1191, quando a França de Filipe Augusto e a Inglaterra de Ricardo, Coração de Leão, conduziam o combate para se apoderarem de Acra com o mar nas suas costas enquanto o exército de Saladino, barrando o acesso ao interior do país, os cercava por sua vez. A excepção dos minaretes transformados em campanários e das muralhas reconstruídas, Acra não mudara muito. Do alto da cidadela e da igreja de São João, no alto das quais flutuava o estandarte do Hospital, a cidade deslizava, incrivelmente branca, quando se sabia como as ruelas podiam ser obscuras, até à ponta onde se enroscava a torre do farol cuja luz guiava os barcos para o porto durante a noite. Não longe dele, comandando a actividade do porto, a poderosa morada fortificada do Templo, a Abóbada de Acra, sob o estandarte negro e branco dos seus cavaleiros. Depois, em redor da massa do palácio dos reis, os conventos e o conjunto esburacado de pátios e jardins de onde partia para o céu uma figueira ou a flecha sombria de um cipreste...
O jovem ficou ali tanto tempo que não se deu conta de que a noite estava a acabar. Uma brisa, vinda do mar, passou-lhe pelos cabelos, envolveu-lhe o corpo e deslizou-lhe sob a camisa amplamente aberta, assim como sob o casaco de couro que a cobria. O céu empalideceu, reflectido na água calma sobre a qual balançavam docemente os cascos dos navios. Depois, tudo ficou cor-de-rosa e tudo acordou. A margem começou a fervilhar enquanto as barcas de fundo chato continuavam a descarga dos navios. Com um suspiro, Renaud levantou-se e espreguiçou-se: era tempo de se lavar e de comer qualquer coisa...
De regresso à casa da viúva, passou pela igreja de São Miguel. O sino tocava às Avé-Marias e preparava-se a primeira missa. Assim, Renaud deixou para mais tarde os cuidados do corpo. Era mais importante rezar a Deus, pedindo-Lhe que lhe permitisse encontrar a Cruz perdida. E entrou na igreja.
Espetados nas garras de ferro das colunas, os archotes faziam viver as palmeiras, as flores esculpidas na pedra dos capitéis e acordavam o coro onde um miúdo acendia as grandes velas vermelhas. Estas começaram a fumegar, espalhando um odor a suarda de que o Senhor não devia gostar muito. Felizmente, as de incenso, no momento da Elevação, neutralizaram-no um pouco.
Algumas mulheres, envoltas em roupa dos pés à cabeça como as muçulmanas, entravam, benziam-se, ajoelhavam-se e rezavam... Uma delas atraiu a atenção de Renaud pela elegância discreta do traje escuro do qual era difícil distinguir a cor, mas nenhum véu, mesmo espesso, mesmo escuro, poderia apagar o brilho dos cabelos de Sancie...
Seguida por uma criatura sem idade que noutros tempos ele teria qualificado de aia, de tal modo parecia azeda e desconfiada e com um olhar que vasculhava tudo, ajoelhou-se na almofada que a mulher colocou sob os seus joelhos. A jovem não vira Renaud e ele nem sequer teve tempo de dar um passo na direcção dela. Precedido pelo tilintar de uma campainha, um padre paramentado estava a chegar ao altar. A missa começou.
Apesar das suas boas intenções, Renaud seguiu-a com uma extrema distracção. O seu olhar regressava, sem cessar, à cabeça inclinada da qual não conseguia ver o rosto e apesar de ter rezado um pouco, achou o sacrifício muito longo. O Ite missa est arrancou-lhe um suspiro de alívio e foi esperar junto da pia de água benta.
Quando Sancie se aproximou, ele molhou a mão na água e ofereceu-lha, a pingar. O que a fez estremecer.
- Quereis conceder-me o favor de vos acompanhar até ao palácio? - sussurrou ele. - Gostaria de vos falar.
A jovem franziu o sobrolho, mas deteve com um gesto o impulso da sua aia, que já se colocava entre ela e o intruso:
- Que tendes para me dizer, cavaleiro?
- Saiamos, primeiro, por favor!
- Se assim o desejais. : Saíram os dois para o ar ainda fresco da manhã que em breve se tornaria bastante quente - estava-se em Maio - e, durante alguns momentos, caminharam sem dizer palavra com a “aia” nos seus calcanhares. Sancie evitava olhar para o seu companheiro e tapava o rosto com as pregas do seu véu. Em definitivo, era violeta, tal como o vestido de seda espessa.
- Então? - perguntou ela, enfim. - Ficastes mudo? O que tendes a dizer não deve ser muito importante!
- Oh sim! Simplesmente, não sei como me exprimir. É difícil, sabeis, pedir perdão... por uma coisa imperdoável.
Ela teve um movimento desenvolto, que retirava toda a importância ao que o “rústico” teria a dizer.
- Oh, é só isso?... Admitamos, nesse caso, que vos sentis arrependido, que eu vos perdoo... e que podeis continuar o vosso caminho!
- Não. Só mais um momento! Não me queirais mal pela minha estupidez de ontem. E preciso que saibais que senti uma grande alegria por vos ver de novo. Só quando vos vi na ponte da Reine é que compreendi as saudades que tinha de vós. Outrora fostes minha amiga!
- Um outrora que não está suficientemente longe para estar esquecido. Estáveis, então, ao serviço do defunto monsenhor Roberto e a “velha” tinha-vos deixado em paz. Já não precisáveis de uma amiga...
Renaud não conseguiu deixar de sorrir. Apesar dos anos, Sancie mantivera aceso o rancor que sentia por Branca de Castela e o insolente epíteto veio-lhe à memória espontaneamente...
- ... Além disso - acrescentou ela - a minha mãe tinha morrido e o meu pai reclamava a minha presença.
- Eu soube dessa triste notícia e gostaria de vos ter minimamente... consolado, mas vós partistes sem uma palavra. Só depois é que a dama Hersende, que gosta muito de vós, me disse que vos tínheis casado.
- Casei-me, de facto, mas fiquei viúva. Há mais ou menos um ano que o barão de Valcroze, meu marido, se juntou aos seus antepassados na cripta da nossa capela. Era um homem bom e generoso. Chorei-o muito... e continuo a chorar!
A jovem foi-se embora sem olhar para ele, o seu estranho perfil, que não deixava de ser arrogante, virado para o outro lado da rua. E depois, bruscamente, virou-se para ele:
- E, naturalmente - lançou ela - perguntais a vós próprio porque razão estou eu aqui em vez de no nosso castelo encostado à montanha e junto a um rio, como convém a uma viúva nobre?
- Mas eu...
- Ides sabê-lo! O meu marido tinha mais cinquenta anos do que eu, mas amava-me... como se deve amar sempre, com um sincero desejo de proporcionar felicidade. Ele era o último do seu nome e sabia que, quando me deixasse para se juntar ao Senhor, me deixaria rica... e livre.
- Não... não tendes filhos?
- Se tivesse, estaria ao pé deles e já vos disse que ele queria que eu fosse livre. O meu marido sabia da amizade que tenho pela minha madrinha e foi ele que me aconselhou a regressar para junto dela.
- Ele aconselhou-vos a partir com a cruzada, sujeita aos seus acasos?
- Por que não? É uma bela maneira de partir ao encontro de Deus! Mais apaixonante do que ficar num mosteiro a rezar incessantes litanias de desespero! O castelo e os domínios que me pertencem são geridos, e bem geridos, por um parente meu, que é homem de experiência. Nada se opunha a que fizesse a peregrinação e me juntasse a Madame Margarida.
- Por outras palavras, sois feliz?
Saneie hesitou apenas o tempo suficiente para examinar a pergunta e encontrar a resposta conforme ao que lhe ia no pensamento:
- Não tanto como esperava, já que a minha Rainha não é feliz.
- No entanto, acaba de reencontrar o marido?
- Vistes em que estado? Um fantasma, um esqueleto ambulante que não só não cumpriu o seu voto de cruzada como ainda deixou nas areias do Egipto metade de um belo exército. Tantos homens que morreram para nada! A começar por...
- Monsenhor d'Artois! - murmurou Renaud sem pensar, por um só momento, em esconder as lágrimas que lhe subiam ?. aos olhos cada vez que evocava o príncipe seu amigo. - A perda dele não tem reparação.
- Nenhuma tem reparação! - afirmou a jovem vivamente. - E agora, fazeis alguma ideia acerca do que o Rei vai decidir? Logicamente, devia partir. Uma carta da sua mãe esperava-o à chegada. Não sei o que dizia, mas presumo que ela o reclama!
- Ele não pode partir. Ainda não! Pensai nos que ficaram cativos no Cairo! O Rei nunca os abandonará... Tem de pagar por eles duzentas mil libras.
O jovem calou-se subitamente e o seu olhar fixou-se. Quando estavam quase a chegar às torres de entrada do palácio fortificado por Henrique de Champagne, pararam e no campo de visão de Renaud acabava de aparecer a silhueta de um templário, inscrita nas arcadas de um entreposto de tecidos. Silhueta fugitiva, escamoteada pelo fuste de um pilar, mas que o jovem juraria pertencer àquele que procurava há muito tempo.
- Que vos aconteceu? - perguntou Sancie.
- Nada... ou quase nada! Perdoai-me! Tenho de vos deixar. Sem esperar pela resposta, Renaud inclinou-se ligeiramente e correu na direcção do ponto onde aparecera o manto branco e a cruz vermelha... que voltou a ver no momento preciso em que ele desaparecia no interior do entreposto. Era umfondaco, semelhante aos que Veneza semeava há séculos em todos os portos importantes do Mediterrâneo para consolidar o seu comércio: um mundo claro-obscuro de lojas, escritórios, cavalariças para os cavalos, armazéns para os camelos, um universo agitado onde se misturavam os odores das especiarias, da lã em bruto, da poeira e dos excrementos. Renaud bem o percorreu de um lado ao outro, mas não conseguiu encontrar aquele que procurava!
- Não é possível! Aquele homem é o diabo! - exclamou ele ao sair, sem se preocupar com o facto de poder ser ouvido e piscando os olhos face à luz brilhante do Sol.
O jovem estava tão furioso que decidiu prosseguir até à casa-mãe do Templo para ali reclamar o seu inimigo, arriscando-se a provocar um escândalo terrível quando o acusasse de ter violado o túmulo de Thibaut. Mas não podia continuar a arrastar consigo a vergonha de deixar impune aquela maldade. Ia regressar para a extremidade do porto quando Basile apareceu subitamente diante dele.
- Que fazes a correr dessa maneira em todas as direcções? - protestou o petiz. - Há horas que te procuro. Felizmente, vi-te entrar ali dentro e como não há outra entrada, esperei aqui...
- Viste sair um templário? Um cavaleiro com um manto...
- Eu sei o que é um templário! E não vi nenhum... E agora, tens de regressar. O grande homem verde disse que é preciso ir a casa do Rei... Vem! Senão, vais ter problemas!
Não havia outra coisa a fazer senão obedecer.
Na verdade, o que Luís pretendia, ao reunir os seus cavaleiros no dia seguinte à sua chegada a Acra, era pôr ordem na sua “casa” depois dos golpes sombrios que acabava de sofrer, ver quais eram as hipóteses de cura dos feridos e doentes, assegurar o regresso a casa daqueles que já não podiam combater, inteirar-se das necessidades daqueles que levara consigo e que, na sua maior parte, não tinham armas nem equipamento. Joinville não foi o último a expor a sua “miséria” e a reclamar alguma ajuda. Mas não precisava de o ter feito: Luís, com a ajuda dos barões sírios, que o acolhiam como] libertador, mostrou-se generoso, como era seu hábito.
Como era costume, rezou-se muito e já era tarde quando Renaud pôde pôr em execução o seu projecto da manhã: ir pedir explicações a Roncelin de Fos. Saborear o sangue daquele miserável seria um excelente começo de serviço para a bela espada nova que lhe batia no flanco e que acabavam de lhe dar.
O jovem teve alguma dificuldade para convencer Pernon a não o acompanhar. Não ia para nenhum lugar perigoso, ia ao Templo, regido por uma regra e por leis severas, desafiar um homem que o tinha ofendido com gravidade, o que excluía a ideia de se matarem mútua e discretamente num canto qualquer da muralha, ou na praia. As intrigas tortuosas e os assuntos obscuros inconfessáveis tinham acabado! O que ele queria, de momento, era obrigar Fos a expor tudo à luz do dia. O combate seria decidido pelo Marechal ou, talvez, pelo novo Grão-Mestre, que era Renaud de Vichiers e só teria lugar, provavelmente, no dia seguinte ou num dia próximo, mas teria lugar! O seu inimigo não voltaria a escapar e isso era o que Renaud queria.
- - Além disso - acrescentou ele - se me seguires, o miúdo também há-de querer ir e eu não quero que isso aconteça. Quero que tomes conta dele!
- Quanto a isso, podeis ficar tranquilo!
Desde Damiette, de facto, que os laços entre o velho soldado e o petiz se fortaleciam dia após dia. O couro endurecido do primeiro escondia um fundo de ternura latente, inutilizado, adormecido, mas que os relatos das infelicidades do outro acordava. E o outro, justamente, descobria que podia ainda pertencer àquele mundo da infância de que fora tão brutalmente arrancado. Era verdade que Basile ganhara amizade a Renaud, que admirava. Com Pernon, era outra coisa. Podia dizer-lhe tudo e depois ser de novo um petiz capaz de ter medo...
Sabendo por experiência própria, depois da sua curta estadia na comendadoria de Joigny, como funcionava uma casa templária, Renaud estava certo de que àquela hora, tardia mas não imprópria, o convento estaria todo reunido. Sem dúvida na capela. O jovem estava pronto a esperar polidamente até ao fim do ofício. Aceitou, portanto, ficar no antepátio onde o porteiro acabou por o introduzir depois de se fazer rogado e antes de ir procurar o marechal a pedido do intruso. Decidido a colocar a lei do seu lado, Renaud tencionava seguir as regras para conseguir que o seu inimigo o defrontasse.
Com o crânio rapado, a barba rala num rosto de traços grosseiros, ele mesmo erguido sobre um corpo de uma magreza quase ascética, o irmão Hugo de Jouy, o novo marechal desde a eleição de Renaud de Vichiers, era tudo menos simpático. Um ferimento recente, cuja cicatriz ainda vermelha lhe puxava o olho esquerdo para baixo, aumentava o aspecto rebarbativo do seu rosto. Enquanto Renaud expunha calmamente a razão da sua visita, o seu olho válido, penetrante como uma verruma, fixava-o com uma impaciência próxima da animosidade.
- Pedir reparação pelas armas a um irmão do Templo é impossível! A Regra proíbe-nos o duelo - disse ele secamente.
- É uma Regra cómoda! Permite que vos entregueis às piores coisas sem terdes que responder por elas! - ripostou Renaud, respondendo ao desdém com o desdém.
- É a própria Ordem que julga e pune as faltas cometidas pelos seus filhos. Apresentai o vosso pedido ao Grão-Mestre, mas ficais a saber que ele vos pedirá provas.
- Provas? Eu estou pronto a jurar pelos Santos Evangelhos que vi Roncelin de Fos a vasculhar o eremitério do meu pai, Thi-baut de Courtenay. A minha chegada impediu-o de violar o seu túmulo... mas ele regressou na noite seguinte.
- Para fazer o quê?
- É o que eu tenciono perguntar-lhe. Para ter cometido um acto tão infame, deve ser importante. O que não tira nada ao facto de se tratar de um crime grave...
- Mais uma vez, tendes provas?
- O meu testemunho é o mesmo do meu escudeiro. Sem esquecer o Imperador de Constantinopla, que mandou buscar, com grande respeito, o despojo ultrajado para o sepultar na capela do castelo de Courtenay. Não vos chega?
- Constantinopla é longe! O que torna difícil esse augusto testemunho. Mas... podeis tentar. Quando o tiverdes, reconsideraremos a questão...
Com um vago sinal de cabeça, Hugo de Jouy girou nos calcanhares, o que enfureceu Renaud:
- Ao menos, ide buscar Roncelin de Fos e interrogai-o na minha frente!
O marechal virou-se ligeiramente e limitou-se a dizer por cima do ombro:
- Isso também é impossível! O irmão Roncelin partiu esta manhã com reforços para a nossa comendadoria de Safed.
- É um hábito dele, mas, mais tarde ou mais cedo, hei-de encontrá-lo - grunhiu Renaud, furioso. - Não me há-de escapar sempre!
E, abandonando a Abóbada do Templo, o jovem ficou alguns instantes junto ao mar a respirar a plenos pulmões, tentando reencontrar a calma perdida. A sua cólera estendia-se, agora, à Ordem inteira, àquela gente arrogante que não tinha receio de ter no seu seio homens de mentes tortuosas, nos limites da traição, de clamar bem alto o facto de dependerem apenas do Papa, o que lhe permitia recusar a autoridade do Rei... e até emprestar o dinheiro para completar a quantia do seu resgate! Tudo com o pretexto de que se tratava de um bem de outras pessoas! Belo pretexto, na verdade, quando as suas comendadorias se espalhavam por toda a Europa e que, em Paris, a sua torre-mãe, novinha em folha, encerrava o tesouro desse mesmo Rei! Rezar a Deus todos os dias não chegava, segundo Renaud, para fazer deles gente de bem. Quanto àquele Roncelin de Fos, que lhe fugia por entre as mãos como uma enguia, chegaria o dia em que se veriam frente-a-frente de espada na mão, quer isso agradasse ou não ao Grão-Mestre e à sua cambada!
Quando ele regressou a casa, Pernon só precisou de um olhar para perceber que as coisas não tinham corrido bem, mas perante a expressão tempestuosa do seu senhor, engoliu as perguntas. Aliás, Renaud limitou-se a perguntar com soberba:
- Tu, que sabes sempre tudo, sabes onde é Safed?
- Como quereis que saiba? Eu sou como vós, acabo de chegar.
- E não, informa-te! Preciso de saber onde se situa esse castelo templário e qual o caminho que vai lá dar! E depressa, por favor!
- Não podeis esperar até amanhã? Já é tarde. E algo me diz que precisais, sobretudo, de dormir um pouco.
- Espantar-me-ia muito se conseguisse lá chegar. Aquele miserável está incrivelmente protegido! Basta que pergunte por ele e respondem-me logo que foi para longe - suspirou Renaud, tirando a espada antes de se deixar cair numa cadeira.
Pernon deitou água fresca numa taça e estendeu-lha sem dizer nada, sabendo o que se seguiria. De facto, Renaud bebeu um trago e disse: '?
- Senta-te! Vou contar-te tudo.
Era exactamente o que Pernon esperava. O escudeiro deixou falar o seu senhor e só quando este pediu um pouco mais de água é que ele se permitiu um comentário, mas não sem tomar algumas precauções:
- Posso falar francamente?
- Parece-me que é o que fazes habitualmente!
- Muito bem, aqui vai: primeiro, não devíeis ter ido sozinho...
- Não vejo o que poderias ter feito mais...
- Não se trata de mim. Como era um desafio aberto, devíeis ter levado convosco dois cavaleiros...
- Este assunto só me diz respeito a mim!
- Eu sei. No entanto, esqueceis que sois escudeiro do Rei e que antes de irdes provocar um templário em pleno Templo, devíeis ter pedido a sua autorização. No caso, bem improvável, de ele estar de acordo - o que me espantaria se considerarmos o número de mortos em Damiette com o Grão-Mestre à cabeça - ter-vos-ia feito escoltar por cavaleiros munidos, talvez, de uma carta escrita pela sua mão. Agindo como agistes, não tínheis hipótese nenhuma. Estou convencido de que aqueles monges-soldados são gente bizarra capaz do melhor e do pior, mas sabem combater e o nosso sire precisa deles na situação actual e não os vai atacar a propósito de um assunto privado...
- Por outras palavras, tive razão em tentar a minha sorte sem prevenir ninguém - disse Renaud com uma careta trocista.
- E voltamos ao ponto de partida: saber onde é Safed porque é lá que está Roncelin de Fos!
- Meu Deus, como sois teimoso! Ide dormir, por piedade! Amanhã vereis tudo mais claro,..
No dia seguinte, entretanto, Pernon conseguiu uma mão-cheia de informações. Safed, que os templários tinham reconstruído depois das destruições de Saladino, tornara-se, juntamente com Tortosa, a mais poderosa das suas fortalezas e, depois da trágica diminuição do espaço do reino franco, o mais temível dos seus postos fronteiriços. Dizia-se que o Templo gastara mais de um milhão de besantes sarracenos em ouro para a rearmar, que eram alimentadas no seu interior, diariamente, mais de mil e setecentas pessoas e que em tempo de guerra ainda eram mais. Que a guarnição era composta por cinquenta irmãos cavaleiros, trinta e cinco irmãos-soldados com cavalos e armas, cinquenta turco-poles montados, trezentos homens a pé, oitocentos e vinte escudeiros e quarenta escravos...
- Um mundo de gente! Uma cidade solidamente fortificada - explicou Pernon. - Como vedes, é inútil irdes lá provocá-los! Esmagar-vos-iam como se fôsseis um ovo e nunca mais ninguém ouviria falar de vós!
- Não foi o que te pedi. O que te pedi foi que me dissesses onde era!
- Quase a dez léguas para leste, a direito e a cinco, para norte, de Tiberíades - respondeu o escudeiro com um suspiro irritado que Renaud nem sequer ouviu. O que o jovem acabava de ouvir era a melhor das notícias.
- A cinco léguas a norte de Tiberíades? Mas isso é perto... -Já não percebo nada! Que vem aqui fazer Tiberíades?
- As explicações ficam para mais tarde! Para já, vou ter com o Rei...
- Boa ideia! Eu também vou! - disse Joinville, que acabava de entrar.
Renaud reprimiu uma careta: o que ele tinha a dizer a Luís IX não dizia respeito a mais ninguém.
- É que... vou tratar de um assunto grave com ele.
- E eu também! - afirmou o outro. - Temos de nos alojar noutro sítio qualquer: os criados, aqui, são insolentes e servem uma comida abominável com o pretexto de que nós não temos dinheiro suficiente. Além disso, quanto a vós, não sei, mas, quanto a mim, não consigo repousar: a minha cama está encostada à parede que dá para a da igreja onde são cantados uns Ubera me Domine tornitruantes cada vez que enterram um morto e até parece que a cidade inteira vai a enterrar. Juntos, seremos mais fortes! Vamos!
Não havia meio de escapar e Renaud resignou-se: quando o mordomo-mor terminasse com os seus aborrecimentos domésticos, talvez tivesse tempo para ele, mas nem um nem outro conseguiram expor os assuntos que os levavam ali: caíram os dois em pleno Conselho, um conselho singularmente agitado, onde se defrontavam os barões da Terra Santa e os que tinham vindo - em princípio! - em seu socorro. Naturalmente, os Grão-Mes-tres do Templo e do Hospital, Renaud de Vichiers e Guilherme de Châteauneuf, também estavam presentes, juntamente com o núncio do Papa e toda aquela gente discutia energicamente. Joinville, que adorava uma boa justa oratória, lançou-se na discussão enquanto Renaud se limitava a escutar.
Tratava-se de saber o que se faria assim que os prisioneiros do Cairo fossem libertados. Uma carta vinda de França inquietava muito o Rei: a sua mãe lembrava-lhe que tinha sessenta anos, que as forças começavam a faltar-lhe e que talvez tivesse chegado a hora de ele regressar a um país ameaçado por um novo perigo! O gentil cunhado, Henrique III, marido de uma das irmãs da Provença, parecia que não conseguia resistir ao desejo de saltar sobre a França na ausência de Luís. O Rei de Inglaterra estava a reunir, em Portsmouth, uma grande frota de invasão.
Pelo outro lado, os barões sírios, os Ibelin, os Gibelet, os condes de Trípoli e de Antioquia - apesar de os seus domínios estarem reduzidos a metade, senão menos! - suplicavam ao Rei que ficasse: só ele podia pôr ordem num país, num reino sem Rei que mais parecia uma república anárquica, onde cada um fazia o que queria sem se preocupar com os outros.
- Nós precisamos que pegueis neste país com as vossas mãos reais, sire. Se partirdes, estamos perdidos, divididos como estamos, e o sarraceno, que o sabe, não esperará muito para nos atacar separadamente e, então, não teremos força.
- Eles só nos atacarão se nós não formos suficientemente inteligentes para nos entendermos com eles - ripostou Renaud de Vichiers. - Os sobrinhos e os sobrinhos-netos de Saladino continuam a reinar em Alepo, em Mossul, em Damasco e odeiam os Egípcios tanto quanto nós. Eles precisam tanto de nós como nós deles...
- Grão-Mestre - gritou o Rei vermelho de cólera - eu pensava já ter dito em Chipre que não queria ouvir falar de coligações com os Infiéis? Isso equivale a entregar-lhes o país, o que não agrada a Deus! Eu sei que, se me for embora, a primeira coisa que fareis será abrir-lhes os braços e entrardes em grandes discursos filosóficos na sua língua, de cuja obra escrita tanto gostais! Não permitirei que isso aconteça!
- Mas, sire, meu irmão - interveio Afonso d'Anjou - pensai nas centenas de cavaleiros e soldados que perdemos! Pensai também nos que escaparam e que só desejam regressar a casa por pôr ordem nos seus assuntos, sem dúvida, mas também na sua saúde. Pensai na nossa mãe!
- A nossa mãe é, por si só, o melhor dos reis - ripostou Luís. - Ela já fez frente a coisas bem piores do que as veleidades do nosso irmão inglês...
- Que, aliás, Sua Santidade o Papa pode, a meu pedido, encarregar-se de o chamar à razão e convencê-lo a ficar em casa se não quiser incorrer no anátema por ousar atacar um país cujo Rei partiu para a cruzada... - acrescentou o cardeal núncio.
- Finalmente - lançou corajosamente Joinville, que tentava em vão há um bom bocado lançar a sua colherada - o Rei não pode decepcionar este bom povo que nos acolhe tão hospitaleiramente, tão generosamente. Ele não compreenderia se aquele em quem deposita as suas esperanças o abandonasse à sua sorte uma vez restaurada a sua saúde e libertados os prisioneiros...
- E se vós vos metêsseis no que vos diz respeito? - grunhiu o templário. - Vós sois aquele que está sempre a chorar, a queixar-se, mas continuais aqui! É verdade que o Rei cede a todos os vossos pedidos...
