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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REPÚBLICA DE ESTUDANTES / L. P. Baçan
REPÚBLICA DE ESTUDANTES / L. P. Baçan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

REPÚBLICA DE ESTUDANTES

 

 

       A data era festiva na República. O primeiro mês dera aos quatro estudantes muito experiência, principalmente, do orçamento. As extravagancias do primeiro mês, quando tudo fora euforia, transformara-se num sofrimento indescritível, no segundo. O dinheiro que haviam trazido fora se acabando, terminando todos por ficarem absolutamente sem nenhum. O principal problema causado por isso foi a comida. Téia, a empregada que haviam conseguido, havia se desdobrado para racionar os mantimentos que tinham e, dentro das magras possibilidades, variar o mínimo possível o cardápio.

       Mas o segundo mês havia terminado. Todos haviam recebido a mesada de casa e, como primeira providencia, cuidaram de pagar o aluguel e entregar, nas mãos de Téia, o dinheiro suficiente para as despesas do mês. Como aquele era um dia especial, pediram a ela que preparasse um jantar também especial.

       Dario havia sugerido a todos que fizessem daquele, um jantar de gala. Benedito, Benê para os amigos, assim como Tanaka, haviam concordado. O único que opôs certa resistência foi Alfredo. Este destoava completamente dos outros do grupo. Era o mais bem vestido e o que recebia a maior mesada. No final, porém, acabou cedendo às insistências dos outros. Vestiram paletó e gravata e estavam à mesa, à espera do banquete prometido por Téia. Tanaka havia trazido da rua uma garrafa de vinho barato que todos bebericavam, enquanto aguardavam que a mesa fosse servida.

       - Acho que a gente devia fazer um discurso, que acham?

       - Ora, esse negócio está meio chato, não está? Pôr gravata, paletó, beber esse vinho barato e, ainda por cima, fazer um discurso?

       - Acho que você está num barco errado, Alfredo - observou Benedito.

       - Também acho, mas o que vou fazer?

       - É, o que vai fazer? apesar de ostentar toda essa aparecia de rico, não pode pagar sozinho um apartamento, por isso tem que, nos aturar.

       Alfredo levantou o copo contra a luz, observando um pedaço de rolha que flutuava na superfície, antes de encarar Benedito e responder:

       - É isso aí!

       - Benedito, você não pode se esquecer de que nós também precisamos dele, apesar de tudo. Ele representa uma quarta parte a menos de ordenado para a gente pagar. Temos que engolir, não é? - observou Dario.

       - É como ele disse, Benê. Não esquente a cabeça. Assim que eu arrumar um apartamento melhor, melhores companhias, eu me mudo - respondeu Alfredo, cínico.

       - Avise-me com antecedência - pediu Benedito.

       - Por quê?

       - Para a gente poder acertar umas continhas...

       - Deixem disso, rapazes - pediu Tanaka.

       - É uma boa idéia. Aí vem Téia com o jantar.

       Téia não era feia, mas também não podia ser chamada de bonita. Tinha os cabelos curtos, era magra e tinha a aparência comum a tantas outras garotas que vinham dos bairros para trabalhar no centro da cidade, como empregadas. Muito responsável, provara naqueles dois meses, ser merecedora de toda a confiança dos rapazes.

       Ela se aproximou com aquele seu jeito simplório e pôs sobre a mesa, uma travessa grande, tampada, de onde vinha o delicioso aroma de frango ao molho.

       Pouco depois ela terminou de pôr na mesa os outros pratos. Dario levantou-se solene, bateu com o cabo da faca no copo de vinho, ajeitou a gravata e começou a falar.

       - Caros amigos, depois de um mês de privações...

       - Chagamos a isso? - interrompeu-o Benedito, com ar de gozador.

       - Por favor não interrompa o orador - pediu Alfredo, chateado.

       - Isso mesmo, não me interrompa - ajuntou Dario. - Como eu dizia, depois de um longo mês de privações, esta é a nossa primeira refeição caprichada. Pelo que todos já perceberam, teremos hoje um frango ao molho, caprichado, como só a Téia sabe fazer. Nosso primeiro mês juntos foi muito bom, mas nós nos deixamos levar pela euforia, pela inexperiência, terminando por sofrermos na carne...

       - E no estômago - interrompeu-o Tanaka.

       - Isso mesmo, na carne e no estômago, as conseqüências das atitudes. No entanto, a experiências que adquirimos com isso não vai nos permitir que reincidamos nos erros do passado...

       - Bravo! - exclamou Alfredo, batendo palmas.

       - Não interrompa o orador - pediu Dario. - Como eu dizia, creio que agora estamos aptos a prosseguir com mais firmeza. Resta lamentar, porém, que muito ainda falta para que nossa união seja absoluta...

       - Só falta eu arrumar um outro lugar para ficar - disse Alfredo.

       - E a gente arrumar outro melhor para pôr no seu lugar - emendou Benedito.

       - Está bem, está bem. Vamos comer. É o único modo de manter vocês dois calados, finalizou Dario, levando a mão até a tampa da panela.

       Todos olharam ansiosos para travessa de frango. Dario levantou a tampa, num gesto pomposo. Uma nuvem de vapor, deliciosamente condicionada, passou pelas narinas de todos. Quando, porém, a nuvem se dissipou e todos puderam ver o conteúdo da travessa, ficaram atônitos. Levantaram-se lentamente, cheios de decepção e se debruçaram sobre a mesa para observar melhor.

       - Pescoço de frango? - lamentou Benedito.

       - Pescoço? - disse Dario.

       - Pescoço! - exclamou Tanaka, sentando-se.

       - Pescoço, bah! - falou Alfredo, fazendo uma careta.

       - Téia, o que é isso? - gritou Dario.

       - Isso o quê - respondeu a garota, vindo da cozinha.

       - Você comprou pescoço?

       - Era mais barato, vinha bastante - respondeu a moça, ingênua.

       - Mas nós pedimos para você comprar um frango inteiro...

       - Com o dinheiro de um frango inteiro dava para comprar dois quilos de pescoço - argumentou ela.

       - Oh, não!

       - Mas isso é tão gostoso - ajuntou a garota, torcendo as mãos no avental.

       - Mas hoje não, Téia. Hoje era um dia especial - disse Benedito.

       - Eu não vou comer isso aí. Prefiro ir jantar num restaurante, e é isso que vou fazer, falou Alfredo, levantando-se, tirando a gravata e saindo.

       - Sorte dele, não? - comentou Tanaka.

       - Ah, não, Téia. Puxa vida! - resmungou Dario.

       - Agora não adianta reclamar. O negócio é comer - propôs Benedito.

       - Quem não tem cão, caça com gato - disse Tanaka.

       Sem outro remédio, comeram, pois a fome estava acima de qualquer preconceito anatômico. Ao final da refeição, elogiaram o molho e, enquanto Téia jantava, foram para a sala fumar.

       O apartamento que haviam conseguido era pequeno. Um quarto, cozinha apertada, sala e banheiro. Para eles, no entanto, que apenas ficavam ali para as refeições e para dormir servia muito bem. Dario era vestibulando de Medicina, Tanaka pretendia cursar Artes Plásticas, pois pintava muito bem, enquanto que Benedito pretendia Engenharia, Alfredo, o diferente de todos, tinha um objetivo mais pretensioso. Ia cursar Medicina, pretendendo fazer especialização em Cirurgia Plástica. De todos era o único que não se identificava com aquele ambiente.

       Enquanto fumavam, Dario conferia o dinheiro de sua carteira.

       - E então, sobrou alguma coisa? - indagou Benedito.

       - Nem cinqüenta cruzeiros. Felizmente já paguei o cursinho, o aluguel e as despesas de comida. Não dá nem para um sapato novo.

       - O meu não vai dar nem para o ônibus - comentou Tanaka, apagando seu cigarro no cinzeiro. Eu precisava comprar umas tintas. Tenho uma idéia para um quadro que é sensacional...

       - Você é gozado, Tanaka. Já tem uns vinte quadros montados lá no quarto. Por que não tanta vendê-los? - perguntou Dario.

       - Tenho que esperar um pouco mais. Tenho certo receio, não creio que sejam tão bons.

       - São melhores que muitos que já vi por ai. Perto de onde estudo o cursinho tem uma Galeria de Arte. Quer que eu leve alguns lá para tentar vender?  

       - Eu já tentei. Eles não querem. Eu não tenho nome ainda, é difícil vender - respondeu ele.

       - Então por que pinta? - indagou Benedito.

       - Aperfeiçoamento. Se você não praticar não desenvolve. Eu espero, futuramente, participar de algum salão de artes plásticas, concurso, bienais, esse negócio todo. Se eu conseguir um prêmio, as coisas poderão melhorar.

       - E como você vai fazer sem as tintas? - quis saber Dario.

       - Sei lá, vou dar um jeito. Lá na escola de Belas Artes sempre sobra. Tenho uma colega que estuda no primeiro ano e quando preciso, ela me arruma tintas e tela. Como ela só pega o que sobra, eu tenho que me contentar com aquilo. Se eu pudesse comprar as tintas, poderia jogar com as cores como eu quero. Do jeito que faço, é mais difícil, mas poderia ser pior, não acham?

       - Você é conformado... Eu, se fosse comigo, desistiria de pintar. - disse Benedito. - Vocês são boa gente, mas acho que vou para minha aula de caratê - disse Dario.

       - Foi bom falar nisso. Como é que arrumou com meu amigo lá? - perguntou Tanaka.

       - Ele foi muito legal. Quando falei que era seu amigo, ele me tratou muito bem. Vai me deixar freqüentar as aulas na faixa, sem pagar nada. Legal ele, não?

       - Massahiro é cem por cento, sabe como é dura a vida de estudante.

       - Ele perguntou quando você vai voltar a estudar lá. E mandou-lhe um abraço.

       - O que você vai fazer agora? - perguntou benedito.

       - Vou fazer o esboço daquele quadro de que falei.

       - E você, Benê?

       - Eu? Eu vou pensar... - respondeu o rapaz, com ar preocupado.

       - O que há? - indagou Dario.

       - Meu velho me escreveu dizendo que vai ser difícil mandar dinheiro no mês que vem. Acho que vou ter que arrumar um emprego.

       - Aí vai ser fogo, rapaz. Trabalhar de dia e estudar à noite, não é fácil.

       - É, mas o que posso fazer?!...

       - Depois a gente conversa, está bem? - disse Dario, indo até seu quarto, de onde voltou vestindo uma jaqueta e trazendo nas mãos seu quimono.

       Já ia sair, quando meteu a mão no bolso, tirou a carteira, separou duas notas de dez e colocou-as no bolso do paletó de Tanaka.

       - O que é isso? - perguntou o rapaz.

       - Não é muito, mas fica de reserva para você comprar as tintas que faltarem. Não sei se dá, mas só pelo jeito como você falou, o quadro que pretende fazer é muito bom.

       Tanaka abaixou a cabeça, sensibilizado. Colocou a mão no ombro de Dario e, levantando a cabeça, disse-lhe:

       - O quadro vai ser seu.

       - Não, não é preciso...

       - Faço questão.

       - Está bem, aceito.

       Já ia saindo de novo, quando, parado à porta, voltou-se para os amigos e propôs:

       - Que tal se a gente desse um nome a nossa República?

       - Nome? Que nome? - indagou Benedito.

       - Um nome bem diferente, gozador...

       - Como... República Pescoço de Frango? - falou Benedito, rindo.

       - Ei, essa é boa - concordou Tanaka.

       - Então fica essa. Você pinta uma tabuleta para a gente pôr na porta, Tanaka? - perguntou Dario.

       - Claro, vai ser legal.

       - República Pescoço de Frango, essa vai ficar na história. Ouviu isso, Téia? - gritou ele.

       A garota surgiu à porta da cozinha, enxugando uma panela.

       - O que foi?

       - Nossa República tem um nome agora: República Pescoço de Frango - disse o rapaz, fechando a porta.

       O elevador, como sempre, estava enguiçado. Desceu os três andares de escada e chegou à rua. Apesar de ser verão, a noite estava fria. Aliás, Curitiba era sempre fria à noite. Naquela, em especial, caíra uma finíssima garoa que chegava a molhar, mas incomodava bastante. O rapaz ajeitou a gola de sua jaqueta, colocou o quimono sob o braço e caminhou apressado.

       O prédio onde morava não ficava distante do centro. Andou algumas quadras e chegou à rua XV de Novembro, iluminada e movimentada. Caminhou algumas quadras pela rua Quinze, antes de dobrar à esquerda e tomar uma rua paralela que o levaria até a Academia, onde treinava caratê.

       - E então, vai mesmo tentar? - perguntou-lhe Massahiro, quando lá chegou.

       - O que pode me acontecer se tentar?

       - Pode quebrar a mão, machucar um dedo, só isso.

       - Mas dá para fazer, não dá?

       - Tente, o azar é seu - respondeu o professor, acompanhando-o até o vestiário.

       Uma hora mais tarde, quando saiu da Academia, estava contente, satisfeito da vida. Havia conseguido realizar o que pretendia, apesar dos protestos do professor. Acabara, por fim, sendo elogiado.

       Fez as contas mentalmente. Havia lhe sobrado da mesada, pagas as despesas, quarenta e cinco cruzeiros. Havia entregue vinte para Tanaka, de modo que sobravam vinte e cinco. Não daria para o ônibus. Teria que caminhar, como diariamente já o fazia, as vinte e duas quadras que o separavam do cursinho. Ida e volta. Quarenta e quatro quadras, não daria para comprar nenhum livro, não poderia mandar consertar o relógio nem comprar um sapato novo, pois o seu já estava na última lona.

       Resolveu ir ao cinema, assistir a um filme muito elogiado pela critica do momento. Achou que merecia isso. Quando saiu do cinema, já passava das onze e a rua Quinze não estava tão movimentada como no inicio da noite. Quando atravessava a praça, no fim da rua, para pegar o caminho de seu prédio, viu, na calçada logo a sua frente, o parecia ser uma briga. Aproximou-se mais depressa e viu dois rapazes, possivelmente ladrões, agredindo uma garota. Havia um carro perto deles, com a porta aberta.

