Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
RESGATE NO TEMPO
Segunda Parte
32:16:01
Os cavalos revoluteavam e carregavam, passando velozmente um pelo outro no campo relvado. O terreno estremecia quando os grandes animais trovejavam ao passarem por Marek e Chris, que se encontravam de pé junto da pequena vedação, observando os treinos de carga. Para Chris, o campo de torneios era enorme - o tamanho de um campo de futebol - e de ambos os lados os pavilhões haviam sido completados e as damas começavam a sentar-se. Espectadores surgidos dos campos, grosseiramente vestidos e ruidosos, alinhavam-se ao longo da vedação.
Outro par de cavaleiros carregou, os cavalos a resfolegar enquanto galopavam. Marek disse: «Como é que te safas a cavalo?»
Ele encolheu os ombros. «Já cavalguei com Sophie.»
«Se é assim, acho que consigo manter-te vivo, Chris», disse Marek. «Mas tens que me prometer que vais fazer exactamente como eu te disser.»
«Tudo bem.»
«Até agora não tens feito aquilo que eu te digo. Mas desta vez é fundamental que o faças.»
«Okay, okay.»
«Tudo aquilo que tens que fazer», disse Marek, «é permaneceres montado no cavalo o tempo suficiente para receberes o impacto. Sir Guy não terá outra escolha, vendo-se obrigado a apontar-te ao peito ao ver como montas mal, porque o peito é o alvo maior e mais firme para um cavaleiro a galope. Quero que recebas o impacto da lança no peito, directamente na placa de protecção do peito. Estás a compreender?»
«Recebo o impacto da lança no peito», disse Chris, aparentando um ar muito infeliz.
«Quando receberes a pancada da lança no peito, deixa-te desmontar. Não será muito difícil. Deixa-te cair ao chão e não te mexas, para dar a ideia de que desmaiaste. Aconteça o que acontecer, nem sequer tentes pôr-te de pé. Estás a compreender?»
«Não me posso levantar.»
«Exactamente. Aconteça o que acontecer, não te mexes e continuas ali deitado. Se Sir Guy te desmontar e estiveres inconsciente, o combate terminou. Mas se te levantares, ele pede outra lança, ou lutará contigo a pé com montantes, e mata-te.»
«Não me levanto», repetiu Chris.
«Exactamente», respondeu Marek. «Aconteça o que acontecer. Não te levantes.» Deu uma palmada no ombro de Chris. «Vais ver como, com um bocadinho de sorte, consegues sobreviver sem problemas.»
«Valha-me Deus», exclamou Chris.
Mais cavalos à carga passaram por eles, fazendo estremecer o solo.
Deixando o campo para trás, passaram entre as inúmeras tendas montadas em torno do terreno dos torneios. As tendas eram pequenas e redondas, totalmente ornamentadas com riscas e ziguezagues em cores vivas. Flâmulas esvoaçavam no ar por cima de cada tenda. Os cavalos estavam amarrados no exterior. Pagens e escudeiros corriam de um lado para o outro, transportando armaduras, selas, feno e água. Vários pagens rolavam barris pelo terreno. Os barris produziam um som parecido com um sibilar suave.
«É areia», explicou Marek. «Esfregam as cotas de malha com areia para tirar a ferrugem.»
«Uh-huh.» Chris tentava concentrar-se nos detalhes para não pensar naquilo que estava para vir. Mas tinha a sensação de que caminhava para a sua própria execução.
Entraram numa tenda onde aguardavam três pajens. Um fogo acolhedor ardia num dos cantos; a armadura estava colocada num pano estendido no solo. Marek inspeccionou-a rapidamente e em seguida disse: «Está óptima.» Voltou-se para sair.
«Onde é que vais?»
«Para outra tenda para me vestir.» «Mas eu não sei como ... »
«Os pajens é que te vão vestir», disse Marek, e saiu.
Chris olhou para a armadura disposta em peças no solo, em especial para o elmo que tinha uma daquelas viseiras em bico, dando a ideia de um enorme pato. Havia apenas uma pequena frincha para os olhos. Mas ao lado dele havia um outro elmo com um aspecto mais vulgar, e Chris pensou que...
«Meu bom senhor, se estais pronto.» O chefe dos pajens, levemente mais velho e melhor vestido do que os outros, estava a falar com ele. Era um rapaz com cerca de catorze anos. «Peço-vos que fiqueis aqui.» Apontou para o centro da tenda.
Chris fez aquilo que lhe pediam, sentindo muitas mãos a percorrerem-lhe o corpo. Rapidamente tiraram-lhe todas as roupas, deixando-o apenas de camisola interior e calções, e em seguida ouviu murmúrios de preocupação quando viram o seu corpo.
«Haveis estado doente, meu senhor?», perguntou um deles. «Uh, acho que não ... »
«Uma febre ou uma doença que tenha enfraquecido o vosso corpo, deixando-o como o vemos agora?»
«Não», disse Chris, franzindo as sobrancelhas.
Começaram a vesti-lo, não dizendo nada. Primeiro uma protecção para as pernas em feltro espesso e em seguida uma camisola interior de manga comprida e fortemente acolchoada que abotoava na frente. Disseram-lhe para tentar dobrar os braços. O tecido era tão espesso que mal o conseguia fazer.
«Está muito rijo porque ainda não foi lavado, mas dentro em breve será mais fácil», disse um deles.
Chris pensava que não seria exactamente assim. Santo Deus, pensou ele, mal me consigo mexer e ainda não me colocaram a armadura. Agora estavam a afivelar-lhe placas de metal nas coxas, barriga das pernas e joelhos. Em seguida continuaram com os braços. Sempre que lhe colocavam uma peça pediam-lhe para mover os membros, para terem a certeza de que as correias não estavam muito apertadas.
Em seguida uma cota de malha foi descida sobre a sua cabeça. Sentiu o peso sobre os ombros. Enquanto a placa do peito estava a ser colocada no seu lugar, o chefe dos pajens fez-lhe uma série de perguntas, a nenhuma das quais Chris foi capaz de responder.
«Sentais-vos direito ou usando o arção?»
«Baixais a lança para o ataque ou usais a lança apoiada?» «Agarrais o arção ou cavalgais livre?»
«Os estribos baixos ou puxados à frente?»
Chris produziu ruídos fingindo que respondia às perguntas. Entretanto mais peças da armadura eram acrescentadas com mais perguntas.
«Sabaton solto ou firme?» «Guarda braçal ou placa lateral?» «Montante à esquerda ou à direita?» «Quer usar bacinete por baixo do elmo?»
Sentia uma enorme sobrecarga à medida que mais peso era acrescentado e incrivelmente rígido à medida que cada junta era protegida por metal. Os pagens trabalharam rapidamente e em poucos minutos estava completamente vestido. Afastaram-se um pouco e inspeccionaram-no meticulosamente. «Estais bem, senhor?»
«Assim é», respondeu ele.
«Agora o elmo.» Neste momento já usava uma espécie de protecção metálica do crânio, mas agora traziam-lhe o elmo de viseira pontiaguda e colocaram-lho sobre a cabeça. Chris estava mergulhado na escuridão e sentiu o peso do elmo nos ombros. Só conseguia ver o que se encontrava directamente à sua frente, através da fenda horizontal para os olhos.
O seu coração começou a bater desordenadamente. Sentia falta de ar. Não conseguia respirar, tentando levantar a viseira, mas esta não se mexeu. Estava encurralado. Ouviu a sua respiração, amplificada pelo metal. O seu hálito quente aquecia o espaço apertado do elmo. Sentia-se sufocar. Não havia ar. Agarrou no elmo, tentando tirá-lo.
Os pajens tiraram-lhe o elmo da cabeça e olharam para ele curiosamente. «Está tudo bem, senhor?»
Chris tossiu e acenou com a cabeça, não conseguindo falar. Nunca mais queria aquela coisa na cabeça. Mas já estavam a conduzi-lo para fora da tenda, para junto de um cavalo que o aguardava.
Valha-me Deus, pensou.
Este cavalo era monstruoso, e coberto por mais metal do que aquele que ele usava. Via-se uma placa decorada que protegia a testa do animal, e mais Placas no peito e nos lados. Mesmo com a armadura, o animal estava irrequieto e cheio de energia, resfolegando e puxando as rédeas que o pajem segurava. Era um verdadeiro cavalo de guerra, um corcel de batalha, e era muito Mais fogoso do que qualquer cavalo que alguma vez tivesse montado. Mas não era isso que o preocupava. Aquilo que o preocupava era o tamanho - o raio do cavalo era tão grande que não conseguia ver por cima dele. E a sela de madeira estava levantada, tornando tudo ainda mais alto. Os pajens olhavam todos para ele com um ar de expectativa. Esperando por ele. Para fazer o quê? Provavelmente para o ajudarem a montar,
Como é que eu, uh ... »
Pestanejaram surpreendidos. O chefe dos pajens deu um passo em frente e disse suavemente: «Colocai aqui a vossa mão senhor, agarrando a madeira, e içai-vos ... »
Chris estendeu a mão, mas dificilmente conseguia agarrar o arção, um rectângulo de madeira esculpida na parte da frente da sela. Fechou os dedos em torno da madeira e em seguida ergueu o joelho, enfiando o pé no estribo... » «Um, é capaz de ser melhor o pé esquerdo, senhor.»
Evidentemente. Pé esquerdo. Ele sabia isso; estava apenas tenso e confuso. Sacudiu o estribo para libertar o pé direito. Mas a armadura ficara presa no estribo; inclinou-se desajeitadamente para a frente, usando as mãos para se conseguir libertar do estribo. Continuava preso. Finalmente, quando se conseguiu libertar, perdeu o equilíbrio e caiu de costas junto dos cascos traseiros do cavalo. Os pajens horrorizados puxaram-no rapidamente para o colocarem a salvo.
Puseram-no de pé e em seguida ajudaram-no a montar. Sentiu mãos que lhe empurravam as nádegas, enquanto o erguiam no ar a balançar de um lado para o outro - Jesus, como aquilo era difícil - aterrando com um baque seco na sela.
Chris olhou para baixo, para o solo, muito lá em baixo. Logo que ficou montado, o cavalo começou a relinchar e a abanar a cabeça, voltando-se para um lado e para o outro e procurando morder as pernas de Hughes e os pés enfiados nos estribos. Pensou: O estupor do cavalo está a tentar morder-me.
«Rédeas, senhor! Rédeas! Dorninai-o com as rédeas!»
Chris puxou as rédeas. O enorme cavalo não prestou qualquer atenção, puxando com força e continuando a tentar mordê-lo.
«Mostre-lhe senhor! Com firmeza!»
Chris puxou as rédeas com tanta violência que pensou ter quebrado o pescoço do animal. Nesta altura o cavalo resfolegou uma última vez e olhou em frente, de repente acalmado.
«Muito bem, senhor.»
Trombetas tocaram várias notas longas.
«É a primeira chamada às armas», disse o pajem. «Temos que seguir para o terreno do torneio.»
Pegaram nas rédeas do cavalo e conduziram Chris para o campo relvado.
36:02:00
Era uma da manhã. Do interior do seu gabinete na ITC, Robert Doniger olhava para a entrada da cave, iluminada à noite pelas luzes intermitentes de seis ambulâncias estacionadas em volta. Ouviu o crepitar dos rádios dos paramédicos e observou as pessoas que deixavam o túnel. Viu Gordon que saiu acompanhado daquele novo miúdo, Stern. Nenhum deles parecia estar ferido.
Viu Kramer reflectida no vidro da janela quando ela entrou na sala pela porta que se encontrava atrás dele. Estava levemente arquejante. Sem olhar para trás na direcção dela, perguntou: «Quantos é que ficaram feridos?». «Seis. Dois com certa gravidade.»
«Até que ponto?»
«Ferimentos com estilhaços. Queimaduras por inalação tóxica.»
«Então terão que ir para o UH.» Queria dizer o University Hospital, em Albuquerque.
«Sim», respondeu Kramer. «Mas já lhes dei instruções sobre aquilo que podem dizer. Acidente de laboratório e toda a história relacionada com esse tipo de casos. E já telefonei para o Whittle no UH, recordando-lhe o nosso último donativo. Estou convencida de que não deverá haver problemas.»
Doniger continuava a olhar pela janela. «É capaz de haver», respondeu. «A gente das Relações Públicas podem tomar conta disso.»
«Talvez não seja assim tão simples.»
Nos últimos anos a iTC organizara um departamento de publicidade comPosto por vinte e seis pessoas distribuídas por todo o mundo. O seu trabalho não era conseguir publicidade para a companhia mas, em vez disso, deflecti-la. A ITC, explicavam a toda a gente que o perguntasse, era uma companhia que Produzia dispositivos quânticos supercondutores para magnetórnetros e scanners médicos. Estes dispositivos eram compostos por um elemento electromecânico complexo com cerca de seis polegadas de comprimento. Os comunicados à imprensa eram terrivelmente entediantes, com toneladas de especificações quânticas.
Para os raros repórteres que se conseguissem interessar, a iTC programava entusiasticamente uma visita guiada às suas instalações do Novo México. Os repórteres eram levados a laboratórios de investigação previamente escolhidos. Em seguida, numa grande sala de reuniões, mostrava-se como os dispositivos eram feitos - a bobina do gradiómetro montada no criostato, com a blindagem supercondutora e os condutores eléctricos no exterior. As explicações referiam as equações de Maxwell e o momento de carga eléctrica. Quase invariavelmente os repórteres abandonavam as suas histórias. Nas palavras de um deles: «Desperta quase tanto interesse como uma linha de montagem para secadores de cabelo.»
Deste modo, Doniger conseguira manter o silêncio sobre a mais extraordinária descoberta científica de finais do século XX. Em parte este silêncio era uma questão de autopreservação: outras companhias, como a 113M e a Fujitsu, haviam iniciado a sua própria investigação quântica, e embora Doniger tivesse um avanço de quatro anos sobre eles, era no seu interese que eles não sabiam exactamente até onde é que tinha ido.
Também estava consciente de que o seu plano ainda não se encontrava completo e precisava de manter o assunto em segredo para conseguir acabar. Como ele tantas vezes dizia, sorrindo como um miúdo: «Se as pessoas soubessem realmente aquilo que se está a preparar, tenho a certeza de que haviam de fazer tudo para nos deter.»
Mas, ao mesmo tempo, Doniger tinha perfeita consciência de que não conseguiria manter o segredo para sempre. Mais cedo ou mais tarde, talvez por acidente, iria aparecer tudo à superfície. E, quando isso acontecesse, dependia dele controlar os acontecimentos.
A questão na mente de Doniger era a de saber se já estaria a acontecer naquele momento.
Ficou a olhar enquanto as ambulâncias se afastavam com as sirenes a gemer. «Pense nisso», disse a Kramer. «Há duas semanas, esta companhia era completamente estanque. O nosso único problema era a história do repórter francês. Em seguida tivemos o caso de Traub. Este pobre filho da mãe deprimido ia colocando toda a companhia em risco. A morte de Traub trouxe-nos a chatice do polícia de Gallup, que continua a meter o nariz onde não deve. Em seguida Johnston logo seguido pelos seus quatro estudantes. E agora seis técnicos, enviados para o hospital. já está a ser gente de mais, Diane. Demasiada exposição.»
«Acha que estamos a perder o controlo das coisas», disse ela. ,,Possivelmente», respondeu. «Mas não acontecerá se eu o puder evitar. Especialmente se considerarmos que temos três potenciais membros do conselho de administração a chegarem depois de amanhã. Procuremos então voltar ao silêncio.»
Ela acenou com a cabeça. «Estou convencida de que somos capazes de controlar isto.»
«Okay», disse, afastando-se da janela e virando-se para ela. «Verifique que o Stern vai para a cama num dos quartos que se encontram disponíveis. Certifique-se de que ele dorme, e mande colocar um bloqueio no telefone. Amanhã quero que Gordon se cole a ele. Proporcione-lhe uma volta pelas instalações ou qualquer coisa no gênero. Mas não o larguem. Quero uma convocação de uma conferência com a malta das Relações Públicas para amanhã às oito. Quero um briefling sobre a plataforma de transito para amanhã às nove. E quero esses chatos dos media para amanhã ao meio-dia. Telefone agora a toda a gente para que estejam preparados.»
«Certo», disse ela.
«Talvez não seja capaz de conseguir manter tudo isto sob controlo», disse Doniger, «mas raios me partam se não o vou tentar.»
Franziu as sobrancelhas na direcção do vidro, vendo as pessoas que se amontoavam às escuras no exterior do túnel. «Quanto tempo até que possam regressar à cave?»
«Nove horas.»
«E em seguida podemos montar uma operação de salvamento? Mandar outra equipa de volta?»
Kramer tossiu. «Bom ... »
«Estás doente? Ou isso quer dizer não?»
«Todas as máquinas foram destruídas na explosão, Bob», disse ela. «Todas?»
«Acho que sim. Todas,>
«Então a única coisa que nos resta é reconstruirmos a plataforma e ficarMos para aqui a roer as unhas à espera de que consigam regressar inteiros?» «Sim, é isso exactamente. Não temos qualquer meio de os safarmos.» «Então esperemos que eles saibam aquilo que estão a fazer», disse Doniger,
«Porque estão por sua conta. Vão precisar de uma porra de uma sorte do caraças.»
31:40:44
Através da pequena fenda do visor do seu elmo, Chris conseguia ver que os pavilhões construídos para o torneio se encontravam cheios - quase na sua totalidade de senhoras - e as vedações no terreno de camponeses com dez de fundo. Toda a gente gritava para que o torneio começasse. Chris encontrava-se agora no extremo leste do campo, rodeado pelos seus pajens, tentando controlar o cavalo, que parecia nervoso com os gritos da multidão, tendo começado a saltar e a recuar. Os pajens tentaram entregar-lhe uma lança nua, que era absurdamente longa e que parecia desajeitada nas suas mãos. Chris pegou nela e em seguida atrapalhou-se quando o cavalo começou a resfolegar e a escarvar debaixo dele.
Para lá da barreira viu Kate que se mantinha entre a gente do povo. Sorria encorajadoramente para ele, mas o cavalo não parava quieto e não conseguiu devolver-lhe o olhar.
E não muito distante viu Marek envergando uma armadura e rodeado de pajens.
Quando o cavalo de Chris se voltou mais uma vez - porque é que os pajens não seguravam as rédeas? - avistou o outro extremo do campo, onde Sir Guy de Malegant se mantinha calmamente na sua montada. Estava a colocar o seu elmo enfeitado com plumas negras.
O cavalo de Chris começou a saltar mais uma vez, fazendo com que andasse em círculos. Ouviu mais trombetas e todos os espectadores olharam para os pavilhões. Teve a noção de que Lord Oliver estava a ocupar o seu lugar, no meio de alguns aplausos.
E logo em seguida as trombetas soaram mais uma vez.
«Senhor, é o vosso sinal», disse um dos pajens. Desta vez conseguiu segurá-la o tempo suficiente para a apoiar no arção, de modo a cruzar o lombo do cavalo e apontar para a sua esquerda. Nessa altura o cavalo rodopiou mais uma vez e os pajens gritaram e fugiram em todas as direcções quando a lança se moveu em arco sobre as suas cabeças.
Mais trombetas.
Vendo com extrema dificuldade, Chris puxou as rédeas, tentando manter o cavalo sob controlo. Avistou de relance Sir Guy, no outro extremo do campo, limitando-se a observar, o cavalo perfeitamente imóvel. Chris queria acabar com aquilo o mais depressa possível, mas o seu cavalo estava extremamente irrequieto. Irritado e frustrado puxou as rédeas uma última vez com extrema violência. «Porra, queres avançar ou não?»
Neste momento o cavalo ergueu e baixou a cabeça em dois movimentos suaves. Deixou cair as orelhas.
E avançou à carga.
Marek sentia-se extremamente tenso enquanto observava a carga. Não dissera tudo a Chris; não havia o menor interesse em estar a aterrorizá-lo mais do que o necessário. Mas não havia a menor dúvida de que Sir Guy tentaria matar Chris, o que queria dizer que iria apontar a lança à cabeça. Chris oscilava descontrolado na sela, a lança oscilando para a esquerda e para a direita, o corpo oscilando de lado para lado. Era um alvo difícil, mas se Guy fosse especializado - e Marek não tinha a menor dúvida a esse respeito - então continuaria a apontar à cabeça, arriscando-se a falhar na primeira passagem para poder desferir o golpe fatal.
Viu Chris dobrado na direcção do solo, sustentando-se precariamente na sela. E viu Sir Guy a carregar na sua direcção, com perfeito controlo, o corpo inclinado para a frente, a lança apoiada na dobra do braço.
Bom, pensou Marek, havia pelo menos uma possibilidade de que Chris Conseguisse sobreviver.
Chris não conseguia ver grande coisa. Saltando descontroladamente na sela, tinha apenas visões imprecisas dos pavilhões, do terreno e do outro cavaleiro que se aproximava na sua direcção. Estas breves visões não lhe permitiam calcular a que distância Sir Guy se encontrava ou quanto tempo faltava para o impacto. Ouviu o troar dos cascos do seu cavalo e o resfolegar rítmico. Saltou na sela e tentou segurar a lança com firmeza. Estava tudo a demorar muito mais do que aquilo que esperara. Tinha a sensação de que cavalgava o seu cavalo há mais de uma hora.
No último instante viu Sir Guy muito próximo, correndo para ele a Inna velocidade aterradora, e nesse instante a sua lança ressaltou-lhe na mão, batendo-lhe dolorosamente no lado direito, e simultaneamente sentiu uma dor aguda no ombro esquerdo, um impacto que o fez virar-se na sela, e ouviu o crack! de madeira que se estilhaçava.
A multidão rugiu de excitação.
O seu cavalo continuou a correr em frente, até ao outro extremo do campo. Chris sentia-se aturdido. O que é que acontecera? O ombro ardia-lhe terrivelmente. A sua lança partira-se em duas.
E ele ainda estava na sela. Merda.
Marek observou o que se passara preocupado. Era pouca sorte; o impacto fora muito de lado para desmontar Chris. Agora teriam que carregar mais uma vez. Olhou de relance para Sir Guy que praguejava enquanto pegava numa nova lança que os pajens lhe estendiam, caracoleando com o cavalo e preparando-se para carregar mais uma vez.
No outro extremo do campo Chris estava mais uma vez a tentar controlar a sua nova lança, que oscilava descontroladamente no ar parecendo um metrónomo. Finalmente conseguiu descê-la e apoiá-la na sela, mas o cavalo continuava a caracolear e a saltar.
Guy sentia-se humilhado e irritado. Estava impaciente e não esperou. Cravando as esporas, carregou na direcção do adversário.
Filho da mãe, pensou Marek.
A multidão rugiu surpreendida ao presenciar o ataque unilateral. Chris
ouviu, e verificou que Guy já cavalgava na sua direcção a toda a velocidade. O seu cavalo continuava a caracolear, indisciplinado. Puxou as rédeas e nesse instante ouviu o som de uma sapatada quando um dos cavalariços deu uma palmada nos quartos traseiros do seu cavalo.
o cavalo relinchou. As orelhas caíram novamente. Carregou campo fora.
* segunda carga foi pior - porque desta vez sabia o que vinha a caminho.
* impacto atingiu-o em cheio, sentiu uma dor insuportável que se espalhava por todo o peito, enquanto se erguia completamente no ar. As coisas desenrolavam-se em câmara lenta. Viu a sela que se afastava dele, em seguida avistou os quartos traseiros do cavalo enquanto deslizava para longe dele e finalmente voltou-se de costas ficando a olhar para o céu.
Caiu de costas, embatendo violentamente no solo. A cabeça bateu contra o elmo. Viu pontos azuis brilhantes que se espalhavam e tornavam maiores, para em seguida ficarem cinzentos. Ouviu Marek dizer-lhe no auricular: «Agora não te mexas daí!»
Ouviu o som distante de trombetas enquanto o mundo à sua volta se desvanecia suavemente, e mergulhou na escuridão.
No outro extremo do campo Guy caracoleava com o cavalo, preparando-se para mais uma carga, mas as trombetas já haviam soado para o par seguinte.
Marek baixou a sua lança, esporeou o cavalo e avançou a galope. Viu o seu adversário, Sir Charles de Gaune, carregando na sua direcção. Ouviu o troar firme dos cascos do cavalo e o rugido crescente da multidão - sabiam que esta ia ser boa - enquanto avançava à carga. Este cavalo corria incrivelmente depressa. Sir Charles carregava igualmente depressa.
De acordo com os textos medievais, o grande desafio da justa não era transPortar a lança ou apontar a este ou àquele alvo. O desafio era o de manter a linha de carga e não se afastar do impacto - não se deixar dominar pelo pânico que atacava quase todos os cavaleiros enquanto galopavam na direcção do adversário.
Marek lera os antigos textos, mas agora compreendia-os subitamente: sentia-se trémulo e pouco firme, fraqueza nos membros, as coxas trementes enquanto as apertava contra a montada. Fez um esforço para se concentrar, para focar o que tinha à sua frente, para alinhar a sua lança com Sir Charles. Mas a ponta da lança oscilava para cima e para baixo enquanto carregava. Ergueu-a do arção, apoiando-a na dobra do braço. Mais firme. A sua respiração estava melhor. Sentiu a sua força voltar. Alinhou. Faltavam agora cerca de setenta metros.
Carregando a toda a velocidade.
Viu que Sir Charles ajustava a sua lança, erguendo-a um pouco. Ia apontar à cabeça. Ou seria uma finta? Os cavaleiros de justa eram conhecidos por mudarem o seu alvo no último momento. Seria este o caso?
Cinquenta metros.
O impacto na cabeça era arriscado se essa não fosse a intenção de ambos os cavaleiros. Uma lança apontada directamente ao tronco teria o seu impacto uma fracção de segundo antes do que no caso de uma lança apontada à cabeça: era uma questão de ângulos. O primeiro impacto faria deslocar ambos os cavaleiros, tornando o impacto na cabeça menos certo. Mas um cavaleiro treinado podia estender a lança muito à frente, tirando-a da posição de apoio na dobra do braço, conseguindo seis ou oito polegadas de comprimento extra, e permitindo assim o primeiro impacto. Era necessário ter uma enorme força de braços para absorver o instante do impacto e controlar a lança quando ela dava o coice, para que o cavalo conseguisse aguentar o embate; mas era mais provável iludir o alvo e controlar o tempo do adversário.
Quarenta metros.
Sir Charles ainda trazia a lança alta. Mas agora apoiava-a na dobra do braço, inclinando-se para a frente na sela. Agora controlava melhor a lança. Iria fintar de novo?
Trinta metros.
Ouviu o troar dos cascos, o rugido da multidão. Os textos medievais avisavam: «Não feche os olhos no momento do impacto. Mantenha os olhos abertos para dar o golpe.»
Vinte metros.
Tinha os olhos abertos. Dez.
o filho da mãe ergueu a lança. Ia apontar à cabeça.
Impacto.
O estalar da madeira soou como um tiro de espingarda. Marek sentiu uma dor no ombro esquerdo que lhe subia na direcção do pescoço como um ferro em brasa. Cavalgou até ao final do campo, deixou cair os bocados da lança e pegou noutra que lhe estendiam. Mas os pajens limitavam-se a olhar para o campo atrás dele.
Olhando para trás viu que Sir Charles estava caído, jazendo no solo sem
se mexer.
E então viu Sir Guy empinando o cavalo e caracoleando em torno do corpo caído de Chris. Essa devia ser a sua solução, pensou Marek. Espezinhar Chris até à morte.
Marek voltou-se e desembainhou a espada. Ergueu-a bem alto.
Com um rugido de raiva, Marek esporeou o seu cavalo através do campo.
A multidão gritou, e bateu na vedação fazendo lembrar um rufar de tambor. Sir Guy voltou-se e viu Marek que se aproximava. Olhou de novo para Chris e esporeou o cavalo, fazendo-o andar de lado com a intenção de pisotear o corpo.
«Fora! Pora!», gritava a multidão, e até o próprio Lord Oliver estava de pé, horrorizado.
Mas nesse momento Marek chegara junto de Sir Guy, incapaz de deter a carga e seguindo sempre em frente, gritando: «Estupor», enquanto atingia Sir Guy na cabeça com o lado da espada. Sabia que não o ia ferir, mas era um golpe insultuoso e faria com que ele abandonasse Chris. O que ele de facto fez.
Sir Guy afastou-se imediatamente de Chris, enquanto Marek detinha o cavalo, empunhando a espada. Sir Guy tirou a espada da bainha, desferindo um golpe traiçoeiro, a lâmina a sibilar no ar. Chocou com a lâmina de Marek. Marek sentiu a sua própria espada a vibrar na mão com o impacto. Marek lançou um golpe de resposta apontando à cabeça. Guy parou o golpe; os cavalos caracoleavam; as espadas entrechocavam-se interminavelmente.
A batalha começara. E num ponto isolado da sua mente, Marek sabia que iria ser uma luta até à morte.
Kate encontrava-se junto da vedação a observar a batalha. Marek estava a aguentar, e a sua força física era superior, mas era fácil de ver que não tinha o treino de Sir Guy. Os seus golpes eram mais selvagens, a posição do seu corpo menos segura. Parecia que o sabia, e o mesmo parecia acontecer com Sir Guy, que continuava a fazer recuar o cavalo, tentando abrir espaço para golpes mais abertos. Pelo seu lado, Marek procurava aproximar-se mais, mantendo a distância entre eles ao mínimo, como um lutador que pretende entrar em corpo a corpo.
Mas Kate sabia que Marek não era capaz de continuar indefinidamente naquela situação. Mais cedo ou mais tarde Guy conseguiria a distância suficiente, nem que fosse só por um momento, para desferir um golpe letal.
Dentro do elmo o cabelo de Marek estava ensopado em suor. Gotas de suor escorriam-lhe pela testa, fazendo-lhe arder os olhos. Não podia fazer nada a esse respeito. Abanou a cabeça, tentando clarear a visão. Não ajudou lá muito.
Rapidamente começou a arquejar com falta de ar. Através da fenda do elmo, Sir Guy parecia incansável e implacável, sempre ao ataque, desferindo golpes repetidos num ritmo seguro denotando grande prática. Marek sabia que tinha que fazer qualquer coisa rapidamente, antes que ficasse demasiado cansado. Tinha que quebrar o ritmo do cavaleiro.
A sua mão direita, que segurava a espada, já lhe ardia por causa do exercício constante. A sua mão esquerda era forte. Porque é que não havia de usar a sua mão esquerda?
Valia a pena tentar.
Esporeando o seu cavalo Marek aproximou-se mais, até ficarem peito contra peito. Esperou até ter bloqueado uma estocada, e então, com a base da mão esquerda, desferiu uma pancada de baixo para cima no elmo de Sír Guy. O elmo saltou para trás; sentiu o agradável ruído da cabeça de Sir Guy a embater na frente do elmo.
Imediatamente Marek ergueu a espada e deu uma pancada com o botão do punho no elmo de Guy. Ouviu-se um ruído metálico, e o corpo de City estremeceu na sela. Os seus ombros descaíram momentaneamente. Marek bateu novamente, ainda com mais força. Sabia que o estava a magoar.
Mas não era o suficiente.
Demasiado tarde viu a espada de Guy sibilar num arco amplo na direcção das suas costas. Marek sentiu a brutal ferroada, como uma chicotada que lhe atravessasse os ombros. A cota de malha tinha aguentado? Estava ferido? Desferiu um golpe com a sua lâmina na parte de trás do elmo de Guy. Este não fez nada para desviar o golpe, que ecoou fazendo lembrar um gongo. Deve estar atordoado, pensou Marek.
Marek desferiu mais um golpe, e em seguida revoluteou, apresentando-se do lado contrário. Guy bloqueou a estocada, mas a força do impacto fez com que caísse para trás. Cambaleante, deslizou lateralmente na sela, tentou agarrar no arção, mas não conseguiu evitar cair no solo.
Marek voltou-se, preparando-se para desmontar. A multidão rugiu mais uma vez; olhando para trás, viu que Guy se pusera de pé rapidamente, dando a impressão de que os seus ferimentos não eram reais. Desferiu uma estocada na direcção de Marek enquanto este estava a desmontar. Marek, com um golpe ainda no estribo, parou a estocada ainda desajeitadamente, conseguiu libertar-se do cavalo, e em seguida ripostou. Sir Guy era forte, seguro de si próprio.
Marek chegou à conclusão de que a sua situação estava pior do que antes. Atacou ferozmente, mas Guy recuou facilmente, denotando grande rapidez e prática de trabalho de pés. Marek arquejava, respirando rapidamente dentro do elmo; tinha a certeza de que Guy o podia ouvir, e saberia o que é que isso significava.
Marek estava a ir-se abaixo.
Tudo aquilo que Sir Guy tinha que fazer era continuar a defender-se, até que Marek ficasse completamente exausto.
A não ser...
À sua esquerda, Chris continuava obedientemente deitado no chão. Marek continuou a atacar Guy, desviando-se para a direita a cada golpe. Guy continuava a afastar-se levemente. Mas agora Marek estava a fazer com que ele recuasse - na direcção de Chris.
Chris despertou lentamente com o ruído do entrechocar das espadas. Ainda tonto, começou a recuperar o conhecimento. Estava deitado de costas, olhando para o céu azul. Mas estava vivo. O que é que acontecera? Voltou a cabeça dentro do elmo negro. Tendo apenas uma pequena fenda para a visão, sentia-se quente, abafado e claustrofóbico.
Começou a sentir-se doente.
A sensação de náusea cresceu rapidamente. Não queria vomitar dentro do elmo. Estava muito apertado em volta da cabeça; se isso lhe acontecesse era muito capaz de se afogar no vomitado. Tinha que conseguir tirar o elmo. Continuando deitado, ergueu os braços e agarrou o elmo com ambas as mãos. Puxou por ele.
Não se mexia. Porquê? Haviam-lhe amarrado o elmo? Seria por estar deitado?
Ia vomitar. Na porra do elmo. Santo Deus.
Frenético, rolou no solo.
Marek desferia golpes com a espada desesperadamente. Atrás de Sir Guy, viu que Chris começava a mexer-se. Marek queria gritar-lhe para se deixar estar onde estava, mas não conseguia arranjar fôlego para falar.
Marek continuou a desferir golpe atrás de golpe.
Agora Chris estava a puxar o elmo, tentando tirá-lo. Guy ainda se encontrava a cerca de oito metros de Chris. Recuava quase que em passo de dança, mostrando-se divertido, enquanto ia parando facilmente os golpes de Marek.
Marek sabia que chegara quase ao limite das suas forças. As suas estocadas eram incrivelmente fracas. Guy ainda se mostrava forte e enérgico. Limitando-se a recuar e a parar os golpes. Aguardando a sua oportunidade. Quatro metros.
Chris rolara sobre o estômago, e agora estava a tentar pôr-se de pé. Estava de gatas. Com a cabeça caída. Então ouviu-se nitidamente um som de vomitar. Guy também o ouviu, voltou um pouco a cabeça para olhar...
Marek avançou de repente, dando-lhe uma cabeçada na placa do peito, e Guy recuou atabalhoadamente, tropeçou em Chris, e estatelou-se no solo. Malegant rolou rapidamente no solo, mas Marek já estava em cima dele,
colocando o pé sobre a mão direita de Guy para lhe imobilizar a espada no solo, e em seguida colocou o outro pé no ombro oposto. Marek empunhava a espada bem alto, pronto para a mergulhar.
A multidão ficou silenciosa.
Guy não se moveu.
Lentamente Marek baixou a espada, cortou as correias do elmo de Guy, e empurrou este para trás com a ponta da lâmina. A cabeça de Guy ficara exposta. Marek viu que ele sangrava abundantemente da orelha esquerda.
Guy olhou intensamente para ele e cuspiu.
Marek voltou a erguer a espada. Estava cheio de raiva, suor que lhe fazia arder os olhos, braços que lhe ardiam, a vista enevoada, com olhos injectados de sangue por causa da fúria e da exaustão. Apertou as mãos com força, preparando-se para desferir um golpe de alto a baixo e separar a cabeça do corpo. Guy apercebeu-se disso.
«Piedade!» Gritou-o em voz alta, de modo a que toda a gente o ouvisse.
«Peço piedade!» gritou. «Em nome da Santíssima Trindade e da Virgem Maria! Piedade! Piedade!»
A multidão estava silenciosa, Na expectativa.
Marek não sabia bem aquilo que havia de fazer. Num canto da sua mente havia uma voz que dizia, Mata essefilho da mãe ou ainda te vens a arrepender. Sabia que tinha que decidir rapidamente; quanto mais tempo ali estivesse em cima de Sir Guy, mais certo era de que iria perder a coragem.
Olhou para a multidão que se encontrava ao longo da vedação. Ninguém se mexeu; limitavam-se a olhar. Olhou para os pavilhões, onde Lord Oliver se sentava com as damas. Permaneciam todos imóveis. Lord Oliver parecia gelado. Marek olhou para trás, observando o grupo de pajens que se encontrava junto da vedação. Também eles estavam gelados. Foi então que num gesto quase subliminal, um dos pajens ergueu uma das mãos a meia altura do peito e fez um movimento com o pulso: corta-o ao meio.
Está a dar-te um bom conselho, pensou Marek.
Mas Marek hesitou. Havia um silêncio absoluto no campo, exceptuando Os vómitos e grunhidos de Chris. Finalmente foram esses mesmos vómitos que quebraram o momento. Marek saiu de cima de Sir Guy e estendeu uma mão para o ajudar a levantar-se,
Agarrou-lhe na mão, pôs-se de pé na frente de Marek e disse-lhe: «Meu filho da puta, ainda nos havemos de encontrar no inferno», e dando meia volta, afastou-se.
31:15:58
O pequeno regato serpenteava por entre a relva cheia de musgo e flores selvagens. Chris estava de joelhos, com o rosto mergulhado na água. Levantou a cabeça cuspindo e tossindo. Olhou para Marek que estava de cócoras junto dele olhando para o céu.
«Estou farto>, disse Chris, «Estoufarto!» «Imagino que sim.»
«Podia ter sido morto», exclamou Chris. «Chamam a isto desporto? Sabes o que é isto? É um jogo de cobardes a cavalo. Esta gente é doida.» Voltou a mergulhar a cabeça na água.
«Chris.» «Detesto vomitar. Detesto.» «Chris.»
«Que é? O que é que temos agora? Vais dizer-me que posso enferrujar a armadura? Podes crer que me estou nas tintas, André.»
«Não», disse Marek, «vou dizer-te que a túnica em feltro que trazes por debaixo da armadura vai inchar e será muito mais difícil tirar a armadura.» «A sério? Bom, isso não me preocupa. Esses pajens devem estar aí a chegar
e eles tiram-na.» Chris sentou-se no musgo e tossiu. «Santo Deus, não consigo liVrar-me do cheiro. Preciso de tomar um banho ou qualquer coisa no género.» Marek sentou-se ao lado dele não dizendo uma palavra. Limitou-se a dar-
-lhe tempo para se descontrair. As mãos de Chris tremiam enquanto falava. Era melhor para ele deitar tudo cá para fora, pensou.
No campo mais abaixo, arqueiros com trajes em castanho avermelhado e cinzento estavam a praticar. Ignorando a excitação do vizinho torneio, disparavam pacientemente contra alvos, recuavam e voltavam a disparar. Era exactamente como diziam os textos antigos: os arqueiros ingleses eram altamente disciplinados e praticavam todos os dias.
«Aqueles homens são o novo poder mílitar», disse Marek. «Conseguem decidir batalhas. Olha para eles.»
Chris apoiou-se no ombro. «Estás a gozar», exclamou. Os arqueiros estavam agora a cerca de cento e oitenta metros dos seus alvos circulares - o comprimento de dois campos de futebol. Tão distantes eram apenas pequenos vultos e no entanto continuavam a disparar os seus arcos para o céu plenos de confiança. «Estás a falar a sério?»
O céu estava negro com flechas que sibilavam. Atingiam os alvos ou aterravam muito próximo, ficando espetadas na relva.
«Quem diria», disse Chris.
Quase imediatamente outra espessa salva cruzou os ares. E outra, e ainda mais outra. Marek contava mentalmente. Três segundos entre cada salva. Então era mesmo verdade, pensou: os arqueiros ingleses eram mesmo capazes de dispararem vinte salvas por minuto. Naquela altura os alvos já estavam eriçados de flechas.
«Os cavaleiros à carga não conseguem resistir a este tipo de ataque>, disse Marek. «Mata os cavaleiros e mata os cavalos. É por isso que os cavaleiros ingleses desmontam para combater. Os franceses ainda carregam à maneira tradicional, e são simplesmente chacinados antes de chegarem junto dos ingleses. Quatro mil cavaleiros morreram em Crécy e ainda mais em Poitiers. Grandes números para essa época.»
«Porque é que os franceses não mudam de táctica? Será que não são capazes de ver o que é que se está a passar?»
«São capazes, mas isso representa o fim de todo um sistema de vida - na verdade de toda uma cultura», disse Marek. «Os cavaleiros pertencem todos à nobreza; o seu modo de vida é demasiado dispendioso para a gente do povo. Um cavaleiro tem que comprar a sua armadura e pelo menos três cavalos de guerra, e tem que pagar a toda a sua comitiva de pajens e ajudantes. E até agora estes nobres cavaleiros têm sido o factor determinante na arte da guerra. Mas agora acabou.» Apontou para os arqueiros que se encontravam no campo. «Estes homens são gente do povo. Ganham graças à coordenação e disciplina. Não existe uma questão de valor pessoal. Pagam-lhes um salário; realizam um trabalho. Mas representam o futuro da arte da guerra - tropas pagas, disciplinadas e anónimas. Os cavaleiros acabaram.
«Excepto nos torneios», disse Chris em tom amargo.
«Exactamente. E mesmo aí - todas as placas de armadura sobre a cota de malha são usadas por causa das flechas. As flechas atravessam um homem que não se encontre protegido e penetram a cota de malha. É por isso que os cavaleiros necessitam das placas de armadura. Os cavalos necessitam de armadura. Mas no caso de uma salva como esta ... » Marek apontou para a chuva sibilante de flechas e encolheu os ombros. «Acabou.»
Chris voltou a olhar para o terreno onde se desenrolava o torneio. E então exclamou: «Bom, já não era sem tempo!»
Marek voltou-se e viu cinco pajens de libré que caminhavam na sua direcção1 juntamente com dois guardas envergando túnicas em vermelho e negro. «Finalmente vou conseguir sair do estupor desta lata.»
Chris e Marek, ao verem os homens aproximar-se, levantaram-se. Um dos guardas disse: «Haveis infringido as regras do torneio, desonrado o corajoso cavaleiro Guy Malegant e os bons ofícios de Lord OliVer. Estais sob prisão e sois intimado a acompanhar-nos.»
«Só um minuto», disse Chris. «Fomos nós que o desonrámos?» «Tendes que nos acompanhar.»
«Só um minuto», repetiu Chris.
O soldado agrediu-o violentamente no lado da cabeça e empurrou-o em frente. Marek colocou-se a seu lado acertando o passo. Rodeados por guardas, dirigiram-se para o castelo.
Kate ainda se encontrava no terreno do torneio, procurando Chris e André. Primeiro lembrou-se de ir à procura deles nas tendas montadas atrás do campo, mas lá só havia homens - cavaleiros, escudeiros e pajens - e decidiu que era melhor não o fazer. Tratava-se de um mundo diferente, a violência andava no ar, e tinha uma sensação constante de risco. Naquele mundo quase toda a gente era jovem; os cavaleiros que se pavoneavam pelo campo tinham idades entre os vinte e os trinta anos, e os escudeiros não eram mais do que adolescentes. Ela estava vestida do modo habitual e claramente não se denotava que fosse um membro da nobreza. Tinha a sensação de que se alguém se atirasse a ela e a violasse, ninguém se preocuparia por aí além.
Embora fosse meio-dia, viu que se estava a comportar usando o método de que se servira em New Haven à noite. Tentou nunca ficar sozinha, movendo-se sempre em grupo; rodeava os grupos de homens, afastando-se deles o mais que podia.
Seguiu pela parte de trás da zona onde o povo estava amontoado, ouvindo os vivas da multidão quando o par seguinte de cavaleiros começou o combate. Olhou para a zona das tendas que ficava à sua esquerda. Não via Marek ou Chris em parte nenhuma. E contudo haviam abandonado o campo ainda há poucos minutos. Estariam dentro de uma das tendas? Durante a última hora não ouvira nada nos auriculares; partiu do princípio de que não conseguia ouvir porque Marek e Chris estavam a usar elmos, que bloqueavam a transmissão. Mas de certeza que agora já tinham tirado os elmos.
Foi então que os viu relativamente perto na encosta da colina sentados na margem de um ribeiro sinuoso.
Começou a descer a colina. A peruca fazia-lhe calor e comichão por causa do sol. Talvez pudesse tirar a peruca e esconder os cabelos debaixo de um chapéu. Ou se cortasse o cabelo um pouco mais curto, podia passar por um jovem, mesmo sem chapéu.
Era capaz de ser interessante, pensou ela, passar por homem durante algum tempo.
Estava a pensar onde é que havia de encontrar uma tesoura quando viu os soldados aproximarem-se de Marek. Abrandou o passo. Continuava a não ouvir nada nos auriculares, mas estava tão perto que não compreendia porque é que isso estava a acontecer.
Estaria desligado? Deu uma pancadinha no auricular.
Imediatamente ouviu Chris dizer: «Nós é que o desonrámos?» e em seguida qualquer coisa balbuciada. Viu os soldados empurrarem Chris para o Castelo e Marek colocar-se ao lado dele.
Kate esperou um momento e em seguida foi atrás deles.
Castelgard estava deserto, lojas e armazéns fechados, as ruas ecoando e sem ninguém. Toda a gente tinha ido para o torneio, o que fez com que se tornasse mais difícil para ela seguir Marek e Chris e os soldados. Tinha que seguir Muito atrás, esperando que tivessem saído de uma rua antes de os continuar a seguir, para em seguida dar uma corrida até os conseguir avistar e voltar a esconder-se numa esquina.
Sabia que o seu comportamento tinha um ar suspeito. Mas não estava ali ninguem para o ver. Numa janela alta viu uma mulher sentada ao sol, com os olhos fechados. Mas nunca chegou a olhar para baixo. Talvez estivesse a dormir.
Chegou a campo aberto em frente do castelo. Também este se encontrava agora deserto. Os cavaleiros montados em cavalos que caracoleavam, os combates a fingir, os estandartes esvoaçantes, tudo desaparecera. Os soldados atravessaram a ponte levadiça. Enquanto seguia atrás deles ouviu o rugido da multidão para lá das muralhas. Os guardas voltaram-se e perguntaram aos soldados que se encontravam nas ameias o que é que se estava a passar. Os soldados no alto das muralhas podiam observar tudo em volta; gritaram respostas. Tudo isto acompanhado por um grande número de pragas; aparentemente haviam sido feitas apostas.
No meio de toda esta excitação continuou o seu caminho, entrando no castelo.
Deteve-se no pequeno pátio conhecido pelo nome de paliçada exterior. Viu cavalos que se encontravam amarrados a um poste sem que ninguém se encontrasse junto deles. Mas não havia soldados na paliçada; toda a gente estava nas muralhas a ver o torneio.
Olhou em volta procurando Marek e Chris, mas não os viu. Não sabendo que mais havia de fazer entrou a porta do grande salão. Ouviu o som de passos na escada em espiral à sua esquerda.
Começou a subir as escadas, sempre em volta, mas o som dos passos diminuiu.
Devem ter ido para baixo e não para cima.
Rapidamente começou a descer. As escadas desciam em espiral, terminando num corredor em pedra de tecto baixo, húmido e cheio de bolor, com celas num dos lados. As portas das celas encontravam-se abertas; não havia ninguém dentro. Um pouco mais à frente, para lá de uma curva no corredor, ouviu o eco de vozes e o ecoar de metal.
Avançou cautelosamente. Devia estar debaixo do grande salão, pensou. Na sua mente tentou reconstituir a área, a partir da memória do castelo em ruínas que explorara tão cuidadosamente poucas semanas antes. Mas nem sequer se recordava de ter visto aquela passagem. Talvez tivesse ruído séculos antes.
Outro som metálico e gargalhadas que ecoavam. Em seguida novamente o eco de passos.
Apercebeu-se de repente que caminhavam na sua direcção.
Marek deixou-se cair num monte de palha encharcada, meio apodrecida, escorregadia e que fedia. A porta da cela fechou-se com estrondo. Estavam no final do corredor, com celas nos três lados. Através das grades Marek viu os guardas que se afastavam enquanto riam. Um deles disse: «Hey, Paolo, aonde é que pensas que vais? Ficas aqui a tomar conta deles.»
«Posso saber porquê? Eles não vão a lado nenhum. Também quero ver o torneio.»
«É o teu turno. Oliver quer que eles fiquem guardados.»
Ouviram-se alguns protestos e pragas. Mais gargalhadas e ecos de passos que se afastavam. Então um guarda atarracado fez o caminho inverso, espreitou através das barras e praguejou. Não estava contente; era por causa deles que não estava a assistir ao espectáculo. Cuspiu para o chão da cela e, em seguida, andou alguns passos até a um banco de madeira. Marek já não o conseguia ver, mas via a sua sombra na parede oposta.
Dava a impressão de estar a palitar os dentes.
Marek caminhou até às barras, tentando ver dentro das outras celas. Não conseguia ver muito bem o interior da cela do lado direito, mas mesmo em frente à cela em que se encontravam, viu um vulto encostado à parede, sentado às escuras,
Quando os seus olhos se ajustaram, viu que se tratava do Professor.
30:51:09
Stern estava sentado na sala de jantar particular da ITC. Era uma sala pequena com uma única mesa, toalha branca, posta para quatro pessoas. Gordon sentava-se em frente dele, comendo com um ar esfomeado ovos mexidos com toucinho. Stern observava o topo do cabelo de Gordon, cortado à escovinha, subir e descer enquanto ele engolia os ovos com a ajuda do garfo. O homem comeu rapidamente.
Lá fora o sol já se erguia no céu, sobranceiro às mesas que se encontravam a leste. Stern olhou para o relógio; eram seis da manhã. Os técnicos da ITC estavam no parque de estacionamento a largar outro balão meteorológico; recordou-se de que Gordon lhes dissera para o fazerem de hora a hora. O balão ergueu-se rapidamente nos céus, desaparecendo entre as nuvens mais altas. Os homens que o largaram não demonstraram a menor preocupação em o ver subir, dirigindo-se para o edifício de laboratórios que se encontrava mais próximo.
«A tua torrada está boa?», perguntou Gordon erguendo o olhar. «Não preferes qualquer outra coisa?».
«Não1 está bem assim», disse Stern. «Não tenho lá grande apetite.» «Segue o conselho de um velho militar», disse Gordon. «Procura sempre comer à hora da refeição. Nunca sabes quando terás a próxima.»
«Estou de acordo com isso», respondeu Stern. «Mas a questão é a de que não tenho apetite.»
Gordon encolheu os ombros e continuou a comer.
Um homem envergando um casaco branco de empregado de mesa, com, um aspecto imaculado entrou na sala. Gordon perguntou-lhe: «Diga-me uma coisa, Harold, tem café pronto?»
O homem do casaco branco disse: «Tenho sim. Capuccino se preferir.» «Quero café simples.»
«Muito bem, senhor.»
«E tu David?», perguntou Gordon. «Também queres café?» «Leite magro se houver», respondeu Stern.
«Com certeza, senhor.» Harold afastou-se.
Stern olhou pela janela. Ouvia Gordon comer, ouvia o ruído do garfo a raspar no prato. Finalmente disse: «Deixa-me ver se compreendi bem. Nesta altura não podem regressar, não é verdade?»
«Exacto.» «Porque não existe zona de aterragem.» «É isso mesmo.»
«Porque os escombros não o permitem.» «Certo.»
«E daqui a quanto tempo é que eles podem voltar?»
Gordon deu um suspiro, afastando-se da mesa. «Vai correr tudo bem, David.» respondeu. «Vais ver como as coisas se vão modificar.»
«Diz-me só uma coisa. Quanto tempo?»
Bom, deixa-me fazer as contas. Mais três horas para limpar o ar da cave. junta-lhe mais uma hora como medida de precaução. Quatro horas. Em seguida mais duas horas para limpar os escombros. Seis horas. E depois é preciso reconstruir os escudos de água.»
«Reconstruir os escudos de água?», perguntou Stern. «Os três anéis de água. São absolutamente essenciais.» «Porquê?»
«Para minimizar os erros de transcrição.»
Stern perguntou: «E o que é que são exactamente os erros de transcrição?» «Erros na reconstrução. Quando a pessoa é reconstruída pela máquina.» «Disseste que não havia qualquer possibilidade de erros, que eras capaz de reconstruir exactamente.»
«Falando de um modo geral é essa de facto a situação. Desde que tenhamos a blindagem.»
«E se não houver blindagem?»
Gordon suspirou. «Mas vamos ter blindagem, David.» Olhou para o relógio. «Gostava que deixasses de te preocupares. Ainda faltam algumas horas Para que a placa de trânsito esteja reparada. Estás a preocupar-te desnecessariamente.»
«É apenas porque não consigo deixar de pensar», disse Stern, «que deve haver alguma coisa que sejamos capazes de fazer. Enviar uma mensagem, estabelecer qualquer tipo de contacto ...»
Gordon abanou a cabeça. «Não. Não há qualquer possibilidade de mensagem nem de contacto. Simplesmente não é possível. De momento estão sem a mínima possibilidade de contacto connosco. E não há nada que sejamos capazes de fazer a esse respeito.»
30:40:39
Kate Erickson comprimiu-se contra a parede, sentindo a humidade da pedra nas costas. Escondera-se dentro de uma das celas do corredor e agora esperava, sustendo a respiração, enquanto os guardas que haviam fechado Marek e Chris regressavam, passando por ela. Os guardas riam, parecendo estar de bom humor. Ouviu que um deles dizia: «Sir Oliver ficou muito aborrecido com esse Halnauter, por ter feito com que o seu lugar-tenente fizesse figura de parvo.»
«E o outro ainda era pior! A cavalo é uma anedota e mesmo assim consegue quebrar duas lanças com Tête Noire!» Gargalhada geral.
«Não há dúvida de que Tête Noire fez figura de parvo por causa dele. Por causa disso Sir Oliver vai querer as cabeças dos dois antes de cair a noite.» «A não ser que esteja muito errado no meu cálculo, manda-lhes cortar as cabeças antes da hora da ceia.»
«Não, depois da ceia, Assim há mais gente a assistir.» Mais gargalhadas. Seguiram ao longo do corredor enquanto as suas vozes se iam desvanecendo. Pouco depois quase que não os conseguia ouvir. De repente ficou tudo em silêncio. Teriam começado a subir as escadas? Não, ainda não. Ouvia-os a rir mais uma vez. E as gargalhadas continuavam. Fazia com que o ambiente tivesse um aspecto estranho.
Havia qualquer coisa que estava errada.
Procurou ouvir atentamente. Estavam a dizer qualquer coisa sobre Sir Guy e Lady Claire. Mas não conseguia perceber o que diziam. Conseguiu distinguir « ... muito humilhada a nossa Lady ... » e seguiram-se mais gargalhadas. Kate franziu as sobrancelhas.
As suas vozes já não eram tão ténues.
Não era bom. Estavam a regressar.
Porquê? pensou ela. O que é que acontecera?
Olhou na direcção da porta. E ali mesmo, na pedra do chão, distinguiu as suas pegadas húmidas que se dirigiam para a cela.
Os seus sapatos haviam ficado encharcados na relva junto do ribeiro. O mesmo acontecera com os sapatos de todos os outros e o solo em pedra do corredor apresentava uma confusão enlameada de inúmeras pegadas. Mas um conjunto de pegadas desviava-se na direcção da cela onde se encontrava.
E não sabia bem como mas eles haviam notado. Chiça.
Ouviu-se uma voz: «Quando, é que o torneio deverá terminar?» «Ao entardecer.»
«Por minha fé, então deve estar quase a acabar.»
«Lord Oliver quer cear rapidamente e preparar-se para receber o Arcebispo.» Ela ouvia, tentando distinguir as diferentes vozes. Quantos guardas é que tinham ali estado? Tentou recordar-se. Pelo menos três. Talvez cinco. Nessa altura não prestara atenção.
Porra. «Dizem que o Arcebispo traz um milhar de homens de armas ... »
Uma sombra cruzou o soalho da parte de fora da porta. Isso queria dizer que agora se encontravam de ambos os lados da porta da cela.
O que é que ela podia fazer? A única coisa que sabia era que não podia deixar que a capturassem. Era uma mulher; não tinha nada que fazer ali; iriam violá-la e em seguida matavam-na.
Mas, pensou ela, não sabiam que ela era uma mulher. Pelo menos para já. Fez-se silêncio do lado de fora da porta e em seguida ouviu-se um arrastar de pés. O que é que eles iriam fazer a seguir? Provavelmente mandariam um homem entrar dentro da cela enquanto os outros ficavam do lado de fora. E entretanto os outros podiam preparar-se, desembainhando as espadas e erguendo-as bem alto.
Não era possível esperar mais. Baixando-se o mais que pode, saltou. Chocou com um guarda que vinha a entrar, batendo-lhe de lado a nível dos)oelhos, e com uma exclamação de dor e surpresa o homem caiu para trás. Ouviu gritos dos outros guardas mas entretanto já tinha passado a porta, uma espada chocou com a pedra atrás dela, espalhando centelhas em todas as direcções, e ela corria o mais que podia pelo corredor.
«Uma mulher! Uma mulher!» Correram atrás dela.
Encontrava-se agora na escada de caracol, subindo rapidamente. De um ponto qualquer mais abaixo ouviu o entrechocar das armaduras dos homens que a perseguiam. Mas entretanto já atingira o rés-do-chão e, sem pensar, correu em linha recta na direcção do grande salão.
Estava deserto, as mesas preparadas para o festim, embora ainda não tivessem trazido os alimentos. Correu ao longo das mesas, procurando um lugar para se esconder. Atrás das tapeçarias? Não, encontravam-se ajustadas às paredes. Debaixo das toalhas? Não, era sítio onde de certeza iam procurar e descobriam-na. Onde? Onde?Viu a enorme lareira, com as labaredas erguendo-se ainda bastante alto. Não havia ali uma passagem secreta para a sala de jantar? A passagem era aqui em Castelgard ou era em La Roque? Não conseguia lembrar-se. Devia ter prestado mais atenção.
Em pensamento voltou a ver-se envergando uns calções de caqui, uma T-shirt e uns sapatos de ténis Nike, movendo-se preguiçosamente através das ruínas enquanto tomava notas no bloco. As suas preocupações na altura - se alguma vez chegara a ter alguma - haviam sido as de satisfazer os seus pares académicos.
Devia ter prestado mais atenção!
Ouviu os homens que se aproximavam. Não podia esperar mais. Correu para a enorme lareira com cerca de três metros de altura e escondeu-se atrás da enorme protecção dourada. As chamas eram insuportavelmente quentes, com ondas de calor irradiando contra o seu corpo. Ouviu os homens a entrarem no salão, correndo, gritando, olhando para todos os lados. Acocorada atrás da protecção susteve a respiração e esperou.
Ouviu os ruídos de pontapés e de coisas que se entrechocavam, o bater dos pratos nas mesas enquanto eles procuravam por toda a parte. Não conseguia ouvir as suas vozes claramente; tornavam-se confusas ao misturarem-se com o rugido das chamas atrás dela. Ouviu-se um ruído metálico quando qualquer coisa caiu; parecia ser um suporte de rocha, qualquer coisa grande.
Esperou. Um dos homens ladrou uma pergunta, e não ouviu qualquer resposta. Outro gritou uma pergunta e desta vez ouviu-se uma resposta suave. Não parecia ser um homem. Com quem é que estavam a falar? Parecia ser uma mulher. Kate ouviu com mais atenção: sim, era uma voz de mulher. Tinha a certeza disso.
Mais uma troca de palavras e em seguida o ruído do entrechocar de armaduras quando os homens saíram do salão em corrida. Espreitando por um dos lados da protecção dourada viu os homens desaparecerem através da porta de entrada.
Esperou mais uns momentos e em seguida saiu detrás da protecção da lareira.
