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RESGATE PARA UM HOMEM MORTO / Ellis Peters
RESGATE PARA UM HOMEM MORTO / Ellis Peters

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

RESGATE PARA UM HOMEM MORTO

 

Naquele dia, que era o sétimo do mês de Fevereiro do ano da Graça do Senhor de 1141, tinham oferecido orações especiais em todos os ofícios divinos, não pela vitória de uma facção ou pela derrota de outra nos campos de batalha do norte, mas por uma decisão mais avisada, pela reconciliação, pelo evitar da carnificina e pelo respeito pela vida entre homens da mesma pátria - todos eles objectivos bem desejáveis, como suspirava para consigo mesmo o irmão Cadfael, no preciso momento em que fazia as suas orações, mas mesmo assim com poucas probalidades de receberem uma resposta positiva nesta terra dividida e fragmentada. Até o próprio Deus precisa de uma certa consideração e apoio por parte do seu material, para fazer dos homens criaturas plácidas e razoáveis.

Shrewsbury fornecera ao rei Stephen uma força bastante honrosa, que se iria juntar às tropas que ele já reunira para avançar para o Norte, onde os condes de Chester e Lincoln, meios-irmãos ambiciosos, zombando das boas graças do rei, tinham instalado a sua própria corte e, diga-se de passagem, com muita coisa a seu favor. A parte da vasta igreja que era destinada aos paroquianos estava mais cheia do que o habitual, mesmo durante os ofícios monásticos, com esposas ansiosas, mães e anciãos que rezavam fervorosamente pelos seus descendentes varões. Nem todos os homens que tinham acompanhado o conde Gilbert Prestcote e o seu homem de confiança Hugh Beringar, iriam voltar incólumes a Shrewsbury. Os rumores corriam céleres, mas as notícias eram escassas. No entanto, sabia-se que Chester e Lincoln, durante largo tempo ao abrigo da neutralidade entre dois pretendentes rivais e cujos planos pessoais colidiam com os dos outros dois, tinham acabado por se decidir de um momento para o outro, ao verem-se ameaçados pela aproximação do rei Stephen, e mandado um pedido urgente de ajuda aos defensores da grande inimiga do rei, a imperatriz Maud, comprometendo-se assim para o futuro, provavelmente a um ponto que talvez pudessem viver o suficiente para se arrependerem.

Cadfael saiu das Vésperas, duvidando tristemente da força e talvez mesmo da sinceridade das suas próprias orações, embora tivesse lutado para lhes pôr toda a convicção. Homens ébrios de ambição e poder não depõem as armas, nem para reconhecer o seu semelhante naqueles que estão prestes a trespassar. Aqui não - por enquanto não. Stephen precipitara-se para o Norte com as suas tropas, uma alma imensa, garbosa, simples, influenciável e levada ao rubro pela ingratidão traidora de Chester, arrastando com ele inúmeros homens, mais sensatos e equilibrados, que o poderiam ter ajudado a raciocinar, se ele se detivesse um pouco para pensar. Era tudo uma questão de equilíbrio e os homens bons de Shropshire tinham um compromisso com o seu senhor. Tal como acontecia com o grande amigo de Cadfael, Hugh Beringar de Maesbury, homem de confiança do conde, e cuja mulher devia estar na cidade, ansiosa, à espera de notícias. O filho de Hugh, então com um ano de idade, era afilhado de Cadfael e este tinha autorização para o visitar sempre que desejasse, pois as obrigações de um padrinho são importantes e sagradas. Cadfael voltou as costas ao jantar que estava a ser servido no refeitório e saiu pelos portões da abadia, tomando o caminho que passava entre a azenha e o reservatório de água, à esquerda, e a cintura de árvores que abrigava o jardim principal da abadia, à direita; atravessou a ponte sobre o Severn, que cintilava com o gelo do Inverno, salpicado de estrelas, e entrou pelas grandes portas da cidade.

Viam-se archotes a arder à porta da casa de Hugh, junto à Igreja de Santa Maria e, mais além, na Cruz Alta. Pareceu a Cadfael que andava mais gente na rua, de um lado para o outro, do que era habitual àquela hora numa noite de Inverno. Sentia-se no ar um vago sopro de excitação e, logo que ele pôs o pé no degrau da porta, Aline precipitou-se ao seu encontro, de braços abertos. Quando o reconheceu, o seu rosto manteve uma expressão satisfeita e acolhedora, mas perdeu num instante o seu brilho especial e ardente.

- Não é o Hugh! - disse Cadfael em tom pesaroso, sabendo para quem a porta se tinha aberto impetuosamente. - Ainda não. Há notícias? Estão de regresso?

- Will Warden mandou recado há uma hora, antes de escurecer completamente. Avistaram-lhes as lâminas do alto das torres, a uma boa distância nessa altura, mas agora já devem estar a chegar à porta exterior do castelo. Já lhes abriram o portão. Vinde sentar-vos ao pé do lume, Cadfael, e esperar por ele. - Puxou-o para dentro, segurando-lhe as mãos, e fechou resolutamente a porta à escuridão da noite e à sua própria impaciência dolorosa.

- Ele vem lá - disse, reconhecendo no rosto de Cadfael o reflexo do seu próprio amor e ansiedade cheios de facciosismo. - Viram as cores dele. E as tropas vêm todas em boa ordem. Mesmo assim, não podem vir exactamente como foram, já o sei.

Não, isso nunca era possível. Aqueles que partem para a batalha nunca voltam sem rombos nas suas fileiras, como feridas abertas. A pena maior é que aqueles que os conduzem nunca aprendem e os poucos homens sensatos no meio daqueles que os seguem nunca conseguem ensinar-lhes nada. Mas a fé concedida e a fidelidade empenhada são mais fortes que o medo, pensou Cadfael, e isso é talvez uma virtude, mesmo nas garras da morte. A morte, afinal, é a expectativa comum desde a hora em que se nasce. Nem os heróis nem os cobardes lhe podem escapar.

-Ele não mandou qualquer recado-perguntou -, a dizer como correu o dia?

- Nada. Mas os boatos dizem que não correu lá muito bem - declarou com firmeza e abertamente, afastando com a mão pequena os cabelos de um louro-claro que lhe caíam sobre a testa. Era uma rapariga esbelta, apenas com vinte e um anos de idade, mãe de um filho de um ano e tão loira quanto o marido era escuro. Os modos tímidos da adolescência tinham adquirido a maturidade de uma dignidade suave.

- É uma ideia muito insensata que se espalha e se apodera de todos nós aqui na Inglaterra - disse. - As coisas não podem correr sempre para o mesmo lado, tem de haver uma viragem. - Disse-o com vivacidade e espírito prático, por muito que lhe custasse essa firmeza. - Certamente não haveis comido, não tivestes tempo de ficar para o jantar - acrescentou ela toda dona-de-casa.-Sentai-vos um momento e tomai conta do vosso afilhado que eu já vos trago carne e cerveja.

O pequeno Giles, com uma altura considerável para a idade quando se punha de pé agarrado aos bancos, cavaletes e arcas para se aguentar, avançou com cuidado, mas a uma velocidade espantosa, dando a volta à sala, até junto do banco que ficava perto do fogo, e trepou sozinho para o colo cor de ferrugem de Cadfael. Soltava ao mesmo tempo uma torrente de palavras, na maior parte invenção sua, embora aqui e além um ou outro som fizesse de repente sentido para os adultos. A mãe falava muito com ele e o mesmo acontecia com a mulher, Constance, a sua escrava dedicada, e aquele rebento da nobreza respondia com volubilidade. A nobreza culta, pensou Cadfael, pondo os braços em arco para embalar-lhe confortavelmente o peso sólido, nunca será de mais. Quer ele se consagre à igreja ou à espada, será sempre bom que tenha um espírito vivo e rápido. Tal como um cachorrinho que se enrosca no regaço, o herdeiro de Hugh irradiava calor, juntamente com o cheiro a pão fresco vindo da carne jovem e sem mácula.

- Não consigo que ele durma - disse Aline, aparecendo com um tabuleiro de madeira que pôs em cima da arca, ao lado do fogo -, sabe que há qualquer coisa no ar. Não me pergunteis como, porque eu não lhe disse nada, mas ele sabe. Agora passai-mo e comei. Ainda podemos ter muito que esperar, pois hão-ide querer deixar tudo em ordem no castelo, antes que Hugh venha para ao pé de mim.

Passou mais de uma hora antes que Hugh chegasse. Entretanto, já Constance tinha retirado os restos do jantar de Cadfael e levado nos braços o principezito inerte, que não conseguia mais conservar os olhos abertos, apesar de todos os seus esforços, e dormia num total abandono nos braços dela, quando o ergueu. Embora Cadfael tivesse o ouvido bem apurado, foi Aline quem primeiro levantou a cabeça e se pôs de pé, apercebendo-se dos passos ligeiros diante da porta. O sorriso radioso apagou-se-lhe de repente, ao notar o ritmo irregular das passadas.

- Ele está magoado!

- Rígido da longa cavalgada - atalhou rapidamente Cadfael. - As pernas ainda lhe obedecem. Ide, correi, o que quer que não esteja bem há-de compor-se.

Ela correu e Hugh lançou-se-lhe nos braços. Depois de o ter olhado dos pés à cabeça, cansado e marcado pelo tempo, e constatado que estava inteiro, fossem quais fossem os estragos menores que tivessem sofrido, Aline retomou o seu ar composto, a sua vivacidade calma, sem demostrações extravagantes de ansidades, embora o observasse atenta por detrás do escudo amável do seu rosto de esposa. Hugh era um homem baixo, magro, pouco mais alto que a mulher, de cabelos e tez escuros. Faltava-lhe nos movimentos a leveza e a flexiblidade habituais, o que não era de estranhar depois de tão longa cavalgada. Teve um sorriso breve e um tanto forçado ao beijar a mulher, encostou amigavelmente o punho à omoplata de Cadfael e deixou-se cair no banco almofadado ao lado do fogo, com um grande suspiro enrouquecido, ao mesmo tempo que estendia cuidadosamente os pés calçados de botas, dando a perceber que o direito lhe causava algum desconforto. Cadfael ajoelhou-se e descalçou-lhe as botas rígidas e debruadas a aço, que escorriam para cima do junco do chão.

-Boa alma cristã!-exclamou Hugh, inclinando-se para pousar a mão na tesoura do amigo. - Eu não teria conseguido tocar-lhe. Céus, como estou cansado! Mas não interessa, o que importa é que eles já estão em casa e eu também.

Constance entrou lesta com comida e vinho quente aromatizado, Aline trouxe-lhe a túnica e libertou-o do casaco de couro. Ele, por sua vez, resolvera pôr-se mais leve na última fase da cavalgada, tirando a cota de malha. Esfregou com as duas mãos as faces meio paralisadas pelo frio, sacudiu agradavelmente os ombros ao calor do lume e encheu o peito de ar, longamente, aliviado. Ficaram a vê-lo comer e beber, sem falar. Até a própria voz fica presa e difícil depois de um longo esforço e sob o efeito de um cansaço extremo. Quando terminasse, as cordas vocais estariam mais macias e quentes e as palavras sairiam sem rangido.

-O vosso filho varão aguentou-se de olhos abertos-disse Aline alegremente, observando-lhe os mínimos movimentos enquanto comia e se aquecia -, até já não conseguir segurar as pálpebras, nem mesmo com os dedos. Ele está bem e cresceu, mesmo em tão pouco tempo, Cadfael que diga. Já anda de pé e não se importa nada de cair de vez em quando. - Não se ofereceu para acordá-lo e trazê-lo ao pai, era nítido que não havia lugar para coisas de crianças naquela noite, por mais queridas que fossem.

