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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RENDIÇÃO MAIS SOMBRIA
RENDIÇÃO MAIS SOMBRIA

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Possuído pelo demônio da Derrota, Strider não pode perder um desafio sem sofrer dor inimaginável. Para ele, nada fica no caminho da vitória. Até Kaia, uma Harpia encantadora que o tenta deixando-o à beira da rendição.

Conhecida entre seu povo como A Decepção, Kaia deve levar para casa o ouro nos Jogos das Harpias ou morrer. Strider é uma distração que ela não pode se permitir porque ele vem com uma agenda própria — roubar o primeiro prêmio, um antigo artefato divino, antes que o vencedor possa ser identificado. Mas quando a competição esquenta, apenas um prêmio importará — o amor que nenhum dos dois achava que fosse possível...

 

 

 

 

Mil e quinhentos anos atrás…

Ou um milhão de anos atrás… (depende de pra quem você pergunta).

Pela primeira vez, os jogos do bicentenário das Harpias terminou com mais participantes mortos que vivos, cada um dos sobreviventes sabia que a culpa era de Kaia Skyhawk de quatorze anos de idade.

 O dia começou inocentemente. Com o sol da manhã brilhando, Kaia passeou pelo acampamento superlotado de mãos dadas com sua amada irmã gêmea, Bianka. Tendas de todos os tamanhos espalhadas pela área, e muitas fogueiras crepitavam para afastar o frio da madrugada. Os aromas de biscoitos surrupiados e mel cobriam o ar, enchendo sua boca de água.

 Para sempre amaldiçoadas pelos Deuses, Harpias só podiam comer o que elas roubavam ou ganhavam. Se elas comessem qualquer outra coisa, adoeciam horrivelmente. Então o café da manhã de Kaia fora bem escasso: um bolo de arroz amanhecido e meia jarra de água, os quais ela surripiou da sela de um humano.

 Talvez ela se apropriasse do biscoito de um membro de um clã rival, ela pensou, então agitou sua cabeça. Não, ela só teria que permanecer semi-faminta. Sua espécie não vivia com muitas regras, mas as que elas tinham, reverenciavam. Tais como: nunca dormir onde os humanos poderiam encontrá-la, nunca revelar uma fraqueza pra qualquer um e, o mais importante, nunca roubar o único pedaço de comida de uma de sua própria espécie, ainda que você a odiasse.

— Kaia? — Sua irmã disse, seu tom curioso.

— Sim?

— Eu sou a mais garota mais bonita aqui?

— Claro. — Kaia não tinha sequer que olhar ao redor para confirmar esse fato. Bianka era a menina mais bonita no mundo inteiro. Às vezes ela se esquecia e tinha que ser lembrada.

 Enquanto Kaia tinha um repugnante cabelo ruivo como uma vassoura e olhos de um comum cinza dourado, Bianka tinha um luxurioso cabelo negro, brilhantes olhos cor âmbar e era a imagem de sua exaltada mãe, Tabitha a Maligna.

 — Obrigado. — Bianka disse, sorrindo com satisfação. — E eu acho que você é a mais forte. Sem dúvida.

 Kaia nunca se cansava de ouvir elogios da sua irmã. O que tornava uma Harpia mais poderosa era o respeito que ela recebia de todos. Mais que qualquer coisa, Kaia almejava respeito.

— Mais forte, até que… — Ela estudou as Harpias na área, procurando alguém para se comparar.

 Aquelas que tinham idade suficiente para participar dos testes tradicionais de poder e astúcia se alvoroçavam perto, preparando-se para o evento restante — A Última Imortal de Pé. As espadas assobiavam quando eram arrastadas de suas bainhas. Sons de metal contra pedra enquanto punhais eram afiados.

 Finalmente, Kaia viu uma candidata para sua comparação.

— Eu sou mais forte até que ela? — Perguntou, apontando para uma mulher brutamontes com músculos salientes e grossas cicatrizes cruzando e adornando seus braços.

 As lesões que causaram aquelas cicatrizes devem ter sido realmente severas. A imortalidade fazia sua espécie se curar rápida e eficientemente, raramente permitindo qualquer evidência para mostrar uma vida difícil.

 — Sem dúvida. — Bianka disse lealmente. — Aposto que ela ia correr e se esconder se você decidisse desafiá-la.

 — Sem dúvida você está certa. — Realmente, quem não correria dela? Kaia treinou mais duro que qualquer pessoa e derrubou até seu próprio instrutor. Duas vezes.

 Ela não queria se vangloriar, mas sempre treinava mais duro do que qualquer outra Harpia em seu clã. Quando todo mundo parava durante o dia, ela continuava até o suor escorrer pelo seu peito como um riacho, até seus músculos tremerem pela tensão… até que seus ossos não podiam mais suportar o seu peso.

 Um dia, talvez um dia em breve, sua mãe se orgulharia dela. Por que, apenas algumas noites atrás, Tabitha deu um tapinha no ombro dela e disse que suas habilidades no lançamento de adagas melhoraram um pouco. Melhorou um pouco. Jamais um elogio mais doce deixou a boca de Tabitha.

 — Vamos. — Bianka disse, arrastando-a. — Se nós não nos apressarmos, não teremos tempo para tomar banho no rio, e eu realmente quero estar com a minha melhor aparência quando assistir nosso clã destruir a concorrência. Novamente.

 Só de pensar sobre os prêmios que sua mãe colecionaria fez o pequeno corpo de Kaia se inchar de orgulho.

 Os Jogos das Harpias começaram há milhares de anos como uma forma dos clãs “discutirem” suas queixas sem causar uma guerra — bem, sem causar mais guerras — bem como também permitir aos clãs aliados mostrar sua superioridade, mesmo um contra o outro. Os anciãos de cada uma das vinte tribos se encontravam e concordaram sobre as competições e prêmios.

 Desta vez, cada vencedor das quatro batalhas ganhava cem peças de ouro. Os Skyhawks já ganharam duzentas dessas peças. Os Eagleshields ganharam uma.

 — Com a cabeça em outro lugar… o que é uma boa menina. — Bianka disse enquanto acelerava seus passos, forçando Kaia a acelerar os seus, por sua vez. — Você sonha demais.

 — Não sonho.

 — Sonha sim.

 — Não!

 Um suspiro de sua irmã, uma admissão de derrota.

 Kaia sorriu. Dois deles deram um pequeno aviso para as Harpias perto, e ela fez questão de afagar o medalhão de guerreira Skyhawk pendurado no seu pescoço. Sua mãe a presenteou alguns meses atrás, e ela apreciou o símbolo de sua força quase tanto quanto apreciava sua gêmea.

 A maioria das pessoas que encontraram o seu olhar acenaram com a cabeça em deferência, ainda que ela pertencesse a um clã rival. Aqueles que não o fizeram… nenhum Harpia ousaria atacar a outra enquanto estivessem em território neutro, então Kaia não se preocupou com um possível conflito. Na verdade ela não teria se preocupado de qualquer maneira. Ela era tão valente quanto era forte.

 Do outro lado do acampamento, situado num bosque de árvores, ela notou algo estranho e parou.

— Aqueles homens. — ela disse, apontando para um grupo de homens de peito nu. Alguns vagavam livremente, uns poucos estavam amarrados a postes e um estava acorrentado. Pelo que sabia, machos nunca eram autorizados a entrar ou até assistir aos jogos.

— O que eles estão fazendo ali?

 Bianka parou e seguiu a linha do seu dedo.

— Eles são consortes. E escravos.

— Eu sei disso. Daí a razão pela qual eu perguntei o que eles estão fazendo ali e não quem eles são.

 — Eles estão satisfazendo necessidades, tola.

A sobrancelha de Kaia franziu em confusão.

— Que tipo de necessidades? — Sua mãe sempre enfatizou a importância de cuidar de si mesma em primeiro lugar, em segundo da família e dos outros de maneira nenhuma.

 Bianka considerou sua resposta cuidadosamente, então deu de ombros e disse.

— Lavar roupa, banhar os pés, buscar armas. Você sabe, as coisas servis que nós somos muito importantes para fazer.

 De onde ela tirou isto? Se você possuir um consorte ou escravo nunca teria que lavar roupa novamente.

— Eu quero um. — Kaia anunciou, e as minúsculas asas se projetando de suas costas tremularam selvagemente.

 Como todas as Harpias, ela vestia um meio top que cobriam seus seios — embora fossem tragicamente inexistentes no momento — mas permanecia aberto na parte de trás para acomodar o pequeno arco de suas asas, a fonte de sua força superior. — E você sabe o que mamãe sempre diz. — ela adicionou.

 — Oh, sim. Uma palavra amável vai fazer você ganhar um sorriso, mas quem em sã consciência quer ganhar um sorriso?

 — Não isto.

 Bianka apertou seus lábios.

— Você realmente não pode matar um humano com bondade. Você tem que usar uma espada.

 — Nem isso.

Exasperada sua irmã lançou seus braços para o ar.

— Então o que?

— Se você não tomar os tesouros e os machos que quer, você nunca terá os tesouros e os machos que quer.

— Oh. — Os olhos de Bianka se arregalaram enquanto retornava sua atenção aos homens. — Então qual você quer?

Kaia bateu a ponta do dedo contra seu queixo enquanto estudava os candidatos. Cada um dos homens usava uma tanga, e cada corpo rígido estava listrado com sujeira e suor, mas nenhum dos homens estava cortado ou ferido, indicando que eles tivessem passado pelo campo de batalha. Ou pelo menos, tentado fazer isso.

Não, não é verdade, ela percebeu um segundo depois. O acorrentado estava coberto de marcas de batalha, e seus olhos escuros eram definitivamente desafiadores. Ele era um lutador.

— Ele. — ela disse, apontando com uma inclinação de seu queixo. — Quem é dona dele?

 Bianka o examinou e estremeceu.

— Juliette a Extirpadora.

Juliette Eagleshield, uma aliada assim como uma beleza de coração frio treinada pela própria Tabitha Skyhawk.

Conquistar um macho que a Extirpadora falhou em domesticar seria… Ainda melhor.

— Eu não sei, Kye. Nós fomos avisadas para não falar com nenhum dos homens.

— Eu não fui avisada.

— Oh, sim, você foi. Sei disso porque você estava de pé ao meu lado quando a mãe nos deu a advertência. Você devia estar sonhando acordada novamente.

Ela se recusou a ser desviada do caminho que escolheu.

— Nova regra, se uma filha não ouve uma advertência, ela não tem que acatá-la.

Bianka não estava convencida.

— Ele exala perigo.

— Nós adoramos o perigo.

—Nós também adoramos respirar. E acho que ele preferia nos cortar em pedaços que banhar nossos pés. Sem falar o que Juliette fará conosco se conseguirmos levá-lo.

— Confie em mim. Juliette não é tão forte quanto eu sou, ou não teria que acorrentá-lo. — Certo, Juliette era conhecida pela sua disposição de matar alguém a qualquer momento, não importa sua idade ou gênero, mas Kaia logo seria conhecida como a garota que estava um passo a frente dela.

Sua irmã pensou em raciocinar por mais um momento, então assentiu com a cabeça.

— É verdade.

— Eu só vou explicar o castigo que ele receberá se me desobedecer, e prometo a você, ele não me desobedecerá. — Simples, fácil. Sua mãe lhe daria um beijo orgulhoso.

Tabitha não se orgulhava de muitas pessoas, só quem provou ser igual a ela. Então… em outras palavras, ela ainda não estava orgulhosa de ninguém. Talvez fosse por isso que cada Harpia queria ser ela e cada macho queria conquistá-la. Sua força era incomparável, sua beleza inigualável. Sua sabedoria, sem limites. Todos tremiam à mera menção de seu nome. (Se não fizessem, deveriam.) Todos a respeitavam. E todos a admiravam.

Um dia todos vão me admirar.

— C-como você vai tirá-lo dali? — Bianka perguntou. — Onde você vai escondê-lo?

Hmm, boas perguntas. Mas enquanto ponderava as respostas, indignação a encheu. Por que ela deveria levá-lo furtivamente? Por que deveria escondê-lo? Se ela fizesse, ninguém saberia o que ela fez. Ninguém escreveria histórias citando sua força e ousadia.

Mais do que ela queria um escravo para fazer sua licitação, ela queria aquelas histórias. Precisava daquelas histórias. Porque ela e Bianka eram gêmeas, eles estavam constantemente arreliando sobre compartilhar o que tinha sido designado para uma. Beleza, força, tudo, nada. Como se cada uma tivesse apenas metade do que deveriam.

 Eu sou o bastante, droga! E posso provar.

Ela tomaria o homem aqui, agora, na frente de todo mundo.

Quase explodindo com urgência, Kaia se virou para sua irmã e aconchegou em suas mãos suas bochechas rosadas pelo vento. Preocupação consumia as feições delicadas de Bianka, mas isso não impediu Kaia de dizer.

— Não deixe ninguém passar deste ponto. Será apenas um momento.

— Mas...

— Por favor. Por mim, por favor.

 Incapaz de resistir, sua irmã suspirou.

— Oh, tudo bem.

— Obrigada! — Kaia beijou sua boca então marchou para longe antes que seu querido e doce temperamento a fizesse mudar de ideia. Ela apalpou a adaga. Os homens fingiram não notá-la quando ela empurrou para passar por eles, e nem um único protesto foi proferido. Bom. Eles já a temiam.

 Quando ela alcançou o objeto do seu desejo adolescente, ela fez uma pose como a que viu sua mãe fazer um tempão atrás. Com as mãos nos quadris, a lâmina do punhal apontando para fora.

O homem estava sentado em um toco de árvore, seus cotovelos escorados em seu joelhos dobrados. Sua cabeça estava ligeiramente curvada, seu cabelo escuro caindo na testa.

 — Você. — Ela disse na língua humana. — Olhe para mim.

Pelas mechas embaraçadas seu olhar escuro se ergueu e se nivelou com o dela. Ele era bonito, ela pensou. Suas feições pareciam cinzeladas em pedra. Ele tinha um nariz pontudo, maçãs do rosto pronunciadas, lábios finos e ruivos em cima de um queixo teimoso.

De perto ela percebeu que as correntes estavam embrulhadas ao redor de seus pulsos, e entre eles um vínculo de metal os mantendo esticados. Nada o amarrava ao poste. Ou Juliette não tinha nenhuma ideia de como conter corretamente um cativo ou o homem era mais fraco que Kaia pensava.

Ela ficou desapontada, mas não mudaria de ideia agora.

— Você é meu. — ela disse a ele corajosamente. — Sua amante anterior pode tentar lutar comigo por você, mas eu a derrotarei.

 — Então é assim? — Sua voz era profunda e rouca, aparentemente um tom entre camadas de trovão e relâmpago. Ela reprimiu um tremor. — Qual é o seu nome, garotinha?

 Seus dentes se apertaram, sua apreensão momentaneamente esquecida. Ela não era uma garotinha!

— Eu sou chamada de Kaia a… mais forte. Sim, sim. É assim que sou chamada. — Os títulos eram importantes entre as Harpias, escolhidos pelos líderes da tribo, e embora Kaia ainda não tivesse recebido o seu, estava absolutamente certa que sua mãe aprovaria a sua escolha.

 — E o que exatamente você planeja fazer comigo, Kaia, a mais forte?

 — Eu vou forçar você a prover todas as minhas necessidades, é claro.

 Ele arqueou uma sobrancelha.

— Como?

— Fazendo minhas tarefas. Todas as minhas tarefas. E se você não fizer, eu vou puni-lo. Com meu punhal. — Ela meneou a arma em questão, a lâmina de prata refletindo letalmente na luz do sol. — Eu sou bastante cruel, você sabe. Eu matei humanos antes. Matei muitos, mesmo depois de ferida.

 Ele não vacilou ante a arma ou sua ameaça e ela lutou com uma onda de frustração. Então ela se consolou em saber que a maioria dos humanos não tinha nenhum conceito verdadeiro das habilidades das Harpias. Claramente ele era um dos ignorantes. Porque ele mesmo não podia erguer um pedregulho de 450 quilos, provavelmente não podia aceitar mais ninguém fazendo isso.

 — Quando devo começar estas novas tarefas? — Ele perguntou.

 — Agora.

 — Muito bem, então. — Ela esperou um argumento, mas ele desdobrou seu grande corpo do toco. Deuses, ele era alto, forçando-a a olhar pra cima… pra cima… pra cima.

 Porém ela não se intimidou. Enquanto treinava ela lutou com seres muito mais altos que ele e ganhou. Bom, talvez eles só fossem um pouco mais altos. Certo, todos eles eram menores. Ela não estava certa que alguém fosse tão alto quanto este homem. Não era de se espantar que Juliette o reivindicou.

 Kaia sorriu. Seu primeiro trabalho individual em plena luz do dia, sem mais nem menos, e ela estaria partindo com o maior dos prêmios. Ela escolheu bem. Sua mãe não acharia nenhuma falha no homem, e poderia até querê-lo para si mesma. Talvez depois que Kaia terminasse com ele o daria de presente para Tabitha.

 Tabitha sorriria para ela, agradeceria e diria a filha maravilhosa que ela era. Finalmente. O coração de Kaia saltou uma batida.

 — Não fique parado aí. — Antes do macho ter tempo para responder, ela correu pra trás dele, batendo as asas freneticamente e o empurrou. — Mova-se.

 Ele tropeçou adiante, mas rapidamente conseguiu se equilibrar. Com sua cabeça erguida seguiu em frente. Pouco antes dele alcançar a beira recinto, porém, parou abruptamente.

 — Mova-se. — ela repetiu, dando-lhe outro empurrão.

Ele permaneceu no lugar, nem mesmo girando para encará-la.

— Eu não posso. Esta clareira foi cercada com sangue de Harpia, e as correntes me impedem de partir sem sofrer uma forte dor.

Seu olhar se estreitou na largura de suas costas musculosas e bronzeadas.

— Eu não sou tola. Não vou remover suas correntes. — Além disso, ela o queria dócil enquanto desfilasse com ele pelo acampamento, sem competir pela liberdade. Quando Juliette descobrisse o que ela fez, um desafio seria emitido. Kaia precisaria de sua atenção total, não dividida.

 — Não é necessário remover minhas correntes. — Nem pelo tom nem por seus atos ele revelava um mínimo de emoções. — Simplesmente adicione seu sangue ao círculo existente, então esfregue uma gota nas correntes e você pode me levar ao outro lado sem nenhum problema.

 Ah, sim. Ela ouviu falar de sangue nas correntes antes. Eles prendiam o usuário nos limites do círculo, não importava se o círculo fosse largo ou pequeno, somente o sangue de uma Harpia poderia negar a restrição. Qualquer Harpia.

— Boa ideia. Estou contente por que pensei nisso.

 Ela inspecionou o acampamento das Harpias. Ninguém a notara, mas Bianka estava mudando nervosamente de um pé para outro, olhando de Kaia para o acampamento, do acampamento para Kaia com seu olhar suplicante.

Com rápida precisão Kaia usou seu punhal para cortar a palma da sua mão. A picada afiada mal foi registrada. Depois de adicionar seu sangue ao anel ruivo no chão, ela alisou sua carne ensanguentada acima dos vínculos frescos de metal entre os pulsos do homem. Feito isso ela correu para trás dele uma segunda vez e o empurrou.

 Ele tropeçou ao passar o círculo, parando para balançar sua cabeça, estirar sua coluna e flexionar seus ombros. Não importava o quanto ela o empurrasse desta vez, não podia movê-lo. Então ele se voltou e sorriu para ela. Antes que pudesse raciocinar sobre o que estava acontecendo, ele tinha suas mãos envolvidas ao redor do seu pescoço, seus pés erguidos fora do chão.

 Seus olhos se arregalaram enquanto ele a sufocava com um poder que nenhum humano deveria possuir.

 Apesar de sua falta de ar, seu cérebro enevoado e sua garganta em chamas, a realidade a atingiu. Ele não era humano.

 De repente o ódio se derramou dele, seus olhos escuros girando hipnoticamente.

— Harpia tola. Eu não poderia ser capaz de quebrar estas correntes, mas esse círculo era a única coisa que me impedia de devastar completamente este acampamento. Agora, todos vocês morrerão pelo insulto que me fizeram.

 Morrer? Claro que não! Você tem um punhal. Use-o! Ela tentou apunhalá-lo. Rindo cruelmente, ele bateu em sua mão jogando sua adaga longe.

 No fundo, ela ouviu um grito agudo de Bianka. Ouviu os passos apressados de sua irmã se aproximando. Não, ela tentou gritar. Volte para trás. Então seus pensamentos se fragmentaram quando o homem a sufocou mais duro, mais apertado.

 Uma onda negra a varreu para um mar de nada.

 Não, não, nada. Gritos ecoaram… tantos gritos… Grunhidos, gemidos e rosnados. O deslizar do metal contra carne, o pop de ossos quebrados, o som nauseante de asas sendo rasgadas de suas fendas.

 A sinfonia desse pesadelo durou horas, talvez dias, antes de finalmente se aquietar.

 — Kaia. — Mãos calejadas embrulharam em volta dos seus antebraços e a sacudiram. — Acorde. Agora.

Ela conhecia aquela voz... Kaia lutou para voltar do mar, suas pálpebras trêmulas se abrindo. Um momento se passou antes de sua mente clarear e da névoa desbotar. Por uma fresta de luar ela viu uma carrancuda Tabitha Skyhawk coberta de sangue assomar acima dela.

 — Olhe o que você fez, minha filha. — Nunca o timbre de sua mãe chicoteou tão severamente, e isso já dizia alguma coisa.

Apesar de querer recusar, ela se sentou, fazendo uma careta pela pontada de dor no seu pescoço para atacar o restante dela, e desviou o olhar estudando o acampamento. Bílis subiu pela sua garganta. Harpias e… outras coisas flutuavam em rios escarlates. As armas jaziam no chão, inúteis. As tiras de tecido das tendas dizimadas foram pegas pelos galhos das árvores, e agora ondulavam ao vento, uma paródia triste de bandeiras brancas.

 — B-Bianka? — Ela conseguiu arquejar, sua voz crua.

— Sua irmã está viva. Mal.

Kaia empurrou suas pernas trêmulas e encontrou os olhos cor âmbar da sua mãe.

— Mãe, eu...

— Silêncio! Você foi informada para não entrar nesta área, e ainda assim desobedeceu. E então depois você tentou roubar o consorte de outra mulher sem obter minha permissão.

Ela queria mentir para preservar o seu sonho dos elogios vindouros. Ela descobriu que não podia. Não para sua adorada mãe.

— Sim. — Lágrimas arderam em seus olhos, aquele sonho rapidamente queimou até as cinzas dentro dela. — Eu fiz.

— Está vendo a destruição atrás de mim?

— Sim. — ela repetiu suavemente.

Tabitha não mostrou nenhuma clemência.

— Você é a única responsável pela caricatura deste dia.

— Eu sinto muito. — Sua cabeça caiu, o queixo descansando contra seu esterno. — Lamento tanto.

— Guarde suas desculpas. Elas não podem desfazer a angústia que você causou.

Oh, Deuses. Havia ódio na voz da sua mãe agora. Ódio verdadeiro, não diluído.

— Você trouxe vergonha para o nosso clã. — Tabitha disse, rasgando o medalhão do pescoço de Kaia. — Você não merece isso. Uma verdadeira guerreira salva suas irmãs. Não as prejudica. E então, por este ato egoísta você ganhou o seu título. Deste momento em diante você será conhecida como Kaia, a Decepção.

Com isto Tabitha virou e foi embora. Suas botas chapinharam no sangue, o som ecoando asperamente nos ouvidos de Kaia.

 Ela caiu de joelhos e soluçou como uma criança pela primeira vez na sua vida.

 

Dias atuais.

— Eu quero ele.

— Onde ouvi isto antes? Oh, sim. No dia do Lamentável Incidente, algo que você me fez jurar nunca falar a respeito, mesmo sob ameaça de morte. E não discutirei isto agora, então sossega sua calcinha. Eu simplesmente pensei que você fosse mais cuidadosa com seus afetos hoje em dia.

Kaia Skyhawk perscrutou sua gêmea — Bianka A Ó Divina Eminência, como Kaia recentemente a apelidou. Um nome que sua preciosa irmã merecia. A garota pegou um anjo. Um maldito anjo. Claro, em troca Bianka apelidou Kaia de Esquentadora-de-cama do Submundo por ter se deitado com Paris, o maior galinha que existia.

O título não cutucava tanto quanto o último. Certo, seu atual. Harpias tinham memória longa, e gritos de “Olhem todos, é a Decepção” ainda aconteciam sempre que ela se chocava com outra de sua raça.

Que seja. Bianka estava encantadoramente magnífica como sempre, uma cascata de cabelos escuros desciam pelas suas costas, seus olhos âmbar brilhantes. E naquele momento ela estava fazendo voar cabides de vestidos de marca, uma mistura de determinação e preocupação irradiando dela.

— Isso aconteceu, tipo, um milhão de anos atrás — Kaia disse. —, e Strider é o primeiro homem que eu já… droga, ele é somente o primeiro homem que eu realmente quis. — ela adicionou antes de sua irmã poder comentar seus “namorados” ao longo dos séculos desde então. Ou jamais.

— Na verdade, isso como você chama, aconteceu uns meros mil e quinhentos anos atrás, mas não estamos discutindo isto. Mas e o Kane, guardião do Desastre, hein? Você não teve um momento com ele? Um choque para os seus sentidos ou algo assim.

 — Nada além de estática.

Um bufar cheio de diversão.

— Tente novamente.

— Eu não sei. Talvez seu demônio sentisse uma alma gêmea em mim e estendeu a mão, esperando atiçar as chamas de um romance. Isso não significa que Kane e eu estamos destinados a ficar juntos. Eu não me sinto atraída por ele.

— Melhor, e tudo bem, Kane está fora. Talvez você precise procurar em outro lugar por um namorado. Como, vamos dizer, nos céus. Posso arranjar um anjo pra você. — Bianka levantou uma tira fluída de material azul com aplicações de flores em lantejoulas costuradas no topo e camada após camada de rendas desordenadas na parte inferior.

— O que você acha deste aqui?

Ignorando o vestido, Kaia avançou.

— Nada de arranjos. Quero Strider.

— Ele não é bom pra você.

Ele é perfeito para mim.

— Um, ele não pertence à outra Harpia. Dois, ele não é psicopata. Bem — ela adicionou depois de alguns segundos de reflexão tardia —, ele não é psicótico o tempo todo. E três, ele é… ele é meu consorte, eu sei disso. — Lá. Ela disse as palavras em voz alta para alguém que não fosse ela mesma e do homem com dano cerebral em questão.

Meu consorte.

Consortes, como Kaia agora sabia, eram extremamente difíceis de encontrar e totalmente estimados por causa disso. Na verdade eles eram necessários. As Harpias eram voláteis por natureza, perigosas e quando aborrecidas, letais para o mundo inteiro. Os consortes as acalmavam. Os consortes as satisfaziam.

Se você apenas pudesse selecionar seu consorte de um catálogo e pronto. Ao invés disso o instinto escolhia por você, e seu corpo seguia o exemplo. Não seria tão ruim, exceto que para cada Harpia era concedido um consorte durante toda a sua vida aparentemente interminável. Só um. Se o perdesse sofreria eternamente. Se você não se matasse de cara.

Kaia uma vez tentou roubar o de Juliette, que esteve sem seu macho todo esse tempo, não sabendo se ele vivia ou morreu, odiando-o pelo que fez, mas precisando dele de qualquer maneira, por isso Juliette ainda abominava Kaia e prometeu retribuição – retribuição que a cadela ainda obviamente planejava alcançar — a envergonhava. Entretanto, o que ela podia dizer para se defender? Nada!

Ela desobedeceu. Ela soltou o homem. Ela desencadeou sua fúria sobre uma comunidade inocente.

Todo ano Kaia enviava a Juliette uma cesta de frutas com um cartão — desculpe pelo seu consorte —, e todo ano a cesta era devolvida com caroços de maçã podre, cascas de banana preta e um retrato de Juliette louca com um — Morra, Cadela, Morra — escrito com sangue em algum lugar.

A única razão de Juliette ainda não ter atacado era por respeito à Tabitha, que ainda era uma força a ser levada em consideração entre seus aliados e inimigos.

Não pense no passado. Você começará a entrar em parafuso.

Ela pensaria sobre seu consorte. Strider. Bárbaro e promíscuo idiota Strider. Ele era um guerreiro imortal que há muito tempo havia roubado e aberto a Caixa de Pandora para “ensinar àqueles Deuses imbecis uma lição” por ousarem escolher uma “simples mulher” para guardar “uma relíquia tão idiota” e por causa de sua insensatez desenfreada, ele e os amigos que o ajudaram — os infames e deliciosamente assustadores para todos, exceto para uma Harpia, Senhores do Submundo — foram amaldiçoados, para sempre obrigados a levar os demônios que eles libertaram dentro deles mesmos.

Strider, o bonito estúpido, era possuído pelo demônio da Derrota. Ele não poderia perder um único desafio sem sofrer dor debilitante. Claro, isso fazia dele determinado a vencer tudo, até algo tão tolo quanto uma Banda de Rock. Ela sempre recusava tocar novamente com ele porque ela o venceu completamente na guitarra Fender, então na bateria, depois no microfone e ele havia enlouquecido e gritado com ela antes de desmaiar e se contorcer de dor.

Tão melodramático.

De qualquer maneira, sua determinação o fazia estúpido, egoísta, estúpido, uma mistura de teimoso, impossível e estúpido! Mas não existia nenhum homem mais bonito, nenhum homem mais feroz.

Nenhum homem que quisesse estar menos com ela.

Ela mencionou que ele era estúpido?

— Bem? — Bianka agitou o vestido com força no rosto de Kaia chamando sua atenção. — Opinião, por favor. E em algum momento de hoje.

Enfoque.

— Não mate o mensageiro, mas essa coisa vai fazer com que pareça com uma rainha de baile perdida que não tem nenhum plano de dormir com seu namorado quando o grande baile terminar — porque ela não tem um namorado. Ela é tão estranha. Desculpe.

Bianka só deu de ombros, inalterada.

— Ei, rainhas do baile perdidas podem ser estranhas, mas são gostosas.

—Se gostosa for sinônimo de destinada a morrer sozinha, você está certa. Então vá em frente. Compre o vestido, e vou comprar pra você cem gatos para te fazer companhia enquanto você gasta o resto da eternidade tentando entender onde sua relação com o anjo deu errado, nunca realmente compreendendo que os problemas começaram nessa noite.

— Você sabe alguma coisa a meu respeito? Alô, eu gosto de cachorros. Mas certo, o que seja. — Lábios vermelhos fazendo bico, sua gêmea enfiou o cabide de volta na prateleira e continuou sua procura pelo “vestido perfeito” para vestir quando jogasse as más notícias em seu consorte, Lysander.

Pobre Bianka. Ela não apenas agarrou um anjo, ela se amarrou a um. Para sempre. Lysander vivia e trabalhava nos céus e era tão chato que Kaia preferia enfiar lascas de bambu debaixo das unhas de outras pessoas que passar algum tempo com ele. Ok, um exemplo ruim. Ela realmente apreciava enfiar lascas de bambu debaixo das unhas das outras pessoas.

Havia algo tão mais-musical-que-nunca quando as pessoas gritavam e imploravam por clemência, e ela podia escutar um bom musical o dia todo.

— Kaia? — Bianka disse. — Sobre que diabos você está suspirando?

— Musicais.

— Musicais? Sério? Quando eu estou morrendo por ajuda? Você pode me escutar apenas uma vez?

— Num minuto. Credo. Eu realmente gosto deste trem de pensamento. — Ou melhor, ela gostaria que a estação parasse antes do musical. Um macho tão chato precisava de um apelido igualmente tedioso… como… Papa Lysander I. Isso mesmo. Ele era um guerreiro de elite com asas de ouro e sim, ele era um demônio assassino extraordinário, e ok, isso era sensual como o inferno, mas ele também era moralmente forte além do limite TOC (Transtorno obsessivo compulsivo) quanto a isto. Kaia estremeceu com desgosto. Ele era devagar, mas certamente sugava a diversão gostosa diretamente da sua irmã.

De fato, a aversão de Lysander para descaradamente roubar uma loja era a razão delas abandonarem Budapeste, retornarem ao Alasca e arrombarem o Shopping Quinta Avenida de Anchorage à noite em vez de tomar o que elas desejavam em pleno dia, como sempre. Muitos olhos curiosos.

Pra ser honesta, Kaia estava um tanto quanto envergonhada sobre a concessão. Ela diria ao seu homem para pegar seu pedido de: — Por favor, não roube na frente de humanos, isso dá ideia pra eles — e enfiaria no seu rabo. Além disso, ela desprezava a falta de emoção, precisava dela para acalmar seu lado mais escuro, mas enfim. Ela amava sua irmã. Mais do que isso, ela tinha uma dívida com Bianka que esperava jamais poder pagar.

Elas podiam nunca discutir o Lamentável Incidente, mas Kaia nunca o esqueceu. (Viu? Uma Harpia com memória longa) Todo dia ela se lembrava como Bianka se contorceu numa poça de seu próprio sangue, seus olhos vidrados de dor enquanto gemidos de angústia partiam dos lábios mutilados.

 Bianka suspirou.

— Ok, vamos resolver seus problemas de modo que assim possamos nos concentrar em mim. Diga por que você escolheu Strider como seu companheiro de coração. Sei que está morrendo para exaltar suas virtudes.

 Por um momento Kaia pode apenas piscar para sua irmã, certa de que entendeu errado.

— Você está brincando comigo? Companheiro de coração? Você acabou de dizer companheiro de coração?

Bianka riu silenciosamente.

— Falei, e quase vomitei. Influência de Lysander sabe. De qualquer maneira Strider é um instrumento. E um desafio. — Outro riso silencioso ecoou. — Entendeu? Um desafio… ele não pode perder um… mas certo como o inferno que age como um.

Kaia revirou seus olhos.

— Eu acho que você tem andado muito com os anjos. Seu QI diminuiu.

— O que? Isso foi engraçado. — Unhas de pontas quadradas pintadas de azul claro tamborilaram contra a prateleira de metal entre elas. — A propósito, os anjos não são tão ruins.

— O que quer que você precise dizer a você mesma, meu amor.

Bianka soprou um beijo cheio de veneno.

— Tudo que estou dizendo é que Strider será uma mão cheia — e não do tipo bom —. Ele realmente é, espere. Deixa me explicar melhor. Ele é grande demais para ser qualquer coisa exceto um bom punhado. Ou mais. Mas ele também será mau. Espere. Isso não soa verdadeiro, também. Como poderia colocar isso? Ele vai...

— Já entendi! Ele tem um pacote enorme e é irritante como o inferno. Aonde quer chegar?

— Fico contente que você está finalmente em velocidade máxima. É triste realmente que precise de tanta explicação. — O brilho nos olhos de sua irmã diminuiu. — De qualquer maneira, você disse a ele como se sentia e ele a rejeitou. Ele ficará irritado por qualquer contato adicional que você inicie, e um guerreiro possuído-por-demônio irritado é um desastre global esperando por acontecer.

 — Eu sei. — Se ela tivesse percebido sua importância para ele mais cedo não teria dormido com seu amigo Paris, o guardião da Promiscuidade. Também conhecido como Paris, o Sexorcista, um homem tão sensual que podia fazer sua cabeça girar. E se ela não tivesse dormido com o Sexorcista, Strider o Estúpido não a teria rejeitado.

 Talvez.

Ou talvez tivesse. Porque para sua consternação — sim, consternação, e não uma toda consumida ira de-inflamar-os-órgãos — ele meio que surtou desejando outra mulher. Haidee, uma mulher bonita que pertencia a seu amigo, Amun, guardião de Segredos.

Pelo menos Haidee estava fora-dos-limites, e Kaia não tinha que se preocupar sobre Strider ficar de pegação. Honra entre os demônios do mal, e tudo aquilo.

Mas droga, só de pensar no seu olhar em outra mulher fazia as unhas de Kaia crescerem e afiarem, suas presas brotarem e seu sangue ferver. Meu. Cada célula do seu corpo gritava. Ela mataria qualquer uma que desse em cima dele, como também qualquer uma que ele desse em cima. Ela não podia evitar. Seu lado escuro assumia o comando, dirigindo-a para proteger o que era dela.

— Sério, ele tem sorte de estar vivo, e não só porque quero cortar fora suas partes masculinas e alimentar com elas os animais do jardim zoológico enquanto ele assiste. — Bianka continuou. — Qualquer homem que não pode reconhecer seu valor merece uma boa tortura.

— Eu sei. — Não porque Kaia fosse qualquer coisa especial — apesar dela ser, tipo, talvez… droga, ela costumava ser — mas porque ninguém podia rejeitar uma Harpia sem sofrer consequências severas.

Na verdade a maioria das Harpias teria tomado Strider apesar dos seus desejos. Então talvez ela fosse estúpida por se permitir se afastar dele. Ela só o queria disposto. Ela precisava dele disposto. Fugir com ele as escondidas era derrotá-lo, e vencê-lo iria machucá-lo.

Ela não conseguiria machucá-lo. Mesmo à custa da sua sanidade.

— Você é muito boa pra ele, de qualquer maneira. — Bianka disse leal como sempre.

— Eu sei. — ela repetiu mais uma vez, mentindo desta vez. Ela sempre seria uma vergonha para o seu clã. Ele merecia coisa melhor.

Sua irmã suspirou.

— Mas você ainda o quer. — Uma declaração de fato, não uma pergunta.

— Sim.

— Então o que você vai fazer para conquistá-lo?

— Nada. — disse ela, lutando contra uma onda de depressão. — Eu o persegui uma vez. — E ele a achou carente. — Não farei isso novamente.

— Talvez...

— Não. Algumas semanas atrás eu o desafiei a detonar mais Caçadores do que eu. — Caçadores, o inimigo lá fora que destruía todas as coisas do demônio. Os fanáticos que amavam seguir inocentes que ousavam entrar no seu caminho. Os pré-mortos humanos que encontrariam as pontas de suas garras se eles abordassem Strider novamente.

Bem, se eles ousassem se aproximar dele com uma arma na mão. Ela poderia deixá-los rastejarem em direção a ele para se desculparem pela dificuldade que causaram ao longo dos séculos torturando os Senhores — só ela tinha permissão de fazer isso. Explodindo edifícios — bocejo. Eles poderiam ser mais filme classe B? Tããão irritante. Decapitar o guardião da Desconfiança — certo, aquilo era um pouco mais que irritante, considerando que Strider ainda estava um pouco mexido com isso e tudo mais.

Falando do assassinato da Desconfiança, Haidee ajudou a fazer isso. Sim, essa Haidee. A que Strider desejava.

Kaia não entendia isso. Se ele podia desejar Haidee apesar dos seus crimes, por que não podia querer Kaia?

— Eu queria ajudá-lo a matar os homens que estavam atrás dele. Queria que ele visse o quanto eu era capaz. — acrescentou. — Queria que ele admirasse minha habilidade. Mas ele fez? Nããão. Ele ficou puto. Ele se enfureceu sobre toda a dor que eu poderia causar. Então eu o deixei ganhar. Malditamente deixei. Você sabe que eu nunca abriria mão de uma briga. — Isto cheirava a fraqueza, e muitas pessoas já a viam como fraca. — E como ele me agradeceu? Dizendo para eu sumir. — Hu-mi-lhan-te. — Agora vamos mudar de assunto. — Antes que tivesse uma explosão de raiva e arrasasse o shopping até o chão. — Qual visual está procurando? — Ela perguntou, vasculhando os cabides.

— Vadia, porém sofisticada. — sua irmã disse, permitindo a mudança sem comentário.

— Boa escolha. — Esfregou sua língua no céu da boca enquanto estudada a ordem colorida das roupas. — Acha que se arrumar ajudará sua situação?

— Deuses, espero que sim. Pretendo deixar Lysander arrancar minha roupa, fazer amor comigo do modo mais sujo possível, e então, enquanto estiver tentando recuperar sua respiração, soltar a grande bomba em cima dele e correr como o inferno.

Algo que Kaia teria adorado fazer com Strider — a parte suja do amor, de qualquer maneira — mas ele não daria uma merda sobre qualquer coisa que ela dissesse. Como já havia provado. — O que vai dizer para Lysander, afinal? Exatamente.

Bianka encolheu os ombros aparentemente delicados.

— Exatamente… não sei.

— Tente comigo. Finja que sou seu anjo consorte repugnantemente apaixonado e confesse.

— Ok. — Um suspiro, um endireitar de sua coluna, em seguida adoráveis olhos âmbar estavam olhando fixamente para Kaia com apreensão. — Certo. Aqui vai. — Uma pausa. Uma engolida em seco. — Bem, eu, uh, tenho algo pra te contar.

— O que é isso? — Kaia disse em sua voz mais grave. Ela apoiou seus cotovelos no balcão, os ganchos dos cabides fincando em sua pele. — Fale depressa porque preciso espalhar meu pó de fada feliz e agitar minha varinha mágica quando...

— Ele não espalha pó de fada feliz! Ele é um assassino, droga. — A indignação drenou tão depressa quanto se formou. — Mas quanto à varinha mágica… — Bianka estremeceu e sorriu maliciosamente. — É realmente grande. Provavelmente maior que a do Strider.

Kaia apenas piscou, esperando.

Sua irmã inalou profundamente, exalando devagar.

— Ok. Continuando. Querido, pela primeiríssima vez minha família foi convidada para participar dos Jogos das Harpias. Você se pergunta por que pela primeiríssima vez. Bem, história engraçada. Você sabe, minha irmã gêmea fez a coisa mais estúpida e...

— Tenho certeza que está exagerando sobre essa parte. — ela interrompeu ainda usando aquela voz profunda imitando Lysander. — Sua gêmea é a mulher mais forte e a mais inteligente que eu já conheci. Agora me diga algo importante.

— De qualquer forma. — Bianka continuou sem problemas. — Não tenho certeza por que fomos convidadas, mas um cartão ornado com relevos de ouro exigindo nossa presença chegou via Harpia Express alguns dias atrás. Nós não poderíamos recusar sem trazer intensa vergonha para o nosso clã inteiro. Nós seríamos rotuladas como covardes, e como você sabe, não sou nenhuma covarde. Então… estou partindo em uma semana e ficarei fora por quatro. Ah, e cada um dos quatro eventos combinados envolve derramamento de sangue, possível remoção de membros e definitivamente tortura. Até mais. — Ela deu um adeusinho com os dedinhos, silenciou, então esperou pela resposta de Kaia.

Kaia acenou com a cabeça.

— Gostei. Firme, informativo e inabalável. Ele não terá nenhuma escolha, senão deixar você ir sem rebuliço.

Um pouco da preocupação de Bianka escoou para longe.

— Você realmente acha?

— Deuses, não. Eu não acho, de forma alguma. Ele vai enlouquecer. De verdade. Você o conhece, certo? Protetor ao extremo. — Garota de sorte. — O que acha desse aqui? — Ela levantou a confecção com finas correntes prateadas conectando os lados, que mal se notava.

— Acho que é ótima. Perfeita, realmente. Também acho que você é uma pirralha.

Ela relampejou um sorriso impenitente.

— Você me ama de qualquer maneira.

— Como você disse, meu QI diminuiu. — Bianka mastigou seu lábio inferior. — Ok, então. É isso que acho que acontecerá depois que eu confessar. Primeiro, ele tentará me impedir.

— Você está certa.

— Então, quando ele perceber que não pode, insistirá em ir comigo.

— Certa novamente. Você é boa nisto? — Todo mundo zombaria dela por se unir a um bom samaritano. Até sua mãe. Especialmente sua mãe. Tabitha odiava os anjos mais do que a maioria, já que ela sempre pensou que o pai de sua meia-irmã mais nova era um anjo e culpou o homem pela suposta fraqueza de Gwen.

— Sim. — Bianka sorriu sonhadoramente. — Eu sou boa nisso. Não gosto de ficar sem ele, e realmente massacrarei qualquer um que falar mal dele, então isso adicionará tempero aos meus dias.

— Sem falar eliminar a concorrência porque eu a ajudarei com aqueles massacres. — Como ela queria poder levar Strider com ela.

Na verdade não, ela pensou em seguida. Graças aos Deuses que ele não iria com ela. Ela era insultada entre os Clãs das Harpias. Ela morreria de vergonha se ele visse sua própria espécie virar suas costas para ela, e ela cairia naquela espiral de vergonha se ele em algum momento ouvisse seu desprezado apelido.

Um soldado como Strider valorizava a força. Ela sabia por que era um soldado como Strider.

Claro, seu próximo pensamento atingiu duro e cortou fundo — Haidee era forte. A cadela. Apesar de ser (principalmente) humana, a garota conseguiram derrotar a morte inúmeras vezes, voltando à vida para lutar contra os Senhores. Até que ela se apaixonou por Amun.

Se eu não adorasse tanto Amun, eu devolveria aquela mulher para a sepultura — pela última maldita vez! Ninguém chamava a atenção de Strider sem sofrer de forma insuportável.

Talvez antes de Kaia sair para os jogos ela se assegurasse que a garota adquirisse um caso furioso de piolhos ou algo do gênero. Ninguém seria machucado, Strider sentiria repulsa e Kaia se sentiria como se tivesse cometido algum tipo de vingança. Ambos ganhariam.

— Você está me escutando ou eu te perdi para o trem novamente? — Bianka perguntou, exasperada.

Ela voltou dos seus pensamentos.

— Sim, estou escutando. Você estava falando de algo… de grande consequência.

— Você estava ouvindo. — sua irmã disse com sua mão pousando acima do seu coração. — De qualquer maneira, obrigado por se oferecer para ajudar a castigar todos que insultarem Lysander. Você é minha facilitadora favorita no mundo, Kye.

— Você, também, Bee[1]. — As coisas se resolveriam para Bianka. Lysander a apoiaria não importava de que forma, e as Harpias veriam o quanto ele poderia ser intratável e desistiriam. Kaia, entretanto… Não, as coisas não se resolveriam para ela.

— A Querida Mãe estará lá — Bianka disse, tentando uma casualidade que nenhuma delas sentia por este tópico em particular. — e ela o odiará, não é?

— Com certeza. Entretanto, ela tem um gosto abominável para homens. Tome nosso pai por exemplo. Um metamorfo de Phoenix, também conhecido como o Pior dos piores em termos das raças imortais. Eles estão sempre saqueando e queimando coisas até o chão. Sério, você tem que ser uma verdadeira louca para se amarrar com um deles. Isso diz o que? Mamãe é uma verdadeira louca. Eu estaria preocupada se ela gostasse de Lysander.

O que Tabitha pensaria sobre Strider, entretanto?

Bianka deu uma risada baixa, quente.

— Você está certa. Ela foi e ela é.

— E você sabe o que mais? Ela pode se danar, pelo que me diz respeito. — Palavras valentes, mas por dentro Kaia ainda era uma garotinha, desesperada pela aprovação da sua mãe. — Mas, talvez, não sei, talvez ela finalmente enterre a machadinha comigo. — Deuses, aquele tom necessitado era realmente seu?

Bianka se debruçou na prateleira e deu um tapinha no seu ombro.

— Odeio ter que dizer isso minha irmã, mas a única forma dela enterrar uma machadinha é se ela conseguir enterrar nas suas costas.

Ela tentou não afundar com pesar.

— Verdade. — E ela não se importaria. Não se importaria, realmente. Mas por que, por que, por que ninguém além de sua irmã a considerava boa o suficiente?

Um erro, só um — quando ela era uma criança, não menos — e sua mãe a considerou um fracasso. Um erro, um só, e Strider não se comprometeria com ela. Não era como ela o tivesse enganado. Ambos foram solteiros por anos, e nem sequer saíram juntos. Não se beijaram. Nem conversaram na verdade. E a noite que ela dormiu com Paris? Ela não sabia que um dia iria querer Strider sexualmente. Ou de qualquer forma.

Ele deveria ter reconhecido sua atração desde o início e tentado seduzi-la. Então, quando você pensava sobre isto, a culpa poderia ser deixada totalmente nas costas dele. Ou talvez de seu demônio. Derrota tinha que perceber que perdê-la ela era muito pior que perder um desafio. Caso contrário, Strider sofreria sem ela.

Ela queria que ele sofresse sem ela.

O demônio estava unido a Strider e era essencial para sua sobrevivência, então… talvez ela pudesse fazer algo para ganhar o demônio do mal de novo. Se ela decidisse fazer outra jogada com Strider. Mas ela não iria. Como disse a sua irmã, ele perdeu sua chance. Além disso, abordar ele agora a faria parecer desesperada. O que ela estava.

Deuses, isto era deprimente. E irritante! A oposição era para ser esmagada, sempre, mas como lutaria com um homem que ela também queria proteger?

— No que está pensando agora? — Bianka perguntou. — Seus olhos estão quase que completamente pretos, então sei que sua Harpia está perto de assumir e...

 — Ei. Ei, você! O que está fazendo aqui? — Alguém gritou.

Obrigando-se a respirar fundo e se acalmar, ela lançou um rápido olhar por cima do ombro. Ótimo. O segurança do shopping chegou.

— Estou bem, juro. Encontro você em casa? — Ela disse, lançando o vestido escolhido para sua irmã.

 — Sim. — Bianka disse, pegando a roupa e enfiando debaixo da sua camiseta para protegê-la. — Amo você.

— Amo você, também.

Elas correram em direções diferentes.

— Pare! Vou atirar!

O cabelo vermelho de Kaia praticamente brilhava na escuridão fazendo dela um alvo mais fácil, então o guarda — que não atirou, o mentiroso — correu atrás dela enquanto pedia auxílio pelo rádio. O fato que ela o empurrou antes de dobrar a primeira esquina não teve nada a ver com isso.

A maior parte das luzes da loja estava desligada, e o resto do shopping oferecia muito pouca iluminação. Não que isto importasse para sua visão superior de Harpia. Seu olhar habilmente cortava através das sombras enquanto ela se esquivava e disparava em direção à saída. Infelizmente, o humano conhecia a área melhor do que ela e conseguiu acompanhá-la.

Hora de chutar as coisas para o próximo nível.

Suas asas tremularam… preparando-se… mas pouco antes dela poder resplandecer em hipervelocidade, o guarda fez o inconcebível e usou uma Taser[2] nela. Taser. Nela. Não era um mentiroso, afinal. Kaia caiu de cara no chão, oxigênio instantaneamente se tornando relâmpagos em seus pulmões. Ela estava a poucos centímetros da entrada, mas seus espasmos musculares a impediam de completar sua fuga.

Ela poderia ter tirado as algemas das suas costas. Ela poderia ter se torcido, lançado uma das muitas adagas presas a ela e acabar com sua dor. Acabar com o humano. Mas, essa era sua cidade natal e não gostava de matar os moradores. Melhor ainda, não gostava de matar mais de um por dia e já havia atingido seu limite.

Uma mentira, mas ficaria com ela.

Além do mais, por que mataria o guarda quando ela realmente o fez perseguí-la, sabendo no fundo que ele poderia fornecer o que ela secretamente desejava: uma razão para chamar Strider.

Afinal, alguém teria que pagar a fiança para tirá-la da prisão.

 

Strider esperou no vestíbulo do Departamento de Polícia de Anchorage, seu amigo Paris ao seu lado.

Eles já tinham pagado a fiança de Kaia e estavam agora esperando ela ser liberada em sua custódia. Vamos, Vermelha. Apresse-se. Ele estava neste momento na recepção recebendo vários olhares avaliadores dos policiais machos, o que era um fato engraçado, ele fez buscas em cavidades do corpo menos invasivas, bem como alguns olhares bastante fodidamente minuciosos das fêmeas. Paris recebeu também.

 Eles estavam armados, sim. Strider não visitaria uma igreja no céu sem algumas lâminas escondidas em algum lugar — especialmente agora que sabia que o céu era guardado por estúpidos e gigantescos anjos idiotas — muito menos um passeio em um edifício prestes a estourar com armas e humanos que sabiam como usá-las. Mas, até agora, ninguém tinha falado nada. Não que eles pudessem ver seu arsenal, escondido como estava embaixo de sua jaqueta, camiseta e calça jeans.

 — Por que temos que ser os únicos a fazer isto, novamente? — Paris perguntou. Com pouco mais de dois metros de altura e todo constituídos de músculos, o guardião da Promiscuidade era, pra não dizer o mínimo, um cara grande. Sete centímetros mais alto que Strider, o Bastardo — e olha que ele era enorme — longe de ser tão poderoso.

 Considerando quantas vezes eles se derrubaram, a comparação não era meramente uma opinião, mas um fato sólido.

 — Eu devia um favor a ela. — ele disse, cuidadoso em não revelar nenhuma emoção. Como o fato que ele preferia estar preso na masmorra do seu inimigo, a tortura no menu do dia, do que aqui. Como o fato que não queria ver Kaia novamente. Nunca. Como o fato que ele não queria que Paris visse Kaia novamente. Mais do que nunca.

— Ela me ligou daqui.

— Que favor?

— Não é da sua maldita conta. — Ele nem gostava de pensar sobre isso. E falar sobre isto? Claro que não. Também era embaraçoso. Como ser pego em público com suas calças arriadas.

 Espere. Péssimo exemplo. “Calças arriadas” eram uma boa visão para ele. Realmente uma visão muito boa.

 Ego em cheque. Disse a si mesmo que iria parar de se chutar por todos as suas maravilhosas qualidades. Afinal, não era justo para os cidadãos do mundo. Eles não podiam deixar de ser inferior a ele em todos os sentidos.

 — Bem, eu não devo nada a ela. — Paris lançou-lhe um olhar, olhos azuis da cor do oceano brilhando. Tensão irradiava dele. Tragicamente, uh, felizmente isso não afetava sua beleza. Ele tinha uma cabeleira que muitas mulheres matariam pra possuir, uma massa de diferentes tons de castanho, da escuridão da meia-noite para o mais doce mel, e um rosto que a maioria das mulheres matariam só para vislumbrar.

 Kaia provavelmente tinha cerrado as mãos naquele cabelo. Provavelmente sufocou aquele rosto com beijos.

 As mandíbulas do Strider se apertaram.

— Você dormiu com ela. Você realmente precisa de um lembrete disso?

— Não, nenhum lembrete. Mas quando você pensa nisso, significa que ela me deve. E agora você me deve também, convocando-me do modo que fez, interrompendo minha busca exigindo que o ajudasse. — Acidez enchiam aquelas palavras.

Não por causa de Strider, mas por causa da “busca.”

Sienna, a mulher que Paris desejou acima de todas as outras, estava presa no céu, uma escrava do Rei Deus.

Pior ainda, ela agora estava possuída pelo demônio da Ira. Paris esperava achá-la, salvá-la e punir todo mundo que a machucou.

 Strider estalou sua língua no céu da boca, permanecendo mudo. Paris achou sua “primeira e única” como o cabeça de merda estúpido que era agora, gostava de dizer e soar como uma garota, ainda assim dormiu com Kaia.

Um homem com apenas um parafuso não deveria andar por aí, na humilde opinião do Strider. Sim, sim. Paris não poderia ajudar a si mesmo. Por causa do seu demônio, ele tinha que dormir com uma pessoa diferente a cada dia ou ele enfraqueceria… e morreria.

 Uma pequena parte de Strider quase desejava que seu amigo escolhesse o caminho do enfraquecimento em vez de tocar a Harpia.

Claro, o pensamento fazia a culpa o comê-lo. Kaia não era a primeira e única do Strider, mesmo se tal coisa existisse para ele. Ela era muito competitiva, muito forte e muito astuta para lhe causar qualquer coisa exceto miséria.

E sim, ele captou a ironia. Ele era assim mesmo com todos. Mas estava atraído por ela, e possessivo como ele era e sempre fora, não gostou da ideia dela dormindo com mais ninguém.

 Especialmente por que ele tinha que ser o melhor em tudo que fazia. Por causa do seu demônio ele tinha que ganhar, até na cama. E como Paris tinha mais experiência que qualquer um que ele conhecia, não havia nenhum modo de Strider poder competir naquela arena.

 Talvez ele pudesse ter ignorado suas outras razões mais recentes e numerosas para rejeitar Kaia venha-e-me-atire olhares, mas não podia ignorar aquilo. Nem mesmo uma vez. Porque uma vez que um homem provasse o fruto proibido, ele voltaria por mais. Ele não seria capaz de se ajudar, a corda da sua sanidade já estava partida. Então Strider continuaria voltando, e cada vez que a tocasse, saboreasse, arrancasse sua calcinha com seus dentes, mais tarde experimentaria a agonia em sua forma mais pura.

 Sim, Strider era muito bom de cama. Não que ele iria dar tapinhas em suas costas por isso. Ele não fazia mais isso, lembrou a si mesmo. Ok, tudo bem. Ele faria uma exceção por causa da extrema superioridade de seu talento. Ele era muito melhor do que “bom”. Ele se mexia de forma incrível. Mas nunca entrou numa briga que não tinha certeza de poder ganhar. Nada valia a a tortura física e mental que acompanha uma perda, e Paris provavelmente era melhor que “mexer de forma incrível”.

Certo. Provavelmente não ele era desse jeito, se podia acreditar nos gemidos que Strider ouviu nos muitos quartos de hotel que Paris alugou ao longo dos séculos.

 Agora, o prazer que vinha com uma vitória... Doces Deuses de Cima. Não existia nada parecido, nem mesmo sexo.

Strider era viciado na competição do mesmo jeito que Paris era viciado em ambrosia, a droga de escolha dos imortais. De fato, ele apunhalaria um amigo querido na garganta antes de deixá-lo — ou deixá-la — surrá-lo em algo tão pequeno quanto um concurso de ortografia.

 A melhor maneira de soletrar vitória? M-A-T-A-R.

 — De qualquer maneira. — Paris disse, chamando-o de volta ao presente. — O que Kaia fez para você que iria de boa vontade comprometê-lo comigo?

 — Eu já disse a você. Não é da sua maldita conta.

 — Sim, mas eu percebi que se continuasse perguntando, você escavaria.

 — Você estava errado. Novidade, sou um pouco mais teimoso que a maioria. E a propósito, não me comprometi com você. Em troca de sua ajuda hoje à noite, concordei em ir para Titania com você para caçar Sienna.

Titania. Nome idiota. Mas Cronus, o Deus Rei egomaníaco, renomeou Olympus para deixar putos os gregos agora encarcerados que uma vez reinaram ali.

 É preciso ter culhões de titânio para citar um local referente a si mesmo. Ou talvez Cronus estivesse simplesmente super valorizando alguma coisa.

 Não que Strider e seu amado pênis, que ele modestamente apelidou de Monstro Strider, soubesse alguma coisa sobre isso. Eles eram perfeitos em todos os sentidos.

 Ego em cheque. Droga. Quantos será que ele precisaria em um só dia?

— Cara, você é quem comprometeu a si mesmo. Você também concordou em sequestrar aquele cabeça de merda do William e levá-lo conosco. — Paris disse.

 — Eu realmente concordei em sequestrar aquele cabeça de merda do William e levá-lo conosco, sim. — Um fato que ainda o deixava puto.

William, um imortal viciado em sexo que queria dormir com Kaia. Infelizmente, Willy também era a única pessoa que realmente podia localizar Sienna, sendo que Sienna estava morta e ele tinha aquela coisa toda de eu-vejo-gente-morta acontecendo.

Além disso, ajudava que o cara agora podia cintilar. Por qualquer razão, as habilidades que os Deuses outrora o despojaram agora estavam retornando.

 De qualquer maneira. Algo que Strider e seus companheiros recentemente aprenderam era que “morto” não necessariamente significava “desaparecido para sempre”. Não para humanos e certamente não para imortais. Longe disso, de fato. Almas poderiam ser capturadas, manipuladas… abusadas. Sienna era da variedade abusada, e Paris estava desesperado para salvá-la.

 O obcecado guerreiro mudou de um pé para o outro. Atrás do balcão, um fêmea gemia como se o movimento fosse uma tortura para ela.

— Você concordou em me ajudar sabendo que teria que achar Sienna, não importa quanto tempo leve ou quanto se machuque. Mau.

 No que dizia respeito a Strider, quanto mais tempo levasse, melhor. Quanto maior a distância entre ele e Kaia, melhor. Ele tinha que provar a si mesmo que podia ir embora e se esquecer dela.

 Ele fez isto antes. O único problema era que agora ele a conhecia melhor e a atração era mais forte.

 — Você esteve no céu por semanas e não fez nenhum progresso. — ele disse. — Você precisava de mim.

 — Sim, mas você não precisa de mim. Não para algo tão simples quanto isto.

 Realmente ele precisava. Ele precisava ver Paris e Kaia juntos. Precisava lembrar a si mesmo por que ele não poderia tê-la, por que ele tinha que parar de pensar nela todo o maldito tempo. Por que ela era uma má notícia. De preferência antes que seu demônio decidisse que eles tinham que tê-la, ou outra coisa qualquer.

 Além disso, Strider precisava escapar de Budapest, seu lar não-muito-doce-lar, bem como também colocar alguma distância entre ele, Amun e a nova namorada do Amun, Haidee. Strider pôs as suas semi-melhores fichas nela, mas ela não quis nada com ele. Claro, ele também a insultou em cada chance que teve e ameaçou decapitá-la, mas dê a um cara uma maldita pausa. Ele teve excelentes razões pra fazer o que fez.

 Haidee tinha sido uma caçadora, matou seu melhor amigo, Baden, guardião da Desconfiança e fez um atentado selvagem a sua casa.

 Mesmo assim ele a desejou. E agora toda vez que olhava para ela se lembrava do seu fracasso. Sua perda. A dor que seguia. Mas… aqui estava a jogada. Ele nunca teve problema em resistir a ela. Ele manteve sua boca, mãos e apêndice favorito para ele mesmo sem qualquer dificuldade.

 Para Kaia, porém, não seria estendida a mesma cortesia se eles passassem algum tempo a sós. Sua boca se enchia de água de vontade de prová-la, suas mãos coçavam para tocá-la e seu apêndice favorito estava em situação embaraçosa.

 Oh, sim. Ele tinha que ir para o mais longe possível de toda a situação.

— Strider, cara. Você está aqui comigo ou o que?

 Ele piscou para colocar as coisas em foco. Paris. Delegacia de polícia. Humanos com armas de fogo. Piscando viu o quanto era estúpido. Ele culpava Kaia pela sua falta de concentração, outra razão para evitá-la.

— Eu não quero falar sobre isto. — foi tudo o que disse.

 Paris abriu sua boca para responder, mas fechou com um estalo quando ouviram o som bem-vindo dos saltos altos estalando no corredor próximo. Então Kaia dobrou a esquina, o cabelo sedoso vermelho caindo pelas suas costas em completa desordem, olhos cinza dourados luminosos e um corpo perverso balançando num ritmo sedutor, e Strider só rezava para que apenas ele pudesse ouvir.

 Não. Ele não queria ouvir aquilo, então não rezaria para que apenas ele pudesse ouvir. Mas se qualquer outro ouvisse, rasgaria seus malditos tímpanos. Porque Kaia era sua amiga, apesar de tudo. Eles lutaram juntos contra os inimigos, sangraram um pelo outro. Inferno, eles brincaram e riram juntos. Então sim, eles eram amigos, e não gostava que seus amigos fossem assediados. E essa era a única razão, droga. Ele faria a mesma coisa por Paris. Que era melhor não estar ouvindo aquele ritmo!

 — Você não vai se meter em mais problemas, está ouvindo? — o oficial a escoltando disse a ela com franco carinho, e Strider quis matar o sujeito por assediá-la tão descaradamente, ou por falar com ela. — Nós adoramos você, mas não queremos vê-la aqui novamente.

 Acalme-se. Você não está saindo com ela, e nem vai sair. Ou beijá-la. Por toda parte. O policial paquerando com ela não importava.

 — Como se eu me deixasse ser pega uma quarta vez. — ela respondeu com um sorriso que era puro charme.

 Um sorriso que fez o peito do Strider se apertar. Ninguém deveria ter lábios tão polpudos e vermelhos, ou dentes tão perfeitos e brancos. Não ajudava que ela calçasse botas de couro de cobra na cor rosa na altura dos joelhos, uma minissaia jeans e um top branco que claramente mostrava o sutiã de renda branco.

 Milagre dos milagres, ela estava vestindo um sutiã hoje.

 Ela parou quando o avistou, seu sorriso se desvanecendo. Ele não tinha certeza do que esperava dela, mas sabia que não era reticência.

 Seu olhar se moveu para Paris e seu sorriso retornou. O que fez o peito do Strider se apertar.

— Ei, Estranho. O que você está fazendo aqui?

— Eu não sei exatamente. — Paris fez uma rápida cara feia. — Não que esteja infeliz em ver você, entenda.

— Sim. Você, também. E obrigado pela picape. Gostei.

— Quando quiser. Só espero que não num futuro próximo.

 Ela riu, o som quente e rico, e suas nuances tão eróticas acariciaram sua pele.

— Não posso prometer.

 Não disse nada romântico, embora ambas as vozes ralassem sobre ele. Talvez porque precisasse que eles estivessem numa melação um com o outro para que seus hormônios recebessem a mensagem de “não vá por aí”.

Ele teve um pressentimento que teria se irritado não importa o que.

 Como seu sorriso, sua risada despreocupada quando voltou sua atenção para Strider.

— Então. — ela disse. — Você.

Como se ela tivesse avistado simplesmente uma secreção cheia de bactérias na sola do seu sapato.

 A antipatia não é um desafio.

Informou ao seu demônio quando a merda estúpida se animou.

 Não houve resposta. A verdade era que Derrota ficava intimidado por Kaia e não desejava muito frequentemente se anunciar.

 E realmente, Derrota só se dignava a falar com Strider quando seu espírito competitivo era engajado. “Espírito competitivo” era uma maneira agradável de dizer que o traseiro do Strider fora colado no chopping block[3]. Ele preferia que o pequeno bastardo ficasse no fundo da sua mente, uma escura e silenciosa presença facilmente ignorada.

— Esperava que você enviasse alguém, não que aparecesse. — Kaia adicionou, balançando pra frente e pra trás em seu salto alto.

— Depois da mensagem que você me deixou? — Ele bufou. — Dificilmente.

— Você está lamentando? Porque eu ouvi um tom de colegial chorão.

 Ela não me diverte.

— Eu não lamento.

 Ele escutou aquela mensagem mil vezes e conhecia cada palavra, cada dificuldade em sua respiração de cor.

Bip. Strider. Ei. É Kaia. Sabe, a garota que salvou sua vida algumas semanas atrás? A mesma garota de quem você se afastou pisando duro logo depois? Bem, é hora do retorno. Por que você não tira seu traseiro preguiçoso pra fora da cama e vem pagar minha fiança pra me tirar da prisão, antes que eu decida escapar e usar seu rosto para testar o salto agulha de minhas botas. Bip.

 A hostilidade era boa, e ele seriamente esperava que ela mantivesse um rígido controle sobre isso, apesar do fato que teve que mover céu e terra para chegar até aqui. Céu — telefonando para Paris e convencendo o guerreiro para soltar tudo lá em cima, fazer Lysander trazê-lo pra casa e vir com Strider. Terra — telefonando para Lucien e convencendo o guerreiro para largar tudo e usar sua habilidade de riscar para levá-los de Budapeste até o Alasca numa mera piscadela de tempo. Nenhum dos quais fora uma tarefa fácil.

 De fato, ele preferia ter sua língua removida com uma faca de manteiga enfadonha e enferrujada. Os dois homens fizeram perguntas. Muitas e muitas perguntas que ele não queria responder.

 E sim, Strider agora devia ao guardião da Morte um favor também. Eles estavam se acumulando, tudo por causa da enganosa aparência delicada, totalmente curvilínea e atordoante na frente dele — que claramente queria sua cabeça em uma lança.

 — Teria sido legal se você me desse alguma direção. Torin teve que procurar tudo. — Strider se interrompeu antes dele publicamente admitir que Torin, o guardião da Doença, podia invadir cada banco de dados conhecido pelo homem. Uma habilidade assim era melhor ser mantida em segredo. — Ele acabou tendo que procurar por você. Isso nos custou algum tempo.

 — Então?

 — Então. Isso é tudo que tem a dizer sobre o seu péssimo comportamento? — Graças aos Deuses ela estava fazendo como ele esperava e segurando firme naquela sua hostilidade. Sim, graças aos Deuses. — Você podia ter chamado Bianka. A verdade é que ela está aqui em Anchorage com você. — Não que ela desse esse telefonema. — Ao invés disso, você desperdiça meu tempo com esta merda.

 — Então?

Droga! A mataria mostrar um pouco de gratidão? Ele poderia ter ficado em casa, deixado que apodrecesse ali. Em vez disso, ela metaforicamente bateu seus cílios em sua direção e ele saltou como uma menina pulando uma corda.

Mulher frustrante.

 Ele estava errado, sim, e ao contrário de Haidee, ela não mereceu isso. Pensei que você não iria refletir sobre isto. As lembranças vieram de qualquer maneira.

Um grupo de caçadores esteve atrás do seu rabo durante dias, mas ele esteve muito envolvido lambendo suas feridas por ter perdido Haidee para Amun, para notar ou se importar. Kaia entrou em cena e salvou o dia, evitando uma desastrosa emboscada. E Deuses Onipotentes, ela era sensual quando lutava.

 Ele não viu aquela luta em particular, mas viu várias antes desta — e uma depois — e tinha até praticado alguns movimentos de batalha com ela. Ele podia muito bem imaginar a dança letal que ela executou naquela noite.

Então veio a batalha depois, quando ela o desafiou para uma rodada de Quem-Pode-Abater-Mais-Caçadores. Ele ficou majestosamente puto porque em primeiro lugar, ela poderia abater mais caçadores, sem dúvida, e em segundo lugar, ele tinha outras coisas pra fazer. Como tirar suas primeiras férias em séculos. Ainda assim, o desafio foi emitido, seu demônio aceitou e Strider teve que largar tudo ou sofrer uma perda.

 Pra sua surpresa ela o deixou ganhar. Por ser uma Harpia, ela poderia rasgar um exército inteiro em segundos — tudo sem suar sua camisa ou quebrar uma unha — mas em vez de dar os golpes finais, ela empilhou suas conquistas ainda respirando e os deu para Strider. Então ela fugiu.

 Ele não ouviu sobre ela novamente até que deixou aquela mensagem.

Sim, ele precisava se desculpar.

— Para não assinalar como se você fosse um aleijado ou qualquer outra coisa — Kaia disse para ele, polindo suas unhas na sua camisa. —, mas uma vez eu tive que tirar Bianka da cadeia doze vezes em um dia. Eu não reclamei uma única vez.

Não se divirta. Ele lembrou a si mesmo.

— Eu já disse a você quanto odeio quando as pessoas exageram?

— Eu juro! — Ela bateu seu pé. — Eu honestamente não reclamei.

Realmente não se divertia. Eu não vou rir.

— Não que eu estava chamando você.

— Oh, bem. — A indignação a deixou. — Eu nunca exagerei. Nunca.

Sua garganta ficou apertada quando ele engoliu uma risada de exasperação, não diversão, assegurou a si mesmo.

— Você está exagerando agora.

— E você ainda está se lamentando, seu bebê chorão!

Deuses, ela era adorável quando estava puta. Seus olhos reluziam mais dourados que cinzas, como se chamas dançassem por suas íris, e suas bochechas enrubesceram na cor de uma rosa rara e exótica. Aquela juba gloriosa de cabelo vermelho praticamente eriçado em seu couro cabeludo, como se ela tivesse enfiado seu dedo em uma tomada. A energia crepitava ao redor dela.

— Uau. — Paris disse, olhando ao redor. — Isto é muita diversão.

— Eu já disse a você quanto odeio sarcasmo? — Strider perguntou a ele.

 Kaia respirou fundo, seu olhar ainda em Strider.

— Olha só, um bebê chorão berrando ao seu lado, eu não vou pagar de volta e nem dar ouvidos. — Seu queixo se ergueu numa atitude arrogante e recusou perdoar. — Então é isso.

 Adeus, não diversão. Desandou uma desculpa. Derrota estava cantarolando agora se preparando para lutar, Intimidado por ela ou não. Strider estalou sua mandíbula, mas não disse uma palavra. Ele simplesmente deu as costas e saiu do edifício antes das coisas ficarem feias, forçando Paris e Kaia a segui-lo. Juntos.

Talvez eles tornassem aquilo sólido e dessem as mãos.

 Ele os ouviu e andando atrás dele tagarelando continuamente, e puxou seus óculos de sol do bolso da sua jaqueta. Ele deslizou as armações de metal em cima do seu nariz. Apesar do ar frio, o sol estava brilhante, reluzente. Diminuiu os seus passos, então parou e deu meia volta.

 Sem mãos dadas, mas definitivamente ele viu em cada um faíscas nuas. Suas cabeças estavam bem juntinhas, seu tom de voz baixo e íntimo. Eles provavelmente estavam recordando os milhares de orgasmos que compartilharam.

 Isto era exatamente o que ele queria, precisava. Um lembrete.

 Um lembrete que Paris uma vez rasgou as roupas do corpo de Kaia. Uma vez a lançou embaixo dele em sua cama, olhando seus seios exuberantes se balançando enquanto ela saltava. Agarrou seus joelhos e os afastou. Olhou fixamente para a fatia mais quente, mais úmida de um modo que o céu jamais agraciou a Terra. Curvou sua cabeça, lambeu, saboreou, banqueteou, ouvindo gritos femininos de rendição e paixão tocando em seus ouvidos, pernas suaves porém firmes pressionado suas costas. Talvez até salto agulha. E então, quando a fome fosse demais para ele, Paris subiria em cima e afundaria em um núcleo tão apertado, tão requintado que nunca mais seria o mesmo.

 Kaia se embrulhou em torno do guerreiro. Gritou seu nome. Arranhou, mordeu-o e implorou por mais.

 O Rosto de Paris de repente se transformou no do Strider, e era Strider quem se chocava naquele pequeno corpo flexível, dentro e fora, inúmeras vezes. Duro e rápido enquanto ele grunhia e gemia, desesperado por mais.

 Sobrecarga... de fantasia…

 Suas mãos se enrolaram em punhos. Porra, e malditos Paris e Kaia. Porque se ele fosse honesto, estaria tão furioso com Paris como estava excitado por Kaia. E ele estava tão malditamente excitado que teve que colocar sua camiseta por fora da calça para esconder a evidência crescente. Paris deveria ter resistido a Kaia; ele desejaria outra pessoa e Kaia merecia mais que estar em segundo lugar.

 Por que Kaia não podia ver isto?

 A qualquer momento agora Strider teria que parar de querer afastá-los, parar de querer moer o rosto de Paris no concreto e depois, chupar o ar direto dos pulmões de Kaia. A qualquer momento, ele daria um tapinha nas costas do seu garoto por um trabalho bem feito e começaria a pensar em Kaia como uma garota bonita que ele contava como amiga, mas não uma amante em potencial.

Sim. A qualquer momento.

 

— Dá um tempo. — Kaia sussurrou ferozmente para Paris enquanto dava os passos que a levariam a sua liberdade… e a Strider. — Você é como uma sarna que continua voltando.

 Ele deu uma risada aberta, mas que ainda continha traços de dor.

— Sério. Strider está me dando mais atenção do que jamais me deu, e você está arruinando tudo. Vou vencê-lo antes de bater em você.

 Paris parou e agarrou seu braço, forçando-a a parar também. Simpatia substituiu sua diversão, os traços realçados agora pelos raios dourados acariciando com o cuidado e a preocupação de um amante. Um homem tão bonito. Até os elementos tinham dificuldade em resistir a ele.

— Preste atenção querida, porque estou prestes a te dar uma dica que pode salvar vidas. Seja uma boa menina e não cutuque o urso hoje. Ele já está no limite.

 Seus olhos se estreitaram, os cílios escuros se fundindo para manter apenas Paris em foco.

— Pensei que você fosse inteligente cedendo as minhas artimanhas tão facilmente quanto fez, mas “alôo”. Às vezes o urso precisa ser cutucado ou ele nunca vai parar de hibernar. — Um canto da sua boca se contraiu. — Oh, sim? Bem, pense sobre isso. Qual é a primeira coisa que um urso faz ao sair da hibernação? Dãã. Ele come. E pra ser honesta, estou esperando ansiosamente por isto.

 — Sim, sim, eu sei. Isso pode ser divertido. — Inclinado para baixo com a boca ainda se contraindo, Paris sussurrou. — Mas sabe o que mais? Ursos torturam. Ursos adoram torturar, Kye. Eles são maus. Quando um humano acorda um urso, especialmente depois de um longo sono, o resultado final nunca é bonito. Deixe este aqui entrar no clima para o seu… como vocês chamam um espertinho? Maroto.

— Primeiro, eu não sou exatamente humana. — ela disse levantando seu queixo. — E aqui vai uma notícia rápida pra você, meu docinho. Eu sou mais forte do que você. Mais forte do que ele. Mais forte que todos vocês juntos. Eu posso lidar com qualquer coisa que apareça.

— Porra. — Strider de repente rosnou. — Já chega. Precisamos partir Paris, então você pode parar de agir como nossa responsabilidade.

Nossa, ele falou. Você não. O progresso é tão doce. Tentando não sorrir, Kaia se afastou de Paris e lentamente se virou para enfrentar Strider, um pouco do seu aborrecimento com ele se esfriando. A respiração presa em sua garganta.

Paris era bonito sim, mas Strider… Strider era magnífico.

 Seu primeiro vislumbre em semanas foi dele de pé no átrio da estação, com paredes brancas ao seu redor e seus joelhos quase se dobraram. Seus dedos penteando o cabelo pálido que estava em completa desordem, espetados. Seus olhos azuis marinhos varreram sobre ela demorando em todos os lugares certos, e seu estômago se contraiu.

 Agora neste segundo olhar… Ele era alto, bem mais do que ela, apesar de estar vários centímetros mais alta, pois estava de salto alto. Ele tinha músculos deliciosos que não poderiam ser escondidos sob a jaqueta de couro longa, camisa preta apertada e jeans. E Deuses, este rosto. Seu oh-tão-inocente, e ainda seu oh-tão-mau rosto de anjo caído.

 A princípio ela não reconheceu aquele rosto como a contradição deliciosa que era. Ela viu apenas a inocência, e continuou procurando por alguém com as qualidades que ela sempre achou mais atraentes: taciturno, perigoso e temporário.

Foi por isso que Paris chamou sua atenção.

Ele lamentava a perda de sua fêmea humana. Meditativo — confere. Ele era um viciado em ambrosia que podia matar sem vacilação. Perigoso — confere. Ele era uma coisa certa, um único evento somente e não se apegaria. Temporário — confere. Depois, entretanto, ela escapou da sua cama — uma Harpia sempre saía pela esquerda depois do evento principal — oca e vazia.

 O que provavelmente foi o motivo dela ter voltado algumas semanas mais tarde. Ela queria sentir o que sentiu enquanto eles estavam juntos. Realizada. Satisfeita. Mas ele a recusou, fisicamente incapaz de repetir a dose, e a empurrou para fora do seu quarto. Sim, ele poderia ter dado prazer a ela e nada para si mesmo, mas teria sido sob pressão e não era algo que ela podia tolerar.

 Então, porque ela vestia um roupão, e apenas um roupão para sua segunda sedução? Ela saiu de roupão e distraída como estava se chocou contra Strider no corredor.

 Foi quando ela viu pela primeira vez o demônio em seus olhos.

 Naquele momento sentiu como se um interruptor fosse acionado dentro dela. Ela cometeu um erro indo atrás de Paris. O homem na frente dela era tudo o que sempre quis e muito mais.

 Seu cabelo estava molhado e colado nas têmporas, escurecendo os fios. Ele estava com uma toalha branca embrulhada ao redor do seu pescoço e nenhuma camisa para esconder um estômago que ostentava corda após corda de resistência bronzeada.

Ela observava fascinada, enquanto pequenas gotas de suor viajavam em sua feliz trilha dourada antes de desaparecer no paraíso. Um paraíso que ela queria visitar. Com sua língua.

 Seu shorts estavam bem abaixo de sua cintura, revelando os contornos irregulares da tatuagem safira de borboleta em seu quadril direito. Sua boca estava seca. Claramente, ele tinha acabado de chegar de um treinamento. Um treinamento muito intenso. A respiração ainda era entrecortada em seus lábios. Lábios que ela percebeu prometiam prazeres indescritíveis quando enrolados em diversão pecaminosa.

— Bom equipamento. — ele disse, o olhar azul marinho ardente numa jornada lenta do topo da sua cabeça despenteada até as unhas púrpuras dos dedos do pé, demorando-se em seus mamilos duros como pérolas e entre suas coxas trêmulas.

 — Foi tudo o que eu pude encontrar. — ela respondeu numa voz incerta, pensando que isto poderia ser a versão imortal da caminhada da vergonha. Como eu posso corrigir isto?

 — Roupão sortudo, então. Porém ficaria melhor sem o cinto.

Ok, talvez eu não tenha nada para corrigir. Pelo que sabia era a primeira vez que o desejo estava mergulhado em seu tom. Aquele desejo a afetou muito mais forte do que jamais fez.

— Sim?

— Oh, sim. E aí, você está procurando por alguém em particular?

— Depende. — A excitação a varria fazendo-a se aproximar mais dele. — O que alguém teria em mente?

Atrás dela as dobradiças rangeram quando uma porta se abriu.

— Kaia? — Paris disse de repente, e ela deu meia volta, seu estômago tremendo. Ele lançou um par de pantufas fofas cor de rosa pra ela. — Você os esqueceu. Eu ficaria com eles, mas não são do meu tamanho.

— Oh. — Eles estatelaram no chão bem na frente dela. — Obrigada.

— Você é bem vinda. Strider. Ei, cara. — Paris falou.

— Ei. — ele respondeu firme. — Noite interessante?

— Nada que te interesse.

Assim que Paris desapareceu dentro do seu quarto, Kaia rodou de volta. A expressão de Strider era agora de defesa, fechada.

— Noite interessante? — Ele perguntou, dirigindo a pergunta desta vez para ela.

Ela engoliu em seco.

— Na verdade não. Nada aconteceu. Desta vez. — ela se forçou a acrescentar. Se ele fizesse alguma coisa com ela hoje à noite e descobrisse a verdade sobre Paris depois, ele a odiaria. Então, revelação completa. Exceto.

— Olhe ao redor, Kaia. — Strider deu a volta ao redor dela, divagando ao invés de provocá-la sobre o que ela tinha feito. Ou perguntando a ela o que realmente aconteceu. Ou atencioso em qualquer nível.

Claramente nada resultaria de sua atração repentina por ele, mesmo que Paris não interrompesse.

— Um pouco de sua maldita atenção para mim! — Strider estava rosnando agora. — Não que eu queira isto, você entende. Você está deixando o meu demônio puto.

Deixando seu demônio puto? Ela queria seduzir o seu demônio. Certo? Ou será que ela deu mole com os dois como Bianka disse?

Ela piscou se concentrando, e o estudou de novo. Sua fúria estava muito afiada, suas feições como lâminas mortais, então seus joelhos cederam. Tão malditamente magnífico. Um selvagem, um bruto. Paris a pegou antes que ela batesse no chão e a firmou.

 Oh, Deuses. Fraqueza? Aqui? Agora? Sua face se inflamou com embaraço.

Strider deu um passo ameaçador em direção a ela, então congelou no lugar.

— Paris, cara, solte-a. — ele rosnou e Paris imediatamente obedeceu. Olhos azuis marinhos se chocaram com os dela, mais animal que homem. — Quando foi a última vez que comeu Kaia?

 Graças aos Deuses. Ele pensava que sua fraqueza se originava de falta de alimentação, não da sua visão irresistível. Ela deu de ombros, feliz por permanecer de pé sozinha.

— Não sei.

Como ela escolheu não roubar ou ganhar uma das tigelas de restos que deram aos residentes da cela do Bloco B, e como ela esteve na cadeia por dois dias… bem, ela estava faminta.

Certo. Ela poderia ter comido. Bianka veio para o resgate, como sempre, ansiosa para golpear e alimentá-la. Ela enxotou sua irmã para bem longe com uma severa advertência e um tapa de luva, para não voltar. Caso contrário, Kaia garantiria o apelido de Cidade do Monte Celestial se espalhasse e pegasse. Para sempre.

— Porra, Kaia. Você está instável e não consegue se concentrar em porra nenhuma. — Seu olhar saltou para Paris. — Ligue para Lucien pegá-la. Encontrarei você em Buda. Eu quero alimentá-la, e então nós podemos...

Paris estava balançando sua cabeça.

— Eu vou ligar para Lucien vir buscá-la, mas não estarei esperando por você em Buda. Quando você terminar seus negócios, se é assim que as crianças estão chamando isto estes dias, Lucien ou Lysander levarão você para o céu. Qualquer um deles saberá onde estou.

 Strider deu um aceno duro com a cabeça.

Paris arrepiou o topo da cabeça de Kaia antes de andar a passos largos pra fora e desaparecer numa esquina, deixando-a sozinha com o guerreiro dos seus sonhos. Exatamente o que ela furtivamente esperou e rezou, motivo pelo qual ela empurrou Bianka para fora do quarto e se trancou por dentro.

 Eles olharam um para o outro por um longo tempo sem se mover e nem falar. A tensão se espalhando, espessando-se. Sua natureza de guerreiro nunca foi mais evidente. Ele manteve seus braços ao seu lado, suas mãos a polegadas distante dos cabos das agora visíveis armas, e suas pernas separadas prontas para entrar em ação. Contra ela? Ou qualquer um que pensasse em machucá-la?

 Finalmente, ela não pode mais permanecer em silêncio.

— Você vai para os céus?

 Ele balançou a cabeça, sua pele como ouro polido à luz do sol. A vibração de selvageria animal o abandonando e ele realmente relaxou. Ela gostava deste lado dele também.

— Por quê? — O que ela realmente queria perguntar era: Quanto tempo vai ficar fora? Você vai encontrar uma mulher? Um anjo? Seu amigo Aeron se apaixonou por uma boazinha com asas. Por que Strider também não?

Eu matarei a cadela.

— Tem certeza que quer saber? — Ele perguntou. — Isso envolve Paris e outra mulher. Uma mulher que ele quer.

O alívio a bombardeou.

— Encantador! Fofoca. — Sorrindo ela esfregou suas mãos. — Conta pra mim.

Ele passou a língua sobre os dentes.

— Eu nunca repito fofoca, Kaia.

— Oh! — ela murmurou, ombros caídos com decepção.

— Você não me deixou terminar. Eu nunca repito fofoca, então ouça com atenção. — Ele estava lutando com um sorriso e o conhecimento a encantou. — A mulher que Paris ama… odeia, o que quer que seja. Ele a quer, como eu disse, e ela está sendo mantida prisioneira lá em cima.

 Entãooo. Strider estava indo para a guerra ajudar seu irmão, não para dar com alguns olhos-arregalados, prontos-para-serem-colhidos para o abate. Seu alívio triplicou.

— Eu poderia, não sei, ajudar você a ajudá-lo. Eu tenho conexões lá em cima. — Não era necessariamente uma mentira. — E eu...

— Não! — Ele gritou, então com mais calma afirmou. — Não. Entretanto, obrigado. Mas… você realmente não se importa que o homem que você deseja agora deseje outra pessoa?

— Espere. Quem disse que eu o desejo?

— Você não o deseja?

— Não.

Sua expressão não mudou, mas ele pigarreou.

— Não que tivesse importado de qualquer forma, você entende. Mas como eu estava dizendo, ele já falou com Lysander sobre uma pequena ajuda dos anjos, e conseguiu um não-posso-fazer.

— Claro que Lysander não o ajudará. Ele ajudaria Bianka. E Bianka me ajudaria.

 — Não. Sinto muito.

Bruto teimoso. Estava tão desesperado para se livrar dela que nem sequer consideraria usá-la. Outra rejeição. Que estranho.

 Com movimentos duros, ele acenou pra ela.

— Vamos lá. Vamos cuidar da sua fome.

Tudo que eu quero é te dar algumas mordidas.

— Não se preocupe comigo. Eu posso cuidar de mim mesma.

— Eu sei, mas ficarei até que esteja alimentada. Eu quero ter certeza que não será presa novamente.

Sua Harpia gritou dentro da sua cabeça, um comando para provar para Strider o quanto ela era capaz, o quanto era digna. Você é?

— Tudo bem. Oh, e aqui está um míssil de verdade para o demônio que sempre quer ganhar. Eu duvido que você possa continuar. — ela provocava, mais por hábito do que qualquer outra coisa.

Ele bufou um suspiro, e ela imaginou que esta era a segunda rodada do modo puto.

 — Mostre o caminho. — ele estalou antes dela poder se desculpar.

Ok, talvez ela não devesse ter empurrado tão duro. Malvada.

 — Eu vou. — Ela não o levou a caça, entretanto. Não ainda. Ela o levou para a cabana que ela e Bianka compartilhavam a uma boa distância da civilização.

Felizmente sua irmã estava longe de ser encontrada.

— Sinta-se livre para olhar por aí. Eu preciso de um banho e me trocar. — Kaia. — ele começou, seguindo-a pelo corredor. — Estou meio pressionado pelo tempo aqui e por causa do que você disse, preciso te acompanhar e...

Ela fechou a porta do quarto na sua cara deixando-o surpreso, ouviu-o rosnar baixo e sorriu. O sorriso desapareceu quando um pensamento lhe ocorreu. Existia bastante comida roubada na cozinha. Se ele notasse, não existiria uma boa razão para levá-lo à caça.

 Tinha que arriscar. Estava fedendo. Kaia correu para o chuveiro, agradecida quando teve a sujeira do seu corpo e a maquiagem que endureceu lavados. Ela quase correu do seu quarto depois de vestir uma camiseta rosa brilhante, onde se podia ler “Estranhos Tem o Melhor Doce e shorts jeans curtos”, mas teve um vislumbre de si mesma no espelho de corpo inteiro. A roupa estava boa, mas não seu cabelo. A massa ruiva estava ensopada e praticamente colada em sua cabeça e braços, fazendo com que parecesse com um palhaço afogado.

De volta ao banheiro ela correu para uma escova crucial. Ela pensou em aplicar outra camada de maquiagem em sua pele exposta, querendo que Strider a quisesse por ela e por nenhuma outra razão, mas descartou a ideia. Deixe Strider ver. Deixe Strider ansiar. Agora mesmo ela o levaria, contanto que pudesse pegá-lo. Mais tarde eles poderiam trabalhar em suas razões.

 Se ela decidisse dar outra chance a ele.

 Finalmente, ela saiu correndo do quarto. Em tempo recorde também. Pouco menos de vinte (quarenta) minutos.

 Uma trilha de vapor perfumado a seguiu enquanto andava pelo corredor. Strider não estava na sala de estar, onde ela mantinha uma luminária de dançarina de hula em tamanho natural e o castelo que ela construiu com latas de cervejas vazias. Ele devia estar olhando por aí. Ela se perguntou o que ele achava de seu lar, suas coisas, e se tentou ver o quarto.

 Além da mesa de café que foi esculpida em madeira para se assemelhar a um lutador de sumô curvado com uma folha de vidro empoleirada no topo, e os braços das cadeiras que foram pintados de um modo bem real para parecer com braços e pernas de humanos que se estendia até o chão, a mobília era bonita, peças que ela e Bianka roubaram ao longo dos séculos.

 A história era um aroma que se agarrava a quase todas as peças polidas. Ok, talvez não o tapete branco com duas almofadas amarelas costuradas nas extremidades, de forma que a coisa inteira parecia ovos numa frigideira. Ou a cadeira estofada de hambúrguer com camadas de alface, tomate e mostarda, mas era isso.

Tudo bem, talvez o assento do sofá que ela adorava fosse escolhido para o conforto mais do que qualquer outra coisa, e não tinha mais que uma década. Ela foi a uma festa da fraternidade alguns anos atrás e gostou do modo como as almofadas estofadas se ajustaram ao seu corpo. Além disso, eles eram de uma bela cor amarelada, quase o mesmo tom dos olhos de Bianka, por isso fez questão de partir com eles. Ninguém tentou impedi-la, também. Talvez porque ela carregou cada um acima da sua cabeça. Sozinha.

 Vasos coloridos decoravam o tampo da mesa, entremeadas com personalizadas cabeças de bonecas de pompom e o esquilo de pelúcia com uma roupa maluca. Armas e obras de arte penduradas nas paredes ao lado de placas caseiras que a felicitavam por um trabalho bem feito. Seu favorito: um para dar a Bianka o melhor presente de aniversário da sua vida — A língua do homem que a chamou de “bruxa, quer dizer, feia.” Havia também fotos dela e sua família. Bianka, como também sua irmã caçula Gwen, e a mais velha, sua meia irmã Taliyah. Kaia nas baladas, Bianka ganhando concursos de beleza, Gwen tentando se esconder da câmera e Taliyah orgulhosa das suas matanças. Mercenária como era, tinha muitas matanças.

 Na cozinha Kaia derrapou até parar, seu coração batendo freneticamente contra suas costelas. Strider. Magnífico e sexy Strider. Ele estava sentado à mesa de bilhar que ela arrancou de sua fortaleza em sua primeira visita lá e agora era usada no café da manhã. A comida estava espalhada em todas as direções, sacos de batata frita, fatias de queijo e barras de chocolate.

 Ele não estava olhando para ela, nem sequer olhou de relance, mas se enrijeceu quando ela entrou.

— Eu percebi que já que estas coisas estavam aqui, eram aceitáveis para você comer. O que significa que não preciso mais te acompanhar. Fui enganado e superado por você.

— Obrigada. — ela disse secamente. Que decepcionante. A única vez que ela quis que seu homem esquecesse que tinha um cérebro, ele se lembrava.

 Ela se encostou no umbral da porta e cruzou os braços acima do peito. Seu estômago apertou ameaçando rosnar, mas ela permaneceu no lugar, esperando. Só quando ele conseguiu um bom escrutínio ela se moveu.

— Kaia. Coma.

 — Em um minuto. Estou apreciando a vista. Você deveria experimentar.

Ele ficou tenso.

— Tem uma nota da sua irmã na geladeira. Ela disse que está nos céus com Lysander e te encontrará em quatro dias para os jogos.

 — Kay. Que jogos? Não importa. — ele saiu correndo antes que ela pudesse responder. — Não me diga. Não quero saber. Que perfume está usando? Eu não gosto dele.

Idiota.

— Eu não estou usando nenhum perfume. — E ela sabia que ele adorou. Ele tinha uma fraqueza por canela, algo que ela notou enquanto o espreitava, uh, saía com ele.

Poucas horas depois de saber daquele pequeno petisco, ela fez um estoque de sabonete, xampu e condicionador com aroma de canela.

— Pare… de apreciar a vista e venha comer. — ele disse entre dentes. Ele fechou as cortinas da janela e só acendeu a luz de cima. Luz solar natural complementava sua pele melhor, mas — Oh, com quem ela estava brincando, agindo toda modesta? Qualquer luz realçava sua pele.

 — Kaia. Venha. Coma. Agora.

Deuses, ela adorava aquele tom autoritário. Ela não deveria. Ela deveria odiar isto, estes modos bárbaros não deveriam ser atraentes para as mulheres modernas, mas mesmo assim ela estremeceu.

— Faça. Por favor.

 Finalmente seu olhar deslizou para ela. Ele estava de pé uns segundos depois, sua cadeira deslizando atrás dele. Sua boca abriu e fechou e suas pupilas dilataram. Ele lambeu seus lábios. Estendeu a mão para agarrar a borda da mesa, suas narinas se alargando enquanto ele lutava para respirar.

— Você… seu… merda!

 Com cada ponto do seu pulso martelando, ela girou. Ela sabia o que ele via — fragmentos de arco-íris dançando hipnoticamente sobre cada centímetro de carne visível, o rubor de saúde e vitalidade… a promessa de sedução.

— Você gosta?

Como se estivesse em transe, ele se moveu em torno da mesa e andou em sua direção. Diminuiu a distância… parou um pouco antes de alcançá-la e amaldiçoou. Ele virou, dando-lhe as costas e enfiando a mão por seu cabelo.

 — Eu tenho que ir. — Sua voz era rouca, as palavras forçadas através de um rio de vidro quebrado.