       Um dos ladrões acertou uma bofetada na jovem, derrubando-a de costas, sobre um canteiro de flores. Como que movido por uma centelha elétrica, Dario atirou ao chão o quimono, soltou um grito e avançou sobre eles. Com um pulo sensacional, atingiu o queixo de um deles com um pontapé, enquanto agarrava o outro pelo pescoço, levando-o junto na queda.

 

       Benedito tirou a carta do bolso, estendeu o corpo sobre o sofá e, com a carta presa entre os dedos, ficou observando Tanaka traçar uma série de desenhos superpostos sobre uma folha de papel, montada no cavalete de pintura. Fechou os olhos com firmeza, depois abriu lentamente o envelope e desdobrou a carta. Era de seu pai.

       Benedito Tavares vinha de uma família de comerciantes do interior do Estado. Seu pai tinha um pequeno armazém, mas nos últimos tempos, o movimento comercial caíra bastante. A concorrência de supermercados, mais equipados, mais acessíveis ao público, vinha causando-lhe sérios problemas. Preso ainda às idéias antigas de comércio, não conseguira evoluir. Por isso, na carta, expunha o problema ao filho e, sem outro rumo a tomar, chamava-o de volta, informando-lhe de que não poderia sustentar seus estudos. Benedito vinha se saindo muito bem no cursinho. Tinha esperanças de passar ao primeiro vestibular. Era muito inteligente, esforçado e, se voltasse perderia uma das maiores, senão a única chance de sua vida.

       Tanaka parou seu trabalho, levantou-se da banqueta, afastou-se um pouco e ficou observando o esboço. Virou-se para Benedito.

       - Ei, Benê, o que tem nessa carta aí? Você já leu umas dez vezes.

       Benedito abaixou lentamente o papel, antes de responder:

       - O diabo, amigo. O diabo! Meu pai está na pior, diz que não vai poder sustentar meus estudos mais. Quer que eu volte.

       - Voltar? Mas você está indo tão bem...

       - Pois é. Mas eu não vou voltar. Vou tratar de arrumar um emprego para mim.

       - Aí vai ser fogo!

       - Se vai, mas vou fazer o quê? Não posso voltar, não quero voltar. Ficar naquela cidadezinha é me enterrar vivo para o resto da vida. Eu não agüento aquela passividade, aquele comportamento parado de cidade pequena. Quero ser alguém, não vou passar o resto da minha vida atrás de um balcão. Não, isso não.

       - E o que você sabe fazer?

       - Sou datilografo e dos bons. Fora isso, só sei trabalhar de balconista.

       - De balconista não dá. Você não vai ganhar nada.

       - Minha esperança é um serviço de escritório. Dei uma olhada nos jornais de hoje, mas não vi nada de interessante. Talvez amanhã...

       Téia surgiu na sala naquele momento. Havia terminado o serviço. Benedito pôs-se em pé alisou a jaqueta e indagou-lhe:

       - Quer que eu leve você, Téia?

       - Não, obrigada, Benê! Meu pai já deve estar me esperando lá embaixo.

       - Coitado do velho.

       - Ele não me deixa voltar sozinha de jeito nenhum. Fico com pena dele, porque chega em casa do serviço, toma banho, janta correndo e vem me buscar.

       - Se você quiser, a gente pode levar você, não tem problema.

       - Ele não deixa, de jeito nenhum - respondeu ela, sorrindo em resposta ao rapaz.

       - Diga a ele que não precisa ter medo da gente.

       - Você está brincando. Não conhece meu pai. É durão...

       - Então não há jeito!

       - Fico agradecida do mesmo modo.

       - E pelo amor de Deus, Téia - pediu Tanaka. - Não compre mais pescoço de frango não dá mesmo...

       - Desculpem-me, eu não sabia - respondeu ela, abrindo a porta.

       Antes de sair, porém, olhou para Benedito e sorriu timidamente. O rapaz sorriu em resposta, vendo-a fechar a porta e ouvindo seus passos ecoarem pelo corredor e depois descerem as escadas.

       - Você está dando em cima dela, Benê - comentou Tanaka.

       - Dá para notar?

       - Dá, sim. Você gosta dela?

       - Sei lá, tenho pena dela. Não é mole essa vida. Pense bem, não pode estudar, não tem chance nenhuma de melhorar de vida. É isso ai até arrumar um marido. Depois vai ter que cuidar da casa e dos filhos... É duro!

       - Você anda muito sensível ultimamente. Acho que devia sair, comprar uma garrafa de pinga, alguns limões e trazer aqui para cima. Um bom pileque vai curar isso. O que acha?

       - Acho uma boa idéia. Vou fazer isso. Eu dou três cruzeiros, quanto você tem de trocado aí?

       - Uns dois.

       - Já dá. Passe-os para cá.

       Tanaka revirou os bolsos, tirando uma porção de moedas, entregando-as para o amigo.

       - Ótimo, volto logo - disse Benedito, saindo.

 

       Alfredo, após sair do restaurante, dirigiu-se até a rua e ficou à espera de um táxi. Atravessou a cidade, praticamente indo parar numa pequena casa, num dos bairros mais afastados do centro. Antes de apertar a campainha, tirou a carteira do bolso e conferiu o dinheiro. Dois mil cruzeiros. Quando a guardava, um papel caiu no chão. Apanhou. Era um envelope. Reconheceu o timbre da empresa locadora de apartamento. Apertou a campainha, enquanto lia a carta. Era uma cobrança de dois meses de aluguel atrasado. Quando a porta se abriu, amassou o papel e atirou-o fora.

       - Ora, ora, vejam quem está aqui. Nosso amigo Alfredo - disse um rapaz, abraçando-o.

       - E então, Alfredo? Veio se divertir um pouco? - indagou outro, levantando-se de uma mesa de jogo, no fundo da sala. - Vai entrar no jogo?

       - Claro, vim aqui para isso - disse ele, tirando o paletó e colocando-o sobre uma cadeira, tomando assento à mesa - O que vocês estão jogando.

       - Pôquer.

       - De quanto é a parada?

       - Cinqüenta, de inicio. Vai entrar? - indagou o terceiro dos rapazes.

       - Claro que vou - disse ele.

       Retirou o cigarro, o isqueiro e colocou-os sobre a mesa. Apanhou a carteira, tirou o dinheiro e gritou ao rapaz que o atenderá à porta.

       - Zaca, dê-me dois mil em fichas.

       Os outros se entreolharam significativamente.

       - Vai jogar tudo?

       - Talvez hoje seja meu dia de sorte. Quero desforrar aqueles mil e duzentos do mês passado.

       - Como quiser, cara. Vamos ao jogo, então.

       Não demorou muito, Alfredo já havia perdido todo o dinheiro que trouxera. Mil e duzentos do aluguel do apartamento que deveria pagar e oitocentos que lhe sobrava da mesada que o pai mandara. Já havia feito o mesmo no mês anterior, perdendo o dinheiro do aluguel do apartamento. Por isso havia recebido aquela carta de cobrança.

       Alfredo vinha de uma família abastada, mas dada ao jogo também. Seu pai lhe ensinara os macetes do pôquer, do bridge, de muitos outros jogos. No entanto, era um péssimo jogador, perdia sempre. Mas era do tipo de jogador que não aceitava uma derrota. Julgava-se em maré de azar e contava que um dia, a sorte viria. Mal podia adivinhar que estava sendo trapaceado pelos outros três.

       - Vamos fazer um vale? - propôs ele, com ar cansado.

       - Só jogamos dinheiro limpo - respondeu o rapaz a quem ele chamava de Zaca.

       - Puxa, não precisa ter medo de que eu não pague. Eu posso até ganhar. E depois, se perder, vou pagar. Meu pai tem dinheiro, não vai me deixar no aperto.

       - Acha que a gente pode confiar nele, Zaca? - perguntou outro rapaz.

       - Sei lá, você é quem sabe.

       - Quanto você quer de ficha, Alfredo?

       - Mais dois mil.

       - Dê uma promissória para ele assinar, Zaca. Se não pagar, a gente dá um jeito de receber.

       Como da vez anterior, Alfredo também não teve sorte. Em poucos instantes perdeu tudo, pois blefava a todo instante, sem conseguir intimidar os adversários.

       - Acho que vou parar - disse ele, acendendo nervosamente um cigarro.

       - Quando é que a gente pode receber isso?

       - Até o mês que vem, está bem assim?

       - Mês que vem? Você está brincando - respondeu Zaca. - O máximo que vou lhe dar é uma semana de prazo.

       - Uma semana? Você está ficando doido. Como é que vou arranjar o dinheiro tão depressa assim?

       - Sei lá como vai fazer. Devia ter pensado nisso antes de jogar.

       - Mas eu...

       - Não quero saber de seus pensamentos. Sei apenas que tenho os meus. Uma semana, é o prazo que lhe dou.

       - E se eu não pagar?

       - Se não pagar? Ele perguntou, Vocês ouviram? - indagou Zaca aos outros.

       Os três riram juntos, enquanto calçavam nas mãos, cada um deles, um soco inglês.

       - Ei, vocês não podem fazer isso comigo.

       - Podemos sim, Alfredo. Uma semana, entendeu bem? Uma semana.

       - Está bem, eu dou um jeito, não precisavam ameaçar.

       - Foi você quem perguntou.

       Alfredo apanhou seu paletó, vestiu-o vagarosamente. Apanhou o maço de cigarros e o isqueiro. Antes de sair, falou, em voz baixa:

       - Preciso de um dinheiro para o táxi, fiquei no zero.

       - Deixe-me ver esse isqueiro - pediu Zaca.

       Alfredo passou o isqueiro para o outro.

       - Era o que eu precisava. Tome. - disse Zaca, atirando uma nota de dez cruzeiros ao chão.

       - Você está ficando louco. Esse isqueiro vale mais de cem...

       - É pegar ou largar.

       O rapaz engoliu seco, guardou o dinheiro no bolso e saiu, derrotado.

 

       Com a surpresa, sua arma principal conseguiu derrubar os dois ao mesmo tempo. Levantou-se rapidamente e, antes que os outros pudessem se refazer, distribuiu alguns golpes certeiros e segurando a jovem que se pusera em pé um pouco tanto, disparou pela praça. Correu algumas quadras, até que, olhando para trás, certificou-se de que não haviam sido seguidos.

       - Você está bem? - indagou, ofegante, a ela.

       - Eu acho que sim - respondeu a garota.

       Era morena como ele, tinha os cabelos compridos em desalinho e a roupa que vestia em alguns pontos, estava rasgada. De sua boa parecia escorrer um filete de sangue. O rapaz apanhou seu lenço e cuidadosamente limpou-lhe o canto da boca.

       - Não foi nada, já coagulou.

       - Obrigada, você foi sensacional.

       - Sensacional? Estou morrendo de medo. Estou treinando caratê, mas nunca pensei que tivesse que usar isso um dia. Olhe minha mão - disse ele, estendendo-a.

       - Eu também estou tremendo de medo.

       - Puxa vida! - exclamou ele, batendo com a mão na testa.

       - O que foi?

       - Meu quimono, ficou lá.

       - Quimono?

       - Meu quimono de lutar caratê. Nem era meu, era de um amigo. Como é que vou explicar isso a ele?

       - Desculpe-me por tê-lo envolvido nisso. Você parece que está machucado...

       - Não foi nada, não. Arranhei a mão quando caí. Que tal a gente fosse tomar um chope para recobrar a calma?

       - Não se deveria. Já lhe causei alguns aborrecimentos...

       - Não se preocupe com isso. Está tudo bem. Não se aborreça pelo quimono, eu dou um jeito.

       - Está bem, eu topo.

       - Roubaram-lhe alguma coisa? - perguntou ele.

       - Queriam minha bolsa...

       - Parece que não conseguiram.

       - Eu segurei firme.

       - Garota de coragem! Como é seu nome?

       - Mônica, e o seu?

       - Dario José Menezes - apresentou-se ele, fazendo uma reverencia.

       - O que você faz, Dario?

       - Sou estudante, vestibulando. E você?

       A garota ia responder, mas ele a interrompeu:

       - Não, não diga nada. Você é estudante faz cursinho e vai tentar vestibular como eu. Veio do interior, mora numa república com outras garotas, e voltava para lá quando foi assaltada.

       - Pareço isso?

       - Suas roupas estão um pouco rasgadas, não dá para a gente pensar direito. Ah, desculpe-me. Você não vai poder entrar no restaurante com essa blusa rasgada. Tome a minha jaqueta.

       - Você vai ficar com frio...

       - Antes eu do que você.

       - Está me julgando frágil?

       - Não, estou querendo proteger você - respondeu ele, estendendo-lhe a mão.

       A garota o olhou divertida, pensou por alguns instantes e depois, aconchegando a jaqueta de encontro ao corpo, estendeu também sua mão para ele.

       - Ótimo, vamos tomar esse chope, então?

       - Mas, o que você estava dizendo mesmo? - indagou ele.

       - Você é sempre meio aloprado assim? - perguntou ela, rindo.

       - Só quando fico nervoso.

       - Ah, sei! Aquilo que você disse sobre mim, acertou em parte. Sou estudante mesmo, mas não sou do interior. Moro aqui mesmo, com meus pais.

       - Seus pais? E o que eles fazem?

       - Meu pai e... - ela se interrompeu, como se pensasse em alguma coisa urgente. Depois continuou. - Meu pai é jardineiro de uma família muito rica aqui da cidade.

       - Jardineiro? Verdade? Que romântico.

       - É um trabalho muito bonito mesmo.

       - Então ele trabalha para uma dessas mansões que tem por aí?

       - Sim, isso mesmo. É uma grande mansão mesmo, daquelas de deixar as pessoas de queixo caído.

       - Puxa vida! Sabe, um dia eu vou ter uma só para mim.

       - Uma o quê?

       - Mansão.

       - Por quê?

       - Porque eu vou ser rico.

       Chagavam à rua Quinze. O rapaz olhou para os lados, escolhendo um dos restaurantes que haviam por ali.