Depois de acabar de comer, Hugh recostou-se, bocejou longamente e, levantando de repente o rosto para a mulher num grande sorriso, puxou-a para si. Constance levou a travessa e encheu-lhe de novo a taça, fechando suavemente a porta que dava para o quarto onde dormia o pequenito.

- Nunca vos preocupeis por minha causa, meu amor - disse Hugh, puxando Aline para o seu lado. - Estou dorido da sela e um pouco magoado, mas não há nada de grave. Claro que demos um ou dois tombos. E não foi nada fácil voltarmos a pôr-nos de pé. Trouxe de volta a maior parte dos homens que levámos para o norte, mas não todos! O conde, Gilbert Prestcote, não veio. Morto não, mas feito prisioneiro, espero, estou convencido, mas se foi Robert de Gloucester ou os galeses que o apanharam, era o que eu gostava de saber.

- Os galeses? - disse Cadfael, apurando o ouvido. – Como assim? Owain Gwynedd não pôs as mãos no fogo pela imperatriz? Depois de todas as precauções que tomou e dos lucros que isso lhe trouxe? Ele não é tolo a esse ponto!

-Por que é que ele havia de ajudar os próprios? O mais provável seria que os deixasse degladiarem-se entre si.

-Falais como um bom cristão-disse Hugh, com um sorriso breve e triste que fez corar Cadfael, ao mesmo tempo que soltava um falso gemido de protesto, causando-lhe uma ligeira mas bem-vinda sensação de prazer. - Não, Owain tem capacidade de raciocínio e bom senso mas, infelizmente para ele, também tem um irmão. Cadwaladr estava lá com um bando dos seus arqueiros e Madog ap Meredith de Powys estava com ele, sequioso de pilhagem. Lançaram-se sobre Lincoln e limparam o campo de todo e qualquer prisioneiro que prometesse ter meios de pagar o resgate, mesmo os moribundos. E receio que tenham levado Gilbert no meio dos outros. - Mexeu-se no assento, tentando aliviar o corpo hirto e dorido ao mudar de posição nas almofadas. - Embora não sejam os galeses - acrescentou sombrio -, que ficaram com o melhor quinhão. Robert de Gloucestshire vai esta noite a meio caminho da sua cidade natal, com um prisioneiro que vale todo este reino, para o entregar à imperatriz Maud. Só Deus sabe o que vai seguir-se, mas eu sei qual tem de ser o meu trabalho. O meu senhor foi afastado e não há agora ninguém em liberdade para nomear o seu sucessor. Cabe-me a mim guardar este condado o melhor que puder e é o que vou fazer, até que a sorte volte novamente o rosto. O rei Stephen foi feito prisioneiro em Lincoln e levado para Gloucester.

Logo que se lhe soltou a língua, sentiu necessidade de contar tudo, tanto para seu próprio esclarecimento como dos outros. Era ele agora o único senhor do condado, mantendo-o e vigiando-o militarmente em nome de um rei em eclipse e a sua tarefa era cuidá-lo e mantê-lo inviolado dentro das suas fronteiras, até que pudesse servir de novo, para além delas, como um senhor em acção.

- Ranulf de Chester conseguiu escapar do Castelo de Lincoln e sair de uma cidade hostil, antes que pudéssemos aproximar-nos dela, indo a toda a pressa ao encontro de Robert de Gloucester com promessas de aliança àimperatriz, em troca de auxílio contra nós. No fim de contas, a mulher de Chester é filha de Robert, e ele deixara-a dentro dos muros do castelo, com Lincoln e a mulher, e toda a cidade em pé de guerra a fervilhar à volta deles. Quando Stephen lá chegou com as suas tropas, foi recebido com verdadeiro entusiasmo, a cidade prostrou-se literalmente a seus pés. Pobres diabos, já pagaram por isso, entretanto. Não obstante, nós ali estávamos, a cidade era nossa, o castelo estava cercado e qualquer um diria que tínhamos o Inverno a nosso favor, com a distância que Robert era forçado a percorrer e a neve e as enxurradas para o deterem. Mas ele não é assim tão fácil de fazer parar.

- Nunca andei lá pelo norte - disse Cadfael, com um trilho no olhar e uma agitação no sangue que bastante lhe custava dominar. Os seus tempos de soldado tinham chegado ao fim, há muito que renunciara a tudo isso, mas não conseguia deixar de sentir o ardor da batalha quando os seus amigos continuavam a aventurar-se. -A cidade, Lincoln, fica num morro, segundo dizem. E a guarnição estava encurralada. Teria sido fácil aguentar a cidade, com Robert ou sem ele. Que foi que correu mal?

-Bom, admitamos que subestimamos Robert, como sempre, mas isso precisava ter sido fatal. A chuva caía com força, o rio que circundava a cidade a sul e a oeste tinha um caudal fortíssimo, a ponte estava guardada e o vau não oferecia passagem. Mas Robert atravessou, com passagem ou sem ela! Meteu-se à água e o que é que os outros podiam fazer senão ir atrás dele? "O caminho é em frente, para trás nunca!", foi o que Robert disse, isto contou-nos um dos prisioneiros. E formando uma barreira sólida, avançaram, praticamente sem perder um único homem. Sim, claro, ainda tinham de subir a encosta, desde a planície inundada até ao cimo da nossa colina... se Stephen não fosse Stephen! Com toda aquela massa de homens acampados lá em baixo nos campos encharcados e todos os prenúncios contra ele, como sabeis não dá muita atenção a esses avisos, o que achais que ele fez? Bom, com aquela sua loucura cavalheiresca, pela qual, Deus é testemunha, eu o amo e odeio, ordena aos seus homens que desçam à planície, para enfrentar o inimigo em igualdade de circunstâncias.

Hugh ergueu os ombros de encontro ao reforço sólido da parede, levantou as sobrancelhas ágeis e sorriu, dilacerado entre a admiração e o desespero.

- Eles tinham-se reunido na parte mais alta e mais seca que tinham encontrado e que era um pântano meio gelado. Robert reunira todos os deserdados, todos os vassalos de Maud que tinham perdido as terras a leste por causa dela, na linha da frente, a cavalo, sem nada a perder e tudo a ganhar, a vingança antes do mais. E os nossos cavaleiros tinham cada um deles tudo a perder o nada a ganhar, sentindo-se longe dos seus lares e das suas terras e desejosos de voltar para reconstruírem as vedações. E havia aquelas hordas de galeses, famintos de saque, com os seus teres e haveres a são e salvo, como um santuário, lá no oeste, onde ninguém os ameaçava. Que é que nós podíamos procurar? Quando esses deserdados atacaram a nossa cavalaria, cinco condes, não resistindo ao impacte, fugiram. No flanco esquerdo, os flamengos de Stephen repudiaram os galeses, mas vós conheceis a maneira deles, afastaram-se apenas o suficiente e sem confusão, para se reunirem de novo, sem baixas, e voltaram a atacar, quase um arqueiro para cada homem, conquistando o seu terreno e a sua presa. E quando a infantaria flamenga bateu em debandada, o mesmo fizeram os seus capitães, William de Ypres, Ten Eyck e todos eles. Stephen ficou connosco, sem montada, rodeado pelo que lhe restava da sua cavalaria e infantaria. Os outros rolaram sobre nós. Foi nessa altura que perdi Gilbert de vista. O que não admira, era o caos da luta corpo-a-corpo. Ninguém via para além da ponta da sua espada ou adaga, conforme o que tinha na mão para tentar salvar a própria cabeça. Nessa altura, Stephen ainda empunhava a espada. Cadfael, juro-vos, nunca viste um homem assim em batalha, uma vez que se lhe desencadeie a fúria, pois com toda a sua bonomia é preciso muito para que isso aconteça. Era mais o cerco de um castelo que o dominar de um homem. Havia em torno dele uma parede de homens que ele tinha ferido. Os que avançavam tinham de trepar essa parede e ficavam para a tornar mais alta. Chester veio direito a ele, honra lhe seja feita não há muita coisa que possa assustar Ranulf, e poderia ter-se transformado em mais uma pedra para a muralha, não fora a espada do rei ter-se quebrado. Houve alguém perto dele que lhe atirou para a mão um machado dinamarquês a substituí-la, mas Chester já saltara para trás, para onde não podia chegar-lhe. E, então, um que estava um pouco mais afastado da confusão, levantou do chão uma pedra enorme e atirou-a a Stephen, de lado. Ele ficou estendido ao comprido, sem sentidos, e os outros avançaram como um enxame, prendendo-o de pés e mãos enquanto estava inconsciente. Eu, por minha vez, fui submergido por outra onda- disse Hugh tristemente -, e calcado sob os corpos de homens melhores, só tendo voltado a mim na altura mais propícia, depois de eles terem levado o rei e invadido a cidade para a saquear, antes de voltarem para passar o campo de batalha e pente fino, à procura de tudo aquilo a que valesse a pena deitar a mão. Então, reuni o que restava dos nossos, mais do que esperava, e mandei-os para longe, onde não conseguissem alcançá-los, enquanto eu e mais um ou dois procurávamos Gilbert. Não o encontrámos e, quando eles começaram a voltar da cidade, já saciados, afastámo-nos para voltar com aquilo que tínhamos. Que outra coisa poderíamos ter feito?

- Nada que servisse para o que quer que fosse - disse Cadfael com firmeza. - E, graças a Deus, saíste de lá vivo e inteiro para fazer ainda tanta coisa! Se há algum lugar onde Stephen precise de vós neste momento, é aqui, a tomar conta deste condado no seu lugar.

Falava para si próprio, pois Hugh já sabia que assim era, caso contrário nunca teria saído de Lincoln. Quanto à carnificina que houvera, não foi feita qualquer menção. Mais valia ter a certeza de que trazia de volta consigo os bons cidadãos de Shrewsbury, sua responsabilidade pessoal, à excepção de alguns, poucos, e fora isso que fizera.

- A rainha dele está em Kent, é a senhora de Kent, apoiada por um exército forte, tem na mão todo o Sul e o Leste - disse Hugh. - Nem que tenha de remexer todas as pedras daqui até Londres, ela há-de arranjar maneira de tirar Stephen do cativeiro. Não é o fim. Um revés pode ser tornado reversível. Um prisioneiro pode ser libertado da prisão.

- Ou trocado por outro - disse Cadfael, mas em tom duvidoso. -Não foi feito nenhum prisioneiro valioso do lado do rei? Embora eu duvide que a imperatriz libertasse Stephen, mesmo em troca de três dos seus nobres mais ilustres, nem que se tratasse do próprio Robert, que seria para ela uma perda importante. Não, a imperatriz vai guardar bem o prisioneiro e avançar rapidamente para o trono. E vós vedes os príncipes da igreja fazerem-lhe frente por muito tempo?

- Bom - disse Hugh, endireitando com um estremecimento o corpo magro e descobrindo novas maselas -, o meu papel, pelo menos, sei eu qual é. Agora, são as minhas ordens que correm aqui em Shropshire como ordens do rei e hei-de fazer que este condado, pelo menos, seja preservado para o rei.