Viu uma menina que teria dez ou onze anos. Tinha uma capa branca que lhe tapava a cabeça, vendo-se apenas o rosto. Usava um vestido solto em tons de rosa que descia quase até ao chão. Transportava um jarro dourado e enchia de água as taças que se encontravam nas mesas.
A menina encontrou o seu olhar e ficou imóvel.
Kate esperou que ela começasse a gritar, mas não o fez. Limitou-se a olhar com curiosidade para Kate e em seguida disse: «Subiram as escadas.»
Kate voltou-se e recomeçou a correr.
Dentro da cela Marek ouvia o toque das trombetas, e o rugido distante da multidão que se encontrava no torneio, entrando por uma das altas janelas. O guarda ergueu o olhar com um ar infeliz, praguejou contra Marek e o Professor, e em seguida dirigiu-se de novo para o seu banco.
O Professor disse calmamente: «Ainda têm o marcador?» «Tenho», respondeu Marek. «Tem o seu?»
«Não, perdi-o. Cerca de três minutos depois de ter chegado aqui.»
O Professor disse que aterrara na planície arborizada junto do mosteiro e do rio. A ITC garantira-lhe que seria um sítio deserto mas com uma localização ideal. Sem se afastar muito da máquina, conseguiria ver todos os pontos principais da sua escavação.
O que acontecera fora simplesmente uma questão de pouca sorte: o Professor aterrara precisamente no momento em que um grupo de lenhadores se dirigia para a floresta para trabalhar durante o dia, transportando os seus machados ao ombro.
«Viram os flashes de luz, em seguida viram-me a mim, e caíram todos de joelhos rezando. Ficaram convencidos de que acabavam de presenciar um milagre. Em seguida decidiram que não era bem assim e tiraram os machados dos ombros», disse o Professor. «Pensei que me iam matar, mas felizmente sabia falar o Occitan. Convenci-os a levarem-me ao mosteiro e que os monges decidissem o que devia ser feito.»
Os monges tiraram-no das mãos dos lenhadores, despiram-no e inspeccionaram todo o corpo à procura de estigmas. «Procuraram mais em sítios menos usuais», disse o Professor. «Foi nessa altura que eu pedi para ver o Abade. Este queria saber a localização da passagem para La Roque. Suspeitei de que tinha prometido transmitir a informação a Arnaut. De qualquer modo, sugeri que a localização poderia ser encontrada nos documentos do mosteiro.» O Professor sorriu. «0 que eu queria era inspeccionar os pergaminhos.»
«E então?»
«Julgo que encontrei a indicação.» «A passagem?»
«Julgo que sim, Segue ao longo de um rio subterrâneo, pelo que muito provavelmente deverá ser bastante extensa. Começa num sítio chamado a capela verde. E há uma chave para encontrar a entrada.»
«Uma chave?»
O guarda resmungou qualquer coisa, e Marek calou-se por momentos. Chris levantou-se, sacudindo o pó do gibão. Foi então que disse: «Temos que sair daqui. Onde é que está a Kate?»
Marek abanou a cabeça. Kate ainda estava livre, a não ser que os gritos dos guardas que ouvira ao fundo do corredor significassem que ela fora capturada. Mas não estava convencido de que a tivessem apanhado. Sendo assim, se conseguisse contactar com ela, podia ser que ela os ajudasse a escaparem-se.
Isso queria dizer que precisavam de arranjar uma maneira de dominar o guarda. O problema estava em que havia uma distância de, pelo menos, seis metros entre a esquina do corredor e o sítio onde o guarda se encontrava sentado no banco. Não havia a menor possibilidade de o apanhar de surpresa. Mas se Kate estivesse dentro do alcance dos auscultadores, então ele podia...
Chris estava a bater nas barras da cela ao mesmo tempo que gritava: «Hei! Guarda! Hei, tu!»
Antes de Marek ter sido capaz de falar, o guarda apareceu à vista deles, olhando curiosamente para Chris que colocara uma das mãos fora das barras e apontava para ele. «Hei, chega aqui! Hei! Aproxima-te!»
O guarda caminhou na direcção dele, deu uma sapatada na mão de Chris que se encontrava do lado de fora das barras e, de repente, teve um súbito ataque de tosse quando Chris lhe pulverizou o rosto com a lata de gás. O guarda "acilou. Chris estendeu mais uma vez as mãos através das grades, agarrou o guarda pelo colarinho e pulverizou-lhe o rosto novamente.
O guarda revirou os olhos e deixou-se cair como um peso morto. Continuando a segurá-lo, Chris bateu com os braços nas grades; gritou com a dor e em seguida largou o guarda, que caiu a uma certa distância das grades, estatelando-se no solo.
Muito longe para ser alcançado.
«Bonito serviço,» disse Marek. «E agora o que é que fazemos?»
«Sabes uma coisa, devias procurar ajudar-me», disse Chris. «Estás a ser muito negativo.» Estava de joelhos, o braço enfiado através das grades até ao sovaco, a mão fazendo esforços desesperados para agarrar o que se encontrava no exterior. Os seus dedos esticados quase conseguiam tocar no pé do soldado. Quase mas ainda faltava um bocado. Quase quinze centímetros para a sola do sapato. Chris esticava-se resmungando. «Se eu ao menos tivesse qualquer coisa
- um pau, ou um gancho - qualquer coisa para o conseguir puxar...»
«Não adiantava nada», disse o Professor da outra cela. «E porque não?»
Aproximou-se até ficar iluminado pela luz e olhou através das barras. «Porque ele não tem a chave.»
«Não tem a chave? Onde é que ela está?»
«Pendurada na parede», disse Johnston, apontando para o outro lado do corredor.
«Oh, merda», exclamou Chris.
No chão, as mãos do guarda estremeceram. Uma das pernas agitou-se espasmodicamente. Estava a acordar.
Em pânico, Chris disse: «E agora, o que é que fazemos?»
Marek disse: «Kate, onde é que estás?» «Estou aqui.»
«Onde?» «Mesmo ao fundo do corredor. Voltei para trás porque me lembrei de que nunca viriam aqui à minha procura.»
«Kate», disse Marek, «chega aqui. Rapidamente.»
Marek ouviu os passos enquanto ela corria na sua direcção.
O guarda tossiu, voltou-se de costas e em seguida apoiou-se num cotovelo. Olhou para o fundo do corredor e atabalhoadamente procurou pôr-se de pé.
já conseguira apoiar-se nas mãos e nos joelhos quando Kate lhe deu um pontapé atirando-lhe a cabeça para trás e fazendo com que voltasse a cair no chão. Mas não estava inconsciente, apenas atordoado. Começou a tentar levantar-se, abanando a cabeça numa tentativa de fazer passar o atordoamento. «Kate», disse Marek, «as chaves ... »
«Onde?» «Na parede.»
Afastou-se do guarda, agarrou as chaves que se encontravam presas num pesado anel e trouxe-as até à cela de Marek. Enfiou uma das chaves na fechadura e tentou fazer rodá-la, mas não conseguiu.
Com um grito o guarda atirou-se a ela, afastando-a da cela e derrubando-a no meio do corredor. Debateram-se ferozmente rolando no solo. Ela era muito mais pequena do que ele. Ele conseguia dominá-la facilmente mantendo-a no chão.
Marek colocara ambas as mãos fora das grades, tirando a chave da fechadura e experimentando outra. Também não servia.
Naquele momento o guarda conseguira colocar-se em cima de Kate e com ambas as mãos a agarrar-lhe o pescoço, procurava estrangulá-la.
Marek tentou outra chave. Também não serviu. Ainda havia mais seis chaves no anel.
O rosto de Kate estava a ficar com um tom azulado. Emitia sons ásperos de sufocação. Batia desesperadamente com os punhos nos braços do guarda, mas as suas pancadas não produziam qualquer efeito. Procurou atingi-lo nas virilhas mas a roupa protegeu-o.
Marek gritou: «Faca! Faca!» mas ela parecia não ser capaz de o compreender. Marek tentou outra chave. Continuava a não ter sucesso. Da cela em frente Johnston gritou qualquer coisa em Francês ao guarda.
O guarda ergueu o olhar e resmungou qualquer coisa como resposta, e nesse momento Kate conseguiu desembainhar a adaga e cravou-a no ombro do homem com todas as suas forças. A lâmina não conseguiu penetrar na cota de malha. Tentou de novo, repetidas vezes. Furioso, o guarda começou a bater-lhe com a cabeça nas pedras do chão, numa tentativa de que ela largasse a arma.
Marek tentou mais uma chave.
Rodou na fechadura com um chiar estridente.
O Professor estava a gritar, Chris gritava igualmente, e Marek abriu a porta violentamente. O guarda voltou o rosto para ele e pôs-se de pé ao mesmo tempo que largava Kate. Tossindo, a rapariga cravou a adaga nas pernas não protegidas e o homem gritou com a dor. Marek bateu-lhe duas vezes na cabeça com toda a força. O guarda caiu no solo, ficando imóvel.
Chris abriu a porta do Professor. Kate pôs-se de pé enquanto a cor lhe voltava lentamente ao rosto.
Marek puxara a patilha branca e apoiara o polegar no botão. «Okay. Finalmente estamos todos juntos.» Estava a olhar para o espaço entre as celas. «Acham que há espaço suficiente? Podemos chamar a máquina para aqui?»
«Não», disse Chris. «Precisamos de dois metros de lado, lembra-se?>, «Precisamos de um espaço maior.» O Professor voltou-se para Kate. «Sabes como é que podemos sair daqui?»
Ela acenou afirmativamente com a cabeça. Seguiram ao longo do corredor.
30:21:02
Kate conduziu-os rapidamente até ao primeiro lanço da escada de caracol, sentindo um novo ânimo. De certo modo a luta com o guarda deixara-a mais solta; acontecera o pior e conseguira sobreviver. Agora, mesmo com a cabeça a latejar, sentia-se mais calma e conseguia ver as coisas com mais clareza. E a sua investigação voltara-lhe de novo à mente: conseguia lembrar-se da localização das passagens.
Chegaram ao rés-do-chão e olharam para o exterior para o pátio. Estava ainda mais concorrido do que aquilo que ela esperara. Havia muitos soldados, bem como cavaleiros de armadura e cortesãos envergando finos trajes, todos a regressarem do torneio; o pátio encontrava-se banhado pela luz do entardecer, mas as sombras começavam a alongar-se.
«Não podemos sair», disse Marek, abanando a cabeça.
«Não te preocupes.» Conduziu-os para o segundo andar, para em seguida os fazer descer por uma passagem em pedra, com portas a abrirem para o interior e janelas na parte externa. Sabia que para além daquelas portas havia uma série de pequenos aposentos para família ou convidados.
Atrás dela Chris exclamou: «Já estive aqui.» Apontou para uma das portas. «Claire está naquele quarto ali.»
Marek resmungou. Kate não se deteve. Ao fundo do corredor uma tapeçaria cobria a parede do lado esquerdo. Levantou a tapeçaria - era surpreendentemente pesada - e então começou a deslocar-se ao longo da parede, fazendo pressão sobre as pedras. «Tenho a certeza de que é por aqui», disse ela. «Tens a certeza de quê?» perguntou Chris.
«Da passagem que nos há-de levar ao pátio das traseiras.»
No primeiro instante Chris viu apenas as silhuetas de um homem e de uma mulher contrastando com a luz brilhante que entrava pela janela. Precisou de alguns momentos para que os seus olhos se ajustassem ao brilho. Em seguida verificou que se tratava de Lady Claire e de Sir Guy. Estavam de mãos dadas, tocando-se um ao outro intimamente. Sir Guy beijou-a apaixonadamente, e ela retribuiu o beijo com igual fervor, colocando-lhe os braços à volta do pescoço.
Chris permaneceu imóvel, não conseguindo despregar os olhos da cena. Naquele momento os apaixonados separaram-se e Sir Guy começou a falar com ela enquanto Lady Claire o olhava intensamente nos olhos. «Minha Senhora», estava ele a dizer, «0 VOSSO Comportamento em público e profunda descortesia fez com que muitos se rissem nas minhas costas e falassem da minha fraqueza por tolerar tais abusos.»
«Tem que ser assim», disse ela. «Para o bem de ambos. Sabeis isso perfeitamente.»
«Mesmo assim, gostava de que o vosso comportamento não fosse tão áspero.» «Achais que sim? E então o que é que aconteceria? Seríeis capaz de pôr em risco a fortuna que ambos desejamos? Há outro aspecto, meu bom cavaleiro, conforme sabeis perfeitamente. Enquanto me opuser ao casamento, apoiarei as suspeitas de muitos: a de que houve intervenção da vossa parte na morte do meu marido. Sendo assim, se Lord Oliver me obrigar a este casamento, apesar de todos os meus esforços, ninguém se poderá queixar a meu respeito. Estais de acordo?»
«Assim é», disse ele acenando com a cabeça com um ar infeliz.
«E, no entanto, como serão diferentes as circunstâncias se agora vos conceder os meus favores», disse ela. «As mesmas línguas que se agitam irão murmurar dentro de pouco tempo que também eu tomei parte no final inesperado do meu marido, e tais histórias irão chegar rapidamente aos ouvidos da família do meu marido em Inglaterra. Neste momento já se encontram dispostos a tomar conta das suas propriedades. Só lhes falta uma desculpa para agirem. É por isso que Sir Daniel não tira os olhos de tudo aquilo que eu faço. Bom cavaleiro, a minha reputação de mulher será facilmente conspurcada sem possibilidades de reparação. A nossa única salvação assenta numa inabalável hostilidade para convosco, pelo que peço aos céus que sejais capaz de tolerar todas as atitudes que vos possam humilhar, pensando nas compensações que possam vir mais tarde.»
Chris ficou de boca aberta. Estava a comportar-se exactamente com o mesmo gênero de intimidades - o olhar brilhante, a voz em tom baixo, as suaves carícias no pescoço - que usara para com ele. Chris ficara convencido de que a tinha seduzido. Agora era claro que fora ela que o seduzira a ele.
Sir Guy mostrava-se mal-humorado apesar das suas carícias. «E as vossas visitas ao mosteiro? Gostava de que não voltásseis lá.»
«E porquê? Não me digais que tendes ciúmes do Abade, meu Senhor?» disse-lhe ela em tom provocante.
«Digo apenas que gostava de que essas visitas se não repetissem», disse ele obstinadamente.
«E, no entanto, o meu intuito tinha uma razão, porque quem souber o segredo de La Roque domina Lord Oliver. Deve fazer aquilo que lhe pedirem para conseguir o segredo.»
«Pelo amor de Deus, Senhora, ainda não haveis conseguido o segredo», disse Sir Guy. «Será que o Abade o conhece?»
«Não vi o Abade», disse ela. «Estava ausente.» «E o Magister afirma que não o sabe.»
«Assim o diz. Mesmo assim, voltarei a perguntar ao Abade, talvez amanhã,» Ouviu-se bater à porta e uma voz masculina em tom abafado. Voltaram-se ambos para olhar. «Deve ser Sir Daniel, disse ele.
«Depressa, meu Senhor, para o vosso esconderijo.»
Sir Guy deslocou-se rapidamente na direcção da parede onde se encontravam escondidos, empurrou uma tapeçaria para o lado, e perante o olhar horrorizado de todos, abriu uma porta - passando para o estreito corredor onde se encontravam. Sír Guy ficou a olhar espantado durante alguns momentos para em seguida começar a gritar: «Os prisioneiros! Fugiram todos! Os prisioneiros!»
Este grito foi ouvido por Lady Claire que saía para o corredor.
Na passagem o Professor voltou-se para eles dízendo-lhes: «Se nos perdermos, sigam para o mosteiro. Procurem o Irmão Marcel. Ele tem a chave da passagem. Okay?»
Antes de qualquer deles conseguir responder, os soldados entraram a correr na passagem. Chris sentiu braços que o agarravam, puxando-o rudemente. Haviam sido apanhados.
30:10:55
Desenrolava-se uma luta solitária no grande salão enquanto os criados acabavam de pôr as mesas. Lord Oliver e Sir Robert seguravam a mão das suas damas, dançando ao ritmo imposto pelo mestre de dança, e sorriam entusiasticamente. Depois de alguns passos, quando Sir Oliver se voltou para encarar o seu par, viu que ela estava de costas voltadas para ele; Oliver praguejou.
«Não tem importância, meu Senhor», apressou-se a dizer o mestre de dança, sem alterar o seu sorriso. «Conforme vos recordaís é um passo em frente, um passo atrás, roda, atrás, e roda, atrás. Falhou rodar uma vez.»
«Não falhei coisa nenhuma», disse Oliver.
«De facto não haveis falhado», disse Sir Robert de imediato. «Foi um compasso da música que estabeleceu a confusão.» Olhou para o rapaz que tocava o alaúde.
«Se é assim, tudo bem.» Oliver retomou a sua posição, estendendo a mão à rapariga. «E agora como é?», perguntou. «Um passo em frente, um passo atrás, Volta, atrás ... »
«Muito bem», exclamou o mestre de dança, ao mesmo tempo que sorria e batia com o bastão. Agora já sabeis como é ... »
Vinda da porta ouviu-se uma voz: «Meu Senhor.»
A música parou. Lord Oliver voltou-se com um ar irritado, deparando com Sir Guy acompanhado de diversos guardas, rodeando o Professor e outros.
O que é que temos agora?»
«Meu Senhor, parece que o Magíster tem companheiros.» «0 quê? Que companheiros?»
Lord Oliver aproximou-se. Viu o Hamauter, o louco irlandês que não sabia cavalgar, e uma mulher jovem, de baixa estatura e com um olhar desafiador, «Que companheiros são estes?»
«Meu Senhor, eles afirmam que são assistentes do Magister.» «Assistentes?» Oliver franziu as sobrancelhas enquanto olhava para o grupo, «Meu caro Magister, quando me dissestes que tínheis assistentes, nunca imaginei que estivessem no castelo convosco.»
«Também eu não tinha conhecimento disso», respondeu o Professor. Lord Oliver resmungou. «Não podeis ser assistentes.» Olhou alternadamente para um e para os outros. «Sois mais velho cerca de dez anos. E ainda esta manhã não haveis dado o menor sinal de conhecerdes o Magister... Não estais a falar a verdade. Nenhum de vós.» Abanou a cabeça, ao mesmo tempo que se voltava para Sir Guy. «Não acredito neles, e hei-de saber a verdade. Mas agora não. Levai-os para os calabouços.»
«Meu Senhor, eles já estavam nos calabouços quando conseguiram escapar.»
«Escapar? Mas como é que isso é possível?» Imediatamente ergueu a mão para interromper a resposta. «Qual é o nosso lugar mais seguro?»
Robert de Kere adiantou-se para lhe murmurar qualquer coisa ao ouvido. «A câmara da torre? Onde se encontra fechada a Dama Alice?» OliVer deu uma gargalhada. «Sim, não há dúvida de que é segura. Podeis fechá-los lá.» Sir Guy disse: «Vou fazer o necessário, meu Senhor.»
«Estes "assistentes" irão ser o penhor da boa conduta do mestre.» Sorriu sombriamente. «Estou convencido, Magister, de que ainda haveis de aprender a dançar comigo.»
Os três jovens foram arrastados rudemente para fora do salão. Lord Oliver fez um gesto com a mão, e tanto o tocador de alaúde como o mestre de dança saíram com uma vénia silenciosa. O mesmo fizeram as mulheres. Sir Robert hesitou, mas depois de ter dado conta do olhar de Sir Oliver também abandonou o salão.
Agora viam-se apenas os criados a porem as mesas. Para além disso o salão estava em silêncio.
«Muito bem Magister, qual é a vossa jogada?»
«Deus é minha testemunha de que são meus assistentes, conforme vos disse desde o início», respondeu o Professor.
«Assistentes? Um deles é cavaleiro.»
«Está em dívida para comigo e é por isso que me serve.» «Ah, sim? Que género de dívida?»
«Salvei a vida do pai dele.»
A sério?» Oliver começou a andar em volta do Professor. «Como é que haveis salvo a vida do pai?»
«Com medicamentos.» «De que é que ele sofria?»
O Professor tocou na orelha e disse: «Meu Senhor Oliver, se desejais uma confirmação mandai chamar de imediato o cavaleiro Marek, e ele dir-vos-á aquilo que vos digo agora, que eu salvei o seu pai, que sofria de hidropisia, com a erva arníca, e que isso aconteceu em Hampstead, uma aldeia próxima de Londres, no Outono do ano passado. Mandai-o chamar e perguntai-lhe.» Oliver fez uma pausa.
Ficou a olhar fixamente para o Professor.
O silêncio foi quebrado pela entrada de um homem com o traje cheio de pó branco, que exclamou de uma porta distante: «Meu Senhor.»
Oliver voltou-se. «Que é que temos agora?» «Meu Senhor, a prova.»
A prova? Muito bem - mas que seja rápido.»
«Assím será, meu Senhor», disse o homem fazendo uma vénia ao mesmo tempo que fazia estalar os dedos. Dois rapazes avançaram rapidamente com um tabuleiro ao ombro.
«Meu Senhor, a primeira prova - fressura.»
O tabuleiro continha espirais de um tom pálido de intestinos e os enormes testículos e pênis de um animal. Oliver caminhou em volta do tabuleiro, observando atentamente.
«As entranhas do javali que foi trazido da caça», disse ele com um aceno de cabeça. «Bastante satisfatório.» Voltou-se para o Professor. «Aprovais o trabalho da minha cozinha.»
«Sem a menor dúvida, meu Senhor. A prova é ao mesmo tempo tradicional e bem preparada. Em especial os testículos estão muito bem preparados.» «Obrigado, senhor», disse o cozinheiro fazendo uma vénia. São preparados
a gosto com açúcar aquecido e ameixas. E os intestinos são cheios com frutos e em seguida cobertos com uma mistura de ovos e cerveja, e por último cobertos com mel,
«õptímo, óptimo», disse Oliver. «Ides servir isto antes do segundo prato?» Assim será, Lord Oliver.))
«E quanto à outra prova?»
«Maçapão colorido com dente de leão e açafrão, » Ao mesmo tempo que se curvava o chefe fez um gesto com a mão e mais rapazes entraram a correr com outra travessa. Nesta via-se um enorme modelo da fortaleza de Castelgard, as suas muralhas com cinco pés de altura, tudo num amarelo pálido a condizer com as verdadeiras pedras. A confecção fora realizada ao pormenor e incluía minúsculas bandeiras hasteadas nas fortificações açucaradas.
«Êlegant! Muito bem feito!» exclamou Oliver. Bateu as palmas com prazer, encantado com a situação como uma criança. «Sinto-me muito contente.» Voltou-se para o Professor e apontou para o modelo. «Sabeis que o vilão
Arnaut anseia apoderar-se do castelo e que eu devo defendê-lo contra ele?» Johnston acenou com a cabeça. «Eu sei.»
Como é que me aconselhais a dispor as minhas forças em Castelgard?» «Meu Senhor», disse Johnston, «no vosso lugar eu não defenderia Castelgard, «Oh! E porque é que dizeis isso?» Oliver dirigiu-se para a mesa mais próxima, pegou numa taça e serviu-se de vinho.
«Quantos soldados é que sois capaz de conseguir entre os Gascões?» perguntou Johnston.
«Cinquenta ou sessenta na melhor das hipóteses.» «Então aí tendes a resposta.»
« Mas a ideia não é fazer um ataque frontal. Tinha pensado em atacar sub-repticiamente, usar artimanhas.»
«E estais convencido de que o Arcebispo não fará o mesmo?»
«Pode tentar, mas estaremos na defensiva. Estaremos preparados para o seu ataque. »
«Talvez sim», disse Johnston, voltando-se. «E talvez não.» «Sois então um vidente ... »
«Não, meu Senhor, não vejo o futuro. Não tenho tais qualidades. Limito-me a dar-vos a minha opinião. E podeis crer que o Arcebispo não usará menos ardis do que vós.»
Oliver franziu as sobrancelhas e bebeu em completo silêncio durante algum tempo. Em seguida pareceu notar a presença do chefe, dos rapazes segurando a travessa, todos de pé e em silêncio, e fez-lhes um gesto para saírem. Enquanto saíam ainda lhes disse: «Tomai o maior cuidado com essas travessas! Não quero que lhes aconteça nada antes que os convidados as vejam.» Momentos depois estavam novamente sós. Voltou-se para Johnston, fazendo um gesto na direcção das tapeçarias. «Ou a este castelo.»
«Meu Senhor», disse Johnston, «não tendes a menor necessidade de defender este castelo quando tendes um muito melhor.»
«Eh! Estais a falar de La Roque? Mas La Roque tem um ponto fraco. Há uma passagem que não consigo encontrar.»
«E como é que sabeis que a passagem existe?»
«Tem de existir», disse Oliver, «porque o velho laon foi o arquitecto de La Roque. Ouvistes falar de Laon? Não? Foi o Abade do mosteiro antes do Abade actual. Esse velho bispo era muito astuto e sempre que era chamado para prestar assistência na reconstrução de uma cidade, ou de um castelo, ou de uma igreja, deixava atrás de si um segredo qualquer que só ele conhecia. Cada castelo tinha uma passagem desconhecida, ou um ponto fraco desconhecido, que Laon podia vender a um atacante se tal fosse necessário. O velho l_aon era muito perspicaz na defesa dos interesses da Madre Igreja - e muito mais na defesa dos seus interesses.»
«E mesmo assim», disse Johnston, «se ninguém sabe onde está essa passagem, também é muito possível que não exista. Há outras considerações, meu Senhor. Qual é o vosso actual reforço em soldados aqui?»
«Duzentos e vinte homens de armas, duzentos e cinquenta arqueiros e duzentos homens armados com chuços.»
«Arnaut tem duas vezes isso», disse Johnston. «Talvez mais.» «Achais que sim?»
«Para dizer a verdade, não passa de um vulgar ladrão, mas agora tornou-se num ladrão famoso, por ter marchado contra Avignon, pedindo ao Pontífice para jantar com os seus homens e tendo em seguida pago dez mil libras para sair da cidade intacto.»
«É verdade?», disse Lord Oliver, parecendo perturbado. «Não ouvi falar disso. É evidente que há rumores de que Arnaut tenciOna marchar contra Avignon, talvez já no próximo mês. E todos estão convencidos de que irá ameaçar o Papa. Mas para já ainda não o fez.» Franziu as sobrancelhas. «Ou já o fez?»
«Falais a verdade, meu Senhor», respondeu o Professor prontamente. «Notai que o perigo daquilo que ele tenciona fazer é o de atrair todos os dias novos soldados para as suas hostes. Neste momento tem um milhar na sua companhia. Talvez dois mil.»
Oliver resmungou. «Não tenho medo.»
«Tenho a certeza de que assim é», disse Johnston, «mas este castelo tem um fosso muito baixo; uma única ponte móvel; um úníco arco de entrada, nenhuma barreira de defesa e uma única ponte levadiça. As vossas muralhas a leste são Muito baixas. Só tendes espaço para armazenar alimentos e água para alguns dias. A vossa guarnição está atravancada no pátio pequeno e os vossos homens não são facilmente manobráveis.»
OliVer afirmou: «Digo-vos que o meu tesouro se encontra aqui, e ficarei aqui com ele.»
«E o meu conselho>, disse Johnston, «é de reunirdes aquilo que for possível e de partir. La Roque está construído numa encosta, com rochas escarpadas em dois lados. Tem um fosso baixo no terceiro lado, dois portões de saída, duas grades e duas pontes levadiças. Mesmo se os invasores conseguirem passar o portão exterior ... »
«Eu conheço as qualidades de La Roque!» Johnston fez uma pausa.
«E não desejo ouvir as vossas danadas instruções!»
Como quiserdes, Lord Oliver. » E em seguida Johnston acrescentou, «Ah. » «Ah? Ah?»
«Meu Senhor», disse Johnston. «Não posso aconselhar-vos se estiverdes
contra mim.»
«Contra vós? Eu não estou contra vós, Magister. Falo abertamente, dizendo tudo aquilo que sinto e não escondendo nada.»
«Quantos homens tendes na guarnição de La Roque?» Oliver contorceu-se desconfortavelmente. «Trezentos.» «Sendo assim, o vosso tesouro ja se encontra em La Roque.»
Lord Oliver encolheu os ombros. Não disse uma palavra. Voltou-se, caminhou em torno de Johnston e voltou a encolher os ombros. Finalmente: «Estais a pressionar-me para mudar para lá provocando os meus medos.» «Não estou.»
«Quereis que eu mude para La Roque porque sabeis que o castelo tem um ponto fraco. Sois o homem de Arnaut e estais a preparar o caminho para o seu assalto.»
«Meu Senhor», disse Johnston, «se La Roque é inferior, como dizeis, porque é que haveis colocado lá o vosso tesouro?»
Oliver resmungou de novo com um ar infeliz. «Sois muito hábil com as palavras.»
«Meu Senhor, o vosso comportamento diz-me qual é o castelo superior.» «Muito bem. Mas uma coisa é certa, Magister, se eu for para La Roque ides comigo. E se mais alguém descobrir essa entrada secreta antes de mo terdes dito, eu próprio farei o necessário para que a vossa morte seja tal que, comparada com o fim de Edward,» - deu uma gargalhada com o trocadilho - «pareça uma obra de misericórdia.»
«Compreendo o que quereis dizer», disse Johnston. «De verdade? Então procurai torná-lo a peito.»
Chris Hughes espreitou pela janela.
Sessenta pés abaixo, o pátio permanecia na sombra. Homens e mulheres nos seus ricos trajes dirigiam-se para as janelas iluminadas do grande salão. ou,viu o som abafado da música. A cena festiva fez com que se sentisse ainda mais sombrio, mais isolado. Os três iam ser mortos - e não havia nada que pudessem fazer contra isso.
Estavam fechados numa pequena câmara, no topo da torre central da fortaleza, sobranceira às muralhas do castelo e à cidade mais abaixo. Era um quarto de mulher, com uma roda de fiar e um pequeno altar num dos lados, sinais formais de piedade que eram dominados pela enorme cama com coberta de pelúcia vermelha e um tapete de pele no centro do quarto. A porta do quarto era de carvalho sólido e fora montada recentemente uma nova fechadura. Fora o próprio Sir Guy que fechara a porta à chave, depois de ter colocado um guarda dentro do quarto, sentado junto da porta, e dois outros no exterior.
Desta vez não corriam qualquer risco.
Marek estava sentado na cama, olhando para o tecto com um ar ausente, perdido nos seus pensamentos. Ou talvez estivesse a procurar ouvir qualquer coisa; tinha uma mão em concha em volta da orelha. Entretanto Kate caminhava incansavelmente de um lado para o outro, movendo-se de uma janela para a outra e inspeccionando a vista em cada uma delas. Na janela mais distante debruçou-se olhando para baixo, e em seguida dirigiu-se para a janela onde estava Chris e voltou a debruçar-se.
«A vista aqui é exactamente a mesma», disse Chris. A inquietação dela aborrecia-o.
Foi então que ele a viu colocar a mão no exterior, passando-a pela parede no lado de fora da janela, sentindo as pedras e a argamassa.
Ficou a olhar para ela com um ar interrogador.
«É possível», disse ela acenando com a cabeça. «É possível.»
Chris debruçou-se e tocou na parede. As pedras eram quase lisas, a parede curva e a pique. Era uma queda directa para o pátio que ficava lá em baixo. «Estás a brincar?» disse ele.
«Não», respondeu ela. «Não estou.»
Voltou a olhar para baixo. No pátio viam-se muitas outras pessoas para além dos cortesãos. Um grupo de escudeiros falava e ria enquanto limpava as armaduras e escovava os cavalos dos cavaleiros. Mais à direita soldados patrulhavam o parapeito da muralha. Qualquer deles podia voltar-se e olhar para cima se o seu movimento lhes atraísse o olhar.
«Vais ser vista.»
«Desta janela sim. Mas da outra não. O nosso único problema é aquele tipo.» Fez um gesto com a cabeça na direcção do guarda que se encontrava à porta. «Podes fazer alguma coisa para resolver o assunto?»
Sentado na cama, Marek disse: «Eu tomo conta disso.»
«Que porra é esta?» disse Chris muito aborrecido. Falou em voz alta. «Achas que não sou capaz de o fazer?»
«Acho que não.»
«Raios me partam, estou farto do modo como me tratas», disse Chris. Estava furioso: olhando à sua volta, à procura de qualquer coisa com que pudesse lutar, pegou no pequeno banco que se encontrava junto da roda de fiar e começou a dirigir-se na direcção de Marek.
O guarda viu o que se estava a passar, disse «Non, non, non,» rapidamente e dirigiu-se ao encontro de Chris. Não viu Marek que surgiu por trás, derrubando-o com um candelabro metálico. O guarda deixou-se cair como um saco e Marek agarrou-o, depositando-o silenciosamente no solo. O sangue escorria da cabeça do guarda para uma carpete oriental,
«Está morto?» perguntou Chris, olhando para Marek.
«E o que é que isso interessa?» disse Marek. «Continuem a falar calmamente para que os outros lá fora ouçam as nossas vozes.»
Olharam à volta deles mas Kate já tinha saído pela janela.
É um solo a duas mãos, disse ela para si própria, enquanto se agarrava à parede da torre a sessenta pés do chão.
O vento empurrava-a, amarrotando-lhe as roupas. Agarrava-se às pequenas saliências da argamassa com as pontas dos dedos. Por vezes a argamassa soltava-se e então ela tinha que a apanhar e voltar a agarrar-se de novo. Mas aqui e ali sempre ia encontrando cavidades na argamassa onde conseguia enfiar os dedos.
já tivera escaladas mais difíceis. Qualquer dos edifícios de Yale era mais difícil - embora aí tivesse sempre giz para as mãos, sapatos adequados para escalar e uma corda de segurança. Aqui não havia qualquer segurança.
Não é .longe.
Saíra pela janela a oeste porque ficava atrás do guarda, porque estava voltada para a cidade e assim seria menos provável que a vissem do pátio, e porque era a distância mais curta para a janela seguinte, que ficava no fim do corredor que dava para a câmara.
Não é longe, disse para consigo. No máximo dez pés, Não te apresses. Tem calma. Primeiro uma mão, depois um pé... em seguida a outra mão.
Estou quase lá, pensou. Quase lá.
Finalmente tocou no parapeito da janela. Pela primeira vez conseguiu agarrar-se com firmeza. Içou-se cuidadosamente com uma das mãos, espreitando cautelosamente para o corredor.
Não havia guardas.
O corredor estava deserto.
Apoiando-se agora com as duas mãos, Kate içou-se, apoiou-se no parapeito e escorregou para o soalho do corredor. Encontrava-se agora no Corredor, do lado de fora da porta fechada. Suavemente, disse: <Consegui.»
Marek perguntou, «Guardas?»
«Nenhum, mas também não vejo a chave.» Inspeccionou a porta. Era espessa, sólida. Marek perguntou, «Dobradiças?»
«Sim. Do lado de fora.» Eram feitas de espesso ferro forjado. Ela compreendia o que ele lhe estava a perguntar. «Consigo ver os pinos.» Se conseguisse fazer saltar os pinos das dobradiças, seria fácil conseguir abrir a porta. «Mas preciso de um martelo ou de qualquer coisa no género. Não há aqui nada que Possa usar.»
«Descobre qualquer coisa,» respondeu Marek em voz baixa. Ela correu ao longo do corredor.
«De Kere», disse Lord Oliver quando o cavaleiro da cicatriz entrou no salão. «0 Magister é de opinião que devemos mudar para La Roque.»
De Kere acenou gravemente com a cabeça. «0 risco seria muito grande, sir.»
«E o risco de ficar aqui?» disse Oliver.
«Se o conselho do Magister é bom e verdadeiro, e não tem qualquer outra intenção, porque é que os seus assistentes ocultaram a sua identidade quando chegaram à vossa corte? Uma tal atitude não é uma prova de honestidade, meu Senhor. Seria meu desejo que ficásseis satisfeito com a resposta pela sua conduta, antes que possa acreditar neste novo Magister e nos seus conselhos,»
«Fiquemos todos satisfeitos», disse Oliver. «Trazei-me agora os assistentes e perguntar-lhes-emos aquilo que quereis saber.»
«Meu Senhor.» De Kere fez uma vénia e abandonou a sala.
Kate saiu da escada em caracol e deslizou por entre a multidão que se encontrava no pátio. Pensava que poderia usar um estojo de ferramenta de carpinteiro, ou um martelo de ferreiro, ou até mesmo as ferramentas que o alveitar usava para ferrar os cavalos. À sua esquerda viu os moços de estrebaria e os cavalos, e começou a dirigir-se nessa direcção. No meio da multidão excitada ninguém lhe prestou a menor atenção. Deslizou facilmente na direcção da muralha leste, e estava a pensar como é que havia de distrair os moços de estrebaria, quando directamente à sua frente viu um cavaleiro que se mantinha imóvel, olhando fixamente para ela.
Robert de Kere.
Os seus olhares encontraram-se por momentos e em seguida ela voltou-se e correu. Atrás de si ouviu de Kere gritar a pedir ajuda, e os gritos de resposta dos soldados à sua volta. Continuou a correr empurrando a multidão, que de repente era um impedimento, mãos que se dirigiam para ela, procurando agarrar-lhe a roupa. Para escapar à multidão entrou pela primeira porta que viu, batendo-a atrás de si.
Encontrou-se na cozinha.
A dependência estava terrivelmente quente, e havia mais gente do que no pátio. Enormes caldeirões de ferro ferviam na imensa lareira. Uma dúzia de capões rodavam numa fila de espetos, sendo a manivela accionada por uma criança. Fez uma pausa, não tendo a certeza daquilo que havia de fazer, e nesse instante de Kere passou pela porta, gritou em voz alta « Tu!» e desembainhou espada.
Baixou-se, tropeçando nas mesas que se encontravam cheias de comida ser preparada. A espada desceu violentamente, enviando pratos a voar em todos os sentidos. Tropeçou, baixou-se ainda mais, metendo-se debaixo das mesas. Os cozinheiros começaram a gritar. Viu um modelo gigante do castelo, feito num tipo qualquer de pastelaria, e dirigiu-se para lá. De Kere estava mesmo atrás dela.
os cozinheiros estavam a gritar «Non, Sír Robert, non!» numa espécie de coro que se espalhava por toda a sala, e alguns dos homens estavam tão aflitos que avançaram procurando detê-lo.
De Kere fez voltear a espada mais uma vez. Ela baixou-se e a espada decapitou as muralhas do castelo, levantando uma nuvem de pó branco. Neste instante os chefes deram um grito agudo colectivo de agonia e lançaram-se sobre de Kere de todos os lados, gritando que este era o favorito de Lord Ciliver, que ele já o havia aprovado, que Sir Robert não o devia modificar mais. Robert rolou no chão, praguejando e tentando sacudi-los.
Na confusão ela correu de novo para a porta, saindo para a luz da tarde.
A uma certa distância à sua direita viu a parede curva da capela. A capela estava a sofrer uma certa restauração; via-se uma escada apoiada na parede e alguns andaimes ligeiros no telhado, onde os operários estavam a reparar as telhas.
Queria afastar-se das multidões e dos soldados. Sabia que do outro lado da capela corria uma passagem estreita entre o edifício e a muralha exterior da torre do castelo. Pelo menos escapava-se da multidão se fosse por ali. Enquanto corria na direcção da passagem, ouviu de Kere que corria atrás dela, gritando para os soldados; conseguira sair da cozinha. Corria o mais que podia, tentando ganhar alguma distância. Passou o canto da capela. Olhando para trás, viu outros soldados que corriam no sentido inverso contornando a capela, procurando aparecer-lhe de frente no outro extremo da passagem.
Sir Robert ladrou mais ordens aos soldados enquanto contornava a esquina atrás dela - e de repente parou de forma abrupta. Os soldados pararam ao seu lado, murmurando todos numa grande confusão.
Observaram a passagem com cerca de quatro pés de lado que ficava entre o castelo e a capela. A passagem estava vazia. No outro extremo da passagem apareceram outros soldados de frente para eles.
A mulher tinha desaparecido.
Kate trepava a parede da capela, encontrando-se a cerca de dez pés de altura, os contornos do corpo ocultos pelo bordo decorativo da janela da capela e por espessos ramos de hera. Mesmo assim, continuava a ser facilmente visível se alguém olhasse para cima. Mas a passagem era escura e ninguém o fez, Ouviu de Kere gritar irritadamente: <Vão buscar os outros assistentes e despachem-nos já!»
Os soldados hesitaram. «Mas Sir Robert, eles são assistentes do Magister de Lord Oliver ... »
«E é o próprio Lord OlIver que o ordena. Matem-nos todos!» Os soldados afastaram-se a correr na direcção do castelo.
De Kere praguejou. Estava a falar com um soldado que permanecera junto dele, mas estavam a falar num sussurro, o tradutor de ouvido estava cheio de ruídos de estática e não conseguia perceber o que diziam. Para dizer a verdade, sentia-se surpreendida por ter conseguido ouvir tanto.
Como é que ela fora capaz de os ouvir? Parecia-lhe estarem demasiado longe para conseguir ouvir de Kere de forma tão clara. E, no entanto, a sua voz era clara, quase amplificada. Talvez fosse por causa da acústica da passagem...
Olhando para baixo viu que ainda ali se encontravam alguns soldados. Estavam apenas a andar de um lado para o outro. Deste modo ela não conseguia descer. Decidiu trepar até ao telhado e esperar até que as coisas estivessem mais calmas. O telhado da capela ainda se encontrava exposto à luz do sol: um simples telhado em bico coberto de telha, com pequenas falhas onde estavam a ser feitas as reparações. A aba era íngreme; agachou-se na caleira e disse: «André».
Um ruído de estática. Pensou ter ouvido a voz de Marek, mas a estática era péssima.
«André, estão a ir para aí para vos matar.»
Não houve qualquer resposta, apenas mais estática. «André?»
Nenhuma resposta.
Talvez as paredes à sua volta estivessem a interferir com a transmissão; era capaz de obter melhores resultados no topo do telhado. Começou a trepar a superficie íngreme, contornando facilmente as zonas onde as telhas estavam a ser reparadas. Em cada um dos lados o pedreiro montara uma pequena plataforma, com a sua bacia de argamassa e a pilha de telhas. O chilrear dos pássaros fizeram-na parar. Viu que havia de facto um buraco no telhado nessas zonas de reparação, e...
Um som de raspar fez com que ela olhasse para cima. Viu um soldado passar o topo do telhado. Este deteve-se, olhando para baixo na sua direcção. Em seguida surgiu um segundo soldado.
Então era por isso que de Kere estivera a sussurrar: afinal de contas ele sempre a avistara na parede, e dissera aos soldados para subirem pela escada no lado oposto.
olhou para baixo e viu soldados que se encontravam na passagem. Naquele instante estavam a olhar para ela.
Agora o primeiro soldado passava a perna pelo cume do telhado e começava a descer na sua direcção.
Só havia uma coisa que ela podia fazer. O buraco do pedreiro tinha cerca de dois pés de lado. Através dele conseguia ver o travejamento abaixo do telhado e, cerca de dez pés mais abaixo, os arcos de pedra do tecto da capela. Havia uma espécie de passagem em madeira que corria pela parte de cima dos arcos.
Kate rastejou através do buraco e deixou-se cair no tecto mais abaixo. Sentiu o cheiro acre da poeira e dos dejectos dos pássaros. Havia ninhos por toda a parte, ao longo dos passadiços, nos cantos e nas juntas. Baixou-se quando alguns pardais lhe passaram por cima da cabeça a chilrear. E de repente sentiu-se envolvida por um turbilhão de aves a guincharem e de penas que esvoaçavam. Verificou que havia ali centenas e ela tinha-as perturbado. Durante alguns instantes não conseguiu fazer mais nada a não ser proteger o rosto com as mãos e permanecer imóvel. Os sons foram diminuindo.
, Quando olhou de novo viu apenas alguns pássaros a esvoaçar. E os dois soldados estavam a descer pelos buracos do telhado na direcção do solo que se encontrava em baixo.
Rapidamente deslocou-se pelo passadiço na direcção de uma porta distante que provavelmente deveria conduzir à igreja. Quando se aproximava a porta abriu-se e um terceiro soldado passou por ela.
Três contra um.
Recuou, deslocando-se pelo passadiço que corria na parte superior das curvas das abóbadas do tecto. Mas os outros soldados moviam-se na direcção dela. Haviam desembainhado as adagas. Não tinha a menor ilusão sobre aquilo que eles pretendiam fazer.
Recuou afastando-se deles.
Recordou-se do modo como se pendurara debaixo daquele tecto, examinando as inúmeras fracturas e reparações que haviam sido feitas ao longo dos séculos. Agora encontrava-se da parte de cima da mesma estrutura. O passadiço implicava claramente que os próprios arcos eram fracos. Até que ponto eram fracos? Seriam capazes de suportar o seu peso? Os homens deslocavam-se firmemente na sua direcção.
Colocou-se cautelosamente sobre uma das cúpulas para a testar. Aplicou todo o seu peso nela.
Aguentou. Os soldados vinham atrás dela, mas deslocavam-se lentamente. De repente os pássaros entraram novamente em actividade, soltando guinchos e erguendo-se como uma nuvem. Os soldados cobriram os rostos. Os pássaros voaram tão perto que as asas lhe bateram na cara. Recuou mais uma vez, enquanto os pés pisavam a estreita camada de detritos acumulados.
Encontrava-se agora de pé numa zona de cúpulas e fossos, com uma estrutura mais espessa de pedra nos sítios onde os arcos se encontravam. Deslocou-se na direcção dessa estrutura porque sabia que seria naturalmente mais forte, e caminhando por ela dirigiu-se para o extremo oposto da capela, onde viu uma pequena porta. Provavelmente daria para o interior da igreja, descendo talvez atrás do altar.
Um dos soldados correu ao longo do passadiço para em seguida se colocar na parte convexa de um dos arcos. Moveu-se com o intuito de bloquear o seu progresso. Empunhava a faca à sua frente.
inclinando-se, fez uma pequena finta, mas o soldado limitou-se a manter a sua posição. Um segundo soldado correu para se deter ao seu lado. O terceiro soldado estava atrás dela. Também se colocou sobre a cúpula.
Ela moveu-se para a direita, mas os dois homens vieram directamente na sua direcção. O terceiro aproximava-se pela parte de trás.
Os dois homens encontravam-se a pouco mais de um metro de distância quando ela ouviu um estampido, e olhando para baixo viu uma linha sinuosa que se abria na argamassa entre as pedras. Os soldados recuaram precipitadamente, mas a fractura já estava a alargar, lançando ramos como uma árvore. As fracturas passaram-lhe entre as pernas; olharam para baixo horrorizados. Então as pedras que se encontravam debaixo dos pés caíram, e eles desapareceram de vista dando gritos de terror.
Olhou para trás na direcção do terceiro homem que tropeçou e caiu enquanto corria apressadamente para o passadiço. Aterrou com um estalido, e Kate viu a sua face aterrorizada enquanto ele se mantinha na mesma posição, sentindo que as pedras debaixo do corpo cediam lentamente, uma a seguir à outra. E finalmente desapareceu, com um longo grito de medo.
E, de repente, ela estava sozinha.
Estava de pé em cima do tecto, com os pássaros a guincharem à sua volta. Demasiado aterrorizada para se mover, limitou-se a ficar no mesmo lugar, tentando abrandar a respiração. Mas estava bem.
Ela estava bem. Tudo estava bem. Ouviu um simples crack.
Em seguida mais nada. Esperou.
Outro crack. Este sentiu-o directamente debaixo dos pés. As pedras estavam a mover-se. Olhando para baixo viu a argamassa a abrir fendas em diversas direcções, afastando-se rapidamente dela. Moveu-se rapidamente para a esquerda, dirigindo-se para a segurança da estrutura de reforço, mas era demasiado tarde.
Uma das pedras caiu e ela enfiou o pé no buraco. Caiu até ao nível do peito e em seguida procurou comprimir o corpo, abrindo as mãos o mais que podia, com o intuito de distribuir o peso. Ficou ali durante alguns segundos, arfando. Pensou para consigo: Bem lhe disse que era uma má construção.
Esperou, tentando pensar na melhor maneira de sair daquele buraco. Tentou torcer o corpo...
Crack.
Directamente à frente dela abriu-se uma linha na argamassa e caíram várias pedras. E, em seguida, sentiu-se cair ainda mais; sentiu num momento de terrível certeza de que também ela ia cair pelo buraco.
No quarto vermelho de pelúcia na torre, Chris não tinha a certeza daquilo que ouvira no auricular. Parecia-lhe que Kate tinha dito, «Vão aí para te matar.» E em seguida mais qualquer coisa, que não conseguiu apanhar, antes da estática se tornar constante.
Marek abrira o armário de madeira junto do pequeno altar, inspeccionando apressadamente o que se encontrava dentro. «Chega aqui, ajuda-me»
«0 que é que se passa», disse Chris.
«OliVer mantém aqui a sua amante», disse Marek. «Aposto que também guarda aqui uma arma.»
Chris dirigiu-se para um segundo armário aos pés da cama, e abriu as portas para trás. Este armário parecia estar cheio com roupas de cama, vestidos e roupas de seda. Atirava-as pelo ar enquanto procurava; caíam no soalho à sua volta.
Não encontrou qualquer arma. Nada.
Olhou para Marek. Encontrava-se de pé no meio de uma pilha de vestidos, abanando a cabeça.
Nenhuma arma.
Da parte de fora, no corredor, Chris ouviu soldados que corriam, dirigindo-se para eles. E através da porta ouviu o zing metálico produzido quando eles desembainharam as espadas.
29:10:24
«Posso oferecer-lhe Coca-Cola, Coca-Cola dieta, Fanta ou Sprite», disse Gordon. Estavam junto de uma máquina automática de bebidas no corredor dos laboratórios da ITC.
«Eu quero uma Coca-Cola» disse Stern,
A lata produziu um ruído metálico ao cair no fundo da máquina. Stern pegou nela e puxou a argola. Gordon escolheu uma Sprite. «É importante permanecermos hidratados no deserto», disse. «Temos humidificadores no edifício, mas não trabalham suficientemente bem.»
Seguiram pelo corredor na direcção da porta seguinte.
«Pensei que gostaria de ver isto», disse Gordon, conduzindo Stern para outro laboratório. «É apenas uma questão de interesse histórico. Foi neste laboratório que demonstrámos pela primeira vez a tecnologia.» Acendeu as luzes.
, O laboratório era uma sala grande com um aspecto desmazelado. O chão estava coberto com azulejos cinzentos antiestáticos; o tecto acima estava aberto, mostrando lâmpadas com protecção e calhas metálicas transportando espessos cabos que corriam como linhas umbilicais na direcção dos computadores que se encontravam nas mesas. Numa das mesas havia dois pequenos dispositivos Parecidos com gaiolas, cada um deles com trinta centímetros de altura. Encontravam-se separados um do outro cerca de um metro e vinte e estavam ligados por um cabo.
«Esta é a Alice», disse Gordon orgulhosamente, apontando para a primeira gaiola. «E este é o Bob.»
Stern sabia que de acordo com uma convenção estabelecida há muito tempo, Os instrumentos de transmissão quântica eram rotulados como Alice"e "Bob" ou «A» e «B». Olhou para as pequenas gaiolas. Numa delas encontrava-se Uma pequena boneca de plástico, uma rapariga com um vestido de algodão fino estilo pioneiro.
«A primeira de todas as transmissões foi realizada aqui», disse Gordon. «Tivemos êxito na passagem desta boneca entre as duas gaiolas. Isso foi há quatro anos.»
Stern pegou na boneca. Era apenas um modelo barato; viu as costuras de plástico que corriam de ambos os lados do rosto e do corpo. Os olhos fechavam e abriam quando a abanava.
«Está a ver», disse Gordon, «a nossa intenção original era a de aperfeiçoar a transmissão de objectos a três dimensões. Uma espécie de fax a três dimensões. Talvez saiba que houve muito interesse nisso.»
Stern acenou com a cabeça; ouvira falar do trabalho de investigação. «Stanford realizou o primeiro projecto», disse Gordon. «E havia muitos trabalhos a serem desenvolvidos em Silicon Valley. A ideia era a de que, nos últimos vinte anos, toda a transmissão de documentos passara a ser electrónica - tanto por fax como por e-mail. já não se torna necessário enviar o papel de uma forma física; enviamos apenas sinais electrónicos. Muitas pessoas estavam convencidas de que, mais cedo ou mais tarde, todos os objectos passariam a ser enviados da mesma maneira. Por exemplo, deixaria de ser necessário expedir a mobília, bastaria transmiti-la entre estações. Coisas desse género.»
«Se fosse possível fazer isso», disse Stern.
«Certo. E enquanto estivéssemos a trabalhar com objectos simples, era possível. Sentíamo-nos encorajados. Mas é evidente que não bastava transmitir entre duas estações ligadas por cabos. Precisávamos de transmitir à distância, pelo ar, se assim se pode dizer. E foi assim que o tentámos. Aqui.»
Atravessou a sala, e aproximou-se de duas outras gaiolas, um tanto maiores e mais sofisticadas. Começavam a parecer-se com as gaiolas que Stern vira na cave. «Alice e Bob, parte dois», disse Gordon. «Ou, conforme lhes chamávamos,
Allie e Bobbie. Constituíram a base dos nossos testes para a transmissão remota.» «E?»
«Não funcionou», respondeu Gordon. «Transmitimos a partir de Allie mas nunca conseguimos chegar a Bob. Nunca.»
Stern acenou lentamente com a cabeça. «Porque o objecto que se encontrava em Allie seguiu directamente para outro universo.»
«Exacto. É evidente que não nos apercebemos disso de imediato», disse Gordon. «Quer dizer, essa era a explicação teórica, mas quem é que iria suspeitar daquilo que na verdade se estava a passar? Levou-nos um tempo incrível para conseguirmos chegar a uma conclusão. Finalmente construímos uma máquina tipo pombo-correio - uma máquina que seria capaz de ir e voltar automaticamente. A equipa chamava-lhe Allie-Allie-aí-vou eu. Está aqui.»
Outra gaiola, ainda maior, talvez com cerca de três pés de altura, e sem a menor dúvida muito semelhante às gaiolas que eram agora usadas. As mesmas três barras, a mesma disposição de lasers.
«E?», perguntou Stern.
«Verificámos que o objecto ia e voltava», disse Gordon. «E foi assim que enviámos objectos mais sofisticados. Pouco depois conseguimos enviar uma máquina fotográfica e de volta conseguimos uma fotografia.»
«Sim?» «Era uma fotografia do deserto. Para dizer a verdade, precisamente deste lugar. Mas antes de existirem aqui quaisquer edifícios.»
Stern acenou com a cabeça. «E foi capaz de a datar?»
«Não de imediato», respondeu Gordon. «Continuámos a enviar a máquina fotográfica, vezes sem conta, mas tudo aquilo que conseguíamos era o deserto. Por vezes com chuva, outras vezes com neve, mas sempre o deserto. Era claro que estávamos a ir a tempos diferentes - mas que tempos? Datar a imagem era bastante complicado. Veja bem, como é que se pode usar uma máquina fotográfica para datar uma imagem de uma paisagem como esta?»
Stern franziu as sobrancelhas. Compreendeu o problema. A maior parte das velhas fotografias eram datadas a partir dos artefactos humanos da imagem um edifício, um carro, roupas ou ruínas. Mas um deserto no Novo México não habitado dificilmente mudaria de aparência ao longo de milhares ou até centenas de milhares de anos.
Gordon sorriu. «Colocámos a máquina fotográfica na vertical, instalámos uma lente olho de peixe, e fotografámos o céu à noite.»
«Ah.» «É evidente que nem sempre funciona - tem que ser mesmo noite - e o céu deverá estar sem nuvens - mas se tivermos bastantes planetas na nossa imagem, é possível identificar o céu de uma forma bastante exacta. Até ao ano, dia e hora. E foi assim que começámos a desenvolver a nossa tecnologia de navegação.»
«Foi então que se modificou todo o projecto ... »
«Exacto. É evidente que sabíamos aquilo que tínhamos. Já não estávamos a fazer transmissão de objectos - não valia a pena continuar a tentá-lo. Estávamos a fazer transporte entre universos.»
«E quando é que começou a enviar pessoas?»
«Não o fizemos durante algum tempo.»
Gordon levou-o para outra parte do laboratório, onde se
encontrava uma série de equipamento electrónico. E aí Stern viu enormes bolsas de plástico penduradas e cheias de água, fazendo lembrar colchões de água pendurados por uma das pontas. E no centro uma gaiola em tamanho natural, não tão refinada como as que vira na sala de trânsito, mas usando claramente a mesma tecnologia.
«Esta foi a nossa primeira máquina verdadeira», disse Gordon orgulhosamente.
«Espere um minuto», disse Stern. «Esta coisa funciona?» «É claro que sim.»
«Funciona agora?»
«Já não é usada há algum tempo», respondeu Gordon. «Mas julgo que sim. Porquê?»
«Sendo assim, se quisesse regressar para os ajudar», disse Stern, «então podia fazê-lo... nesta máquina. Está correcto?»
«Sim», disse Gordon, acenando lentamente com a cabeça. «Podia regressar nesta máquina mas ... »
«Veja uma coisa, julgo que no sítio onde se encontram estão com problemas
- ou ainda plor.»
«Provavelmente. Julgo que sim.»
«E está a dizer-me que temos uma máquina que funciona», disse Stern, «só
Gordon suspirou. «Receio que seja um pouco mais complicado do que isso, David.»
29:10:00
Kate caiu em câmara lenta quando as pedras do tecto cederam. Enquanto descia os seus dedos fecharam-se sobre a beira áspera de argamassa, e com a prática de muitos anos, agarrou-a e aguentou-se. Ficou pendurada por uma das mãos, olhando para baixo enquanto as pedras em queda desabavam no solo da capela numa nuvem de poeira. Não viu o que é que acontecera aos soldados.
Ergueu a outra mão, agarrando a beira da pedra. Sabia que as outras pedras se iriam soltar a qualquer minuto. O tecto estava todo a desabar. Estruturalmente, a maior força estava situada próximo da linha reforçada da nervura, no ponto de encontro dos arcos. Aí ou na parede lateral da capela, que era pedra vertical,
Decidiu tentar chegar à parede lateral.
A pedra soltou-se; voltou a ficar pendurada pela mão esquerda. Cruzou uma mão sobre a outra, procurando chegar tão longe quanto possível, ao mesmo tempo que tentava mais uma vez distribuir o peso do corpo.
A pedra onde se agarrava com a mão esquerda soltou-se, caindo no solo. Voltou a oscilar no ar e encontrou outro ponto onde se agarrar. Naquele momento encontrava-se apenas a três pés da parede lateral, e enquanto procurava chegar à parede notou que a pedra era notavelmente mais espessa. A beirada a que se agarrava era mais firme.
Ela ouvia os soldados em baixo aos gritos e correndo para a capela. Não tardaria muito que estivessem a disparar flechas contra ela.
Tentou balançar-se erguendo a perna esquerda. Quanto melhor conseguisse distribuir o seu peso, melhor seria para ela. Conseguiu erguer a perna; o tecto aguentou. Contorcendo o tronco, conseguiu erguê-lo até à saliência e depois levantou a outra perna. A primeira flecha zumbiu ao passar por ela; seguiram-se outras que embateram na pedra com um som cavo, levantando pequenas nuvens de poeira. Estava deitada no topo do telhado, procurando espalmar-se o mais possível.
Mas não podia continuar ali, Afastou-se do beiral, na direcção da linha de nervura. Enquanto o fazia, mais pedras se soltaram e caíram.
Os soldados pararam de gritar. Pensou que talvez tivessem sido atingidos por uma das pedras em queda. Mas não: ouviu-os correr apressadamente saindo da igreja. Ouviu homens no exterior e cavalos que relinchavam.
O que é que se estava a passar?
Dentro do quarto da torre, Chris ouviu o raspar da chave na fechadura. Nessa altura os soldados que se encontravam no exterior fizeram uma pausa e gritaram através da porta - chamando o guarda que estava dentro do quarto.
Entretanto Marek procurava como um louco. Estava de joelhos, espreitando debaixo da cama. «Encontrei!» exclamou. Levantou-se atabalhoadamente, segurando uma espada e uma longa adaga. Atirou a adaga a Chris.