O que? Não!

— Você acabou de chegar. — E ele estava tão perto de fazer um movimento para ela. Só de pensar fazia seus mamilos ficarem duros como pérolas e umidade empoçar entre suas pernas.

— Eu disse a você, prometi a Paris que o ajudaria. Tenho que ajudá-lo. Sim, é isso o que tenho que fazer.

Será que ela superaria sua determinação em resistir a ela? Porque sim, ela o queria, queria dar-lhe outra chance. E outra. Porém ele precisaria de muitas para obter este direito.

— Strider, eu...

 — Não.Não. Eu te disse antes, mal estou me recuperando de um relacionamento ruim, e nunca fico com ninguém que se encontrou com um de meus amigos.

 Oh, realmente?

— Esse mau relacionamento não aconteceria de ser com Haidee, seria? A mulher que não quis você? A mulher que, o que? Está namorando um de seus amigos.

 Silêncio. Tão espesso e terrível silêncio.

 Ele não se defenderia. Nem tentaria explicar suas escolhas e razões ilógicas.

Bem, ele perdoou Haidee por matar Baden. Por que não podia perdoar Kaia por dormir com Paris?

 — Você não é inocente, Strider. Você já correu atrás de mais rabo de saia do que pode contar. Na verdade a última vez que eu te vi, você tinha acabado de comer o hidrante de pêssego do corpo de uma stripper. — Naquele momento Kaia decidiu que pêssegos eram as frutas mais asquerosas e o mundo seria um lugar melhor sem eles.

 Ela escreveria para o seu congressista, exigindo que todos os pomares fossem queimados até o chão.

— Eu nunca disse que era inocente. Eu só disse...

— Eu sei. Você não pode ficar com ninguém que seus amigos namoraram. Você também é um mentiroso. Mas talvez… não sei, talvez você pudesse dormir com uma das minhas amigas e nós até podíamos chamá-lo. Oh, Deuses.

 Primeiro, como ela soava desesperada? Insuportavelmente! Ela sabia que isto aconteceria se ela desse outra chance para ele. E ainda assim, ela fez isso de qualquer maneira. Como cães de Pavlov, ela babava toda vez que avistava Strider, abandonando seu orgulho por qualquer migalha que ele jogasse no caminho.

 Segundo, pensar neste homem com outra pessoa fazia suas garras se alongarem e sua Harpia gritar. Suas asas batiam no mesmo ritmo que o seu coração, fazendo sua camisa subir e descer, subir e descer.

 Se ela não tivesse cuidado, sua Harpia assumiria o controle de suas ações. Sua vista se tornaria negra, e uma necessidade de sangue a consumiria. Ela perseguiria a noite, machucando todos que entrassem no seu caminho.

 Só Strider poderia acalmá-la, mas ele não sabia disso. Ainda que ele soubesse, claramente não queria a responsabilidade. Ele estava fazendo tudo que podia para afastá-la.

 — Eu não vou dormir com uma de suas amigas. — ele disse categoricamente. Picos quentes de tensão drenaram dela.

— Bom. Isto é bom. Todas as minhas amigas são bruxas feias, de qualquer maneira. — Elas eram magníficas, cada uma delas, mas se ele tivesse levado a sério a sua oferta, ela se desfaria delas num pulsar do coração e arrumado novas. E repulsivas.

 — Kaia. Não há nada que você possa dizer que me faça mudar de ideia. Sou como você, eu faço. Você é linda, inteligente e engraçada como o inferno. Você é forte e corajosa também, muito, mas jamais acontecerá alguma coisa entre nós. Desculpe, realmente sinto muito. Eu não quero ser um imbecil aqui, só verdadeiro. Nós apenas não servimos um para o outro. Não é uma boa combinação. Sinto muito. — ele repetiu.

 Eles não serviam um para o outro? O que ele realmente quis dizer foi que ela não era boa o suficiente para ele. Depois que ela o perseguiu, perdeu uma luta para protegê-lo, jogou-se em cima dele uma vez atrás da outra, ela não era uma boa combinação para ele. E ele… estava… se desculpando.

 De repente ela queria enfiar as garras no seu rosto. Beber o seu sangue.

Não se esqueça dos próximos jogos. Machucá-lo iria machucá-la, e ela precisava estar no seu melhor.

Ela respirou fundo, prendeu, segurou, seus pulmões queimando, devastador, antes dela lentamente liberar cada molécula de ar chamuscando sua garganta, seu nariz. Ela poderia ter pensado que Strider merecia algo ou alguém melhor, mas ela merecia mais do que isto. Certo?

Ele terminou sem muita convicção.

— Espero que você entenda. — ignorando completamente o estrago que criou. Ou talvez simplesmente ele não se importasse.

Ele precisava aprender a devida etiqueta para lidar com sua Harpia.

Ela precisava ensiná-lo.

Ela devia diminuir a distância entre eles e arrastar as pontas dos dedos por ele todo antes que tivesse tempo de sumir, o tempo todo pressionando suas curvas contra ele. Qualquer coisa para despertá-lo. Qualquer coisa para forçá-lo a vê-la como mais que a menina bonita, inteligente e engraçada que pegou o guardião da Promiscuidade. Então, quando ele implorasse pela liberação, ela iria embora.

Ele não seria prejudicado, mas partiria com uma compreensão melhor do quanto era ruim ser rejeitado.

No entanto, Kaia não teve coragem para dar um único passo. Ela pode apenas se encontrar no lado receptor da rejeição e do fracasso mais uma vez. Ele a afastou antes que ela pudesse se mover. E realmente, mil outras rejeições e fracassos a aguardavam nas próximas semanas.

Tanto para dar a ele incontáveis chances.

— Eu entendo. — ela sussurrou. — Só… divirta-se em sua viagem, ok? — Uma despedida. — Eu planejo me divertir muito. — Uma mentira. Embora ela planejasse manter sua cabeça erguida e chutar tantos traseiros quanto pudesse.

Tantos traseiros, de fato, que seu clã teria que repensar seu título.

Não mais Kaia a Decepção. Talvez se tornasse Kaia a Stompalicious[4]. Ou Kaia que Vai Deixar Você Morto.

— Então… você vai fazer uma viajem? — Ele perguntou e parecia aliviado.

Não reaja.

— Sim. Tenho certeza que vou.

Mesmo assim ele não a enfrentou.

— Onde? Quando?

Não se atreva a reagir.

— Em quatro dias, eu vou para... oops, deixa pra lá. — Ela se moveu ao redor dele e se sentou à mesa. — Você não quer saber, lembra? — Fazendo o seu melhor para parecer indiferente, até convencida, enquanto o bastardo rasgava seu coração do peito e dançava sobre os pedaços, ela abriu um saco de batatas chips.

— Você está certa. Apenas… tome cuidado, e verei você... só tome cuidado, ok?

 Ele impediu a si mesmo de continuar. Vejo você mais tarde. Porque ele não tinha planos de vê-la novamente. Nunca.

— Terei. — ela disse, enquanto lutava com as lágrimas pela segunda vez em sua vida. Ela merecia isto, ela supôs. Castigo pelo Infeliz Incidente, por Paris, inferno, por todas as rejeições que ela causou ao longo dos séculos. — Você, também. — Por mais que atualmente o desprezasse, ela o queria saudável, inteiro.

 — Eu terei. — Ele saiu da cozinha a passos largos pra fora da sua casa, fora da sua vida, a porta da frente batendo ameaçadoramente quando se fechou atrás dele.

 

No dia seguinte se pegou vagando pela fortaleza de Budapeste, checando seus amigos. Qualquer coisa para se distrair de pensar em Kaia e no quanto ela pareceu triste antes que a deixasse. Sem falar como quis puxá-la nos seus braços, segurá-la, confortá-la. Devorá-la.

 Não vá por aí.

 Legião, uma demônio completamente mimada que se transformou numa humana mimada com um corpo de atriz pornô, transformou-se numa prisioneira torturada de Lúcifer e voltou subjugada, uma donzela em perigo silenciosa jogada na cama, ela rolou de lado de costas pra ele quando entrou no seu quarto.

 Fisicamente ela se curou do seu cativeiro infernal. Mentalmente… ela poderia nunca se curar. Ela passou várias semanas sendo passada de um Lorde Demônio para o outro, estuprada, espancada e Deuses sabiam o que mais. Ninguém sabia porque ela se recusou a falar sobre isto.

 — Ei, princesa. — Strider se sentou ao lado dela na cama e afagou seu ombro. Ela se encolheu, afastando-se do toque. Ele suspirou e removeu sua mão.

 Ele não gostava de visitá-la. Oh, ele gostava dela como pessoa na maior parte das vezes, e sentia pelas provas que ela suportou, mas ele temia que Derrota visse sua distância emocional como um desafio e o forçasse a empurrá-la ainda mais. Mais do que ela estava pronta para dar.

 Ela precisava de ajuda e seu melhor amigo Aeron e seu anjo-que-trazia-alegria, Olivia, estavam tentando, mas até agora Legião não respondeu positivamente a ninguém. Ela não estava comendo corretamente e estava lenta, mas seguramente definhando. Strider sabia que havia um anjo guardião a vigiando, embora nunca conseguia dar uma olhada no cara. O que ele sabia: O bastardo invisível não estava fazendo seu trabalho.

 Sim, antes Legião foi uma mala, mas ela não merecia isto. E na verdade Strider gostava mais dela do outro jeito.

 — O que aconteceu com você aconteceu com algumas pessoas daqui, você sabia disso? Algumas vezes com Kane, de fato. Já que ele é possuído por Desastre, que é como um imã para esse tipo de coisa. E eu não estou fofocando ou compartilhando informações particulares. Quando nós vivemos em Nova Iorque ele fez parte de um grupo de apoio para ajudar os outros. Talvez você devesse, não sei, falar com ele ou algo assim.

 Silêncio.

 Seu cabelo loiro estava embaraçado e emaranhado, sua pele com um aspecto doentio e um tom acinzentado. Por baixo do tecido branco e grosso de sua camisola ele podia dizer que seus ombros estavam frágeis.

 — Uma vez Paris e eu... espera. Isso é fofoca. Não importa. Vai ter que perguntar a Paris se quiser saber essa pequena informação.

Silêncio. Dela e de seu demônio. Com certeza ela apresentava um desafio, e ainda assim Derrota estava deixando passar com indiferença.

Ele puxou as cobertas mais alto, logo abaixo do queixo, e viu uma lágrima deslizar por sua face reluzente abaixo.

Ok, então.

— Eu só queria dar uma checada em você, mas sei que não está confortável comigo, então eu vou. — ele disse suavemente. Ela não conseguia relaxar com ele aqui, e não queria piorar as coisas para ela.

Mais silêncio. Ele soltou outro suspiro enquanto permanecia ali.

— Pode me chamar se precisar de alguma coisa. Tudo bem? Qualquer coisa mesmo. Fico feliz em ajudar.

 Novamente, nenhuma resposta, nem de Legião nem do seu demônio. Ele se perguntava o que estava acontecendo com seu — distraído? indiferente? — companheiro enquanto caminhava a passos largos até sua próxima parada. Quarto de Amun.

 Apesar do fato de que ele e Amun — e inferno, até ele e Haidee — estavam em bons termos o suficiente, ele evitou o contato por mais de uma semana. Bastava vê-los que causava pequenas faíscas de dor dançando em seu peito.

Não porque ele ainda a quisesse, mas porque a perdeu, nunca poderia tê-la, e seu demônio não podia esquecer o que eles sofreram por causa de sua recusa.

 Haidee abriu a porta, e ele a estudou por hábito. Ela era de estatura média, seu cabelo pálido listrado de rosa. Uma de suas sobrancelhas tinha piercing e um de seus braços era tatuado. Vestindo uma camiseta Hello Kitty e jeans rasgados ela seria figurinha garantida em qualquer bar.

 Quando ela o viu franziu o cenho e saiu do caminho, permitindo que ele entrasse. Apesar da cara feia, ela parecia reluzir de dentro pra fora, pulso após pulso de… ele fez uma careta. Que merda era isso?

 Se ele estivesse na mira de um .40[5] e tivesse que adivinhar ou morrer, Strider diria que o amor em sua forma mais pura vazava pelos seus poros. Quase doía olhar para ela, estava tão radiante.

Merda.

— Você está grávida?

— Não. — Um sorriso secreto curvou seus lábios. Bem, bem. Pegando Amun e todas-as-coisas-misteriosas já estavam vibrando. — O que está pegando?

 Strider esfregou a mão sobre seu coração esperando mais daqueles lampejos de dor, especialmente com aquele brilho explodindo de suas córneas, mas… nada. Nem mesmo um salto em seu batimento cardíaco. Ok, tudo bem. O que seja. Ele podia deixar rolar.

 Seu olhar varreu o quarto. Haidee assumira a decoração, por isso o lugar já não era mais como sorvete de baunilha, simples, despojado e completamente desprovido de personalidade.

 Haidee favoreceu estilos contemporâneos com um toque japonês. Ele tentou não estremecer. Spots de luzes embutidos no teto. As paredes agora eram marrons e laranja, cada cor escalonada para formar um padrão.

Árvores Bonsai pareciam crescer em cada canto, e tapetes brancos felpudos estendidos sob três mesinhas de vidro. Tapete branco. Ela não viu a quantidade de sujeira que poderiam acompanhar as botas de um guerreiro? O acolchoado na cama era branco também, com travesseiros laranja com babados.

 Se ela tivesse tentado esta merda no seu quarto eles teriam tido uma briga séria. Um homem precisava se sentir confortável em seu ambiente ou ele não conseguiria relaxar. Isto não era confortável.

 Só uma vez Strider “viveu” com uma mulher, e só porque ela o desafiou a se mudar. Eu sei que posso fazê-lo feliz se você voltar para casa e pra mim todas as noites. Porém, você pode me fazer feliz? Vamos descobrir.

 Depois de algumas semanas morando juntos ele aceitou de bom grado a derrota. Ele não podia fazê-la feliz porque não queria fazê-la feliz.

 Seu pensamento voltou à casa de Kaia e o reflexo em sua decoração. Agora havia uma mulher que sabia como deixar um lugar confortável e divertido. Sério, ela tinha um banheiro pintado para se parecer com uma boca aberta. Eu quero.

Haidee pigarreou.

— Strider?

 Ele se virou de frente pra ela.

— O que? — Sua expressão era de expectativa, toda suave e pegajosa com o que quer que pulsava dela, e ele recordou que ele veio ao seu encontro, não o contrário. — Sim, uh. Onde está Amun?

 — Cronus o convocou ao céu.

 — Por quê?

 Outro sorriso secreto.

 — Não sei ainda.

 — Há quanto tempo ele foi?

 — Três horas, nove minutos e quarenta e oito segundos. Não que eu esteja olhando para o relógio ou qualquer outra coisa. Posso te ajudar com algo?

 — Não. — Ele só queria ver o sujeito, ele supôs. Depois de tudo que Strider fez para ele… tentando manter Amun e Haidee separados… Culpa, cara, como o devorava às vezes. — Eu só, uh, eu o vejo mais tarde.

 Sua sobrancelha franziu com confusão. E preocupação? Sim. Isso era preocupação.

— Tem certeza?

 Ele não deveria se surpreender, mas… ela matou Baden, guardião da Desconfiança. Ela tentou matar Strider. E ela teve uma razão muito boa para ambos. Muito, muito tempo atrás, eles ajudaram a matar sua família, destruir sua vida. Inferno, por causa de um demônio, ela foi morta uma vez após a outra.

 Cada vez que ela voltava se lembrava apenas do seu ódio, sabia apenas sobre as mortes daqueles que ela uma vez amou. Buscou apenas a vingança. Fazia sentido, pois ela estava possuída por um pedaço do Demônio do Ódio. E talvez fosse a outra razão por que Strider a quis. Aquele pedaço de Ódio fazia as outras pessoas não gostarem deles mesmos e até dela. Strider se recuperou de ter sido derrotado depressa, razão pela qual suspeitava que estar com ela fosse uma corrida tanto pra ele quanto seu próprio demônio.

 Que ela agora adorava Amun, que ela agora apoiava os Senhores e sua causa, bem, era um milagre que Strider precisava parar de questionar.

 — Sim. Tenho certeza. — Ele se inclinou e a beijou na bochecha. Nunca antes ele iniciou um contato que não envolvesse facas. — Te vejo por aí, Haidee.

 Sua boca se abriu e ela engasgou.

— Sim. A gente se vê. — ela disse com voz fraca. Ele nunca foi tão agradável com ela, também.

Ele deve estar amolecendo na velhice.

Em seguida ele se achou de pé na porta do quarto de Sabin, comendo punhados de Red Hots[6]. Ele tinha um estoque do seu doce favorito escondido em cada canto da fortaleza. Ele olhava seu amigo jogar todo tipo de merda em uma mala. Sua esposa, Gwen se alvoroçava em torno dele, fazendo uma tentativa desanimada de dobrar a montanha de roupas que Sabin embolou, empilhar as armas que ele colocou apenas parcialmente e remover o megafone pela terceira vez.

 Uma vez as Harpias a chamaram de Gwendolyn, a Tímida. Strider não sabia do que eles a chamavam agora, mas o apelido certamente não se ajustava mais. O pequeno foguete entrou sozinha e chutou até mesmo o traseiro de Kaia, trancando-a no calabouço lá embaixo para evitar que ela arrancasse a pele de Sabin do seu corpo e usá-la como um casaco da vitória.

 Kaia.

 Seu coração saltou uma estúpida batida, fazendo-o se sentir como um colegial apaixonado. Algo que ele nunca foi. Zeus o criou completamente formado, uma arma pronta para ser solta em qualquer um que ameaçasse o antigo Deus-Rei e aqueles que ele amava. Mesmo então, antes de Strider receber seu demônio, ele gostava de ganhar, atropelando qualquer um que entrasse no seu caminho.

 Que alegria poderia ser encontrada na derrota? Nenhuma.

 Seu demônio grunhiu de acordo.

 Strider redirecionou seu foco ao seu entorno antes do merdinha começar a empurrá-lo ao redor. Quando ele continuou a observar Gwen, notou o quanto ela se parecia com sua irmã mais velha.

 Kaia.

 Aqui vamos nós novamente. Gwen tinha uma massa volumosa de cabelo loiro riscado de ruivo — o mesmo tom de ruivo de Kaia. Se ele fosse honesto, entretanto, o de Kaia era mais bonito. Mais ondulado, mais sedoso. E enquanto os olhos de Gwen eram uma mistura surpreendente de cinza e dourado, assim como o de Kaia, os olhos de Kaia eram ainda mais adoráveis. Nela o cinza desviava para a prata líquida e o ouro, bem, o ouro cintilava como vaga-lumes.

O que você é? Um molenga? Pare de fazer poesia.

Não importa. Quando a Harpia de Kaia assumia o comando, seus olhos ficavam completamente pretos, a morte nadando em suas profundezas. Mas, se ele fosse honesto, até isso era sexy.

Gwen e Kaia compartilhavam o mesmo nariz de botão, as mesmas bochechas de querubim. O mesmo queixo teimoso. No entanto, de alguma forma Kaia era o pecado encarnado e Gwen era a inocência caminhando. Não fazia sentido. Ainda assim, a semelhança o afetava, o aquecia.

Ele desejava que seu corpo permanecesse inalterado. Sabin faria o maior rebuliço se Strider exibisse um pau duro ao redor da sua preciosa. E claro, “rebuliço” significava Strider achar seu intestino embrulhado ao redor do seu pescoço, respiração seria uma coisa do passado.

Traga-o, ele pensou.

Derrota riu, assustando-o.

No limite, ele esperou que um desafio fosse emitido. Nunca veio. Doces Deuses de cima, ele teria que ser mais cuidadoso. Nada mais de ligações próximas.

 O que ele estava fazendo aqui, afinal? Ele deveria estar no céu com Paris. Ele deveria estar em Nebraska com William, torturando a família que abusou de Gilly, uma humana que eles ajudaram. Deveria estar lá fora matando os caçadores. Ele deveria estar em Roma, negociando com os Tácitos — monstros que foram acorrentados no interior de um antigo templo, desesperados pela liberdade.

 Ele deu a eles um dos quatro artefatos divinos necessários para achar e destruir a Caixa de Pandora. Uma relíquia que os caçadores estavam procurando também.

 Os Tácitos tinham a Haste de Paring e a Capa da Invisibilidade, e os Senhores tinham a Gaiola da Compulsão e o Olho-Que-Tudo-Vê. Então, Senhores 2 X 0 Caçadores. Boo-yah[7].

 Os Tácitos não estavam interessados nos artefatos reais, entretanto. Eles estavam interessados no que eles poderiam negociar com os artefatos. Quem apresentasse a eles a cabeça do Deus-Rei atual (menos o seu corpo) ganharia a Haste de Paring em troca, deixando apenas a Capa para reivindicar. Strider uma vez possuiu a Capa, mas trocou por Haidee.

 Na época ele não se importou em fazer a troca porque estava malditamente confiante que os Tácitos manteriam a coisa para barganhar com ele mais tarde. Ainda estava. Pagaria muito caro por isso, ele tinha certeza, mas isso era melhor que permitir que Haidee escapasse e revelasse seus segredos aos seus amigos caçadores.

 E ele pretendia voltar bem antes, mas perdê-la para Amun bateu o traseiro de Strider no chão por uma semana, seu demônio se contorcendo, fervendo num caldeirão de dor.

 Talvez fosse por isso que ele foi incapaz de se livrar da ideia de estar com Haidee, ele refletia agora. Os ecos dessa dor. Talvez fosse por isso que ele ainda resistia a Kaia.

 Não pense mais nela, seu doido. Você começará a espumar pela boca. Ele resistiu porque ela terminaria pisoteando seu orgulho, seu bem-estar e provavelmente até sua vontade de viver.

Ele realmente precisava de outra lembrança disso?

Ele forçou seus pensamentos de volta aos artefatos. Strider jurou recapturar a Capa. E ele iria.

Em breve. Porque quem encontrasse a Caixa de Pandora primeiro ganharia a guerra, e mais do que ele queria Kaia, não que ele estivesse pensando nela, ele queria ganhar a guerra contra os Caçadores.

Falar sobre a vitória final. O prazer que ele sentiria… Deuses, ele só podia imaginar. Melhor que sexo, drogas ou rock’n roll.

 Não importa. Em vez de tudo isso, ele percebeu que de propósito limpou seu prato esta manhã, visitando todo mundo, fazendo as pazes pra que pudesse partir e… merda! Não é bom. Isso não era nem um pouco bom.

 Só assim ele poderia partir e checar Kaia. Ele tinha que ter certeza que ela estava bem. Mesmo que isso significasse colocar suas obrigações em segundo plano novamente.

 Cara. Você não pode fazer isso. E ele não faria. De nenhum maldito modo. Agora que ele percebeu sua intenção, ele colocaria um fim nisso.

— Por que diabos você está parado aí? — Sabin de repente atacou. — Fale o que quer e saia, Strider, cara. Você está transformando Gwen em uma lunática.

 — Você é que está me transformando em uma lunática! — Ela resmungou, removendo o megafone da mala mais uma vez. — Nós não precisamos de todas essas coisas.

 — Como você sabe? — Sabin exigiu. Ele passou uma mão pelo seu cabelo escuro, o dourado em seus olhos mais leve que o habitual. — Você nunca participou dos Jogos das Harpias antes. E porra, você não deveria ter que participar deles agora!

 — Você ouviu Bianka. Todas as filhas de Tabitha Skyhawk foram convocadas. E mesmo se não tivéssemos, ainda que só um punhado de membros do clã fossem convocados, eu ainda iria. Elas são minha família.

 — Bem, você agora é parte da minha família.

 — Na verdade você faz parte da minha família, e como eu sou o General, o Capitão e o Comandante, você vai aonde eu vou. E eu vou!

 — Porra. — Sabin pulou na beirada da cama e pôs sua cabeça entre seus joelhos.

 — Isso é ruim, heim? — Strider perguntou, fazendo o seu melhor para soar casual. Não estou morrendo de inveja. Realmente.

 Kaia tentou esconder seu medo ontem, mas ela não conseguiu. Ele mencionou sua viagem e ela tremeu, empalideceu. Ele não deveria ter notado. Estava de costas para ela. Exceto que tinha uma fenda em suas cortinas, permitindo que ele estudasse seu reflexo na vidraça. E como ele tinha estudado.

 Ela brilhava como um diamante, atraindo seus olhos automaticamente, e ele estava tão ansioso para tocá-la que seu corpo estava em chamas.

 Pele de Harpia… não havia nada mais requintado. Nada. Engraçado, porém, que ele nunca quis afagar e provar Gwen, Bianka ou Taliyah do jeito que quis acariciar e provar Kaia.

 Não que ele estivesse pensando mais nela.

 Derrota proferiu outra daquelas risadas e Strider enrijeceu. Quando o merdinha não deu nenhuma resposta, não aceitou nenhum desafio, ele relaxou um pouco. Droga. Que diabos estava se passando com seu demônio?

 Gwen mordiscou seu lábio inferior.

— Bianka me disse que os jogos são tão violentos que metade dos participantes acabam mortos ou rezando pela morte. E uma vez, cerca de mil e quinhentos anos atrás, mais da metade morreu. Tipo, quase todos eles.

 Strider se endireitou, seu sangue gelando.

— O que? Por quê?

— Ela não me disse mais do que isso, então não olhe para mim como se quisesse cortar minha garganta se eu não confessar. De qualquer maneira, ela não estava exagerando. — Gwen continuou. — Oh, espere. Ela me disse um pouco mais. Aparentemente os Skyhawks não tiveram permissão de participar em séculos por causa de algo que Kaia fez, não que alguém me diga o que. Ninguém em nosso clã fala disso, e eu nunca estive realmente perto das outras mulheres do clã. Elas sempre nos evitaram. Mas agora, de repente, elas estão nos dando as boas vindas de braços abertos. É estranho e eu não gosto disso, mas não vou enviar minhas irmãs em território hostil sozinhas.

A mente de Strider se enganchou em um único detalhe. Kaia causou o tumulto. O que a magnífica encrenqueira fez?

 — Ah, e mais uma coisa. Bianka acha que isto é uma armadilha. — Gwen angulou a cabeça de Sabin e afundou em seu colo. Automaticamente o guerreiro a abraçou, segurando-a firme. — Ela acha que os Skyhawks, Kaia especialmente, serão alvos, todos atrás de vingança.

 Kaia… um alvo para cada Harpia com um ressentimento… Agora seu sangue aqueceu por uma razão diferente, a necessidade da raiva criou um inferno dentro dele.

— Os homens tem permissão para ir?

 — Consortes e escravos sim, e eles são mais que permitidos, são encorajados. O sangue é remédio para as Harpias, e os cônjuges e escravos ajudam a curar os ferimentos dos participantes.

 — Kaia tem um…escravo? — Ele grasnou a pergunta. Por um lado, ele queria que ela tivesse um, para estar seguro. Por outro, ele já queria assassinar o porra.

 Derrota rosnou, nenhum rastro de diversão no som. Ou seu medo habitual.

 Isto não é um desafio, companheiro. Ou era seu demônio chateado pelo pensamento de alguém além de Strider machucando Kaia?

 De um modo doente e distorcido aquilo fazia um certo sentido. Seu senso de possessividade era altamente desenvolvido, especialmente com seus inimigos, mas até com amigos. Kaia era um pouco de ambos.

 Felizmente Derrota não ofereceu nenhuma resposta. Strider não precisava da complicação adicional de lutar com Kaia ou qualquer pessoa que a desafiasse. Ela não era sua responsabilidade. Ela não era problema seu.

 — Não. — Gwen finalmente disse, tristeza rastejando em seu tom. — Kaia não tem um escravo.

 Alívio, tanto alívio.

— Encontraremos um pra ela, então. — Fúria, tanta fúria.

— Não. — Aqueles cabelos loiros arruivados de um tom de morango bateram em seu rosto quando ela agitou sua cabeça. — Ela acha que você é seu consorte.

 Sim, uma vez Kaia disse algo assim para ele. Ela acreditava que ele era, mas ele também acreditava que ela estava enganada, que estava deixando uma simples atração confundi-la. Não que houvesse qualquer coisa simples sobre sua atração por ele. Ela queria o melhor do melhor para si mesma, e ele não podia culpá-la.

Ego em cheque. Ele massageou a nuca com sua mão livre. Reformulando a frase: Ela queria alguém forte, capaz e bonito. Merda. Ego em cheque. Ele pensou novamente. Ela queria alguém que fosse bonito.

 Não. Isso não daria certo. Quando um fato era um fato não havia como fugir disso. Ela queria alguém extremamente bonito, e ele dava conta do recado. Mas… Paris era mais bonito.

 Bonito não era sequer uma palavra, droga. Era? Sim, provavelmente era, e muito provavelmente fora inventada por causa de Paris.

— E então? — Ele disse com mais força do que pretendia.

— Então ela não tomará mais ninguém. — Sabin revelou. — As Harpias são territoriais, possessivas e teimosas como o inferno. Isso quer dizer que elas são como você e não podem se comprometer. A merda vale a pena.

 Gwen fez uma cara feia.

 — Ei!

 — Desculpe, bebê, mas é verdade. — Então. — Kaia levará você ou mais ninguém. — ele disse para Strider. — Isto é apenas o modo que as coisas são.

 — É por isso que… — Gwen inalou profundamente, exalou devagar, seu olhar travado em Strider com ameaça. — Você sabe que eu te amo, certo?

 Ele deu um aceno com a cabeça duro. Merda, merda, merda. Ele ou ninguém. Uma bênção e uma maldição. Ele não tinha tempo para isso. Ele não queria isso. Ele não podia passar mais tempo com ela. Já disse adeus pra ela.

 Um adeus que chegou perto de despertar seu demônio. Cada passo que ele deu pra fora da casa de Kaia, Derrota rondou pela sua cabeça querendo agir, pegar e tomá-la — a vitória seria tão malditamente doce —, mas não permitiu a si mesmo fazê-lo. A perda seria condenadamente dolorosa.

 Strider nunca foi mais feliz pois os demônios da Caixa de Pandora tinham medo das Harpias. E com uma boa razão. Elas eram descendentes de Lúcifer, o mestre de todas as coisas demoníacas.

Além disso, Derrota viu Kaia lutar. Não importava que arma ela usasse — pistola, lâmina, garras, presas — ela disparava por seus adversários mais rápido que o olho podia acompanhar. Qualidades agradáveis em um namoro, certo, e definitivamente afrodisíaco. Se sua existência não dependesse de suas vitórias, como faziam.

 Strider terminou seu último doce, e jogou a caixa vazia na lata de lixo ao lado da escrivaninha de Sabin. Swissss. Dois pontos!

 Derrota ronronou sua aprovação, pequenas faíscas de satisfação jorrando pelas veias de Strider.

 — Está me ouvindo? — Gwen perguntou.

 — Sim, claro. — ele mentiu, olhando rapidamente e achando-a. Ela já não estava mais empoleirada no colo de Sabin. Agora ela estava a poucos centímetros de Strider, suas pernas separadas e suas mãos dos seus lados. Ele reconhecia aquela pose. — Mas, uh, refresque minha memória. Você estava dizendo…

 Ela revirou seus olhos.

— Eu estava dizendo que você tem apenas dois dias para cuidar de qualquer negócio urgente que possa ter. Porque embora eu te ame, vou ter certeza que assista os jogos. Kaia precisa de você, e você estará lá para ela. Ou qualquer outra coisa.

 Sua atenção se voltou para Sabin, olhando com cara de o-que-você-vai-fazer-sobre-isto. Simpatia enchia cada curva e cavidade do rosto do homem, mas não havia nenhum indício de determinação ou ira. Ok, então. Seu líder destemido não faria nada. Perfeito.

 Ele olhou para Gwen.

— Nem pense em me desafiar. — ele estalou. — Eu não hesitarei em retaliar.

Claro, um pequeno arranhão na garota e Sabin o atacaria. Ele teria que ir mais frenético em seu chefe, mas duas vitórias pelo preço de uma? Engula isso.

 — Como se eu pudesse usar seu demônio contra você. — ela respondeu o surpreendendo. — Deus, eu não posso acreditar que você pense tão pouco de mim. — Ela realmente parecia ofendida. Assim que ele abriu a boca para se desculpar, ela disse. — Eu só estou planejando bater a merda fora de você, amarrá-lo e fazer Lucien te riscar para onde a primeira reunião está sendo realizada. Puxa! Dá um tempo!

 “Só” planejando, ela disse. Ele apertou seus lábios.

— Você percebe o que bater a merda fora de mim e me amarrar seria? Usar o meu demônio contra mim. A perda me destruiria.

 — Oh. — Seu semblante desabou. — Eu não pensei em ir tão longe. — Então ela levantou seu queixo, fazendo com que ele se lembrasse de Kaia de novo. — Entretanto eu ainda farei isto. Basta tornar as coisas mais fáceis pra si mesmo e concordar em ir com ela. Por favor.

 — Implorar não dá certo comigo. Nem choro, só pra você saber. — Há muito tempo quando ele fez aquela coisa de namoro, aprendeu que implorar e chorar eram armas de guerra feminina. Quando as mulheres queriam alguma coisa, faziam qualquer coisa para conseguir.

 Admirável, mas ele não levou muito tempo para endurecer seu coração contra tais ciladas. Ou decidir que relações a longo prazo simplesmente não eram para ele. Tão facilmente quanto ele aprendeu sobre os truques dos seus companheiros, ele aprendeu sobre elas.

 Ele tinha que ganhar, e elas sempre tentaram usar isso para sua vantagem. Quantas vezes ele ouviu alguma variação de “Aposto que você não pode passar o dia inteiro comigo e gostar?” Inúmeras.

 — Bem? — Gwen exigiu. — Sim ou não? Modo fácil ou modo difícil?

 — Quanto tempo? — Ele mastigou fora.

 — Quatro semanas. — ela respondeu, claramente esperançosa.

 Ela poderia ter dito “eternidade”, tão enfática foi sua reação. Quatro semanas. Quatro malditas semanas com Kaia. Alimentando-a, protegendo-a, guardando-a com seu corpo se a oportunidade se apresentasse.

 Seu pênis se contraiu com entusiasmo. Isto não era algo para esperar ansiosamente, seu idiota. Ele a guardaria com seu corpo se as circunstâncias exigissem. Mas mesmo reformulando a frase, isso tinha problema escrito nela.

Entrar e sair tão rapidamente quanto fosse possível era seu Modus operandi agora, e um que funcionava para ele. Ninguém teve tempo para aprender seus truques — ou usá-los contra ele.

 Kaia, porém, já sabia, e ela nunca hesitava em desafiá-lo. Parte dele gostava dessa excitação, sim. Você não podia ganhar se nunca entrasse no jogo, e ela entrava no jogo. No sacudir da coisa, você não podia perder, de qualquer modo.

 — E nossa guerra com os Caçadores? — Ele perguntou a Sabin. Se existia alguém que gostasse de ganhar tanto quanto Strider, este era Sabin. O cara teria vendido sua mãe no eBay só para financiar uma batalha. Isto é, se ele tivesse uma mãe.

 — Eu já conversei com Cronus. — Sabin respondeu. — Galen atualmente está fora do jogo, muito machucado para causar dificuldade, e Rhea está desaparecida.

 Galen, o guerreiro imortal possuído pelo demônio da Esperança, também ironicamente o líder dos Caçadores. Rhea, a maior cadela de uma Rainha Deusa já vista controlava a metade do céu. Ambos no topo de sua longa lista de inimigos.

 — Sumida? Ainda? — Ele sabia que ela desapareceu, mas imaginou que estivesse se escondendo, já que seu marido descobriu sua deslealdade mais recente contra ele — convencendo sua irmã a agir como sua amante e espioná-lo — e queria castigá-la. — Esse jogo sujo é esperado? — Não eram muitos os seres que podiam sequestrar uma Deusa com sucesso.

 — Sim, entretanto Cronus não vai compartilhar nenhum detalhe.

 Talvez porque ele não tivesse nenhum. Isso poderia explicar por que Cronus tinha convocado Amun. Ninguém era melhor para obter respostas que o guardião de Segredos.

— Esta é uma hora perfeita para atingir os Caçadores, então. — ele se forçou a dizer.

— Não, realmente, não é. — Sabin ergueu uma sobrancelha. — Lembra daquela garota que nós vimos, a que aceitou o Demônio da Desconfiança em seu corpo?

 — Não, Sab. Esqueci. — ele disse secamente. Eles dois estiveram no Templo dos Tácitos, e viram como os seres manipularam o ar para revelar o que estava acontecendo num continente inteiro distante.

 Galen de algum jeito encontrou quem não era capaz de ser encontrado. O demônio perdido da Desconfiança, enlouquecido e trabalhando em um frenesi. Ele então prendeu Desconfiança dentro de um quarto e convenceu a besta a possuir outra pessoa. Uma fêmea, uma Caçadora.

Mesmo tendo investigado não sabiam mais nada sobre a garota. Nem sua localização, nem sua condição.

 — Atitude. — Sabin fez um tsk com sua língua. — De qualquer forma, Cronus decidiu que a quer. Ele tem Amun a vigiando.

 Ah. Então é por isso que Amun foi convocado. Rhea foi condenada, ele imaginou. Mas se Sabin sabia disso, significava que Haidee também sabia. O que significava que ela não queria compartilhar as informações com Strider. Um pequeno castigo, ele tinha certeza, e não podia culpá-la.

 — O que a garota tem a ver conosco chutando traseiros de Caçadores agora? — Ele perguntou.

 — Os Caçadores estarão lutando para mantê-la escondida e ocupados demais para nos atacar.

 — Então, espere. Mas novamente, se esse for o caso, não há melhor momento para atacar.

 — Se nós pudéssemos encontrá-los. Sem Amun temos que contar com nossas fracas habilidades de detetives estúpidos.

 Dificilmente.

— Temos Ashlyn. — Maddox, o guardião da Violência, casou-se com uma mulher com a habilidade de ficar em um local e escutar todas as conversas que já aconteceram ali. Ninguém podia se esconder dela.

 — Você não ouviu? Ela no momento está de cama. Os gêmeos que ela está esperando cresceram subitamente. Ela está tão grande que precisa de ajuda pra ir ao banheiro. Maddox acha que ela vai parir logo.

 O pobre coitado provavelmente estava louco de preocupação. Ashlyn era (principalmente) humana, e portanto tão delicada e frágil quanto um vaso de cristal. Nada como Kaia, que poderia... — Não vá por aí.

— Não sei quanto a você, mas eu sou um detetive malditamente bom.

 Sabin deu de ombros.

— Ok, pense como quiser. Eu tinha uma escolha a fazer. Aproveitar nossa vantagem ou cuidar da minha esposa. Adivinhe qual eu escolhi?

Quando Sabin se tornou tão marica?

 — Pelo menos não temos que nos preocupar sobre nossos garotos sendo machucados porque os deixamos para trás.

 Como se tivessem que se preocupar com isso, de qualquer maneira. Os “garotos” eram tão competentes quanto Strider. Sem falar do fato que eles estavam possuídos por maus como Dor, Doença e Miséria. Todos eles eram ferozes e não tinham nenhuma necessidade de babás, com a batalha chegando ou não.

 — Bem, mesmo assim não posso ir. Eu tenho planos. — Strider disse. E eu não posso hesitar isto é tudo que existe para ela. — Eu prometi a Paris que o ajudaria nos céus.

 — Ajude-o mais tarde. — Gwen disse, intrometendo-se de volta na conversa. — Kaia precisa de você agora.

 Seu corpo reagiu imediatamente, sua pele formigando com a consciência — Kaia precisa de você — o despertar das células — Kaia precisa de você — seu eixo engrossando, endurecendo — Kaia precisa de você… precisa de você para tocá-la, tirar sua roupa e preenchê-la.

 — Vou pensar sobre isso. — deu uma desculpa esfarrapada, então foi para o corredor e se dirigiu ao seu próprio quarto antes que Gwen o ameaçasse uma segunda vez. Uma vez lá, ele se trancou e moveu-se para o centro do quarto, o olhar perdido nas paredes, a mente agitada.

 Ele e Kaia tinham os mesmos gostos em decoração. Armas cobriam suas paredes da mesma forma que cobriam as dela. Ele se perguntava se, como as suas, cada peça em sua coleção pertenceu aos humanos e imortais que ela derrotou ao longo dos séculos.

 Kaia. Derrota. Duas palavras que se tornaram sinônimo para ele.

 As Harpias eram o ponto alto sobre sobrevivência do mais forte que ele poderia lembrar. Por causa de Gwen, ele sabia que dormir na frente de humanos — ou qualquer um além do seu cônjuge, no que diz respeito a esse assunto — era proibido. Ele sabia que elas não tinham permissão para revelar uma única fraqueza para qualquer pessoa — até mesmo seus cônjuges. E elas nunca, nunca roubariam de suas irmãs. Se elas quebrassem alguma dessas regras seriam punidas.

 Droga, que diabos ele faria com ela? Ela podia cuidar de si mesma contra qualquer pessoa, exceto outra Harpia. Além disso, Kaia precisaria de todas as vantagens que pudesse obter. Como em primeiro lugar, descansar. Ela precisaria descansar entre os jogos, o que quer que esses jogos pudessem ser. Ela achava que Strider era seu consorte, então só descansaria com ele ao seu lado.

 Em segundo, ela precisaria de alguém para garantir que comesse corretamente. Olha como ela se permitiu definhar na prisão.

Terceiro, ela precisaria de alguém para guardar suas costas se ela roubasse qualquer coisa, e conhecendo-a, ela roubaria um monte de algumas coisas. De preferência alguém que não tinha que guardar suas — ou as dele — próprias costas também.

Metade dos participantes normalmente morria, disse Gwen. Metade. Harpias não mostravam nenhuma misericórdia, não tomavam prisioneiros.

Por qualquer razão, Kaia teria um alvo desenhado nas costas.

Se ele fizesse isto, se ele fosse com ela… teria que achar um modo de se tornar de aço contra sua atração.

Porque, não importa o que, ele não podia dormir com ela. Não apenas por causa de Paris, mas porque ela veria qualquer contato íntimo como um compromisso, como um vínculo Harpia/consorte. Um tipo de vínculo para sempre. De jeito nenhum ele assinaria uma sentença pra vida toda.

 Porém, ele poderia resistir a ela?

 Uma pergunta melhor: Será que ele poderia protegê-la? Se seus inimigos soubessem quem ele era, poderiam usar seu demônio contra ela. Eles poderiam desafiá-lo para machucá-la. Eles poderiam desafiá-lo para destruí-la.

 Ganhar? Derrota disse, sua voz rouca vagando pela cabeça de Strider.

 Merda. Eu parei de ir por aí, então faça o mesmo. Por favor.

 Ganhar. O Demônio repetiu, uma exigência desta vez. Uma exigência que tinha um traço de medo.

 Tarde demais. Ele pensou. Derrota foi por esse caminho, e não voltaria atrás.

 Ganhar, contra qualquer Harpia que tentasse machucar Kaia?

 GANHAR.

 Sim. Contra as Harpias que tentassem machucar Kaia. Por quê? Ela não é sua pessoa favorita. Por que tenho que protegê-la?

 Ganhar, ganhar, ganhar.

 Por que ele esperava uma resposta, ele não sabia. Ao contrário de alguns dos outros demônios, o seu tinha um vocabulário muito limitado. Garantido, ele obteve a vara mais curta. Mas… talvez Derrota se lembrasse apenas de como parecia bom uma vitória sobre Kaia, e queria mais. Se ela morresse, ele não poderia ter mais. Ou talvez, possessivo como o demônio era, Kaia era seu campo de batalha pessoal, e outros não tinham permissão para jogar ali. Nunca.

 O que ele sabia? Ele estava indo para os Jogos das Harpias.

 

Kaia adorava assistir filmes, mas nesse exato momento ela sentiu como se fosse a protagonista em um filme de horror chamado O Massacre da Festa do Sono. Só que em vez de um saco de dormir e um ursinho de pelúcia, ela levou um machado — chame-a de sentimental — e uma lâmina serrilhada.

 Ela andou a passos largos com suas irmãs por um corredor longo e escuro, aparentemente sozinha, armas apertadas em suas mãos. Também tinham armas nas suas cinturas e em suas costas. Se o mau elemento realmente estava observando das sombras esperando para atacar, ele provavelmente teria visto elas se movendo em câmera lenta, seus cabelos voando ao vento. Além disso uma música assustadora também estaria tocando no fundo.

 Pena que isso não era Hollywood.

 Taliyah estava no meio. Ela era a mais velha entre elas sem dúvida, como também a mais forte, a mais mortal.

Alta, esbelta, pálida da cabeça aos pés, ela parecia uma elegante rainha do gelo e tinha uma personalidade que correspondia a sua aparência. Emoções não eram algo que Taliyah se permitisse experimentar. Enquanto Kaia sempre se esforçou para ser como sua mãe, Taliyah optou em ser o oposto. Lógica, equilibrada, uma estrategista.

Bianka e Kaia flanqueavam seus lados, com Gwen à esquerda de Kaia. Numa ponta da Brigada de Estrogênio estava Sabin, na outra estava Lysander. Normalmente em eventos como estes, consortes deveriam supostamente estar uns metros atrás, mas estes homens fugiam do arquétipo. Eles eram iguais. Amados. Determinados a proteger.

 Cada uma das mulheres irradiava uma tensão acalorada que misturava perfeitamente com a própria Kaia. Tudo graças ao muito estúpido Strider. Ele não iria apoiá-la. Hoje cedo Gwen a levou a acreditar… a fez pensar que… esperar… desejar… oh, bem. Strider não apareceu, embora ela e suas irmãs tenham esperado por meia hora e agora estavam atrasadas para a reunião.

Estúpido, estúpido Strider.

 Condenada, condenada Kaia.

 Bem, ela finalmente colocou por escrito e admitiu que estava melhor sem ele. Ele era rejeição, humilhação e desgosto embrulhados em um pacote bonito. Ela poderia encontrar outro pacote bonito sem todos os extras, obrigado.

 Pelo menos Bianka e Gwen estariam bem guardadas, e isso aliviou um pouco a sua tensão. Mas se alguém as ameaçasse por causa do que Kaia fez um dia, ela faria parte da Festa do Massacre em Banho de Sangue e do Além, um documentário de Kaia Skyhawk.

 E se alguém provocasse Bianka sobre namorar um anjo, bem, eles também teriam um papel de protagonista neste documentário. Infelizmente ela sentia que existiriam muitos papéis de protagonistas ali.

 A primeira vista Lysander parecia totalmente um benfeitor. Seu cabelo cintilava como se os fios fossem sedas de ouro. Sua pele era tão pálida com apenas uma leve sugestão de rosa. Ele vestia uma longa bata branca, suas asas douradas dobradas, as partes superiores arqueando acima dos seus ombros. Ele não tinha nenhuma arma visível. Entretanto, ele não precisava delas. Ele podia criar uma espada de fogo do nada, além do ar. Só depois de um segundo olhar as Harpias perceberiam que ele era um guerreiro por completo, musculoso e forte, com uma determinação implacável para proteger o que era dele.

 Então seria tarde demais.

 Sabin, bem, todo mundo saberia o que ele era no momento que o avistasse: um durão sem qualquer tipo de bússola moral. Ele tinha cabelos castanhos e olhos de cor ocre, suas feições um estudo de planos duros e ângulos afiados. Mais armas derramadas em seus dois metros de altura que um exército humano inteiro podia transportar, e cada passo seu lembrava um agonizante batimento cardíaco. Thump. Pausa, pausa. Thump. Mas, uh, o que estava fazendo com um megafone na sua mão?

 Não existiria nenhuma provocação de Gwen para ele, mas sua irmãzinha provavelmente teria que repelir as manias dele.

Sabin era tudo que as Harpias admiravam. Perverso, sem ser controlado pelas regras da sociedade e muito além de perigoso.

 Um perigo prontamente aparente, mesmo usando uma camiseta que dizia “Eu não sou ginecologista, mas darei uma olhada”.

 Kaia queria comprar uma daquelas para Strider.

 Finalmente chegaram as portas para o auditório da escola primária. Sim, uma escola primária. Em “Brew City[8],” Wisconsin.

Só nesta manhã os textos saíram, informando a todos aonde ir para a Orientação dos Jogos, e a localização a deixou perplexa. Um milhão de anos atrás, a orientação foi realizada em um amplo campo aberto vários quilômetros da civilização. Certo, os tempos mudaram. Mas uma escola primária? Sério?

 Depois de expressar seu próprio questionamento, Lucien, guardião da Morte, riscou-a e a Gwen, deixando-as nas portas da frente da escola. Lysander voou com Bianka, e Taliyah simplesmente se materializou no que parecia ser uma névoa densa e escura. A garota aparentemente desenvolveu uma nova habilidade, mas quando questionada se recusava a abandonar os detalhes. Como diabos ela sempre podia ser amorosa? Kaia jamais, em todos os seus séculos, viu ninguém sair de um portal nebuloso de sua própria criação.

 Também não era justo. Taliyah já tinha uma capacidade de chutar traseiros. Ela podia mudar de forma. Não que ela tivesse usado alguma vez sua habilidade. Mas agora ela poderia fazer isto também, no entanto Kaia não podia fazer nada legal.

Droga! Kaia parou quando alcançou as portas do auditório. Elas estavam fechadas, um murmúrio de vozes flutuando pela minúscula fenda entre as lâminas de metal. Um tremor desceu pela sua espinha, vibrando em seus membros.

 Taliyah parou também. Ela embainhou suas armas e colocou uma mão firme no ombro de Kaia, seu olhar cristalino apontou.

— Você sabe que estou com você, não importa o que aconteça, certo?

 Seu coração se encheu de amor enquanto ela empurrava o machado e a lâmina em seus coldres.

— Sim, eu sei. — Sua mãe era feita de um material que suas irmãs nunca foram feitas. Elas a apoiavam. Em qualquer coisa, em tudo.

 — Bom. Então vamos fazer isto.

 Taliyah abriu as portas duplas, as dobradiças rangendo em protesto. Sem a barreira, os murmúrios se tornaram conversas desabrochadas. Conversas que morreram quando todos os olhos convergiram para os mais novos participantes.

 Kaia procurou no mar de rostos que ela não via em séculos, mas não localizou sua mãe. Ou qualquer outro Skyhawk no que dizia respeito a esse assunto, apesar do fato que existiam quase uma centena de mulheres olhando pra ela com os olhos estreitados. Ela ergueu seu queixo. Diversas damas agarraram o punho da espada ou cabo do punhal, mas nenhuma sequer andou em sua direção.

 Todo esse ódio deveria chamar a atenção para intimidá-la, ela supunha. Porém, Kaia achou-se deliciando com isto. Ela era forte, mais forte que nunca, e provaria a si mesma. Finalmente.

 Finalmente eles saberiam que ela era digna.

 Tabitha podia pegar seu “quase melhorado” e enfiar onde quisesse.

 — Bem, bem. Pessoal, olha quem decidiu se juntar a nós. Kaia, a Decepção. E companhia, é claro. — A voz familiar ecoou pelas paredes. Juliette, a Extirpadora. — Que surpresa. Nós pensamos que optasse por não entrar, o que teria sido uma jogada muito inteligente da sua parte. Entretanto, você só tem metade de um cérebro, não é mesmo?

 Lá estavam as piadas de que os gêmeos só tem metades, novamente.

 Juliette continuou.

— Eu me sinto obrigada a te avisar que você perderá, e você não se divertirá quando acontecer. Ou sobreviver. Não que eu saiba alguma coisa sobre isto. Eu levei para casa o ouro nos últimos oito jogos. Mas acho que você não saberia, já que não foi convidada para eles.

 Bianka rosnou, Taliyah ficou tensa e Kaia rangeu os dentes quando enfrentou sua inimiga.

 Juliette permanecia no centro do palco. Alta, tonificada e deslumbrante, ela tinha cabelos pretos na altura dos ombros e olhos da mais pura lavanda. Ela vestia um top e uma saia curta que revelava as tatuagens em suas pernas. Símbolos antigos divinos que encomendavam a vingança. Traduzido livremente cada um significava que “a cadela Ruiva deve sofrer.” Agradável.

 — Em breve, você terá que dizer adeus ao seu ouro. — Kaia disse a ela. — É meu desta vez.

 Juliette sorriu lentamente, presunçosa.

— Na verdade, não. Não, eu não vou. Caso você não saiba, eu não participarei este ano. Estou executando as coisas. Em outras palavras, eu sou o cão que manda. Os anciãos se encontraram, decidiram, e eu sou agora o ser absoluto e o fim de tudo.

 Aquilo não era um bom presságio para a vitória de Kaia. Como a mulher que chamou os tiros, Juliette decidiria quem quebrava as regras ou não, e no fim ela tabularia as pontuações finais. Não admirava que Kaia fosse convidada para participar. Nada estava a seu favor.

 — Bem, você é definitivamente um cão. — ela conseguiu dizer através da sua apreensão. Quantas vezes ao longo dos séculos ela se desculpou com Juliette? Inumeráveis. Quantas cestas de frutas ela enviou? Centenas. O que mais ela poderia fazer? Nada. E ela estava cansada de tentar quando este era o resultado.

 Ira cintilou naqueles olhos de lavanda, mas Juliette não ofereceu nenhuma réplica.

— Seus homens devem se sentar com os outros.

Com movimentos bruscos ela apontou para a parte de trás do auditório, onde um grupo grande de homens se empoleiravam lado a lado na sacada, meros espectadores.

 — Na verdade nossos homens ficam conosco. E isto não é algo que discutiremos. — Taliyah perseguiu adiante, cada polegada um predador. — Agora você pode continuar com a reunião. — O comando não foi perdido apesar de ser educado.

 — Eu vou. — Juliette bufou. — Não se preocupe com isso. — Ela se lançou num discurso sobre comportamento adequado antes, durante e depois dos jogos.

 Ignorando-a, Kaia “e companhia” seguiram sua irmã mais velha. Elas pararam à direita do palco, ao lado de outro clã. Os Eagleshields. Família de Juliette. Seu queixo se ergueu outro tanto. Cada membro deu um passo atrás pra longe dela, como se ela tivesse uma doença contagiosa que eles não quisessem pegar, e um rubor aqueceu suas faces.

 Não, nem todos os membros aumentaram a distância, ela percebeu um segundo mais tarde. Neeka, a Indesejada ficara sozinha à margem do grupo e agora deu um passo adiante, mais próxima das Skyhawks. Ela estava sorrindo.

 — Taliyah. — Neeka inclinou sua cabeça respeitosamente. Ela era surda, depois de ter sido apunhalada nos ouvidos durante um ataque. Ela era uma criança e não se curou dos seus ferimentos, e sua própria mãe depois tentou matá-la por se atrever a viver com tal fraqueza.

 A mulher deve ter treinado na escola para Mães de Tabitha Skyhawk.

 As duas mulheres se abraçaram, batendo levemente nas costas uma da outra uma vez, duas vezes. Quando elas se separaram, Neeka olhou para Kaia. Chocante, seu sorriso de dentes brancos e brilhantes permaneceu no lugar. Ela tinha os cabelos mais macios e olhos castanhos ricos. Algumas sardas pontilhavam seu nariz, num tom mais escuro que sua pele, as únicas “falhas” em um rosto que de outra maneira seria tão perfeito.

 — Todos cresceram agora. — Neeka disse em um tom perfeitamente modulado, muito suave.

 — Sim. — Ela esperou os insultos começar a voar.

 Nenhum chegou.

— Espero que você seja tão letal quanto dizem as fofocas.

 Espere. O que?

— Provavelmente muito mais. — ela disse modestamente. Bem, modestamente para ela.

 O sorriso aumentou. Claramente, Neeka aprendeu sozinha como ler os lábios.

— Bom. Isso fará estas poucas semanas que virão suportáveis. Então, diga-me. Cerca de um ano atrás, alguém mencionou que você pendurou um humano fora de um edifício de sessenta e tantos andares. Pelo cabelo. É verdade?

 — Bem, sim. — E ela não estava arrependida. — Gwennie estava desaparecida e ele foi o último a vê-la. — Ela deu de ombros. — Eu queria respostas.

 — Legal[9]. E sobre...

 — Chega. — Juliette estalou. — Você está desperdiçando nosso tempo com seus exageros quando deveria estar ouvindo as orientações.

Exageros. Por favor. Em vez de se defender, e olhar enquanto ela protestava tanto, Kaia repetiu o que disse. Juliette estava atrás de Neeka, então a pobre garota não tinha nenhuma ideia que todos as observavam agora, calmamente esperando pela sua cooperação.

 A advertência não devolveu Neeka ao seu clã. Ela permaneceu ao lado de Taliyah. O que era estranho.

Do outro lado da sala espaçosa outro conjunto de portas duplas se abriram. E então Kaia estava olhando através da distância para sua mãe. Tabitha, a Maligna. Juliette silenciou enquanto suspiros de temor abundaram.

 Uma lenda acabara de chegar.

 O estômago de Kaia deu um nó e ela engoliu em seco. Ela soube que este momento viria, pensou que estava preparada para isto. Mas… Oh, Deuses. Seus joelhos batiam um no outro, e ela teve que pressionar seu peso em seus saltos para se firmar.

 Droga, seu súbito ataque de nervos precisava de uma saída. Sua pele formigou como se pequenos insetos com perninhas quentes estivessem rastejando sobre ela.

 Mais de um ano se passou desde que ela falou com sua mãe, e aquela conversa final não foi agradável.

 — Eu não sei por que estive presa a você por tanto tempo. —Tabitha disse. — Eu empurro, empurro e empurro, no entanto você não faz nada para se redimir. Você permanece no Alasca, lutando com humanos, roubando-os e jogando com eles.

 Kaia ficou boquiaberta.

— Eu não sabia que precisava provar nada para você. Eu sou sua filha. Você não deveria me amar não importando o que eu fizesse?

— Você está me confundindo com suas irmãs. E olha onde sua indulgência te levou. A lugar nenhum. Os outros clãs ainda te odeiam. Eu tenho vigiado você, protegido todo este tempo nunca permitindo que agissem contra você, mas isso termina hoje. Minha indulgência não te levou a lugar algum também.

 Sua definição de indulgência variava muito. E, para ser honesta, aquela variação cortou tão profundamente que ela não achava que iria se curar.

— Mãe.

— Não. Não diga mais nada. Nós terminamos aqui.

 Os passos ecoaram quando sua mãe foi embora. Era melhor assim. Não houve nenhum telefonema, nenhuma carta, sem e-mail ou textos. Kaia simplesmente deixou de existir. Juliette ainda não a atacou, então assumiu que sua mãe continuava a “protegê-la” apesar daquele fato.

 Talvez tivesse assumido errado.

 Talvez por isso que ela agora se achava neste lugar.

 E ainda assim, mesmo sabendo que Tabitha poderia querer machucá-la e quebrá-la, ao olhar se embebeu de sua mãe, seu primeiro vislumbre em todos estes meses, espontaneamente, e Deuses, Tabitha era encantadora. Embora tivesse vivido por milênios e dado a luz a quatro (belas) filhas agora passadas da idade legal para beber — beeem passadas — ela parecia não ter mais do que vinte e cinco anos. Pele lindamente bronzeada, uma sedosa massa de cabelos pretos, olhos de um castanho-âmbar, e os traços delicados de uma boneca de porcelana.

Poucas vezes ao longo dos anos ela tingiu seu cabelo de ruivo e Kaia pensava, esperava que isso significasse… Mas não.

 — Tabitha Skyhawk. — Juliette disse, seu tom reverente. Ela inclinou sua cabeça em saudação. — Bem vinda.

 — Aquela é a sua mãe? — Sabin de repente exigiu de Gwen. — Quero dizer, você me disse que ela te odiava e por isso permanecia afastada, mas aquela mulher parece que só odeia unhas quebradas e meia-calça com fios corridos.

 — Ela é só minha mãe pelo nascimento, então não use isso contra mim. — Gwen respondeu. — E garanto a você, ela quebraria seu rosto sem pensar nas unhas.

 Gwen sempre foi a sensível, a que necessitava de proteção. No entanto ela não chorou no dia em que Tabitha a chamou de indigna. Ela simplesmente deu de ombros e seguiu em frente. Nem uma vez ela olhou para trás.

 — Ela não pode ser de todo ruim. — Sabin disse. — Não com aquelas pernas.

 Homens.

— Ela tem um coração de uma criança, sabe. Sim, está numa caixa ao lado da sua cama. E adivinhe? É o meu!

 Depois do infeliz incidente, Kaia atingiu Tabitha por séculos, desesperada, disposta a fazer qualquer coisa, qualquer batalha para ganhar de volta o respeito e o amor da sua mãe. Ela falhou, uma vez após a outra. Finalmente ela percebeu a inutilidade dos seus esforços e voltou suas atenções para os humanos. Um ato que mais uma vez ganhou o castigo de Tabitha.

 Você permanece no Alasca, lutando com humanos, roubando-os e jogando com eles. As palavras correram pela mente de Kaia uma segunda vez. Entre os humanos ela era um prêmio entre os prêmios, considerada tão bonita, corajosa e divertida. É claro que ela jogava com eles.

Você está acima da rejeição, lembra-se? Você não se importa.

Sua mãe andou pela sala o resto do caminho, nove Harpias bem atrás dela. Quando as portas se fecharam com um movimento rápido suave, o grupo parou e inspecionou a sala, os ocupantes. Todos os dez olhares ampliados passaram por ela sem sequer fazer a mais leve pausa, como se ela fosse invisível.

 Olhe para mim, ela pensou freneticamente. Mãe, por favor. Por aqueles poucos e esperançosos segundos, ela novamente se sentiu como uma menina carente. Claro, aqueles olhos dourados nunca retornaram aos seus. Pior, eles caíram sobre Juliette e faiscaram com orgulho. Orgulho. Por quê?

Será que isso importa? Uma risada amarga brotou da garganta de Kaia. Então em comparação ela notou os medalhões pendurados em cada um dos pescoços, e o riso escapou estrangulado. Pequenos discos de madeira, asas intrincadas esculpidas nos centros, o símbolo precioso da força Skyhawk. Kaia sempre aceitou bem o fato que sua mãe treinou Juliette, bem como outros membros de clãs aliados. Mas dar a alguém que não seja um Skyhawk uma medalha? Oh, aquilo ardia!

Outra recordação veio à tona. De repente ela sentiu o raspar de couro contra sua nuca quando o colar foi arrancado dela.

 — Nosso vôo se atrasou. —Tabitha explicou, sua voz dura ecoando da cúpula do teto. — Nós pedimos desculpas.

 Mesmo tão rigidamente proferidos… um pedido de desculpas? De Tabitha, a Maligna? Esta era a primeira vez. Kaia estava sonhando? Ela entrou em algum tipo de universo paralelo e não sabia? Não, ela não poderia ter entrado. Nesse caso, Tabitha teria sorrido para ela. Ela não sorriu. Então o pedido de desculpas aconteceu.

 Seus joelhos começaram a se chocar novamente, e não havia nada que os parasse.

 — Desculpe, estou atrasado. — uma voz rouca disse atrás dela.

De volta para a teoria do sonho. De jeito nenhum Strider estava aqui e se desculpando. Isso significaria que ele era sua tábua de salvação, só uma linha a afastava da insanidade. Kaia chicoteou ao redor, certa que não existiria nenhuma mudança em seu entorno. Para seu choque eterno, seus olhos apoiaram seus ouvidos.

 Strider estava aqui em toda sua glória de guerreiro.

 Com sorriso de Mãe Mais Querida ou não, ela entrou em um universo paralelo. Não poderia haver outra explicação. Podia haver?

— O que você está fazendo aqui? — O cheiro de canela flutuava dele, conforme ela inalava — ofegava, realmente — seu coração derrapando em uma batida ingovernável.

 — Graças aos Deuses. — murmurou Sabin. — Gwen quase teve minhas bolas no café da manhã quando ouviu que deixei você sair da fortaleza esta manhã.

 Gwen corou.

— Sabin! Agora não é hora de derramar nossos segredos do quarto.

 Bianka riu atrás de sua mão.

— Eu não acho que foi isso que ele quis dizer, Gwennie-bo-Bennie.[10]

 Enquanto ela falava, Lysander se inseriu entre ela e os dois imortais possuídos pelos demônios. Ele podia ter concordado com uma trégua com os Senhores do Submundo, mas isso não significava que gostava deles. E como ele cortou a cabeça do seu bom amigo Aeron, os Senhores não eram seus maiores fãs tampouco, e ele claramente não queria que eles descontassem sua antipatia em Bianka. Como se quisessem. Possuídos pelo demônio ou não, os guerreiros trataram as garotas Skyhawk como família. Primos irritantes que abusavam das boas vindas, mas mesmo assim família.

 Outra rodada de arquejos de repente ecoou. Os homens finalmente foram notados, realmente notados como algo mais que doadores de sangue e pôneis para serem montados, e murmúrios de “anjo” e “senhores” surgiram. O primeiro era cheio de diversão, como Kaia temia, o segundo com ciúme.

 Ciúme. Por ela. Tentou não se inchar como um pavão.

Ela falhou.

— O que você está fazendo aqui? — Ela repetiu em um sussurro baixo. Para Strider. Que estava aqui, com ela.

— Pergunte-me amanhã, e poderei ter pensado numa resposta. — ele respondeu secamente.

Mais uma vez, ela encontrou seu coração expandido. Não com amor, não desta vez, mas com medidas iguais de luxúria, alegria e alívio. Ele estava mais sexy do que nunca em uma camiseta branca manchada de sangue e rasgada por cima da calça jeans. Sujeira listrava seu rosto de anjo caído e seu cabelo loiro estava colado em seu coro cabeludo e pingando de suor.

— Eu estaria aqui mais cedo — ele adicionou. —, mas minha checada final no perímetro da fortaleza deu frutos.

 — Caçadores?

— Sim. Bastardos. Sempre tentando alguma coisa furtiva.

— Você matou todos eles?

Seus olhos azuis reluziram, revelando sugestões do demônio vitorioso dentro dele.

— Até o último.

Este é o meu homem.

— Boa garota. — Sim, ela acabava de chamá-lo de garota. E ele estava aqui. Ele realmente estava aqui.

Ela não conseguia superar aquele fato surpreendente. Isso significava que ele percebeu que eles se pertenciam? Ele a perdoou por dormir com Paris? Ela lutou contra o impulso de lançar seus braços ao redor dele, abraçá-lo apertado e nunca deixá-lo ir.

 Ele deve ter lido as perguntas e desejos em seus olhos porque disse.

— Só não tenha uma ideia errada. — estragando tudo. — Você precisava de um armário de remédios, então aqui estou eu. Assim que os jogos acabarem, vou embora. Não estou dizendo para ser rude, mas sim honesto. — Gentil, tão gentil. — Certo?

 — Sim, claro. O-obrigada. — Não querendo que ele testemunhasse sua alegria murchando, ela se virou. Eu não vou chorar. Sua mãe não a quebrou (a maior parte), ele não iria (não novamente).

Mais uma vez ela era o centro das atenções, todos os olhos fixos nela. Ela ergueu seu queixo, exatamente como fez da primeira vez, recusando-se a revelar sua chateação.

— Então eu fiz falta? — Ele perguntou.

— Está vendo aquela morena rebolando ali? — Sabin apontou para Tabitha. — Esta é sua mãe.

— Aquela é a mãe delas? — Strider ofegou.

 As mãos de Kaia se enrolaram em punhos, afiando suas unhas cortando a pele a cada passada. Quentes, muito quentes filetes de sangue deslizaram entre os nós dos dedos antes de pingar no chão.

— Se você não for cuidadoso, eu vou...

Não existia nenhuma ameaça significativa o suficiente.

— Só… não a elogie.

 — Não me desafie, Ruiva. Você não gostará dos resultados.

 Ruiva. De qualquer outra pessoa, teria sido um termo carinhoso. De Strider era uma maldição.

— Por que? Está planejando me bater?

 — Vou embora. — As palavras foram firmemente declaradas.

 Ela pressionou seus lábios numa linha amotinada. Sua ausência era a única coisa que não estava disposta a arriscar. Gostando dele ou não, no momento não. Ele poderia ser uma dor no seu traseiro, ele poderia ser teimoso e às vezes odioso, mas era a melhor chance que ela tinha de ganhar esta coisa, e sabia disso. Com Juliette no comando, ela precisava de alguém antenado, vigiando suas costas o tempo todo.

 — Minha mãe não é minha pessoa favorita, ok? — Ela girou sem olhar para ele e sussurrou. — Agora você pode, por favor, agir como se estivesse do meu lado, só um pouquinho?

 Afinal Tabitha se dignou a reconhecer o seu grupo. Seu olhar se moveu para os homens, e só para os homens, sua boca se curvando em desgosto. O tempo todo ela afagava o punho da lâmina que estava na sua cintura.

 — Primeiro, eu não a elogiei. Segundo, ela parece que come as esperanças e sonhos das pessoas no café da manhã, e não apenas porque são saborosos. Isto não é atraente. Terceiro, você parece ter surgido das esperanças e sonhos das outras pessoas. Eu não poderia, não posso, acreditar que você está relacionada com ela.

 Que… doce. Kaia ficou completamente fora de si. Maldito! Primeiro ele deu um golpe baixo, anunciando que não ficaria por ali. Em seguida a elogiava. Como supostamente deveria manter distância emocional dele quando dizia coisas como essa?

 — Espere. O que? Quem disse isto? — Strider rosnou antes dela poder formar uma resposta.

 — Você disse — ela respondeu. —, e sei o que você vai dizer em seguida. Você soou como um maricas. — Ela odiava o alfinetar, mas sua sanidade estava em jogo.

 Strider estalou seus dentes para ela.

 — Quem disse o que, então? — Ela perguntou com um suspiro.

 Seu olhar sombrio percorreu seu pequeno grupo, então retornou para sua mãe, um músculo saltando em sua mandíbula.

— Deixa pra lá. Não importa.

 O-kay. Consortes. Você não pode viver com eles, mas também não pode cortar suas línguas fora sem ganhar uma vida inteira de olhares odiosos.

 — Agora que todo mundo está aqui, vamos voltar aos negócios? — Juliette disse. — Os jogos sempre foram uma parte importante de nossas vidas, permitindo-nos punir justamente aqueles que nos tem ofendido. — É claro que ela olhou na direção de Kaia quando disse isso. — Bem como também provar o quanto nos tornamos fortes para aqueles que adoramos. Então aqui estamos para fazer o que fazemos melhor. Chutar traseiros!

 Aplausos explodiram

 — Se você verificar suas mensagens, encontrará a composição das equipes. — Juliette anunciou, sua voz gotejando satisfação, sua atenção momentaneamente fixa em Strider.

 Foi quando Kaia percebeu a verdade fria e dura. A ira quase a mandou voando para aquele estágio. Fique calma. É isso o que Juliette quer. O que ela mais queria? Strider. Claramente a cadela estava esperando pelo dia que Kaia encontrasse seu próprio consorte, muito provavelmente planejando levá-lo embora do mesmo modo que Kaia uma vez tomou o seu.

 Fan — porra — tástico. Como aquilo vazou quando ela e Strider não foram oficialmente apresentados? E dane-se tudo, um Strider descompromissado seria presa fácil. A raiva se transformou em medo, e bílis subiu pela sua garganta, ameaçando sair.

 Strider e Juliette… Juliette, que não dormiu com Paris… enroscados juntos, nus, contorcendo, gemendo, implorando… Oh, Deuses. Concentre-se no aqui e agora. Todo o resto poderia ser tratado mais tarde. Talvez.

Se ela continuasse pensando por esse caminho, ela atacaria alguém — isto é Juliette e Strider — ou quebraria. Nenhuma das duas era uma opção aceitável.

 Trêmula, Kaia retirou seu celular do bolso traseiro, rolou e rapidamente encontrou um texto. Somente ela não estava listada no Time Skyhawk. Nem suas irmãs estavam, tampouco.

— Eu não entendo.

— Nossa mãe alega que não tem mais filhas. — Taliyah disse. — O que significa que não podemos competir como Skyhawks. Eu tive que pedir ao Conselho para começar um novo clã. Assim que cuidarem disso, estaremos dentro.

 Nenhuma reação. Ela não reagiria. Ela não esteve morrendo por dentro. Ela não estava.

— Então qual é novo nome do nosso time? — A resposta apareceu em sua tela antes que ela pudesse terminar. Time Kaia. Suas irmãs, bem como Neeka e alguns outros estavam competindo no Time Kaia.

 Para um momento, seu entorno desvaneceu, como fez sua mágoa, e ela se aqueceu em suas irmãs num apoio inabalável. Elas a amavam. Não importava o que acontecesse , elas a amavam. Elas a aceitavam. Elas achavam que ela era boa o suficiente, do jeito que era. Logo em seguida o mundo girou de volta ao seu foco, e ela teve que piscar contra as lágrimas queimando em seus olhos.

Droga. Quantas vezes ela teria que combater a vontade de chorar hoje?

— A primeira competição começa amanhã de manhã bem cedo. — Juliette continuou. — Depois, todos serão notificados onde exatamente a próxima competição estará ocorrendo. Como vocês sabem, já não sediamos os jogos em um único local, porque competidores anteriores manipularam e sabotaram antes do tempo.

Embora Kaia não tenha sido responsável — alô, ela não foi convidada — Juliette lançou as palavras para ela.

Que seja. Sua espinha se endireitou num estalo, como se ancorada por barras de aço.

A mão do Strider se estabeleceu na parte de baixo, quente e firme, confortadora. Escaldante. Doce Céu, seu entorno desapareceu mais uma vez, até que existiam apenas eles dois. Ela imaginou sua boca substituindo sua mão, sua língua lambendo se arrastando mais abaixo. Um suspiro escapou.

Controle-se. Se ela tivesse “a ideia errada” sobre algo tão inocente quanto um tapinha, ele cairia fora, como prometido. Como se ela pudesse culpá-lo. Se a situação fosse invertida, ela faria o mesmo.

No fundo, eles eram muito parecidos. Guerreiros afiados no campo de batalha, afiados como uma adaga, cínicos, dispostos a fazer qualquer coisa pelos seus amigos. E em algum nível, eles eram amigos. Foi assim desde o começo. Ele podia querer não estar aqui, mas de qualquer forma não queria que ela se machucasse também. Então ele veio, e a ajudaria.

Mas ele não a deixaria empurrá-lo para mais. Enquanto ela mantivesse uma distância emocional, ele ficaria.

Seria o seu “armário de remédios”.

Mesmo irritada e sofrendo como estava, também estava grata.

— Outra coisa também é nova este ano. — Juliette continuou, puxando Kaia de seus pensamentos. — O prêmio. Desta vez os vencedores não receberão prata e ouro depois de cada competição.

 — O que? — Alguém gritou.

 — É por isso que estamos aqui! — Outra rosnou.

 Juliette levantou suas mãos, um comando de silêncio. Um comando que foi imediatamente obedecido.

— Este ano temos algo melhor.

 Em meio a questionamentos murmurados a cortina na lateral do palco foi afastada. E então Kaia ficou de boca aberta. De jeito nenhum. De nenhum maldito jeito. O “escravo” que ela tentou adquirir todos aqueles séculos atrás, o único que causou estragos nos clãs das Harpias, andou a passos largos para o lado de Juliette. Estava acorrentado pelos pulsos, como antes. Ele estava mais musculoso agora, seu cabelo escuro mais longo, mas suas feições ainda eram afiadas e teimosas.

 — Deuses queridos. É ele? — Bianka ofegou.

 — Sim. — ela conseguiu grunhir. Ninguém lhe contou que Juliette o encontrou. Quando ela o encontrou? Onde? — É ele.

 — Ele quem? — Strider exigiu.

 A princípio, Kaia pensou que detectou uma nota de ciúme em seu tom, e foi uma resposta tão amorosa que ela quis beijá-lo profundamente e de maneira obscena. Despi-lo até que não ficasse nada além de pele e um sorriso. Ela queria montá-lo duro, rápido e para sempre. Todo meu. Então o bom senso a esmurrou direito na mandíbula. Ele podia estar ciumento, mas não de um jeito que importasse. Strider decidiu ajudá-la, e seu demônio não permitiria que ninguém interferisse. Especialmente não outro guerreiro.

 Parte dela se ressentia disso. Sua outra parte realmente se ressentia disso.

— Você está um pouco grosso, não está, Remédio? Ele não é alguém com quem você precise se preocupar.

 — Kaia. — ele estalou.

 — Quieto, ok? — Ela não podia lhe dizer a verdade. Ela não queria que ele soubesse ainda da sua tolice do passado, quando ele já pensava tão pouco dela. — Você está me fazendo ficar mal na frente da minha equipe.

— Kaia.

— Certo. Eu explicarei mais tarde. — ela mentiu.

Uma pausa tensa. Então soltou.

— É melhor mesmo.

— Ou então?

— Sim.

 Seu inimigo, o homem que ela procurou ao longo dos anos, determinada a puni-lo pelo que ele fez à sua irmã, mas nunca achou, agora segurava uma lança longa e fina. Suas pontas eram grossas e compostas de vidro, algo incandescendo e girando dentro delas.

Poder, tanto poder que irradiava da lança.

Juliette reivindicou a arma sem uma palavra de agradecimento. O homem — seu nome ela aprendeu há muito tempo, era Lazarus, embora ela e Bianka o apelidaram O Tampax por ser um banho de sangue — deu meia volta. Seus olhos escuros se moveram na multidão… procurando… antes de se prender em Kaia. Ele parou e a olhou fixamente.

 O oxigênio congelou em seus pulmões, tornando impossível respirar. Nenhuma maldita reação, ela pensou. Não aqui, não agora. Mais tarde, porém, ela iria procurá-lo. Ela o machucaria como sempre quis.

Lentamente ele sorriu. Tão bonito… tão friamente mau. Ela silvou, seus caninos estalando livres de suas gengivas. Você está morto, cowboy. Ele pertencia a Juliette sim, e todos claramente culpavam Kaia em vez dele, pelo que fez aos seus entes queridos. E sim, eles a culparam com uma boa razão. Se ela tivesse feito o que lhe disseram que fizesse, ele não teria força para prejudicar ninguém. Mas ele foi o único a rasgar as carnes com seus dentes, suas garras. Ele foi o único a dar aqueles golpes mortais.

 Ele seria o único a pagar — pela mão de Kaia.

 Toda vez que ela enviou uma cesta de frutas para Juliette, ela fez referências ao passado, mas na sua cabeça ela oferecia um pedido de desculpas por causa do que planejava fazer no futuro. Ela ia matá-lo. Ninguém machucava suas irmãs. Ninguém.

— Esqueça o mais tarde. Quem, porra, é, ele? — Strider exigiu novamente.

Antes dela poder inventar uma resposta, o Tampax devolveu seu equipamento, saiu do palco, e novamente ficou escondido atrás da cortina. Inteligente da parte dele. Ela não tinha certeza de quanto tempo mais poderia evitar voar nele.

 Quando ela fosse atrás dele, seria em particular. Ninguém lá para salvá-lo.

— Mais tarde. — ela repetiu.

— Isto — disse Juliette, chamando a atenção de todos para a lança em suas mãos. —, é muito, muito precioso. Muito mais do que prata ou ouro. — Seu olhar de lavanda se fechou no de Kaia. — Eu tenho certeza que você sentiu o seu poder, mas o que você não sabe, é que o poder pode ser transferido. Você pode empunhá-lo, controlá-lo. Você será mais forte do que jamais imaginou. Você será invencível.

 Os murmúrios abundaram.

 Se o que Juliette alegou era verdade, por que ela não transferiu os poderes para si mesma? Por que ainda não atingiu Kaia? Por que ela estava tão disposta, tão ansiosa para doar a coisa?

Juliette relampejou um sorriso indulgente.

— Ao longo dos séculos, os Deuses chamaram esta poderosa arma de Haste de Paring[11]. Eu, porém, tenho um nome melhor para ele. Primeiro prêmio.

 Strider endureceu.

 Sabin amaldiçoou.

 Os dois homens teriam pulado no palco se Taliyah e Neeka não os segurassem de volta. A ação se mostrou desnecessária, no entanto, porque a arma desapareceu em um piscar de olhos das mãos de Juliette, em um minuto estava ali no próximo se foi.

— Que diabos? — Kaia, Gwen e Bianka perguntaram em uníssono.

 Kaia arrancou as mãos de sua irmã do seu homem e cavou seu rosto em concha, forçando-o a se focar nela.

— O que está acontecendo?

— Primeiro prêmio. — Strider soltou entredentes. — É o quarto artefato. O que precisamos para nos ajudar a encontrar e destruir a Caixa de Pandora.

— O que significa que o primeiro prêmio — Sabin terminou desoladamente — tem o poder de nos eliminar. Para sempre.

 

 

 

 Puta merda, como isso aconteceu?

 Strider andou de um lado para o outro do quarto de motel sujo, o gelo em suas veias tornando seus movimentos lentos. Suas botas martelavam no tapete marrom felpudo, criando um caminho gasto.

 Kaia empoleirada em cima da TV, assistindo, sua expressão preocupada. Suas pernas longas e lisas estavam cruzadas nos tornozelos e as balançava, batendo na tela a cada segundo. Um pouco mais rápido, e ela teria combinado o thump, thump, thump dos seus batimentos cardíacos.

 Sabin e Gwen se sentaram na beirada de uma das camas de casal, e Bianka e Lysander na beirada da outra. Taliyah decolou com uma bonita garota negra, e não disse uma palavra sobre onde ia ou quanto tempo estaria fora.

 — Os Tácitos afirmaram ter a Haste de Partir. — ele resmungou. Alguém tinha que começar a conversa, argumentou furioso.

 — Claramente eles mentiram. — Sabin apoiou seus cotovelos nos joelhos, a cabeça caindo em suas mãos erguidas.

Sim. Claramente. Merda. Merda, merda, merda. — Isto é ruim. Muito ruim.

Ele deveria saber, pelo menos deveria ter suspeitado. Ao invés disso, algumas semanas atrás Strider visitou o templo deles. Ele não se importou em dar aos seres monstruosos a Capa porque achava que eles já tinham o outro artefato. Por que não mais de um? Achou que guardariam as relíquias até que ele pudesse retornar e barganhar, comprando ambas.

 Pensou errado.

 Aquilo era um cluster[12]! Se os Tácitos possuíssem a Haste eles não teriam entregue a Juliette.

 Não sem pagamento, e aquele pagamento não viria na forma de dinheiro ou jóias. Eles só queriam a cabeça de Cronus.

 Já que o Deus Rei ainda vivia, nenhuma troca foi feita. O que significava que os Tácitos eram completamente indignos de confiança, e era impossível dizer o que eles fariam com a Capa se Strider falhasse em entregar aquela cabeça.

 Vencer, Derrota rosnou. Nenhuma pergunta, apenas uma aceitação honesta para o desafio apresentado.

 Não haveria disputas de sua parte. Embora eles agora tivessem dois objetivos em aberto. A Capa e Kaia. Eu sei. Eu vou.

 Primeiro ele tinha que roubar a Haste de Partir. Sabin não mentiu. Se ela acabasse nas mãos erradas — e por erradas ele queria dizer nenhuma além das suas — A Caixa de Pandora poderia ser encontrada, e ele e seus amigos destruídos. Seus demônios seriam arrancados de seus corpos e sugados para dentro dela.

 Grande em teoria, mas homem e besta estavam conectados em um núcleo duro, tipo não posso-viver-sem-você. Separados, os homens imediatamente bateriam as botas e os demônios enlouqueceriam completamente.

 Urgência correu através dele. Strider parou no meio do quarto e enfrentou Kaia.

— Nós temos que roubá-lo.

 Sua boca se abriu, Ruiva e exuberante, e oh-tão-tentadora.

— Uh, que isso agora?

 — Esqueça os jogos e me ajude a roubar a Haste. — Ele rangeu seus dentes como um bom soldadinho e acrescentou. — Por favor. — Às vezes um cara precisava de um braço direito, e agora era uma dessas vezes. Ele não tinha nenhuma ideia de como a mente das Harpias funcionava ou onde essa Juliette provavelmente escondia seu tesouro.

 Kaia era sua fonte interior. Sua única maneira de entrar.

 Suas pupilas dilataram com raiva. Ótimo. Exatamente o que ele não precisava. A mocinha com um temperamento e sem medo de usá-lo. Então ela passou sua língua sobre os dentes, e um raio de luxúria disparou em linha reta através dele, derretendo o gelo e deixando um inferno ardente para trás, atiçando seu temperamento ainda mais.

 Em uma hora como esta? Sério?

 Nenhuma hora é a hora errada, sua libido disparou. Ela poderia atacar, mas pelo menos suas mãos estariam por toda parte de você.

 Ele poderia ter chutado seu próprio traseiro excitado.

 — Não apenas não, que inferno, não. — ela disse, queixo erguido teimosamente.

 O terror substituiu sua urgência. Ele conhecia aquele olhar. Ele viu isto antes dirigido a uma sala cheia de Harpias. Seus olhares a esfolaram viva por alguma razão, mas ela não retrocedeu.

 — E você não vai roubá-lo também. — ela adicionou.

 Como se pudesse.

— Você está tentando me castigar, Ruiva? — Ele cometeu o erro fatal de ser honesto com ela, dizendo-lhe que ele estava aqui para ajudá-la, mas não para romance. Ele deveria saber, também. Nunca mostre suas cartas a uma mulher. — Porque se for o caso...

 — Oh, Deuses. Você é tão egoísta assim? — Aqueles olhos prata-dourados afiados como punhais, cortando-o por dentro. Ele não gostava dela zangada (na maior parte), e não gostava dela ferida. Neste exato momento, ela parecia ambos. — Nem tudo é sobre você, Strider.

 — Eu sei disso. Acredite em mim, meu ego fica em cheque o tempo todo. Então me diga, qual é o problema? Se me lembro bem uma certa Harpia ruiva uma vez disse que ela faria qualquer coisa, desde que fosse imoral e o preço fosse certo. Então faça isto. Diga seu preço, e faça-o.

 — Não há preço. — ela retrucou. — Não para isto.

 — Está com medo? — Um golpe baixo sim, mas ele estava desesperado.

 Ela pulou da TV, dentes à mostra e nitidamente muito mais perigosa que um daqueles punhais, uma hemorragia negra em seus olhos ofuscando todo indício de cor.

 — Você conseguiu agora. — Bianka cantou e Lysander pressionou a mão sobre sua boca, impedindo-a de dizer qualquer outra coisa.

 — Idiota. — Sabin murmurou. — Eu nem sequer vou te ajudar. Você merece o que está prestes a acontecer.

 — Eu não tenho medo de nada. — As palavras de Kaia saíram em camadas de duas vozes, e ambas eram roucas, ameaçadoras… cortantes. Ela respirava dentro e fora, cada inalação trabalhosa, cada exalação irregular. — Você tem muita sorte, minha Harpia é inflexivelmente contra prejudicar você ou estaria em pedaços agora mesmo. E se você tentar roubar a Haste sozinho depois que eu disse não, desafiarei você para competições que não terá possibilidade de vencer. Para sempre.

 Ele queria sacudi-la. Queria beijá-la — mas só para calar sua maldita boca, é claro. Porra, ela contornava a borda do desafio mesmo assim. Derrota rondava de um lado para o outro na sua cabeça, praticamente espumando pela boca para uma chance com nela. Apenas o medo de perder impedia o demônio de aceitar.

 Você é quem exigiu que viéssemos aqui. Você é quem decidiu derrubar qualquer um que a atacasse. Sim, Strider tinha se inclinado naquela direção sozinho. Sim, ele meio que queria estripar e decapitar seus opositores antes que eles pudessem dar um único golpe contra ela. Porém, ele entendia seus próprios motivos, atração e um sentido de posse super desenvolvido. Os motivos de Derrota? Nem tanto. Por que você está fazendo isto?

Vencer, foi tudo o que a besta disse. Como sempre.

 — Certo? — Kaia exigiu quando ele não ofereceu nenhuma resposta.

 A decepção o balançou. Ela estava tentando puni-lo, e ele esperava mais dela. Eles podiam se alfinetar e colocar um ao outro em seu lugar, eles poderiam ser desesperadamente fascinados um pelo outro, mas também eram amigos. Ou assim ele pensava. Amigos ajudavam amigos.

Caso em questão: Ele estava em Wisconsin quando deveria estar em qualquer um dos milhares de outros lugares.

Ele se virou e olhou pra Bianka. Ele não se importava de roubar sozinho. Normalmente. Porém, Harpias eram uma raça diferente de qualquer um ou qualquer coisa que ele lidou antes. Elas podiam se mover mais rápido que o olho podia acompanhar. Elas podiam rasgar a traquéia de um homem só com seus dentes. Inferno, elas poderiam rasgar um exército inteiro em segundos.

 Não havia uma linha que não cruzaria, nenhuma ação tão vil. Se ele fosse atrás da Haste e elas o pegassem, elas o matariam. Mas sem a Haste ele estava morto de qualquer maneira. Então, nenhuma competição. Ele estava indo.

 — E você? — Ele lançou em Bianka.

 — Vigie esse tom, guerreiro. — Lysander disse, sua voz tão suave que Strider quase não conseguiu detectar o poder por trás dele.

Quase.

Isto não é um desafio, disse ao seu demônio, recusando-se a repetir para a gêmea de Kaia. Felizmente — ou não —Derrota ainda estava muito focado em Kaia, na Capa e na Haste. Se Strider falhasse em obter os dois últimos, e logo, ele perderia a batalha. Ele se machucaria. No entanto, ele não podia deixar Kaia sem se machucar também.

 Bianka empurrou a mão de Lysander pra longe de sua boca.

— Desculpe, garotão, mas não posso te ajudar.

 — Por quê?

 Ela deu de ombros na maior inocência.

— Se quer que eu liste as razões, listarei os motivos. Eu não posso garantir que serão verdadeiros, entretanto.

 Ele enfrentou Gwen.

— E você?

— D-desculpe? — Ela disse, parecendo confusa. Ela olhou de relance para Kaia, que balançou sua cabeça. Ele soube por que estava observando seu reflexo no retrato acima da cabeceira entre as camas. — Eu não posso. — ela terminou com mais firmeza.

 Ok, algo estava acontecendo aqui. Kaia não tinha medo. Não importava o que disse, sabia disso. A garota era muito corajosa para seu próprio bem. Ela permaneceu em uma sala cheia de Harpias, e embora elas a considerassem como se fosse um pedaço de costela e elas fossem dedicadas vegetarianas, ela manteve sua cabeça erguida, desafiando-as a tentar dar uma mordida.

 A única vez que ele a viu perder a calma, tremendo com uma emoção que ele não foi capaz de nomear, foi quando ela olhou para sua mãe. Sua mãe muito quente e claramente assassina, que poderia ter falado dentro da sua cabeça. Ele ainda não tinha certeza.

 Como a morena de aparência assustadoramente jovem, de olhos mortos que percorreu seu corpo, julgando-o, medindo-o, ele ouviu a fria e sem emoção voz ainda que muito feminina em um sussurro, Kaia morrerá antes do jogo final começar.

 Como o inferno. Nada mais foi dito, e ninguém mais ouviu a ameaça. E merda, talvez ele tivesse uma imaginação fértil. De qualquer maneira, ele não se importava. Ele estava aqui e faria o que prometeu, mas porra, Kaia teria que se dobrar um pouco neste assunto.

 — Deem o fora. — disse aos casais nas camas.

Conhecendo Strider como ele conhecia, Sabin pegou Gwen sem um protesto e a empurrou porta afora. Seus olhares conhecedores bloqueados até o último momento possível. Eles moveriam montanhas para obter aquela Haste, com ou sem a aprovação das Skyhawks. Primeiro, entretanto, eles fariam o que pudessem para obter respostas. Mesmo que isso significasse se dividirem e ficarem sem auxílio.

 Graças a um suave, “Ficarei bem,” de Kaia, Bianka e Lysander seguiram de perto os calcanhares de Sabin, fechando a porta atrás deles com um clique suave. O anjo não o conhecia ou do que ele era capaz, mas deve ter reconhecido o perigo que ele representava.

 — Por quê? — Ele exigiu, girando ao redor.

 Kaia não fingiu entender mal.

 — Elas vão dizer que eu não tinha nenhuma confiança em minhas habilidades. Vão me chamar de covarde.

 — E daí? — Ela estava disposta a arriscar sua vida pelo seu ego? — Um pouco de ridículo nunca matou ninguém.

 Ela lançou o longo comprimento de seu ondulado cabelo vermelho sobre um ombro, a imagem do melindre feminino. Pelo menos o preto desvaneceu dos seus olhos, um sinal que sua Harpia estava sob controle.

— Olha, você está aqui, e tanto quanto odeio admitir isto, você descobrirá de qualquer maneira, então eu poderia muito bem te contar.

 Uma pausa pesada.

— Continue.

 Ela engoliu em seco.

— Muito tempo atrás, durante os Jogos das Harpias, eu tentei roubar… algo de outro… clã.

 Oh, realmente?

 — Por que a hesitação?

 — De qualquer forma — ela continuou, ignorando-o, suas bochechas enrubescendo de um jeito lindo. —, minhas ações resultaram em um massacre. Metade da população das Harpias foi exterminada, e nunca fui perdoada.

 Ele sabia o que isso significava. Eles a excluíram. E se alguém entendia a dor da rejeição, este alguém era Strider.

 Quando os Deuses escolheram Pandora como guardiã de Ouniak, a caixa contendo os espíritos malignos que conseguiram escapar das profundezas do inferno, ele permitiu que o orgulho o governasse. Como eles ousaram escolhê-la, uma fêmea, quando ele nunca perdeu uma batalha? Quando Zeus queria eliminar alguém, Strider o eliminava.

Ele queria se provar digno, foi por isso que ele ajudou a roubar e abrir aquela caixa. Claro, ele tinha toda a intenção de recapturar os demônios depois que eles causassem um pouco de caos. Ele foi todo um “Viu o que posso fazer? Viu o que sua preciosa Pandora não pode? ” Mas a caixa desapareceu, e os estragos foram muito mais do que um pouco. Ele nunca encontrou nada assim, antes ou depois.

 Nem mesmo quando Derrota se enfiou pela primeira vez em seu corpo e o desejo de ferir, mutilar e destruir o consumiu. Ainda que não fora castigo suficiente para os gregos. Eles o chutaram pra fora do único lar que sempre conheceu e não o reconheceram nunca mais.

 Então, rejeição, falta de misericórdia, sim, ele os conhecia intimamente. Mas ele não podia deixar que nada, nem a queda potencial por Kaia, impedi-lo de obter aquela Haste. Muito estava em jogo.

 — Se eu levar alguma outra coisa… elas me matarão, Strider. Depois de se assegurarem que eu sinta cada pingo de dor que eles sentiram.

Ela acreditava no que disse. A verdade brilhava em seus olhos tão certa quanto um brilho de lágrimas.

— Eu vou te proteger.

— Não me faça declarar o óbvio sobre o que você pode ou não fazer. — ela disse com uma risada amarga. — Eu poderia fugir claro, mas que tipo de vida é essa? E se elas forem atrás das minhas irmãs quando forem incapazes de me encontrar e me punir?

 Uma boa razão, e uma que ele não podia — não iria — sacudi-la para deixar. Ele tentou outro caminho.

— Ninguém tem que saber que você o levou. Vamos entrar e sair, sem problema.

Triste, ela balançou sua cabeça.

— Não importa que eu deixe evidência para trás ou não. Se a Haste sumir, elas vão me culpar, não importa.

— E daí? — Ele disse novamente. Ele teve que endurecer seu coração.

— Você não sabe nada sobre a justiça das Harpias, Strider. Não existe julgamento. Não há nenhum inocente até que se ache o culpado. Se suspeitarem de mim serei caçada, torturada e como eu disse, serei morta.

— Eu vou te proteger. — ele repetiu, e isso era verdade.

Ela arqueou uma sobrancelha ruiva.

— Você vai me fazer dizer o óbvio, mas tudo bem. Você não pode.

Isto não é um desafio.

— Eu posso.

— Você me protegerá de um exército de Harpias que não hesitaria em machucar todos que você ama pra chegar a mim? Um exército de Harpias que ajudaria os Caçadores se isso significasse me ferir?