       - Vamos ali, o salgadinho é barato - disse ele.

       - Como você quiser.

       - Se você chegar tarde em casa seus pais não vão ficar preocupados?

       - Eu telefono para eles - respondeu ela, com uma alegria indescritível estampada no rosto.

 

       Dario não se levantou quando a garota veio sentar-se. Examinava a mão, arranhada quando caíra no calçamento.

       - Já telefonou para eles? - indagou ele, levantando os olhos.

       - Sim, está tudo bem - disse ela, sentando-se.

       - Eu já pedi o chope e uns salgadinhos. Olhe aí, o garçom vem trazendo.

       Dario tomou meio copo de chope de um fôlego só, como se estivesse sedento.

       - Sabe, foi uma briga muito bonita - elogiou ela.

       - Eu não vi nada. Quando aquele sujeito lhe deu uma bofetada, perdi o controle de mim. Dei aquele pulo e, por sorte, conseguiu assusta-los o bastante para que não reagissem de imediato. Mas conte-me como começou tudo...

       A jovem pensou um pouco antes de responder:

       - Eu caminhava de volta para casa, atravessava a praça e aqueles dois saltaram na minha frente. Corri, cheguei até a calçada, mas fui apanhada. Segurei firme a bolsa porque pensei que era o que eles queriam. Aí um deles me acertou um tapa. Foi quando você apareceu.

       - Você teve sorte. Dificilmente fico até tarde na rua. Geralmente, a esta hora, estou na república, estudando. Hoje foi um dia especial, eu recebi a mesada, paguei as contas e como sobrou uns trocados resolvi ir ao cinema.

       - Não, sei o que fazer para lhe agradecer - disse ela, enternecida.

       - Não se preocupe, com isso, está tudo bem.

       - E seu quimono? Posso lhe... - interrompeu-se, quase sorrindo. - Posso lhe fazer um quer?

       - Você sabe costurar?

       - Sei, sei costurar, bordar, cozinhar, essas coisas todas.

       - Menina, que legal! Mas cá entre nós - falou ele, aproximando-se dela, e começando a contar a história do jantar.

       Mônica riu, não da história em si, mas pela maneira como ele a havia contado.

       - Já está ficando tarde - disse ela, consultando o relógio.

       - Sim, isso mesmo. Vou pedir a conta - falou ele, chamando o garço.

       Enquanto o garçom esperava, Dario apalpou o bolso traseiro em busca da carteira. Não a encontrou ali. Levantou-se pálido. Revirou os bolsos todos, verificou na jaqueta que Mônica vestia nada.

       - Eu acho que perdi a carteira na hora da briga - disse ele, sem graça.

       O garçom fez uma careta chateado e balançou a cabeça.

       - Puxa vida, o que a gente faz agora?

       Mônica abriu sua bolsa, sem que ele percebesse. Verificou sua carteira, mas apenas tinha algumas notas de cem, nenhum trocado. Ficou indecisa entre pagar a conta ou esperar para ver. Se pagasse, Dario poderia sentir-se humilhado. Deixou as notas ali e ficou olhando para o rapaz, divertida.

       - E agora, seu garçom? eu tive uma briga ainda há pouco e acho que perdi minha carteira. Não pode ficar fiado?

       - Estudantes! - disse o garçom, fechando os olhos, como se estivesse contando mentalmente até dez.

       - Pois é isso mesmo, garçom. Eu fui assaltada, ele entrou para me defender e perdeu a carteira.

       - É como ela diz, pode acreditar. Pode marcar aí, meu nome é Dario José Menezes, eu volto hoje mesmo para pagar. Vou até o apartamento apanhar dinheiro com meus colegas e volto aqui, juro.

       - Estudantes! - exclamou o homem, mais uma vez, fazendo um gesto para que os jovens os seguissem.

       Os dois se levantaram, atravessaram o salão junto com o garçom e entraram por uma porta.

       - Ei, José! Trouxe dois auxiliares para você - disse o garçom, ao rapaz que lavava pratos a uma enorme pia.

       - Estudantes! - exclamou o rapaz, apanhando duas esponjas e atirando para Dario e Mônica.

       Dario apanhou a sua, olhou muito chateado para a garota e abaixou os olhos, dizendo:

       - Sinto muito, é verdade. Eu perdi a carteira.

       - Não tem importância. Vamos lá, vamos ver como se faz isso - disse ela, tirando a jaqueta, dobrando a manga da sua blusa para cima.

 

       Alfredo chegou em casa mal-humorado, atirou o paletó sobre o sofá, passou por Benedito e Tanaka e foi até a cozinha. Voltou com uma xícara de café na mão. Parou perto de Tanaka, ainda às voltas com o esboço do seu quadro.

       - Escute, japonês...

       - Não, sou japonês, sou nissei. Isso quer dizer que sou brasileiro como você - respondeu Tanaka, calmamente.

       - Dá na mesma. Como eu dizia, por que você não pinta mulher pelada? Acho que venderia todos os quadros que fizesse.

       - Grande, essa foi grande! - exclamou Benedito.

       - E não estou certo? Ele fica pintado esses quadros que nunca serão vendidos. Tudo muito louco, sem pé nem cabeça. Acho uma perda de tempo.

       - Aquele advogado que recebe o aluguel estava aqui hoje à tarde para receber o aluguel. Você já o pagou? - indagou Tanaka.

       - Paguei hoje à tarde mesmo - mentiu Alfredo.

       - A gente não pode descuidar disso. Um atraso pode significar a rua...

       - Não precisa dizer nada disso, Tanaka. eu já sei muito bem - respondeu Alfredo, ríspido.

       - Calma, rapaz. O que eu disse demais?

       - Puxa, está me achando com cara de criança? Eu sei o que fazer.

       - Está bem, está bem - finalizou Tanaka.

       - De quem foi a idéia de colocar aquela ridícula tabuleta lá fora?

       - Foi nossa - respondeu Benedito.

       - Não tinham outro nome para pôr?

       - Achamos que aquele seria o melhor. Além disso, foi escolha da maioria.

       - Grande maioria. Não se esqueçam de que aqui um depende do outro.

       - Prefiro não depender de você.

       - Mas tem que depender.

       - Não tento assim. Quando quisermos poderemos achar outro rapaz que queira tomar seu lugar.

       - E vocês estão loucos para fazer isso, não estão?

       - Muito mais do que você imagina.

       - Que tal se o fizesse hoje?

       - Por que está pensando em ir embora?

       - Sim, foi uma idéia que me ocorreu quando eu voltava para cá. Você não têm classe, entenderam?

       - Ouviu isso, Tanaka? Vamos ter mais um motivo para festejar. O almofadinha aqui vai embora.

       - Almofadinha, não! - gritou Alfredo, pondo-se em pé.

       Tanaka pôs-se de pé, ao lado de Benedito.

       - Está bem, reconheço que estou em desvantagem. Vou arrumar minha roupa. Deixo a República Pescoço de Frango hoje mesmo.

       - E já vai tarde! - exclamou Benedito.

       Tanaka foi até a cozinha, voltando com uma outra dose em seu copo. Consultou o relógio.

       - Já é tarde, Dario nunca se demora tanto.

       - É mesmo. Passa das onze, ele sempre volta antes das dez. Deve ter ido ao cinema, ou então comemorar. Recebeu a mesada...

       - Grande mesada. Só sobraram vinte e cinco cruzeiros.

       - Mas recebeu e continuará recebendo. E eu? Se não arrumar um emprego até o próximo mês, estarei na rua. Vamos ficar só em três, se não eu puder pagar, como é que vocês farão?

       - Não esquente a cabeça, a gente vai dar um jeito. Poderemos arrumar logo um outro cara para entrar no lugar do Alfredo. Este não vai deixar saudade.

       - Um pilantra, isso é o que ele é.

       - Se ao menos eu pudesse vender um desses quadros, mas não tenho coragem de levar a uma galeria.

       - Você acaba de me dar uma idéia.

       - Que idéia?

       - Deixe-me vender seus quadros. Você me paga uma comissão.

       Tanaka riu descontraído.

       - Você então está falando sério.

       - E por que não? quanto pode valer um desses quadros.

       - Cem, duzentos cruzeiros, sei lá. Nunca pensei nisso.

       - Duzentos cruzeiros só? É muito pouco, com um preço baixo ninguém compra obra de arte. Vamos começar por mil e quinhentos, dois mil.

       - Você está louco.

       - Não, não estou louco - falou Benedito, aproximando-se do amigo. - Olhe, você compraria um quadro de duzentos cruzeiros? Um quadro para pôr na sua sala, no seu escritório, para dar como presente?

       - É, pegaria mal.

       - Pois então. Um quadro de dois mil já é outra coisa.

       - E como você vai conseguir vender isso?

       - Deixe comigo. Você me dá quanto de comissão?

       - Meio a meio?

       - No duro?

       - É, meio a meio mesmo.

       - Feito, toque aqui - disse Benedito, estendendo a mão a Tanaka.

       - Qual o motivo da confraternização? - indagou Alfredo, surgindo na sala, carregando duas malas.

       - Você vai embora mesmo? - quis saber Tanaka.

       - Falei sério. Vou agora mesmo.

       - Para onde vai?

       - Tenho um amigo que mora numa república perto da Universidade Federal, vou ficar com ele por hoje.

       - E o aluguel que você já pagou aqui, o dinheiro das despesas, como vai ficar? Você vai ter que nos dar um tempo para restitui-lo.

       - Isso fica por conta... da surpresa - acrescentou Alfredo em voz baixa, abrindo a porta. - Bem adeus! Não vou dizer que foi um prazer conhecer vocês, mas talvez até sinta falta de vocês.

       - Feche a porta que está entrando uma corrente de ar - disse Benedito, aborrecido.

 

       Passava de uma da manhã, quando Dario e Mônica foram liberados pelo garçom do restaurante. Os jovens saíram cabisbaixos e cansados. Ao chegar à calçada, Dario se encolheu todo. Fazia muito frio. Ele colocou as mãos no bolso traseiro da calça e indagou à Mônica:

       - Quer que eu a leve para casa?

       - Prefiro que me consiga um táxi.

       - Então vamos, ali na frente deve haver um ponto.

       Caminharam algum tempo em silencio. Dario sentia-se humilhado por tudo aquilo.

       - Olhe Dario, não precisa ficar chateado com o que aconteceu.

       - Puxa vida, não foi justo. O nosso trabalho daria para pagar três vezes o que gastamos.

       - Mas não dava para discutir com o garçom. Se ele chama a policia...

       - Nem pense nisso. Fiquei sem documentos, minha carteira de identidade estava na carteira.

       - E se a gente fosse até lá? Poderíamos procurar seu quimono e sua carteira.

       - Não vamos achar, nem adianta ir. Passa muita gente ali.

       - De quem era o quimono?

       - Do Tanaka, um amigo meu da república.

       - Eu faço outro para você.

       - Não, não precisa se preocupar. Não vou obrigá-la a gastar dinheiro por nada.

       - Mas eu insisto.

       - Seu pai é jardineiro, você é estudante, vamos ser sinceros: qualquer dinheiro faz falta, não faz?

       - Sim, é verdade - concordou ela, séria.

       - Pois então não precisa fazer nada. Eu acerto com o Tanaka.

       Chegaram ao ponto de táxi. Havia um livre.

       - Gostaria de encontrá-lo de novo, Dario.

       - Dê-me o número do seu telefone, então. Eu telefono para você depois.

       - Meu número é... É... Em casa não tem telefone - falou ela, rindo.

       - Não iria adiantar, na república também não tem.

       - Como poderei encontrá-lo de novo?

       - Deixe-me ver. Amanhã não posso, tenho que estudar. Terei um simulado depois de amanhã. É, só se for sábado à tarde.

       - Sábado à tarde? Onde?

       - Bem, não vai poder ser num restaurante, nem num bar. Que tal o Passeio Público?

       - Ótimo, eu estarei lá.

       - E desculpe-me por tudo que lhe causei esta noite.

       - Não ligue para isso. Achei tudo muito excitante. Nunca me diverti tanto em minha vida.

       - Verdade?

       - Verdade. E vou provar isso - disse ela, beijando-o levemente nos lábios.

       - Puxa, agora acredito.

       - Eu o vejo no sábado, está bem?

       - Sim, sem falta.

       Ela entrou no carro, acenando-lhe. O táxi partiu, andou alguns metros, parou e voltou de ré.

       - O que foi? - perguntou ele, debruçando-se na janela.

       - Sua jaqueta, não vou precisar agora. Obrigada!

       - De nada!

       O carro partiu novamente, Mônica ordenou ao motorista que se dirigisse para a praça onde se encontrara com Dario e onde fora assaltada. Lá chegando, desceu perto de seu carro. Examinou-o, tirou a chave da bolsa, entrou, deu partida e afastou-se, após haver pago o motorista com uma nota de cem, sem se importar com o troco.

 

       Dario chegou no apartamento, pensando numa desculpa para dar a Tanaka, pela perda do quimono. Havia passado pela praça, mas nem sombra de sua carteira ou da roupa. Ao abrir a porta estranhou ver os dois amigos ainda de pé.

       - Ué, o que está acontecendo? Vocês nunca foram de dormir tarde - observou.

       - Nem você - respondeu Benedito.

       Aliás, estavam ambos, ele e Tanaka, haviam tomado toda a garrafa de pinga com limão.

       - O que vocês andaram festejando - perguntou o recém-chegado.

       - Uma porção de coisas, mas a principal é que Alfredo foi embora - disse Tanaka.

       - Embora?

       - Sim, foi embora.

       - Vocês brigaram?

       - Não, ele chegou meio nervosinho, discutindo um pouco, umas verdades e ela resolveu ir embora.

       - Sem mais nem menos?

       - Sem mais nem menos.

       - E o dinheiro dele?

       - Disse que podia ficar por conta.

       - Por conta de quê?

       - Sei lá, acho que por conta da nossa inimizade.

       - Vamos ter que procurar um outro rapaz para pôr em seu lugar - disse Dario, indo até a cozinha e voltando com um copo cheio de café.