Voltou para a abadia dois dias depois, para assistir à missa que o abade Radulfus mandara dizer pelas almas de todos os que tinham morrido em Lincoln, de uma parte e doutra, e pela cura das feridas abertas e purulentas da Inglaterra. Foram feitas orações em particular pelos infelizes habitantes da cidade do norte, presa de exércitos vingativos e despojados de tudo o que tinham, alguns até da própria vida e muitos mais fugidos para a desolação das terras invernosas. Shrospshire estava agora mais perto da luta do que alguma vez estivera nos últimos três anos, na sua posição de vizinho de um conde de Chester, embriagado pelo êxito e sequioso de possuir ainda mais terras. Cada um dos homens da desfalcada guarnição de Hugh continuava em estado de alerta, pronto a defender a segurança ameaçada.

Tinham saído da missa e Hugh detivera-se a falar com o abade no grande pátio, quando de repente houve um certo alvoroço no arco da entrada e surgiu uma pequena procissão, vinda do Portão Principal. Quatro camponeses robustos, com vestes de tecido caseiro, avançavam confiantes, dois com arcos esticados e apontados, prontos para a acção, um com um podão ao ombro e o quarto com uma lança de cabo comprido. No meio deles, com dois de cada lado, uma mulher gorducha de meia-idade cavalgava uma pequena mula e envergava o hábito negro das monjas Beneditinas. As asas brancas das touca enquadravam uma cara redonda e rosada, bem coberta de carnes e de ossos fortes, iluminada pelos olhos castanhos e brilhantes. Usava botas como qualquer homem e tinha o hábito apanhado para montar, mas com um gesto de mão larga soltou-o, quando desmontou e ficou num alerta discreto, procurando calmamente em volta uma pessoa com autoridade.

- Temos a visita de uma irmã - disse suavemente o abade, olhando-a com interesse -, mas devo dizer que não a conheço.

O irmão Cadfael, atravessando o pátio sem pressa em direcção ao seu jardim de ervas medicinais, notara também o borborinho repentino junto do portão e estacou ao dar com os olhos numa figura de que bem se recordava. Encontrara-se com aquela dama uma vez, anteriormente, e achara-a digna de ser lembrada. E, ao que parecia, também ela recordava com prazer o encontro anterior, pois logo que pousou sobre ele o olhar, iluminou-o o brilho do reconhecimento e avançou sem hesitar em direcção a Cadfael. Este dirigiu-se a ela alegremente. A pequena guarda rústica, satisfeita por a ter conduzido com êxito ao sítio onde devia ficar, parou junto da portaria, com os pés afastados sobre o empedrado, numa atitude complacente e sem se mostrarem de forma alguma intimidados ou impressionados com o cenário.

- Bem me pareceu que conhecia Essa maneira de andar - disse a dama com satisfação. -Vós sois o irmão Cadfael, que veio uma vez em serviço à nossa casa. Estou contente por me ter encontrado convosco, pois não conheço mais ninguém aqui. Quereis dar-me a conhecer ao vosso abade?

- Terei muito orgulho nisso - replicou Cadfael. - Ele está precisamente a olhar-vos do canto do claustro. Faz agora dois anos...

Devo anunciar-lhe que tem a honra de receber a visita da irmã Avice?

- Irmã Madalena - corrigiu com certa afectação e um leve sorriso e, quando ela sorriu, embora breve e com todo o decoro, aquela covinha fascinante, que ele recordava tão bem, brilhou-lhe como uma estrela na face marcada pelo tempo. Tinha perguntado a si mesmo se ela não deveria encontrar forma de a exorcisar naquela sua nova vocação ou se não seria apesar de tudo a melhor arma de todo o seu arsenal. Teve consciência de ter pestanejado e de que ela se apercebera disso. Havia sempre um ar de conspiração em Avice de Thorn-bury, que fazia que cada homem pensasse ser o único em quem ela confiava. - E o que me traz aqui - disse, cheia de espírito prático - tem na realidade a ver com Hugh Beringar, pois segundo me disseram Gilbert Prestcote não voltou de Lincoln. Disseram-nos no Portão Principal que o encontraríamos aqui, senão teríamos de o procurar no castelo.

- Ele está aqui - disse Cadfael -, acaba de sair da missa e está a falar com o abade Radulfus. Se olhardes por cima do meu ombro, vê-los-eis aos dois.

Ela olhou e a expressão do seu rosto foi de aprovação. O abade Radulfus era alto, acima do comum, direito como uma lança, forte, com uma cara magra de falcão e um olhar calmo e observador; e Hugh ainda que um palmo mais baixo e mais magro, calmo no falar e sem nunca fazer um gesto que atraísse as atenções para a sua pessoa, ainda assim raramente passava despercebido. A irmã Madalena estudou-o da cabeça aos pés com um faiscar dos olhos castanhos. Sabia avaliar o que era um homem e quando tinha um diante de si reconhecia-o sem dificuldade.

-Pois muito bem - disse com um aceno de cabeça. -Vinde, vou apresentar-lhe os meus respeitos.

Radulfus apercebeu-se de que se dirigiram para ele e foi ao seu encontro, com Hugh ao lado.

- Sr. Abade - disse Cadfael -, temos aqui a irmã Madalena, da nossa ordem, vinda do Convento de Polesworth, que fica a várias milhas para sudoeste, na floresta de Godric's Ford. E o que a traz aqui tem a ver também com Hugh Beringar, na sua qualidade de senhor deste condado.

A religiosa fez um reverência cheia de graciosidade e inclinou-se sobre a mão do abade.

- Na verdade, aquilo que tenho a dizer interessa a todos os que aqui têm que ver com a ordem e a paz. O irmão Cadfael já visitou o nosso convento e sabe como nos encontramos nestes tempos conturbados, isolados e tão perto do País do Gales. Ele poderá dar o seu parecer e explicar-vos melhor, se eu não for capaz.

- Sede bem-vinda, irmã - dise Radulfus, observando-a com astúcia, tal como ela o tinha observado. - O irmão Cadfael fará parte da nossa assembleia, pois espero que aceite jantar connosco. Quanto aos vossos guardas, pois vejo que são dedicados na vigilância que exercem sobre a vossa pessoa, darei ordens para que se ocupem deles e, caso não o saibais ainda, aqui a meu lado encontra-se Hugh Beringar, a pessoa que procurais.

Embora o rosto dela estivesse voltado para o outro lado, Cadfael tinha a certeza de que a covinha resplandecia, no momento em que a religiosa se voltou para Hugh e fez o reconhecimento formal da sua presença.

- Meu senhor, nunca tive a felicidade - disse, e se se tratava de um extremo de cortesia ou de travessura é o que resta saber -, de vos conhecer antes, pois foi com o vosso conde que uma vez cheguei à fala. Ouvi dizer que ele não regressou convosco e que pode ter sido feito prisioneiro, o que lamento muito.

-Também eu - disse Hugh -, e espero libertá-lo, se disso tiver oportunidade. Vejo pela vossa escolta, irmã, que tiveste razões para vos acautelardes ao atravessar a floresta. Acho que isso também me diz respeito, agora que estou de volta.

-Vamos até ao meu locutório - disse o abade -, e oiçamos o que a irmã Madalena tem para nos dizer. Mais uma coisa, irmão Cadfael, quereis fazer o favor de avisar o irmão Denis de que tudo o que há de melhor na nossa casa está à disposição da guarda pessoal da nossa irmã? Depois vinde juntar-vos a nós, pois os vossos conhecimentos podem vir a ser necessários.

Ela estava sentada um pouco afastada da lareira, quando Cadfael entrou no locutório do abade, alguns minutos mais tarde. Tinha os pés bem arrumados, sob a bainha do hábito, e as costas direitas de encontro à parede forrada a madeira. Quanto mais atenta e demoradamente a observava, maior carinho lhe despertava a sua imagem. Fora durante muitos anos, a partir de uma juventude coroada de beleza, amante de um barão, aceitando-o com um acordo comercial honesto, uma retribuição justa pelo seu próprio corpo que lhe permitia fugir à pobreza e cultivar o espírito. E respeitara o contrato com lealdade, até mesmo afectuosamente, durante o tempo que o seu senhor esteve em vida. A perda de uma profissão em que podia exercer os seus consideráveis talentos fê-la lançar-se à procura, com o seu habitual espírito de decisão, de uma outra igualmente compensatória, mas numa idade em que tais oportunidades poderão começar a escassear. A superiora de Godric's Ford, primeiro, e depois a prioreza de Polesworth, por muito espantadas que possam ter ficado ao verem-se confrontadas com tal postulante, devem ter visto em Avice of Thornbury qualquer coisa que valeria a pena adquirir. Mulher de palavra e sem rancores para com a sua primeira aliança, iria ser igualmente leal à palavra dada nesta nova ligação. Se se podia falar de vocação logo à partida, era bastante duvidoso, mas com aplicação e paciência havia de fazer que o fosse.

- Quando esta questão de Lincoln deflagrou em Janeiro - disse -, ouvimos rumores de que alguns galeses estavam preparados para pegar em armas. Não, segundo creio, por uma questão de lealdade partidária, mas com vistas ao saque que se havia de proporcionar quando os dois poderes colidissem. O príncipe Cadwaladr de Gwynedd estava a formar um corpo de guerreiros e os galeses de Powys juntaram-se a ele, ao mesmo tempo que se dizia que iriam em auxílio do conde de Chester. Portanto, recebemos aviso antes da batalha.

Ela é que se tinha apercebido do aviso. Quem, a não ser ela, naquele pequeno ninho de santas mulheres, poderia ter notado como sopravam os ventos entre os pretendentes à coroa, entre galeses e ingleses, entre conde ambicioso e membro de tribo ávido de poder?

- Daí, Sr. abade, que não tenha sido grande surpresa para nós quando, há uns quatro dias, um jovem de uma fazenda a oeste do convento apareceu correndo, a toda a pressa, para nos dizer que a casita e as terras do pai tinham sido devastadas, a família fugira para leste e um bando de assaltantes galeses estava a saquear o que restava da casa, gabando-se de como iriam revolver as entranhas do convento de Godric's Ford. Os caçadores, de regresso a casa, não vão desprezar uma peça de caça, ocasional, que possam juntar ao seu quinhão. Nessa altura, ainda não sabíamos a notícia de derrota de Lincoln - acrescentou, levantando o olhar para Hugh que a fitava, atento -, mas tirámos as nossas conclusões e tomámos todas as cautelas. O caminho mais curto para o regresso de Cadwaladr com o seu saque ao castelo de Aberystwyth passa mesmo ao lado de Shrewsbury. Ao que parece, ele continuava a recear aproximar-se muito da cidade, mesmo com a guarnição desfalcada como ele podia calcular que estivesse. Mas ainda assim, sentia-se mais seguro connosco na floresta. Apenas com um punhado de mulheres para o enfrentarem, bem podia permitir-se um dia de diversão e despojar-nos de tudo.

-E isso foi há quatro dias? - perguntou Hugh, tenso na sua concentração.

- Quatro dias quando o rapaz nos foi procurar. Ele está em segurança, assim como o seu progenitor, mas ficaram sem o gado, que foi levado para oeste. Três dias, desde que eles chegaram ao convento. Tivemos um dia para nos preparar.

-Um feito ignóbil-disse Radulfus cheiro de ira e repugnância -, atacarem como cobardes uma casa cheia de mulheres indefesas. E uma vergonha para os galeses ou para quaisquer outros que tentem semelhante infâmia. E nós aqui, ignorantes da vossa provação!

