Biblio "SEBO"
O caminho que procurava tinha início ao lado de uma casa bombardeada, razoavelmente nova, talvez uma cabana de ferroviário reconstruída depois da última guerra. Havia trilhas de animais na lama em volta de uma poça d'água dentro de um sulco deixado por um pneu. Provavelmente cabras. Por toda parte viam-se farrapos de pano listrado com as bordas enegrecidas, restos de cortinas ou roupas, e uma esquadria de janela quebrada em torno de um arbusto; era forte o cheiro de fuligem úmida. Era o caminho deles, o atalho. Ele dobrou o mapa e, ao se levantar após pegar o capote no chão e jogá-lo sobre os ombros, viu a coisa. Os outros, percebendo o movimento que ele fizera, se viraram e olharam na mesma direção. Era uma perna numa árvore. Um plátano grande, em que as folhas estavam começando a brotar. A perna estava a sete metros de altura, enfiada na primeira bifurcação do tronco, nua, cortada acima do joelho. Vista dali de baixo, não havia sinal de sangue nem de carne dilacerada. Era uma perna perfeita, clara, lisa, pequena o bastante para pertencer a uma criança. Do modo como estava colocada na forquilha, parecia estar em exibição, para eles, com fins didáticos: isto é uma perna.
Os dois cabos soltaram uma interjeição de repulsa e pegaram seus pertences. Recusavam-se a ser atraídos. Nos últimos dias, já tinham visto até demais.
Nettle, o motorista do caminhão, pegou outro cigarro e disse: "Então, pra que lado a gente vai, chefe?".
Era assim que o chamavam, para resolver a questão difícil da hierarquia. Ele penetrou no caminho com passos rápidos, quase correndo. Queria se distanciar, para que ninguém o visse vomitar, ou cagar, ele não sabia direito. Atrás de um celeiro, ao lado de uma pilha de telhas quebradas, seu corpo optou pela primeira alternativa. Sua sede era tamanha que ele não podia se dar ao luxo de perder tanto líquido. Bebeu de seu cantil e contornou o celeiro. Aproveitou aquele momento de solidão para examinar sua ferida. Era na ilharga direita, logo abaixo das costelas, do tamanho de meia coroa. Não estava com um aspecto tão mau assim, depois que ele lavou o sangue ressecado da véspera. Embora a pele em torno estivesse vermelha, o ferimento não estava muito inchado. Porém havia alguma coisa ali dentro. Ele sentia quando caminhava. Talvez algum estilhaço.
Quando os cabos o alcançaram, ele já havia enfiado a camisa dentro das calças e fingia examinar o mapa. Na companhia deles o mapa era seu único pretexto de privacidade. "Pra que essa pressa toda?" "Ele viu alguma mulher." "É o mapa. Ele está na dúvida de novo, porra." "Não há nenhuma dúvida, meus caros. O caminho é esse." Pegou um cigarro, e o cabo Mace acendeu-o para ele. Então, para que ninguém visse o tremor de suas mãos, Robbie Turner foi adiante, e os outros o seguiram, tal como o estavam seguindo havia dois dias. Ou seriam três? Turner era subalterno em relação a eles, porém os outros o seguiam e faziam tudo o que ele sugeria; para proteger seu amor-próprio, brincavam com ele. Quando caminhavam pelas estradas ou atravessavam os campos e ele ficava muito tempo sem dizer nada, Mace perguntava: "Chefe, pensando em mulher de novo?". E Nettle respondia: "Está na cara que está, está na cara". Eram citadinos que não gostavam do campo e sentiam-se perdidos ali. Os pontos cardeais não significavam nada para eles. Era uma parte do treinamento que não haviam assimilado. Haviam concluído que, para chegar até o litoral, precisavam de Turner. Não era fácil para eles. Turner agia como um oficial, mas não ostentava uma única divisa. Na primeira noite, quando estavam no abrigo para bicicletas de uma escola incendiada, o cabo Nettle disse: "Como é que um soldado raso como você fala que nem um oficial?".
Turner não precisava dar satisfação a eles. Queria sobreviver, tinha um bom motivo para sobreviver, e pouco se importava se eles o seguissem ou não. Os dois haviam conseguido ficar com seus fuzis. Já era alguma coisa, e Mace era um homenzarrão forte, de ombros largos, com mãos capazes de abarcar uma oitava e meia no piano de bar que ele dizia tocar. Turner também não se incomodava com as brincadeiras. A única coisa que lhe interessava agora, enquanto seguiam por aquele caminho secundário e se afastavam da estrada principal, era esquecer aquela perna. Chegaram a um outro caminho que passava por entre dois muros de pedra e descia até um vale que não podia ser visto da estrada. No fundo do vale passava um riacho de águas pardacentas, que eles atravessaram pisando em pedras que pareciam fixas num tapete de plantas miúdas.
O caminho foi virando para o oeste à medida que iam subindo a encosta do vale, sempre ladeados pelos muros anti-qüíssimos. Mais adiante, o céu começava a limpar um pouco, brilhando como uma promessa. Tudo o mais era cinzento. Quando se aproximavam do alto, atravessando um arvoredo de castanheiras, o sol já baixo surgiu por entre as nuvens e captou a cena, ofuscando as vistas dos três soldados. Poderia ter sido tão bonito, terminar um dia de caminhada no interior da França encontrando o sol poente. Sempre um ato de esperança.
Saindo do arvoredo, ouviram bombardeiros se aproximando; assim, voltaram para baixo das árvores e ficaram à espera, fumando. Dali não podiam divisar os aviões, porém tinham uma bela vista à sua frente. Os morros que se estendiam pela paisagem eram bem baixos, meras rugas na superfície, ecos fracos de acidentes enormes mais distantes. Cada dobra do terreno era mais pálida do que a anterior. Turner via uma expansão de tons cinzentos e azuis que terminava numa névoa na vizinhança do sol, como uma cena oriental num prato de porcelana.
Meia hora depois estavam atravessando uma serra mais larga, que se estendia para o norte e os levou por fim a um outro vale, com um outro riacho no fundo. Este fluía com mais força, e os homens o atravessaram por uma ponte de pedra recoberta de estérco de vaca. Os cabos, que não estavam tão cansados quanto ele, se divertiram, fingindo nojo. Um deles jogou um pedaço de bosta seca nas costas de Turner. Ele não olhou para trás. Os farrapos de pano — estava começando a pensar — talvez fossem de um pijama de criança. Um menino. Os bombardeios costumavam ocorrer pouco depois do amanhecer. Estava tentando afastar aquele pensamento, mas não conseguia. Um menino francês dormindo em sua cama. Turner queria colocar mais distância entre ele próprio e aquela cabana bombardeada. Agora não eram apenas o exército e a força aérea alemães que o estavam perseguindo. Se houvesse lua, ele gostaria de caminhar a noite toda. Os cabos não aprovariam a idéia. Talvez tivesse chegado a hora de se livrar deles.
Depois da ponte, rio abaixo, havia uma fileira de choupos cujas copas brilhavam aos últimos raios do sol. Os soldados seguiram na direção oposta e logo estavam num caminho estreito que se afastava do riacho. Foram seguindo a senda tortuosa, por entre arbustos de folhas gordas e reluzentes. Havia também carvalhos mirrados, em que as folhas apenas começavam a surgir. As plantas que pisavam tinham um cheiro adocicado e úmido; ocorreu a Turner que devia haver algo de errado naquele lugar, por ser tão diferente de tudo o que já tinham visto antes.
Mais adiante ouviram máquinas zumbindo. O ruído foi ficando mais alto, mais irado, como o som de volantes rápidos ou turbinas elétricas girando em altíssima velocidade. Estavam penetrando num salão imenso, cheio de ruídos e força.
"Abelhas!", gritou ele. Teve de se virar e repetir para que os outros o ouvissem. O ar já estava mais escuro. Ele conhecia as histórias. Se uma delas se prendesse no cabelo de uma pessoa e a picasse, ela enviava uma mensagem química para as outras antes de morrer, e todas as abelhas que a captassem inevitavelmente vinham picar e morrer no mesmo lugar. Convocação geral! Depois de tantos perigos, aquilo era uma espécie de insulto. Os três cobriram as cabeças com os capotes e atravessaram correndo o enxame. Ainda em meio às abelhas, chegaram a uma vala fedorenta, cheia de lama, que atravessaram por uma prancha bamba. Alcançaram os fundos de um celeiro, onde de repente se fez o silêncio. Mais adiante havia um pátio de fazenda. Tão logo chegaram, cães começaram a latir, e uma velha veio correndo, tentando enxotar os homens como se fossem galinhas. Agora os cabos dependiam do francês de Turner. Ele avançou e esperou até que a mulher o alcançasse. Tinha ouvido histórias de civis que vendiam água aos soldados a dez francos a garrafa, mas nunca vivera nada semelhante. Os franceses com quem tivera contato eram generosos ou então estavam entregues à sua própria desgraça. A velha era frágil, porém enérgica. Tinha um rosto duro e enrugado, e um olhar feroz. Sua voz era áspera.
"Cest impossible, M'sieu. Vous ne pouvez pas rester ici."
"Vamos ficar no celeiro. Precisamos de água, vinho, pão, queijo e qualquer outra coisa que a senhora puder nos dar."
"Impossível!"
Disse ele em voz baixa: "Estamos lutando pela França".
"Não pode ficar aqui."
"Vamos embora quando o sol nascer. Os alemães ainda estão..."
"Não são os alemães, M'sieu. São os meus filhos. Eles são uns animais. E vão estar de volta daqui a pouco."
Turner passou pela mulher e foi até a bomba-d'água, que ficava num canto do pátio, perto da cozinha. Nettle e Mace o seguiram. Enquanto ele bebia, uma menina de uns dez anos e um irmão pequeno que lhe segurava a mão ficaram olhando para ele da porta. Depois que terminou e encheu seu cantil, Turner sorriu para as crianças e elas fugiram. Os cabos ocuparam a bomba juntos, bebendo ao mesmo tempo. De repente a mulher estava atrás dele, puxando seu cotovelo. Antes que ela começasse a falar de novo, ele disse: "Por favor, traga o que pedimos, senão vamos entrar e pegar nós mesmos".
"Meus filhos são uns brutos. Eles vão me matar."
Turner teve vontade de dizer: pois que matem. Em vez disso, porém, foi andando e disse, virando-se para trás: "Eu falo com eles".
"E depois, M'sieu, eles vão matar o senhor. Vão trucidar o senhor."
O cabo Mace trabalhava como cozinheiro na mesma unidade do cabo Nettle. Antes de se alistar, trabalhava na Heal's, um estabelecimento atacadista na Tottenham Court Road. Disse que entendia alguma coisa de conforto, e no celeiro foi ele quem preparou as acomodações. Turner teria se contentado em se jogar sobre a palha. Mace encontrou uma pilha de sacos e, com a ajuda de Nettle, encheu-os de modo a formar três colchões. Usou fardos de feno à guisa de cabeceiras, levantando-os com uma só mão. Improvisou uma mesa instalando uma porta sobre pilhas de tijolos. Tirou meia vela do bolso.
"Vamos aproveitar pra ter conforto", murmurava ele de vez em quando. Era a primeira vez que falavam sobre alguma coisa que não fosse sexo. Os três homens deitaram e ficaram fumando, à espera. Agora que não tinha mais sede, pensavam na comida que iam ganhar; um ouvia o estômago do outro roncando na penumbra, o que os fazia rir. Turner contou-lhes a conversa que tivera com a velha, relatando suas palavras a respeito dos filhos.
"Deve ser tudo quinta-coluna", disse Nettle. Ele só parecia pequeno ao lado do amigo, porém tinha as feições bem definidas dos homens pequenos e também uma expressão simpática de roedor, acentuada pelo hábito de apoiar os dentes da arcada superior no lábio inferior.
"Ou então nazistas franceses. Simpatizantes dos alemães. Que nem o nosso Mosley", disse Mace.
Ficaram calados por algum tempo, e então Mace acrescentou: "Ou então são que nem caipira em tudo que é lugar, que nasce de miolo mole porque o pai é primo da mãe".
"Seja lá o que for", disse Turner, "acho melhor vocês testarem as armas e ficarem com elas bem à mão."
Os dois obedeceram. Mace acendeu a vela, e eles executaram os procedimentos rotineiros. Turner examinou sua pistola e deixou-a a seu alcance. Quando terminaram, os cabos apoiaram seus Lee-Enfields num caixote e deitaram-se de novo. Algum tempo depois entrou a menina com um cesto. Largou-o junto à porta do celeiro e foi embora correndo. Nettle pegou o cesto e foi colocando na mesa o que nele havia. Um pão preto redondo, um pedaço pequeno de queijo macio, uma cebola e uma garrafa de vinho. O pão era duro de cortar e tinha gosto de mofo. O queijo estava bom, porém foi devorado em segundos. A garrafa foi passada de mão em mão, e logo estava vazia. Assim, ficaram mastigando pão velho com cebola.
Nettle disse: "Isso não se dá nem pra um cachorro, porra".
"Eu vou lá", disse Turner, "e pego alguma coisa melhor."
"A gente vai também."
Porém permaneceram por algum tempo deitados em silêncio. Ninguém tinha vontade de enfrentar a velha naquele momento.
Então ouviram passos, viraram-se e perceberam dois homens parados na entrada. Cada um tinha uma coisa na mão, talvez um porrete, ou uma arma de fogo. Naquela luz fraca não dava para ver. Também não conseguiam enxergar os rostos dos irmãos franceses.
A voz era suave. "Bonsoir, Messieurs."
"Bonsoir."
Ao levantar-se de sua cama de palha, Turner pegou o revólver. Os cabos estenderam as mãos em direção aos fuzis. "Calma aí", sussurrou ele.
"Anglais? Belges?"
"Anglais."
"Nós temos uma coisa para vocês."
"Que coisa?"
"O que é que ele está dizendo?", perguntou um dos cabos.
"Que eles têm uma coisa para nós."
"Puta merda."
Os homens deram mais dois passos para a frente e levantaram o que tinham nas mãos. Certamente seriam armas. Turner destravou sua pistola. Ouviu Mace e Nettle fazendo o mesmo. "Calma", murmurou.
"Larguem as suas armas, Messieurs."
"Larguem as suas."
"Espere um minuto."
O vulto que havia falado estava com a mão no bolso. Tirou uma lanterna e apontou-a não para os soldados, e sim para o irmão, para o que ele tinha na mão. Uma bisnaga. E para o que levava na outra mão, um saco de lona. Então mostrou-lhes as duas baguetes que ele próprio trazia.
"Temos também azeitona, queijo, patê, tomate e presunto. E, naturalmente, vinho. Vive TAngleterre."
"Ah — vive Ia France."
Sentaram-se em torno da mesa de Mace, a qual os franceses, Henri e Jean-Marie Bonnet, educadamente, professaram admirar; elogiaram também os colchões. Eram homens baixos e atarracados, cinqüentões. Henri usava óculos, o que Nettle disse achar estranho num fazendeiro. Turner não traduziu o comentário. Além de vinho, traziam também copos de vidro. Os cinco homens ergueram os copos num brinde aos exércitos francês e britânico e à derrota da Alemanha. Os soldados comiam, observados pelos irmãos. Por intermédio de Turner, Mace disse aos franceses que nunca tinha provado, nem sequer ouvido falar, de patê de fígado de ganso, mas que de agora em diante não ia querer saber de outra coisa. Os franceses sorriram, porém estavam visivelmente constrangidos e não pareciam dispostos a se embebedar. Disseram que tinham ido no caminhão da fazenda até um vilarejo perto de Arras para procurar uma prima jovem e seus filhos. Tinha havido uma grande batalha na cidade, porém eles não faziam idéia de quem estava tentando tomá-la, quem a estava defendendo e quem estava ganhando. Seguiam por estradas secundárias para evitar o caos dos refugiados. Viram casas de fazenda incendiadas, depois encontraram mais de dez soldados ingleses mortos na estrada. Precisaram saltar do caminhão e arrastar os corpos para a beira da estrada, senão teriam de passar por cima deles. Mas dois dos corpos estavam quase cortados ao meio. Certamente teria sido um grande ataque de metralhadoras, talvez executado do ar, talvez uma emboscada. Quando voltaram para o caminhão, Henri vomitou dentro da cabine, e Jean-Marie, que estava dirigindo, entrou em pânico e jogou o veículo dentro de uma vala. Foram até uma aldeia, pediram a um fazendeiro dois cavalos emprestados e tiraram o Renault do buraco. Isso levou duas horas. Quando recomeçaram a viagem, acharam tanques e carros blindados incendiados, alguns alemães, outros britânicos e franceses, porém não viram soldados. A batalha havia seguido adiante.
Quando chegaram ao vilarejo, já entardecia. O lugar havia sido totalmente destruído e encontrava-se abandonado. A casa da prima estava destroçada, com furos de bala pelas paredes, porém o telhado ainda permanecia no lugar. Entraram em todos os cômodos e constataram aliviados que não havia ninguém ali. Certamente ela teria levado as crianças e se juntado aos milhares de refugiados nas estradas. Temendo dirigir à noite, estacionaram num bosque e tentaram dormir na cabine. Passaram a noite inteira ouvindo a artilharia bombardeando Arras. Parecia impossível que alguém, ou alguma coisa, conseguisse sobreviver àquele ataque. Voltaram por uma outra rota, muito mais longa, para evitar passar pelos soldados mortos. A essa altura, explicou Henri, ele e seu irmão estavam exaustos. Quando fechavam os olhos, viam aqueles corpos mutilados.
Jean-Marie encheu os copos outra vez. O relato, com a interpretação simultânea de Turner, levara quase uma hora. Toda a comida tinha sido consumida. Turner pensou em contar a eles aquele único detalhe que o assombrava. Porém não queria acrescentar mais um horror, nem tampouco dar vida à imagem quando ela permanecia distante, mantida afastada pelo vinho e pela sensação de camaradagem. Em vez disso, contou-lhes que havia se desgarrado de sua unidade no início da retirada, durante um bombardeio executado por Stukas. Não mencionou seu ferimento para que os cabos não ficassem sabendo. Disse também que estavam caminhando pelo campo até Dunquerque para evitar os bombardeiros que atacavam as estradas principais.
Disse Jean-Marie: "Então é verdade o que estão dizendo. Vocês estão indo embora".
"Nós vamos voltar." Porém não acreditava em suas próprias palavras.
O vinho estava exercendo seu efeito sobre o cabo Nettle. Ele começou a fazer um elogio confuso do "mulherio francês" — elas eram abundantes, fáceis, deliciosas. Pura fantasia. Os irmãos olharam para Turner.
"Ele está dizendo que as mulheres francesas são as mais bonitas do mundo."
Os irmãos concordaram com a cabeça, muito sérios, e levantaram os copos.
Todos ficaram calados por alguns momentos. Aquela noitada estava quase terminando. Ouviam os sons noturnos a que já haviam se acostumado — o ronco da artilharia, tiros dispersos, uma explosão forte ao longe —, provavelmente sapadores explodindo uma ponte ao fazer a retirada.
"Pergunta sobre a mãe deles", sugeriu o cabo Mace. "Vamos pôr essa história em pratos limpos."
"Nós éramos três irmãos", explicou Henri. "O mais velho, Paul, o primeiro filho que ela teve, morreu perto de Verdun em 1915. Um obus caiu bem em cima dele. Não sobrou nada para enterrar, só o capacete. Nós dois tivemos sorte. Escapamos sem um arranhão. Desde essa época ela odeia soldado. Mas agora, aos oitenta e três anos, está ficando com a cabeça ruim, e isso virou uma obsessão. Francês, inglês, belga, alemão — ela não faz distinção nenhuma. Para ela, é tudo a mesma coisa. A gente tem medo que os alemães cheguem e ela parta para cima deles com um forcado e leve um tiro."
Exaustos, os dois irmãos se levantaram. Os soldados os imitaram.
Disse Jean-Marie: "Nós gostaríamos de receber vocês na mesa da cozinha. Mas, para fazer isso, só trancando mamãe no quarto".
"Mas foi um banquete magnífico", disse Turner.
Nettle estava cochichando no ouvido de Mace, que concordava com a cabeça. Nettle pegou em sua mochila dois pacotes de cigarros. Claro — era o gesto obrigatório. Os franceses, por delicadeza, fingiram recusar, mas Nettle contornou a mesa e colocou os presentes em seus braços. Pediu que Turner traduzisse.
"Só vocês vendo, quando chegou a ordem de destruir os estoques. Vinte mil cigarros. A gente pegou o que queria."
Todo um exército estava fugindo para o litoral, armado de cigarros para enganar a fome.
Os franceses agradeceram efusivamente, elogiaram o francês de Turner, depois se debruçaram sobre a mesa para recolher os copos e as garrafas vazias, que colocaram no saco de lona. Não havia sentido em fingir que voltariam a se ver.
"Vamos embora assim que o dia raiar", disse Turner. "Por isso queremos nos despedir."
Trocaram um aperto de mãos.
Henri Bonnet comentou: "Toda aquela luta vinte e cinco anos atrás. Tantos mortos. Agora os alemães estão de volta na França. Dentro de dois dias vão estar aqui, levando tudo o que temos. Quem poderia imaginar?".
Pela primeira vez, Turner sentiu toda a ignomínia da retirada. Teve vergonha. Disse, com ainda menos convicção do que antes: "Vamos voltar para expulsar todos eles, eu prometo".
Os irmãos fizeram que sim e, com os últimos sorrisos de adeus, afastaram-se do frágil círculo de luz em torno da vela, cruzando a escuridão em direção à porta aberta do celeiro. Os copos tilintavam ao chocar-se com as garrafas dentro do saco.
Ele ficou um bom tempo fumando deitado, olhando para o negrume do telhado cavernoso. Os roncos dos cabos subiam e desciam em contraponto. Estava exausto, mas não tinha sono. A ferida latejava de modo incômodo, com pulsações precisas e dolorosas. O que havia ali dentro, fosse o que fosse, era afiado e estava próximo à superfície; dava vontade de tocá-lo com a ponta do dedo. A exaustão o deixava vulnerável aos pensamentos que mais queria evitar. Estava pensando no menino francês dormindo em sua cama e na indiferença com que os homens lançavam bombas sobre uma paisagem. Ou sobre uma cabana adormecida ao lado de uma estrada de ferro, sem saber nem querer saber quem estava dentro dela. Ele próprio já vira as unidades da Royal Artillery em ação, grupos coesos, que trabalhavam vinte e quatro horas por dia, orgulhosos da velocidade com que conseguiam montar acampamento, de sua disciplina, das sessões de ordem-unida, do treinamento, do trabalho de equipe. Eles nunca precisavam ver o resultado de tudo aquilo — um menino desaparecido. Desaparecido. Enquanto formava a palavra em seus pensamentos, o sono se apoderou dele, mas apenas por alguns segundos. Logo em seguida estava acordado, deitado na cama, olhando para cima, vendo a escuridão em sua cela. Era capaz de sentir que estava lá outra vez. Sentia o cheiro do chão de concreto, do mijo no balde, da tinta nas paredes, e ouvia os roncos dos outros prisioneiros do corredor. Três anos e meio de noites assim, sem conseguir dormir, pensando em outro menino desaparecido, outra vida desaparecida que outrora fora sua, aguardando o amanhecer, a hora de esvaziar o balde, outro dia desperdiçado. Ele não sabia como conseguira sobreviver àquela idiotice cotidiana. A idiotice e a claus-trofobia. A mão apertando sua garganta. Estar ali, abrigado num celeiro, com um exército em retirada, ali onde uma perna de criança no alto de uma árvore podia ser ignorada por homens normais, onde todo um país, toda uma civilização estava prestes a cair, era melhor do que estar lá, numa cama estreita sob uma luz elétrica fraca, esperando por nada. Ali havia vales cobertos de árvores, riachos, choupos ensolarados que ninguém podia tirar dele, a menos que o matassem. E havia esperança. Vou esperar por você. Volte. Havia uma possibilidade, apenas uma possibilidade, de voltar. Em seu bolso levava a última carta dela, com o endereço novo. Era por isso que ele precisava sobreviver, usar sua astúcia e evitar as estradas principais onde os bombardeiros, voando em círculos, aguardavam suas presas como aves de rapina.
Mais tarde, jogou para o lado o capote, levantou-se, calçou as botas e saiu do celeiro tateando para urinar lá fora. Estava tonto de cansaço, mas ainda não estava preparado para dormir. Indiferente aos cachorros que rosnavam, encontrou um caminho que levava a um trecho mais alto, coberto de grama, e de lá ficou a contemplar as luzes que brilhavam no céu meridional. Aquela tempestade anunciava a aproximação dos carros blindados alemães. Ele levou a mão ao bolso de cima, onde o poema que ela mandara estava dobrado dentro da carta. No pesadelo da noite sem fim, Todos os cães da Europa a latir. As outras cartas estavam no bolso de dentro do capote. Subiu na roda de um trailer abandonado para ver outras partes do céu. Os brilhos vinham de todos os lados, menos do Norte. O exército derrotado fugia por um corredor que fatalmente se tornaria mais estreito e em breve seria fechado. Não haveria possibilidade de fuga para os retardatários. Na melhor das hipóteses, a prisão outra vez. No campo de prisioneiros. Dessa vez ele não sobreviveria. Quando a França caísse, não haveria perspectiva de fim da guerra. Não haveria mais cartas, não haveria mais retorno. Não poderia negociar um encurtamento da pena em troca do alistamento na infantaria. A mão na garganta outra vez. Pela frente, mil, milhares de noites na prisão, revelando o passado na insônia, aguardando o dia em que sua vida recomeçaria, sem saber se esse dia haveria de chegar. Talvez devesse partir agora antes que fosse tarde demais, e seguir em frente, a noite inteira o dia inteiro, até chegar à Mancha. Escapulir, entregar os cabos à sorte. Virou-se e começou a descer a ladeira, e pensou melhor. Mal dava para enxergar o chão à sua frente. Ele não conseguiria avançar muito na escuridão e poderia muito bem quebrar uma perna. E talvez os cabos não fossem tão inúteis — Mace e seus colchões de palha, Nettle que lembrara de dar o presente aos irmãos.
Guiado pelos roncos, voltou para a cama. Mas mesmo assim não conseguiu dormir, apenas cochilando em mergulhos rápidos dos quais emergia com a cabeça cheia de pensamentos que não lhe era possível escolher nem conduzir. Eram eles que o perseguiam, os velhos temas. Mais uma vez, seu único encontro com ela. Seis dias fora da prisão, um dia antes de apresentar-se ao exército perto de Aldershot. Quando combinaram se encontrar na casa de chá Joe Lyons no Strand, em 1939, já não se viam havia três anos e meio. Ele chegou cedo e escolheu um lugar no canto de onde dava para ver a entrada. A liberdade ainda era uma coisa nova. O ritmo e os ruídos, as cores dos casacos e das saias, as vozes alegres e estridentes das pessoas que faziam compras no West End, a simpatia da garçonete que o atendeu, o espaço abundante, a ausência de ameaças — ele relaxou e se entregou ao abraço do cotidiano. Havia ali uma beleza a que somente ele sabia dar valor.
Durante o tempo na prisão, a única mulher que podia visitá-lo era sua mãe. Para que ele não ficasse excitado, diziam. Cecília escrevia todas as semanas. Apaixonado por ela, disposto a conservar a sanidade mental para ela, naturalmente apaixonara-se por suas palavras. Quando lhe respondia, fingia ser quem era antes, simulando uma sanidade mentirosa. Temendo o psiquiatra que censurava a correspondência, jamais se permitiam sensualidade, nem qualquer emoção. Aquela prisão era considerada moderna, progressista, apesar do ambiente friamente vitoriano. O diagnóstico que fora feito de seu caso, com precisão clínica, era de excesso mórbido de sexualidade, de modo que ele precisava não apenas de punição, como também de ajuda. Era importante que não fosse estimulado. Algumas cartas — tanto dele quanto dela — foram confiscadas por conterem alguma tímida manifestação de afeto. Por isso escreviam sobre literatura, utilizando personagens como uma espécie de código. No tempo de Cambridge, um passava pelo outro na rua. Tantos livros, tantos casais felizes ou trágicos sobre os quais jamais haviam conversado! Tristão e Isolda, o duque Orsino e Olívia (e Malvolio também), Tróilo e Créssida, o sr. Knightley e Emma, Vênus e Adônis. Turner e Tallis. Uma vez, em desespero, referiu-se a Prometeu, acorrentado a uma pedra, seu fígado devorado todos os dias por um abutre. As vezes ela era a paciente Griselda. As menções a "um canto silencioso de uma biblioteca" significavam, naquele código, o êxtase sexual. Relatavam também amorosamente suas rotinas cotidianas, com todos os seus detalhes tediosos. Ele falava sobre tudo da vida na prisão, porém jamais mencionava o que havia de idiotice naquilo. Não era preciso. Nunca disse a ela que temia afundar de vez. Também isso estava claro. Ela jamais escrevia que o amava, se bem que o faria se achasse que a carta não seria censurada. Mas ele sabia.
Ela contou que havia se separado da família. Nunca mais voltaria a falar com os pais e os irmãos. Ele acompanhou de perto os passos que ela tomou até se formar enfermeira. Quando ela escreveu "Fui à biblioteca hoje pegar o livro de anatomia sobre o qual lhe falei. Encontrei um canto silencioso e fingi estar lendo", ele sabia que ela estava se alimentando das mesmas lembranças que o consumiam todas as noites, sob os finos cobertores da prisão.
Quando ela entrou na casa de chá, com seu boné de enfermeira, ele despertou de repente de seu estupor agradável, levantou-se rápido demais e derrubou o chá. Incomodava-o aquele terno tão grande que sua mãe economizara para comprar. O paletó parecia não tocar seus ombros em nenhum ponto. Sentaram-se, entreolharam-se, sorriram e desviaram a vista. Robbie e Cecília vinham se amando havia anos — por correspondência. Naquelas cartas em código, haviam se aproximado muito, mas agora aquela proximidade parecia artificial, quando começaram a trocar banalidades, num catecismo inevitável de perguntas e respostas educadas. A medida que a distância entre eles ia se abrindo, davam-se conta do quanto haviam se adiantado de si próprios nas cartas. Aquele momento fora imaginado e desejado por tanto tempo que agora não podia estar à altura das expectativas. Ele vivera fora do mundo e não tinha confiança para dar um passo atrás e se valer do pensamento maior. Eu amo você, e você salvou minha vida. Perguntou onde ela morava. Ela respondeu.
"Então, você se dá bem com a proprietária?" Ele não conseguia encontrar nada melhor; temia o silêncio que poderia se instalar e o mal-estar que prenunciaria a afirmação dela de que era bom vê-lo de novo, mas que agora ela teria de voltar para o trabalho. Tudo o que tinham dependia de uns poucos minutos passados numa biblioteca anos antes. Seria frágil demais? Ela poderia com facilidade voltar a ser uma espécie de irmã. Estaria decepcionada? Ele havia perdido peso. Havia encolhido sob todos os aspectos. A prisão o fazia sentir desprezo por si próprio, enquanto ela parecia tão linda quanto era em suas lembranças, principalmente com aquele uniforme de enfermeira. Mas ela estava terrivelmente nervosa também, incapaz de contornar as banalidades. Em vez disso, tentava falar com bom humor da irritabilidade da proprietária. Depois de outros comentários do mesmo gênero, ela de fato consultou o pequeno relógio que usava pendurado sobre o seio esquerdo e disse que o intervalo do almoço logo terminaria. Tinha se passado meia hora.
Ele caminhou com ela até a Whitehall, em direção ao ponto de ônibus. Naqueles últimos minutos preciosos, ele passou-lhe seu endereço, uma seqüência árida de siglas e números. Explicou que só voltaria a ter licença depois que terminasse o treinamento básico. Então teria duas semanas. Ela olhava para ele balançando a cabeça, numa espécie de irritação, até que, por fim ele tomou-lhe a mão e apertou-a. Aquele gesto tinha de conter tudo o que não fora dito, e ela respondeu com um aperto também. O ônibus chegou, e ela não soltou a mão. Estavam parados face a face. Ele beijou-a, primeiro de leve, mas depois aproximou-se mais, e, quando suas línguas se tocaram, uma parte desincorporada de si próprio sentiu uma gratidão abjeta, pois ele sabia que tinha agora no banco de sua memória uma lembrança a que haveria de recorrer por meses. Era o que fazia agora, num celeiro na França, altas horas da madrugada. Abraçaram-se com mais força e continuaram a se beijar enquanto as pessoas passavam por eles na fila. Um gozador gritou alguma coisa no ouvido dele. Ela chorava, suas lágrimas caíam no rosto dele, sua dor retesava seus lábios, apertados contra os dele. Chegou outro ônibus. Ela se desprendeu, apertou-lhe o pulso, entrou no ônibus sem dizer palavra e sem olhar para trás. Ele a viu encontrar um lugar e, quando o ônibus partiu, deu-se conta de que deveria ter ido com ela até o hospital. Havia desperdiçado minutos de sua companhia. Precisava reaprender a pensar e agir por conta própria. Começou a correr pela Whitehall, na esperança de alcançar um ônibus na próxima parada. Porém o ônibus já estava muito distante, e logo desapareceu perto da Parlia-ment Square.
Durante o período de treinamento, continuaram a se corresponder. Liberados da censura e da necessidade de ser inventivos, avançavam com cautela. Impacientes com aquela vida limitada ao papel, cônscios das dificuldades, temiam ir muito além do toque de mão e do único beijo trocado no ponto de ônibus. Diziam que se amavam, tratavam-se por "querido" e "amor", e sabiam que no futuro estariam juntos, porém evitavam intimidades mais ousadas. O importante agora era permanecerem em contato até chegarem aquelas duas semanas. Por meio de uma ex-colega de faculdade, ela encontrou uma cabana em Wiltshire onde eles poderiam ficar, e, embora não pensassem em outra coisa nos momentos livres, tentavam não mencionar o assunto nas cartas, para evitar o desgaste. Agora ela estava trabalhando na maternidade, e a cada dia vivia milagres prosaicos, bem como momentos dramáticos e hilariantes. Havia tragédias, também, em comparação com as quais os problemas deles se reduziam a nada: crianças que nasciam mortas, mães que morriam no parto, jovens chorando nos corredores, mães adolescentes atônitas expulsas de casa, recém-nascidos deformados que evocavam vergonha e amor numa mistura confusa. Quando ela relatava um resultado feliz, aquele momento em que a batalha terminava e a mãe exausta recebia nos braços seu filho pela primeira vez, contemplando em êxtase o rostinho novo, era um prenúncio tácito do futuro de Cecília, o futuro que ela compartilharia com ele, que dava às suas cartas aquele poder simples, embora na verdade ele pensasse menos em nascimento que em concepção.
Ele, por sua vez, descrevia a praça de armas, o polígono de tiro, as sessões de ordem-unida, as mesquinharias da disciplina, o alojamento. Não podia receber treinamento para o oficialato, o que era bom, pois mais cedo ou mais tarde teria encontrado no refeitório dos oficiais alguém que conhecesse seu passado. Como soldado raso, era anônimo, e, como veio a constatar, ter passado pela prisão lhe proporcionava um certo status. Deu-se conta de que já estava bem adaptado ao regime militar, aos terrores da revista geral, da necessidade de dobrar os cobertores de modo a formar um quadrado perfeito, todas as pontas alinhadas. Ao contrário de seus camaradas, não achava a comida nada má. Os dias, embora cansativos, pareciam-lhe muito variados. As marchas pelo interior lhe traziam um prazer que ele não ousava manifestar para os outros recrutas. Estava ganhando peso e força. Sua instrução e sua idade eram desvantagens, porém seu passado era uma compensação, e ninguém o incomodava. Pelo contrário, era considerado o sujeito mais velho e mais sensato, que sabia lidar com "eles", que sabia, como ninguém, preencher um formulário. Tal como Cecilia, em suas cartas Robbie limitava-se a relatar a rotina cotidiana, interrompida por um ou outro episódio engraçado ou preocupante: o recruta que se apresentou à parada com um pé de bota faltando; o carneiro que apareceu correndo enlouquecido dentro do alojamento e ninguém conseguiu expulsar; o sargento instrutor que quase foi atingido por uma bala no polígono de tiro.
Porém havia um evento externo, uma sombra que era inevitável mencionar. Desde os acontecimentos de Munique no ano anterior, ele tinha certeza, como todo o mundo, de que haveria guerra. O treinamento estava sendo acelerado e reduzido ao essencial; um novo campo de treinamento estava sendo ampliado para receber mais recrutas. A ansiedade que ele sentia não tinha ligação com a possibilidade de ter de lutar, e sim com a ameaça ao sonho das duas semanas em Wiltshire. Ela por sua vez, refletia o mesmo medo em seus relatos dos preparativos do hospital — mais camas, cursos especiais, treinamentos de emergência. Porém para eles dois havia também algo de fantástico naquela possibilidade, remota embora provável. De novo? Não é possível — era o que todos diziam. E assim continuavam a se apegar às suas esperanças.
Havia uma outra questão, mais próxima, que o preocupava. Cecília não falava com os pais nem com os irmãos desde novembro de 1935, quando Robbie foi condenado. Recusava-se a escrever para eles, nem sequer lhes dava seu endereço. As cartas chegavam até ela por meio da mãe dele, que vendera o bangalô e se mudara para outra cidadezinha. Era Grace que avisava à família que Cecília estava bem e não queria qualquer contato com eles. Leon veio ao hospital uma vez, porém ela não quis falar com ele. Seu irmão passou a tarde inteira aguardando do lado de fora do portão. Quando Cecília o viu, ela voltou para dentro e lá ficou até que ele fosse embora. Na manhã seguinte ele estava parado à porta do albergue das enfermeiras. Ela passou por ele e nem sequer olhou em sua direção. Leon segurou-a pelo cotovelo, porém ela se livrou dele com um safanão e seguiu adiante, aparentemente indiferente às súplicas do irmão.
Robbie sabia melhor do que ninguém o quanto ela gostava do irmão, como era ligada à família, como eram importantes para ela a casa e o parque. Ele jamais poderia voltar, porém incomodava-o pensar que ela estava destruindo uma parte de si própria por amor a ele. Um mês depois do início do treinamento, Robbie escreveu-lhe a respeito dessas preocupações. Não era a primeira vez que tocava no assunto, mas agora tudo se tornara mais claro.
Ela respondeu: "Eles se voltaram contra você, todos eles, até meu pai. Quando destruíram a sua vida, destruíram a minha também. Preferiram acreditar no depoimento de uma menina boba e histérica. Aliás, até a estimularam, impedindo que ela voltasse atrás. Ela só tinha treze anos, eu sei, mas não quero nunca mais falar com ela. Quanto aos outros, jamais vou perdoar o que fizeram. Agora que rompi com eles, estou começando a compreender o esnobismo que havia por trás da burrice deles. Minha mãe jamais perdoou você por ter tirado diploma de primeira classe. Meu pai preferiu mergulhar no trabalho. Leon se revelou um autêntico bobo alegre, um maria-vai-com-as-outras. Quando Hardman resolveu dar cobertura a Danny, ninguém na minha família quis que a polícia fizesse as perguntas óbvias. A polícia já tinha você para perseguir. Não queriam que atrapalhassem o caso. Sei que pareço ressentida, mas, meu amor, juro que não quero ser. Com toda a sinceridade, sou feliz na minha nova vida e com meus novos amigos. Agora sinto que posso respirar. Acima de tudo, vivo por você. A realidade é que fui obrigada a fazer uma escolha — ou eles ou você. Como poderia escolher as duas opções? Não hesitei nem por um momento. Eu amo você. Acredito em você completamente. Você é meu amor, a razão da minha vida. Cee".
Ele sabia de cor essas últimas linhas e repetiu-as agora na escuridão. A razão da minha vida. Não minha razão para viver, mas a razão da minha vida. Era esse o detalhe. E ela era a razão de sua vida, o motivo pelo qual era preciso que ele sobrevivesse. Virou-se para o lado, olhando para onde imaginava que fosse a porta do celeiro, aguardando os primeiros sinais de luz. Estava excitado demais para dormir. Só queria caminhar em direção ao litoral.
Jamais foram à cabana em Wiltshire. Três semanas antes de terminar seu treinamento, a guerra foi declarada. A resposta militar foi automática, como os reflexos de uma ostra. Todas as licenças foram canceladas. Algum tempo depois, os cancelamentos foram redefinidos como adiamentos. Uma data foi marcada, mudada, cancelada. Então, com apenas vinte e quatro horas de aviso prévio, foram distribuídas passagens de trem. Eles teriam quatro dias antes de se apresentar para servir no novo regimento. Corriam boatos de que iriam ser transferidos. Ela havia tentado mudar suas férias, e conseguido em parte. Depois tentou de novo, mas não foi mais possível. Quando recebeu o cartão dele, avisando a data de sua chegada, ela já estava a caminho de Liverpool, onde iria fazer um curso sobre traumatismos no hospital de Alder Hey. Um dia após chegar a Londres, ele tentou seguir até Liverpool, porém os trens estavam absurdamente vagarosos. Dava-se prioridade ao tráfego militar que seguia para o sul. Na estação de Birmingham New Street ele perdeu uma conexão, e o trem seguinte foi cancelado. Teria de esperar até a manhã do outro dia. Ficou meia hora andando de um lado para o outro na plataforma, num tormento de indecisão. Por fim, resolveu voltar. Apresentar-se atrasado para o serviço era uma coisa muito séria.
Quando ela voltou de Liverpool, ele já estava desembarcando em Cherbourg e tinha pela frente o inverno mais maçan-te de sua vida. Naturalmente, os dois compartilhavam a mesma frustração, porém Cecília achava que cabia a ela ser positiva e animadora. "Eu não vou fugir", escreveu na primeira carta depois de Liverpool. "Vou esperar por você. Volte." Aquilo era uma citação do que ela própria dissera antes. Ela sabia que ele iria se lembrar. Daí em diante, todas as cartas que enviou a Robbie na França terminavam assim, até a última, que chegou pouco antes da ordem de recuar para Dunquerque.
Foi um inverno longo e amargo para a British Expeditio-nary Force no Norte da França. Pouca coisa acontecia. Cavavam trincheiras, estabeleciam linhas de abastecimento e faziam exercícios noturnos que eram ridículos para os infantes, porque o objetivo nunca era explicado e as armas eram escassas. Nas horas de folga, todos se tornavam generais. Até mesmo o mais humilde soldado raso havia concluído que a guerra jamais voltaria a ser disputada em trincheiras. Porém as aguardadas armas antitanque nunca chegavam. Aliás, tinham muito poucos armamentos pesados. Era um tempo de tédio e partidas de futebol disputadas com outras unidades; longas marchas com mochila completa por estradas do interior, horas a fio sem ter o que fazer senão manter o passo e se entregar a devaneios ao ritmo das botas sobre o asfalto. Robbie se perdia em pensamentos amorosos e planejava sua próxima carta, refinando as frases, tentando encontrar humor naquele tédio.
Talvez por efeito dos primeiros brotos verdes nas estradas francesas e da névoa azulada das campânulas vistas de relance nos bosques, Robbie sentiu necessidade de uma reconciliação e um recomeço. Decidiu que devia tentar mais uma vez convencê-la a fazer contato com os pais. Não era preciso que ela os perdoasse, nem que retomasse os velhos argumentos. Bastava escrever um bilhete curto e simples, dizendo onde e como ela estava. Quem haveria de imaginar as mudanças que poderiam ocorrer nos anos seguintes? Ele sabia que, se um de seus pais morresse antes que ela fizesse as pazes com eles, seu remorso seria infinito. E ele jamais se perdoaria se não tentasse convencê-la.
Assim, escreveu em abril, e a resposta dela só chegou em meados de maio, quando já estavam caminhando em direção à retaguarda, pouco antes da ordem de recuar até a Mancha. Não haviam tido contato com fogo inimigo. A carta estava agora no bolso de cima. Foi a última que chegou antes de o sistema de correio ser interrompido.
... eu não ia contar isso agora para você. Ainda não sei o que pensar, e queria esperar até estarmos juntos. Mas, depois de receber a sua última carta, não faz sentido não contar. A primeira surpresa é que Briony não está em Cambridge. Ela não fez o concurso no outono passado, simplesmente não foi. Fiquei pasma porque eu sabia, pelo dr. Hall, que ela era esperada. A outra surpresa é que ela está fazendo um curso de enfermagem no meu antigo hospital. Você é capaz de imaginar Briony manejando uma comadre? Suponho que devem ter dito a mesma coisa a meu respeito. Mas ela é tão fantasiosa, como nós dois infelizmente sabemos muito bem. Tenho pena do paciente que receber uma injeção dela. A carta que ela me mandou é confusa e me confundiu. Quer se encontrar comigo. Está começando a se dar conta do que fez e das implicações de seu ato. Sem dúvida, o fato de ela não ter ido para Cam-bridge tem algo a ver com isso. Diz que quer ser efetivamente útil de algum modo. Mas tenho a impressão de que ela resolveu fazer enfermagem como uma espécie de penitência. Ela quer me procurar e falar comigo. Posso estar enganada, e é por isso que eu ia esperar para lhe contar isso pessoalmente, mas acho que ela quer retirar seu depoimento. Quer retirar seu testemunho e fazer isso de modo oficial e legal. Nem sei se isso é possível, já que o recurso que você impetrou foi indeferido. Precisamos nos informar mais a respeito da lei. Talvez fosse bom eu consultar um advogado. Não quero alimentar nossas esperanças em vão. Talvez ela não esteja pretendendo o que eu imagino, ou não esteja preparada para levar a coisa até o fim. Não esqueça que ela é uma sonhadora.
Não vou fazer nada até receber carta sua. Não era minha intenção lhe contar nada disso, mas, quando você me escreveu dizendo mais uma vez que eu devia entrar em contato com meus pais (admiro sua generosidade), me senti obrigada a lhe contar porque a situação pode mudar. Se não for legalmente possível Briony ir a um juiz e declarar que mudou de idéia, então ela pode pelo menos dizer isso aos nossos pais. Eles que decidam o que querem fazer. Se estiverem dispostos a apresentar um pedido de desculpas a você por escrito, talvez seja possível um recomeço.
Penso muito em Briony. Fazer enfermagem, separar-se de suas origens, é um passo maior para ela do que foi para mim. Eu pelo menos já tinha meus três anos em Cambridge e um motivo evidente para rejeitar minha família. Ela também deve ter suas razões. Não posso negar que estou curiosa. Mas estou esperando que você, meu amor, me diga o que acha. Ah, por falar nisso, ela disse também que um texto que ela enviou para a Horizon foi rejeitado por Cyril Connolly. Pelo menos uma pessoa não leva a sério as fantasias ridículas dela.
Você se lembra daqueles gêmeos prematuros de que lhe falei? O menorzinho morreu. Aconteceu à noite, no meu plantão. A mãe ficou muito abalada. Sabíamos que o pai era ajudante de pedreiro e acho que imaginávamos um sujeitinho atrevido com um cigarro no canto da boca. Ele estava em East Anglia, numa firma que está trabalhando para o exército, construindo defesas costeiras, e foi por isso que demorou tanto para vir ao hospital. Na verdade, era um rapaz muito bonito, de dezenove anos, com mais de um metro e oitenta de altura, cabelos louros caindo sobre a testa. Tem um pé deformado, como Byron, e é por isso que não se alistou. Jenny disse que ele parecia um deus grego. Ele foi consolar a mulher, tão carinhoso, tão paciente. Todas nós ficamos emocionadas. O mais triste é que, justamente quando ele estava conseguindo acalmá-la, terminou o horário de visitas e a enfermeira-chefe veio e o obrigou a ir embora junto com os outros. Então fomos nós que tivemos que cuidar da pobrezinha. Mas eram quatro horas, e as regras são inflexíveis.