- Oh!
Tendo começado naquele tom, a discussão quase se transformava numa briga quando Vichiers chamou “poldro ávido” a Joinville, que era um termo pejorativo aplicado aos nascidos na Terra Santa. Mas o mordomo-mor respondeu prontamente:
- Antes poldro do que pileca estafada como vós! - lançou-lhe ele ao rosto.
Os dois homens já levavam as mãos às espadas quando o Rei se interpôs:
- Chega! Ordenamos que mantenhais a paz... de qualquer maneira! - acrescentou ele com um olhar rápido na direcção de Vichiers. - Decidi o seguinte: aqueles que desejarem regressar a casa, que o façam. Aqueles que vieram para libertar os Lugares Santos e permitir que os peregrinos rezem em paz, ficarão o tempo suficiente para que o reino se reorganize e restaure as suas defesas, muralhas ou cidadelas. Também é preciso reconstruir as barreiras francas no Norte, reconciliando o principado de Antio-quia-Trípoli com os reinos arménios de Cilicia...
- Não tereis tempo, sire!- troçou Vichiers. - O Islão possui armas que não conheceis: o Velho da Montanha lançará sobre vós os seus hashashim e morrereis aqui sem ter resolvido nada. Talvez, até, venhais a perder o reino! Mas, provavelmente, não sabeis quem é o Velho da Montanha! - acrescentou ele com um sorriso de desdém.
Aterrorizado, Eudes de Châteauroux, o núncio, quis intervir, mas o Rei impôs-lhe silêncio. Luís levantou-se e a sua grande e magra estatura, ao desdobrar-se em todo o seu tamanho, fez com que ficasse mais alto uma cabeça do que o Grão-Mestre:
- Sabemos mais do que pensais, irmão Renaud de Vichiers. Assim, sei que procurais induzir-me em erro com a vossa ameaça dos hashashim ao serviço do Islão. O Velho da Montanha é inimigo do Islão tal qual é praticado em Bagdade, ou no Cairo. Foi-me dado estudar as respectivas doutrinas. Vós, pelo contrário, é que deveis ter cuidado, porque o ódio que tendes um pelo outro não se apagará tão cedo... Se estamos enganados, fazei o favor de no-lo dizer!
Furioso, o Grão-Mestre abandonou a sala do Conselho com Hugo de Jouy e os irmãos que o acompanhavam. Luís IX viu-os partir com um meio sorriso que, bizarramente, lhe endureceu o rosto.
- Está decidido, meus senhores! - disse ele, enfim, elevando a voz para poder ser ouvido por todos. - Ficaremos aqui a repor a ordem e a devolver a paz e a segurança aos caminhos de peregrinação...
Renaud seguira a altercação entre o Rei e o Grão-Mestre com um prazer onde entrava também a esperança. Depois do que acabava de se passar, a sua queixa contra Roncelin de Fos tinha mais hipóteses de ser ouvida. O jovem quis seguir o Rei, que encerrara a sessão, até aos seus aposentos, mas encontrou diante de si Godofredo de Sergines que, desde o drama de Mansurah, velava de perto pela real pessoa.
- O Rei não quer ser incomodado!
- Se ele foi rezar, posso esperá-lo à porta da capela?
- Não, não, é impossível. Ele não está na capela.
- Então, para onde foi? Peço-vos, messire de Sergines, o que tenho para lhe dizer é muito importante!
- - Para quem? Para o reino... ou para vós?
- Para os dois, talvez. Quero pedir-lhe autorização para ir...
- A parte nenhuma! Ninguém pode sair de Acra nos dias mais próximos, seja sob que pretexto for. Enquanto não chegar o contingente prometido pelo príncipe de Morée, nenhum dos defensores eventuais da cidade pode afastar-se. O Rei acaba de decidir que aqueles que querem regressar ao Ocidente podem fazê-lo, o que acontecerá rapidamente. Assim, arriscamo-nos a ficar com poucos braços. Devo lembrar-vos que sois escudeiro do Rei?
Perante a confusão do jovem cavaleiro, Sergines sorriu:
- O nosso sire tratará mais tarde dos assuntos privados. Por agora, precisa de um pouco de repouso depois da sessão a que acabámos de assistir.
- E como a oração é o seu melhor repouso, talvez não esteja na capela, mas está a rezar.
- Não. Foi ter com a Rainha... Achais que ele não tem direito a um pouco de doçura de vez em quando?
O sorriso de Sergines sugeria mais do que dizia e Renaud corou. Sentindo-se, subitamente, muito infeliz e não sabendo o que fazer da sua pessoa, girou nos calcanhares e foi até ao porto para tentar expulsar as imagens torturantes que lhe vinham cada vez que imaginava Margarida nos braços do marido. O jovem reprovava-as a si próprio como outros tantos crimes de lesa-majestade, não por causa da audácia das suas evocações do corpo da jovem, mas por causa do ódio, nascido da sua frustração, que sentia pelo homem de carne e osso, ao passo que o Rei, o cristão, o futuro santo, lhe inspirava tanta admiração.
Ao passar diante da igreja de São Miguel, entrou com a vaga esperança de encontrar Sancie. Sentia, de repente, a necessidade de falar com ela para poder, pelo menos, falar daquela que amava. Era mais fácil com a jovem do que com Hersende, cujo olhar penetrante tinha o condão de tornar o seu transparente. Mas a hora era tardia. No entanto, rezou o melhor que podia e sabia diante do altar onde ardia a pequena chama encarnada representando a presença do Sacrário, sem obter senão um vago conforto. Regressou, então, ao seu alojamento, fechou os ouvidos às perpétuas recriminações de Joinville e fechou-se no seu quarto na companhia de um jarro de vinho, que esvaziou até à última gota na esperança de encontrar o esquecimento. O que lhe valeu um sono agitado e uma terrível dor de cabeça no dia seguinte, ocasião em que teve pouco tempo para se preparar: o Rei ia visitar as cidades da costa a norte de Acra - Tiro, Sídon e Beirute - para examinar o estado das suas muralhas e das suas defesas. Todos os seus cavaleiros deviam ser com ele.
No dia seguinte ao regresso - três semanas mais tarde - receberam uma notícia inquietante: a dama de Valcroze desaparecera sem que ninguém soubesse o que lhe acontecera...
O BRASEIRO
Não a procuraram de imediato. A Rainha era a primeira a saber que a sua dama-de-honor era fantasiosa, curiosa, espontânea e muito capaz de ter ficado algures sem se dar conta das horas, tendo sido apanhada pelas portas fechadas. Mas quando, nascido o dia, viram regressar a pé, extenuada, cheia de poeira, inquieta e muito furiosa, a sua dama-de-companhia Honorine, o palácio ficou em alvoroço quando ela abriu a boca depois de ter bebido uma generosa taça de aguardente para se recompor.
Na véspera, a dama Sancie recebera uma carta pedindo-lhe que depois do meio-dia e fazendo de conta que ia dar um passeio, fosse a uma pequena capela construída no fim do último século em Tell el-Fukhar, no local onde, durante o grande cerco, tinham estado montadas a tenda e os estandartes amarelos de Saladino. A carta não tinha assinatura senão uma simples maiúscula que podia ser um R e o misterioso correspondente insistia na discrição que era necessária porque se tratava de um perigo que dizia respeito à Rainha.
- A dama Sancie pediu umas mulas e partimos antes das Nonas (1). Estava calor, mas a brisa vinda do mar, que soprou durante o dia, tornou o passeio agradável e chegámos, sem grande pressa, ao oratório no topo da colina. É um sítio agradável, onde a vista é muito bonita...
(1) Mais ou menos três horas da tarde.
- A vista importa pouco - cortou Margarida, perante a qual Honorine fora levada. - Ide, por favor, ao principal!
- Já vou, Madame, já vou... Mas é que estou tão perturbada - choramingou ela. - Talvez uma gota de vinho me ajude?
Hersende deitou-lhe um pouco na taça, a mulher devorou-o com um ar desiludido e, por fim, continuou:
- Quando lá chegámos, vimos um cavalo preso a um dos ciprestes que rodeiam a capela. Descemos e eu prendi as mulas perto do cavalo, enquanto a minha dama entrava no oratório. Por discrição, mantive-me um pouco afastada para... olhar para a paisagem - acrescentou virtuosamente Honorine com um olhar inquieto na direcção da Rainha. - O que fez com que não ouvisse nada. Aliás, não fiquei ali muito tempo: apareceu na soleira um homem que me fez sinal para o seguir...
- Um homem? Que homem? - perguntou Margarida com impaciência.
- Por minha fé... não sei! Um homem não muito novo, vestido de couro como os nossos escudeiros, mas sem armadura por cima da cota... Era dos nossos, em todo o caso, e eu entrei sem desconfiar. Depois... não me lembro de nada, salvo que recebi um golpe na cabeça...
- E não ouvistes nada, não vistes nada?
- Por minha fé, não. Estava escuro lá dentro e depois da luz do Sol estava meio cega... Quando acordei, tinha um gosto amargo na boca, tinha caído a noite e não havia viv'alma. Tinha desaparecido tudo: a dama Sancie, as mulas, o cavalo e o desconhecido... Estava só! - gritou ela subitamente, revivendo o perigo a que estivera exposta. - Chamei, procurei... Ninguém me respondeu... Comecei a ter frio e sabia que as portas da cidade se fechariam. Então refugiei-me na capela para tentar dormir; mas, ao menor ruído, assustava-me e não consegui conciliar o sono. Quando o dia nasceu, vim-me embora...
Tendo esvaziado o saco, a rapariga desatou a soluçar de tal modo que a Rainha, preocupada, indicou com um gesto que a levassem. A velha Adèle encarregou-se dela sem se esquecer de levar com ela o vinho.
- Quando beber mais um pouco, talvez adormeça - disse ela à guisa de comentário.
Margarida, que acabava de fazer a sua toilette, pediu às damas presentes - incluindo Elvira de Fos - que se retirassem para poder falar a sós com Hersende.
- Sancie foi raptada, porque não há outro termo para explicar a situação - disse ela, agitada, dando assim livre curso à sua inquietação. - Mas por quem e com que objectivo? Se se trata de uma história de amor, não vejo razão para tanto mistério. Ela é uma mulher livre.
- Não acredito! Lembrai-vos, Madame, que a carta que a atraiu falava de uma ameaça para a vossa pessoa... É pena não podermos ter acesso a essa mensagem.
- Pediram-lhe que a queimasse. Não importa, não vejo o que poderíamos ter descoberto: suponho que a pobre Honorine relatou fielmente o conteúdo. Resta, evidentemente, a assinatura...
-... que se parece com um R? Reparei nisso e pergunto a mim própria se essa inicial não designará o cavaleiro de Courtenay?
A Rainha pareceu, subitamente, profundamente chocada. A jovem corou, empalideceu e depois recomeçou a deambular pelo quarto enquanto a médica prosseguia:
- A dama Sancie pensou, certamente, que a mensagem era dele, porque o conhece bem. Ela sabe a que ponto a... felicidade da Rainha é cara a messire Renaud. Que dizer, então, da sua segurança? - Achais... achais que sim?
- Estou persuadida, Madame - murmurou Hersende, que não pôde deixar de constatar que a tez delicada da jovem corava de novo quando acrescentou: - Mais vale dizer as coisas como elas são. Não há razão para vos sentirdes ofendida: o cavaleiro ama-vos e creio que desde o primeiro dia em que vos viu. E a dama Sancie sabe-o.
- Ela sabe-o, dizeis? Meu Deus! Mas, por que veio ela ter comigo? Ela deve odiar-me!
- Não. Ela também vos ama. De outra maneira, é evidente. E como o seu aspecto nunca lhe permitiu ter esperança de ser correspondida, decidiu amá-lo através de vós, ajudá-lo, talvez, a sofrer menos, já que a Rainha não pode olhar com amor para outro homem que não seja o seu marido. Margarida virou-se e baixou a cabeça.
- Uma Rainha é uma mulher como outra qualquer, Her-sende! - murmurou ela. - E quando o seu marido ama demasiado a Deus, não oferecendo à sua mulher senão impulsos sacra-lizados com o objectivo de procriar, passa a ser a simples satisfação de uma necessidade, como beber ou comer. Falta a paixão...
Hersende dobrou um joelho, pegou-lhe na mão e encostou-a à própria testa:
- Eu sei, Madame... e admiro-vos por isso. Se falei foi para que ficásseis a saber o valor de ambos. Dito isto, não achais que seria bom ouvir messire Renaud? Talvez ele saiba qualquer coisa?
- Sem dúvida. Vou mandá-lo buscar imediatamente!
Alguns minutos mais tarde, o velho sire d'Escayrac, cuja devoção à Rainha recompensara com a ligação permanente à sua pessoa, encaminhava-se na direcção da casa perto da igreja de São Miguel... arrastando um pouco os pés depois de se ter feito um pouco rogado. Imprevisivelmente, o velho fidalgo encarregado de velar pelo ventre de Margarida, apaixonara-se - tardiamente, mas com grande ferocidade! - não apenas pelo ventre mas pela totalidade da pessoa da soberana... A ideia de ir buscar, logo de manhãzinha, o mais jovem, mas não o mais feio dos escudeiros do Rei, era-lhe tão penoso que tentou discutir: - Não seria melhor, Madame, prevenir primeiro o nosso sire da infelicidade da dama de Valcroze? É a ele, parece-me, que pertence interrogar o jovem Courtenay...
Infelizmente para ele, Margarida não estava com disposição para controvérsias com um homem que nunca discutira as suas ordens.
- Que mosca vos mordeu, sire Bernardo? A dama de Valcroze é minha afilhada, desapareceu depois de ter recebido uma mensagem confusa na qual sou posta em causa e eu devia, segundo vós, ir perguntar, primeiro, ao Rei meu marido o que ele pensa? Se tivesse agido assim em Damiette, onde estaríamos agora?
- Eu sei, Madame, eu sei, mas... as conveniências...
- Quais conveniências? - gritou Margarida fora de si. - Recordo-vos que hoje é sexta-feira e que todas as sextas-feiras que Deus faz o Rei reza, jejua, faz penitência e gosta que o deixem em paz! E agora, se não quereis ir, dizei sem demora: enviarei a dama de Montfort ou a de Sergines, o que será ainda mais conveniente, já que se trata de um alojamento exclusivamente masculino...
Escayrac não esperava desencadear uma tempestade daquelas. O cavaleiro resignou-se, mastigou algumas palavras de desculpa ininteligíveis e saiu tão depressa quanto lhe permitia o seu reumatismo, mas a desconfiança que lhe inspirava o demasiado sedutor Renaud transformara-se numa sólida aversão.
Quando regressou, vinha descontraído e quase sorridente. Era verdade que não trazia Renaud, mas sim Joinville, este muito contente por poder encontrar-se com a Rainha. Os dois homens encontraram-na no pátio florido com loureiros e roseiras que dava para os seus aposentos. A jovem Rainha passeava-se com o pequeno João Tristão nos braços e este agitava os bracitos e pairava, o que a fazia sorrir. O quadro que ela compunha com o bebé era encantador sem que a Rainha disso tivesse consciência. Assim, as duas figuras de ar beatífico que viu subitamente na sua frente só lhe aumentaram o mau humor:
- Messire de Joinville? É muito amável da vossa parte virdes visitar-me, mas não vos esperava. Eu pensava, sire Bernardo, que me tínheis compreendido...
- Sim, sim, Madame! - apressou-se a dizer o interpelado, radiante. - Eu não me enganei na pessoa. Simplesmente, messire de Courtenay não estava nos alojamentos e messire de Joinville propôs-se vir explicar-vos...
- O quê? - perguntou Margarida, exasperada. - Onde está o cavaleiro de Courtenay?
Joinville deu dois passos em frente e saudou uma segunda vez:
- Partiu, Madame. Esta manhã, cedo, assim que as portas se abriram, recebeu uma mensagem. Mandou selar o cavalo e partiu.
- Que mensagem? E partiu para onde?
- Ignoro, Madame. Ele não me disse nada. Armou-se, ordenou ao seu escudeiro que lhe preparasse alguma bagagem e juntou-se ao mensageiro que o esperava.
- O seu escudeiro seguiu-o, naturalmente?
- Não, Madame. O bilhete, pelo que sei, dizia para ir sozinho... Margarida calou-se. A Rainha não gostava nada do rumo que estavam a tomar os acontecimentos daquela manhã. Eis que à inquietação sentida por Sancie se seguia uma outra que lhe apertava o coração de uma forma bizarra. Ao mesmo tempo, algo lhe dizia ao ouvido que os dois desaparecimentos estavam ligados, que o segundo resultava do primeiro e que nenhum deles augurava nada de bom. Os dois homens olhavam para ela sem dizer palavra. Finalmente, Margarida virou-se para Joinville:
- Ele, ao menos, pediu-vos que prevenísseis o Rei da sua ausência? Ou ele ignora que as nossas leis o proíbem de se afastar sem autorização do seu suserano?
A sua voz tremia com uma nova cólera e a Rainha dava-lhe livre curso. Era a melhor maneira de esconder a angústia que sentia.
- Sim, Madame. Antes de partir, ele suplicou-me que lhe pedisse perdão, acrescentando que se tratava de uma questão de honra...
- Nesse caso, ide dizer-lho, e eu acompanho-vos. Seremos apenas dois a interromper-lhe as devoções!
Renaud, esse, já ia longe.
Tal como o dissera Joinville, recebera um bilhete de madrugada, levado por um daqueles garotos mais ou menos vagabundos que pareciam nascer espontaneamente da poeira das cidades orientais. Aquele estava decentemente vestido e, entregue a mensagem, sentara-se na soleira de uma tenda ainda fechada, dizendo: “Eu espero!”
Renaud pareceu ficar horrorizado com o que leu. Em poucas palavras, aquele que lhe enviara a mensagem dizia-lhe que a dama de Valcroze acabava de ser raptada por um “emir em quem ela acordara a paixão” e que, se ele queria evitar que ela desaparecesse para sempre num harém longínquo, devia lançar-se em seu socorro, seguindo o jovem mensageiro encarregado de o levar àquele que lhe daria os meios para a salvar. Mas, sobretudo, devia ir só e não falar a ninguém do conteúdo da carta. Carta essa que devia destruir!
Pensativo, o jovem amarfanhou o bilhete entre os dedos, como se procurasse extrair-lhe qualquer informação suplementar. Que história estranha! Sancie raptada? Sancie “acordara a paixão num emir”? Quem a teria visto e quando? O termo paixão, sobretudo, chocava-o porque não imaginava à primeira vista que o seu “gentil camafeu” fosse daquelas belezas fulminantes que provocam catástrofes por onde passam. Devia haver ali outra coisa qualquer... mas o quê? Enquanto reflectia, a mensagem caíra-lhe das mãos, mas ele só se apercebeu disso quando Pernon - que a tinha apanhado - disse:
- Ouvi dizer que os Sarracenos são sensíveis aos cabelos ruivos de algumas mulheres...
- E achas que será verdade?
- Por que não? Ela não é bonita, mas eu acho-a... melhor do que isso...
- Ah sim?
- Estais mesmo ceguinho pela Rainha! É verdade que, ao pé dela, quase todas as mulheres são insignificantes, mas esta não. Resta saber - acrescentou ele num tom diferente - se o seu destino vos interessa e, aliás, não compreendo por que razão vos chamaram a vós. A menos que seja para vos afastar de Acra: uma armadilha, portanto?
- Talvez, mas tenho de ir! Vai selar o meu cavalo e prepara-me um saco...
- Também me vou preparar...
- Tu sabes ler, não? Devo ir sozinho. E queima esse bilhete!
De repente, Renaud tornou-se febril. Que uma parte da mensagem fosse falsa, era possível, mas uma coisa era certa: Sancie fora raptada e isso era intolerável. O porquê, sabê-lo-ia mais tarde! No espaço de dez minutos estava pronto e depois de ter encarregado um Joinville meio a dormir de lhe obter o perdão do Rei, foi ter com o garoto...
Com o cavalo pela brida, seguiu-o primeiro até à porta da Galileia, que transpuseram no meio de um aglomerado de gente feito de mendigos e de camponeses que levavam os seus produtos ao mercado. Para lá, o caminho rumava a leste através das doces colinas que a manhã envolvia numa bruma ligeira anunciadora de calor. Na berma desse caminho estava um cavaleiro, para o qual o pequeno mensageiro dirigiu Renaud depois de lhe fazer sinal para subir para a sela. O homem tinha na cabeça uma espécie de turbante e vestia uma túnica com placas de ferro e umas bragas amplas, podendo pensar-se que pertencia ao séquito de algum senhor local sírio, libanês, ou outro.
- És o meu guia? - perguntou Courtenay.
Sem responder, o homem inclinou-se no alto da sua montada, apontando com o braço para o caminho que se estendia na sua frente. E também não respondeu quando lhe perguntaram para onde iam, contentando-se em meter o seu cavalo a trote e depois a galope sem sequer se virar, mas Renaud esporeou o seu e juntou-se a ele sem dificuldade.
O jovem ignorava que Basile, acordado quando o julgavam a dormir, vira o seu encontro com o desconhecido. O pequeno procurou aproximar-se para ouvir o que diziam, mas não conseguiu. No espaço de alguns segundos, os dois cavaleiros desapareciam da sua vista. O petiz deu alguns passos com o coração apertado e viu a nuvem de poeira provocada pelos cascos dos cavalos elevar-se e depois desaparecer... Não tinha qualquer meio de saber para onde levavam o homem que mais admirava no mundo...
Mas mais alguém observava. Acocorado na erva rala da berma do caminho, o jovem que levara a carta entregava-se às alegrias do dever cumprido trincando uma maçã que tirara do interior da túnica. Basile decidiu ocupar-se dele...
Não continuaram durante muito tempo a galope, apenas o necessário para atravessarem a rica planície de campos férteis e de olivais cortados por regatos e ribeiras que corriam entre Acra e a Galileia. Árvores frutíferas, amendoeiras e vinhedos diversificavam as culturas e Renaud teria apreciado o encanto daquela paisagem se não estivesse tão preocupado com o destino misterioso para onde o levavam e, sobretudo, com a sorte de Sancie e como poderia evitar que fosse parar a um harém. A ideia era-lhe insuportável porque conhecia suficientemente a jovem para saber que não se submeteria às exigências de um senhor muçulmano, podendo assim assinar a sua sentença de morte.
Quando chegaram aos primeiros contrafortes da montanha, o calor era tão grande que o guia parou sob um conjunto de palmeiras onde havia um poço e uma pequena construção com uma clarabóia, à sombra da qual mandou Renaud sentar-se depois de ambos e os cavalos terem bebido. O cavaleiro quis protestar: Seria oportuno perder um tempo precioso quando era preciso socorrer uma nobre dama em perigo? Mas o outro - que devia ser mudo, mas que não era surdo! - fez um gesto apaziguador com a mão, apontou para o fulgor de um sol cuja forma, a não ser que se quisesse ficar cego, não se podia distinguir, teve um largo sorriso e ofereceu ao seu companheiro forçado um pouco de queijo e umas tâmaras. Finalmente, deitou-se no chão, virou as costas a Renaud e adormeceu tranquilamente.
Estupefacto, este observou-o por um momento com vontade de o abanar e obrigar, ameaçando-o com a sua espada, a retomar a jornada; mas, a despeito da frescura do abrigo, estava encharcado em suor e uma olhadela aos cavalos, também eles à sombra, fê-lo compreender que com uma tal temperatura o seu guia devia ter razão porque conhecia o país e o seu modo de vida, ao passo que ele acabava de desembarcar e ignorava tudo.
O cavaleiro resignou-se e estendeu-se também por terra, mas não adormeceu. Na sua cabeça atropelavam-se demasiados pensamentos. Quem seria aquele homem e, sobretudo, quem o enviara? Para estar ao corrente das “paixões” de um emir, era preciso ser do seu círculo imediato. Além disso, como Renaud ignorava a geografia daquele país, exceptuando o que soubera através do manuscrito, não sabia onde acabava o reino franco, onde começavam as terras muçulmanas e a que distância se encontrava Damasco, Alepo e as outras cidades cuja nobreza militar era formada pelos emires. Segundo ele, Sancie só podia ter ido para uma delas... Quanto ao guia, Renaud perguntou a si próprio se não pertenceria ao pessoal do Templo. Toda a gente sabia, entre os cruzados, que eles tinham uma política muito própria, que mantinham com o Islão relações não tão secretas como isso visto que as pessoas estavam a par e porque o Rei, aliás, também sabia qualquer coisa: bastava recordar a sua cólera quando, em Chipre e, ali mesmo, os templários lhe tinham falado de eventuais acordos. O facto de estarem ao corrente do rapto de uma dama franca e cristã por parte de um emir infiel era estranho. Sobretudo se não reagiam!
A força de tanta cogitação, Renaud acabou por adormecer e quando, sacudido pelo seu companheiro, abriu os olhos, viu que o dia caminhava para o seu fim e que a paisagem se tornara cor de malva. Alguns minutos mais tarde, já restabelecidos e dessentados, eles e os cavalos, partiram na direcção das sombras cada vez mais densas das montanhas...
Cavalgaram toda a noite. Uma bela noite clara, cintilante de estrelas mais numerosas e maiores do que no Ocidente, compondo no céu um guarda-jóias fabuloso, com o qual nenhuma Rainha se atreveria a sonhar. As montanhas, de cumes nus, desenhavam-se perfeitamente e apesar de o caminho não poder ser percorrido a galope, não era difícil. Ao nascer do Sol, as paredes afastaram-se para deixarem ver uma pequena aldeia erguida no flanco de um monte chamado Canãa. Um poderoso castelo dominava-a com as suas muralhas vertiginosas, no topo das quais flutuava o estandarte negro e branco do Templo. Subitamente, Renaud soube onde estava:
- Safed? - perguntou ele, apontando para a fortaleza.
O homem inclinou a cabeça com um meio sorriso. Era efectivamente Safed e Renaud abençoou o céu por estar tão próximo, sem que tivesse de andar à procura, dos Cornos de Hattin, de tão dolorosa memória, aos pés dos quais estava enterrada a Cruz do Santo Sepulcro, de Balduíno e de Thibaut. Instintivamente, o jovem procurou a direcção sul. Além disso, e como Roncelin de Fos estava em Safed, ia, enfim, poder ajustar contas com ele longe dos olhares e ouvidos sensíveis do seu santo Rei...