- Não receeis por nós, Sr. abade, sobrevivemos bastante bem à tempestade. A nossa casa continua de pé e não saqueada, nem aconteceu mal algum a nenhuma das nossas mulheres, houve apenas um ou outro arranhão entre os homens da floresta. Nem nós estávamos completamente indefesas. Eles vieram pelo lado oeste e o nosso ribeiro corre pelo meio. O irmão Cadfael conhece a disposição das terras.

- O ribeiro não é grande barreira durante a maior parte do ano - disse Cadfael, duvidoso -, mas este Inverno tivemos muita chuva. Mesmo assim, há o vau e a ponte a guardar.

- É verdade, mas lá com a excelente vizinhança que temos arranja-se uma boa guarnição num abrir e fechar de olhos. Somos bem vistas pelas pessoas da floresta e os seus homens são fortes. - Naquele momento, quatro dos homens fortes da guarnição estavam na portaria a regalar-se com carne, pão e cerveja, orgulhosos e contentes, firmes no seu amor próprio, como competia, graças às suas proezas. - O ribeiro levava muita água, mas nós conseguimos escavar o vau, caso eles tentassem aventurar-se, e depois John Miller abriu todas as suas comportas para fazer subir as águas. Quanto à ponte, serrámos a madeira dos pilares, deixando-os presos por pouco, e amarrámos cordas que, partindo de lá, iam prender nas ávores. Deveis lembrar-vos que as margens são bastante arborizadas dos dois lados. Podíamos puxar os pilares e fazê-los cair, quando nos parecesse conveniente, sem termos de nos expor. Todos os homens da floresta vieram com alabardas, forquilhas e arcos para guarnecer o nosso lado da margem e encarregar-se de quem resolvesse passar.

Não restavam dúvidas sobre quem tinha sido o general daquela recepção formidável. Ela ali estava, sólida, tranquila e graciosa, qual matrona da aldeia, feliz nas suas bênçãos, falando das proezas dos filhos e dos netos, extremosa de orgulho com os feitos precoces, mas demasiado avisada para deixar que eles se apercebessem disso.

- Os homens da floresta - disse -, são dos melhores arqueiros que se podem encontrar seja onde for. Coloquei-os espaçados por entre as árvores, na margem do nosso lado. E os que ficaram na outra margem estavam escondidos à parte, para apressar a retirada do inimigo quando começassem a fugir.

O abade olhava-a com ar respeitoso e atento, assinalando com os sobrolhos o espanto comedido.

- Se bem me lembro - disse -, Madre Mariana é idosa e débil. Este ataque deve ter-lhe causado grande perturbação e receio. Foi uma felicidade ter-vos junto de si e poder delegar os seus poderes numa auxiliar tão forte e capaz.

O sorriso plácido da irmã Madalena, pensou Cadfael, podia ser um disfarce discreto para a imagem que lhe ficara da Madre Mariana, desnorteada e sem saber o que fazer, com receio da ameaça. Mas limitou-se a dizer:

-A nossa madre superiora não se encontrava bem na altura, mas graças sejam dadas, já recuperou. Suplicámos-lhe que reunisse as irmãs mais idosas e se fechassem na capela, com todos os tesouros sagrados que lá temos, e que ficassem aí, rezando pela segurança e integridade da nossa casa. E isso sem dúvida nos valeu, acima das nossas alabardas e arcos, pois tudo passou sem nos causar qualquer dano.

-Contudo, as vossas orações não conseguiram desviar os galeses da tentativa que tinham planeado, receio bem-disse Hugh, cruzando o olhar com o dela, sem malícia e com um sorriso de apreço. - Estou a ver que vou ter de reparar algumas vedações por lá. E o que foi que aconteceu em seguida? Dizeis-me que tudo terminou bem. Chegastes a usar as cordas?

-Usámos, sim. Eles vieram em força e a toda a pressa, deixámo-los entrar na ponte, quase a chegar à margem, e nessa altura fizemos deslocar os pilares. A primeira leva caiu no meio da torrente e uns quantos que tentaram passar o vau perderam o pé nos fossos que tínhamos cavado e foram arrastados. E depois de os nossos arqueiros terem disparado as primeiras flechas, os galeses bateram em retirada. Os rapazes que tinham ficado escondidos do outro lado foram atrás deles e obrigaram-nos a ir mais depressa. Entretanto, John Miller já tinha fechado as comportas. Se tivermos agora umas semanas sem chuva, pomos a ponte outra vez de pé. Os galeses deixaram três homens mortos, afogados no riacho; os outros tiraram-nos para fora, meio encharcados, e levaram-nos com eles ao fugir. Todos, à excepção de um e esse é a causa desta minha jornada. É um jovem de muito boas maneiras - disse a freira -, foi arrastado pela corrente e nós retirámo-lo de lá, empanturrado de água e completamente perdido, se nós não o tivéssemos despejado, batendo-lhe no peito para o chamar à vida e para nos contar a sua história. Podeis mandar retirá-lo da nossa tutela quando quiserdes. Com as coisas da maneira que parece que estão, ele pode muito bem ser-vos útil.

- Assim como qualquer prisioneiro galês - disse Hugh, resplandescente. - Onde foi que o meteram?

- John Miller tem-no bem fechado e guardado. Não me aventurei a trazê-lo até junto de vós por razões fáceis de entender. Ele é rápido como um pardal e escorregadio como um peixe e, se não fosse estar amarrado de pés e mãos, duvido que alguma vez tivéssemos conseguido segurá-lo.

-Vamos tentar trazê-lo em segurança-disse Hugh com convicção. - Que espécie de homem vos parece ser? Já vos disse o nome?

- Ele não diz uma palavra a não ser em galês, língua que desconheço, tal como acontece com todas nós. Mas ele é jovem, provido da forma que compete a um príncipe e suficientemente altivo na sua maneira para que tenha tido tal nascimento, não é nenhum simplório. Pode vir a ser de grande valor se houver troca de prisioneiros.

- Irei buscá-lo amanhã - prometeu Hugh -, e agradeço-vos de todo o coração. Ao amanhecer terei uma companhia pronta para partir. Será melhor que eu dê uma vista de olhos pela fronteira e, se vos for possível esperar uma noite, escoltar-vos-emos em segurança até ao convento.

- Seria mais avisado - disse o abade. - Os nossos aposentos de hóspedes, bem como tudo aquilo que temos, estão à vossa disposição e, quanto aos vizinhos que tão bom serviço prestaram, são igualmente bem-vindos. Será melhor regressarem com a garantia do número e de armas. Quem sabe se não haverá bandos de saqueadores na floresta, uma vez que eles já se mostraram tão ousados?

- Duvido - replicou ela. - Não vimos quaisquer sinais disso quando nos dirigíamos para cá. Os homens é que não quiseram que eu me aventurasse avir sozinha. Mas de qualquer forma, aceito com prazer a vossa hospitalidade, Sr. Abade, e sentirei igual gratidão pela vossa companhia no caminho de regresso, meu senhor-disse sorrindo, pensativa, para Hugh.

- Por minha honra - disse Hugh para Cadfael quando atravessavam o pátio juntos, deixando a irmã Madalena a jantar como convidada do abade -, eu devia nomeá-la general-chefe de toda a floresta, em vez de lhe oferecer protecção. Devíamos era tê-la tido connosco em Lincoln, onde os nossos inimigos atravessaram a torrente, coisa que os dela não conseguiram. A viagem para o Sul amanhã na sua companhia não deixará de ser um prazer, além de poder vir a ser-nos proveitoso. O meu ouvido estará devotamente atento a qualquer conselho que essa senhora resolva dispensar-me.

- Estareis a dar prazer e ao mesmo tempo a recebê-lo - disse Cadfael com franqueza. - Ela pode ter feito voto de castidade e aquilo que promete cumpre. Mas uma coisa que não faz parte do seu juramento é nunca se deleitar com a visão, a conversa e a companhia de um homem como deve ser. Duvido que alguma vez ela aceitasse uma coisa dessas, consideraria um desperdício e uma loucura rejeitar assim uma dádiva de Deus.

O grupo reuniu-se depois das Matinas: a irmã Madalena e os seus quatro seguidores, Hugh e meia dúzia de guardas armados da guarnição do castelo. O irmão Cadfael ficou a vê-los juntarem-se e tomar as suas montadas e despediu-se com caloroso apreço da sua acompanhante feminina.

- Acho que vou ter uma certa dificuldade - admitiu -, em aprender a tratar-vos pelo vosso novo nome.

Ao ouvir aquilo, a covinha afundou-se e resplandeceu, para desaparecer em seguida.

-Ah, isso! Estais a pensar que eu ainda não me arrependi de nada do que fiz, e devo confessar-vos que eu própria não me lembro de tal coisa. Não, mas foi um tal conforto e satisfação para todas elas! Santas almas que me acolheram no seu coração com tanta alegria, uma irmã caída que foi recuperada. Não pude deixar de lhes dar aquilo que elas queriam e achavam adequado. Sou o seu orgulho, vangloriam-se em mim.

-Bom, é natural-disse Cadfael -, ao ver como acabais de afastar do seu ninho a pilhagem, a violação e, provavelmente, a morte.

- Bom, isso elas acham que não é muito próprio de uma mulher, embora se alegrem com os resultados. Pobres pombas que batiam as asas de inquietação... mas também eu nunca fui propriamente uma pombinha-disse a irmã Madalena -, só os homens é que admiram verdadeiramente o falcão que há em mim.

E sorriu, montando na pequena mula, a caminho de casa e rodeada por homens que já sentiam admiração por ela e que estavam mais que desejosos de oferecer admiração. Na corte ou no claustro, Avice of Thornbury, sempre havia de fazer que as cabeças dos homens se voltassem para a seguir.

 

Antes do cair da noite, Hugh estava de volta com o seu prisioneiro, depois de ter inspeccionado a orla oeste de Long Forest sem encontrar soldados prontos para qualquer incursão ou indivíduos a monte vivendo sem rei nem roque. O irmão Cadfael viu-os passar diante da entrada da abadia, quando atravessavam a cidade antes de subirem ao castelo onde aquele galês que poderia vir a tornar-se valioso poderia ser posto a salvo e, à falta de uma garantia credível, fechado a sete chaves nalguma cela suficientemente impenetrável. Hugh não podia dar-se ao luxo de o perder.

Cadfael apenas o viu de relance, quando passaram ao lusco-fusco do entardecer. Parecia que lhes causara alguns trabalhos pelo caminho, pois trazia as mãos atadas, o cavalo era levado à arreata e ele tinha os pés amarrados aos estribos, enquanto um arqueiro cavalgava logo atrás, a uma distância sugestiva. Se tais precauções tinham a finalidade de lhe impedir a fuga, tinham sido bem sucedidas, mas se a intenção era intimidá-lo, como o próprio jovem parecia acreditar, tinham falhado notoriamente, pois ele seguia com um ar de desafio, altivo e desdenhoso, bem direito na sua sela e a assobiar, lançando ocasionalmente, por cima do ombro, algumas tiradas em galês dirigidas ao arqueiro, que certamente não as teria suportado com tanta indiferença se lhes compreendesse o significado, como acontecia com Cadfael. Tratava-se, na verdade, de um jovem muito atrevido e arrogante, aquele prisioneiro, embora em parte isso pudesse não passar de simples bravata.