       - E você, por que demorou? - perguntou Benedito.

       - Ah, nem lhe conto. Esta foi a noite das surpresas.

       - Não vi chegar com o quimono - disse Tanaka.

       - Isso faz parte da estória também.

       - Que estória?

       Dario contou tudo que ocorrera, desde que saíra da academia até despedir-se de Mônica.

       - Quer dizer que o quimono se foi? - perguntou Tanaka.

       - Foi-se.

       - E agora?

       - A gente dá um jeito depois.

       - E essa garota, como era? - quis saber Benedito.

       - Bonita, simpática, mas estudante como nós.

       - Então tiveram que lavar pratos?

       - Pois é.

       Os dois amigos riram a valer da situação em que Dario se vira metido. Conversaram um pouco mais. Tanaka explicou o esbouço do quadro que havia terminado. Preparam-se para dormir, quando, no chão do quarto, Dario achou um envelope, endereçado a Alfredo.

       - Ei, o Alfredo esqueceu isso.

       - Parece que é da imobiliária.

       - Deve ser o recibo de pagamento do aluguel - concluiu Dario, abrindo o envelope.

       - É uma cobrança! - exclamou.

       - Cobrança? cobrança de quê? - indagou Benedito.

       - Cobrança do aluguel do mês passado.

       - Do mês passado? Mas ele foi pago. De quando é essa carta?

       - Da semana passada.

       - Mas não é possível. Nós entregamos o dinheiro para o Alfredo pagar.

       - Não, ele não pode ter feito isso - falou Dario, fitando os colegas.

       - Talvez isso explique porque ele saiu tão depressa. Foi muito repentino. Além disse, hoje à tarde, o advogado da imobiliária esteve aqui procurando por ele. Achei que era para receber o aluguel deste mês. Sendo assim, estamos devendo dois meses.

       - Mas o que o Alfredo fez com o dinheiro? - falou Tanaka.

       - Isso não me preocupa. O que me preocupa é que devemos dois mil e quatrocentos cruzeiros para a imobiliária. Onde é que vamos achar esse dinheiro? - indagou Dario, sentando-se numa das camas.

       - Estamos fuzilados! - exclamou Benedito.

       - E jogados na rua - completou Tanaka.

       - Para onde foi o Alfredo? -quis saber Dario.

       - Disse que ia ficar com um amigo por hoje à noite e que amanhã iria se arranjar por aí - explicou Benedito.

       - Depois disso, acho que ele sumiu da cidade - opinou Tanaka.

       - Também acho - concordou Dario. - E agora? Como é que vamos fazer? Aquele miserável colocou a gente numa sinuca. Tenho quase certeza de que, amanhã cedo mesmo, vamos receber um aviso de cobrança amigável, daquelas que dizem: ou paga ou rua. E nós iremos para a rua, pois não teremos outra alternativa - falou Dario.

       - Nossa única solução são os quadros do Tanaka - disse Benedito. - eu estava conversando com ele sobre isso. Acho que poderia vendê-los por um bom preço. Valeria a pena tentar.

       - Mas isso terá que ser feito amanhã de manhã. Acha que conseguirá dois mil e quatrocentos cruzeiros? - indagou Dario.

       - Poderíamos ir à imobiliária, explicar tudo que houve. Talvez a gente consiga um prazo um pouco maior. - ponderou Tanaka. - Se eles concordarem, poderemos, se os quadros não forem vendidos, telefonar para casa e pedir mais dinheiro.

       - De minha parte vai ser difícil conseguir. Meu pai foi bastante claro na carta que me mandou. Ele não terá mais condições de me sustentar aqui. - falou Benedito.

       - Não se aborreça, a gente vai dar um jeito - consolou-o Tanaka. - você vai conseguir vender os quadros ou talvez conseguir um bom emprego. É só questão de tempo e calma. Tudo vai se arranjar.

       - Ah, seu eu pegasse o Alfredo na minha frente agora. Seria capaz de arrebentá-lo - rugiu Benedito, entredentes.

       - É uma idéia tentadora - apoiou Dario. - Mas não nos ajudaria em nada. Gostaria de saber o que ele fez com o dinheiro.

       - Andou esnobando. É por isso que sempre lhe sobrava dinheiro. Desde o primeiro mês, estava gastando nosso aluguel. O melhor que temos a fazer, porém, agora, é dormir. Amanhã a gente pensa melhor nisso. Ninguém vai ao cursinho cedo, está certo? - propôs Benedito.

       Dario e Tanaka concordaram.

 

       Alfredo chegou à rodoferroviária, consultou o resto do dinheiro que tinha no bolso e que, antes do jogo, havia deixado no apartamento. Verificou o horário do ônibus para o interior, não havia mais nenhum que o pudesse levar à sua cidade. Resolveu, porém, tomar o que deixasse mais perto de lá. Caminhava para o guichê de passagens, quando foi abordado pelos dois rapazes com quem havia jogado naquela noite.

       - Vai viajar, Alfredo? - indagou um deles?

       - Quer que o ajude a levar as malas? - perguntou o outro.

       - Eu... Não, eu não ia viajar... - atrapalhou-se todo.

       - Então deve estar chegando. Não quer uma carona até seu apartamento?

       - Eu? bem...

       - Ora vamos. É nosso caminho, teremos prazer em deixá-lo lá - disse um deles, segurando-o pelo braço e conduzindo-o em direção a um carro estacionado lá fora.

       Lá dentro, Zaca os esperava.

       - Foi uma boa idéia mandar vigiá-lo. Eu sabia que esse cara não era de confiança. Estava querendo nos deixar na mão, não é isso, Alfredo? - perguntou ao rapaz, assim que ele foi posto dentro do carro.

       Alfredo estava apavorado. Não contava com aquilo. Pensava que seria fácil sair da cidade, voltar para casa e convencer seu pai a mandá-lo a estudar em São Paulo, Minas ou Rio. Desse modo ficaria livre daquela divida de jogo que contraíra, além de se livrar das conseqüências que o não pagamento do aluguel poderia acarretar.

       O carro pôs-se em movimento e enquanto percorriam as ruas em direção ao apartamento, Zaca, que estava ao volante, disse aos outros rapazes:

       - Talvez a gente devesse lhe dar um lembrete. Ele se esqueceu de nossas recomendações.

       - Não, esperem, não precisam exagerar. Eu errei, mas prometo que não vou fazer de novo! Amanhã mesmo vou telefonar ao meu pai, pedindo mais dinheiro e pagarei a vocês, não se preocupem - disse Alfredo, nervosamente.

       - Em nosso ramo de negócio precisamos estar alertas para clientes como você, Alfredo. Gente que se julga muito esperta e pensa que pode nos passar a perna - falou Zaca, fracamente.

       Alfredo observou, amedrontado, que os dois rapazes ao seu lado calçavam socos ingleses.

       - Não, esperem aí, vocês não podem fazer isso...

       Mas foi em vão. Uma saraivada de golpes acertou-o.

       - Está bem, turma. Acho que foi o bastante - interrompeu Zaca.

       Havia chegado ao prédio onde Alfredo morava.

       - Vamos ficar com suas malas - disse Zaca. - é uma garantia. E não pense em nos denunciar à policia porque senão você vai se dar mal, muito mal. Não poderá provar nada e, depois que sairmos, nós o encontraremos nem que seja no inferno. E pode tratar de arrumar o dinheiro o mais rápido possível.

       O carro arrancou, deixando o rapaz cambaleante na calçada. Não havia se machucado muito, mas sentia-se aturdido e sem saber o que fazer. Se voltasse ao apartamento, cedo ou tarde os amigos acabariam sabendo sobre o dinheiro do aluguel, perdido no jogo. Era, porém, a única coisa que lhe restara fazer. Ali, pelo menos, estaria seguro. Telefonaria a seu pai e conseguiria o dinheiro para pagar tudo que havia gasto.

       Lentamente, começou a subir as escadas.

 

       Mônica chegou em sua casa, guardou o carro na garagem e entrou pela porta de ligação que a levaria ao living da grande mansão dos Castro Fernandes, num dos bairros mais ricos de Curitiba.

       Subiu diretamente ao seu quarto e atirou-se na luxuosa cama, olhando o lustre que pendia sobre ela.

       Nunca se divertira tanto, reconhecia. A simplicidade e a espontaneidade de Dario a cativaram. Toda aquela conversa e aqueles problemas que o estudante lhe apresentara, pareciam-lhe importantes como ele fizera crer. E o fato de haver lavado pratos num restaurante da rua Quinze a fez rir alto, enquanto olhava os braços ressequidos, cobertos aqui e ali por espuma de sabão.

       Tinha dezenove anos e sempre vivera luxuosamente. Nada sabia do outro lado da vida até aquela noite. As emoções que vivera, porém, a divertiram mais do que até então havia feito na vida.

       Levantou-se foi até o banheiro, despiu-se e tomou um banho. voltou enrolada numa toalha, apanhou uma camisola em seu guarda-roupa e vestiu-a, olhando-se ao espelho.

       - Nada mal para a filha de um jardineiro - comentou em voz alta, sorridente, antes de ir deitar-se.

       Na manhã seguinte foi despertada pela camareira, entrando com a bandeja de café.

       - Bom dia, D. Mônica.

       - Bom dia, Adélia. Que horas são?

       - Quase oito. Aqui está seu café.

       - Deixe a bandeja sobre a mesa de cabeceira e pode ir. Minha mãe já se levantou?

       - Sim e perguntou pela senhora.

       - Onde está ela?

       - Deve estar na piscina, agora.

       - Tem sol, hoje?

       - Sim, meio fraco, mas tem.

       - Eu desço para falar com ela.

       A empregada já chegava à porta, quando Mônica, sentando-se na cama, chamou-a.

       - Adélia, venha até aqui. - Chamou ela. - Parece que temos o mesmo corpo. Ali no banheiro tem um vestido e uma blusa. Estão um pouco descosturados, mas você poderá consertar e usar.

       - Eu? para mim?

       - Sim, pode pegar lá. É um azul e aquela blusa de lá grossa.

       A jovem agradeceu e foi apanhar o vestido. Mônica levantou-se, apanhou seu uniforme no guarda-roupa e vestiu-o. Depois penteou-se e, antes de sair, tomou apressadamente o seu café.

       Encontrou-se com sua mãe à beira da piscina.

       - Olá mãe. Queria falar comigo?

       - Sim, filha. O que houve ontem? Você telefonou avisando que iria demorar um pouco, mas não deu detalhes...

       - Fui à boate com uns amigos, nada de especial.

       - Foi à joalheira?

       - Sim, escolhi um relógio de ouro como presente para o papai. eles ficaram de gravar-lhe o nome e depois entregariam aqui.

       - Um relógio? Escolheu artigo bom?

       - Sim, mãe. Sete mil cruzeiros, importado.

       - Ótimo, seu pai vai ficar contente.

       - Tenho certeza que ele vai adorar.

       - Tem algum programa para a noite?

       - Vou até a casa da Iolanda. Pretendemos estudar um pouco hoje à tarde, depois do cursinho. Almoçarei na casa dela.

       - Mas não chegue tarde. Não se esqueça da recepção na casa dos Alencar, hoje à noite.

       -Tenho que ir mesmo?

       - Que pergunta, querida. Você sabe muito bem que eles sempre dão essas recepção em homenagem ao aniversário de seu pai.

       - Não sei por que fazem isso...

       - Tradição, filha. Os avós...

       - Não precisa continuar, mãe. Essa estória de tradição e protocolo não me atrai.

       - Você irá, não irá? Seu pai ficaria decepcionado.

       - Sim, mãe. Eu irei. Por nada neste mundo decepcionaria meu pai - finalizou a jovem, afastando-se.

       Desceu por uma alameda de pinheiros, passou por um belíssimo jardim, todo gramado com as flores distribuídas em canteiros marcados por pedras coloridas. Deixou a alameda e o jardim para trás, contornando uma cerca coberta de trepadeiras, chegando até uma pequena casa, onde morava o jardineiro e sua esposa.

       A propriedade de sua família ocupava aproximadamente uma quadra, com duas entradas principais à frente e uma aos fundos, ao lado da casa do jardineiro. Caminhou até o portão da casa do jardineiro. Não sabia se deveria ou não pedir o que pretendia ao jardineiro. Ele poderia interpretar aquilo como uma ofensa. Por outro lado, era um homem muito bondoso e já estava com a família há muito tempo.

       O jardineiro chegou em casa naquele momento, trazendo uma porção de ferramentas ao ombro e um regador na mão. Olhou Mônica ao portão e perguntou:

       - Algum problema, D. Mônica.

 

       Naquela manhã, quando Téia chegou, encontrou Alfredo sentado ao lado da porta do apartamento. Acordou-o, preocupada.

       - O que houve, Alfredo?

       - O inferno, Téia. O inferno!

       - Você não dormiu no apartamento?

       - Não - respondeu ele, levantando-se com dificuldade.

       - O que houve em seu rosto? - perguntou ela, notando os ferimentos que o rapaz recebera na noite anterior.

       - Nada - disse ele, escondendo o rosto com as mãos.

       - Você está machucado deixe-me ver - pediu ela, retirando-lhe as mãos da face. - Está contado, você brigou ontem?

       - Não, cai e machuquei.

       - Então vamos entrar, precisamos fazer um curativo nisso aí.

       - Não, não posso entrar.

       - E por que não?

       - Eu... Eu... Está bem, vamos entrar.

       A garota abriu a porta, entrou e foi até o banheiro apanhar material para curativo. Passava um pouco das sete horas. Os outros rapazes ainda dormiam. Com bastante cuidado ela fez um curativo nos pontos mais feridos.

       - Não acha Melhor deitar-se um pouco? Vou fazer café, se você quiser esperar...

       - Acho melhor eu ir embora...

       - Mas o que houve afinal de contas?

       - É muito complicado para explicar tudo para você. para ser mais simples, eu sai da república. Deixe para lá, você não vai entender.

       - Está certo, se não quer contar. Vou fazer o café, você espera ou vai dormir?

       - Eu espero.