No entanto, em vez de penetrarem na cidade cujas ruelas percorriam o flanco da montanha, o guia virou à direita na direcção de uma alameda bordejada de acácias e pistacheiros cuja folhagem densa engoliu os dois cavaleiros, mas que virava as costas a Safed:
- Não entramos no castelo? - perguntou Renaud de sobrancelhas franzidas, virando-se na sela.
O desconhecido fez sinal que não e, com a mão, indicou que era preciso prosseguir. Regressaram às montanhas, mas dessa vez em direcção a sul... Ao cabo de uma meia hora, o guia parou, pôs pé em terra, prendeu o seu cavalo e fez sinal ao seu companheiro para o imitar. Havia ali uma vereda meio coberta de mato que subia até uma falha no rochedo, por onde o turcopole (1) meteu sem hesitar. Renaud imitou-o e viu-se numa caverna que, depois da luz do dia, lhe pareceu obscura, mas no fundo da qual os seus olhos, já habituados, distinguiram, nas paredes cinzentas, uma luz difundida por um archote. Sem esperar que o convidassem mas com a mão no punho da espada, dirigiu-se para ela.
Ao ouvir o som dos seus passos, uma forma negra cresceu na muralha iluminada e deteve-se. Avançando sempre, Renaud desembainhou a espada. A vida que levara até ali desenvolvera nele o sentido do perigo. O seu nariz cheirava-o, como se fosse um cão. Apesar de, até ao momento, o terem tratado correctamente, algo lhe dizia que nada de bom lhe viria daquela sombra imóvel. Chegado ao ângulo da gruta, o jovem parou por um momento e depois virou-se bruscamente. Na sua frente estava um homem de grande estatura encostado a uma mesa sobre a qual estava um candelabro, o que o colocava em contra-luz; no entanto, Renaud reconheceu-o de imediato, mais pelo furor que lhe incendiou o coração do que pela túnica branca com a cruz vermelha por cima do lorigão cujo aço brilhava. Era Roncelin de Fos. E se este contava com o efeito da surpresa, enganou-se: assim que viu Safed, Renaud sentiu que ia, enfim, conhecê-lo. Com desdém, disse-lhe:
- Tantas precauções para um frente-a-frente que procuro há tantos dias! Quanto a mim, teria sido mais simples encontrarmo-nos numa liça, e pedi ao vosso marechal que vos contactasse nesse sentido, mas como isto se parece mais com uma
(1) Os Turcopoles eram solados auxiliares convertidos.
armadilha, tem a vossa preferência. Assim seja! Puxai da espada que vejo no vosso flanco e batamo-nos!
- Não estamos aqui para isso, franganote, estamos aqui para tratar de um assunto importante. Ou já vos esquecestes do teor da mensagem que recebestes?
- O rapto da dama de Valcroze? Até vos ver, pensei que fosse, mas agora acho que se tratou apenas de um chamariz para me trazer aqui. Pelo que me alegro. Mas basta de conversa: batamo-nos!
- Um chamariz? Achais?... Bem, vinde ver!
Roncelin pegou num dos archotes colocados em cima da mesa, acendeu-o no candelabro e precedeu Renaud nas profundezas da gruta até uma distância de alguns passos. Então, o templário levantou o braço:
- Olhai! - disse ele.
E Renaud viu, deitada numa cama de palha, Sancie de pés e mãos atados, com o seu belo vestido verde por baixo de uma pelica debruada com um galão dourado com que a vira antes. Se estava aterrorizada, não parecia. Apenas os seus olhos dilatados falavam por ela e Renaud nunca imaginara que fossem tão grandes: dois lagos marinhos de uma profundidade insondável, de onde correu uma lágrima quando ela o reconheceu. No entanto, a jovem não disse nada. Não podia: tinham-lhe tapado a boca com o próprio véu.
- Meu Deus! - exclamou Renaud. - Fostes vós que a raptastes? Tivestes o atrevimento?
O cavaleiro quis lançar-se para ela para a libertar, mas Roncelin estendeu um braço e o archote barrou-lhe a passagem de tal modo que quase pegou fogo ao tecido sedoso da cota de armas, que exalou um ligeiro odor a chamuscado:
- Atrever-me-ia a muito mais pela glória do Templo! Esta mulher não passa, assim como vós, de uma pequena peça do meu tabuleiro na partida que estou a jogar contra Luís de França e os seus!
- Tendes grandes ambições, amigo! - troçou Renaud. - O Rei de França teria ofendido sire... - o jovem fez de conta que estava a tentar lembrar-se do nome - Roncelin?... É isso? Uma ilustre personagem, de facto! E de que se queixa ele?
- Dir-vo-lo-ei mais tarde. Quando achar que é adequado! Ou talvez não... Por agora, falemos de outra coisa. Da razão, por exemplo, que levou esta bela dama a estar onde a vedes.
- O facto de vos terdes servido dela é infame, mas, no fim de contas, prefiro vê-la aqui do que a caminho do harém de um emir qualquer... Basta-me libertá-la depois de vos matar.
Rápido como um relâmpago, Renaud, servindo-se da espada como se fosse uma lança, atirou-se a Roncelin e tê-lo-ia trespassado se o outro não tivesse, naquele instante preciso, passado o peso do corpo de um pé para o outro, salvo pelo instinto mais do que pela vontade; mas o seu agressor não teve tempo de fazer volte-face para o atacar de novo. Saídos da escuridão, quatro servidores apoderaram-se dele e desarmaram-no apesar da furiosa defesa que lhes opôs. Alguns segundos mais tarde, com as mãos atadas atrás das costas, era levado para junto da mesa onde o seu inimigo se foi sentar:
- Tomas-me por um imbecil? - suspirou este. - Devias saber que, se te deixei com a espada, foi porque tinha tomado as minhas precauções. Mas chega de conversa inútil e vamos a assuntos sérios! Como deves calcular, se me dei a tanto cuidado foi porque tinha uma razão precisa. Os Templários não têm por vocação raptar mulheres, salvo se elas lhes puderem ser úteis. E esta vai-me servir de moeda de troca.
- Contra quê? - Contra a Verdadeira Cruz! Só tu sabes onde ela está enterrada.
Renaud permaneceu silencioso, procurando compreender onde entrava a Cruz naquela história.
- Em que vos baseais para dizer isso? - murmurou ele.
- No manuscrito, ora essa! No manuscrito de Thibaut de Courtenay, que encontrei - e li! - na comendadoria de Joigny. Fui lá para vasculhar os arquivos e para ver o que tinha deixado, ao morrer, a velha raposa que era Adam Pellicorne.
- Devíeis saber melhor do que eu que os Templários, como não possuem nada, não podem deixar nada quando morrem...
- Eu sei, mas, no entanto, o irmão Adam possuía o maior tesouro da Ordem, porque foi ele que o levou daqui, da Terra Santa: as Tábuas da Lei, escritas pela mão de Deus e que não estavam na Arca da Aliança quando Hugo de Paynz e os seus pobres cavaleiros a levaram para França. Ninguém sabe onde está a Arca, neste momento, e eu esperava encontrar uma pista, qualquer coisa escrita. Mas ele não deixou nada, nada! - acentuou Roncelin, com raiva.
- E mais ninguém sabe nada? - perguntou Renaud, apanhado contra a sua vontade por aquela história que o voltava a mergulhar no manuscrito. - O irmão Adam não podia ter escondido sozinho uma peça tão importante e, além disso, o segredo deve ter sido confiado a alguém! O Grão-Mestre...
- O Grão-Mestre? Mas o Grão-Mestre era ele, Adam Pellicorne, pobre idiota! O Grão-Mestre oculto, quero dizer, aquele que não presta contas a ninguém, nem sequer ao Papa! Era o que eu queria descobrir, mas o manuscrito do irmão Thibaut disse-me outra coisa: que antes de morrer na fornalha de Hattin, o marechal do Templo ordenou que se enterrasse a Cruz num local apenas conhecido por dois templários. Um deles foi morto no dia seguinte, mas o outro sobreviveu e o segredo com ele. O manuscrito é formal nesse ponto! - acrescentou Roncelin, agitando no ar um dedo magro, ficando, assim, com a aparência de um profeta louco. - Simplesmente... faltam páginas ao manuscrito!
- ... e eram essas as páginas que procuravas na Torre esquecida, miserável! - grunhiu Renaud, que acabava de compreender tudo. - E até as foste procurar ao túmulo, que não tiveste pejo de profanar...
Fos encolheu os ombros, ao mesmo tempo que o seu olhar se apagava e recuperava o tom sinistramente cinzento:
Os mortos estão mortos e uma simples visita não os atormenta. Se foste lá, pudeste constatar que fui muito cuidadoso.
- E, por isso, devo estar-te agradecido, não? - perguntou Renaud, quase enjoado. - Quem viola um túmulo merece a fogueira!
- Ah! As grandes palavras! Baixa um pouco o teu cacarejo, meu franganote, porque és tu que me vais dizer o que estava escrito nas folhas que faltavam.
- Era muito vago! Ao ponto de não me lembrar...
- A sério? E imaginas que acredito em ti?
- Por que não? A memória é frágil. O irmão Thibaut transcreveu mais homenagens à Cruz do que pormenores respeitantes ao local... que talvez tenha sido vasculhado depois. O drama de Hattin tem quase setenta e cinco anos... Até pode ser que a Cruz tenha sido encontrada...
Bruscamente, Fos perdeu o sangue-frio, aproximando o rosto do do seu prisioneiro, ao ponto de o fazer sentir um hálito que cheirava a alho:
- E eu digo-te que não! E eu digo-te que me vais levar lá, já que não é assim tão longe e que me vais mostrar o local e que vais cavar, cavar até ficares sem pele nas mãos, se for preciso, e que a vais encontrar! Senão...
- Senão? - perguntou Renaud, virando a cabeça com uma careta.
- Senão a tua amiga - sois amigos, não é verdade, ou mais ainda, talvez? - irá para Damasco, a grande, a silenciosa, a branca, para dar prazer ao Malik (1) al-Nasir Yussuf, neto de Saladino - o que é qualquer coisa, tens de admitir...
- Entregar uma dama nobre a um infiel! É um crime sem perdão.
- Pobre inocente! Muitas dessas cristãs, como dizes, entregaram-se de livre vontade. E se falássemos da tua mãe?
Foi preciso que os guardas agarrassem de novo Renaud que, atado como estava, quis dar uma cabeçada no seu inimigo...
- Miserável! Hás-de arder no inferno para toda a eternidade! Onde estão os teus votos de cavalaria?
- Acabas de empregar a palavra certa: arder! Arderam, os meus votos, no dia infeliz em que, sob o céu de Deus, os homens de armas desse Rei de França cujo povo venera a pretensa santidade, atiraram mais de duzentos homens, mulheres e velhos, para o fosso abrasador aberto no flanco de Montségur! Ouve-me bem, Renaud de Courtenay! Entre os cátaros queimados, estava a esposa
(1) Rei.
do castelão, Corba de Perella, mas também, e sobretudo, a filha, Esclarmonde... um anjo de graça, de beleza, de doçura... Tinha dezasseis anos... e eu amava-a! Vi-a ser precipitada no fogo e jurei, mesmo sabendo que perco a minha alma, fazer chorar lágrimas de sangue a Luís de França, e destruir tudo o que lhe é mais querido nesta vida...
Atordoado, quase fulminado, Renaud olhava, com um horror onde se misturava uma estranha piedade, para aquele homem que transpirava ódio, mas também um desespero que tinha qualquer coisa de pungente... Para o tentar acalmar e na esperança de fazer com que poupaèse Sancie, o jovem pensou que seria bom fazê-lo falar e perguntou:
-Já éreis templário, nessa época?
- Nessa época? Não foi assim há tanto tempo. Aquela abominação foi perpetrada fez seis anos no passado mês de Março. No décimo sexto dia do mês...
No dia em que eu parti para Paris, pensou Renaud, para quem a data representava uma esperança tão grande que a tinha guardado na memória. Em voz alta, continuou:
- Havia, no entanto, conventos do Templo naquele país de língua oc, onde foi combatida a heresia?
- Havia, até, muitos. A Ordem estava bem implantada nas terras do conde de Foix, de Toulouse e dos viscondes Trencavel. Os pretensos heréticos nunca nos fizeram mal, antes pelo contrário. A sua fé era bela e pura, a sua vida exemplar, e nós tínhamos aprendido a conhecê-los... Por causa de um tio que me precedeu, eu pertencia, há dois anos, à comendadoria de Foix, onde estudava com assiduidade quando começou o interminável cerco de Montségur, onde me vi bloqueado nos últimos meses em circunstâncias que não te dizem respeito. Foi então que vi Esclarmonde. Por ela, por um dos seus sorrisos, estava pronto a abandonar tudo, a renegar a tudo... e fui dos que ajudou a sair do castelo, antes do assalto final, aquilo que, para os cátaros, era o seu maior tesouro: os seus escritos, os seus livros santos, a expressão da sua fé... Eu não tinha medo por Esclarmonde porque, quando parti, ela não pertencia ao catarismo. Nem o seu pai, Raimundo, ou a sua irmã. Apenas a mãe se tornara naquilo a que chamavam uma “perfeita” e eu soube, mais tarde, que foi durante a última noite que Corba de Perella conseguiu convencer a filha mais nova a receber o consolamentum, o seu único sacramento, preservando assim a sua pureza para sempre ao levá-lo para a morte. E do alto das muralhas do seu castelo, Raimundo de Perella, com a sua filha e o genro Gerard de Mirepoix, viram descer agrilhoadas, pela vereda no extremo da qual se abria a goela incandescente da fogueira, a mãe apoiando a filha que coxeava um pouco - oh! Tão-pouco! E eu também as vi... aliás...
Subitamente, o templário calou-se, agitou-se como se acabasse de sair de um pesadelo e passou a mão pela fronte, mas a sua voz, essa, não tremeu quando grunhiu:
- Por que te estou a dizer isto tudo? Como se pudesses compreender...
- Talvez. O que me surpreende é descobrir que és capaz de amar. Só que, geralmente, o amor é que ganha. Na condição de ser partilhado, evidentemente... E aquela jovem não devia amar-te!
- Que sabes tu?
- Escolher, tão nova, uma morte tão terrível! O amor feliz não aceita sacrificar-se com facilidade.
- No entanto, ela amava-me... espiritualmente! A carne repugnava-lhe.
- Eu tu, querias a dela? Creio que já percebi... Ela preferiu morrer para não sucumbir... É belo... mas não é razão para odiar a terra inteira!
- Não a terra inteira! Odeio menos os devassos que acenderam o fogo do que aquele que o ordenou! Desse, jurei vingar-me sobre as cinzas ainda quentes que o vento me atirava ao rosto. É por isso que quero essa Cruz, que ele gostaria, ele, tão grande, tão orgulhoso, de levar para todo o lado e que pensa, sem dúvida, vir aqui buscar com grande pompa!
- Ele ignora esse segredo... Apenas o conde d'Artois estava a par dele.
- Senão já estaria aqui de pés nus e a chorar lágrimas quentes, escavando ele mesmo o solo? Bem, não terá esse trabalho. Chega de conversa! Vamos alimentar-te para que tenhas forças e, quando o dia acabar, partiremos para os Cornos de Hattin...
Talvez para não se sentir tentado a falar mais, o cavaleiro templário lançou algumas ordens guturais e saiu, deixando os seus homens a alimentar o prisioneiro; após o que o sentaram encostado à parede e o ligaram a um anel de ferro, mas era uma precaução supérflua, porque mal acabou de mastigar o guisado de favas que lhe deram à colher, Renaud sentiu-se invadido por uma irresistível vontade de dormir. O jovem teve apenas tempo de perceber que a refeição não era inocente e que lhe tinham misturado uma droga qualquer...
No entanto, quando o acordaram, o seu espírito não estava obstruído por nenhuma bruma. O Sol estava a pôr-se, mais uma vez, e iam partir. Sempre com as mãos atadas atrás das costas, Renaud foi içado para um cavalo que um dos guardas de turbante levava pela brida. Roncelin levava aquele que era montado por uma Sancie fortemente velada, mas cujas mãos, atadas na frente, podiam segurar o arção da sela.
- Por que a levais? - gritou Renaud. - É mesmo necessário infligir-lhe uma fadiga suplementar?
O jovem viu a jovem virar a cabeça para ele sem dizer nada. Supunha que, sob o véu, a mordaça continuava no seu lugar.
- Porque, tendo-a diante de ti, obedecerás melhor às minhas ordens. A sua presença lembrar-te-á o que te espera e que, se não obedeceres...
- Obedecerei... mas, pelo menos, deixa-a respirar! A mordaça, mais o véu, é demasiado!
- Fica descansado! A minha vontade chega para lhe fechar a boca. Ela sabe o que lhe acontece se falar... E aconselho-te, também, a ficares calado. E agora, em frente!
O templário tomou a liderança do pequeno grupo, que se encaminhou para sul. Mergulharam de novo num universo de montanhas altas como outras tantas muralhas em redor do lago de Tiberíades do qual, antes de o dia terminar, Renaud pôde aperceber, por entre dois cumes, um brilho turquesa que escurecia o horizonte. Era uma terra asceta cuja austeridade, contrastando com a cor luxuriante do “mar da Galileia”, atraía, no tempo de Cristo, aqueles que desejavam aproximar-se de Deus. Só se viam rochas nuas e tufos de erva seca cujo odor, aquecido pelo sol, ainda se sentia no ar da noite. Levaram horas a transpor as cinco léguas que separavam Safed do ponto onde Renaud teria de escavar. O jovem empregou-as a explorar a sua memória, tentando extrair dela as indicações que Thibaut lhe confiara antes de morrer e que, evidentemente, não figuravam no seu manuscrito. Ao arrancar duas páginas, Renaud limitara-se a retirar por completo a descrição porque achara que, mesmo assim, continuava a ser demasiado: o casal em ruínas de Marescalcia, e a acácia retorcida, no tronco da qual Thibaut escondera o Selo do Profeta antes de se juntar à corrida desesperada para a morte dos cavaleiros cristãos sob as flechas e as cimitarras dos guerreiros de Saladino... Se o local não mudara muito, estava certo de encontrar, sem grande dificuldade, o túmulo onde tinham enterrado a Verdadeira Cruz...
Após horas de marcha, o jovem soube que tinham chegado e que nada mudara. Os Cornos de Hattin, reconheceu-os sem hesitar: dois picos gémeos enquadrando uma vasta depressão, a cratera de um antigo vulcão. Ali estivera, não o campo, mas o bivaque do exército de Guy de Lusignan, o último Rei de Jerusalém. No crepúsculo do dia 3 de Julho de 1187...
Alta e clara, a Lua iluminava uma paisagem de um outro mundo e Renaud nem sequer precisou de fechar os olhos para imaginar aquele deserto repovoado... O grande exército franco, magnífico com os ricos tecidos das cotas de armas cintilando sobre o ferro cinzento dos lorigões. O jovem ouvia o roçar das malhas de aço, o pisar lento dos cavalos esgotados pelo calor que uma noite de inferno não apagava, e pela falta de água. Não bebiam nada desde as fontes de Sefora, Saladino mandara secar todos os poços, mesmo o do casal de Marescalcia, a última esperança, e cujas muralhas em ruínas Renaud distinguia agora, nitidamente, junto a um vestígio de torre. Mais abaixo, portanto, estava o lago cujas águas os infelizes tinham podido ver cintilar e para as quais se tinham sentido tentados a lançar-se à rédea solta. Mas entre eles e a sua frescura estava o exército de Saladino. E depois o fogo que acresceu ao seu suplício quando o Sultão mandou incendiar o mato da longa encosta que ia dar aos Cornos. Fora necessário esperar até que ele se apagasse para lançar a carga heróica, sublime mas desesperada, dos cavaleiros de Deus contra as flechas e os sabres de Alá...
- Bem, eis-nos chegados - disse Roncelin de Fos, e a sua voz dura passou como uma grosa pelos nervos de Courtenay. - Para que lado devemos, agora, dirigir os nossos passos?
- As ruínas... Havia lá um ponto de água.
- Que está seco, eu sei, e depois?
A Verdadeira Cruz, guardada por cinco cavaleiros do Templo, de pé e com as mãos apoiadas às suas grandes espadas, estava espetada no solo perto do poço.
- Foi lá que a enterraram? Espantar-me-ia muito. Já procurei.
- Nesse caso, porquê a pergunta? Não, não está ali, evidentemente, e só dois templários é que receberam a ordem de a esconder para que não caísse nas mãos do Infiel. Eles juraram nunca revelar o local, nem que fosse sob tortura. Apenas o Rei de Jerusalém, ou o Grão-Mestre do Templo poderiam receber a confidência; o irmão Géraud morreu algumas horas mais tarde...
... e Thibaut de Courtenay arrogou-se o direito de guardar o segredo para ele - troçou Roncelin. - Chegou a hora de tirar a insigne relíquia das garras da terra! Mostra-me o caminho!
- Primeiro, vamos ver as ruínas...
Quando chegaram à vertical da torre, o dia começava a pôr-se, gerando uma certa luz, na qual as coisas pareciam fundir-se numa espécie de monotonia, mas Renaud avistou rapidamente o que procurava e reteve um suspiro de alívio: graças a Deus, a velha acácia, ainda mais torcida, sem dúvida, do que na época, continuava no seu lugar. Erguia-se, só, no meio de uma plataforma que sobressaía na parte de baixo da encosta de um dos Cornos. Renaud virou-se para Roncelin:
- Não é longe - disse ele - mas quando o Sol nascer o calor subirá rapidamente. A dama Sancie já sofreu o suficiente! Tens de a tirar do cavalo e de a estender à sombra daquelas velhas paredes...
A fadiga da jovem era visível. A sua silhueta delgada, sempre tão direita, estava inclinada para a frente. Roncelin pôs pé em terra, foi ter com ela e disse-lhe algumas palavras que Renaud não ouviu. Em seguida, o templário chamou um dos seus homens, que a tomou nos braços para a levar para onde o cavaleiro, que seguia a cena com um olhar inquieto, indicara.
- Ela está cansada, mas não está doente - comentou Fos. - Ali vai tratar dela. Vai dar-lhe água e tâmaras. Depois, fica junto dela. E agora, chega de palavras e tempo perdido! Mostra-me onde é.
Quase com tanta facilidade como se tivesse as mãos livres, Renaud saltou para terra, mas ordenou:
- Os cavalos devem, também, ficar à sombra. Desata-me!
- De facto! - disse o outro - Vais ter de cavar! E cortou as cordas.
Seguido pelos guardas, que transportavam pás e enxadas, Renaud encaminhou-se para o terraço de terra para se aproximar da acácia cujo tronco acariciou antes de lhe dar a volta. A árvore crescera em mais de sessenta anos e ele teve de trepar para chegar à bifurcação de ramos onde se escondia a escavação onde Thibaut escondera o Selo do Profeta. Ele sabia que aquele precioso tesouro do Islão já não estava lá, que Thibaut o dera ao Velho da Montanha como agradecimento pela sua hospitalidade e ajuda; mas sentiu a necessidade, um pouco infantil, talvez, de explorar o esconderijo.
- Que fazes tu aí em cima? - impacientou-se Fos. - Desce daí e começa a trabalhar! Quanto mais esperares, mais sofrerás com o calor!
O templário estendia uma enxada, que Renaud lhe tirou da mão com um encolher de ombros: tinha encontrado os pontos de referência confiados por Thibaut antes de morrer e sabia que a sombra da árvore o protegeria. Sem uma pressa excessiva, começou a tirar a túnica de tela reforçada com placas de ferro que usava sob a cota presa por um cinto quando não ia para o combate. Irritado, Fos cortou os laços com a sua adaga. Ao fazê-lo, cortou, também, o laço que fechava a camisa.
- O que é isto? - perguntou ele, pegando naquilo que Renaud nunca mais deixara de usar sob a roupa: o pequeno rolo de pergaminho preso ao pescoço por uma pequena tira de couro:
- Deixa! - grunhiu este. - Queres comportar-te como um ladrão?
- Só quero saber o que é...
A faca cortou o cordel e o templário desenrolou o pergaminho, que contemplou por um momento, depois de ter ordenado que manietassem o prisioneiro. Um brilho de alegria malvada atravessou-lhe os olhos cinzentos e frios que não reflectiam, geralmente, qualquer emoção. Nos braços dos seus esbirros, Renaud contorcia-se como um verme.
- Devolve-me essa imagem! - exclamou ele. - Não representa nada para ti! Para mim, é preciosa!
- Acredito. A dama dos teus pensamentos?
- Não. Uma dama da minha família...
- Uma dama da família com uma coroa real? A quem queres enganar? Sobretudo quando se parece tanto com a mulher de Luís!
- Pela salvação da minha alma, juro que não é ela!
- Nesse caso, espera-te a condenação! Chateias-me, Courtenay! E não esperava... Cava, se não queres que a tua amiguinha pague a factura da tua revolta!
Desesperado, Renaud viu-o afastar-se alguns passos e metendo o retrato na sua escarcela. Os guardas largaram-no e um deles estendeu-lhe uma enxada, ao mesmo tempo que apontava para o solo. A tentação de lançar o utensílio às costas do miserável foi grande, mas já Roncelin se virava, hílare:
- Vá lá! Talvez to devolva... se ficar contente contigo. Não lhe restava outra coisa senão obedecer. Com a raiva no coração, Renaud delimitou com a ponta da enxada um rectângulo comprido, correspondendo aproximadamente ao tamanho da Cruz, que ele sabia ter sido enterrada com a haste de madeira preciosa. “Mais ou menos três pés de profundidade”, dissera-lhe Thibaut. Assim, o jovem atacou com prudência para não se arriscar a danificar com um golpe demasiado brutal a carapaça de ouro e jóias que envolvia a madeira sagrada. Mas, à medida que trabalhava, aumentava a sua cólera com a pressa de acabar. Entretanto, por mais que cavasse, não encontrava nada, nem o mais pequeno pedaço, nem sequer o pedaço de tecido em que a tinham envolvido! Há mais de uma hora que cavava e o suor escorria-lhe do torso, dos braços, da fronte, dos cabelos. Nada, sempre nada! Era inexplicável...
