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Series & Trilogias Literarias
I n t e r l ú d i o
A Companhia Moncraine
1
– Ele foi preso porque deu um soco num nobre? – perguntou Locke.
– Foi levado a ferros – respondeu Jenora.
– Por todos os malditos... Como está a situação por aqui? Eles não vão enforcá-lo, vão?
– Masmorra por um ano e um dia – disse Alondo. – Depois ele perde a mão ofensora.
– Imagino que Moncraine tenha sorte porque não chutou o sujeito – observou Jean.
– Sem dúvida ele tem sorte – falou Sylvanus, erguendo o olhar da garrafa. – Ele está no único lugar da cidade onde os credores não podem esfolar os bagos dele e
colocar sal! Eles deveriam deixar que a gente ficasse com a mão quando ela for cortada... para embalsamar com alcatrão... Daria um excelente adereço, especialmente
quando eu fizer um taumatu... taumur... uma pessoa mágica.
– Como podemos trazê-lo de volta? – perguntou Sabeta.
– De volta? – indagou uma mulher que surgiu das sombras atrás de Alondo e Jenora. Próxima da meia-idade, era bem musculosa e atarracada, com pele cor de mogno e
cabelo grisalho como cinzas de madeira. – Por que alguém iria querer Jasmer Moncraine de volta, tendo se livrado dele com tanta facilidade? E por que há estranhos
no pátio da minha estalagem?
– Imagino que eles possam ser chamados de clientes, tia – falou Jenora. – A senhora se lembra de quando eles vinham voluntariamente?
– É, sou uma boa estudante de história antiga – respondeu a mulher mais velha. – Alizana Gloriano, proprietária e mártir semiprofissional, ao seu dispor. Vocês estão
mesmo procurando Jasmer Moncraine?
– Ele é nosso empregador – explicou Sabeta. – Ou pelo menos deveria ser.
– Meus deuses do céu! – exclamou a Sra. Gloriano, passando os braços em volta dos ombros de Alondo e Jenora. – Os camorris. Eles são de verdade!
– Estamos tão chocados quanto você, titia – admitiu Jenora.
– É agradável sermos considerados maravilhas tão absurdas – disse Locke –, mas precisamos falar com Moncraine.
– Bom, só precisam esperar a condenação dele depois de amanhã – retrucou a Sra. Gloriano. – Depois, esperar mais um ano e um dia e, então, ficar do lado de fora
da Torre do Lamento. Ele vai ser o que sair sem a mão direita.
– E quanto a um advogado?
– Não mantemos um exatamente – respondeu Alondo.
– Diga o que podemos fazer. Podemos vê-lo?
– Ah, sim, meu garoto – respondeu Sylvanus. – Procure o cavalheiro ou a dama de alta estirpe mais próximos e lhe dê um soco nos dentes. Você pode acabar compartilhando
a cela de Jasmer.
– Maldição – murmurou Locke. – Sem ofensa, mas vocês quatro parecem ter mais probabilidade de cortar a garganta de Moncraine do que de dedicar algum tempo a ele...
Existe uma Companhia Moncraine, afinal de contas? Vocês vão fazer alguma peça neste verão? Nossa situação exige que estejamos empregados. Então, por Perelandro,
sejam claros.
– Ainda somos uma companhia – afirmou Jenora –, mas tivemos algumas baixas. Alondo, Sylvanus e Jasmer são os atores integrais que restam. Um ou dois talvez voltassem
se Jasmer pudesse mostrar o rosto em público.
– Você não é atriz? – perguntou Jean.
– Coordenadora de palco – explicou Jenora. – Figurinos, cenários, adereços. Se não anda com as próprias pernas, é da minha responsabilidade.
– E, presumindo que ocorresse um milagre e que os próprios deuses transportassem Moncraine para fora da cadeia, nós teríamos trabalho durante o verão? – indagou
Locke.
– Nós perdemos algum tempo de ensaios – esclareceu Sylvanus, recostando-se com um suspiro.
– Isso parece uma sugestão de sim – observou Locke.
– O verdadeiro problema é o dinheiro – interveio a Sra. Gloriano. – Eu investi em Moncraine há dois anos, por causa da minha sobrinha, e ele ainda me deve 12 régios.
E eu sou a pessoa menos problemática a quem ele...
– Problemas financeiros podem ser resolvidos com artifícios – interrompeu Locke.
– Não há crédito – retrucou Alondo. – Nenhum de nós pode comprar sequer um grão de arroz fiado. Podemos arranjar trabalho braçal para comer, ou mesmo fazer peças
de moralidades na rua, mas a companhia não tem verbas... para escribas, figurinos, máscaras, luzes...
– E não temos local de apresentações, nem transporte para lá – completou Jenora. – Temos dois quartos com adereços e figurinos antigos com os quais podemos trabalhar,
tudo guardado aqui, mas viraríamos motivo de risadas se fôssemos vistos carregando tudo a pé.
– Motivo de mais do que risadas – murmurou Alondo.
– Nós temos uma carroça – avisou Locke. – Deem um momento para nós.
Ele puxou Jean e Sabeta para longe dos restos esfrangalhados da Companhia Moncraine.
– Um monte do nosso dinheiro depende da carroça e dos cavalos – observou Jean.
– Eu sei – disse Locke. – E se nós vendêssemos dois cavalos e mantivéssemos a outra parelha?
– Cuidar deles vai custar mais tempo e dinheiro que não tínhamos planejado gastar – respondeu Sabeta.
– É, mas, se não pudermos colocar essa trupe de volta ao trabalho, é melhor dar meia-volta e ir direto para Camorr. Se esse é o plano, tenho certeza de que vou ficar
com incapacidade de fala quando tivermos de dar explicações ao Correntes.
– Não é culpa sua o Moncraine ter socado um grã-fino – replicou Jean.
– Correntes vai esperar mais da nossa parte do que uma farejada rápida antes de desistirmos – falou Sabeta. – Fomos mandados aqui expressamente para restaurar a
sorte de Moncraine. Temos que dar um jeito de arrancá-lo dessa encrenca.
– E se não pudermos? – perguntou Jean baixinho.
– Então pelo menos tentamos – respondeu Locke. – Sabeta está certa. Uma coisa é ir para casa tendo esgotado as opções; outra é se encolher ao primeiro sinal de problema.
– Vamos precisar de mais dinheiro – afirmou Sabeta. – Não acho muito provável que consigamos fazer um esquema inteligente, mas bolsos são bolsos e bolsas são bolsas.
Se nós...
– Não – reagiu Locke. – Não podemos ser ladrões, lembra? Temos mais problemas do que pedimos só por fingir que somos atores.
Sabeta irradiava tanta raiva que Locke pôde senti-la como o calor de uma lâmpada a óleo antes mesmo de se virar para encará-la. Ele levantou as mãos com as palmas
para a frente.
– Sabeta, sei o que você está pensando... Andei meditando sobre o que você disse, acredite. Não posso forçá-la a seguir minhas ordens. Mas peço que considere meus
argumentos e deixe que eu a convença.
A expressão dela se suavizou.
– Talvez haja esperança para você, afinal de contas. Então faça sua defesa.
– Nós não conhecemos este lugar. Não conhecemos os guardas, as quadrilhas nem os esconderijos. O que iríamos pensar de algum escroto de fora que tentasse bancar
um batedor de bolsas em Camorr? Iríamos rir do caipira e observá-lo ser enforcado. Bom, em Espara nós somos os caipiras. E, se cometermos um erro, não há Paz Secreta
para a qual voltar. Isso não significa que não precisaremos afanar e provocar um pouco. Só que ainda não. Pelo menos até aprendermos como é a situação por aqui.
– Entendo seu argumento – afirmou Sabeta. – Na verdade, não tenho dúvida de que você está certo. Talvez eu esteja acostumada demais às conveniências de casa.
Ela estendeu a mão e, depois de um momento, Locke sorriu e apertou-a com firmeza.
– Quem, diabos, são vocês – perguntou Jean – e onde conseguiram esses excelentes disfarces de Locke e Sabeta?
– Chega de queixo caído, Jean. Vamos agir depressa – retrucou Sabeta com doçura. – Precisamos vender dois cavalos, pôr os outros no estábulo, libertar Moncraine,
trocar dinheiro e arranjar quartos. E isso é só o que me vem à cabeça agora.
– Sra. Gloriano! – gritou Locke, virando-se para ela. – Não queremos causar problema, mas precisamos de quartos depressa, para podermos descarregar a carroça.
– Vocês vão ficar mesmo, então?
– Claro. E mantenha uma conta separada do resto da companhia. Nós vamos pagar com dinheiro.
Pelo menos durante alguns dias, pensou.
– Bom – disse a dona da hospedaria, como se saísse de um transe –, não tenho escassez de quartos.
– Giacomo! – chamou Sabeta. – Castellano!
Calo e Galdo vieram quase correndo e pararam derrapando na frente de Sylvanus.
– Esses são os irmãos Asinos – apresentou Sabeta. – Vocês dois, descubram onde a Sra. Gloriano vai nos colocar e tirem nossas coisas da carroça o mais depressa possível.
– O quê, primeiro somos os malditos guardas da carroça, agora somos umas porras de estivadores? – perguntou Calo. – Quer uma massagem nos pés e um pouco de vinho
gelado enquanto nos olha trabalhar?
– Todos temos trabalho – retrucou Sabeta. – E, se você encostar a mão nos meus pés, eu corto suas orelhas. Mexam-se!
Os quinze minutos seguintes foram um borrão de atividades para todos, menos Sylvanus, para quem eles foram meramente um borrão. Jean levou um tempo para montar uma
pequena tenda sobre o ator prostrado usando a lona da carroça e alguns pedaços de pau. Depois, os Nobres Vigaristas levaram as posses para dois quartos escolhidos
pela estalajadeira, que eram ótimos exemplos de como a meia-idade, apesar de charmosa em alguns seres humanos, é menos atraente em construções de madeira e tapeçarias
de parede sem manutenção. Os gêmeos ficaram com um quarto, Locke e Jean com outro, e Sabeta aceitou o convite de Jenora para compartilhar seus aposentos, mais adiante
no corredor.
Assim que a carroça foi esvaziada, Jean escolheu o par de cavalos menos saudável e, com a ajuda de Jenora, colocou-os no estábulo. Alondo falou que tinha um primo
que trabalhava como cavalariço perto do Portão do Jalaan, por isso Jean convocou o jovem ator para ajudá-lo a levar os dois animais melhores até a área de descanso
de caravanas, para serem revendidos.
– Agora precisamos do Jasmer de volta – disse Locke à Sra. Gloriano. – Para isso, acho que vamos precisar de um advogado.
– Creio que seja impossível. Eu passei demais a mão na cabeça do Jasmer nos últimos anos, com a esperança de que meu investimento encontrasse o caminho de volta
para casa.
– Vamos passar mais um pouco. Nós estamos aqui agora, se é que isso vale alguma coisa. E precisamos de uma peça do Moncraine. Não temos trabalho em casa.
– Eu fiquei imaginando qual seria a natureza da sua dedicação. Jasmer é syresti, sabe. Caprichoso e de humor instável. Pouco confiável! Não é um okanti de temperamento
calmo como eu ou Jenora. Vou lhe dizer, garoto, se eu soubesse em que buraco estava jogando meu dinheiro...
– É, sem dúvida a senhora está certa – interrompeu Locke, num tom conciliatório. – Mas um advogado...?
– Existe um sujeito na avenida por onde vocês vieram. Acordado Salvard, é como o chamam, por causa do seu horário peculiar. Ele já fez documentos para mim. Eu não
chegaria ao ponto de acusá-lo de ser um cavalheiro. Trabalha para muitas... figuras pitorescas.
– Isso é bom – afirmou Locke. – É fantástico. Nós somos figuras pitorescas.
2
– Etienne Delancarre Domingo Salvard – disse Sabeta, lendo em voz alta a placa iluminada por uma lanterna ao lado da entrada do prédio. – Mestre advogado, escriba
legal juramentado, notário autorizado, executor de testamentos e escrituras, tradutor e transcritor de vadrã. Fortunas garantidas, justiça entregue, inimigos confundidos.
Custos razoáveis.
Só Locke e Sabeta tinham vindo para essa tarefa, depois de lavar o cheiro da estrada nas partes mais acessíveis do corpo e trocar as roupas imundas da caravana por
vestes menos ofensivas. O escritório de Salvard ficava empoleirado nos limites da desolação crescente que levava ao Morro do Consolo, um ponto intermediário entre
os bairros elegantes e incultos da cidade.
A mobília de madeira desconfortável e as paredes internas vazias pareciam indicar, aos olhos de Locke, certo desejo de não dar à clientela desordeira qualquer objeto
para vandalismo. Um homem magro, com cabelo bem penteado para trás, estava sentado atrás de uma pequena bancada e, perto da escada do lado oposto da sala, havia
uma mulher incomumente grande. Sua túnica preta acolchoada tinha óbvias placas de blindagem no forro.
– Boa noite – cumprimentou o homem magro. – Têm hora marcada?
– Precisamos mesmo? – questionou Sabeta. – Temos um caso urgente.
– São 2 cobrins pela consulta, mais 1 para a taxa de urgência.
– Acabamos de chegar de Camorr – informou Locke. – Ainda não trocamos o dinheiro.
– Aceitamos barões camorris – falou o secretário. – Um por um, e mais um como taxa de câmbio.
Locke tirou quatro moedas de cobre da bolsa. O homem enfiou uma pena num tinteiro e começou a rabiscar num cartão.
– Nomes?
– Verena Gallante – respondeu Sabeta – e Lucaza de Barra.
– Súditos camorris?
– Sim.
O secretário pousou a pena, abriu um painel na parede atrás dele, pôs o cartão dentro desse compartimento e girou uma manivela. Um monta-cargas em miniatura subiu
e, um minuto depois, o tilintar abafado de um sino foi ouvido pelo poço do equipamento.
– Armas não são permitidas lá em cima – avisou o secretário, batendo os nós dos dedos na superfície de sua bancada. – Serão bem guardadas aqui. Estendam os braços
para a revista.
A mulher grande apalpou-os de cima a baixo. Um garrote ou uma faca de descascar frutas poderia ter passado, mas sem dúvida Etienne Delancarre Domingo Salvard tinha
sentimentos fortes com relação a permitir qualquer coisa mais convenientemente mortal em sua presença.
– Eles estão limpos – garantiu a mulher com um meio sorriso. – No que diz respeito a armas, pelo menos.
– Sigam em frente. – O secretário apontou para a escada. – Tenham uma consulta agradável.
Acordado Salvard estava sentado atrás de uma mesa que dividia completamente o piso de sua sala, percorrendo toda a extensão do cômodo e garantindo que qualquer um
que tentasse pular em cima dele teria um último obstáculo a superar enquanto ele escapava ou se armava. Locke se perguntou se seria a natureza de seus clientes ou
a qualidade de seus serviços que o havia tornado um sujeito tão cauteloso.
– Sentem-se. Vocês dois são meio novos para terem sido apanhados nos tentáculos vorazes da lei, não é?
Salvard era um homem magro, com 40 e poucos anos e uma juba leonina grisalha desemaranhada, como se tivesse acabado de passar vinte minutos galopando. O nariz era
feito para sustentar o peso de ópticos muito mais pesados do que a peça elegante que estava empoleirada nele. Dois cachimbos repousavam em suportes de madeira em
sua mesa atulhada, emoldurando-o em colunas cinzentas de fumaça aromática.
– Ou será alguma questão de casamento?
– Certamente não – respondeu Sabeta. – Temos um amigo com problema.
– Forneçam os detalhes.
– Ele golpeou um cavalheiro acima de seu nível.
– Seu amigo foi preso? Ou fugiu?
– Colocaram-no em algo chamado Torre do Lamento – explicou Locke.
– Complicado. Infelizmente, o peso da lei está contra seu amigo e ele deve ter a expectativa de ser aparado como uma cerca viva. Mas às vezes esses incidentes podem
ser retratados sob uma luz simpática. O que mais devo saber?
– Ele é meio beberrão.
– Muitos dos meus clientes já se arrastaram para dentro de uma garrafa em busca de consolo. Não é um desafio incomum.
– E é membro de uma raça de pele noturna. É um syresti negro.
– Um povo nobre, tão antigo quanto o nosso, com muitos admiradores no tribunal.
– Nosso amigo está... quase sem um tostão.
– Mas sem dúvida tem aliados com quem pode contar para assumir seus interesses – disse Salvard calorosamente, estendendo os braços para Locke e Sabeta. – Minhas
tabelas de honorários são bastante flexíveis. Mais alguma coisa?
– Ele é dono e administrador de uma trupe teatral.
Salvard perdeu o sorriso. Deu uma longa tragada no cachimbo da esquerda, pousou-o e depois fumou o outro. Alternou os cachimbos várias vezes, olhando Locke e Sabeta.
Por fim, perguntou:
– Então estamos falando de Jasmer Moncraine?
– O senhor o conhece? – indagou Locke.
– Eu deveria ter adivinhado a identidade antes, pelas particularidades, a não ser pelo fato de que vocês parecem querê-lo genuinamente de volta. Isso me afastou
da pista verdadeira. Qual é o interesse de vocês na causa dele?
– Somos atores contratados por ele para o verão – respondeu Sabeta. – Acabamos de chegar à cidade.
– Meus pêsames. Tenho um conselho relevante.
– Qualquer coisa – disse Sabeta.
– Muitos homens em profissões mais baixas se adaptam à perda de uma das mãos e usam ganchos. No caso do Jasmer, a vaidade jamais permitirá isso. Se vocês ainda estiverem
em Espara no próximo verão, enquanto o cotoco dele estiver cicatrizando, consigam-lhe uma capa de couro simples para o braço e...
– Nós precisamos dele de volta agora – interrompeu Sabeta. – Precisamos soltá-lo.
– Bom, vocês não vão conseguir, não através do serviço de alguém da minha profissão. Ora, ora, minha cara, dói-me ver essa expressão no seu rosto tanto quanto me
dói recusar um trabalho, portanto deixe-me explicar. Minha sorte é o azar de vocês. Vocês devem ter ouvido falar de Amilio Basanti.
– Na verdade, não – respondeu Locke.
– Vocês acabaram mesmo de sair da carroça, não é? Basanti é o empresário da outra grande companhia de atores da cidade, a estável e bem-sucedida. Daqui a quinze
dias, mademoiselle Amilyn Basanti, a irmã mais nova dele, vai se tornar a Sra. Amilyn Salvard.
– Ah – disse Sabeta.
– Se eu me tornasse advogado do arquirrival que meu futuro cunhado tanto despreza, bom, certamente vocês podem ver que o efeito sobre minhas relações conjugais seria...
gélido.
– O senhor poderia recomendar alguém que não tenha interesses impeditivos? – perguntou Locke.
– Há outros cinco advogados em Espara e nenhum deles tocará nesse caso. Vocês devem entender: se eu não fosse me casar com Amylin, poderia pegá-lo por prazer. Eu
gosto de irritar os magistrados e aceito até mesmo os clientes mais baixos e mais difíceis. Sem ofensa. Porém, meus colegas preferem vencer seus processos, e esse
não pode ser vencido.
– Mas essas desculpas que o senhor acabou de dar...
– Poderiam mitigar a situação, talvez. Sem dúvida vocês entendem que as pessoas de sangue elevado não mantêm leis nos livros que lhes permitam sofrer abusos por
parte dos inferiores. Eu não citaria nenhuma lei; imploraria misericórdia! Teceria lamentos sobre amigos e filhos destituídos. Mas, como não farei essas coisas,
o julgamento de Moncraine vai durar mais ou menos tanto quanto esta conversa.
– Temos mais alguma opção?
– Candidatem-se à trupe do Basanti – respondeu Salvard com gentileza. – No Pétala da Colombina, lá no Declive Cinza. É onde eles bebem. Eu poderia falar de vocês
com Amilyn. Eles arranjariam trabalho para vocês, mesmo que fosse apenas carregando lanças. Não se prendam ao Moncraine.
– É gentileza sua, mas, se quiséssemos fazer parte do cenário teríamos ficado em casa – comentou Sabeta. – Na companhia de Moncraine, podemos escolher nossos papéis.
Numa trupe estabelecida, vamos ficar no fim de uma fila enorme.
Salvard fumou de novo seus cachimbos alternadamente, depois esfregou os olhos.
– Acho que não posso ser contra a ambição, mesmo que vá acabar em lágrimas. Mas não há como Moncraine escapar do gancho, crianças. A não ser que um de dois milagres
ocorra.
– Milagres... – disse Locke. – Estamos à procura disso. Quais são eles?
– Primeiro, a condessa Antônia poderia conceder um perdão. Ela tem liberdade para fazer o que quiser. Mas não irá salvá-lo. Moncraine está muito longe das graças
dela. De qualquer modo, hoje em dia ela tem mais interesse pelas orientações de seu enólogo do que de seu conselho privado.
– O que mais?
– O nobre que Moncraine atacou poderia conceder um perdão pessoal, recusando-se a fazer uma acusação diante de um magistrado. Isso anularia o caso. Mas tenho certeza
de que vocês podem imaginar como os de sangue azul adoram demonstrar fraqueza diante de seus pares.
– É. Inferno! Nós podemos ao menos falar com Moncraine?
– Nesse aspecto, posso oferecer algum ânimo. Qualquer pessoa com conexão de sangue ou de negócios com um prisioneiro pode ter uma audiência antes do julgamento.
Reivindiquem o que quiserem, só não tentem entregar nada a ele. Vocês compartilhariam da sentença se fossem apanhados.
– Uma audiência. Ótimo. Ahn... onde?
– No coração de Espara, no topo da Escadaria da Legião, procure a torre de pedra preta com um fosso e cem guardas terrivelmente sérios. Vocês não vão deixar de ver,
nem mesmo na chuva.
3
Mil soldados mortos assomavam da névoa por trás da noite que chegava enquanto Locke e Sabeta subiam a Escadaria da Legião.
Os marchadores de mármore, rachados e desgastados pela vigília de seiscentos anos, usavam armaduras de legionários do Trono Terim. Locke reconheceu a vestimenta
das pinturas e manuscritos que vira em Camorr. Até se lembrou de parte da história deles: um tal imperador, insatisfeito com a falta de importantes monumentos de
Vidrantigo em Espara, encomendou uma obra de arte humana para enfeitar o centro da cidade.
Cada estátua teria a aparência de um soldado verdadeiro, de uma legião da época, e parte de seu fascínio melancólico era que não estavam posados em triunfo marcial
e, sim, de cabeça baixa e com os escudos pendurados, como seriam vistos caminhando pelas estradas que um dia haviam costurado o império caído. Agora marchavam sem
sair do lugar, fileira após fileira, para sempre, em colunas espaçadas regularmente, nos 200 metros da escada em arco.
– Precisamos achar esse tal acusador e conseguir que ele conceda o perdão – disse Locke.
– Parece que é nossa única chance – concordou Sabeta.
– Deuses, eu gostaria que tivéssemos mais dinheiro. Visitar alguém da sociedade vestindo farrapos não vai ser fácil.
– Está tentado a recuar do seu plano de evitar os roubos?
– Estou. Mas não vou fazer isso.
– Mas vai continuar tentado. – Ela sorriu.
– A honestidade não cai bem em nenhum de nós.
– Eu sei. Não é estranho? Eu vivo me perguntando como as pessoas aguentam viver assim.
O que Salvard havia chamado de “fosso” era na verdade um enorme poço com laterais irregulares, com pelo menos 10 metros de profundidade, onde os canais de drenagem
lançavam jorros de água cinza. Só se podia atravessá-lo por uma ponte coberta e elevada, com uma bem iluminada casa da guarda servindo de boca. Enquanto Locke e
Sabeta se aproximavam, um quarteto de guardas se postou bloqueando a entrada.
Locke percebeu imediatamente o significado do que aqueles guardas portavam. Não carregavam cassetetes nem cajados – armas que poderiam ser usadas com gentileza se
a pessoa quisesse –, mas espadas, que tinham um emprego mais direto.
– Parados – ordenou uma mulher marcada pelo tempo, chegando à meia-idade, com o pescoço e o rosto cheios de cicatrizes.
Todos os guardas aparentavam ter um serviço intenso. A Torre do Lamento não era piada, percebeu Locke; tentar subornar um daqueles cães velhos seria suicídio.
– Digam o que querem.
– Boa noite – cumprimentou Sabeta, adotando instantaneamente uma postura assertiva, porém não imperiosa. Locke já a vira usá-la antes. – Viemos falar com Jasmer
Moncraine.
– Moncraine não receberá ninguém por muito tempo. O que uma camorri tem a dizer a ele?
– Somos membros da Companhia Moncraine e precisamos fazer acordos empresariais agora que ele está incapacitado. Nosso advogado nos avisou que estamos autorizados
a ter uma audiência antes do julgamento.
Pelos deuses! Para Locke, observar Sabeta manipulando pessoas era tão bom quanto olhar qualquer outra garota no mundo tirar a roupa. O modo como ela escolhia as
palavras – “estamos autorizados” e não algo mais humilde como “temos direito”. E a menção específica a uma audiência: era um sinal à guarda de que as regras tinham
sido pesquisadas, que seriam obedecidas. Sabeta havia apresentado todas as necessidades deles, ao mesmo tempo que dava o suporte mais firme à ideia de que ela e
Locke estavam completamente envoltos no poder da lei e daqueles guardas que a serviam.
Por acaso, a mulher ficou bastante satisfeita em deixá-los entrar. Não, claro, sem uma embaraçosa revista corporal completa, suas assinaturas em pergaminhos, um
inventário do que havia nas bolsas e uma espera de quarenta minutos. Mas era melhor assim, pensou Locke. Só os prisioneiros tinham entrada fácil numa prisão.
4
Pela segunda vez naquele dia, Locke e Sabeta se viram numa câmara dividida ao meio por uma barreira física, mas agora eram barras de ferro negro. A sala de audiências
da Torre do Lamento tinha paredes de pedra lisa e piso de pedra áspera, sem janelas, sem enfeites, sem móveis. Os guardas trancaram a porta depois de eles entrarem
e permaneceram em posição de sentido diante dela.
Precisaram esperar mais alguns minutos antes que a porta no lado oposto da sala se abrisse. Mais dois guardas trouxeram um homem com mãos e pés algemados. Prenderam
uma corrente a uma argola no chão e aos ferros das pernas do prisioneiro, permitindo-lhe se mover só até a uns 60 centímetros das barras. Esses guardas se postaram
de forma simétrica aos da câmara ocupada por Locke e Sabeta.
O homem acorrentado era alto, sua pele parecia couro de bota engraxada e o cabelo fora raspado até restar apenas uma sombra cinza. Era robusto, mas não gordo. A
carga dos anos e dos apetites parecia ter se espalhado igualmente, acomodando-se em todas as juntas e fissuras, e ainda havia uma sugestão de perigosa vitalidade
nele. Seus olhos eram grandes e brilhantes, contrastando com a escuridão do rosto, e ele os fixou intensamente em Locke e Sabeta, como se o ato de piscar fosse indigno
de seu interesse.
– Uma oportunidade de descer dois lances de escada e ser acorrentado de novo. Urra. Quem diabos são vocês?
– Seus novos atores – respondeu Locke. – Seus novos atores muito surpresos.
– Aaaahhh. – As papadas de Moncraine moveram-se como se ele fosse comido algo desagradável. – Não deveriam ser cinco?
– Você não deveria estar em liberdade? – retrucou Sabeta. – Os outros três estão tentando manter sua trupe unida na Gloriano.
– Uma pena vocês não terem chegado mais cedo. Infelizmente, não há nada a fazer, a não ser as malas, para a volta. Diga ao seu mestre que aprecio o gesto.
– Isso não basta – replicou Locke. – Viemos aqui para subir no palco. Fomos mandados para aprender com você.
– Quer uma lição, garoto? Se você se pegar nascendo, suba de volta o mais rápido que puder, porque a vida é um festim de bosta sem fim.
– Podemos tirá-lo daqui – afirmou Sabeta.
– Se você cooperar – completou Locke.
– Ah, vocês podem me soltar, é? – Moncraine se ajoelhou e passou a mão algemada pelo piso. – Vocês têm um exército de cerca de mil homens escondidos fora da cidade?
Diga quando eles estiverem invadindo a torre para que eu esteja com as calças vestidas.
– Você conhece o nosso mestre – disse Locke, baixando a voz. – Certamente pode adivinhar qual é a natureza dos alunos dele.
– Eu conheci o seu mestre. Há anos. E achei que ele ia me mandar atores. É isso que vocês são? É aí que os deuses se inclinaram e tocaram suas pequenas almas camorris?
Deram-lhe o dom da fala macia?
– Nós sabemos representar – garantiu Sabeta.
– Sabem? Mas vocês são leões? Só há espaço para leões na minha companhia! – Ele virou a cabeça para os guardas junto à porta. – Leões, não é o que somos, rapazes?
– Só se você não baixar a porra da voz – disse um deles.
– Estão vendo? Leões! Vocês sabem rugir, crianças?
– No palco e fora dele – respondeu Sabeta friamente.
– Hummm. Isso é fascinante, porque, vistos daqui, vocês parecem ter... o quê? Dezesseis anos? Dezessete? Com certeza não ficaram úmidos com nada a não ser sonhos
na noite, não é? Bom, você poderia ser passável no palco, querida... se deixar o cabelo solto e balançar os peitos como bandeiras, você poderia manter a ralé desperta.
Mas você... – Ele se voltou para Locke. – Quem você quer enganar? Um garoto de ossos pequenos feito um pardal. Tem sementes de figo no saco onde homens deveriam
ter a fruta inteira, hein? Você ao menos se barbeia? Que diabo pretende vindo aqui e tentando enfiar alegria no meu rabo?
– Somos sua única chance de se libertar – assegurou Locke, fumegando, pensando em dizer várias coisas menos construtivas.
– Me libertar? Por quê? Eu gosto daqui. Estou alimentado e meus credores não podem me alcançar pelo menos durante um ano. O Estado de Espara vai parar a um palmo
de distância. Diabos, isto é uma pechincha comparado com o que eu poderia ganhar quando minhas dívidas forem cobradas na rua.
– Qual é o nome do nobre em quem você bateu? – perguntou Sabeta.
– Por que você se importa? Como isso pode ajudar enquanto vocês CORREM DE VOLTA PARA A PORRA DO LUGAR DE ONDE VIERAM?
– Mantenha a voz baixa – ordenou um dos guardas. – Ou terá que ser carregado para o tribunal amanhã.
– Sabe, isso pode ser agradável – retrucou Moncraine. – Podemos tentar?
– Jasmer – chamou Sabeta rispidamente. – Olhe para mim, seu asno idiota.
Ele obedeceu.
– Não me importa o que você pensa de nós – sussurrou ela. – Você sabe que tipo de pessoa o nosso mestre é. De que tipo de organização nós viemos. E, se não parar
de zurrar feito um jumento, é isto que vai acontecer: nós vamos embora.
– Adoro esse plano. Leve esse plano até o fim!
– Você vai passar um ano e um dia dentro desta torre. Depois vão cortar a porcaria da sua mão e jogar você pela porta. E sabe quem vai estar ali parado? Mais camorris
do que você já viu na porra da vida. Não só nós, ou os outros três que no momento estão trabalhando a seu favor do outro lado desta pústula de cidade. Estou falando
de escrotos grandes, grossos, vesgos, saídos direto do útero do inferno, e eles vão levá-lo para um passeio. Trancado numa caixa, dez dias, até Camorr, chafurdando
no próprio mijo.
– Ei, espere um minuto aí.
– Você não tem mais nenhum outro credor, entendeu? Agora nós estamos na frente da fila. Você só precisa se preocupar conosco. Você fez um acordo com o nosso garrista.
Sabe o que significa essa palavra?
– Claro...
– Obviamente não sabe! Nosso mestre mandou cinco de nós, de graça, prontos para colocar sua trupe de pé. Você só precisava nos ensinar sua profissão. Mas prefere
violar o trato e insultar um garrista. Então, tenha um ano confortável, seu palhaço estúpido. Assim que tudo acabar, você vai nos ver outra vez. Venha, Lucaza.
Sabeta se virou depressa e Locke, apoiando sua representação integralmente, lançou um sorrisinho azedo para Moncraine antes de lhe dar as costas.
– Esperem – sibilou Jasmer.
– Qual é o nome do nobre em que você bateu?
Sabeta não lhe deu tempo de pensar, implorar ou embromar; partiu para cima dele tão depressa quanto fingira ir embora.
– Boulidazi. O barão Boulidazi do Palazzo Corsala.
– Por que você fez isso?
– Eu estava bebendo. Ele queria... Ele foi até a estalagem da Gloriano. Queria comprar minhas dívidas, instalar-se como patrono da companhia.
– E por causa disso você lhe deu um soco nos dentes? – perguntou Locke. – O que você vai fazer se o tirarmos daqui, tentar arrancar nosso coração?
– Boulidazi é um imbecil! Um imbecil metido a besta! Ele só é pouco mais velho que você e acha que pode me comprar e me vender como se eu fosse a droga de um móvel.
Uma companhia teatral com o nome dele em tudo, não seria uma doçura? Eu demorei vinte anos para construir minha trupe. Nunca mais serei empregado de ninguém. Prefiro
a Torre do Lamento em qualquer dia, em qualquer ano.
– Por que agredi-lo era preferível a deixar que ele salvasse sua trupe? – perguntou Sabeta. Ela parecia tão incrédula quanto Locke.
– Boulidazi não se importa com a trupe. Ele quer que ela seja colocada na sua parede como a porra de um troféu de caça! Quer um projeto de caridade que possa balançar
diante de qualquer boceta de ouro que estiver perseguindo, para mostrar como é um sujeito sensível e artístico. Eu me recuso a vender meu bom nome para ajudar cachorrinhos
ricos a afogar o ganso!
– Que bom nome? – questionou Locke. – Até os membros da sua própria companhia querem ver você comido por um urso.
– E eu ficaria feliz em fornecer um – acrescentou Sabeta. – Infelizmente para todo mundo, ainda vamos salvá-lo. Por isso quero que você fique quietinho na sua cela
e cale a boca.
– Amanhã – continuou Locke – esse tal barão Boulidazi vai perdoar seu insulto e se recusar a fazer a acusação.
– O quê? – reagiu Moncraine. – Garoto, escute. Mesmo se Boulidazi tivesse mil cacetes dentro do calção e você chupasse cada um como se fosse uma fruta desde o nascer
até o pôr do sol...
– Ele vai perdoar o seu insulto – interrompeu Sabeta com os dentes trincados – porque essa é a única salvação que podemos arranjar para você. Entendeu? Não temos
outras cartas na manga. Então vai ser assim. Quando você tiver saído, vamos discutir de que você precisa para colocar sua República de ladrões em produção outra
vez.
– O problema dessa fantasia, garota, é que exige que nós dois não estejamos loucos – rebateu Moncraine baixinho.
– Ela só exige que você cale a boca e se comporte. E meu nome não é garota. Na maior parte do tempo você pode me chamar de Verena Gallante. Mas, quando eu estiver
no palco, você vai me chamar de Amadine.
– Vou? – Moncraine riu. – Essa é uma presunção um pouco fora do meu alcance. Mostre sua gentileza ao Boulidazi. Depois conversamos sobre peças.
– Volte à sua cela. Garanto que vamos nos falar de novo amanhã.
5
– Mesmo se conseguirmos tirá-lo, vamos precisar colocar esse cara numa coleira – disse Locke.
– Ele é uma ameaça a si mesmo e ao resto de nós – concordou Sabeta. – Quando nós o tirarmos, vamos pressioná-lo. Deixar claro que ele está sendo vigiado e avaliado
o tempo todo.
– Por sinal, quem é Amadine?
– O melhor papel de República de ladrões – respondeu Sabeta, dando um sorriso enviesado.
– Ainda não li nada da peça.
– Deveria, antes que peguem todos os bons papéis.
– Alguém segurou o texto até chegar aqui!
– Moncraine deve ter mais cópias em algum lugar na confusão da trupe dele. Jenora talvez saiba de algo. Mas primeiro precisamos fazer nosso milagre.
– Milagre mesmo.
Estavam descendo de novo a Escadaria da Legião, por entre as fileiras imóveis de soldados de mármore. O chuvisco tinha parado, mas havia ribombos fracos de trovão
lá em cima.
– Precisamos achar esse tal de Boulidazi – continuou Locke, – mais ou menos como estamos, e convencê-lo a perdoar uma agressão completamente injustificada e bêbada
feita por um dos escrotos mais malucos que já conheci.
– Alguma ideia?
– Ahn... talvez.
– Desembuche. Eu consegui calar o Jasmer por tempo suficiente para apresentar nosso argumento. Ganhei o dia.
– E foi um prazer observar. Mas, afinal de contas, você é sempre...
– Você não tem tempo de ser charmoso. – Sabeta lhe deu um soco de leve no ombro. – E eu certamente não tenho tempo de cair no charme de ninguém.
– Certo. Claro. Precisamos de uma abordagem. Por que ele deveria abrir a porta para nós? Ei, e se nós fôssemos nobres camorris transitando incógnitos?
– Escondidos em Espara – completou ela, obviamente gostando da ideia. – Problemas em casa?
– Hummm. Não. Não, se não estivermos em boa posição em casa, não poderemos lhe oferecer nada. Na verdade, seríamos um risco para ele.
– Está certo. Tudo bem. Você e eu... somos primos. Primos em primeiro grau.
– Primos – concordou Locke. – O que não falta são primos imaginários. Você e eu somos primos... Se tivermos que mostrar Jean e os Sanzas, eles são empregados da
família. Nós somos, ahn, netos de... um velho conde que não sai muito.
– Espadanegra. Enrico Botallio, Conde de Espadanegra. Eu trabalhei como copeira na casa dele há alguns anos, naquele verão que você passou na fazenda.
– Uma família das Cinco Torres. Nós morávamos na torre?
– É, a maior parte da família dele mora. E ele não sai da cidade há vinte anos; é velho como o Duque Nicovante. Vou ser a filha do filho mais velho dele... e você
é o filho do mais novo. Ele não tem outros filhos. Ah, o seu pai morreu, por sinal. Caiu de um cavalo há dois anos.
– É bom saber. Se precisarmos de algum detalhe real da casa, eu passo o jogo para você sempre que puder. – Locke estalou os dedos. – Estamos em Espara porque você
quer ceder ao desejo de ser atriz...
– ... o que jamais seria permitido usando meu nome verdadeiro em Camorr!
Antes, Sabeta nunca havia terminado um dos pensamentos dele, como Jean fazia o tempo todo. Locke sentiu uma onda de calor.
– Fantástico – prosseguiu ela, sem perceber. – Então estamos incógnitos, mas com permissão da nossa família.
– Assim, quem nos ajudar faz um amigo poderoso e rico em Camorr. – Locke não pôde deixar de sorrir com o pensamento improvável de que eles podiam ter encontrado
uma saída, afinal de contas. – Sabeta, isso é fantástico. Também é a corda de papo furado mais fina em que já nos penduramos.
– E ainda nem estamos há um dia inteiro aqui.
– Precisamos de nomes falsos.
– Nisso podemos ser preguiçosos. Sou Verena Botallio, você é Lucaza Botallio.
– Diabos, sim. – Locke olhou em volta, certificando-se de que ainda estavam no limitado corredor de Espara com o qual ele conseguira meio que se familiarizar. –
Deveríamos voltar à Gloriano e ver como eles se saíram com os cavalos. Depois podemos visitar o tal de Boulidazi e implorar que ele não pense demais sobre o lugar
de onde viemos.
6
– O primo de Alondo cumpriu com a promessa – avisou Jean.
Ele gesticulou em direção a um rapaz, uma versão mais barbuda e pesada de Alondo, sentado junto à parede dos fundos do salão da Gloriano, acompanhado pelo primo,
por Sylvanus, os Sanzas e várias garrafas meio vazias. Não havia ninguém novo ou desconhecido no salão.
– Ele conseguiu pouco mais de 1 régio em cada um dos cavalos. Tudo o que isso nos custou foram duas garrafas de vinho. E, ah, eu prometi que iríamos dar um papel
a ele na peça.
– O quê?
– Sem falas. Ele disse que só quer se fantasiar e levar uma facada.
– Desde que ele não espere ser pago – retrucou Sabeta.
– Com nada além de ressacas – garantiu Jean. – Vejo que vocês não arrastaram de volta um enorme empresário syresti.
– Esse jogo está sendo disputado – assegurou Locke. – Venha despejar sua bolsa. Irmãos Asinos! De pé por um momento, precisamos trocar uma palavrinha sobre finanças.
– Ah, deixe que eles fiquem – pediu Sylvanus. – Este aqui é o lado divertido do salão e nosso jovem cavalariço ia pegar mais vinho.
– Vocês não terminaram com as três garrafas que estão aí – replicou Locke.
– Elas estão escrevendo bilhetes de despedida para as famílias. As covas delas já estão cavadas. Ah, acho que eu deveria mesmo me levantar antes de mijar, não é?
– Sylvanus rolou de lado vagamente na direção da porta que dava no encharcado pátio da estalagem. – Dê uma mãozinha, cavalariço, dê uma mãozinha. Terei que ficar
de quatro para usar seu conhecimento.
– Maravilhoso – comentou Locke, puxando Calo e Galdo de pé. – Lindo. Vocês dois estão seguindo Sylvanus pelo caminho tomado por vômito?
– Talvez estejamos socialmente turvos – respondeu Calo.
– Meio borrados nas bordas – completou Galdo.
– Provavelmente é melhor assim. Preciso que vocês venham aqui e abram as bolsas.
– Precisa de quê?
– Precisamos de uma bolsa de exibição – respondeu Sabeta.
– Que diabos é uma bolsa de exibição? – questionou Jenora, aparecendo num momento calculado com precisão para ouvir o que os Nobres Vigaristas amontoados iam fazer.
– Já que pergunta – disse Jean –, é uma bolsa de moedas que se junta para parecer que a pessoa está acostumada a carregar grandes quantias.
– Ah. Deve ser uma coisa boa de se ter.
Usando uma mesa livre, os cinco camorris jogaram suas verbas pessoais, às quais Jean acrescentou o resultado da venda dos cavalos e Locke misturou os restos da bolsa
que Correntes dera a eles. Barões, tirinos e sólons camorris tilintaram contra quintos e cobrins esparanos.
– Tirem todos os cobres da pilha – pediu Locke. – Eles são tão inúteis quanto um irmão Asino.
– Vá chupar vinagre do meu rego – vociferou Calo.
Cinco pares de mãos remexeram nas moedas, separando os cobres, deixando um montante reduzido, porém reluzente.
– Os cobres vão ser divididos por cinco, de modo que todo mundo ganhe alguma coisa – informou Locke. – O ouro e a prata vão para a bolsa.
– Você quer que titia troque algum desse dinheiro camorri? – perguntou Jenora, espiando por cima do ombro direito de Jean.
– Não. Por enquanto, isso é um ponto a nosso favor. Qual é a contagem para exibição?
– São 5 coroas e 2 tirinos – disse Sabeta. – E 2 régios e 1 quinto.
– É mais dinheiro do que qualquer cliente da titia viu em muito tempo – observou Jenora.
– É pouco menos do que eu quero – comentou Locke. – Mas pode ser convincente. Nenhum ator ambulante carrega um ano e meio de pagamento.
– A não ser que não esteja recebendo porcaria nenhuma – retrucou Jenora.
– Vamos cuidar disso amanhã – garantiu Locke enquanto fechava com força a sacola de exibição. – Esperemos que com o Moncraine ouvindo atentamente.
– Aonde vocês vão agora? – perguntou Jean.
– Encontrar o saco de pancadas do Moncraine – respondeu Sabeta. – E, se aquele filho da puta syresti puder nos ensinar a representar melhor do que o necessário para
sermos bem-sucedidos, ele merece mesmo o resgate.
– Quer uma escolta? – perguntou Jean.
– Baseado no que você viu esta noite – murmurou Locke –, quem precisa mais, Sabeta e eu ou os gêmeos?
– Bem observado. – Jean limpou os ópticos no colarinho da túnica e os ajeitou de novo no nariz. – Vou mantê-los fora de encrenca e ver se posso convencer o Sylvanus
a dormir dentro de casa.
– Onde fica o Palazzo Corsala? – perguntou Sabeta a Jenora.
– No lado norte, no bairro dos grã-finos. Não há como errar. Ruas limpas, casas lindas, pessoas como Sylvanus e Jasmer espancadas à primeira vista.
– Vamos em uma carruagem de aluguel – disse Locke. – Sem uma, não pareceremos respeitáveis.
– Então vamos visitar o barão Boulidazi? – indagou Sabeta.
– Sim – respondeu Locke. – Não. Espere. Esquecemos uma coisa terrivelmente importante. Vamos correr de volta ao Acordado Salvard e torcer para que ele ainda simpatize
conosco.
7
– A entrada de serviço fica nos fundos – resmungou um sujeito parecido com um tronco de árvore que abriu a porta da frente de Boulidazi. – O horário para os vendedores
é...
– Que tipo de vendedor contrata um cocheiro e quatro cavalos para fazer as entregas? – perguntou Locke, apontando com um polegar por cima do ombro.
A carruagem alugada estava esperando do outro lado das fileiras de oliveiras alquimicamente miniaturizadas que escondiam a mansão de Boulidazi da rua. O cocheiro
não tinha gostado das roupas dos dois, mas a prata respondera por eles adequadamente.
– Por favor, entregue isto ao seu patrão – pediu Sabeta, estendendo um cartãozinho branco obtido no escritório de Acordado Salvard, que, com ar divertido, concordou
em lhes cobrar algumas moedas por ele e por um pouco de tinta.
O empregado olhou de relance para o cartão, lançou-lhes um olhar duro e depois voltou a fitar o cartão.
– Esperem aqui – disse, e fechou a porta.
Vários minutos se passaram. O som lento de água pingando do toldo de lona acima da cabeça deles virou um tamborilar suave, constante, à medida que a chuva aumentava
outra vez. Por fim, a porta se entreabriu e um retângulo de luz dourada do interior da casa se derramou sobre eles.
– Venham – solicitou o empregado corpulento.
Mais dois homens esperavam atrás dele e, por um instante, Locke temeu uma emboscada. Porém, esses serviçais não seguravam nada mais ameaçador do que toalhas, que
usaram para secar os sapatos de Locke e Sabeta.
A casa do barão Boulidazi não era excepcional, levando-se em conta as do mesmo nível que Locke já vira. Era bastante confortável, mobiliada para mostrar riqueza
de sobra, mas não havia nada grandioso ou especial, nenhuma “peça de salão”, como costumavam ser chamadas, para evocar admiração nos recém-chegados.
O serviçal levou-os para fora do saguão, passou por uma sala de espera e entrou num cômodo iluminado de modo caloroso, com paredes forradas de feltro. Um homem moderadamente
bonito, de cerca de 20 anos, com cabelo preto indo até o pescoço e olhos escuros e próximos, estava encostado numa mesa de bilhar com um taco na mão. O cartão branco
se achava sobre a mesa.
– A honorável Verena Botallio e seu acompanhante – anunciou o serviçal sem entusiasmo, e logo saiu da sala.
– Da Isla Zantara? – perguntou Boulidazi, mais afável. – Acabo de ler seu cartão. Isso não faz parte de Alcegrante?
– Faz, lorde Boulidazi – confirmou Sabeta, inclinando ligeiramente a cabeça e fazendo a meia reverência, como era usual em uma recepção nobre informal de Camorr.
– O senhor já esteve lá?
– Em Camorr? Não, não. Sempre quis visitar a cidade, mas nunca tive esse privilégio.
– Lorde Boulidazi, posso apresentar meu primo, o honorável Lucaza Botallio?
– Seu primo, é? – perguntou ele, assentindo enquanto Locke baixava a cabeça.
O nobre esparano estendeu a mão. Durante o cumprimento, Locke notou que Boulidazi tinha o físico sólido, mais ou menos do tamanho do primo cavalariço de Alondo,
e não continha a força no aperto de mão.
– Obrigado por nos receber – agradeceu Locke. – Nós dois teríamos mandado nossos cartões, mas infelizmente apenas Verena está portando um.
– É? Vocês não foram roubados ou algo assim? É por isso que estão vestidos desse jeito? Perdoem por eu mencionar isso.
– Não, nós não fomos maltratados – respondeu Sabeta. – E não há o que perdoar; não estamos viajando em nossa condição real. Estamos incógnitos, com apenas um guarda-costas
e um par de serviçais, mas no momento nós os deixamos em outro lugar.
– Incógnitos. Vocês estão correndo algum perigo?
– Nem um pouco – garantiu Sabeta, rindo. Em seguida, virou-se e fingiu surpresa ao ver um sabre na bainha, sobre uma prateleira de madeira-bruxa. Locke estava certo
de que só a longa familiaridade lhe permitia notar que era uma mudança voluntária. – Aquilo é o que eu acho que é?
– O que você acha que é? – perguntou Boulidazi, e pareceu a Locke que ele foi um pouquinho mais ríspido do que antes.
– Sem dúvida é um DiVorus? O sinete no punho...
– É – respondeu Boulidazi, perdendo instantaneamente o tom de impaciência. – Uma das últimas armas dele, mas, ainda assim...
– Eu treinei com um DiVorus – interrompeu Sabeta, pondo a mão sobre o punho do sabre. – O Voillantebona. Não me entenda mal: não era meu. Era do meu instrutor. Ainda
me lembro do equilíbrio, e os padrões no aço... Este punho parece honradamente gasto. Presumo que o senhor treine com ele, não?
– Com frequência. Este se chama Drakovelus. Está na minha família há três gerações. Combina com o meu estilo. Não é o mais rápido que existe, mas, quando eu me movo,
sou capaz de colocar um pouco de força no golpe.
– O sabre recompensa um usuário forte – concordou Sabeta.
– Estamos negligenciando o seu primo – observou Boulidazi. – Desculpe, Lucaza, por favor, não permita que meus entusiasmos o empurrem para fora da conversa.
– De jeito nenhum, lorde Boulidazi. Já tive meus anos com os mestres de esgrima, claro, mas Verena é a especialista da família.
O corpulento serviçal de Boulidazi voltou e sussurrou no ouvido do patrão. Locke contou silenciosamente até dez antes que o homem terminasse. O grandalhão se retirou
de novo e o barão encarou Locke.
– Sabe, acabo de me lembrar: Botallio... não é um dos clãs das Cinco Torres?
– É claro – respondeu Sabeta.
– E, no entanto, você deu seu endereço como a Isla Zantara.
– Eu gosto do vovô – continuou Sabeta. – Mas sem dúvida o senhor entende que alguém da minha idade prefere uma mansãozinha própria.
– E o seu avô é...? – perguntou Boulidazi, na expectativa.
– Dom Enrico Botallio.
– Mais conhecido como Conde de Espadanegra? – indagou o barão, ainda cauteloso.
– O pai de Verena é o primogênito de Espadanegra – informou Locke. – Eu sou filho do mais novo.
– É? Creio que eu possa ter ouvido algo sobre o seu pai, Lucaza. Espero que ele esteja bem.
Locke sentiu uma onda de alívio porque eles fingiam ser de uma família que Sabeta conhecia. Boulidazi devia ter acesso a algum registro de pares de Camorr. Locke
se permitiu ficar cabisbaixo por um instante, depois deu um sorriso obviamente forçado.
– Sinto muito, mas devo informar que meu pai morreu há alguns anos.
– Ah – reagiu Boulidazi, relaxando visivelmente. – Desculpe. Eu devia estar pensando em outra pessoa. Mas por que vocês dois não deram o nome do conde quando...
– Nobre primo – disse Sabeta, mudando instantaneamente para seu excelente trono terim –, o nome Espadanegra atrai atenção instantânea em Camorr, mas o senhor não
nos consideraria muito vulgares se tentássemos lhe causar admiração em Espara, logo após nos conhecermos e sermos recebidos em sua casa?
– Ah... vulgar, ah, não, nunca! – exclamou Boulidazi na mesma língua. Qualquer pessoa bem-nascida devia suportar anos de tutelagem em trono terim e ele claramente
passara seu tempo no purgatório de tempos e conjugações verbais. – Eu não quis sugerir que esperava qualquer coisa inculta por parte de vocês!
– Lorde Boulidazi – interveio Locke, trazendo a conversa de novo para o terim comum –, nós é que deveríamos nos desculpar por nos impormos ao senhor em nossa situação
atual. Temos motivos, mas o senhor não precisa se arrepender de ser cauteloso.
– Fico feliz por vocês entenderem – falou o barão. – Tymon!
O serviçal grande, que devia estar espreitando do lado de fora da porta, entrou.
– Tudo bem, Tymon. Acho que nossos convidados ficarão durante um tempo. Vamos querer algumas cadeiras.
– Claro, milorde – respondeu o serviçal, relaxando a postura fria e intimidante com a mesma facilidade com que tiraria um chapéu.
– Espero que vocês não se incomodem por conversarmos aqui – disse Boulidazi. – Meus pais... Bom, foi só no ano passado. Ainda não consigo pensar na sala de estar
como minha por enquanto.
– Sei como é – afirmou Locke. – A gente herda as memórias de uma casa, além das pedras. Eu não toquei nada na biblioteca do meu pai durante meses.
– Acho que eu deveria chamá-los de Dom e Dona Botallio, não é?
– Só se quiser nos adular – respondeu Locke com um sorriso.
– Enquanto meu avô ainda tem o título – disse Sabeta –, meu pai, como herdeiro direto, é chamado de Dom. Mas como nós estamos dois degraus atrás, no momento somos
apenas um par de honoráveis.
Tymon retornou, junto com os serviçais que tinham limpado os sapatos, e três cadeiras foram postas perto da mesa de bilhar.
Agora Boulidazi parecia razoavelmente convencido da autenticidade deles e Locke sentiu uma pontada de espanto misturado com ansiedade. Ali estava um nobre de Espara,
capaz de colocá-los na prisão (ou coisa pior) com apenas uma palavra, abrindo-se às suas identidades falsas como qualquer vendedor, guarda ou funcionário público.
Correntes estava certo: o treinamento deles havia mesmo lhes dado uma notável liberdade de ação.
Mesmo assim, parecia sensato lacrar o caso do modo mais apertado possível.
– Deuses do céu! – exclamou Locke. – Que grosseiro eu fui! Lorde Boulidazi, desculpe. É costume em Espara dar uma consideração aos serviçais da casa... Maldição!
Locke retirou sua bolsa e fez o que achava ser uma demonstração excelente de tropeçar na direção de Tymon, que ia se retirando. Caiu contra a mesa de bilhar e um
jorro de ouro e prata se espalhou tilintando na superfície de feltro.
– Você está bem?
O barão logo alcançou Locke, ajudando-o a se levantar, e Locke ficou satisfeito porque Boulidazi teve uma visão integral das moedas.
– Estou ótimo, obrigado. Sou um asno desajeitado. Dá para ver que toda a graça da família foi para Verena. – Locke varreu as moedas de volta para a bolsa. – Desculpe
pelo seu jogo.
– Era só uma diversão solitária. – Boulidazi levou Sabeta a uma cadeira. – E, sim, nos feriados damos gratificações aos empregados, mas há um pouco de cerimônias
e algumas bobagens no templo. Não precisa se preocupar com isso.
– Bom, ficamos gratos ao senhor – comentou Locke, aliviado porque poderia escapar sem abrir mão de qualquer verba da sacola de exibição. Só era preciso que Boulidazi
acreditasse que dinheiro não era problema para eles.
– Agora – disse Sabeta –, imagino que o senhor gostaria de saber por que viemos procurá-lo.
– Claro. Mas, primeiro, por que não me dizer como prefere ser chamada, se não como Dona Botallio?
– Isso é fácil. – Sabeta abriu um sorriso que acertou Locke como uma bota no peito, mesmo que ele não estivesse posicionado para receber todo o impacto. – O senhor
deveria me chamar de Verena.
– Verena. Então imploro que me chamem de Gennaro e não deixemos que coisas como “lorde Boulidazi” entulhem o ar entre nós.
– Com prazer.
– Gennaro, estamos aqui para discutir a situação de um homem chamado Jasmer Moncraine – revelou Locke.
– O quê?
– Para colocar de modo mais simples – continuou Sabeta –, viemos pedir que você não apresente as acusações contra ele.
– Vocês querem que eu o perdoe?
– Ou que aparente perdoar – respondeu Sabeta com uma voz doce.
– Aquele sujeito desprezível bateu em mim diante de testemunhas. Com as costas da mão! Vocês não podem esperar que eu acredite que um camorri suportaria isso, caso
algum de vocês estivesse no meu lugar!
– Se eu não tivesse nada a ganhar com uma demonstração de misericórdia – disse Locke –, chicotearia o rosto do canalha imbecil até virar uma carne moída sanguinolenta.
E, se nenhum de nós tivesse o que ganhar agora, eu iria ao tribunal com você apenas pelo prazer de ouvir a sentença.
– Não somos desconhecidos do Moncraine – prosseguiu Sabeta. – Fomos vê-lo na Torre do Lamento...
– Por quê?
– Por favor, apenas ouça. Sabemos que idiota ele é. Não viemos aqui para discutir as facetas mais brilhantes do caráter do sujeito, porque sabemos que ele não tem
nenhuma, e não estamos pedindo misericórdia pelo bem dele. Gostaríamos de propor um arranjo mutuamente lucrativo.
– Como eu poderia lucrar aceitando essa vergonha na frente de toda a cidade?
– Primeiro diga: você falou sério quando disse que desejava financiar a trupe de Moncraine e comprar as dívidas dele? – perguntou Locke.
– Falei. Certamente, até ele decidir me agradecer me atacando como um macaco.
– Por que você fez a oferta?
– Eu cresci assistindo às peças dele. Mamãe adorava teatro. Moncraine era bom mesmo, antes... há anos.
– E você queria ser um patrono.
– Todo o dinheiro da minha família está em segurança em cofres, pegando pó e cagando juros. Pensei em fazer alguma coisa significativa, para variar. Pegar Moncraine,
administrar as coisas direito, associar meu nome a alguma coisa. – Boulidazi tamborilou no braço da sua cadeira. – Que diabo Moncraine poderia significar para vocês?
– Eu vim aqui para fazer parte da trupe dele durante o verão – explicou Sabeta. – Eu... ah... tenho certa inclinação. Mas é incômodo falar de mim. Por favor, Lucaza.
– Claro – concordou Locke. – A prima Verena sempre adorou o teatro, pelo menos o que pôde ver em Camorr. Vovô contratou atores uma dúzia de vezes para ela. Mas Verena
sempre quis estar no palco. Representar. E isso não era possível.
– Se eu escolhesse alquimia – completou Sabeta –, ou jardinagem, ou pintura, ou investimento financeiro, tudo bem. Até poderia cavalgar para a guerra, se tivéssemos
tido alguma. Mas os herdeiros nobres não sobem no palco, pelo menos em Camorr.
– Não se quiserem ter uma herança – prosseguiu Locke. – E vovô não estará conosco para sempre. Depois dele vem meu tio e, então, Verena.
– Condessa Espadanegra, hein? – disse Boulidazi.
– O Duque é que sabe se manterá a Espadanegra; as Cinco Torres estão ao dispor dele. Mas nossas terras não irão a lugar nenhum. Se a Espadanegra for rescindida,
eu serei condessa das antigas propriedades da família.
– Então você veio aqui posar de atriz para evitar um escândalo em Camorr.
– Você entende perfeitamente. Verena Gallante pode ter um ou dois verões no palco em Espara e, depois, Verena Botallio pode voltar a ser respeitável em casa. Esse
foi o acordo que eu fiz com papai, desde que Lucaza e alguns homens de confiança viessem para ficar de olho em mim.
– E esse foi o trato que fizemos com Moncraine – explicou Locke. – Nós forneceríamos vários atores e ele nos usaria numa peça. Imagine nossa surpresa quando chegamos
esta tarde e descobrimos a situação.
– Imagine minha surpresa quando Moncraine me atacou! – reagiu Boulidazi. – Vocês estão me colocando entre dois fogos, amigos. Eu posso proteger minha dignidade segundo
as leis e costumes de Espara ou posso ceder a esse pedido, para o qual normalmente eu estaria muito disposto. Não posso fazer as duas coisas.
– Se você deixasse de castigar Moncraine por covardia ou indiferença – replicou Sabeta –, concordo que seu comportamento seria impróprio. Mas e se seus pares vissem
que você o perdoou em nome de um desígnio mais elevado?
– Misericórdia, ambição, arte e o bom e velho bom senso financeiro – enumerou Locke, juntando as mãos lentamente como se espremesse as palavras numa massa enquanto
falava. – Tudo ao mesmo tempo.
– Moncraine não quer ter nada a ver comigo – retrucou Boulidazi – e fico feliz em retribuir o sentimento. Que o desgraçado apodreça durante um ano e um dia. Talvez
ele ganhe algum tino quando perder a mão.
– Não tenho um ano e um dia, Gennaro – rebateu Sabeta.
– Então por que não procura o Basanti? Ele é o sucesso. Até construiu o próprio teatro. Tenho certeza de que ele colocaria vocês no palco num instante. Você certamente...
ah...
– O quê?
– Você certamente teria muitos olhos acompanhando-a com atenção, se pode perdoar minha ousadia.
– O perdão é dado com prazer. Mas, se o Basanti é de fato o sucesso, por que, em vez dele, você abordou Moncraine para uma parceria?
– Basanti não precisa de um curativo nas finanças. Além disso, não há nada a construir com ele. É difícil receber o crédito por algo que já foi alcançado.
– Acredite ou não, nós sentimos o mesmo com relação ao Moncraine – afirmou Sabeta. – Ele é o meio para alcançarmos um fim. Perdoe-o. Solte-o, e garanto que ele aceitará
seu patrocínio.
– O que faz vocês presumirem que ainda estou disposto a oferecê-lo?
– Ora, Gennaro... – disse Sabeta, tornando a voz um pouco mais profunda, adotando um tom um pouco provocante. – Não se castigue pela estupidez do Moncraine. Seu
plano era bom.
– Se você nos ajudar, ficará com ele totalmente sob o seu controle. Dívida financeira e moral, e você terá a nós para mantê-lo na linha.
– A Companhia Moncraine-Boulidazi – completou Sabeta.
– Ou a Companhia Boulidazi-Moncraine – sugeriu Locke.
– Eu vou parecer um fraco – comentou o barão, mas sua voz tinha o tom hesitante de alguém a ponto de pular do precipício para onde eles o estavam empurrando.
– Você vai parecer inteligente – contrapôs Locke. – Diabos, vai parecer que você planejou a coisa toda, para atrair atenção!
– Isso é maravilhoso! – exclamou Sabeta. – No fim do verão, depois de termos nos satisfeito através do Moncraine, você deixa escapar que tudo foi apenas um ardil
para atrair atenção. Esse é o pagamento por um pouquinho de dor no tribunal amanhã! Basanti será esquecido num momento e toda a admiração da cidade será depositada
no que você fez.
– Você parecerá um tremendo gênio – garantiu Locke, imensamente satisfeito consigo mesmo.
– A companhia Boulidazi-Moncraine... – murmurou o barão. – Isso tem um certo... peso. Um certo tom nobre.
– Ajude-me a ter uma ou duas temporadas sob as luzes – pediu Sabeta. – Depois leve a companhia em turnê a Camorr. Vamos apresentá-lo ao vovô, a todos os condes e
condessas, ao Duque...
– Vão poder se apresentar em todas as Cinco Torres – completou Locke. – Nos jardins dos terraços. Verena e eu teremos que desaparecer como atores, claro, mas ficaremos
deliciados em comparecer às apresentações como seus anfitriões.
– Não é uma boa recompensa para uma inconveniência temporária? – perguntou Sabeta com um sorriso que poderia persuadir um bloco de gelo a soltar fumaça.
– Eu precisarei... de um momento para refletir – respondeu Boulidazi.
– Devemos deixá-lo a sós? – indagou Sabeta, levantando-se ligeiramente da cadeira.
– Sim, mas só por um momento. Tymon vai lhe servir qualquer coisa que você deseje no salão de recepção.
Locke também mencionou sair, mas Boulidazi ergueu uma das mãos.
– Você não, Lucaza, por favor. Eu apreciaria trocar uma palavrinha.
Locke se acomodou de novo na cadeira, lançou um olhar breve para Sabeta e captou um levíssimo assentimento de sua parte. Ela saiu por onde os dois haviam entrado.
– Lucaza – falou o barão, inclinando-se à frente e baixando a voz –, espero que possa me perdoar esta liberdade. Sei que os camorris não devem ser desconsiderados
em questões que tenham a ver com honra familiar, e não pretendo ofender.
– Francamente, Gennaro, nós pedimos um favor amanhã em troca de promessas que demorarão meses ou anos para serem totalmente pagas. Duvido que você possa encontrar
duas pessoas em Espara que sejam mais difíceis de ofender do que Verena ou eu neste momento.
– Vocês dois falam muito bem. Vejo por que gostariam de ter um tempo como diletantes no palco. Mas agora me deixe fazer uma confidência. Sua prima... tem um aspecto
que floresce ao ser considerado. Quando entrou nesta sala, ela era apenas bonita, mas depois de observá-la, ouvi-la... sinto como se o ar tivesse sido arrancado
dos meus pulmões.
Locke sentiu como se o ar tivesse sido arrancado dos seus pulmões.
– Diga, por favor – pediu Boulidazi, notando claramente a mudança na postura de Locke enquanto ele lutava pelo autocontrole. – Ela ama de fato o teatro? E o trabalho
com espadas?
– Ela, ah... ela vive para essas coisas.
– Você é prometido a ela?
Locke foi assolado por um alvoroço de reações imediatas: a ânsia de se levantar e dizer sim, dar um tapa no rosto de Boulidazi, agarrá-lo pelos cabelos e fazer rasgos
no feltro da mesa de bilhar usando os dentes dele... E então vieram os cálculos secundários como um balde de água fria: o ciúme no meio profissional condenaria os
Nobres Vigaristas ao fracasso completo.
– Não – respondeu quase com calma. – Não, eu sou destinado a outra... desde que mal conseguia andar. Vamos nos casar quando ela tiver idade.
– E Verena?
Outro lampejo pouco útil na imaginação de Locke, protestando contra o que sua razão mais elevada sabia ser inevitável. Jean Tannen atravessando uma porta dos fundos,
levantando Boulidazi acima da cabeça, jogando-o na mesa de bilhar... Por que todas as suas fantasias eram tão calamitosas para com a mesa, que não lhe fizera nenhum
mal? E, dane-se, de qualquer modo, isso jamais aconteceria!
– Não tem compromisso – respondeu Locke, odiando a frase ao mesmo tempo em que a dizia. – O pai dela e vovô sempre acharam que Verena... é uma fruta que é melhor
deixar pendurada, ahn, até que eles saibam como ela pode ser... colhida de modo mais vantajoso.
– Obrigado. Obrigado! Essa é... uma notícia bem-vinda. Espero que você não pense que estou tentando agarrar algo acima da minha condição, Lucaza. Venho de uma linhagem
longa e honrada. Possuo várias propriedades com rendimentos seguros. Tenho muito a oferecer como... como pretendente.
– Tenho certeza de que sim – observou Locke, devagar. – Se isso agradar a ela, e com o consentimento do conde Espadanegra.
– Sim, sim. Com a bênção da família... e se agradar a ela. – Boulidazi passou a mão pelo cabelo e fez ajustes nervosos, sem sentido, no lenço de seda em volta do
pescoço. – Farei isso, Lucaza. Perdoarei Moncraine e confio que você o mantenha sob o meu controle. Fornecerei tudo de que vocês precisarem para pagar as dívidas
dele e domar a trupe. Só peço...
– Sim?
– Ajude-me. Ajude-me a mostrar minhas virtudes a Verena. Minhas intenções honradas. Ensine-me como posso agradá-la. Aconselhe-a favoravelmente, por mim.
– Se Moncraine for libertado...
– Ele será. Ele não ficará na Torre do Lamento um instante a mais do que o necessário.
– Então serei seu parceiro – disse Locke baixinho, lutando contra outras visões de Gennaro Boulidazi cuspindo fragmentos da mesa de bilhar. – Estarei do seu lado,
amigo.
Capítulo Sete
O Jogo dos Cinco Anos:
Contragolpe
1
– Qual é o nosso problema, Jean? – Locke esfregou os olhos e notou alguns desconfortos nas entranhas e ao redor dos tornozelos, nessa ordem. – Ela enrolou a gente
feito duas tendas velhas. E que porra são essas coisas nas minhas pernas?
Os tornozelos magros e pálidos estavam envolvidos por aros de ferro suficientemente largos para deixar o sangue correr, mas pesavam mais de 2 quilos cada.
– Imagino que sejam para nos desencorajar de nadar – respondeu Jean. – Não são bem pensadas? Combinam com seus olhos.
– As barras nas janelas não bastam, é? Deuses do céu, meu estômago parece que está tentando comer o resto de mim.
Locke fez um exame mais meticuloso do ambiente. Almofadas, sedas e lanternas – a cabine era perfeita para o Duque de Camorr. Havia até uma pequena prateleira de
livros e rolos de pergaminho perto de Jean.
– Olhe o que ela deixou para nós. – Jean jogou para Locke o livro encadernado em couro que ele estivera lendo.
Era um velho exemplar in-quarto com folha de ouro gravada alquimicamente em três linhas na capa:
REPÚBLICA DE LADRÕES
UMA HISTÓRIA VERDADEIRA E TRÁGICA
CAELLIUS LUCARNO
– Uhhhh – disse Locke baixinho, pondo o livro de lado. – Aquela beldade tem um veio maligno com a largura de dez rios.
– Como foi que ela drogou você?
– De modo bastante embaraçoso.
Houve uma batida à porta da cabine. Ela se abriu um instante depois e um sujeito magro, de pernas compridas e com um bronzeado de muitos anos de atividade gravado
nas feições esguias, desceu a escada.
– Olá, rapazes – cumprimentou o estranho com um leve sotaque verrari. – Bem-vindos ao Resolução de Volantyne. Solus Volantyne, ao seu dispor. E falo sério! Vocês,
rapazes, são nosso primeiro e único negócio nesta viagem.
– O que quer que você esteja recebendo, nós podemos pagar o dobro se der meia-volta nesse navio agora mesmo – garantiu Locke.
– Nossa amiga mútua disse que essa seria provavelmente a primeira coisa dita pelo senhor, mestre Lazari.
Locke estalou os nós dos dedos e olhou-o, irritado. Precisava dar crédito a Sabeta por pelo menos preservar as identidades falsas deles, mas, no momento, não queria
ter nenhum pensamento gentil sobre ela.
– Estou inclinado a concordar com a sugestão dela – continuou Volantyne – de que tenho mais probabilidade de desfrutar do sucesso e de uma boa recompensa na parceria
com a mulher que ainda está livre do que com os dois homens que ela me trouxe acorrentados.
– Podemos triplicar o pagamento dela.
– Um homem que trocaria tamanha fortuna pelas promessas de um prisioneiro raivoso é idiota demais para ser capitão do próprio navio.
– Bom, inferno, se você não vira casaca, pelo menos poderia me arranjar um pouco de bolacha de bordo ou algo assim?
– Nossa amiga mútua disse que a comida seria a segunda coisa na sua mente. – Volantyne cruzou os braços e sorriu. – Mas não vamos comer bolachas de bordo nesta etapa
da viagem. Vamos comer pão de pimenta fresco, ganso recheado de azeitonas com crosta de mel, e rãs do lago cozidas com conhaque e creme de leite.
– Acho que levei uma pancada na cabeça. Esse é o sonho mais idiota que tenho há anos, não é?
– Não é sonho, amigo. Nós recebemos um cozinheiro tão bom que eu treparia com ele seis dias por semana só para mantê-lo a bordo, se eu gostasse de homens. Mas ele
é outro presente pago por nossa amiga mútua. Venham ao convés e deixem-me explicar as condições da sua viagem. Seus filhos da puta sortudos!
No convés, Locke viu que o Resolução de Volantyne era um brigue de dois mastros com o cordame em boa ordem; as velas não tinham acabado de sair do estaleiro, mas
não estavam em farrapos. Cerca de duas dúzias de homens e mulheres haviam entrado em formação para olhar Locke e Jean emergir da grande cabine. A maioria tinha a
aparência bronzeada e esguia de marinheiros, porém alguns dos mais pesados – com certeza animais de terra, de ossos grandes – pareciam capangas recém-contratados.
– Esta é a viagem mais fácil que já recebemos – afirmou Volantyne. – Vamos para o oeste, subir o Cavendria e desembocar no mar. Teremos uma excursão de outono durante
um mês, depois vamos dar meia-volta e retornar lentamente a Kartane. Os cavalheiros irão desfrutar de uma cabine luxuosa, livros, boas refeições. Os vinhos que temos
para a viagem vão fazê-los pensar que são da realeza. Tudo isso com apenas uma condição: bom comportamento.
– Eu posso pagar três vezes o que cada um de vocês está recebendo agora! – disse Locke, elevando a voz até um berro. – Vocês só precisariam nos levar de volta a
Kartane! Dois dias de trabalho em vez de dois meses!
– Ora, senhor – falou Volantyne, olhando-os atravessado pela primeira vez –, isso não é bom comportamento. Qualquer outra fala desse tipo fará com que o senhor seja
mandado para o porão. Há dois modos de fazer esta viagem: com membros livres e estômagos cheios ou amarrados no escuro, saindo uma vez por dia para comer e mijar.
Eu devo tomar o maior cuidado com a vida de vocês, mas sua liberdade pode ser jogada ao mar se nos causarem problemas.
– E essas coisas nos nossos tornozelos? – perguntou Locke.
– São escudos contra a tentação.
– Bah – murmurou Locke. – Além disso, onde está essa tal comida...
– Senhores, mil desculpas! – gritou um homem com manto marrom manchado, que veio cambaleando de baixo pela escotilha principal. Era pálido, com cabelo louro grisalho,
e carregava uma bandeja de prata com uma terrina de ferro simples e vários pedaços de pão. – Tenho a comida!
– O seu famoso cozinheiro é um vadrã? – questionou Jean.
– É, eu sei – disse Volantyne. – Mas vocês devem confiar em mim. Adalric foi treinado em Talisham e conhece o serviço.
– As ostras, em molho da cerveja cozinhei eu – disse o cozinheiro.
Ele estendeu a bandeja para Locke, e o perfume de comida fresca parecia um punho no queixo.
– Ah, a discussão da situação pode recomeçar em cerca de meia hora – sugeriu Locke.
– Desde que parem de tentar subornar minha tripulação, os senhores podem falar o que quiserem, honrados passageiros – garantiu Volantyne.
2
À medida que passava o primeiro dia, e depois o segundo, ficou claro que a situação deles era a prisão mais confortável e mais vexatória que Locke poderia imaginar.
As refeições eram fartas e magníficas; o vinho, melhor ainda do que o prometido; a cerveja, fresca e doce; e seus pedidos eram realizados sem hesitação ou reclamações.
– Esses desgraçados fizeram fortuna com esse empreendimento – comentou Jean, sobre os restos do almoço do dia seguinte. – Não é, marinheiros? É a única explicação
possível para o nosso tratamento. Uma pilha de ouro em cada bolso.
Cada refeição era consumida na presença de pelo menos quatro pessoas, silenciosas, educadas e absolutamente vigilantes. Cada faca e garfo eram contados, cada migalha
e cada osso eram recolhidos. Locke poderia ter roubado qualquer item útil, mas não havia sentido, pelo menos até que as outras dificuldades da situação fossem superadas.
A roupa de cama era tirada e trocada todo dia, e mantinham os dois no convés enquanto isso acontecia. Locke podia ver apenas o suficiente da atividade dentro da
cabine para perder o ânimo. Sacudiam todos os livros, abriam e reviravam os baús, verificavam as redes, examinavam minuciosamente as tábuas do piso. Quando tinham
permissão de voltar, tudo estava no lugar de sempre e a cabine parecia jamais ter sido usada, mas era inútil esconder qualquer coisa.
Eles eram revistados várias vezes por dia e nem podiam usar sapatos. O único objeto que possuíam, de fato, era a mecha de cabelos de Ezri, no bolso de Jean. Locke
ficou surpreso ao vê-la na manhã do terceiro dia.
– Eu troquei algumas palavras com Sabeta depois que o pessoal dela enfim me derrubou. – Jean estava deitado em sua rede, preguiçosamente virando a mecha de cabelos
nas mãos. – Ela disse que algumas cortesias não devem ser recusadas.
– Ela disse mais alguma coisa? Sobre mim ou para mim?
– Acho que ela disse tudo o que pretende dizer, Locke. Esse navio é como um bilhete de despedida.
– Ela deve ter dado a Volantyne e à tripulação dez páginas de orientações sobre nós.
– Até o bote deles está amarrado mais apertado do que o usual, como se algum deus pudesse baixar a mão e arrancá-lo do convés – comentou Jean em tom casual.
– Ah, verdade? – Locke saiu da rede, foi até o lado da cabine ocupado por Jean e baixou a voz. – No lado de bombordo do convés principal? Você acha que poderíamos
fazer algo com relação a isso?
– Nunca teríamos tempo de içá-lo direito. Mas, se pudéssemos enfraquecer as cordas e se o convés estivesse adernando...
– Merda. Assim que chegarmos ao Cavendria, vamos nos manter estáveis feito uma xícara de chá até chegar ao outro lado. De quantos dos nossos amigos você acha que
pode cuidar ao mesmo tempo?
– De quantos eu poderia cuidar ao mesmo tempo? Sejamos pragmáticos e digamos que três. Tenho certeza de que eu poderia apagar a tripulação inteira, dois de cada
vez, se ninguém soasse um alarme, mas você já viu os hábitos deles. Nunca trabalham sozinhos. Não sei se a abordagem pela força bruta vai nos levar muito longe.
– Sabe, sem dúvida seria bom receber uma visita não anunciada da nossa benfeitora Paciência. Ou de alguém ligado a ela. Mais ou menos agora. Ou... agora!
– Acho que estamos sozinhos. Tenho certeza de que alguém ou alguma coisa está nos vigiando, mas Sabeta nos colocou aqui. Parece que isto está dentro das regras que
Paciência explicou.
– Imagino se os Magos-Servidores dela teriam tanta esportividade.
– Bom, há um lado positivo. Nós estamos comendo bastante bem. Você não parece mais um palerma semimorto.
– Fantástico, Jean. Eu não estou simplesmente exilado; estou sendo engordado para a matança. Será que há alguma chance de tropeçarmos na Zamira se chegarmos ao Mar
de Bronze?
– Que diabo ela estaria fazendo de volta aqui, tão pouco tempo depois de tudo o que aconteceu? – Jean bocejou e se espreguiçou. – O Orquídea Venenosa tem tanta probabilidade
de aparecer no horizonte e nos salvar quanto eu tenho de dar à luz um albatroz vivo.
– Foi só um devaneio. Uma droga de devaneio. Bom, acho que devemos rezar pedindo mau tempo.
– E nos preocupar em cortar umas cordas. Alguma ideia?
– Eu poderia ter uma faca improvisada em menos de uma hora. Desde que soubesse que ela seria usada antes que eles revirassem nossa cabine no dia seguinte.
– Ótimo. E quanto às algemas dos tornozelos? Você sempre foi melhor com esse tipo de coisa do que eu.
– Os mecanismos são delicados. Eu poderia arranjar lascas de osso suficientemente pequenas para caber, mas elas são quebradiças. Basta uma se partir e elas emperram
o fecho de uma vez por todas.
– Então talvez seja melhor ficarmos com elas até chegarmos à terra. Bom, uma coisa de cada vez. Precisamos estar a uma distância razoável de uma praia e precisamos
que o convés balance bastante e precisamos não estar presos no porão quando a chance chegar.
3
O céu ficou cinzento de novo naquela noite e nuvens agourentas se aglomeravam no horizonte, mas o movimento suave do Amatel mal fazia inclinar o convés do Resolução
numa direção ou na outra. Locke passou várias horas encostado no corrimão do convés principal, fingindo placidez, esforçando-se secretamente para enxergar qualquer
vislumbre de relâmpago ou de uma tempestade se aproximando. Mas as únicas luzes visíveis eram as que tremeluziam fantasmagóricas nas profundezas negras do lago,
piscando feito constelações de fogo.
O progresso era vagaroso. Os estranhos ventos de outono estavam contra eles na maior parte do tempo e, sem magos para moldar o clima, precisavam mover-se com uma
bordada longa após a outra, em direção ao sudoeste. Volantyne e sua tripulação não pareciam se importar nem um pouco. Quer viajassem por metade do mundo ou meio
quilômetro, o pagamento seria o mesmo.
Na noite do quarto dia, Locke captou clarões de um amarelo esbranquiçado iluminando o horizonte sul, mas sua empolgação morreu quando ele percebeu que estava olhando
para Lashane.
No quinto dia, ganharam velocidade e os ventos caprichosos ficaram mais fortes. Todo o céu se manchou com nuvens promissoras e, logo depois do meio-dia, as primeiras
gotas de água fria começaram a cair. Locke e Jean foram para a cabine, tentando parecer inocentes. Enterraram-se em livros e conversas despreocupadas, olhando com
satisfação as ondas se elevarem e a espuma engrossar nas cristas.
Na terceira hora da tarde, com a chuva constante e ondas de quase 1,5 metro de altura, Adalric veio à porta deles receber instruções para o jantar.
– Que tal uma sopa de vitela, senhores?
– Sem dúvida – respondeu Locke.
Se surgisse alguma chance de escapar, ele queria enfrentá-la com pelo menos mais um dos prodigiosos festins do prodígio vadrã enfiados goela abaixo.
– E que tal frango? – perguntou Jean.
– Fazerei um assassinato mesmo agora.
– Sobremesa também – disse Locke. – Vamos ter uma tempestade grande esta noite. As tempestades me deixam com fome.
– Tenho um bolo do mel e da gengibre.
– Bom garoto – comentou Jean. – E vamos tomar um pouco de vinho. Duas garrafas de maçã borbulhante, hein?
– Duas garrafas – repetiu o cozinheiro. – Eu manda traz para os senhores.
– Sujeito decente, apesar da forma como pisoteia a língua – disse Locke quando a porta se fechou. – Odeio me aproveitar dele.
– Ele não vai sentir nossa falta se escaparmos: tem toda a tripulação para apreciá-lo. Você sabe que tipo de gororoba estariam comendo se ele não estivesse a bordo.
Locke foi ao convés alguns minutos depois, deixando a chuva encharcá-lo, parado junto ao mastro de proa, fingindo indiferença enquanto o convés balançava lentamente
de um lado para outro. Ainda era um movimento suave, mas, se o tempo continuasse a piorar, era uma tendência muito promissora.
– Mestre Lazari! – Volantyne desceu do tombadilho superior com a capa impermeável balançando ao vento. – Sem dúvida o senhor estaria mais confortável na cabine,
não?
– Talvez nossa amiga em comum não tenha lhe contado, capitão Volantyne, que mestre Callas e eu já estivemos no mar. Comparado com o que suportamos nos Ventos Fantasmas,
isto é revigorante.
– Sei um pouco da sua história, Lazari, mas também estou encarregado da sua segurança.
– Bom, até que alguém tire a porcaria desses braceletes dos meus tornozelos, não posso exatamente nadar até a terra, não é?
– E se pegar um resfriado?
– Com Adalric a bordo? Ele deve ter tisanas capazes de expulsar a própria morte.
– Será que você ao menos consentiria em usar uma capa impermeável, para não parecer tanto um maluco?
– Seria bom.
Volantyne pediu que um marinheiro trouxesse uma capa e Locke voltou a falar enquanto a prendia nos ombros:
– Agora, perdoe minha ignorância, mas onde diabos estamos, afinal?
– Quarenta milhas a oeste de Lashane, errando pela distância de um fio de cabelo em qualquer direção.
– Ah. Achei que tinha visto a cidade ontem à noite.
– Não estamos fazendo um bom progresso para o oeste. Se eu tivesse que cumprir horário, estaria de mau humor, mas graças a vocês não temos pressa, não é?
– Certo. Aquilo ao sul são tempestades mais fortes?
– Aquela sombra? É um litoral a sota-vento, mestre Lazari. A porcaria de um litoral a sota-vento. Estamos a 8 ou 9 milhas do litoral sul do Amatel e lutando para
não chegar mais perto. Se pudermos atravessar essa confusão e ganhar mais 20 ou 30 milhas a oeste-noroeste, devemos chegar direto ao Cavendria, e de lá é como um
laguinho raso até o Mar de Bronze.
– É bom saber disso. Fique tranquilo, não tenho o menor interesse em me afogar.
4
O jantar foi excelente e produtivo. Quatro dos marinheiros de Volantyne observavam dos cantos da cabine enquanto Locke e Jean engoliam sopa, frango, pão, bolo e
um reluzente vinho de maçã borbulhante. Logo depois de abrir a segunda garrafa, Locke sinalizou para Jean, avisando que teria um momento desajeitado.
Ajustando o tempo com o balanço do navio, Locke derrubou a garrafa nova da mesa. Ela se abriu, derramando o vinho frio em seus pés descalços. Percebendo que a garrafa
não havia se despedaçado nos cacos afiados que ele esperava, fez cair o copo de vinho também, com resultados mais satisfatórios.
– Ah, merda, era uma bebida boa – exclamou, deslizando da cadeira e se agachando sobre a sujeira.
Balançou as mãos em cima, como se não soubesse o que fazer, e num instante um pedaço comprido e grosso de vidro havia passado de sua mão para a manga da túnica.
Era um trabalho delicado; uma mancha vermelha embaixo do pano certamente atrairia atenção.
– Não – ordenou um dos marinheiros, sinalizando para um colega subir ao convés. – Não toque em nada. Nós tiramos para o senhor.
Locke levantou as mãos e deu vários passos cautelosos para trás.
– Eu pediria mais vinho – falou Jean, erguendo seu copo de modo provocador –, mas é possível que você já tenha tomado o suficiente.
– Foi o balanço do navio – explicou Locke.
O guarda que havia saído voltou com uma vassoura e uma panela de metal. Rapidamente, varreu todos os cacos.
– Vamos lavar o convés quando limparmos a cabine amanhã, senhor – avisou um dos marinheiros.