No exterior os soldados gritavam de novo chamando o guarda que se encontrava lá dentro. Marek dirigiu-se para um dos lados da porta e fez um gesto a Chris indicando-lhe para se colocar do outro lado.
Chris comprimiu-se contra a parede ao lado da porta. Ouviu as vozes dos homens que se encontravam lá fora - muitas vozes. O seu coração começou a bater desordenadamente. Sentira-se chocado com o modo como Marek matara o guarda.
Estão a dirigir-separa aípara vos matar.
Ouvia as palavras repetirem-se vezes sem conta na sua cabeça, com um sentido de irrealidade. Não lhe parecia possível que os homens de armas viessem
para o matar.
No conforto da biblioteca lera relatos de passados actos de violência, assassínios e chacinas. Lera descrições de ruas escorregadias por causa do sangue, soldados encharcados em vermelho da cabeça aos pés, mulheres e crianças desventradas apesar das suas súplicas piedosas. Mas, de certo modo, sempre se convencera de que esses relatos eram exagerados. Na universidade era costume interpretar os documentos ironicamente, falar da ingenuidade da narrativa, do conteúdo do texto, do privilégio do poder... Uma atitude teórica deste tipo dentro em breve se transformou num inteligente jogo intelectual. Chris era bom no jogo, mas ao tomar parte nele, de certo modo perdeu a pista de uma realidade mais autêntica - a de que os textos antigos relatavam histórias terríveis e episódios violentos que na maioria das vezes eram verídicos. Deixara de ter consciência do facto de que estava a ler história.
Até agora, quando forçosamente teve que enfrentar os factos. A chave rodou na fechadura.
No outro lado da porta o rosto de Marek transformara-se numa careta, os lábios arreganhados mostrando os dentes cerrados. Parecia um animal, pensou Chris. O corpo de Marek estava tenso enquanto empunhava a espada, pronto a desferir o golpe. Pronto a matar.
A porta foi empurrada para trás, bloqueando momentaneamente a visão de Chris. Mas viu Marek desferir um golpe de cima para baixo, e ouviu um grito, enquanto um enorme jacto de sangue se espalhava no solo e um corpo caiu pouco depois.
A porta bateu contra o seu corpo, detendo o golpe que ia desferir e prendendo Chris atrás dela. Do outro lado um homem embateu contra ela e em seguida arquejou quando uma espada fez saltar lascas de madeira. Chris tentou sair de trás da porta mas outro corpo caiu, bloqueando o seu caminho.
Passou por cima do corpo e a porta bateu violentamente contra a parede enquanto Marek enfrentava outro atacante, e um terceiro soldado afastou-se cambaleante por causa do impacto e caiu no solo aos pés de Chris. O tronco do soldado estava encharcado de sangue; o sangue brotava-lhe do peito como uma fonte de Primavera. Chris inclinou-se para pegar na espada que ainda se encontrava nas mãos do homem. Quando puxava a espada o homem agarrou-a ferozmente, fazendo uma careta na direcção de Chris. Abruptamente o soldado enfraqueceu e libertou a espada, o que fez com que Chris cambaleasse, indo chocar com a parede.
O homem estendido no solo continuava a olhar para ele. O rosto estava contorcido numa careta de fúria - e de repente ficou imóvel.
Santo Deus, pensou, está morto.
De repente, à sua direita, outro soldado entrou de rompante no quarto, as costas voltadas para Chris enquanto combatia com Marek. As espadas entrechocavam-se; combatiam ferozmente; mas o homem não se apercebera de Chris, e este ergueu a espada, que lhe parecia muito pesada e pouco manejável. Pensou se seria capaz de desferir um golpe com ela, se de facto seria capaz de matar o homem que se encontrava de costas para ele. Ergueu a espada, curvou o braço como se fosse bater uma bola - e preparou-se para desferir o golpe quando Marek cortou o braço do homem pelo ombro.
O membro cortado caiu no solo com um som cavo e rolou até à parede debaixo da janela. O homem olhou espantado para o que acontecera no instante imediatamente antes de Marek lhe ter cortado a cabeça com um simples golpe; a cabeça voou pelos ares, bateu contra a porta junto de Chris, e caiu aos seus pés com o rosto voltado para baixo.
Apressadamente afastou os pés daquele despojo. A cabeça rolou mais uma vez, ficando com o rosto voltado para cima, e Chris viu os olhos pestanejarem e a boca mover-se, como se pretendesse formar palavras. Afastou-se mais uma vez.
Chris olhou na direcção do tronco que se encontrava no solo, onde o sangue ainda continuava a sair aos borbotões da ferida do pescoço. O sangue corria livremente pelo chão de pedra - litros de sangue segundo parecia. Olhou para Marek que agora se encontrava sentado na cama, ainda arquejante, o rosto e o gibão salpicados de sangue.
Marek ergueu os olhos na sua direcção. «Estás bem?», perguntou. Chris não conseguia responder.
Não conseguia pronunciar uma palavra.
E de repente o sino da igreja da aldeia começou a tocar.
Através da janela Chris viu as labaredas que se erguiam de duas casas agrícolas no outro extremo da cidade, próximo da muralha circundante da cidade. Homens corriam pelas ruas na direcção do fogo.
«Há um incêndio», disse Chris.
«Tenho dúvidas», disse Marek ainda sentado na cama. «Não, a sério», respondeu Chris. «Olha.»
Na cidade viam-se cavaleiros que galopavam pelas ruas; estavam vestidos como mercadores ou comerciantes, mas cavalgavam como combatentes.
«É um gênero típico de diversão», disse Marek, «para iniciar um ataque.» «Um ataque?»
«0 Arcebispo está a atacar Castelgard.» «Tão cedo?»
«Trata-se apenas das tropas avançadas, talvez uma centena de soldados ou pouco mais. Irão tentar criar confusão, separar as tropas. É muito provável que o corpo do exército ainda se encontre do outro lado do rio. Mas não há dúvida de que o ataque já começou.»
Aparentemente também havia outros que tinham pensado nisso. No pátio mais abaixo os cortesãos saíam em torrente do grande salão, apressando-se na direcção da ponte levadiça, procurando abandonar o castelo, a festa subitamente interrompida. Uma companhia de cavaleiros em armadura afastou-se a galope, fazendo fugir os cortesãos precipitadamente, atravessou a ponte levadiça com um ecoar de trovão e seguiu apressadamente através das ruas da cidade.
Kate espreitou pela porta, arquejante. «Malta? Vamos embora. Temos que encontrar o Professor antes que seja demasiado tarde.»
28:57:32
No grande salão era um autêntico pandemónio, Os músicos fugiram, os convidados atropelaram-se na direcção das portas, cães ladravam e pratos de comida estatelavam-se no solo. Cavaleiros corriam para se juntarem à batalha, gritando ordens aos seus escudeiros. Lord Oliver desceu rapidamente do estrado da mesa grande, agarrou o Professor pelo braço e disse a Sir Guy: «Vamos para La Roque. Cuidar de Lady Claire. E trazei os assistentes!»
Robert de Kere entrou ofegante no salão. «Meu Senhor, os assistentes estão mortos. Morreram quando tentavam escapar!»
«Escapar? Eles tentaram escapar? Mesmo sabendo que isso iria pôr a vida do seu mestre em risco? Vinde comigo, Magister», disse Lord Oliver sombriamente. Oliver conduziu-o para uma porta lateral que dava directamente para o pátio.
Kate desceu de gatas a escada circular, com Marek e Chris logo atrás dela. No segundo andar tiveram que abrandar por causa de um grupo que descia à frente deles. A seguir à curva Kate avistou de relance damas que esperavam e os trajes vermelhos de um homem de idade que arrastava os pés. Atrás dela Chris gritou: «Qual é o problema?» e Kate ergueu uma mão num gesto de aviso. Foi preciso mais outro minuto até conseguirem irromper finalmente no pátio.
Era uma cena caótica. Cavaleiros montados chicoteavam o amontoado de gente em pânico para os forçar a afastarem-se. Ouviu os gritos da multidão, o relinchar dos cavalos e os berros dos soldados nas instalações mais acima.
«Por aqui», disse Kate, e conduziu Marek e Chris em frente, sempre encostados à muralha do castelo, rodeando a capela e passando pela parte lateral do pátio exterior, que avistavam igualmente repleto de multidão.
Viram Oliver a cavalo, o Professor a seu lado e uma companhia de cavaleiros de armadura. Oliver gritou qualquer coisa e todos se dirigiram em frente na direcção da ponte levadiça.
Kate deixou Marek e Chris para ir sozinha atrás deles e só conseguiu avistá-los já no final da ponte levadiça. Oliver virou à esquerda, afastando-se da cidade. Guardas abriram uma porta na parede leste e ele e a sua companhia saíram para o sol da tarde. A porta foi fechada rapidamente atrás deles.
Marek conseguiu alcançá-la. «Onde?», perguntou.
Apontou para o portão que era guardado por cerca de trinta guardas. Mas um número maior de guardas encontrava-se no topo da muralha acima deles. «Nunca conseguiremos sair por ali», disse. Logo atrás deles um grupo considerável de soldados atirou fora as túnicas castanhas, revelando novas indumentárias em verde e negro; começaram a abrir caminho para o castelo. As correntes da ponte levadiça começaram a gemer. «Vamos.»
Correram pela ponte levadiça, sentindo o estalar da madeira, sentindo nos pés que começava a subir. A ponte levadiça já subira cerca de três pés quando conseguiram chegar ao outro extremo e saltaram, aterrando em campo aberto.
«E agora?» disse Chris, levantando-se com dificuldade. Ainda empunhava a espada ensanguentada.
«Por aqui», disse Marek, e correu a direito para o centro da cidade.
Correram primeiro para a igreja, afastando-se em seguida pela estreita rua principal, onde combates renhidos já haviam começado: os soldados de Oliver erri castanho avermelhado e cinzento, e os de Arnaut em verde e negro. Marek conduziu-os para a esquerda através do mercado, que agora se encontrava deserto, com as mercadorias amontoadas e os mercadores desaparecidos. Tiveram de se afastar rapidamente para o lado quando uma companhia dos cavaleiros de Arnaut passou a galope, dirigindo-se para o castelo. Um deles tentou de'Sferir um golpe em Marek com o montante e gritou qualquer coisa ao passar. Marek ficou a vê-los passar e em seguida continuou.
Chris procurava sinais de mulheres assassinadas e de crianças desventradas e não sabia se havia de ficar desapontado ou aliviado por não ter visto nem uma coisa nem outra. Para dizer a verdade, não avistou nenhuma mulher ou criança. «Ou fugiram todos ou estão escondidos», disse Marek. «Já há muito tempo que as guerras passam por aqui. Esta gente sabe o que é que tem de fazer.» «Para que lado?» perguntou Kate. Era ela que seguia à frente.
«Para a esquerda na direcção do portão principal.»
Viraram à esquerda começando a descer uma rua estreita, e de repente ouviram gritar atrás deles. Olharam para trás e viram soldados em corrida que se aproximavam deles. Chris não era capaz de dizer se os soldados os perseguiam ou se procuravam simplesmente fugir. Mas não havia a menor razão para ficar à espera e tentar descobrir.
Marek desatou a correr; agora corriam todos e ao fim de algum tempo Chris olhou para trás avistando os soldados a começarem a perder terreno, o que o fez sentir por momentos um estranho orgulho; estavam a aumentar a distância entre eles.
Mas Marek não queria correr riscos. Abruptamente voltou para uma rua lateral que tinha um odor forte e desagradável. As lojas estavam todas fechadas mas caminhos estreitos corriam entre elas. Marek virou por um desses caminhos que os levou a um pátio vedado atrás de uma loja. Dentro do pátio viam-se enormes tonéis e cavaletes de madeira debaixo de um coberto. Ali o fedor era quase insuportável; uma mistura de carne em putrefacção e fezes. Era uma fábrica de curtumes.
«Rápido>, disse Marek, e saltaram a vedação ficando acocorados junto dos tonéis com aquele fedor insuportável.
«Mergulham as peles em merda de galinha», explicou Chris num murmúrio. «0 nitrogénio das fezes amacia o couro.»
«Estupendo», disse ela.
Às vezes também usam merda de cão.» «Melhor ainda.»
Chris olhou para trás e viu mais tonéis, e peles dispostas nos cavaletes. Aqui e ali, pilhas nauseabundas de um material amarelado parecido com queijo estavam dispersas pelo solo - gordura raspada da parte interior das peles. Kate disse: «Ardem-me os olhos.»
Chris apontou para a crosta branca dos tonéis que se encontravam à sua volta. Eram tonéis de cal, uma forte solução alcalina que removia todos os pêlos e pedaços de carne que haviam escapado depois da pele ter sido raspada. E eram, os vapores da cal que lhes faziam arder os olhos.
Nessa altura a sua atenção foi atraída para o caminho de onde se ouvia o ruído de pés em corrida e o entrechocar de metais. Pelas fendas da vedação ,viu Robert de Kere com sete soldados. Os soldados olhavam em todas as direcções enquanto corriam - procurando encontrá-los.
Porquê? Chris tentava adivinhar a causa, olhando em volta do tonel. Porque é que ainda continuavam a ser perseguidos? O que é que havia de tão importante a respeito deles que levasse de Kere a ignorar um ataque do inimigo e em vez disso tentar matá-los?
Aparentemente os perseguidores detestavam o cheiro do caminho tanto como Chris, porque dentro em breve de Kere ladrou uma ordem e todos fizeram meia volta, voltando à rua.
«Que raio é que foi aquilo?» disse finalmente Chris num sussurro. Marek limitou-se a abanar a cabeça.
E então ouviram homens que gritavam, e mais uma vez ouviram os soldados que voltavam a descer a rua a correr. Chris franziu as sobrancelhas. Como é que eles tinham conseguido ouvir? Olhou para Marek que também parecia perturbado. Da parte de fora do pátio ouviram de Kere que gritava: «lei! Ici!» Provavelmente de Kere tinha deixado um homem para trás. Tinha que ser isso, pensou Chris. Tinha a certeza de que não havia falado tão alto que pudesse ser ouvido. Marek começou a avançar mas em seguida hesitou. De Kere e os seus homens já estavam a trepar a vedação - oito homens ao todo; não conseguiam enfrentá-los a todos.
«André», disse Chris, apontando para o tonel. «É soda cáustica.»
Marek sorriu. «Então vamos a isso», respondeu, e começou a empurrar o tonel.
Os três apoiaram os ombros contra a madeira, e fazendo um grande esforço, conseguiram virar o tonel. A solução de soda cáustica coberta de espuma entornou-se no solo e deslizou na direcção dos soldados. O odor era acre. Os soldados reconheceram de imediato do que é que se tratava. Qualquer contacto com aquele líquido iria queimar a carne - e recuaram precipitadamente para a vedação onde se penduraram, tirando os pés do chão. Os postes da vedação começaram a fumegar e a síbilar quando a soda cáustica entrou em contacto com eles. A vedação começou a oscilar com o peso de todos os homens; gritaram e saltaram precipitadamente para a rua.
«A-
Agora», disse Marek. Conduziu-os para o fundo do pátio, debaixo de um coberto, e daí passaram para outro caminho.
A tarde chegara ao fim e a luz começara a desaparecer; em frente viram casas agrícolas em chamas, projectando sombras fantasmagóricas no solo. Antes tinham-se verificado tentativas para apagar os fogos, mas agora tinham desistido; o colmo ardia ferozmente, crepitando enquanto fiapos em brasa se elevavam no ar,
Seguiam por um caminho estreito que deslizava entre chiqueiros. Os porcos resfolegavam e guinchavam, aterrados pelas labaredas que se encontravam proximo.
Marek contornou os fogos, dirigindo-se para o portão sul, por onde haviam entrado inicialmente. Mas mesmo à distância conseguiam ver que o portão era cena de uma luta renhida; a entrada estava quase que bloqueada com os corpos de cavalos mortos; os soldados de Arnaut avançavam a custo por cima dos corpos para chegarem junto dos defensores que se encontravam no interior, que combatiam amargamente usando machados e espadas.
Marek voltou-se, recuando apressadamente através da área agrícola. «Onde é que vamos?» disse Chris.
«Não sei lá muito bem», explicou Marek. Observava a muralha que rodeava a cidade. Soldados corriam ao longo dela, dirigindo-se para o portão sul para tomarem parte no combate. «Quero subir aquela muralha.»
«Subir a muralha?»
«Ali.» Apontou para uma abertura sombria e estreita na muralha com degraus no sentido ascendente. Emergiram no topo da muralha da cidade. Daquele ponto absolutamente vantajoso podiam ver que uma parte cada vez maior da cidade estava a ser dominada pelas chamas; as chamas estavam cada vez mais perto das lojas. Dentro em pouco Castelgard estaria em chamas. Marek olhou da muralha para os campos que se encontravam à distância. O solo encontrava-se cerca de vinte metros abaixo. Viam-se alguns arbustos com um metro e meio de altura, que parecia serem suficientemente macios para amortecerem o seu impacto. Mas cada vez se via com mais dificuldade.
«Mantém-te solto», disse. «Descontrai o corpo.» «Mantenho-me solto?», perguntou Chris.
Mas entretanto Kate já passara para o outro lado, tendo ficado pendurada da muralha. Largou-se e caiu livremente, aterrando nos pés como um gato. Olhou para cima na direcção deles e acenou.
«É alto como o caraças», disse Chris. «Não estou interessado em partir
uma perna...».
Do lado direito ouviram gritos. Três soldados corriam ao longo da muralha de espada desembainhada.
«Então não partas», disse Marek e saltou. Chris saltou logo a seguir e aterrou no solo resmungando e rolando sobre si próprio. Pôs-se lentamente de pé. Nada partido.
Começava a sentir-se aliviado e até bastante contente consigo próprio quando a primeira flecha sibilou junto das orelhas e se cravou com um som cavo entre os pés. Soldados disparavam contra eles do topo da muralha. Marek agarrou-lhe no braço e correu para uma densa sebe de arbustos que se encontrava a cerca de três metros de distância. Atiraram-se para o solo e esperaram.
Quase que de imediato mais flechas sibilaram por cima das suas cabeças, mas desta vez vinham do exterior das muralhas do castelo. Na escuridão que aumentava de momento a momento Chris mal conseguia ver os soldados em verde e negro que se encontravam no sopé da colina.
«São os homens de Arnaut!» disse Chris. «Porque é que eles estão a disparar contra nós?»
Marek não respondeu; afastava-se a rastejar, a barriga colada ao solo. Kate rastejava atrás dele. Uma flecha passou por Chris a sibilar, tão perto que lhe rasgou o gibão no ombro e o fez sentir uma dor aguda.
Atirou-se rapidamente para o solo e começou a rastejar atrás dos outros dois.
28:12:39
«Tenho boas notícias e más notícías>, disse Diane Kramer, entrando no gabinete de Doniger minutos antes das nove da manhã. Doniger estava sentado diante do teclado do computador, debicando o teclado com uma mão enquanto na outra segurava uma lata de Coca Cola.
«Dá-me primeiro as más notícias», disse Doniger.
«0 nosso pessoal que ficou ferido foi levado para o University Hospital. Quando chegaram lá na noite passada, adivinha quem é que estava de serviço! A mesma médica que cuidou de Traub em Gallup. Uma mulher chamada Tsosie,»
«A mesma médica trabalha nos dois hospitais?»
«Exactamente. A maior parte do tempo está no UH, mas faz dois dias por semana em Gallup.»
«Merda», exclamou Doniger. «E isso é legal?»
«Podes ter a certeza de que sim. De qualquer modo, a Dra. Tsosie deu-se ao cuidado de examinar os nossos técnicos à lupa. Chegou ao ponto de mandar três deles fazer uma ressonância magnética. Teve o maior cuidado em reservar o scannerlogo que soube que se tratava de um acidente envolvendo gente do ITC.»
«Uma ressonância magnética?» Doniger franziu as sobrancelhas. «Isso significa que ela deve ter chegado à conclusão de que Traub foi desintegrado.» «Acho que sim», respondeu Kramer. «Porque, segundo parece, também fizeram uma a Traub. Não há dúvida de que ela estava à procura de qualquer coisa. Defeitos físicos. Desalinhamentos do corpo.»
«Merda», exclamou Doniger.
«Também fez um cavalo de batalha do seu inquérito, deixando toda a gente no hospital irritada e paranóica, e chegou ao ponto de chamar aquele chui de Gallup, Wauneka. Parece que são amigos.»
, Doniger resmungou. «Preciso tanto disto», exclamou, «como de outro olho do cu.»
«Agora queres as boas notícias?» «Venham elas->
«Wauneka telefona para a Polícia de Albuquerque. O próprio chefe vai ao hospital. Meia dúzia de repórteres. Toda a gente sentadinha à espera das grandes notícias. Estão à espera de radioactividade. Estão à espera de qualquer coisa a brilhar na escuridão. Em vez disso... grande embaraço. Em qualquer dos casos trata-se apenas de ferimentos superficiais. Na sua maioria devidos a estilhaços de vidro. Mesmo os ferimentos por estilhaços são superficiais; os pedaços de metal ficaram embebidos apenas na camada superficial da pele.»
«os escudos de água devem ter amortecido o impacto dos fragnentos», disse Doniger.
«Também acho que sim. Mas as pessoas estão muito desapontadas. E agora o acontecimento para fechar esta história com chave de ouro - a IRM - o golpe de misericórdia - é um barrete repetido por três vezes. Nenhum dos nossos homens apresenta qualquer erro de transcrição. Porque, como é evidente, se trata apenas de técnicos. O chefe da polícia de Albuquerque está pior do que uma barata. O administrador do hospital está na mesma ou ainda pior. Os repórteres foram-se embora para cobrirem o incêndio de um bloco de apartamentos. Entretanto um tipo qualquer com pedras nos rins quase que morre porque não lhe podem fazer uma ressonância, uma vez que a Dra. Tsosie tinha tomado conta da máquina. De um momento para o outro começa a sentir-se preocupada com o seu emprego. Wauneka sente-se humilhado. Procuram ambos fazer esquecer o que se passou.»
«Perfeito», disse Doniger, dando um murro na mesa. «Esses chatos de merda estavam a merecê-lo.»
«E para cúmulo disto tudo», anunciou Kramer num tom triunfante, «a rePórter Francesa Louise Delvert concordou em visitar as nossas instalações.» «Até que enfim! Quando?»
«Na próxima semana. Vamos fazer com ela a habitual visita da treta.» «Começa a ser um dia mais do que bom», disse Doniger. «Estás a ver, até somos capazes de remediar tudo aquilo que se passou. Não achas?»
«A malta das notícias está aí ao meio-dia.» «Isso pertence às más notícias», disse Doniger.
«E Stern encontrou o velho protótipo da máquina. Quer regressar. Gordon, respondeu que não era possível de maneira nenhuma, mas Stern quer que tu confirmes que ele não pode ir.»
Doniger fez uma pausa. «Na minha opinião acho que o devemos deixar ir, «Bob ... »
«Porque é que ele não havia de ir?» perguntou Doniger.
«Porque é perigoso como a porra. Esta máquina tem uma blindagem mínima. já não é usada há anos e tem a história de ter causado grandes erros de transcrição nas pessoas que a usaram. Até pode nem sequer ser capaz de regressar.»
«Eu sei disso», respondeu Doniger fazendo um gesto com a mão. «Mas o problema não está aí.»
«Onde é que está o problema?», perguntou ela confusa. «Baretto.»
«Baretto?»
«Será que estou a ouvir um eco? Diana, pensa pelo amor de Deus.» Kramer franziu as sobrancelhas ao mesmo tempo que abanava a cabeça. «Junta os factos. Baretto morreu no primeiro ou segundo minuto da viagem
de volta. Certo? Houve alguém que o encheu de flechas logo no início da viagem.» «SIM ... »
«Os primeiros minutos», disse Doniger, «é a altura em que toda a gente ainda se encontra junta em volta das máquinas, como um grupo. Certo? Sendo assim, como é que poderemos pensar que Baretto foi morto e os outros não?» Kramer não disse nada.
«Aquilo que é razoável pensar é que, quem quer que seja que tenha morto Baretto, provavelmente matou-os todos. Matou o grupo completo.»
«Okay ... »
«Isso quer dizer que o mais provável é que ninguém vai regressar. O Professor também não vai regressar. O grupo todo está perdido. Eu sei que é uma infelicidade, mas podemos lidar com um caso de um grupo de gente desaparecida: um trágico incidente de laboratório em que todos os corpos ficam incinerados, ou um desastre de avião em que toda a gente perde a vida, não sei o que é que poderá ser pior ... »
Seguiu-se uma pausa.
«Excepto que temos o caso do Stern», disse Kramer. «Ele está ao corrente da história toda.»
«É um facto.»
«É por isso que também o queres mandar de volta. Também te queres livrar dele. Limpeza total.»
«De modo nenhum», respondeu Doniger prontamente. «Hey, sou contra i$so. Mas o rapazinho está a oferecer-se como voluntário. Quer ajudar os amigos. Não estaria certo da minha parte levantar-lhe problemas.»
«Bob», disse ela, «há certas alturas em que consegues ser mesmo um estupor inuito grande.»
Doniger começou de repente a rir à gargalhada. Tinha um tipo de gargalhada em tom agudo, histérico, fazendo lembrar um miúdo. Era a maneira como a maior parte dos cientistas se riam, mas fazia sempre lembrar a Kramer o riso de uma hiena.
«Se deixares que Stern faça a viagem de regresso, eu demito-me.»
isto fez com que Doniger se risse ainda mais. Sentado na sua cadeira, deixava cair a cabeça para trás. Esta situação fez com que ela se irritasse.
«Estou a falar a sério, Bob.»
Finalmente terminou de rir, limpando as lágrimas dos olhos. «Diane, vá lá», disse. «Estava a brincar. É evidente que Stern não pode fazer a viagem de regresso. Onde é que está o teu sentido de humor?»
Kramer voltou-se para sair. «Vou dizer a Stern que não pode fazer a viagem de regresso», disse ela, «mas deiXa-te de tretas porque não estavas nada a brincar.» Doniger começou a rir novamente e as gargalhadas de hiena encheram a sala. Kraner saiu batendo com a porta irritadamente.
27:27:22
Durante os últimos quarenta minutos tinham trepado através da floresta a nordeste de Castelgard. Finalmente chegaram ao cimo da colina, o ponto mais alto da área, e puderam fazer uma pausa para retomar o alento e olhar para baixo.
«Ol-i meu Deus», exclamou Kate boquiaberta.
Olharam para baixo na direcção do rio e do mosteiro situado na outra margem. Mas a sua atenção foi atraída pelo sinistro castelo situado muito acima do mosteiro: a fortaleza de La Roque. Era enorme. Contrastando com o azul profundo do anoitecer o castelo refulgia com a luz de uma centena de janelas e de tochas colocadas ao longo das muralhas. Mas apesar das luzes brilhantes a fortaleza era aterradora. As muralhas erguiam-se num negro profundo acima das águas imóveis do fosso. Na parte interior via-se outro conjunto completo de muralhas, com muitas torres redondas e, no centro do complexo, o verdadeiro castelo, com o seu próprio grande salão e uma escura torre rectangular erguendo-se a uma altura de mais de trinta metros.
Marek disse a Kate: «Achas que se parece com o moderno La Roque?» «De modo nenhum», respondeu abanando a cabeça. «Esta coisa é monstruosa. O castelo moderno tem apenas uma muralha exterior. Este tem duas: uma muralha adicional que já não existe.»
«Tanto quanto sei», disse Marek, «nunca ninguém o conseguiu conquistar.» «É fácil de ver porquê», disse Chris. «Repara no modo como foi construído.» A leste e a sul a fortaleza havia sido construída no topo de uma falésia calcária, cortada a pique numa altura de mais de cento e cinquenta metros até ao rio Dordogne. A oeste, onde a falésia era menos vertical, as casas de pedra da cidade trepavam até ao castelo, mas quem quer que seguisse o caminho "través da cidade iria terminar num beco sem saída, deparando com um fosso e várias pontes levadiças. A norte o terreno tinha um declive mais suave, mas todas as árvores a norte haviam sido cortadas, deixando um terreno exposto sem qualquer cobertura - uma aproximação suicida para qualquer exército. Marek apontou. «Olha para aquilo», disse.
À luz difusa do anoitecer um grupo de soldados aproximava-se do castelo por uma estrada poeirenta vinda do ocidente. Dois cavaleiros seguiam à frente empunhando tochas e com aquela luz podiam distinguir com dificuldade Sir Oliver, Sir Guy, o Professor, e o resto dos cavaleiros de Oliver que o seguiam em duas colunas. Os vultos estavam tão distantes que, na realidade, só os reconheceram pela forma do corpo e pela postura. Mas Chris, pelo menos, não tinha a menor dúvida daquilo que estava a ver.
Suspirou ao ver os cavaleiros atravessarem uma ponte levadiça sobre um fosso, passando por um enorme portão ladeado por duas torres em meia-lua -a que se chamava portão em D duplo, porque as torres se pareciam com um par de Us quando eram vistas de cima. Soldados colocados no topo das muralhas observavam os cavaleiros enquanto eles passavam a ponte levadiça.
Transpondo o portão os cavaleiros entraram num outro pátio fechado. Neste pátio haviam sido erguidas muitas construções em madeira. «É onde as tropas se encontram acantonadas», explicou Kate.
O grupo continuou atravessando o pátio interior, cruzou um segundo fosso atravessando uma segunda ponte levadiça e passando por um novo portão ladeado por duas torres ainda maiores: dez metros de altura e brilhando com a luz de dúzias de seteiras.
Só então é que desmontaram, no pátio mais interior do castelo. O Professor era conduzido por OliVer na direcção do grande salão; passaram a porta desaparecendo da vista.
Kate disse: «As instruções do Professor foram de que, se nos separássemos, fôssemos directamente ao mosteiro e descobríssemos o Irmão Marcel que tem a chave. Parto do princípio de que será a chave para a passagem secreta.»
Marek acenou com a cabeça. «E é isso mesmo que vamos fazer. Dentro em pouco já é noite. Nessa altura já podemos ir.»
Chris olhou para os campos no sopé da colina. Na escuridão do anoitecer conseguia distinguir pequenos bandos de soldados que vagueavam ao longo da margem do rio. Tinham que passar por todos aqueles soldados. «Queres ir ao mosteiro esta noite?»
Marek acenou com a cabeça. «Por muito perigoso que possa parecer ir agora», disse ele, «amanhã de manhã será muito pior.»
26:12:01
Não havia luar. O céu estava negro, cravejado de estrelas, com uma ocasional nuvem que se deslocava preguiçosamente. Marek conduziu-os colina abaixo, atravessaram a cidade em chamas de Castelgard e chegaram a um terreno sem iluminação. Chris ficou surpreendido ao descobrir que, depois dos olhos se ajustarem, conseguia de facto ver bastante bem à luz das estrelas. Provavelmente porque não havia poluição do ar, pensou. Recordou-se de ter lido que, em séculos anteriores, as pessoas conseguiam avistar Vénus durante o dia do mesmo modo como agora podemos ver a Lua. Era evidente que há centenas de anos que isso se tornara impossível.
Também se sentía surpreendido com o silêncio total da noite. O som mais alto que conseguia ouvir era o dos seus pés a moverem-se através da relva e dos arbustos rasteiros.
, «Vamos pela vereda», disse Marek num murmúrio. «E em seguida descemos até ao rio. »
O seu progresso era lento. Frequentemente Marek fazia uma pausa, colocando-se de cócoras durante dois ou três minutos para escutar antes de prosseguir. Havia passado mais de uma hora quando chegaram à vista do caminho Poeirento que conduzia da cidade até ao rio. Parecia um risco pálido contrastando com a relva e folhagem em tons mais escuros que o rodeavam.
Chegados aí Marek fez uma pausa. O silêncio à volta deles era completo. Distinguia apenas o leve som do vento. Chris estava impaciente por continuar. Depois de mais de um minuto de espera, começou a levantar-se.
Marek puxou-o para baixo. Levou um dedo aos lábios.
Chris escutou. Chegou à conclusão de que era mais do que o vento. Também se ouvia o som de homens que sussurravam. Fez um esforço para ouvir. Algures à sua frente ouviu-se alguém que tossia levemente. Em seguida outro acesso de tosse, mais perto, do outro lado do caminho.
Marek apontou para a esquerda e para a direita. Chris avistou um ténue brilho metálico - o reflexo de armaduras à luz das estrelas - no meio dos arbustos do outro lado da vereda.
E ouviu um restolhar mais próximo.
Era uma emboscada, com soldados que aguardavam em ambos os lados da vereda.
Marek apontou para o caminho por onde haviam chegado. Silenciosamente afastaram-se da vereda.
«E agora?», perguntou Chris num murmúrio.
«Vamos manter-nos distantes da vereda. Seguimos para leste em direcção ao rio. Por aqui.» Marek apontou o caminho a seguir e iniciaram a marcha. Chris agora estava tenso, procurando ouvir o mais pequeno ruído. Os seus
próprios passos eram um ruído tão elevado que podiam mascarar qualquer outro som, Compreendia agora porque é que Marek parara tantas vezes. Era a única maneira de ter a certeza.
Recuaram cerca de cento e cinquenta metros na vereda e, em seguida, dirigiram-se para o rio, movendo-se em campo mais desimpedido. Embora a escuridão fosse quase total, Chris sentia-se exposto. Os campos eram vedados com muros baixos em pedra, o que lhes dava uma pequena cobertura. Mas mesmo assim não se sentia à vontade e deu um suspiro de alivio quando entraram novamente em terreno de arbustos e vegetação rasteira, onde a escuridão era maior.
Este mundo negro e silencioso era-lhe completamente estranho e, no entanto, rapidamente se ajustou a ele. O perigo escondia-se nos mais pequenos movimentos, em sons que eram quase inaudíveis. Chris movia-se curvado, tenso, testando cada passo antes de aplicar todo o seu peso, a cabeça movendo-se constantemente para a esquerda e para a direita, para a esquerda e para a direita.
Sentia-se como um animal, e lembrou-se do modo como Marek mostrara osdentes antes do ataque na sala, como se fosse uma espécie qualquer de macaco. Olhou para Kate e viu que também ela se curvava para a frente e estava
tensa enquanto avançava.
Por uma razão qualquer deu consigo a pensar na sala de reuniões do Peabody, nos tempos de Yale, com as suas paredes pintadas de creme, o mobiliário em madeira escura polida, e as discussões entre os estudantes licenciados sentados em volta da mesa: se a arqueologia processual era primariamente histórica ou primaríamente arqueológica, se os critérios formais se sobrepunham aos critérios objectivistas, se a doutrina derivacionista ocultava um compromisso normativo.
Não era de admirar que discutissem. As sÍtuações não eram mais do que puras abstracções, não passando de ar rarefeito - e ainda por cima ar quente. Os seus debates vazios nunca permitiriam chegar a uma conclusão; as questões nunca poderiam ser respondidas. E, no entanto, houvera tanta intensidade, tanta paixão nesses debates! De onde é que tudo isso viera? Quem é que se importava? Neste momento não era capaz de se lembrar porque é que tudo lhe parecera tão importante.
O mundo académico parecia diluir-se à distância, vago e cinzento na sua memória, enquanto ele descia a escura encosta da colina em direcção ao rio, E, no entanto, por muito aterrorizado que se sentisse naquela noite, por muito tenso que estivesse e com a sensação de risco de vida, era absolutamente verdade que, de certo modo, era tranquilizador, até mesmo estimulante, e...
Ouviu um ramo estalar e imobilizou-se.
Marek e Kate também se imobilizaram.
Ouviram um restolhar suave nos arbustos do lado esquerdo e um leve resfolegar. Ficaram imóveis. Marek empunhou a espada.
E o pequeno vulto escuro de um porco selvagem passou velozmente por eles. «Devia tê-lo morto», disse Marek num sussurro. «Estou cheio de fome.» Recomeçaram a marcha, mas então Chris verificou que não haviam sido
eles que tinham assustado o porco. Porque agora ouviam sem a menor dúvida O som de muitos Pés a correr. Restolhando, esmagando a vegetação. Vindo na direcção deles.
Marek franziu as sobrancelhas.
Naquela escuridão conseguia ver o suficiente para avistar de vez em quando breves reflexos de armaduras. Deviam ser sete ou oito soldados seguindo rapidamente para leste, para em seguida se deixarem cair no terreno, escondendo-se mais uma vez entre a vegetação e ficando silenciosos.
Que raio é que se estava a passar?
Estes soldados haviam voltado à vereda, esperando por eles. Agora os soldados deslocavam-se para leste, e estavam de novo à espera deles.
Como? Olhou para Kate que se encontrava acocorada ao lado dele, mas não conseguiu distinguir mais do que medo.
Chris, também de cócoras, deu uma leve sapatada no ombro de Marek. Chrís apontou a cabeça e em seguida apontou deliberadamente para os seus ouvidos.
Marek acenou com a cabeça e escutou. Inicialmente não conseguiu ouvir mais do que o vento. Espantado voltou a olhar para Chris que fez um gesto nítido junto da orelha.
Estava a dizer, liga os auriculares. Marek bateu no auricular.
Depois de um breve crepitar quando o som voltou, não ouviu nada. Encolheu os ombros na direcção de Chris, que ergueu as mãos com as palmas voltadas para ele: Espera. Marek esperou. Só ao fim de alguns momentos de escuta cuidadosa é que teve consciência do som suave e regular de uma pessoa a respirar.
Olhou para Kate e levou o dedo aos lábios. Ela acenou com a cabeça em sinal de compreensão. Olhou para Chris. Também fez o mesmo gesto. Ambos haviam compreendido. Não fazer o menor ruído.
Mais uma vez Marek ouviu atentamente. Continuava a ouvir nos auriculares o som de uma respiração tranquila.
Mas não vinha de nenhum deles. Era de outra pessoa qualquer.
Chris disse num murmúrio: «André, isto está a ficar demasiado perigoso. O melhor é não atravessarmos o rio esta noite.»
«Está certo», respondeu Marek num sussurro. «Regressamos a Castelgard e escondemo-nos na parte de fora das muralhas para passar a noite.»
«Okay. É o melhor.» «Vamos.»
, Na escuridão acenaram uns para os outros e em seguida bateram nos auriculares desligando os dispositivos.
E voltaram a colocar-se de cócoras para esperarem.
pouco tempo depois ouviram os soldados que começavam a mover-se, mais uma vez correndo por entre a vegetação rasteira. Desta vez subiam a colina - de regresso a Castelgard.
Esperaram mais cinco ou seis minutos. E em seguida começaram a descer a colina, afastando-se de Castelgard.
Fora Chris quem conseguira juntar as peças. Enquanto desciam a colina no meio da noite sacudira um mosquito da orelha e o movimento voltara a ligar inadvertidamente os auriculares; momentos depois começou a ouvir alguém que espirrava.
E nenhum deles tinha espirrado.
Momentos depois chegaram junto do chiqueiro e nessa altura conseguia ouvir nitidamente alguém ofegante. E no entanto Marek e Kate encontravam-se junto dele na escuridão não fazendo um único movimento.
Foi quando chegou à conclusão de que mais alguém tinha um auricular - e pensando melhor no assunto, tinha uma ideia bastante razoável de onde é que tinha vindo. Gomez. Alguém o devia ter tirado da cabeça cortada de Gomez. O único problema a respeito desta ideia era de que...
Marek deu-lhe uma cotovelada. E apontou em frente. Kate ergueu o polegar e sorriu.
Amplo e plano, o rio ondulava e gorgolejava levemente na noite. Naquele ponto o Dordogne era bastante largo; viam com dificuldade a margem oposta, uma linha de árvores escuras e densa vegetação rasteira. Não viam qualquer sinal de movimento. Olhando rio acima Chris não conseguia avistar mais do que os contornos da ponte do moinho. Sabia que o moinho estaria fechado à noite; os moleiros só podiam trabalhar durante as horas do dia porque mesmo uma vela podia fazer correr o risco de uma explosão com o pó que anda no ar.
Marek tocou Chris no braço e em seguida apontou para a margem oposta. Chris encolheu os ombros; não conseguia ver nada.
Marek apontou novamente.
Fazendo um esforço, Chris conseguiu distinguir com dificuldade quatro traços de fumo que se erguiam no ar. Mas se vinham de fogueiras, porque é que não se via a luz das chamas?
Seguindo a margem começaram a subir o rio até que a dada altura chegaram junto de um barco que se encontrava amarrado na praia. A corrente fazia-o embater ritmicamente contra as rochas. Marek olhou para a margem oposta. Agora já se encontravam a uma certa distância do fumo.
Apontou para o barco. Estavam na disposição de arriscar?
Chris sabia perfeitamente que a alternativa era atravessarem o rio a nado. A noite estava fria; não estava interessado em ficar encharcado. Apontou para o barco e acenou com a cabeça.
Kate fez o mesmo.
Entraram para o barco e Marek começou a remar calmamente, atravessando o Dordogne.
Sentada ao lado de Chris, Kate deu consigo a pensar na conversa que haviam tido quando atravessavam o rio alguns dias antes. Quantos dias haviam passado? Chegou à conclusão de que não devia ter sido há mais de dois dias. Mas parecia que já haviam passado semanas.
Tentou vislumbrar o que se passava na outra margem, procurando qualquer sinal de movimento. O seu barco seria uma forma escura em águas negras num fundo de uma colina escura, mas mesmo assim continuariam a ser visíveis se alguém olhasse com cuidado.
Mas aparentemente ninguém estava a olhar. A praia estava agora mais proxima até que, com um ranger o barco passou a relva e se deteve suavemente. Saíram do barco. Viram uma estreita vereda poeirenta que seguia a margem do rio. Marek fez um sinal levando os dedos aos lábios, e começou a descer a vereda. Caminhava na direcção do fumo.
Seguiram atrás dele cautelosamente.
Minutos mais tarde tiveram a resposta que procuravam. Havia quatro fogueiras ao longo da margem. As chamas estavam rodeadas por peças de armadura no cimo de montes de terra, pelo que só o fumo era visível.
Mas não se avistavam soldados.
Marek disse num murmúrio. «Um truque muito velho. As fogueiras dão ma falsa posição.»
/ Kate não estava lá muito certa daquilo que o velho truque pretendia conseguir. Talvez indicar uma força maior, maiores números do que aqueles que
na realidade existiam. Marek conduziu-os ao longo das fogueiras onde não se via ninguém, na direcção de outras fogueiras posicionadas a uma maior distància ao longo da margem. Estavam perto da água, conseguindo ouvir o gorgulhar do rio. Quando chegaram à última fogueira Marek voltou-se de repente e deixou-se cair no solo. Kate e Chris também se deixaram cair e nessa altura ouviram vozes cantando uma lengalenga repetitiva, típica de bêbados; os versos eram mais ou menos o seguinte: «A cerveja faz um homem adormecer à lareira, a cerveja faz um homem rebolar na lama ... »
Repetia-se interminavelmente. Ouvindo os versos, pensou: Faz lembrar o Vínetynine Bott/es ofBeer on the Wall" E quando ergueu a cabeça para tentar ver o que se passava, avistou meia dúzia de soldados em verde e negro sentados em volta de uma fogueira, bebendo e cantando aos berros. Talvez lhes tivessem dado instruções para fazerem barulho suficiente que justificasse todas aquelas fogueiras.
Marek fez-lhes sinal para recuarem, e quando já se encontravam a uma certa distância, conduziu-os para a esquerda, afastando-se do rio. Deixaram para trás a cobertura das árvores que bordejavam o rio e momentos depois já deslizavam em campo aberto com terreno escorregadio. Chegou à conclusão de que eram os mesmos campos onde haviam passado naquela manhã. E não havia dúvida de que agora conseguia avistar ténues luzes amarelas nas janelas superiores do mosteiro, provavelmente por causa de monges que trabalhavam até mais tarde. E à sua frente os contornos escuros de cabanas de agricultores com os seus tectos de colmo.
Chris apontou para o mosteiro. Porque é que não iam directamente para lá? Marek desenhou com as mãos os contornos de uma almofada: Toda a gente estava a dormir.
Chris encolheu os ombros: E depois?
Marek executou uma pantomina de alguém que é acordado, espantado, alarmado. Parecia querer dizer que iriam fazer ondas de mais se aparecessem a meio da noite.
Chris voltou a encolher os ombros: E então?
Marek acenou com um dedo: Não era uma boa ideia. Pronunciou silenciosamente: De manhã.
Chris suspirou.
Marek passou as cabanas dos camponeses até chegar a uma casa agrícola que havia sido consumida pelas chamas - quatro paredes e os restos enegrecidos de vigas que haviam suportado um tecto de colmo. Conduziu-os para o interior através de uma porta onde havia sido pintado um risco vermelho. Kate conseguia ver com extrema dificuldade no meio de toda aquela escuridão.
Dentro da cabana havia relva alta e algumas peças partidas de louça de barro. Marek procurou no meio da relva até encontrar dois potes de barro que já se encontravam estalados. Kate achava que se pareciam com bacios. Marek colocou-os com o maior cuidado no parapeito de uma janela que fora devorada pelas chamas. Kate perguntou num sussurro: «Onde é que dormimos?» Marek apontou para o chão.
«Porque é que não podemos ir para o mosteiro?», perguntou num murmúrio, fazendo um gesto na direcção do céu acima deles. A noite estava fria. Ela estava esfomeada. Queria o conforto de um espaço fechado.
«Não é seguro», murmurou Marek. «Dormimos aqui.» Deitou-se no chão e fechou os olhos.
«Porque é que não é seguro, perguntou ela?»
«Porque há alguém que tem um auricular. E eles sabem para onde é que nos dirigimos.»
Chris disse: «Queria falar contigo sobre ... »
«Agora não», respondeu Marek sem abrir os olhos. «Toca a dormir.» Kate deitou-se e Chris deitou-se ao lado dela que empurrou as costas contra as dele. Era apenas uma tentativa de conseguir mais um bocado de calor. Estava frio como o raio.
Ao longe ouviu o som cavo da trovoada.
Algum tempo depois da meia-noite começou a chover. Sentiu as primeiras gotas pesadas a aterrarem-lhe no rosto e levantou-se quando começou a carga de água. Olhou em volta e avistou uma pequena construção de madeira, parcialmente queimada mas que ainda se encontrava de pé. Rastejou para dentro dela sentando-se muito direita, mais uma vez encostada a Chris que fora atrás dela. Marek chegou pouco depois, deitou-se ao lado e adormeceu imediatamente. Viu as gotas de chuva que lhe fustigavam a cara, mas continuava a ressonar calmamente.
26:12:01
Meia dúzia de balões de ar quente erguiam-se acima das mesas, iluminados pelo sol da manhã. Eram quase onze horas. Um dos balões tinha uma decoração em ziguezague que fazia recordar a Stern as pinturas dos Navajos.
«Lamento», estava Gordon a dizer, «mas a resposta é não. Não pode regressar no protótipo, David. É mais do que perigoso.»
«Porquê? Estava convencido de que tudo isto era seguro. Mais seguro do que andar de automóvel. Onde é que está o perigo?»
«Tinha-lhe dito que não temos erros de transcrição - os erros que podem acontecer durante a reconstrução», respondeu Gordon. «Mas isso não é exactamente verdade.»
«Ah.» «Normalmente é verdade que não conseguimos encontrar o menor vestígiô de erro. Mas o mais provável é que aconteçam em cada viagem. São apenas demasiado insignificantes para poderem ser detectados. Mas como acontece no caso da exposição às radiações, os erros de transcrição são cumulativos. Não os conseguimos ver depois de uma viagem mas, ao fim de dez ou vinte viagens, os sinais começam a ser visíveis. Um pequeno risco na córnea, ou então poderão começar a ser detectados sintomas importantes como diabetes ou problemas circulatórios. Quando isto acontece não é possível fazer mais viagens. Porque não se pode permitir que os problemas fiquem piores. Isto quer dizer que se atingiu o limite de viagens.»
«E foi isso que aconteceu?»
«Sim, no caso de alguns animais de laboratório. E a várias pessoas. Os pioneiros - aqueles que usaram esta máquina protótipo.»
Stern hesitou. «Onde é que essa gente está agora?»
«A maior parte deles ainda aqui está. Ainda trabalham para nós. Mas não viajam mais. Não podem.»
«Tudo bem, respondeu Stern, «mas eu estou a falar de uma única viagem.» «E há muito tempo que esta máquina não é usada ou calibrada.» Gordon disse: «Poderá estar okay e poderá não estar. Veja uma coisa: suponha que regressa e depois de ter chegado a 1357 descobre que tem erros tão graves que não se atreve a voltar. Porque não pode correr o risco de ter mais acumulação.»
«Está a dizer-me que teria que ficar lá.» «Exacto.»
Stern disse: «Isso já alguma vez aconteceu a alguém?» Gordon fez uma pausa. « Provavelmente.»
«Está a querer dizer-me que há alguém que ainda lá se encontra?» « Provavelmente», disse Gordon. «Não temos a certeza.»
«Mas é muito importante sabermos uma coisa dessas», exclamou Stern de súbito excitado. «Está a dizer-me que talvez já lá esteja alguém que os pode ajudar.»
«Não sei», respondeu Gordon, «se essa pessoa em particular os ajudaria.» «Mas não acha que se lhes devia ter dito? Aconselhá-los?»
«Não temos qualquer meio de comunicar com eles.»
«Se quer que lhe diga», respondeu Stern, «acho que temos.»
16:12:23
A tremer e cheio de frio, Chris acordou antes do nascer do sol. O céu estava de um cinzento pálido e o terreno coberto por um fino orvalho. Estava sentado debaixo do coberto, os joelhos encostados ao queixo, as costas contra a parede. Kate estava sentada ao lado dele, ainda adormecida. Torceu o corpo para espreitar para fora e estremeceu com a dor que sentiu. Todos os seus músculos estavam doridos e anquilosados - braços, pernas, peito, tudo. O pescoço doeu-lhe quando voltou a cabeça.
Sentia-se surpreendido ao ver que o ombro da sua túnica estava rígido com sangue seco. Aparentemente a flecha da noite anterior ferira-o o suficiente para fazer com que sangrasse. Chris tentou mover o braço, sustendo a respiração com medo do que pudesse sentir, mas chegou à conclusão de que não havia problemas.
Estrerneceu com a humidade da manhã. Aquilo de que agora precisava era de uma boa fogueira que o aquecesse e de qualquer coisa para comer. O seu estômago reclamava alimento. Não comia há mais de vinte e quatro horas. E tinha sede. Onde é que eles iam encontrar água? Seria possível beber a água do Dordogne? Ou seria melhor procurarem uma fonte? E onde é que iam encontrar comida?
Voltou-se para perguntar a Marek, mas ele não estava ali. Tentou percorrer com o olhar toda a casa - uma dor aguda, dores intensas - mas Marek desaParecera.
Começara a tentar pôr-se de pé quando ouviu o ruído de passos que se aproximavam. Marek? Chegou à conclusão de que não podia ser: ouvia passos de mais do que uma pessoa. E ouvia também o suave ruído metálico de uma cota de malha.
Os passos aproximaram-se e em seguida detiveram-se. Susteve a respiração, A sua direita, a pouco mais de um metro de distância da sua cabeça, surgiu uma luva em malha de aço através da janela, descansando no parapeito. A manga sobre a luva era verde, com desenhos em negro.
Homens de Arnaut.
«Hic nemo habitavit nuper», disse uma voz de homem.
Ouviu-se uma resposta vinda da porta de entrada. «Et intellego quare. Specta, porta habet signum rubrum. Esme pestilentiae?»
«Pestilentiae? Certo sciSne?Abeamus!»
A mão desapareceu rapidamente e os passos afastaram-se apressados. Os auriculares não haviam traduzido nada porque o dispositivo estava desligado. Tinha que se basear nos seus conhecimentos de Latim. O que é que era pestilentiae? Provavelmente "praga'. Os soldados tinham visto a marca na porta e tinham-se afastado rapidamente.
Santo Deus, pensou ele, seria uma casa atingida pela peste. Seria por isso que tinha sido queimada? Ainda se corria o risco de apanhar a peste? Pensava em tudo isto quando viu horrorizado um rato negro surgir do meio da relva e passar a porta em corrida. Chris estremeceu. Kate acordou e bocejou. Que horas são ...
Ele comprimiu um dedo contra os lábios e abanou a cabeça.
Ainda conseguia ouvir os homens que se afastavam, embora as vozes se fossem tornando indistintas naquela manhã cinzenta. Chris deslizou de baixo do coberto, ergueu-se até à janela e espreitou para fora cautelosamente.
Viu pelo menos uma dúzia de soldados, dispostos em círculo, usando todos as cores de Arnaut, o verde e o negro. Os soldados verificavam metodicamente todas as cabanas cobertas de colmo que se erguiam junto das muralhas do mosteiro. Enquanto Observava, viu Marek que se aproximava na direcção dos soldados. Marek inclinava-se para a frente, arrastando uma perna. Trazia nas mãos alguns vegetais. Os soldados mandaram-no parar. Marek curvou-se obsequiosamente. à distância o seu corpo parecia pequeno, dando um aspecto de fraqueza. Mostrou aos soldados o que é que trazia nas mãos. Os soldados riram-se e empurraram-no para o lado. Marek continuou a andar, ainda curvado para a frente e deferente.
Kate viu Marek passar a última casa que ardera e desaparecer para lá das muralhas do mosteiro. Era óbvio que não viria ter com eles enquanto as tropas continuassem ali.
Chris arrastara-se de novo para debaixo do coberto, estremecendo. O ombro parecia estar ferido; tinha sangue seco no tecido. Ela ajudou-o a desabotoar o gibão, e ele contraiu o rosto, ao mesmo tempo que mordia o lábio. Suavemente ela afastou a camisola interior em linho e viu que todo o lado esquerdo do peito tinha uma horrível cor púrpura, com laivos de um amarelo negro nas bordas. Devia ser onde o haviam atingido com a lança.
Vendo o olhar dela perguntou num murmúrio: «Está assim tão mau?» «Julgo que é apenas uma equimose. Talvez com algumas costelas partidas à mistura.»
«Dói come o raio.»
Levantou a camisa, deixando o ombro à mostra e expondo o corte da flecha. Era um corte com cerca de duas polegadas de comprimento na superfície da pele, coberto de sangue seco.
«Como é que isso está?», perguntou olhando para a cara dela. «É só um corte.»
«Infectado?»
«Não, parece limpo.»
Acabou de lhe tirar o gibão, descobrindo mais equimoses nas costas e no lado do tronco. Todo o corpo dele era uma grande equimose. Devia ser incrívelmente doloroso. Sentia-se admirada ao ver que não se queixava mais. Afinal de contas ele era capaz de ter um ataque se lhe servissem na omeleta do pequeno-almoço cogumelos de conserva em vez de cogumelos frescos. Ou de ter uma crise de nervos se não estivesse de acordo com a escolha do vinho.
Ela começou a abotoar-lhe o gibão. Ele reagiu: «Sou capaz de fazer isso.» «Eu ajudo-te ... »
«Já disse, sou capaz de ofazer.»
Ela afastou-se, erguendo as mãos com as palmas voltadas para fora, «Okay, okay».
«De qualquer modo, tenho que dar trabalho a estes braços», explicou ao mesmo tempo que estremecia enquanto apertava cada um dos botões. Mas quando terminou sentou-se com as costas encostadas à parede, os olhos fechados, alagado em suor por causa do esforço e das dores.
«Chris ... »
Ele abriu os olhos. «Estou bem. A sério, não te preocupes comigo. Estou perfeitamente bem.»
E era sincero naquilo que dizia.
Ela sentiu-se quase como se estivesse sentada junto a um estranho.
Quando Chris vira o ombro e o peito - era a cor púrpura de carne apodrecida - a sua própria reacção deixara-o surpreendido. O ferimento era grave, Esperara sentir-se horrorizado ou cheio de medo. Mas em vez disso, sentiu-se subitamente aliviado, quase descuidado. A dor podia fazê-lo arquejar com falta de ar, mas a dor não era importante. Sentia-se apenas contente por estar vivo e por poder enfrentar um novo dia. As suas queixas familiares, os seus sofismas e as suas incertezas pareciam de um momento para o outro irrelevantes. Em vez disso descobriu que tinha uma fonte inesgotável de energia uma vitalidade quase que agressiva que não se recordava de alguma vez ter experimentado. Sentia-a fluir através do corpo como uma espécie de calor. O mundo à sua volta parecia mais preciso, mais sensível do que nunca.
Para Chris a madrugada cinzenta passou a ter uma beleza extraordinária. O ar frio e húmido trazia uma fragrância de erva húmida e terra molhada. As pedras nas suas costas forneciam-lhe o apoio de que necessitava. Até a dor que sentia se tornava útil porque afastava todo e qualquer sentimento desnecessário. Sentia-se despojado, alerta e pronto para qualquer coisa. Este era um mundo diferente, com regras diferentes.
E pela primeira vez fazia parte dele. Totalmente.
Quando os soldados partiram, Marek regressou. «Vocês ouviram o que eles disseram?», perguntou.
«0 que é que foi?»
«Os soldados andam à procura de três pessoas de Castelgard: dois homens e uma mulher.»
«Porquê?» «Arnaut quer falar com eles.»
«É bonito ser-se tão popular», disse Chris com um sorriso irónico. «Toda a gente anda atrás de nós.»
Marek deu a cada um deles um molho de relva húmida e de folhas. «Vegetais do campo. É o pequeno-almoço. Comam.»
Chris mastigou as plantas ruidosamente. «Delícioso», exclamou. Era sincero naquilo que dizia.
«A planta com as folhas recortadas é matricária. É boa para a dor. O caule branco é salgueiro. Reduz o inchaço.»
«Obrigado», disse Chris. «É muito bom.»
Marek olhava para ele não conseguindo acreditar. Voltou-se para Kate e perguntou: «Ele está bem?»
«Para te dizer a verdade, acho que está bem.»
«óptimo. Comam e em seguida vamos para o mosteiro. Se conseguirmos passar sem que os guardas se apercebam.»
Kate tirou peruca. «Isto não será um problema», disse ela. «Andam à procura de dois homens e uma mulher, não é? A propósito, quem é que tem a faca mais afiada?»
Felizmente o cabelo dela já era relativamente curto; foram precisos apenas alguns minutos para que Marek conseguisse cortar as madeixas mais compridas e acabar o trabalho. Enquanto trabalhava, Chris comentou: «Estive a pensar naquilo que se passou na noite passada.»
«É óbvio que há alguém que tem um auricular», disse Marek. «Certo», disse Chris. «E julgo que sei onde é que o foram arranjar.» «Gomez», disse Marek.
Chris acenou com a cabeça. «Também é isso que eu penso. Não lho tiraste?» «Não, não me lembrei disso.»
«Estou convencido de que há alguém que conseguiu ouvir com eles, Mesmo que não lhe sirvam ou que não os saiba colocar.»
«Exacto», disse Marek. «Mas a questão é, quem? Não nos podemos esquecer de que estamos no século catorze. Uma coisa cor-de-rosa que fala numa vozinha que mal se ouve é bruxaria. Seria aterrorizador para quem quer que o encontrasse. Quem quer que tenha pegado nele, de certeza que o largou como uma batata quente - e em seguida esmagou-o imediatamente. Ou então correu como um doido.»
«Eu sei», disse Chris. «É por isso que sempre que penso a este respeito chego à conclusão de que só pode haver uma resposta possível.»
Marek acenou com a cabeça. «Esses filhos da mãe não nos disseram nada.» «Não nos disseram o quê?».
«Que há aqui mais alguém. Alguém do século vinte.» «É a única resposta possivel», disse Chris.
«Mas quem?», perguntou Kate.
Chris estivera a pensar naquilo durante toda a manhã. «De Kere», exclamou de repente. «Tem que ser de Kere.»
Marek estava a abanar a cabeça.
«Vê bem>, disse Chris. «Só está aqui há um ano certo? Ninguém sabe de onde é que ele veio, certo? Procurou encontrar o seu lugar junto de Oliver e odeia-nos porque sabe que também poderemos fazer o mesmo, certo? Tira os soldados da fábrica de curtumes, vai até à rua, até nósfalarmos - e nesse momento regressa como uma flecha em nossa perseguição. Acredita no que te digo, tem que ser de Kere.»
«Só há uma única questão», disse Marek. «De Kere fala um Occitan impecável.»
«Bom, o mesmo se passa contigo.»