No entanto, Roncelin dava mostras de uma espantosa paciência:
- Dizem que os objectos viajam sob o solo - observou ele com suavidade. - Talvez seja o caso? Ou talvez não seja este o local... Tenta alargar o buraco... e, se for preciso, dá a volta à árvore. Isto se não me estiveres a enganar!
- Por que havia de fazê-lo? - resmungou Renaud. - Não me parece que venha a receber qualquer ajuda e seria uma loucura cansar-me desta maneira em vão! Se não tivésseis Sancie de Valcroze, nunca teria aceite trazer-vos aqui porque o meu pai obrigou-me a jurar só entregar a Cruz ao Rei e, em nenhum caso, a um templário!
- Ai sim? Curiosa exigência! Os Templários não foram desde sempre os guardiães da Verdadeira Cruz no momento da batalha? Eram eles que a iam buscar ao Santo Sepulcro, eram eles que a erguiam nos combates para que todos, sobretudo os moribundos, a pudessem ver. Também eram eles que a traziam e entregavam ao Patriarca. O teu pai não te explicou isso?
- Não. Não teve tempo. A morte estava próxima... Sei, apenas, que a despeito de ter pertencido à Ordem, desconfiava dela. Por que razão, ignoro...
Roncelin estendeu-lhe, então, um dos odres:
- Bebe! Deves ter sede! Depois, continua! Tem de estar num sítio qualquer, essa maldita cruz!
Renaud, que estava a beber em grandes goles, sentiu-se sufocar, desviou o jacto que lhe inundou o rosto e benzeu-se à pressa:
- Maldita? Isso é uma blasfémia!
- Chega! Pega na enxada...
Ajudado, dessa vez, por dois dos guardas, Renaud continuou a cavar. Com uma espécie de raiva. Apesar da protecção dos ramos da árvore, o Sol era duro de suportar. O corpo foi ficando dorido e as mãos começaram a sangrar. Por fim, conseguiu abrir em redor da árvore uma profunda e larga trincheira... de onde não saiu nada!
Esgotado pela fadiga e pela decepção, porque, mesmo que lhe repugnasse entregar a Cruz àquele miserável Roncelin, Renaud sonhara, sozinho ou com Roberto d'Artois, com o instante em que a seguraria nas mãos e a poderia venerar antes de a oferecer, ressuscitada, à adoração dos povos da Terra Santa, que poderiam tirar dela uma nova esperança e uma nova coragem!
Sem falsas vergonhas, o jovem chorou, desdenhando os clamores furiosos de Fos, que ameaçava pô-lo a cavar toda a antiga cratera até ao topo dos Cornos de Hattin quando uma voz lenta, calma e incrivelmente apaziguadora se fez ouvir:
- Posso perguntar por que razão cavais em redor dessa acácia desde esta manhã?
Era um ancião. Um homem muito velho, apoiando o corpo mirrado e curvado pelos anos num cajado. Longos cabelos brancos, ralos como a barba, caíam-lhe do crânio meio desnudado. O rosto, crestado pelo sol e pelo vento, era uma rede de rugas rodeando uma boca privada de uma parte dos seus dentes e também uns olhos de um azul-deslavado, desmesuradamente abertos e que lhe davam o ar, com os farrapos que mal o cobriam, de um iluminado.
- Que tens tu com isso? - rosnou Roncelin com os braços cruzados no peito e com um olhar mau. - E, primeiro, quem és tu?
Sem lhe responder, o velho endireitou-se um pouco para o olhar bem de frente: - Tu trazes no ombro a cruz vermelha do Templo, no entanto a tua linguagem não é a de um verdadeiro templário. A Regra não exige que se fale aos outros com educação, mesmo aos mais humildes?
- Que sabe um velho mendigo meio maluco como tu, perdido nesta solidão?
- Sei o suficiente para te lembrar que todo o cavaleiro que não se exprima... como deve ser, comete uma falta grave. Tu não deves ser um verdadeiro templário, por isso não me interessas...
O ancião deu meia volta num passo hesitante e Roncelin quase o atirou por terra ao segurá-lo por um braço magro onde se viam umas veias violáceas:
- Não devo ser verdadeiro? - urrou ele. - Eu sou o irmão Roncelin de Fos e sou comendador, se bem que não resida em nenhuma comendadoria, estando, antes, encarregado de fazer a ligação entre elas. É o suficiente para que o respeites?
- Não, porque, nesse caso, o Templo mudou muito. Vendo que Roncelin ia atingir o ancião, Renaud saltou e puxou- o para si:
- Vós é que o devíeis respeitar devido aos seus cabelos brancos, se não devido a outra coisa. Não compreendestes que só um dos vossos pode saber tanto? Perdoai-lhe, messire-prosseguiu ele com uma suave deferência - mas este irmão sofreu uma grave decepção... assim como eu. Consentireis em dizer-me quem sois? O meu nome é Renaud de Courtenay, cavaleiro e escudeiro do Rei Luís, nono do nome!
- Courtenay? Que estranho! Um dos últimos guardiães da Verdadeira Cruz tinha esse nome. E foi, também, um dos que a esconderam antes do grande ataque...
- Como é que sabeis isso? Estáveis lá, então? - perguntou Renaud, entregando-se a um cálculo rápido. - Vós sois muito idoso, não é verdade?
- Sou, e era muito jovem por ocasião desse desastre. Um templário recentemente investido. O meu nome era Aymar de Rayaq...
- Fugiste? - perguntou Roncelin com um esgar desdenhoso. - É por isso que ainda estás vivo?
- Não, não fugi. O meu cavalo é que me salvou do massacre. Assim que o ataque começou, tropeçou numa raiz, cuspiu-me e eu fui bater com a cabeça num rochedo. Como o calor era terrível, eu não tinha o elmo posto. Fiquei inconsciente durante muito tempo e quando voltei a mim estava cheio de febre e não me lembrava de nada, nem sequer do meu nome. Um ancião tratou de mim. Uma espécie de eremita, que vivia numa gruta perto daqui. Chamava-se Djemal e orava a Alá, mas era um homem bom e compassivo. Tratou de mim e quase me curou. Digo quase porque foram precisos longos anos para que eu recuperasse a memória... mas já estava habituado à vida selvagem. Djemal morreu e eu fiquei. O meu velho amigo é que me falou da catástrofe de Tiberíades...
O olhar de Roncelin foi-se iluminando, ao mesmo tempo que o seu interesse. Uma pergunta queimava-lhe os lábios: e o templário deixou-a sair.
- Se éreis templário, sabeis o que aconteceu à Cruz?
- Sei. Já o disse, eu era muito jovem, então... e muito curioso. Tinha ouvido a ordem de a esconder e quis saber... Depois, Deus puniu-me...
- Ora vamos! Ele salvou-vos a vida, único de todos os cavaleiros do Templo juntamente com Thibaut de Courtenay que, esse, morreu - acrescentou ele, regressando a um tom mais educado, agora que sabia quem realmente era o ancião. - E nós, nós regressámos para procurar a Verdadeira Cruz. Para a entregar à Ordem. Onde é que a enterraram?
- Onde começastes a procurar esta manhã. Este jovem mostrou-vos o local exacto... Mas, por que estava ele atado?
- Para me forçar a obedecer-lhe - disse Renaud. - Eu não queria dar-lhe a Cruz. Perdoai-me, porque lhe pertenceis, mas o meu pai obrigou-me a jurar que nunca a devolveria à Ordem do Templo, mas sim e unicamente ao Rei Luís. Acrescento que o Papa Inocêncio IV também a quer...
- O que me parece mais legítimo. Nesse caso, ele trouxe-vos à força? Assim como, certamente, aquela jovem, além, guardada por um servidor?
A frágil paciência do sire de Fos era cada vez menor:
- Chega de conversa! - urrou ele. - Se conhecíeis o local da Cruz, deveis saber onde ela está a esta hora!
- Um cavaleiro do Templo não mente. Sim, sei... Uns filhos do Islão apareceram aqui, um dia. Acamparam neste local, em volta da acácia. Eram cinco e procuravam qualquer coisa. Batiam no solo com os pés como se esperassem ouvir um eco. Um deles chegou a subir à árvore e no dia seguinte foram-se embora. Mas eu fiquei com medo de que regressassem em maior número. E, na noite seguinte, desenterrei o sublime símbolo da Redenção.
- Sábia precaução, pela qual vos louvo! Só vos resta entregá-la a nós - acrescentou Fos num tom subitamente suave, mas que deixou de o ser quando o velho cavaleiro respondeu:
- Não!
Um novo assomo de cólera quase estrangulou Roncelin:
- Não?... Então, vou dar-vos uma ordem! Vós não passais de um simples cavaleiro, ao passo que eu sou um dignitário e como me deveis obediência absoluta...
- Eu não passo de um velho perto do fim e a vida importa-me pouco.
- A morte pode vir lentamente... e com dor cruel! - guinchou Fos.
- Não tem importância! Vós acabais de me fazer compreender por que razão Thibaut de Courtenay obrigou o filho a jurar que não entregaria, nunca, a Cruz a um homem do Templo. E muito menos a vós, que o incarnais. O vosso Templo, do qual eu já suspeitava no meu tempo, não é o meu! Não vo-la entregarei!
A um sinal do seu senhor, os criados apoderaram-se de Renaud, que foi apanhado desprevenido.
- Se não ma entregas, velho louco, mando degolar este diante de ti!
- Não vos preocupeis comigo! - gritou o jovem. - Um cavaleiro deve estar sempre pronto a morrer pela sua causa. E esta é a minha!
Roncelin de Fos aproximou-se dele e segurou-o pela gola da camisa, fechando-a até ao queixo.
- Não te estás a esquecer de um pormenor... ou de alguém, meu rapaz? Vou mandar buscar a doce Sancie e veremos o que dizem os dois quando ela gritar, queimada pelo ferro em brasa.
- Nesse caso, que acontecerá ao vosso frutuoso negócio? Deveis estar lembrado: aquele emir cuja paixão queríeis satisfazer?
O urro de horror de Aymar de Rayaq encontrou eco no de estupor de Renaud perante o extraordinário espectáculo que; o seu olhar viu: saindo das ruínas de Marescalcia, Sancie caminhava na sua direcção segurando nos braços uma grande cruz de ouro cheia de pedras preciosas, nas quais a luz do Sol cintilava ao ritmo dos seus passos. O homem chamado Ali, desvairado, corria à volta dela como um cão excitado. Um outro grito, fraco como um queixume, fez-se ouvir e fora o velho solitário que o emitira... A luz que irradiava da Cruz envolvia a sua portadora por inteiro, fazendo cintilar as lágrimas que lhe corriam dos olhos. Renaud caiu de joelhos e juntou as mãos, fulminado por aquela aparição sublime, imitado, de tal modo era bela naquele instante, pelo velho Aymar. Roncelin de Fos, também ele, ficou hirto, os seus olhos cinzentos dilatados por uma alegria fantástica...
O grito de um gavião, atravessando o céu púrpura, rompeu o encanto e foi o menos atingido, Fos, evidentemente, que reagiu primeiro. Correndo para a jovem, arrancou-lhe o tesouro das mãos com tal brutalidade que esta, a despeito da força com que o apertava contra o peito, caiu para trás com um gemido de dor.
- Onde a encontrastes? - berrou ele erguendo a Cruz bem alto, como se quisesse servir-se dela para atingir Sancie.
Mas já Renaud estava em cima dele e, com um murro magistral, atirou-o por terra. A Cruz escapou das mãos de Fos, mas o seu assaltante segurou-a antes que atingisse a terra endurecida pela seca. O jovem devolveu-a ao eremita com um respeito infinito. As suas mãos tremiam ao tocar no metal liso e doce que cobria a madeira em que Cristo agonizara:
- Guardáveis-la nestas ruínas? - censurou-o ele. - Que imprudência!
- Não, porque as pessoas que vivem nas vizinhanças desta cratera estão persuadidas de que ela está amaldiçoada pelos fantasmas dos que morreram aqui e têm medo. Tive de me instalar aqui com Ela quando um tremor de terra fechou a gruta de Dje-mal.
- Que importa! Ela, agora, é minha - grunhiu Roncelin, que corria para eles vociferando, como um abutre sobre a sua presa. - Mexei-vos, bando de idiotas! E agarrai-me esses homens!
Os esbirros obedeceram, mas Renaud já estava junto de Sancie, que continuava no chão. A jovem devia ter batido com a cabeça numa pedra, ou numa raiz. Por momentos, o jovem pensou que ela estava morta, e o seu coração apertou-se. O cavaleiro ergueu-a nos braços e aproximou o seu rosto da boca entreaberta para lhe sentir a respiração. Graças a Nossa Senhora! Respirava. Portanto, só estava desmaiada e, na sua alegria, Renaud apertou as faces da jovem contra as suas.
- Deixa-a tranquila! - urrou Roncelin. - Ela vem a si por si própria... Toca andar, vocês! Atem-no!
Era mais fácil mandar do que fazer. Renaud opôs uma vigorosa defesa, à qual pôs fim o punho de um sabre assestado no seu crânio. O jovem perdeu, por sua vez, a consciência, mas por pouco tempo, já que o homem não batera para matar. Ao voltar a si, pouco depois, o que viu horrorizou-o, ao mesmo tempo que os seus ouvidos se enchiam com o som dos soluços do velho solitário, junto do qual o tinham sentado para que não perdesse nada do que se estava a passar.
Ora, o que se passava era demente, incrível, aterrorizador e muito para além do entendimento humano. Armado com o seu machado de guerra, Roncelin de Fos estava a quebrar as placas de metal que protegiam a madeira vulnerável, deixando-a visível para a oferecer à adoração dos fiéis.
- Que estais a fazer? - gritou Renaud. - Ficastes louco? Isso que estais a destruir é a Cruz de Cristo!
- Ah sim? - troçou o outro sem para parar a sua obra de destruição.
Porque não lhe chegava quebrar o cristal para poder tirar o grande fragmento e era o ouro, agora, que voava em estilhaços brilhantes como pirilampos perto da grande fogueira que os sequazes estavam a acender com a madeira morta e os ramos que havia ali um pouco por toda a parte. Por fim, o templário conseguiu e puxou para ele o pedaço do madeiro que Jesus erguera no Golgota, que recebera o sangue das suas mãos furadas pelos cravos, onde repousara a sua cabeça rasgada pelos longos espinhos negros. Fos olhou para ele por um momento:
- De joelhos! - urrou Renaud, desvairado. - De joelhos, miserável, e arrepende-te!
Em vez disso, o outro deu uma risada insensata, cuspiu na madeira sagrada, atirou-a por terra e pisou-a com os pés...
A seu lado, Renaud ouviu o estertor terrível lançado pelo velho Aymar e depois a sua furiosa explosão:
- Porquê? Porquê esse sacrilégio imundo? Que Templo é esse que pretendes representar? - O único verdadeiro! Aquele que o outro esconde sob a força e a riqueza das suas comendadorias! Aquele que recusa adorar o instrumento de um suplício glorioso, de um suplício de escravo...
- Seja ele qual for, foi o escolhido pelo Messias, o Filho de Deus feito homem...
- O teu Messias não passava de um agitador! O verdadeiro Messias era João!
- Por causa dessa blasfémia e por tudo o resto, viverás por toda a eternidade nas chamas do inferno - berrou Renaud. - Qual era a tua necessidade de encontrar a Santa Cruz, se era para isso?
- Para ter a certeza de que Luís de França não a conseguirá jamais. Seria uma arma demasiado forte, um pálio, talvez, contra o que ainda lhe reservo!
- Um pálio? Reconheces, portanto, o seu poder de protecção?
- Eu não reconheço nada... e a prova é esta!
Pegando no pedaço de madeira ainda sob os seus pés, atirou-o para as chamas que subiam ao assalto do céu escuro.
- Nããããão!
A custa de um esforço inaudito, Aymar de Rayaq conseguiu levantar-se e atirou-se para o braseiro, não sem ter, à passagem, escarrado no rosto de Fos. Ao mesmo tempo horrorizado e desesperado, Renaud conseguiu também endireitar-se e quis segui-lo para tentar salvá-lo, pensando que o fogo lhe queimaria as cordas e que conseguiria tirar das chamas o velho cavaleiro. Mas Roncelin deteve-o, segurando-o por debaixo dos braços:
- Ainda não acabei contigo! Quanto a ele, deixa-o onde está! Poupou-me o trabalho...
- Quem te disse que ele vai morrer? Quem te disse que Deus não o vai salvar? Escuta! Ele não grita...
Era verdade. A fornalha iluminava a noite, rugia, mas não o suficiente para cobrir os urros que a sua mordedura era capaz de arrancar à mais firme das vontades. O silêncio, em redor, era total. E, subitamente, o incrível, o inimaginável, aconteceu. No meio das línguas ardentes que enfraqueceram por instantes, viram erguer-se o velho eremita. Os seus cabelos e barba chamejavam, mas os seus braços, livres, apertavam a Verdadeira Cruz contra o peito. E o velho cavaleiro clamou, então, com uma voz tão poderosa que não podia vir do seu corpo gasto:
- Por causa dos crimes com que manchastes o Templo, morrerás, Roncelin de Fos, mas o Templo morrerá antes de ti! Tanto os puros como os viciados, tanto os bons, como os maus, culpados por terem permitido que existisses! Sereis todos malditos! Um Rei impiedoso, cujos olhos nunca se fecharão, destruir-vos-á pelo ferro e pelo fogo. Dentro de meio século o Templo será varrido e todos perecerão, porque os vermes que apodrecem o fruto são invisíveis, mas Deus sabe reconhecer os seus... E tu serás condenado!
Para os que a ouviam, a maldição passou como um furacão. Prostrados e com o rosto encostado ao solo, os servidores esforçavam-se por tapar os ouvidos. Renaud estava de joelhos, Apenas Roncelin, tenso como um arco e de punhos cerrados, olhava impotente, escutava revoltado...
Depois, elevou-se uma língua imensa de fogo, tão alta que pareceu chegar a uma nuvem atrasada. O seu ardor era tal que o templário recuou, protegendo o rosto com o braço erguido. A chama ardeu daquele modo durante cerca de três minutos com um ronco aterrorizador e depois caiu de um só golpe e nada mais restou senão um silêncio absoluto e um monte de brasas coroadas por pequenas chamas contra o céu estrelado. Do velho cavaleiro e da Cruz, nada restava. Tudo tinha desaparecido. Apenas permanecia um odor estranho, um ligeiro perfume a cedro e a jasmim, que não tinha nada a ver com o habitual mau cheiro das piras.
- Deus tenha piedade da tua alma, Roncelin de Fos! - murmurou Renaud. - Nem todas as orações do mundo a salvarão!
Mas o homem, petrificado por um momento, recuperou a sua loucura.
- Não preciso. Saberei falar com Ele e Ele saberá ouvir-me... Depois de ter erguido do chão a pontapé os seus servidores tetanizados, Fos começou a juntar os pedaços de ouro que tinham envolvido durante tanto tempo a madeira sagrada para a qual se tinham virado, durante um século, os olhares orgulhosos dos Reis de Jerusalém e os dos soldados de Cristo, plenos de esperança. O templário meteu-os prosaicamente num saco.
- Não perdes nada, hã? - lançou Renaud, enjoado. - Que vais fazer de nós, agora? Matar-nos, suponho?
O jovem virou-se para Sancie, sempre estendida onde caíra, mas que devia ter recuperado a consciência. Ainda que demasiado fraca para se levantar porque, ferida na cabeça, conseguira, no entanto, encostar-se a um talude e escondia o rosto nas mãos. Pelo movimento dos seus ombros era fácil adivinhar por que razão chorava.
- Tenho outros projectos para vocês - disse Roncelin desdenhoso - e não tardareis a conhecê-los...
O passo de numerosos cavalos ressoava, de facto, na montanha, ainda invisíveis mas precedidos pelo clarão vermelho dos archotes. Vinham de norte e em breve, pelo mesmo caminho por onde tinham vindo, desembocaram alguns cavaleiros cujos elmos, estreitos, eram encimados por um ornamento de ponta bicuda. Rodeavam um senhor de estatura mediana mas de expressão altaneira cuja cota de malha dourada cintilava, assim como o nasal, no topo do qual nascia uma pluma cinzelada do mesmo metal. Um rico manto estendia-se pela garupa do seu cavalo. Só podia ser um príncipe muçulmano e Renaud perguntou a si próprio se Deus não lhe estaria a enviar o meio de morrer, não de armas na mão, mas às mãos do inimigo. Mas se pensou, por um único momento, que Fos fugiria, ou tentaria defender-se, enganou-se. O templário caminhou tranquilamente ao seu encontro e saudou o recém-chegado, que lhe devolveu a saudação. Ambos trocaram algumas palavras e depois o emir, se o era, pôs pé em terra e avançou, ao lado de Roncelin, na direcção de Sancie. Visivelmente apavorada, esta tentou levantar-se para tentar fugir, mas a fraqueza, sem dúvida devida ao seu ferimento, parecia privá-la de forças.
- Deixai-a tranquila! - berrou Renaud, compreendendo que o renegado nunca desistira da ideia de entregar aquela nobre dama franca a um senhor muçulmano, para que ele tivesse mais um brinquedo no seu harém. - Porco ignóbil! O ancião amaldiçoou-te, predisse que serás condenado e eu digo-te, eu, que não terás qualquer misericórdia, tanto neste mundo como no outro!
Os seus berros encheram a noite e o emir escutou-o por um instante, mas como não devia compreender nada, voltou a sua atenção para a jovem e tocou com um dedo no sangue que lhe marcava a face, perguntando, sem dúvida, o que significava aquilo. Então, Roncelin sorriu com ar apaziguador e depois designou Renaud, que cambaleava na direcção de ambos tão depressa quanto lhe permitiam as cordas que o atavam. O jovem não chegou a fazer metade do caminho. O emir deu uma ordem e dois sarracenos apoderaram-se dele. Um instante mais tarde, o cavaleiro era amordaçado e os seus punhos atados por uma longa corda à sela do cavalo de um dos que o tinham dominado. O outro não devia estar de acordo porque, subitamente, pegou num archote, aproximou-o do rosto de Renaud, franziu o sobrolho e disse qualquer coisa que o prisioneiro não compreendeu, mas que lhe valeu uma mudança de estatuto. A corda que o ligava ao arção da sela foi desatada e serviu para o prender cuidadosamente dos tornozelos ao pescoço, após o que o atiraram como um simples saco para a garupa do cavalo que, momentos antes, estava destinado a arrastá-lo. O cavaleiro passou a ver apenas o solo e as pernas do belo animal. Também não viu uma liteira, fechada por cortinas de seda, sair das fileiras muçulmanas. Meteram nela Sancie, cujos gritos e protestos ele podia ouvir. Que cessaram tão subitamente que ele perguntou a si próprio se não a teriam morto.
Por fim, também não viu Roncelin de Fos, acampado perto das ruínas de Marescalcia, que via com uma alegria feroz o emir subir para o seu magnífico cavalo branco e retomar o seu lugar no cortejo que o desembaraçava ao mesmo tempo de Courtenay e daquela delambida de olhar demasiado penetrante e de quem a sua irmã desconfiava...
- Elvira ficará contente! - murmurou ele. - Tão cedo não veremos estes dois. Admitindo que isso seja possível...
Ele sabia, claro, que o emir em questão era, de facto, o senhor de Damasco e de Alepo, o malik Yussuf al-Nasir, neto do grande Saladino, um homem que não largava com facilidade aquilo que agarrava! Em breve não restaria qualquer testemunha do que acabava de acontecer perto dos Cornos de Hattin. Os servidores? Esses eram desprovidos de corpo e de alma e, seguramente, nunca representariam um problema.
“QUEM ÉS TU?”
Apesar de saber a diferença entre ser transportado como um simples saco e arrastado, sem dúvida dilacerado pelas pedras do caminho, Renaud sentia dolorosamente cada passo do animal. As cordas rasgavam-lhe os tornozelos e os punhos e dificultavam-lhe a respiração, tanto quanto a sua posição de ventre para baixo. A sorte reservada ao seu “pequeno camafeu” também o atormentava, tornando o ódio que lhe inspirava Fos ainda mais abrasador. Porém, estava tão fatigado que acabou por adormecer...
Acordou brutalmente quando entrou em contacto com o solo, onde o deixaram, simplesmente, cair. Primeiro, o jovem não viu grande coisa: um par de botas cheias de poeira de pontas bicudas e reviradas, umas pernas espessas vestidas de malha de aço e depois um raio de sol que lhe chegou aos olhos, antes de ser substituído por uma figura barbuda e grisalha: a mesma que o examinara na noite precedente nos Cornos de Hattin.
O homem, que devia ser um chefe pela riqueza das suas armas, teve, então, um comportamento estranho. Acocorou-se junto de Renaud, ladrou uma ordem e recebeu em troca uma esponja a escorrer água, com a qual se pôs a lavar-lhe o rosto, ficando depois a olhar para ele com um ar pensativo. Em seguida, levantou-se e deu outra ordem. Que teve como resultado dois sarracenos porem o cativo de pé e levarem-no, mais do que arrastarem-no, para uma das torres que flanqueavam a muralha de um vasto pátio cheio de guardas, de cavalos, de criados e até de camelos vigorosos de cujos dorsos estavam a ser descarregados uns fardos solidamente atados, odres de pele de cabra e longos pacotes envoltos em tapetes coloridos que deviam ser tecidos. O espectáculo era parecido com a chegada de uma caravana, como Renaud já vira em São João de Acra. No entanto, os edifícios em redor daquele pátio pareciam-se mais com os de um castelo do que com um terminal de caravanas.
Renaud esperava ser atirado para uma masmorra qualquer para ali esperar a morte. Fizeram-no entrar na torre, descer uma escada de degraus altos e íngremes e seguir por um corredor iluminado por um único archote. Por fim, abriu-se uma porta baixa, bem aferrolhada. O jovem respirou profundamente e susteve a respiração, esperando ser atirado pelos guardas para o interior e antecipando a dor suplementar que iria sentir o seu já dorido corpo. Ora, sem uma brutalidade excessiva, fizeram-no entrar numa divisão baixa e nua, iluminada por uma abertura mais estreita do que uma seteira. Renaud esperava ver correntes, grilhetas e palha podre... Viu lajes e uma espécie de leito feito de um entrelaçado de cordas estendidas sobre uma armação de madeira e guarnecido com um cobertor. Ali o deixaram depois de lhe tirarem as cordas que o atavam e depois de fecharem a porta... a qual se abriu pouco depois perante um negro gigantesco com uma bilha de água, um pão e uma escudela onde fumegava uma espécie de guisado de cebolas e carneiro. Sem uma única palavra, ou um olhar, o servo voltou a sair sem que Renaud, estupefacto, tivesse tempo de lhe dirigir a palavra. Era um comportamento tão pouco usual para com um prisioneiro inimigo! Mas aquele sentia-se demasiado moído, com demasiada sede, demasiada fome e demasiado cansado para fazer perguntas. O jovem comeu, bebeu, tirou a camisa ensopada pela lavagem de pouco antes, evolveu-se no cobertor e deitou-se em cima das cordas, que lhe pareceram o cúmulo do conforto.