Merda.

— O que você propõe, eu faço, heim? — Ele caminhou para ela, agarrou seus braços — ela parecia tão frágil, tão vulnerável — finalmente sacudindo-a como queria fazer por tanto tempo. Cada movimento fazia flutuar seu perfume ao seu nariz, canela e açúcar, um banquete para seus sentidos. Sua boca encheu d’água, seu sangue esquentou.

— O que? Conte pra mim.

 Sua expressão de coração partido jamais vacilou.

— O que você originalmente veio fazer aqui. Agir como meu consorte. Eu vou lutar e ganhar a Haste. Honradamente.

— Pensei que não fazia nada honradamente.

Ela o perscrutou através de olhos estreitados, indignação afinal substituindo o pesar. Quando seus cílios se fundiram, ele estava estranhamente contente por ver a prata rodando por baixo deles, nenhum sinal de ouro.

— Nisso e somente nisso, eu faço. Muito está em jogo. — ela acrescentou, espelhando seus pensamentos. — Não apenas para mim, mas para minhas irmãs.

Vencer.

A Haste? Cara, estou trabalhando nisso. Um pouco de espaço seria bom.

Vencer!

Eu sei, maldito!

— E se eu… merda. — Liberou Kaia para esfregar uma mão pelo seu rosto. Como tantas batalhas que ele lutou durante sua longa vida, podia farejar um beco sem saída antes de dobrar a esquina e ver uma parede de tijolos. Eles estavam num impasse, e ele sabia disso. Ela não cederia — a menos que ele mudasse o jogo.

 — Faça isso por mim e dormirei com você. Ok?

Por um momento, ela não teve nenhuma reação. Então um guincho agudo separou seus lábios e ela o rebateu pra longe dela.

E por “rebateu” ele quis dizer que ela usou tanta força, que na verdade ficou girando sobre si mesmo incapaz de parar.

 — Quanto você é magnânimo. — Um instante depois, ela estava diante dele de novo. Ela o empurrou de forma dura, e ele tropeçou para trás até que a parte de trás dos seus joelhos bateram na beirada da cama. — Para oferecer seu corpo quando tão claramente não tem nenhum desejo por mim. Para baixar seus padrões e prostituir a si mesmo. Para me usar, não importa quanto sofrerei no final.

 Suas palavras eram como setas, ataques diretos e ele se encolheu, mas não ofereceu nenhuma resposta. Ainda não. Quando ele desabou e ricocheteou no colchão, ele se concentrou no seu demônio. Isso não é um desafio para dominá-la sexualmente, entendeu?

 Vencer!

 Strider pressionou sua língua no céu da boca. Ele pensava que o demônio ainda estava focado na Haste, mas não podia ter certeza. Então quando Kaia saltou em cima dele escarranchada em sua cintura, ele se torceu, lançando-a pra baixo e prendendo-a com seu peso. E Deuses, era tão bom. Ela se encaixava nele perfeitamente, os seios macios contra seu peito, o ápice de suas coxas oferecendo um berço excelente para a espessura do seu eixo.

 O cheiro de canela continuou a flutuar dela o envolvendo, embaralhando seus pensamentos. Calor, tanto calor, pulsava de sua pele macia e deliciosa, marcando-o.

 VENCER.

 Bastardo.

— Isto é vida e morte, Kaia.

 Ela arquejava enquanto emaranhava suas mãos pelos cabelos, as unhas em seu couro cabeludo.

— Pra mim também.

 — Você faria isto por… Paris? — Ele perguntou, odiando a si mesmo.

 — Não.

 Nenhuma hesitação dela e isso aliviou a tensão em seu peito. Uma tensão que ele não estava ciente até aquele momento.

 — Kaia.

 — Strider.

 — Eu... eu nunca disse que não desejava você. — Ele não tinha certeza do que queria dizer, ele só sabia que não era aquilo, que as palavras deslizaram pra fora sem seu consentimento. — Eu desejo. Como não desejaria?

 Ela mordiscou seu lábio inferior.

— Você está dizendo que concorda em ser meu companheiro?

 — Não. — Ele não mentiria sobre isto. Não para ela. E não porque ela o rasgaria em pedaços quando descobrisse a verdade. — Eu não posso te dar um para sempre.

 O mordiscar aumentou de intensidade, deixando uma gota de sangue no centro da sua boca.

— Porque nós não somos uma boa combinação?

Claro que ela se lembraria de todos os insultos que já lançou nela.

— Sim.

— Então o que você pode me dar?

— Aqui. Agora. — Algo em seu corpo ansiava por mais a cada segundo que passava.

— Em troca da minha ajuda no roubo da Haste de Partir. — Uma afirmação, não uma pergunta.

— Sim. — Talvez até sem isto. Tanto que ele queria se arquear nela, esfregar-se nela, atiçar suas paixões até que ela implorasse para terminar.

Ela passou a ponta rosada da sua língua sobre seus dentes. Dentes afiados como um bocado de punhais, mas Deuses, aquela língua era bonita.

— Você terá que me convencer. — ela disse roucamente enquanto puxava sua cabeça pra baixo… pra baixo… até que seus lábios pairaram logo acima dos dela. — Dê-me uma amostra do que você está oferecendo.

VENCER, VENCER, VENCER.

Um desafio. Intencional ou não. Desta vez ele não teve nenhuma dificuldade interpretando o que seu demônio esperava, precisava. Strider tinha que beijá-la, e tinha que convencê-la ou se machucaria.

 Ele esperou que a fúria o enchesse, mas quando olhou fixamente pra baixo para ela, levando seu aroma para dentro dos seus pulmões, tudo que ele queria fazer era lhe dar aquela amostra.

 Ele removeu suas unhas do seu couro cabeludo e achatou suas mãos sobre sua cabeça, forçando suas costas a se arquear, seu corpo deslizar contra o seu. Seus mamilos estavam duros, só esperando pela sua boca.

— Não diga outra maldita palavra. — ele ordenou, e então ele finalmente, finalmente caiu dentro.

 

Kaia sentia como se estivesse esperando por este momento por toda sua vida. E de certo modo, ela esteve. Por fim, ela se encontrava no abraço de seu consorte e ele estava satisfazendo suas necessidades. As mais selvagens e mais sensuais necessidades. Os lábios de Strider pressionavam contra os dela, a língua dele empurrando dentro da sua boca, quente, decadente, seu gosto a enchendo, consumindo. Ela nunca adorou tanto a canela. Doce e penetrante apenas um pouco temperada.

O peso do seu corpo musculoso a alfinetava ao colchão, e as armas presas por toda parte dele pressionavam até os ossos, provavelmente contundindo. Como se ela se importasse. O que eram algumas contusões, quando uma das mãos grandes de Strider segurava sua cabeça de lado para aprofundar sua conexão?

O que eram algumas contusões quando seus seios raspavam contra seu tórax com cada inalação, e seus mamilos doloridos esfregavam nele, acendendo o desejo dentro dela num grau ainda mais quente?

Ela abriu mais suas pernas, permitindo que quadris dele caíssem mais firmemente contra os seus. Sua ereção — tão grande, tão longa, tão perfeitamente grossa — a atingia no lugar certo, e ela ofegava. Mais quente, mais quente, tããão mais quente.

— Strider. — ela gemeu.

— Kaia. — Seu nome nos lábios dele... céu e inferno, doce e atormentador. Canção da sereia. — Mais.

— Como você gosta?

— Do jeito que você me der. — Suas unhas já haviam se alongado em garras e ela as enfiava em suas costas, acidentalmente cortando através da sua camisa e sua pele. Ele gemeu, e seus dentes trincaram juntos. Seus dedos apertaram sua mandíbula. — Desculpe. — ela arquejou. Ela apertou os quadris dele com seus joelhos, só pro caso dele pensar em deixá-la.

— Não sinta. — ele rosnou. — Só faça novamente. — Ele chupou seu lábio inferior, forte, fazendo com que escaldantes arrepios brotassem da cabeça até o dedão do pé.

Mais erótico, liberando palavras nunca faladas. Como uma Harpia ela era mais forte e cruel do que quase todos os outros imortais. Ela sempre teve que moderar suas paixões e se conter. Até com Paris.

Ela não pensou que teria que se conter com Strider — e não teria. O que quer que ela servisse ele poderia tomar. Inferno, ele até se alegraria com isso. Ele era muito forte, muito determinado para qualquer coisa menos que isso. E realmente ele poderia parecer um anjo, mas era mais depravado do que qualquer outro Senhor. O melhor tipo de depravado, isso ele era. Diabólico. Gentil e fácil não era seu estilo.

Ele achava humor nas coisas mais estranhas. Se ele descobrisse um de seus amigos acorrentados a cama da uma mulher (cof Lucien cof), ele fotografava e enviava por email para todos que conhecia. Quanto isso era maneiro?

Um homem desses nunca pediria pra ela parar de roubar. Ele poderia até se juntar a ela em suas incursões obrigatórias, mantendo seu lado sombrio feliz sem causar danos demais. Mais do que isso, ele conhecia o triunfo e a perda melhor do que ninguém. Ele se alegraria em cada realização dela, boa, ruim ou feia. Ele seria o primeiro a dizer quando ela fodesse com alguma coisa, mas não a descartaria.

Ou talvez o homem que ela imaginou na sua cabeça fosse pura fantasia. O que estava em cima dela pensava fazer uma troca, seu corpo em troca da cooperação dela. Isso a tirava regiamente do sério — mas não o suficiente para parar de provar isso.

Ele era sua droga de escolha, ela meditou, e já estava viciada nele.

— Kaia! Preste a fodida atenção no que está acontecendo aqui. — ele resmungou.

Surpreendida de volta nos seus sentidos, ela piscou. Ele estava ofegando, suando — talvez mais do que deveria — seu rosto tenso. Ele devia estar chamando sua atenção há um bom tempo. E droga, ela percebeu que parou de beijá-lo para ponderar suas virtudes e loucuras. Uma paródia que ela retificaria imediatamente.

 — Estou aqui. — Ela embrulhou suas pernas ao redor dele e trancou seus tornozelos, arqueando-se. Mais contato com sua ereção, mais ofegos da parte dela. Tão delicioso. Tão perfeito. Tão malditamente quente.

 — Boa menina. — A língua dele achou o caminho de volta pra dentro da sua boca e elas duelaram, lutando pelo domínio.

Ela o deixou ganhar, submetendo-se, permitindo que ele assumisse a liderança impelindo-a em direção a completa satisfação. Ou talvez a loucura. Sua mente nublou com desejo, seu sangue furiosamente aquecido e assim sua Harpia cantou em aprovação.

Isto era tudo com que ela sonhou, fantasiou, almejou com cada fibra do seu ser.

Seu homem a saboreando, esfregando-se contra ela. Nunca conseguiria o suficiente dele, sempre iria querer mais. Sempre precisaria de mais. Suas terminações nervosas pegavam fogo, a chama sempre crescente, quase demais, o desejo violento entre suas pernas.

Ela tinha que concluir esse acordo bem firme. Amá-lo com cada polegada da sua vida, amarrá-los juntos e nunca, nunca, permitir que ele escapasse dela. Nunca permitir a nenhuma outra Harpia se aproximar dele. Ele era dela. Seria sempre dela.

Você não pode pensar assim. Ele é um guerreiro, acostumado a controlar. Se você tentar amarrá-lo ele vai correr. Isso teria que ser uma parceria, não uma Harpieria. Sim, certo. Ela poderia fazer isso. Trabalhar com ele. Qualquer coisa para mantê-lo com ela, beijá-lo novamente, tê-lo, todo. A pergunta é, ele poderia trabalhar com ela?

 — Porra, Kaia. — Ele removeu a mão de seu queixo e colocou em concha nos seus seios, apertando. — Que diabos está se passando nessa sua cabeça?

 — Você, nós, juntos. Sim. — ela gemeu, pressionando-se no toque. Quente, ela estava tão quente, e aumentando cada vez mais. — Mais.

— Bom, ok, sim. Mais forte?

— Mais forte. Por favor. — Erguendo seus quadris fora do colchão com as molas gritando, ela se moveu contra ele. Vapor poderia até estar subindo de seus poros, cercando a ambos, espessando o ar. — Mais. Tudo.

— Droga, sua boca é um incêndio. Queima. E sim, boneca, vou te dar. — Ele inspirou profundamente, endureceu, amaldiçoou. Amaldiçoou tão violentamente que ela ficou surpresa de seus ouvidos não começarem a sangrar. — Tudo bem. Sim. Nós faremos isso. Você e eu. Eu te darei muito mais, tudo.

 Sua voz era… estranha, ela pensou friamente. Não mais colocada em camadas pela excitação, mas tão dura quanto seu corpo agora estava, e formal. Quase robótica. Por quê? O que mudou? Ela lamentou a perda.

Ele encaixou seus lábios de volta e o beijo continuou. Ela esfregou seu centro para cima e para baixo contra o comprimento dele incapaz de parar, nunca soltando seu aperto ao redor da cintura dele. Ele se acomodou contra ela, sua pele escorregadia de suor. Ela caiu de volta na cama, mas o tempo todo lutou contra névoa de luxúria agora esfriando, determinada a compreender o que estava acontecendo com ele.

Sua língua se movia dentro e fora da sua boca, simulando o sexo. Sua mão apertava seu seio de tempos em tempos. Ele girava seus quadris ao mesmo tempo, esfregando contra seus clitóris. Era uma dança, cada movimento ajustado no ritmo do próximo. Sua técnica era impecável. Logo ele a faria gozar.

Técnica, ela pensou então. Sim, era isto exatamente o que aquilo era. Uma técnica. Ele estava duro onde contava, sim, mas também onde não precisava com músculos petrificados. Ele não estava gemendo em rendição. Como podia? Cada açoite da sua língua era calculado, como se estivesse pensando sobre o que fazer a seguir ao invés de se permitir ser guiado pelo instinto. Como se tivesse controle absoluto e não estivesse nem perto de perdê-lo.

O que significava que não estava gostando do que estava fazendo. Ele estava simplesmente representando, dirigindo sua necessidade cada vez mais alto, manipulando-a. Dando o que ela procurava, mas não tomando o que precisava.

Ele deu um jeito de conseguir se desligar.

— O que você gosta? — Ele perguntou. — Diga-me e farei.

 Ela poderia ser qualquer uma e não importaria pra ele. E quando tivesse terminado, ele a teria tomado, possuído, mas ela teria sido uma entre outras mil, sem importância e temporária. Uma conquista fácil. Um meio para um fim.

 Não. Não! Ela não seria Kaia, a Decepção. Não com ele. Ela não se contentaria com as migalhas de sua afeição e chamar isto de bom. Teria tudo ou nada. Se acomodar era para os fracos.

Ela não era fraca.

 Mas mesmo sabendo o que ele estava fazendo, mesmo sofrendo como ela estava — novamente — e mesmo desesperada como estava por alívio, não podia machucá-lo fisicamente. Não pela sua mão, nem usando seu demônio. Ele tinha que ganhar esta disputa de vontades sem sufocar o orgulho dela mais do que já havia sufocado. De alguma maneira, de um jeito ou de outro.

Ela abafou uma risada amarga. Mais uma vez ela estaria lançando uma briga. Desta vez, porém, o prêmio era muito mais importante. O corpo dele… e seu coração? Não, não seu coração. Isso ele nunca ofereceria. Não para ela. A mesma determinação que o esculpiu num guerreiro tão feroz e amante o tornou um recluso emocional. Esfriando… esfriando...

— Strider?

Um golpe da sua língua, um aperto da sua mão.

— Diga. — ele disse a ignorando. — Sua boca, o calor se foi.

— Desculpe.

— Não sinta. De qualquer modo, eu gosto. Mas por que a mudança?

 Chega disso. Além do mais, ela não sabia. Ela nunca se aqueceu assim antes.

— Eu não... não acho que você possa parar. — Deuses, dizer as palavras, deixando-as arrasarem sua garganta a deixaram trêmula de frustração.

Ele congelou em cima dela, gotas de suor ainda gotejando dele. De fato sua camisa estava ensopada, grudada no seu tórax.

— O que você acabou de dizer?

— Acho que você não pode parar de me beijar, de me tocar.

 Com mais daquelas maldições sombrias zumbindo dele, ele se sacudiu para longe dela, fora da cama e se levantou. Ele permaneceu na ponta do colchão, encarando-a enquanto ela se sentava mudando de posição. Ela lutava para respirar, seus pulmões ainda esfriando… esfriando.

— Porra, Kaia.

Ela exibiu suas presas para ele.

— Esse não é o meu nome.

 Isso conseguiu fazê-lo parar.

— O que? Kaia? Eu sei o contrário.

— Não. Droga, Kaia não é o meu nome.

 Suas pálpebras estreitaram enquanto os cantos de seus lábios tremeram.

— O que quer que seja.

 Isso era tudo o que ele tinha pra dizer? Depois de tudo acabaram de fazer?

 — Você roubará a Haste de Partir para mim ou não? — Ele perguntou.

 Aparentemente era.

 Ele não sentia nada por ela? Nenhum pingo de paixão verdadeira? Ela lambeu seus lábios, e foi encorajada por notar seu olhar seguindo o movimento.

— Não. Mas — ela acrescentou antes de seu demônio poder castigá-lo por não conseguir convencê-la. E sim, ela sabia que esta era uma das razões dele estar pressionando-a tão duramente. Pelo menos é o que ela esperava. Tornava mais fácil perdoá-lo, desculpá-lo, por reduzir seu beijo eletrizante numa moeda de troca. — nós nos comprometeremos.

Ele balançou sua cabeça uma vez e muito rigidamente.

 — Não.

 — Sim.

 — Não.

 — Sim. Compromisso não causa dor física em você.

 Suas pestanas se fundiram juntas, protegendo o azul de seus olhos.

— Também não me ajuda.

 Ela ergueu o queixo.

— Você quer ouvir minha proposta ou não? Se não, a porta está ali.

 — Deuses Todo poderosos, odeio quando levante esse queixo. — Ele trancou sua mandíbula com um estalo. — Certo. Fale.

— Vou lutar nos jogos. Se em algum ponto — ela se apressou a acrescentar — eu for desqualificada ou achar que meu time não possa trazer para casa o ouro, eu arriscarei minha vida e meu futuro para roubar a Haste para você.

 Em silêncio ele cruzou os braços sobre o peito.

 Ela sabia exatamente o que ele estava pensando.

— Você também não pode fazer nada para ajudar numa desqualificação. Nem para mim nem para qualquer membro do meu time.

 Oh, sim. Era isso exatamente o que ele estava pensando. De repente fúria chiou e estalou de sua pele como minúsculas centelhas de raios. Seus olhos se iluminaram, gêmeos lasers vermelhos, uma máscara esquelética relampejando acima de suas feições.

— E se outra pessoa conseguir roubar enquanto você está jogando?

Seu demônio realmente estava puxando suas cordas. Ela simpatizava com ele. Ela odiava quando sua Harpia assumia o comando.

— Não é possível. Você poderia chamar cada guerreiro e Deus sabe mais quem, mas ainda não poderiam achá-lo, muito menos agarrá-lo. E não, isso não é um desafio. Apenas uma verdade. As Harpias são uma raça desconfiada e possessiva e tomamos medidas extremas para guardar o que consideramos nosso. Acredite em mim, Juliette não deixará ninguém chegar perto da Haste.

Vários minutos se passaram antes dele relaxar. Ele não podia lutar sozinho com as Harpias — não com sucesso — e ele tinha que saber disso.

— Muito bem. Nós temos um acordo. — Ela abriu sua boca para responder. — Mas me escute, garotinha. — ele adicionou ameaçadoramente.

Garotinha. Exatamente como Lazarus a chamou, todos aqueles séculos atrás. Sombras cintilaram através da sua linha de visão, a única cor era o vermelho do olho de touro no peito de Strider. Calma, cuidado.

Não interfira, ela disse a sua Harpia.

 — Você alegou que sou seu consorte e que consortes são preciosos. Também alegou que faria qualquer coisa para proteger o seu.

 Ela estalou seus dentes na direção dele.

— Eu nunca disse isso. — Não em voz alta.

— Certo. Talvez Gwen tenha me dito. O fato é que é verdade.

E ele planejava usar o conhecimento contra ela?

— Bem, olhe para você, Senhor Espertalhão. — Ela bateu palmas. — Parabéns. Você sabe que não posso machucar você. Mas ei, o que importa? Sempre posso pagar a alguém para fazer meu trabalho sujo.

Um músculo saltou embaixo do seu olho.

— Você está disposta a deixar um artefato que pode me matar permanecer nas mãos do seu inimigo. — ele disse ignorando sua ameaça. — Aquela mulher, Juliette, aquela cujo namorado você ainda não me falou a respeito, não vai te dar a Haste. Não importa se você ganhar ou não, ela te odeia e dificilmente te recompensará.

 Kaia agarrou o acolchoado, quase rasgando o material.

— Como sabe que ela me odeia? — Ele só pegou a parte final da reunião, e Juliette não falou diretamente com ela depois da sua chegada.

 — Tenho olhos, Kaia. Toda vez que ela olhava pra você queria esculpir seu rosto com seu punhal. Afinal o que você fez pra ela? E não me diga que apenas não te perdoou pelo que fez aos clãs. Sua disputa com você é pessoal. Ninguém mais olha pra você do modo que ela faz.

Debatendo consigo mesma, ela piscou para ele. Ele era muito observador para o seu próprio bem.

— O que faz você pensar que fiz alguma coisa para ela?

— Vamos. Você deve pensar que sou estúpido respondendo minha pergunta com outra e fazendo de conta que eu não notaria e deixaria o assunto pra lá.

— Bem, agora que você mencionou…

— Engraçada. — Ele ergueu sua mão e acenou os dedos em sua direção. — Venha aqui.

 Incapaz de resistir a uma chance de tocá-lo, qualquer chance, ela foi até ele. No momento que encontrou seu aperto, ele a ergueu até que apenas um sussurro os separava. Ele a perscrutou, o calor do seu corpo serpenteando ao redor dela e apertando como uma jibóia.

A tensão crepitava entre eles tão ardentemente que imaginava quase poder sentir as chamas. Os lábios dele estavam inchados, vermelhos e ainda molhados dos seus beijos. Suas pálpebras estavam entreabertas, como se ele tivesse deslizado para dentro de um sonho e não pudesse emergir.

Se ele parecia tão suntuoso assim excitado, como seria saciado?

Mente, saia da sarjeta. Isto era claramente outra tentativa de distraí-la, para conseguir fazê-la ficar do seu lado. Ela tinha que permanecer forte.

 — Bem?

 — Você deu em cima do homem dela? — Ele exigiu. O-kay. Obviamente ele acordou do sonho.

 Suas bochechas coraram e isso era toda a resposta que ele queria.

Ele a liberou para esfregar seu próprio rosto.

— Porra, Kaia.

Sem seu toque, sua pele esfriou. Ela não admitiria sua própria estupidez, mesmo sendo estupidez aguda cometida há tanto tempo. Ela não admitiria procurar provar ser merecedora para uma mãe que nunca a amaria, e que ela falhou em todos os níveis.

— Eu o vi, quis e o peguei. Fim da história. — A verdade confundida pelas próprias suposições dele. Strider nunca acharia seu caminho para a superfície e era melhor assim.

— E ela descobriu? — Sua voz estalou como um chicote.

Sim. Ele estava perdido no lodo de suas omissões.

— Descobriu. — Kaia assentiu, inclinando a cabeça. — Esta é exatamente a verdade.

— Como?

Seus olhos arregalaram. Por que ele não deixava passar?

— Com licença?

— Como ela descobriu?

— Oh, uh, ela foi atrás de nós. — Kaia disse o olhar caindo para o chão. Percebendo o que fez, ela forçou sua atenção de volta para cima. Havia duas coisas que uma garota precisava quando estava dizendo uma mentira. Em primeiro lugar, confiança. Você poderia convencer qualquer um de qualquer coisa desde que você mesmo acreditasse. Em segundo lugar, detalhes. Quanto mais detalhes você fornecesse, mais acreditável seria a história. — Nós estávamos no meio do ato. Muito quente e pesado. Eu não estava totalmente distraída com ele.

Strider ficou quieto por um momento. Então disse suavemente.

— É mesmo?

Talvez ele não estivesse tão cego pela lama como ela pensou. Como ela se entregou? Bem, não fazia diferença realmente. Ele poderia suspeitar da verdade o quanto quisesse, mas nunca saberia com certeza. E inferno, poderia haver outro modo de convencê-lo do que ela queria.

Ela olhou para ele.

— Sim, é mesmo. Eu o deitei de costas sobre uma pilha de peles. — Ela imaginou Strider em tal posição e seu desejo reacendeu, adicionando uma nota esfumaçada a sua voz. — Ele estava nu… eu estava nua. Eu montei sua cintura, e Deuses, ele era bonito, tão perdido na paixão. Por mim.

Strider se virou, como se não suportasse mais a cara dela. Pronto. Feito, ela pensou. Ele estava totalmente seguro de sua natureza vadia. Seus ombros caíram um pouco. Parte dela desejava que ele continuasse resistindo.

Melhor assim, lembrou a si mesma. Ele já a considerava promíscua. Adicionar fraca e idiota a equação teria dificultado seu progresso futuro com ele.

Não que ela tivesse realmente feito qualquer progresso hoje.

 

 

Ela estava mentindo, Strider pensou, de repente precisando de toda força que possuía para se impedir de sorrir. Porra se ela não era dez vezes mais sexy quando tecia sua teia de enganos. Talvez porque ela quase o pegou. Poderia ter conseguido se não tivesse baixado o olhar para os seus pés. Melhor dizendo, aquele olhar. Quando Kaia acreditava em algo com todo o seu coração, sua confiança era como uma estrela brilhante. Ela não fazia nada para indicar que desistia.

Derrota gostou que eles descobrissem o seu jogo e estava atirando pequenas faíscas de prazer pela sua circulação sanguínea. Uma vitória que ele não previu, mas tão deliciosa quanto ambrosia.

Quase tão delicioso quanto o beijo de Kaia.

Não pense nisso agora.

Ele não podia evitar. Fogo do inferno, aquele beijo… a mulher era paixão encarnada, entregando-se tão sensualmente que ele poderia ter se fartado nela para sempre e ainda se encontrar faminto. Sua língua havia empurrado da forma certa, suas unhas arranhado da forma certa, e suas pernas se embrulharam ao seu redor de forma melhor do que certa.

Ela apenas… se encaixava nele. Ajustava ao seu corpo perfeitamente. Cada curva, cada plano, cada reentrância.

Duas peças de um quebra-cabeça se encaixando juntas. E eles ainda estavam vestidos! Se ele tivesse tirado a roupa dela, ele... Não. Não, não, não. Ele não poderia se aventurar por esse caminho novamente. O beijo fora um erro. Um maldito e primoroso erro, mas um que poderia ter feito sérios danos à sua causa.

Já que sua mente estava confusa com ela.

E infelizmente ele não podia culpar sua pele desta vez. O que estava à mostra ela disfarçou com maquiagem, fazendo-a se parecer com qualquer outra humana. Não, não era verdade. Ela nunca se pareceria com uma humana, não importava o que ela fizesse. Suas feições eram muito deslumbrantes, totalmente sem defeitos.

Também não beijava como uma humana. Era muito ousada, muito exuberante, muito condenadamente ávida.

Muito minha, ele pensou a meio caminho, querendo dar seu “tudo” como ela disse. Querendo dar tudo a ela. Só então percebeu o quanto ele estava perdido, simplesmente a apreciando, nem mesmo tentando dar prazer a ela. Só tomando, dando e recebendo um pouco mais. Não havia nada mais perigoso para ele. Tinha que dar prazer a ela, mais do que Paris deu ou ele sofreria.

Refrear seus próprios desejos foi a batalha mais difícil da sua vida, mas ele fez. Ele ganhou. E oh, Derrota o amou por isso, provocando a mesma sensação de prazer que corria por ele agora. O que fez tudo mais difícil de segurar, medir cada uma das suas carícias, cada lambida.

Exceto um momento que ela quis tudo, tudo, e ele estava disposto a fornecer, levá-la no limite, e em seguida ela quis que ele parasse. Ele reconhecia um desafio quando ouvia um, e “eu aposto que você não pode parar” era 100% levante-a-bandeira-vermelha de um desafio.

O que ele não sabia — ainda — era por que ela fez isso.

Não importava, ele supôs. O que estava feito estava feito e não havia volta. Ele tinha que esquecer o beijo e se concentrar na jornada adiante. Nos jogos, a Haste e na vitória final. Ele tinha que esquecer a cor que florescia na sua face, a respiração que entrava e saía das suas narinas, os sinais de fúria que detonaram seus olhos cada vez que ele falou. Tinha que esquecer o fato de que ela era magnífica quando suas emoções eram despertadas, que iluminava como fogos de artifício e que ele queria muito desesperadamente ser queimado.

Kaia pigarreou.

— Strider. — ela começou.

Ele levantou sua mão pedindo silêncio.

— Olhe, veja como vai ser. Você não confia em mim e não confio em você, mas vamos trabalhar juntos. Então, você vai me falar a respeito da batalha de amanhã e depois vamos espiar a concorrência.

Ou melhor, ela espiaria. Ele procuraria pela Haste. Por mais que ela entendesse sua situação, sua dor, aquela compreensão não mudava os fatos. Sem artefato, sem caixa.

Então ele acharia e roubaria aquela Haste. Mesmo à custa do orgulho de Kaia. Ele não gostaria dele mesmo posteriormente, tinha certeza, porque a vitória exigia uma traição de sua confiança, mas nada o afastaria deste curso.

— Entendido? — Ele exigiu, já lutando contra uma onda de culpa.

Uma pausa, pesada e insegura. Então ela sussurrou.

— Sim. Ok. Nós trabalharemos juntos.

— Bom. — Ele clareou sua expressão e girou. Fez questão de encará-la para uma boa avaliada. — Agora comece a falar.

 

William, o sempre excitado, honorário Senhor do Submundo, e um homem fisicamente tão perfeito que uma vez foi votado O Imortal Mais Bonito de Todos os Tempos — ele foi o único juiz desta competição particular e jurava pelo que restava de sua alma que as pontuações não foram predeterminadas — estava parado na sala de estar de uma residência humana.

Strider, o quebrador de promessas, deveria estar aqui com ele. Devo estar passando isso pra ele. Strider prometeu estar equipara ajudá-lo. Ao invés disso o bastardo sortudo estava passando um tempo com a própria Harpia que William sonhava há tempos seduzir.

William esteve com vampiras, humanas, bruxas, metamorfas e Deusas, mas nunca esteve com uma Harpia. Ele queria ter uma Harpia. Com aquela coisa de muxoxo e fazer biquinho pra tudo.

Talvez quando terminasse aqui competisse um pouco com Strider pelos afetos de Kaia. O guerreiro gostava de competir afinal, e William era uma pessoa tão dada, sempre pensando nos outros em vez de si mesmo.

Aquela natureza doadora era a maior razão dele estar aqui.

“Aqui” era uma casa normal, com quartos normais, precisando urgentemente de um decorador. Móveis na cor bege, paredes na cor bege e tapetes na cor bege, como se os donos tivessem medo das cores. Ah, e ele falou das garrafas de vodca meio vazias que estavam escondidas dentro das aberturas de ventilação, atrás dos livros e até em buracos escondidos nos colchões?

Este paraíso alcoólico mundano tipo prisão, foi onde sua pequena Gilly Jujuba cresceu.

Gilly, mais conhecida como Gillian Shaw. Humana, de olhos castanhos, muito sensual para o seu próprio bem. Aos dezessete ela tinha visto mais horror e terror que a maioria dos imortais experimentou em uma eternidade. Tudo por causa dos donos desta casa em Lugar Nenhum, Nebraska.

William não tinha muitos amigos, então ele cuidava daqueles que tinha. Certo, ele gostava dos Senhores do Submundo o suficiente. Eles eram legais de torturar e fodidamente divertidos de assistir quando se apaixonavam, caíam um a um como insetos no mata moscas. Caso em questão: Strider. Até William se meter, é claro. Com certeza Kaia sucumbiria finalmente às suas deliciosas artimanhas e esqueceria tudo sobre o guardião da Derrota.

O divertimento por si só valia a pena o preço de seu ingresso na Fortaleza deles em Budapeste: permitir que a Deusa (menor) pirada da Anarquia mantivesse o bem mais estimado por William com o intuito de resgate. Ele passava noites acordado sonhando com maneiras de recuperar sua posse, um livro escrito em códigos que previa como salvá-lo da maldição que os Deuses amontoaram em cima dele. Mas não pensaria nisso agora.

Ele só pensaria na sua Gilly. Ele a conheceu meses atrás quando a mulher do guardião da Dor a trouxe para a fortaleza, e ele ficou imediatamente atraído por ela. Não de forma sexual, ela era muito jovem para isso — ele lembraria a si mesmo mil vezes se fosse necessário — mas numa espécie de cavaleiro de armadura brilhante.

Ela olhou pra ele e viu um magnífico guerreiro imortal que poderia dar a seu corpo um prazer incalculável. Claro. Todo mundo fazia isso. Ela também vira um magnífico guerreiro mortal que poderia matar seus dragões.

Ele queria matar seus dragões. Ele poderia matar seus dragões.

Algumas vezes ao longo dos últimos meses ele retornou à fortaleza ferido de batalha. Gilly cuidou dele, sempre terna, doce, garantindo que ele comesse alguma coisa, que estivesse aninhado na cama e confortável. Ela não ficava intimidada por ele. Ria com ele, brincava com ele, e quando ele a irritava, ficava e brigava com ele, em vez de ir embora se esconder de seu temperamento.

Ela sabia no fundo da sua alma que ele nunca a machucaria. Ainda que nem ele soubesse sempre disso. Havia uma escuridão dentro dele, uma escuridão agitada surgindo das profundezas do inferno. Uma escuridão que nunca amou mais do que neste momento.

Quase ninguém notava seu lado mal. Eles viam o patife irreverente que ele projetava. E não, aquela imagem não era uma mentira. William era irreverente até os ossos, mas existia mais dele, e de alguma maneira Gilly viu esta parte também.

E ainda assim ela o aceitava. Nunca pediu que mudasse. Só pensou em desfrutar sua companhia, protegê-lo. Ninguém nunca tentou protegê-lo antes.

 Agora ele a protegeria. Sua família a machucou da pior maneira possível. Então sua família morreria da pior maneira possível. Afinal, vingança era sua própria forma de proteção. Claro, o tempo passou e ela não teve nenhum contato recente com eles. Isso não mudava o fato de que a machucaram da maneira mais terrível possível, forçando-a a enfrentar as ruas sozinha — o que poderiam fazer novamente com outra pessoa. Ele queria fazer isso há muito tempo, e isso não mudou. De fato, a necessidade só aumentou e ficou mais forte.

William passeou em torno da sala erguendo bugigangas, descartando-as e sorrindo quando elas quebravam no chão. A mãe e o padrasto de Gilly estavam trabalhando no momento, e seus meio-irmãos não viviam mais aqui, então não se preocupou com o barulho. Quando ele terminasse aquele pequeno exercício, estudaria as fotos no console da lareira.

Não havia nenhuma de Gilly.

Obviamente eles a excluíram das suas vidas. Nenhuma reflexão tardia, nenhuma preocupação para o que se abateu sobre ela quando partiu.

O que ele via: Uma loira de cabelos descoloridos de trinta e poucos anos com seios de silicone e um homem de aparência mediana em torno dos trinta.

Com o estômago se apertando, William socou o rosto do homem. O bastardo pagaria por cada toque ilícito, cada pingo de vergonha infligida. A mãe pagaria por permitir que acontecesse. Os irmãos pagariam por falhar em salvá-la.

Sua família não lhe deu opção senão fugir com a idade de quinze anos. Quinze. Por conta própria, sobrevivendo da melhor maneira possível por mais de um ano até que Danika a encontrou e a trouxe para Budapeste. Mas por causa do que fora feito com ela, por causa do que teve que fazer apenas para comer, ela já não se valorizava. Se via tão usada, suja, indigna. Ela nunca disse isso, mas ele sabia. Quando chegou à fortaleza dos Senhores, ela dormia no quarto ao lado do seu e ele ouvia como ela chorava durante a noite. Ele sabia que pesadelos a atormentavam.

Sua família pagaria por cada um daqueles pesadelos também.

Seus ouvidos de repente se contraíram percebendo o som do portão da garagem se abrindo. Ele sorriu. Ah, oba! O primeiro concorrente do Ferir, Sofrer e Morrer estava em casa.

Assim que ele chegou soltou sua bolsa de “brinquedos” no chão e agora se inclinava para pegá-la. Oh, sim, ele nunca adorou mais sua escuridão.

 Isto seria divertido.

 

 

Kane, guardião do demônio do Desastre, andou a passos largos pelo longo e sinuoso corredor dentro do desconhecido palácio celestial onde ele agora se encontrava. As paredes eram estranhamente retas, composta por milhares e milhares de fios entrelaçados e distribuídos juntos. Segmentos de fios espessos e coloridos com cenas animadas representadas por eles, como se as pessoas que ele via estivessem verdadeiramente vivas e respirando diante dele, e tinha apenas que esticar o braço para tocá-las. Era a visão mais inspiradora que jamais viu — e era Strider e Kaia rastejando por uma colina sob o luar, mulheres se movendo furtivamente em direção a eles com armas apontadas para suas cabeças?

Ele parou e estreitou seu olhar neles, suas mãos fechadas em punhos. Uma dor de cabeça explosiva rasgou pelas suas têmporas. Apenas quando ele olhou pra frente e forçou a tirar da sua cabeça a imagem do que viu a dor diminuiu.

Inspirar profundamente e expirar. Seus pensamentos se enevoaram então se apagaram. Depois não podia recordar o que o chateou em primeiro lugar. Oh, bem. Dentro, fora. Dentro, fora. Cada vez mais limpo. O ar levava o aroma doce de ambrosia, ele percebeu. Para manter as visitas dóceis?

 Se aquele tipo de coisa funcionasse nele. Mas as Deusas que viviam aqui poderiam ter bombeado gasolina pelas aberturas, e não o afetaria. Seu demônio adorava todas as coisas desonestas, clandestinas e potencialmente arriscadas. E talvez, apenas talvez, esse amor pudesse impedir o bastardo de rachar o chão que Kane pisava ou desabar o teto sobre a sua cabeça, a necessidade de calamidade saciada por um pequeno momento.

Um cara podia ter esperança, de qualquer maneira.

 Kane saltou de volta em movimento. Ele tinha um propósito, não é? Oh, sim. As Parcas o convocaram. Por que diabos o convocaram?

 Qualquer que seja a razão ele sorriria como um bom menino. Ele não queria irritar as Parcas, e em seu atual que-porra-está-acontecendo estado de espírito, teria que ser muito mais cuidadoso. Elas não eram Gregas nem Titãs — ele não sabia o que eram — e ainda assim nenhuma raça divina jamais levantou uma mão contra as três mulheres que viviam aqui, e nunca iriam. Porque as Parcas eram as tecedoras do Destino. Elas giravam e teciam, e as cenas que criavam aconteciam. Sempre.

Ninguém as abordava sem uma convocação. Nem mesmo Cronus, o Deus rei. E em todos os séculos de Kane, ele nunca encontrou ninguém que tivesse recebido uma. Até hoje. Ele, Desastre, era o destinatário sortudo.

Ele mal havia acabado de retornar da cidade, tendo passado a noite inteira procurando por Caçadores. Não encontrando nenhum — Strider devia ter matado todos antes de partir, o bastardo ganancioso — ele caiu direto na cama, ainda usando suas armas, roupas de couro e botas. Antes que ele pudesse desligar sua lâmpada, uma esteira brilhante se desenrolou do teto com um pergaminho amarelado pendurado na ponta.

Ele leu o pergaminho, tão confuso naquele momento quanto estava agora. Uma mistura entre um convite de casamento e uma bula de remédio, a coisa fora escrita em grego antigo.

 Você está cordialmente convidado para o Templo dos Destinos. O não comparecimento pode resultar em decapitação ou morte.

 Decapitação ou morte? Jura? Então, um instante depois seu entorno desapareceu e ele estava de pé dentro deste templo, com aquelas paredes de fios ao seu redor. Ele se colocou em marcha, pensando que qualquer vacilação de sua parte resultaria naquela decapitação. Ou morte.

Assim, embora soubesse onde estava o que não sabia era o por quê. Por que ele? Por que agora?

Provavelmente descobriria.

As tapeçarias da parede pareciam continuar indefinidamente, mas finalmente — infelizmente? — ele chegou no fim da linha e entrou em um… quarto de tecer? Três mulheres, bruxas na verdade, sentadas em bancos de madeira, curvadas, longos cabelos brancos frisados acima dos ombros. Todas as três vestiam batas brancas e imaculadas e sem amassados.

A que tinha as mãos manchadas pela idade, Klotho, ele sabia pelas lendas que as cercavam, fiava. A que tinha os dedos nodosos, Lachesis, tecia os fios juntos, e a com os olhos sem pupilas, Átropos, cortava as pontas.

Kane pressionou seus lábios em silêncio. Esperando ser reconhecido, respeitando um poder muito maior que o seu. E talvez fosse por isso que o escolheram, pensou. Nenhum dos outros Senhores as trataria com a deferência que mereciam e um castigo teria que ser emitido.

Se elas apenas soubessem a verdade. Ele podia saber como oferecer seu respeito, mas realmente ele era o maior incompetente do grupo. Aquele que não podia fazer nada direito. O que ficava para trás porque causava mais mal do que bem. Ele nunca abandonava seu sorriso, entretanto. Nem aqui e nem perto dos seus amigos. Ele não queria que eles soubessem a verdade. Não queria que soubessem que por dentro ele era somente uma grande e fumegante pilha de bagunça.

Na maior parte das vezes operava em piloto automático. Quando seu demônio se tornava demais para ele — a necessidade de deixar ir, o desejo de eliminar, esquecer, fingir, enchendo-o — ele… fazia coisas. Destruía coisas.

Sabin, guardião da Dúvida e o guerreiro Kane teriam seguido direto ao inferno, sabia. Mas Sabin era o único que sabia, e não surpreendentemente Sabin aprovava sua violência, até o ajudava a canalizá-la. Antes de decolar com sua esposa, Sabin deixou um presentinho. Parte dele estava ansioso para voltar para fazer o que precisava ser feito. A outra parte estava contente em permanecer aqui, esperando. Ignorou que se apresentou para patrulhar a cidade afinal, pensando em resistir à tentação. Até planejou cochilar na volta. Qualquer coisa para salvar sua alma de danos adicionais. Mas por quanto tempo ele teria aguentado?

Permaneceu lá esperando ser reconhecido por uma hora, talvez duas. Normalmente a inatividade provocava seu demônio a agir, criando um pouco de desastre ou outra coisa. Talvez fosse a ambrosia conforme ele havia esperado, ou talvez o demônio estivesse tão amedrontado pelas bruxas quanto todo mundo nos céus, mas Desastre se comportou, nem mesmo zumbindo no fundo da mente de Kane, embora esse som raramente enfraquecesse.

— Por que você está aqui, garoto? — Klotho finalmente perguntou, sua voz um cacarejo de fumaça. Ela jamais tirou os olhos da sua tarefa.

Uh, o que agora?

— Recebi sua convocação. Minha senhora. — ele adicionou. Deuses, ele era tão puxa-saco. Mas um cara tinha que fazer o que fosse necessário. Ele estava usando seu protetor genital sim, mas isso não significava que deveria pendurar um sinal em seu saco solicitando que alguém o chutasse ali.

— Convocaram você? Ora, isso foi há milhares de anos. — Lachesis respondeu. — Tenho certeza disso.

— Certeza disso. — Átropos ecoou. — Mas você nunca veio.

— E então sua convocação foi revogada.

— Você pode ir do jeito que veio.

Ele podia apenas ficar boquiaberto com elas. Elas o chamaram milhares de anos atrás? Por que elas não o decapitaram então, por não compareceu?

— Eu não quero desrespeitar, mas somente agora recebi seu amável convite.

— Não é nossa culpa.

— Você provavelmente não estava prestando atenção.

— Talvez você aprenda a prestar atenção.

— Você pode ir do jeito que veio.

Reverência era uma coisa. Não ter sua curiosidade aliviada era outra. Além disso, se elas o trouxeram aqui para transmitir palavras de sabedoria que poderiam salvá-lo e a seus amigos, ou emitir palavras de advertência, ele queria malditamente ouvir aquelas palavras. Então não partiria sem elas.

 — Posso adquirir uma informação de vocês? — Ele perguntou.

 — Que informação?

 — Quem disse qualquer coisa sobre informação?

 — Você é um idiota, não é?

 — Você pode ir do jeito que veio.

 Ele esfregou sua língua contra um dos seus incisivos.

 — Se vocês não desejassem me informar sobre alguma coisa todos aqueles milhares de anos atrás — ele teve o cuidado de manter sua ira fora do seu tom de voz. — então por que me convocaram em primeiro lugar? — A mesma questão, perguntada de outra maneira. Vamos, mordam a isca. Digam-me.

 — Klotho, você lembra a última vez que alguém tentou falar em círculos ao nosso redor?

 — Oh, sim Lachesis. Nós a tecemos sem fim.

 Sem fim o que?

 — Talvez ela tenha aprendido sua lição.

 — Talvez ela ainda não tenha aprendido sua lição.

 — Ela não saiu do jeito que veio.

 — Quem é “ela”? — Ele perguntou, de pé no chão. Um movimento estúpido, talvez, mas não podia ir do jeito que veio, então que escolha tinha? Piscar de um lugar até outro com apenas um pensamento não era uma habilidade que ele possuía.

 — Ela? Ela é a sua garota, claro. — Átropos disse.

Ele piscou.

 — Minha garota o que?

 — A que está no sem fim.

 — Não, não. — Klotho disse. — Ela não é dele. A outra é. Ou é o contrário?

 — Talvez ambas sejam dele. — Lachesis reagiu.

— Ela é minha? Elas são minhas? — Ele ofegou. Suas o quê? Amantes? Nesse caso, não obrigado. Esteve lá, e destruiu muitos por causa disso. Suas mulheres sofriam, sempre. Seu demônio se assegurava disso. Kane estava melhor sozinho.

 — Claro que ela é sua, embora não seja a do sem fim. Ela não pertence a ninguém. A não ser que ela pertença de fato a você.

 As três gargalharam.

 — Essa é boa, minha irmã. Eu terei que me lembrar dessa para a próxima convocação do guerreiro.

 — Quem pertence ou não a mim? — Ele perguntou lançando o olhar de uma bruxa para a outra. Próxima convocação?

 — Irresponsabilidade, claro.

 — Irresponsabilidade. — ele ecoou. Tipo o guardião da Irresponsabilidade? Kane sabia que o imortal estava lá fora. Tinham mais demônios na Caixa de Pandora que guerreiros desobedientes, então os Deuses, desesperados para conter os restantes, os deram para os prisioneiros do Tártaro. Irresponsabilidade era um dos tais restantes.

Ele sequer olhou para... ela. Merda. Ele sempre assumiu que o guardião era um homem. Seu erro, e um que ele não queria cometer novamente. Ele e seus amigos queriam todos os imortais possuídos por demônios do seu lado. O que significava encontrá-los antes que os Caçadores o fizessem.

Afinal Galen, guardião da Esperança e líder dos Caçadores, não poderia convencer qualquer um de qualquer coisa. E a última coisa que os Senhores precisavam era que ele convencesse seus irmãos a destruí-los.

 — Eu não acabei de dizer justamente isso? — Uma delas perguntou.

 — Você acabou de dizer isso.

 — Você não é muito brilhante, não é, garoto?

 — Como faço para tirá-la do sem fim? — Ele perguntou, ignorando a pergunta. Ele podia não querer uma namorada, mas queria encontrar esta mulher guardiã do demônio. O que ela podia fazer? Que poderes ela exercia? — O que é o sem fim, de qualquer maneira?

 — Como ele não sabe as respostas para estas perguntas?

 — Nós já não contamos estas respostas para ele?

 — Talvez nossa linha do tempo esteja fora do ar novamente. — disse Klotho.

 Novamente? Com que frequência acontecia? Uma pergunta melhor — quais eram as consequências quando estava fora do ar?

 — Deveríamos rebobinar?

 — Deveríamos dar um salto adiante?

 Deuses queridos. Nenhuma opção parecia sábia.

 — Sim. — elas disseram em uníssono, balançando a tapeçaria em que estavam trabalhando. Um momento passou em silêncio, depois outro. E então.

 — O que você está fazendo aqui, garoto?

 Kane se encontrou piscando novamente. Nada mudou. Nem seu entorno, nem as mulheres. Tudo era o mesmo de quando entrou na sala, será que elas esqueceram que ele estava aqui?

Tinham rebobinado? Tinham avançado rapidamente? Merda. Nesse caso, o que isso significava para ele?

— Vocês me convocaram. — ele soltou num resmungo.

— Sim, sim. Nós te convocamos.

— Ainda nesta manhã. Bom você vir tão depressa.

— Impressionante.

Elas devem ter rebobinado milhares de malditos anos. Quando ele deixasse este templo, retornaria à Grécia antiga? Seu estômago se apertou.

— Você se preocupa tanto.

Elas podiam ler seus pensamentos assim como também manipulavam o tempo? Ele realmente deveria ter aceitado seu conselho e ido embora do jeito que veio. Isto era… isso estava tão confuso quanto ele.

 — Como se fôssemos romper o tecido do tempo para você.

 — Você vai voltar do jeito que veio.

Graças aos Deuses.

— Vocês mencionaram uma mulher.

— Eu não mencionei uma mulher. Você mencionou uma mulher?

— Não eu. Não mencionei uma mulher para o guardião de Desastre há milhares de anos.

— Talvez nossa linha do tempo esteja fora do ar novamente.

Novamente sacudiram a tapeçaria em suas mãos. Ele esperou por vários batimentos cardíacos em silêncio, sua boca seca, seus joelhos se chocando um com o outro.

— Eu... eu acho que irei embora do jeito que vim. — Kane disse, recuando centímetro por centímetro. Ele não poderia aguentar mais disso. Elas simplesmente não eram capazes de lhe dar uma resposta direta, suas mentes incapazes de diferenciar entre o passado e o futuro. — No entanto agradeço por me convidarem e por sua hospitalidade. Se vocês puderem apenas apontar a saída…

Átropos, com seus olhos tão brancos que pareciam um manto de neve, ergueu sua cabeça da sua tesoura e pareceu, impossivelmente, estar perscrutando-o.

— Finalmente você se apresenta para nós. Depois de todo este tempo havíamos desistido.

Ele massageou sua nuca. Será que todos que eram convocados passavam por isto?

— Sim, finalmente.

Ele recuou um passo, dois.

— Peço desculpas pela sua espera e agradeço novamente pelo seu tempo, mas realmente devo...

— Silêncio. — Lachesis ergueu o olhar também, embora seus dedos nodosos nunca parassem. — Sempre sabemos o que acontece, mas nunca por que acontece. Você nos fez especular e especular, e finalmente gostaríamos de uma resposta.

 — Uma resposta a que? — Ele perguntou, fazendo uma pausa, inseguro se queria saber.

A terceira bruxa, Klotho, não seguiu o exemplo das outras e olhou para ele. Ela simplesmente disse.

— Nós queremos saber por que você começou o Apocalipse. — e continuou tecendo suas linhas descuidadamente.

 

— Deixe-me ver se entendi direito. — Kaia sussurrou ferozmente. — Quando você disse vigiar a competição, você realmente quis dizer vigiar a competição? — Strider lhe lançou um rápido olhar enquanto eles usavam seus cotovelos para se arrastar ao longo do terreno coberto de galhos e sujeira. A lua estava alta e cheia, mas com o dossel de folhas acima deles, sua luz dourada tocava levemente os galhos, nunca os alcançando em cheio. Embora aquilo não fosse um problema, porque ele treinou seus olhos para cortar através da escuridão e focar nos detalhes que importavam.

 Exceto hoje à noite, ele estava se concentrando em todos os detalhes que não importavam.

 Sem importância: Kaia parecia mais sexy que nunca. Sua boneca pessoal GI Jane — a edição só para adultos—. Ela pintou seu rosto de preto e verde para se disfarçar melhor na noite, e usava uma bandana preta sobre sua massa de ondas ruivas. Seu short tinha Booty Camp[13] estampado no traseiro.

 Strider se manteve visualizando o vigoroso treinamento de praxe em tal acampamento. A prática de instrução. O tipo de disciplina despejado nos participantes que se comportavam mal.

 Olá, Monstro Strider.

 Só o que ele precisava — seu pau tão duro quanto um tubo de aço e se esfregando contra o chão, deixando uma trilha comprometedora. Aquele maldito beijo arruinou tudo. Se ele mantivesse sua língua para si mesmo, poderia ter continuado pensando em Kaia como uma amiga e só uma amiga. Agora ele só queria convencê-la que os trabalhos de sopro eram uma parte obrigatória do seu acordo.

 Não se atreva a falar, disse ao seu demônio.

 Silêncio.

 Uau.

 — Você foi direto ao ponto quando eu quis dizer que tínhamos que vigiá-los. — ele finalmente disse. Uma pedra afiada raspou seu estômago e ele deu boas vindas a picada. Ajudou a clarear suas perspectivas. Uma discussão sobre metas, bom. Fantasiar com sua companheira, ruim. Tão, tão maravilhosamente ruim. — O que você achou que eu quis dizer?

 — Bem, duh. Eu pensei que você queria colocar alguns obstáculos para eles.

 Espere só um segundo.

— Então está tudo bem em arrebentar a rótula do seu oponente antes de uma competição, mas não é certo roubar o grande prêmio para o seu… seu… consorte? — Ele quase não conseguia dizer a palavra. Dizer faria seu acordo parecer permanente, em vez de temporário.

 Ela parou boquiaberta olhando pra ele.

— Não posso acreditar que você acabou de perguntar isto. Arrebentar rótulas é esperado entre os do meu tipo. Até encorajado.

 — Pensei que você nunca tivesse participado dos Jogos das Harpias antes?

 — Verdade, mas assisti minha mãe quando ela participava.

 — Certo. — ele murmurou. — Pode colocar alguns obstáculos. — Enquanto isso, ele ficaria com seu plano original. Enquanto ela reduzia o número de seus competidores, ele estudaria a área de acampamento das Harpia. Planos, posicionamento de sentinelas, tempos de resposta. — Porém use suas mãos, porque os apunhalar parece um pouco duro. — Na verdade ele só não queria acidentalmente deixar um rastro de sangue dentro das tendas, deixando evidência de suas intenções para trás.

 — Não diga mais nada. Eu vim preparada para um pouco de ação e não para cortar. — Ela deslizou uma de suas elegantes mãos por baixo de sua… calcinha? Ela fez. Oh Céus, ela fez. Bem no centro, onde ela provavelmente estava quente e úmida, pronta para sua boca, seu pênis. — Tenho algo que acho que você pode gostar.

Inferno, sim, ela fez. O Monstro Strider ficou rápido e verdadeiramente desconfortável, e sim, definitivamente havia uma trilha como de cobra atrás dele. Então Kaia o chocou deslizando sua mão de volta pra cima e estendendo a palma da sua mão. No meio repousava um pequena bastão de prata.

 Desapontado e surpreso, ele franziu a testa.

 — O que é isso?

 — Observe. — Ela agarrou uma ponta e sacudiu. Um estalo. A bastão cresceu vários centímetros. Outro estalo, mais alguns centímetros até a maldita coisa se parecer com um enorme cassetete de polícia. Ou o Monstro Strider.

 — Eu quero um desses. — ele disse. Seus olhos brilhavam com prazer.

— Eu sei, certo. Mas guarde suas mãos pra você, garoto demônio. Este aqui é meu. Agora vamos. — Ela deslizou pra trás em movimento.

 — Ei. Eu sou seu consorte. O que é seu é meu, garota Harpia. — Você sabe o que fez? Dizer o título não foi uma tarefa tão ruim desta vez.

 Ele rastejou atrás dela. Finalmente chegaram na beira do acampamento provisório, evidenciado pelo fogo crepitando no coração do terreno. Em seus primeiros dias aqui na Terra, sua caça de Caçadores muitas vezes o levou a acampamentos como este. Muitas tendas, pedregulhos usados como cadeiras, e aves assando sobre as chamas. Porém, sempre houve soldados patrulhando a área.

 — Ninguém está aqui. — ele sussurrou.

 — Eu sei. — Kaia respondeu. Ela suspirou, desanimada.

 Os ocupantes partiram com pressa. As pegadas de suas botas na terra era evidência disto, como se tivessem se movido muito rapidamente para levantar seus pés. As aves estavam queimadas, chamuscando cada vez mais a cada segundo que passava, colunas de fumaça preta flutuando em direção ao céu. Tinha uma garrafa da água caída com líquido jorrando dela.

 — Eu os ouvi abandonando o barco — ela acrescentou. —, mas esperava que houvesse alguns retardatários. Será que mais ninguém defende seu território?

 Ela os ouviu? Quando ele, um soldado treinado, não ouviu porra nenhuma? Nenhuma necessidade de ego em cheque. Engoliu essa. Não esqueça a Missão Um. A Haste — e não nas suas calças.

 — Eu vou inspecionar o lugar. Você fica aqui e vigie.

 — De jeito nenhum. Eu vou inspecionar o lugar. Você fica aqui.

 — Porra, Kaia. É melhor você... umph. — Algo duro se enrolou ao redor dos seus tornozelos e puxou, deslizando-o para trás. Ele girou no meio do caminho, sentando-se apesar de seu impulso, e empurrou.

 Houve um grunhido de dor feminino, como se seu atacante tivesse tropeçado e ele foi liberado.

 Vencer. Derrota disse de repente, falando alto pela primeira vez desde que deixaram o motel.

 Fez. Naquele momento, pelo menos. Mulheres guerreiras o cercaram, olhando pra ele. Cada uma segurava algum tipo de arma, de facões até eixos de punhais feitos de pedra do período Neolítico.

 Bem, bem. Lentamente ele se levantou, palmas pra cima e viradas pra fora, todo inocência, tudo mentira.

— Boa noite, senhoras. Algo que podemos fazer por vocês?

 Kaia resolveu se abaixar e gritou. Um grito que ele reconheceu. Sua Harpia tinha acabado de assumir o comando. Ante o pensamento dele sendo ferido? Ou porque outra mulher pôs suas mãos nele? De qualquer modo ela estava vendo o mundo por uma névoa vermelha e preta, a necessidade de sangue espessando sua língua.

 — Meu. — ela disse numa voz baixa e distorcida. Essa foi a única advertência que deu antes de atacar.

 Quando ela girou aquele bastão com uma graça e propósito que o surpreendeu, Derrota deu um gemido em vez de exigir a vitória. Ela se movia como uma dançarina. Uma letal e psicótica dançarina que esperava passar o resto de sua vida na prisão. Meu tipo de mulher. Metal batendo contra osso, som de algo quebrando depois. Mais grunhidos, alguns gemidos.

 E então a batalha realmente começou.

 Ele teve um vislumbre da expressão de Kaia quando ela girou. Fria e impiedosa. Uma centelha vermelha se juntou ao preto em seus olhos. Como chamas. Verdade, chamas crepitando. Podia sentir seu calor, fazendo com que o suor perolasse sua pele. Um brilho azulado ainda emanava de sua pele. Não um brilho de Harpia com aqueles adoráveis fragmentos de arco-íris presos sob a superfície, mas a lambida mais quente do fogo.

 Ele se lembrou de seu beijo — novamente — e o modo como ela o queimou, estava quente. Um forno vivo. Ela o deixou ligado, fazendo-o se sentir no topo do seu jogo. Agora ele se perguntava…

Ela estava exibindo algum tipo de poder?

Suas garras e dentes cortavam. Corpos se moviam muito depressa ao redor dela, seu olhar não conseguia controlá-las, mas a cada poucos segundos Kaia era lançada para trás, como se alguém tivesse batido nela. Um batimento cardíaco mais tarde alguém uivava de dor — porque foi queimada?

 Vitória. Derrota rosnou, o medo momentaneamente esquecido.

 Ótimo. Me dá um minuto. Havia algumas coisas que ele precisava compreender. Isto é, como se inserir na briga sem se chocar com os punhos de Kaia.

 Vencer!

 A resposta caiu no lugar. Strider retirou José, sua Sig Sauer da cintura de suas calças. Ele veio preparado também, sabendo que teria que tirar qualquer um que entrasse no seu caminho. Agora ele só queria matar qualquer um que tentasse “travar” Kaia. Isso é o que amigos faziam um pelo outro.

 Ele disparou um único tiro no ar. Bum. Arquejos, farfalhar de roupa, o pisar de botas. Então silêncio.

 — Voltem para o inferno. — ele rosnou, colocando-as na mira. — Agora. E antes que comecem a se perguntar se tenho coragem de espirrar seus cérebros pelas árvores, deixe-me esclarecer. Eu tenho.

Kaia se acalmou, arquejando e respingando sangue. As mulheres rapidamente se afastaram dela. Tão rápido quanto estes dispositivos voadores podiam se mover, elas poderiam tê-lo carregado, tentado matá-lo. Mas não o fizeram. Ou elas perceberam que levaria algumas com ele antes que conseguissem alcançá-lo como prometido, ou elas temiam seu demônio.

 Derrota cantarolou sua aprovação, faíscas minúsculas de prazer aquecendo o peito de Strider. Mais faíscas que o habitual, considerando que ele não tinha exatamente ganhado ainda. Então Strider recordou o primeiro desafio que seu demônio aceitou relativo a Kaia e estas mulheres.

 Qualquer um que tentasse feri-la tinha que sofrer. Legal.

 — Você. — ele disse para Kaia. — Chegue mais perto.

 Ela obedeceu também. Ele correu a mão livre seu braço abaixo, um carinho para acalmar, confortar. Mas, merda! Tocá-la era como tocar aço derretido. Imediatamente bolhas se formaram nas pontas dos seus dedos. Ele se importou? Dificilmente. O que era um pouco de dor quando seu bem-estar estava em jogo?

 Eventualmente a fúria rouca de sua respiração diminuiu e o preto sumiu de seus olhos, as chamas cintilantes morrendo. Sua pele esfriou.

 — Um trabalho de primeira classe aqui, boneca. — ele disse.

 — Quando quiser, bolinho de açúcar. — Entretanto as palavras eram cruas e ásperas, ela falava com uma única inflexão vocal. Sua Harpia foi contida.

Ele desviou seu olhar. Ele e Kaia ainda estavam cercados, mas agora o círculo alargou e ele podia distinguir características individuais. Harpia após Harpia fez cara feia pra ele. Medo derramava por ele enquanto se movia pra frente de Kaia. Seu protecionismo provavelmente a incomodava, mas não a deixaria tomar a liderança neste processo. Esta era sua gente, e como sua irmã uma vez comprovou, a família teve um mal momento matando família.

 Strider nunca teve um mal momento matando ninguém. Chamava isto de dom.

 Kaia se moveu para o seu lado e lançou o bastão em… nos pés da sua mãe. Ele queria praguejar.

 — Oi, Tabitha. — ela disse uniformemente.

 A beleza de cabelos escuros avançou, suas feições inexpressivas enquanto ela o avaliava em vez de sua filha.

— Guarde a arma, demônio. Por todo seu cacarejar, sabemos que não vai usá-la.

Kaia gemeu.

— Você não deveria ter dito isto.

Sorrindo agradavelmente, Strider angulou a arma e apertou o gatilho. Bum. Um grito estridente e incrédulo. Ele alvejou a Harpia ao lado dela. Sangue jorrou de um ferimento aberto na coxa. A fêmea agora ferida saltou pra cima e pra baixo antes de sua força escoar e ela caiu no chão.

Vencer! Derrota deu uma risadinha como uma garota de escola.

Mais faíscas de prazer explodiram em seu peito enquanto ele franzia uma sobrancelha.

— Você estava dizendo?

Tabitha perscrutou Kaia e amaldiçoou, depois voltou sua atenção para a trêmula mulher do clã e deu de ombros.

— Você só pegou de raspão, coisa sem importância.

— Foi é? Bem, então, deixe-me tentar novamente. — Mais uma vez ele apertou o gatilho. Desta vez a bala atingiu de raspão a coxa de Tabitha. Ela vestia calça comprida preta até os tornozelos, e o material escondia a evidência do que ele fez. No entanto nada podia esconder o sabor acobreado saturando o ar.

Um leve desnudar de seus dentes brancos perolados foi a única indicação que ela deu que foi atingida.

— Oh, droga. — ele disse. — Falta de importância novamente. Vou ter que continuar praticando. Quem é a próxima?

Arquejos de indignação abundaram.

Tabitha ergueu sua mão pedindo silêncio. Até os pássaros da noite obedeceram, seus gorjeios evaporando como névoa.

— É claro que seria você quem cairia no velho truque da fogueira de acampamento. — ela disse para Kaia. — Não estou surpresa.

— Então somos duas. Você caiu no velho truque seu-inimigo-caiu-no-velho-truque-da-fogueira-de-acampamento. — Ela enfiou dois dedos na sua boca e assobiou alto e estridente.

De repente as folha acima dele se agitaram. Ele assistiu de olhos arregalados como Sabin, Lysander, Taliyah, Bianka, a Harpia chamada Neeka e várias outras fêmeas que ele não reconhecia se revelaram. Eles estavam no alto das árvores, setas entalhadas e apontadas para os adversários.

Derrota começou a cantarolar novamente.

Por que você está tão feliz? Eles estavam ali todo esse tempo e ele não soube. Eles poderiam ser abatidos antes que ele inclusive percebesse que estavam sob ataque. E ele se achava tão qualificado, tão… invencível. Bem, não havia necessidade de massagear o ego hoje. Estava mais do que sugado. Estava aos pedaços.

 Porém não há razão para se culpar. Kaia e seu Boot Camp arruinaram sua concentração.

— Esta é a primeira vez. — Tabitha disse entre dentes. Murmúrios de admiração a rodearam, misturados com alguns bufos de descrença e vários arquejos de fúria. — Agora estou surpresa.

— Como? — Seu tom de voz irregular combinava com o de sua mãe.

Kaia não fingiu entender mal.

— Enviei uma mensagem de texto pra eles antes de deixarmos o motel.

Bem pensando, mas nem ele sabia daquilo, o que significava mais pedaços do seu ego. — E você não podia ter me dado uma dica?

— Não. — Então simplesmente declarou, como se o pensamento nunca tivesse passado pela sua cabeça. — Então, querida mãe. — ela disse, lançando pra fora. — Está arrependida da sua escolha de cortar suas filhas do seu time?

 — Não. — Tabitha disse, tão categoricamente quanto Kaia e sem vacilação.

 Ai. Kaia enrijeceu, mas só por um momento. Ele não se atreveu a olhar pra ela, não se atreveu a embrulhar seu braço ao redor da sua cintura e oferecer mais conforto. Agora não era o momento. Mas depois… sim, depois, apesar de suas furiosas necessidades corporais e o perigo para o seu autocontrole. Confortá-la era parte dos seus deveres de consorte, e pelas próximas quatro semanas ele seria o seu consorte. De todas as maneiras que importavam.

 Sexo não importava.

 Pelo menos, isso é o que ele dizia a si mesmo. Muitas e muitas vezes, até que ele acreditasse nisso. Ou até que um acúmulo de sêmen envenenado o matasse. Ele podia planejar se esgueirar e desfrutar de alguns encontros de uma noite só, ele supunha, mas sabia que não iria. E não apenas porque Kaia mutilaria de forma permanente qualquer fêmea que ele sequer paquerasse, mas porque, bem, ele não queria mais nenhuma outra.

 Ele provou a doçura de Kaia, sentiu a maldade de suas curvas apertadas contra ele, e sabia que nenhuma mulher mortal poderia se comparar a ela. Mas esta paixão acabaria, ele não tinha nenhuma dúvida. Mesmo Haidee não prendeu sua atenção por muito tempo.

 Haidee. Huh. Ele não pensou muito nela hoje, mas ela consumiu seu cérebro por semanas. Strider clássico. Ao longo dos séculos ele foi o maior candidato a Palma de Menor Atenção do Mundo.

— Você realmente acha que pode ganhar os jogos? — Tabitha perguntou a Kaia.

 — Sim.

 — Contra mim?

 — Odeio me repetir, mas sim.

Esta é minha garota. Bom, sua garota agora.

 — Juliette pode ter vencido os últimos oito jogos, mas foi porque eu não tive permissão de lutar. Como você sabe, nunca perdi. — Tabitha disse, acariciando o medalhão pendurado no seu pescoço.

Mais uma vez Kaia enrijeceu, uma onda de dor vindo dela. Uma onda rapidamente suprimida. O colar teria algum significado? Ele fez uma anotação mental para perguntar a Gwen, já que estava certo que Kaia não lhe daria uma resposta direta. Ela nunca dava.

 — Há uma razão pela qual você nunca perdeu. Você nunca lutou comigo. — Kaia respondeu arrogantemente.

 Ela vai morrer.

 A voz feminina estampou pela sua cabeça. A voz de Tabitha. A mesma voz que ele ouviu durante a Orientação. Sua atenção não se transferiu para ele, mas ele sabia.

— Não vai não. — ele murmurou.

Kaia lhe lançou um olhar incrédulo,ofendido.

— É verdade.

— Eu sei, boneca. Não estava falando com você.

— Oh. Bem. Ok.

Vencer! Houve um tremor no tom de Derrota, mas ainda assim o bastardinho não voltaria atrás. Eles decidiram ajudar Kaia, e iriam. Ela não morreria.

Ela vai morrer — e não há nada que você possa fazer para ajudá-la.

— Pare com isso. — ele exigiu, o olhar se estreitando na mulher responsável.

Tabitha piscou inocentemente.

— Por que seu consorte está falando comigo sem eu ter me dirigido a ele primeiro? — Ela perguntou a Kaia. — Você não lhe ensinou a ordem correta das coisas?

 Então o homenzinho não deveria falar para o povo das mulheres sem convite? Dane-se.

— Só fique fora da minha cabeça Harpia, ou terei certeza que se arrependerá. A propósito, como está a perna?

Ela sibilou para ele.

Vencer!

Eu sei. Strider tranquilizou o demônio. Eu disse a você. Não deixarei nada acontecer com Kaia.

Kaia pestanejou também, só que ela parecia chocada. Porém ela não questionou sua mãe, e ele se perguntou se ela ficou quieta porque sabia que sua mãe não responderia ou porque o questionamento de sua mãe revelaria sua ignorância, e ignorância seria vista como fraqueza.

Harpias, homem. A vida parecia ser um grande jogo de xadrez para elas. Ridículo, se perguntassem a ele. E sim, ele pegou a ironia. Mas ele tinha que transformar tudo que fazia numa competição de inteligência e poder. Elas não, nem sofreriam depois. Só faziam por diversão.

 — Não se preocupe com o meu homem. — Kaia finalmente disse, seu queixo erguido.

Meu homem. Ele meio que gostou de como aquilo soou.

Sua mandíbula cerrou. Estavam fingindo, e não podia confundir a fantasia com a realidade.

— Estou surpresa que você ganhou um temível Senhor do Submundo. — Tabitha disse.

— Eu não estou. — Kaia respondeu com um dar de ombros. — Sou praticamente impressionante.

Ainda assim nem um lampejo de emoção cruzou o rosto de Tabitha. Nem orgulho, nem decepção.

— Acho que descobriremos exatamente do que você é feita amanhã, quando os jogos realmente começam.

 

 Paris, o guardião da Promiscuidade, ou Sexo, como Paris chamava o demônio, agarrou dois punhais de edição padrão[14] conforme se esgueirava pelas sombras do beco escuro. Edição padrão ferrado. Certo, fariam picadinho deles, mas até aqui, com deuses, deusas, vampiros e anjos caídos, fazer picadinho não era suficiente.

 O que seja. Continuar.

 Nunca deixou de surpreendê-lo o quanto o mundo imortal era similar ao dos humanos. Nesta metrópole celestial havia bares, lojas, restaurantes e hotéis. Sem falar das drogas e aqueles que as vendiam. Tudo o que queria, você poderia obter.

 Falando nisso, vou querer um pouco de ambrosia. Logo. Ele já estava um pouco trêmulo pela abstinência.

 Sem tempo para assimilar isso agora. Ele não podia se atrasar.

 Não podia se dar ao luxo de sequer falar com ninguém. Um olhar para o seu rosto, uma inalação do seu cheiro, e pessoas — não importa sua espécie ou gênero — atiravam-se sobre ele.

 Talvez deveria ter deixado que o fizessem, pensou em seguida. A força derivava do sexo de qualquer coisa erótica, e Paris ainda não recebeu a dose diária essencial. Entretanto ele odiava dormir com pessoas que ele realmente não desejava e tentou se limitar. E ele conseguiria o afluxo de força hoje assim que se reunisse com a Deusa do Armamento.

 A fêmea possuía punhais de cristal que podiam se transformar em qualquer tipo de arma que o detentor desejasse. Ela disse que ele poderia tê-los por um preço. Ninguém queria seu dinheiro, então concordou em dar o que ela queria. Ele. Iria se prostituir, e pra ele estava bom. Tanto faz. Fez isso mil vezes antes e provavelmente faria mais mil. Eventualmente superaria a culpa e a humilhação.

 Precisava daquelas lâminas de cristal para resgatar a mulher que queria. Sienna.

 Sua Sienna. Morta por causa de suas ações, só para ser devolvida em forma de alma. Uma alma que ele não podia ver ou ouvir. Ainda.

 Cronus, o Deus Rei a escravizou e a emparelhou com o demônio da Ira. Para manter Paris afastado dela, Cronus então a aprisionou em outro reino. Ele pagaria por isso. Depois que Paris a salvasse.

E ele iria. Tinha um plano de três partes.

  1. Obter os punhais de cristal.
  2. Encontrar Arca, antiga Deusa Mensageira. O rumor era que ela sabia onde Cronus escondia seus maiores tesouros.
  3. Encontrar Viola, Deusa menor da Vida após a Morte. O rumor era que ela podia ensinar a qualquer um a ver os mortos.

Bum, feito. Simples, fácil. Sim. Certo. Sedução era a única coisa fácil para ele.

O que quer que tivesse que fazer, entretanto, ele faria. Durante séculos Paris sonhou em estar com uma mulher mais de uma vez. Por causa de seu demônio, seu corpo falhava em responder a uma amante depois de gozar. Então suas relações duravam apenas uma noite. Exceto com Sienna. Ele a teve, e então imediatamente ficou duro por ela novamente. Naquele momento soube que eles se pertenciam — apesar dos obstáculos que permaneciam entre eles.

Ela era uma Caçadora, sua inimiga. Ela o enganou, drogou e ajudou a aprisioná-lo. O que seja. Ela também o ajudou a fugir, e foi quando morreu. Abatida por sua própria gente enquanto estava nos braços de Paris.

Ele reviveu aquele pesadelo inúmeras vezes, pensando em todas as coisas que poderia ou deveria ter feito diferente. Pensando em suas palavras derradeiras de ódio, desejou que fosse o único a morrer. Ela o culpou pelo que aconteceu, e com razão.

Ainda assim sua alma voltou para ele. Escapou de sua prisão celestial e o encontrou. Para ajudá-la? Vingança? Ele não sabia e não se importava. Tudo que sabia era que Cronus a carregou pra longe antes que tivesse uma oportunidade de falar com ela. Deveria estar apavorada, confusa e desesperada.

 Ele podia acalmá-la. Só tinha que encontrá-la.

Quero. Seu demônio disse, puxando pra tirá-la da cabeça.

O medo o inundou. Aquele comando só podia significar uma coisa.

Paris enfocou, e certamente no fim do beco se aproximou um trio de brutamontes feios. Anjos caídos, ele diria, o que, por qualquer razão, o levou mais para seu lado sombrio. Eles não podiam ser deuses, nem menores, porque nenhum poder pulsava deles.

Tinha apenas que passar por eles e virar à direita e chegaria a rua da Deusa.

Quando o viram sorriram avidamente.

Eu quero. Seu demônio disse.

Você a terá em breve.

Ignorando-o, Sexo exalou sua fragrância especial dos poros de Paris. Logo o cheiro de chocolate e champanhe caro espessou o ar. Pela experiência sabia que cada vez que os homens respirassem o desejo os inundaria. Desejo por Paris e apenas Paris, ainda que eles não se inclinassem para esse lado.

Porra! Ele rosnou.

Eu quero!

Seu medo se intensificou quando seus sorrisos esmoreceram e eles começaram a lamber seus lábios.

— Você quer isso, então fique de joelhos.

— Cada um de nós terá sua vez.

— Eu serei o primeiro. — o maior disse.

Paris desacelerou, mas não parou de andar nem mudou de direção. Os anjos caídos eram, em essência, pouco mais que humanos. Ele poderia ter desembestado por eles sem problema.

Machucar… matar… Um sussurro suave, um desejo sombrio, um que enchia sua mente cada vez mais ultimamente. Não de seu Demônio, mas de dentro dele. Não tinha certeza por que isso acontecia ou o que causava isto, mas todas as vezes ele cedia. Agora não seria diferente. Ele chegaria até a Deusa e estes homens não o deteriam. Ele passaria por eles, verdade, mas faria isso doer — mataria — quando acontecesse.

 Em uníssono o trio disse.

 — De joelhos. Agora.

 — Realmente. — Paris respondeu. — A única coisa que vai descer seram vocês.

 Ele lançou seus dois punhais em rápida sucessão. A ponta de um afundou na jugular do cara à direita. A ponta do outra se cravou na parede de tijolos de ouro, deixando sua marca.

 Sexo choramingou, correndo pra se esconder num canto distante de sua mente. Seu demônio era um amante, não um lutador.

 Os dois homens remanescentes observaram de olhos arregalados como seu amigo desabava, contorcendo-se enquanto a morte se aproximava.

Machucar… matar… Correndo enquanto se lançava, Paris os varreu com seus braços estendidos, derrubando os dois no chão. Eles saíram de seu estupor sexual e o rolaram de costas, seus punhos martelando.

Vasos estouraram em um de seus olhos, limitando sua linha de visão. Seu nariz deslocou. Sua mandíbula se separou. A dor se intensificou com cada golpe, mas mesmo assim ele lutou. E lutou sujo, indo para virilha, gargantas e rins.

 Machucar…

 Matar…

 As compulsões sombrias cresceram... cresceram... até consumi-lo. Com um rugido ele levantou suas pernas e chutou. Os dois homens voaram para trás. Ele saltou para o mais perto dele, alfinetando os ombros do rapaz no concreto com os joelhos. Um soco, dois, três. Sangue espirrou.

 Ele bateu e bateu e bateu até que a cabeça do rapaz pendeu para ao lado, seus olhos inchados estavam abertos mas vítreos. Só então ele percebeu que o outro cara saltou nas suas costas e esmurrou sua cabeça aquele tempo inteiro.

 Paris jogou a mão para trás, agarrou um punhado da camisa e puxou. O cara passou por cima de seus ombros e aterrissou em cima do seu amigo, perdendo o fôlego. Quando Paris agarrou a lâmina no coldre em seu tornozelo, seu adversário juntou o que restava de sua esperteza e balançou um punho enorme, lançando-o na parede. Têmpora contra tijolo, e o tijolo ganhou. Atordoado, a lâmina foi rebatida pra fora de sua mão.

 Um pé calçado com bota bateu em cheio na sua traquéia, empurrando-o de costas e o segurando embaixo.

 A pressão aumentou conforme o cara desembainhava seu próprio punhal, curvou-se e apunhalou Paris no estômago. Uma lança agonizante de dor. Um silvo lancinante de ar escapou entre seus dentes.

 — Isso deve te manter dócil. — Pairando sobre ele, arquejando e de cara feia, o sujeito abriu o zíper de sua calça.

 — Não se mexa, esperto. — Paris conseguiu soltar um grasnido. Embora seu instinto exigisse que ele enrolasse seus dedos ao redor do tornozelo do cara e empurrasse, ele deslizou sua mão pra trás dele, em direção ao punho da sua lâmina que restou. — Você quer manter essa coisa, não é?

 — Cala sua boca. Se você tivesse jogado legal, eu o teria deixado ir depois que terminasse com você. Agora…

 Finalmente a bota se ergueu do pescoço de Paris, então o sujeito se abaixou entre suas pernas, trabalhando em seu zíper. Distraído. Bom. Usando sua última força, Paris balançou seu braço pra cima. Outro punhal achou consolo em uma jugular.

 Sangue gorgolejou da boca do rapaz, choque e um olhar vítreo de dor em seus olhos. Paris arrancou sua lâmina para soltá-la, mas isso não o salvaria. O vermelho continuou a fluir, e ele desabou em cima de Paris, imóvel... morto.

 Fraco mas determinado, Paris afastou o peso e se moveu devagar com suas pernas trêmulas. Ele deu a si mesmo um rápido olhar. Suas roupas estavam rasgadas, manchadas e encharcadas de sangue, sua pele esfolada, contundida e cortada.

A Deusa poderia transformá-lo no momento em que o visse.

 Provavelmente não seria uma má ideia. Ela esperava prazer, e nesse instante ele estava tão patético de se ver. Por outro lado, ele precisava de sexo para se curar. Mas se a usasse para se curar, tomando seu próprio prazer enquanto fosse incapaz de ver o dela, ele não poderia dormir com ela uma segunda vez em troca dos punhais de cristal.

 Ok. Mudança de planos. A próxima fêmea que avistasse ele seduziria, liberando seu demônio sem reter nada.

 O pensamento o deixou doente, mas tanto faz. Então ele seguiria para o palácio da Deusa. Ele estava atrasado, mas podia jogar seu charme sobre qualquer ressentimento que seu atraso tivesse causado. Outro pensamento repugnante.

 Supere-se. Ele escolheu trilhar este caminho. Ele viveria com as consequências emocionais.

 Resoluto, Paris tropeçou pra fora do beco.

 

 

Sienna Blackstone se amontoou em um canto, envolvida por sombras atormentadoras. Suas asas — aquelas asas negras cada vez maiores, cortesia do demônio agora dentro dela — puxava os tendões e ossos que ela não sabia que tinha, atirando dores pelo seu corpo todo.

 Cronus a trouxe até aqui — onde quer que “aqui” fosse. Um castelo em ruínas defendido por gárgulas que vieram à vida. Aquelas gárgulas podiam ver e ouvi-la — ao contrário de Paris, o guerreiro que ela esperou encontrar — e eles garantiam que ela permanecesse exatamente onde estava. E quando ela realmente lutou para abrir caminho com suas presas, chifres, garras e cauda, algum tipo de proteção evidente impediu-a de pisar no mundo exterior.

A princípio estava apavorada. Alguém deveria ter dito que sua morte seria mil vezes mais horripilante que a vida. Nas semanas que se seguiram, teve que aprender a se adaptar a todas essas criaturas sobrenaturais. Embora soubesse que demônios existiam e uma vez os odiou, tudo era novo para ela. E agora tudo que queria era sair daqui, assim podia alcançar um daqueles demônios. Segurá-lo. Ajudá-lo. Mas…

Ela só poderia sair quando jurasse obedecer Cronus totalmente. Uma condição que ela não entendia.

Por que ele queria tão desesperadamente sua obediência? Sua ajuda? O que esperava que ela fizesse por ele? Ele nunca disse. Mas em sua tentativa desesperada para controlá-la, até mesmo a levou para espiar seus antigos colegas. Caçadores. Deus, as coisas que eles fizeram…

Estava enojada e com raiva. Ela uma vez feriu um homem inocente — por eles. Atingiu Paris quando estava mais fraco — por eles. Os teria ajudado a matarem o guerreiro se ele não tivesse fugido com ela. Ela o culpou pela sua morte, pensando que ele havia usado seu corpo como escudo. O odiou por isto. Agora ela só se odiava.

Não, isso não era verdade. Odiava os Caçadores e tudo que eles representavam.

Antes dela morrer — novamente — os levaria pra baixo. Na verdade ajudaria Paris a derrubá-los. De alguma maneira, de algum modo, deixaria este castelo. Ela o encontraria mais uma vez. Diria, contaria para ele tudo que sabia sobre o seu inimigo. Cada esconderijo secreto, cada plano de batalha, cada estratégia sussurrada que tinha ouvido. E se ele ainda não pudesse vê-la ou ouvi-la, contaria a alguém que pudesse, como sua amiga de cabelos escuros. E então… então ela iria presentear o outro amigo de Paris, Aeron, com Ira.

 Fazer isso finalmente acabaria com ela. Para sempre.

 Ela não poderia compensar os erros que cometeu, duvidava que qualquer coisa pudesse, mas era um começo.

 Você só tem que achar uma saída…?

 Um suspiro escapou. Ela não estava acorrentada, e sabia que Cronus mantinha outros prisioneiros aqui. Eles gritavam, esbravejavam e vociferavam constantemente. Ao contrário dela, eles não podiam correr pelo castelo inteiro. Estavam limitados aos quartos no andar de cima. As poucas vezes que Sienna se convenceu a arrastar suas asas escada acima, o demônio dentro dela enlouqueceu, piscando todo tipo de imagens odiosas pela sua cabeça. Imagens de sangue, tortura e morte.

 As pessoas lá em cima… eles eram guerreiros possuídos por demônios como ela. Não os odiava, não queria machucá-los. Ela queria ajudá-los — mas seu demônio queria puni-los. Sempre punir.

 Você não pode ajudá-los aqui embaixo.

 Também não posso machucá-los.

 Discutindo consigo mesma. Ela riu. Sempre se forçou a ser reservada, até sombria. Sempre reprimiu qualquer indício de mau humor e sarcasmo. O medo de ferir os sentimentos de alguém e a vergonha de decepcionar seus entes queridos foi demais. Depois do sequestro de sua irmã mais nova, teve que se tornar uma rocha. Causar mais tumulto emocional a teria destruído.

 Bem, não mais. Ela era forte. Ela era capaz. Ela era necessária.

 Poderia superar seu demônio e ajudar os seres lá em cima. Ela podia.

 Por Paris.

 

O dia seguinte amanheceu brilhante e precoce. Muito brilhante, muito cedo. Kaia ficou acordada a noite toda, sua mente muito ativa para cochilar. Então quando ela viu o grande brilho laranja do sol, ela olhou e fez o pássaro voar.

 — Vá embora, seu bastardo!

 Strider se espreguiçava em “sua” cama olhando pra ela com um brilho divertido em seus olhos. Ele dormiu esparramado sobre cada centímetro do colchão. Ela andou de um lado para o outro.

 — Com quem você está falando? — Ele perguntou com uma voz rouca de sono.

 Uma voz rouca de sono que a virava do avesso. Porra, tudo nele a virava do avesso. Seja prudente. Corte pela raiz.

— Quem sabe estava falando com você? — ela retrucou pisando duro até a cama, agarrando um travesseiro e batendo em seu peito com ele.

 Ele nem se incomodou em levantar seus braços para se proteger.

— Alguém já te disse que você é um feixe de alegria pela manhã?

 Bang.

 — Não. — Bang.

 — Você se sentaria só por um segundo? — Ele arrancou o travesseiro de suas mãos e o lançou no chão. — Puxa. Eu preciso, quer dizer, você precisa ter um descanso de todas as suas preocupações.

 — Eu não tenho nenhuma preocupação. — ela disse pulando ao lado dele. Lysander levou a todos para os Céus e deu a cada um deles, um quarto em sua nuvem, onde nenhuma outra Harpia poderia alcançá-los. Ela e Strider compartilharam um, e ninguém, nem mesmo Lysander, poderia mostrar o traseiro em seu perímetro a menos que ambos permitissem.

 Ela nunca encontrou um sistema tão foda. Melhor ainda, paredes enevoadas de azul bebê agiam como telas de TV, revelando qualquer coisa que ela pedisse para ver. Sua mãe? Feito. Juliette? Brincadeira.

 A melhor coisa? Kaia só tinha que dizer “eu quero um punhal” e apareceria magicamente na palma da sua mão.

 Não é de se espantar porque Bianka decidiu fazer seu barraco aqui em cima com o bonzinho. E realmente, Bianka tinha apenas que levar um desses para o time e fazer um pouco mais daquele barraco para convencer Lysander a comprar um desses para Kaia. Você sabe, para que ela pudesse passar um tempo de qualidade junto com sua irmã. Elas eram gêmeas afinal, e Bianka precisava dela.

 — Você começou destacando o momento em que conseguiu aquele texto — Strider disse. — cinco minutos depois que chegamos aqui!

 Aquele texto. Ugh. Seu estômago teve um espasmo quando a preocupação a inundou. Não que ela admitisse isso. A etiqueta dizia que o primeiro Jogo das Harpias começaria em duas horas.

 Os capitães dos times eram muito valiosos para perder tão cedo nos jogos e nunca competiam no primeiro evento. Ao invés disso, os quatro mais fortes, os membros mais violentos eram escolhidos, e o capitão somente rezava para que eles sobrevivessem.

 Mas mesmo sendo a capitã Kaia teria que competir.

 Na noite passada, graças às paredes de nuvem, ela pode dar uma olhada em seu quarto no motel. Uma após a outra, Harpias de todos os outros times se esgueiraram para dentro, com a esperança de brutalizá-la. Como se ela fosse ficar num quarto que alugou em seu próprio nome. Por favor. Mas isto era tão estúpido quanto elas pensavam que ela era. Pior, continuariam a vir atrás dela, a menos que fossem ensinadas a temê-la.

Isto ela aprendeu com sua mãe.

E então hoje ela os ensinaria a temê-la.

Os outros três que iriam? Taliyah, Neeka — que Kaia nunca viu lutar, mas foi recomendada por Taliyah e Kaia confiava em sua irmã mais velha — e Gwen. Bianka ainda estava fazendo beicinho, mas como linha de fundo, Bianka era muito malditamente doce.

Uma vez ela fez churrasquinho de outra Harpia que arrasou com a sua aparência. Legal, né? Bem, como a menina gritava e se contorcia, uma Bianka culpada correu para buscar um copo de água para ela. Quem fez isto? Foi marshmallow.

 — Se você não vai ficar quieta, pelo menos diga a Papai Strider o que está aborrecendo você.

Havia aquela voz retumbante novamente a acariciando, infiltrando-se e passando pela sua pele para se fundir com suas células, tornando-se uma parte dela. Estava claro que o amigo continuava intocável.

— Estou pensando que apenas as regras da prisão vão se aplicar.

Uma risada explodiu dele.

— O que quer dizer? Que não deve deixar o sabão cair no chão? Que uma ronda envolva vários chuveiros?

— Está falando sério?

Ele bufou.

— Você dizendo a alguém para ser sério. Estranho. Mas… — Ele se sentou, suas feições se iluminando com interesse. O lençol escorregou até sua cintura, revelando fileiras e mais fileiras de força musculosa. — Diga-me se uma ronda envolve vários chuveiros?

Seu lábios se contraíram, assim como sua boca se encheu de água pra sentir seu gosto.

— Não seu pervertido. Sem chuveiros. Eu tenho que matar a maior e a pior no meu primeiro dia lá dentro. Desse jeito todas as outras me deixarão em paz.

— Esperta. Como posso ajudar?

— Sentando nas arquibancadas e parecendo bonito.

— Tá certo. Mas que posso fazer para te ajudar a ganhar? É por isso que estou aqui, certo?

Como se ela pudesse esquecer. Ele não estava aqui porque a amava, precisada dela, ou queria fazer alguma coisa dar certo entre eles. Ele estava aqui para ajudá-la a ganhar aquela maldita Haste de Partir.

 Ele não sabia sobre a Haste quando chegou. Ele gosta de você. Você sabe disso. Sim, ele gostava dela. Só que não o suficiente. Ela suspirou.

— Só… eu não sei, me elogiar. — Ouví-lo poderia fortalecê-la. Também poderia distraí-la, mas eles descobririam juntos.

— Eu posso fazer isso. É divertido te olhar.

Seu coração pulou uma batida.

— Sim?

— Oh, sim.

 Sua voz diminuiu, mais rouca que antes, todos os tipos de insinuação em seu tom. Seus mamilos enrijeceram, e ela teve que se levantar de um salto e ir embora para impedi-lo de ver a evidência de sua excitação.

 Ele a viu na noite passada quando sua Harpia simplesmente reagiu a ameaça a sua volta, determinada a protegê-lo a qualquer custo. Ele também a viu quando… ela estremeceu se lembrando.

 Alguma coisa aconteceu com ela enquanto lutava com os soldados de sua mãe. Algo que nunca aconteceu antes. Ela queimou. Com raiva, sim, mas também com chamas reais e literais. Elas lamberam dentro dela, queimando suas células, seus órgãos, e deixando apenas cinzas. Ou assim ela pensou. No entanto, quando ela se acalmou não notou uma única mancha de fuligem na sua pele.

 Agora suspeitas dançaram pela sua mente, somando-se às águas já turbulentas.

 O sangue da Phoenix fluía pelas suas veias, metade de sua composição genética. Ela encontrou seu pai uma vez, quando ele raptou ela e Bianka, transportando-as rapidamente para a Terra das Cinzas. Ele e todos os do seu tipo, realmente eram totalmente sem coração, completamente desvinculados de emoção, como se qualquer lado mais suave fosse queimado em seus incêndios constantes. Nem mesmo sua mãe podia se comparar a ele, o que já dizia alguma coisa.

 Não apenas eram emocionalmente insensíveis, eles eram fisicamente formidáveis também. Veneno vazava de suas presas e garras de Phoenix. Suas asas, que pareciam tão suaves e delicadas quanto as nuvens ao seu redor, eram na verdade línguas de fogo azul. Uma única escovada daquelas chamas, e um edifício inteiro poderia ser arrasado.

No entanto havia um lado positivo. Quando um Phoenix queimava algo — ou alguém — a fuligem resultante era poderosa o suficiente para trazer os mortos de volta à vida.

Seu pai esperava que suas garotinhas fossem mais Phoenix que Harpias, mas o oposto se provou verdadeiro, e ele as liberou. Depois de torturá-las com seu veneno, claro. Ele arranhou seus bíceps, bastou apenas um minúsculo arranhão para cada uma delas, e sentiram como se tivessem injetado uma mistura de ácido, vidro quebrado e Napalm[15]. Elas se contorceram e gritaram por dias.

Um verdadeiro Phoenix não teria se ferido assim, teria sido imune a toxina, razão pela qual Kaia nunca pensou que desenvolveria tendências como os Phoenix. Mas após sua queima de ontem… ela poderia ter desenvolvido uma imunidade, e por sua vez assumido suas habilidades?

 — Ei, Kye. Precisamos dar no pé. — Bianka de repente chamou do outro lado da porta.

 Kaia piscou, percebendo que ainda permanecia ao lado da cama, mas agora Strider se erguia ao lado dela. Ela não o ouviu se mover, mas lá estava ele, seu calor já a envolvendo, seu cheiro forte e doce no seu nariz.

 Ele agarrou seus antebraços, sua cabeça se inclinando de lado pensativamente.

— Onde você estava?

— Em nenhum lugar. — ela respondeu automaticamente. Sua resposta padrão quando alguém que não era uma de suas irmãs fazia uma pergunta assim.

 Ela se perdia em seus pensamentos muitas vezes? Se eu não fosse tão interessante, talvez pudesse...

 — Kaia! — Strider revirou seus olhos azuis, e ela notou que suas pupilas engoliram suas magníficas íris. Ele também afrouxou seu aperto, estava agora acariciando o comprimento de seus braços com as pontas dos seus dedos. — Temos que trabalhar nessas suas mentiras, boneca.

 Será que ele… ele poderia… desejá-la?

— Vou te dar uma ideia. Você quer que eu fale a verdade, então terá que comprar.

Com beijos. Ou orgasmos. O que seja. Sim, ele já se ofereceu para comprar seu artefato roubado pagando os serviços com sexo, e sim, isso a deixou puta. Mas naquele momento ele realmente não a queria. Ele poderia querê-la agora, e isso mudava tudo. Não sobre a Haste de Partir, claro, mas sobre eles.

 Seu lábios se curvaram em um sorriso perverso.

— Quem disse que eu queria a verdade? — Ele parou de acariciá-la só para beliscar seu nariz. — Você é uma gracinha quando mente.