Vou dar uma passada no correio de Balham para ver se esta carta chega à França antes do final da semana. Mas não quero terminar de modo tão triste. Na verdade, estou muito animada com essa notícia a respeito da minha irmã e o que isso pode representar para nós. Gostei bastante da história que você contou sobre as latrinas dos sargentos. Li o trecho para as meninas e elas quase morreram de rir. Que bom que o oficial de ligação descobriu que você fala francês e lhe arranjou um serviço em que você pode utilizar seus conhecimentos. Por que demoraram tanto para descobrir? Foi você que escondeu? O que você contou sobre o pão francês é verdade — dez minutos depois, a gente fica com fome de novo. E só ar, não tem substância. Balham não é tão ruim quanto eu disse da última vez, mas essa vai ficar para a próxima. Segue também um poema de Auden sobre a morte de Yeats que recortei de um número da London Mercury do ano passado. Vou visitar Grace no fim de semana e então procuro o seu Housman numa daquelas caixas. Preciso correr. Penso em você o tempo todo. Eu o amo. Vou esperar por você. Volte. Cee.
Foi despertado por uma bota cutucando suas costas. "Vamos lá, chefe. Hora de levantar."
Ele sentou na cama e olhou para o relógio. A porta do celeiro era um retângulo azul-escuro. Havia dormido, calculava, menos de quarenta e cinco minutos. Eficiente, Mace esvaziou os sacos de palha e desmontou a mesa. Ficaram sentados em silêncio sobre os fardos de feno, fumando o primeiro cigarro do dia. Quando saíram, encontraram um pote de barro com uma pesada tampa de madeira. Dentro, embrulhados em musselina, havia um pão e um pedaço de queijo. Turner pegou uma faca e dividiu as provisões ali mesmo.
"Para o caso de a gente se separar", murmurou.
Já havia uma luz acesa na casa, e os cães latiram frenéticos quando eles passaram. Subiram um portão e começaram a atravessar um campo em direção ao norte. Uma hora depois, pararam num capão para beber água e fumar. Turner examinou o mapa. Já os primeiros bombardeiros começavam a sobrevoar — uma formação de cerca de cinqüenta Heinkels, todos seguindo em direção ao litoral. O sol estava nascendo, e as nuvens eram poucas. Um dia perfeito para a Luftwaffe. Caminharam em silêncio por mais uma hora. Não havia nem sequer uma picada, por isso Turner estabeleceu a trajetória com base na bússola, atravessando pastos com vacas e carneiros, nabos e trigo recém-brotado. Caminhar fora da estrada não era tão seguro quanto ele pensava. Um dos pastos tinha mais de dez crateras de bombas, e por um trecho de cem metros de extensão havia fragmentos de carne, osso e pele malhada espalhados. Porém cada um dos homens estava mergulhado em seus próprios pensamentos, por isso ninguém disse nada. Turner estava preocupado com o mapa. Calculava que estavam a quarenta quilômetros de Dunquerque. Quanto mais se aproximassem da cidade, mais difícil seria permanecer fora das estradas. Tudo convergia. Havia rios e canais a atravessar. Quando seguissem em direção às pontes, perderiam muito tempo se dessem a volta pelo campo como antes.
Pouco depois das dez pararam para descansar outra vez. Haviam atravessado uma cerca para chegar a uma trilha, porém ele não conseguia encontrá-la no mapa. De qualquer forma seguia na direção correta, passando por um terreno plano, quase sem árvores. Haviam caminhado por mais meia hora quando ouviram disparos de armas antiaéreas cerca de três quilômetros à frente, onde se via o pináculo de uma igreja. Turner parou para consultar o mapa outra vez.
Disse o cabo Nettle: "Este mapa não mostra onde tem mulher".
"Xii. Ele está com dúvidas."
Turner encostou numa cerca. O ferimento doía toda vez que ele pisava com o pé direito. A coisa pontuda parecia estar espetada para fora, quase furando a camisa. Era impossível resistir à vontade de explorar o lugar com o dedo. Mas ele só encontrava carne perfurada e doída. Depois daquela noite, não era justo ele ter de ouvir as gozações dos cabos outra vez. O cansaço e a dor o estavam deixando irritado, porém não disse nada e tentou se concentrar. Encontrou a vila no mapa, mas não a trilha, embora ela certamente levasse até lá. Era tal como havia imaginado. Iriam pegar a estrada, e seria necessário seguir por ela até a linha de defesa no canal de Bergues-Furnes. Não havia outro caminho. A gozação dos cabos continuava. Ele dobrou o mapa e seguiu em frente.
"Qual o plano, chefe?"
Ele não respondeu.
"Ih! Agora ela ficou ofendida."
Além das armas antiaéreas, ouviam disparos de artilharia pesada, da artilharia inglesa, vindo do oeste. A medida que se aproximavam da vila começaram a ouvir caminhões se deslocando a baixa velocidade. Então os viram, estendendo-se numa linha para o norte, seguindo na velocidade de um homem caminhando. Era tentador pedir uma carona, mas Turner sabia por experiência própria que os caminhões seriam um alvo fácil para os aviões. A pé, podia-se ver e ouvir o que estava se aproximando.
A trilha foi dar na estrada num ponto em que esta fazia uma curva fechada e saía da vila. Descansaram os pés por dez minutos, sentados à beira de uma vala de pedra. Caminhões de três e dez toneladas, semitratores e ambulâncias faziam a curva a uma velocidade de cerca de meio quilômetro por hora, afastando-se da vila por uma estrada longa e reta ladeada à esquerda por plátanos. A estrada seguia diretamente para o norte, em direção a uma nuvem negra de óleo ardente que se destacava acima do horizonte, assinalando Dunquerque. Agora não era mais necessário usar a bússola. Ao longo do caminho havia veículos militares inutilizados. Nada seria deixado para o inimigo. Nas carrocerias dos caminhões, os feridos conscientes olhavam a sua volta, aparvalhados. Havia também carros blindados, carros de oficiais, carretas e motocicletas. Misturados com esses veículos, apinhados de objetos de uso doméstico e malas, viam-se também automóveis civis, ônibus, caminhões de fazenda e carros de mão empurrados por homens e mulheres ou puxados por cavalos. O ar estava escuro de fumaça de óleo diesel, e, em meio a esse fedor, caminhando exaustos, porém mais depressa do que o trânsito, iam centenas de soldados, a maioria deles carregando seus fuzis e os capotes pesados — inúteis naquela manhã cada vez mais quente.
Com os soldados seguiam famílias levando malas e bebês, ou dando a mão a crianças pequenas. O único som humano que Turner ouvia, em meio ao ruído dos motores, era o de bebês chorando. Havia velhos caminhando solitários. Um deles, com um terno de linho limpo, gravata-borboleta e chinelos de usar em casa, andava apoiado em duas bengalas, seguindo tão devagar que até os veículos iam mais depressa do que ele. Sua respiração era ofegante. Aonde quer que estivesse indo, sem dúvida não chegaria. Do outro lado da estrada, bem na esquina, havia uma sapataria aberta. Turner viu uma mulher com uma menina ao lado conversando com um lojista, que exibia um sapato diferente em cada mão. Os três não prestavam atenção ao desfile de veículos e pedestres na estrada. Caminhando em sentido contrário, tentando virar nessa exata curva, vinha uma coluna de carros blindados, a tinta intacta demonstrando que ainda não haviam combatido, seguindo para o sul, em direção ao exército alemão. Tudo o que conseguiriam num combate contra uma divisão Panzer seria ganhar uma hora ou duas para os soldados em retirada.
Turner levantou, bebeu um gole de seu cantil e juntou-se à retirada, colocando-se atrás de dois homens da infantaria escocesa. Os cabos o seguiram. Ele não se sentia mais responsável pelos dois agora que estavam no meio da multidão. A falta de sono exacerbava sua hostilidade. As gozações daquele dia o incomodavam; pareciam uma traição, depois da camaradagem da véspera. Na verdade, sentia-se hostil em relação a todos os que o cercavam. Seus pensamentos agora haviam se reduzido a um único ponto crítico: sua própria sobrevivência.
Querendo se livrar dos cabos, acelerou o passo, deixou para trás os escoceses e chegou até um grupo de freiras que conduziam umas vinte e poucas crianças com túnicas azuis. Pareciam os últimos alunos de algum colégio interno, como aquele em que ele havia lecionado perto de Lille no verão antes de entrar para Cambridge. Essas lembranças agora pareciam fazer parte da vida de um outro homem. Uma civilização morta. Primeiro, sua vida destruída; depois, as vidas de todos. Seguia a passos largos, irritado, sabendo que não ia conseguir andar naquele ritmo por muito tempo. Já havia caminhado numa coluna como aquela antes, no primeiro dia, e sabia o que estava procurando. Bem à sua direita havia uma vala, porém era rasa e exposta. A fileira de árvores ficava do outro lado dela. Turner atravessou a vala, bem à frente de um seda Renault. Quando o fez, o motorista começou a buzinar com força. Aquele som estridente provocou um acesso de fúria nele. Chega! Voltou atrás num salto e com violência abriu a porta do motorista. Lá dentro havia um sujeitinho bem vestido, com terno cinzento e chapéu, com uma pilha de malas de couro a seu lado e a família toda apertada no banco de trás. Turner agarrou o homem pela gravata e estava a ponto de dar um tapa em seu rosto apatetado quando uma outra mão, bem forte, agarrou-lhe o punho.
"Esse aí não é o inimigo, chefe."
Sem soltá-lo, o cabo Mace puxou-o dali. Nettle, que vinha logo atrás, fechou a porta do carro com um pontapé tão forte que o espelho lateral caiu. As crianças de túnica azul bateram palmas e gritaram em aprovação.
Os três atravessaram a estrada e seguiram à sombra das árvores. Agora o sol estava bem alto e fazia calor, mas a sombra ainda não se projetava sobre a estrada. Alguns dos veículos largados sobre as valas haviam sido atingidos por ataques aéreos. Em torno dos caminhões abandonados pelos quais passavam havia suprimentos espalhados por soldados que procuravam comida, bebida ou gasolina. Turner e os cabos examinaram as caixas de fitas de máquina de escrever, livros de contabilidade, mesas de metal e cadeiras giratórias, utensílios de cozinha e peças de motores, selas, estribos e arreios, máquinas de costura, troféus de futebol, cadeiras empilháveis, e mais um projetor de filmes e um gerador a gasolina que alguém havia destruído com um pé-de-cabra que fora largado ali. Passaram por uma ambulância, caída dentro da vala; uma de suas rodas fora arrancada. Havia na porta uma placa de latão com os dizeres: Esta ambulância é presente dos súditos britânicos residentes no Brasil".
Era possível, Turner constatou, adormecer caminhando. O ronco dos motores dos caminhões de repente se interrompia, os músculos do pescoço relaxavam, a cabeça caía, e ele acordava de repente com um passo em falso. Nettle e Mace eram a favor de pedir uma carona. Mas ele já havia lhes contado na véspera o que vira naquela primeira coluna — vinte homens na carroceria de um caminhão de três toneladas mortos por uma única bomba. Ele, enquanto isso, havia se jogado dentro de uma vala, a cabeça enfiada num cano, e só fora atingido na ilharga pelos estilhaços.
"Vocês podem ir em frente", disse ele. "Eu fico aqui."
Não se falou mais no assunto. Eles não iriam sem Turner, seu talismã.
Aproximaram-se de mais um grupo de soldados escoceses. Um deles estava tocando sua gaita-de-foles, o que levou os cabos a imitarem o som com uma cantoria nasalada. Turner fez menção de atravessar a estrada.
"Se vocês puxarem briga, eu nem conheço vocês."
Dois escoceses já haviam se virado e estavam trocando cochichos.
"It's a braw bricht moonlicht nicht the nicht", disse Nettle bem alto, em pseudo-escocês com forte sotaque londrino. Um episódio desagradável talvez tivesse ocorrido se não tivessem ouvido naquele momento um tiro de pistola vindo da frente. Todos se abaixaram, e a gaita-de-foles emudeceu. Num campo aberto, a cavalaria francesa havia se reunido; os soldados, desmontados, formavam uma fila comprida. A frente dela, um oficial matava os cavalos um por um, com um tiro na cabeça. Cada soldado permanecia em posição de sentido ao lado de sua montaria, com o quepe contra o peito, em atitude cerimoniosa. Cada cavalo aguardava sua vez, paciente.
Aquele ritual de derrota aumentou o desânimo geral. Os cabos não tinham mais vontade de implicar com os escoceses, os quais também já não lhes davam atenção. Minutos depois, passaram por cinco cadáveres numa vala, três mulheres e duas crianças. As malas estavam espalhadas em volta delas. Uma das mulheres estava de chinelos, tal como o velho de terno de linho. Turner desviou a vista, decidido a não se deixar envolver. Para que pudesse sobreviver, era preciso estar sempre de olho no céu. Seu cansaço era tanto que a toda hora esquecia. E agora o calor realmente incomodava. Alguns homens estavam largando os capotes no chão. Um dia glorioso. Em outras circunstâncias, seria o que se chama de um dia glorioso. A estrada ia subindo aos poucos, o bastante para cansar as pernas e aumentar a dor de seu ferimento. Cada passo era uma decisão consciente. Estava se formando uma bolha no calcanhar esquerdo, que o obrigava a pisar de lado. Sem parar, pegou o pão e o queijo, mas estava com tanta sede que não conseguia mastigar. Acendeu outro cigarro para disfarçar a fome e tentou reduzir sua tarefa ao mais elementar: seguir por terra até chegar ao mar. O que poderia ser mais simples que isso, desde que se eliminasse o elemento social? Ele era o único homem sobre a Terra, e seu objetivo era claro. Estava trilhando seu caminho até chegar ao canal da Mancha. Porém não havia como negar o elemento social na realidade; havia outros homens a persegui-lo, mas o fingimento o confortava e proporcionava um ritmo para seus pés. Seguindo pela ter / ra até / chegar / ao canal. Um hexâmetro. Cinco jambos e um anapesto, era esse seu ritmo agora.
Vinte minutos depois, a estrada ficou plana. Olhando para trás, via o comboio estender-se ladeira abaixo por um quilômetro e meio. Olhando para a frente, não dava para ver o final. Atravessaram uma ferrovia. Segundo o mapa, estavam a vinte e cinco quilômetros do canal de Bergues-Furnes. Agora os equipamentos destruídos ao longo da estrada se estendiam de modo mais ou menos contínuo. Havia meia dúzia de canhões de vinte e cinco libras empilhados do outro lado da vala, como se houvessem sido empurrados até ali por uma máquina de terraplenagem. Mais adiante, onde começava a descida, no entroncamento com uma estrada secundária, alguma coisa estava acontecendo. Soldados riam, e vozes gritavam à beira-estrada. Quando Turner se aproximou, viu um major do Royal East Kent Regiment, um senhor à antiga, de rosto corado, quarentão, gritando e apontando para um bosque a pouco mais de um quilômetro dali, depois de dois campos. Ele estava arrancando homens da coluna, ou tentando arrancá-los. A maioria dos soldados o ignorava e seguia em frente, alguns riam dele, mas uns poucos, intimidados pela hierarquia, haviam parado, embora o major não tivesse nenhuma autoridade pessoal. Estavam reunidos em torno dele com seus fuzis, hesitantes.
"Você. É, você mesmo. Você serve."
A mão do major estava no ombro de Turner. Ele parou e bateu continência antes mesmo de se dar conta do que estava fazendo. Os cabos estavam atrás dele.
O major tinha um bigode pequeno e duro acima dos lábios finos e apertados, e pronunciava as palavras com firmeza. "Tem uns boches encurralados naquele bosque ali. Deve ser um escalão de vanguarda. Mas estão bem protegidos por duas metralhadoras. A gente tem que ir até lá pra desentocar o bicho."
Turner sentiu um arrepio de pavor, e suas pernas ficaram bambas. Exibiu ao major suas mãos vazias.
"Com o quê, major?"
"Com esperteza e trabalho de equipe."
Como resistir àquele idiota? Turner estava cansado demais para pensar, porém sabia que não ia.
"Bem, eu tenho os restos de dois pelotões a meio caminho..."
Restos, essa palavra dizia tudo; foi o que levou Mace, com toda sua lábia de caserna, a interromper.
"Por favor, major. Permissão para falar."
"Permissão negada, cabo."
"Obrigado, major. São ordens do quartel-general. Seguir a passo acelerado, sem qualquer atraso, desvio ou divagação, até Dunquerque, com o fim de proceder à evacuação imediata, por motivo de estarem nossas forças horrível e onerosamente cercadas por todos os lados. Major."
O major virou-se e enfiou o dedo indicador no peito de Mace.
"Escute aqui. Essa é a nossa última oportunidade de mostrar..."
Disse o cabo Nettle, num tom sonhador: "Foi lorde Gort que escreveu essa ordem, major, e mandou pessoalmente".
Turner ficou admirado de ver um cabo dirigir-se daquela maneira a um oficial. Além disso, era arriscado. O major não havia percebido que os homens estavam zombando dele. Ele parecia achar que quem havia falado era Turner, pois sua fala seguinte dirigia-se a ele.
"Essa retirada está uma bagunça dos diabos. Pelo amor de Deus, rapaz. Essa é sua última oportunidade de mostrar o que a gente é capaz de fazer quando toma uma resolução. Além disso..."
E disse ainda muitas outras coisas, mas Turner tinha a impressão de que um silêncio imenso havia descido sobre aquela manhã ensolarada. Dessa vez ele não estava dormindo. Estava olhando por cima do ombro do major, para a frente da coluna. Ao longe, pairando no ar, cerca de dez metros acima da estrada, deformada pelas ondas de calor, havia uma espécie de prancha de madeira, na horizontal, bojuda no centro. As palavras do major não estavam chegando até ele, nem seus próprios pensamentos límpidos. A aparição horizontal permanecia imóvel no céu sem aumentar, e, embora ele estivesse começando a compreender o que era aquilo, como num sonho, não conseguia dizer nada nem se mexer. Sua única ação foi abrir a boca, mas não emitia nenhum som e, mesmo se conseguisse, não saberia o que dizer.
Então, exatamente no momento em que o som voltou, conseguiu gritar: "Fujam!". Começou a correr diretamente para o abrigo mais próximo. A ordem fora muito vaga, nem um pouco militar, porém sentia que os cabos o seguiam a pouca distância. A impressão de estar sonhando era reforçada pelo fato de que suas pernas não conseguiam se mexer tão depressa quanto necessário. Não era dor o que ele sentia abaixo das costelas, e sim alguma coisa arranhando contra o osso. Deixou o capote cair. Cinqüenta metros adiante havia um caminhão de três toneladas tombado de lado. Aquele chassi negro e sujo de graxa, aquele diferencial volumoso, era sua única proteção. Não lhe restava muito tempo para chegar lá. Um bombardeiro estava metralhando a coluna. Os tiros avançavam estrada acima à velocidade de trezentos quilômetros por hora, uma saraivada de tiros de canhão atingindo metal e vidro. Ninguém dentro dos veículos quase parados havia esboçado alguma reação. Os motoristas se limitavam a assistir ao espetáculo pelos pára-brisas. Estavam exatamente onde se encontravam segundos antes. Os homens nas carrocerias dos caminhões nem chegaram a ver alguma coisa. Um sargento parado no meio da estrada levantou o fuzil. Uma mulher gritou, e então os tiros chegaram até eles no momento exato em que Turner jogou-se na sombra do caminhão caído. A estrutura de aço tremia à medida que os projéteis o atingiam com a rapidez de um rufar de tambores. Então os tiros de canhão prosseguiram, golpeando a coluna, seguidos pelo ronco do bombardeiro e de sua sombra rapidíssima. Turner enfiou-se na escuridão do chassi junto à roda da frente. O cheiro de óleo nunca antes lhe parecera tão delicioso. Aguardando o próximo bombardeiro, ficou agachado em posição fetal, protegendo a cabeça com os braços, os olhos bem fechados, pensando apenas em sobreviver.
Mas não veio avião nenhum. Ouviam-se somente os insetos ocupados em suas atividades normais e os cantos dos pássaros retornando após o intervalo necessário. Então, como se tivessem aguardado o sinal dos pássaros, os feridos começaram a gemer e gritar, e as crianças apavoradas a chorar. Alguém, como sempre, xingava a Royal Air Force. Turner levantou e estava tirando a poeira das roupas quando Nettle e Mace emergiram, e juntos caminharam em direção ao major, que estava sentado no chão. Seu rosto estava branco como cera, e ele apertava a mão direita.
"A bala entrou de um lado e saiu do outro", disse ele quando os homens se aproximaram. "Tremenda sorte, pensando bem."
Ajudaram o oficial a se levantar e se ofereceram para levá-lo a uma ambulância, onde um capitão do Royal Army Medical Corps e duas ordenanças já cuidavam dos feridos. Porém ele balançou a cabeça e permaneceu em pé. Em estado de choque, falava sem parar, em voz mais baixa.
"ME 109. Deve ter sido a metralhadora dele. Se fosse o canhão, minha mão tinha sumido do mapa. Vinte milímetros, você sabe. Ele deve estar desgarrado dos outros. Viu a gente voltando pra casa e não resistiu. Eu entendo o que ele fez, no fundo. Mas isso quer dizer que daqui a pouco vão aparecer outros."
Os cinco ou seis homens que ele havia reunido antes de levar o tiro estavam saindo da vala, com seus fuzis, e se dispersando. Ao vê-los, o major voltou a si.
"Vamos lá, pessoal. Todo mundo em forma."
Eles pareciam incapazes de resistir, e formaram uma pequena coluna. Tremendo um pouco agora, o major dirigiu-se a Turner.
"E mais vocês três. Em fila dupla."
"Na verdade, meu caro, pra falar com franqueza, creio que nós preferimos não ir."
"Ah, sei." Ele apertou os olhos na direção do ombro de Turner, como se estivesse vendo ali alguma insígnia de uma patente superior. Fez uma continência simpática com a mão esquerda. "Neste caso, meu senhor, se me permite, estamos de partida. Torça por nós."
"Boa sorte, major."
Sob os olhares dos outros, ele deu ordens ao destacamento relutante para seguir em direção ao bosque onde as metralhadoras aguardavam.
A coluna passou meia hora sem sair do lugar. Turner pôs-se à disposição do capitão do RAMC e ajudou os padioleiros a recolher os feridos. Depois encontrou lugar para eles nos caminhões. Os cabos haviam desaparecido. Turner foi buscar material na traseira de uma ambulância. Vendo o capitão trabalhar, suturando um ferimento na cabeça, sentiu despertar dentro de si a antiga vocação. A quantidade de sangue obscurecia os detalhes que apareciam nos livros que ele havia estudado. Naquele trecho da estrada havia cinco feridos e, coisa surpreendente, nenhum morto, se bem que o sargento que se pusera no meio da estrada fora atingido no rosto e provavelmente não viveria por muito tempo. Três veículos haviam sido danificados na frente e foram empurrados para fora da estrada. Fez-se um sifão e extraiu-se a gasolina deles; para inutilizá-los por completo, deram tiros em seus pneus.
Depois que tudo isso foi feito naquela seção da coluna, ainda assim todo o tráfego continuava parado. Turner recuperou seu capote e seguiu adiante. Estava com sede demais para ficar parado esperando. Uma senhora de idade, belga, que levara um tiro no joelho, havia bebido o resto de sua água. Sua língua estava enorme na boca, e o único pensamento que o ocupava agora era encontrar algo para beber. Também precisava ficar de olho no céu. Passou por seções como a sua, em que veículos estavam sendo inutilizados e onde feridos estavam sendo postos em caminhões. Havia caminhado por dez minutos quando viu a cabeça de Mace contra a grama, junto a uma pilha de terra. Estava a vinte e cinco metros dele, na sombra profunda de um arvoredo de álamos. Turner foi para lá, embora desconfiasse de que fosse melhor, em seu atual estado de espírito, seguir em frente. Encontrou Mace e Nettle metidos num buraco, já à altura do ombro. Estavam terminando de cavar uma sepultura. Largado no chão, atrás da pilha de terra, havia um menino de cerca de quinze anos. Sua camisa branca estava manchada de vermelho do pescoço até a cintura.
Mace apoiou-se na pá e fez uma imitação razoável. '"Creio que nós preferimos não ir.” Essa foi de mestre, chefe. Vou lembrar pra próxima vez."
"Gostei da 'divagação'. Onde foi que você arranjou essa?"
"Ele engoliu a porra do dicionário", disse o cabo Nettle, orgulhoso.
"Eu era chegado a uma palavra cruzada."
"E horrível e onerosamente cercadas?"
"Foi uma música que cantaram na festa de Natal lá no cassino dos sargentos."
Ainda dentro da cova, ele e Nettle cantaram, desafinados, para Turner:
Naquela situação tão desgraçada, Horrível e onerosamente cercada.
A coluna finalmente começava a sair do lugar. "Vamos enfiar ele aí dentro logo", disse o cabo Mace. Os três homens levantaram o menino e o deitaram de barriga para cima. No bolso da camisa ele levava uma fileira de canetas-tinteiro. Os cabos não fizeram nenhuma pausa cerimo-niosa. Começaram a jogar terra dentro da cova, e logo o menino desapareceu.
Disse Nettle: "Garoto bonito".
Os cabos haviam amarrado dois paus de barraca com barbante para fazer uma cruz. Nettle fincou-a batendo nela com o cabo da pá. Assim que terminou, voltaram para a estrada.
Mace: "Ele estava com os avós. Eles não queriam deixar o garoto largado na vala. Pensei que vinham assistir ao enterro, mas estão num estado deplorável. Melhor a gente avisar pra eles onde o garoto está".
Porém não conseguiram encontrar os avós. Enquanto caminhavam, Turner pegou o mapa e disse: "Fiquem de olho no céu". O major tinha razão — aquele Messerschmitt passara ali por acaso, mas agora eles haveriam de voltar. Aliás, já deveriam ter voltado. O canal de Bergues-Furnes era uma linha azul grossa no mapa. Na cabeça de Turner, a impaciência de chegar ao canal se tornara inseparável da sua sede. Ele mergulharia a cabeça naquele azul e beberia fundo. Esse pensamento o fez lembrar das febres de sua infância, com sua lógica feroz e assustadora, a busca do canto mais fresco do travesseiro, a mão da mãe em sua testa. A querida Grace. Quando ele levou a mão a sua própria testa, a pele estava seca como papel. A inflamação em torno do ferimento, ele sentia, estava crescendo, e a pele ficara mais tensa, mais dura; algo que não era sangue estava sujando a camisa. Tinha vontade de examinar o ferimento a sós, mas isso era impossível ali. O comboio reassumira seu ritmo inexorável de antes. A estrada seguia paralela à costa — não haveria mais atalhos. A medida que se aproximavam, a nuvem negra, que certamente vinha de alguma refinaria incendiada em Dunquerque, ia ocupando todo o lado norte do céu. Não havia nada a fazer senão caminhar em direção a ela. Assim, mais uma vez ele abaixou a cabeça e seguiu adiante em silêncio.
A estrada não era mais protegida pelos plátanos. Vulnerável a qualquer ataque e desprovida de sombra, ela se desenrolava pelo terreno ondulado, formando uma série de letras S alongadas e rasas. Turner havia desperdiçado reservas preciosas em conversas e contatos desnecessários. O cansaço lhe arrefecera o entusiasmo e a sociabilidade. Agora restringia-se ao ritmo das botas — seguia pela terra até chegar ao canal. Tudo o que se contrapunha a ele teria de ser compensado, minimamente que fosse, por aquilo que o impelia para a frente. Num dos pratos da balança, a ferida, a sede, a bolha, o cansaço, o calor, a dor nos pés e nas pernas, os Stukas, a distância, a Mancha; no outro, Vou esperar por você e a lembrança do momento em que ela dissera isso, que se tornara para ele uma espécie de sacramento. E também o medo da captura. Suas lembranças sensuais — os poucos minutos na biblioteca, um beijo na Whitehall — estavam desbotadas por excesso de uso. Ele sabia de cor certos trechos das cartas dela, tinha revivido a disputa pelo vaso junto à fonte, lembrava o calor do braço dela no jantar em que os gêmeos fugiram. Essas recordações lhe davam forças, mas a coisa não era tão fácil. Muitas vezes faziam-no pensar no lugar em que se encontrava na última vez em que as evocara. As lembranças ficavam do outro lado de um grande divisor do tempo, tão importante quanto a.C. e d.C. Antes da prisão, antes da guerra, antes de a visão de um cadáver se tornar uma banalidade.
Porém essas heresias morriam quando ele lia a última carta dela. Levou a mão ao bolso interno da túnica. Era uma espécie de genuflexão. Continuava ali. Era um dado novo na balança. A possibilidade de ele se inocentar tinha a simplicidade do amor. Bastava-lhe antever essa possibilidade para se dar conta do quanto ele havia se estreitado e morrido. Seu amor à vida, nada menos que isso, todas as antigas ambições e prazeres. O que se descortinava era a possibilidade do renascimento, um retorno triunfal. Ele poderia voltar a ser o homem que uma vez atravessara um parque em Surrey na hora do pôr-do-sol com seu melhor terno, orgulhoso com as promessas da vida, que havia entrado na casa e com a clareza da paixão fizera amor com Cecilia — não, resolveu resgatar a palavra dos cabos: eles foderam enquanto os outros tomavam drinques no terraço. A história poderia ser recomeçada, a história que ele havia planejado naquela caminhada ao pôr-do-sol. Ele e Cecilia não viveriam mais isolados. O amor deles teria um espaço e uma sociedade para crescer. Ele não precisaria ir de chapéu na mão recolhendo pedidos de desculpas dos amigos que o haviam evitado. Também não ficaria recluso, orgulhoso e feroz, evitando-os em revide. Ele sabia exatamente como se comportaria. Tudo o que faria seria recomeçar. Com a ficha limpa, poderia cursar medicina quando terminasse a guerra, ou até mesmo tentar se tornar oficial agora no serviço de saúde do exército. Se Cecilia fizesse as pazes com a família, ele manteria distância sem parecer ressentido. Jamais poderia ser íntimo de Emily ou Jack. Ela o perseguira com uma ferocidade estranha, enquanto ele lhe dera as costas, desaparecendo no ministério no momento em que se fazia mais necessário.
Nada daquilo tinha importância. Vista dali, a situação parecia simples. Estavam agora passando por mais corpos na estrada, jogados nas valas e largados na pista, dezenas de cadáveres, de soldados e civis. O fedor era cruel e impregnava as dobras de suas roupas. O comboio havia penetrado numa vila bombardeada, talvez o subúrbio de uma cidade pequena — tudo fora reduzido a escombros, era difícil dizer o que havia sido um dia. Que diferença fazia? Quem seria capaz de algum dia descrever aquela confusão, de identificar as vilas e assinalar as datas para os livros de história? E adotar um ponto de vista razoável para começar a atribuir culpas? Ninguém jamais saberia a sensação que se tinha estando ali. Sem os detalhes, era impossível fazer idéia do quadro geral. Lojas, equipamentos e veículos abandonados formavam uma avenida de destroços que se estendia diante da coluna em retirada. Esses destroços, e mais os cadáveres, obrigavam-nos a caminhar pelo meio da pista. Isso não fazia diferença, pois o comboio já não estava se movendo mesmo. Os soldados saltavam e seguiam a pé, tropeçando em tijolos e telhas. Os feridos eram deixados nos caminhões, à espera. Havia uma maior concentração de corpos num espaço mais estreito, uma irritação maior. Turner mantinha a cabeça baixa e seguia o homem à sua frente, envolto em seus próprios pensamentos para se proteger.
Ele seria inocentado. Vendo a situação dali, onde ninguém se dava ao trabalho de levantar o pé para não pisar no braço de uma mulher morta, parecia-lhe que não precisaria de desculpas nem homenagens. Estar inocentado seria um estado de pureza. Sonhava com isso como um homem apaixonado, com uma ânsia simples. Sonhava com isso como outros soldados sonhavam com um lar, um pedaço de terra, um emprego antigo no mundo civil. Se ali a inocência parecia algo tão elementar, não havia por que ser diferente na Inglaterra. Que seu nome fosse inocentado, e todas as outras pessoas teriam de reajustar seu modo de pensar. Ele servira aqueles anos, agora elas teriam de fazer o trabalho. O que lhe cabia era simples. Encontrar Cecilia e amá-la, casar-se com ela e viver sem qualquer sentimento de vergonha.
Porém havia em tudo isso um detalhe em que ele não conseguia pensar direito, um vulto indistinto que todo o caos a vinte quilômetros de Dunquerque não era capaz de reduzir a um contorno simples. Briony. Ele então esbarrava nos limites daquilo que Cecília chamava de seu espírito generoso. E sua racionalidade. Se Cecília voltasse a se aproximar da família, se as irmãs se tornassem íntimas outra vez, não haveria como evitá-la. Porém conseguiria ele aceitá-la? Poderia ficar no mesmo cômodo que ela? Agora Briony lhe oferecia uma possibilidade de absolvição. Mas não era por ele. Ele não fizera nada de errado. Era por ela própria, pelo crime que ela cometera, que sua consciência não suportava mais. Pois então ele haveria de sentir gratidão? É claro que, em 1935, ela era uma criança. Isso ele repetia a si próprio, ele e Cecília repetiam um para outro, inúmeras vezes. Sim, ela era apenas uma criança. Mas nem toda criança manda um homem para a prisão por causa de uma mentira. Nem toda criança é tão determinada e maligna, nem tão coerente ao longo do tempo, sem jamais vacilar, jamais inspirar dúvidas. Uma criança, mas isso não impedira que ele, na prisão, fantasiasse humilhá-la, imaginasse dezenas de maneiras de vingar-se dela. Na França, uma vez, na semana mais terrível do inverno, bêbado de conhaque, ele chegara a imaginá-la espetada em sua baioneta. Briony e Danny Hardman. Não era razoável nem justo odiar Briony, mas ajudava.
Como compreender a mente daquela criança? Havia apenas uma teoria que fazia sentido. Fora num dia em junho de 1932, um dia ainda mais belo por ter chegado de repente, depois de muitos dias de chuva e vento. Era aquela espécie rara de manhã que se declara, com uma extravagância orgulhosa de calor e luz e folhas novas, o verdadeiro começo, o portal grandioso do verão, e ele o estava atravessando com Briony, passando pela fonte do tritão, atravessando a vala e os rododendros, o portão de ferro, chegando ao caminho sinuoso e estreito que penetrava no bosque. Ela estava entusiasmada, falando pelos cotovelos. Teria seus dez anos de idade e estava começando a escrever suas histórias. Como todo mundo, ele também recebera de presente uma história encadernada e ilustrada, uma história de amor, adversidades vencidas, reencontros, terminando com um casamento. Estavam a caminho do rio, pois ele prometera lhe dar uma aula de natação. Enquanto se afastavam da casa, talvez ela estivesse lhe contando uma história que havia terminado de escrever, ou um livro que estava lendo. Talvez estivesse de mãos dadas com ele. Era uma menina calada e séria, um tanto recatada, e aquela explosão era incomum. Ele a escutava com prazer. Também ele estava entusiasmado naquela época. Tinha dezenove anos, as provas haviam quase terminado e ele achava que se saíra bem. Logo deixaria de ser um secundarista. Sua entrevista em Cambridge fora boa, e dentro de duas semanas estaria indo para a França, onde lecionaria inglês numa escola católica. Havia algo de grandioso naquele dia, nas faias e nos carvalhos colossais, com copas que apenas estremeciam de leve, e na luz que pingava como jóias por entre a folhagem tenra, formando pequenas poças de sol em meio às folhas mortas do ano anterior. Aquele cenário magnífico — ele sentia com a arrogância da juventude — refletia o ímpeto glorioso de sua vida.
Ela continuava falando, e ele, contente, escutava sem muita atenção. O caminho saía do bosque e chegava à margem gramada do rio. Caminharam rio acima pouco mais de meio quilômetro e entraram no bosque outra vez. Ali, numa curva do rio, sob as copas pesadas das árvores, ficava a piscina natural, Preparada no tempo do avô de Briony. Uma barragem de pedra desacelerava a correnteza; era ali que todos iam mergulhar. Porém não era um lugar ideal para principiantes. As pessoas saltavam da barragem, ou então da margem, num trecho de três metros de profundidade. Ele mergulhou e ficou batendo os pés na vertical para não afundar, esperando Briony. Havia começado a ensiná-la a nadar no ano anterior, no final do verão, quando o rio ficava mais baixo e a correnteza era mais lenta. Agora até mesmo na piscina a água puxava com força, numa espiral. A menina hesitou apenas por um momento, depois pulou da margem com um grito. Equilibrou-se na vertical até que a correnteza a levou em direção à barragem; nesse momento Turner foi até ela e puxou-a para o outro lado, para que ela começasse novamente. Briony tentou nadar de peito, após todo o inverno sem praticar, e ele teve de segurá-la, o que não era fácil porque também ele não tinha pé ali. Se tirasse a mão debaixo dela, a menina daria apenas três ou quatro braçadas e começaria a afundar. Briony achava graça no fato de que, indo no sentido contrário à corrente, nadava e permanecia no mesmo lugar. Mas na verdade não permanecia no mesmo lugar, e sim era levada de volta para a barragem, onde se agarrava a um aro de ferro enferrujado, esperando por ele, o rosto muito branco contrastando com o fundo escuro coberto de musgo e o cimento esverdeado. Nadar rio acima, era como ela descrevia a experiência. Queria repeti-la, mas a água estava gelada, e, depois de quinze minutos, ele estava cansado. Puxou-a para a margem e, ignorando os protestos dela, ajudou-a a sair.
Ele pegou as roupas dentro da cesta e embrenhou-se no bosque alguns metros para se vestir. Quando voltou, Briony continuava parada exatamente no mesmo lugar, na margem, olhando para a água, a toalha sobre os ombros.
Perguntou ela: "Se eu caísse no rio você me salvava?". É claro.
Ele estava debruçado sobre a cesta nesse momento e ouviu, mas não viu, Briony pular dentro da água. A toalha estava largada na margem. Além das pequenas ondas concêntricas que se estendiam pela superfície da água, não havia sinal dela. Então a menina emergiu, respirou e afundou de novo. Em desespero, ele pensou em correr até a barragem e lá pegar a menina, porém a água era de um verde barrento, opaco. Ele só poderia encontrá-la debaixo da superfície pelo tato. Não havia escolha — entrou na água com sapatos, paletó e tudo. Imediatamente encontrou o braço de Briony, pôs a mão sob seu ombro e puxou-a para cima. Para sua surpresa, ela estava prendendo a respiração. E logo em seguida ria às gargalhadas, agarrada a seu pescoço. Ele empurrou-a para a margem e, com grande dificuldade, com as roupas encharcadas, saiu também.
"Obrigada", ela dizia repetidamente. "Obrigada, obrigada."
"Que coisa mais idiota você fez."
"Eu queria que você me salvasse."
"Você não vê que podia ter se afogado?"
"Você me salvou."
O nervosismo e o alívio intensificavam sua raiva. Ele estava quase gritando. "Sua boboca. Você podia ter matado nós dois."
Ela se calou. Ele sentou na grama, tirando água dos sapatos. "Você afundou, não dava pra eu ver. As minhas roupas me puxavam pra baixo. A gente podia ter se afogado, nós dois. Você acha isso engraçado? Acha?"
Não havia mais nada a dizer. Ela se vestiu e eles voltaram pelo caminho, Briony à frente, ele atrás, com os sapatos encharcados. Tinha vontade de se expor ao sol do parque. Depois haveria uma longa caminhada até o bangalô para trocar de roupas. Sua raiva ainda não passara. Ela não era tão pequena, pensou, que não precisasse pedir desculpas. Caminhava calada, de cabeça baixa, talvez emburrada; não dava para ele ver. Quando saíram do bosque e passaram pelo portão, ela parou e se virou. Falava num tom direto, até mesmo desafiador. Não estava emburrada; pelo contrário, queria enfrentá-lo.
"Sabe por que eu queria que você me salvasse?"
"Não."
"Não está na cara?"
"Não, não está, não."
"Porque eu amo você."
Disse isso num tom de bravata, o queixo levantado, piscando rapidamente ao falar, deslumbrada pela imensidão da verdade que tinha revelado.
Ele conteve o impulso de rir. Então uma menininha estava apaixonada por ele. "Que diabo você quer dizer com isso?"
"O que todo mundo quer dizer quando diz isso. Eu amo você."
Dessa vez as palavras foram pronunciadas num tom ascendente, patético. Ele se deu conta de que deveria resistir à tentação de fazer troça. Mas era difícil. Disse então: "Você me ama, por isso se jogou dentro do rio".
"Eu queria saber se você ia me salvar."
"Agora você já sabe. Sou capaz de arriscar minha vida para salvar a sua. Mas isso não quer dizer que eu ame você."
Ela se empertigou um pouco. "Quero agradecer a você por salvar a minha vida. Serei eternamente grata."
Certamente aquela fala saíra de um dos livros dela, um dos que lera ou escrevera.
Ele disse: "Está bem. Mas não faça isso outra vez, nem comigo nem com qualquer outra pessoa. Você promete?".
Ela fez que sim e disse, ao se despedir: "Eu amo você. Agora você sabe".
Briony foi caminhando em direção à casa. Estremecendo em pleno sol, ele ficou olhando até vê-la desaparecer na distância, e então seguiu para casa. Não voltou a vê-la a sós antes de partir para a França, e em setembro, quando voltou, ela estava no colégio interno. Não muito tempo depois ele foi para Cam-bridge, e em dezembro passou o Natal com uns amigos. Só voltou a ver Briony em abril do ano seguinte, quando a questão já estava esquecida.
Mas estaria mesmo?
Ele tivera muito tempo a sós, tempo até demais, para pensar nisso. Não conseguia se lembrar de nenhuma outra conversa fora do comum com ela, nenhum comportamento estranho, nenhum olhar significativo, nenhuma pirraça que desse a entender que aquela paixão infantil se estendera além daquele dia em junho. Ele voltara a Surrey em quase todas as suas férias e ela tivera muitas oportunidades de procurá-lo no bangalô, ou de lhe passar um bilhete. Ele estava ocupado com sua vida nova, mergulhado nas novidades do curso universitário, e também tentava, naquele momento, distanciar-se um pouco da família Tallis. Mas certamente teria havido sinais que ele não percebera. Durante três anos ela provavelmente conservara o afeto por ele, oculto, alimentado por fantasias e ampliado nas suas histórias. Ela era o tipo de menina que vivia entregue a seus próprios pensamentos. A cena dramática ocorrida no rio talvez fosse suficiente para mantê-la absorta durante todo aquele tempo.
Essa teoria, ou certeza, baseava-se na lembrança de um único encontro — aquele ocorrido ao pôr-do-sol na ponte. Ele Passara anos pensando naquela caminhada no parque. Ela certamente saberia que ele fora convidado para jantar. Lá estava ela, descalça, com um vestido branco sujo. Isso já era estranho. Ela estaria esperando por ele, talvez preparando um pequeno discurso, ensaiando-o em voz alta sentada no parapeito de pedra. Quando ele surgiu por fim, ela ficou muda. Só esse fato já era uma espécie de prova. Mesmo naquele momento Turner achou estranho ela não falar com ele. Entregou a carta, e a menina saiu correndo. Minutos depois, ela abria o envelope. Ficou chocada, e não apenas com aquela palavra. Na sua imaginação, ele traíra o amor dela ao preferir sua irmã. Então, na biblioteca, a confirmação de seus piores temores, quando toda a fantasia caiu por terra. Primeiro, decepção e desespero; depois, um ressentimento cada vez maior. Por fim, uma oportunidade extraordinária de se vingar na escuridão, durante a busca dos gêmeos. Ela o acusou — e ninguém, senão Cecília e a mãe dele, duvidou de suas palavras. O impulso, a malícia súbita, a agressividade infantil que ele compreendia. O que causava espanto era a profundidade daquele rancor, a persistência com que ela sustentara uma versão que terminara levando-o para a prisão de Wandsworth. Agora era possível que ele fosse inocentado, e isso lhe dava uma sensação de felicidade. Ele reconhecia a coragem que seria necessária para que ela recorresse à justiça e negasse o testemunho que havia'prestado sob juramento. Porém julgava que o ressentimento que tinha por ela jamais passaria. Sim, ela era apenas uma criança na época, mas ele não a perdoava. Jamais a perdoaria. Era esse o estrago mais duradouro.
A frente havia mais confusão, mais gritaria. Por incrível que parecesse, uma coluna de carros blindados estava forçando passagem em sentido contrário ao tráfego de soldados e refugiados. A multidão abria alas com relutância. As pessoas se espremiam nas fendas entre veículos abandonados ou contra paredes e portas destruídas. Era uma coluna francesa, pouco mais que um destacamento — três carros blindados, dois semitratores e dois transportes. Não havia nenhum sentimento de estarem todos do mesmo lado. Entre os soldados britânicos, a opinião geral era a de que os franceses os haviam deixado na mão. Faltara-lhes força de vontade para lutar por seu próprio país. Irritados por estarem sendo empurrados para o lado, os tommíes gritavam, caçoando dos aliados: "Maginot!". Os poilus, por sua vez, certamente teriam ouvido boatos a respeito da evacuação. E lá iam eles, sendo enviados para proteger a retaguarda. "Covardes! Vão pegar os navios! Vão cagar nas calças!" Em seguida desapareceram, e a multidão ocupou a pista outra vez, sob uma nuvem de fumaça de óleo diesel, para tocar em frente.
Estavam se aproximando das últimas casas da vila. Num campo mais adiante, Turner viu um homem e seu collie caminhando atrás de um arado puxado por um cavalo. Tal como as mulheres na sapataria, o fazendeiro parecia não se dar conta da presença da coluna. Essas vidas eram vividas em paralelo — a guerra era um hobby para entusiastas, e nem por isso deixava de ser uma coisa séria. Tal como, no momento mais intenso de uma caçada, quando os cães se preparam para lançar-se sobre a presa, do outro lado da sebe passa um automóvel no qual, no banco de trás, uma mulher faz tricô, e no jardim de uma casa nova um homem ensina o filho a chutar uma bola. O fazendeiro continuaria a arar o campo, depois haveria alguém para fazer a colheita, alguém para processar o trigo no moinho, outras pessoas comeriam o pão, e nem todo mundo estaria morto...
Eram esses os pensamentos que iam pela cabeça de Turner quando Nettle agarrou-o pelo braço e apontou. A comoção provocada pela passagem da coluna francesa havia encoberto o som, mas era fácil vê-los. Eram pelo menos quinze, a uma altitude de dez mil pés, pontinhos no azul, sobrevoando a estrada em círculos. Turner e os cabos pararam para olhar, e todos os que estavam por perto viram também.
Uma voz exausta murmurou ao pé de seu ouvido: "Porra. Cadê a RAF?".