Não tendo maneira de medir o tempo, não soube quantas horas permaneceu inconsciente, mas ainda era dia quando o barulho das chaves e dos ferrolhos o acordou. A personagem que lhe lavara o rosto entrou, mas, dessa vez, acompanhava-o um homenzinho de barbicha branca, vestido com um traje raiado, um turbante branco e munido de um pequeno cofre que continha o necessário para escrever. Foi a ele que o oficial endereçou uma pequena frase que o escriba traduziu de imediato para o prisioneiro:
- Quem és tu?
- Um cavaleiro franco entregue por um dos seus.
- Não é isso que quer saber o poderoso emir Shawan aqui presente. Por isso, repito: quem és tu? O teu nome!
- Não vejo que isso possa interessá-lo, mas não é nenhum segredo: o meu nome é Renaud de Courtenay e sou escudeiro de Luís, Rei de França pela graça de Deus!
- Quem era o teu pai?
- O emir é demasiado jovem para o ter conhecido: foi o servidor fiel, o amigo de infância de Balduíno de Jerusalém, o Rei leproso... Chamava-se Thibaut de Courtenay.
- E a tua mãe?
- A minha mãe? Mas, que tendes vós com isso? - exclamou ele, virando-se para o emir. - Preferia que me dissessem o que fizeram à dama que veio comigo!
- Não é da tua conta e deves responder. Quem era a tua mãe?
- Ignoro. As minhas armas têm a barra em diagonal da bastardia...
- Sem dúvida. O que não quer dizer que não estejas a mentir! Renaud ficou imediatamente irritado:
- Um cavaleiro não conhece essa palavra. Diz ao teu senhor que me mate, visto que tem esse poder, mas que não me insulte!
Dessa vez, o escriba não precisou de traduzir. O emir estendeu uma mão apaziguadora para o prisioneiro e disse algumas palavras rapidamente traduzidas.
- És capaz de jurar, pela cruz do teu Deus, que não sabes o seu nome?
- Nunca!
- Nesse caso, deves falar! O poderoso emir assim o exige!
- Mas eu não quero!
- Mesmo... se te disserem que esse nome pode ajudar a jovem que ocupa o teu espírito?
- Ajudá-la?... Que lhe fizeram?... Ela corre perigo?
O emir Shawan repetiu o gesto apaziguador que acompanhou, até, com a sombra de um sotriso. Pelo menos, foi a impressão com que Renaud ficou, mas o seu olhar continuou frio e o escriba continuou:
- Nenhum. Ela agrada demasiado ao nosso supremo senhor, o malik al-Nasir Yussuf, Sultão de Damasco e de Alepo, para que a maltratem. Tu, pelo contrário...
- A tortura? Para me arrancarem o nome da minha mãe? Não sei para quê, porque estou firmemente decidido a calar-me, já que ignoro se ela continua viva e por nada deste mundo quero que lhe aconteça qualquer mal...
- Por que é que uma dama franca haveria de sofrer só porque o senhor de um império do Profeta - bendito seja o seu nome ao longo dos séculos! - quer saber o seu nome?
- Por nada, espero, por isso mesmo não vo-lo direi!
- É o que vamos ver!
Tendo dito aquilo, Shawan e o seu intérprete saíram da masmorra sem acrescentar mais nenhuma palavra. E não regressaram...
E os dias passaram...
Numa monotonia tal e num silêncio tão grande que Renaud acabou por lamentar não o julgarem para poder, ao menos, exprimir-se e, sobretudo, tentar obter notícias de Sancie, que se tornara na sua principal preocupação. Voltaria a vê-la, um dia? Nem que fosse por um instante? Era pouco provável, a acreditar nos boatos que diziam que uma mulher, mal entrava num harém, nunca mais de lá saía. Ainda por cima tratando-se do harém do Sultão, porque, aparentemente, era entre as suas mãos ilustres que ambos se encontravam.
Ora, o jovem descobria que a ideia do harém lhe era cada vez menos suportável. Tanto quanto, mais ou menos, a sua situação actual, porque não fora a passagem quotidiana do criado negro com a sua comida e pensaria que tinham intenção de o esquecer. Nem sequer sabia onde estava! Esforçava-se por contar os dias, mas havia uma lacuna logo desde o princípio, porque ignorava quanto tempo estivera sob o efeito da droga.
Uma manhã, porém, depois de o invisível muesgin ter chamado os fiéis para a oração, apareceram dois guardas para o tirarem da prisão e levarem-no para a luz do dia. Se bem que a falta de exercício o tivesse amolecido um pouco, a alimentação saudável que nunca lhe faltara permitia-lhe sentir-se bastante melhor do que no dia da sua chegada. Pelo contrário, estava sujo de meter medo e exalava um odor a porcaria que até a ele próprio o incomodava. Se me vão executar, pensou ele, vou pedir que, antes de morrer, me dêem uma cruz... e um banho!
E aconteceu que o conduziram a um hamman (1) onde, durante mais de uma hora, dois grandes diabos meio nus que se pareciam com duas panteras negras o encharcaram, ensaboaram, rasparam, encharcaram de novo e após o terem estendido numa mesa lhe cobriram o corpo de óleo, o massajaram, o trituraram de todas as maneiras, o lavaram de novo para lhe tirarem o óleo supérfluo, sem esquecer, dessa vez, a cabeça, sobre a qual lhe derramaram um perfume ambreado que o fez espirrar. Por fim, cortaram-lhe o cabelo, a barba e o bigode, antes de o meterem numa camisa de tela fina fechada no ombro direito por meio de um botão de cristal e nuns calções do mesmo tecido apertados por um cordão de prata. Meteram-lhe as pernas numas calças estreitas de um belo tecido verde-escuro que desciam até aos tornozelos; enfiaram-lhe pela cabeça abaixo uma espécie de vestido bordado a prata e preso por um cinto negro com desenhos em relevo. Meteram-lhe os pés numas chinelas de salto de marroquim negro, tão negro como o amplo e rico manto de mangas largas com que lhe completaram o traje. Para rematar, puseram-lhe na cabeça um barrete negro, em redor do qual apertaram um turbante mais branco do que a neve.
Renaud compreendia cada vez menos, mas sentiu-se tão bem depois daquele tratamento que recuperou, de certo modo, um certo optimismo, lamentando apenas que aquele magnífico traje não tivesse sido completado com uma arma. Assim equipado, o emir Shawan, sempre flanqueado por dois guardas, foi buscá-lo em pessoa para o conduzir à sala mais sumptuosa que o jovem
(1) Banhos turcos.
jamais vira. Imensa, aberta para o azul de um lago por meio de umas finas arcadas de colunas que suportavam um tecto em cedro esculpido; as suas paredes estavam decoradas com pinturas e mosaicos azuis e dourados. Nuns nichos ogivais, ornamentados em toda a sua espessura, estavam expostos objectos de prata, de ouro, de marfim ou de cristal gravado. Espessos e reluzentes tapetes cobriam o chão semeado de grandes lâmpadas de prata habilmente colocadas diante dos espelhos para duplicar a luz. Por fim, ao fundo, estava um grande banco de madeira preciosa ligeiramente sobrelevado e guarnecido de espessas almofadas de cetim amarelo, das quais algumas serviam de cadeiras e outras, colocadas de pé e lado a lado, serviam de encosto. Nesse banco estava sentado, de pernas cruzadas, um homem vestido de vermelho e com um pequeno turbante negro ornamentado com uma placa de ouro onde estava gravada qualquer coisa. Estava sozinho no meio de todo aquele esplendor, sem guardas nem conselheiros, mas aquele isolamento dava-lhe mais majestade do que a presença de uma multidão numerosa, mesmo que prostrada. Era o príncipe de quem Renaud e Sancie eram cativos.
Guiado pelo emir, o cavaleiro avançou para ele até ao limite do interminável tapete. Ali, inclinou-se cortesmente, mas não dobrou o joelho como faria perante um Rei cristão e, endireitando-se, ousou olhar-lhe para o rosto. Al-Nasir Yussuf devia ter uns trinta anos. Alongado pela barba de duas pontas, o seu rosto era oval com, sob as sobrancelhas rectilíneas, uns olhos escuros profundamente encovados. Com um cotovelo apoiado no joelho erguido de maneira que a mão sustinha o rosto, olhava com ar meditativo para o cristão que se aproximava dele e que tratava de maneira tão estranha.
Renaud procurou o intérprete com os olhos, mas o Malik não precisava dele:
- O meu fiel emir Shawan colocou-te uma pergunta à qual não respondeste. Ele perguntou-te: “Quem és tu?”
- Informou-te mal. Eu respondi.
- De maneira incompleta e falaciosa. O nome do teu pai não está certo e não quiseste pronunciar o da tua mãe. Até disseste que o ignoravas.
- Talvez, mas se é um facto tu possuíres todos os direitos possíveis sobre a minha vida, não tens nenhuns sobre as minhas recordações nem sobre as minhas origens. O silêncio é a última riqueza do prisioneiro!
- Belas palavras! Abu Said, que foi um grande sábio e um grande poeta, escreveu: “Apenas o silêncio é poderoso. Tudo o resto não passa de fraqueza.” Mas também disse: “Retém as tuas palavras perante todos, mas não perante um amigo!”
- Um amigo? Concedes-me uma grande honra, senhor. Gostaria de saber de onde vos vem a ideia de que somos amigos?
Sem responder, al-Nasir Yussuf bateu as palmas três vezes e Shawan foi buscar à soleira de uma porta uma mulher, que entrou apoiada a um cajado. Estava inteiramente vestida de negro e tinha na cabeça o véu habitual das filhas do Islão, mas era a única coisa que a identificava com elas... No seu rosto pálido, escavado por rugas dolorosas, os olhos deslavados deviam ter sido azuis: ainda conservavam um reflexo. Porém, o seu ser exprimiu energia quando, depois de ter saudado o príncipe, se colocou diante de Renaud, apoiada com as duas mãos no cajado, ao mesmo tempo que o seu olhar o devorava. Então, o Malik disse:
- Ele continua a recusar dizer quem é. Queres, tu, dizer-lhe quem és?
Tremendo com uma emoção súbita que lhe levou as lágrimas aos olhos, mas sem deixar de fixar Renaud, ela declarou:
- Chamo-me Amena e sou cipriota. No ano de 1204 recebi nos meus braços e alimentei com o meu leite a última filha que a Rainha Isabel de Jerusalém acabava de dar à luz. Chamava-se Melisanda de Jerusalém-Lusignan e nunca mais a abandonei. Fui com ela para Antioquia quando ela casou com Boemundo, o Zarolho... e estava com ela quando deu à luz em segredo um pequenito, que foi preciso esconder...
Estrangulada pela emoção, a anciã soluçou, mas Renaud compreendera, assim que ela dissera o nome, que tinha diante de si quem o subtraíra, ainda em bebé, aos furores do Zarolho e o tinha levado, com risco da própria vida, até Tortosa, a um templário chamado Thibaut de Courtenay. Então, sem querer saber dos que estavam presentes, tomou a anciã nos braços e chorou com ela...
O que sentiam, tanto um como o outro, era demasiado forte para que pudessem falar naquele instante em que os laços reconquistavam o seu lugar. Passaram-se longos minutos antes que Renaud lhe perguntasse:
- A minha mãe?... Ela continua viva?
- Não, infelizmente, porque pagou aquele momento com muito sofrimento. O Zarolho soube, não sei como, o que se passara. Quando regressei, torturou-me para que confessasse e foi ela, a minha querida senhora, que me salvou, dizendo-lhe tudo o que ele queria saber. Depois, matou-a... com as suas próprias mãos. Mas, entretanto, ela conseguiu fazer com que eu fugisse apesar da minha perna ferida e encontrei refúgio em Alepo junto daquele que ela tanto amara...
- O meu pai al-Aziz Mohamed... e também o teu! - cortou o Malik, muito sério. - Obrigado, Amena! Vai repousar, que bem precisas depois desta longa viagem. E tu, meu irmão, vem sentar-te ao pé de mim para conversarmos!
- Só mais um instante, por favor - pediu Renaud. - Gostaria de saber se o Zarolho ainda é vivo?
Shawan já levava Amena e foi al-Nasir Yussuf que respondeu:
- Ainda, mas leva uma existência vergonhosa! Fez-se criado dos Mongóis. O khan Hulagu é que é o seu verdadeiro senhor. Deixa-o com a própria vergonha! O seu sangue sujaria a mais pura das lâminas... Vem e restaura as tuas forças.
Um pouco aturdido pelo que acabava de viver, Renaud juntou-se, enfim, àquele irmão inesperado nas almofadas amarelas, diante das quais, depois de um simples bater de palmas do príncipe, uma dezena de servidores dispôs uns grandes tabuleiros de prata cheios de uma enorme diversidade de pratos; mas Renaud lavou, primeiro, as mãos na água perfumada e esperou que todos saíssem antes de perguntar:
- Como soubeste quem eu era?
- Foi Shawan que te reconheceu. Ignora-lo, evidentemente, mas até nos cabelos és parecido com o nosso pai. Shawan disse-mo quando soubemos o teu nome. Mandei buscar Amena a Alepo, onde ele lhe deu asilo. Mas, agora, comamos! Falaremos depois!
Os dois homens comeram em silêncio por respeito para com a comida, mas também porque era má educação falar com a boca cheia... Renaud aproveitou para reflectir nos problemas que aquela situação nova, provavelmente, lhe iria causar. O facto de um sangue quase semelhante correr nas suas veias e nas de al-Nazir Yussuf, e o facto de este o ter aceitado com uma boa-vontade excepcional, não impedia que a barreira que separava um cristão e um muçulmano fosse intransponível. No entanto, teria, para a salvaguarda de Sancie, de tentar manter aquelas circunstâncias favoráveis.
Depois de ter provado de todos os pratos, como era de bom-tom, o jovem enxugou os dedos numa toalha de seda, agradeceu a refeição ao seu anfitrião e esperou. De facto, a espera durou um momento. Com os olhos semicerrados, o Malik meditava, acariciando pensativamente o bigode. Por fim, falou:
- O passado que acaba de ressurgir diante de nós deve apagar-se, ou devemos protegê-lo?
- Que queres dizer?
- Que o futuro está diante de nós. Como vês tu o teu?
- Mais curto ou mais longo segundo o que decidires. Sou teu prisioneiro.
- Isso só depende de ti, porque ambos sabemos que nascemos do mesmo pai. Todas as esperanças te são permitidas, doravante... mesmo a de reinar, um dia, em Jerusalém... se aceitares a Lei e te prostares perante o Profeta, bendito seja o Seu nome para sempre!
- Tenta imaginar por um instante, grande Rei, que estás no meu lugar. Que farias? Rejeitarias a tua vida passada, o teu Rei, a tua fé, ou teu Deus?
- Nós também só temos um, como vós. Quanto ao Rei... acabo de te dizer que podes vir a ser um. E na cidade que nos é mais querida entre todas.
- Por que razão continuaria a sê-lo para mim se eu renegasse Aquele que enviaram para o túmulo? Tu és generoso e tens a alma maior do que a maior parte dos outros reis, que não se sentem estorvados pelos laços de sangue e que se desembaraçariam rapidamente de um irmão tão incongruente. Mas tu nasceste de uma princesa muçulmana...
- A minha mãe era uma escrava turcomana, o que tem pouca importância: o que conta é o progenitor!
- Para mim, não! E não me parece que seja por a minha mãe ser uma princesa. Ela sofreu e amou até morrer por causa desse amor. Penso que temos de esquecer o que nos une e regressar ao ponto de partida!
Al-Nasir Yussuf abriu muito os olhos redondos:
- Queres voltar a ser meu prisioneiro? És louco?
- Gostaria de o ser: as coisas, as pessoas e as cores do céu deixariam de ter importância, mas não recuso a liberdade se ma quiseres devolver... Ou antes, não! Se queres que te abençoe até à minha derradeira hora, põe-me as grilhetas... e devolve a liberdade à nobre dama que o templário te entregou. Em seguida, poderás chamar o carrasco!
O príncipe estendeu a mão para uma taça de alabastro que tinham deixado ao alcance de ambos para se servir de uma ameixa cristalizada, mas não terminou o gesto e retirou subitamente a mão:
- Gostas dessa mulher a esse ponto?
- Gosto muito dela - respondeu Renaud depois de hesitar um pouco no termo a utilizar.
O amor que sentia pela Rainha proibia-lhe pretender que Sancie fosse a dama do seu coração. O jovem acrescentou logo a seguir:
- Ela é viúva, está só no mundo e todos os cavaleiros dignos desse nome juram proteger as viúvas, os órfãos, mas também todos os que estão em perigo, todas...
- Dizes que ela perdeu o marido?
- Sim. Não sei há quanto tempo. Pelo que ela me disse, ele era muito mais velho, mas ela amava-o.
- Tinha de ser assim para ter deixado virgem uma mulher tão sedutora!
Um novo silêncio, que Renaud empregou para perceber o que acabava de ouvir:
- Disseste: virgem?... Como é que sabes?
O Malik afastou as mãos num gesto mais explícito do que uma longa frase, porque traduzia uma evidência. No entanto, acrescentou com uma voz abafada:
- Receio que não possas compreender. Os seus cabelos cor de fogo inflamaram-me o desejo. Desde sempre que sonho com uma mulher com os cabelos daquela cor. O meu pai teve uma escrava parecida, mas menos bela porque não tinha os olhos de esmeralda desta. E eu tive um grande desejo por ela, que não teria conseguido reter se a rapariga não tivesse traído o seu senhor e não tivesse morrido... chicoteada! Quando sucedi ao meu pai, mandei procurar por toda a parte uma criatura que me realizasse o sonho. E encontrei-a... Se ela tem um lugar no teu coração, sinto-me desolado, mas não me peças que sinta arrependimento! Oh não! O seu corpo é um ramo de delícias dignas do paraíso...
Naquele instante, ele não estava a falar com Renaud, antes consigo mesmo, numa evocação que lhe perturbava o olhar. A sua boca ganhou uma expressão de avidez, ao mesmo tempo que a lambia como um gato. Ao que o cavaleiro, subitamente com vontade de estrangular aquele irmão de acaso, não conseguiu suportar. O jovem levantou-se:
-Tu violaste-a e ousas confessá-lo? - exclamou ele com uma violência que não tentou reprimir.
Al-Nasir Yussuf virou para ele um rosto sorridente, mas onde as pálpebras semicerradas não deixavam passar senão um reflexo negro:
- Que tom! Pergunto a mim próprio se serás meu irmão há tempo suficiente para to permitir? Além disso, já exprimi que me sentia triste por ti... Mas vou dizer-te a verdade: eu não forcei a jovem Leoa das pupilas verdes. As mulheres que a rodeiam tratam-na como uma Rainha... e sabem confeccionar bolos e néctares que apagam as asperezas de carácter e as reacções desagradáveis...
- Por outras palavras: entregaram-ta inconsciente? Ainda é pior! Quando se ama uma mulher, deve-se tentar amansá-la, conquistá-la.
- Quem é que falou de amor? Ela inflama de uma maneira maravilhosa os meus sentidos e é isso que eu quero! Pode ser que até me case com ela! Sobretudo, se ela me der um filho! E prometo-te que será feliz. Não falta muito para que seja ela a adiantar-se às minhas carícias.
- Nunca! Nunca conseguirás que ela se avilte como uma escrava... Ela é uma dama demasiado grande, demasiado orgulhosa!
- Antes de tudo, é uma mulher! E era uma rosa em botão que vai desabrochar, transformando-se numa flor magnífica! Vem ver!
O príncipe conduziu Renaud até uma espécie de cela contígua à sala em que se encontravam. Pequena, forrada com damasco vermelho, estava fechada por meio de uma cortina que, aberta, revelou uma janela fechada por uma grelha.
- Esta cela dá para o hamman do harém - disse o príncipe. - É só por seres meu irmão que recebes este favor excepcional, mas que te convencerá a nunca tentares arrebatar-me o meu tesouro mais precioso. Olha!
Num andar abaixo havia uma piscina de mármore branco e de mosaicos azuis, rodeada de colchões e almofadas sedosos. Nela estavam apenas três mulheres: Sancie e duas escravas negras, que a estavam a ajudar a descer para a água, segurando-a cada uma por um braço. Com firmeza, já que a jovem parecia ter dificuldade em mover-se e os seus olhos estavam quase fechados. Uma onda de cólera encheu o cérebro de Renaud: as três mulheres estavam nuas e as peles escuras e luzidias das duas negras exaltavam de maneira perturbadora a pele clara e docemente rosada de Sancie. Nos seus cabelos soltos, espalhados pelos ombros e pelo dorso, tinham entrançado uns fios de ouro e pedras preciosas: rubis e topázios, que compunham um manto cintilante, uma juba fulgurante de leoa, que se espalhou pela água quando ela entrou na piscina, escondendo, assim, o corpo mais encantador deste mundo dos olhos ávidos dos dois homens, porque o de Renaud devorava, tanto quanto o do outro, aquela visão por demais emocionante. Uma cólera com sabor a cinzas invadiu o cavaleiro, inundando-o com a vontade de matar aquele homem que desdenhava as leis da sua raça sobre os segredos de um harém para gozar um instante de um triunfo infame. O jovem viu que as escravas também entravam na água com Sancie e que a sustentavam: a jovem parecia totalmente inconsciente, se bem que tivesse os olhos abertos. Depois, a cortina caiu.
- Compreendeste? - perguntou Yussuf com a voz rouca. - Nunca ta entregarei!
- Nesse caso, batamo-nos! O vencedor ficará com ela. Dessa vez, o Malik desatou a rir:
- Reflecte um pouco! Se conseguisses vencer-me e matar-me - entre nós a brincadeira a que vós chamais torneio não existe - não verias o fim do dia e ficarias numa situação muito desagradável: os meus servidores matar-te-iam e a minha Leoa satisfaria os seus prazeres antes de ser vendida como escrava ou, talvez mesmo, executada. Tens de resignar-te, meu irmão!
- Quero vê-la.
-Já a viste e fiz-te um imenso favor ao deixar-te contemplar a beleza da minha futura mulher! E agora, creio que não temos mais nada a dizer um ao outro... a menos que aceites a Lei e viver a meu lado?
-Já conheces a minha resposta.
- Nesse caso, vai! livre e em paz! O emir Shawan vai escoltar-te até aos limites das terras francas. Lamento... mas talvez seja melhor para os dois! Não voltaremos a ver-nos, certamente!
- Por que não no campo de batalha?
- É provável, se o teu Rei se envolver na confusão deste país onde, por ódio ao Egipto, que ousou matar o meu tio Turan-Shah, chegámos a um entendimento proveitoso com os do Templo, que são os vossos guardiães tradicionais. Alguns deles apreciam a nossa cultura e nós o seu espírito aberto. Resultado: a paz mantém-se, mas o teu Rei não é parecido comigo, porque eu não gosto da guerra. Respirar um rosa ou o perfume secreto de uma mulher é muito mais enebriante. Gostaria que o fizesses entender isso. Que cumpra a sua peregrinação e que regresse a casa!
Sem outra palavra de adeus, o príncipe eclipsou-se por trás de uma tapeçaria. Renaud seguiu Shawan, que lhe devolveu as roupas e o cavalo, conservando as armas. Sem dúvida para lhas entregar no momento da separação?
Ao abandonar a fortaleza, Renaud viu que estava construída a oriente de um lago cujas margens pantanosas lhe fizeram recordar o Nilo, já que os grandes caniços chamados papiro também ali cresciam em abundância. Havia, também, numerosas aves e o conjunto oferecia uma imagem tranquila e um pouco melancólica, mas certamente encantadora. Renaud gostaria de saber onde se encontrava, mas como Shawan, tendo escolhido - o que o surpreendeu - ser ele próprio a acompanhá-lo, só e sem intérprete, se bem que armado até aos dentes, a conversa arriscava-se a ser curta.
Em silêncio, portanto, seguiram a margem durante uma meia-légua, mais ou menos, para sul, encontrando apenas uma ou duas aldeias de pescadores. O caminho era bastante largo e, de facto, não era outra coisa senão a rota das caravanas que ligavam Damasco ao Egipto, mas não se via nenhuma. Quando deixaram o lago para trás, foi para seguir ao longo de um curso de água tumultuoso que saía do lençol tranquilo para se precipitar por degraus rochosos. A um determinado momento, Renaud avistou, do outro lado do rio que era possível passar a vau naquele local sobre umas grandes pedras lisas, umas ruínas imponentes. Shawan parou e virou-se para o seu companheiro:
- Este rio é aquele a que os francos chamam Jordão e aqui é o vau de Jacob. Um dos teus reis construiu aqui um poderoso castelo contra os exércitos de Salah ed-Din...
- Mas... tu falas a nossa língua?
- Como podes ouvir.
- Nesse caso, para quê o intérprete na prisão?
- Porque ninguém precisa de saber. É bom conhecer a língua do inimigo, mas também é bom não o dizer a ninguém...
- Porquê a mim?
- Porque tu és o filho do meu saudoso senhor, o Malik al-Aziz Mohamed, que era meu amigo. Isso não quer dizer que sinta o mesmo por ti, mas tu és corajoso e o sangue do grande Sultão corre-te nas veias... Mais puro, talvez, do que o que corre nas de al-Nasir Yussuf. E agora, escuta-me! Tu vais atravessar o rio e esconder-te no velho kallatarruinado. Ali, esperarás o tempo que for preciso: uma ou duas noites, até que oiças, três vezes, o grito do falcão. Então, irás até à borda-de-água. Levar-te-ei lá a mulher franca.
- Por que razão o fazes? Ele mata-te!