– Pelo menos o cheiro é bom – observou Locke.
Os guardas não o revistaram. Locke admirou a escuridão que ia se aprofundando através da janela da cabine e se permitiu o luxo de um sorrisinho.
Quando os restos do jantar foram tirados (e todas as facas, os garfos e as colheres, devidamente contados) e a cabine era de novo dele e de Jean, Locke retirou com
cuidado o caco de vidro e colocou-o na mesa.
– Não parece grande coisa – comentou Jean.
– Precisa de uma proteção para segurar. E sei onde conseguir.
Enquanto Jean se encostava na porta da cabine, Locke usou o caco de vidro para soltar cuidadosamente a capa da frente do exemplar de República de ladrões. Depois
de alguns minutos cortando e raspando, obteve um pedaço irregular do couro de encadernação e uma quantidade do barbante usado na lombada do volume. Aninhou o fragmento
de vidro no couro e enrolou-o bem apertado nas bordas, criando algo parecido com uma serra minúscula. O lado coberto podia ser aninhado com segurança na palma da
mão e a borda cortante podia ser usada contra o que precisasse ser cortado.
– Agora – disse Locke baixinho, segurando sua ferramenta sob a luz da lanterna e examinando-a com uma mistura de orgulho e empolgação – vamos dar uma volta no convés
e desfrutar do clima?
O tempo havia piorado agradavelmente até uma forte chuva de outono. O Amatel era chicoteado, criando ondas com cerca de 2 metros, e relâmpagos espocavam atrás das
nuvens sempre móveis.
Locke e Jean, ambos usando capas impermeáveis, se acomodaram junto ao lado interno do escaler amarrado de cabeça para baixo no convés principal. O barco tinha cerca
de 4,5 metros, do tipo que geralmente ficava pendurado na popa de um navio. Locke supôs que a necessidade urgente de colocar as barras de ferro em volta das janelas
da grande cabine havia forçado a tripulação a mudar o lugar do barco. Ele estava preso ao convés com cabos e argolas; nada que uma tripulação de marinheiros não
pudesse manobrar em alguns minutos, mas se ele e Jean tentassem soltar a embarcação do modo convencional, demoraria demais e atrairia atenção. A resposta era cortar:
enfraquecer os cabos mais importantes, esperar um movimento fortuito do navio, soltar o escaler e depois, de algum modo, juntar-se a ele quando tombasse no mar.
Jean ficou sentado placidamente enquanto Locke trabalhava com o importantíssimo caco de vidro – cinco minutos, dez minutos, vinte minutos. A capa impermeável de
Locke era uma bênção, tornando possível esconder a atividade, mas a necessidade de manter o braço e o ombro imóveis colocava todo o esforço no punho e no antebraço.
Locke trabalhou até sentir dor, então, com cuidado, entregou o caco a Jean.
– Vocês dois parecem estranhamente despreocupados com o tempo! – gritou Volantyne, passando com uma lanterna.
Ele os examinou, os olhos saltando aqui e ali em busca de algo estranho. Por fim, relaxou e o coração de Locke retomou as atividades normais.
– Ainda estamos aquecidos pelo jantar, capitão – garantiu Jean. – E já sobrevivemos a tempestades no Mar de Bronze. Esta é uma ótima folga da monotonia da nossa
cabine.
– Monotonia, talvez, mas também segurança. Podem ficar aqui por enquanto, desde que continuem sem atrapalhar. Logo teremos trabalho com as velas. Se chegarmos muito
mais perto da terra, vou exigir que desçam.
– Está com problemas? – perguntou Locke.
– É uma porcaria de vento chato vindo do norte e do noroeste; parece mudar do modo menos conveniente. Estamos a 8 quilômetros da praia, quando deveríamos estar a
16.
– Somos suas peças de lastro mais leais e dedicadas, capitão. Deixe-nos digerir um pouquinho mais e talvez nós voltemos para dentro.
Assim que Volantyne se afastou, Locke sentiu Jean retornar ao trabalho.
– Não temos muito tempo – murmurou Jean. – E um ou dois cabos que não estejam cortados são o mesmo que vinte; algumas coisas não se partem sem a força de um homem.
– Eu causei alguns danos de verdade do meu lado. Tudo o que podemos fazer é continuar pelo máximo de tempo possível.
Os minutos passaram. Marinheiros iam e vinham no convés, verificando falhas em todos os lugares, a não ser bem atrás dos dois homens que trabalhavam desesperadamente
para causar uma. O navio balançava com força de um lado para outro, relâmpagos surgiam em todos os horizontes e Locke se pegou cada vez mais tenso à medida que o
tempo transcorria. Se aquilo desse errado, ele não tinha dúvida de que a ameaça de Volantyne, de trancá-los num porão, seria cumprida de imediato.
– Ah, diabos – murmurou Jean. – Sentiu isso?
– Senti o quê? Ah, maldição. – O navio havia adernado para estibordo e o peso do escaler pressionava com mais firmeza as costas e os ombros de Locke. Os cabos que
o prendiam estavam cedendo mais cedo do que o esperado. – Que diabos vamos fazer agora?
– Fique firme – orientou Jean.
O navio adernou para bombordo e houve um fraco som de algo raspando o convés. Locke rezou para que o tumulto do clima impedisse que o ruído fosse escutado por alguém.
Como um pêndulo, o navio balançou para estibordo de novo e, dessa vez, o raspar cresceu até um guincho alto. A pressão contra as costas de Locke se tornou agourenta
e algo estalou ruidosamente atrás dele.
– Merda – sussurrou Jean. – Por cima!
Os dois Nobres Vigaristas se viraram e subiram no escaler no instante em que as amarras cederam por completo. Locke e Jean rolaram de cima do bote com uma embaraçosa
falta de suavidade, pousaram com força, e a embarcação partiu pelo convés, guinchando e deslizando em direção ao corrimão de estibordo.
– Arrá! – gritou Locke, incapaz de se conter. – Estamos livres!
O escaler bateu com força contra o corrimão de estibordo e parou.
– Merda – praguejou Locke, não tão alto.
Um instante depois, o navio adernou para bombordo e Locke percebeu que ele e Jean estavam justamente no único caminho que o escaler poderia tomar, voltando pelo
convés inclinado. Empurrou Jean com força para a esquerda e rolou para o outro lado. O bote passou raspando pelo convés entre os dois, pegando impulso. Locke se
virou, certo de que dessa vez o escaler passaria por cima da amurada...
Com uma pancada áspera, o barco bateu com força no corrimão de bombordo, que, apesar de se vergar, não cedeu completamente e o bote emborcado permaneceu bem longe
da água.
– Pelo cacete pendurado de Perelandro! – gritou Locke, levantando-se.
– Que diabo vocês dois acham que estão fazendo?
Volantyne veio saltando com agilidade pelo convés principal, a lanterna ainda na mão.
– Seu bote se soltou! Ajude-nos! – berrou Jean.
Um instante depois, ele pareceu pensar melhor, acertou Volantyne com um gancho de direita no queixo e agarrou a lanterna enquanto o capitão caía.
– Jean! Atrás de você! – gritou Locke, desviando-se do bote pela segunda vez no momento em que o convés se inclinou de novo.
Um tripulante havia chegado por trás de Jean, segurando um pino de mareação. Jean se esquivou do primeiro ataque do sujeito e acertou a lanterna no seu cocuruto.
O vidro se despedaçou e a gosma alquímica branca e reluzente se espalhou no pobre coitado, da testa até a cintura. Em geral, era uma substância inofensiva, mas não
algo que a pessoa quisesse ter nos olhos. Gemendo e brilhando feito um fantasma de conto de fadas, o homem caiu de encontro ao mastro de proa.
À frente de Locke, o escaler deslizou para estibordo, bateu no corrimão a toda velocidade, provocando um terrível ruído de algo se partindo, e caiu no mar.
– Graças aos deuses – murmurou Locke enquanto corria até a abertura no corrimão bem a tempo de ver o bote mergulhar de proa na água, como uma flecha, e ser engolido
imediatamente sob uma onda estourando. – Ah, QUAL É!
– Pule! – berrou Jean, desviando-se do golpe de um tripulante que se lançou para ele com um remo. Jean deu dois socos nas costelas do infeliz, que fez uma imitação
convincente de uma marionete com os fios cortados. – Pule na água, inferno!
– O bote afundou! – gritou Locke, examinando a escuridão inutilmente em busca de um vislumbre dele. Apitos soavam no tombadilho superior e dentro do navio. Toda
a tripulação seria chamada contra eles. – Não consigo vê-lo!
– Não estou escutando você. Pule!
Jean correu pelo convés e deu um empurrão bem-intencionado em Locke, através da abertura no corrimão. Não houve tempo de fazer nada além de ofegar com surpresa.
A capa impermeável de Locke flutuou em volta enquanto ele caía feito um morcego ferido na água escura do Amatel.
O frio o acertou como um choque. Ele girou no negrume borbulhante, lutando contra a capa e o peso das algemas nos tornozelos. Elas não estavam arrastando-o diretamente
para baixo, mas iriam aumentar bastante a velocidade com que ele iria se exaurir batendo os pés para manter a cabeça sobre a água.
Seu rosto rompeu a superfície; ele sugou o ar e o borrifo de água doce. O Resolução de Volantyne assomava como uma sombra monstruosa, iluminada por uma dúzia de
lanternas que pulavam e balançavam. Uma forma familiar e escura se destacou de algum tipo de luta junto ao corrimão mais próximo e caiu na direção da água.
– Jean – falou Locke, ofegando –, não tem...
O barco perdido voltou à superfície como um tubarão rasgando a água, cuspido numa torrente branca. Jean caiu de cara sobre ele, com uma pancada medonha, e despencou
pesadamente na água ao lado.
– Jean! – gritou Locke, agarrando a amurada do escaler e examinando desesperadamente a água em busca de algum sinal do amigo.
O grandalhão já havia afundado. Uma onda se partiu sobre a cabeça de Locke e soltou-o do barco. Ele cuspiu água e procurou freneticamente... ali! Uma forma escura
pairava a pouco mais de 2 metros abaixo dos seus pés, iluminada por baixo por uma luz azul fantasmagórica. Locke mergulhou justo quando outra onda se quebrava contra
o bote.
Agarrou Jean pelo colarinho e sentiu uma consternação fria diante da reação débil. Por um momento, pareceu que os dois pairavam suspensos num mundo cinzento entre
os topos das ondas e a luz fantasmagórica e, de repente, Locke percebeu qual era a fonte da iluminação ao redor. Não eram raios nem lanternas e, sim, os fogos desconhecidos
que ardiam no fundo do Amatel.
Vislumbrados de baixo d’água, eles perdiam seu reconfortante aspecto de joias e pareciam se agitar, pulsar e se turvar. Faziam os olhos de Locke arderem e sua pele
se arrepiava com a sensação irracional, instintiva, de que algo absolutamente hostil estava ali perto – e se aproximando mais. Passou as mãos por baixo dos braços
de Jean e bateu as pernas com toda a força, puxando os dois de volta à superfície e à tempestade.
Raspou o rosto contra o escaler ao subir, sugou o ar com força e içou Jean de novo, para que a cabeça dele ficasse acima da água. O frio era como uma pressão física,
entorpecendo seus dedos e transformando os membros lentamente em chumbo.
– Volte para mim, Jean – cuspiu Locke. – Sei que seu cérebro travou, mas, pelo Guardião Torto, volte! – Ele puxou Jean, apoiando-se na amurada do bote sacudido pelas
ondas com a outra mão, e apesar de todos os esforços só conseguiu quase emborcá-lo de novo. – Merda!
Locke precisava entrar primeiro, mas, se soltasse Jean, o amigo provavelmente afundaria outra vez. Viu o tolete, a peça de ferro fundido em forma de U presa na amurada
para sustentar o remo. Ele fora amassado pelo deslizamento do bote no convés, mas poderia servir a um novo propósito. Locke puxou a capa impermeável de Jean e torceu
uma das pontas, fazendo um nó grosseiro em volta do tolete, de modo que Jean ficou pendurado no barco pelo pescoço e pelo peito. Não era um modo sensato de deixá-lo,
mas isso iria impedi-lo de se afastar enquanto Locke subia a bordo.
Uma nova onda lançou a lateral do bote contra a cabeça de Locke. Pontos pretos dançaram diante dos seus olhos, mas a dor o instigou a uma ação furiosa. Ele mergulhou
pelo negrume embaixo do barco, depois abriu caminho de novo subindo até a amurada do lado oposto. Outra onda o acertou e Locke saiu do meio da espuma, fazendo força
até passar por cima da borda. Ricocheteou dolorosamente no banco de remador e caiu na água que balançava no fundo, até a altura dos tornozelos.
Estendeu a mão por cima da amurada e agarrou Jean. Seu puxão era desesperado, desequilibrado e inútil. O bote balançava e chacoalhava a cada esforço, subindo e descendo
nas ondas como um pistão numa máquina de pesadelo. Por fim, o tino de Locke arrebentou as paredes de sua exaustão e seu pânico. Ele virou Jean de lado e o puxou
por um braço e uma das pernas, usando a capa para se equilibrar. Assim que o grandalhão estava em segurança no escaler, ele tossiu, murmurou e se balançou.
– Ah, eu odeio os Ancestres, Jean. – Locke ofegou, deitado ao lado de Jean no fundo do barco que se sacudia, golpeado por ondas e chuva. – Odeio. Odeio tudo o que
eles fizeram, odeio a merda que eles deixaram para trás, odeio o modo como nenhum dos mistérios deles acaba sendo uma porra agradável e de boa vizinhança!
– Luzez bonidaz – murmurou Jean.
– É, luzes bonitas. Marinheiros amigáveis, o Amatel tem de tudo.
Locke empurrou Jean de lado e sentou-se. Balançavam feito uma rolha de vinho num caldeirão com água fervendo, mas o bote parecia mais capaz de suportar os movimentos
agora que o peso estava no seu centro. Tinham se desviado para trás e mais para o litoral com relação ao Resolução de Volantyne, que agora se achava a mais de 50
metros de distância. Gritos confusos podiam ser ouvidos, mas o navio não parecia estar dando a volta para pegá-los. Locke só podia esperar que a pancada de Jean
em Volantyne impedisse o resto da tripulação de decidir as coisas até que fosse tarde demais.
– Zandoz infernoz – disse Jean –, gomégueu jegueiagui?
– Não se preocupe. Está vendo algum remo?
– Ahn, ajo gueu arrebendei go gara gue dava gom elez. – Jean estendeu a mão e sondou o rosto cautelosamente. – Ai, deusez, ajo gueu guebrei o dariz de dovo.
– Você usou o nariz para aliviar a queda quando bateu no barco.
– Foi izo gue me abagou?
– É, fiquei me cagando de medo.
– Vozê me zalvou!
– É minha vez, a cada dois anos – disse Locke com um sorriso débil.
– Obrigado.
– Tudo o que eu fiz foi salvar meu próprio rabo quatro ou cinco vezes. E pegar você depois de um pouso infernal. Se as ondas continuarem levando a gente para o sul,
devemos chegar à praia daqui a alguns quilômetros, mas, sem remos para manter o controle, pode ser difícil sair da água.
As ondas fizeram sua parte, levando o barquinho para o sul numa velocidade apavorante, e quando a praia finalmente surgiu, a chegada deles foi tão violenta quanto
Locke havia suposto. O Amatel jogou-os contra a areia vulcânica preta como um monstro vomitando um brinquedo que não era mais interessante.
5
A estrada litorânea a oeste de Lashane chamava-se Via das Areias Negras e era um local solitário para viajar naquela manhã de outono batida pelo vento. Uma carruagem
puxada por oito cavalos chacoalhava sobre as pedras centenárias levantando cascalho molhado em vez das nuvens de poeira mais comuns em estações secas.
O serviço de carruagens seguras vindas de Salon Corbeau e pontos mais ao sul era destinado a viajantes ricos incapazes de pensar em pôr os pés a bordo de um navio.
Com portas reforçadas com ferro, janelas com postigos e trancas internas, o veículo era uma pequena fortaleza para passageiros com medo de salteadores.
O cocheiro usava um gibão blindado, assim como o guarda sentado junto dele no topo da carruagem, aninhando uma balestra que parecia capaz de abrir um buraco do tamanho
de uma porta de templo em qualquer coisa contra a qual fosse disparada.
– Ei, vocês aí! – gritou um homem magro perto da estrada. Ele usava uma capa impermeável jogada sobre os ombros e havia um homem maior caído no chão ao lado dele.
– Ajudem-nos, por favor!
Normalmente o cocheiro teria chicoteado os cavalos e passado a toda velocidade por qualquer um que tentasse pará-los, mas nada daquilo se assemelhava a uma emboscada.
O terreno era plano por centenas de metros ao redor, logo, se aqueles homens eram iscas, seus aliados não poderiam estar num raio de 800 metros. E seu aspecto parecia
genuinamente precário: sem armaduras, sem armas, sem nada da bravata dos bandoleiros de fato. O cocheiro puxou as rédeas.
– O que você acha que está fazendo? – perguntou o homem da balestra.
– Não esquente. Você está aqui para vigiar minhas costas, não é? O que aconteceu, estranho?
– Naufrágio! – gritou o homem magro. Ele estava desalinhado, tinha estatura mediana, com cabelo castanho-claro puxado de forma frouxa para trás. – Ontem à noite.
Fomos jogados em terra.
– Que navio?
– Resolução de Volantyne, vindo de Kartane.
– Seu amigo está ferido?
– Ele apagou. Vocês vão para Lashane?
– É, 40 quilômetros por terra. Vamos chegar amanhã. O que vocês gostariam de nós?
– Carregue-nos, nos cavalos ou na prancha traseira. O sindicato do nosso patrão tem um agente de navegação em Lashane. Ele pode pagar pelo incômodo de vocês.
– Cocheiro – disse uma voz ríspida e esganiçada dentro da carruagem –, não é meu negócio resgatar quem é insensato a ponto de encarar o desastre em pleno Amatel.
Reze pela saúde deles se for preciso, mas vá em frente.
– Senhor – retrucou o cocheiro –, o sujeito que está no chão parece mal. O nariz dele está roxo feito uva.
– Não é da minha conta.
– Existem certas regras sobre como nos comportamos na estrada, senhor, e lamento ter que recusar sua ordem, mas logo estaremos de novo a caminho.
– Não vou pagar para alimentá-los! E não vou pagar pelo tempo que estamos perdendo sentados aqui!
– Desculpe de novo, senhor. Isso tem que ser feito.
– Está tudo bem – falou o guarda com um suspiro. – Esses sujeitos não são salteadores.
O cocheiro e o guarda desceram e foram até onde Locke estava, junto de Jean.
– Se vocês me ajudarem a colocá-lo de pé – disse Locke ao guarda –, podemos tentar acordá-lo.
– Perdão, estranho, é idiotice pousar no chão uma arma carregada. Ela pode facilmente disparar por acidente. Basta um cutucão com um passo em falso...
– Bom, é só apontá-la para longe de nós – murmurou o cocheiro.
– Está bêbado? Uma vez, em Tamalek, eu vi um sujeito colocar uma besta no chão só por...
– Tenho certeza de que você está certo – interrompeu o cocheiro, irritado. – Nunca, jamais, ponha essa arma no chão enquanto você viver. Você pode acidentalmente
acertar um sujeito em Tamalek.
O guarda gaguejou, suspirou e, com cuidado, apontou a arma para um trecho de areia na beira da estrada. Houve um estalo alto, chapado, e o quatrelo se cravou bem
fundo no chão.
Assim, tudo estava feito. Jean voltou milagrosamente à vida e, com alguns golpes rápidos dos punhos, convenceu, com eloquência, os dois guardas a se deitarem e ficarem
inconscientes por um tempo.
– Eu lamento mesmo, de verdade – disse Locke. – E vocês deveriam saber que não agimos assim normalmente.
– Bom, e agora, seus corações molengas? – gritou o homem dentro da carruagem. – Vocês sabem das coisas, não é? Se tivessem alguns miolos, estariam dentro de uma
dessas coisas, e não guiando-as!
– Eles não podem ouvi-lo – respondeu Locke.
– Bandidos! Filhos da imundície! Desgraçados sem mãe! – O homem dentro da carruagem gargalhou. – Mas, para mim, tanto faz. Vocês não podem invadir isto aqui. Roubem
o que quiserem dos meus contratados covardes, senhores, mas não terão nada meu!
– Deuses do céu! – exclamou Locke. – Escute, sua porra de fuinha sem coração. Sua fortaleza tem rodas. A cerca de um quilômetro, a leste daqui, há penhascos acima
do Amatel. Vamos desatrelar a carruagem lá e empurrá-la pela borda.
– Não acredito em você!
– Então é melhor treinar voo. – Locke saltou no banco do cocheiro e pegou as rédeas. – Venha, vamos levar o merdinha para a viagem mais curta da vida dele.
Jean subiu ao lado de Locke, que instigou os cavalos bem treinados e a carruagem começou a andar.
– Ei, esperem um minuto! – berrou o passageiro, subitamente relutante. – Pare, pare, pare!
Locke deixou-o gritar durante uns 100 metros antes de diminuir a velocidade dos cavalos.
– Se quer viver, abra a...
A porta se abriu com um estrondo. O homem que saiu teria uns 60 anos, era baixo e de barriga oval, com olhos de coelho assustado. O chapéu e a camisola eram de seda
carmim, cravejados de botões de ouro. Locke saltou no chão e olhou-o, furioso.
– Tire essa coisa ridícula – rosnou.
O homem se despiu rapidamente até ficar com a roupa de baixo. Locke agarrou suas vestes finas, que fediam a suor, e jogou-as na carruagem.
– Onde estão a comida e a água?
O homem apontou para um compartimento na parte exterior traseira da carruagem, logo acima da prancha. Locke abriu-a, escolheu algumas coisas para si mesmo e jogou
parte dos pacotes de ração bem embrulhada na terra ao lado da via.
– Vá acordar seus amigos e desfrute da caminhada – disse Locke enquanto subia de novo ao lado de Jean. – Não deve demorar mais de um dia até chegarem aos povoados
nos arredores de Lashane. Ou talvez alguém apareça e sinta pena de vocês.
– Seus desgraçados! – gritou o homem sem camisola e sem carruagem. – Ladrões desgraçados! Vão ser enforcados por isso! Eu garanto!
– É uma possibilidade remota. Mas sabe o que é certo? Para a próxima fogueira que eu precisar fazer, vou usar suas roupas, seu escroto.
Locke deu um aceno alegre e, depois, a carruagem blindada foi ganhando velocidade na estrada, mas não para Lashane e, sim, para Kartane, dando a longa volta ao redor
do Amatel.
i n t e r l ú d i o
Aurin e Amadine
1
– Por que, com todos os diabos, vocês aceitam esse abuso? – perguntou Jean, sentado ao lado de Jenora, tomando café no segundo dia depois da chegada dos Nobres Vigaristas
a Espara. – Lidar com Moncraine, as dívidas, as besteiras...
– Nós, que restamos, somos acionistas. Temos participação na propriedade comum e nos lucros, quando eles aparecerem por milagre. Alguns de nós economizamos durante
anos para fazer esse investimento. Se abandonarmos Moncraine, estaremos abrindo mão de tudo.
– Ah.
– Olhe o Alondo. Ele teve uma noite fantástica no jogo de cartas e usou os ganhos para comprar uma parte da trupe. Isso foi há três anos. Na época estávamos fazendo
Os dez vira-casacas honestos, Mil espadas por Terim Pel e O Baile dos Assassinos. Uma dúzia de produções inteiras por ano, bailes de máscaras para a condessa Antônia,
peças em festivais, turnês pelo oeste, onde o terreno não é um ermo amaldiçoado como o espaço entre aqui e Camorr. Quero dizer, nós tínhamos perspectivas; não estávamos
malucos.
– Eu não disse que estavam.
– Foram principalmente os atores contratados e os de período curto que evaporaram. Eles não têm âncoras, a não ser o pagamento semanal, e podem ganhar isso com o
Basanti. Diabos, eles aceitariam menos dele, porque pelo menos haveria trabalho certo.
– O que aconteceu?
– Não sei – respondeu Jenora, olhando para a caneca como se ela pudesse guardar novas respostas. – Acho que às vezes simplesmente baixa uma escuridão sobre a pessoa.
Você espera que isso vá embora.
– Quer dizer, sobre o Moncraine.
– Se você pudesse vê-lo naquela época, acho que entenderia. Você sabe sobre os Quarenta Cadáveres?
– Ahn... se disser que não, eu viro o quadragésimo primeiro?
– Se eu matasse gente, quatro-olhos, Moncraine não viveria o suficiente para ser preso. Chamamos de Quarenta Cadáveres as quarenta peças famosas que sobreviveram
à queda do império. As grandes, escritas pelos famosos do Trono Terim... Lucarno, Viscora, aquela turma.
– Ah.
– São chamadas de cadáveres porque não mudaram mesmo depois de quatro ou cinco séculos. Quero dizer, nós amamos a maioria, mas elas vão mofando um pouco. São recitadas
como rituais de templo, secos e sem vida. Só que, quando Moncraine estava ativo, quando Moncraine era bom, ele fazia os cadáveres pularem fora das sepulturas. Era
como se ele fosse uma fagulha e toda a trupe pegasse fogo com ela. Depois que se vê isso e se faz parte disso... Vou lhe dizer, Jovanno, você aceitaria praticamente
qualquer coisa só para ter tudo de novo.
– Retornei do exílio ao qual meu orgulho me condenou! – trovejou uma voz na porta da estalagem.
– Ah, pelos deuses abaixo, vocês conseguiram mesmo! – exclamou Jenora, saltando da cadeira.
Um homem entrou no salão comunitário, um grande syresti escuro com roupas sujas, e gritou ao vê-la:
– Jenora, minha visão sombria, eu sabia que poderia...
O que quer que ele soubesse foi perdido quando a palma aberta de Jenora acertou sua bochecha. Jean piscou; o braço dela fora apenas um borrão castanho-claro. Ele
fez uma anotação mental de que Jenora era rápida quando estava com raiva.
– Jasmer – berrou ela –, seu porra idiota, teimoso, bêbado, com cérebro de banha! Você quase arruinou a gente! Não foi a porcaria do seu orgulho que o colocou na
cadeia, foram seus punhos!
– Paz, Jenora – murmurou Moncraine. – Ai. Eu estava meio que citando a fala de uma peça.
– Aiiiiaaahhhhhhh! – berrou a Sra. Gloriano enquanto saía correndo de uma passagem lateral. – Não acredito! Os camorris tiraram você! E é mais do que você merece,
seu desgraçado imundo! Seu bêbado syresti imundo!
– Tudo bem, titia, eu já bati nele por nós duas – avisou Jenora.
– Ah, pelos gatinhos famintos do inferno – murmurou Sylvanus, entrando atrás da estalajadeira. Seus olhos injetados e o cabelo bagunçado do sono lhe davam a aparência
de alguém apanhado num vendaval. – Vejo que os guardas da Torre do Lamento podem ser subornados, afinal.
– Bom dia para você também, Andrassus – disse Moncraine. – As reentrâncias profundas do meu coração se aquecem ao ouvir tantas explicações possíveis para minha libertação,
menos o pensamento de que eu poderia ser inocente.
– Você é tão inocente quanto convencemos Boulidazi a fingir que você é – falou Sabeta, entrando da rua.
Ela e Locke haviam saído naquela manhã cedo para esperar junto à Torre do Lamento, prontos para agarrar Moncraine assim que ele fosse solto, depois do comparecimento
ao tribunal.
– Ele disse algumas coisas inesperadas e bonitas – admitiu Moncraine.
– Você vai organizar a reunião ou eu devo fazer isso? – perguntou Sabeta.
– Eu posso dar a notícia, garot... Verena. Muito obrigado. – Moncraine pigarreou. – Um momento do seu tempo, damas e cavalheiros da Companhia Moncraine. E você também,
Andrassus. E nossa... é... benfeitora e credora paciente, a Sra. Gloriano. Há... algumas mudanças vindo por aí.
– Doces deuses! – exclamou Sylvanus. – Seu canalha com pele de carvão, que arruína a vida dos outros, está sugerindo mesmo que um emprego com ganhos vai pôr as mãos
em volta do nosso pescoço de novo?
– Sylvanus, eu adoro você, como adoro meu sangue syresti, mas feche esse buraco de birita babão. Sim, Espara terá sua produção da República de ladrões pela Companhia
Moncraine.
Sabeta tossiu.
– Mas sou compelido a aceitar alguns arranjos – continuou Moncraine. – Lorde Boulidazi concordou em reconsiderar minha... é... minha recusa à sua oferta de patrocínio.
Assim que Salvard estiver com os papéis prontos, nós seremos a Companhia Moncraine-Boulidazi.
– Um patrono – disse, incrédula, a Sra. Gloriano. – Isso quer dizer que podemos receber pagamento pelo nosso...
– Sim – respondeu Locke, vindo do pátio da estalagem com várias bolsas nas mãos. – E aqui está o seu.
– Pelas partes privadas de Gandolo, garoto! – Ela pegou a sacola tilintante que Locke jogou. – Simplesmente não acredito.
– Sua casa de contabilidade vai acreditar – replicou Locke. – São 12 régios para saldar a dívida com a senhora. Lorde Boulidazi está comprando as dívidas de mestre
Moncraine para aliviá-lo do sofrimento trazido por elas.
– Para enrolar uma corda nas minhas pernas e me fazer voar feito uma pipa – disse Moncraine com os dentes trincados.
– Para impedir que você seja esfaqueado na porcaria de um beco! – corrigiu Sabeta.
– Não que isso não seja milagroso – falou Jenora –, mas aqueles de nós com participação na companhia têm precedência sobre qualquer arranjo proposto por Boulidazi.
Nobres ou não, nós temos documentos nos quais ele não pode simplesmente mijar em cima.
– Sei disso – retrucou Locke. – Não estamos aqui para tirar a participação de vocês. Boulidazi está dando a Moncraine as verbas necessárias como adiantamento para
a futura parte de Moncraine nos lucros da companhia. Os interesses de vocês estão protegidos.
– Pode ser, mas, se esta companhia vai voltar a fazer pagamentos, quero outra pessoa de olho nos livros. Sem ofensa, Jasmer, mas coisas estranhas podem acontecer
com os lucros antes de eles chegarem aos acionistas.
– Jovanno é que é bom com números – sugeriu Locke. – Ele é um gênio.
– Ei, obrigado por me oferecer – falou Jean. – Eu estava imaginando quando poderia parar de fazer coisas interessantes e me enterrar nos livros de contabilidade.
– Eu falei isso como um elogio! Além do mais, se tivesse chance, você confiaria em mim ou nos Asinos...
– Maldição – resmungou Jean. – Eu cuido dos livros.
– Mestre Moncraine, este, por sinal, é meu primo, Jovanno de Barra.
– O terceiro dos camorris misteriosos – comentou Moncraine. – E onde estão o quarto e o quinto?
– Os irmãos Asinos ainda estão dormindo – respondeu Jean. – E, quando acordarem, acho que terão uma ressaca. Eles cruzaram garrafas com aquela coisa. – Ele indicou
Sylvanus. – Fiz todo o possível para mantê-los vivos.
– Bom, então, vamos ser misericordiosos. Quero um banho e roupas limpas. Alguém cace o Alondo e teremos uma reunião de verdade sobre a peça depois do almoço. Que
tal?
– Moncraine!
A porta da rua se abriu com estrondo, chutada por um homem de aparência desagradável. Suas roupas caras estavam manchadas de vinho, molhos e agourentos borrões escuros
que não tinham nada a ver com comida. Meia dúzia de homens e mulheres o acompanharam para dentro da sala; obviamente eram exemplares variados de brutamontes. As
Pessoas Certas de Espara estavam em cena.
– Ah, bom dia, Pastor. Posso lhe oferecer algo para beber...
– Moncraine – replicou o homem –, seu saco de couro seco de boceta de putas! Você parou numa casa de contabilidade depois de escapar da Torre do Lamento?
– Não tive tempo. Mas...
– Num determinado ponto, Moncraine, os juros compostos se tornam menos interessantes para o meu chefe do que enfiar você no cu de um cavalo morto e afundá-lo na
porra de um pântano.
– Com licença – disse Locke humildemente.
– Ah, desculpe, não percebi que esta é a semana do Festival Infantil. Está querendo um chute na bunda ou o quê?
– Posso perguntar qual é a dívida de mestre Moncraine com seu chefe?
– São 18 régios, 4 quintos, 36 copins, exatos até esta hora.
– Foi o que pensei. Há 19 nesta bolsa – informou Locke, estendendo uma bolsa de couro. – Do Moncraine, claro. Ele gosta de fazer esse tipo de coisa, o senhor sabe.
Para causar efeito dramático.
– Isso é a porra de uma piada?
– Dezenove régios. Sem piada.
Pastor abriu a bolsa, passou os dedos pelas moedas e soltou um grunhido espantado.
– Dias estranhos caem sobre nós. – Ele fechou a bolsa rapidamente. – Sinais e maravilhas. Jasmer Moncraine pagou uma dívida. Esta noite vou fazer as porras das minhas
orações, vou mesmo.
– Estamos quites? – perguntou Moncraine.
– Quites? É, essa questão está encerrada. Mas não venha se arrastando e pedindo mais, Moncraine. Pelo menos durante alguns meses. Deixe o chefe esquecer que degenerado
cancro de cu você é.
– Claro. Exatamente como você diz.
– Claro, se você tivesse algum cérebro, jamais se arriscaria a me ver de novo.
Pastor esboçou uma saudação, virou-se e partiu com seu grupo de capangas, a maioria dos quais pareceu desapontada.
– Uma palavrinha – disse Moncraine, levando Locke para um canto da sala. – Apesar de eu estar satisfeito como um bebê num seio por ter sido aliviado desse peso,
começo a me perguntar se não serei nada além de uma testemunha muda nos meus negócios daqui em diante.
– Se você fizesse as coisas do seu jeito, começaria sua sentença na prisão hoje. Você não pode nos culpar porque queremos mantê-lo fora de mais encrencas.
– Não fico satisfeito em ser tratado como se não pudesse administrar um negócio simples. Me dê as bolsas que ainda restam e eu pagarei minhas próprias dívidas.
– O alfaiate, o sapateiro, o escriba e os atores que partiram para a companhia Basanti? Nós mesmos podemos localizá-los, obrigado.
– As contas não são suas para você saldar, garoto!
– E este dinheiro não é seu para você segurar.
– Jasmer – falou Sabeta, vindo por trás deles com Jean –, eu odiaria pensar que você está tentando acuar e intimidar um de nós em particular.
– Estávamos apenas discutindo como eu poderia assumir a responsabilidade por minhas próprias falhas – respondeu Moncraine.
– Você pode cumprir com sua parte no trato e se lembrar de quem o tirou da Torre do Lamento e trouxe nosso novo patrono. Seu trabalho é nos dar uma peça. Quanto
a isso, somos seus súditos, mas, em termos de sua segurança, você é nosso.
– Ah, estou me sentindo envolto no próprio seio do amor!
– Só tente não estragar mais nada. Não vai ser uma vida tão difícil.
– Então vou tomar o meu banho. Vocês três querem olhar, para garantir que não vou me afogar?
– Se você se afogasse – disse Locke –, nunca teria a satisfação de nos dar ordens no palco.
– É verdade. – Moncraine coçou sua barba crescida e grisalha. – Vejo vocês depois do almoço, então. Ah, já que estas são questões relativas à peça... Lucaza, pegue
uma dúzia de cadeiras do salão comunitário e coloque-as no pátio. Verena, dê uma olhada no acervo e encontre todos os exemplares de República de ladrões que temos.
Jenora pode lhe dar uma mão.
– Claro – respondeu Sabeta.
– Ótimo. Agora, se precisarem de mim para mais algum negócio, estarei no meu quarto, pelado.
2
Logo antes do meio-dia, o sol passou atrás de uma grossa camada de nuvens e o calor capaz de cozinhar o cérebro se suavizou até se tornar preguiçoso e mais suportável.
A lama do pátio, local anterior de descanso do muito bêbado Sylvanus, havia secado até formar uma crosta macia sob os pés da empolgada e perplexa Companhia Moncraine-Boulidazi.
Todos os cinco Nobres Vigaristas tinham cadeiras, mas Calo e Galdo, com manchas escuras sob os olhos, recusaram-se peremptoriamente a sentar-se juntos, por isso
Locke, Jean e Sabeta estavam entre os dois.
Alondo folheou preguiçosamente uma cópia rasgada e manchada de República de ladrões. Cada volume na pequena pilha de textos encontrada por Sabeta era de tamanho
diferente e não havia duas cópias com a mesma letra. Algumas tinham a inscrição COMPANHIA MONCRAINE ou COPIADO PARA J. MONCRAINE, ao passo que outras eram ex-propriedades
de trupes diversas. Uma delas tinha até mesmo a inscrição BASANTI na contracapa.
Sylvanus, sóbrio, ou pelo menos sem beber naquele momento, estava sentado junto de Jenora. O primo de Alondo estava encostado numa parede com os braços cruzados.
Então essa era a totalidade da companhia. Locke suspirou.
– Olá de novo. – Moncraine surgiu, parecendo quase respeitável com um gibão cinza acolchoado e calções pretos. – Agora vamos descobrir juntos quais entidades poderosas
da história estão sentadas conosco e quais teremos que implorar, pegar emprestadas ou roubar. Você!
– Eu, senhor? – perguntou o primo de Alondo.
– É. Quem é você, por todos os infernos? É um camorri?
– Ah, deuses do céu, não, senhor. Sou primo do Alondo.
– Tem nome?
– Djumein Kurlin. Todo mundo me chama de Jumento.
– Que porra de azar. Você é ator?
– Não, senhor, sou cavalariço.
– Por que está espionando a reunião da minha companhia desse jeito?
– Só quero ser morto no palco, senhor.
– Foda-se o palco. Venha cá e eu concedo seu desejo agora mesmo.
– Ele quer dizer – interveio Jean – que nós prometemos um papel pequeno para ele em troca de ter nos ajudado a vender alguns cavalos.
– Ah – disse Moncraine. – Um entusiasta. Eu ficaria muito satisfeito em ajudá-lo a morrer no palco. Fique do meu lado bom e isso pode até ser só de mentirinha.
– Ah, obrigado, senhor.
– Agora precisamos de um Aurin. Aurin é um jovem de Terim Pel, basicamente de bom coração, inseguro. Além disso, é filho único e herdeiro do imperador. Parece que
temos uma sobra de rapazes, portanto vocês podem lutar pelo papel nos próximos dias. E precisamos de uma Amadine...
– Ei – cortou Calo. – Desculpe interromper. Eu estava pensando, antes de todos sermos medidos para os enchimentos nas braguilhas ou sei lá o quê, onde diabos vamos
apresentar essa peça? Ouvi dizer que o tal de Basanti tem um teatro. O que nós temos?
– Você é um dos Asinos, certo? – perguntou Moncraine.
– Giacomo Asino.
– Bom, sendo de Camorr, Giacomo, você provavelmente não ouviu falar do Pérola Antiga. É um teatro público, construído por um conde...
– Poldaris, o Justo – murmurou Sylvanus.
– Construído por Poldaris, o Justo, como legado perpétuo ao povo de Espara. Um grande anfiteatro de pedra, com cerca de duzentos anos.
– Cento e oitenta e oito – esclareceu Sylvanus.
– Perdão, Sylvanus, diferentemente de você, eu não estava aqui. Portanto, Giacomo, nós podemos usá-lo desde que paguemos uma pequena quantia à ministra de cerimônias
da condessa.
– Se é um lugar tão bom, por que Basanti construiu o dele?
– O Pérola Antiga é perfeitamente adequado. Basanti construiu um para lisonjear seu amor-próprio, não para engordar a carteira.
– Porque os empresários gostam de gastar muito dinheiro para substituir estruturas perfeitamente adequadas que eles podem usar em troca de quase nada, certo?
– Olhe, garoto, não importaria se o novo teatro de Basanti transformasse cocô de cachorro em platina e se pôr os pés dentro do Pérola Antiga causasse lepra nas pessoas.
O que há é o Pérola Antiga. Não há tempo nem dinheiro para nada além disso.
– Ele causa? – perguntou Calo. – Quero dizer, causa lepra nas pessoas?
– Vá lamber o palco e descubra. Agora vamos falar sobre Amadine. Amadine é uma ladra num tempo de paz e abundância. Os bandidos se multiplicaram nas antigas catacumbas
embaixo de Terim Pel. Eles zombam dos costumes das pessoas importantes, do imperador e seus nobres. Alguns até chamam seu mundinho de república. Amadine é a líder
deles.
– Você deveria ser a nossa Amadine, Jasmer – disse Sylvanus. – Pense nas saias lindas que Jenora poderia fazer para você!
– Verena é a nossa Amadine. Há certa deficiência de seios na companhia e, ainda que os seus possam ser maiores do que os dela, Sylvanus, duvido que muitas pessoas
paguem para vê-los. Não, já que nossa antiga Amadine nos abandonou... ela vai servir.
Sabeta assentiu ligeiramente, satisfeita.
– Agora todo mundo pegue um texto com as falas. Mantenham-nas à mão para consulta. Uma trupe aprende uma peça como todos nós aprendemos a trepar, cambaleando e se
sacudindo até que tudo enfim chegue ao lugar certo.
Locke sentiu as bochechas esquentarem um pouco, apesar de o sol ainda estar escondido pela parede alta de nuvens de verão.
– Bom, Aurin se apaixona por Amadine, eles têm um monte de problemas, tudo é muito romântico e trágico e a plateia nos dá muito dinheiro para assistir. Mas, para
chegar lá, precisamos afiar muito bem as coisas... cortar um pouco de peso morto do texto. Mais tarde indicarei os cortes integrais a vocês, mas, por enquanto, acho
que podemos descartar todas as partes onde está o cortesão Marolus. E também Avúnculo e Tremedeira, os ladrões cômicos, com certeza.
– É, com certeza – disse Sylvanus. – E que decisão ousada, já que os nossos Marolus, Avúnculo e Tremedeira correram para o outro lado da cidade, atrás do dinheiro
de Basanti, quando você assumiu o novo passatempo de lesa-majestade.
– Obrigado, Andrassus. Você terá muitas semanas para desmerecer cada escolha minha; não se desgaste numa tarde. Agora você, Asino...
– Castellano – completou Galdo, bocejando.
– Castellano. Levante-se. Espere, você sabe ler, não é? Todos vocês sabem ler, presumo.
– Ler é quando a gente desenha imagens com giz ou quando a gente bate com um pau num tambor? – perguntou Galdo. – Eu me confundo.
– A primeira coisa que acontece – falou Moncraine com um muxoxo –, o primeiro personagem que a plateia conhece, é o Coro. O Coro surge... Diga as falas dele, Castellano.
– Hum... – murmurou Galdo, olhando seu caderninho.
– Qual é a porra do seu problema, garoto? – gritou Moncraine. – Quem diz “hum” quando tem o texto nas mãos? Se você disser “hum” diante de quinhentas pessoas, garanto
que alguma vaca suja e cheia de vinho nos lugares mais baratos vai jogar alguma coisa em você. Eles aproveitam qualquer deixa.
– Desculpe – disse Galdo. Em seguida, pigarreou e leu:
“Vocês, que nos veem com seus olhos, veem errado,
E não escutam nada de verdadeiro, mesmo forçando os ouvidos.
Que ladrões espantosos são esses sentidos, sussurrando:
Este palco é madeira, estes homens são poeira...
E são poeira seus feitos, tantos séculos passados.”
– Não – falou Jasmer.
– Como assim, “não”?
– Você está recitando, e não discursando. O Coro é um personagem. O Coro, em sua mente, é de carne e sangue. Ele não está lendo frases num caderninho. Está numa
missão.
– Se você diz...
– Sente-se – ordenou Moncraine. – O outro Asino, levante-se. Você pode fazer melhor do que o seu irmão?
– Apenas pergunte às garotas com quem ele esteve – respondeu Calo.
– Dê-nos um Coro.
Calo ficou de pé, empertigou-se, estufou o peito e começou a ler alto, com clareza, enfatizando palavras que Galdo deixara soar chapadas:
“Vocês, que nos veem com seus olhos, veem errado,
E não escutam nada de verdadeiro, mesmo forçando os ouvidos.
Que ladrões espantosos são esses sentidos, sussurrando...”
– Basta – disse Jasmer. – Melhor. Você está dando ritmo, enfatizando as palavras certas, discursando com alguma competência. Mas ainda está só recitando as palavras
como se fossem um ritual num livro.
– Elas são apenas palavras num livro – reagiu Calo.
– São as palavras de um homem! São as palavras de um homem. E não uma fórmula chata. Ponha carne e osso por trás delas, caso contrário por que alguém pagaria para
ver no palco o que poderiam ler em voz baixa, sozinhos?
– Porque não sabem ler porra nenhuma? – perguntou Galdo.
– Levante-se de novo, Castellano. Não, não, Giacomo, não se sente. Quero os dois para isso. Vou mostrar meu argumento, de modo que até mesmo uns imbecis camorris
possam entender. Castellano, vá até seu irmão. Continue segurando o texto. Você está com raiva do seu irmão, Castellano! Com raiva do jumento que ele é. Ele não
entende essas falas. Por isso você vai mostrar agora a ele! – Moncraine acrescentou, levantando a voz: – Corrija-o! Represente como se ele fosse um IDIOTA!
– Vocês, que nos veem com seus olhos, veem errado! – exclamou Galdo. Em seguida fez um gesto desdenhoso junto ao próprio rosto, com a mão livre, e deu dois passos
ameaçadores para mais perto de Calo. – E não escutam nada de verdadeiro, mesmo forçando os ouvidos!
Ele estendeu a mão e deu um peteleco numa orelha de Calo. O gêmeo de cabelos compridos se encolheu e Galdo se moveu agressivamente para ele outra vez.
– Que ladrões espantosos são esses sentidos, sussurrando – prosseguiu Galdo, quase sibilando com desdém – este palco é madeira, estes homens são poeira, e são poeira
seus feitos e tantos... poeira seus peitos... ah, merda, me perdi, desculpe.
– Tudo bem – assegurou Moncraine. – Você conseguiu alguma coisa aí, não foi?
– Foi divertido – concordou Galdo. – Acho que entendi.
– As palavras são mortas até você lhes dar um contexto. Até que você ponha um personagem por trás delas e lhe dê motivo para dizê-las de certo modo.
– Posso dar o troco, como se ele é que fosse o idiota? – perguntou Calo.
– Não. Já provei meu argumento. Vocês, camorris, têm certa postura e inventividade. Só preciso acordá-los para usar isso da forma certa. Agora, o que o nosso Coro
está fazendo aqui?
– Está implorando – respondeu Jean.
– Implorando. É. Exatamente. A primeira coisa é o Coro vindo implorar à plateia. A plateia quente, suada, bêbada e cética. Escutem, suas porras de cães vadios e
inúteis! Olhem, há uma peça acontecendo, bem na frente de vocês! Calem a boca e deem a atenção que ela merece!
Moncraine mudou a voz e a postura num instante. Sem nem olhar para o texto, disse:
“Que ladrões espantosos são esses pobres sentidos, sussurrando:
Este palco é madeira, estes homens são poeira...
E são poeira seus feitos, tantos séculos passados.
Para nós não são.
Vejam agora, e conjurem com vigor
Um império feliz! Que seus inimigos durmam em ruínas de ambições frias
E aceitem como lei o menor capricho do conquistador Salerius
Segundo desse nome e o mais imperial a usá-lo!
Cuja juventude foi passada em marchas exaustivas e disciplina férrea,
Quando encontrou os mais orgulhosos vizinhos de seu império...
Tendo como corte os campos pisoteados, espadas rubras como embaixadores,
E deu, a cada um deles, sua atenção mais humilde.
Agora, todos que não se curvam têm os pés cortados
para mais facilmente se ajoelharem.”
Moncraine pigarreou.
– Pronto. Fiz meu pedido. Assumi o comando, fechei aquelas bocas abertas, virei aqueles olhos penetrantes na direção do palco. Sou parteira de maravilhas. Com a
atenção deles roubada, dou-lhes história. Voltamos ao tempo do Trono Terim, de Salerius II. Um imperador que saiu e chutou alguns traseiros. Assim como faremos,
talvez com exceção do Sylvanus.
Sylvanus se levantou e jogou de lado sua cópia do texto. Jenora conseguiu pegá-la antes que ela caísse no chão.
– Você se chama de Coro – disse ele. – Você tem a presença de um peido de camundongo num vendaval. Fique de lado e tente não pegar fogo se eu soltar fagulhas de
gênio.
Se ficara impressionado com a mudança na postura de Moncraine, Locke se espantou com a mudança em Sylvanus. O jeito perpetuamente azedo, desfocado e alcoolizado
do velho desapareceu e, sem aviso, ele estava falando com clareza, de modo convidativo, fascinante:
“Da guerra travada longe vem a paz bem vivida,
E, agora, vinte anos de intervalo abençoado puseram
Uma última coroa de louros sobre a testa do bravo e merecedor Salerius!
Porém, essa paz é pesada para seu único filho e herdeiro.
Onde um dia o leão rugiu, agora se esvai o levíssimo eco dos tempos de guerra,
Todos os olhos se voltam para o filhote, e todos os homens esperam
testemunhar a fúria e a majestade
que deve brotar de tão portentosa paternidade!
Infelizmente o pai, ao não poupar os inimigos da juventude,
Não deixou ao filho qualquer herança de inimigos.
Cidadãos, amigos, humildes e imperiais...
Deem-nos agora a preciosa indulgência,
vejam para além deste frágil artífice!
Que os corações dispostos governem olhos e ouvidos preguiçosos
E deste palco façam o império;
Da poeira de uma era desfeita ouçam palavras vivas,
no hausto de homens vivos!
Desafiem as limitações de nosso pobre fingimento,
E conosco, juntos, imaginem e acolham
a história de Aurin, filho e herdeiro do velho Salerius.
E, se é verdade que a tristeza é a semente da sabedoria,
Vejam agora por que jamais um homem mais sábio tornou-se imperador.”
– Bem lembrado, devo admitir – disse Moncraine. – Mas, afinal de contas, qualquer coisa com mais do que três versos é bem lembrada para você.
– Está tão fresco na minha mente quanto na última vez que fizemos – retrucou Sylvanus. – Há quinze anos.
– Você e eu faríamos um ótimo Coro. – Moncraine suspirou. – Mas precisamos de um Salerius e de um mago para aconselhá-lo e fazer todas as partes ameaçadoras, ou
então a trama se estraga.
– Eu serei o Coro! – exclamou Galdo. – Posso fazer isso. Acordar todo mundo no início, depois ficar sentado e assistir a vocês na peça. Parece um trabalho extremamente
bom.
– O diabo que você vai fazer – reagiu Calo. – Você, com essa cabeça careca, parece o cacete de um abutre. Esse serviço exige alguma elegância.
– Você, que está para levar uma porrada, vê errado!
– Calem a boca, idiotas. – Moncraine olhou irritado para os gêmeos até eles se sentarem. – Seria vantajoso deixarmos Sylvanus e eu livres para outros papéis, portanto,
sim, um de vocês pode ser o Coro. Mas não vão ter vida fácil; os dois vão aprender o papel e lutar para ver quem é melhor. Não preciso tomar a decisão final tão
cedo.
– E o que o perdedor ganha? – perguntou Calo.
– O perdedor vai ser o substituto do vencedor, caso este seja levado embora por cães selvagens. E não se preocupem: haverá outros papéis. Agora vamos nos levantar
e colocar Alondo e nossos outros camorris para fazer alguns exercícios, e vermos quais são seus supostos pontos fortes.
3
O sol seguiu seu caminho, e as nuvens, os delas. Antes que outra hora se passasse, o pátio estava de novo sob a luz e o calor plenos do dia. Moncraine pôs um chapéu
de aba larga, mas, fora isso, não parecia se incomodar com a temperatura. Sylvanus e Jenora se agarravam às paredes da estalagem, ao passo que Sabeta e os rapazes
entravam e saíam do lugar coberto à medida que precisavam encenar.
– Nosso jovem príncipe Aurin vive à sombra do pai – disse Moncraine.
– Então ele provavelmente se sente feliz por estar fora da porcaria do sol! – exclamou Galdo, ofegando.
– Não há glória a ser obtida, porque Salerius II já se apropriou de toda ela – continuou Moncraine. – Nenhuma guerra a ser travada, nenhuma terra a reivindicar,
e ainda falta um ou dois imperadores antes que os vadrãs comecem a criar confusão no norte. Como se isso já não fosse ruim o bastante, Aurin tem um melhor amigo
chamado Ferrin, que é ainda mais ávido por glória e não cala a boca sobre isso. Vamos fazer... Ato um, cena dois. Alondo, você faz o Aurin e vejamos o Jovanno fazer
o Ferrin.
Alondo se recostou preguiçosamente numa cadeira. Jean se aproximou dele, lendo seu texto:
“O que é isso, preguiçoso filhote de leão?
As areias da manhã já correram por metade da ampulheta!
Não há nada em sua cama que valha esse fascínio.
O sol governa o céu, seu pai governa o reino,
E você governa um aposento de dez passos por dez!”
Alondo riu e respondeu:
“Por que ser filho de imperador, se preciso me levantar
como se fosse ceifar os campos?
Qual o lucro, então, da minha ancestralidade?
Que homem vivo, mais do que eu,
tem o direito a reivindicar o ócio?”
– Ele lhe deu o ócio – disse Jean. – Tendo-o arrancado como uma carne malpassada dos ossos dos inimigos.
– Chega – interrompeu Moncraine. – Menos recitação, Jovanno. Menos fórmula.
– Ah, claro – falou Jean, obviamente sem graça. – Como você quiser.
– Alondo, faça o Ferrin. Lucaza, vejamos o que você faz com o Aurin.
Locke precisou admitir que, dos cinco, Jean era o que estava menos à vontade. Apesar de sempre ter se mostrado disposto a representar um papel em qualquer trama
criminosa que o exigisse, não costumava ousar tanto quanto Locke, Sabeta ou mesmo os Sanzas. Jean era um consumado “homem reto”: o guarda-costas raivoso, o funcionário
obediente, o serviçal respeitável. Era uma parede sólida onde as vítimas dos jogos deles ricocheteava, mas não do tipo que saltava para trás e para a frente trocando
rapidamente de papéis.
Locke deixou esses pensamentos de lado e tentou se imaginar como Aurin. Lembrou-se de seu próprio mau humor a cada vez que era arrancado do sono antes da hora, mais
frequentemente por causa da travessura de algum dos Sanzas. A lembrança lhe serviu bem e ele falou:
“Quer me ensinar como amar meu próprio pai?
Você leva a presunção aos limites, Ferrin.
Se eu quisesse escárnio e censura,
Já estaria casado.”
Alondo assumiu um tom mais enérgico, mais confiante e enfático na fala:
“Muito bem dito, ó príncipe, ó majestade! Imploro misericórdia.
Não vim pisotear com grosseria os sonhos entorpecidos,
Nem corrigi-lo sobre como honrar nosso senhor, o seu pai.
Seu perfeito amor por ele é considerado equivalente
À sua dedicação às camas quentes e macias,
Portanto está fora de qualquer questionamento.”
Locke continuou, decidindo que seria bom acrescentar um riso:
“Se você não fosse o grande amigo da minha juventude
E, sim, o espírito inquieto de algum inimigo
Morto nas guerras do meu pai,
Não poderia me causar mais vexação, Ferrin.
Você é como um casamento,
Carecendo apenas do rosto bonito e dos acasalamentos agradáveis...
Você ocupa a tal ponto minhas manhãs com censuras
Que até quase esqueço qual de nós é da família real.”
– Bom – elogiou Moncraine. – Bastante bom. Uma disputa amigável, escondendo alguma coisa. Ferrin vê sua passagem para a glória vadiando, sem realizar nada. Esses
dois precisam um do outro e se ressentem disso, ao mesmo tempo que tentam ocultar esse fato por trás do bom humor.
– Moncraine, pelo amor de todos os deuses, não haverá peça a ser vista nem papéis a representar se você explicar tudo na primeira chance que tem – reagiu Sylvanus.
– Eu não me importo – replicou Alondo.
– Nem eu – concordou Locke. – Acho que isso ajuda. Pelo menos a mim.
– Moncraine ensinaria vocês a representar cada papel como Moncraine. – Sylvanus deu uma risadinha. – Não se esqueçam disso.
– Se pudessem, todos os atores fariam amor ao som da própria voz – comentou Moncraine. – Você não é exceção, Andrassus. Agora vamos encontrar algumas espadas. Ferrin
leva Aurin para treinar nos jardins e é lá que a trama os envolve em seus laços.
Horas se passaram com suor e esforço. Eles fingiam lutar ao sol, de um lado para outro, com espadas de madeira cheias de mossas e mofadas de tanto ficarem guardadas.
Locke, Jean e Alondo trocavam de papéis, e Moncraine até colocou os Sanzas para variar um pouco, até que a coisa se tornou uma espécie de pantomima de luta. Estocar,
aparar, recuperar-se, dizer falas. Estocar, aparar, dizer falas, aparar, dizer falas...
Sylvanus conseguiu uma garrafa de vinho e terminou com sua seca pessoal. Ficou gritando encorajamentos para os duelistas durante toda a tarde, mas não se moveu do
lugar que escolhera à sombra, perto de Sabeta e Jenora. Quando o sol já descia para o oeste, Moncraine os mandou parar.
– Cá estamos, rapazes, é o bastante para um começo ameno.
– Ameno? – chiou Alondo.
Ele havia mantido a compostura durante um tempo respeitável, mas definhou com os outros à medida que os murmúrios e o treinamento com espadas prosseguira.
– É, ameno. Você está fora de forma, Alondo. Vocês, cachorrinhos, é que fazem todo o saracoteio e que dizem quase todas as falas. Se a plateia vir vocês sugando
o ar como peixes no fundo de um barco...
– Vão jogar coisas, certo – completou Alondo. – Já fui acertado por legumes.
– Não na minha companhia – rosnou Moncraine. – Certo, todos vocês, sentem-se antes que comecem a vomitar.
O alerta veio tarde demais para Calo, que já cambaleava por causa da ressaca. Ele perdeu ruidosamente o que lhe restava no estômago, num canto distante do pátio.
– Música para os meus ouvidos – continuou Moncraine. – Está vendo, Andrassus? Enquanto eu for capaz de inspirar esse tipo de reação nos nossos jovens corajosos,
acredito que posso dizer que não perdi o jeito.
– Que papéis você pensa para nós, então? – perguntou Sylvanus.
– Se o imperador do Trono Terim tivesse um tom moreno tão lindo quanto o meu, a plateia poderia notar que o filho dele não seria um terim rosado comum. E o papel
do mago exige mais movimentos, por isso eu fico com ele. Portanto, resta você para sentar-se no trono.
– Eu serei imperial. – Sylvanus suspirou.
– Ótimo. Agora preciso de uma cerveja antes de ficar assado feito uma torta.
– Imperador, hein? – disse Locke, sentando-se encostado na parede perto de Sylvanus. – Por que está tão desanimado? Parece um papel bom.
– E é – respondeu Sylvanus. – Para as poucas falas que tem. A peça não é sobre o pai e, sim, sobre o filho. – O velho tomou um gole da garrafa e não fez qualquer
menção de passá-la adiante. – Invejo vocês, seus merdinhas. Invejo mesmo, ainda que ninguém possa acusá-los de qualquer conhecimento profundo da arte de representar.
– O que há para ser invejado? – questionou Alondo. – Nós estamos aqui fora, derretendo ao sol, enquanto você fica sentado na sombra.
– Falou como um verdadeiro garoto de 20 anos. Na minha idade, você não decide sentar-se na sombra, garoto. É para lá que você é mandado para ficar fora do caminho
dos outros.
– Você está mal-humorado. São as uvas falando, como sempre.
– Esta é a primeira garrafa em que eu pus a mão desde que minha cabeça bateu no chão ontem à noite. E, quanto a mim, isso significa estar sóbrio como um bebê saído
do útero. Não, senhores, eu sei uma coisa que vocês não sabem. Podem ler qualquer texto que esteja na nossa propriedade comum e vão encontrar muitos papéis para
os quais vocês servem: soldados, príncipes, amantes, tolos. Vocês jamais poderiam representar todos, nem se vivessem o dobro da minha idade, o que é um número apavorante.
Aos 20 anos, você pode ser qualquer coisa. Aos 30, pode fazer o que quiser. Aos 40, só algumas portas se fecham, mas, aos 50, ah! Essa é uma pontada que o Moncraine
sente, sem dúvida. Aos 50, você está se tornando um perfeito estranho para todos aqueles papéis que já lhe serviram como a pele de seu próprio pau.
Locke não tinha ideia do que dizer, por isso simplesmente ficou olhando Sylvanus terminar a garrafa e jogá-la na lama endurecida do pátio.
– Eu costumava revirar essas peças em busca de todos os bons papéis jovens que minha ambição podia suportar. Agora procuro os papéis quebrados, os homens doentes,
os homens esquecidos, e fico imaginando qual deles será meu. Você não ouviu por que eu sou o imperador? Porque o imperador não precisa que seu rabo velho e gordo
se mexa. Estou tanto no túmulo quanto no trono.
Sylvanus se levantou com as juntas estalando.
– Não pretendo oprimir o espírito de vocês, rapazes. Venham me encontrar dentro de uma ou duas horas e estarei alegre. Sim, terei esquecido tudo o que falei aqui,
com certeza.
Depois que Sylvanus entrou, Locke ficou de pé, espreguiçou-se e foi atrás dele. Não tinha ideia do que diria, se é que diria alguma coisa. Numa tarde curta, já havia
se acostumado à vantagem de ter todas as suas falas escritas para ele num pedaço de papel.
4
– Certo – disse Jasmer após três horas de ensaio no terceiro dia sob o sol hostil. – Jovanno, tenho certeza de que você é um ótimo sujeito, mas não tem nada que
ficar dizendo falas na frente das pessoas. Acho que posso espancar seus amigos até virarem algo parecido com atores, mas você é tão inútil quanto luvas para uma
cobra.
– Ahn – falou Jean, erguendo o olhar do texto –, o que eu faço de errado?
– Se você tivesse algum talento para o trabalho, já saberia. Vá sentar-se e contar nosso dinheiro ou algo assim.
– Espere aí – interveio Locke, que estivera fazendo Aurin com Jean como Ferrin. – Você não pode falar desse jeito com o Jovanno.
– Este é o negócio da peça – retrucou Moncraine – e, neste reino, eu sou todos os deuses em seus tronos celestiais, falando com apenas uma voz, dizendo para ele
fechar a matraca e ir embora.
– Concordo, você pode dar ordens a ele. Mas tenha bons modos.
– Garoto, não tenho a porra do tempo...
– Tem, sim. Você sempre tem tempo para ser educado com Jovanno e, quando não tiver, nós vamos fazer as malas e voltar para Camorr! Fui claro?
– Ei – disse Jean, puxando a túnica de Locke –, tudo bem.
– Não está tudo bem, não. – Sabeta se juntou a Locke e Jean no centro do pátio. – Lucaza está certo, Jasmer. Nós vamos ser seus escravos, como é necessário, mas
não vamos comer merda sem motivo.
– Mandem-me de volta à cadeia – murmurou Moncraine. – Fodam-me e me mandem de volta à cadeia.
– Não realizaremos nenhum dos dois pedidos – retrucou Sabeta.
– Eu posso usá-lo – sugeriu Jenora, aparecendo na porta da estalagem. – Quero dizer, o Jovanno. Se ele não vai estar no palco, pode me ajudar a administrar o material
de cena e a alquimia.
– Eu, ah, acho que não tenho... opção de verdade, não é? – indagou Jean.
– E, por falar no material de cena – continuou Jenora –, preciso dizer agora: os camundongos e as traças-vermelhas andaram trabalhando. Todas as máscaras e mantos
mortuários estão destroçados demais para serem usados, e a maioria dos outros figurinos só serve para ser cortada e usada como farrapos.
– Bom, então faça isso – replicou Jasmer. – Estou ocupado transformando bosta de cachorro em diamantes; é justo que você faça o mesmo no seu trabalho.
– Preciso de verba – afirmou Jenora – e é necessária uma reunião, com todos os acionistas, para decidir de onde virá o dinheiro e como cuidaremos das partes dos
nossos amigos que fugiram...
– Pelos bons deuses – disse Moncraine.
– ... e em que termos! E preciso contratar alguém capaz de usar agulha e linha.
Jean levantou a mão.
– Você sabe costurar? – perguntou Jenora. – O quê, remendando túnicas rasgadas ou algo assim? Eu preciso...
– Sei qual é a diferença entre pregueado e plissado. E o significado de franzido e de alinhavado. E tenho calos de dedais para provar.
– Não é possível. – Jenora agarrou Jean pelo braço. – Você não pode ter esse aqui de volta nem se decidir que precisa de outro ator.
– Não vou decidir – rebateu Moncraine com azedume.
– Vamos dar uma parada? – perguntou Calo, sentando-se com força.
– Claro, sente esse rabo, queridinho. Nós, que ainda estamos em condições, vamos representar para a sua diversão – respondeu Galdo. Em seguida, chutou terra nos
calções do irmão.
Calo nem perdeu tempo olhando-o com raiva. Golpeou com as pernas, prendeu Galdo sob os joelhos e derrubou-o. Galdo rolou de costas, segurando o pulso esquerdo, e
uivou de dor.
– Ah, diabos – disse Calo, saltando de pé. – Machucou? Não foi de propósito, sério... GNNNAKKKH!
Esse último som extremamente desagradável foi arrancado dele por um chute de Galdo na sua virilha.
– Não, está ótimo – garantiu Galdo. – Só estava treinando representar um pouco.
Locke, Jean, Alondo, Jenora e Sabeta separaram os gêmeos antes que Moncraine pudesse se envolver na confusão. O que se seguiu foi um pandemônio de acusações e palavras
duras em que a inteligência, a cidade de nascimento, a capacidade artística, os hábitos de trabalho, a cor da pele, o gosto para se vestir e a honra pessoal de cada
participante foram insultados pelo menos uma vez. O tempo todo o sol irradiava um calor implacável e, quando uma relativa ordem foi restaurada, a cabeça de Locke
estava girando. Ele só notou que alguém havia virado a esquina da rua quando a pessoa pigarreou alto.
– Que fantástico – comentou a recém-chegada, uma mulher alta, com cerca de 30 anos.
Usava uma túnica cinza apertada e calças largas e era de origem mista, terim e de pele escura, porém mais clara que Jasmer e as Glorianos. Seus cachos pretos eram
cortados logo acima das orelhas e ela tinha o tipo de postura tranquila que Locke associava aos garristas de Camorr.
– Jasmer, estou impressionada, mas não realmente como esperava.
– Chantal – disse Moncraine, conjurando a dignidade com a velocidade de um duelista. – Uma ótima tarde para você também, sua vira-casaca oportunista.
– Você estava na Torre do Lamento. Eu gosto de comer mais de uma vez por mês. Não tenho por que me desculpar.
– Qual é o problema, Basanti não está fazendo caridade com mais um dos meus desgarrados?
– Basanti tem trabalho para quem quiser. Mas ouvi umas coisas interessantes. Soube que você encontrou um patrono.
– É, por acaso nem todo o bom gosto desapareceu das pessoas importantes de Espara.
– Também ouvi dizer que os tais camorris prometidos não eram mentira, afinal de contas.
– Estão todos aqui. Conte-os.
– E você ainda está falando sério sobre montar a República de ladrões?
– Sério como uma garganta cortada.
– Jenora finalmente vai subir no palco?
– Deuses do céu, não!
– Arrá. – Chantal foi caminhando até Moncraine. – Pela minha contagem, você precisa de pelo menos uma mulher, então.
– O que lhe importa isso?
– Olhe, Jasmer. – O sorriso provocador de Chantal desapareceu. – Basanti está montando O vinho da reverência feminina e não quero passar o verão dando risinhos e
saracoteando como a Criada Atraente Número Quatro. Nós estamos em condições de nos ajudar mutuamente.
– Hummm. Depende. Você arrastou aquele seu marido para cá também?
Como se aproveitasse a deixa, um terim de cabelos castanhos virou a esquina atrás de Chantal. Usava uma túnica branca aberta, mostrando um físico rude, decorado
com marcas e cicatrizes, e faltava metade de sua orelha direita. Locke supôs que ele era um veterano jogador de handebol ou um espadachim envelhecido que já passara
por maus bocados.
– Claro que arrastou – disse Moncraine. – Bom, meus novos jovens amigos, permitam-me apresentar Chantal Couza, que já foi da Companhia Moncraine, e seu marido, Bertrand,
o Multidão.
– O Multidão? – perguntou Locke.
– Ele troca de figurino entre uma cena e outra como ninguém – respondeu Alondo. – Ele é meia dúzia de coadjuvantes num só.
– Eu poderia usá-lo – falou Moncraine –, mas o que faz você pensar que perdoei qualquer um dos dois?
– Corte o papo furado, Jasmer – retrucou Chantal. – Eu quero um trabalho decente. Você quer uma plateia feliz.
– Será que ouso perguntar se haverá mais alguma deserção?
– Nem em troca de um cesto de rubis do tamanho do seu ego, Jasmer. Eles estão mais preocupados com a possibilidade de serem considerados cúmplices de agressão e
sedição do que de perder o lugar na sua trupe.
– Bom, eu voto a favor de aceitar Bert e Chantal de volta – opinou Alondo.
– Eu também – concordou Jenora. – Há papéis para preencher e não temos tempo de ser exigentes. Devo arrancar Sylvanus da cama e perguntar o que ele acha?
– Não – respondeu Moncraine. – Ele vai dizer que sim só porque não consegue afastar os olhos dela. Ótimo! Vocês dois estão com sorte, mas é só o pagamento normal,
sem porcentagens. Vocês conhecem os documentos. Vocês os perderam quando foram embora.
– Talvez tenhamos que questionar isso – falou Chantal. – De qualquer modo, vale a pena só para não ser a Criada Atraente Número Quatro. Acredite, eu preferiria ser
Amadine, a Rainha das Sombras.
– Lamento muitíssimo – disse Sabeta. Se as palavras ISSO FOI UMA MENTIRA tivessem brotado subitamente atrás dela em letras de fogo com 3 metros de altura, o efeito
não poderia ser maior do que o causado pelo seu tom de voz. – Esse papel não está mais disponível.
– Está brincando? – Chantal atravessou o pátio até olhar Sabeta de cima a baixo, já que era meio palmo mais alta. – Quem é você?
– Amadine – respondeu Sabeta com frieza. – A Rainha das Sombras.
– Maldita camorri. Você tem idade para ter saído do meio das minhas pernas! Mas não é bonita o suficiente. Não pode estar falando sério.
– Ela pode, sim – interveio Locke.
O calor e a frustração se misturavam mal com sua sensibilidade aguda ao ouvir uma estranha dizer qualquer coisa pouco elogiosa sobre Sabeta.
– Jasmer, você está louco – reclamou Chantal. – Ela não pode ser Amadine. Deixe que ela faça Pentra, tudo bem, mas não Amadine! Quantos anos ela tem, 16? Com bunda
de garoto e beleza mediana!
– Mediana? – perguntou Locke. – Mediana? Como diabo você consegue andar pela cidade com dois olhos de vidro na porcaria da cabeça, mulher? Você só pode ser imbe...
Antes que Locke pudesse acrescentar a última sílaba dessa palavra sincera porém mal escolhida, Bertrand, o Multidão, fiel à sua aparência, estava com uma das mãos
ásperas na túnica de Locke e arrastou-o para um encontro com seu outro punho, já puxado para trás. O mundo se moveu horrivelmente lento; Locke, que não desconhecia
uma surra, era amaldiçoado pela capacidade espantosa de reconhecer uma antes mesmo que ela deixasse de ser teórica.
Um milagre com o tamanho e a forma de Jean Tannen apareceu no canto da visão de Locke. Um instante antes que Bertrand pudesse dar o soco, Jean o acertou na barriga
com o ombro e o jogou no chão.
– Bert! – gritou Chantal.
– Céus – disse Jenora.
Locke percebeu que estava segurando alguma coisa e olhou para baixo, descobrindo que, de algum modo, Jean havia jogado seus preciosos ópticos nas mãos dele enquanto
o separava de Bertrand.
Jean era um garoto de barriga redonda, silenciosamente digno, de cerca de 16 anos. Nem mesmo os pelos de barba cultivados com cuidado conseguiam dar alguma ameaça
verdadeira ao seu aspecto. Bertrand tinha pelo menos uma década a mais do que ele, para não mencionar 15 centímetros e 10 quilos, e parecia capaz de rasgar uma manta
de carne ao meio por puro capricho. O que aconteceu em seguida surpreendeu até mesmo Locke.
Soco foi trocado por soco. Jean e Bertrand rolaram, um emaranhado furioso de braços e pernas, pancadas, tapas e empurrões. A vantagem mudava de lugar a intervalos
de segundos. Jean pôs as mãos em volta do pescoço de Bertrand e descobriu o sujeito mais velho socando suas costelas. Bertrand prendeu Jean embaixo do corpo, mas
de algum modo o garoto lhe deu uma rasteira e o empurrou de volta para o chão.
– Deuses do céu! – exclamou Chantal. – Parem! Parem com isso! Podemos conversar!
Jean tentou passar um braço pelo pescoço de Bertrand, que reagiu com algo rápido e inteligente, lançando o adversário por cima do ombro. Mas, quando tentou aproveitar
a vantagem, Jean fez algo igualmente rápido e inteligente, jogando Bert contra uma parede. Os dois combatentes se agarraram de novo, fazendo e desfazendo golpes
mútuos, até que por fim Jean se soltou e rolou para longe. Isso foi um erro: Bertrand usou o espaço entre eles para dar um soco giratório que acertou Jean no queixo
e enfim o derrubou.
Um instante depois, Bertrand cambaleou e caiu de cara no chão, tão exaurido quanto seu jovem antagonista.
– Chantal – disse Moncraine –, eu teria ficado feliz em lhe dizer que o papel de Amadine estava fora de negociação, por vários motivos. E, pela estapafúrdia bosta
quente, vocês não podem esperar que eu acredite que esse garoto consegue fazer tudo isso e ainda trabalhar com um dedal!
Jenora e os Nobres Vigaristas se reuniram em volta de Jean, enquanto Alondo, Chantal e Moncraine cuidavam de Bert. Os dois lutadores recuperaram os sentidos em pouco
tempo e foram postos sentados contra a parede da estalagem.
– Ópticos – tossiu Jean.
Quando Locke os entregou, ele os ajustou cuidadosamente no nariz e suspirou com alívio.
– Fumo – murmurou Bertrand.
Chantal lhe entregou uma folha de tabaco enrolada e acendeu um fósforo alquímico. Bert partiu o charuto ao meio, acendeu a metade apagada com a brasa vermelha da
outra e a entregou a Jean. O garoto assentiu, agradecendo, e os dois combatentes fumaram em paz por alguns instantes enquanto todo mundo olhava, pasmo.
– Você joga handebol, garoto? – perguntou Bertrand com uma voz profunda e um sotaque verrari carregado.
– Certamente.
– Venha jogar com o meu time nas tardes do Dia da Penitência. Nós jogamos em troca do dinheiro da cerveja; custa 2 copins para participar.
– Eu adoraria. Só não tente bater em mais nenhum amigo meu.
– Claro, garoto. – Bertrand balançou um dedo para Locke. – E, você, não fale assim sobre minha mulher.
– Então diga à sua mulher para não insultar Verena.
– Ei, magricelo, nós dois falamos terim. – Chantal cutucou com força o peito de Locke. – Se tiver alguma coisa para me dizer, diga na cara.
– Ótimo – retrucou Locke, encarando Chantal. – Não insulte Verena...
– Com licença – interveio Sabeta, empurrando Locke de lado sem humor nem delicadeza. – Será que eu fiquei invisível? Não estou me escondendo atrás dele, Chantal.
Locke se encolheu diante da ênfase pouco gentil na palavra dele.
– Quer travar suas próprias lutas, cachorrinha? – perguntou Chantal. – Ótimo. Quando você quiser uma educação de verdade, tente jogar uma...
– CHEGA! – berrou Moncraine numa voz capaz de sacudir os caibros, separando as duas mulheres com um empurrão. – Malditos vocês todos, seus cabeças de merda! Comportem-se
ou eu vou dar um soco em outro nobre, juro pelos meus bagos e pelos meus ossos!
– Chantal, meu doce – disse Bertrand, dando uma baforada –, quando o Jasmer é a voz da razão, você deve admitir que é hora de se acalmar.
– Verena é Amadine – declarou Moncraine. – É assim que vai ser! Você pode fazer Pentra ou fazer a Criada Atraente Número Quatro e sacudir os peitos para o Basanti
o verão inteiro.
Chantal fechou a cara, depois estendeu a mão para Sabeta.
– Paz, então. Só espero que, quando você estiver no palco, o sol brilhe saindo do seu traseiro, garota.
Sabeta apertou a mão de Chantal.
– Quando eu terminar, você não poderá imaginar mais ninguém como Amadine.
Bertrand assobiou e deu um sorriso enviesado.
– Rá! Isso é bom. Dê uns dois dias para a minha mulher conquistar você, Verena. Ela vai fazer você ficar igual a ela.
– Já tive um monte de oportunidades na vida para aprender a tolerância – disse Sabeta com um sorriso fino.
– Bom, se você é Amadine – perguntou Bertrand –, quem é Aurin? Quem vai dar todos aqueles beijos e olhares e devanear, hein?
O coração de Locke pareceu falhar uma batida.
– Era isso que estávamos tentando descobrir quando vocês apareceram – comentou Moncraine. Em seguida, esfregou a testa e suspirou. – Acho que posso decidir. Vou
me precaver. Lucaza, você vai ser Ferrin.
– Eu adoraria... Espere aí, o quê? – perguntou Locke.
– Você ouviu. Aurin é um papel que precisa de mais nuance. Quero que Alondo o faça.
– Mas...
– Basta. Por hoje chega. Sem mais discussões. E que os deuses me ajudem: eu posso citar o contrato da companhia tão bem quanto Jenora. O próximo de vocês que encostar
um dedo em qualquer outro vai ser punido. Salário, participação nos lucros, tempo de trabalho, não me importa. Vou espancar vocês como um pai raivoso. Agora vão!
5
– Pentra – murmurou Jean, lendo o texto em voz alta –, uma nobre decaída de Terim Pel. Companheira de Amadine.
– Já li a porcaria da lista de personagens, Jean.
Locke e Jean estavam sentados no canto do salão mais distante do bar, onde Bertrand, Jasmer, Alondo, Chantal e Sylvanus bebiam uma parte significativa dos lucros
futuros da companhia. O jantar havia acontecido pouco antes.
– Espere, você está tentando me ignorar?
– Estou. – Jean fechou seu exemplar da peça com um suspiro. – Minhas costelas estão doendo, eu fui expulso da peça, agora sou um guarda-livros e você está sondando
novas profundezas do tédio com seus resmungos.
– Mas eu...
– Sério, se você quer tanto beijá-la no palco, fale com o Jasmer.
– Ele não quer falar sobre isso. – Locke bebericou sua caneca de cerveja quente e escura, mal sentindo o gosto. – Diz que é uma decisão artística e que, portanto,
não está sujeita a discussões.
– Então fale com o Alondo.
– Ele ganha a vida representando. Por que abriria mão do papel principal?
– Não sei, porque você o enganou? Porque o convenceu? Segundo boatos, você teve algumas aulas sobre ser enganador e convincente.
– É, mas... ele é um cara bem decente. Não é como empurrar o Jasmer de um lado para outro. Parece errado.
– Então escute, meu amigo. Eu não sou um oráculo e não vou virar um, não importa quanto tempo você fique aí sentado chorando na sua cerveja. Você sabe que eu achava
os Sanzas a coisa mais chata que existe? Estava errado. Até você e Sabeta resolverem essa merda, eles são o menor de todos os males possíveis.
– Ela é simplesmente impenetrável.
– Você estava falando com ela antes, certo?
– É. A coisa ia bem. Agora tudo está estranho.
– Você já pensou em medidas extremas, desesperadas, como falar com ela de novo?
– É, mas, bem...
– Você só sabe dizer é, mas. E vai ficar no é, mas até chegar a hora de voltar para casa, e não duvido de que vai afastá-la da sua vida com o é, mas. Pare de ficar
andando em círculos, a distância. Vá falar com ela, pelo amor de Preva.
– Onde ela está?
– Ela costuma subir no telhado enquanto o resto de nós fica aqui embaixo bancando idiotas.
– Ela não vai... Não sei, não é que...
– Enfie a mão entre as pernas e encontre os próprios bagos – rosnou Jean –, ou então não me fale sobre ela pelo resto do verão.
– Desculpe. Só odeio a ideia de estragar mais ainda as coisas. Você sabe que eu tenho talento para isso.
– Rá. Tem mesmo. Tente ser direto e honesto. Não posso dar mais nenhum conselho específico. Quando, diabos, eu já consegui entrar debaixo do vestido de alguém usando
charme? Só sei que, se você e Sabeta não chegarem a um entendimento, todos vamos lamentar. Mas principalmente você.
– Está certo. – Locke respirou fundo para se acalmar. – Está certo!
– Quase sempre. – Jean suspirou. – Você vai?
– Claro.
– Não com essa cerveja. Deixe comigo.
Locke obedeceu com ar distraído e Jean esvaziou a caneca num gole.
– Certo. Vá! Antes que seu suposto bom senso tenha tempo de acordar de novo. Espere, esse não é o caminho lá para cima. Aonde, diabos, você vai?
– Só vou dar um pulo no bar. Tive uma ideia brilhante.
6
O crepúsculo lânguido, com um ar denso, havia baixado sobre Espara, e as luzes da cidade se acendiam sob um céu cor de uvas na colheita. As empenas tortas da estalagem
escondiam uma pequena sacada, virada para o oeste, onde duas pessoas podiam sentar-se lado a lado, presumindo que estivessem de bem. Locke abriu com cuidado a portinhola
da sacada, olhou para fora e encontrou Sabeta encarando-o com as sobrancelhas erguidas. Ela baixou sua cópia da República de ladrões.
– Oi – disse Locke, muito menos confiante do que havia imaginado ao subir pela pequena passagem que vinha do segundo andar. – Posso... é... dividir sua sacada um
pouquinho?
– Eu estava estudando meu papel.
– Espera que eu acredite que você ainda não decorou tudo?
Era como se ela não conseguisse decidir se deveria ficar satisfeita ou exasperada – Locke conhecia bem essa expressão. Depois de um momento, Sabeta pousou o texto
e chamou-o. Ele sentou-se com as pernas cruzadas, como ela, e os dois se encararam.
– O que você está escondendo aí atrás? – perguntou Sabeta.
– Uma pequena gentileza. – Locke lhe mostrou o odre de vinho e dois pequenos copos de barro. – Ou um suborno. Dependendo de como você enxergar.
– Não estou com sede.
– Se eu estivesse preocupado com sede, teria trazido água. Estava preocupado com facas.
– Facas?
– É, as que você está segurando há alguns dias. Eu esperava cegar um pouco o gume.
– Isso não é trapaça? Tentar dobrar uma garota com bebida?
– Nesse caso, é mais autodefesa. E eu meio que achei que você poderia só... querer um copo de vinho.
– E depois talvez um segundo? E um terceiro, e assim por diante, até que minhas inibições estivessem suficientemente elásticas?
– Eu não merecia isso.
– É, bem... talvez não.
– Deuses, esqueci que qualquer um que queira ser gentil com você precisa de permissão antecipada e de uma armadura grossa. – Mordendo o lábio, Locke serviu descuidadamente
o vinho claro e empurrou um dos copos na direção dela. – Olhe, você pode fingir que ele apareceu aqui por magia, se isso a deixa feliz.
– É vinho de laranja Anjani?
– Se é Anjani, minha bunda é feita de ouro – respondeu Locke, tomando um gole. – Mas já foi algum tipo de laranja, num passado distante.
– E que milagre você está tentando arrancar de mim, exatamente?
– Uma simples conversa? O que aconteceu, Sabeta? Nós estávamos falando, falando de verdade. Foi... foi muito bom. E nós trabalhamos bem juntos! Mas você estoura
sem motivo. Encontra desculpas para me isolar. Fica levantando essas muralhas e, mesmo quando eu as escalo, descubro que você cavou fossos do outro lado...
– Você está me creditando uma quantidade extraordinária de trabalho – interrompeu ela, e Locke ficou deliciado ao ver uma levíssima sugestão de sorriso nos seus
lábios, ainda que tenha desaparecido entre duas respirações. – Talvez eu esteja preocupada com a peça.
– Ah, olhe, agora o fosso está cheio de lanças. Além disso, não acredito em você.
– Esse é o nosso problema.
– O que você tem a ganhar não falando comigo?
– Talvez eu só não queira...
– Mas você falou. Falou, e nós estávamos chegando a algum lugar. Você quer mesmo passar o resto da nossa estadia aqui fazendo essa dança idiota, indo e vindo? Eu
não quero.
– Mas não é exatamente uma dança, é? – perguntou ela baixinho.
– Não. Você é que fica recuando. Por quê?
– Não é fácil explicar.
– Se fosse, um idiota como eu já teria deduzido a resposta. Posso me sentar ao seu lado?
– Isso é colocar a carroça na frente do cavalo.
– O cavalo está cansado e precisa de um descanso. Ande, vai ficar mais fácil bater em mim se você não gostar do que eu disser.
Depois de uma pausa que pareceu durar uns dez anos, ela se virou para contemplar a cidade e deu um tapinha na pedra ao lado. Locke deslizou, ansioso mas cauteloso,
até que seu ombro esquerdo tocasse o direito dela. O vento quente passava ao redor deles e Locke captou os leves perfumes de almíscar e óleo de sálvia no cabelo
dela. Mil coisas com asas ganharam vida em seu estômago e imediatamente encontraram motivos para voar por todo canto.
– Você está tremendo – constatou ela, virando-se para olhá-lo.
– Você não é exatamente uma estátua.
– Vai tentar fazer com que eu me arrependa disso ou só vai ficar aí sentado, me encarando?