Um outro disse, num tom de entendido: "Eles vão partir pra cima dos franceses".
Como que para contrariar essa afirmação, um dos pontinhos destacou-se dos outros e começou a descer quase na vertical, diretamente acima de suas cabeças. Durante alguns segundos o som não chegou até eles. O silêncio crescia como uma pressão contra seus ouvidos. Nem mesmo os gritos nervosos que percorreram a estrada o dissiparam. Procurar abrigo! Dispersar! Dispersar! Depressa!
Era difícil se locomover. Ele conseguia caminhar num passo normal, e também parar, mas era necessário um esforço, um esforço de memória, obedecer àquele comando pouco familiar, afastar-se da estrada e correr. Haviam parado junto à última casa da vila. Atrás da casa havia um celeiro, e além dele ficava o campo que o fazendeiro estava arando. Agora ele estava parado embaixo de uma árvore com seu cachorro, como para se proteger de uma chuva súbita. Seu cavalo, ainda em arreios, mordiscava a grama do trecho ainda não arado. Soldados e civis corriam da estrada para todos os lados. Uma mulher passou por ele carregando uma criança que chorava, depois mudou de idéia e voltou, em seguida parou, indecisa, ao lado da estrada. Para que lado ir? Para o pátio da fazenda ou para o campo? A imobilidade da mulher liberou Turner da sua própria. Ele a empurrou pelo ombro em direção ao portão, e o urro cada vez mais alto começou. Os pesadelos haviam se transformado numa ciência. Alguém, um mero ser humano, havia se dado ao trabalho de inventar aquele urro satânico. E com : que sucesso! Era o próprio som do pânico, cada vez maior, anunciando uma extinção que cada um deles, individualmente, sabia ser a sua. Não havia como não tomar aquele som como uma ameaça pessoal. Turner guiou a mulher, fazendo-a entrar no portão. Queria que ela corresse com ele para o centro do campo. Ele a havia tocado e tomado a decisão por ela, por isso agora sentia que não podia abandoná-la. Mas o menino teria pelo menos seis anos e era pesado, e juntos eles não estavam conseguindo avançar muito.
Turner arrancou a criança dos braços da mãe. "Venha", gritou.
Cada Stuka levava uma única bomba de mil libras. Para quem estava no chão, o principal era se afastar de prédios, veículos e outras pessoas. O piloto não ia desperdiçar sua carga preciosa numa figura solitária no meio de um campo. Quando ele voltasse para metralhar, a coisa seria diferente. Turner já vira um avião perseguindo, só por diversão, um homem que corria. O menino estava urinando nas calças e gritando no ouvido de Turner. A mãe parecia incapaz de correr. Estendia a mão e gritava. Queria o filho de volta. O menino esperneava em direção a ela, por cima de seu ombro. Então ouviu-se o guincho da bomba caindo. Diziam que, se você ouvisse o ruído cessar antes da explosão, era porque a sua hora havia chegado. Ao se jogar sobre a grama, ele puxou a mulher junto e empurrou-lhe a cabeça para baixo. O corpo de Turner cobria em parte o do menino quando o chão estremeceu, com um estrondo inacreditável. A onda de choque os separou da terra por uma fração de segundo. Cobriram os rostos para se proteger da saraivada de terra. Ouviram o Stuka ganhar altitude novamente ao mesmo tempo que recomeçava o grito alucinado do próximo ataque. A bomba havia atingido a estrada a menos de oitenta metros dali. Turner levava o garoto debaixo do braço e estava tentando Puxar a mulher para fazê-la se levantar.
"Temos que correr de novo. Estamos muito perto da estrada."
A mulher respondeu, mas ele não compreendeu suas palavras. Mais uma vez, estavam correndo pelo campo aos tropeções. A dor em sua ilharga era como um clarão colorido. O menino estava nos braços dele, e novamente a mulher parecia estar retardando a corrida, tentando retomar o filho. Agora havia centenas de pessoas no campo, todas correndo em direção ao bosque do outro lado do campo. Ao soar o ruído estridente da bomba, todo mundo se jogou no chão. Mas a mulher não tinha instintos para situações de perigo, e Turner foi obrigado a fazê-la se deitar outra vez. Agora seus rostos estavam apertados contra a terra recém-arada. O som estridente aumentava, e a mulher começou a gritar o que parecia ser uma prece. Só então Turner se deu conta de que ela não estava falando francês. A explosão ocorreu do outro lado da estrada, a mais de cento e cinqüenta metros dali. Porém agora o primeiro Stuka estava manobrando acima da vila e voltando em vôo rasante para metralhar. O menino, em estado de choque, emudecera. A mãe não conseguia se levantar. Turner apontou para o Stuka que surgia acima dos telhados. Estavam bem no caminho do avião e não havia tempo para discutir. A mulher não saía do lugar. Ele se atirou dentro do sulco aberto pelo arado. As pancadas sucessivas das balas de metralhadora levantavam a terra fofa, e o ronco do motor passou por eles num átimo. Um soldado ferido gritava. Turner estava em pé. Mas a mulher se recusava a aceitar sua mão. Sentada no chão, abraçava o menino com força. Estava falando com ele em flamengo, tranqüilizando-o, certamente dizendo que tudo acabaria bem. Mamãe ia dar um jeito. Turner não falava uma palavra daquele idioma. Não teria adiantado nada. Ela não lhe dava atenção. O menino olhava para ele, aparvalhado, por cima do ombro da mãe.
Turner deu um passo para trás. Então correu. Enquanto tropeçava nos sulcos, o ataque recomeçou. A terra grossa grudava-se à sola de suas botas. Só nos pesadelos os pés pesavam tanto. Uma bomba caiu na estrada, bem no centro da vila, onde estavam os caminhões de transporte. Mas um grito recobria o outro, e a bomba atingiu o campo antes que Turner tivesse tempo de se deitar. A explosão o empurrou para a frente alguns metros e o jogou de cara na terra. Quando recuperou os sentidos, a boca, as narinas e os ouvidos estavam cheios de terra. Ele tentava cuspir, mas não tinha saliva. Usou o dedo, mas foi pior ainda. Antes estava engasgado com a terra, e agora se engasgava com o dedo imundo. Assoando-se, conseguiu tirar a terra no nariz. O muco era lama pura e cobria-lhe a boca. Mas o bosque estava perto, e lá haveria riachos, cascatas, lagoas. Ele imaginava um paraíso. Quando o urro crescente de um Stuka em vôo rasante voltou a se ouvir, foi-lhe difícil compreender o som. Seria o toque que assinalava o fim do ataque? Também seus pensamentos estavam engasgados. Ele não conseguia cuspir nem engolir, respirava com dificuldade, não pensava direito. Então, ao ver o fazendeiro e o cachorro ainda aguardando pacientemente sob a árvore, tudo lhe voltou à mente, ele se lembrou de tudo, e virou para olhar para trás. Onde antes estavam a mulher e o filho agora havia uma cratera. Ao mesmo tempo que via a cena, pensou que já sabia antes. Por isso tivera de abandoná-los. Sua obrigação era sobreviver, embora ele não se lembrasse por quê. Continuou seguindo em direção ao bosque.
Alguns passos adiante já estava protegido pelas árvores e sentou-se sobre a vegetação miúda, encostando-se num vidoeiro tenro. Só pensava em água. Havia mais de duzentas pessoas abrigadas no bosque, incluindo alguns feridos que haviam conseguido se arrastar até aquele ponto. Um homem, um civil, a Pouca distância dali, gritava e urrava de dor. Turner levantou e se afastou mais um pouco. Toda aquela folhagem nova só lhe evocava a idéia de água. O ataque prosseguia na estrada e na vila. Turner afastou as folhas mortas e, com a ajuda do capacete, começou a cavar. A terra estava úmida, mas não aflorava água no buraco que ele abriu, nem mesmo quando chegou a meio metro de profundidade. Assim, sentou e ficou pensando em água e tentando limpar a língua contra a manga da túnica. Sempre que um Stuka mergulhava, era impossível não retesar os músculos e se encolher, embora a cada vez ele pensasse que não teria forças para isso. Já no final, vieram metralhar o bosque, mas não conseguiram nada. Folhas e galhos despencaram das copas. Por fim os aviões foram embora, e, no silêncio imenso que se instaurou sobre os campos, as árvores e a vila, não se ouvia nem sequer pássaros cantando. Depois de algum tempo, dos lados da estrada veio o sinal que indicava o fim do bombardeio. Mas ninguém se mexeu. Ele se lembrava disso da última vez. Todos estavam aparvalhados demais, estavam em estado de choque após presenciarem tantos episódios de terror. Todo vôo rasante fazia com que cada homem, encurralado e apavorado, enfrentasse sua própria execução. Quando tal não acontecia, era necessário passar por toda a agonia outra vez, e o medo não diminuía. Para os vivos, o final de um ataque aéreo era a paralisia do choque, de uma sucessão de choques. Os sargentos e oficiais subalternos gritavam e chutavam os homens para que todos levantassem, mas eles estavam esgotados e, por um bom tempo, inutilizados como soldados.
Assim, Turner ficou parado, aparvalhado, como todos os outros, tal como na primeira vez, perto da vila cujo nome ele nem mesmo lembrava. Aquelas vilas francesas com nomes belgas. Quando ele se separou de sua unidade e, pior ainda para um infante, perdeu seu fuzil. Quantos dias? Não havia como saber. Examinou o revólver, entupido de terra. Retirou a munição e jogou a arma no meio do mato. Depois de algum tempo, ouviu um som atrás dele, e uma mão pousou em seu ombro.
"Toma aí. Cortesia do 19a regimento de infantaria."
O cabo Mace entregava-lhe o cantil de algum soldado morto. Como estava quase cheio, ele usou o primeiro gole para limpar a boca, mas aquilo era um desperdício. Engoliu a terra junto com a água.
"Mace, você é um anjo."
O cabo estendeu a mão e ajudou-o a se levantar. "Temos que cair fora. Estão dizendo que esses merdas desses belgas se foderam. Capaz de a gente não poder ir pro leste. Ainda tem muito chão pela frente."
Enquanto voltavam pelo campo, Nettle juntou-se a eles. Trazia uma garrafa de vinho e uma barra Amo, e as duas foram passadas de mão em mão.
"Excelente buquê", disse Turner depois de beber um bom gole.
"Francês morto."
O fazendeiro e seu collie estavam de novo atrás do arado. Os três soldados se aproximaram da cratera, onde o cheiro de cordite era forte. O buraco era um cone invertido perfeitamente simétrico, a superfície uniforme como se peneirada e alisada. Não havia nenhum vestígio humano, nenhum fiapo de roupa, nenhum fragmento de couro de sapato. Mãe e filho haviam evaporado. Turner parou para absorver esse fato, mas os cabos estavam com pressa e o impeliram para a frente; logo se juntaram aos sobreviventes na estrada. Agora era mais fácil. Só voltaria a haver tráfego quando os sapadores trouxessem suas máquinas de terraplenagem para a vila. A frente, a nuvem de óleo se elevava sobre a paisagem como um pai zangado. Bombardeiros voavam bem alto, um fluxo constante nos dois sentidos, indo e voltando de seus alvos. Ocorreu a Turner que talvez ele estivesse caminhando em direção a um massacre. Mas todos estavam indo para lá, e ele não imaginava nenhuma outra opção. A rota se desviava agora da nuvem, seguindo para a direita dela, para leste de Dunquerque, em direção à fronteira belga.
"Bray Dunes", disse ele, lembrando-se do nome que vira no mapa.
Disse Nettle: "Gosto desse som".
Passaram por homens que mal conseguiam caminhar, de tantas bolhas que tinham nos pés. Alguns iam descalços. Um soldado com o peito ferido seguia num velho carrinho de bebê empurrado por seus companheiros. Um sargento guiava um cavalo sobre o qual ia, amarrado por pés e mãos, um oficial, desacordado ou morto. Alguns soldados seguiam de bicicleta; a maioria avançava a pé, em grupos de dois ou três. Um estafeta da Highland Light Infantry passou numa Harley-Davidson. Suas pernas ensangüentadas pendiam inúteis, e era o carona, com curativos pesados nos braços, que acionava os pedais. Por toda parte havia capotes abandonados por causa do calor. Tur-ncr já havia convencido os cabos a não fazer o mesmo com seus agasalhos.
Estavam caminhando havia uma hora quando ouviram atrás deles um ruído ritmado, como se fosse um relógio gigantesco a fazer tiquetaque. Viraram-se para trás. A primeira vista, tinha-se a impressão de que uma enorme porta horizontal estava se deslocando pela estrada em direção a eles. Era um pelotão da Welsh Guard em bom estado, fuzis ao ombro, comandado por um segundo-tenente. Vinham em marcha forçada, olhando fixamente para a frente, levantando bem os braços. Os remanescentes da retirada se afastaram para os lados para deixá-los passar. Apesar da atmosfera de cinismo, ninguém se arriscou a gritar um gracejo. Aquela demonstração de disciplina e coesão os envergonhava. Foi um alívio quando o pelotão desapareceu na distância e os outros puderam retomar sua caminhada introspectiva.
A cena era familiar; os objetos, os mesmos de sempre, só que agora tudo era mais numeroso: veículos, crateras de bombas, detritos. Havia mais cadáveres também. Ele seguia pela terra até... o gosto do mar chegou-lhe, trazido por uma brisa pelos campos pantanosos. O fluxo unidirecional de pessoas movidas por um mesmo objetivo, o tráfego ininterrupto de aviões arrogantes, a nuvem imensa que assinalava o lugar para o qual seguiam, tudo isso tinha o efeito de fazer com que seu cérebro exausto, porém febril, relembrasse certo episódio animado da infância, esquecido havia muito tempo — uma quermesse ou um evento esportivo para onde todos convergiam. Havia uma lembrança que ele não conseguia localizar no tempo, ele sentado nos ombros do pai, subindo uma ladeira, rumo a uma grande atração, alguma coisa muito empolgante. Sentia falta daqueles ombros agora. Seu pai desaparecido lhe deixara poucas lembranças. Um lenço de pescoço, um certo cheiro, um vulto apenas esboçado de uma presença calada e irritadiça. Teria ele conseguido escapar do serviço militar na Grande Guerra, ou teria morrido em algum lugar perto dali, sob um nome falso? Talvez houvesse sobrevivido. Grace tinha certeza de que ele era covarde demais, desonesto demais, para se alistar, mas ela tinha lá suas razões para estar ressentida. Quase todo homem ali tinha um pai que se lembrava do Norte da França, ou que fora enterrado ali. Ele queria um pai assim, morto ou vivo. Muitos anos atrás, no tempo antes da guerra, antes de Wandsworth, ele se deliciava com sua liberdade de criar uma vida para si, de projetar sua própria trajetória apenas com o auxílio distante de Jack Tallis. Agora se dava conta de que era apenas uma ilusão presunçosa.
Não ter raízes era não ter nada. Queria um pai, e pelo mesmo motivo queria se tornar pai. Era bem comum, ver tanta morte e querer um filho. Comum, portanto humano, e isso o fazia desejar com mais força ainda. Quando os feridos gritavam ele sonhava em dividir uma casinha em algum lugar, uma vida bem comum, uma família, relações com um mundo. A sua volta, homens caminhavam em silêncio, imersos em seus próprios pensamentos, reformulando suas vidas, tomando decisões. Se algum dia eu conseguir escapar desta... Seria impossível contá-los, todos aqueles filhos sonhados, mentalmente concebidos na caminhada em direção a Dunquerque, e posteriormente realizados. E ele encontraria Cecília. O endereço dela estava na carta guardada em seu bolso, junto com o poema. No seco deserto do coração I Súbita jorre a fonte do perdão. Ele também encontraria seu pai. Eles sabiam encontrar pessoas desaparecidas, o Exército da Salvação. Um nome perfeito. Ele encontraria o pai, ou descobriria a história do pai morto — fosse como fosse, haveria de se tornar filho de seu pai.
Caminharam a tarde toda até que por fim, um quilômetro e meio adiante, onde a fumaça amarelenta subia em nuvens espessas dos campos ao redor, viram a ponte sobre o canal de Bergues-Furnes. Não restava nada em pé, nem uma casa, nem um celeiro. Além da fumaça, um miasma de carne podre chegava às suas narinas — mais cavalos da cavalaria abatidos, centenas deles, amontoados num campo. Ao lado, uma montanha ardente de uniformes e cobertores. Um cabo corpulento destruía máquinas de escrever e mimeógrafos com uma marreta. Duas ambulâncias estavam estacionadas à beira-estrada, as portas de trás abertas. De dentro vinham os gemidos e gritos dos feridos. Um deles berrava repetidamente, com mais raiva do que dor: "Água, quero água!". Como todos os outros, Turner seguiu em frente.
A multidão começava a crescer outra vez. Logo antes da ponte sobre o canal havia uma encruzilhada, e vindo de Dunquerque, na estrada que margeava o canal, aproximava-se um comboio de caminhões de três toneladas, que a polícia militar tentava conduzir ao campo atrás da pilha de cavalos mortos. Porém os soldados que vinham a pé pela outra estrada obrigaram o comboio a parar. Os motoristas buzinavam incessantemente, gritando insultos. A multidão seguia em frente. Homens cansados de esperar saltavam das carrocerias dos caminhões. Ouviu-se um grito: "Procurar abrigo!". E, antes que alguém tivesse tempo de olhar a sua volta, a montanha de uniformes explodiu. Começou a nevar pedacinhos de sarja verde-oliva. A pouca distância, um destacamento de artilharia destruía com martelos os visores e blocos de culatra de suas armas. Um deles, Turner percebeu, chorava ao destroçar seu morteiro. Na entrada do campo, um capelão e seu assistente encharcavam de gasolina caixas cheias de livros de orações e bíblias. Homens atravessavam o campo em direção a um depósito de lixo das forças armadas britânicas em busca de cigarros e bebidas. Quando um gritava, dezenas de outros vinham da estrada se unir a eles. Um grupo, junto ao portão da fazenda, experimentava sapatos novos. Um soldado de boca cheia passou por Turner com uma caixa de marshmallows rosa e brancos. A cem metros dali, uma pilha de botas de cano alto e máscaras contra gases estava sendo incendiada, e uma fumaça ácida envolvia os homens que avançavam sobre a ponte. Por fim os caminhões conseguiram sair do lugar e entrar no campo maior, imediatamente ao sul do canal. A polícia militar organizava a operação, fazendo os veículos pararem em filas, como funcionários de um estacionamento público, junto com os caminhões havia semitratores, motocicletas, carretas e trailers-cozinhas. O método de destruição era, como sempre, bem simples — dava-se um tiro no radiador e deixava-se o motor ligado até ele morrer.
A ponte estava ocupada pela Coldstream Guard. Dois ninhos de metralhadoras, instalados sobre sacos de areia, cobriam a entrada. Os homens, bem escanhoados, olhares fixos, manifestavam com seu silêncio o desprezo por aquela multidão imunda e desorganizada que passava a sua frente. Do outro lado do canal, pedras pintadas de branco, dispostas em intervalos regu-lares, assinalavam o caminho que levava a uma cabana utilizada como sala de ordens. Na margem oposta, para o leste e o oeste, a guarda estava solidamente estabelecida em suas posições. As casas que davam para o canal haviam sido requisitadas pelo exército; telhas tinham sido arrancadas do telhado e janelas foram transformadas em ninhos de metralhadoras. Um sargento feroz mantinha a ordem na ponte. Ele estava mandando um tenente de motocicleta fazer meia-volta. Era terminantemente proibido o uso de equipamentos e veículos na ponte. Também foi despachado um homem que levava um papagaio numa gaiola. Além disso, o sargento recrutava homens para funções de defesa do perímetro, e o fazia com muito mais autoridade do que o pobre major. Um destacamento cada vez maior aguardava em 1 posição de descansar, com muita relutância, ao lado da sala de ordens. Turner viu o que estava acontecendo ao mesmo tempo que os cabos, quando ainda estavam a uma boa distância.
"Os filhos-da-puta vão pegar você, companheiro", disse Mace a Turner. "Soldado de infantaria é mesmo um fodido. Se você quer voltar pra sua mulher, fique aqui entre nós dois e comece a mancar."
Sentindo-se desonrado, mas não menos decidido, pôs um braço sobre o ombro de cada um dos cabos, e os três começaram a avançar.
"E o pé esquerdo, não esquece, chefe", disse Nettle. "Quer que eu enfie a minha baioneta no seu pé?"
"Muito obrigado. Acho que não precisa, não."
Turner deixou a cabeça cair para a frente enquanto cruzavam a ponte, de modo que não viu o olhar feroz do sargento, embora sentisse o calor que dele emanava. Ouviu a ordem gritada: "Ei, você aí!". Algum infeliz que vinha atrás dele foi escolhido para ajudar a deter o ataque final que certamente ocorreria dentro de dois ou três dias, enquanto os últimos remanescentes da British Expeditionary Force eram recolhidos nos navios. O que ele viu, ainda de cabeça baixa, foi uma barca negra comprida passando por debaixo da ponte, em direção a Furnes, na Bélgica. O barqueiro estava ao leme, fumando cachimbo, olhando com indiferença para a frente. Atrás dele, a quinze quilômetros dali, Dunquerque ardia. Na proa do barco, dois garotos se debruçavam sobre uma bicicleta de cabeça para baixo, talvez consertando um pneu furado. Num varal havia roupas penduradas para secar, entre elas algumas calcinhas de mulher. Um cheiro de cebola e alho vinha da barca. Turner e os cabos atravessaram a ponte e passaram pelas pedras caiadas, que os fizeram pensar no campo de treinamento e toda aquela disciplina absurda. Na sala de ordens um telefone tocava.
Murmurou Mace: "É bom você continuar mancando até a gente sumir daqui".
Mas a terra se estendia plana por quilômetros, e não havia como saber para que lado o sargento poderia estar olhando — e eles não queriam virar para trás para saber. Depois de caminharem meia hora, sentaram-se numa plantadeira enferrujada e ficaram vendo o exército derrotado passar. A idéia era se juntar a um grupo totalmente novo para que a súbita recuperação de Turner não fosse percebida por algum oficial. Muitos dos homens que passavam se mostravam irritados por não encontrar a praia logo depois do canal. Pareciam pensar que aquilo era um erro de planejamento. Turner sabia, com base no mapa, que havia ainda pela frente mais onze quilômetros, e quando recomeçaram a caminhada foi esse o trecho mais difícil, mais inóspito que percorreram todo aquele dia. A terra ampla e nua lhes negava qualquer sensação de avanço. Embora o sol já começasse a descer por trás da parte mais baixa da nuvem de óleo, fazia mais calor do que nunca. Viam aviões sobrevoando o porto e lançando bombas do alto. Pior ainda, havia ataques de Stuka exatamente na praia para a qual estavam seguindo. Passavam pelos feridos que não conseguiam andar mais. Sentados à beira da estrada, como mendigos, pediam ajuda ou um pouco de água. Outros estavam deitados ao lado da vala, desmaiados ou tomados pelo desespero. Certamente viriam com ambulâncias do perímetro de defesa, cobrindo regularmente o caminho até a praia. Se havia tempo para caiar as pedras, teria de haver tempo para fazer isso. Nada de água. O vinho acabara e agora a sede era maior ainda. Não possuíam remédios. O que se esperava que eles fizessem? Que carregassem uma dúzia de homens nas costas quando eles próprios mal podiam caminhar?
Num súbito acesso de raiva, o cabo Nettle sentou na estrada, tirou as botas e jogou-as num campo. Disse que odiava aquelas botas, odiava-as mais do que a todos os putos dos alemães juntos. E suas bolhas o incomodavam tanto que era melhor andar sem as porras das botas.
"Ainda estamos muito longe da Inglaterra para você seguir só de meias", disse Turner. Sentia-se estranhamente zonzo enquanto procurava as botas no campo. Foi fácil achar o primeiro pé, mas o segundo levou algum tempo. Por fim encontrou-o no capim perto de uma massa negra peluda que parecia, quando ele se aproximou, estar se mexendo ou pulsando. De repente um enxame de varejeiras subiu no ar, com um zumbido furioso, revelando o cadáver apodrecido em que estavam pousadas. Turner prendeu a respiração e pegou a bota; enquanto se afastava com passos rápidos, as moscas foram pousando outra vez, e fez-se o silêncio.
Após alguma insistência, conseguiram convencer Nettle a pegar as botas, amarrá-las pelos cadarços e levá-las penduradas no pescoço. Mas ele só faria aquilo, afirmou, porque Turner estava-lhe pedindo.
Era nos momentos de clareza mental que ele se sentia perturbado. Não era a ferida, embora ela doesse com cada passo que ele dava, nem tampouco os bombardeiros que sobrevoavam em círculos a praia alguns quilômetros ao norte. Era sua cabeça. Periodicamente, alguma coisa lhe escapava. Algum princípio cotidiano de continuidade — o elemento prosaico que lhe dizia em que ponto de sua própria narrativa estava — perdia força, mergulhando-o num sonho acordado em que havia pensamentos, porém não a consciência de quem os pensava. Não havia responsabilidade, nem lembrança das horas anteriores, nem idéia do que ele estava fazendo, aonde estava indo, qual era seu plano. E não havia também nenhuma curiosidade a respeito dessas questões. Então ele se percebia dominado por certezas ilógicas.
Turner encontrava-se nesse estado quando chegaram aos limites do balneário após três horas de caminhada. Seguiam por uma rua coberta de cacos de vidro e telhas quebradas, onde crianças brincavam e viam os soldados passar. Nettle havia recolocado as botas, porém não amarrara os cadarços, que se estendiam soltos. De repente, como um boneco que pula de dentro de uma caixa, um tenente do Dorsetshire Regiment emergiu do porão de um prédio municipal que fora requisitado para servir de quartel-general. Veio se aproximando todo expedito, com uma pasta importante debaixo do braço. Quando parou diante deles, os três bateram continência. Escandalizado, o tenente mandou o cabo amarrar a bota imediatamente, senão seria punido.
Enquanto o cabo se ajoelhava para obedecer, o oficial — um homem ossudo, de ombros arredondados, com um bigodi-nho avermelhado e uma cara de quem jamais enfrentara outra coisa que não uma escrivaninha — disse: "É vergonhoso".
Na liberdade lúcida de seu estado onírico, a intenção de Turner era dar um tiro no peito do oficial. Seria o melhor para todos. Nem valia a pena discutir a questão antes. Tentou sacar a arma, mas arma não havia mais — ele não se lembrava mais onde a perdera —, e o tenente já estava se afastando.
Após alguns minutos caminhando sobre os cacos de vidro, fez-se silêncio sob as suas botas no ponto em que a estrada terminava na areia fina. Quando seguiram por um intervalo entre as dunas, ouviram as ondas e sentiram um gosto de sal antes de ver o mar. O sabor das férias. Desviaram-se do caminho e subiram a duna coberta de mato até o alto, onde permaneceram em silêncio por vários minutos. A brisa úmida que vinha da Mancha restituiu a clareza mental de Turner. Talvez o problema fosse apenas conseqüência de sua temperatura estar subindo e descendo periodicamente.
Ele pensava não ter mais nenhuma esperança — até o momento em que viu a praia. Havia imaginado que a maldita mentalidade militar, que caiava pedras enquanto aguardava o aniquilamento, também ali haveria de prevalecer. Tentou impor uma ordem à movimentação aleatória que viu diante de si, e quase conseguiu: centros de planejamento, suboficiais sentados diante de escrivaninhas improvisadas, carimbos e pastas, filas para embarcação demarcadas por cordas; sargentos gritando ordens, filas lerdas em torno de cantinas móveis. Em suma, o fim de toda e qualquer iniciativa individual. Sem se dar conta do fato, era em direção a essa praia que ele vinha caminhando todos aqueles dias. Porém a praia em si, aquela que ele e os cabos viam agora, não passava de uma variação em torno de tudo o que ocorrera antes: houve uma debandada, e aquilo era o fim da linha. Agora que tinham a cena diante de seus olhos, tudo estava bem claro — era isso que acontecia quando uma retirada caótica não podia ir adiante. Bastou um momento para se ajustarem. Turner via milhares de homens, dez, vinte mil, talvez mais, espalhados pela imensidão da praia. Vistos de longe, eram como grãos de areia negra. Mas não havia navio, apenas um único baleeiro soçobrado, ao sabor das ondas distantes. A maré estava baixa, e a faixa de areia se estendia por mais de um quilômetro. Não havia navios perto do longo cais. Turner piscou e olhou de novo. O cais era composto de homens, uma longa fileira, seis ou oito homens de espessura, com água até os joelhos, até a cintura, até os ombros, estendendo-se por quinhentos metros pelas águas rasas. Eles esperavam, porém não havia nada à vista, nada além daquelas manchas no horizonte — navios em chamas, bombardeados por aviões. Não havia nada que pudesse chegar à praia nas próximas horas. Mas os soldados permaneciam ali, enfrentando o horizonte, com seus capacetes de metal, os fuzis levantados acima do nível da água. Vistos daquela distância, pareciam tranqüilos como bois. E aqueles homens eram apenas uma pequena proporção do total. A maioria deles permanecia na praia, andando de um lado para outro, à toa. Pequenos grupos haviam se formado em torno dos feridos vitimados pelo último ataque dos Stukas. Meia dúzia de cavalos da artilharia galopavam juntos à beira-mar, tão a toa quanto os homens. Alguns soldados tentavam desvirar o baleeiro. Alguns haviam se despido para nadar. Para o leste, um grupo jogava futebol, e da mesma direção vinha o som débil de um hino de igreja cantado em uníssono, depois morrendo aos poucos. Atrás dos jogadores de futebol via-se o único sinal de atividade oficial. Na praia, caminhões estavam sendo alinhados e amarrados para formar um cais improvisado. Outros caminhões estavam sendo trazidos. Mais adiante, soldados cavavam a areia com os capacetes para fazer trincheiras individuais. Nas dunas, perto do lugar onde estavam Turner e os cabos, já havia homens instalados nos buracos que haviam cavado, olhando para fora, muito bem acomodados, donos do lugar. Como mar-motas, pensou ele. Porém em sua maioria os soldados perambu-lavam a esmo pela areia, como aldeãos italianos passeando à tardinha. Não viam nenhum motivo imediato para entrar na fila enorme, porém não queriam se afastar da praia porque a qualquer momento poderia surgir um navio.
A esquerda ficava o balneário de Bray, uma fileira de fachadas alegres de cafés e lojinhas que, numa temporada normal, estariam alugando cadeiras de praia e bicicletas. Num parque circular com um gramado bem cuidado havia um coreto e um roda-roda pintado de vermelho, branco e azul. Ali um outro grupo, mais despreocupado, havia se instalado. Os soldados tinham aberto os cafés e estavam se embriagando nas mesas dispostas na calçada, gritando e rindo. Outros andavam de bicicleta pela pista suja de vômito. Uma colônia de bêbados se espalhava pelo gramado junto ao coreto, adormecidos. Sozinho, de cueca, um homem pegava sol, deitado de bruços sobre uma toalha; tinha manchas vermelhas nos ombros e nas pernas — sua pele era rosada e branca como um sorvete de creme com morango.
Não era difícil escolher entre esses círculos de sofrimento—o mar, a praia, o front. Os cabos já estavam se afastando.
O fator decisivo foi a sede. Encontraram um caminho no lado das dunas voltado para a terra, e logo estavam atravessando um gramado cheio de areia e garrafas quebradas. Enquanto caminhavam por entre as mesas barulhentas, Turner viu um grupo de marinheiros se aproximando e parou para observá-los. Eram cinco — dois oficiais, três marinheiros —, com uniformes reluzentes em branco, azul e dourado. Nenhuma concessão à camuflagem. Empertigados e severos, com revólveres presos aos cintos, caminhavam com uma autoridade tranqüila em meio à massa de homens com escuros uniformes de batalha e rostos sujos, olhando para um lado e para o outro, como se estivessem contando. Um dos oficiais tomava notas numa prancheta. Seguiram em direção à praia. Com uma sensação infantil de estar sendo abandonado, Turner ficou olhando até perdê-los de vista.
Foi atrás de Mace e Nettle, penetrando o barulho e a fumaça fedorenta do primeiro bar da orla. Duas malas abertas sobre o balcão estavam cheias de cigarros — mas não havia nada para beber. As prateleiras atrás do espelho trabalhado estavam vazias. Quando Nettle abaixou-se atrás do balcão para ver se havia alguma coisa, houve risos. Todos os que entravam faziam o mesmo. As bebidas já tinham sido consumidas havia muito tempo pelos beberrões do lado de fora. Turner abriu caminho em meio à multidão e chegou à pequena cozinha nos fundos. Estava tudo destruído, as torneiras estavam secas. Lá fora havia um mictório e pilhas de engradados de vasilhames. Um cachorro tentava enfiar a língua dentro de uma lata de sardinhas vazia, empurran-do-a pelo chão de concreto. Turner voltou para a algazarra do salão principal. Não havia eletricidade, apenas uma luz natural pardacenta, como que manchada de cerveja. Nada para beber, porém o bar continuava cheio. Os homens entravam e se decepcionavam; no entanto ficavam, mantidos ali pelos cigarros de graça e pelos sinais ainda recentes da presença de bebida. Na parede estavam vazios os dosadores, de onde tinham sido arrancadas as garrafas de cabeça para baixo. Um cheiro adocicado de álcool subia do chão de cimento grudento. O barulho, a presença de tantos homens amontoados, o cheiro de cigarro no ar, tudo isso matava a saudade de uma noite de sábado no botequim. Ali era a Mile End Road, a Sauchiehall Street e todos os outros lugares compreendidos entre os dois extremos.
Turner ficou parado no meio do barulho sem saber o que fazer. Seria necessário muito esforço para sair daquela multidão. Na véspera alguns navios haviam partido, era o que ele podia concluir com base num fragmento de conversa, e talvez no dia seguinte viessem outros. Levantou-se na ponta dos pés junto à porta da cozinha e fez um sinal de "nada feito" para os cabos, que olhavam para ele do outro lado da multidão. Nettle inclinou a cabeça em direção à porta, e começaram a convergir para ela. Uma bebida agora teria sido ótimo, mas o que mais os interessava no momento era água. Só era possível avançar muito devagar em meio a tantos corpos comprimidos, e então, justamente quando eles convergiram, o caminho para a porta estava bloqueado por uma muralha densa de homens de costas, reunidos em torno de alguém.
Certamente era um homem baixo — teria menos de um metro e sessenta e cinco —, e dele Turner só enxergava um pedaço da cabeça, vista de trás.
Alguém disse: "É melhor você responder à pergunta, seu merdinha".
"Então faz a pergunta."
"Está bem, seu aviador veado. Onde você estava?"
"Onde você estava quando mataram o meu companheiro?
Uma cusparada atingiu a cabeça do homem e caiu atrás de sua orelha. Turner andou para o lado para observar melhor. Viu em primeiro lugar uma túnica cinza-azulada, e depois um rosto mudo de pavor. Era um sujeito pequeno e musculoso, com óculos de lentes grossas e sujas que agora tinham o efeito de amplificar seu olhar apavorado. Parecia um arquivista, ou telefonista, talvez de um quartel-general que já não existia havia um bom tempo. Porém era da Royal Air Force, e os soldados o julgavam responsável. Virou-se devagar, olhando para o círculo de interrogadores. Não tinha respostas para suas perguntas, não fez nenhuma tentativa de negar sua responsabilidade pela ausência de Spitfires e Hurricanes no espaço aéreo da praia. A mão direita apertava o quepe com tanta força que os dedos tremiam. Um artilheiro parado ao lado da porta empurrou-o com força por trás, jogando-o contra o peito de um soldado que o mandou de volta com um soco de leve na cabeça. A platéia aprovou. Todos haviam sofrido, e agora alguém ia pagar.
"Então, cadê a RAF?"
Uma mão se destacou e acertou um tapa no rosto do homem, jogando seus óculos no chão. O som do tabefe foi nítido como uma chicotada. Era o sinal para que tivesse início uma nova etapa, um novo nível de envolvimento. Os olhos do homem, desprovidos das lentes, reduziram-se a pequenos pontinhos nervosos quando ele se abaixou para tatear ao redor de seus pés. Foi um erro. Um chute dado com uma bota militar de bico de aço acertou-o nas nádegas, fazendo com que ele subisse alguns centímetros. Houve risadas. A sensação de que alguma coisa gostosa ia acontecer se espalhava pelo bar e atraía mais soldados para dentro. A medida que a multidão aumentava em torno do círculo, todo e qualquer remanescente de senso de responsabilidade individual se extinguia. Uma atmosfera de ousadia arrogante se espalhava. Gritos de aprovação soaram quando alguém apagou o cigarro na cabeça do homem. Ele emitiu um grito cômico, o que provocou gargalhadas. Todos o odiavam, e ele merecia o que quer que lhe acontecesse. Era por culpa dele que a Luftwaffe dominava os ares; ele era responsável por todos os ataques de Stuka, por todos os amigos mortos. Aquele corpo mirrado continha a causa da derrota de um exército. Turner pensou que não poderia fazer nada para ajudá-lo sem se arriscar a ser linchado também. Mas era impossível não fazer nada. Participar seria melhor do que não agir. Dominado por uma excitação desagradável, foi avançando. Agora um homem com sotaque galés era quem perguntava:
"Cadê a RAF?"
Era estranho o homem não gritar por socorro, nem implorar, nem afirmar sua inocência. Seu silêncio parecia uma forma de consentimento. Seria idiota a ponto de não perceber que corria o risco de morrer? Ao menos tivera a sensatez de guardar os óculos no bolso. Sem os óculos, seu rosto ficava vazio. Como uma toupeira à luz do dia, olhava para os que o atormentavam a sua volta, sem enxergar, os lábios entreabertos, mais por incredulidade do que por estar prestes a dizer alguma coisa. Como não viu o soco tomar forma, recebeu-o bem no meio da cara, sem tentar se esquivar. Pela primeira vez, um soco dado com um punho cerrado. Enquanto sua cabeça era jogada para trás, uma outra bota acertou-lhe a canela; houve gritos de estímulo, até mesmo um ensaio de aplauso, como se estivessem assistindo a uma luta livre numa arena. Seria loucura defender o homem, seria repugnante não defendê-lo. Ao mesmo tempo, Turner compreendia a atmosfera de entusiasmo que se apossara da multidão e a possibilidade insidiosa de que ele também fosse envolvido por ela. Ele próprio poderia fazer alguma barbaridade com sua faca e conquistar a estima de cem homens. Para afastar esse pensamento, obrigou-se a contar os dois ou três soldados naquele círculo que lhe pareciam maiores ou mais fortes do que ele. Porém o verdadeiro perigo vinha da multidão em si, de sua certeza de que estava cheia de razão. Ela não aceitaria que lhe negassem aquele prazer.
Na situação a que se chegara, o próximo golpe só mereceria a aprovação geral se fosse engenhoso ou engraçado. Havia no ar uma ansiedade de ser criativo para agradar. Ninguém queria fazer soar uma nota destoante. Por alguns segundos, essas condições tolheram os homens. E em algum momento, em breve — Turner sabia disso com base em sua experiência da cadeia —, o golpe único se transformaria numa cascata. Então não haveria como voltar atrás, e para o homem da RAF só um fim seria possível. Uma mancha rosada se formara em seu malar direito. Ele havia recolhido os punhos sob o queixo — ainda estava agarrando o quepe —, e seus ombros estavam curvos. Podia ser uma atitude de defesa, mas era também um gesto de fraqueza e submissão que inevitavelmente provocaria violências maiores. Se ele dissesse alguma coisa, o que quer que fosse, talvez os soldados que o cercavam se dessem conta de que era um homem, não um coelho a ser esfolado. O galés que havia falado era um indivíduo baixo e atar-racado, da equipe de sapa. Ele exibiu um cinto de lona, perguntando:
"O que vocês acham, hein, pessoal?"
Aquele tom preciso e insinuante sugeria horrores que Turner não conseguiu apreender de imediato. Agora era sua única chance de agir. Enquanto seu olhar procurava os cabos, ouviu-se um rugido vindo de perto, como de um touro ferido. A multidão se desequilibrou enquanto Mace a atravessava para chegar até o círculo interior. Com um uivo enlouquecido, como o Tar-zan de Johnny Weissmuller, ele agarrou o homem da RAF por detrás, levantando-o a meio metro do chão, e começou a sacudir a criatura apavorada de um lado para o outro. Os homens gritavam, assobiavam, batiam o pé como caubóis. "Eu sei o que eu quero fazer com ele", gritou Mace. "Quero afogar esse puto no mar!"
Em resposta, a multidão voltou a gritar e bater os pés. Nettle de repente estava do lado de Turner, e os dois se entreolharam. Entenderam o que Mace ia fazer e começaram a se deslocar em direção à porta, sabendo que teriam de ser rápidos. Nem todos eram a favor de afogar a vítima. Até mesmo no frenesi do momento, alguns se lembraram de que a maré estava baixa e que seria preciso caminhar mais de um quilômetro pela areia. O galés, em particular, parecia frustrado. Continuava a exibir o cinto e a gritar. Ouviam-se vaias além de gritos de aprovação. Ainda levantando o homem, Mace correu em direção à porta. Turner e Nettle seguiam à sua frente, abrindo alas. Quando chegaram à entrada — por sorte, uma porta que só dava passagem a uma pessoa de cada vez —, deixaram Mace sair e depois bloquearam o vão, ombro a ombro, embora sem dar a entender que era isso que faziam, pois gritavam e sacudiam os punhos como os outros. Sentiram contra suas costas uma massa humana colossal, atiçada, e só conseguiram resistir por alguns segundos. Mas foi tempo suficiente para Mace correr não em direção ao mar, e sim para a esquerda, depois para a esquerda outra vez, subindo uma rua estreita e curva que passava pelos fundos das lojas e dos cafés e se afastava da praia.
A multidão exultante saiu do bar numa explosão, como champanha de uma garrafa, empurrando Turner e Nettle para o lado. Alguém julgou ver Mace na areia, e por meio minuto a multidão foi para lá. Quando constataram o engano e começaram a voltar, não havia sinal de Mace nem do aviador. Também Turner e Nettle já haviam sumido.
A praia imensa, os milhares de homens que nela aguardavam e o mar sem qualquer navio fizeram com que os tommies caíssem de volta na realidade. Emergiram de um sonho. Para oeste, onde já começava a chegar a noite, a linha do perímetro estava sob fogo cerrado de artilharia. O inimigo se aproximava, a Inglaterra estava bem longe. Na penumbra cada vez mais densa, não restava muito tempo para encontrar um lugar onde dormir. Um vento frio vinha da Mancha, e os capotes haviam sido abandonados em estradas distantes. A multidão começou a dispersar. O homem da RAF foi esquecido.
Turner tinha a impressão de que ele e Nettle haviam saído em busca de Mace e depois o esqueceram. Perambularam pelas ruas por um tempo, querendo dar-lhe os parabéns por aquela salvação e rir junto com ele. Turner não sabia como ele e Nettle haviam chegado àquela rua estreita. Não se lembrava de nenhum intervalo de tempo anterior, não sentia cansaço nos pés — no entanto, lá estava ele, dirigindo-se da maneira mais cortês a uma senhora de idade parada à porta de uma casa de fachada lisa, igual às outras do quarteirão. Quando falou em água, ela o olhou desconfiada, como se soubesse que ele queria algo mais do que água. Era uma mulher ainda bonitona, de pele morena, expressão orgulhosa, nariz longo e reto; usava um lenço florido amarrado no cabelo grisalho. Turner compreendeu na mesma hora que era cigana, que não se deixara enganar pelo fato de que ele falava francês. A mulher encarou-o e viu seus defeitos, e percebeu que ele já estivera preso. Então olhou com repulsa para Nettle e por fim apontou para a rua, onde um porco fuçava a sarjeta.
"Traga ela de volta", disse, "que eu vejo o que posso dar a vocês."
"Ora, vá se foder", reagiu Nettle quando Turner traduziu as palavras da mulher. "A gente só está pedindo a porra de um copo d'água. A gente entra e pega na marra."
Porém Turner, sentindo que uma irrealidade bem conhecida começava a se instaurar, não podia ignorar a possibilidade de que a mulher possuísse certos poderes. No lusco-fusco, o espaço acima da cabeça da velha pulsava ao ritmo de seu coração. Ele procurou o ombro de Nettle para equilibrar-se. A mulher estava lhe impondo um teste que ele era experimentado demais, cauteloso demais, para recusar. Era macaco velho. Já tão perto de casa, não ia cair em nenhuma armadilha. Melhor ter cuidado.
"A gente pega o porco", disse ele a Nettle. "É coisa de um minuto."
Nettle já estava bastante acostumado a seguir as sugestões de Turner, pois eram normalmente sensatas, mas, enquanto caminhavam pela rua, ele murmurou: "Você está meio esquisito, chefe".
As bolhas nos pés tolhiam os movimentos de ambos. A porca era jovem e rápida, e ciosa de sua liberdade. E Nettle tinha medo dela. Quando a encurralaram na frente de uma loja, a porca correu em direção ao cabo e ele pulou para o lado, com um grito que não era inteiramente de brincadeira. Turner recorreu à mulher para pedir uma corda, mas ninguém veio à porta, e ele não tinha certeza se era mesmo aquela casa. Mas agora tinha certeza de que, se não conseguissem capturar a porca, jamais voltariam para a Inglaterra. Estava febril de novo, ele sabia, mas nem por isso sua idéia parecia falsa. A porca era o sinal do sucesso. Quando menino, Turner uma vez tentara se convencer de que era uma bobagem tentar impedir a morte súbita de sua mãe evitando pisar nas rachaduras do cimento perto do playground da escola. Porém nunca pisara nelas, e sua mãe não morrera.
Quando voltaram a subir a rua, a porca continuava além de seu alcance.
"Foda-se", disse Nettle. "A gente tem mais o que fazer."
Mas não havia escolha. De um poste telegráfico caído, Turner arrancou um pedaço de fio e com ele fez um laço. Estavam perseguindo a porca por uma rua já nos limites do balneário, onde havia pequenos jardins cercados à frente dos bangalôs. Abriram todos os portões dos dois lados da rua. Então pegaram um desvio por uma transversal de modo a chegar à porca por trás e fazê-la correr de volta pelo caminho por onde ela viera. E deu certo: logo ela entrou num jardim e começou a fuçar a terra. Turner fechou o portão e, debruçado sobre a cerca, laçou a cabeça do animal.
Os dois precisaram de todas as suas forças para arrastar a porca relutante de volta para casa. Por sorte Nettle sabia onde ela morava. Quando por fim a criatura foi recolocada na minúscula pocilga nos fundos da casa, a velha trouxe duas jarras de pedra cheias de água. Observados por ela, os dois bebiam em pé, num êxtase, na pequena área junto à porta da cozinha. Mesmo quando seus ventres pareciam a ponto de estourar, suas bocas ainda pediam mais, e eles continuavam a beber. Então a mulher trouxe-lhes sabão, flanelas e duas tigelas esmaltadas para que se lavassem. O rosto quente de Turner deixou na água um tom marrom-escuro. Massas de sangue ressecado que estavam grudadas a seu lábio superior se destacaram inteiras. Quando terminou, ele sentia uma leveza agradável no ar a seu redor, que fluía com um toque sedoso por sua pele e lhe penetrava as narinas. Despejaram a água suja num canteiro de bocas-de-leão que, segundo Nettle, o deixava com saudades do jardim da casa de seus pais. A cigana encheu-lhes os cantis e entregou a cada um deles um litro de vinho tinto semidesarrolhado e um salaminho, que eles guardaram nos bornais. Quando estavam prestes a se despedir, ela teve ainda outra idéia e entrou em casa. Voltou com dois saquinhos de papel, contendo cada um meia dúzia de amêndoas açucaradas.