«Não, eu falo como um estrangeiro desastrado. Vocês ouvem a tradução nos auriculares. Eu ouço aquilo que eles dizem de facto. De Kere fala como um nativo. É completamente fluente e o seu sotaque é perfeitamente igual ao de qualquer outro. E o Occitan é uma língua morta no século vinte. Não existe a menor hipótese de ser do nosso século e falar da maneira como fala. Tem que ser nativo.»
«É possível que seja um linguista.»
Marek estava a abanar a cabeça. «Não é de Kere», disse. «É Guy Malegant.» «Sir Guy?»
«Exactamente», disse Marek. «Tive as minhas dúvidas a respeito dele desde a primeira vez em que fomos apanhados na passagem. Lembram-se? Estávamos ali quase que em silêncio total e de repente ele abre a porta e apanha-nos. Nem sequer tentou fingir que estava surpreendido. Não desembainhou a espada. Actuou de uma forma perfeitamente natural, gritando o alarme. Porque ele já sabia que estávamos ali.»
«Mas não foi isso que aconteceu. Foi Sir Daniel que entrou», disse Chris. «Achas que sim?» disse Marek. «Para dizer a verdade, não me recordo dele ter entrado.»
«Para ser sincera», disse Kate, «Acho que Chris poderá ter razão. É possível que seja de Kere. Porque eu estava na passagem entre a capela e o castelo, muito longe da parede da capela, e de Kere estava a dizer aos soldados para te matarem, e não me posso esquecer de que estava muito longe para os ouvir claramente, mas ouvi.»
Marek olhou intensamente para ela. «E então o que é que aconteceu?» «Em seguida de Kere falou num murmúrio a um dos soldados... e não consegui ouvir o que é que ele disse.»
«Certo. Porque não tinha auricular. Se tivesse auricular tinhas ouvido tudo, mesmo até os murmúrios. Mas não foi isso que se passou. E Sir Guy. Quem é que cortou a cabeça de Gomez? Sir Guy e os seus homens. Quem é que seria o mais provável de regressar ao sítio onde o corpo estava e retirar os auriculares? Sir Guy. Os outros homens ficaram horrorizados com a máquina cintilante. O único que não teve medo foi Sir Guy porque sabia o que é que a máquina representava. Ele é do nosso século.»
«Julgo que Guy não estava lá quando a máquina chegou no meio de_flashes», disse Chris.
«Mas o mais importante sobre a hipótese de se tratar de Sir Guy», disse Marek, «é o facto do seu Occitan ser um desastre. Faz-me lembrar um tipo de Nova iorque a falar pelo nariz.»
«Bom, e ele não é de Míddlesex? E acho que não é de grandes famílias. Tenho a impressão de que subiu a cavaleiro por bravura e não pela família.» «Não demonstrou ser um cavaleiro suficientemente bom para te derrubar
com a primeira lança», disse Marek. «Não foi um espadachim suficientemente bom para me matar em combate singular. Podes crer. É Sir Guy Malegant.» «Bom», disse Chris, «quem quer que seja agora está ao corrente de que nos dirigimos para o mosteiro.»
«Exactamente», disse Marek, afastando-se um pouco de Kate e olhando aprovadoramente para o seu cabelo. «Sendo assim, vamos embora.»
Kate tocou cautelosamente no cabelo. Disse: «Achas que me devo sentir contente por não ter aqui um espelho comigo?»
Marek acenou gravemente com a cabeça. «Provavelmente. » «Achas que pareço um rapaz?»
Chris e Marek trocaram olhares. Chris respondeu: «Mais ou menos.» «Mais ou menos?»
«Sim. Pareces. Pareces um rapaz.»
«Pelo menos pareces bastante», disse Marek. Levantaram-se os três.
15:12:09
A pesada porta de madeira abriu-se com um rangido. Da escuridão do interior, um rosto semioculto por um capuz branco espreitou para eles. «Deus vos dê colheitas e riqueza», disse o monge solenemente.
«Deus vos conceda saúde e sabedoria», respondeu Marek em Occitan. «0 que é que vos traz aqui?»
Viemos ver o Irmão Marcel.»
O monge acenou com a cabeça, quase como se estivesse à espera deles. «Certamente que podeis entrar», disse o monge. «Chegais a tempo porque ainda aqui está.» Abriu mais um pouco a porta, permitindo-lhes passar um de cada vez.
Encontraram-se numa pequena ante-sala em pedra, muito sombria. Sentia-se um aroma intenso de rosas e laranjas. Do interior do próprio mosteiro ouviam o som suave de cânticos.
«Podeis deixar as vossas armas aqui», disse o monge, apontando para o canto da sala.
«Meu bom irmão, receio que isso não seja possível», disse Marek.
«Não tendes nada que recear aqui», disse ele. «Deixai aqui as vossas armas ou parti.»
Marek começou a protestar e em seguida desapertou o cinto onde trazia a espada suspensa.
O monge deslizou à frente deles por um corredor que se encontrava em silêncio. As paredes eram em pedra nua. Viraram uma esquina continuando a caminhar ao longo de outro corredor. O mosteiro era muito grande e parecia um verdadeiro labirinto.
Era um mosteiro cisterciano; os monges envergavam hábitos brancos de tecido liso. A austeridade da ordem cisterciense exibia uma reprovação deliberada das ordens mais corruptas de beneditinos e dominicanos. Esperava-se dos monges cistercienses que mantivessem uma disciplina rígida, numa atmosfera de severo ascetismo. Durante séculos os monges de Cister não permitiam qualquer decoração esculpida nos seus edifícios lisos, nem quaisquer ilustrações decorativas nos seus manuscritos. A sua dieta era composta por vegetais, pão e água, sem carne ou molhos. As camas eram duras; as celas eram nuas e frias. Todos os aspectos da sua vida monástica eram nitidamente espartanos. Mas, na realidade, este aspecto de rígida disciplina tinha...
Thwock! Marek voltou-se na direcção do som. Estavam a chegar a um claustro - um pátio aberto dentro do mosteiro, rodeado por passagens com arcos em três dos lados, considerado como lugar de leitura e contemplação.
Thwock! Então ouviram risadas. Barulhentos gritos de homens. Thwock! Thwock!
Quando chegaram ao claustro, Marek viu que a fonte e o jardim no centro haviam sido retirados. O terreno estava nu, coberto por lama endurecida. Quatro homens usando batas de linho, estavam no terreno enlameado jogando uma espécie de andebol.
Thwock! A bola rolou pelo campo e os homens puxaram-se e empurraram-se uns aos outros, deixando que ela rolasse. Quando parou, um dos homens pegou nela e gritou, «Bola!» e serviu a bola batendo-lhe com a mão aberta. A bola ressaltou na parede lateral do claustro. Os homens gritaram, empurrando-se uns aos outros em busca de uma melhor posição. Debaixo dos arcos, monges e nobres gritavam palavras de encorajamento, fazendo tilintar nas mãos sacos do dinheiro das apostas.
Havia uma longa placa de madeira fixada numa das paredes, e de cada vez que a bola batia na placa - provocando um alto bonk!- ouviam-se mais gritos de encorajamento dos jogadores que se encontravam nas galerias.
Só ao fim de alguns momentos é que Marek chegou à conclusão daquilo que estava a ver: a forma mais primitiva de ténis.
O grito do servidor significando, «Recebam a bola!» - era um novo jogo, inventado há pouco mais de vinte e cinco anos e transformara-se na loucura da época. As raquetes e as redes surgiriam séculos mais tarde; de momento o jogo era uma variedade de andebol, jogado por todas as classes da sociedade.
As crianças jogavam nas ruas. Entre a nobreza o jogo era tão popular que deu origem a uma tendência para construir novos mosteiros - que eram abandonados incompletos logo que os claustros se encontravam concluídos, As famílias reais preocupavam-se porque os príncipes negligenciavam a sua aprendizagem como cavaleiros, preferindo longas horas no campo de ténis, chegando a jogar até. altas horas da noite à luz de tochas. O jogo era ubíquo. O Rei João 11 de França, agora cativo em Inglaterra gastara durante vários anos uma pequena fortuna para pagar as suas dívidas de ténis. (0 Rei João era chamado João, o Bom, mas dizia-se que se João era bom, de certeza que não era no ténis.) Marek perguntou: «Jogais aqui muitas vezes?»
«0 exercício revigora o corpo e aguça a mente», respondeu o monge de imediato. «Aqui jogamos em dois claustros.»
Ao passarem pelo claustro, Marek notou que vários dos jogadores envergavam trajes em verde e negro. Eram homens grisalhos, rudes, com ar de bandidos. Deixaram finalmente o claustro para trás e começaram a subir um lanço
de escadas. Marek disse ao monge: «Parece que a ordem recebe com agrado os homens de Arnaut de Cervole.»
«É verdade», respondeu o monge, «porque nos vão retribuir, devolvendo-nos o moinho.»
«Foi tomado?»
«De certo modo.» O monge dirigiu-se para a janela, que dava para o Dordogne e para a ponte do moinho, um quarto de milha a montante.
«Os monges de Sainte-Mère construíram o moinho com as suas próprias mãos, sob a orientação do nosso reverendo arquitecto, o Irmão Marcel. Marcel é muito venerado no mosteiro. Como sabeis, foi arquitecto do anterior Abade, o Bispo Laon. É por isso que o moinho que ele desenhou e nós construímos é propriedade deste mosteiro, o mesmo acontecendo com os seus rendimentos.
«No entanto, Sir Oliver exige uma taxa de moagem para si próprio, embora não tenha razão para isso, se não considerarmos o facto de o seu exército controlar o território. Além disso, o meu Senhor Abade ficaria muito contente se Arnaut devolvesse o moinho ao mosteiro e acabasse com a taxa. E é por isso que recebemos amistosamente os homens de Arnaut.»
Chris, enquanto ouvia isto tudo, ia pensando. A minha tese! Era tudo exactamente como a sua investigação demonstrara. Embora ainda houvesse pessoas que continuavam a pensar na Idade Média como um tempo retrógrado, Chris sabia de facto que fora um período de intenso desenvolvimento tecnológico e nesse sentido não muito diferente dos tempos actuais. Para dizer a verdade, a mecanização industrial que se tornou num dos aspectos característicos do Ocidente, começou pela primeira vez na Idade Média. A maior fonte de energia que nessa altura se encontrava disponível - a energia hidráulica - era agressivamente desenvolvida e utilizada para fazer ainda mais tipos de trabalho: não só para moer o grão mas também para a tecelagem, para o trabalho de ferreiro, para o fabrico da cerveja, para os trabalhos em madeira, para misturar argamassa e cimento para o fabrico de papel, de cordas, de óleo, para preparar corantes para os tecidos, e ainda como fonte de energia para aquecer os fornos para o fabrico do aço. Por toda a Europa construíam-se barragens nos rios e meia milha mais abaixo uma nova barragem; barcaças de moleiro encontravam-se amarradas debaixo de cada ponte. Em alguns lugares, castas de moinhos, uns atrás dos outros, usavam sucessivamente a energia da água corrente.
Os moinhos eram normalmente operados como um monopólio e forneciam uma importante fonte de rendimento - e de conflito. Acções judiciais, assassínios e batalhas eram o acompanhamento constante da actividade. E aqui estava um exemplo que mostrava...
«E no entanto», estava Marek a dizer, «vejo que o moinho ainda se encontra nas mãos de Lord Oliver, porque o seu estandarte ainda esvoaça nas torres e os seus arqueiros ocupam as edificações.»
«Oliver detém a ponte do moinho», disse o monge, «porque a ponte fica perto da estrada que dá para La Roque, e quem quer que controle o moinho controla a estrada. Mas dentro em breve Arnaut irá tirar-lhes o moinho.»
«Para em seguida o entregar de volta ao mosteiro.» «Assim é de facto.»
«E o que é que o mosteiro dará em troca a Arnaut?»
«A nossa benção, evidentemente», disse o monge. E momentos depois acrescentou. «E também lhe pagaremos generosamente.»
Passaram por um scriptorium, onde monges sentados em filas em frente dos seus cavaletes, copiavam manuscritos em silêncio. Mas para Marek parecia tudo errado; em vez de um cântico de meditação, o seu trabalho era acompanhado por gritos e pelos ruídos do jogo que se desenrolava no claustro. E apesar da velha proibição dos cistercienses a respeito das ilustrações, muitos dos monges estavam a pintar ilustrações nos cantos e ao longo das margens dos manuscritos. Os pintores sentavam-se com um punhado de pincéis e pratos em pedra com diferentes cores. Algumas das ilustrações estavam brilhantemente ornamentadas.
«Por aqui», disse o monge, e seguiu à frente descendo uma escada que conduziu a um pequeno pátio iluminado pelo sol. A um dos lados Marek viu oito soldados com as cores de Arnaut, que se deixavam estar ao sol. Notou que todos eles tinham espadas.
O monge conduziu-os para uma pequena casa num dos lados do pátio e em seguida através de uma porta. Ouviram o ruído de água corrente e viram uma fonte no centro de um enorme tanque. Ouviram orações cantadas em Latim. No centro da sala, dois monges de hábito lavavam um corpo nu de tom pálido que estava deitado numa mesa.
«Frater Marcellus^ disse o monge num murmúrio, fazendo uma pequena vénia,
Marek olhou espantado. Precisou de alguns momentos para ter a noção daquilo que estava a ver.
O Irmão Marcel estava morto.
14:52:07
A reacção deles denunciou-os. O monge podia ver claramente que eles não sabiam que Marcel morrera. Franzindo as sobrancelhas, puxou Marek pelo braço e disse-lhe: «Porque é que estais aqui?»
«Tínhamos a esperança de podermos falar com o Irmão Marcel.» «Morreu a noite passada.»
«Como é que ele morreu?» perguntou Marek.
«Não sabemos. Mas como podeis ver era muito velho.»
«A ajuda que esperávamos dele era urgente», disse Marek. «Talvez se eu pudesse ver os seus artigos pessoais ... »
<,,Não tinha artigos pessoais.»
«Mas de certeza que tinha algumas pequenas coisas ... » «Vivia com grande simplicidade.»
Marek perguntou: «Posso ver a sua cela?» «Lamento mas isso não é possível?»
«Mas eu ficaria muito grato se ... »
«0 Irmão Marcel vivia no moinho. Teve aí o seu quarto durante muitos anos.» O moinho estava agora debaixo do controlo das tropas de Oliver. Não podiam lá ir, pelo menos para já.
«Mas talvez eu vos possa ajudar. Dizei-me, qual era o vosso pedido urgente?» perguntou o monge. Falou casualmente, mas Marek ficou imediatamente Cauteloso.
«É um assunto privado», disse Marek. «Não posso falar a esse respeito.» «Aqui não há nada que seja privado disse o monge. Dirigia-se para a porta. Marek teve a nítida sensação de que se preparava para dar o alarme.
«Era um pedido de Magister Edwardus.»
«Magister Edwardus!» O comportamento do monge mudou completamente. «Porque é que não haveis dito logo isso? E o que é que sois a Magister Edwardus?» «Para dizer a verdade, somos os seus assistentes.»
«A sério?»
«Na realidade assim é.»
«Porque é que não o haveis dito? Magister Edwardus é benvindo aqui, porque estava a fazer um serviço para o nosso Abade quando foi levado por Oliver.»
«Vinde imediatamente comigo», disse o monge. «0 Abade vai querer falar convosco.»
«Mas nós temos ... »
«0 Abade assim o quer. Vinde.»
De regresso à luz do sol, Marek notou que havia agora muitos mais soldados de verde e negro nos pátios do mosteiro. E nenhum daqueles soldados descansava; estavam todos vigilantes, prontos para a batalha.
A casa do Abade era pequena, feita em madeira esculpida, e situada num canto distante do mosteiro. Foram conduzidos para uma pequena ante-sala apainelada a madeira, onde um monge de costas arqueadas e gordo como um sapo, se encontrava sentado diante de uma porta fechada.
«0 meu Senhor Abade está?»
«Na realidade está neste momento a dar conselhos a uma penitente.» Da sala adjacente ouvia-se um ranger ritmado.
«Quanto tempo é que ela lhe fará companhia nas suas orações?» perguntou o monge.
«É capaz de ainda demorar um bom bocado», respondeu o sapo. «Ela é reincidente. E os seus pecados são repetidos com muita frequência.»
«Gostava de que estes valorosos homens fossem apresentados ao Senhor Abade», disse o monge, «porque trazem notícias de Edwardus de johnes.» «Tranquilizai-vos porque assim lhe direi», respondeu o sapo num tom enfastiado. Mas Marek captou um súbito brilho de interesse nos olhos do velho. O que teria um significado qualquer.
«É quase hora de terça», disse o sapo erguendo o olhar para o sol. «Os vossos hóspedes estarão na disposição de nos fazer companhia na nossa simples refeição?»
«Muito gratos, mas não, vamos ... » Chris teve um ataque de tosse. Kate deu uma cotovelada nas costas de Marek. Este disse: «Assim faremos se não for grande o incómodo.»
«Pela graça de Deus, sois benvindos.»
Preparavam-se para se dirigirem para a sala das refeições quando um jovem monge arquejante entrou na sala. «0 meu Senhor Arnaut vem aí! Quer avistar-se de imediato com o Abade!»
O sapo pôs-se de pé num salto e disse-lhes: «Parti agora.» E abriu uma porta lateral .
Foi assim que se encontraram numa pequena sala vazia adjacente aos aposentos do Abade. O ranger da cama havia cessado; distinguiram o murmúrio baixo do sapo, que falava urgentemente com o Abade.
Momentos depois abriu-se uma outra porta e entrou uma mulher, de pernas nuas, ajustando apressadamente as roupas, o rosto corado. Era extremamente bela. Quando se voltou, Chris viu com espanto que se tratava de Lady Claire.
Ela surpreendeu o seu olhar e disse: «Porque é que me olhais assim?» «Uh, minha Senhora ... »
«Senhor, o vosso comportamento é muito injusto. Como é que ousais julgar-me? Sou uma fidalga, sozinha num país estranho, sem ter um campeão que me proteja ou me guie. E, no entanto, tenho que fazer o meu caminho até Bordeaux, a oitenta léguas de distância, e daí até Inglaterra, se quiser reclamar as terras de meu marido. É o meu dever como viúva, e neste tempo de guerra e de tumultos, farei tudo o que seja necessário sem a menor hesitação para cumprir a minha missão.»
Chris estava a pensar que hesitação não era coisa que fizesse parte do carácter desta mulher. Sentia-se espantado com a sua rudeza. Por outro lado, Marek olhava para ela com franca admiração. Disse suavemente: «Perdoai-lhe Senhora, porque é jovem e muitas vezes não pensa.»
«As circunstâncias mudam. Precisava de uma apresentação que só o Abade era capaz de me conseguir. E pela minha parte, sirvo-me de qualquer tipo de Persuasão que esteja ao meu alcance.» Lady Claire apoiava-se agora num pé, tentando equilibrar-se enquanto puxava a meia. Puxou bem a meia, alisou o vestido e em seguida colocou a touca na cabeça, apertando-a debaixo do queixo de modo a que só o rosto ficasse exposto.
Momentos depois parecia uma freira. As suas maneiras tornaram-se recatadas, a voz mais baixa e mais suave.
«A propósito, não vos esqueçais de que aquilo que fiz ninguém o deverá saber. Sob este aspecto estou à vossa mercê, e rogo o vosso silêncio.»
«E tê-lo-eis», disse Marek, «porque os vossos assuntos não nos dizem respeito.»
«Da minha parte também podereis contar com o meu silêncio», disse ela. «Porque é evidente que o Abade não deseja que a vossa presença seja do conhecimento de Cervole. Todos nós teremos os nossos segredos. Tenho a vossa palavra?»
«Na verdade assim é, minha Senhora.» Disse Marek. «Sim, minha Senhora», disse Chris.
«Sim, minha Senhora», respondeu Kate.
Ouvindo a sua voz, Claire franziu as sobrancelhas voltando-se para Kate. «Falais verdade?»
«Sim, minha Senhora», disse Kate mais uma vez.
Claire passou a mão pelo peito de Kate, sentindo os seios por debaixo da tira que os apertava. «Haveis cortado o cabelo, donzela», disse ela. «Sabeis que tentar passar por homem é punível com a morte?» Olhou para Chris enquanto dizia isto.
«Estamos cientes disso», respondeu Marek.
«Deveis ter uma grande dedicação ao vosso Magister para desistir do vosso sexo.»
«Minha Senhora, assim é.»
«Então ainda desejo mais veementemente que consigais sobreviver.»
A porta abriu-se e o sapo fez um gesto na sua direcção. «Arrugos, vinde. Minha Senhora, podeis ficar, o Abade virá dentro em breve despedir-se de vós. Mas vós amigos - vinde comigo.»
Lá fora no pátio Chris inclinou-se para Marek e disse-lhe num murmúrio: «André, aquela mulher é veneno puro.»
Marek sorria. «Concordo que ela tem um certo toque ... »
«André. Olha aquilo que te estou a dizer. Não podemos acreditar em nada daquilo que ela possa dizer.»
«A sério? Julguei que ela era notavelmente directa», disse Marek. «Quer protecção. E tem razão.»
Chris ficou boquiaberto. «Protecção?»
«Sim. Ela quer um campeão», disse Marek pensativamente.
«Um campeão? De que é que estás a falar? já só temos - quantas horas é que ainda faltam?»
Marek olhou para o seu indicador de pulso. «Onze horas e dez minutos.» «Então, de que raio é que estavas a falar, de um campeão?»
«Oh, estava só a pensar», disse Marek. Colocou o braço pelos ombros de Chris. «Não ligues, não era nada de importante.»
11:01:59
Estavam numa grande sala, sentados a uma comprida mesa na companhia de muitos monges, uma grande terrina de sopa de carne na frente deles e, no centro da mesa, pratos com montanhas de vegetais, carne de vaca e capões assados. E ninguém movia um músculo, as cabeças baixas em oração, enquanto os monges cantavam.
Pater noster quí est in coelis Sanctivicetur nomen tuum Adveniat regnum tuum Fiat voluntas tua
Kate continuava a olhar sub-repticiamente para a comida! Os capões fumegavam. Pareciam suculentos, e molho amarelado escorria para os pratos. Em seguida notou que os monges que estavam próximos dela pareciam espantados com o seu silêncio, Segundo parecia, tinha obrigação de conhecer pelo menos aquele cântico.
Ao lado dela, Marek cantava em voz alta.
Panem nostrum quotidianum Da nobíe hodie
Et dímmitte nobis debita nostra
Ela não compreendia Latim, pelo que não era capaz de os acompanhar, o que fez com que continuasse silenciosa até ao Ámen"final.
Todos os monges ergueram o olhar, acenando na sua direcção. Encarou Os factos: era o momento que ela tanto receara. Sabia que iriam falar com ela e não era capaz de lhes responder. O que é que ela havia de fazer?
Olhou para Marek que parecia perfeitamente descontraído. Era evidente que podia estar; falava a língua.
Um monge passou-lhe uma travessa de carne não dizendo nada. De facto toda a sala estava em silêncio. A comida era passada sem uma palavra; não se ouvia o menor som com excepção do suave entrechocar de pratos e facas. Comiam em silêncio!
Pegou na travessa com um aceno da cabeça e serviu-se generosamente, em seguida repetiu, e nesse momento surpreendeu o olhar desaprovador de Marek. Estendeu-lhe a travessa.
Num dos cantos da sala um monge começou a ler um texto em Latim, as palavras soando-lhe aos ouvidos com uma espécie de cadência, enquanto ela comia vorazmente. Estava esfomeada! Já não sabia há quanto tempo tivera a última refeição. Olhou de relance para Marek que comia com um suave sorriso afivelado no rosto. Voltou-se para a sopa que estava deliciosa e momentos depois olhou de novo para Marek.
já não estava a sorrir.
Marek não tirara os olhos das entradas. Havia três naquela comprida sala rectangular: uma à sua direita, uma à sua esquerda e uma directamente na sua frente, no centro da sala.
Momentos antes vira um grupo de soldados em verde e negro que se reuniam junto da porta do lado direito. Espreitavam para dentro, como se estivessem interessados na refeição, mas permaneciam do lado de fora.
Naquele momento viu um segundo grupo de soldados que se reunia na porta directamente à sua frente. Kate olhou para ele e este aproximou-se dela e murmurou-lhe ao ouvido, «Porta do lado esquerdo.» Os monges à volta deles evidenciaram olhares desaprovadores. Kate olhou para Marek e fez um pequeno gesto com a cabeça, pretendendo dizer que compreendera.
Para onde raios conduzia a porta do lado esquerdo? Não se viam soldados naquela porta e a sala para lá da porta estava às escuras. Desse para onde desse, tinham que correr o risco. Captou o olhar de Chris e fez um pequeno gesto cOm o polegar: era tempo para se porem de pé.
Chris acenou quase que imperceptivelmente. Marek empurrou a sopa para o lado e começou a pôr-se de pé, quando um monge de hábito branco veio ter com ele e inclinando-se disse-lhe num sussurro: «0 Abade vai recebê-lo agora.»
O Abade de Sainte-Mère era um homem enérgico de trinta e poucos anos com o corpo de um atleta e o olhar agudo de um mercador. O seu hábito negro era elegantemente bordado, o seu pesado colar era de ouro, e a mão que estendeu para ser beijada usava anéis em quatro dedos. Recebeu-os num pátio ensolarado e em seguida caminhou lado a lado com Marek, enquanto Chris e Kate seguiam atrás deles. Havia soldados de verde e negro por toda a parte. O comportamento do Abade era agradável, mas tinha o hábito de mudar rapidamente de assunto, como se quisesse apanhar o seu ouvinte desatento,
«Sinto-me profundamente desgostoso por ter aqui todos estes soldados», disse o Abade, «mas tenho receio de que alguns intrusos tenham entrado nos terrenos do mosteiro - alguns homens de Oliver - e até os encontrarmos temos que ser cautelosos. E o Senhor Arnaut ofereceu-nos graciosamente a sua protecção. Haveis comido bem?»
«Pela graça de Deus e vossa, muito bem, meu Senhor Abade.»
O Abade sorriu de maneira agradável. «Detesto a lisonja», disse. «E a nossa ordem proíbe isso.»
«Não deixarei de ter isso em conta», disse Marek.
O Abade olhou para os soldados e suspirou. «Tantos soldados arruínam o jogo.»
«Que jogo é esse?»
«A caça, a caça», disse ele impacientemente. «Ontem de manhã fomos à caça e regressámos sem nada, nem sequer um cabrito que pudéssemos mostrar. E os homens de Cervole ainda não tinham chegado. Agora estão aqui - dois mil homens. Quando não apanham caça, pelo menos espantam-na. Serão necessários muitos meses antes que as florestas se estabilizem de novo. Quais são as notícias que me trazeis de Magister Edwardus? Dizei-me porque preciso desesperadamente delas.»
Marek franziu as sobrancelhas. O Abade não parecia muito tenso ou preocupado em ouvir. Mas, no entanto, parecia aguardar informações específicas. «Meu Senhor Abade, ele está em La Roque.»
«Oh? Com Sir Oliver?» «Sim, meu Senhor Abade.»
«É uma pena. Deu-vos uma mensagem para mim?» Deve ter visto o olhar espantado de Marek. «Não?»
«Meu Senhor Abade, Edwardus não me deu qualquer mensagem.» «Talvez em código? Qualquer miprevista ou trivial modificação de uma frase?»
«Lamento», disse Marek.
«Não lamentais tanto como eu. E agora está em La Roque?» «Assim é, meu Senhor Abade,»
«Para dizer a verdade, nunca esperei uma coisa dessas», disse o Abade. «Porque estou convencido de que La Roque não pode ser tomada.»
«Contudo, se houver uma passagem secreta para o interior ... » disse Marek.
«Oh, a passagem, a passagem», exclamou o Abade, fazendo um gesto com a mão. «Há-de ser a minha desgraça. Só ouço falar nisso. Toda a gente quer saber onde é que fica a passagem - e Arnaut mais do que qualquer outro. O Magister estava a ajudar-me a procurar nos velhos documentos de Marcellus. Tendes a certeza de que não vos disse nada?»
«Disse-nos que devíamos procurar o Irmão Marcel,»
O Abade resmungou. «Eu sei, essa passagem secreta era o trabalho do assistente e escriba de Laon, que era o Irmão Marcel. Mas nestes últimos anos o irmão Marcel já não estava muito bom da cabeça. Foi por isso que o deixámos ir viver para o moinho. Era capaz de passar o dia a resmungar e a murmurar consigo próprio, e de um momento para o outro, começar a gritar que via demónios e espíritos, com os olhos a rolarem descontrolados e os membros a estremecerem de um modo incrível, até lhe passarem as visões.» O Abade abanou a cabeça. «Os outros monges veneravam-no, vendo nas suas visões uma prova de piedade e não uma doença, o que na realidade era. Mas porque é que o Magister vos disse para o procurarem?»
«0 Magister disse que Marcel tinha uma chave.»
«Uma chave?» disse o Abade. « Uma chave?» Parecia muito aborrecido. «É evidente que tinha uma chave, tinha até muitas chaves, e podem ser todas encontradas no moinho, mas não podemos ... » Inclinou-se para a frente, ficando a olhar para Marek com uma expressão de espanto.
Por todo o pátio havia homens que gritavam, apontando para cima. Marek disse: «Meu Senhor Abade ... »
O Abade cuspiu sangue e caiu nos braços de Marek. Marek colocou-o suavemente no solo. Sentiu a flecha nas costas do Abade mesmo antes de a ver. Mais flechas sibilaram, cravando-se na relva à volta deles com um som surdo.
Marek olhou para cima e viu figuras de castanho na torre do sino da igreja disparando rapidamente. Uma flecha arrancou o chapéu da cabeça de Marek; outra atravessou-lhe a manga da túnica. Outra flecha cravou-se profundamente no ombro do Abade.
A flecha seguinte atingiu Marek na coxa. Sentiu uma dor lancinante que lhe descia pela perna e perdeu o equilíbrio, caindo de costas no solo. Tentou levantar-se, mas sentia-se com vertigens e o sentido de equilíbrio abandonara-o. Voltou a cair para trás enquanto flechas se cravavam à sua volta.
No outro lado do pátio Chris e Kate correram a procurar abrigo debaixo de uma chuva de flechas. Kate gritou e tropeçou, caindo no solo com uma flecha espetada nas costas. Em seguida levantou-se atabalhoadamente e Chris verificou que lhe atravessara a túnica debaixo do braço mas que não a atingira. Uma flecha esfolou-lhe a perna, rasgando-lhe a meia. E finalmente atingiram a passagem coberta, onde se deixaram cair atrás de um dos arcos, enquanto tentavam recuperar o fôlego. à sua volta flechas ressaltavam depois de terem embatido nas paredes e nos arcos de pedra. Chris perguntou: «Estás bem?»
Ela acenou afirmativamente com a cabeça, arquejando. «Onde é que está Marek?»
Chris pôs-se de pé, espreitando cautelosamente para o outro lado do pilar. «Oh, não», exclamou.
Marek levantou-se com dificuldade, vendo que o Abade ainda estava vivo. «Perdoai-me» disse Marek, carregando o Abade no ombro e transportando-o para o canto. Os soldados que se encontravam no pátio ripostavam, disparando nuvens de flechas contra a torre do sino. Começavam a ser disparadas muito menos flechas contra eles.
Marek levou o Abade para lá dos arcos da passagem coberta e deitou-o de lado no solo. O Abade arrancou a flecha do ombro e atirou-a para o lado. O esforço deixou-o arquejante. «As minhas costas... costas ... »
Marek voltou-o suavemente. A haste da flecha cravada nas costas pulsava com cada batida do coração. «Meu Senhor, quereis que a arranque?»
«Não.» Com um ar desesperado o Abade colocou a mão no pescoço de Marek e puxou-o para si. «Ainda não... um padre... padre ... » Os olhos rolavam. Um padre corria na direcção deles.
«Já vem aí, meu Senhor Abade.»
O Abade pareceu aliviado ao ouvir isto, mas continuava a agarrar Marek fortemente. A sua voz era baixa, quase um sussurro. «A chave para La Roque ... » «Sim, meu Senhor?»
«... sala ... »
Marek esperou: «Que sala meu Senhor? Que sala?»
«Arnaut ... », disse o Abade, abanando a cabeça como se quisesse esclarecer as ideias. «Arnaut ficará irritado... sala ... » E deixou de o agarrar. Marek arrancou-lhe a flecha das costas e ajudou-o a deitar-se no solo. «Dizia-me constantenente... fazer... não dizer a ninguém... assim... Arnaut ... » Fechou os olhos.
O monge colocou-se entre eles, falando rapidamente em Latim, tirando as sandálias do Abade, colocando um frasco de óleo no solo. Começou a administrar a extrema unção.
Encostando-se a um dos pilares do claustro, Marek arrancou a flecha da coxa. Tinha-o atingido de relance e o ferimento não era tão profundo como pensara; só havia uma polegada de sangue na haste da flecha. Atirou com a flecha para o chão no momento em que Chris e Kate chegaram.
Olharam para a perna dele e para a flecha. Estava a sangrar. Kate ergueu o gibão e com a adaga cortou uma tira da fralda da sua camisa interior de linho. Amarrou-a na coxa de Marek como um penso de emergência.
Marek disse: «Não é assim tão grave.»
«Então não te vai doer teres o penso», disse ela. «Consegues andar?» «É evidente que consigo andar», disse Marek.
«Estás pálido.»
«Estou bem», respondeu, e afastou-se do pilar olhando para o pátio. Quatro soldados jaziam no solo, que estava eriçado de flechas. Os outros soldados tinham partido; já ninguém estava a disparar contra a torre do sino: fumo elevava-se das altas janelas. No outro lado do pátio viram mais fumo, espesso e negro, que vinha da área do refeitório. Todo o mosteiro estava a começar a arder.
«Precisamos de encontrar essa chave», disse Marek. «Mas está na sua cela.»
«Não estou lá muito seguro disso.» Marek recordava-se de que uma das últimas coisas que a grafologista Elsie lhe dissera, quando ainda se encontravam no estaleiro do projecto tinha a ver com uma chave. E era uma palavra qualquer que a deixara espantada. Não se conseguia lembrar dos pormenores - nessa altura encontrava-se preocupado por causa do Professor - mas lembrava-se perfeitamente de que Elsie estivera a analisar uma das folhas de pergaminho do monte que fora encontrado no mosteiro. A mesma pilha onde havia sido encontrada a nota do Professor.
E Marek sabia onde é que podia encontrar esses pergaminhos.
Caminharam apressadamente ao longo do corredor na direcção da igreja. Alguns dos vitrais haviam sido partidos e o fumo escapava-se pelas aberturas. Do interior ouviram homens que gritavam e momentos depois um grupo de soldados surgiu através das portas. Marek fez meia volta, conduzindo-os no sentido contrário do caminho que haviam percorrido.
«Que é que estamos a fazer?» À procura da porta.»
«Que porta?»
Marek virou de repente para a esquerda, ao longo de um corredor do claustro, e em seguida virou de novo à esquerda, passando através de uma estreita abertura que os conduziu a um espaço apertado, uma espécie de zona de armazenagem. Era iluminado por uma tocha. No soalho via-se um alçapão; abriram-no para trás e viram degraus que desciam para uma escuridão completa. Agarrou uma tocha e começaram todos a descer os degraus que se encontravam à sua frente. Chris era o último, tendo fechado o alçapão que deixara para trás. Desceram as escadas que os conduziram a uma câmara escura desagradavelmente fria e húmida.
A corrente de ar frio fez crepitar a tocha. à sua luz trémula viram enormes cascos com seis pés de diâmetro dispostos ao longo da parede. Estavam numa adega.
«Vocês sabem que já não falta muito para que os soldados encontrem este lugar.» Levou-os através de diversas salas cheias de cascos, movendo-se sem qualquer hesitação.
Seguindo atrás dele, Kate perguntou: «Sabes para onde é que vais?» «Não me digas que não sabes?»
Mas ela não sabia; ela e Chris mantinham-se logo atrás de Marek, procurando manter-se dentro do confortável círculo de luz projectado pela tocha. Agora estavam a passar por túmulos, pequenas reentrâncias na parede onde descansavam corpos, com os sudários a apodrecer. Ás vezes viam os topos dos crânios com tufos de cabelo ainda agarrados; outras vezes viam pés, com os ossos parcialmente expostos. Na escuridão ouviam um longínquo guinchar de ratos. Kate estremeceu.
Marek continuou a avançar até que parou abruptamente numa câmara que estava quase vazia.
«Porque é que parámos?» perguntou ela. «Não sabes?», respondeu Marek.
Ela olhou em volta, tendo chegado à conclusão de que se encontrava na mesma câmara subterrânea para onde tinha rastejado vários dias antes. Havia o mesmo sarcófago de um cavaleiro, agora com a tampa no caixão. Ao longo de outra parede via-se uma mesa de madeira tosca, onde se encontravam pilhas de oleados e rolos de manuscritos atados com cordel de cânhamo. A um dos lados encontrava-se um pequeno muro em pedra onde estava um único rolo de manuscritos - e se notava o brilho das lentes dos óculos do Professor.
«Julgo que os perdeu ontem», disse Kate. «Deve ter sido capturado aqui pelos soldados.»
«Provavelmente.» Observou Marek enquanto este começava a ver a pilha de folhas, uma a uma. Encontrou rapidamente a mensagem do Professor para em seguida voltar atrás e ver a folha anterior. Franziu as sobrancelhas, procurando iluminá-la melhor com a luz da tocha.
«0 que é que se passa?»
«É uma descrição», respondeu. «De um rio subterrâneo, e... aqui está.» Apontou para a margem do manuscrito onde fora escrita à pressa uma anotação em Latim.
«Diz: Marcelus tem a chave"» Apontou com o dedo. «E a seguir diz qualquer coisa sobre uma porta ou abertura, e pés grandes.»
«Pés grandes?»
«Espera um minuto», disse ele. «Não, não é isso.» Começava a recordar aquilo que Elsie lhe dissera. «Diz "pés de um gigante" Pés de gigante.»
«Pés de gigante», perguntou ela, olhando para ele em tom de dúvida. «Tens a certeza de que é mesmo isso?»
«É o que diz.»
«E isto o que é?» Por baixo do seu dedo viam-se duas palavras, uma colocada Por cima da outra:
DESIDE VIVIX
09:57:02
No laboratório da ITC, David Stern afastou-se do protótipo da máquina. Olhou para o pequeno conjunto de dispositivos electrónicos interligados que estivera a montar e a testar durante as últimas cinco horas.
«já está», exclamou. «Com isto vamos poder enviar-lhes uma mensagem.» já fazia noite no laboratório; as janelas de vidro estavam escuras. Perguntou: «Que horas é que serão lá?»
Gordon contou pelos dedos. «Chegaram às oito horas da manhã. já se passaram vinte e sete horas. Sendo assim, são agora onze horas da manhã do dia seguinte.»
«Okay. Deve estar bem.»
Stern conseguira construir aquele sistema electrónico de comunicações, contrariando os dois fortes argumentos de Gordon de que tal coisa não poderia ser feita. Gordon dissera que não era possível enviar uma mensagem de volta, porque não se sabia onde é que a máquina iria aterrar. Estatisticamente, as probabilidades de que a máquina aterrasse onde a equipa não estava eram esmagadoras. O segundo problema era o de não ser possível saber-se se a mensagem tinha sido recebida ou não.
Mas Stern resolvera as duas objecções de uma maneira extremamente simples. O conjunto tinha um auricular transmissor/receptor, idêntico aos que a equipa já usava, e dois pequenos gravadores. O primeiro gravador transmitia uma mensagem. O segundo gravava qualquer mensagem que chegasse ao transmissor dos auriculares. A concepção no seu conjunto era, conforme Gordon definiu em tom admirativo, um atendedor do tipo multiverso.
Stern gravou uma mensagem que dizia: «Fala David. já estão fora há vinte e sete horas. Não tentem regressar antes das trinta e duas horas. Nessa altura já estaremos prontos para vos receber deste lado. Entretanto digam-nos se estão bem. Basta que falem e será gravado. Para já digo-vos adeus. Até breve.»
Stern ouviu a mensagem mais uma vez e disse em seguida: «Okay, vamos mandar isto de volta.»
Gordon accionou botões no painel de controlo. A máquina começou a zumbir e foi banhada por uma luz azul.
Horas antes, quando começara a trabalhar naquela máquina de mensagens, a única preocupação de Stern era a de que os seus amigos que se encontravam do outro lado podiam não saber que não podiam regressar. Como resultado disso, conseguia imaginá-los numa situação extremamente difícil e perigosa, talvez a serem atacados por todos os lados, e chamando a máquina continuamente, convencidos de que podiam regressar de imediato. Foi por isso que Stern chegou à conclusão de que deviam ser informados de imediato, de que de momento não podiam regressar.
Essa fora a sua preocupação original. Mas agora havia uma segunda, talvez uma preocupação ainda maior. O ar na cave estava a ser purificado há cerca de dezasseis horas. Equipas de trabalhadores estavam de novo no interior, reconstruindo a plataforma de trânsito. O painel de controlo fora monitorizado durante muitas horas.
E não se tinham verificado interferências de campo.
O que queria dizer que não se verificara qualquer tentativa de regressar. E Stern tinha a sensação - era evidente que ninguém seria capaz de falar abertamente e muito menos Gordon - de que a gente no iTC estava convencida de que se passassem mais de vinte e quatro horas sem interferência de campo era um mau sinal. Sentia que uma grande parte do pessoal do ITC acreditava que a equipa já morrera.
Assim o interesse pela máquina de Stern não era tanto o de saber se uma mensagem podia ser transmitida mas, em vez disso, o de saber se uma mensagem podia ser recebida. Porque isso seria prova de que a equipa ainda se encontrava viva.
Stern equipara a máquina com uma antena e construiu um pequeno dispositivo com rodas dentadas que permitia virar a antena para diferentes ângulos e repetia a mensagem de saída três vezes. Deste modo haveria três hipóteses para a equipa responder. Depois disso, toda a máquina voltaria automaticamente para o presente, precisamente como acontecera quando tinham estado a usar a câmara.
«E aqui vamos», disse Gordon.
Com flashes de luz laser, a máquina começou a encolher no solo.
Era uma espera desconfortável. Dez minutos mais tarde a máquina regressou. Vapor frio espalhou-se ao nível do solo quando Stern retirou o seu dispositivo electrónico, tirou a fita e começou a ouvir a gravação.
Ouviu-se a mensagem de saída. Não houve qualquer resposta.
Voltou a ouvir-se a mensagem de saída.
Mais uma vez não houve qualquer resposta. O crepitar da estática e mais nada.
Gordon olhava para Stern sem qualquer expressão no rosto. Stern disse: «Poderá haver um monte de explicações ... »
A mensagem de saída foi tocada uma terceira vez. Stern susteve a respiração.
Mais crepitar de estática e foi então que no silêncio do laboratório ouviu a voz de Kate dizer: «Ei malta, vocês não ouviram nada?»
Marek: «De que é que estás a falar?»
Chris: «Pelo amor de Deus, Kate, desliga os auriculares.» Kate: «Mas ... »
Marek: «Desliga essa coisa.»
Mais estática. Terminaram as vozes. Mas a prova fora conseguida. «Estão viVOS»I disse Stern.
«Não há dúvida», disse Gordon. «Vamos ver como é que vão os trabalhos na plataforma de transição.»
Doniger caminhava no gabinete de um lado para o outro, murmurando as palavras do seu discurso, praticando os gestos das mãos, a posição do corpo. Tinha reputação de um orador entusiasta, até mesmo carismático, mas Kramer sabia que não era coisa que tivesse surgido naturalmente. Muito pelo contrário, era resultado de uma longa preparação, as posições, a pronúncia, os gestos. Doniger não deixava nada ao acaso.
A certa altura Kramer ficara perplexa com o seu comportamento: os seus intermináveis e obsessivos ensaios no caso de qualquer aparecimento em público pareciam estranhos no caso de um homem que, na maioria das situações, não dava a menor ideia do modo como encontrara por acaso os outros. Finalmente chegou à conclusão de que Doniger gostava de falar em público porque era extraordinariamente manipulativo. Estava convencido de que era mais inteligente do que qualquer outro e um discurso persuasivo - «Nem sequer hão-de saber o que é que os atingiu» - era outro modo de o provar..
Naquela altura Doniger andava de um lado para o outro, usando Kramer como audiência de uma pessoa. «Estamos todos controlados pelo passado, embora ninguém o consiga compreender. Ninguém reconhece o poder do passado», disse ele, com um gesto da mão.
«Mas se pensarmos bem nisso, chegamos à conclusão de que o passado sempre foi mais importante do que o presente. O presente é como uma ilha de coral que se mantém à tona da água, mas é composta por milhões de corais mortos que se encontram abaixo da superficie, que ninguem vê. De modo análogo, o nosso mundo de todos os dias é composto por milhões de acontecimentos e decisões que ocorreram no passado. E aquilo que acrescentamos no presente é trivial.
«Um adolescente toma o pequeno-almoço e em seguida vai à loja para comprar o último CD de uma nova banda. O miúdo julga que vive num momento moderno. Mas quem é que definiu o que é uma "banda'? Quem é que definiu o que é um "adolescente"? Ou até o "pequeno-almoço"? Isto já para não falar em tudo aquilo que compõe o ambiente social do miúdo - família, èscola, vestuário, transportes e governo.
«Nada disto foi decidido no presente. A maior parte foi decidida há centenas de anos. Quinhentos anos, mil anos. Este miúdo está sentado no topo de uma montanha que é o passado. E nunca se apercebe disso. É governado por aquilo que nunca vê, por aquilo em que não pensa, por aquilo que não conhece. É uma forma de coerção que é aceite sem ser questionada. Este mesmo iniúdo é céptico a respeito de outras formas de controlo - restrições dos pais, Inensagens comerciais, leis do governo. Mas a invisível regra do passado, que continua a não ser questionada, governa quase tudo na sua vida. Trata-se de
um Poder real. Poder que pode ser tomado e usado. Porque, do mesmo modo que o presente é governado pelo passado, o mesmo acontece com o futuro. É por isso que afirmo, o futuro pertence ao passado. E a razão ... »
Doniger interrompeu-se, aborrecido. O telemóvel de Kramer estava a tocar e ela atendeu a chamada. Ele continuou a andar para trás e para a frente, esperando. Tentando um gesto com a mão e logo em seguida outro.
Finalmente Kramer desligou o telefone olhando para ele. Ele disse: «Sini? O que é que há?»
«Era Gordon. Estão vivos Bob.»
«Já regressaram?»
«Não, mas conseguimos gravar uma mensagem das suas vozes. Três deles estão vivos de certeza.»
«Uma mensagem? Quem é que teve a ideia de fazer uma coisa destas?» «Stern.»
«A sério? Talvez não seja tão estúpido como eu pensava. Devíamos contratá-lo.» Fez uma pausa. «Sendo assim, está a querer dizer-me que vamos conseguir trazê-los de volta?»
«Não. Não tenho a certeza disso.» «Qual é o problema?»
«Continuam com os auriculares desligados.»
«Não me diga! Mas porquê? As pilhas dos auriculares têm uma carga para muito tempo, que pode aguentar as trinta e sete horas. Não há qualquer razão para os manter desligados.» Olhou intensamente para ela. «Achas que sim? Achas que é ele? Achas que é Deckard?»
«Talvez. Acho que sim.»
«Como? Já se passou mais de um ano e Deckard deve ter morrido - lembras-te de como ele andava sempre à procura de guerras com toda a gente?» «Bom, houve qualquer coisa que fez com que eles desligassem os auriculares ... »
«Não sei», disse Doniger. «Rob tinha demasiados erros de transcrição e estava fora de controlo. Porra, ele ia para a cadeia.»
«Sim. Por ter espancado um tipo num bar, alguém que ele nunca tinha visto antes», disse Kramer. «0 relatório da polícia dizia que Deckard o atingiu cinquenta e duas vezes com uma cadeira de metal. O tipo esteve em coma durante um ano. E Rob ia mesmo para a cadeia. Foi por isso que ele se ofereceu como voluntário para regressar mais uma vez.»
«Se Deckard ainda está vivo», disse Doniger, «então continuam mesmo com problemas.»
«Sim, Bob. Ainda estão com montes de problemas.»
09:57:02
De volta à humidade fria da floresta, Marek esboçou no pó do solo um mapa grosseiro servindo-se de uma vara de madeira. «Neste momento estamos atrás do mosteiro. O moinho está aqui, a cerca de um quarto de milha do ponto onde nos encontramos. Há um posto de controlo por onde temos que passar.» «Uh-huh», disse Chris.
«E em seguida vamos para o moinho.» «Sabe-se lá como.»
«Certo. Quando lá chegarmos, temos a chave. Deste modo temos que ir à capela verde. Que é aonde, Kate?»
Ela pegou na vara de madeira e desenhou um quadrado. «Se isto é La Roque, no topo da falésia, então temos uma floresta a norte. A estrada é mais ou menos aqui. julgo que a capela não fica muito longe - talvez aqui.»
«Uma milha? Duas milhas?» «Digamos duas milhas.» Marek acenou com a cabeça.
«Muito bem, pelos vistos parece tudo muito fácil», disse Chris, levantando-se e sacudindo o pó das mãos. «Tudo o que temos que fazer é passar pelo Ponto de controlo armado, em seguida continuar para o moinho fortificado, e finalmente para uma capela qualquer - e não ser morto pelo caminho. Vamos embora.»
Deixando a floresta para trás, avançaram através de uma paisagem de destruiÇão. As chamas lambiam as paredes do Mosteiro de Sainte-Mère, e nuvens de fumo escureciam o sol. Cinza negra cobria o solo, caía nos rostos e ombros, e tornava o ar mais espesso. Tinham a sensação de terem a boca cheia de areia. Do outro lado do rio conseguiam apenas avistar um contorno escuro de Castelgard, agora uma ruína enegrecida e fumegante empoleirada nas colinas.
Caminhando através desta desolação, não viram mais ninguém durante muito tempo. Passaram por uma quinta a oeste do mosteiro, onde um homem de idade jazia no solo, com duas flechas cravadas no peito. Do interior ouviram o som de um bebé que chorava. Olhando para o interior viram uma mulher, morta à machadada, que jazia no solo de rosto para baixo junto da fogueira; e um rapaz de seis anos, olhando para o céu, com o ventre aberto de lado a lado. Não viram o bebé, mas parecia que os sons vinham de um cobertor que se encontrava no canto.
Kate esboçou um gesto de se dirigir na direcção deles, mas Marek deteve-a. «Não faças isso.»
Continuaram o seu caminho.
O fumo elevava-se sobre uma paisagem vazia, cabanas abandonadas, campos não cultivados. Para além da quinta com os seus moradores chacinados, não viram mais ninguém.
«Onde é que está toda a gente?» disse Chris.
«Fugiram todos para os bosques», respondeu Marek. «Também têm lá cabanas e abrigos subterrâneos. Sabem aquilo que devem fazer.»
«Nos bosques? como é que eles vivem?»
«Atacando os soldados que passem por perto. É por isso que os cavaleiros matam quem quer que seja encontrado na floresta. Partem do princípio de que são godins - maceitores - e sabem que os godins retribuirão ofavor sepuderem.
«Então foi isso que nos aconteceu quando aterrámos pela primeira vez?» «Exacto», respondeu Marek. «0 antagonismo entre homens do povo e nobres neste momento está o pior possível. A gente vulgar sente-se irritada por ser forçada a suportar esta classe de cavalaria com as suas taxas e dízimos, mas quando chega a altura, os cavaleiros não cumprem a sua parte do contrato. São incapazes de ganhar as batalhas que permitem proteger o país. O rei francês foi capturado, o que é de um grande simbolismo para a gente comum, E agora que a guerra entre a Inglaterra e a França terminou, começam a ver de uma forma muito mais clara que os cavaleiros são a causa de mais destruição. Tanto Arnaut como Oliver lutaram pelos seus respectivos reis em Poitiers. E agora tanto um como o outro se dedicam à pilhagem da região para pagarem às suas tropas. O povo não gosta disso. É assim que formam bandos de godíns, vivendo na floresta e ripostando sempre que podem.»
«E esta quinta?», disse Kate. «Como é que isto aconteceu?»
Marek encolheu os ombros. «Talvez o pai tivesse sido morto na floresta por camponeses bandidos. Talvez numa noite o irmão tivesse bebido demais, andasse a vaguear e fosse morto e despojado de tudo o que levava por bandidos camponeses. Talvez a esposa e as crianças estivessem a viajar de um castelo para outro e tivesse desaparecido sem deixar vestígios. Finalmente, está pronto para despejar a sua ira e a sua frustração em alguém. E por vezes é isso que acontece.»
«Mas ... »
Marek ficou em silêncio, limitando-se a apontar em frente. Acima de uma linha de árvores um estandarte esvoaçante em verde e negro movia-se rapidamente para a esquerda, transportado por um cavaleiro a galope.
Marek apontou para a direita. Começaram a subir a corrente em silêncio. E chegaram finalmente à ponte do moinho e ao ponto de controlo.
Na margem do rio a ponte do moinho terminava numa enorme pedra com uma abertura em arco. Do outro lado do arco via-se um ponto de portagem. A única estrada para La Roque passava pelo arco, o que queria dizer que os soldados de Oliver, que controlavam a ponte, também controlavam a estrada.
Acima da estrada, as falésias calcáreas eram elevadas e alcantiladas. Não havia qualquer alternativa, sendo obrigatório passar pelo arco. E de pé, junto desse mesmo arco, falando com os soldados que se encontravam no Ponto de portagem, encontrava-se Robert de Kere.
Marek abanou a cabeça.
Uma torrente de camponeses, na sua maioria mulheres e crianças, alguns transportando uns magros pertences, subia a estrada. Dirigiam-se para a protecção do castelo de La Roque. De Kere falava com um guarda, embora de vez em quando deitasse um olhar de relance para os camponeses. Parecia não estar a prestar muita atenção mas de qualquer modo nunca conseguiriam passar sem serem detectados.
A certa altura de Kere entrou de novo na ponte fortificada. Marek fez um aceno com a cabeça na direcção dos outros e meteu-se à estrada, movendo-se lentamente na direcção do ponto de controlo. Marek sentiu que começava a suar.
Os guardas estavam a verificar os pertences daquela gente, confiscando tudo aquilo que lhes parecia valioso e que iam colocando num monte ao lado da estrada.
Marek chegou ao arco e não se deteve, continuando em frente. Os soldados estavam a observá-lo mas não enfrentou o seu olhar. Passou, em seguida foi a vez de Chris e por último de Kate.
Seguiram a multidão ao longo do rio, mas quando estes fizeram a curva na direcção de La Roque, Marek dirigiu-se no sentido contrário, na direcção da margem do rio.
Aqui não havia absolutamente ninguem, o que lhes permitiu espreitar através da folhagem para a ponte fortificada do moinho, que agora estava a cerca de um quarto de milha a jusante.
Aquilo que viram não era encorajador.
Em cada uma das extremidades da ponte viam-se maciças torres de guarda, com dois andares de altura, elevados passadiços e seteiras a toda a volta. No topo da torre de guarda mais próxima viram duas dúzias de soldados ern castanho avermelhado e cinzento, observando tudo à sua volta, prontos para lutar. Havia um número igual de soldados no cimo da torre mais distante, onde o estandarte de Lord Oliver esvoaçava com a brisa.
Entre as duas torres, a ponte era constituída por dois edifícios de dímensões diferentes, ligados por rampas. Quatro rodas de azenha gemiam em baixo, impulsionadas pela corrente, que era acelerada com uma série de comportas e canais.
«Que é que achas?» perguntou Marek a Chris. Afinal de contas, esta estrutura tinha um interesse muito especial para Chris. Estudara-a durante dois anos. «Achas que podemos entrar?»
Chris abanou a cabeça. «Não há hipóteses. Soldados por toda a parte. Não há qualquer maneira de entrar.»
«0 que é a construção mais perto de nós?», perguntou Marek, indicando uma estrutura em madeira de dois andares.
«De certeza que é um moinho,>, disse Chris. «Provavelmente com as mós no andar superior. A farinha desce por uma caleira para o andar inferior, onde é mais fácil ensacar a farinha e transportá-la para o exterior.»
«Quantas pessoas é que trabalham ali?»
«Provavelmente duas ou três. Mas neste momento» - apontou para as tropas - «talvez não haja mesmo ninguém.»
Okay. E a outra construção?»
Marek apontou para o segundo edifício, ligado ao primeiro por uma curta rampa. Este edifício era mais comprido e mais baixo. «Não tenho a certeza», disse Chris. «Pode ter servido para trabalhos em metal, para fabricar pasta de papel, para produzir cerveja, ou até mesmo para uma serração.»
«Estás a falar de uma serração a sério, com serras?»
«Sim. Naquela altura tinham serras accionadas pela energia da água. Se isto de facto foi uma serração.»
«Mas não tens a certeza?»
«Só por olhar não se torna possível,»
Kate interrompeu: «Vocês desculpem, mas nem sequer compreendo porque é que estamos a falar disso! Reparem, olhem para aquilo: não há a menor hipótese de conseguirmos entrar,»
«Temos de entrar», disse Marek. «Temos de ver a cela do Irmão Marcel para conseguirmos a chave que lá está.»
«Mas como, André, como é que vamos entrar?»
Marek ficou a olhar silenciosamente para a ponte durante longo tempo. Finalmente disse: «Nadamos.»
Chris abanou a cabeça. «Não é possível.» Os pilares da ponte que desciam até à água eram abruptos, as pedras verdes e escorregadias por causa das algas. «Nunca seríamos capazes de trepar por ali.»
«Quem é que falou em trepar?» disse Marek.
09:27:33
Chris estremeceu arquejante ao sentir o frio das águas do rio. Marek já se afastava da margem, deixando-se boiar ao sabor da corrente. Kate seguia logo atrás dele, movendo-se para a direita, tentando manter-se no centro da corrente. Chris mergulhou atrás deles, olhando nervosamente para a praia.
Até ali os soldados ainda não os haviam detectado. O gorgolejar do rio era praticamente o único som que ouviam, sobrepondo-se a qualquer outro. Voltou-se, olhando em frente na direcção da ponte que se aproximava. Sentia o corpo tenso. Sabia que tinha apenas uma hipótese - se falhassem seriam arrastados pela corrente e não era muito provável que conseguissem fazer o caminho de volta mais uma vez sem serem capturados.
Portanto era assim mesmo. Uma única probabilidade.
Uma série de pequenas paredes em pedra fora construída a partir dos lados do rio para acelerar a água, e agora avançava mais rapidamente. Directamente à frente deles estava uma comporta de canal, mesmo antes das rodas. Estavam ocultos nas sombras da ponte. Estava tudo a acontecer demasiado depressa. O rio era um mar de espuma, um rugido de torrente. Enquanto se aproximava ouvia o gemido das rodas de madeira.
Marek chegou à primeira roda; agarrou um dos raios, deu a volta, assentou os pés numa das pás e foi subindo, transportado pela roda, até que desapareceu de vista.
Fez com que tudo parecesse extremamente fácil.
Naquele momento Kate chegava à segunda roda, próxima do centro da Ponte. Ágil, agarrou facilmente os raios que subiam e, no momento seguinte, quase que se soltou, debatendo-se para se aguentar. Finalmente conseguiu apoiar-se numa das pás, mantendo-se acocorada.
Chris deixou-se deslizar ao longo do canal em ângulo, resmungando quando o corpo chocava contra as rochas. A água à volta dele borbulhava fazendo lembrar um rápido, transportando-o rapidamente para a roda da azenha em movimento.
Agora era a sua vez.
A roda estava próxima.
Chris estendeu a mão para o raio mais próximo quando este saiu da água
- frio e escorregadio - a mão deslizou nas algas - farpas cortaram-lhe os dedos fazendo com que se soltasse - agarrou-se com a outra mão - desesperado - o raio erguia-se no ar - não o conseguia agarrar - deixa-o ir, volta de novo para a água - agarrou o raio seguinte quando surgiu - falhou -falhou - e em seguida foi arrastado inexoravelmente para a frente, de volta à luz do sol, descendo
a corrente.
Falhara
Porra.
A corrente arrastou-o em frente. Para longe da ponte, para longe dos outros. Estava por sua conta.