– Gosto de encarar você – respondeu Locke, chocado e surpreso com a própria recusa em afastar o olhar.
– Bom, eu gosto de jogar garotos de telhados. Não é um hábito que eu consigo exercer com frequência.
– Isso não iria livrá-la de mim. Eu sei cair suavemente.
– Maldição, Locke, se você quer dizer alguma coisa...
– Quero – cortou ele, firmando-se como se esperasse o golpe de um bastão de madeira. – Eu, é, estou cansado de falar por trás das mãos, dar deixas e tentar provocar
alguma reação em você. Estas são as minhas cartas na mesa. Acho você linda. Me sinto um idiota com a cara suja de terra sentado perto de alguém que saiu de uma pintura.
Acho... acho que eu sou imbecil para você. Sei que esta não é bem uma fala doce, de uma peça. Francamente, eu beijaria sua sombra. Beijaria a terra que tem sua pegada
impressa. Gosto de me sentir assim. Não ligo a mínima para o que você ou qualquer pessoa ache... é assim que me sinto toda vez que olho para você.
Essa eloquência desesperada era como uma carruagem fora de controle e, se ela parasse ao bater em alguma coisa, talvez não pudesse se mover outra vez. Locke rezava
para conseguir pôr tudo para fora antes que Sabeta o interrompesse.
– E admiro você. Admiro tudo em você. Até seu temperamento, seu mau humor e o modo como você se ofende quando eu respiro errado perto de você. Eu preferiria estar
confuso com relação a você do que totalmente certo com relação a qualquer outra pessoa, entendeu? Admiro o modo como você é boa em tudo o que faz, até quando isso
faz com que eu me sinta pequeno a ponto de me afogar neste copo de vinho.
– Locke...
– Não acabei. – Ele levantou o copo que havia usado para ilustrar o argumento anterior e engoliu todo o conteúdo. – A última coisa. A coisa mais importante... é
isto: eu sinto muito.
Ela estava encarando-o com uma expressão que o fez sentir que suas pernas não tocavam mais as pedras da sacada.
– Sabeta, eu sinto muito. Você disse que queria alguma coisa importante de mim e que não era defesa nem justificativa... então só pode ser isso. Se eu empurrei você
de lado, se dei você como certa, se fui um mau amigo e ferrei tudo o que você achava que era seu por direito, peço perdão. Não tenho desculpas e gostaria de dizer
como sinto vergonha porque você teve que chamar minha atenção.
– Maldição, Locke – sussurrou ela. Os cantos de seus olhos brilhavam.
– De novo? Olha, se eu disse alguma coisa errada...
– Não – interrompeu ela, enxugando os olhos, tentando em vão fazer isso de modo casual. – Não, o problema é que você disse a coisa certa.
– Ah. – O coração dele pareceu bambolear para trás e para a frente no peito, como uma balança de alquimista mal equilibrada. – Sabe, mesmo para uma garota, isso
é confuso.
– Você não entende? É fácil tomar uma atitude quando você está sendo idiota. É fácil empurrá-lo de lado quando você está cego para tudo o que está fora do seu crânio.
Mas, se você presta atenção e se obriga a... agir como adulto, não posso, não posso me obrigar a continuar com isso. – Ela enfim pegou seu copo de vinho, engoliu
a maior parte e riu, quase asperamente. – Estou apavorada, Locke.
– Não está, não – retrucou ele com veemência. – Nada apavora você. Você pode estar muitas outras coisas, mas nunca fica apavorada.
– Nosso mundo é deste tamanho – ela estendeu o polegar e o indicador da mão esquerda, separados por meros 2 centímetros –, como diz o Correntes. Nós vivemos num
buraco, pelo amor dos deuses. Dormimos separados por 5 metros. Conhecemos um ao outro por mais da metade da nossa vida. O que nós vimos de outros homens ou mulheres?
Não quero... não quero que uma coisa assim aconteça porque não pode ser de outro modo. Não quero ser amada porque é inevitável.
– Nem tudo o que é inevitável é ruim.
– Eu deveria querer alguém mais alto. Deveria querer alguém mais bonito, menos teimoso e mais... Não sei. Mas não é assim. Você é desajeitado, frustrante e peculiar,
e eu gosto disso. Gosto de como você me olha. Gosto de como você se senta, encara, pondera e se preocupa com tudo. Ninguém mais tropeça tanto quanto você, Locke.
Ninguém mais consegue... fazer malabarismo com tochas acesas enquanto o palco pega fogo ao redor, como você. Eu adoro isso. E isso... me apavora.
– Por que deveria apavorar? – Locke estendeu a mão e seu coração ameaçou quebrar as costelas quando ela segurou-a com suas duas mãos. – Por que você não pode ter
seus sentimentos? Por que não pode gostar de quem você quiser gostar? Por que não pode amar...
– Eu gostaria de saber. – De repente, os dois estavam de joelhos, virados um para o outro, mãos cruzadas, e o rosto de Sabeta era um mapa de tristeza e alívio misturados.
– Eu gostaria de ser como você.
– Não gostaria, não. Você é linda. E é melhor do que eu em praticamente tudo.
– Eu sei, seu idiota – disse ela com um sorriso mais largo. – Mas o que você sabe é como mandar o mundo inteiro se foder. Você mijaria no olho de Aza Guilla mesmo
se isso lhe rendesse um milhão de anos no inferno e, depois de um milhão de anos, você repetiria. É por isso que Calo, Galdo e Jean adoram você. É por isso... É
por isso que eu... Bom, é isso que eu gostaria de saber fazer.
– Sabeta. Nem tudo o que é inevitável é lamentável. É inevitável respirar, sabia? Eu gosto mais de carne de tubarão do que de lula. Você gosta mais de vinho cítrico
do que de tinto. Isso não é inevitável? Por que diabos importa? A gente gosta do que gosta, a gente quer o que quer, e ninguém precisa dar permissão para a gente
se sentir assim!
– Está vendo como para você é fácil falar isso?
– Sabeta, deixe-me dizer uma coisa. Você disse que era bobagem, mas eu me lembro da primeira vez que vi você, quando a gente morava no Morro das Sombras. Eu me lembro
de como você perdeu seu chapéu e me lembro de que o cabelo ruivo estava aparecendo nas raízes. Aquilo me deixou abestalhado, entende? Eu nem sabia por quê, mas fiquei
deliciado.
– O quê?
– Eu sou fixado em você desde que me entendo por gente. Nunca fui atrás de outra garota, nem mesmo fui com os Sanzas... você sabe, para ver as meninas do Lis Dourado.
Eu sonho com você, e só com você, e sempre sonhei com o modo como você é de verdade... sabe, ruiva. Não com o disfarce...
– O quê?
– Falei alguma coisa errada?
– Você viu a cor verdadeira do meu cabelo uma vez. – Ela afastou as mãos da dele. – Uma vez, quando você era praticamente a porcaria de um bebê, e não consegue superar
isso, e acha que isso me agrada?
– Espere aí, por favor...
– Como eu sou de verdade? Eu pinto meu cabelo de castanho há dez anos! É ASSIM que eu sou de verdade! Deuses, sou tão idiota... Você não é fixado em mim... Você
quer trepar com uma garota ruiva, como todo tarado deste lado de Jerem!
– Absolutamente não! Quero dizer...
– Sabe por que eu vivo me desviando dos traficantes de escravos a vida toda? Sabe por que Correntes me deu uma adaga envenenada quando Calo e Galdo mal podiam usar
Truques de Órfãos? Já ouviu o que dizem sobre as ruivas terins que não tiveram as pétalas arrancadas?
– Espere, espere, espere, honestamente, eu não...
– Eu sou tão, tão idiota!
Sabeta o empurrou para trás e ele esmagou o copo de vinho vazio, sentando-se em cima.
– Eu deveria saber. Deveria saber. Você me admira? Me respeita? Droga nenhuma. Não acredito que eu ia... Eu só... Saia. Saia daqui.
– Espere, por favor. – Locke tentou dissipar a névoa que ardia subitamente nos seus olhos. – Eu não quis...
– O que você quis está claro. Vá embora!
Sabeta jogou seu copo vazio contra ele, errando, mas acelerando sua fuga atabalhoada pela pequena passagem que descia ao segundo andar. Enquanto Locke tentava se
levantar desajeitadamente, um par de mãos fortes o agarrou por trás, levantando-o.
– Jean – murmurou ele. – Obrigado, mas eu...
As mãos o giraram e o pressionaram com força contra a parede do corredor. Locke se viu cara a cara com o novo patrono da Companhia Moncraine-Boulidazi.
– Lorde Boulidazi – gaguejou Locke. – Gennaro!
O esparano corpulento segurou Locke no lugar com um antebraço de ferro e enfiou a outra mão por baixo de sua roupa simples, empoeirada. Sacou 25 centímetros de aço,
brilhante à luz da porta da sacada, o tipo de lâmina feita para discussões, e não para vitrines. Num instante, a ponta estava encostada na bochecha esquerda de Locke.
– Primo – cuspiu Boulidazi. – Pensei em vestir uma coisa mais simples e ver como ia meu investimento. Os idiotas na sala disseram que você poderia estar aqui em
cima. A conversa que você estava tendo era fascinante, primo, mas ela me faz pensar que você não contou algumas coisas. – A ponta da lâmina pressionou mais a pele
de Locke e ele gemeu. – Tudo, por exemplo. Por que não começamos com tudo?
LIVRO III
HONESTIDADE FATAL
Jamais conheci alguém mais linda que você:
Cacei-a embaixo dos pensamentos,
Sucumbi sob o vento
E dentro das rosas procurando-a.
Jamais encontrarei alguém
maior que você.
Carl Sandburg, “The Great Hunt”
Capítulo Oito
O Jogo dos Cinco Anos:
Variação infinita
1
– Alguém vai nos reconhecer – opinou Locke.
– Nós estamos horríveis – contrapôs Jean, exercitando o eufemismo num nível magistral. – Somos apenas mais dois viajantes cobertos de poeira e bosta.
– Volantyne já deve ter retornado. Com certeza Sabeta tem pessoas vigiando os portões. – Locke bateu na lateral da cabeça. – Você e eu faríamos isso.
– Essa é uma avaliação generosa da nossa capacidade de previsão.
Tinham sido quatro dias difíceis para voltar a Kartane. Eles haviam saqueado a carroça e a empurrado numa ravina no dia seguinte, precisando de toda a velocidade
possível com os cavalos desatrelados. Os guardas de Lashane não eram ameaça, mas o ocupante anterior da carruagem sempre poderia contratar mercenários. Não havia
lei na estrada longa e antiga entre as cidades-estados; uma coluna de poeira subindo depressa no céu atrás deles provavelmente significaria que alguém iria morrer.
Agora a cidade, enfim à vista, os assombrara por meio dia com a perspectiva de relativa segurança. Os dois tinham subido a estrada litorânea a partir do leste, através
de morros e aldeias com plantações em terraços, os corpos totalmente castigados pelas péssimas selas de emergência que haviam roubado da carruagem.
– Mas talvez você esteja certo – comentou Jean. – Se não tivermos chance de nos esconder, precisaremos contar com a velocidade. Temos uma jogada, talvez, antes que
ela possa reagir.
– Vamos direto até ela.
A carranca de Locke fez sair pequenos sopros de poeira das rugas de seu rosto sujo da estrada.
– Para fazer o quê?
– Terminar uma conversa.
– Está com pressa de voltar ao mar? Eu posso cuidar de duas pessoas de Sabeta de cada vez. Ela tem mais de duas.
– Isso já está resolvido. Conheço um sujeito que ficaria ansioso para nos ajudar a passar pelos guardas.
– Conhece?
– Você não notou que Vordrata gosta de calções justos?
– Que diabo isso tem a ver?
– Todo detalhezinho importa. Espere só, vai ser uma surpresa divertida.
– Bom, merda, eu não faço nada especialmente inteligente há meses. Por que começar agora?
2
Penetraram no tráfego e na semiconfusão usual dos inspetores de alfândega, guardas, carroceiros, viajantes e esterco de cavalo. Apesar da limpeza geral de Kartane,
poderiam ter arrancado o Pátio da Poeira por baixo das pedras do pavimento e posto no lugar de um equivalente de quase qualquer outra cidade terim sem chamar muita
atenção.
Locke examinou a multidão enquanto ele e Jean eram apalpados e cutucados por guardas cheios de tédio. Os vigias de Sabeta sem dúvida estariam trabalhando em duplas:
uma pessoa para vigiar e outra plausivelmente absorta em algum negócio trivial. Depois de contar cinco pares possíveis de vigias, Locke balançou a cabeça. De que
adiantava?
Porém, notou algo incomum acontecendo. Uma agitação no Pátio que ia além dos negócios mundanos. Ele havia passado horas demais roubando bolsos em multidões como
aquela para não sentir algo estranho.
Jean também estava alerta.
– Por que a agitação? – perguntou a uma guarda que ia passando.
– São os Tutanos. Não ouviu falar? – A mulher indicou uma multidão que se formava em volta da desgastada estátua de uma mulher nobre do Trono Terim. – O arauto já
vai recomeçar.
Locke viu que uma jovem, com pouco mais de 1,30 metro de altura, havia subido no pedestal da estátua. Usava a casaca azul de Kartane e, abaixo dela, estava um homem
trajando a mesma indumentária do arauto Vidalos, com o cajado e tudo.
– PEÇO A ATENÇÃO, cidadãos e amigos de Kartane! – berrou a mulher. Locke ficou impressionado: devia haver mais couro forrando os pulmões daquela figura do que na
sua sela. – Ouçam este relato dos FATOS fornecidos e autorizados pelo KONSEIL! A falsidade NÃO será tolerada! Os disseminadores de boatos serão sujeitos ao ENCARCERAMENTO
nas BARCAS PENITENCIÁRIAS! Vencezla Valgasha, Rei dos Sete Tutanos, está MORTO! SABE-SE que ele morreu na cidade de Vintila, HÁ SEIS DIAS. Ele morreu SEM PROLE e
sem herdeiro legítimo! Uma guerra de secessão está acontecendo! O Cantão de EMBERLANE, o mais ao leste dos Sete Tutanos, EXILOU seu governante e declarou-se uma
REPÚBLICA SOBERANA! O Konseil de Kartane RECUSA-SE a reconhecer formalmente Emberlane neste momento e aconselha enfaticamente os cidadãos de Kartane a EVITAR todas
as viagens para o norte até que a situação se estabilize!
– Pelos santos infernos! – exclamou Locke. – Sabeta estava certa! Os Tutanos enfim se arrebentaram. Deuses, que confusão vai ser.
– Não poderemos fazer de novo o trambique do conhaque de Austershalin. Pelo menos por um bom tempo.
– Haverá outras oportunidades – garantiu Locke, pensativo. – Se há guerra, pessoas desesperadas vão começar a transportar um monte de coisas valiosas. Mas venha,
precisamos nos mexer.
Esporearam as montarias cansadas por uma avenida larga em direção ao oeste, passando por uma ponte de vidro sacolejante e sussurrante, atravessaram o Pátio das Adivinhações
com sua névoa de incenso e entraram no Terraço Vespertino. Parecia surreal estarem de novo em ruas limpas, em meio a jardins luxuriantes e fontes borbulhantes, como
se Kartane fosse mais um sonho recorrente do que um lugar verdadeiro.
Do lado de fora do Marco da Íris Negra, eles atraíram interesse imediato. Pelo menos dois vigias, inconfundivelmente reais, fizeram sinais de mão para formas escuras
nos telhados. Uma criança ágil disparou para um beco ao lado do quartel-general de Sabeta. Locke levou seus cavalos exaustos para um local na beira da rua mais comumente
usado para carruagens e, quando apeou, uma nuvem de poeira da estrada se desprendeu das botas. Ele cambaleou e quase caiu antes de retomar o autocontrole. Suas pernas
pareciam geleia pinicante. Sem qualquer afeto por ele, o cavalo sacudiu as orelhas e mostrou os dentes.
– Esses animais são propriedade pessoal de Verena Gallante – avisou Locke ao lacaio de aparência ansiosa. – Ela quer que sejam bem cuidados.
– Mas, senhor, por favor...
– Não. Coloque-os no estábulo.
Locke passou pelo homem e estendeu a mão para a porta do foyer, mas Jean empurrou sua mão de lado e entrou primeiro.
Dentro estavam os dois cães de beco que Locke tinha visto na última vez.
– Ah, inferno – praguejou o mais próximo.
Jean já estava dentro da guarda dele. Uma variedade de coisas rápidas, ruidosas e dolorosas aconteceu, nenhuma delas com Locke ou Jean. Quando um guarda bateu no
piso, Jean empurrou o colega dele de cara contra a porta do saguão, como se fosse um aríete. Então os Nobres Vigaristas seguiram adiante.
Ali estava Vordrata, vestido impecavelmente e com uma íris negra nova pregada na casaca, acompanhado por dois guardas com porretes. Pessoas mais bem-vestidas se
espalharam para as portas e escadas atrás.
– Senhores – disse o mordomo, olhando o guarda que tinha acabado de pousar aos seus pés –, este é um estabelecimento apenas para sócios, com regras rígidas contra
deixar os empregados inconscientes.
– O jogo agora é seu, Lazari – falou Jean.
– Obrigado. – Locke levantou as mãos para mostrar que estavam vazias. – Por favor, leve-nos imediatamente à Sra. Gallante.
– Ora, como posso fazer isso, se os senhores serão jogados pela porta do beco com hematomas no crânio?
– Nós realmente gostaríamos de vê-la. – Antes que os guardas pudessem chegar perto, Locke se moveu em direção a Vordrata, levou a mão ao calção do sujeito, agarrou
seus bagos através da seda e lhes deu uma torção considerável. – Ou gostaríamos de ver o rosto do seu galeno quando ele olhar os hematomas nisto aqui.
Vordrata gemeu e seu rosto assumiu tons de cores raramente vistas fora de vinhedos na época da colheita. Os guardas começaram a se adiantar, mas Locke levantou a
mão livre.
– Peça para seus amigos se afastarem. Não sou um homem forte, mas não preciso ser, não é? Vou torcer tanto esta coisa que você vai mijar saca-rolhas nos próximos
vinte anos!
– Façam o que ele diz, maldição – ordenou Vordrata, ofegando.
– Leve-nos até Verena – exigiu Locke, observando os guardas recuarem devagar – e eu devolvo seus bens valiosos sem danos duradouros.
Foi um passeio desajeitado, com Vordrata cambaleando de costas e Locke mantendo o aperto e a torção nas esperanças de procriação do mordomo, mas isso serviu para
deixar os guardas a distância.
– Bom, e agora, seu escroto? – perguntou Locke. – Não tem mais frases engraçadinhas para nós? É a primeira vez que eu guio um cara pelo saco de joias. É meio parecido
com guiar um barco usando o leme.
– Cão camorri... sua mãe... chupava...
– Se você terminar esse pensamento, vou esticar suas partes preciosas mais do que uma corda de arco.
Vordrata conduziu Locke e Jean subindo uma escada até o salão de jantar privativo onde haviam encontrado Sabeta antes. Os guardas mantiveram uma distância respeitosa,
mas seguiram-nos. Vordrata abriu a porta do salão com o traseiro e Locke viu que Sabeta já os esperava.
Vestia-se de modo adequado para qualquer coisa, desde assinar papéis até mergulhar por janelas: calções pretos, uma jaqueta marrom curta e botas de montaria. O cabelo
estava enrolado em varetas laqueadas; sem dúvida continham truques, eram armas ou as duas coisas. Atrás dela havia mais três guardas, armados com porretes e escudos.
– Olá de novo, Verena – cumprimentou Locke. – Estávamos passando por perto e pensamos em investigar os boatos persistentes de que mestre Vordrata não tem bolas.
– Isso não é meio grosseiro, mesmo para os seus padrões frouxos? – questionou Sabeta.
– Acho que ter a pegada da sua bota gravada na minha bunda me deixou irritado. Diga para seus amigos irem embora.
– Ah, que coisa linda! Devo me amarrar para você também?
– Só queremos conversar.
– Solte Vordrata e conversamos o quanto você quiser.
– No instante em que eu soltar Vordrata, o inferno vai se abrir. Não sou idiota. Pelo menos hoje.
– Eu prometo...
– RÁ! – gritou Locke. – Por favor.
– Então não temos base para confiança.
– Você não nos deu nenhuma base para confiança. Não fui eu que...
– Isso está ficando pessoal.
Sabeta encarou-o com verdadeira irritação. Ela tinha sempre menos autocontrole quando era pressionada, uma raiva quente em contraste direto com a fúria fria de Jean.
Locke havia passado anos esforçando-se desesperadamente para decifrá-la e agora via que ela não tinha um plano inteligente para terminar com esse impasse. A posição
dele – com a segurança garantida apenas enquanto conseguisse continuar segurando as partes privadas de outro homem – de repente lhe pareceu dolorosamente ridícula.
– Quero falar com você – disse ele devagar. – Só isso. Não vou fazer mal a você nem tentar tirá-la deste lugar. Juro pela alma de dois homens que nós dois amávamos.
– O que você quer d...
Com a mão livre, Locke fez dois dos antigos sinais secretos.
Calo. Galdo.
Sabeta o encarou; então, algo se partiu atrás dos olhos dela. Alívio? De qualquer modo, ela assentiu.
– Todo mundo, saia. Ninguém põe a mão nesses homens sem minhas ordens. Solte o Vordrata.
Locke obedeceu. O mordomo tombou no chão e se enrolou numa meia-lua de sofrimento. Os guardas de Sabeta recuaram lentamente para fora da sala, atrás dela, e Jean
se agachou junto de Vordrata.
– Vou tirá-lo daqui. Acho que vocês dois querem alguma privacidade.
Num instante, Jean carregou o magro vadrã por onde haviam entrado e, de novo, Locke ficou diante de Sabeta numa sala vazia.
– Não podemos usar esses nomes como palavras mágicas sempre que estivermos com objetivos opostos – falou ela.
– Eu sei. Mas não é minha culpa se eu precisei...
– Me poupe.
– NÃO! – Locke tremeu de fome, adrenalina e emoção. – Não vou ser dispensado! Não vou deixar que meus sentimentos sejam empurrados de lado pela conveniência de qualquer
pose que você esteja adotando aqui.
– Seus sentimentos? Nós estamos em Kartane, trabalhando para os Magos-Servidores, maldição, não somos crianças nos remexendo na parte de trás de uma carroça.
– Você me usou.
– E é isso que nós fazemos. Nós dois, profissionalmente. Eu enganei você, e queria enganar, e sinto muito se isso dói, mas esse é o nosso negócio.
– Isso, não. Você não me enganou simplesmente. Você usou os sentimentos mais profundos que eu jamais tive por alguém, e sabe disso! Você explorou uma fraqueza que
só existe quando estou perto de você!
– Mulher convence homem a se empalar no próprio pau duro. É uma história muito antiga! O mundo não parou só porque ela aconteceu de novo.
– Não sou um bebê, Sabeta. Não estou falando de sexo; estou falando de confiança.
– Eu coloquei você naquele navio pelo seu próprio bem, Locke. Eu sabia que isso ia acontecer! Eu não precisava de você apenas fora do caminho e não estava só cuidando
da sua saúde. Eu sabia que você ia bater com o cérebro de novo contra sua obsessão idiota.
– Ah, maravilhoso. Que plano lindo da porra, porque eu certamente não pensei em você nenhuma vez durante os nove dias que demoramos para voltar a Kartane.
Sabeta fez a gentileza de afastar o olhar.
– Que diabo é isso, afinal? Primeiro você não precisa se justificar, e agora aquilo foi para o meu bem? – Sentindo calor, Locke desabotoou com raiva a jaqueta de
montaria manchada que havia tirado da carruagem roubada. – E você NÃO é uma obsessão idiota!
– Sou uma mulher adulta que está dizendo que não podemos voltar o relógio cinco anos só porque você não consegue juntar coragem para dar uma cantada em outra pessoa.
– Coragem? Quem, diabos, você pensa que é para me falar de coragem? Coragem é o necessário para ir atrás de você! Coragem é o necessário para aguentar seu número
hipócrita de mártir!
– Seu escrotinho metido a besta, presunçoso!
– Diga que nunca gostou de mim. – Locke avançou passo a passo. – Diga que nunca achou que eu valesse a pena. Diga que não tivemos anos bons juntos. Só precisaria
dizer isso!
– Seu teimoso, fissurado...
– Diga que não ficou feliz em me ver!
– ... presunçoso...
– Pare de falar coisas que eu já sei! – De repente, estavam a menos de 30 centímetros de distância um do outro. – Pare de inventar desculpas. Diga que não me suporta.
Caso contrário...
– Seu... seu... Eca, Locke, sinceramente, você está fedendo.
– Isso é surpresa? O que eu deveria fazer, nadar de volta até Kartane?
– Você deveria ficar na porcaria do navio! Eu dei orientações muito específicas sobre a disponibilidade de banhos, para começo de conversa.
– Se quisesse que eu ficasse no navio, você deveria estar nele.
– Você está ridículo. – Locke lutou para manter o autocontrole enquanto Sabeta passava dois dedos lentamente por sua bochecha esquerda. – Está com as pernas arqueadas.
Deuses do céu, você deixou alguma poeira na estrada depois de passar?
– Você não consegue, não é?
– Não consigo o quê?
– Não consegue mandar eu me catar. Pelo menos na minha cara, pelo menos agora que eu paguei para ver. Você não quer mesmo que eu vá embora.
– Eu não preciso me explicar segundo seus termos!
– É melhor apertar essa jaqueta, Sabeta, acho que sua consciência está aparecendo.
– Nós somos serviçais dos Magos-Servidores – sussurrou ela com raiva. – Viemos aqui por livre e espontânea vontade e nós dois ferramos as coisas o suficiente para
precisarmos disso. Nossa posição é precária. E, se ficarmos muito amigáveis, pelo menos um de nós será morto.
– Eu sei. Não estou dizendo que não precisamos ter cuidado. Só estou observando que não há nada que nos impeça de ter uma vida pessoal.
– Conosco, tudo o que é pessoal são negócios. – Ela limpou a poeira do rosto dele em sua jaqueta. – E toda a porcaria dos nossos negócios é pessoal.
– Jante comigo.
– O quê?
– Jantar. É uma refeição. Homens e mulheres costumam fazer isso juntos. Pergunte por aí se não acredita em mim.
– Foi para isso que você torceu os bagos do meu mordomo?
– Você disse que não somos crianças nos remexendo na traseira de uma carroça, e está certa. Estamos no controle da droga da nossa vida, não importando o quanto nos
chutem. Podemos voltar o relógio quantos anos quisermos. Ele é nosso!
– Isso é loucura.
– Não. Há duas semanas, eu estava implorando para morrer. Isso é loucura. Há duas semanas, eu cheguei perto, assim. – Ele levantou o polegar e o indicador sem qualquer
espaço entre os dois. – Bati no muro negro entre esta vida e a outra, acredite. Estou cheio de fazer merda. Talvez isso vá complicar tremendamente as coisas. E daí?
Você é a complicação que eu quero, mais do que qualquer coisa. Você é minha complicação predileta. Não importa que tipo de buracos você faça na minha confiança.
– Sabe, a autopiedade é a única coisa que fede mais do que quatro dias de suor de estrada.
– A autopiedade é o último fio que resta para um sujeito se agarrar depois que VOCÊ acontece. Nós podemos ter isso se os dois quisermos. Mas você também precisa
querer. Eu não estou tentando convencer você de nada, a não ser...
– A não ser?
– A não ser que alguma parte de você já esteja convencida.
– Jantar – disse ela baixinho.
– E uma opção contratual para... complicações subsequentes. À sua escolha.
Ela não podia ou não queria encará-lo durante o silêncio que preencheu os segundos seguintes. O sangue de Locke pareceu virar gel nas veias.
– Aonde nós vamos? – perguntou ela finalmente.
– Como, diabos, eu vou saber? – O alívio bateu tão forte que ele bamboleou.
Sabeta segurou-o pela cintura com o braço direito. Os dois ficaram olhando o ponto de contato por um momento longo, congelado, então ela recolheu a mão.
– Você está bem? – perguntou baixinho.
– Eu, ah, acho que gostei de verdade da sua resposta. Mas, ora, quanto tempo você deixou para que eu descobrisse onde fica alguma coisa nesta porcaria de cidade?
Você tem a obrigação moral de escolher o lugar. Amanhã à noite.
– Ao pôr do sol. Posso mandar uma carruagem? Você confia em mim?
– Jean e eu não vamos estar juntos. Vamos garantir isso. Se eu não voltar num período de tempo razoável, você pode enfrentá-lo, puto da vida e sem restrições. Que
tal isso como salvaguarda?
– Não é uma encrenca que eu atrairia se pudesse evitar. – Sabeta levou as mãos às costas e o avaliou. – E agora?
– Depende. Eu ainda tenho uma estalagem para ir?
– Deixei o Josten em paz. Quase totalmente.
– Bom, então vou acalmar minhas crianças e, ahn, deduzir como diabos vou vencer você.
– Merdinha metido a besta e irritante – xingou ela sem malícia.
– Vaca arrogante – replicou ele, sorrindo e recuando para a porta. – Vaca arrogante, teimosa e linda. E, ei, se eu sentir ao menos um pouquinho daquele perfume que
você usou da última vez...
– Se eu sentir um pouquinho de cheiro de cavalos e suor de estrada, você vai voltar para o mar.
– Vou tomar um banho.
– Tome dois. E... vejo você amanhã, então.
– Vai ver.
Locke chegou à porta, sendo inteligente o bastante para não dar as costas a ela, pelo menos ainda não. Já ia sair quando outro pensamento lhe veio.
– Ah, sabe, nós pegamos uns cavalos emprestados para chegar aqui. Nós os deixamos em péssimas condições. Você se incomoda em fornecer estábulo para os coitados?
– Vou limpar a sujeira que vocês deixaram, claro. E...
– Sim?
– Jean está bem? O rosto dele...
– Ele quebrou o nariz fugindo do seu navio. Vai ficar bem. Você sabe o que é necessário para realmente deixá-lo mais lento. Mas me ocorre que você ainda está com
as Irmãs Malvadas.
– Vou devolvê-las... em breve. – Sabeta deu um sorriso débil. – Elas podem ser minhas reféns em troca do seu bom comportamento.
– Se você precisa de reféns, pode tentar uma versão mais suave do que eu fiz com o Vor...
– Saia daqui, porra – ordenou ela, contendo uma gargalhada.
3
– E então, o que você conseguiu para a gente? – perguntou Jean.
– Ahn, um jantar. Acho que poderei discutir o estabelecimento de alguns limites sensatos para que nenhum de nós precise se preocupar em acordar no meio do mar outra
vez.
Tinham saído despreocupadamente e sinalizaram para a primeira carruagem de aluguel que passou e que agora chacoalhava na direção de um território mais amistoso através
das sombras lançadas pelas torres da cidade no fim de tarde.
– Presumo que você tenha falado das minhas Irmãs.
– Ela vai devolvê-las se eu me comportar.
– Ótimo, então.
A voz de Jean continuava com uma alarmante característica nasal e Locke pensou em mandar que um galeno o examinasse, quer ele gostasse ou não.
– Você não está com raiva? – indagou Locke.
– Claro que não. Suponho que vocês dois, seus idiotas, tenham sugerido um ao outro reacender os fogos antigos, não é?
– Essa foi a minha impressão nítida.
– Bom, presumindo que você não deixe que ela o drogue outra vez, sinto orgulho de você. Sou o último homem na terra que iria desencorajá-lo de ir atrás da mulher
que você adora. Acredite. Cuide dos negócios e depois torne tudo o mais pessoal possível.
– Obrigado.
Locke sorriu e desfrutou de um breve momento de verdadeiro relaxamento, que terminou assim que ele piscou e percebeu que Paciência estava sentada diante dele, os
lábios apertados numa carranca abaixo dos olhos escuros como a noite.
– Eu diria que você está colocando uma ênfase alarmante no prazer acima da responsabilidade, não é?
– Deuses do céu! – Locke se esgueirou para longe dela, num reflexo, e viu Jean se encolher também. – Por que você não pode aparecer na rua, como uma pessoa comum?
– Não sou boa em ser uma pessoa comum. Seu comportamento recente foi sinistramente divertido, mas devo confessar que meus colegas e eu começamos a nos preocupar
com a eficácia de seu plano geral de resistência. Se é que esse plano existe.
– Ele precisou ser posto de lado durante alguns dias. Nós conseguimos escapar da humilhação total, e não graças a você.
– Como você sabe?
– Não me lembro de você ter nos oferecido um barco de reserva e uma refeição quente quando tentávamos não nos afogar – respondeu Jean.
– Ventos fortes, atípicos para a estação, sopraram vocês para fora do rumo durante mais de uma semana, deixando-os à distância de uma cusparada do litoral, e vocês
não pararam para pensar nas implicações disso?
– Espere – disse Locke. – Achei que vocês eram rigidamente proibidos de...
– Não vou confirmar nem negar nenhuma conjectura – interrompeu Paciência, parecendo satisfeita como um gato alimentado com leite. – Estou apenas observando que sua
alardeada imaginação parece estar bastante fraca. Claro que é possível termos ajudado vocês. É possível que o outro lado também tenha violado as regras e merecido
certa censura. Você nunca saberá com certeza.
– Maldição, Paciência. Você fez o máximo para nos garantir que as regras da sua disputa idiota são férreas!
– E você fez o máximo para insistir que não confia nem um pouco em mim.
– Por que, diabos, você está aqui? Tem alguma mensagem?
– A mensagem é a seguinte: cuide da sua tarefa, Locke Lamora. Você está aqui para vencer, e não para namorar.
– Estou aqui para as duas coisas. O acordo foi eu ter carta branca. Está renegando isso?
– Só estou repassando...
– Meu desinteresse pelo seu papo furado é tão tangível que você poderia fazer tijolos com ele. Carta branca, sim ou não?
– Sim. Mas você deve ter muito, muito cuidado ao testar nossa indulgência. Quando lidamos com um cavalo que não corre muito, tendemos a dar uma chicotada nos flancos
dele, não é?
– Você disse que os magos se divertem assistindo aos seus agentes correrem de um lado para outro. Então faça a gentileza de calar a boca e se divertir.
– Pretendo fazer isso – falou ela, e sumiu imediatamente, sem nem mesmo um farfalhar de tecido.
– Maldição! – exclamou Locke. – Diga que eu não seria um pé no saco tão grande se tivesse esses poderes.
– Seria pior. – Jean suspirou. – Eu mesmo teria matado você há muito tempo. E sabe o que mais?
– Hrrrm?
– Paciência pode ir lamber escorpiões no inferno. Você e Sabeta, aproveitem e resolvam o que os últimos cinco anos fizeram com os dois. Estou aqui para cuidar da
casa enquanto vocês estiverem fora.
4
– Ah, deuses – disse Nikoros, que estava sentado junto ao balcão da estalagem de Josten com uma bebida inacabada, um pouco grande demais e um pouco cedo demais.
– Ah, graças aos deuses! Onde vocês dois estiveram?
– Na estrada, caro amigo – respondeu Locke, agarrando Nikoros pelos ombros e puxando-o de pé. Locke trincou os dentes ao notar o cheiro forte de algo alquímico no
hálito de Nikoros e suas pupilas dilatadas, mas não havia tempo para lhe dar uma bronca. – Envolvidos em questões secretas e terrivelmente importantes! Em que pé
estamos?
– Nós... é... sofremos complicações inesperadas – falou Nikoros, perplexo. – Estamos levando uma surra. Os corretores de apostas estão projetando uma maioria de
catorze cadeiras no Konseil para o Íris...
– Fantástico – interrompeu Locke, vermelho com a empolgação inebriante que resulta da liberdade absoluta para falar bobagens. – Isso é fantástico. É exatamente o
objetivo do exercício! Mestre Callas e eu estivemos fazendo arranjos cuidadosos para criar a falsa impressão de um estado total de desorganização do nosso lado.
Entendeu? Estamos com o Íris Negra exatamente onde queremos que ele esteja.
– Ah... verdade? – A esperança trouxe uma nova cor ao rosto de Nikoros numa velocidade espantosa e Locke suspirou. Contando o que ele estivera bebendo e os “ajustes”
dos Magos-Servidores, Nikoros provavelmente tinha o livre-arbítrio de uma esponja. – Parece ótimo!
– Não é? Agora chame um galeno. Depois pegue todos os recrutas e escribas de confiança em quem você possa colocar as mãos e traga-os para mim na galeria particular
do Raízes Profundas em cinco minutos. Vá, vá, vá! Josten?
– Ao seu dispor, mestre Lazari.
– Comida para cinco homens gordos e famintos, na galeria particular, o quanto antes.
– Dei algumas ordens quando vi os senhores entrando.
– Bendito seja. Mestre Callas também vai querer café. Quente a ponto de arrancar tinta. Você teve algum problema enquanto estávamos fora? Problemas de segurança?
– Seu pessoal pegou meia dúzia de pessoas tentando invadir. Mandou-os embora com dor de cabeça. Além disso, me disseram que estamos sendo vigiados a partir de vários
pontos da vizinhança.
– Vamos cuidar disso logo.
Locke chamou Jean e os dois passaram pela multidão de empresários e comerciantes da tarde, trocando cumprimentos amigáveis com apoiadores do Raízes Profundas de
quem mal se lembravam da noite da festa de Nikoros. Em instantes, estavam na galeria particular do partido, temporariamente a sós.
– Existe algum plano girando na sua cabeça? – chiou Jean.
– Fagulhas de merda até que alguma coisa pegue fogo. – Locke se acomodou numa cadeira de encosto alto e espanou poeira de sua túnica imunda. – Ruído e ação para
manter Sabeta em dúvida enquanto cozinhamos um esquema de verdade. Vamos começar com brincadeiras infantis e ir crescendo cada vez mais. Pelos deuses, eu gostaria
que tivéssemos uns moleques de rua de verdade, algumas Pessoas Certas que soubessem o que fazem.
Os fora da lei de Camorr nunca haviam tido muita consideração por seus associados fraternos de outras cidades, mas Kartane era a menos considerada de todas. Locke
não ouvira falar nenhuma vez de uma gangue kartani que tivesse qualquer alcance, nada do orgulho selvagem ou da inventividade que as camorris, verraris ou mesmo
lashanis tinham habitualmente.
– É a Presença – explicou Jean. – Os Magos-Servidores domaram essas pessoas.
A comida e o café foram os primeiros recursos reivindicados a chegar. Locke devorou carne e pão; nenhuma das duas coisas demorou o suficiente diante de seus olhos
ou em sua boca para ser totalmente identificada. Jean bebericou café e comeu um pãozinho, quase com delicadeza, com óbvio desconforto.
Alguns instantes depois, uma mulher de pele escura com cabelo grisalho bem arrumado subiu a escada carregando uma bolsa de couro.
– Sou a Erudita Triassa – apresentou-se, franzindo a testa para Jean. – E esse nariz conta uma tremenda história.
Enquanto ela começava o exame, tendo o bom senso de não dizer nada sobre o fato de que Locke e Jean fediam como bodes, Nikoros e meia dúzia de escribas e ajudantes
subiram a escada.
– Ótimo. – Locke engoliu um último bocado de comida. – É hora de dar àquela Íris Negra o gosto de uma sacanagenzinha artística. Molhem as penas. Anotem tudo com
exatidão. Entreguem as anotações a Nikoros quando tiverem acabado e ele vai distribuir as tarefas. Quero que seja redigida imediatamente uma carta para o chefe de
polícia de Lashane, quem quer que ele seja. Digam que quatro cavalos roubados de uma carruagem blindada que ia para Lashane foram localizados no estábulo do Marco
da Íris Negra em Kartane. Cada um tem uma marca claramente visível no pescoço. Esses animais foram recebidos como propriedade roubada e nada foi informado às autoridades
kartanis. Assinem a carta como “um amigo” e a coloquem no próximo navio que atravessar o Amatel levando correspondência.
Jean deu um risinho, depois grunhiu quando a Erudita continuou seu trabalho. Locke ficou andando de um lado para outro enquanto falava:
– Amanhã vou garantir um acréscimo às verbas do partido. Quero mil ducados entregues a membros confiáveis do Raízes Profundas em incrementos de 5 a 20 ducados cada.
Quero que todos sejam usados esta semana com apostas de que o Raízes Profundas vai vencer a eleição. Quero um jorro súbito de confiança no partido, de modo que a
oposição tenha uma bela preocupação com a possibilidade de que sabemos algo que eles não sabem. Quero mais mil gastos em bolos e vinho, postos em cestas com fitas
verdes, que serão presenteadas a comerciantes, mercadores, alquimistas, escribas, galenos... qualquer pessoa respeitável que ainda não faça parte da família do Raízes
Profundas. Vamos adular novos eleitores.
– Isso pode, ahn, causar problema com alguns dos... membros seniores do partido – replicou Nikoros. – Tradicionalmente, somos muito criteriosos com relação a novos
membros. Temos festas particulares, por convite. Nós não... é... saímos varrendo a rua em busca de recrutas.
Locke encheu uma caneca de café e tomou um longo gole. E por causa desses gostos refinados, seus idiotas, vocês foram surrados nas últimas duas eleições, pensou.
– Eu estou no comando aqui, Nikoros?
– Ah... é... pelos deuses, sim, absolutamente, senhor. Eu não quis sugerir nada além...
– Nós vamos varrer as ruas em busca de recrutas se for necessário. Vou colocar um saco de ouro nas mãos de qualquer fodedor de ovelhas vesgo e com um tijolo no lugar
do cérebro que puder fazer uma marca num pergaminho. Quando quiser me questionar, lembre que a oposição não compartilha de suas porcarias de tradições delicadas.
Eles só se importam em vencer.
– É... claro.
– As cestas vão ser entregues. Sem exigências, sem obrigações, pelo menos por enquanto. Só queremos que as pessoas pensem bem a nosso respeito. A pressão vem mais
tarde. Mais discretamente, descubram os membros do nosso partido que tenham dívidas, encrencas nos tribunais, esse tipo de coisa. Deem-me uma lista de seus probleminhas
e vamos mandar pessoas para resolvê-los. Em troca, vamos ser donos do rabo deles e colocá-los para trabalhar.
Ele fez uma pequena pausa e prosseguiu:
– Agora, o outro lado. Membros do Íris Negra que tenham fraquezas. Dívidas, casos amorosos, escândalos, vícios, emaranhados jurídicos. Quero essa lista! Quero coçar
cada ferida, colocar vinagre em cada corte, obter coisas fáceis. Perseguição total, constante, aproveitando cada oportunidade que eles derem, começando antes do
sol nascer.
– Como quiser – disse Nikoros.
– Com esse objetivo... preciso de um alquimista de confiança. E de uma carroça... algumas poucas dúzias de pequenas gaiolas de animais... o maior número de cobras
vivas em que pudermos pôr as mãos...
– Cobras vivas? – questionou um escriba. – Quer dizer...
– É. Elas têm escamas, arrastam-se. Cobras. Continue escrevendo. Só queremos as que não sejam venenosas! Isso significa serpentes-de-celeiro, cobras-do-pântano,
cobras-correias, qualquer outra coisa desse tipo que vocês tenham por aqui. Usem mercenários, crianças, qualquer um... Ofereçam um pagamento adequado, porém mantenham
em segredo. Não quero que a notícia sobre esse projetozinho vá muito longe. Levem as gaiolas para o porão e deixem as cobras lá até segunda ordem. Como está o nariz
de mestre Callas?
– Mal encaixado – respondeu a galena. – Pelo aroma bastante evidente de vocês, suponho que os cavalheiros não tenham podido descansar durante vários dias.
– Lamentavelmente correto.
– Ele terá que ser quebrado de novo. Está claro que este não é o seu primeiro ferimento desse tipo, mestre Callas, e o senhor está ficando com uma obstrução respiratória.
– Então faça isso – falou Jean.
– Vou precisar de dois copos de conhaque, alguns assistentes e um pouco de corda.
– Não há tempo para tudo isso – resmungou Jean – e quero minha mente clara para o trabalho. Faça isso aqui e agora.
– Com o devido perdão, mestre Callas, não gosto da ideia de um homem do seu tamanho me dar um soco...
– Erudita – interrompeu Locke –, é mais provável que este prédio desmorone do que meu amigo perder o controle.
– Estou dobrando o preço da minha consulta – retrucou a mulher, séria.
– E eu estou triplicando – contrapôs Jean. – Ande, parta essa porcaria e ponha onde deve estar. Já passei por coisa pior, e foi sem aviso.
Triassa posicionou as mãos com cuidado, como se a cabeça de Jean fosse uma escultura de barro e ela pretendesse arrancar o nariz e recomeçar a moldá-lo. Aplicou
pressão com um movimento suave; Jean permaneceu imóvel, mas cedeu a um gemido longo, profundo, adequadamente teatral. O som do que quer que estava se movendo ou
se quebrando dentro do nariz dele fez Locke estremecer como se suas partes privadas tivessem sido postas em água gelada, e um ofegar coletivo brotou dos escribas.
– Talvez só um conhaque pequeno – murmurou Jean com voz rouca, mal movendo os lábios.
Lágrimas escorriam por seu rosto. Locke apontou para uma escriba, que assentiu e saiu correndo da galeria.
Triassa prendeu habilmente o nariz de Jean em talas alquímicas cor de creme e enrolou um pano na cabeça.
– Mantenha isso no lugar – orientou ela. – Você já passou por essa situação, portanto não faça nada idiota. Firme a cabeça ao dormir. Venha me ver amanhã; meu consultório
é do outro lado da rua.
– Obrigado – agradeceu Jean.
Um instante depois, a escriba solícita voltou com um copo de bebida cor de caramelo, que Jean tomou cuidadosamente.
– Bom, então – disse Locke. – Agora que todos vimos como nunca seremos tão durões, vamos ver o que temos. Entreguem as listas a Nikoros e ele vai cuidar dos detalhes.
– Senhores – começou Nikoros, enquanto suas mãos se enchiam rapidamente com papéis –, fico feliz em vê-los de volta e assumindo um papel mais ativo nas nossas questões,
mas, ah... esse volume de trabalho...
– Não se preocupe, Nikoros, há tempo suficiente, presumindo que nenhum de nós durma antes do amanhecer. – Locke apertou o braço de Nikoros, tranquilizando-o, depois
baixou a voz para um sussurro particular: – Além disso, se eu pegar você enfiando outra migalha de alquimia negra garganta abaixo, seu cargo vai ficar vago. Entendeu?
– Mestre Lazari, o que posso dizer? Estou envergonhado... mas os senhores haviam sumido... tudo estava tão confuso...
– Tudo agora foi desconfundido. Nós vamos tomar um banho e voltar à civilização. Vá trabalhar. Dê-me aquela lista e me consiga o tal alquimista. Há duas damas em
particular que estão esperando para ver o que temos na manga, e é hora de as coisas ficarem feias.
– Ahn, claro, mestre Lazari.
– Nikoros!
– Ah... sim, senhor?
– Acabo de ter uma ideia empolgante. Traga-me a lista, o alquimista e depois um policial da cidade! Um bem corrupto. Alguém que pense com a bolsa e não seja tímido
com relação a isso.
– Ah, certamente, mas isso pode demorar...
– Esta noite, Nikoros, esta noite!
5
Locke e Jean encontraram banheiras com água fumegante na suíte, além de mais comida e toalhas, raspadores corporais e jarros de óleo perfumado suficientes para suprir
um harém bastante higiênico. Revigorados e reembrulhados em camadas exteriores respeitáveis, voltaram à galeria particular do Raízes Profundas e encontraram Nikoros
esperando, com novos papéis na mão. Locke os examinou o mais rapidamente que a letra ruim permitia.
– Ótimo, ótimo – murmurou. – Dívidas, um monte de dívidas. São jogadorezinhos empolgados, os nosso amigos do Íris Negra... Quem é o credor da maioria?
– A maior parte das dívidas que não acontecem entre pessoas de bem deve implicar Quintofilho Lucidus, do Vel Verda... Bom, ele é dono das casas de tavolagem do Vel
Verda, mas mora em algum lugar da Isas Merreau.
– Maravilhoso. Um pequeno duque dos antros de jogatina. Não é um grande jogador em nenhum dos dois partidos políticos, é?
– Não liga a mínima para as eleições, pelo que sei.
– Está ficando cada vez melhor. Exatamente o tipo de homem que mestre Callas e eu devemos visitar no meio da noite, como galenos solícitos fazendo uma consulta em
domicílio.
– Galenos?
– Sem dúvida. Queremos que ele se convença firmemente de que, se desconsiderar nosso conselho, poderá sofrer problemas de saúde. Bom, onde estão meu alquimista e
meu policial?
– Estão vindo, mestre Lazari, estão vindo...
6
As luas estavam tímidas, como os ladrões preferem, ocultas por trás de nuvens parecidas com lã negra, e o forte vento do sul carregava cheiros de água do lago e
fumaça de forja. As fornalhas com fogo reduzido eram manchas fracas de vermelho e laranja aninhadas entre as sombras da Ilha dos Martelos, e a vista da janela do
quarto de Quintofilho Lucidus no segundo andar capturava tudo isso lindamente.
Locke demorou um instante para apreciar o quadro da forma adequada antes de se virar e acordar Lucidus com um tapa no rosto.
– Mmmmmf! – fez o kartani atarracado.
A exclamação foi abafada por Jean, que, parado junto à cama, tapou sua boca com uma das mãos e puxou-o com a outra até colocá-lo sentado.
– Shhh – disse Locke, aos pés de Lucidus. Ele ajustou a abertura de sua lanterna, lançando um facho fino direto sobre o sujeito barbado e remelento, cujo rosto tinha
os anos extras que advinham de uma garrafa de vinho. – Seu primeiro pensamento será lutar, por isso eu gostaria que você pensasse em onde e com que profundidade
eu posso cortá-lo, ao mesmo tempo que o deixo perfeitamente capaz de conversar.
Locke desembainhou uma lâmina de aço comprida, recém-polida, e certificou-se de fazer a luz da lanterna bater sobre ela antes de acertar as pernas de Lucidus com
a parte chata da arma.
– Seu segundo pensamento – continuou Locke, que usava uma máscara improvisada de pano – será chamar o grandalhão que deveria estar vigiando sua porta da frente.
Infelizmente, nós o pusemos para dormir um pouco. Logo, agora meu colega vai tirar a mão de cima da sua boca e você vai controlar o tom da voz.
– Quem, diabos, são vocês? – sussurrou Lucidus.
– O que nós somos é a pergunta importante. Somos melhores do que você. Não há defesa que você possa inventar nem buraco em que possa se esconder que nos impeça de
fazer isto com você quando quisermos.
– O que... o que vocês querem?
– Dê uma boa olhada nestes nomes.
Locke embainhou a arma e tirou um pedaço de pergaminho rasgado, com uma lista curta de nomes, que tinham sido retirados do rol maior, fornecido por Nikoros. Não
eram apenas eleitores da oposição e, sim, componentes, com importância variada, da máquina política do Íris Negra.
– Alguns desses homens lhe devem dinheiro, não é?
– É – respondeu Lucidus, forçando a vista para o pergaminho. – É... a maioria, de fato.
– Ótimo. Porque você vai ter alguns problemas financeiros, entendeu? Vai cobrar as dívidas de todos esses ótimos cidadãos.
– Espere só um... Rggggrrrrkkkk...
Essa última exclamação foi porque Jean reafirmou sua presença, sem precisar ser instigado por Locke, através da aplicação cuidadosa de um antebraço na traqueia de
Lucidus.
– Não estou solicitando opiniões – rebateu Locke, sinalizando para Jean aliviar a pressão. – Estou dando uma ordem. Puxe a coleira dessas pessoas ou você vai ter
azar. Casas de tavolagem queimam. Casas bonitas como esta queimam. Os tendões das suas pernas são cortados. Entendeu?
– Entendi... entendi...
– Quanto a essas questões de dinheiro... – Locke ergueu uma bolsa quase explodindo com cerca de 5 quilos de moedas, e os olhos de Lucidus se arregalaram. – Um painel
escondido no chão? Sério? Eu aprendi a descobrir esse tipo de coisa quando tinha 6 anos. Esprema bem essas pessoas, entendeu? Cobre as dívidas. Faça o melhor que
puder e ganhará essa bolsa de volta, além de 100 ducados. Não é nem um pouco desprezível, é?
– N-não.
– Se fizer merda – disse Locke, baixando a voz para um rosnado –, o dinheiro some. Tente ficar no meu caminho e eu destrincho você como um assado. Vá trabalhar amanhã
e não se preocupe em nos procurar. Quando quisermos conversar de novo, nós o encontraremos.
7
– Agora diga – pediu Jean, olhando um mapa detalhado de Kartane com todas as avenidas e ilhas –, que bairros são geralmente considerados garantidos para cada partido?
Era fim de tarde no dia depois da visita noturna à casa de Quintofilho Lucidus. Locke e Jean estavam na galeria particular com Maldita Superstição Dexa e Primeirofilho
Epitalus. Nikoros, que fora posto para trabalhar feito um autômato durante mais tempo do que Locke pretendera, havia apagado numa cadeira de espaldar alto. Fosse
fadiga honesta ou induzida alquimicamente, Locke lhe permitira roncar por enquanto.
– Nós temos todos os lugares certos, meu caro rapaz – respondeu Dexa, apontando para a porção sudeste do mapa. – Isas Mellia, Tedra e Jonquin. As Três Irmãs, distritos
do dinheiro herdado. Oito décimos do Caça-Prata e de Vorhala também votam no Raízes Profundas.
– Já a oposição tem a Ilha dos Martelos e os bairros ao redor. Barresta, Merreau, Lacor, Agarro, distritos comerciais, veja bem. – Epitalus exalou dois jatos de
fumaça branca de cachimbo pelas narinas e breves formações de nuvens pairaram sobre a cidade ilustrada. – Novos homens e mulheres. Com tinta ainda molhada nos recibos
dos privilégios eleitorais, entendeu?
– Então são cinco contra cinco – resumiu Locke. – E os outros nove distritos estão no jogo?
– Mais ou menos – respondeu Dexa. – O sentimento na cidade...
– Pode ir se enforcar – completou Locke. – O plano básico é o seguinte, pelo menos o que posso revelar agora. Vamos manter a maior parte do nosso dinheiro fora dos
bairros estabelecidos. Não temos tempo para ganhar as fortalezas do Íris Negra e não devemos nos preocupar com a hipótese de eles ganharem as nossas. Vamos fazer
algumas jogadas de desorientação e pregar peças infantis, mas a maior parte do nosso esforço vai para os nove indecisos. Vocês dois estão muito ocupados com tarefas
do Konseil?
– Nem um pouco – garantiu Dexa. – Nós entramos parcialmente em recesso na temporada da eleição. Kartane praticamente se governa sozinha, a não ser nas emergências.
Epitalus murmurou algo e Locke teve certeza de que era Abençoada seja a Presença.
– Ótimo – comentou Locke. – Gostaria que vocês dois me fizessem um favor. Vão procurar alguns eleitores indecisos em distritos fora dos de vocês. Façam visitas pessoais.
Pessoas importantes, a nata da classe média. Tenho certeza de que vocês podem pensar em uma centena de candidatos. Ganhem votos com charme, um por um, nos distritos
onde cada um desses votos conte. Isso parece agradável?
– Com todo o respeito, mestre Lazari – observou Epitalus –, não é assim que fazemos as coisas aqui em Kartane.
– Duvido que seus colegas da hierarquia do Íris Negra relutariam diante dessa tarefa.
– Não é como as pessoas de substância fazem as coisas – concordou Dexa gentilmente, como se explicasse a uma criança muito pequena que o fogo é quente.
– Espera-se mais de nós do que do Íris Negra – continuou Epitalus. – Padrões mais firmes. Não saímos por aí cortejando qualquer um, mestre Lazari. Sem dúvida o senhor
consegue ver que isso nos faria parecer mendigos.
– Duvido que alguém que receba as visitas que eu propus deixaria de ficar profundamente lisonjeado em receber alguém da estatura de vocês – retrucou Locke.
– Não estamos falando deles – replicou Dexa – e, sim, de nossos colegas membros do Raízes Profundas. Esse tipo de comportamento não poderia ser apoiado...
– Sei – interrompeu Locke. – Não importa que esse tipo de escrúpulos tenha trazido uma derrota embaraçosa a vocês nas últimas duas eleições. Não importa que vocês
passem a aplicar seus “padrões mais firmes” para um círculo de associados cada vez menor, com influência cada vez mais reduzida, e permitam alegremente que o Íris
Negra vença de novo.
– Ora, ora, caro mestre Lazari – disse Dexa. – Com certeza não há motivo...
– Estou encarregado de vencer essa eleição. Para isso, violarei cada costume que deve ser violado. Se não tenho sua confiança plena, os senhores podem ficar com
minha demiss...
– Ah, não – interveio Epitalus. – Não, por favor...
De novo Locke viu o funcionamento curioso das artes dos Magos-Servidores, à medida que os preconceitos entranhados dos kartanis guerreavam com seu condicionamento
para enxergá-lo como algum tipo de cruzamento entre um chefe de espiões e um profeta. Era algo por trás dos olhos deles e, apesar de parecer que a coisa pendia para
o seu lado, ele achou melhor colocar um pouco de doçura, para dar mais garantia.
– Eu não pediria isso a vocês – falou em tom afável – se não acreditasse que os estou mandando para o sucesso garantido. Sua qualidade e sua graça irão lançar esses
indivíduos imediatamente para o nosso campo e, como vocês mesmo os estarão escolhendo, eles trarão nada menos do que crédito para o Raízes Profundas. Consigam-nos
uns cem. A vitória valerá a pena, tenho certeza.
Dexa e Epitalus aquiesceram. Não energicamente, mas Locke ficou satisfeito ao ver que o assentimento era sincero.
– Esplêndido. Agora eu tenho um encon... um jantar. Jantar de trabalho. Algo... ah... que pode ser muito vantajoso para nós. Mestre Callas estará aqui caso vocês
precisem de algo.
– Achei que o senhor estava vestido bem demais para uma sessão de planejamento – comentou Dexa.
– E o pobre Via Lupa? – perguntou Epitalus.
– Hummm? Ah, Nikoros... Deixem-no dormir um pouco. Ele vai estar completamente atolado em cestas e fitas verdes amanhã.
Locke fez vários ajustes inúteis em sua casaca azul-escura e espanou poeira imaginária da gravata de seda preta.
– Se eu não voltar... – murmurou para Jean.
– Vou derrubar o Marco da Íris Negra até os alicerces e colocar Sabeta num navio para Talisham.
– Isso é reconfortante – sussurrou Locke. – Certo. Preciso ir esperar a carruagem. Prenda um bilhete na lapela do Nikoros, está bem? Ainda estou esperando a porcaria
do alquimista e do policial.
8
A carruagem chegou na hora e era confortável, mas Locke viajou em alerta, com as janelas do compartimento escancaradas e uma das mãos num bolso do casaco. Teria
conjurado instantaneamente gazuas, uma adaga, um cassetete ou um pequeno pé de cabra se a situação exigisse.
No entanto, antes que surgisse qualquer necessidade para os truques escondidos na casaca, a viagem terminou embaixo de uma torre de pedra iluminada calorosamente,
em algum lugar do que Locke supôs ser o distrito do Caça-Prata. Pelo menos uma dúzia de pessoas bem-vestidas eram visíveis, aparentemente à vontade. Um lacaio com
casaca de seda vermelha abriu a porta da carruagem para ele e fez uma reverência.
– Bem-vindo ao Supervisão, mestre Lazari – anunciou o lacaio quando Locke pisou na calçada. – O senhor já é esperado, siga-me, por favor.
Permitindo-se ter esperança de que haveria um jantar de verdade, e não uma emboscada, Locke olhou para cima e ficou pasmo. Gaiolas de latão esféricas, ungidas com
lanternas alquímicas, envolviam o nível mais alto da torre. Estavam suspensas por algum complexo aparato mecânico e formavam uma espécie de halo reluzente, a cerca
de 20 metros do chão.
Enquanto o lacaio o levava ao redor da torre num caminho isolado por uma cerca viva, Locke ouviu um ruído baixo vindo de cima. A gaiola do lado diretamente oposto
à parada das carruagens desceu com suavidade e pousou num círculo de pavimento com cerca de 5 metros de diâmetro. O lacaio segurou duas alavancas e abriu a porta
da gaiola, revelando o interior luxuoso... e Sabeta.
Ela usava um vestido creme por baixo de um casaco cor de conhaque escuro, e o cabelo pendia solto abaixo dos ombros. Estava sentada numa almofada ao estilo jereshti,
com as pernas cruzadas, atrás de uma mesa da altura dos joelhos. Atordoado pela visão dela e pela estranheza do ambiente, Locke entrou com mansidão na gaiola e se
ajoelhou em sua almofada. O lacaio fechou a porta e, depois de um instante, a gaiola subiu devagar, levada por algum mecanismo que sem dúvida era obsessivamente
lubrificado em deferência aos ouvidos delicados dos clientes.
– Se você quisesse que eu estivesse pronto antes – começou ele –, eu ficaria feliz...
– Ah, deixe pra lá. Como eu poderia ser adequadamente misteriosa e fascinante se não estivesse esperando calmamente por você quando a porta abrisse?
– Você conseguiria isso, de algum modo.
Locke examinou a gaiola com mais atenção. Apesar de a mesa ser cercada por cortinas de gaze, no momento elas estavam puxadas para o teto e amarradas. A gaiola era
composta por barras finas separadas por espaços de pouco mais de 2 centímetros, através das quais Locke podia ver a região nordeste de Kartane sob as linhas vermelho-douradas
de um crepúsculo se esvaindo.
– Na nossa terra, eles castigam criminosos com um negócio parecido com esse.
– Bom, em Kartane, os criminosos pagam pelo privilégio de serem içados. Disseram-me que o Supervisão foi inspirado no Palácio da Paciência. Algo sobre o modo como
o oeste suaviza e aperfeiçoa os costumes do leste.
– Eu estou por aqui há vários anos e não me sinto suavizado nem aperfeiçoado.
– É mesmo, você ainda nem se ofereceu para servir o vinho – concordou Sabeta, fingindo desdém.
– Ah, maldição.
Locke se levantou atabalhoadamente. Havia uma garrafa de alguma coisa decantando na mesa, ao lado de três taças. Ele cumpriu com o dever graciosamente, enchendo
duas taças e oferecendo uma a ela, com uma reverência exagerada.
– Melhor assim, mas você esqueceu alguém – comentou ela, apontando para a taça vazia.
– Humm? – A proximidade com Sabeta era como areia nas engrenagens de sua mente. Ele imaginou que podia senti-las se esforçando para girar enquanto olhava a taça
vazia, e então veio uma onda quente de vergonha. – Inferno e castração – murmurou, servindo de novo. – Uma taça servida pelos amigos ausentes. Que o Guardião Torto
abençoe seus servidores tortos. Correntes, Calo, Galdo e Pulga...
– Que eles riam para sempre em mundos melhores do que este – completou Sabeta, tocando a taça de Locke.
Os dois tomaram goles pequenos. Era uma safra boa, suave e forte, com gosto de ameixas e laranja ácida. Locke sentou-se de novo na almofada e os dois compartilharam
uma pausa incômoda.
– Desculpe – disse Sabeta. – Não pretendia dar um toque melancólico.
– Eu sei. – Locke bebericou o vinho, raciocinando que, se ele estava drogado, todas as suas esperanças e suposições eram inúteis, de qualquer modo. O arsenal em
miniatura em sua casaca pareceu subitamente cômico. – Então... é, gostou da flor que eu trouxe?
– A flor invisível? A flor hipotética?
Locke arqueou as sobrancelhas e bateu no lado direito da casaca. Sabeta olhou para baixo, bateu apressadamente em seu próprio casaco e tirou uma rosa sem haste,
as pétalas de um púrpura escuro com borda de carmim.
– Ah, seu trapaceirozinho esperto. Enquanto servia o vinho.
– E você estava olhando a garrafa, e não o mancebo – disse Locke com um suspiro teatral. – Tudo bem. Meu orgulho já foi totalmente pisoteado. Mas espero que você
goste da cor. Estufa de Kartane. Tinha haste, mas tornaria muito difícil carregá-la ou manipulá-la.
– Não me importo. – Sabeta pousou a rosa com cuidado no meio da mesa. – Presumindo que não vá explodir, me colocar para dormir ou algo do tipo.
– Abri mão da vingança nesse quesito. Mas precisamos falar sobre o assunto, para que possamos superá-lo.
– O que há para dizer?
– Sequestro. Agressão. Exílio. Alquimia. Truques sujos dessa natureza, voltados contra mim ou Jean.
– Nós aprendemos uma dúzia de modos de incapacitar alguém antes de termos 10 anos – retrucou Sabeta. – Isso é bem rotineiro para nós. Concordei com uma trégua esta
noite...
– Deveríamos estabelecer uma trégua constante. Imunidade mútua contra qualquer ataque pessoal direto. Se vamos travar essa luta, vamos fazê-la mente contra mente,
plano contra plano, sem precisar dormir embaixo da cama porque estamos com medo de acordar num navio no dia seguinte.
– Eu não tenho medo de acordar num navio.
– Tente a sorte, lindeza, e eventualmente a sorte se voltará contra você. Eu posso ser burro a ponto de jantar com você numa jaula de metal, mas pense no Jean. Se
ficar livre para agir por conta própria, ele vai esmagar seu exercitozinho como fígado de ganso cozido e você irá para Talisham numa caixa.
– Ele é tão temível assim, é?
– Diga de novo quantas pessoas você destacou para pegá-lo enquanto estava ocupada me drogando.
– E se os Magos-Servidores interpretarem isso como conluio...?
– Não é nada do tipo. Diabos, isso só aumenta o valor da diversão para nossos senhores canalhas. Eles querem que façamos esse negócio do modo ao qual estamos acostumados.
Cabeças funcionando, e não sendo quebradas. E você não pode dizer que isso não estimula seu orgulho.
– Só para ser clara, você está sugerindo que eu descarte uma abordagem que já me trouxe sucesso considerável e continue com a luta num nível mais adequado às restrições
da sua... bom... da sua inadequação, e que eu deveria agir assim porque isso vai fazer com que eu sinta o brilho caloroso da virtude?
– Acho que, se você descartar a adorável ressonância emocional da minha sugestão e ficar com o significado puro...
– Que estranho. Você está parecendo um trapaceiro falando de confiança. Mas não tenho objeção quanto a terminar um joguinho enquanto estou por cima de você – disse
ela com um pequeno sorriso. – Trégua discutida, estritamente limitada a você, Jean e eu, a fim de que tenhamos mais tempo para nos preocuparmos com a disputa propriamente
dita. Um brinde a isso?
– A taça cheia é uma promessa vazia.
As taças dos dois soaram quando eles brindaram e ambos tomaram o vinho até a última gota.
– O dobro ou a desonra – falou Sabeta, enchendo depressa as taças.
De novo os dois disputaram para chegar ao fundo das taças e, ao término, o riso dela pareceu suficientemente genuíno para Locke sentir que um vento novo havia soprado
sobre a brasa adormecida em seu coração.
– Você não faz ideia – disse enquanto a névoa quente do vinho subia do peito para a cabeça – de quanto sofrimento estou disposto a aguentar para ouvir esse riso
outra vez.
– Ah, merda. – Sabeta revirou os olhos sem banir o sorriso. – Direto dos negócios para a caça às saias.
– Você é que está me dobrando com o vinho!
– Qualquer mulher de bom senso prefere seus homens bêbados e tratáveis.
– E agora você está falando de mim possessivamente. Pelos deuses, continue assim.
– Isso está muito longe da criatura suja que invadiu minha estalagem e me acusou de puxar cruelmente os fios do seu coração.
– Experimente ficar quatro dias numa sela sem preparação e ver o humor em que isso vai deixá-la.
A conversa foi interrompida quando uma prancha de ferro deslizou da torre e se travou ao lado da gaiola. Um garçom apareceu e abriu a porta na treliça de latão,
através da qual fez várias viagens para entregar mais vinho e começar a servir a comida em pratos dourados.
– Espero que você não se incomode por eu ter feito o pedido – disse Sabeta.
– Estou à sua mercê – garantiu Locke, cujo estômago roncou dolorosamente.
Por sorte, Sabeta pareceu sensível à estranheza de seu novo apetite. Ela atacou os pratos com um prazer indelicado que combinava com o dele.
Havia os cogumelos subaquáticos do Amatel, translúcidos e cozidos até uma textura de teia de aranha, acompanhados por trufas pretas como carvão em molho de malte
e mostarda. Havia queijos frescos cremosos e pimentões crocantes, cáusticos e dourados. Pães com especiarias, fritos com cebolas doces e salpicados com iogurte amarelo
picante, uma variação de um prato que Locke reconheceu da culinária de Syrune. Cada uma das comidas era acompanhada de vinho e mais vinho. Apesar de sentir o juízo
se suavizando, Locke ficou animado ao ver o rubor cada vez mais profundo no rosto de Sabeta e o modo como os sorrisos dela ficavam mais largos e fáceis à medida
que a noite prosseguia.
O crepúsculo púrpura se tornou a escuridão plena da noite, e Kartane, um mar de formas meio sombreadas suspenso entre o negrume e as fagulhas alquímicas.
O prato principal era uma tartaruga em tamanho real feita com pães multicoloridos cobertos de glacê. O topo da carapaça crocante da criatura era fino como papel
e, depois de atravessado por uma concha, revelou um lago de ragu de tartaruga e ostra. O prato sofreu um cerco entusiasmado dos dois lados da mesa.
– Você já teve a chance de olhar por cima da Isas Escolástica antes? – perguntou Sabeta, recuperando parte da delicadeza de uma dama ao limpar o queixo com um guardanapo
de seda. – Fica atrás de mim, do outro lado do canal. A Ilha dos Eruditos. Lar dos magos, ou pelo menos é o que afirmam.
– Afirmam? Não, nunca tive chance de ver. Não dá para ver muita coisa agora, com a escuridão e o vinho.
– Parece que eles não se incomodam com o fato de as pessoas construírem torres ao redor dos limites de seu pequeno santuário. Andei fazendo um pouco de turismo.
Digo afirmam porque não sei se acredito que eles todos vivem felizes juntos como estudantes do Colégio em quartos. Acho que estão espalhados por toda parte. Acho
que a Isas Escolástica é só para onde eles querem que todo mundo olhe.
– Então todos aqueles parques, prédios e coisa e tal são apenas um embuste?
– Não, tenho certeza de que eles usam o lugar, só que não como única residência. – Ela tomou um último longo gole de vinho e empurrou a taça para o lado. – Mas não
acredito que eu já tenha visto um deles lá embaixo. Nenhum.
– O quê, eles usam sinais ou algo assim? Chapéus engraçados? Eles são fáceis de identificar quando a gente vê os pulsos e os modos de agir, mas, ao longe, devem
parecer pessoas comuns.
– Já vi serviçais. Pessoas guiando carroças, descarregando coisas, mas não eram Magos-Servidores, com certeza. Nunca vi ninguém andando à vontade pela Isas Escolástica,
nem dando ordens, nem falando com outras pessoas. Nem guardas, nem senhores e senhoras, apenas serviçais. Se eles estão lá embaixo, escondem-se. Até mesmo de olhos
que estão a centenas de metros de distância.
– São pessoas estranhas. – Locke olhou para os restos de seu vinho laranja-claro. – E digo isso como um sujeito profissionalmente estranho, totalmente qualificado,
no grau mais alto. Gostaria que eles não fossem uns canalhas tão arrogantes, mas acho que pessoas estranhas têm hábitos estranhos.
– Eu fico pensando. Você... você sente que seus... controladores foram honestos com relação aos motivos para essa disputa deles?
– Diabos, não. Mas essa foi uma pergunta fácil. Talvez você não tenha conhecido meu lado da família dos magos. Por que, você acha que os seus são...
– Não sei – disse ela baixinho, contemplando a noite. – Eles entregaram todas as ferramentas que prometeram entregar. Parecem felizes com o meu trabalho, e acho
que as promessas que fizeram sobre as consequências são sinceras. Mas os segredos, a desorientação, é uma coisa tão habitual...
– Você realmente não está acostumada a se sentir como uma peça num tabuleiro.
– É. – Sabeta encerrou seu breve momento pensativo mostrando a língua para ele. – Não tive todas as oportunidades que você teve para se aclimatar a essa sensação.
– Ah, não! Serpente de vestido. Bom, se eu não fosse cavalheiro demais para golpear seu espírito com uma réplica cortante e inteligente, madame, você seria... completamente...
hum, replicada nesse momento.
– Se você fosse cavalheiro, não seria uma companhia divertida para o jantar.
– Você admite que está se divertindo?
– Admito que é como eu temia. – Ela olhou para a mesa por um instante antes de continuar. – Sua presença é... cada vez menos uma tarefa árdua e cada vez mais um
conforto.
– Bom – Locke deu um risinho –, eu sempre adoro não ser o fardo que você estava esperando!
– Sobremesa?
– Você me perdoaria se eu implorasse para recusar? – Locke deu um tapinha na barriga, que misericordiosamente chegara ao limite absoluto de sua gulodice. – Estou
estufado como um saco de grãos.
– Ótimo. Você ainda está magro demais.
O garçom levou os pratos e deixou uma prancheta com uma nota dobrada. Sabeta pegou-a e olhou-a preguiçosamente.
– O que é?
– A nota, item por item. Aqui eles a trazem à mesa. É a última moda. Deixa os que sabem ler demonstrarem isso em público.
– Estranho. Mas aqui é o oeste. E agora, Sra. Gallante? Uma caminhada, um passeio de carruagem, talvez um...
– Agora descansamos sobre os louros. – Ela se levantou da mesa e se espreguiçou, revelando a precisão com que o vestido e o casaco se ajustavam às curvas. – Olhe,
não é que eu não tenha apreciado esta pausa, mas certas coisas... precisam ir devagar.
– Devagar – disse Locke, sabendo que estava fracassando miseravelmente em esconder o desapontamento. – Claro.
– Devagar – repetiu ela. – Temos cinco anos e mais gumes afiados para limar. Eu posso estar disposta a trabalhar nisso, mas não creio que consiga fazer tudo em uma
noite.
– Sei.
– Ah, não me venha com esse olhar de cachorrinho se afogando. – Sabeta tocou a cintura dele e lhe deu um beijo no rosto que não era exatamente passional, mas foi
um pouquinho mais longo do que o educado. – Vamos fazer isso de novo. Daqui a três noites. Vou escolher outro lugar interessante.
– Daqui a três noites. – Locke ainda sentia a pressão quente dos lábios dela contra a pele. – Três noites. Certo. Tente me impedir.
– Não posso. Parece que prometi uma luta limpa.
Ela tirou um par de luvas do casaco e calçou-as.
– Posso pelo menos levá-la à sua carruagem?
– Mmmmm... acho que não – falou Sabeta com malícia. – Eu tento viver segundo a regra básica de nossa profissão compartilhada, ou seja: sempre deixe o otário querendo
mais.
Sabeta enfiou a mão embaixo da mesa e pegou um rolo de semisseda que estava escondido ali. Locke olhou, perplexo, ela conjurar uma fina gazua de metal e aplicá-la
à porta do garçom, que se abriu em segundos.
– Ei, espere um minuto...
– Era para o caso de você tentar alguma tramoia. Se eu iria usá-la para escapar ou para enforcar você ainda é uma questão em aberto.
– Sério?
– Eu não diria isso – respondeu ela com um sorriso. – Mas sou definitivamente sincera. Obrigada pela flor. Em troca, deixei uma coisinha para você.
Então ela se foi. A corda estava ancorada num ponto da gaiola embaixo da mesa; Sabeta chutou-a pela porta e desceu fazendo rapel para dentro da noite, sem um arnês,
deslizando com a fricção de botas e luvas, o vestido se enfunando como as pétalas de uma flor golpeada pelo vento.
– Maldição – sussurrou Locke olhando-a pousar em segurança e sumir lá embaixo.
Depois de um momento, as últimas palavras dela enfim passaram se espremendo pela película de vinho grudada no cérebro e ele se apalpou freneticamente. Havia um pedaço
de papel no bolso esquerdo da casaca. Uma carta de amor?
Desdobrou-o às pressas e encontrou a conta do jantar.
9
– Mexa-se! Mexa-se! Pela sua vida, mexa-se!
Porteiros se espalharam, saindo da frente de um par de cavalos mal controlados que arrastavam uma carreta guiada por um cocheiro de olhos arregalados. A traseira
do veículo estava cheia de sacos e barris, um dos quais havia deixado escapar uma trilha crescente de fumaça cinza por toda a rua. Com um estrondo, a carreta quebrou
uma roda contra o meio-fio e tombou, derramando o conteúdo numa pilha diante da porta da frente do Marco da Íris Negra.
– É alquimia! – O cocheiro, um sujeito magro, de barba branca, com um volumoso casaco roído por ratos, saltou para o chão enquanto a fumaça aumentava, passando por
ele. Fagulhas saltavam e lampejavam no meio da carga derramada, e o homem desatrelou seus animais frenéticos. – Montes de alquimia! Peguem água e areia ou fujam
para salvar a vida!
Clientes, serviçais e guardas afluíram da estalagem para investigar a confusão, mas recuaram consternados à medida que a fumaça passava por eles, entrando no prédio.
Estalos soavam agourentos em meio à névoa e fogos de cores fantasmagóricas ganhavam vida. O cocheiro da carreta acidentada levou os cavalos para o outro lado da
rua, onde encontrou vários garotos com a libré do Íris Negra observando o desastre se desenrolar.
– Aqui! – gritou ele, pondo as rédeas nas mãos de um garoto. – Vigie meus animais! Já volto!
O sujeito barbudo atravessou a rua e entrou no meio da fumaça. Fumaça verde, fumaça vermelha e fumaça amarelo-mostarda se desenrolavam do fogo que se espalhava,
fiapos subindo como sinistras serpentes do ar. As névoas tinham odores nauseabundos de alho, enxofre e carne podre. Todo o lado da rua onde ficava o Marco da Íris
Negra estava submerso num pitoresco pesadelo alquímico.
Mais ou menos escondido na fumaça que se adensava, através da qual o sol da tarde mascarado brilhava num bronze débil, o cocheiro correu por um beco ao lado da estalagem.
Jogou o casaco e o chapéu atrás de uma pilha de caixotes vazios, depois tirou a calça larga e as botas, revelando um calção preto justo e sapatos polidos. A barba
foi a última coisa a ir embora. Recém-descascado como uma fruta humana, de queixo liso e bem-vestido, Locke Lamora saiu andando casualmente pela extremidade do beco
enfumaçado e entrou no pátio atrás da estalagem.
– Mestre Lazari. Boa-uuff-tarde!
Sabeta rolou da empena mais baixa nos fundos do Marco da Íris Negra, pousou com força, recuperou-se com graciosidade e fez uma pequena reverência a uns 3 metros
de distância. Três seguranças a seguiram, aterrissando desajeitadamente, e se espalharam num arco em volta de Locke. A janela de onde eles haviam se jogado permaneceu
aberta, com os postigos balançando à brisa suave.
– Ah, olá, Sra. Gallante – cumprimentou Locke, animado. – Está tendo problemas com sua estalagem?
– Nada que não possa ser corrigido com uma pequena ajuda, tenho certeza.
– Eu gostaria de poder ajudar. Estava passando por perto, por acaso. Aahhh! Agora me lembro! Vocês estão fazendo uma espécie de grande reunião festiva do Íris Negra
hoje, não é? Meus pêsames! A fumaça, as chamas... só posso imaginar a consternação.
– Tenho certeza de que você imaginou em detalhes. – Sabeta chegou suficientemente perto para baixar a voz: – Camponês barbudo entra pela ponta de um beco, cavalheiro
barbeado sai pela outra? Sério mesmo?
– É um clássico!
– Tem teias de aranha. Poderia enganar quem não tivesse visto você fazer isso antes. Agora, quer vir comigo graciosamente ou nos ombros dos meus amigos?
– Quero lembrá-la, querida, de que minha pessoa é inviolável.
– Não me chame assim quando estamos usando as caras de trabalho. E a pessoa de ninguém vai ser violada. Mas você não pode achar que vou deixá-lo sair passeando enquanto
uma carroça cheia de merda alquímica fica queimando na minha porta.
– Claro que posso. É tudo perfeitamente inofensivo. Ah, o cheiro pode ser medonho, e uma parte reage mal com água, e não há como dizer o que é o quê até que você
experimente, mas espere algumas horas, depois areje sua estalagem por um ou dois dias. Não vai restar nada.
– Mesmo assim, acho que você deveria se sentar numa salinha e ficar entediado até que eu controle a confusão.
– Ora, ora. Você deve me dar o crédito de ter pensado em um plano B para o caso de você decidir fazer isso.
– E, claro, você deve esperar que eu tenha o meu, para o caso de você querer jogar duro.
– Ah, sem dúvida.
– Bom... – Sabeta correu um dedo para cima e para baixo por uma lapela do casaco dele. – Eu mostro o meu se você mostrar o seu.
– VOCÊ AÍ! FIQUE PARADO!
O grito ecoou pelo pátio enquanto um trio de policiais com sobretudos saía da fumaça. O líder, um homem com barba cor de trigo e a estética de uma peça de banha,
tocou Locke no ombro com um bastão de madeira.
– Como policial de Kartane, senhor, devo detê-lo formalmente.
– Que pavoroso. – Locke fingiu um bocejo. – Qual é a acusação?
– O senhor se parece com um suspeito procurado para ser interrogado numa questão confidencial. Terá que vir conosco.
– Que pena! – Locke permitiu que os guardas se reunissem em volta dele e tirou um chapéu imaginário para Sabeta, enquanto recuava com eles. – Verena, eu gostaria
de continuar nossa conversa, mas parece que as deficiências do meu caráter se tornaram assunto de preocupação oficial. Desejo sorte no tratamento de sua pequena...
conflagração.
Logo antes que a nuvem de fumaça o engolisse de novo, Locke fez um gesto rápido, em código: Estou ansioso por amanhã à noite.
A reação dela foi um gesto, só que não se originava nos sinais particulares dos Nobres Vigaristas. Ainda assim, Locke sentiu-se tranquilizado pelo fato de que ela
sorriu ao fazê-lo.
A rua diante do Marco da Íris Negra se tornara uma confusão fedorenta. Homens e mulheres bem-vestidos e com flores pretas pregadas nos casacos procuravam fugir,
enquanto pessoas bem-intencionadas com baldes de água tropeçavam umas nas outras e rolavam como bolas de bilhar. Os fogos alquímicos continuavam queimando alegremente,
um arco-íris parcial de luzes enfeitiçadas dentro do miasma. Os “captores” de Locke andaram com ele durante cerca de um quarteirão antes de se desviarem para um
pátio vazio e sem janelas.
– O momento foi perfeito, sargento – elogiou Locke, pegando três bolsas de couro de tamanho igual. – Digno de aplauso.
– Nós nos orgulhamos de realizar nosso dever cívico – respondeu o sujeito barbudo.
Ele e seus colegas aceitaram as bolsas com sorrisos largos; cada um recebeu o equivalente a três meses de salário em troca dos poucos minutos aguardando por perto,
para o caso de Locke precisar. Foi tremendamente agradável, pensou Locke, percorrer os familiares reinos da avareza depois de lidar com a maleabilidade fantasmagórica
do pessoal “ajustado” do Raízes Profundas.
– Agora, nada daquilo era perigoso de verdade, certo? – perguntou o sargento, com uma sobrancelha farta levantada.
– Inofensivo como cuspe de bebê. Desde que ninguém seja idiota a ponto de enfiar a mão num fogo.
Satisfeitos, os policiais partiram. Locke só precisou esperar alguns minutos antes que Jean viesse passeando pela avenida, vindo da direção da fumaça, com vários
sacos vazios sobre o ombro.
– Como foi? – indagou Locke enquanto os dois sincronizavam o passo.
– Mais do que perfeito. Eles estavam todos tão distraídos que seria perda de tempo eu me incomodar em ser furtivo. Foram 37 cobras jogadas pelas chaminés frias.
– Magnificamente infantil, se bem que sou eu que estou dizendo. – Locke coçou o queixo para tirar algumas partículas teimosas do adesivo para a barba. – Espero que
isso os mantenha inquietos durante alguns dias.
– E se ela responder com coisas do gênero?
– Fiz arranjos para que as equipes de trabalho da cidade façam algumas mexidas desnecessárias nas pedras do calçamento em volta da estalagem do Josten nos próximos
dias. Nenhuma carruagem vai chegar a menos de 20 metros. Nossos amigos vão reclamar, mas isso deve manter um bocado de tramoia a distância.
Enquanto andavam, Locke notou pela primeira vez que tinham começado a aparecer estandartes pendurados em sacadas e janelas. Aqui e ali, havia uns poucos verdes corajosos,
mas, naquela vizinhança, a maioria era preta. O interesse dos cidadãos estava aumentando; metade das seis semanas quase se passara. Pregar peças irritantes era uma
ótima jogada, mas chegada a hora de começar a cortar de verdade alguns dos recursos de Sabeta.
– Aqueles espiões continuam a vigiar nossa sede... – disse Locke. – Está a fim de uma visitinha de hospitalidade assim que o sol baixar?
10
A segunda noite de trabalho nos andares de cima foi tão fácil quanto a primeira. Varreram o quarteirão ao redor da Acomodações do Josten logo depois da meia-noite,
esgueirando-se em silêncio por jardins de terraços e por telhados bem cuidados, usando chaminés e parapeitos para se esconder.
Nem todo mundo com quem cruzavam era pago por Sabeta. Uma mulher bêbada, encolhida no canto de seu terraço, soluçava sobre uma pequena pintura e não notou quando
eles passaram. Dois rapazes ágeis enrolados nos braços um do outro alguns jardins adiante estavam absorvidos de modo similar. Locke se esgueirou por perto das roupas
abandonadas por eles, suficientemente perto para revistá-las em busca de bolsas, mas pontadas de simpatia contiveram o impulso. Fazer maldade com amantes felizes
poderia dar ensejo a uma justiça cruel que pisotearia suas próprias esperanças.