Trocaram um aperto de mãos solene.
"Não esqueceremos a sua bondade pelo resto das nossas vidas", disse Turner.
A mulher concordou com a cabeça, e ele entendeu que ela disse: "Minha porca sempre me lembrará de vocês". A severidade de sua expressão não se alterou, e não tinha como saber se havia insulto, humor ou uma mensagem oculta naquele comentário. Julgaria ela que eles não eram merecedores da sua bondade? Turner saiu da casa andando de costas, sem jeito, e quando já estavam na rua traduziu as palavras da mulher para Nettle. Este não teve dúvida:
"Ela mora sozinha e adora a porca. Está na cara. Ficou muito grata a nós." Então acrescentou, desconfiado: "Você está se sentindo bem, chefe?".
"Muitíssimo bem, obrigado."
Incomodados com as bolhas, seguiam mancando em direção à praia, pensando em encontrar Mace e compartilhar com ele a bebida e a comida. Mas, tendo capturado a porca, raciocinou Nettle, eles tinham direito a abrir uma garrafa agora. Sua confiança em Turner fora recuperada. Passavam a garrafa um para o outro enquanto caminhavam. Apesar de já estar quase escuro, ainda dava para ver a nuvem sombria pairando sobre Dunquerque. Na direção oposta, viam agora clarões de explosões. O ataque era contínuo no perímetro de defesa.
"Coitados daqueles fodidos", disse Nettle.
Turner sabia que ele se referia aos homens naquela sala de ordens improvisada. Disse: "Não vão conseguir se manter lá por muito tempo".
"Vamos ser invadidos."
"Por isso é bom a gente embarcar amanhã."
Agora que não tinham mais sede, pensavam no jantar. Turner imaginava uma sala tranqüila e uma mesa quadrada coberta por uma toalha de guingão verde, com um daqueles lampiões a querosene de cerâmica que se usam na França, pendurado do teto por uma roldana. E pão, vinho, queijo e salaminho espalhados numa tábua.
Disse então: "Eu me pergunto se a praia seria o melhor lugar para jantar".
"Lá são capazes de roubar tudo o que a gente tem", disse Nettle.
"Acho que sei qual o melhor lugar pra nós."
Estavam de volta à rua atrás do bar. Quando olharam para o beco pelo qual haviam corrido antes, viram vultos em movimento, em silhueta na penumbra contra os restos de claridade do mar, e muito além deles, num dos lados, uma massa mais escura que talvez fossem soldados na praia ou a vegetação sobre as dunas ou até mesmo as próprias dunas. A luz do dia já não seria fácil encontrar Mace; agora era impossível. Assim, continuaram andando, procurando um lugar. Naquele trecho do balneário havia então centenas de soldados, muitos deles em grupos barulhentos que percorriam as ruas cantando e gritando. Nettle guardou a garrafa no bornal. Sentiam-se mais vulneráveis sem Mace.
Passaram por um hotel que havia sido bombardeado. Tur-ner se perguntou se era mesmo num hotel que estava pensando. Nettle teve a idéia de pegar lá dentro colchões e roupas de cama. Entraram por um buraco na parede, foram avançando na escuridão às apalpadelas, passando por cima de entulho e vigas caídas, e encontraram uma escada. Mas dezenas de homens já haviam tido a mesma idéia. Havia até uma fila ao pé da escada, e soldados descendo, carregando pesados colchões de crina. No patamar superior — Turner e Nettle só viam botas e pernas andando com dificuldade de um lado para o outro —, uma briga se desenrolava, com gemidos e baques de punhos contra carne. Houve um grito súbito, e vários homens caíram para trás, rolando escada abaixo, sobre os que estavam no lance inferior. Alguns riram, outros xingaram; homens se levantavam apalpando pernas e braços. Um não se levantou e permaneceu caído sobre a escada, troncho, as pernas mais altas que a cabeça, gritando com uma voz rouca, quase inaudível, como se estivesse num pesadelo. Alguém acendeu um isqueiro junto a seu rosto e viu os dentes expostos, a espuma branca nos cantos da boca. Ele partiu a coluna, disse alguém; mas ninguém podia fazer nada, e agora havia homens passando por cima dele carregados de cobertores e almofadões, e outros disputavam a vez de subir.
Saíram do hotel e voltaram a andar em sentido contrário à praia, em direção à casa onde morava a velha com sua porca. A eletricidade, que vinha de Dunquerque, certamente teria sido cortada, mas pelas bordas de algumas janelas cobertas por cortinas espessas dava para ver o brilho amarelado da luz de velas e lampiões. Do outro lado da rua havia soldados batendo às portas, mas agora ninguém abria. Foi nesse momento que Turner resolveu descrever para Nettle o tipo de lugar que ele imaginava para jantar. Ia acrescentando detalhes para se tornar mais persuasivo, incluindo portas envidraçadas que davam para uma sacada de ferro batido na qual se enroscava uma velha glicínia, e uma vitrola sobre uma mesa redonda coberta por um pano de chenille verde, com um tapete persa jogado sobre uma chaise-longue. Quanto mais avançava na descrição, mais se convencia de que aquela sala estava ali perto. Suas palavras tinham o efeito de materializá-la.
Nettle, os dentes incisivos apoiados no lábio inferior, com um ar simpático de roedor aparvalhado, deixou-o falar até o fim e disse: "Eu sabia. Eu sabia, porra".
Estavam parados diante de uma casa bombardeada cujo porão estava em parte exposto; parecia uma caverna gigantesca. Nettle agarrou-o pela túnica e o fez descer uma escada cheia de pedaços de tijolos. Cauteloso, ajudou-o a atravessar o porão escuro. Turner sabia que não era aquele o lugar, porém não conseguia resistir à determinação inusitada de Nettle. Surgiu um ponto de luz à frente, e depois outro, e mais um terceiro. Os cigarros dos homens que já estavam abrigados lá.
Disse uma voz: "Pô. Cai fora. Aqui já está cheio".
Nettle riscou um fósforo e o levantou. Encostados contra todas as paredes havia vários homens, sentados, em sua maioria dormindo. Uns poucos estavam deitados no meio do chão, mas ainda havia lugar, e, quando o fósforo apagou, Nettle pressionou os ombros de Turner para fazê-lo se sentar. Enquanto afastava as pedras do chão no lugar em que ia se acomodar, Turner sentiu a camisa encharcada. Talvez fosse sangue, ou algum outro fluido, mas no momento não sentia dor. Nettle dispôs o capote nos ombros do outro. Agora que seus pés estavam livres do peso, um êxtase de alívio espalhou-se por todo seu corpo, subindo a partir dos joelhos, e ele sentiu que não ia mais sair dali naquela noite, por mais que isso decepcionasse Nettle. O movimento rítmico da caminhada longuíssima então se transferira para o chão. Sentado na total escuridão, Turner sentia o assoalho balançar e inclinar-se sob ele. O problema agora era comer sem que os outros se jogassem sobre a comida. Sobreviver requeria egoísmo. Mas por ora permaneceu imóvel, a mente esvaziada. Depois de algum tempo, Nettle acordou-o com uma cutucada e pôs a garrafa de vinho nas suas mãos. Ele levou o gargalo à boca, inclinou a garrafa e bebeu. Alguém ouviu-o engolir.
"O que é isso que vocês têm aí?"
"Leite de ovelha", disse Nettle. "Ainda está quentinho. Toma um pouco."
Ouviu-se o som de alguém escarrando, e alguma coisa morna e gelatinosa caiu sobre as costas da mão de Turner. "Você é um porco."
Uma outra voz, mais ameaçadora, disse: "Cala a boca Estou tentando dormir".
Movendo-se em silêncio, Nettle enfiou a mão em seu bornal, encontrou o salaminho, cortou-o em três e passou unia fatia a Turner junto com um pedaço de pão. Ele deitou-se no chão de concreto, cobriu a cabeça com o capote para não deixar escapar o cheiro de carne e o som de seus dentes mastigando, e então, na atmosfera abafada de seu próprio hálito, pedaços de tijolo e terra espetando-lhe o rosto, começou a fazer a melhor refeição de sua vida. De seu rosto vinha um cheiro de sabonete. Mordia o pão, que tinha gosto de lona, e dilacerava e chupava o salaminho. A medida que o alimento chegava ao estômago, um calor ia desabrochando em seu peito, alcançando a garganta. Ele havia passado a vida inteira caminhando por aquelas estradas, pensou. Quando fechava os olhos, via asfalto em movimento, e suas botas apareciam e desapareciam de seu campo de visão. Ainda mastigava quando sentiu que transpunha as fronteiras do sono, durante segundos intermináveis. Penetrou numa outra extensão de tempo, e agora, encostada em sua língua, havia uma amêndoa açucarada, cuja doçura pertencia a um outro mundo. Ouvia os homens queixando-se do frio do porão e regozijava-se por estar protegido pelo capote; sentia um orgulho paternal por ter impedido os cabos de jogar fora seus agasalhos.
Entrou um grupo de soldados procurando abrigo e riscando fósforos, tal como ele e Nettle haviam feito. Turner sentia hostilidade por aqueles homens, e seus sotaques do Sudoeste o irritavam. Como todos os outros ocupantes do porão, queria que fossem embora. Mas eles encontraram um lugar perto de seus pés. Turner sentiu um cheiro de conhaque, e sua má vontade intensificou-se ainda mais. Os homens fizeram barulho ao se ajeitar para dormir, e, quando uma voz veio de perto da parede e gritou "Seus caipiras de merda!", um dos recém-chegados partiu naquela direção, e por um momento pareceu que uma briga ia estourar. Porém a escuridão e os protestos exaustos dos que já estavam instalados tiveram o efeito de manter a paz.
Em pouco tempo não se ouvia nada além da respiração regular e dos roncos dos soldados. Turner continuava sentindo que o chão se inclinava, depois se movia no ritmo de uma caminhada, e mais uma vez não conseguia dormir por estar sob o impacto de impressões fortes, febril e exausto demais. Através do tecido da túnica, apalpou o maço de cartas. Vou esperar por você. Volte. As palavras tinham um sentido, porém não o comoviam agora. Era muito simples — uma pessoa esperando por outra era como uma operação aritmética, uma coisa tão desprovida de emoção quanto uma soma. Esperar. Simplesmente uma pessoa ficar sem fazer nada, durante algum tempo, enquanto outra se aproximava. Esperar era uma palavra pesada. Ele sentia a pressão dela, pesada como um capote. Todos naquele porão estavam esperando, todos na praia. Ela estava esperando, sim, mas e daí? Tentou fazer com que a voz dela pronunciasse aquelas palavras, porém só ouvia sua própria voz, um pouco mais baixa que as batidas de seu coração. Não conseguia nem sequer formar a imagem do rosto dela. Obrigou seus pensamentos a se dirigirem à nova situação, aquela que o tornaria feliz. Os detalhes complexos lhe escapavam, a sensação de urgência estava extinta. Briony mudaria seu depoimento, reescreveria o passado, e o culpado se tornaria inocente. Mas o que significava a culpa naqueles tempos? Era uma coisa barata. Todo mundo era culpado, e ninguém era. Ninguém seria redimido por uma mudança de depoimentos, pois não havia gente bastante, papel e tinta bastante, paciência e paz bastante, para registrar todos os depoimentos de todas as testemunhas e reunir todos os fatos. Também as testemunhas eram culpadas. Passamos o dia inteiro um testemunhando os crimes do outro. Você não matou ninguém hoje? Mas quantos você não deixou entregues à morte? Aqui no porão não vamos tocar no assunto. A gente dorme e a coisa passa Briony. A amêndoa açucarada tinha gosto daquele nome, um nome que parecia tão antiquado, tão improvável que Turner chegou a pensar que talvez não se lembrasse dele direito. O nome de Cecília também. Então ele nunca havia percebido como eram estranhos aqueles nomes? Até mesmo essa pergunta era difícil manter em mente por mais tempo. Ele tinha tanta coisa a terminar ali na França que o mais sensato seria adiar a partida para a Inglaterra, embora já estivesse de malas feitas, aquelas malas estranhas e pesadas. Ninguém as veria se ele as deixasse ali e voltasse. Bagagem invisível. Ele precisava retornar e pegar o menino na árvore. Já havia feito aquilo antes. Havia voltado aonde ninguém mais fora e encontrado os meninos sob uma árvore, e carregado Pierrot sobre os ombros e Jackson nos braços, e atravessado todo o parque. Tão pesados! Estava apaixonado por Cecília, pelos gêmeos, pelo sucesso, pelo amanhecer e por aquela névoa estranha e luminosa. E como fora recebido! Agora já estava acostumado com esse tipo de coisa, isso que se via na beira de todas as estradas, mas naquele tempo, antes do endurecimento e do entorpecimento geral, quando ainda era uma novidade, quando tudo era novo, ele sentiu, e muito. Ficou comovido quando ela atravessou a pista de cascalho para falar com ele junto ao carro da polícia. Ah, quando eu te amava, Eu era limpo e bravo. Assim, ele voltaria pelo caminho por onde viera, atravessando os inóspitos pântanos drenados, passando pelo sargento feroz na ponte, pela vila bombardeada, pela estrada que se estendia como uma fita por tantos quilômetros de fazendas onduladas, atento para a pista à esquerda logo depois da vila, em frente à sapataria, e três quilômetros depois passaria pela cerca de arame farpado, atravessaria o bosque e os campos e dormiria na fazenda dos irmãos, e no dia seguinte, à luz amarelada da manhã, seguindo a agulha da bússola, cruzaria aquela terra gloriosa, com vales pequenos, riachos e enxames de abelhas, e subiria pelo caminho até chegar à cabana triste junto à estrada de ferro. E a árvore. Recolher da lama os pedaços de pano listrado queimado, os farrapos do pijama, e então pegá-lo na árvore, o pobre menino pálido, e lhe dar um enterro decente. Um menino bonito. Que os culpados enterrem os inocentes, e que ninguém mude o depoimento. E onde estava Mace, para ajudá-lo a cavar? Aquele urso corajoso, o cabo Mace. Mais uma coisa pelo meio, mais um motivo para não partir. Precisava encontrar Mace. Mas primeiro teria de percorrer todos aqueles quilômetros e voltar para o Norte, até o campo onde o fazendeiro e seu cão ainda caminhavam atrás do arado, e perguntar à mulher flamenga e a seu filho se eles o julgavam responsável por suas mortes. Pois às vezes a gente assume culpa demais, tem ataques orgulhosos de autopunição. Talvez ela dissesse não — em flamengo. Você tentou nos ajudar. Você não podia carregar-nos os dois. Você carregou os gêmeos, mas nós, não. Não, você não é culpado. Não.
Ouviu um cochicho e sentiu o calor de um hálito em seu rosto ardente. "Muito barulho, chefe."
Atrás da cabeça do cabo Nettle viu uma faixa larga de céu de um azul profundo e, traçado contra ele, em água-forte, a linha irregular e negra do teto destruído do porão.
"Barulho? O que é que eu estava fazendo?"
"Gritando 'não' e acordando todo mundo. Tem um pessoal aí que estava começando a se irritar."
Tentou levantar a cabeça e constatou que não conseguia. O cabo riscou um fósforo.
“Puta que o pariu. Você está com uma cara horrível. Vamos. Bebe."
Levantou a cabeça de Turner e levou o cantil a seus lábios.
A água tinha gosto de metal. Quando terminou, uma longa onda oceânica de exaustão começou a se quebrar sobre ele. Ele caminhara sobre a terra até cair no oceano. Para não assustar Nettle, tentou fingir que estava mais lúcido do que na verdade estava.
"Olha, resolvi ficar. Tem umas coisas que eu tenho que fazer."
Com a mão suja, Nettle enxugava a testa de Turner. Não entendia por que Nettle achava necessário colocar seu rosto, seu rosto de rato preocupado, tão perto do dele.
Dizia o cabo: "Chefe, você está me ouvindo? Está me escutando? Mais ou menos uma hora atrás eu saí pra dar uma mijada e adivinha o que eu vi. A marinha estava chegando pela estrada, chamando os oficiais. Eles estão se organizando na praia. Os navios estão voltando. Estamos indo pra casa, companheiro. Tem um tenente do East Kent Regiment que vai pôr a gente em forma às sete. Dorme mais um pouco e pára com essa porra dessa gritaria".
Agora ele estava caindo, e dormir era o que ele queria, mil horas de sono. Era mais fácil. A água era horrível, mas ajudava, ela e também a notícia, e o sussurro tranqüilizador de Nettle. Iam entrar em forma na estrada e depois marchariam até a praia. Direita, volver. A ordem seria restaurada. Lá em Cambridge eles não ensinavam as vantagens de uma boa sessão de ordem-unida. Lá eles cultivavam os espíritos livres e rebeldes. Os poetas. Mas o que os poetas sabiam a respeito da sobrevivência? Sobreviver em grupo. Nada de sair na debandada, em direção aos navios; quem chegou primeiro se deu bem, quem chegou por último se deu mal, nada disso. As botas não fariam nenhum ruído ao atravessar a areia em direção à água. Sobre as obras, mãos benévolas manteriam a amurada estável enquanto seus companheiros subissem a bordo. Mas o mar estava tranqüilo, e, agora que ele também estava tranqüilo, é claro que compreendia como era bom ela estar esperando. A aritmética que se danasse. Vou esperar por você era fundamental. Era a razão que lhe garantira a sobrevivência. Era a maneira comum de dizer que ela recusaria todos os outros homens. Só você. Volte. Ele ainda sentia o cascalho sobre as solas finas dos sapatos, ainda sentia agora, e o toque gélido das algemas nos punhos. Ele e o inspetor pararam junto ao carro e se viraram ao ouvi-la se aproximar. Como poderia ele esquecer aquele vestido verde, bem justo na curva dos quadris, dificultando seus passos apressados, revelando a beleza dos ombros. Mais alva que a névoa. Não ficou surpreso quando a polícia os deixou conversar. Nem pensou naquilo. Ele e Cecilia se comportaram como se estivessem a sós. Ela não se permitiu chorar enquanto lhe dizia que acreditava nele, que confiava nele, que o amava. Ele lhe disse simplesmente que não esqueceria aquilo, querendo dizer que pretendia manifestar a gratidão que sentia, especialmente naquele momento, especialmente agora. Então ela pôs um dedo nas algemas e disse que não sentia vergonha, que não havia motivo para vergonha. Segurou a ponta de sua lapela e sacudiu-a de leve, e foi então que disse: “Vou esperar por você. Volte". Disse isso a sério. O tempo haveria de mostrar que ela falara a sério. Depois eles o obrigaram a entrar no carro, e ela falou depressa, antes das lágrimas que não conseguia mais conter, e disse que o que acontecera entre eles era só deles, só deles. Referia-se à biblioteca, é claro. Era deles. Ninguém podia lhes tirar. "É o nosso segredo", ela gritou, na frente de todo mundo, pouco antes de se fechar a porta.
"Não vou dizer nada", disse ele, embora a cabeça de Nettle já não estivesse mais junto à sua havia um bom tempo. "Me acorda antes das sete. Prometo que não vou mais dizer nem uma palavra."
O mal-estar não estava confinado ao hospital. Parecia crescer com o rio turvo e turbulento, inchado pelas chuvas de abril, e à noite estendia-se sobre a cidade escurecida pelo blecaute como um crepúsculo mental que todo o país sentia, um espessamento silencioso e maligno, inseparável daquele final de primavera frio, bem oculto dentro de sua benevolência crescente. Alguma coisa estava chegando ao fim. Os médicos mais velhos, reunidos em grupos compenetrados nas interseções dos corredores, cultivavam um segredo. Os mais jovens, um pouco mais altos, caminhavam com um passo mais agressivo; o consultor parecia desconcentrado em sua rotina, e numa certa manhã foi até a janela e ficou uns bons minutos contemplando a outra margem do rio, enquanto atrás dele as enfermeiras, paradas ao lado dos leitos, esperavam. Os atendentes idosos pareciam deprimidos, empurrando pacientes de um lado para o outro nas enfermarias, e aparentemente tinham esquecido os bordões alegres que imitavam dos programas humorísticos de rádio; talvez Briony se sentisse até apaziguada se ouvisse mais uma vez aqueIa frase deles que a irritava tanto: ânimo, meu bem, quem sabe nem vai acontecer.
Porém ia acontecer, sim. O hospital já vinha se esvaziando lentamente, imperceptivelmente, havia muitos dias. De início parecia um mero acaso, uma epidemia de saúde que as enfermeiras aprendizes eram tentadas a atribuir à melhoria de suas técnicas. Foi só aos poucos que começaram a perceber que era proposital. Leitos vazios se espalhavam pela enfermaria, e pelas outras enfermarias, como óbitos na noite. Briony imaginava que os passos nos corredores largos e encerados, diminuindo aos poucos, tinham um som abafado, como se pedissem desculpas, quando antes eram animados e eficientes. Os operários que vieram instalar mangueiras de incêndio novas nos patamares ao lado dos elevadores, trazendo baldes de areia para combater o fogo, trabalharam o dia inteiro sem interrupção, sem falar com ninguém, nem mesmo com os atendentes, e foram embora. Na enfermaria, apenas oito dos vinte leitos estavam ocupados, e, mesmo que o trabalho fosse ainda mais pesado do que antes, uma certa inquietação, um temor quase supersticioso, impedia que as enfermeiras estagiárias trocassem queixas quando se viam a sós na hora do chá. Todos estavam, de modo geral, mais calmos, menos queixosos. Não ficavam mais abrindo as mãos para comparar frieiras.
Além disso, havia também o pavor constante de cometer erros, comum às estagiárias. Todas morriam de medo da enfer-meira-chefe Marjorie Drummond, com seu sorriso magro e ameaçador, o jeito brando que precedia os acessos de fúria. Briony sabia que recentemente havia acumulado uma série de deslizes. Quatro dias antes, apesar das instruções cuidadosas, uma paciente sob seus cuidados havia bebido o gargarejo de ácido carbólico — segundo o atendente que testemunhou a cena, de um gole só, como se fosse um copo de Guiness — e vomitou violentamente sobre as roupas de cama. Briony sabia também que fora vista pela enfermeira-chefe Drummond carregando apenas três comadres de uma vez só, quando agora se esperava delas que atravessassem a enfermaria com uma pilha de seis muito bem equilibrada, como garçons eficientes do La Coupole. Talvez tivesse cometido outros erros também, que o cansaço a fizera esquecer, ou que nem sequer percebera. Com freqüência incorria em erros de atitude — quando distraída, tendia a deslocar o peso para cima de um único pé, um gesto que muito irritava sua superiora. Lapsos e fracassos por vezes se acumulavam por vários dias seguidos: uma vassoura guardada erradamente, um cobertor dobrado com a etiqueta virada para cima, um colarinho engomado ligeiramente torto, os rodízios da cama desalinhados e virados para dentro, uma caminhada de um lado para o outro da enfermaria de mãos abanando — tudo isso era observado em silêncio, até ser atingido o ponto de saturação, e, então, quem não havia percebido os sinais espantava-se com a explosão de raiva. Justamente quando a estagiária achava que estava se saindo bem.
Nos últimos tempos, porém, a enfermeira-chefe já não dirigia seu sorriso tétrico às estagiárias, nem falava com elas com aquela voz mais baixa que o normal que as apavorava. Mal lhes dava atenção. Estava com a cabeça em outro lugar, e muitas vezes ficava no pátio junto à enfermaria de cirurgia dos homens, tendo longas conversas com sua contraparte, ou então desaparecia durante dois dias seguidos.
Num contexto diferente, numa outra profissão, ela pareceria uma figura maternal, com aquele corpo gorducho, ou até mesmo sensual, pois os lábios jamais pintados eram naturalmente vermelhos e delicadamente curvos; e o rosto, com aquelas bochechas de boneca, arredondadas, de um tom rosado saudável, indicava uma natureza bondosa. Tal impressão foi dissipada logo no início, quando uma estagiária do mesmo ano de Briony, uma moça grandalhona, boa, de gestos lerdos, com um olhar bovino inofensivo, sofreu a fúria da enfermeira-chefe com todo seu ímpeto dilacerador. A enfermeira Langland fora cedida à enfermaria de cirurgia dos homens, e lhe foi pedido que ajudasse a preparar um jovem soldado para uma apendec-tomia. Quando foi deixada sozinha com ele por um ou dois minutos, puxou conversa e fez comentários tranqüilizadores sobre a operação. O rapaz certamente fez a pergunta óbvia, e foi então que ela quebrou a regra sagrada. Era claramente enunciada no manual, embora ninguém imaginasse o quanto era considerada importante. Horas depois, o soldado emergiu da anestesia e murmurou o nome da estagiária no momento em que a enfermeira-chefe estava por perto. A enfermeira Langland foi enviada de volta para sua enfermaria, tendo caído em desgraça. As outras foram obrigadas a se reunir e escutar com atenção. Se a pobre Susan Langland tivesse matado duas dúzias de pacientes por descuido ou crueldade, não teria sido punida com mais rigor. Quando a enfermeira-chefe Drummond terminou de lhe dizer que ela havia conspurcado as tradições de Floren-ce Nightingale às quais ela aspirava, e que devia se considerar uma pessoa de sorte por passar o próximo mês organizando a roupa suja, não apenas Langland como também metade das outras moças estavam chorando. Briony não chorou, mas aquela noite, na cama, ainda um pouco trêmula, folheou o manual mais uma vez, para ver se havia algum outro detalhe de etiqueta de que ela não se lembrava. Releu e decorou o mandamento: a enfermeira não deve em hipótese alguma comunicar ao paciente seu primeiro nome.
As enfermarias se esvaziavam, porém o trabalho aumentava. Todas as manhãs os leitos eram empurrados para o centro a fim de que as estagiárias pudessem passar um esfregão tão pesado que mal conseguiam deslizá-lo de um lado para outro. Os assoalhos precisavam ser varridos três vezes por dia. Toda vez que um armário era esvaziado, era preciso esfregá-lo; os colchões eram fumigados; cabides, maçanetas e fechaduras de latão eram lustrados. O madeiramento — não só o rodapé como as portas — era lavado com solução de ácido carbólico, tal como as camas de ferro e suas molas. As estagiárias esvaziavam, limpavam e enxugavam comadres e papagaios até deixá-los brilhando como pratos de porcelana. Caminhões militares de três toneladas encostavam-se às câmaras de descarga e despejavam mais camas, velhas e imundas, que tinham de ser esfregadas muitas vezes antes de serem levadas para a enfermaria, enfileiradas e submetidas a um banho de ácido carbólico. Entre uma e outra tarefa, mais de dez vezes por dia, as estagiárias esfregavam as mãos rachadas, cheias de frieiras, em água gelada, até sangrar. A guerra contra os micróbios era incessante. As estagiárias eram iniciadas no culto à higiene. Aprendiam que não havia nada mais nojento do que um tufo saído de um cobertor escondido debaixo de um leito, ocultando em suas formas um batalhão, uma divisão inteira, de bactérias. A prática cotidiana de ferver, esfregar, polir e limpar se transformava no maior motivo de orgulho profissional das estagiárias e exigia o sacrifício rigoroso do conforto pessoal.
Os atendentes traziam das câmaras de descarga grandes quantidades de suprimentos que era necessário desembrulhar, classificar e armazenar — curativos, cubas-rim, seringas, três autoclaves novas e muitos pacotes rotulados "sulfadizina de prata", cuja utilização ainda não fora explicada. Um novo armário de remédios foi instalado e lavado três vezes seguidas; logo estava cheio. Foi trancado, e a chave ficou com a enfermeira-chefe Drummond, porém uma vez Briony viu que ele continha fileiras de frascos de morfina. Sempre que ia fazer alguma tarefa numa outra enfermaria, observava que também lá estavam fazendo preparativos semelhantes. Numa das enfermarias já não havia mais nenhum paciente; ela brilhava num silêncio espaçoso, à espera. Porém não se podia fazer perguntas. No ano anterior, imediatamente antes da declaração de guerra, as enfermarias do andar de cima tinham sido fechadas completamente, como proteção contra bombardeios. Agora as salas de operação ficavam no subsolo. As janelas do térreo estavam protegidas com sacos de areia, e todas as clarabóias tinham sido fechadas com cimento.
Um general do exército inspecionou o hospital, com meia dúzia de consultores a seu lado. Não houve qualquer cerimônia, nem sequer se fez silêncio quando eles vieram. Normalmente, dizia-se que, nessas visitas importantes, o nariz de cada paciente devia estar alinhado com o vinco central do lençol que o cobria. Mas não havia tempo para preparativos. O general passou pela enfermaria, cercado por sua comitiva, murmurando e acenando com a cabeça; depois foram embora.
O mal-estar aumentava, mas não havia muita oportunidade para especulações, as quais, aliás, estavam oficialmente proibidas. Quando não se encontravam de plantão, as estagiárias ficavam assistindo a aulas ou demonstrações práticas, ou então estudando sozinhas. As refeições e a hora de deitar eram supervisionadas tal como se elas fossem calouras na Roedean School. Quando Fiona, que dormia na cama ao lado da de Briony, empurrou o prato e anunciou a ninguém em particular que se considerava "clinicamente incapaz" de comer legumes cozidos com extrato de carne concentrada, a enfermeira-chefe do alojamento permaneceu parada a seu lado até que ela tivesse terminado de comer a última garfada. Fiona era, por definição, amiga de Briony; no dormitório, na primeira noite do treinamento preliminar, ela pedira a Briony que lhe cortasse as unhas da mão direita, explicando que não conseguia usar a tesoura com a mão esquerda e que sua mãe era quem sempre fazia aquilo para ela. Era ruiva e sardenta, o que fez com que Briony ficasse imediatamente desconfiada. Ao contrário de Lola, porém, Fiona era barulhenta e alegre, com covinhas nas costas das mãos e seios imensos que levavam as outras meninas a dizer que mais cedo ou mais tarde ela se tornaria enfermeira-chefe. Sua família morava em Chelsea. Uma noite ela cochichou, já deitada, que seu pai aguardava um convite para participar do gabinete de guerra de Churchill. Porém, quando o gabinete foi anunciado, o sobrenome esperado não apareceu; nada foi dito, e Briony achou melhor não fazer perguntas. Naqueles primeiros meses após o treinamento preliminar, Fiona e Briony não tiveram tempo de verificar se de fato simpatizavam uma com a outra. Era conveniente para elas presumir que sim. Eram das poucas que não tinham nenhuma base em medicina. A maioria das outras havia feito um curso de primeiros socorros, e algumas tinham servido como voluntárias da Cruz Vermelha e já tinham visto sangue e cadáveres — ou, pelo menos, assim afirmavam.
Mas não era fácil cultivar uma amizade. As estagiárias cumpriam seus turnos de trabalho nas enfermarias, estudavam três horas por dia nas horas vagas e dormiam. O único luxo era a hora do chá, entre as quatro e as cinco, quando pegavam nas prateleiras de madeira os pequenos bules pardos, cada um com um nome de uma moça, e se reuniam numa saleta perto da enfermaria. A conversação era difícil. A enfermeira-chefe do alojamento estava sempre presente, para supervisionar e manter o decoro. Além disso, no momento em que se sentavam eram dominadas pelo cansaço, pesado como três cobertores dobrados. Uma vez uma das moças adormeceu com a xícara e o pires na mão e queimou a coxa — uma boa oportunidade, disse a enfermeira-chefe Drummond quando veio ver o motivo da gritaria, para praticar o tratamento de queimaduras.
E ela própria representava um obstáculo à amizade. Já naqueles primeiros meses, Briony costumava pensar que seu único relacionamento era com a enfermeira-chefe Drummond. Ela estava sempre presente, na extremidade de um corredor aproximando-se com uma determinação terrível, e logo, parada ao lado de Briony, murmurava em seu ouvido que ela não havia prestado atenção, durante o treinamento preliminar, nos procedimentos corretos para fazer a higiene em pacientes do sexo masculino no leito: era só depois da segunda troca da água que a flanela ensaboada e a toalha deviam ser entregues ao paciente para que ele pudesse "terminar sozinho". O estado mental de Briony dependia em grande parte da opinião que a enfermeira-chefe tinha dela no momento em questão. Sentia um frio no estômago toda vez que o olhar da enfermeira-chefe se voltava para ela. Era impossível saber se havia se saído bem na tarefa. Briony tinha pavor das críticas que ela lhe fazia. Elogios jamais ocorriam. O máximo que se podia esperar era indiferença.
Nos poucos momentos livres que tinha, normalmente no escuro, minutos antes de adormecer, Briony imaginava uma vida paralela espectral, em que ela se via no Girton College, lendo Milton. Poderia estar na faculdade de sua irmã em vez de no hospital dela. Briony pensara que faria parte do esforço de guerra. Na verdade, reduzira sua vida ao relacionamento com uma mulher quinze anos mais velha, a qual exercia sobre ela um poder muito maior do que o de uma mãe sobre uma criança pequena.
Esse estreitamento da sua existência, que era acima de tudo um desnudamento da identidade, teve início semanas antes de ela até mesmo ter ouvido falar na enfermeira-chefe Drummond. No primeiro dia dos dois meses de treinamento preliminar, a humilhação de Briony diante da turma fora instrutiva. Era assim que ia ser. Briony havia se aproximado da enfer-meira-chefe para lhe dizer, delicadamente, que havia um erro no seu crachá. Ela era B. Tallis, e não, como dizia o pequeno broche retangular, E. Tallis.
A resposta foi tranqüila. "Você vai ficar tal como foi designada. Seu nome de batismo não interessa nem um pouco. Agora, por favor, vá sentar-se, enfermeira Tallis."
As outras moças teriam rido, se tivessem coragem, pois todas tinham a mesma inicial, porém perceberam com acerto que não podiam fazer isso. Estava na hora das aulas de higiene, em que se praticava fazer higiene no leito usando modelos de tamanho real — a sra. Mackintosh, Lady Chase e o pequeno Geor-ge, cujo físico raquítico lhe permitia fazer também o papel de menina. Era tempo de se adaptar a uma obediência cega, de aprender a carregar comadres empilhadas e de se lembrar de uma regra fundamental: jamais atravesse uma enfermaria sem voltar trazendo alguma coisa. O desconforto físico ajudava a fechar os horizontes mentais de Briony. Os colarinhos altos, engomados, deixavam seu pescoço em carne viva. De tanto lavar as mãos dezenas de vezes por dia em água gelada com bar-rilha, pela primeira vez teve frieiras. Os sapatos que foi obrigada a comprar com seu próprio dinheiro apertavam seus dedos impiedosamente. O uniforme, como todos os uniformes, anulava a identidade, e a atenção cotidiana que exigia — passar a ferro para manter o franzido, prender a touca, endireitar os vincos, engraxar os sapatos, principalmente os saltos — dava início a um processo que pouco a pouco levava à exclusão de todas as outras preocupações. Quando as moças estavam prontas para trabalhar como estagiárias nas enfermarias sob a supervisão da enfermeira-chefe Drummond e submeter-se à rotina diária "da comadre ao fortificante", suas vidas anteriores já começavam a perder a nitidez. Suas mentes estavam até certo ponto esvaziadas, suas defesas erodidas, de modo que não era difícil convencê-las da autoridade absoluta da enfermeira-chefe. Era importante que não houvesse resistência, para que ela pudesse encher-lhes as mentes vazias.
Embora isso jamais fosse dito de modo explícito, o modelo por trás do processo era militar. A srta. Nightingale, a quem jamais ninguém devia se referir como Florence, estivera na Cri-méia tempo suficiente para compreender o valor da disciplina, das linhas de comando inflexíveis, dos soldados bem treinados. Assim, deitada no escuro, ouvindo Fiona dar início a seus roncos incessantes — ela dormia de barriga para cima —, Briony já percebia que sua vida paralela, que lhe era tão fácil imaginar com base nas visitas que fizera quando menina a Leon e Cecília em Cambridge, logo começaria a divergir de sua vida real. Aquela agora era sua vida de estagiária, aqueles quatro anos, aquele regime que englobava tudo, e ela não tinha vontade própria, não tinha liberdade para ir embora. Estava se entregando a uma rotina de restrições, regras, obediência, trabalho doméstico e medo constante da reprovação. Ela era membro de uma leva de estagiárias — de tantos em tantos meses chegava mais outra — e sua única identidade era aquele crachá. Ali não havia aulas extras, ali ninguém se preocuparia com os problemas de seu desenvolvimento intelectual individual. Briony esvaziava e lavava as comadres, varria e encerava o soalho, preparava chocolate quente e fortificante, levava e trazia — e se libertava da introspecção. A partir de um certo ponto, segundo lhe diziam as alunas do segundo ano, sua competência começaria a lhe dar prazer. Briony já antegozara essa sensação alguns dias antes, quanto foi encarregada de tomar o pulso e a temperatura dos pacientes e anotar os dados numa tabela, sob supervisão. Quanto a tratamentos médicos, já havia passado violeta de genciana num paciente que tinha, germicida num corte e água de Gou-lard numa contusão. Mas na maior parte do tempo ela trabalhava como empregada, uma criada, e, nas horas vagas, estudava coisas simples. Era bom ter um pouco de tempo para pensar em outros assuntos. Mas quando, de penhoar, ia até o patamar da escada, antes de se deitar, e olhava para a cidade às escuras do outro lado do rio, lembrava-se do mal-estar que havia lá fora, nas ruas, tanto quanto nas enfermarias, semelhante à própria escuridão. Nada em sua rotina, nem mesmo a enfermeira-chefe Drummond, poderia protegê-la daquilo.
Na última meia hora antes de apagarem as luzes, depois do chocolate, as meninas entravam umas nos quartos das outras, sentavam-se nas camas e escreviam cartas para familiares ou namorados. Algumas ainda choravam de saudade, e então trocavam-se abraços e palavras tranqüilizadoras. Aquilo parecia teatral a Briony, mulheres feitas chorando por sentirem falta das mães, ou — como disse uma das estagiárias, entre soluços — do cheiro do cachimbo do papai. As consoladoras pareciam estar se divertindo um pouco além da conta. Naquela atmosfera melosa, Briony às vezes escrevia cartas para os pais, textos concisos que quase nada diziam além de que ela não estava doente, não se sentia infeliz, não precisava de sua mesada e não havia mudado de idéia, ao contrário do que sua mãe previra. As outras moças relatavam com orgulho suas cansativas rotinas de trabalho e estudo para impressionar os pais amorosos. Briony só confiava essas questões ao seu caderno, e mesmo assim não entrava em detalhes. Não queria que sua mãe soubesse que ela era obrigada a fazer trabalho braçal. Um dos seus objetivos ao se tornar enfermeira era trabalhar para ser independente. Era importante para ela que seus pais, especialmente sua mãe, soubessem o mínimo possível a respeito de sua vida.
Além de conter uma série de perguntas repetidas que permaneciam sempre sem resposta, as cartas de Emily falavam principalmente sobre os evacuados. Três mães com sete filhos, todos moradores da área de Hackney, em Londres, tinham sido instalados na casa dos Tallis. Uma das mães deu um vexame no pub da cidadezinha e foi proibida de voltar lá. A outra era uma católica devota, que todos os domingos caminhava mais de seis quilômetros com os três filhos para assistir à missa. Mas Betty, embora também fosse católica, não tinha qualquer sensibilidade para essas diferenças. Odiava todas as mães e seus respectivos filhos. Elas lhe haviam dito na primeira manhã que não gostavam da comida que ela preparava. Betty dizia também que vira a mulher católica cuspindo no chão do corredor. O menino mais velho, que embora tivesse treze anos parecia ter no máximo oito, havia entrado na fonte, subido na estátua e quebrado o chifre e o braço do tritão, até a altura do cotovelo. Jack disse que seria fácil consertar o estrago. Porém a parte quebrada, que havia sido deixada na copa da casa, tinha sumido. Com base no que lhe dissera o velho Hardman, Betty acusou o menino de jogá-la no lago. O garoto disse que não sabia de nada. Falou-se em esvaziar o lago, porém os cisnes estavam em plena temporada de acasalamento. A mãe defendeu o filho com ferocidade, dizendo que era um perigo ter uma fonte numa casa com crianças e que ia escrever para o parlamentar. Sir Arthur Ridley era padrinho de Briony.
Assim mesmo, Emily achava que era até uma sorte eles terem recebido evacuados, pois chegou-se a pensar que toda a casa seria requisitada pelo exército. Acabaram escolhendo a casa de Hugh van Vliet, porque lá havia uma mesa de sinuca. A outra notícia era que sua irmã Hermione continuava em Paris, mas pensava em se mudar para Nice. Além disso, as vacas tinham sido levadas para três pastos no lado norte, para que se pudesse plantar trigo no parque. Dois quilômetros e meio de uma cerca de ferro instalada em meados do século XVI haviam sido arrancados para a fabricação de Spitfires. Até mesmo os operários que vieram retirar a cerca disseram que aquele metal não servia. Uma casamata de cimento e tijolo fora construída perto do rio, bem na curva, em meio às sebes, destruindo os ninhos dos marrecos e das lavandiscas. Uma outra estava sendo construída na estrada principal, bem na entrada da cidadezinha. Todas as peças frágeis estavam sendo guardadas nos porões, inclusive o cravo. A infeliz da Bett} deixou cair o vaso do tio Ciem quando o carregava, e ele se espatifou na escada. Ela disse que um pedaço simplesmente se soltou em sua mão, mas ninguém acreditava nela. Danny Hardman havia entrado para a marinha, mas todos os outros rapazes da cidadezinha estavam no East Surrey Regiment. Jack andava trabalhando demais. Foi a uma reunião especial e quando voltou parecia cansado e magro, e não pôde dizer a ela onde estivera. Ficou furioso com a história do vaso, chegou a gritar com Betty, coisa que era tão rara nele. Ainda por cima, ela perdera um livro de registro de racionamento, o que os obrigou a passar duas semanas sem açúcar. A mãe que foi expulsa do Red Lion veio sem sua máscara contra gás e não foi possível encontrar outra. O inspetor encarregado das precauções antiaéreas, que era irmão do policial Vockins, viera pela terceira vez para ver se estavam fazendo blecaute. Era um verdadeiro ditador em miniatura. Ninguém gostava dele.
Ao ler essas cartas após um dia cansativo, Briony sentia uma nostalgia sonhadora, um vago anseio por uma vida que fora perdida havia muito tempo. Não podia se entregar à auto-comiseração.
Fora ela que resolvera se desligar da família. Nas férias de uma semana antes do treinamento preliminar, antes de seu ano de estágio, ela ficara com seus tios em Primrose Hill e fora obrigada a resistir à mãe pelo telefone. Por que Briony não podia visitá-la, mesmo que fosse apenas por um dia? Todos adorariam vê-la, todos queriam muito ouvi-la falar sobre sua nova vida. E por que ela escrevia tão pouco? Era difícil dar uma resposta direta. Por ora, era necessário se manter afastada.
Na gaveta de seu armário de cabeceira ela guardava um caderno de papel almaço com capa de cartolina marmorizada. Havia um barbante preso com fita adesiva à lombada, no qual estava amarrado um lápis. Era proibido usar tinta na cama. Briony começou o diário ao final do primeiro dia do treinamento preliminar e conseguia escrever pelo menos dez minutos quase todas as noites antes de apagarem as luzes. Suas anotações incluíam manifestos artísticos, reclamações triviais, descrições de personagens e relatos simples de seu dia que cada vez mais terminavam se perdendo na fantasia. Ela raramente relia o que havia escrito, mas gostava de folhear as páginas cheias. Ali, por trás do crachá e do uniforme, estava seu eu verdadeiro, guardado em segredo, acumulando-se em silêncio. Briony jamais perdera aquele prazer infantil de ver páginas cobertas com sua própria letra. Quase não fazia diferença o que ela escrevia. Como a gaveta não tinha tranca, suas descrições da enfermeira-chefe Drummond eram sempre cuidadosamente disfarçadas. Também os nomes dos pacientes eram modificados. E, uma vez que os nomes tinham sido mudados, tornava-se mais fácil transformar as circunstâncias e inventar. Agradava-lhe escrever o que imaginava serem os pensamentos das pessoas. Não tinha nenhuma obrigação de dizer a verdade, não prometera uma crônica a ninguém. Aquele era o único lugar em que podia ser livre. Briony criava pequenas histórias — não muito convincentes, num estilo um pouco amaneirado — em torno das pessoas que via na enfermaria. Por algum tempo imaginou-se uma espécie de Chaucer da medicina, inventando enfermarias cheias de tipos interessantes, camaradas, beber-rões, velhos caturras e senhoras encantadoras com segredos sinistros para contar. Anos depois ela se arrependeria por não ter sido mais fiel aos fatos, por não ter reunido um estoque de matéria-prima. Teria sido interessante saber o que aconteceu, como era, quem estava lá, o que foi dito. Naquele momento, o diário preservava sua dignidade: ela parecia uma estagiária de enfermagem, levava a mesma vida que todas as outras, mas na verdade era uma escritora importante disfarçada. E, numa situação em que estava desligada de tudo o que conhecia — família, casa, amigos —, a escrita era o fio da continuidade. Era a coisa que ela sempre fizera.
Eram raros os momentos do dia em que sua mente tinha liberdade para se soltar. Às vezes mandavam-na ir até a farmácia, e ela era obrigada a esperar a volta do farmacêutico. Então caminhava pelo corredor até a escada, onde havia uma janela que dava vista para o rio. Imperceptivelmente, seu peso se deslocava para o pé direito enquanto ela olhava para o edifício do Parlamento sem conseguir vê-lo, e pensava não em seu diário, e sim na longa narrativa que havia escrito e enviado para uma revista. Quando estava em Primrose Hill, pediu emprestada a máquina de escrever do tio, instalou-se na sala de jantar e datilografou a versão final, usando apenas os dedos indicadores. Passou a semana inteira trabalhando na história, mais de oito horas por dia, até sentir dores nas costas e no pescoço, enquanto letras e símbolos emaranhados rodopiavam diante de seus olhos. Porém quase não imaginava prazer maior do que aquele, quando, no final, ao ajeitar a pilha completa de páginas — cento e três! — sentiu nas pontas dos dedos machucados o peso de sua criação. Era tudo dela. Ninguém mais poderia ter escrito aquilo. Guardando uma cópia feita com papel-carbono, embrulhou seu conto (não era o termo correto) em papel pardo, foi de ônibus para Bloomsbury, caminhou até o endereço em Lans-downe Terrace, a redação da nova revista, Horizon, e entregou o pacote à jovem simpática que veio abrir a porta.