09:25:12
Kate apoiou um dos joelhos numa das pás da roda da azenha e sentiu que era erguida, saindo da água. Em seguida o outro joelho e colocou-se de cócoras, sentindo o corpo elevar-se no ar. Olhou para trás por cima do ombro a tempo de ver Chris deslizar corrente abaixo, a cabeça balançando à luz do sol. E nesse instante chegou ao topo, entrando no moinho.
Ela deixou-se cair no solo, agachando-se na escuridão. As pranchas de madeira por debaixo dos pés vergavam e sentia um cheiro de coisas húmidas apodrecidas. Encontrava-se numa pequena câmara, com a roda atrás dela, e um conjunto de rodas dentadas que giravam, chiando ruidosamente à sua direita. Essas rodas encontravam-se ligadas a um fuso vertical, que fazia rodar o eixo vertical. O eixo desaparecia no tecto. Sentiu a agua que a salpicava quando fez uma pausa para escutar. Mas não conseguia ouvir mais do que o som da água e o gemer da madeira.
Uma porta baixa encontrava-se directamente à sua frente. Empunhou a adaga e lentamente abriu a porta.
O grão caía directamente de um alçapão de madeira aberto no tecto por cima dela, para um recipiente rectangular de madeira que se encontrava no soalho a seu lado. Pilhas de sacos de grão encontravam-se arrumados a um canto. O ar estava nublado por causa da poeira amarela. A poeira cobria todas as paredes, as superfícies e a escada no canto da sala que conduzia ao segundo andar. Recordava-se de Chris lhe ter dito uma vez que esta poeira era explosiva, que uma chama podia fazer explodir a construção, desfazendo-a em fanicos. E, de facto, não viu quaisquer velas na sala, nem suportes para velas nas paredes. Não havia qualquer espécie de chama.
Cautelosamente, arrastou-se na direcção da escada. Só quando chegou junto dela é que viu dois homens no meio dos sacos que ressonavam estrepitosamente, com garrafas de vinho vazias tombadas junto dos pés. Mas nenhum deles deu sinais de ter despertado.
Começou a subir a escada.
Passou por uma roda em granito que girava ruidosamente assente noutra que se encontrava por baixo. O grão descia por uma espécie de funil e entrava num orifício que se encontrava na roda superior. A partir daí o grão moído saia lateralmente, deslizando através de um orifício para o andar de baixo.
No canto da sala viu Marek de cócoras junto do corpo de um soldado que jazia no solo. Kate ouviu vozes: eram os soldados que se encontravam junto da casa de entrada. Em silêncio Marek ergueu a escada e colocou-a de modo a manter a porta fechada.
Em conjunto tiraram ao soldado a espada, o arco e a aljava. O corpo do morto era pesado; era surpreendentemente difícil tirar-lhe as armas. Parecia levar demasiado tempo. Olhou para o rosto do homem - tinha uma barba de dois dias e uma ferida no lábio que estava ulcerada, e os olhos castanhos estavam muito abertos.
Saltou para trás aterrorizada quando de repente o homem estendeu o braço na sua direcção. Verificou que prendera a manga encharcada na sua pulseira. Libertou-se. A mão voltou a cair com um som surdo.
Marek pegou na espada do homem. Deu a Kate o arco e as flechas. Vários hábitos de monge de cor branca estavam pendurados numa fila de escápulas que haviam sido fixadas na parede. Marek tirou um hábito para si e deu a Kate um segundo hábito.
Em seguida apontou para a esquerda, no sentido da rampa que conduzia ao segundo edifício. Dois soldados em castanho avermelhado e cinzento encontravam-se na rampa, bloqueando-lhes o caminho.
Marek olhou à volta, encontrou um pau grosso que devia servir para mexer o grão, e estendeu-lho. Viu mais garrafas de vinho num canto. Pegou em duas, abriu a porta e disse qualquer coisa em Occitan na direcção dos soldados.
Caminharam apressadamente na sua direcção. Marek empurrou Kate para o lado da porta e disse uma frase muito simples: «Com força.»
O primeiro soldado entrou, seguido de imediato pelo segundo. Abateu o pau sobre a cabeça do homem com tanta força que ficou convencida de lhe ter partido o crânio. Mas não partira; o homem caiu mas imediatamente começou a pôr-se de pé. Bateu-lhe mais duas vezes e só então é que ele caiu desamparado no solo não se mexendo mais. Entretanto Marek quebrara a garrafa de vinho na cabeça do outro soldado e agora estava a dar-lhe pontapés repetidos no estômago. O homem debatia-se, erguendo os braços numa tentativa de se defender, até que ela lhe bateu com o pau na cabeça. Nessa altura deixou de se mover.
Marek acenou aprovadoramente com a cabeça, prendeu a espada debaixo do hábito e dirigiu-se para a rampa, a cabeça levemente curvada, como um monge. Kate seguiu atrás dele.
Ela não se atrevia a olhar para os soldados que se encontravam nas torres de guarda. Escondera a aljava debaixo do hábito, mas tinha que transportar o arco à vista. Não sabia se alguém reparara nela ou não. Chegaram ao edifício seguinte e Marek fez uma pausa junto da porta. Ficaram à escuta, mas tudo aquilo que conseguiam ouvir era um som repetido de pancadas e o ruído do rio que passava em baixo.
Marek abriu a porta.
Chris cuspia e tossia enquanto boiava na água. A corrente era agora mais lenta, mas já se encontrava a quase cem metros a jusante do moinho. Em ambos os lados do rio encontravam-se os homens de Arnaut, aguardando obviamente uma ordem para atacar a ponte. Um grande número de cavalos encontrava-se próximo, seguros por pajens.
O sol que incidia na superficie das águas reflectia o seu brilho nos rostos dos homens de Arnaut. Viu que eles pestanejavam, voltando as costas ao rio. Talvez tivesse sido por causa do brilho que eles não o tinham visto, concluiu Chris.
Sem chapinhar ou erguer os braços procurou dirigir-se para a margem norte do Dordogne e deslizou por entre os juncos que se erguiam na margem do rio. Conseguiu normalizar a respiração. E tinha que estar neste lado do rio
- o lado francês - se esperava voltar a reunir-se a André e a Kate.
Isto é, partindo do princípio de que tinham chegado vivos ao moinho. Chris não fazia a menor ideia de quais seriam as probabilidades. O moinho estava cheio de soldados.
Houve qualquer coisa que lhe bateu na parte de trás da cabeça. Voltou-se, vendo um rato morto, inchado com gás, que flutuava nas águas. O movimento forçou-o a sair do rio. Não havia soldados no ponto onde se encontrava; estavam à sombra de uma pequena mata de carvalhos, a cerca de vinte metros a jusante. Saiu das águas e enterrou-se na lama das margens. Sentiu o sol que lhe batia no Corpo, aquecendo-o. Ouviu os soldados que contavam anedotas e riam às gargalhadas. Sabia que se devia mover para um lugar mais protegido. No ponto onde agora se encontrava, no meio de pequenos arbustos junto da margem, qualquer pessoa que caminhasse ao longo do rio daria facilmente com ele. Mas quando começou a sentir-se mais quente, também começou a sentir-se esgotado com o cansaço. Sentia os olhos pesados, os membros trémulos, e apesar da sua noção de perigo, disse para si próprio, iria fechar os olhos apenas por alguns momentos.
Apenas por alguns momentos.
Dentro do moinho o ruído era ensurdecedor. Kate pestanejou quando chegou ao segundo andar e olhou para a sala que se encontrava por baixo. Ao longo de todo o edifício, duas filas idênticas de martinetes batiam em bigornas, provocando um som contínuo que ecoava nas paredes de pedra.
Ao lado de cada bigorna encontrava-se um recipiente com água e uma braseira com carvões incandescentes. Era, sem a menor dúvida, uma forja, onde o aço era temperado, sendo alternadamente aquecido, batido e arrefecido em água; as rodas forneciam a energia de batida.
Mas naquele momento os martinetes batiam sem que ninguém tomasse conta deles, enquanto sete ou oito soldados com trajes em castanho avermelhado e cinzento procuravam em todos os cantos da sala, olhando debaixo dos cilindros rotatiVos e debaixo dos martinetes, batendo nas paredes à procura de compartimentos secretos na pedra, e buscando nas caixas de ferramentas.
Não tinha a menor dúvida sobre aquilo de que andavam à procura: da chave do Irmão Marcel.
Marek voltou-se para ela e fez-lhe um sinal de que deveriam descer as escadas e dirigirem-se para uma porta que agora se encontrava aberta de par em par. Era a única porta que existia na parede lateral; não tinha qualquer fechadura e era quase de certeza a porta da cela de Marcel.
E via-se claramente que já aí haviam feito uma busca.
Por uma razão qualquer isso não deixou Marek preocupado, tendo este descido as escadas sem hesitação. No fundo das escadas passaram a zona dos martinetes e introduziram-se na cela de Marcel.
Marek abanou a cabeça.
Era de facto a cela de um monge, muito pequena, e espantosamente nua: apenas um estreito beliche, uma bacia de água e um vaso de noite. Junto da cama via-se uma minúscula mesa com uma vela. Era tudo. Dois dos hábitos brancos de Marcel estavam pendurados numa escápula na parte de dentro da porta.
Nada mais.
Era claro, numa primeira análise, que não existiam chaves neste quarto. E mesmo que tivesse havido, os soldados já as deviam ter encontrado.
No entanto, e para grande surpresa de Kate, Marek colou-se de gatas, apoiado nas mãos e nos joelhos, e começou a fazer uma busca metódica debaixo da cama.
Marek recordava aquilo que o Abade dissera antes de ter sido morto.
O Abade não conhecia a localização da passagem que queria encontrar desesperadamente, para a poder entregar a Arnaut. O Abade encorajara o Professor a procurar nos velhos documentos - o que fazia sentido, se Marcel estivesse tão demente que não fosse capaz de dizer a quem quer que fosse o que é que ele tinha feito.
O Professor encontrara um documento que mencionava uma chave, e parecia estar convencido de que se tratava de uma descoberta de importância. Mas o Abade mostrara-se impaciente: «É evidente que há uma chave. Marcel tinha muitas chaves ... »
Sendo assim, o Abade já conhecia a existência de uma chave. Sabia onde que a chave se encontrava. Mas, de qualquer modo, continuava a não ser capaz de a usar.
Porque não?
Kate tocou no ombro de Marek. Ele voltou-se para ver que ela afastara os hábitos brancos. Na parte interior da porta viu três desenhos gravados, numa espécie de padrão romano. Os desenhos tinham uma qualidade formal, até mesmo decorativa que parecia distintamente não medieval.
E foi então que chegou à conclusão de que não eram desenhos de modo nenhum. Eram diagramas explanatórios.
Eram chaves.
O diagrama que chamou a sua atenção era o terceiro, no extremo direito, Parecia-se mais ou menos com isto:
O diagrama fora gravado na madeira da porta muitos anos antes. Indubitavelmente os soldados já o tinham visto. Mas continuavam a busca, o que queria dizer que não tinham compreendido o que é que ele significava.
Mas Marek compreendeu.
Kate olhava intensamente para ele e murmurou: Escadas? Marek apontou para a imagem. Murmurou: Mapa. Porque finalmente agora tudo estava claro para ele.
VIVIX não podia ser encontrada no dicionário porque não era uma palavra. Era uma série de numerais: V, IV e IX. E estes numerais tinham direcções específicas que se encontravam ligadas a eles, conforme era indicado no texto do pergaminho: DESIDE. O que também não era uma palavra, mas representava uma abreviatura de Dextra, Sinistra, Dextra. Ou em Latim: "direita, esquerda, direita."
Deste modo a chave era o seguinte: uma vez dentro da capela, caminhar cinco passos para a direita, quatro passos para a esquerda e nove passos para a direita.
E isso conduziria à passagem secreta. Sorriu para Kate.
Aquilo que toda a gente procurava tinha sido finalmente encontrado por eles. Haviam encontrado a chave para La Roque.
09:10:23
Agora tudo aquilo que tinham a fazer era saírem vivos do moinho, pensou Kate. Marek foi até à porta e espreitou cautelosamente para os soldados que se encontravam na sala principal. Ela veio ter com ele.
Ela contou nove soldados. Mais de Kere. O que fazia dez ao todo. Dez contra dois.
Os soldados pareciam menos preocupados com a busca do que anteriormente. Muitos deles olhavam uns para os outros enquanto permaneciam junto dos martinetes, encolhendo os ombros como se dissessem, Será que ainda não acabámos? Qual é o interesse?
Era claro que seria impossível para Kate e Marek saírem sem serem detectados.
Marek apontou para as escadas que conduziam à rampa superior. «Sobes directamente as escadas e raspas-te daqui», disse-lhe ele. «Eu cubro a tua saída. Mais tarde voltamos a reunir-nos mais a jusante na margem norte. Okay?»
Kate olhou para os soldados. «São dez contra um. Eu fico», respondeu-lhe. «Não. Um de nós tem que sair daqui. Eu consigo aguentar. Tu vais.» Procurou qualquer coisa no bolso. «E leva isto contigo.» Entregou-lhe a cerâmica. Ela sentiu um arrepio. «Porquê, André?»
«Pega nisto.»
E saíram da sala. Kate dirigiu-se para as escadas, regressando pelo caminho por onde chegara. Marek atravessou a sala, na direcção das janelas mais distantes que davam para o rio.
Kate ia a meio caminho das escadas quando ouviu um grito. De todos os lados da sala soldados corriam para Marek que arrancara o hábito e combatia COM um deles.
Kate não hesitou. Tirando a aljava de baixo do hábito, apontou a primeira flecha e disparou o arco. Lembrou-se daquilo que Marek lhe dissera um dia: Se quiseres matar um homem... Recordou como naquela altura se rira.
Um soldado gritava, apontando para ela. Ela disparou; a flecha atingiu-lhe o pescoço junto do ombro. O homem recuou aos tropeções caindo numa das braseiras, gritando ao sentir os carvões incandescentes. Um segundo soldado que se encontrava junto dele recuava procurando cobertura. Kate disparou atingindo-o no peito. Caiu no solo, morto.
Faltavam oito.
Marek combatia com três ao mesmo tempo, incluindo de Kere. Espadas entrechocavam-se enquanto os homens evoluíam entre os martinetes e saltavam sobre os veios em rotação. Marek já tinha matado um dos soldados que jazia atrás dele.
Faltavam sete.
Mas foi então que viu o soldado levantar-se; a sua morte fora fingida, e agora avançava cautelosamente, com o intuito de atacar Marek pelas costas. Kate apontou uma flecha e disparou. O homem caiu desamparado, agarrado a uma coxa; estava apenas ferido; Kate atingiu-o mais uma vez na cabeça enquanto jazia deitado no chão.
Estava a pegar noutra flecha quando viu que de Kere se afastara do combate com Marek e subia agora as escadas em corrida na sua direcção, com surpreendente velocidade.
Kate agarrou noutra flecha, apontou-a e disparou. Mas a atrapalhação fez com que falhasse. E entretanto de Kere aproximava-se rapidamente.
Kate deixou cair o arco e correu para o exterior.
Correu ao longo da rampa na direcção do moinho, olhando para as águas que corriam lá em baixo. Por toda a parte conseguia ver pedras no fundo do rio semiocultas pela água borbulhante coberta de espuma: a água era muito pouco profunda para se arriscar a saltar. Tinha de voltar pelo caminho por onde subira. Atrás dela de Kere gritava qualquer coisa. Na torre de guarda que se encontrava à frente um grupo de arqueiros preparou os arcos.
Na altura em que começavam a voar as primeiras flechas alcançou a porta do moinho. Nessa altura de Kere recuava novamente, gritando para os arqueiros e erguendo um punho no ar. As flechas cravavam-se à sua volta.
Na sala superior do moinho, soldados atíravam-se contra a porta que fora bloqueada pela escada. Ela sabia que a escada não iria aguentar durante muito tempo. Dirigiu-se para a abertura no soalho e saltou para a sala que ficava por baixo. Com toda aquela excitação os soldados embriagados começavam a acordar, olhando estremunhados para os pés. Mas com tanta poeira amarelada no ar era difícil conseguir vê-los com nitidez.
Foi isso que lhe deu uma ideia: toda aquela poeira que havia no ar. Procurou na bolsa e tirou um dos cubos vermelhos. Tinha gravado «60». puxou a palheta e atirou-o para um canto da sala,
Mentalmente começou a contar no sentido inverso. Cinquenta e nove. Cinquenta e oito.
De Kere encontrava-se agora no sobrado directamente por cima dela, mas hesitou em descer, não tendo a certeza se ela estava ou não armada. Ouviu muitas vozes e passos no andar de cima; tinham chegado os soldados da casa da guarda. Na parte de cima devia haver cerca de uma dúzia de soldados. Talvez mais.
Pelo canto do olho viu um dos soldados embriagados que se encontrava junto dos sacos lançar-se para a frente procurando agarrá-la. Deu-lhe um pontapé entre as pernas com toda a força de que foi capaz e o homem caiu gemendo, ficando encolhido no solo.
Cinquenta e dois. Cinquenta e um.
Colocou-se de cócoras e desviou-se para a pequena sala lateral onde chegara da primeira vez. A roda da azenha rangia, espalhando água em todos os sentidos. Procurou encerrar a porta inferior mas esta não tinha qualquer fecho. Qualquer pessoa podia entrar.
Cinquenta. Quarenta e nove.
Olhou para baixo. A abertura no soalho, onde a roda continuava a sua rotaÇão descendente, era suficientemente larga para lhe permitir a passagem. Agora tudo aquilo que tinha que fazer era empoleirar-se numa das pás e cavalgar a roda até ser capaz de saltar em segurança para as águas pouco profundas.
Mas enquanto se encontrava voltada para a roda da azenha, tentando calcular o tempo do movimento, chegou à conclusão de que era mais fácil dizer do que fazer. A roda dava a impressão de girar muito depressa, com uma visão desfocada das pás quando passavam por ela. Sentiu a água a chapinhar-lhe o rosto, desfocando-lhe a visão. Quanto tempo é que ainda tinha? Trinta segundos? Vinte? A olhar para a roda perdera a noção do tempo. Mas sabia que não Podia esperar mais. Se Chris tinha razão, todo o moinho iria explodir de um momento para o outro. Kate inclinou-se para a frente, agarrando uma das pás que passavam - começou a cair com ela - atemorizou-se - largou-a - voltou a agarrar - perdeu novamente a coragem - e em seguida recuou, respirou fundo e procurou acalmar-se, preparando-se mais uma vez.
Ouviu o som cavo dos homens a caírem, saltando do andar de cima para a sala adjacente. já não lhe restava mais tempo.
Tinha que ir.
Respirou fundo, e agarrou a pá seguinte com ambas as mãos comprimindo-se contra a roda. Deslizou através da abertura e surgiu à luz do sol - conseguira! - até que de repente foi arrancada da roda e sentiu-se suspensa no ar. Olhou para cima.
Robert de Kere agarrava-lhe o braço numa prisão de aço. Estendendo o braço através da abertura agarrara-a no último momento quando ela começava a descer. E agora segurava-a, mantendo-a pendurada no ar, A polegadas de distância a roda continuava o seu movimento. Tentou libertar-se da prisão de de Kere. O seu rosto era sombrio e determinado ao olhar para ela.
Ela debateu-se.
Ele segurava com firmeza.
Foi então que viu qualquer coisa a mudar no seu olhar - um laivo de incerteza - e a madeira apodrecida do soalho começou a ceder debaixo dele. O peso combinado dos dois era demasiado para as velhas pranchas de madeira que durante anos haviam sido encharcadas com a água da roda da azenha. As pranchas começavam a vergar. Uma das pranchas quebrou sem qualquer som, e o joelho de de Kere enfiou-se pela abertura, mas continuou a segurar com firmeza.
Quanto tempo ainda? pensou ela. Com a mão livre bateu no pulso de de Kere, tentando que ele a libertasse.
Quanto tempo ainda?
De Kere era como um bulldog, agarrando, não abandonando a presa. Partiu-se outra prancha do soalho e ele caiu de lado. Se partisse mais alguma prancha cairia pela abertura arrastando-a com ele.
E ele não se importava. Continuaria a agarrar até ao fim. Quanto tempo ainda?
Com a mão livre agarrou uma das pás que passava à sua frente e usou a força da roda para arrastar o corpo para baixo, contrariando a prisão que de Kere exercia no braço. Os braços ardiam-lhe com a tensão, mas funcionou,
- as pranchas estalaram - de Kere caía através da abertura largando-a - e ela caiu, a pouca distância que ainda lhe faltava, na água espumante em volta da roda.
E nesse momento houve um flash de luz amarela e todo o edifício de madeira acima dela desapareceu num rugido infernal. Avistou pranchas que voavam em todas as direcções enquanto ela terminava a sua queda mergulhando de cabeça na água gelada. Por instantes avistou as estrelas e, em seguida, perdeu a consciência mergulhando nas águas borbulhantes.
09:04:01
Chris acordou com os gritos dos soldados. Olhou para cima, vendo os soldados que corriam em grande confusão ao longo da ponte do moinho. Viu um monge de hábito branco sair por uma das janelas do edifício maior e em seguida verificou que se tratava de Marek atacando com a espada alguém que se encontrava no interior. Marek deslizou pelas trepadeiras até se encontrar suficientemente baixo para se arriscar a saltar, deixando-se cair no rio. Chris não viu Marek voltar à superficie.
Ainda estava a observar quando o moinho explodiu numa confusão de luz e de madeiras que voavam por todos os lados. Soldados atirados ao ar pela força da explosão caíam dos edifícios como marionetas. Quando o fumo desapareceu e a poeira assentou, verificou que o moinho desaparecera - tudo o que restava era meia dúzia de pranchas de madeira lambidas pelas chamas. Soldados mortos flutuavam no rio mais abaixo que estava cheio de pranchas de madeira do moinho desaparecido.
Continuava a não conseguir avistar Marek em parte nenhuma e também não via Kate. Um hábito branco de monge passou a boiar à sua frente, arrastado pela corrente e de repente teve a horrível sensação de que ela estava morta.
Se assim fosse então estava sozinho. Correndo o risco da comunicação, bateu nos auriculares e disse suavemente: «Kate, André.»
Não houve qualquer resposta. «Kate, estás aí? André?»
Viu o corpo de um homem flutuando no rio de rosto para baixo, e parecia-se com Marek. Seria? Sim, Chris tinha a certeza: cabelo escuro, grande, forte, envergando uma camisa interior em linho. Chris gemeu. Soldados que se encontravam na margem um pouco mais acima gritavam entre si; voliou-sc para ver a que distância se encontravam. Quando se virou de novo para o rio o corpo já desaparecera.
Chris deixou-se cair atrás dos arbustos tentando pensar no que é que devia fazer a seguir.
Kate veio à superficie, boiando de costas. Flutuava impotente arrastada pela corrente. à sua volta pedaços de madeira partida batiam na água como mísseis. A dor no pescoço era tão grande que a fazia arquejar, e a cada inspiração sentia uma espécie de choques eléctricos nos braços e nas pernas. Não conseguia mover o corpo, o que a levou a pensar que estivesse paralisada, até que lentamente começou a veríficar que já era capaz de mexer os dedos das mãos e dos pés. A dor começou a desvanecer-se, subindo-lhe pelos membros para se ir localizar no pescoço onde era muito intensa. Mas começou a respirar um pouco melhor e já conseguia mexer os membros. Experimentou mais uma vez: sím, não havia a menor dúvida, já conseguia mexer os braços e as pernas.
Sendo assim não estava paralisada. Teria o pescoço partido? Tentou um pequeno movimento, rodando muito levemente primeiro para a esquerda e em seguida para a direita. Era doloroso como o raio mas parecia estar tudo bem. Continuou a ser arrastada pela corrente. Tinha qualquer coisa que lhe escorria dos olhos difícultando-lhe a visão. Limpou com a mão, vendo sangue nas pontas dos dedos. Devia ser de qualquer coisa que tivesse na cabeça. A testa ardia-lhe. Tocou-lhe com a palma da mão. Quando a retirou viu que estava vermelha, cheia de sangue.
Continuou a boiar ao sabor da corrente, sempre de costas. A dor era ainda tão forte que não se sentia com forças para se virar e começar a nadar. Para já deixava-se boiar. Perguntava a si própria porque é que os soldados não a teriam avistado.
Foi nessa altura que ouviu gritos da margem e chegou à conclusão de que a tinham mesmo avistado.
Chris espreitou através dos arbustos precisamente a tempo de avistar Kate que flutuava de costas. Estava ferida; tinha o lado esquerdo do rosto cheio de sangue, que lhe corria do escalpe. E não se mexia muito. Podia estar paralisada.
Por momentos os seus olhares encontraram-se. Ela sorriu levemente. Ele sabia que se se mostrasse naquela altura podia ser capturado, mas não hesitou Agora que Marek desaparecera não tinha nada a perder; pelo menos haviam de permanecer juntos até ao fim. Entrou na água caminhando na sua direcção. Foi só nessa altura que se apercebeu do seu erro.
Continuava ao alcance dos disparos dos arqueiros que ainda se encontravam na última torre da ponte, e estes começaram a atirar sobre ele, com flechas a sibilarem por todo o lado caindo na água.
Quase de imediato, do lado de Arnaut um cavaleiro de armadura completa desceu do cavalo entrando na água. O cavaleiro tinha o elmo colocado, pelo que era impossível ver-lhe o rosto, mas era evidente que não temia nada, porque colocou o corpo e o cavalo em posição de bloquear o tiro dos arqueiros. O cavalo mergulhou mais profundamente na água quando ele avançou e a dada altura começou a nadar, o cavaleiro com água até ao peito, quando atravessou Kate na sela como se fosse um saco molhado, puxando em seguida Chris pelo braço e dizendo «Allons!» ao mesmo tempo que regressava à praia,
Kate deslizou da sela para o solo. O cavaleiro ladrou uma ordem e um homem transportando uma bandeira com riscas diagonaís em vermelho e branco chegou a correr. Examinou o ferimento que Kate tinha na cabeça, limpou-o e estancou o sangue, para em seguida lhe colocar uma ligadura de linho.
Entretanto o cavaleiro desmontou, desapertou o elmo e tirou-o. Era um homem alto e robusto, extraordinariamente elegante e com um ar arrojado, com cabelo escuro ondulado, olhos escuros, uma boca cheia e sensual e um cintilar nos olhos que sugeria como se sentia divertido com as loucuras do mundo à sua volta. O tom de pele era escuro, dando a ideia de ser Espanhol.
Depois de Kate ter sido ligada o cavaleiro sorriu, mostrando uns dentes brancos perfeitos. «Se quiserem dar-me a honra de me acompanhar.» Conduziu-os de volta ao mosteiro e à sua igreja. Na porta lateral que dava para a igreja encontrava-se um grupo de soldados e um outro a cavalo empunhando o estandarte em verde e negro de Arnaut de Cervole.
Enquanto entravam na igreja, todos os soldados por quem passavam faziam uma vénia ao cavaleiro, dizendo, «Meu Senhor... Meu Senhor...»
Seguindo atrás dele, Chris fez um aceno para Kate. «É ele,»
'«Quem?» «Arnaut.» «Aquele cavaleiro? Estás a brincar.»
«Vê como os soldados se comportam. Arnaut salvou as nossas vidas.»
Chris tinha consciência da ironia. Nos relatos históricos do século vinte sobre aquela época, Sir Oliver era retratado como alguém muito próximo de um soldado-santo, ao passo que de Cervole era considerado como uma figura sinistra, «um dos grandes seres diabólicos daquela época», no dizer de um historiador. E, no entanto, pelo que parecia, a verdade era exactamente o oposto do que se dizia na história. Oliver era um bandido desprezível, e Cervole era um extraordinário exemplar da cavalaria - a quem eles agora deviam a vida. Kate disse: «E o que é que aconteceu a André?»
Chris abanou a cabeça. «Tens a certeza?»
«Acho que sim. Acho que o vi no rio.» Kate não disse nada.
Fora da igreja de Sainte-Mère viam-se longas filas de homens com as mãos atadas atrás das costas, aguardando para entrar. Eram, na sua maioria, soldados de Oliver em trajes de castanho avermelhado e cinzento, juntamente com alguns camponeses usando trajes grosseiros. Chris calculou que devia haver ao todo cerca de quarenta ou cinquenta homens, Enquanto passavam, os homens olhavam soturnamente para eles. Alguns deles estavam feridos: pareciam todos exaustos.
Um homem, um soldado de castanho avermelhado, disse sarcasticamente para outro: «Alí vai o bastardo Senhor de Narborme. Faz o trabalho mais sujo mesmo para Arnaut.»
Chris ainda estava a tentar compreender isto quando o elegante cavaleiro Se Voltou rapidamente. «Que é que dizeis?» gritou, e agarrando um punhado de cabelos do homem ergueu-lhe a cabeça, ao mesmo tempo que com a mão livre empunhando uma adaga lhe cortava a garganta de lado a lado. O sangue Correu pelo peito do homem. Este permaneceu de pé por alguns momentos, emitindo um som roufenho.
«Fizestes o último insulto», disse o elegante cavaleiro. Ficou a sorrir para o homem, observando o sangue a escorrer, sorrindo directamente para os olhos do homem arregalados com o horror. O homem continuava de pé. Para Chris Parecia que ia ficar ali para sempre, mas não deviam ter passado mais de trinta ou quarenta segundos. O elegante cavaleiro limitava-se a observar em silêncio, não se mexendo, o sorriso nunca abandonando o seu rosto.
Finalmente o homem caiu para a frente, a cabeça dobrada, como se estivesse em oração. O cavaleiro calmamente colocou o pé debaixo do queixo do homem, empurrando-o violentamente e fazendo-o cair de costas. Continuou a observar o estertor de morte do homem durante mais um ou dois minutos. Finalmente morreu.
O elegante cavaleiro inclinou-se para a frente, limpou a lâmina nos calções do homem e limpou o sapato salpicado de sangue no justilho. Em seguida fez um aceno com a cabeça na direcção de Chris e de Kate.
E entraram na igreja de Sainte-Mère.
O interior estava nublado por causa do fumo. A nave central era um largo espaço aberto. Durante mais duzentos anos continuaria a não haver bancos ou cadeiras. Deixaram-se ficar ao fundo da nave, juntamente com o elegante cavaleiro, que parecia contente por estar à espera. Numa das naves laterais via-se um grupo compacto de soldados murmurando entre si.
Um cavaleiro solitário de armadura completa estava de joelhos no centro da nave, rezando.
Chris voltou-se para olhar para os outros cavaleiros. Parecia que se encontravam no meio de uma intensa disputa; os seus sussurros eram furiosos. Mas não conseguia imaginar do que é que se tratava.
Enquanto esperavam, Chris sentiu que qualquer coisa lhe pingava no ombro. Olhando para cima viu um homem que se encontrava directamente pendurado por cima dele, oscilando lentamente numa corda. Urina escorria-lhe por uma das pernas. Chris afastou-se da parede e viu meia dúzia de corpos, com as mãos atadas atrás das costas, pendurados de cordas amarradas na balaustrada do segundo andar. Três envergavam a túnica avermelhada de Olíver. Outros dois usavam trajes de camponeses e o último envergava o hábito branco de um monge. Dois outros homens estavam sentados no solo, observando em silêncio enquanto mais cordas eram amarradas na balaustrada superior, aparentemente resignados ao seu destino.
No centro da nave o homem de armadura fez o sinal da cruz e colocou-se de pé. O elegante cavaleiro disse: «Meu Senhor Arnaut, aqui estão os assistentes.» «Eh? O que é que dizeis? Assistentes?»
O cavaleiro voltou-se. Arnaut de Cervole tinha cerca de trinta e cinco anos, cabelo encrespado e um rosto estreito, desagradável, denotando astúcia. Tinha um tique facial que fazia o nariz contrair-se dando-lhe a aparência de um rato a farejar. A sua armadura estava ensanguentada. Olhava para eles com olhos de tédio e preguiça. «Dizeis que são assistentes, Raimondo?»
«Sim, meu Senhor. Os assistentes de Magister Edwardus.»
«Ah.» Arnaut andou em volta deles. «Porque é que eles estão todos molhados.»
«Tirámo-los do rio, meu Senhor», disse Raimondo. «Estavam no moinho e escaparam no último minuto.»
«Ah sim?» Arnaut deixara de se mostrar entediado. Os seus olhos brilhavam. com interesse. «Peço-vos que me digais, como é que haveis destruído o moinho?»
Chris clareou a garganta e disse: «meu Senhor, não o fizemos.»
«Oh?» Arnaut franziu as sobrancelhas. Olhou para o outro cavaleiro. «Que discurso é este? Aquilo que eles dizem é incompreensível?»
«Meu Senhor, são irlandeses ou talvez das Hébridas.»
«Oh? Então não são ingleses. É qualquer coisa a seu favor.» Circulou em volta deles e, em seguida, olhou directamente para os rostos deles. «Compreendeis-me?»
Chris disse: «Sim, meu Senhor.» Isto pareceu ser compreendido. «Sois ingleses?»
«Não, meu Senhor.»
«Por minha fé, de facto não pareceis ser. Pareceis demasiado brandos e pouco guerreiros.» Olhou para Kate. «Este é tão fresco como uma rapariga. E este ... » Apertou os bíceps de Chris. «É um amanuense ou um escriba. De certeza que não é inglês.» Arnaut abanou a cabeça, voltando-lhe o tique no nariz.
«Porque os ingleses são selvagens», exclamou em voz alta, a voz ecoando na nave cheia de fumo. «Estais de acordo?»
«Assim é meu Senhor», disse Chris.
«Os ingleses não conhecem outro modo de vida que não seja uma interminável insatisfação e desejo de brigas. Estão sempre a assassinar os seus próprios reis; é o seu hábito selvagem. Os nossos irmãos normandos conquistaram-nos e tentaram ensinar-lhes maneiras civilizadas, mas é evidente que falharam. O sangue saxão é demasiado bárbaro. Os ingleses deliciam-se com a destruição, morte e tortura. Não contentes por lutarem entre si na sua desgraçada ilha gelada, trazem os seus exércitos para aqui, para esta pacífica e próspera terra e Provocam a destruição de um povo simples. Estais de acordo?»
Kate acenou com a cabeça, fazendo uma vénia.
«Aliás, como seria vosso dever» disse Arnaut. «A sua crueldade é inultrapassável. Conheceis o seu velho rei? O segundo Edward? Sabeis como é que eles decidiram assassiná-lo com um ferro em brasa? E isto feito a um rei! Não é de admirar que tratem o nosso país ainda com maior selvajaria.»
Caminhava a passos largos para a frente e para trás. Em seguida voltou-se, de novo para eles.
«E o homem que em seguida subiu ao poder, Hugh Despenser. De acordo com o costume inglês, pouco depois também foi assassinado. Sabeis como? Foi amarrado a uma escada numa praça pública e os seus súbditos foram-lhe cortando partes do corpo que iam queimando à sua frente. E isto antes de ser decapitado! Eh? Charmant.»
Mais uma vez olhou para eles à espera de acordo. Mais uma vez acenaram com a cabeça.
«E agora o último rei, Edward 111, aprendeu a lição dos seus antepassados
- a de que deve conduzir permanentemente uma guerra, pois caso contrário corre o risco de morrer às mãos dos seus próprios súbditos. Assim, ele e o seu filho bastardo, o Príncipe de Gales trazem os seus modos bárbaros para França, um país que nunca conhecera uma guerra selvagem até eles entrarem no nosso solo com os seus chevauchéês, assassinarem os nossos camponeses, violarem as nossas mulheres, chacinarem os nossos animais, arruinarem as nossas colheitas, destruírem as nossas cidades e terminarem com o nosso comércio. Para quê? Para que os espíritos ingleses sedentos de sangue possam estar ocupados no estrangeiro. Para que possam roubar fortunas de uma terra mais honrada. Para que cada dama inglesa possa servir os seus convidados em pratos franceses. Para que possam afirmar serem honoráveis cavaleiros quando não fazem nada mais valoroso do que chacinarem crianças à machadada.»
Arnaut fez uma pausa nesta tirada e olhou alternadamente para o rosto de cada um, os olhos inquietos e cheios de suspeita. «E é por causa disso», disse, «que não consigo compreender porque é que vos haveis reunido ao porco inglês, OlIver.»
Chris disse rapidamente: «Não é exacto meu Senhor.»
«Não tenho paciência para tanto. Para dizer a verdade, haveis ajudado Oliver, uma vez que o Magister está ao seu serviço. »
«Não meu Senhor. O Magister está lá contra a sua vontade.»
«Contra... a sua ... » Arnaut ergueu as mãos ao ar em sinal de desgosto«Quem é que me poderá dizer o que é que este miserável afogado está a dizer?»
O cavaleiro elegante aproximou-se deles. 0 meu Inglês é bom, disse ele.
Voltando-se para Chris «Spek ayain.» Falai de novo.
Chris fez uma pausa para pensar e em seguida começou de novo, «Magister Edwardus ...»
«Sim ...»
« ... é prisioneiro.»
«Priz-un-er?» O cavaleiro elegante franziu as sobrancelhas, espantado. «Pris-ouner?»
Chris tinha a sensação de que o Inglês do cavaleiro não era tão bom como ele pensava. Decidiu tentar o seu Latim mais uma vez, por muito pobre e arcaico que fosse. «Est in carcere - captus - heri captus est de coenobío sanctae Mariae.» Fazia votos para que aquilo significasse «Foi capturado ontem de manhã no mosteiro de Sainte-Mère.»
O cavaleiro franziu as sobrancelhas. «Invite? Contra a sua vontade?» «Assim é, meu Senhor.»
O cavaleiro disse a Arnaut: «Dizem que o Magister foi ontem retirado do mosteiro contra a sua vontade e é agora prisioneiro de Oliver.»
Arnaut voltou-se rapidamente, inspeccionando de perto os rostos deles. Numa voz baixa e ameaçadora disse-lhes: «Sed vos non capti estis. Nonne? E no entanto vós não haveis sido capturados?»
Chris fez mais uma pausa. Xh, we ... Oui?»
«Não, não, meu Senhor», disse Chris apressadamente. Uh, non. Escapámos. Uh, ef- effugi-i-imus. Effugirnus. » Teria sido essa a palavra certa? Suava por causa da tensão em que se encontrava.
Aparentemente era suficientemente boa porque o cavaleiro elegante acenou com a cabeça. «Dizem que escaparam.»
Arnaut interrompeu bruscamente: «Escaparam? De onde?» Chris: «Ex Castelgard heri... »
«Escaparam ontem de Castelgard?» «Etiam, m/ domine. Sim, meu Senhor.»
Arnaut olhou intensamente para eles, não dizendo nada durante muito tempo. Na varanda do segundo andar continuavam a colocar cordas em volta dos pescoços dos homens para em seguida os lançar no espaço. A queda não lhes partia o pescoço pelo que ficavam ali pendurados produzindo sons gorgolejantes e estremecendo enquanto morriam lentamente.
Arnaut ergueu o olhar para eles como se estivesse irritado por o interromperem com os seus estertores de morte. «Ainda sobram algumas cordas.» Olhou de novo para eles. «Hei-de ter a verdade de vós.»
Chris disse: «Digo-vos a verdade, meu Senhor.»
Arnaut virou-se rodando nos calcanhares. «Haveis falado com o monge Marcel antes dele ter morrido?»
«Marcel?» Chris fez um esforço para parecer confuso. «Marcel, meu Senhor?» «Sim, sim, Marcel. Côgnovístinefratrem Marcellum? Conheceis o Irmão Marcel?»
«Não, meu Senhor.»
« Transitum ad Roccam cognitum habesne?» Para isto Chris não precisava de esperar pela tradução: a passagem para La Roque, sabeis onde é?
«A passagem... transítum ... » Chris encolheu os ombros mais uma vez, fingindo falta de conhecimento. «Passagem? ... Para La Roque? Não meu Senhor,» Arnaut parecia francamente não acreditar. «Parece que não sabeis nada.»
Olhou de perto para os rostos deles, o nariz com o tique ainda mais acentuado, dando a impressão de que os estava a cheirar. «Tenho dúvidas. Para dizer a verdade, sois mentirosos.»
Voltou-se para o cavaleiro elegante. «Enforcai um e vereis como o outro fala.» «Qual deles, meu Senhor?»
«Ele»I disse Arnaut, apontando para Chris. Olhou para Kate, beliscando-lhe a face e fazendo-lhe em seguida uma carícia. «Porque este bonito rapaz toca-me o coração. Irei recebê-lo esta noite na minha tenda. Não o vou desperdiçar antes disso.»
«Muito bem meu Senhor.» O cavaleiro elegante ladrou uma ordem e da varanda do segundo andar os homens começaram a amarrar outra corda. Outros homens amarraram os pulsos de Chris e ataram-nos rapidamente atrás das costas.
Chris pensou, Santo Deus,'vão mesmo fazê-lo. Olhou para Kate cUjos olhos estavam arregalados com o horror que sentia. Os homens começaram a arrastar Chris.
«Meu Senhor», disse uma voz vinda da nave lateral da igreja. «Se me permitis.» O grupo compacto de soldados desfez-se e Lady Claire emergiu do meio deles.
Claire disse suavemente: «Meu Senhor, precisava de vos dar uma palavra em particular.»
«Eh, evidentemente, se assim o desejais.» Arnaut dirigiu-se para ela e esta murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Fez uma pausa encolhendo os ombros. Ela murmurou novamente, desta vez de modo mais veemente.
Ao fim de alguns momentos ele disse: «Eh? E para que é que isso serve?» Mais murmúrios. Chris não conseguia ouvir uma palavra.
Arnaut disse: «Minha Senhora, já decidi.» Ainda mais murmúrios.
Finalmente, abanando a cabeça, Arnaut veio ter com eles. <A Dama veio pedir-me salvo-conduto daqui para Bordeaux. Diz que vos conhece e que sois homens honestos.» Fez uma pausa. «Diz que eu vos devia libertar.»
Claire disse: «Só se isso for do vosso agrado meu Senhor. Sabemos perfeitamente que os ingleses matam de modo indiscriminado, o que já não se passa com os franceses. Os franceses mostram que a misericórdia vem da inteligencia e da educação. »
«Assim é», respondeu ele, «É um facto que nós, franceses, somos homens civilizados. E se esses dois nada sabem do Irmão Marcel e da passagem, já não preciso deles. E assim direi que lhes sejam fornecidos cavalos e alimentos e que lhes seja permitido continuarem o seu caminho. Ficarei nas boas graças do vosso Magister Edwardus e assim me recomendo a ele, fazendo votos para que Deus vos conceda uma jornada segura para vos juntardes a ele. Sendo assim, podeis partir.»
Lady Claire fez uma vénia. Chris e Kate fizeram uma vénia,
O cavaleiro elegante desamarrou os pulsos de Chris e conduziu-os para o exterior. Chris e Kate estavam de tal modo espantados com esta mudança de situação que não disseram uma palavra enquanto caminhavam de volta até à margem do rio. Chris sentia-se vacilante e com vertigens. Kate não deixava de esfregar o rosto, como se quisesse acordar.
Finalmente o cavaleiro disse: «Deveis a vida a uma inteligente dama.» Chris respondeu: «Assim é ... »
O cavaleiro elegante sorriu levemente. «Deus sorri-vos», disse.
Não parecia de modo nenhum feliz a esse respeito.
A cena junto do rio estava completamente transformada. Os soldados de Arnaut haviam tomado a ponte do moinho, onde agora se via ondular nos edificios um estandarte em verde e negro. Ambas as margens do rio se encontravam ocupadas com os homens de Arnaut a cavalo. E agora um rio de homens e material subia a estrada na direcção de La Roque, levantando nuvens de poeira. Havia homens que conduziam carroças puxadas por cavalos carregadas com fornecimentos, outras com mulheres a conversarem umas com as outras, crianças cobertas de andrajos, e ainda outras carroças carregadas com enormes vigas de madeira - catapultas gigantes desmontadas, que se destinavam a lançarem pedras e alcatrão a ferver sobre as muralhas do castelo.
O cavaleiro encontrara um par de cavalos para eles - duas pilecas onde se distinguiam perfeitamente as marcas do colar com que costumavam puxar o arado. Conduzindo os animais, guiou-os através do ponto de controlo da peagem.
Um rebuliço súbito no rio fez com que Chris olhasse para trás. Viu uma dúzia de homens com água até aos joelhos, debatendo-se com um canhão de carregar pela culatra fundido em ferro, montado num suporte de madeira. Chris ficou a olhar fascinado. Nenhum canhão daquele tipo conseguira sobreviver, ou até mesmo chegara a ser descrito.
Toda a gente sabia que fora usada artilharia primitiva naquela época; os arqueólogos haviam encontrado em escavações bolas de canhão no local onde se travara a Batalha de Poitlers. Mas os historiadores acreditavam que os canhões eram raros, e fundamentalmente para exibição - uma questão de prestígio. Mas para Chris, que observava os homens a debaterem-se no rio para erguerem o cilindro e o carregarem numa das carroças, era perfeitamente claro que um tal esforço nunca seria desperdiçado se se tratasse de uma arma simplesmente simbólica. O canhão era pesado; atrasava o avanço de todo o exército, que, de certeza, queria chegar junto das muralhas de La Roque ao cair da noite; não havia qualquer razão para que o canhão não pudesse ser trazido mais tarde. O esforço que estava a ser desenvolvido só poderia ter um significado, o de que o canhão seria importante no ataque.
Mas de que maneira? Dava voltas à cabeça. As muralhas de La Roque tinham dez pés de espessura. Uma bola de canhão nunca seria capaz de as atravessar.
O elegante cavaleiro fez uma breve saudação e disse: «Deus vos abençoe e vos proteja.»
«Deus vos abençoe e vos conceda fortuna», respondeu Chris, e então o cavaleiro deu uma palmada nas garupas dos cavalos, e seguiram o seu caminho na direcção de La Roque.
Enquanto cavalgavam, Kate falou-lhe do que encontrara no quarto de Marcel e sobre a capela verde.
«Sabes onde é que fica essa capela?» perguntou Chris.
«Sim. Descobri-a num dos mapas de controlo. Fica a cerca de meia milha a leste de La Roque. Há uma vereda na floresta que leva até lá.»
Chris suspirou. «Sendo assim, sabemos onde é que fica a passagem», disse ele, «mas André tinha o marcador, e agora está morto, o que quer dizer que, de qualquer modo, nem sequer somos capazes de sair daqui.»
«Não», interrompeu ela. «Eu tenho o marcador.» «Tu?»
«André deu-mo quando estávamos na ponte. Julgo que ele sabia que nunca iria sair vivo dali. Podia ter corrido para se pôr a salvo. Mas não o fez. Deixou-se ficar e em vez disso salvou-me.»
Começou a chorar suavemente.
Chris cavalgou em silêncio sem dizer uma palavra. Recordava agora como a energia de Marek sempre divertira os outros estudantes licenciados - «Quem havia de dizer! Ele acredita mesmo nessa treta da cavalaria!» - e como ele assumira que o seu comportamento era de certo modo estranho. Um papel que
desempenhava, qualquer coisa de afectado. Não havia dúvida de que no final do século vinte, não se podia seriamente pedir a uma pessoa para acreditar em honra e verdade, na pureza do corpo, na defesa das mulheres, na santidade do verdadeiro amor, e em tudo o resto.
Mas, aparentemente, André acreditava mesmo nisso.
Moveram-se através de uma paisagem de pesadelo. O sol era pálido e fraco no arieiro da poeira e do fumo. Aqui e ali viam-se vinhedos, mas todas as cepas estavam queimadas, erguendo ramos enegrecidos para o céu, enquanto o fumo Se elevava no ar. Também os pomares estavam negros e desolados, com as
árvores reduzidas a esqueletos. Fora tudo queimado.
à sua volta ouviam-se os gritos aflitivos dos soldados feridos. Muitos soldados em retirada haviam-se deixado cair nas bermas da própria estrada. Alguns ainda respiravam; outros apresentavam o branco acinzentado da morte.
Chris fizera uma pausa para recolher armas dos soldados mortos, quando um dos soldados que se encontrava próximo ergueu a mão e exclamou angustiadamente: «Secors, secors!» Chris dirigiu-se para ele. O homem tinha uma flecha profundamente cravada no abdómen e outra no peito. O soldado pouco mais tinha de vinte anos e parecia saber que estava a morrer. Deitado de costas, olhou para Chris com um ar suplicante, dizendo palavras que este não conseguia compreender. Finalmente o soldado apontou para a boca, dizendo: «Aquam. Da mih1 aquam.» Estava com sede; queria água. Chris encolheu os ombros com um ar impotente. Não tinha água. O homem pareceu irritado, franziu as sobrancelhas, cerrou os olhos e voltou a cabeça para o outro lado. Chris afastou-se. A partir daí, sempre que passavam por homens pedindo auxílio, seguia em frente sem se deter. Não havia nada que ele pudesse fazer.
Conseguiam avistar La Roque à distância, erguendo-se alto e inexpugnável no topo das encostas do Dordogne. E conseguiriam chegar à fortaleza em menos de uma hora.
No canto escuro da igreja de Sainte-Mère, o elegante cavaleiro ajudou André Marek a pôr-se de pé. Disse: «Os seus amigos já partíram.»
Marek tossiu, e agarrou o braço do cavaleiro para se amparar quando uma onda de dor lhe invadiu a perna. O cavaleiro elegante sorriu. Capturara Marek logo a seguir à explosão do moinho.
Quando Marek se escapara pela janela do moinho, tivera a enorme sorte de cair num pequeno charco tão profundo que não se magoou. E, quando voltou de novo à superficie, descobriu que ainda estava debaixo da ponte. Havia um pequeno redemoinho no charco, pelo que a corrente não conseguira arrastá-lo.
Marek tirara o seu hábito de monge e lançara-o para a corrente na altura em que o moinho explodiu, com pedaços de madeira e corpos voando em todas as direcções. Um soldado caiu na água a pouca distância dele, tendo o corpo sido apanhado pelo redemoinho. Marek começou a arrastar-se na direcção da margem - e um elegante cavaleiro colocou a ponta da espada na sua garganta, ordenando-lhe que avançasse. Marek ainda envergava as cores castanho e cinzento de Oliver, e começou a balbuciar em Occitan, alegando inocência,
pedindo misericórdia.
O cavaleiro limitou-se a dizer: «Não digais nada. Calai-vos.» Vira Marek sair pela janela e desembaraçar-se do seu hábito de monge. Levou Marek para a igreja, onde encontrou Claire e Arnaut. O Arcebispo estava com uma disposição sombria e perigosa, mas Claire parecia ter a capacidade de o influenciar, ainda que mais não fosse por contradição. Fora Claire que ordenara a Marek para estar sentado em silêncio na escuridão quando Chris e Kate entraram. «Se Arnaut conseguir colocar-vos contra os outros dois, é possível que vos poupe e aos vossos amigos. Se estiverem os três unidos contra ele, com a raiva é capaz de vos matar aos três.» Claire conseguira controlar a evolução dos acontecimentos subsequentes.
Pelo menos até ali.
Agora Arnaut olhava para ele com um ar céptico. «Com que então os vossos amigos sabem qual é a localização dessa passagem?»
«Assim é», disse Marek. «Posso jurá-lo.»
«Graças à vossa palavra, poupei as suas vidas», disse Arnaut. «A vossa e a palavra desta Dama, que se responsabiliza por vós.» Fez um pequeno aceno de cabeça na direcção de Lady Claire, que se permitiu esboçar um leve sorriso.
«Meu Senhor, a vossa decisão é sábia», disse Claire, «porque enforcar um homem poderá soltar a língua do seu amigo que está a observar. Mas, na maioria das vezes, poderá endurecer a sua resolução, e assim o amigo levará o seu segredo para o túmulo. E esse segredo é tão importante que é meu desejo que Vossa Senhoria se apodere dele o mais rapidamente possível.»
«Então vamos seguir estes dois e ver onde é que nos conduzem.» Acenou na direcção de Marek. «Raimondo, providenciai uma montada para este pobre homem. E fornecei-lhe uma escolta de dois dos vossos melhores Chevaliers, enquanto vós seguides logo atrás.»
O elegante cavaleiro fez uma vénia. «Meu Senhor, se for do vosso agrado, eu mesmo o acompanharei.»
«Talvez seja melhor», respondeu Arnaut, «porque ainda poderemos ter algumas surpresas.» E olhou para o cavaleiro de forma significativa, Entretanto Lady Claire aproximara-se de Marek e apertava-lhe a mão calorosamente. Sentiu qualquer coisa fria entre os dedos dela, e verificou que se tratava de uma minúscula adaga com uma lâmina que não teria mais de dez centímetros. Disse-lhe: «Minha Senhora, estou-vos profundamente grato.»
«Então procurai que esse débito venha a ser pago, cavaleiro», disse ela, olhando-o directamente nos olhos.
«Assim farei, Deus é minha testemunha.» E escondeu a adaga entre as pregas do trajo.
«E eu pedirei a Deus que vos proteja, cavaleiro», acrescentou ela. Inclinou-se para lhe beijar o rosto castamente. Ao fazê-lo, murmurou: «A vossa escolta é Raimondo de Narborme. Gosta muito de cortar gargantas. Quando ele souber o segredo tende cuidado para que não corte a vossa, bem como a dos vossos amigos.» Recuou ao mesmo tempo que sorria.
Marek disse: «Senhora, sois muito amável. Guardarei cuidadosamente os vossos amáveis desejos no meu coração.»
«Bom cavaleiro, Deus vos conduza em segurança e verdade.» «Senhora, estareis sempre no meu pensamento.»
«Bom senhor cavaleiro, gostaria ... »
«Chega, chega», disse Arnaut num tom de voz irritado. Voltou-se para Raimondo. «Ide agora, Raimondo, porque este exagero de sentimento faz com que o meu estômago comece às voltas.»
«Meu Senhor.» O elegante cavaleiro fez uma vénia e conduziu Marek para a porta na direcção da luz do sol.
07:34:49
«Eu digo-lhe qual é a porra do problema», disse Robert Doniger, olhando fixamente para os visitantes. «0 problema é o de fazer trazer o passado à vida. Fazer com que seja real.»
Estavam ali dois homens jovens e uma jovem mulher, os três sentados confortavelmente no sofá do seu escritório. Vestiam completamente de negro, usando blusões de pregas nos ombros que davam a impressão de terem encolhido com a lavagem. Os homens tinham cabelos compridos e a mulher usava um corte bastante curto. Eram os media que Kramer contratara. Mas Doniger notara que hoje Kramer se sentara no lado contrário, divorciando-se subtilmente deles. Pensava se ela já teria visto o seu material.
Isto fez com que Doniger se sentisse irritado. De qualquer modo, não gostava dos media. E já era a segunda reunião que tinha no mesmo dia com essa gente. Tivera o número um dos atrasados mentais das RP logo de manhã, e agora esta gente.
«0 problema», disse ele, «é que tenho trinta executivos que amanhã estão aqui para ouvirem a minha apresentação. O título da minha apresentação é A Promessa do Passado'e não tenho nenhuns visuais interessantes para apresentar.»
«Já sei», exclamou um dos homens em tom duro. «Era esse exactamente o nosso ponto de partida aqui, Mr. Doniger. O cliente quer trazer o passado de volta à vida. É aquilo que estamos preparados para fazer. Com a ajuda de Miss Kramer, pedimos aos nossos observadores para nos prepararem amostras de vídeos. E acreditamos em que este material terá a qualidade que se espera ... » «Vamos ver isso», disse Doniger.
«Certo. Talvez se baixássemos as luzes ... »
«Deixe as luzes como estão.»
«Muito bem, Mr. Doniger.» O ecrã vídeo na parede adquiriu um tom azul quando entrou em funcionamento. Enquanto estavam à espera da imagem, o jovem disse: «A razão pela qual gostamos deste primeiro é o facto de se tratar de um famoso acontecimento histórico e de durar apenas dois minutos do princípio ao fim. Conforme sabe, muitos acontecimentos históricos desenvolveram-se muito lenta-mente, em especial em termos de sensibilidades modernas, Este foi rápido. Infelizmente ocorreu num dia mais ou menos chuvoso.»
O ecrã mostrou uma imagem cinzenta e sombria, com um céu coberto de nuvens. A câmara mostrou uma espécie de ajuntamento, filmado sobre as cabeças de uma grande multidão. Um homem alto subia para uma simples plataforma de madeira, não pintada.
«0 que é isto? Um enforcamento?»
«Não», respondeu o rapaz dos media. «É Abraham LincoIn, momentos antes do discurso de Gettysburg.»
«A sério? Santo Deus, está com um aspecto horrível. Parece um cadáver. As roupas estão completamente amarrotadas. As mangas estão demasiado curtas.»
«Está certo, senhor, mas ... »
«E isso é a voz dele? Parece um guincho.»
«Eu sei, Mr. Doniger, nunca houve ninguém antes, que tivesse ouvido a voz de Lincolti, mas é o seu verdadeiro ... »
«Vocês estão doidos?» «Não, Mr. Doniger ... »
«Oh, pelo amor de Deus. Eu não posso usar uma coisa destas», disse Doniger. «Ninguém quer que a voz de Abraham Lincolii se pareça com a da Betty Boop. Que mais é que vocês têm?»
«Está aqui, Mr. Doniger.» Imperturbável, o jovem mudou as fitas enquanto ia dizendo: «Para o segundo vídeo escolhemos uma premissa diferente. Queríamos uma boa sequência de acção mas, mais uma vez, um acontecimento famoso que toda a gente conhecesse. Temos então o Dia de Natal de 1778, no Rio Delaware, onde ... »
«Não consigo ver puro», disse Doniger.
«É verdade, também concordo em que está um bocado escuro. É uma travessia de noite. Mas pensamos que George Washington a atravessar o Delaware seria uma boa ... »
«George Washington? Onde é que está o George Washington?» «Está precisamente ali», disse o rapaz apontando para o ecrã.
«Onde?» «Ali.» «É aquele tipo ali que se encontra na popa do barco?» «Exacto, e ... »
«Não, não, não», disse Doniger. «Tinha que estar de pé à proa, como um general.»
«Eu sei que é a maneira como o representam nos quadros, mas não é isso que de facto aconteceu. Aqui vê o verdadeiro George Washington, da maneira conto ele de facto atravessou o ... »
«Parece enjoado», disse Doniger. «Quer que eu apresente um vídeo onde George Washington parece estar com enjoo de mar?»
«Mas é a realidade.»
«Que se foda a realidade», disse Doniger, atirando com uma das fitas pela sala fora. «Que é que se passa convosco, gente? Estou-me nas tintas para a realidade. Quero qualquer coisa com intriga e sexo. Vocês estão a mostrar-me um cadáver ambulante e um rato afogado.»
«Bom, podemos voltar à prancheta ... »
«A minha palestra é amanhã», disse Doniger. «Tenho três executivos de primeiro plano que vêm cá. E já lhes disse que irão ver qualquer coisa de muito especial.» Ergueu as mãos. «Santo Deus.»
Kramer clareou a garganta. «0 que é que acha se usássemos montagens?» «Montagens?»
«Sim, Bob, era possível conseguirmos fotografias simples a partir dessas montagens, e isso podia ser bastante eficiente», respondeu Kramer.
«Bom, está bem, era capaz de funcionar», respondeu a mulher do grupo dos media enquanto acenava com a cabeça.
Doniger disse: «Lincoln ainda continuaria a ter um aspecto amarrotado.» «Somos capazes de tirar as rugas com o PhotoshoP.»
Doniger deteve-se a pensar nisso. «É possível», respondeu finalmente. «De qualquer modo», disse Kramer, «não vai querer mostrar-lhes muita coisa. Quanto menos melhor.»
«Muito bem», disse Doniger. «Recolha as montagens e mostre-mas dentro de uma hora.»
O grupo dos media saiu. Doniger estava sozinho com Kramer. Sentou-se atrás da sua secretária, esquecendo propositadamente a sua apresentação. Em Seguida perguntou: «Na sua opinião seria A Promessa do Passado ou Ofuturo do passado?
«A Promessa do Passado», disse Kramer. «Sem a menor dúvida, A Promessa. »
07:34:49
Acompanhado por dois cavaleiros, Marek foi cavalgando ao longo da estrada no meio das nuvens de poeira produzidas pelas carroças de transporte, dirigindo-se para a frente da coluna. Ainda não conseguia ver Chris ou Kate, mas o seu pequeno grupo deslocava-se com bastante agilidade. Estava convencido de que os ia apanhar rapidamente.