O primeiro alvo legítimo foi apanhado desprevenido e as posses do sujeito deixaram claro seu serviço. Ele usava uma capa estampada em cinza e marrom, ideal para
se fundir às sombras da cidade, carregava uma luneta, e os restos de uma refeição fria estavam espalhados ao redor do esconderijo. Num instante, Jean jogou-o de
barriga para baixo e se agachou em cima, puxando para trás os braços do pobre coitado. Locke se ajoelhou perto da cabeça do sujeito, achando divertida a familiaridade
que ele e Jean estavam adquirindo com o velho número do Voz Ameaçadora e do Fortão Silencioso.
– Se tentar gritar – sussurrou Locke –, vamos arrancar os seus braços, enfiar um pela garganta e o outro pelo cu, de modo que você vai parecer carne num espeto.
Quantos de vocês estão vigiando o Josten?
– Não sei – sibilou o homem.
Locke lhe deu um empurrão na nuca, fazendo o rosto quicar nas telhas. Com força, mas não muita.
– Isso não vale a pena. Sua patroa não espera uma lealdade de vida ou morte, certamente. Mas nós vamos machucar você para dar um recado.
– Tem mais um – cuspiu o cativo. – Um, que eu saiba. Talvez mais. Olhe para além desse parapeito. Depois de quatro telhados, o telhado da botica. Ele está lá, em
algum lugar. Juro que é só isso que posso dizer.
– Está bom – disse Locke. Em seguida, sacou a adaga e retalhou a capa do sujeito. Quando o agente de Sabeta estava amordaçado e totalmente amarrado, Locke lhe deu
um tapinha nas costas. – Agora não se incomode. Assim que terminarmos de tirar todos os seus amigos, vamos dar a dica a um deles e todos vocês serão recolhidos.
Não deve demorar mais do que algumas horas. Não faça nenhuma idiotice.
O segundo agente estava agachado em cima da botica, porém um pouquinho mais alerta, e os recebeu com um cassetete na mão. O que se seguiu foi uma verdadeira escaramuça,
com Locke agarrando as pernas do sujeito enquanto Jean tentava desarmá-lo, atrapalhado pela necessidade de evitar matá-lo. Tamanho era o espírito de luta do sujeito
que os dois tiveram de deixá-lo inconsciente antes de poderem trocar uma palavra.
Ao se aproximarem do fim do circuito pela vizinhança, quem sabe dez minutos depois, encontraram um terceiro e, ao que parecia, último observador, felizmente não
mais alerta do que o primeiro.
– Nós cuidamos de todos os seus amigos – disse Jean, animado, enquanto pendurava o sujeito por cima do beco ao lado do prédio, pelo colarinho do casaco. – Estão
amarrados feito frangos de festa.
– Pelos grandes deuses, amigo, não é nada pessoal – soluçou o sujeito, encarando as sombras quatro andares abaixo. – Só estamos fazendo o nosso maldito trabalho!
– Encontre outro trabalho – rebateu Locke. – Nós estamos sendo muito, muito cordiais. Na próxima vez que pegarmos espiões espreitando nesta vizinhança, vamos aleijá-los.
Isto aqui agora não é Kartane, é o estado soberano do Vá se Foder e Vá Para Casa.
– Mas...
– Dê uma boa olhada nesse beco. Imagine a sensação daquelas pedras frias e duras quando jogarmos você deste telhado. Se vier aqui de novo, é melhor ter asas. Agora,
seus colegas estão amarrados no lugar deles. Pegue-os e deem o fora.
– Será que não podemos discutir...
– Tire a bosta de cachorro dos ouvidos, seu peido de cadáver – rosnou Jean. – Quer fazer o que a gente mandou ou quer beijar a calçada?
Por acaso, ele queria fazer o que os dois mandaram.
11
– Você já pensou em como o Correntes fodeu com todos nós?
– Deuses do céu! – Locke evitou por pouco engasgar com a cerveja. – Você está bêbada?
– Nem um pouco.
Sabeta segurou seu copo com firmeza total durante vários instantes para sustentar a afirmação.
– Entendo sua frustração com o modo como algumas coisas aconteceram – comentou Locke. – Você sabe que eu escutei você.
– Sei.
– E sabe que eu acho que você tinha argumentos bons. Mas o Correntes era um homem generoso. Um homem generoso e atencioso, independentemente dos defeitos.
– Não é disso que estou falando. Ele queria uma família, desesperadamente. Já percebeu isso?
– Claro. Nunca pensei nisso como um defeito.
– Com frequência, acho que ele queria uma família mais do que uma gangue.
– De novo...
– A consciência é um peso morto na nossa profissão. – Sabeta olhou para as profundezas cor de âmbar de seu copo com bebida pela metade. – Não se engane, ele algemou
uma consciência em cada um de nós. Até em Calo e Galdo, que suas almas estejam em paz. Apesar de pensarem principalmente com o pau e em segundo lugar com os bagos,
até eles acabaram tendo um caráter essencialmente gentil. Correntes pegou todos nós, no fim das contas. Direitinho.
O segundo jantar dos dois, na noite seguinte ao “desastre” alquímico no Marco da Íris Negra, aconteceu na Alegre Errante, uma barca de teto plano, com jardins e
biombos laqueados para privacidade. A embarcação havia flutuado suavemente pelo coração de Kartane, sob a música estranha das pontes de Vidrantigo, antes de ancorar
no Amatel, perto da Ponta Corbessa. À medida que o céu escurecia e os globos alquímicos eram acesos, pequenos botes traziam e levavam outros clientes, mas Locke
e Sabeta permaneceram em sua mesa especial, na popa da barca.
– Não acredito que estou ouvindo isso de alguém que saiu do Morro das Sombras – comentou Locke. – Você preferiria aquilo? Ser espancada e passar fome? Talvez ser
comida aqui e ali quando ele quisesse.
– Claro que não...
– Sabeta, você sabe quanto eu a respeito, mas se não consegue enxergar o maldito paraíso em que nós caímos por sorte quando o Correntes nos pegou, precisa parar
de tomar essa cerveja agora mesmo.
– Não lamento os confortos nem a formação. Ele foi um provedor impecável. A não ser num aspecto... ele colocou um lado gentil em nós e deixou que fingíssemos que
isso jamais custaria alguma coisa.
– Você acha que deveríamos ter sido mais cruéis? Preparados para nos virarmos uns contra os outros como tubarões diante do sangue, como todas as outras malditas
gangues em volta de nós? Não sei o que deu em você, mas não foi fraqueza que ele colocou em nós. Foi lealdade. E a lealdade é uma tremenda arma.
– Você tem o luxo de pensar assim.
– Ah, não venha com isso outra vez. É a situação do Jean, certo? Direto e simples, lindeza, não ouse ficar aí sentada e me bater com sua inveja hipócrita de uma
amizade que eu mantive e da qual você fugiu.
Sabeta pousou a cerveja e o encarou friamente. Depois, justo quando o coração de Locke começava a se encolher com a expectativa de mais um desentendimento habitual,
o gelo derreteu e ela tentou dar um sorriso. Assobiou, imitando o som de uma flecha voando, e agarrou uma haste imaginária logo acima do coração.
– Desculpe – lamentaram-se os dois, num uníssono ao estilo dos Sanzas, e deram risinhos.
– Você está ruminando alguma coisa – disse Locke, estendendo a mão por cima da mesa até pousar sobre a dela. – Desabafe. Esteja aqui. Seja apenas Sabeta, jantando,
flutuando no Amatel. Deixe o mundo acabar nas bordas desta barca.
– Eu estou ruminando uma coisa.
– Bom, não tenha uma visão tão venenosa sobre a nossa formação. Ande. Nós mentimos para viver; não é saudável mentirmos para nós mesmos.
– O que nós fazemos ALÉM de mentir para nós mesmos, Locke? Nós não deveríamos ser ricos? Não deveríamos estar no controle da nossa vida, livres para ir aonde e quando
quiséssemos, com todos os simplórios honestos do mundo jogando moedas aos nossos pés? Cá estamos, do outro lado do mundo, trabalhando para a porcaria dos Magos-Servidores
só para permanecermos vivos.
– Sabe, Jean me tirou a tapas de várias situações em que eu estava com o humor igual ao seu agora. – Locke tomou um longo gole de cerveja. – Você está olhando o
mundo de um modo tremendamente pessoal. O Correntes nunca falou com você sobre o Princípio Teológico de Ouro?
– O... o quê?
– O único aspecto congruente de todas as religiões conhecidas. A única suposição compartilhada, universal, sobre a condição humana.
– Qual é?
– Ele dizia que a vida se resume a ficar na fila para ter merda jogada na cabeça. Todo mundo tem um lugar na fila, não é possível sair dela, e justo quando você
começa a se parabenizar por ter sobrevivido à sua dose de merda, descobre que a fila, na verdade, é circular.
– Eu tenho idade suficiente para descobrir que isso é perturbadoramente exato.
– Está vendo? É universal. Claro, eu sou um tremendo hipócrita ao dizer para você não levar isso para o lado pessoal. É fácil prescrever remédios para nossas próprias
fraquezas quando elas estão confortavelmente abrigadas em outras pessoas. O que fez você ficar ruminando o passado?
– Não gosto de dançar na corda bamba, nenhuma corda bamba, nem nas minhas. Andei... examinando algumas, acho. Tentando segui-las até onde elas começaram.
– Ah. – Locke remexeu preguiçosamente em seu copo. – Você está tentando reconciliar os pensamentos contraditórios sobre este seu criado. E está se perguntando que
tipo de decisão estaria tomando se não houvesse nossa história compartilhada...
– Maldição! – Sabeta pontuou a exclamação jogando um guardanapo de seda molhado contra ele. – Não faça isso. Parece até que meus pensamentos estão escritos na testa.
– Ora, é justo. Você me lê como se eu fosse um pergaminho.
– Eu tentei tirar você do caminho...
– Tentou muito mal. Muito mal. Admita. Você dificultou a coisa, mas parte de você queria que Jean e eu saíssemos daquele navio e voltássemos para a cidade.
– Não sei. Eu queria ver você, mas queria que você fosse embora. Tentei recusar o jantar. Não pude. Não... não quero que ninguém se torne um hábito para mim, Locke.
Se eu amar alguém, quero que a escolha seja minha... quero que seja a escolha certa.
– Eu nunca senti que tinha uma escolha. Desde as primeiras horas em que conheci você. Lembra de quando eu lhe disse, pela primeira vez? Você quase me jogou do telhado...
– Achei que você merecia. Sabe, é uma opinião à qual eu volto de tempos em tempos, haja um telhado disponível ou não.
– Você é uma mulher difícil, Sabeta. Mas, afinal de contas, as mulheres difíceis são as únicas pelas quais vale a pena se apaixonar.
– Como você saberia? Não parece que você já tenha ido atrás de alguém mais...
– Essa parte é fácil. Eu comecei com a mulher mais difícil que existe, de modo que nunca houve necessidade de procurar mais longe.
– Você está tentando ser sedutor. – Sabeta apertou a mão dele uma vez, depois se afastou. – Eu opto por não me sentir totalmente seduzida, Locke Lamora.
– Não totalmente?
– Não totalmente. Pelo menos por enquanto.
– Bom... – Locke suspirou. A noite talvez não acabasse como ele ousava esperar, mas isso não era motivo para não ser uma boa companhia. – Acho que ainda tenho duas
ambições a manter enquanto estou em Kartane. Sobremesa?
– Que tal voltarmos para a margem?
– Eu estava curioso com relação ao que poderia acontecer quando você sugerisse isso. Você vai sair lançada de uma catapulta? Voar com uma pipa gigante?
– Uma saída espalhafatosa foi divertida; duas seria passar do ponto. Não podemos deixar que esses orientais achem que os camorris são desprovidos de contenção.
O retorno para a margem foi num bote de fundo chato com almofadas de veludo, guiado por um velho admiravelmente silencioso remando na popa. Locke e Sabeta foram
lado a lado, num silêncio de companheirismo, através de águas que reluziam em branco e azul com as lanternas da barca-restaurante. O ar estava cheio de riscos claros,
pulsando como vaga-lumes, acrescentando toques suaves de luz à tela da água.
– Faíscas-soberanas – sussurrou Sabeta. – As borboletas noturnas kartanis. Dizem que elas eclodem ao crepúsculo e morrem com o alvorecer.
– Você e eu também somos nativos da escuridão. Fico feliz porque alguns de nós duramos um pouquinho mais do que isso.
Duas carruagens esperavam na área adjacente ao cais.
– A minha e a sua, presumo – disse Locke.
– Para nos levar de volta às fitas, aos deveres e às carroças de alquimia incendiária largadas junto às portas. – Sabeta o conduziu à primeira carruagem e manteve
a porta aberta. – O cocheiro está com as machadinhas do Jean. Em segurança, para serem entregues após a chegada.
– Obrigado. Então... daqui a três noites? – Locke segurou a mão dela enquanto colocava um dos pés no degrau, e mordeu a parte interna da bochecha para não sorrir
demais quando ela não se afastou. – Ande. Você sabe que quer dizer sim.
– Três noites. Eu mando uma carruagem. Mas dessa vez você deve arranjar um local. Você já percorreu a cidade o suficiente para ter alguma ideia, acho.
– Ah, estou cheio de ideias. – Locke fez uma reverência e beijou a mão dela, depois entrou na carruagem. – Posso lhe sugerir uma última coisa?
– Pode.
Sabeta fechou a porta e olhou-o através da janela gradeada.
– Pare de ser tão dura consigo mesma. Nós somos o que somos; amamos o que amamos. Não precisamos nos justificar a ninguém... nem a nós mesmos. Acho que me lembro
de já ter lhe dito isso.
– Obrigada. – Ela fez algo com a tranca da porta da carruagem. – Nós somos o que somos. Agora escute: meu cocheiro vai deixá-lo sair quando você tiver chegado em
casa. Não se incomode em mexer com a porta; eu mandei que o mecanismo da tranca fosse lacrado pelo lado de dentro.
– O qu... Espere um minuto, o que você está...
– Bom passeio – falou ela, acenando. – O negócio das cobras foi bem bonitinho. Me esforcei para que elas não sofressem nada, porque tinha certeza de que você iria
querer que aquelas criaturas adoráveis fossem devolvidas.
Sabeta bateu duas vezes na lateral do veículo. Um painel no teto da cabine se abriu acima de Locke e, enquanto a carruagem chacoalhava pelas pedras do calçamento,
a chuva de cobras começou.
12
– Pinte o quadro para mim – pediu Locke, de pé na galeria particular do Raízes Profundas dois dias depois.
Desde a volta do jantar numa carruagem cheia de serpentes nem um pouco mortais, porém agitadas, ele fora consumido pelos papéis, examinando mapas e alocando verbas,
verificando e reverificando as listas, sem chance de participar diretamente de mais trabalhos ardilosos.
– Nikoros acabou de descer para pegar os últimos relatórios – respondeu Jean, soltando baforadas de um charuto aromático de folhas syrestis, que custaria um dia
de pagamento de um trabalhador comum. – Mas nossos membros do Konseil aqui estiveram jogando conversa fora em todas as melhores partes da cidade.
– E com sucesso, imagino. – Maldita Superstição Dexa tomou um gole de sua taça de conhaque e gesticulou para o mapa de Kartane usando seu próprio charuto. O ascetismo
era uma virtude pela qual o Raízes Profundas tinha pouca consideração. – Nós arrancamos muitas promessas na Plaza Gandolo e no distrito de Palanta. A maioria, de
pessoas que estavam em cima do muro. E de alguns velhos amigos que trouxemos de volta ao aprisco.
– Compramos de volta, melhor dizendo – retrucou Primeirofilho Epitalus. – Ingratos malditos.
– O que vocês estão oferecendo para firmar a decisão deles? – perguntou Locke.
– Ah, sugestões sobre alívio nos impostos – respondeu Dexa. – Todo mundo adora a ideia de manter um pouquinho a mais do próprio dinheiro.
– O pessoal do Íris Negra pode dar as mesmas sugestões – replicou Locke. – Não pretendo ensinar o serviço de vocês, mas, porra, se algo tão tedioso quanto alívio
nos impostos basta para conseguir votos, essas pessoas não vão se importar com o partido que vai entregar a mercadoria. Nós precisamos de algumas razões pouco práticas
para motivá-los. Razões emocionais. Isso implica espalhar boatos. Quero esfregar sujeira em todo mundo que apoia o Íris Negra nesses distritos. Algo nojento. Na
verdade, vamos evitar jogar lama em alguns lugares, para fazer com que os outros se destaquem mais ainda. O que garantiria a repulsa dos bons eleitores de Kartane?
– Depende de quanta vulgaridade você esteja disposto a sustentar, meu garoto. – Dexa tragou longamente enquanto ponderava. – Terceirofilho Jovindus é o candidato
deles para o distrito de Palanta. Ele tem o que você poderia chamar de política de portas abertas para o conteúdo de seu calção, mas ao mesmo tempo é suficientemente
arrojado para se sair bem com isso.
– Segundafilha Viracois é o nome deles na Plaza Gandolo – completou Epitalus. – Ela é limpa como um reboco novo.
– Humm. – Locke bateu com os nós dos dedos no mapa. – Limpa só significa que podemos pintar o que quisermos nela. Mas não vamos fazer isso diretamente. Mestre Callas
e eu arranjaremos uma equipe. Pessoas amedrontadoras em rédeas curtas. Eles vão visitar algumas pessoas indecisas na Plaza Gandolo e vão fazer ameaças: “Vote em
Viracois e no Íris Negra, caso contrário coisas ruins vão acontecer com suas belas casas, seus lindos jardins, suas carruagens caras...”
– Bom, eu não pretendo ensinar o seu trabalho, mestre Lazari – rebateu Epitalus –, mas não deveríamos amedrontar os eleitores para votar no nosso pessoal?
– Não quero que eles fiquem amedrontados. Quero que fiquem chateados. Ora, Epitalus, como você se sentiria se um bando de capangas de meia-tigela invadissem o seu
saguão e tentassem amedrontá-lo? Os ricos não estão acostumados a serem pressionados. Vão se ressentir bastante. Vão murmurar sobre isso com todos os amigos e vão
liderar a fila para votar contra o Íris Negra, só por raiva.
– Ora, ora, pode dar certo. E que tal o Jovindus?
– Vou pensar em algo adequado para ele também. Deixe a panela ferver um pouco. – Locke bateu na lateral da cabeça. – Cadê o Nikoros?
– Estou indo, senhores, estou indo! – Com a trança preta e comprida balançando atrás, Nikoros subiu correndo a escada da galeria e entregou um maço de papéis a Jean.
– Frescos como o tempo, todos os relatórios que você pediu e algo, ahn, infeliz...
– Infeliz?
Jean folheou os papéis até encontrar um que atraiu sua atenção. As rugas em sua testa se aprofundaram durante a leitura e, ao término, ele puxou Locke de lado.
– O que é?
– O relatório oficial da polícia sobre a prisão de Quintofilho Lucidus, da Isas Merreau.
– O quê?
– Diz que, a partir de uma informação dada pelo legado de Lashane, um grupo de policiais fez uma visita a Lucidus e descobriu cavalos de carruagem lashanis roubados
em seu estábulo particular, identificados devido às marcas...
– Filhos eunucos de malabaristas jeremitas com bosta! – Locke pegou o relatório e o examinou. – Aquela vaca ardilosa. Aquela vaca linda e ardilosa. Simplesmente
não pode deixar que a gente se sinta bem, nem por alguns dias. Ah, olhe, em nome do aspecto diplomático da situação, estão mantendo o Lucidus em prisão solitária
até depois da eleição!
– De fato.
– Alguns pintinhos do Íris Negra devem ter reclamado com a galinha mãe sobre o grande cobrador de dívidas. Lá se foi aquele plano.
– Deveríamos reagir rápido e com força.
– Concordo. – Locke fechou os olhos e respirou fundo várias vezes. – Continue pressionando todo mundo daquela lista de pessoas vulneráveis. Mande cortesãs e garotos
bonitos atrás de todas as pessoas do Íris Negra que tenham olhos para isso. Certifique-se de que os jogadores recebam convites para jogos com apostas altas. Toque
as fraquezas da carne como cordas de harpa, em todas as direções.
– Acho que há dinheiro no banco se coçando para ser gasto. – Jean suspirou.
– Isso mesmo. Vamos gastá-lo até a poeira embaixo do último pedaço de cobre. Depois vamos varrer a poeira e ver o que conseguimos com ela.
– Ah, mais uma coisa, senhores – alertou Nikoros. – Josten disse que há vigias de novo nos telhados ao redor.
– Deixe isso comigo – garantiu Jean. – Nós demos um aviso. Desta vez vou dar serviço para os galenos.
13
Véus frios e cinzentos de garoa e névoa cobriam o bairro quando Jean saiu, uma hora depois da meia-noite, para fazer uma visita aos novos vizinhos. Subiu aos telhados
o mais devagar e cautelosamente possível, usando rotas que notara na excursão anterior. Naquele tempo, não havia bêbados ou amantes em quem tropeçar e ele tinha
confiança de que nunca antes se esgueirara de forma tão silenciosa.
Seu primeiro alvo era óbvio: tão óbvio que Jean o vigiou durante quase quinze minutos, forçando os sentidos para encontrar a emboscada ou armadilha que devia estar
ali. O vigia estava sentado (sentado!) numa cadeira desmontável, de madeira e couro, ao lado de um parapeito, enrolado numa capa e num cobertor. Se a figura não
se mexesse de tempos em tempos, Jean teria jurado que era um boneco.
Uma minúscula fonte de luz ao lado da cadeira revelava diversos equipamentos e confortos, inclusive uma garrafa de vinho, um guarda-sol de seda e várias lunetas
diferentes. Só podia ser uma piada ou uma armadilha... no entanto, não havia mais ninguém por perto. Ele aproveitou a abertura. Foi brincadeira de criança se esgueirar
por trás do vigia sentado e tapar sua boca.
– Grite e eu quebro seus braços – sibilou Jean.
O vigia levou um susto, mas ficou claro num instante que ele era pequeno e fraco, incapaz de uma resistência séria. Perplexo, Jean pegou a fonte de luz, que por
acaso era uma lanterna com a abertura no mínimo. Abriu-a mais um pouco e levantou-a para enxergar o vigia.
Pelos deuses, era uma velha. Uma mulher muito velha, com 70 anos ou mais, e não se tratava de Sabeta com maquiagem. A idosa era genuinamente leve e frágil; o rosto,
um vale de rugas; um dos olhos, cinza como o céu nublado. Mas o outro se fixou nele com vitalidade maliciosa.
– Ah, olá, querido – sussurrou ela enquanto Jean recolhia a mão. – Não vou gritar, prometo. Você me deu um susto, se bem que ela avisou que você apareceria cedo
ou tarde.
– Ela?
– Minha empregadora, querido.
– Então você admite que é...
– Espiã. Ah, sou. – A velha deu um risinho, um som seco e não totalmente saudável. – Uma espiã que espia muito bem. Fico sentadinha aqui, toda confortável, para
ver o que puder. O que, infelizmente, não é muita coisa. É por isso que eu tenho todas essas lunetas adoráveis. E agora, o que vai fazer comigo, querido? Vai me
espancar?
– O que... Não!
– Vai me jogar do telhado? Me amarrar e me deixar aqui durante algumas horas? Arrancar meus dentes a chutes?
– Pelos deuses, mulher, claro que não!
– Ah, foi exatamente isso que ela me disse. – A velha deu um sorriso radiante. – Disse que você não era o tipo de sujeito que levanta a mão para uma velha desamparada.
O que, para ser honesta, foi o que o tempo fez de mim.
Jean baixou a cabeça contra a pedra fria do parapeito e gemeu.
– Ah, qual é, filho, ter escrúpulos não é uma coisa vergonhosa.
– Todos os novos espiões dela são tão... é...
– Velhos como eu? Ah, não há mal em dizer isso. Sim, querido, você está cercado por mulheres velhas. Todas enroladas em cobertores, segurando guarda-sóis. Temos
apartamentos para usar e pessoas que pegam coisas para nós; de agora em diante, nós é que vamos vigiar. A não ser que você nos espanque.
– Ora, a senhora sabe que não farei isso.
– Sei, sim.
– Acho que não posso pedir educadamente que a senhora desça deste telhado e vá embora, não é?
– Ah, deuses, não. Peço desculpas, querido, mas o dinheiro que estou ganhando em troca disto... Bom, não creio que eu possa viver o suficiente para que o dinheiro
volte a ser problema.
– Eu poderia propor um acordo melhor.
– Ah, não. Não, que os deuses o abençoem pela oferta, mas não. Você tem os seus escrúpulos e eu tenho os meus.
– Eu poderia carregá-la até a rua!
– Claro que sim. E então eu começaria a berrar e você teria que lidar com isso de algum modo. E, quando você tivesse terminado, eu voltaria aqui para cima o mais
rápido que minhas juntas pudessem me levar, e como você não vai me apagar com um soco, precisaríamos fazer isso tudo de novo. – Ela pontuou as palavras batendo suavemente
no peito dele com um dedo muito fino. – Tudo de novo. E de novo. E de novo.
– Bom, merda. – Jean desabou contra o parapeito, completamente constrangido. – Não... é... não venha se arrastando atrás de nós para pedir ajuda se pegar um resfriado
ou algo assim.
– Não se preocupe, querido. Garanto que estamos sendo muito bem-tratadas. Assim como a sua estalagem está sendo vigiada.
14
No mesmo instante em que Jean Tannen descobria mulheres velhas nos telhados, Nikoros Via Lupa batia a uma porta iluminada por uma lâmpada num beco nevoento atrás
da Avenida dos Cantores Noturnos, na Isas Vorhala. Sentia uma coceira quente e nervosa na garganta – uma coceira que ele não tinha mais meios para aplacar.
A botica dos Irmãos Faragers disponibilizava a porta do beco como uma cortesia discreta para os que tivessem necessidades em horas incomuns. Isso incluía fregueses
que buscavam substâncias não sancionadas pelas leis de Kartane.
O guarda corpulento atrás da porta, enrolado numa pesada capa preta, era novo para Nikoros; o que sempre o recebera era mais velho e mais magro. Mesmo assim, o sujeito
permitiu que ele entrasse, indicando a escada estreita com um grunhido e deixando Nikoros encontrar seu próprio caminho para a sala dos fundos. Ali, Terceirofilho
Farager estava sentado com as costas encurvadas atrás de um balcão, com fiapos de alguma fumaça floral envolvendo-o como um xale fantasmagórico, preguiçosamente
misturando pós numa tábua de medição.
– Nikoros – disse o alquimista, soturno. – Achei que iria vê-lo cedo ou tarde. O que deseja?
– Você sabe por que estou aqui.
Terceirofilho Farager sempre fora o único fornecedor do pó de Nikoros... Na verdade, ele o levara a se iniciar na substância.
– Musa-de-Fogo – grunhiu Farager, pondo de lado a haste de vidro que estivera usando no trabalho. – Precisa de mais relâmpagos para essas nuvens na sua cabeça, não
é?
– O mesmo de sempre.
Nikoros umedeceu os lábios e tentou ignorar a sensação oca e seca dentro do crânio. Pretendera adiar a compra por mais alguns dias, pretendera obedecer a Lazari
e Callas... mas a ânsia havia crescido. Uma caminhada, de início sem objetivo, o levara até ali, inevitavelmente como água correndo morro abaixo.
– Akkadris – falou Farager. – Bom, se é isso que você quer, vejamos suas moedas.
Nikoros jogou um saco de moedas de prata no balcão. Nem bem o saco havia pousado, algo o acertou dolorosamente no lado esquerdo. Encolhendo-se, ele se virou e descobriu
que o guarda corpulento tinha se esgueirado atrás dele, com um bastão de madeira laqueada na mão. Agora a capa volumosa do sujeito estava aberta, revelando o azul-claro
do casaco de guarda por baixo.
– Isso é desapontador, Via Lupa. Você deveria saber uma ou duas coisas sobre as leis relativas à alquimia negra – disse o guarda com um sorriso. – São dez anos numa
barca penitenciária que estão aqui em cima do balcão. O confisco dos seus bens. A retirada das licenças e da cidadania. O exílio também, se você sobreviver aos dez
anos de prisão.
– Mas certamente – falou Nikoros, com o medo enterrando as garras nas suas entranhas – deve haver algum... é... engano...
– É, e foi você que o cometeu.
– Desculpe – murmurou Farager, desviando o olhar. – Eles me pegaram na semana passada. Não tive escolha. Eu já estaria numa barca se não tivesse concordado em ajudar.
– Ah, deuses, por favor – sussurrou Nikoros.
– Foi um arranjo inteligente – disse uma mulher, aparecendo na porta atrás de Farager. Usava uma capa com capuz escuro, o tipo de coisa que Nikoros poderia ter desprezado
como sendo teatral em qualquer momento antes que o guarda kartani tivesse ameaçado acabar com sua vida. – Terceirofilho Farager fez um acordo que o tirou da forca.
Você pode fazer a mesma coisa.
A mulher empurrou o capuz para trás, revelando cabelos compridos e ruivos. Seus olhos brilhavam enquanto ela começava a explicar a Nikoros o que seria exigido dele.
15
Kartane era a cidade mais desenvolvida e bem cuidada que Locke já vira, e o Vel Verda, o Terraço Verde, era talvez seu distrito mais desenvolvido e bem cuidado.
As mansões e os passeios de lá eram cercados por densos bosques de choupos, oliveiras, árvores de madeira-bruxa, carvalho claro e plantas frondosas, e por trás de
tudo isso erguia-se a sombra meio desmoronada da velha muralha de Kartane. Em qualquer outra cidade terim, ela estaria iluminada, seria vigiada e passaria por manutenções
obsessivas, mas os kartanis não se preocupavam com isso havia mais de três séculos.
– Esta é uma mansão particular, e não um restaurante – disse Sabeta, guiada por Locke por uma escada em caracol feita de ferro preto. – Se você está pensando em
algum tipo de emboscada idiota, mestre Lamora, devo avisar que ficarei seriamente desapontada...
– O lugar está vazio. Uma das minhas damas do Raízes Profundas herdou-o de um primo. Ela não pensou em vendê-lo porque não precisa do dinheiro, mas ficou feliz em
me emprestá-lo por uma noite.
– Uma pilha de cobras vai cair na minha cabeça?
– Rá. Não, e obrigado por isso, por sinal. Fiquei preocupado demais com aquelas amiguinhas enquanto estavam longe de mim. Não, Mestra das Dúvidas, eu a trouxe aqui,
a este canto recluso da cidade, com o abominável objetivo de preparar pessoalmente o seu jantar.
Chegaram ao segundo andar da mansão escura e não decorada e Locke abriu uma porta na parede norte com um floreio dramático. Revelou-se uma sacada de ladrilhos com
balaustrada de mármore, dando para as copas escuras de incontáveis árvores que oscilavam suavemente à brisa de outono. Lanternas com cúpulas de papel semiopaco enchiam
o espaço com uma luz dourada e suave.
– Ooh – fez Sabeta, e permitiu que Locke puxasse uma cadeira junto à minúscula mesa redonda, de madeira-bruxa, no centro da sacada. – Ora, isto é mais promissor.
– Eu não escolhi apenas o cenário. Esta noite sou o chef, o sommelier e o alquimista, num pacote muito conveniente, e, claro, disponível a um custo espantosamente
insignificante, se for adequado à dama...
– Não sei se eu trouxe alguma moeda pequena o bastante para pagar o preço adequado por você.
– Eu pratico a surdez seletiva às frases dolorosas, jovem dama. Mas devo perguntar: estamos sob observação por parte de um dos seus bandos de velhas?
– Não, aqui, não. Por mais que fosse bom ter uma acompanhante, elas estão ocupadas onde estão.
– Elas têm uma tremenda sorte porque foi o Jean que as encontrou. Eu não tenho pruridos quanto a dar um soco nos dentes de velhotas.
– Bom, então porque você mesmo não as subjugou?
– Alguns comportamentos não podem parecer razoáveis.
Locke suspirou.
– Não diga! Você poderia tê-las drogado, claro.
– Ah, sim. Jogar alquimia em cima de velhas com problemas físicos que só os deuses conhecem. Se não posso assassiná-las, não deixaria que isso acontecesse por acidente.
– Esse pensamento me passou pela cabeça – disse Sabeta, sorrindo.
– E como está a sua candidata da Plaza Gandolo? Qual é o nome dela mesmo... Segundafilha Viracois? Foi presa com uma acusação bem séria, pelo que ouvi dizer. Receptação
de mercadorias roubadas? Roubou mercadorias das casas de apoiadores do Raízes Profundas? Que coisa chocante!
– E bem idiota – retrucou Sabeta, fingindo um bocejo profundo. – Os advogados vão resolver a questão em apenas um ou dois dias.
– Bom, sem dúvida você está certa ao não se preocupar. Afinal de contas, você tem um bom número de candidatos substitutos se ela ficar atolada nos tribunais. A mais
bela coleção de zeros à esquerda que já provocou os eleitores à indiferença.
– Ora, Locke – disse ela baixinho –, você e eu continuarmos assim até que os resultados finais sejam contabilizados é como espiar um festival de presentes antes
que eles sejam abertos. Este não é o jogo que eu vim fazer esta noite.
– Adoro ouvir isso! Olhe, então, e fique pasma enquanto eu realizo a parte mais insignificante de um espantoso processo alquímico e reivindico todo o crédito.
Na mesa, havia um balde de prata dentro de outro balde, construído de modo que houvesse um espaço mais ou menos da grossura de um dedo entre as paredes interna e
externa. No balde do centro estava uma garrafa de vinho laranja-claro mergulhada na água.
Locke descobriu duas jarras cobertas de couro. Derramou o conteúdo incolor no canal externo do balde duplo, depois fez malabarismo com as jarras vazias algumas vezes
e fez uma reverência.
Uma pátina de gelo apareceu na superfície externa do balde, adensando-se cada vez mais até formar uma parede de gelo branco. Sopros de vapor claro subiram do canal
externo do balde, e ouviu-se um estalo. Locke contou quinze segundos em silêncio, calçou uma luva de couro e inclinou cuidadosamente o balde para Sabeta. A garrafa
de vinho, nublada pelo frio, estava agora imersa numa mistura de gelo e água.
– Veja! Eu gelei o vinho. Sou o verdadeiro senhor dos elementos. Magos-Servidores por toda a cidade estão entregando suas cartas de demissão.
Sabeta aplaudiu, batendo com um dedo na palma da mão oposta, sem provocar nenhum som. Locke sorriu, tirou a garrafa da água semicongelada, desarrolhou-a e serviu
o vinho em duas taças.
– O primeiro brinde da noite é a você. – Locke pegou sua taça e encostou-a suavemente na dela. – Ao crime, à confusão e a todas as artes insidiosas. À praticante
mais encantadora que elas já tiveram.
– Isto é incômodo: pedir que eu beba em minha própria honra.
– Tenho certeza de que uma consideração própria tão robusta quanto a sua pode suportar facilmente esse esforço.
Beberam; o vinho doce de laranja e gengibre estava frio como um outono nortista. Locke serviu uma segunda taça para os dois.
– É a minha vez – disse Sabeta. – Aos garotinhos estranhos e às garotinhas impacientes. Que seus erros verdadeiros... sejam gentis e esparsos.
– Eu estou errando feio ou você está com o humor melhor do que há três noites? – perguntou Locke enquanto terminava a segunda taça.
– Foi um tremendo humor, não foi?
– Você deduziu alguma coisa?
– Só que eu não encontraria respostas verdadeiras numa noite mal-humorada. Além disso, colocar você numa armadilha ricamente merecida sempre me anima.
– Talvez você veja aquelas cobras de novo, senhora, se continuar contando vantagem desse jeito. Agora, acredito que lhe prometi um jantar.
Num dos lados da sacada, havia uma comprida mesa de carvalho e um braseiro aceso, onde Locke jogou mais lascas de madeira aromática, remexendo-as. Ficando agradavelmente
bêbado enquanto o vinho subia pelo estômago vazio, examinou a pilha de ingredientes e utensílios que tinha arrumado antes. Houve uma batida no seu ombro.
– Ora, não é assim que se faz – disse Sabeta.
Ela havia tirado a jaqueta de veludo preto, revelando uma túnica de seda branca e uma echarpe amarrada frouxamente, pouco mais escura do que o cabelo.
– Eu ainda nem comecei a cozinhar!
– No lugar de onde viemos, não cozinhávamos um para o outro, lembra? Cozinhávamos juntos.
– Bom...
– Vejamos que tipo de bagunça você tem aqui.
Sabeta lhe deu uma leve trombada com o quadril. Juntos, examinaram os componentes da refeição que ele havia planejado: funcho, cebolas, laranjas-de-sangue cortadas,
azeitonas-brancas, amêndoas e avelãs, um frango que ele tinha depenado e temperado, e óleos variados suficientes para fritar qualquer coisa menor do que um cavalo.
– Que estranho – comentou ela. – Parece que você juntou algumas das minhas coisas prediletas.
– Minha vida é assombrada por coincidências loucas.
– Acho que eu deveria admirar sua constância num aspecto, Locke Lamora. Todos esses anos e você ainda se esforça tremendamente para dormir com uma garota ruiva.
– É? – O sorriso dele sumiu, junto com parte da capacidade de flutuar induzida pelo vinho. Estendeu a mão e tocou uma mecha solta do cabelo dela, cor de cobre queimado.
– Sabe, se você se ofende com essa ideia, tem um modo infernalmente estranho de demonstrar.
– “À confusão e a todas as artes insidiosas” – disse ela, desviando os olhos.
– Você deixou mesmo a cor original só para me desequilibrar? Tornar mais fácil jogar comigo?
– Não. Não totalmente.
– Não totalmente. – Locke a encarou, tentando forçar os músculos do rosto, em geral tão leais e flexíveis, a se torcerem até uma paródia de sorriso. – Sabe, odeio
o modo como um de nós consegue dizer uma coisa... Nós nos divertimos por não sei quanto tempo, mas basta uma palavra errada e, de repente, parece que nem estamos
mais na mesma sala.
– “Nós” é um modo educado de dizer “eu”, não é?
– Só desta vez, Sabeta, me escute. Você sabe o que eu quero. Minhas cartas estão na mesa e sempre estiveram. Eu sou fissurado? Sim. Totalmente. Lamento isso? Não.
Estou aqui, com minhas intenções claras como o sol nascente, esperando que você se convença de uma coisa ou de outra. E vou esperar isso. Vou esperar até ficar velho,
encurvado e precisar de ajuda para soletrar meu próprio nome. Mas você sabe: se eu tivesse o luxo de algum respeito próprio com relação a você, ficaria insultado
com a ideia de que o grande fim do jogo seria convencê-la a abrir as pernas.
– Desculpe. Eu sei. Sei que você quer mais do que isso e que, apesar de todos os seus defeitos, você dá mais...
– Está certíssima. Quero dizer, quem sabe, talvez nós pudéssemos dormir juntos duas vezes. – Locke se empertigou, estufou o peito e pôs a língua para fora. – Ambições
ilimitadas, mulher! Ilimitadas!
– Ah, seu canalha! – Sabeta lhe deu um soco, mas foi o tipo de soco dado com um sorriso caloroso. – Então faz... bem, quanto tempo faz, para você? Desde, você sabe...
– Você sabe a resposta. Pense no dia em que você foi embora. Recue duas noites, e aí está.
– Nem uma vez?
– Acho que é ridículo pra caralho, não é? Mas não. Eu tentei. Tentei arranjar ajuda. Uma das principais residentes do Lis Dourado. Por acaso, uma ruiva não é uma
ruiva se ela não for, sabe, duas vezes mais inteligente do que eu e três vezes mais irritante.
– Três vezes mais inteligente. Com metade da irritação. E... Sinto muito.
– Não sinta. Não foi tão ruim. – Locke rolou uma cebola sobre a mesa e ela ricocheteou numa jarra de azeite. – Ela era uma amiga, íntima do Correntes e de mim. Sabia
qual era o meu problema e que a resposta não era pressionar. Recebi uma massagem que valeu o preço da entrada.
– Acho que eu deveria dizer... Comigo não foi a mesma coisa nos últimos anos. Por vários motivos.
– Sei. – Ele sentiu nós frios se formando nas entranhas, mas lutou contra a sensação. – Não vou mentir: meus sentimentos a seu respeito são tremendamente egoístas.
Não gosto de pensar em você com outra pessoa, mas... eu não estava lá. Você é adulta e não me devia nada. Você esperava que eu ficasse com raiva?
– Esperava.
– Eu poderia ter ficado, antigamente. Talvez a única vantagem real da idade é que a gente tem tempo para levar a cabeça um pouquinho mais para fora da bunda. Eu
não quero me importar, entendeu? Você está aqui agora. Com sorte... espero mesmo que esteja aqui mais tarde. Além disso, parece seguro presumir que você não ficou
caída por algum jovem nobre vadrã com um ou dois castelos de sobra...
– Eu tive algum conforto com isso, uma ou duas vezes. – Sabeta tocou o braço dele, mas não suavemente, como se tivesse medo de que Locke pudesse decidir de repente
estar em outro lugar. – E no resto do tempo foi para esvaziar alguns bolsos. Ou um cofre. Você sabe.
– Sei. – Ele estendeu a mão, meio conscientemente, e começou a mexer em outra cebola, girando-a como um pião. – Na verdade, estou esvaziando um cofre de banco por
sua causa a cada dia que passa.
– Ótimo. Porque nunca fui o que poderiam chamar de fácil, e certamente não sou barata.
Ela segurou o outro braço dele.
– Sabeta, o que...
– Estou tomando uma decisão. Agora você vai parar de brincar com a porra dessa cebola e ver o que acontece se me beijar, ou será que terei de encostar uma espada
no seu pescoço?
– Promete que não vou acordar num navio?
– Se me desapontar, Lamora, eu não faço promessas com relação a onde e quando você vai acordar.
Locke pôs as mãos sob os braços dela, levantou-a do chão e colocou-a na mesa. Rindo, Sabeta enganchou as pernas atrás da cintura dele e puxou-o para perto. Seus
lábios estavam quentes e ainda carregavam o leve sabor de gengibre e laranja; Locke não fez ideia de por quanto tempo se beijaram, braços enganchando o pescoço um
do outro, aliás, perdeu até a noção de que estava de pé.
– Uau – disse Sabeta depois que os dois enfim se separaram com relutância. Em seguida, encostou um dedo nos lábios dele. – E, olhe só, você ainda está consciente.
Você é incomparável quando o assunto é beijo em Kartane.
– Pretendo melhorar ainda mais meu desempenho... Sabeta? Sabeta, o que foi?
Ela havia ficado rígida nos seus braços. Com a cabeça ainda rodando do golpe duplo, de vinho e mulher, virou lentamente para olhar por cima do ombro.
Paciência estava parada ao lado da mesinha redonda, vestindo um manto cor de cornalina com um capuz amplo.
– Ah, qual é – rosnou Locke. – Agora, não. Sem dúvida você tem coisas melhores a fazer do que nos incomodar neste exato momento.
– Quem é a senhora? – perguntou Sabeta, calma e respeitosamente.
– Arquidama Paciência. Você trabalha para o meu rival.
– Paciência – disse Locke –, se isso não for importante, juro pelo Guardião Torto que...
– É importante. Na verdade, é crítico. É hora de conversarmos. Já que não puderam ser dissuadidos dessa tolice, vocês dois têm o direito de saber.
– Nós dois? – indagou Sabeta. – O que temos o direito de saber?
– De onde Locke vem realmente. – Paciência sinalizou para se afastarem da mesa de comida. – E o que Locke realmente é.
i n t e r l ú d i o
Acontecimentos em quartos
1
– Honrado... primo – sibilou Locke. – Eu preciso...
– Regale-me com suas necessidades – disse Boulidazi.
– Ar!
– Ah.
A pressão do ferro contra o pescoço de Locke se aliviou apenas o bastante para permitir uma respiração.
– Não é o que você está pensando – falou ele, ofegante.
– Gennaro!
Sabeta estava junto à porta da sacada e seu tom de voz era suficiente para conter um cavalo empinando. Boulidazi baixou a lâmina.
– Verena, eu... Desculpe, mas o seu comportamento...
– É o seu comportamento que exige explicação, primo!
– Eu estava escutando vocês dois...
– Você estava espreitando feito um ladrão!
– Vocês proclamaram amor um pelo outro! Eu ouvi a discussão!
Tarde demais, Boulidazi pareceu se lembrar de que ainda não havia professado seu interesse para a própria Verena. A consternação se espalhou por seu rosto como tinta
jogada numa tela em branco e Sabeta não negligenciou essa brecha:
– Era um exercício de interpretação, seu pateta! Uma improvisação! E por que isso teria a ver com você, se não fosse?
– Uma... improvisação?
– Eu pedi ao Lucaza para dar continuidade à minha fala inicial e improvisar uma cena! – Ela empurrou o braço de Boulidazi com firmeza para longe do pescoço de Locke.
– Uma cena que você interrompeu! Nós podemos estar vestidos como plebeus, barão Boulidazi, mas você nos superou em falta de modos!
– Mas...
Locke admirou a engenhosidade do ardil de Sabeta, mas talvez ela estivesse indo longe demais. Os dois precisavam de Boulidazi controlado, e não esmagado. Esfregou
o pescoço dolorido.
– Prima Verena. – Ele tossiu. – O que Gennaro quer dizer é que eu lhe contei sobre o meu noivado. Por isso, quando ele escutou o exercício, bom, teve motivo para
suspeitar de alguma falsidade.
– Ele não tinha motivos para pôr a mão em você!
– Prima, seja sensata. Nós falamos disso antes de partirmos. Sabíamos que viver incógnitos iria exigir que abríssemos mão de parte da dignidade de nossa verdadeira
condição.
– É, mas...
– Além disso, não há mais nenhuma testemunha, logo não sinto necessidade de exigir satisfação.
Locke tentou parecer o mais natural e confiante possível, apesar de suspeitar de que Boulidazi consideraria a perspectiva de um duelo com ele uma ameaça física equivalente
a uma ligeira prisão de ventre. Mas a ideia de afastar Verena...
– Parece que cometi um erro. – Boulidazi embainhou a arma. A fria raiva de instantes atrás foi afastada do mesmo modo. – Verena, peço desculpas pelo equívoco. Diga,
por favor, como posso voltar a cair nas suas graças?
Locke piscou diante do pedido unilateral de desculpas e da mudança rápida para modos suaves, lisonjeiros. Ele havia considerado Boulidazi um sujeito sincero e honesto,
até mesmo um pouquinho bobo, mas o esparano obviamente relegava o “nobre” Lucaza ao papel de um instrumento de seus desígnios para com Sabeta. Isso, além de sua
facilidade para se tornar violento, sugeria nuances perigosas.
– Para começar – respondeu Sabeta –, você pode parar com essa coisa de se esgueirar nas sombras. Você é um nobre de Espara e patrono desta companhia. Eu preferiria
vê-lo transitar às claras, de um modo mais condizente com seu sangue.
– É... é claro.
– E se quiser se tornar genuinamente útil, poderia garantir um espaço de ensaios mais adequado para nós. Estou ficando cansada do pátio da estalagem da Sra. Gloriano.
– Onde você preferiria...
– Disseram-me que iríamos usar um teatro chamado Pérola Antiga.
– Ah. Naturalmente. Bom, isso é apenas questão de dar uma pequena gratificação para a ministra de cerimônias da condessa...
– Então cuide dessa gratificação, barão Boulidazi – interrompeu Sabeta, de súbito suavizando a postura e o tom de voz. – Sem dúvida é algo insignificante para você.
Será bom para a companhia ensaiar no palco verdadeiro o quanto antes. Faça isso e eu ficarei feliz em chamá-lo de Gennaro outra vez.
– Considere feito.
Boulidazi fez uma reverência com excesso de formalidade galante, deu um tapinha mecânico no ombro de Locke e se afastou depressa. Seus passos ressoaram no corredor
e a porta do segundo andar da estalagem se fechou com estrondo.
– Essa foi por pouco – sussurrou Locke.
– Nosso patrono está começando a assumir sentimentos de posse com relação aos seus primos nobres. Ele é mais ardiloso do que eu imaginava.
– Meu pescoço concorda. – Com a ameaça de Boulidazi temporariamente aplacada, os pensamentos de Locke retornaram à conversa que o barão havia interrompido. – E,
ah, olha, o que você e eu tivemos...
– Nada – sibilou Sabeta. – Evidentemente, eu estava errada em dizer o que disse, e estava errada em sentir essas coisas, para começo de conversa.
– Besteira! – Mal sentindo a dor no pescoço diante da nova ferida causada pelas palavras dela, Locke ficou chocado ao agarrar o braço dela e puxá-la de volta para
a sacada. – Eu tropecei em alguma coisa. Não sei o que é, mas você me deve uma explicação. Depois de tudo que acabamos de dizer um para o outro, não vou deixar você
me empurrar de lado só porque está tendo um chilique!
– Não estou tendo um chilique!
– Você faz os Sanzas parecerem malditos diplomatas quando age assim. Prefiro correr atrás do Boulidazi e arranjar outra briga com ele do que deixar isso de lado.
O que irritou você?
– Você não pode ser tão ignorante assim... Sabe o que os homens pagam por garotas ruivas em Jerem? Sabe o que eles fazem conosco se formos intocadas? O Aliciador
sabia, e é tão medonho que era demais para a consciência dele. Entendeu? Aquele monstro era capaz de foder uma ratazana morta com a língua se isso rendesse algum
dinheiro, mas vender ruivas era vil demais. Foi ele que me ensinou a manter o cabelo tingido e coberto.
– Ouvi falar dessas coisas, mas nunca, nunca pensei em você...
– Primeiro eles cortam. Direto do sexo da menina. O que eles chamam de doçura, o morro pequeno. Você esteve perto do Calo e do Galdo por tempo suficiente e deve
ter ouvido uma dúzia de nomes para isso. E aí, enquanto o ferimento está jorrando, trazem o velho desgraçado com pau podre, feridas infectadas ou o que quer que
ele queira que seja curado milagrosamente e ele faz o negócio. “Sangue da criança de cabelo cor de sangue”, é como chamam...
– Sabeta...
– E então, ainda que a maior parte do milagre já esteja consumido, trazem os próximos cem homens que queiram usar o buraco sangrento, porque ele continua trazendo
sorte. Na verdade, é uma sorte especial se você a estiver montando quando ela finalmente morrer.
– Deuses.
– É. Que todos passem dez mil anos bebendo merda salgada no inferno mais profundo que existe. – Sabeta se recostou na parede da sacada e olhou os copos de vinho
e os textos largados. – Maldição. Eu estou tendo um chilique.
– Você tem motivo!
Ela deu uma espécie de riso agudo, com nojo de si mesma.
– Como eu iria saber disso tudo na primeira vez que pus os olhos em você? – perguntou Locke. – Eu me lembro daquele primeiro vislumbre como se tivesse acontecido
ontem. Mas não é a única coisa em que eu penso... se isso incomoda tanto você...
– Meu cabelo não me incomoda – replicou ela enfaticamente. – São os canalhas idiotas que me acorrentariam por causa desse absurdo. Eu tive de pensar nisso em todos
os dias da minha vida desde que fui para o Morro das Sombras. Todas as horas que desperdicei olhando meu cabelo num espelho, lambuzando-o com alquimia... Algum dia
terei idade para isso não importar mais. Algum dia, o quanto antes.
– E antes do Morro das Sombras?
– Nada antes do Morro das Sombras importa – disse ela baixinho. – Eu estava protegida. Depois fiquei órfã. Deixe a coisa assim.
– Como você preferir.
Devagar, hesitante, Locke se encostou na parede ao lado dela. As estrelas estavam começando a furar o céu cor de hematoma acima deles e os sussurros familiares da
noite se intensificavam: o zumbido dos insetos, o chacoalhar das carroças, o ruído do jantar, de risos e discussões.
– Desculpe, Locke – falou Sabeta depois de alguns instantes. – É idiota e injusto ficar chateada com você. Eu o insultei.
– De jeito nenhum. – Ele pôs a mão no braço dela e sentiu-se encorajado ao encontrá-la retomando o hábito de não se afastar bruscamente. – Fico feliz porque você
me contou isso. Seus problemas deveriam ser nossos problemas, e suas preocupações deveriam ser nossas preocupações. Você percebe a raridade com que se incomoda em
se explicar?
– Ora, isso é uma tremenda...
– Uma tremenda verdade! Você poderia dar aulas de impenetrabilidade aos próprios Ancestres. Sabe, é meio amedrontador quando você começa a dizer coisas que fazem
sentido.
– Isso pretendia ser um elogio?
– Talvez para nós dois – respondeu Locke.
As mudanças de humor dela, parecidas com as do clima, as breves temporadas de calor seguidas por afastamento e frustração, sua ânsia de controlar tudo na vida com
tamanha precisão e previsão: um comportamento que havia deixado Locke perplexo durante anos e, de repente, ganhava um contexto.
– Honestamente, não me importa a cor do seu cabelo, contanto que você esteja em algum lugar embaixo dele.
– Você me perdoa por ser... irracional?
– Você não me perdoou pelo mesmo motivo?
– Nós podemos estar de novo correndo sério risco de um entendimento feliz – disse ela, e o modo como o sorriso chegou aos seus olhos fez a pulsação de Locke acelerar.
De súbito, os dois pareciam competir para ver quem poderia levar os lábios mais para perto dos lábios do outro sem parecer que faziam isso...
O som de passos rápidos e despreocupados ecoou na passagem e os dois saltaram, afastando-se instintivamente. A porta da passagem se abriu com estrondo e Alondo Razi
saiu, suando, com as bochechas vermelhas.
– Alondo – disse Sabeta com doçura obviamente exagerada –, você se consideraria em paz com os deuses?
– Desculpe – lamentou-se ele, ofegante, com a voz engrolada. – Não queria atrapalhar vocês, mas não consigo achar o Jovanno. São os irmãos Asinos. Precisam de ajuda...
– Não diga que eles começaram uma briga – cortou Locke, esforçando-se para banir a súbita imagem mental de um Sanza insultando lorde Boulidazi e todas as interseções
de carne e aço que poderiam resultar.
– Não, deuses, não! Sylvanus apostou que eles não conseguiriam beber o Canalha de Cinzas. Ninguém consegue beber o Canalha de Cinzas. Então eles tentaram e levaram
o que mereciam. Rá!
Locke agarrou Alondo pelo colarinho suado e se esqueceu brevemente de que o esparano tinha meia década de crescimento a mais do que ele.
– Razi – rosnou ele –, que diabo maldito é um Canalha de Cinzas?
– Venha – disse o jovem ator instável. – É melhor vocês verem pessoalmente.
Locke e Sabeta o acompanharam até o salão da estalagem, onde encontraram a companhia e os bebedores de cerveja noturnos mais espalhados ainda do que o usual. Calo
e Galdo estavam caídos de lado, artisticamente simétricos, no meio de uma poça vermelho-escura escorregadia. O cheiro no ar era algo entre pelo molhado de animal
e uma câmara de tortura não lavada, mas todos os espectadores não-Sanzas morriam de rir. A Sra. Gloriano era a única exceção.
– Eu disse para levar isso para o pátio! Idiotas! Bebês terins rosados! – Ela notou Locke e Sabeta e os envolveu na carranca. – Que tipo de idiota experimenta o
Canalha de Cinzas num lugar fechado?
– De que diabo vocês estão falando? – perguntou Locke.
Ele se ajoelhou ao lado de Calo. Os gêmeos estavam vivos, mas chapados pela bebida, e claramente haviam perdido uma luta contra aqueles dois potentes antagonistas:
o vômito e a gravidade.
– O Canalha de Cinzas – disse Jasmer, encostado num Sylvanus quase em coma – é aquela escarradeira medonha.
Locke olhou para onde Jasmer apontava e viu uma barrica cor de alcatrão, com cerca de 60 centímetros de comprimento, caída de lado no chão. A coisa que se derramava
dela parecia cinzas de fogueira de acampamento após uma chuva forte.
– É um antigo ritual da casa. – Jasmer abriu um sorriso malicioso.
– Realizado no pátio! – berrou a estalajadeira.
– Verdade. Mas o essencial, caro Lucaza, é que o Canalha recolhe cinza de tabaco e cuspe durante semanas, quando as pessoas se lembram de não usar o chão. Nós testamos
os cabeças de picles, como os seus amigos aqui, desafiando-os a beber do Canalha de Cinzas, o que significa que o enchemos até a borda com um horroroso vinho de
junípero que a Sra. Gloriano importa diretamente do inferno. Nós mexemos bem a bebida e fizemos eles tomarem a mistura.
– Que coisa idiota – comentou Sabeta, verificando se Galdo ainda tinha pulsação.
– Completamente idiota. – Jasmer riu. – Ninguém na história da companhia tomou o Canalha de Cinzas sem vomitar na mesma hora. E vejam só, o Canalha é vitorioso outra
vez!
– Jasmer – falou Sabeta, baixando a voz –, não quero ser chata, mas nós precisamos desses dois livres do veneno se quisermos que eles continuem ensaiando. Na verdade,
precisamos de todo mundo! Vocês, seus idiotas, não conseguem ficar um pouquinho secos...
Sylvanus, apesar de mal parecer consciente da existência do próprio rosto, quanto mais do mundo em volta, soltou um bufo elefantino.
– De ressaca ou não, a companhia sempre sobe ao palco, minha cara – garantiu Jasmer. – Além do mais, isso nem pode ser chamado de excesso, segundo nossos altos padrões.
Seus amigos seguram a bebida como se fossem peneiras, esse é o problema.
– Desculpem incomodar vocês com isso – disse Alondo, deixando-se afundar numa cadeira –, mas precisamos de alguma ajuda para limpar o chão e transportar os Asinos.
Todos estamos chapados demais para ter alguma utilidade, e não conseguimos achar Jenora nem Jovanno... Ei, vocês dois viram o lorde Boulidazi? Ele também esteve
aqui!
– Sabemos disso – respondeu Sabeta. – Sra. Gloriano, precisamos de alguns baldes d’água. Lucaza, é melhor arrastarmos esses dois para o pátio e começarmos a trabalhar.
Eles vão ficar grudados no chão feito cracas se os deixarmos em paz.
– Eu ia agradecer você de novo por me arrancar das garras do Boulidazi – sussurrou Locke –, mas agora acho que vou esperar e ver primeiro como a noite termina.
– Como você acha que eu me sinto? – Ela apertou seu braço e lhe esboçou um sorriso, como um colega viajante pelo deserto compartilhando água preciosa. – Agora pegue
pelos braços ou pelas pernas. Vamos levar este aqui para fora.
– Onde, diabos, está Jovanno? – murmurou Locke.
2
Jean tinha visto Locke subir a escada, levando o odre de vinho numa das mãos, com uma mistura de alívio e irritação. Já passava da hora de Locke e Sabeta se resolverem
ou se jogarem de uma janela alta. A paz de espírito de Jean seria beneficiada nos dois casos.
Fechou os olhos, inclinou a cabeça para trás e deixou a parede fazer o serviço de sustentá-lo por um momento. Que situação ele estava vivendo, quando meramente sentar-se
sozinho e parar de fingir que os hematomas não doíam parecia uma indulgência bastante razoável.
Abriu os olhos de novo e deparou com Jenora, sorrindo para ele, a 60 centímetros de distância.
– Encontrei um rapaz em frangalhos! – exclamou ela. – Deixe-me ajudá-lo a subir para o seu quarto.
– Ah, é, meu quarto?
– Confie em mim. – Ela puxou-o de pé. – Até que o resto da companhia esteja bêbado demais para se mexer, você nunca vai querer ser o primeiro a dormir perto deles.
Só os deuses sabem com que maldades você vai acordar.
Havia uma quentura estranha nas bochechas dele, como o calor provocado por excesso de cerveja. Jenora estava com a mão em sua cintura como se fosse a coisa mais
natural do mundo, e juntos eles saíram rapidamente do salão.
– O que você está escondendo, Jovanno?
Ela fechou a porta do quarto de Locke e Jean sem fazer barulho e, em seguida, pôs os braços nos ombros dele.
– Escondendo?
– Ah, ora... – Os dedos de Jenora começaram a trabalhar nos nós entre as omoplatas dele. – Você lê, escreve e calcula, mas os escribas não ganham músculos como esses
levantando penas. Sei que você fala vadrã, além de terim. Você sabe usar agulha e linha. Lutou com um homem adulto até um impasse... e não era um homem qualquer,
mas o Bert, que é um tremendo lutador.
– Eu tive uma formação... é... estranha – respondeu Jean, sentindo a tensão mental se afrouxar tão agradavelmente quanto os músculos sob os cuidados de Jenora.
– Vocês, camorris, são todos estranhos. E têm uma formação estranha.
– Não é nada sinistro. Nós só estamos...
– Visitando os pobres, é? Não é o que dizem quando alguém se veste mal e finge estar abaixo do próprio status?
– Jenora! – Jean se virou, agarrou as mãos dela e parou com a massagem. Sua consciência aplacada reagiu de má vontade à ocasião. Se ela os estivesse xeretando, uma
negativa chapada seria provavelmente inútil. – Olhe, imagine o que quiser, mas por favor acredite... todo mundo vai ficar melhor aceitando as coisas como elas parecem
ser.
– Existe algum perigo na minha curiosidade?
– Só digamos que não há nenhum perigo em não ser curiosa!
– Fique tranquilo. É só uma suposição, Jovanno. Seu primo Lucaza, bem, parece meio surpreso sempre que nota que o mundo não gira ao redor dele. E Verena não é nenhuma
criada de cozinha, sabe? Modos, dicção, conhecimento, postura. E há calos de espadachim nestas suas mãos. – Ela passou os dedos levemente pelas palmas das mãos dele
e a sensação fez o sangue de Jean correr quente em mais de um lugar. – Os deuses montaram vocês todos usando partes estranhas. Há uma história a ser contada.
– Não há. São muitas confianças que eu estaria quebrando... Jenora, por favor.
– Certo – disse ela, tranquilizando-o. – Posso viver com um pouquinho de mistério. Vamos trabalhar no que aflige você, então.
– No que me aflige... Eu não... Ah, bem, ah...
Jenora enfiou as mãos embaixo da túnica dele e subiu-as por suas costas, onde começaram gentilmente, mas com firmeza, a colocar seus músculos doloridos numa ordem
semelhante à correta. Isso teve o efeito natural de aproximá-los; os seios dela estavam quentes contra o peito dele e os lábios estavam separados num meio sorriso
logo diante do nariz dele.
– Heh. – Ela soprou de brincadeira nos ópticos dele, embaçando-os. – Você não tem medo de mulheres mais velhas e mais altas, não é?
– Eu, ah, não sei de fato do que deveria sentir medo.
– É? Então você é de uma safra que ainda não foi provada, humm?
– Jenora, não estou acostumado... Sem dúvida você pode ver que eu não penso em nós como, ah, você sabe...
– Sabe do que eu não gosto, Jovanno? – Ela brincou com a fina linha de pelos que descia pela barriga dele. – De homens idiotas, de homens fracos, de homens iletrados.
Homens que não sabem a diferença entre um texto de teatro e uma pilha de papel para acender o fogo.
Os lábios se juntaram e, enquanto os dois se beijavam, ela guiou lentamente uma das mãos dele até pousá-la em cima de um seio. Apertou pelos dois, pressionando os
dedos dele, e Jean sentiu sua percepção do mundo se estreitando até o delicioso corredor de calor que parecia crescer entre eles.
– O Lucaza – sussurrou. – Ele pode...
– Tenho a sensação de que seus amigos vão ficar lá em cima no telhado por muito tempo – murmurou ela. – Você não acha?
Logo, por algum processo que estava entre a prestidigitação e a luta, as roupas foram arrancadas e eles caíram na cama. Jean mal podia dizer onde terminava a pele
clara e começava a escura. Estava enrolado no gosto, no cheiro e no calor dela, o cabelo cor de fumaça caindo ao redor dele como uma coberta provocadora. Jenora
parecia muito à vontade assumindo a liderança, ficando em cima dele, alternadamente diminuindo e acelerando o ritmo da cópula. Logo ele chegou ao limite de sua resistência
destreinada e, com uma erupção jubilosa, dolorida, havia um mistério a menos na vida de Jean.
Empolgado, exausto e agradavelmente perplexo, ele se agarrou a ela por algum tempo enquanto os batimentos cardíacos dos dois reduziam do galope para o trote. As
dores de sua luta com Bertrand, o Multidão, pareciam estar centenas de anos no passado.
Jenora encontrou seu casaco entre as roupas espalhadas, tirou um fino cachimbo de madeira e encheu-o com uma mistura de tabaco que tinha um cheiro estranho e temperado
para Jean. Eles cobriram o débil globo alquímico do quarto e compartilharam o cachimbo na penumbra, conversando baixinho sob a luz laranja das brasas.
– Então eu fui mesmo a sua primeira.
– Foi tão óbvio assim? Você saberia se eu não tivesse dito?
– O entusiasmo é o primeiro passo. Depois vem a arte.
– Espero não ter desapontado você.
– Não estou insatisfeita, Jovanno. Diabos, ter um amante novo na dança significa que a gente pode treiná-lo direito. Me dê algumas noites e eu vou colocá-lo em forma,
nem que seja a chicote.
– Os irmãos Asinos... Eles sempre, bom, sempre me convidaram para ir com eles, quando saíam. Para comprar, sabe.
– Não há vergonha nisso. E não há vergonha em não ter feito. Mas aqueles dois são cães de caça, Jovanno. Qualquer mulher pode sentir o cheiro a um quilômetro de
distância. Às vezes uma corrida com os cães é exatamente o que a gente quer, mas no fim eles sempre rolam no esterco e cagam no chão da gente.
– Ah, eles têm um lado amável. Que se manifesta uma vez por mês, quando a primeira lua está cheia. São como lobisomens ao avesso.
– Bom, quando eu levo alguém para a cama, prefiro cérebro e bagos em proporção igual.
– Gosto disso. Ei, há um... Desculpe, entre as suas pernas, será que nós...
– Ah. Meu aprendiz, permita-me apresentar-lhe o conceito do lugar molhado.
– Isso é desconfortável?
– Bom, não é o que eu chamaria de ideal. Ei, o que você...
Com um excesso entusiasmado de agarramentos e risadinhas, ele usou de força para trocarem de posição. Em alguns instantes, a empurrara para o lado seco da cama e
ocupara o lugar dela.
– Mmmm. Jovanno, você tem um lado galante. Outro cachimbo?
– Sem dúvida.
Estavam acabando de acender cuidadosamente o segundo cachimbo quando a porta se abriu com estrondo.
– Jovanno! – gritou Locke. – São os Asinos, você não acreditaria no que eles ah meus deuses puta merda!
Ficou olhando por um ou dois segundos, depois girou de cara para o corredor.
– Desculpe. Sinto muito, eu não sabia...
– Os gêmeos idiotas arranjaram encrenca? – perguntou Jean.
– Não – respondeu Locke, com uma pressa não muito plausível. – Não, não, não. Na verdade não é nem um pouco importante. Nós resolvemos tudo. Você, é, você só...
Diabos, eu posso dormir no salão, esqueçam que eu existo. Desculpe. Tenham, ahn, uma boa noite!
– Estamos tendo – comentou Jenora, exalando calmamente um fiapo de fumaça.
– Fantástico! Ótimo! Excelente! Já... estou indo!
– Ele desceu do telhado muito antes do que eu tinha imaginado – disse Jenora assim que a porta se fechou de novo.
– É. – Jean franziu a testa. – Deve ter acontecido alguma coisa. O que quer que os Asinos tenham feito...
– Seus amigos... Eles procuram você para resolver as coisas quando há encrenca, não é?
– Bom, esse é um modo bem lisonjeiro de dizer, mas...
– Deixe que eles se virem sozinhos por uma noite – sussurrou ela. – Agora vamos ter privacidade. Se Verena quiser dar um jeito no Lucaza, pode levá-lo para o meu
quarto.
– Pode. Pode mesmo. Então, é, está cedo demais para começar a ouvir falar sobre essa tal arte que você mencionou?
3
– Longo verão do Trono Terim – gritou Calo, os braços abertos para abarcar o pátio da estalagem –, tempo certo para construir e cultivar, enquanto céu e terra são
generosos! Esses anos, para o príncipe Aurin, estão sem cultivo como um campo, arado mas não semeado com valooooorrrrrrgh...
Calo tombou de joelhos e terminou o que fora uma declamação boa e vigorosa vomitando. Locke, olhando da sombra de uma parede, pôs as mãos na testa e gemeu.
– Deuses do céu – disse Moncraine. – Já vi passarinhos com mais força na goela do que vocês, camorris. Basta uma dança com o Canalha de Cinzas e você está representando
como se tivesse sido morto nas guerras. Substituto!
Galdo, também com a pele esverdeada, parecia pela primeira vez desinteressado em zombar do desconforto de Calo. Avançou e pôs as mãos nos ombros do irmão.
– Posso fazer... estou bem... – garantiu Calo, ofegante. Em seguida, cuspiu e se levantou cambaleando.
– O diabo é que está, seu idiota – falou Galdo. – Tenho uma ideia. Vamos fazer juntos.
– Como assim?
– Vamos jogar de um para o outro. – Galdo encarou Moncraine e falou com o tom e o volume exato do irmão gêmeo antes do tropeço: – Espadas sem uso pendem em bainhas
intactas, e, como o sol em sua generosidade, a corte imperial distribui grandeza pelo mundo.
– Doce verão do Trono Terim – continuou Calo, interrompendo facilmente, dominando os joelhos bambos e afastando à força a rouquidão da garganta. – Pessoas que vivem
como mendigos do lado de dentro desprezariam viver como duques fora dele, tal é o império, e alguns usam esplendor roubado com a dignidade de reis nascidos por direito!
Abaixo das ruas, os vadios, os trapaceiros, os vagabundos da fortuna fazem ousados negócios em reinos de catacumbas, desconhecidos da honesta luz do dia.
– Se os ladrões fingem importância – prosseguiu Galdo – e se reúnem em regimentos empolgados, desafiando a lei legítima e a coroa, isso não combina com o espírito
da era? Tão altas erguem-se as marés da fortuna sob o Trono Terim que seus fora da lei pagam tributo com igual insolência!
– Insolentes equivalentes são vocês, Asinos! – vociferou Moncraine. – Espere, todo mundo, espere. Isso tudo é muito bonito. Por que não abandonamos totalmente a
ideia de papéis? Podemos ficar no palco como um grupo e entoar as falas de todos os personagens. Diabos, podemos até dar as mãos para manter o espírito animado enquanto
chovem pedras e legumes.
– Eu gostei bastante – opinou Chantal.
– Como se eu desse a...
– Ela está certa, Moncraine. – Sylvanus se remexeu, emergindo da sombra tanto quanto de seu torpor matinal. – Com que frequência você vê gêmeos no palco? Nós deveríamos
aproveitar de algum modo. Temos pouquíssimo espetáculo, como está.
– Quando quisermos espetáculo, Andrassus, vou começar a andar por aí sem os calções.
– Syresti inútil e metido a besta! Pense só: gêmeos fazendo o coro. Algo jamais visto antes, para que todos saibam que não estão assistindo à Reprise Tediosa do
Velho Pai Chato e Moleirão e, sim, algo verdadeiramente da Companhia Moncraine!
– Na verdade, agora é Companhia Moncraine-Boulidazi – emendou Chantal.
– A qualquer momento em que você queira voltar a ser um par de peitos ambulantes, vira-casaca, pode voltar direto para o Basanti e perguntar quantos papéis de criada
fogosa ainda estão disponíveis. – Locke notou que os ombros de Moncraine relaxaram apesar do tom de voz. Por mais que o empresário quisesse ridicularizar Sylvanus,
ocasionalmente o velho bêbado tinha influência sobre ele. – Ah, deuses, depois da terceira ou quarta fila de imbecis, quem vai saber que eles são gêmeos, afinal?
– É o que eles fazem com a voz – insistiu Alondo. – Você tem de admitir que é bom, quando eles não estão jogando vômito para todo canto.
– Precisamos fazer alguma coisa com o cabelo deles – sugeriu Moncraine.
– Colar uma peruca no careca – disse Calo.
– Segurem o almofadinha e raspem a cabeça dele – murmurou Galdo.
– Chapéus – propôs Sabeta num tom educadamente autoritário. – Os dois podem usar chapéus. É uma questão de figurino.
– E isso exigiria a atenção dos figurinistas – trovejou Moncraine. – Tenho certeza de que eles estão em algum lugar por aí cuidando de roupas, nesse mesmo instante,
mas a questão é se eles estão colocando ou tirando.
– Moncraine!
Um atarracado terim de meia-idade entrou no pátio. Ele não tinha propriamente queixo e o cabelo comprido era tão malcuidado que parecia que um falcão marrom havia
se empoleirado na sua nuca e se agarrado ali até morrer.
– Jasmer, seu sacana sortudo, não acreditei quando disseram que você estava solto. Quantos paus você precisou lamber para que eles tirassem as correntes?
– Mestre Calabazi – disse Moncraine –, você sabe que um cavalheiro jamais faz seu próprio trabalho sujo. Simplesmente fiz um monte de promessas em nome das suas
filhas. Ou seriam seus filhos? Os deuses sabem que eu não consigo identificar quem é o quê.
– Rá! Se você é um cavalheiro, eu peido incenso. Mas você saiu e agora alguém conjurou uma fantasia louca sobre você se apresentar no Pérola. Esse é o espetáculo?
Um pequenininho?
– O que importa não é o tamanho e, sim, a aplicação dele – retrucou Moncraine, perdendo parte do bom humor forçado. – Por que está me incomodando?
– Bom, você sabe do que eu e meus rapazes precisamos.
– Fale com Jenora; ela é a mulher de negócios.
– Bom, achei que, com aquele novo dono chique que você arranjou, você poderia dar uma garantia...
– Patrono, Calabazi. Nós temos um patrono nobre, e não um novo dono. E você não receberia uma garantia nem se o próprio imperador Salerius saísse do túmulo para
assistir à peça. Você vai ser pago quando o resto de nós também for, nas noites de apresentação.
– É só que há uma certa... ah... incerteza na sua situação e nós gostaríamos de algo mais firme do que uma declaração sincera de que vamos trabalhar...
– Eu fiquei preso dois dias, seu idiota; não respirei fumaça de Pedra-Fantasma nem perdi a cabeça. Se você quer o trabalho, pode ter os termos de sempre, e se não
quiser, não vou ficar acordado à noite imaginando onde vou conseguir três ou quatro idiotas para limpar merda!
Os dois se aproximaram e continuaram discutindo em tom baixo, passional. Locke sinalizou para Alondo, que estava ali perto, e sussurrou:
– O que é isso?
– São os homens das fossas, Lucaza. – Alondo bocejou. – A condessa pode ficar satisfeita em entregar o Pérola Antiga para as apresentações, mas não paga para manter
o lugar limpo. Nós pagamos. Isso implica fossas vazias para que centenas de pessoas mijem toda noite, cuidadas por macacos como o Calabazi.
– Essa coisa toda é mais complicada do que eu imaginava.
– Verdade. E Jasmer odeia o lado comercial do negócio, sabe? Ele negocia como se estivesse tendo os bagos raspados.
Do outro lado do pátio, Jasmer interrompeu a conversa com Calabazi erguendo as palmas das mãos diante do rosto do feio limpador de fossas e dando-lhe as costas.
– Mestre Moncraine! – gritou outro recém-chegado, vindo da direção do estábulo.
Moncraine girou.
– Pela paz dos deuses, seu idiota da porra, não vê que estou trabalhando... Ah, deuses, barão Boulidazi, não o reconheci! O senhor... é... veio fantasiado de novo.
– Rá! Eu queria combinar com o espírito do nosso empreendimento! – De novo vestido como plebeu, Boulidazi usava um chapéu de aba larga sujo que escondia parcialmente
suas feições. – E, claro, me intrometer o mínimo possível nos seus negócios.
– Claro – disse Moncraine, e Locke teve certeza de que ouviu dentes rilhando, mesmo do outro lado do pátio.
– E quem é esse aí? Alguém importante?
– Ahn, eu sou Paza Calabazi, ah, senhor. Eu cuido...
– Não, isso não é importante ou você saberia que deveria dizer “milorde”. Vá ser insignificante em outro lugar.
– Ahn... sim, milorde.
Locke franziu a testa ao ver Calabazi praticamente se arrastar para longe. Sua impressão original sobre Boulidazi pareceu mais ingênua do que nunca.
– Agora, Moncraine. – O jovem nobre deu um tapa firme nas costas do empresário. – Sei que este pátio tem um certo encanto sem refinamento, mas arranjei um ambiente
melhor.
– O Pérola Antiga? – Moncraine fez um esforço visível para engolir o ressentimento. – É nosso, milorde?
– Podemos ensaiar lá a partir de amanhã e teremos dois dias de apresentação. A ministra de cerimônias é amiga da minha família. Até vou colocar um homem para garantir
que vocês não sejam incomodados pelos Paza Calabazis do mundo.
– Isso é... bom, acho que é muito generoso, lorde patrono. Obrigado.
– Não há de quê. O interesse é meu, não é? Bom, qual é a cena?
– Não há cena, milorde. Nós, é... precisamos de uma pausa, acho. Discutir com Calabazi...
– Bobagem. Você não é homem de ser domado por uma simples discussão, Moncraine. – Boulidazi fez a mímica de um punho se chocando no próprio queixo, gesto que deixou
Moncraine obviamente desconfortável. – O que vocês estavam ensaiando?
– Nada muito importante...
– A cena, maldição.
– Ahn, seis. Ato um, cena seis. Estávamos resolvendo... resolvendo a situação do coro.
– “Vagabundos da fortuna fazem ousados negócios em reinos de catacumbas, desconhecidos da honesta luz do dia” – declamou Boulidazi. – Gosto dessa parte. Mas isso
quer dizer que Amadine está para aparecer pela primeira vez. Sem dúvida você não vai parar agora.
– Bom, talvez não...
– É. Talvez não. – Boulidazi se acomodou na cadeira onde Moncraine havia descansado ocasionalmente enquanto assistia ao trabalho da manhã. – Srta. Verena, posso
implorar alguns instantes de sua Rainha das Sombras?
– Ora, lorde Boulidazi, sua atenção é sempre muito bem-vinda – respondeu Sabeta com uma perfeita reverência.
Locke juraria ter sentido o sangue coagular no coração e lutou para manter uma fachada de complacência entorpecida.
– Ladrões no lugar para a cena seis! – gritou Moncraine.
Bert correu para o meio do pátio, seguido por Calo e Galdo, que deveriam se juntar aos figurantes para várias cenas de multidão depois de terminar suas falas. Moncraine
prometera contratar um grupo de atores para aumentar a aglomeração, mas não parecia disposto a começar a pagá-los cedo demais no processo de ensaios.
– Saudações, nobres colegas e patifes! Saudações na Corte dos Pés Descalços! – Chantal avançou de seu lado do pátio, os quadris balançando, os braços estendidos,
jogando com a multidão minúscula. – O que há, seus pretendentes esfarrapados, para trazê-los aqui, afastando-os da bebida, dos dados e das atenções calorosas?
– Aliança, bela Pentra – respondeu Bertrand. – Aliança, bela e decaída senhora, pois aquela que reivindica nossa consideração profunda faz com que os confortos pareçam
frias distrações.
– Valedon, você sempre foi um demônio de fala áspera e agora o ar está cheio de seda. O que provocou a mudança? – Chantal tocou no queixo do marido, num gesto brincalhão.
– A minha senhora e sua. A bondade dela aferroa minha consciência. Tenho sido negligente nos meus tributos e devo emendar minhas cortesias.
– Assim como todos nós – completou Calo. – Pentra, deixe-a vir. Ela nos abrigou e acendeu o companheirismo leal, e até uns pobres coitados como nós devemos prestar
obediência.
– Todos somos pobres coitados em nossa corte maltrapilha, portanto ninguém é mais pobre do que os outros.
A voz de Sabeta era régia sem esforço enquanto ela deslizava para o meio da cena, saindo do que seriam as sombras do palco verdadeiro. Nem mesmo a distração de Boulidazi
poderia embotar o prazer de Locke ao assistir Sabeta desaparecer no papel que ela tanto desejara.
– Com a graça do calor da fogueira, sinto-me envergonhado com meu tributo – declamou Calo, ajoelhando-se. – És Amadine, chamada de Rainha Sob as Pedras, ou eu jamais
nasci. Meu presente não merece esse nome diante de tamanha beleza. Empalidece, e com ele empalidece meu orgulho. Imploro uma segunda chance, para roubar uma cortesia
mais digna!
– De fato, a oferenda dele é pequena como uma moda passageira – concordou Bertrand. – Tenha certeza do meu amor, radiante Amadine, e receba meu tributo primeiro.
– Rude Valedon, isto não é uma corrida, com linhas a cruzar antes de todos os outros. Calma. Sem dúvida um momento de espera não fará mal aos seus preparativos.
Bertrand fez uma reverência e deu um passo atrás.
– Sou Amadine, chamada de muitas coisas – disse Sabeta, sinalizando para Calo se levantar. – Não há honra mais digna do que essa, seu presente de amizade. Vejo que
você é novo entre nós.
– Há muito tempo sou ladrão, senhora, mas muitos anos se passaram antes que a gentil fortuna me trouxesse à sua companhia. Ah, deixe-me trocar este ouropel por algo
mais adequado ou ser enforcado de boa vontade por tentar.
– Jamais fale de um mal assim – retrucou Sabeta. – E jamais fale de vergonha, mas dê o que você tem.
Calo fingiu entregar algo, hesitante, e Sabeta fez mímica de segurar a coisa entre o polegar e o indicador.
– Um insignificante anel de prata – zombou Bertrand. – Desgastado como as mãos de um ajudante de cozinha.
– Com mais orgulho aceito um anel insignificante de um homem com bolsos vazios do que riquezas de um homem cuja bolsa permanece pesada. Que coisa boa não poderia
ser cunhada a partir desta cortesia? Ela se tornará pão e vinho, roupas e aço afiado. Endurecerá os tendões de nossa amizade, por isso recebo-o com apreço. Você
é bem-vindo ao nosso bando, irmão.
– Com a vontade dos deuses, jamais vou deixá-lo!
– Com a vontade dos deuses. – Sabeta estendeu a outra mão e Calo beijou-a. Em seguida, ela se virou para Bert. – Agora, Valedon, conheçamos o seu coração. Você passou
alguns meses conosco, mas distante, orgulhoso e solitário.
– Orgulhoso e solitário como tu, astuta Amadine, mas devo admitir meu pobre companheirismo. Eis o remédio! Ah, como esforcei meus talentos para obter um presente
digno!
– Um bracelete – disse Chantal enquanto o marido fingia mostrá-lo com um floreio. – Safiras negras engastadas em ouro.
– Adequado a uma rainha das sombras – completou Bertrand. – Rezo para que agrade. Imploro que o uses, ao menos uma vez, ainda que mais tarde o lances numa pilha
de moedas dignas de um resgate de rei.
– Um grande peso para enfeitar um único pulso. Agradecemos, Valedon; seu caráter obscuro torna-se claro. Como conseguiu esse tesouro?
– Três dias e três noites de esforços vigiando uma casa grandiosa – respondeu Bertrand –, até que vi a chance de roubá-lo.
– Você pode colocá-lo primeiro, para mostrar como funciona?
– Ora, o fecho é simples, graciosa Amadine. Dê-me a mão e eu irei consagrá-la.
– Eu preferiria ver esse tesouro no seu pulso, antes que ele toque o meu. Ou sua profunda consideração ficou rasa?
– Esta beleza não se destina a um braço tão indigno!
– Indigno mesmo.
Com um gesto de Sabeta, Chantal agarrou Bertrand e fingiu segurar uma faca contra seu pescoço.
– Senhoras, por favor, em que eu as ofendi?
– Seu rosto é um pergaminho – respondeu Sabeta –, com a traição escrita claramente. Você tem medo de tocar a joia e o veneno que está na agulha oculta! – Ela fez
mímica de pegar o bracelete e desdobrá-lo para que todos vissem. – Acha que somos parvos, que com esse estratagema infantil poderia tirar minha vida? Meus espiões
me alertaram de sua falsidade.
– Juro que, quando roubei o bracelete, não sabia o que havia dentro!
– Roubou? Será que eu não reconheceria um ladrão através de cada cicatriz e cada calo do ofício? Eu tenho todos eles, Valedon, familiares como filhos. Suas mãos
são macias e seus tendões são frouxos. Este bracelete você recebeu como presente de seus senhores.
Calo e Galdo fizeram a melhor interpretação possível de um alarde indignado na multidão e agarraram Bertrand pelos braços.
– Agora vejo que minha mentira estava condenada antecipadamente – sussurrou ele. – Prendam o bracelete no meu pulso e deixem que a justiça seja feita.
– A dispensa rápida é misericórdia indevida. Você terá seu bracelete de volta, assassino fracassado, após muita reflexão. Amarrem-no! Aqueçam um cadinho e derretam
nele a joia-escorpião. Sim, dourem suas entranhas com o tesouro derretido, depois deixem-no na rua para que seus senhores ponderem.
– Imploro...
O último rogo do infeliz Valedon foi abafado pelo ruído de Calo vomitando outra vez. Bert e Chantal saltaram para trás, evitando sujar os pés, enquanto Galdo tapava
a boca e empalidecia.
– Rá! – gritou Boulidazi. – Rá! Acho que um dos seus gêmeos tem algo do qual se culpar, Moncraine.
– Sinto muito, milorde – gemeu Calo.
– Talvez vocês devessem viver virtuosamente durante alguns dias, amigos. – Boulidazi se levantou e se espreguiçou. – Parabéns, apesar do final súbito. De verdade!
Em especial às damas. Pelos deuses, acho que tenho algo aqui. De fato vou me juntar a vocês no Pérola pelo resto dos ensaios.
A dor súbita entre as têmporas de Locke combinava com a expressão de Moncraine.
4
– Vamos achar uma oportunidade de ficar sozinhos – sussurrou Sabeta mais de uma vez nos dias seguintes, mas essas oportunidades pareciam deliberadamente saltar para
fora do caminho à medida que os ensaios prosseguiam.