O que a entusiasmava em seu texto era a concepção, a geometria pura, a incerteza definidora, que refletiam, pensava ela, uma sensibilidade moderna. A era das respostas definidas havia terminado. Como também a era dos personagens e dos enredos. Apesar dos esboços que incluía em seu diário, no fundo ela não acreditava mais em personagens. O personagem era uma criação antiquada do século XIX. O próprio conceito se baseava em erros que já haviam sido denunciados pela psicologia moderna. O enredo, também, era como um mecanismo enferrujado, com rodas que não giravam mais. O romancista moderno não podia mais criar personagens e enredos, tal como o compositor moderno não podia fazer uma sinfonia de Mozart. O que a interessava era o pensamento, a percepção, as sensações, a mente consciente como um rio atravessando o tempo, e o objetivo era representar o movimento da consciência, bem como todos os afluentes que a engrossavam e os obstáculos que a desviavam de seu curso. Ah, se ela pudesse reproduzir a luz límpida de uma manhã de verão, as sensações de uma criança olhando por uma janela, a curva e a descida do vôo de uma andorinha sobre uma lagoa! O romance do futuro seria totalmente diferente dos que existiram no passado. Briony tinha lido As ondas de Virgínia Woolf três vezes, e achava que uma grande transformação estava ocorrendo na própria natureza humana; apenas a ficção, um novo tipo de ficção, poderia captar a essência dessa mudança. Penetrar uma consciência e mostrá-la em funcionamento, ou sofrendo uma influência externa, e fazer isso dentro de um projeto simétrico — seria um triunfo artístico. Era o que pensava a enfermeira Tallis enquanto esperava a volta do farmacêutico, contemplando a outra margem do Tâmisa, sem pensar no perigo que corria se a enfermeira-chefe Drummond a descobrisse com o peso deslocado sobre uma perna.
Três meses haviam se passado, e Briony não recebera nada da Horizon.
Um segundo texto também não teve resposta. Briony tinha ido até o edifício da administração para descobrir o endereço de Cecilia. No início de maio ela havia escrito para a irmã. Agora estava começando a achar que o silêncio era a resposta de Cecilia.
Nos últimos dias de maio, as entregas de suprimentos médicos aumentaram. Mais casos sem urgência foram mandados para casa. Muitas enfermarias estariam completamente vazias se não tivessem sido internados quarenta marinheiros — um tipo raro de icterícia estava se espalhando por toda a marinha. Briony já não tinha tempo para perceber essas coisas. Haviam iniciado novos cursos sobre enfermagem hospitalar e anatomia preliminar. As alunas de primeiro ano corriam dos plantões para as aulas, das refeições para o estudo individual. Após três páginas de leitura, era difícil permanecer acordada. As batidas do Big Ben assinalavam cada mudança do dia, e havia momentos em que a solene nota única que marcava o quarto de hora provocava gemidos de pânico contido, lembrando às moças que elas deviam estar em outro lugar.
Quando um paciente estava em repouso total, sua condição em si já era considerada um procedimento médico. A maioria dos pacientes, qualquer que fosse seu estado, não tinha permissão de andar até o banheiro, ainda que próximo. Assim, os dias começavam com as comadres. A enfermeira-chefe não gostava de ver comadres carregadas de um lado para outro da enfermaria "como se fossem raquetes de tênis". Elas deviam ser erguidas "para a glória de Deus" e já deviam estar esvaziadas lavadas, esterilizadas e guardadas às sete e meia, a hora de começar a servir a refeição matinal. O dia inteiro carregando comadres, fazendo a higiene dos pacientes, lavando o chão. As moças se queixavam de dor nas costas de tanto fazer camas e de ardência nos pés por ficar o dia inteiro em pé. Uma atribuição adicional das enfermeiras era cerrar as cortinas negras do blecaute de toda a longa enfermaria. No final do dia, mais comadres, o esvaziamento de canecos de catarro, a preparação do chocolate. Quase não havia tempo entre o final do turno e o início da aula para voltar ao dormitório e pegar cadernos e livros. Duas vezes num mesmo dia, Briony foi repreendida pela enfermeira-chefe por estar correndo no corredor, e em ambas as ocasiões a repreensão foi feita com uma voz despida de emoção. As hemorragias e os incêndios eram as únicas justificativas plausíveis para uma enfermeira correr.
Porém o lugar mais freqüentado pelas estagiárias de primeiro ano era a sala de esterilização. Falava-se na futura instalação de máquinas automáticas de lavar comadres e papagaios, mas eram apenas boatos de uma terra prometida. Por ora, o jeito era fazer tal como sempre se fizera no passado. No dia em que foi repreendida duas vezes por estar correndo, Briony foi enviada à sala de esterilização por um turno a mais. Talvez fosse um mero acaso determinado pela lista não escrita dos revezamentos, mas ela achava que não. Entrou na sala, fechou a porta e prendeu na cintura o pesado avental de borracha. Na hora de esvaziar, o jeito — na verdade, a única maneira como ela conseguia fazer aquilo — era fechar os olhos, prender a respiração e desviar a cabeça. Depois vinha a imersão numa solução de ácido carbólico. Caso se esquecesse de verificar se os cabos ocos das comadres estavam lavados e secos, ela teria ainda mais problemas com a enfermeira-chefe.
Finda essa tarefa, Briony foi direto arrumar a enfermaria, já quase sem pacientes, no final do dia — endireitar armários, esvaziar cinzeiros, recolher os jornais. Automaticamente olhou de relance para uma folha dobrada do Sunday Graphíc. Estava acompanhando o noticiário em fragmentos dispersos. Nunca tinha tempo de sentar e ler o jornal direito. Sabia que a Linha Maginot fora rompida, que Roterdã tinha sido bombardeada, que o exército holandês havia se rendido, e na véspera ouvira algumas das moças comentando que a queda da Bélgica era iminente. A guerra ia mal, mas algum dia a coisa ia virar. Foi uma frase inofensiva que atraiu sua atenção agora — não o que ela dizia, e sim o que aquela linguagem eufêmica tentava ocultar. O exército britânico no Norte da França estava "realizando retiradas estratégicas para posições previamente preparadas". Até mesmo Briony, que nada sabia de estratégia militar nem das convenções do jornalismo, entendeu o verdadeiro significado daquela retirada. Talvez ela tenha sido a última pessoa no hospital a compreender o que estava acontecendo. O esvaziamento das enfermarias, o fluxo de suprimentos, tudo aquilo lhe parecera apenas parte dos preparativos gerais para a guerra. Ela estivera demasiadamente envolvida em suas próprias preocupações. Agora entendia de que modo as diferentes notícias se encaixavam e se dava conta do que todo mundo certamente já sabia. Briony percebera o sentido dos preparativos que estavam sendo feitos pela administração do hospital. Os alemães haviam chegado à Mancha, o exército britânico estava passando por dificuldades. Tudo dera errado na França, embora ninguém soubesse exatamente o tamanho do desastre. Aquele pressentimento aquele terror contido, era o que ela vinha sentindo a seu redor
Mais ou menos nessa época, no dia em que os últimos pacientes foram retirados da enfermaria, chegou uma carta de seu pai. Após uma saudação e perguntas sobre seu curso e sua saúde, todas perfunctórias, ele passava uma informação que lhe fora dada por um colega e confirmada pela família: Paul Marshall e Lola Quincey iam se casar dentro de uma semana, no sábado, na Church of the Holy Trinity, em Clapham Common. Não explicava por que achava que ela estaria interessada na notícia e tampouco fazia qualquer comentário. Simplesmente assinava com o rabisco costumeiro — "com amor, como sempre".
A manhã inteira, enquanto cumpria suas obrigações, Briony pensava na notícia. Não via Lola desde aquele verão; assim, a figura que imaginava diante do altar era uma menina magricela de quinze anos de idade. Briony ajudava uma paciente que estava tendo alta, uma senhora idosa de Lambeth, a fazer sua mala, tentando prestar atenção às queixas dela. Ela havia quebrado o dedo do pé, e lhe fora garantido que passaria doze dias de cama, mas só havia ficado sete. Foi ajudada a se sentar numa cadeira de rodas, e um atendente a levou embora. De plantão na sala de esterilização, Briony fez as contas. Lola estava com vinte anos, Marshall teria vinte e nove. Não era uma surpresa; o choque estava na confirmação. Briony não estava apenas envolvida nessa união; fora ela que a tornara possível.
Aquele dia inteiro, subindo e descendo a enfermaria, passando pelos corredores, Briony sentiu a culpa de sempre a persegui-la com um ímpeto novo. Esfregava os armários esvaziados, ajudava a lavar camas com ácido carbólico, varria e encerava o assoalho, ia e voltava velozmente da farmácia e do serviço social, mas sem chegar a correr; foi enviada com outra estagiária para ajudar a fazer um curativo num furúnculo de um paciente na enfermaria geral masculina e substituiu Fiona, que tinha de ir ao dentista. Naquele dia, o primeiro dia realmente bonito de maio, ela suava sob o uniforme engomado. Tudo o que queria fazer era trabalhar, depois tomar um banho e dormir até chegar a hora de trabalhar de novo. Mas nada daquilo adiantava, ela sabia. Por mais que se esfalfasse em trabalhos braçais e nas tarefas mais humildes da enfermagem, por melhores e mais intensos que fossem seus esforços, por mais que houvesse aberto mão dos conhecimentos que lhe proporcionaria o estudo, da oportunidade de viver no campus de uma universidade, ela jamais poderia desfazer o mal que causara. Ela não tinha perdão.
Pela primeira vez em muitos anos pensou que gostaria de conversar com seu pai. Ela sempre o vira como uma pessoa distante e jamais esperara alguma coisa dele. Talvez ao lhe mandar aquela notícia ele estivesse tentando dizer que sabia a verdade. Depois do chá, quando só lhe restava muito pouco tempo, foi até o telefone público perto da entrada do hospital junto à ponte de Westminster e tentou ligar para seu pai no trabalho. A telefonista conectou-a com uma voz anasalada e simpática, mas a linha caiu e ela teve de começar outra vez. A mesma coisa aconteceu, e na terceira tentativa a linha caiu no momento em que uma voz disse "Estou tentando fazer a ligação".
A essa altura Briony não tinha mais troco e já era hora de voltar para a enfermaria. Parou junto à cabine telefônica para admirar os enormes cúmulos que se formavam contra o azul-claro do céu. O rio, que a maré de primavera puxava com velocidade em direção ao mar, refletia aquela cor com laivos de verde e cinzento. O Big Ben parecia estar incessantemente desabando para a frente contra aquele céu inquieto. Apesar da fumaça dos carros, havia um cheiro de vegetação recém-brotada, talvez da grama aparada nos jardins do hospital ou das árvores tenras à beira-rio. Embora a luminosidade estivesse forte, havia um frescor delicioso no ar. Briony não via nem desfrutava nada tão agradável havia dias, talvez semanas. Passava muito tempo dentro do hospital, sentindo cheiro de desinfetante. Quando partiu em direção ao hospital, dois jovens oficiais do exército, médicos do hospital militar de Millbank, lhe dirigiram um sorriso simpático ao passar. Automaticamente, olhou para baixo e, no instante seguinte, lamentou não ter pelo menos enfrentado seus olhares. Eles atravessavam a ponte, na direção contrária à dela, imersos numa conversa animada. Um deles fez um gesto, imitando alguém que tentasse pegar alguma prateleira alta, e seu companheiro riu. No meio da ponte pararam para admirar um navio de guerra que passava naquele momento. Briony pensou que os médicos do exército pareciam muito animados e livres — ela devia ter retribuído aqueles sorrisos. Havia partes de si própria que ela esquecera por completo. Estava atrasada e tinha todos os motivos para correr, por mais que os sapatos lhe apertassem os pés. Ali, na calçada suja, onde jamais era passado ácido carbólico, as regras da enfermeira-chefe Drummond não valiam. Mesmo não havendo hemorragia nem incêndio, era um prazer físico surpreendente, um gosto rápido de liberdade, correr na medida em que era possível correr, com aquele avental engomado, até a entrada do hospital.
Agora uma atmosfera langorosa de espera se instaurara no hospital. Só os marinheiros com icterícia permaneciam internados. As enfermeiras, fascinadas e deliciadas, não tinham outro assunto. Aqueles marujos durões se recostavam na cabeceira da cama e remendavam suas meias; insistiam em lavar a mão suas cuecas, que depois penduravam para secar em varais improvisados presos nas serpentinas da calefação. Os que ainda estavam acamados preferiam sofrer torturas indizíveis a pedir o papagaio. Dizia-se que os marinheiros saudáveis insistiam em manter a enfermaria arrumada eles próprios, havendo assumido as tarefas de varrer e passar o esfregão pesado. As moças jamais haviam conhecido homens com tais prendas domésticas, e Fiona comentou que só se casaria com alguém que houvesse servido na Royal Navy.
Sem nenhum motivo aparente, as estagiárias ganharam um dia livre, sem ter de estudar, embora devessem permanecer uniformizadas. Depois do almoço, Briony andou com Fiona até o outro lado do rio, passando pelo edifício do Parlamento, chegando ao St. James's Park. Caminharam em torno do lago, compraram chá numa banca, alugaram espreguiçadeiras e ficaram ouvindo velhos do Exército da Salvação tocando peças de Elgar adaptadas para banda militar. Naqueles dias de maio, quando ainda não se entendia bem o que havia acontecido na França, antes de começarem os bombardeios de setembro, Londres tinha os sinais exteriores, mas ainda não a mentalidade, da guerra. Uniformes, cartazes advertindo para a presença de quinta-colunistas, dois grandes abrigos antiaéreos escavados nos gramados do parque, e, por toda parte, oficiais carrancudos. Enquanto as moças estavam sentadas em suas espreguiçadeiras, um homem de quepe, com uma faixa no braço, aproximou-se e exigiu que Fiona lhe mostrasse sua máscara contra gás — estava parcialmente coberta por sua capa. Fora isso, ainda eram tempos de inocência. As ansiedades a respeito da situação na França, que absorviam a atenção de todo o país, haviam se dissipado por um momento no sol daquela tarde. Os mortos ainda não estavam presentes, ainda se presumia que os ausentes estivessem vivos. Havia algo de sonho na normalidade daquela cena. Carrinhos de bebê passavam pelas alamedas do parque, bem abertos para que entrasse sol neles, e bebês muito brancos de crânios macios, olhavam boquiabertos para o mundo exterior pela primeira vez. Crianças que pareciam ter escapado da evacuação corriam pelos gramados gritando e rindo, a banda tentava tocar uma música difícil demais para ela, e o aluguel de uma espreguiçadeira ainda custava dois pence. Era difícil acreditar que a trezentos quilômetros dali estava ocorrendo uma catástrofe militar.
Os pensamentos de Briony permaneciam fixos em seus temas de sempre. Talvez Londres fosse atacada por gases venenosos, ou tomada por pára-quedistas alemães auxiliados por quinta-colunistas, antes que o casamento de Lola pudesse se realizar. Briony ouvira um atendente bem informado dizer, num tom que parecia de satisfação, que agora nada poderia deter o exército alemão. Eles dominavam todas as táticas novas e nós não, eles já haviam se modernizado e nós não. Os generais deviam ter lido o livro de Liddell Hart, ou então ter freqüentado os chás dos atendentes do hospital e prestado atenção nas conversas.
Fiona, a seu lado, falava sobre seu irmãozinho adorado e o comentário inteligente que ele fizera no jantar, enquanto Briony fingia prestar atenção e pensava em Robbie. Se ele estivesse combatendo na França, talvez já tivesse sido capturado. Ou coisa pior. Como Cecília sobreviveria a uma notícia daquelas? Enquanto a música, animada por dissonâncias que não estavam na partitura, chegava a um clímax animado, ela se agarrava à cadeira, fechando os olhos. Se alguma coisa acontecesse com Robbie, se Cecília e Robbie jamais pudessem ficar juntos... Sua tortura secreta e a comoção pública da guerra antes pareciam mundos separados, mas agora ela se dava conta de que a guerra poderia agravar seu crime ainda mais. A única solução concebível seria o passado não ter acontecido. Se Robbie não voltasse... Briony ansiava pelo passado de outra pessoa, por ser outra pessoa, talvez como Fiona, tão alegre, com sua vida impoluta que se estendia pelo futuro, e sua família afetuosa, enorme, com cachorros e gatos com nomes latinos, morando numa casa freqüentada pelos artistas de Chelsea. Para Fiona, a única coisa a fazer era viver a vida, seguir a estrada à sua frente e descobrir o que ia acontecer. Já Briony tinha a impressão de que sua vida seria vivida por todo o sempre dentro de um quarto sem porta.
"Briony, você está bem?"
"O quê? Claro, estou bem. Estou bem, obrigada." "Não parece. Quer que eu pegue água para você?" Enquanto os aplausos aumentavam — pelo visto, ninguém se importava com o fato de a banda ser tão ruim —, Briony ficou vendo Fiona atravessar o gramado, passar pelos músicos e pelo homem de casaco marrom que alugava espreguiçadeiras, e chegar ao pequeno café entre as árvores. Agora os músicos do Exército da Salvação estavam começando a tocar "Bye bye blackbird", que pareciam conhecer bem melhor. As pessoas sentadas das cadeiras começaram a cantar também, e algumas batiam palmas ritmadas. Havia algo de levemente coercitivo naquelas cantorias grupais — pessoas desconhecidas se entreolhavam quando subiam o tom — que a fazia se sentir decidida a resistir. Assim mesmo, a música a animava, e quando Fiona voltou com uma xícara cheia de água e a banda passou a tocar um pot-pourri de velhas canções bem conhecidas, começando com "It's a long way to Tipperary", elas começaram a conversar sobre o trabalho. Fiona envolveu Briony nas fofocas do hospital — quais as enfermeiras de que elas gostavam, quais as que as irritavam, e a enfermeira-chefe Drummond, cuja voz Fiona sabia imitar, e a administradora que era quase tão orgulhosa e distante quanto um médico consultor. Evocaram as excentricidades de vários pacientes e trocaram queixas — Fiona se indignava por não ser permitido manter suas coisas sobre o parapeito da janela, e Briony detestava a prática de apagar as luzes às onze horas —, porém falavam com um prazer evidente, rindo cada vez mais, de modo que algumas cabeças começaram a se virar para elas, e dedos foram levados aos lábios em gestos teatrais. Mas esses gestos não eram de todo a sério, e os que se viravam para elas em sua maioria sorriam com indulgência, pois havia algo na figura de duas jovens enfermeiras — enfermeiras em tempo de guerra —, com suas túnicas roxas e brancas, suas capas azul-escuro, suas toucas impecáveis, que as tornava tão irrepreensíveis quanto freiras. As moças tinham consciência de sua imunidade e riam cada vez mais alto, dando gargalhadas de hilaridade e deboche. Fiona se revelou uma imitadora excelente e, apesar de toda a sua alegria, havia em seu humor um toque cruel que agradava a Briony. Tinha uma maneira toda sua de imitar o sotaque dos cockneys de Lambeth, e com um exagero impiedoso captava a ignorância de alguns dos pacientes, com suas vozes submissas e queixosas. E o meu coração, não sabe, dona enfermeira? Ele já nasceu do lado errado. Minha mãe era assim também. É verdade que o bebê sai de debaixo da gente, dona enfermeira? Porque se é assim não sei não como é que vai ser comigo, que eu tô sempre entupida. Eu tinha seis guri, e não é que um dia eu vou e esqueço um deles no ônibus, o 88 lá de Brixton. Acho que eu larguei ele no banco. Nunca mais que eu não vi ele não, dona enfermeira. Fiquei muito aperreada. Chorei de dar dó.
No caminho de volta, seguindo em direção à Parliament Square, Briony ainda tinha as pernas um pouco bambas de tanto rir. Estava espantada consigo própria, ao se dar conta da rapidez com que seu estado de espírito podia mudar. Suas preocupações não desapareciam, porém recuavam, e o poder emocional delas se exauria temporariamente. De braços dados, as moças atravessaram a ponte de Westminster. A maré estava vazante, e a luminosidade forte emprestava um brilho arroxeado à lama, onde milhares de furos de minhocas projetavam minúsculas sombras nítidas. Ao virar à direita na Lambeth Palace Road, as moças viram uma fileira de caminhões do exército parada junto à entrada principal. Elas gemeram, bem-humoradas, ao pensar que teriam de guardar tantos novos suprimentos.
Então viram as ambulâncias entre os caminhões e, ao se aproximar, viram as padiolas, dezenas delas, largadas de qualquer jeito no chão, e uma massa de uniformes de guerra de um verde sujo e curativos manchados. Havia também soldados em pé, em grupos, apatetados e imóveis, envoltos, tais como os homens no chão, em curativos imundos. Uma ordenança recolhia fuzis da plataforma de um caminhão. Cerca de vinte aten-dentes, enfermeiras e médicos caminhavam em meio à multidão. Cinco ou seis maças com rodas haviam sido trazidas para a porta do hospital — claramente, não seriam suficientes. Por um momento Briony e Fiona ficaram paradas olhando, e depois, ao mesmo tempo, começaram a correr.
Em menos de um minuto estavam entre os homens. O ar fresco de primavera não conseguia dissipar o fedor de óleo diesel e feridas purulentas. Os rostos e as mãos dos soldados estavam negros; com a barba crescida, o cabelo grudento e as etiquetas que haviam recebido nos hospitais de campo, pareciam idênticos, uma tribo de selvagens vinda de um mundo terrível. Os que estavam em pé pareciam dormir. Mais enfermeiras e médicos saíam do hospital. Um consultor coordenava a operação, e o sistema improvisado de triagem já estava em funcionamento. Alguns dos casos mais urgentes estavam sendo colocados nas macas. Pela primeira vez em seu estágio, Briony foi abordada por um médico, um residente que ela nunca vira antes.
"Você aí, pegue esta padiola."
O próprio médico segurou a extremidade oposta. Brioriv nunca havia carregado uma padiola antes, e ficou surpresa com o peso. Já haviam entrado no prédio e avançado dez metros no corredor quando ela se deu conta de que seu pulso esquerdo não ia agüentar. Ela segurava a padiola pela extremidade dos pés do paciente. As divisas indicavam que era um sargento. Estava sem botas, e os dedos dos pés, azulados, fediam. A cabeça estava envolta num curativo encharcado, vermelho e negro. Na altura da coxa o uniforme desaparecia no meio de uma ferida. Briony julgou estar vendo a protuberância branca de um osso. A cada passo que davam, o homem sentia mais dor. Os olhos estavam apertados, mas ele abria e fechava a boca numa agonia silenciosa. Se a mão esquerda de Briony cedesse, a padiola certamente se inclinaria para o lado. Seus dedos estavam se soltando quando ela e o médico chegaram ao elevador, entraram e largaram a padiola no chão. Enquanto se levantavam lentamente, o médico tomou o pulso do homem e respirou fundo. Não se dava conta da presença de Briony. Enquanto se aproximavam do segundo andar, ela só pensava nos trinta metros de corredor que teriam de atravessar até chegar à enfermaria; não sabia se iria agüentar. Tinha a obrigação de dizer ao médico que não ia conseguir. Porém ele estava de costas para ela quando abriu a porta do elevador, e ele mandou-a suspender o seu lado. Briony torcia para que tivesse mais força no braço esquerdo e para que o médico caminhasse mais depressa. Ela não suportaria a vergonha se fracassasse. O homem de rosto enegrecido abria e fechava a boca como se mastigasse. Sua língua estava coberta de manchas brancas. Seu pomo-de-adão negro subia e descia, e ela se obrigou a fixar a atenção nesse detalhe. Entraram na enfermaria; por sorte uma cama de emergência já estava armada ao lado da porta. Seus dedos começavam a escorregar. Uma enfermeira-chefe e uma enfermeira formada estavam à espera. Quando a padiola estava sendo colocada ao lado do leito, os dedos de Briony perderam a força, ela não tinha mais controle sobre eles, e o jeito foi levantar o joelho esquerdo para aparar o peso. O cabo de madeira esbarrou em sua perna. A padiola oscilou, e foi a enfermeira-chefe que se apressou para segurá-la. O sargento ferido emitiu um som de espanto, como se jamais tivesse imaginado que uma dor poderia ser tão imensa.
"Pelo amor de Deus, menina", murmurou o médico. Com cuidado colocaram o paciente sobre o leito.
Briony ficou esperando para ver se precisavam dela. Mas agora os três estavam ocupados e a ignoravam. A enfermeira estava removendo o curativo da cabeça, e a enfermeira-chefe cortava as calças do soldado. O residente aproximou-se da luz para examinar as notas rabiscadas na etiqueta presa à camisa dele. Briony pigarreou de leve, a enfermeira-chefe levantou a vista e se irritou ao ver que ela ainda estava ali.
"Não fique aí parada, enfermeira Tallis. Vá lá embaixo ajudar."
Briony foi embora humilhada, com uma sensação de vazio se espalhando no estômago. No momento em que a guerra tocou sua vida, no primeiro momento de pressão, ela havia fracassado. Se a mandassem carregar outra padiola, ela não conseguiria nem sequer chegar até o elevador. Porém se lhe dessem a ordem não ousaria se recusar a obedecer. Se deixasse a padiola cair, simplesmente iria embora, pegaria suas coisas, faria a mala e iria para a Escócia trabalhar na lavoura. Seria melhor para todo mundo. Enquanto atravessava apressada o corredor do térreo, viu Fiona vindo na direção oposta, carregando uma padiola. Ela era mais forte que Briony. O rosto do homem que ela levava estava completamente recoberto pelos curativos, restando uma oval escura no lugar da boca. Os olhares das moças se encontraram e alguma coisa passou entre elas, choque ou vergonha de estarem rindo no parque enquanto essas coisas aconteciam.
Briony foi até a rua e viu com alívio que as últimas padiolas estavam sendo colocadas sobre rodízios e que havia atendentes prontos para empurrá-las. Mais de dez enfermeiras formadas estavam paradas ali perto, com suas malas. Briony reconheceu algumas delas, que eram de sua enfermaria. Não havia tempo para lhes perguntar para onde estavam sendo levadas. Alguma coisa pior estava acontecendo em outro lugar. A prioridade agora eram os feridos que conseguiam andar. Ainda havia mais de duzentos deles. Uma enfermeira-chefe lhe disse para levar quinze homens até a enfermeira Beatrice. Eles a seguiram em fila indiana pelo corredor, como crianças num passeio de escola. Alguns dos homens tinham os braços em tipóias, outros traziam feridas na cabeça ou no peito. Três estavam de muletas. Ninguém falava. Havia um engarrafamento diante dos elevadores, com maças esperando para serem levadas às salas de operação no subsolo e ainda outros soldados tentando subir às enfermarias. Briony encontrou um lugar recuado onde os homens com muletas podiam se sentar; disse-lhes que não saíssem dali e levou os outros para cima pela escada. Subiam devagar, parando em cada patamar.
"Falta pouco", ela repetia, mas eles não pareciam ter consciência de sua presença.
Quando chegaram à enfermaria, o protocolo exigia que ela se apresentasse à enfermeira-chefe. Mas a enfermeira-chefe não estava em sua sala. Briony virou-se para a fila de soldados que haviam se amontoado numa multidão atrás dela. Eles não olhavam para ela. Seus olhares estavam perdidos no espaço vitoriano da enfermaria, nos pilares altos, nas palmeiras em vasos, nos leitos cuidadosamente alinhados, nos lençóis imaculados.
"Esperem aqui", disse ela. "A enfermeira-chefe vai arranjar camas para todos vocês."
Foi andando rapidamente para a extremidade oposta da enfermaria, onde a enfermeira-chefe e duas enfermeiras cuidavam de um paciente. Ouviu passos atrás dela. Os soldados a estavam seguindo.
Horrorizada, ela agitou as mãos para eles. "Voltem, por favor, voltem e esperem."
Porém eles já estavam se espalhando pela enfermaria. Cada homem tinha visto o leito que seria seu. Sem que nada lhes fosse dito, sem retirar as botas, sem ter passado pelo banho nem pela operação de remoção de piolhos, sem vestir os pijamas do hospital, estavam se deitando nas camas. Os cabelos imundos, os rostos enegrecidos repousavam sobre os travesseiros. A enfermeira-chefe se aproximava num passo rápido, vindo do outro lado da enfermaria, os saltos de seus sapatos a ressoar naquele espaço venerando. Briony se aproximou de um dos leitos e puxou a manga de um soldado que estava deitado com o rosto virado para cima, segurando o braço que havia escapado da tipóia. Ao espichar as pernas, ele deixou uma marca de óleo no cobertor. Tudo culpa dela.
"Você tem que se levantar", disse ela no momento em que a enfermeira-chefe chegou. Acrescentou, sem ânimo: "Existe uma rotina".
"Os homens precisam dormir. A rotina fica para depois." Era uma voz irlandesa. A enfermeira-chefe pôs a mão no ombro de Briony e virou-a para poder ler seu nome no crachá. "Volte para a sua enfermaria, enfermeira Tallis. Imagino que estejam precisando de você por lá."
Com um delicado empurrão, Briony foi despachada. Aquela enfermaria não precisava de disciplinadoras como ela. Os homens à sua volta já estavam dormindo, e mais uma vez ela bancara a idiota. Claro que eles precisavam dormir. Ela só quiserá fazer o que imaginava fosse necessário. Afinal, não fora ela que inventara aquelas regras. Havia meses que a obrigavam a aprendê-las, os mil detalhes da rotina de internação. Como ela poderia saber que na prática nada daquilo tinha importância? Esses pensamentos indignados a atormentaram quase até ela chegar a sua enfermaria, quando se lembrou de repente dos homens de muletas no térreo, aguardando para serem levados ao elevador. Desceu a escada correndo. Os homens não estavam mais no lugar onde os deixara, nem nos corredores. Briony não queria expor sua incompetência perguntando por eles às enfermeiras e atendentes. Alguém certamente os havia levado ao andar de cima. Nos dias que se seguiram, ela não os viu mais. Sua enfermaria havia sido escolhida para receber os casos graves de cirurgia que não cabiam na enfermaria apropriada, porém tais definições de início não queriam dizer nada. Era como se estivessem num ponto de triagem na linha de combate. Enfermeiras-chefes e enfermeiras mais graduadas haviam sido trazidas para ajudar, e cinco ou seis médicos trabalhavam com casos mais urgentes. Havia dois capelães; um estava conversando com um homem deitado de lado; o outro rezava junto a um vulto coberto por um lençol. Todas as enfermeiras estavam de máscara, e tanto elas quanto os médicos haviam arregaçado as mangas. As enfermeiras-chefes movimentavam-se rapidamente entre os leitos, dando injeções — provavelmente morfina — e administrando as agulhas de transfusão que conectavam os feridos aos frascos de sangue ou soro que pendiam como frutas exóticas dos suportes altos com rodas. Estagiárias andavam de um lado para o outro com pilhas de sacos de água quente. Um rumor suave de vozes, vozes de médicos, enchia o ambiente, interrompido regularmente por gemidos e gritos de dor. Todos os leitos estavam ocupados, e os recém-chegados eram deixados nas padiolas estacionadas entre as camas para que eles pudessem utilizar os mesmos suportes de frascos. Duas ordenanças se preparavam para recolher os mortos. Junto a vários leitos havia enfermeiras retirando curativos sujos. Tinha-se sempre de decidir se era melhor agir com delicadeza e devagar ou com firmeza e rapidez, para que o momento de dor fosse o mais breve possível. Naquela enfermaria o segundo método era o preferido, o que explicava os gritos. Por toda parte havia um verdadeiro festival de cheiros — o cheiro azedo e grudento de sangue fresco, e também de roupas imundas, suor, óleo, desinfetante, álcool, e, pairando acima de tudo, o fedor da gangrena. Dois dos casos levados à sala de cirurgia resultaram em amputação.
Como as enfermeiras mais graduadas haviam sido enviadas para outros hospitais que estavam recebendo soldados e como não paravam de chegar mais feridos, as enfermeiras formadas davam ordens a todos, e as estagiárias do grupo de Briony receberam responsabilidades novas. Uma enfermeira mandou Briony retirar o curativo e limpar a ferida na perna de um cabo que estava estendido numa padiola perto da porta. Ela só devia fazer um novo curativo depois que um médico examinasse o ferimento. O cabo estava deitado de bruços e fez uma careta quando ela se ajoelhou para que ele falasse em seu ouvido.
"Se eu gritar, não liga não", murmurou ele. "Limpa essa perna, enfermeira. Não quero ficar sem ela, não."
A perna da calça havia sido cortada. O curativo exterior parecia relativamente novo. Briony começou a desenrolá-lo e, quando não dava mais para passar a mão por baixo da perna, usou a tesoura para cortar fora o esparadrapo.
"Me trataram lá no cais, em Dover."
Agora só restava a gaze, negra de sangue coagulado, ao longo de toda a extensão da ferida, que ia do joelho até o tornozelo.
A perna em si estava negra, sem pêlos. Briony temia o pior e respirava pela boca.
"Mas como é que você foi arrumar uma coisa dessas?" Obrigou-se a assumir um tom despreocupado.
"Veio o obus e me jogou em cima de uma cerca de metal corrugado."
"Você teve azar. Bem, eu preciso tirar esse curativo."
Ela levantou uma ponta, e o cabo estremeceu.
Disse ele: "Conta assim, um dois três, e seja rápida".
O cabo cerrou os punhos. Ela pegou a ponta que havia libertado, agarrou-a com força entre o indicador e polegar e arrancou o curativo de uma vez só. Veio-lhe à mente uma lembrança da infância, uma festa de aniversário em que alguém fez o famoso truque de retirar a toalha. O curativo saiu inteiro, mas com um som áspero.
Disse o cabo: "Vou vomitar".
Havia uma cuba-rim à mão. Ele fez menção de vomitar, mas não saiu nada. Havia gotas de suor nas dobras de pele atrás de seu pescoço. O ferimento se estendia por meio metro, talvez mais, traçando uma curva atrás do joelho. Os pontos que havia recebido eram malfeitos e irregulares. Aqui e ali uma das beiras da pele rompida se sobrepunha à outra, revelando as camadas de gordura, e pequenas erupções que pareciam minúsculos cachos de uvas vermelhas emergiam da fissura.
Disse ela: "Não se mexa. Vou limpar em volta, mas não vou pegar na ferida". Não ia tocá-la ainda. A perna estava negra e macia, como uma banana madura demais. Briony embebeu algodão em álcool. Temendo que a pele se desprendesse por completo, passou o algodão de leve pela batata da perna, cinco centímetros acima do ferimento. Depois passou-o de novo, com um pouco mais de pressão. A pele estava firme, por isso ela apertou o algodão até o homem estremecer. Ela retirou a mão e viu a faixa de pele branca que agora se revelava. O algodão estava negro. Não era gangrena. Ela não conseguiu conter uma interjeição de alívio. Sentiu até mesmo a garganta apertar.
O cabo perguntou: "O que foi, enfermeira? Pode me falar". Tentou se erguer e olhar por cima do ombro. Havia medo em sua voz.
Briony engoliu e disse, num tom neutro: "Acho que vai cicatrizar".
Ela pegou mais algodão. Era óleo, ou graxa, misturada com areia de praia, e era difícil soltar. Limpou uma área de dez centímetros, contornando o ferimento.
Estava trabalhando havia alguns minutos quando uma mão pousou em seu ombro e uma voz de mulher disse-lhe ao pé do ouvido: "Muito bem, enfermeira Tallis, mas você tem que trabalhar mais depressa".
Briony estava de joelhos, debruçada sobre a padiola, espremida contra uma cama, e não era fácil se virar para trás. Quando conseguiu, só viu o vulto conhecido se afastando. O cabo já estava dormindo no momento em que ela começou a limpar junto aos pontos. Seu corpo estremeceu, mas ele não chegou a acordar de todo. A exaustão o anestesiara. Quando por fim ela se levantou e recolheu a tigela e todo o algodão sujo, chegou um médico que a despachou.
Briony lavou bem as mãos e foi cumprir outra tarefa. Tudo era diferente para ela agora que havia conseguido realizar uma coisa pequena. Mandaram-na servir água aos soldados que estavam derrubados de exaustão. Era importante que não se desidratassem. Vamos, soldado Carter. Beba isso que depois você pode continuar dormindo. Levante um pouquinho agora... Ela levava-lhes aos lábios um pequeno bule esmaltado branco e deixava que eles sugassem a água do bico enquanto repousavam suas cabeças imundas no avental dela, como se fossem bebês gigantescos. Briony se lavou outra vez e depois percorreu a enfermaria com as comadres. Essa tarefa nunca a incomodara tão pouco. Disseram-lhe que cuidasse de um soldado com ferimentos no estômago que havia perdido também uma parte do nariz. Olhando para a cartilagem ensangüentada, dava para ver até o interior da boca e a parte de trás da língua dilacerada. Sua tarefa era limpar o rosto do homem. Mais uma vez, óleo misturado com areia que havia penetrado na pele com o impacto. Ele estava acordado, ao que parecia, porém mantinha os olhos fechados. A morfina o acalmara, e sua cabeça balançava ligeiramente de um lado para outro, como se estivesse ouvindo uma música interior. Quando suas feições começaram a surgir por trás da máscara negra, Briony pensou naqueles livros de páginas em branco, de papel brilhante, em que, quando menina, ela esfregava um lápis de ponta rombuda para fazer uma imagem surgir. Pensou também que um daqueles homens poderia ser Robbie; ela cuidaria de seus ferimentos sem saber quem era e com algodão limparia seu rosto delicadamente até que as feições tão conhecidas emergissem; ele se viraria para ela cheio de gratidão e a reconheceria, seguraria sua mão e a apertaria em silêncio, perdoando-a. Então ela o deixaria dormir.
Suas responsabilidades aumentavam. Munida de fórceps e cuba-rim, mandaram-na a uma enfermaria adjacente, cuidar de um aviador que tinha estilhaços na perna. O homem olhou-a desconfiado quando ela dispôs seus instrumentos.
"Se é para tirar, prefiro uma operação."
As mãos de Briony tremiam. Mas ela se surpreendeu ao constatar como lhe vinha com facilidade a voz seca da enfermeira durona. Fechou o biombo em torno da cama.
"Não seja bobo. A gente vai tirar isso num instante. Como foi que aconteceu?"
Enquanto ele explicava que seu trabalho era construir pistas de pouso nos campos do Norte da França, seus olhos voltavam a toda hora para o fórceps de aço que ela retirara da auto-clave. Estava largado, pingando, sobre a cuba-rim de borda azul. "A gente começava a trabalhar, aí vinham os boches e jogavam as bombas. Aí a gente recuava, começava tudo outra vez num outro campo, aí lá vinham os boches de novo e a gente recuava de novo. Até que a gente caiu dentro do mar."
Ela sorriu e puxou para o lado as cobertas. "Posso dar uma olhada?" O óleo e a sujeira haviam sido retirados de suas pernas, revelando uma área abaixo da coxa em que estilhaços de metal estavam cravados na carne. Ele semiergueu-se, observando-a com ansiedade.
Disse ela: "Fique deitado pra eu poder ver como é que está". "Eles não estão me incomodando nem nada."
Vários pedaços estavam espalhados por uma área com um diâmetro de trinta centímetros. Havia inchamentos e pequenas inflamações em torno de cada ruptura na pele.
"Eu não ligo não, enfermeira. Por mim eles ficavam aí onde estão." Riu sem convicção. "Para mostrar prós netos." "Estão infeccionando", disse ela. "E podem afundar." "Afundar?"
"Na sua carne. Entrar no sangue e ser levados pro coração. Ou pro cérebro."
Ele pareceu acreditar. Deitou-se de novo e suspirou, olhando para o teto distante. "Porra. Quer dizer, desculpa, enfermeira. Acho que hoje não vou agüentar."
"Vamos contar os estilhaços juntos, está bem?" Foi o que fizeram, em voz alta. Oito. Ela pressionou de leve o peito do aviador.
"Eles têm que sair. Agora deite direito. Vou trabalhar o mais depressa possível. Se isso ajudar, agarre a cabeceira atrás de você."
A perna dele estava tensa e trêmula quando ela tomou o fórceps.
"Não prenda a respiração. Tente relaxar."
Ele soltou uma interjeição de deboche. "Relaxar!"
Com a mão esquerda Briony firmou a direita. Seria mais fácil se ela se sentasse na beira da cama, mas isso não era profissional, era absolutamente proibido. Quando pôs a mão esquerda na parte não afetada da perna do homem, ele estremeceu. Ela escolheu o menor estilhaço que encontrou na periferia do ferimento. A parte que estava de fora formava um triângulo oblíquo. Ela o agarrou, fez uma pausa breve, depois o arrancou com firmeza, mas sem sacudi-lo.
"Caralho!"
A palavra que escapara ricocheteou em torno da enfermaria, dando a impressão de que foi repetida várias vezes. Fez-se silêncio, ou pelo menos baixou o nível de ruído que vinha de fora do biombo. Briony ainda segurava no fórceps o fragmento de metal ensangüentado. Tinha dois centímetros de comprimento e sua ponta era afiada. Passos decididos se aproximavam. Ela largou o estilhaço na cuba-rim no momento em que a enfermeira-chefe Drummond abriu o biombo com um gesto decidido. Perfeitamente calma, olhou de relance para o pé da cama, onde estava anotado o nome do homem e, provavelmente, seu estado físico; depois se aproximou dele e o olhou nos olhos.
"Mas que ousadia", disse a enfermeira-chefe, em voz baixa. E repetiu: "Mas que ousadia a sua, falar assim na frente de uma das minhas enfermeiras".
"Desculpe. Saiu sem querer."
A enfermeira-chefe Drummond olhou com desdém para a cuba-rim. "Em comparação com alguns dos casos que recebemos nas últimas horas, aviador Young, seus ferimentos são superficiais. O senhor devia se considerar uma pessoa de sorte. E exibir uma coragem condizente com o seu uniforme. Continue, enfermeira Tallis."
No silêncio que se instaurou depois que a enfermeira-chefe foi embora, Briony disse, num tom animado: "Vamos continuar, está bem? Só faltam sete. Quando terminar, eu lhe trago uma dose de conhaque".
O homem suava, todo seu corpo estremecia; estavam brancos os nós dos dedos que apertavam a cabeceira de ferro. Mas ele não produziu nenhum som enquanto ela arrancava os outros fragmentos.
"Pode gritar se quiser."
Mas ele não queria receber outra visita da enfermeira-chefe Drummond, e Briony compreendia. Estava guardando o maior para o final. Esse não saiu de uma vez só. O aviador estrebu-chou na cama, sibilando entre os dentes trincados. Na segunda tentativa, três centímetros do estilhaço ficaram para fora da carne. Briony conseguiu extraí-lo na terceira tentativa e exibiu-o para ele, um estilete ensangüentado de aço irregular, com seis centímetros de comprimento.
O homem olhou espantado para aquilo. "Passa uma água nele, enfermeira. Esse eu vou levar pra casa." Então enfiou o rosto no travesseiro e começou a chorar. Talvez fosse tanto por efeito da palavra "casa" quanto da dor. Briony foi pegar o conhaque e parou na sala de esterilização para vomitar.
Ficou um bom tempo retirando curativos dos ferimentos mais superficiais, lavando-os e fazendo curativos novos. Então veio a ordem que ela mais temia.
"Quero que você vá fazer um curativo no rosto do soldado Latimer."
Ela já havia tentado alimentá-lo antes, enfiando uma colher de chá no que restava da sua boca, procurando lhe poupar a humilhação de babar. Ele afastou a mão dela. Engolir doía demais. Metade de seu rosto fora destruído. O que ela mais temia, mais do que a retirada do curativo, era a expressão de censura naqueles grandes olhos castanhos. O que vocês fizeram comigo? Seu meio de comunicação era um "aah" suave que vinha do fundo da garganta, um pequeno gemido de decepção.
"Vamos consertar você já, já", ela repetia o tempo todo, sem saber que outra coisa dizer.
E agora, aproximando-se daquela cama com seu material de trabalho, Briony disse, num tom alegre: "Oi, soldado Lati-mer. Sou eu de novo".
Ele olhou para ela sem parecer reconhecê-la. Enquanto soltava a bandagem que estava presa ao alto de sua cabeça, Briony disse: "Vai dar tudo certo. Daqui a uma ou duas semanas você vai sair daqui andando, você vai ver. Coisa que muita gente não vai poder fazer".
Isso era um conforto. Sempre havia alguém pior. Meia hora antes haviam feito uma amputação múltipla num capitão do East Surrey Regiment — o regimento para o qual haviam entrado os rapazes da cidadezinha. E havia também os que morriam.
Com uma pinça de cirurgião, começou a retirar cuidadosamente as faixas de gaze encharcadas, cheias de sangue coagulado, da cavidade que havia de um dos lados de seu rosto. Quando removeu a última, a semelhança entre aquele rosto e o modelo que usava nas aulas de anatomia era muito pequena. Aquilo era uma ruína, vermelha, em carne viva. A ausência de bochecha permitia que ela visse os molares superiores e inferiores e a língua lustrosa, horrivelmente comprida. Mais acima, onde ela mal ousava olhar, viam-se descobertos os músculos em torno da órbita do olho. Uma coisa tão íntima, que não era para ser vista. O soldado Latimer havia se transformado em um monstro, e ele certamente adivinhara isso. Haveria uma moça que o amava antes? Ela continuaria a amá-lo?
"Vamos consertar você já, já", ela mentiu outra vez.
Começou a recolocar no rosto maços de gaze limpa encharcada de ácido bórico. Enquanto prendia os pinos, ele emitiu aquele som triste outra vez.
"Quer que eu traga o papagaio?"
Ele balançou a cabeça e repetiu o som.
"Essa posição está desconfortável?"
Não.
"Água?"
Fez que sim com a cabeça. De seus lábios só restava um pequeno canto. Ela inseriu o bico do pequeno bule e inclinou-o. Cada vez que ele engolia, seu corpo se contraía de dor, e essa contração por sua vez proporcionava uma agonia em torno dos músculos do rosto que não estavam mais lá. Ele não suportava mais, porém, quando ela retirou o bule, ele levantou a mão em direção a seu pulso. Ele precisava de mais água. Melhor a dor que a sede. E a coisa continuou assim por alguns minutos — ele não suportava a dor, ele precisava de água.
Briony queria ficar com ele, mas havia sempre outra tarefa a fazer, sempre uma enfermeira-chefe exigindo ajuda ou um soldado chamando de seu leito. Precisou sair da enfermaria por um momento quando um homem que acordava da anestesia vomitou em seu colo, obrigando-a a procurar um avental limpo. Surpreendeu-se quando se deu conta, ao passar por uma janela do corredor, de que estava escuro lá fora. Cinco horas haviam transcorrido desde que ela e Fiona voltaram do parque. Ela estava no depósito de roupas limpas, vestindo o avental, quando a enfermeira-chefe Drummond se aproximou. Era difícil dizer o que havia mudado — continuava silenciosa e distante, emitindo ordens inquestionáveis. Talvez, por trás da autodisciplina, um toque de solidariedade na adversidade.
"Enfermeira, vá aplicar os sacos de sulfadizina de prata nos braços e nas pernas do cabo Maclntyre. O resto do corpo você vai tratar com ácido tânico. Se houver qualquer problema, venha diretamente a mim."
E se virou para dar instruções a outra enfermeira. Briony vira o cabo chegando ao hospital. Era um dos vários homens que haviam se queimado com óleo fervente numa barca que afundou perto de Dunquerque. Fora recolhido do mar por um destróier. O óleo viscoso que se grudara a ele foi consumindo o tecido. O que estava estendido no leito eram os restos de um tição humano. Briony não acreditava que ele sobreviveria. Não foi fácil encontrar uma veia para lhe dar morfina. Em algum momento nas últimas duas horas, ela havia ajudado duas outras enfermeiras a colocá-lo sobre uma comadre, e ele gritara assim que as mãos encostaram em sua pele.