Olhou para os cavaleiros que o ladeavam. Raimondo à sua esquerda, erecto, de armadura completa, ostentando o seu leve sorriso. À sua direita um cavaleiro grisalho envergando armadura, nitidamente duro e competente. Nenhum dos homens lhe prestava grande atenção, tão certos estavam do controlo que tinham sobre ele. Em especial considerando que tinha as mãos atadas com uma corda, com um intervalo de cerca de seis polegadas entre os pulsos.
Continuou a cavalgar, tossindo por causa da poeira. Com um grande esforço conseguiu tirar a adaga que escondia dentro do glbão e escondê-la debaixo da palma da mão, enquanto agarrava o punho de madeira da sela que se encontrava à sua frente. Tentou posicionar a faca de modo a que o movimento suave do cavalo para cima e para baixo permitisse cortar lentamente a corda que lhe segurava os pulsos. Mas isto era mais fácil de dizer do que de fazer; a faca parecia estar sempre na posição errada e não conseguia cortar os nós. Marek olhou de relance para o contador de pulso; indicava 07:21:02. Ainda havia mais de sete horas antes das baterias se esgotarem completamente.
Pouco depois saíram da vereda junto à margem do rio e começaram a subir a estrada sinuosa, atravessando a aldeia de La Roque. A aldeia estava construída sobre as rochas escarpadas sobranceiras ao rio, as casas de pedra quase na sua totalidade, dando à povoação uma aparência sombria uniforme, especialmente agora em que todas as portas e janelas se encontravam encerradas antecipando a guerra.
Agora moviam-se entre as companhias de vanguarda dos soldados de Amaut, rnais cavaleiros de armadura, cada um deles seguido do seu séquito. Homens e cavalos trepavam as íngremes ruas empedradas, os cavalos relinchando, as carroças deslizando enquanto subiam. Estes cavaleiros da vanguarda tinham um sentido de urgência; muitas das carroças transportavam peças de engenhos de cerco desmontadas. Era evidente que tencionavam iniciar o cerco ao cair da noite.
Ainda estavam dentro da cidade quando Marek avistou Chris e Kate, cavalgando lado a lado em autênticas pilecas. Talvez estivessem cerca de cinquenta metros à frente, alternadamente visíveis e ocultos de acordo com as curvas da estrada. Raimondo colocou a mão no braço de Marek. «Não nos aproximamos mais.»
Na poeira à frente deles um estandarte esvoaçava perto do focinho de um cavalo. O cavalo recuou, relinchando; uma carroça voltou-se, espalhando bolas de canhão que começaram a rolar colina abaixo. Este foi o momento de confusão de que Marek estivera à espera e aproveitou-o. Esporeou o cavalo que se recusou a avançar. Foi então que olhou para o lado, verificando que o cavaleiro grisalho agarrara firmemente as rédeas do cavalo.
«Meu amigo», disse Raimondo calmamente, cavalgando ao lado dele. «Não me obrigueis a matar-vos. Pelo menos para)á.» E fazendo um gesto na direcção das mãos de Marek. «E deitai fora essa tola lâmina de brincar, antes que vos magoeis.»
Marek sentiu o rosto em brasa. Mas fez aquilo que lhe era ordenado; guardou a pequena adaga dentro do gibão. Continuaram a cavalgar em silêncio. Do lado de lá das casas de pedra ouviram o grito de um pássaro, repetido
duas vezes. A cabeça de Raimondo voltou-se de repente quando o ouviu; o mesmo aconteceu com o seu companheiro que se encontrava do outro lado. Era evidente que não se tratava de um pássaro.
Os homens escutaram e, pouco depois, ouviu-se um grito de resposta mais acima na colina. Raimondo apoiou a mão no punho da espada mas não fez mais nada.
«0 que é que se passa?» «Não é nada convosco.»
E não disseram mais nada.
Os soldados estavam atarefados e não lhes prestavam atenção, especialmente depois de terem verificado que as selas tinham as cores verde e negro de Arnaut. Finalmente chegaram ao topo da escarpa e saíram em campo aberto, com o castelo à vista. A floresta encontrava-se próxima à sua esquerda, e a ampla planície relvada dirigia-se para norte.
Com os soldados de Arnaut à sua volta, Marek nem sequer reparou que já haviam passado cerca de quinze metros da entrada do castelo. Chris e Kate continuavam cerca de quinze metros à frente, na vanguarda da coluna.
O ataque surgiu com espantosa rapidez. Cinco cavaleiros surgiram a galope dos bosques que se encontravam à esquerda, fazendo soar gritos de batalha e volteando as espadas por cima das cabeças. Correram directamente na direcção de Marek e dos outros. Era uma emboscada.
Com um brado, Raimondo e o cavaleiro grisalho desembainharam as espadas para lutar. Os cavalos relincharam; as lâminas entrechocaram-se. o próprio Arnaut surgiu a galope e juntou-se à fúria da luta. Marek foi momentaneamente ignorado.
Olhando para a vanguarda da coluna, viu que outro grupo atacara Kate e Chris. Marek avistou de relance a pluma negra de Sir Guy, mas os cavaleiros já haviam rodeado os dois. Marek esporeou a montada e começou a cavalgar ao longo da linha.
Mais à frente viu um cavaleiro agarrar Chris pelo gibão e tentar arrancá-lo da sela; outro agarrou as rédeas do cavalo de Kate que relinchava e caracoleava. Outro cavaleiro agarrara as rédeas de Chris, mas este esporeou o cavalo que recuou; o cavaleiro largou as rédeas, mas Chris ficou de repente coberto de sangue, e gritou com o choque. Chris perdeu o controlo do cavalo que relinchou e se dirigiu a galope para os bosques, enquanto ele deslizava de lado na sela, segurando-se molemente. Dentro de momentos desaparecia no meio das árvores.
Kate ainda estava a tentar libertar as rédeas do cavaleiro que as segurava. A toda a volta verificava-se um autêntico pandemónio; os homens de Arnaut gritando e correndo em círculos, procurando as suas armas, desferindo golpes com as suas lanças contra os cavaleiros atacantes. Um deles deu um golpe com a lança no cavaleiro que segurava as rédeas dela, e o cavaleiro largou as rédeas. Marek, embora desarmado, carregou na direcção do centro da batalha, separando Kate de outro atacante. Ela gritou, «André!» mas este limitou-se a responder, «Vai! Vai!» e em seguida Marek bradou: «Màlegant.> e Sir Guy voltou-se para o enfrentar.
Marek de imediato afastou o seu cavalo da confusão, dirigindo-se a galope na direcção de La Roque. Os outros cavaleiros rodaram e afastando-se dos soldados, dirigiram-se furiosamente em campo aberto no encalço de Marek. Mais ao longe, Marek avistou Raimondo e Arnaut que lutavam envolvidos por uma nuvem de poeira.
Kate esporeou o cavalo, dirigindo-o na direcção dos bosques a norte. Olhando para trás enquanto cavalgava, viu Marek atravessar a ponte levadiça do castelo de La Roque, desaparecendo de vista. Em seguida a pesada grade da entrada foi descida. E ergueram a ponte levadiça.
Marek desaparecera. Chris desaparecera. Qualquer deles podia estar morto. Mas uma coisa era clara. Ela era a única que ainda se encontrava em liberdade. Agora era com ela.
07:24:33
Rodeada de soldados por todos os lados, passou a meia hora seguinte a procurar abrir caminho pelo meio das carroças e cavalos do comboio de bagagens de Arnaut, tentando alcançar os bosques mais a norte. Os homens de Arnaut estavam a montar um vasto acampamento no limiar dos bosques, de frente para a planície relvada que subia até ao castelo.
Os homens gritavam-lhe, dizendo que os fosse ajudar, mas limitava-se a acenar-lhes de um modo que julgava como masculino, e seguia em frente. Finalmente chegou à orla da floresta e seguiu-a até encontrar a estreita vereda que conduzia à escuridão e ao isolamento. Quando aí chegou parou por alguns momentos para deixar o cavalo descansar, e deixar que o seu próprio coração acalmasse as batidas antes de se embrenhar nos bosques.
Mais atrás na planície, as catapultas estavam a ser rapidamente montadas por grupos de engenheiros. As catapultas pareciam desajeitadas - enormes fundas com pesadas vigas de madeira montadas na armadura para o sistema de disparo, que eram puxadas para trás por espessas cordas de cânhamo e em seguida disparadas, lançando a sua carga sobre as muralhas do castelo. Cada un, dos conjuntos parecia pesar cerca de quinhentas libras, mas os homens Montavam-nos rapidamente, trabalhando em rápida coordenação, e deslocando-se em seguida para o engenho seguinte. Mas agora conseguia compreender como, em alguns casos, uma igreja ou um castelo podiam ser construídos num par de anos. Os trabalhadores eram tão especializados, tão discretos, que dificilmente precisariam de serem dirigidos.
Fez o cavalo dar uma volta e entrou nos densos bosques do castelo.
O caminho era uma estreita vereda através da floresta, que rapidamente se tornava mais escura à medida que se embrenhava, Parecia estranho estar ali sozinha; ouvia os pios dos mochos e gritos distantes de estranhos pássaros. Passou por uma árvore com uma dúzia de corvos pousados nos ramos. Contou-os, pensando se poderia ser um presságio e qual seria o seu significado.
Cavalgando lentamente através da floresta, tinha a sensação de recuar no tempo, de assumir modos mais primitivos de pensamento. As árvores debruçavam-se sobre ela; o solo era negro como a noite. Tinha uma sensação de clausura, de opressão.
, Ao fim de vinte minutos sentiu-se aliviada ao deparar com uma clareira de relva alta banhada pela luz do sol. Avistou uma abertura nas árvores, no outro extremo da clareira, onde a vereda continuava. Atravessava a clareira quando viu um castelo à distância, à sua esquerda. Da consulta das suas cartas não se recordava de qualquer tipo de estrutura, mas não havia dúvida de que estava ali. O castelo era pequeno - pouco mais do que uma casa senhorial - e pintado de branco, pelo que as pedras brilhavam ao sol. Tinha quatro pequenos torreões e um telhado de placas azuladas. à primeira vista parecia alegre mas foi então que notou que todas as janelas tinham barras; parte da cobertura de placas do telhado desaparecera, vendo-se um enorme buraco; os edifícios exteriores estavam a desmoronar-se, não sendo reparados há muito tempo. Esta clareira fora em tempos um relvado em frente do castelo, sendo agora terreno bravio por não ser cuidado. Tinha uma forte sensação de estagnação e de ruína.
Estremeceu e esporeou o cavalo, forçando-o a seguir em frente. Notou que a relva à sua frente fora pisada há pouco tempo pelos cascos de outro cavalo que se deslocava na mesma direcção. Enquanto seguia em frente via as longas folhas da relva erguerem-se lentamente na vertical, voltando a sua posição original.
Havia alguém que estivera ali muito recentemente. Talvez há poucos minutos. Cautelosamente seguiu em frente, na direcção do outro extremo da clareira.
A escuridão começava a envolvê-la de novo, à medida que se voltava a internar na floresta. A pista à sua frente começava a ficar lamacenta, e conseguia ver nitidamente pegadas de cascos que seguiam em frente.
De vez em quando fazia uma pausa e escutava atentamente. Mas não ouvia absolutamente nada à sua frente. Ou o cavaleiro na sua dianteira se encontrava muito distante, ou então encontrava-se em absoluto silêncio. Uma ou duas vezes pensou que ouvira o som de um cavalo, mas não podia ter a certeza.
Provavelmente seria a sua imaginação.
Seguiu em frente na direcção da capela verde. Na direcção daquilo que nos seus mapas fora designado por la chapelle verte morte. A capela da morte verde.
Na escuridão da floresta, chegou junto de um vulto que se encostava com um ar cansado a uma árvore caída. Era um velho homem encarquilhado, usando um capuz e tendo um machado de lenhador. Quando chegou junto dele o homem disse: «Suplico-vos meu bom mestre, suplico-vos.» A sua voz era fina, áspera. «Dai-me qualquer coisinha para comer, porque sou pobre e não tenho alimento.»
Kate não se lembrava de ter qualquer coisa para comer, mas de repente lembrou-se de que o cavaleiro lhe dera um pequeno saco que fora amarrado na parte de trás da sela. Abrindo o saco, encontrou um bocado de pão e um pedaço de carne seca. Não tinha um ar muito apetitoso, em especial agora, porque se encontrava tudo impregnado com o cheiro do suor do cavalo.
Ansioso, o homem avançou, estendendo uma mão ossuda na direcção da comida - mas em vez disso, agarrou o braço estendido dela pelo pulso, com uma força surpreendente e, com um vigoroso puxão, tentou fazê-la cair do cavalo. Gargalhou deliciado, um som horrível; enquanto se debatia com ela, o capuz caiu para trás e viu que era mais novo do que aquilo que pensara. Agora três outros homens corriam das sombras de ambos os lados da vereda, e verificou que se tratava de godins, os bandidos camponeses. Kate ainda se encontrava na sela, mas era evidente que não o conseguiria durante muito tempo. Esporeou o cavalo, mas o animal estava cansado e não respondia. O homem mais velho continuava a puxar-lhe o braço, enquanto não deixava de murmurar. «Rapaz tolo! Seu tolo!»
Não sabendo que mais é que havia de fazer, gritou a pedir auxílio, gritou com todas as suas forças, e isto pareceu espantar os homens, o que fez que fizessem uma pausa por momentos, antes de continuarem o seu ataque. Mas, nesse instante ouviram o som do galopar de um cavalo, e o grito de batalha de guerreiros, e os godins olharam uns para os outros e desapareceram. Todos excepto o homem encarquilhado que se recusava a largar o braço de Kate e agora a ameaçava com o machado, que ergueu com a outra mão.
Mas nesse momento uma aparição, um cavaleiro ensanguentado a galope aproximou-se pela trilha, o cavalo relinchando, levantando montes de lama, o próprio cavaleiro com um ar tão feroz e sangrento, que o homem correu espavorido, mergulhando na escuridão da floresta.
Chris puxou as rédeas e rodou em volta dela. Sentiu que uma enorme sensação de alívio a invadia; sentira um pavor incrível. Chris estava a sorrir, nitidamente contente consigo próprio.
«Sente-se bem, madame?» disse ele
«E tu?» perguntou Kate espantada. Chris estava literalmente encharcado de sangue; secara-lhe no rosto e no corpo e, quando sorria, estalava nos cantos da boca, revelando a pele cor-de-rosa que se encontrava por baixo. Parecia que tinha caído num tanque de tinta vermelha.
«Estou bem, disse Chris. «Alguém deu uma machadada no cavalo que se encontrava junto de mim, cortando-lhe uma artéria ou qualquer coisa. Fiquei encharcado num instante. Sabias que o sangue é quente?»
Kate ainda continuava a olhar para ele, espantada por ver alguém que naquele estado ainda era capaz de contar piadas e, nesse instante, ele pegou nas rédeas do cavalo dela, conduzindo-a tranquilamente em frente. «Acho», disse Chris, «que é melhor não esperarmos que eles se reagrupem. A tua mãezinha nunca te disse que não deves falar com estranhos, Kate? Especialmente se os encontrares nos bosques?»
«Para dizer a verdade, julguei que lhes devíamos dar comida e eles ajudavam-nos.»
«Só nos contos de fadas», disse ele. «No mundo real, se parares no bosque para ajudar o pobrezinho, ele e os seus amigos roubam-te o cavalo e matam-te. É por isso que ninguém o faz.»
Chris ainda sorria, e parecia tão confiante e divertido - tinha a sensação de que nunca notara, que nunca tivera consciencia de que ele era de facto UM homem atraente, que ele possuía uma certa atracção genuína. Mas era evidente, pensou ela, salvara-lhe a vida. Sentia-se simplesmente grata.
«Afinal de contas, o que é que andavas a fazer?» perguntou ela.
Ele deu uma gargalhada. «Tentando apanhar-te. Pensei que estivesses à minha frente.»
A vereda dividia-se. O ramo principal parecia seguir para a direita, começando uma suave descida, Um caminho muito mais estreito seguia para a esquerda, em terreno plano. Mas parecia muito menos usado.
«0 que é que achas?» disse Kate.
«Seguir a vereda principal», disse Chris. Tomou a dianteira e Kate sentiu-se absolutamente feliz por o poder seguir. A floresta à volta deles começou a ficar mais luxuriante, com fetos com cerca de seis pés de altura, parecendo enormes orelhas de elefante e dificultando a visão em frente. Ela ouviu um ruído distante de água. O terreno começou a descer de uma forma mais íngreme e ela não conseguia ver por onde seguia por causa dos fetos. Desmontaram ambos e amarraram os cavalos a uma árvore com um laço largo. Continuaram a pé.
O terreno descia agora de uma forma muito mais íngreme e a vereda transformou-se numa pista lamacenta. Chris escorregou, agarrando-se a ramos e arbustos para travar a sua queda. Ficou a olhar enquanto ele deslizava e de repente com um grito tinha desaparecido.
Ela esperou. «Chris?» Nenhuma resposta.
Deu uma pancada no auricular. «Chris?» Nada.
Não sabia o que é que havia de fazer, se devia seguir em frente ou se devia recuar. Decidiu seguir atrás dele, mas cautelosamente, agora que sabia como a vereda estava escorregadia, e o que lhe acontecera. No entanto, depois de alguns passos cautelosos, desequilibrou-se e viu-se a deslizar pela lama, batendo contra troncos de árvores, ficando sem fôlego.
O terreno tornava-se cada vez mais íngreme. Kate caiu para trás na lama e deslizou de costas, tentando usar os pés para se defender dos troncos que passavam por ela. Os ramos arranhavam-lhe o rosto e as mãos enquanto procurava deter a queda.
E o terreno continuava a ficar cada vez mais íngreme. Agora as árvores à sua frente começavam a ficar mais finas, já começava a ser capaz de vislumbrar através dos troncos e ouviu o ruído de queda de água. Deslizava por uma vereda que corria paralelamente a um curso de água. As árvores ficaram ainda mais finas e viu que a floresta terminava abruptamente cerca de dez metros à frente. O ruído da queda de água tornou-se ainda mais alto.
E foi então que viu porque é que a floresta terminava. Era a berma da ribanceira.
E à frente encontrava-se uma queda de água. Directamente à frente. Aterrorizada Kate rolou sobre o estômago, cravou os dedos na lama como garras, mas sem qualquer êxito. Continuava a deslizar. Não era capaz de parar. Continuou a deitar-se de costas, sempre a deslizar pela pista de lama, incapaz de fazer o que quer que fosse, limitando-se a observar o fim que se aproximava, e, nesse instante, foi disparada da floresta e estava a voar no ar, não conseguindo atrever-se a olhar para baixo.
Quase imediatamente esmagou-se contra folhagem, agarrou-se a ela e conseguiu aguentar-se. Baloiçava para cima e para baixo. Estava agarrada aos ramos de uma grande árvore debruçada sobre a falésia. A queda de água estava exactamente por debaixo dela. Não era tão grande como pensara. Talvez dez a quinze pés de altura. Havia um lago na base. Não fazia a menor ideia de qual seria a sua profundidade.
Tentou descer pelos ramos da árvore, mas as mãos estavam escorregadias por causa da lama. Continuou a escorregar, agarrando-se aos ramos. Usando os pés e as mãos ia-se agarrando com dificuldade enquanto tentava descer. Conseguiu descer mais cinco pés mas então verificou que não era capaz. Caiu.
Embateu noutro ramo quatro pés mais abaixo. Deixou-se ficar pendurada por momentos, as mãos escorregadias por causa da lama. Em seguida voltou a cair, embatendo num ramo mais abaixo.
Agora estava apenas alguns pés acima da queda de água, no ponto em que curvava com um rugido sobre a berma da falésia. Os ramos da árvore estavam molhados com a poalha de água. Olhou para o lago borbulhante que Se encontrava mais abaixo. Não conseguia ver o fundo; não tinha a certeza de qual seria a sua profundidade.
Pendurada precariamente do ramo, pensou: onde é que diabo está o Chris? Mas nesse momento soltou-se e caiu o resto do caminho.
A água foi um choque gelado, um borbulhar, opaca, rolando furiosamente à sua volta. Mergulhou, desorientada, bateu os pés para vir à superfície, chocou com as rochas do fundo. Finalmente veio à superfície debaixo da queda de água que lhe batia na cabeça com uma força incrível. Não conseguia respirar. Mergulhou mais uma vez, nadou em frente, e voltou à tona poucos metros adiante. A água do lago estava mais calma, embora terrivelmente fria.
Saiu da água e sentou-se numa rocha. Viu que a água borbulhante lavara toda a lama das suas roupas e do corpo. De certa maneira sentia-se como nova
- e muito contente por estar viva.
Sustendo a respiração, olhou em volta.
Encontrava-se num pequeno vale, a luz da tarde enevoada por causa da queda de água. O vale era luxuriante e húmido, a relva estava húmida, as árvores e as rochas cobertas de musgo. Directamente à frente um caminho empedrado conduzia a uma pequena capela.
A capela também estava húmida, as paredes cobertas com uma espécie de musgo escorregadio que desenhava faixas no edifício e escorria da beira do telhado. O musgo era de um verde brilhante.
A capela verde.
Também viu montes de peças de armaduras amontoadas desordenadamente ao lado da porta da capela, velhas placas peitorais enferrujando ao pálido sol e elmos amolgados jazendo próximo; igualmente espadas e machados dispersos em volta.
Kate procurava Chris mas não o conseguia ver. Era evidente que dera uma queda como ela. Provavelmente procurava encontrar agora o seu caminho por uma outra vereda. Pensou que era melhor esperar por ele; sentira-se feliz por o ter encontrado antes e agora sentia a sua falta. Mas não conseguia ver Chris em parte nenhuma. E fora da queda de água não conseguia ouvir qualquer som no pequeno vale, nem mesmo pássaros. Encontrava-se terrivelmente silencioso.
E, no entanto, não se sentia sozinha. Tinha uma forte sensação de que se encontrava ali mais qualquer coisa - uma presença no vale.
Foi então que ouviu um rosnar vindo do interior da capela: um som animal gutural.
Levantou-se, e seguiu cautelosamente ao longo do caminho empedrado na direcção das armas. Escolheu uma espada e empunhou-a com ambas as mãos, embora se sentisse tola; a espada era pesada, e sabia que não tinha a força nem a habilidade para a manejar. Estava agora perto da porta da capela e sentia um forte cheiro de detritos que vinha do interior. Ouviu-se de novo o rosnar.
E, de repente, um cavaleiro de armadura avançou, bloqueando a porta de entrada. Era um homem enorme, com cerca de dois metros de altura, e a sua armadura estava manchada de musgo verde. Usava um pesado elmo, pelo que não lhe conseguia ver o rosto. Empunhava um pesado machado de lâmina dupla, como um carrasco.
O machado oscilava para a frente e para trás enquanto o cavaleiro avançava na sua direcção.
Instintivamente recuou, não tirando os olhos do machado. À primeira pensou em correr, mas o cavaleiro chegara até ela rapidamente; estava convencida de que era perfeitamente capaz de a apanhar. De qualquer modo, não queria voltar-lhe as costas. Mas não podia atacar. Parecia ter duas vezes o seu tamanho. Nunca pronunciou uma palavra; ouvia apenas resmungar e rosnar, sons que vinham do interior do capacete - sons animais, sons dementes. Deve ser louco, pensou.
O cavaleiro aproximou-se mais, obrigando-a a tomar uma atitude. Volteou a espada com todas as suas forças; ele levantou o machado para bloquear e ouviu-se o bater de metal contra metal; a espada vibrou tão fortemente que quase a largou. Desferiu outro golpe, baixo, tentando atingi-lo nas pernas, mas ele bloqueou facilmente, e com uma rápida torção do machado, a lâmina saltou-lhe das mãos, aterrando na relva que se encontrava do outro lado.
Voltou-se e correu. Rosnando o cavaleiro correu atrás dela e agarrou um Punhado do seu cabelo curto. Arrastou-a, gritando, para a parte lateral da Capela. O couro cabeludo ardia-lhe; à sua frente viu um bloco curvo de madeira assente no solo, mostrando as marcas de muitos cortes profundos. Sabia O que era: um cepo de decapitação.
Estava impotente para se opor a ele. O cavaleiro empurrou-a violentamente, obrigando-a a assentar o pescoço no cepo. Permanecia de pernas abertas atrás dela, para a forçar a manter a posição. Ela agitava os braços impotentemente.
Quando ele erguia o machado no ar, viu uma sombra que se movia através da relva.
06:40:27
O telefone tocava insistentemente, num tom estridente. David Stern bocejou, acendeu a lâmpada da mesinha-de-cabeceira e pegou no auscultador. «Estou», disse ele com uma voz ensonada.
«David, é John Gordon. É melhor vires já à sala de trânsito.»
Stern procurou atabalhoadamente os óculos e olhou para o relógio. Eram seis e vinte da manhã. Dormira durante três horas.
«Há uma decisão que tem que ser tomada», disse Gordon. «Estou aí dentro de cinco minutos.»
«Okay», respondeu Stern, e pousou o auscultador. Saiu da cama e abriu as portadas da janela; o quarto foi invadido por uma luz do sol brilhante, tão brilhante que o fez pestanejar. Dirigiu-se para o quarto de banho para tomar um chuveiro.
, Ocupava um dos três quartos que a ITC mantinha no seu edifício de laboratórios, destinados aos investigadores que tinham que trabalhar até altas horas da noite. Estava equipado como um quarto de hotel, chegando ao pormenor das miniaturas de shampoo e de creme hidratante colocadas junto do lavatório. Stern barbeou-se, vestiu-se e, em seguida, saiu para o corredor. Não avistou Gordon mas ouviu vozes que vinham do outro extremo do corredor. Dirigiu-se para o átrio, espreitando através das portas de vidro dos diversos laboratórios. Àquela hora da manhã estavam todos desertos.
Mas ao fundo do corredor encontrou um laboratório que tinha a porta aberta. Um trabalhador com uma fita amarela media a altura e a largura da entrada. No interior, quatro técnicos dispunham-se à volta de uma mesa de grandes dimensões, olhando para ela. Na mesa encontrava-se um grande modelo feito à escala numa madeira pálida, mostrando a fortaleza de La Roque e a área circundante. Os homens murmuravam uns com os outros, e um deles tentava levantar a mesa por uma das bordas. Dava a ideia de que estavam a tentar descobrir como a deslocar.
«Doniger diz que precisa dela disse o técnico, «para apresentar na conferência.»
«Não vejo como é que vamos conseguir tirá-la daqui», disse outro. «Como é que eles a meteram cá dentro?»
«Montaram-na cá dentro.»
«Conseguimos mesmo à Justa», disse o homem que se encontrava junto da porta, fechando a fita métrica com um estalo.
Curioso, Stern entrou na sala, olhando mais atentamente para o modelo, Mostrava o castelo, reconhecível e construído com muita precisão, no centro de um complexo muito maior. Na parte de trás do castelo via-se um anel de arvoredo e, no exterior, um complexo de edifícios atarracados e uma rede de estradas. E, no entanto, nada daquilo existia. Na época medieval, o castelo erguia-se solitário numa planície.
Stern perguntou, «Que modelo é este?» «La Roque», respondeu um dos técnicos.
«Mas este modelo não corresponde à realidade!»
«Ah isso é que corresponde», disse o técnico, «corresponde ao mais pequeno pormenor. Pelo menos de acordo com os últimos desenhos de arquitectura que nos deram.»
«Que desenhos de arquitectura?» Perguntou Stern.
Ouvindo isto os técnicos ficaram em silêncio, evidenciando nos rostos um tom de preocupação. Stern reparava agora que havia outros modelos: de Castelgard e do Mosteiro de Sainte-Mère. Viu enormes desenhos nas paredes. Pensou para consigo que aquilo parecia mais um gabinete de arquitectura.
Nesse instante Gordon espreitou à porta: «David? Anda daí.»
Caminhou ao longo do corredor acompanhando Gordon. Olhando por cima do ombro viu que os técnicos haviam pegado no modelo e o transportavam através da porta.
«Que história é aquela?», perguntou Stern.
«Um estudo de desenvolvimento do locaL, respondeu Gordon. «Fazemos isto com os projectos de todos os locais. A ideia é a de definir o ambiente imediato em torno do monumento histórico, para que o local possa ser preservado para os turistas e os académicos. Estudam as linhas de visão e coisas no género.» «Mas porque é que isso te diz respeito?», perguntou Stern.
«Tudo isto faz parte do nosso trabalho», disse Gordon. «Vamos gastar milhões antes que cada um destes locais se encontre completamente restaurado. E não estamos interessados em que nos surja no meio disso tudo um centro comercial ou um hotel de cinco estrelas. É por isso que procuramos fazer uma planificação mais ampla de cada um dos locais, numa tentativa de que o governo local estabeleça linhas de orientação.» Olhou para Stern. «Para te dizer a verdade, nunca considerei isto de grande interesse.»
«E quanto à sala de trânsito? O que é que se passa?» «Eu vou mostrar-te.»
Haviam sido retirados todos os destroços da sala de trânsito e o pavimento de borracha encontrava-se perfeitamente limpo. Nos locais onde o ácido atacara a borracha viam-se trabalhadores de joelhos a substituírem zonas da cobertura. Duas das protecções de vidro estavam montadas e uma delas estava a ser inspeccionada atentamente por um homem que usava óculos extremamente graduados e que se servia de um estranho foco de luz. Mas Stern estava a olhar para cima, enquanto os próximos painéis de vidro de enormes dimensões oscilavam suspensos dos braços de gruas que emergiam da segunda sala de trânsito Ainda a ser construída.
«É uma sorte o facto de termos tido outras salas de trânsito em construção», disse-lhe Gordon. «Se assim não fosse, precisávamos pelo menos de uma semana para conseguirmos reunir aqui estes painéis de vidro. Mas esses painéis já ca estavam. A única coisa que temos que fazer é mudá-los de lugar. muita sorte.»
Stern continuava a olhar para cima. Até àquela altura não conseguira fazer uma ideia de como eram grandes os painéis de protecção. Suspensos por cima dele, os painéis curvos de vidro tinham à vontade três metros de altura e quatro metros e meio de largura, e quase sessenta centímetros de espessura. Eram transportados em lingas almofadadas para os suportes de montagem que se encontravam no pavimento inferior. «Mas», disse Gordon, «não temos sobressalentes. Temos apenas um conjunto.»
«E depois?»
Gordon dirigiu-se para um dos painéis de vidro que já se encontravam no lugar. «Basicamente podemos pensar nestas coisas como sendo grandes cantis de vidro», disse Gordon. «São contentores, curvos que se enchem por um orificio no topo. E, uma vez cheios de água, são muito pesados. Cerca de cinco toneladas cada um. Na realidade, a curvatura aumenta a resistência. Mas é essa mesma resistência que me preocupa.»
«Porquê?» «Aproxima-te.» Gordon passou os dedos pela superficie de vidro. «Estás a ver estas pequenas cavidades? Estes pequenos pontos acinzentados. São tão pequenos que não os notavas se não olhasses com atenção. Mas trata-se de falhas que não estavam aí antes. Julgo que a explosão espalhou gotículas de ácido hidrofluorídrico pela outra sala.»
«E agora temos o vidro com este problema.»
«Exacto. Embora não seja grave. Mas se estes pequenos orifícios tiverem enfraquecido o vidro, então as protecções poderão estalar quando estiverem cheias de água e o vidro estiver sob pressão. Ou, pior ainda, poderá estilhaçar-se toda a protecção.»
«E se isso acontecer?»
«Se isso acontecer, não temos uma protecção completa em torno da plataforma», disse Gordon, olhando directamente para Stern. «Num caso desses, não somos capazes de trazer os nossos amigos de volta em segurança. Corriam o risco de muitos erros de transcrição.»
Stern franziu as sobrancelhas. «Tens alguma maneira de testar os painéis? Ver se eles aguentam?»
«Nem por isso. Podíamos fazer um teste de esforço, se quiséssemos correr o risco de os partir, mas uma vez que não temos painéis sobressalentes, não o posso fazer. Em vez disso, vou fazer uma inspecção visual em polarização microscópica.» Apontou para o técnico de óculos que estava a um canto, inspeccionando o vidro palmo a palmo. «Este teste pode detectar linhas de esforço já existentes - que existem sempre no vidro - e dar-nos uma ideia aproximada sobre a possibilidade de ele partir. E tem uma câmara digital acoplada que transmite directamente para o computador os dados de cada ponto.»
«Vais fazer uma simulação em computador?», perguntou Stern.
«Será muito grosseira», disse Gordon. «Provavelmente nem valerá a pena fazê-la por ser tão grosseira. Mas de qualquer maneira vou tentar.»
«Sendo assim, qual é a decisão a tomar?»
«Quando se devem encher os painéis.» «Não compreendo.»
«Se os enchermos agora e eles aguentarem, então provavelmente estará tudo bem. Mas é impossível ter a certeza. Não nos podemos esquecer de que um dos tanques poderá ter uma zona de fadiga por onde ele irá ceder só ao fim de um determinado período de pressão. Surge então a hipótese de encher os tanques só no último minuto.»
«Com que rapidez é que os podes encher?,>
«É muito rápido. Temos ali uma mangueira. Mas para minimizar o esforço, provavelmente vais querer enchê-los lentamente. Nesse caso, levará cerca de duas horas para encher as nove protecções.»
«Mas não é preciso começar a preparação duas horas antes?»
«Exacto - se a sala de controlo estiver a trabalhar como deve ser. Mas o equipamento da sala de controlo esteve desligado durante dez horas. O ambiente ficou cheio de fumos ácidos. Poderá ter afectado os sistemas electrónicos. Não sabemos se vai ou não funcionar em condições.»
«Agora compreendo», disse Stern. «E cada um dos tanques é diferente de todos os outros.»
«Precisamente. Cada um deles é diferente de todos os outros.»
Era, pensou Stern, um problema científico do mundo real clássico. Avaliar riscos, avaliar incertezas. A maior parte das pessoas nunca se apercebeu de que a maioria dos problemas científicos assumia esta forma. Chuvas ácidas, aquecimento global, limpeza ambiental, riscos de cancro - essas questões complexas representavam sempre um acto de equilíbrio, um julgamento que era preciso fazer. Até que ponto seriam válidos os dados da investigação? Até que ponto seriam fiáveis os cientistas que haviam realizado o trabalho? Até que ponto seriam significativas as futuras projecções? Todas estas questões surgiam incansavelmente. Certamente os media nunca se haviam preocupado com as complexidades, uma vez que produziam cabeçalhos de mau gosto. Como resultado disso, as pessoas estavam convencidas de que a ciência era sintética e árida, de um modo que nunca se verificava. Mesmo os conceitos melhor aceites - como a ideia de que os germes podem causar doença - não se encontravam tão provados em detalhe como muitas pessoas pensavam.
E, neste caso particular, um caso envolvendo directamente a segurança dos seus amigos, Stern via-se enfrentado com uma montanha de incertezas. Não havia uma certeza de os tanques serem ou não seguros. Não havia uma certeza de a sala de controlo ser capaz de fornecer o aviso adequado. Não sabiam se deviam encher os tanques lentamente naquela altura, ou rapidamente mais
tarde. Iam ser obrigados a fazer um juízo sem bases. E havia vidas que dependiam desse juízo.
Gordon estava a olhar para ele. Na expectativa.
«Há algum desses tanques que não apresente os orifícios?» perguntou Stern. «Há. Quatro.»
«Então vamos encher esses tanques agora», disse Stern. «E esperamos pela análise de polarização e pela resposta do computador antes de enchermos os outros.»
Gordon acenou lentamente com a cabeça. «Exactamente aquilo que tinha pensado», respondeu.
Stern acrescentou: «Qual é o teu palpite? Achas que os outros tanques estão okay ou não?»
«Na minha opinião», disse Gordon, «acho que sim. Mas dentro de uma ou duas horas vamos saber mais a esse respeito.»
06:40:22
«Meu bom Sir André, peço-vos que venhais por aqui», disse Guy de Malegant com uma graciosa vénia e um gesto da mão.
Marek tentou disfarçar o seu espanto. Quando entrara a galope em La Roque, estava absolutamente convencido de que Guy e os seus homens o matariam de imediato. Em vez disso estavam a tratá-lo com enorme deferência, quase como se fosse um convidado de honra. Encontrava-se agora no interior do castelo, no pátio interior, de onde avistou o grande salão, já com todas as luzes acesas.
Seguindo Malegant, passou pelo grande salão, dirigindo-se para uma estranha estrutura de pedra que se encontrava à direita. As janelas deste edifício, para além de estarem equipadas com portadas de madeira, apresentavam também placas de protecção feitas com bexiga de porco translúcida. Viam-se velas nas janelas, mas estas encontravam-se da parte de fora das bexigas de porco, em vez de se encontrarem no interior do próprio quarto.
Já sabia a razão, mesmo antes de ter entrado no edifício, que era composto por um único salão de grandes dimensões. Contra as paredes encontravam-se amontoados pequenos sacos cinzentos em plataformas de madeira acima do solo. Num dos cantos avistavam-se pirâmides de granalha de ferro. O salão tinha um cheiro característico - um cheiro irritante, acre - e Marek soube de imediato do que é que se tratava.
O arsenal.
Malegant disse: «Bem, Magister, encontrámos um assistente para vos ajudar. » «Agradeço-vos por tal.» No centro do salão o Professor Edward Johnston estava sentado no solo com as pernas cruzadas. Duas bacias de pedra contendo misturas de pólvora encontravam-se perto dele. Segurava uma terceira bacia entre os joelhos, e com um pilão de pedra, moía um pó cinzento, mantendo um movimento uniforme, circular. Johnston não parou quando viu Marek. Não aparentou a menor surpresa.
«Viva, André», disse ele. «Viva Professor.»
Sem parar de moer: «Estás bem?»
«Sim, estou fino. A perna dói-me um bocadinho.» De facto Marek sentia a perna latejar, mas a ferida estava limpa; o rio tinha lavado a ferida cuidadosamente, e este esperava que ela cicatrizasse em poucos dias.
O Professor continuava a moer, pacientemente, sem parar. Isso é óptimo, André», disse ele na mesma voz calma. «Onde é que estão os outros?»
«Não sei o que é que se passa com o Chris», disse Marek. Lembrou-se de como Chris ficara cheio de sangue. «Mas Kate está bem, e vai encontrar o...» «óptímo», interrompeu o Professor calmamente, os olhos pestanejando na
direcção de Sir Guy. Mudando de assunto, acenou na direcção da bacia. «É evidente que sabe aquilo que estou a fazer?»
«A fazer a incorporação», respondeu Marek. «0 material presta para alguma coisa?»
«Não é mau, considerando a situação. É carvão de salgueiro, que é ideal. O enxofre é razoavelmente puro, e o nitrato é orgânico.»
«Guano?» «Exactamente.»
«Sendo assim, é mais ou menos aquilo de que estava à espera», disse Marek.
Uma das primeiras coisas que Marek estudara fora a tecnologia da pólvora, uma substância que começou a ser utilizada na Europa em larga escala no século catorze. A pólvora era uma daquelas invenções, como a roda de moinho ou o automóvel, que era impossível de identificar com qualquer pessoa ou local em particular. A receita original - uma parte de carvão, uma parte de enxofre e seis partes de nitrato de potássio - viera da China. Mas os detalhes de como chegara à Europa estavam em discussão, o mesmo se passando con, a utilização da pólvora, se era menos utilizada como explosivo do que como material incendiário. A pólvora foi originalmente utilizada nas armas quando armas de fogo queriam dizer «armas que usavam fogo», não tendo o significado moderno de instrumentos de projécteis explosivos como as espingardas e os canhões.
Isto deve-se ao facto de que as primeiras pólvoras não eram muito explosivas, porque a química da pólvora não era compreendida e porque a arte ainda não se encontrava desenvolvida. A pólvora explodia quando o carvão e o enxofre ardiam de uma forma extremamente rápida, com a combustão a ser favorecida por uma rica fonte de oxigénio - em especial os sais de nitrato, mais tarde designados por nitrato de potássio. A fonte mais comum de nitratos obtinha-se dos dejectos dos morcegos que habitavam nas grutas. Nos primeiros anos este guano não era de modo nenhum refinado, sendo simplesmente acrescentado à mistura.
Mas a grande descoberta do século catorze foi a de que a pólvora explodia melhor quando era finamente moída, Este processo recebia o nome de incorporação, e se fosse realizado de forma adequada, conseguia-se pólvora com a consistência de pó de talco. Aquilo que acontecia durante as intermináveis horas em que os produtos eram moídos era que minúsculas partículas de nitrato e de enxofre eram forçadas a entrar nos poros microscópicos do carvão. Era por isso que se preferiam determinadas madeiras, como o salgueiro; o seu carvão era mais poroso.
Marek disse: «Não vejo nenhuma peneira. Vai granulá-la?»
«Não», respondeu Johnston sorrindo. «0 granulado ainda não foi descoberto, lembra-se?»
A granulação era um processo em que se acrescentava água à mistura da pólvora, fazendo uma pasta que depois se deixava secar. A pólvora granulada era muito mais potente do que a pólvora obtida por mistura a seco. Quimicamente, aquilo que acontecia era que a água dissolvia em parte o nitrato, permitindo-lhe preencher melhor o interior dos microporos do carvão, e neste .processo transportava também as partículas insolúveis de enxofre. A pólvora daí resultante era não só mais potente como também mais estável e de maior duração. Mas johnston tinha razão; a granulação só foi descoberta cerca de
1400 - aproximadamente quarenta anos mais tarde.
«Quer que o substitua?», disse Marek. A incorporação era um processo muito lento; por vezes a operação de moagem chegava a durar entre seis a oito horas. «Não, acabei por agora.» O Professor pôs-se de pé e em seguida disse a Sir
Guy: «Dizei ao meu senhor Lord Oliver que estamos prontos para a sua demonstração.»
«Do Fogo Grego?»
«Não exactamente», respondeu Johnston.
Iluminado pela luz do sol poente, Lord Oliver caminhava impacientemente ao longo da maciça muralha do perímetro exterior. Naquele ponto a construção tinha mais de quinze pés de largura, encontrando-se instalada perto uma fila de canhões. Sir Guy estava perto dele, bem como um sombrio Robert de Kere; todos ergueram o olhar na expectativa quando viram o Professor. «Então? Finalmente estais preparado, Magister?»
«Meu Senhor, assim é», respondeu o Professor, aproximando-se com duas das suas tigelas, uma em cada mão. Marek transportava uma terceira tigela, em que o fino pó cinzento fora misturado com um espesso óleo cheirando fortemente a resina. johnston dissera-lhe para não tocar naquela mistura acontecesse o que acontecesse, e não precisava de que lho recordassem segunda vez. Era uma mistela com um cheiro francamente insuportável. Também transportava uma tigela com areia.
«Fogo Grego? É o Fogo Grego?»
«Não, meu Senhor. Melhor ainda. O fogo de Athenaios de Naukratis, que é designado por foco automátíco.»
«É mesmo?» disse Lord Oliver. Semicerrou os olhos. «Mostrai-me.»
Para além do canhão avistava-se a extensa planície a leste, onde as catapultas estavam a ser montadas em linha. Encontravam-se longe da distância de tiro, a uma distância de duzentas jardas. johnston colocou as suas tigelas no solo, entre os primeiros dois canhões. Carregou o primeiro canhão com um saco que haviam trazido do Paiol. Em seguida introduziu no canhão uma grossa seta metálica com palhetas em metal. «Isto é a vossa pólvora e a vossa seta.»
Aproximando-se do segundo canhão, deitou cuidadosamente a sua pólvora finamente moída dentro de um saco que introduziu na boca do canhão. Em seguida disse: «André, a areia por favor.» Marek aproximou-se e colocou a bacia com areia aos pés do professor.
«Para que é a areia?» perguntou Oliver.
«Uma precaução contra qualquer erro possível, meu Senhor.» johnston pegou numa segunda seta de metal, segurando-a cuidadosamente por ambas as pontas e introduzindo-a suavemente no canhão. A ponta da seta tinha ranhuras que haviam sido cheias com a espessa pasta castanha de cheiro acre.
«Esta é a minha pólvora e a minha seta.»
O artilheiro estendeu ao Professor um fino graveto de madeira, com uma das extremidades de um vermelho vivo. johnston tocou no primeiro canhão. Ouviu-se uma modesta explosão: uma nuvem de fumo negro e a seta voou,
aterrando a cerca de cem jardas da catapulta que se encontrava mais próxima.
«Vejamos agora a minha pólvora e a minha seta.» O Professor tocou no segundo canhão.
Ouviu-se uma violenta explosão e elevou-se uma nuvem de fumo espesso. A seta aterrou ao lado de uma das catapultas, falhando-a por dez pés. Ficou caída na relva.
Oliver resmungou. «É tudo? Haveis de perdoar-me se eu ... »
Nesse preciso momento a seta explodiu num círculo de fogo, espalhando gotas de fogo em todas as direcções. A catapulta incendiou-se de imediato e os homens que se encontravam na planície avançaram rapidamente, transportando os cavalos com sacos de água para extinguir o fogo.
«Estou a ver ... » disse Lord Oliver.
Mas a água parecia espalhar o fogo em vez de o extinguir. Sempre que era deitada água as chamas pareciam subir ainda mais. Os homens recuaram, confusos. Por último ficaram a olhar desalentados, enquanto a catapulta à sua frente era consumida pelas chamas. Em poucos momentos não era mais do que um amontoado de madeiras carbonizadas.
«Por Deus, Edward é S. Jorge», disse Oliver.
Johnston fez uma pequena vénia, disfarçando um sorriso.
«Haveis conseguido o dobro do alcance e uma seta que se incendeia por si própria - como?»
«A pólvora é finamente moída e assim explode mais violentamente. As setas são cheias com óleo, enxofre e cal viva, tudo misturado com estopa. Incendeiam-se quando são atingidas pela água - neste caso temos a humidade da relva. É por isso que temos uma bacia de areia, prevendo o caso de que um pouco da mistura, por pequeno que seja, possa cair nos meus dedos e começar a arder com a humidade das minhas mãos. É uma arma muito delicada, meu Senhor, e ainda mais delicada de manusear.»
Voltou-se para a terceira bacia que se encontrava próxima de Marek. «Agora meu Senhor», disse Johnston, pegando num graveto de madeira, «peço-vos que observeis o que se vai seguir.» Mergulhou o graveto na terceira bacia, cobrindo a ponta com a mistura oleosa de cheiro acre. Ergueu o graveto no ar. «Conforme podeis verificar, não houve qualquer alteração. E continuará a não haver durante horas, ou dias, até que ... » Com um gesto teatral de mágico, verteu a água de uma pequena taça sobre o graveto.
O graveto produziu um som sibilante, começou a fumegar, e em seguida irrompeu em chamas enquanto o Professor continuava a segurá-lo. A chama era de um laranja violento.
«Ah», exclamou Oliver, suspirando de prazer. «Preciso, de uma grande quantidade disto. De quantos homens precisais para moer e fabricar a vossa substância?»
«Meu Senhor, vinte serão suficientes. Mas cinquenta será melhor.» «Tereis cinquenta ou ainda mais se assim o quiserdes», disse OliVer, esfregando as mãos. «De quanto tempo precisais para o fabrico?»
«A preparação não é demorada, meu Senhor», disse Johnston, «mas é uma coisa que não pode ser feita à pressa, porque se trata de um trabalho perigoso. E uma vez pronta será sempre um risco dentro do vosso castelo, porque tenho a certeza de que Arnaut irá atacar com dispositivos incendiários.»
Oliver resmungou. «Não é coisa que me preocupe Magister. Fabricai-a já para que a possa usar nesta mesma noite.»
De volta ao arsenal, Marek ficou a observar enquanto Johnston dispunha os soldados em filas de dez, entregando um almofariz a cada homem. Johnston caminhava ao longo das filas, parando aqui e ali para dar instruções. Os soldados resmungavam, referindo-se àquilo que chamavam trabalho de cozinha, mas Johnston disse-lhes que aquilo era o que se poderia chamar as "ervas da guerra .
Passaram-se alguns minutos até que o Professor se aproximou, sentando-se no canto junto dele. Observando o trabalho dos soldados, Marek disse: «Doniger chegou a falar-te sobre o cuidado que devemos ter em não se modificar a história?»
«Chegou. Porquê?»
«Parece que estamos a dar a Oliver uma grande ajuda para defender o seu castelo contra Arnaut. Estas setas vão obrigar Arnaut a fazer recuar as suas máquinas de guerra - ficando demasiado longe para que possam continuar a serem eficientes. Sem máquinas de guerra deixa de haver assalto à fortaleza. E Arnaut não vai estar na disposição de ficar à espera. Os seus homens querem resultados rápidos - o que aliás acontece com todas as companhias de mercenários. Se não conseguem tomar um castelo de imediato, seguem em frente.»
«Sim, isso é verdade ... »
«Mas, de acordo com a história, este castelo cai nas mãos de Arnaut.» «Exacto», disse johnston. «Mas não será por causa de um cerco. Acontecerá porque um traidor vai deixar entrar os homens de Arnaut.»
«Também estive a pensar nisso», respondeu Marek. «Não faz sentido. Neste castelo há demasiadas entradas para serem abertas. Como é que seria possível um traidor fazer uma coisa dessas? Acho que não seria possível.»
Johnston sorriu. «Estás convencido de que podemos estar a ajudar Oliver a manter o castelo, e assim estamos a modificar a história.»
«Bom. Confesso que pensei nisso.»
Marek estava a pensar que, caísse ou não um castelo, era de facto um acontecimento significativo, em termos do futuro. A história da Guerra dos Cem Anos poderia ser vista como uma série de cercos e tomadas-chave. Por exemplo, dentro de alguns anos, salteadores capturariam a cidade de Moins, na foz do Senna. Em si, não passaria de uma conquista sem grande significado - mas iria dar-lhes o controlo do Senna, permitindo-lhes capturar castelos ao longo de todo o caminho até Paris. Em seguida havia a questão daqueles que viviam e daqueles que morriam. Porque, mais vezes do que seria de imaginar, quando um castelo caía, os seus habitantes eram massacrados. Havia várias centenas de pessoas dentro de La Roque. Se todos eles sobrevivessem, os seus milhares de descendentes constituiriam facilmente um futuro muito diferente.
«Talvez nunca cheguemos a saber», disse Johnston. «Quantas horas é que ainda temos?»
Marek olhou para o bracelete. O contador indicava 05:50:29. Mordeu o lábio. Esquecera-se de que o relógio não parava. Quando olhara para o contador pela última vez ainda faltavam quase nove horas; Parecera-lhe que era tempo mais do que suficiente. Seis horas já não parecia tão bom.
«Não são exactamente seis horas», disse Marek. «E Kate tem o marcador?»
«Tem.»
«E onde é que ela está?»
«Foi à procura da passagem.» Marek estava a pensar em que a tarde já se encontrava no fim; se encontrasse a passagem, facilmente conseguiria descobrir a entrada para o castelo em duas ou três horas.
«Para onde é que ela foi à procura da passagem?» «Para a capela verde.»
Johnston suspirou. «Foi aí que a chave de Marcel dizia que ela se encontrava? »
«Exacto.»
«E foi sozinha?»
«Foi.» Johnston abanou a cabeça. «Ninguém lá vai.» «Porquê?»
«Supostamente, a capela verde é guardada por um cavaleiro louco. Dizem que o seu verdadeiro amor morreu ali e que a dor fez com que perdesse o juízo. Aprisionou a irmã num castelo próximo, e presentemente mata quem quer que se aproxime do castelo ou da capela.»
«Achas que tudo isso é verdade?» disse Marek.
johnston encolheu os ombros. «Ninguém sabe», respondeu. «Até porque nunca houve ninguém que conseguisse voltar com vida.»
05:19:55
Cerrando os olhos com força, Kate aguardou a queda do machado. O cavaleiro que se encontrava acima dela resmungava e grunhia, a respiração cada vez mais acelerada, cada vez mais excitado na expectativa de desferir o golpe fatal...
Foi então que ficou silencioso.
Sentiu o pé que se apoiava nas costas dela estremecer. Olhava à sua volta.
O machado enterrou-se com uma pancada seca no bloco de madeira, a centímetros do rosto. Mas estava a descansar, apoiando-se no machado, enquanto olhava para qualquer coisa que se encontrava atrás dele. Começou a grunhir novamente e nesse instante gritou irritadamente.
Kate tentou ver para onde é que ele estava a olhar, mas a parte lateral do machado bloqueava-lhe a visão.
Ouviu o som de passos atrás dela. Havia ali mais alguém.
O machado ergueu-se mais uma vez, mas agora o pé saiu das suas costas. Atabalhoadamente rolou para fora do bloco e voltando-se, avistou Chris que se encontrava de pé a alguns metros de distância, empunhando a espada que ela deixara cair.
«Chris!» Chris sorriu através dos dentes cerrados. Conseguia aperceber-se de que ele estava aterrorizado. Não desviou os olhos do cavaleiro de verde. Com um grunhido o cavaleiro fez meia volta, o machado sibilando com o golpe desferido. Chris ergueu a espada para parar o golpe. Saltaram centelhas com o entrechocar do metal. Os homens rodavam lentamente um em volta do outro sem desviarem o olhar. O cavaleiro desferiu novo golpe e Chris baixou-Se, recuou aos tropeções, e endireitou-se apressadamente quando o machado se enterrou na relva. Kate procurou nervosamente na bolsa e encontrou o cijlndro de gás. Aquele objecto estranho de uma outra época parecia agora absurdamente pequeno e leve, mas era tudo aquilo que tinham.
«Chris!» Colocando-se atrás do cavaleiro verde, ergueu o cilindro para que ele o pudesse ver. Acenou vagamente com a cabeça, continuando a esquivar-se e a recuar. Viu que se cansava rapidamente, perdendo terreno, enquanto o cavaleiro verde avançava na sua direcção.
Kate não tinha qualquer outra escolha: avançou a correr, saltou no ar, e aterrou nas costas do cavaleiro verde. Grunhiu, surpreendido com o peso. Agarrou-se a ele, colocou a lata de gás em frente do elmo, e disparou o gás através da abertura. O cavaleiro tossiu e estremeceu. Disparou o gás mais uma vez e o cavaleiro começou a cambalear. Deixou-se cair no solo.
A rapariga exclamou: «Agora!»
Chris, com um joelho em terra, estava arquejante. O cavaleiro verde ainda se encontrava de pé, embora vacilante. Chris avançou lentamente, e desferiu um golpe com a espada na parte lateral do tronco do cavaleiro, entre as placas da armadura. Este soltou um rugido enfurecido e deixou-se cair de costas.
Chris estava de imediato em cima dele, cortando-lhe os laços do elmo, para em seguida o afastar com um pontapé. Apercebeu-se de relance de um cabelo encaracolado, barba revolta e olhos selvagens, enquanto mais uma vez desferia um golpe com a espada de cima para baixo, cortando a cabeça do cavaleiro.
Não funcionou.
A lâmina desceu, cravou-se no osso, tendo ficado parcialmente enterrada no pescoço. O cavaleiro ainda estava vivo, olhando para Chris com um ar de demente, enquanto a boca se movia.
Chris tentou libertar a espada, mas estava presa na garganta do cavaleiro. Enquanto se debatia, a mão do cavaleiro ergueu-se e agarrou-lhe o ombro. O cavaleiro era imensamente forte - de uma força demoníaca e puxou-o até o rosto ficar a centímetros de distância. Os olhos estavam injectados de sangue.
os dentes estavam estalados e apodrecidos. A barba estava infestada de piolhos, que circulavam por entre bocados de comida descolorida. Todo ele era uma visão de decadência.
Chris sentia-se revoltado. Sentia o seu hálito quente e insuportável. Debatendo-se, conseguiu colocar um pé no rosto do cavaleiro, que se ergueu, tentando libertar-se da prisão. Nesse instante a espada soltou-se e ele ergueu-a para desferir um novo golpe.
Mas os olhos do cavaleiro arregalaram-se e a mandíbula abriu-se desmesuradamente. Já estava morto. As moscas começaram a zumbir em volta do rosto.
Chris deixou-se cair, ficando sentado no solo húmido, tentando normalizar a respiração. A revulsão invadiu-o como uma onda, e começou a tremer incontrolavelmente. Cruzou os braços sobre o peito, tentando parar as tremuras. Os dentes batiam-lhe.
Kate colocou-lhe a mão no ombro. Exclamou: «Meu herói». Quase que não a conseguiu ouvir. Não disse nada. Mas pouco a pouco começou a deixar de tremer e conseguiu pôr-se de novo de pé.
«Sinto-me muito contente por te ver», disse ela.
Acenou com a cabeça e sorriu. «Vim pelo caminho mais fácil,»
Chris conseguira parar o seu deslizar pela lama. Passara alguns momentos muito dificeis em busca do caminho de regresso na ascensão da encosta e, por último, desceu pela outra vereda. Veio a mostrar-se um caminho fácil até à base da queda de água, onde encontrou Kate a pontos de ser decapitada.
«Já sabes o resto», disse ele. Pôs-se de pé apoiando-se na espada. Ergueu o olhar para o céu. Começava a ficar escuro. «Quanto tempo é que achas que ainda falta?»
«Não faço ideia. Quatro ou cinco horas.» «Então é melhor pormo-nos a caminho.»
O tecto da capela verde ruíra em diversos lugares, e o interior estava igualmente em ruínas. Via-se um pequeno altar, caixilhos góticos que rodeavam janelas partidas, charcos de água estagnada no solo. Era difícil de acreditar que em tempos esta capela fora uma jóia, com as suas entradas e arcos cuidadosamente esculpidos. Agora uma camada de bolor escorregadio escorria das esculturas, corroídas de tal modo que era impossível reconhecê-las.
Uma cobra negra afastou-se rapidamente de Chris quando este descia a escada em caracol que levava às criptas do subsolo. Kate seguiu-o mais lentamente. Em baixo estava mais escuro, sendo a única luz a que se infiltrava pelas fendas do soalho que ficava acima. Ouvia-se o som constante do gotejar de água. No centro da sala via-se um único sarcófago intacto, esculpido em pedra negra, e fragmentos dispersos de vários outros sarcófagos. O sarcófago intacto apresentava um cavaleiro de armadura esculpido na tampa. Kate olhou para o rosto do cavaleiro, mas a pedra fora de tal modo corroída pelo bolor omnipresente que as feições haviam desaparecido.
«Diz-me mais uma vez, qual era a chave?» perguntou Chris. «Qualquer coisa sobre os pés do gigante?»
«É isso, não sei quantos passos a partir dos pés do gigante. Ou de pés gigantescos.»
«A partir dos pés do gigante», repetiu Chris. Apontou para o sarcófago, onde os pés do cavaleiro esculpido eram dois cotos arredondados. «Achas que se refere a estes pés?»
Kate franziu as sobrancelhas. «Não se pode dizer que sejam exactamente gigantes.»
«De facto ... »
«Vamos tentar», disse ela. Colocou-se aos pés do sarcófago, voltou-se para a direita e deslocou-se cinco passos. Em seguida voltou-se para a esquerda e andou mais quatro passos. Voltou-se mais uma vez para a direita e andou três passos, chegando junto à parede.
«Acho que não», disse Chris.
Afastaram-se ambos e começaram a procurar mais cuidadosamente. Quase de imediato Kate fez uma descoberta encorajadora: meia dúzia de rochas estavam amontoadas a um canto, onde deveriam permanecer secas. As rochas haviam sido feitas de modo grosseiro, mas mesmo assim perfeitamente utilIzáveis.
«A passagem tem de estar em qualquer parte», disse ela. «Tem de estar.» Chris não respondeu. Procuraram em silêncio durante a meia hora seguinte, limpando bolor das paredes e do chão, observando as esculturas corroídas, tentando descobrir se qualquer delas poderia representar pés de gigante.
Finalmente Chris disse: «Essa coisa explicava se os pés se encontravam, dentro da capela ou na capela?»
«Não faço a menor ideia», respondeu Kate. «Foi André que o leu para mim. Traduziu o texto.»
«Talvez devêssemos procurar no exterior.» «As rochas estavam aqui.»
«É verdade.»
Chris voltou-se frustrado, olhando em volta.
«Se Marcel tivesse feito uma chave a partir de qualquer coisa real», disse Kate, «nunca teria usado um caixão ou um sarcófago, porque poderiam ser removidos. Usaria qualquer coisa que estivesse fixa. Qualquer coisa nas paredes.» «Ou no chão.»