O Pérola Antiga era um testamento da generosidade do conde que, morto havia muito tempo, o deixara para a cidade de Espara. Ainda que não fosse sequer uma paródia
da noção de longevidade dos Ancestres, o teatro fora construído para ser usado durante séculos. As paredes e as galerias elevadas eram de mármore branco, agora envelhecido
até um cinza suave, e o palco, construído com madeira de lei laqueada alquimicamente, poderia durar um período igual.
O pátio circular era ao ar livre e, apesar de haver postes de madeira, os toldos que eles deveriam sustentar em si estavam ausentes, não oferecendo abrigo do sol
e da chuva. Segundo Jenora, esse conforto para a plateia do chão, como as fossas sanitárias, era um dos gastos ocultos do teatro “grátis” que a condessa não tinha
interesse em custear.
Não havia como negar que o lugar era muito mais adequado do que o pátio da estalagem. O Pérola tinha dignidade de sobra, até mesmo para os ensaios mais precários,
e o que pareceria uma pantomima idiota a 6 metros de um estábulo era, de alguma forma, enobrecido à sombra das silenciosas galerias de mármore.
Mesmo assim, toda vantagem nova parecia vir acompanhada de uma complicação. Cada dia começava cedo demais, com membros da companhia de ressaca pondo figurinos, adereços
e miudezas inacabados na carroça dos camorris. A caminhada até o Pérola era de 3 quilômetros e, no fim de cada jornada de ensaio, eles precisavam colocar tudo no
veículo e fazer a viagem de volta. Tinham permissão de ensaiar no teatro, mas não de residir lá, e a guarda citadina os expulsaria como vagabundos se demonstrassem
qualquer sinal de que passariam a noite ali. Assim, horas preciosas eram devoradas pelo deslocamento.
Apesar de Locke e Sabeta evitarem os piores excessos, que eram um ritual noturno (a Sra. Gloriano, apesar de toda a alardeada moralidade, parecia incapaz de se recusar
a servir a qualquer bêbado que ainda conseguisse empurrar uma moeda na sua direção), havia pouca liberdade ou tempo disponível na estalagem. Por um lado, havia a
simples pressão do tempo, e o sono era uma mercadoria preciosa depois dos longos ensaios e das caminhadas tediosas. Por outro, havia Boulidazi.
Fiel à sua palavra, o jovem barão se tornou um adereço da companhia, “disfarçado” em roupas comuns, e enquanto Locke ia para cama toda noite mais exausto do que
ficara desde seus meses como trabalhador de fazenda, Boulidazi parecia ter energia equivalente à de dez mulas. De algum modo, correra o boato de que a Companhia
Moncraine voltara à vida com um nobre no coração do grupo, de modo que oportunistas, curiosos e atores desempregados se juntavam à confusão do salão da estalagem
toda noite, distraindo Moncraine.
Mas Boulidazi jamais se distraía. Seus olhos estavam fixos em Sabeta.
5
– Calamaxes, velho conselheiro – disse Sylvanus, agachando-se num banco dobrável, caracterizado como Sua Excelsa Majestade Salerius II, Imperador de Todos os Terins.
– Não se passa um dia luminoso sem que você encontre alguma nuvem para lançar diante do Nosso sol.
– Majestade. – Jasmer esboçou uma reverência, expressando mais tolerância do que humildade. – É sobre filhos que desejo falar. O príncipe Aurin chegou a uma idade
voraz e quer ser empregado.
– Empregado? Ele é herdeiro de Nosso trono, esse é o ofício dele.
– Ele quer distinção, majestade. Uma espada que jamais viu sangue e à espera de ser desembainhada, esse é Aurin.
– Você toma liberdades, declamador de feitiços. Sugere que nascer de sangue real não é suficiente para determinar o mérito dele?
– Perdão, soberano. Por minh’alma, Aurin é um herdeiro digno de uma linhagem digna. Digo apenas que ele anseia por equivaler méritos à herança, como fez seu pai,
e agitar esta corte magnífica com novos triunfos.
– Ele – disse Sylvanus em tom pensativo – e o caro e ambicioso Ferrin.
– Justificada e lealmente ambicioso – falou Jasmer. – Sua Majestade não foi servido, em seu tempo, por amigos e generais?
– E feiticeiros.
– Majestade...
– Bom, não é falha Nossa que os inimigos de antigamente tenham se tornado tão débeis!
– Aqueles inimigos diriam o contrário, majestade. O senhor foi o arquiteto dos sofrimentos deles.
– Ora, ora... Algumas serpentes lisonjeiam, depois picam. Então agora vejamos suas presas.
– Majestade, há em Terim Pel um descontentamento que rói, como cupins nas madeiras de uma casa. A questão dos ladrões.
– Deuses do céu! Não vimos Nós seus feitiços lançados em batalha, e homens ceifados, mortos como grãos na colheita? Não vimos Nós trovões e raios lançados sob sua
vontade? Agora você Nos diz para temermos vagabundos.
– Temer, não, majestade, jamais temer. Mas cuidar, posto que há uma doença se alastrando. Tenho notícias de reuniões em grandes números, de ousadia inconveniente,
de desprezo deliberado por seu trono imperial.
– Todos os ladrões desprezam a lei, caso contrário não seriam ladrões. Por que alardear essa revelação rançosa?
– Majestade, eles fazem sociedade sob a luminosa Terim Pel e falam de um soberano para sua corte falsa!
– Como piada. Nós dignificamos demais esse absurdo com Nossa consideração.
– Majestade, por favor, se o senhor sofre desprezo de vis fingidores, como isso não vai se procriar, através do exemplo, em postos mais elevados? Admito que o senhor
possa rir em particular...
– Você admite?
– Perdão, majestade. Eu sugiro. Aconselho com toda a seriedade. É certo que o senhor pense que essa insolência é trivial, mas é certo, em nome da paz obtida duramente,
que o senhor deve esmagá-la no útero! Para que ela não se espalhe até aqueles cujo espírito está mais próximo do seu.
– Matar a ralé agora ou os cortesãos mais tarde, é o que você diz? Quem, então, seria esse tal soberano dos ladrões e como se tornaram tão temíveis a ponto de seus
instrumentos, feiticeiro, não serem capazes de acabar com eles?
– Uma mulher, majestade, uma mulher de temperamento digno de nota, cujos seguidores chamam de Rainha das Sombras. Ela se guarda bem contra meus servidores mais simples.
Um deles foi morto ontem à noite e deixado numa rua, como alerta e desafio.
– E quanto aos feitiços? – Sylvanus deixou a palavra pairar pesadamente no ar por um momento. – Sob Nosso comando, você não poderia matá-la quando quisesse, rápido
como um vento frio?
– Sob seu comando – respondeu Jasmer, com relutância –, ela poderia morrer neste instante, mas com isso eu assassinaria a oportunidade.
– O que, então, você sugere e aconselha enfaticamente?
– Deixe Aurin e Ferrin serem seus instrumentos, majestade. O rosto deles é pouco conhecido dos fora da lei. Deixe que eles entrem no covil dos ladrões, ganhem a
confiança dessa mulher e executem o julgamento dela.
– A poeira do cadáver de seu ex-agente ainda não se assentou e você colocaria meu filho no lugar dele?
– Paz, majestade. O príncipe Aurin não tem uma habilidade maravilhosa com as armas? Ferrin não tem a força do ferro, como indica seu nome? Eu sou a própria alma
da prudência com relação à sua prole e colocaria minhas artes e meu olhar sobre seu filho, de longe, ainda que ele não soubesse disso. Ele não poderia ficar mais
seguro em seus próprios aposentos... e faria muito de bom.
– Estranho conceito, tornar assassino o filho de um imperador.
– Fazer com que seja sabido que o próximo leão tem algo de raposa, que combina sutileza com força e ousa dar uma reação pessoal ao insulto pessoal!
– Aurin deseja isso? – perguntou Sylvanus, baixinho.
– Ele arde por ser testado, majestade. Os deuses generosos colocaram um desafio diante de nós. Eu o faria aceitar.
– Por muito tempo você Nos serve, o melhor e mais brilhante de Nossos magos, inteligência afiada e conselho rápido. Mas se isso der errado para Aurin, saiba com
certeza que você compartilhará a perdição dele, nem que sejam necessários todos os magos do império para atá-lo.
– Soberano, se meu conselho se desviasse tão terrivelmente do objetivo, eu não desejaria viver.
– Então faça os preparativos para observar com feitiços vigilantes e veremos isso ser feito. Traga Aurin e Ferrin diante de Nós.
Locke se esgueirou da sombra das colunas do palco para o calor. Sombras cobriam as galerias ocidentais do Pérola como máscaras, mas o centro do palco estava à mercê
do sol do fim da tarde. Alondo veio do lado oposto, encontrou-o diante de Jasmer e Sylvanus, e juntos eles deram prosseguimento ao ato.
Cena por cena, dia após dia, o drama se desenrolava aos arrancos, como se deuses caprichosos brincassem com a vida de Salerius II e sua corte. Saltando à frente,
revertendo o tempo, mudando de papéis e lugares, exigindo repetição de certos momentos até que cada participante estivesse pronto para dar socos, Jasmer Moncraine
conjurou o esboço da história e depois começou a dar o acabamento.
Para Locke, os dias se tornavam uma frustração rítmica à medida que ele e Sabeta eram arrebanhados por Boulidazi, à medida que se aplicava diligentemente para se
tornar um personagem que ele não queria representar. Aquilo não era diferente de vivenciar um papel como Correntes havia ensinado e, em outras circunstâncias, poderia
ter sido fascinante. Mas, cada vez que olhava Alondo tomar Sabeta pela mão ou pelo ombro, ou ensaiar beijos e abraços no palco, aprendia de novo como o tempo era
capaz de se arrastar vagaroso quando se lidava com algum sofrimento.
– Você não parece bem, Lucaza – comentou Boulidazi baixinho enquanto a companhia caminhava para casa num fim de tarde poeirento.
Vivendo com humildade ou não, Boulidazi e seus homens jamais chegavam ao ponto de dispensar cavalos e, naquele instante, o barão apeou, puxando o animal pelas rédeas
para andar ao lado de Locke.
– Você tropeçou em algumas falas que deveria saber de cor.
– Não... não são as falas, milorde. – Locke estava tão chateado, tão cansado dos ensaios e do céu esparano sem nuvens, que começou a se abrir com Boulidazi antes
de conseguir se conter: – Eu esperava ser Aurin. – Resolveu esticar a confidência com uma pequena mentira, para que Boulidazi não suspeitasse de que desejava mais
proximidade com Sabeta. – Eu... ah... li e estudei Aurin na viagem para cá. Ensaiei. Ele tem todas as melhores falas. Eu simplesmente... não me sinto tão à vontade
como Ferrin.
– Você e eu compartilhamos de certos gostos – disse Boulidazi, dando aquele seu sorriso insolente.
Só um que importa, pensou Locke, e lutou contra uma nova visão de uma carreira como assassino de aristocratas.
– Também não acho que você seja um bom Ferrin – continuou Boulidazi. – Ele deveria ser mais velho do que Aurin, maior, o mais confiante dos dois. Aquele tal de Alondo
é mais adequado ao papel, se você me desculpa a reflexão. Tenho certeza de que, se lhe fosse oferecida a escolha, ele preferiria ter seu nascimento e seu dinheiro
do que mais alguns centímetros de altura e de músculos, não é?
– Certamente – murmurou Locke.
– Anime-se, nobre primo. Levante a cabeça. – Boulidazi olhou casualmente ao redor, para garantir que ninguém importante estava ouvindo. – A sorte é mutável. Olhe
só o seu serviçal, o Jovanno, hein? Fisgou aquela bela costureira de pele escura, os deuses sabem como. Não é o tipo a quem você gostaria de dar seu sobrenome, mas
é apertada e úmida onde importa. E ela deve adorar a coisa, com toda a certeza.
– Jovanno tem algumas qualidades que não são evidentes ao olhar – disse Locke, forçando um tom de fanfarronice.
– Carrega uma espada de verdade, é? Esses sujeitos bem nutridos costumam estufar os calções, pelo que ouvi dizer. Bom, de qualquer modo... como vai nossa Verena?
– Você não pode ter deixado de vê-la no palco.
De fato, ela estava se saindo bem. Dentre os Nobres Vigaristas, era quem tinha mais facilidade para o teatro, de longe a mais agradável aos olhos e às sensibilidades
românticas. Até mesmo o ceticismo de Chantal dera lugar primeiro à tolerância e, depois, ao respeito explícito.
– Naturalmente. Eu estava falando das horas de folga, das noites e manhãs. Sem dúvida ela não pode achar que a estalagem Gloriano é algo que preste, nem de brincadeira.
Os deuses sabem que eu gosto de rolar no lixo, mas não durmo lá, não é? Ela poderia querer uma folga... nem que só por uma noite. Uma refeição de verdade, um banho,
lençóis de seda. Tenho muitos quartos vazios em casa. Você poderia dar a sugestão.
– Poderia.
– E eu poderia trocar uma palavra com o Moncraine sobre uma mudança de papéis para você.
– Ora, bem, milorde, isso não seria... isto é, não sei se o Moncraine está aberto a ser persuadido com relação a isso.
– Você tem algumas ideias liberais para um camorri, amigo. Eu não persuado: eu ordeno. A não ser, claro, na busca de uma bela mão e um belo coração. – Boulidazi
deu um risinho, mas ficou sério num instante. – Então você vai falar com ela?
– Farei o que puder ser feito.
O que era nada, pensou Locke, absolutamente nada. Sabeta jamais se permitiria ser sondada em segredo pelo prazer de Boulidazi, mas o barão não sabia disso. E se
ele pudesse colocar Locke no papel de Aurin? Um caloroso sentimento de satisfação inesperada cresceu nas entranhas de Locke.
– A prima Verena é muito meticulosa com relação aos confortos, milorde. Tenho certeza de que ela está bastante pronta para... ah... visitar sua casa pela segunda
vez.
– Você me faria um tremendo serviço, Lucaza. – O tapa de Boulidazi nas costas de Locke foi forte e descuidado, mas Locke suportou-o como a suave unção de um sacerdote.
– Ela não precisa temer qualquer indiscrição, seja na ida ou na vinda. Meus homens já cuidaram desse tipo de coisa.
Sem dúvida, pensou Locke.
6
– Não é que eu me incomode em reutilizar tanto material antigo... – disse Jean na manhã seguinte, enfiando uma agulha de ferro num pedaço de tecido recuperado. –
Só fico curioso para saber por que você é tão avessa a beliscar um pouquinho mais do dinheiro do nosso estimado patrono para comprar coisas novas.
– Porque ele daria dois beliscões de volta em troca do nosso – respondeu Jenora, revirando uma pilha de velhas rendas de figurinos.
Os dois estavam sentados confortavelmente atrás do palco do Pérola, cercados pelo amontoado usual de roupas e adereços. Por um processo de canibalismo constante,
transformavam os restos empoeirados de todas as produções anteriores da trupe em acabamentos adequados e talvez até ambiciosos. No momento, estavam fazendo espectros.
Era tradicional no teatro terim que os atores de personagens mortos se vestissem como espectros, com máscaras mortuárias e mantos claros, para assombrar o resto
da produção como espectadores fantasmagóricos.
– Há dois tipos de patrono – continuou ela. – Alguns fazem chover dinheiro como doces festivos e não se importam se tiverem prejuízo, desde que a produção corra
bem. Eles fazem isso para impressionar alguma pessoa ou porque podem mijar moeda o quanto quiserem. Outros assumem o que você pode chamar de posição mais interessada.
Esperam um reembolso completo e inflexível. Bom, o nosso nobre senhor não é daqueles que ficam contando tudo, mas alguma criatura dele é, até o último cobre amassado.
Eu vi os papéis. Podemos ter tudo o que quisermos para que a produção seja grandiosa, certo, mas, se gastarmos além do que é possível recebermos da plateia, não
haverá lucro suficiente para nós, a ralé, depois que o Boulidazi pegar o dele.
– Mas você disse que vocês tinham alguma precedência, como sócios originais...
– Ah, nós temos garantida uma parte dos lucros; só que os lucros têm a capacidade de se transformar em outra coisa, por magia, antes que a divisão seja feita. Boulidazi
tem a segurança de seus gastos segundo a lei de Espara. O resto de nós divide o que sobrar. Portanto, veja bem, se nós usarmos nosso nobre patrono para muitas coisas
bonitas e caras, só vamos jogar fora nossa parte.
– Entendi – afirmou Jean, pensando que Camorr não tinha esse privilégio específico para nobres com mentalidade empresarial; sem dúvida a riqueza dos agiotas e cambistas
lhes davam vantagens que os plebeus de Espara ainda não possuíam. – Estou vendo por que você faz tanta questão de economizar.
– Um pouco de dor nos pulsos e cotovelos pode nos economizar a dor de uma faca afiada na bolsa quando tudo isso...
Ruídos pouco característicos vindos do palco arrancaram Jean e Jenora de seu devaneio usual. Moncraine atravessara o palco pisando firme, seguido de perto por Boulidazi,
interrompendo a cena que era ensaiada. Jean tinha visto isso muitas vezes e aprendera a ignorá-los, mas dessa vez não havia como fazer isso.
– O senhor não tem o direito de interferir nas minhas decisões artísticas! – gritou Moncraine.
– Nenhuma das suas decisões é privilegiada pelo nosso acordo, seja ela artística ou não – retrucou Boulidazi.
– É a porcaria do princípio da questão...
– O princípio lhe garante palavras gentis no templo da sua escolha, e não poder sobre mim.
– Que os deuses maldigam seus olhos de serpente, seu diletante metido a besta!
– Isso mesmo. – Boulidazi chegou perto de Moncraine, tornando impossível que o empresário errasse, caso explodisse outra vez. – Agrida-me. Esqueça que você é um
camponês de pele noturna. Diga algo que eu não possa perdoar. Melhor ainda, bata em mim. Você voltará à Torre do Lamento com a velocidade de um disparo de flecha
e eu terei a companhia teatral. Acha que você não pode ser substituído? Você tem cinco cenas. Eu contrato outro Calamaxes arrancando alguém do Basanti. A peça vai
continuar sem você, e você vai perder uma das mãos.
Jasmer ficou parado numa rigidez terrível, as rugas do rosto escuro se aprofundando à medida que a mandíbula se comprimia com mais força, e por um momento pareceu
que ele iria se condenar. Por fim, deu um passo atrás, suspirou fundo e vociferou:
– Alondo! Lucaza!
Locke e Alondo apareceram rapidamente diante dele.
– Troquem de papéis – rosnou Moncraine. – De agora em diante, Lucaza é Aurin, e Alondo faz o Ferrin. Se não gostarem, discutam as ramificações estéticas com o nosso
honorável maldito patrono.
– Mas nós acabamos de fazer o figurino do Aurin ontem, com as medidas do Alondo – protestou Jenora.
Moncraine foi na direção dela, obviamente doido para descontar em alguém o que acabara de receber de Boulidazi.
– Então passe a faca nele ou ponha o Lucaza na porra de um ecúleo e o faça crescer 10 centímetros. Não me importa qual das duas opções!
Jenora e Jean saltaram, mas, antes que qualquer um deles pudesse falar, Moncraine se virou e se afastou pisando duro. Boulidazi deu um sorrisinho, balançou a cabeça
e sinalizou para que os atores continuassem ensaiando.
De olhos arregalados, Jean se acomodou lentamente em seu banco. O barão nunca fora provocado de modo tão público nem havia contrariado tanto seu infeliz “sócio”,
e por mais rude que fosse, Boulidazi sempre parecera agir com um desígnio. A que objetivo estaria servindo esse ardil?
– Eu... é... lamento por isso, Alondo – disse Locke, rompendo o silêncio antes que se estendesse demais.
– Bah – fez o jovem esparano. – A culpa não é sua. Se o Jasmer falar para eu representar um filhote de coelho, eu serei um filhote de coelho, sabe? E continuo na
maior parte das cenas melhores, de qualquer modo. Se eu precisasse implorar trabalho ao Basanti, nem teria um papel de criada fogosa me esperando, não é?
7
Locke e Sabeta conferenciaram, num momento raro e breve de privacidade, sobre a natureza mutável das expectativas de Boulidazi. Por mais que estivessem diferentes,
os antigos hábitos do barão esparano não se alteraram e era simplesmente perigoso demais tentarem conseguir mais privacidade significativa na estalagem Gloriano.
Boulidazi ou um dos seus vários empregados poderia aparecer a qualquer momento, de qualquer esquina, subindo ou descendo qualquer escada.
Além do mais, o barão havia cumprido com sua promessa de transmutar o papel de Locke e precisava continuar pensando que Lucaza de Barra era seu fiel aliado. Com
esse objetivo, Sabeta começou a fazer um jogo de flerte mais próximo e mais perigoso com Boulidazi. Mesmo não admitindo que fosse o tempo certo para desfrutar de
um pernoite secreto sob o teto do barão, ela o adulava com mais frequência, encontrava seu olhar mais vezes, fingia sorrir de suas supostas piadas. Também se valia
mais de seu arsenal de fascínios femininos, deixando casualmente a bata pender alguns centímetros mais baixa no peito, trocando botas por chinelos baratos para mostrar
os tornozelos e as canelas elegantemente musculosas. Esses atos, combinados com a facilidade com que Jean e Jenora saíam juntos toda noite, mantinham as chamas gêmeas
da distração e do ciúme tremulando vívidas no peito de Locke.
Seu novo papel como Aurin acabou não ajudando na questão. Apesar de o fato de trabalhar tão perto de Sabeta provocar um arrepio que subia e descia por todos os nervos,
ao professar amor na linguagem maravilhosamente melodramática de Lucarno, o olhar de falcão de Boulidazi era um freio em qualquer outra expressão de paixão. De fato,
ele era tão cuidadoso e tão casto nos abraços no palco que Moncraine, com a paciência transformada em cinzas enterradas fundo na terra de seu humor, logo explodiu:
– Pelo mijo dos deuses, seu pateta desajeitado, o amor é o assunto básico da peça! Quem, diabos, quer pagar um bom dinheiro para ver uma trágica história de amor
se os amantes se tocam como se fossem de porcelana fina? Bert! Chantal! Eduquem esse idiota.
Marido e mulher avançaram dispostos, ao perceber que não iriam compartilhar a bronca. Chantal desmaiou nos braços de Bertrand, que se virou para Locke e Sabeta.
– Exagerem e se inclinem. Inclinar-se é o que faz um bom abraço, garoto. O beijo no palco vocês dominam. Quando ela estiver nos seus braços, incline-a um pouco.
Tire-a do chão. A plateia gosta. É o jeito mais rápido de demonstrar paixão de modo que até os bêbados no fundo podem ver. Não é, minha joia?
– Ah, Bert, você não seria capaz de explicar a um peixe como nadar. Mas sempre foi bom em fazer, hein?
Rindo e se cutucando de modo brincalhão, os dois conseguiram corrigir depressa as falhas da técnica de Locke fingindo que abraçava uma garota. Até Moncraine grunhiu
satisfeito e, de repente, Locke se viu capaz de estar com Sabeta, braço encostado em braço, peito encostado no peito, rosto encostado no rosto, sem que Boulidazi
tivesse a mínima objeção. Mas qualquer um que já segurou de mentirinha uma pessoa intensamente desejável saberá como isso serve pouco para aplacar o desejo de contato
genuíno, da rendição genuína, portanto nem mesmo essa evolução serviu como bálsamo para o humor ou os desejos de Locke.
Assim a situação continuou, ganhando ímpeto como uma carroça empurrada do topo de um morro. A freguesia na Gloriano ficou maior e mais barulhenta. Calo e Galdo cediam
ao apetite pelos dados e pelas cartas, vigiados de perto pelos outros, para garantir que não cedessem ao apetite por jamais perder. Jean e Jenora produziam um figurino
depois do outro, restauravam armas teatrais até o lustre completo, produziam pequenos milagres a partir de restos poeirentos. Os ensaios diários se tornaram mais
limpos, textos e anotações eram descartados, provas de figurinos e adereços eram feitas. Por fim, numa tarde, enquanto o disco de bronze do sol deslizava para o
oeste, Moncraine chamou a companhia ao palco.
– Não posso dizer com certeza que estamos ficando melhores – rosnou –, mas pelo menos não estamos mais piorando. Acho que é hora de divulgarmos ao público. Milorde
Boulidazi, o senhor e os acionistas devem consentir.
– Consinto – respondeu o barão. Alondo, Jenora e Sylvanus assentiram.
– Que os deuses nos salvem. O que isso significa, meus caros camorris, é que vamos contratar nossos coadjuvantes e figurantes. Depois anunciamos os horários das
apresentações e, se não conseguirmos realizá-las, estaremos em dívida. Para com os cuidadores das fossas, os vendedores de cerveja e pão, os fornecedores de almofadas,
a ministra de cerimônias e a própria condessa, que os deuses não permitam.
– Presumo que vamos precisar de alguns panfletos, não é? – perguntou Jean.
– Panfletos? Quem lê? Distribua-os na maioria dos bairros e os bons cidadãos irão usá-los para limpar a bunda. Nós mandamos pregoeiros aos bairros pobres, e bilhetes
aos melhores. Talvez apenas uns poucos panfletos nas ruas comerciais, mas, na maior parte, vamos manter o mais antigo dos estilos antigos.
– Que seria...? – indagou Galdo.
8
– Está cansado da vida? – gritou Galdo, tentando fazer a pose mais enérgica possível, empoleirado em um velho barril de feira. – Está embotado para o espetáculo?
Está surdo à poesia atemporal de Caellius Lucarno, mestre artesão das palavras do Trono Terim?
Uma chuva fraca e quente caía, ondulando a lama da praça do mercado, onde dezenas de esparanos vendiam comida, velharias ou serviços embaixo de lonas em várias condições
de desgaste. Parecia natural para Galdo que, depois de intermináveis dias de sol implacável, o céu se fechasse e começasse a mijar no instante em que ele tentava
parecer impressionante.
– Porque, mesmo que esteja... – disse Calo, no chão ao lado do irmão.
– Fodam-se! – xingou o mercador mais próximo.
– MESMO QUE ESTEJA – continuou Calo –, você não poderá resistir ao romance, à empolgação, ao grande festival ofuscante de perplexidades explícitas que o espera quando
a Companhia Moncraine-Boulidazi fizer sua apresentação exclusiva da lendária...
– ... da ousada... – berrou Galo.
– ... da sangrenta e passional REPÚBLICA DE LADRÕES, nos próximos Dia do Conde e Dia da Penitência...
Galdo precisava admitir que o estado de sobriedade total, ainda que na maioria das considerações fosse muito menos interessante do que qualquer grau de embriaguez,
pelo menos resultava num emprego melhor dos reflexos. O mercador irado jogou um nabo, que Calo pegou no ar logo antes que batesse na sua cabeça. Ele jogou-o para
Galdo, que saltou do barril, deu uma cambalhota no ar, pegou o nabo e pousou com os braços estendidos num floreio.
– Nabos não podem parar a Companhia Moncraine-Boulidazi!
– Eu tenho batatas também! – ameaçou o mercador.
– No Dia do Conde! No Dia da Penitência! Ingressos limitados! – gritou Calo. – No Pérola Antiga! Não percam a sensação mais estupendamente empolgante que já surgiu
na sua vida! Os mortos viverão, respirarão e falarão de novo! Amor verdadeiro, espadas reluzindo, traição do coração e os segredos de uma dinastia imperial, tudo
isso será seu, mas, se perderem agora, perderão para sempre!
Outro nabo foi lançado na direção dos gêmeos, que se desviaram com facilidade.
– Você errou agora e vai errar sempre! – exclamou Galdo. Em seguida, se virou para o irmão e baixou a voz. – De qualquer forma, ainda restam oito paradas. Talvez
já tenhamos favorecido esses imbecis por tempo suficiente.
– Certíssimo – concordou Calo. Os gêmeos fizeram reverência à indiferença geral da praça do mercado e saíram correndo pela chuva. – Onde, agora?
– No Portão do Rio Jalaan. Deve ser um pessoal receptivo e paciente, com certeza, recém-saído da estrada e com lama até o rego da bunda.
– É. Deuses, onde essa gangue estaria sem nós para fazer toda a porcaria do serviço de rua?
– Nós temos a aptidão, temos as tarefas. Mas, pelo lado positivo, você preferiria cuidar dos livros?
– Não, porra. Mas não me incomodaria em bancar o ajudante de guarda-livros.
– É, mas alguém chegou primeiro!
– Ah, eu sei. O gorducho está fazendo bem, costurando ela. Eu estava começando a me preocupar com ele.
– Com isso, restam a ruiva e o gênio. Ainda há motivo para preocupação aí.
– Afinal de contas, qual é a dificuldade de se jogar um em cima do outro e deixar que as partes empolgantes de verdade se resolvam sozinhas?
– A dificuldade não é fazer, acho; é que o nosso amado patrono não deixa Sabeta fora das vistas. É o próprio vigia do inferno.
– Acha que a gente deveria dar uma mãozinha?
– Ei, eu corto a garganta do sacana se você cavar o buraco – garantiu Galdo. – Mas isso arruinaria toda essa dança e esse canto que estamos fazendo pela companhia.
– Você deve ter posto os miolos no cabelo antes de raspar tudo, carecão. Eu não estava falando em apagar o Boulidazi. Estava pensando mais em soltar uma dica útil
no ouvido de Sabeta.
9
– O resultado vai ser melhor do que eu esperava – comentou Jasmer, encurvado sobre uma caneca rachada, cheia de conhaque e água da chuva.
– Que reconhecimento generoso. – O barão Boulidazi estava sentado diante de Moncraine numa mesa de canto nos fundos do salão da Sra. Gloriano. – O resultado é melhor
do que você tinha o direito de esperar, seu idiota.
– Muito provavelmente, milorde.
Locke estava encostado na parede ali perto, esforçando-se para fazer parecer que não escutava a conversa. Segurava uma caneca com sidra pela metade. Era a véspera
da apresentação do Dia do Conde e, por tradição, a companhia havia feito quatro brindes seguidos: o primeiro a Boulidazi, o segundo a Moncraine, o terceiro à companhia
e o último a Morgante, o Pai da Cidade, uma súplica por ruas e multidões ordeiras. Felizmente, Correntes tinha ensinado a Locke a arte de fazer com que goles pequenos
parecessem vastos e amigáveis e, sem violar o espírito dos brindes, conseguira proteger o raciocínio contra a substância da bebida.
– Provavelmente? Eu me esforcei por você de novo, Moncraine – retrucou o barão, descartando a bravata tranquila de sempre. Ele não havia se contido enquanto brindava
e sua voz estava tensa de preocupação. – Não posso pedir que meus amigos apareçam como claque contratada, pelo amor dos deuses. Onze cavalheiros importantes com
seus séquitos. Numa primeira apresentação, ainda por cima. Você sabe que em geral eles esperam para saber se vale a pena se incomodar. Portanto, é melhor que valha.
– O senhor conhece a qualidade. Esteve em cima de nós feito uma sanguessuga durante todos os ensaios.
– Não preciso apenas que seja bom. Quero que seja ótimo. Impecável. Sem incidentes, sem erros, sem deixas erradas.
– Não é possível escapar das deixas erradas. Se a peça for boa, elas passam despercebidas; ninguém liga...
– Eu ligo – interrompeu o barão. Locke percebeu que Boulidazi estava genuinamente bêbado. – Esta é a porcaria da minha companhia agora, tanto quanto sua, e minha
reputação está ao léu. Fracasse e você vai se arrepender do primeiro dia em que viu o sol.
– Com toda a vontade de agradar ao meu generoso lorde – disse Moncraine, acidamente –, se isso fosse tão fácil quanto ordenar que alguém faça a coisa certa, não
haveria nenhuma peça ruim. Nem pinturas, canções ou...
– Faça uma merda e eu mando quebrar suas pernas. Que tal isso como motivação?
– Eu já estava adequadamente motivado. – Jasmer se levantou. – Acho que vou me retirar, milorde, pois sua companhia inebriada esmaga minhas sensibilidades de camponês.
Jasmer adentrou a multidão para se juntar a Sylvanus e Chantal. Os novos figurantes e a turba usual de vagabundos e parasitas estavam fazendo um barulho jubiloso
com as canecas de vinho e cerveja. A Sra. Gloriano alimentava a farra com bebida nova como um ferreiro enfiando carvão numa fornalha.
– Andrassus, seu bode, como está o vinho esta noite? – gritou Jasmer.
– Indistinto. – Sylvanus arrotou. – Se ele não tivesse melhorado no sétimo ou oitavo copo, eu precisaria recorrer a formas mais sérias de abuso contra mim mesmo.
Boulidazi se levantou inseguro, raivoso, ignorando Locke. Por acaso, Sabeta acabara de chegar por trás dele enquanto abria caminho através do tumulto, aparentemente
animada, como uma anfitriã. O copo na sua mão era tão artisticamente decorativo quanto o de Locke.
– Verena – disse o barão em voz baixa –, sem dúvida você cumpriu seu dever para com a companhia esta noite. Deixe que eu lhe conceda alguns dos confortos ao qual
você está acostumada, para descansar antes da apresentação. Um banho quente de verdade, uma cama boa, vinhos gelados, talvez até...
– Ah, Gennaro... – sussurrou Sabeta, removendo com delicadeza a mão de Boulidazi de seu braço, depois entrelaçando os dedos com os dele. – Você tem sido tão generoso!
Com certeza sabe que dá azar comemorar assim antes de uma apresentação, não é? Eu ficarei felicíssima em aceitar sua oferta após recebermos os últimos aplausos.
Era praticamente a melhor recusa possível nas circunstâncias, pensou Locke, mas também alarmante. Agora Sabeta havia se comprometido a ficar a sós com ele apenas
dali a dois dias, quando terminasse a segunda apresentação. Depois de semanas de flertes e meias promessas, Boulidazi só poderia reagir mal a outras desculpas.
– Ah, que seja – falou o barão. – Deixe-me levá-la para longe dessas pessoas malditas e viver como deveríamos, mesmo que por um ou dois dias. Foi sua companhia que
me manteve aqui incógnito, e não o desejo de corrigir Moncraine. E, ao término disto tudo, quero você... isto é, quero que você pense no que deseja fazer em seguida.
Imagine qualquer papel que deseje. Farei com que Moncraine o monte para você, qualquer coisa que você queira...
– Você sabe exatamente o que dizer a uma dama – interrompeu Sabeta, pondo um dedo nos lábios dele e calando-o com muita eficácia. – Vou refletir sobre a sua oferta.
Sobre todas as suas ofertas, Gennaro. Acho que nossos desejos para o futuro podem ser considerados muito parecidos.
– Você tem certeza – insistiu Boulidazi, obviamente enfrentando uma súbita afluência de sangue em algum lugar menos útil para conversas do que o cérebro –, certeza
absoluta, de que não gostaria esta noite...
– Não – confirmou ela, com doçura mas também firmeza. – Temos dois longos dias pela frente e tempo demais para gastar como quisermos depois. Não vamos colocar a
carroça diante do cavalo. Ou deveríamos dizer do garanhão, hein?
– Certo. Certo. Como... como você quiser, sempre. No entanto...
Locke se obrigou a parar de ouvir enquanto Boulidazi soltava um novo fluxo de bobagens apaixonadas. A previsível recusa do barão em aceitar a sugestão educada de
Sabeta para dar o fora significava que ela cuidaria dele até ficar cansada para fazer qualquer coisa além de desmoronar, azeda e exausta, em algum momento após a
meia-noite. Cada passo hesitante que Locke dera com Sabeta, cada precioso instante de entendimento que os dois haviam suado para obter estava de novo sendo desperdiçado.
Locke olhou fixamente para sua bebida, imaginando se seria hora de parar de representar e engolir um pouco.
– Olá, Lucaza – cumprimentou Calo, surgindo de lugar nenhum para segurar Locke pelos braços, e falou bastante alto: – Estamos precisando de alguém para o jogo Foda
o Sujeito do Lado.
– Mas não quero jogar dados...
– Bobagem – insistiu Calo, afastando-o de Sabeta e Boulidazi. – Você só fica aqui, mal-humorado, quando poderia estar perdendo moedas como um rapaz de verdade. Venha,
você vai jogar com a gente.
– Mas... mas...
Suas reclamações não deram em nada. Calo pegou seu vinho e bebeu-o em dois goles. Arrastou-o por um caminho em zigue-zague pela multidão, saiu por um corredor lateral
e subiu a escada estreita perto do quarto de Sabeta e Jenora.
– Que diabo você...
– É o maior favor da sua vida, seu pateta. – O Sanza cabeludo chutou a parede e, para surpresa de Locke, aquele trecho de painel de madeira deslizou para trás com
um estalo. – Confie em mim. Entre na caixa.
O empurrão de Calo fez Locke se esparramar dentro de um cômodo oculto, talvez com um 1,20 metro de altura e 2 metros de comprimento. Uma camada de cobertores suavizou
sua aterrissagem. O espaço estava iluminado pelo brilho pálido e vermelho de uma lâmpada alquímica minúscula em cima de uma pequena pilha de barris de vinho. O painel
secreto se fechou atrás dele.
Perplexo, Locke olhou ao redor, absorvendo as poucas características interessantes do lugar.
– Sanzas de merda – murmurou.
– Acho que não – disse Sabeta um instante depois, quando o painel se abriu de novo.
Ela fechou-o o mais rapidamente possível e se jogou nos cobertores com um suspiro aliviado.
– Ah, deuses – reagiu Locke –, isso tudo foi sua...
– Os gêmeos me contaram sobre este lugar. Parece que, antigamente, a Sra. Gloriano fazia contrabandos. Calo abriu a porta por acaso uma noite, quando tropeçou e
bateu na parede.
– O que vamos fazer com relação àquele barão desgraçado?
– Nada. Ele não existe.
– Meu pescoço discorda.
Sabeta o agarrou pela túnica e não havia nada de brincalhão ou hesitante no modo como grudou os lábios no seu pescoço.
– Seu pescoço é da minha conta – sussurrou ela. – E não existe nada fora deste cômodo. Nem agora nem enquanto estivermos aqui.
– Sua ausência vai ser óbvia para o Boulidazi como se alguém roubasse o calção dele.
– Normalmente é o que aconteceria. Foi por isso que me certifiquei de lhe entregar a última bebida enquanto brindávamos.
– Você não fez isso!
– Fiz. – O sorrisinho dela pareceu extremamente atraente para Locke. – Uma coisinha fraca, para embotar os pensamentos. Logo, logo ele não vai querer nada além de
ir para a cama e, pela primeira vez, aquele asno miserável e eu queremos a mesma coisa.
– Mas e se ele...
– Eu já disse que ele não existe. – Sabeta segurou a cabeça de Locke e enfiou os dedos entre os cabelos. – Estou cansada de todo mundo tendo o que quer, menos nós.
Indo e vindo à vontade, dormindo com quem quer, enquanto você e eu vivemos de uma interrupção à outra.
Ela lhe deu um beijo bem suave nos lábios, depois um mais longo, e quando começou com o terceiro, Locke corria um sério risco de esquecer o próprio nome.
– Então você enfim optou por se render ao meu charme, hein? – conseguiu sussurrar.
– Não. – Sabeta lhe deu um soco no peito, brincalhão mas firme. – Não estou aqui porque você me seduziu, seu idiota. Você estava certo, naquela noite no telhado.
Nós queremos o que queremos. Não precisamos justificar. E, quando podemos, devemos fazer o que queremos. Eu quero você. E estou fazendo isso.
O beijo seguinte indicou que ela queria parar com a conversa por algum tempo.
10
O salão da estalagem Gloriano oscilava ao redor de Gennaro Boulidazi como se estivesse equilibrado em cima de uma bola gigantesca, e as luzes e cores haviam começado
a se misturar como aquarelas pintadas na chuva. A pressão no crânio indicava que ele tinha passado em muito o horizonte da indulgência inteligente, mas como isso
seria possível? A bebida vagabunda da Gloriano o havia dominado sem que ele percebesse. Esse pensamento lhe deu mais uma vaga diversão do que um alerta. Muito pouca
coisa o alarmava.
Verena, bom, ela estava no mínimo lhe causando consternação. A vaca insinuante! Sem dúvida a garota o queria, mas, se não fosse o fato de ela ser tão jovem, juraria
que estava deliberadamente guiando-o para a frustração. Verena precisava ser arisca, é óbvio. Ainda era virgem. Bom, ele poderia consertar isso. Deuses, como poderia
consertar isso!
A simples ideia fez imagens de seu desejo nadarem em sua mente, misturando-se com a cena já confusa ao redor. No máximo 17 anos, corpo rígido e firme como de uma
dançarina, com o sangue de uma família camorri que remontava até o antigo império. Ele poderia moldá-la em todos os sentidos. Com os pais na sepultura, ele era seu
próprio casamenteiro, seu próprio juiz e conselheiro. Se não pudesse ou não quisesse tomar um prêmio tão doce quanto Verena, deveria cortar os próprios bagos e deixar
a casa da família Boulidazi cair! Ela não podia subir no palco em Camorr? Que Camorr se danasse. Em Espara, poderia fazer o que quisesse, pelo menos até começar
a ter filhos.
– Milorde. – Era um dos seus homens, Brego, com cara de machadinha, sussurrando em seu ouvido, respeitoso ou amedrontado demais para tocá-lo. – Posso chamar uma
carruagem para o senhor?
– Estou bem – murmurou o barão, perscrutando o salão, tonto. – Os deuses me amam, porra. Preva me ama! Olhe só o que ela mandou para mim.
Boulidazi se concentrou, lutando contra a névoa quente que se adensava aos poucos entre seus sentidos e o mundo ao redor. Atores bêbados por toda parte – sua companhia.
E ali estava a costureira boquirrota, a de pele noturna, que tinha os papéis e as respostas para tudo. Ah, mas ela era gostosa, apesar dos ares a que se dava, não
era virgem e certamente não era uma menina. Cabelo como seda preta encaracolada e seios como bolsas pesadas sob aquele corpete frágil. Deuses, sim, ela saberia o
que fazer assim que tivesse as pernas abertas. Um homem poderia afundar direto e sentir-se em casa.
O pensamento o excitou, uma pressão súbita e intensa. O barão cambaleou e precisou empurrar um bêbado ao acaso para se firmar. O pobre coitado despencou no chão,
descartado pela mente de Boulidazi antes mesmo de se estabacar.
A costureira! Ele precisava se aliviar um pouco, drenar a ânsia apenas o bastante para restaurar o autocontrole por uns dois dias. Jenora cairia bem... provavelmente
iria se sentir lisonjeada. Boulidazi olhou-a com atenção, notou seus sussurros furtivos com o gorducho camorri, Jovanno. Por algum motivo ela havia levado o garoto
para a cama. Teria alguma ideia de quem eram de fato Lucaza e Verena? Estaria tentando, do seu modo patético, abrir caminho para melhores circunstâncias trepando
com o homem do Lucaza? Ora, isso era bastante divertido.
Jenora saiu do salão da estalagem um instante depois, tendo obviamente comunicado ao garoto as intenções para a noite. Mas Jovanno estava jogando dados com Alondo
e aqueles gêmeos. Portanto, ficaria ocupado ao menos por alguns minutos. O educado Jovanno, o sociável Jovanno... o garoto faria companhia a eles até o fim da partida.
Bom, aquela noite lhe custaria o primeiro lugar na fila para uma boceta.
Verena jamais precisaria saber. Jenora, como todos os seus colegas, tinha a bolsa vazia e uma profunda consciência disso. Era a coisa mais fácil do mundo manter
em silêncio uma mulher sem um tostão.
– Preciso de alguma privacidade. Só uns minutos – murmurou Boulidazi para Brego.
Então, juntando as migalhas de sua concentração, pôs um pé inseguro na frente do outro e foi na direção da escada por onde Jenora havia subido.
11
Cada beijo era mais longo e feroz do que o anterior.
As mãos de Locke tremiam com a quente ansiedade da impaciência e da inexperiência. Havia coisas demais a serem deduzidas muito rapidamente entre as respirações curtas
e desesperadas. Uma coisa era rolar com uma garota nos sonhos, quando a mente pode descartar as inconveniências da realidade física; outra eram as garotas de verdade,
que tinham peso, massa e demandas que as oníricas não têm. A primeira paixão é uma dança complicada.
Estranhamente, o fato de que Sabeta parecia ter uma impaciência igual contribuiu. Ela o manteve a distância por um momento enquanto quase arrancava a fita do cabelo,
derramando-o nos ombros. Estava ruborizada, suada, tão desajeitadamente excitada quanto ele, e tinha posto de lado a graça imponente que em geral fazia Locke sentir-se
tão pequeno e cambaleante junto dela. Nenhum dos dois podia ser gracioso num lugar tão apertado e Locke achou isso um tremendo alívio.
O calor aumentava no espaço minúsculo enquanto eles embolavam os braços e as pernas, e o choque de estar com ela deu lugar, enfim, à explosão do desejo reprimido.
As línguas se encontraram, a princípio hesitantes, e os dois compartilharam um riso nervoso, abafado. Depois, exploraram juntos a nova sensação, com mais e mais
ousadia. As mãos também pareciam se desamarrar da inibição e viajavam livremente.
A ordem e o planejamento foram esquecidos. Locke se pegou fazendo coisas sem perceber ao menos que as começara. As roupas foram descartadas com uma velocidade imprudente,
como se arrancadas por fantasmas. Era quase como estar numa luta: a mesma empolgação intrépida, o mesmo sentimento do tempo desconjuntado em clarões brilhantes,
quentes, que consumiam tudo. Suas mãos nos seios dela... os lábios dela contra os músculos retesados de sua barriga... a luta final para se posicionar para algo
que nenhum dos dois entendia.
Em direção a esse algo os dois lutaram, e luta era uma boa descrição. Por mais passionais que estivessem, por mais que fosse profundo e puro o prazer da conexão,
havia algo hesitante e incompleto no amor que faziam. Eram como duas peças de um mecanismo ainda sem acabamento e polimento, assim não se encaixavam adequadamente.
Por fim, os dois se separaram, exaustos porém não contentes. Era óbvio, para Locke, que Sabeta se esforçava para esconder o desapontamento, ou o desconforto, ou
até mesmo ambos.
É isso? O pensamento veio sem amarras do canto da mente dele que era responsável pelo pessimismo inútil. Era só isso? Esse era o ato que fazia o mundo inteiro girar,
que deixava homens e mulheres loucos, que assombrava seus sonhos, que transformava os Sanzas em cães?
– Olhe – murmurou ele ao recuperar o fôlego, e se apoiou nos cotovelos. – Eu, ah... Desculpe...
Sabeta o empurrou de volta para baixo e o segurou com força, os seios em suas costas. Ela abriu as mãos possessivamente sobre seu peito e beijou seu pescoço, um
ato que o desconectou no mesmo instante de qualquer força de vontade que conseguira invocar.
– Por que está se desculpando? – sussurrou ela. – Você acha que é isso? Acha que nunca vamos tentar de novo?
– Bom, eu só pensei que você iria...
– O quê, banir você como uma moda passageira? – O beijo dela se tornou uma mordida brincalhona e Locke deu um gritinho. – Que Preva me ajude, eu gosto de um idiota.
– Nós... Eu machuquei você?
– Eu não diria exatamente “machucou”. – Ela o abraçou com mais força por um instante, tranquilizando-o. – Foi... estranho. Mas não foi ruim.
Houve uma pancada abafada num quarto ali perto, seguido por algum tipo de explosão passional que se esvaiu rapidamente.
– Esse som poderia ter sido feito por nós, após um breve descanso – disse ela. – Acredite, tenho toda a intenção de treinar até acertamos essa coisa.
Ficaram deitados um tempo, murmurando doces bobagens, deixando os minutos se desenrolarem num langor prazeroso. As mãos de Sabeta tinham começado a viajar de novo,
testando o ardor que retornava em Locke, quando a porta do quarto secreto se abriu apenas alguns centímetros. Alguém se moveu contra a luz fraca do corredor e o
coração de Locke martelou.
– Vistam-se – sussurrou Calo.
– Que porcaria é essa? – retrucou Sabeta. – Isso não é engraçado!
– Não é mesmo. É ruim.
– O que pode ter...?
– Não faça perguntas. Se confiam em mim e querem viver, ponham as malditas roupas. Precisamos de vocês dois neste instante.
O alívio de Locke por não ver Boulidazi do lado de fora do pequeno aposento foi logo esmagado pela seriedade fria da voz de Calo. Um Sanza sério era um presságio
infernal. Locke encontrou as roupas o mais depressa possível e, mesmo assim, Sabeta chegou mais rápido ao corredor.
12
Não havia mais ninguém no corredor quando eles saíram, apesar de os sons da farra continuarem no mesmo nível, vindos do salão. Calo, visivelmente tenso, levou-os
pela curta distância até a porta do quarto de Jenora. O pavor de Locke cresceu quando Calo bateu baixinho num padrão três-dois-um.
Foi Galdo que atendeu, deu passagem para que eles pudessem entrar e fechou a porta. A cena no quarto fez com que os joelhos de Locke parecessem ter se dissolvido
e ele se pegou agarrando-se a Sabeta para ficar de pé.
Jenora estava encolhida num canto ao lado de uma cama virada, os olhos arregalados e tremendo, a túnica rasgada no pescoço. Jean se encontrava agachado ao lado dela,
com as mãos em seus ombros.
Gennaro Boulidazi estava embolado contra a parede oposta, a figura imponente estranhamente murcha, o rosto pálido. Uma tesoura de costura, com o cabo áspero e manchado
pelas longas horas de trabalho de Jenora, estava cravada fundo numa mancha vermelha que se espalhava no lado direito do peito do barão.
Enquanto Locke olhava horrorizado, Boulidazi gemeu baixinho, mexeu as pernas e tossiu mais sangue na túnica. Por mais que o barão parecesse embotado e impotente,
por mais que seu ferimento devesse ser mortal, ele ainda permanecia muito vivo.
Capítulo Nove
O Jogo dos Cinco Anos:
Dúvida razoável
1
– Locke é o homem que vai preparar meu jantar – disse Sabeta.
– Certamente vocês dois viram mais longe do que isso – retrucou Paciência.
– Não é da sua conta. – Sabeta se soltou dos braços de Locke, perigosamente tensa, tendo banido o ar de respeito cauteloso. – Locke pode prestar contas a você, mas
eu, não. É melhor pensar em como meus contratantes podem reagir se você usar sua magia para me impedir de arrastá-la para fora desta casa.
– Tome cuidado quando lançar regras para uma fazedora de regras, minha cara. Provoque-me fora dos limites do Jogo dos Cinco Anos e eu estarei livre para reagir como
quiser. E vocês estão bastante fora dos limites do jogo esta noite, não é? Porque, se não estão, estarão perigosamente perto da única coisa que os dois concordaram...
– Enfie seu conluio em algum lugar escuro e doloroso – interrompeu Locke, pondo as mãos nos ombros de Sabeta. – Você sabe que não estávamos falando de negócios quando
você apareceu. Só uma xereta poderia ter um sentido de tempo dramático tão impecável. Por que, diabos, você está aqui?
– É uma questão de consciência.
– Sério? Sua? Você vive aludindo à existência dessa coisa. De algum modo não estou convencido.
– Essa interrupção é totalmente culpa sua! – A Arquidama apontou um dedo na direção de Locke. – Eu lhe dei o aviso mais claro e justo possível! Disse para colocar
de lado suas questões pessoais. Para trabalhar, e não namorar. E o que você fez?
– O que nós dois fizemos? – perguntou Sabeta.
Ela cruzou os braços, mas Locke ainda podia sentir a tensão borbulhando, tão familiar para ele quanto a voz ou o perfume dela. Segurou os ombros de Sabeta com mais
força, duvidando que ela tivesse uma experiência igual à sua, com magos que atacavam fisicamente. Sabeta não relaxou, mas deu um aperto breve e tranquilizador em
sua mão.
– Esclareça-nos, Arquidama. E quero mesmo dizer nós.
– Essa busca imprudente do seu antigo romance – falou Paciência. – Deixem-na de lado. Voltem às tarefas estabelecidas. Não me faça levar adiante essa obrigação,
Sabeta. Agora Locke é responsabilidade minha e há coisas nele que você não entende. Coisas que você não precisa entender se parar por aqui.
– Parar o quê? Minha vida?
– Vejo que estou desperdiçando o fôlego. Lembre que eu fiz a oferta, se é que isso vale alguma coisa. – Paciência fez um gesto casual e a porta da sacada se fechou
atrás dela. – Veja bem, Locke é único. Mas não estou meramente falando do egoísmo. Se quer continuar com ele, tem o direito de saber de sua verdadeira natureza.
– Ele não é estranho para mim – replicou Sabeta.
– Ele é estranho para todo mundo. – Paciência fixou seus olhos perturbadoramente escuros em Locke. – Em especial para ele próprio.
– Chega de besteira cifrada – rosnou Locke. – Vá ao cerne do que...
– Há 23 anos – interrompeu Paciência com rispidez –, o Sussurro Negro caiu sobre Camorr. Centenas de pessoas morreram, mas a quarentena e os canais salvaram a cidade.
Assim que a peste se foi, você saiu andando do antigo Pegafogo, sem ser reconhecido por ninguém. Sua casa era desconhecida, sua idade era desconhecida, seus pais
e amigos eram desconhecidos.
– É, eu me lembro muito bem disso – retrucou Locke.
– Aceite isso como prova. Reflita sobre isso.
– Aqui vai uma coisa em que refletir, sua...
– Eu sei por que você não tem lembranças verdadeiras do tempo anterior à peste. – De novo Paciência aparou suas palavras com o tom peremptório. – Sei por que você
não se lembra do seu pai. Na verdade, sei por que você inventou histórias sobre como escolheu o nome Lamora. Você diz a algumas pessoas que o pegou de um vendedor
de salsichas. Diz a outros que foi de um velho marinheiro gentil.
– Você... você me disse que foi de um marinheiro – falou Sabeta.
– Olhe – começou Locke, com um arrepio sinuoso se esgueirando para cima e para baixo pela coluna –, olhe, eu explico. Só... Paciência, como, diabos, você pode saber
disso?
– Nenhuma instância do sobrenome Lamora jamais foi registrada num censo em Camorr. Nem em qualquer século desde o colapso imperial. Você vai descobrir que esse é
um bom motivo para verificar. Você trouxe o nome consigo quando saiu do Pegafogo, formado em sua mente, mesmo jamais sabendo de onde ele vinha. Eu sei.
Paciência foi na direção deles com um deslizar espantosamente suave, facilitado por seu manto elegante.
– Sei que você tem uma única lembrança imutável e verdadeira reluzindo fraca na escuridão de antes da peste no Pegafogo. Uma lembrança da sua mãe. Uma lembrança
do que ela fazia.
– Era costureira – murmurou Locke.
– É. – Paciência fez um gesto para si mesma. – Afinal de contas, eu lhe disse qual é o meu nome cinzento. O que eu escolhi, muito antes de ser elevada a Arquidama...
– Costureira – interrompeu Locke. – Ah, não. Ah, porra, não. Porra, não! Você não pode estar falando sério!
2
Ela completou seu pavoroso sentimento de choque com uma gargalhada.
– Sério como aço frio – respondeu Paciência com um sorriso levemente felino. – Mas você deu um salto divertido para a conclusão errada. Garanto que o Falcoeiro é
meu único filho.
– Deuses – disse Locke, ofegando, aliviado. – Então aonde, diabos, você quer chegar?
– Eu falei que sua memória é imutável e verdadeira. Mas não tem nada a ver com a profissão da sua mãe. Na verdade não tem nada a ver com sua mãe. É de mim que você
lembra.
– E como isso é possível?
– Houve um dia um mago extraordinariamente dotado na minha ordem, o mais jovem Arquidom em séculos. Ganhou o quinto anel quando tinha metade da idade que tenho agora
e assumiu o cargo de Prudência. Ele era meu mentor, meu amigo verdadeiro. Além disso, foi abençoado no amor. Sua esposa era kartani, uma mulher lindíssima, com um
tipo de beleza muito rara entre o povo terim. Os dois estavam encantados um pelo outro. Ela morreu... jovem demais.
Paciência fez uma pausa e continuou, hesitante, como se lhe doesse pronunciar cada palavra:
– Foi um acidente. Uma queda de uma sacada. Eu lhe disse que nossas artes têm capacidade ilimitada de causar danos e quase nenhum poder para desfazê-los. Podemos
transmutar; podemos limpar. Seu envenenamento foi uma condição externa que pudemos separar do seu corpo. Mas contra ossos despedaçados e sangue derramado somos impotentes.
Somos comuns. Comuns como você.
Ela encarou Locke com algo que parecia raiva de verdade.
– Sim – falou ela, mais lentamente. – Comuns como você é agora. A tragédia provocou uma mudança terrível no meu amigo. Ele cometeu um erro de avaliação fatal. Ficou
obcecado por trazer a esposa de volta. A dura experiência nos diz que não podemos dominar a morte. Mesmo assim, ele caiu na armadilha do sofrimento e do egoísmo.
Convenceu-se de que esse domínio era apenas uma questão de vontade e conhecimento. Vontade que ninguém jamais tivera. Conhecimento que ninguém jamais revelara. Começou
a experimentar com a tolice mais proibida de todas as nossas artes: a interferência com o espírito depois da morte. A transição do espírito para carne nova. Sabe
que horror ele teria conjurado se fosse bem-sucedido?
– Os deuses jamais permitiriam algo assim – sussurrou Locke, sem estar certo de que acreditava, mas sabendo que queria acreditar. A imagem dos olhos mortos de Pulga,
gravados com pecados, relampejou em sua memória.
– Pela primeira vez concordo com você – comentou Paciência secamente. – Mas os deuses são cruéis. Eles não proíbem essa ambição, mas a castigam. A vida tenta se
afastar da necromancia, como a inflamação da carne tenta se afastar de uma picada venenosa. Mexer com ela produz males, doenças. Não há como escondê-la. Ele acabou
sendo descoberto, mas o confronto foi mal administrado. Meu amigo conseguiu escapar.
Paciência empurrou o capuz para trás. Sabeta parecia enraizada no lugar tanto quanto Locke, fascinada com a história, praticamente sem respirar.
– Antes de sua elevação a Arquidom, ele havia usado um nome cinzento, do Trono Terim. Chamava-se de Pel Acanthus, “Amaranto-Branco”. A flor lendária que nunca morre.
Era natural que, depois da loucura e da traição, nós o chamássemos...
– Não – sussurrou Locke.
A força abandonou suas pernas. Sabeta não foi suficientemente ágil para pegá-lo antes que seus joelhos batessem no chão.
– ... de Lamor Acanthus. “Amaranto-Negro”. Vejo que o nome significa alguma coisa para você.
– Você não poderia conhecer esse nome – retrucou Locke, ofegante, com a voz que mal passava de um grasnar. Até mesmo para seus ouvidos, a negação parecia patética
e infantil. – Não pode.
– Posso – rebateu Paciência, e sem gentileza. – Pel Acanthus era meu amigo, Lamor Acanthus era minha vergonha. Esses nomes significam muito para mim. Significam
mais ainda para você, porque eles são quem você é.
– O que você está fazendo com ele? – perguntou Sabeta.
Locke se agarrou a ela, trêmulo. Seu peito parecia espremido por tiras de ferro.
– Encerrando os mistérios – respondeu Paciência, suavizando a voz. – Fornecendo as respostas. Esse homem já foi Lamor Acanthus de Kartane, já foi o Arquidom Prudência,
da minha ordem. Já foi um mago mais poderoso do que eu.
Ela levantou o braço esquerdo e deixou a manga do manto cair, revelando seus cinco anéis tatuados.
– Eu não sou um maldito mago – disse Locke com a voz rouca.
– Não é mais – retrucou Paciência.
– Você está inventando essa merda! – falou Locke, enfatizando cada palavra, forçando-as a se tornar uma espécie de talismã emocional. – Então você conhece um...
nome. Admito que estou atônito. Mas eu tenho... Não sei quantos anos eu tenho, mas não posso ter 30 ainda. Trinta! Este homem de quem você está falando seria mais
velho do que você!
– Originalmente. E de certa forma você ainda é.
– Que diabo isso significa?
– Há 23 anos, um órfão sem passado apareceu depois de uma peste mortal. Eu não acabei de dizer o que acontece quando nossa arte mais proibida é praticada? Um golpe
mortal contra a própria vida. Doença. O Sussurro Negro que veio de lugar nenhum. Lamor Acanthus estava em Camorr, escondido nos barracos do Pegafogo. Foi lá que
você continuou com seus estudos, usando os pobres e esquecidos como material de trabalho.
– Ah, bobagem...
– Nós sabemos. Houve um evento de feitiçaria em Camorr antes da erupção da peste. Vários membros da minha ordem estavam perto o bastante para sentir. Ao término
do período de quarentena, nosso pessoal foi para lá em força máxima. Reviramos o Pegafogo, casa por casa, até encontrarmos a resposta. Aparatos mágicos. Os papéis
e os diários de Lamor Acanthus, assim como seu corpo, claramente identificável pelos anéis tatuados. Assim, achamos que a questão estava encerrada, de forma horrível,
mas, em última instância, era melhor assim. Anos se passaram. Então, veio o negócio desagradável envolvendo o meu filho. Isso chamou a nossa atenção para você. Jean
e você foram cuidadosamente examinados. Em particular Jean, já que o fato de possuirmos o nome vermelho dele tornava as coisas muito mais fáceis. Imagine a intensidade
da nossa surpresa quando ele contou que seu amigo mais íntimo, um órfão camorri, havia confessado que seu nome secreto era Lamor Acanthus.
– Você... contou seu nome verdadeiro ao Jean? – perguntou Sabeta.
Locke insistiu desesperadamente para si mesmo que a dor por baixo da surpresa dela era apenas obra de sua imaginação.
– Eu, ah, bem... merda. – Sua vontade, esmagada até virar uma pasta, não parecia capaz de fazer o esforço heroico para se erguer. – Eu sempre quis lhe contar. Só...
– Ele contou a Jean um nome verdadeiro – interrompeu Paciência. – Mas ainda há outro, não é? Você tem nomes cinzentos por baixo de nomes cinzentos, Locke. Lamor
Acanthus não me dá a chave para você, tanto quanto Locke Lamora, Leocanto Kosta ou Sebastian Lazari não me dão. Por baixo de tudo isso há outro nome, o que meu mentor
jamais compartilharia com outro mago. Por isso não sei qual é ele... talvez nem você lembre. Mas você e eu sabemos que ele está aí.
– Não sou o que você diz que eu sou. – Locke se afrouxou nos braços de Sabeta, atarantado. – Eu nasci em Camorr.
– Seu corpo nasceu. Não vê? Lamor Acanthus teve sucesso, de certa forma. Por isso a erupção da peste foi tão súbita, tão virulenta. Você arrancou o próprio espírito
do corpo antigo. Roubou um novo. Uma segunda juventude, uma nova fartura de anos para passar aperfeiçoando seus poderes. Mas não foi assim que a coisa funcionou...
Suas memórias foram fragmentadas, sua personalidade foi queimada. Você se trancou num corpo que não tinha o dom que você usou para colocar-se nele. Demorou mais
de vinte anos para que víssemos ambas as peças do quebra-cabeça, mas você não pode negar que elas se encaixam perfeitamente.
– Posso – replicou Locke. – Claro que posso negar!
– Por que você acha que eu fiz confidências a você? – Paciência suspirou com a exasperação comedida de uma professora ensinando a um aluno particularmente lento.
– Contei o que tenho de magia, mostrei o que sei sobre os magos. Você achou que eu só estava jogando conversa fora? Acreditou mesmo que você era tão especial? Eu
preciso de você agindo como meu exemplar no Jogo dos Cinco Anos. Mas também usei isso para justificar sua vinda para cá, para nos dar mais tempo para estudá-lo.
Para me dar tempo de fazer esta abordagem.
– Essa é alguma porra de jogo cruel da sua parte.
– Você ainda é um de nós, de certa forma. Você tem obrigações para conosco, e nós para com você. Uma dessas obrigações é a verdade. Se vocês dois não tivessem reacendido
seu caso particular, eu poderia ter adiado isto. Como a situação é esta, os dois têm o direito de saber e eu tinha a responsabilidade de contar. – Paciência tocou
gentilmente um dos braços de Sabeta. – Veja bem, eu sei o motivo para ele ter sonhado com mulheres ruivas durante toda...
– Pare! – Sabeta se soltou de Paciência, levantou-se e recuou para longe de Locke também. – Não quero ouvir! Não quero mais ouvir!
– Não me diga que você acredita nela! – exclamou Locke.
– Coincidências se empilham em coincidências até que a prova se torna forte demais para ser ignorada – insistiu Paciência.
– Enfie isso no rabo – rosnou Sabeta. – Eu não... não sei que diabo pensar sobre isso, Locke, só...
– Você acredita. – O choque se transformou instantaneamente numa raiva quente. Confuso, atordoado, Locke estava pronto para golpear qualquer alvo que encontrasse.
Antes que soubesse o que fazia, escolheu o errado: – Todas as coisas que nós fizemos, todo o tempo que passamos reconstruindo isso... e você acredita nela!
– Você disse que pegou esse nome de um marinheiro – disse ela, insegura. – Você acreditava nisso? Você... acredita agora? Como você pode ter certeza de que não estava
apenas preenchendo algum buraco ou fazendo com que ele fosse preenchido por outra pessoa...
– Como você pode pensar nisso? – A raiva chamejou, ainda mais intensa, quente e afiada, como uma faca recém-tirada das chamas. – Você me abandonou! Me manipulou,
você me drogou, porra, e ainda assim eu voltei. Mas basta uma história dessa porra de bruxa kartani e você me olha como se eu tivesse caído da porcaria do céu! Espere,
não, merda...
O remorso e a sensatez voltaram, tarde como sempre, como convidados de uma festa chegando logo depois que o desastre social da temporada já havia irrompido. O rosto
de Sabeta se obscureceu e ela abriu a boca várias vezes, mas no fim não falou nada. Virou-se com toda a graça medonha e decisiva própria da raiva feminina, abriu
a porta da sacada com violência e desapareceu na casa escura.
Locke ficou olhando, perplexo, ouvindo as pancadas da pulsação nas têmporas. Um instante depois, saltou de pé, agarrou o balde de prata com o vinho gelado e jogou-o
com um rosnado contra a mesa de carvalho. Ingredientes voaram, vidro se despedaçou, e gelo e vinho espirraram no braseiro, onde levantaram uma nuvem suave de vapor
sibilante.
– Obrigado pela porra da sua apresentação imparcial, Paciência. – Locke chutou um caco de vidro e olhou-o cair pela borda da sacada. – Obrigado pelos gentis esforços
a meu favor, sua, sua...
– Minha responsabilidade era lhe dizer a verdade, e não enrolá-lo em ataduras. – Ela ergueu o capuz outra vez, escondendo parte do rosto em sombras. – Nem protegê-lo
de seu temperamento mal direcionado. Ouça alguém que foi cortejada para um casamento feliz, mestre Lamora. Seu estilo de fazer a corte não poderia ser mais perfeitamente
projetado para lhe render uma vida solitária.
– Vá pular numa fogueira – vociferou Locke, de súbito lamentando ter quebrado a única garrafa de bebida que ele pensara em trazer para a sacada.
– Mais tarde vamos falar sobre isso. E, assim que a eleição terminar, vamos discutir os arranjos futuros.
– Não acredito em absolutamente nada que você disse – sussurrou Locke, sabendo como havia pouca convicção em sua voz.
– Você se recusou a acreditar que eu preservei sua vida em Tal Verrar por motivos de consciência. Agora eu lhe dou o motivo egoísta que você insistiu em conhecer
antes, e você se recusa a acreditar também. Você é mesmo tão arrogante a ponto de a lógica ser opcional como um acessório de moda? Você pode optar por acreditar
que nós confiaríamos a um homem normal até mesmo os fragmentos da verdade secreta que eu lhe mostrei. Ou pode abrir os olhos. Aceitar que lhe demos uma chance de
resolver os mistérios do seu passado. Talvez até uma chance de se redimir de um crime terrível. Um crime cujo corpo roubado da primeira vítima você usará como uma
máscara até o dia da sua morte.
Locke não disse nada, contemplando a bagunça que fizera com os ingredientes do festim que planejara preparar menos de quinze minutos antes.
– Fique de mau humor o quanto quiser – continuou Paciência. – Fique carrancudo a noite toda. Você tem um talento incrível para isso, não é? Mas, de manhã, esperamos
que esteja mais sóbrio, concentrado, trabalhando furiosamente por nós. Meus jovens colegas mais entusiasmados imaginam que as ameaças pitorescas que fizeram a você
escaparam ao meu conhecimento. Mas agora suspeito de que você entende como valorizo pouco Jean Tannen por ele próprio, e como... minha proteção a ele pode ser arbitrária.
A segurança constante de Jean depende totalmente da sua disciplina e da sua inspiração.
Paciência se virou e caminhou devagar para dentro da casa.
– Que os deuses salvem Jean Tannen! – gritou ela por cima do ombro.
Deixou Locke parado sozinho na sacada e não se incomodou em fechar a porta depois de sair.
i n t e r s e ç ã o ( I I I )
Fagulha
O velho retirou silenciosamente o feitiço de observação que tecera ao redor da Arquidama Paciência, o trabalho mais complexo de sua vida, e soltou um grande suspiro
de alívio. O esforço de espionar e de revelar os resultados dessa espionagem em pensamento para o seu contato do outro lado da cidade o havia testado ao máximo.
Isso não pode ser verdade! Ele podia sentir a fúria por trás dos pensamentos que agora o martelavam, vindos desse contato. A Arquidama Presciência era poderosa e
sua raiva chegava como a pressão de uma dor de cabeça crescente. Eu não ouvi NADA disso! Os outros três ficaram LOUCOS?
Por favor, calma, Arquidama. Tive uma noite difícil. Eles não estão loucos... mas foram longe demais. Agora a senhora vê por que precisei lhe contar.
Como isso foi escondido de mim?
Paciência reivindicou o direito de examinar os dois camorris depois da mutilação do Falcoeiro. Eu jamais saberia o que ela havia descoberto se não estivesse lá,
pessoalmente, durante interrogatório de Jean Tannen. Nós o pegamos em Tal Verrar, meses antes que os amigos do Falcoeiro tivessem permissão de brincar com eles.
Só Paciência, Temperança e eu sabemos o que Tannen nos contou. Assim o segredo foi guardado.
Lamor Acanthus de volta! Tudo é tão gigantesco, eu nem posso começar a pensar a respeito. Essa questão tem a ver com todos nós! Vou escancará-la na Câmara do Céu!
NÃO! O velho sentiu gotas de suor escorrendo pelas bochechas e pela testa. A intensidade da comunicação dos dois ia muito além do leve toque da fala mental. Paciência
e Temperança têm apoio demais na câmara. Prudência vai ficar do lado deles em qualquer discussão. Você sabe tanto quanto eu que, sem o Falcoeiro, você fica com poucos
Oradores para comandar. Seus seguidores são dedicados, mas estão em número muito pequeno para abordar esse assunto sem preparação.
Se Lamor Acanthus transferiu seu espírito para outro corpo, mesmo um corpo sem o dom, ele alcançou algo que nenhum outro mago na história conseguiu fazer.
Com desgraça e desastre!
É. Mais motivo ainda para o examinarmos coletivamente, pesquisar seus processos à exaustão. A mente e o poder de um homem não bastaram para superar as dificuldades.
Mas o que as mentes e os poderes de cem magos poderiam fazer? Ou de todos nós, todos os quatrocentos? É assim que isso DEVE ser abordado!
Concordo com você. Eu devo demais a Paciência; você acha que eu me voltaria contra ela em troca de algo menos do que uma questão realmente existencial? Por favor,
ouça-me, Arquidama. Se você levar isso à Câmara do Céu sem preparativos, a situação não correrá bem. Você deve atacar com base em uma posição de força verdadeira.
E, para isso... ouso dizer que devemos tomar medidas sem precedentes.
Sem dúvida você não pode estar sugerindo...
Jamais. Nenhum sangue deve ser derramado, pelo menos sem provocação. Mas você deve exercer a força. Deve... assumir o controle de Paciência e de alguns apoiadores
dela por algum tempo. Eles são importantes para que a balança do poder penda a favor deles. Se você demonstrar que não é bem assim, pode introduzir a questão num
ambiente genuinamente receptivo. Só isso pode garantir a discussão franca que essa situação exige.
O que você sugere ainda pode ser considerado um golpe.
Apenas um pequeno golpe. O velho abriu um sorriso torto e passou essa sensação através dos pensamentos. E só por pouco tempo. Nosso próprio futuro está em jogo.
Se deixarmos o Jogo dos Cinco Anos continuar, se deixarmos Paciência e seus apoiadores ficarem distraídos... com minha orientação, você poderá agir instantaneamente,
decisivamente. Na mesma noite em que o jogo terminar. Se pusermos os outros Arquimagos sob custódia, demonstraremos poder. Se depois os liberarmos incólumes, demonstraremos
boas intenções. Então, e só então, acredito que as circunstâncias serão adequadas para confrontarmos a bagunça feita por Paciência e os segredos que ela desenterrou.
Na noite da eleição, então.
É. Na noite da eleição.
Se você puder mesmo servir como nossos olhos, prometo que encontrará mãos capazes para fazer o serviço.
A Arquidama Presciência saíra de sua mente sem demonstrar sentimentos, como era de seu feitio. Aliviado, ele esfregou as mãos para acalmar o tremor.
Então estava feito. Era como devia ser, e pelo bem de toda a sua espécie, ele se lembrou. Tivera uma vida longa e confortável por causa de seus anéis. Sem dúvida,
se alguém era capaz de suportar o esforço e o fardo do que viria, era ele.
O ar da sala silenciosa pareceu subitamente gelado em sua pele. Tutanofrio decidiu que precisava demais de uma bebida.
i n t e r l ú d i o
Um patrono inconveniente
1
– Jovanno... – disse Locke. – Você...
– Fui eu – interveio Jenora, com a voz rouca. – Ele tentou... ele tentou...
– Ele tentou arrancar a porcaria da roupa dela – explicou Jean, envolvendo Jenora com os braços. – Ele estava no chão antes de eu entrar aqui.
– Eu não queria machucá-lo, mas... ele está bêbado – falou Jenora. – Ele pôs as mãos no meu pescoço. Começou a me esganar.
Locke se agachou cautelosamente perto de Boulidazi e tirou a lâmina do barão de dentro da bainha. Arfante, sangrando, o homem não fez qualquer esforço para impedi-lo.
Locke tinha visto antes cortes sangrentos no pulmão, provocados em duelos na corte de Capa Barsavi: era a morte quase certa, mas não rápida. Boulidazi ainda podia
ter força para lhes causar mal verdadeiro. Então por que não estava lutando? Seu olhar permanecia distante, as pupilas aumentadas demais. O sangue borbulhava em
volta da arma improvisada que ainda se projetava de seu peito e isso parecia estar lhe causando perplexidade, e não um pânico mortal.
– Ele não está apenas bêbado – disse Locke. – Deve ser a coisa que você deu a ele.
– Merda – murmurou Sabeta, encostando-se na porta. – Isso é tudo minha culpa.
– Que diabo você está falando? – perguntou Jean.
– A bebida do Boulidazi – explicou Calo. – Nós pusemos uma coisa nela. Para mantê-lo longe de... Verena e Lucaza.
– Merda – repetiu Sabeta, e sua expressão era demais para Locke suportar.
– Olhem – disse ele –, metade dessa maldita companhia está bêbada há semanas. Os gêmeos estiveram fora de si tomando qualquer coisa que viesse numa garrafa ou num
barril. Quando foi que eles tentaram estuprar alguém? – Locke apontou para Boulidazi. – Isso é culpa dele, porra, e de mais ninguém!
– Ele está certo – concordou Calo, pondo a mão no pulso de Jenora. – Você fez uma coisa ao estilo de Camorr. Você fez a coisa certa.
– A coisa certa? – Jenora afastou Calo e segurou as mãos de Jean. – Eu me enforquei. Derramei sangue nobre.
– Ainda não é assassinato – replicou Galdo.
– Não importa se ele viver ou morrer. Eles vão me matar por causa disso. Vão matar o máximo de nós que puderem, eu com certeza.
– Foi claramente em legítima defesa – rosnou Jean. – Vamos arranjar uma dúzia de testemunhas. Vamos pegar toda a porcaria da companhia; vamos ensaiar a história
perfeitamente...
– E eles vão matá-la – interrompeu Sabeta. – Ela está certa. Não importa se tivermos cem testemunhas, Jovanno. Ela é uma plebeia de pele noturna e nós somos atores
estrangeiros, e agora somos todos cúmplices da extinção do último herdeiro de uma casa nobre esparana. Se formos apanhados, eles vão nos moer até virar pasta e nos
semear nos campos.
– Como observou meu irmão – interveio Galdo –, ainda não temos um cadáver.
– Temos, sim – contrapôs Locke baixinho.
Suas mãos se moveram com uma firmeza decisiva que surpreendeu sua cabeça. Ele tirou a faixa suja da cintura do barão e o amordaçou com ela. O ferido lutou para respirar,
mas continuou sem perceber o que lhe acontecia.
– Deuses, o que você está fazendo? – perguntou Jenora.
– O necessário – respondeu Locke, friamente empolgado, enquanto seus mais antigos reflexos, seus instintos camorris, empurravam de lado os sentimentos de clemência
e piedade. – Se ele disser uma palavra disso a alguém, estamos condenados.
– Ah, deuses – sussurrou Jenora.
– Eu ficarei feliz em fazer isso – comentou Jean.
– Não – reagiu Locke.
Ele havia demandado a tarefa; Correntes esperaria que não passasse o fardo adiante. Suas mãos tremeram enquanto ele desafivelava o fino cinto de couro do barão e
o enrolava nas mãos. Depois, a imagem de Jean, Sabeta e os Sanzas pendurados numa forca esparana relampejou em sua mente e suas mãos ficaram firmes como pedras de
um templo. Passou a correia no pescoço de Boulidazi.
– Espere! – exclamou Sabeta.
Ela se ajoelhou na frente de Boulidazi, que agora devia parecer tragicamente ridículo, percebeu Locke, com a tesoura enterrada no peito, a própria faixa amordaçando-o
e um adolescente magro apertando sua traqueia com um cinto.
– Você não pode espremer o pescoço dele.
– Fique observando – replicou Locke com os dentes trincados.
– Um homem pode ser esfaqueado por muitos motivos – insistiu Sabeta. – Mas se ele for furado e estrangulado, não vai parecer acidental.
Ela segurou a tesoura com movimentos ternos. Seus olhos eram implacáveis feito o oceano noturno.
– Só o segure para mim – sussurrou.
Locke desenrolou as mãos do cinto e agarrou Boulidazi pelos braços grossos. Sabeta deu um empurrão forte com a tesoura de Jenora, para cima e para dentro. Boulidazi
gemeu e se sacudiu nos braços de Locke, mas sem força verdadeira. Mesmo no momento da morte, ele estava trancado fora da realidade.
Boulidazi ficou frouxo, as pernas se sacudindo cada vez mais debilmente até que, por fim, ele se imobilizou. Sabeta se acomodou de volta nos próprios joelhos, suspirou
de forma irregular e estendeu a mão suja de sangue como se não soubesse como limpá-la. Locke soltou a faixa do barão e entregou-a a ela, depois colocou o peso morto
de Boulidazi no chão. Se pudessem manobrá-lo com cuidado, Locke achava que manteriam a maior parte do sangue dentro do corpo, ou pelo menos em cima dele.
Jenora encostou o rosto nos braços de Jean.
– Agora podemos fazer com que isso pareça qualquer coisa – afirmou Sabeta. – Discussão, crime passional, qualquer coisa. Vamos colocá-lo em algum lugar plausível
e criar uma fábula. Só precisamos deduzir qual. E, ah, fazer isso nas próximas duas...
Alguém bateu à porta do quarto.
Locke lutou para manter o autocontrole; ao primeiro som, fora como se sua pele tentasse pular fora do corpo. Um olhar rápido ao redor mostrou que ninguém tinha um
controle firme dos próprios nervos.
– Milorde Boulidazi? – A voz abafada pertencia a Brego, o guarda-costas e faz-tudo de Boulidazi. – Milorde, o senhor está aí? Está tudo bem?
Locke encarou a porta, da qual Sabeta havia se afastado para dar cabo de Boulidazi. Calo e Galdo estavam mais perto, mas até eles se encontravam a três ou quatro
passos de distância. A porta não estava trancada; se Brego decidisse abri-la, até mesmo uma fresta, olharia diretamente para o cadáver de Boulidazi.
2
Sabeta se moveu como uma seta atirada por um arco, e a primeira coisa que fez foi tirar a túnica.
O queixo de Locke ainda não havia terminado de cair quando Sabeta chegou à porta, sem fazer o mínimo barulho, leve como um fantasma.
– Ah, Brego – disse ela, ofegante. – Ah, só um momento!
Ela gesticulou em direção ao cadáver de Boulidazi. Calo e Galdo saltaram para ajudar Locke e, em segundos, conseguiram empurrar o corpo do barão para baixo da cama.
Com um cobertor, Jean tapou parcialmente a lâmpada alquímica do quarto, diminuindo a luz. Um instante depois, Calo, Galdo e Locke se espremeram contra a parede logo
atrás de Sabeta, fora do arco visual da porta – desde que ela não ficasse toda escancarada.
Sabeta desgrenhou o cabelo com um movimento preciso da cabeça, então entreabriu a porta para lhe dar uma visão inesperadamente boa de uma jovem preocupada. Sua túnica
estava comprimida contra o peito com uma das mãos, para cobrir um mínimo artístico dos seios.
– Ora, Brego – falou ela, imitando um ofegar perfeito –, seu sujeito zeloso!
– Ora, Sra. Verena, eu... Milorde, ele...
– Está ocupado, Brego. – Ela deu um risinho. – Está muito ocupado e vai ficar assim durante um bom tempo. Acho que você pode esperar lá embaixo. Ele está nas melhores
mãos possíveis.
Sabeta não lhe deu tempo de dizer mais nada: com um acenozinho lascivo, fechou a porta e trancou-a.
Alguns segundos agonizantes se passaram, depois Locke ouviu os passos de Brego afastando-se pelo corredor. Sabeta vestiu a túnica, afundou o corpo contra a porta
e deu um suspiro de alívio.
– Vamos todos ficar com a porra dos cabelos grisalhos antes que o sol nasça – comentou Galdo.
Ele e Calo estavam segurando adagas a postos, que, então, voltaram a esconder. O ar no quarto pareceu subitamente denso com os cheiros de sangue e suor nervoso.
– Agora podemos dar o fora daqui? – perguntou Jenora.
– Aonde você que ir? – indagou Jean.
– Para Camorr! – sussurrou ela. – Pelo amor dos deuses, sei que vocês podem fazer... alguma coisa! Sei que vocês não são só atores.
– Calma, Jenora. – Locke olhou para uma das botas de Boulidazi, que se projetava incongruente de debaixo da cama. – Você não é exatamente insignificante. Como as
pessoas não notariam você se esgueirando horas antes de termos que encenar a peça? Como poderíamos manter você escondida na estrada?
– Um navio, então.
– Se você fugir, vai abrir um buraco na história que vamos inventar para explicar o que aconteceu – retrucou Sabeta. – E você terá que deixar sua tia sofrer as consequências!
Se não pudermos fazer com que a história seja bem contada e óbvia, o pessoal da condessa vai começar a pegar bodes expiatórios.
– Mesmo que a história seja bem contada e óbvia – reagiu Jenora –, estamos todos esmagados. Nós temos dívidas, lembra? Com o pessoal das fossas, os confeiteiros,
os vendedores de cerveja, os alugadores de almofadas. Sem a peça, vamos ter uma dívida tão grande com todos eles que seria melhor nos entregarmos agora mesmo na
Torre do Lamento.
– E quanto aos atos dos deuses? – perguntou Calo. – Certamente vocês não teriam dívidas se viesse um furacão. Ou se o Pérola Antiga desmoronasse.
– Claro que não. Mas, quaisquer que sejam os poderes que vocês tenham, duvido que cheguem tão longe.
– Não tão longe. Mas o palco é feito de madeira.
– Um incêndio! Ótimo! – exclamou Galdo. – Nós dois podemos cuidar disso. Entramos e saímos como sombras. Não vai demorar duas horas.
– As madeiras do palco são quimicamente petrificadas – replicou Jenora. – Não vão pegar fogo com facilidade. Vocês precisariam de uma dúzia de carroças de lenha;
seria como fazer um maldito cerco.
– Então não podemos destruir o Pérola – murmurou Sabeta.
– E não podemos fugir – completou Jean. – Isso atrairia todo tipo de encrenca e não é provável que algum de nós chegasse em casa.
– E se ficarmos e não fizermos a peça, vamos ser presos por dívidas – acrescentou Locke. – No mínimo por dívidas.
– Logo, só há um caminho sensato – disse Sabeta.
– Ganhar asas? – perguntou Calo.
– Precisamos fingir que está tudo bem. – Sabeta contou os itens de sua lista imaginária usando os dedos enquanto falava: – Precisamos tirar o Brego da porcaria da
estalagem, assim teremos espaço para agir. Precisamos encenar a peça...
– Você ficou louca! – exclamou Jenora.
– ... e, quando a tivermos encenado, revelaremos que Boulidazi morreu, em circunstâncias que não incriminem ninguém de quem gostamos.
– O que vamos fazer com o cadáver do filho da puta? – Galdo chutou a bota mais próxima, para dar ênfase. – Você sabe que vai feder se nós o guardarmos até amanhã
à noite.
– E vai ficar feio como um cu – disse Calo. – Qualquer imbecil verá que os ferimentos não são recentes.
– É aí que entra o incêndio – sugeriu Locke. – Nós podemos queimá-lo! Cozinhá-lo até que ninguém saiba se ele morreu há uma hora ou uma semana.
– Como vamos controlar isso? – questionou Jean. – Se nós o queimarmos até não ser mais reconhecido...
– Não se preocupem. – Locke ergueu a arma que havia tirado de Boulidazi, a mesma que o barão encostara em seu rosto. A lâmina era totalmente comum, mas o punho tinha
granadas pretas e um delicado cloasonado em ferro branco. – Isso e todos os outros objetos de valor deixarão muito evidente a identidade dele.