A sulfadizina de prata vinha em grandes sacos de celofane. O membro queimado flutuava lá dentro, numa solução salina que tinha de ser mantida exatamente na temperatura certa. Não se tolerava uma variação de um grau. Quando Briony se aproximou, uma estagiária com um fogareiro a óleo portátil, instalado sobre uma maça com rodas, já estava preparando a solução. Era necessário trocar os sacos com freqüência. O cabo Maclntyre estava deitado em decúbito dorsal numa cama elevatória porque o contato dos lençóis com a pele era insuportável para ele. Ele pedia água, numa lamúria lastimável. As vítimas de queimaduras sempre ficavam muito desidratadas. Ele não podia receber fluidos via oral porque os lábios estavam destruídos e inchados, e a língua estava coberta de feridas. O soro havia saído do lugar; a agulha não parava na veia danificada. Uma enfermeira formada que Briony jamais vira antes estava colocando um novo saco de soro no suporte. Briony preparou o ácido tânico numa tigela e pegou o rolo de algodão. Resolveu começar pelas pernas do paciente, para não atrapalhar a enfermeira, que começava a procurar uma veia no braço enegrecido.
Porém a enfermeira lhe perguntou: "Quem mandou você aqui?".
"A enfermeira-chefe Drummond."
A outra foi seca, falando sem levantar a vista: "Ele está sofrendo demais. Não quero que mexam nele enquanto eu não conseguir que ele se hidrate. Vá encontrar outra coisa pra fazer".
Briony obedeceu. Não sabia quantas horas haviam se passado — talvez já fosse de madrugada — quando a mandaram buscar toalhas limpas. Encontrou a enfermeira parada à entrada da enfermaria, chorando discretamente. O cabo Mclntyre havia morrido. Seu leito já estava ocupado por outro paciente.
As estagiárias e as segundanistas trabalhavam doze horas sem descanso. As outras treinandas e as enfermeiras formadas trabalhavam direto; ninguém sabia dizer havia quanto tempo elas estavam nas enfermarias. Toda a formação que ela recebera, Briony pensou mais tarde, fora importante, mas tudo o que sabia a respeito do trabalho de enfermagem aprendera naquela noite. Nunca tinha visto homens chorando antes. De início, ficou chocada, mas em menos de uma hora se acostumou. Por outro lado, o estoicismo de alguns dos soldados a deixava atônita, por vezes até horrorizada. Homens que acabavam de sofrer amputações sentiam-se compelidos a fazer piadas terríveis. Como é que eu vou poder chutar minha patroa agora, hein? Todos os segredos do organismo eram postos a nu — osso emergindo da carne, exposições sacrílegas dos intestinos ou do nervo óptico. A partir desse ponto de vista novo e íntimo, ela aprendeu uma coisa simples e óbvia que sempre soubera, e que todos sabiam: uma pessoa é, acima de tudo, uma coisa material, fácil de danificar e difícil de consertar. Briony jamais chegaria mais perto do campo de batalha do que ali, pois cada paciente de que ela cuidava continha alguns de seus elementos essenciais — sangue, óleo, areia, lama, água do mar, balas, estilhaços, graxa de motor, e também o cheiro de cordite, e uniformes de combate úmidos e suados, em cujos bolsos ainda se encontravam restos de comida rançosa, junto com fragmentos encharcados de barras Amo. Com freqüência, quando ela voltava mais uma vez à pia onde havia torneiras altas e um bloco de soda, o que mais saía de seus dedos era areia de praia. Ela e as outras estagiárias de seu grupo só se davam conta da presença das outras como enfermeiras, não como amigas: praticamente não registrou o fato de que uma das moças que a haviam ajudado a colocar o cabo Maclntyre sobre a comadre era Fiona. Às vezes, quando um soldado de quem Briony cuidava estava com muita dor, ela sentia-se tomada por uma ternura impessoal que a afastava do sofrimento, permitindo-lhe que trabalhasse com eficiência e sem se horrorizar. Nesses momentos ela se dava conta do que era a enfermagem e ansiava por fazer jus àquele título, àquele distintivo. Percebia que seria capaz de abrir mão de suas ambições literárias e dedicar sua vida a esse trabalho, em troca daqueles momentos de amor elevado e generalizado.
Por volta das três e meia da madrugada, disseram-lhe que fosse ter com a enfermeira-chefe Drummond. Ela estava sozinha, fazendo uma cama. Antes, Briony a vira na sala de esterilização. Ela parecia estar em todos os lugares, executando tarefas de todos os níveis. Automaticamente, Briony começou a ajudá-la.
Disse a enfermeira-chefe: "Se não me engano, você fala um pouco de francês".
"Só o que aprendi na escola."
Ela fez um sinal em direção à extremidade da enfermaria. "Está vendo aquele soldado sentado na cama, lá no final? Caso grave de cirurgia, mas não precisa usar máscara. Arranje uma cadeira, vá lá conversar com ele. Segure a mão dele e converse com ele."
Briony não conseguiu não se sentir ofendida. "Mas eu não estou cansada, enfermeira-chefe. Sério." "Faça o que estou mandando." "Sim, senhora."
Ele parecia um menino de quinze anos, mas, segundo o quadro afixado à cama, tinha a mesma idade que ela, dezoito. Estava sentado, apoiado em vários travesseiros, observando a atividade à sua volta com uma espécie de deslumbramento abstraído, como uma criança. Era difícil vê-lo como um soldado. Tinha um rosto belo e delicado, com sobrancelhas negras e olhos verde-escuros, lábios cheios e macios. O rosto era alvo e tinha um brilho estranho, e os olhos eram morbidamente radiantes. A cabeça estava envolta em muitos curativos. Quando Briony trouxe a cadeira e se sentou, ele sorriu, como se estivesse esperando por ela, quando ela lhe tomou a mão, ele não pareceu se surpreender. "Te voilà enfin." As vogais francesas tinham uma ressonância musical, mas ela conseguia compreendê-lo. A mão dele lestava fria e untuosa.
Disse ela: "A enfermeira-chefe me disse para vir conversar com você". Não sabendo o termo em francês, traduziu "enfer-Imeira-chefe" como "irmã".
"Sua irmã é muito simpática." Então inclinou a cabeça e acrescentou: "Sempre foi. E está tudo bem com ela? O que ela anda fazendo?".
Havia tanta amizade e encantamento em seu olhar, uma ânsia tão intensa de envolvê-la, que Briony não pôde deixar de entrar no delírio dele.
"Ela é enfermeira também."
"Claro. Você já tinha me dito. Ela ainda é feliz? Ela se casou com aquele rapaz que ela amava tanto? Sabe, não consigo me lembrar do nome dele. Espero que você me perdoe. Desde que me feri, minha memória está fraca. Mas dizem que logo vai voltar. Como era mesmo o nome dele?"
"Robbie. Mas..."
"E eles agora estão casados e felizes?"
"Ah... espero que em breve estejam."
"Fico muito feliz por ela."
"Você ainda não me disse seu nome."
"Luc. Luc Cornet. E o seu?"
Ela hesitou. "Tallis."
"Tallis. Muito bonito." Do jeito que ele o pronunciava, de fato era bonito.
Ele desviou a vista do rosto de Briony e olhou para a enfermaria, virando a cabeça devagar, num deslumbramento silencioso. Então fechou os olhos e começou a delirar, falando em voz baixa. O vocabulário de Briony era pequeno, e não lhe era fácil acompanhá-lo. Algumas coisas ela conseguia entender: "Você conta devagar, na mão, nos dedos... a echarpe da minha mãe... você escolhe a cor e tem que viver com ela".
Passou alguns minutos em silêncio. Sua mão apertava a de Briony com mais força. Quando voltou a falar, seus olhos continuavam fechados.
"Vou lhe dizer uma coisa estranha. Sabe que essa é a primeira vez que venho a Paris?"
"Luc, você está em Londres. Logo vamos mandar você pra casa."
"Me disseram que as pessoas aqui eram frias e antipáticas, mas é exatamente o contrário. São muito simpáticas. E é muita bondade sua vir me ver outra vez."
Por algum tempo, Briony pensou que ele houvesse adormecido. Sentada pela primeira vez depois de muitas horas, ela sentiu seu cansaço pesando por trás dos olhos.
Então Luc voltou a olhar a sua volta, rodando a cabeça devagar como antes; olhou para ela e disse: "Claro, você é a moça que tem sotaque inglês".
Ela perguntou: "Me conte o que você fazia antes da guerra. Onde você morava? Você lembra?".
"Lembra aquela Páscoa que você foi a Millau?" Num gesto débil, balançava a mão de Briony de um lado para o outro enquanto falava, como se para lhe reavivar a memória, e seus olhos verde-escuros perscrutavam-lhe o rosto, expectantes.
Ela achou que não era direito enganá-lo. "Nunca estive em Millau..."
"Lembra a primeira vez que você entrou na nossa loja?"
Ela aproximou a cadeira da cama. O rosto pálido e oleoso do soldado oscilava diante de seus olhos. "Luc, quero que você me escute."
"Acho que foi minha mãe quem atendeu você. Ou então uma das minhas irmãs. Eu estava trabalhando com meu pai nos fornos, lá nos fundos. Ouvi o seu sotaque e vim dar uma olhada em você..."
"Eu queria lhe dizer onde você está. Você não está em Paris..."
"Então você voltou no dia seguinte, e dessa vez eu estava lá, e você disse..."
"Daqui a pouco você vai dormir. Eu venho visitar você amanhã, prometo."
Luc levou a mão à cabeça e franziu a testa. Disse, num tom mais grave: "Quero lhe pedir um favorzinho, Tallis". Claro.
"Esse curativo está muito apertado. Dava pra você afrouxar um pouquinho?"
Briony levantou-se e olhou para a cabeça do soldado. Os laços de gaze estavam amarrados de modo a permitir que fossem afrouxados com facilidade. Enquanto ela puxava com jeito os laços, ele continuava falando:
"A minha irmã menor, a Anne, você se lembra dela? É a garota mais bonita lá de Millau. Ela passou na prova tocando uma pecinha de Debussy, uma coisa tão leve, tão divertida. Quer dizer, é o que a Anne diz. A música não sai da minha cabeça. Talvez você conheça."
Começou a cantarolar umas notas soltas. Briony estava desenrolando a camada de gaze.
"Ninguém sabe de onde veio esse talento dela. O resto da família não leva o menor jeito pra música. Quando ela toca, fica perfeitamente aprumada. Ela só sorri depois que termina. Ah, está começando aa melhorar. Acho que foi a Anne quem atendeu você a primeira vez que você entrou na loja."
Não era sua intenção remover a gaze, mas, no momento em que Briony a desapertou, a toalha esterilizada que estava por baixo dela escorregou, levando junto consigo uma parte do curativo ensangüentado. Faltava um lado da cabeça de Luc. O cabelo fora raspado em torno da parte do crânio que não estava mais lá. Abaixo da linha irregular de osso via-se a massa espon-josa e sanguinolenta do cérebro, numa extensão de vários centímetros, desde o topo da cabeça até quase a ponta da orelha. Briony pegou a toalha antes que caísse no chão e segurou-a um pouco até que a náusea passasse. Só então se deu conta da coisa imprudente e antiprofissional que fizera. Luc permanecia imóvel, à espera. Ela olhou para o outro lado da enfermaria. Ninguém estava prestando atenção.
Recolocou a toalha esterilizada, fixou a gaze e refez os laços.
Sentou-se de novo, tomou a mão do soldado e tentou encontrar algum apoio naquele toque frio e úmido.
Luc estava delirando outra vez. "Eu não fumo. Prometi dar minha ração a Jeannot... Olha, se espalhou pela mesa... debaixo das flores, agora... o coelho não ouve você, seu bobo..." As palavras vinham numa torrente, e Briony não conseguia mais acompanhá-las. Depois captou uma referência a algum professor que era severo demais — talvez um oficial. Por fim ele se calou. Briony enxugou-lhe a testa suada com uma toalha úmida, e esperou.
Quando abriu os olhos, Luc retomou a conversa como se não tivesse havido nenhuma interrupção.
"O que você achou das nossas baguetes e ficelles?"
"Deliciosas."
"Foi por isso que você passou a vir todo dia."
"Foi."
Ele parou para pensar nisso. Então acrescentou, cauteloso, levantando uma questão delicada: "E os nossos croissants?".
"Os melhores de Millau."
Ele sorriu. Quando falava, havia um som áspero no fundo de sua garganta que ambos fingiam não ouvir.
"Receita especial do meu pai. Tudo depende da qualidade da manteiga."
Ele contemplava Briony num êxtase. Com a outra mão cobriu a mão dela.
Disse: "Você sabe que minha mãe gosta muito de você".
"Gosta mesmo?"
"Ela fala de você o tempo todo. Ela acha que a gente devia se casar no verão."
Briony olhava-o nos olhos. Agora compreendia por que a haviam chamado.
Luc estava com dificuldade de engolir, e gotas de suor se formavam na testa, ao longo da borda do curativo e no lábio superior. Ela enxugou as gotas e ia pegar água para lhe dar, mas então ele disse:
"Você me ama?"
Ela hesitou. "Amo." Nenhuma outra resposta era possível. Além disso, naquele momento, ela o amava, sim. Era um menino lindo que estava muito longe da família e muito perto da morte.
Briony deu-lhe água. Enquanto ela lhe enxugava o suor do rosto outra vez, Luc disse: "Você já esteve na Causse de Larzac?".
"Não. Nunca."
Mas ele não se ofereceu para levar Briony lá. Em vez disso, virou a cabeça sobre o travesseiro e logo recomeçou a murmurar coisas ininteligíveis. Continuava apertando a mão de Briony com força, como se tivesse consciência de sua presença.
Quando a lucidez voltou, virou-se para ela.
"Não vá embora ainda não."
"Claro que não. Vou ficar com você."
"Tallis..."
Ainda sorrindo, ele entrecerrou os olhos. De repente, retesou-se de um salto, como se uma corrente elétrica lhe percorresse os membros. Olhava para ela com surpresa, os lábios entreabertos. Então se inclinou para a frente, como se tentasse agarrá-la. Briony levantou-se de repente para impedir que ele caísse no chão. A mão ainda apertava a mão de Briony, e o braço livre estava em torno do pescoço dela. Apertava a testa contra seu ombro, o rosto contra o seu. Briony temia que a toalha escorregasse de sua cabeça. Temia não agüentar seu peso, temia não suportar ver aquela ferida outra vez. O som áspero que vinha do fundo da garganta soava bem próximo de seu ouvido. Cambaleando, ela conseguiu deitá-lo na cama e ajeitá-lo sobre os travesseiros.
"Meu nome é Briony", disse ela, de modo que apenas Luc ouvisse.
Os olhos dele estavam arregalados, numa expressão de espanto, e sua pele branca como cera brilhava à luz elétrica. Ela se aproximou mais e levou os lábios ao ouvido de Luc. Atrás dela havia uma presença, e depois uma mão pousada em seu ombro.
"Tallis, não. Você tem que me chamar de Briony", sussurrou ela, enquanto uma de suas mãos se estendia até tocar a outra e soltar seus dedos dos dedos do rapaz.
"Levante-se, enfermeira Tallis."
A enfermeira-chefe Drummond segurou-a pelo cotovelo e ajudou-a a se pôr de pé. As bochechas da mulher estavam muito vermelhas, e na altura dos malares havia uma linha reta nítida separando o vermelho do branco.
Do outro lado da cama, uma enfermeira cobria o rosto de Luc Cornet com o lençol.
Franzindo os lábios, a enfermeira-chefe endireitou o colarinho de Briony. "Isso. Agora vá lavar o sangue do rosto. Senão os outros pacientes podem ficar nervosos."
Ela obedeceu; foi ao banheiro e lavou o rosto em água fria, e minutos depois voltou para reassumir suas tarefas na enfermaria.
Às quatro e meia da madrugada as estagiárias tiveram ordem de se recolher ao alojamento para dormir, devendo voltar às onze. Briony caminhava ao lado de Fiona. Nenhuma das duas disse palavra, e, quando ficaram de braços dados, foi como se retomassem, após toda uma vida de experiência, aquela caminhada pela ponte de Westminster. Não teriam conseguido exprimir em palavras o que haviam vivenciado naquele dia e o quanto haviam mudado. Bastava-lhes poder caminhar pelos corredores vazios atrás das outras moças.
Depois que se despediu e entrou em seu pequeno quarto, Briony encontrou uma carta no chão. A letra que viu no envelope lhe era desconhecida.
Uma das moças certamente a teria pegado na portaria e enfiado embaixo de sua porta. Em vez de abri-la de imediato, primeiro se despiu e preparou-se para dormir. Sentou na cama, já de camisola, com a carta no colo, e pensou no rapaz. O canto de céu que dava para se ver de sua janela já estava branco. Ela ainda ouvia sua voz, pronunciando Tallis de modo a transformar aquele sobrenome num nome de mulher. Imaginou o futuro inacessível — a boulangerie numa rua estreita e ensombrada, cheia de gatos magros, o som de um piano vindo de uma janela de sobrado, suas cunhadas rindo de seu sotaque, e Luc Cornet amando-a a sua maneira ansiosa. Teria sido bom chorar por ele, e por sua família em Millau, que aguardava notícias. Mas Briony não conseguia sentir nada. Estava esvaziada. Ficou quase meia hora sentada, numa espécie de transe, quando por fim, exausta mas ainda sem sono, amarrou o cabelo com a fita que sempre usava, deitou-se e abriu a carta.
Cara Briony Tallis:
Obrigado por nos enviar Dois vultos junto a uma fonte e queira aceitar nossas desculpas pela demora desta resposta. Como você há de compreender, seria extraordinário para nós publicar uma novela completa de autoria de uma escritora desconhecida, como aliás o seria mesmo que o autor fosse bem conhecido. Não obstante, lemos sua novela com a intenção de talvez poder publicá-la em parte. Infelizmente, não poderemos fazê-lo. Estou devolvendo seus originais num envelope separado.
Dito isso, constatamos (ainda que de início cônscios de que tínhamos muitas outras coisas a fazer nesta redação) que a leitura de sua novela nos despertara grande interesse. Embora não nos seja possível publicar uma parte dela, julgamos importante informá-la de que aqui há outros além de mim interessados em futuros escritos seus. Não somos complacentes com relação à idade média de nossos colaboradores, e é com prazer que publicamos escritores jovens e promissores. Gostaríamos de ver outros trabalhos seus, principalmente contos. Julgamos Dois vultos junto a uma fonte uma obra merecedora de uma leitura atenta — e isso não é algo que eu costume dizer a respeito de qualquer escrito. Rejeitamos um grande número de originais, alguns deles produzidos por escritores de renome. Há no seu trabalho algumas imagens boas — gostei de "a grama alta tocaiada pelo amarelo leonino do verão" — e você ao mesmo tempo capta um fluxo de pensamento e o representa com diferenças sutis a fim de fazer tentativas de caracterização. Algo de singular e inexplicado é apreendido. No entanto, por vezes nos pareceu haver uma presença um pouco excessiva das técnicas de Virgínia Woolf. O momento presente cristalino em si é, sem dúvida, um tema merecedor, especialmente no caso da poesia; ele permite que o escritor exiba seu talento, mergulhe nos mistérios da percepção, apresente uma versão estilizada dos processos de pensamento, permite a exploração das circunstâncias imprevisíveis do seu íntimo etc. Quem haverá de questionar a validade dessa experimentação? Porém esse tipo de prosa pode resvalar no preciosismo quando falta um movimento para a frente. Em outras palavras, nossa atenção teria sido cativada ainda mais se houvesse uma correnteza subjacente de simples narrativa. É preciso haver um desenvolvimento. Veja-se, por exemplo, a criança à janela, cujo relato é apresentado em primeiro lugar — sua incapacidade de compreender a situação está muito bem captada. Como também está a decisão que ela toma em seguida e sua sensação de estar sendo iniciada nos mistérios da vida adulta.
Surpreendemos essa menina no momento em que seu eu começa a se formar. Ficamos intrigados quando ela decide abandonar os contos de fadas, as histórias folclóricas e peças que ela vinha escrevendo até então (seria ótimo se pudéssemos saborear um desses escritos), porém ela talvez tenha jogado fora o bebê da técnica ficcional junto com a água das histórias folclóricas. Apesar de todos os ritmos controlados e das observações inteligentes, muito pouca coisa acontece após um início tão promissor. Um rapaz e uma moça perto de uma fonte, dois jovens que claramente têm muitos sentimentos mútuos mal resolvidos, disputam um vaso da dinastia Ming e o quebram. (Mais de um de nós achou que dinastia Ming era um pouco precioso demais para levar até a fonte. Um Sèvres ou um Nymphen-burg não seria talvez mais apropriado?) A moça entra vestida na fonte para pegar os pedaços. Não seria melhor se a menina que assiste à cena não soubesse que o vaso havia se quebrado? Seria ainda mais misterioso para ela o mergulho da moça na fonte. Muita coisa poderia se desenrolar a partir dessa cena — mas você dedica dezenas de páginas ao jogo de luz e sombras, e a impressões aleatórias. Depois vemos a cena do ponto de vista do rapaz, depois da moça — mas poucas coisas novas são relevadas, apenas mais apreensões de aparências e sensações, e algumas lembranças irrelevantes. O rapaz e a moça se separam, deixando uma marca úmida no chão que rapidamente evapora — e chegamos ao fim. Há nisso algo de excessivamente estático que não faz jus ao seu talento evidente.
Se a menina compreendeu de modo tão errôneo a estranha cena que se desenrolou diante de seus olhos, ou ficou tão intrigada com ela, de que maneira esse fato poderia afetar as vidas dos dois adultos? Quem sabe a menina não interviria entre eles de algum modo desastroso? Ou os aproximaria, de propósito ou sem intenção? Não poderia ela, em sua inocência, colocá-los numa situação difícil, diante dos pais da moça, por exemplo? Certamente eles não veriam com bons olhos uma ligação entre sua filha mais velha e o filho da arrumadeira. E se o jovem casal utilizasse a menina como mensageira?
Em outras palavras, em vez de mergulhar tanto nas percepções de cada um dos três personagens, seria talvez possível colocá-los diante de nós de modo mais econômico, sem eliminar de todo algumas passagens vigorosas sobre a luz, a pedra, a água, nas quais você se sai tão bem — mas a partir daí começar a criar uma tensão, um jogo de luz e sombras dentro da própria narrativa. Seus leitores mais sofisticados talvez estejam informados sobre as teorias da consciência de Bergson, mas estou certo de que eles ainda guardam em si o desejo infantil de ouvir uma história, de ficar em suspense, de saber o que acontece. A propósito, com base na sua descrição a peça de Bernini que você tem em mente é a da Piazza Barberini, não a da Piaz-za Navona.
Para simplificar: o que falta a você é a espinha dorsal de uma história. Talvez você goste de saber que uma das suas leitoras mais entusiasmadas foi a sra. Elizabeth Bowen. Ela pegou a pilha de folhas datilografadas por acaso, quando passava por esta sala a caminho do almoço, pediu para levá-la para casa a fim de lê-la e terminou a leitura naquela mesma tarde. De início, achou a prosa "muito carregada, muito afetada", porém "salva por toques de Rosamond Lehmann" (uma associação que jamais teria me ocorrido). Em seguida, ficou "absorta por algum tempo" e por fim nos passou algumas anotações, que acabaram incorporadas nas observações acima. Talvez você se sinta perfeitamente satisfeita com seu texto tal como está, ou indignada com nossas restrições, ou tão desesperada que nunca mais vá querer olhar para ele. Sinceramente esperamos que não. Gostaríamos muito que você tomasse nossos comentários — que vêm acompanhados de um entusiasmo sincero — como ponto de partida para uma segunda versão.
A carta que acompanhou sua novela foi de uma concisão admirável, mas nela você dá a entender que no momento não tem quase nenhum tempo livre. Caso essas circunstâncias venham a mudar, seria para nós um grande prazer recebê-la com uma taça de vinho e discutir mais um pouco o seu texto. Esperamos que você não se sinta desestimulada. Talvez fique mais animada se lhe dissermos que nossas cartas de rejeição normalmente contêm no máximo três frases.
Você pede desculpas, de passagem, por não escrever sobre a guerra. Estamos lhe encaminhando um exemplar do nosso último número, que contém um editorial relevante. Como você verá, não somos da opinião de que todo artista tem a obrigação de assumir uma atitude em relação à guerra. Pelo contrário, achamos que é sábio e correto ignorá-la e dedicar-se a outros temas. Como os artistas são politicamente impotentes, eles devem usar seu tempo para se desenvolver em níveis emocionais mais profundos. O seu trabalho, o seu trabalho de guerra, é cultivar o seu talento e seguir na direção que ele exige. A guerra, como observamos, é inimiga da atividade criativa.
Seu endereço indica que você é médica ou então está padecendo de uma doença prolongada. Se a segunda opção for a correta, então todos nós lhe desejamos uma rápida recuperação.
Por fim, uma de nós gostaria de saber se você tem uma irmã mais velha que estudou no Girton College seis ou sete anos atrás.
Atenciosamente, CC
Nos dias que se seguiram, a volta a um sistema de turnos organizado fez com que passasse a sensação de estar flutuando fora do tempo que caracterizara aquelas primeiras vinte e quatro horas. Briony se considerava uma pessoa de sorte por ter um turno determinado de trabalho, das sete às vinte horas, com intervalos de meia hora para fazer as refeições. Quando seu despertador tocava às quinze para as seis, ela emergia de um fosso macio de exaustão e durante uma breve terra de ninguém entre o sono e a plena consciência sentia uma excitação, como antegozando um presente ou se vendo diante de alguma mudança importante. Era assim que se sentia ao despertar no Natal quando menina — a empolgação sonolenta, antes de se dar conta do motivo. Com os olhos ainda fechados para bloquear a claridade de manhã de verão, tateava até encontrar o botão do relógio e afundava de novo no travesseiro, e só então a coisa lhe voltava à mente. Justamente o contrário do Natal. O contrário de tudo. Os alemães estavam prestes a invadir o país. Era o que todo mundo dizia, desde os atendentes, que estavam organizando uma unidade de voluntários de defesa local, até o próprio Churchill, que evocava a imagem da nação subjugada e esfomeada, em que só a Royal Navy continuava livre. Briony sabia que seria terrível, que haveria combates corpo a corpo nas ruas e enforcamentos públicos, um retrocesso à escravidão, a destruição de tudo o que é bom. Porém naquele momento, sentada na beira da cama desfeita, ainda quente, calçando as meias, Briony não conseguia impedir nem negar o horrível sentimento de empolgação. Como todo mundo dizia o tempo todo, agora o país estava sozinho, e era melhor assim.
Já as coisas começavam a parecer diferentes — o padrão de flor-de-lis de sua toalha, a moldura de massa rachada do espelho, seu rosto refletido nele no momento em que ela escovava o cabelo, tudo parecia mais vivo, mais nítido. A maçaneta que ela girava estava mais fria e dura. Quando saiu para o corredor e ouviu passos pesados na escada ao longe, pensou nas botas dos alemães e sentiu uma pontada no estômago. Antes do café da manhã, tinha um ou dois minutos de solidão para aproveitar, caminhando à beira-rio. Mesmo àquela hora, sob um céu limpo, havia um brilho feroz nas águas que deslizavam rápidas diante do hospital. Seria mesmo possível que os alemães se apossassem do Tâmisa?
A claridade de tudo o que ela via, tocava, ouvia, certamente não era causada pelo sentimento de renovação e abundância do início do verão; era a consciência inflamada de um desfecho que se aproximava, de eventos que convergiam para um ponto final. Aqueles eram os últimos dias, Briony sentia, e eles viriam a brilhar na memória de um modo especial. Aquela luminosidade, aquele fascínio duradouro dos dias ensolarados, era a última extravagância da história antes que se iniciasse uma nova era. As primeiras tarefas da manhã, a sala de esterilização, a distribuição do chá, a troca dos curativos e o contato renovado com todos os estragos irremediáveis não atenuavam aquela percepção acentuada — que condicionava tudo o que Briony fazia e era um pano de fundo constante. E emprestava uma sensação de urgência a todos os seus planos. Parecia-lhe que não havia muito tempo Se adiasse, pensava, os alemães poderiam vir, e talvez ela jamais tivesse outra oportunidade
Novos pacientes chegavam a cada dia, mas não era mais um dilúvio. O sistema estava se adaptando, e havia um leito para cada um. Os casos de cirurgia eram preparados para ser encaminhados à sala de operações no subsolo. Depois, os pacientes, em sua maioria, iam convalescer em outros hospitais. Os óbitos eram freqüentes, e para as estagiárias isso não era mais nenhuma tragédia, apenas uma rotina. Os biombos se fechavam em torno dos murmúrios do capelão sentado à cabeceira, o lençol era puxado até cobrir a cabeça, os atendentes eram chamados, a cama era desfeita e refeita Rapidamente. Um morto dava lugar a outro, de modo que o rosto do sargento Mooney se transformava no do soldado Lowell, e seus ferimentos fatais se confundiam com os de outros homens cujos nomes elas já não recordavam
Agora que a França havia caído, presumia-se que o bombardeio de Londres, a preparação para a invasão, começaria em breve. Ninguém deveria ficar na cidade desnecessariamente. Mais sacos de areia foram colocados nas janelas dos andares térreos, e empreiteiros civis caminhavam pelos telhados testando a solidez das chaminés e das clarabóias cimentadas. Com freqüência realizavam-se ensaios da evacuação das enfermarias,com muitos apitos e gritos severos. Simulavam-se também emergências de incêndio e convocações gerais, e eram praticados os métodos de colocação de máscaras de gases em pacientes incapazes ou desacordados. Enfatizava-se que as enfermeiras deviam antes de mais nada colocar as máscaras em si próprias. Elas não sentiam mais medo da enfermeira-chefe Drummond. Agora que já haviam passado pela prova de fogo, ela não as tratava mais como crianças na escola. Quando lhes dava instruções, adotava um tom frio, neutro, profissional, o que as lisonjeava.
Nesse novo ambiente, foi relativamente fácil para Briony trocar seu dia de folga com Fiona, que teve a generosidade de lhe ceder seu sábado em troca de uma segunda-feira.
Por causa de alguma trapalhada da administração, certos soldados estavam convalescendo no hospital. Depois que se recuperaram da exaustão, após muitas horas de sono, e que voltaram a se habituar a fazer refeições regulares, ganhando um pouco de peso, tornaram-se mal-humorados, rabugentos, até mesmo alguns dos que não haviam sofrido nenhum dano permanente. Eram em sua maioria infantes. Ficavam deitados fumando, olhando para o teto em silêncio, remoendo suas lembranças mais recentes. As vezes se reuniam para conversar, em pequenos grupos de conspiradores. Tinham raiva de si próprios. Alguns contaram a Briony que não haviam chegado a disparar um único tiro. Mas tinham mais raiva ainda dos ”chefões” e de seus próprios oficiais, que os haviam abandonado na retirada, e dos franceses, que haviam capitulado sem oferecer resistência. Reagiam com sarcasmo ao tom entusiástico dos jornais, a celebrar a evacuação milagrosa e o heroísmo dos pequenos barcos.
”Uma bagunça do caralho”, ouvia-os murmurar. ”Esses putos da RAF.”
Alguns homens chegavam a se rebelar até mesmo quanto a seu tratamento, pois já não faziam distinção entre os generais e as enfermeiras. De seu ponto de vista, eram todos iguais, autoridades idiotas. Foi necessária uma visita da enfermeira-chefe Drummond para que eles se comportassem.
Na manhã de sábado Briony saiu do hospital às oito sem tomar o café da manhã e caminhou com o Tâmisa à sua direita, rio acima. Quando estava diante dos portões do palácio de Lambeth, três ônibus passaram. Agora a placa que indicava o itinerário do ônibus estava em branco Para confundir os invasores. Para ela, que havia decidido ir a pé, não tinha importância. Também não adiantava ela haver decorado alguns nomes de ruas. Todas as placas haviam sido retiradas ou pintadas de preto. O plano um tanto vago de Briony era seguir pela margem do no por uns três quilômetros e então sair para a esquerda, ou seja, para o sul. Quase todos os mapas da cidade haviam sido confiscados. Por fim ela conseguira pegar emprestado um mapa com os roteiros dos ônibus de 1926. As dobras estavam rasgadas, justamente no trecho que lhe interessava. Cada vez que o desdobrava, o mapa corria o risco de se despedaçar E Briony temia a impressão que poderia causar. Os jornais falavam de pára-quedistas alemãs, disfarçadas de enfermeiras e freiras, se espalhando pelas cidades e se infiltrando na população. O que as caracterizava era estarem sempre consultando mapas, ao falar com elas, podia-se identificá-las atentando para seu inglês excessivamente bem falado e pelo fato de que desconheciam as tradicionais cantigas infantis inglesas. Depois que a idéia se instalou em sua cabeça, Briony não conseguia deixar de pensar que parecia um tanto suspeita. Antes achava que seu uniforme a protegeria ao atravessar território desconhecido Mas, ao contrário, ele agora a fazia parecer uma espiã
Enquanto caminhava no sentido oposto ao do fluxo do trânsito matinal, mentalmente recitava as cantigas infantis de que se lembrava. Ela só conhecia muito poucas do começo ao fim. A sua frente, um leiteiro havia saltado da carroça para apertar os arreios do cavalo. Quando Briony aproximou-se dele, o homem estava sussurrando para o animal. No instante em que, parada atrás dele, ela pigarreava discretamente, veio-lhe à mente a imagem do velho Hardman e sua carruagem. Quem tivesse seus setenta anos agora teria tido a mesma idade que ela em 1888. Resquícios da era de ouro dos cavalos, ao menos nas ruas, que os velhos não queriam que acabasse.
Quando Briony lhe fez a pergunta, o leiteiro foi bem simpático, dando uma explicação longa e confusa do caminho que ela devia seguir. Era um homem grandalhão,com uma barba branca manchada de fumo. Sofria de algum problema das adenóides que fazia com que suas palavras se embolassem, misturadascom um zumbido que vinha de suas narinas. Ele indicou uma rua que saía para a esquerda, debaixo de um viaduto ferroviário. Briony tinha a impressão de que ainda não havia caminhado o suficiente para começar a se afastar do rio, mas, enquanto seguia adiante, sentia que o homem a olhava, e achou que seria indelicado não levar em conta as instruções que ele lhe dera. Talvez aquela rua fosse um atalho.
Surpreendia-se ao se dar conta do quanto era desajeitada e envergonhada, depois de ter aprendido e vivenciado tanta coisa. Sentia-se incompetente, assustada por estar ali sozinha, afastada de seu grupo. Havia meses que levava uma vida fechada, em que todas as horas eram assinaladas num cronograma. Conhecia bem seu lugar humilde na enfermaria. À medida que foi se tornando mais proficiente em seu trabalho, aprendeu a cumprir ordens e seguir procedimentos rotineiros, e parou de pensar de modo independente. Havia muito tempo que não fazia nada por iniciativa própria. Desde aquela semana em Primrose Hill, em que passou a limpo sua novela; e o entusiasmo que sentira então, agora lhe parecia uma bobagem.
Estava caminhando debaixo do viaduto quando um trem passou por ele. O ruído trovejante e rítmico ressoava em seus ossos. Aço deslizando e sacolejando-se sobre aço, grandes placas do mesmo metal aparafusadas passando por cima de sua cabeça na penumbra, um cheiro inexplicável que penetrava os tijolos, grandes canos de ferro fundido presos por suportes enferrujados, transportando sabe-se lá o quê — uma invenção brutal que era obra de uma raça de super-homens. Enquanto isso ela lavava assoalhos e fazia curativos. Teria mesmo forças para empreender aquela viagem?
Quando saiu de debaixo do viaduto, atravessando uma nesga poeirenta de sol matinal, o trem emitia uns estalidos inofensivos, suburbanos, ao se afastar. O que lhe faltava, Briony disse a si própria mais uma vez, era espinha dorsal. Passou por um minúsculo parque municipal com uma quadra de tênis, onde dois homens com roupas de flanela jogavam uma bola de um lado para o outro, aquecendo-se para uma partida, com uma autoconfiança preguiçosa. Perto deles, duas moças com shorts caqui, sentadas num banco, liam uma carta. Briony lembrou-se de sua carta, a carta de rejeição edulcorada. Levara-a no bolso durante seu turno, e a segunda página ganhara uma mancha de ácido carbólico em forma de caranguejo. Ela havia chegado à conclusão de que, sem qualquer intenção, a carta era uma acusação pessoal importante. Quem sabe a menina não interviria entre eles de algum modo desastroso? E como. E, tendo feito tal coisa, não poderia ela obscurecer o fato inventando uma história leve, superficialmente inteligente, e satisfazer sua própria vaidade enviando-a a uma revista? Aquelas páginas intermináveis sobre luz, pedra e água, a divisão da narrativa entre três pontos de vista diferentes, a imobilidade de ação em que quase nada parecia acontecer — nada disso conseguia ocultar sua covardia. Será que ela realmente achava que podia se esconder por trás de alguns conceitos de literatura moderna emprestados de outros escritores e afogar sua culpa num fluxo de consciência — não um, três? As evasões daquela novela eram precisamente as de sua vida. Tudo o que ela não queria enfrentar também fora eliminado da novela — e a novela se ressentia dessa falta. O que ela haveria de fazer agora? O que lhe faltava não era a espinha dorsal de uma história. Era espinha dorsal.
Brion} deixou para trás o parque e passou por uma pequena fábrica, a vibração de suas máquinas fazia a calçada tremer. Não havia como saber o que estava sendo fabricado atrás daquelas janelas altas e imundas, nem por que uma fumaça amarela e preta jorrava de uma única chaminé fina de alumínio. Do outro lado da rua, instaladas em diagonal numa esquina, as portas duplas escancaradas de um bar lembravam um palco de teatro. La dentro, onde um rapaz atraente,com ar pensativo, esvaziava cinzeiros num balde, o ar da noite da véspera ainda parecia azulado. Dois homens com aventais de couro descarregavam barris de cerveja por uma rampa encostada a uma carroça. Brioii) nunca vira tantos cavalos nas ruas. Os militares deviam ter requisitado todos os caminhões. Alguém estava abrindo por dentro as portas do porão. Elas se chocaram contra a calçada, levantando poeira, e um homem com tonsura, cujas pernas ainda estavam abaixo do nível da rua, parou e se virou para vê-la passar. Do ponto de vista de Brony, ele parecia uma peça de xadrez gigantesca. Os homens da carroça também olhavam para ela, e um deles deu um assobio provocante
"Está tudo bem, meu anjo?"
Ela não se incomodava, mas nunca sabia como reagir. “Tudo bem, obrigada?” Sorriu para todos eles, sentindo-se protegida pelas dobras de sua capa. Todos, imaginava, estavam pensando na invasão, mas não havia nada a fazer senão tocar para a frente. Mesmo se os alemães viessem, as pessoas continuariam jogando tênis, fofocando, tomando cerveja Talvez cessassem os assobios como os daquele homem. A rua fez uma curva e estreitou-se, e o tráfego constante parecia mais ruidoso, soltando uma fumaça quente bem no rosto de Bnony. Havia uma fileira de casas vitorianas, de tijolo vermelho, que davam direto para a calçada.
Uma mulher com avental estampado varria com um vigor enlouquecido o trecho em frente de sua casa, de cuja porta aberta vinha um cheiro de fritura. Ela abriu espaço para que Briony passasse, pois ali a calçada era estreita, mas desviou os olhos de repente quando a moça lhe deu bom-dia Vinham em sua direção uma mulher e quatro meninos com orelhas de abano, munidos de malas e mochilas. Os garotos vinham fazendo algazarra, chutando um sapato velho. Ignoravam os gritos exaustos da mãe, obrigando Bnony a se encostar contra a parede para que eles passassem
”Cês parem com isso, viu’ Deixa a enfermeirinha passar”
A mulher dirigiu-lhe um sorriso torto de quem pede desculpas. Faltavam-lhe dois incisivos. Exalava um perfume forte e levava entre os dedos um cigarro não aceso
”Isso tudo é só porque eles vai pró interior Nunca estivero lá, dá pra acreditar?”
Disse Briony ”Boa sorte, e espero que vocês fiquem com uma boa família”
A mulher, que também tinha orelhas de abano, parcialmente ocultadas pelo cabelo cortado rente, deu uma gargalhada alegre. ”Eles não imagina o abacaxi que eles vai pegar’”
Por fim, Briony chegou a uma confluência de ruas decrépitas, segundo o pedaço do mapa que havia se destacado do resto, ali era Stockwell A rua que dava para o sul. Era dominada por uma casamata, junto a ela havia um punhado de membros da guarda nacional entediados, apenas um dos quais possuía um fuzil. Um sujeito velhusco de chapéu, guarda-pó e braçadeira,com bochechas caídas que lembravam um buldogue, destacou-se dos outros e pediu-lhe que mostrasse sua carteira de identidade. Com um gesto arrogante, fez sinal para que ela seguisse em frente. Briony achou melhor não lhe pedir informações. Segundo seus cálculos, teria de seguir pela Clapham Road por uns bons três quilômetros. Ali havia menos gente e tráfego, e a rua era mais larga do que a de onde ela vinha. O único som que se ouvia era o ronco de um bonde se afastando. Junto a uma fileira de belos prédios de apartamentos do início do século, bem recuados da pista, Briony permitiu-se parar e ficar sentada por meio minuto sobre um muro baixo, à sombra de um plátano, para examinar uma bolha no calcanhar. Um comboio de caminhões de três toneladas passou, seguindo em direção ao sul, saindo da cidade. Automaticamente, ela olhou para a carroceria, meio que esperando ver homens feridos. Mas só viu engradados de madeira.
Quarenta minutos depois, chegou à estação de metrô de Clapham Common. Uma igreja baixa, de pedra carcomida, estava trancada. Pegou a carta de seu pai e releu. Uma mulher numa sapataria indicou-lhe o rossio, o common. Mesmo depois de atravessar a rua e começar a caminhar sobre a grama, Briony de início não viu a igreja. Estava meio escondida entre as árvores já cheias de folhas, e não era o que ela esperava. Imaginava encontrar a cena de um crime, uma catedral gótica flamejante,com arcos inundados por uma luz escarlate e anil, projetada por vitrais que representassem tormentos indizíveis. O que surgiu entre as árvores frescas à medida que Briony se aproximou foi uma espécie de celeiro de tijolo, de dimensões elegantes, como um templo grego,com um telhado de telhas negras, janelas de vidro comum e um pórtico baixo,com colunas brancas, sob uma torre de relógio de proporções harmoniosas. Perto do pórtico estava estacionado um Rolls-Royce negro reluzente. A porta do motorista estava entreaberta, mas não havia nenhum motorista por perto. Ao passar pelo carro Briony sentiu o calor do radiador, íntimo como o calor de um corpo humano, e ouviu o metal estalar, contraindo-se. Subiu a escada e empurrou a pesada porta ornamentada.
Sentiu o cheiro adocicado de madeira encerada e de pedra úmida comum a todas as igrejas. Ao se virar para silenciosamente fechar a porta, percebeu que a igreja estava quase vazia. As palavras do vigário faziam contraponto com o eco de sua voz. Briony permaneceu parada junto à porta, semi-encoberta pela pia batismal, esperando que os olhos e os ouvidos se adaptassem. Então avançou até o último banco e foi seguindo até a ponta, de onde ainda era possível ver o altar. Briony tinha ido a vários casamentos de sua família, embora fosse jovem demais para estar presente à grandiosa cerimônia na catedral de Liverpool que assinalou a união do tio Cecilcom a tia Hermione, cujo vulto e cujo chapéu complexo ela já divisava na primeira fileira. A seu lado estavam Pierrot e Jackson, nove ou dez centímetros mais compridos, instalados entre seus pais. Separados Do outro lado da nave estavam três membros da família Marshall. Mais ninguém. Uma cerimônia discreta. Não havia jornalistas da sociedade. Briony não devia estar ali. Ela conhecia o ritual suficientemente bem para perceber que ainda não havia ocorrido o momento em si
”Em segundo lugar, foi instituído como remédio contra o pecado e para evitar a fornicação, a fim de que as pessoas que não possuem o dom da castidade pudessem se casar e permanecer como membros impolutos do corpo de Cristo ”
De frente para o altar, emoldurados pelo vulto alvo e dominador do vigário, viam-se os noivos. Ela estava de branco,com toda a indumentária tradicional, inclusive, pelo que Briony podia ver lá de trás, um véu espesso. O cabelo estava preso numa única trança infantil que pendia em meio aos babados de tule e organdi, estendendo-se ao longo de sua coluna. Marshall estava empertigado, os contornos das ombreiras de seu paletó se destacavam nitidamente contra a sobrepehz do vigário
”Em terceiro lugar, foi instituído para a associação, o auxílio e o conforto mútuos, para que um pudesse contar com o outro...”
Vieram-lhe as lembranças, os detalhes incômodos, como um ataque de urticária, como sujeira na pele: Lola entrando em seu quarto em lágrimas, os pulsos machucados, e os arranhões no ombro de Lola e no rosto de Marshall; o silêncio de Lola na escuridão à beira-lago quando ela deixou sua prima mais jovem, tão séria, tão ridícula, tão pudica — incapaz de separar a realidade das histórias que lhe povoavam a cabeça —, proteger o homem que a atacara. Pobre Lola, tão vaidosa e vulnerável,com sua gargantilha de pérolas,com seu perfume de leite de rosas, que ansiava por se livrar das últimas cadeias da infância e fora salva da humilhação apaixonando-se, ou convencendo a si própria de que estava apaixonada, e que tivera a sorte de encontrar Briony a seu lado, insistindo em falar e acusar. Muita sorte de Lola, sim — mal saída da infância, tomada à força —, de se casarcom o homem que a havia estuprado.
”... Assim, se algum presente conhecer um motivo justo que impeça estes dois de se unirem legalmente, que fale agora, ou então se cale para sempre.”
Estaria aquilo acontecendo mesmo? Estaria ela se levantando de fato agora,com pernas bambas e estômago vazio a contrair-se e coração gaguejando, seguindo em direção ao centro da nave e expondo suas razões, os motivos justos, numa voz desafiadora e firme, avançando com sua capa e rouca, como uma noiva de Cristo, em direção ao altar, em direção ao vigário boquiaberto que nunca, em toda a sua longa carreira, fora interrompido, em direção à congregação, toda virada para ela, e aos noivos pálidos, semivirados para trás? Ela não havia planejado nada, mas a pergunta, da qual ela havia se esquecido por completo, a pergunta saída do Livro de oração comum, era uma provocação.
E quais eram mesmo os impedimentos? Agora teria sua oportunidade de proclamar em público toda sua angústia secreta, de purgar-se de todos os males que cometera. Diante do altar daquela igreja, a mais racional de todas.