 Ela estalou seu maxilar. Filhotes e peixinhos dourados eram “uma gracinha.” Eu sou gostosa, droga.

— Eu minto incrivelmente bem. Basta perguntar a todos que eu conheço! Eles nunca foram capazes de dizer.

— Realmente, provavelmente sou o único que pode dizer que você está cheia de merda. Sou bastante observador.

— E humilde, também. Enquanto isso, você precisa trabalhar em sua promiscuidade. — Ela se alongou, erguendo seus braços e assim suas mãos, fazendo que os nós dos seus dedos escovassem os lados dos seus seios. Queridos Deuses, isso era tão bom, iluminava-a por dentro.

 Ele mostrou seus dentes como se experimentasse uma sacudida de dor, e suas narinas inflaram com a força de sua respiração.

— E como vamos trabalhar nessa galinhagem, hmm? Na cama?

Ele o fez, ela pensou atordoada. Ele a desejava. Por que mais ele mencionaria uma cama quando ela esteve insinuando que ele era tão promíscuo?

 — Gosto do modo que sua mente trabalha. Deveríamos...

 — Kye? — Bianka chamou, cortando-a. — Você está aí? Eu sei que você está aí dentro. Venha aqui.

 — Sim, Bee. Eu estou aqui, mas preciso de um minuto. — ela gritou. Ela não tirou seu olhar de Strider. — Vamos continuar isto mais tarde. Ok? — Por favor. Ela precisava do seu toque, sua intensidade. Tudo dele.

 — Uh, não, não vamos. — Um passo, dois, ele se afastou dela. Seus braços caíram para os lados, o contato foi cortado completamente. — Manteremos esta coisa platônica.

 Seus olhos estreitaram em fendas minúsculas, seu rosto bonito a única coisa a vista.

 — Platônica? Quando você teve sua língua minha garganta abaixo?

 Seus olhos se estreitaram também.

 — Tudo bem. Continuaremos isto mais tarde.

 — Verdade? — A felicidade estourou por ela — seguida pelo medo. — Eu deveria acreditar que você mudou de ideia — ela estalou os dedos — tão facilmente? Qual é o seu jogo?

 — Sem jogo. Seu argumento é sólido.

 A felicidade foi renovada, e Deuses, de repente via o quanto o sol era bonito, tão grande e brilhante em cima da sua nuvem.

— Bem, tudo bem então. Mais tarde. — Ela tentou não sorrir quando saltou para a porta e cumprimento sua irmã.

 

 

Strider não sabia o que esperar na primeira competição e depois da coisa toda na escola primária, ele se preparou para qualquer coisa, pra tudo. Ou assim ele pensou. Neste exato momento ele se encontrava sufocado num estado de choque incessante e o zumbido excitado do seu demônio. O merdinha nunca encontrou uma ondulação de espírito competitivo tão fervoroso e naquele instante estava pulando como uma criança numa dieta constante de cafeína.

 Strider se sentou na arquibancada da quadra de basquete do ensino médio, mais ou menos cem outros caras o rodeavam. Todos eram estranhos exceto Sabin, que ocupava o assento a sua esquerda, e Lysander que ocupava o assento à direita. A maioria era humano, embora alguns eram claramente imortais. Ele viu a pele pálida reveladora de um vampiro, a aura sombria de um bruxo e a graça réptil de um metamorfo de cobra.

Infelizmente não viu “ele” com quem Kaia supostamente dormiu.

 Do outro lado estavam as Harpias. Enquanto os homens ficavam quietos e subjugados, as fêmeas estavam turbulentas.

Elas estavam saltando de cima abaixo nas escadas, lançando pipoca e até copos de refrigerante na arquibancada.

Elas vestiam tops minúsculos e apertados que terminavam bem abaixo da linha do sutiã — para aquelas que estavam usando sutiã. E shorts tão curtos que via seu lugar favorito numa mulher — a curva sensual que se encontrava com a perna — mais de uma vez. Sim, ele avistou o centro do paraíso, também.

 — Os Falconways estão caindo! — Alguém chamou.

 — É o que você deseja, Eagleshield. Afinal, você sempre gostou de uma mulher de joelhos.

 — Por favor! Você não poderia satisfazer uma ninfa nem se tivesse dobrado a dose de Viagra.

 — Viagra só funciona em homens, sua idiota.

 — Alô, você e as mulheres do seu clã tem bigodes, então por que não paus, também?

 Risadinhas, vaias e assobios misturados.

 — E eu pensei que minha Bianka era… entusiasmada. — Lysander disse. — Eu nunca teria imaginado que ela era realmente considerada tranquila entre sua espécie.

 Sabin bufou.

— Qual é. Se você não estiver excitado com as piadas de lésbicas, você é gay.

 O olhar escuro de Lysander oscilou para Strider.

— Você se excita com isso?

 Anjos, homem.

— Estou cozinhando em fogo baixo desde que entramos por essas portas. De fato, não precisei das piadas para me pôr em marcha. — O que não mencionou: era tudo por causa de Kaia.

 Sua “conversa” com ela — uma que tentou adiar para sempre, mas rapidamente percebeu a futilidade de adiar quando ela bateu gloriosamente os longos cílios para ele, todos os tipos de desejo em seus olhos — aconteceria mais cedo até do que ela planejou.

 Esteve diante dela sentindo seu cheiro, absorvendo o calor de seu corpo, perscrutando abaixo naquele rosto virado para cima, e quis sua boca na dela, nela toda. Mais um gosto dela. Mais um, e se forçaria a voltar a zona de amigo.

 — Lysander! — Uma voz feminina chamava ansiosa do outro lado da arquibancada. — Lysander! Aqui!

 Strider procurou pela multidão barulhenta por Bianka. Ele a achou no topo das arquibancadas, acenando com uma barra de chocolate no ar e sorrindo como uma maluca. Seu sedoso cabelo preto foi dividido em tranças que saltavam contra seus braços. Atraente, até que você notasse o uniforme de colegial católica quente que ela vestia. “Atraente” se transformava em “ataque cardíaco esperando para acontecer.” Um botão branco foi amarrado bem debaixo dos seus seios, um laço caindo entre eles. A pequena saia de xadrez pregueada deixava um espaço enorme a descoberto entre suas coxas e seu joelhos cobertos por meias.

Meias.

O fez desejar que Kaia optasse por animar seu time para a vitória em vez de lutar. Naquele arranjo, ela pareceria melhor que um ataque cardíaco esperando por acontecer. Ela o mataria na hora.

Não, ele estava feliz porque ela escolheu lutar. Ele planejava usar a separação necessária para espionar as Eagleshields, talvez procurar entre seus pertences. De fato, assim que as formalidades começassem, ele cairia fora daqui. E não se sentiria culpado por isso. Cada um por si.

 E se Kaia se machucasse? Segundo ela própria admitiu, estaria jogando com as “regras da prisão.”

 Um flash de vermelho em seus olhos, seus dedos do pés se torcendo. Kaia era uma lutadora condenadamente boa, ele lembrou a si mesmo. Se ele confiava em alguém em seu time para ter sucesso, era ela.

 — Lysander! — Bianka chamou novamente. — Olhe para cima, bebê. Eu estou aqui!

 — Tem muita gente. Não consigo te encontrar. — Bianka? —Lysander ficou de boca aberta.

 Era de supor que ele não a vira desde que deixaram os céus. Então, ela vestia um manto vermelho.

 — Lysander, você viu isto? — Bianka virou e ergueu sua camisa, mostrando a ele — e a todo mundo — a calcinha que ela usava. Eram verde neon com as palavras “Propriedade de Lysandy” estampadas em todo o seu traseiro.

 Lysander ficou querendo voar pra cima dela, então se segurou e despencou de volta pra baixo.

 — Deuses do Céu.

 — Sua mulher mostra a roupa íntima em público. — Sabin disse. — Deve ser legal. Como você administra este pequeno Milagre?

 — Só os Deuses sabem.

Ótimo. Agora Strider não podia parar de querer saber sobre Kaia. Que tipo de calcinha ela — ou não usava — mostraria?

A garota ao lado de Bianka deve ter reclamado sobre o tom alto e agudo de sua voz, porque o sorriso de Bianka se desvaneceu e ela colocou a garota em seu lugar com uma cara feia. Uma discussão se seguiu. Então, é claro, as duas pularam uma em cima da outra num emaranhado de membros se agitando.

 — Ela é magnífica, não é? — Lysander perguntou a ninguém em particular.

 — Claro. — disse Sabin, agora distraído. Ele estava acariciando o megafone aos seus pés. — Então, onde estão nossas garotas?

 Nossas garotas. Strider gostava do som disso. Ele não deveria gostar deste som.

— Não sei.

Você realmente acha que Kaia pode levar para casa a vitória?

A voz insidiosa encheu a cabeça do Strider. Macho. Familiar.

Ela pode ser morta…

Oh, inferno, não.

— Sabin. — ele rosnou. Desta vez ele não teve que se perguntar sobre o locutor. Como o guardião da Dúvida, Sabin se alimentava da insegurança das pessoas ao seu redor.

 — Desculpe. — seu líder respondeu.

 — Mantenha seu demônio sob controle.

 — Acredite, estou tentando. Eu não quero que vá atrás de ninguém do time de Kaia.

 Vencer. Ela deve vencer.

 E lá estava o demônio do Strider, que — espera só um segundo. Ela deve vencer? Derrota antes nunca se importou com uma vitória que não fosse de Strider. Por que Kaia? Por que agora? Porque seu triunfo era (talvez) ligado a Haste de Partir? Porque o demônio sabia — e temia — as consequências do seu fracasso? Porque ela era… dele? Seu playground pessoal? Ele se perguntou antes…

 Não pode pensar assim. Ele não faria o que precisava ser feito.

 Para Derrota ele disse. Primeiro, pretendo obter a Haste de Partir antes dos jogos terminarem. Segundo, ela vai ganhar. Se ela não ganhar... especulava sobre a probabilidade de Derrota machucá-lo, mesmo a perda não sendo sua.

 Strider não a teria protegido, quando o desafio lançado já fora aceito. Então…

 Alta probabilidade, ele decidiu. Ele devia ter falado com ela sobre isso. O que quer que acontecesse a seguir era culpa sua.

 Pela primeira vez a perspectiva da dor que ele poderia sofrer não o influenciava em nada. Ele simplesmente não gostava da ideia de Kaia ser prejudicada.

— Lysander! — Bianka chamou, uma vez mais chamando a atenção de Strider. Sua luta com a outra Harpia acabou com a pobre mulher caída de costas na arquibancada, inconsciente. — Você gosta delas ou o que?

 A expressão de Lysander se suavizou.

— Gosto, meu amor. Gostei delas. Gosto de tudo que você veste.

 Patético, Strider pensou. Só porque um cara estava apaixonado não significava que tinha que ser um babão.

 Oh, olha, ali estava Kaia! Strider se levantou, acenando para chamar sua atenção. Ele planejou dizer que tivesse cuidado, mas ela estava tão focada nos acontecimentos diante dela enquanto caminhava a passos largos para as portas duplas que levavam ao ginásio. Suas companheiras de equipe flanqueavam seus lados. Elas vestiam uniformes combinando de couro vermelho sangue, os tops cruzavam pelas costas para revelar suas asas, os shortes com franjas na bainha para facilitar os movimentos.

 Os cachos vermelhos de Kaia estavam puxados pra trás num rabo-de-cavalo dividido dos dois lados da cabeça. Sem cotoveleiras ou joelheiras para sua segurança. Porra, ele desejava que ela usasse almofadas. Se as garotas lutassem naquele piso de tábuas corridas perderiam um pouco de pele, e ele gostava de sua pele como estava.

 Vencer!

 Eu sei. Eu te ouvi da primeira vez, seu babaca.

 As Harpias nas arquibancadas notaram o time que estava entrando e começaram a vaiar. Uma carranca repuxou os lábios de Kaia, mas não deu nenhuma outra indicação que se importava. Pipoca choveu abaixo sobre elas, alguns ainda estalando nos olhos dos membros do time de Kaia.

 — Ei, Millicent. — Bianka gritou pra baixo a uma das lançadoras de pipoca. — Estou vendo que reservou este momento especial para se humilhar em público. Sua pontaria é uma merda!

 Um linda loira virou com seu cabelo chicoteando ao redor com as mãos nos quadris.

— Ei, aí, metade da gêmea número um. Ou é a dois? Nunca consigo me lembrar. Ambas são tão insignificantes. Se eu lançar um pedaço de pau você vai buscá-lo?

 — Eu não sou um cachorro, sua puta. — Bianka escorou suas mãos nos quadris. — Pelo menos seu pai não acha. Esta manhã ele me disse que sou mais quente que a pimenta mais ardida que ele já teve. Você sabe, quando eu rastejei pra fora da sua cama.

 Houve um suspiro audível entre a multidão, e Strider só podia piscar. O “pai” era uma coisa digna de tal horror?

 — Meu pai está morto, sua vira-lata insensível. — a que se chamava Millicent soltou entredentes.

 — Oh. — Bianka disse, seus ombros caindo. Então se iluminou. — Sua mãe acha que sou quente como pimenta. Ela me disse esta manhã quando me arrastei pra fora da sua cama!

 Os engasgos viraram risos abafados. Millicent voou degraus acima para enfrentar Bianka. Ding, ding. Outra briga adiante.

 Strider se achou sorrindo.

 — Você acha que ela percebe o que deixou implícito?

 — Sim. — Lysander disse com um suspiro.

— Vamos cruzar os dedos para que ela e a mulher que está socando parem de lutar e comecem a se beijar. — Sabin disse. — Isto acontece, e alguém mais sugira o bow-chicka-wow-wow[16].

 Lysander se endireitou, claramente intrigado.

— Vejo que você quer falar sobre motores acelerando.

 De repente as Harpias que estavam vaiando estouraram em aplausos ensurdecedores, e Strider esqueceu tudo o mais enquanto virava sua cabeça para descobrir por que. Sua mandíbula cerrou. Tabitha e sua equipe acabavam de entrar na quadra.

 Elas vestiam tops e shorts com franjas também, só que os delas eram azuis. Então outro time seguia atrás delas usando roxo. Outro time de rosa. Outro de amarelo. Droga. Quantos times tinham ali? Outro de verde. Outro de preto.

 Sua boca secou completamente quando percebeu que algumas das mulheres eram maiores do que ele. Mais musculosas, mais altas e inferno, ele não se surpreenderia ao ver feijões[17]. Embora algumas das competidoras eram aparentemente tão delicadas quanto Kaia.

As mulheres formaram um grande círculo na quadra, deixando o centro vazio. A tal Juliette, a morena que deu as orientações, avançou e levantou suas mãos. Finalmente a multidão aquietou.

— Se você for como eu, estava esperando por este momento há muito tempo. — ela gritou, e teve que parar quando os aplausos soaram mais uma vez. Só quando diminuíam ela acrescentou. — E então, não vamos desperdiçar um instante. Primeira regra, você não fala sobre etiqueta. Segunda regra, você não fala sobre etiqueta.

Mais aplausos.

Sorrindo, Juliette disse.

— Só estou brincando. Agora as regras reais. É permitido apenas um membro de cada time no ringue em qualquer momento. Quando este membro quiser sair — mais vaias soaram enfraquecidas — tudo que ela tem que fazer é indicar a uma de suas companheiros de time. Se ela puder alcançá-la.

Eeeeee… ainda mais aplausos explodiram pelo ginásio.

— Se alguém estiver muito ferido para continuar deve cair fora do ringue. Mas pense cuidadosamente antes de seguir por esse caminho senhoras, porque mesmo que você se cure, não pode voltar para dentro.

— Eu não paguei pra ver covardes. — alguém gritou.

Juliette movimentou a cabeça concordando.

— Para aqueles que nunca antes jogaram este tipo de jogo, deve saber que a competição não termina até que apenas um time permaneça. Aqui vai uma dica — lute sujo.

— As Eagleshields vão se foder. — outra pessoa gritou.

O sorriso de Juliette adquiriu uma escuridão, uma borda sombria e má quando ela se focou em Kaia.

— Boa sorte para todas. Vocês vão precisar. — Com isto ela andou a passos largos pra longe, desaparecendo de vista enquanto os competidores a engoliram.

Kaia lançou a Strider um olhar rápido. Então. Ela sabia onde ele estava, esteve ciente dele como ele estava dela. Ele movimentou a cabeça incentivando, mesmo quando fez um buraco na boca do seu estômago. As fêmeas em volta de Kaia estavam olhando pra ela como se fosse um filé suculento e elas mal acabaram um longo jejum de uma semana. Ele deveria estar lá embaixo a protegendo, não sentando aqui em cima sem fazer nada.

— Não se preocupe. — disse Sabin, batendo levemente nas suas costas. — Gwen não deixará nada acontecer com ela.

— Eu não estou preocupado. — ele despejou. De jeito nenhum deixaria Sabin fazer com que duvidasse de si mesmo, ter mais confiança nas habilidades da sua mulher que Strider tinha na dele. De jeito nenhum.

— Kaia protegerá Gwen.

O chefe piscou pra ele incrédulo.

— Você quer discutir sobre isto? Sério?

Sim, droga, ele queria.

Vencer.

Sempre.

— Só cale a boca e assista o jogo. — ele disse. — Eu te informarei antes de encabeçar para o outro lado e começar a espionar.

 

Eu não vou falhar. Não falharei. Eu não vou entrar em pânico. O mantra brilhou na mente de Kaia enquanto ela se posicionava.

 Neeka era a primeira a entrar no ringue do time de Kaia. Com os ombros enquadrados e a cabeça erguida, a garota se encaminhou para o centro da quadra, ao lado da primeira de cada equipe. Logo, doze Harpias estavam lá se enfrentando, esperando pelo apito para explodir. O resto dos combatentes esperava nos bastidores como Kaia, agachadas, com uma mão estendida.

 — Essa é nossa. — Gwen murmurou ao seu lado.

 — Eu sei. — ela disse, contente por sua voz não tremer. Strider estava lá em cima nas arquibancadas, parecendo tão gostoso numa camiseta e calça jeans desbotada e desfiada. O único olhar que ela se permitiu foi um erro. Ele era uma distração que ela não podia dispor, mas teve que se assegurar que ele estava lá em cima, que não a abandonou. Ela só rezava pra que ele testemunhasse sua vitória, não sua derrota.

 Eu não vou falhar. Muita coisa estava em jogo. Sua reputação. O respeito do Strider. Inferno, sua vida.

 Não que ele concordasse com seus termos. Ele nunca disse terminantemente que esperaria por ela ganhar a Haste e manteria suas mãos leves pra si mesmo. Ela percebeu isso apenas há uma hora atrás enquanto se preparava para a apresentação. Ela precisava de uma distração para o seu o-mundo-está-em-pânico e repetiu de novo toda a sua conversa com Strider.

 Ele estava planejando procurar pela Haste durante o jogo? Mais provável. Ela se perguntou se ele não confiava nela para trazer o ouro pra casa ou se ele era simplesmente muito impaciente para esperar.

 Não pense nele agora. Concentre-se.

 Eu não falharei.

 — Espere até ver Neeka lutar. — Taliyah disse, quase… sorrindo? Certamente não. Taliyah nunca sorria. Ou fazia uma careta. Ou gritava.

 — Se ela é tão boa, por que seu clã a deixaria ir? — Kaia perguntou.

 — Porque ela é surda e eles são idiotas. Além do mais, ela foi votada A mais Provável para sair do Fundo do Abismo e Matar Todos ao seu Redor.

 E agora ela estava do lado de Kaia?

— Doce!

 O som estridente do apito soou, fazendo eco nas paredes e explodindo os ouvidos de Kaia.

 O jogo começou.

 Imediatamente as garotas no centro da quadra entraram em ação. Kaia enrijeceu, observando. Atacaram umas as outras, garras e presas à mostra, e em poucos segundos corpos estavam batendo nas paredes. Sangue borrifou, quente e rico. Sua Harpia pegou o cheiro acobreado dele e gritou pedindo um gostinho.

 Calma, ela permaneceria calma. As únicas pessoas que ela poderia prejudicar eram aquelas que estavam no ringue. Ferir qualquer um do lado de fora resultaria em desqualificação. Se sua Harpia assumisse o comando, ela iria ferir a todos.

 Cada time podia ser desqualificado de um evento, e um único evento, e ainda assim se qualificar para o grande prêmio. Porém se isso acontecesse, você teria que esperar e rezar para ter uma boa exibição nos outros três eventos, ganhando pelo menos o terceiro lugar todas as vezes, ou você não teria a menor chance.

 Um grito horrível chamou sua atenção, e ela se achou se concentrando em Neeka. A beleza da sua aparência doce... Queridos Deuses. Neeka saltou e pairou por cima das garotas lutando estilo-Matrix, em câmera lenta, braços estendidos, joelhos flexionados, o olhar avaliador se movendo rapidamente, antes de escolher sua presa e cair sobre ela num piscar de olhos. Ela aterrissou sobre um conjunto de ombros largos, suas mãos embrulhando em torno da cabeça e torcendo. Osso estalou e a pobre garota desmoronou.

 Ai! Lesões no pescoço eram as piores.

 Neeka sorriu com satisfação — bem quando uma morena musculosa se chocou contra ela, derrubando-a.

A cabeça de Neeka rachou no chão, o sangue rapidamente se empoçando ao redor dela. Estava atordoada, incapaz de se levantar, e sua oponente usou sua condição instável para ter vantagem, esmurrando, esmurrando e esmurrando, os punhos chovendo como granizo envenenado.

 Merda. Se Neeka fosse nocauteada, ninguém do Time de Kaia poderia entrar no ringue tão cedo. Ou de jeito nenhum. Elas tinham que marcar.

 Vários outros notaram que Neeka caiu e fervilharam sobre seu corpo de bruços desamparado, esmurrando-a até deixá-la sem sentidos.

 — Vamos, Neeka! — Bianka gritou da arquibancada. Kaia teria reconhecido a voz amada da sua gêmea em qualquer lugar, no meio de qualquer tipo de barulho. Ela só rezava para que Neeka pudesse de alguma forma discernir os incentivos já que ela não podia ouvir. — Mostre a elas suas bolas de titânio!

 — Mate-a! — Outra pessoa gritou. — E corte fora as bolas dela!

 — E se eu te matar ao invés disso, odiosa? — Bianka rebateu. Em seguida houve o pisar de pés, e um hmph de dor.

 Kaia não mudou sua atenção, embora soubesse que sua gêmea acabou de atacar quem falou.

 De alguma maneira, Neeka recolheu sua astúcia. Corpos voaram em todas as direções quando ela mais uma vez deu uma de Matrix em cima das suas adversárias. Desta vez ela não atacou, mas mergulhou para Gwen juntando as palmas das mãos.

 Gwen disparou para o ringue e Kaia deu um suspiro de alívio.

— Bom trabalho. — ela disse. Ela daria um tapinha nas costas de Neeka, mas temia bater na pobre, com seus joelhos trêmulos.

 — Elas me arrancaram um dente com um soco! —Neeka arrastou seu sotaque pesado por seus lábios inchados.

 — Você terá uma chance de se vingar. — Taliyah assegurou a ela.

O que Juliette não explicou para a multidão era que cada membro do time tinha que entrar na briga pelo menos três vezes. Se alguém não o fizesse era porque estava, digamos, morto, então aquele time era considerado de fora, desclassificado. E para ser declarado vencedor, cada membro do seu time tinha que estar consciente até a rodada final.

Aparentemente, este jogo particular foi jogado nos últimos três bi-centenários de competições. O rumor era que a rodada podia durar dias, mas ainda assim não era permitida interrupção. Nem pra beber, curar-se ou usar o banheiro.

 O rumor também era que o vencedor às vezes era declarado simplesmente após esperar para ver quem acordava primeiro.

Conforme a luta continuava, outros membros do time marcavam dentro e fora. Como o primeiro grupo fez com Neeka, os novos enxameavam em torno de Gwen em massa. Porém ela era rápida, esquivando-se com a velocidade de uma bala.

— Você pode fazer isto, bebê! — A voz orgulhosa de Sabin trovejou pelo ginásio, mais alta que qualquer outra.

Megafone, Kaia pensou.

Um integrante do Time Skyhawk conseguiu agarrar o braço de Gwen quando ela passou, balançando-a em direção oposta. Gwen usou a ação a seu favor, derrubando vários de seus oponentes no estilo bola-de-boliche. Praticamente vibrando com a necessidade de retaliar, a caída se levantou e virou para ela. Quando perceberam que a tinham na mira, caíram sobre ela. Por um momento, tudo que Kaia podia ver eram as pernas de sua irmã se debatendo.

 Faíscas de raiva esquentaram Kaia. E adivinhe quem jogava sujo, saltando lá e indo para as asas de Gwen?

Esse mesmo membro do Time Skyhawk. Pior, a cadela estava rindo. As faíscas aumentaram… espalharam…

— Saia de cima dela! — Sabin gritou agora. — Ou eu juro pelos Deuses, lá vai você, bebê! Sim! É desse jeito!

 Gwen rugiu de dor e raiva enquanto ela chutava algumas das garotas de cima dela.

— O que acabou de acontecer. — Sabin criticou arrogantemente.

Claro, as garotas voltaram por mais.

Kaia nunca se sentiu tão impotente.

Outro rugido, e então Gwen estava arranhando seu caminho pra fora. A tensão empalideceu seu rosto, fazendo o sangue respingado ali gritante e obsceno em comparação. Ela conseguiu lutar seu caminho para as linhas laterais e tocar Taliyah, que pulou com ímpeto.

A primeira pessoa que ela atacou foi o soldado da sua mãe, lançando a garota no chão e moendo seu rosto nas pranchas de madeira.

 — Você está bem? — Kaia perguntou a Gwen.

 — Elas… quebraram minha… asa. — sua irmã arquejou.

Oh,merda. As esperanças de Kaia naufragaram, seu corpo esfriou. As asas das Harpias eram a fonte de suas forças. Quando essas asas eram desabilitadas, elas enfraqueciam insuportavelmente. Gwen teria que voltar e lutar pelo menos mais duas vezes, mas como ela seria eficaz quando golpearia e se moveria tão debilmente quanto um humano?

 Antes da questão estar completamente formada, Kaia começou a traçar estratégias. Elas eram guerreiras, poderiam lidar com isso. Gwen entraria uma segunda vez no final da partida, mantendo-se no ringue por apenas alguns segundos, e então cairia fora após marcar. Então, quando todos os outros times tivessem desabilitados, Gwen poderia participar pela terceira e última vez. Bum, feito. Fácil.

 Vencer.

 Kaia piscou atônita. Ok, essa não foi a sua voz interior, mas a de um homem. Familiar, e ainda assim… não. Só uma pessoa — ou criatura? — desejava a vitória tanto quanto ela. Automaticamente ela olhou pra cima. Strider não estava mais situado entre o pálido Sabin e o estóico Lysander. Ele não estava mais nas arquibancadas.

 Vermelho cintilou em sua linha de visão quando ela retornou sua atenção para a batalha. Os lobos desceram pra cima de Taliyah em uníssono, fixando-a no chão enquanto a esmurravam e chutavam. Só que elas não podiam segurá-la. Num momento ela estava lá no meio da sua fúria, mas no próximo ela se foi, uma nuvem de fumaça preta ficou em seu lugar.

 Confusas, as combatentes olharam em volta. Outra nuvem de fumaça apareceu atrás delas e Taliyah saiu do seu centro. Ela girou, dando a si mesma um impulso irrefreável e atacou. Cabeças se chocaram juntas e corpos caíram.

 Quando aquelas que estavam de pé perceberam o que estava acontecendo, elas mais uma vez desceram sobre a alta e esbelta Taliyah. E mais uma vez a irmã mais velha de Kaia desapareceu numa nuvem de fumaça, reaparecendo em outro lugar.

 A mesma cena se repetiu várias vezes. Taliyah foi implacável, cortando e mordendo antes de se afastar dançando. Mas as Harpias que ela derrubava logo se levantavam e marcavam outro membro do time.

 Como Kaia, aquelas nas linhas laterais a observavam e aprenderam a antecipar seus movimentos, prestando atenção na fumaça. Assim na próxima vez que Taliyah apareceu, estavam esperando por ela. Um punho imediatamente encontrou sua mandíbula, impulsionando-a para trás. Ninguém se aproximou dela porque a conheciam. E sim, quando ela se endireitou, desapareceu como esperado. Outro punho encontrou sua mandíbula quando ela reapareceu, uma vez mais fazendo-a voar.

 Ela balançou sua cabeça, provavelmente vendo estrelas. Elas não saltaram sobre ela desta vez, de qualquer forma. Elas simplesmente esperaram.

 O olhar azul-gelo de Taliyah procurou Kaia.

 Minha vez, ela pensou, ansiosamente segurando sua mão. Vamos lá.

 Taliyah correr pra frente, suportando punhos esmurrando e botas martelando para alcançar — Neeka.

 Por um momento Kaia se congelou com choque. Então a realidade bateu nela como um forte gancho de direita, e ela rosnou com afronta.

 — Que merda, Tal!

 — Melhor assim. — foi tudo que sua irmã ofegante disse.

 O que, sua irmã duvidava de suas habilidades? Oh, aquele corte.

 — Você sabe que eu tenho que entrar três vezes.

 — Sim, mas será melhor se você entrar no final.

 Quando todos estivessem feridos e espancados em seu ponto mais fraco. Oh, aquilo cortava bem fundo.

— As asas de Gwen estão machucadas. Ela precisa entrar no fim, não eu.

— Ela vai. Ela apenas entrará antes de você.

Desta vez ela não foi cortada. Foi destruída. Sua família a amava, sim, mas como sua mãe — como Strider — eles não tinham nenhuma fé nela.

— Você não é a líder deste time. Você deu na hora certa.

— Você vê o que eles estão fazendo com a gente, irmãzinha? Os times opostos estão trabalhando juntos para nos destruir. Mas você, você elas vão tentar massacrar.

— Eu sei. — Ela ergueu seu queixo. — Estou preparada.

Vencer.

Havia aquela voz profunda e rouca novamente. Não era Strider, nem seu demônio como ela esperava. Como poderia ser quando o guerreiro não estava em nenhum lugar à vista? Mas… quem soltou isso?

Taliyah suspirou.

— Tudo bem. Certo. Você quer estar na próxima, você entrará em seguida. Mas a perda estará em seus ombros.

A perda. Como se a derrota fosse garantida.

Os olhos de Kaia queimaram com as lágrimas enquanto se concentrava na luta. O inchaço no rosto de Neeka tinha diminuído, então sua visão não estava mais desfocada. Mesmo assim, cada um dos seus oponentes sabia que era surda e optaram por usar sua fraqueza contra ela. Elas gritavam instruções umas as outras, esboçando uma demolição que ela não podia ouvir — ou se defender.

— Você vai pra esquerda e eu vou pra direita.

— Eu fico no meio.

— Eu fico atrás.

Neeka se ergueu no ar.

— Agarre seu tornozelo!

A garota no meio fez como ordenado, balançando Neeka ao redor e lançando-a pra longe de suas companheiras de equipe, garantindo que não haveria marcação pra fora. Respiração jorrou de seus partidos e sangrentos lábios quando ela aterrissou. Alguém estava lá esperando, e a chutou no estômago. Ela se enrolou em uma bola, tentando respirar.

 O vermelho pontilhando o olhar de Kaia escureceu para o negro. Que ela soubesse, as equipes adversárias nunca trabalharam juntas antes. Que o fizessem, que o fim de Kaia era o objetivo que as unia… que elas ainda a odiassem tanto… ela se sentiu rasgada por dentro.

 Ela era uma criança quando inadvertidamente destruiu suas famílias, pelo amor dos Deuses.

 Bom, ela não era mais criança, e já era hora dessas mulheres aprenderem que ela não iria se deitar e aceitar essa merda. Conforme sua determinação aumentava, os pontos pretos aumentaram também, quase obscurecendo sua visão completamente, deixando somente a névoa do calor do corpo.

 Acalme-se antes que esqueça onde você está e o que pode e não pode fazer.

 Inspire profundamente… expire com força… isso não ajuda. Kaia retratou Strider, seu cabelo loiro caindo em volta do seu rosto, aqueles olhos azul marinho, aquele sorriso perverso. Finalmente o preto desvaneceu e sua visão voltou ao normal. Ela viu como Neeka batalhou seu caminho do meio da violência e subiu em direção a Taliyah.

 Como prometido, sua irmã manteve suas mãos dos lados. Kaia estendeu a mão e suavemente tocou os dedos obviamente quebrados de Neeka. A garota desabou nas linhas laterais quando Kaia entrou no ringue. Como se fosse um, todo mundo se calou e olhou pra ela. Elas estavam sangrando, suando e arquejando. E claramente, estiveram esperando por ela.

 — Minha irmã morreu por sua causa.

 — Eu perdi uma filha.

 — Nós nunca procuramos vingança contra você por respeito a sua mãe, mas ela finalmente te renegou.

 Nenhuma reação. A queimadura recomeçou no seu peito novamente, mas ela quis que fosse embora. Bloqueou bem apertado. A Harpia não viria. Ou qualquer outra coisa.

— Bom. Agora vamos ver o que posso fazer por cada uma de vocês.

— Sinto que vou me desapontar com sua habilidade.

 Elas riram e suas bochechas coraram. E então, como uma, elas giraram e marcaram um novo membro da equipe. Ela reconheceu a mulher no time de sua mãe. Uma vez treinou com ela.

Como Kaia, estas mulheres ainda tinham a lutar. Elas estavam em plena força e totalmente determinadas a usá-la. Contra seu rosto, sem dúvida.

 Você é forte. Você pode com elas.

 Vencer!

 Sim. Ela iria.

 Esse foi seu último pensamento antes de seus oponentes descerem. Kaia abaixou e girou, indo pra baixo e cortando. Alguém conseguiu arranhá-la duramente na têmpora com os nós dos dedos, mas isso não a impediu de fatiar vários tendões de Aquiles. Soaram grunhidos de dor, e então o impacto de joelhos batendo em madeira.

 — Assim que se faz! — Strider gritou.

 Ele estava aqui. Ele ainda estava aqui. Prazer atordoado correu por ela, mas não tinha tempo de parar e se concentrar. As Harpias novamente correram pra ela. Desta vez ela permitiu que a cercassem, arqueando sua espinha quando a esmurraram, balançando seus cotovelos pra frente e pra trás, chutando, cada movimento fluído se misturando ao seguinte.

 VENCER!

 — Arranque seus olhos! — Bianka gritou.

A dança não desacelerou, embora ela não permaneceu incólume. Ela foi esmurrada — em todos os lugares. Ela foi chutada — em todos os lugares. Logo seus músculos estavam moídos e contundidos, seus membros tremendo. Strider estava lá em cima assistindo, e saber disso a manteve forte. Algumas vezes a queimadura tentou trabalhar para se livrar de sua jaula, mas ela manteve um aperto firme o suficiente para mantê-lo escondido.

Com um cotovelo na traquéia, ela finalmente tirou uma de suas adversárias em definitivo. O que deixava mais dez para ir. Então outra caiu quando Kaia pegou uma página do livro de Neeka e quebrou um pescoço.

Isto enfureceu as nove restantes, e atacaram com maior fervor.

Kaia disparou do centro da horda, pretendendo correr e ganhar impulso suficiente para saltar e chutar os dentes de alguém no seu cérebro. Mas a agarraram pelo cabelo e puxaram para trás. Ela colidiu em uma parede dura antes de vários punhos a espancarem.

— Vamos! — Strider rugiu. — Você é melhor que isto. Lute!

— Coma suas línguas no jantar! — Bianka gritou.

Embora ela lutasse com todas as suas forças, eles conseguiram alfinetá-la com facilidade constrangedora, segurando seus braços e pernas no chão. Aquelas que não a seguravam subiram em cima dela e choveram pancadas. Ela sentiu ossos se quebrarem, órgãos se rompendo.

Elas riram. Então, felizmente, ela não podia ver suas expressões presunçosas, o mundo ao redor se desvanecendo em preto. E não o bom tipo de preto que poderia ter salvado sua pele. Antes de sua Harpia poder sair das sombras se balançando, antes da queimadura poder desabrochar da jaula, ela tinha capotado, suas asas recebendo castigo igual.

 Tanta dor... agonia... perda... fracasso…

— Porra, Kaia! — Strider.

— Não!Nãaaaao! — Bianka.

— Cai fora disso. — Taliyah.

— Só se mova, Kye. Só chegue até mim. — disse Gwen.

Vencer! Vencer!

Uma inundação quente em sua garganta saindo de sua boca. Talvez sangue enchesse seus ouvidos também, porque o nível de barulho entorpeceu… entorpeceu… até que houve apenas silêncio. Então um punho martelou em sua têmpora, uma vez após a outra, e ela não estava mais ciente do silêncio.

Só esquecimento, um esquecimento tão doce.

 

Strider estava pronto para cometer assassinato a sangue frio. Ele começaria com Sabin e Lysander, que tentaram forçá-lo a permanecer na sua cadeira. Eles podem não ter percebido, mas suas ações desafiaram seu demônio e Strider encarou a ambos. Eles o soltaram, mas ao invés de dar meia volta para a quadra de basquete, ficou onde estava. Mal se aguentando.

 Tentou sair uma vez antes disso, determinado a alcançar as Eagleshields do outro lado. Então Kaia apareceu dentro do ringue. Ele se viu correndo de volta para o seu lugar.

 Se ele se permitisse agir, abriria caminho através daquelas mulheres massacrando. Fim de jogo. Nada de entrega do primeiro prêmio — e se ele mesmo não conseguisse achar a Haste de Partir, precisaria que Kaia ganhasse. Além disso, Kaia seria humilhada pela sua interferência. Mas ele realmente não dava a mínima para o primeiro prêmio ou humilhação.

 Kaia estava bem?

 Ela saiu mancando, e uma eternidade parecia ter passado enquanto era espancada. E espancada um pouco mais. Felizmente as Harpias logo perderam interesse em sua forma inconsciente e voltaram a prestar atenção uma na outra. Quando Strider a viu, quase saltou de sua cadeira novamente. Sangue cobria cada polegada de seu rosto. Suas roupas estavam rasgadas e ensanguentadas. Suas mãos estavam inchadas, seu peito imóvel.

 Sabin se endireitou e espanou a pipoca que sujava seus ombros.

— Ela vai ficar bem. — ele disse. — Olhe para Bianka ali. Ela está puta, não assustada.

 Engraçado que o guardião da Dúvida estivesse tentando tranquilizá-lo, mas Strider obedeceu. Ele olhou. Bianka andava de um lado para o outro no topo das arquibancadas, e todo mundo ao seu redor havia saído de seu caminho a muito tempo. Ela pisava com tanta força na madeira que estava provavelmente rachada debaixo dela.

 Ele esfregou uma mão — uma mão trêmula! — pelo seu rosto, sua atenção voltada para Kaia, onde permaneceu por mais outra eternidade. Ela precisava beber dele. Ele queria que ela bebesse dele. Ela só tinha que se mover, só tinha que acabar com isso.

 Vamos lá, boneca. Você pode fazer isso.

 Seu time ainda poderia sair dessa e vencer. E mesmo que elas não… Não. Ele não se permitiria contemplar isso. O que importava, surpreendentemente, era Kaia. Ela estava indo tão bem, lutando com uma habilidade que o despertara. Sim. Ele a assistia enquanto ostentava um pau duro. Então aquele bando caiu em cima dela.

 Que diabos ela fez para merecer tal ódio?

 Da próxima vez que estivessem a sós, ela contaria a ele. Sem mais mentira, também. Não importa o quanto ela era sexy quando os deixava pelo avesso.

 Finalmente, movimento. Ela se contorceu. Todos os músculos do seu corpo enrijeceram. Ninguém notou quando ela piscou abrindo seus olhos. Ele soube o exato momento em que a claridade a atingiu porque seus dentes brilharam em um grunhido avermelhado. Mas quebrada como estava nesse instante, não havia nada que ela pudesse fazer para machucar aquelas que a feriram. Então ela fez a segunda coisa melhor que podia fazer. Rastejou para Taliyah.

 — Vamos, boneca. — ele murmurou, seus pensamentos traduzidos em palavras e passando triturados pelo nó em sua garganta. — Você pode fazer isso.

Vencer. Derrota esteve gritando pela vitória muito antes de Kaia entrar no jogo.

 Sim, ela vai. Deuses, ele nunca esteve mais orgulhoso de outro ser vivo. Nem mesmo de seus amigos, que lutaram com Caçadores ao seu lado, vigiando suas costas. Porque quando eles afundavam estavam fora da contagem. Kaia não. Ela continuava.

 A mão de Kaia se ergueu levemente, seu rosto se contorcendo numa careta. Alguém gritou e correu em sua direção, na intenção de impedi-la de fazer a marcação, mas por fim sua mão conectou com a da sua irmã e a Harpia de cabelos claros saltou furiosa.

 Segundos depois gritos de dor eclodiram em uma sinfonia de abuso. Corpos voaram — e não se levantaram. Até que uma Taliyah ofegante e salpicada de sangue era a única de pé no ringue. Ela marcou em Gwen, que simplesmente mancava ao redor chutando todas que estavam caídas. Gwen marcou em Neeka, que fez o mesmo. Neeka remarcou Gwen, que entrou pela terceira vez.

 Quando Gwen terminou, ela marcou em Kaia, que conseguiu rastejar mais algumas polegadas e chutou uma das caídas no estômago. Porém a ação deve ter agravado um pouco seus danos internos mais sérios porque ela perdeu a consciência por um tempo.

 — Vamos, Kaia! — Strider gritou.

 — Você pode fazer isto. — Sabin gritou por aquele megafone, e porra se Strider não gostaria que ele mesmo tivesse um.

 As outras Harpias começaram a despertar. Uma que Kaia chutou veio para ela com um solavanco, chacoalhando Kaia e a acordando no processo.

 — Porra, Kaia! Você é a melhor. Mostre a elas! — Strider quis vomitar quando ela foi mais uma vez atacada.

De algum modo, de alguma maneira, ela finalmente conseguiu rastejar para Taliyah e marcar nela.

 Ele pensou que elas conseguiriam. Pensou que ganhariam. Mas no final quando Kaia entrou pela terceira vez, elas a imobilizaram e espancaram tanto que a nocautearam, tirando seu time da competição. Pior ainda, o Time Skyhawk ficou em primeiro e o Time Eagleshield em segundo.

 

 

Algo quente deslizou garganta abaixo de Kaia. Tão delicioso, ela pensou, engolindo fracamente. Mais, precisava de mais, mas não teve forças para engolir uma segunda vez. Até que que o calor atingiu seu estômago. Ele se moveu rapidamente pelo resto do seu corpo, afugentando o peso frio de seus membros, energizando-a.

 Ela obrigou suas pálpebras a se separarem. Strider pairava sobre ela, observou, seu pulso pousado acima da sua boca. Sangue gotejava sobre seus lábios agora fechados e deslizava seu rosto abaixo. Ele estava com sua mão livre estendida, prestes a forçar sua boca a se separar. Quando percebeu que ela acordou, ele congelou.

 Seus lábios se separaram por vontade própria, outra porção de calor resvalando para seu estômago enchendo-a.

 — Assim. — disse ele, apertando seu pulso na abertura que ela providenciou. — Essa é uma boa menina.

Seus caninos se estenderam e ela o mordeu. Ela sugou, sugou e sugou, bebendo dos poderes curativos do seu sangue. Ele tinha gosto de vinho encorpado e envelhecido, polvilhado com chocolate e mel. Ninguém nunca saboreou nada tão bom.

 Enquanto saboreava, ela o estudava. Ele se sentou ao lado dela, seu quadril tocando o dela. Linhas de tensão ramificavam de seus olhos e boca, e sua pele estava pálida. Insegura de quanto sangue ele poderia se dar ao luxo de perder, ela se forçou a parar de beber.

 Ele arqueou uma sobrancelha.

— É suficiente?

 Não, mas teria que ser. Ela acenou com a cabeça. A ação provocou uma onda de vertigem, e ela fez uma careta. Ela respirou dentro e fora, lento, medido. Finalmente sua mente se acalmou, deixando-a sozinha com seus pensamentos.

 Ela se recordou de entrar no ringue, chutar traseiros — e então ter seu próprio traseiro chutado. Depois disso… droga, droga, droga. Ela estava deitada numa cama estranha em um quarto estranho. Isso significava… droga, droga, droga.

 — Onde estão minhas irmãs? — Uau. A voz estava horrível. Alguém deve ter esmurrado sua traquéia que nem um inferno.

 — Bianka voltou para os Céus com Lysander porque eu estava prestes a perder permanentemente sua capacidade de respirar. Ela estava oscilando. E Gwen está em algum lugar com Sabin, bebendo seu sangue, tenho certeza, e se curando. — A voz de Strider estava fria, distante. — Taliyah e as outras, não sei.

 — Mas todas as minhas garotas estavam vivas após a competição?

 — Sim. Todas elas.

 — E elas não estavam à beira da morte?

 — Não.

 O alívio a inundou. Tudo certo. Ok. Elas estavam vivas e se curando. Ela podia lidar com qualquer outra coisa. Talvez.

— Quem... quem ganhou?

 Ele correu sua língua pelos dentes.

— Sua mãe. Você e suas garotas não tiveram uma colocação.

 Por minha causa, ela pensou, seu peito esvaziando. Porque ela desmaiou, o que era quase tão ruim quanto uma desclassificação.

 Seus olhos estavam ardendo, então os fechou. Dane-se. Ela precisava de um tempo sozinha, precisava de um tempo para se recompor. Ou soluçar. Strider acabou de vê-la em seu pior momento. Ela não podia quebrar agora e piorar sua opinião sobre ela.

 Mais do que isso, ela estava horrorosa. De fato, ela precisava cobrir todos os espelhos na redondeza com uma mortalha de luto antes dela se ver e considerar a ideia de cometer suicídio.

 — Seja um bom consorte e vá me buscar uma garrafa da água, assim eu posso roubá-la de você. Estou com sede.

 — Beba suas lágrimas, chorona.

 Suas pálpebras se abriram de um estalo e ela o fitou boquiaberta. A vontade de chorar desapareceu completamente.

 — Como pode você me tratar assim! Onde está sua compaixão? Eu obviamente estou morrendo.

 — Qual é. Você tem uns poucos ferimentos insignificantes.

Insignificantes? Insignificantes! Ela relanceou o olhar pra si mesma. Suas roupas foram cortadas, deixando-a nua. Só que ela ainda parecia vestida. Sua pele estava cortada e rasgada em tiras em vários lugares, com contusões pretas e azuis ramificando em todas as direções.

— Estes são os piores ferimentos que você já viu, seu bastardo, e sabe disso.

 Seus lábios se levantaram nos cantos.

— Não. Uma vez me cortei com papel entre o dedo indicador e o polegar. Você não sabe o significado de dor até que experimente algo assim.

Ele. Estava. Se. Divertindo.

— Você está a cinco segundos de distância de uma punhalada no coração. — Ofegando e bufando, ala ergueu as cobertas até o queixo. Cada movimento causava uma onda de agonia. No entanto valeu a pena estar nua na frente de Strider — sem problema. Estar nua e ferida? Infernos, não!

— Cuidado com seu tom, ok? Meu demônio está apresentando problemas. — Mesmo enquanto falava, ele gentilmente arrumou o tecido macio em volta dela.

 Um pouco de sua raiva drenou.

— O que você quer dizer com apresentando problemas?

— Ele está ansioso por uma briga.

— Por que? — Ela sabia que não devia dizer qualquer outra coisa, sabia que Strider estaria irritado, não entenderia, mas era para seu próprio bem. — Duvido que você possa me dizer de uma maneira que eu consiga entender.

O longo comprimento de seus cílios se fundiram juntos, a raiva de repente pulsando dele.

— Ele estava torcendo por você. Ele assistiu você perder. Aquilo o perturbou. Ele não me machucou, mas agora ele precisa ganhar alguma coisa. Entendeu?

 — Sim. — Seu demônio torceu por ela? Realmente? Foi aquela voz que ela ouviu como suspeitou antes? — Obrigada.

— Isto não é algo para se sorrir.

Ela estava sorrindo? Oh, sim. Ela estava. Ela suavizou suas feições.

— Tudo bem. Vou me comportar. Agora, não se sente melhor?

 Um momento passou antes que a tensão que ela sentia nele fosse drenada. Ele ganhou. Uma pequena escaramuça, sim, mas mesmo assim ele venceu, garantindo ao seu demônio algum tipo de vitória e esperava que o acalmasse.

— Você fez isso de propósito. — disse ele, pensativo.

— E daí?

— E daí que você é doce. — Ternamente ele alisou sua sobrancelha. — Vamos ter uma conversa. Se você estiver se sentindo bem. — acrescentou.

O calor do seu corpo a encapsulou seguramente mais do que o cobertor.

— Por que não me sentiria bem? Ferimentos insignificantes, lembra? — Enquanto seu tom seco ecoava, ela começou a entender algo mais sobre Strider. Ele não demonstrou qualquer simpatia antes porque percebeu o quanto ela estava perto de um colapso. Qualquer suavidade a teria sobrecarregado e desmoronaria. Ela ia se ressentir com ele pelo colapso, e teria se preocupado com as consequências. Agora, não tinha que se preocupar. Ela simplesmente podia desfrutar dele.

— Você está bem? — Ele perguntou suavemente. — Seja honesta.

— Estou bem.

— Você precisa de mais alguma coisa?

— Uma massagem nua.

Suas pupilas se expandiram, engolindo suas íris.

— Além disso.

— Além disso, além disso. — ela zombou, obrigando-se a olhar para ele. — Olha, posso dizer que você está sinceramente um pouco preocupado com meu bem-estar físico, mas se não me conseguir um pouco d’água como eu já disse a você que precisava, eu vou pessoalmente...

 — Claramente você está se sentindo bem para uma conversa. — Seu lábios se contraíram em um sorriso aberto desta vez.

Assim. Muito melhor. Ele não queria que ela desmoronasse, e ela não queria que ele torturasse a si mesmo sobre a sua condição.

 — Por isso… — Ele levantou uma garrafa reluzente e acenou com ela em seu rosto. Algumas gotas de condensação espirraram no seu peito e ela ofegou. — Eu posso admitir que tenho o que você quer, e explorar você.

A súbita secura da sua boca fizeram suas gengivas doerem. Ela mentiu antes sobre estar com sede, mas agora vendo aquela garrafa, ela queria. Tinha que ter. Morreria se não tivesse.

 — Dá pra mim.

 — Uh-uh-uh. Você quer isso — ele disse numa voz cantante. —, vai ter que ganhá-la. Então eu farei algumas perguntas e você me dará as respostas. E, só pra você saber, também tenho um hambúrguer e um milk-shake de chocolate para te pagar.

 Ela lambeu seus lábios, odiando-o e amando-o ao mesmo tempo. Era exatamente por isso que ela nunca vazou os segredos das Harpias. Eles poderiam ser usados contra ela. Mas através de Gwen, Strider soube que Kaia realmente tinha que ganhar sua comida. Se ele fizesse uma pergunta e ela aceitasse o pagamento pela sua resposta, não poderia mentir para ele. Caso contrário ela adoeceria, assim como adoeceria se comesse algo que preparasse para si mesma.

 Uma vez mais ele acenou com a garrafa de água.

 — Negócio fechado?

 — Negócio fechado. — ela cuspiu entre dentes, não tendo mais que falsificar o reaparecimento da raiva. Ele ia querer saber sobre a próxima competição. Ela sabia disso. Ela...

— Diga-me por que as Harpias te odeiam tanto.

Estava errada. Ela caiu contra o colchão e olhou para o teto. Danos causados pela água escureceram vários painéis. Eles estavam em outro motel barato, então. Provavelmente ainda estavam em Wisconsin.

— Estou esperando, boneca.

— A resposta não é importante.

— Serei o juiz disso.

 Ela suspirou.

— O homem… o homem de Juliette. O que você viu no dia da apresentação. Quando eu tinha quatorze anos eu quis que ele fosse meu escravo, para lavar minha roupa, esse tipo de coisa, então tentei roubá-lo e provar meu valor. Minha força. — Enquanto falava, ela começou a tremer. Se ela contasse o resto a ele, a verdade, ele a deixaria. Assim como a maior parte do seu clã a deixou. Como não deixaria? Ele acabou de vê-la perder. Ouvir que ela sempre foi um fracasso, que ela provavelmente nunca mais…

Ela realmente queria tanto aquela garrafa de água?

 — E? — Ele insistiu.

Melhor perdê-lo agora, ela racionalizou. Ele só estava ficando pela Haste, de qualquer maneira se ele partisse ela não teria que se preocupar com a próxima competição. Sobre perder na frente dele novamente.

 — Em vez disso — ela terminou — , eu o libertei e ele quase me matou. Ele teria me matado se não fosse por Bianka. Ela o tirou de cima de mim e ele se virou contra ela. Então, claro, ele se voltou para todos os outros. Foram perdidas mais Harpias naquele dia que qualquer outro em nossa história. Mesmo durante as Grandes Guerras de Território, quando lutamos contra outras espécies.

Strider franziu o cenho.

— Se ele feriu a tantos, por que não foi culpado pelo que aconteceu? Ninguém olhou para ele com ódio em seus olhos. Ninguém foi para sua garganta.

Essa era a sua reação? Por que ele não correu?

— Juliette o tinha contido. Eu soltei suas correntes. Se tivesse ficado afastada, ele não teria a chance de fazer nada.

— Tudo bem, então me responda isto. Se ele é tão perigoso, por que Juliette o manteve ao redor?

— Uma Harpia perdoará seu consorte por quase qualquer coisa. — ela murmurou.

Um momento de silêncio.

— Afinal, o que o consorte de Juliette é? — Ele perguntou, optando por não comentar sobre sua revelação de “perdoar quase qualquer coisa”. Por que? Ela tinha acabado de lhe dar um passe livre eterno.

— Não é um humano, isto é certo.

— Eu não sei o que ele é. Nunca encontrei alguém como ele, e desde aquela época também não.

Seus lábios se apertaram.

 — Então você não dormiu com ele?

 — Eu tinha quatorze anos. O que você acha? — Ao seu olhar vazio, ela fez uma careta. — Espere. Não responda isso.

— Deuses, você está ofendida. Sei que não dormiu com ele. Só queria ouvir você dizer isso. — Ele traçou com um dedo sua mandíbula, gentil, tão gentil. — E obrigado. Pela verdade desta vez.

 Não derreta. Ele não tinha exatamente se declarado.

— Obrigado? É tudo que tem pra me dizer?

— Sim. O que? Esperava um limerick[18]?

Não. Ela esperava uma conferência e um adeus.

— Por causa do que fiz, eles me chamaram de Kaia a Decepção. — Ali estava. Agora ele sabia de tudo. Agora ele sabia que a pessoa em quem ele depositou sua confiança e fé — bem, mais ou menos — não seria capaz de retribuir.

— O que se passa com as Harpias e os apelidos? — Ele perguntou, novamente a surpreendendo.

 Toda vez que alguém a chamava de KtD (Kaia a Decepção), ela morria um pouco por dentro, mas Strider agia como se não fosse nada demais.

Ela não sabia se ria ou chorava.

— Eu não me preocuparia sobre nós e os apelidos que colocamos. Nós não te demos um ainda.

 Algo perigoso cintilou em seus olhos, estava lá em um momento, e se foi no próximo.

— Eu me importo com o que você me chame. — Sua voz era desinteressada, sem emoção, não oferecendo nenhuma dica sobre o que ela vira. Ele era um babaca às vezes. Bem, vamos ver o seu “não me importo” e levantar um “o que você acha disso?”

— Só pra você saber, nós chamamos Paris de Sexorcista.

 As narinas de Strider dilataram conforme respirou forte. O silêncio tomou conta por tanto tempo, que ela começou a se sentir culpada. Então ele disse firmemente.

— Você ganhou seu primeiro pagamento. — Ele torceu a tampa da garrafa de água, deslizou uma mão morna debaixo do seu pescoço e a ergueu. Seus lábios encontraram a cascata fria de líquido e ela esqueceu tudo sobre a culpa.

 Ela engoliu como uma louca, e Deuses, cada gota tinha um gosto melhor que a última. Quando ela terminou, Strider amassou o plástico e o lançou por cima do ombro. Ele a deitou novamente e a liberou. Ela apertou seus lábios para se impedir de implorar por mais contato.

 Ele se inclinou na mesinha de cabeceira e pegou um pedaço do hambúrguer que já estava cortado em quatro. Seu estômago se agitou, grunhindo.

 — Acho que não tenho que perguntar se você está com fome. — ele observou com um sorriso.

 Em-ba-ra-ço-so, mas pelo menos ele perdeu aquela borda sem emoção e ainda estava determinado a falar com ela. Milagre dos milagres. Ela não reclamaria novamente.

 — Se você quiser isso, terá que me dizer se acha honestamente que pode ganhar a próxima competição. Pra não falar a próxima e a próxima. Porque depois desta última rodada, gosto da ideia de roubar a Haste cada vez mais.

 Havia um traço de remorso em sua voz, e ela soube profundamente em seus ossos que ele queria roubar a Haste de Partir não importava o que ela dissesse. Se ele pudesse. Porém o que ela não sabia, era por que ele se importava com sua opinião relativa aos próximos jogos no momento.

 Ele deve ter lido a pergunta em seus olhos porque disse rispidamente.

— Eu não quero que você se machuque assim novamente.

 Uma dor floresceu no seu peito. Ela lhe daria uma resposta. Não pelo hambúrguer, mas por causa da sua preocupação.

— Eu... — Merda. Honestamente? Ela pensou que poderia vencer uma rodada, que conhecer os outros times que viriam depois dela lhe daria uma vantagem. No entanto eles convergiram para ela e ficou impotente.

 Da próxima vez elas fariam outra jogada para ela, para cada membro da sua equipe. Não havia nenhum modo de fugir disso. E ela não podia reclamar sobre justiça porque se a situação fosse inversa, ela faria a mesma coisa para quem ferisse sua família.

 Família. A simples palavra ecoava em sua mente, e ela se lembrou da dúvida de Taliyah. Toda sua vida ela só quis ser admirada. Amada. Respeitada. Toda sua vida ela apenas desapontou todo mundo. Ela era Kaia a Decepção.

— Desculpe, eu perdi. — ela sussurrou.

 Sua expressão suavizou e seus dedos encontraram seu caminho de volta para sua sobrancelha, acariciando.

— Você não me decepcionou. Ninguém poderia ter tirado uma vitória do chapéu com aquele tipo de oposição.

 Reconfortante, mas no fundo ela sabia que ele teria encontrado um modo. Ele sempre fez.

 — Porém, você me preocupou. — ele acrescentou, o tom áspero retornando. — Não vou mentir sobre isto.

 Falando como um verdadeiro consorte, ele a encheu de desejo. Ela queria isto, queria a ele. Agora, sempre. Assim. Por ele, ela acharia um modo.

— Sim. — ela finalmente respondeu. — Eu posso vencer a próxima competição.

Fria, dura, impiedosa. Assim que ela teria que ser. E iria. Ela provaria seu valor, como sempre quis fazer. Ninguém a impediria.

 Os pensamentos do tipo assassino foram arruinados quando ela bocejou.

 Strider a alimentou com o hambúrguer, em seguida fez perguntas fúteis, fáceis de responder de forma que ela pudesse ter o milk-shake como pagamento. Quando ela terminou, ele disse.

— Descanse agora. Tenho grandes planos para você mais tarde.

 O olhar dela grudou no ápice de suas coxas, para a semi-ereção que ele ostentava no momento.

 Um risada explodiu dele.

 — Harpia de mente suja.

 — Você disse grande. Simplesmente presumi… — Espere…

 — Durma. — ele ordenou sorrindo.

 — Bem, foi isso o que quis dizer ou não? — Suas pálpebras tremularam e fecharam, mas ela estava sorrindo também.

 — Você só vai ter que esperar e descobrir.

 

Havia uma pequena chance que William estivesse meio surtado, talvez ido um pouquinho longe demais. Ele, é claro, seria o primeiro a admitir que poderia ter cometido o menor dos erros. Erro ou não — em sua maior parte não — ele não podia ser responsabilizado, ele pensou enquanto chutou de seu caminho o que restou dos pais de Gilly.

Conclusão: Eles pediram por isso. Literalmente pediram por isto. Enquanto ele “trabalhava,” ouvia “Scotty Não sabe” de Lustra, uma de suas canções favoritas porque sentia como se a letra simbolizasse sua vida, ele deu injeções de adrenalina em seus alvos, impedindo-os de passar desta pra melhor. Claro, também fez um torniquete em suas veias, interrompendo a hemorragia.

Desmaios e perda de sangue arruinavam uma boa tortura toda maldita vez.

Perto do fim, quando eles perceberam que não existia nenhuma esperança de sobreviver, começaram a implorar.

Só depois que confessaram seus pecados, enfurecendo-o além de toda a razão, foi quando soube que o abuso que imaginou não chegava perto da verdade, que Gilly suportou muito pior, que acabou com eles.

Ele quase desejou que não ter feito. Teria sido bom esticar a sessão por mais alguns dias. Oh, bem.

 Agora ele tinha uma limpeza pra fazer.

 William deu uma volta completa, examinando o massacre e tentando decidir por onde começar. Talvez ele devesse apenas ir embora. Havia muita coisa para fazer. Então recordou o modo como os humanos gostavam de surtar, como as estações de notícias gostavam de soltar histórias de “psicopata à solta”, e percebeu que essas palavras alcançariam Gilly. Não que ele quisesse mantê-la no escuro sobre o que aconteceu. Ele diria a ela. Um dia. Num futuro distante. Quando ela fosse mais velha. Daqui a… uns cinquenta anos, talvez.

 Depois de tudo que estas pessoas — não, estes monstros — fizeram, ela não estaria chateada. Como poderia? Eles a machucaram das piores maneiras quando ela era muito jovem e fraca para se proteger. Ele simplesmente devolveu o favor.

 Seu estômago se agitou quando um pensamento lhe ocorreu. Quem sabe ela mesma gostaria de matá-los. Para ter sua própria vingança, chegar a uma conclusão, esse tipo de coisa. Ou, e se ele estivesse errado e ela apenas quisesse que os deixassem em paz? Os humanos eram tão particulares sobre as linhas que se podia ou não atravessar, e Deuses proibam se você ousasse pular sobre uma. Você era rotulado para sempre como mau e diabólico.

 Como aconteceu há muito tempo com o bom amigo de William, Vlad o Impalador. Decapitar alguns milhares de inimigos, espetar seus corpos em lanças e exibi-los para o mundo ver e pronto, você era “o mal.” Isto era ridículo!

 Para os humanos, tortura e morte não eram simplesmente uma parte do círculo da vida. A tortura era desaprovada, considerada desumana, e a morte de um membro da família era uma razão para lamentar. Eles não entendiam que a alma exercia uma capacidade ou outra que poderia igualar corretamente, e a fraqueza convidava a ira dos seus adversários.

 — Que porra você fez? — Uma voz masculina de repente ofegou atrás dele.

 William girou e se achou diante de um Kane muito pálido.

— O que você está fazendo aqui? De fato, como chegou aqui?

 Os olhos castanhos de Kane não se desviaram dos destroços.

— Eu pedi às Parcas para me enviar até você. — ele disse distraidamente. — Quantas pessoas você removeu aqui? Cem?

 — O que você estava fazendo com as Parcas? Ninguém consegue vê-las. E por que diabos veio me buscar?

 — Elas me convocaram e nós chegamos a isto. — Ele apontou para algo no chão. — O que é isso?

 William não se incomodou em olhar.

— Importa? Pegue um saco de lixo e comece a jogar fora. — Por que as Parcas convocaram Kane? A segunda pergunta formulada William descartou. Ele realmente não se importava.

— Temos muito o que fazer em pouco tempo.

 Recrutar o guardião do Desastre não teria sido sua primeira escolha — que eles nunca sairiam realmente. E além disso, Kane atraía o tipo de problemas que ele preferia evitar, durante algum tempo pelo menos — mas William não reclamaria.

— Quem são, eram, estas pessoas?

— Os nomes estão na moda, você não acha? Tudo que você precisa saber é que eles me ofenderam.

— Ofenderam você. — Kane ecoou, ainda imóvel.

— Sim.

Kane encontrou seu olhar fixo.

— Seus nomes não aconteceriam de serem os pais da Gilly, não é? Porque, pelo que eu ouvi, você estava procurando um pedaço deles. Vários pedaços, pelo que parece. — Não havia condenação em seu tom, só aceitação.

A falta de condenação não importava. Nunca confirme nem negue algo que você fez, mas sempre ameace aqueles que te questionam. Este sempre foi o lema de William.

— Conte a alguém sobre isto e eu pessoalmente garantirei que seu pâncreas receba o mesmo tratamento.

 Kane não mijou nas calças de medo. Só piscou pra ele.

— Afinal, por que você estava com as Parcas? — Ele ainda não se importava, mas teria discutido algo tão chato quanto o tempo se isso significasse uma mudança de assunto.

Kane balançou sua cabeça, aquelas mechas marrons, pretas e douradas balançando contra sua face. Sem uma palavra ele foi para a cozinha. Voltou um pouco depois com dois sacos robustos na mão. Ele entregou um a William.

— Obrigado.

Quietos, trabalharam lado a lado por meia hora.

Kane arruinou isto com um suspiro.

— Então você perguntou sobre as Parcas.

— Também perguntei por que veio me ver em particular. Eu já perdi o interesse.

— Bom, encontre-o novamente. Você vai querer ouvir isso, já que afetará você e tudo o mais.

Jogada inteligente, oferecendo um pedacinho de informação para seduzi-lo. William frequentemente usava a mesma tática.

— Solte já.

— Elas me disseram… elas me disseram... — Kane lançou um último pedaço em seu saco de lixo e esfregou seu rosto cansado. — elas me disseram que eu começaria o Apocalipse.

Uma pequena palavra desagradável, Apocalipse. William fez uma pausa.

— Elas o que?

— Você me ouviu. — Sua mão caiu no colarinho da sua camisa e ele empurrou o material. — Eu não vou me repetir.

— Você está com o Desastre então isso faz sentido, mas não há nenhuma maneira em que você poderia... — Cada músculo do corpo de William de repente se enrijeceu quando um pensamento passou pela sua cabeça. — Oh, inferno, não. Você não vai dormir com ela, você me ouviu?

Confusão franziu a sombrancelha de Kane.

— Dormir com quem?

 Ele não precisou disso.

— Por que as bruxas enviaram você aqui, pra mim? — Cada palavra estava mais cortada que a última.

— Porque ouvi que você está ligado a Lúcifer ou algo assim. Que você criou os Quatro Cavaleiros. E já que aqueles cavaleiros desempenham um papel enorme no fim do mundo, eu assumi... o que? Por que você parece que está prestes a vomitar?

 Isto era ruim. Mau, mau, mau. Se as Parcas disseram a Kane que ele começaria o Apocalipse, então ele começaria o Apocalipse. Mas o fato que Kane pensou em visitar William… significava que o Apocalipse poderia começar mais cedo que alguém percebesse.

— Eu não sou ligado a Lúcifer. Será pelo mano ter rasgado meu braço da sua tomada quando eu fiz uma visita ao seu pequeno spa do Submundo? Heim, heim? Não!

 — Não, mas um irmão poderia. Rivalidade entre irmãos, e tudo isso.

 — Ele não é meu irmão! — A mentira escapou facilmente, automaticamente, da mesma maneira que escapou na maior parte de sua existência. Mas este era um Senhor do Submundo. Como se ele pudesse julgar. — Tudo bem. Ele é meu irmão.

E oh, mastigou a admissão. A rivalidade entre irmãos não começava a explicar o ódio entre eles.

— O que dele?

 Ok, espere um segundo. Ele acabou de perceber uma coisa. As Harpias eram descendentes de Lúcifer. Lúcifer era seu irmão. Portanto o pequeno amasso de William em Kaia era...

 Caralho! As palavras explodiram através dele e estremeceu. Kaia teria que viver sem a felicidade deste toque.

 Caramba! Seu irmão arruinava toda a diversão dele.

 Uma lâmpada entrou em curto, faíscas douradas pulverizando ao redor de Kane. Ele nem prestou atenção.

— Nada. Estou apenas curioso. Os cavaleiros são bons ou ruins? Do nosso lado ou de mais alguém?

— Não sei. — Só que ele sabia.

— Tudo bem. Vamos tentar de outro modo. Você mencionou algo sobre uma mulher… sobre eu dormindo com ela… — Nenhuma reação.

 — Então?

 — Então com quem eu não deveria dormir, oh, Príncipe das Trevas?

 Sim. Mais cedo que alguém percebeu.

— A única mulher cavaleiro. — ele murmurou, algo apertando seu peito. — Ou amazona. O que seja. Eles realmente não se preocupam com o sexo lá embaixo.

 — Ok, estou confuso.

 William caçou uma cadeira limpa no quarto e se jogou em cima dela. Quanto se pareceria com uma garota se pusesse sua cabeça entre as pernas? Então novamente, ele pareceria muito mais uma garota se hiperventilasse.

— Aqui está, vou soltar tudo. Lúcifer e eu temos mães diferentes, mas compartilhamos o mesmo pai. Hades.

— Espere. Pensei que Hades e Lúcifer eram irmãos.

— Como muitas pessoas, porque alguns deles apreciam tanto em espalhar o boato. Mas aqui está outra grande surpresa — ambos são mentirosos. Enfim, quer ouvir o resto ou deveria deixar você terminar de me dizer tudo que não sabe?

 Os olhos de Kane se estreitaram em fendas mas ele acenou uma mão no ar.

— Eu não gostava de viver lá. — Eufemismo. Fora um inferno. Há! William tinha acabado de fazer uma piada. — Eu encontrei uma maneira de purgar um pouco da escuridão de dentro de mim, e assim os Quatro Cavaleiros foram criados.

— Como eu não sei disso? Meu demônio morava lá também.

— Alô, Desastre existia no lado de Lúcifer. Nós tivemos um pouco de dificuldade em compartilhar e tivemos que dividir o espaço em reinos diferentes. Luci ficou com o fogo e os demônios, blá, blá, blá e eu fiquei com o purgatório e as almas.

Embora, seus subordinados tenham se infiltrado e me roubado, mas eu o perdoei por isto. — Perdão na forma de uma maldição, ele pensou com um sorriso. Uma que Luci nunca seria capaz de quebrar.

 — O que isso tem a ver comigo? — Kane perguntou.

 — Vou chegar lá. — O que dizer, o que dizer. Hades escolheu o lado de Lúcifer.

Aparentemente ele visualizou William como um constrangimento que não tinha uma verdadeira alma “do mal”.

Primeiro, aquilo era lixo. Ninguém era mais do mal que William. Olhe o que ele fez com estes humanos. E ele não estava nem um pouco arrependido! Segundo, não havia nada errado em querer romper a tradição familiar e ser ele mesmo.

Você está divagando. Quando os gregos tomaram os céus aprisionaram os Titãs, e Hades, que ajudou a reivindicar o trono de Zeus, foi considerado incontrolável e encarcerado também. William usou a distração divina para vantagem própria e finalmente escapou.

 Não querendo guerra para o trono do Submundo e querendo tudo pra si mesmo, Lúcifer o ajudou.

William passou muitos gloriosos séculos depois danificando qualquer coisa que se movia. Até Hera, amada Rainha de Zeus. É claro, Zeus finalmente o pegou com as calças arriadas, e antes que pudesse pular uma janela celestial, William se encontrou amaldiçoado e trancado ainda em outra prisão.

 Agora ele estava livre, e podia piscar para locais diferentes mais uma vez. A vida era doce!

— William?

Ele piscou.

— O que?

— Você estava a ponto de me dizer como isto tem alguma coisa a ver comigo.

— Não, eu não estava.

— Porra, diga por que você acha que vou dormir com uma de sua fodida descendência. — Kane exigiu com um tremor. — Porque isto é bruto. Eu já estou com o vômito em minha boca.

Ele descansou seus cotovelos nos joelhos e olhou. Respirou profundamente.

— Para você começar o Apocalipse teria que ajudar um cavaleiro a ser livre. E a única razão que eu posso pensar em você ajudar a livrar um daqueles bastardos é porque se apaixonou. Você não gosta de homens, de forma que sobra a minha garota. E a única razão que você se apaixonaria era porque dormiu com ela. — Soltou o ar.

Kane bufou.

— O que, as partes da garota são amarradas com rachaduras?

— Basicamente, sim. — ele disse, impassível.

Na última parte Kane perdeu seu ar de incredulidade.

— Melhor prevenir que remediar. Eu não visitarei o inferno. Então, problema resolvido.

— Gosto de seu modo de pensar, mesmo que seja no Mundo Estúpido.

— Ei.

— Ouça. As Parcas não são amáveis. Elas não o soltaram aqui fora pela bondade dos seus corações. Elas não tem corações. Elas viram você começar o Apocalipse, então começaram a organizar os dominós em fila. Você agora enfrentará a tentação em cada esquina e de alguma maneira, de algum jeito, elas o levarão para o inferno.

 Antes de Kane poder formar uma resposta, algo entrou pela janela quebrando o vidro, rolando entre eles. Eles olharam para aquilo, então um para o outro. Uma granada.

— Oh, merda. — William disse saltando de pé.

— Fogo no buraco. — Kane gritou, chegando até ele.

Muito tarde. Bum!

O fogo lambeu sobre ele — e cerca de mil estilhaços de madeira e pedra — que a intensa pressão do ar o enviou voando. Pra cima, pra cima, ele voou. Pra baixo, pra baixo, ele caiu. Quando caiu foi de cabeça, rachando seu crânio.

Kane caiu em cima dele, esmagando-o. O guerreiro não voltou pra cima.

Maldito Desastre. William sabia exatamente a quem culpar por isto.

— Você… tudo bem... cara? — Ele conseguiu trabalhar a pergunta de sua garganta arranhada.

Algo duro golpeou sua têmpora e escuridão o engoliu em uma mordida gostosa. Ele não soube de mais nada.

 

 

William… flutuava. Um segundo depois do pensamento formado, algo frio e duro pressionou contra suas costas navalhadas. Rodas começaram a chiar, pequenos solavancos de cima abaixo disparando fogo por ele, e percebeu que estava deitado numa maca e alguém o levava embora. Sem gemer. Sem se encolher.

 — Este aqui parece morto. — uma voz masculina disse. Era estranha. Sem comparação. Com a rouca qualidade de um fumante.

 — Não, senhor. Ainda não. — Outro homem, este aqui jovem, provavelmente no início dos vinte anos. — Mas se acha que ele está ruim, você deveria ver o outro. O demônio.

— Agora que não vai fazer. Preciso de ambos vivos.

— Mas, senhor.

— Não me questione, filho. Faça o que for preciso, mas mantenha estas duas criaturas vivas.

Uma pausa, uma audível engolida em seco.

— No entanto este aqui não é um demônio. Nós deveríamos...

— Eu não me importo que diabo ele é. Ele estava com o outro dentro daquele banho de sangue. Ele merece o que vai receber.

Sem pausa desta vez.

— Sim, senhor. Eu concordo, senhor.

A maca deu outra pancada, um solavanco maior, batendo cabeça do William pela segunda vez. Assim como antes, não havia modo de parar a escuridão.

 

Bip. Bip. Bip.

O lento e rítmico bip misturado com o som de passos apressados e respirações frenéticas. William piscou para abrir seus olhos, e Deuses, como doíam. Era como se tivesse farpas debaixo de suas pálpebras e cada um daqueles pedacinhos afiados de madeira raspavam suas córneas. Quando ele finalmente foi capaz de focalizar, ele franziu a testa.

Uma grossa camada de filme cobria o quarto e todos nele. As pessoas estavam correndo ao redor dele, mas ele não podia perceber suas características.

— Nós o estamos perdendo! — Alguém — uma mulher — gritou.

— Seu demônio...

— Eu sei! Eu estou fazendo o meu melhor, mas pode não ser bom o suficiente.

Eles estavam falando sobre Kane. Sobre perder... William tentou levantar seus braços. Ele ajudaria a salvar o guerreiro. Só que seus pulsos estavam amarrados na cama, e ele não teve força para se libertar.

Mas que diabos?

— Doutor, este aqui está acordando.

— Droga, não estou pronto para lidar com ele. Dê mais dez ml. Ele se manterá assim até que eu tire este aqui da zona de perigo.

Algo afiado espetou seu ombro, e sua mente de repente ficou fora de controle.

 

 

— Está tudo bem, garotão?

William abriu caminho pra fora da escuridão e imediatamente se arrependeu. A dor! Doía por toda parte. Sua pele parecia carbonizada, seus ossos tão moles quanto pudim e tão macios quanto.

 — Assim mesmo. Só um pouco mais.

 Suas pestanas se separaram. Por um momento o mundo girou. Mas logo, tudo se endireitou e ele encontrou o olhar decidido de uma mulher bonita. Fadiga delineava suas delicadas feições tensas. Ela usava um jaleco branco e tinha um estetoscópio pendurado em volta do pescoço. Seu cabelo loiro estava puxado pra trás num rabo-de-cavalo, e um par de aros como piercing enfeitavam seu nariz.

 — Você provavelmente está se perguntando quem sou eu e por que você está aqui.

 Isso seria uma enorme e gorda afirmativa, entretanto ele podia adivinhar a resposta. Os Caçadores fizeram sua próxima jogada. Ele se lembrou de ouvir o ódio nas vozes do “senhor” e companhia quando eles discutiram os Demônios.

 O olhar de William se moveu para seus pulsos amarrados e seus tornozelos presos. Eles não confiaram em cordas resistentes, mas usaram grossas correntes pesadas. Em seguida ele fez um balanço de seus ferimentos, e percebeu que só um milagre o mantinha inteiro. Ele se sentiu como uma caixa de Natal cortada em tiras, sua carne tão rasgada que podia ver o músculo igualmente rasgado embaixo.

 — Bem? — A mulher começou.

 — Não importa. — Ele teve que destravar seu maxilar pra falar, fazendo com que suas têmporas latejassem. — O homem… — Nenhuma outra palavra se formaria, sua garganta simplesmente muito crua.

 — Ele está vivo. — ela respondeu, sabendo o que ele desejava.

 Graças aos Deuses. O alívio o inundou. Ele podia lidar com qualquer outra coisa que ela dissesse.

 — Eu não queria ser a que te contasse isso, mas você tem o direito de saber. Seu amigo… neste momento ele está sendo transportado para o mais profundo abismo do inferno.

 A não ser isso.

 

Kaia sabia que Strider possuía uma veia brutal, e pensou que gostava daquilo nele. Agora, tinha absoluta certeza que aquela veia iria matá-lo. Porque estava doida pra matá-lo! Dolorosamente. Depois que ela bebesse dele até deixá-lo seco, assim.

 Seus “grandes planos” para ela? Mais de beber sangue. Ou pelo menos foi isso que ela presumiu. Um dia inteiro se passou desde que acordou de seu cochilo, mas aquilo foi tudo que ele a deixou fazer.

 Claro, ela tinha que garantir que ele lamentasse sua escolha. Tinha que mostrar a ele as consequências de provocá-la a pensar que eles se beijariam e tocariam e, bom, fariam amor doce e sujo até que seus corações explodissem de tensão.

Ela não precisava de mais sangue. Mais cedo seus ossos estalaram de volta ao lugar e seus cortes se juntaram. Estava completamente curada, totalmente capaz de algo encantador, mas de hora em hora ele cortava seu pulso e segurava o ferimento em cima da sua boca. Mesmo agora, ela estava sugando, engolindo um bocado delicioso de seu sangue rico e quente, agora temperado com a doçura da canela.

O calor se estendeu, como toda vez que ele a alimentou assim, fazendo cócegas em suas terminações nervosas, lembrando-a do que eles não estavam fazendo.

 — Só um pouco mais. — ele disse, sua voz com todos os tipos de rouquidão. Seu antebraço dobrado embaixo dela.

Seus olhos se fecharam enquanto saboreava seu sabor decadente, seus pensamentos homicidas desaparecendo. Ela alguma vez teria o suficiente dele? Não, nunca, ela decidiu um segundo mais tarde. Ele verdadeiramente a viciava. Não só com seu beijos, como ela já havia percebido, e não somente com seu sangue, mas com sua presença. Seu sorriso mau, seu senso de humor.

O que faria se ele a deixasse depois dos jogos como planejado?

Normalmente diria a si mesma que acharia um modo de mantê-lo. Ela daria tapinhas em suas próprias costas por sua força e astúcia, e se aqueceria no conhecimento que podia fazer qualquer coisa que desejasse. Mal tendo acabado de sobreviver a um traseiro espancado de uma vida inteira, ela não estava tão otimista. Além disso, suas esperanças tinham que ser dirigidas aos jogos por vir.

Então, pelos Deuses, ela acumularia mil memórias diferentes de Strider. Por via das dúvidas. Elas lhe fariam companhia durante os longos e frios invernos sozinha, e dormiria ao seu lado durante as quentes noites de verão ardente. Não importando onde estivesse e com quem, ela nunca mais estaria sem ele.

A fim de fazer aquelas memórias, primeiro teria que seduzi-lo. Logo. Esqueça a vingança. Até agora seu corpo cantarolava para ele, desesperado para um contato mais íntimo. Se pelo menos ele a deixasse beber de sua jugular…

Ela pediu, repetidamente, e ele disse não, repetidamente. Ele não confiava nela? Ou em si mesmo?

Ela imaginou persuadindo-o para o colchão e se esparramando em cima dele. Seus seios na malha do seu peito e seu núcleo se estabilizaria sobre sua ereção pulsante. E sim, ele teria uma ereção. Ela se certificaria disso.

Ela se esfregaria contra ele enquanto bebesse. Ele gemeria, suas mãos se fixando em seu traseiro para movê-la mais rápido, mais duro contra ele. Logo isso não seria suficiente para nenhum deles, e ele rasgaria suas roupas. Ela rasgaria as dele. Eles ficariam nus e...

 Antes dela poder engolir outro gole do seu sangue ele se afastou, removendo suas presas de sua veia e cortando todo o contato.

— Basta. — ele disse arquejando. — Você está corretamente medicada agora.

 Ela estava se contorcendo na cama, percebeu arquejando. Foi angulando em direção a ele, suas pernas se abrindo, seu núcleo desesperado por ele. Deuses, ela já estava molhada, dolorida.

 Ele se levantou e foi embora. Parou e girou. Então a encarou se apoiando contra o rack da TV. Ela se sentou, trêmula e quente, apreciando sua primeira visão completa dele desde que saiu do banheiro há alguns minutos atrás, depois de ter tomado banho e trocado suas roupas pelas limpas que Bianka trouxe pra ela. Naquela hora ele já tinha se posicionado na beirada do colchão e assinalou pra ela.

 Ela pensou… esperou… mas não. Ela o alcançou e em vez de jogá-la pra baixo e conquistar Kaialand[19], ele a jogou abaixo e a alimentou novamente.

Enquanto ela o estudava, perdeu seu fôlego. Seu transado cabelo pálido ao redor do seu rosto de anjo caído. Seu lábios estavam vermelhos, como se ele os tivesse mordiscado. Muito. Ele vestia uma camiseta preta onde se lia “ Eu amo William”.

 — William me deu. — ele disse com um dar de ombros, notando onde seu olhar demorou.

Só de ouvir o nome de William fez ela rir por dentro. O encantador de cabelos escuros tinha uma queda por ela, e mal podia esperar até que ele percebesse por que sempre o recusou. Ela provavelmente riria tanto que se mijaria!

 Enfim, não se importava com a camiseta de Strider, mas sim o peito musculoso debaixo dela. Eles eram duros e bem definidos, seus mamilos ligeiramente enrugados, definitivamente digno de ser lambido. Na bainha da sua camisa podia ver a protuberância de suas armas, enfiadas no jeans escuro. Aquele jeans também cobria a protuberância de outra coisa que ela realmente gostaria de ver, mas que seja.

Sentada na pontinha, se levantou.

— Eu preciso que você seja brutalmente honesto agora. — ela disse.

Cautela envolveu suas feições.

— Ok.

— Quanto estou bonita?

Seu olhar caiu seguindo a linha do seu corpo. Ela usava um vestido de alças de renda vermelha que tinha um decote em V até o seu umbigo. A bainha parava bem debaixo da curva do seu traseiro.

 As pupilas do Strider fizeram aquela coisa de se expandir, quase sempre um prelúdio para tocar.

— Você precisa colocar uma calça. — Sua voz era um coaxar. E ele não se moveu em direção a ela.

Este era um daqueles momentos em que “quase” chupou um dos grandes.

— Dã. Como se eu fosse sair assim. Eu tenho uma… certo... — Ela procurou em volta. — Lá. — Ela saltou para a cabeceira da cama e ergueu a “calça” em questão. Um pedaço de lycra de laço vermelho que mal caberia debaixo do seu vestido.

Com um passo rápido e um puxão, ela deslizou dentro do material e uma vez mais ficou face a face com seu consorte.

Sua boca estava aberta.

— Nós estávamos sentados na cama, juntos, você estava bebendo de mim, sua boca na minha pele, e você estava sem calcinha?

— Quer dizer que você não olhou? — Ela disse fazendo muxoxo. Não é de admirar que ele a deixou tão facilmente.

— Não. Eu não me permitiria.

— Por quê?

— Porra, Kaia. — ele disse, ignorando-a. — Você não pode simplesmente sair por aí sem calcinha.

— É por isso que eu acabei de vestir uma. Você não estava prestando atenção?

Seus olhos se estreitaram em fendas minúsculas.

 — Você disse calças. Que você estava colocando calças.

 — Sim. Calcinha.

 — Só… — Ele fechou seu maxilar num estalo e estendeu o braço em sua direção, acenando com os dedos de cima abaixo em seu corpo. — Onde você vai esconder armas nessa coisa?

 — Strider, por favor. Dê um pouco de crédito às minhas garotas. — Ela espalhou o profundo V revelando seus seios sem sutiã, seus mamilos corados e frisados. Pequenas e finas lâminas foram amarradas dos lados, bem abaixo das axilas. — Nós estamos fazendo isso desde bem antes da puberdade.

 — Bom Jesus. — Ele soltou um som estrangulado quando ela ajustou seu vestido de volta no lugar, e lutou contra um sorriso. Quanto mais ele resistisse a ela, mais se acharia o destinatário destes pequenos shows.

 — Vamos. — ele disse, sua voz rouca mais uma vez.

 Ela encurtou a distância e entrelaçou seus dedos com os dele, feliz com o contato.

— Quer fazer lá fora?

— Bom Jesus. — ele repetiu. Pequenas gotas de suor surgiram na sua testa. — Nós temos planos. Lembra? Grandes planos. Temos que estar em algum lugar.

 Então beber sangue não era a única coisa em sua agenda. Entretanto, sexo claramente não foi adicionado.

 — Pra onde vamos? — Ela perguntou, com cuidado de cortar a decepção em sua voz.

 — Você vai descobrir. — Depois de uma rápida checada no perímetro, ele a arrastou para o ar fresco da noite. A primeira coisa que ela percebeu foi que ainda estavam em Wisconsin. Ela não olhou e não perguntou. A lua estava escondida atrás das nuvens, lançando sombras rosa e violeta em todas as direções. Neve cobria o chão, árvores se estendiam pra cima... pra cima…

 — Está com frio? — Strider perguntou.

 — Não. Isto não é nada. — Além disso, o calor do corpo irradiava dele, envolvendo-a. — Qualquer sinal de atividade das Harpias ou Caçadores desde que acordei? — Ou diabos, mesmo para os dois dias em que ela esteve fora.

 — Não. Escondemos você muito bem.

 Mesmo assim, ela se manteve em guarda. Eles caminharam alguns quarteirões antes dele parar na frente de uma picape e a colocar nela. Só levou três minutos e dezoito segundos para desarmar o alarme e fazer ligação direta no motor. Ela não mencionou que poderia ter feito isso em dois. Seu demônio poderia ver aquilo como um desafio.

 Ela apenas disse.

— Bom trabalho. — quando ele colocou o motor em marcha e acelerou estrada abaixo. — Agora me diga pra onde vamos porque não gosto de surpresas. A menos que elas envolvam um homem me esperando nu na minha cama. — acrescentou só para irritá-lo.

 Suas mãos apertaram o volante e suas juntas perderam a cor.

— Falei com sua irmã. Taliyah. Nós temos dois dias para prepará-la para a próxima competição.

 Espere só um segundo.

— Você vai me treinar? — Ele achava que era uma lutadora tão terrível que precisava de algumas dicas? Bem, por que não? Ela pensou, rindo amargamente por dentro. Ela o decepcionou com sua perda, e não tinha ninguém além de si mesma para culpar. Isso não importava. Choque e dor explodiram como dardos envenenados. Este não era o tipo de memória que ela esperava acumular.

 — Não, claro que não. — ele disse, e ela começou a relaxar. Então ele acrescentou. — Eu não vou treinar você.

Ela queria discutir pela sua falta de confiança e apoio. Ela prometeu ganhar a próxima rodada, não foi? Sim, sim, ela prometeu. Sua mente pode ter sido turvada pela dor, mas ela se lembrava disso.

No entanto Kaia segurou sua língua. A vitória era tão importante para Strider quanto pra ela. Ele não estava fazendo isso para ser cruel. Mas porra, mesmo sabendo por que ele estava colocando isso em movimento, a dor escalou dentro dela.

 Sou boa o suficiente do jeito que sou. Um apelo melancólico em sua cabeça.

— Por que não fará o treinamento? — Ela perguntou. Deuses, essa voz chorosa era sua?

Houve uma pausa pesada antes dele admitir.

— Meu demônio.

O que significa a pausa? Ele estava mentindo? Não, ela pensou em seguida. Ele não estava mentindo. Mas ela duvidava que seu demônio era a única razão.

— E você está com medo que treinando comigo vou desafiá-lo?

— Sim. Aconteceu antes.

Ele uma vez disse que tudo era um desafio com ela e essa era uma das razões por que eles não podiam ficar juntos. Ela achou que ele logo veria o mérito em seus desafios. Afinal, ele experimentava prazer toda vez que ganhava, e se ele ganhasse várias vezes por dia por causa dela…

Até agora, o tiro saiu pela culatra. Ele odiava tanto a dor que acompanhava a derrota, ele via todos os concorrentes como uma ameaça. Quanto mais ela o empurrava, mais ele se afastava dela.

Isso tem que mudar. Então. Ok. Ela daria o que ele procurava, decidiu. Paz. Águas tranquilas. Tranquilidade total. Seria tão fácil estar com ela, ele teria mais diversão assistindo a grama crescer. Talvez então ele a levasse pra cama.

Por que ele não podia gostar dela como ela era?

Por que ninguém podia?

— Certo. — ela disse com um suspiro, odiando-se por dar uma festa de piedade. Ele estava com ela. Ele não caiu fora. Não procurou pela Haste enquanto ela estava muito fraca para impedi-lo. — Está certo. Eu treinarei com quem você quiser.

A picape desceu as ruas da cidade, luzes piscando acima do parabrisa com poucos segundos de intervalo. Kaia apoiou seus pés no painel e se inclinou o máximo que o assento permitia. Seu vestido subiu até suas coxas, revelando a ponta da sua calcinha.

 Ele manteve seu olhar na estrada.

— Eu não esperava que você concordasse com o meu plano.

Ele soou… desapontado? Não. Era apenas um desejo da parte dela.

— Estou aqui para agradar.

— Eu... — Ele esmagou seus lábios numa linha teimosa e balançou sua cabeça. Ela não o pressionou por mais —como seu novo plano para a paz ditava — e ele não ofereceu isso. Vários minutos passaram em silêncio absoluto. Então. — Por que eu não tenho um apelido?

Obviamente não era aquilo o que ele queria discutir, mas ela deixou rolar. Águas tranquilas, ela lembrou a si mesma.

— Bem, você não ganhou um.

— Então o que eu tenho que fazer para ganhar um?

— Não sei. Cada um é diferente. É um nós-sabemos-isto-quando-vemos este tipo de coisa.

Outra sessão de silêncio se seguiu, este tão tenso e pesado que ela não poderia ter cortado através dele nem com espada nem com moto-serra. Ela não tinha nenhuma ideia do que estava rodando pela sua cabeça.

— Eu pensei que não se importasse como nós o chamássemos. — ela disse só para romper a tensão.

— Eu não me importo. — ele disse entre dentes. — Só estava curioso.

— Ok.

— Novamente com a atitude agradável. Você está mais ferido do que eu percebi?

Ela se ocupou em tirar uma sujeirinha do seu vestido, tentando não deixar o comentário atingi-la.

— Eu não sou sempre um pé no saco, você sabe.

— Pare de brincar com sua roupa. — ele rosnou.

Ela congelou, sem sequer ousar respirar. Ele ainda não relanceou o olhar em sua direção, mesmo assim sabia o que ela estava fazendo? Ele estava ciente dela?

 — Ok. Considere isto feito. — As águas tranquilas já estavam valendo a pena. Lutando com um sorriso, ela se acomodou mais no assento e deixou seus pés caírem no piso do carro.

Aproximadamente uma hora da civilização, eles saíram da rodovia e entraram no estacionamento de uma cabana em ruínas com um maldito letreiro piscando de neon onde se lia Crazy Abel’s. Havia um punhado de outros carros lá e dois caras fortes e musculosos barrando a porta da frente.

 — Um bar? — Ela perguntou tentando não fazer beicinho. — Um bar de humanos?

 — Você começa a jogar antes de pagar.

Realmente? Esqueça o beicinho. Excitação derramou por ela.

— Você deveria ter me dito. Gostaria de ter vestido minha roupa de puta.

 Seu olhar estreitado varreu por cima dela, demorando em seu decote. Ele estacionou — quase batendo na lateral de outro carro — e ela saltou pra fora, a meio caminho da porta de entrada antes dele até abrir sua porta. Ela passou pela barreira dos humanos, fazendo careta por causa do cheiro da cerveja barata e cigarros. Eles assobiaram pra ela e mudaram de direção para segui-la.

 — Quanto? — Um deles perguntou.

Oh, não, ele não fez. Ela girou ao redor, mãos nos quadris, dentes à mostra numa carranca.

— O que você disse?

— Nós pagaremos o preço, seja qual for, nós juramos. — o outro disse. — Depois. — Ambos riram baixinho, então o primeiro deu uma palmadinha nas costas do segundo por um trabalho bem feito, como se tivesse feito o melhor negócio de sua vida inteira.

Antes dela poder responder, Strider saltou em cima deles e esmurrou os dois na parte de trás da cabeça. Ao mesmo tempo. Eles tomaram um impulso pra frente, mas ele os pegou pelo cabelo antes que atingissem o chão, usou seus joelhos para bater atrás dos joelhos deles, e forçou a ambos a se ajoelharem diante dela.

— Peçam desculpa. — ele comandou, e havia tanta escuridão em sua voz que ela quase podia sentir o cheiro do fogo e do enxofre. — Agora.

 O coração de Kaia flutuava. Os homens obedeceram, balbuciando e chorando. Strider ergueu um e o lançou. O humano foi subindo e colidiu com um carro, o alarme de repente soando estridente. O segundo homem se juntou a ele um instante mais tarde.

 — Obrigada. — ela disse, lutando com o desejo de derreter em uma poça trêmula aos seus pés.

— O prazer é meu.

 Eles entraram no bar lado a lado.

 

 

Ela o mataria com aquele seu corpo assassino. As curvas deliciosas estavam envolvidas em uma tira de material que mal passaria por um maiô em alguns países. Sua pele era luminosa, mas sem seu brilho multi colorido. Ela deve ter coberto seu corpo completamente com maquilagem. Não que ele estivesse reclamando.

 Qualquer coisa que impedisse outros homens de desejá-la tinha seu selo de aprovação.

 Ele estava brincando? Os homens não a desejarem? Isso nunca aconteceria. Não importava o que ela fizesse com sua pele, o que ela vestisse, os homens sempre a desejariam. Saber daquilo o deixava puto — e o enchia de orgulho.

 Ela considerava Strider seu consorte. Mais ninguém.

 Resistir a ela estava ficando mais difícil. E mais duro. Literalmente.