Era ao mesmo tempo um jovem muito bem-parecido, de estatura média para galês, com as maçãs do rosto e o queixo proeminentes e a cor avermelhada dos da sua raça. Uma espessa massa de caracóis negros caía-lhe graciosamente sobre a fronte e as orelhas, agitada pelo vento sudoeste, pois seguia de cabeça descoberta. As mãos e os pés amarrados não o impediam de se sentar no cavalo como um verdadeiro centauro e a voz, que importunava os guardas num galês insolente, era ligeira e límpida. A irmã Madalena falara verdade ao dizer que os seus atavios era principescos e os seus modos certamente o anunciavam como altivo e, provavelmente, pensou Cadfael, irremediavelmente adulado. O que não era situação muito rara quando se tratava de um filho provavelmente único, distinto na sua estatura física e psicológica.

Passaram e o assobiar de desafio do prisioneiro, forte e melodioso, foi morrendo gradualmente ao longo do portão exterior e sobre a ponte. Cadfael voltou ao seu trabalho na oficina do jardim de plantas medicinais e soprou o lume para ferver o elixir de marroio, feito de fresco para as tosses e constipações do Inverno.

Na manhã seguinte, Hugh desceu do castelo com o pedido de cedência do irmão Cadfael, por causa do prisioneiro, pois parecia que tinha um enorme rasgão na coxa, feito ao raspar numa pedra no meio do caudal, e que ele conseguira, com bastante sofrimento, esconder das freiras.

- Imaginais - disse Hugh com um sorriso irónico -, ele teria preferido morrer a desnudar o pernil para que as damas lhe pusessem uma cataplasma. E, justiça lhe seja feita, embora o ferimento não seja grave, os poucos quilómetros que fez ontem a cavalo devem ter-lhe custado algumas dores, sem que desse mostras disso. E corou como uma rapariga quando o víamos aliviar o lado ferido e o fizemos despir.

- E deixaram-no sem tratamento toda a noite? Não posso acreditar! Então, por que é que precisam de mim? - perguntou Cadfael, astuto.

-Porque falais bem o galês e galês do norte. Ele é com certeza de Gwynedd, um dos rapazes de Cadwaladr, embora nada impeça que lhe façais o tratamento enquanto estiverdes com ele. Nós falamos-lhe em inglês e ele sacode a cabeça e responde sempre em galês, mas com um brilho insolente no olhar que me leva a crer que ele compreende muito bem e está a troçar de nós. Vinde, portanto, falar com ele em inglês e desmascarar o atrevido, quando ele pensar que os seus insultos galeses podem passar por respostas inocentes.

- O rapaz nunca se teria livrado da irmã Madalena - disse Cadfael, pensativo -, se ela tem sabido do ferimento. Nem os rubores o teriam salvo. - E afastou-se diligente, antes de sair com Hugh para o castelo para ter a certeza de que o irmão Oswin era devidamente instruído naquilo que havia a fazer na oficina. Uma certa dose de curiosidade e alguma tendência para o exagero eram uma das constantes das suas confissões. E, afinal, ele próprio era galês; algures nas intrincadas genealogias do seu país, aquele jovem obstinado podia ser um seu parente distante.

Demonstrando um respeito saudável pela força, espírito e engenho do prisioneiro, tinham-no posto numa cela sem janelas, ainda que decentemente provida. Cadfael entrou sozinho e ouviu fecharem a porta à chave atrás dele. Havia uma luz, um pavio a flutuar num pires com azeite, que era o suficiente para se ver, uma vez que a pedra clara das paredes reflectia a luz de todos os lados. O prisioneiro olhou de esguelha para o hábito beneditino, incerto quanto àquilo que tal vista augurava. Em resposta ao que era nitidamente um cumprimento cheio de cortesia, em inglês, ele replicou, também cortesmente, em galês, mas em resposta a tudo o mais sacudiu a cabeça, como que a desculpar-se, e simulando não perceber uma só palavra. Mas reagiu rapidamente quando Cadfael despejou o bornal e expôs os seu unguentos, loções de limpezas e ligaduras. Talvez durante a noite tivesse encontrado uma boa razão para se dar por contente por ter submetido a ferida a tratamento, porque desta vez despiu-se de boa vontade e deixou que Cadfael lhe renovasse o penso. A cavalgada agravara-lhe o estado, mas o descanso não tardaria a curá-lo. Tinha uma carne pura e magra, suave e firme. Por baixo da pele, o ondulado dos músculos era macio como um creme.

- Foi insensato terdes andado a aguentar isto - disse Cadfael com naturalidade, em inglês -, quando já podíeis estar curado e não pensar mais nisso. Não sabeis pensar? Na vossa situação tendes que aprender a ser discreto.

- Dos ingleses - respondeu em galês, continuando a sacudir a cabeça, para demonstrar que não entendia -, não tenho nada a aprender. Além disso, sei muito bem pensar, senão falava tanto como tu, meu velho cabeça rapada.

- Ter-vos-iam tratado bem, lá em Godric's Ford - prosseguiu Cadfael, inocentemente. - Desperdiçaste os dias que lá passastes.

- Um bando de mulheres idiotas - disse o rapaz, descaradamente -, e ainda por cima velhas e feias.

Era de mais.

- Um bando de mulheres - disse Cadfael num inglês bem audível e cheio de indignição -, que arrancaram vossa senhoria das águas, vos secaram e sacudiram até começardes outra vez a respirar. E, se não conseguis arranjar uma palavra de cortesia para lhes agradecer numa língua que elas entendam, deveis ser o fedelho mais ingrato que jamais desgraçou o País de Gales. E é bom que sabeis, meu elegante paladino, que não há nada mais velho nem mais feio que a ingratidão. Nem mais ridículo, de tal modo que me sinto tentado a arrancar essa ligadura e a deixar-vos consumir, pelo pouco que valeis. Nesta altura já o jovem se sentara bem direito, com a boca aberta e o rosto ainda meio formado e gracioso a traduzir um espanto infantil. Ficou a olhar, engoliu em seco e, lentamente, ruborizou-se desde o peito até à fronte.

- Três vezes tão galês como vós, seu menino tonto - disse Cad-fael, acalmando -, tendo três vezes a vossa idade, segundo creio. Agora, refazei-vos e falai-me em inglês, pois juro que se voltais a falar em galês, vou-me daqui e deixo-vos com a vossa leviandade, que tereis como única companheira. Estamos entendidos?

O rapaz ficou uns momentos à beira da humilhação e da ira, pouco acostumado como estava a tais quedas e, de repente, com a mesma brusquidão, redimiu-se, deitando a cabeça para trás e soltando uma boa gargalhada, ao mesmo tempo arrependido da sua própria insensatez e rendido à armadilha para o qual avançara tão alegremente. Por sorte, era dotado de uma bondade natural que impedia que se tivesse tornado demasiado arrogante e caprichoso.

- Assim já nos podemos entender - disse Cadfael, desarmado.

- Acho bem que assobieis e tomeis um ar fanfarrão para alimentar a própria coragem, mas para quê fingir que não sabeis uma palavra de inglês? Tão perto da fronteira, quanto tempo levaríeis a ser descoberto?

- Um dia ou dois a mais que fosse - suspirou o jovem com resignação -, e eu poderia ter descoberto o que tencionam fazer de mim.

- O seu domínio da língua inglesa era bastante fluente, agora que aceitara utilizá-la. - Sou novo nisto e queria ver se me orientava.

-E os comentários atrevidos serviam para fortalecer os tendões, não? É uma vergonha a maneira como vos referistes às santas mulheres que vos salvaram a vida, impertinente.

- Nunca pensei que alguém ouvisse e compreendesse - protestou o prisioneiro e logo a seguir admitiu com magnanimidade. - Mas também não posso dizer que me sinta orgulhoso disso. Um pássaro apanhado numa rede, debatendo-se e bicando em todas as direcções, ao mesmo tempo de raiva e para tentar a fuga. Por outro lado, também não queria revelar nada sobre mim próprio, até ter conseguido avaliar o meu captor.

- Nem revelar o vosso próprio valor - sugeriu Cadfael, astuto -, com receio que o resgate se tornasse muito alto. Nem nome, nem posto, nada que permitisse calcular-vos o preço?

A cabeça de cabelos escuros fez um sinal de assentimento. Olhou para Cadfael, visivelmente a debater consigo próprio até que ponto devia levar as suas revelações, mesmo depois de ter sido descoberto, e de repente, com a mesma impulsividade, abriu de par em par as comportas e deixou jorrar as palavras.

-Para dizer a verdade, já muito antes de termos assaltado o convento que eu me sentia pouco à vontade com toda esta loucura. Owain Gwynedd não sabia nada acerca das tropas do irmão, por isso vai ficar muito aborrecido com todos nós e, quando Owain está aborrecido, eu tenho muito cuidado em ver onde ponho os pés. E foi isso que eu não fiz quando fui com Cadwaladr. Quem me dera ter pensado melhor e ter ficado fora de tudo. Eu nunca quis fazer mal a essas senhoras religiosas, mas como é que havia de recuar depois de me ter metido nisso? E depois deixar-me apanhar! Por um bando de mulheres idosas e de camponeses! Devem ficar todos furiosos comigo, se é que não vou ser o alvo de chacota geral. - Parecia sentir-se enfastiado, mais que abatido, e encolheu os ombros, sorrindo com uma certa bonomia ao pensar que poderiam rir-se dele. Mas, de qualquer forma, essa possiblidade era-lhe nitidamente dolorosa. - E se ainda por cima vou sair caro a Owain, será mais uma mancha negra sobre mim. Ele não é a espécie de homem que goste de resgatar idiotas a peso de ouro.

Sem dúvida que o jovem ganhava bastante em que o conhecessem melhor. Passara de uma forma honesta e viril do desejo de fustigar toda a gente para o reconhecimento de que deveria antes estar a fustigar-se a si próprio. Cadfael começava a simpatizar com ele.

-Deixai-me que vos diga um segredo. Quanto mais valeres, mais bem acolhido sereis por Hugh Beringar, que vos tem cativo aqui. E não é uma questão de ouro. Há um senhor, o senhor deste condado, que deve estar prisioneiro no País de Gales, como vós estais aqui, e Hugh Beringar quere-o de volta. Se o vosso peso conseguir equilibrar o dele e se se provar que ele lá está, e com vida, podeis considerar-vos a caminho de casa. Sem qualquer pena por parte de Owain Gwynedd, que nunca quis meter os dedos naquela gamela, e que ficará muito satisfeito em o demonstrar, devolvendo-nos Gilbert Prestcote.

-Achais que sim? - O rapaz animara-se e tinha corado, com os olhos muito abertos. - Então, eu devia falar? Tenho possiblidade de ser libertado, agradando ao mesmo tempo aos galeses e aos ingleses? Isso seria a melhor solução que eu alguma vez podia esperar.

- Ou merecer! - disse Cadfael, sem rodeios, vendo o pescoço moreno e macio retesar-se perante a ofensa e depois descontrair-se de novo, ao mesmo tempo que os caracóis negros eram atirados para trás e o sorriso aparecia de novo. - Bom, não tem importância! Contai-me já essa história, enquanto eu estou aqui, pois sinto-me muito curioso, mas contai-a só uma vez. Deixai-me ir buscar Hugh Beringar e vamos ver se nos entendemos. Para quê ficar aqui deitado na pedra, numa escuridão permanente, quando podíeis andar a esticar as pernas nas salas do castelo?

- Ganhastes! - disse o rapaz, com um brilho de esperança no rosto. - Levai-me à confissão que eu não escondo nada.