«Sim, ou no chão.»
Ela estava junto da parede mais distante onde se via um pequeno nicho cortado na pedra. De início pensou que se tratava de pequenos altares, mas eram muito pequenos, e viu bocados de cera; era evidente que haviam sido talhados para suportarem uma vela. Avistou vários destes nichos para velas nas paredes da cripta. Notou que as paredes interiores do nicho se encontravam belamente esculpidas, com um desenho simétrico de asas de pássaros que se erguiam de cada um dos lados. E a escultura não fora tocada, talvez porque o calor das velas tivesse suprimido o crescimento do bolor.
Pensou: Simétrico.
Excitada, dirigiu-se rapidamente para o nicho de vela seguinte. A escultura representava duas cepas cheias de folhas. O nicho seguinte: duas mãos erguidas em oração. Continuou a percorrer os nichos da sala, verificando cada um deles. Em nenhum deles havia pés.
Com a ponta do pé, Chris desenhava no solo grandes arcos, raspando o bolor da pedra subjacente. Entretanto murmurava: «Pés grandes, pés grandes.» Olhou para Chris e disse: «Na verdade sinto-me completamente estúpida.» «Porquê?»
Apontava para a porta atrás dele - a porta por onde haviam entrado quando haviam descido a escada pela primeira vez. A entrada que um dia fora sofisticadamente esculpida mas que agora se encontrava completamente corroída.
Era possível ver, mesmo agora, qual fora o desenho original da escultura. Tanto do lado esquerdo como do lado direito havia sido esculpida uma série de protuberâncias. Cinco protuberâncias, com a maior no topo da porta e a mais pequena no fundo. A protuberância maior apresentava um entalhe liso na sua superficie, não deixando a menor dúvida sobre aquilo que as protuberâncias representavam.
Cinco dedos dos pés de cada lado da porta.
«Oh, valha-me Deus», disse Chris. «É o estupor de toda a porta.»
Ela acenou com a cabeça em concordância. «Pés gigantes.» «Porque é que eles haviam de ter feito uma coisa dessas?»
Ela encolheu os ombros. «Por vezes colocam figuras horrendas e demoníacas nas entradas e saídas. Para simbolizar a ascensão ou banimento de espíritos diabólicos.»
Dirigiram-se rapidamente para a porta, e chegados aí Kate marcou cinco passos, em seguida quatro, e depois nove. Estava agora diante de um anel de ferro enferrujado montado na parede. Sentiam-se ambos excitados com a descoberta, mas quando o puxaram o anel ficou solto nas mãos, desfazendo-se em fragmentos avermelhados.
«Devemos ter feito qualquer coisa de errado.» «Marca os passos de novo.»
Voltou atrás e tentou com passos mais pequenos. Direita, esquerda, direita, esquerda. Estava agora diante de uma secção diferente da parede. Mas era apenas parede sem qualquer coisa de especial. Suspirou.
«Olha que não sei, Chris», disse ela. «Devemos estar a fazer qualquer coisa errada. Mas não sei o que é.» Desencorajada, estendeu a mão, apoiando-se à parede.
«Talvez os passos ainda sejam muito grandes», disse Chris. «Ou muito pequenos.»
Chris aproximou-se, parando junto da parede ao lado dela. «Vá lá, havemos de descobrir o que é.»
«Achas que sim?»
«Sim, não tenhas a menor dúvida.»
Afastaram-se da parede e dirigiam-se para a porta quando ouviram atrás deles um ruído surdo em tom baixo. Uma enorme pedra do soalho, exactamente no ponto onde haviam estado antes, desviara-se para o lado. Viram degraus de pedra que desciam. Ouviram um ruído distante de água. A abertura era negra e tinha um aspecto aterrador.
«Bingo», disse ele.
03:10:12
Na sala de controlo sem janelas situada acima da plataforma de trânsito, Gordon e Stern não tiravam os olhos do ecrã do monitor. Mostrava uma imagem de seis painéis, representando os cinco contentores de vidro que haviam sido gravados. Enquanto olhavam, pequenos pontos brancos apareceram nos painéis.
«Aquela é a posição de cada ponto», disse Gordon.
Cada um dos pontos era acompanhado por um enxame de números, mas eram muito pequenos para ser possível lê-los.
«É o tamanho e a profundidade de cada cavidade», acrescentou Gordon. Stern não disse nada. A simulação continuou. Os painéis começaram a encher-se de água, o que era representado por uma fina linha horizontal em movimento ascendente. Sobrepostos a cada um dos painéis viam-se dois grandes números: o peso total de água e a pressão por polegada quadrada na superfície de vidro, no fundo de cada um dos painéis, onde a pressão era maior.
Mesmo que a simulação fosse altamente estilizada, Stern deu por si a suster a respiração. A linha de água subia cada vez mais.
Um dos tanques começou a verter: um ponto vermelho que acendia e apagava.
«Há uma fuga num dos tanques», disse Gordon.
Um segundo tanque também começou a verter, e enquanto a água continuava a subir, uma linha quebrada atravessou o painel e este desapareceu do ecrã.
«Um dos tanques estourou.»
Stern estava a abanar a cabeça. «Até que ponto achas que esta simulação é fiável?»
«Bastante rápida e pouco fiável.»
No ecrã explodiu um segundo tanque. Os últimos dois encheram-se até ao topo sem incidentes.
«Muito bem», disse Gordon. «0 computador está a dizer-nos que três dos cinco painéis podem ser cheios.»
«Se acreditares nisso. Acreditas mesmo?»
«Pessoalmente, não acredito», disse Gordon. «Os dados de entrada não são suficientemente bons, e o computador está a construir todo o género de suposições de stress que são bastante hipotéticas. Mas continuo a pensar que é melhor enchermos esses tanques no último minuto.»
Stern disse: «É uma pena que não exista um modo de reforçar os tanques.» Gordon ergueu o olhar rapidamente. «E como é que isso seria?» perguntou. «Tens alguma ideia?»
«Não sei. Talvez fosse possível encher as reentrâncias com plástico ou qualquer outro tipo de material. Ou talvez pudéssemos ... »
Gordon abanava a cabeça. «Faças o que fizeres, tem que ser uniforme. Tinhas que cobrir toda a superficie do tanque de uma maneira uniforme. Perfeitamente uniforme.»
«Não consigo encontrar uma maneira de se fazer isso», respondeu Stern. «Pelo menos seria impossível em três horas», disse Gordon. «E é o tempo
que nos resta.»
Stern sentou-se numa cadeira franzindo as sobrancelhas. Por uma razão qualquer, que não conseguia compreender, estava a pensar em carros de corrida. Uma sucessão de imagens fulgurantes passava-lhe pela mente. Ferraris. Steve McQueen. Fórmula Um. O homem da Michelin com o seu corpo arredondado de borracha. O emblema amarelo da Shell. Enormes pneus de camião silvando debaixo de chuva. B. E Goodrich.
Ocorreu-lhe que nem sequer gostava de carros. Mas quando estivera em New Haven tinha um antigo VW Carocha. Era evidente que a sua mente acelerada estava a tentar evitar uma realidade desagradável - qualquer coisa que não queria encarar.
O risco.
«Sendo assim, vamos limitarmo-nos a encher os painéis no último minuto e rezar?», perguntou Stern.
«Exactamente», disse Gordon. «É precisamente isso que vamos fazer. É um bocado arriscado. Mas acho que vai funcionar.»
«E a alternativa?» perguntou Stern.
Gordon abanou a cabeça. «Bloqueia o seu regresso. Não deixes que os teus amigos voltem. Arranja painéis de vidro perfeitamente novos, paineis que não tenham imperfeições, e começa tudo de novo.»
«E isso demora quanto tempo?» «Duas semanas. »
«Não é possível», respondeu Stern. «Não podemos fazer isso. Temos que avançar já. »
«Está certo», respondeu Gordon. «Vamos em frente.»
02:55:14
Marek e Johnston subiram as escadas de caracol. No topo encontraram-se com de Kere, que tinha um ar nitidamente satisfeito. Encontravam-se uma vez mais nas amplas instalações de La Roque. Oliver também lá estava, andando de um lado para o outro, o rosto corado e um ar irritado.
«Sentis o cheiro?», gritou, apontando na direcção dos campos, onde as tropas de Arnaut continuavam a reunir-se.
Era o princípio da noite; o sol já descera no horizonte e Marek calculava que deviam ser cerca de seis da tarde. Mas mesmo à luz do crepúsculo conseguiam ver que as forças de Arnaut tinham instalado pelo menos uma dúzia de catapultas alinhadas no campo fronteiro. Depois do exemplo da primeira flecha incendiária haviam colocado os seus engenhos a suficiente distância uns dos outros, para evitar a possibilidade de um incêndio se propagar a mais do que um engenho.
Para lá das catapultas havia uma área de acantonamento com as tropas reunidas em torno das fogueiras. E, muito mais atrás, viam-se as centenas de tendas dos soldados com os contornos a sobreporem-se à linha escura da floresta.
Marek pensou que parecia uma coisa perfeitamente normal. O início de um cerco. Não fazia a menor ideia da razão pela qual Oliver se mostrava preocupado.
Um cheiro nítido a queimado elevava-se até eles das fogueiras espalhadas no campo. Fazia lembrar a Marek o cheiro característico dos assentadores de telhados. E com boa razão: tratava-se da mesma substância. «Sinto, meu Senhor», disse Johnston. «É breu.»
O ar confuso de Johnston indicava que também ele não conseguia compreender porque é que Oliver se mostrava tão preocupado. Era prática normal no caso de um cerco lançar breu a arder sobre as muralhas do castelo.
«Sim, sim», disse Oliver, «eu sei que é breu. É evidente que é breu. Mas não é tudo. Mas não sentis o outro cheiro? Estão a misturar qualquer coisa com o breu.»
Marek cheirou o ar, pensando que Oliver muito provavelmente teria razão. O breu puro tinha uma tendência para se apagar quando estava a arder. Por esse motivo o breu era normalmente combinado com outras substâncias
- óleo, estopa e enxofre - para obter uma mistura que queimasse de uma forma mais consistente.
«Sim, meu Senhor, também sinto o cheiro», disse johnston. «E o que é?» perguntou Oliver num tom acusador.
«Julgo que é ceráunia.»
«Também chamada a pedra do raio?» «Sim, meu Senhor.»
«E nós também estamos a usar essa pedra do raio?» «Não meu Senhor ... » começou johnston a dizer. «Ah! Era isso que eu pensava.»
Oliver acenava agora na direcção de de Kere, como se as suas suspeitas tivessem sido confirmadas. Não havia a menor dúvida de que de Kere se encontrava por detrás daquilo tudo.
«Meu Senhor», disse johnston, «não temos qualquer necessidade da pedra do raio. Temos coisa melhor. Nós usamos enxofre puro.»
«Mas o enxofre não é a mesma coisa. » Outro olhar na direcção de de Kere. «Muito pelo contrário, meu Senhor. A pedra do raio é pirite kerdoniana. Quando é finamente moída, temos o enxofre.»
Oliver resmungou. Recomeçou a andar de um lado para o outro. Olhou ameaçadoramente.
«E como é possível», disse ele finalmente, «que Arnaut tenha conseguido essa pedra do raio?»
«Não faço a menor ideia», disse johnston, «mas a pedra do raio é perfeitamente conhecida dos soldados. É mesmo mencionada por Plínio.» «Procurais fugir às minhas perguntas com artimanhas, Magister. Não estou
a falar de Plínio. Falo de Arnaut. O homem é um porco ignorante. Não sabe nada a respeito da ceráunia ou da pedra do raio.»
«Meu Senhor ... »
«A não ser que tenha sido ajudado», disse Oliver em tom sombrio. «Onde é que estão agora os vossos assistentes?»
«Os meus assistentes?»
«Vá lá, Magister, deixai-vos de fugir às minhas perguntas.»
«Um deles está aqui», disse Johnston, fazendo um gesto na direcção de Marek. «Fui informado de que o segundo está morto e não tenho notícias do terceiro.»
«E julgo», disse Oliver, «que sabeis muito bem onde é que eles estão. Estão os dois a trabalhar no campo de Arnaut, neste preciso momento em que estamos a falar. É esse o motivo pelo qual acontece ter essa pedra arcaria.»
Marek ouviu tudo isto com um sentimento crescente de constrangimento. Oliver nunca parecera mentalmente estável, mesmo em melhores tempos, Agora, confrontado com um ataque que se aproximava, estava a tornar-se abertamente paranóico - espicaçado por de Kere. Oliver parecia imprevisível,
e perigoso.
«Meu Senhor...» começou Johnston.
«E mais ainda, estou convencido daquilo de que suspeitava desde o início! Sois um instrumento de Arnaut, porque haveis passado três dias em Sainte-Mère, e o Abade é um instrumento de Arnaut.»
«Meu Senhor, se quiserdes ouvir-me ... »
«De modo nenhum! Vós é que me ouvireis. Estou convencido de que trabalhais contra mim, de que vós, ou os vossos assistentes, conheceis a entrada secreta para o meu castelo, apesar de todos os vossos protestos, e de que o vosso plano é de vos escapardes logo que vos seja possível - talvez mesmo esta noite, sob a cobertura do ataque de Arnaut.»
Marek procurava não demonstrar os seus sentimentos. Isso era evidentemente aquilo que eles tencionavam fazer, se Kate alguma vez conseguisse encontrar a entrada da passagem.
«Aha!» disse Oliver apontando para Marek. «Estais a ver? Tem os maxilares cerrados. Ele sabe que aquilo que eu digo é verdade.»
Marek ia começar a falar, mas Johnston colocou-lhe uma mão no braço para o impedir. O Professor não pronunciou uma palavra, limitando-se a abanar a cabeça.
«0 quê? Quereis impedir a sua confissão?»
«Não, meu Senhor, porque as vossas suspeitas não são verdadeiras.» Oliver olhou ameaçadoramente, continuando a andar de um lado para o outro. «Então trazei-me as armas que eu já vos tinha pedido.»
«Meu Senhor, ainda não se encontram prontas.»
«Ha!» Outro aceno de cabeça na direcção de de Kere.
«Meu Senhor, são necessárias muitas horas para conseguir moer o pó.» «Daqui a muitas horas será demasiado tarde.»
«Meu Senhor, será sempre a tempo.»
«Mentis, mentis, estais a mentir.» Oliver fez meia volta, bateu com os pés, olhando intensamente para os engenhos do cerco. «Olha, para a planície. Vede como eles se preparam. Agora respondei-me, Magister. Onde é que ele está.» Verificou-se uma pausa. «Onde é que está quem, meu Senhor?»
«Arnaut ! Onde é que está Arnaut? As suas tropas reúnem-se para o ataque. É sempre ele que as conduz. Mas desta vez ele não está ali. Onde é que ele está?» «Meu Senhor, não sei dizer ... »
«A bruxa de Eltham está ali - estais a vê-la, de pé junto dos engenhos? Estais a ver? Está a observar-nos. Essa maldita mulher.»
Marek voltou-se rapidamente para observar. Claire encontrava-se de facto na planície entre os soldados, caminhando com Sir Daniel a seu lado. Marek sentiu que o seu coração começava a bater mais depressa, só de a ver, embora não tivesse grande certeza de ela vir a aproximar-se da linha do cerco. Estava a olhar para o topo das muralhas. E, de repente parou abruptamente. E pensou com uma certa dose de certeza que ela o tinha visto. Sentiu um impulso quase irresistível de lhe acenar com a mão, mas evidentemente não o fez. Nunca com Sir Oliver a resmungar e a bufar ao lado dele. Mas não deixou de pensar, vou sentir a falta dela quando regressar.
«Aquela Lady Claire», exclamou Oliver num rugido, «é uma espia de Arnaut e sempre o foi desde o início. Conduziu os seus homens a Castelgard. Tudo arranjado, não há a menor dúvida, com as astúcias do Abade. Mas onde é que está o verdadeiro vilão? Onde é que está esse porco do Arnaut? Não é visto em parte nenhuma.»
Seguiu-se um silêncio incómodo. Oliver sorriu sinistramente.
«Meu Senhor», começou Johnston, «compreendo a vossa preocup ... » «Não compreendeis nada!» Bateu intensamente com os pés olhando intensarnente para eles. Para em seguida dizer: «Vocês os dois. Vinde comigo.»
A superfície da água era negra e oleosa, e mesmo olhando para ela a uma altura de dez metros, o cheiro era insuportável. Encontravam-se junto a um Poço circular localizado nas profundezas do castelo. A toda a volta as paredes eram escuras e húmidas, pouco iluminadas por rochas tremeluzentes.
A um sinal de Oliver, um dos soldados que se encontrava junto do poço começou a rodar uma manivela de ferro. Das profundezas da água uma grossa corrente de ferro começou a subir com grande estrépito.
«Chamam a isto o Banho da Senhora», disse Oliver. «Foi construido por Francisco, o Gordo, que tinha um gosto especial por estas coisas. Dizem que Henri de Renaud foi mantido aqui durante dez anos até que morreu. Atiravam-lhe ratos vivos que ele matava e comia crus. Durante dez anos.»
A água agitou-se, e uma pesada gaiola de metal surgiu a superfície e começou a elevar-se no ar escorrendo água. As barras eram negras e cobertas de sujidade. O cheiro era insuportável.
Observando a subida da gaiola, Oliver disse: «Em Castelgard, prometi-vos Magister, que se me deixásseis decepcionado vos mataria. Sois um candidato ao Banho da Senhora.»
Olhou intensamente para eles com um ar tresloucado. «Confessai.»
«Meu Senhor, não há nada para confessar.»
«Então nada tendes que recear. Mas escutai uma coisa, Magister. Se eu descobrir que vós, ou os vossos assistentes, conheceis a entrada para este castelo, fecho-vos neste lugar do qual nunca conseguireis escapar em toda a vossa vida, e deixo-vos aqui na escuridão, para morrerdes de fome e apodrecerdes
para sempre.»
Num dos cantos e empunhando uma rocha, Robert de Kere permitiu-se um sorriso fugaz.
02:22:13
Os degraus desciam íngremes na direcção da escuridão. Kate seguiu à frente, segurando a tocha. Chris seguiu atrás dela. Passaram por uma estreita passagem, quase um túnel, que parecia ter sido feito pelo homem, até chegarem a uma câmara muito mais ampla. Esta era uma caverna natural. Algures lá no alto e à esquerda avistaram o brilho pálido da luz natural; lá em cima devia haver uma entrada qualquer.
O terreno à frente deles continuava a descer acentuadamente. Mais adiante ela viu um enorme charco de água negra e ouviu o ruído das águas correntes do rio. O interior tinha um cheiro intenso semelhante a urina. Rastejou pelas pedras até conseguir chegar ao charco negro. No limite da agua via-se uma pequena margem arenosa.
E na areia viu uma pegada. Várias pegadas.
«Não são recentes», disse Chris.
«Onde é que está a vereda?», disse ela. A sua voz ecoou. Então viu-a, mais para a esquerda, uma secção saliente que fora cortada directamente na parede da rocha, fazendo um recorte que permitia deslizar em torno do charco, passando por ele.
Avançou em frente.
As cavernas não a preocupavam. Estivera em diversas cavernas no Colorado e no Novo México com os seus amigos alpinistas. Kate seguiu a pista vendo pegadas aqui e ali, e riscos pálidos na rocha que podiam ter sido feitos pelo raspar de armas.
«Sabes», disse ela, «esta caverna não poderia ter durado tanto se as Pessoas a tivessem usado para transportar água para o castelo durante um cerco.»
«Mas não usaram», disse Chris. «0 castelo tinha outro fornecimento de água. Deviam ter trazido alimentos, ou outros fornecimentos.»
«Mesmo assim. Até onde é que poderiam ter ido?»
«No século catorze», disse Chris, «não era grande problema para os camponeses terem que caminhar vinte milhas, e por vezes ainda mais. Até os próprios peregrinos caminhavam doze ou quinze milhas por dia, e esses grupos incluíam mulheres e velhos.»
«Oh», disse ela.
«Esta passagem podia ter dez milhas», disse ele. E em seguida acrescentou: «Mas espero que não.»
Depois de terem passado a rocha saliente viram uma passagem aberta pela mão do homem que se afastava do charco negro. A passagem tinha cerca de metro e meio de altura e noventa centímetros de largura. Mas na margem do charco negro encontrava-se amarrado um barco de madeira. Um pequeno barco parecido com um barco a remos. Batia suavemente contra as rochas.
Kate voltou-se. «0 que é que achas? Vamos a pé ou vamos de barco?» «Vamos de barco», disse Chris.
Subiram para o barco. Viram os remos. Ela segurava a rocha e ele remava, e moveram-se com bastante rapidez porque havia uma corrente. Estavam no rio subterrâneo.
Kate sentia-se preocupada com o tempo. Calculou que lhes faltassem cerca de duas horas. Isto queria dizer que tinham que chegar ao castelo, reunirem-se com o Professor e com Marek, e saírem para um espaço aberto para que pudessem chamar a máquina - tudo isto num prazo máximo de duas horas.
Sentia-se contente com a corrente por lhes permitir deslizar mais rapidamente para o interior da caverna. A rocha que levava na mão produzia um som sibilante e crepitava. Nessa altura ouviram um som sussurrante, como de papéis agitados pelo vento. O som tornava-se cada vez maior. Ouviram um chiar que fazia lembrar ratos.
Vinha de qualquer parte nas profundezas da caverna. Olhou para Chris interrogadoramente.
«É noite», disse Chris, e nessa altura começou a vê-los - primeiro alguns, em seguida uma nuvem indistinta e finalmente uma torrente de morcegos que saíam em voo da cave, um rio castanho que passava no ar por cima do barco em que seguiam. Sentiu a brisa provocada por centenas de asas que batiam.
A torrente de morcegos continuou durante alguns minutos, para em seguida se fazer silêncio de novo, com excepção do crepitar da rocha.
Continuaram a deslizar em frente, descendo o escuro rio.
A rocha crepitou e começou a apagar-se. Rapidamente acendeu uma das outras que Chris trouxera da capela. Trouxera quatro rochas e agora restavam-lhes três. Três rochas seriam suficientes para voltarem de novo à superfície? O que é que eles fariam se a última rocha se apagasse e eles ainda tivessem que Seguir em frente - talvez durante milhas? Teriam que rastejar na escuridão, procurando o caminho às apalpadelas, talvez durante dias? Conseguiriam alguma vez chegar ao fim ou iriam morrer ali no meio da escuridão?
«Pára», disse Chris. «Paro o quê?»
«Pára de pensares nisso.» «De pensar em quê?»
Chris sorriu para ela. «As coisas estão a correr bem. Vamos conseguir.» Ela não lhe perguntou como é que ele sabia. Mas sentiu-se confortada com aquilo que ele disse, mesmo que fosse apenas uma fanfarronada.
Haviam passado por uma zona serpenteante, muito baixa, mas agora a caverna abria-se numa enorme câmara, uma caverna ampla com estalactites pendentes do tecto, em alguns lugares chegando até ao solo e mesmo até à água. Por toda a parte a luz tremeluzente da rocha era dominada pela escuridão. Contudo, distinguiu uma pegada numa margem escura. Aparentemente existia uma vereda que se estendia a todo o comprimento da caverna.
O rio começava a ser mais estreito e corria mais depressa, abrindo caminho por entre as estalactites. Fazia-lhe lembrar um pântano da Louisiana, só que aqui era subterrâneo. De qualquer modo, estavam a fazer um bom tempo; sentia-se mais confiante. A esta velocidade seriam capazes de cobrir mesmo as dez milhas em poucos minutos. Afinal de contas, ainda era possível que conseguissem cumprir o tempo limite das duas horas. Na realidade até eram capazes de o fazer com uma certa facilidade.
O acidente aconteceu tão de repente que se apercebeu com dificuldade daquilo que ocorrera. Chris disse, «Kate», e ela voltou-se a tempo de ver uma estalactite que se aproximava da orelha, a cabeça embateu com violência na pedra, bem como a rocha - e o trapo a arder soltou-se da haste da rocha e, numa espécie de movimento fantasmagórico em câmara lenta, viu como caía da rocha para a superfície da água, reunindo-se ao seu reflexo. Crepitou, ouviu-se um silvo e apagou-se.
Estavam mergulhados numa escuridão total. Ela arquejou.
Nunca estivera antes numa tal escuridão. Não havia o menor vestígio de luz. Ouvia o gotejar da água, sentia uma leve brisa fria e tinha a noção da imensidão do espaço à sua volta. O barco ainda se movia; embatiam contra as estalactites aparentemente ao acaso. Ouviu um resmungo, o barco oscilou desgovernado e ouviu à popa o som de qualquer coisa que caía na água. «Chris?»
Lutou contra o pânico.
«Chris?» repetiu ela. «0 que é que fazemos agora?» A voz ecoou na caverna sem resposta.
01:33:00
Começava a anoitecer, o céu escurecendo lentamente numa passagem de azul para negro, as estrelas aparecendo em grande número. Lord Oliver, as suas ameaças e explosões de fúria terminadas de momento, fora com de Kere para o grande salão para jantar. Vindos do salão ouviam-se gritos e piadas; os cavaleiros de OliVer bebiam antes da batalha.
Marek regressou com Johnston ao arsenal. Olhou para o contador. Indicava O 1: 32:14. O Professor não lhe perguntou quanto tempo faltava, e Marek não se ofereceu para lhe dizer. Foi nesse altura que se ouviu um som sibilante. Os homens no topo das muralhas gritavam ao verem uma enorme massa em chamas passar sobre as muralhas, girando no ar, para descer na sua direcção, no pátio interior.
«Está a começar», disse o Professor calmamente.
A quinze metros deles a massa em chamas esmagou-se no solo. Marek viu que era um cavalo morto, as patas saindo rigidamente das chamas. Sentiu o cheiro de pêlo e carne queimados. A gordura rebentou espalhando-se em volta. «Santo Deus», exclamou Marek.
«Morto há muito tempo», disse Johnston, apontando para as patas rígidas. «Gostam de atirar velhas carcaças por cima das muralhas. Havemos de ver pior do que isso antes que a noite acabe.»
Soldados corriam com água para apagar o fogo. Johnston dirigiu-se para o armazém do pó. Os cinquenta homens continuavam a moer o pó. Um deles misturava numa enorme bacia resina e cal viva, preparando uma grande quantidade da mistura acastanhada.
Marek observava o seu trabalho quando ouviu outro whoosh vindo do exterior. Qualquer coisa pesada embateu no tecto; todas as rochas nas janelas estremeceram. Ouviu homens que gritavam, correndo na direcção do telhado.
O Professor suspirou. «Atingiram. o alvo à segunda tentativa», disse ele. «Era isto que eu receava.»
«0 quê?»
«Arnaut sabe que há um paiol, e sabe mais ou menos onde é que se encontra situado - é possível avistá-lo quando se sobe a colina. Arnaut sabe que esta sala estará cheia de pó. Se a conseguir atingir com um projéctil incendiário, sabe que irá produzir grandes danos.»
«Irá explodir», disse Marek, vendo à sua volta as pilhas de sacos de pó. Embora a maior parte do pó medieval não fosse capaz de explodir, já haviam demonstrado que o de Oliver seria capaz de detonar um canhão.
«Sim, irá explodir», disse Johnston. «E muitas pessoas neste castelo irão morrer; irá haver confusão, e um enorme incêndio no meio do pátio. Isto quer dizer que será necessário tirar homens das muralhas para apagarem o fogo. E quando se tiram homens das muralhas durante um cerco ... »
«Arnaut iniciará a escalada.» «Imediatamente, podes crer.»
Marek perguntou: «Mas será possível que Arnaut consiga atingir esta sala com um projéctil incendiário? Estas paredes de pedra devem ter mais de meio metro de espessura.»
«Não vai tentar atravessar as paredes. O tecto.» «Mas como ... »
«Tem. canhões», disse o Professor. «E bolas de ferro. Vai aquecer as suas bolas de ferro ao rubro e em seguida dispará-las sobre as muralhas, na esperança de atingir o paiol. Uma bola de cinquenta libras será suficiente para atravessar o telhado e cair no interior. Quando isso acontecer será melhor não estarmos aqui.» Fez um sorriso forçado. «Onde raio é que estará Kate?»
01:22:12
Sentia-se perdida numa infinita escuridão. Era um pesadelo, pensou ela, enquanto se encolhia no fundo do barco, sentindo-o seguir à deriva e embater de estalactite em estalactite. Apesar do ar frio, começara a suar. O coração batia desordenadamente. A respiração era arquejante; sentia-se incapaz de respirar profundamente.
Sentia-se aterrorizada. Tentou mudar de posição e o barco oscilou descontrolado. Segurou-se com as duas mãos procurando estabilizá-lo. Voltou a chamar, «Chris?»
Ouviu um chapinhar a grande distância na escuridão. Fazia lembrar alguém que nadasse.
«Chris?» Vindo de grande distância: «Sim.» «Onde é que estás?»
«Caí.» Parecia muito distante. Onde quer que Chris estivesse, minuto a minuto afastava-se cada vez mais dele. Estava sozinha. Tinha que arranjar uma luz. Fosse de que maneira fosse, tinha que arranjar luz. Começou a rastejar na direcção da popa do barco, agarrando-se desesperadamente com as mãos, na esperança de que os dedos encontrassem uma das hastes, o que corresponderia a uma das rochas que ainda lhe restavam. O barco oscilou mais uma vez. Merda.
Fez uma pausa, esperando que ele se voltasse a estabilizar.
Onde é que estariam as estupores das rochas? Pensou que talvez estivessem no meio do barco. Mas não as encontrava em parte nenhuma. Encontrou os remos. Sentiu as pranchas. Mas não encontrava as rochas em parte nenhuma.
Teriam caído do barco juntamente com Chris? Arranjar uma luz. Tinha que arranjar uma luz.
Procurou atabalhoadamente no peito tentando encontrar a bolsa, conseguiu abri-la pelo tacto, mas mesmo assim não conseguia dizer o que é que se encontrava dentro. Havia pílulas... a lata... os dedos fecharam-se sobre um cubo, dando a ideia de um cubo de açúcar. Era um dos cubos vermelhos! Tirou um e colocou-o entre os dentes.
Em seguida tirou a adaga e cortou a manga da túnica, rasgando um bocado com cerca de 30 cm de comprimento. Amarrou o pano em volta do cubo vermelho e puxou o cordel.
Esperou. Não aconteceu nada.
Talvez o cubo tivesse ficado encharcado quando caíra à água junto do moinho. Supostamente os cubos deviam ser à prova de água, mas estivera dentro do rio durante muito tempo. Ou talvez este fosse simplesmente defeituoso. Tinha que tentar com outro. Ainda tinha mais um. Começava a procurar de novo dentro da bolsa quando o pano que tinha na mão se incendiou.
«Porra!» gritou ela. Queimara a mão. Nunca pensara nisto em pormenor. Mas recusara-se a deixá-lo cair; cerrando os dentes, manteve-o acima da cabeça, e imediatamente viu as rochas à sua direita, encostadas a um dos lados do barco. Agarrou uma das tochas, encostou-a ao trapo a arder, e a tocha incendiou-se. Deixou cair o trapo no rio e mergulhou a mão na água.
A mão doía-lhe imenso. Olhou atentamente para a mão; a pele estava vermelha, mas fora isso não parecia estar em muito más condições. Ignorou a dor. Preocupar-se-ia com isso mais tarde.
Rodou a tocha à sua volta. Estava rodeada por estalactites de um branco pálido que desciam até ao rio. Tinha a sensação de se mover entre os dentes de um peixe gigantesco com a boca semiaberta. O barco embatia de estalactite em estalactite.
«Chris?»
De muito longe veio a resposta: «Sim.» «Consegues ver a minha luz?» «Consigo.»
Agarrou uma estalactite com a mão, sentindo a textura escorregadia de greda. Conseguiu deter o barco. Mas não conseguia remar de volta até Chris porque tinha que segurar a rocha.
«Podes chegar até junto de mim?» «Posso.»
Ouviu-o chapinhar na água algures na escuridão atrás dela.
Depois de ele ter subido de novo para o barco, encharcado mas sorridente, largou a estalactite e começaram a mover-se de novo com a corrente. Gastaram mais alguns minutos na floresta de estalactites, até que chegaram a uma nova câmara bastante ampla. A corrente era mais rápida. Algures mais à frente ouviram um ruído atroador. Parecia uma queda de água.
Mas nessa altura viu qualquer coisa que fez com que o seu coração desse um salto. Era um enorme bloco de pedra na margem do rio. O bloco estava gasto nos lados pelo roçar de cordas. Era claramente usado para amarrar barcos. «Chris ... »
«Estou a ver.»
Viu qualquer coisa que se parecia com uma vereda muito usada para lá do bloco mas não podia ter a certeza. Chris remou até se encostarem ao bloco, amarraram o barco e saíram. Era de facto uma vereda conduzindo a um túnel com paredes lisas, cortado artificialmente. Começaram a descer o túnel. Ela erguia a tocha à sua frente
Começou a normalizar a respiração. <Chris? Há um degrau.»
«0 quê?»
«Um degrau. Cortado na rocha. Cerca de vinte metros à nossa frente.» Começou a andar mais depressa. Avançaram os dois mais depressa. «De facto», disse ela levantando a tocha mais alto, «há mais do que um degrau. É uma escada completa.»
À luz trémula da tocha viram mais de uma dúzia de degraus que subiam numa inclinação íngreme, sem um corrimão, até terminarem num tecto de pedra - um alçapão onde se via uma argola de ferro.
Entregou a tocha a Chris e trepou as escadas. Puxou pela argola mas nada aconteceu. Empurrou o alçapão apoiando o ombro contra ele.
Conseguiu levantar a pedra cerca de uma polegada.
Viu uma luz amarela tão intensa que a fez pestanejar. Ouviu o crepitar de uma fogueira próxima e vozes de homens que riam às gargalhadas. Mas não conseguiu aguentar mais o peso e a pedra voltou a cair.
Chris já estava a subir a escada na sua direcção. «Auriculares ligados>, disse-lhe enquanto batia na orelha.
«Achas que sim?»
«Temos que correr o risco.»
Bateu na orelha, ouvindo o crepitar. Ouviu a respiração de Chris amplificada enquanto este se mantinha atrás dela na estreita passagem.
«Eu vou à frente», disse-lhe ela. Procurou na bolsa, pegou no marcador e entregou-lho. Ele franziu as sobrancelhas. Ela respondeu: «Por causa das moscas. Não sabemos o que é que vamos encontrar do outro lado.»
«Okay.» Chris pousou a rocha e apoiou o ombro contra a porta do alçapão. A pedra rangeu, elevando-se lentamente. Rastejou através da abertura e em seguida ajudou-o a abrir a porta completamente, assentando-a no solo. Tinham conseguido.
Estavam no interior de La Roque.
01:13:52
Robert Doniger voltou-se segurando o microfone na mão. «Perguntai a vós próprios», disse ele para o auditório vazio às escuras. «Qual é o modo dominante de experiência no final do século vinte? Como é que as pessoas vêem as coisas e como é que elas esperam ver as coisas? A resposta é simples. Em qualquer campo, dos negócios à política, ao marketing e à educação, o modo dominante passou a ser o divertimento.»
Em frente do estreito palco encontravam-se três cabinas almofadadas, dispostas em fila. Em cada uma das cabinas encontrava-se uma mesa, uma cadeira, um bloco de notas e um copo de água. Cada uma das cabinas era aberta na frente para que a pessoa que se encontrasse dentro dela só pudesse ver Doniger e não as pessoas que se encontravam nas outras cabinas.
Era este o modo como Doniger fazia as suas apresentações, Era um truque que ele aprendera em velhos estudos de psicologia de pressão dos pares. Cada uma das pessoas sabia que havia pessoas nas outras cabinas, mas não as podia ver nem ouvir. E colocava uma enorme pressão nos ouvintes. Porque estes tinham de se preocupar com aquilo que as outras pessoas iriam fazer. Tinham de se preocupar com a possibilidade das outras pessoas irem investir.
Caminhava no palco de um lado para o outro. «Hoje toda a gente espera ser entretida, e esperam ser entretidas continuamente. As reuniões de negócios devem ser rápidas, com listas de tópicos de acção e gráficos animados para que os executivos não se aborreçam. Os centros comerciais e as lojas devem ser atraentes, para que divirtam ao mesmo tempo que vendem. Os políticos devem ter personalidades televisiveis agradáveis e dizerem-nos apenas aquilo que queremos ouvir. As escolas devem ser cuidadosas para não aborrecerem as jovens mentes que esperam a velocidade e a complexidade da televisão - toda a gente se deve divertir pois caso contrário mudam: mudam de marca, mudam de canais, mudam de partidos, mudam de lealdades. É esta a realidade intelectual da sociedade ocidental no final deste século.
«Noutros séculos os seres humanos queriam ser salvos, melhorar, ser libertados ou educados. Mas no nosso século procuram o entretenimento. O grande medo não é da doença ou da morte, mas do tédio. Uma sensação nas nossas mãos de tempo que passa, uma sensação de não haver nada para fazer. Uma sensação de que não nos estamos a divertir.
«Mas onde é que esta mania do divertimento irá terminar? O que é que as pessoas irão fazer quando ficarem cansadas da televisão? Quando ficarem cansadas do cinema? já sabemos a resposta - escolherão actividades participatórias: desportos, parques temáticos, cavalgadas, passeios de barco. Divertimento estruturado, emoções planeadas. E o que é que eles farão quando se cansarem de parques temáticos e emoções planeadas? Mais cedo ou mais tarde o artifício torna-se demasiado notório. Começam a aperceber-se de que um parque temático é, na verdade uma espécie de prisão, na qual se paga para ser um prisioneiro.
«Este artifício irá levá-los a procurarem autenticidade. Autenticidade virá a ser a palavra chave do século vinte e um. E o que é que podemos definir como autêntico? Qualquer coisa que não tenha sido projectada e estruturada para obter um lucro. Qualquer coisa que não, seja controlada por corporações. Qualquer coisa que exista por si mesmo, que assuma a sua própria forma. Mas é evidente que nada no mundo moderno tem a possibilidade de assumir a sua própria forma. O mundo moderno é o equivalente, em termos de corporação, a um jardim formal, onde tudo é plantado e arranjado para produzir um determinado efeito. Onde nada é original, onde nada é autêntico.
«Sendo assim, para onde é que as pessoas se voltarão na rara e desejável experiência de busca de autenticidade? Irão voltar-se para o passado.
«0 passado é indiscutivelmente autêntico. O passado é um mundo que existiu antes de Disney e Murdoch e Níssan e Sony e de todos os outros formadores dos nossos dias. O passado esteve aqui antes deles estarem. O passado surgiu e desapareceu sem a sua intrusão, modelagem e venda. O passado é real. É autêntico. E isto tornará o passado incrivelmente atractivo. É por isso que eu vos digo que o futuro está no passado. O passado é a única alternativa real para... Sim? Diana, o que é?> Voltou-se quando ela entrou na sala.
«Temos um problema na sala de trânsito. Parece que a explosão danificou os restantes escudos de água. Gordon fez uma simulação em computador que mostra quatro escudos a estilhaçarem-se quando são cheios com água.»
«Wellsey foi alterado», disse Kramer a Stern. «Foi um dos primeiros animais de teste que enviámos. Antes de sabermos que num trânsito era necessário usar escudos de água. E foi profundamente alterado.»
«Alterado?» Kramer voltou-se Para Gordon. «Não lhe disseste nada?»
«Está claro que lhe disse», respondeu Gordon. Disse a Stern: «Alterado significa que teve graves erros de transcrição.» Voltou-se novamente para Kramer. «Mas isso já aconteceu há anos, Diane, na altura em que também tínhamos problemas com os computadores ... »
«Mostra-lhe», dísse Kramer. «E então vamos ver se ele continua tão ansioso em trazer os seus amigos de volta. Mas o ponto fundamental de tudo isto é de que Bob tomou a sua decisão a este respeito e a resposta é não. Se não temos escudos fiáveis, ninguém pode regressar. Sejam quais forem as circunstâncias. »
Um dos técnícos que se encontrava nas consolas informou: «Temos um sinal de retorno.>
Agruparam-se em volta do monitor, observando a linha ondulante com os pequenos picos de superfície.
«Quanto tempo falta para eles regressarem?» disse Stern. «A avaliar por este sinal, cerca de uma hora.»
«Pode dizer quantos são?» perguntou Gordon.
«Ainda não, mas... é mais do que um. Talvez quatro, ou cinco.»
«São eles todos», disse Gordon. «Devem ter encontrado o Professor e regressam todos, Fizeram aquilo que lhes pedimos e estão todos de regresso.» Voltou-se para Kramer.
«Lamento», disse ela. «Se não houver escudos, ninguém volta. Isto é definitivo.»
01:01:52
Agachada atrás da porta do alçapão, Kate ergue-se lentamente. Encontrava-se de pé num pequeno espaço, que não tinha mais de um metro de largura, com paredes de pedra de ambos os lados. A luz da fogueira vinha de uma abertura à sua esquerda. Com a ajuda daquela luz amarelada, avistou uma porta directamente em frente dela. Atrás dela encontrava-se uma escada íngreme que conduzia ao topo da câmara, a cerca de dez metros de altura.
Mas onde é que ela estava?
Chris espreitou pela frincha do alçapão e apontou para a lareira. Disse num sussurro: <Julgo que sei porque é que eles nunca encontraram a porta para esta passagem.»
«Porquê?» «Fica atrás da lareira.»
«Atrás da lareira?» murmurou ela. E então verificou que ele tinha razão. Aquele espaço estreito era uma das passagens secretas de La Roque: atrás da lareira do grande salão.
Kate avançou cautelosamente, virou à esquerda, e viu que saía da parede traseira da lareira, encontrando-se no grande salão. A lareira tinha cerca de três metros de altura. Através das labaredas viu a mesa principal de Oliver, onde os seus cavaleiros se encontravam sentados a comer, de costas voltadas para ela. Não estaria a mais de cinco metros deles.
Respondeu num sussurro: «Tens razão. É atrás da lareira.»
Olhou para trás na direcção de Chris e, em seguida, fez-lhe um gesto para avançar. Preparava-se para continuar na direcção da porta que se encontrava à sua frente quando Sir Guy olhou de relance para a lareira, ao atirar com uma asa de frango para as chamas. Voltou-se de novo para a mesa continuando
a comer.
Ela pensou para consigo: Raspa-te daquí.
Mas era demasiado tarde. Os ombros de Guy estremeceram; começava a voltar-se mais uma vez, Viu-a claramente, os seus olhos encontraram o olhar dela e gritou: «Meu Senhor.» Afastou violentamente a cadeira da mesa e desembainhou a espada.
Kate correu para a porta, puxou-a freneticamente, mas estava fechada ou emperrada. Não era capaz de a abrir. Voltou-se para as estreitas escadas que se encontravam atrás dela. Viu Sir Guy de pé, do outro lado das chamas, hesitando. Olhou novamente para ela e mergulhou através das chamas na sua direcção. Viu Chris a sair do alçapão e disse: «Baixa-te!». Este baixou-se enquanto ela subia as escadas apressadamente.
Sir Guy chegou a uma posição directamente por debaixo dela, desferindo um golpe que por pouco a não atingiu, a espada batendo na pedra e desferindo faíscas. Praguejou e, em seguida, olhou para baixo, na direcção da abertura que se encontrava junto dele. Aparentemente não avistou Chris, porque logo a seguir o ouviu a trepar as escadas em sua perseguição.
Não tinha qualquer arma; não tinha nada. Só podia correr.
No topo das escadas, a cerca de dez metros do solo, havia uma estreita plataforma, e quando a alcançou, sentiu um novelo de teias de aranha que se lhe agarravam ao rosto. Sacudiu-as com a mão impacientemente. A plataforma era um quadrado que não devia ter mais de meio metro de lado. Era arriscado, mas ela era uma trepadora e não sentia receio.
Mas Sir Guy sentia. Subia as escadas na direcção dela muito lentamente, fazendo pressão com o ombro contra a parede, mantendo-se tão longe do outro extremo quanto podia, agarrando-se a pequenas pegas que existiam na argamassa da parede. Tinha um olhar desesperado e a respiração era ofegante. O valente cavaleiro tinha portanto medo das alturas. Mas o receio não era tão grande que o fizesse parar, segundo ela estava a ver. Mesmo que não houvesse mais nada, o seu desconforto fazia com que se sentisse ainda mais irritado. Olhou intensamente para ela com um ar homicida.
A plataforma dava para uma porta rectangular em madeira, COM UM Visor redondo do tamanho de uma moeda. Via-se que as escadas tinham sido construídas para conduzir àquela abertura, permitindo a um observador olhar para baixo para o grande salão e ver tudo aquilo que se passasse ali. Kate empurrou a porta, apoiando todo o seu peso contra ela, mas em vez de abrir, todo o rectângulo de madeira se desprendeu, caindo em baixo no soalho do grande salão, e ela quase que caiu através da abertura.
Estava dentro do grande salão.
Estava no topo, entre as pesadas vigas do tecto aberto. Olhava para baixo, na direcção das mesas que se encontravam a cerca de dez metros dela. Directamente à frente dela encontrava-se a viga principal correndo ao longo de todo o comprimento do salão. Esta viga cruzava-se com vigas horizontais a cada dois metros e meio, que assentavam nas paredes em ambos os lados. Todas as vigas estavam cuidadosamente talhadas, e escoradas a intervalos regulares.
Sem hesitação, Kate colocou-se sobre a viga central. Toda a gente que se encontrava em baixo olhava para cima; ficaram sobressaltados quando a viram, apontando para cima. Ela ouviu Oliver gritar em voz alta: «Por S. Jorge e os demónios do inferno! O assistente! Fomos traídos! O Magister!»
Deu um murro na mesa e pôs-se de pé, olhando intensamente para ela. Ela disse: «Chris. Encontra o Professor.»
Ouviu um som indistinto. « ... kay.» «Estás a ouvir-me? Chris.»
Apenas um ruído de estática.
Kate moveu-se rapidamente para a viga central. Apesar da altura a que se encontrava acima do solo, sentia-se perfeitamente à vontade. A viga tinha quinze centímetros de largura. Nada de especial. Ouvindo outra exclamação das pessoas que se encontravam em baixo, olhou para trás e viu Sir Guy que dava os primeiros passos na viga central. Parecia aterrorizado, mas a presença de uma audiência encorajava-o. Seria isso ou então pretendia evitar mostrar diante de tanta gente que tinha medo. Guy deu um passo hesitante, conseguiu equilibrar-se, e caminhou directamente na sua direcção movendo-se rapidamente. Moveu a espada num movimento amplo. Alcançou a primeira viga vertical, respirou fundo, e segurando-se ao poste vertical, contorceu o corpo para passar em volta dele. Continuou na direcção da viga central.
Kate recuou, verificando que aquela viga central era demasiado larga, demasiado fácil para ele. Caminhou lateralmente ao longo de uma viga horizontal, na direcção da parede lateral. Esta viga horizontal tinha apenas trinta centímetros de largura; ele iria ter problemas. Contornou uma secção difícil onde havia uma escora e em seguida continuou o seu caminho.
Só então é que se apercebeu do seu erro.
Geralmente os tectos medievais em aberto tinham um detalhe estrutural
no ponto em que se apoiavam na parede - outra escora, uma viga decorativa, uma espécie qualquer de trave ao longo da qual ela se pudesse mover. Mas este tecto era um reflexo do estilo francês: a viga entrava directamente na parede, apoiando-se num entalhe cerca de quatro pés abaixo da linha do tecto. Não havia qualquer detalhe de parede. Recordava-se agora de ter estado nas ruínas de La Roque e de ter visto esses entalhes. Em que é que ela estivera a pensar?
Estava encurralada na viga. Não podia avançar mais porque a viga terminava na parede. Não podia voltar ao centro porque Sir Guy se encontrava lá, esperando por ela. E não podia ir para a trave paralela, porque se encontrava a uma distância de dois metros e meio, muito longe para saltar.
Não era impossível mas era muito distante. Especialmente sem uma segurança.
Olhando para trás, viu Sir Guy que se aproximava na sua direcção, procurando equilibrar-se cuidadosamente, balançando levemente a espada na mão. Enquanto avançava sorria sinistramente. Sabia que a tinha apanhado.
Chegara a um ponto em que não tinha escolha. Olhou para a viga seguinte a dois metros e meio de distância. Tinha que o conseguir. O problema era de conseguir altura suficiente. Tinha que saltar para cima se quisesse tentar a travessia.
Guy estava a contornar a secção escorada, Naquele momento estava a segundos de distância dela. Acocorou-se na viga, respirou fundo, contraiu os músculos - e deu um impulso com as pernas com toda a força de que foi capaz, lançando-se em voo no espaço aberto.
Chris saiu da porta em pedra do alçapão. Olhou através das chamas e viu que toda a gente na sala se encontrava de olhos postos no tecto. Sabia que Kate estava lá em cima mas não havia nada que pudesse fazer por ela. Dirigiu-se directamente para a porta lateral e tentou abri-la. Vendo que ela nem sequer se mexia, atirou todo o seu peso contra ela e esta moveu-se cerca de uma polegada. Empurrou de novo; a porta rangeu e em seguida abriu-se de par em par.
Saiu para o pátio interior de La Roque. Soldados corriam de um lado para o outro. Um incêndio começara num dos cobertos, as galerias em madeira que corriam ao longo das muralhas. Qualquer coisa ardia numa grande fogueira no centro do próprio pátio. No meio de todo aquele caos ninguém lhe prestou atenção.
Disse: «André, estás aí?»
Um crepitar de estática. Nada
E logo em seguida: «Sim.» Era a voz de André. «André? Onde é que estás?»
«Com o Professor.» «Onde?» disse Chris.
«No arsenal.»
«Onde é que fica isso?»
00:59:20
Havia duas dúzias de animais metidos em gaiolas no armazém do laboratórío, na sua maioria gatos, mas também alguns porcos da Guiné e ratos. A sala cheirava a peles e a fezes. Gordon conduziu-o ao longo da ala lateral, dizendo: «Conservarnos os que foram alterados separados dos outros. Foi necessário.»
Stern viu três gaiolas alinhadas junto à parede do fundo. As barras destas gaiolas eram grossas. Gordon conduziu-o até junto de uma, onde viu uma bola de pêlos, enrolada sobre si. Era um gato a dormir, um gato persa, de um cinzento pálido.
«Este é o Wellsey», disse Gordon com um aceno de cabeça.
O gato parecia perfeitamente normal. Respirava lentamente, suavemente, enquanto dormia. Conseguia ver metade do focinho acima da curva do pêlo. As patas eram escuras. Stern aproximou-se, mas Gordon colocou-lhe a mão no peito. «Não se aproxime demais», disse-lhe ele.
Gordon pegou num pau e raspou-o nas grades da gaiola.
O olho do gato abriu-se. Não lenta e preguiçosamente - abriu-o totalmente, instantaneamente alerta. O gato não se moveu, não se espreguiçou. Só o olho se abriu.
Gordon passou o pau pelas barras uma segunda vez.
Com um furioso sibilar o gato atirou-se contra as barras, a boca aberta, os dentes arreganhados. Chocou contra as barras, recuou e atacou novamente
- e mais uma vez, e ainda outra, íncansavelmente, sem uma pausa, sibilando, rosnando.
Stern não conseguia desviar os olhos, horrorizado.
O focinho do animal estava horrivelmente distorcido. Um dos lados parecia normal mas o outro era distintamente mais baixo, o olho, a narina, tudo mais baixo, com uma linha que passava pelo centro do focinho dividindo as duas metades. É por isso que dão à alteração o nome de "partido", pensou.
Mas pior ainda era a parte de trás do focinho, que inicialmente não conseguira ver por causa dos saltos do gato e dos choques contra as barras, mas agora conseguia ver que na parte de trás da cabeça, atrás da orelha distorcida, havia um terceiro olho, mais pequeno e apenas parcialmente formado. E abaixo desse olho havia um pedaço de carne do nariz e a seguir um pedaço saliente de mandíbula que saía do lado do focinho como se fosse um tumor. Uma curva de dentes brancos saía da pelagem, embora não houvesse boca.
Erros de transcrição. Agora compreendia o que é que isso queria dizer.
O gato batia incansavelmente contra as grades; o focinho começava a sangrar por causa dos impactos repetidos. Gordon disse: «Vai continuar a fazer isto até sairmos daqui.»
«Então o melhor é irmos embora», disse Stern.
Regressaram, mantendo-se em silêncio durante algum tempo. Foi então que Gordon disse: «E não é só aquilo que pode ver. Também há alterações mentais. Essa foi a primeira alteração importante na pessoa que foi alterada.»
«Trata-se dessa pessoa de que me tem falado? Aquela que ficou para trás?» «Sim», disse Gordon. «Deckard. Rob Deckard. Era um dos nossos marines. Muito antes de termos visto as alterações físicas no seu corpo, deparámos com as alterações mentais. Mas só mais tarde é que compreendemos que a causa eram os erros de transcrição.»
«Que tipo de alterações mentais?»
«Originalmente Rob era um tipo alegre, um óptimo atleta, extremamente dotado para as línguas. Era capaz de se sentar com um estrangeiro a beber uma cerveja, e quando acabasse já sabia dizer qualquer coisa nessa língua. Está a ver, uma palavra aqui, uma frase ali. Começava a dizer alguma coisa. Sempre com um sotaque perfeito. Ao fim de algumas semanas era capaz de falar como um nativo. Os marines foram os primeiros a dar por isso e mandaram-no para uma das suas escolas de línguas. Mas com o decorrer do tempo, e à medida que Rob ia acumulando danos, deixou de ser alegre, transformando-se numa pessoa má», disse Gordon. «Realmente mau.»
«Sim?» «Espancou um dos guardas da entrada quase até à morte porque ele demorou demasiado tempo a verificar a sua identidade. E quase que matou um tipo num bar de Albuquerque. Foi nessa altura que começámos a verificar que Deckard sofrera danos permanentes no cérebro, e que não iria melhorar se não chegasse mesmo a ficar pior.»
De volta à sala de controlo, encontraram Kramer debruçada sobre o monitor, olhando para o ecrã, onde se viam as flutuações de campo. Começavam agora a ser mais fortes. E os técnicos estavam a dizer que pelo menos três estavam de volta, e talvez mesmo quatro ou cinco. Pela sua expressão via-se perfeitamente que Kramer estava dividida.
«Ainda continuo a pensar que o computador está errado e que os painéis vão aguentar», disse Gordon. «Podemos perfeitamente encher agora os tanques e ver se eles aguentam.»
Kramer acenou afirmativamente. «Sim, podemos fazer isso, mas mesmo que eles encham sem estalar, não podemos ter a certeza de que não vão explodir mais tarde, durante o trânsito. E isso seria um desastre.»
Stern mudou de posição na cadeira. Subitamente sentia-se pouco à vontade. Havia qualquer coisa que o preocupava, uma espécie de verruma que sentia na parte de trás da mente. Quando Kramer falou em "explodir", mais uma vez viu automóveis na sua mente, uma sucessão de imagens que se repetia interminavelmente. Corridas de carros. Enormes pneus de camião. O Homem Michelin. Um enorme prego na estrada e um pneu que passava por cima. Explosão.
Os tanques de água iriam explodir. Os pneus iriam explodir. O que é que se passava com as explosões?
«Para resolvermos o problema», disse Gordon, «Precisamos de arranjar uma maneira de reforçar os tanques.»
Sim, mas já estivemos a estudar o problema», disse Gordon. «Simplesmente não há maneira de o fazer.
Stern suspirou. «Quanto tempo é que ainda falta?»
O técnico respondeu: «Cínquenta e um minutos e em contagem decrescente.»
00:54:00
Para espanto de Kate, ouviu aplausos do andar inferior. Conseguira fazer o salto; oscilou para a frente e para trás pendurada da viga. E lá em baixo no salão aplaudiam como se tudo aquilo fosse um número de circo.
Rapidamente deu um impulso com as pernas para cima, e trepou para a viga. Na trave que ficava atrás dela, Guy Malegant apressava-se a regressar à viga central. Via-se claramente que tencionava bloquear o seu regresso da trave em que se encontrava.
Ela correu ao longo da viga, de regresso ao centro do tecto. Era mais ágil do que Guy, e conseguiu chegar à ampla trave central muito antes dele. Parou por momentos para se recompor, para decidir o que é que havia de fazer.
O que é que ela ia fazer?
Estava de pé no meio do tecto aberto, agarrando-se a uma viga vertical com duas vezes o diâmetro de um poste telefónico. A peça tinha escoras de suporte que encaixavam diagonalmente em ambos os lados, começando a meio comprimento e ligando-se em seguida ao tecto. Estas escoras estavam tão baixas que, se Guy pretendesse chegar até ela, teria que se pôr de cócoras para contornar a viga.
Kate estava agora de cócoras, vendo como é que seria para contornar a viga. Era difícil e teria que ser feito muito lentamente. Voltou a pôr-se em pé. Ao fazê-lo a mão roçou na adaga. Esquecera-se de que a tinha. Desembainhou-a, empunhando-a à sua frente.
Guy viu o que ela fazia e deu uma gargalhada. A sua gargalhada foi ouvida pela multidão que se encontrava em baixo. Guy gritou-lhes qualquer coisa que os fez rir ainda mais alto.
Ela viu que ele se aproximava e recuou. Estava a dar-lhe espaço para contornar a viga vertical. Tentou parecer aterrorizada - não era difícil - e aninhou-se, a faca tremendo na mão.
Vai tudo ser uma questão de tempo.
Sir Guy fez uma pausa no extremo da viga, observando-a durante alguns momentos. Em seguida baixou-se e começou a tentar contornar a viga. A mão agarrava a madeira, a espada na mão direita temporariamente comprimida contra a viga.
Ela correu em frente e cravou-lhe a adaga na mão, prendendo-a à viga. Em seguida virou-se para o lado oposto da viga e deu-lhe um pontapé nos pés apoiados na viga central. Guy caiu no espaço, ficando pendurado pela mão cravada na madeira. Cerrou os dentes mas não emitiu um único som. Jesus, aqueles tipos eram mesmo duros!
Empunhando ainda a espada, tentou erguer-se de novo para a viga. Mas nessa altura já ela voltara à sua posição original, no outro lado da viga. Os olhos dele encontraram o olhar dela.
Sabia aquilo que ela ia fazer. «Apodrece no inferno», rosnou ele. «Tu primeiro», respondeu ela.
Ela libertou a adaga da madeira. Guy caiu silenciosamente na direcção do solo do salão. A meio caminho embateu num mastro de onde pendia um estandarte; o corpo foi apanhado pela ponta revestída de ferro e por momentos ficou ali pendurado; em seguida o mastro partiu-se e ele foi estatelar-se numa das mesas fazendo voar a louça em todas as direcções. Os convidados recuaram apressadamente. Guy jazia no meio da louça partida. Não se movia.
Oliver apontava para Kate e gritava: «Matem-no! Matem-no!» Os gritos ecoaram em toda a sala. Os arqueiros correram em busca das armas; de cabeça perdida saiu bruscamente do salão levando alguns soldados consigo.
Ela ouvia as criadas, crianças, toda a gente, entoando a mesma cantilena, «Matem-no!» e correu ao longo da trave central dirigindo-se para a parede no outro extremo do salão. Flechas sibilavam à volta dela, cravando-se na madeira com um som cavo, Mas era demasiado tarde; conseguia avistar uma segunda porta na outra parede, idêntica à primeira, e atirou-se contra ela com todas as suas forças abrindo-a de par em par e rastejando para fora do salão, mergulhando na escuridão.
Era um espaço muito apertado. Bateu com a cabeça no tecto e verificou que se tratava do extremo norte do grande salão, conseguindo manter-se de pé e não terminando na muralha do castelo. Além disso...
Empurrou o tecto
para cima. Uma das secções cedeu. Saiu para o telhado e daí trepou facilmente para o passadiço da muralha interior.
Do ponto onde se encontrava conseguia ver perfeitamente que o cerco se encontrava em evolução. Nuvens de setas incendiárias sibilavam por cima da sua cabeça numa trajectória em arco para descerem no pátio mais abaixo. Arqueiros instalados nas edificações ripostavam aos disparos. Canhões instalados nas muralhas estavam a ser carregados com setas de metal, enquanto de Kere caminhava para trás e para a frente ladrando instruções. De Kere não reparou nela.