– Onde vamos esconder essa coisa... quero dizer, ele? – perguntou Jenora.
– Não, você quis dizer essa coisa mesmo – replicou Jean, dando um sorriso rígido.
– Quanto ao cheiro... acho que tenho sachês aromáticos e um pouco de pó de rosas, que podemos colocar no corpo. – Jenora ainda não estava nem um pouco calma, mas
sua decisão parecia se reforçar. – Isso deve ajudar a disfarçar. Pelo menos por um dia.
– Bem pensado – concordou Calo. – Quanto ao lugar, acho que seria óbvio demais mantê-lo enfiado embaixo dessa cama, não é?
– Está totalmente fora de questão!
– Poderíamos colocar Sylvanus sentado em cima dele a noite toda – sugeriu Locke. – Ele não notaria nada até ficar sóbrio outra vez. Infelizmente, todas as outras
pessoas notariam. Vamos escondê-lo com os adereços e figurinos.
– Vamos escondê-lo como um adereço – emendou Sabeta. – Temos uma peça cheia de cadáveres. Vamos cobri-lo com algo adequado, colocar uma máscara em cima e, para todo
mundo, ele será apenas algo no cenário! Desse modo, podemos mantê-lo conosco...
– ... e não precisaremos nos preocupar com a hipótese de alguém encontrá-lo enquanto estamos no Pérola! – exclamou Locke. – É. Com isso resta um último problema...
Há montes de cavalheiros e convidados esperando desfrutar da companhia dele durante a peça.
– Odeio acrescentar cagalhões ao festival de bosta – interveio Calo –, mas esse não é o último problema. O que vamos contar ao resto da trupe?
– Por que precisamos contar ao resto da trupe? – perguntou Jenora.
– Não me agrada dizer, mas nós vamos ter que colocá-los no negócio – respondeu Sabeta. – Eles vão estar em toda parte, no meio dos adereços e figurinos. Se não tivermos
a cooperação deles, estamos acabados.
– Como vamos fazer com que eles cooperem? – indagou Jean.
– Vamos torná-los cúmplices – explicou Sabeta. – Garantir que entendam que o pescoço deles também está na forca, porque está mesmo.
– Singua solus – disse Galdo.
– Exatamente. – Sabeta encostou um ouvido na porta e prestou atenção por um momento. – Singua solus.
– O que é isso? – perguntou Jenora.
– É uma antiga tradição camorri para quando um punhado de pessoas está planejando algo idiota – respondeu Locke. – Na verdade, temos um bocado de tradições para
isso. Você vai ver.
– Giacomo, Castellano, vocês estão muito bêbados? – indagou Sabeta.
– Nem de longe – garantiu Calo.
– Já estamos aqui dentro há tempo suficiente – continuou Sabeta. – Portanto, vocês dois, desçam ao salão e juntem todos os membros da companhia. Arranquem as bebidas
das mãos deles se for preciso. Mandem-nos para a cama. Nós precisamos deles o mais inteiros e descansados possível quando revelarmos essa surpresa.
– Tirar as bebidas do Jasmer e do Sylvanus... – Galdo suspirou. – Certo. E, já que estamos com a mão na massa, vamos correr até Kartane e aprender magia com os...
– Vão – ordenou Sabeta. – Eu vou espiar lá fora primeiro, para o caso de o Brego ainda estar espreitando.
Outro sinal agourento da profundeza das águas em que eles nadavam foi que nenhum dos Sanzas fez mais qualquer piadinha ou reclamação. Sabeta entreabriu a porta,
examinou o corredor e assentiu. Os gêmeos saíram num instante.
– Jenora, nos papéis da companhia você tem alguma coisa assinada pelo Boulidazi? – perguntou Sabeta. – Qualquer coisa em que ele tenha rabiscado?
– Ah, tenho... tenho. – Ela apontou para uma pasta de couro num canto distante. – Todos os papéis que designam a participação dele na companhia e alguns bilhetes
de instruções. Ele é... era bem letrado. Gostava de alardear isso.
– Eu sei. – Sabeta pegou a pasta e jogou-a na cama ao lado de Jean e Jenora. – Examinem e peguem esses papéis para mim. Não tenho muito tempo para treinar, mas devo
ser capaz de imitar a letra dele. De qualquer modo, ele deveria estar bêbado. E... exausto.
– Parece que os mortos conseguem falar – comentou Locke, constrangido por não ter pensado ele próprio em falsificar bilhetes do barão.
– O suficiente para se livrar do Brego – concordou Sabeta. – E modificar as instruções do barão para os empregados, de modo que só o esperem para depois da peça,
amanhã à noite. Agora, Jenora, seus sachês estão com os outros adereços?
– Estão.
– Graças aos deuses pelos pequenos favores. Então só precisamos transportá-lo uma vez e perfumá-lo, e devemos estar bastante seguros até reunirmos a companhia amanhã.
Locke assentiu. Os adereços estavam armazenados três portas adiante. Presumindo que Jean ajudasse, eles poderiam levar até mesmo um saco de músculos como Boulidazi
em segundos. Mas eram segundos cruciais! Locke pegou um velho cobertor na cama para usar como mortalha.
Jean pareceu acompanhar seus pensamentos. Abraçou Jenora e sussurrou algo no ouvido dela.
– Não – respondeu ela. – Não serei tratada como criança por causa daquele... daquele porco filho da puta. Deixe-me ajudá-lo.
Com o auxílio de Jean, Jenora se levantou trêmula e fez um esforço para ajeitar a túnica rasgada.
Agiram alguns instantes depois. Jenora foi à frente, com Locke e Jean carregando o corpo enrolado e Sabeta na retaguarda, de pés leves e olhos abertos. Os sons de
gritos e farra ecoavam no salão. Jean suportava facilmente o peso de Boulidazi, mas Locke já estava com o rosto afogueado quando Jenora abriu para eles a porta do
quarto de adereços.
Mais um instante e estava feito. Locke arrancou o cobertor do cadáver e embolou-o antes que pudesse se encharcar demais com sangue. Boulidazi ficou ali caído, com
a estranha frouxidão dos mortos recentes, como um manequim cheio de areia, a expressão perplexa no rosto.
– Um de nós tem que ficar – comentou Locke, relutante. – É perigoso demais deixá-lo por aí sem vigilância. Um de nós tem que bloquear a porta e passar a noite aqui.
– Olhe – disse Jean –, eu ficaria, mas...
– Entendo. – Locke conteve um gemido ao perceber que só havia um candidato para o serviço que ele propusera. – Você deve ficar com Jenora. Saiam daqui, os dois.
Jean apertou o ombro dele. Jenora, evitando cuidadosamente sequer roçar no cadáver do barão, passou por Locke e tirou um velho globo alquímico de uma pilha de retalhos
de roupas. Sacudiu-o para produzir uma luz fraca e lhe entregou. Num instante, ela e Jean haviam saído.
– Obrigada – sussurrou Sabeta.
A simpatia e a admiração nos olhos dela eram demais para que Locke suportasse. Ele se virou e fez uma carranca para o cadáver de Boulidazi, depois foi incapaz de
resistir enquanto Sabeta puxava-o para um abraço breve e apertado. Ela encostou os lábios nos dele pelo tempo de um batimento cardíaco.
– Tenho bilhetes a escrever – disse ela. – Mas você não escapou. Isso é apenas um adiamento. Vamos ter outra chance. Outra outra chance.
Locke quis falar algo inteligente e tranquilizador, mas sentia-se nitidamente exaurido de humor, e só conseguiu dar um aceno triste antes que ela fechasse a porta
em silêncio. Locke trancou-a com um suspiro.
Demorou apenas alguns instantes para encontrar o suprimento de pó de rosas e os sachês de Jenora, já que a maior parte dos figurinos e do entulho no quarto fora
organizada para ser transportada com facilidade. Locke engasgou e conteve um espirro enquanto salpicava um pouco de pó alquímico de cheiro doce no corpo do barão.
– Está satisfeito, seu saco de merda? – sussurrou. Sua raiva se intensificou e, com um rosnado, ele chutou o corpo de Boulidazi, levantando outro sopro leve de pó
de rosas. – Até depois de morto você sacaneia minhas intimidades!
Locke apoiou as costas numa parede e foi escorregando lentamente, sentindo a força se esvair das pernas, junto com a fúria. Que lugar para passar a noite! Uma dúzia
de máscaras de espectros o encarava das paredes. Uma dúzia de mortos imaginários formando uma corte para um cadáver muito real.
Fechou os olhos e tentou afastar da mente a imagem das máscaras mortuárias. Sob o odor forte de rosas, ainda conseguia perceber o levíssimo perfume de Sabeta, grudado
nos lábios, no cabelo e na pele.
Gemendo, acomodou-se para a pior noite de suposto descanso que já tivera em anos.
3
– Por que, em todos os infernos afundados em bosta, vocês nos arrancaram da cama, camorris?
Jasmer Moncraine estava bastante maltratado na décima hora da manhã seguinte. Sylvanus era apenas uma pequena porcentagem de ser humano, Jumento parecia rezar em
silêncio desejando morrer, e Bert e Chantal estavam se usando mutuamente como suportes. Só Alondo, de todos os ardorosos farristas da noite, parecia quase intacto.
A companhia estava reunida no maior quarto da estalagem da Sra. Gloriano. Os Nobres Vigaristas haviam passado quase uma hora expulsando vagabundos, prostitutas,
parasitas e curiosos da estalagem. Os figurantes da companhia tinham recebido sérias instruções para se reunirem no Pérola. Com a porta trancada e o prédio quase
vazio, a privacidade nos minutos seguintes era o mais garantida possível.
– Nosso lorde e patrono fez uma coisa que precisamos discutir – começou Sabeta.
Ela e os outros camorris, junto com Jenora, formavam uma parede entre o resto da trupe e a mesa da sala, onde estava um objeto coberto e perfumado.
– O que ele fez, exigiu que puséssemos pó de rosas nas túnicas? Pelas partes privadas dos deuses, isso está fedendo – resmungou Moncraine.
– O que temos para mostrar – respondeu Jenora, com a voz falhando – é a coisa mais importante do mundo. Pela sua honra, por suas promessas uns aos outros, por suas
almas, vocês precisam jurar que não vão gritar. Estou falando muito sério. A vida de vocês está em jogo.
– Guarde o drama para o palco, e para depois do meio-dia. – Chantal bocejou. – Que negócio é esse?
Locke engoliu em seco e assentiu. A parede humana em frente ao cadáver coberto se abriu; Jean e os Sanzas abriram caminho entre a companhia e assumiram nova posição
vigiando a porta. Quando eles já estavam no lugar, Locke descobriu o corpo do barão num gesto rápido.
Houve um silêncio sepulcral, medonho, um vácuo de pavor que devorava tudo. O rosto de Moncraine fez coisas que Locke teria jurado que estavam fora dos poderes até
mesmo de um ator veterano.
Jumento foi cambaleando até um canto da sala, firmou-se contra a parede e vomitou.
– O que vocês fizeram? – sussurrou Moncraine. – Meus deuses, deuses da minha mãe, vocês mataram a gente, porra. Vocês, seus assassinozinhos camorris da porra...
– Foi um acidente – interrompeu Jenora, torcendo as mãos com tanta força que Locke podia ouvir os estalos.
– Acidente? O quê, o quê, ele... esfaqueou a porra do coração?
– Ele estava bêbado – explicou Sabeta. – Tentou estuprar Jenora e ela se defendeu.
– Você se defendeu? – Moncraine encarou Jenora com o queixo caído, como se ela tivesse acabado de aparecer do nada. – Sua puta imbecil, você acabou com todos nós.
Deveria ter aproveitado ao máximo e deixado que ele fosse embora!
Sabeta olhou-o furiosa, Chantal piscou como se tivesse levado um tapa e Jenora deu um passo adiante, com raiva. Curiosamente, o punho que acertou o queixo de Moncraine
meio segundo depois pertencia a Sylvanus.
– Você perdeu a cabeça – rosnou o velho. – Você é que podia ter matado aquele chato inútil há semanas, se tivesse alguma coisa nas mãos! Seu pavão escroto traiçoeiro!
Sylvanus passou por Jasmer, que segurava o queixo e olhava arregalado para o velho. Sylvanus juntou cuspe com um trovejar catarrento e cuspiu uma gosma rosada no
peito do barão morto.
– Então o que está aí deitado é a nossa morte. E daí? Há poucas vantagens em ser amigo de Sylvanus Olivios Andrassus, mas pelo menos há esta. Se você disse que precisou
fazer, Jenora, sinto orgulho de você por isso.
Jenora abraçou o velho. Sylvanus deu um suspiro reflexivo e um tapinha nas costas dela.
– Jenora, eu... peço desculpas – lamentou-se Moncraine. – Andrassus está certo. Eu perdi a cabeça. Os deuses sabem que não posso falar sobre me conter diante de...
provocações. Mas agora precisamos nos espalhar. Temos duas ou três horas no máximo. Há centenas de pessoas esperando por nós no Pérola no meio da tarde.
– Eu não posso fugir – retrucou Jumento, ofegante, miserável, limpando a boca na manga da túnica. – Não posso sair de Espara! Isso é loucura! Eu nem sou... Vamos
nos explicar, vamos dizer que foi tudo um acidente, eles vão entender!
Locke respirou fundo, firmando-se. Era de Jumento que ele estivera com medo; a questão se resumia a quanto ele gostava de Alondo.
– Eles não vão entender porcaria nenhuma – resmungou Bert. – Somos um monte de estrangeiros, atores e gente de pele noturna para eles castigarem à vontade.
– Djumein, o Bert está certo. Eles não precisam se importar se alguém é inocente – disse Locke. – Portanto, ninguém vai fugir nem confessar. Nós temos um plano e
todos vocês vão fazer um juramento se quiserem estar livres e vivos no fim do dia.
– Eu, não. Eu vou embora – retrucou Jasmer. – Vestido de sacerdote, vestido de cavalo, vestido como a porra da condessa se for preciso. Existem saídas da cidade
que não são portões vigiados. A não ser que o seu plano envolva um Mago-Servidor, eu sou a favor de ir...
– Então teremos dois cadáveres sobre os quais mentir, em vez de um – cortou Sabeta.
Calo e Galdo enfiaram a mão nas mangas das túnicas, tomando o cuidado de serem o menos discretos possível.
– Vocês, cachorrinhos, adoram dar a porra das ordens – vociferou Moncraine. – Isso é loucura e fantasia! Nós não brincamos com cadáveres. Nós fugimos deles o mais
depressa que pudermos!
– Jasmer, seu covarde de merda – censurou Jenora. – Dê uma chance a eles! Quem arrancou você da cadeia?
– Os deuses – respondeu Jasmer. – Os deuses são todos pervertidos e parece que sou a atual diversão deles.
– Chega! Agora isso é singua solus – afirmou Locke. – Significa “um só destino”. Todo mundo entendeu?
Moncraine apenas olhou-o, furioso. Chantal, Bert e Sylvanus assentiram. Jumento balançou a cabeça e Alondo falou:
– Eu, ahn, preciso confessar que não entendi.
– A coisa funciona assim. Agora todo mundo aqui é cúmplice de assassinato e traição. Parabéns! Não há como recuar. Por isso vamos seguir em frente com esse negócio,
com a cabeça bem erguida, ou vamos ser enforcados. Nós juramos cumprir com o plano, vamos contar exatamente as mesmas mentiras e vamos levar a verdade para a sepultura.
– E se alguém renegar – completou Sylvanus, devagar e sério –, se alguém pensar em confessar, e trocar o resto de nós por alguma vantagem, juramos vingança. O resto
de nós jura acabar com a pessoa, custe o que custar.
– Misericórdia dos Doze. – Jumento soluçou. – Eu só queria me divertir um pouco no palco, só uma vez.
– A diversão precisa ser paga, primo. – Alondo segurou-o pelos ombros e firmou-o. – Parece que o preço aumentou para nós. Vamos mostrar aos deuses que temos um pouco
de coragem, hein?
– Como você pode estar tão calmo?
– Não estou. Estou apavorado demais até para mijar direito. Mas, se os camorris têm um plano, é mais do que eu tenho, e vou me agarrar a ele.
– O plano é simples – garantiu Sabeta –, mas vai exigir um pouco de coragem. A primeira coisa que vocês precisam saber é que vamos fazer a peça esta tarde.
As reações foram as que Locke esperava: pânico, gritos, palavrões e ameaças, mais pânico.
– PELOS TREZE DEUSES! – gritou Calo, silenciando o tumulto. – Há uma saída e não se pode dar para trás. Se não subirmos ao palco como se nada estivesse errado, não
poderemos escapar. Agora vocês estão nas nossas mãos e nós somos sua única chance!
– Nós mijamos excelência e cagamos finais felizes – acrescentou Galdo. – Confiem em nós e sobrevivam. Ouçam o Lucaza de novo.
Locke falou depressa, de forma sucinta, e descartou malignamente perguntas e reclamações. Delineou cada detalhe do plano, como o haviam conjurado na noite anterior,
com algumas reviravoltas que ele tinha pensado durante a longa vigília. Quando terminou, todo mundo, menos Sylvanus, parecia ter envelhecido cinco anos.
– Isso é ainda pior do que antes! – exclamou Jumento.
– Infelizmente, dá para ver que você é indispensável – retrucou Locke. – Você pode ter se oferecido para morrer no palco, mas vai ser morto de verdade se não fizer
o jogo.
– O que... que diabos vamos fazer com o corpo? – perguntou Chantal.
– Vamos queimar – respondeu Sabeta. – Fazer com que pareça um acidente. Temos um plano para depois da peça. Vamos assá-lo o suficiente para esconder a verdadeira
causa da morte, mas não o bastante para impedir a identificação.
– E o dinheiro? – indagou Jasmer, com a voz seca e tensa. – Não teremos uma segunda apresentação com um patrono morto. Mesmo se formos absolvidos de pagar as perdas
a todos os vendedores, estaremos no buraco. Bem fundo.
– Esta é a minha última boa notícia – disse Locke. – Temos cópias das assinaturas do barão, além de seu anel de sinete. Vamos pegar todo o dinheiro da primeira apresentação;
depois voltamos para cá. Você, Jasmer, vai assinar um recibo para o barão, de tudo que é devido a ele, como se ele tivesse recebido primeiro, como era de direito.
Verena vai falsificar a assinatura dele. Depois ele morre num incêndio, o dinheiro vai discretamente para os nossos bolsos e nós agimos como se não tivéssemos ideia
de que diabo Boulidazi fez com a grana antes de morrer.
– Vamos recolher o dinheiro? – perguntou Moncraine.
– Claro. Achamos que Jenora poderia cuidar disso...
– Nós não podemos recolher o dinheiro – atalhou Moncraine. – É uma das coisas que Boulidazi e eu estávamos discutindo ontem à noite antes que ele ficasse bêbado
demais para pensar! Alguém virá, por ordem dele, para recolher o dinheiro.
– O quê?! – exclamaram Locke e Sabeta ao mesmo tempo.
– Isso mesmo que eu disse, seus pirralhos sabichões da porra. Boulidazi pode agora ser um presunto, mas contratou um mercenário para recolher o dinheiro por ele.
Nenhum de nós terá permissão de tocar numa moeda de cobre!
Capítulo Dez
O Jogo dos Cinco Anos:
Abordagens finais
1
– Você é tão bem-vindo quanto um escorpião num berçário – disse Vordrata, recebendo Locke com um olhar furioso e uma muralha de capangas bem-vestidos às costas.
Como estava se tornando rotina, Locke fora parado antes de chegar à metade do hall do Marco da Íris Negra.
– Preciso vê-la – replicou Locke, ofegante.
Sua corrida pela cidade não fora digna ou sutil; ele havia roubado um cavalo para torná-la possível e provavelmente os casacas-azuis estavam revirando o Vel Verda
enquanto ele falava.
– Ora, você é a última pessoa em Kartane que teria permissão de fazer isso. – O sorrisinho de Vordrata cortava seu rosto magro como um ferimento de espada. – As
ordens dela foram explícitas e veementes.
– Olhe, eu sei que nosso último encontro foi...
– Desagradável.
Vordrata fez um gesto. Antes que Locke pudesse se virar e correr, os guardas do Íris Negra o haviam agarrado.
– Lembre-se, mestre Vordrata, que o senhor praticamente confessou sua intenção de mandar que fôssemos espancados e largados num beco. Logo, se nossas opções de conversa
forem reduzidas, o senhor só poderá culpar a si mesmo!
– A senhora da casa especificamente não deseja vê-lo. – Vordrata chegou perto; seu hálito recendia a vinho velho. – Apesar de eu ter sido encarregado de não lhe
fazer mal, vou argumentar que não sou responsável por qualquer coisa que aconteça entre o momento em que você sai da minha custódia e bate no pavimento.
Os guardas de Vordrata empurraram Locke para fora e o lançaram num arco impressionante que terminou num impacto contra as pedras do calçamento, capaz de abalar os
ossos. Os sentimentos dele debateram violentamente sobre o próximo passo, orgulho e desejo contra a prudência e os reflexos de rua, esse último vencendo apenas quando
ele notou a perigosa proximidade do tráfego de carruagens e o número de possíveis testemunhas de sua humilhação. Gemendo, arrastou-se de volta para o meio-fio.
Seu cavalo roubado tinha sumido e os cavalariços do Íris Negra lhe lançaram olhares maliciosos, como se soubessem das coisas. Foi uma caminhada longa e dolorosa
até um bairro onde um cocheiro se dignou a pegá-lo.
2
– ... e ess a é toda a maldita situação – concluiu Locke, segurando firmemente um copo que já contivera uma quantidade de conhaque capaz de queimar a garganta. –
Encontrei uma carruagem e vim direto para cá.
Passava da meia-noite. Locke havia retornado, buscado Jean na suíte e, com a ajuda de grandes pratos de comida e uma garrafa do destilado mais caro de Josten, tinha
desenrolado toda a história.
– Você precisa mesmo de mim para dizer que a vaca estava mentindo? – perguntou Jean.
– Eu sei que ela estava mentindo. Tem que haver mentiras misturadas em algum lugar. O que me preocupa são as partes que podem ser verdade.
– Por que não presumir que era TUDO mentira? – Jean passou os dedos rapidamente pelas têmporas, tentando massagear a dor surda que ainda se irradiava do nariz consertado.
– Bobagem de proa a popa! Pelos deuses, é isso o que você e eu fazemos com as pessoas: nós as convencemos a ficar acuadas num canto onde não sabem separar a verdade
do absurdo.
– Ela sabe o meu nome. Meu nome de verdade. O nome que eu...
– É. E eu sei quem contou a ela.
– Mas eu só...
– Isso mesmo. – O nojo ardeu como bile no fundo da garganta de Jean, que bateu no peito com as duas mãos. – Eles disseram que me abriram como um livro em Tal Verrar
e que tiraram tudo o que queriam. Portanto, eu devo ter dado o nome a eles. Pense! O resto da história de Paciência deve ter sido montado a partir daí.
– Com isso, resta a questão do terceiro nome.
– O nome que Paciência diz que é mais profundo do que o que você me contou? Ele ao menos existe?
Locke esfregou os olhos.
– Eu não... não sei. Não é um nome. É só uma sensação, talvez.
– Mais ou menos o que eu esperava. Você se lembra mesmo de já ter tido essa sensação antes de hoje? Isso parece um blefe preparado. Eu tenho todo tipo de sentimentos
estranhos e misturados no coração e na cabeça; todos nós devemos ter. Ela não lhe deu meia partícula de prova! Só fez plantar uma dúvida contra a qual você pode
se debater para sempre, caso se permita.
– Se eu me permitir. – Locke jogou o copo de lado. – Durante toda a vida eu me perguntei de onde, diabos, eu vim. Agora recebo possibilidades como flechas nas entranhas
e absolutamente não tenho tempo de pensar nelas.
– Possibilidades. – Jean suspirou. – De verdade, agora, mesmo se fossem respostas verdadeiras, você iria querer essas em particular? Sei que para mim é fácil dizer...
sabendo onde e quando nasci...
– Eu sei de onde eu sou. Sou de Camorr. Sou de Camorr! Mesmo que tudo que ela disse seja verdade, é só para isso que eu ligo a mínima. Para isso e para Sabeta. –
Locke se levantou, o rosto contraído numa expressão séria. – Isso, Sabeta, e vencê-la de lavada nessa eleição idiota. Agora...
Alguém bateu à porta, com força e urgência.
3
Locke observou Jean destrancá-la com a cautela costumeira. Ali estava Nikoros, barbado, os olhos parecendo ovos fritos e o cabelo parecendo ter sido preso nos aros
de uma roda de carroça. Ele estendia um pedaço de pergaminho na mão trêmula.
– Isto acaba de chegar – murmurou ele. – Especificamente para mestre Lazari, por um mensageiro do Íris Negra no AAAAHHHH!
Essa exclamação irrompeu dele quando Locke saltou adiante e agarrou a carta. Ele a abriu, notando os traços rápidos e familiares da letra de Sabeta:
Eu gostaria de poder escrever um nome no alto e assinar o meu embaixo, mas nós dois sabemos como essa seria uma ideia ruim.
Sei que minha recusa em vê-lo deve ter sido dolorosa, e peço desculpas por isso, mas acredito que estava certa. Meu coração está partido com essa estranheza e essas
charadas. Mal consigo domar palavras para formar pensamentos inteiros e suspeito que você não poderia ser acusado de estar nas melhores condições, tampouco. Não
sei o que faria se estivesse com você ao alcance dos braços; o que poderia perguntar, o que poderia exigir em nome do consolo. A única certeza é que os termos de
nosso serviço não foram afrouxados e ambos corremos o risco mais sério caso pisemos descuidadamente. Se estivéssemos juntos neste momento, não imagino que poderíamos
pisar de outro modo.
Não entendo o que aconteceu esta noite. Só sei que me apavora. Apavora-me que sua controladora, por algum motivo, tenha sentido tanto interesse em nos contar tanta
coisa. Apavora-me que existam coisas em movimento ao seu redor que parecem nos amarrar a esses segredos e essas obrigações.
Apavora-me que ainda possa haver algo escondido de você mesmo, alguma parte básica de você que ainda pode tombar como uma parede ruída, e fico assombrada pelo pensamento
de que, quando encontrá-lo me olhando, pode não ser com os olhos que eu recordo e, sim, com os de um estranho.
Perdoe-me. Sei que você ficaria tão ansioso com meu silêncio quanto com minha honestidade, por isso optei pela honestidade.
Deixei que sentimentos que considerava enterrados voltassem com poder verdadeiro sobre mim e agora me vejo numa necessidade desesperada de me distanciar e clarear
as ideias. Por favor, não tente voltar pessoalmente ao Marco da Íris Negra. Por favor não venha me procurar. Preciso que você seja meu oponente agora, mais do que
preciso que você seja meu amante ou mesmo meu amigo. Nisso falo por nós dois.
– Ah, dane-se tudo – murmurou Locke, amassando o pergaminho e enfiando-o num bolso do casaco. – Dane-se absolutamente tudo.
Ele desmoronou de novo na cadeira, as sobrancelhas franzidas, e deixou o olhar vaguear sem objetivo pela parede. O tipo de silêncio mais incômodo baixou na sala,
até que Jean pigarreou.
– Bom, ah, Nikoros, você parece ter sido espancado por demônios. O que está acontecendo?
– Negócios, senhor, negócios. É muita coisa. E eu... eu... Desculpe, estou sem... a substância da qual falamos.
– Você está se curando daquele pó maldito. – Jean apertou os ombros de Nikoros, um gesto que fez o sujeito bambolear feito gelatina. – Ótimo! Você estava se matando,
e sabe disso.
– Pelo modo como minha cabeça está, eu meio que gostaria de ter conseguido.
A curiosidade de Locke arrastou-o de volta ao presente e ele examinou Nikoros. O kartani estava certamente em abstinência da alquimia negra; Locke tinha visto isso
uma centena de vezes. O sofrimento sacudiria Nikoros durante dias, como um gato se divertindo com um brinquedo. Poderia ser sensato diminuir as tarefas do pobre
coitado... ou mesmo acorrentá-lo a uma parede.
Diabos, pensou Locke, se eu for arrancado mais uma vez da própria pele, pode ser que precisem me algemar ao lado dele.
– Lazari – chamou Jean. – Bom, se essa carta é o que eu acho que é... É, digamos, algo definitivo? Ou só uma interrupção?
– É uma faca nas tripas. Mas acho... bom, acho que posso considerá-la mais como uma interrupção.
– Ótimo. Ótimo!
– Acho que sim – murmurou Locke. Depois, sentiu um calor antigo e familiar agitando-se no peito e acrescentou: – É, acho mesmo! Pelos deuses, preciso de barulho
e malícia. Preciso de confusão e sacanagens até não conseguir enxergar direito! Nikoros! O que você andou fazendo a noite toda?
– Ah, bem, acabei de examinar a grande confusão. Grande e cada vez pior. Quero dizer, não só para nós. Para toda a cidade.
– Estou perdendo a condição de separar uma confusão da outra por aqui.
– Ah! Estou falando do portão norte, senhores, e do Pátio da Poeira. Todos os refugiados vindos do norte.
– Ah. AH! Deuses, a maldita guerra. Eu meio que havia esquecido. Que tipo de refugiados?
– Nesse ponto, principalmente os endinheirados. Os que fugiram antes que a luta chegasse perto. E seus guardas, serviçais e coisa e tal. Todos se empilhando nas
estalagens até poderem solicitar residência...
– Refugiados com dinheiro, você disse – interrompeu Jean. – Procurando lares novos. O que quer dizer potenciais eleitores precisando de assistência imediata.
– Diabos, sim! – gritou Locke. – Cavalos, Nikoros! Três, agora! Mande um escriba e um advogado nos acompanhar. Vamos pegar qualquer um que possa pagar pela franquia
eleitoral; depois encontraremos acomodações permanentes para eles em distritos onde mais precisarmos de votos!
– E eles vão ser do Raízes Profundas até o fim da vida – completou Jean com um sorriso. – Ou pelo menos durante as próximas duas semanas, que é o que nos interessa.
– Eu, ah... eu virei, senhores, é só que... – Nikoros engoliu em seco e torceu as mãos. – Primeiro preciso de alguns minutos de privacidade, se for possível. Vou,
é, encontrá-los lá embaixo.
4
A noite estava fresca. Cavalgavam através de pálidos fiapos de névoa se desenrolando das pedras do calçamento como espíritos inquietos, passando por estandartes
pretos e estandartes verdes que pendiam frouxos de sacadas, em meio a um silêncio imponente, até chegarem ao Pátio da Poeira. Ali, encontraram a confusão que Nikoros
tinha prometido.
Os casacas-azuis estavam em força total e Locke viu imediatamente como eles pareciam nervosos, como deviam estar desacostumados com surpresas de verdade. Havia carroças
enfileiradas de qualquer jeito, cavalos bufando e balançando o rabo enquanto cocheiros e cavalariços discutiam. Havia lâmpadas acesas em cada estalagem e taverna
ao redor do pátio; grupos conversando e debatendo espalhavam-se por toda parte na multidão inquieta.
– Para onde, diabos, devemos ir, então? – berrou um lacaio de carruagem com casaco comprido para um cavalariço de aparência cansada. Sua linguagem terim era boa,
mas o sotaque era óbvio. – Todas essas tavernas estão cheias e agora você diz que essa maldita estalagem do Josten está fechada para a porcaria da sua...
– Perdão, bom homem – interveio Locke, puxando as rédeas ao lado da discussão. – Se você tem pessoas de alta estirpe buscando acomodações, eu posso ajudar imediatamente.
– Verdade? Quem, diabos, é você?
– Meu nome é Lazari. Doutor Sebastian Lazari. – Locke abriu um sorriso, depois passou a falar em seu excelente vadrã: – Seus senhores ou senhoras têm todas as minhas
simpatias diante das circunstâncias do deslocamento, mas logo eles descobrirão que não estão desprovidos de amigos em Kartane.
– Ah, abençoadas as águas profundas e as rasas! – exclamou o empregado de carruagem na mesma língua. – Eu sirvo à honorável Irina Varosz de Stovak. Estamos há cinco
dias na estrada desde...
– Vocês estão praticamente em casa – interrompeu Locke. – O Josten é o lugar certo para vocês. Acomodações Amplas do Josten. Posso arranjar aposentos; não liguem
para o que disseram. Meu amigo Nikoros vai cuidar dos detalhes.
Nikoros, mal controlando seu cavalo arisco, aproximou-se ao ouvir o estalo dos dedos de Locke.
– Eu, ahn, não tenho certeza de onde devo colocá-los – sussurrou ele.
– Use os aposentos que mantive vazios por motivos de segurança. Podemos encontrar outros lugares para eles dentro de alguns dias. Revire o cérebro em busca de alguém
do partido que tenha cômodos vazios. Diabos, há uma mansão em Vel Verda que me vem à mente agora mesmo. Seria bom que brotasse alguma alegria daquele lugar maldito.
Jean já estava usando seu vadrã amistoso com outros guardas, lacaios e estrangeiros curiosos e bem-vestidos com capas poeirentas. Durante cerca de vinte minutos,
ele e Locke trabalharam juntos tranquilamente, direcionando primos menores de nobres e mercadores de status variados para Nikoros, e daí para a estalagem do Josten
e o seio do partido Raízes Profundas.
Houve uma nova agitação na extremidade sul do Pátio da Poeira. Cascos em massa ressoaram nas pedras quando cerca de duas dúzias de homens e mulheres com librés pretas
chegaram, liderados por Vordrata e alguns dos capangas que Locke vira no Marco da Íris Negra.
– Isso é um chute nas partes preciosas – murmurou Locke para Nikoros. – Eu esperava um pouquinho mais de tempo a sós para fazer novos amigos. Quem disse a esses
escrotos para saírem da cama?
– Ah, é, tenho certeza de que foi só uma, ahn, questão de tempo.
Nikoros tossiu.
– Você provavelmente está certo. – Locke estalou os nós dos dedos. – Bom, agora vamos bancar os pretendentes com mais ênfase. Aqui vem aquele escriba e o advogado
que eu queria, pelo menos. Você, cavalgue feito o diabo de volta ao Josten e ajude-o a empilhar nossos amigos do norte como livros em prateleiras!
5
Já passava da nona hora da manhã quando o incômodo sentimento de dever de Jean puxou-o de volta para o mundo dos despertos, sentindo-se como massa mal assada apenas
o suficiente para lembrar um pão. Fez sua toalete com indiferença, apenas domando o cabelo e passando óleo nele antes de vestir um conjunto de roupas das Irmãs Morennas.
Com os ópticos no lugar e o emplastro do nariz ajustado, usou o pequeno espelho de sua suíte para reafirmar que sua enorme necessidade de café era visível. Infelizmente.
Eles haviam feito um bom trabalho na noite anterior e a recompensa por isso seria ainda mais trabalho naquele dia.
Jean abriu a porta da suíte principal e encontrou Locke empoleirado numa escrivaninha, parecendo mais arrasado do que ele próprio.
– Eu perguntaria se você dormiu – disse Jean –, mas aprendi a reconhecer perguntas idiotas antes de fazê-las.
Locke estava cercado pelos detritos de negócios pessoais e do partido: pilhas de papéis com a letra de Nikoros, pequenas avalanches de anotações e recibos se derramando
de pastas de couro, vários pratos de biscoitos meio comidos descartados, uma série de velas consumidas e globos alquímicos levemente fosforescentes. Folhas de pergaminho
amarrotado cobriam o chão. Locke espiou Jean como se fosse algum tipo de criatura subterrânea arrancada da contemplação de tesouros secretos por um intruso mortal.
– Não estou com muita vontade de dormir – murmurou. – Você pode ir em frente e pegar o meu sono se quiser.
– Se ao menos isso funcionasse! – exclamou Jean, abrindo a cortina de uma janela. – Deuses, você prende essas coisas com força suficiente para manter a água do lado
de fora, quanto mais uma manhã de outono.
– Por favor, não toque nisso! – Locke sacudiu sua pena e Jean notou que ela estava nitidamente mais curta do que quando ele fora para a cama. – Se abrir essa janela,
eu vou explodir em chamas.
– O que fez você se agitar tanto? – Jean deixou as cortinas em paz e se acomodou numa poltrona. – Tem alguma coisa a ver com os novos amigos que trouxemos ontem
à noite?
– Não. – Locke lhe concedeu um sorriso satisfeito. – A contagem, por sinal, é de 72 adultos e potenciais eleitores. Coloquei os advogados enfileirados para discutir
os termos com eles. Belo e simples. Vamos levá-los em grupos aos departamentos relevantes, entregar um pouquinho de dinheiro para adoçar, junto com as taxas, e fazer
com que sejam registrados. Ao anoitecer serão setenta eleitores leais, e então vamos decidir em que distritos colocá-los.
– Quantos rostos novos o Íris Negra pegou?
– Metade do que conseguimos. – Mais dentes apareceram no sorriso de Locke. – Deixei um comitê de recepção no Pátio da Poeira para manter o partido andando e mandei
uma pequena expedição para examinar a estrada. A oposição ainda poderá pegar alguns, é claro, mas acho que podemos dizer, com segurança, que a maioria dos votos
dos expatriados vadrãs será no Raízes Profundas.
– Esplêndido. Mas qual é o negócio que está gastando essa pena?
– Ah, é, você sabe. – Locke gesticulou para o arco de pergaminhos amassados no chão. – É uma carta. Minha carta. Para, é... ela. Minha resposta. Tem alguns... é...
sentimentos e delicadezas que ainda precisam ser ajeitados. Acho que, quando falo “alguns”, quero dizer “todos”. Diga, posso pedir que você sirva de embaixador lá
no Marco da Íris Negra depois que eu terminar a carta?
– Ah, sem dúvida. Porque eu esperava mesmo entrar em outra briga com os garotos e as garotas de Sabeta o quanto antes, obrigado.
– Eles não vão machucar você. Nem vão fazer com que você os machuque. Sou eu que Vordrata quer pegar.
– Claro que eu carregarei um penhor da sua obsessão para o território hostil. Mas com uma condição: coloque-se na cama e use-a para o objetivo original, agora mesmo.
– Mas...
– Você tem bolsas embaixo dos olhos, do tamanho de pastéis – cortou Jean, sentindo que estava sendo muito gentil. – Você parece o Nikoros, pelo amor do Guardião
Torto. Como se devesse estar agachado numa sarjeta em algum lugar, pegando alguns animais pequenos e comendo-os crus. Você precisa descansar.
– Mas a carta...
– Eu tenho uma poção do sono aqui mesmo, pronta para ser administrada. – Jean fechou o punho e o sacudiu para Locke. – Além disso, um cochilo para clarear a cabeça
só poderia melhorar seu empreendimento epistolar, não?
– Ei. – Distraidamente, Locke coçou com a pena a barba crescida. – Isso tem uma aparência suspeita de sabedoria, seu maldito. Por que você sempre conta vantagem
sobre ser mais sábio do que eu?
– Isso não exige muito esforço consciente.
Jean apontou para o quarto de Locke com um fingimento de seriedade paterna, mas Locke já estava indo, tropeçando e bocejando. Em instantes, começou a roncar.
Jean examinou os destroços da tentativa de Locke para escrever a carta, imaginando o conteúdo das folhas amarrotadas. Enfiou a mão esquerda num bolso do casaco e
passou o polegar em volta da mecha de cabelos escondida ali. Depois de um momento de contemplação, pegou os pergaminhos embolados, empilhou-os na pequena lareira
da suíte e queimou-os com um fósforo alquímico tirado de uma caixa ornamentada sobre o console. Locke continuava roncando.
Jean saiu e trancou a porta silenciosamente.
A estalagem do Josten estava bastante animada. Havia rostos novos e bem-vestidos por todo o salão e as conversas aconteciam tanto em vadrã quanto em terim. Zelo
Josten, vistoso como um general de tropas que ainda não tinham visto sangue, dava sermão em meia dúzia de empregados. Ele bateu palmas e mandou-os para suas tarefas
enquanto Jean se aproximava.
– Mestre Callas, meu fornecedor de clientela estranha! O senhor parece um homem à procura de um desjejum.
– Tenho apenas dois desejos: o primeiro é de café forte, o segundo, de café mais forte ainda.
– Veja meu jask. – Josten apontou para um bule de cobre ornamentado, de alça longa, fumegando numa reluzente pedra alquímica brilhante atrás do balcão. – Na verdade,
é o jask do meu pai. Segredo do lar okanti. Vocês, pobres coitados, ainda preparavam o café em banheiras quando nós viemos salvá-los.
O café que Josten decantou do jask era coberto com uma espuma cor de canela. Jean sentiu-se menos do que civilizado engolindo-o de uma vez só, mas seu raciocínio
precisava ser cutucado e a mistura de sabores de figo e chicória atingiu a garganta num satisfatório jorro escaldante. A sala já estava parecendo mais clara quando
ele chegou ao final da xícara.
– Acende a fogueira, não é? – perguntou Josten, enchendo de novo a xícara de Jean. – Estou servindo-o para Nikoros há dias, pobre coitado. Ele... é... perdeu um
apoio pessoal.
– Eu sei. Foi inevitável.
Josten se recusou educadamente a deixar que Jean continuasse suas tarefas só com café como desjejum. Após alguns minutos, Jean subiu a escada para a área privativa
do Raízes Profundas carregando uma tigela com anchovas de água doce, azeitonas, tomates cortados, queijo marrom e duro e rodelas de pão frito com óleo e cebola.
Nikoros estava esparramado numa poltrona acolchoada, cercado por um arco de papéis e copos vazios que lembravam a confusão que brotara ao redor de Locke. Sua barba
parecia suficiente para raspar cracas de cascos de navios e as pálpebras se erguiam sobre olhos injetados.
– Nos meus sonhos, eu assino recibos e preencho papéis – murmurou Nikoros. – Depois, acordo para assinar recibos de verdade e preencher papéis de verdade. Imagino
que minha lápide será esculpida na forma de uma escrivaninha: “Aqui jaz Nikoros Via Lupa, sem esposa e sem herdeiros, mas os deuses sabem como ele era capaz de arquivar
em ordem alfabética!”
– Nós o sobrecarregamos. E você ainda está se livrando daquela merda que ficava enfiando no nariz! Tempos difíceis. Mestre Lazari e eu fomos insensíveis. Aqui, coma
um pouco do desjejum.
A princípio, Nikoros hesitou, mas seu interesse cresceu rapidamente e, logo, ele e Jean apostavam corrida para terminar o conteúdo da tigela.
– Você é o cerne deste negócio todo – afirmou Jean. – Não são as Dexas e os Epitalus que mantêm as coisas no lugar. Nem mesmo Lazari e eu. Tem sido você, é você,
e será você, muito depois de termos ido embora.
– Muito depois desse desastre nos deixar para trás e de os deuses concederem que ainda tenhamos algum assento no Konseil daqui a cinco anos.
– Ora, nós estamos bem no meio da coisa, sem dúvida. Você não pode ver a direção da batalha porque está na lama e na sujeira, com todos os outros pobres coitados,
mas ela tem uma direção. Você deve aceitar minha garantia de que posso ver um pouquinho mais longe.
– Desta vez, o Íris Negra – Nikoros afastou o olhar de Jean –, eles... eles têm... bom, eles têm vantagens. Pelo menos é o que me parece.
– Eles têm algumas – concordou Jean, assentindo. – Nós temos outras. E nos saímos bastante bem nesse novo jogo dos nortistas exilados, não foi? Seis dúzias de novos
eleitores para colocar onde precisarmos. O Íris Negra pode fazer qualquer tramoia que queira contra nós, mas no fim tudo se resume aos nomes nas urnas.
– Vocês estão sendo mal servidos por mim – disse Nikoros, quase baixo demais para ser ouvido.
– Bobagem. – Jean deu um aperto atencioso, amigável, no braço de Nikoros e acrescentou, erguendo a voz: – Se você não estivesse atendendo às nossas expectativas,
não acha que o teríamos colocado em algum lugar fora do caminho?
– Bom, obrigado, mestre Callas.
Nikoros sorriu, mas foi uma formalidade sem graça.
– Deuses, deve ser minha semana de ser confessor dos deprimidos e cansados. – Jean suspirou. – Acho que seria bom você ter mais algumas horas de sono. Do tipo que
não acontece enfiado numa cadeira. Vá para seu quarto e não me deixe vê-lo de novo até...
Uma mulher de cabelo curto e encaracolado subiu a escada pisando forte. Usava um casaco de viagem e um manto, além de uma bolsa de mensageiro e uma faca embainhada.
– Senhores, desculpe voltar correndo assim, mas eu não sabia aonde ir.
– Essa é Ven Allaine – apresentou Nikoros, levantando-se. – Ven de “Aventureira”. É uma das nossas solucionadoras de encrencas. Ven, tenho certeza de que sabe quem
é mestre Callas.
Jean e Allaine trocaram as cortesias mais rápidas possíveis; depois, ela continuou:
– Mestre Via Lupa nos mandou sair uma hora antes do sol nascer, cinco de nós, a cavalo, para o norte, a partir do Pátio da Poeira. Deveríamos encontrar ricos vadrãs
na estrada, nos apresentar, fazer as ofertas, trazê-los para o Raízes Profundas pelo dinheiro antes mesmo que chegassem à cidade. – Ela descalçou as luvas de couro
e bateu-as na perna. – Planejávamos ficar fora até o meio da tarde, mas, logo depois do amanhecer, fomos alcançados por casacos-azuis, um monte, que não estavam
poupando os cavalos. Disseram que tinham uma diretriz emergencial da Comissão de Ordem Pública. Nenhum cidadão de Kartane tem permissão de se afastar mais de 100
metros pela estrada por causa de “condições instáveis”. Avisaram que poderíamos voltar a cavalo, sob escolta, ou a pé, presos. Portanto, cá estou de novo.
– Tem certeza de que eram guardas de verdade? – perguntou Jean.
– Não havia engano: eles tinham os papéis da Comissão e eu reconheci alguns.
– Você fez bem – elogiou Jean. – Se tentasse discutir, provavelmente estaria caminhando de volta, sob guarda, agora mesmo. Você e seus colegas, tomem o desjejum
e deixem isso conosco. – Jean observou-a ir embora e, em seguida, virou-se para Nikoros. – Comissão de Ordem Pública?
– Um trio de membros do Konseil. Escolhidos por voto majoritário da assembleia. Uma espécie de comitê que comanda a polícia.
– Merda. Acho que seria idiotice minha perguntar a que partido pertencem os três.
– Seria. Desculpe, senhor.
– Teremos que dar continuidade a nossos esforços diplomáticos dentro dos portões da cidade. Não se preocupe, vou mandar Allaine e o grupo dela para se juntar ao
outro pessoal depois da refeição. Quanto a você, vá para a cama. Não diga nada, só vá para o seu aposento e se deite, ou eu vou jogá-lo deste balcão. Você e mestre
Lazari precisam disso. Eu posso tocar a música desta dança durante algumas horas.
Depois que Nikoros se esgueirou agradecido para descansar, Jean examinou os papéis que ele havia deixado, percebendo novas situações, além de problemas familiares.
Anotou ordens, entregou-as aos mensageiros, recebeu indagações rotineiras e tomou diferentes variedades de café, todos recém-preparados e escaldantes, enquanto os
dedos pálidos da luz outonal entravam pelas janelas e percorriam o salão.
Logo após o meio-dia, a porta da frente se abriu com estrondo. Maldita Superstição Dexa e Primeirofilho Epitalus passaram entre os clientes e subiram a escada, seguidos
por um número incomumente grande de auxiliares. Jean pousou seu café e a papelada, então se levantou para recebê-los.
– Você! – sibilou Dexa, caminhando com ar enfático até Jean. – Você e Lazari nos colocaram temerariamente numa situação do mais profundo e insuportável embaraço.
Jean se empertigou, respirou fundo e abriu os braços de modo afável.
– Vejo que temos um desentendimento. Bom, estou aqui para instruir e me condoer. Todo mundo que não seja membro do Konseil está dispensado.
Alguns auxiliares pareceram inseguros, mas Jean deu um passo adiante, sorrindo, e sinalizou para irem embora, como se lidasse com crianças. Num instante, ele e os
dois conselheiros estavam sozinhos no balcão particular e o sorriso de Jean desapareceu.
– Vocês nunca mais se dirigirão a mim desse modo – ordenou com a voz baixa e calma, porém nem um pouco educada.
– Pelo contrário – reagiu Dexa –, pretendo arrancar sua pele com ácido sulfúrico verbal. Agora...
– Maldita Superstição Dexa – disse Jean, avançando para cima dela sem sutileza –, você vai baixar a voz. Não vai fazer um escândalo. Não vai confundir e desmoralizar
os membros do partido que estão lá embaixo. Não dará aos nossos oponentes a satisfação de ouvir nenhum desacordo ou dissensão aqui!
Ela o encarou com raiva, mas depois, devido à força do argumento, ao feitiço do condicionamento ou aos dois, controlou o mau humor e assentiu de má vontade.
– Agora vou ouvir qualquer coisa, até mesmo a bronca mais maligna, desde que seja dada em voz baixa e que preservemos nossa aparência externa de amabilidade.
– Desculpe, você está totalmente correto. Mas você e Lazari colocaram nossa credibilidade numa barca e a afundaram no lago com esse negócio de recolher desgarrados!
– Desgarrados ricos e com boas conexões. Todos estarão agradecidos pelo lugar que ocuparão aqui e vão demonstrar gratidão votando...
– É exatamente isso – interrompeu Epitalus. – Não vão. Mostre a ele, Dexa.
– Nós fomos chamados a uma reunião de emergência do Konseil há pouco mais de uma hora. – Dexa tirou várias folhas de papel dobradas do casaco e entregou-as a Jean.
– O Íris Negra a convocou e mal conseguiu cumprir a lei ao mandar os avisos. Eles aprovaram uma diretriz de emergência através do voto de maioria simples.
– À luz de acontecimentos imprevistos – murmurou Jean em voz alta, lendo a declaração legal de escrita bem apertada – e do influxo desesperado de vários refugiados...
passos necessários para garantir a pureza do processo eleitoral kartani... urgente impedir que esses refugiados obtenham a franquia como cidadãos eleitores... período
de três anos! Ah, aqueles sacos de bosta de jumento metidos à besta!
– Exato – concordou Dexa. – Agora vá aos detalhes.
– Todos os guardas têm o poder... – leu Jean, passando por cima das irrelevâncias e dos floreios – ... portanto esta diretriz deve ser considerada em efeito... meio-dia!
Ao meio-dia de hoje! Há alguns malditos minutos.
– É – falou Epitalus. – Parece que não era uma necessidade tão urgente e imediata a ponto de eles não se certificarem de que todos os recém-chegados vadrãs deles
próprios se registrassem primeiro.
– Diabos. Eu só mandei cerca de metade dos nossos. Achávamos que teríamos o dia todo! Quantos eleitores eles compraram?
– Segundo nossas fontes, quarenta – respondeu Dexa. – Então, apesar de todos os seus galopes no meio da noite, vocês conseguiram seis votos para nós e quarenta para
a oposição, e agora temos seis dúzias de primos do norte para armazenar como roupas sem utilidade! Como você propõe se livrar deles?
– Não proponho.
– Mas isso é simplesmente...
– Nós prometemos ajudá-los e abrigá-los em nome do Raízes Profundas. Sabe o que acontece quando esse tipo de promessa não é cumprida? Como vocês acham que os eleitores
kartanis vão confiar em nós se formos vistos chutando refugiados respeitáveis de volta para o frio diante dos olhos de toda a cidade?
– Bem pensado. – Dexa suspirou.
– Se não podemos usá-los como eleitores, ainda podemos pegar o dinheiro deles em troca da nossa ajuda. E usá-los para angariar simpatia. Vamos espalhar alguns exageros
sobre como essas pessoas foram expulsas de seus lares. Famílias assassinadas, casas queimadas, heranças usurpadas, esse tipo de coisa. Lazari e eu somos bons em
contar histórias.
– Ah, sim, sem dúvida – disse Dexa, finalmente perdendo toda a capacidade de luta. – Aposto que vocês devem saber, afinal de contas.
Jean franziu a testa. Esse tipo de lassidão súbita só podia ser algum tipo de fricção entre o condicionamento de Dexa e suas inclinações naturais. Agora era hora
de fazer com que ela e Epitalus voltassem a ser o que eram.
– Vocês não teriam nos contratado se não quisessem o melhor possível num tipo de negócio muito incomum. Agora, se não têm mais planos para o momento, seria bom eu
ter o conselho de vocês em algumas destas situações pela cidade...
Na verdade, Jean não precisava de nada disso, mas, após alguns minutos de fingimento, encontrou algumas questões genuínas em que aplicar a conversa fiada deles e,
depois de mais alguns minutos, pediu que servissem café, conhaque e tabaco pelo resto da tarde. Logo, qualquer rachadura na fachada de trabalho parecia rebocada
e Jean se pegou treinando um pouco de prestidigitação com a bebida para não ter o raciocínio emplastrado.
Por volta da terceira hora da tarde, Locke apareceu, parecendo significativamente menos próximo da morte. Usava um casaco preto novo, com acabamentos em verde, e
mastigava, com distração treinada, biscoitos e carne equilibrados delicadamente numa caneca de café.
– Olá, colegas Raízes – cumprimentou com a boca cheia. – Estive ouvindo agora mesmo as coisas mais incríveis.
Jean lhe entregou os papéis de Dexa e explicou a situação do modo mais sucinto possível. Locke comia com a voracidade de um perito, de modo que estava mergulhando
o último biscoito no café enquanto Jean terminava o relatório com inócuos sinais de mão:
Esses dois estavam perturbados. Já consertei. Usei argumentos e bebida. Mais bebida.
– Infelizmente foi um velho esquema grandioso que nós armamos – comentou Locke –, mas agora só podemos deixar flores na sepultura e partir para o próximo. Nossos
amigos do Íris Negra parecem estar mais espertos ou com mais sorte do que o normal nos últimos dias. Bom, deixem isso comigo. Preciso contra-atacar.
Tomou um longo gole do café, depois sinalizou para Jean e os dois conselheiros se inclinarem mais para perto.
– Dexa – disse baixinho –, Epitalus, vocês dois devem conhecer muito bem os outros membros do Konseil. Que conselheiro do Íris Negra vocês diriam que é o... egoísta
mais mercenário? Com menos ligação com a política, ideologia ou qualquer coisa além do próprio bolso?
– O mais adequado ao suborno? – perguntou Epitalus.
– Digamos que o mais aberto à persuasão clandestina por meios financeiros ou não.
– De qualquer modo, teria que ser um tipo de persuasão capaz de encher um cofre – afirmou Dexa. – Os ratos não costumam abandonar um navio que não esteja afundando.
Desculpe-me por essa impressão sobre o Íris Negra, mestre Lazari, mas é como eu vejo.
– Não se preocupe. Mas há alguém?
– Se eu precisasse apostar alguma coisa, colocaria o meu dinheiro no Lovaris.
– Segundofilho Lovaris – completou Epitalus, assentindo. – Também chamado de “Perspicácia”, se bem que só os deuses sabem por quê. Ele não tem nenhuma posição política
verdadeira, pelo que sei. Adora as oportunidades de... enriquecimento que uma cadeira no Konseil atrai.
– Eu sou uma oportunidade para enriquecimento – garantiu Locke com um sorriso. – Preciso me encontrar com essa figura em particular, o quanto antes, e secretamente.
Como vocês sugerem que eu faça isso?
– Através do Nikoros – respondeu Dexa. – Ele e seu assessor para os sindicatos de transportes. Lovaris é sócio nos negócios de um navio chamado Dama Esmeralda. Se
um contato de Nikoros levasse para ele uma carta lacrada para falar de algum assunto tedioso sobre navegação, você teria a atenção dele e não precisaria balançar
perto a bandeira do Raízes Profundas.
– Parece uma ideia soberba, Maldita Superstição. – Locke saudou-a com a caneca vazia. – Tenho minha próxima missão.
6
Três dias depois, um homem magro e desarrumado, com uma túnica suja de tinta, emergiu dos caminhos verdejantes e nevoentos do Mara Kartani, onde lanternas suspensas
oscilavam na chuva e as estátuas do Trono Terim em alcovas meio desmoronadas se entregavam lentamente à ação da natureza.
Na extremidade leste do parque centenário ficava a mansão de Perspicácia Lovaris, representante do Íris Negra no Konseil para o distrito de Bursadi. O homem desalinhado
bateu na entrada de serviço e foi recebido por uma mulher de pele escura do tamanho de uma pequena montanha, de cabelos grisalhos mas com pés perigosamente leves.
O gasto bastão de madeira-bruxa pendurado no cinto dela parecia ter conhecido um bocado de crânios.
Ela guiou o recém-chegado, ainda pingando, pelos corredores ricamente mobiliados da casa até um aposento pequeno, de pé-direito alto, onde uma luz quente e amarela
caía feito uma bênção. Essa iluminação não tinha nada a ver com o céu natural, claro: era um arco de lâmpadas alquímicas acima de um vitral gravado com símbolos
comuns dos Doze.
A mulher empurrou o homem magro contra uma parede do aposento e, por um instante, ele temeu alguma traição. Então, suas mãos fortes e capazes deslizaram pelas laterais
do corpo dele de um modo familiarizado. A busca por armas foi meticulosa, mas ela obviamente não tinha conhecimento do antigo truque camorri do estilete sem cabo
na altura do cóccix, pendurado por um cordão de pescoço.
Locke não tinha ilusões de chutar portas e deixar para trás uma quantidade de inimigos mortos, caso surgissem complicações, mas até mesmo um arsenal precário como
aquele era algo tranquilizador de se ter à mão.
– Ele não está armado – anunciou a mulher, sorrindo pela primeira vez. – Nem seria ameaça se estivesse.
Um terim de meia-idade com cabelos claros e rosto rosado e enrugado entrou na sala. Ele e a mulher trocaram de lugar com a facilidade de atores no palco e ela fechou
a porta ao sair.
– Pode tirar esse absurdo da cabeça – afirmou o homem. – Pelo menos presumo que seja um absurdo, se você é quem deve ser.
Locke tirou a encharcada peruca de cachos pretos e os ópticos ornamentais, de lentes grossas como fundos de jarros de alquimista. Pousou-os na única mesa da sala,
que tinha apenas uma cadeira, do lado de Lovaris.
– Sebastian Lazari – disse Lovaris, sentando-se com um grunhido fraco. – Prodígio lashani sem história genuína em Lashane. Doutor sem comprovação. Advogado sem escritórios
nem clientes anteriores.
– O passado falso não está à altura dos meus padrões – retrucou Locke. – Não lamento admitir isso, já que não fui eu que fiz esse serviço.
– Você e seu amigo grandalhão são contrapartidas interessantes para a adorável Sra. Gallante. Se bem que, obviamente, não vêm do mesmo lugar.
– Obviamente.
– Acho que vocês vieram para o norte, partindo de suas habitações usuais, mestre Lazari. Ouvi boatos há alguns meses, quando o Arconte de Tal Verrar teve aquela
queda longa de um pedestal estreito. Segundo dizem, alguns capitães do serviço de informações conseguiram escapar da forca e sumiram no meio da confusão.
– Saudações. Mas, ah, o senhor deve saber muito bem que eu não deixei ninguém para trás com interesse suficiente para me perseguir, mesmo se a sua... teoria divertida
chegasse aos ouvidos certos.
– Nem desperdiçarei meu tempo fazendo contato com eles. A eleição já terá passado antes que uma carta chegue a Tal Verrar. Não, nada que digamos aqui será ouvido
por mais ninguém, a não ser meus antepassados. – Lovaris indicou os ornamentados escaninhos e gavetas que decoravam as paredes da sala. – Este é o depósito memorial
da minha família. Setecentos anos em Kartane. Nós somos anteriores à Presença. Quanto a você, bom, eu o trouxe aqui em resposta ao seu bilhete interessante porque
desejo lhe causar inconveniência.
– Tenho certeza de que sua linhagem não sobreviveu durante sete séculos recusando-se cuidadosamente a examinar novas oportunidades. Meu bilhete pedia apenas este
encontro. O senhor não faz ideia do que vou lhe oferecer.
– Ah, faço, sim. – Lovaris sorriu sem mostrar os dentes. – Você quer que eu pense em virar a casaca. Especificamente, quer que eu espere até que todos os votos sejam
contados e eu esteja de volta como conselheiro pelo Íris Negra. Então, e só então, eu anunciaria que minha consciência me obrigou a me juntar ao Raízes Profundas.
Sei que o senhor prometeu inventar uma história convincente, mas ainda não disse a ninguém qual é ela.
Locke sentiu vontade de gritar. Em vez disso, fingiu estudar as unhas da mão direita e disfarçou a respiração profunda e apaziguadora como se fosse um suspiro entediado.
– Tenho uma desculpa passável para o senhor. E o senhor acharia a experiência pessoalmente enriquecedora.
– Foi o que ouvi dizer. Dez mil ducados de ouro reluzente. Eu forneço um baú; o senhor o enche diante dos meus olhos. Na noite da eleição, o baú deve ser mantido
numa casa de contabilidade supostamente neutra por um número igual de membros do meu partido e do seu, até que eu realize minha metamorfose pública. Assim que eu
fizer isso, seu pessoal se afasta e deixa o meu com o ouro.
– Elegante, não acha? – Locke sentia vontade de socar a parede. Isto era demais: Lovaris tinha informações de conversas confidenciais com meia dúzia das pessoas
de maior confiança de Locke, informações que tinham apenas um ou dois dias de vida. Mesmo assim, Locke permanecera calmo em situações piores. – Ora, mestre Lovaris,
nós dois sabemos que o senhor não é um ideólogo. Toda a cidade sabe. Ninguém vai ficar particularmente surpreso ou magoado, e 10 mil ducados compram um bocado de
qualquer coisa.
– Eu pareço estranho ao dinheiro?
– O senhor parece um homem de certa idade. Quantos anos agradáveis e saudáveis a mais os deuses vão lhe dar? Até que ponto eles podem ser muito mais agradáveis e
saudáveis com esses 10 mil a mais para facilitar o caminho?
– Há uma preocupação mais prática. Aceitar suborno é tecnicamente um crime sujeito a amputação, talvez até capital, se o interesse do Estado puder ser invocado.
Ninguém presta atenção a pequenas trocas rotineiras, mas 10 mil ducados são um montante bastante incômodo e não se encaixam em nenhum padrão usual. Se eu fizesse
isso, seria caçado pelo Íris Negra. Seria o único homem em Kartane a quem seriam aplicadas as leis de suborno! O único lugar onde o dinheiro poderia sumir seria
nos meus porões. Eu não poderia juntá-lo legalmente aos meus fundos nas casas de contabilidade durante anos, e isso é bastante inconveniente. Nem posso aceitar uma
carta de crédito, por motivos mais óbvios ainda.
– Se o senhor presume que sou bom para entregar 10 mil em metal frio, por que não deixa que eu determine como posso ocultar a transferência de fundos para o senhor?
– Acho que não. – Lovaris se levantou e se espreguiçou. – O ponto mais importante a considerar é que seu planozinho só vale a pena se nós, do Íris Negra, vencermos
a eleição exatamente por uma cadeira no Konseil. Se vocês vencerem, não terão necessidade de me comprar e, se nós vencermos por duas cadeiras ou mais, minha mudança
não alteraria a maioria. Não acredito que vocês vão perder por apenas uma cadeira. Você está correto em dizer que não sou escravo da ideologia, mas seria tedioso
e idiota encontrar-me subitamente do lado minoritário.
– Muitas coisas interessantes poderiam acontecer entre agora e a eleição.
– Esse é um lugar-comum nebuloso. Você poderia fazer seus negócios em praça pública, Lazari. Eu revelei até que ponto nossas informações são amplas porque quero
que entenda que você está num dilema.
– É justo. Então este é o ponto da conversa em que eu digo “20 mil”.
– Dez mil já seriam bem incômodos. Você espera que eu fique entusiasmado com a tentativa de ocultar o dobro? O dinheiro só é um atrativo se eu puder enfiar as mãos
no bolso sem ser visto e se eu ainda for relevante para a política de Kartane depois de tê-lo ganhado. Não, mestre Lazari, não vou fingir que não estou à venda,
de certa forma, mas você não está me oferecendo nenhum valor em que eu esteja interessado. Agora, antes que seja escoltado para fora, quer um momento para colocar
seu disfarce molhado de volta? Só pela formalidade, se não for por qualquer outra coisa?
7
Um homem magro e desalinhado, com uma túnica manchada de tinta, saiu pela porta de serviço da mansão de Perspicácia Lovaris e foi rapidamente para o oeste, de volta
para o frio labirinto verde do Mara Kartani. Sinais sutis tinham sido postos desde sua última passagem, nós de pano marrom em volta de galhos de cerca viva ao nível
do joelho, e o homem seguiu-os depressa por curvas e desvios, através de arcos de tijolos cheios de trepadeiras amareladas, até o nicho abrigado onde Jean Tannen
esperava.
Envolto numa sensata capa impermeável com capuz, o amigo estava sentado num banco ao lado da estátua de alguma Erudita-soldado esquecida do antigo império, uma mulher
séria esculpida do modo tradicional, segurando a lanterna erguida da sabedoria numa das mãos e um feixe de lanças farpadas no ombro oposto. Jean pegou uma segunda
capa impermeável e colocou-a nos ombros de Locke.
– Obrigado – agradeceu Locke, tirando a peruca e os ópticos. – Temos um furo sério na segurança. Lovaris sabia que eu iria encontrá-lo.
– Maldição. Quer que eu tire aquelas avós que Sabeta colocou nos telhados, afinal de contas?
– Deuses, elas são inofensivas. Só estão ali para nos provocar. Nosso problema é alguém dentro do Josten. Lovaris tinha detalhes completos do meu plano e da minha
oferta, coisas que só mencionei a um punhado de pessoas, em privacidade, nos últimos dois dias! Há algum lugar onde um xereta poderia ouvir o que é dito na galeria
particular do Raízes Profundas?
– Passei horas examinando todos os porões, todos os buracos. Não há nenhum suficientemente perto, nem em cima nem em baixo. E o barulho daquele lugar... Não, eu
apostaria minha vida nisso. Seria necessário... Bom, seria necessário magia.
– Então eu vou caçar o rato. E como minha primeira abordagem ricocheteou na autossatisfação daquele escroto metido a besta, você terá que visitar Lovaris e experimentar
nossa segunda abordagem.
– Segunda abordagem, certo. – Jean se levantou do banco. – Tem certeza de que nosso orçamento suporta a tensão?
– Isso vai nos deixar só com a raspa, e alguns mil para emergências, e aquelas doações dos refugiados vadrãs. Mas não há muitos outros lugares onde gastá-lo neste
momento, não é?
– Então que seja. Se ele morder o anzol, vou começar a visitar joalheiros esta noite. Escolhi alguns discretos.
– Ótimo. Eu diria diamantes e esmeraldas, na maior parte, mas você tem olho bom. Confie em seu julgamento.
– E vamos precisar de um barco.
– Já estou pensando nisso! – Locke bateu com o dedo na testa. – Mas vamos pensar na primeira, na segunda, na terceira e na quarta coisa antes de sairmos perseguindo
a quinta e a sexta, certo?
– Que os deuses o protejam. Não tropece nos próprios pés a caminho de casa. O que você vai fazer com relação ao nosso rato?
– Bom, como alguém em quem confiamos está passando instruções confidenciais para Sabeta, acho que devo dar algumas instruções confidenciais a todas as pessoas em
quem confiamos.
8
Naquela noite, enquanto uma chuva forte caía lá fora, Locke passou o braço em volta de Primeirofilho Epitalus e levou o velho para uma conversa sussurrada na galeria
particular do Raízes Profundas.
– Você sabe mais sobre a Isas Tedra do que eu. Preciso de um lugar discreto, afastado, no seu distrito, para guardar alguns barris de óleo de fogo. Um barracão,
um porão. Algum lugar onde ninguém vá mexer, pelo menos antes da eleição.
– Óleo de fogo? Para quê, mestre Lazari?
– Vou garantir que nossos amigos do Íris Negra tenham um incêndio bastante danoso algumas noites antes da eleição, em uma de suas propriedades no distrito de Bursadi.
Vou me esforçar para que ninguém se machuque. Só quero que percam alguns papéis e alguns confortos.
– Fantástico! – Epitalus bateu a bengala no chão, aprovando. – Bom, nesse caso há uma construção externa na minha propriedade. A antiga casa de barcos. Não a estou
usando.
– Ótimo. Mais uma coisa, Epitalus. Isso é segredo absoluto, vital. Não fale a respeito com ninguém. Fui claro?
– Como um copo de cristal, mestre Lazari.
A referência deixou os dois com sede. Brindaram à frustração do Íris Negra com pequenos copos de licor de limão e canela, depois Jean reapareceu vindo de sua tarefa,
tirando a capa molhada. Locke dispensou Epitalus e foi conversar em sussurros com o amigo.
– Estamos dentro – informou Jean. – Acho que Lovaris ficou perversamente satisfeito com a ideia de fazermos nossa parte esta noite, na chuva.
– Claro. Ele é um miserável saco de presunção. Quando?
– Uma hora antes da meia-noite.
– Não é muito tempo, se quisermos ter cuidado.
– É tempo suficiente para eu me armar com jantar e café.
– Então vamos pegar as coisas de que precisamos nos nossos quartos. Coloque-se diante da lareira e coma. Droga, aí vêm Dexa e Nikoros, exatamente as pessoas que
não posso deixar passar.
Os dois Nobres Vigaristas se separaram: Jean foi para a cozinha e Locke interceptou seus alvos e os guiou à galeria particular. Ele pediu primeiro um momento a sós
com Nikoros.
– Olhe, ahn, mestre Lazari, aqui estão os últimos relatórios – avisou o secretário, pegando sua sacola enquanto Locke o empurrava para um canto discreto. – Ontem
à noite tivemos uma invasão no escritório de Cavril na Ponta Corbessa, nada importante, mas suspeito que eles conseguiram pegar algumas minutas confidenciais e listas
de eleitores. Nossas delegações aos templos pagaram por um sacrifício público a cada um dos Doze. Um chicote e uma bússola de prata para Morgante, uma mortalha de
seda para Aza Guilla, um coração de pombo para Preva...
– Nikoros, eu sou devoto, conheço os sacrifícios usuais. Só me diga que não houve complicações.
– Bem, ah... a chuva provavelmente diminuiu a plateia, mas tudo correu bem. Toda a cidade sabe que cumprimos com nossas obrigações para com os deuses e pedimos a
bênção deles.
– Se ninguém foi acertado por um relâmpago, fico contente. Agora preciso que você arranje uma coisa para mim. Um esconderijo. Um barracão, um porão, um buraco, alguma
coisa, de preferência abandonado ou sem uso. Perto do Vel Vespala, o mais próximo do Marco da Íris Negra que você puder conseguir com segurança. Conhece algum local?
– Eu... é... deixe-me pensar. – Nikoros esfregou os olhos e murmurou sozinho. – Há uma oficina de velas, fechada judicialmente, que ainda não tem um inquilino novo,
a uns três quarteirões do Marco da Íris Negra. O que devo fazer com o lugar?
– Só me arranje o lugar e eu faço o serviço. Vou repetir o que já fiz na Taverna do Inimigo, enfumaçar com alquimia inofensiva, só que dessa vez a coisa vai durar
horas e vai acertá-los no pior momento possível. Vou decidir quando, mas preciso de meu óleo de fogo e dos pós armazenados por perto. Essa oficina de velas parece
perfeita.
– Como quiser, claro.
– E, Nikoros, isso é segredo do tipo mais profundo, mais escuro. Não faça nenhuma anotação nem minutas sobre isso. Mantenha entre você, eu e os deuses. Absolutamente
ninguém mais pode saber. Entendido?
– Perfeitamente, mestre Lazari.
– Ótimo. Agora vá cuidar de suas outras coisas e mande Dexa falar comigo.
– Mestre Lazari – disse ela, balançando o charuto para ele. – O senhor parece ocupado. Não posso afirmar que desaprovo. Por que desejava me ver?
– O que vamos discutir deve permanecer absolutamente confidencial – sussurrou Locke, inclinando-se tão perto que ficou imerso nas nuvens de fumaça. – Você conhece
a Isas Mellia melhor do que ninguém. Preciso que me encontre um barracão, um porão, um esconderijo de qualquer tipo onde eu possa armazenar uma quantidade de...
9
Uma hora antes da meia-noite, a chuva caía como cordas de harpa contra a escuridão. Um homem magro e um homem corpulento estavam abaixo de uma lanterna apagada nos
limites do Mara Kartani. Observavam a mansão de Perspicácia Lovaris e tremiam embaixo das capas impermeáveis.
– Ali está ela – disse Locke.
Uma forma escura e pesada, sensatamente vestida como eles, emergiu de uma porta de serviço e se afastou deles, indo para o norte, na direção das ruas da cidade.
– E se for uma armadilha? – perguntou Jean.
– Eu tomei precauções. – Locke se ajoelhou para colocar nos ombros um leve caixote de madeira. Jean pegou outro. – Deve haver uma carruagem com uma luz alquímica
verde logo ao norte da mansão. Dois dos nossos cocheiros e dois dos nossos guardas estão vigiando para o caso de haver encrenca. Se chegarmos correndo, eles vão
nos pegar e trazer para casa.
– Bem pensado. Presumindo que possamos correr. Espero que esta seja a última idiotice arriscada em que mergulhamos antes do fim desta confusão. Não sei se podemos
ficar muito menos cautelosos do que agora.
– Que o Guardião Torto nos abençoe por mantê-Lo entretido. Vamos. Que tipo de invasores de residência seríamos se não mantivéssemos o compromisso?
10
Mais duas noites se passaram e o tempo melhorou. O céu levou a chuva embora, e o vento fraco e rápido do Amatel parecia um beijo de seda fria. O luar leitoso se
derramava pelo Vel Vespala enquanto Jean Tannen se aproximava calmamente do Marco da Íris Negra, sem se preocupar em se esconder.
Os guardas do saguão, que não estavam desejosos de novas concussões, mantiveram as portas abertas para ele. Em seguida, surgiu Vordrata.
– Um de nós deve estar sonhando – disse ele, fazendo Jean parar depois de três passos no saguão. – Tenho certeza de que estou bem acordado, por isso sugiro que você
leve esse rabo sonâmbulo para algum lugar onde não se incomodem com o seu cheiro.
– Estou aqui como embaixador. Para tratar de um assunto pessoal da Sra. Gallante. Claro que não marquei hora, mas ela vai me receber mesmo assim.
– Vou lhe dizer uma coisa: você está livre para se ajoelhar e beijar uma das minhas botas, caso em que eu posso pensar em apresentar sua petição.
– Amigo Vordrata – falou Jean com um sorriso. – Na função de mordomo de Verena e de escroto sem graça, você merece parabéns. Na função de qualquer tipo de oposição
significativa aos meus punhos, você seria um trabalho fácil, de meio segundo.
– Você é um desgraçado cruel, Callas.
– E você ainda está usando calções lamentavelmente justos. – Jean fingiu um bocejo. – Vou pegar os mesmos dois reféns que meu colega pegou. Convido-o a ponderar
sobre a diferença de tamanho entre nós e a força proporcional do aperto.
Vordrata levou Jean à sala de jantar, agora conhecida, alertou que a espera poderia ser grande e bateu a porta depois de sair.
O tempo passou e Jean andou de um lado para outro em silêncio, alerta para qualquer encrenca. Avaliou que teria se passado um quarto de hora antes que a porta se
abrisse de novo e Sabeta entrasse.
Ela estava vestida quase totalmente de preto, túnica e calções pretos sob um casaco preto e pesado com botões e acabamentos em prata. O cabelo estava solto e bagunçado
pelo vento, a echarpe branca pendendo em dobras em volta do pescoço, as botas cobertas de lama recente.
Não pela primeira vez, Jean teve uma estranha sensação de deslocamento à medida que suas lembranças de Sabeta se emaranhavam com a mulher diante de seus olhos. Era
como encarar um fantasma invertido, uma realidade que, de algum modo, era menos tangível do que as lembranças de cinco anos atrás. Ele vivera esses cinco anos gradualmente,
mas, para seus olhos, Sabeta os recebera todos ao mesmo tempo. Ao examinar as novas linhas que o tempo havia desenhado, Jean sentiu o leve puxão de seus próprios
anos, como um peso no coração. Até que ponto ele parecia mais velho para ela?
Respirou fundo, banindo o pensamento soturno. Apesar de ficar frequentemente perplexo com as ideias filosóficas que faziam uso livre de seu coração e sua cabeça,
longas horas de aprendizado com armas também tinham lhe ensinado o truque de empurrar essas ideias para longe, entocando-as para serem contempladas assim que ele
tivesse sobrevivido às responsabilidades imediatas.
Sabeta se encostou na porta, fechando-a, e cruzou os braços.
– Se isso continuar, Vordrata pode se tornar o primeiro homem na história do mundo que se transformou em eunuco por motivos de defesa pessoal.
– Para ser justo, não posso imaginar que ele tenha achado muita utilidade para aquelas porcarias definhadas.
– Ele é um dedicado pai de sete filhos.
– Você está brincando!
– Fiquei tão surpresa quanto você. Parece que ele é igualmente dedicado aos filhos e à carreira de escroto profissional. Por favor, não o machuque de novo.
– Juro pelo Guardião Torto. – Jean pegou um envelope dentro do casaco. – Agora, quanto ao motivo da minha vinda, isto... Bom, não quero falar por ele. Mas você deveria
saber que ele demorou algumas noites para terminar. Muito sono perdido e muitos recomeços.
– Como era no início, acho. – Sabeta pegou o envelope com a mão que tremia apenas o suficiente para Jean notar, depois enfiou-o no casaco. – E... é isso, então?
Se a pergunta soasse cansada, Jean a teria recebido como uma dispensa, mas Sabeta parecia pensativa, quase magoada. Ele pigarreou.
– Diplomacia e curiosidade nem sempre se misturam.
– Não somos estranhos, Jean.
Jean tirou os ópticos e limpou-os com exagero numa manga do casaco enquanto pensava no que diria.
– Tudo o que eu consigo ver são duas pessoas de quem eu gosto divididas e governadas pelas palavras de uma estranha. Aquela bobagem dita por Paciência! Desculpe,
não vim dar sermão. Mas certamente você pode...
– Você entregou a carta. Agora está se intrometendo nos negócios dele. Será que Jean pelo menos está aqui agora? Com Jean eu poderia falar, mas o... embaixador de
Locke à minha corte está dispensado e a porta está aberta.
– De novo, desculpe. – Jean percebeu que a situação física dos dois tinha a aparência de um impasse; enquanto ambos permanecessem de pé, a informalidade e o relaxamento
teriam dificuldade para surgir. Acomodou-se numa cadeira. – Você sabe que eu me preocupo com ele. Eu me preocupo com vocês dois. E lamento não ter feito... é...
exatamente uma visita social desde que retornamos. Quando você nos convidou para vir aqui pela primeira vez, eu fui um tanto frio.
– Estava preocupado.
– É gentileza sua sugerir isso.
– E então eu joguei vinte mercenários na sua cabeça e mandei você para o mar. – Sabeta sentou-se e cruzou as pernas. – Isso não poderia ajudar. Espero que não pense
que fiquei satisfeita porque você quebrou o nariz.
– Você nos deu um navio confortável. Abandoná-lo no meio da noite foi decisão nossa. Na ocasião, eu estava chateado, mas sei que eram apenas negócios.
– Talvez tenha havido um pouco demais de “apenas negócios”. – Sabeta ficou mexendo distraidamente nas luvas. – Eu guardei suas machadinhas como uma espécie de garantia,
depois como uma espécie de piada, e as entreguei a Locke como se você fosse algum tipo de... empregado. Eu não queria dar essa impressão.
– Deuses, Sabeta, não sou feito de porcelana! Olha, nós não... Nós não fomos maus amigos, apenas amigos ausentes, separados por muito tempo. E, se é possível haver
circunstâncias mais difíceis para um reencontro, eu comerei minhas botas. Frias. Com mostarda.
– Quem está sendo gentil agora? Senti saudade de você. Pessoal e profissionalmente.
– Eu senti saudade de você. Dos gumes afiados e tudo o mais. A vida sempre foi melhor com você por perto. Todo mundo em volta de você capta sua luz. Nós estamos
fazendo isso agora, mesmo do outro lado da cidade, trabalhando contra você. Eu não o vejo assim desde... bom, há muito tempo. Doido de preocupação e totalmente empolgado.
– A conversa volta outra vez para nosso amigo mútuo.
– É. Quero dizer... Olhe, deixe-me dizer isso, por favor. – Jean respirou fundo e foi em frente antes que ela pudesse interromper: – Ele e eu tivemos um desentendimento
perigoso em Tal Verrar. Nós dois olhamos a mesma coisa e fizemos suposições ruins que nos levaram em direções opostas. Tivemos sorte, mas as suposições ruins...
são uma possibilidade da qual devemos ter consciência, sabe?
– Jean. – Ela soava hesitante, e cada palavra saiu quebradiça e frágil: – Você deve confiar... Eu pareço à vontade? Pareço totalmente eu mesma? Você deve confiar
que eu tenho motivos, motivos urgentes para meu comportamento, e que eles são tanto por minha causa quanto por ele...
– Pare. – Jean levantou as mãos, aplacando-a. – Sabeta, por mais que eu ache que você está sendo idiota, você tem o direito ao seu próprio juízo. Não gosto desse
juízo, mas vou respeitar seu direito até a minha sepultura. Já falei o que queria.
– Obrigada. – Seu sorriso o aqueceu como uma fogueira. – Parece que você e eu ficamos mais diplomáticos desde que nos separamos.
– Nós fizemos uma segunda carreira encontrando desculpas para não assassinar um ao outro. Isso teve um efeito salutar nos nossos modos. – Jean se levantou de novo
e estendeu a mão. – Irmã Vigarista, eu gostaria de ficar mais tempo com você e tornar meu trabalho muito mais fácil, porém imagino que estejamos sendo vigiados.
Não podemos nos dar ao luxo de testar a paciência dos nossos patrões.
– Irmão Vigarista. – Ela segurou sua mão e apertou-a. – Eu gostaria de não ter que concordar. Obrigada por falar comigo.
– Espero que façamos isso de novo.
– Um dia de cada vez – disse ela baixinho. – Até descobrirmos o que nos espera no fim disso tudo. Mas esperança é uma boa palavra. Espero que você esteja certo.
Com relação a tudo.
– Há algum recado que eu possa levar de volta?
– Não. O que quer que haja para ser dito, eu mesma direi, na hora certa.
Os dois se abraçaram e Jean tirou-a do chão. Sabeta gargalhou e ele deu um giro completo, pousando-a elegantemente em cima de uma mesa, concluindo com uma reverência.
– Devolvo a madame ao pedestal onde ela costuma residir.
– Seu moleque metido! E eu que estava quase sentindo pena porque vou foder com você completamente na eleição!
– Tsc. O que quer que você sinta, não é nem um pouco de pena – replicou Jean, acenando ao sair. – Como você disse... não somos estranhos.
11
A sala, tão calorosamente iluminada, tão convidativamente decorada, pareceu fria depois que Jean saiu e a porta se fechou. Era estranho como as cadeiras vazias e
as mesas sem uso se combinaram de súbito para dar ao lugar a atmosfera de um templo vazio. Sabeta jamais se sentira tão isolada ali dentro.
Saltou da mesa e pousou com suavidade nas pontas dos pés, a echarpe e o casaco farfalhando. O envelope estava fora do bolso antes que ela percebesse, as mãos se
movendo mais depressa do que os pensamentos que em geral as governavam.
– Claro que não estou sozinha – disse ela. – Você está aqui.
A sala estava silenciosa. A agitação dos negócios do Íris Negra podia ser ouvida fracamente através da porta.
– Sou uma mulher adulta tendo uma conversa com um envelope – murmurou vários segundos depois.
Ele estava ali como fumaça, como um fantasma na sala, como um cheiro em sua roupa. Fazia tanto tempo que ela se esquecera do perfume verdadeiro; só se lembrava de
tê-lo carregado. Lembrava-se de querê-lo, depois de não querê-lo, depois de querê-lo de novo, mesmo contra a vontade.
Havia dois Lockes, pensou, virando o envelope para trás e para a frente nas mãos. Dois Lockes verdadeiros sob todos os rostos que ele usava no decorrer de seus golpes.
Um deles fazia-a sentir uma dor tão doce e aguda em seu coração que ela mal conseguia acreditar que uma Sabeta mais jovem e mais afável tinha lacrado aquele sentimento
e conseguido ir embora. Aquele homem violava todos os padrões da lei e dos costumes e desafiava o mundo a amaldiçoá-lo por isso.
O outro Locke... era totalmente amarrado a esses padrões, era prisioneiro absoluto deles. Ele faria assim porque era assim que sempre fora em Camorr, ou como sempre
fora para um garrista, ou para um sacerdote, ou uma Pessoa Certa, ou um Nobre Vigarista. Os motivos eram intermináveis e Locke se agarrava a eles malignamente, impensadamente,
e nesse processo embolava todo mundo que estivesse ao redor.
Até seus olhos pareciam diferentes quando ele era esse segundo homem. E isso era um problema.
Se havia dois, será que não poderia haver três? Padrões por trás de padrões, segredos por trás de segredos, novos fios nos quais dançar, que levavam de volta até
os Magos-Servidores de Kartane. Outro Locke, desconhecido até dele próprio. O que iria ser feito dos Lockes que ela conhecia se aquele estranho dentro deles fosse
real? Se ele acordasse?
– Qual de vocês escreveu isto?
Sabeta cheirou o envelope e o perfume não lhe disse nada.
De repente, tudo na sala estava subitamente errado. Não queria estar ali naquela cidadela silenciosa, naquele coração organizado de seu poder temporário. O negócio
entre ela e Locke era negócio de ladrões; ela precisava da liberdade de um ladrão para encará-lo. E o teto mais confortável de um ladrão é o céu noturno.
Enfiou um globo alquímico no bolso do casaco e tirou as botas, espalhando flocos de lama seca no chão. Descalça, foi até uma das altas janelas e entreabriu-a.