Uma vez a decisão tomada, ele falou alegremente e com desenvoltura, extrovertido por natureza e muito pouco dado ao silêncio. A abstenção da palavra devia ter-lhe custado prodígios de autodomínio. Hugh escutou-o com um rosto impenetrável, mas Cadfael sabia agora como ler o mais ligeiro estremecimento da fronte magra e cheia de vivacidade, cada reflexo dos olhos negros.

- O meu nome é Elis ap Cynan, minha mãe era prima de Owain Gwynedd. Ele é meu tutor e sempre tomou conta de mim, enquanto estive entregue às pessoas a quem me confiou depois da morte do meu pai. Refiro-me ao meu tio Griffith ap Meilyr, em casa de quem cresci juntamente com o meu primo Eliud, como dois irmãos. A mulher de Griffith é também uma parente afastada do príncipe e Griffith tem um posto elevado entre os seus oficiais. Owain tem-nos em grande estima. Não seria de boa vontade que ele me deixaria cativo - disse o jovem com firmeza.

- Mesmo depois de terdes corrido atrás do irmão dele para uma batalha na qual ele não queria tomar parte? - disse Hugh, com ar sério mas em voz suave.

- Mesmo assim - insistiu Elis com segurança. - Embora, se é que devo confessar a verdade, eu desejasse nunca o ter feito e hei-de desejá-lo ainda com mais força quando tiver de regressar e enfrentá-lo. Ele é capaz de me esfolar vivo. - No entanto, não parecia especialmente deprimido com a ideia e o seu sorriso repentino, não totalmente aberto na presença ainda não exprimentada de Hugh, fez uma aparição momentânea. - Fui insensato. E não pela primeira vez, que também não terá sido a última. Eliud foi mais avisado. Mas ele é uma pessoa grave e profunda, pensa como Owain. Foi a primeira vez que seguimos caminhos diferentes. Como eu desejaria agora ter-lhe dado ouvidos! Nunca o vi enganar-se, fosse no que fosse. Mas eu estava sequioso de acção e obstinado, por isso fui.

-E haveis gostado da acção a que assististes?-perguntou Hugh secamente.

Elis mordeu o lábio, pensativo.

- A batalha foi uma luta igual, com todos armados, de um lado e doutro. Estivestes lá? Então, sabeis por vós mesmo que foi um grande feito o nosso atravessar o rio caudaloso e aguentar-nos naquele pântano gelado no estado em que estávamos, ensopados e a tremer de frio... -A recordação estimulante fizera-lhe lembrar repentinamente a segunda travessia que tentara e o seu final menos heróico, o posto daquele sonho de glória. Pescado das águas como um gatinho à beira de se afogar e trazido de novo à vida com a cara enfiada no chão lamacento, ao mesmo tempo que regorgitava a água que tinha engolido e que um guarda florestal bem musculado o espremia com as duas mãos. O seu olhar cruzou-se com o de Hugh e viu reflectir-se nele a sua própria recordação, que ele honrou com um sorriso-Bom, as águas de uma enxurrada não dão vantagem a ninguém, engolem um galês com a mesma facilidade com que engolem um inglês. Foi aí que lamentei o sucedido, não em Lincoln. O combate foi bom. Depois, não, a cidade deu-me a volta ao estômago. Se tivesse sabido antes, não estaria lá. Mas estava e não podia apagar o que tinha sido feito.

- Dizeis que vos revoltou o estômago ver o que fizeram em Lincoln -contrapôs Hugh e com razão -, no entanto acompanhastes os que foram saquear Godric's Ford.

- Que é que eu havia de fazer? Pôr-me contra os outros todos, meus amigos e companheiros, pôr o nariz no ar e dizer-lhes que aquilo que tencionavam fazer era uma torpeza? Não sou assim tão heróico! - disse Elis abertamente e com calor. - Ainda assim, tendes de admitir que não fiz mal a ninguém em Godric's Ford, no final de contas. Fui apanhado e, se vos agradar dizer que foi bem feito, não levarei a mal. O final da história é que aqui me tendes, à vossa disposição. Sou aparentado com Owain e, quando ele souber que estou vivo, vai querer-me de volta.

- Nesse caso, podemos chegar a um acordo sensato - disse Hugh -, pois estou convencido que o meu senhor, a quem eu quero de volta com a mesma convicção, se encontra prisioneiro no País, como vós vos encontrais aqui e, se tudo isso for verdade, não deve haver dificuldade em fazer a troca. Não tenho qualquer desejo de vos ter fechado à chave numa cela, no caso do vos portardes devidamente e aguardardes os acontecimentos. É o caminho mais curto para o regresso. Dai-me a vossa palavra de honra que não tentareis fugir e que não saireis do recinto do castelo e podereis movimentar-vos à vontade aqui dentro.

-De todo o coração!-disse Elis ansioso.-Dou-vos a minha palavra em como não tentarei nada nem porei o pé fora dos portões, enquanto não tiverdes o vosso homem de volta e não me for dada permissão para partir.

Cadfael fez-lhe uma segunda visita no dia seguinte para se certificar se o seu penso tinha unido os bordos do ferimento do jovem galês e se não havia inflamação, mas a carne jovem e saudável juntou-se como uma união de dois amantes e o rasgão não tardaria a desaparecer, sem deixar marcas.

Era um jovem muito insinuante, esse tal Elis ap Cynan, fácil de ler como um livro, aberto como um malmequer ao meio-dia. Cadfael ainda se demorou um bocado para puxar por ele, o que era tarefa fácil e lhe proporcionou uma colheita abundante e sincera. Agora que não tinha nada a perder e ninguém a escutá-lo a não ser um indivíduo idoso e tolerante, da sua própria raça, abriu todas as suas folhas com uma inocência tagarela.

- Tive uma altercação séria com o Eliud por causa desta brincadeira - disse lastimoso. -Ele dizia que era má política para o País de Gales e que, fosse qual fosse o saque que conseguíssemos levar connosco, ele nunca valeria nem metade do prejuízo causado. Eu já devia saber que o curso dos acontecimentos acabaria por lhe dar razão, ele tem sempre razão. E, no entanto, não há ressentimento, é isso que é maravilhoso! Uma pessoa não pode zangar-se com ele... pelo menos eu não consigo.

- Os irmãos de criação são muitas vezes tão próprios como os irmãos de sangue, isso sei eu - disse Cadfael.

- Muito mais próprios que a maior parte dos irmãos. É como gémeos, que nós quase podíamos ser. Eliud veio a este mundo meia hora antes de mim e sempre assumiu o papel de irmão mais velho. Neste momento, deve estar desesperado por minha causa, pois a única coisa que lhe saberão dizer é que fui arrastado pela corrente. Como eu gostaria que esta troca se fizesse depressa, para ele saber que ainda estou vivo para o importunar.

- Deve haver outras pessoas, além do vosso amigo e primo-continuou Cadfael -, que se aflijam com a vossa ausência. Ainda não sois casado?

Elis fez uma careta de rapazito travesso.

-Por enquanto, estou apenas ameaçado. A minha família prometeu-me em casamento, ainda em criança, mas eu não tenho pressa. É o que acontece a todos quando atingem a maturidade. É preciso considerar as terras e as alianças. - Falava com naturalidade, como de um fardo da idade, que se aceita mas não é bem-vindo. Era evidente que não estava apaixonado pela dama. Provavelmente, conhecia-a e brincara com ela desde a infância e agora mal pensava nela, fosse de que maneira fosse.

- No entanto, ela pode estar bastante mais preocupada convosco a estas horas do que vós com ela - disse Cadfael.

- Ah! - replicou Elis com uma risada agreste. - Não! Se eu tivesse morrido afogado na corrente, já a teriam feito noiva de outro, de nascimento igualmente apropriado, e o resultado era o mesmo. Ela nunca me escolheu a mim, nem eu a ela. Reparai que eu não digo que ela ponha quaisquer objecções, como eu também não ponho, podia ter sido muito pior para qualquer de nós.

- Quem é a feliz dama? - inquiriu secamente Cadfael.

-Agora estais a ficar azedo, só porque eu fui sincero - censurou Elis em tom ligeiro. - Eu alguma vez disse que era um grande partido? Ela é uma rapariga muito interessante, aliás, uma criaturinha pequena, viva, morena, bastante atraente, à sua maneira; se é com ela que tenho de casar, não ponho objecções. O pai é Tudur ap Rhys, o senhor de Tregeiriog em Cynnlaith, um indivíduo de Powys, mas grande amigo de Owain e com a mesma maneira de pensar. A mãe dela era de Gwynedd. O nome da jovem é Cristina e a sua mão é considerada um alto prémio - disse sem entusiasmo o beneficiário proposto. - É assim de facto, mas eu ainda passaria bem sem tal prémio durante mais algum tempo.

Caminhava de um lado para o outro no pátio exterior, para se aquecer, pois embora o tempo se apresentasse risonho, o frio era intenso e o jovem mostrava relutância em ir para dentro, enquanto não fosse obrigado a isso. Caminhava com o rosto voltado para cima, para o céu límpido, visível por cima das torres, e o seu passo era leve e elástico como se já estivesse a pisar a erva dos caminhos.

- Podíamos poupar-vos durante mais algum tempo – sugeriu Cadfael, malicioso -, retardando a nossa busca e conservando-vos aqui, solteiro e em segurança, o tempo que quiserdes.

-Ah não! - Elis soltou uma gargalhada sonora.-Não, isso não! Mais vale estar casado no País de Gales do que gozar esta espécie de liberdade aqui. Embora o melhor de tudo fosse o País de Gales e continuar solteiro - admitiu o noivo relutante, continuando a rir. - Casar ou evitar, segundo creio, deve vir a dar no mesmo. Há-de continuar a haver caçadas e armas e amigos.

Uma perspectiva pouco brilhante, pensou Cadfael, sacudindo a cabeça, para a tal criaturinha pequena, viva e morena, Cristina filha de Tudur, caso viesse a esperar alguma coisa mais do esposo do que um adolescente bem-parecido, disposto a tolerá-la e a dar-lhe abrigo, mas totalmente indisposto para o amor. Embora muitos casamentos decentes tenham partido de uma base igual por desencadear a paixão.

Nas suas voltas, tinham acabado por se aproximar do arco que conduzia ao pátio interior e a luz do sol, oblíqua, fria e brilhante, atravessou o seu caminho. Ali dentro, no último piso da torre do canto, Gilbert Prestcote instalara os aposentos da família, em vez de manter uma casa na cidade. Pelos intervalos das ameias da parede circundante, o Sol aflorava a porta estreita que levava aos aposentos privados, na parte mais alta, e a jovem que de lá emergiu avançou a direito para a luz. Era exactamente o oposto de pequena, viva a morena, com a sua figura alta e magra como um vidoeiro, o rosto de um oval delicado e deslumbrantemente loira. O sol brilhou-lhe nos cabelos descobertos e ondulados, enquanto ela hesitava um momento antes de atravessar a soleira da porta e estremecia ao de leve sentindo o abraço do ar gelado.

Elis vira-lhe a palidez radiosa banhada de sol e ficou parado, através do arco, com os olhos redondos e fixos, a boca aberta. A rapariga aconchegou a capa em volta do corpo, fechou a porta atrás dela e atravessou o recinto com passo vivo, em direcção à saída, a caminho da cidade. Cadfael teve de puxar Elis pela manga para o arrancar ao seu encantamento e arrastá-lo para diante, fazendo-o sair do caminho da rapariga e dando-lhe a entender que estava a olhá-la com uma fixidez embaraçosa, que bem poderia parecer-lhe ofensiva, caso ela se apercebesse disso. Ele avançou, obedientemente, mas logo que deu alguns passos, o queixo rodou-lhe novamente na direcção do ombro e ficou mais uma vez a olhar, parado, sem que fosse possível fazê-lo sair dali.