 — Ei, quem é... Anya? Gideon? Amun? E milhares de outros. — Kaia teve que gritar para ser ouvida acima da música ensurdecedora. Ela o perscrutou com seus enormes e suaves olhos prata-dourado com uma emoção que ele não podia dar nome. — Como você conseguiu trazer todos eles aqui?

 Um homem podia se perder naquelas s profundezas insondáveis.

— Eu pedi e Lucien os piscou. — Foi mais ele exigindo e Lucien arrastando seus pés. Mas quem se importava com detalhes? — Entretanto, eles só estão aqui por esta noite.

 — Que doce! Uma noite eu posso amá-los. Duas e eu sempre quero matá-los.

 — Só não mencione isso. — ele baixou sua voz. — O primeiro prêmio. Ok? — Eles ficariam por toda parte se soubessem sobre isso. O que ele fez com a Capa da Invisibilidade seria jogado na sua cara. Seus motivos seriam questionados. Sua inteligência. Eles iriam querer ficar, querer procurar pela Haste de Partir, roubá-la.

 Ele e Sabin já conversaram. Os outros precisavam proteger os dois artefatos que já tinham. Precisavam proteger a fortaleza em Buda. Precisavam se manter vigilantes contra os ataques dos Caçadores. Se, no entanto, os dois não conseguissem roubar a Haste por conta própria antes do jogo final das Harpias começar, eles pediriam reforços.

Esta noite, enquanto Kaia estivesse distraída em seu treinamento, eles iriam caçar as Eagleshields. Na verdade, isso é o que Sabin estava fazendo neste exato momento. Espiando dos céus, procurando o que aparentemente não podia ser encontrado. O chefe deveria estar aqui a qualquer minuto para arrastá-lo pra longe.

 — Eu não falarei nada sobre qualquer coisa, eu juro. E obrigada! — Um sorriso enorme dividiu os lábios de Kaia pintados de vermelho e ela bateu palmas. Então ela pulou em cima dele e plantou um beijo ardente em seu rosto antes de se afastar correndo. Sua boca queimou sua carne, talvez imprimindo em cada célula.

 Nos últimos dias, tudo que ele pode fazer foi pensar nela. Ela estava tão pálida, tão quieta, tão fraca, e ele esteve tão desesperado para ajudá-la, mas incapaz de fazer mais que alimentá-la com seu sangue…e desejar. Oh, como ele ansiou. Ainda ansiava.

 Uma coisa que ele percebeu, porém, era que dormir com ela teria que esperar até depois dos jogos. Agora ele tinha que permanecer forte. Ele não podia se arriscar por perder um desafio. Qualquer desafio. Até um no quarto.

 Uma vez que seu bem-estar já não dependia dele, nada o manteria fora daquelas microscópicas calças. Ele tinha que tê-la. Tinha que prová-la, ouvi-la gritar seu nome. Inferno, ele planejava se empanturrar com essa mulher, sem importar as consequências. E não apenas uma vez, como ele pensou se limitar antes, mas inúmeras vezes.

 Ficou olhando enquanto ela se jogava nos braços de Amun. O guerreiro parecia cansado, e haviam hematomas debaixo dos seus olhos, mas ele pareceu genuinamente feliz em ver como Kaia girava sobre si mesma. Gideon, o intimidante guardião de Mentira, agarrou-a e deu uma abraço bem apertado. Ela jogou sua cabeça pra trás e riu antes de bagunçar seu cabelo azul e puxar seu piercing em forma de anel da sobrancelha. Como era despreocupada e desinibida.

 Como era minha, pensou sombriamente, então forçou a si mesmo a acrescentar, por enquanto, pelo menos.

 Dentro da sua cabeça, Derrota se animou.

 Oh, não, você não. Você simplesmente fica quieto, seu babaca. Você não foi convidado para esta festa.

 Um rugido soou em seus ouvidos, e ele reconheceu o som como o grito de guerra que era.

 Você quer ganhar a Haste de Partir, certo? Ou você prefere voltar pra caixa de Pandora e apodrecer lá? Porque se eu falhar, Kaia é nossa única esperança. E se ela falhar nós perderemos o artefato. Se nós perdermos o artefato os Caçadores poderão usá-lo para colocarem suas mãos na Caixa e sugar você de volta pra dentro. Você ficará eternamente preso.

 Silêncio.

 Sim. Ele pensava da mesma maneira. Não havia nada que Derrota desprezasse mais que suas memórias da Caixa, a escuridão e o isolamento. O que ele não mencionou foi que se ele conseguisse roubar a Haste, Kaia o odiaria fodidamente. Porém ela o perdoaria como Juliette perdoou o seu homem por suas ações sombrias. Certo?

 — Kye. — ele ouviu Gideon dizer. — Eu não gostaria que você conhecesse meu marido horroroso, Scar. — Ele fez um sinal para a morena de cabelos escuros ao seu lado com um gesto de sua mão. Já que Gideon não podia falar uma palavra verdadeira sem experimentar uma dor que o debilitava, ele mentia. Sobre tudo.

 — Na verdade o nome é Scarlet. — sua esposa respondeu. Ela era a guardiã de Pesadelos e quando ela matava um homem em seus sonhos, ele morria na vida real. Ela era alta, esbelta e significativa como inferno. — E caso esteja se perguntando, eu não tenho um pênis.

 Por que eu não podia ter chegado a esse demônio? Pesadelos? Falar sobre o frio.

 Derrota pigarreou.

 Você é um pé no saco e sabe disso.

 — Eu sou Kaia. Ou droga, Kaia, como Strider gosta de me chamar.

 — Eu não. — Strider rosnou. Ele a chamava de boneca. E ela era. Agora onde diabos estava Sabin? Ele precisava voltar logo.

 Kaia o ignorou.

— Você não estava, tipo, trancada na masmorra dos Senhores não muito tempo atrás? — Ela perguntou a Scarlet. — É muito perigosa para vagar livremente, indigna de confiança, violenta ao extremo, blá, blá, blá.

 — Sim. Felizmente, esse aqui chicoteia num frenesi. — Scarlat disse, apontando para Gideon com uma inclinação de seu queixo teimoso.

 Gideon meneou suas sobrancelhas escuras e Kaia riu, com sua risada quente e rouca e… porra. Strider sentiu seu corpo respondendo. Então não era uma boa hora para esporte de madeira.

 Kaia estava em boas mãos, pensou, especialmente porque Gideon estava novíssimo em folha. O bastardo arrumou uns cortes antigos pelos Caçadores e foi forçado a regenerar um par. Na época Strider surtou com a dor que seu amigo foi forçado a suportar. Agora, eles davam boas risadas com isso. De qualquer forma, ele não precisava se preocupar com Kaia — ou cobiçá-la, o que continuaria a fazer se continuasse aqui observando-a — então se encaminhou para o bar, só então notando a loira com mechas rosas em seu cabelo e tatuagens cobrindo seu braço. Haidee. Merda. Ter ela e Kaia no mesmo lugar provavelmente não era uma boa ideia.

 Ela se virou com duas cervejas em suas mãos, e quando o viu movimentou a cabeça em reconhecimento. Ela ainda resplandecia — e não pela gravidez como ele presumiu da primeira vez. De jeito nenhum ela beberia uma cerveja se estivesse. Pura e simplesmente ela brilhava com amor, sua segunda hipótese.

 Mais uma vez, não havia nenhuma pontada no peito quando olhava para ela e ele nunca foi mais feliz por isto.

 — Você não deveria estar aqui. — ele disse, em seguida pediu ao garçom para trazer uma cerveja.

 Dor relampejou em seus olhos e foi rapidamente mascarada.

 — Eu não estava tentando ser mesquinho. — ele admitiu. — Só estou tentando te proteger.

 Sorrindo docemente, ela agitou sua cabeça.

— Não se preocupe com isso. Amun acabou de voltar dos céus e não havia nenhum jeito que eu ficasse afastada dele hoje. Principalmente quando poderia ser separada dele amanhã.

 Como ela parecia abandonada.

 — Por que amanhã?

 — Não quero falar sobre isto. — ela resmungou, perdendo o sorriso.

 Ele ergueu sua mão para acariciá-la nas costas, para oferecer conforto. Antes do contato, ele deixou seu braço cair de lado. Mesmo um gesto tão simbólico podia deixá-la desconfortável, e além do mais, percebeu que não deveria estar oferecendo.

Com sua história violenta e turbulenta, qualquer oferta poderia tirar Amun do sério. E com razão. Strider podia imaginar sua própria reação se, digamos, um dos seus amigos tivesse um passado com Kaia — cof (tosse) Paris cof — e o bastardo pusesse suas mãos nela. Alô, raiva.

 Naquele momento percebeu que ele nunca desejou realmente Haidee. Desejou, sim, mas nunca teve um sentimento tão forte por ela, ou por ninguém realmente, que ele não pudesse se levantar e ir embora. Sem remorsos... Bom, Kaia era uma enlouquecedora, com exceção de vida-e-morte. Por enquanto. Ele precisava dela. Ele a queria, e quando fosse o momento certo, a teria. Fim da história.

 Aquele pensamento somente o consumiu com luxúria, abolindo todas as outras emoções dentro dele.

 Não agora, porra. Eu tenho que fazê-la relaxar e treinar com os rapazes.

— A propósito. — ele disse para Haidee numa tentativa de se distrair. — Eu sei que você sabe por que Amun foi convocado por Cronus no outro dia.

 — Sim. E daí? — Seu abatimento aliviou e ela se iluminou com diversão. — Eu já não estou mais possuída pelo Demônio do Ódio, mas ainda gosto de te atormentar de vez em quando. Além disso, sabia que um dos seus amigos se meteria e compartilharia os detalhes.

 Vencer.

Ótimo. Mulher do contra. Agora Strider tinha que ganhar uma batalha de vontades com ela. Mas ele supôs que entendeu por que seu demônio saltou nesta chance de vitória, embora fosse (esperava) pequena.

 Acomodado pelo passeio com Kaia até aqui, o bastardo precisava se alimentar.

 — O que ele soube? E sim, teremos uma conversa prolongada você querendo ou não. Eu te seguirei como um maldito cachorrinho na coleira a noite toda, se for preciso. — Se aquela ameaça não a assustasse para responder, ele não sabia o que iria.

 — Nada. — Ela suspirou. — Amun não pode encontrá-la — a garota agora esta possuída pelo demônio da Desconfiança. Cronus quer que ele retorne aos céus amanhã e tente novamente. Agora você tem ambas as respostas. Feliz?

 — Um pouco. — Ele ganhou e faíscas minúsculas de prazer encheram seu peito. — Diga a ele... — Os olhos de Strider se arreagalaram quando um pensamento lhe ocorreu. — Mande-o me chamar quando Cronus terminar com ele e tiver descansado um pouco. — Amun estava cansado demais para ele jogar mais um fardo esta noite. Mas se alguém podia achar o esconderijo de Juliette para a Haste de Partir, era ele. Droga, mas Strider deveria ter pensado nisso antes. — Eu preciso de um favor.

 Haidee tomou mais um gole da sua cerveja.

 — Você e o resto do todo mundo.

 — Droga, garota. Aprenda a compartilhar.

 Ela revirou seus olhos.

 — Isto é hilário, vindo de você.

 — Não, é irônico. Aprenda a diferença. Mas, honestamente? Eu sou uma causa perdida, também definido em meus modos. Você, porém, tem uma chance de lutar.

 Ela riu e disse alguma coisa em resposta, mas um grito agudo penetrante no fundo abafou suas palavras. Oh, merda. Os tímpanos de Strider conheciam aquele grito agudo intimamente.

 Ele deu meia volta — justamente quando um borrão vermelho passou voando por ele, em direção a Haidee.

 

O vento agitou o cabelo de Strider quando ele estendeu a mão e agarrou Kaia pela cintura. Ele era rápido, mas não o bastante, e quando teve a mulher jogada sobre seu ombro no estilo-bombeiro, as duas bochechas de Haidee estavam cortadas e sangrando.

Haidee se mostrava chocada demais para reagir, muito menos se defender. O que não era sua característica. Ninguém tinha instintos auto-protetores como Haidee. Ou ela estava debilitada ou estar sem Ódio a abrandou.

— Você não toca nele. Você não fala com ele. Nunca! — Kaia rosnou em uma sobreposição de vozes com os gritos de outro ser, sua própria fúria e nuvens de escuridão.

— Porra, Kaia. — Strider deu uma tapa no seu traseiro. Ela nem percebeu. Ela tentou dar a volta em torno dele e acidentalmente deu uma joelhada no seu estômago. Duro. Ar irrompeu de sua boca e ele se curvou, quase soltando Kaia. Ele reajustou seu aperto, uma mão atrás das suas pernas, a outra na parte inferior de suas costas. E droga, ela estava quente! Literalmente. Calor irradiando dela, queimando-o.

Vencer?

E ainda tinha seu demônio, fazendo outra aparição. Loucura total. Pelo menos o bastardo não tinha certeza de como proceder com a Harpia.

Eu a tenho, não é? O que mais você quer?

— Kaia. — Strider disse. — Se você não se acalmar vai me machucar.

Para sua surpresa, aquilo funcionou, penetrou a névoa de sua fúria. Num piscar de olhos ela se acalmou, permanecendo apoiada nele, as palmas das suas mãos pressionadas nas suas costas, sua respiração quente flutuando acima da sua camisa e deslizando pelo material, acariciando-o como uma delícia derretida.

Alô novamente, Monstro Strider. Graças aos Deuses que suas pernas escondiam a evidência da sua excitação.

Venci. Derrota suspirou de prazer e esse prazer disparou através dele, aumentando seu deleite. Um prazer muito mais forte do que qualquer coisa que ele experimentou com Haidee.

Havia várias pessoas no bar, observando-os. Ele sorriu encabulado.

— Mulheres.

Eles acenaram em compreensão.

Um carrancudo Amun correu para o lado de Haidee. Haidee disse.

— Não é nada, bebê. Juro. — Mesmo assim ele envolveu seu rosto e seu olhar zangado se tornou uma cara feia. Uma carranca que se igualou com Strider.

Como o guardião dos Segredos, Amun podia ler os pensamentos de todos ao seu redor. Então Strider abriu sua mente e permitiu que seu amigo entrasse.

Nem pense em se voltar contra ela. Isto podia ter sido muito pior e você sabe disso. Kaia só a arranhou, nada mais.

Você protege o que é seu e eu protejo o que é meu. Amun afirmou furiosamente.

Kaia. Sua. Ele não quis analisar a emoção do deleite que se juntou ao prazer. E não havia necessidade.

Ela era sua. Só por pouco tempo — outro lembrete.

Haidee envolveu seus dedos ao redor do antebraço do seu homem, deixando uma mancha de sangue em sua pele cor de ágata.

— Está tudo bem. Eu estou bem.

Kaia desenhou algo nas costas de Strider, distraindo-o. Um coração, ele pensou, querendo sorrir.

As mãos de Amun começaram outro ataque furioso de sinais dirigidos a ele.

Você acha que isso é engraçado?

— Sim. Acho. Se você nos desculpar, temos um pequeno negócio para resolver. — Strider carregou Kaia para a pista de dança.

Sabin ainda não tinha chegado, o que significava que não havia nenhuma razão para resistir. Com um dar de ombros, ele puxou e Kaia deslizou para frente. Seu corpo pressionado contra o dele enquanto descia. Só que em vez de colocar seus pés no piso de madeira, ela envolveu suas pernas ao redor da sua cintura e segurou firme, ajustando seu núcleo contra sua ereção.

Ele reprimiu um gemido. Pelo menos sua temperatura esfriou, então ele não tinha que se preocupar com seu pênis pegando fogo. Ele perscrutou profundamente em seus olhos e o mundo ao redor desapareceu. Existia só Kaia, o desejo e uma necessidade de acalmar o temperamento que involuntariamente despertou nela.

Ele ancorou suas mãos atrás de suas coxas para impedí-la de cair e evitar que seus amigos vissem algo que não deveriam. Nada que fosse seu. Seu traseiro era definitivamente dele.

— Deixe-me ir. — ela disse, embora seu tom não tivesse nenhum tipo de repreensão. Ele não apontava para o fato que ela tinha um cabo mais apertado sobre ele do que ele sobre ela. — Eu vou matar aquela cadela.

— Não, boneca, você não vai.

— Sim, vou. — Mas o preto desapareceu dos seus olhos, deixando o decadente prata-dourado que ele tanto amava.

Epa. Alto lá. Amava? Infernos, não. Gostava muito da cor, isso era tudo.

— Onde está a Senhorita Agradável? A garota que eu trouxe até aqui. — Essa pequena amostra da Senhorita Agradável deveria ter sido um pedaço do paraíso, também, pois isso é o que ele sempre alegou querer dela. Surpreendentemente percebeu que a preferia assim. No limite e selvagem.

Talvez porque seu sangue rugiu com a perspectiva atraente de domesticá-la.

Outro lampejo de preto.

— A Senhorita Agradável está morta. Você a matou quando flertou com outra mulher.

— Se você nunca ouviu falar, morto não significa partir para sempre. — ele provocou. — Talvez ela possa se levantar da sepultura.

Soltou um suspiro.

— Eu sabia que você gostava de mim desse jeito. — Ela golpeou com um punho o seu ombro. — Eu sabia!

Ele riu, incapaz de conter sua diversão dentro dele.

Emburrada e de mau humor, ela se acalmou e olhou pra ele.

— O que é tão engraçado?

— Você. — Justamente quando era ilógica, adorável e ciumenta como o inferno. De Haidee e até de si mesma. — Eu só quero comer você.

Sua boca se abriu, dentes brancos e brilhantes aparecendo no que só poderia ser uma mistura de choque e de esperança.

— O quê?

Agora que ele tinha sua atenção… mudou suas mãos pra bem debaixo das suas coxas, erguendo-a e a equilibrando na ponta da sua ereção enrijecida.

— Quer me dizer o que aconteceu? Com Haidee?

Sua expressão fechou e ela olhou por cima do seu ombro. E, no entanto, ela mordiscou seu lábio inferior quando ele arqueou seus quadris pra frente, esfregando-se contra ela.

— Não. Não quero.

— Conte de qualquer maneira.

Ele esfregou novamente. Ela mordiscou mais duro. Demais, ele pensou. Demais para este salão lotado. Ele a segurou firme.

— Conte pra mim. — ele disse.

Houve uma pausa. Então um beicinho.

— Você gosta mais dela do que de mim.

Ela enfrentou um clã de Harpias vingativas sem uma única reclamação, mas pensar nele com alguém era mais do que podia tolerar. Aquilo acariciava seu ego, sim, mas ele não gostava de ferí-la.

— Não, boneca, não gosto.

— Sim, você gosta. Você me disse isso.

— Eu estava delirando. E muito, muito estúpido. Sinto muito por isso. — Era verdade mesmo. Ele apenas achou que queria Haidee num sentido romântico, começou a se enganchar pelo desafio de ganhar o coração de um inimigo.

Depois que a ganhasse teria se afastado dela sem nenhum arrependimento. Fácil. Kaia, entretanto, ele tratou abominavelmente — talvez porque sentiu, lá no fundo, que não seria capaz de deixá-la tão facilmente.

— Eu gosto de você. Muito.

Seu queixo se ergueu, essa tão encantadora teimosia o chutando por dentro.

— Mas eu dormi com Paris e você nunca poderá esquecer isso.

Ele jogou este fato na sua cara inúmeras vezes, não foi? Estúpido. Enquanto o conhecimento o incomodava antes — porque sim, teve um pouco de ciúme e se magoou já que ela escolheu Paris primeiro — agora parecia insignificante.

Quantas mulheres Strider teve ao longo dos anos? Quantas depois que Kaia se declararam para ele? Qualquer uma daquelas mulheres poderia ter sido uma amiga dela.

— Novidade. — ele disse, com a esperança de aliviar o dano que causou. — Metade das pessoas neste salão já dormiu com Paris.

A esperança floresceu, o dourado consumindo seus olhos, eclipsando até a prata, só para murchar e morrer rapidamente.

— Você nunca será capaz de superar isso. Não realmente. Não comigo.

Ok, um pequeno controle de danos estava em ordem.

— Permita-me passar uma borracha nesse assunto completamente. Sou ciumento? Sim. Você vai fazer isto novamente? Inferno, não. Não se gosta dele respirando. Estou preocupado com a nossa primeira vez por causa dele? Sim. E se eu não for tão bom? Posso atirar pedras sobre que o aconteceu? Não. Você está falando com um homem no limite da galinhagem, Kaia. Como se eu realmente pudesse julgar.

— Você está com ciúmes? — O brilho lustroso da sua pele apareceu de repente por baixo da sua maquiagem conforme a temperatura do seu corpo subia.

Seu coração galopava num ritmo instável e sua boca se encheu de água. Uma amostra, em breve, muito em breve. Ele tinha que ter uma.

— Sim. E aqui vai outra novidade. — Suas palavras estavam ligeiramente arrastadas, como se estivesse bêbado de desejo. — Eu sou possessivo. Isso não vai mudar.

— Não quero que mude. Gosto de você assim.

— Bom. — As poucas vezes que tentou a coisa de relacionamento, aquela possessividade passou rápido.

— E eu... — Ela franziu o cenho, o brilho atenuando assim como sua esperança. — Você só está dizendo tudo isso porque espera que eu ganhe a Haste de Partir para você.

Ela estava errada, ele merecia a dúvida, realmente merecia. Além disso, ele não conseguia impedir que uma onda de culpa o varresse. Não importava o que ele dissesse a seguir, não importava se ela acreditava nele agora, ela pensaria que ele mentiu quando ele realmente roubasse a maldita Haste.

Preocupe-se mais tarde.

— A Haste tem um cabelo sexy vermelho e um corpo que se envolve apertado ao meu redor do jeito certo?

Seus lábios sensuais se franziram.

— Não.

Tão beijável…

— Então eu tenho certeza que gosto de você por ser você. Quero dizer, o que há para não gostar?

— Verdade. — ela disse, mas não relaxou contra ele. — Eu sou muito impressionante.

— Melhor do que bonita.

— Eu sei. E ninguém pode me convencer do contrário. Não importa o quanto tente. — Um golpe direto, lembrando-o de todas as vezes que ele a alfinetou no seu orgulho para se resguardar de desejá-la.

Não que tenha funcionado.

Derrota se animou e Strider deu a ele um empurrão mental para um canto escuro. Ele não queria que o demônio interferisse agora. Isto era entre ele e Kaia.

— Sinto muito, eu nunca disse o contrário. — ele acrescentou sinceramente. — Evidentemente eu estava sofrendo de algum tipo de lesão cerebral.

— Eu suspeitei. — Sua expressão suavizou, mas ela ainda não cedeu. — Então o que você gosta em mim além do meu cabelo e corpo incríveis? Porque da última vez que falamos sobre isto, você disse que eu era difícil demais. Disse que te desafio a cada passo e não queria o aborrecimento de lidar comigo.

— Você vai jogar tudo o que eu já disse na minha cara toda vez que nós discutirmos?

— Com certeza. — Ela admitiu livremente, sem hesitação.

— Certo. Comprovando. — E foi um choque. Ele gostava disso. Você tinha que usar todas as armas a sua disposição para ganhar uma briga, e ela utilizava sua estupidez passada como uma navalha. Ela o cortava com ela, ao mesmo tempo o ensinando a acalmar suas feridas.

— Bem?

— Você é um desafio a cada passo, não posso negar. — Ela endureceu, e ele se apressou a continuar. — Mas estou achando que não me importo.

A ira brilhou, uma tempestade de prata sem nenhum indicio de ouro.

— Você não se importa? Bem, não sou uma garota de sorte? Se uma de suas ex-namoradas disse que você tem jeito com as palavras, ela estava mentindo.

Kaia descruzou seus tornozelos e suas pernas caíram. Entretanto ele não a soltou. Ele a puxou pra cima, forçando-a a permanecer no lugar. Alinhada com ele, esfregando no ponto correto sem estimular muito.

— Olha. — ele disse. — Você me diverte muito. Você me excita. E estou achando que o que não deveria gostar em você é realmente minha parte favorita. Além disso, sei que não sou nenhum piquenique no parque, também.

Ela começou a amolecer. No último instante, ela exibiu seus dentes brancos perolados numa careta.

— Você somente está cavando um buraco mais fundo, seu grande idiota.

— Vamos, boneca. — Ele estendeu seus dedos, cobrindo mais carne enquanto se inclinava em direção ao maior passeio de montanha russa na terra. — Eu sou novo em ser um consorte. Dê-me algum espaço pra manobra.

Sim, ele sabia que era engraçado estar pedindo espaço para manobra sentimental quando não a deixava se mover fisicamente, mas vamos lá. Ele era um homem. Isto fazia parte do curso. Mas então ela percebeu o que ele disse e congelou, nem mesmo parecendo respirar.

De repente uma absoluta vulnerabilidade irradiou dela.

— Isso é uma admissão que você é meu? — Ela perguntou.

Era?

— Sim. — ele disse quando a compreensão o golpeou. — Pelas próximas semanas serei o melhor maldito consorte que você já teve o prazer de encontrar. Depois disso, não posso prometer. Eu nunca fiz essa coisa a longo prazo, pra sempre. Nós teremos que reavaliar, ver como nos sentimos.

Um pensamento deu um curto-circuito no seu cérebro. E se ela não o perdoasse por roubar a Haste? E se esse ato provasse ser mais que “quase tudo”? Não haveria nenhuma reavaliação porque ela não iria querer nada com ele. Eles terminariam, tudo acabaria.

Uma sensação de urgência tomou conta dele. Ela tinha que concordar em aceitá-lo, ele todo, agora. Deste modo, mais tarde, ela teria dificuldade em empurrá-lo pra fora da sua vida.

Não que ele quisesse ficar por perto. Como disse a ela, nunca fez aquela coisa a longo prazo antes. Alguns meses, mas nunca mais do que isso. E, no entanto, ele não podia se imaginar não querendo Kaia. Simplesmente desprezou o pensamento de estar sem ela. Então, sim, ele tinha que conseguir que ela concordasse.

— Dá uma chance. — ele suplicou. — Por favor.

Vencer? Derrota disse.

Volte pro seu canto.

No fundo da sua mente ele reconheceu que a música mudou, o ritmo mais duro, mais rápido, mas ele se recusou acelerar a lenta fricção que tinha com Kaia.

Seus ombros afundaram, mas em vez de se afastar desapontada porque ele não concordou em ficar para sempre, ela aplainou suas mãos no seu peito e sussurrou.

— Isso não é suficiente. Eu gostaria que fosse, mas…

— Por enquanto é tudo que eu posso oferecer. — Ele envolveu sua mandíbula na palma das suas mãos, forçando sua atenção a permanecer em seu rosto. — Eu sei que odeio pensar em você com mais alguém. Eu sei que você é a única mulher que desejo.

Ela começou a mordiscar seu lábio inferior novamente, e ele quase, quase, substituiu seus dentes com os dele. Mas ainda não. Não até que ela concordasse.

— O que fez você mudar de ideia? — Ela perguntou. — Quero dizer, certamente não foi minha louca habilidade de combate já que paguei o maior mico nos Jogos.

Seu estômago se revirou quando uma imagem dela queimou na sua mente. Seu corpo flácido e coberto de sangue. Seu rosto inchado, seus membros mutilados. Nunca mais, pensou sombriamente. Ele a protegeria.

Vencer?

Não tentou empurrar Derrota pra longe. A este respeito, sim. Aceitaria qualquer desafio.

Antes que pudesse responder a pergunta de Kaia, ela olhou pra baixo e adicionou.

— Eu lutei por você uma vez. Lembra? Aquela noite com os Caçadores? Eu desafiei você a matar mais do que eu, e com toda a certeza eu poderia ter ganhado, mas dei a você meus alvos.

Seu peito se apertou, uma fisgada de uma emoção desconhecida para ele.

— Eu me lembro, boneca, e nunca te agradeci. Sinto muito por isso.

— Bem, agradecido ou não, não farei isso novamente. Não vou abrir mão de uma luta por você. — disse suavemente.

— Estou contente. — O sentido de orgulho dela era tão intenso quanto o dele. Ela odiava perder, e embora não experimentasse dor física quando perdia, ela experimentava uma incômoda carga de angústia mental.

Seu próprio povo a chamava de Kaia, a Decepção, pelo amor de Deus. Por causa disso, ela sempre se esforçou para provar se merecedora. Ele percebia isto agora. Sabia que era a razão pela qual ela o desafiou para começar. Ela queria provar que era boa o suficiente para ele. E o fato que ela perdeu de propósito demonstrava o quanto ela o desejava profundamente. Ele percebia isso também.

Como se ela tivesse algo a provar.

Ainda. Como ele retribuiu? Ele a criticou de tempos em tempos. A vergonha explodiu por ele, uma bomba que construiu sozinho. Bem, nada mais de críticas. Enquanto eles estivessem juntos ele a trataria com o cuidado e o respeito que ela merecia.

— Você está contente? — Ela piscou para ele, sua respiração quente e doce viajando sobre o seu pescoço. Seu pulso saltando até encontrar cada expiração. — Mas se eu vencê-lo em qualquer coisa, sentirá dor.

— Então você me beijará e me fará sentir melhor. Certo?

Suas unhas arranhando perfuraram a camisa e se cravaram em sua pele.

— Eu... eu... não sei o que dizer.

— Diga que não me desafiará de propósito por algo que eu não posso esperar vencer.

Um momento se passou em silêncio enquanto ela considerava suas palavras.

— Vou tentar não fazer isso, mas não posso prometer. Às vezes você tira o pior de mim.

Ah! Ele destacava o melhor nela. Nenhuma verificação necessária de ego. A verdade era a verdade, não importando como fosse contada.

— De qualquer modo, nós resolveremos isto.

— Sim, nós trabalharemos com isso. — Lentamente seus olhos se estreitaram, suas unhas afundando cada vez mais em sua carne. — Bem, bem. Finalmente eu me encontro com o Senhor Agradável. Está me untando com manteiga como um muffin no café da manhã só para que eu não machuque Haidee?

Tão desconfiada, mas essa era a natureza da besta. Eles eram bem parecidos naquele respeito.

— Você pode feri-la se ainda quiser, entretanto Amun ficará puto e me atacará. Vou ter que machucá-lo.

— Tudo bem. — ela disse com um suspiro. — Eu gosto de Amun, então não machucarei Haidee.

— Obrigado. — ele disse entre dentes. Ela gostava do Amun?

Ela retraiu um conjunto de garras e sacudiu seu cabelo sobre os ombros.

— Então o que você gosta em mim? Você nunca disse. Sinta-se livre para ser descontroladamente descritivo e talvez associar um pouco de poesia. Ou um daqueles versinhos que você mencionou.

Vai fazê-lo se esforçar, heim? Embora ela já tivesse decidido lhe dar o que ele queria. Todos os privilégios de um consorte, o futuro incerto que se dane. Oh, ela não disse isso ainda, porém não precisava. Ele sabia. Ela estava aqui, nos seus braços, exigindo que fosse romântico com ela.

Típico de Kaia. Nunca um momento maçante, mas uma tonelada de divertimento. Mais do que isso, ela quase dominou a arte de agradar Derrota, oferecendo pequenos desafios aqui e ali para alimentá-lo. Desafios que Strider poderia vencer sem problemas.

Vencer.

Viu? Ela fez isto novamente; ela o desafiou com algo fácil. Mas levaria esta vitória pra casa com poesia? Deuses, não.

— Bem, vamos ver. — ele começou com a voz rouca. — Gosto da sua boca esperta. Gosto da sua boca carnuda. Gosto da sua boca suja. Gosto da sua boca fazendo beicinho. Gosto da sua boca gritando. Eu gosto...

— Minha boca. — ela disse secamente, revirando os olhos. Olhos brilhantes de excitação. Ela se balançou contra o seu eixo, esfregando-se com perfeição, do jeito que ele gostava. — Diga-me por que.

 

— Não. Vou te mostrar por quê. — Ele moveu uma da mãos para sua nuca e a encorajou a avançar o resto do caminho. Seus lábios se encontraram abertos, e suas línguas empurraram juntas. Ela tinha sabor de hortelã e cereja, e ele decidiu que era seu novo sabor favorito.

Seus dedos entrelaçados em seus cabelos, suas garras se cravando em seu couro cabeludo. Desejo bombeando por suas veias, puro, não diluído, cegando-o para todo o resto. Para as pessoas ao redor deles, as circunstâncias, as consequências. Ele segurava fogo em seus braços e queria desesperadamente ser queimado.

E queria queimá-la. Queimar sua essência com cada parte dela, remodelando-a em sua mulher. Todo mundo que olhasse para ela, se aproximasse dela saberia que pertencia a ele.

Minha, ela é minha. Porra, ela o excitava. Suas línguas duelando como numa batalha. Uma deliciosa batalha. Ele a dominava, reivindicando sua boca como seu território. Ele sentiu seus mamilos se endurecerem contra seu peito e quis beliscá-los. Queria seus dedos entre suas pernas, bem no fundo dela, empurrando uma vez após a outra.

— Strider. — ela disse roucamente.

— Boneca.

— Não pare.

Venci. Derrota disse com um suspiro, disparando mais prazer através dele e aumentando sua necessidade ainda mais.

Strider caminhou para frente, cada passo dissonante esfregando-a mais firmemente contra ele. Quando ele alcançou a mesa mais próxima se inclinou, varrendo com seu braço as garrafas de cerveja da superfície e ao longe ele as ouviu quebrando no chão. Ele pressionou Kaia contra a madeira.

Ele queria fazer coisas com ela. Coisas más. Não, coisas boas, disse a si mesmo. Ele tinha que fazer coisas boas para ela. Tinha que dar o melhor de si. Mas talvez ele a empurrasse para algumas dessas coisas más, fazer com que ela tomasse tudo o que ele tinha para dar, fazê-la implorar, precisar dele, ansiá-lo como uma droga.

— Uhuu! Sim, bebê, sim! — Anya, a Deusa menor da Anarquia chamou, sua voz o arrastando, chutando e gritando através da névoa de desejo. — Arranque as roupas dele, Kaia. Mostre-nos o que ele tem!

Strider se endireitou com um grunhido, seu olhar esquadrinhando, sua mente zumbindo. Destruir a multidão, retornar para a boca de Kaia. Quando ele percebeu que cada pessoa no bar estava olhando para eles o calor dentro dele esfriou. Alguns estavam observando-os com sorrisos, alguns com exasperação, alguns — a saber os humanos — com luxúria.

O calor retornou, mas por uma razão completamente diferente. Fúria, tanta fúria, ofuscando sua própria luxúria. Não gostava que ninguém visse Kaia assim, perdida e carente, ávida por ele. Não podia permitir isto. Não permitiria isso.

Ele agarrou seus braços e a fez se levantar, alisando seu vestido. Seus movimentos eram rígidos, bruscos. Como ele pode se esquecer do seu público, mesmo por um segundo? Alguém poderia tê-lo atacado. Derrotado. Como podia se esquecer do que aconteceria se ele falhasse em ser o melhor para Kaia? Seu melhor beijo. Seu melhor placar. Ele estaria arruinado, muito fraco para ser eficaz e não serviria para ela durante os próximos confrontos.

Apesar de que… ele não estava de joelhos vencido pela dor, então este obviamente foi o seu melhor beijo. Novamente. O conhecimento estufou seu peito com orgulho. Claro que esse foi o melhor, e — ego em cheque.

Ele tinha coisas melhores para fazer que louvar sua própria magnificência. Como deixar os rapazes a treinarem para a próxima batalha do jeito que prometeu fazer, e então arrastá-la de volta para o motel.

Ganhei, ganhei, ganhei. Derrota disse com um suspiro, mais do que consumido pelo prazer.

Nunca duvidei disso. Ele olhou de cara feia para seus amigos.

— Chega de brincar. — ele retrucou, depois voltou sua atenção para Kaia. — Pegue os rapazes e saia. Faça o que eu te trouxe aqui para fazer.

Cílios vermelhos e espessos se levantaram, uma cortina se erguendo sobre uma tela de surpresa.

— Você não vem comigo?

— Não. — Ele lhe deu um pequeno empurrão. — Agora vá.

 

 Para a consternação de Strider, ele nunca deu um fora.

 Enquanto seus amigos engoliam suas bebidas num só trago — nenhuma gota foi deixada pra trás — as portas da frente se balançaram abertas e uma beleza de cabelos negros desfilou no bar. Os olhos cor de lavanda revistaram o bar… e pousaram em Kaia. Lábios vermelhos se curvaram num sorriso satisfeito.

 Strider enrijeceu. Merda. Não estava apenas sem sorte. A missão de Sabin agora era supérflua, o que queria dizer não haveria nenhuma caça, nada de roubar hoje à noite. A Eagleshields aterrissou.

 Kaia amaldiçoou baixinho.

— Sorte minha mesmo. Juliette a Égua Até que Você Mate a Si Mesma Extirpadora está aqui.

 O consorte da mulher não estava muito atrás. Strider não o viu nos Jogos, então acabou imaginando que o homem estava lá fora em algum lugar guardando a Haste de Paring, e agora experimentava um golpe de surpresa quando o bastardo entrou no bar, com sua expressão presunçosa e superior, como se fosse o dono de tudo que estava olhando. Não havia nenhum sinal do artefato. O que ele tinha? Muitas Harpias fortemente armadas o flanqueando. Sua guarda?

 Durante a orientação, o gigante corpulento ostentou correntes. Agora Strider notou que ostentava tatuagens.

 Os elos foram gravados na carne ao redor do seu pescoço e pulsos. Provavelmente, se ele removesse suas botas, Strider veria as tatuagens ao redor dos seus tornozelos também.

 As tatuagens pareciam avermelhadas, inchadas e frescas, e Strider teria apostado sua bola esquerda que elas foram adicionadas apenas nesta manhã.

 Por que manter um cara tão perigoso por aí, heim? Kaia disse que as Harpias podiam perdoar quase qualquer coisa dos seus cônjuges mas, qual é? O homem assassinou outras Harpias. Certamente isso era pior que, digamos, roubar um artefato inestimável de um inimigo.

 Dentro de segundos os amigos de Strider fizeram uma fila ao lado dele, formando uma parede ameaçadora. Eles não tinham nenhuma ideia do que estava acontecendo — exceto, talvez, Amun — mas eles o conheciam bastante. Sabiam quando ele estava se preparando para lutar. Inferno, eles conheciam um inimigo quando o avistavam.

 Vencer!

 Nenhuma palavra combativa fora proferida ainda, mas até Derrota percebeu a ameça. Considere isso feito.

 Com prazer.

 O homem — ou o que quer que ele fosse — avistou Kaia. Os olhos de obsidiana giravam hipnoticamente. Ele estava sem camisa, e seus músculos peitorais se destacavam. Porque ele estava imaginando as mãos de Kaia sobre ele? Strider enrijeceu.

Minha. E eu não compartilho. Nunca.

— Vamos sequestrar as seguidoras de Juliette e ameaçar libertá-lo se ela não fizer o que queremos. — Kaia sussurrou para ele.

— Espere. O que? Ameaçar libertá-lo?

— Elas são tão horríveis, tê-las de volta seria o castigo.

Ela lutou contra um sorriso.

— Agora, vamos fechar essa conversa com chave de ouro e deixar a mamãe trabalhar. — Ela pigarreou e endireitou seus ombros. — Bem, bem. — Kaia disse, casual, mas ainda alto o suficiente para ser ouvida por todos ao mesmo tempo. — Já é meu aniversário?

 — Não. — Juliette disse. — É o meu.

Falando nisso...

— Quando é o seu aniversário? — Strider perguntou a Kaia. Seus amigos assumiriam que ele quis saber neste exato momento simplesmente para irritar os recém chegados, para mostrar a eles o quanto ele pouco se importava. E isto era em parte verdade. Mas Strider descobriu que ele na verdade, queria saber de qualquer maneira. Por ele mesmo.

 Olhos de prata-dourados muito abertos giraram para ele.

— Você não sabe?

— Não.

Fazendo beicinho, ela enrolou uma mecho do seu cabelo no dedo.

— Como você pode não saber?

— Você sabe o meu? — Ele perguntou.

— Claro que sei. É o dia que você me conheceu.

Um dia tão bom quanto qualquer outro.

— Não, não é, porque essa é uma pergunta capciosa, boneca. Eu realmente não faço aniversário. Eu fui criado completamente formado, não nascido. — História verdadeira.

— Você pode ser bem idiota. — Ela ergueu seus braços, exasperada. — Não discuta comigo sobre este tipo de coisa. Eu sempre estarei certa. Estou falando sério. Você estava morto até que me encontrou e nós dois sabemos disso. O que significa que eu te trouxe à vida. Então, feliz aniversário atrasado.

Amun riu, o que foi um choque. O guerreiro sério nunca ria. Anya acenou com a cabeça como se ela nunca tivesse ouvido um argumento mais sólido e Gideon abafou o riso com a sua mão. Scarlet deu um tapa atrás da sua cabeça.

— Você está certa. — Strider disse, ele mesmo querendo. — Então quando é o seu?

— Cala a boca. — Juliette de repente rosnou. — Pensei que fôssemos trocar insultos.

Ele se virou pra ela, como se estivesse surpreso ao descobrir que ela ainda estava lá. Fúria coloriu sua face de uma cor rosa brilhante e até empalideceu seus lábios. Excelente. A emoção a deixaria estúpida. O consorte, entretanto, parecia divertido. E impressionado, até mesmo um pouco melancólico.

 Faça um jogo para Kaia, cara. Eu desafio você. Strider projetou pra ele.

Como se sentindo o novo perigo, o homem moveu seu olhar para Strider. Durante vários segundos eles simplesmente olharam um para o outro. Não havia jeito nenhum no inferno de Strider desviar seu olhar primeiro e o cara deve ter sentido isto, porque depois de mostrar seus dentes num show de agressão, ele voltou sua atenção para Kaia — e lambeu seus lábios.

 Oh, você vai pagar por isso. Por que Derrota veio com um “vencer” e Strider sabia. Assim o impediria de entrar numa briga de mulheres.

 — Então como você a encontrou? — Strider exigiu com mais força do que pretendia.

 — Por favor. Como se rastrear você fosse difícil. — Juliette respondeu, dignando-se a falar somente com Kaia.

 Finalmente Derrota se animou.

 Não é um desafio, seu bastardo. E onde você estava quando eu te queria?

 Nenhuma resposta. Claro.

 Kaia sorriu lentamente.

— Como se eu não soubesse que você estava me seguindo. Como se eu não deixasse migalhas de pão para você encontrar. E olha quem comeu essas migalhas como um rato e caiu na armadilha de queijo tão indesejável.

 Placar. Juliette se moveu desconfortavelmente de um pé para o outro. Seu olhar garimpou os guerreiros possuídos por demônios na frente dela e empalideceu.

 Derrota riu, surpreendendo Strider ainda mais. O demônio teve uma reação similar durante os jogos quando Kaia arrasou com as mais importantes. Na hora Strider bateu o pé quando ouviu mal. Por Que o barulho da multidão de alguma forma invadiu sua cabeça. Agora…

 O que isso significa?

 Pondere mais tarde. Seu demônio não se divertiria cortando sua jugular. Se ele não fosse cuidadoso, Juliette poderia. Ele tinha que se manter focado.

 — Então, você gostaria de nos dizer por que estava me rastreando antes ou depois de limparmos o chão com seus rostos? — Kaia perguntou casualmente. — E por limpo quero dizer, revestir com o seu sangue.

 — Enquanto você decide — Strider adicionou —, talvez eu devesse te apresentar aos amigos de Kaia. O cara segurando o machado é Gideon. Ele é possuído pelo demônio das Mentiras. A garota ao lado dele, a que está lançando e pegando as adagas é Scarlet. Ela é possuída pelo demônio dos Pesadelos. A loira se balançando é a Deusa da Anarquia. — Não havia razão para mencionar a “coisa de menor”. Não soava tão impressionante.

 Anya balançou o dedinho.

— Ei, vocês aí. Bem vindos a festa. Só algumas coisinhas sobre mim antes que esteja muito morta pra perguntar. Eu gosto de longas caminhadas na praia aconchegada ao meu homem e assassinar pessoas que me ofendem. — Oferecida em sua voz mais doce, a ameaça era do tipo mais assustador.

 Strider abriu sua boca para continuar, mas Juliette retrucou.

— Eu não me importo com nenhum de vocês. Nós não viemos aqui pra lutar. Não há nenhuma razão. É para isso que existem os jogos.

 Oh, é mesmo? Ele teria apostado um bom dinheiro no oposto sendo verdade — e teria ganhado, sem dúvida.

— Tem certeza? — Kaia perguntou. — Eu não me importo em fazer uma exceção e fingir que isto é um evento. Eu até mesmo deixarei você fazer o primeiro movimento sem retaliar. Embora não possa prometer que meus amigos possuídos por demônios aqui vão se comportar.

 Muda, Juliette deu uma meia volta nos saltos e partiu para o bar. Seu consorte e seu clã a seguiram.

 Venceu. Derrota disse com um suspiro feliz.

 Strider mentalmente bateu sua mão na de Derrota comemorando, deleitando-se ainda quando outra onda de prazer derramou sobre ele. O único problema era que Kaia não poderia começar a treinar agora. Ela não poderia partir, de qualquer forma. Se partisse seria acusada de covardia. Então eles estavam presos, sua maratona de pegação também na espera.

 — Kaia! — Uma voz feminina gritou entusiasmada. Uma vez mais a porta da frente se abriu. Desta vez Bianka entrou correndo, seus cabelos escuros voando atrás dela e batendo no rosto de Lysander que a seguia. Outro anjo guerreiro avançou a passos largos atrás dele. Este tinha cabelos escuros, penetrantes olhos verdes e um rosto tão sem emoção que se assemelhava a um vazio profundo e escuro.

 Zacharel. Strider foi apresentado ao guerreiro alado semanas atrás, quando o ser foi enviado para a fortaleza para impedir Amun de partir. Ele deu ao guerreiro momentos difíceis, seu corpo reagindo cada vez que se aproximavam um do outro.

 Strider nunca se balançou daquela maneira, mas não podia ser responsabilizado por isso. Não havia nenhum ser fisicamente mais perfeito que Zacharel. Bom, com exceção de Kaia. Desta vez, porém, a reação foi silenciada. Talvez porque nada mais poderia se comparar a sua reação tão forte por Kaia.

 Sabin e Gwen desfilaram em seguida, postando-se ao lado dos anjos. Embora Strider não tivesse enviado nenhuma mensagem de texto ao seu líder dizendo que a Eagleshields estava aqui, o guerreiro não pareceu surpreendido por vê-las. Ele deve ter visto dos céus, então, como planejado.

 Alguma sorte encontrando a Haste?

 — Bianka. — Kaia disse com um risada quando se lançou para encontrar sua irmã no meio do bar. As gêmeas se abraçaram e dançaram como se não se vissem há anos.

 — Eu teria vindo mais cedo mas Lysander me manteve prisioneira em nossa nuvem. — Bianka disse com um sorriso.

— Ele não descansou até Sabin dar o Ok. O que ainda não entende e continuarei a castigá-lo até que ele solte tudo. Segredos ou suas entranhas, não me importo com o que.

 Isso explicaria o olho preto do guerreiro, Strider pensou com um sorriso.

 — Você é tão sortuda. — Kaia disse. — Você pode machucar o seu cônjuge.

 — Eu sei. E sinta-se livre para machucá-lo você mesma. Embora talvez não o machuque muito. Há todo tipo de problemas nos céus hoje em dia, algo sobre perder um pedaço de amor, o que quer que isso signifique, e meu ursinho está estressado.

 Essa foi a última coisa que Strider entendeu assim que as irmãs começaram a falar uma com a outra.

— Porque você está incrível e...

— Não acreditaria nas bolas...

— Da próxima vez eu quero transmissão por vídeo...

— Só corte direito, a carne deixa a bolsa mais atraente...

— Ela está aqui?

 Em uníssono, elas ficaram de frente para o bar, nivelando Juliette com olhares de desgosto abjeto. Juliette fingiu não notar. Mas não seu consorte. Ele sorriu para as gêmeas como se fossem o presente de Natal que ele sempre quis.

 Sangue… esquentando...

 Strider teria se lançado como uma bomba H se uma mão dura não tivesse se estabelecido no seu ombro.

 — Eu não iria. — Lysander disse.

 — Você não. Eu sim. — Seu olhar permaneceu trancado no macho que ele queria desesperadamente matar.

 Uma mão igualmente dura caiu pesadamente no seu outro ombro.

— Talvez devesse repensar sua estratégia. — Zacharel disse com sua voz fria e inexpressiva.

 Sim, bem, talvez os humanos discordassem de Strider de sua descrição de “fisicamente perfeito”, porque eles ainda vagavam dentro do bar, não dando aos anjos nenhuma atenção. E inferno, eles tinham asas e usavam vestes femininas.

 Duas outras razões para olhar para lá.

 — Eles não podem ver a mim ou a Lysander. — Zacharel explicou. — Você está certo. Se pudessem eles olhariam.

 Strider apertou seu maxilar com força.

 — Fique fora da minha cabeça.

 — Pare de projetar seus pensamentos.

 Ele não se importava quando Amun o lia, mas Zacharel? Um anjo? Um fodido irritante.

— O consorte. O que ele é?

 Lysander não pediu esclarecimentos.

— Seu nome é Lazarus, e ele é o filho único de Typhon.

 Oh, merda. Ele estava certo, o cara estava longe de ser humano. Strider quis sacudir sua cabeça em negação, fazer qualquer coisa menos aceitar. Mas quando um anjo falava, não havia dúvida. Nunca. A verdade colocada em camadas em cada nuance de voz do Lysander e cada célula no corpo de Strider acreditava no que ele acabou de contar.

 Como um guarda de elite de Zeus, Strider lutou com muitos monstros. Nenhum deles jamais se comparou a Typhon.

O bastardo era um gigante com a cabeça de um dragão e o corpo de uma serpente. Suas asas estendidas mediam todo o comprimento de um campo de futebol e um abismo sem fim esperava em seus olhos.

 Typhon desafiou Zeus e teria ganhado e saído vencedor, até que Strider e seus amigos chegaram ao local, fazendo o gigante fugir. Você é bem vindo, ele pensou secamente, recordando como Zeus os culpou por distraí-lo, alegando que se recuperaria sem eles. Strider não ouviu nenhuma fofoca sobre Typhon desde então, e agora ele se perguntava o que aconteceu com o cara.

— Quem é sua mãe? — Strider perguntou.

— Eu não sei o nome dela, só que é uma Gorgon.

— Isto só fica melhor a cada segundo. — ele murmurou secamente. Gorgons poderiam transformar um homem em pedra num piscar de olhos. Tinham serpentes em suas cabeças em vez de cabelos — serpentes que envenenavam suas vítimas quando os mordia. Medusa era a mais famosa delas, e tão lendária que até os humanos contavam suas proezas do mal.

Mortais. Tão ingênuos. Se eles soubessem que a Medusa era a nata da colheita e um doce de pessoa comparada as outras de sua raça.

 — Claramente, ele quer um pedaço de Kaia.

 — Quem não quer? — Zacharel perguntou impassível. Como sempre. — Ela é uma mulher bonita e já vimos quanto uma Harpia pode fazer um anjo feliz.

 Strider pressionou seu nariz no do anjo um segundo depois, sua respiração ofegante entrando e saindo.

— Melhor você ficar longe dela.

Vencer.

Sem problemas.

— Eu vou. — o anjo disse facilmente. — Ficar longe dela, é isso.

Strider piscou confuso, e se afastou um passo.

— Mas você acabou...

— Eu acabei de concordar com você. Sim. Todo homem não acasalado neste edifício quer um pedaço dela.

Ele voltava de volta colado no rosto do cara um segundo mais tarde.

— E você? — Droga. Ele tinha que conseguir se controlar.

Ele jurou a si mesmo não se deixar ser desafiado tão intensamente nas próximas semanas, mas continuou reagindo a todos que só olhassem de relance em direção a Kaia.

 — Eu estava apenas assegurando que você a deseja, ao invés de… outra pessoa.

Alguém, como um anjo. Uma vez mais ele deu um passo para trás. Mais rápido desta vez, suas bochechas esquentando com mortificação. Então. O bastardo foi apanhado numa antiga fascinação.

 — Você parece todo inocente e toda essa merda, mas você é realmente um demônio disfarçado, não é?”

Zacharel apenas deu de ombros, sua expressão imutável.

Vencer?

Sim. Vencemos este round. O anjo não fez uma jogada para Kaia, e isso era tudo que importava.

Derrota pode ter concordado, mas não houve faíscas acompanhando o prazer. Nem houve surtos de dor.

— O que você está fazendo aqui, afinal? — Ele resmungou.

— Bianka compete no próximo jogo. Lysander quer que eu...

— O próprio Lysander pode falar. — O guerreiro exclamou. — Eu quis um suporte para me trazer de volta ou me ajudar, caso eu fique propenso a punir os oponentes de Bianka.

Uau. Amor verdadeiro. Que repugnante.

Ambos, Lysander e Zacharel, podiam criar espadas de fogo do nada, do ar. Algumas cabeças de Harpias provavelmente rolariam no segundo que o jogo terminasse se qualquer dano viesse para a gêmea de Kaia.

— Você sabe que envergonhará Bianka se você...

— Com quem você está falando, Strider? — Embora Haidee tivesse feito a maior parte da distância entre eles, ela fez a pergunta por trás da sua garrafa de cerveja, não ousando olhar em sua direção. Ele sabia que ela não tinha medo de Kaia, embora devesse, mas somente pensou em evitar outro ataque enquanto o inimigo estava por perto.

Foda-se. Os anjos o avisaram. Ninguém mais podia vê-los. Bem, Sabin e Gwen podiam, ele tinha certeza, já que estavam sufocando sua risada atrás de suas próprias cervejas.

 — Ninguém. — ele murmurou. Ninguém importante. Ele colocou seu foco novamente em Kaia e Bianka, as gêmeas arruaceiras.

— Não há um momento melhor. — Bianka estava dizendo.

— Então vamos fazer isso. — Kaia respondeu com um sorriso do mal. — Juliette nunca saberá o que a atropelou.

Merda. Fazer o que? Com essas duas, “isso” sempre envolvia derramamento de sangue, um grandioso roubo de carro ou um incêndio de cinco alarmes[20].

Ou, em dias especiais, uma combinação dos três. Ele observou, pavor correndo por ele, pronto para atacar a qualquer momento, quando as garotas se moveram adiante.

Então o pior dos seus medos se confirmou quando elas subiram na plataforma.

 

Paris se pressionou num canto sombreado do harém celestial. Conversas sem sentido e o som lúdico dos respingos deixavam o ar mais quente. O cheiro de óleo de jasmim e sândalo vagou até o seu nariz e tentou não inalar. A ambrosia colocava ambas em cascatas, uma lufada de coco que atraía e seduzia, e ele ainda não podia se dar ao luxo de ficar doidão. Não importava quanto seu corpo tremesse, desesperado por uma dose.

 Depois da sua briga no beco de trás, ele tomou a primeira mulher com quem tropeçou. O sexo garantia a sua disposição, apesar da aparência esfarrapada de Paris, e ele se curou rapidamente depois disso.

 Infelizmente, o encontro vital o deixou uma hora atrasado para sua reunião com Mina, a Deusa do Armamento, e teve que pagar mais pelas adagas de cristal.

 Ela gostava do seu prazer com algumas mordidas, e ele teve que fazer coisas pra ela que poderiam assombrá-lo por anos.

Mas ele tinha os punhais e agora menos um item da sua lista A Fazer.

 Ele esfregava os punhos enquanto esquadrinhava seu entorno, odiando os tufos de tecido cobalto que caíam do teto e envolviam o recinto inteiro. Odiando os travesseiros enfeitados, os brilhantes corpos nus passeando de um lado para o outro.

 Hora de riscar mais dois itens da lista. Arca, a Deusa Mensageira. Certamente ela saberia onde Sienna estava sendo mantida, como um de seus muitos parceiros o levara a acreditar. Conversa de travesseiro — seu melhor amigo, e o pior de todos os inimigos.

 Se ela não estivesse aqui, não tinha nenhuma ideia aonde ir em seguida. Ou o que fazer.

 Não pense assim. Ninguém percebeu que ele estava aqui. Ainda. Isso mudaria muito em breve. Sexo ansiava sua dose de hoje. Já os aromas de chocolate e champanha flutuavam até ele. Logo mortais e imortais da mesma forma, todos trazidos até aqui a serviço de Cronus, encontrariam-se consumidos pela fome.

 O Deus-rei desistira de manter uma única amante. Agora ele estava mantendo trinta… três. Sim, trinta e três, Paris contou. As outras vinte e sete de pé em torno da beira da piscina eram guarda-costas, e não conquistas sexuais.

 Paris duvidava que Cronus dormisse com todas aqui presentes, ou que o bastardo até mesmo planejara cravar as unhas em todas elas no futuro. Mas Cronus faria qualquer coisa para irritar Rhea, sua esposa traidora, e nada feria tanto o orgulho de uma mulher quanto a infidelidade. Um fato que Paris conhecia muito bem.

 Ele nunca foi fiel. Nunca poderia ser fiel. Não importava quanto quisesse ser. Não importava quanto suas muitas conquistas gritassem e esbravejassem pra ele, desesperadas por algo que ele não poderia lhes dar.

 Algo… mais. Suas amantes eram comida do seu demônio, isso era tudo. Ele não poderia deixá-las ser qualquer outra coisa.

 E realmente, ele não queria que elas fossem qualquer outra coisa.

 Ele só queria Sienna.

 Se pudesse encontrá-la, se pudesse tocá-la, se ela já não o desprezasse — o que não parecia provável, especialmente depois das coisas, pessoas, que ele fez até aqui —ela se daria para ele?

 Tantos ses.

 Ele esteve aqui em cima algumas vezes desde seu desaparecimento, e manteve seu ouvido no chão — ele também era conhecido como alguém que ferrou a informação de alguém próximo a Cronus. Está vendo? Infiel. Ele estava aqui por uma mulher, mas dormiu com outra. E outra. E outra.

 Anime-se. Caso contrário, ele começaria a querer aquela ambrosia.

 Inferno, talvez devesse apenas cair dentro.

 Ou talvez ele devesse partir. Cronus explodiria quando descobrisse o paradeiro de Paris. Definitivamente o castigaria. Porque… esconder suas atividades, Paris teve que usar um colar — um colar de enlace, como Torin o chamou — que o Deus rei lhe deu. Um colar que seria apenas usado para se esconder de Rhea. Usá-lo para se esconder de Cronus também era um crime pequeno, certo, mas o casal tinha suas intenções com Paris…

 Você está perto. Mais perto do que jamais esteve. Não importava o que acontecesse, ele não desistiria. Então, nada de ambrosia e nada de partir.

 — Estou tão quente. — uma mulher disse. Ela estava deitada numa poltrona de veludo reclinável, nua e reluzente, arqueando suas costas enquanto deslizava as pontas dos dedos entre seus peitos grandes de mamilos enrijecidos. — Tão necessitada.

 — Eu também. — disse outra. Ela lambeu seus lábios enquanto procurava por um parceiro.

 Oh, sim. Elas sentiram Paris afinal.

 Seus amigos estavam acostumados com ele, com seu cheiro e a necessidade que causava, e eram em sua maior parte imune. Além disso, ele se super favoreceria com sexo, então o demônio raramente agia desse modo. Paris ainda não estava acostumado com isso.

 — Eu nunca estive tão excitada. — outra mulher disse.

 E assim por diante. Gemidos de prazer ressoaram quando uma orgia estourou. Inúmeros corpos se contorcendo, mãos acariciando, pernas se espalhando. A visão não conseguiu despertar até mesmo a menor chama de necessidade. Passei dessa fase, cansei disto.

 Elas estavam distraídas, pelo menos. Ele as estudou, procurando pelo tão famoso “longo e trançado cabelo branco”que disseram que Arca possuía. Outra fofoca que ele aprendeu: ela era a responsável pela história infantil da Rapunzel. Há muito tempo atrás, quando ela entregou uma mensagem divina para um rei humano, ele ficou cativado pela sua beleza e pensou em mantê-la. E ele quase conseguiu. Não só porque ele usou magia negra, mas porque seu sincronismo foi impecável. Os Gregos ganharam o controle dos céus, trancando os Titãs longe. Arca fora esquecida.

 Paris não sabia se o resto da história era verdade. Se ela fora resgatada por um príncipe mortal. Se o mortal fora morto na frente dela quando os Gregos finalmente se lembraram dela e a arrastaram até os Céus, trancando-a em outra prisão, essa mais forte. E ele nunca se importou.

 O que ele sabia? A Arca foi capturada logo depois numa rua dourada e jogada aqui. Paris poderia usar isso em seu benefício. Ela tinha que desprezar o rei, tinha que desejar vingança.

 Além disso, ela não estava nesta seção do palácio. Por favor, esteja em outra.

 Ele se esgueirou ao longo da parede. Ele poderia ter tirado sua roupa e se apresentado como um escravo, ou uma nova adição do harém, mas se recusou a abrir mão de suas novas armas. Sem dúvida ele precisava delas.

 Ele chegou a um canto, parou, escutou e olhou. Não ouviu passos. Nenhuma sombra se movia ao longo do chão de mármore. Ele seguiu adiante, deixando completamente a área de banho. Os cortinados de pórtico após pórtico o saudaram, e ele rangeu os dentes. Se ele tivesse que foder alguém só para descobrir que quarto pertencia a Arca...

 Um escravo saiu de um quarto no fundo do corredor, uma bandeja de prata equilibrada em suas mãos. Ele viu Paris, mas não emitiu nenhum alarme. Não, seu corpo nu e bronzeado reagiu instantaneamente, sua barriga tremendo.

 Ele pousou a bandeja no chão e praticamente saltou por cima dela, como se estivesse em transe.

 Ele provavelmente estava. Paris não alimentou seu demônio por vinte e três horas. Ele não começaria a se enfraquecer por pelo menos outra hora, no entanto, feromônios sexuais — ou o que quer que seja que o bastardo liberava pelos poros de Paris — continuariam a se fortalecer até que eles caíssem dentro de alguém.

 Algumas vezes Paris se deixou ficar tão fraco que mal conseguia se mexer. Então os feromônios se arrastavam sobre ele, tão condenadamente potentes que os humanos caíam sobre ele, incapazes de ajudar a si mesmos, perdidos para a luxúria. Algumas vezes, antes de Paris chegar ao ponto da fraqueza total, ele perdeu o controle sobre si mesmo e caia em cima dos humanos.

 O escravo chegou até ele.

— Quem você é, bonito? — Mãos trabalhadoras e calejadas deslizaram por seu peito o acariciando.

Talvez ele não estivesse tão perto de encontrar Sienna quanto imaginava. A primeira vez que ele se aproximou dela, seu demônio começou a repelir outras pessoas. Este escravo estava longe de ser repelido. Mas ele não mudaria o curso, Paris pensou.

Ele não poderia. Se não estivesse aqui, não tinha nenhuma ideia para onde ir.

 — Você sabe onde Arca está? — Ele perguntou, ignorando a pergunta feita a ele.

Uma língua rosa emergiu, traçando ao longo dos lábios já umedecidos.

— Sim.

O alívio o inundou.

— Diga-me. Por favor. — ele acrescentou, numa reflexão tardia.

Aquelas mãos questionadoras deslizaram mais abaixo… mais abaixo ainda…

— Pra você, qualquer coisa.

Ele esperou, obrigando-se a permanecer imóvel. Quando nenhuma outra resposta veio logo, ele disse.

— Conte pra mim.

— Sim, sim, claro, mas primeiro eu devo… tenho que… por favor… — Cada palavra fazia a voz do escravo ficar mais baixa, mais rouca, anseio absoluto em suas nuances.

Perdeu, Paris pensou. O escravo já estava perdido para as necessidades do seu corpo. Paris não conseguiria nenhuma resposta até esta necessidade fosse apaziguada. Ele se encostou contra a parede e olhou fixamente para o teto abobadado.

— Ajoelhe. — ele ordenou, puxando o rosto delicado de Sienna, seus cabelos escuros e sua pele adoravelmente sardenta para a frente da sua mente.

 

 

 William passeou nos limites da sua cela da prisão. Depois que a cadela loira soltou a bomba sobre Kane, ele explodiu, gritando e lutando pela liberdade. Ela logo percebeu que ele não se acalmaria e trouxe sua maca até aqui.

 Cerca de uma hora atrás, ele recuperou o suficiente da sua força para romper as algemas de metal. Não foi assim com a jaula. Quatro paredes, todas de barras, e ele não conseguia curvar ou manipular uma única.

 A prisão foi construída para imortais.

Ele tinha que sair daqui. Tinha que chegar a Kane. Tinha que impedir o guerreiro de chegar ao inferno. Os Cavaleiros. O perigo…

 — Então. Você já se acalmou.

A loira. Com a fúria crescendo dentro dele, William girou sobre si mesmo seguindo o som da sua voz. E lá estava ela. Rabo-de-cavalo, feições delicadas, jaleco.

— Você está pronto para conversar agora? — Ela perguntou.

 Não estoure novamente. O que ele mais queria nesse momento era rasgar sua garganta de fora a fora, mas precisava dela.

 Porém ele estava em desvantagem. Pedaços de sua pele ainda estavam carbonizados, sua calça — o único artigo que restava em seu corpo — estava manchada de sangue e rasgada, e seu cabelo estava todo espetado.

 Ele estava ainda um bebê, entretanto. Certamente.

 Ele colou um sorriso sedutor em seu rosto.

— Com certeza estou pronto. Qual o seu nome, querida?

 Ela arqueou uma sobrancelha dois tons mais escura que o seu cabelo.

— Pensei que não se importasse com o meu nome.

Ótimo. Ela era uma dessas. Teimosa e determinada a não deixar um homem a suavizar. Caso contrário ela já teria derretido. E sim, ele normalmente trabalhava depressa.

 — Aquilo foi a dor falando, juro.

 — Ok. Vou fingir que acredito em você. Meu nome é Skye.

 — Vou chamá-la Dra. Botão do Amor.

 — E eu terei que te castrar. — Não havia nenhum calor em seu tom.

 — Bizarro. Então você trabalha para Galen, não é? — Deuses, William odiava o bastardo. Não por causa dos Senhores, embora isso não ajudasse a causa do guardião da Esperança, mas porque William simplesmente não suportava pessoas que eram enganosas com sua maldade. Isso o lembrava demais seu irmão. E eles não conseguiam ser mais enganosos que Galen, que se disfarçava de anjo para poder manipular um bando de humanos débeis mentais para seguir suas ordens sombrias.

 Skye, se esse era seu nome de verdade, riu.

— Mais ou menos, embora não totalmente.

 De todas as respostas que ela não poderia ter dado, aquela encabeçava a lista.

 — Se importa de me explicar um pouco melhor, querida?

 — Pra falar a verdade não, mas vou te dar um palpite. — Ela balançou sua cabeça e enfiou as mãos nos bolsos do seu jaleco. — Eu não sou uma Caçadora. Ou uma médica, no que diz respeito a esse assunto. Nunca terminei a faculdade de medicina.

 — Então por que você me bombardeou, quase me matou, ajudou a me curar pra que? Você me trancou longe como se me desprezasse. Oh, sim. E não posso me esquecer que você também transportou meu amigo possuído pelo demônio para o inferno. — Algo que os humanos não saberiam como fazer — ou como navegar, se por um milagre consiguissem alcançá-lo. O que significava que um Deus — ou Deusa — tinha que estar envolvido. E a única dor divina no traseiro atualmente ajudando os mortais era Rhea, a Rainha do Céu. — Além disso, como você sabe sobre Galen e os Caçadores se você não faz parte de suas lavagens cerebrais em massa?

 Uma cor rosado subiu a sua face.

— Primeiro, eu não bombardeei você. Os caçadores fizeram, sim. E está certo, meu marido é um Caçador, e é por isso que conheço tanto sobre o assunto, mas estou trabalhando com ele tentando tirá-lo disso. Quanto aos outros, eu só te tranquei aqui porque você era um perigo para si mesmo e todos ao seu redor.

 Ele colocou uma mão em cima do coração, como se ela o tivesse ferido mortalmente.

 — Como se eu tivesse te machucado.

 — O que seja.

O que seria preciso para encantá-la?

— Vamos voltar só um pouco. Os Caçadores decidiram me tirar da jogada, seu marido entre eles, e você pensou que tentaria salvar o velhinho aqui, mesmo não tendo seu diploma de medicina, mesmo sabendo que me salvar pode irritar seu homem? Estou tocado, de verdade.

 Ela brincava com alguma coisa de plástico no seu bolso.

 — Eles te trouxeram aqui e me pediram para ajudar.

 — E mesmo querendo seu homem fora das suas fileiras, você decidiu ajudá-los a te ajudar. — Ele foi em sua direção, tão minuciosamente que ela não perceberia que estava perto o suficiente para alcançá-la pelas barras até que fosse tarde demais.

 — Eu decidi ajudá-lo.

 Outra polegada.

 — Mas você não está trabalhando para eles.

 — Não.

 — Devo te contar todos os meus segredos, então? — Outra polegada.

 Seus olhos se estreitaram, obscurecendo suas bonitas íris.

— Guarde seus segredos. Não estou interessada. — Ela tirou um pirulito do bolso, abriu o invólucro, e enfiou a coisa na sua boca.

 Bem, ele estava definitivamente interessado nos segredos dela.

— Se você não trabalha para os Caçadores, pra quem você trabalha? Como sabia como me salvar? E por que você não me liberta agora? Como pode ver, não sou um perigo para ninguém.

 Ela tirou o pirulito da boca.

— Primeiro, no momento estou desempregada. E quanto aos meus conhecimentos, tentativa e erro. Algumas raças podem regenerar membros, algumas não podem. Alguns tem asas, a maioria não. Alguns respondem à medicina humana de maneira positiva, alguns de forma negativa. Quanto aos Caçadores e sua libertação, fico triste em dizer que te levarão de volta no momento em que eu decidir que você está bem o suficiente.

 Mais outra polegada. Quase lá…

— Mas você ainda afirma que não trabalha para eles.

 Ela deu de ombros.

 — Meu marido fez o acordo com eles. Ele decide.

 — E você não vai desafiá-lo? Ou mudar de ideia? — Ele perguntou, usando seu tom mais rouco.

 — Não. — Falado suavemente, mas firme e inflexível. — Eu não posso. Gostaria, mas não posso.

 Finalmente William a alcançou. Ele sorriu.

— É uma pena. — Seu braço disparou através das barras, seus dedos se envolvendo ao redor do seu pescoço frágil.

 

Na manhã seguinte, os ouvidos de Strider estavam sangrando e sua mente estava ecoando a letra de Naughty By Natures’s O.P.P[21]. Não ajudava o fato de que Kaia e Bianka ainda estivessem cantando. Mal. Muito malditamente mal. Não que ele jamais admitisse essa última parte em voz alta. Kaia parecia tão feliz gritando seu coração pra fora que ele não queria estragar uma atividade que lhe dava tanto prazer. Mas sério. Ele apostava que um gato sendo esfolado teria um desempenho melhor. E sim, ele colocaria um bom dinheiro na aposta, pra não falar seu corpo e seu demônio.

Uma vez que as garotas começaram, não pararam mais. Tragicamente horas se passaram e nenhuma delas desenvolveu laringite.

 Além dos humanos, que decolaram quando puderam, bastardos de sorte, ninguém ousou deixar o bar. Nem os Senhores, os Skyhawks, os anjos, nem as Eagleshields.

 Para as Harpias, isto era outro tipo de competição, pura e simplesmente. Quem durava mais que a outra? Pela primeira vez, Strider estava disposto a perder. Ele deixaria, contorceria (agradecidamente) de dor por alguns dias, mas foda-se tudo, ele tinha que proteger sua pequena Harpia.

 Algumas vezes uma das Eagleshields tentou subir no palco, assumir o comando e tirar todos da miséria. Strider pulou, pronto para a ação, mas Lysander e Zacharel, que ainda não podiam ser vistos por ninguém exceto Strider e Sabin, imediatamente formaram uma parede impenetrável de músculos que ninguém podia passar.

 E as Harpias tentaram, batendo, chutando e arranhando, até finalmente desistir de frustração. Claro, Kaia e Bianka foram responsabilizadas e ele ouviu murmúrios de admiração. Que tipo de poderes estranhos as gêmeas estavam exercendo?

 Bom. Deixe-os pensar.

 Sabendo que os anjos permitiram a volta de Kaia, Strider mudou seu foco para Juliette e seu brinquedinho Lazarus, que se manteve concentrado em Kaia. Ele não gostava disso. Não gostava nada disso. E isso não ficaria assim.

 Basta se comportar, disse a Derrota, e ficaremos bem. Deixa comigo.

 Apesar do barulho que deixou o demônio choramingando e implorando por uma passagem só de ida para o inferno, a Caixa de Pandora, qualquer coisa para escapar, Derrota bufou.

 Então. Nenhuma cooperação hoje. Porém, isso não o impediria.

 Antes que pudesse falar consigo mesmo esperando, planejando, Strider encurtou a distância e chutou uma cadeira para a mesa de Juliette, os pés raspando na superfície. Ele se ajeitou e apoiou os cotovelos em cima da mesa.

 Imediatamente ele sentiu a tensão no lugar se intensificar, espessar, e não precisou olhar pra saber que Amun e Sabin acabaram de se postar atrás dele. Eles estavam atrás dele, sempre.

 Juliette finalmente se dignou a estudá-lo, seus suaves olhos de lavanda varreram de cima abaixo seu rosto e corpo sem pressa, languidamente, demorando-se em lugares que não deveriam.

— Desejo e vou receber. Queria que se aproximasse de mim e assim o fez. Mas devo admitir, esperava que o fizesse mais cedo.

 Se ela realmente queria sua atenção, por bem ou por mal, ela teria tentado ao máximo. Não teria esperado que ele desse o primeiro passo. Bem, se ela tivesse bolas, ela teria. Kaia correu atrás do que queria sem hesitação. E isso, ele decidiu, era exatamente como uma mulher deveria ser.

Determinada, ávida. Sexy.

Esta era uma vingança que ansiava, entretanto, cada movimento seu era projetado para ajudá-la a alcançar. Assim, sua abordagem significava alguma coisa, só não sabia o que.

 — Por quê? — Ele perguntou, genuinamente curioso.

Ela ficou momentaneamente surpresa, como se esperasse que ele ficasse todo poético sobre sua beleza, implorasse clemência por Kaia, ou até mesmo a jogasse em cima da mesa e a fodesse até ficar sem cérebro.

— Eu tenho algo que você deseja, não tenho?

— Como?

— A Haste de Partir. Sim. — ela adicionou quando ele começou a ficar surpreso. — Eu sei tudo sobre vocês, os Senhores, e sua busca pela Caixa de Pandora. Sei que precisa de quatro artefatos para achá-la, e a Haste é um deles. Por que outra razão você acha que eu a ofereci?

Ao invés de responder, ele fez uma pergunta.

— Como você a conseguiu?

 Um sorriso floresceu, presunçoso e condescendente.

— Nunca conto meus segredos.

Oh, realmente. Ele olhou atrás para Amun. O grande e sombrio guerreiro estava franzindo a testa, suas feições tensas. Quando seu olhar encontrou o de Strider, ele deu uma sacudida abrupta da sua cabeça. Huh. Ele não podia ler sua mente?

Isso era raro.

Tanto faz, por que Sabin não usou Dúvida contra ela? Ou ele tentou e como Amun, não conseguiu?

Strider voltou sua atenção para Juliette, mantendo Lazarus em sua visão periférica. O desgraçado não deu a Strider um único olhar, ainda estava assistindo Kaia.

— Bem, voltando um pouco, o vencedor terá algo que eu quero. — ele mentiu. Ele colocaria suas mãos no artefato antes do jogo final. Não se permitiria acreditar no contrário.

 — Mesma coisa. — ela disse com um dar de ombros. — Porque, de qualquer forma, Kaia não vai ganhar nada.

Derrota rosnou.

Bom menino.

Gideon recentemente disse a Strider que era possível para os demônios escapar de seus corpos e entrar em outros — não permanentemente e nem por muito tempo, só o tempo suficiente para destruir a mente da pessoa. Strider adoraria que Derrota devastasse Juliette, que a convencesse de sua fraqueza, que ela nunca poderia esperar ganhar nada.

 Eles tinham que tentar isso. Mais tarde. Sempre mais tarde. Ele não ousava se arriscar com o desconhecido agora.

— Quando Kaia perder — Juliette continuou. —, vou esperar que venha a mim. E talvez, depois que implorar, deixe você me agradar. E talvez, depois de me agradar, se puder, deixarei você usar minha Haste.

Usar minha Haste.

— Isso é o que ele disse. — Strider riu baixinho.

Ela piscou pra ele.

— Quem disse isso? — Quando ele não ofereceu nenhuma resposta, ela exigiu. — O que ele disse?

Kaia teria entendido a piada. Provavelmente Kaia teria fingido que uma garrafa da cerveja era a Haste e a levantado enquanto ria. Deuses, ele cavava seu senso de humor.

 — Bem? — Juliette solicitou.

 — Nada. — ele disse com um suspiro. Uma coisa ele sabia. Não importa o que acontecesse, ele nunca imploraria nada a esta mulher. Se ele a seduzisse, nem que fosse para distraí-la, Kaia seria ferida. Sentiria-se rejeitada mais uma vez. Que era exatamente o que esta fêmea vingativa desejava, e esse não era um jogo em que ele entraria.

 — Bem, não me importo quem ele é ou o que disse. — Ela jogou seu cabelo por cima do ombro. — Sou muito mais bonita que a prostituta ruiva e você vai implorar por mim.

 Raiva? Não, essa era uma palavra muito leve para a emoção que de repente crepitou dentro do seu peito. Até Derrota rosnou.

— Na verdade você não é. Não tem ninguém mais bonita que Kaia. E a propósito, ela não é uma prostituta. Ela é minha. E não, não estarei implorando por nada além da sua partida.

 Suas narinas inflaram com o insulto.

— É assim? Bem, deixe-me te fazer uma pergunta, Strider, guardião do Demônio da Derrota. Você é um dos lendários Senhores do Submundo e tenho pesquisado você meticulosamente. Você estima a vitória acima de todas as coisas. Então por que, de todos os guerreiros, escolheu ser o consorte de Kaia, a Decepção?

 Isso. Era. Isso. Sua pequenina Harpia estaria recebendo um novo nome rapidamente.

— Kaia é muitas coisas para mim, mas uma decepção não é uma delas. Mas decifre esse enigma pra mim.— Sua cadela de coração frio. — Seu consorte escolheu ficar com você? — Ele apontou para as correntes tatuadas com um inclinar do seu queixo. — Porque estou apostando que ele arrancaria sua cabeça do pescoço sem um segundo de hesitação.

 Afinal Lazarus deu atenção para os que estavam em sua mesa.

— Você está correto. — ele disse, e em minutos uma quantidade de ódio entorpeceu Strider. Minutos sendo a palavra chave. Ainda assim Strider alegremente empurraria um punhal pelo coração do cara.

 — Você simplesmente cale sua boca. — Juliette estalou em seu consorte.

 Embora fosse evidente em sua expressão de raiva fundida, Lazarus obedeceu.

 Os de Juliette que permaneciam em Strider se estreitaram.

— Ele está honrado por estar comigo, digo a você.

 Jura?

— Muito na defensiva?

 Unhas já afiadas se alongaram em garras e preto se derramou em seus olhos. Oh, bombom. Sua Harpia estava prestes a sair e jogar.

 Strider a atingiu enquanto ainda podia.

— Bem, eu realmente estou honrado por estar com Kaia, e se você tentar mais um truque como fez no primeiro jogo, incitando todo mundo contra ela ao mesmo tempo tomarei isso como um desafio pessoal. Na sua pesquisa descobriu o que acontece com aqueles que me desafiam?

 Mais pretos, o branco dos seus olhos quase completamente desapareceram. Até Lazarus se aproximou e afagou suas mãos por cima da mesa. Bastou isso. Um único tapinha. O preto gradualmente retrocedeu e as unhas retraíram.

Strider vira Sabin acalmar Gwen várias vezes, mas pela primeira vez ele foi afetado pelo poder que um consorte realmente tinha sobre a sua Harpia. Afetado pelo quanto uma Harpia necessitava daquele consorte.

 Mas Lazarus claramente era um escravo aqui, à força. Então por que ele acalmou a mulher que o escravizou? Ele não deveria se deleitar na sua chateação? E além do mais, como Juliette o capturou? Não uma, mas duas vezes? O homem que uma vez cortou seu caminho por uma aldeia Harpia e saiu vencedor. Inferno, ele era filho de Typhon e uma Gorgon, o que significava que ele tinha poderes além da imaginando.

 Ele permitiu que ela o capturasse? Essa parecia ser a única explicação que fizesse sentido. Mas por que ele faria tal coisa?

 Tantas perguntas e nenhuma delas podia ser respondida. Strider fez uma nota mental para chamar Torin e pedir ao guardião da Enfermidade para trabalhar um pouco de magia de computador e ver o que podia desenterrar. Sem sombra de dúvida, alguma coisa estava acontecendo aqui.

 — Você não pode fazer nada comigo, guerreiro. — No controle de si mesma mais uma vez, Juliette deu aquele sorriso presunçoso.

— Não sem lançar a culpa em Kaia. Todos vão vê-la como a perdedora fraca que ela realmente é. — Uma pausa dramática antes dela continuar com uma voz melodiosa. — Novamente.

 Exatamente o que Kaia uma vez disse a ele. Ele acreditou nela, mas descartou sua importância em vista de suas próprias metas. Ele ainda fazia — vida e morte superavam sentimentos feridos o tempo todo. Mas agora ele estava puto. Vencer, Derrota disse num grunhido baixo.

 Strider sabia o que seu demônio queria. O prazer é meu. Antes dos jogos terminarem Strider faria “nada” para Juliette, sem colocar a culpar em Kaia. Desafio lançado, desafio aceito.

 Era por essa razão que precisava ficar longe da mulher, mas não estava arrependido de tê-la abordado. Ele estava contente. A cadela pagaria por tudo que disse hoje, como também tudo que fez no passado.

 — Vamos ver. — ele disse com um sorriso. Sua lista de desafios aceitos estava aumentando. Proteger Kaia de outras Harpias — um desafio que ele quase perdeu, teria perdido se ela não se recuperasse de seus ferimentos. Porque ela conseguiu, por causa do seu sangue, ele ainda estava no páreo. Adquirir a Haste de Partir. — era um trabalho em andamento. E agora este, destruir Juliette.

 — Sim, vamos ver. — Juliette respondeu. — Ah, e guerreiro. Você deve saber uma coisa. Se a Haste for roubada de mim ou se eu for ferida antes dos jogos terminarem, Kaia será morta. Meu clã está muito ansioso para agir.

 Tentando amarrar suas mãos, e droga, ela estava fazendo um bom trabalho. Como ele poderia manter Kaia a salvo de um exército inteiro de Harpias? Um suor frio brotou em sua pele neste pensamento.

 Finalmente elas pararam de cantar.

 De repente reinou um silêncio absoluto, como se todo mundo estivesse com medo até de respirar temendo que o barulho daria início a outra canção. Mas, não. Passos ecoaram, e então Kaia estava arrastando uma cadeira para a mesa.

 — Strider. — ela disse com firmeza.

 — Boneca. — ele respondeu, esperando que seu medo estivesse mascarado.

 — Graças aos Deuses. — disse Juliette, sua diversão nunca vacilando. — Você canta terrivelmente. Meus tímpanos precisavam de uma pausa.

 Strider curvou sua mão na nuca de Kaia e a massageou. Estável.

— Acho que ela estava adorável.

 O queixo de Kaia se ergueu.

— Obrigada.

 — Sério, boneca. Eu poderia ouvi-la durante horas. — Mas, por favor, não faça isso comigo.

 Derrota pode ter choramingado.

 — Isso é porque você é um homem de bom gosto. — Ela se debruçou por cima da mesa e beijou sua bochecha.

 A impressão de sua boca o deixou deliciosamente queimado e mal conteve o desejo de colocar sua mão em cima da marca. Quando ela começou a se afastar, ele apertou ainda mais e a segurou no lugar. Ele gostava de tê-la perto. Especialmente agora com a ameaça que sofreu de Juliette soando em seus ouvidos.

 Kaia o observou por um momento, confusão cobrindo suas delicadas feições. Então ela forçou sua expressão a revelar apenas um ar entediado e voltou para sua nêmesis. Ficou feliz em notar que Juliette assistiu a terna troca, fúria crescendo em seus olhos lavanda.

 — Faço minhas as palavras dele. Escutar você foi puro prazer. — Lazarus disse, falando alto apenas pela segunda vez. Antes sua voz fora profunda, quase inaudível. Agora era hipnótica. Sexy. — Kaia a… Mais forte, não é?

 Strider agarrou o cabo do punhal embainhado ao seu lado. Adeusinho, minuto de entorpecimento. Alô, ódio renovado e ainda mais poderoso. Fale assim com ela novamente. Atreva-se.

 Juliette riu.

— É disso que ela se chama? A mais forte?

 Manchas gêmeas rosa tingiram a face de Kaia.

— E você é Lazarus, Tampax, não é? — Juliette engasgou.

 Lazarus só piscou.

— Ouvi dizer que é como você e suas irmãs falam de mim, e por tanto tempo que eu queria perguntar por que você se refere a mim como produto íntimo da higiene feminina. Porque fiz você sangrar?

 Agora Kaia era a que se engasgou.

— Só… você… aprenda a tomar um insulto do jeito certo, droga!

 Ele inclinou sua cabeça concordando.

— Vou me esforçar para te agradar, é claro.

 Strider e Juliette experimentaram a mesma reação às palavras do bastardo. Irritação. Como evidenciado pelo fato que ambos se levantaram. Sua cadeira deslizou para trás. Ela permaneceu entre as pernas dele. Amun e Sabin chegaram mais perto. Kaia — ainda empoleirada na sua cadeira — empurrou-os para trás, com a intenção clara de ser o escudo do Strider. E a espada.

 Lazarus se levantou também.

— Então. Está na hora de ir, como os humanos dizem. — Nenhuma preocupação entrou no seu tom.

 — Isto... — Juliette começou duramente.

 — Venho querendo conversar com você sobre algo importante, Julie. — Kaia disse, cortando-a.

 — Juliette. — Os olhos lavanda escureceram para um violeta profundo. — Meu nome é Juliette a Extirpadora. Você se dirigirá a mim com o devido respeito.

 — Tanto faz. É uma vergonha que você não possa lutar nos jogos. Alguém quase poderia pensar que você aceitou a posição de liderança porque temia os concorrentes.

 Uma exclamação de indignação. O derrame preto naquele olhar removendo qualquer sugestão de cor.

— Eu aceitei a posição de liderança de forma que eu pudesse finalmente...

— Não. — Lazarus disse com tanta força que as paredes do bar realmente tremeram. — Chega.

 Finalmente. Um vislumbre do seu poder. E ah, sim. Alguma coisa estava definitivamente ali.

 Juliette empalideceu e pigarreou.

— O que eu quis dizer foi que alguma coisa pode ser arranjada. Você quer lutar comigo, lutaremos. Mas realmente, mesmo que você não queira, vai acabar fazendo isso. Você me desafiou todos aqueles anos atrás, mas nunca tive permissão para responder.

 — Porque você era muito galinha?

— Primeiro — a cadela rosnou. — tivemos que nos recuperar do dano que você causou.

— Eu? E ele? — Ela apontou com seu polegar para Lazarus.

— Você sabe a resposta para isso. Ele agiu apenas por causa das suas ações. Agora cale sua boca e ouça. Segundo, tivemos que repor nossos números, então matar outra Harpia fora dos jogos era proibido. Terceiro, sua mãe teria declarado guerra contra meu povo. — Sua fúria desapareceu, substituída por mais daquela superioridade presunçosa. — Mas nenhuma dessas coisas ficará mais no nosso caminho.

 Kaia vacilou com a lembrança da renúncia da sua mãe.

 Juliette puxou um colar de dentro da sua camisa e dedilhou o medalhão de madeira pendurado na corrente.

— Bonito, não é?

Não havia como esconder o tremor no queixo de Kaia enquanto ela olhava o medalhão.

— Já vi melhores.

Isto é meu garota. Claramente olhar o colar a machucava e Juliette sabia por que. Agora ele queria saber o porquê. Ainda assim, essa era sua boneca. Sempre tinha que ter a última palavra, não importa o que. Ele não podia culpá-la por isto, estava realmente orgulhoso dela. Despertado por ela.

Ele sempre pensou que este aspecto da sua personalidade era perigoso para ele, e era — mas porra, quando ela virava o jogo para outras pessoas ele queria bater no peito como um homem das cavernas. Talvez levá-la de volta para sua caverna e se perder com ela.

 Talvez? Ha! Ele queria dominar esta mulher que ninguém mais podia controlar. A mulher que arranhava todo mundo, mas o tratava com a mais terna das carícias.

Antes de Juliette poder trabalhar numa resposta mordaz, cada Harpia no prédio, até Kaia, parou o que estava fazendo e franziu o cenho.

 — O que? — Strider perguntou, preocupado.

Nenhuma resposta chegou. Em uníssono as mulheres retiraram seus telefones celulares. Kaia leu a tela acesa e enrijeceu.

 — O próximo local foi revelado. — ela disse, seu tom destituído de emoção. — Nós temos vinte e quatro horas para chegar lá.

 Juliette riu. Apesar dela ser líder checou seu celular também. Ela já não deveria saber aonde eles estavam indo?

— Pobre Kaia, tem uma decisão muito difícil de tomar, não é? — Ela murmurou, e então chamou. — Vamos sair, time.

 Finalmente as Eagleshields e seus consortes, inclusive Lazarus, saíram do bar. Juliette permaneceu na porta de entrada, sorrindo para Kaia.

— Pena que você não poderá se esconder atrás dos seus homens desta vez, heim? — Com isso ela deslizou na luz do sol.

 — O que está acontecendo? — Strider exigiu, forçando-a a enfrentá-lo. Por que Juliette parecia pensar que ele não poderia ir?

 — Nós temos que partir. — ela sussurrou, angustiada.

 Nós. Bom.

 — Vou pegar minhas coisas.

 — Não. — Ela sacudiu sua cabeça, seu cabelo deslizando por seus ombros, suas mãos, seu olhar nunca encontrando completamente o seu.

— Nós. Significa eu e minhas irmãs. Juliette estava certa. Você e seus amigos não podem vir.

 Como inferno.

— Por que? Onde você está — nós — indo?

 Um suspiro a fez estremecer.

— O Odynia. Mais conhecido como Jardim do Adeus de Hera, já que ela usava o lugar para se livrar da sua oposição sem ter que levantar uma mão contra eles. É claro, Rhea está encarregada dele agora, então eu acho que ela será nossa anfitriã lá.

 Rhea, a Deusa rainha Titã e verdadeira líder dos Caçadores. Muito mais perigosa, muito mais poderosa que Galen jamais poderia esperar ser. Se Strider assistisse essa parte dos jogos provavelmente cairia direto numa armadilha. Se ele ficasse para trás, Kaia poderia ser ferida e ele seria incapaz de alcançá-la e ajudá-la a se curar.

 De jeito nenhum, ele pensou.

 

 O homem estúpido não ia parar de seguí-la!

 Ficar longe de Strider foi fácil. Deixar seu demônio “vencer” é que não foi. Depois de soltar a bomba sobre Rhea, Kaia solicitou um momento a sós para conversar com ele. E por falar ela deixou ele entender que queria beijá-lo até deixá-lo desnorteado.

 Eles saíram do bar, o ar fresco envolvendo-se em torno dela e gelando seu sangue já frio.

 Então, antes de Strider poder articular uma palavra, ela plantou um beijo rápido em seus lindos lábios —infelizmente não o deixando sem sentido — e o desafiou a ficar onde estava por uma hora. Ah, e ele tinha que manter Sabin e Lysander ao seu lado.

 A fúria selvagem que ele irradiou enquanto ela recolhia Bianka e Gwen e iam embora... o modo como ele abordou Sabin e Lysander quando os dois tentaram seguí-las... o modo feroz que ele lutou com eles…

 Ela nunca esqueceria. Ela quase se virou umas mil vezes, querendo tanto pedir seu perdão e suplicar que se juntasse a ela. Ela usou seu demônio contra ele, algo que nunca quis fazer. E fazê-lo depois que se beijaram de forma tão espetacular, quando eles finalmente se acertaram indo na direção certa, Deuses. Só o pensamento de Rhea e a natureza cruel da Deusa a impediu. Kaia não poderia manter sua mente no prêmio e proteger Strider ao mesmo tempo. Mesmo no Odynia os Caçadores poderiam estar espreitando, prontos para tomar sua cabeça.

 Custe o que custar tinha que proteger Strider. Ela precisava dele mais do que precisava de ar para respirar. E ele amoleceria com ela. Querendo mais dela. Ele a beijou na frente de todo mundo. Beijou-a com forte e sujo, como se estivessem prestes a fazer amor. Como se ele não pudesse ter o suficiente dela. Como se ela fosse uma droga que tivesse sido negada por muito tempo. Então ele a chamou de sua boneca e a acariciou como se ela fosse uma companheira inestimável.

 Arruinou tudo por desafiá-lo em vez de conversar com ele, e saber disso a fez ter cólicas no estômago. Mas não havia tempo algum para explicar ou convencê-lo dos méritos de seu plano. O Time de Kaia só tinha vinte e quatro horas — dezenove agora — para chegar ao Jardim de Rhea nos céus, mas para isso, primeiro elas tinham que alcançar o portal que a Deusa rainha abriu.

 Com Taliyah e Neeka encabeçando adiante, Kaia e o resto das suas damas fizeram o seu caminho para a invernal e maravilhosa terra do Alasca. Alasca, a pátria das Skyhawks e o local do Portal provisório — um local escolhido em honra da vencedora da primeira competição.

 Seu destino? Uma extensão esquecida de terra entre duas montanhas específicas. Elas não deixaram nenhuma pegada, disfarçaram seus aromas e ficaram completamente fora de vista. Só no caso de outro time pensar em dificultar o seu progresso.

 No entanto, nada impedia os homens determinados no seu rastro.

 — Nós teremos que dificultar pra eles. — Gwen disse, névoa formando na frente do seu rosto. Ela pulou do topo de uma árvore coberta de gelo para outra, cachos loiro arruivados soprando atrás dela.

 Uma sugestão de Gwennie, a agradável.

— Não. — disse Kaia, ela mesma saltando para uma nova árvore, suas asas tremulando embaixo do seu casaco branco de pele falsa. Isso faria Strider perder e não podia suportar pensar nele sendo derrubado, contorcendo-se de dor por dias e se enfraquecendo como resultado. Isso faria dele um alvo fácil para Juliette. — O portal fechará às 8:01 amanhã de manhã. Vamos mergulhar por ele pouco antes de fechar, e então não poderão nos seguir.

 — Isto é arriscado. — Bianka disse diretamente atrás dela. O galho balançava com a combinação de seu peso. Leve, porém, ainda era peso. — Poderíamos entrar tarde demais e não podemos nos dar ao luxo de sermos desqualificadas de uma competição. Se formos, estaremos fora do páreo sem esperança de ganhar o terceiro lugar, muito menos o primeiro prêmio.

 Droga. Consortes deveriam tornar a vida mais fácil, não mais complicada. Kaia fez uma pausa, esfregou uma mão em seu rosto gelado, de repente tão cansada que só queria desmoronar. Ela não dormia há dias, não realmente. Primeiro ela esteve muito ocupada se curando, e então esteve muito ocupada se preocupando sobre possíveis ataques furtivos.

— Você pode pensar em outra maneira de conseguir isso sem ferir nossos homens?

 Ouviu-se um apito no ar, antinatural, fazendo suas orelhas se contraírem. Era um som que Kaia reconheceu muito bem, e o medo a banhou.

 Elas estavam prestes a ser emboscadas.

 — Abaixem-se! — Ela gritou, arrastando Bianka pra baixo com ela. O galho se balançou, mas um pouco acima das suas cabeças uma seta se embutiu no tronco. O cheiro de abacate e sal atingiu seu nariz e ela se encolheu.