Porém os arranhões e as contusões já haviam sarado havia muito tempo, e todas as declarações que ela dera na época tinham sido em sentido contrário. Tampouco a noiva parecia uma vítima; além disso, tinha a aprovação dos pais. Mais que aprovação, sem dúvida: um magnata do chocolate, o criador da barra Amo. A tia Hermione devia estar esfregando as mãos. Então Paul Marshall, Lola Quincey e ela, Briony Tallis, haviam conspirado com silêncio e mentiras para enviar à cadeia um inocente? Mas as palavras que o haviam condenado tinham sido dela, lidas em seu nome no tribunal do condado. A sentença já fora cumprida. A dívida estava paga. O veredicto continuava válido.
Briony permanecia sentada, o coração disparado, as palmas das mãos encharcadas de suor;com humildade, baixou a cabeça.
”A vós dois ordeno, pois que por isso havereis de responder no terrível dia do Juízo, quando os segredos de todos os corações serão revelados, que, se um de vós conheceres algum impedimento à celebração deste matrimônio, que o confesses agora.”
com base em todas as estimativas, faltava muito tempo para o dia do Juízo, e até então a verdade que apenas Marshall e sua noiva conheciam em primeira mão estava sendo emparedada dentro do mausoléu daquele casamento. Ali ela haveria de permanecer na escuridão, até que todos os interessados estivessem mortos. Cada palavra pronunciada na cerimônia era mais um tijolo que se encaixava em seu lugar.
”Quem entrega esta mulher em matrimônio a este homem?”
O tio Cecil,com seu jeito de passarinho, apressou-se a se apresentar, sem dúvida ansiando para que aquela história toda terminasse logo e ele pudesse voltar a seu santuário no Ali Souls College, Oxford. Tentando detectar algum vestígio de dúvida em suas vozes, Briony ouviu Marshall, depois Lola, repetir as palavras do vigário. Marshall falava com uma voz tonitruante, desprovida de expressão; Lola,com uma vozinha doce e firme.com que sensualidade flagrante suas palavras ecoaram diante do altar: ”com meu corpo eu te adoro”.
”Oremos.”
Então abaixaram-se as seis cabeças delineadas em silhueta nas fileiras da frente, e o vigário tirou os óculos de tartaruga, ergueu o queixo e, de olhos fechados, dirigiu-se às potências celestes, numa ladainha cansada e triste:
”Ó Deus Eterno, criador e preservador de toda a humanidade, que nos dai toda a graça espiritual, fonte da vida eterna; enviai Vossa bênção a estes Vossos dois servos, este homem e esta mulher...”
O último tijolo foi posto no lugar quando o vigário, tendo recolocado os óculos, fez o célebre pronunciamento — eu vos declaro marido e mulher — e invocou a Trindade que dava nome à igreja. Houve mais orações, um salmo, o padre-nosso e mais uma prece comprida, em que as cadências da bênção afirmavam uma conclusão melancólica.
”... Verta sobre vós as riquezas de Sua graça, vos santifique e vos abençoe, para que em corpo e alma vós O aprazais, e vivais unidos no amor sagrado até o fim de vossas vidas.”
Imediatamente, dos tubos mais agudos do órgão desceram como confetes punhados de quiálteras, enquanto o vigário virava-se para conduzir os noivos pela nave, seguidos dos seis familiares. Briony, até então de joelhos fingindo rezar, levantou-se e virou para encarar a congregação, que já se aproximava de sua fileira. O vigário parecia um pouco apressado e estava vários metros à frente dos demais. Quando olhou para a esquerda e viu a jovem enfermeira, seu olhar alegre e a inclinação de sua cabeça indicavam ao mesmo tempo simpatia e curiosidade. Então seguiu em frente, para escancarar uma das portas grandes. Uma língua enviesada de sol se estendeu até o lugar onde Briony estava, iluminando seu rosto e sua touca. Ela queria ser vista, mas não com tanto destaque. Agora seria impossível não vê-la. Lola, que estava do lado de Briony, levantou a cabeça, e seus olhares se encontraram. O véu já estava entreaberto. As sardas haviam desaparecido, mas fora isso ela não havia mudado muito. Apenas um pouco mais alta, talvez, e mais bonita, o rosto mais suave e arredondado, as sobrancelhas severamente pinçadas. Briony limitou-se a olhá-la fixamente. Ela só queria que Lola soubesse que ela estava presente e se perguntasse por quê. O sol dificultava um pouco a visão de Briony, mas por uma fração de segundo uma discreta expressão de contrariedade talvez tenha surgido no rosto da noiva. Então ela franziu os lábios, olhou para a frente e seguiu. Paul Marshall a vira também, mas não a reconhecera, como também a tia Hermione e o tio Cecil, que não tinham qualquer contato com ela havia muitos anos. Mas os gêmeos, que fechavam o cortejo, trajando seus uniformes escolares com calças até as canelas, adoraram vê-la e fingiram horrorizar-se com seu traje, e imitaram bocejos, revirando os olhos e levando a mão à boca.
Então Briony se viu sozinha na igreja, junto com o organista invisível, que continuava tocando para seu próprio prazer. Tudo terminara depressa demais, e nada de garantido fora conseguido. Ela continuava parada em seu lugar, começando a se sentir um pouco ridícula, adiando o momento de sair. A luz do dia, a banalidade das conversas dos parentes teriam o efeito de dissipar qualquer impacto que ela tivesse tido como uma aparição luminosa. Além disso, faltava-lhe coragem para um confronto. E como haveria de explicar sua presença ali, sem ter sido convidada, para seu tio e sua tia? Eles poderiam ficar ofendidos; pior ainda, poderiam não ficar ofendidos e querer convidá-la para um café da manhã terrivelmente constrangedor num hotel, em que o jovem casal Marshall a contemplaria com horror, enquanto Hermione não conseguiria disfarçar o desprezo que lhe inspirava Cecil. Briony ficou mais um minuto ou dois, como se a música a prendesse ali; então, incomodada por sua própria covardia, saiu às pressas. O vigário já estava a pelo menos cem metros dali, caminhando pelo rossio, balançando bem os braços. Os noivos estavam no Rolls-Royce, Marshall dirigindo, engatando a marcha a ré. Briony tinha certeza de que eles a haviam visto. Ouviu-se um ruído metálico estridente quando ele engatou a marcha — um bom sinal, talvez. O carro se afastou, e, por uma janela lateral, Briony viu o vulto alvo de Lola inclinado sobre o braço do motorista. Quanto à congregação, ela havia desaparecido por completo em meio às árvores.
com base no mapa, ela sabia que Balham ficava na outra extremidade do rossio, na direção em que estava indo o vigário. Não era muito longe, e exatamente esse fato a fazia relutar em seguir. Ela chegaria cedo demais. Não havia comido nada, estava com sede, e seu calcanhar, que grudara no sapato, latejava. A manhã estava quente, e Briony teria de atravessar um extenso gramado desprovido de sombra, interrompido por caminhos retos de asfalto e abrigos públicos. Ao longe via-se um coreto, onde homens com uniformes azul-escuros andavam de um lado para o outro. Briony pensou em Fiona, cujo dia de folga ela estava gozando, e da tarde que passaram no St. James’s Park. Parecia uma lembrança remota, de um tempo de inocência, e no entanto fora apenas dez dias antes. Naquele momento Fiona estaria passando as comadres pela segunda vez. Briony permanecia à sombra do pórtico da igreja, pensando no pequeno presente que levaria para sua amiga — alguma guloseima, uma banana, laranjas, chocolate suíço. Os atendentes sabiam como obter essas coisas. Ela os ouvira dizer que qualquer coisa, fosse o que fosse, podia ser obtida, desde que se pagasse o preço. Briony via o tráfego contornando o rossio, indo na mesma direção que ela, e pensava em comida. Fatias de presunto, ovos pochê, uma coxa de galinha assada, um cozido irlandês, merengue de limão, Uma xícara de chá. Só se deu conta da música enervante, insistente, que vinha detrás dela, no momento em que cessou, e naquele silêncio súbito, que parecia lhe conferir liberdade, resolveu tomar o café da manhã. Não havia nenhum estabelecimento comercial na direção em que ela teria de seguir, apenas uma sucessão de prédios de apartamentos de tijolo de um tom escuro de laranja
Passaram-se alguns minutos e o organista saiu da igreja,com o chapéu numa das mãos e um chaveiro pesado na outra. Ela pensou em lhe perguntar onde ficava o café mais próximo, mas o homem parecia nervoso, tão nervoso quanto a música que tocava, e aparentemente estava determinado a ignorar a presença de Briony. Ao fechar a porta da igreja e abaixar-se para trancá-la Enfiou o chapéu na cabeça e saiu apressado
Talvez aquele fosse o primeiro passo no sentido de abrir mão de seu plano, mas ela já estava andando para trás, voltando por onde tinha vindo, na direção de Clapham High Stieet. Tomaria seu café e pensaria. Bem Perto da estação do metrô passou por um bebedouro de pedra e sentiu vontade de mergulhar o rosto naquela água. Encontrou um pequeno café, de janelas sujas, o chão recoberto de pontas de cigarro, mas a comida não podia ser pior do que aquela que Briony se acostumara a comer. Pediu chá, três torradas e margarina, e também uma geleia de morango de um tom pálido de rosa. Pôs bastante açúcar no chá, pois havia autodiagnosticado hipoglicemia. A doçura do chá não ocultava de todo um gosto de desinfetante
Tomou uma segunda xícara, felizmente morna, o que lhe permitia beber em grandes goles, e depois utilizou um banheiro fedorento, sem assento na privada, que ficava do outro lado de um pátio pavimentado com pedras, atrás do café. Mas não havia fedor que pudesse impressionar uma estagiária de enfermagem. Enfiou papel higiênico dentro do sapato. Desse modo conseguiria caminhar mais uns dois ou três quilômetros. Uma pia com uma só torneira ficava acorrentada a uma parede de tijolo. Havia um pedaço de sabonete cinzento, estnado, que Bnony preferiu não pegar. Quando abriu a torneira, a água do ralo caiu diretamente em suas canelas. Enxugou-as com as mangas e penteou o cabelo, tentando imaginar seu rosto na parede de tijolo. Porém seria impossível retocar o batom sem um espelho. Passou um lenço encharcado no rosto e deu tapinhas nas bochechas para realçar-lhes a cor. Uma decisão fora tomada — sem que ela tivesse sido consultada, era a impressão que tinha. Ela estava se preparando para uma entrevista, e o cargo a que aspirava era o de irmã caçula querida
Saiu do café e, enquanto seguia pelo rossio, sentia ampliar-se a distância que a separava de uma outra Briony, não menos real que ela, que estava voltando para o hospital. Talvez a Briony que seguia em direção a Balham fosse a pessoa imaginária ou espectral. A sensação de irrealidade foi acentuada quando, meia hora depois, chegou a outra High Street, mais ou menos semelhante à que deixara para trás. Londres era isso, quando se saía do centro. Um aglomerado de cidadezinhas sem graça. Briony tomou a decisão de jamais morar em nenhuma delas
A rua que ela procurava ficava a três quarteirões da estação de metrô, a qual era outra réplica. As casas do início do século, todas iguais,com cortinas de filó e uma aparência decrépita, se estendiam por quase um quilômetro. O número 43 da Dudley Villas ficava mais ou menos na metade, um prédio idêntico aos outros sob todos os aspectos, exceto pela presença de um velho Ford 8, sem rodas, apoiado sobre pilhas de tijolos, que ocupava todo o jardim da frente. Se não houvesse ninguém em casa, Briony poderia ir embora, dizendo a si própria que tinha tentado. A campainha não funcionava. Bateu com a aldraba duas vezes e deu um passo para trás. Ouviu uma voz irritada de mulher, depois uma porta batendo e passos pesados. Deu mais um passo atrás. Não era tarde -demais para ir embora. Ouviu alguém mexendo com a tranca e um suspiro mal-humorado, e a porta foi aberta por uma mulher alta, de traços ásperos, na faixa dos trinta, que estava sem fôlego por ter feito algum esforço terrível. Estava furiosa. Havia sido interrompida em plena briga e não conseguira ajustar sua expressão — a boca aberta, o lábio superior um pouco repuxado — quando olhou para Briony.
”O que você quer?”
”Estou procurando a senhorita Cecília Tallis.”
Ela deu de ombros e virou a cabeça para trás, como se reagisse a um insulto. Olhou Briony dos pés à cabeça.
”Você parece com ela.”
Atônita, Briony limitou-se a olhar para a outra.
A mulher soltou outro suspiro, que soou quase como uma escarrada, e foi até o pé da escada.
”Tallis!”, gritou. ”Visita!”
Seguiu pelo corredor até chegar à porta de sua sala, dirigiu a Briony um olhar cheio de desprezo e desapareceu, batendo a porta com estrépito após entrar.
O prédio mergulhou no silêncio. Pela porta da frente Briony via uma extensão de linóleo com um padrão de flores, e os primeiros sete ou oito degraus da escada, cobertos por um carpete vermelho espesso. No terceiro degrau faltava a vareta de latão que prendia o carpete. Mais ou menos na metade do corredor encontrava-se uma mesa semicircular encostada à parede, e sobre ela via-se um porta-cartas de madeira polida, que parecia uma torradeira. Estava vazio. O linóleo passava pela escada e seguia até uma porta de vidro fosco que provavelmente dava para a cozinha nos fundos. Também o papel de parede tinha um motivo floral — um ramalhete de três rosas alternando-se com um floco de neve. Desde a entrada até o início da escada, Briony contou quinze rosas, dezesseis flocos de neve. Nada auspicioso.
Por fim ouviu uma porta se abrindo no andar de cima, talvez a mesma que ela ouvira sendo fechada com estrondo no momento em que bateu na aldraba. Então a escada rangeu, e pés calçados em meias grossas apareceram, depois uma extensão de pele nua, em seguida um roupão de seda azul que ela reconheceu. Finalmente, o rosto de Cecília, inclinado para o lado, tentando divisar quem estava à porta para se poupar o trabalho de descer o resto da escada vestida como estava. Levou alguns momentos para reconhecer sua irmã. Desceu devagar mais três degraus.
”Ah meu Deus.”
Sentou-se e cruzou os braços.
Briony permanecia parada, um pé ainda pisando no caminho do jardim, o outro no degrau da porta. Um rádio na sala da proprietária foi ligado, e o riso de uma platéia foi aumentando à medida que as válvulas esquentavam. Em seguida, ouviu-se o monólogo gaiato de um comediante, interrompido ao final por aplausos, e uma banda alegre começou a tocar. Briony deu um passo à frente e entrou no hall.
Murmurou: ”Preciso falar com você”.
Cecília estava prestes a se levantar, mas mudou de idéia. ”Por que não avisou que vinha aqui?”
”Você não respondeu à minha carta, por isso eu vim.”
Cecília ajeitou o roupão e apalpou o bolso, provavelmente à procura de um cigarro. Sua pele estava muito mais escura, e também as mãos estavam pardas. Não havia encontrado o que procurava, mas por um momento não fez menção de se levantar.
Ganhando tempo mais do que mudando de assunto, disse: ”Você é estagiária”.
”Sou.”
”Qual enfermaria?”
”A da enfermeira-chefe Drummond.”
Não havia como saber se Cecília conhecia aquele nome, ou se a incomodava o fato de que sua irmã mais moça estava estagiando no mesmo hospital. Havia uma outra diferença evidente — Cecília sempre se dirigira a ela num tom maternal ou condescendente. Maninha! Agora não havia mais espaço para isso. Sua voz tinha um toque de dureza que impedia Briony de fazer qualquer pergunta a respeito de Robbie. Ela deu mais um passo à frente, cônscia de que a porta estava aberta atrás dela.
”E você, está onde?”
”Perto de Mordeu. É um SME.”
Um hospital de serviços médicos de emergência, requisitado pelas forças armadas, provavelmente um dos que estavam lidando com o grosso — o grosso, mesmo — da evacuação. Havia coisas demais que não podiam ser ditas, nem perguntadas. As duas irmãs se entreolharam. Embora Cecília estivesse com a cara amassada, como se tivesse acabado de se levantar, estava mais bonita do que a imagem que Briony guardava dela. Aquele rosto comprido sempre parecera estranho e vulnerável, uma cara de cavalo, como todos diziam, mesmo nas melhores circunstâncias. Agora o rosto era abertamente sensual, com lábios cheios, arroxeados, de uma curvatura acentuada. Os olhos estavam escuros e aumentados, talvez pelo cansaço. Ou pela dor. O nariz longo e fino, as narinas delicadamente largas — havia algo de máscara, de esculpido, naquele rosto, totalmente imóvel. E indecifrável. A aparência de sua irmã aumentou o mal-estar de Briony, fazendo-a se sentir desajeitada. Ela mal conhecia aquela mulher, a quem não encontrava havia cinco anos. Não podia pressupor nada. Estava procurando algum outro assunto neutro, mas não havia nada que não levasse aos temas delicados — os temas que ela teria de confrontar de qualquer modo; e foi por não conseguir suportar mais o silêncio e aquele olhar fixo que perguntou por fim:
”Você tem tido notícias do velho?”
”Não.”
O tom decrescente deixava claro que ela não queria ter notícias dele e que, se tivesse, não responderia.
Cecília perguntou: ”E você?”.
”Recebi um bilhete rabiscado há umas duas semanas.”
”bom.”
Agora não havia mais nada a ser dito sobre esse assunto. Após uma outra pausa, Briony tentou outra vez:
”E lá de casa?”
”Não. Perdi o contato. E você?”
”Ela escreve de vez em quando.”
”E que notícias ela dá, Briony?”
A pergunta e o uso de seu nome eram sarcásticos. Enquanto forçava a memória, sentia que estava se revelando uma traidora da causa de sua irmã.
”Eles receberam evacuados, e a Betty odeia todos eles. O parque está sendo usado para plantar trigo.” Calou-se. Era absurdo ficar parada ali, em pé, enumerando aqueles detalhes.
Mas Cecília disse, fria. ”Continue O que mais?”
”Todos os rapazes da cidadezinha entraram para o East Surre) Regiment, menos... ”
”Menos o Danny Hardman. É, eu estou sabendo disso tudo ”. Sorriu um sorriso alegre e artificial, esperando que Briony continuasse
”Construíram uma casamata junto ao correio e tiraram toda aquela grade antiga. A tia Hermione está morando em Nice, e ah, sim, a Bett) quebrou o vaso do tio Ciem ”
Só então a frieza de Cecília foi perturbada. Ela descruzou os braços e apertou a mão contra a bochecha
”Quebrou?”
”Deixou cair na escada ”
”Quebrou, mesmo, de espatifar em mil pedacinhos?”
”É”
Cecília pensou. Por fim, disse. ”Isso é terrível”
”E”, concordou Briony. ”Coitado do tio Ciem ”. Finalmente sua irmã não estava mais numa atitude de desprezo. O interrogatório prosseguiu
”Eles guardaram os pedaços?”
”Não sei. A Emily disse que o velho gritou com a Betty ”
Nesse momento, a porta se abriu e a proprietária postou-se bem à frente de Briony, tão perto que dava até para sentir o cheiro de hortelã no hálito da mulher. Ela apontou para a porta do prédio
”Isto aqui não é uma estação de trem. Ou bem você está dentro ou bem você esta fora, mocinha.”
Cecília estava se levantando, sem nenhuma pressa, e reamarrando o cordão de seda do roupão Disse, lânguida. ”Essa aqui é a minha irmã, senhora Jarvis. Tente ser educada quando falarcom ela.”
”Na minha casa eu falo como quiser”, respondeu a sra Jarvis.
Virou-se para Briony. ”Se é pra ficar, pode ficar, senão vá embora e feche a porta.”
Briony olhou para a irmã, imaginando que a essa altura ela provavelmente não quereria que ela fosse embora. A sra. Jarvis acabara se revelando uma aliada sua, ainda que sem querer.
Cecília falou como se elas duas estivessem a sós. ”Não ligue pra proprietária. Estou indo embora no final da semana. Feche essa porta e vamos lá pra cima.”
Sob o olhar da sra. Jarvis, Briony começou a seguir sua irmã, subindo a escada.
”E quanto à senhora, Lady Lama”, gritou a proprietária.
Mas Cecília virou de repente e interrompeu-a. ”Chega, senhora Jarvis. Por ora, já chega.”
Briony reconheceu aquele tom. Puro Nightingale, para ser usado com pacientes difíceis ou estagiárias chorosas. Levava-se anos para aperfeiçoá-lo. Cecília certamente já teria sido promovida a enfermeira-chefe.
No patamar do segundo andar, quando estava prestes a abrir a porta, Cecília dirigiu a Briony um olhar, um olhar gélido cujo sentido era que nada havia mudado, nada havia se atenuado. Do banheiro do outro lado do corredor vinha um ar úmido e perfumado, e um ruído de algo a gotejar. Cecília estava se preparando para tomar banho quando Briony chegou. Ela entrou no apartamento, e a irmã seguiu-a. Algumas das enfermeiras mais impecáveis da enfermaria moravam em quartos bagunçados, de modo que Briony não teria ficado surpresa se encontrasse uma nova versão do velho caos de Cecília. Porém a impressão que se tinha ali era de uma vida simples e solitária. Um quarto de dimensões medianas havia sido dividido numa cozinha comprida e estreita e, imaginava-se, um quarto. As paredes eram cobertas por um papel com um padrão de listras verticais, como um pijama de menino, o que acentuava a sensação de confinamento. O linóleo compunha-se de pedaços irregulares do andar de baixo, e em alguns lugares viam-se as tábuas cinzentas do assoalho. Junto à única janela havia uma pia,com uma só torneira, e um fogão a gás de uma só boca. Encostada contra a parede, deixando pouco espaço para quem passasse por ela, havia uma mesa coberta por uma toalha de guingão amarelo. Sobre ela, um pote de geléia com flores azuis, talvez campânulas, um cinzeiro cheio e uma pilha de livros. Embaixo da pilha, a Anatomia de Gray e as obras completas de Shakespeare; acima, nas lombadas mais finas, nomes em letras douradas ou prateadas desbotadas — Briony pôde identificar Housman e Crabbe. Junto aos livros, duas garrafas de cerveja preta. No canto que ficava mais longe da janela via-se a porta do quarto, na qual estava pregado um mapa do Norte da Europa.
Cecília pegou um cigarro do maço junto ao fogão e, dando-se conta de que a irmã não era mais uma criança, ofereceu-lhe um. Havia duas cadeiras de cozinha perto da mesa, mas Cecília, que se encostou na pia, não convidou Briony a sentar-se. As duas mulheres fumaram, esperando — foi a impressão que Briony teve — que o ar se livrasse da presença da proprietária.
Disse Cecília, num tom tranqüilo e equilibrado: ”Quando recebi a sua carta, fui consultar um advogado. A coisa não é fácil, a menos que haja provas concretas novas. A sua mudança de opinião não é suficiente. Lola vai continuar dizendo que não sabe. Nossa única esperança era o velho Hardman, mas ele morreu”.
”O Hardman?” Os elementos envolvidos — o fato de sua morte, sua relevância para o caso — confundiram Briony, e ela vasculhou sua memória. Hardman também saiu procurando os gêmeos naquela noite? Ele viu alguma coisa? Fora dito algo no tribunal de que ela não estava sabendo?
”Você não sabia que ele tinha morrido?”
”Não. Mas...”
”Inacreditável.”
A tentativa de Cecília de manter um tom neutro e informativo estava fracassando. Agitada, afastou-se da pia, passou pela mesa, espremendo-se, e foi até o lado oposto do cômodo, colocando-se junto à porta do quarto. Sua voz estava ofegante; ela tentava controlar a raiva.
”Estranho Emily não dar essa notícia e falar só no trigo e nos evacuados. Ele estava com câncer. Talvez com medo do castigo divino, estivesse dizendo coisas nos seus últimos dias que ninguém estava interessado em ouvir a essa altura dos acontecimentos.”
”Mas, Cee...”
Então ela explodiu: ”Não me chame assim!”. Repetiu, num tom mais suave: ”Por favor, não me chame assim”. Seus dedos estavam pousados na maçaneta da porta do quarto, e parecia que a entrevista chegava ao fim. Ela estava prestes a desaparecer.
Com uma demonstração de tranqüilidade um tanto implausível, ela resumiu a situação para Briony.
”O que eu paguei dois guinéus pra descobrir é o seguinte: não vai haver recurso só porque cinco anos depois você decidiu dizer a verdade.”
”Não compreendo o que você está dizendo...” Briony queria voltar a Hardman, mas Cecília precisava dizer o que certamente lhe havia passado pela cabeça muitas vezes nos últimos tempos.
”Não é difícil. Se você mentiu naquela época, por que é que o tribunal vai acreditar em você agora? Não há fatos novos, e você não é uma testemunha confiável.”
Briony levou para a pia seu cigarro fumado até o meio. Sentia náusea. Pegou um pires no secador de pratos para usar como cinzeiro. Ouvir de sua irmã a confirmação de seu crime era uma coisa terrível. Mas aquele ponto de vista era novo. Fraca, burra, confusa, covarde, esquiva — ela se odiava por tudo que havia sido, mas jamais vira a si própria como mentirosa. Como era estranho, e como aquilo deveria parecer claro a Cecília. Era óbvio, era irrefutável. E no entanto, por um momento, chegou a pensar em se defender. Ela não tivera intenção de enganar, não agira movida por malícia. Mas quem acreditaria nisso?
Estava agora no lugar onde Cecília estivera antes, de costas para a pia, e, sem poder encará-la de frente, disse: ”O que eu fiz foi terrível. Não espero que você me perdoe”.
”Não se preocupe com isso”, disse ela, tranqüilizadora, e por um ou dois segundos, enquanto tragava fundo a fumaça do cigarro, Briony sentiu que suas esperanças renasciam, de modo nada realista. ”Não se preocupe”, insistiu sua irmã. ”Nunca vou perdoar você.”
”E se eu não posso recorrer à justiça, posso pelo menos dizer a todo mundo o que eu fiz.”
Quando sua irmã soltou uma risada feroz, Briony se deu conta do medo que Cecília lhe inspirava. Seu desprezo era ainda mais difícil de enfrentar do que sua raiva. Aquele quarto estreito,com listras que pareciam grades, continham sentimentos que ninguém era capaz de imaginar. Briony insistiu. Afinal, aquela parte da conversa ela já havia ensaiado.
”Vou até Surrey falarcom Emily e o velho. Vou contar tudo.”
”Foi o que você disse na sua carta. Quem é que está impedindo você de ir? Por que você já não foi lá?”
”Eu queria antes falar com você.”
Cecília afastou-se da porta do quarto e foi até a mesa. Deixou a guimba cair dentro de uma garrafa de cerveja. Ouviu-se um silvo curto, e um fio de fumaça elevou-se da garrafa escura.
O gesto de sua irmã reavivou a náusea de Briony. Ela pensava que as garrafas estivessem vazias. Começou a achar que comera alguma coisa estragada no café da manhã.
Cecília disse: ”Eu sei por que você ainda não foi. Porque você pensa o mesmo que eu. Eles não querem ouvir falar mais nada sobre o assunto. Essa história desagradável é coisa do passado, graças a Deus. O que está feito, feito está. Por que remexer nessas coisas agora? E você sabe muito bem que eles acreditaram na história de Hardman”.
Briony andou da pia até a mesa, do outro lado da qual estava sua irmã. Não era fácil encarar aquela bela máscara.
Disse ela, falando bem devagar: ”Não entendo o que você está dizendo. O que ele tem a vercom isso? Fiquei triste de saber que ele morreu, e de eu não saber de nada...”.
Ao ouvir um ruído, ela se assustou. A porta do quarto estava se abrindo, e Robbie apareceu diante delas. As calças, a camisa e as botas engraxadas eram do exército, e os suspensórios estavam soltos, na cintura. Estava com a barba por fazer e despenteado, e olhava apenas para Cecília. Ela havia se virado para ele, mas não saiu do lugar. Nos segundos que se seguiram, enquanto os dois se entreolhavam em silêncio, Briony, que estava parcialmente oculta pela irmã, encolheu-se dentro de seu uniforme.
Ele se dirigiu a Cecília em voz baixa, como se estivessem a sós: ”Ouvi vozes e imaginei que fosse alguma coisa ligada ao hospital”.
”Tudo bem.”
Ele consultou o relógio. ”Está na hora.”
Ao atravessar o quarto, logo antes de sair para o corredor, ele acenou de leve na direção de Briony. ”com licença.”
Ouviram a porta do banheiro se fechar. No silêncio, Cecília disse, como se não houvesse nada entre ela e sua irmã: ”Ele tem um sono tão profundo. Não quis acordá-lo.” Depois acrescentou. ”Achei que seria melhor vocês dois não se encontrarem”
Os joelhos de Briony estavam começando a tremer. Apoiando-se com uma das mãos na mesa, ela afastou-se da pia para que Cecília pudesse encher a chaleira. Queria muito sentar Mas não se sentaria, a menos que fosse convidada a fazêlo, e jamais pediria. Assim, encostou-se na parede, tentando não demonstrar que estava se escorando nela, e ficou olhando para a irmã. O que a surpreendia era a rapidez com que o alívio de constatar que Robbie estava vivo foi suplantado pelo terror de enfrentá-lo. Agora que o vira atravessar a sala, a outra possibilidade, a de que ele tivesse morrido, parecia absurda, totalmente improvável. Não faria sentido Briony olhava para as costas da irmã enquanto ela andava de um lado para o outro da cozinha minúscula. Queria dizer-lhe como era maravilhoso Robbie ter voltado são e salvo. Que alívio!” Mas tal comentário seria banal E ela não tinha o direito de fazê-lo. Temia a irmã, o desprezo dela
Ainda sentindo náusea, e agora também calor, Briony encostou o rosto na parede. Não estava mais fresca que seu rosto. Ansiava por um copo d’água, mas não queria pedir nada à irmã. Com gestos eficientes, Cecília realizava suas tarefas, misturando leite e água com ovo em pó, colocando um pote de geléia e três pratos e xícaras na mesa. Briony registrou o fato, mas ele não lhe proporcionou nenhum conforto. Pelo contrário, aumentava ainda mais sua apreensão quanto ao encontro que ocorreria em seguida. Será que Cecília realmente pensava que naquela situação eles podiam se sentar juntos e ainda ter apetite para comer ovos mexidos?” Ou estaria apenas mantendo-se ocupada para se acalmar?” Briony estava atenta para o som de passos lá fora e, para distrair-se, tentou assumir um tom normal. Tinha visto a capa pendurada atrás da porta
”Cecília, agora você é chefe de enfermaria?”
”Sou, sim.”
Disse isso num tom que encerrava o assunto. A profissão que tinham em comum não seria um vínculo entre elas. Nada as vincularia, e não havia assunto sobre o qual pudessem conversar antes que Robbie voltasse.
Por fim ela ouviu a porta do banheiro ser aberta. Ele estava assobiando enquanto atravessava o patamar. Briony afastou-se da porta, indo em direção ao canto mais escuro do quarto. Porém estava bem na linha de visão de Robbie quando ele entrou. Robbie começou a levantar a mão direita para apertar a dela, enquanto a esquerda ia fechar a porta. Só então ele se deu conta do que estava acontecendo, mas sua reação imediata não foi nem um pouco dramática. Assim que seu olhar encontrou o de Briony, ele deixou cair os braços e soltou um pequeno suspiro, mas continuou a olhar para ela fixamente. Por mais intimidada que estivesse, Briony achou que não podia desviar os olhos. Sentiu um leve cheiro de creme de barbear. O que a chocava era constatar que ele parecia muito mais velho, principalmente em torno dos olhos. Será que tudo era culpa dela?, pensou, aparvalhada. Não poderia também ser culpa da guerra?
”Então era você”, disse ele por fim. Fechou a porta com o pé. Cecília veio colocar-se a seu lado, e ele olhou-a.
Ela fez um resumo preciso, mas mesmo que tivesse tentado não teria conseguido conter o sarcasmo.
”Briony vai contar a verdade a todo mundo. Queria falar comigo antes.”
Ele deu as costas a Briony. ”Você acha que eu devia estar aqui?”
A preocupação imediata de Briony era não chorar. Naquele momento, nada teria sido mais humilhante. Alívio, vergonha, autocomiseração, ela não sabia o motivo, mas ia chorar. A onda veio subindo aos poucos, apertando sua garganta, impossibilitando-a de falar, e então, enquanto ela se continha, tensionando os lábios, foi descendo, e por fim Briony viu que estava livre Não chorou, mas sua voz saiu num sussurro lastimável
”Eu não sabia se você estava vivo.”
Disse Cecília ”Se vamos conversar, é melhor sentar.”
”Não sei se vou conseguir.” Ele se afastou, impaciente, para a parede ao lado, uma distância de mais de dois metros, e encostou-se nela, de braços cruzados, olhando ora para Briony, ora para Cecília. Quase imediatamente mexeu-se outra vez, indo até a porta do quarto, onde se virou para voltar, mudou de idéia e ficou parado, as mãos nos bolsos. Era um homem grande, e o cômodo parecia ter encolhido. Naquele espaço confinado seus movimentos eram desesperados, como se ele estivesse sufocando. Tirou as mãos dos bolsos e ajeitou o cabelo na nuca. Depois apoiou as mãos nos quadris. Depois deixouas cair. Foi necessário todo esse tempo, todos esses movimentos, para que Briony se desse conta de que ele estava irritado, muito irritado, e no momento exato em que ela o percebeu, ele disse
”O que você está fazendo aqui?” Não me fale em Surrey.” Ninguém está impedindo você.” Por que você está aqui?”
Disse ela. ”Eu precisava falar com Cecília”
”Ah, sim?” Sobre o quê?”
”Sobre a coisa terrível que eu fiz.”
Cecília estava se aproximando dele. ”Robbie!”, murmurou ela. ”Amor!” Pôs a mão no braço dele, mas ele se safou
”Não sei por que você deixou que ela entrasse.” Então disse a Briony. ”Vou ser totalmente franco com você.” Estou dividido entre partir o seu pescoço aqui e agora ou arrastar você para fora e jogar pela escada abaixo.”
Se não fossem suas experiências recentes, Briony teria ficado apavorada. As vezes ouvia soldados na enfermaria, reduzidos a uma situação de impotência, extravasando sua raiva. No auge da emoção, era bobagem chamá-los à razão ou tentar tranqüilizá-los. A coisa tinha de ser posta para fora, e o melhor a fazer era ouvir. Ela sabia que até mesmo se demonstrasse querer ir embora, ele encararia aquilo como uma provocação. Assim, enfrentou Robbie e esperou o resto, o que ela tinha de ouvir. Mas não tinha medo dele, fisicamente.
Ele não levantou a voz, embora estivesse quase estourando de desprezo. ”Você faz idéia do que é estar na prisão?”
Ela imaginava janelas pequenas, bem altas, numa muralha de tijolo, e pensou que talvez fizesse idéia, sim, do modo como as pessoas imaginam os diferentes tormentos do inferno. Balançou a cabeça de leve, negativamente. Para se tranqüilizar, tentava concentrar-se nos detalhes da transformação sofrida por Robbie. A impressão de que ele crescera seria efeito da postura militar. Nenhum aluno de Cambridge jamais andava tão aprumado. Até mesmo quando transtornado, seus ombros ficavam bem eretos, e o queixo levantado, numa postura de boxeador.
”Não, é claro que não. E, quando eu estava preso, isso lhe dava prazer?”
”Não.”
”Mas você não fez nada.”
Ela havia pensado nessa conversa muitas vezes, como uma criança antevendo uma surra. Agora estava finalmente acontecendo, e era como se ela não estivesse presente. Estava assistindo à cena de longe, sentindo-se entorpecida. Mas sabia que as palavras dele haveriam de feri-la depois.
Cecília havia se afastado. Agora voltou a pôr a mão no braço de Robbie. Ele havia perdido peso, embora parecesse mais forte,com uma ferocidade muscular esguia. Robbie começou a se virar para ela.
”Lembre”, Cecília ia dizendo, mas ele a interrompeu.
”Você acha que eu ataquei sua prima?”
”Não.”
”E achava na época?”
Ela procurava as palavras. ”Sim, sim e não. Eu não tinha certeza.”
”E por que é que você tem tanta certeza agora?”
Ela hesitou, consciente de que ao responder estaria oferecendo uma espécie de defesa, uma justificativa, e que isso poderia irritá-lo ainda mais.
”Porque cresci.”
Ele ficou olhando para ela, os lábios entreabertos. De fato, ele havia mudado muito em cinco anos. A dureza de seu olhar era uma novidade, os olhos estavam menores e mais estreitos, e nos cantos havia pés-de-galinha visíveis. Seu rosto estava mais fino do que ela se lembrava, cavado, como o rosto de um guerreiro indígena. Havia deixado crescer um bigode pequeno e fino, do tipo que é comum entre os militares. Sua beleza era surpreendente, e Briony relembrou, depois de tantos anos, do tempo em que ela tinha dez ou onze anos, a paixão que ele lhe inspirara, uma paixonite que havia durado alguns dias. Então Briony abriu-se com ele, uma manhã, no jardim, e imediatamente se esqueceu.
Briony tinha razão de agir com cautela. Robbie foi tomado por aquela espécie de raiva que se faz passar por espanto.
”Porque cresceu”, repetiu. Quando levantou a voz, ela deu um salto. ”Meu Deus! Você estácom dezoito anos. Quanto tempo você ainda precisa crescer? Tem soldado morrendo no campo de batalha com dezoito anos. Já estão crescidos o bastante pra serem largados morrendo nas estradas. Você sabia disso?”
”Sabia.”
Era uma fonte melancólica de conforto o fato de que ele não tinha como saber o que ela vira. Estranho que, apesar de sua culpa, ela sentisse necessidade de resistir a ele. Se não resistisse, seria aniquilada.
Briony fez que sim, um gesto quase imperceptível. Não ousava falar. A palavra ”morrendo” desencadeara nele um sentimento avassalador, que o levara além da raiva para um extremo de confusão e repulsa. Sua respiração estava irregular e pesada, ele cerrava e relaxava o punho direito. E continuava olhando fixamente para Briony, para dentro dela,com um olhar rígido, feroz. Seus olhos brilhavam, e ele engolia com força repetidamente. Os músculos da garganta estavam tensos, rígidos. Também ele estava lutando contra uma emoção que não desejava exibir aos outros. Briony havia aprendido o pouco que sabia, os minúsculos farelos, quase insignificantes, que eram dados a uma estagiária de enfermagem, no ambiente protegido da enfermaria, à cabeceira de um paciente.com base no que aprendera, percebeu que as lembranças lhe estavam vindo aos borbotões, e Robbie não podia fazer nada. Elas não o deixavam falar. Briony jamais saberia que cenas estavam provocando aquele tumulto. Ele deu um passo em sua direção e ela recuou, já não tão certa de que ele não lhe faria mal - como não conseguia falar, talvez tivesse de agir. Mais um passo e seu braço musculoso poderia alcançá-la. Mas Cecília se interpôs então. De costas para Briony, encarou Robbie e pôs as mãos em seus ombros. Ele desviou o olhar de Briony.
”Olhe pra mim”, murmurou ela. ”Robbie. Olhe pra mim.”
A resposta que ele deu Briony não conseguiu ouvir. Só percebeu que era uma recusa ou negação. Talvez fosse um palavrão. À medida que Cecília o apertava com mais força, ele foi se contorcendo de modo a afastar-se dela, e ficaram os dois como se estivessem lutando, quando ela estendeu o braço e tentou virar a cabeça dele para si. Porém o rosto de Robbie estava inclinado para trás, os lábios retraídos, os dentes expostos numa paródia grotesca de um sorriso. Agora com as duas mãos ela agarrava-lhe as faces com força, e com esforço conseguiu virar-lhe o rosto em direção ao seu. Por fim ele a olhou nos olhos, mas ela continuava a segurá-lo pelo rosto. Puxou-o mais para perto, envolvendo-o em seu olhar, até seus rostos encostarem e ela beijá-lo de leve, demoradamente, nos lábios.com uma ternura de que Briony se lembrava de muitos anos antes, despertando do meio da noite, Cecília disse: ”Passou... Robbie, passou”.
Ele fez que sim, num gesto débil, e respirou fundo; depois expirou devagar enquanto ela relaxava os músculos das mãos e por fim retirou-as de seu rosto. No silêncio, o cômodo pareceu encolher ainda mais. Ele abraçou-a, baixou a cabeça e beijoua, um beijo profundo, prolongado, íntimo. Briony afastou-se silenciosamente para a extremidade oposta da sala, em direção à janela. Enquanto bebia um copo de água da bica, o beijo continuava, unindo o casal numa solidão a dois. Ela sentia-se obliterada, expurgada do recinto, e aliviada.
Briony deu-lhes as costas e ficou olhando para as casas, silenciosas, em pleno sol, para o caminho pelo qual viera da High Street. Surpreendeu-se ao constatar que não tinha vontade de voltar, ainda não, embora se sentisse constrangida com aquele beijo demorado e temesse o que ainda estava por vir. Viu uma velha com um sobretudo pesado, apesar do calor. Ela vinha pela calçada oposta, trazendo pela coleira um dachshund doente e barrigudo. Cecília e Robbie agora conversavam em voz baixa, e Briony resolveu respeitar a privacidade deles permanecendo à janela até que se dirigissem a ela. Era tranqüilizador ver a mulher abrir o portão da frente, fechá-lo depoiscom uma precisão exagerada, e em seguida, a meio caminho da porta da casa, abaixar-se com dificuldade para arrancar uma erva daninha do canteiro estreito que seguia paralelo ao caminho. Ao fazê-lo, o cachorro aproximou-se e lambeu-lhe o pulso. A mulher e o cachorro entraram na casa, e a rua ficou vazia outra vez. Um melro pousou numa sebe de alfena e, não achando nenhum lugar onde pudesse se empoleirar, bateu asas outra vez. A sombra de uma nuvem rapidamente diminuiu a luminosidade, depois passou. Uma tarde de sábado como outra qualquer. Naquela rua de subúrbio havia poucos sinais de guerra. A cortina negra numa janela do outro lado da rua, o Ford 8 sem rodas, talvez.
Briony ouviu a irmã dizer seu nome e virou-se para trás.
”Não temos muito tempo. Robbie precisa se apresentar às seis hoje, e tem que pegar um trem. Por isso, sente-se. Tem algumas coisas que você vai fazer pra nós.”
Era a voz da chefe de enfermaria. Não era propriamente autoritária. Apenas relatava o inevitável. Briony tomou a cadeira mais próxima, Robbie pegou um banco, e Cecília sentou-se entre eles. O café da manhã que ela havia preparado foi esquecido. As três xícaras vazias permaneciam no centro da mesa. Robbie pôs no chão a pilha de livros. Enquanto empurrava o pote com as flores para o lado, onde ninguém esbarraria nele, Cecilia trocou um olharcom Robbie.
Ele pigarreou, olhando para as flores. Quando começou a falar, sua voz estava esvaziada de toda e qualquer emoção. Era como se estivesse lendo uma lista de ordens. Olhava para Briony, agora. Seu olhar era firme, e estava tudo sob controle. Porém tinha gotas de suor na testa, acima das sobrancelhas.
”A coisa mais importante, você já concordou em fazer. Vai procurar seus pais assim que puder, e dizer a eles tudo o que eles precisarem saber para se convencerem de que seu depoimento era falso. Quando é sua folga?”
”No outro domingo.”
”É quando você vai lá. Leve os nossos endereços e diga a Jack e Emily que Cecília está esperando a resposta deles. A segunda coisa você vai fazer amanhã. Cecília diz que você tem uma hora de folga. Você vai procurar um tabelião e fazer uma declaração assinada,com testemunhas Nela, vai dizer o que fez de errado e que retira o seu depoimento. Você vai mandar cópias para nós dois. Está claro?”
”Está.”
”Depois você escreve para mim uma carta bem mais detalhada. Nela você vai incluir absolutamente tudo o que achar relevante. Tudo o que levou você a dizer que me viu à beira do lago E por que, apesar de não ter certeza, você insistiu nesse depoimento durante todos os meses antes do julgamento. Se você sofreu pressões, da polícia ou dos seus pais, quero saber. Entendeu? Tem que ser uma carta comprida ”
”Certo.”
Ele olhou para Cecília e fez que sim. ”E, se você conseguir se lembrar de alguma coisa a respeito de Danny Hardman, onde ele estava, o que ele estava fazendo, a que horas, quem mais o viu - qualquer coisa que puder comprometer o álibi dele, então a gente quer saber.”
Cecília estava anotando os endereços. Briony balançava a cabeça e ia falar, mas Robbie ignorou-a e continuou falando. Estava em pé e olhava para o relógio.
”Temos muito pouco tempo. Vamos andar com você até o metrô. Eu e Cecília queremos ficar sozinhos na última hora que eu tenho antes de ir embora. Você vai ter que passar o resto do dia de hoje escrevendo o seu depoimento e avisando os seus pais que você vai lá. E você podia começar a pensar nessa carta que vai me enviar”
com esse resumo áspero das obrigações de Briony, Robbie afastou-se da mesa e foi em direção ao quarto.
Briony levantou-se também e disse: ”O velho Hardman provavelmente estava falando a verdade. O Danny passou a noite toda com ele”.
Cecília tinha levantado o papel dobrado em que havia escrito para entregá-lo. Robbie parou à porta do quarto.
Perguntou Cecília: ”O que você quer dizer com isso? O que você está dizendo?”.
”Foi o Paul Marshall.”
Durante o silêncio que se seguiu, Briony tentou imaginar os ajustes que teriam de ser feitos. Depois de anos encarando as coisas por um determinado ângulo. E no entanto, por mais surpreendente que fosse, era apenas um detalhe. Nada de essencial mudava. Nada que dissesse respeito ao papel desempenhado por ela.
Robbie voltou à mesa.
”Marshall?”
”Foi.”
”Você o viu?”
”Vi um homem da altura dele.”
”Da minha altura.”
”Pois é.”
Então Cecília se levantou e olhou a sua volta — estava prestes a dar início a uma busca de cigarros. Robbie encontrou o maço e jogou-o para ela. Cecília acendeu um e disse, enquanto soltava a fumaça:
”Acho difícil de acreditar. Ele é um idiota, eu sei...”.
”Um idiota ambicioso”, disse Robbie. ”Mas não consigo imaginar o Marhsall com a Lola Quincey, mesmo durante os cinco minutos que foram necessários...”
Levando-se em conta tudo o que havia acontecido e todas as conseqüências terríveis, era uma frivolidade, Briony sabia, mas o fato foi que ela saboreou o prazer de lhes dar a notícia decisiva:
”Acabo de vir do casamento deles.”
De novo os ajustes surpreendentes, as repetições pasmas. Casamento? Hoje? Clapham? Depois o silêncio pensativo, interrompido por comentários isolados.
”Eu quero me encontrar com ele.”
”Você não vai fazer nada disso.”
”Eu quero matar o Marshall.”
E depois:
”Está na hora”.
Havia muitas outras coisas a dizer. Mas eles pareciam exauridos, pela presença dela ou pelo assunto. Ou simplesmente queriam ficar a sós. Fosse o que fosse, estava claro que aquele encontro havia chegado ao fim. Toda a curiosidade havia passado. Tudo podia esperar até que Briony escrevesse sua carta. Robbie pegou a túnica e o quepe no quarto. Briony reparou na divisa única que indicava o posto de cabo.
Cecília estava dizendo a ele:
”Ele é intocável. Ela vai sempre protegê-lo”.
Perderam minutos enquanto Cecília procurava seu livro de racionamento. Por fim, ela desistiu e disse a Robbie:
”Tenho certeza que ficou em Wiltshire, na cabana”.