Ela passou o arco, com um leve sorriso de prazer perante a manhã esplendorosa, mas mesmo assim com qualquer coisa de grave, ansioso e triste a transparecer-lhe do rosto. Elis não se tinha afastado o suficiente para passar despercebido, a jovem sentiu-lhe a presença próxima e voltou bruscamente a cabeça. Houve um momento breve em que os seus olhos se encontraram, os dela de um azul-escuro como o das flores da pervinca. Alterando um pouco o ritmo do andar, correspondeu por instantes ao olhar dele, quase parecendo que lhe dirigia um sorriso hesitante, como se o reconhecesse. Um tom rosado, delicado, cobriu-lhe ao de leve o rosto, antes de conseguir controlar-se, desviar os olhos e retomar o caminho, agora mais apressada, em direcção à barbacã.

Elis ficou parado, seguindo-a com o olhar, até que ela passou o portão e deixou de a ver. O rosto dele também se cobrira de um vermelho-vivo.

- Quem era aquela dama? - perguntou, ao mesmo tempo ansioso e maravilhado.

- Aquela dama - disse Cadfael -, é filha do conde, o mesmo homem que esperamos encontrar vivo, algures numa prisão do País de Gales e resgatá-lo em troca da vossa pessoa, como nosso cativo. A mulher de Prestcote veio a Shrewsbury por causa disso mesmo e trouxe com ela a enteada e o filhito, na esperança de poder em breve voltar a ver o seu senhor. Esta é a sua segunda esposa. A mãe da jovem morreu sem lhe ter dado um filho varão.

- Sabeis o nome dela? Da jovem?

- O nome dela - respondeu Cadfael -, é Melicent.

-Melicent!-desenhou ele com os lábios em silêncio. Em voz alta disse, mais para o céu e para o Sol do que para Cadfael. - Alguma vez se viu um cabelo assim, como a prata do Sol, mais fino que fios de seda! E o rosto todo ele leite e rosas... Que idade terá?

- Como hei-de eu saber? Uns dezoito, a julgar pelo que aparenta. Deve ser mais ou menos da mesma idade que a vossa Cristina, segundo creio - disse o irmão Cadfael, fazendo-lhe recordar daquela maneira pouco gentil a realidade das coisas. - Estar-lhe-eis prestando um grande serviço e uma autêntica graça se lhe devolverdes o pai. E, tanto quanto sei, estás igualmente ansioso por regressar ao vosso país - concluiu num tom enfático.

Elis desviou o olhar com dificuldade da esquina onde Melicent Prestcote tinha desaparecido e pestanejou, sem compreender, como se acabasse de acordar, sobressaltado, de um sono profundo.

- Sim - replicou num tom inseguro e pôs-se a caminhar como que ainda meio adormecido.

A meio da tarde, enquanto Cadfael estava ocupado em refazer a sua provisão de cordiais para o Inverno, na oficina instalada no meio do jardim de ervas medicinais, Hugh entrou, fazendo-se acompanhar de uma corrente de ar gelado que só desapareceu quando ele conseguiu fechar a porta de encontro ao vento de leste. Aqueceu as mãos ao brazeiro, encheu uma caneca com vinho da garrafa de Cadfael, sem esperar que lho oferecessem, e sentou-se no banco largo, encostado à parede. Sentia-se em casa naquele mundo em miniatura, mal iluminado, a cheirar a madeira e onde se ouvia o roçar das ervas. Era aí que Cadfael passava uma boa parte do seu tempo e concebia algumas das suas melhores ideias.

- Venho agora mesmo de falar com o abade - disse Hugh -, e pedi-vos emprestado por alguns dias.

- E o abade concordou em me emprestar? - perguntou Cadfael com interesse, ocupado a rolhar um boião ainda quente.

-Para uma boa causa e por uma razão justa, sim. No que diz respeito a encontrar e recuperar Gilbert, ele está tão preocupado como eu. E quanto mais depressa soubermos se a tal troca é possível, melhor será para todos.

Cadfael não podia deixar de concordar. Pensava, com certo constragimento, mas ainda sem grande inquietação, na visita dessa manhã. Uma visão tão longe de tudo o que era galês e familiar podia muito bem causar deslumbramento em olhos jovens e impressionáveis. E havia um compromisso anterior, as subtilezas da honra galesa e a realidade ainda mais amarga de Gilbert Prestcote nutrir um velho ódio, sempre vivo, contra os galeses, que alguns dessa raça retribuíam vigorosamente.

- Eu tenho uma fronteira a guardar e uma guarnição a manter - disse Hugh, esfregando a caneca com as duas mãos para a aquecer -, e há vizinhos do outro lado da fronteira, ébrios com as suas próprias proezas, que muito provavelmente andam loucos à procura de mais conquistas. Fazer chegar a informação a Owain Gwynedd é coisa muito arriscada, todos nós sabemos isso. Sentiria fortes apreensões se pensasse em enviar nessa missão um capitão que não conheça o galês, pois seria bem possível que não voltasse a vê-lo. Mesmo um grupo armado, de cinco ou seis homens, poderia desaparecer. Vós sois galês, tendes o hábito como cota de armas e logo que atravesseis a fronteira tendes parentes por toda a parte. Acho que sereis uma bem melhor escolha do que qualquer grupo armado. Com uma pequena escolta, caso encontreis alguns indivíduos que andem a monte, o vosso conhecimento da língua galesa e uma rede de parentes para citar a qualquer destacamento regular que vos apareça no caminho. Que é que achais?

- Sentir-me-ia envergonhado, na minha qualidade de galês - disse Cadfael com grande à vontade -, se não conseguisse recitar a minha ascendência até à décima sexta geração, bem como os nomes de alguns dos meus parentes do outro lado da fronteira deste condado, o que já é uma boa maneira de começar a jornada para Gwynedd.

-Ah, mas correm rumores de que Owain pode não estar tão distante como as terras bravias de Gwynedd. Com Ranulf de Chester tão instalado nas suas conquistas e ávido de mais, o príncipe veio para leste para guardar o que lhe pertence. São essas as notícias que correm. Diz-se mesmo à boca pequena que é possível que ele se encontre do lado de cá dos Berwyns, em Cynllaith ou Glyn Ceiriog, vigiando atentamente Chester e Wrexham.

- Não me admirava nada - concordou Cadfael. - É um homem de ideias largas e directas. E qual é a incumbência? Dai-ma a conhecer.

- Perguntar a Owain Gwynedd se detém, ou pode tomar do irmão, a pessoa do meu conde, feito prisioneiro em Lincoln. Caso o detenha ou possa saber onde está e apoderar-se dele, se estará disposto a trocá-lo por este seu jovem parente, Elis ap Cynan. Sabeis e podeis explicá-lo melhor que ninguém, que o rapaz está são e escorreito. Owain pode tomar todas as precauções que quiser, pois todos sabem que ele é um homem de palavra, mas no que diz respeito à minha pessoa, ele pode não ter as mesmas certezas. É possível que nem sequer saiba o meu nome. No entanto, ficará a conhecer-me, se quiser negociar este caso. Estais disposto a ir?

- Quando? - perguntou Cadfael, pondo de lado o boião para arrefecer e sentando-se ao lado do amigo.

- Amanhã, se conseguirdes delegar tudo aqui.

- O homem mortal deve estar preparado e disposto a delegar em qualquer momento - disse Cadfael como seriedade -, uma vez que é mortal. Oswin tornou-se espantosamente hábil e competente com as ervas, mais do que eu alguma vez esperei quando ele veio para o pé de mim. E o irmão Edmundo é senhor do seu próprio reino e pode passar muito bem sem mim. Se o Sr. Abade está de acordo em me libertar, estou à vossa disposição. Farei tudo o que puder.

- Então, vinde ao castelo de manhã, depois das Matinas, e sereis montado num bom cavalo. - Sabia que isso ia ser um atractivo e um prazer e sorriu ao ver como era bem recebido. - E alguns homens escolhidos para a vossa escolta. O resto é com o vosso idioma galês.

- É bem verdade - disse Cadfael, complacente -, uma palavra firme em galês é melhor do que um escudo. Lá estarei. Mas não vos esqueçais de escrever devidamente as vossas condições num pergaminho. Owain é um homem de leis, gosta das coisas postas com clareza.

Depois do ofício da manhã-uma manhã ainda mais cinzenta que a precedente-Cadfael envergou um par de botas e uma capa e subiu a cidade em direcção ao recinto do castelo, onde encontrou os cavalos da sua escolta já selados e os homens à espera dele. Conhecia-os a todos, mesmo ao jovem que Hugh escolhera como possível refém para o prisioneiro desejado, no caso de tudo correr bem. Reservou alguns momentos para se despedir de Elis e foi encontrá-lo sonolento e um tanto melancólico, àquela hora na sua cela.

- Desejai-me sorte, meu rapaz, pois vou a caminho de ver o que se pode arranjar quanto à tal permuta da vossa pessoa. Com um bocado de boa vontade e uma parcelazinha de sorte, daqui a umas duas semanas já podeis ir a caminho de casa. Vai ser uma grande alegria voltardes ao vosso próprio país e serdes um homem livre.

Elis concordou, uma vez que era isso, obviamente, o que esperavam dele, mas o seu entusiasmo era morno.

-Ainda não é certo, pois não, que o vosso conde esteja lá para ser libertado? E mesmo que esteja, ainda pode levar algum tempo a encontrá-lo e a arrancá-lo das mãos de Cadwaladr.

- Nesse caso - disse Cadfael -, tereis de encher a vossa alma de paciência e suportar mais algum tempo o cativeiro.

- Se tiver de ser, assim será - concordou Elis, com demasiada alegria e espírito de decisão para quem, até ali, não estava seguramente com inclinação para ser paciente. -Mas espero sinceramente que ides e volteis em segurança - disse respeitosamente.

- Portai-vos bem enquanto trato dos assuntos - preveniu Cadfael com ar resignado e voltou-se para o deixar. - Levarei as vossas saudações ao vosso irmão de criação, Eliud, se o acaso quiser que me encontre com ele, e dar-lhe-ei a saber que estais de boa saúde.

Elis aceitou a oferta com bastante satisfação, mas tolamente não acrescentou outro nome que poderia e conviria associar à mesma mensagem. E Cadfael, por sua vez, não fez menção disso. Já estava junto da porta, quando Elis o chamou de repente:

- Irmão Cadfael...

- Sim? - disse Cadfael, voltando-se.

- Aquela donzela... a que vimos ontem, a filha do conde...

- Que é que tem?

- Ela já está prometida?

"Ah bom", pensou Cadfael, subindo para o cavalo com a missão bem ensaiada dentro da cabeça e o grupo de homens com armas ligeiras à sua volta, "entusiasmo passageiro, sem dúvida, nunca trocaram uma palavra e o mais provável é que nunca venham a fazê-lo. Logo que regressar ao país de Gales, não tardará a esquecê-la. Se ela não fosse tão loura, tão diferente das raparigas galesas, compostas e morenas, nem sequer teria reparado nela."