- Se não o fizer, será ela que morrerá. Tu não sabes, mas Yussuf viveu até agora sob a tutela da sua avó, a temível Dharta-Khatum, que também o era de Turan-Shah, o seu tio assassinado há pouco pelos Mamelucos. A velha Rainha tem muitos ciúmes do seu poder. E al-Nasir Yussuf acaba de lhe escapar. Eu sei que ela está a caminho para levar o neto para Damasco... e para a razão.
- E ele vai obedecer-lhe?
- Não tem outro remédio: ela só lhe deixa a ilusão do poder, o que já não é mau. De criança fraca e caprichosa, Yussuf transformou-se num homem generoso mas caprichoso, incapaz de uma vontade contínua, salvo, talvez, no que diz respeito às mulheres por quem se apaixona, ou deseja. Dharta-Kathum não via nisso nenhum inconveniente enquanto ele tinha muitas, mas o facto de ele desejar apenas uma, ao ponto de querer casar com ela, e que, ainda por cima, essa mulher seja uma franca, faz com que ela não o suporte. Eu sei que ela está a caminho daqui. A Leoa, se ela a encontrar, será executada. Por isso, vou propor a Yussuf que a esconda...
- E ele acreditará em ti?
- Nunca lhe dei ocasião para que não acreditasse. Renaud pusera pé em terra e, levando o seu cavalo pela brida, aproximou-se da margem.
- Só mais uma palavra, por favor! Por que razão te preocupas com uma mulher, sobretudo uma franca? Tu despreza-las mais do que as outras, suponho?
- Esta é perigosa, como próxima dos teus soberanos. O teu Rei já deve saber que entre nós, os Sírios descendentes de Salah ed-Din, e a escumalha egípcia, não existe entendimento. Além disso, os Mongóis estão nas nossas costas. Não precisamos que o Rei de França nos caia em cima para vingar esta criatura. E agora, chega de conversa! Tenho de regressar!
- Ficas ofendido se te disser que vou rezar a Deus para que ele esteja contigo?
- Seja qual for o nome que Lhe derem, Alá é sempre Alá! Uma prece não me pode fazer mal nenhum!
O velho guerreiro deu a volta ao seu cavalo, partiu a galope e desapareceu por trás de um farto arbusto de estevas na curva do caminho. Com precaução, mas também com um sentimento de respeito, Renaud desceu até ao leito do Jordão. Aquele era o rio sagrado dos Cristãos, aquele onde fora baptizado Jesus, aquele cujas águas curavam os doentes, segundo a tradição, mesmo os leprosos, mas que, no entanto, não curara o jovem Rei mártir, que merecia mais do que qualquer um. Mas os desígnios do Senhor eram insondáveis e Balduíno vivera até ao horror a sua agonia, montado no seu cavalo...
Antes de mergulhar no Dédalo de pedras talhadas que ainda tinham vestígios do incêndio que destruíra o seu belo castelo, Renaud deu de beber ao seu cavalo e bebeu ele próprio longamente. Atados à sela, estavam um saco com aveia para o animal e um outro, mais pequeno, com tâmaras para o homem. Restava-lhe procurar um canto abrigado para dormir. O jovem encontrou-o perto de uma grande derrocada, numa sinuosidade da base pela qual, talvez, os sapadores de Saladino tinham minado o castelo. O Sol, que estivera escondido durante quase todo o dia por nuvens tempestuosas, estava a desaparecer. Ia começar a primeira noite...
Sabendo que Shawan não voltaria a aparecer tão cedo, Renaud tratou de descansar, mas, com o nascer do dia, a espera, com o seu cortejo de inquietações e imaginações mais ou menos razoáveis, começou. O cavaleiro instalou-se não longe do seu buraco, à sombra de um rochedo de onde via a vau e decidiu não se mexer mais.
O dia passou e a noite regressou. Nunca as horas lhe tinham parecido tão longas, tão incertas. Podiam acontecer tantas coisas! Tantos defeitos no projecto, tantos imponderáveis! A única actividade que Renaud concedeu a si próprio foi o cuidado da sua montada. O local era deserto e, à excepção das aves do céu, não se via ninguém, o que era bom. Regressada a obscuridade, o cavaleiro deixou-se dormitar. Mais tempo do que esperara, porque a Lua ia alta quando o grito do falcão o acordou e o precipitou na direcção do vau, no lado de lá do qual, imóveis e fantasmagóricas, se erguiam duas estátuas equestres... Uma era a de uma mulher fortemente velada. Shawan cumprira a sua promessa.
Em risco de quebrar o pescoço - mas a sua alegria era tão grande! - o jovem saltou de pedra escorregadia em pedra escorregadia, atingiu a margem e viu, então, que a silhueta feminina estava só. O velho guerreiro já tinha partido. A terra ressoava com o galope do seu cavalo.
- Madame! - exultou o cavaleiro - por fim, estais salva! Eu...
- Afastemo-nos, por favor! Tenho de descer?
A voz, abafada talvez pelos véus, era surda, átona e esfriou o entusiasmo do jovem, que segurou o animal pela brida para o levar até à água.
- Não, não! Vós sois leve e a passagem é fácil...
De facto, estavam na outra margem passados alguns instantes. Mas quando ele quis descer Sancie do cavalo para a convidar a repousar um pouco na sua gruta, ela recusou:
- Para quê? Não percamos tempo!
- O perigo não é grande. Estamos em terra cristã.
Ela estendeu um braço na direcção do conjunto negro de montanhas da Galileia.
- Achais que sim? Além é Safed, o ninho da águia dos Templários. O velho guerreiro disse que é preciso ultrapassá-la antes do nascer do dia... Ou já vos esquecestes do traidor que nos vendeu?
Subitamente dura, mas ainda melancólica, a voz esbofeteou-o, reacendendo a sua cólera e uma decepção tão cruel, que quase a injuriou. De que material pensava ela que ele era feito? O jovem preferiu não responder, foi buscar o seu cavalo e subiu para a sela sem dizer uma palavra. O ligeiro barulho das águas do Jordão apagou-se pouco a pouco.
Uma vintena de léguas, mais ou menos, separava a vau de Jacob de São João de Acra, mas as dificuldades do caminho através dos montes da Galileia, sobretudo evitando Safed, obrigavam, frequentemente, a seguir a passo e o que teriam feito em dois dias numa estrada plana, fizeram-no em três, antes que pudessem tomar um andamento mais rápido.
Viagem estranha, na verdade, que deixaria em Renaud uma amargura duradoura! O jovem tinha a impressão de cavalgar ao lado de uma sombra, de tal modo a sua companheira permanecia silenciosa. Ausente! Um corpo sem alma, dócil, seguindo as suas indicações mas não respondendo a nenhuma pergunta e desencorajando qualquer tentativa de conversação. O cavaleiro não ousava quebrar aquele mutismo voluntário, temendo que uma só palavra a magoasse. Mal lhe conseguia ver o rosto quando lhe oferecia água, pão e tâmaras. Ela mal afastava o véu de cor esfumada que usava no momento do rapto. E, sobretudo, evitava o contacto com a sua mão, mantendo-o à distância com um gesto seco quando ele a queria ajudar a descer da montada ou a subir para a sela. Aliás, ela praticava esse exercício com tanta ligeireza e agilidade como um jovem cavaleiro.
Renaud já não sabia o que pensar de uma atitude que não conseguia analisar. Não fizera nada que merecesse o seu ressentimento e até, face àquele fantasma rígido, proibia a si próprio evocar mentalmente a imagem delicada entrevista por trás das grades douradas, tal era o medo que ela lha pudesse ler no espírito. A esse propósito, o jovem perguntava a si mesmo se as drogas ingeridas lhe permitiriam guardar alguma recordação do que sofrera no castelo à beira do lago. Ou teria sofrido os assaltos do Malik totalmente inconsciente? Se se recordava, devia sentir-se envergonhada, miserável! Ou então, o que lhe tinham administrado tinha-a destruído irremediavelmente, deixando nela traços indeléveis que a estariam a levar à loucura? Aquela ideia era-lhe particularmente insuportável e Renaud só desejava uma coisa: chegar rapidamente a São João de Acra e entregar Sancie à dama Hersende. Só ela saberia o que fazer!...
Assim, quando, por fim, do alto da última colina, viram a cidade - tão branca contra o azul do mar! - o jovem não conseguiu evitar um grito de alegria e, arrastando atrás de si Sancie, partiu a galope. Um galope que foi necessário diminuir quando se aproximaram das portas sempre atafulhadas de gente que levava as suas coisas para o mercado, e de soldados, religiosos e mendigos, entre os quais se ouvia, por vezes, a cegarrega de um leproso, mas, quando já estavam no interior das muralhas, a sua companheira deteve-o com uma palavra:
- Messire!
Como ia à frente, o jovem virou-se:
- Madame?
- É aqui que nos separamos. Ides para o palácio, suponho?
- É claro, parece-me. Vós não?
- Não. Eu vou para o convento das Clarissas. Dizei à Rainha que imploro o seu perdão, mas não posso regressar para junto dela. E pedi-lhe que me mande Honorine!
- Quereis ir para freira? - perguntou Renaud, espantado.
- Apenas procurar um refúgio enquanto espero pela partida da próxima nau para Marselha. Não me acompanheis! Eu sei onde é o convento...
- Dama Sancie, sede razoável! A Rainha não merece que a punhais perante um facto consumado. Ela também não compreenderá que não seja o melhor asilo para vós.
- Ela é suficientemente piedosa para compreender que Nosso Senhor e Nossa Senhora estão antes dela. Ide, sire Renaud, e que Deus vos guarde!
Sem acrescentar mais nada, a jovem virou a cabeça do seu cavalo na direcção de uma rua, ao fundo da qual se erguiam as altas paredes encimadas por um campanário de uma capela. Renaud não tentou retê-la e contentou-se em seguir com os olhos a delgada silhueta cinzenta, inflexível e erecta, que se queria virar para Deus. O jovem sentiu-se bizarramente infeliz. Humilhado, até! Por que lhe recusara ela uma confiança que ele pensava ter merecido? Não aceitara tudo, até a perda definitiva da Cruz, para a socorrer? E eis que ela o tratava, senão como um inimigo, pelo menos com indiferença! Como um qualquer cavaleiro encarregado de a escoltar! Mais nada! Então, a decepção deu lugar à cólera:
- Que vá para o diabo! - disse ele sem muita lógica, antes de retomar o seu caminho na direcção da residência real. O que, praticamente, não o aliviou. O cavaleiro estava furioso consigo próprio, quase tanto como com Sancie. Comportara-se como um imbecil. Em vez de respeitar o silêncio obstinado em que ela se fechara, devia tê-la sacudido, maltratá-la, se necessário, para a fazer escarrar o que tinha na cabeça e no coração. Arriscando-se a transformar a interminável viagem numa longa justa oratória. Mas teria sido melhor para ambos! Primeiro para ele, porque se via forçado a explicar, sozinho, o que se passara depois do rapto da “dama de Valcroze” protegendo o melhor possível o seu pudor e, antes de mais, pedir perdão ao Rei por ter saído de Acra sem a sua autorização. Ora, ele sabia que Luís era muito cioso quanto à exactidão dos deveres de cada um e à obediência que daí advinha. Sobretudo depois da chegada à Terra Santa! Antes de se ir fechar num convento, Sancie podia ter-se dado ao cuidado de o acompanhar até junto dos soberanos. Ela fora raptada, Santo Deus! Não tinha fugido! Poderia contar o que quisesse - ou calar-se - mas, agora, o assunto era com ele e o jovem via erguer-se no horizonte uma infinidade de complicações. A começar pela história da Verdadeira Cruz! O santo Rei ia levar a mal que lhe tivessem escondido o segredo e responsabilizá-lo-ia pela perda irremediável da insigne relíquia. E já que estavam com a mão na massa, teria sido muito mais simples ir ao local da acácia com grande estadão e solidamente armados, o que teria impedido o drama final, assim como a infelicidade de Sancie. E Renaud não estava muito certo de que o facto de fazer apelo à sombra de Roberto d'Artois, o irmão tanto amado, fosse suficiente para lhe evitar as consequências do descontentamento real... Sem contar com o caso do sire de Fos, que ia ser preciso resolver. Único raio de esperança no meio daquela bruma cinzenta, o templário ia ver-se aflito para evitar, senão o julgamento dos seus pares, pelo menos o de Deus! E o duelo em terreno de liça que Renaud reclamaria!
Tudo muito pouco divertido! No entanto, quando se viu diante da portaria do palácio, Renaud sentiu um vago raio de sol atingi-lo: contar tudo à Rainha, tentando afastar provisoriamente a confrontação com o seu marido. A ela, poderia confessar-se e a doçura do seu olhar e do seu sorriso seria, para os seus males, a mais doce das consolações...
Absorto nos seus pensamentos, só se apercebeu da falta de animação quando chegou ao corpo da guarda. Habitualmente, o local fervilhava de gente. Não era o caso. Apenas algumas pessoas entravam ou saíam: unicamente religiosos ou mendigos, sempre em busca de socorro. Nenhuma figura familiar e nem o oficial da guarda pareceu reconhecê-lo. Teve de declarar o nome sem despertar, aliás, o mínimo interesse. O homem não devia ter nascido em França. Quanto ao título de escudeiro real, segundo o guarda, devia coincidir com outro aspecto que não o seu, o que valeu a Renaud a seguinte réplica:
- Desolado, mas o Rei não está em Acra e se sois quem dizeis, devíeis estar com ele. Ele levou a casa toda!
- Talvez, mas eu estava em missão. Onde está o Rei?
- Não sou eu que vo-lo vou dizer...
- E a Rainha? Ela também foi?
- Não, mas tenho ordens para não deixar entrar ou sair ninguém, a não ser que seja do seu serviço.
- O que é que isso quer dizer? Eu tenho de falar com ela. É de uma... extrema importância! Escutai - continuou Renaud, que acabava de ter uma ideia - conheceis o sire d'Escayrac?
- Conheço! Foi ele mesmo que ordenou que se fechassem as portas do palácio...
- Muito bem, ide chamá-lo! Pelo menos, falo com ele!
E como, visivelmente, o oficial hesitasse, Renaud acrescentou:
- Dizei-lhe que não saio daqui enquanto não lhe falar! E não esqueçais o meu nome: Courtenay!
O tom imperioso forçou a decisão. Um outro guarda foi chamar o velho senhor, mas o visitante, sem dúvida importuno, não foi convidado a abrigar-se do Sol no posto perto da grade. O cavaleiro teve de se contentar com a abóbada da entrada cuja sombra, aliás, era suficiente. Ali esperou longos minutos antes que o solo ressoasse sob o passo solene - e ferrado! - d' Escayrac, que caminhava com uma certa lentidão devida ao facto de, desde as grevas à cimeira, vir pesadamente armado. Descontente por ter sido incomodado e ainda por cima por Renaud, que detestava, não teve, no entanto, qualquer dificuldade em o reconhecer apesar da sujidade da sua pessoa. A troca de saudações foi breve. Tão polidamente quanto possível perante aquela longa face tão branca de pele como de barba que o olhava com desconfiança, Renaud pediu para ser levado à presença da Rainha.
- É impossível! Ninguém está autorizado a vê-la. Madame Margarida está doente...
- Doente? De que sofre ela?
- Não sei! Uma espécie de languidez... Desde que o nosso sire partiu que ela parece ter enfraquecido. O que não é nada bom para o seu estado...
- Estado? Quereis dizer que ela está mais uma vez...
- Grávida? Sim... Desde há pouco... Uma nova bênção do céu! - disse Escayrac, erguendo para a abóbada um olhar extasiado e duas mãos um pouco trémulas. - O que me dá, de novo, o privilégio de velar pelo seu ventre quando o Rei se ausenta. E foi por causa dessas - e tão comovedoras! - indisposições que ela não acompanhou o marido...
- E onde está o Rei?
Do êxtase, Escayrac passou para o arrebatamento. Só lhe faltava a auréola:
- Foi colocar os seus passos nos de Nosso Senhor Jesus Cristo, tal como jurou quando pegou na Cruz. Foi aos Lugares Santos, onde deseja caminhar humildemente de pés nus, em camisa e...
- Perdoai-me, mas eu não sei onde são esses Lugares Santos... para além de Jerusalém, que fica muito longe, a Sul, e que nós não reconquistámos, que eu saiba?
- Sem dúvida, sem dúvida, o que é uma grande pena. Mas, graças ao Altíssimo, ainda temos alguns, como Nazaré, onde o filho de Deus cresceu e outros lugares da Galileia.
- Na Galileia? Por acaso, sabeis se Nazaré fica longe de Safed?
- Por minha fé, sei tanto como vós. De qualquer modo, creio que ouvi dizer... que é perto. E agora, peço-vos que me permitais regressar aos aposentos da Rainha. Ela não está só, bem entendido, e a donzela Elvira...
- Elvira? E a dama Hersende?
- Bem, para dizer a verdade, há dois dias que não sei dela. Começo a ficar inquieto...
Renaud teve a impressão de que o céu lhe caía em cima da cabeça:
- Estais a dizer-me que a dama Hersende não esta à cabeceira de Madame Margarida quando esta precisa tanto dela.
- É verdade, e podeis acreditar que estou muito preocupado...
- Mas, enfim, quem é que está junto dela? A sua irmã, Madame d'Anjou? Madame de Poitiers?
- Ah não! Os irmãos do Rei regressaram a França ha... uma semana com o duque de Borgonha e outros senhores- Mas temos a dama de Montfort, que trata do pequeno príncipe e a dama de Sergines... se bem que esta última não esteja no seu melhor. Além disso, temos a Adèle e também Honorine - a dama-de-companhia da infeliz dama de Valcroze, mas essa esta sempre a chorar.
- Misericórdia!
Era pior do que pensava. Margarida estava entrega” quase sem defesa, às maquinações de Elvira. A ausência de Hersende era mais do que significativa e o drama podia acontecer a qualquer momento. Era preciso fazer qualquer coisa e depressa.
- Regressai para junto da Rainha - ordenou ele - e vigia a donzela de Fos! Ao menor gesto suspeito, não hesiteis em agarrá-la... e matá-la, se for preciso!
- Eu? Mat... Mas eu não estou no interior do quarto.
O ancião ficara ainda mais pálido, se isso era possível e, pelo seu olhar, Renaud viu que ele hesitava. Escayrac gaguejou:
- Essa donzela tem más intenções? Quereis fazer-me acreditar nisso?
- Estou capaz de o jurar! Dai o vosso melhor. Eu vou tentar enviar-vos reforços...
Um pouco aliviado por ter partilhado os seus receios com o velho cavaleiro, Renaud foi buscar o seu cavalo e alguns minutos mais tarde tocava a sineta do convento onde Sancie se dirigira,
Não foi fácil convencer a irmã porteira a deixá-lo entrar no interior da santa casa. Ela admitiu que uma jovem dama entrara recentemente, mas que um cavaleiro se apresentasse logo a segui parecia-lhe mais uma perseguição. Tanto mais que o recem-chegado não era nada Repulsivo apesar do seu aspecto sujo. Renaud, a quem a inquietação retirava toda a tranquilidade, teve de fazer um grande esforço para refrear uma impaciência próxima da irritação face àquele rosto por trás da grade do postigo, que seria insignificante se a obstinação e a desconfiança não o tornassem francamente desagradável. A dama de Valcroze pedira asilo, o que significava que ninguém podia ser conduzido até ela. E ela não queria sair.
- Trata-se de um caso extremo, minha irmã! Posso assegurar-vos que não vos será feita qualquer censura - suplicou Renaud. - Tenho de lhe falar...
- Ela está muito determinada. Nem a nossa Madre Superiora conseguiria convencê-la. Retirai-vos em paz!
- - Em paz?... Pedi à Madre Superiora que me receba! Isso não é impossível, imagino?
- A esta hora? É. As irmãs estão todas na capela.
- Nesse caso, eu espero. Mas ficais a saber que não saio daqui enquanto não falar, pelo menos, com a Madre Superiora! E tocarei esta sineta a cada minuto que passar, até que se decidam a receber-me!
E, juntando o gesto à palavra, o cavaleiro accionou a sineta sob o olhar assustado da freira, que se benzeu precipitadamente, mas que consentiu, enfim, em abrir a porta.
O interior era uma sala cuja abóbada baixa era sustida por espessos pilares e, ao fundo, via-se a claridade de uma bela luz amarela vinda de um jardim rodeado por um claustro, revelada por uma porta deixada entreaberta, mas entre ela e o visitante estava a pequena silhueta branca da porteira. Ela intimou-o a não se mexer, mas no momento em que a freira se eclipsava por trás da abertura, Renaud gritou-lhe:
- Dizei-lhe que se trata da vida da Rainha!
Um instante mais tarde, a freira regressou para o levar, através do claustro deserto, até uma divisão nua, à excepção de um grande crucifixo de bronze pregado na parede. Sancie estava no interior dessa divisão.
Ajoelhada diante da cruz, rezava com a cabeça entre as mãos e, de imediato, ele não percebeu que era ela por causa do hábito branco, do escapulário e do véu, que a tornavam igual às outras religiosas. E já abria a boca para dizer “minha mãe” quando ela se levantou e se virou para ele. Dessa vez, ele pôde ver-lhe o rosto rodeado pelo fino véu. A sua nudez revelava os vestígios das lágrimas e uma profunda tristeza, mas a antiga combatividade continuava a morar nos seus magníficos olhos verdes. Assim como a sua voz, que não tremeu quando ela disse:
- A vida da Rainha! Não encontrastes nada melhor?
- Não pensais que inventei? Acabo de chegar do palácio. Madame Margarida, mais uma vez grávida, está doente e só, apenas com a donzela de Fos! A sua irmã e a sua cunhada regressaram a França e a dama Hersende desapareceu há dois dias. Ninguém sabe onde ela está. O velho sire d'Escayrac, que vela de novo pelo seu ventre, já não sabe para onde se há-de virar. Então, vim buscar-vos.
- Pensava ter-vos dito que o meu lugar, agora, é aqui. Aliás, nem sequer aqui, que está demasiado perto da corte...
- Da corte? Quem vos disse que existe uma corte? Acabo de vos dizer que a Rainha está só...
- Com o seu velho camareiro, as mulheres do seu serviço, a sua cantora preferida, e é por a sua médica estar ausente que está em perigo de vida? As mulheres ficam sempre doentes no início de uma gravidez! Não sejais ridículo!
- Que se passa convosco, Sancie de Signes?
- Eu sou a dama de Valcroze!
- Para mim, não! Onde está a vossa presença de espírito, a vossa subtileza, a vossa inteligência? O que sofrestes fez-vos esquecer o amor que sentíeis pela vossa madrinha?
- Não! Mas não compreendo a vossa agitação! Mais uma vez, Madame Margarida não precisa de mim. Antes de partir, despedir-me-ei dela... por carta!
Decididamente, a dama não queria ouvir e Renaud procurou tocar numa corda que fizesse soar aquele coração que parecia não existir. Subitamente, o cavaleiro teve uma ideia:
- Dizei-me, Madame de Valcroze, sabeis como se chamava o templário que vos raptou?
Ela encolheu os ombros com a sombra de um sorriso.
- Ele não teve a cortesia de se apresentar.
- Era o que eu pensava. Chamava-se Roncelin de Fos e é irmão daquela Elvira que enviséa a Rainha com a sua música e a sua poesia... enquanto espera por uma oportunidade para a matar! Não percebestes nada do que dissemos um ao outro em Safed e nos Cornos de Hattin? Para vingar aquela que amava, Fos pretende destruir tudo aquilo de que o Rei gosta e ama: a Verdadeira Cruz, para que a sua protecção não se estenda a ele, a sua mulher e, sem dúvida, o seu filho recém-nascido... enquanto aguarda por uma oportunidade para o matar a ele! Nada o deterá! Nem sequer Deus, e devo dizer: sobretudo Deus, a quem ele não teme! E a irmã é cúmplice. Foi colocada junto da Rainha com um único objectivo...
- Calai-vos!
O jovem compreendeu que atingira um ponto sensível. A jovem tornara-se tão branca como o seu hábito monacal:
- Aquele monstro nunca respondeu a uma única das minhas perguntas - murmurou ela. - E não percebi nada do que dissestes um ao outro.
- Bem, agora já sabeis! Por piedade, Sancie, ajudai-me a salvá-los, a ela e ao bebé!
Seguiu-se um silêncio bastante longo. Porém, ela não lhe virou as costas, antes pelo contrário: dardejou sobre ele um fogo verde, que lhe buscava a alma através do olhar. Por fim, a dama disse, e a sua voz saiu com uma profunda e involuntária tristeza:
- Continuais a amá-la, não é verdade? Mais do que outrora, já que éreis, então, uma criança! Agora, amai-la como um homem.
Ela não lhe estava, exactamente, a fazer a pergunta: estava a enunciar uma evidência e Renaud não tinha razão para lhe mentir. O jovem esboçou um sorriso:
- Vós possuís, tal como a dama Hersende, o dom de ler no fundo da alma e eu não vejo por que razão havia de negar... Seria mentir e eu sou pouco hábil nisso! Particularmente convosco!
- Devo compreender que nunca mentistes e que nunca mentireis?
- Não preciso de jurar. Entre nós, é impossível...
- Chega-me!
A dama virou-se de novo para Cristo na cruz, foi beijar os Seus pés e depois, sem olhar para Renaud:
- Podeis ir! Dentro de alguns momentos sairei do convento.
- Para ir ao palácio?
- Para ir ao palácio! Não me espereis! Quero ir sozinha...
- Obrigado! - murmurou ele, mais emocionado do que imaginaria.
O cavaleiro saudou-a com sincero respeito, mas ela não reparou. Renaud também não viu as lágrimas que lhe corriam pelas faces.
O ÚLTIMO ACTO
Um pouco mais descansado, Renaud regressou ao seu alojamento. Precisava de um banho e de roupa lavada. Precisava, também, de encontrar os que deviam estar à sua espera: Gilles Pernon, cujos conselhos aprendera a apreciar e o pequeno Basile, pelo qual ganhara afeição. Ao passar diante da igreja de São Miguel, apercebeu-se de que estavam ali a celebrar um serviço fúnebre. O vigoroso Miserere, berrado por gargantas sólidas, chegava até ele pelo portal aberto e o jovem não pôde reprimir um sorriso ao pensar nos furores de Joinville, cujo quarto dava para o santuário, que estava sempre a refilar contra a frequência dos enterros, sobretudo nocturnos, que o impediam de dormir. Dessa vez, o mordomo-mor de Champagne não se queixaria: devia estar algures, na Galileia, a cantar, também ele, os salmos e os cânticos na companhia do Rei. Renaud não esperava encontrá-lo. Mas quando, depois de ter tratado do seu cavalo, transpôs a soleira da sua casa chamando os nomes de Gilles e de Basile, nenhum eco lhe respondeu. Nem sequer o da serva colocada ao seu serviço pela proprietária. O jovem percorreu os quartos e o pátio interior sem encontrar viv'alma.