Quando estavam prestes a sair, Robbie, segurando a porta para as irmãs saírem, disse:
”Acho que devo um pedido de desculpas ao marinheiro Hardman”.
Lá embaixo, a sra. Jarvis não saiu de sua sala quando eles passaram. Ouviram música de clarinetes vindo do rádio dela. Ao saírem do prédio, Briony teve a impressão de estar entrando num outro dia. Havia uma brisa forte, cheia de poeira, e a rua estava sob uma iluminação áspera, sol ainda mais intenso, ainda menos sombras do que antes. Não havia espaço suficiente na calçada para três pessoas caminharem lado a lado. Robbie e Cecília seguiram atrás dela, de mãos dadas. Briony sentia a bolha em seu calcanhar roçando contra o sapato, mas estava decidida a não deixar que a vissem mancar. Tinha a impressão de que os dois queriam vê-la longe dali. A certa altura virou-se para trás e disse que podia perfeitamente ir sozinha até o metrô. Mas eles insistiram. Precisavam fazer compras para a viagem de Robbie. Seguiram em silêncio. Impossível conversar amenidades. Ela sabia que não tinha direito de fazer perguntas sobre o lugar onde sua irmã ia morar, nem sobre aonde Robbie estava indo de trem, nem sobre a cabana em Wiltshire. Seria de lá que vinham as campânulas? Certamente fora uma temporada idílica. Também não podia perguntar quando os dois voltariam a se encontrar. Juntos, ela, sua irmã e Robbie tinham um único assunto em comum, e ele estava fixo no passado imutável.
Pararam diante da estação de metrô de Balham, que dentro de três meses conquistaria sua fama terrível durante os bombardeios. Uma pequena multidão de pessoas fazendo compras passava por eles, obrigando-os, contra a vontade, a se juntar. A despedida foi fria. Robbie lembrou-lhe de levar dinheiro quando fosse ter com o tabelião. Cecília disse para não esquecer os endereços quando fosse a Surrey. Então terminou. Olharam para ela, esperando que fosse embora. Mas havia ainda uma coisa que ela não tinha dito.
Briony falou devagar.
”Peço mil desculpas. Causei a vocês um sofrimento terrível.” Eles continuaram olhando para ela, e ela repetiu. ”Peço mil desculpas.”
Parecia um comentário absurdo, desproporcional, como se ela tivesse derrubado um vaso de plantas ou esquecido um aniversário.
Robbie disse, em voz baixa:
”É só fazer todas as coisas que pedimos”.
Era quase uma conciliação, aquele ”só”, mas não exatamente, não ainda.
Disse ela:
”É claro.”, e então se virou e foi embora, sabendo que estavam olhando para ela, vendo-a atravessar a estação. Pagou a passagem até Waterloo. Quando chegou à barreira, olhou para trás e viu que eles já haviam se afastado.
Mostrou seu bilhete e passou, mergulhando na luz amarelenta do metrô, tomou a escada rolante barulhenta, começou a descer, sentindo a brisa artificial que vinha do túnel negro, o hálito de um milhão de londrinos a refrescar seu rosto e repuxar-lhe a capa. Permaneceu parada, sendo atraída para baixo pela escada, aliviada por não ter de machucar o calcanhar ainda mais. Deu-se conta, surpresa, de que estava tranqüila, apenas um pouco triste. Será decepção’’ Naturalmente, não esperava que a perdoassem. O que sentia era mais saudade de casa, embora não houvesse uma fonte para isso, uma casa de que tivesse saudade. Mas estava triste por separar-se de sua irmã. Era de sua irmã que tinha saudade — ou, mais precisamente, de sua irmã com Robbie. O amor deles Nem Briony nem a guerra o haviam destruído. Era essa idéia que a tranqüilizava à medida que ia descendo cada vez mais fundo sob a cidade. O modo como Cecília o puxara para si com seu olhar. Aquela ternura na sua voz quando ela o arrancara de suas lembranças, de Dunquerque ou das estradas que o levaram até lá. Antigamente ela falava com Briony assim. Às vezes — no tempo em que Cecília tinha dezesseis anos e ela era uma criança de seis —, se alguma catástrofe acontecia Ou durante a noite, quando Cecília vinha salvá-la de um pesadelo e a levava para sua cama. Eram essas as palavras que ela dizia. Passou. Foi só um sonho. Passou, Briony. Como fora fácil esquecer esse amor familiar, espontâneo. Agora ela estava atravessando aquela luz espessa e pardacenta, já quase chegando ao fundo. Não havia outros passageiros à vista, e o ar de repente se imobilizou. Ela estava calma, pensando no que tinha de fazer. A carta para os pais e a declaração formal, ela as escreveria rapidamente. Então estaria livre o resto do dia. Sabia o que se exigia dela. Não apenas uma carta, mas um novo rascunho, uma reparação, e ela estava pronta para começar.
Que dias estranhos. Hoje, na manhã do meu aniversário de setenta e sete anos, resolvi fazer uma última visita à biblioteca do Imperial War Museum em Lambem. Era o que pedia o curioso estado de espírito em que me encontrava. A sala de leitura, localizada bem na cúpula do prédio, fora antes a capela do Royal Bethlehem Hospital — o antigo hospício de Bedlam. Onde outrora os loucos vinham oferecer suas orações, agora estudiosos se reuniam para pesquisar a loucura coletiva da guerra. O carro que a família ia mandar para me pegar só chegaria depois do almoço, por isso resolvi me distrair, verificando detalhes finais e me despedindo do diretor da seção de documentos e dos porteiros alegres que têm me levado para cima e para baixo no elevador durante estas semanas de inverno. Além disso, eu queria doar aos arquivos as doze longas cartas que recebi do velho sr. Nettle. Foi um presente de aniversário que dei a mim mesma, creio eu, passar uma ou duas horas meio que fingindo estar ocupada, cuidando daquelas coisinhas que se tornam necessárias no final e que fazem parte do processo relutante de despedida. Ainda como parte desse estado de espírito, trabalhei em meu escritório ontem à tarde; agora os rascunhos estão organizados e datados, as fontes fotocopiadas encontram-se etiquetadas, os livros emprestados estão prontos para serem devolvidos, e tudo foi arquivado na caixa certa. Sempre gostei de deixar as coisas bem arrumadas no final.
Estava muito frio e úmido, e eu me sentia incomodada demais para tomar uma condução. Peguei um táxi no Regenfs Park, e durante a longa viagem, passando pelos engarrafamentos do centro, fiquei pensando nos pobres loucos de Bedlam, que antigamente eram usados como entretenimento popular, e ocorreu-me, autocomiserativa, que em breve eu me tornaria um deles. Os resultados da tomografia chegaram, e ontem de manhã fui conversarcom o médico. A notícia não era nada boa. Foi o que ele disse assim que me sentei. As dores de cabeça, a sensação de aperto nas têmporas, têm uma causa específica e sinistra. Ele mostrou umas manchas granulosas numa seção da tomografia. Percebi que a ponta do lápis tremia na mão dele e me perguntei se ele próprio estaria com algum problema neurológico.com aquela vontade de matar o mensageiro das más notícias, torci para que ele estivesse, mesmo. Segundo o médico, eu estava sofrendo uma série de derrames minúsculos, quase imperceptíveis. O processo será lento, mas meu cérebro, minha mente, está se acabando. Os pequenos lapsos de memória que todo mundo tem a partir de certa idade vão se tornar mais evidentes, mais debilitadores, até chegar um momento em que nem vou percebê-los mais, porque terei perdido a capacidade de compreender qualquer coisa. Os dias da semana, os acontecimentos da manhã ou até mesmo de dez minutos antes estarão fora de meu alcance. Meu telefone, meu endereço, meu nome, o que fiz na minha vida, tudo isso vai desaparecer. Dentro de dois, três ou quatro anos, não vou mais reconhecer os amigos mais antigos que me restarem e, quando acordar de manhã, não vou reconhecer meu próprio quarto. E em pouco tempo não vou mais estar nele, pois será necessário que eu viva sob cuidados constantes.
Estou sofrendo de demência vascular, disse o médico, e há alguns aspectos positivos. Primeiro, o processo é muito lento, algo que ele repetiu umas dez vezes. Além disso, não é tão ruim quanto o mal de Alzheimer, que causa alterações do ânimo e agressividade. Se eu tiver sorte, o meu caso pode ser dos mais benignos. Talvez eu não sofra — vou me tornar uma velha coroca sentada numa cadeira, sem saber nada, sem esperar nada. Eu lhe pedira que falasse com franqueza, de modo que não pude me queixar. Agora ele estava querendo se livrar de mim depressa. Havia doze pessoas na sala de espera aguardando a vez. Em suma, enquanto me ajudava a vestir meu casaco, ele me deu o seguinte roteiro de viagem: perda de memória, de curto e longo prazo, o desaparecimento de palavras isoladas — talvez os substantivos simples fossem os primeiros a ir embora —, depois a própria faculdade de linguagem, juntamente com o equilíbrio e, pouco depois, todo o controle motor, e por fim o sistema nervoso autônomo. Boa viagem!
Não fiquei arrasada, pelo menos de início. Pelo contrário, fiquei muito excitada e queria contar a todos os meus amigos mais íntimos. Passei uma hora ao telefone, dando a notícia. Talvez eu já estivesse perdendo o controle. Parecia uma coisa da maior importância. Passei a tarde no escritório, andando de um lado para o outro, fazendo coisas, e quando terminei havia mais seis caixas de arquivos nas estantes. Stella e John vieram à noite, e pedimos comida chinesa pelo telefone. Eles tomaram duas garrafas de Morgon. Eu tomei chá verde. Meus amigos encantadores ficaram desolados com o relato que lhes fiz do meu futuro. Os dois já estão na casa dos sessenta, velhos o bastante para tentarem se convencer de que setenta e sete não é tão velho assim. Hoje, no táxi, enquanto atravessava Londres à velocidade de uma pessoa caminhando, na chuva gelada, quase não consegui pensar em outra coisa. Estou enlouquecendo. Não quero enlouquecer. Mas no fundo eu não conseguia acreditar. Talvez eu fosse apenas uma vítima dos diagnósticos modernos; num outro século diriam que eu estava velha e por isso estava caducando. O que eu podia querer? Estou apenas morrendo, mergulhando aos poucos na inconsciência.
Meu carro estava passando pelas ruas secundárias de Bloomsbury, pela casa onde meu pai foi morar depois que se casou pela segunda vez, e pelo apartamento de subsolo onde morei e trabalhei durante os anos 50. Depois de uma certa idade, atravessar a cidade desperta pensamentos incômodos. Os endereços de gente morta se acumulam. Atravessamos a praça onde com heroísmo Leon cuidou de sua esposa doente e depois criou seus filhos endiabrados com uma dedicação que nos surpreendeu a todos. Um dia também vou provocar um pensamento momentâneo num passageiro de táxi. É um atalho muito utilizado, o Inner Circle do Regent’s Park.
Atravessamos o rio pela ponte de Waterloo. Fiquei sentada na beira do banco para apreciar minha vista predileta da cidade e, quando virei a cabeça, rio abaixo em direção à St. PauTs Cathedral, rio acima em direção ao Big Ben,com todas as atrações turísticas de Londres entre uma e outro, senti que estava fisicamente bem e mentalmente perfeita, fora as dores de cabeça e um pouco de cansaço. Ainda que envelhecida, continuo sentindo que sou exatamente a mesma pessoa que sempre fui. Difícil explicar isso aos jovens. Apesar de nosso aspecto de réptil, não somos uma tribo à parte. Daqui a um ou dois anos, porém, não vou mais poder dizer isso. Os que sofrem de doenças graves, os que têm problemas mentais, pertencem a uma outra raça, uma raça inferior. Ninguém vai me convencer do contrário
O motorista do táxi estava xingando. Do outro lado do rio, obras nos obrigaram a fazer um desvio, em direção ao antigo County Hall. Quando saímos do trevo, tomando o caminho de Lambeth, vi de relance o St Thomas’s Hospital. Ele foi muito danificado durante os bombardeios - eu não estava lá, graças a Deus —, e os prédios novos que fizeram, como aquele arranha-céu, são uma vergonha nacional. Trabalhei em três hospitais durante a guerra — Alder Hey e Royal East Sussex, além do St Thomas’s — e combinei elementos dos três na minha descrição, para concentrar todas as minhas experiências num lugar só. Uma distorção conveniente e um dos meus pecados menos graves contra a veracidade.
A chuva havia diminuído quando o motorista fez o balão com perícia no meio da rua para me deixar bem diante do portão principal do museu. Enquanto pegava minha bolsa, procurava uma nota de vinte libras e abria meu guardachuva, não percebi qual era o carro parado imediatamente a nossa frente. Só depois que o táxi foi embora vi que era um Rolls-Royce preto. Por um momento, achei que não havia ninguém nele. Na verdade, o motorista era um sujeito pequeno, que estava quase engolido pelo banco dianteiro. Não sei se o que vou contar agora constitui uma coincidência extraordinária. De vez em quando penso nos Marshall. Sempre que vejo um Rolls-Royce estacionado sem ninguém dentro. Virou um hábito meu. No decorrer dos anos com freqüência penso neles, normalmente sem nenhum sentimento em particular. Já me acostumei com eles De vez em quando ainda aparecem no jornal, em alguma matéria sobre a fundação e a ajuda às pesquisas em medicina, ou sobre a coleção doada à Tate Gallery, ou os financiamentos generosos a projetos agrícolas na África. E as festas de lady Marshall, e os vigorosos processos contra difamação que abrem contra os jornais. Não causa espanto que eu tenha pensado em lorde e lady Marshall ao me aproximar daqueles enormes canhões à frente do museu, mas levei um choque quando os vi descendo a escada e vindo em minha direção.
Um grupo de funcionários — reconheci o diretor do museu — e um único fotógrafo compunham a comissão de despedida. Dois jovens seguravam guarda-chuvas para protegêlos enquanto eles desciam a escada junto às colunas. Passei a seguir mais devagar, pois se parasse podia atrair a atenção ainda mais. Houve apertos de mãos e risos simpáticos provocados por algum comentário de lorde Marshall. Ele se apoiava numa bengala, a bengala laqueada que virou uma espécie de marca registrada dele.com a esposa e o diretor, posou para uma foto; depois o casal seguiu adiante, acompanhado pelos rapazes de terno que levavam os guarda-chuvas. Os funcionários do museu permaneceram na escada. Minha preocupação era ver para que lado eles iam para que eu pudesse evitar um encontro frontal. Resolveram passar pelos canhões da esquerda, e eu fui para o lado oposto.
Protegida pelos canos dos canhões e por suas plataformas de concreto, e também pelo meu guarda-chuva inclinado, permaneci escondida, mas ainda assim consegui vê-los de perto. Passaram em silêncio. O rosto dele eu via sempre nos jornais. Apesar das manchas de idade e da pele frouxa e arroxeada sob os olhos, ele por fim parecia um plutocrata,com uma beleza máscula e cruel, ainda que um tanto reduzida. A idade encolhera seu rosto, emprestando-lhe aquela aparência que por um triz ele não tinha quando jovem. Era o queixo que agora parecia menor — a perda de matéria óssea lhe fora favorável. Ele caminhava com um passo um pouco cambaleante e arrastado, mas nada mau para um homem de oitenta e oito anos de idade. Essas coisas a gente aprende a julgar. Porém sua mão se apoiava com firmeza no braço da mulher, e a bengala não era apenas um adereço. Muitos já comentaram as inúmeras boas obras que ele fez. Talvez tenha passado a vida tentando compensar. Ou talvez tenha apenas tocado em frente sem pensar, vivendo a vida que sempre soubera que ia poder viver.
Quanto a Lola — minha prima rica, sempre fumando um cigarro depois do outro —, lá estava ela, ainda esguia e ágil como um cão de corrida, e ainda fiel. Quem poderia imaginar tal coisa? Aquela ali, como se dizia antigamente, não é besta de cuspir no prato onde comeu. Isso pode parecer inveja, mas foi o pensamento que me ocorreu quando olhei para ela. Estava com um casaco de zibelina e um chapéu vermelho, de aba larga. Mais ousado que vulgar. Quase oitenta anos, e ainda de salto alto. Os sapatos estalavam na calçada num passo de jovem. Nenhum sinal de cigarro. Aliás, um ar de saúde emanava dela, e sua tez ostentava um bronzeado de clínica. Estava mais alta que o marido agora, e não havia como pôr em dúvida seu vigor. Mas havia também algo de cômico nela — ou seria maldade minha? Excesso de maquiagem, realmente ridículo em torno da boca, e uma abundância de creme anti-rugas e pó-de-arroz. Sempre fui meio puritana nessas coisas, de modo que sob esse aspecto não me considero uma testemunha confiável. Achei que havia um toque teatral de vilã em sua aparência — o corpo esguio, o casaco preto, o batom escandaloso. Bastava uma piteira e um cachorrinho de madame debaixo do braço para que ela se transformasse na Cruela Cruel.
Cruzamos por alguns segundos. Comecei a subir a escada, depois parei sob o frontão, protegida da chuva, para ver o grupo chegar até o carro. Primeiro ajudaram lorde Marshall a entrar, e vi então como ele estava debilitado. Não conseguia dobrar o corpo na cintura nem deslocar todo o peso para um dos pés. Foi preciso levantá-lo e colocá-lo no banco. A outra porta foi aberta para lady Marshall, que entrou no carro com uma agilidade terrível. Fiquei olhando enquanto o Rolls-Royce dava a partida e mergulhava no tráfego; só então entrei. Ver aqueles dois me apertou o coração; tentei não pensar naquilo, tal como agora estou tentando não sentir nada. Já tinha muito com que me preocupar naquele dia, porém fiquei pensando na saúde de Lola, enquanto entregava minha bolsa no guarda-volumes e trocava saudações efusivas com os porteiros. A regra aqui é que cada leitor tem de ser conduzido, até a sala de leitura, no elevador — um espaço apertado onde eu, ao menos, me sinto obrigada a puxar conversa. Enquanto o fazia — o tempo estava péssimo, mas diziam que ia melhorar até o fim de semana —, não conseguia não pensar no encontro que acabava de ter e em minha saúde: talvez Paul Marshall morresse antes de mim, mas Lola certamente haveria de me sobreviver. As conseqüências desse fato são claras. É uma questão que discutimos há anos. Como disse meu editor uma vez, a publicação do livro é processo na certa. Mas agora eu não conseguiria enfrentar algo assim, já havia coisas demais em que eu preferia não pensar. Eu fora à biblioteca para me ocupar.
Passei algum tempo conversando com o diretor da seção de documentos. Entreguei-lhe o maço de cartas que o sr. Nettle me enviou a respeito de Dunquerque — ele as recebeu com muita gratidão. Elas vão ser guardadas junto com todas as outras que doei. O diretor havia descoberto para mim um simpático coronel do East Kent Regiment, ele próprio uma espécie de historiador amador, que lera as páginas relevantes de meus originais e me mandara via fax algumas sugestões. Agora ele me entregou as anotações do coronel — irritadas, úteis. Fiquei totalmente absorta na leitura delas, graças a Deus.
”Nenhum (sublinhado duas vezes) soldado britânico jamais diria “on the double” [acelerado, marche]. Só um americano daria uma ordem dessas. O termo correto é ’at the double ”
Adoro esses pequenos detalhes, essa maneira pontilhista de encarar a verossemelhança, a correção de pormenores que, ao se acumularem, proporcionam tanta satisfação.
”Ninguém jamais diria “twenty-five-pound guns” [canhão de vinte e cinco libras]. Dizia-se ou “twenty-five pounders” ou então “twenty five-pounder guns.” A forma utilizada pela senhora pareceria muito estranha, até mesmo para um homem que não tivesse pertencido à Roval Artillerv.”
Como policiais numa equipe de busca, engatinhamos em direção à verdade.
”O homem da Roval Air Force está de boina. Creio que é um engano. Tirando as equipes dos tanques, nem mesmo o exército usava boina em 1940. O mais provável é que ele estivesse usando um gorro com pala.”
Por fim, o coronel, que começara a carta dirigindo-se a mim como ”srta Talles”, traiu uma certa impaciência com meu sexo. Afinal, por que diabos uma mulher tinha de se meter a escrever sobre essas coisas?
”Madame (sublinhado três vezes) – “um Stuka não pode levar ’uma única bomba de mil toneladas.” Sabia que uma fragata não pesa isso tudo? Sugiro que examine essa questão mais a fundo.”
Apenas um erro de datilografia. Eu quis escrever ”libras.” Anotei as correções e redigi uma carta de agradecimento para o coronel. Paguei as fotocópias de alguns documentos que eu havia encomendado e organizei-as em pilhas para guardá-las em meus arquivos pessoais. Devolvi os livros que havia usado e joguei fora vários papéis soltos. Não deixei na minha mesa nenhum vestígio meu. Ao me despedir do diretor, fiquei sabendo que a Fundação Marhsall ia doar uma verba ao museu. Depois de trocar apertos de mãoscom os outros bibliotecários e de prometer mencionar o departamento nos meus agradecimentos, um porteiro foi chamado para me levar até a saída. Muito simpática, a moça do guarda-volumes chamou um táxi para mim, e um dos porteiros mais jovens carregou minha pasta até a calçada.
Na volta, fiquei pensando na carta do coronel — mais exatamente, no prazer que me davam aquelas alterações triviais. Se eu realmente me importasse tanto assim com os fatos, teria escrito um outro tipo de livro. Mas meu trabalho estava terminado. Não haveria outras versões. Eram esses os pensamentos que me iam pela cabeça quando entramos no velho túnel para bondes sob a estação de Aldwych. Adormeci. Quando o motorista me acordou, o táxi estava parado em frente a meu prédio, no Regenfs Park.
Arquivei os papéis que trouxe da biblioteca, preparei um sanduíche, depois fiz uma mala para uma viagem de um dia. Enquanto andava de um lado para o outro do apartamento, eu pensava o tempo todo que meus anos de independência talvez terminassem em breve. Sobre a minha escrivaninha havia uma foto emoldurada de meu marido, Thierry, tirada em Marselha dois anos antes de sua morte. Em breve eu estaria perguntando quem era ele. Para me tranqüilizar, fiquei um bom tempo escolhendo o vestido que usaria no meu jantar de aniversário. O processo, na verdade, tinha um efeito rejuvenescedor. Estou mais magra do que há um ano. Enquanto corria os dedos pelas roupas penduradas no armário, por alguns minutos não pensei no diagnóstico. Escolhi um vestido chemisier de cashmere cinza-arroxeado. A partir daí, as outras escolhas foram fáceis: uma echarpe de cetim branco, presa com o broche de camafeu de Emily, sapatos escarpin de verniz — de salto baixo, é claro — e um xale preto. Fechei a mala, que ficou muito mais leve do que eu imaginava, e levei-a até o hall.
Minha secretária chegaria no dia seguinte, antes que eu voltasse. Deixei-lhe um bilhete, explicando o que eu queria que ela fizesse; depois peguei um livro e uma xícara de chá e fui me sentar numa poltrona junto a uma janela com vista para o parque. Sempre soube evitar pensar nas coisas que realmente me incomodam. Mas não consegui ler. Estava excitada. Uma viagem ao campo, um jantar em minha homenagem, uma renovação dos vínculos familiares. E no entanto eu acabava de ter uma dessas conversas clássicascom o médico. Eu deveria estar deprimida. Seria possível que eu estivesse, como se diz agora, em processo de denegação? Esse pensamento em nada alterava as coisas. O carro ainda ia levar meia hora para chegar, e eu estava inquieta. Levantei-me da poltrona e andei de um lado para o outro algumas vezes. Meus joelhos doem quando fico muito tempo sentada. Eu não conseguia tirar da cabeça a imagem de Lola, a severidade daquele rosto velho e anguloso cheio de maquiagem, seu passo firme e audacioso apesar dos perigosos saltos altos, sua vitalidade ao entrar no Rolls-Royce. Estaria eu competindo com ela, ao ficar indo e voltando da lareira até o sofá? Sempre achei que aquela vida social agitada e os cigarros dariam cabo dela. Pensava assim mesmo quando ainda estávamos na casa dos cinqüenta. Porém aos oitenta anos ela tem um aspecto voraz, astuto. Sempre foi a menina mais velha, mais esperta, um passo à minha frente. Mas quanto a essa questão final e fundamental, sou eu que vou estar à frente dela, enquanto ela vai chegar aos cem anos. Não vou poder publicar o livro ainda em vida.
O Rolls-Royce deve ter virado minha cabeça, porque quando o carro chegou — quinze minutos atrasado — fiquei decepcionada. Normalmente essas coisas não me incomodam. Era um minitáxi empoeirado, cujo banco de trás era forrado com náilon zebrado. Mas o motorista, Michael, era um rapaz antilhano alegre, que pegou minha mala e fez questão de chegar para a frente o banco do carona para abrir mais espaço para mim. Depois que deixei claro que não queria música barulhenta, nem mesmo em volume baixo, saindo dos alto-falantes atrás da minha cabeça, e depois que passou o aborrecimento dele, nos demos bem e conversamos sobre famílias. Ele jamais conhecera o pai, e sua mãe era médica — trabalhava no Middlesex Hospital. Ele era formado em direito na Leicester University e agora ia fazer doutorado na London School of Economics sobre o direito e a pobreza no Terceiro Mundo. Enquanto saíamos de Londres pela desolada Westway, ele resumiu sua tese para mim: se não há direito de propriedade, não há capital, e, portanto, não há riqueza.
”Conversa de advogado”, disse eu. ”Puxando a brasa pra sua sardinha.”
Ele riu por delicadeza, embora certamente tenha me achado de uma burrice completa. Hoje em dia é absolutamente impossível adivinhar o nível de instrução de uma pessoa com base no modo como ela fala ou se veste, ou no tipo de música que prefere. O mais seguro é tratar todas as pessoas que você encontra como se fossem intelectuais de renome.
Após vinte minutos, já havíamos conversado bastante e, quando o carro pegou uma auto-estrada e o ruído do motor tornou-se um ronco monótono, adormeci outra vez. Quando acordei, já estávamos numa estrada do interior, e senti um aperto doloroso na testa. Peguei na bolsa três aspirinas, que mastiguei e engoli a contragosto. Que parte da minha mente, da minha memória, fora destruída por um derrame minúsculo enquanto eu dormia? Isso eu jamais viria a saber. Foi então, no banco de trás daquele carrinho, que pela primeira vez senti uma espécie de desespero. Pânico seria uma palavra forte demais. Em parte era uma sensação de claustrofobia, de estar inevitavelmente confinada dentro de um processo de decadência física e de estar encolhendo. Dei um tapinha no ombro de Michael e pedi-lhe que ligasse o som. Ele achou que eu estava querendo lhe fazer a vontade por já estarmos quase chegando, e se recusou. Porém insisti, e recomeçou o som percussivo do baixo, como pano de fundo de um barítono que cantava, num patoá antilhano, uns versos em ritmo de cantiga infantil ou música de roda. Aquilo me fez bem Achei graça na música. Parecia coisa de criança, embora eu desconfiasse que sentimentos terríveis talvez estivessem sendo expressos. Não pedi que ele traduzisse A música. ainda estava tocando quando entramos no Tilney’s Hotel. Mais de vinte e cinco anos haviam se passado desde a última vez que eu estivera ali, para assistir ao enterro de Emily. Notei em primeiro lugar a ausência das árvores do parque, os olmos gigantescos que haviam adoecido, eu imaginava, e os carvalhos restantes que tinham sido derrubados para dar lugar ao campo de golfe. Agora seguíamos mais devagar, para que alguns jogadores de golfe e seus caddies pudessem passar. Eu não conseguia ver aquelas pessoas senão como invasores. O bosque que cercava o antigo bangalô de Grace Turner continuava lá, e, quando passamos por um último arvoredo de faias, a casa principal surgiu. A nostalgia era dispensável — a casa sempre fora feia Mas, vista de longe, tinha uma aparência nua, desprotegida. A hera que antes suavizava o impacto daquela fachada vermelha fora arrancada, talvez para preservar os tijolos. Logo estávamos passando pela primeira ponte, e já dava para ver que o lago não existia mais. A ponte cruzava por cima de um gramado perfeito, do tipo que se vê às vezes num antigo fosso de castelo. Não que o gramado em si fosse desagradável, desde que você não soubesse que antigamente havia ali carriços, patos e uma carpa gigantesca, que dois vagabundos assaram e devoraram junto ao templo da ilha, o qual também não existia mais. No lugar dele havia agora um banco de madeira e uma cesta de lixo. A ilha, que naturalmente não era mais ilha, transformara-se num morrinho alongado coberto de grama aparada, como um imenso túmulo pré-histórico, onde haviam sido plantados rododendros e outros arbustos. Havia um caminho de cascalho contornando tudo,com bancos aqui e ali, e luzes de jardim esféricas. Não tive tempo de tentar identificar o lugar exato onde tentei confortar a jovem Lady Lola Marshall, pois já estávamos passando pela segunda ponte e diminuindo a velocidade para entrar no estacionamento asfaltado que percorria toda a extensão da casa.
Michael levou minha mala para a recepção, instalada no antigo hall. Curioso eles terem se dado ao trabalho de cobrir com um carpete aqueles ladrilhos preto-e-branco. Creio que a acústica do ambiente sempre fora um problema, mas aquilo nunca me incomodou. Uma das Quatro estações de Vivaldi soava por alto-falantes ocultos. Havia uma escrivaninha decente, de pau-rosa,com um monitor de computador e um vaso de flores, e, montando guarda, duas armaduras, uma de cada lado; sobre os lambris, alabardas cruzadas e um brasão; e, em cima, o retrato que antes ficava na sala de jantar, importado por meu avô para dar uma linhagem a nossa família. Dei uma gorjeta a Michael e desejei-lhe sinceramente boa sorte com sua tese sobre direitos de propriedade e pobreza. Era uma tentativa de desdizer meu comentário bobo a respeito dos advogados. Ele me desejou um feliz aniversário, apertou minha mão — seu aperto de mão era muito fraco, nada viril — e foi embora. A recepcionista, uma moça de terno com uma expressão severa, me entregou a chave de meu quarto e disse que a velha biblioteca estava reservada para uso exclusivo de nosso grupo.
Os poucos que já haviam chegado tinham saído para dar uma caminhada. A idéia era todos se reunirem para tomar uns drinques às seis. Um empregado levaria minha mala até o quarto. Havia um elevador à minha disposição.
Ninguém para me receber, então; mas me senti aliviada. Eu preferia assimilar sozinha todas aquelas mudanças, antes que fosse obrigada a representar o papel de convidada de honra. Subi no elevador até o segundo andar, atravessei uma série de portas de vidro e caminhei pelos corredores, cujas tábuas corridas estalavam de modo familiar. Era estranho ver os quartos numerados e trancados. Naturalmente, o número de meu quarto — sete — não me dizia nada, mas creio que eu já imaginava onde ia dormir. Quando por fim parei diante da porta, não me surpreendi. Não era o meu antigo quarto, e sim o da tia Venus, que sempre fora considerado o que tinha a melhor vista — o lago, o caminho, o bosque e a serra ao longe. Charles, neto de Pierrot e organizador do encontro, certamente o reservara para mim.
Tive uma surpresa agradável ao entrar. Os dois quartos vizinhos haviam sido incorporados para criar uma suíte presidencial. Sobre uma mesinha de vidro havia um ramo gigantesco de flores de estufa. A cama enorme e alta que tia Venus ocupara por tantos anos sem se queixar não estava mais lá, nem tampouco o baú de enxoval de madeira trabalhada, nem o sofá de seda verde. Pertenciam agora ao filho mais velho do segundo casamento de Leon e estavam instalados num castelo na Escócia. Porém a mobília nova era excelente; gostei do meu quarto. Explorei a sala de visitas, onde havia uma escrivaninha e uma luminária boa, e fiquei impressionada com a imensidão do banheiro, com um pot-pourri e pilhas de toalhas num toalheiro aquecido. Era um alívio não ver tudo aquilo como sinais do novo mau gosto reinante — o que facilmente se torna um hábito com a idade. Fui até a janela para apreciar os raios de sol enviesados descendo sobre o campo de golfe e brunindo as árvores nuas na serra distante. Eu não conseguia aceitar por completo a ausência do lago, mas talvez um dia ele viesse a ser reconstruído; e o prédio em si certamente continha mais gente feliz, agora que fora transformado em hotel, do que no tempo em que eu morava nele.
Charles telefonou uma hora depois, justamente quando eu estava começando a pensar em me vestir. Propôs me pegar às seis e quinze, quando todos os outros já estariam reunidos, e me levar para o andar de baixo, para que eu fizesse uma entrada triunfal. Assim foi que entrei, com meu vestido de cashmere, naquele salão enorme, em forma de L, de braço dado com Charles, enquanto cinqüenta parentes me aplaudiam e depois levantavam seus copos para me brindar. Minha primeira impressão ao entrar foi a de que não reconhecia ninguém. Nem um único rosto conhecido! Seria aquilo um prenúncio de meu estado futuro? Então, pouco a pouco, os rostos foram entrando em foco. Há que levar em conta a passagem do tempo e a rapidezcom que crianças de colo se tornam peraltas de dez anos de idade. Não havia como não reconhecer meu irmão, recurvo e caído para um lado na cadeira de rodas, um guardanapo sobre o pescoço para pegar os restos do champanhe que alguém lhe levou aos lábios. Quando me debrucei para beijar Leon, ele conseguiu sorrircom a metade do rosto que ainda controla. Também não demorei a identificar Pierrot, muito encolhido e com uma careca lustrosa que dava vontade de pôr a mão nela, mas ainda sorridente como sempre e com toda sua aura de pai de família. Temos uma espécie de acordo: jamais mencionamos sua irmã.
Dei a volta na sala,com Charles a meu lado dizendo o nome de cada um. Era um prazer estar no centro de uma reunião tão simpática. Fui reapresentada aos filhos, netos e bisnetos de Jackson, que morreu faz quinze anos. Aliás, boa parte das pessoas ali descendia dos gêmeos. E Leon também não se saíra tão mal, pois que se casara quatro vezes e fora um pai dedicado. As idades iam de três meses a oitenta e nove anos. O vozerio era o mais variado, da voz mais grave à mais estridente, enquanto os garçons traziam mais champanhe e limonada. Filhos já idosos de primos distantes me saudavam como se fossem velhos amigos. Metade das pessoas queria fazer algum comentário elogioso sobre meus livros. Um grupo de adolescentes encantadores estava estudando meus livros na escola. Prometi ler o rascunho do romance do filho de alguém, que não estava presente. Bilhetes e cartões eram colocados em minha mão. Numa mesa num canto havia uma pilha de presentes, que eu teria de abrir — várias crianças me disseram — antes, e não depois, de elas irem se deitar. Fiz minhas promessas, apertei mãos, beijei rostos e lábios, admirei e fiz cócegas em bebês, e, quando estava começando a pensar que precisava urgentemente me sentar em algum lugar, percebi que estavam colocando cadeiras, todas viradas para o mesmo lado. Então Charles bateu palmas e, gritando em meio ao barulho que continuou quase inalterado, anunciou que antes do jantar haveria um espetáculo em minha homenagem. Pedia que todos nos sentássemos.
Fui levada a uma poltrona na primeira fileira. A meu lado estava o velho Pierrot, conversando com um primo a sua esquerda. Um quase-silêncio incômodo desceu sobre o salão. De um canto vinham cochiches animados de crianças, que por uma questão de tato resolvi ignorar. Enquanto esperávamos, tive, por assim dizer, alguns instantes de solidão; olhei à minha volta e foi só então que me dei conta de que todos os livros tinham sido retirados da biblioteca — os livros e as estantes também. Era por isso que o cômodo me parecia muito maior. Tudo o que havia para se ler ali eram umas revistas do interior colocadas junto à lareira. Renovaram-se os pedidos de silêncio, uma cadeira foi arrastada, e eis que surgiu diante de nós um menino com uma capa negra nos ombros. Era claro, sardento e ruivo — sem dúvida alguma, um Quincey. Calculei que teria uns nove ou dez anos. O corpinho era frágil, o que tinha o efeito de fazercom que sua cabeça parecesse grande e lhe emprestava um ar etéreo. Porém ele exalava autoconfiança ao correr os olhos pela sala, esperando que a platéia se aquietasse. Então, por fim, levantou o queixo delicado e começou a recitar,com uma voz aguda, nítida e pura. Eu estava esperando uma mágica, mas o que ouvi parecia algo sobrenatural.
Essa é a história de Arabella, a espontânea,
Que fugiu com um nativo de terra estranha.
Seus pais muito sofreram ao constatar
Que ela havia escafedido-se do lar
Sem permissão, para padecer de uma doença séria
E ver-se assim reduzida à miséria.
De súbito, lá estava ela à minha frente, aquela garotinha inquieta, convencida, metida, e não estava morta, não, pois, quando as pessoas riram baixo daquele ”escafedido-se”, meu coração fraco — que vaidade ridícula! — deu um pequeno salto. O menino recitava com uma limpidez emocionante e com um toque dissonante do sotaque que minha geração chamaria de cockney, se bem que não faço mais idéia do significado que tem hoje em dia um T glotal. Eu reconhecia as palavras como minhas, porém já quase não me lembrava delas, e era difícil me concentrar, de tantas que eram as perguntas e os sentimentos que me avassalavam. Onde haviam encontrado uma cópia? E aquela autoconfiança extraordinária seria sintoma de uma nova era? Olhei de relance para meu vizinho, Pierrot. Ele havia levado o lenço aos olhos, e não imagino que fosse apenas por orgulho de bisavô. Além disso, eu desconfiava de que aquilo fosse idéia dele. O prólogo chegou a seu clímax razoável.
Para essa moça fortuita,
chegara o dia radioso
De se casarcom seu príncipe formoso.
Porém será quase tarde demais
quando ela constatar
Que antes de amar
devemos excogitar.1
Aplaudimos com entusiasmo. Houve até alguns assobios vulgares. Aquele dicionário, o Oxford Concise Dichonary. Onde estaria agora? No noroeste da Escócia? Eu o queria de volta. O menino fez uma mesura e andou dois metros para trás, então se juntaram a ele quatro outras crianças que haviam aparecido sem que eu as percebesse e que estavam até então esperando no que fazia as vezes de bastidores.
E assim teve imício a encenação de Arabella em apuros,com a despedida dos pais temerosos e tristes. Reconheci a heroína na mesma hora. era Chloe, a bisneta de Leon. Que menina linda e séria,com uma voz grave e delicáhda,com o sangue espanhol que herdou da mãe. Lembro-me de seu aniversário de um ano, que parecia ter acontecido havia apenas uns poucos meses. Vi-a afundar na pobreza e no desespero, de modo bem convincente, depois que foi abandonada pelo conde malvado — que era justamente o menino que lera o prólogo com sua capa negra. Em menos de dez minutos, o espetáculo havia terminado. Na minha lembrança, distorcida pela apreensão de tempo de uma criança, o texto era tão longo quanto uma peça de Shakespeare. Eu havia me esquecido por completo de que, depois da cerimônia do casamento, Arabella e o príncipe médico, de braços dados, se aproximam da platéia e recitam, em uníssono, o dístico final:
E o fim de tantos apuros, e o início de um amor de escol. E adeus, amigos, pois singramos rumo ao arrebol!
Realmente, não é das minhas melhores coisas, pensei. Mas todo o salão, menos Leon, Pierrot e eu, pôs-se de pé para aplaudir. Como aquelas crianças estavam bem ensaiadas! Até voltaram para receber a ovação, de mãos dadas, enfileiradas. A um sinal de Chloe, todas deram dois passos para trás, depois voltaram para a frente e fizeram outra mesura. No meio da confusão, ninguém se deu conta de que o pobre Pierrot estava terrivelmente emocionado, o rosto oculto entre as mãos. Estaria revivendo aqueles tempos terríveis, de solidão, após o divórcio dos pais? Eles queriam tanto trabalhar na peça, os gêmeos, aquela noite na biblioteca, e finalmente chegara o dia da estréia,com sessenta e quatro anos de atraso, muitos anos após a morte de seu irmão.
Ajudaram-me a levantar de minha poltrona confortável, e fiz um pequeno discurso de agradecimento. Competindo com um bebê que berrava na última fileira, tentei evocar o verão quente de 1935, quando os primos vieram do Norte. Virei-me para os atores e disse-lhes que nossa produção original não chegaria aos pés da deles. Pierrot concordava com a cabeça, enfático. Expliquei que os ensaios tinham sido interrompidos exclusivamente por minha culpa, porque de repente resolvi virar romancista. Houve risos indulgentes, mais palmas, e então Charles anunciou que o jantar estava servido. E assim a noite agradável começou a se dissolver — a refeição barulhenta, em que cheguei até mesmo a tomar um pouco de vinho; os presentes; a hora de as crianças menores irem para a cama, enquanto seus irmãos mais velhos iam ver televisão. Depois, discursos na hora do café, muitos risos bem-humorados, e às dez horas eu já estava começando a pensar na magnífica suíte a minha espera, não por estar cansada, mas por estar cansada de estar cercada de gente e de ser o centro das atenções, por mais simpáticos que todos fossem. Houve mais meia hora de despedidas, então Charles e Annie, sua mulher, me levaram até meu quarto.
Agora são cinco da manhã, e continuo sentada diante da escrivaninha, pensando nesses dois últimos dias, tão estranhos. É verdade que os velhos não têm necessidade de dormir — pelo menos, não à noite. Ainda tenho muitas coisas em que pensar, e em pouco tempo, talvez daqui a um ano, usar a cabeça será bem mais difícil para mim. Estive pensando no meu último romance, que deveria ter sido o primeiro. Versão original, janeiro de 1940, última versão, março de 1999, entre uma e outra, meia dúzia de rascunhos diferentes. O segundo, junho de 1947, o terceiro que diferença faz? A tarefa que me impus há cinqüenta e nove anos finalmente foi cumprida. Cometemos um crime — Lola, Marshall e eu — e, a partir da segunda versão, resolvi narrá-lo. Achei que tinha a obrigação de não disfarçar nada — nomes, lugares, circunstâncias exatas, coloquei tudo no texto, por uma questão de exatidão histórica Mas por conta das realidades da lei, segundo me disseram diversos editores ao longo dos anos, minhas memórias jamais poderão ser publicadas enquanto meus cúmplices estiverem vivos. Você só pode difamar a si própria e aos mortos. Os Marshall têm acionado seus advogados com freqüência desde o final dos anos 40, defendendo suas reputações com uma ferocidade extremamente dispendiosa. Com o dinheiro que têm, poderiam com facilidade levar à falência uma editora. Parece até que têm algo a esconder. Pensar, tudo bem, escrever, não. Todas as sugestões óbvias me foram dadas — deslocar, transmutar, disfarçar. Utilizar as névoas da imaginação! Para que servem os romancistas, afinal? Vá apenas até onde for estritamente necessário, monte acampamento alguns centímetros além do alcance dos dedos da lei. Mas a gente só sabe a distância exata depois que o juiz lê a sentença. Para não correr riscos, o jeito é pegar de leve e ser obscuro. Sei que só posso publicar o livro depois que eles morrerem. E, hoje, assumo que isso só vai acontecer quando eu já estiver morta. Não basta que apenas um deles morra. Mesmo depois que eu finalmente vir o rosto engelhado de lorde Marshall na seção de obituários, minha prima do Norte não vai tolerar uma acusação de conluio criminoso.
Houve um crime. Mas houve também um casal apaixonado. Essa noite toda estive pensando em casais apaixonados e finais felizes. Singrando rumo ao arrebol. Uma expressão detestável. Ocorre-me que não viajei muito, desde que escrevi aquela pecinha. Ou melhor, dei uma grande volta e terminei no ponto de partida. E só nesta última versão que o casal apaixonado termina bem, um ao lado do outro, numa calçada da zona sul de Londres, enquanto eu you embora. Todas as versões anteriores eram impiedosas. Mas agora não posso mais achar que meu objetivo seria atingido se, por exemplo, eu tentasse convencer meu leitor, por meios diretos ou indiretos, de que Robbie Turner morreu de septicemia em Bray Dunes no dia primeiro de junho de 1940, ou que Cecília foi morta em setembro do mesmo ano pela bomba que destruiu a estação de metrô de Balham. Que eu não cheguei a ver os dois naquele ano. Que minha caminhada por Londres terminou na igreja em Clapham Common, e que Briony, acovardada, voltou mancando para o hospital, incapaz de encarar sua irmã, que ainda se recuperava da morte recente de seu amado. Que as cartas trocadas pelo casal estão nos arquivos do War Museum. Como o romance poderia terminar assim? Que sentido, que esperança, que satisfação o leitor poderia extrair de um final como esse? Quem ia querer acreditar que eles nunca mais voltaram a se ver, nunca consumaram seu amor? Quem ia querer acreditar nisso, a menos que fosse em nome do realismo mais árido? Não consegui fazer isso com eles. Estou velha demais, assustada demais, apaixonada demais por estes farrapos de vida que ainda me restam. Tenho pela frente toda uma maré de esquecimento, e depois a anulação completa. Não tenho mais a coragem de meu pessimismo. Depois que eu morrer, e que os Marhsall morrerem, e o romance for finalmente publicado, nós só existiremos como invenções minhas. Briony será uma personagem tão fictícia quanto os amantes que dormiram na mesma cama em Balham, indignando a proprietária. Ninguém estará interessado em saber quais os eventos e quais os indivíduos que foram distorcidos no interesse da narrativa. Sei que haverá sempre um tipo de leitor que se sente obrigado a perguntar: mas, afinal, o que foi que aconteceu de verdade? A resposta é simples: o casal apaixonado está vivo e feliz. Enquanto restar uma única cópia, um único exemplar datilografado de minha versão final, então minha irmã espontânea e fortuita e seu príncipe médico haverão de sobreviver no amor.
O problema desses cinqüenta e nove anos é este: como pode uma romancista realizar uma reparação se,com seu poder absoluto de decidir como a história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado, a que ela possa apelar, ou com que possa reconciliar-se, ou que possa perdoá-la. Não há nada fora dela. Na sua imaginação ela determina os limites e as condições. Não há reparação possível para Deus nem para os romancistas, nem mesmo para os romancistas ateus. Desde o início a tarefa era inviável, e era justamente essa a questão. A tentativa era tudo.
Passei um tempo em pé à janela, sentindo que as ondas de cansaço venciam as forças que me restam no corpo. O assoalho parece estar ondulando sob meus pés. Vi a primeira luz pardacenta da manhã tornar visíveis o parque e as pontes sobre o lago desaparecido. E o caminho longo e estreito pelo qual levaram Robbie embora, na névoa branca. Agrada-me pensar que não é por fraqueza nem por evasão, e sim como um gesto final de bondade, uma tomada de posição contra o esquecimento e o desespero, que deixo os jovens apaixonados viver e ficar juntos no final. Dei-lhes a felicidade, mas não fui egoísta a ponto de fazê-los me perdoar. Não exatamente, não ainda. Se eu tivesse o poder de evocá-los na minha festa de aniversário... Robbie e Cecília, ainda vivos, ainda apaixonados, sentados lado a lado na biblioteca, sorrindo de Arabella em apuros? Não é impossível.
Mas agora preciso dormir.
Ian McEwan
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