 — Eu quebrei a porra de uma unha! — Gwen gritou, mais irritada do que Kaia a ouviu desde seus dias de noivazilla[22].

 Kaia farejou o ar, descobriu vestígios de suor e medo. As Harpias não soltaram aquela seta. Humanos o fizeram. Entretanto apostaria que as Harpias pagaram um bom dinheiro aos humanos para fazer isso. De que outra forma eles saberiam usar pontas da flecha esculpidas do caroço de um abacate e imerso em sal, em vez de balas? Como eles saberiam daquela combinação, das substâncias que enfraqueceriam o coração de uma Harpia por semanas, não importando onde ela fosse atingida?

 Ou, se não foram contratados pelas Harpias, foram contratados pela própria Rhea, já que Kaia e companhia eram amigas dos Senhores. Assim que um dos humanos esticou a corda do seu arco, Kaia viu por um momento o número oito tatuado na parte interna do seu pulso. O símbolo do infinito. O símbolo dos Caçadores.

 Com Strider, Sabin e Lysander nas proximidades… droga. Ela não queria Strider em nenhum lugar perto desses bastardos doentes. E talvez fosse por isso que os Caçadores foram enviados. Ou eliminavam os rapazes ou eliminavam as garotas que eles namoravam.

 Não que eles tivessem sucesso.

 — Eles estavam esperando para nos emboscar, e você sabe como odeio quando as pessoas ficam à espreita. — Bianka rosnou, deixando sua bolsa de roupas e suprimentos cair. Houve um puf quando o nylon pesado aterrissou na neve. — Tenho que dar uma pequena punição.

 — Sim. — Em rápida sucessão mais seis setas bateram na sua árvore, cada uma mais perto que a outra. Ela retirou dois punhais, encontrou seus alvos, lançou um, depois o outro. Houve um grunhido, um grito. — Vai deixar um para mim, não é? — Ela perguntou, deixando sua bolsa cair ao lado da bolsa de sua gêmea.

 — Claro que não. É sua vez de deixar um para mim.

 — Faça isto de qualquer maneira e vou parar de te chamar Oh Montes Celestiais. — Kaia soprou seu um beijo antes de cair… cair… aterrissando agachada com o mais leve chacoalhar. Pequenos flocos de neve flutuaram ao seu redor enquanto rapidamente esquadrinhava os arredores. Ela contou cinquenta e três Caçadores, a maioria ainda no chão, arcos armados e prontos.

 — Você luta sujo, Kye. — Bianka chamou logo atrás dela. — Mas você conseguiu um acordo.

 Ela riu feliz, não conseguiu se controlar. Mais setas salpicaram as árvores, ainda muito pertos para o conforto dela. Sua Harpia gritava para se liberar. Kaia nem sequer tentou segurar a docinho de volta.

Suas irmãs sabiam o que fazer, sabiam como ficar a salvo do perigo. Imediatamente sua visão afunilou para o preto, pequenos pontos vermelhos se tornando seu foco. Calor do corpo.

Sua boca se encheu de água por um gosto de sangue.

Estes homens machucariam Strider se tivessem uma chance, então estes homens morreriam. Dolorosamente. Ela sorriu conforme se desdobrava, levantando.

— Ali, ela está ali! — Alguém gritou.

— Estou vendo!

Um segundo mais tarde setas dispararam em sua direção. Ela os observou, seis deles se movendo muito lentamente. Um por um ela os pegou, olhou para eles e os jogou no chão. Eles não eram brinquedos muito divertidos.

— Bem, você viu isto? Impossível!

Kaia entrou em ação. Num piscar de olhos ela estava no meio dos humanos. Ela dançou através deles, garras cortando, presas rasgando. O gosto doce de sangue descia pela sua garganta. Logo gritos de dor e pedidos de misericórdia ecoaram ao redor dela.

Misericórdia? O que era misericórdia? Ela não conhecia a palavra. A única palavra que ela conhecia era mais. Ela necessitava de mais. Mais gritos, mais sangue. Ela cortou com mais fervor, mordeu com mais entusiasmo. La La La, isso era tão divertido. Ah, olha. Ela conhecia outras palavras. Tão divertido. Ossos faziam o som mais delicioso quando se quebravam. E quando pele se rasgava, a cantiga de ninar mais magnífica era criada. Gritos, gritos, apelos. Gritos, gritos, apelos. La La La.

Muito cedo os corpos pararam de subir. Os gritos e súplicas morreram. Não havia mais ossos para quebrar, nem pele para rasgar. Sem mais canções de ninar. Kaia se acalmou e franziu o cenho. Mas… mas… ela queria mais. Por que não podia ter mais?

Dentro, fora, ela respirou — e sentiu o cheiro de canela. A canela se equiparava a Strider.

Strider.

Seu Strider.

Seu sexy e irreverente consorte que a chamava de boneca.

A Harpia gritou e saciada, acalmada por Strider, retrocedeu para o fundo da sua mente.

Kaia piscou enfocando. Ela percebeu que estava arquejante, sua pele revestida de suor. Não, não suor. Sangue.

Sangue e… outras coisas.

— Bom ter você de volta, querida irmã. — Bianka disse dando um tapinha no seu ombro por um trabalho bem feito. — Como prometido, fiquei de lado e deixei para você.

Kaia girou, viu a neve vermelha, os corpos imóveis — ou melhor, o que restou deles. Os humanos tinham um ditado. Mexa com o touro e conseguirá os chifres. Bem, as Harpias também tinham um ditado. Mexa com uma Harpia e morra.

O único restante — e vivo —humano estava fixado a uma árvore. Ele tinha uma seta se projetando de cada ombro e tornozelo, e tremeu quando Kaia se aproximou dele. Cada passo doía e ela parou a meio caminho para se examinar. Quando ela não viu nada fora do comum, fora o sangue, ela removeu o casaco agora vermelho. Ela tinha cortes em seus braços, estômago e pernas — e a ponta de uma flecha do seu lado.

Merda.

 — Merda. — Bianka ecoou quando ela notou também. — Vamos tirar isso fora antes que mais dano seja feito. — Sua gêmea agarrou sua bolsa, retirou um par de alicates, empurrou Kaia para se sentar e foi trabalhar, cavando cada pedaço de fragmento para fora.

 A queimadura… Kaia queria gritar e bater nas mãos da sua irmã para afastá-las, mas não fez. Ela se forçou a se concentrar em outra coisa. Seu time. Ela estudou Gwen, que estava pálida mas ilesa. Havia dois membros do seu time ao lado dela. Juno e Tedra. Uma estava arranhada, mas a outra estava repleta de perfurações e se balançando em seus pés. Ela não estaria lutando na competição seguinte. Droga!

 E Kaia não cheirou canela apenas um instante atrás? Não foi assim que se acalmou? Então onde Strider estava agora?

 — Tudo feito. — Bianka disse se endireitando. A preocupação colocava camadas em seu tom. Ambas sabiam que Kaia precisava do sangue de Strider ou ela estaria em má forma mais tarde.

 — Obrigada. — Kaia levantou e encurtou o resto da distância entre ela e o Caçador. Ele era mais alto que elas por pelo menos doze centímetros e provavelmente as superavam em uns quarenta e cinco quilos, mesmo assim o cheiro de medo flutuava dele, azedo e potente. Afinal ele tinha um lugar na primeira fila para o show.

 — Por favor… não me mate. — ele chorava. — Não sou assim. Não gosto deles.

 — Eu não vou. — ela prometeu com um sorriso frio. — E em troca você vai me fazer um favor. Sim?

 — Sim. — Lágrimas de alívio fizeram um rastro em suas bochechas. — Por favor, sim.

 — Bom. Isso é bom. Agora ouça com atenção porque não vou me repetir. — Ela desembainhou o punhal da bainha do seu tornozelo e rasgou uma tira de pano do seu casaco de pelo caído.

 — O-o-o que você está fazendo? Você disse que não iria me machucar.

 — Não, disse que não o mataria e não vou. — Movendo-se rapidamente, ela trabalhou a tira vermelha ao redor do seu pescoço. — Você está escutando? Bom. Aqui está o que você vai fazer…

 

 

Strider sentiu o aroma do sangue muito antes dele ver as piscinas formadas por ele.

Ele esteve na pista de Kaia por horas, seu demônio o enlouquecendo dentro da sua cabeça. Vencer, vencer, vencer. Se ele ouvisse essa palavra mais uma vez ele mataria alguém. Ou seja, ele mesmo. Depois Kaia. Parecia impossível, mas ele encontraria uma maneira de fazer isso. Ele estava assim determinado e ela era a culpada por esta bagunça.

 Exceto, enquanto ele cheirava para ter certeza que identificou as notas corretamente, esqueceu sua irritação com Derrota, esqueceu sua raiva com Kaia e só pensava em sua segurança. Definitivamente sangue.

 Ele e Sabin compartilharam um olhar de oh-merda e explodiram de repente em movimentos rápidos, empurrando galhos carregados de gelo ao passar e sendo golpeados no rosto por seus esforços. Strider estava com sua Sig em uma mão e um punhal na outra, pronto para qualquer coisa — exceto ver Kaia ferida. Ou pior.

Vencer, vencer, vencer.

Encontrá-la? Sim, ele iria. Salvá-la? Sim, faria isso também. Lysander e Zacharel sobrevoavam e devem ter sentido o cheiro da morte também, porque aquelas asas longas e graciosas começaram a bater freneticamente, e eles começaram a descer rapidamente.

 Todos os quatro homens entraram na cena ao mesmo tempo.

Corpos espalhados pelo chão. Todos homens. Sangue encharcava a neve, evidência que os humanos não morreram facilmente — mas no fim, eles provavelmente imploraram pela morte.

 Lysander caminhou para a cena, cheirando, tocando.

— Algumas Harpias ficaram feridas.

— Kaia? — Ele grasnou, seu coração derrapando até uma parada.

Uma pausa terrível.

— Sim, mas ela foi embora caminhando. Todas fizeram.

Graças aos Deuses. Seu coração voltou ao similar de uma batida.

— Estes humanos foram contaminados pelo demônio da Discórdia. — Lysander adicionou. — Suas mentes estavam bloqueadas apenas para divergência.

Rhea estava possuída pelo demônio da Discórdia. E Rhea abriu seu Jardim do Adeus para todas as Harpias. Para melhor destruir as mulheres dos seus inimigos?

— Não o demônio da Esperança? — Ele perguntou dando esperança a si mesmo.

— Não. Quem fez isso foi Discórdia, sem dúvida.

Merda. O trabalho de Strider — proteger Kaia — agora era dez mil vezes mais difícil. Não que ele se importasse. Ele faria o que tinha que fazer, até mesmo ir contra a Rainha dos Deuses.

— Como você sabe?

 — Cada demônio emite certo aroma. — As palavras eram ditas com repugnância. — E o cheiro penetrante de Discórdia ainda escoa destes homens.

— Então nossas garotas estão em perigo. — Sabin rosnou.

— Nós sabemos. — Mas aquele era Sabin para você, Capitão Babaca da Óbvia USS[23]. Strider esfregou uma mão pelo seu rosto abaixo. Agora ele estava só sendo irritante. Mais uma coisa para culpar Kaia, que foi ferida sem seu sangue para curá-la.

 — Vou convocar meus anjos para limpar essa bagunça. — Zacharel disse.

Seus anjos?

— Ainda não. —Em meio à morte ele pegou também a sugestão de um perfume. De Kaia, para ser exato. Seu sentido de olfato poderia não ser tão altamente desenvolvido quanto o de Lysander, mas quando se tratava de Kaia, Strider estava afinado para as menores coisas.

 Sniff. Ele seguiu o cheiro de cobre e Sabin o seguiu. Sniff. Strider se abaixou e ergueu uma ponta de flecha quebrada. Sangue revestia a ponta. Ele trouxe aquela ponta ao seu nariz e deu outra cheirada, esta mais profunda. Com certeza o cheiro de Kaia estava lá. Como Lysander disse, ela foi ferida.

Ter a evidência bem diante do seu nariz fez algo com ele. Uma névoa vermelha de fúria pontilhou sua visão. A seta fina estalou em sua mão. Eu preciso segurá-la e me certificar que ela está bem. E preciso machucar quem a feriu.

 — Ela está bem. — Sabin disse. — Ela foi embora. O anjo não pode mentir.

Ele ouviu um gemido abafado e todos os músculos do seu corpo se enrijeceram. Alguém vivia. Ele e Sabin se separaram, dando a volta ao redor do tronco grosso de uma árvore. Um homem — humano, um Caçador, com seus braços imobilizados para os lados e virados, exibindo seu pulso tatuado — estava preso ali, usando nada além de um laço coberto de sangue ao redor do seu pescoço. Pelo, como no casaco de Kaia.

Um presente, então.

Quando o Caçador avistou os guerreiros começou a chorar de verdade.

Strider foi pisando duro para ele e agarrou seu queixo, seu punhal apertado contra a bochecha do homem.

— Você está vivo por uma razão. Qual é? — Espere. Precauções em primeiro lugar. — Se você ousar tentar pronunciar uma palavra de desafio, cortarei sua garganta antes que possa terminar. Entendeu? — Ele não colocaria uma coisa dessas no passado da sua Harpia. Ela era uma coisinha astuta, determinada a deixá-lo para trás.

 Bem, muito ruim. Rhea o atacaria no momento em que o visse, mas ele não dava uma merda. Era de se supor que ele não a machucaria, porque feri-la machucaria Cronus — literalmente — e Cronus então o comeria no almoço. Nem isso o incomodava. Ele estaria lá para Kaia. Estava indo para abrigá-la da Deusa Rainha a qualquer preço.

 Pela Haste de Partir, sim. Pelo seu demônio, sim, isto, também. Mas principalmente porque estava desesperado para terminar o que eles começaram dentro do bar. Se ele não conseguisse aquele flexível corpinho debaixo dele, e logo, implodiria.

O que aconteceu com esperar até depois da competição?

O plano estúpido foi abandonado. Quero ela agora.

— V-você é o chamado St-Strider? — O humano perguntou.

Ele deu um aceno duro com a cabeça.

— Eu... eu deveria dizer para você n-não se preocupar. As g-garotas tem tudo sob c-controle.

Sabin se moveu para o lado do Strider.

— Isso é tudo?

O humano vacilou.

— N-não. Se você as seguir, se elas virem você por um momento, elas vão se deixar ser d-desqualificadas.

 Strider e Sabin compartilharam outro olhar, longe do último oh-merda e agora entrando no território do oh-foda. Se ninguém estava disposto a cortar seu nariz para ofender seu rosto bonito, era Kaia.

— Obrigado por transmitir a mensagem. — ele disse ao Caçador um pouco antes de acabarem com ele.

Ele esperava que os anjos o admoestassem, mas permaneceram silenciosos enquanto a cabeça do humano pendia pra frente. Sua vida inútil agora expurgada.

 Às vezes Strider deixava seu inimigo ir embora, esperando que tivessem aprendido uma lição sobre os tons de cinza entre o bem e o mal. Desta vez não, isso não aconteceria. O homem atacou Kaia. Seu destino já estava selado.

 A vitória foi amena e Derrota mal reagiu.

 — Vamos. — disse Strider, limpando sua lâmina em sua calça jeans e enfiando-a de volta em sua bainha. — Nós não estamos muito atrás delas.

 Zacharel inclinou sua cabeça de lado pensando.

— Você está disposto a arriscar...

 Strider o calou com um olhar.

— Estamos indo. Vamos apenas nos certificar de não sermos vistos.

 

O portal para os Céus repousava exatamente onde o texto havia prometido, um cintilante bolsão de ar entre duas montanhas cobertas de gelo sob o luar. O time de Kaia estava agachado no alto de um penhasco, observando, esperando. Temendo.

 Kaia estava em uma saliência escorregadia, o frio penetrando até os ossos. Normalmente tais temperaturas não a afetavam. Desta vez ela tremia, seus dentes chacoalhavam. Seu ferimento poderia estar infectado, seu corpo ligeiramente febril, mas pelo menos não havia nenhuma dor. O frio anestesiou a lesão estúpida e ainda aberta.

 Para se curar deste tipo de lesão ela precisava do sangue de Strider.

 Na verdade ela só precisava de Strider. Ela não tinha certeza de como alguma vez ficou bem sem ele. Impertinente como era, não o buscaria. Não tão cedo — e talvez nem mesmo depois disso. Com sorte já teria recebido a mensagem que ela deixou pra ele e já traçou um curso para Buda. Seu bem-estar vinha antes de sua necessidade compreensivelmente grande por ele. Mas só um pouco!

 Ela girou o seletor do seu binóculo para um olhar mais próximo da área circundante. Branco, branco e mais branco, e até agora não viu nenhuma outra Harpia. Nenhuma névoa para revelar o suspiro gritante de respiração aquecida. Nenhuma cor brilhante se esquivando pelas pedras, avançando cada vez mais perto para a segurança. Nenhum clique na brisa indicando quando as setas eram armadas. Mesmo assim ela esperava pelo jogo sujo. Pelo menos até que alcançassem a parte inferior da montanha. No momento que seu time pisasse através do portal estariam em território neutro. Ninguém seria capaz de atacá-las.

 O problema, porém, seria atingir a parte inferior.

 — Acho que estamos bem. — disse Taliyah confiscando o binóculo e dando uma panorâmica nos cumes mais elevados. — E realmente não podemos esperar muito mais tempo. Você e Tedra precisam ser atendidas e não podemos fazer isto aqui.

 Bianka confiscou o binóculo de Taliyah e perscrutou abaixo nas planícies.

— Se Lysander estivesse aqui ele poderia voar lá em cima e...

— De novo com essa merda? — Kaia recuperou o binóculo e o lançou por cima do ombro. Na hora que passou, Bianka recitou todas as razões pela qual elas estariam em melhor situação se os homens estivessem aqui. Como se Kaia já não soubesse, droga.

 — Ei! — Neeka ofegou. — Isso dói.

 Kaia se torceu e fez uma careta pela fisgada que sentiu ao lado. A garota bonita estava carrancuda esfregando o nódulo agora surgindo abaixo do seu olho esquerdo.

— Eu pediria desculpas, mas a culpa é toda da Bianka porque ela...

— Shh! — Bianka levou a mão à sua boca, silenciando-a. Sua gêmea apontou para o portal cintilante com a sua mão livre. — Olha.

 Ela olhou. As Falconways e as Songbirds mal acabaram de aparecer na crista da encosta distante e foram correndo em direção ao portal, rápido… mais rápido… agora meros borrões. Ninguém tentou impedi-las, e uma por uma, elas foram varridas por aquele bolsão de ar deslumbrante, desaparecendo de vista.

 Se os Caçadores esperavam determinados a atacar, eles teriam pelo menos espiado das sombras para ver quem se aproximava. Certo?

 — Ok. — disse Kaia com um aceno da cabeça. — Nós daremos um ataque direto para o portal, então aqui está o que nós vamos fazer. Duas de nós estão muito feridas para correr e diminuiremos a velocidade de quem tentar nos carregar, e não quero que nos separemos, então vamos deslizar por essa beirada em cima das nossas mochilas. Como trenós. Em seguida, bum, estaremos nos céus saudáveis e inteiras, antes que a gente perceba.

 Os murmúrios de acordo encontraram suas palavras.

 Dentro de minutos elas estavam alinhadas e prontas para ir. Kaia tinha a liderança. Ela se empoleirou na sua mochila, suas pernas já pendurando para o lado da borda. Seu coração tamborilava no peito. Ela saltou desta mesma montanha mil vezes antes, brincando de Quem Pode Quebrar o Menor Número de Ossos com Bianka. Ela geralmente ganhava — Bianka sempre cobria o seu rosto e deixava o seu corpo uma espécie de fiasco no gelo.

 Não que importasse agora, ela pensou. Concentre-se. Somente se uma de suas garotas se machucasse…

 Ela apertou seus dentes. Não vai acontecer, não novamente.

 Quando ela exalou uma névoa se formou na frente dela.

— Aqui — ela correu — vamos — ela balançou — nós! — ela deslizou. O vento batia nela conforme descia mais e mais rápido, assim como as outras equipes fizeram. O lado de fora da sua mochila estava se retalhando rapidamente, e seu casaco seria o próximo a ir, depois sua pele. Quase Lá…

 A ponta de uma flecha afundou no músculo da sua coxa. Antes que ela pudesse reagir, outra se pregou. Ela ganiu com dor.

Porra! Como? Onde estavam — lá. Os caçadores atravessavam por seus próprios bolsões de ar em miniatura, como se eles estivessem ali, pairando entre um reino e outro, observando e esperando. Ela queria voar pra fora de sua mochila e rasgá-los um por um, mas… ela passou zunindo através do portal e eles desapareceram de vista.

 Uma torrente de vertigem. Um piscar de luz muito brilhante. Então sua mochila derrapou até parar, sendo pega pelas cordas grossas das raízes das árvores. Ela piscou, tentando clarear sua cabeça e alcançando a seta ainda fincada na perna dela. Gwen se chocou contra ela soprando um hmph, acidentalmente desalojando sua mão.

 Outro ganido a deixou, outro lance de dor disparou por seu corpo inteiro.

 — Você está bem? — Gwen exigiu, já de pé e arrastando Kaia fora do caminho dos outros.

 — Claro, claro. — Ela esquadrinhou pelas Falconways e as Songbirds. Nenhum sinal delas, graças aos Deuses. Bem, graças a todos menos Rhea, a cadela. Kaia não estaria agradecendo-a por nada, nem na sua própria cabeça. — E você?

 — Sim, mas acho que eles pegaram Bianka. Eu a ouvi gritar.

 Não! Ela preferiria receber mil lesões a permitir que Bianka recebesse sequer um.

— Eu vou matá-los... — A ameaça morreu na sua garganta. Um dos galhos de árvore estava se estendendo pra baixo, movendo-se furtivamente de propósito, as folhas — duas delas, um no topo e uma na parte inferior —surpreendentemente dentadas nas bordas e se abrindo e fechando como se fossem dentes.

 Vivas. As árvores estavam vivas. De olhos arregalados, Kaia deu um tapa no enorme e bombástico monte de folhas e rolou pra fora do caminho. No entanto sentiu outro lance de dor.

— Você viu isso? — Ela arquejou.

 O membro se torceu para trás, longe delas.

 — Sim, e ainda estou em choque. Tenha cuidado. — Gwen girou dessa forma e assim, com um punhal em cada mão, observando as árvores, ficou desafiando-as a tentar se mover novamente.

 De repente Bianka apareceu, deslizando numa parada acidentada. Ela tinha flechas no seu ombro, antebraço e estômago. Já estava ensopada de sangue.

— Merda! Eles me pegaram.

 Vendo-a Kaia teve que engolir um gemido.

 Rhea realmente não queria que elas fossem tão longe, pensou sombriamente. Bem, Rhea teria uma surpresa desagradável.

— Eu vou te ajudar em um segundo, irmã. Só tenho que cuidar de uma coisa primeiro. — A raiva deu força a Kaia enquanto arrancava a ponta da flecha pra fora da sua perna. Feito isso, ela mancou para sua irmã e a arrastou pra fora da linha de fogo — e mais daqueles galhos de árvores mastigantes.

 Gwen ajudou chutando e cortando até que eles, uma vez mais, voaram para trás.

 — Esses bastardos! — Bianka disse asperamente, empalidecendo com a perda de sangue e dor.

 — Teremos que nos preocupar com os Caçadores mais tarde. — E sua revanche. — Acho que as árvores são vampiros enlouquecidos. — Agitando Kaia se ajoelhou e gentilmente — bem, tão gentilmente quanto foi capaz — removeu as pontas das flechas de sua gêmea.

 Bianka reclamou o tempo inteiro gritando com Kaia, então Taliyah, Neeka e as outras chegaram. Neeka era a única outra Harpia machucada e Taliyah a medicou. Não deu nem um pio.

 — E se os rapazes vierem pelo portal, heim? — Kaia perguntou. — Eles não vão estar preparados.

 — Se forem burros o suficiente para cruzar merecem o que vão receber. Agora vamos. — Taliyah disse. — Podemos estar em terreno neutro agora, mas ainda temos uma longa caminhada de uma hora antes de alcançarmos nosso destino. Não podemos nos atrasar.

 Sim, e muita coisa podia acontecer em uma hora.

— Você só está com ciúmes porque não tem um cavaleiro de armadura brilhante correndo para te salvar.

 Taliyah revirou seu olhos azul bebê.

— Suas lesões fizeram você delirar. Quando eu encontrar meu consorte pretendo apunhá-lo no coração antes que ele possa me causar um mal estar momentâneo.

 — Eu entendo. Seu consorte não pode se comparar ao meu, ninguém pode, por isso você prefere ficar sem.

 — O meu é melhor que o seu. — Bianka disse.

 — De jeito nenhum.

 — Sem essa.

 — Garotas. — Taliyah bateu palmas para chamar sua atenção. Da mesma maneira que fazia quando eram crianças, discutindo sobre um brinquedo. — Os seus dois consortes são um saco. Agora calem a boca e se movam.

 Bianka mostrou sua língua para Kaia.

 — O meu é menos saco do que o seu. — ela murmurou.

 — Sim, o meu é um saco melhor do que o seu. — Kaia manteve seu olho no portal enquanto elas saltavam para longe, ao mesmo tempo aliviada e preocupada quando os homens não conseguiram atravessar.

 

 

Três elogios. Não. Cada Time chegou a tempo. É claro, o Time de Kaia foi o último a cruzar o limiar do campo de batalha, mas tanto faz. Eles sustentaram algumas pancadas e contusões ao longo do caminho, mas não houve mais emboscadas, então Kaia não reclamaria (como Bianka ainda estava fazendo).

 A pior “contusão” pertencia a ela. Uma das árvores comedoras de gente deu uma mordida nela, alcançando-a antes dela poder assustá-la. Com sua copa de dentes afiados ela se encaixou em seu pulso e afundou até o osso. Enquanto ela gania a árvore pareceu, bem, querer vomitar, estremecendo e balançando, e então aquela árvore murchou diretamente diante dos seus olhos, ficando preta e cessando todos os movimentos, permitindo que Bianka removesse o galho com um único golpe do seu punhal.

 Depois disso as árvores as deixaram em paz. Talvez sua febre tenha envenenado a que a mordeu, e o resto era sensível suficiente para temer o mesmo. Sim, ela definitivamente tinha uma febre e não existia nada leve sobre isso agora. Deuses, nenhum gelo por aqui, mas ainda estava tremendo de frio.

 Endureça-se. Isto é para Strider.

 As concorrentes das Harpias lotavam a única clareira, com plantas (não mordiam?) espessas as cercando. O ar estava quente, o sol dourado e brilhante, pequenas cintilações de púrpura, azul e rosa nos sub-tons. Não havia nenhum consorte ou escravos presentes e Kaia se perguntava por que essas outras garotas deixaram seus homens para trás. Certamente não pelas mesmas razões que ela teve.

 Rhea não estava em nenhum lugar a vista. Juliette, porém, ficou em um galho de árvore estendido com vista para a multidão, cabelos pretos fluindo atrás dela em uma perfeita brisa, nem muito leve nem muito forte.

 — Bem vindas companheiras Harpias. — ela anunciou. — Estou muito feliz em informar que cada uma das equipes concorrentes cumpriu o prazo. — Seu olhar lavanda nivelou em Kaia. Tendo usado um estojo compacto para checar seu reflexo — sim, as aparências contavam, até aqui fora — Kaia sabia o que Juliette via. Olheiras escuras sob seus olhos, pele pálida, com exceção de suas bochechas mais brilhantes. — Felizmente, ninguém estava distante disso.

A cadela sabia sobre os Caçadores. Como? Só uma razão fazia sentido. Ela estava… ela poderia estar trabalhando com Rhea? O estômago de Kaia deu uma câimbra, produzindo uma espuma ácida.

Juliette continuou alegremente.

— Como vocês provavelmente suspeitaram, estão aqui para lutar. — e os aplausos abundaram. Quando eles enfraqueceram uns instantes mais tarde, ela acrescentou. — A hora chegou para segundo jogo, A Queda Mortal.

Agora “oohs” e “ahhs” ecoaram.

Juliette levantou suas mãos pedindo silêncio.

— Primeiro, um pouco sobre o jogo. Você vai escolher quatro membros para competir. Esses quatro devem lutar aqui nas árvores e no ar, tudo ao mesmo tempo. Seu único objetivo será derrubar a oposição para o chão. Uma vez que uma Harpia toca o chão, ela está fora para sempre. E você ficará emocionada ao saber que não existe nenhuma regra restringindo os métodos que você usa, então sinta-se livre para dar golpes baixos, como os humanos gostam de dizer.

 Gargalhadas ansiosas, punhos batendo juntos. Kaia permaneceu no lugar, imóvel, com seu coração martelando.

 — O primeiro time a perder todos os quatro membros está desclassificado. — disse Juliette. — Para levar a vitória pra casa hoje, um membro do seu time deve ser o último a bater no chão. É tão simples e tão fácil.

Oba. Certo. Nada era simples ou fácil com Juliette.

Um sorriso cheio de dentes brancos relampejou.

— Oh, e antes que perguntem. Não há limites de tempo. Esta competição durará o tempo que precisa durar. Mas você só tem cinco minutos para decidir quem luta e quem permanece no chão, esperando para administrar a tão necessária ajuda médica. — Ela olhou para o cronômetro pendurado ao redor do seu pescoço, do lado direito do seu medalhão de guerreira Skyhawk. Um medalhão que Tabitha deveria ter dado a ela — o medalhão de Kaia — embora elas fossem parte de clãs diferentes. — Aqueles cinco minutos começam… agora.

 Dentro de segundos, as equipes estavam selecionadas e formando círculos amontoados, murmúrios femininos se misturando na luz do dia.

— Eu quero isto. — disse Kaia chutando para elas. Ela tinha muito a provar.

Bianka beijou sua bochecha.

— Eu amo você, Kye, você sabe disso, e sabe que acho que você está na categoria A de força bruta e vingança, mas voar, bem, depois de tudo que fizeram com você da última vez, não é sábio. Para não falar do fato que você ainda está ferida!

— Sim. — ela respondeu secamente. — Obrigada por não falar. Só para registro, Monte Celestial, você também foi ferida gravemente.

— Ei! Você prometeu nunca mais me chamar por esse nome ridículo novamente.

— Como se essa fosse uma promessa que eu pudesse realmente manter.

— Direito de Bee. — Taliyah disse, ignorando-as. — Todo mundo já está atrás do nosso sangue. Eles vão conspirar contra nós por um grande tempo, por isso temos que ter nossas jogadoras mais rápidas no ar.

Kaia engasgou.

— Eu sei que você não está sugerindo o que acho que está sugerindo. Eu sou rápida. Tal como uma bala rápida.

— Sim, mas Gwen é mais rápida. Assim como eu, no que diz respeito a esse assunto. Então temos Neeka. E Bianka. Diabos, Juno e Tedra são mais rápidas que todas nós juntas. — acrescentou Taliyah, apontando para seus outros membros. — É por isso que eu as recrutei. Além do mais Juno não jogou ainda, e Tedra já está curada das flechadas.

 Todos, exceto Kaia, assentiram. Ela pressionou sua língua no céu da boca. Isto parecia quase ensaiado. O que ficou claro, porém, era que elas não queriam que ela lutasse. Não achavam que ela poderia ajudar, só atrapalhar.

 Deuses, a dor que ela experimentou… a humilhação… ambas quase a derrubaram. Fez com que ela quisesse se enrolar no colo de Strider e chorar. Seus braços fortes estariam como uma faixa ao seu redor e ele falaria baixinho com ela, confortaria, então diria o quanto ela era capaz.

 Ou não.

 Na última vez que estiveram juntos, ele quis que ela treinasse com seus amigos. Até ele duvidava da sua capacidade.

 Estômago… apertando… outra vez…

 Ela poderia ter lutado com suas irmãs. Poderia ter apelado para sua posição e insistido. Ao invés disso, movimentou a cabeça concordando com elas. Assim como fez com Strider. Um, elas teriam discutido com ela e mal se sustentava em pé, cheia de ferimentos. Dois, como elas tão rudemente apontaram, ela não estava no seu melhor. E três, vitória era uma prioridade, não seu orgulho.

 — Tudo bem. — ela disse, forçando um tom confiante. — Bianka, Juno e Tedra. Você está dentro. Se estiver ok, Bee. Você foi seriamente machucada.

 — Estou bem. — Ela ofereceu a Kaia um sorriso aliviado embora triste. Ela conhecia os pensamentos fluindo pela cabeça de Kaia. — Eu estava levando um frasco de sangue do Lysander comigo e drenei o conteúdo a caminho daqui.

 Esperta. E diabos, por que ela não pensou em pedir a Strider um frasco com seu sangue? Não que ele tivesse concordado em lhe dar um. Não depois de tudo que ela fez com ele. Além disso, para fazer isso, ele teria que cuidar dela. Teria que estar mais preocupado com sua saúde que com o restante ao seu lado.

 — Você podem se decidir pelo quarto membro. — ela disse, sabendo que fariam de qualquer maneira.

 Elas aceitaram o decreto sem um pingo de argumento, surpresa, surpresa, e foi rapidamente decidido que Gwen entraria na luta. O sangue de Sabin a curou depois da primeira competição e não foi atingida por uma flecha.

A surdez de Neeka poderia ser usada contra ela e Taliyah não estava tão equipada para as brincadeiras aéreas quanto a Skyhawk mais nova.

 Um maldito apito estridente soou e os grupos se aquietaram.

 — Tempo esgotado. — Juliette anunciou. — Todos tomem seus lugares.

 Houve uma confusão de passos. Enquanto os membros escolhidos dos times subiam para o topo das árvores, Kaia permaneceu no chão assistindo, um aperto doloroso no seu coração. Um aperto que piorou quando atraiu a atenção de Juliette e a Harpia sorriu, satisfeita consigo mesma.

 Sabia que você seria cortada, aquele sorriso parecia dizer.

 Kaia tentou não enrubescer ou cair em lágrimas.

— Não dê nenhuma atenção a essa bruxa. — disse Taliyah, dando um tapinha no seu ombro. — Você é melhor em todos os sentidos.

 — Obrigada, Tal.

 Neeka cavou o suprimento médico que se esperava não fosse necessário de suas mochilas e se juntou a elas. Nem tão breve, também.

 Juliette levantou uma arma para o ar, segurou firmemente enquanto todos esperavam tensos, em expectativa, então apertou o gatilho.

 Bum!

 No alto bem lá em cima teve uma explosão de movimento. Folhas farfalharam e corpos se trombavam. Grunhidos de grande energia, gemidos de dor e gritos de raiva ecoaram, reportando danos e satisfação. Kaia tentou acompanhar suas irmãs, mas as garotas estavam muito alto, movendo-se muito depressa, desaparecendo atrás de folhas e nuvens e ela logo desistiu. Ela olhava para o chão, esperando pelos corpos que caíssem.

 Dentro de minutos ela sentiu uma lufada de ar e se enrijeceu quando ouviu um splat. Ficou mais tensa ainda quando avistou uma imóvel... Songbird a poucos metros de distância. Sangue empoçou em torno da garota quando uma de suas companheiras de equipe se apressou a administrar ajuda.

 Graças aos Deuses. O nó no estômago de Kaia se desfez, entretanto a queimadura ácida não retrocedeu. Gwen terminaria desse jeito? Bianka?

 Apertando as mãos em punho, corpo tremendo, ela arrancou seu olhar do ajuntamento de Songbirds. Na borda da clareira, ela avistou uma agitação de folhas e um lampejo de cabelos escuros. Uma Harpia inocente apenas precisando de um momento sozinha? Uma Harpia maliciosa empenhada em atacar alguém, embora permanecessem em terreno neutro? Um Caçador, que não estivesse preocupado com nada além de destruir seu alvo? Ou talvez a própria Rhea?

 Inferno, por tudo que Kaia sabia, aquele cabelo escuro pertencia a Sabin. Ou até mesmo Lazarus. O modo que ele a observou no bar, o modo como ele a insultou… ele não tinha acabado com ela. Isso ela sabia muito bem.

 Sem querer se arriscar, ela se debruçou para Taliyah e sussurrou.

— Vi algo. Vou dar uma olhada.

 Sua irmã mais velha não tirou sua atenção da luta.

— Tenha cuidado. Grite se precisar de mim.

 Ela conhecia sua irmã bem o suficiente para saber que Taliyah estava simplesmente sendo indulgente com ela. Se pensasse que existia uma ameaça real, Taliyah a Coração Frio teria insistido em ir junto. Houve outra punhalada de dor no peito de Kaia, mas sacudiu isso pra fora.

 Ela se fundiu na espessa folhagem verde. As árvores e as plantas pareciam na verdade se afastar dela agora, como se a palavra tivesse se espalhado e todas tivessem medo dela. Pena que o mesmo não poderia ser dito para os companheiros das Harpias.

 Permanecendo abaixada, um punhal em cada mão, ela abriu caminho em torno da clareira. Suas pernas pareciam de borracha, fazendo seus pés se arrastar. Ela estava fazendo mais barulho do que pretendia, mas não podia se ajudar nisso. Se o intruso não notou o clomp das suas botas, ele definitivamente ouviria seus batimentos cardíacos, batendo como uma britadeira na sua configuração mais rápida e golpeando contra suas costelas.

 Finalmente avistou pegadas que não pertenciam de uma Harpia. Eram grandes, largas e pressionavam fundo o suficiente pra dizer que quem as fez pesava pelo menos noventa quilos de músculos sólidos.

 Isso reduzia as coisas um pouco. Ela estava lidando com qualquer um, Caçador, Sabin ou Lazarus. Sua mente fervilhava, eliminando depressa os suspeitos. Se fosse um Caçador, haveriam outras pegadas. Afinal, os caçadores eram como baratas. Onde um se escondia, outros mil o faziam também. Se fosse Sabin, ela sentiria o cheiro de Strider. O dois nunca estavam afastados.

 Isso deixava Lazarus, o Tampax.

 Bem, bem. Talvez eles fossem extremamente violentos, afinal. E você não achava isso? Eles seriam extremamente violentos enquanto ela não estava a pleno vapor. Isso não era simplesmente formidável?

 Um peso duro colidiu nas suas costas, jogando-a de cara no chão. Aquele mesmo peso pressionou contra ela com tanta força que suas asas quebraram nas fendas, dificultando seus movimentos e diminuindo sua força ainda mais. O oxigênio esguichou da sua boca de repente coberta de sujeira, uma explosão que a deixou em choque.

 Ela estava tão determinada a se aproximar sorrateiramente de sua presa que falhou em guardar suas costas corretamente. Ela deveria saber! Droga, o que estava errado com ela?

 Aqui estava mais uma prova de sua fraqueza. Não é de admirar que suas irmãs não a quisessem no ar.

 Entretanto nada a impediria de lutar. Suas garras surgiram e seus caninos brotaram. Mas assim que ela tentou se torcer e enfiar seu joelho entre seus corpos, um voz masculina sussurrou.

— Não faça isso. Eu ganhei, e é isto. — Satisfação e prazer colocaram camadas naquela familiar, — amada — voz.

 Strider. Ao contrário da satisfação de Juliette, a dele não a incomodava. Ela realmente se deleitava com isso. Ele estava aqui. Estava com ela, vivo e bem. Ele também estava em perigo, mas no momento ela não podia se importar. Ele estava aqui!

 — Estamos bem? — Ele perguntou naquele mesmo sussurro sedoso. Sua respiração quente acariciou sua orelha e alívio absoluto correu por ela. Até que ele acrescentou. — Espere, não responda. Aquele bastardo do Lazarus está logo adiante esperando por você. Ele colocou uma armadilha.

 Quando ela recuperou seu fôlego disse asperamente.

 — Que tipo de armadilha?

 — O tipo com flores, velas e uma taça cravejada de jóias repleta com seu sangue, provavelmente doente.

 Seus olhos se arregalaram. Lazarus estava tentando… seduzi-la? Por que?

— Eu não sei sobre doença, mas aquele sangue provavelmente está envenenado. — Certo? Um truque destinado a atraí-la para abrandá-la antes do bastardo partir para a matança.

 — Se tivermos sorte ele morrerá de decepção quando você não se mostrar.

 — Na verdade, se ele tiver sorte.

 — Bem pensado. Agora eu tenho que decidir se o mato agora ou depois.

 — Opção dois? — Ela perguntou esperançosamente.

 — Exatamente o que eu estava pensando. Agora eu tenho algo melhor pra fazer. — Strider recuou um pouco e ela finalmente se torceu, deitando de costas. Suas pernas escarranchadas em sua cintura, e seu olhar azul marinho brilhando para ela. Sujeira manchava sua pele beijada pelo sol e seu cabelo pálido estava rosa com sangue seco e grudado no seu rosto. — Não se preocupe. Ele vai ter o dele.

 — Você se machucou? — Se alguém o machucasse ela soltaria sua Harpia. Ela não seria capaz de se ajudar. Ela iria...

 — Estou bem. — Sua expressão suavizou, e Deuses, ele era lindo. — Lembra dos Caçadores que te atacaram por último? Bem, eles sofreram depois. Você é bem-vinda.

 Seu alívio se intensificou, misturado com um sentimento de orgulho. Este era seu homem, seu guerreiro. Ninguém era mais forte. Ninguém era tão vingativo ou capaz.

— Obrigada. Agora você tem que ir. — disse a ele, dando-lhe um pequeno empurrão. — Rhea pode estar perto, e você é...

 — Não. — Ele não moveu. — Sabin e os anjos estão procurando por ela. Até agora eles não acharam qualquer indício de sua presença.

 — Isso não quer dizer...

 — Cale-se, Kaia. — ele disse, cortando-a pela segunda vez. — Você está em apuros e somente cavando o buraco mais profundo. — Ele se levantou apenas para se curvar e agarrar seu pulso, arrastando-a para se levantar por sua vez, fazendo ambos darem a volta e se afastarem de Lazarus.

 Folhas e galhos a golpeavam, e insetos zumbiam, alguns se atrevendo a mordê-la.

 — Não posso ir muito longe. — disse ela, já ofegando pelo esforço. Porra. O lado dela e a perna latejavam, as feridas se abriram quando ela caiu. Agora, sangue escorria de cada uma, caindo em suas botas.

 — Você vai até onde eu disser. — retrucou, sem saber da sua dor.

 — Strider me escute. Minhas irmãs estão lutando. Eu tenho que...

 — Eu não me importo com o que elas estão fazendo. Você e eu vamos conversar. Agora mantenha-se abaixada enquanto acho um lugar para nós. Se não fizer isso vou te amordaçar. E Kaia? Realmente espero chegar a te amordaçar.

 Ela comprimiu seu lábios juntos, em silêncio, enquanto ele a persuadia a entrar cada vez mais fundo na floresta.

 

Strider arrastou Kaia através da névoa espessa e atravessou um rio. Quando veio aqui pela primeira vez, as árvores tentaram comê-lo vivo e teve que cortar caminho para sua segurança a cada instante. Agora essas mesmas árvores permaneciam completamente imóveis, nem uma única folha dançando com a brisa. O que era aquilo?

 A questão deixou de importar quando ele alcançou a caverna que descobriu enquanto arrastava Kaia. Serviria aos seus direitos lançá-la para dentro, empurrou um pedregulho na frente da única saída. Ela poderia passar alguns anos na solitária, pensando sobre seus erros.

Ele queria gritar com ela, realmente queria — por deixá-lo para trás, por quase cair na armadilha sedutora daquele bastardo do Lazarus, que Strider puniria por isso, a propósito — mas quando ele a apoiou contra a parede de cristal, teve a primeira visão de corpo inteiro dela desde que jogou seu traseiro no chão. Seu glorioso cabelo vermelho estava úmido nas pontas e gotejando algumas poucas gotas de água sobre sua barriga à mostra.

 O rio lavou a maquiagem que sempre recobria sua pele, deixando-a brilhando como um diamante na luz do sol escaldante. Porém não tão brilhante quanto antes. E ela estava tremendo. Ele franziu o cenho. Por que ela estava tremendo? Estava tão quente quanto o inferno aqui.

 Isso não fez nada para diminuir seu apelo. Nada podia. Talvez porque ela vestisse um minúsculos top e short. Ambos eram brancos, agora ele via através deles, e como via. Seus mamilos corados e durinhos, e então, entre o comprimento longo e flexível de suas pernas, um delicioso trecho vermelho no centro, e se ele não desviasse seu olhar logo sua ereção arrebentaria o zíper de sua calça.

 Estudou o resto. Ela foi ferida, ele percebeu. Os ferimentos inflamados do seu lado e na coxa causavam fúria dentro dele, substituindo a luxúria. Não admirava que sua pele estivesse sem o seu esplendor e que seu corpo não conseguisse parar de tremer.

 Ele mordeu seu pulso e manteve o ferimento em sua boca.

— Beba.

 Gemendo de êxtase, ela obedeceu. Uma sucção tão primorosa, ele pensou, tão entusiasmada. Seus olhos fechados em sinal de rendição. Quando ele viu o músculo dilacerado e a carne se juntando assentiu com satisfação e removeu seu braço.

 Foi ele quem gemeu desta vez. É claro que a ausência da lesão deixou sua bonita pele nua e imaculada, permitindo que ele a comesse com os olhos. A luxúria retornou com força total.

 Olhe para… cima… Seus lábios eram carnudos, úmidos. Mais alto. Porque, porra! Ele estava latejando. Seus olhos de prata-dourada estavam iluminados com todo o tipo de emoção. Chateação, alívio, sua própria excitação, dor. Ele queria afastar o ruim e ampliar o bom. E o único modo de fazer isso, disse a si mesmo, era tê-la. Finalmente. De todos os modos, sem conter nada.

 Sim, bebê. Ele gostou desse pensamento. Sentiu como se estivesse pensando claramente pela primeira vez na sua vida. Ele precisava do que ela oferecia. Queria fincar uma bandeira da sua reivindicação, alertar a todos os outros homens pra se manterem longe.

 Haveria consequências, ele tinha certeza, mas não podia se importar com isso. Não aqui, não agora. Ela o deixou e foi embora sozinha, e a separação quase o levou a beira da loucura.

 Ele pressionou seu corpo contra o dela e ela ofegou. Um som tão adorável, necessitado e devasso.

 — Obrigada. — disse ela, com voz baixa e sensual. — Você não tem ideia do quanto precisava disso.

 — Bem vinda.

 — Você ainda quer me amordaçar? Porque recomendo usar uma bola de tênis e fita adesiva, se você fizer.

 — Não há necessidade de uma mordaça. Posso lidar com você. — Se não pudesse, bem, não haveria melhor maneira de partir.

Sua respiração ficou difícil.

— Sério? — Agora seu tom estava beirando a esperança.

Ele balançou sua cabeça concordando.

— Sério. Então vamos descobrir o que preciso para fazer algo impressionante.

— O-ok.

— Você me disse uma vez que Paris te deu um zilhão de orgasmos. Suas palavras, não minhas. Então quanto é exatamente um zilhão?

Suas bochechas ficaram rosadas e ela estava adorável, toda sexy, em seu embaraço.

— Eu não sei. Não contei. E não quero falar sobre ele.

— Pense novamente. Conte. E você vai falar sobre ele apenas uma única vez. Depois desta conversa você vai esquecê-lo. Para sempre.

— Por quê? — Ela achatou as palmas no seu peito. — Por que me faz pensar novamente, quero dizer, quando só quero pensar em você?

— Meu demônio. Por que mais? — Ele traçou um dedo ao longo da sua mandíbula. — Apenas faça isso. Por favor.

Vencer.

Chocante, ele pensou secamente. Eu vou. Ele esperava.

A compreensão raiou em sua expressão, e com isto, o medo. Ela acabou de perceber que Strider tinha que lhe dar mais orgasmos que Paris deu. Que até o sexo tinha que ser um desafio para ele. Ela estava se perguntando se eles alguma vez teriam paz? Se existiria um momento só para eles, sem jogos, sem vencedor e sem perdedor?

— Você sabia que seria assim antes de me aceitar como seu consorte. — ele disse rigidamente. — Nem sequer considere me jogar de lado agora. Então faça isso. Pense no passado e me conte.

 — Não quero jogar você de lado. Não quero que se machuque de jeito nenhum. — Ela mordiscou a parte inferior do seu lábio, uma ação nervosa que ele reconheceu. — Ele me deu q-quatro, eu acho.

Aquela gagueira…

— Você acha ou você sabe?

Uma pausa. Mais mastigar.

— Eu, uh, sei. Sim, eu sei. Quatro. Foi quatro. Com certeza.

 Vencer.

Quieto. Eu vou. Ele daria a ela (pelo menos) cinco orgasmos antes dele gozar. E ele explodiria sua mente com cada um deles. Mas teria que dá-los enquanto ainda estivesse vestida. No momento que a despisse estaria dentro dela, enchendo-a, perdendo o controle que ele precisava.

 — Tenho que dizer, estou um pouco surpreso por você considerar quatro um zilhão, mas cada um na sua. Então, prepare-se para um quatrilhão. — Ele alcançou entre seus corpos e desabotoou o short.

Seus olhos se arregalaram.

— Vamos fazer sexo agora?

— Sim. — Abriu o zíper. Ele arqueou uma sobrancelha. — Depois de sua assembléia sobre orgasmos. Isso é um problema?

— Não. Só… você lembra quando eu disse que não queria te machucar? Bem, eu quis dizer, não queria te ferir acidentalmente. Então você só… droga, você precisará de uma palavra segura. — Seu peito arfava com a força da sua respiração. — Eu sinto muito.

 Intrigado, ele fez uma pausa.

— Eu? Eu vou precisar de uma palavra segura? — E ela não teve medo que ele falhasse, só que ela o machucasse. Ele quase sorriu. Esta já era a melhor experiência sexual da sua vida.

 Ela balançou a cabeça, insegura.

— Tudo bem pra você?

 Mulher deliciosa. Seu olhar baixou para a abertura em seu short. Calcinha branca. De renda. Bom.

— Que tal uma frase segura? A minha será “alguém está lá fora”. — Ele não esperou pela sua resposta, e caiu de joelhos.

 — Oh, Deuses. — Sua barriga estremeceu. — Ok, sim, ok. Deuses, estou me repetindo, mas funciona.

 Seu olhar trancou na sombra ruiva embaixo da renda e sua boca encheu d’água. Ele se inclinou e aninhou o seu nariz, inalando o doce cheiro de mulher.

 — Oh, Deuses. — ela disse novamente. — Você-você será o melhor, Strider, você não precisa se preocupar, Certo? Eu sei disso.

 Simplesmente ele não estava preocupado com nada. Sua mente estava focada nela e só nela. Em aprender o seu gosto, ouvi-la implorar por mais, sentindo-a o agarrando, talvez puxando seu cabelo.

 Ele forçou suas pernas a se separarem o máximo que podiam com o short restringindo seus movimentos. Indiferente a sua calcinha, ele pressionou a ponta da sua língua contra o seu centro, o calor. Pressionou com mais força. Deuses, ele já podia saboreá-la e nunca teve nada que ele gostasse mais.

 A dor em seu pau se intensificou, quase insuportável. Porra. Como seria bom se ele estendesse sua mão pra baixo, enrolasse seus dedos ao redor do seu eixo, acariciasse pra cima e pra baixo enquanto enterrava o rosto entre suas pernas.

 Estava descendo sua mão até que percebeu que se movia. Droga. Ele agarrou suas coxas. Teria que deixar sua mente em branco, executar, mas permanecer distante. Só quando batesse Paris poderia considerar seu próprio prazer.

 Strider sacudiu sua língua em cima do botão firme de seus clitóris.

 — Oh, Deuses, sim. — ela arquejou.

 Sem necessidade de forçar sua mente a ficar em branco. Seu grito de prazer deu um curto circuito em seus pensamentos. Satisfeito, ele a queria satisfeita. Úmida, sua calcinha estava úmida, mas ele a queria ensopada.

 Em seguida sua língua traçou círculos preguiçosos ao redor do seu centro aquecido, golpeou fortemente pra frente e pra trás, de cima pra baixo, atingindo-a em todos os ângulos possíveis. Quando ela começou a arquear seus quadris para encontrá-lo, ele acariciou com suas mãos de cima abaixo suas panturrilhas, suas coxas, então debaixo de seu short. Uma pele tão macia, suave… e tão malditamente quente.

 Embora quisesse colocar suas mãos pra cima nesse túnel, mais alto, enfiar seus dedos dentro dela, ele simplesmente brincava com ela, com a possibilidade, sua língua nunca cessando seu assalto, e finalmente, docemente, ela agarrou a parte de trás da sua cabeça e segurou firmemente sua boca contra ela. Estava ofegante, coberta de suor.

 — Eu preciso… eu tenho que ter… — Ela o enterrou onde mais precisava dele. — Strider! — Ela gritou enquanto gozava.

 Um a menos, quatro pra ir.

 Ele se levantou com as pernas trêmulas. Sem uma palavra ele a virou, forçando seu rosto contra a parede. Esfregou seu pau no seu traseiro e sorveu uma respiração irregular. Seus dedos deslizaram ao redor, correndo pra baixo do seu short, dentro da sua calcinha. Contato. Pele tão quente, núcleo feminino tão molhado, e oh, Doce Céu, ela era tão perfeita.

 Um gemido escapou dela. Suas costas se arquearam. Seus braços se ergueram e então suas unhas estavam raspando pelo seu cabelo. Ele esfregou seu clitóris inchado pouco antes de inserir um dedo profundamente dentro da sua vagina, movendo pra dentro e pra fora, dentro e fora, inserindo um segundo dedo, movendo-os pra dentro e pra fora, dentro e fora, até que ela se contorceu mais uma vez contra ele, desesperada pela liberação.

 — Strider, eu preciso, eu preciso…

 — Eu sei, boneca. — Ele lhe deu um terceiro dedo, estendendo-a. Com a mão livre, estendeu-a pra cima e a curvou em um de seus seios. Enchia sua mão perfeitamente. Seu mamilo estava frisado, provavelmente dolorido. Ele beliscou. Ela ofegou. O som o afetou, tornou sua própria necessidade maior. — Como estou me saindo?

 — O melhor. Ninguém melhor. Por favor.

 Ele não podia se ajudar, tinha que ter um contato mais concentrado. Ele puxou seus quadris para trás, batendo a prega do seu traseiro contra sua ereção, o berço perfeito, e enquanto ela gemia, ele diminuiu o impulso de seu dedos. Em segundos seus quadris começaram a bombear mais duro, mais rápido, persuadindo-o a manter o ritmo. Ele não fez. Ele diminuiu ainda mais.

 Logo ela não conseguia retomar seu fôlego, estava ofegando superficialmente, irregular. Sua pele aqueceu outro grau, quase queimando através das suas roupas. Doía, mas porra, era uma dor tão boa. Especialmente quando suas unhas afundaram em seu couro cabeludo tirando sangue. Então cada músculo no seu corpo ficou tenso, seus ossos vibrando. Novamente ela gritou seu nome. Desta vez, uma segunda voz estava colocada em camadas acima da sua, áspera, quase ronronando, e ele soube que sua Harpia estava ali com ela, apreciando.

 Menos dois, três para ir.

 — Strider, deixe-me… chupar você… você tem que estar… sentindo dor.

 Porra, mas ele queria levá-la até acima dessa oferta decadente. Ele mordeu sua língua até sentir gosto de sangue. Sim, ele estava sofrendo, mas sofreria um inferno muito maior se não conseguisse fazer isso direito.

 — Ainda não.

 — Por favor…

 Deuses, ela o mataria.

 

 

 Ele iria matá-la.

 As pernas de Kaia estavam tremendo, mal conseguindo segurá-la. Seu sangue alcançou o ponto de ebulição e ela estava derretida por dentro. E entretanto não podia ter o suficiente de Strider. Ele lhe dera um orgasmo e ela imediatamente ansiava outro. Ele lhe dera outro e ela ainda continuava ansiando.

Se ela se sentia desse modo, como ele deveria estar se sentindo? Pegando fogo? Prestes a explodir? Droga, ela queria que ele apreciasse seu tempo juntos, não que sofresse por isto.

 A vertigem a consumiu quando ele fez com que ela desse a volta. Ele não lhe deu nenhuma chance de falar ou se recuperar, simplesmente colou suas bocas juntas, sua língua empurrando dentro do mesmo modo que ela queria que seu pau fizesse. Quando ele agarrou seu traseiro com as duas mãos e o ergueu, ela encaixou suas pernas ao redor da sua cintura para se equilibrar. No momento que fez isso, ele pressionou duro, e o comprimento longo e grosso de sua ereção bateu em cheio no seu centro.

 Ela gemeu. Ele gemeu.

 Ele não parou de alimentá-la com aquele beijo. Era doce, era tortura, E era maravilhosamente depravado e erótico, afetou até o âmago de sua alma, oh Deuses, ela estava gozando novamente, antes de poder colocar sua mão para trabalhar entre eles e tocar sua ereção.

 — Você fica linda quando atinge o clímax. — ele disse ferozmente, sua voz tensa. — Mais duas vezes, boneca, ok?

 Ele não entendeu. Como poderia fazê-lo entender? O número de orgasmos não importava. Não com ele. O fato que era Strider que estava beijando-a, tocando-a e lhe dando prazer era suficiente. Nenhuma experiência jamais seria melhor que isso.

 Ela tinha que fazê-lo entender.

 As pernas de Kaia estavam sem ossos quando as forçou ao chão. Ele pressionou suas costas contra a parede de cristal — tão fria — e abriu as mãos sobre seus seios, apertando. Linhas de tensão franziram sua boca. Sua boca inchada, ainda úmida.

 Ela envolveu seus dedos ao redor dos seus pulsos, aplicando tanta pressão que ele não seria capaz de se mover sem experimentar uma pontada de dor. Seu olhar se levantou, encontrando o dela. Aqueles olhos azuis marinhos estavam vidrados, famintos.

 Agora que tinha sua atenção, ela o lançou para o lado e dançou na frente dele, invertendo suas posições. Suas garras rasgaram seu jeans. O tecido estava úmido onde ela se esfregou contra ele.

 — O que está... — A pergunta terminou em um gemido rouco quando seus dedos deslizaram pela sua carne. Sua quente e necessitada. — Kaia, não... você não pode.... droga, bebê! Faça, por favor.

 Ela já foi se ajoelhando. Agora ela o chupou profundamente, até o fundo da sua garganta. Os dedos dele entrelaçaram no seu cabelo. Talvez tivesse a intenção de empurrá-la pra longe dele, mas quando ela ergueu sua cabeça, chupando mais forte, banhando sua língua acima da veia grossa que recobria todo o seu comprimento, ele somente massageou seu couro cabeludo, gentil, terno, como se tivesse medo de puxar os fios.

— Bebê… amor... por favor. — Ele ia bombeando seus quadris em sintonia com a sua boca, dentro e fora, dentro e fora, ainda tentando ser gentil e lento quando seu corpo claramente ansiava duro e rápido.

 Embora ela gostasse de dar prazer a ele assim, tanto quanto ele apreciava estar no lado receptor, as dúvidas que ele lançou na sua mente germinaram dentro dela. E se o número de orgasmos, de fato, importassem para o seu demônio? Strider seria seu melhor, inquestionavelmente, sem dúvida, não importa o que, mas se o número importasse e ela não conseguisse ter mais de quatro orgasmos antes dele ter um, Strider sentiria dor. Se ele sentisse dor não a levaria pra cama novamente.

 Ele se lembraria da dor ao invés do prazer.

 Oh… droga. Seu ponto de vista teria que ser provado mais tarde.

 Ela parou abruptamente e ele gemeu como se estivesse agonizando. Ele provavelmente estava. Mais dois, pensou. Ela tinha que ter mais dois orgasmos antes que pudesse dar um a ele. Ela se sentiu egoísta e gananciosa, mas não podia arriscar isso. Precisava provar seu ponto de vista, e faria isto para ele mais tarde. Ela lhe daria tantos orgasmos que ele não poderia caminhar por uma semana.

 Tremendo mais intensamente, ela se levantou, arrastou sua mão do seu cabelo e moveu seu short pra baixo entre suas pernas, onde estava quente e úmida. No momento do contato, um gemido separou seu lábios.

 — Kaia, por favor... você tem que… eu preciso… — Sua voz estava distorcida, suas feições tão tensas que ele a fez lembrar um elástico, de tão esticado. E seus olhos… seus olhos resplandeciam com uma mistura de azul e vermelho, Strider e seu demônio competindo pelo domínio.

 — Eu me rendo. — ela sussurrou se arqueando contra ele, deslizando aqueles dedos bem dentro dela. — Eu sou sua e nós faremos isto da sua maneira. No entanto, você quer.

 — Não, eu quero… preciso...

 — Eu sei, querido, eu sei, mas continue me tocando assim, ok? Toque-me assim até que eu diga pare. Então você vai enterrar este belo pau tão profundamente dentro de mim… que eu nunca… serei a… mesma. — A última palavra surgiu em outro gemido. A pressão… construindo novamente… assumindo o controle...

 — Sim. — ele rosnou.

 — Oh, sim. — Ela moveu seu polegar para seu clitóris e pressionou. Um quarto orgasmo disparou por ela depressa, fazendo-a enrijecer ter um espasmo. Ela chegou no ponto mais alto, não permitindo que seus dedos desacelerassem a impiedosa e implacável fricção. Seu sangue, antes em ebulição se tornou um inferno. Vapor realmente escoou de seus poros, criando uma névoa em torno deles. Ela não entendia, sabia que era estranho, errado, mas não se preocuparia com isso agora. Isto era muito importante.

 — Kaia… se apresse… — Gotas de suor perolavam sua testa e gotejavam de suas têmporas. Sua respiração entrava e saía áspera do seu nariz. — Não posso aguentar muito mais tempo. Morrendo…

 Suas ondulações não cessaram e a pressão se construiu mais uma vez, enrolando através dela.

— Só um pouco mais… — Seus mamilos rasparam novamente seu tórax, criando mais daquela fricção decadente. — Por favor, só mais um pouquinho.

 — Eu vou gozar no momento que estiver dentro de você.

 — Quero você.

 — Deuses, Kaia. Nunca estive tão preparado.

 Bom, isso era bom. Tanto quanto ele precisava ser o seu melhor, ela queria ser a sua melhor. Para afastar os pensamentos de todas as outras. Para ser sua primeira e única. Para sempre.

 — Você é meu. — ela disse.

— Seu. Nunca deveria ter resistido a você. — Os grunhidos predatórios surgiram na parte baixa de sua garganta. Sua mão livre bateu na parede atrás dele, do lado direito da sua coxa, rachando o cristal. Ele bateu novamente. Estilhaçou.

 Toda aquela intensidade… tudo por ela… O vapor espessou ao redor deles e ela se viu o escalando como se ele fosse uma montanha, cruzando suas pernas ao redor de sua cintura. Ele empurrou seus dedos bem no fundo, tão profundamente, e finalmente, felizmente, ela disparou. Um grito a rasgou, tão intenso que viu estrelas de prata piscando por trás das suas pálpebras.

 No instante seguinte ela estava voando pra trás. Bateu no chão perturbada e perdeu o fôlego. Não houve tempo para se recuperar. Sua roupa foi arrancada pra longe. Suas pálpebras se abriram bem a tempo de ver Strider pairando sobre ela, sua expressão frenética, seu controle se foi. Ele tinha acabado de remover sua última peça de roupa. Ele abriu suas pernas o máximo que pode e empurrou profundamente nela de uma só vez.

 Ele rugiu. Mas não gozou, não ainda, e ela gritou enquanto se arqueava ao seu encontro. Aqueles grunhidos predatórios dele ficaram selvagens conforme bombeava, estirando-a. Ele não era humano ou imortal, ela pensou. Ele era animal e ela adorava isso. E realmente, ela devia ter passado do ponto de dizer. Deve ter simplesmente se tornado um receptáculo para o seu prazer. Mas enquanto ele perfurava dentro dela, consumindo-a, também se perdeu na sensação, ela mesma um animal.

 Então ele parou. Parou. Ele baixou sua cabeça e olhou pra ela, gotas de seu suor pingando sobre ela.

 — Bonequinha? — Ele falou entre dentes, sua voz áspera e rouca.

 — Sim, sou eu. Agora, mova-se!

 — Não. Você pode… engravidar?

 — Não. Eu não estou fértil agora.

 Ele estava se movendo um instante depois e ela se perdeu de novo. Este era seu consorte, seu homem, e eles se juntaram. Um. O conhecimento era sensual, inebriante para ela. Suas garras fatiaram suas costas, esfolando sua carne. Suas presas morderam seus lábios, saboreando seu sangue, e então ele estava beijando-a também, sua língua empurrando como seu pau, marcando com ferro seu gosto dentro da cavidade de sua boca. Isto era tudo que ela sempre quis secretamente e ela se entregou à posse de Strider.

 Sim, posse, ela percebeu. Seu demônio era uma parte dele, mas Strider era uma parte dela, essencial para sua sobrevivência.

 — Strider. — ela ofegou. — Meu Strider.

 Talvez seu nome em seus lábios inchados pelo seu beijo o tenha empurrado sobre a borda, porque ele lançou outro rugido, o som enlouquecido ecoando pelas paredes. Seu corpo inteiro enrijeceu sobre o dela. Prazer absoluto consumiu seu rosto e ele bombeou dentro dela até o final, chegando… chegando... atirando-a diretamente em outro clímax.

 

Ela o queimou. Literalmente o queimou. Strider tinha bolhas por toda parte de seu corpo. Ou pelo menos, sentia como se tivesse. No momento em que ele chegou ao clímax jorrando dentro dela, seu demônio teve seu clímax também. Kaia, uma Harpia forte e capaz se rendeu total e completamente, dando tudo a eles, tudo que ela era, e o prazer interminável do conhecimento desse fato trouxe a ele uma força chocante. As bolhas começaram a se curar meros segundos depois de se formar.

 Nunca experimentou nada parecido. E agora se sentia… invencível. Sim, essa era a palavra. Ele podia fazer qualquer coisa. Poderia derrubar um exército, encontrar a caixa de Pandora, tanto faz. Seu demônio sentia o mesmo, até então gemendo com abandono, ainda perdido nas sensações.

 Em algum momento durante o tempo que Strider passou de joelhos se banqueteando entre as pernas de Kaia, e o tempo que ela passou de joelhos se banqueteando entre as pernas dele, ser o melhor parou de importar. Ele só queria estar com ela. Kaia. Ninguém mais.

 Ela se tornou sua doença e sua cura, atirando-o em alturas que não sabia que existia.

 Agora, rolou para o lado, mantendo-a aninhada contra ele. Não queria deixá-la ir. Nem agora, nem nunca.

 Ela enterrou sua cabeça na cavidade de seu pescoço, seu cabelo sedoso fazendo cócegas em sua pele. Ambos estavam encharcados de suor, e sua temperatura corporal esfriou apenas ligeiramente. O que mais gostava, entretanto: ela brilhava.

Porra, ela brilhava, todas as cores do arco-íris reluziam da sua pele. Ela encheu sua boca de água por mais um pouco, quando a excitação deveria ser impossível por, pelo menos, um ano.

Os dedos dela traçaram as bordas da sua tatuagem de borboleta azul celeste, a tinta parecendo saltar ao seu encontro, como se desejasse mais daquele calor. Uma queimadura mais profunda. Ele nunca permitiu a uma mulher acariciar a marca antes. Que é por onde Derrota entrou em seu corpo, uma lembrança constante da estupidez de Strider. Às vezes olhava para a tinta entalhada e se sentia envergonhado. Mas agora gostou que estivesse ali. Gostava da atenção de Kaia para os detalhes.

 — Você não está… ferido, está? — Ela perguntou com uma voz cheia de cascalho.

 Quando ele queria bater no peito e gritar com orgulho?

 — Oposto a ferido.

 — Sério?

 — Sério. — Ela perguntou aquilo como se não ousasse acreditar em suas palavras. — Nem precisei da minha palavra segura.

 Ela riu, mas sua diversão rapidamente escoou. Ela enrijeceu, ficando séria.

 — Então você gostou?

 Ele alisou o queixo no seu esterno, olhando-a. Ela estava com o rosto inclinado pra baixo, então ele via apenas aquela crista de cabelo vermelho.

 — Você está falando sério?

 Claramente ofendida, ela bufou.

 — Eu teria perguntado de outra maneira?

 — Você não ouviu o meu rugido? Duas vezes?

 — Sim. — ela admitiu suavemente. — Ouvi.

 — E você ainda quer saber se eu gostei?

 — Bem, como você disse não estar com dor, é por que sabe que foi o melhor. Mas não existe nenhuma maneira que eu saiba sobre você a menos que me diga.

 Ah. Ele abriu sua boca para responder, mas ela estava apenas se aquecendo.

— E realmente — ela continuou —, você resistiu a mim por muito tempo. Nunca quis ficar comigo. Você fez questão que eu soubesse que estávamos juntos apenas temporariamente.

Temporariamente. A palavra se estabeleceu dentro da sua cabeça como uma bomba segundos antes de detonar. O pensamento desta mulher com outro homem, nua desse jeito, saciada desse jeito, compartilhando desse jeito… cada célula em seu corpo gritou em protesto. Minha.

 Se ele empenhasse a palavra, ela esperaria para sempre.

 Normalmente a palavra “para sempre” o fazia estremecer. Mas então, para sempre não parecia ser tempo suficiente com ela. Havia muitas coisas para falar, fazer, muitas maneiras de tê-la e ainda praticar as velhas coisas.

 Isso quer dizer que ele… a amava?

 Esse pensamento também não o fez se encolher. Mas amá-la significaria colocar as necessidades dela acima das suas, acima da sua missão, acima de tudo. Se ele fizesse isso e depois a perdesse… Perdê-la significaria perder tudo. Mais do que isso, ela o desafiaria constantemente, querendo ou não. Ela exigiria sua atenção e não o deixaria cair fora por qualquer merda.

 Mas — e isso era um GRANDE mas — pensou que odiaria viver daquele jeito. De fato, ele achou precisava romper com o desafio de ser simplesmente quem e o que ele era, que foi a causa dele ter ido naquelas férias com Paris e William. Umas férias que não duraram muito. Ele ficou entediado e sua mente fodida em apenas um dia. Entediado e mais inquieto que nunca, procurando por… algo.

 O que poderia explicar o motivo dele ter ido correndo ao encontro de Kaia no dia em que ela o chamou da prisão. O que poderia explicar sua decisão de agir como seu consorte, sem querer assinar pela dupla jornada. Mas isso não explicava o que ele se sentia agora. Possessivo num nível tão profundo que chegava até os ossos, protetor e eufórico.

 E literalmente, precisava ser desafiado pra sobreviver. Não só porque as vitórias daqueles desafios alimentavam o seu demônio, mantendo o merdinha feliz ao invés de espumando dentro da sua cabeça, mas também porque ele se sentia vivo. E quando ele estava com Kaia, não estava apenas vivo, estava efervescendo. Por dentro e por fora.

 Ele lembrou de como a desejou desesperadamente na noite em que a encontrou no corredor da Fortaleza, vestida somente com um roupão púrpura, seu cabelo desordenado sobre os ombros, seus mamilos duros empinados através do tecido fino, seus pés descalços. Ela parecia desagradada e excitada ao mesmo tempo, e ele quis saciar aquela excitação de um modo que seus amantes anteriores pareciam ter falhado em fazer.

 Graças aos Deuses que Paris colocou sua cabeça pra fora da porta de seu quarto e lançou os chinelos de Kaia antes que Derrota aceitasse o desafio de tê-la. Ou foi isso que Strider pensou na época. Ele se afastou de Kaia e bloqueou todas as imagens dela de sua cabeça. Desde aquele momento, porém, esteve mal humorado, ninguém capaz de satisfazê-lo. Mesmo sua paixão súbita por Haidee não ajudou a distraí-lo da harpia.

 Agora…

 Sua satisfação era inigualável. Portanto, era seu desejo manter esta mulher com ele. Nunca mais deixá-la ir. Nunca mais se afastar dela.

 Sim. Ele a amava.

 Não estava chocado pela revelação. Provavelmente sabia em algum nível profundo e primário desde o princípio, só não quis admitir. Lutou contra isso. Sem mais lutas agora.

 Kaia era tudo para ele. A única que procurava, necessitava, tinha que tê-la. Ela era o início e o fim. Sua. Sua em todos os sentidos. Sua outra metade, a metade necessária. Ele resistiu ao seu apelo por muito tempo, convencendo a si mesmo que ela seria como todas as outras. Mas como podia ser como todas as outras quando ela era muito mais em cada modo possível?

 Contar ou não a ela? Uma declaração dele a distrairia dos jogos?

 — Strider? — Seu tom era hesitante, como se tivesse medo de tê-lo assustado.

 Quando você a olhava superficialmente, ela era convencida, confiante e intratável. Quando você observava mais profundamente, via o quanto ela era realmente vulnerável. Ele odiou a si mesmo por não ver aquelas vulnerabilidades mais cedo. Quantas vezes e de quantas maneiras ele a machucou durante as semanas passadas?

 Ele aumentou seu aperto.

— Você sabe que não vou mentir para você, certo?

 Achou que foi muito duro antes.

— Certo. — Tanto medo colocado naquela única palavra, toda espera se desintegrou.

 Inclusive enquanto doía por ela, tentou não sorrir.

— Então aqui está a verdade toda. Você foi… merda, não existem palavras para descrever como foi bom estar com você. Eu nunca experimentei nada assim, como você, adorei cada maldito momento disso.

— Sério? — Ela perguntou novamente.

— Oh, sim. Sério.

— Bem. — Ela beijou seu tórax, e soou segura quando acrescentou. —Isto é porque sou feita de um material impressionante.

— Imersa em impressionante.

— E salpicada com impressionante.

— Deuses, eu amo o gosto do incrível.

 Outra risada escapou dela, quente e rica como o vinho.

— Obrigada.

— O prazer é meu. De verdade. Você é uma deusa, Kaia.

 Outro beijo suave e doce.

— Não. Isso é só um rumor que um dos meus ex-namorados começou.

 Um sorriso curvou os cantos dos seus lábios.

— Então. — Ele traçou com as pontas dos dedos de cima abaixo na sua espinha. — Quando você estará fértil?

— Por quê? Você quer um bebê?

— Inferno, não. Você está brincando? Estou assustado o suficiente pelo dia em que o pequeno de Maddox e de Ashlyn junto com Strider e Stridette estiverem correndo por aí. — Embora ele quase… gostasse da ideia de um pirralho ruivinho demolindo e assolando a Fortaleza, deixando-o louco, desafiando-o a cada minuto de cada dia. Esse “gostou” tipo o apavorou. — Perguntei sobre seu período fértil porque estou tentando me situar quando precisarei comprar um estoque de camisinhas.

Ela mordiscou seu mamilo com os dentes.

— Espertinho. As Harpias são férteis apenas uma vez por ano e eu não atinjo essa parte do meu ciclo pelos próximos oito meses. Além do mais, você só tem tipo, uma chance em um milhão de fazer um imortal comigo de qualquer maneira.

— Realmente, mas tenho uma chance em dez de fazer um criminoso.

Um risada borbulhou dela e ele apreciou o som despreocupado.

O orgulho o encheu. Eu fiz isso.

— Por que tão poucas chances? — Ele perguntou curioso. Se ela pensasse que ele estava carente nesse departamento, bem, ele arrastaria seu traseiro para um especialista, faria a coisa do copo e provaria o quanto seus pequenos nadadores eram excepcionais.

Controle seu ego.

 Bem, eles eram.

— Por causa de minha herança paterna. — ela disse um pouco hesitante. — Os Phoenix nunca fizeram filhos facilmente. É por isso que eles estão se aproximando da extinção.

 — Se é tão duro para eles procriarem, como sua mãe teve gêmeos?

Seu brilho diminuiu.

— Ela é uma empreendedora.

— Então você também é. — E por falar em crianças… — Quando você era pequena o que queria ser quando crescesse? — Ele achou que estava desesperado para saber sobre ela, seu passado. Suas esperanças e sonhos.

Um suspiro de desejo.

— Pra ser honesta eu queria governar o mundo inteiro. Ou ser a esposa-troféu do regente.

Foi ele quem riu desta vez.

Ela ergueu sua cabeça o suficiente para olhar para ele.

— O que?

— Gosto de suas metas, isso é tudo. Elas são atraentes. Como você.

— Atraente. — Ela revirou os olhos. — Exatamente o que toda garota quer ser aos olhos do homem que ela, você sabe, está montando como um pônei.

Agora quem era o espertinho?

— Ei, não há nada errado em ser atraente. Eu sou atraente como um botão.

Outro revirar de seus olhos e ela se acomodou ao seu lado.

— Eu já mencionei sua humildade antes, tenho certeza. É tocante, realmente. Então, o que você queria ser quando era criança? — Seus dedos traçaram pequenos círculos no seu tórax.

Ele apertou sua mão e trouxe os dedos dela para sua boca, beijando as pontas dos dedos antes de devolvê-los para o seu peito.

 — Nunca fui uma criança, então nunca pensei sobre isso.

 — Oh, sim. Eu continuo esquecendo. Então por que você tem um marca de nascença em seu traseiro?

 Uma sobrancelha se levantou.

 — Notou isto, não é?

 — Eu sou muito observadora. — ela disse gravemente. — E não tem nada a ver com te olhar o tempo todo ou te seguir como uma perseguidora obsessiva.

 Garota adorável.

— Não é uma marca de nascença. É uma tatuagem. Ou o que fica de uma. — E algo que ele nunca discutia, mas esta era Kaia. — Uma mulher me desafiou a levar seu nome tatuado na minha pele. Eu fiz, mas tive Sabin ali para tatuar em cima dele se a coisa estúpida não pudesse ser removida.

 — Matou a mulher, é óbvio.

 Tão sanguinária, sua Kaia, entretanto essa era uma das coisas que ele amava nela.

— Eu matei seus sonhos de um “felizes para sempre” comigo.

 Ela assentiu em compreensão.

— Que ela sofra eternamente. Bom trabalho. Mas, cara, isso é triste, sobre sua falta de uma infância, quero dizer.

 Ele deu de ombros.

 — Na verdade não. Não se pode perder o que não se conhece.

 — Bem, um dia em breve vamos tomar banho juntos e vou te ensinar como brincar com um patinho de borracha. — Sua mão deslizou por seu estômago, formando redemoinhos ao redor do seu umbigo e finalmente o acomodando em suas mãos.

 Ele se sacudiu num reflexo extraordinário.

 — Acho que gostarei desse jogo.

 — Bom. E adivinhe o que mais? Finalmente ganhou seu apelido.

 — Ah, sim?

 Sua língua o lambeu, reduzindo seu mamilo a um botão durinho.

 — Sim. Bonin[24] o Bárbaro.

 Um bufo inesperado o deixou.

 — Gostei. Muito melhor que Sexorcista.

 — Muuuito melhor.

 — Bem, você mesma ganhou um novo apelido, Kaia querida. — Quando sua mão permaneceu no seu saco, ele se inclinou e moveu seus dedos ao redor do seu pênis já endurecido. Ah, sim. Isso era bom.

 A troca de lugar a distraiu do assunto, mas só por alguns segundos. Ela ficou tensa. Apelidos eram dolorosos para ela. Ele sabia. Também sabia que embora ela odiasse seu título, sentia que o merecia. Mas todo mundo cometia erros e ela foi culpada pelo seu por tempo suficiente. Pelo amor dos Deuses, ela era uma criança. Strider não podia nem imaginar os problemas em que ele teria se metido se tivesse crescido de menino para homem, em vez de saltar para a vida completamente formado.

 Olhe o que ele fez sem uma infância. Roubou a Caixa de Pandora. Soltou os demônios em um mundo desprevenido. Entregou a Capa da Invisibilidade para criaturas más e imorais.

Chega disso. Rodou sobre Kaia, prendendo-a com seu peso musculoso. Automaticamente os braços dela roderaram o seu pescoço, droga, odiava que seus dedos já não estivessem apertando seu comprimento. Oh, bom. Isto foi para o bem maior. Suas pernas se separaram para acomodá-lo.

 Ele tomou seu queixo, forçando-a a manter o olhar no rosto dele.

— Quero conversar com você sobre algo. — disse ele.

 No fundo de sua mente Derrota deixou de gemer de prazer. Talvez tenha sentido o mal estar de Strider e temia uma briga com a Harpia.

 — Sei o que quer discutir. — Kaia lambeu seus lábios e a visão daquela língua rosada fez seu pau estremecer. — Paris, certo? Bem, você tem que...

 Ele negou.

 — Terminamos com aquele assunto. Ele agora está apagado da sua memória.

 — Com certeza! Mas o que acontecerá quando eu me encontrar com ele? Se eu continuar com você acabarei encontrando. Você nos verá conversando e se lembrará que nunca poderá me perdoar por...

 Outra sacudida da sua cabeça a fez se calar.

— Não há nada para perdoar, boneca. Você e eu não estávamos saindo até então. Nem sequer estávamos paquerando.

 Olhos luminosos atravessaram sua alma.

— Mas… mas… é por isso que você resistiu a mim. É por isso que disse que não podíamos estar juntos. Não que eu ache que estamos juntos agora. — ela se apressou a acrescentar.

 — Estamos juntos. — ele rosnou, e seu tom duro não deixou lugar a dúvidas. Só tente me deixar, e verá o que acontece.

 Sua boca se abriu, revelando esses adoráveis dentes brancos, menos as presas.

 — Estamos?

 — Estamos.

 — Em todos os sentidos?

 — Em todos os sentidos. Sou seu consorte e você é minha mulher. Só minha. Tenho que usar um anel ou algo assim? E você? — Ele recordou os medalhões que a mãe dela e algumas outras Harpias estavam usando. Recordou também que queria falar com ela sobre eles. — Ou talvez um medalhão?

 — Não. — disse com voz rouca. — Nem anéis, nem medalhões. Eles são para guerreiros e os meus me foram arrebatados depois de… você sabe.

 Não era de se espantar que ela estivesse tão chateada ao ver Juliette usar um. Bem, Kaia teria os seus e seriam os melhores. Era sua consorte. Controle seu ego.

— Oficialmente temos uma relação estável? — A decepção nublou os traços delicados dela e, porra, se as lágrimas não se empoçaram em seus olhos. — Sim. Até o fim dos jogos, eu sei.

 Se a revelação a distrairia ou não dos jogos, ele tinha que contar a ela. Ele não podia deixá-la se torturando desta maneira.

— Depois dos jogos também. E se alguém precisa de perdão sou eu, por te afastar de uma maneira tão dura quanto fiz. — enquanto falava os olhos dela ficaram ainda maiores e mais úmidos. — Sinto muito por isso, eu sinto. — Ele traçou sua boca com o polegar. — Acredite em mim, lamentarei isto para sempre. Porque… porra, Kaia, eu amo você.

Derrota pareceu se congelar dentro da sua cabeça, não ousando se mover enquanto escutava a conversa. Se Kaia não dissesse aquelas palavras de volta, o demônio iria… o que?

 Não importava.

— Você não tem que dizer nada. — disse Strider. Vou ganhar seu coração. E queria fazer isso sem a influência do demônio. Caso contrário Kaia nunca acreditaria que os sentimentos eram seus e não nascidos da necessidade de ganhar. — De fato, não quero que diga nada agora. Vamos nos concentrar nisto depois dos jogos.

 Ela piscou, mas não deu nenhuma outra indicação que ouviu o que ele disse.

— Concentrar? Como se estivéssemos jogando algumas rodadas de futebol?

 Vê? Ela nunca permitiria que ele tivesse as coisas do jeito dele.

— Poderia se permitir mostrar um pouco de alegria pelo que eu disse, já sabe. — ele grunhiu.

 Os lábios dela se apertaram antes de se suavizar rapidamente, como se não quisesse revelar nenhum indício do que ela sentia.

 — Não posso.

 — Não pode?

 Derrota rosnou, gostando ainda menos da resposta que Strider.

 Finalmente a emoção assomou através da máscara inexpressiva de Kaia e ele viu uma mistura de medo e esperança.

— Também acho que te amo. Quero dizer, nunca cheguei a considerar um sentimento mais profundo que a luxúria, mas nunca queimei por outra pessoa da mesma maneira que queimei por você. Mas, o que acontece se eu te decepciono? Se eu não te merecer, terei que te deixar ir. Você vai querer que eu te deixe ir. E se...

 Ele lhe deu um beijo longo e duro, enchendo sua boca com sua língua e saboreando, exigindo uma resposta. Ela deu para ele, agarrando sua cabeça e roubando seu fôlego. Ao ouvir as palavras “eu te amo”, mesmo com a incerteza que as acompanhava… droga. Ele se excitou ainda mais do que esteve segundos antes de estar dentro dela.

 Ela. Me. Ama. Nenhuma dúvida. Poderia não acreditar ainda, mas o amava e esse conhecimento o impressionou. Impressionado. Ele. Não percebeu o muito que desejava seu amor até este momento.

 Era o rei do fodido mundo, cara.

 Derrota gemeu sobre ele.

 Strider se obrigou a pôr fim ao beijo e rolou para o lado dela. Kaia tentou subir pelo seu corpo, tentado terminar o que começaram, mas um férreo controle em sua cintura a manteve ao seu lado. Sexo, sim, eles o fariam de novo, mas aparentemente tinham que esclarecer algumas coisas em primeiro lugar.

 — Você não é Kaia a Decepção. Está me ouvindo? Isso é o que estava tentando te dizer antes. Você é Kaia a Poderosa. Quantas Harpias lá fora teriam acreditado que derrotaria o mais foda dos Senhores do Submundo? O Senhor que ao mesmo tempo também é o mais forte, mais sexy e mais inteligente. E, a propósito, no caso de existir alguma dúvida, estou me descrevendo.

 — Eu sei. — Lágrimas escaparam dos seus olhos e rolaram para o seu peito, tão quentes que deixaram pequenos vergões na sua pele. — Somente eu?

— Está certa. Só você. Agora me desafie a ficar com você.

Ela se arqueou contra ele, uma fúria intensa deixando-a tensa.

— Não!

— Kaia...

— Não. Não farei isso. Não importa o que diga. Você tem que ficar por sua própria vontade. Não porque não queira ser atingido por uma dor terrível causada pelo seu demônio.

 Entretanto não queria ter medo que a deixasse a qualquer momento.

— Faça e darei a você outro orgasmo.

Lentamente ela relaxou.

— Bem…

O celular dela tocou, surpreendendo a ambos. Então soou o celular dele. Um poderia ser ignorado. Mas os dois? Algo aconteceu. Eles se sacudiram ao mesmo tempo.

— Aposto que a competição terminou. Deuses, minhas irmãs. Como pude me esquecer delas? — remexeu em sua roupa descartada e procurou nos bolsos do short.

 Ele achou seu celular e as telas pipocaram ao mesmo tempo. Ela ofegou. Ele grunhiu. Logo olharam um para o outro em silêncio.

— Conte-me primeiro as novidades. — disse ele.

— Elas ganharam. — parecia aturdida e insegura. — Elas ganharam o primeiro lugar nesta rodada. Estão feridas, mas vivas e se curando. Também conseguiram desclassificar as Skyhawks. O que significa que estamos em igualdade de condições com minha mãe.

 — Isso é ótimo. — franziu o cenho quando viu uma nova onda de lágrimas se derramar pela sua face. — Certo?

 — Certo. — Um firme assentimento. — Minha família está viva e trouxe para casa a vitória que precisamos. Estou tão feliz que poderia explodir.

 — Mas?

Seus ombros caíram.

— Mas elas o fizeram sem mim. — sussurrou, claramente em agonia. — Eu não ajudei. Elas não precisam de mim. Sou um estorvo. Perdem quando ajudo, mas ganham quando não o faço.

 O peito dele se apertou.

— Boneca, só porque ganharam sem você não quer dizer que seja um estorvo. Só significa que estavam mais bem preparadas para este round.

Ela se vestiu em silêncio. Suspirando ele se uniu a ela, arrastando sua própria roupa.

— Sabin e os anjos encontraram Rhea. — disse ele, embora ela não tivesse perguntado. — Ou melhor, acharam o lugar onde a Deusa deveria estar. Eles acham que ela partiu depressa e faz dias, talvez até semanas atrás. Suas roupas estavam jogadas por todo o lugar, haviam penas brancas no chão e pó em tudo.

 — Penas. Galen?

Ele concordou com a cabeça.

 — Sabin disse que não havia pistas, então será impossível rastrear a qualquer um deles daqui. Devem ter se transportado a algum lugar.

 — Mas… por que sediar uma das competições aqui se não poderia assisti-la?

 — Talvez sua ausência fosse inesperada. Talvez ela planejou estar aqui, mas algo a deteve.

 — E os Caçadores?

 — Talvez ela tenha ordenado te matar antes de ir, ou talvez alguém mais os esteja guiando.

 Kaia se endireitou e olhou para ele, inclinando a cabeça de lado enquanto meditava.

— Só existe uma pessoa que eu conheço que me odeie o suficiente para... — franziu o cenho. Ela deu dois passos em direção a ele, mas parou abruptamente e olhou para baixo aos seus pés. — Estou presa. Strider, estou presa!

 Ele tentou se mover para ela — mas não pode. Como ela, seus pés estavam colados no lugar. Também olhou para baixo e franziu o cenho. O chão da caverna estava… afinando? Sim, era isso exatamente o que estava fazendo. Enfraquecendo, perdendo sua rigidez e se convertendo em… névoa.

 Numa tentativa desesperada por alcançar sua mulher, ele se estirou. Logo antes de entraram em contato, caíram ao mesmo tempo, deslizando para baixo… para baixo…

 Para baixo.

 

Kane despertou lentamente, embora não desse nenhuma indicação que existisse sinapse em seu cérebro, para que se conectasse novamente. Ele foi dormir com dor, drogado, e infelizmente isso aconteceu muitas vezes nos últimos… dias? Semanas? Ele se treinou para sair de um estado de inconsciência e estudar a situação antes de mover um só músculo ou pronunciar uma palavra.

 Ele sentia dor como um pugilista que acabava de perder um grande combate depois de dezoito rounds. Embora muitos dos seus ferimentos já começassem a se curar, o mais profundo deles ainda tinha seu nome gravado no Livro dos Lamentos de “ Não poderá se recuperar”. E você não sabia? Seu demônio adorava cada pedacinho disso, dando risadinhas dentro da sua cabeça, desfrutando dos efeitos da catástrofe — naquele momento e agora.

 Kane tinha um guarda corpulento em cada braço, sustentando-o e o arrastando ao longo de uma curva sinuosa, que cheirava a enxofre e decomposição, fezes humanas e o cheiro acre do medo. Tentou não sufocar. Conhecia bem aqueles cheiros, pois seu demônio conviveu com eles durante séculos.

 Havia um guarda na frente dele e cinco atrás. Nenhum deles deu sinal de notar que ele havia despertado.

 Enquanto planejava uma fuga — imaginando anjos descendo embicados (não aconteceria), seus amigos irrompendo pelas paredes da caverna (novamente algo que não aconteceria) e ele ficando verde e enorme (só em seus sonhos) — se encheu de fúria. Ele não poderia fazer nada. No fim, seu demônio destruiria estes humanos. Desastre vivia para momentos como este. E se Kane morresse no processo, então o que aconteceria?

 Ele se lembrou da explosão, recordou de William sendo arrastado e jogado em um veículo diferente. William. O imortal estava vivo? Fora torturado? Provavelmente. A fúria se intensificou. Estes homens teriam que pagar. Não importava como.

 Está me ouvindo, Desastre? Eles precisam pagar.

 A risadinha se converteu numa risada alegre que arrasou toda a circunferência do seu crânio.

 Espere meu sinal. Nenhum dos guardas fazia ideia da devastação que logo enfrentariam. E não saberiam. Até que fosse muito tarde.

Quando seu líder Sabin tomava parte na batalha contra os Caçadores, Kane frequentemente era deixado para trás. Muitos pequenos desastres arruinavam seus esforços, inclusive os sabotava. Mas às vezes… às vezes Kane era enviado sozinho. E quando isso acontecia, não sobrava ninguém.

— Muito pesado. — um dos guardas estava ofegando. — Vamos deixá-lo aqui.

— Não podemos. Ordens da doutora. Temos que levá-lo até o portão ou não voltaremos.

 — Estou suando como um porco.

 — Você é um porco. Muito churrasco, seu gordo bastardo? O passeio vai cair bem nesse barril de banha que chama de corpo.

 — Vá à merda e morra, seu babaca. Tenho um distúrbio glandular.

 — Eu estou com Duane. Ele transpira demais — disse alguém — e é provável que arrebente um vaso ou algo assim. Ele não vai dar para trás, com portão ou não.

A temperatura era um pouco incômoda, a umidade tão espessa que quase se precisava de uma faca para cortar através dela. Certamente o arrastavam o mais profundamente na terra, aproximando-se do portão… do inferno? Mas como os Caçadores saberiam como fazer isso? Por que fariam isto? Esse não era seu Modus operandi habitual.

 Capturar, torturar e depois matar os Senhores para roubar os demônios dentro deles, era omotivo pelo qual viviam. Isto não fazia sentido. Deixava-o inquieto, como se não estivesse lidando com quem pensava que estava lidando.

 Não se daria ao trabalho de interrogá-los. Eles provaram suas intenções quando lançaram seu pequeno “olhe para minha bonita bomba” de rotina. Só tinha que encontrar o melhor lugar para seu demônio trabalhar. Seu destino final era o mais provável — em mais de um sentido. A “porta”. Quanto mais fundo eles estivessem, menos inocentes haveria no caminho.

 Ao longe ouviu o clique de uma arma sendo engatilhada. Ninguém ao seu redor pareceu notar. Os guardas continuaram tagarelando. Alguém estava prestes a atirar em Kane? Ou nos guardas? Seu demônio rondava pelo seu crânio pronto para agir, destruir algo ou alguém.

 Ainda não. Ainda não.

 As risadas aumentaram de volume. Logo Desastre golpearia, sem importar o que Kane fizesse ou dissesse.

 Se a bala fosse para ele, sobreviveria. Mas não quis agir no caso de seus amigos estarem aqui para resgatá-lo. Maldita esperança. Quando o clique reverberou, seu guarda grunhiu. O lado esquerdo de Kane foi liberado, caindo para o chão. O guarda a sua direita amaldiçoou. A conversa cessou.

 — O que...

 — Quem foi...

 Outro clique.

 Soltaram o lado direito de Kane também e ele se esborrachou no chão cheio de sujeira. Continuou quieto, mesmo quando um peso enorme o esmagou, empurrando o ar de seus pulmões num poderoso bufo. Um de seus guardas, pensou, agora inconsciente, provavelmente morto.

 Sim. Líquido quente empoçava em suas costas, gotejando pelos lados.

 Clique, clique, clique. Não houve tempo para que os homens ao seu redor se preparassem ou se escondessem. Eles caíram, o sangue esguichando dos buracos de bala em seus peitos, pondo fim às suas vidas. O tiroteiro durou menos de um minuto, terminando sem qualquer resistência.

 Um resgate sim, mas permaneceu sem se mover ou falar. Simplesmente esperou. Cauteloso…

 Passos ressoaram. Reconheceu o ruído surdo de botas.

 — Está vendo ele? — Alguém gritou. Um homem desconhecido.

 Merda! A esperança murchou e morreu. Não eram seus amigos. Então quem diabos o liberou?

 — Achei! Ele está aqui.

 Tiraram o guarda de cima dele.

 — Está vivo?

 Um sussurro de roupa então dedos duros se cravaram no seu pescoço.

— Sim, com certeza. Talvez não por muito tempo. Seu pulso é tênue, então teremos que agir rápido.

— Aquela doutora é uma cadela sortuda. Se ele morresse antes de chegarmos aqui… — a fúria e o ódio cobriam a voz do homem. — Eu poderia bater nela por aí de qualquer maneira por desobedecer suas ordens.

 — Não, não pode. Ela não é uma de nós, e além disso, seu marido pediria sua cabeça. Vamos levar esse cara para Stefano e que “ele” decida o que fazer.