No entanto, ficou descansado quando constatou que tudo estava em ordem e que, na cozinha, fervia na lareira um guisado de carne. O que lhe lembrou que tinha fome. O cavaleiro procurou - e encontrou! - pão, queijo e fruta, tirou um jarro do vinho da pipa e instalou-se na soleira do seu quarto, que dava para o pátio por meio de umas grandes persianas de madeira pintada, para esperar confortavelmente o regresso fosse de quem fosse. A serva regressou quando ele estava a meio da sua refeição. Ele deu-se conta porque ela lançou uns gritos enormes ao aperceber-se do rombo feito na sua despensa. Ele levantou-se e foi saudá-la:
- Não griteis assim, Perpétua! Ninguém vos roubou! Fui eu que me servi!
Ao vê-lo, ela lançou outro grito, largou o jarro de leite que tinha na mão e benzeu-se precipitadamente três ou quatro vezes.
- Bem, não pensava fazer-vos tanto medo! - disse ele, inclinando-se para apanhar os cacos de argila. - Que se passa? Onde estão mestre Pernon e Basile?
- Foram à pesca!
Em seguida, como ele olhasse para ela sem parecer compreender, Perpétua recuperou a compostura procurando uma esponja para limpar o leite derramado:
- Sim, à pesca! Que queríeis que eles fizessem depois de lhes dizerem que tínheis morrido? Sempre é melhor do que andar pelas tabernas do porto e, pelo menos, evito comprar peixe.
- Mas, enfim, isso é ridículo! Quem é que disse que eu tinha morrido?
Ela não teve tempo de responder: com um grito de alegria, Basile entrou na cozinha e abandonando o cabaz que segurava na mão, atirou-se, chorando e rindo ao mesmo tempo, para os braços de Renaud, que o apertou:
- Sire Renaud - gaguejou ele - sois mesmo vós? Oh, bendito seja o nome do Senhor!
O pequeno desatou a soluçar sem deixar de rodear os joelhos do cavaleiro, que se acocorou para o obrigar a largá-lo e a pôr-se de pé. O desgosto sentido por aquele pequeno emocionava-o mais do que imaginara, mas não era homem de grandes ternuras. Renaud segurou-lhe a cabeça com ambas as mãos para o beijar na fronte e ergueu-o, ao mesmo tempo que também ele se levantava.
- Vamos, acalma-te! Como vês, estou vivo. É o principal, não? Mas isso não me diz por que razão acreditaste que estava morto!
Pernon chegou naquele momento, mas, devido à idade, sabia controlar-se melhor do que o jovem grego. O velho escudeiro Hmitou-se a oferecer ao seu jovem senhor um grande sorriso:
- Ah, eis-vos de volta! Eu sabia que estáveis vivo! O miúdo não me queria ouvir! É verdade que ainda não nos compreendemos muito bem. Se bem que ele faça progressos a cada dia que passa...
- Que alguém me diga de onde veio esse boato!
- Do Templo! E eu vou dizer-vos o que sei, mas, primeiro, ides tomar banho. Meteis medo com tanta sujidade, sire Renaud! E, salvo o devido respeito, não cheirais a rosas!
Em poucos minutos, o escudeiro puxou para o pátio uma grande barrica de madeira munida de um orifício, que encheu até metade com água tépida antes de ordenar a Renaud que entrasse para dentro dela. Em seguida, armado com um grande sabão esverdeado que exalava um odor a azeite, começou a esfregá-lo:
- Isto lembra-me o dia da vossa chegada à residência de Coucy quando, na estufa, vos esfolaram sob o olhar interessado da pobre Flore d'Ercri. Não passáveis, então de um franganote, mas ela sabia olhar, a espertalhona! Que diria ela, agora!
- Chega! Conta-me o que quero saber! É mais importante do que esses disparates todos!
- Já lá vou! Primeiro, tendes de saber que, depois da vossa partida, messire de Joinville me arrastou até junto do Rei, que estava furioso convosco e, acreditai-me, por mais santo que seja, não é nada agradável uma pessoa ter de se haver com ele num momento daqueles. Oh, ele não berra como berrava o senhor d'Artois. Toda a sua pessoa permanece gelada enquanto a cólera lhe sai pelas narinas...
- Por que a cólera? Por que parti sem autorização?
- Exactamente! Ele não suporta que as suas ordens sejam transgredidas. Mas havia outra coisa: tinha acabado de chegar uma carta... E não era nada boa!
- De quem?
- Mistério! Como assinatura um vago gatafunho e, bem entendido, não tinha selo. Dizia que éreis o autor do rapto da dama Sancie e que não havia razão para inquietações porque o tínheis feito para a obrigar a casar convosco...
O sabão que Renaud esfregava maquinalmente nas mãos escapou-lhe e voou para aterrar num jarro de cista cheio de grandes flores felpudas e cor-de-rosa.
- E o Rei acreditou que eu queria tanto casar com a dama de Valcroze, ao ponto de empregar tais meios? A Rainha também acreditou?
- Ela, não sei, mas o nosso sire Luís acreditou.
- E por que razão havia eu de querer casar com ela?
- Ela é muito rica e passardes a ser barão de Valcroze faria de vós um verdadeiro senhor em vez do simples cavaleiro que sois, sem vintém! Estai quieto! Eu limito-me a explicar. E acrescento que messire de Joinville defendeu-vos corajosamente, recusando acreditar que fôsseis capaz de uma tal vilania. Foi ele que propôs irem buscar-me para eu dizer o que sabia da mensagem que tínheis recebido. Eu sei que me tínheis proibido de falar dela, mas não podia deixar que vos acusassem. Assim, disse o que sabia.
- Não te censuro. Que disse o Rei?
- Muito pouco, senão que era preciso seguir o assunto para descobrir a verdade... Entretanto, admitiu que nas terras do Oriente as coisas nem sempre são como nos nossos países...
- Essa é boa! E a minha morte, no meio disso tudo? -Já lá vou! Levantai-vos para eu vos enxaguar!
O velho escudeiro contou que Basile seguira Renaud, quando este deixara a casa, até à porta da Galileia, onde fora testemunha do seu encontro com Ali; após o que se aproximara do rapaz portador da mensagem, que pouco mais velho era do que ele. Entre miúdos é fácil meter conversa e o que Basile queria saber era o nome do cavaleiro que mandara a mensagem a Renaud.
- É evidente - continuou Pernon - que não podia fazer-lhe a pergunta assim de chofre. A coisa demorou, portanto, algum tempo. O rapaz, que se chama Thomas, é filho de um pescador da parte baixa da cidade, Nicaise, que fornece há muito tempo a casa-mãe do Templo.
- Foi por isso que te puseste à pesca? - perguntou Renaud com uma centelha divertida no olhar.
- Não sou tão desajeitado como isso, apesar de, em tempos, ter pescado apenas nos lagos de Coucy. Não importa, consegui ganhar a confiança a confiança dele, assim como Basile ganhou a de Thomas. Foi assim que acabámos por saber que o cavaleiro era um dos turcopoles do Templo. Um tal Ali, cujo nome de baptismo era Leon...
- E inteiramente dedicado a Roncelin de Fos! - completou Renaud.
- Ah! Isso, ignorava!... mas desconfiava! A partir do momento em que o golpe vinha do Templo, tinha de ser Roncelin.
- E tu não sabes a que ponto! Vou contar-te tudo, mas, primeiro, acabemos com a questão da minha morte!
- Oh, isso foi simples! A propósito da história do rapto de uma dama nobre por conta de um emir, o Rei consultou o Grão-Mestre, que era o homem ideal para se informar sobre o que se passava no outro lado da fronteira. O que este aceitou de boa vontade e foi ele quem, há mais ou menos dez dias, anunciou que o cadáver de um cavaleiro franco, parecido convosco, foi descoberto na margem do lago de Tiberíades, em tão mau estado que foi necessário, por causa do calor, enterrá-lo de imediato. O Rei disse-o a messire de Joinville, que o disse a nós! Foi duro, sabeis? Sobretudo para o pequeno, que chorou durante noites inteiras... e até durante o dia, quando íamos à pesca! Tinha de mantê-lo ocupado... E agora chegou a vossa vez!
- Acabemos a minha toilette! Para o que tenho para te dizer, prefiro a calma... e até o recolhimento! É de tal modo grave! E tão triste! Entretanto, estou inquieto por Madame Margarida. Ela está grávida... mais uma vez! Santo Deus! - explodiu Renaud - O Rei não sabe fazer outra coisa senão meter-lhe uma criança no ventre quando está com ela?
- Quer dizer... é o costume nos casamentos normais - arriscou Pernon.
- Que tristeza! Nesse caso, viva o amante! Uma mulher tão delicada merece que a adorem, que queimem por ela os perfumes mais raros, que a cumulem de carícias, de palavras de amor, de poemas e de canções celebrando o seu encanto... Em vez disso e sem sequer lhe dar tempo para respirar, engravidam-na entre duas preces, condenando-a às indisposições durante meses e, no fim, ao sofrimento. Ainda por cima, fica doente no preciso momento em que a dama Hersende desaparece inexplicavelmente!
- Desapareceu?
- Aquele velho tolo do Escayrac diz que não a vê há dois dias. Por Deus! Eu era capaz de dar.,, qualquer coisa para saber para onde ela foi!
- Podemos sempre tentar - disse Pernon, pensativo.
E conseguiu. Naquela mesma noite o mistério foi esclarecido e, de facto, não tinha nada de extraordinário: Hersende partira para Chipre a fim de examinar a Rainha Estefânia, cuja saúde estava a provocar uma grande inquietação. Com a graciosa autorização da própria Margarida, reconhecida pelo acolhimento recebido na ilha por ocasião da hibernação da cruzada. Ela gostava da doce e tímida arménia e fora de boa vontade que emprestara - por alguns dias, apenas! - uma médica cuja reputação era sem falhas.
- Para homem de confiança, o sire d'Escayrac não parece estar muito ao corrente - comentou Renaud. - É inconcebível!
- Não é bem assim! Segundo Adèle, ele já está. um pouco gaga. Além disso, leva demasiado a sério o seu papel de curador (1), que acaba por irritar a Rainha e a leva a esconder-lhe, com alguma maldade, certos factos, como a razão da partida dama Hersende. Enquanto se preocupa, não fica ali especado a três passos da sua cadeira, contemplando-a com olhos de carneiro mal morto e procurando inimigos em todos os cantos.
- Isso não é um pouco imprudente?
- Adèle diz que não e eu acredito. Segundo ela, a Rainha não está assim tão doente. Sofre, apenas, daquilo que ambas conhecem bem: os inconvenientes de um começo de gravidez. Quando à dama Hersende, regressa antes do Rei. Por isso, deixai de vos atormentar!
- Nesse caso, tanto melhor! Mas não deixei de me cobrir de ridículo ao ir buscar a dama de Valcroze ao convento com o pretexto de que a Rainha corria perigo. Ela nunca me perdoará!
- Depois do que lhe consentistes e sofrestes por ela, seria o cúmulo da injustiça e da ingratidão... Eu sei - acrescentou o velho escudeiro com um encolher de ombros desiludido - que
(1) Indivíduo nomeado para curar dos interesses de um nascituro.
as mulheres nunca vêem as coisas como nós, mas, por agora, tentai esquecer, porque o perigo está afastado!
- Enquanto Elvira de Fos estiver perto dela, o perigo nunca estará muito longe.
- Talvez, mas ficai calado até ao regresso do Rei. Então, podereis, em plena luz do dia e perante os grandes barões todos reunidos, denunciar Roncelin, o traidor! E a dama Sancie estará presente como testemunha... Então, a irmã desaparecerá com o irmão!
- Certo, fá-lo-ei! Rezemos, portanto, para que o Rei nos faça rapidamente justiça!
O jovem não acrescentou que, até lá, não estaria totalmente tranquilo para não preocupar aquele que era mais seu amigo do que servidor...
Dois dias depois a carta chegou e, com ela, voaram as certezas de Pernon e a relativa tranquilidade de espírito de Renaud. Fora Sancie que a escrevera e dizia: “Tínheis razão. Existe um grande perigo que só vós, sem dúvida, podeis conjurar. Alguém deseja falar convosco e confiar-vos uma missão. Tereis de estar, esta noite, no mercado de Veneza sob a passagem que dá acesso à antiga torre de entrada do palácio. Esperar-vos-á ali uma mulher. Não lhe faleis. Deve ser evitado qualquer ruído. Levai o que vos envio, mas não esqueçais a vossa espada. Sancie.”
Um saco de tela acompanhava o bilhete, contento uma cogula de burel negra muito monástica. Fora tudo entregue a Perpétua por uma camponesa sem outro sinal distintivo que não o burro em que ela ia montada entre dois cabazes cheios de abóboras, couves, alhos e outros legumes.
- Então? - perguntou Renaud, estendendo a mensagem a Pernon. - Não tinha razão?
Este abanou a cabeça mastigando o bigode grisalho, como era seu hábito quando alguma coisa não ia bem:
- Dir-se-ia que sim, mas gostaria de saber de que missão vos querem encarregar. A única inteligente, quanto a mim, seria ir em busca do nosso sire para lhe pedir que regresse o mais depressa possível. E, para isso, não é necessária uma entrevista secreta: bastava dizê-lo nesta mensagem.
- Só prova, simplesmente, que se trata de outro destino.
- E que vós vos sentis muito feliz por a dama Sancie vos chamar! Como vedes, ela não vos quer mal...
Um pouco antes da meia-noite, Renaud, quase invisível sob o hábito de monge cujo capuz lhe dissimulava o rosto, chegava à praça que fechava, em parte, ofondaco veneziano, cuja entrada estava assinalada por duas lanternas. O aroma picante da pimenta, do gengibre, da canela e da noz-moscada, emanando das lojas fechadas, chegava-lhe às narinas, substituído depois pelo odor acre do couro de um fabricante de selas, botas e arnezes. Sobre a sua cabeça, o céu estava coberto de nuvens que tornavam ainda mais pesado o calor daquela noite de Verão. A sua direita, a passagem anunciada desenhava na obscuridade a sua ogiva tenebrosa, que o jovem observou por um instante antes de meter por ela... Então, viu destacar-se uma silhueta, da qual se aproximou. Era mesmo aquela que devia guiá-lo. Sem uma palavra, ela segurou-o por um braço para o levar até à base da alta torre ameada que dominava a praça. Renaud conhecia o local que, perto do porto, era o centro nevrálgico de Acra. Sabia que junto da torre havia uma pequena porta, de tal modo coberta de ferro e cavilhas enormes que era à prova dos mais poderosos aríetes. Bastava um único guarda para a defender, e era muito cómoda para as pessoas do palácio, porque comunicava directamente com o bairro mais comercial... A mulher não a devia ter fechado ao sair: a porta abriu-se sob a pressão da sua mão. Ela murmurou qualquer coisa ao guarda e encaminhou-se para a escada em caracol que ocupava o interior da torre.
A ascensão pareceu interminável ao cavaleiro, entre a alegria de rever, enfim, aquela que amava e uma vaga inquietação. Por fim, atingiram um corredor iluminado aqui e ali por archotes e que serpenteava por entre as muralhas. Seguiram-no até que uma cortina foi erguida pela mulher, revelando uma sala de dimensões modestas mas sumptuosamente decorada com tapetes e tapeçarias de seda. Nesse instante, o som de um alaúde fez-se ouvir e o coração de Renaud bateu mais depressa.
Com um dedo na boca para o incitar ao silêncio, a mulher levou o seu companheiro para o fundo onde, por trás de uma cortina, se encontrava uma porta que ela abriu, empurrando-a para o interior antes de a fechar a seguir à passagem do cavaleiro: o jovem acabava de entrar no quarto de Margarida...
Renaud não viu nada da decoração: apenas ela! Que não tinha o mais leve ar de doente. Meio estendida numa espécie de divã à moda turca no meio de uma infinidade de almofadas, era ela que tocava. Vestida com uma sarka, um amplo vestido coberto de bordados dourados e deixando a parte de cima do busto a descoberto, moda que adoptara em Chipre, sonhava, deixando os dedos acariciar as cordas do instrumento. Os seus espessos cabelos escuros e lisos estavam reunidos numa longa e espessa trança, deslizando de encontro à curva do seu ombro. Nunca estivera tão bela e Renaud, ofuscado, teve de se conter para não se lançar aos seus pés, nus dentro de umas pequenas sandálias douradas.
Ela não o ouvira entrar e então ele concedeu a si próprio o delicioso prazer de a contemplar sem evitar um ciúme furioso do possuidor daquela maravilha vestida de maneira tão encantadora. O jovem não podia saber que Margarida só usava aquele vestido - presente da Rainha Estefânia - na ausência do seu marido, que o achava demasiado imodesto, mesmo na intimidade conjugal. A jovem Rainha vestia-o unicamente para seu único prazer, mas o facto de o usar para o receber representava para ele, que a olhava, perspectivas vertiginosas...
Entretanto, era preciso manifestar-se. Avançando dois passos, o jovem cavaleiro tirou o capuz e pôs um joelho em terra:
- Aqui estou às ordens da Rainha! Infinitamente feliz por ela precisar de mim.
Margarida sobressaltou-se, pôs de lado o alaúde, instalou-se no meio das almofadas, abriu a boca, fechou-a e, finalmente, disse:
- Messire de Courtenay? Mas, que fazeis vós aqui?
O jovem ficou tão surpreendido que não encontrou a resposta de imediato. Com impaciência, ela insistiu:
- Vamos! Respondei-me! Que fazeis aqui? - Uma dama acompanhou-me até aqui, tal como dizia o bilhete da dama de Valcroze!
- O bilhete? Qual bilhete?
- Este.
Para o tirar da cagula, ele levantou-se, o que fez com que Margarida lhe desse pelo peito, oferecendo-lhe um “decote” encantador e o privilégio de lhe respirar o perfume.
- Sancie deve estar louca! - exclamou ela. - Aliás, onde está ela?
- Mas... junto de vós, Madame, tal como me prometeu há três dias!
- Ela prometeu-vos, há três dias, vir para junto de mim? Onde vos fez ela essa promessa?
- No convento das Clarissas, para onde se retirou, sem dúvida para se recolher depois das provações sofridas no palácio do Malik de Damasco, de onde eu a tirei. Ela não veio?
- Não a vejo há semanas! - exclamou ela, endireitando-se. - Confesso que não estive muito longe de a acreditar... morta. Aliás, como vós mesmo... É de loucos!
Ela meteu a cabeça nas mãos e pôs-se a caminhar agitadamente pelo quarto. Renaud ousou detê-la na passagem, segurando-a por um braço:
- Madame! Acalmai-vos, suplico-vos! Talvez possamos tentar compreender...
- Sim... Tendes razão. Sentai-vos e explicai-me!
Ela pegou-lhe, por sua vez, numa mão e dirigiu-se para uma cadeira de cedro de espaldar com incrustações de marfim colocada junto da janela, em frente de um vaso onde desabrochava uma magnífica roseira púrpura. A Rainha designou-lhe um tamborete, mas ele preferiu ajoelhar-se junto dela e ela não o impediu:
- Contai-me tudo, mas depressa! Isto parece-me mais uma conspiração!
No entanto, ela não deixou de lhe sorrir, feliz, talvez, com uma presença muitas vezes desejada e que não confessava a si própria. A chama que brilhava nos olhos negros daquele belo cavaleiro não podia deixar nenhuma mulher indiferente, muito menos ela. Hersende não dissera que ele a amava?
Tão rapidamente mas também com o máximo de clareza de que foi capaz, o jovem relatou a sua odisseia e a de Sancie, evitando, no entanto, duas realidades: os ultrajes infligidos à virtude da sua amiga e o seu próprio parentesco com a família de Saladino, limitando-se a explicar o estranho comportamento do emir Shawan pelo perigo que o duplo reino de Alepo e de Damasco corria perante a perspectiva de uma sultana franca!
- Ele decidiu fazer com que nos evadíssemos os dois antes da chegada de Dharta-Kathum. Por vezes, entre os Infiéis, surgem guerreiros sábios e magnânimos.
- Tivestes sorte e eu agradeço ao Senhor! Que história incrível! Sancie! A “minha” Sancie inspirando uma paixão louca num Sultão!
- Nenhum de nós... está ao abrigo de um sentimento ardente, que nos pode ultrapassar. O amor não conhece religiões, nem guerras... nem majestades. Apenas o ser a quem se dedica a vida e o coração... todos os pensamentos, todos os desejos...
Estabeleceu-se entre os dois um silêncio. Os olhos de Margarida mergulharam nos de Renaud, miraram-se neles, procurando o calor daquela chama tão docemente ardente. A Rainha pousou as suas mãos nas dele, inclinou-se para ele atraída pelo ardor irresistível de uma paixão há demasiado tempo contida. Muito perto do seu rosto, ela murmurou:
- Renaud! Amais-me?
- Perdidamente, Madame...
Então, ela pousou os seus lábios nos dele. Um beijo de uma ternura infinita, leve como o de uma borboleta a uma flor, mas aquelas bocas que se uniam eram de carne e osso, o sangue tornou-se tumultuoso, o beijo mais profundo; e quando Renaud, esquecendo tudo, quis tomar Margarida nos braços, ela repeliu-o, levantou-se e afastou-se na direcção das cortinas azuis e douradas do leito, onde escondeu o rosto:
- Eu também vos amo - disse ela com a voz um pouco rouca. - Mas tendes de vos contentar com isso... Senão, estamos perdidos... Vós e eu! Talvez, até, já o estejamos... Esse bilhete estranho! A vossa aparição neste lugar sem que saibamos quem o decidiu!
- No vosso séquito há uma víbora, Madame! A irmã é o instrumento do irmão e Roncelin de Fos jurou...
- Elvira! Deveis ter razão! Alguém maquinou isto tudo e só pode ter sido ela!
Margarida pegou numa pequena campainha de prata pousada em cima de uma mesa e agitou-a. Sem obter resposta. Então, a Rainha correu para a porta, mas não conseguiu abri-la apesar dos seus esforços, aos quais se juntou de imediato a força de Renaud.
- Fecharam-nos aqui! - gemeu ela. - Meu Deus! Que significa... Não vistes ninguém no caminho para cá?
- Ninguém, senão o guarda à porta da abóbada.
- Nenhuma das minhas mulheres? Adèle, por exemplo? Nem o sire d'Escayrac? Mas, onde está esse homem?
- Deve ter acontecido qualquer coisa ao vosso cão de guarda. Ele não é homem para abandonar o seu posto... Tenho de me ir embora, minha Rainha... e depressa! Afastai-vos! Vou tentar arrombar a porta!
O cavaleiro tomou impulso, mas não conseguiu.
- A porta da câmara de uma Rainha é sempre sólida - disse Margarida tristemente. - Esta é de carvalho com chapas de bronze.
Então, Renaud correu para a janela, porque era a única saída que lhe restava, mas Margarida chamou-o:
- Vede! Ali!
Sob a porta viam-se umas negras nuvens de fumo retorcendo-se como répteis, seguidas por um fio de azeite de lamparina inflamado.
- O fogo! - lamentou-se Margarida. - Há fogo do outro lado!... Oh meu Deus!
A Rainha pôs-se a gritar, a chamar batendo na porta, mas sem obter resposta. Dir-se-ia que o palácio tinha sido evacuado, o que era terrível porque aquele instante de solidão - o primeiro! - que lhes parecera tão doce, tomava agora foros de pesadelo.
- Estenderam-nos uma armadilha! - disse Renaud. - É preciso tentar sair. Afastai-vos dessa porta, Madame. Não serve de nada bater e o azeite pode inflamar o vosso vestido!
O jovem regressou à janela, uma ogiva alta dividida ao meio por uma colunata, deixando espaço suficiente para a passagem de um ser humano. Renaud inclinou-se para fora. O espaço aberto dava para uma espécie de poço obscuro, que devia ser um pátio interior com o habitual jacto de água desfiando o seu marulhar numa pequena tina, mas separava-os uma parede alta e lisa.
- Eu consigo descer! - afirmou Renaud, desembaraçando-se do seu hábito de monge para ter mais liberdade de movimentos.
O jovem foi até ao leito para pegar nos lençóis e fazer uma corda, mas algo lhe silvou aos ouvidos e teve apenas tempo para dar um salto para trás: vinda não se sabia de onde, uma flecha inflamada acabava de se cravar no quadro que sustinha as cortinas. Aquela que a arma trespassou incendiou-se de imediato e comunicou o fogo à vizinha, enquanto as centelhas e os bocados de tecido se destacavam do conjunto para caírem sobre a colcha. Ao mesmo tempo, o fumo subia, cada vez mais denso. Renaud ouviu Margarida tossir enquanto, com a ajuda das almofadas, se esforçava por apagar as chamas do leito. Enquanto fazia aquilo, apercebeu a sua silhueta brilhante que procurava refúgio, sem deixar de chamar por socorro, no oratório exíguo que ocupava o fundo do quarto, em frente do leito. O jovem gritou:
- Se tendes um vestido, Madame, menos amplo e mais cómodo, desembaraçai-vos desse.
De facto, o tecido abundantemente dourado era muito fino. A menor chama podia fazer dele um archote. Renaud viu Margarida dirigir-se a uma arca, tirar um longo vestido de tom escuro e depois tirar a sarka... e ele desviou o olhar enquanto arrancava as cortinas inflamadas para as deitar para o exterior, recusando a visão nítida de um corpo rapidamente encerrado dentro de uma túnica azul cujos laços ela apertou. Ao mesmo tempo, ele conseguiu tirar do leito, ainda intactos, os lençóis, que torceu. A sua ideia era fazer descer a Rainha para o pátio por meio daquele meio clássico. Restava saber se o atirador da flecha invisível continuava no seu lugar. Se fosse o caso, talvez fosse melhor, então, descer com ela pendurada no seu pescoço, fazendo do seu próprio corpo uma muralha.