Sabeta havia ajustado o mecanismo da tranca e ensaiado muitas vezes o processo de sair; tinha mapeado mentalmente quatro rotas distintas para subir e descer ao telhado
do Marco da Íris Negra. As pedras embaixo dos pés estavam frias, mas ainda não insuportavelmente frias.
Subiu, a brisa noturna agitando o cabelo, o luar suave mostrando todos os caminhos possíveis. O mundo das ruas, becos, cavalos e lâmpadas recuou abaixo, e ela sorriu.
Tinha 15 anos de novo, 10 anos de novo, pendurada em pedras antigas, tendo nada além da habilidade entre ela e a queda.
Estava no telhado, silenciosa como a sombra de um pardal, o coração martelando não de esforço, mas com a empolgação da competência fácil e o mistério ansioso do
envelope.
Sua sentinela do telhado, agachada à sombra de uma chaminé alta, quase teve um ataque quando Sabeta pousou a mão de leve em seu ombro.
– Vá descansar – sussurrou ela, esforçando-se para manter o sorriso longe do tom de voz. – Vá tomar um café e espere lá embaixo até que eu vá chamá-lo.
– C-como quiser, Sra. Gallante.
Ele se manteve toleravelmente silencioso enquanto se afastava. Nem de longe era um camorri sorrateiro, mas estava disposto a se esforçar.
Sabeta acomodou-se no lugar dele, tirou a luz alquímica do bolso e virou o envelope repetidamente entre os dedos.
– Ande logo – disse ela, sabendo que era teatro vazio para uma plateia de um só. – Ande logo.
Minutos se passaram. Sombras prateadas de nuvens moviam-se e se fundiam nos telhados escuros. Por fim, as mãos tomaram de novo a iniciativa do coração e da mente.
O lacre foi partido antes que ela soubesse e a carta escorregou para fora. A letra era tão familiar quanto a sua própria. De repente, seus dentes estavam batendo.
– Maldição, mulher, se você é vulnerável a ele é porque se permetiu ser vulnerável. Ande logo.
Querida Sabeta,
Instruí J. a colocar isso diretamente nas suas mãos, logo tive a presunção de escrever seu nome, egoistamente. Quero dizê-lo em voz alta, de novo e de novo, porém,
mesmo sozinho neste quarto pequeno, tenho medo de parecer lunático, tenho medo de que, de algum modo, você possa sentir eu me fazendo de idiota. Tendo-o escrito,
pelo menos posso olhá-lo por quanto tempo quiser. Ele fica afastando minha atenção. Como qualquer outra palavra que eu escreva poderia competir com ele? Esta noite
vai ser longa.
Acho que tem a ver com o rumo peculiar do nosso namoro o fato de que boa parte do modo de cortejar assuma a forma de pedidos de desculpas. Gosto de pensar que tenho
algum talento para eles; os deuses sabem que tive muitas oportunidades e motivos para treinar.
Sabeta, desculpe. Coloquei sob uma lente de aumento a lembrança de tudo o que foi feito e dito desde que cheguei a Kartane, e agora percebo que, quando voltei depois
de escapar das férias que você arranjou, disse algumas coisas que não tinha o direito de dizer. Ofendi-me com seu ardil. Confundi negócios com questões pessoais
e empilhei a hipocrisia numa altura suficiente para raspar o teto. Por isso, e não pela primeira vez, estou profundamente envergonhado. Eu estava errado em ter um
chilique daqueles.
Sabeta sugou o ar frio com um longo ofegar, percebendo, de repente, que estivera prendendo o fôlego. O que havia esperado? Sem dúvida não aquilo.
Um dia, você vai se lembrar, eu lhe disse que confiava absolutamente em você como minha irmã de juramento, minha amiga e minha amante. A confiança absoluta é algo
que só pode ser dado sem condições nem reservas, algo que só pode ser rescindido se não tivesse tido significado, para começo de conversa.
Eu não a rescindo. Não posso rescindi-la.
Você me enganou de modo justo, usando algo que eu lhe dei livremente. Sou louco por você não apenas por instinto, mas também por opção. Agora peço desculpas, não
para implorar simpatia, mas porque é uma obrigação de simples verdade e afeto que lhe devo antes de ter o direito de dizer qualquer coisa a mais.
Ponderei por tanto tempo e tão furiosamente sobre as afirmações de Paciência acerca do meu passado que fiquei doente com essa questão. Apesar de rezar desesperadamente
pela veracidade definitiva do ceticismo de J., devo admitir que não tenho explicação que me pareça convincente. Existem sombras no meu passado que minha memória
não consegue iluminar e, se você acha isso perturbador, imploro que acredite que não a culpo. A história de Paciência causou um choque enorme em nós dois e ainda
é um mistério o modo como eu deveria enfrentar isso.
O modo como você enfrenta isso, devo deixar e deixarei por sua conta, não por desespero ou resignação, mas em deferência à minha consciência, aquele relógio quebrado
que acredito estar agora soando uma das suas ocasionais horas certas. Não vou questionar seus motivos. Basta que você me fale que deseja manter essa distância entre
nós, e isso sempre bastará. Saiba que uma única palavra vai me levar correndo, mas, a não ser que você queira dizê-la, não esperarei nada, não forçarei nada e não
farei nada contrário aos seus desejos.
Desejo-a com a mesma profundidade de sempre, mas sei que o fervor é irrelevante para a justiça de um desejo. Quero seu coração por mérito, em confiança mútua, ou
não quero nada, porque não suporto vê-la inquieta por mim. Fracassei e desapontei você com frequência. Nem por todo o mundo eu faria isso de novo, e deixo por sua
conta dizer como devo agir, se e quando você puder, se e quando você quiser.
Voluntária e fielmente seu,
Locke Lamora
Sabeta virou a carta, sentindo-se ridícula, procurando mais alguma anotação ou marca de sentimento. Era só isso; sem pedidos, sem explicações, sem exigências nem
sugestões. Agora tudo dependia dela, e isso, mais do que qualquer coisa, provocou uma pressão fria em seu peito e deixou-a trêmula.
Locke havia fracassado com ela? Sabeta supunha que isso era verdade, ainda que fosse uma constatação pouco generosa. O processo natural de crescer era tropeçar de
fracasso em fracasso, e todos os Nobres Vigaristas tinham sido prodígios de sobrevivência, e não de sensibilidade. Mas desapontá-la? O problema do sacana magricelo
e de olhos brilhantes era que ele vivia se recusando a fazer isso.
Essa carta era obra do Locke melhor, do Locke que aprendia e dava, do homem que a ouvia. Ouvia... Que ação banal! Mas ela fora uma mulher do mundo por tempo suficiente
para aprender como era uma atitude rara e desejável. Era divertido usar homens como peças de Pegue o Duque, mas os otários escutavam com um ouvido atento à chance
principal, para satisfazer seus próprios desejos. Depois dos anos nos Tutanos e daquela temporada em meio aos “ajustados”, pelos deuses, a companhia de Locke era
mais viciante do que nunca – um homem orgulhoso, imprevisível e que se ajustava aos desejos de Sabeta por amor e amizade, e não pelo subterfúgio dela.
Os cantos de sua visão ficaram nublados. Ela esfregou as lágrimas nascentes com os dedos, não com suavidade, e fungou, com desdém. Maldita confusão idiota! Seu coração
estava aberto de novo feito uma ferida antiga, mas o que viria depois? O que os Magos-Servidores pretendiam que acontecesse com aquele homem que ela amava?
Será que estava sendo egoísta ou sensata ao mantê-lo afastado, abrigando-se contra o pior que poderia vir, e logo?
– Guardião Torto – sussurrou –, se sua irmã Preva tem alguma revelação significativa que não esteja usando no momento, pode dizer a ela que estou disposta a ser
movida?
Sabeta suspirou. Ser movida, certamente, mas não mover-se. Que a noite fosse dela por mais alguns minutos. Que os negócios do Íris Negra tiquetaqueassem como um
mecanismo de relojoaria. Que os magos se sentassem em seus próprios polegares e girassem. Leu a carta de Locke outra vez, depois olhou para a cidade, com os pensamentos
fervilhando.
Foi reconfortada pela tapeçaria de telhados, luar, sombras e fumaça de chaminés, mas também não tinha respostas para dar.
12
Após duas noites, Locke e Jean estavam sentados juntos na galeria do Raízes Profundas na estalagem do Josten, jantando aves-na-cama: grandes bocados de vários tipos
de aves sobre colchões de massa folheada recheada com arroz temperado e alho-poró, cobertos com cebola e molho de creme azedo. Para ajudar a descer, tinham canecas
de cerveja forte e pilhas das anotações e dos relatórios usuais, que discutiam entre mordidas.
Faltava menos de uma semana e a situação estava espiralando totalmente fora de controle. Escritórios eram vandalizados dos dois lados, funcionários dos partidos
eram assediados ou presos por policiais sob pretextos risíveis, arautos e distribuidores de panfletos tinham brigas ruidosas nas ruas. Locke despachara uma equipe
de funcionários vestidos de preto para distribuir tortas de melaço comemorativas do Íris Negra em várias praças de mercado. O laxante alquímico misturado era de
ação lenta, mas bastante forte, e muitas pessoas que haviam recebido o presente tinham exprimido publicamente a falta de apreciação pela bondade do Íris Negra.
Apesar disso, as chances permaneciam de onze a oito a favor do Íris Negra. Por mais que Locke tivesse gostado de alterar isso ao máximo pregando peças infantis,
não restava ninguém na cidade disposto a aceitar doces de um estranho.
– Ah, senhores, senhores! – Nikoros apareceu, ainda com o aspecto de um recém-chegado de uma semana insone na estrada. – Eu tenho... Lamento muito me intrometer
no seu jantar, mas tenho notícias desafortunadas.
– Para tudo há uma primeira vez – disse Locke em tom tranquilo. – Ande, choque-nos.
– É a... a oficina de velas, mestre Lazari. A que o senhor pediu que eu conseguisse... no Vel Vespala, onde o senhor e mestre Callas guardaram os... ah... os senhores
sabem, os itens alquímicos. Há duas horas, estivadores com uniforme do Íris Negra entraram no lugar e o limparam totalmente. Carregaram tudo para longe, em carretas,
para um local que eu ainda não descobri.
O garfo de Locke parou a meio caminho dos lábios. Ele encarou Nikoros por um segundo, depois compartilhou um olhar breve e significativo com Jean.
– Ah, maldição – praguejou por fim, e deu uma mordida no seu frango. – Mmmm. Maldição. É uma perda bastante cara. E lá se vai um belo truque brotado diretamente
da minha manga.
– Lamento sinceramente, mestre Lazari.
– Bah. Não é culpa sua – retrucou Locke, imaginando o que havia feito Nikoros, logo ele, o subserviente cachorrinho ansioso, virar a casaca.
Teria algo a ver com a falta do Akkadris? Algum fracasso na feitiçaria dos Magos-Servidores? O pobre e velho Falcoeiro, sem língua, sem dedos e em coma, era uma
espécie de argumento contra a infalibilidade deles.
– Mesmo assim – continuou Locke –, ultimamente a oposição parece ter uma percepção incrível de onde estamos escondendo nossos bons brinquedinhos. Quero que você
nos consiga um barco.
– Ah, um barco, mestre Lazari?
– É. Algo respeitável. Uma barca, talvez, um pequeno iate de lazer, se algum membro do partido tiver disponível.
– É muito... é... provável. Posso perguntar com que objetivo?
– Nós pegamos uma coisa de um dos membros do Konseil do Íris Negra – respondeu Jean. – Heranças familiares de valor significativo... sentimental. Vamos devolvê-las
depois que ele tiver feito um favor a nós.
– E precisamos que os itens em questão estejam absolutamente seguros até a noite seguinte à eleição – completou Locke. – Não sei bem se posso confiar nos nossos
esconderijos atuais, portanto vamos colocá-los na água, em algo que possa se mover.
– Vou trabalhar nisso imediatamente – garantiu Nikoros.
– Muito bem. – Locke espetou mais um pedaço de frango. – Tripulação mínima, gente de confiança. Eles não precisarão saber o que o barco está carregando. Mestre Callas
e eu vamos carregar os itens pessoalmente.
Nikoros se afastou correndo.
– Eu não esperava que fosse ele – sussurrou Jean.
– Nem eu. E estou bastante curioso para saber como ela fez isso. Mas pelo menos sabemos. E agora colocamos as esperanças no barco.
– Ao barco – disse Jean.
Ergueram as canecas de cerveja e beberam.
13
Era a noite anterior à eleição. Locke estava encostado numa parede acima da margem mais ao norte da Plaza Gandolo, olhando além da água do rio que ondulava suavemente
e das luzes das lanternas passando sobre ela como uma centena de borrões de cor na tela de um artista bêbado.
À esquerda, erguia-se a Abóbada Celeste, a ponte suspensa que oscilava e cantava, com as quatro torres de ancoragem que tinham sacadas e portas fechadas no topo.
De onde estava, dezenas de metros abaixo, Locke não podia ver as portas, mas ele ouvira Josten descrevê-las menos de uma hora antes.
Segundo o estalajadeiro, as portas eram tão impenetráveis para as artes humanas quanto a maioria dos legados dos Ancestres, mas uma equipe de Eruditos e trabalhadores
erguera um andaime e tentara examiná-las de perto.
– Há 150 anos, talvez. Oito pessoas subiram – murmurara Josten depois de olhar o balcão ao redor. – Seis desceram. Nenhum corpo jamais foi encontrado e nenhum sobrevivente
jamais pôde dizer o que aconteceu. Durante o resto da vida, tiveram sonhos. Pesadelos. Não falavam deles também, a não ser uma mulher. Ela confessou a um sacerdote
de Sendovani antes de morrer. Jovem, como todos os outros. Dizem que os magos e o Konseil suprimiram tudo o que aquele sacerdote escreveu. Ainda bem que o Vidrantigo
não precisa de manutenção, meu amigo, porque desde então ninguém em Kartane escalou a Abóbada Celeste.
– Tremendamente encantador – comentou Locke, olhando as elegantes silhuetas escuras que bloqueavam estrelas e nuvens.
Deuses, ele estava recitando histórias de terror para si mesmo. Não era um comportamento nem um pouco tranquilo e contido. Precisava se acalmar, e não havia pensado
em trazer um barrilete de vinho forte.
Passos rasparam nas pedras atrás e ele girou, nem tranquilo nem contido.
Sabeta estava sozinha. Usava uma jaqueta vermelho-escura sobre uma saia cor de chocolate e o cabelo estava preso por varetas laqueadas.
– Parece que você andou ouvindo as histórias sobre essa ponte.
– Meu... ah... taverneiro. Quando recebi seu bilhete, perguntei se ele sabia alguma coisa sobre o lugar que você escolheu.
– Parece que não é um canto popular do distrito. – Ela sorriu e chegou mais perto. – Achei que seria bom termos um pouco de privacidade.
– Os detritos assombrados dos Ancestres não costumam garantir isso. Mulher astuta! Eu poderia ter pensado em algo como um aposento particular num belo estabelecimento
de refeições, mas acho que sou lamentavelmente convencional. – Uma carruagem passou chacoalhando e adentrou a ponte cheia de rangidos. – O que você tem em mente?
– Gostei da sua carta. – Ela deslizou mais para perto com aquele passo de dançarina, aparentemente sem esforço, fazendo parecer que uma brisa a movera. – E não quero
dizer isso apenas como um tipo de reconhecimento educado; eu apreciei o que você disse e como você disse. Estou começando a achar que posso ter sido... apressada
no modo como tratei você. Quando chegou em Kartane.
– Bom, ah, ainda que me drogar e me colocar num navio tenha sido uma espécie de deslize pessoal, acho que podemos concordar que foi uma abordagem válida, segundo
uma perspectiva profissional.
– Admiro essa equanimidade. – Agora ela estava ao alcance dos seus braços e pôs as mãos em volta da cintura dele. Locke poderia ter se defendido se quisesse. – Não
estou... incomodada com você, sabe. Não é você, é...
– Eu sei. Acredite, eu entendo. Você não precisa...
Sabeta pousou a mão direita na nuca dele e puxou-o tão perto que não havia espaço para uma faca passar entre os dois. Em seguida, veio um beijo que baniu o mundo
para um ruído de fundo distante e pareceu durar um mês.
– Bom, isso você pode fazer – sussurrou Locke depois. – Se achar que precisa. Eu vou... ah... me conter, relutante, para não impedi-la.
– É quase meia-noite – disse Sabeta, passando os dedos pelo cabelo dele. – Não resta muito agora, a não ser votar e contar os votos. Você estava planejando comparecer
ao último grande show no Kartenium?
– Não posso perder. São mãos demais para apertar. E você?
– Há galerias particulares acima do grande salão. Depois de dar tapinhas na cabeça de todos os seus filhos, por que você e Jean não se juntam a mim para assistir
à contagem dos votos? Pergunte pela Câmara Negra.
– Câmara Negra. Certo. E, ah, agora você parece estar com aquela cara de “há algo divertido que não estou contando ao Locke”.
– Por acaso eu ouvi a coisa mais fascinante. – Sabeta segurou a mão dele e o levou ao muro da margem. – Um dos meus membros do Konseil reclamou, em particular, que
alguém tinha invadido a mansão dele e, se você pode acreditar, roubou os relicários de sua capela ancestral.
– Algumas pessoas deviam aprender a trancar as portas à noite.
– Eu me peguei pensando no objetivo de uma aquisição tão pouco ortodoxa. Concluí que, muito provavelmente, seria uma tentativa de exercer algum tipo de controle
sobre um homem para quem o roubo de badulaques menos pessoais não teria significado verdadeiro.
– Fico triste em saber que suas especulações assumiram um caráter tão cínico.
– Os conselheiros de Kartane não deveriam se preocupar com a influência externa na véspera da eleição. Não concorda? Eu me senti compelida a fazer uma investigação
e dar instruções à polícia. Apenas como questão de dever cívico rotineiro, claro.
– Todo mundo sabe que sua profunda ligação com a saúde cívica de Kartane remonta a um bom número de minutos.
– Aí está! Praticamente na hora. – Sabeta apontou para a água, onde uma barca de lazer, com dossel, emergiu de debaixo da Abóbada Celeste. Uma lancha policial comprida
e preta estava presa na lateral da embarcação, e casacas-azuis com lanternas e porretes a invadiam. – Essa é a Deleite Simples. Pertence a um amigo dos seus conselheiros
do Raízes Profundas, acho. Também acredito que as relíquias no porão retornarão às mãos do dono de direito antes que o sol nasça. Algum comentário em particular?
– Não posso confirmar nem negar que você é uma vaca ardilosa, muito ardilosa.
– Você é minha plateia predileta. – Sabeta se inclinou e beijou-o de novo, depois se afastou com um sorriso. – Câmara Negra, amanhã de tardinha. Mal posso esperar
para vê-lo. E terei uma rota de fuga discreta preparada, pois acho que muitos apoiadores irados do Raízes Profundas vão procurar você assim que se encerrar a contagem
dos votos.
i n t e r l ú d i o
Máscaras mortuárias
1
O próximo som na sala foi de Jumento tentando se jogar contra a porta, mas ele foi apanhado e puxado de volta por Alondo e os Sanzas.
– Seu desgraçado, seu cavalariço com cérebro de tijolo – rosnou Jasmer. – Se o resto de nós tem que sofrer com essa farsa, você também tem!
– Qual é o nome do mercenário do Boulidazi? – perguntou Locke.
– Nerissa Malloria. Era tenente da guarda da condessa. Agora é uma espécie de mercenária. Dura como madeira-bruxa e fria como a xota de Aza Guilla.
– Para onde ela pretende levar o dinheiro depois da peça?
– Como, diabos, eu vou saber, garoto? – Jasmer passou as mãos lentamente pela barba crescida. – O lorde podia estar me fodendo, mas não era o tipo de caso em que
nós tínhamos uma conversa de travesseiro depois, entende?
– Aposto minha vida que ele mandaria que ela levasse o dinheiro à sua casa de contabilidade – interveio Jenora. – Fica no Pátio das Garças; não é longe da mansão
dele.
– Não há como tirá-lo de lá – observou Sabeta. – Terei que fazer outro bilhete com a letra do Boulidazi e mandá-la para um local mais privativo.
– Ainda assim, ela vai querer entregar o dinheiro a ele! – gritou Moncraine. – E vai esperar ter um recibo assinado e que ele tenha PULSAÇÃO quando assinar!
– Bom, agora ela não está trabalhando para a condessa – retrucou Sabeta. – Não é agente da lei. É contratada por Boulidazi e vai ceder às excentricidades dele. Só
precisamos imaginar algo que a faça deixar o dinheiro e ir embora satisfeita.
– Bom, Amadine, Rainha das Sombras, o que você sugere? – Jasmer balançou as mãos em elaborados gestos místicos. – Magia? É uma pena, mas eu sou feiticeiro só no
palco.
– Chega! – berrou Locke. – A areia está escorrendo para o fundo da nossa ampulheta, sem brincadeira. Deixe os detalhes do dinheiro conosco, Jasmer. Esta companhia
precisa ir para o Pérola em boa ordem e todos vocês têm que agir como se a peça fosse a única preocupação no mundo. Corações firmes e rostos corajosos! Para fora!
A Companhia Moncraine-Boulidazi saiu da sala arrastando os pés num estado misto de choque, ressaca e decisão séria. Os Sanzas foram atrás; tinha sido sugestão de
Sabeta que, depois da reunião, eles vigiassem explicitamente, deixando o mínimo de chances para alguém escapar.
– Alguma ideia com relação a separar essa tal de Malloria do dinheiro? – sussurrou Sabeta.
– Tenho uma – respondeu Locke. – Mas talvez você não goste. Precisamos que você represente a vagabunda risonha de novo.
– Prefiro fazer isso a ser enforcada!
– Então temos que descobrir qual é a melhor casa de banhos da cidade e garantir que o barão Boulidazi tenha uma reserva lá para depois da peça. – Locke esfregou
os olhos e suspirou. – E, por favor, lembre que eu avisei: acho que isso vai dar certo, mas não lhe deixará com mais do que uma migalha de dignidade.
2
– Demoiselle Gallante, não entendo! – Brego parecia desconfortável usando roupas mais finas do que o usual, e fez um gesto com os punhos fechados enquanto falava.
– Aonde, diabos, ele foi? Por que ele simplesmente...
– Brego, por favor – interrompeu Sabeta. – Sei onde o seu lorde vai estar mais tarde. Quanto ao momento presente, você sabe tanto quanto eu! Os bilhetes dele não
lhe deram instruções?
– Deram, claro que deram, mas estou inquieto! Sou encarregado da segurança pessoal de milorde e gostaria de poder...
– Brego! – De repente, Sabeta estava fria e séria. – Você me surpreende. Se você tem orientações claras do barão Boulidazi, por que a dificuldade em segui-las?
– Eu... acho que não tenho... ah... dificuldade, demoiselle.
– Ótimo. O meu trabalho está me sobrecarregando. – Sabeta beijou os dedos e encostou-os no rosto de Brego. – Seja bonzinho e cuide das suas coisas. Você vai ver
logo o que o nosso lorde está aprontando.
A companhia havia deixado o pátio da estalagem Gloriano arrumado para o espetáculo. Três cavalos pretos tinham sido emprestados por Boulidazi, arreados com as cores
de sua família, vermelho e prata. Sabeta montava no primeiro, de lado, e Chantal andava junto a ela, segurando as rédeas. Atrás, vinham Andrassus e Moncraine, atendidos
respectivamente por Jumento e Alondo. Os atores a cavalo usavam seus figurinos e Alondo usava um manto com capuz e uma máscara de tecido que só deixava os olhos
à mostra. Era uma coisa cruel no calor, mas não podia ser evitada.
A carroça, guiada por Jean e Jenora, também tinha sido enfeitada em vermelho e prata e estava com uma enorme pilha de adereços e figurinos. No fundo da pilha, enrolado
e bem coberto com perfumes e sachês, estava o cadáver do patrono da companhia. Galdo andava atrás, fazendo malabarismo com bolas alquímicas quentes que soltavam
fumaça vermelha, enquanto Locke e Bert guiavam a procissão balançando estandartes vermelhos.
Brego partiu para fazer suas tarefas no momento em que Calo, empoleirado habilmente na traseira da carroça, começava a gritar:
– Um convite a toda a população!
Ouçam a jubilosa convocação!
Hoje os deuses são bons à beça!
Larguem a labuta para ver uma peça!
Calo saltou para trás, deu uma cambalhota no ar e pousou de pé no chão, passando a fazer malabarismo com as bolas de fumaça, que Galdo lhe passou sem diminuir o
ritmo. Em seguida, Galdo saltou no lugar de Calo e proclamou:
– FINALMENTE, caros amigos, FINALMENTE a companhia Moncraine-Boulidazi retorna em triunfo ao PÉROLA ANTIGA! Venham ver! Há um lugar para VOCÊS esta tarde! Não fiquem
desolados! Não terminem o dia zombados por seus amigos e expulsos da cama da pessoa amada, acusados de serem simplórios! Ouçam o lendário Jasmer Moncraine, O MAIOR
ATOR! VIVO! DE ESPARA! Vejam a linda demoiselle Verena Gallante, QUE ROUBARÁ O CORAÇÃO DE TODOS! Observem a deliciosa Chantal Couza, a mulher que vai RESIDIR NOS
SEUS SONHOS!
E continuaram assim, nesse tom, com apenas poucas variações, à medida que o préstito serpenteava pelas ruas úmidas de Espara. O sol chamejava atrás de brancas fortificações
de nuvens que iam se esgarçando, prometendo uma fantástica luz vespertina para a peça, mas não muita misericórdia pelos que caminhariam no palco.
3
Uma ousada bandeira verde esparana flutuava no mastro ao lado do Pérola Antiga, e o teatro estava cercado por ruídos e tumulto. Alondo havia explicado a Locke, alguns
dias antes, como uma peça importante atraía um mercado improvisado de palhaços, charlatães, lunáticos, menestréis e vendedores, mas só os que tinham feito acordos
com a companhia e a ministra de cerimônias teriam permissão de ficar a menos de 10 metros das paredes do teatro.
– Você é mais inteligente do que a minha galinha? – gritou uma mulher velha, de cabelos revoltos, que segurava uma ave atarantada acima da cabeça. Aos seus pés,
havia uma tábua coberta com números e símbolos arcanos. – Façam suas apostas! Testem sua inteligência contra uma ave treinada! Um cobrim por tentativa! Você é mais
inteligente do que a minha galinha? Talvez você tenha uma surpresa!
Infelizmente, Locke não tinha tempo para pensar nisso. O préstito da companhia Moncraine-Boulidazi precisava ir em frente. Para além da mulher da galinha, moviam-se
os esperados vendedores de cerveja com copos de madeira acorrentados em barris, os homens das fossas com pás e baldes, os malabaristas desajeitados e os talentosos.
Havia harpistas, flautistas e tocadores de charamela e de tambor, todos usando faixas de pano na cabeça com pedaços de papel presos, mostrando que tinham pagado
a taxa dos músicos de rua. Havia consertadores de panelas, sapateiros e alfaiates com as ferramentas arrumadas em panos ou mesas dobráveis.
– Sacrilégio! Sacrilégio! Invocadores de fantasmas e ladrões de sepultura! Que os deuses detenham suas vozes! Que os deuses mandem sua plateia para fora dos portões!
– Um homem magro, de manto marrom, cujo rosto e braços tinham as reveladoras cicatrizes da autoflagelação, aproximou-se do préstito. – Salerius viveu! Aurine e Amadine
viveram! Vocês agitam seus espíritos inquietos com essas representações profanas! Vocês zombam dos mortos, e os fantasmas deles invadirão Espara! Que os deuses...
O que quer que o homem desejava dos deuses se perdeu quando Bertrand o empurrou de volta para a multidão, a maior parte da qual parecia compartilhar a opinião de
Bert sobre o denunciador. O homem não teve permissão de se levantar imediatamente e a companhia continuou passando.
Por fim, atrás de tudo, surgiu a cerca de madeira simples na marca dos 10 metros, patrulhada por guardas da cidade com porretes. Dentro desse limite, mercadores
suficientemente prósperos para possuir barracas haviam ocupado lugares junto às paredes do Pérola Antiga. O portão público para o teatro era guardado por uma mulher
séria, usando casaco acolchoado vermelho-sangue e chapéu de aba larga. Ela permanecia à sombra, a cabeça movendo-se constantemente para examinar a multidão, e usava
porrete e adaga às claras, no cinto. O recolhimento de dinheiro era feito por um par de empregados corpulentos.
Locke viu Brego correndo na direção da mulher, com um pergaminho dobrado nas mãos. Locke suprimiu um sorriso. Seriam as ordens lacradas do “barão Boulidazi”, que
desviariam Malloria e seu peso de metal precioso da casa de contabilidade para a casa de banhos.
A companhia parou no lado norte do Pérola, onde a meia dúzia de atores contratados por Moncraine esperava embaixo de um toldo. Eles saltaram de pé, quase tropeçando
uns nos outros na ânsia de serem vistos oferecendo ajuda com os figurinos e adereços. Enquanto Jean e Jenora lhes entregavam o material, mantendo-os cuidadosamente
longe da carroça, uma mulher se aproximou a pé com um par de guardas às costas.
Era jovem, pesada, de olhos afiados, vestindo uma jaqueta creme e saia com acabamento em renda de prata. Véus para proteger do sol desciam de seu chapéu de quatro
bicos e, para Locke, ela tinha o ar de alguém acostumado às multidões e às portas se abrindo à sua frente. Jasmer e Sylvanus confirmaram a suspeita de Locke apeando
rapidamente dos cavalos e fazendo reverências; num instante, toda a companhia os imitou.
– Mestre Moncraine, levante-se – pediu a mulher. – É agradável vê-lo e à sua companhia empregados de novo, ainda que um tanto reduzida em número.
– Lady Ezrintaim, obrigado por sua consideração – disse Jasmer, empertigando-se mas adoçando as palavras com uma grossa camada de deferência. – Temos todas as esperanças
de que nossa recente perda de atores extras se prove um refinamento.
– Veremos. Eu esperava que seu patrono viesse antes da companhia. Saberia dizer onde o barão Boulidazi pode ser encontrado?
– Ah, milady, lorde Boulidazi não confiou a mim seu paradeiro atual. Garanto que ele tem toda a intenção de estar presente, de alguma forma, esta tarde.
– De alguma forma?
– Milady, se é que posso... Eu não posso responder por ele. A não ser para lhe garantir, pela minha honra, que milorde está labutando, mesmo agora, para garantir
que o dia de hoje não seja apenas memorável, mas também... ah... singular.
– Claro, vou assistir atentamente do meu camarote. Informe ao seu patrono que ele é esperado depois da apresentação, se não antes.
– C-claro, lady Ezrintaim.
Moncraine fez outra reverência, mas a mulher já havia se virado e se afastado. Um dos seus guardas abriu um guarda-sol de seda e segurou-o acima dela. Moncraine
manteve a mesura durante mais meia dúzia de batimentos cardíacos, então se levantou, partiu para cima de Locke e agarrou-o pelo colarinho.
– Como você pode ver – Moncraine falava direto no ouvido dele –, agora a ministra de cerimônias da condessa Antônia espera um comparecimento pessoal do muito, muito
retardatário lorde Boulidazi, assim que tivermos feito os agradecimentos. O que você propõe fazer, enfiar a mão no cu dele e manipulá-lo como uma marionete?
– Você fingirá que é lorde Boulidazi.
– O quê?
– Estou de sacanagem! Por que você fica agindo como se isso fosse problema seu? A peça é problema seu. Deixe o resto conosco. E tire a mão de mim.
– Se eu acabar diante da forca por causa disso, vou garantir que levarei uma companhia alegre para a queda.
Moncraine saiu pisando firme antes que Locke pudesse dizer qualquer coisa.
– Eu fico me perguntando... – sussurrou Sabeta, apertando o braço de Locke. – Será que nós somos mais inteligentes do que a galinha daquela mulher?
– No momento, esta é uma questão em aberto.
4
Atrás do palco, havia vários corredores e pequenas salas, além de duas grandes áreas de preparação chamadas de câmaras de vestuário. Uma escada levava a um porão
onde podiam ser usados guinchos para içar ou baixar atores através de alçapões. O ar cheirava a suor, fumaça, mofo e maquiagem.
As câmaras de vestuário zumbiam com conversas, a maioria entre atores contratados. Bert e Chantal pareciam sérios mas bem-dispostos, Alondo mantinha o braço em volta
dos ombros de Jumento e Sylvanus aliviava uma garrafa de vinho do seu conteúdo. Os gêmeos se vestiam para o papel conjunto de Coro: um de vermelho, com gorro ornamentado
em dourado para representar a corte imperial; o outro de preto, o gorro com acabamento em prata para representar a corte dos ladrões. Jean e Jenora penduravam mantos
brancos e máscaras de espectros em ganchos na parede, para serem apanhados e postos rapidamente pela parte significativa do elenco que não escaparia viva da peça.
Brego e dois empregados vieram pegar os cavalos e as flâmulas de Boulidazi. Assim que eles saíram, Jean se postou na porta dos fundos. Ficaria de olho na carroça
e em seu conteúdo delicado, entrando rapidamente para ajudar Jenora apenas em algumas operações cruciais ou complicadas.
– Começamos na segunda hora em ponto – avisou Moncraine. – Há um relógio verrari atrás do camarote da condessa. Quando ele tocar duas vezes, a bandeira desce. Eu
saúdo a condessa, depois saem os palermas para domar o pessoal do chão. E, pelos deuses, eles precisarão ser domados.
Locke podia ouvir os murmúrios, as vaias, os gritos e zombarias dos esparanos – que enchiam o poço do tostão, a área de ingresso mais barato, de chão de terra, diante
do palco –, além dos músicos que tentavam arrancar moedas da multidão.
Segunda hora da tarde, pensou Locke. Restavam cerca de vinte minutos para se vestir e pensar. A primeira coisa era muito mais fácil. Seu figurino de Aurim era uma
calça marrom justa, uma túnica branca simples e um colete marrom. Ele enrolou um pano vermelho logo acima das orelhas; isso afastaria o suor dos olhos e sugeriria
uma coroa, mesmo quando ele não estivesse usando uma. Para as primeiras cenas na corte de Salerius II, Locke trajaria uma capa vermelha sobre o resto do figurino,
uma versão menor da capa que seria usada por Sylvanus o tempo todo.
Sabeta se aproximou e a garganta de Locke apertou. As cores de Amadine eram as da noite, por isso ela usava uma calça preta e justa e um gibão cinza e justo com
decote cavado. Seu cabelo estava preso com elegância, cortesia de Jenora e Chantal, com alfinetes de prata e um pano azul, equivalente ao vermelho de Locke. O gibão
reluzia com pedras falsas e fios prateados e havia duas adagas embainhadas na cintura.
– Sorte e pose – sussurrou ela, abraçando-o por tempo suficiente apenas para roçar um beijo em seu pescoço.
– Você brilha mais do que o sol.
– Isso é bastante inconveniente para uma ladra.
Sabeta apertou as mãos dele e piscou.
Calo e Galdo se aproximaram.
– Estávamos querendo um momento – disse Galdo.
– Perto da porta, com o Gorducho – completou Calo. – Achamos que uma pequena oração poderia não ser ruim.
Locke sentiu a súbita tensão inoportuna da responsabilidade. Isso não era uma coisa que estavam lhe pedindo como colega e, sim, do outro lado da barreira que até
mesmo os sacerdotes mais descomprometidos do Treze Sem Nome deviam sentir de vez em quando. Não havia recusa possível. Os outros mereciam qualquer conforto que Locke
pudesse dar.
Os cinco camorris se reuniram num círculo junto à porta dos fundos, com as mãos e as cabeças juntas.
– Guardião Torto – sussurrou Locke –, nosso, ahn, nosso protetor... nosso pai... mandou-nos aqui com uma tarefa. Não permita que nos envergonhemos. Não permita que
nós o envergonhemos, agora que estamos tão perto de conseguir. Não permita que fracassemos com essas pessoas que confiam em nós para mantê-las longe da forca. Que
os ladrões prosperem.
– Que os ladrões prosperem – sussurraram os outros.
Chantal veio chamá-los para as últimas instruções de Moncraine. Não havia mais tempo para rezar ou planejar.
5
A bandeira verde de Espara desceu até a metade do mastro, depois subiu de novo. Locke, olhando através de uma grade de arabescos, sinalizou para Jasmer, que ajeitou
os ombros e saiu para o ruído e o clarão de luz do meio da tarde.
O poço do tostão estava lotado e recém-chegados ainda se espremiam passando pela entrada. O comparecimento às peças era um negócio inexato e Nerissa Malloria e seus
rapazes pegariam moedas até o fim da apresentação.
As galerias elevadas estavam surpreendentemente cheias de ricos e nobres, acompanhados de seus pequenos exércitos de serviçais, abanadores de leques, aias e guarda-costas.
O camarote da condessa Antônia, enfeitado com sua bandeira, estava vazio, mas a baronesa Ezrintaim e seu séquito ocupavam o camarote à esquerda. Os amigos e colegas
prometidos pelo barão Boulidazi preenchiam um grande arco dos balcões de luxo e aparentemente haviam trazido mais amigos e colegas.
Jasmer andou até o centro do palco e a ele se juntaram um homem e uma mulher que vieram da multidão. A mulher usava os mantos da ordem de Morgante e carregava um
cajado cerimonial de ferro. O homem trajava os mantos de Callo Androno e segurava uma pena de escrever abençoada. Responsáveis pela ordem pública e pelo conhecimento,
eram as divindades publicamente invocadas antes de uma peça em qualquer cidade terim. Sob o olhar deles, a multidão ficou em silêncio na mesma hora.
– Agradecemos aos deuses pelo presente desta linda tarde – trovejou Jasmer. – A Companhia Moncraine-Boulidazi dedica este espetáculo a Antônia, Condessa de Espara.
Que ela viva e reine por um longo tempo!
O silêncio perdurou enquanto os sacerdotes faziam seus gestos, depois retornavam à multidão. Moncraine se virou e começou a se dirigir para a câmara de vestuário,
e de novo a multidão explodiu em gritos e falas desconexas.
Calo e Galdo foram tranquilamente para o palco, passando pelos dois lados de Moncraine. Locke tremia de ansiedade. Deuses do céu, não havia mais segundas chances.
– Olhem esses pavões magricelas e enfeitados! – berrou alguém do chão de terra, um homem cuja voz ia quase tão longe quanto a de Jasmer.
O poço do tostão explodiu em gargalhadas e Locke bateu com a cabeça na grade.
– Ei, olhe quem é! – gritou Galdo. – Não está reconhecendo, irmão?
– Pela fé, como eu poderia não reconhecer? Nós passamos metade da noite ensinando truques novos à mulher dele!
– Ah! Pavões! – berrou o importuno acima dos risos das pessoas ao redor. Ele agarrou o braço de um homem grande e barbudo ao lado e levantou-o bem alto. – Pergunte
a qualquer um aqui, não é uma esposa que eu tenho em casa!
– Bom, isso explica muita coisa! – berrou Galdo. – O sujeito é tão mal dotado que nós o confundimos com uma mulher!
Locke ficou tenso. Em Camorr, os homens não diziam em público que dormiam com outros homens e também trocavam socos por muito menos do que isso. Parecia que os esparanos
eram mais cordiais com relação às duas coisas, já que o importuno e seu amante riram tão alto quanto todo mundo.
– Ouvi um boato estranhíssimo de que aconteceria uma peça esta tarde! – exclamou Calo.
– O quê? Onde? – perguntou Galdo.
– Bem aqui onde estamos! Uma peça com moças exuberantes e rapazes lindos! Não sei, irmão... você acha que essas pessoas têm interesse por essas coisas?
Os espectadores no chão rugiram e aplaudiram.
– Tem amor, sangue e história! – gritou Galdo. – Tem atores bonitos com belas vozes! Ah, e tem Jasmer Moncraine também.
Gargalhadas atravessaram a plateia. Espiando por sua grade ali perto, Sylvanus riu.
– Agora venham conosco! – berraram os gêmeos em uníssono.
Em seguida, entrelaçaram as palavras, parando e retomando o texto através de sinais imperceptíveis, trocando passagens e frases de modo que havia dois oradores e
um orador ao mesmo tempo:
– Viajem oitocentos anos em uma só respiração! Entreguem-nos seus corações e suas fantasias para serem modelados como argila, e iremos torná-los testemunhas de um
assassinato! Faremos de vocês espectadores do amor verdadeiro! Tornaremos vocês partícipes de segredos de imperadores! Vocês, que nos veem com seus olhos, veem errado,
e não escutam nada de verdadeiro, mesmo forçando os ouvidos! Que ladrões espantosos são esses sentidos...
Enquanto os Sanzas declamavam, figurantes com capas vermelhas marchavam em silêncio para o palco, com lanças de madeira diante do corpo. Dois carregavam o banco
baixo que serviria como trono de Sylvanus.
– Desafiem as limitações de nosso pobre fingimento – disseram por fim os gêmeos –, e conosco, juntos, imaginem e acolham a história de Aurin, filho e herdeiro do
velho Salerius. E, se é verdade que a tristeza é a semente da sabedoria, vejam agora por que jamais um homem mais sábio tornou-se imperador!
Calo e Galdo fizeram uma reverência para a plateia e se retiraram com sorrisos oblíquos, perseguidos por aplausos sonoros.
Mais ou menos oitocentas pessoas assistiam.
Agora elas esperavam ver um príncipe.
Locke lutou contra o tremor frio que se enraizara em algum lugar entre a coluna e os pulmões e se enrolou na capa vermelha. Foi tomado por aquela percepção aguda
que só vinha quando se dirigia para um perigo imediato, e imaginou que podia sentir cada estalo das tábuas sob as botas, cada gota de suor rolando na pele.
Jenora pôs a coroa de arame torcido e pedras falsas por cima de seu pano de cabeça. Sylvanus, Jasmer e Alondo já estavam em posição, observando-o. Locke assumiu
seu lugar perto de Alondo e, juntos, os dois adentraram a claridade branca do dia e a bocarra da multidão.
6
Era quase como um treino de luta: breves explosões de suor e adrenalina seguidas por momentos de recuperação e reflexão antes de saltar para a refrega outra vez.
A princípio, Locke sentiu a atenção da plateia como um formigamento quente em cada nervo, algo em guerra contra todo instinto de autopreservação que ele já desenvolvera
enquanto se esgueirava por Camorr. Gradualmente, percebeu que, a qualquer instante, metade da plateia poderia olhar para outro ator, para algum detalhe do palco,
para os amigos ou para a cerveja, tanto quanto poderiam olhar para ele. Esse conhecimento não era bem o mesmo que uma sombra reconfortante onde se esconder, mas
bastava para permitir que ele retornasse a um estado de autocontrole.
– Você está indo bastante bem – comentou Alondo, dando-lhe um tapa nas costas enquanto eles engoliam água com um pouco de vinho entre as cenas.
– Comecei fraco – respondeu Locke. – Acho que agora peguei o fio da meada.
– Bom, este é o segredo: se você terminar forte, eles perdoarão qualquer coisa que tenha vindo antes como pertencente aos mistérios da arte de atuar. Vê como Sylvanus
parece mais hábil a cada garrafa que ele engole? Que a confiança seja o nosso vinho.
– Você não precisa de apoio.
– Ah, você está me entendendo mal, Lucaza. Se você fingir tranquilidade por tempo suficiente, isso vai parecer tranquilidade. Mas a sensação não é nem um pouco igual,
posso garantir. Meu raciocínio vai estar todo cheio de nós antes de eu fazer 25 anos.
– Pelo menos você está convencido de que vai viver até os 25!
– Ah, bom, o que foi que acabei de falar sobre fingir tranquilidade? Venha, é o Valedon que está sendo levado para a morte. Estamos em cena de novo.
Assim, a trama se desenrolou, implacável como um relógio. Aurin e Ferrin foram despachados em sua tarefa clandestina para se infiltrar entre os ladrões de Terim
Pel, Aurin ficou aparvalhado com o primeiro vislumbre de Amadine e Ferrin confidenciou suas premonições de problemas à plateia, parte da qual gargalhou e gritou
conselhos bêbados para ele.
Um figurante com manto branco e máscara deslizou para as sombras das colunas do palco, representando Valedon, o primeiro do coro dos espectros. Aurin e Ferrin partiram
para ganhar a confiança dos ladrões roubando ousadamente Bertrand, o Multidão, que quase desapareceu no papel de um nobre idoso. Alondo exigiu a bolsa de Bert na
linguagem exageradamente educada da corte e, enquanto a plateia fazia “tsc-tsc”, Bert rosnou:
– Quem fala essas palavras como pedras polidas? Quem apresenta suas ameaças sobre seda, como coisas frágeis? Vocês estão bêbados, são rapazes farristas brincando
de bandidos! Deem meia-volta e encontrem suas mães, meninos, ou vou colocá-los nos meus joelhos para transformar seus traseiros em cerejas brilhantes!
– Palavras ou aço, é tudo a mesma coisa, você tem sua opção, mas nós precisamos ter sua bolsa! – exclamou Locke, desembainhando a adaga.
Alondo o imitou, representando o desconforto de Ferrin. As lâminas eram cegas, mas polidas até brilhar, e a multidão suspirou, apreciando. Bert lutou, depois se
encolheu e desdobrou um pano vermelho-vivo do braço.
– Ah, vocês me feriram, malditos – rosnou Bert, jogando uma bolsa no palco e se ajoelhando. – O que vocês derramaram é sangue nobre!
– Azar o seu! – rebateu Locke, brandindo a adaga diante do rosto de Bert. – O que acha agora dessas “coisas frágeis”, velho? Ora, ele não se importa com nossa conversa,
primo. Ele acha nossas observações cortantes demais!
– Estou com a bolsa – avisou Alondo, olhando freneticamente ao redor. – Devemos ir embora. Ir embora ou ser presos!
– E presos vocês serão! – gritou Bert enquanto Locke e Alondo corriam comicamente de volta para as câmaras de vestuário. – Presos e acorrentados num lugar lamentável!
O ritmo dos acontecimentos acelerou. Aurin e Ferrin foram recebidos na confiança dos ladrões de Amadine, e Aurin começou a fazer investidas diretas sobre Amadine.
Pentra, sempre desconfiada, seguiu os dois homens e descobriu sua verdadeira identidade quando eles informaram seu progresso a Calamaxes, o feiticeiro.
Locke ficou olhando por trás de sua grade enquanto Sabeta e Chantal discutiam o destino de Aurin. Admirou a força do argumento de Chantal, de que ele deveria ser
feito refém ou morto discretamente; ela e Sabeta representavam com ênfase e força, estimulando-se mutuamente, fazendo baixar o murmúrio e as brincadeiras da plateia
sempre que dominavam uma cena juntas.
Em seguida, veio o confronto entre Aurin e Amadine, em que o filho do imperador se dobrava e confessava seus sentimentos. Atrás deles, Alondo e Chantal estavam encostados
feito estátuas nas colunas do palco, um de costas para o outro, olhando a plateia com expressões duras.
– Você governa meu coração inteiro! Olhe suas mãos, veja, você já o segura! – exclamou Locke, abaixado sobre um dos joelhos. – Guarde-o como um tesouro ou use-o
para embainhar uma faca! O que você exige de mim, tome, com toda a minha alma entrego por livre vontade, até mesmo esta alma!
– Você é filho de um imperador!
– Não sou livre para escolher sequer o broche da minha capa. Sou vestido, tutelado e vigiado, e o caminho para o trono é reto sem nem mesmo uma curva. Bom, agora
eu dou as costas a isso, Amadine. Sou mais livre no seu reino do que no do meu pai, assim desafio o meu pai. Desafio minha sentença por sua causa. Ah, diga que me
aceita. Desde que a mirei pela primeira vez, você é minha imperatriz, acordado ou dormindo.
Em seguida, veio o beijo, ao qual Locke se lançou com o coração batendo tão alto a ponto de ter certeza de que a plateia iria confundi-lo com um tambor e esperar
mais música. Sabeta o acompanhou e, diante de oitocentos estranhos, eles compartilharam o delicioso segredo de que não estavam dando um beijo cênico. Demoraram muito
mais do que a direção de Jasmer pedira. A plateia uivou e rugiu aprovando.
Outro breve descanso na câmara de vestuário. No palco, Bert, atuando como o velho nobre, de braço ferido numa tipoia, pediu audiência com o imperador e reclamou
amargamente da falta de lei nas ruas de Terim Pel. Sylvanus, régio e de bochechas vermelhas, prometeu colocar mais guardas na cidade.
Jumento, ainda encapuzado, mascarado e silencioso, aceitou um pacote de Jenora e levou-o discretamente a uma sala particular. Encostado na porta dos fundos, Jean
assentiu para Locke, indicando que ninguém tinha mexido com a carroça ou a carga.
De volta à luz e ao calor para as festividades irresponsáveis dos ladrões, houve um breve momento de júbilo desafiador de Aurin e Amadine enquanto Pentra e Ferrin
faziam carrancas às costas deles. Agora, Amadine se tornara descuidada e excessivamente confiante, e Ferrin implorava a Aurin, inutilmente, que lembrasse sua condição
e sua tarefa.
Um fim terrível chegou depressa para esse idílio, na forma de figurantes arrastando Chantal para a câmara de vestuário, com um pano vermelho apertado contra o peito.
Pentra havia ido a Terim Pel clarear a mente com pequenos roubos, mas deparou com tropas do imperador e voltou mortalmente ferida.
Quando Chantal disse sua última fala, Sabeta soltou um grito. Então, enquanto todos os outros atores principais permaneciam imóveis, Chantal se levantou e colocou
seu manto branco e a máscara mortuária, linda e fantasmagórica. A sombra de Pentra se juntou à de Valedon, como observadora.
Seguiram-se recriminações. Amadine ficou de lado, sofrendo e em choque, enquanto Ferrin, numa fúria desesperada, primeiro adulou e depois ordenou que Aurin a matasse.
– Agora, Aurin, agora! Ela está totalmente sem poder! Veja como os cães dela se encolhem espantados. Ninguém vai impedi-lo. Um instante de trabalho ensinará seus
inimigos a temê-lo para sempre.
– Não ensinarei a ninguém que eu destruo a beleza ao encontrá-la, nem que traio o amor quando o professo – retrucou Locke. – Engula seu conselho e mantenha-o escondido,
Ferrin. Sou seu príncipe.
– Você não é príncipe, a não ser que aja como tal! Nossa soberana majestade, seu pai, encarregou-o de exercer a justiça dele!
– Meu pai aguou campos com o sangue de exércitos. Não vou aguar pedras com o sangue de uma mulher desarmada. Isso é execução, não justiça.
– Então saia da frente e deixe que isso seja feito em seu nome. – Alondo desembainhou sua espada longa, tomando o cuidado de deslizá-la com força na bainha para
causar o ruído mais sinistro e impressionante possível. – Desvie o olhar, príncipe. Jurarei ao seu pai que o ato foi feito por sua mão.
– Por duas vezes você testou minha paciência, Ferrin. – Locke pôs a mão no punho de sua espada. – Jamais sairei da frente e você jamais me testará de novo! Uma terceira
vez fecha meu coração contra você e dissolve toda a amizade.
– Dissolve a nossa intimidade, príncipe. Tal é seu direito e seu poder. Dissolver minha amizade você não pode. Ajo assim como amigo. Portanto, testo de novo, ainda
que isso corte minha alma, e desafio-o a sair do caminho.
– Eu amei você, Ferrin, mas, em nome do amor, vou matá-lo se for preciso. – Locke desembainhou a espada num piscar de olhos. – Avance contra Amadine e você é meu
inimigo.
– Você é herdeiro de um imperador e eu sou servidor de um imperador! – gritou Alondo, levantando a espada ao nível da de Locke. – Você não pode fugir do trono, assim
como não pode fugir do giro do sol! A responsabilidade é sua, príncipe. Sua vida... é... DEVER!
– EU NÃO TENHO dever a não ser para com ela! – rosnou Locke e golpeou, acertando a manga direita de Alondo, como se Ferrin não tivesse esperado de fato que Aurin
atacasse. – E você não tem dever a não ser para comigo!
– Agora vejo que você é mole como o metal de seu nome – disse Alondo com frieza, massageando o braço “ferido”. – Mas eu sou o verdadeiro ferro terim. Vou lamentar
sua morte. Já lamento, amigo cruel, filho indigno! Aqui estão lágrimas por nosso amor e aço pela sua traição!
A voz de Alondo se tornou um grito angustiado enquanto ele saltava à frente. O estalo de lâmina contra lâmina ecoou através da plateia; todas as piadas e os murmúrios
morreram instantaneamente. Locke e Alondo tinham ensaiado essa dança à exaustão, dando a ela os movimentos de dois homens furiosos além de qualquer razão. Não havia
fanfarronices, nem jogos habilidosos de espadas, apenas velocidade áspera, círculos desesperados e o choque brutal de metal. O pessoal do chão bebia tudo com os
olhos.
Ferrin era o melhor lutador, o mais forte, e golpeava Aurin implacavelmente, tirando “sangue”, obrigando Locke a se ajoelhar. No momento mais dramaticamente adequado,
Ferrin recuou o braço para um golpe mortal e, em vez disso, recebeu o golpe de Aurin. Alondo segurou a lâmina embaixo do braço esquerdo, largou sua própria espada
e soltou um pano vermelho. Seu desmoronamento no palco foi tão súbito que até mesmo Locke se encolheu, surpreso. O pessoal do chão aplaudiu.
Locke e Sabeta se abraçaram, perfeitamente imóveis, enquanto Alondo se levantava devagar e ia ao fundo do palco receber sua máscara e seu manto brancos.
As últimas cenas estavam chegando. O sol havia se movido para coroar a alta parede oeste do teatro. Outro confronto e tumulto; figurantes vestindo o vermelho imperial
avançaram com lanças sobre figurantes usando verde e couro dos ladrões. Calamaxes veio em seguida, o manto preto esvoaçando, com potes vermelhos e laranja de fumaça
alquímica irrompendo atrás dele para marcar o uso de sua feitiçaria. Por fim, os gritos morreram e os súditos de Amadine foram dizimados. Os ladrões e guardas mortos
se levantaram ao mesmo tempo, puseram mantos e máscaras e se juntaram ao coro de fantasmas.
Jasmer puxou Locke e Sabeta de pé, separou-os violentamente e ficou entre eles.
– O reino das sombras foi varrido. Sua majestade, preocupando-se com sua segurança, ordenou que eu o vigiasse de longe e depois o resgatasse. Vejo que sua tarefa
está quase terminada, ainda que tenha lhe custado um amigo.
– Custou-me muito mais do que isso – respondeu Locke. – Não irei com você, Calamaxes. Nem agora nem nunca.
– Sua vida não é sua, meu príncipe, mas algo que é tido como certo para os milhões de almas que você deve governar. Você, como herdeiro, garante a paz delas. Morto
ou perdido para a frivolidade, você condena-as ao motim e à guerra civil. Você, que reivindica o trono, é reivindicado por ele com força igual.
– Amadine!
– Ela deve morrer, Aurin, e você deve governar. Você encontrará a força para erguer sua espada ou vou matá-la com um feitiço. De qualquer modo, vou elogiá-lo para
a corte de seu pai e ninguém vivo vai me contradizer.
Locke pegou sua espada, olhou para Sabeta e jogou a arma no palco.
– Você não pode me pedir para fazer isso.
– Não peço: instruo – falou Jasmer com uma reverência. – E, se você não consegue, então: o feitiço.
– Espere, feiticeiro! – Sabeta passou por Jasmer e segurou as mãos de Locke. – Vejo que os poderes que o enviaram diante de mim conspiraram tanto contra sua vontade
como contra meu reino. Anime-se, meu amor, porque você é meu amor e eu jamais conhecerei outro. Que haja agora uma honestidade última e fatal entre nós. Meu reino
se foi e o seu permanece para ser herdado. Demonstre bondade para com ele.
– Governarei sem alegria. Toda a minha alegria vive em você, e por pouco tempo. Depois vem apenas o dever.
– Vou ensinar-lhe algo sobre o dever, meu amor. Aqui está o dever para comigo mesma. – Sabeta pegou uma adaga na manga e segurou-a no alto. – Sou Amadine, Rainha
das Sombras, e meu destino é meu. Não será obra minha condenar ou libertar qualquer pessoa!
Sabeta mergulhou a adaga entre o braço esquerdo e o seio e caiu devagar para a frente, dando a Locke tempo suficiente para ampará-la e baixá-la sobre os joelhos.
Soluçar era fácil; até mesmo a visão de Sabeta fingindo se esfaquear bastava para colocar rios por trás de seus olhos, e ele se perguntou se esse toque seria admirado
como atuação. Segurou-a com força, balançando e chorando, sob o olhar sério e imóvel de Jasmer.
Por fim, Locke soltou-a. Sabeta se levantou e andou com graça langorosa até a linha de espectros que esperavam. Eles a receberam como cortesãos e a ocultaram na
capa e na máscara mais elaboradas de todas.
Locke ficou parado diante de Jasmer, recompondo-se.
– Quando eu for coroado, você perderá tudo o que foi dado por meu pai, perderá seu nome e sua prole será deserdada. Você será exilado de Terim Pel e da minha vista,
aonde quer que essa vista pousar.
– Que seja, meu príncipe. – Jasmer estendeu a mão e pôs um cordão de ouro nos ombros de Locke, seguido pela coroa. – Desde que você retorne comigo.
– O caminho para o trono é reto sem ao menos uma curva. A não ser esta que eu fiz, para minha tristeza. Retornarei.
Os espectros se separaram, formando duas filas, e revelaram Sylvanus sentado imóvel no trono. Locke andou lentamente até ele, com Jasmer três passos atrás. Por fim,
Locke se ajoelhou diante de Sylvanus e baixou a cabeça.
7
Um silêncio espantoso perdurou pelo tempo de alguns batimentos cardíacos. Enquanto Locke se ajoelhava numa imagem submissa, os dois espectros mais próximos tiraram
as máscaras e os mantos, revelando-se como Calo e Galdo, do Coro.
Eles caminharam até a beirada do palco e falaram em uníssono:
– República de ladrões, uma história real e trágica escrita por Caellius Lucarno. Que os deuses tenham sua alma e deixem que nos separemos como amigos.
A multidão reagiu com gritos e aplausos. Sylvanus abriu um sorriso e sinalizou para Locke ficar de pé. Pequenos objetos voavam pelo ar, mas estavam sendo jogados
contra as paredes e as galerias dos dois lados do palco. Deuses, eles tinham conseguido! Só uma plateia satisfeita gastava os legumes podres e o entulho longe do
palco; era a marca definitiva de respeito por parte dos terins no chão.
Alondo e Sabeta tiraram as máscaras mortuárias e foram para perto de Locke. Juntos, fizeram reverências, depois abriram caminho para Bert e Chantal fazerem o mesmo.
Em seguida, vieram Sylvanus e os figurantes. Apenas Jumento permaneceu vestido de fantasma.
Moncraine jogou seu capuz para trás e assumiu o centro do palco.
– Generosos nobres de Espara – proclamou, contendo os aplausos –, gente de bem e amigos. Nós, a companhia Moncraine-Boulidazi, obtivemos muitos benefícios com a
generosidade de nosso nobre patrono. Na verdade, tão passional é a ligação de meu lorde Boulidazi com nosso empreendimento que ele insistiu em dar a assistência
mais direta possível. É minha grande honra lhes apresentar meu lorde e patrono, o barão Boulidazi!
Moncraine tinha feito seu papel entusiasmado com excelência. Locke umedeceu os lábios e rezou para que Djumein Kurlin tivesse coragem para fazer o mesmo.
Jumento permitiu que a capa de espectro caísse para trás, revelando um conjunto caro de roupas de Boulidazi, requisitado na noite anterior num dos bilhetes falsos
escritos por Sabeta. Elas cabiam em Jumento como se tivessem sido cortadas para ele. Seguindo instruções rígidas de Locke, Jumento caminhou com passo imponente até
o lugar de Jasmer, no palco. Moncraine e os outros membros da companhia baixaram a cabeça para ele ao mesmo tempo; os figurantes foram pegos de surpresa, mas logo
se curvaram também, e em seguida as primeiras doze fileiras da plateia, aproximadamente. Gritos de incredulidade ecoaram dos balcões onde os amigos e colegas de
Boulidazi estavam sentados, seguidos por risos e aplausos de apreciação.
Jumento apontou para eles e sacudiu o punho no ar, em triunfo. Virou para o camarote da baronesa Ezrintaim, estendeu os braços para ela e fez uma reverência profunda,
tudo isso sem retirar a máscara de espectro.
Então, como Locke havia orientado, ele se virou e voltou rapidamente para a câmara de vestuário. Enquanto o resto da companhia fazia a última mesura, todos juntos,
a maior parte da plateia pareceu perplexa, ou pelo menos admirada, com o que acabara de acontecer, e em seguida teve início a saída ruidosa e cheia de cotoveladas.
Músicos começaram a tocar de novo. A companhia deixou o palco, perseguida apenas por alguns bêbados e pelos que imploravam beijos aos berros, particularmente de
Chantal, Sabeta e Alondo.
Locke passou entre os figurantes na câmara de vestuário e tirou sua coroa de arame. Jean ergueu uma das mãos e assentiu de novo, e uma onda de alívio fez os joelhos
de Locke quase virarem água. Sabeta também notou, e apertou o braço dele.
Jumento fora instruído a entrar rapidamente na câmara de vestuário e, nos breves instantes em que os figurantes permanecessem no palco, correr e saltar na carroça
de adereços, onde seria escondido por Jean embaixo de um cobertor. Locke sabia que era um grande risco esperar que Jumento ficasse deitado, quieto, na escuridão
calorenta logo acima de um cadáver, mas não havia o que fazer. “Boulidazi” precisava desaparecer como uma brisa de passagem, pois Jumento não poderia tirar a máscara
nem emitir uma única sílaba sem destruir a frágil ilusão. Jean estivera totalmente preparado para lhe dar uma pancada na cabeça caso ele hesitasse.
– Aonde foi o barão? – perguntou um figurante.
– Os amigos do lorde estavam esperando para pegá-lo – respondeu Jean. – Vocês podem imaginar como o barão deve estar ocupado esta noite.
– Agora a ministra de cerimônias – sussurrou Locke a Sabeta. – Depressa, antes que a espera a incomode.
– Quer que eu vá com você?
– Acho que é nossa melhor chance.
Ele delineou o plano e ela sorriu.
– Não é mais idiota do que qualquer outra coisa que fizemos hoje!
A câmara de vestuário estava cheia de figurantes aliviados e suados, todos juntando mantos, máscaras e adereços sob a orientação exigente de Jenora. Não havia tempo
para descanso; os figurantes precisavam ser pagos pelo trabalho e mandados embora sem a camaradagem e as bebidas usuais. Os objetos da companhia precisavam ser embalados
e seguir na carroça para o encontro com Nerissa Malloria antes que ela própria partisse do Pérola Antiga. Mas isso era trabalho de outras pessoas. Locke e Sabeta
tiraram rapidamente as armas de figurino – era ilegal mostrarem essas coisas fora do palco – e dispararam para o pátio.
Estavam ao sol de novo, passando pelos restos da plateia do chão, pelas cascas de frutas e a cerveja derramada; subiram correndo a escada para os balcões e quase
colidiram com um par de guardas do lado de fora do camarote da baronesa Ezrintaim.
– Requisitamos uma audiência com lady Ezrintaim – disse Locke, estendendo o anel com sinete que haviam tirado de Boulidazi na noite anterior. – Viemos com urgência,
em nome do barão Boulidazi.
– A dama não receberá atores em seu camarote particular – retrucou um dos guardas. – Vocês devem...
– Nada disso – interveio a voz da ministra de cerimônias. – Deixe-os entrar e garanta que tenhamos privacidade.
Locke e Sabeta tiveram permissão de entrar no balcão, onde encontraram Ezrintaim junto à balaustrada, olhando para o palco e para os trabalhadores que varriam o
pátio, pagos por Moncraine. A baronesa se virou e os dois camorris fizeram reverências mais profundas do que o necessário.
– Bom, seu nobre patrono vem e vai como quer, não é? É a segunda vez que eu o espero e, em vez disso, encontro parte da trupe dele.
– Lorde Boulidazi manda suas desculpas mais sérias e abjetas, milady, pois não pode visitá-la como a senhora exigiu – respondeu Locke. – Ao sair do palco agora mesmo,
ele tropeçou e machucou o tornozelo. Uma coisa séria. No momento, não pode ficar de pé, quanto mais subir escadas. Ele pôs o anel de sinete nas nossas mãos e pediu
que o mostrássemos caso a senhora quisesse verificar...
– Ora, ora, o barão Boulidazi é muito pouco cuidadoso em seus hábitos. Guarde isso, rapaz, não preciso morder o anel do barão. Já o vi antes. O lorde ainda está
aqui?
– Alguns amigos dele insistiram em levá-lo imediatamente a um galeno, milady, sem fazer uma cena – explicou Sabeta. – Milorde estava sentindo dor considerável e
pode não ter resistido adequadamente aos agrados deles.
– Recusar a tentação não é o ponto forte de lorde Boulidazi. – Ezrintaim olhou para Sabeta com mais intensidade do que Locke gostaria. – Mas, se ele se machucou,
não vou censurar os amigos dele por usarem o cérebro pela primeira vez.
– Ele... isto é, milorde espera que a senhora consinta em ser a convidada dele em qualquer ocasião conveniente depois da apresentação de amanhã – disse Locke.
Esse era um ardil arriscado, caso lady Ezrintaim tivesse algum motivo para considerar a oferta insultuosa, mas reforçar a impressão de que Boulidazi estava vivo
e planejando um calendário social ativo era algo importantíssimo para a farsa deles.
– Sei. – Ezrintaim juntou os dedos das duas mãos diante do peito. – Bom, isso seria conveniente, e o quanto antes, melhor. Espero que vocês dois também compareçam.
– Milady, nós compareceríamos se recebêssemos ordens – falou Locke –, mas somos apenas atores da companhia de lorde Boulidazi, e não sei...
– Lucaza – interrompeu a baronesa –, talvez eu devesse alertá-lo de que tenho conhecimento das intenções de lorde Boulidazi com relação à sua prima Verena.
– Eu, ahn...
Locke sentiu-se como se Ezrintaim tivesse adotado uma postura de luta de chasson e tivesse lhe dado um chute na cabeça.
– A senhora sabe quem somos de verdade! – exclamou Sabeta, usando a linguagem do Trono Terim, salvando Locke de outro gaguejar inútil.
– A condessa Antônia conta comigo para ser uma espécie de árbitra social, além de ministra de cerimônias – respondeu Ezrintaim na mesma língua. – Gennaro é um jovem
par de Espara, um bom partido que perdeu a orientação dos pais. Eu exigi que vários membros de sua criadagem me prestassem contas de seu comportamento. Gennaro é,
digamos, bem aberto com eles, no que diz respeito aos seus desejos.
– Nossa presença em Espara lhe causa dificuldades, milady? – perguntou Locke, tentando ser tão contido quanto Sabeta.
– Vocês foram razoavelmente discretos, mas direi que não pensaram nas necessidades do mundo ao redor. – Ela fixou o olhar em Sabeta. – Não creio necessariamente
que seria ruim para Espara reforçar seus laços com Camorr através do casamento. Se, claro, essa foi em algum momento sua intenção genuína.
– Eu não enganei Gennaro – garantiu Sabeta, com ênfase. – Ele é... autoritário e presunçoso, mas em todos os outros aspectos é bastante aceitável. E nós compartilhamos
um interesse significativo em várias artes.
– Sua família a instruiu a escolher livremente um futuro marido durante a estadia em Espara, Verena? Eu acharia muito estranho se eles fizessem isso. Acho que você
se permitiu esquecer que está à disposição de sua família. Minhas fontes não informaram qual é a família, mas exijo honestidade: você é membro de um clã das Cinco
Torres?
Sabeta assentiu.
– Então sabe muito bem que serve a um Duque que pode exigir seu casamento em outro lugar, por motivos políticos! Mesmo que ele não faça isso, você precisará da permissão
de Nicovante para se casar, assim como Gennaro necessitará da autorização da condessa Antônia. – Ezrintaim esfregou a testa e suspirou. – Caso tenha algum ressentimento
porque examinei as questões da casa de lorde Boulidazi, por favor, lembre que fui especificamente autorizada a evitar embaraços impensados, como o que vocês dois
e Gennaro teriam criado para todos nós.
– Nós não pretendíamos partir para isso instantaneamente – assegurou Sabeta. – Pretendíamos demorar vários anos.
– Aí, pelo menos, você mostra um mínimo de sabedoria. Mas os arranjos pacientes são logo postos de lado quando a barriga da mulher cresce.
– Eu posso fazer chá de Consolo da Pobresposa, como qualquer mulher. Fui meticulosamente instruída sobre como evitar... a imposição de um filho.
– Não tenha dúvida de que seria uma imposição. Vou presumir que tal ocorrência, não importando que tipo de acidente você argumente, seria uma tentativa deliberada
de garantir um casamento seguro e rápido com lorde Boulidazi. Jamais ameaçarei sua segurança pessoal, mas com certeza ameaçarei a sua felicidade. Está claro?
– Completamente, senhora.
– Ótimo. Não falemos mais disso até estarmos sob o teto de lorde Boulidazi. Agora, sua companhia saiu-se toleravelmente bem hoje. Uma boa montagem, apesar do número
reduzido. Vou fazer um relatório favorável e espero que o comparecimento amanhã se beneficie disso. Será que lorde Boulidazi satisfez o desejo de saracotear no palco
como figurante?
– Temo que Gennaro não vá saracotear em lugar nenhum durante algum tempo – respondeu Sabeta. – O comparecimento dele amanhã será muito mais convencional.
– Também está bom. Acho que você está ansiosa para retornar para o lado dele.
Sabeta assentiu vigorosamente.
– Então faça isso. Por favor, exprima meu desejo de que ele se recupere depressa. E que, daqui em diante, ele aja de modo mais respeitável.
Locke e Sabeta pediram licença e voltaram depressa pelo pátio do Pérola Antiga em direção às câmaras de vestuário. A cabeça de Locke girava com a percepção da idiotice
de negligenciar a possibilidade de que os nobres de Espara tivessem suas próprias fontes de informação, seus próprios planos e expectativas. A baronesa Ezrintaim
estava mais certa com relação a uma coisa do que ela imaginava: ao planejar, ele havia negligenciado, com arrogância, o mundo ao redor.
– Acho que foi o sermão mais estranho que já recebi – disse a Sabeta.
– Você também, é?
8
A Aquapyria de Zadrath, na Rua dos Jacintos, era a casa de banhos de maior reputação em Espara, e oferecia banhos quentes e frios, saunas a vapor e uma variedade
de serviços anunciados abertamente e arranjados discretamente. No pátio, havia uma alta construção central com colunas decorativas na frente, cercada por construções
privadas; uma delas fora reservada para lorde Boulidazi e seu séquito.
Nuvens bem-vindas se adensavam no céu quando a carroça da companhia Moncraine-Boulidazi parou no pátio da Aquapyria, apenas uma hora após o fim da peça. Locke, Sabeta,
Jasmer, Calo e Galdo iam em cima, e Jumento continuava miseravelmente escondido. Locke e Galdo saltaram, vestindo jaquetas de lacaio puídas mas adequadas, tiradas
do figurino da companhia, entraram na casa de banhos reservada e expulsaram os funcionários de calças azuis e músculos de bronze.
– Lorde Boulidazi vai chegar a qualquer minuto! – exclamou Locke, empurrando o último deles porta afora. – Ele deseja privacidade! Ele se machucou e está de péssimo
humor!
Quando o pátio ficou livre, Locke e Galdo ajudaram Jumento a sair da carroça e a entrar na casa de banhos, levando apenas alguns segundos para isso. Jasmer e Sabeta
foram em seguida. Calo levou a carroça ao estábulo, onde parou os cavalos e, quase literalmente, sentou-se no cadáver do barão.
Cada casa de banhos particular tinha uma decoração temática, e a reservada para “Boulidazi” era repleta de sapos. Sapos de prata e ferro estavam por toda parte e
as paredes eram murais de sapo usando coroas e joias enquanto se deleitavam com banhos quentes. Uma banheira quadrada, de ladrilhos brancos e verdes, dominava o
centro do aposento; tinha cerca de 3 metros de lado e suas águas com perfume de lavanda soltavam fumaça. Ao lado, numa mesa baixa, vários vinhos e conhaques requisitados
haviam sido postos com uma bandeja de doces e garrafas de óleos aromáticos.
Na parede da esquerda, uma porta levava a uma grande sauna a vapor, onde a água podia ser derramada num braseiro com carvões segundo o gosto dos que estivessem dentro.
Jumento desmoronou imediatamente de encontro a uma parede, estremecendo e ofegando. Estava numa palidez apavorante.
– Calma aí, Jumento. – Locke pôs a mão nas costas dele. – Você foi incrível até agora. Salvou todo mundo...
– Não me toque, porra – rosnou Jumento, respirando fundo e obviamente se esforçando para não vomitar. – Só me deixe sozinho, diabos. Isso é pior do que eu sonhei.
– Bom, ainda não terminou. Ainda precisamos das suas roupas.
Jumento entregou-as desajeitadamente. Locke puxou um biombo mais para perto da porta e arrumou casualmente as roupas de Boulidazi sobre ele e ao redor dele. A adaga
e a jaqueta, pendurou no biombo. A túnica de seda, as botas, o colete e as calças, espalhou no chão.
Sabeta jogou seus sapatos e as partes do figurino nos ladrilhos perto da banheira. Ficou apenas com a calça preta e justa e um roupão. Locke fez o máximo para parecer
que não a olhava, e ela fez um serviço admirável fingindo que não o encorajava. Assim que o chão estava suficientemente desarrumado, Sabeta agarrou Jumento pela
frente da túnica e guiou-o para a sauna.
– Jumento está certo – murmurou Moncraine, indo atrás. – Em muitos pontos, esse plano todo é mais débil do que pergaminho velho.
– Não estamos nos saindo tão mal – retrucou Locke. – Se pudermos passar por esta fase, estaremos seguros, com o dinheiro nas mãos.
Jumento, Jasmer e Sabeta se fecharam na sauna. Locke usou alguns óleos aromáticos para pentear o cabelo para trás e pôs um par de ópticos de adereço fornecido por
Jenora. Posicionou-se perto da porta enquanto Galdo comia doces e examinava as garrafas de vinho.
Dois minutos depois, houve uma batida à porta.
Jasmer gemeu instantaneamente, de um modo que era meio dolorido e meio sensual. Ele fora retido para essa parte da trama por um motivo: era o único que tinha profundidade
e flexibilidade de voz para imitar o barão Boulidazi.
Locke abriu a porta da frente da casa de banhos. Nerissa Malloria estava ali segurando uma caixa de madeira reforçada, com um de seus subalternos corpulentos atrás.
O outro esperava com a carruagem que os havia trazido.
– Aaahhh! – gritou Moncraine. – Aahh, deuses!
– Sra. Malloria... – disse Locke, tossindo na mão. – Por favor, entre. Lorde Boulidazi nos instruiu a esperá-la.
– Eu mandei trazer mais vinho, malditos sejam suas bolas secas! – gritou Jasmer. – Onde ele está?
Galdo pegou uma garrafa de vinho e um par de taças.
– Muito interessante – comentou Malloria, passando pela porta e movendo-se com cuidado para evitar as roupas espalhadas no chão. Seu ajudante permaneceu do lado
de fora e fechou a porta. – Devo entregar isto ao barão e obter a marca dele num recibo.
– O, ahn, barão, meu mestre, tropeçou e caiu depois da peça – explicou Locke. – Ele machucou seriamente o tornozelo. Sua... é... isto é, Verena... Verena Gallante
o está reconfortando enquanto esperamos um galeno.
– Reconfortando-o – murmurou Malloria.
– Aaahh – gemeu Jasmer, e houve o som de um tapa. – Ora, ora, você pode continuar fazendo isso num momento. O vinho! Traga a porcaria do vinho!
A porta da sauna se abriu com um estrondo e fiapos cinzentos serpentearam para a sala principal. Sabeta estava ali parada, com o roupão na mão, sem nada na parte
de cima do corpo. Fingiu notar Malloria pela primeira vez, meio que soltou um grito e se enrolou no roupão num instante. Depois, fechou a porta da sauna.
– Desculpe. – Ela deu um risinho. – Lorde Boulidazi precisa de cuidados. E de vinho.
Estalou os dedos para Galdo, que lhe entregou uma bandeja com as taças e uma garrafa aberta.
– Cuidados. – Malloria abriu um sorriso torto. – Tenho certeza de que é exatamente disso que ele precisa para se recuperar de alguma... enfermidade.
– Malloria! É a Malloria? – Locke teve que dar crédito a Moncraine por sua representação de Boulidazi, mas talvez o ressentimento do empresário colorisse a atuação
com petulância um pouco exagerada. – Ótimo, ótimo! Lamento, mas não posso recebê-la agora. Só espere uma ou duas garrafas, boa mulher.
Sabeta deslizou de volta para a sauna, levando o vinho. Em seguida, soaram risinhos e gargalhadas.
– Não se incomode com a porcaria das taças! – gritou Moncraine. – Só me dê a garrafa. Isso. Vou colocar meus lábios nela, quanto aos seus...
Locke ficou em posição de sentido, encostado na parede, e tentou parecer profundamente sem graça. Galdo baixou a cabeça e recuou para um lugar perto da parede mais
distante.
Os gemidos de apreciação de Jasmer vieram da sauna durante algum tempo. A diversão sombria de Malloria se transformou em óbvia irritação.
– Ahn – fez Locke, baixinho. – Eu estou com o anel de sinete do lorde...
Malloria levantou uma sobrancelha.
– Isto é, ele o confiou a mim enquanto está... ocupado. Se você quiser...
– Por que não? Se lorde Boulidazi não tem tempo para mim, não serei eu que vou exigir a atenção dele.
Malloria pousou a caixa de madeira perto das garrafas de vinho e conhaque, depois destrancou-a com uma chave pendurada no pescoço. Entregou um pedaço de pergaminho
a Locke, que o examinou enquanto aquecia um bastão de cera numa das lâmpadas não alquímicas da sala.
Locke molhou uma pena e escreveu “Recebido” na parte de baixo do recibo. Então, pingou um bocado de cera no documento e apertou o anel de sinete de Boulidazi em
cima.
– Precisarei pegar a caixa de volta antes da apresentação de amanhã – disse ela enquanto esperavam que a cera endurecesse.
– Vá à estalagem Gloriano a qualquer momento após o amanhecer. E, ah... milorde desejaria... isto é, não ser... distraído... – Locke tirou duas moedas de prata de
uma bolsa no cinto e entregou-as a ela. – Um... é... um agrado pelo seu incômodo.
E pelo seu silêncio, pensou Locke. Era seguro apostar que ali, como em Camorr, os ricos usassem bolsas abertas para suavizar seu mau comportamento. Malloria agradeceu
encostando as moedas na testa, em saudação.
– Obrigada. Vou mandar um homem pegar a caixa antes do meio-dia de amanhã.
Locke trancou a porta depois que ela saiu, então correu até a sauna. Moncraine saiu com um passo presunçoso, bebendo da garrafa de vinho, seguido por Sabeta de roupão
e Jumento com uma expressão assombrada. Todos se reuniram ao redor da caixa de moedas e olharam o conteúdo. Aqui e ali, uma moeda de prata reluzia contra as de cobre.
– Isto é... mais dinheiro do que eu já vi na vida – murmurou Jumento. – Deve ser bem pesada.
– Merda – praguejou Sabeta. – Jumento está certo. Onde vamos escondê-la? Não podemos deixar que os membros da companhia andem por aí com os bolsos tilintando. Isso
vai contradizer a história de que todo o dinheiro desapareceu com Boulidazi.
– Talvez a Sra. Gloriano possa escondê-lo – sugeriu Jumento.
– Eu não pediria isso – retrucou Locke. – O estabelecimento dela vai estar cheio de policiais assim que informarmos o incêndio trágico que matou Boulidazi. Alguns
deles podem demolir o lugar só por tédio ou meticulosidade.
– Espero que você não ache que deixaremos vocês o tirarem da cidade – comentou Jasmer.
– Claro que não. Só queremos o suficiente para chegar em casa. O resto é de vocês, se pudermos encontrar algum modo de distribuir em partes que não façam ninguém
ser enforcado.
Moncraine se encostou na caixa e olhou para suas profundezas durante um tempo. Depois, estalou os dedos e sorriu.
– Salvard. Acordado Salvard! O bom advogado. Ele vai guardar no escritório sem fazer perguntas. Um dos seus serviços mais discretos para clientes que não confiam
numa casa de contabilidade. Haverá um custo, claro, mas o que importa? Eu mesmo levo.
– E eu vou com você – afirmou Galdo, cruzando os braços.
– Claro. – O sorriso de Moncraine quase chegou às orelhas. – Você pode carregar a caixa. E alguém vai ter que conseguir uma carruagem de aluguel; não podemos andar
pela cidade com essa porcaria totalmente visível.
– Eu cuido disso – ofereceu Locke, indo até a porta da frente. – O resto de vocês pode limpar as coisas aqui?
– Deveríamos deixar uma certa bagunça – opinou Sabeta, jogando uma garrafa de vinho na banheira quente. – Derramar algumas garrafas dessas no ralo do chão. Quem
vier limpar vai poder dizer que lorde Boulidazi bebeu muito antes de ter seu... acidente.
– Ideia maravilhosa – concordou Locke, empolgado. – Certo. Ajeitem esse lugar. Vou conseguir uma carruagem e dizer ao pessoal da Aquapyria que Boulidazi vai ficar
aqui durante uma hora mais ou menos. Vamos deixar Calo sair discretamente e, depois, saímos todos e nos encontramos no próximo quarteirão. Então, voltamos à Gloriano
para a... última cena desta produção!
Pouco tempo após a sexta hora da tarde, Calo, Locke, Sabeta e Jumento passaram de carroça, com ar tranquilo, pelos bairros de Espara, vestidos com simplicidade e
com o material teatral coberto. Ninguém os reconheceu ou incomodou.
Na Gloriano, encontraram o resto da companhia em segurança, a não ser por muitos ataques de nervosismo. Segundo o plano, tinham expulsado todos os aspirantes a bêbados,
festeiros e parasitas com a desculpa de que queriam ordem e sobriedade após a apresentação no Dia da Penitência, prometendo uma farra enorme depois. Locke sorriu
e se meteu imediatamente numa conferência de sussurros com Jean, Jenora, Alondo, Chantal, Sylvanus e Bert.
– Conseguimos! Acordado Salvard vai guardar o dinheiro. Jasmer e Giacomo foram deixá-lo com ele. Vocês terão que pegá-lo devagar, pouco a pouco. E garantam que o
Jumento receba uma parte integral; ele é o que vocês poderiam chamar de frágil.
– Meu primo logo vai se acostumar – retrucou Alondo. – E vou garantir que ele receba sua parte.
Um clima de alívio geral tomou a sala. Apesar de Locke não gostar da tarefa de vestir o cadáver de Boulidazi e de saber que nenhuma das mulheres da estalagem apreciaria
o único lugar óbvio para um incêndio acidental que consumisse tudo, o pior já havia passado e o resto poderia esperar a escuridão. A tia de Jenora começou a assar
longas tiras de carne marinada em seu fogão a lenha. Sylvanus travou conhecimento com uma garrafa de vinho barato e os outros relaxaram com copos de cerveja.
Logo depois da sétima hora da noite, Galdo irrompeu no salão, coberto de suor e totalmente sozinho.
9
– Desculpem – disse Galdo, ofegante, assim que todos foram para a privacidade da sala onde tinham revelado o cadáver de Boulidazi naquela manhã. – Desculpem! Ele
pediu para eu vigiar a carruagem. Pareceu tremendamente razoável, como nós, sabe? Esbravejou que, se precisasse caminhar de volta à estalagem, iria arrancar meu
couro. Ele pegou a caixa... Uns quinze minutos depois, perdi a paciência. Fui procurá-lo e, quando perguntei por Jasmer Moncraine ao empregado de Salvard, o sujeito
me olhou como se eu estivesse bebendo. Foi aí que deduzi.
– Moncraine pegou o dinheiro e sacaneou todos nós – sussurrou Alondo.
– Deixou todos nós como mendigos – completou Jenora. – Eu nem consigo... Não sei o que dizer. É como se todos os deuses dessem uma enorme gargalhada às nossas custas.
Sylvanus jogou a garrafa no chão e enterrou o rosto nas mãos. Não era possível haver um comentário mais eloquente, pensou Locke, do que Sylvanus Olivios Andrassus
desperdiçar vinho.
– Sou uma porcaria de um idiota – lamentou-se Galdo. – Eu deveria saber.
– Ele é ator – observou Sabeta. – E, pior ainda, é um bom ator.
– Vamos atrás dele – sugeriu Calo. – Ele não pode ser idiota a ponto de ir a um dos portões em terra, já que são bem guardados! E seria insano se fosse para as estradas
sabendo que um alarme seria dado em algumas horas na melhor das hipóteses. Então, para onde iria?
– Para o cais – respondeu Chantal.
– Bom, vamos encontrá-lo e cortar aquela droga de mão que ele ia perder! Ele é velho... Isso não pode ser complicado, certo?
– Nós não temos prestígio aqui – disse Locke. – Lembra? Não temos direito de pressionar ninguém; somos meros atores enquanto estivermos em Espara.
– E vocês nunca vão encontrá-lo – acrescentou Jenora. – Castellano está certo, Jasmer não vai por terra. As docas estão cheias de syrestis e okantis. Ele vai sair
no navio que escolher e nenhum pele-noturna jamais dirá uma palavra aos policiais. Os doqueiros não têm motivo para adorar os serviçais da condessa.
– Então vamos... vamos simplesmente deixar que ele foda conosco! – exclamou Bert. – Esse é o plano?
– Não – respondeu Sabeta. – Há uma coisa que podemos fazer, muito facilmente: fazer parecer que Jasmer Moncraine matou lorde Boulidazi.