 Stefano. O braço direito de Galen, o líder dos cães dos Caçadores e um completo pé no saco. Uma pena que o bastardo não estivesse aqui. Mas assim mesmo, Kane começou a entender. Os caçadores explodiram a casa. Os caçadores o levaram para aquela doutora, que não era uma Caçadora mas era casada com um, assegurando-se que ele sobrevivesse. Os Caçadores não o trouxeram até aqui embaixo. A mulher o fez contra as ordens de seu marido.

 O marido deve ter descoberto e matou os seus cúmplices.

 — Animal do demônio. — murmurou o cara que verificou seu pulso enquanto se endireitava. Uma bota golpeou o estômago de Kane, empurrando alguns dos seus órgãos contra sua espinha.

Kane se obrigou a manter suas pálpebras fechadas. Obrigou seus músculos a permanecer relaxados. Enquanto isso Desastre se agitava na sua cabeça, agora um caldeirão fervendo. Ainda não, ele repetiu. Se planejavam carregá-lo para Stefano, finalmente poderia destruir o filho da puta, levando a tantos inimigos quanto fosse possível — mesmo que significasse matar a si mesmo também. Foi isso que planejou fazer aqui, de qualquer maneira. Uma mudança de lugar não importava nem um pouco.

 É claro, quando Kane chutasse seu corpo não poderia conter o mal dentro dele e seu demônio seria solto em um mundo despreparado. Desastre escaparia, louco, faminto e desesperado para criar uma tragédia após a outra.

 Isso aconteceu com um amigo de Kane, Baden. Ele morreu — decapitado pelos Caçadores — e seu demônio, Desconfiança, vagou livre pela Terra. Talvez seja por isso que nações lutaram umas com as outras por tanto tempo. Sempre suspeitando das ações e intenções sujas dos outros. Talvez seja por isso que muitos casamentos fracassaram nos últimos anos.

 Então, não faz muito tempo, os Caçadores de alguma maneira conseguiram encontrar Desconfiança e emparelhar o demônio com um novo anfitrião, um de sua escolha. Uma mulher. Ela ainda não desafiou os Senhores, provavelmente ainda muito perdida no mal dentro dela para fazer algo mais que gemer, retorcer e suplicar por alívio.

 — Diego? — alguém murmurou.

 — Sim. — respondeu um homem com um leve sotaque espanhol.

 — Está pronto?

 — Sim, senhor. — havia nervosismo nessas palavras.

 — Markov, Sanders, segurem seus braços. Só para o caso dele acordar antes de morrer. Billy, um corte profundo e rápido. Não há margem para erros.

 — Não sou estúpido. Repassamos isso mil vezes. — foi a resposta beligerante do homem que chutou Kane.

 — Sim, mas está na hora de irmos, só temos esta única oportunidade. Se não tivermos cuidado, seu demônio poderá escapar da caverna antes que Diego possa absorvê-lo.

 O-kay. Nada mais de esperar, nada de chegar até Stefano, Kane decidiu. Eles iriam assassiná-lo e tentar e emparelhar seu demônio com um Caçador, pensando em controlar Desastre e usar o demônio para lutar pela sua causa. Para destruir seus amigos. Para governar o mundo.

 Dar rédea solta à risada do mal, Kane pensou secamente, e logo ficou sério. Este era um assunto sério.

 Prepare-se, disse a seu demônio.

 O tremor aumentou, aumentou e sacudiu a caverna inteira. Só um pouco. Apenas o suficiente para encher o ar de pó e pedrinhas cairem do teto com um ruído surdo no chão.

 — O que é isso?

 — Não importa. Só se apresse. Vamos fazer isso. Faca?

 — Aqui.

Mãos fortes de repente agarraram os braços de Kane e o viraram de costas. Essas mesmas mãos empurraram duras, mantendo-o no lugar. Kane não esperou nem mais um segundo.

 Agora!

 O tremor aumentou rapidamente, a queda de pedrinhas se convertendo em queda de pedregulhos. Bum, bum. Bum! Alguém gritou de dor. Soltaram Kane. Houve outro grito, uma rodada de maldições.

 Finalmente Kane abriu seus olhos. Bem a tempo também. Um pedregulho caía direto sobre ele. Ele se afastou do caminho, tossindo quando sua boca se encheu de sujeira e escombros. O movimento abrupto rasgou os pontos na curva de uma costela.

 Seu olhar peneirou pelos arredores de um só golpe. Ele estava em uma caverna, tal como suspeitou, apesar de ser mais ampla do que teria achado possível, ramificando-se em várias direções diferentes. Não era de se estranhar que os Caçadores venceram tão facilmente seus sequestradores originais. Nem mesmo um exército poderia se proteger de uma emboscada aqui. Havia muitos lugares para se esconder.

 Os Caçadores correram buscando refúgio. O tremor continuou e as pedras choviam. Outro grito, um grunhido. O ruído de osso se partindo.

 Kane ficou de pé desajeitadamente. Assim, amigo. Continue assim.

 — Não o deixe escapar. — alguém gritou.

 — Eu o tenho na mira!

 Clique.

 Uma dor aguda atravessou sua perna. Ele soltou uma maldição. Alguém disparou nele. Ele se apressou para um dos corredores escuros, esquivando-se dos pedregulhos no caminho. Mais tremor, mais pedregulhos. Logo ele seria preso. Se já não estivesse. Mas não havia nenhum modo de deter um desastre desta magnitude, uma vez tendo começado.

 Honestamente não se importava com a possibilidade de morrer. Quase morreu mil vezes antes e há muito tempo estava preparado para essa eventualidade. Pelo menos estaria levando estes Caçadores com ele. Não que Kane fosse se render sem tentar se salvar. Seu instinto de guerreiro não permitiria nada menos.

 Buscou nas sombras por uma saída… viu uma leve greta de luz à direita. Sem parar para pensar ele se lançou para ela, empurrando as pedras, ampliando o espaço, ignorando as pontadas de dor disparando por ele.

— Kane!

 William? Ele se acalmou, logo se enrijeceu. Merda. Merda! Se ele matasse seu amigo…

 Clique.

 — Humano! — William gritou furiosamente. Alguém deve ter disparado contra ele. — Você vai se machucar por isso.

 Bum, bum, bum.

 — Saia daqui. — Kane gritou. — Corra!

 — Kane, porra! Onde você está? Eu não dei uma de Enfermeira Ratchet[25] e viajei até aqui, ao meu lugar menos favorito só para brincar de esconde-esconde com você. Mova seu traseiro até aqui!

 Kane ficou de pé, inalando mais pó. Saiu correndo da segurança do recinto — bem a tempo de ver William agarrar um Caçador pela garganta. Ele não estava prestando atenção e não viu a enorme pedra que caía em cima dele.

 E por Kane estar observando William, não viu a enorme pedra caindo em cima de si mesmo.

 

 

— Doce amanhecer, isso foi incrível.

 Paris se retirou da sorridente e ofegante mulher coberta de um suor reluzente, para olhar para o teto. Como esperava, Arca odiava Cronus e não se importava de trair o Deus Rei. Como ele temia, teve um preço — o corpo de Paris, o cheiro do seu demônio excitando-a no momento em que ele entrou em seu quarto.

 Passou a última hora dando prazer a ela de um modo que estava certo que ela nunca foi agradada. Ela apreciou cada segundo de sua atenção, enquanto ele odiou a si mesmo, suas ações.

 Você faz o que tem que fazer.

 Ele não teve que se preocupar com interrupções. O quarto espaçoso estava escondido na parte de trás do Harém. Um quarto do qual Arca não podia sair. Cronus realmente a amaldiçoou para que experimentasse agonia absoluta se ela desse um passo fora dos limites espaçosos da sua “casa.” E tendo aprendido dos mortais e seus erros, o rei se certificou que não existiria nenhuma janela que a Deusa pudesse utilizar.

 Evidentemente o rei pensou que era melhor privar Arca da luz solar e do ar fresco que cortar seu longo e sedoso cabelo.

 Ela se apoiou no cotovelo e olhou pra ele fixamente, as tranças brancas cobrindo seus ombros.

 — Bem?

 — Sim, isso foi realmente incrível. — ele disse automaticamente, como disse a outras mil.

 Seu sorriso desvaneceu lentamente.

— Você podia pelo menos tentar soar convincente.

 Suspirando, ele a estudou. Esteve com inúmeras outras ao longo dos séculos, e ela estava longe de ser a mais bela. Mas as aparências pouco importavam para ele. O que era um belo rosto quando um monstro poderia muito bem espreitar sob a superfície? Tudo que importava era como a outra pessoa fazia você sentir, por dentro e por fora.

 Duvidava que Arca fosse um monstro por dentro. Ela passou tantos anos em cativeiro, tanto na Terra quanto aqui no Céu, que deveria ter se transformado numa bruxa pelo menos, mas quando ele deu um passo para o lado de dentro, ela não gritou. Não lutou com ele. Ela o olhou fixamente com seus grandes olhos azuis, juntou suas mãos e sorriu, tão sozinha e desesperada por atenção, qualquer atenção, que fez seu peito se apertar.

 E quando ele tentou perguntar sobre Sienna, ela meneou sua cabeça e disse.

— Depois. — Já perdida na névoa de luxúria que seu demônio criou, Paris cedeu sem protesto.

— Desculpe. — disse, deixando sua voz rouca com promessa. Outra habilidade que ele aperfeiçoou ao longo dos anos. — É que você me esgotou, meu bem. Não tenho mais energia.

 Ela riu e caiu ao lado dele, aconchegando-se.

— Cronus não vai te descobrir, eu prometo. Então se você quiser voltar para mim…

Ele permaneceu em silêncio. Não poderia se deitar com ela outra vez. Seu demônio não permitiria. Ainda que passassem horas se beijando e se tocando, seu pau permaneceria flácido e inútil. Sempre era assim quando entrava em contato com alguém com quem já tinha se deitado, e realmente Paris não queria uma repetição de qualquer maneira. Ele se sentia culpado o suficiente por dormir com alguém que não fosse Sienna.

 Ele a teve e poderia tê-la novamente. Poderia ficar duro só de pensar nela. Razão pela qual todo mundo que ele cravou depois dela era como uma bofetada em seu belo rosto. Ninguém era bom o suficiente para ele. Tampouco poderiam satisfazê-lo. Mas não poderia salvá-la se morresse, e realmente morreria se permanecesse celibatário.

 Além do mais se sentia culpado por outra razão. Estas suas amantes… elas não o queriam, não realmente. Se não fosse pelo seu demônio, elas poderiam nem ter dormido com ele, poderiam tê-lo achado comum, pouco atraente, o que fosse. Portanto, de certo modo, estava forçando-as a estar com ele.

 Como sempre, sua mente se encolheu para longe desse pensamento.

— O que está errado? — Arca perguntou. — Você ficou tenso.

Ele se obrigou a relaxar e esfregou seu braço de cima abaixo numa suave carícia.

— Mais cedo mencionei uma mulher. Uma escrava, morta e ressuscitada em forma de alma, e agora possuída por um demônio. Ira. Sua alma é invisível a olho nu. — Ele tentou não revelar sua própria sensação de desespero. — Sabe de quem estou falando?

Ela enrolou uma trança ao redor de um dos seus dedos.

— Sim. Lembro. Quer saber onde Cronus a mantém.

 Calma, firme.

— Você sabe a resposta?

— Eu não ouvi nada, não.

Ele fechou os olhos, lutando contra uma onda de decepção e remorso. Ele pensou… esperou… teve tanta certeza...

— Mas — ela continuou — sei onde ele mantinha os prisioneiros que não podia controlar, pessoas que não queria que ninguém encontrasse, antes de seu encarceramento no Tártaro.

— Diga-me. — As palavras ecoaram com mais força do que pretendia.

— Farei melhor que isto. — ela apertou seus braços ao redor dele e estremeceu. — Eu mostrarei a você.

Seu estômago deu um nó. Não pode afastá-la.

 — Sabe que não é possível, querida. — disse com voz rouca. — Você tem que permanecer aqui.

 — Mas… — Ela se sentou novamente, a expressão firme enquanto suas tranças caíram ao seu redor, emoldurando-a. — Por favor. Tenho que ir embora. Não posso mais ficar aqui. Odeio isso, e lentamente estou enlouquecendo. Por favor.

 Ele segurou seu rosto nas mãos, tentando se gentil.

— Diga-me onde achar este lugar secreto e assim que minha missão estiver concluída, voltarei por você. Encontrarei uma maneira de te liberar.

 As lágrimas se empoçaram em seus olhos.

 — Isso pode levar uma eternidade. Poderia morrer.

 — Eu sei e sinto muito, mas é tudo que posso oferecer. — Ele não podia salvá-la agora. Não poderia tentar livrá-la agora. Isso alertaria Cronus. O Deus Rei viria atrás dele e Sienna estaria perdida para sempre.

 Se Paris perdesse sua cabeça, esse seria seu destino, mas primeiro queria mover Sienna para algum lugar seguro. Ela morreu por causa dele. Foi emparelhada com um demônio por causa dele. Porque ele atraiu a atenção do Deus Rei. Paris devia a ela.

 — Eu poderia te ajudar. — Arca disse. — Não só encontarei o lugar para você, posso te guiar pelos corredores secretos.

 — Eu sei, querida, mas isso não me faz mudar de ideia.

 — Por favor…

 Ele não lhe disse que as súplicas femininas tinham pouca influência sobre ele. Quantas imploraram para que ele permanecesse na cama com elas? Quantas choraram enquanto ia embora?

— Eu sinto muito, mas isso é o melhor que posso oferecer.

 E se ela não contasse a ele o que queria saber, se continuasse se negando, ele a machucaria. Ferir… matar… a qualquer um que entrasse em seu caminho. Qualquer um. Ele chegou tão longe. Ela não o impediria de ir além.

Durante muito tempo ela chorou em silêncio. Então se acalmou, endireitou os ombros e levantou o seu queixo, a expressão teimosa lhe recordando a Kaia.

 Como Strider estaria lidando com a mulher decidida a deixá-lo de joelhos? O guerreiro possessivo ainda lutava contra sua atração ou finalmente se entregou — do contrário ele estaria aqui, bem ao lado de Paris, cumprindo os termos do seu “desafio”.

 — Jura que voltará para mim depois de encontrá-la? — Arca perguntou.

 — Sim. Juro. Quando ela estiver realmente a salvo eu voltarei. — No momento em que ele pronunciou as palavras, estava destinado a cumprí-las. Ele sabia disso, sentiu a força do vínculo. Quebrar sua palavra para um Deus ou Deusa era sofrer eternamente. Se você sobrevivesse.

 Ela enxugou suas lágrimas.

— Certo. Eu direi a você o que deseja saber. Se Cronus se manteve fiel aos seus seu velhos costumes, e acredite em mim, sei que o faz, encontrará sua mulher em um destes dois lugares. Se ela estiver no primeiro, você a perdeu para sempre. Se estiver no segundo, e você se aventurar lá, você não sairá incólume.

 Sienna não estava no primeiro e isso era fato.

— O nome do segundo lugar?

Quando as palavras saíram de seus lábios, seu sangue esfriou. O fôlego o abandonou. Ele sabia que Cronus a castigou por ela correr para Paris, mas não sabia que o Deus Rei havia planejado torturá-la eternamente.

 Paris afastou os lençóis, saiu da cama e se vestiu o mais rápido possível.

 — Você ainda quer ir atrás dela? — Arca perguntou.

 — Sim. — ele respondeu sem hesitação. Estava mais determinado agora que nunca.

 

Expulsa do Céu e lançada diretamente no inferno, Kaia pensou sombriamente. Ou melhor, sua versão de inferno. E nem sequer chegou a apreciar seu esplendor!

 Uma fogueira crepitava diante dela, chamas alaranjadas misturadas com azul. O calor lambia sua pele. Realmente não sentia frio depois de fazer amor com Strider — ao recordar, um calafrio deslizou pela sua espinha e teve que reprimir um gemido — e estava contente. Gostava do calor. Principalmente por causa do persistente zumbido de satisfação que seu… consorte proporcionou.

 Consorte.

 Atualmente Strider estava “explorando a área em busca de Caçadores”. Não demorava duas horas para explorar uma extensão de terra tão pequena. Sem dúvida estava procurando pela Haste de Partir. Não a encontraria. Não aqui. Juliette não era tão idiota para escondê-la embaixo do seu colchão improvisado.

 Kaia quis tanto que ele reconhecesse o vínculo entre eles. Quis tanto tocá-lo e saboreá-lo. Ser tocada e saboreada por ele. Que ela o tivesse, que ele a tivesse… Deuses, agora morria de medo. Porque…

 Ele a amava. Isso ainda a impressionava. Eram um par. Um par autêntico. Ele guardaria suas costas, e ela as dele. Mais do que isso, agora ele vinha em primeiro lugar. Assim era como tinha que ser. Tanto fazia se era uma dor no traseiro ou um Deus romântico, ele era seu. Ela tinha que protegê-lo. Tinha que se ocupar do seu futuro. E conclusão? Ele queria, necessitava da Haste de Partir. Precisava dela para sobreviver.

 Então, ela tinha que conseguí-la para ele.

 Nesse instante seu time estava a caminho de adquirir o artefato de forma limpa. Mas e se isso mudasse? Então Juliette esperaria que Kaia fizesse uma jogada para ele e as chances que realmente caíssem nas suas mãos deixariam de se inclinar a seu favor.

 Portanto, não havia melhor momento para golpear.

 É claro, isso eliminaria Kaia da competição e provaria de uma vez por todas que ela era indigna, fraca, mas melhor seu orgulho ferido que Strider morto. Não poderia viver sem ele. Precisava do seu sangue, sim, mas também precisava dele. Seu sorriso, seu riso, sua esperteza, sua força.

Sendo assim, nada mais de competição e pensamentos desnecessários. Ela roubaria a Haste. Buum, feito. Porém ela não envolveria suas irmãs. Não arriscaria suas vidas. Não outra vez. Especialmente agora, quando estavam feridas por causa do segundo jogo.

 Tinha que acontecer esta noite, pensou, suas mãos se fechando em punhos. A maioria estaria bêbada, curando-se ou inconscientes. Faria amor com Strider — se ele quisesse e era melhor que quisesse — e deixaria que o calor a enchesse outra vez. Aquele calor a revigorava, uma combinação de luxúria e raiva formava redemoinhos em seu interior, querendo desesperadamente escapar. Consumindo-a.

 Esta noite ela deixaria.

 Logo… logo… entrecerrando seus olhos encontrou Juliette. A morena dançava em torno do fogo crepitante, bem ao lado da mãe de Kaia. Apesar de sua perda recente, estavam jubilosas, despreocupadas. Como se soubessem algo que ela ignorava.

 Juliette deve ter sentido seu escrutínio. Encontrou o olhar de Kaia e sorriu lentamente, e, como sempre presunçosa. Oh, sim. Hoje à noite.

 Kaia e Strider caíram do bosque de Rhea e aterrissaram aqui, no Alasca, entre as duas montanhas, exatamente onde esteve o portal místico. Eles abriram os olhos e se encontraram aqui — com todas as outras Harpias que participavam dos jogos e seus consortes.

 A princípio a confusão reinou. Então veio a raiva porque foram expulsos do Céu... cólera que esperavam descarregar uns contra os outros. A luta teria explodido se a mãe de Kaia não tivesse declarado esta terra zona neutra. Aparentemente, independente do que Tabitha a Maligna desejava, Tabitha a Maligna conseguia. Então, em vez de atacar, em vez de ir por caminhos separados e aguardar a terceira competição, as Harpias decidiram ficar e fazer uma festa.

 A cerveja roubada abundava, o maldito rock pesado atravessava a noite e os veículos incautos da cidade mais próxima projetavam seus brilhantes faróis no vale coberto de gelo. Muitos dos combatentes ainda estavam contundidos e feridos da batalha anterior, e alguns ainda estavam inconscientes, mas isso não desencorajou os farristas.

 Algumas horas antes alguém roubou o casaco de Kaia e ela não teve nenhuma dúvida sobre quem colocar a culpa. Juliette provavelmente esperava que emitisse um desafio particular por causa disso, arruinando os bons momentos que todos estavam tendo. Bem, Juliette podia engolir essa. De qualquer forma, a coisa estava suja como o inferno.

 — Ei, boneca. — disse uma voz sexy.

 Strider. Seu Strider. Ele cheirava como canela e se parecia com o paraíso, suas bochechas enrubescidas e seu cabelo despenteado, emoldurando seu rosto em um halo vívido.

 Ela o amava? Sentia fome dele, divertia-se junto dele e estava encantada com sua atenção. Mas amor? Confiar nele totalmente? Suas irmãs eram os únicos membros em seu Círculo de Fé e jamais pensou em dar as boas vindas a mais alguém. Especialmente alguém que tinha uma agenda diferente da sua.

 Strider se deixou cair ao seu lado e lhe ofereceu uma garrafa gelada.

— Isto é meu. Não seu. Não toque.

 Talvez o fato de confiar nele não fosse tão ruim.

— Obrigada. — murmurou pegando a garrafa e bebendo em grandes goladas. Apesar do frescor da bebida sua temperatura corporal continuava subindo.

 — Falei com Sabin e Lysander. Eles montaram um acampamento a aproximadamente um quilômetro e meio de distância e estão cuidando de Bianka e Gwen.

Então não esteve procurado pela Haste? Maravilha das maravilhas.

— E quanto a Taliyah, Neeka e as demais?

— Foram embora sem uma palavra.

— Sempre fazem isto. — ela se queixou.

— Bem, desta vez eu as segui.

Ela o percorreu com o olhar. Seus olhos azul marinho brilhavam, seus lábios se curvavam de uma forma sedutora. Seu coração saltou uma batida. Ele vestia uma jaqueta de couro, calça jeans e botas. A típica vestimenta de Strider. O homem sempre estava preparado para chutar traseiros.

 — Sério? — Ela perguntou. — E não te sentiram?

 — Eu não disse isso.

Ela o examinou de novo. Havia cortes recentes em suas palmas e rasgões em seus dedos.

 — O que aconteceu? Elas te machucaram? Porque se o fizeram eu pessoalmente vou...

 — Calma, Ruiva. — Aqueles lábios se curvaram ainda mais até que ele deu um largo sorriso. — Só me advertiram que me afastasse. De qualquer maneira, a princípio não tinham nenhuma ideia que eu estava atrás delas. Elas se esgueiravam por algumas das tendas de times rivais.

 — Procurando pela Haste? — Mas por que “elas” fariam algo assim?

— Acho que não. — Ele acariciou seu queixo, pensando. — No bosque lá atrás — ele assinalou com o polegar para suas costas — elas se encontraram com um grupo de caras que não reconheci. Guerreiros, creio. Imortais. Taliyah me farejou antes que eu pudesse me aproximar o suficiente para escutar sua conversa.

 Taliyah. Com homens. Interessante. E incomum. Sua irmã mais velha normalmente mantinha distância do sexo oposto, nunca querendo se arriscar a encontrar o seu consorte. Não que Taliyah fosse uma mulher que odiasse homens. Ela não era. Simplesmente gostava de ter seu espaço, de fazer as coisas do seu jeito. Gostava de não ter amarras, ser capaz de abandonar qualquer lugar, a qualquer momento, sem obstáculos.

 — Algo está acontecendo. — disse Kaia.

 — Verdade, mas não acho que diz respeito a nós ou aos jogos. Os homens estavam interessados principalmente em Neeka. Quase como… se fossem propriedade dela. Tanto faz. Falando da Haste — ele continuou —, estive pensando. E se Juliette não a tiver? E se a dela for uma falsificação?

Uma possibilidade, embora pouco provável; Kaia recordou o poder que ela sentiu emanar da lança quando Lazarus entrou no palco com aquilo. Entretanto, de uma forma ou de outra, ela descobriria a verdade.

Uma gargalhada feminina bêbeda cortou qualquer resposta que pudesse ter dado. Foi bom, também. Havia muitos possíveis curiosos para terem esta conversa aqui.

— Falaremos sobre isso mais tarde.

— Não. Agora. Só que seremos mais prudentes. — Strider rodeou seus ombros com o braço e a arrastou para mais perto dele. Não a soltou, mas sussurrou diretamente em sua orelha, seu fôlego cálido a acariciando. — Tem algumas perguntas me incomodando. Nós não sabíamos onde estava a Haste de Partir. Como ela soube? E como ela conseguiu colocar suas mãos nela sem alertar a ninguém em nosso mundo? E por que não a usou? Por que a doaria? Bom, estas e mais algumas.

 Os mamilos de Kaia endureceram ao contato e a umidade se reuniu entre suas pernas. “Isto” era prudente? Não importava. Seguiria o jogo.

— Suponho que Rhea pode ter entregado a ela. — ela sussurrou diretamente em “sua” orelha. Então não pode evitar e teve que lambê-la.

 Ele soltou o fôlego. Tentada a comê-lo vivo, Kaia desviou sua atenção para os dançarinos. Notou vagamente que Juliette e sua mãe se foram.

 — Mas por que a ela? — Ele atendeu sua lambida e soprou um fôlego quente. — Não existe nenhuma razão boa o suficiente. Rhea odeia os de minha raça, ela nos quer mortos. Não ia querer que caísse em nossas mãos uma posse tão estimada. Teria entregado para os Caçadores. Para Galen.

 O corpo inteiro de Kaia se arrepiou.

— Talvez Juliette a tenha roubado. Em primeiro lugar Rhea desapareceu e ninguém teve notícias dela. Quem sabe Juliette a matou e assumiu o controle dos Caçadores. — ela mordiscou seu lóbulo antes de expor seu perfil, impaciente para ele ter sua próxima rodada.

 Não a decepcionou. Ele beijou junto a maçã do seu rosto enquanto seus dedos trilhavam o caminho para o seu seio.

— Se fosse o caso, Cronus estaria morto. Os dois estão unidos, assim, se um morre o outro morre também. E Cronus está bem vivo. Amun esteve se encontrando com ele.

 Ela se inclinou para o seu toque, suas terminações nervosas faiscando e ganhando vida.

— Juliette pode tê-la aprisionado, então. — Para encontrar a Haste, Kaia sabia que teria que cair em cima de Juliette e torturá-la para obter informações. Ela já considerou tudo e aceitou a necessidade. Agora, também perguntaria sobre Rhea e os Caçadores.

 Strider rodeou seu mamilo uma vez, duas vezes.

— Nesse caso, ela é mais poderosa do que pensamos.

 Doce fogo, era tão bom. Ela aplainou sua palma em sua coxa, sem se surpreender por achar suas garras afiadas, prontas para se cravar em sua carne.

— Não se preocupe. Lidarei com ela. Além disso, devo a você.

 Não importava as respostas que Kaia pudesse forçar de Juliette, estava claro que a cadela de algum modo orquestrou tudo isto. Para roubar Strider, talvez, como suspeitou a princípio. Não que Juliette tivesse feito um esforço muito grande nessa frente, mas definitivamente queria insultar Kaia com o que nunca poderia ter. Vitória. O respeito de suas colegas Harpias. Mas também de Strider, e se ela falhasse com ele?

 E se realmente falhasse com ele, continuaria amando-a?

 Não quis pensar na resposta, já que estava gelada até o tutano pela mera possibilidade.

 — Para referências futuras — disse ela, não mais que um sussurro —, deveria saber que não me enfureço. Eu consigo.

 — Bom. — Ele plantou um beijo suave na extremidade da sua boca. — Porque é assim que eu gosto dos meus doces e minhas mulheres. Quentes e picantes.

 O comentário provocou uma inesperada risada nela.

— De qualquer forma, como eu disse, não deveríamos falar disso aqui. — Não importando o quanto apreciasse a troca de informações.

 Ele suspirou.

— Tem razão.

— Óbvio que tenho.

Ele estendeu sua mão e arrepiou seu cabelo.

— Fanfarrona.

— Simplesmente sou honesta. E o que aconteceu com suas mãos? — Ela perguntou, mudando de assunto antes que se lançasse no seu colo e fizesse o que queria com ele aqui mesmo e agora.

— Nada. — Havia uma nota definitiva em sua voz. Uma nota que a desafiava a pressionar... e perder.

Uma mentira. Ela sabia, mas de qualquer forma deixou passar. Agora não era o momento de discutir com ele. Precisavam exibir uma frente unida.

— Que sorte eu tenho. — outra voz sexy disse, desta vez por trás dela. “Se não é minha Harpia favorita.”

Strider enrijeceu e viraram ao mesmo tempo — unidos — e se levantaram. Lazarus estava de pé diante deles, os braços grossos cruzados sobre seu peito. Como Strider, vestia uma jaqueta e calça jeans. Diferente de Strider, não fazia seu coração se acelerar.

 — Ei! Olá, Tampax. Onde está sua ama? — Kaia perguntou a ele.

A obsidiana em seus olhos fez redemoinhos de maneira ameaçadora. O que? Não estava mais divertido pelo seu apelido carinhoso?

— Está tendo um encontro em privado com sua mãe para discutir todos os modos que planejam te destruir. Supõe-se que eu te mantenha ocupada... uma tarefa que não é nenhum sacrifício. Quer ir a algum lugar privado comigo? Afinal, eu poderia satisfazer todas as suas necessidades.

 Strider rosnou baixo em sua garganta e o som lhe lembrou de um relógio de cordas.Tic, tac, tic, tac, alguém vai morrer.

 — Obrigada — disse Kaia. — mas preferiria estar em uma ilha, com um multimilionário que me caçasse para poder me matar e pendurar minha pele diante de sua lareira.

 — Você e eu jogaremos este jogo mais tarde, boneca. — Strider disse. — Você por outro lado — ele lançou a Lazarus — pode ir a algum lugar privado comigo agora.

 Uns dedos frios de temor percorreram a coluna de Kaia. Por favor, por favor, por favor não o desafie.

— Obrigado — Lazarus respondeu. —, mas você não é meu tipo. Então se não vem comigo, doce Kaia, por que não ficamos aqui e conversamos?

 As palavras ganharam outro grunhido selvagem de Strider.

 Oh, Deuses. Os dois começariam a se embolar em golpes e não haveria forma de detê-los.

Sabia quanto o imortal na frente dela era poderoso. Ele irrompeu por um acampamento de Harpias, escapou incólume e permaneceu escondido por… bom, não sabia quanto tempo, só que o fez. Strider era poderoso também, mas tinha uma desvantagem. Seu demônio.

 Como se isso o fizesse levar as coisas com mais calma.

Uma ideia sucedeu rapidamente a outra. Pode usar isto em seu benefício. Tinha que saber o que sua mãe e Juliette estavam planejando e uma briga entre Strider e Lazarus seria a distração perfeita, permitindo que escapulisse inadvertidamente para casualmente escutar alguma coisa.

 Strider deve ter pensado o mesmo — e seu demônio deve ter aceitado o desafio de descobrir — porque se lançou sobre o guerreiro sem mais nenhuma palavra. Os dois voaram para o chão com braços e pernas embolados. E facas. As pontas prateadas refletidas no luar.

 Sim, Strider queria matar o guerreiro, mas não era por isso que ele começou a briga e ela sabia. Ele lhe deu a cobertura que precisava para encontrar as mulheres em questão, mas porra! Odiava deixá-lo.

 Como os guerreiros grunhiam de dor, xingavam e se esquivavam, lançavam socos, chutes e facadas, as Harpias ao redor da fogueira os notaram. Um segundo mais tarde os aplausos e as apostas começaram.

 Kaia abriu caminho através da multidão, seu olhar fixo permanecendo em Strider até o último segundo possível. Ele e Lazarus chegaram até a neve, deixando um rastro de sangue. Seu estômago se contraiu.

 Não se preocupe. Ele pode cuidar de si mesmo.

 Isso não a impediu de deixar de tremer enquanto chegava ao final da multidão, agachou e farejou, procurando pelo odor familiar da sua mãe. Nada. Ela foi se movendo pouco a pouco adiante. Ainda nada. À direita. Nada. Para a esquerda, ali!

 Se propulsou naquela direção, ficando nas sombras tanto quanto foi possível. Muito cedo a inclinação da montanha deteve seu progressivo avanço. Ela relanceou seu olhar para cima. Gelo, pedras dentadas. Uma borda.

 Uma borda que provavelmente levava a uma caverna.

 Que clichê. As Harpias podiam saltar mais alto que humanos e até pairavam no ar por curtos períodos de tempo, mas como suas asas eram tão pequenas, não podiam voar. Ela teria que fazer isso da forma dura e subir. Colocou as mãos e os pés com precisão, para que um cascalho ou pedaço de gelo não a fizessem cair. Se as mulheres estavam lá em cima — e achava que estavam, as vilãs sem imaginação — o menor ruído poderia alertá-las. Oh, não tinha dúvida que ouviram o caos ali embaixo, mas era algo que teriam esperado.

 O aperto em seu estômago piorou quando uma voz que ela reconheceu como pertencendo a uma Eagleshield gritou e vociferou lá embaixo.

 — É assim mesmo, cowboy. Bata na cara dele!

 Quem era o cowboy? Strider ou Lazarus? Apostaria em Lazarus porque Juliette era uma Eagleshield, o que significava que seu clã o preferiria a Strider. Embora Strider fosse um delicioso Senhor do Submundo. Idiotas. Faziam com que se envergonhasse de ser uma Harpia.

 — Inferno sagrado, acho que você quebrou seu nariz. O soco mais doce que jamais vi. Faça outra vez! Faça outra vez! — outra pessoa cantarolou.

 — Destripe!

 —Eu já tenho o vencedor!

 — De jeito nenhum. Eu que tenho.

 Não pode se permitir olhar.

Continuou subindo sem fazer nenhuma pausa até alcançar a borda. Seus braços tremiam e as coxas ardiam, mas se manteve firme, escutando. Havia um murmúrio de vozes sim, mas estavam sussurrando e não podia dizer se eram masculinas ou femininas. Nem sequer podia adivinhar quantos estavam falando.

 Para descobrir teria que entrar.

 Se a descobrissem, lutariam. Mas uma luta era melhor que uma reunião secreta, onde os planos eram elaborados e ordenados. Pelo menos impediria aos que frequentavam solidificar qualquer meta.

 Respirou fundo e se abaixou, oscilando na borda com uma mão segurou uma adaga. Logo fez o mesmo com a outra mão, até que empunhou duas adagas e esperou. Então se arrastou.

 Um erro. Um que sabia lamentaria para sempre.

 Com temor, percebeu imediatamente que lhe estenderam uma armadilha.

 Não houve tempo de agir. Algemas dispararam dos lados de baixo da caverna e se fecharam ao redor dos seus tornozelos, os dentes de metal se cravando tão profundamente que chegaram ao osso. Sufocou um grito de dor, inclusive quando seus joelhos se dobraram.

Não pode distrair Strider.

 Sua mãe e Juliette não se encontraram em particular. Elas não se encontraram mesmo. Simplesmente se juntaram a um grupo de Caçadores assassinos. E aqueles Caçadores estavam olhando fixamente para ela sorrindo, como se eles estivessem esperando por ela há muito tempo.

 

Vencer, vencer, vencer.

Enquanto Strider lutava contra o imortal mais forte que ele já havia encontrado, seu demônio cantava com entusiasmo, nervosamente.

Isso não teria sido tão ruim ou o teria distraído tanto, se não fosse pela outra voz dentro da sua cabeça. Tabitha. Espetando-o em direção a uma escuridão feroz que nunca sentiu antes.

Elas querem matá-la. Vão matá-la.

Sabia muito bem que as Harpias queriam matá-la. Entretanto, teriam êxito? Claro que não. Mas se Tabitha estava falando com ele, não poderia estar se reunindo com Juliette. E se ela não estava reunida com Juliette, por que diabos ele aceitou um desafio que poderia não ser capaz de ganhar, apenas para distrair as fileiras, dando tempo a Kaia de se infiltrar no acampamento inimigo?

 Vencer!

 Você não está ajudando. As juntas duras dos dedos se conectaram com sua boca, seus dentes triturando a pele do bastardo. Não foi tão bom quanto nos seus sonhos. O cérebro bateu contra seu crânio e por um momento viu estrelas. Odiava as estrelas. O sangue cobriu sua língua, deslizando garganta abaixo. Lazarus rolou em cima dele, prendendo seus ombros com firmeza com seus joelhos ossudos e firmes. Soco, Soco, Soco.

Ossos quebraram. Romperam. Despedaçaram.

Vencer!

Eu sei fodidamente bem, ele zombou mentalmente. Ele venceria isso. Assim que encontrasse suas facas na neve manchada de sangue. O filho da puta perderia a cabeça. Talvez. Quem sabe.

Certamente.

O mínimo que aconteceria seria Lázaro derramar suas entranhas. Ele era uma ameaça para Kaia. Ameaças à Kaia não tinham permissão de viver.

Ela vai morrer. Esta noite. Não há nada que possa fazer para salvá-la. Tabitha novamente.

Soco, soco, soco.

Mais estrelas montando o rastro de dor. A fúria irrompeu através dele, um raio enjaulado há muito tempo finalmente posto em liberdade. Corcoveou com todas as suas forças, lançando Lázaro fazendo com que se estatelasse atrás dele.

Strider se pôs de pé em um instante. Através dos olhos inchados viu o sorriso de prazer de Lazarus enquanto ele se levantava. No fundo da sua mente, Strider sabia que Lazarus poderia ter feito muito pior a ele. Poderia tê-lo fatiado e cortado em pedacinhos. Poderia ter ido pela sua natureza e profissão. Em troca, o filho de um Deus e um monstro apavorante estava usando os punhos. De que se tratava isso?

Enquanto as Harpias aplaudiam, os guerreiros se moviam em círculos olhando um ao outro.

— Você é tão previsível. — Lazarus estalou a língua. E não foi o mais estranho. Ele falou na língua dos Deuses usada há muito tempo. Uma linguagem que as Harpias provavelmente não entendiam.

Strider respondeu usando o mesmo tom duro e palavras quase esquecidas.

— Como você é patético. Lazarus o cãozinho de estimação da cadela da Juliette.

Adeus sorriso. Estrela de ouro para Strider — e de repente, realmente gostava de ver estrelas. Vá entender. Derrota riu.

— Acha que com você será diferente? Juliette vai escravizá-lo da mesma maneira que me escraviza. Você pensa que esta competição é sobre o que? Não dos jogos idiotas que essas mulheres gostam de jogar. Trata-se simplesmente de castigar a ruiva.

— Pelo que você fez, segundo ouvi.

Lazarus deu de ombros, indiferente.

— Ela me libertou. A culpa recai sobre ela.

 —Ela era uma criança.

Outro encolhimento daqueles ombros largos.

— E eu funcionava sob a fúria das minhas circunstâncias. Não consigo me controlar quando a fúria me golpeia.

 O que significava que não estava furioso agora. Ou, se estava, as correntes tatuadas ao redor do seu pescoço e pulsos o impediam de fazer algo a respeito.

 — Comecem a lutar novamente. — disse uma Harpia.

 — Sério. Que saco! — Esta última lançou uma garrafa de cerveja vazia nele e o vidro bateu contra seu estômago.

Vencer!

Estúpido Derrota.

Você fala. Ela morre. E lá estava Tabitha mais uma vez.

Ele rangeu seus molares. Sabia que a cadela estava simplesmente zombando dele, tentando distraí-lo, deixá-lo nervoso, convencendo-o a se afastar desta briga e perder de propósito. Então ele estaria fora da contagem e Kaia vulnerável.

— Se Juliette é tão poderosa, por que ainda não tentou me escravizar? — Strider exigiu. Respostas primeiro, porrada em segundo. — Olho por olho.

 O olhar de Lazarus foi de pena.

— Não aprendeu nada? As Harpias apreciam o drama e o teatro mais do que qualquer outra raça.

Não se podia negar isso.

— Como o fez, então? Você é um cara durão. Para uma moça. Como ela te escravizou?

 Os lábios inchados de Lazarus tremeram. Com diversão?

— Da mesma forma que você. Tudo o que posso dizer é que tenha cuidado com o primeiro prêmio.

A Haste? A Haste escravizou Lazarus?

— Então é a verdadeira? — Lá se foi sua teoria que Juliette estava fingindo. Uma teoria que ele quis que os Deuses tivessem provado ser verdade. Não estar na posse das mãos erradas.

— Eu não posso dizer.

— Não o fará, você quer dizer.

Aqueles olhos de ônix brilhavam com mil segredos.

— Não. Não posso. Estou a ponto de desobedecer, inclusive dizendo isso.

— E o que acontece quando desobedece?

— Dor. Morte. As coisas de sempre. E agora, sinto dizer, tenho que continuar te distraindo.

Strider arqueou uma sobrancelha.

— Você sente dizer?

Um aceno confiante.

— Você realmente não é um cara ruim e gosto realmente da ruiva. É uma lutadora.

— Ela é minha.

Ele ofereceu um sorriso tão lento e espesso quanto gotas de mel.

— Tem que sobreviver em primeiro lugar. — Essa foi a única advertência que Strider teve. Lazarus correu em frente, um borrão que a olho nu não se podia ver.

Punhos uma vez mais martelaram contra ele, o impacto jogando-o numa espiral de dor. Rodopiou enquanto era golpeado, indiferente que não podia mais respirar desde que pudesse proteger seu rosto.

 Vencer!

 Pelo menos o demônio não estava gritando mais. Strider esquadrinhou a neve e os corpos por armas, movendo-se à esquerda e direita enquanto o fazia, deslizando entre as Harpias, esperando que o guerreiro não as golpeasse para chegar até ele. O cara o fazia se lembrar de Sabin, que achava que homens e mulheres eram iguais na batalha e não discriminava na hora de matar. Mas Juliette era amante dele e provavelmente o proibiu de ferir suas irmãs.

 Finalmente. Viu espadas. Não as suas, mas de uma das Harpias. Ele as embainhou nas costas.

 — Ei. — ela gritou quando percebeu o que ele fez.

 Ele se afastou correndo antes que ela pudesse enfiar suas garras nele pelo roubo. Suas botas escorregaram no gelo. Encontrar o equilíbrio foi difícil, mas se manteve em movimento, escutando qualquer som que pudesse revelar a localização de Lazarus.

 Uns arquejos femininos — diretamente atrás dele. Isso significava que as Harpias estavam sendo empurradas de lado, e não saltando ao seu redor. Um erro tão evidente, ele pensou. Lazarus era um lutador muito bom para isso. Por acaso ele queria perder?

 Porra, Strider não queria gostar dele.

 Girando quando alcançou um trecho desocupado, Strider se abaixou. Ele esticou os braços, as lâminas estendidas. Contato. Lazarus saltou, mas já era tarde demais. O metal o cortou nos tornozelos, fazendo-o mancar. Ele caiu e caiu duro, o gelo não servindo nada como amortecedor para o impacto.

 Com Derrota aplaudindo dentro da cabeça de Strider — ganhou, ganhou, ganhou — manteve o guerreiro exatamente como ele o prendeu, com os joelhos em seus ombros. Lázaro não resistiu.

 — Isso doeu.

 — Desculpe. — Strider bateu as pontas da espada ao lado da têmpora do homem. — E obrigado. — ele disse, lutando contra a onda de prazer que a vitória trouxe. Aquilo o distrairia.

 Olhos brilhantes de surpresa o perscrutavam.

 — O que, achou que eu não perceberia que entregou a luta? Dê-me um pouco de crédito, pelo menos. — Uma vez mais usou o idioma antigo dos Deuses.

 Logo aquela onda de prazer induzida pela vitória escapou das suas restrições. Não pode segurá-la nem mais um segundo. Ele estremeceu e gemeu junto com Derrota.

 Faíscas de êxtase incendiaram suas veias, aquecendo-o. Não no mesmo grau de quando fazia amor com Kaia, mas o suficiente para fazer com que seu pau ficasse duro instantaneamente, envergonhando-o.

 Antes que Lazarus pudesse responder, a surpresa do homem deu lugar à diversão e o guerreiro ergueu uma sobrancelha questionando.

— Não é por você. — Strider disse, corando.

— Graças aos Deuses por isso.

— Então. — Vamos terminar com isso. — Você se cura depressa?

— Sim.

— Sinto muito por isso, mas preciso de cinco minutos sozinho e não posso ter você me perseguindo. — Ele recuperou as espadas, sacudiu o gelo, e logo as enterrou nos ombros de Lazarus. — Faça-me um favor e não se levante.

Um grunhido, um enrijecimento daquele corpo grande. Gritos ao redor deles.

Strider se levantou e se afastou a uma distância notável, já esquadrinhando o panorama. As Harpias ficaram boquiabertas, inclusive retrocederam. Algumas das mais valentes ofereceram tchauzinho com seus dedos e sorrisos sedutores, convites abertos para se deitar com elas.

 Captou o olhar de Sabin. Lysander estava ao lado dele, as asas douradas arqueadas sobre seus ombros. Apesar do frio, os dois estavam suando. Eles devem ter ouvido a confusão e vieram correndo.

Ele apontou para uma montanha a sua esquerda com uma inclinação do seu queixo e eles assentiram. Enquanto Lazarus estava dando na sua cara, mantiveram um olho em Kaia. Ela subiu naquela montanha e desapareceu dentro de uma caverna.

Ele seguiu adiante, determinado. Depois de alguns passos os consortes o estavam flanqueando lado a lado. Ao longo do caminho, achou que sentiu cheiro de fumaça. E carne queimada. O pânico de repente o inundou e olhou para cima. Pânico misturado com terror. Fumaça negra emanava da caverna.

Merda! Não havia tempo para subir.

— Leve-me lá pra cima. — ele exigiu. — Agora.

Lysander captou sua urgência. Ele agarrou Strider por baixo dos braços, estendeu as asas com suas pernas se curvando para dar impulso. Dispararam no ar e o anjo o soltou sobre a borda na frente da caverna antes de voltar para repetir o processo com Sabin.

— Kaia! — Strider se precipitou para o interior, tossindo enquanto a fumaça se espessava e queimava sua garganta. Ele abanou com a mão diante de seus olhos que ardiam, tentando ver. Naquele momento estava no centro da destruição, e não havia nenhuma razão para tentar afastar a escuridão. Ele podia enxergar muito bem.

 Pelo menos vinte e cinco corpos estavam se queimando, as chamas ainda crepitando deles, iluminando a área. Estavam tão carbonizados que não podia dizer se eram homens ou mulheres. Seu coração quase estalou dentro do seu peito, seu sangue aquecendo com mais daquele pânico. Ela não podia ser um dos mortos. Simplesmente não podia.

 Ele falhou com ela. Não podia ter falhado. Precisava dela. Ele a amava.

— Kaia. — disse com um nó na garganta cada vez maior. — Kaia, boneca. Onde você está, amor?

— Que diabos? — Sabin exigiu atrás dele.

— Grande Deus. — Lysander soprou.

Strider os ignorou, curvando-se para analisar os corpos mais próximos a ele. Estava tremendo quando alcançou e removeu o punhal agarrado na mão enegrecida. O cabo estava tão quente que sua pele imediatamente empolou, mas ele não o soltou. Ele não o reconheceu também. Ok. Ok, então. Esta pessoa não era ela.

 Um gemido ecoou alguns metros à frente dele. Feminino. Cheio de dor. Familiar. Não havia um som mais doce. Ele estava de pé num instante correndo em sua direção. Então a viu, e se deteve abruptamente. O estômago se retorceu em cem nós afiados, cada um o cortando.

 Eles a cravaram na parede.

 Tão aliviado quanto estava que estivesse viva, ele quis morrer. Umas espadas estavam ancoradas em seus ombros, prendendo-a contra a parede rochosa. O sangue escorria pelo seu corpo nu, cobrindo-a com raias vermelhas de dor. Se eles a estupraram…

 Apenas com esse pensamento, Strider se sentiu disposto a dar rédeas soltas ao seu demônio, deixar sua metade má reinar para abater todos os cidadãos do mundo até se reduzirem a uma polpa.

A raiva fica para depois. Cuide dela agora. Um passo forte, dois.

 As chamas se prenderam a sua camisa, queimando o tecido e chamuscando sua pele. Deteve-se e deu umas palmadinhas para apagá-las. Quando isso não ajudou, arrancou a camisa pela cabeça e lançou de lado. Só então o fogo morreu.

 — O que aconteceu...

 — Fora. — Strider grunhiu e Sabin calou sua boca. — Os dois. Agora. — Ela não queria que ninguém a visse assim.

 Silêncio. Passos relutantes. Strider estudou sua mulher o tempo todo. Seus olhos estavam pretos, o branco desapareceu completamente, mas intercaladas nessa tela de meia-noite estavam as mesmas chamas que o chamuscaram. Elas crepitavam furiosamente.

 — Kaia. — disse suavemente.

 Ela lutou contra as espadas, dando outro gemido.

 — Fique quieta, boneca. Ok? — Ele se atreveu a dar mais um passo. Um erro. Sua calça jeans pegou fogo de imediato. Novamente ele se deteve. Desta vez não se deu ao trabalho de tentar apagá-las, só tirou o material ofensivo do seu corpo, ficando apenas de roupa íntima e botas.

 — Boneca, escute-me. Ok? — disse tentando novamente. Ele soltou a lâmina, para que ela não pensasse que ele pretendia feri-la. — Por favor, escute-me. Quero te ajudar. Vou te ajudar, queira ou não. Por favor, não me mate até que eu consiga tirá-la daqui.

 Esperava que Derrota protestasse sobre aquela ladainha desses “por favor”. Talvez considerasse isso um desafio. Porém o demônio permaneceu em silêncio. Ainda tinha medo de Kaia? Ou estava sofrendo com o que fizeram com ela depois do prazer que eles experimentaram em seus braços?

 — Aqui vou eu. — Strider inalou o ar espesso… prendeu… prendeu… e avançou. Sua pele continuou esquentando, mas não ardeu novamente, e finalmente a alcançou. Suavemente, muito suavemente, envolveu suas bochechas, os polegares seguindo a forma dos belos ossos sob essa pele sedosa. Ele se surpreendeu ao ver que suas próprias garras surgiram. As garras do demônio. No entanto ele não a cortou, foi oh, tão cuidadoso.

 — Oh, bebê. — ele gemeu, seu peito dolorido. — Eu sinto tanto.

 Lágrimas escaparam dos cantos daqueles olhos de meia-noite, e soube que estava alcançando a mulher do lado de dentro. Ele não a protegeu disso e não estava certo por que não estava sofrendo com dor como resultado de seu fracasso. Porque ela se curaria? Por favor, que ela se cure. Porque alguém que não era Harpia a feriu? Se esse fosse o caso, quem fez isso? Os Caçadores novamente?

 Desesperadamente quis cortar sua própria jugular e fornecer todo o sangue que ela precisasse para se curar. Mas não podia. Ainda não. Não podia se arriscar que seus ossos e carne se curassem com todo o metal que a prendia no lugar.

 — Vou remover as espadas, ok? — Não podia permitir que isso acontecesse com ela novamente. Nunca. Não poderia suportar. Isso é um desafio, ele disse a Derrota. Um desafio que você vai aceitar. Ela é nossa para protegê-la e se falharmos novamente, sofreremos, mesmo que ela se cure mais tarde. Entendeu?

 Uma pausa. Então, um fraco. Vencer.

 Embora Strider não quisesse soltá-la, ele o fez e se apoderou das espadas. Elas estavam mais quentes que o punhal que usou para cortar sua calça e que empolaram suas mãos, deixando-as latejando de dor. Ele não se importava. Sua dor pouco importava. O que importava? A dor dela. Aquele pequeno movimento a atormentou, ele soube por que suas lágrimas caíram mais depressa.

 Pouco disposto a prolongar sua agonia, puxou com toda sua força. Durante vários segundos o metal ficou preso no osso. Puxou mais forte. Ela não fez o menor ruído. Finalmente ela estava livre e caiu para frente. Ele soltou as espadas e a pegou, colocando-a suavemente no chão. Havia também feridas em seus tornozelos, mas não estavam presos, então ele os ignorou.

Uma vez mais ele queria abraçá-la. Uma vez mais não se permitiu o luxo. Usou sua garra para cortar profundamente seu pescoço, inclinou-se e colocou o ferimento exatamente acima da sua boca.

 — Beba, boneca. Você se sentirá melhor, eu juro. Depois você me dirá o que aconteceu e vou punir todos os envolvidos. Eu juro, também.

 A princípio ela não deu respondeu. Então sua língua lambeu, um toque de fogo, tão quente quanto o punho da espada. Ele teve que ofegar, mas não se afastou. Então sua boca se travou no lugar, marcando-o agora e para sempre e ela sugou e sugou e sugou, e oh, sim, ele gostava disso.

 — Assim. — ele elogiou. — Bom, boa menina. Tome tudo o que precise. Tome tudo.

 Ela levou sua palavra ao pé da letra e bebeu até se encher. Quando ela terminou a vertigem o atravessou, mas ele não se importou. Só se alegrava que Derrota não tivesse visto aquilo como um desafio. Ele se endireitou e olhou para ela.

 Seus olhos estavam fechados, sua respirando agitada e superficial. Sua temperatura esfriou um pouco e seu rosto não estava tão pálido. Isso significava que ela estava se curando. Certo?

 Precisava tirá-la desta caverna infestada de fumaça. Sua camisa esburacada descansava a alguns centímetros de distância. Agarrou-a e envolveu o que restava do material ao redor do corpo de Kaia. Tão ternamente quanto foi capaz, ergueu-a nos braços. Ele cambaleou, mas não deixou que isso o detivesse.

 Na entrada da caverna chamou Lysander. O anjo apareceu um segundo mais tarde, flutuando bem diante dele, as asas se deslizando graciosamente no ar.

— Leve-nos para nossa tenda. — disse com voz rouca. Não podia perder essa mulher.

 

— Vamos, boneca. Eu te deixei dormir o suficiente. Agora você está sendo apenas preguiçosa.

Strider, Kaia pensou atordoada, seu corpo inteiro despertando para a vida. Ele estava aqui, junto dela. Tinha que ser ele. Sua voz tão perto, tão doce. Uns dedos suaves afastaram os cabelos da sua testa. Conhecia o toque. Adorava aquele toque e se inclinou para ele.

 — Vamos, continue assim.

 Sua voz rouca de barítono provou ser uma corda salva-vidas e se agarrou desesperadamente a ela. Centímetro a centímetro saiu da escuridão espessa que a cercava. Apesar de cada movimento doer. Strider, tinha que alcançar Strider. Esse foi seu último pensamento, ela recordou. Seu último pensamento antes de...

 Ouviu tantos gritos. De terror, de dor. Seus, de tantos outros. O cheiro de pele derretendo atingiu seu nariz e sentiu náuseas. Como agora, ao se lembrar. Soltou a corda salva-vidas. E caiu, pra baixo, pra baixo, de volta à escuridão.

 — Kaia! Não vou dizer novamente. Acorde de uma maldita vez. Agora!

 Strider. Agarrou a corda uma vez mais. Novamente se arrastou para cima… pra cima… uma luz brilhante a esperava na superfície. Ela tinha só que estender a mão... alcançá-lo… agarrá-lo… quase lá… outro puxão…

 Suas pálpebras se abriram com um gemido de surpresa e indignação persistente alojado em sua garganta. Ela estava ofegando e suando, músculos travados sobre os ossos. Ela tentou se sentar, mas mãos duras a seguraram.

 — Não. Ainda está se curando, por isso não quero que se mova.

De repente o bonito rosto de Strider pairou sobre ela. Seus profundos olhos azuis estavam vidrados, febris. A preocupação gravada em linhas profundas ao redor da sua boca, e sua pele normalmente bronzeada estava quase tão sem cor quanto seu cabelo. Não, não é verdade. Havia manchas de cor, mas eram brilhantes vergões vermelhos e bolhas.

 Estava nu. Ao vê-lo algo ferveu dentro dela. Conhecimento, poder, conexão. Sim, uma conexão mais predominante até do que a que sentia com Bianka. Mais do que vinculante, essa conexão os entrelaçava juntos, até que ela não podia dizer quem era quem. Eram simplesmente um.

 — Você está bem? — Deuses, até falar doía. Sua garganta estava em carne viva, em agonia, como se alguém tivesse raspado o interior com pedaços de vidro e então, só por diversão, pincelado a carne ensanguentada com ácido.

 — Estou bem, então não se preocupe comigo. Preocupe-se com você. Esteve ausente por três dias.

 Três dias? Seus olhos se arregalaram.

 — O terceiro jogo...

 — Começa daqui a dois dias. Bianka me manteve informado.

 Graças aos Deuses. Ainda. Três dias.

— Devo estar horrível. — ela murmurou. Queria pentear seu cabelo com os dedos, mas decidiu que levantar seu braço exigiria esforço demais.

— Você está viva, e isto é malditamente bonito para mim.

Querido homem. O coração deu um salto enquanto absorvia o seu elogio.

— Além do mais — ele disse — nós dois estamos limpos. Lysander me deu túnicas. Túnicas angelicais. Uma pilha delas. Cada vez que coloco uma nova, é como tomar um banho. Você também. Tudo, desde o seu cabelo até os seus pés foi... está... lavado. E deixe-me dizer, isso é estranho.

Por que estava contando isso? A menos que… oh. Oh. Ele a desejava. Ok, ela se esforçaria nisso. A excitação a aqueceu e enrijeceu seus mamilos.

 Percorreu seu corpo com um olhar para avaliar os danos que teria que solucionar.

 Estava nua, seus ombros com hematomas amarelados e com crostas. O estômago estava bem. Pernas, tudo bem. Tornozelos, com hematomas. Nada grave.

Ela estava deitada sobre um tapete de pele falsa que sua irmã gêmea deve ter dado, dentro de uma tenda branca quase estéril, o ar ao redor estava aquecido embora o ar na entrada estivesse quase cristalizado pelo frio.

Apoiando o peso em um braço, Strider teve o cuidado de não roçar sua longa e grossa ereção — e oh, sim, ele tinha uma — contra ela. Imediatamente uma ardente calidez se agrupou entre suas pernas. Ela ansiava seu toque, sua boca. Queria explorar essa nova e profunda conexão. Ela lambeu seus lábios.

— Mexa-se rápido. — ela disse com um sorriso.

— Porra, Kaia. Tire sua mente da sarjeta e fale comigo. Estive esperando pacientemente durante três dias.

Seu “apelido carinhoso” para ela fez com que olhasse para o seu rosto de novo. A preocupação estava de volta com toda sua força e recordou por que estava aqui na condição em que estava — e o perigo em que colocou este homem. Ela não teve que colocar sua necessidade sexual de lado. Desapareceu sozinha.

 — Ok. Sim. Do que você quer falar?

Seus olhos brilharam para ela.

— Em primeiro lugar, se você alguma vez teve dúvidas que eu seja seu consorte, pode eliminá-las. Você dormiu ao meu lado.

 Não era o tema terrível que esperava e se relaxou contra sua pele.

— Desculpe, querido, mas essa coisa dos consortes não funciona por dormir juntos.

 Ele lhe dedicou um olhar feroz.

— Como funciona então?

— Os cochilos não contam se a Harpia adormece enquanto está ferida. Tenho que dormir ao seu lado quando estiver curada. E isso não aconteceu ainda.

 — Acontecerá. — Determinação irradiava dele e ela sabia que via isto como um desafio. Um desafio que ele obviamente aceitou.

Entretanto ela não deixou que isso a aborrecesse. Queria dormir junto dele, aconchegada ao seu lado, algo que jamais faria com outro homem. Como ou por que aconteceu não tinha importância.

 — Agora me diga que merda aconteceu. — continuou, cada palavra mais áspera que a anterior. — Aqueles homens… você foi…? — Ok. As bolhas não eram a única coisa colorindo seu rosto agora. Fúria. Tanta fúria.

 Fúria por ela ter sido maltratada?

— Eles fizeram o que? Eles me cravaram na parede? Sim. Incendiaram e queimaram até a morte? Sim, isto, também. — Mais uma vez os gritos e as chamas passaram pela sua mente. Em vez de atormentá-la como fez na sombria e vazia escuridão, experimentou uma onda de satisfação.

 A vitória era dela.

 — Não, boneca. — Sua expressão se suavizou e se tornou terna, questionadora. Deslizou um dedo suavemente na ponta do seu nariz. — Eles… estupraram você?

 — Não. — Ela estremeceu pelo contato suculento. — Eu os teria deixado mais mortos do que estavam.

 O alívio se juntou à fúria e a ternura.

— Então não vou mijar em seus restos carbonizados. Então como os matou? Quero dizer, sei que eles queimaram vivos, como você disse, mas “como” conseguiu isso? Você teve que fazer depois que foi cravada na parede. Caso contrário teria sido fatiado como um presunto de Natal.

 Homem esperto.

 — Eu… — À medida que essas recordações vieram à tona ela franziu a testa e olhou para o outro lado. — Eu não quero contar. — ela sussurrou. Embora estivesse satisfeita com o resultado final, para obtê-lo abriu uma verdadeira Caixa de Pandora de complicações — e não achava que Strider apreciaria a ironia.

 As escuras pestanas baixaram.

— Faça de qualquer maneira. Agora. E comece desde o início. Quero saber tudo.

 Tão dominador, seu guerreiro. Tão sexy. Ela não queria contar para ele, mas o faria. Planejou inclusive enquanto proferia a recusa. Ela faria qualquer coisa, até isso, para evitar que ele vivenciasse um momento de dor.

— Subi até a borda e os Caçadores estavam me esperando. Eles correram em minha direção e nós lutamos. Gostaria de ter ganhado, muito, mas eles sabiam que me pegariam através das minhas asas. — Provavelmente cortesia de Juliette, apesar de que discutir tal debilidade com “alguém” era proibido e punido com a morte. — Uma vez que as quebraram me cravar com as espadas foi fácil.

 Cada palavra o deixou tenso.

— Eu não te ouvi gritar.

 Ela sabia , assegurou-se de não fazê-lo, segurando seus gritos dentro dela. Não quis distraí-lo de sua briga com Lazarus. Que ele deve ter vencido, já que ele estava aqui e evidentemente sem dor.

 Ela o chamou de sexy? Quis dizer irresistivelmente arrebatador. Mas se perguntou, por que ele não ouviu os gritos dos caçadores? Interessante. Alguém de alguma maneira manteve o barulho dentro da caverna?

 — O resto. — ele insistiu com um grunhido.

 Faça.

— Eu estava tão louca, tão… desesperada, o calor dentro de mim simplesmente explodiu.

 — Conheço esse calor. — ele disse com voz rouca.

 Seu cenho franziu em confusão.

 — Conhece?

 — Sim. Quando fizemos amor, você me queimou bastante.

 — O que! — Ela não prestou atenção ao seu corpo, só ao dele. Muito egoísta? — Deuses, Strider. Sinto tanto.

 — Eu não. — Seus lábios se contraíram em sua primeira exibição verdadeira de humor desde que ela acordou. — Eu gostei.

 Isso não a acalmou. Ela poderia tê-lo matado. Em vez de considerar aquilo e talvez explodir em lágrimas, ela se apressou a contar sua história.

— Eu peguei fogo, mas ele não me machucou. Não entendia o que estava acontecendo, só observei como os homens ao meu redor se incendiavam também. E quando os outros tentaram fugir da caverna, olhei para eles e a próxima coisa que soube foi que estavam se retorcendo enquanto se queimavam. Minha Harpia começou a rir. — Para ser honesta, ela também. — Então eu meio que apaguei.

 — Não entendo. Como pode se incendiar e estar bem minutos depois?

 A resposta era a razão pela qual não queria discutir este assunto.

— Eu deveria ter juntado as peças antes disso, mas as descartei como bobagem. Talvez porque eu estava muito distraída cortejando o meu consorte.

 Ele soltou uma gargalhada.

— Descartada como bobagem? E está dizendo que me cortejou? Boneca, se as últimas semanas são sua ideia de cortejar, precisamos seriamente trabalhar nas suas habilidades para o namoro.

 — Cale-se. Eu prendi você, não é?

 — Sim. — disse ternamente com voz rouca. — Você me prendeu.

 Isso a apaziguou (e derreteu).

— Como eu estava dizendo, meu pai é um Phoenix metamorfo. Devo ter herdado algumas das suas habilidades. — E não gostava de tê-las! É claro que valorizava sua recém-descoberta habilidade de fritar seus inimigos até cinzas fumegantes, mas o Phoenix era uma raça exclusiva, pouco acolhedora e qualquer pessoa que mostrasse o mínimo de pirotecnia era capturada e mantida à força dentro do seu território.

 Honestamente. Ela não tinha nenhuma ideia como sua mãe e seu pai se envolveram em primeiro lugar.

 O-k. Tosco. Evitava esse pensamento. De qualquer jeito. É por isso que seu pai sequestrou a ela e Bianka todos aqueles séculos atrás, para se certificar que elas não exibiam nenhuma afinidade com o fogo. Elas não tiveram e então foram liberadas. Não só as liberou como disse para nunca mais voltarem.

 Ela não deveria estar exibindo tal afinidade agora. O Phoenix pode suportar o calor intenso e controlar o fogo desde o nascimento. Até agora nunca foi capaz de fazê-lo. Então como isso aconteceu? Por que agora? Uma capacidade latente, talvez? Mas então, não deveria ter aparecido na puberdade? Só podia pensar em uma única coisa que mudou em sua vida. Sua necessidade, seu ardente desejo por Strider.

 Quando — se — seu pai descobrisse, ele viria atrás dela? A obrigaria a viver com seu povo? Não precisava considerar isso. Sim. Ele iria. E ela recusaria. Seria obrigada a lutar com ele e todos os seus irmãos, só para viver sua vida da maneira que desejasse? Ele faria uma aposta com Strider numa tentativa de forçar sua mão?

 — Estou contente que tenha herdado as habilidades de seu pai. Você está viva e nada é mais importante que isso. — Strider disse. — Você fez um ótimo trabalho.

 — Sério? — Nunca se cansaria de seus elogios.

—Se seu objetivo era que eu morresse de preocupação, então sim. — Ele agora estava de cara feia, seu afeto transformado em raiva. Ela pensou no que aconteceria se o deixasse louco. — Você nunca mais voltará a agir sozinha. Vou te acorrentar ao meu lado e vai gostar. Entendeu?

 Ela não se dignou a responder tal declaração ridícula.

— Só para constar, você também fez um bom trabalho. — Talvez se ela o aplaudisse, ele parasse de deixar sua preocupação falar por ele e se lembraria que “ela venceu”.

—Bem, você não fez um bom trabalho, e essa é a bendita verdade. Você quase morreu! Você não gritou e sei o porquê. Não quis me distrair. Mas advinha? Preferiria que tivesse me distraído! Eu poderia ter corrido em seu socorro e te ajudado a fazer aquela matança.

Também poderia ter queimado até a morte com os Caçadores.

— Bom… bom… você também não fez um bom trabalho!

— Não. Você já disse que eu fiz.

— E agora digo que não.

— Desculpe, não aceito devolução. Você se ferrou porque se deixou imobilizar. Não faça isso novamente. Percebe o que poderia ter acontecido?

 Sim. Os “que e ses” estavam definitivamente o levando. A indignação desapareceu. Como poderia culpá-lo? Se a situação fosse invertida, ela teria feito a mesma coisa.

— Não voltarei a fazer isso de novo.

Strider respirou fundo, visivelmente mais relaxado com cada molécula de ar que soltava.

— Então por que não queria me contar sobre os Caçadores?

Bem, talvez ainda ficasse um pouco de indignação. Bastante afetada, ela disse.

— Porque se eu te contasse sobre minha recém descoberta habilidade de fogo teria que dizer algo ainda pior... que não podemos mais fazer sexo. — E falava sério. Podia ter se esquecido da sua resolução ao despertar, mas se recordava disso agora.

— Que inferno! — Ele rugiu.

— Strider, não podemos. Eu vou queimá-lo. — Gravemente. Talvez até matá-lo.

Ele suavizou sua voz quando disse.

— Você não o fez da última vez. — Então ele finalmente, felizmente, virou-se para ela, pressionando seu pênis entre suas pernas, golpeando direto onde ela mais o desejava.

A necessidade explodiu de volta a vida e ela teve que apertar as mãos no tapete para não agarrá-lo. O calor… podia senti-lo aumentando novamente, fervendo embaixo da sua pele.

— Mentiroso. Você disse que queimei você.

— Também disse que gostei.

Não se atreva a amolecer.

— Não importa. Da última vez não incendiei nada. Agora que o fiz, as possibilidades são maiores de que aconteça novamente. E quando estou com você, aparentemente perco todo o bom senso. Não serei capaz de me controlar.

— Se esse for o caso, você não poderá lutar nas duas competições seguintes também. Sua raiva com certeza acenderá e explodirá, matando a todos que estejam ao seu redor.

— Sim, mas quero matar os meus adversários. — Não realmente, mas não queria admitir que ele tinha razão.

— Colocará sua família em perigo.

Droga!

— Dá um beijinho, ranúnculo[26], porque isso está acontecendo. Se puder suportar. — acrescentou pensativamente. — Suas lesões...

Acabava se espetar seu orgulho e seu queixo se ergueu.

— Posso suportar qualquer coisa.

— Bom. Eu me preocupei por um tempo malditamente longo e preciso de você. Mais do que isso, mereço uma recompensa por cuidar de você, não?

 Continuava preocupada pela sua segurança. Ele era a parte mais importante da sua vida.

— Esse é o seu demônio falando. Sei disso. Se refletisse um pouco sobre isso, você iria...

— Boneca, não tenho pensado claramente desde que te conheci. Vamos fazer sexo. Você vai gostar, eu vou gostar e vamos sair dessa vivos. — fez uma pausa e riu. — Pegou? Sair dessa.

Ela revirou os olhos, mas seu total desrespeito pelos seus temores fez muito para aliviá-los.

Porém Strider não terminou.

— Meu demônio gosta de dominar você sim, e estar com você sexualmente é mais gratificante do que qualquer outra coisa, porque ele também tem medo de você, tornando sua rendição mais prazerosa. Mas ele não aceitou um desafio ainda. Isto é só entre você e eu. E a necessidade. Dura e furiosa necessidade.

Ela mordiscou seu lábio inferior.

— Não quero que Derrota tenha medo de mim. Quero que ele sempre goste de mim.

 Um lento sorriso curvou seu lábios.

— Bom. Porque o bastardo só ronrona sua aprovação.

— Sério? — Finalmente ela permitiu que seus braços se enrolassem ao redor do seu pescoço. Ele pressionou seu eixo contra ela, esfregou de um lado para outro e tirou um gemido de prazer lá do fundo dela. Mas o calor se intensificou pulsando dela e ele começou a suar. Isso a assustou. — Strider.

 — Sou seu consorte. Você não pode me machucar.

Outra boa razão.

— Mas… isso é sua excitação falando.

— Não, é minha confiança em você e sua força falando.

— Você disse que eu fiz um péssimo trabalho.

— Não disse.

— Sim, disse.

— Feche a boca, Kaia, e pare de me deter. Olhe para isso do modo que quiser. Sua Harpia é uma garota durona e me ama. Ela não me vai machucar. Administre isso e vamos seguir em frente.

 — Ela o tolera. — Kaia mentiu.

 — Ela obviamente precisa de uma lição de vocabulário. Ela me ama. E — continuou antes que ela pudesse fazer um comentário — ela é mais forte do que seu lado Phoenix. Ela tem que ser. — Enquanto falava, ele dedilhava seus mamilos, dando-lhe mais desse doce contato que ela tanto ansiava. — Do contrário você estaria todo esse tempo incendiando as pessoas. Mas. Se te faz sentir melhor...

 Ele a ergueu nos braços e a levou para a saída. Ela sentiu a queda da temperatura no momento em que Strider saiu. A neve caia do céu escuro, tão determinada quanto uma tempestade.

 — Estamos sozinhos aqui. — ele disse. — Todo mundo saiu ontem e Lysander postou guardas do outro lado das montanhas. Ninguém se aproximará furtivamente de nós.

 Bom saber. Era tão constrangedor que não tivesse pensado na possibilidade de uma emboscada. Só neste homem. Só no seu toque.

 — Você vai morrer congelado. — ela o advertiu enquanto a estendia sobre a neve. Sua pele se arrepiou enquanto seu corpo esfriava.

 — Decida-se. Ou vou morrer queimado ou congelado. O que vai ser? — Ele abriu suas pernas à medida que ia se abaixando na frente dela. — Tão bonita. — ele disse, percorrendo com um dedo sua fenda úmida.

 Suas costas se arquearam em súplica.

— Tão bom.

— Tão minha. — Ele provocou seu clitóris, incrementando seu desejo... e tocando em todos os lugares menos ali. — Diga.

 — Eu sou sua. — ela suspirou. Sempre.

 Um beijo e uma lambida no centro de sua necessidade a fez gemer, e então ele mais uma vez pairou sobre ela. A neve caía ao redor dele, assombrosamente bela. Ele não a penetrou, ainda não, mas lentamente começou a esfregar com força cada vez maior, provocando, brincando. Ela soltou outro gemido de necessidade.

 — Strider. Por favor.

 — Deuses, você tem um gosto tão bom. Preciso de mais. — Voltou a descer, lambendo e chupando.

 O prazer explodiu atravessando-a e seus dedos se entrelaçaram no cabelo dele. O calor voltou a florescer, apesar dos ventos frios, passeando pelas suas veias. Apesar da vertigem prazerosa ​​que nublava sua visão ela o olhou, decidida a detê-lo ao primeiro sinal de perigo. O suor perolava suas têmporas e pingava nas suas coxas. Suor, mas sem vergões. Bom, bom, tão bom.

Sua língua não parou de trabalhar nela, afundando dentro e fora, fazendo amor com ela, até que finalmente deslizou sobre seu clitóris. Com uma última pressão a enviou rapidamente ao orgasmo. Uma explosão de satisfação a percorreu, viajando do centro de suas pernas até seu peito, seus braços, seus pés, varrendo uma maré de sensações por cada parte do seu corpo. Chamas estalaram por trás das suas pálpebras, mas nunca a abandonaram.

Então começou a acreditar. Nunca poderia ferir este homem. Nem intencionalmente, nem acidentalmente. Ele era sua outra metade, tão indispensável quanto seu coração. Inferno, ele era seu coração. Ele acalmava a sua Harpia e agora, pelo que parece, domesticou sua Phoenix.

 — Abra seus olhos, boneca.

 Ela obedeceu sem questionar. Ele estava posicionado sobre ela, seu cabelo colado no couro cabeludo, ainda suando. A ponta do seu pênis pincelava sua abertura encharcada e ela teve que morder seus lábios quando o desejo renovado foi deflagrado.

 — Hora da confissão. — ele disse. Outra pincelada. — Você queimou as túnicas angelicais. Dos dois. É por isso que estamos nus. E você realmente me queimou. Uma vez. Mas me recuperei. — Não lhe deu tempo de responder mas se chocou contra ela, afundando tão profundamente quanto pode.

 Automaticamente ela se arqueou para encontrá-lo, para tomar tudo.

— Seu… filho da puta. — conseguiu dizer com voz entrecortada. Ele era tão grande que a estirava. Ele a golpeava mais profundamente que qualquer outro. Mas estava tão molhada que deslizava suavemente. — Eu poderia… matá-lo fazendo isso. — Esteve tão segura, depois daquele clímax, que não poderia feri-lo. Agora descobria que ela o feriu... que poderia fazer novamente...

 — Um acidente. — ele disse com um gemido. Ele se introduziu mais profundamente, retirou-se e voltou a se introduzir.

 — Não vou arriscar com você. — Poderia afastá-lo? Para o seu próprio bem, para o seu próprio bem. — Strider...

 — Você não tem que me arriscar. E provarei isso.

 

Strider levou sua mulher orgasmo após orgasmo sem mostrar misericórdia, curvando seu corpo em todas as posições imagináveis. Chupando seus mamilos, lambendo-a da cabeça aos pés, provocando seu sexo com longas e certeiras esfregadas, martelando dentro dela, lento e suave, então acelerando, rápido, mais rápido, os golpes se tornando penetrações rápidas e superficiais, então logo se tornando profundas.

 Quando ela se deitou de costas, quase incapaz de recuperar seu fôlego, ele colocou suas pernas nos seus ombros. Quando ela chegou a outro orgasmo, ele baixou suas pernas para sua cintura. Quando ela gozou outra vez, ele a virou e a tomou por trás. E apesar de tudo, ela se contorcia, gemia e pedia mais.

 Mais. Sim, ele poderia dar mais. Pensou que poderia amá-la assim para sempre e mais outro dia, apesar de sua própria necessidade furiosa de chegar ao clímax. Uma necessidade que estava construindo e cimentando, consumindo-o, mas ele nunca esteve mais determinado a marcar a si mesmo em outro ser. E o faria. Até que cada célula que ela possuísse chorasse com esse conhecimento, incapaz de negá-lo de maneira nenhuma.

 Desta maneira, ela nunca poderia esquecer que pertencia a ele, nunca esqueceria o que ele faria se ela o assustasse outra vez. Não que isto chegasse a ser um impedimento. Infernos, ele estava lhe dando uma razão para arrebentar com ele cada maldito dia. Ela quase morre e consegue o melhor sexo da sua vida.

Sem necessidade de controlar o maldito ego, obrigado.

 Ele só… não queria que este momento terminasse. Precisava disso. Precisava dela.

 Manter distância não era uma opção. Sim, ele sabia como ela reagiria quando soubesse que o queimou. E sim, só confessou quando ela foi incapaz de encaixar a maior parte disso. Mas alô. Ele era inteligente. Mas como disse a ela, chamuscá-lo em cima de uma chama viva foi um acidente. O que não disse, mas algo que poderiam falar mais tarde? O acidente foi incitado por ele.

Ela estava morrendo, ofegando pelo último fôlego. E viu pessoas morrerem o suficiente para saber quando a morte seria chamada. E sabia que Lucien logo seria chamado. Lucien atenderia a convocação, sem importar quanto Strider ardentemente protestasse. Levaria a alma de Kaia para a outra vida, como seu demônio, Morte, exigia. Sabendo o que estava para acontecer, Strider caiu diretamente na bat-merda da terra da loucura e deu uma de Gideon.

 Ele se casou com a sua mulher.

 Ele recordou como Gideon falou com entusiasmo sobre cortar a si mesmo, então cortar Scarlet e combinar seus sangues. A forma de se casar da velha escola. A ação uniu suas vidas, suas almas, e a força de Gideon se tornou a de Scarlet. Então Strider fez isto. Cortou a si mesmo e depois a Kaia. No momento em que a lâmina afundou na carne sensível entre seus seios, ela entrou em erupção, abatendo-se sobre ele, os fogos começando tudo novamente.

 Um pouco de pele se derreteu — como a metade superior do seu corpo — mas foi um preço pequeno a pagar pela sua vida. Já era seu consorte, mas acrescentou um pouco… de tempero a sua relação. Os tornou iguais. Parceiros. E Deuses, o conhecimento quase o derrubou.

 Minha, ele pensou agora. Minha esposa. Sempre.

 Com cada orgasmo que Kaia teve, Derrota se tornava um pouco mais confiante em sua habilidade de domesticá-la. Um pouco mais possessivo com ela. Como Strider, o bastardo percebeu que ela nunca o machucaria de propósito, que ganhá-la — algo que nenhum outro homem jamais fez — era umas das maiores vitórias de sua existência.

 O bastardo também estava derramando prazer diretamente nas veias de Strider e era quase mais do que podia suportar.

 — Strider. — Kaia gemeu, seu doce e curvilíneo traseiro se movendo quando ele uma vez mais diminuiu a velocidade das suas investidas. — Por favor.

 A neve continuava caindo, uma tempestade agradável que via mas não sentia. Sua mulher estava muito quente. Um calor que ele dava as boas vindas, adorava, ansiava… mas não sabia que necessitava. O calor agora representava Kaia, prazer e satisfação. Uma potente combinação. Provavelmente exibiria uma ereção durante todo o verão.

 — Aprendeu sua lição? — As palavras foram praticamente rasgadas da sua garganta, a necessidade fazendo suas cordas vocais se contraírem.

 — Sim.

 Inclinando-se apertou seu tórax contra suas costas, as cristas de sua espinha criando a mais deliciosa fricção contra sua carne. Ela murmurou sua aprovação. Apesar do muito que gostou também, ele se imaginou aprofundando o novo contato, e não ficou dessa maneira. Pôs seus braços ao redor dela e ergueu a ambos de joelhos, os dela entre os seus.

 Seu pau dolorido se deslizou como nunca fez nela e se enfiou até a raiz. Sua cabeça caiu sobre o ombro, o comprimento de seu cabelo sedoso fazendo cócegas entre seus corpos. Ele moveu uma mão para seu seio, com o bico duro de seu mamilo rosado entre os dedos. Ele moveu sua outra mão para seu núcleo úmido, molhado.

 — Porra, mova-se mais duro! — ela ordenou, seus movimentos descoordenados agora. — Mais rápido.

 — Não. Diga-me o que você aprendeu primeiro. — ele exigiu se mantendo imóvel. Ele não escovou seu clitóris, somente brincou com o capuz sensível, inchado com sua proximidade.

 Ela rosnou.

— Que não te machucarei quando perder o controle durante o sexo. Para sua informação, eu me inteirei disso faz uns cinco orgasmos, seu bastardo.

 — Não percebi que você era uma estudante tão rápida.

 — Então por que não está se movendo? Eu machucarei você se não terminar isto! — Seu grunhido se tornou mais afiado a cada segundo. Suas garras se afundaram em suas coxas quando disse. — Juro, terminarei eu mesma e vou deixar que apodreça.

 Ele soltou uma risada áspera. Tão impaciente, sua mulher. Graças aos Deuses. Ele não a queria de outra maneira.

 — Eu amo você. — Strider disse a ela. Antes que ela pudesser responder, angulou sua cabeça e selou seus lábios juntos, sua língua se escavando e rodando com a dela. Ele agarrou seus quadris e a obrigou a montá-lo, enterrando seu pau tão fundo quanto pode e empalando-a com cada empurrão, quase deixando-a sair com cada deslizamento para cima.

 Quando isso não foi suficiente, pressionou o polegar naquele doce lugarzinho na terra. Ela era tão pequena, tão apertada, sabia que era muito grande para ela. Talvez devesse ter mais cuidado, mas ela era forte e podia tomar tudo que desse. Então ele deu muito, golpeando duro e rápido. O beijo não terminava nem diminuía a velocidade, e ele adorava que eles saboreassem a paixão um do outro.

 Uma de suas mãos se ergueu, cravando as unhas em seu couro cabeludo.

— Strider. — ela ofegou, puxando dos seu lábios. — Sim, sim.

Uma bênção tão doce. Seus músculos estremeceram com a profundidade de sua necessidade. Seus ossos doíam. Tinha que... precisava… devia... porra! Ele segurou sua liberação por tanto tempo que não conseguia derrubar a parede resistente que ele ergueu.

 Ele martelou nela, seus quadris como um pistão e quando isso não funcionou, ele se deixou cair de costas, levando-a com ele e mal notando o gelo, movendo a perna dela pra cima da sua e a abriu o máximo que pode.

 Mais duro… mais duro ainda… mas a liberação continuou a se esquivar dele. Estava ficando desesperado, suando tanto que o gelo derreteu e formou uma poça embaixo dele. Seus dedos se enterraram nos quadris de Kaia com tanta força que sabia que ela teria hematomas pela manhã.

 Ela gemia, gemia e choramingava. E quando gritou — eu te amo — enquanto se desfazia, quebrando-se em mil pedacinhos e seus músculos internos o apertaram, ele percebeu que era exatamente o que estava esperando, o que necessitava. Sua declaração.

 Ele também explodiu, seu corpo praticamente arrancando a semente dele, disparando jatos quentes dentro dela. As luzes brilharam por trás das suas pálpebras, seu rugido ecoando pela noite.

 Quando ele se esvaziou um longo tempo depois, desmoronou ao lado dela. Ela estava tremendo. Não de frio, mas sim pelo esforço. Ele estava muito fraco para sorrir e socar no peito com força pelo orgulho. Sua mulher — sua esposa — estava saciada.

 — Você quis dizer isso? — Ele conseguiu perguntar, o sono o arrastando tão certamente quanto fazia com ela.

Ela não fingiu entender mal.

— Sim. — Sua voz era delicada, esgotada.

— Já estava na maldita hora.

— Oh, só cale a boca e deite-se comigo.

Ok, então não estava muito fraco para sorrir afinal.

— Você vai dormir? De verdade?

— Tente me impedir. — Ela bocejou e enterrou sua cabeça na covinha do seu pescoço.

— Confia em mim para proteger você?

Vários minutos se arrastaram em silêncio.

— Kaia?

— O que? — murmurou sonolenta.

— Você. Confia em mim. Para te proteger?

— É claro. — ela disse. Seus olhos estavam fechados e em poucos minutos relaxou contra ele, completamente perdida para o doce beijo do torpor.

“É claro”, ela disse. Como se não o fizesse suar pela resposta. Trazendo as suas reservas de força ele a levou de volta para a tenda, onde ele a abraçou bem apertado a noite toda, jurando aos Deuses que nunca a deixaria ir.

 

 

Kaia ainda estava se recuperando dois dias depois pela absoluta possessão do seu corpo por Strider, quando eles alcançaram suas irmãs. Elas tinham suas cabeças curvadas sobre suas armas, afiando as pontas e se preparando para a terceira competição.

 Ela e Strider não fizeram amor novamente e não falaram dos sentimentos de um pelo outro. Uma cortesia de sua parte, ela sabia. Ela tinha que permanecer enfocada, seu olho no prêmio. Infelizmente, não foi capaz de sequestrar e torturar Juliette para obter informações sobre a Haste de Partir. Pelo que Strider disse a ela, aparentemente era tudo muito real e não a fraude que esperavam que fosse.

 E também não havia tempo para fazê-lo agora. A jornada do Alasca até Roma comeu sua chance. Embora Juliette estava agora ao seu alcance, o jogo começaria em meia hora.

 Bianka notou Kaia quando ergueu seu olhar para procurar a pedra de amolar.

— Kye! — sorrindo se pôs de pé, sua arma caindo estreptosamente no chão ao lado do balde de água. Correu e se juntou a Kaia num abraço de boas vindas. — Quase matei Strider quando se recusou a me deixar ver você, mas sabia que desaprovaria se ele tivesse sequer um arranhão. — Um longo suspiro sentido. — Felizmente ele esteve me enviando diariamente mensagens de texto, então sabia que você estava se recuperando. Mas vendo você…

 Lágrimas quentes arderam em seus olhos.

— Sim, eu sei. Precisava ver você, também. — Sabia que Strider não contou a suas irmãs essa coisa do fogo, e nem aos seus homens que testemunharam os efeitos secundários. Não que Strider explicasse coisas a eles.

Ele deixou a decisão nas mãos dela.

 Contar ou não contar? Se o fizesse suas irmãs não iriam querer que lutasse. Como fazem de qualquer maneira? Ignorou a dura voz interior. A relutância delas seria prudente. Ela poderia ou não ser capaz de começar outro fogo. Se as Harpias a irritassem, sim, ela provavelmente o faria. Como os Caçadores, elas morreriam. E isso estava bem, até esperado. Eram encorajadas a usar suas habilidades durante esse tipo de competição, explorando todas as vantagens possíveis.

 Mas se perdesse o controle, machucaria sua família também?

 Desejava ter tempo para praticar, testar os limites do seu lado Phoenix. Emoções fortes eram o gatilho? Ou simplesmente pensar sobre as chamas funcionaria? Mesmo agora o calor se expandia pelas suas veias, pronto para usar.

 Ela teria gostado de perguntar a alguém, mas o único outro Phoenix que conhecia era seu pai, e preferia passar o resto da eternidade se perguntando sobre a verdade que falar com ele um único minuto. Sua maldade, sua absoluta falta de preocupação pelos demais, pelo bem estar de suas próprias filhas… ela estremeceu. Ele não era exatamente material para O Pai do Ano.

 Essa era outra razão para permanecer fora do jogo. Se ela pegasse fogo ou colocasse fogo em outra pessoa, o conhecimento de sua nova habilidade se espalharia. O Queridíssimo Pai poderia vir atrás dela.

 — Droga, garota. Você está com febre? — Bianka estava suando quando se separaram, porém sua gêmea não cortou todo o contato, mantendo seu braço ferido ao redor da cintura de Kaia.

 — Não. — mentiu. — Com calor. E já sei, não tem que dizer. Strider é um homem sortudo.

 — É verdade.

 Anulando uma faísca de culpa antes que pudesse se formar — ela absolutamente odiava mentir para sua gêmea — Kaia relanceou o olhar em torno dela. Taliyah balançou a cabeça em reconhecimento antes de voltar a sua tarefa de afiar suas lâminas. Gwen lhe soprou um beijo carinhoso. Neeka ofereceu a ela um pequeno sorriso e os outros acenaram.

 — Coloque-me em dia. — ela disse.

 Bianka a puxou para frente. A outra mão de Kaia se entrelaçou com a de Strider e permaneceram assim até o último segundo possível. Quando ela e sua gêmea se sentaram no chão da tenda do Time de Kaia, observou Sabin, Lysander e Strider se reunirem em um canto e juntarem suas cabeças, conversando em voz baixa.

 Tentou escutar movendo suas orelhas, mas não pode distinguir as palavras. Tentou ler seus lábios, mas mantinham seus corpos em um ângulo distante dela, não permitindo que desse uma única olhada.

 Ela estava a ponto de se levantar pisando duro, agarrar seu homem pelos ombros e sacudi-lo. Então exigiria que dissesse a ela o que estava acontecendo, o que não queria que ela soubesse.

 Você confia nele. Sabe que nunca a machucaria. E era verdade. Ela confiava. Confiava nele com a sua vida. Obviamente. Caso contrário, nunca teria dormido, realmente dormido, com ele.

 Deuses, foi incrível. Despertar dos sonhos sedutores e sentir seu homem do seu lado. Ela tinha se fechado sobre ele, deleitando-se em sua força, seus braços grossos como uma banda em torno dela. Ainda no sono ela mantinha um punho apertado e suas feições relaxaram, juvenis.

Nunca em sua vida esteve tão contente.

 — Então… o que você acha? Está dentro? — Bianka perguntou, chamando sua atenção.

 Merda. Não ouviu uma só palavra do que sua irmã disse.

— Em que, exatamente? Conte novamente porque sua explicação foi tão pobre que me confundiu.

 Bianka a conhecia muito bem e revirou seus olhos.

 — Você é uma péssima mentirosa.

 Eu sou? Esteve a ponto de perguntar com o queixo levantado. Não me pegou na última.

 — Você está projetando. Continue.

 — Estava te contando como chegamos a Roma, no Coliseu. E pegue isso. Este é o velho Coliseu, exatamente o mesmo que costumava ser — só que diferente.

 Kaia supôs que quando se era tão bonita quanto Bianka, não precisava ser inteligente.

— Bee, querida. Você é tão, tão bela, mas também é altamente demente. Você tem ideia de como essa declaração foi contraditória?

 — Do que você está falando? Eu faria perfeito sentido se realmente pensasse no que eu digo. Agora adivinha o que? O Coliseu está escondido dos olhos dos mortais. Estamos escondidos do olho mortal, num reino em que não precisamos de um portal para acessar. Aqui, mas não aqui.

 — E como controlamos isso?

 — Juliette. De alguma maneira.

 Apenas o nome a fazia trincar os dentes. Juliette armou uma para ela, entregando-a para meros mortais — os inimigos de Strider — a massacrarem. A cadela precisava pagar. Logo. — E?

— E vamos lutar como Gladiadores. É o que estava tentando te dizer antes, se você apenas prestasse atenção. Então de qualquer forma, você é muito boa com as mãos e nosso time precisa de você nesta rodada. Está preparada para isso? Foi gravemente golpeada no Alasca.

 Eles precisavam dela? Quando trouxeram para casa sua primeira vitória sem ela? Ela olhou sua irmã criticamente, procurando qualquer sinal de duplicidade ou apaziguamento. Só havia inocência e uma tranquila convicção naqueles adoráveis olhos de cor âmbar. Só determinação endurecia aqueles lábios vermelhos.

 Nenhum apaziguamento então. Tampouco recriminação pelas suas derrotas anteriores. Bianka acreditava nela.

 Ela poderia acreditar em si mesma?

 Sua nova habilidade poderia machucar suas irmãs sim, mas sem dúvida as ajudaria a obter uma segunda vitória. Uma vitória que Strider precisava dela para alcançar sua sobrevivência.

 Ela olhou para ele de relance. Ainda estava no círculo de seus amigos, mas agora ele estava de frente para ela. Seu cabelo loiro estava despenteado, suas bochechas coradas. Elas sempre estavam coradas quando estava ao seu redor, como se estivesse excitado constantemente. Ela gostava disso.

 Suas pestanas eram tão longas que se curvavam para cima. E uau, eram a moldura perfeita para aqueles perversos olhos azuis. Seus lábios estavam inchados, encantadoramente vermelhos. Eles podiam não ter feito sexo novamente, mas certamente se beijaram. Muito. Em cada oportunidade possível ela sugou sua língua.

 Sem dúvida, ela era viciada nele.

 Intensificou seu estudo. Notou que havia cortes em seus dedos e palmas. Ele suportou as mesmas lesões antes, mas se curaram. Não é? Franziu o cenho, odiando que estivesse ferido de novo. Odiando mais por que não sabia por que ou como. Ela causou o dano?

 O pensamento causou uma câimbra em seu estômago. Ela só, bem, ela o amava condenadamente muito. Ela não soube com certeza até que gritou as palavras, mas fez. Ele era a força personificada. Era diabólico. Divertido e encantador, com uma boca espertinha que ela não podia resistir. Ele a fazia rir. Ele a empurrava para a borda, sabendo que ela poderia suportar. Ele brincava com ela, não a temia. Ele a conhecia, compreendia, às vezes era terno, às vezes duro. Preocupava-se com ela, confiava nela.

 Ele também os casou.

 O conhecimento a chocou como o inferno. Sim, ele pensava que ainda era seu segredinho, mas ela sabia. Ela não estava certa por que ele não confessou, ou até por que ele fez isso, mas era teimosa o suficiente para esperar. E era desonesta o suficiente para provocá-lo até que ele esclarecesse.

 Afinal, ela gostava dos seus métodos.

 Também adorava saber que ela era sua enquanto ele era seu. E foi exatamente assim como ela descobriu isso. Ela sentiu. Ele era uma parte de sua mente, do seu angue, sua alma, seu coração, esta conexão profunda até os ossos, mais forte que qualquer coisa que ela já experimentou.

 Desde que despertou em seus braços, soube que alguma coisa estava diferente entre eles e passou muitas, muitas horas dando voltas ao que poderia ser. Pequenos flashs de memória iam e vinham — o reflexo de uma lâmina, o gotejar vermelho, a pressão da pele de Strider, o sussurro de sua respiração. As palavras: Você é minha e eu sou seu. Somos um. A partir deste momento, somos um.

 Oh, sim. Eles se casaram e ela nunca foi tão feliz. Devia tanto a este homem.

 Observou como ele puxou um pacote de Red Hots do seu bolso traseiro e agitou o conteúdo na sua boca. Ele mastigou, sua mandíbula forte trabalhando. Seu peito se apertou ante a sensualidade dele.

 Ele deve ter sentido seu olhar porque a olhou e lhe deu uma piscada. Novamente seu peito se apertou. Tinha que mantê-lo a salvo. Sem importar o que custasse, tinha que mantê-lo a salvo.

 Tinha que conseguir aquela Haste.

 Ela voltou sua atenção para sua irmã e ergueu o queixo.

— Vou lutar. — disse.

 

Strider se sentou uma vez mais nas arquibancadas para assistir sua mulher — esposa! — competir. Mas o Coliseu Romano estava longe de se parecer com as arquibancadas de Brew City[27], Wisconsin. Esteve aqui uma ou duas vezes, lembrava a ele de travertino[28], tufa, tijolo e mármore, e nunca pensou que veria tais coisas novamente. Pelo menos não em tão perfeitas condições. Como se o tempo não tivesse passado, como se o passado de alguma maneira tivesse se misturado com o presente.

 Havia quatro andares. Os três primeiros ostentavam amplos arcos de entrada para a nobreza, e no quarto, nos fundos, tinham entradas retangulares designadas para o povo. Redes se levantavam da arena para proteger os espectadores.