       Enquanto a jovem ia para a cozinha, Alfredo sentou-se, colocando as mãos no rosto, num gesto de desespero. Alisou várias vezes os cabelos, pensativo. Precisava contar a alguém o que acontecera. Julgou que o melhor a fazer era explicar tudo aos rapazes da república.

       Caminhou vagarosamente até o quarto. Entrou. Os três dormiam. Aproximou-se da cama de Dario e chamou-o algumas vezes, até que ele acordasse.

       - O que houve? Quem está aí? - perguntou o rapaz, despertando.

       - Sou eu Alfredo.

       - Alfredo? Seu miserável, vou arrebentá-lo - gritou pulando da cama e agarrando o outro pelo colarinho.

       Com o barulho, Tanaka e Benedito despertaram. A luz acesa e, ao verem a briga, cuidaram em separar os dois.

       - O que você quer aqui? - gritou Benedito, segurando Dario.

       - Preciso de ajuda...

       - Precisa de ajuda? Ora, essa é boa. E quem vai nos ajudar. Já sabemos de tudo, seu patife - rugiu Dario.

       - Já sabe? Quem lhes contou.

       - Achei uma carta de cobrança da imobiliária. Estamos devendo dois meses de aluguel.

       - Isso é o de menos - disse Alfredo, soltando-se dos braços de Tanaka.

       Os rapazes reparam nos cortes em seu rosto.

       - O que houve com seu rosto? - perguntou Tanaka.

       - Isto é o pior da estória.

       - Então acho bom contar do começo ao fim. - disse Benedito.

       - É o que vou fazer.

       Em poucas palavras, Alfredo colocou-os a par de tudo que ocorrera. Ao final os três caíram desanimados sobre as camas.

       - Só faltava essa para nos acontecer - lamentou Dario.

       - Mais a gente vai dar um jeito, é só vocês tem um pouco de paciência. Vou telefonar para meu pai agora cedo, ele vai arrumar todo o dinheiro.

       Os três se entreolharam.

       - Vai mesmo? - arriscou Dario.

       - Vai, tenho certeza. Meu pai não me deixaria numa fria dessas. E depois, se ele não arrumar, minha mãe arruma. Hoje à tarde mesmo a gente consegue o dinheiro.

       - O que vocês acham? - perguntou Dario aos outros.

       - Parece que é nossa única chance positiva - falou Benedito.

       - Eu também - concordou Tanaka.

       - Está bem, isso vai resolver todos os problemas. mas com que tipo de gente você foi se meter, cara - repreendeu-o Dario.

       - Em parte isso foi bom para mim. Aprendi uma lição, não se repetirá de novo, prometo.

       - Claro que não se repetirá. De agora em diante, o encarregado de pagar o aluguel serei eu - disse Dario.

       - Concordo, é até bom. Vai evitar tentações para mim.

       - Que você perca depois o seu dinheiro, é problema seu. O importante para nós é que você não nos coloque em frias como essa que passamos. Que horas são agora? - quis saber Dario.

       - Quase sete - respondeu Alfredo.

       - A que horas você pode ligar para o seu pai pedindo o dinheiro?

       - Depois das oito, eu ligo para o escritório dele lá na minha cidade.

       - Ótimo. Isso livra todo mundo do problema. Poderemos ir ao cursinho sossegados. Você acha que o dinheiro chegará hoje?

       - Talvez à tarde ou segunda-feira, cedo. Sábado o banco não trabalha.

       - Então eu passarei na imobiliária e tentarei conseguir um adiamento até segunda-feira à tarde. Isso vai nos dar uma boa margem de tempo, se é que você vai conseguir mesmo o dinheiro.

       - Não, eu consigo. Juro como consigo.

- Está bem, acho que desta vez a gente pode perdoá-lo. Que acham, amigos?

       Benedito e Tanaka concordaram.

       - E você vai continuar com a gente? - perguntou Benedito.

       - Claro, claro.

       - Então acho melhor a gente fazer as pazes - disse Benedito, estendendo à mão ao colega.

 

       - Posso contar com você, então? - perguntou Mônica, após haver conversado longamente com o velho casal.

       - E esse rapaz, você o conhece bem? - quis saber o jardineiro.

       - Eu o conheci ontem, como já disse.

       - Será que ele merece confiança?

       - Salvou minha vida, meu carro, está claro que é um rapaz honesto.

       - E seus pais?

       - Eles não podem ficar sabendo disso. Meus pais não entenderiam esse tipo de relacionamento. Acham que somos superiores, que o dinheiro nos coloca num ponto acima dos outros e que não devemos descer por motivo nenhum. Simpatizei com o rapaz e quero ajudá-lo. Depois de ontem, porém, se eu o levasse à minha verdadeira casa ele poderia se sentir ofendido, achar que eu poderia estar tentando humilha-lo.

       - Está bem, nós concordamos. Quando você pretende trazê-lo aqui?

       - Amanhã, talvez. Mas espero que ele venha aqui muitas vezes.

       - Pode contar conosco, então.

       - Vocês são uns amores, obrigada! - agradeceu ela, retirando-se.

       Voltou para casa, antes de entrar, porém, deu ordens ao motorista que lavasse seu carro e depois o levasse para uma revisão. Penetrou na grande sala de entrada, decorada com enormes espelhos, tapetes caríssimos e móveis finos. Dirigiu-se ao seu quarto, quando o mordomo a chamou.

       - Srta. Mônica, telefone.

       - Quem é?

       - É a Srta. Iolanda.

       - Eu atendo no meu quarto.

       Caminhou até lá, apanhou o telefone e levou-o até a cama, deitando-se:

       - Sou eu Iolanda? De que se trata?

       - Quero apenas confirmar com você para hoje à tarde. eu estou aqui no colégio. Como você não apareceu, achei que tivesse tido algum contratempo.

       - Puxa vida, é mesmo! Esqueci-me do cursinho. Vou já para ai. Chego num instante.

       Desligou o telefone, apanhou seu material e correu até a garagem. Felizmente o motorista ainda não começara a lavar o carro. Apanhou-o e dirigiu-se rapidamente ao colégio. Chegou atrasada, deu uma boa desculpa ao inspetor de alunos e pouso depois estavam na sala de aula. Sentou-se ao lado de Iolanda.

       - O que houve? - perguntou a amiga.

       - Uma porção de coisas, na hora do recreio a gente conversa. Quero prestar atenção a esta aula de Física porque tenho uma porção de dúvidas.

       À hora do recreio, na cantina, contou todo o ocorrido à amiga.

       - Mas você está maluca! Onde já se viu envolver-se com um tipo desses.

       - Não vejo nada de extraordinário. Ele me pareceu muito bom.

       - Mas o vexame que ele a fez passar? Lavar pratos! Onde já se viu? O que a turma diria se ficasse sabendo?

       - Ninguém vai ficar sabendo, a não ser que você conte. E você não vai fazer isso, vai?

       - Não, claro que não, pode confiar em mim.

       - Quanto ao vexame não foi tanto assim. Foi até divertido. Você precisava ver à cara do garçom quando Dario começou a apalpar os bolsos em busca da carteira. Estudantes! Foi o que ele disse, com uma cara cômica.

       - Você é maluca mesmo. Mônica. Vai se encontrar com ele amanhã?

       - Claro que vou. Vou apresentar-lhe o casal de jardineiros como sendo meus pais.

       - E se ele ficar sabendo? Cedo ou tarde você vai ter que contar a ele.

       - Futuramente eu conto. Primeiro preciso ver até onde a gente consegue levar essa amizade.

       - Você vai me apresentá-lo?

       - Claro que sim você não pode dar nenhuma pista da verdade.

       - Procurarei me controlar, não se preocupe.

       - Tem um outro problema que tenho que resolver. Preciso arrumar umas roupas velhas, bem batidas para dar a impressão de que não sou rica. Não posso me apresentar com as roupas que tenho.

- Sei de uma loja no centro que vende roupas usadas "blue-jeans", sapatos, tudo. Se você quiser...

 

       A hora do almoço, Benedito e Tanaka aguardavam a chegada de Dario e Alfredo. O primeiro a chegar foi Dario.

       - Está tudo legal, gente. Conversei com o gerente lá da imobiliária chorei as mágoas inventei um monte de desculpas, disse que o dinheiro de todo mundo tinha atrasado e ele concordou em nos dar um adiamento, até segunda-feira à tarde. Temos que levar o dinheiro lá antes das quatros.

       - Ufa! Que alivio! - suspirou Benedito.

       - O mesmo digo eu - ajuntou Tanaka.

       - E o Alfredo, já chegou? - perguntou Dario.

       - Não, ainda não, mas já era para ter voltado. Ele ia telefonar e depois nos esperar aqui, pois não iria ao cursinho. Falei com a Téia e ela disse que ele não apareceu - explicou Benedito.

       - Será que deu zebra? - preocupou-se Dario.

       - Vire está boca para lá, colega - falou Benedito, batendo três vezes sobre a mesa de canto da sala.

       - O almoço já está pronto - informou Téia, à porta da cozinha.

       - Já vamos - disseram os três.

       Pouco depois, surgiu Alfredo. Este abriu a porta lentamente, entrando em silencio, como se estivesse muito cansado. A expressão de seu rosto não era das mais alentadoras.

       - Não, espere aí - falou Dario, levantando-se da poltrona onde estava sentado? - Não diga que não conseguiu o dinheiro...

       - Ainda não, mas não se desesperem. Meu pai e minha mãe viajaram não deu para falar com eles. - explicou o rapaz.

       - Ah, não. Essa, não - exclamaram os três numa só vez.

       - Não tem mais ninguém de sua família lá? - perguntou Dario.

       - Tem meu irmão, mas não consegui localizá-lo. Mas não se preocupem, tudo vai dar certo, eu prometo que consigo o dinheiro.

       - E como vai conseguir isso se não conseguiu localizar ninguém de sua família? A imobiliária concordou em prorrogar o vencimento até às quatro horas da tarde de segunda-feira, se o dinheiro não entrar àquela hora, vamos para a rua, sem apelação. O azar vai ser de seu pai que nos avalizou o contrato. Ele é que vai ter que arcar com o processo - lembrou Dario.

       - Não, pelo amor de Deus, isso não pode acontecer. Meu pai me deserdará se acontecer isso.

       - E que solução nós temos? - continuou Dario.

       - Falei com o contador da firma de meu pai, ele vai tentar localizar meu irmão para lhe pedir o dinheiro.

       - E esse contador não pode mandar o dinheiro? Depois você explica a seu pai...

       - Foi o que propus a ele, mas ele disse que não tem autorização para levantar qualquer importância do caixa da firma, a não ser com autorização de meu pai.

       - E se ele não conseguir falar com seu irmão? E se o dinheiro não estiver aqui até segunda-feira à tarde? - prosseguiu Dario.

       - É muito simples. O Benedito aqui arruma umas roupas de "hippie" e vai vender meus quadros lá na praça - brincou Tanaka.

       - Mas é a solução - concordou Benedito.

       - Vocês estão malucos! Nunca conseguirão vender quadros suficientes para arrecadar dois mil e quatrocentos - falou Dario, sem esperança.

       - Quatro mil e quatrocentos - disse Alfredo, sentando-se.

       Téia chegou à porta da cozinha e insistiu:

       - O almoço está esfriando, ninguém vai comer hoje?

       - Perdemos a fome - disseram os três, cada qual com a cara mais desanimada que o outro.

 

       Naquela noite, após o jantar, os quatros se reuniram novamente para discutir o problema. Alfredo tentara durante a tarde toda falar com alguém de sua família, mas não conseguira. O contador da firma de seu pai, de modo algum, concordou em remeter o dinheiro de que precisava. Nada poderia fazer sem a autorização do proprietário da firma.

       - Diabo de contador. Poderia ter sido mais camarada - esbravejou Alfredo, esmurrando o joelho.

       - E amanhã acha que conseguirá falar com seu pai? - perguntou-lhe Dario.

       - Eles foram passar o fim de semana fora da cidade. Só deverão chegar domingo à tarde. E para ajudar ainda mais, não deixaram endereço do hotel nem de onde iam ficar. Meu pai costuma fazer dessas para não ser incomodado.

       - E seu irmão? Não ligou para a casa dele, não deixou recado, nada?

       - Deixei recado com a empregada, mas não creio que ele vá se preocupar em ligar para cá. E mesmo se quisesse, para onde ligaria? Nós não temos telefone. O jeito vai ser ligar amanhã de manhã para ele outra vez.

       - Mas amanhã é sábado. Se ele concordar remeter o dinheiro, só vai poder fazê-lo na segunda-feira. Será que chega a tempo? - atalhou Benedito.

       - Eu posso pedir a ele para mandar por um portador. O que está me preocupando é que terei que falar com ele na primeira tentativa. Se não o encontrar, estamos fritos.

       - Por que na primeira tentativa? - quis saber Dario.

       - Por que meu dinheiro está no fim. Só vai dar para mais um telefonema. Gastei quase tudo hoje telefonando para Deus e todo mundo. Interurbano para lá não sai barato.

       Téia passou por eles na sala para ir embora.

       - Que turma mais triste. Parece um velório isso aqui - comentou ela.

       - Pois é isso mesmo. Um velório que pode acabar na segunda-feira, quando seremos enterrados - respondeu-lhe Benedito.

       - É tão ruim assim?

       - Pior do que você imagina.

       - Posso ajudar em alguma coisa?

       - Pode, claro que pode. É muito simples basta nos emprestar quatro mil e quatrocentos cruzeiros - disse-lhe Alfredo, nervoso.

       - Calma lá, Alfredo. Téia não tem nada com nossos problemas. O único culpado disso aqui é você - interrompeu-o Benedito, com cara de poucos amigos.

       - Está certo, eu sei que estou errado, sei que toda essa confusão é por minha culpa, mas não precisa ficar me lembrando todo o instante. Não se esqueça que quem vai sair realmente mal sou eu, se não pagarmos aqueles caras.

       - Vamos para com isso, os dois? Já basta de confusão que está armada e vocês ainda querem complicar mais? O negócio é ficar todo mundo junto, sem brigas - aconselhou Tanaka.  