Entretanto, no exterior, alguém devia ter visto o fogo. Elevou-se um rumor feito de gritos e de apelos. O fumo continuava a entrar por baixo da porta que, essa, continuava sem se mexer, mas podia ouvir-se o rugido do incêndio no lado de fora. Margarida gritava sem cessar por entre acessos de tosse. A Rainha resistiu a Renaud quando ele a quis arrastar até à janela onde ele prendera solidamente os lençóis atados uns aos outros.
- Não, eu quero ir por aquela porta...
- É impossível! Sede razoável!
- O meu filho! Quero o meu filho!
- Onde está ele?
- No quarto que dá para a sala...
Ela quis lançar-se de novo na direcção da porta, por trás da qual se ouvia um fragor horrível. Ele afastou-a à força.
- Não fiqueis aí! Escutai! Tenho a impressão que vêm em nosso socorro.
De facto, o fragor era provocado pelos machados que atacavam com frenesim a madeira da porta, que rachou, mas o apelo do ar da janela atraía, agora, as chamas que lambiam o batente.
- Socorro! - gritou Margarida! - Socorro! Estou aqui!
Subitamente, Renaud tomou consciência de que tinha de desaparecer dali por qualquer meio, porque só Deus sabia o efeito que a sua presença em plena noite no quarto da Rainha teria naqueles que entrariam dentro de pouco tempo. Ela agarrava-se a ele e ele já a levava para o oratório para melhor a confiar a Deus antes de fugir pela janela, nem que partisse o pescoço, quando o painel de carvalho se abateu com um ruído de apocalipse, libertando algumas chamas, mas, sobretudo, uma fumarada negra e densa, da qual surgiu... o Rei seguido de Joinville. Ambos armados com machados. Nas suas costas podiam ver-se alguns homens munidos de baldes de água e lençóis molhados.
Sacudida por soluços, Margarida atirou-se para os braços do marido. Ele fechou-os em redor dela num gesto maquinal, mas o seu olhar azul, frio como o gelo, fixou-se em Renaud que, com um suspiro de resignação, dobrou um joelho diante dele.
- Isto exige uma explicação, penso eu! Mas mais tarde! Joinville!
- Sire?
- Prendei este homem e levai-o para a prisão da entrada. Compreendendo que a armadilha de que Margarida e ele acabavam de ser vítimas tinha funcionado na perfeição e que a cólera que lia no olhar real ia levá-lo, sem dúvida, à morte, Renaud tentou uma explicação:
- Sire - disse ele - as aparências estão contra mim, mas...
- Eu disse para a prisão! E dai-vos por feliz por eu não vos ter matado com as minhas próprias mãos...
Acrescentar qualquer palavra teria sido perigoso. Renaud levantou-se e seguiu Joinville, visivelmente dividido por sentimentos contraditórios e que, evidentemente, não sabia que dizer. Ao atravessar a sala para a qual abriam os quartos das damas, o jovem pôde constatar que o incêndio, gerado por uma braseira virada ao contrário que aparecera ali como que por milagre, queimara tapeçarias e tapetes, mas revelara-se ineficaz na pedra das paredes. Alguns soldados empenhavam-se em apagá-lo. As chamas tinham provocado mais medo do que mal, incontestavelmente e antes de desaparecer na escadaria o jovem teve tempo de ver Margarida lançar-se no apartamento do seu filho, de onde Adèle, toda despenteada, surgia, gritando que as tinham fechado lá dentro a Madame de Montfort, ao bebé e a ela mesma...
Ao atravessar o pátio, agora pleno de agitação, para se dirigir à torre da entrada que servia de prisão, Joinville, sempre muito rígido, não conseguiu evitar a pergunta que lhe queimava os lábios. Num tom despeitado, perguntou:
- A Rainha concede-vos os seus favores há muito tempo?
- Nunca mos concedeu. Eu fui atraído, esta noite, por um bilhete mentiroso... que eu vos vou mostrar... Oh, Senhor, deixei-o no hábito de monge que tinha quando cheguei.
- Um hábito de monge? Que ides inventar mais? E, primeiro, como é que, pensando todos que estáveis morto, apareceis em plena noite nos aposentos da Rainha e numa atitude... Meu Deus! Que escândalo terrível!
- Não vai haver escândalo nenhum! Quanto à minha entrevista com a Rainha, darei explicações ao Rei... se ele mas pedir antes de me fazer saltar a cabeça. Entretanto - e suplico-vos no meio de toda a minha angústia - dizei-lhe que mande prender a donzela de Fos. Foi ela, tenho a certeza, a autora desta armadilha. É preciso, a todo o custo, afastá-la de Madame Margarida. Ela quer matá-la, assim como o pequeno príncipe, porque ela e o irmão juraram destruir tudo aquilo que o nosso sire ama! Joinville, suplico-vos, fazei-o! Senão por mim, pelo menos por ela!
Subitamente muito sério, o mordomo-mor fixou o prisioneiro no fundo dos olhos:
- Fá-lo-ei! Pela minha honra! Nunca gostei dessa mulher.
- Obrigado!
Chegaram ao corpo da guarda, por cima do qual tinham arranjado duas ou três celas para aqueles que, no palácio, pudessem cometer qualquer delito. A verdadeira prisão de Acra encontrava-se na cidadela, na posse dos cavaleiros do Hospital, mas enviar Renaud para lá teria, sem dúvida, incendiado ainda mais um caso demasiado delicado para ser do conhecimento da cidade inteira. Entregue ao oficial encarregado, Renaud já seguia na direcção da escada quando voltou atrás e disse a Joinville:
- Só mais uma coisa! Tentai saber o que aconteceu à dama de Valcroze.
- Encontraste-la?
- Encontrei e deixei-a, a seu pedido, no convento das Clarissas onde, ao saber que a Rainha estava, por assim dizer, sozinha com Elvira de Fos, regressei para a convencer a ir ter com Madame Margarida. Ela prometeu-me que sim, mas, entretanto, nunca chegou ao palácio...
O mordomo-mor ergueu os braços ao céu:
- Meu Deus! Que complicações são estas? Parece que, na nossa ausência, toda a gente enlouqueceu! Ainda bem que regressámos! Mas ficai tranquilo! Vou tratar disto tudo! Olá se vou! Vou tratar de tudo! E sem tardar!
E o cavaleiro abandonou o corpo da guarda a correr, ao mesmo tempo que numa pequena cela do primeiro andar Renaud era posto a ferros e deixado sozinho num frente-a-frente com pensamentos onde a amargura se misturava com uma infinita doçura e com o encantamento do instante em que Margarida lhe dissera que o amava. As palavras que nunca esperara ouvir, pronunciara-as ela, no entanto, acrescentando que era tudo o que teria dela. Essas palavras seriam, portanto, o seu alimento durante as horas que o separavam da morte. Porque não tinha ilusões: o Rei encarregaria o carrasco de o desembaraçar do homem que surpreendera no quarto da sua mulher.
Era a terceira vez, em menos de sete anos, que se via na prisão, visto que escapara à de Mansurah. Não haveria uma quarta e, no fim de contas, ainda bem, porque não via qual seria a utilidade da sua vida. A Verdadeira Cruz de Balduíno e de Thibaut fora destruída, Roberto d'Artois, que ele gostava tanto de servir, partira para o paraíso dos heróis que Renaud, certamente, não merecia. Era verdade que ainda restava o Rei, mas o cavaleiro sabia que no fundo de si mesmo nunca gostara dele. Talvez porque ambicionasse demasiado para o homem modesto que era, demasiado grande, demasiado nobre, demasiado virado para Deus! A santidade a que Luís aspirava - e que atingiria, sem qualquer dúvida! - fazia com que o Rei vivesse numa atmosfera demasiado pura, demasiado etérea para os pulmões de um simples mortal. A castelhana forjara-o assim, num aço perfeito cujos fulgores ofuscavam, mas cujas arestas feriam. Nas quais Margarida acabaria, talvez, por se despedaçar. Margarida! Por um instante, os lábios de ambos tinham-se unido, tinham misturado as respirações. Um minuto como aquele valia uma vida e seria esse minuto que o cavaleiro - traidor ao seu senhor! - levaria para a terra que em breve o engoliria. Esperava, apenas, que a morte fosse rápida, que lhe poupassem os horrores ligados ao crime de lesa-majestade. Não para que não exalasse o último suspiro que não seria, sem dúvida, senão um estertor de sofrimento, mas para que Margarida guardasse dele outra recordação que não a de um amontoado de carnes rasgadas e sangrentas penduradas de uma forca. Quanto ao resto, confiaria Sancie - compreendera quanto ela lhe era querida! - a Joinville, a Pernon e a Basile, e partiria em paz com os outros e consigo mesmo... Esperando que Deus, na Sua infinita misericórdia, o acolhesse no fim do caminho da sua vida falhada. Então, o cavaleiro rezou durante muito tempo e a sua coragem encontrou algum conforto.
O dia passou e o Sol já se tinha posto quando o foram buscar: dois soldados às ordens de um sargento, que o conduziram não através do pátio, mas através de um conjunto de corredores desertos até uma pequena capela construída em tempos por Henrique de Champagne para a sua mulher Isabel. O Rei estava lá, uma longa forma branca prostrada diante do altar iluminado apenas por duas velas de cera vermelha. Estava de tal modo absorto nas suas orações que não ouviu o ranger da porta, o passo do sargento levando consigo o prisioneiro e o som metálico das correntes e grilhetas nos punhos deste...
Ao cabo de um momento longo como a eternidade, Luís levantou-se e afastou o sargento com um gesto da mão que logo de seguida meteu na ampla manga, antes de se ir sentar no alto banco esculpido colocado à esquerda do altar. Por fim, o Rei falou:
- Cavaleiro de Courtenay, estais aqui perante Deus, mais do que perante mim. Para responder pelos vossos actos. Lembrai-vos que a mentira vos foi proibida para sempre.
- Não tenho razão nenhuma para mentir. E digo que ao ir ontem aos aposentos da Rainha só tinha como objectivo salvá-la!
- De quê?
- Do perigo que corre pela presença da donzela de Fos. O seu irmão Roncelin jurou vingar-se do Rei e da sua família. Ela é o seu instrumento.
- Que fizemos nós a esse Roncelin?
- A jovem que ele amava morreu na fogueira de Montségur. Ela era a filha do castelão, e morreu juntamente com a sua mãe...
- Ah!
Seguiu-se um silêncio. O Rei entrara em meditação. Renaud compreendeu que a tranquila capela estava a encher-se com o fragor enorme do fogo e com os gritos das vítimas... E então Luís falou foi para si mesmo, mais do que para o cavaleiro acorrentado que olhava para ele:
- Não foi por minha vontade! A lei é a lei, no entanto, e a heresia - aquela, sobretudo! - deve ser extirpada. Aqueles infelizes negavam a divindade de Cristo, defendiam um universo partilhado por um Deus de luz e um deus das trevas e diziam que a Terra era um sítio mau, condenado como obra do demónio. A Terra! A França, o meu belo reino, obra de Satanás? Ousar sustentar uma tal loucura é um crime sem perdão...
Esquecendo o prisioneiro, o seu olhar fixou-se no grande crucifixo bizantino pintado por trás do altar e aquele que o observava pôde ver as lágrimas que lhe corriam pelas faces. Sem interromper a sua contemplação, Luís perguntou:
- Quem é esse Roncelin de Fos?
- Um dignitário do Templo...
O Rei endireitou-se de repente, os punhos apoiados nos braços da sua cadeira.
- Os Templários. Sempre eles!
A sua cólera obrigara-o a esquecer a santidade do local e o Rei ajoelhou-se para uma breve oração, após o que se levantou:
- A donzela de Fos morreu. Messire d'Escayrac abateu-a com as suas próprias mãos. Ela tinha-o fechado num recanto, de onde ele conseguiu sair e encontrou-a no quarto da ama do meu filho com um punhal na mão, no instante em que os ia matar. Ele não hesitou: a sua leal espada desferiu apenas um golpe! Quanto aos seus cúmplices - porque ela tinha-os, no palácio - foram presos...
- Deus seja louvado! - exclamou Renaud, demasiado aliviado para se lembrar que a última prova da sua boa-fé desaparecera com ela, já que a falsa carta de Sancie se tinha perdido e Elvira nunca confessaria que maquinara a armadilha onde ele caíra e onde - estava persuadido! - ela o tinha levado pelas suas próprias mãos. A mulher velada só podia ser ela!
Ao erguer a cabeça depois da sua breve acção de graças, o jovem encontrou o olhar do Rei, que o observava com uma dureza no olhar azul que não anunciava nada de bom.
- O que não impede que tenhais acreditado, sem hesitar, que a Rainha vos concederia um encontro secreto no seu quarto?
- Quando se está inquieto, sire, acredita-se em qualquer coisa!
- Talvez porque esperásseis um apelo desse género?
- Não foi a Rainha que me chamou. O bilhete estava assinado pela dama de Valcroze, que eu pensava junto de Madame...
- Mas não estava. A dama de Valcroze não chegou a sair do convento das Clarissas, onde nós a ouvimos esta tarde.
- Mas ela prometeu-me! - exclamou Renaud, que se estava a sentir perdido, já que não podia, sequer, confiar na leal Sancie.
- Ela teria cumprido a sua promessa se um súbito mal-estar não tivesse inquietado a Madre Superiora e as suas filhas. Mas já está boa e contou-me o que lhe aconteceu depois do seu desaparecimento e o papel que vós desempenhastes no processo todo. Resulta daqui que mereceis alguns elogios... se é tudo verdade.
- Por que não havia de ser? A dama Sancie, estou persuadido, é incapaz de mentir!
- Vamos ver. Contai-me, vós, o que se passou. E lembrai-vos diante de quem ides falar!
A sua longa mão apontou para Cristo. O mais simplesmente que pôde e com uma inteira franqueza, Renaud contou a sua aventura, retendo apenas o segredo dos seus laços de sangue com o Sultão, mas o Rei teve um choque emocional demasiado violento quando ele lhe falou do fim da Verdadeira Cruz e do seu velho guardião. Ao mesmo tempo que o jovem evocava aquele grande sacrilégio, o rosto de Luís reflectia tanto sofrimento como se o tivessem crucificado:
- Por... por que não me disseram nada? - perguntou ele dolorosamente.
- Para não perturbar os grandes desígnios do Rei, que teria abandonado tudo para correr atrás dela. Foi o que pensou monsenhor d'Artois, cujo sonho era trazer ele próprio a Cruz ao seu irmão bem-amado.
- Roberto! - murmurou Luís com uma súbita doçura. - Isso era mesmo dele...
O resto do relato provocou menos interesse. O Rei não conseguia desviar o pensamento do trágico episódio, se bem que a entrega de Sancie ao príncipe muçulmano o tivesse escandalizado. E Renaud pensava ter conseguido evitar falar do seu nascimento quando, por um caminho inesperado, teve de regressar a ele quando o Rei disse bruscamente:
- Nesse grande desejo de salvar a Rainha, não entrou o obscuro pensamento de trabalhardes por conta própria?
- Não compreendo, sire, o que o Rei quer dizer.
- Ora vamos! Ousais negar que estais apaixonado pela Rainha, ao ponto de a cobiçar?
- Sire!- exclamou Renaud, espantado com a brutalidade do tom, mas também porque naquela capela, onde a presença de Deus exigia a verdade, ia ser obrigado a confessar o seu amor a um marido presa do ciúme. No entanto, este continuou:
- Confessai! Se não o fizerdes, não só mentis como negais a evidência! Ou isto não vos pertence?
Os dedos nervosos desenrolaram diante dele o pequeno retrato que Roncelin lhe tinha roubado. E Renaud recuperou a calma. Naquele terreno sentia-se sólido:
- Esse desenho é meu, de facto, e confesso não compreender como é possível ele encontrar-se nas mãos do Rei, quando foi Roncelin que mo roubou quando me obrigou a cavar a terra junto da acácia de Hattin...
- Ultrapassais os limites permitidos da audácia, autorizando-vos a interrogar o Rei. Como o consegui não vos diz respeito. O que interessa é que a vossa lesa-majestade é flagrante a partir do momento em que confessais o vosso amor por aquela cuja efígie tendes a audácia de trazer convosco! Exijo que confesseis!
- Que amo e venero essa bela imagem? Com todo o meu coração, sire, mas sem sombra de lesa-majestade. Essa imagem não representa a Rainha... representa a minha avó: a Rainha Isabel de Jerusalém, de quem a minha mãe, Melisanda de Jerusalém-Lusignan, princesa de Antioquia, era filha, nascida de uma única noite de amor entre a sua mãe e Thibaut de Courtenay.
- O vosso pai? Não compreendo.
- Não, sire, o meu avô. E porque a verdade deve aparecer por completo aos olhos do Rei, acrescentarei que ele quis reconhecer-me como filho... e com a aprovação da... Igreja, para que eu pudesse usar o nome de Courtenay. Fê-lo por amor: o do meu pai ter-me-ia condenado à morte!
- E quem era o vosso pai? Alguém... inconfessável?
- Em terras cristãs, sim. E o Rei julgará: o meu pai era o Rei de Alepo, al-Aziz Mohammed. O príncipe a quem entregaram a dama Sancie é meu meio-irmão. E comportou-se como um verdadeiro irmão ao devolver-nos, a ambos, a liberdade...
- Misericórdia!
Um instante mais tarde, os guardas levavam Renaud de novo para a sua prisão. O Rei voltara a prostrar-se diante do tabernáculo...
Joinville levara Renaud à torre das masmorras; e foi ele que o foi buscar dois dias depois. Com o que o cativo se sentiu profundamente aliviado. Tanto mais que, para efectuar essa libertação, o mordomo-mor de Champagne só ia munido de um pergaminho, sem o acompanhamento de qualquer guarda. O que não era habitual quando conduziam um condenado ao cadafalso. O digno senhor, aliás, tratou de o tranquilizar por completo:
- Levo-vos para nossa casa, onde ficareis à minha guarda até logo à noite quando, sempre sob a minha guarda, sereis conduzido ao Rei para ouvir a decisão que vos diz respeito.
- Uma decisão... ou uma sentença?
- Mais uma vez, não sei. Senão que o Rei parece preocupado e bastante descontente. Fostes imprudente, meu amigo!
- Imprudente? Que teríeis feito vós no meu lugar ao receber um bilhete invocando um perigo para a Rainha na ausência do seu marido?
Joinville coçou a cabeça e lançou um enorme suspiro:
- Se me conheço bem: o mesmo que vós... A única coisa que posso dizer é que estarei a vosso lado e pronto a assumir a vossa defesa, se necessário. Desde há algum tempo, o nosso sire conversa muito comigo.
- Veremos! Obrigado por essa amizade que demonstrais por mim...
Adivinha-se a alegria com que Gilles Pernon e o jovem Basile viram o regresso de Renaud. Joinville contara-lhes o que sabia acerca da noite do incêndio e que tivera de conduzir o cavaleiro à prisão do palácio. Depois disso, Pernon passava o tempo a rezar, quando não explodia, colérico, o que ia dar mais ou menos ao mesmo porque invocava então, de modo furioso, todos os santos do seu conhecimento. Basile, esse, ficava horas sentado em cima de uma pedra de frente para a torre onde Renaud estava preso, mastigando uma erva...
Alegria manchada pela ignorância do que se iria passar no fim do dia. Entretanto, Renaud esforçava-se por lhes subir o moral. Fosse qual fosse a decisão de Luís, não implicava a morte, senão continuaria na prisão...
Chegada a noite, depois de ter feito uma toilette minuciosa, Renaud, lavado, barbeado e com o cabelo cortado como era de bom-tom, vestiu o seu traje de combate: o lorigão e o carnal sob a cota de armas arvorando o brasão de França. Como Joinville se espantasse:
- Este é o melhor traje que um cavaleiro pode ter! - disse ele. - E até prova em contrário, eu continuo a ser escudeiro do Rei!
A cavalo, dessa vez, e pela entrada principal, entraram no palácio. Renaud espantou-se por ele estar iluminado, como se fosse para uma festa. Havia muita gente e todos vestiam trajes magníficos. O próprio Joinville vestira a sua melhor túnica de brocado verde e as jóias que comprara para substituir as lançadas ao Nilo antes da sua captura pelos mamelucos, mas ignorava o que estariam a festejar ali naquela noite. O cavaleiro limitou-se a obedecer às ordens e como as ordens eram levar Renaud até junto do Rei, acompanhou o jovem ao andar de cima. Mas, ali, um camareiro separou-o do seu companheiro:
- Esperai aqui um momento, sire mordomo-mor. O Rei quer falar sem testemunhas com o cavaleiro de Courtenay.
- Mas ele tinha-me dito...
- São as ordens, sire mordomo-mor, esperai aqui!
Em São João de Acra, a câmara do Rei reconstituía a famosa Câmara Verde do palácio da Cité. Os móveis eram um pouco diferentes, mas a decoração era sensivelmente a mesma. Luís, de facto, estava só, de coroa na cabeça, sentado numa cadeira de espaldar colocada perto de um grande candelabro cheio de espessos círios de cera branca. O Rei observou Renaud caminhando na sua direcção e pôr um joelho em terra, mas com a cabeça erecta. Os seus olhos azuis não pestanejavam e o seu rosto era de mármore.
- Mandámos-vos vir aqui esta noite para que ouvísseis a nossa vontade - disse ele em voz lenta. - Os últimos acontecimentos fazem com que a vossa presença neste país, do qual estais mais próximo do que poderíamos imaginar, deixe de ser desejável. Embarcareis amanhã para França.
- O Rei expulsa-me?
- Não. Não vos expulsamos. A vossa coragem nunca nos faltou. Salvastes-nos a vida uma vez e o nosso irmão d'Artois, tão chorado, amava-vos. No entanto, o que nos confiastes e o vosso litígio particular com os cavaleiros do Templo...
- Não com os cavaleiros do Templo! Com um único e se me apresento perante o Rei com o arnês de guerra é para lhe pedir, seja qual for o destino que me reserva, que ordene um recontro até à morte entre mim e Roncelin de Fos. Deixarei nele a vida, talvez, mas juro que ele também deixará a sua. Desse modo, o Rei não precisará de me mandar para França. Os mortos não incomodam ninguém!
- Pensámos nisso antes de vós... mas acontece que esse miserável já colocou o mar entre a nossa justiça e ele.
- Mais uma vez! Ele fugiu mais uma vez? É preciso fazê-lo regressar.
- É impossível e vós sabei-lo bem. Os Templários só obedecem ao nosso Santo Padre, o Papa. Mesmo que quiséssemos fazer sentir ao Grão-Mestre e ao seu marechal, que ousam manter negociações secretas com o Sultão de Damasco, o peso da nossa cólera. Roncelin de Fos está fora do nosso alcance... mas não do de Deus!
- Hei-de encontrá-lo! Se ele já não está aqui, pouco me importa ficar ou não! O Rei quer, mas, agora, sou eu que peço para partir!
- É assim que o entendemos, mas não partireis só. Madame Margarida, a nossa esposa bem-amada, deu-nos a conhecer a realidade dos vossos sentimentos que nós acreditámos, por momentos e por um erro muito natural, empenhados numa via... sem saída! Vós amais, disse ela, a dama de Valcroze, pela qual, aliás, correstes graves perigos. Assim, decidimos unir-vos a ela. Esta noite mesmo!
- Eu? Casar... com Sancie?
- Se a amais... como pretende a Rainha, deve ser uma grande alegria? - disse Luís com um tom ameaçador na voz que não escapou a Renaud.
Este compreendeu, de repente, que as dúvidas do marido não estavam inteiramente desfeitas. Assim, sentindo o perigo, dominou-se:
- É verdade, sire, mas não posso aceitar. Ela é uma grande dama e eu sou pobre como Job, sem outra riqueza senão a minha espada de cavaleiro!
- Poderíamos responder-vos que ela é suficientemente rica pelos dois, mas vós mereceis e faremos com que possais desposá-la de cabeça erguida! Tereis o necessário.
- Ela nunca aceitará! Ela quer vestir o hábito...
- Ela aceitou...
Com um movimento vivo, Luís levantou-se e, atravessando a câmara, foi abrir ele mesmo uma porta que dava acesso aos aposentos das damas. A Rainha entrou, conduzindo pela mão uma Sancie deslumbrante no sumptuoso vestido vermelho bordado a ouro das noivas. Sob o véu de reflexos púrpuras, que lhe caía do círculo de rubis e de pérolas que tinha na cabeça, o seu rosto estava pálido e os olhos baixos...
A voz clara de Margarida fez-se ouvir:
- Trago-vos aqui a vossa noiva, sire Renaud, com todos os meus votos de felicidade comum. Porque, para mim, ela é a mais querida entre todas as mulheres...
Os seus olhos sorriam. No entanto, Renaud pensou ler neles um apelo, uma angústia. Temeria ela que ele recusasse? O jovem devolveu-lhe o sorriso, inclinando-se para receber a pequena mão que ela guiava na direcção da sua. Uma mão gelada, e que tremia.
- Obrigado, Madame, por este belo presente de que me sinto indigno, mas que farei por merecer no futuro.
Uma hora mais tarde, o seu casamento era abençoado na capela do palácio pelo arcebispo de Acra...
A nau atingira o alto mar.
De pé, lado-a-lado no castelo-da-popa, os recém-casados viam os campos verdes e a cidade branca desaparecerem pouco a pouco no universo azul onde mergulhavam cada vez mais a cada momento que passava. Nem uma palavra tinham trocado desde que tinham saído da câmara do Rei. Formavam, agora, um casal. No entanto, parecia que tinham escolhido, ambos, a solidão, tal como os observava Gilles Pernon da base do mastro onde se tinha sentado.
Saneie virou-se para descer para o camarote que ocupava sozinha com Honorine e as suas damas. Renaud perguntou:
- Por que aceitastes este casamento, Madame? Era tão fácil dizer não...
Ela olhou para ele sem que o jovem pudesse ler, fosse o que fosse, nos seus grandes olhos da cor da erva fresca:
- Achais que sim? Nesse caso, ficais a saber que, se tivesse recusado, a vossa cabeça teria caído. O Rei está persuadido de que amais a sua mulher e de que ela vos ama... Até um santo pode ter ciúmes!
Juliette Benzoni
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