 E a arena propriamente dita, bem, ele se lembrava dela também. Um piso de madeira manchado com o sangue de milhares cobria a arena completamente, mas este piso poderia ser removido, a terra então se inundava com água para recriar as batalhas navais. Oh, como os Romanos adoravam seus jogos.

 E como as Harpias adoravam seus jogos. As combatentes ocupavam uma das câmaras subterrâneas, esperando serem chamadas. Enquanto isso Juliette falava sem parar sobre o que estava para acontecer. Se alguma vez houve um momento blá, blá, blá, seria este. Ele queria apunhalar seus próprios ouvidos muito mais do que quando as gêmeas cantaram.

— .... o combate ainda mais difícil — ela estava dizendo agora. —, e com duas competições nas nossas costas, esta poderia determinar o líder absoluto.

 Nós sabemos. Os times lutariam entre si, todos ao mesmo tempo, com qualquer arma de sua escolha. Mas só seria permitido uma arma para cada. Entretanto poderiam recolher as armas descartadas enquanto a luta progredia.

 Havia dez combatentes em cada equipe. Isso era bom, exceto que Kaia só tinha sete em seu grupo — incluindo ela. O que significava que todas tinham que entrar. Se é que queriam entrar. Grande surpresa, todas elas quiseram, embora já estivessem em desvantagem.

 Ao seu redor, mulheres estavam aplaudindo.

— Golpeie com força, quebre suas costas, mostre a elas como se faz!

 Kaia quase morreu apenas uns dias atrás e embora ele a manteve alimentada e medicada, ainda não estava em plena forma. Mas ele sabia que não podia pedir para ela se retirar tranquilamente. Seu orgulho era importante para ela, e o que era importante para ela agora era importante para ele.

 Ainda que significasse perder a Haste de Partir.

 Ele sempre poderia roubá-la de quem ganhasse.

 Vencer.

 Sim, sim. Derrota estava no limite. Kaia era uma parte deles agora. Ela era deles, e Strider achava que sua vitória era tão importante para o demônio como para si mesmo. Ele não sabia se experimentaria uma dor lancinante se ela perdesse. Não sentiu da última vez, apesar do desafio que ele aceitou em protegê-la das outras Harpias — e imaginava que era porque havia uma linha tênue entre proteger e castigar para um demônio, e ele ainda podia castigar — mas então, eles não estavam casados. Rezava para que hoje não fosse diferente. De fato sabia que não seria. Ela não perderia. Apesar de sua contínua fraqueza, apesar do fato de que cada um dos membros das equipes iria atacá-la primeiro, ela tinha uma carta na manga.

Não fazia nem cinco minutos ele a segurou nos braços, abraçando bem apertado antes que ela o abandonasse aqui.

 — Algum conselho para ganhar? — ela perguntou.

 — Sim. Faça o que precise fazer para sobreviver.

 — O que é isso? Uau. Você é uma merda dando palavras encorajadoras.

 Ele agarrou seus ombros e deslizou seu olhar por ela.

— Certo, que tal esta? Está tão envolvida emocionalmente nisso, que deixa que essas emoções influenciem cada um dos seus movimentos. Normalmente diria que isso é estúpido, mas gosto das minhas bolas onde estão. Por isso eu só direi que você não pode ignorar seus sentimentos, mas “pode” usá-los.

 — Como? — ela perguntou entre dentes.

 — Bem, parte de você ama as mulheres que você está enfrentando, não importa quanto elas tenham te tratado mal, e você não pode negar.

 Ela nem tentou.

 Ele continuou.

 — Você tem que se lembrar que apesar do amor que sente, elas se voltarão contra você em um instante.

 — Ok.

 — Também que você se distrai facilmente e...

 — Tem mais?

 — Ouça. Enquanto estiver lá embaixo, não pense em mim. Não pense no que estou fazendo ou se estou bem.

 Ela estalou seus dentes pra ele.

 — Você estará procurando pela Haste de Partir. Como eu posso não...

 — “Não pense no que estou fazendo”. Ok? Isso inclui agora, este momento.

 Ela acenou com a cabeça rigidamente.

 — Além do mais, se você não derrotá-las, Kaia, vou matá-las de uma maneira muito mais cruel do que você teria feito. Derrota lançou um desafio para te proteger de outras Harpias antes de eu vir aqui, mas este aqui é todo meu.

 Ela ficou boquiaberta.

 — Aí está. Agora você está bastante motivada para fazer o que precisa ser feito. Então vá e arrase.

 Ao lado dele, Sabin e Lysander se moviam incessantemente, trazendo de volta para o presente. Zacharel ainda não fez sua aparição.

 — Odeio esta merda de Gladiador. — Sabin murmurou.

 — Sim, bem, onde acha que os Romanos aprenderam este tipo de comportamento? — o anjo perguntou.

 Sabin se engasgou por um minuto.

— Você está tentando me dizer que as “Harpias” são responsáveis por isso? Que os Romanos aprenderam com elas?

 — Devo tentar apenas se você estiver carente de inteligência.

Sabin abriu sua boca para lançar uma resposta, mas um trompete soou, sinalizando o começo do terceiro jogo, e o público ficou em silêncio. Um segundo depois várias das portas de ferro gemeram e chiaram ao ser levantadas. As combatentes saíram disparadas, correndo para a arena.

 Strider se endireitou e se concentrou. Várias portas de ferro se abriram. Leões, tigres e ursos — oh, Deus — juntaram-se a corrida. Todos eram agitados, suas bocas espumando.

Ele procurou… procurou… lá. Um vislumbre daquele brilhante cabelo vermelho, preso em um rabo-de-cavalo. Kaia estava de vermelho como o resto do seu time. Diferente das outras, ela não levava uma arma. Ele franziu o cenho.

 As mulheres finalmente alcançaram o centro da arena, e sem pausa a batalha começou num enredo de dentes, garras e metal. Grunhidos e guinchos imediatamente abundaram. O sangue se espalhou.

Porra, Kaia! Ele xingou ao compreender. Ela usaria o fogo — seu novo e ainda sem testar, fogo — e não queria que ninguém a acusasse de usar duas armas.

 Se queimasse a uma de suas companheiras Harpias até a morte, ela se odiaria depois. Ou pior, se ela não pudesse convocar o fogo, elas a matariam e ele as odiaria, puniria, destruiria como prometeu. Por ele, pela Haste, ela decidiu se arriscar. Droga!

 Ele pensou que a motivou para a vitória. Ele só a incitou à loucura.

— Que diabos ela está fazendo com as mãos vazias? — Sabin perguntou em tom de conversa. — Até Gwen tem uma arma.

Ele não respondeu, não podia. Havia um nó na sua garganta, cortando o som, o ar. Os outros times se viraram para ela, exatamente como ele esperava. O que não esperava — os animais foram em sua direção como se ela fosse um alvo e ele podia adivinhar o por quê. Alguém os levou ao frenesi usando o aroma de Kaia.

 O que provavelmente teriam conseguido do seu casaco roubado.

 Em segundos Strider estava de pé abrindo caminho através da multidão. Até que algo duro golpeou suas costas, derrubando-o. Não houve tempo de se segurar. Sua fronte golpeou uma pedra, uma dor aguda explodindo pela sua cabeça. O oxigênio abandonou seus pulmões. Sua visão ficou turva.

 Ninguém o impediu de se sacudir se pondo de pé, correndo pra frente sem se preocupar em olhar pra trás para ver quem tentou detê-lo.

 Vencer… ela. Derrota disse.

 Sim. Eu a ganharei, salvarei. Eu farei.

Através de uma névoa, ele se centrou em Kaia. Ela estava correndo em torno da arena, competindo com os animais que estavam espumando pela boca. As bestas estavam todas muito felizes por se converter em seus novos brinquedos enquanto a seguiam.

 O peso volumoso golpeou nele uma segunda vez, lançando-o de volta ao chão como uma boneca de trapo. Rugindo Strider deu meia volta, pretendendo cometer um pequeno assassinato antes de retomar sua jornada.

Vencer. Um novo desafio.

Sim, ele pensou novamente. Ganharei este aqui, também.

— Sua mulher será desclassificada se você a ajudar. — Lazarus saiu de cima dele e se levantou. Estava desarmado, sem camisa, as calças desabotoadas e estava claro que as colocou apressadamente. A corrente negra tatuada no pescoço estava pulsando, deslizando-se ao redor do seu pescoço como uma serpente, os elos de tinta realmente retinindo juntos.

Strider levantou se balançando.

— Prefiro que seja desclassificada que assassinada. Agora, então, você e eu temos um pequeno negócio a atender antes que eu vá.

 Lazarus arqueou uma sobrancelha.

— Boa sorte com isso.

Vencer.

Estou nisso. Estreitando os olhos ele avançou, só para se deter quando viu Sabin e Lysander se dirigindo para ele como balas de canhão, chamando seu nome. Estavam olhando para ele, mas sem vê-lo realmente. De fato, eles o alcançaram antes que pudesse saltar pra fora do caminho.

Chocado, ele olhou pra si mesmo. Eles o atravessaram como se ele não fosse mais consistente que a névoa.

 — Ninguém pode nos ver. — Lazarus disse tranquilamente. — Nem mesmo os anjos.

Pontos vermelhos nublaram sua vista.

— O que você fez comigo?

Gritos e assobios da multidão fizeram com que ele se virasse e olhasse pra baixo. Os combatentes se reduziram de alguma forma, mas a maior parte do Time de Kaia ainda lutava. Incluindo a própria Kaia.

Estava coberta de sangue e ele não estava certo se era dela ou das outras, mas seus movimentos não diminuíram. Ela ainda estava dando socos, chutes e lançando mulheres para... não, não os animais. Para Bianka, que acabava com elas com uma espada longa e curva. Os animais agora estavam completamente alimentados e satisfeitos, sentados ao lado e assistindo o resto da batalha com olhos sonolentos.

O pânico dentro dele aliviou. Kaia não recorreu ao fogo. Ou talvez, como ele supôs, ela não sabia como convocá-lo. Mas de qualquer forma, ela estava mandando ver. Muito melhor, os times não eram capazes de convergir em massa para ela. Ela se movia entre elas muito depressa.

— Tenho apenas alguns minutos. — Lazarus disse, agora ao seu lado. — Se Juliette notar que não estou ali…

Vencer.

Lembrando do desafio que ele aceitou, Strider disse.

— Eu sinto muito, mas tenho que fazer isso. — Rápido como um raio, lançou seu próprio soco, juntas rangendo no nariz do guerreiro. Cartilagem estalou. Sangue jorrou de suas narinas.

Derrota suspirou com satisfação, despejando prazer pelas suas veias.

Lazarus se endireitou e enxugou o sangue com as costas da mão.

— Duvido que eu seja a primeira pessoa a dizer o quanto você é irritante.

— Você poderia ser o milésimo. — ele percorreu o resto do caminho através do balcão até que estava perto da beirada. O guerreiro o seguiu, colocando-se a seu lado. — Então como estamos aqui, mas não aqui?

 — Juliette foi forçada a me conceder cada vez mais poderes para que os jogos se realizassem como ela deseja.

 — Ela pode te dar poderes? Assim? — Ele estalou seus dedos.

Ele concordou com um gesto de cabeça duro.

— Tais como?

— A habilidade de lançar ilusões que ninguém pode penetrar. — Outro aceno de cabeça, e seu entorno mudou em um instante.

Strider piscou, num momento vendo as arquibancadas onde estiveram, no próximo vendo como eram na realidade: em ruínas, corroídas pelo tempo e os elementos nocivos. Sem falar dos humanos fazendo um tour pelas seções designadas, tirando fotos. Então depois de outra piscada, as arquibancadas estavam novíssimas novamente.

— Além da habilidade de esconder nosso mundo imortal do mortal? — Strider perguntou.

— Sim. Isto também.

— E você está compartilhando isso comigo por que… — por que sim, Strider sabia malditamente bem que isto podia ser um truque. Que o bastardo poderia querer acalmá-lo numa falsa sensação de segurança antes de atacar. Inferno, distraído como estava, Lazarus poderia atacá-lo a qualquer momento sem muita resistência.

 — Sou um escravo e não desejo ser mais.

Ele podia entender, mas…

— Eu não confio em você. Não vou confiar em você. — observou enquanto Kaia e Bianka uniam as mãos. Bianka a rodopiou, as pernas de Kaia batendo nas três mulheres que as rodeavam. Quando sua gêmea a soltou, ela foi voando como uma bola de boliche, derrubando-as facilmente.

 Que mulher.

Ele tinha um presente para ela e estava queimando um buraco no seu bolso. Por que ainda não entregou para ela? Ele não sabia. Não tinha certeza se ela gostaria. Era um tipo de vergonha que ele tinha. Pra ser honesto, era feio como o inferno, e provava o quanto ele se tornou um marica desde que a conheceu.

Só por isso ela o amaria, ele pensou sorrindo.

— O que? — Lazarus exigiu.

— Kaia. — foi tudo que disse.

— Sim, ela é forte. Ela também é honrada, a sua maneira. Não tem ideia do quanto eu te invejo.

— Desde que seja tudo o que faça, está bem. Talvez.

— O que nos trás de volta a razão pela qual estamos aqui. Não preciso que confie em mim. — Lazarus disse, seu tom de voz cada vez mais urgente. — Preciso que você me ouça. Você sabe o que a Haste de Partir pode fazer?

 Isso captou sua atenção completamente. Ele agarrou a ferro da sacada firmemente, as juntas perdendo a cor.

— Diga.

 — A Haste rouba aos vivos. Suas almas, suas habilidades, suas forças vitais, o que seja. Despoja tudo de um corpo, prendendo o que rouba dentro de si.

 — Reduzindo a nada além de uma concha vazia. — Strider grasnou quando começou a compreender. Isso fazia sentido. Assustador, um sentido assustador.

 — Sim. Mas quando se empunha a Haste, não pode tomar os poderes dentro de si mesmo. Você tem que dá-lo a outra pessoa. Ou se você o quiser pra si, tem que confiar a Haste mais alguém e fazer com que essa pessoa te conceda os poderes.

 — E Juliette fez isso para você. Ela te concedeu os poderes. — Como a coisa da ilusão que ele mencionou.

 — Sim. — o guerreiro repetiu. — Nada que importe, nada que possa feri-la, só pequenas coisas que devo usar para impressionar suas irmãs.

 — Como estes poderes as impressionam?

 — Tem que perguntar? — A ofensa encheu a voz do homenzarrão. — Os jogos nunca se celebraram em lugares tão exóticos.

 — Como eu saberia? Nunca estive nos jogos antes.

 Lazarus bufou.

 — Sua ignorância está perdoada, então. Por um triz.

 — Obrigado. — ele respondeu secamente. — Eu me sinto muito melhor.

 — Como disse, é irritante.

 — Então como Juliette conseguiu colocar suas mãos na Haste?

 — Como o resto de sua raça, ela é uma mercenária. Ela fará qualquer coisa se o preço for justo, e a esposa de Cronus usou essa informação em seu benefício. Soube que Juliette esteve me procurando durante séculos. E ela, por sua vez, esteve procurando uma maneira de assegurar a Haste de Partir para ela mesma e seus Caçadores. E por isso, há alguns meses, a rainha prometeu me entregar se Juliette roubasse a Haste da minha mãe, a Gorgon encarregada de sua proteção. Juliette aproveitou a oportunidade. Mas como a bruxa gananciosa que ela é, quando soube exatamente o que a Haste podia fazer, ela decidiu que a queria para si mesma e a mim. Então assassinou minha mãe com a intenção de fazer uma réplica da Haste e trocar a falsa por mim. Mas Rhea e a maior parte do seu exército desapareceram logo antes de se reunirem, permitindo que Juliette simplesmente me tirasse da minha cela, sem necessidade de negociar nada. Sem resistência.

 — Por que você estava preso?

 Houve uma faísca de vergonha em seus olhos.

— Hera, a antiga Deusa Rainha, apreciava manter uma coleção de homens. Eu ouvi que meu pai, que estava dormindo o sono dos mortos, era mantido ali, e então eu permiti minha própria captura na esperança que pudesse de alguma maneira salvá-lo. Mas nunca o encontrei, e depois não pude escapar.

O sono dos mortos. Isso significava que Typhon estava vivo, consciente, mas incapaz de se levantar da cama. Então foi isso o que aconteceu com a criatura.

— Eu sinto muito. — Strider se encontrou dizendo. Ele tinha suas próprias histórias tristes, mas nada comparado ao sofrimento de Lazarus.

Ele sabia que a Haste de Partir seria destrutiva nas mãos erradas, mas não sabia o quanto ela realmente poderia ser perigosa. E agora também sabia por que os Caçadores procuraram Kaia e suas irmãs. Com o desaparecimento de Rhea, Juliette tomou mais que a Haste de Partir. Tomou o controle dos Caçadores.

— O que aconteceu com Galen, o braço direito de Rhea? — certamente ele teria algo a dizer sobre isso.

— Galen é o guardião da Esperança? — Quando Strider assentiu, ele disse. — O guerreiro fugiu pouco antes que Juliette chegasse. Não tenho certeza do seu destino.

Então Galen estava lá fora. Em algum lugar.

— E onde a Haste está agora?

— Eu a tenho.

Num turbilhão de movimento determinado, Strider o encarou. A urgência anterior do querreiro finalmente o contagiou.

— Onde está?

Lazarus parecia estar chateado.

— Agora tenho a habilidade de esconder objetos no espaço ao meu redor. Está aqui. Aqui.

Com os olhos arregalados Strider olhou ao seu redor, então deu umas palmadas no ar em volta dos ombros do guerreiro. Ele só encontrou o calor do corpo, mas sabia. Estava ali. Tão perto que provavelmente a roçou durante sua conversa. Seu coração martelava contra suas costelas.

— Me entregue. Agora. — disse. Então se lembrou do que Kaia disse para ele não faz tanto tempo e se deteve.

 Se ele roubasse a Haste, ela seria humilhada na frente de sua gente. Exceto que enquanto estava desmaiada e doente, contorcendo-se de dor pelos seus ferimentos, balbuciou sobre ela mesma roubar. Então suspeitou que ela estava planejado fazer isso. Por ele. Deveria se afastar — por ela — mas não podia. Muitas vidas estavam em jogo. Encontraria uma maneira de recompensá-la, disse a si mesmo. Ele o faria.

 Os olhos negros de Lazarus ficaram vazios.

— Eu… não posso.

— Vá pro inferno. Tire isso da porra do ar. Como fez na primeira noite durante a orientação.

— Não posso. — Lazarus repetiu.

— Por quê? — Sua voz chicoteou como um raio.

— Parte da minha alma está presa dentro da Haste. Fisicamente não posso fazer nada que Juliette me proibiu fazer. Eu não posso fazer, não importa quanto eu tente. Acredite em mim, já tentei. Esta é a única razão por que ela me confiou o cuidado da Haste. E então eu morreria antes de permitir que a Haste me fosse arrebatada.

Strider retirou um punhal da bainha no tornozelo.

— Eu não quero lutar com você.

Um queixo teimoso se levantou, lembrando o de Kaia.

— E eu não desejo lutar com você. Eu considerei isto tantas vezes que perdi a conta, e a solução sempre é a mesma. Juliette controla a Haste, e portanto me controla. Ela nunca se desfaria voluntariamente de qualquer um. Sou seu consorte, e como estou certo que você aprendeu, as Harpias fazem o que for necessário para manter seus consortes ao seu lado. Ainda que o impossível aconteça e eu consiga escapar dela uma segunda vez, ela nunca deixaria de me procurar. Decidi que eu prefiro morrer que ajudá-la de qualquer maneira. Eu prefiro morrer que fazê-la feliz. Uma decisão que você deveria apoiar, já que ela quer que eu seduza e machuque a sua mulher.

 O cara definitivamente não faria a coisa de seduzir e machucar.

 — Só para esclarecer. Você está dizendo…

 — Estou dizendo que fui usado antes como um escravo sexual. Não serei novamente. Estou dizendo que sua mulher me libertou uma vez e eu a machuquei por isso. Não a machucarei novamente. Estou dizendo que Juliette matou minha mãe. Agora eu a matarei em seus sonhos.

 O choque bateu nele.

 — Você...

 — Quero que me mate. Sim. Mais que a destruição de Juliette, não posso viver mais como um escravo. Passei muitos séculos dentro de uma cela, e agora se supõe que tenho que passar o resto da eternidade com uma mulher que eu desprezo? Não! Anseio a liberdade, mesmo que só possa encontrá-la na morte. — Lazarus caiu de joelhos e inclinou sua cabeça de lado, expondo a longitude de seu pescoço vulnerável. — Faça antes que eu mude de ideia.

 Naquele momento Strider percebeu que ele nunca admirou tanto a um ser. O auto sacrifício nunca foi uma grande parte de sua vida, mas aqui estava Lazarus, renunciando a tudo. Não por amor, mas por vingança, e aquele motivo era um inferno de muito melhor.

 Se alguém merecia uma segunda chance de viver uma vida longa e feliz, ele pensou de repente, era este homem.

 Strider fez muitas coisas desprezíveis em nome da vitória, fez até pior como consequência da guerra com os Caçadores, mas isto — derrubar um bom homem — superava tudo. Em outra vida, poderiam ter sido amigos.

 — A morte não tem que ser o fim. — disse para se sentir melhor.

 Viu uma faísca de arrependimento na expressão do outro homem.

— Para mim será. Como vocês, os Senhores, estariam incompletos sem os seus demônios, eu estou incompleto sem a parte da minha alma que está presa dentro da Haste. Quando eu morrer, o melhor que posso esperar é que essa parte de mim murchará e morrerá, também. Pelo que fui levado a entender, é improvável esperar que esses dois pedaços da minha alma se unam numa jornada para o Céu.

 — Então basicamente o que está dizendo é que não sabe o que acontecerá com você?

 Uma piscada de desconcerto.

— É isso que precisa acreditar para realizar esse ato? Que há uma chance que eu seja feliz na vida após a morte? Porque devo admitir que estou confuso com sua relutância em acabar com a minha vida. Esperava mais de um temível Senhor do Submundo. Não me faça desafiar você para isto, Senhor da Derrota. Só faça. Liberte-me.

 Ele levantou mais o punhal e observou o batimento do seu pulso. Seu pulso estremeceu, mas se manteve exatamente onde estava.

 Porra. Ele não podia fazer isso. Ele não poderia acabar com esta criatura para sempre.

 Lazarus deve ter sentido sua determinação diminuir.

— Se eu viver, acharei um modo de meter sua mulher na minha cama. Se Juliette viver, matará sua mulher quando eu terminar com ela. E isso só se ela se sentir generosa, o que nunca foi. O plano agora, pelo que eu sei, é terminar os jogos humilhando sua mulher com constantes fracassos. E então, quando ela se cansar de ridicularizá-la, Juliette tomará o livre arbítrio de Kaia, exatamente como fez comigo. Kaia será incapaz de se impedir de se juntar aos Caçadores sob o comando de Juliette. Oh, não te contei essa parte? Juliette forçará Kaia a destruir você e tudo que você ama. Você entende o que isso quer dizer? Você estará em guerra com sua mulher.

 Só assim a decisão de agir se solidificou. Não porque Kaia viria atrás dele, mas simplesmente porque a felicidade de Kaia era tudo para ele, e ela também merecia uma segunda chance.

 Não deixaria que Juliette a humilhasse. Ele não deixaria a cadela brincar com sua mente, suas emoções. E permitir que Juliette continuasse se metendo com Lazarus, um cara que era nobre o suficiente para saltar do barco para salvar outra pessoa? Um cara que foi ferido o suficiente? Não iria acontecer.

 — Obrigado pelo seu sacrifício. Não será em vão. Juliette será punida. — ele jurou. — Você tem minha palavra.

 — Obrigado… amigo.

 Strider golpeou.

 

Uns minutos antes…

Seu Time poderia ter começado numa situação de desvantagem, pensou Kaia ofegando pelo esforço, mas certamente tinham igualado as possibilidades. E rapidamente, também. Nesse instante, só os membros das Eagleshields e Skyhawks ainda estavam conscientes.

 A princípio, insultos foram lançados nela. “Fraca.” “Estúpida.” “Cadela.” Pela primeira vez, elas não a distraíram. Talvez porque estivesse bloqueada com um único pensamento: salvar Strider da dor.

 O homem que odiava ser desafiado, desafiou a si mesmo. Por ela. Se abrigasse qualquer dúvida sobre o seu amor, isso a teria convencido.

 Tinha que ganhar. Por ele. Que ameaçou matar qualquer um que ela não derrotasse, mas sabia que ele não seguiria em frente com aquilo. Ele a amava demais para ferir um membro de sua raça. Então se ela falhasse, e logo depois ele falhasse em cumprir o castigo, ele experimentaria duas vezes a dor?

 Vencer, vencer, vencer.

 Oh, sim. Sua estratégia? Golpear e correr. Ela não deixou se envolver com ninguém. Bem, não mais do que o necessário para esmurrar uma vez — ok, às vezes duas. Mas também foi golpeada, e logo seguiu adiante sem se deixar ser cercada. Quando mais de uma Harpia convergia para ela, simplesmente se afastava do seu caminho e as deixou se chocar uma com a outra. Isso, é claro, enviou-as a uma luta particular, efetivamente fazendo o trabalho para ela.

 Estavam determinadas a acabar com ela, mas seria ela que acabaria com elas. O justo, meditou, dando a volta para enfrentar sua próxima oponente. Quando viu a Harpia, sua antecipação murchou.

 Sua mãe.

 Kaia ficou com a garganta seca. Pela primeira vez neste round, faíscas de calor acenderam dentro dela. Ela foi tão cuidadosa.

 Tabitha soltou o corpo imóvel que segurava pelo cabelo e enfrentou sua filha esquecida. Ao redor delas, a batalha continuava. Entretanto Bianka notou o que estava acontecendo e alertou as outras. Logo o Time de Kaia estava movendo o resto das mulheres para o exterior, dando a Kaia e sua mãe um espaço aberto.

 — Finalmente, a filha que uma vez passei uma manhã inteira elogiando, dizendo aos meus adversários que um dia seria ainda mais forte do que eu, só para descobrir que você quase arruinou a todas nós. — disse Tabitha. Sua antecipação era palpável. — Finalmente será punida por isso. Colocarei você em seu lugar pela humilhação que me causou.

 Ela passou uma manhã inteira “elogiando” Kaia? Afirmou que Kaia seria mais forte? Não se abrande. É isso o que ela quer.

 — E onde é o meu lugar? — Ela tinha que ser fria. Esta luta era necessária, e levou séculos se preparando. Use o poder, não o fogo.

 Um dos seus ombros aparentemente delicados se ergueram em um dar de ombros.

— Aos meus pés. É claro.

 Um tempo atrás isso teria destruído Kaia. Hoje, porém, só experimentou uma suave punhalada. Ela era amada, e por um homem que não amava facilmente. Ele a considerava digna. Isso era suficiente.

— Você pode tentar.

— Ah, farei mais do que isso.

 Conversa, conversa, conversa. Kaia acenou com seus dedos, o fogo retrocedendo.

— Vamos simplesmente ficar aqui ou vamos fazer isto?

 Surpreendentemente, Tabitha permaneceu onde estava e curvou uma sobrancelha escura.

— Eu darei a você cinco segundos para escapar, uma chance que nunca ofereci a outro. Pelos velhos tempos, você poderia dizer. E Kaia, esta será a única vantagem que darei a você. Depois disto, vou tomar sua cabeça. — Ela lançou um punhal no ar. Um punhal já coberto de sangue.

 — Um. — disse Kaia.

 Se não estivesse enganada — e ela tinha que estar enganada — orgulho cintilou nos olhos âmbar de sua mãe.

 — Você está desarmada. Realmente espera ganhar?

 — Dois.

 Outro cintilar.

— Tentando impressionar seu homem? Pena que ele não esteja ali em cima. Ele desapareceu vários minutos atrás.

Nenhuma reação. Ela não cairia nesse tipo de tática. Não seria distraída do seu objetivo.

— Três.

 Os cantos da boca de Tabitha se arquearam.

— Lembra quando você era uma menina e passei horas treinando com você? Eu te lancei no chão todas as vezes.

 Nenhuma maldita reação.

 — Quatro.

 — Certo. Sem mais conversa. — Tabitha passeou seu olhar na multidão. — Ninguém deve nos interromper. Está claro? — Com isso ela assumiu uma posição de batalha, suas pernas separadas, seus joelhos flexionados e seus braços em riste. — Só você e eu agora, filha.

 Seu coração falhou uma batida.

— Cinco.

 Voaram uma para a outra.

 Tabitha não ganhou o nome de “Maligna” por nada, e cortou Kaia no momento em que estiveram a uma curta distância. Estava muito perto dela para evitar ser golpeada e Kaia sabia disso, xingando a si mesma por esperar que sua mãe tentasse levá-la para o chão primeiro. Então ela fez a única coisa que podia. Ergueu seus braços, permitindo que a lâmina cortasse seus antebraços em vez do seu pescoço ou o peito. À medida que a dor aguda a atravessou e a pele se abriu, sua mãe golpeou novamente, rápida como um raio, apontando para seu estômago desta vez.

 Kaia contra-atacou. Ela pegou a mão de Tabitha no meio do caminho, agarrando seu pulso no seu cotovelo e torcendo pra cima, usando o impulso a seu favor. Quando seus braços nivelaram com seus ombros, ela apertou o pulso de Tabitha e a lâmina contra ela mesma e esmurrou sua mãe na têmpora com sua mão livre. Ela poderia ter usado a palma da outra mão para golpear o punhal e enviá-lo voando, mas era melhor atacar agora, enquanto tinha chance, do que tentar tirar a arma da sua mãe.

 Por que lutar como se pudessem fazê-lo eternamente quando ela poderia fazer algo para acabar com as coisas agora?

 Tabitha tropeçou com o impacto e vertiginosamente se deixou cair de joelhos. É claro, ela recuperou sua posição nos poucos segundos que Kaia levou encurtando a distância entre elas. Antes que pudesse golpeá-la, Tabitha virou, evitando o contato. Então, num piscar de olhos, Kaia foi atingida por trás. No crânio. Ela cambaleou, pensando rápido. Conhecendo sua mãe como conhecia, tinha certeza que a mulher voaria nela, tentaria empurrá-la para o chão para cortar seu pescoço, enquanto seu peso quebraria suas asas. Só havia uma maneira de combater isto. Kaia usou aqueles passos surpreendentes para dar um impulso e uma cambalhota.

 Debaixo dela, em menos que num piscar de olhos, viu o topo da cabeça escura de Tabitha. Viu que ela tinha razão. Viu Tabitha parar, percebendo que não venceria tão facilmente. Então Kaia aterrissou e chutou, apontando para o rim de sua mãe. Ponto anotado.

 Grunhindo, Tabitha caiu de joelhos. Kaia chutou novamente — sem piedade — mirando nas asas trêmulas. Bum. O corpo de sua mãe foi lançado adiante, a cartilagem da sua asa direita rompendo com o impacto. Novamente, a ação inteira aconteceu tão rápido, que quem quer que as olhasse teria perdido isso se piscasse.

 Isso deveria ter freado sua mãe, mas Tabitha tinha mais ou menos um milhão de anos diante dela e lutou com uma asa quebrada antes. Aparentemente insensível para a dor que devia estar sentindo, a mulher rolou, levantou e girou.

 — Isso é tudo que você tem, bebê? — Tabitha sorria, mas havia sangue nos seus dentes.

Fria. Impiedosa.

— Vamos descobrir.

 Mais uma vez se lançaram uma contra a outra, encontrando-se no meio. Houve uma rajada de socos e bloqueios. Fria, fique fria. Com cada golpe do braço direito de sua mãe, o punhal que ela segurava se movia para a jugular de Kaia. Ela foi cortada algumas vezes, mas a lâmina nunca se afundava o bastante para fazer muito dano. E não porque sua mãe não tentasse! Kaia tinha habilidades que nem ela conhecia.

 Tabitha conseguiu com a sua cabeça empurrar a de Kaia para trás. Ela se conteve — frio, frio, tão frio, esmagando qualquer novo faiscar de fogo que tentasse brotar nela — até que tropeço em um corpo inconsciente. Foi pra baixo, pra baixo e caiu. Tabitha estava sobre ela num instante.

 Quando o punhal formou um arco para ela, sabia que só havia uma maneira de salvar o seu pescoço. E sua vida. Aquele punhal precisava de um alvo. Ela encontrou o metal com a palma da sua mão, permitindo que a ponta se cravasse totalmente na carne, entrando de um lado e saindo do outro. Doía como uma filha da puta, mas valia totalmente a pena. Mesmo que seus ossos estivessem estilhaçados, o punhal estava preso entre os pedaços e Tabitha recuou com uma mão vazia.

 Isso não a deteve. Punho após punho golpeou o rosto de Kaia tão rapidamente que ela não podia evitá-los, e foi golpeada quase até a inconsciência. Ainda assim permaneceu fria e finalmente juntou forças para rolar para trás, sobre as omoplatas, arrastando sua mãe pelo estômago e permitindo a Kaia balançar suas pernas.

 Trancou seus tornozelos ao redor do pescoço de Tabitha e puxou para baixo. A mulher caiu de costas e perdeu uma golfada de oxigênio. Ou teria, se Kaia não tivesse apoiado os saltos das suas botas na garganta da sua mãe, esmagando sua traquéia e impedindo o ar de escapar.

 Sem uma pausa, Kaia se levantou, seu campo de visão era uma merda enquanto sangue gotejava dos seus olhos inchados. Acabe com isso. Com todas as suas forças, ela arrancou o punhal da sua palma — e porra, se não doeu mais saindo do que entrando! — então lançou a arma pra fora do círculo. Agora ambas estavam desarmadas.

 Ela deu um passo adiante, esperando estar sobre sua mãe antes que a guerreira experiente tivesse tempo para se curar ou preparar uma estratégia. Não funcionou para ela. Tabitha estava de pé num instante e voltaram a se enfrentar pela terceira vez, circulando um a outra.

 — Bravo para você. — disse Tabitha asperamente, sua voz entrecortada graças a sua traquéia em processo de cura. — Esperava que você caísse muito antes.

 — Isto é porque pensa muito bem de si mesma e muito pouco dos que te rodeiam.

 — Por uma boa razão. — disse sem emoção.

 Eu a farei sentir algo. Kaia lambeu seus lábios, que tinham gosto de cobre.

— O Prêmio de Mãe do Ano vai para Tabitha, a Maligna. Ou não. Mas não se sinta mal. Também o concedo a meu pai.

 Tabitha se acalmou piscando, as pálpebras escondendo e revelando angústia.

— Eu sou uma boa mãe.

 Uh, o que? Isso atingiu um nervo exposto?

— Se por “boa” quer dizer que é a pior do mundo, então sim, você está no topo da lista.

 Os olhos âmbar se estreitaram, desaparecendo a angústia.

— Quando você estiver morta, outra Harpia tomará posse do seu homem. Você sabe disso, não é? E como sua conquistadora, terei os direitos em primeiro lugar.

Ai. Indo para a jugular com palavras agora também, tentando provocar uma resposta emocional. Como Strider disse, Kaia era toda emoção. Ela podia sentir o fogo voltando a vida dentro dela, aquecendo… aquecendo…

 Ela poderia liberar as chamas e acabar com tudo agora. Elas lutaram. Não haveria nenhum pranto asqueroso agora. Kaia se conteve, mas embora não houvesse amor entre mãe e filha, não queria queimar a mulher até a morte.

 Porém o que ela queria não importava. Não agora. Faça o que precise fazer para sobreviver, Strider disse a ela.

 Estava na hora.

 Finalmente ela abriu sua mente para o calor, dando as boas-vindas a isso, deixando crescer, expandir, propagar — consumir.

 Mais quente… mais quente… não sabia o que esperar. Na última vez a mudança chegou tão inesperadamente que não teve um segundo para parar e pensar sobre o que estava acontecendo. O que faria se as chamas se recusassem a vir?

 O choque nublou a expressão de sua mãe. Houve um rugido nos ouvidos de Kaia, seu corpo mais quente, mais quente, então tudo que pode ver foi uma névoa azul celeste. Em menos de uma pulsação do coração, as chamas brotaram pelos poros, capturando cada centímetro dela em um inferno furioso. Até suas roupas queimaram.

 — Sinto muito sobre isso, mãe. — ela disse. Ela saltou, diminuindo a distância entre elas. Contato. Elas caíram no chão. As chamas saltaram de Kaia para Tabitha. Ela parou esperando.

 Onde estavam os gritos de sua mãe?

 — Você realmente acha que teria dormido com um Phoenix se não estivesse protegida contra o seu fogo? Mas estou impressionada. Você me enganou. Não fazia ideia que você era capaz disso.

 — Eu... eu... — não tinha nenhuma resposta. Estava muito atordoada.

 Tabitha continuou.

— Eu não posso convocar as chamas, mas posso resistir a elas. Então, a luta continua.

 Uma vez mais rolou Kaia de costas e a esmurrou incontáveis vezes. Ela permitiu, mais pelo seu próprio assombro do que por uma incapacidade de se defender de sua mãe.

 Quando seus sentidos cristalizaram de volta se enfocando, parou de tentar proteger seu rosto e pescoço. Só havia uma maneira de acabar com isso.

 Os socos continuaram descendo. Quando uma dor aguda explodiu por ela, sua visão logo ficou borrada, sua garganta esmagou — e sabendo que as garras seriam as próximas a vir, e com elas, perderia a cabeça — o calor foi substituído de novo por uma fria determinação.

 Faça o que for preciso.

 Kaia se arqueou, ainda recebendo golpes. Sua mãe não suspeitava de nada, muito perdida no ritmo de seus punhos, esperando que Kaia deslizasse para a inconsciência a qualquer momento. Kaia alcançou as costas de sua mãe e rasgou. Um grito agudo ecoou pelo ar enquanto sangue quente cobria as suas mãos. Aqueles punhos finalmente deixaram de chover. O peso foi tirado de seus ombros.

 Kaia levou as mãos à boca e lambeu. Qualquer coisa para sobreviver, disse a si mesma novamente. Sangue, qualquer sangue, era remédio e ela precisava se curar. A força vital de sua mãe deslizou pela sua maltratada garganta abaixo e no seu estômago. O efeito não era tão poderoso como quando ela bebia de Strider, mas sua visão clareou um pouco e ela se sentou totalmente erguida.

 Sua mãe estava a uns metros de distância, inconsciente e nua pelas chamas. Ela poderia ter resistido com uma asa quebrada, mas não a uma perda total delas. Suas costas eram uma bagunça, suas asas se foram completamente. O peito de Kaia se apertou. Era uma pena que sua inimizade chegou a isto, o orgulho dela ganhou.

 Olhou ao seu redor. O resto da luta terminou também. Para sua decepção, viu que as Eagleshields derrotaram suas irmãs, que por sua vez derrotaram as Skyhawks. Aquelas que estavam de pé a olhavam com expressões atordoadas. Ela só se importava com sua equipe.

 Felizmente, cada membro querido estava vivo. Mantidas à distância pela ponta da espada, mas vivas. Uma de cada vez, ela encontrou os seu olhares. Fez um gesto de desculpa e agradecimento. Ela não se importava que tivessem perdido, só que viveriam.

 Elas teriam uma chance de se ressarcir durante a próxima competição. E talvez ela poderia validar agora. Indiferente a sua nudez, ela se levantou pesadamente. Não importava o que acontecesse na próxima, agora havia só três competidores pelo primeiro lugar no quarto round. E quem ganhasse ali, ganharia tudo. O direito de se gabar e a Haste de Partir.

 Strider percebeu o quanto eles estavam perto da vitória final?

 Strider. Suas irmãs poderiam estar vivas, mas ela perdeu. Ao derrotar o seu time, as Eagleshields a derrotaram. Strider acabava de perder o seu próprio desafio.

 Não, ela se assegurou no próximo instante. Ele só jurou matar aquelas que a derrotassem. Ou que ferissem? De qualquer maneira, não haveria nenhum limite de tempo para dar seu golpe fatal. Certo?

 Ela procurou entre a multidão de espectadores, mas não o viu. Ali estavam Sabin e Lysander, que também desapareceram durante um tempo, mas agora retornaram. Ambos estavam tensos, pálidos e agitados, claramente querendo agarrar suas mulheres e partirem.

 Strider estava bem? Onde ele foi?

 Estava sentindo dor agora?

 Ela poderia ter desafiado as Eagleshields e continuar a luta. Mas ela não poderia vencer a todas ao mesmo tempo. Uma das companheiras do seu time poderia ser ferida, talvez morta. Então ela teve que se decidir. Salvá-las, ou salvar Strider de uma dor agonizante.

 Rezando para que ele entendesse, ela se ajoelhou, admitindo a derrota.

 Três coisas aconteceram de uma vez. Seu entorno mudou, o Coliseu já não era mais novo e atual, mas velho e caindo aos pedaços, bloqueios feitos pelo homem e humanos de repente se materializando em torno deles. O grito de raiva e incredulidade de Juliette ecoando pelas paredes. E, pior de tudo, o grito de agonia do Strider cortando sua alma.

 

 Um caos absoluto e completo o rodeava.

 Sem fôlego, ferido e caído de joelhos pela dor debilitante, Strider segurava a Haste de Partir. Harpias, consortes e escravos corriam em todas as direções tentando fugir antes dos policiais chegarem. E o fariam, trazendo repórteres com eles. Inúmeras leis foram quebradas e profanaram um tesouro nacional. Inclusive agora, o sangue encharcava o chão, empoçando ao redor dos pés de Strider.

Que diabos ele deveria fazer? E por que seu demônio agonizava gemendo e se contorcendo dentro de sua cabeça? Eles ganharam. Não é?

 No momento em que Lazarus perdeu sua cabeça, o artefato apareceu. Algo brilhante emanou do seu corpo e foi absorvido pela ponta da Haste como se um interruptor de absorção fosse ativado. Provavelmente a alma do guerreiro, os restos dos pedaços se reunindo no interior.

 Não sendo mais capaz de manter a ilusão, o mundo voltou ao normal. Strider não pensou nessa pequena complicação, então não se preparou para isso. Só havia pensado em afinal adquirir a Haste. Agora a tinha, mas com poucas opções de escondê-la com sucesso.

 Juliette sabia que seu homem estava morto, sabia que ele não a teria desobedecido se não fosse assim. Aquele grito… ela estaria procurando pelo corpo. Tentando averiguar quem era o responsável. Não tinha como esconder a verdade. Não agora. Muitas pessoas viram Strider pairando sobre o corpo sem vida com uma lâmina ensanguentada na mão. Não que ele tenha tentado encobrir a verdade. Ele cometeu o crime e teria que aguentar as consequências.

 Agora, entretanto, atraiu o mal para as portas de Kaia. Juliette não se contentaria em humilhá-la. Juliette iria querer puni-la. Ferí-la. Destruí-la.

 A verdade o atingiu e quis vomitar. Que diabos ele fez?

 Strider se levantou pesadamente, sua cabeça nadando. Ele cambaleou, compreendendo de uma bofetada a puta verdade. Ele desafiou Kaia a ganhar o jogo. Ela deve ter perdido. Merda. Merda! Ela estaria bem?

 Alguém se estatelou contra ele e o fez tropeçar, intensificando a dor. Segurou mais firme a Haste. Ele tinha que mantê-la a salvo, e também tinha que alcançar Kaia. Sabin e Lysander provavelmente estariam procurando pelas suas mulheres, então não o ajudariam.

 Com sua mão livre, Strider tirou seu celular do bolso. Precisava de Lucien.

 Sua visão estava muito borrada para ver os números. Tentou chamar o guardião da Morte de qualquer maneira. O guerreiro estava marcado na tecla rápida, então tudo que Strider tinha que fazer era apertar três números — só três — depois pronunciar uma só palavra — socorro — e seu amigo apareceria.

 Outra pessoa tropeçou nele e cambaleou com mais força. O telefone saiu voando da sua mão se estatelando no pavimento. Merda! Ele se inclinou, seus ossos e articulações protestando enquanto apalpava a área ao seu redor. Finalmente seus dedos se fecharam em torno do plástico.

Múltiplos pares de pés pisotearam sua mão, esmagando o osso e o celular. Aqueles mesmos pés se cravaram nas suas costas, quebrando suas costelas e apunhalando com os fragmentos irregulares os seus pulmões, esvaziando-os. Depois seu rosto foi empurrado na sujeira.

Pisoteado, pensou aturdido. Que humilhante. Ele meteu a Haste debaixo do seu corpo, esperando abrigá-la. Duvidava que algo pudesse quebrá-la, apesar de sua frágil aparência. Havia uma ampulheta em cada extremidade, o objeto era fino e de madeira, mas a coisa foi feita pelos Deuses. E ele era a prova viva que os Deuses não faziam produtos de má qualidade. Mas a Haste podia ser roubada e ele não permitiria isso.

 Quase não podia acreditar que estava segurando o quarto artefato. Depois de todo esse tempo, a peça final do quebra-cabeça caiu diretamente no seu colo. A um preço terrível sim, mas ele a tinha.

 Afinal os passos se afastaram e Strider obrigou seu corpo espancado a se levantar. Ele ofegou, cambaleou. Algumas Harpias se chocaram com ele quando passaram correndo, mas não o derrubaram. Talvez porque elas não estivessem tentando, só estavam com pressa.

 Outro grito feminino encheu o ar, mais perto desta vez. A agonia nesse grito... agonia e raiva, misturados juntos numa harmonia maligna.

 — Eu. Vou. Matar. Você. — As palavras de Juliette reverberaram no ar, cada uma delas cheia de ódio.

 Mesmo não podendo ver uma merda, ele se virou e deixou que o ímpeto da multidão diluindo o levar embora. Algumas vezes seus joelhos ameaçaram se dobrar, mas usou a Haste como uma bengala e continuou avançando.

 O quanto Juliette estava perto dos seus calcanhares?

 Kaia! Ele gritou mentalmente. Eles nunca falaram telepaticamente, mas nunca antes esteve tão desesperado para alcançá-la. Só podia esperar que seu casamento tivesse fortalecido sua conexão. Onde você está?

 — Estou aqui. — Uma fragrância familiar chegou ao seu nariz um segundo antes de um braço quente deslizasse ao redor da sua cintura, empurrando-o para a esquerda. — Isso é o que eu acho que é?

 Graças aos Deuses. Ela estava viva, estava aqui, e podiam falar telepaticamente. Uma vantagem que ele exploraria quando eles estivessem a salvo. Agora podia sentir seu coração golpeando contra suas costelas, rápido, mas diabos, estava batendo, estava batendo e isso era suficiente.

— Sim. Sinto muito, boneca. Eu tive que pegá-la. Não podia deixar passar a oportunidade. E não toque nisso ok? — Não sabia como a Haste funcionava, como passavam as almas e habilidades presas dentro da outra pessoa, ou como roubava as almas e habilidades dos vivos, mas não queria se arriscar a fazer algum dano irreparável a Kaia. — Você está bem?

 — Você mesmo não pode ver?

 — Não. Córneas arrebentadas.

 — Isso explica por que estava a ponto de se esborrachar na parede. — ela disse secamente. — Escute. Embora eu queira bater na sua cabeça — sério, você acha que eu tomarei a Haste de você? — sinto muito por ter perdido. Sinto muito por você estar sentindo dor. Eu poderia ter ganhado, poderia ter matado todo mundo, mas minhas irmãs teriam morrido também e eu não poderia...

 — Você não tem que explicar. Só estou contente que esteja aqui. E não, não acho que me tomará a Haste. Mas é perigosa e não sei como ela realmente funciona. — Deveria ter explicado isto.

 Ela o arrastou para a direita.

— Certo, então. Eu te perdôo por gritar comigo, mas voltando ao assunto que temos entre as mãos. Você odeia perder. Honestamente, acho que mataria sua própria mãe para ganhar uma batalha. Se tivesse uma. E depositou sua fé em minha habilidade, mas eu...

 — Kaia. — ele disse, cortando-a novamente. — Você é muito teimosa para o seu próprio bem. Nada importa, além do fato que esteja viva, eu juro. E pra ser sincero, não é você quem tem que se desculpar. Você me disse que não pegasse a Haste, para deixar você ganhá-la, mas eu a tomei de qualquer jeito.

 — Mudei de ideia a respeito disso.

 Um puxão para esquerda.

 — Eu sei. Isso não muda o fato que eu...

 — Você sabe? Como? Não importa. Discutiremos isso mais tarde. Agora quem é teimoso?

 Apesar da dor, ele se achou rindo.

 — Droga. — ela xingou de repente. — Juliette ainda está no nosso rastro e parece que não posso despistá-la.

 Sua diversão desapareceu.

 Kaia o conduziu escadaria abaixo dando a volta numa esquina.

— Ela está se aproximando e se eu não fizer alguma coisa vai nos alcançar. — Sem uma pausa para respirar, ela o empurrou contra uma parede dura e fresca. — Fique aqui.

Não houve tempo para perguntas. Ela o soltou e um segundo depois uma explosão de calor escaldante flutuava sobre ele. Ela acabara de se incendiar, ele percebeu.

 Sons femininos estouraram.

 — Você vai pagar... — Juliette começou, só para ser cortada por um grunhido de agonia.

 Ele desejou poder ver o que estava acontecendo.

 O suor gotejava pelo seu corpo. Sua dor não diminuiu e sem Kaia lá para distraí-lo, para movê-lo, experimentava cada lance com força total. Ele se curvou e vomitou. Deveria estar lutando ao lado de Kaia, apesar de tudo ali estava ela, fazendo tudo sozinha. Ele era um entrave. Se não fosse por ele, ela já poderia ter escapado sem problema.

 — Isso deve segurar a cadela por um tempo. — ela disse com satisfação, uma vez mais deslizando um braço ao redor da sua cintura e o empurrando adiante. Embora atualmente não estivesse queimando, sua temperatura corporal se elevou substancialmente.

 — Você está ficando boa nisso. — ele disse, apertando seus dentes para resistir ao calor que desprendia do corpo de Kaia.

— Talvez porque ela me mantenha num estado constante de fúria incandescente.

O cheiro de algodão queimando encheu seu nariz. Sua camisa, ele notou. E então outro pensamento o golpeou. Ela explodiu em chamas. Completamente. Suas roupas teriam se consumido.

— Você está nua, não é? — Odiava a ideia de qualquer um exceto ele a ver dessa maneira, mas achava graça pelo quadro que os dois deviam formar.

 — Sim. — Nenhuma vergonha acompanhou a afirmação. — Estou assim há um bom tempo. Então como você conseguiu a Haste?

 Uma onda de culpa o golpeou enquanto explicava sobre Lazarus, Juliette e o tipo de poder em jogo. Tudo isso enquanto Kaia o conduzia dobrando esquinas, descendo escadas e subindo.

 — Então Lazarus está morto?

 Uma brisa fresca e bem-vinda o acariciou.

— Sim. Ele não era um cara tão ruim. Queria que existisse outra maneira. — E talvez existisse. Pelo que Lazarus disse e pelo que entendeu — embora pudesse estar errado. Ele possivelmente poderia sobreviver ao que Strider fez com ele. Sua alma, pelo menos. Ele poderia estar preso nesse instante na Haste.

 — Sim, eu também estava começando a gostar dele. Talvez... merda. Vamos falar sobre isto mais tarde. — Ela o soltou. — Tenho que pegar minhas coisas e me vestir. Espere um pouco.

 Então eles estavam na tenda que ocuparam anteriormente, pensou enquanto cambaleava. Seus ouvidos se animaram quando escutou suas irmãs, mas só reconheceu o som de seus movimentos. Então ela o agarrou e o conduziu pelo labirinto. Agora ele podia imaginar seus arredores e sabia que uma cerca surgiria diante deles.

 — Escale. — ela disse, confirmando os planos em sua cabeça.

 Seu corpo já machucado protestou ao longo do caminho, mas o fez. Seguiu em frente.

 — Agora salte.

 Outra cerca, embora esta era um pouco mais que um obstáculo. Strider aterrissou com um grunhido de dor.

 — Pedras. — ela disse, empurrando-o para o lado.

 Logo que as rodearam eles correram. Só correram. Através das respirações difíceis, inalou a fragrância de pinho, sujeira e fumaça do cano de descarga dos carros. Suas botas pisaram em pedras e grama, depois no pavimento. Algumas vezes ele ouviu os surpresos — e talvez horrorizados — murmúrios de humanos.

 Kaia diminuiu a velocidade, parou, então o empurrou novamente.

— Fique aqui. — Vários minutos se passaram. Odiava ficar ali, indefeso, a Haste a céu aberto. — Dinheiro. — ela murmurou quando retornou ao seu lado.

 — Garota esperta.

 Uma névoa dourada atravessou a escuridão da sua cegueira e piscou. Outra piscada. Nenhuma mudança. Só essa pequena e débil luz, mas era suficiente. Já estava se curando.

 Pelo que pareceu uma eternidade depois, Kaia alugou um quarto de motel e os instalou com segurança no interior. Ela o conduziu para a cama e ele desabou sobre o colchão, lavando a Haste com ele.

 — Para sua informação, você parece uma merda, Bonin. — Ela se acercou dele e alisou sua sobrancelha com um toque suave.

Ele se inclinou para a carícia.

— Obrigado, Ruiva. Devo dizer que, já me senti melhor também.

— Há qualquer coisa que eu possa fazer por você?

— Não. Tudo o que preciso é tempo.

— Então o que essa coisa faz? Você mencionou alguma coisa de alma sim, mas estou confusa.

— Você tem um celular? — Ele perguntou em vez de responder. Prioridade era prioridade. Tinha que retirar o artefato de Roma e afastá-lo de Juliette.

— Sim. Peguei-o quando me vesti.

— Ligue para Lucien e peça para vir aqui.

Enquanto Kaia obedecia, a luz que via se expandiu, sua visão clareando um pouco mais. Começou a perceber pequenos detalhes. Acima da sua cabeça o teto era uma mistura de branco e amarelo. As paredes eram caiadas de branco. Havia uma janela coberta por um tecido grosso vermelho. Ao lado dele uma maltratada mesinha de cabeceira, uma luminária azul descansando em cima.

Seu olhar se moveu para Kaia, que andava de um lado para o outro enquanto falava ao telefone. Aquilo terminou e ela ficou em silêncio. Golpeou o teclado, agitada.

 Passaram alguns minutos antes dele poder vê-la claramente. Contusões coloriam seu olho esquerdo e mandíbula, e seu lábio superior estava partido e inchado. Seu cabelo caía embaraçado em volta dos seus ombros. Vestia uma camiseta e calça jeans limpos, mas sem sapatos. Ela correu pelas ruas descalça, dava para

 perceber. Seus dedões do pé estavam enegrecidos de sujeira e cada passo que dava deixava uma mancha de sangue no chão de ladrilho.

 Nem uma só vez ela se queixou ou pronunciou um chiado de dor. Era uma guerreira até a medula, e seu coração se inchou com amor e orgulho por ela. Não se importou que ele tivesse tomado a Haste. Não, ela o elogiou. Mesmo ele causando nada além de problemas.

 Única em sua espécie, sua Kaia.

 Ela merecia o melhor. Então, ele seria um homem melhor. Por ela.

 Franzindo o cenho ela empurrou seu celular no bolso traseiro.

— Lucien disse que estará aqui em breve. Também enviei uma mensagem de texto a minhas irmãs dizendo onde estamos. Taliyah e Neeka estão perto e também estarão aqui em alguns minutos. Não recebi resposta de mais ninguém.

Antes da última palavra deixar sua boca bateram na porta. Taliyah não esperou que Kaia respondesse, simplesmente irrompeu dentro do quarto, Neeka logo atrás dela. As irmãs se abraçaram.

 — Desculpe pela perda. — Taliyah disse, dando um tapinha na sua cabeça.

Kaia deu de ombros.

— Como se eu não causasse parte delas ultimamente.

— Então você é uma Phoenix, heim? — Neeka disse.

— Eu sei. — Dedos listrados de vermelho esfregaram em seu rosto, destacando sua fadiga. — Eu também estou surpresa.

Taliyah sacudiu sua cabeça, um estudo de feminilidade quando seu cabelo pálido dançou ao redor dos seus ombros.

— Oh, Neeka e eu não nos surpreendemos.

As sobrancelhas de Kaia se ergueram juntas.

— Por que não?

— Você vem exibindo sinais há várias semanas. Além disso, você explodiu em chamas no dia em que nasceu. Mamãe queria te proteger de seu pai, então ela te deu algo para assegurar que não faria isso novamente por séculos e inclusive reagiria à toxina Phoenix se fosse arranhada ou mordida. — Outra palmadinha, então Taliyah caiu no colchão ao lado de Neeka. — Eu sabia que era só questão de tempo antes de sua habilidade ressurgir.

 Strider realmente podia ouvir os pensamentos de Kaia. Eles eram tão poderosos que ultrapassaram os fios da conexão entre eles, sacudindo-o.

Que fodida surpresa. Mamãe realmente agiu de modo maternal e me ajudou. Quero abraçar essa mulher, depois sacudi-la. Entretanto não posso amolecer. Isto é a guerra.

 — Bem, deveria ter contado para mim! — Ela esbravejou em voz alta.

 — Certamente. — Strider disse. Ele teria se sentado, olhado, qualquer coisa, mas porra, a dor dentro dele continuava a se intensificar, seu demônio gemia e grunhia.

 Taliyah não lhe deu atenção.

— E te causar preocupação inutilmente? Nem pensar. Agora que aconteceu, não tem nada para se preocupar. Ok? Seu pai não tentará te sequestrar, eu prometo.

 — Você realmente acha? — A vulnerabilidade tecia cada uma de suas sílabas.

 Ele queria chamá-la, segurá-la bem apertado. Se seu pai — seu sogro, percebeu com um sobressalto — provasse ser um problema, seu pai sentiria a ira de um guerreiro possuído por um demônio.

 — Eu realmente sei. — assegurou Taliyah. — Ele está morto. Eu mesma o matei. E eu sei, eu sei. Sua gente a teria querido no momento em que ouvissem que você podia resistir ao seu fogo, já que não existem muitas mulheres que podem fazer isso.

 — Teria querido? — Kaia e Strider perguntaram ao mesmo tempo. Ele notou que ela não deu nenhuma indicação que a morte de seu pai a aborreceu. Nenhuma tristeza flutuou por sua conexão, sua mente estava tranquila.

 Um aceno firme com a cabeça, como se sua surpresa a ofendesse.

— Tenho certeza que Strider contou a você que Neeka e eu escapamos sorrateiramente e encontramos um grupo de homens. De qualquer forma, Neeka me deve um grande favor e aceitou casar com um guerreiro Phoenix em seu lugar.

 Que deve ser um favorzão, se o casamento com um estranho era um pagamento apropriado. E que diabos ela quis dizer?

— Em seu lugar? — Strider não com tinha intenção de gritar, mas droga. — Eles pensam que ela se casará com alguém além de mim? Eles podem pensar fodidamente melhor novamente! Ela é minha.

 — Eu não entendo. — Kaia disse suavemente. — E ele tem razão. Eu sou sua.

 Ouvir sua confissão o aqueceu tanto quanto seu fogo interno sempre fazia, mas ao mesmo tempo o acalmou, como provavelmente era sua intenção.

 Taliyah disse.

 — Eles teriam vindo atrás de você e teriam matado Strider. Eu sabia que isso te chatearia, então fiz outros acordos.

 Qual?

 — Agora eles só tentarão levar os dois.

 — Não. — Taliyah o assegurou. — Não darei detalhes sobre o acordo — isso é com Neeka — mas eles não virão atrás de Kaia.

 — Neeka. — ele disse, seu olhar pousando na magnífica garota negra.

Ela estava observando as irmãs, sua expressão um pouco triste, então não percebeu que ele falou com ela. Kaia olhava para ela também e a Harpia assentiu.

— Por quê? — Kaia perguntou a ela.

— Eu salvei sua vida. — Taliyah respondeu pela Eagleshield. — Como disse, ela me devia uma.

— Ela pode resistir ao fogo deles? — Strider perguntou. Se não pudesse os guerreiros viriam atrás de Kaia de qualquer maneira.

— Ainda não. — Neeka respondeu.

Seu olhar retornou para ela e viu que estava olhando para ele agora.

— Então o que você está fazendo é...

— Eu vou. Um dia, eu vou. Mas nesse exato instante eu tenho algo que eles apreciam muito mais.

— E agora nós realmente temos que ir. — Taliyah disse, arrastando sua amiga de volta para a porta antes que Neeka pudesse ampliar aquela declaração. Não que ela fosse fazer. Ela fechou seus bonitos lábios com um maldito zíper bem apertado. — Nós estamos rastreando Tabitha, para ter certeza que sua gente consiga ficar a salvo. Você a fodeu realmente bem. Fiquei muito impressionada, menina.

 — Obrigada. — Um fio de culpa a trespassou.

Taliyah lhe deu o mais breve dos sorrisos.

— Assim que saiba que ela está sendo cuidada, eu voltarei.

A porta se fechou e ambas se foram.

Strider observou como o remorso lavou as feições pálidas de Kaia.

— Sua mãe? — Strider perguntou.

— Sim. — respondeu, sabendo o que ele queria dizer. — Queria que nossa relação não chegasse a este ponto tão terrível, mas...

Lucien escolheu aquele momento para se materializar e Kaia calou a boca. O enorme guerreiro deu uma olhada na cena imediatamente e amaldiçoou.

— Que diabos aconteceu com os dois?

Strider se enfocou em seu amigo. Cabelo preto, olhos díspares — um azul, um marrom — e um rosto tão cheio de cicatrizes como mesinha de cabeceira.

— O que aconteceu não importa. Só o resultado final. Este — disse, segurando a Haste de Partir com um sorriso. — é o quarto artefato.

Os olhos de Lucien se abriram desmesuradamente enquanto ele assimilava suas palavras.

— Você está brincando comigo, certo? — Seu olhar rastreou para o ítem em questão.

— Não. Há uma Harpia muito furiosa lá fora que quer isso de volta e fará qualquer coisa para conseguir.

O guardião da Morte estalou sua mandíbula fechando-a, cada polegada de um soldado dedicado.

 — Como ela o conseguiu, em primeiro lugar?

 — Essa história fica para outro dia. — A voz de Strider estava... tão fraca, tão distante. Novamente tentou se sentar, qualquer coisa para manter a si mesmo focado e ali. A dor angustiante e esforço do dia começaram a drenar a pouca força que tinha. Estava ali lutando para respirar, e pra seguir adiante. — Pelo menos finalmente sabemos o que este artefato pode fazer. De alguma maneira pode prender almas e habilidades sobrenaturais no interior de sua ponta. A ponta também pode transmitir essas almas e habilidades para outros.

 O silêncio se tornou tenso e pesado enquanto Lucien absorvia as notícias.

 Então um bip ecoou ao redor deles.

 — Uma mensagem. — Kaia arrancou seu telefone, baixou o olhar para a tela e suspirou de alívio. — Gwen e Sabin estão a salvo. Disse a eles onde estamos e estão a caminho.

 Strider experimentou ele mesmo uma onda de alívio e se apressou querendo conseguir o resto dos detalhes antes de deslizar para a inconsciência.

— Não sei como usar a maldita coisa. Só sei que quem a está segurando não pode tomar o que está no interior. Só pode dar os poderes para os outros.

Bip.

Uma pausa.

— Lysander não pode encontrar Bianka. — disse Kaia, agora se notava o pânico em sua voz. — Está preocupado e pergunta se alguém a viu.

 — Tenho certeza que ela está... — Lucien começou.

 Outro bip.

 Outra pausa.

— Oh, meus Deuses. — Kaia sufocou um grito de raiva. — Não, não, não. Não!

 Afinal Strider encontrou forças para se sentar, a preocupação o sacudiu. Sua perturbação abastecia a dele.

— O que foi, boneca?

 A raiva enchia seus olhos quando ela mostrou a tela pra ele. Sua mão tremia enquanto ele lia: Quer sua irmã gêmea viva? Venha negociar.

 Sua garganta se apertou quando viu o símbolo de um anexo.

— O que é o anexo?

 — Anexo? Não percebi que havia um. — Seu tremor aumentou enquanto ela estudava o telefone. Ela pressionou alguns botões e sufocou outro grito. — Um vídeo. Vejo Bianka. Está amarrada. Sangrando.

 Depois de alguns segundos de estática, ele ouviu Bianka gritar.

— Diga a ela para se foder, Kye! — Então a voz de Juliette falou acima da dela.

— Ou você me traz a Haste de Partir em uma hora, ou eu juro aos Deuses que arrancarei a cabeça da sua gêmea do mesmo modo que o bastardo do seu consorte removeu a de Lazarus. E se você ousar — ousar! — pensar em fazer essa sua coisa do fogo…

 Um guincho de raiva.

— Quer saber? Traga seu consorte também. Ou sua irmã morre ou ele. Você escolhe. Para cada minuto que você se atrase sua preciosa irmã sofrerá. — Uma pausa. — Ah, e Kaia. Espero que se atrase. Boa sorte em nos achar.

 

 Juliette se meteu com a garota errada.

 Kaia levou uma hora inteira para reunir seus entes queridos e amigos de confiança. Eles não hesitaram em correr para ajudar, pelo que seria eternamente agradecida. O tempo todo, Strider, que ainda estava com uma dor evidente, continuava acalmando-a, garantindo que tudo terminaria bem.

 Doce e amado homem. Estava bem atrás dela, seu cheiro de canela a envolvendo, e escolheu acreditar nele. Além do mais, percebeu que estavam mais profundamente conectados que nunca, e ele continuava animando-a e apoiando-a.

 Kaia derrotou sua própria mãe. Ela podia lidar com isso também.

 Encontrar Juliette não foi difícil. Não com Lucien fazendo sua coisa de piscar. Ele seguiu seu rastro espiritual até que a localizou, checou Bianka (ela estava ferida mas segura), informou a Kaia aonde ir e então regressou para cuidar de Bee, invisível, e sem que ninguém se inteirasse.

 A presença furtiva de Lucien era a única razão pela qual Kaia ainda não havia derramado um mundo de dor sobre Juliette. O mesmo acontecia com Lysander. Bem, isto e a mão firme de Zacharel o trazendo de volta.

 Se qualquer coisa mudasse, Lucien contaria e eles alterariam seu plano atual. Um plano que asseguraria que as Eagleshields nunca tentariam fazer algo assim novamente.

 Com Taliyah e Gwen a cada lado, Kaia marchou com sua cabeça erguida. Strider e seus irmãos estavam atrás delas. Lysander e seu exército de anjos guerreiros estavam no ar sobrevoando a área, suas asas brancas e douradas graciosamente estendidas. Kaia disse a eles que eram necessários nos Céus, já que algum tipo de guerra angelical estava se preparando, mas ao invés disso, Lysander trouxe todos eles aqui.

 Sua mulher era a coisa mais importante para ele.

 Então, realmente, Juliette se meteu com a “família” errada. Por que, era isso que as pessoas que a cercavam eram, Kaia pensou. Sua família. Nenhum deles descansaria até que Bianka estivesse segura. De fato, eles morreriam por ela. Morreriam por Kaia.

 Como ela morreria por eles.

 Não chegaremos a isso. Ela endireitou seus ombros observando o seu entorno. Juliette escolheu um local encantador. A praia, nesta noite de luar, era uma visão enganosamente tranquila. Do outro lado, antigas ruínas romanas se estendiam em direção ao céu escuro e as pedras brilhavam como prata. Água lavava a areia, criando uma canção de ninar calmante.

 Pena que o sangue estava a ponto de respingar e gritos a estourar.

 — Juliette. — Kaia gritou. Chega de esperar. Queria isso feito e acabado.

 Uma Juliette escaldada e coberta de fuligem pisou num raio de luar dourado, seu ódio tão forte que vibrou no ar. Seu clã formava uma linha ameaçadora atrás dela.

Kaia se deteve a uns metros de distância, uma pequena distância, e seu destacamento seguiu o exemplo.

 Juliette fervia.

— Fico surpresa que com sua pouca inteligência pôde me encontrar, mas estou muito feliz que tenha conseguido. Vamos acabar com isto agora. Onde está a Haste?

 Em vez de responder, Kaia disse.

— Sinto muito pelo seu consorte, realmente sinto, e gostaria que as coisas pudessem ter terminado de maneira diferente mas não posso mudar o passado. Só posso abraçar o futuro. Então estou te dando uma chance — só uma — para sair disso. Liberte minha irmã e irei embora. Fim da história.

 A resposta de Juliette foi instantânea.

— Ah, não. Você não deixará esta terra ilesa. — Ela estalou os dedos e duas Eagleshields arrastaram uma fumegante e ensanguentada Bianka para a frente da linha formada. — Creio que você tem uma escolha a fazer, Kaia a Decepção. Sua irmã ou seu homem.

 O rugido de ultraje de Lysander ecoou do céu. Juliette tinha sorte que Zacharel estava aqui para impedi-lo de arrasar tudo.

 Depois que Bianka levantou seu polegar para o seu homem em sinal de tudo bem, ela encontrou o olhar de Kaia e sorriu com malícia. Kaia quase desmoronou de alívio. Ouvir no vídeo que sua irmã estava bem não era o mesmo que ver com seus próprios olhos, viva e pessoalmente.

 — Disse a você. — um voz rouca masculina sussurrou. Dedos trêmulos percorreram a sua espinha. Strider. Apesar da sua dor, ainda estava mostrando seu apoio.

 E de repente Kaia podia ver humor na situação. Bianka usaria eternamente esta experiência para curvar Kaia à sua vontade.

 Você lembra da vez que sua inimiga me sequestrou? Sua gêmea diria.

 Eu também. É por isso que você tem que me fazer este favorzinho.

 — Na realidade — disse lançando seu próprio sorriso malvado para Juliette. —, “você” tem uma escolha. Renda-se ou morra. Lysander. — ela gritou. — É com você aí em cima.

 Os anjos se lançaram do céu. Em menos de um segundo as Eagleshields estavam de joelhos, cabeças curvadas, guerreiros alados se encontravam segurando espadas de fogo em seus pescoços.

 — Uau, isso foi fácil. — disse ela. Esperava que as Harpias não percebessem que os anjos — que viviam sob um código de conduta que Kaia não teria a pretensão de entender — não tinham a permissão de feri-las sem uma “causa justa”. Seja qual for.

 Lysander levantou Bianka em seus braços, abraçando-a, exigindo saber o que fizeram com ela.

 Bianka beijou o seu homem, então se virou e fulminou com o olhar uma aturdida Juliette. Apesar de estar ajoelhada, a líder das Eagleshields não se via intimidada.

 — Eu te disse que você era uma idiota por se meter com a consorte de um anjo.

 — Mas… mas…

 — Sim. — disse Kaia, enquanto a outra finalmente via a ficha cair. — Você foi derrotada rápido assim. — Ela estalou seus dedos numa paródia do gesto que Juliette usou para convocar Bianka. — E agora que isso já foi resolvido, vamos discutir outro pequeno negócio. Lysander, poderia dizer ao seu lacaio que retire a espada de fogo da morena e apenas da morena, por favor?

Um momento se passou em silêncio pesado. Então Lysander deu um aceno duro com a cabeça e o anjo de cabelos escuros que encurralou Juliette recuou, a espada piscou antes de desaparecer completamente.

Juliette se levantou, mas não tentou fugir. Prudente de sua parte. Kaia pensou, naturalmente a teria seguido e o resultado final não teria sido nada bonito.

 — Sobraram apenas três clãs que podem levar o primeiro prêmio. — disse Kaia. — O meu, o seu e o Skyhawks.

— Não é verdade. — uma voz feminina disse debilmente.

A mãe de Kaia saiu mancando das sombras para permanecer de pé ao lado dos anjos.

Ela encontrou o olhar impassível de Tabitha, tentando não entrar em pânico. Tabitha ainda tinha que se curar. Havia olheiras de fadiga embaixo dos seus olhos, seus ombros estavam encurvados e suas pernas tremiam, como se estivesse prestes a desmoronar.

— O que está fazendo aqui? Planejando protestar pelo meu lugar na final? — Kaia ergueu seu queixo, orgulhosa de si mesma. Não havia nenhum indício de emoção em sua voz. Nenhum tremor que a delatasse. — Bem, você pode...

— Não. — Tabitha disse, chocando-a ainda mais. — Taliyah me disse o que estava acontecendo. É por isso que estou aqui. Escolho retirar meu time da competição.

— O que? — Kaia e Juliette ofegaram ao mesmo tempo.

Tabitha assentiu, o movimento quase a derrubando.

— Eu só quis que você tivesse uma chance de provar a si mesma diante dos clãs, sem nenhuma ajuda minha. E você o fez. Já não sou mais necessária. E como pode ver, não sou nenhuma ameaça neste momento.

 Kaia estava totalmente sem palavras.

— Se isso é verdade, por que me insultou? — exigiu Strider, falando pela primeira vez em voz alta. Sua fúria dando força às suas palavras.

 — Ela insultou você? — Kaia disse entredentes, a raiva ajudando-a a encontrar sua própria voz. — Quando?

Começou na orientação, ela ouviu ele dizer dentro da sua mente. Antes da competição. Ele podia falar com ela mentalmente? Ela sabia que alguns casais podiam fazer isso, mas nunca esperou ser uma das sortudas. Bônus!

Tabitha ergueu seu queixo, um espelho da própria postura de Kaia.

Então foi daí que eu aprendi. Huh.

— Eu não te insultei, seu homem estúpido. — Os olhos de âmbar brilhando com raiva. — Eu te adverti das intenções dos seus inimigos. A propósito, de nada. Você não me deu nada além de dor pela minha generosidade.

— Não o chame de estúpido. — espetou Kaia. Só ela tinha esse direito. Mas, ei, sua mãe tentou ajudá-la? — E por que ele deveria acreditar em você? Você me odeia.

Estou bem, boneca. Não se preocupe comigo.

Havia um leve abrandamento na expressão de Tabitha quando voltou sua atenção para Kaia.

— Você é minha filha… Kaia a Trituradora de Asas. É por isso que ele deveria acreditar em mim.

Kaia a Trituradora de Asas. O apelido ressoou na sua mente, um sonho realizado e muito melhor do que ela deu a si mesma.

— Eu... — Não sabia o que dizer. Nunca em um milhão de anos — ou mil e quinhentos anos — esperaria ouvir aquelas palavras deixarem a boca desta mulher.

— Só pra você saber, eu não te odeio. Sim, eu estava genuinamente irritada por ter me desobedecido todos aqueles séculos atrás. Sim, suas ações foram decepcionantes. Era de se supor que você deveria se redimir, mas nunca o fez e eu estava cansada de esperar. Quando percebi que encontrou o seu consorte, sabia que poderia se perder completamente ou afinal descobrir a guerreira que você sempre quis ser. E sim, isso significa que estive te vigiando todo esse tempo. Isso significa que também ajudei na sua emboscada — para seu próprio bem. Fiquei bastante orgulhosa que você lutou com os Caçadores e descobriu o nosso plano.

 Isso não era uma confissão de amor, Kaia notou. Mas então novamente, abrupta, áspera e inalterável, essa era Tabitha. Porém ela era uma mentirosa? Não. Nunca. Tabitha declarava seus pensamentos e era isso. Sempre. Ao saber disso, Kaia sentiu seu peito inchar com uma emoção que não podia mais esconder. Sua mãe não a odiava!

 Isto significava que elas se reuniriam no Natal? Ela duvidava, mas diabos, isto era mais do que teve em anos. Ficaria com isso. Porque realmente sua mãe não a odiava. Nunca se cansaria de pensar nisso. Yeah!

 — Não posso dizer que estou agradecida pelo seu amor duro — Kaia respondeu. —, mas estou feliz com a minha vida.

 A satisfação de Strider se deslizou ao redor dela como um manto.

 — Agora você é forte o suficiente para manter o que é seu. Claro que você está feliz. — Tabitha mancou adiante para encurtar a distância entre elas e estendeu seu braço. — Aqui.

 Franzindo o cenho Kaia aceitou… um medalhão Skyhawk para guerreiras. Um novo. Um melhor que o de Juliette. Seus olhos se arregalaram quando deslizou a correia de couro ao redor de seu pescoço. O disco de madeira era leve, frio ao tato, e ainda assim conseguiu queimá-la profundamente.

 — Visite-me logo, e ... conversaremos. — Com isto Tabitha enfrentou Juliette. — Por muito tempo desfrutei da sua companhia, como você da minha. Sabia que você e Kaia um dia chegariam a lutar, e isso era justificado. Ela tomou seu consorte. Minha única esperança era que ela estivesse um pouco preparada para o seu ataque. Agora está. Mas você deveria ter atingido o seu consorte em vez de Bianka. Depois de todos os anos que passei te treinamento, esperava que você tivesse aprendido que o castigo sempre deve ser proporcional ao delito. E assim, pelas suas ações deste dia, deixo você com o destino que trouxe para si mesma. Seu traseiro sendo chutado pela minha filha. — Tendo dito seu discurso, deu a volta e se afastou tropeçando.

 Ela realmente não me odeia. Kaia fungou, tentando não chorar de alegria. Sua mãe não a defendeu exatamente, e a considerou “um pouco” preparada, mas ainda assim. Sem ódio!

 E agora, manter o que é meu…

— Parece que somos só você e eu agora. — disse para Juliette. — Vamos terminar esta batalha.

 A satisfação se estendeu no rosto de sua inimiga.

 — Oh, realmente? Não permitirá que seus escravos saltem e salvem você?

 — Os anjos e Senhores são meus amigos, não meus escravos, embora perceba que o conceito é estranho para você. E por que eu permitiria que eles se encarregassem? Vou encharcar o chão com seu sangue. De maneira justa.

O olhar entrecerrado de Juliette pousou em Strider, e Kaia meio que esperava que ela desafiasse o guerreiro em vez disso.

 — A vencedora fica com seu consorte.

 Cadela.

 — De jeito nenhum...

 — Faça isto, boneca. — Strider interrompeu, falando alto desta vez. Ele beijou sua face. — Não existe nenhuma dúvida na minha mente que ganhará esta coisa.

Ela falhou da última vez, mas ele ainda confiava nela. Podia sentir. A determinação cresceu dentro dela, uma onda incontrolável. Juliette sofreria por lançar aquela exigência em particular.

— Sem interferência de ninguém. — Juliette rosnou, não gostando do desprezo absoluto pelas suas habilidades.

— Feito. — Kaia respondeu. — Armas? Deixarei você escolher. Eu sou doce assim.

— Mão-a-mão. E sem incêndios, cadela.

— Não pode lidar com um pouco de calor? — Ela estava friamente decidida para recorrer às chamas, de qualquer maneira. — Muito bem. Mas pelo que ouvi, você não tem muita prática com a coisa do mão-a-mão. Essa não é a verdadeira razão por que não entrou nos jogos?

 As narinas de Juliette inflaram.

— Você descobrirá.

Strider parecia querer discutir a coisa do fogo, mas em troca ele lhe deu outro beijo. Ainda confiava nela. A onda se converteu num tsunami.

 — Quando eu acabar com você, não sobrará nada. — Juliette acrescentou enquanto descartava múltiplos punhais e uma arma.

— Você está tão iludida que sinto pena de você. — Kaia descartou seu próprio arsenal. Observou como os anjos forçaram as Eagleshields a se arrastar pra longe, impedindo-as de ajudar Juliette. Os Senhores foram com eles. Strider escovou seus dedos pela sua espinha uma última vez antes de se afastar mancando.

 Só então ela e Juliette se enfrentaram, circulando uma a outra, o ódio pulsando da mulher e vibrando no ar. Você cometeu um erro grave, Menina Julie, ela projetou. Meter Strider no assunto garantiu que Kaia não perdesse tempo. Isso era sério e agiria sem nenhum arroubo de piedade.

 Espere por… espere…

 — Você acha que é invencível agora que derrotou sua mãe. — Juliette espetou. — Bem, é óbvio que ela não deu tudo de si na luta.

— É o que precisa dizer a si mesma.

Espere…

Círculo… círculo…

— Eu assisti cada uma das competições. — A presunção retornou ao tom de Juliette. — Sabe o que percebi?

 Espere…

— Que você é inferior em todos os sentidos?

Espere…

 Juliette estreitou os olhos.

— Sua falta de controle.

 Que irônico. Nesse momento as emoções de Juliette guiavam cada um dos seus movimento. Ela pensou que Kaia estava distraída. Kaia não estava, ela estava simplesmente preparada.

 Um grito agudo ecoou. O corpo de Juliette ficou tenso… lançando-se para ela…

Agora!

 Logo antes da outra Harpia a alcançar Kaia saltou no ar, as asas trabalhando dobrado, dando uma cambalhota e caindo atrás de Juliette. Sendo testemunha do que Kaia fez com Tabitha, Juliette suspeitou do movimento e virou rapidamente. Mas Kaia percebeu e rapidamente fez outra cambalhota. Uma vez mais, estava atrás de Juliette.

 Antes da Harpia perceber que Kaia mudou de lugar, ela agarrou suas asas, as garras se afundando e atravessando a pele até chegar aos tendões, e rasgou com todas as suas forças. Exatamente como fez com sua mãe.

 Um movimento patenteado por Kaia a Trituradora de Asas, e tão fácil quanto lamber a tigela de seu sorvete favorito durante a Semana Fértil — mais conhecida como Semana Infernal — entretanto, o que se poderia esperar de uma mulher com um nome como o seu?

 Strider gritou.

— Esta é a minha garota.

 Juliette grunhiu enquanto caía de cara na areia. Ela tentou se ajoelhar, mas já não tinha forças, e simplesmente desabou. Sangue se acumulou ao redor dela, como prometido, o vermelho gritante quase obsceno contra a pureza dos grãos brancos.

 As Eagleshields ficaram em silêncio por vários batimentos do coração, seu choque era palpável. Então soaram os ofegos.

Sorrindo, Kaia se abaixou ao lado de sua inimiga. Os olhos cheios de dor de Juliette olhavam além dela.

— Ambas ferimos uma a outra. Deixe que isso seja suficiente. Eu nem sequer vou dizer que lamento por isso. Mas, e me ouça bem, se você vier atrás de alguém que eu amo, vou te destruir. E você sabe que eu poderia fazer isto agora. Eu tenho a Haste de Partir e poderia tomar sua alma sem arrependimentos. Além do mais, tenho aqueles anjos bonzinhos ao meu lado. Você não deveria ter irritado eles. Já disse o suficiente.

 Ela não esperou por uma resposta. Juliette poderia tê-la insultado por não saber realmente como usar a Haste ou poderia inclusive empurrá-la para fazer algo que ela não queria fazer. Ou seja, tomar a cabeça da mulher. Então ela se levantou e caminhou em direção a Strider.

 Sorrindo, ele a encontrou no meio do caminho.

 

 

Kaia passou o resto do dia fazendo amor com o seu homem, em seu quarto, em todos os lugares. Estar na sua casa do Alaska, a mesma casa onde ele uma vez partiu seu coração, foi surrealista. De qualquer forma, ele recebeu uma infusão de força depois da sua vitória contra Juliette. Uma infusão da qual fez um uso muito bom.

 Agora ela se estendia em seus braços, saciada além da comparação. Devia tanto a esse homem. Seu estado atual de felicidade, sim, mas também a confiança em si mesma. Ela era forte, mas ele a tornou mais forte. Porque ele confiou nela, viu além da superfície, sem pensar no que pensavam dela, sem se preocupar com seus erros. E ele não tinha medo de amá-la por quem e o que ela era, sem mudar uma mínima coisa de sua mente.

 — Eu te amo. — ela disse a ele.

 — Isso porque você é esperta. Uma prova a mais — olha com quem você acabou. Comigo, em vez do idiota do Paris.

 Ela riu. Fazia bem ouvi-lo falar do seu amigo com diversão em vez de ressentimento ou ciúme.

 — Não tem nada “mais” a me dizer?

 — Sim. — Ele suspirou. — Aqui vai. Falando de Paris, tenho que ir aos Céus para ajudá-lo a encontrar sua não-tão-morta namorada. Prometi a ele. Te contei antes, certo?

 — Contou.

 — Bom. Quero que vá comigo.

 Como se ela tivesse que pensar nisso. E sua vontade não surgia de seu desejo de permanecer ao lado de Strider. Ela queria que Paris fosse feliz.

 — Claro.

 — Obrigado. E eu amo você também. Você não só me faz feliz, mas também faz meu demônio feliz. O alimenta de um modo que eu não sabia que ele precisava, fazendo-me mais forte que nunca. É por isso que estou desafiando a mim mesmo para ter certeza que você esteja em êxtase pelo resto dos seus dias.

 Ela gemeu.

 — Você tem que parar de fazer isso. — Se ele se machucasse — outra vez — por causa dela…

 — Não se preocupe. Vou deixar você me convencer das vantagens de não desafiar a mim mesmo, boneca.

 — E exatamente como você me deixará te convencer, hmm?

 — Não seja boba. Com seu corpo, é claro.

 Ela plantou pequenos beijos no seu rosto.

 — E eu irei. Mas não tem nada mais para me dizer?

 — Sim, mas como sabe disso?

 Ela bateu com um dedo contra sua têmpora.

— Esperta, lembra?

 Ele se sentou, inclinou e cavou no bolso das suas calças descartadas. Quando se endireitou, estendeu sua mão com uma corrente oscilando em seus dedos.

 — Aqui.

 — O que é isso? — Ela perguntou, sentando-se ao lado dele enquanto agarrava. Um disco de madeira fino pendurado nos elos. No centro havia uma intrincada, senão torta, borboleta azul, igual a que ele tinha tatuada no seu estômago e quadril.

 Um rubor coloriu suas bochechas.

 — É um colar. Bem, um medalhão. Não é o mesmo que sua mãe te deu, mas...

 — Os cortes em suas mãos. — ela exclamou. — Você mesmo o esculpiu.

 Ele concordou com a cabeça.

 Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto removia o que Tabitha deu a ela, depositou-o na mesinha de cabeceira e colocou o novo.

 — Este é melhor que o da minha mãe. — Ela lançou seus braços ao redor do seu pescoço. — Eu amo você, Strider. Antes estava só brincando, mas agora eu falo sério.

 Ele deu uma risada quente e rouca.

 — Na realidade, prefiro Bonin. E também amo você de verdade, Ruiva. Mais do que posso dizer.

 — Sabin tatuou o nome de Gwen em várias partes do seu corpo depois que se casaram, o perdedor. — Ela disse, acariciando com as pontas dos dedos a superfície do medalhão. — Eu sou tão sortuda.

 Ele enrijeceu.

 — Uh, sim, falando de casamento…

 — Finalmente. — disse ela com uma risada. — Mas se tem algo para confessar, não tem um momento melhor. Como quando você está a ponto de estar dentro de mim.

 — Você sabe que estamos conectados. — ele disse, estudando-a atentamente e ela assentiu. Ele relaxou. — Como?

 — Algumas pessoas fazem mal em guardar segredos e seria melhor que confessassem tudo para sua esposa carinhosa.

 — Kaia.

 — Está bem. Eu senti a conexão.

 — Aposto que é por causa de falar na mente um do outro. Eu tinha que saber. — Ele sorriu com aquilo. — E não se importa?

 — Importar? Eu quero ser sua esposa. Lembra das minhas metas quando era uma garotinha, não é? — Ela mordiscou seu lábio inferior. — Mas… talvez você “deveria” ter meu nome tatuado por todo o seu corpo. Quero dizer, adoro o medalhão, mas a tinta não seria nada mais que o glacê do bolo, provando que somos um casal melhor que Sabin e Gwen.

 — Considere isso feito.

 Quando ela montou na sua cintura, ele estendeu a mão e pegou seu queixo.

 — Agora, não estou duvidando de você, entenda, mas vou precisar que demonstre o seu amor. Você se lembra da promessa que me fez, não lembra?

 — Lembro. Só me diga como. — ela sussurrou ofegante, sabendo exatamente para onde ele estava indo com isso. — Quero dizer, eu te amo pela sua mente, claro, então acho que poderia me sentar aqui por horas, descrevendo como me deleito com cada uma das suas ideias de gênio. Então eu poderia...

 — Só por hoje, vamos fingir que você me ama pelo meu corpo. — Ele se deixou cair para trás, levando-a com ele. — Então, você pode começar de cima e trabalhar caminho abaixo. Ok, ok. Você também pode me mostrar como está agradecida pelo meu brilhantismo enquanto faz isso. Quero dizer, sua irmã está a salvo graças a mim. É o mínimo que você pode fazer.

Ela apenas cortou sua risada.

— Você não tem medo que te desafie?

Aqueles olhos azul marinho cintilaram.

— Boneca, eu estaria desapontado se não o fizesse.

 

Kane despertou instantaneamente, levantando-se. Pânico o inundou, talvez remanescente da queda dos pedregulhos — e se aprofundou quando viu as barras de ferro ao redor dele.

Barras? Uma jaula? Ele estava numa maldita jaula? O que… por que…? Antes que o pensamento se formasse completamente, viu que William, inconsciente e sangrando, estava do lado de fora da jaula e o levavam.

 O temor golpeou a Kane, frio, duro e mordaz. Se esticou para alcançá-lo com sua mão trêmula e tentou gritar para o seu amigo. Acorde. Lute. Mas nenhuma palavra emergiu.

Kane engoliu em seco, sua garganta cheia de serragem. E porra, a filha da puta da sua cabeça latejava. Seu estômago ameaçou se agitar a qualquer momento, seu corpo balançava da esquerda pra direita, esquerda pra direita.

 Notou que a jaula estava sendo levada por um corredor cavernoso. Então a vertigem o inundou e ele fechou os olhos. Mediu suas respirações, esperando que assim diminuísse. O ar era quente, úmido e repleto com os cheiros de putrefração e enxofre.

 Putrefação. Enxofre. Só podia significar uma coisa. Inferno. Eles o estavam levando para as profundezas do inferno.

Seu demônio rugiu.

Kane abriu as pálpebras e relanceou o olhar em volta dele, lentamente e com calma desta vez. Viu chifres e monstros alados ao lado da sua gaiola. Eles tinham escamas no lugar de pele e incandescentes olhos vermelhos.

Demônios. Lacaios.

O rugido em sua cabeça se converteu em riso. Seu demônio estava genuinamente se divertindo. Isso não era um bom sinal.

Deveria estar gemendo. Uma das criaturas deu uma olhada em sua direção e franziu o cenho, mostrando uns longos e brancos dentes de sabre. Um momento depois, uma mão o alcançou dentro da jaula e o arranhou na bochecha, abrindo sua pele.

Mais uma vez, Kane deslizou no esquecimento.

 

Uma coisa a menos em sua lista e então ele poderia ir atrás de Sienna, Paris pensou. Tudo que tinha que fazer era encontrar Viola, a Deusa Menor da Vida Após a Morte e descobrir como um homem como ele poderia ver as almas dos mortos.

Pelo que disseram, ela frequentava um bar nos céus. Estava indo para lá agora. Enquanto irrompia pelas ruas, sacou seu celular e enviou a Strider uma mensagem de texto.

Eu te libero de nosso juramento.

Apertou enviar e meteu o telefone no bolso. Depois que soube de Arca sobre os perigos dos dois reinos em que ele teria que entrar — e a possibilidade de nunca sair de nenhum deles — não arriscaria a vida do seu amigo. Especialmente agora que o cara acabou de se casar com a sua Harpia. Sim, Strider acabou de enviar uma mensagem de texto com a feliz novidade.

 Nunca terei isso, pensou tenebrosamente. Porém em vez de chafurdar no desespero, se abriu de volta a escuridão, que agora era uma constante dentro dele. Tanta escuridão. Uma névoa o varrendo, transformando-o num bastardo frio e duro.

 Ferir… matar…

 Bom. Ele precisava daquela frieza, agora mais do que nunca.

 Sem importar como, ele salvaria Sienna — inclusive às custas de sua própria vida.

 

 

                                                                  Gena Showalter

 



 

[1] Bee em inglês é abelha, fazendo referência ao som de Bianka.

[2] Taser é uma arma de eletro choque.

[3] Chopping block refere-se a uma série de TV australiana.

[4] Stompalicious um trocadilho que significa mais ou menos vibrar deliciosamente.

[5] .40 é um calibre de pistola.

[6] Red Hots são balas que em 1930 a Ferrara Candy Company Pan criou à base de canela bem ardidas.

[7] Boo-yah é a forma como as pessoas dizem “grande” ou “fantástico”, principalmente a maior parte da população masculina, mais frequentemente usada quando uma realização positiva ocorre, um canto de grande alegria e orgulho.

[8] Brew City traduzido ao pé da letra seria Cidade da Cerveja Artesanal, ou bebida fermentada.

[9] No original foi usada a expressão Rock on, que é um sinal de mão usado pelos roqueiros ( o dedo mínimo e o polegar erguidos ao mesmo tempo e os demais abaixados), e também é uma expressão usada entre amigos e conhecidos como uma saudação ou despedida. Neste contexto achei melhor traduzir como legal.

[10] Gwennie-bo- Bennie é uma marca de bonecas e de bichinhos de pelúcia.

[11] Haste de Paring traduzido seria Haste de Partir. Um artefato religioso de poder desconhecido.

[12] Cluster é um sistema onde dois ou mais computadores que trabalham como um único computador.

[13] Boot Camp é um campo de treinamento militar, mas aqui literalmente seria um Acampamento de Traseiros. Um trocadilho.

[14] Punhais de edição padrão são mais conhecidas como facas de combate, muito usadas por militares.

[15] Napalm foi desenvolvido na 2ª Guerra Mundial pelos pesquisadores de Harvard como uma alternativa mais barata de líquido inflamável. É feito à base de gasolina gelificada, um gel incendiário.

[16] Bow-chica-wow-wow se refere a uma música de Mike Posner com insinuações sexuais com conotações sonoplásticas. Mais ou menos como fazer sons e gestos sugestivos de sexo.

[17] Feijões faz referência ao conto infantil João e o pé de feijão, por causa do gigante.

[18] Limerick é um poema de composição burlesca e jocosa muitas vezes um epigrama, e seu sucesso é garantido quando uma boa risada é ouvida no final da declamação; optamos por manter a palavra original para dar mais sentido ao texto.

[19] Kaialand seria o País de Kaia.

[20] Um incêndio de 5 alarmes significa o número de postos de Bombeiros diferentes que foram chamados. Um alarme de incêndio 5 é tão grande que 5 quartéis diferentes foram chamados para combater o fogo.

[21] OPP é a letra de uma música de uma banda americana muito popular no início dos anos 90. Essa abreviação é de Other People Pussy que traduzido seria buceta de outras pessoas, dando a conotação de propriedade de outras pessoas, propriedade alheia.

[22] Noivazilla faz referência a noiva de Godzilla.

[23] USS é a Nave Enterprise de Guerra das Estrelas, ele faz referência ao Capitão Kirk.

[24] Bonin também conhecido como Ilhas Ogasawara no Japão. Ela faz referência por causa do Grupo Volcano, ou Ilha do Enxofre, que possui forte atividade vulcânica e numerosos vulcões submarinos, formando imensos campos de fontes hidrotermais. Ela faz referência a Strider ser um vulcão em atividade.

[25] Enfermeira Ratchet é a personagem principal do filme “Voando sobre um ninho de cucos” de 1975. Trata-se de uma enfermeira chefe tirana de uma instituição mental. Ela exerce poder total sobre os pacientes e quem a desagrada sofre em sua mãos. Se tornou popular por ser uma metáfora ao poder dos burocratas.

[26] Ranúnculo no original em inglês é buttercups que é uma flor do interior do noroeste dos EUA. Todas as espécies são venenosas quando ingeridas frescas por animais, mas seu sabor acre e as bolhas na boca causadas pelo seu veneno garantem que sejam deixadas em paz. Os sintomas incluem cólicas e bolhas graves nas mucosas e no trato gastrointestinal. Strider faz uma referência cruzada a queimadura que Kaia pode causar com seu “veneno”.

[27] Brew City é um dos apelidos de Milwaukee, a maior cidade de Wisconsin, EUA, que quer dizer Cidade da Cerveja, pois uma vez foi conhecida como a maior fabricante de cerveja do país.

[28] Travertino  e tufa são rochas calcárias usadas na decoração de exteriores e interiores.

  

                                                                                                   

 

 

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