       - É isso mesmo, Tanaka. Téia pode ir agora. O problema aqui é sério mas a gente vai resolver - disse Dario.

       - Eu tenho quatrocentos cruzeiros guardados na Caderneta de Poupança, se vocês precisarem... - ofereceu ela.

       - Não obrigado, Téia. Você é muito bondosa em nos oferecer isso, mas é seu. Não se preocupe conosco. Agora vá, seu pai já deve estar esperando por você lá embaixo - falou-lhe Benedito, acompanhando-a até a porta.

       Quando voltava para sentar-se, tocaram a campainha. - Benedito fez meia-volta e caminhou até a porta, pensando que se tratasse de Téia que tivesse esquecido alguma coisa. Ao abrir a porta, deu com dois desconhecidos.

       - O Alfredo Está aí? - perguntou um deles.

       - Sim, não querem entrar? - convidou Benedito.

       Os dois rapazes entraram, examinando o aposento. Alfredo ao vê-los, empalideceu, sem forças para se pôr em pé. Os dois rapazes se aproximaram dele calmamente, sob os olhares surpresos dos outros rapazes.

       - Olá, Alfredo, tudo bem? - perguntou o maior deles.

       - O que vocês querem aqui? Eu tenho uma semana de prazo...

       - Tinha. Aquela brincadeirinha de ontem à noite apressou tudo, já se esqueceu?

       - Só vou poder arrumar o dinheiro segunda-feira, antes disso, não.

       - Pois é bom que arrume até lá, caso contrario... - ameaçou o rapaz, apanhando o seu soco inglês.

       Dario vendo aquilo, pôs se em guarda, seguido pelos amigos.

       - Calma lá, cara. Não ouviu o que ele disse? Segunda-feira vocês vão ter o dinheiro - disse Dario.

       O rapaz que sacara o soco inglês não deu ouvidos e, segurando Alfredo pelo colarinho, ameaçou dar-lhe um soco. Dario fez menção de intervir, mas o outro rapaz sacou de uma arma apontando para ele, dizendo:

       - Acho bom você ficar quietinho aí, meu chapa. Este brinquedinho aqui é muito perigoso e não gosto de valentes.

       O rapaz que ameaçara bater em Alfredo não chegou a completar o gesto, voltando a guardar o soco inglês no bolso. Os dois visitantes inesperadamente voltaram-se e saíram calmamente pela porta. antes de fechá-la, porém, avisaram:

       - Segunda-feira, sem falta ou os quatro vão se dar mal.

       - Os quatro? - exclamou Benedito.

       - Os quatro sim - confirmou o rapaz, batendo a porta.

       Os rapazes ficaram sem reação, olhando para Alfredo. Este ainda estava pálido e tremia como um desesperado.   

       - Que embrulhada você foi nos arrumar, Alfredo - disse Dario.

       - Não tive culpa, como ia saber que eles viriam aqui? - defendeu-se Alfredo.

       - Como eles sabiam que você morava aqui? - insistiu Dario.

       - Não deve ter sido difícil. E vocês, por que não fizeram alguma coisa? Você e Tanaka não são cobras do caratê? Teria sido fácil liquidá-los. Por que não fizeram isso?

       - Você está maluco. Não sou tão bom assim. E depois, ele tinha uma arma. Se eu piscasse torto arriscava levar um tiro. Valentia e heroísmo ficam bem no cinema, não comigo. Não concorda, Tanaka?

       - Eu não vou dar murro em ponta de faca. Um revolver é sempre um revolver. E depois, não cheguei ainda na lição que ensina a gente a enfrentar um revolver - brincou ele, sorrindo amarelo.

       - Belos amigos eu tenho - soluçou Alfredo, caminhando até a cozinha de onde voltou com a garrafa térmica e diversas xícaras.

       Colocou-as sobre a mesa de centro, dizendo:

       - quem quiser, sirva-se.

       Tomaram café em silêncio. Depois, nervosamente, acenderam seus cigarros, inundando a sala, em poucos instantes, com a fumaça que lançavam apressadamente. Tanaka começou a rir, a principiou devagar, depois numa gargalhada.

       - Ficou louco, coitado - observou Alfredo.

       - Qual foi a graça, Tanaka? - perguntou-lhe Benedito.

       - Só tenho mais dois cigarros no maço - disse ele.

       - Só dois? E daí? eu tenho três - observou benedito.

       - Eu tenho o maço cheio - falou Alfredo.

       - O meu acabou - disse Dario, começando a rir também. - De quem vamos tirar cigarros depois que os nossos acabarem?

       Os quatro riram juntos. Depois foram se acalmando, até que aquele silencio pesado de antes voltasse a reinar entre eles.

       - Eu ainda acho que a solução para o nosso problema são os quadros do Tanaka - falou Benedito, em voz baixa.

       - Você os venderia? - perguntou Alfredo.

       - Posso tentar. Amanhã cedo vou para a praça e dou uma de "hippie".

       - Amanhã cedo nós vamos ter um simulado, já esqueceram? - observou Dario.

       - O que é mais importante? - respondeu Benedito.

       - Poderíamos penhorar algumas coisas nossas - lembrou-se

Tanaka.

       - O quê? Seu cavalete de pintura? Nossas malas? As roupas? Não conseguiríamos nem mil cruzeiros - desaprovou Alfredo.

       - E se pegássemos o dinheiro da comida que deixamos depositado com o dono do armazém? - sugeriu Tanaka.

       - O quê? E depois, além de postos na rua, passaremos fome - discordou Benedito.

       - O que vai adiantar esse dinheiro se não tivermos onde cozinhar? - argumentou Tanaka.

       - Nada disso. Pelo menos poderemos retirar todo o dinheiro em sanduíches. Isso já é o bastante, não é?

       - O Benê tem razão, Tanaka - interrompeu-os Dario. - É melhor não tocarmos naquele dinheiro. O que temos a fazer é o seguinte amanhã o Alfredo tenta ligar pela última vez ao irmão e o Benê vai até a praça tentar vender os quadros. Hoje não poderemos fazer mais nada. Vamos esperar para ver, está bem?

       Os outros concordaram.

 

       Naquele momento na mansão dos Alencar realizava-se uma recepção em homenagem ao aniversário do pai de Mônica. Fotógrafos e convidados misturavam-se na grande sala de jantar. Mônica sentia-se aborrecida com tudo aquilo. A intenção do jantar não era de homenagear sinceramente o aniversariante. Era apenas de defender os negócios, de manter estreitos os laços de amizade, que trouxessem benefícios presentes ou futuros. Iolanda, ao seu lado, cutucou-a no momento em que o anfitrião realizava seu discurso.

       - Que cara é essa?

       - Não gosto - respondeu Mônica, sorrindo forçadamente para o rapaz sentado à sua frente.

       - O Dudu não tira os olhos de você.

       - Eu sei o que ele está pensando.

       - Sabe? O que é?

       - Não seja indiscreta.

       Iolanda riu, antes de dizer para a amiga.

       - E eu sei no que você está pensando. Aliais em quem você está pensando.

       - Sabe? Então conte-me.

       - Naquele rapaz, o estudante.

       - Errou. Havia até me esquecido dele.

       - Verdade?

       - Eu estava pensando no quanto tudo isso aqui é cheio de interesseiros. Veja meu pai, ele sorri, agradece, mas, no fundo, ele sabe quem é que não é sincero aqui dentro.

       - Ele parece gostar de tudo isso.

       - E quem não gosta? Isso é um alimento para a vaidade pessoal de cada um, não é? Veja o dono da casa. É riquíssimo, mas depende de papai para tudo que fizer. Desse modo, agradar o papai é simplesmente garantir futuros investimentos.

       - E o que há de mal nisso? Eu, francamente, gosto disso.

       - Cada um tem o amigo que merece - falou Mônica, em voz baixa.

       - O que foi?

       - Nada.

       Mais tarde quando voltavam para casa, Mônica observava, pela janela do carro, as pessoas que caminhavam pelas calçadas. Veio-lhe a mente o sorriso espontâneo e quase ingênuo de Dario, despedindo-se dela. Era um bom rapaz, provavelmente seria um ótimo profissional, se conseguisse passar em algum vestibular.

       Assim que chegou em casa, subiu imediatamente para seu quarto, após despedir-se dos pais. Uma vez lá, tirou de seu guarda-roupa um pacote de roupas usadas que havia comprado. Consultou o relógio, passava das dez. Foi até a janela e olhou na direção da casa do jardineiro. Havia luz numa das janelas. Apanhou o pacote e saiu, dirigiu-se para lá.

       Foi recebida com muita alegria pelos donos da casa.

       - Eu gostaria de pedir um favor para a senhora, D. Clara. Se não for muito incomodo, gostaria que lavasse e passasse estas roupas para mim e depois as deixasse guardadas aqui.

       -Por quê?

       - Estive pensando sobre aquele rapaz de quem lhes falei. Não posso me encontrar com ele com as roupas que tenho. Ele logo perceberia o disparate, pois todas elas são muito caras. Assim, se eu usar estas aqui ele não vai notar nada. Vou deixar algumas aqui e outras em casa.

       - Acha que está agindo certo, senhorita? - indagou-lhe o jardineiro.

       - Não estou fazendo nada de mal - respondeu ela.

       O jardineiro abaixou os olhos para falar-lhe.

       - Sabe, estamos aqui há muito tempo, sempre fomos muito honestos em nosso trabalho, a senhorita sabe disso. Mas a mocidade hoje em dia anda tão descabeçada que...

       - Já sei, o senhor acha que pretendo fazer qualquer coisa errada. Se é isso, não se preocupe. Dou-lhe a minha palavras. Quero apenas poder me encontrar com aquele rapaz sossegadamente. pense bem o senhor. Se eu sair muito bem vestida para me encontra com ele amanhã, lá no Passeio Público, e algum repórter ou colunista social ficar sabendo disso, já pensou as fofocas que vão surgir? Saindo assim, quem nos vir não vai nem reparar em nós. Além disso, eu disse a ele que era pobre, não posso me desmentir.

- Desculpe-me, falei por falar - rouquejou em voz baixa o jardineiro.

       - Eu entendo, afinal de contas, o senhor apenas está se certificando de que não vaio se envolver em qualquer problema futuro.

       - Mesmo que não queira, já estou envolvido. Quando seu pai souber...

       - Quando ele souber, se um dia ele souber, eu me entenderei com ele. E então, D. clara, à senhora me fará esse favor?

       - Sim, senhorita. eu farei.

       - Eu a pagarei por isso, depois. Obrigada!

       Despediu-se deles e saiu. Caminhou pensativa pelo jardim, olhando um céu sem estrelas sentindo-se excitada e divertida de reencontrar-se com Dario no dia seguinte.

 

       À hora do almoço do sábado, a situação parecia mais desesperadora ainda na República Pescoço de Frango. Benedito não havia conseguido vender nem um dos quadros do Tanaka, enquanto que Alfredo, em seu último telefonema, não localizara o irmão.

       - E se a gente retirasse um pouco do deposito que temos no armazém para insistirmos nos telefonemas? - propôs Alfredo.

       - Acho melhor não tocar naquele dinheiro. Em último caso, são nossas passagens de volta para casa. - falou Dario.

       - Vocês poderão sair livremente ir para casa. E eu? Aquela turma não vai me deixar sair da cidade de modo algum. São até capazes de... Ah, não. Isso não! - exclamou Alfredo.

       - Não se esqueça de que nós também estamos ameaçados - lembrou Benedito.

       - Mais essa ainda para ajudar - soluçou Tanaka, terminando os últimos retoques do quatro que iniciara no dia anterior.

       Dario olhou para a pintura no cavalete.

       - Terminou depressa, Tanaka - comentou.

       - Não consegui dormir ontem a noite e fiquei pintado. Hoje de manhã, no simulado, não consegui fazer nada.

       - E quem de nós conseguimos - consolou-o Benedito.

       - O quadro ficou muito bom - disse Dario.

       - Pode ficar com ele.

       - Posso dar de presente a uma pessoa? você não se incomodaria?

       - Para quem?

       - Aquela garota.

- Gamado, é?

       - Não, não é nada disso. Apenas uma lembrança.

       - Faça o que quiser. Se nós sairmos dessa fria, não quero ver mais esse quadro na minha frente, porque ele vai me lembrar um tempo muito difícil.

       Um pouco mais tarde, Dario dirigiu-se ao passeio Público. Tratava-se de uma espécie de reserva florestal em plena Curitiba, combinada com um pequeno Jardim Zoológico, formando um centro de atrações muito popular na cidade, ponto de encontro de estudantes e namorados.

       Não foi difícil localizar a jovem. Ela se encontrava junto à jaula de um dos animais. À principiou não a reconheceu. Ela trajava calça e jaqueta de brim desbotado e trazia os cabelos soltos que o vento cuidava em fazer dançar em frente de seu rosto.

       Ele se aproximou um pouco tímido.

- Oi! Quase não a reconheci.

       - E por que não?

       - Naquela noite você estava com os cabelos presos...

       - Que noite, não?

       Ele sorriu em resposta, sentindo-se deslocado, sem saber o que fazer. Estendeu-lhe a tela que trazia nas mãos.

       - É para você.

       - Para mim? O que é?

       - Abra e verá.

       Ela desembrulhou a tela, examinando a pintura.

       - É magnifico! Quem fez? você?

       - Não, um amigo meu.

       - Obrigada! Meu pai vai adorar...

       - Seu pai gosta de pintura?

       - Ele tem umas das maiores... - interrompeu-se ela, pressentindo que quase soltava um furo.

       - O que foi? - perguntou ele, notando o embaraço dela.

       - Nada, não. Eu dizia que meu pai tem verdadeira paixão por isso, mas não passa disso. Ele vai adorar essa pintura.

       - Fico contente.

       Ficaram alguns instantes em silêncio. Ele pensando no que fazer. Estava sem dinheiro, e isso, em seu orgulho próprio, doía.

       - E então, o que poderemos fazer? - perguntou ela.

       - Bem... O que você sugere?

       - Que tal irmos ao cinema.