– Isso soa bem – concordou Locke. – Sem dúvida é uma história com mais peso do que lorde Boulidazi ter ficado bêbado e posto fogo num estábulo.
– Um estábulo! – exclamou Jenora. – Você não quer dizer...
– Desculpe, Jenora, sei que eu deveria ter dito algo antes. Mas é óbvio. Não podemos incendiar a estalagem. E não podemos deixá-lo entrar em combustão espontaneamente
no pátio. Não pense nisso como a perda de um estábulo, mas como não deixar que sua tia seja enforcada.
– Giacomo, o que você disse ao cocheiro depois de perceber que Moncraine havia sumido? – perguntou Jean.
– Dei 2 cobrins pelo incômodo e disse que tinha decidido ficar um pouco. Não sabia o que pensar. Só não queria fazer um escândalo.
– Bom, você nos salvou mantendo a cabeça no lugar – garantiu Sabeta. – A história nova é a seguinte: após a peça, eu fui com Boulidazi à casa de banhos. O barão
recebeu o dinheiro de Malloria, que vai testemunhar: ela tem o recibo selado para provar. Nós alegamos que não sabemos o que Boulidazi fez com o dinheiro; só sabemos
que, quando o barão voltou para cá, para conversar com Jasmer, o dinheiro não estava com ele.
– Até agora está simples – comentou Chantal.
– E continua simples – assegurou Locke, olhando para Sabeta. – Se é que posso presumir... Acho que sei aonde Verena quer chegar. Todos nós vimos Boulidazi chegar
aqui. Todos vimos Moncraine chegar. Eles tiveram uma longa conversa, em particular, e depois uma discussão. Foram para o estábulo juntos por algum motivo.
– Após alguns minutos, notamos o estábulo pegando fogo – continuou Sabeta. – Boulidazi estava morto nos destroços e Moncraine sumiu na noite. A culpa dele vai estar
clara até para uma criança.
– Vamos ter que colocar a Sra. Gloriano nisso – observou Jean. – Desculpe, Jenora, sei que deveríamos mantê-la fora das mentiras, mas é ela que precisa dizer aos
guardas que Moncraine e Boulidazi estiveram aqui esta noite.
– Não há saída, Jovanno, você está certo. – Jenora passou o braço em volta do ombro de Jean. – Titia não vai ficar satisfeita, mas eu posso forçá-la a fazer qualquer
coisa de que precisarmos. Não se preocupem com ela.
– Isso ainda é uma tremenda confusão – retrucou Chantal. – O pessoal de Boulidazi pode tentar arrancar cada moeda possível de nós. Talvez até acabar com a companhia
e levar todos os bens. Diabos, isso presumindo que os policiais não joguem todos nós na Torre do Lamento, como supostos cúmplices.
– Talvez tenhamos uma amiga num posto bastante alto – disse Locke. – Ou, se não é uma amiga, pelo menos é alguém com interesse em manter os escândalos o mais discretos
possível.
– Não há como tornar discreta a porra do assassinato de um nobre esparano! – exclamou Bert. – Talvez vocês, camorris, consigam escapar da forca, mas o resto de nós...
– Não – interrompeu Locke. – Nós não vamos abandonar vocês, nenhum de vocês. E nós já não fizemos algumas coisas incríveis juntos?
– É justo – resmungou Bert.
– Moncraine fodeu a gente, então vamos todos fodê-lo. E, quanto ao que ele fez, deixe-me garantir... nosso mestre em Camorr agora será inimigo dele. E Moncraine
deve saber disso. Ele tem dinheiro suficiente para viver uns dois anos, mas nunca vai poder parar de fugir. Quanto à companhia... tenho certeza de que podemos convencer
nosso mestre a dar uma ajuda nesse aspecto também. Ele tem recursos que vão além do que vocês acreditariam.
– A esta altura, eu acreditaria em praticamente qualquer coisa – murmurou Alondo.
– Vamos ensaiar nossa história juntos – disse Sabeta. – Quase como uma peça. Depois do pôr do sol, vamos vestir Boulidazi pela última vez e arranjar o incêndio no
estábulo. Assim que o fogo estiver rugindo, os membros da companhia é que precisarão chamar os guardas. Vocês todos têm que agir como se estivessem surpresos e em
choque.
– O choque vai ser fácil – observou Chantal.
Nesse momento, houve uma batida à porta. Calo abriu-a e surgiu a Sra. Gloriano, enxugando as mãos gordurosas no avental.
– A carne está pronta – avisou ela, animada. – E tem um bom arroz cozido e alguns abricós... O que foi? Por que estão todos me olhando desse jeito?
– É melhor a senhora entrar e fechar a porta, titia – respondeu Jenora. – A carne não é a única coisa que precisamos preparar antes do fim da noite.
10
– Não acredito em vocês, camorris – murmurou a Sra. Gloriano, ajudando a carregar o corpo amortalhado de Gennaro Boulidazi da carroça para seu estábulo depois do
anoitecer. – Acharam mesmo que esta seria a primeira vez que eu ajudaria a fazer um corpo desaparecer?
– Como, diabos, iríamos saber? – grunhiu Locke.
– Eu tenho uma estalagem na parte ruim da cidade, garoto. Gosto da minha vida organizada, mas já aconteceu de pessoas morrerem nos meus quartos quando realmente
seria mais conveniente que fossem encontradas flutuando na baía. Por isso, elas foram nadar.
A Sra. Gloriano ficara perturbada ao saber da verdade, mas, assim que aceitou que lorde Boulidazi fora esfaqueado pela sobrinha no meio de uma tentativa de estupro,
também aceitou a perda do estábulo como uma espécie de vingança.
Calo e Galdo seguravam uma ponta do cadáver; Locke e a Sra. Gloriano, a outra. Puseram o “embrulho” numa pilha de feno e a estalajadeira sacudiu uma fraca luz alquímica.
Jean havia levado a carroça e os cavalos para o outro lado do pátio, deixando a estrutura vazia.
– Deuses, que fedor. – Galdo tossiu enquanto terminavam de desenrolar o barão morto. – Carne podre e pó alquímico!
– Ele já foi mais bonito – comentou Calo. – Maldição, ele está rígido. Isso deveria ser divertido.
Os três Nobres Vigaristas lutaram com o corpo, pondo nele as joias, as botas e a adaga que haviam tirado na noite anterior.
– É uma pena desperdiçar uma arma tão boa – lamentou Galdo.
– Seria uma pena maior ainda desperdiçar um par de gêmeos Sanzas – sussurrou seu irmão. – Argh, os dedos dele estão inchando. Preciso de ajuda para enfiar o anel
do sinete onde deveria estar.
Sentindo-se idiota, Locke auxiliou do melhor modo possível, até que o anel estivesse pelo menos plausivelmente perto do lugar devido.
– Agora, rapazes – disse a Sra. Gloriano –, se acabaram de enfeitá-lo, abram esse vaso de óleo para mim e deem uma boa encharcada nele. Devo dizer que estou totalmente
preparada para acender um fósforo nesse filho da puta.
Alguns minutos depois, chamas cor de laranja rugiam contra a noite negra esparana, e os membros da companhia que não tinham corrido para pedir ajuda enchiam baldes
d’água com todos os sinais exteriores de pressa e sinceridade.
11
– Não foi assim que eu imaginei passar a madrugada – comentou a baronesa Ezrintaim, agora com botas, uma saia leve, casaco escuro e uma espada visível.
Locke e Sabeta, ainda sujos de fuligem depois de lutar contra o fogo, estavam nervosos, em posição de sentido, num quarto da estalagem requisitado para uma conversa
particular. Passava da meia-noite. Policiais e soldados em igual número haviam isolado o local e o resto da companhia Moncraine-Boulidazi estava sob guarda no salão
principal. Ezrintaim fora chamada por um comandante da guarda quando a identidade do corpo queimado se tornara conhecida por todos.
Sabeta tinha o que Locke considerou como uma excelente expressão de tristeza e resignação.
– Nós... temos mesmo certeza de que é ele? O corpo estava...
– O corpo era um pedaço de carvão, menina, mas temos o sinete e a adaga. Sabemos muito bem que é o Gennaro que está ali. Sei que não deve ser fácil para você. –
Ezrintaim esfregou os olhos. – Mesmo assim, é a realidade, morta sob um cobertor.
– Deixe-me ajudá-los a procurar o Moncraine – prontificou-se Locke, que tinha decidido que uma demonstração de beligerância era um bom contraste com o choque de
Sabeta. – Eu e todos os meus homens. Se eu encontrar o desgraçado...
– Isto aqui não é Camorr e você está incógnito – reagiu rispidamente a baronesa. – Você não tem direito de portar armas nem de fazer justiça, e não estou inclinada
a lhe dar uma autoridade que eu teria que explicar a outra pessoa!
– Desculpe, senhora. Eu só pretendia oferecer toda a ajuda possível.
– A melhor ajuda seria seguir minhas orientações explícitas. Jasmer Moncraine assassinou um par esparano e esse é um problema que Espara deve resolver. Pelos deuses
e santos, isso vai ser um assombro de dez anos mesmo se não ficar pior ainda.
Ela andou de um lado para outro no quarto, olhando-os.
– Quero que vocês deixem a cidade – disse, por fim. – É, acho que seria o melhor. Vou garantir um salvo-conduto e colocar vocês numa caravana. Vocês serão bem-vindos
de volta em Espara com suas verdadeiras identidades, daqui a alguns anos, mas jamais outra vez como atores. Ou com qualquer status inferior!
– Obrigado, milady – agradeceu Locke.
– E quanto à companhia Moncraine-Boulidazi? – perguntou Sabeta.
– O que você espera, Verena? Boulidazi está morto e Moncraine pode muito bem estar. Não haverá mais apresentações, claro. Tudo o que tenha o fedor do Moncraine terá
que ser varrido para debaixo de um tapete.
– Eu quis falar dos atores. Eles foram... muito solícitos. Aquele desgraçado do Moncraine colocou-os numa situação muito difícil.
– É a situação difícil de Gennaro Boulidazi que vai preocupar a condessa – retrucou Ezrintaim. – Mas, para mim, a culpa de Moncraine clama aos céus. Desde que as
histórias deles sejam coerentes e que meus homens não encontrem nada interessante nesta estalagem, seus colegas viverão. Mas a companhia estará encerrada, não tenha
dúvida.
– A maioria terminará acorrentada por dívidas assim que os advogados tiverem terminado de pressioná-los – comentou Sabeta.
– O que eu tenho a ver com isso, minha cara?
– Eles nos prestaram um bom serviço enquanto estávamos em Espara – interveio Locke. – Nós nos sentimos obrigados a rogar por eles.
– Sei. – Ezrintaim suspirou e bateu com os dedos no punho de seu florete. – Bom, lorde Boulidazi morreu sem herdeiros. Por isso, a condessa vai absorver as propriedades
dele e seus bens nas casas de contabilidade. É uma quantia bastante boa. Imagino que minha senhora poderá se dar ao luxo de ser generosa. A companhia vai perder
totalmente o nome e sua autorização atual para funcionar, mas acredito que posso interceder para protegê-los de qualquer situação mais drástica. Espero que isso
aplaque seu sentimento de obrigação.
– Inteiramente, milady – garantiu Sabeta, baixando a cabeça.
– Ótimo. Você foi tola e afortunada em igual medida, Verena, e espero que lembre que se beneficiou muito de uma série de cortesias diplomáticas dadas em nome de
toda Espara.
– Dentro da família, seremos absolutamente honestos com relação à sua ajuda inestimável – respondeu Locke. – Se tivermos chance, lembraremos isso ao Duque.
– Seria um gesto agradável – comentou Ezrintaim. – Agora, limpem-se e se preparem para deixar minha cidade, para que eu possa começar a lidar com essa maldita coleção
de dores de cabeça.
Capítulo Onze
O Jogo dos Cinco Anos:
Contagem dos votos
1
Um aglomerado de nuvens escuras vinha do norte, mascarando as estrelas. O Kartenium, palácio dos duques e duquesas de Kartane depostos muitos anos antes, erguia-se
sobre os jardins bem cuidados e as muralhas partidas da Casta Gravina, uma cúpula de Vidrantigo cor de jade e ondulante, como uma joia num cenário de pedras e argamassa
humanas. O vento do fim de outono atravessava as estrias e os relevos na face do vidro, e a música fantasmagórica de uma raça perdida dava suspiros de significado
indecifrável.
Bandeiras verdes e pretas balançavam nos limites de cada caminho e cada pátio, e um rio de luz de tochas e lanternas fluía pelos portões do Kartenium, para dentro
do Grande Salão, onde escadas e passarelas de ferro negro aparentemente intermináveis espiralavam subindo pelo interior da cúpula de jade. Lustres do tamanho de
carruagens estavam acesos, monitorados por homens e mulheres pendurados em arneses presos em pontos de ancoragem nas passarelas.
O murmúrio da multidão era como o chiado e os estrondos do mar numa caverna litorânea. Locke e Jean moviam-se cautelosos, pois suas fitas verdes não serviam como
proteção contra empurrões e puxões por parte de grupos de entusiastas e bêbados que conversavam por ali. Apoiadores do Íris Negra e do Raízes Profundas se misturavam
à vontade e discutiam ferozmente numa enorme ostentação dos ricos e importantes de Kartane.
No centro do Grande Salão, numa plataforma elevada, ficavam várias lousas e dezenove postes de ferro negro, cada um encimado por uma lâmpada de vidro fosco apagada.
A escada para a plataforma era vigiada por casacas-azuis, que suavam sob o peso adicional de uma capa branca e um manto com acabamento em fitas prateadas.
Era a nona hora da noite. Os últimos votos tinham sido postos nas urnas horas antes e, agora, os relatórios verificados e lacrados de cada distrito estavam a caminho
do Kartenium.
– Mestre Lazari! Mestre Callas!
Maldita Superstição Dexa apareceu arrastando um pelotão de ajudantes e puxa-sacos. Seu chapéu de aba tripla carregava, no topo, a réplica de uma das pontes kartanis
dos Ancestres, as torres esculpidas em couro endurecido, cada uma com uma minúscula bandeira verde. Dexa fumava um cachimbo de fornilho duplo, soltando baforadas
de fumaça cinza e esmeralda pelo nariz.
– Bom, rapazes, assim que arrancamos toda a carne dos ossos de uma eleição, tudo o que resta é isto: contar os votos e depois contar as lágrimas.
– Não haverá lágrimas no seu distrito – replicou Locke. – Se eu estiver errado, vou comprar um chapéu igual ao seu e comê-lo.
– Eu gostaria de ver isso. Mas prefiro manter minha cadeira. – Dexa exalou jatos verdes com cheiro de jasmim, e cinzentos recendendo a especiarias, para além de
Locke. – Os senhores vão ficar perto do palco? Vão ocupar lugares de honra enquanto a contagem é feita?
– Algum lugar menos agitado. Vamos assistir de uma galeria particular, depois de darmos um giro pelo salão. É preciso garantir que todo mundo esteja com a coluna
reta e o colete abotoado.
– Muito paternal da parte de vocês. Bom, então, até que o gato esteja esfolado, minhas considerações aos colegas viajantes.
Como Locke dissera, os dois percorreram a multidão, apertando mãos e dando tapinhas nas costas, rindo de piadas ruins e fazendo algumas e, a pedidos, oferecendo
análises razoáveis e aparentemente lógicas. A maior parte era baboseira frita em tagarelice com acompanhamento do que quer que o ouvinte quisesse escutar. O que
importava?, pensou Locke. De um modo ou de outro, naquela noite eles iriam desaparecer da cena política de Kartane e jamais seriam responsabilizados.
Crianças vestidas de modo impecável andavam lentamente dentro de rodas douradas, operando mecanismos com pás que faziam espumar ponches feitos de vinho claro e cor
de hematoma, contidos em vastas bacias. Funcionários atraentes, de ambos os sexos, postados atrás de cordões de veludo, trabalhavam para encher taças e entregá-las.
Locke e Jean se armaram com ponche, além de pães fumegantes recheados com carne de porco em conserva e molho de vinagre escuro.
Jean viu Nikoros pairando arrasado na periferia de um grupo de notáveis do Raízes Profundas e o indicou para Locke. Via Lupa havia se barbeado, o que enfatizara
a palidez doentia e as novas rugas em seu rosto visivelmente mais magro. Locke sentiu uma inesperada pontada de pena no coração. Aquele não era um traidor triunfante
e, sim, alguém totalmente assado na grelha do sofrimento.
Bom, de que adiantaria ser capaz de se deitar impune se você não pudesse usar isso para tirar o peso dos ombros de um desgraçado tão explicitamente infeliz?
– Olhe, Nikoros – sussurrou Locke, só para o kartani, pondo sua taça de ponche intocado na mão dele. – Acho que é hora de dizer que sei como é ser possuído por algo
que governa sua consciência contra a sua vontade.
– Ah, m-mestre Lazari, eu não... isto é, o que o senhor quer dizer?
– O que estou tentando dizer é que eu sei. E sei há algum tempo.
– O senhor... sabe? – As sobrancelhas de Nikoros subiram tanto e tão rápido que Locke ficou surpreso ao não vê-las disparando feito pedras de catapultas. – O senhor
sabia?
– Claro que sabia – respondeu Locke, em voz tranquilizadora. – É meu trabalho saber coisas, não é? A única coisa que não pude deduzir foi qual era o motivo. É óbvio
que você não é um vira-casaca voluntário.
– Deuses! Eu... ahn, foi o meu alquimista. Meu... alquimista do pó. Comprá-lo é tão ruim quanto vendê-lo. Fui apanhado, e aquela mulher... Bom, com o tempo eu deduzi
quem ela devia ser. Sinto muito. Ela me ofereceu um acordo. Caso contrário, eu perderia tudo. Dez anos numa barca penitenciária, depois o exílio.
– Coisa infernal. Eu também tentaria evitar isso se pudesse.
– Vou me demitir depois desta noite – murmurou Nikoros. – Eu apostaria que... ah... causei mais dano ao Raízes Profundas do que qualquer membro de comitê em toda
a p-porcaria da nossa história.
– Nikoros, você não está me ouvindo. Eu disse que sabia.
– Mas como isso...
– Você tem sido mais meu agente do que deles. Fornecendo exatamente o que eu queria que o Íris Negra ouvisse, de uma fonte que eles consideravam impecável.
– Mas... mas eu tenho certeza de que parte do que forneci a eles era... era verdadeiro e causava dano a nós!
– Naturalmente. Eles não teriam escutado se você não fornecesse mercadorias verdadeiras na maior parte do tempo. Eu descartei as coisas verdadeiras como o preço
para entregar as bobagens cruciais a eles. Portanto, não se demita de nada. Se o Íris Negra perder esta noite, foi porque você estava em posição de servir como minha
arma contra eles. Com essa ajuda, você dorme um pouco melhor esta noite?
– Eu... ah... não sei o que deveria dizer.
O relaxamento das rugas de tensão no rosto dele foi imediato e óbvio.
– Não diga nada. Só enxugue a taça e aproveite o show. Esta conversa será nosso segredinho. Tenha uma vida boa e longa, Nikoros. Duvido que você nos veja de novo.
– A não ser que nossos patrões queiram nos trazer de volta para a próxima rodada, daqui a cinco anos – murmurou Jean enquanto se afastavam.
– Talvez se eles todos quiserem terminar numa porra de coma como o balde de merda que era dono do pássaro – replicou Locke.
– Não é que eu seja contra a tentativa de acalmar o pobre coitado, mas como você acha que o Nikoros vai se sentir se o Íris Negra vencer?
– Maldição, eu só estava tentando fazer o possível pelo filho da mãe arrasado. Pelo menos agora ele pode acreditar que eu optei por usá-lo como um risco calculado.
Venha, vamos encontrar essa tal de Câmara Negra e sair dos olhos do público.
2
Depois de seis lances de escada e três conversas com funcionários apenas parcialmente solícitos, encontraram Sabeta esperando-os num camarote que dava para o lado
sul do Grande Salão. Algum nobre morto muito antes olhava com ar fantasmagórico de um afresco na parede, espiando um biombo de metal filigranado que permitia uma
boa visão da multidão e do palco embaixo.
Sabeta usava outro conjunto de roupas mais parecidas com uma vestimenta de montaria do que com um vestido de baile: uma jaqueta justa, de veludo vermelho e com mangas
abertas, sobre um vestido de faixas de seda preta bordadas com símbolos astronômicos em escarlate. Locke juntou os símbolos na cabeça e percebeu que ela estava usando
um mapa do nascer do sol e do pôr do sol daquele dia exato.
– Gostou? – perguntou ela, abrindo os braços. – Segundo as instruções dos meus patrões, esforcei-me ao máximo para gastar até o último cobre que eles me deram.
– Obediente à autoridade, como sempre – comentou Locke.
Sabeta ofereceu a mão e ele não se inibiu em beijá-la. O trio se acomodou confortavelmente junto a uma mesinha com bolos de amêndoa, conhaque e quatro taças de cristal
vermelho. Locke assumiu a liderança e pegou a garrafa.
– Uma dose servida em homenagem aos amigos ausentes – disse, enquanto enchia a quarta taça e a empurrava de lado. – Que as lições que eles nos ensinaram deem a todos
uma tremenda apresentação esta noite.
– A uma vida suficientemente longa para apreciar tudo o que acontecer – completou Jean.
– À política – brindou Sabeta. – Que jamais pulemos na cama com ela de novo.
Bateram as taças e beberam. O líquido tinha uma cor de caramelo claro e lavou a garganta de Locke com um calor doce, bem-vindo. Não era um conhaque alquímico e,
sim, um de estilo ocidental antiquado, com sugestões de pêssego e noz entretecidas nos vapores.
– Aí vem o veredicto – anunciou Sabeta.
Lá embaixo, a multidão se abriu para a passagem de uma tropa de casacas-azuis escoltando autoridades com roupas sombrias, que prenderam cornetas alto-falantes em
suportes do palco e puseram baús de madeira atrás delas. Uma mulher pequena, com fartos cachos grisalhos cortados na altura do pescoço, foi até uma corneta.
– Primeira Magistrada Sedelkis – apresentou Sabeta. – Árbitra da Mudança. No período eleitoral, ela é como um décimo quarto deus temporário.
– Não há um representante dos magos? – perguntou Locke. – Eles nem mandam um prato de frutas e um bilhete gentil?
– Sei que eles autorizam esta cerimônia, então que os deuses ajudem quem tentar fraudar a contagem. Mas eles nunca se deixam ser vistos.
– A não ser que eles estejam em algum lugar privado com um alvo para abusos.
Na plataforma abaixo, alguns funcionários destrancaram os baús, enquanto outros se postavam perto das lousas.
– Amigos cidadãos – trovejou Sedelkis –, honrados membros do Konseil e autoridades da república, bem-vindos. Tenho a honra de encerrar o septuagésimo nono período
eleitoral na República de Kartane lendo os resultados para o registro público. Os resultados por distrito, a começar por Isas Tedra.
Um funcionário pegou um envelope num baú. Sedelkis abriu-o e tirou um pergaminho cheio de selos e fitas.
– Com a contagem de 115 a 60, Primeirofilho Epitalus, do partido Raízes Profundas.
Aplausos ruidosos irromperam de metade da público do Grande Salão. Um funcionário escreveu com giz os números oficiais numa lousa, enquanto outros acendiam uma vela
verde e usavam uma vara comprida para colocá-la embaixo do primeiro globo de vidro fosco.
– Deseja admitir a derrota, madame? – perguntou Locke.
– Acho que essa é uma conclusão precipitada – retrucou Sabeta.
– Droga, ela é inteligente demais para nós.
– Pela Ilha dos Martelos, com a contagem de 235 a 100 – anunciou Sedelkis –, Quartafilha DuLerian, do partido Íris Negra.
Os funcionários acenderam e colocaram outra vela, que soltava uma luz azul-arroxeada tão escura que quase poderia ser considerada preta.
– Bom, e agora? – questionou Sabeta, servindo uma nova rodada de bebidas. – Não tem nada engraçadinho a dizer?
– Eu jamais sonharia em ser engraçadinho na sua frente – respondeu Locke.
Sete luzes verdes e quatro pretas estavam acesas quando Sedelkis anunciou:
– Pelo distrito de Bursadi, com a contagem de 146 a 122, Segundofilho Lovaris, do partido Íris Negra.
Jean deu um suspiro teatral.
– Coitado – disse Sabeta. – Quase foi vitimizado por inescrupulosos ladrões de relíquias.
– Nós nos regozijamos com a salvação dele – garantiu Locke.
– Pela Plaza Gandolo – trovejou Sedelkis –, com a contagem de 81 a 65, Segundafilha Viracois, do partido Íris Negra.
– Ah, pelos bagos de Perelandro, nós enchemos a casa dela com mercadorias roubadas! – exclamou Jean. – Ela teve onze acusações de invasão de domicílio ou receptação!
Que jeitinho você poderia dar nisso?
– Inventei que Viracois estava hospedando em segredo uma prima distante, que tinha um sério problema de cabeça. Uma verdadeira mania de roubar coisas. Até contratei
uma atriz para fazer o papel durante alguns dias. Mandei Viracois circular pedindo desculpas pessoalmente pelo fato de que sua “prima” havia conseguido escapar da
supervisão e, assim que todos os bens roubados foram identificados e devolvidos, todas aquelas pessoas simpáticas retiraram discretamente as acusações. E falaram
discretamente com os amigos e vizinhos, claro.
– Retiraram as acusações. – Locke balançou a cabeça. – Não é de espantar que pagar à magistrada não nos rendeu nada.
– Pela Isas Mellia – anunciou Sedelkis –, com a contagem de 75 a 31, Maldita Superstição Dexa, do partido Raízes Profundas.
– Nem me incomodei com essa aí – comentou Sabeta.
– Bom, você tentou subornar o cozinheiro dela – retrucou Locke. – E o porteiro. E os lacaios. E o advogado dela. E o cocheiro. E o dono da tabacaria.
– Eu consegui subornar o porteiro. Só não arranjei nada de construtivo para fazer com ele.
– Pelo menos não terei que comer um chapéu – sussurrou Locke para Jean.
– Pelo Caça-Prata – anunciou Sedelkis –, com a contagem de 108 a 67, Luz-do-Amatel Azalon, do partido Raízes Profundas.
Mas essa foi a última luz verde a ser acendida por um longo tempo. As três seguintes foram pretas, totalizando nove a nove.
– No fim das contas, é tudo teatro, não é? – indagou Sabeta. O conhaque havia trazido cor às suas bochechas. – A gente correndo de um lado para outro usando figurinos,
dizendo as falas. Agora entra o coro para recitar a moral e mandar a plateia para casa.
– Metade deles vai desejar ter algumas frutas para atirar – comentou Jean.
– Quieto, aí vem.
– O último resultado – anunciou Sedelkis, abrindo o envelope com um floreio. – Pelo distrito de Palanta, com a contagem de 170 a 152, Terceirofilho Jovindus, do
partido Íris Negra!
A última lâmpada se acendeu com uma luz escura.
3
A consternação irrompeu no salão, gritos de júbilo misturados com acusações, berros de descrença e insultos.
Sabeta cruzou os braços, recostou-se na cadeira e adotou um sorriso largo, genuíno.
– Vocês, rapazes, chegaram mais perto do que eu esperava. E eu tive a vantagem de chegar aqui primeiro.
– É uma admissão generosa – falou Jean.
– Seu ardil com o Lovaris seria uma diversão magnífica para assistir. Fico quase triste porque tive que esmagá-lo com o pé.
– Eu, não – replicou Locke.
– ORDEM! – gritou Sedelkis. – ORDEM!
Os casacas-azuis ao redor do palco bateram com os cajados ritmicamente no chão, até que a multidão obedeceu a Sedelkis.
– Tendo todos os distritos prestado contas, declaro que esses resultados são justos e válidos. Kartane tem um Konseil. Que os deuses abençoem a Presença. Que os
deuses abençoem a República de Kartane!
– Primeira Magistrada – disse uma voz na multidão –, peço um momento no palco para emendar o registro num pequeno aspecto.
– Ah, o quê, por todos os infernos... – praguejou Sabeta.
Quem falava era Lovaris, que se separou de um grupo de animados notáveis do Íris Negra, passou por um cordão de guardas em volta do palco e se postou ao lado de
Sedelkis junto a um alto-falante.
– Caros amigos e colegas cidadãos – começou ele, chamando um dos funcionários que cuidavam dos globos de vidro –, sou Segundofilho Lovaris, frequentemente chamado
de Perspicácia, honra que estimo. Por vinte anos, representei o distrito de Bursadi como membro entusiasmado do partido Íris Negra. No entanto, ultimamente devo
confessar que o entusiasmo foi abafado por circunstâncias alheias ao meu controle. Lamento ter que discutir isso em público. Lamento ter que assumir uma ação corretiva
em público.
– Mais alguém nesta mesa está tendo uma alucinação agora? – perguntou Sabeta.
– Se é assim, estamos compartilhando um maravilhoso sonho febril – respondeu Locke. – Vejamos como ele acaba!
– Lamento, acima de tudo – continuou Lovaris – ter que anunciar minha retirada relutante, porém imediata, do partido Íris Negra. Não usarei mais os símbolos dele
nem comparecerei às funções do partido.
– Deuses do céu, você está renunciando ao Konseil? – gritou alguém na multidão.
– Claro que não! – gritou Lovaris. – Não falei nada sobre renunciar à minha cadeira no Konseil! Sou o conselheiro de Bursadi, eleito validamente e por direito, como
acaba de anunciar a Primeira Magistrada.
– Vira-casaca! – berrou um homem que Locke reconheceu como Primeirofilho Jovindus. – Você concorreu sob falsas premissas! Sua eleição deve ser anulada em favor do
segundo lugar!
– Nós elegemos homens e mulheres em Kartane! – exclamou Lovaris, e ficou claro, por sua voz, que ele falava com um sorrisinho capaz de ferir um homem inferior, tamanha
a intensidade. – Esses homens e mulheres declaram afiliações partidárias apenas por questão de conveniência. Não preciso renunciar a nada. Meu honrado colega deveria
examinar mais atentamente as leis relevantes. Agora, permita-me terminar de descrever a nova situação!
Lovaris pegou uma vara com o funcionário que ele havia chamado, depois a usou para apagar e tirar a vela do meio dos globos de maioria negra. Um vidro branco e vazio
ficou entre nove pretos e nove verdes.
– Só porque saí do Íris Negra não quer dizer que necessariamente abracei qualquer posição do Raízes Profundas. Estou me declarando membro de um partido de um só,
independente, um equilíbrio neutro entre as ideologias tradicionais de Kartane. Estou totalmente disposto a ser convencido a tomar qualquer curso de ação razoável
no Konseil. Na verdade, lembro aos estimados colegas que minha porta está sempre aberta a suas abordagens e solicitações. Estarei ansioso por recebê-las. Boa noite!
O que se seguiu só poderia ser descrito como a suruba máxima da temporada social kartani, já que metade dos conselheiros do Íris Negra, tecnicamente imunes à contenção
por parte dos guardas, tentou invadir o palco através de uma parede de casacas-azuis que não podiam feri-los nem permitir que ferissem Lovaris. Sedelkis demonstrou
a coequivalência do judiciário de Kartane chutando um conselheiro do Íris Negra nos dentes, o que trouxe até mesmo conselheiros do Raízes Profundas para o confronto,
com o objetivo de defender os privilégios de seu posto. Mensageiros da guarda partiram para buscar reforços, enquanto a maioria dos espectadores não combatentes
enchia suas taças de ponche e se acomodava para assistir ao seu governo em ação.
– Não acredito – disse Sabeta. – Como, diabos... não tenho um modo mais sucinto de dizer: Como, diabos?
– Você alertou ao Lovaris que tentaríamos convencê-lo a mudar a cor da sua fita de lapela – respondeu Locke. – E você sabe que ele não engoliu essa oferta nem por
um instante. Ele mastigou meu amor-próprio durante um tempo, depois me jogou fora como se eu fosse um cagalhão.
– Mas nós já havíamos preparado uma segunda linha de ataque – completou Jean, servindo-se de mais uma dose de conhaque. – Alimento para o ego. Algo programado para
apelar ao seu senso, de que ele deveria ser a dobradiça ao redor da qual o resto do mundo girava.
– A isca certa para um escroto – continuou Locke. – Jean ofereceu a segunda abordagem, com a teoria de que Lovaris poderia estar mais disposto a parlamentar seriamente
com um interlocutor em quem ele não havia acabado de mijar. Por acaso, foi uma boa suposição.
– E, agora, Lovaris é o homem mais importante de Kartane – sussurrou Sabeta. – Agora, qualquer impasse no Konseil terá que ser resolvido com o voto dele!
– Uma possibilidade que ele achou muito estimulante – revelou Locke. – Os outros conselheiros podem odiá-lo, mas irão à porta dele, com chapéu na mão, pelos próximos
cinco anos, ou até ele ser assassinado. De qualquer modo, não é problema nosso.
– E foi necessário só isso? Uma sugestão amigável?
– Bom, obviamente ele concordou em fazer isso só se os números batessem. Se vocês tivessem uma margem de vitória maior, ele teria ficado em silêncio. E houve um
tremendo suborno para adoçar o acordo.
– Ele aceitou 25 mil ducados – informou Jean.
– Como ele espera esconder isso? – indagou Sabeta. – O Íris Negra vai fritá-lo! A casa de contabilidade dele vai ser vigiada, os negócios dele serão dissecados,
qualquer nova propriedade que ele arranje será batida feito um tapete velho em busca de pistas.
– Esconder não é problema – respondeu Locke –, já que você entregou tudo para ele, por nós, em segurança.
Sabeta o encarou por um momento e, depois, sussurrou:
– Os relicários!
– Eu converti discretamente 25 mil ducados em pedras preciosas, na maior parte esmeraldas e Pérolas Olho de Aranha – contou Jean. – Uma carga leve que podia ser
posta no fundo das gavetas. Seus guardas foram muito mais escrupulosos em cavar a poeira e os ossos dos antepassados de Lovaris do que ele.
– Eu achei que vocês tinham sequestrado os ossos em troca da cooperação dele.
– Era a conclusão sensata – concordou Locke. – Nós não ficamos confortáveis com a ideia de carregar um gordo suborno para a mansão dele; havia um risco grande demais
de alguém pago por você nos ver. Talvez até alguém que trabalhasse na casa.
– Mais ou menos metade dos empregados dele – confirmou Sabeta. – Então vocês precisavam que o tesouro fosse entregue ao Lovaris e passaram para mim a localização
daquele barco... Pelos deuses! Há quanto tempo vocês sabiam que eu estava controlando o Nikoros?
– Descobrimos quase tarde demais. Quase tudo o que ele forneceu a vocês antes do barco foi legitimamente às nossas custas.
– Humm. Passar para ele a notícia do barco... – Sabeta esfregou as têmporas. – Ah! Aquele depósito alquímico que eu tirei de vocês no Vel Vespala, aquela dica veio
do Nikoros. Você... você deve ter dado a todo mundo de quem suspeitava um alvo diferente e suculento!
– E o alvo que vocês atacaram nos disse onde o vazamento estava – completou Locke, sorrindo. – Você entendeu direitinho.
– Seus escrotos impossíveis! – Sabeta saltou de pé, contornou a mesa, puxou Locke e Jean das cadeiras e passou um braço em volta de cada um, rindo. – Ah, vocês são
dois merdinhas astutos e insuportáveis. É maravilhoso!
– Você também não foi tão ruim – replicou Jean. – Se não fosse pela graça dos deuses, nós ainda poderíamos estar navegando no Amatel.
– Então o que nós fizemos? – perguntou Sabeta, com a voz cheia de espanto sincero. – O que nós fizemos? Acho que eu venci a eleição, mas... não sei se vencer durante
uns trinta segundos é vencer de fato.
– Assim como eu não sei se cutucar a vitória para transformá-la num empate seja o mesmo que vencer – acrescentou Locke. – Também não é exatamente perder. Uma tremenda
confusão, não é? Digna de bêbados e filósofos.
– Imagino o que os magos vão dizer.
– Espero que discutam sobre isso até o sol esfriar. Nós fizemos nossa parte, lutamos de verdade, pervertemos o resultado final apenas o bastante para confundir eternamente
quem estiver observando. O que mais eles podem querer?
– Acho que vamos descobrir agora – disse Jean.
– Paciência deu... instruções ou sugestões a vocês sobre o que fazer após a contagem dos votos? – perguntou Sabeta.
– Nenhuma palavra – respondeu Locke.
– Então por que não damos o fora daqui e deixamos nossos patrões nos encontrarem quando quiserem? – Sabeta engoliu o resto do seu conhaque. – Tenho um esconderijo
perto do Pátio da Poeira. Aluguei a casa por um mês, mandei colocar lenha, roupa de cama e vinho. Eu diria que é um lugar bem confortável para descansar e descobrir
o que vamos fazer... em seguida.
Ela passou os dedos levemente pelo braço de Locke.
– Algum plano para tirar a gente daqui sem sermos envolvidos numa briga? – indagou Jean.
– Peles novas. – Sabeta tirou uma adaga fina como um bisturi de algum lugar na manga do casaco e usou-a para abrir três embrulhos de papel, empilhados embaixo do
irritante afresco da câmara. – Por mais que eu odeie tirar este vestido, achei que sairíamos muito mais facilmente se nos vestíssemos como o inimigo.
4
Na décima hora da noite, um trio de casacas-azuis passou pela multidão curiosa junto à entrada principal do Kartenium; um guarda magro e um guarda forte, comandados
por uma mulher com broches de sargento nas lapelas. Eles se livraram das últimas pessoas que estavam no caminho com uma combinação de empurrões e murmúrios malignos
sobre negócios oficiais.
Locke e Jean acompanharam Sabeta por uns 50 metros para o oeste, até um pátio lateral onde uma carruagem aguardava. A noite havia escurecido consideravelmente e,
quando Locke abriu a porta do veículo, seus olhos foram atraídos por uma claridade laranja em algum lugar ao sul.
– Parece um incêndio.
A conflagração ondulou, dourando as construções sombreadas do que devia ser o distrito de Palanta.
– Tremendamente grande – concordou Jean. – Espero que não tenha nada a ver com a eleição. Talvez esses kartanis joguem mais duro do que eu imaginava.
– Venham, vocês dois, não vamos demorar o suficiente para sermos notados por alguém que possa ter um posto superior ao nosso – disse Sabeta.
Subiram juntos na carruagem. Obedecendo a quaisquer ordens que Sabeta houvesse dado antes, o cocheiro sacudiu as rédeas e eles partiram, deixando para trás os resultados
das fraudes com o processo eleitoral de Kartane. Guardas genuínos ainda estavam chegando em força total, com porretes e escudos, enquanto a carruagem chacoalhava
nas pedras do calçamento, para longe do Kartenium.
i n t e r s e ç ã o ( I V )
Ignição
– A Primeira Magistrada acaba de ler o informe do último distrito – avisa um dos rapazes, com a voz sonolenta, os olhos desfocados.
Tutanofrio sabe, por longa experiência, que as conexões mais tênues e sutis entre mente e mente são as mais difíceis de sustentar. Qualquer porcaria de idiota pode
lançar os pensamentos pela noite para magos distantes receberem como se fossem insetos zumbindo. A rede de informações que agora relampejava pensamentos pela cidade
se esforça para ser absolutamente silenciosa.
– O último distrito é do Íris Negra... – sussurra o jovem mago.
– Vitória do Íris Negra – diz alguém. – Por um triz.
– Parece que os alardeados camorris de Paciência não foram páreo para a nossa.
A Arquidama Presciência sorri. Ela usa capuz e manto de couro, uma máscara de pano escuro e um gibão reforçado com cota de malha. Como todos os homens e mulheres
no solário do segundo andar da casa de Tutanofrio no distrito de Palanta, ela está vestida para lutar.
– Vamos cuidar deles depressa, depois que todas as outras satisfações da noite tenham sido realizadas.
– Necessidades, melhor dizendo. – Tutanofrio tosse, respirando fundo para ajudar a controlar a ansiedade.
O ar é denso e cheira a todos aqueles magos, a seus mantos e couros, ao vinho nos hálitos, aos óleos nos cabelos, ao suor nervoso, empolgado.
– Por que não as duas coisas? – pergunta a Arquidama.
– Há uma perturbação no Kartenium – sussurra o rapaz que estivera informando sobre a eleição. – Alguém... Lovaris, do distrito de Bursadi. Algum tipo de anúncio.
Ele pode estar... Ah! Ele está mudando de lado!
– Droga – pragueja a Arquidama Presciência. – Mas parece que não há hora melhor do que o presente. Todos os nossos alvos devem estar absorvidos na distração.
– Ah, estão, sim. – Tutanofrio dá uma risadinha. – A situação não poderia ser melhor. Nosso pessoal está nas posições adequadas?
– Todos – responde Presciência.
– Então vamos à necessidade – diz Tutanofrio, com a boca subitamente seca. – E ao futuro de toda a nossa espécie.
Tutanofrio diz uma palavra.
A palavra vira fogo.
Uma fagulha salta no coração escuro de uma jarra de óleo de fogo, uma dentre uma centena, muito bem lacrada, posta no espaço embaixo do piso da sala um mês antes.
O recipiente está pela metade, contendo apenas ar suficiente para a chama respirar os vapores do óleo. A explosão é incandescente, despedaçando vasos de cerâmica,
sugando ar e óleo para o incêndio que ruge, devorando tudo.
Nem mesmo os magos podem se mover tão depressa ou se proteger em tão pouco tempo. O piso se move sob os pés de Tutanofrio, depois vem um calor agudo e escuro, uma
pressão atordoante e um silêncio súbito. Ele morre levando junto catorze magos, inclusive a Arquidama Presciência. Não tem tempo de sentir arrependimento nem satisfação;
isso simplesmente precisará bastar.
A guerra dura nove minutos. É totalmente unilateral, a única guerra possível que os magos podem travar com qualquer esperança de vitória completa contra outros,
treinados nas mesmas tradições, nos mesmos padrões.
O pessoal da Arquidama Presciência descobre que sua emboscada é natimorta, que suas posições são armadilhas preparadas. Eles sempre estiveram em menor número com
relação à facção de magos de quem zombavam como sendo fracos, e agora esses oponentes aplicam seus números para negar essa injúria.
Não há mercê, nenhuma luta justa é permitida. A força é investida contra a fraqueza. Em telhados, dentro de jardins iluminados, dentro dos salões da Isas Escolástica
e nas casas particulares de feiticeiros, o ataque é rápido, silencioso e absoluto.
Enquanto os bêbados e confusos políticos de Kartane se jogam uns por cima dos outros numa briga cômica no coração do Kartenium, setenta magos morrem nos lugares
escuros da cidade, levando junto apenas um punhado de seus assassinos.
Navegadora encontra Paciência sozinha na Câmara do Céu, olhando a tigela do firmamento artificial, que no momento espelha o céu verdadeiro sobre Kartane, as nuvens
escuras que se espalham, convocadas para esconder as luas e as estrelas. A sombra foi puxada sobre a cidade como uma capa, para esconder melhor as evidências.
– Acabou – anuncia Paciência.
Ela diz palavras reais para o ar; os fios prateados de fala-pensamento se desenrolaram desagradavelmente por Kartane; gritos de dor e traição, pedidos de socorro
que jamais virá, e Paciência endureceu a mente contra a maior parte desse ruído.
– Agora teremos que viver conosco.
– Contar nossos problemas às sombras de Terim Pel – completa a mulher com um braço só.
Ela enxuga uma lágrima do rosto.
– Cada um de nós é um em mil milhares – fala Paciência. – Esta noite, destruímos algumas das coisas mais raras e preciosas do mundo. Nossos herdeiros distantes podem
nos amaldiçoar pelo que fizemos.
– Nós já merecemos a maldição deles, Arquidama.
– Desde que ainda reste uma palavra com a qual nos amaldiçoem. Venha, ajude-me.
As duas mulheres baixaram a cabeça, moveram as mãos em concordância perfeita e falaram palavras de destrançamento que rasgaram as gargantas como o ar do deserto.
Os céus lindamente conjurados da Câmara do Céu desbotaram como a memória de um sonho, até não restar nada além de uma cúpula de pedras brancas e simples, acinzentadas
com a pátina de fumaça antiga.
– Quer ver seu filho agora? – pergunta Navegadora.
– Não – responde Paciência, subitamente sentindo cada um dos seus anos, subitamente desejando o toque e o riso de um homem que foi levado pelo Amatel há um tempo
que é metade de sua vida. – Vou falar primeiro com o Lamora. Mas, por enquanto, quero ficar um pouco a sós.
Navegadora assente e se retira em silêncio, deixando Paciência sozinha na vastidão quieta de uma sala que jamais será usada outra vez.
Resta uma última tarefa no fim dessa longa campanha e Paciência ainda não tem coragem para encará-la.
ú l t i m o i n t e r l ú d i o
Que os ladrões prosperem
Os restos de Gennaro Boulidazi, último de sua linhagem, foram levados sob a bandeira de sua família. Brego, apoplético, fez a maior parte do serviço, depois de ser
censurado pela baronesa Ezrintaim, devido ao pânico e à incredulidade. Mas, gentilmente, ela designou vários policiais para servirem como guarda de honra.
Já era o meio da noite quando todos os policiais e soldados levantaram acampamento da estalagem Gloriano, expulsando alguns vizinhos e curiosos. Ezrintaim deixou
apenas uma pequena guarda postada do lado de fora, com ordens de preservar a paz para os “nobres” que passavam a última noite em Espara ali dentro.
Jean e Jenora saíram juntos cedo, para passar aquela noite como quisessem. Os Sanzas, cada um aparentemente relutando em deixar o outro fora das vistas, reivindicaram
um canto do salão e beberam com Alondo e Jumento – não a barulhenta bebida da comemoração e, sim, o silencioso ritual de pessoas aliviadas porque ainda tinham gargantas
por onde derramar a cerveja.
Bert e Chantal caíram no sono um em cima do outro, enrolados numa capa velha. A Sra. Gloriano prometeu a Locke que iria acordá-los depois de um tempo e colocá-los
num quarto de verdade. Então, ela e Sylvanus sentaram-se juntos, trabalhando numa garrafa enrolada com fita, de algum conhaque caro cuja existência jamais fora mencionada
anteriormente aos ingratos sedentos que batiam em seu balcão pedindo para serem atendidos.
Sabeta foi clara e objetiva, sem palavras. Encontrou Locke absorto em pensamentos no salão e dispensou-os pondo a mão no ombro dele. Olhou para a escada como se
fizesse uma pergunta e, quando ele assentiu, o sorriso dela o fez sentir algo que nem mesmo os aplausos de oitocentos estranhos haviam conseguido.
Os dois pegaram um quarto vazio. Sabeta usou a única cadeira do cômodo para bloquear a porta e admirou o trabalho com satisfação séria.
Estavam cansados, o cheiro de fumaça se entranhava fundo nos cabelos, e a última coisa de que precisavam era mais suor sem banho, mas nenhum dos dois se importou.
Estavam à vontade na escuridão, de um modo que só os sobreviventes de lugares como o Morro das Sombras poderiam entender, e vivos para os lábios e as mãos um do
outro como nunca antes. Ainda estavam tímidos, ainda desajeitados e destreinados. Mas, se a primeira noite juntos havia sido confusa e incompleta, a segunda... ah,
a segunda lhes ensinou por que as pessoas continuavam tentando.
Capítulo Doze
O fim dos sonhos antigos
1
O cheiro dela, o gosto dela. Locke acordou no escuro, ainda inundado daquelas coisas. Seu suor, o suor dos dois, havia esfriado e secado na pele, e a cama... Passou
as mãos pelo lado que ela tinha ocupado e encontrou-o vazio, com o cobertor empurrado para longe.
Lembrou-se de onde estava. A sala de cima da casa de Sabeta perto do Pátio da Poeira, a que tinha o colchão caro e luxuoso e os lençóis de seda lashani. Não podia
ter dormido muito tempo.
Havia alguém no escuro, vigiando-o, e ele soube num instante que não era Sabeta. Sabia com cada fibra da intuição quem deveria ser, parada perto das leves frestas
de luz da janela.
– O que você fez? – sussurrou ele.
– Nós conversamos – respondeu Paciência. – Eu mostrei uma coisa a ela.
Uma luz prateada e suave preencheu o quarto – os frios globos alquímicos, em reação a um simples gesto de Paciência. Locke viu as mãos dela se movendo à medida que
seus olhos se acostumavam, viu que ela usava uma pesada capa de viagem com o capuz empurrado para trás.
– Onde está o Jean?
– Lá embaixo, onde você o deixou. Vai acordar logo. Quer se vestir ou está confortável para conversar assim?
O frio que Locke sentiu tinha pouco a ver com o mero fato de que estava nu. Deslizou da cama, sem se importar se escondia alguma coisa de Paciência, e se vestiu
de um jeito que só poderia esperar, de modo ridículo, que fosse insolente. Pôs calças e túnica como se fosse uma armadura, e um casaco escuro e simples como se isso
pudesse manter longe Paciência e suas palavras.
Locke viu que havia alguma coisa encostada na parede atrás da maga, um objeto retangular e chapado com cerca de um metro de altura, coberto por um pano cinza.
– Ela tentou escrever um bilhete para você – informou Paciência. – Mas... não conseguiu. Foi embora há uma hora.
– O que você fez com ela, Paciência?
– Não fiz nada. – Seus olhos escuros o observaram, pareceram perfurá-lo. Aqueles olhos de caçador. – Para minhas artes, Sabeta Belacoros é uma marionete esperando
a mão do manipulador, mas não teria sentido se eu tivesse feito alguma coisa. Ela precisava escolher. Eu lhe dei informações que a levaram a uma escolha.
– Sua puta...
– Além disso, eu salvei sua vida esta noite. Pela segunda e última vez. Esta é a nossa última conversa, Locke Lamora, se é assim que você ainda opta por se chamar.
Vim pagar todas as dívidas e terminar meu negócio com você.
– Quer que eu me mate, finalmente?
– Claro que não.
– E... quer manter a palavra? Dinheiro e transporte para irmos embora?
– Não há dinheiro nem transporte. – Paciência riu sem humor. – Você não vai receber mais nada de nós. Seus contatos na casa de contabilidade não vão mais reconhecê-lo
e seus colegas do Raízes Profundas já pensam em Sebastian Lazari como o fantasma de uma lembrança. Aonde quer que vocês, cavalheiros, optem por ir, suspeito que
terão uma longa caminhada pela frente.
– Por que está fazendo isso conosco?
– Pelo Falcoeiro.
– Então o jogo era de vingança, afinal de contas. Bom, uma criatura como o Falcoeiro mereceu cada segundo de dor que eu lhe provoquei, e foda-se você se espera que
eu pense de forma diferente!
– Você não pode entender o que tirou dele – falou Paciência, as palavras quentes e densas de desprezo. – Sua carne é inerte; para você, a magia não passa do som
do vento. Você não pode senti-la jamais, sentir as palavras saindo de você como fogo, como flechas de um arco! Nem conhecer esse poder preenchendo-o e carregando-o
como uma pena ao vento. Você acha que sou egoísta por causa disso? Cruel? É menos do que você merece! Matar o Falcoeiro teria sido um ato misericordioso. Eu matei
magos. Mas você roubou as mãos e a voz dele. Tirou seus instrumentos mágicos e o esmagou como uma obra de arte inestimável. Roubou o destino dele. A Arquidama Paciência
poderia perdoá-lo. A mãe e a maga não podem.
– Posso repetir minha declaração anterior – retrucou Locke, com a voz trêmula.
Um passo pesado soou na escada. Jean irrompeu no quarto, escancarando a porta sem bater.
– Não entendo – disse ele, ofegante. – Eu estava só... Você fez alguma porra comigo de novo, não foi?
– Um cochilo breve – respondeu Paciência. – Eu queria um tempo com Sabeta e, depois, com Locke. Mas você pode ouvir o resto que eu tenho a dizer.
– Onde está Sabeta?
– Viva – respondeu Paciência. – E fugiu por vontade própria.
– Por que eu...
– Você não tem mais nada que eu queira, Jean Tannen. Se me interromper de novo, Locke vai sair de Kartane sozinho.
Jean fechou os punhos mas ficou em silêncio.
– Também vou deixar Kartane – revelou Paciência. – Eu e todos os magos. Esta noite se encerra o último Jogo dos Cinco Anos e nossos séculos de vida aqui. Quando
os kartanis arranjarem coragem para entrar na Isas Escolástica, vão encontrar nossas construções vazias, nossos túneis desmoronados, e nada de nossas bibliotecas
e tesouros. Estamos retirando todos os nossos traços de Kartane, até a poeira embaixo das camas.
– Por que, pelos deuses, vocês fariam isso? – questionou Locke.
– Kartane é o sonho antigo. Serviu ao propósito. Nós reunimos força, aperfeiçoamos as habilidades e coletamos a riqueza de que precisamos para fazer o que precisamos.
Não haverá mais contratos. Nem Magos-Servidores. Estamos nos retirando da vida pública deste mundo. Nunca mais permitiremos que esse tipo de instituição se erga.
– E o... o perigo do qual você falou? – perguntou Locke, irritado e espantado pela magnitude das mudanças que as palavras de Paciência implicavam.
– Existem coisas se movendo e sonhando na escuridão. Nós nos recusamos a tomar qualquer atitude que arrisque acordá-las. No entanto, a magia humana precisa sobreviver,
por isso precisamos aprender a executá-la do modo mais discreto possível.
– Por que nos obrigou a participar dessa porcaria de eleição? Deuses, por que não nos colocar numa sala, dizer essa merda e poupar tanta encrenca?
– Há um século, sábios membros da minha ordem previram nosso rumo sem qualquer sombra de dúvida. Nós usamos os contratos para enriquecer, mas eles também nos tornaram
arrogantes. Alimentaram o impulso de dominar, de enxergar nossos poderes como ilimitados e o mundo, como nossa argila a ser moldada. Esses homens e mulheres sábios
tinham o conhecimento de que aconteceria uma crise, um período sangrento, e a única forma de vencer seria pela surpresa. Eles visualizaram uma ruptura de nossa vida
comum, tão profunda e ao mesmo tempo tão rotineira que poderia esconder os preparativos de uma luta quando chegasse a hora. Os Jogos dos Cinco Anos se tornaram uma
parte regular da nossa sociedade, uma festa e uma liberação da tensão. Mas alguns de nós sempre soubemos da intenção original dos jogos e guardávamos o conhecimento
de que poderíamos ter que agir de acordo com ela.
– Então tudo não passou de... uma monumental distração? Enquanto nós dançávamos para todo mundo se divertir, você afiava sua faca e cravava nas costas de alguém?
– Todos aqueles magos que eu descrevi uma vez como excepcionalistas. Todos aqueles irmãos e irmãs. Eu lamento por eles, ao mesmo tempo que sei que não havia como
convencê-los. Eles permanecerão em Kartane para sempre. O resto de nós vai embora.
– Por que está contando isso para nós? – questionou Jean.
– Porque valorizo o desconforto de vocês. – Paciência abriu um sorriso sem cordialidade. – Eu descrevi de modo muito sucinto as condições do trabalho de vocês. Não
vamos desaparecer do mundo, mas apenas dos olhos das pessoas comuns. Compartilhar nossos negócios com qualquer um e com vocês está sempre ao nosso alcance.
– Pessoas comuns – repetiu Locke. – Bom, até que ponto eu sou comum de fato? Qual é a verdade de todas as histórias que você teceu sobre o meu passado?
– Você deveria olhar a pintura que eu trouxe para Sabeta. – Paciência bateu de leve no objeto embrulhado que estava encostado na parede atrás dela. – Vou deixá-la
aqui, mas, dentro de um ou dois dias, ela será apenas cinzas brancas. É o único retrato de Lamor Acanthus pintado durante a vida dele. Eu deveria lhe dizer: a semelhança
é impecável.
– Uma resposta simples! – gritou Locke. – O que eu sou?
– Você é um homem que não vai saber a resposta. – Agora o sorriso de Paciência era genuíno. Ela estava tremendo, obviamente contendo uma gargalhada com dificuldade.
– Olhe para você: camorri! Especialista em truques! Acha que sabe o que é a vingança? Bom, eis a minha contra você. Antes de ser Arquidama Paciência, eu me chamava
Costureira. Não porque gosto de trabalhar com agulhas, mas porque eu talho sob medida.
Locke só pôde ficar encarando-a, sentindo-se frio e vazio até as profundezas das entranhas.
– Viva uma vida boa e longa sem sua resposta – continuou ela. – Acho que você vai descobrir que a prova está bem equilibrada em ambos os lados. Agora vou lhe dizer
mais uma coisa, e só porque sei que isso vai assombrá-lo e inquietá-lo. Meu filho preferia zombar das minhas premonições, mas só porque não queria encarar o fato
de que elas sempre tinham solidez. Vou lhe dar uma pequena profecia, Locke Lamora, do melhor modo que eu a vi. Três coisas você deve tomar e três coisas você deve
perder antes de morrer: uma chave, uma coroa e uma criança. – Paciência puxou o capuz para cima da cabeça. – Você vai morrer quando cair uma chuva de prata.
– Você está inventando essa merda toda.
– Posso estar. Posso muito bem estar. E isso faz parte do seu castigo. Vá agora e viva, Locke Lamora. Viva inseguro.
Ela fez um gesto e sumiu.
2
Jean permaneceu na soleira da porta, fitando o embrulho cinza. Por fim, Locke reuniu coragem para pegá-lo e rasgar o papel.
Era um quadro a óleo. Locke olhou-o durante um tempo, sentindo as linhas do rosto se retesarem como uma corda de arco, sentindo a umidade se juntar nos cantos dos
olhos.
– É claro. É claro. Lamor Acanthus. E a esposa, imagino.
Emitiu um som que era meio um riso amargo e meio um soluço estrangulado, e jogou o retrato na cama. O homem de manto preto não se parecia em nada com Locke: tinha
ombros largos, com o aspecto clássico de um aristocrata do Trono Terim, moreno e de traços angulosos. A mulher ao lado tinha o mesmo tipo de glamour altivo, até
os ossos, mas era de pele muito mais clara.
Seu cabelo denso e solto era vermelho como sangue fresco.
– Sou tudo que Sabeta temia. Talhado sob medida.
– Eu... eu lamento profundamente ter colocado você nisso tudo.
– Merda! Não banque o molenga agora, Jean. Eu estava quase morto e a única saída era ir até o fim do jogo de Paciência. Agora ela deu a cartada final.
– Podemos ir atrás de Sabeta. Ela tem meia hora de dianteira. A que distância pode ter chegado?
– Eu quero. – Locke enxugou os olhos. – Deuses, ainda sinto o cheiro dela em todo este quarto. E, pelos deuses, eu a quero de volta. – Ele se deixou cair na cama.
– Mas eu... eu prometi confiar nela. Prometi... respeitar as decisões dela, não importando quanto isso pudesse me ferir, porra. Se ela precisa fugir, se precisa
se afastar de mim, então vou... vou aceitar. Se ela quiser me encontrar de novo, o que poderia impedi-la?
Jean pôs as mãos nos ombros de Locke e baixou a cabeça, pensativo.
– Porra, vai ser insuportável conviver com você durante algumas semanas – disse por fim.
– Provavelmente – concordou Locke com uma risadinha pesarosa. – Desculpe.
– Bom, nós deveríamos dar uma geral neste lugar e pegar tudo em que pudermos pôr as mãos. Roupas, comida, ferramentas. Não precisamos ir atrás de Sabeta, mas seria
melhor estar com o rabo na estrada antes que o sol espie sobre o horizonte.
– Por quê?
– Kartane não manteve um exército nem fez manutenção nas muralhas durante trezentos anos. Dentro de algumas horas, a cidade vai acordar e descobrir que a única coisa
que a protege do mundo lá fora desapareceu durante a noite. Você quer estar aqui quando essa confusão estourar?
– Ah, merda. Bem pensado.
Locke se levantou e olhou o quarto ao redor uma última vez.
– Chave, coroa e criança... – murmurou. – Bom, foda-se Paciência. Três coisas ela deve lamber antes que eu a deixe me assombrar de vez: minhas botas, meus bagos
e meu traseiro.
Locke calçou as botas e acompanhou Jean escada abaixo, impaciente para deixar Kartane para trás e diminuindo aos poucos no horizonte.
EPÍLOGO
Asas
1
O menino tem 6 anos. Olha o Amatel, respira o ar do lago, os cheiros saudáveis de vida e frescor. Contempla as luzes brilhantes, as joias na escuridão, os segredos
dos Ancestres espalhados nas profundezas. O pessoal do cais diz que pescadores na água à noite foram enlouquecidos pelas luzes, mergulharam até elas, nadando freneticamente,
como se subissem à superfície, até se afogar. Ou desaparecer.
O menino não tem medo das luzes. O menino tem um poder que o pessoal do cais nem consegue imaginar. Sente uma pressão nas têmporas quando olha pela água afora. Ouve
algo mais baixo e mais adorável do que o barulho constante das ondas e os gritos dos pássaros. O poder das coisas ocultas chama o poder do menino.
O menino sabe que o Amatel levou seu pai. Disseram-lhe isso, mas ele não se lembra de nada. Era pequeno demais. Não existe lembrança para lamentar. O lago de joias
significa apenas vida, beleza e familiaridade tranquilizadora.
Todas essas coisas. E o poder que espera seu poder para se igualar a ele. Para revelá-lo.
2
O menino tem 4 anos, o menino tem 10 anos, o homem tem 20. Seu corpo muda neste lugar. Às vezes ele está inteiro, às vezes está satisfeito, às vezes suas lembranças
são claras e nítidas como pinturas reluzindo com o fogo dos deuses em cada partícula de pigmento.
Às vezes ele fala com uma voz melodiosa e retumbante. Às vezes move as mãos e sente os dedos ali, sente-os roçar nas superfícies e pegar coisas. Não sabe por que
isso lhe agrada, por que sente algo como a pressão quente de lágrimas nos olhos, por que o júbilo é tão agridoce.
Às vezes ele caminha em meio à névoa. Seus pensamentos são embrulhados em algodão, que abafa tudo. Às vezes está numa rua, confuso. Está amarrado com cordas, latejando
de dor, as mãos e a boca cobertos de sangue. Seu próprio sangue. A chuva cai e homens o encaram, estudando-o, com medo.
Às vezes ele está olhando através do Amatel, sentindo a vida do pássaro pela primeira vez. Uma gaivota, uma coisa elegante e branca, girando em pequenos círculos.
O menino sente as necessidades da ave, sua fome, a simplicidade elegante da coisa no centro de tudo. O menino visualiza isso como uma roda, uma peça de mecanismo,
um círculo lógico movendo-se sem atrito ou remorso. Atacar, comer, viver no vento. Atacar, comer, viver no vento.
O menino move os dedos para invocar seu poder inato. Estende as mãos e toma a vida da ave como um fio que zumbe nas mãos que mais ninguém pode ver, as mãos do poder
que sua mãe lhe ensinou a usar.
A ave fica espantada.
Suas asas se dobram desajeitadamente. Ela mergulha 6 metros e ricocheteia com força numa pedra, depois cai na água, sacudindo-se e guinchando, agitada, tendo sorte
por suas asas não se quebrarem.
O menino precisa treinar.
3
O menino está com 10 anos. Correu por morros e florestas ao norte de Kartane durante toda a noite, com sangue na boca. O menino se agachou no centro de uma teia,
imóvel como uma pedra, com veneno nas presas e a levíssima sensação de movimento ondulando os pelos, as correntes de ar da caça chegando cada vez mais perto. O menino
voou alto no céu, perseguiu o sol, aprendeu a atacar, comer e viver no vento.
– Você não deve – insiste a mãe.
Sua mãe é poderosa, sua mãe está lhe ensinando seus dons, mas não deixará que ele ensine a ela os seus.
– Esta não é uma coisa bem-vista entre nossa espécie – diz ela. – Você é um homem! Vai pensar como homem! Não há espaço para um homem naquelas mentes minúsculas.
– Eu compartilho – responde o menino. – Eu comando. Não me sinto pequeno. Se eles são mesmo minúsculos, talvez eu os torne grandes sempre que entro.
– Você vai ficar cada vez mais sensível. Vai se amarrar a eles cada vez com mais força, entendeu? A vida deles se tornará sua, os sentimentos deles serão seus. Se
eles forem feridos, você compartilhará toda a dor. Se eles forem mortos... você poderá se perder também.
O menino não entende. Sua mãe lhe fala essas coisas como se não houvesse compensações. O menino sabe que está sozinho, dentre todos os magos a quem sua mãe o apresentou,
em sua disposição de compartilhar a vida dos animais.
Não há como dissuadir o menino. Ele provou a vida sem arrependimentos, a vida sem remorso, a vida no vento. É isso que ele é; o menino retorna a si mesmo depois
de cada comunhão, sentindo que parte da vida selvagem retornou com ele, para viver dentro dele.
Sua mãe poderia fazê-lo parar. Mesmo com 10 anos, o menino sabe o poder que ela tem sobre ele, queima de vergonha com isso. Mas a mãe não vai usar esse poder. Ela
ensina, implora e ameaça, mas não falará a coisa que trancaria a vontade do filho numa caixa de ferro.
A mãe não pode, ou não quer, mas isso não faz com que o menino a perdoe. Ele lança sua consciência a lugares escondidos, para corujas, corvos, falcões. Lança-se
no céu carregando raiva do chão, e o sangue quente corre em suas garras. Voa para esquecer que tem pernas. Mata para esquecer que tem regras e expectativas. Jamais
compartilha essa experiência com alguém. Vai sozinho para a floresta, e passarinhos mortos caem como chuva. Quando é envergonhado nos estudos ou censurado por sua
atitude, lembra-se do sangue nas garras e suporta tudo com um sorriso.
4
O menino se foi, o homem tem 25 anos, o homem está... perdido.
Às vezes ele está no lugar morto e cinzento. Suas pernas se recusam a se mover. Suas mãos parecem cotocos aleijados. Sua língua lateja com uma dor fantasma, um pinicar
elétrico. Ele está preso numa cama como se estivesse pregado nela. Não consegue lembrar como foi parar ali. Soluça, entra em pânico, tenta abrir caminho até a realidade
com os dedos que não existem mais.
Só o cheiro do lago o relaxa, o perfume fresco da água, o sabor picante de peixe morto ou bosta de gaivota. Quando o vento sopra essas coisas até ele, é possível
suportar a confusão e a tortura do lugar morto.
Quando o vento está forte, as sombras ao redor derramam algo frio e amargo pela sua garganta e ele adentra a escuridão, xingando-as sem palavras.
5
O ar do lago sopra no lugar morto. Ele o recebe como se nenhum outro ar o sustentasse. É noite; a escuridão é afastada pela luz de uma única lâmpada. Tudo é estranho;
ele sente uma força esperançosa dentro do peito, algo brotando dele como bolhas numa fonte. A sala está clareando, como se uma camada de gaze depois da outra estivesse
sendo removida de seu rosto.
A luz arde nos olhos; a nova claridade é irritante. Há sombras movendo-se perto da luz, duas delas.
O homem tenta falar e um gemido estrangulado e úmido o espanta. Demora um momento até perceber que o ruído é seu, que sua língua é um pedaço de coisa cauterizada.
Suas mãos! Lembra-se de Camorr, lembra-se do aço descendo, lembra-se da dor compartilhada dos últimos instantes de Vestris varrendo-o em ondas insuportáveis. Lembra-se
de Locke Lamora e de Jean Tannen. Lembra-se de Lucano Anatolius.
Ele é o Falcoeiro e o ar no quarto é pesado com o aroma do Amatel. Ele está vivo e de volta a Kartane.
Quanto tempo? Sente-se rígido, leve, fraco. Um peso significativo desapareceu de seu corpo. Seriam meses, semanas?
Quase três anos, sussurra uma voz suave em sua cabeça. Uma voz familiar. Uma voz odiada.
– Mnnnnghr – reage ele, rouco; é o melhor que pode fazer.
A frustração vem como um peso físico. Ele sente as correntes de magia no quarto, sente a força de sua mãe ali perto, mas suas ferramentas estão faltando. O poder
está ali para ser manejado, mas sua vontade se esvai como areia correndo por um vidro liso.
Eu cuidarei disso por nós dois.
Frios dedos de força deslizam por sua mente, e a impotência desaparece. Ele sente as palavras enquanto as molda, sente-as indo até ela, de mente para mente, sua
primeira comunicação ordenada em... três anos?
TRÊS ANOS!
Como eu disse.
Camorr...
É, o contrato com Anatolius.
Até que ponto fui ferido? O que eles fizeram comigo?
Não o suficiente para causar sua condição atual.
O Falcoeiro pondera sobre o significado dessas palavras, folheia desesperadamente as lembranças como se fossem páginas de um livro.
Um modelo de cidade em aço de sonho. As torres caindo num nada chapado e prateado.
A Arquidama Paciência, na Câmara do Céu, alertando-o sobre o perigo.
Aço subindo e caindo. Calor cauterizante, brancos relâmpagos de dor na mente, diferente de tudo o que ele jamais imaginou. Vestris morta. Antes que a lâmina chegue
à sua língua, ele tenta executar o feitiço do amortecimento da dor, a antiga técnica familiar, mas... não há o alívio bem-vindo. Névoa, loucura, prisão.
Agora veja tudo.
Paciência fala uma palavra e algo se solta na mente dele. Uma pátina se racha em cima de uma lembrança antiga, revelando a verdade dentro da casca.
Arquidama Paciência. Na noite em que o Falcoeiro partiu, uma breve audiência particular. Ela o alerta de novo. Outra vez ele zomba da transparência dos ardis da
mãe. Então, Paciência diz outra palavra, urgente e irresistível. A palavra é o nome dele, seu nome verdadeiro, pronunciado como a pedra angular de um feitiço. O
Falcoeiro está amarrado àquilo, e depois é obrigado a esquecer.
Você... você fez isso.
Uma compulsão sutil. Uma armadilha. Uma ordem irrevogável dormindo em sua mente até a próxima vez em que ele usasse a arte de amortecer a dor.
VOCÊ fez isso comigo...
Você fez consigo mesmo.
VOCÊ FEZ ISSO COMIGO!
Eu lhe dei a chance de evitar.
NÃO. A CHANCE DE MOSTRAR MINHA GARGANTA.
Sua arrogância de novo. Não vê que você era um problema necessitado de solução?
E A SUA SOLUÇÃO... ASSASSINATO. LONGE DE CASA.
Creio que esse é o único modo honesto de ver a situação.
EU SOU A DROGA DO SEU FILHO!
Eu tenho cinco anéis. Você se colocou do lado errado deles.
Bom... Ele se obriga a baixar a voz mental, a pensar friamente. Deve haver perigo aí. Por que ela está contando isso, revelando tudo depois de três anos? Você certamente
fodeu com as coisas, não foi?
Tudo o que eu consegui prever era que você ia sofrer uma dor séria. Portanto, presumi que estaria correndo perigo extremo... que faria a coisa óbvia.
Quer dizer, me paralisar! E, então, tudo estaria acabado.
Só que seus oponentes foram... escrupulosos.
Ah. É assim a sensação após um tratamento escrupuloso? Que grande sorte.
Eu lhe disse: não é o que eu queria!
Você e sua maldita presciência. Suas sugestõezinhas mesquinhas. O modo como você tentava controlar todo mundo ao redor usando-as. De que adiantava, se você nem pôde
ver ISSO vindo até nós? Diga, mãe, você alguma vez conseguiu ter uma visão de seu PRÓPRIO futuro?
Não.
Bom, deve ser agradável para você. Ser a única pessoa real em toda a porcaria do seu mundo, e todo o resto de nós somos marionetes para seu palco particular. Como
é a sensação AGORA?
– Acabou – responde Paciência, passando para a fala normal. Ela está ao lado da cama dele, olhando-o. – Tudo. Seus colegas estão mortos. A Arquidama Presciência
está morta.
Como?
– Isso é irrelevante. Você é o único sobrevivente de sua facção. Todas as questões entre nós foram resolvidas. Estamos partindo de Kartane, adentrando o tempo do
silêncio, como foi planejado. Você é meu último item a ser resolvido antes da partida.
Veio me matar finalmente? Veio dar um fim a três anos de covardia?
– Parte de mim deseja que você estivesse morto. Deseja que você tivesse morrido de modo limpo, como teria acontecido se você estivesse saudável e lá fora, em Kartane,
esta noite. Não consigo imaginar alguém desejando viver em sua... condição. E vou acabar com o seu sofrimento, se é isso que você deseja. Mas senti que deveria perguntar.
Eu lhe devo pelo menos essa última coisa.
Paciência aponta para a outra figura no quarto, um homem corpulento, careca, com bigode preto que se estende até a gola da túnica marrom. Não há anéis visíveis em
nenhum dos pulsos.
– Este é Eganis, que cuida de você. – Ela oferece imagens e impressões, revelando ao Falcoeiro como tem sido durante três anos.
Eganis movendo-o, rolando-o de um lado para outro, virando-o para evitar escaras úmidas.
Eganis alimentando-o com mingau, papa e leite.
Eganis esvaziando seu penico.
Eganis andando com ele, guiando o hesitante Falcoeiro com uma tira de couro amarrada no pescoço.
Um mago de Kartane... preso numa coleira...
Era necessário para preservar sua saúde.
Como um cachorro...
Era necessário!
COMO UM MALDITO CACHORRO!
Você sempre quis conhecer mais intimamente o espírito dos animais.
O Falcoeiro não envia palavras e, sim, um jorro incontido de ódio tão quente e ácido que ele a vê cambalear antes de conseguir proteger a mente contra aquilo.
– Você vai entender quando ficar calmo – diz ela. – Vou deixar esta casa, e verbas para Eganis usar. Sem mãos ou voz, agora você é efetivamente um sem-dom e jamais
verá qualquer um de nós outra vez. Você pode encontrar algum motivo para viver, está convidado a fazer isso. Se achar esse pensamento insuportável, então eu... acabarei
com a situação de modo rápido e indolor.
Não aceitarei mais nada de você enquanto viver. Nem esta casa. Nem Eganis. Nem caridade. Sem dúvida não a morte.
– Em sua cabeça será assim – murmura ela. – Eganis ficará. Você é um inválido mudo com três anéis tatuados no pulso e, em pouco tempo, Kartane poderá ser um lugar
muito... interessante para você.
Para você, não há inferno suficientemente profundo para o meu gosto, mãe.
Suas ambições e suas investigações foram uma ameaça para cada ser vivo neste mundo. Considere isso quando derramar suas lágrimas.
Sua TIMIDEZ! Diante dos segredos que esperam ser destrancados em todos os locais onde os Ancestres puseram os pés, você quer que permaneçamos ignorantes e impotentes...
Bom, vá para o inferno. Todo o verdadeiro poder da raça humana é desperdiçado com pessoas como você... os que são pequenos por vontade própria. Você e todos os seus
colegas, desfechos da pior piada de Kartane. Cinco anéis! Cinco algemas de prisioneiros!
Você estaria livre para enfiar a mão no fogo se o resto de nós não fosse queimar junto. Adeus, Falcoeiro.
Paciência parte, e o feitiço de moldar pensamentos desmorona na ausência dela. O Falcoeiro está sem voz, apenas na companhia de Eganis. O homem olha para ele, depois
desvia ligeiramente o olhar, como se ficasse desconfortável ao vê-lo de olhos abertos.
– Se algum dia você achar que o fardo da sua vida nova... é pesado demais – murmura Eganis –, fui instruído... a lhe oferecer misericórdia. Tenho pós que podem ser
tomados com vinho.
O Falcoeiro fuzila o homem com os olhos até que ele dá de ombros e sai do quarto.
6
Agora, o Falcoeiro nota o frio outonal. Sente-o como uma dor no corpo magro demais. Enojado, rola para a esquerda e tenta ficar de pé sozinho.
Sucesso, mas por pouco. Pelos deuses, ele se move como um homem de 90 anos! Os quadris doem e as pernas parecem finas demais para sustentá-lo, mas, ainda assim,
o fazem, desajeitadamente. O Falcoeiro dá um risinho desgostoso devido ao passo manco e cheio de estalos.
Não há nada útil nessa cela de prisão. Uma cama, uma cadeira, uma lâmpada, um penico. O cômodo ao lado é maior, mobiliado com uma biblioteca de várias dúzias de
volumes e uma pequena bacia. O Falcoeiro vai mancando com esforço até o recipiente, sabendo o que verá ali. O aço de sonho é encontrado em toda parte nas casas dos
magos, como decoração e diversão. O poço é inerte para ele, morto como água, e a frustração o faz estremecer tanto que ele quase cai.
Com o lábio trêmulo, cutuca o poço de prata com os destroços da mão direita. Precisa de dedos, dedos flexíveis! Assim, o aço poderia assumir qualquer forma necessária
a partir da pressão do pensamento. Quando tinha 5 anos, era capaz de mover o metal com um gesto e uma única palavra. Um calor novo sobe ao rosto e, por um instante,
ele odeia tão ferozmente o que se tornou que chega a pensar nos pós oferecidos pelo cuidador.
A superfície do aço de sonho ondula num lugar que ele não está tocando.
O Falcoeiro salta para trás, o coração martelando, ruidoso a ponto de dar pena, em seu peito fraco. Pelos deuses! Se seus olhos o estão enganando... se ele não viu
isso, diz a si mesmo que vai exigir os pós. Seus dentes estão chacoalhando de empolgação enquanto ele se curva de novo sobre a bacia. Toca os cotocos dos dedos no
líquido e fica olhando-o, obrigando toda a força de vontade a sair do longo sono, de toda a sua fúria, de todo o seu foco e seu desejo aperfeiçoados de modo não
humano. Gotas de suor escorrem pela testa.
Estremece com um desejo tão profundo que sua respiração sai em haustos ofegantes.
Fios de aço de sonho, finos como cabelos, se esgueiram pelo cotoco do indicador direito. Em seguida, gotas grossas, depois uma linha curva e tangível. Ele sente
o poder como uma vibração ao longo da borda prateada. Seu contato com a energia da feitiçaria. Seu foco. Lágrimas quentes encharcam suas bochechas e seu peito arqueja
como um fole.
Num minuto, ele moldou um único dedo prateado e o processo ganha velocidade. Com um dedo para direcionar as correntes de magia, é fácil fazer um segundo, mais fácil
ainda um terceiro. Antes que possa acreditar, o Falcoeiro está olhando, em júbilo pasmo, uma meia mão de metal, mantida inteira pelas flexões triviais de sua vontade:
cinco dedos prateados.
Seu gemido de alívio é tão alto e indigno que Eganis vem correndo lá de baixo. Os olhos do homem se arregalam.
– Que diabo você acha que está fazendo?
Não há necessidade do expediente antigo, de jogar com um fio de prata para lá e para cá. Agora a própria mão do Falcoeiro fará o serviço. Ele flexiona os dedos de
pele espelhada, faz um gesto de varredura na direção de Eganis, que cai de joelhos, arfando.
O Falcoeiro tem poder, mas é fraco e vago. Ele precisa de uma voz. Um pouco de magia só o deixa desesperadamente sedento por tê-la toda de volta. Sedento! A mera
ideia... Mas por que não? Em que a precaução o ajudaria nesse momento? Pega a bacia de aço de sonho com sua nova mão e a inclina em direção à boca; o metal é frio
e estranhamente salgado. Ele se empoça embaixo do seu cotoco de língua, desliza em arcos até a goela, onde se detém e toma forma, não como uma língua, mas como uma
fina superfície ressonante, vibrando em parte com som e em parte com magia.
Ruídos fantasmagóricos como risos sibilantes enchem o cômodo enquanto ele luta para dominar o aço de sonho, para alinhá-lo perfeitamente, para ajeitar sua garganta.
– EGANIS – troveja ele, por fim. A voz é fria, as palavras parecem grades de metal se fechando. – Então você me ofereceria misericórdia, Eganis? VOCÊ... ME ofereceria
misericórdia?
– Por favor – o cuidador tosse –, eu não queria lhe fazer mal! Eu cuidei do senhor!
– Eu recusei você como um presente. – O Falcoeiro agarra a bacia e a lança contra Eganis, derramando o resto de aço de sonho sobre ele. – Minha mãe deveria ter mandado
você embora.
O Falcoeiro move a mão prateada e fala em sua voz de prata. O aço de sonho toma vida e se arrasta sobre Eganis, em direção ao pescoço dele.
– Não! Por favor, eu posso servir ao senhor!
– Você vai me servir. Como prova de uma ideia.
O Falcoeiro fecha o punho, e o aço de sonho solto flui para dentro dos ouvidos de Eganis. Linhas vermelhas paralelas escorrem por baixo das prateadas, e então se
tornam rios. Eganis grita. Agarra o topo da cabeça e há um som como hastes de trigo se partindo. O crânio se despedaça. Uma onda de fontes prateadas sai por trás
de sangue quente e miolos molhados.
Tudo bate no chão em muitas partes diferentes do cômodo. O Falcoeiro chama de volta o aço de sonho livre, formando um colar com ele. Terá que conseguir mais, de
algum modo, para fazer outra mão funcional. Mesmo assim, o que ele tem deve mais do que bastar para lhe devolver o céu selvagem.
7
Há uma janela estreita ao lado da estante de livros. Um gesto do Falcoeiro e o vidro se torna areia, deslizando para fora dos caixilhos, soprando para longe na noite
nublada e negra. Outro gesto e as dobradiças enferrujam; o Falcoeiro arranca-a da parede e deixa-a cair no chão com um estrondo.
Vê que está em algum lugar da Ponta Corbessa, a um ou dois quarteirões ao norte do cais. Envia sua consciência para fora, suave e sutilmente, ciente de que nenhum
mago ainda na cidade mostrará um instante de misericórdia caso ele seja localizado. Demora apenas alguns instantes para achar o que quer, um dos corvos carniceiros,
de cauda em leque, do Amatel do Norte, pássaros astutos e sociáveis com olhos aguçados, bicos e garras afiados.
O Falcoeiro toma o primeiro corvo gentilmente e o lança na noite, usando um fino fio de consciência, suprimindo o deleite com a sensação de voar. Um ou dois segundos
reafirmam sua afinidade com o trabalho e ele estende o controle para a meia dúzia de outros corvos que estão empoleirados ali perto.
O carniceiro roubado pelo Falcoeiro circula acima da Ponta Corbessa, caçando outros corvos e um vislumbre de certa mulher encapuzada. Ela ainda deve estar em algum
local de Kartane e ele a reconhecerá a qualquer distância, desde que a mulher não esteja oculta sob um feitiço profundo.
Sete corvos se tornam trinta. O Falcoeiro direciona-os com a precisão de um mestre de dança, mandando mais e mais de sua consciência para a nuvem emplumada, vendo
não através de pares individuais de olhos e, sim, através de um todo empolgante, um redemoinho de ruas escuras, telhados, carruagens chacoalhando e gente apressada.
Trinta corvos se tornam sessenta. Sessenta se tornam noventa. Eles formam espirais organizadas, indo para o norte e, depois, oeste, buscando incansavelmente.
Não demora muito para que a encontrem, na borda ocidental da Ponta Corbessa. Está andando sozinha, em direção a algum compromisso, e o Falcoeiro a reconhece sem
qualquer possibilidade de dúvida. O sangue chama o sangue.
Suas esquadrilhas de corvos, negras contra o céu negro, convergem e circulam em silêncio, a mil metros de altura. Em instantes, ele reuniu 150, o maior número de
criaturas vivas de qualquer tipo que ele já controlou ao mesmo tempo. Sua mente está pegando fogo com a empolgação do poder; agora ele precisa ser rápido e certeiro,
antes que Paciência possa usar suas habilidades espantosas, antes que qualquer outro mago note o que está acontecendo.
Um corvo bate as asas e despenca da noite. Os outros o seguem um instante depois.
Paciência está na calçada junto a um armazém, passando sob uma lâmpada alquímica oscilante. O primeiro corvo passa por seu capuz, vindo de trás, roçando-o, guinchando
e grasnando o tempo todo.
Ela gira para ver de onde ele veio. A próxima dúzia de pássaros voa diretamente contra seu rosto.
Olhos, nariz, bochechas, lábios – não há tempo para ser misericordioso. A bola de corvos enlouquecidos pela magia bica e rasga com as garras qualquer coisa mole,
qualquer coisa vulnerável. Paciência mal tem tempo de gritar antes de ficar cega e cair de costas, debatendo-se à medida que mais corvos jorram do céu como uma nuvem
preta que ganhou carne.
Ela se lembra de sua magia e meio que consegue fazer um feitiço. Uma dúzia de aves lampeja, virando cinzas, mas outra dúzia toma o lugar, buscando pescoço e testa,
pulsos e dedos. O Falcoeiro pressiona Paciência contra o pavimento, o bando que se retorce é pura extensão de sua vontade, a mão escura que esmaga. Sorrindo feito
louco, ele canaliza um pensamento para ela, lançando sua chancela contra as defesas mentais despedaçadas de Paciência:
Isso é fraqueza, mãe?
Você nunca entendeu meus talentos.
A verdade é que eles jamais me enfraqueceram.
A VERDADE É QUE ELES ME DERAM ASAS.
Os bicos e as garras das aves de rapina são impelidos por inteligência humana; em instantes, eles abriram os pulsos de Paciência, transformaram suas mãos em polpa,
esfolaram o pescoço, arrancaram os olhos e a língua. Ela está impotente muito antes de morrer.
O Falcoeiro dispersa suas nuvens de lacaios alados e pende contra a moldura da janela, ofegante. Exauriu muito de si mesmo... Precisa de comida. Precisa revirar
a casa em busca de algo útil. Precisa de roupas, dinheiro, botas... Precisa ir embora assim que tiver comido, para longe do ninho de seus inimigos, para longe, com
o objetivo de se recuperar.
– O tempo do silêncio, mãe? – Ele cantarola as palavras baixinho, saboreando a sensação fantasmagórica do aço de sonho vibrando na garganta. – Ah, acho que a última
porra que seus amigos vão desfrutar é de um tempo de silêncio.
Mancando desajeitadamente, rindo sozinho, ele desce a escada com cuidado. Primeiro comida, depois roupas. Então, juntar forças para o trabalho à frente.
O longo e sangrento trabalho à frente.
Scott Lynch
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