Voltou-se de costas, fez pressão no ouvido e disse, «Chris?»
De Kere rodou sobre si próprio, a mão comprimindo a orelha. Enquanto se voltava olhava para toda a parte, desde a extensão das muralhas até ao pátio interior.
Era De Kere.
E, nesse momento, de Kere avistou-a. Reconheceu-a de imediato. Kate correu.
Chris disse: «Kate? Estou cá em baixo.» Flechas incendiárias fustigavam o pátio. Acenou para ela no cimo da muralha, mas não tinha a certeza dela o conseguir ver por causa da escuridão.
Ela disse: «É ... » mas o resto perdeu-se na estática. Entretanto ele afastara-se, observando Oliver e quatro soldados atravessarem o pátio, dirigindo-se para uma construção quadrada que ele julgava ser o arsenal.
Chris começou a segui-los de imediato, quando uma bola em chamas caiu aos seus pés, saltou e rolou até parar. Através das chamas conseguia ver que era uma cabeça humana, os olhos abertos, os lábios arreganhados. A carne ardia, a gordura estalava. Um soldado que passava deu-lhe um pontapé como se fosse uma bola de futebol.
Uma das flechas que choviam no pátio passou a roçar-lhe o ombro, deixando atrás de si um rasto de chamas na manga. Sentia o cheiro do breu e o calor no braço e no rosto. Chris atirou-se ao chão mas o fogo não se apagou. Parecia arder sem chama; o calor tornou-se pior. Pôs-se de joelhos e, servindo-se da adaga, abriu o gibão. Sacudiu o vestuário que ardia, atirando-o para o lado. As costas da mão ainda ardiam por causa de pequenas gotas de breu. Esfregou a mão no pó do chão do pátio.
Finalmente o fogo apagou-se.
Erguendo-se de novo, disse: «André? Vou a caminho.» Mas não veio qualquer resposta. Alarmado pôs-se de pé num salto, mesmo a tempo de ver Oliver emergir do arsenal, conduzindo o Professor e Marek à sua frente, enquanto se dirigia para uma porta mais distante na muralha do castelo. Os soldados empurravam-nos com a ponta das espadas. Chris não gostou do aspecto que aquilo estava a tomar. Tinha uma sensação desconfortável de que Oliver se preparava para os matar.
<Kate.>
Sim, Chris.> «Estou a vê-los.» «Onde?» «A caminho daquela porta que fica no canto.»
Começou a seguir atrás deles mas chegou à conclusão de que precisava de uma arma. A poucos pés de distância uma seta incendiária atingiu um soldado nas costas, derrubando-o de rosto para baixo. Chris debruçou-se sobre o homem, tirou-lhe a espada, voltou a erguer-se e seguiu o seu caminho.
«Chris.» Uma voz de homem nos seus auriculares. Uma voz que não era familiar, que não reconheceu. Chris olhou à sua volta mas viu apenas soldados a correrem, setas incendiárias que sibilavam no ar, um pátio em chamas.
«Chris.» A voz era suave. «Aqui.»
Através das chamas viu um vulto escuro que se mantinha imóvel como uma estátua, olhando para ele do outro lado do pátio. Este vulto escuro ignorava o combate que se desenrolava à sua volta. Olhou intensamente para Chris. Era Robert de Kere.
«Chris. Sabes o que é que eu quero?» disse de Kere.
Chris não lhe respondeu. Nervosamente empunhou a espada com mais firmeza, sentindo-lhe o peso. De Kere limitava-se a observá-lo. Soltou um riso abafado. «Vais combater comigo, Chris?»
E então de Kere começou a caminhar na sua direcção.
Chris respirou fundo, não sabendo se havia de ficar ou de correr. E, de repente, uma porta no fundo do grande salão abriu-se violentamente e saiu um cavaleiro de armadura completa, embora sem elmo, rugindo: «Por Deus é o Arcebispo Arnaut!» Reconheceu o cavaleiro elegante, Raimondo. Dúzias de soldados em verde e negro entravam de roldão no pátio, começando a defrontar as tropas de OliVer numa batalha renhida.
De Kere ainda caminhava na sua direcção, mas vendo aquilo deteve-se, não tendo a certeza do que devia fazer com este novo desenvolvimento. De repente, Arnaut agarrou Chris pela garganta, erguendo a espada. Arnaut puxou-o para ele, gritando-lhe. «Oliver! Onde é que está Oliver?»
Chris apontou para a porta que se encontrava mais adiante. «Mostra-me!»
Atravessou o pátio com Arnaut, passando pela porta. Descendo uma escada em caracol, chegaram a uma série de câmaras subterrâneas. Eram amplas e sombrias, com tectos altos e em abóbada.
Arnaut seguia em frente, arrogante, o rosto corado com a fúria. Chris procurava desesperadamente manter o passo. Passaram por uma segunda câmara, vazia como a primeira. Mas agora Chris conseguia ouvír vozes à sua frente. Uma delas parecia a voz do Professor.
00:36:02
Nos monitores da sala de controlo, o campo ondulatório gerado por computador começara a mostrar picos. Mordendo o lábio, Kramer observava os picos, cada vez mais altos e mais largos. Tamborilou com os dedos na mesa. Finalmente disse, «Okay. Pelo menos vamos encher os tanques. Vamos ver como é que eles se comportam.»
«óptimo», disse Gordon, parecendo aliviado. Pegou no rádio e começou a dar ordens aos técnicos que se encontravam em baixo na sala de trânsito. Nos monitores vídeo Stern viu como eram arrastadas enormes mangueiras
para o primeiro dos tanques de blindagem que se encontrava vazio. Homens subiam escadas e ajustavam as uniões. «Acho que é melhor», disse Gordon. «Pelo menos podemos ... »
Stern colocou-se de pé num salto. «Não», disse ele. «Não façam isso.» «0 quê?»
Kramer olhou boquiaberta para ele. «Porquê? O que é que...»
«Não o façam!» disse Stern. Gritava na pequena sala de controlo. No ecrã viam-se os técnicos segurando as uniões nas aberturas de enchimento. «Diz-lhes para pararem! Não deitem água no tanque! Nem uma gota!»
Gordon deu uma ordem no rádio. Os técnicos olharam para cima surpreendidos, mas pararam o trabalho, colocando as mangueiras no chão. «David», disse Gordon suavemente. «Acho que temos ... »
«Não», respondeu Stern. «Não vamos encher os tanques.» «E porque não?»
«Porque vai dar cabo da cola.» «Da cola?»
«Sim», disse ele. «Sei como reforçar os tanques.» Kramer perguntou: «Sabes? Como?»
Gordon voltou-se para os técnicos. «Quanto tempo falta?» «Trinta e cinco minutos.»
Voltou-se para Stern. «Só temos trinta e cinco minutos, David. Agora já não há tempo para fazer o que quer que seja.»
«Há sim», respondeu Stern. «Ainda temos tempo. Se andarmos depressa
como o raio.»
00:33:09
Kate chegou ao pátio central de La Roque, ao lugar onde vira Chris pela última vez. Mas Chris desaparecera.
«Chris?»
Não ouviu qualquer resposta no auricular. E era ele que tinha a cerâmica, pensou.
Por toda a parte no pátio viam-se corpos que ardiam. Correu de corpo em corpo, verificando se algum deles seria o de Chris.
Viu Raimondo que lhe fez um pequeno aceno de cabeça e um gesto com a mão - e em seguida estremeceu. Por momentos pensou que fosse por causa das ondas de calor provocadas pelas chamas, mas em seguida viu Raimondo voltar-se, sangrando do lado. Havia um homem atrás dele atacando-o repetidamente com a espada, ferindo-o no braço, no ombro, no tronco, na perna. Cada um dos golpes era suficiente para ferir, mas não para matar. Raimondo recuou aos tropeções, sangrando abundantemente. O homem avançou, continuando a golpear. Raimondo caiu de joelhos. O homem colocou-se sobre Raimondo, cortando incansavelmente. Raimondo caiu para trás e agora o homem cortava o rosto de Raimondo, golpes em diagonal cortando lábios e nariz, fazendo voar pedaços de carne. O rosto do atacante estava oculto pelas chamas, mas ela ouviu-o dizer: «Bastardo, bastardo, bastardo», a cada golpe que desferia. Verificou que estava a falar em Inglês. E foi então que viu quem era. O atacante era de Kere.
Chris seguiu Arnaut, embrenhando-se cada vez mais nas masmorras. Ouviram vozes ecoando algures à frente. Arnaut movia-se cada vez mais cautelosamente, permanecendo colado às paredes. Finalmente atingiram a última câmara, que era dominada por um enorme poço no solo. Acima do poço, uma enorme gaiola de metal estava suspensa de uma cadeira. O Professor estava no interior, o rosto inexpressivo, enquanto a gaiola era descida por dois soldados que faziam rodar uma manivela. Marek havia sido atirado para a parede mais distante com as mãos amarradas. Dois soldados permaneciam junto dele.
Lord Oliver mantinha-se junto da borda do poço, sorrindo sinistramente enquanto via a gaiola descer. Bebeu por uma taça de ouro e, em seguida, limpou o queixo. «Fiz-vos uma promessa, Magister», disse ele, «e vou cumpri-la.» Para os soldados que faziam rodar a manivela disse: «mais devagar, mais devagar,»
Olhando para Oliver, Arnaut rosnou como um cão raivoso e ergueu a espada. Voltou-se para Chris e sussurrou: «Eu tomo conta de Oliver. Tomai conta dos outros.»
Chris pensou: Os outros? Havia quatro soldados na dependência. Mas não havia tempo para protestar, porque com um grito de fúria, Arnaut avançava correndo enquanto gritava: «Oliver!
Lord Oliver voltou-se ainda com a taça na mão. Com um ar de desdém, observou: «Com que então o porco aproxima-se finalmente.» Atirou a taça para o lado e desembainhou a espada. Instantes depois iniciava-se o combate.
Chris corria agora na direcção dos soldados que se encontravam junto da manivela, não estando muito certo daquilo que havia de fazer; os soldados que se encontravam junto de Marek ergueram as espadas. Oliver e Arnaut combatiam de forma selvagem, as espadas entrechocando-se, praguejando entre cada golpe desferido.
Tudo corria agora demasiado depressa. Marek passou uma rasteira a um dos soldados que se encontrava junto dele e esfaqueou-o com uma faca tão pequena que Chris não a conseguia ver. O outro soldado voltou-se para enfrentar Marek e este deu-lhe um pontapé tão violento que ele recuou aos tropeções, chocando com a manivela e ficando prostrado no solo.
Sem se esperar, a manivela começou a rodar mais depressa. Havia um mecanismo qualquer de rodas dentadas que produzia um enorme ruído, mas não havia a menor dúvida de que se movia muito mais rapidamente. Chris viu a gaiola do Professor descer abaixo do nível do solo, desaparecendo dentro do poço.
Nessa altura Chris chegara junto do primeiro dos soldados, que estava de costas voltadas para ele. O homem começou a voltar-se e Chris desferiu-lhe um golpe, ferindo-o gravemente. Desferiu-lhe um segundo golpe; o homem caiu.
Agora restavam apenas dois soldados. Marek, com os pulsos ainda atados, recuava de um deles, baixando-se para evitar a lâmina que sibilava à sua volta. O segundo soldado manteve-se junto da manivela. Tinha a espada desembainhada e estava pronto para combater. Chris atacou; o homem parou o golpe facilmente. Nessa altura Marek, que recuava em círculo, chocou com o soldado que se voltou instantaneamente. Marek gritou, «Agora!» e Chris cravou-lhe a espada. O homem caiu no solo.
A manivela ainda rodava. Chris agarrou-a, para logo em seguida saltar para o lado, quando a espada do quarto soldado desceu como um raio, desferindo faíscas ao embater no ferro. A gaiola mergulhou ainda mais. Chris recuou. Marek estendia os pulsos amarrados na direcção de Chris; mas Chris não tinha a certeza de ser capaz de controlar a espada. Marek gritava, «Fá-lo!» e Chris desferiu o golpe; a corda desfez-se e, nesse momento, o quarto soldado estava sobre ele. O soldado lutava com a fúria de um homem encurralado; Chris foi golpeado no antebraço ao recuar. Chegou à conclusão de que estava em apuros quando de repente o seu atacante olhou para baixo horrorizado, vendo a ponta sangrenta de uma espada que lhe saía do abdômen. O soldado caiu no solo e Chris viu Marek empunhando a lâmina.
Chris correu para o guincho. Agarrou a manivela e conseguiu deter a descida. Agora conseguia ver que a gaiola se encontrava quase totalmente mergulhada na água oleosa. A cabeça do Professor estava pouco acima da água. Mais uma volta de manivela e teria ficado completamente submerso.
Marek veio ter com ele e juntos começaram a rodar a manivela fazendo subir a gaiola. Chris perguntou: «Quanto tempo é que falta?»
Marek olhou para o contador. «Vinte e seis minutos.»
Entretanto Arnaut e Oliver continuavam a sua luta; encontravam-se agora num canto escuro dos calabouços, e Chris conseguia distinguir as centelhas produzidas pelas espadas quando se entrechocavam,
A gaiola foi-se elevando no ar escorrendo água. O Professor sorriu para Chris. «Sempre pensei que chegavas a tempo», disse.
As barras negras da gaiola estavam escorregadias nas mãos de Chris, quando ele empurrava a gaiola acima de si, afastando-a do poço. Limos e água negra escorriam para o chão sujo dos calabouços, deixando pequenos charcos. Chris regressou à manivela; ele e Marek fizeram descer a gaiola até a apoiarem no solo. O Professor estava encharcado, mas parecia aliviado por estar de novo em terreno firme. Chris voltou-se para abrir a porta da gaiola, mas viu que estava fechada. Via-se um pesado cadeado de ferro do tamanho do punho de um homem.
«Onde é que está a chave?» Perguntou Chris voltando-se para Marek. «Não faço a menor ideia», disse Marek. «Estava no chão quando o puseram dentro da gaiola. Não vi o que é que se passou.»
«Professor?» johnston abanou a cabeça. «Não tenho a certeza. Estava a olhar para ali.» Acenou com a cabeça na direcção do poço.
Marek desferiu um golpe de espada no cadeado. Voaram centelhas mas o cadeado era sólido; a espada apenas o arranhou. «Isto nunca vai funcionar», disse Chris. «Precisamos da porra da chave, André.»
André voltou-se e olhou à sua volta inspeccionando os calabouços. Chris perguntou: «Quanto tempo falta?»
«Vinte e cinco minutos.»
Abanando a cabeça, Chris dirigiu-se para o soldado mais próximo e começou a revistá-lo.
00:21:52
Na sala de controlo, Stern via os técnicos mergulharem a pálida membrana de borracha num balde de cola, para em seguida a colocarem ainda a escorrer, dentro da abertura do escudo de vidro. Em seguida ligaram um tubo de ar comprimido e a borracha começou a expandir-se. Por momentos foi possível ver que era um balão meteorológiCO, mas em seguida continuou a expandir-se
tornando-se mais fina, ficando translúcida, assumindo a forma curva do escudo de vidro, até ter atingido todos os cantos do contentor. Em seguida fecharam-na, dispararam um cronómetro e aguardaram até a cola endurecer.
Stern perguntou, «Quanto tempo falta?»
«Mais vinte e um minutos.» Gordon apontou para os balões. «É um dispositivo caseiro, mas funciona.»
Stern abanou a cabeça. «Há uma coisa que não me tem saído da mente nesta última hora.>
«0 que é?»
«As descargas», respondeu. «Não me sai da cabeça, o que é que estamos a tentar evitar aqui? E a resposta é, descargas. Como acontece com um carro, quando os pneus se esvaziam. E continuo a pensar nos problemas dos carros. E parecia estranho, porque agora as descargas são extremamente raras. Nos carros novos dificilmente se encontram. Porque os novos pneus têm uma membrana interior que é auto-selante.» Deu um suspiro. «Não me sai da cabeça porque é que esta coisa especial me martelava o cérebro e finalmente cheguei à conclusão de que era esse o ponto fundamental: também havia uma maneira de construir aqui uma membrana.»
«Isto não é auto-selante», disse Kramer.
«Não», disse Gordon, «mas aumenta a espessura do vidro e distribui a tensão.»
«Certo», respondeu Stern.
Os técnicos haviam colocado balões em todos os tanques e tinham-nos tapado. Agora estavam à espera de que a cola endurecesse. Gordon olhou de relance para o relógio. «Mais três minutos.»
«E a seguir quanto tempo para cada tanque?»
«Seis minutos. Mas conseguimos fazer dois tanques ao mesmo tempo.» Kramer respirou fundo. «Dezoito minutos. Mesmo à tagente.»
«Vamos conseguir», disse Gordon. «Sempre conseguimos bombear a água mais depressa.»
«E a tensão não irá colocar os tanques em maior risco?» «Eu sei. Mas conseguimos fazê-lo se for preciso.»
Kramer olhou de novo para o monitor, onde o campo continuava a ondular. Mas os picos agora eram mais nítidos. Ela perguntou: «Porque é que as ondas de interferência estão a mudar?»
«Não estão», respondeu Gordon sem olhar para trás.
«Ah isso é que estão», disse ela. «Os picos estão a ficar mais pequenos.» «Mais pequenos?»
Gordon aproximou-se para observar. Franziu as sobrancelhas ao olhar para o ecrã. Viam-se quatro picos, depois três e finalmente dois. Em seguida quatro de novo. «Não te esqueças de que aquilo que estás a ver é na verdade uma função de probabilidade», respondeu. «As amplitudes de campo reflectem a probabilidade de que o acontecimento irá ter lugar.»
«Em inglês?»
Gordon não tirava os olhos do ecrã. «Do lado deles deve ter acontecido qualquer coisa de errado. E, seja o que for, alterou as probabilidades que eles tinham de regressar.»
00:15:02
Chris estava a suar. Resmungava quando teve que voltar o corpo inerte do soldado para continuar a sua busca. Passara minutos de grande tensão revistando os uniformes em castanho e cinzento dos dois soldados mortos, numa tentativa de encontrar a chave. As túnicas eram longas e por debaixo delas os soldados usavam camisas interiores acolchoadas; no seu conjunto, uma grande quantidade de pano. Embora isso não quisesse dizer que a chave podia ser facilmente escondida. Chris sabia que o cadeado da gaiola teria uma chave com várias polegadas de comprimento e seria em ferro.
Mas Chris não a conseguia encontrar. Nem no primeiro soldado, nem no segundo. Praguejando pôs-se de pé.
No outro lado dos calabouços, Arnaut continuava o seu combate com Oliver; o entrechocar das espadas continuava incansavelmente, num ruído metálico firme. Marek continuava ao longo das paredes, segurando a rocha, investigando os cantos escuros do calabouço. Mas também ele parecia não estar a ter sucesso.
Chris quase que conseguia ouvir na sua cabeça o tiquetaque do relógio. Olhou à sua volta, tentando adivinhar onde é que a chave poderia estar escondida. Infelizmente chegou à conclusão de que poderia ser em qualquer parte: pendurada na parede ou enfiada na base de um dos candelabros. Dirigiu-se para o guincho e analisou o mecanismo. E finalmente encontrou-a - uma enorme chave de ferro no chão junto do guincho. «Já cá canta!»
Marek olhou para cima, e em seguida deu uma vista de olhos ao seu contador de pulso, enquanto Chris se dirigia em corrida na direcção da gaiola para inserir a chave. A chave entrou de imediato, mas não conseguia rodar.
Inicialmente chegou a pensar que o mecanismo estivesse emperrado, mas ao fim de trinta segundos agonizantes de esforço, viu-se forçado a concluir que afinal de contas aquela não era a chave. Sentindo-se impotente e irritado, atirou a chave para o tecto. Voltou-se para o Professor fechado atrás das grades. «Lamento», disse Chris, «sinceramente peço desculpa.»
Como sempre, o Professor mantinha-se imperturbável. «Estíve a pensar, Chris», disse ele, «precisamente em tudo aquilo que se passou.»
acho que era Oliver que a tinha», disse o Professor. «Foi ele que me fechou. Julgo que foi ele que guardou a chave.»
«OliVer?» Do outro lado da sala Oliver continuava a lutar, embora agora fosse evidente que estava a perder, Arnaut era melhor espadachim e Oliver estava embriagado e sem fôlego. Sorrindo sinistramente, Arnaut foi empurrando OliVer com golpes medidos até à borda do poço. Chegado ali Oliver, arquejante e a suar, inclinou-se no rail de protecção, demasiado exausto para continuar.
Suavemente Arnaut colocou-lhe a ponta da espada no pescoço. «Misericórdia.» Oliver disse arquejante. «Peço misericórdia.» Arnaut lentamente foi pressionando com a espada. Oliver tossiu,
«Meu Senhor Arnaut», disse Marek adiantando-se. «Precisamos da chave da gaiola.»
«Eh? Chave? Da gaiola?»
Arquejante, Oliver sorriu. «Sei onde é que ela está.» Arnaut espetou mais a espada. «Falai.»
OliVer abanou a cabeça. «Nunca.»
«Se nos disserdes», disse Arnaut, «poderei poupar-vos a vida.» Ouvindo isto, Oliver ergueu um olhar atento. «Falais verdade?»
«Não sou nenhum inglês traidor de duas caras», disse Arnaut. «Dai-nos a chave e juro como verdadeiro fidalgo de França que não vos matarei.» Arquejante, OlIVer olhou para Arnaut durante vários segundos. Finalmente
ergueu-se novamente e disse: «Muito bem.» Atirou a espada para o solo, procurou debaixo das vestes e tirou uma pesada chave de ferro. Marek pegou nela. Oliver voltou-se para Arnaut. «Como vedes, cumpri a minha parte. Sois um homem de palavra?»
«De facto», disse Arnaut, «não vos matarei.» Avançou rapidamente e agarrou os joelhos de Oliver. «Vou dar-vos um banho.»
E empurrou Oliver sobre o rail, fazendo-o cair no poço. Oliver mergulhou na água negra que se encontrava em baixo; veio à tona cuspindo. Praguejando, nadou para uma das partes laterais do poço e estendeu a mão, procurando agarrar-se às rochas. Mas as rochas em volta do poço estavam escuras com os limos. As mãos de Oliver escorregaram. Não conseguia firmar-se. Engoliu água enquanto chapinhava atabalhoadamente à superfície. Ergueu o olhar para Arnaut e praguejou.
Arnaut disse: «Nadais bem?»
«Muito bem, filho de um porco francês.»
«óptimo», disse Arnaut. «Então o vosso banho irá demorar algum tempo.»
E afastou-se do poço. Com um aceno de cabeça na direcção de Chris e Marek, disse: «Estou em dívida para convosco. Que Deus vos conceda a Sua Misericórdia todos os dias da vossa vida.» E dito isto, correu rapidamente para se reunir de novo à batalha. Ouviram o ruído dos seus passos a desvanecer-se ao longe.
Marek abriu o cadeado e a porta abriu-se com um rangido. O Professor saiu da gaiola. Perguntou, «Quanto tempo?»
«Onze minutos», respondeu Marek.
Saíram apressadamente dos calabouços. Marek coxeava, mas mesmo assim conseguia mover-se rapidamente. Atrás deles ouviam Oliver que chapinhava na água.
«Arnaut!», gritou Oliver, a voz ecoando nas escuras paredes de pedra. «Arnaut!».
00:09:04
As amplas janelas no outro extremo da sala de controlo deixavam ver os técnicos a encherem os escudos com água. Os escudos estavam a aguentar perfeitamente. Mas ninguém na sala de controlo estava a olhar para os escudos. Em vez disso olhavam silenciosamente para o monitor da consola, observando as ondulações do trémulo campo gerado por computador. Durante os últimos dez minutos os picos haviam-se tornado nitidamente mais baixos, até que agora tinham quase desaparecido; quando às vezes apareciam eram apenas ondulações ocasionais na superficie.
Mesmo assim continuavam a observar.
Por momentos as ondulações pareceram tornar-se mais fortes, mais definidas. «Está a acontecer alguma coisa?» perguntou Kramer num tom de esperança.
Gordon abanou a cabeça. «Acho que não. Julgo que são apenas flutuações aleatórias.»
«Julguei que se estivesse a tornar mais acentuado disse Kramer.
Mas Stern podia ver que não era verdade. Gordon tinha razão; a mudança era apenas aleatória. A ondulação no ecrã continuava intermitente, instável. «Qualquer que seja o problema do lado de lá», disse Gordon, «ainda continuam com ele.»
00:05:30
Através das chamas que se erguiam no pátio central de La Roque, Kate viu o Professor e os outros saírem de uma porta distante. Correu para eles. Parecia que todos estavam bem. O Professor fez um aceno de cabeça na sua direcção. Moviam-se todos rapidamente.
Kate perguntou a Chris: «Tens a cerâmica?»
«Tenho. Está aqui.» Tirou-a do bolso, voltando-a para premir o botão. «Não há espaço suficiente.»
«Há espaço ... » disse Chris.
«Não. Precisas de dois metros de lado ou já te esqueceste?»
Estavam rodeados pelas chamas. «Nunca serás capaz de encontrar isso neste Pátio», disse Marek.
«É verdade», disse o Professor. «Temos que sair para o pátio seguinte.» Kate olhou em frente. O portão que dava para o pátio exterior encontrava-se a trinta metros de distância. Mas na casa da guarda a barreira estava levantada. De facto dava a impressão de que ninguém estava a guardar a entrada; os soldados tinham saído para combater os intrusos.
«Quanto tempo?» «Cinco minutos.»
Okay», disse o Professor. «Toca a mexer.»
Moveram-se em passo de corrida através do pátio em chamas, ladeando os incêndios e os soldados em combate. O Professor e Kate seguiam à frente.
Marek, fazendo caretas por causa da dor na perna, seguia atrás. E Chris, preocupado com Marek, seguia em último lugar.
Kate alcançou o primeiro portão. Não havia qualquer guarda. Passaram o portão entre os espigões da barreira levantada. Entraram no pátio intermédio. «Oh, não», exclamou Kate.
Todos os soldados de Oliver se encontravam agrupados no pátio intermédio, e parecia haver centenas de cavaleiros e pajens correndo de um lado para o outro, gritando para os homens nas muralhas, transportando armas e provisões.
«Aqui não há espaço», disse o Professor. «Temos que passar o portão seguinte. Sair para fora do castelo.»
Marek chegou a coxear, arquejante. Olhou de relance para o pátio e disse: «Passadiço.»
«Sim», disse o Professor acenando com a cabeça. Apontou para a parte superior das muralhas. «0 passadiço.»
O passadiço era uma passagem fechada construída em madeira, construída na parte exterior das muralhas. Era uma plataforma de combate coberta, que permitia aos soldados dispararem contra as tropas atacantes. Podiam conseguir deslocar-se ao longo do passadiço até atingirem o extremo oposto do pátio e o portão mais distante.
Marek disse: «Onde é que está Chris?» Olharam para trás na direcção do pátio central. Não o viam em parte nenhuma.
Chris mantivera-se atrás de Marek pensando que talvez tivesse que o carregar e perguntando a si próprio se seria capaz, quando de repente foi empurrado para o lado, atirado nitidamente contra a muralha. Ouviu uma voz atrás dele dizer em perfeito inglês: «Tu não pá. Ficas aqui.» E sentiu a ponta de uma espada pressionada contra as suas costas.
Voltou-se para ver Robert de Kere na sua frente, empunhando a espada. De Kere agarrou-o rudemente pela gola, empurrando-o contra outra parede. Chris verificou alarmado que se encontravam na parte de fora do arsenal. Com o pátio em chamas não era o local ideal para estarem.
De Kere parecia não se preocupar. Sorriu. «Para dizer a verdade», disse, «nenhum de vocês, seus filhos da mãe vão a qualquer lado.»
«Porquê isso tudo?» disse Chris, não tirando os olhos da espada. «Porque tens o marcador deles, parceiro.»
«Não, não tenho.»
«Não te estás a esquecer de que posso ouvir as vossas transmissões, pois não?» De Kere estendeu a mão. «Vá lá, dá-me o marcador.»
Agarrou Chris mais uma vez e empurrou-o pela porta. Chris entrou aos tropeções no arsenal. Agora estava vazio, todos os soldados tinham fugido. A toda a volta viam-se empilhados sacos de pólvora. As bacias onde os soldados tinham estado a moer o pó ainda se encontravam no solo.
«0 filho da puta do teu Professor», disse de Kere quando viu as bacias. «Com a mania de que sabe tudo. Dá-mo.»
Chris procurou atabalhoadamente debaixo do gibão, procurando a bolsa. De Kere estalou os dedos impacientemente. «Vá lá, vá lá, mexe-te.»
«Só um minuto», disse Chris.
«Raios vos partam», exclamou de Kere. «Exactamente como Doniger. Sabes o que é que Doniger disse? Não te preocupes Rob, estamos a desenvolver uma nova tecnologia que vai resolver o teu problema. É sempre a nova tecnologia que resolve a porra dos problemas. Mas não desenvolveu qualquer nova tecnologia. Nunca o tencionou fazer. Estava apenas a mentir, como aliás faz sempre. A porra da minha cara.» Tocou na cicatriz que descia até ao centro do rosto. «Dói-me continuamente. Qualquer coisa sobre os ossos. É uma dor insuportável. E o meu interior está numa confusão incrível. As dores nunca passaram.
De Kere estendeu a mão com a palma para cima em tom irritado. «Ou me dás isso ou mato-te já aqui.»
Chris sentiu os dedos tocarem na lata. A que distância é que o gás funcionaria? Não à distância de uma espada. Mas não havia qualquer alternativa. Chris respirou profundamente e projectou o gás. De Kere tossiu, mais irritado do que surpreendido, e avançou para ele. «Seu filho da mãe», disse. «Achas que isso foi uma grande ideia? Uma verdadeira maldade. Rapazinho esperto.» Espetou Chris com a espada, fazendo-o recuar. Chris recuou.
«Por causa dessa gracinha vou abrir-te de alto a baixo e deixar-te ver as tripas saírem cá para fora.» E deu um golpe de baixo para cima, mas Chris evitou facilmente o ataque e pensou, parece que está a fazer efeito. Voltou a pulverizar, mais perto do rosto de de Kere e em seguida baixou-se quando a espada descreveu um arco e caiu no chão, derrubando uma das bacias.
De Kere cambaleou, mas conseguiu aguentar-se de pé. Chris pulverizou uma terceira vez e de Kere ainda conseguiu arranjar forças para se manter de pé. Desferiu um novo golpe, a lâmina sibilando; Chris tentou evitar o golpe, mas a lâmina fez-lhe um golpe no braço acima do cotovelo direito. O sangue começou a escorrer da ferida, pingando no solo. A lata caiu-lhe da mão.
De Kere sorriu sinistramente. «Os truques aqui não fazem efeito», disse. «Isto é que é real. Uma verdadeira espada. Agora observa o que se vai passar, parceiro.»
Preparou-se para desferir um novo golpe. Ainda estava cambaleante mas ficando cada vez mais forte. Chris baixou-se quando a lâmina zumbiu sobre a sua cabeça e se cravou nos sacos de pó que se encontravam empilhados. O ar ficou cheio de partículas cinzentas. Chris recuou novamente e, desta vez, sentiu que o pé tocava numa das bacias que se encontrava no solo. Ia dar-lhe um pontapé quando sentiu o peso com o pé. Não era uma das bacias de pó, tratava-se de uma pasta espessa. E tinha um cheiro desagradável. Reconheceu-o imediatamente: era o cheiro de cal viva.
O que queria dizer que a bacia aos seus pés estava cheia de um fogo automático.
Rapidamente Chris baixou-se e agarrou a bacia com ambas as mãos. De Kere fez uma pausa.
Sabia o que era.
Chris aproveitou o momento de hesitação e atirou a bacia directamente ao rosto do adversário. Atingiu-o no peito, a pasta castanha espalhando-se pelo rosto, braços e corpo.
De Kere rugiu.
Chris precisava de água. Onde é que estava a água? Olhou em volta, desesperado, mas soube a resposta de imediato: não havia água naquela sala. Agora encontrava-se encurralado num canto. De Kere sorriu. «Não tens água?» perguntou. «É uma pena, rapazinho malandro.» Segurou a espada horizontalmente à sua frente e avançou. Chris sentiu a pedra nas costas e soube de imediato que estava acabado. Pelo menos os outros podiam salvar-se.
Viu de Kere aproximar-se, lentamente, cheio de confiança. Conseguia sentir o hálito de de Kere; estava suficientemente perto para cuspir nele. Cospe nele.
No instante em que pensou nisso, Chris cuspiu em de Kere - não no rosto, mas no peito. De Kere bufou, enojado: o miúdo nem sequer era capaz de cuspir. Nos pontos em que o cuspo tocou na pasta, começou a fumegar e a crepitar.
De Kere olhou para baixo, horrorizado.
Chris cuspiu de novo. E mais uma vez.
O silvar era cada vez mais alto. Viram-se as primeiras centelhas. Dentro de momentos de Kere iria ficar envolto pelas labaredas. Em pânico de Kere esfregou a pasta com os dedos, mas só conseguiu espalhá-la mais; agora fervia e crepitava nos dedos, por causa da humidade da própria pele.
«Vê as coisas acontecerem, parceiro», disse Chris.
Correu para a porta. Atrás dele ouviu um whump quando de Kere se incendiou. Chris olhou para trás vendo a parte superior do corpo do cavaleiro envolta em chamas. De Kere olhava para ele através das chamas.
Então Chris começou a correr. Correu tão depressa quanto podia. Fugindo do arsenal.
Na porta do meio os outros avistaram-no a correr na direcção deles. Agitava as mãos. Não compreenderam porquê. Ficaram no centro da passagem, esperando que ele chegasse junto deles.
Estava a gritar, «Vão, vão!» e fazendo gestos para se moverem, virando a esquina. Marek olhou para trás e viu chamas que começavam a sair das janelas do arsenal.
«Mexam-se!» disse. Empurrou os outros através do portão, passando para o pátio seguinte.
Chris estava a passar o portão em corrida quando Marek lhe agarrou no braço, obrigando-o a abrigar-se, no instante exacto em que o arsenal explodiu. Uma enorme esfera de chamas ergueu-se acima das muralhas; todo o pátio estava inundado por uma luz ofuscante. Soldados, tendas e cavalos eram derrubados pela onda de choque. Havia fumo e confusão por toda a parte.
«Esqueçam o passadiço», disse o Professor. <,Vamos embora.» E correram a direito atravessando o pátio. Conseguiam ver o portão final mesmo à sua frente.
00:02:22
Na sala de controlo ouviam-se gritos e vivas. Kramer dava saltos. Gordon dava palmadas nas costas de Stern. O monitor mostrava de novo flutuações de campo. Intensas e potentes.
«Estão de volta a casa!» gritou Kramer.
Stern olhou para os ecrãs, onde se viam os tanques na sala em baixo. Os técnicos já tinham acabado de encher com água alguns dos escudos, e estes estavam a aguentar. Os tanques restantes ainda estavam a ser cheios, embora o nível de água estivesse quase no topo.
«Quanto tempo?» disse ele. «Dois minutos e vinte.»
«Quanto tempo falta para encher os tanques?» «Dois minutos e dez.»
Stern mordeu o lábio. «Achas que vamos conseguir?» «Podes apostar o coiro», disse Gordon.
Stern voltou a observar as flutuações de campo. Tornavam-se cada vez mais fortes e mais nítidas, com as cores falsas a reflectirem-se nos picos. O instável pico principal estava agora estável, salientando-se da superficie, tomando forma. «Quantos é que estão de volta?» perguntou ele. Mas sabia a resposta antecipadamente, porque o pico principal se estava a dividir em cristas separadas. «Três», disse o técnico. «Parece que estão três de volta.»
00:01:44
O portão final estava fechado: a pesada grade da passagem estava descida e a ponte levadiça tinha sido levantada. Cinco guardas jaziam agora no solo e Marek estava a levantar a grade para que pudessem passar. Mas a ponte levadiça ainda estava fechada.
«Como é que conseguimos abrir esta história?» perguntou Chris.
Marek olhava para as correntes que entravam na própria casa da guarda. «Ali», disse ele, apontando para cima. Havia um mecanismo no andar de cima. «Vocês ficam aqui», disse Marek. «Eu trato disso.»
«Volta depressa», disse Kate.
«Não te preocupes. É isso que farei.»
Subindo uma escada em espiral, Marek entrou numa pequena sala de pedra, estreita e nua e dominada pelo guincho de ferro que fazia subir a ponte levadiça. Dentro viu um homem de idade, de cabelos brancos, tremendo de medo enquanto segurava uma barra de ferro nos elos da corrente. Esta barra de ferro mantinha a ponte levadiça fechada. Marek empurrou o velho para o lado e tirou a barra de ferro. A corrente moveu-se com estrépito; a ponte levadiça começou a descer. Olhou para o contador e sentiu-se em pânico quando viu
00:01:19.
«André.» Ouviu Chris nos auriculares. «Anda-te embora.»
«Estou a caminho.»
Marek voltou-se para sair, Nessa altura ouviu o som de passos em corrida e chegou à conclusão de que havia soldados no tecto da casa da guarda, que vinham a descer para ver porque é que a ponte levadiça estava a ser descida.
Se saísse agora da sala, iriam de imediato impedir que a ponte levadiça continuasse a descer.
Marek sabia o que é que isso queria dizer. Tinha que ficar durante mais tempo.
Em baixo, ao ar livre, Chris observava a ponte enquanto ela descia, com as cadeias a produzirem um som metálico. Através da abertura conseguia ver o céu escuro e as estrelas. Chris repetiu: «André, anda embora.>
«Há aqui soldados.> «E depois?»
«Tenho que ficar de guarda à corrente.»
«0 que é que queres dizer?», perguntou Chris.
Marek não respondeu. Chris ouviu um resmungo e um grito de dor. Marek estava lá em cima a lutar. Chris observava a ponte que continuava a descer. Olhou para o Professor. Mas o rosto do Professor continuava inexpressivo.
Mantendo-se no final das escadas que vinham do telhado, Marek ergueu a espada. Matou o primeiro soldado quando surgiu. Matou também o segundo soldado, empurrando os corpos com o pé quando caíram e mantendo o soalho limpo. Os outros soldados detiveram-se em confusão e ouviu murmúrios e sinais de consternação.
A corrente da ponte levadiça ainda chocalhava. A ponte levadiça continuava a descer.
«André, anda-te embora.»
Marek olhou para o contador. Indicava 00:01:04. Naquele instante pouco mais de um minuto. Olhando pela janela viu que os outros não tinham esperado que a ponte levadiça estivesse completamente descida; correram para a rampa em declive e saltaram para o campo no exterior do castelo. Agora quase que não os conseguia distinguir na escuridão.
«André.» Era Chris mais uma vez. «André.»
Outro homem desceu as escadas e Marek desferiu um golpe com a espada, atingindo o guincho e espalhando centelhas. O homem recuou apressadamente, gritando e empurrando os outros.
«André, corre.» disse Chris. «Ainda tens tempo.»
Marek sabia que era verdade. Ainda era capaz de o fazer. Se saísse agora os homens não seriam capazes de erguer a ponte levadiça antes dele conseguir sair em corrida, saltando para o campo onde já se encontravam os outros.
Sabia que estavam lá fora, esperando por ele. Os seus amigos. Esperando para regressarem todos juntos.
Quando se voltou para descer as escadas o seu olhar caiu no velho, ainda encolhido a um canto. Marek pensou como é que seria viver toda uma vida num mundo como aquele. Viver e amar, constantemente em risco, com doenças e fome, morte e assassínios. Como é que seria manter-se vivo num mundo daqueles.
«André. Vens ou não vens?» «Não há tempo disse Marek. «André.»
Olhou lá para fora para a planície e viu sucessivos flashes de luz. Estavam a chamar as máquinas. Preparando-se para partir.
As máquinas encontravam-se lá. Mantinham-se todos nas plataformas. Vapor frio libertava-se das bases, rastejando em espirais ao longo da relva escura.
Kate disse: «André, anda-te embora.»
Houve um curto silêncio. Em seguida: «Eu não me vou embora», disse Marek.. «Eu fico aqui.»
«André, não estás a pensar com a cabeça.» «Podes crer que sím.»
Ela perguntou: «Estás a falar a sério?»
Kate olhou para o Professor. Limitou-se a acenar lentamente com a cabeça. «Sempre quis isto durante toda a sua vida.»
Chris enfiou o marcador de cerâmica na fenda que se encontrava a seus pés.
Marek olhou pela janela da casa da guarda. «Hey, André.» Era Chris.
«Até à vista Chris.» «Toma conta de ti.»
«André.» Era Kate. «Não sei o que é que hei-de dizer.» «Adeus, Kate.»
Finalmente ouviu o Professor dizer: «Adeus, André.» «Adeus», disse Marek.
No auricular, ouviu uma gravação, «Não mexam - olhos abertos - respirem fundo - aguentem - Agora!»
Na planície viu um flash brilhante de luz azul. Em seguida houve outro e mais outro, diminuindo de intensidade, até que não havia mais nada.
Doniger andava de um lado para o outro no palco às escuras. No auditório, os três executivos da corporação sentavam-se em silêncio enquanto olhavam para ele.
«Mais cedo ou mais tarde», disse, «o artífice do entretenimento - entretenimento constante, sem parar - levará as pessoas a procurarem a autenticidade. Autenticidade passará a ser a palavra chave do século vinte e um. E o que é autêntico? Tudo aquilo que não é controlado por corporações. Tudo aquilo que não é projectado e estruturado para conseguir lucro. Tudo aquilo que existe por si próprio, que assume a sua própria forma. E o que é mais autêntico de tudo? O passado.
«0 passado é um mundo que já existiu antes da Disney e de Murdoch, da British Telecom e da Nissan, da Sony e da MM, e de todos os outros formadores do presente. O passado esteve aqui antes de nós termos estado. O passado surgiu e desapareceu sem a sua intrusão e modelagem. O passado é real. É autêntico. E isto irá tornar o passado incrivelmente atraente. Porque o presente é a única alternativa para o passado corporativo.
«0 que é que as pessoas irão fazer? já o estão a fazer. Actualmente o segmento de viagens de crescimento mais rápido é o turismo cultural. Pessoas que querem visitar não outros lugares, mas outros tempos. Pessoas que querem mergulhar em cidades medievais rodeadas de muralhas, em enormes templos budistas, em cidades de pirâmides maias, em necrópoles egípcias. Pessoas que querem andar e permanecer no mundo do passado. O mundo desaparecido.
«E não querem que tudo isso seja falso. Não querem que seja alindado ou limpo. Querem que seja autêntico. Quem é que poderá garantir essa autenticidade? Quem é que se tornará na marca registada do passado? A ITC.
«Irei demonstrar-lhes dentro em pouco», disse ele, «os nossos planos para o turismo cultural nos locais de todo o mundo. Irei concentrar-me num deles existente em França, mas também temos muitos outros. Em todos os casos entregamos sempre o projecto ao governo do país. Mas possuímos o terreno envolvente, o que quer dizer que seremos donos dos hotéis e restaurantes e lojas, todo o aparelho do turismo. Isto para não falar dos livros e filmes, guias, costumes e tudo o resto. Os turistas pagarão dez dólares para entrarem no local. Mas gastarão quinhentos dólares em custos de estadia fora dele. Tudo isso será controlado por nós.» Sorriu. «Para ter a certeza de que tudo isso será realizado convenientemente, como se compreende.»
Um gráfico foi projectado atrás dele.
«Calculamos que cada um dos locais irá gerar mais de dois biliões de dólares por ano, incluindo o merchandising. Calculamos que o rendimento total das companhias irá gerar mais de cem biliões de dólares por ano ao atingir a segunda década do século que vai entrar. É esta uma das razões para assumirmos estes compromissos.
«A outra razão é mais importante. Sob a aparência do turismo, estamos com efeito a construir uma marca registada intelectual. Tais marcas já existem em termos de software, por exemplo. Mas não existe nenhuma quando falamos de história. E, no entanto, a História é a mais poderosa ferramenta intelectual que a sociedade possui. Sejamos claros. A História não é um registo desapaixonado de acontecimentos mortos. Nem se trata de um recreio para académicos permitindo as suas disputas triviais.
«A finalidade da História é de explicar o presente - para dizer que o mundo à nossa volta é como é. A História diz-nos aquilo que é importante no nosso mundo e como é que isso aconteceu. Diz-nos porque é que as coisas que valorizamos são as que devíamos valorizar. E diz-nos aquilo que deve ser ignorado ou desprezado. Isto é o verdadeiro poder - um poder profundo. O poder para definir toda uma sociedade.
«0 futuro assenta no passado - em quem quer que controle o passado. Um tal controlo nunca antes havia sido possível. Agora é. Nós na ITC queremos assistir os nossos clientes na formação do mundo em que todos nós vivemos, trabalhamos e consumimos. E ao fazermos isso, acreditamos que iremos ter o vosso total e incondicional apoio.»
Não houve qualquer aplauso, apenas um silêncio de gelo. Esse foi o modo como sempre aconteceu. Levou-lhes algum tempo para compreender aquilo que ele estava a dizer. «Obrigado pela vossa atenção», disse Doniger, e saiu do palco a passos largos.
«É melhor que seja importante», disse Doniger. «Não gosto de interromper uma sessão desta maneira.»
«É importante», disse Gordon. Caminhavam ao longo do corredor na direcção da sala das máquinas.
«Estão de volta?»
«Acho que sim. Temos as blindagens a funcionar e três deles estão de volta.» «Quando?»
«Há cerca de quinze minutos.» «E?»
«Passaram por muito. Um deles está bastante ferido e vai precisar de hospitalização. Os outros dois estão bem.»
«E depois? Qual é o problema?» Passaram a porta.
«Querem saber», disse Gordon, «porque é que a ITC não lhes contou os seus planos.»
«Porque não têm nada a ver com isso.» Respondeu Doniger. «Arriscaram as vidas... »
«Ofereceram-se como voluntários.» «Mas eles ... »
«Oh, que se fodam», explodiu Doniger. «Porquê toda esta súbita preocupação? Quem é que se preocupa? Não passam de um bando de historiadores - de qualquer modo, vão todos perder o trabalho, a não ser que estejam na disposição de trabalhar para mim.»
Gordon não respondeu. Estava a olhar por cima do ombro de Doniger. Este voltou-se lentamente.
Johnston estava ali de pé, e a rapariga, que agora tinha o cabelo cortado muito curto, e um dos homens. Estavam sujos, em farrapos e cobertos de sangue. Estavam junto a um monitor vídeo que mostrava o auditório. Os executivos estavam agora a deixar o auditório e o palco continuava vazio. Mas deviam ter ouvido o discurso, pelo menos parte disso.
«Muito bem», disse Doniger, sorrindo repentinamente. «Sinto-me muito contente por estarem de volta.»
«Também nós», disse Johnston. Mas não sorriu. Ninguém falou.
Limitaram-se a olhar para ele intensamente.
«Oh, vão todos para o raio que os parta», disse. Voltou-se para Gordon. «Porque é que me trouxe para aqui? Porque os historiadores estão preocupados? Este é o futuro, gostem ou não gostem. Não tenho tempo para esta merda. Tenho uma companhia para dirígir.»
Mas Gordon tinha um pequeno cilindro de gás na mão. «Houve algumas discussões, Bob», disse. «Julgo que a partir de agora a companhia deverá ser dirigida por alguém mais moderado.»
Ouviu-se um silvo. Doniger sentiu um cheiro acre, parecido com éter.
Acordou, ouvindo um zumbido em tom agudo, e aquilo que se parecia com o ruído de metal lacerado. Estava dentro da máquina. Viu que todos olhavam para ele atrás das blindagens. Sabia que não devia sair, pelo menos até ter começado. Disse em voz alta, «Isto não vai funcionar» e, logo em seguida, o flash violeta da luz laser cegou-o. Os flashes começavam agora a surgir rapidamente. Viu a sala de trânsito erguer-se no ar enquanto ele encolhia - em seguida o silvar da espuma enquanto ela descia na sua direcção - e, por último, o rangido final nos ouvidos, enquanto fechava os olhos, esperando pelo impacto. Negrume total.
Ouviu o chilrear dos pássaros e abriu os olhos. A primeira coisa que fez foi olhar para o céu. Estava claro. Não era portanto o Vesúvio. Encontrava-se numa floresta primitiva com enormes árvores. Portanto não era Tóquio. O chilreio dos pássaros era agradável. Não era Tunguska.
Onde raio é que ele estava?
A máquina pousou fazendo um pequeno ângulo; o solo da floresta descia para a esquerda. Viu luz por entre os troncos das árvores a uma certa distância. Saiu da máquina e desceu a encosta. Algures à distância ouviu o rufar lento de um tambor solitário.
Fez uma pausa junto das árvores e olhou para baixo na direcção de uma sociedade fortificada. Estava parcialmente obscurecida pelo fumo de muitas fogueiras, mas reconheceu-a de imediato. Oh, que raio, pensou ele, é apenas Castelgard. O que é que seria tão importante para ter que vir aqui?
Era Gordon, evidentemente, que se encontrava atrás dele. Essa treta de posição sobre o modo como os académicos se encontravam desapontados. Era Gordon. O filho da mãe estivera a desenvolver a tecnologia, e agora estava convencido de que também passaria a dirigir a companhia. Gordon mandara-o de regresso, convencido de que não seria capaz de voltar.
Mas Doniger conseguia regressar e era isso que iria fazer. Não se sentia preocupado, porque trazia sempre com ele uma cerâmica. Enflou-a numa ranhura no tacão do sapato e, em seguida, tirou o sapato e olhou para a ranhura. Sim, não havia dúvida, a cerâmica branca estava lá. Mas entrara muito na fenda e parecia ter bloqueado dentro da ranhura. Quando sacudiu o sapato a cerâmica não caíu. Tentou com um pauzinho que meteu na ranhura, mas o pau partiu-se.
Tentou tirar o tacão do sapato, mas não conseguiu arranjar um ponto de apoio; o tacão não se moveu. Aquilo de que precisava era de uma ferramenta metálica de qualquer espécie, uma cunha ou um cinzel. Tinha a certeza de que podia encontrar uma ferramenta na cidade.
Voltou a calçar o sapato, tirou o casaco e a gravata e começou a descer a encosta. Olhando para a cidade, notou alguns detalhes estranhos. Estava muito perto da porta leste da muralha da cidade, mas o portão estava aberto de par em par. E não se viam soldados ao longo das muralhas. Era estranho. Qualquer que fosse o ano era obviamente um tempo de paz - havia essas épocas, entre as invasões inglesas. Mas, mesmo assim, era de opinião de que a porta deveria estar sempre guardada. Olhou para os campos e não viu ninguém a tomar conta deles. Pareciam descurados, com grandes tufos de ervas daninhas.
Mas que raio é que se passa? pensou.
Passou pelo portão e entrou na cidade. Viu que o portão não estava guardado porque o soldado de guarda jazia morto, deitado de costas. Doniger ,debruçou-se para o observar melhor. Viam-se laivos brilhantes de sangue na zona dos olhos. Pensou que devia ter sido atingido na cabeça.
Voltou-se para a cidade. O fumo, via agora, saía de pequenos potes que haviam sido colocados por toda a parte - no solo, nas muralhas ou nos postes de vedação. E a cidade parecia estar deserta, vazia naquele brilhante dia de sol. Dirigiu-se para o mercado mas não havia lá ninguém. Ouviu o som de monges que entoavam um cântico; dirigiam-se na sua direcção. E ouviu o tambor. Sentiu um arrepio.
Uma dúzia de monges, todos de negro, viraram a esquina numa espécie de procissão, entoando um cântico. Alguns deles estavam nus até à cintura, fustigando-se com chicotes de couro reforçado com pontas de metal. Os ombros e as costas sangravam abundantemente.
Flagelantes. Era aquilo que eles eram, flagelantes. Doniger deu um pequeno gemido
e afastou-se dos monges, que passaram por ele em formação cerrada, ignorando-o. Continuou a afastar-se, cada vez mais, até que as suas costas tocaram em qualquer coisa de madeira.
Voltou-se e viu uma carroça de cavalos feita de madeira, mas não havia cavalo. Viu montes de roupas empilhadas na carroça. Em seguida viu um pé de criança saindo de uma das pilhas de roupa. Um braço de mulher saía de outra pilha. O zumbido das moscas era muito alto. Uma nuvem de moscas cobria os corpos.
Doniger começou a tremer.
No braço viam-se estranhas manchas negras. A Morte Negra.
Sabia agora qual era o ano. 1348. O ano em que a praga atingiu Castelgard pela primeira vez e matou um terço da população. E sabia como é que se espalhava - com as picadas das moscas, pelo toque e pelo ar. O facto de respirar o mesmo ar era suficiente para matar. Sabia que podia matar rapidamente, que as pessoas caíam simplesmente nas ruas. Num minuto uma pessoa estava perfeitamente bem. Em seguida vinha a tosse e a dor de cabeça. Uma hora depois a pessoa estava morta.
Estivera muito perto do soldado que se encontrava no portão de entrada. Estivera perto do rosto do homem.
Muito perto.
Doniger encostou-se sem forças a uma parede enquanto o torpor do pânico o ia invadindo.
Sentou-se sem forças e, nesse momento, começou a tossir.
A chuva fustigava a cinzenta paisagem inglesa. Os limpa-pára-brisas chiavam num movimento para a esquerda e para a direita. No lugar do condutor, Edward Johnston inclinou-se para a frente e semicerrou os olhos tentando ver através da chuva. Lá fora avistavam-se pequenas colinas de um verde escuro, demarcadas por sebes escuras e tudo nublado por causa da chuva. Já tinham passado a última quinta há um par de milhas.
johnston perguntou: «Elsie, tens a certeza de que é esta a estrada?» «Absolutamente», disse Elsie Kastner que tinha o mapa aberto no colo. Traçou o percurso com o dedo. «Quatro milhas depois de Cheatham Cross no caminho para Bishop'S Vale, e uma milha mais tarde, devia ser mais ou menos aqui, à direita.»
Apontou para a encosta de uma colina onde se viam alguns carvalhos raquíticos.
«Não vejo nada», disse Chris do assento de trás.
Kate perguntou: «0 ar condicionado está ligado? Estou cheia de calor.» Estava grávida de sete meses e andava sempre cheia de calor.
«Sim, está ligado», respondeu Johnston. «Esteve sempre ligado?»
Chris deu-lhe uma palmadinha no joelho, tranquilizador.
johnston conduzia lentamente, olhando para os marcos quilométricos ao lado da estrada. A chuva diminuiu. Já conseguiam ver melhor. Foi nessa altura que Elsie exclamou: «Ali!»
No topo da colina via-se um rectângulo escuro, com paredes em ruínas. «É aquilo?»
«É Eltham Castle», disse. «Aquilo que resta dele.»
Johnston estacionou o carro ao lado da estrada e desligou a ignição. Elsie lia o gula. «Construído inicialmente neste lugar por John d'Elthaim, no século onze, com várias construções adicionais posteriores. Notavelmente as ruínas aguentaram-se desde o século doze, e uma capela no estilo gótico inglês desde o século catorze. Não se encontra relacionado com o Castelo Eltham em Londres, que é de um período muito posterior.»
A chuva abrandou, Passando a algumas gotas arrastadas pelo vento. Johnston abriu a porta do carro e saiu, encolhendo-se dentro da gabardina. Elsie saiu do lado do passageiro, os documentos guardados num dossier em plástico. Chris correu à volta do carro para abrir a porta a Kate e ajudá-la a sair. Passaram uma pequena parede de pedra e começaram a trepar na direcção do castelo.
A ruína era mais substancial do que parecera da estrada; elevadas muralhas de pedra, escurecidas pela chuva. Não havia tectos; as dependências abriam directamente para o céu. Ninguém falou enquanto caminhavam por entre as ruínas. Não viram quaisquer sinais, nem marcadores de antiguidades, nada que indicasse o que fora aquele lugar ou até mesmo o seu nome. Finalmente Kate perguntou: «Onde é que é?»
«A capela? Ali.»
Contornando uma elevada muralha, viram a capela, surpreendentemente completa, com o tecto reconstruído algures no passado. As janelas eram meros arcos abertos na pedra, sem vidro. Não havia porta.
Dentro da capela o vento assobiava através de fendas e janelas. Água escorria do tecto. Johnston pegou numa grande lanterna e apontou-a às paredes. Chris perguntou: «Como é que conseguiste encontrar este lugar, Elsie?» «Nos documentos como é lógico», disse ela. «Nos arquivos Troyes havia
uma referência a um rico salteador inglês chamado Andrew d'Eltham que fez uma visita ao Mosteiro de Sainte-Mère nos últimos anos da sua vida. Trouxe toda a sua família de Inglaterra, incluindo a esposa e os filhos já crescidos. Foi isso que me levou a iniciar a investigação.»
«Aqui», disse Johnston, apontando a lanterna para o solo. Aproximaram-se todos para verem.
Ramos quebrados e uma camada de folhas encharcadas cobriam o solo. Johnston baixara-se, apoiando-se nas mãos e joelhos, limpando-as com as mãos para expor pedras tumulares gastas pelo tempo que haviam sido colocadas no solo. Chris susteve a respiração quando viu a primeira. Era uma mulher, vestida sobriamente com vestido comprido, deitada de costas. A figura era indiscutivelmente de Lady Claire. Em contraste com muitas outras esculturas, Claire era representada com os olhos abertos, encarando francamente o visitante. «Ainda bela», disse Kate, mantendo-se de pé com as costas curvas, a mão apoiada na cinta.
«Sim», disse johnston. «Ainda bela.»
Limpavam agora a segunda pedra tumular. jazendo ao lado de Claire, viram André Marek. Também ele tinha os olhos abertos. Marek parecia mais velho e notava-se um vinco no lado do rosto que podia ter sido da idade ou até mesmo de uma cicatriz.
Elsie disse: «De acordo com os documentos, Andrew escoltou Lady Claire de regresso a Inglaterra desde França, e em seguida casou-se com ela. Não se preocupou com os rumores de que Claire havia assassinado o marido anterior. Não havia a menor dúvida de que se encontrava profundamente apaixonado pela esposa. Tiveram cinco filhos e foram inseparáveis durante toda a vida.
«Nos seus últimos anos», disse Elsie, «o velho caminhante assentou, adoptando uma vida tranquila e dedicou-se aos seus netos. As palavras de Andrew ao morrer foram "Escolhi uma boa vida" Foi enterrado na capela da família em Ehham, em junho de 1382.»
«Mil trezentos e oitenta e dois», disse Chris. «Tinha cinquenta e quatro anos.» johnston estava a limpar o resto da pedra. Viram o escudo de Marek: um leão inglês sentado num campo de lilases franceses. Acima do escudos liam-se palavras em Francês.
Elsie disse: «A divisa da sua família, recordando Richard Lionheart, via-se acima da cota de armas, Mes compaingnons cuij`amole et cuij`aím,... Me di, chanson.» Fez uma pausa. «Companheiros que amei e que ainda amo... Dizei-lhes a minha canção.»
Olharam para André durante longo tempo.
johnston tocou os contornos de pedra do rosto de Marek com as pontas dos dedos. «Muito bem,» disse ele então, «finalmente sabemos o que é que aconteceu.»
«Achas que ele foi feliz?», perguntou Chris.
«Sim», disse Johnston. Mas estava a pensar que por muito que Marek gostasse dele, nunca poderia ser o seu mundo. De modo nenhum. Deve ter tido sempre a sensação de que não passava de um estranho, uma pessoa separada daquilo que a rodeava porque viera de outro lugar muito diferente.
O vento gemia. Algumas folhas ergueram-se no ar, deslizando pelo solo. O ar estava húmido e frio. Permaneceram em silêncio.
«Gostava de saber se ele pensava em nós», disse Chris olhando para o rosto de pedra. «Gostava de saber se alguma vez sentiu a nossa falta.»
«Certamente que sim», disse o Professor. «Não sentes a falta dele?» Chris acenou com a cabeça. Kate fungou e assoou o nariz.
«Eu sinto», disse Johnston.
Regressaram ao exterior. Desceram a colina em direcção ao carro. Naquela altura a chuva parara completamente, mas as nuvens continuavam escuras e pesadas, mantendo-se baixas sobre as distantes colinas.
Michael Crichton
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