       Ele pigarrou seco, olhando para as pontas dos sapatos.

       - Sabe, naquele dia eu perdi todo o dinheiro da mesada...

       - E o que tem isso? eu pagarei sua entrada...

       - Não, de modo algum. na verdade, não estou disposto a ir ao cinema...

       - Não tem nada de mal, eu posso pagar-lhe do mesmo modo como você me pagaria...

       - Eu preferi que não. Eu gostaria de conversar um pouco, que tal se a gente fosse se sentar lá perto do lago?

       - Você quer conversar? Algum problema? Estou notando que você está um pouco tristonho, nem parece aquele rapaz divertido de outro dia...

       - Uns problemas aí...

       - Coisa séria?

       - Sim.

       - Não quer me contar?

`      - Você gostaria de ouvir?

       - Se isso vai ajudá-lo?

       - Então vamos até o lago. Conversaremos enquanto isso - propôs ele.

       Dario contou tudo à garota, num desabafo. Não que esperasse uma solução da parte dela: é que aquilo o ajudava a aliviar um pouco a tensão a que vinha se submetendo nos últimos dias.

       - Como vê, a nossa situação é critica - finalizou ele.

       Mônica sentiu-se impotente para dizer alguma coisa. Se ao menos tivesse revelado antes o que era, se não tivesse decidido levar adiante uma farsa divertida, mas ingênua ao mesmo tempo, talvez pudesse ajudá-lo. Sua mente, no entanto, trabalhou rápido.

       - Esse colega seu que está tentando vender os quadros, como é o nome dele.

       - Benedito, ele é um cara legal. Vestiu-se de "hippie" para vender melhor, mas até a hora do almoço não conseguiu vender nenhum.

       - Que horas são? - indagou ela.

       - Passa de uma.

       - Não quer ir mesmo ao cinema?

       - Não, prefiro mesmo não ir. Estraguei seu dia, não?

       - De modo algum.

       - Vida de estudante não é fácil. A gente passa cada uma...

       - Um dia você vai rir de tudo isso.

       - Talvez até sinta saudade.

       - Quer fumar? - ofereceu ela.

       - Aceito - respondeu ele, depois de hesitar um pouco.

       Ela lhe ofereceu um cigarro, e ao mesmo tempo, um isqueiro. Ele acendeu o cigarro que ela tinha nos lábios, depois o seu. Feito isso antes de devolver o isqueiro, examinou-o.

       - É um belo isqueiro!

       Mônica sentiu-se traída novamente. Aquele era um isqueiro caríssimo, folheado a ouro, presente de um ex-namorado. Engoliu seco, pensando numa boa desculpa.

       - Uma boa imitação, não acha? - disse ela.

       - Sim, parece ouro - concordou ele.

       - Não quer me levar para casa? você parece muito preocupado com seus problemas.

       - Você não vai se incomodar?

       - Eu compreendo.

       - Se nós conseguirmos sair desta fria, prometo que vou compensá-la por perder esta tarde comigo. Isto, é, se você concordar.

       - Não vejo porque não...

       - Você é uma ótima garota. Não quer falar um pouco sobre você? Estuda?

       - Sim, estudo no Colégio Estadual.

       - Só isso?

       - Se quer saber mais sobre mim, vou lhe contar. Enquanto isso, vamos caminhando. Minha casa fica no bairro...

 

       Quando Dario voltou para seu apartamento estava cansado, mais feliz. Conhecera os pais de Mônica e sabia onde ela morava. Além disso, conversar com ela havia sido muito reconfortante para ele...

       No apartamento, apenas encontrou Téia.

       - Onde está o resto do pessoal? - perguntou ele.

       - Não sei o que houve, mas o Benê chegou aqui muito eufórico, conversou com Tanaka e Alfredo, veio até a cozinha e me deu um beijo, depois saíram os três à sua procura.

       - A minha procura? para onde foram?

       - Ao Passeio. Era onde esperavam encontrá-lo. Você vai até lá?

       - Não agüento. Devo ter andando uns vinte quilômetros a pé.

       - Por que não tomou um ônibus.

       - Muito engraçado, Téia. Muito engraçado mesmo - disse ele, indo atirar-se no sofá da sal, pensativo.

       Teria benedito conseguido vender os quatros? Estava no entanto por demais cansado para pensar no assunto. Pensou por alguns segundo, na imagem sorridente e graciosa de Mônica, antes de adormecer.

       Foi despertado um pouco mais tarde pelos três amigos que chegavam, um pouco altos.

       - Ei, o que isso? Que bagunça é essa? - gritou ele. assustando-se.

       Ao perceber os rosto felizes dos amigos, todos eles sorridentes, pediu:

       - Não, não digam nada. Deixem-me adivinhar. Benedito conseguiu...

       - Eu disse que conseguiria.

       - Quanto?

       - Cinco mil cruzeiros.

       - Cinco mil? Puxa isso é sensacional.

       - Estamos comemorando...

       - Contem-me como foi é que foi?

       - Foi uma coisa fora do comum, eu já estava desistindo quando ela apareceu e me comprou todos os quadros. Pagou cinco mil à vista em dinheiro. Não é inacreditável?

       - Ela ? ela quem?

       - Hum! Um anjo! A garota mais bonita e mais charmosa que já vi na minha vida. Linda de morrer!

       - Você quer dizer que uma garota comprou todos os quadros?

       - Deve ser riquíssima. Eu vi quando o carro parou, o chofer desceu e abriu a porta para ela. Motorista particular mesmo, ficou esperando por ela. Um carro preto, grande, reluzente...

       - E dai? Conte logo, deixe os detalhes para depois.

       - Eu estava perto de um outro cara pintor, só que aquele era "hippie" mesmo. Só nós dois vendíamos quadros lá. Ela se aproximou do outro, conversou um pouco com ele e depois olhou para mim. Eu já tinha perdido as esperanças e até comecei a empacotar tudo para voltar. Mas a garota veio até mim, examinou os quadros e até perguntou meu nome. Depois perguntou quanto eu queria, à vista e em dinheiro pelos quadros todos. Eu fiquei boquiaberto, não sabia o que disser. Pensei em pedir os quatros e quatrocentos de que precisamos, mas resolvi pedir cinco. Sabe o que ela fez?

       - Não, não enquanto você não contar.

       - Ela tirou o dinheiro da carteira, entregou-me e depois chamou o motorista para apanhar as telas e lavra para o carro.

       - E a garota como era? - perguntou ele.

       - Muito distinta. Morena, bem vestida, cabelos presos no alto da cabeça e um corpo, ah, rapaz! Que corpo!

       - Tão bom assim?

       - Melhor, muito melhor. E a voz dela, que voz! As mãos, que coisas mais lindas do mundo, principalmente segurando notas de quinhentos.

       - Tanaka, você está de parabéns. Seu quadros devem ter algum mérito para serem vendidos assim tão facilmente - elogiou-o Dario.

       - Isso soluciona todos os nossos problemas, não? - interrompeu-os Alfredo.

       - Parece que sim - concordou Benedito.

       - Vamos fazer o seguinte. Separamos os quatro mil e quatrocentos e o resto fica para o Tanaka. Futuramente a gente vai pagando a ele pelo empréstimo. - sugeriu Dario.

       - Nada disso. Se o benedito não tivesse a idéia de vender os quadros, nada teríamos conseguido - protestou Tanaka.

       - Então o que você, como dono dos quadros, sugere?

       - Acho que já gastamos uns cem cruzeiros em bebidas e cigarros.

       - Sessenta e cinco - corrigiu Benedito.

       - É, sessenta e cinco. A gente separa os quatro mil e quatrocentos e o resto divide entre os quatro. Está todo mundo na pior mesmo.

       A principio não concordaram, mas depois, ante a insistência de Tanaka, cederam. Fizeram a divisão e todos ficaram satisfeitos, menos Benedito. Este apanhou sua parte, sentou-se, acendeu um cigarro e, após uma longa tragada comentou, com voz embaraçada e duas lágrimas brotando nos olhos.

       - Eu me sentiria muito feliz, não fosse a expectativa que me aguarda. No mês que vem, a essa hora, deverei estar naquela minha miserável cidade, marcando passo para sempre...

 

       Dario terminou rapidamente de se vestir e foi se reunir ao pessoal sentado à mesa. O jantar foi alegre e todos se sentiram animados em solucionar o próximo problema que ameaçava a tranqüilidade do grupo. Benedito teria que conseguir um emprego o mais depressa possível e todos estavam dispostos a ajudá-lo. Tocaram a campainha da porta e Téia foi atender. Os dois tipos que se encarregavam de cobrar Alfredo a empurraram para o lado e entraram.

       - Olá, Alfredo - disse um deles.

       - Estragaram nosso dia - comentou Benedito em voz baixa.

       - O vocês querem? Não disse que os pagaria na segunda? - esbravejou Alfredo.

       - Acalme-se rapaz. É só um aviso amigável, está entendendo?

       - Não, não estou entendendo.

       Os dois rapazes meteram as mãos no bolsos da jaquetas e tiraram seus socos-ingleses.

       - Outra vez? Isso já está ficando monótono. Vocês estão com mania de "gângster"- disse Tanaka.

       - Alfredo, não vamos deixar os meninos esperando, vamos? Que tal se a gente os pagasse agora? - sugeriu Benedito.

       - Acho uma boa idéia - concordou Dario.

       - Está bem. Tanaka apanhe o dinheiro - pediu Alfredo.

       - Enquanto isso, que tal se os rapazes aí fossem providenciando o recibo - disse Dario.

       - Recibo? Você está brincando! - disse um deles.

       - Então vocês acham que Alfredo vai pagar sem receber um recibo? - perguntou Tanaka, surgindo com quatro notas de quinhentos nas mãos.

       Um dos rapazes avançou para as notas, mas Tanaka se esquivou, dizendo:

       - Não, não, não. Primeiro o recibo.

       - Acho que não tem nada de mais dar-lhe um recibo, Joca - disse o rapaz ao colega.

       - Será que o Zaca não vai bronquear depois, Dino?

       - Eu falo com ele. Arrumem papel e caneta - pediu Joca.

       Tanaka providenciou-lhe o que pedira e ele preencheu um recibo. Depois entrou-o a Alfredo que leu-o e depois passou para os outros.

       - Pode dar o dinheiro a eles, Tanaka - autorizou Dario.

       Os rapazes receberam o dinheiro e já iam saindo, quando Dario disse-lhes:

       - Ei, rapazes. Tem mais uma coisa.

       Os dois pararam e ficaram esperando. Dario olhou para Tanaka e piscou-lhe um dos olhos.

       - Tanaka, você ainda se lembra da quinta lição? - indagou Dario.

       Sem que Dino e Joca pudessem esboçar qualquer reação, Dario e Tanaka se aproximaram deles e aplicaram-lhes um potente golpe de pé contra o estômago de cada um, derrubando-os. Antes que se levantassem, Tanaka e Dario caíram sobre eles, tirando-lhes as armas. Entre elas, um revolver.

       - Agora deixe que eu lhe diga uma coisa - falou Dario, entredentes. - Se por acaso um de vocês aparecer num raio de um quilometro dessa República, vocês vão apanhar tanto que vão perder o rumo de casa. Além disso, quero uma coisa de vocês agora. Vão assinar uma confissão dizendo que trapacearam no jogo e roubaram todo aquele dinheiro de Alfredo.

       - Mas você não pode fazer isso - choramingou Dino.

       - Cale a boca e faça o que eu disse - ordenou Dario, passando-lhes papel e caneta.

       Sob ameaça da arma que Dario tinha nas mãos, acabaram por fazer o que ele pedira.

       - Nós vamos ser generosos. Vocês podem ir, mas essas duas confissões vão ficar com nosso advogado. Se alguma coisa acontecer com algum de nós, ele os levará direto para a cadeia, entenderam?

       - Entendemos, sim - responderam em coro.

       - E ficam avisados. se aparecerem por aqui, até a décima geração dos sois vai nascer torta de tanta pancada que vão levar. Agora vão, sumam-se.

       Assim que a porta se fechou, os rapazes se entreolharam e explodiram numa gargalhada uníssona.

       - Vamos terminar nosso jantar, porque tenho um encontro hoje à noite - disse Dario.

 

       Mônica estava em seu quarto, juntamente com Iolanda. Conversavam sobre Dario e sobre o que Mônica fizera, quando o telefone interno, ligado a todos os compartimentos da casa, tocou. Mônica foi atender. Era o mordomo, dizendo-lhe que o jardineiro queria lhe falar. A garota concordou.

       - D. Mônica, o rapaz está aqui - disse o homem sussurrando ao telefone.

       - Dario? Aquele que me trouxe à tarde?

       - Ele mesmo. Quer falar com a senhorita.

       - O que o senhor disse a ele?

       - Disse que a senhorita estava no jardim e que eu ia procurá-la.

       - Ótimo. Diga-lhe que não me achou, mas não o deixe ir embora. Vou me trocar e descer imediatamente. Até logo.

       Ela desligou o telefone, correu ao guarda-roupa e tirou as roupas velhas, vestindo-se apressadamente. Iolanda a observava curiosa e surpresa ante a rapidez com que a amiga fazia aquilo. Mônica olhava-se ao espelho, quando pensativa, virou-se para Iolanda.

       - Escute, você não quer conhece-lo? Vai ver como ele é sensacional.

       - Você quer me apresentar a ele? O que vai dizer?

       - Digo que você é uma amiga e que... Espere. Você não pode ir assim. Tenho outras roupas velhas ai no guarda-roupa. Vista uma delas. E lhe digo o que vamos dizer...

       Pouco depois as duas chegavam apressadas à casa do jardineiro. Dario se levantou ao vê-las.

- Oi, que surpresa! - disse ela.

       - Tenho uma coisa sensacional para lhe contar.

       - Você parece feliz...

       - Felicíssimo. Sabe aquele problema de que lhe falei à tarde? Está solucionado. Meu amigo conseguiu vender os quadros.

       - Verdade? isso é maravilhoso. Ah, antes que me esqueça, está aqui é Iolanda, uma amiga minha.

       Dario a cumprimentou e depois, eufórico, contou-lhes tudo que ocorrera.

       - Foi uma boa lição para todos nós - finalizou ele.

       - Que bom! Fico tão contente que tudo tenha saído bem para vocês.

       - Melhor do que esperávamos. Deu até para repartir o que sobrou do dinheiro. É por isso que estou aqui.

       - É por isso que está aqui? - repetiu ela.

       - Sim, vim convidá-la para um cinema. E desta vez prometo que vamos andar de ônibus.

       - Não sei se posso, tenho que avisar em casa - disse Mônica, antes de perceber que quase se denunciara. - O senhor deixa eu ir, papai? - indagou ao jardineiro.

       O homem ficou vermelho, pigarreou, gaguejou, sem saber o que responder.

       - Vamos lá, seu José. Não tem nada, não. Eu sou honesto, pode acreditar. Prometo trazê-la direitinho para casa depois da fita - suplicou Dario.

       - Deixa, papai - insistiu Mônica, quase rindo.

       - Você é quem sabe, senhorita, quero dizer, filha.

       - Então eu vou. Iolanda, você não quer vir conosco?

       - Não, prefiro não ir. Fica para uma outra oportunidade.

       - Você tem namorado? - perguntou-lhe Dario.

       - Não, ainda não - respondeu Iolanda.

       - Se você quiser ir, poderemos passar lá na república e convidar um dos meus amigos para lhe fazer companhia.

       - Não, não posso mesmo. Meus pais já devem estar a minha espera. Vou indo. Até logo, Mônica. Foi um prazer conhecê-lo, Dario.

       Mônica acompanhou-a até a porta, e esperou que a amiga desaparecesse, além da alameda de pinheiros, antes de voltar onde estava Dario.

       - Podemos ir? - indagou ele.

       - Sim, vamos.

       Tomaram um ônibus para o centro da cidade e escolheram um bom filme num dos muitos cinemas da cidade. Durante o filme, Dario olhava a todo momento para Mônica. Num desses momento, Mônica virou-se para ele e sorriu.

       - Estou tão feliz por estar com você - disse ele, murmurando.

       - Eu também - respondeu ela, aproximando seu rosto um pouco mais.

       - Estou com um pergunta nos lábios, mas não consigo juntar coragem para fazê-la.

       - É muito importante?

       - Para mim é. Não sei se você pensa como eu, se quer o mesmo quer eu...

       - Como assim?

       - Bem... É difícil sabe? Eu... Nós... É, a gente se conhece há tão pouco tempo, mas nunca me senti tão bem como me sinto com você.

       - É reciproco. Você me fez descobrir muitas coisas.

       - É? Puxa, eu não sabia.

       - Não quer fazer a pergunta?

       - Bem, lá vai. você... Você não quer ser minha namorada?

       - Sua namorada?! - surpreendeu-se a garota.

       - Você não quer?

       - Eu adoraria!

       - Mônica... Puxa... eu...

       - Não diga nada - pediu ela, colocando o indicador sobre os lábios dele.

       Ele beijou-lhe o dedo, depois a mão, o ombro.

       Assim que o filme terminou, saíram ambos, abraçados e felizes.

       - Vamos tomar um chope? - convidou ele.

       - Você prometeu a meu pai que me levaria diretamente para casa após o filme.

       - Ele só vai saber quando a fita terminou se você contar.

       - Eu prometo que não vou contar. Vamos.

       Bebiam enquanto conversavam. O assunto acabou indo parar em Benedito, no seu problema.

       - Se ele tem que arrumar um emprego, não vai ser tão difícil assim. Ele poderá estudar à noite.

       - Enquanto for só o cursinho, sim. E se ele passar num vestibular? Como vai poder se dedicar integralmente aos estudos se tem que trabalhar?

       - E se ele conseguir um emprego noturno?

       - Noturno? Onde?

       - Há bancos que trabalham à noite, firmas uma porção de lugares.

       - E como descobrir isso?

       - Eu... Ele vai ter que procurar muito - disse ela. - O que ele sabe fazer?

       - Sei que Benedito é um dos melhores datilógrafos que já conheci.

       - Acredito.

       - Desculpe-me, Mônica. Devo estar aborrecendo você. Vamos esquecer os problemas da República Pescoço de Frango e falar sobre nós. Posso vê-la amanhã?

       - Amanhã, depois de amanhã, depois de amanhã...

       - Sempre, não é?

       - Sempre - concordou ela, aceitando o beijo que ele lhe oferecia.

 

       Dario e Mônica passaram toda a tarde de domingo e parte da noite juntos. O rapaz sentia-se muito feliz com a companhia. Mônica, também, a cada momento que passava sentia-se mais livre, mais cheia de vida e alegria.

A noite ao de se despedirem no portão da casa do jardineiro, Dario tomou-lhe as mão e disse:

       - Não quero me separar de você nunca mais, Mônica.

       - Só nos separemos se você quiser ou se...

       - Se o quê, Mônica?

       - Prometa-me que vai me querer apesar da tudo que possa acontecer - suplicou ela, atirando-se nos braços dele.

       - Prometo - respondeu ele, beijando-a.

       Na manhã seguinte, quando os rapazes voltaram do Cursinho, Téia tinha um recado para Benedito.

       - Benê, esteve um homem aqui, hoje cedo, e perguntou-me se você estava procurando emprego. Deu-me este cartão, dizendo que é para você procurar essa firma, pois eles necessitam de um datilografo para serviço noturno.

       - Como é que é? - indagou ele, surpreso.

       - Isso mesmo que lhe falei.

       - Como ele soube disso?

       - Não sei, sei apenas que deixou esse recado e este cartão.

       - Vocês entendem essa agora? - indagou ele aos amigos.

       - Muito estranho - comentou Dario pensativo. - Posso ver o endereço da firma?

       - Veja o cartão.

       Dario examinou o nome da firma. Tratava-se de uma das muitas que pertenciam ao pai de Mônica. Anotou o nome do proprietário num pedaço de papel, mas não comentou nada com os amigos.

       - O que faço? - perguntou Benedito.

       - Vá para lá, correndo - sugeriu Alfredo - Pode ser a chance de sua vida, a garantia de sua permanência aqui.

       - É isso mesmo - ajuntou Tanaka.

       - Então vamos tentar. Estou precisando mesmo.

       Dario não disse nada durante o almoço, pensando em Mônica, no que dissera a ela e no que dissera a ele. Havia qualquer coisa de errado com ela, alguma coisa forçada, mas ele não conseguira identificar.

       Após o almoço, teve um palpite. Desceu até o armazém onde faziam as compras para casa, apanhou a lista telefônica e verificou o endereço do nome que anotara do cartão que Benedito recebera. Tratava-se de Castro Fernandes, um homem riquíssimo. Arriscou discar para um dos telefones que mencionava na lista.

       Foi atendido pelo mordomo. Encheu-se de coragem e indagou:

       - A Srta. Mônica está?

       - Acaba de chegar do colégio, quem deseja falar com ela.

       - Diga que é... Um momento, ela é a filha de Sr. Castro Fernandes?

       - Sim e aqui é da Residência dela. Foi algum engano?

       - Mônica é morena, de cabelos compridos...

       - O senhor está tomando meu tempo. Por favor, seja direto. Aqui é a casa do Sr. Castro Fernandes e ela tem uma filha chamada Mônica, morena e de cabelos compridos. Alguma coisa mais ou posso desligar?

       - Eu gostaria de falar com ela.

       - E quem está falando aí?

       - Diga que é um amigo, apenas um amigo.

       Dario aguardou impaciente até que Mônica fosse avisada e atendesse.

          - Alô, sou eu, Mônica. Quem quer falar comigo?

       Dario não sabia o que dizer. Desligou lentamente o aparelho, desiludido. Concluíra que não passara de um simples brinquedo para uma menina rica, um boneco para as horas de tédio. Voltou ao apartamento.

       - Que cara é essa? - indagou-lhe Benedito.

       - Nada, uma brincadeira que fizeram comigo.

       - Espero que este cartão aqui também não seja uma brincadeira.

       - Não custa verificar.

       - É o que vou fazer. Vamos?

       - Para onde?

       - Para o cursinho, temos aula à tarde, já se esqueceu?

       - Acho que não vou hoje.

       - Mas as aulas de hoje são de revisão, importantíssimas...

       - Estou cansado. Depois você me conta como foi. Até logo.

       - Tem certeza de que não precisa de nada?

       - Preciso pensar, só isso, Benê. Não se preocupe, está tudo bem.

 

       Mônica colocou o fone no gancho, preocupada. Um pressentimento passou por sua cabeça. Indagou ao mordomo sobre quem lhe telefonara.

       - Disse que era um amigo - respondeu o homem.

       - Amigo? Não disse o nome, nada mais?

       - Apenas fez umas perguntas estranhas...

       - Perguntas estranhas? Como assim?

       - Pediu-me para confirmar de onde era, para descrever a senhorita...

       - Descrever-me? Agora entendo tudo, obrigada.

       Subiu para seu quarto, pensativa. De algum modo Dario descobrira tudo. Só poderia ter sido ele quem telefonara, precisava vê-lo mais uma vez. Trocou de roupa, colocando aquelas velhas que havia comprado.

       Depois ficou em dúvida. Onde o encontraria? Já sabia o endereço da república, ele havia dito. Mas ele deveria estar no cursinho, mas ela não sabia em qual deles. Havia inúmeros espalhados pela cidade.

       Sentou-se na cama, sentindo-se arrasada. apanhou a lista telefônica e discou para uma porção deles, indagando sobre Dario, mas havia um outro problema. Ela não sabia seu sobrenome, nem se lembrava se ele havia dito. Encontrou mais de uma dezena de rapazes com aquele nome. Não adiantaria nada. Teria que suportar toda aquela aflição até a noite, quando então poderia procurá-lo em seu apartamento.

       Havia uma porção de coisa que poderia fazer. Precisava estudar, tinha hora marcada no dentista, precisava ir provar algumas roupas, mas tudo aquilo lhe pareceu sem interesse, fútil. O nome e a figura de Dario ganharam significado dentro dela e ela percebeu que estava apaixonada por ele, justo no momento em que poderia perdê-lo.

 

       Naquela noite, a alegria era completa na República Pescoço de Frango. Benedito estava eufórico pois conseguira o emprego.

       - O ordenado é fabuloso, não dá nem para acreditar.

       Dario ouvia tudo em silencio.

       - O que houve, Dario? Você não parece alegre com o acontecimento - indagou-lhe Tanaka.

       -Tenho minhas razões para estar assim, mas estou contente pelo Benê. Seria uma pena se ele tivesse que voltar.

       - Você pagou o aluguel do apartamento? - perguntou Alfredo, a Dario.

       - Sim, aqui está o recibo. Dessa estamos livres.

       - Que alivio. - suspiraram todos.

       A campainha da porta tocou.

       - Eu atendo - disse Dario.

       Ao abrir, surpreendeu-se ao ver Mônica.

       - O que você veio fazer aqui? - perguntou ele, rispidamente.

       - Preciso falar com você. Como Descobriu?

       - Foi fácil. Liguei coisa com coisa e lá no fim encontrei você. Mônica Castro Fernandes. Foi uma bela brincadeira, mas agora acabou,

       - Não pode acabar assim.

       - O que você quer mais? Quer que lhe apresente meus amigos? Quer que eles agradeçam penhorados a ajuda que você deu? Quer humilhá-los também?

       - Seria bom que eles soubessem a verdade, não acha?

       Os três amigos de Dario emudeceram quando ele surgiu com Mônica na cozinha.

       - Esta aqui é a nossa benfeitora - disse Dario ríspido.

       - Espera um pouco, eu a conheço de algum lugar - disse Benedito.

       - Você é um bom vendedor - falou a garota.

       - Sim, isso mesmo. Agora me lembro. Você comprou os quadros, não foi?

       - Sim foi ela. Além disso foi ela quem lhe conseguiu o emprego, Benê.

       - Ela? - indagaram os três.

       - Sim, eu. Desculpem-me se agi mal, mas Dario contou-me os problemas de vocês e eu fiz o que pude para ajudá-los. Eu sou muito grata a ele, como vocês já devem saber. Foi o único modo que descobri para retribui-lhe.

       - Não se retribui sinceridade com mentiras - falou Dario.

       - É uma longa estória e eu gostaria de explicar-lhe tudo.

       - Não vou ouvir nada.

       - Vai, vai sim - afirmou Tanaka. - nem que tenhamos que segurá-lo.

       - Esperem aí. Vocês estão contra mim? - protestou o rapaz.

       - Não, estamos a favor dos dois. Não sei qual é o caso, mas a garota tem o direito de explicar, não acha?

       - Está bem, vou ouvi-la.

       - Eu sou muito rica, Daria. Isso pode significar muita coisa para você, mas para mim não significa nada. Há coisas que o dinheiro não pode comprar...

       - Sim isso mesmo. Há coisas que o dinheiro não pode comprar - concordou ele.

       - Como o amor, por exemplo - continuou ela. - além disso, a felicidade...

       - Você não vai tentar me comover, vai? - interrompeu-a Dario.

       - Não, não vou fazer isso - responde ela, profundamente magoada.

       Os outros três rapazes entenderam a situação e saíram, deixando-os dois a sós. Téia foi levada delicadamente por Benedito para a sala.

       - Acho que cometi um engano vindo até aqui - disse ela. - Pensei que pudesse fazer-lhe uma porção de coisas, mas você é um cabeça-dura. Eu amo você mesmo assim.

       - Você me ama?

       - Sim, e você?

       - Até quando você acha que a gente vai poder continuar esse jogo? E seu pai, será que ele vai concordar com esse namoro?

       - Ele não precisa saber. Poderemos continuar hoje, amanhã, depois de amanhã, depois, depois...

       - Sempre, não é?

       - Prometo que viverei só para você, que renunciarei a tudo que...

       Não chegou a terminar. Dario a enlaçou, colando seus lábios nos dela, num beijo apaixonado e cheio de promessas...

 

                                                                                L. P. Baçan  

 

                      

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