Cadfael respondera à pergunta com uma indiferença cautelosa, dizendo que não fazia ideia quais os planos que o conde tinha para a filha e controlou-se para não acrescentar a advertência sem rodeios que tinha na ponta da língua. Mas com um jovem fogoso como aquele, tentar afastá-lo só serviria para o estimular ainda mais. Não encontrando grandes obstáculos à sua frente, era possível que perdesse o interesse. Mas não havia dúvida que a jovem tinha uma beleza etérea, tanto mais atraente porquanto era matizada com uma gravidade e uma tristeza inocentes, por causa da situação do pai. O importante era que a sua missão tivesse êxito... e quanto mais depressa melhor!

Deixaram Shrewsbury pela Ponte de Gales e lançaram-se a uma velocidade considerável na primeira parte do seu caminho, para noroeste, em direcção a Oswestry.

Sybilla, Lady Prestcote, era vinte anos mais nova que o marido, uma mulher bonita e vulgar, bem intencionada para com todos e dis-tinguindo-se sobretudo por ter feito aquilo que a primeira mulher do conde não conseguira, dando-lhe um filho varão. O pequeno Gilbert tinha sete anos de idade, era a luz dos olhos do pai e a razão de ser da mãe. Melicent sentia-se aceite mas ignorada, embora, por causa da afeição que dedicava àquele irmãozito cheio de beleza, não sentisse qualquer ressentimento. Um herdeiro é um herdeiro, uma herdeira é feito muito menos importante.

Os aposentos da torre do castelo, ainda que se tivesse feito tudo para os tornar confortáveis, permaneciam frios como a pedra de que eram construídos, cheios de correntes de ar gélido, de forma nenhuma o local indicado para instalar uma jovem família, e era na verdade raro que Sybilla e o filho viessem para Shrewsbury, quando tinham à sua disposição seis outras casas senhoriais de longe mais agradáveis. Hugh ter-lhe-ia oferecido hospitalidade na sua própria casa naquele momento de aflição, mas Lady Prestcote tinha demasiados criados para que pudesse acomodá-los lá e preferira a austeridade da sua habitação fria, mas espaçosa, na torre do castelo. O marido estava habituado a ocupá-la sozinho, quando os seus deveres o obrigavam a ficar junto da guarnição. Desejosa da sua presença e preocupada com a sua sorte, sentia-se contente por estar no lugar que lhe pertencia de direito, por muito espartanas que fossem as acomodações.

Melicent dedicava grande afeição ao irmãozito e não lhe desagradava em nada o sistema que lhe atribuía a ele o direito sobre todos os bens do pai, cabendo-lhe a ela apenas um modesto dote. Na verdade, considerara seriamente a possibilidade de ir para freira, deixando intacta a herança dos Prestcote, pois sentia uma inclinação para os altares, relíquias e velas de devoção, mas ao mesmo tempo tinha o bom senso suficiente para compreender que tudo aquilo estava longe de ser uma vocação. Faltava-lhe aquele toque de revelação irresistível que deveria ter sentido.

Como o choque da surpresa, encantamento e curiosidade, por exemplo, que a fez parar, vacilante, quando atravessava o arco para se dirigir ao pátio exterior, e olhou instintivamente para a presença que sentia próxima a atenta, fitando os olhos escuros e sobressaltados do desconhecido, o prisioneiro galês. Não foi a sua juventude e graça, mas antes o olhar fascinado que ficara preso a ela que lhe penetrou até ao coração.

Sempre pensara nos galeses com um sentimento de receio e desconfiança, considerando-os uns selvagens incultos e, de repente, ali estava aquele jovem apresentável e atraente, cujos olhos se deslumbravam e cujas faces se ruborizavam ao cruzar-se com ela. Pensou muito nele. Fez perguntas a seu respeito, tendo o cuidado de dissimular a intensidade do interesse que sentia. E no mesmo dia em que Cadfael se fez ao caminho para procurar Owain Gwynedd, ela viu Elis de uma das janelas do alto da torreja meio aceite pelos os jovens da guarnição, de tronco nu, tentando lutar com um dos melhores alunos do mestre-de-armas, no pátio interior. O prisioneiro não chegava para o jovem inglês, que lhe levava vantagem no peso e no alcance e sofreu uma queda violenta que a fez conter a respiração, num movimento de simpatia e pesar, mas ele não tardou a levantar-se, rindo, quase sem fôlego, para ir bater amigavelmente no ombro do vencedor.

Não havia nada nele, nenhum movimento, nenhum olhar, em que ela não visse generosidade e graça.

Pegou na capa e deslizou rapidamente pelas escadas de pedra, em direcção ao arco por onde ele devia passar, de regresso aos aposentos que ocupava no edifício exterior. Começava a cair o dia, todos iriam pôr de lado os seus trabalhos e distracções e preparar-se para o jantar na grande sala de jantar do castelo. Elis atravessou o arco, coxeando ligeiramente, por causa das contusões recentes, assobiando, e, então, o mesmo estremecimento da consciência que fizera que a jovem voltasse a cabeça exerceu sobre ele um encantamento semelhante.

A canção morreu-lhe nos lábios entreabertos. Estacou como que paralisado, contendo a respiração. Os seus olhares cruzaram-se e não conseguiram desviar-se, mas a verdade é que eles também não tentaram com muito empenho.

- Senhor - disse ela, depois de lhe observar o ritmo irregular da marcha -, receio bem que vos tenhais magoado.

Notou o estremecimento que percorreu o corpo do rapaz, da cabeça aos pés, quando respirou de novo.

- Não - replicou, hesitante como se estivesse perdido num sonho. -Não estava, até este momento. Agoraestou ferido de morte.

- Acho - balbuciou, abalada e tímida -, que ainda não me conheceis...

- Conheço, sim - respondeu Elis -, o vosso nome é Melicent. É o vosso pai que eu devo resgatar para vós... e por um preço...

Por um preço, um preço desastroso, o preço do rompimento daquele enlace de olhares que os aproximou um do outro, até que as suas mãos se tocaram e ficaram perdidos.

 

Cadwaladr podia ter-se divertido um bocado no caminho de regresso ao seu Castelo de Aberysrwyth, levando saque e prisioneiros, mas até estarem a norte do seu destino, Owain Gwynedd impedira com pulso de ferro qualquer surto de desordem. Cadfael e a sua escolta tinham estado, uma ou duas vezes, à beira de encontrar dificuldades, mas, na primeira ocasião, os três homens que andavam a monte e que tinham atravessado uma seta no seu caminho, reconsideraram ao ver o número de indivíduos que estavam a desafiar e esconderam-se a grande velocidade no meio do mato; na segunda, uma patrulha indisciplinada de galeses excitáveis desenvolveu grande afabilidade perante a saudação imperturbável de Cadfael, em galês, e acabou por lhe dar notícias sobre os movimentos do príncipe. Os numerosos parentes de Cadfael, primos em primeiro e segundo grau e antepassados comuns, eram garantia suficiente em quase todo o território de Clwyd e parte de Gwynedd.

Owain, disseram, deixara o seu ninho de águias e dirigira-se para leste, para vigiar de perto Ranulf de Chester, que podia estar tão inchado com o seu êxito que chegasse ao ponto de subestimar a bravura do príncipe de Gwynedd. Andava a patrulhar a orla do território de Chester e tinha chegado a Corwen, no Dee. Foi o que disseram os primeiros informadores. Os segundos, encontrados perto de Rhiwlas, foram categóricos em que ele tinha atravessado as Berwyns e descido até Glyn Ceiriog, e que podia naquele momento estar acampado perto de Llanarmon, ou então com o seu amigo e aliado, Tudor ap Rhys, na sua propriedade de Tregeiriog. Vendo que era Inverno, por mais benigno que se mostrasse naquele momento, e vendo que Owain Gwynedd era consideravelmente mais sensato que a maior parte dos galeses, Cadfael resolveu dirigir-se a Tregeiriog. Para quê acampar, quando tinha mesmo à mão um aliado próximo, com um bom tecto e uma dispensa bem fornecida, num vale relativamente confortável, no meio daquelas desoladas montanhas centrais?

A propriedade de Tudur ap Rhys ficava numa garganta onde um riacho da montanha desaguava no rio Geiriog e os seus limites estavam bem guardados, ainda que discretamente, naqueles tempos incertos, pois uma patrulha de dois homens saiu-lhe ao caminho, um de cada lado, antes que Cadfael e os seus homens tivessem saído da floresta de arbustos sobranceira ao vale. Olhos astutos avaliaram o grupo tranquilo e o espírito por detrás dos olhos concluiu que eram inofensivos, antes mesmo de Cadfael ter pronunciado a sua saudação galesa. A saudação e o hábito eram garantia bastante. O jovem ordenou ao companheiro que fosse à frente e prevenisse Tudur que tinha visitantes e conduziu-os eles próprios, sem pressa, durante o resto do caminho. Para além do rio, com a sua orla de floresta e alguns campos pedregosos, e da amálgama de cabanas de madeira que rodeavam a propriedade, as colinas erguiam-se de novo, castanas e áridas em baixo, brancas e áridas na parte de cima, com os picos arredondados e cheios de neve de encontro a um céu plúmbeo.

Tudur ap Rhys veio cá fora recebê-los e trocar algumas palavras de cortesia: era um homem baixo e atarracado, de compleição forte, com uma abundante cabeleira castanha onde mal aflorava o cinzento, e uma voz sonora e melodiosa que oscilava alegremente entre sons altos e baixos, em cadências que pertenciam mais ao canto do que à fala. Um beneditino galês era uma novidade para ele; um benedito galês enviado de Inglaterra como mediador junto de um príncipe galês era-o ainda mais. No entanto, refreou cortezmente a sua curiosidade e fez conduzir o visitante a um quarto da sua própria casa, onde não tardou a aparecer uma rapariga com a água tradicional para os pés, através de cuja aceitação ou recusa ele daria a entender se tencionava ou não passar ali a noite.

Não tinha ocorrido a Cadfael, até ao momento de ela entrar, que este mesmo Senhor de Tregeiriog era o homem de quem Elis tinha falado, ao despejar a história do seu noivado de rapazinho com uma criatura pequena, morena e viva que, se tivesse mesmo que se casar, lhe serviria muito bem. E agora ela estava ali, com a bacia ligeiramente fumegante nas mãos, acanhada diante do convidado do pai, pois pelo trajar e pelo porte era certamente filha de Tudur. Pequena era-o, sem dúvida, mas com boa figura e de porte altivo. Viva? Os seus modos eram desenvoltos e confiantes e, embora mantendo uma atitude deferente e reservada, tinha um brilho seguro no olhar. Morena também. Tanto os olhos como os cabelos ficavam a pouca distância do negro dos corvos, devido a um leve e cálido toque de vermelho.

Bem-parecida? Não especialmente, quando em repouso, o rosto tinha traços irregulares que estreitavam desde os olhos bem separados até ao queixo pontiagudo, mas logo que falava ou se movia, havia nela uma tal centelha de vida que não precisava de mais beleza.

- Aceito o vosso serviço com todo o gosto - disse Cadfael -, e agradeço-vos muito. Segundo creio, deveis ser Cristina, filha de Tu-dur. E se assim é, então tenho uma mensagem para vós e para Owain Gwynedd, que deverá ser cordialmente bem-vinda para ambos.

- Sou Cristina, sim - disse com súbita animação -, mas como foi que o irmão de Shrewsbury aprendeu o meu nome?

-Por um jovem chamadoElis ap Cynan, a quem talvez já tenhais chorado por o julgardes perdido, mas que se encontra são e salvo no castelo de Shrewsbury neste preciso momento. Que é que podem ter-vos dito acerca dele, desde que o irmão do príncipe regressou de Lincoln com as suas tropas e o seu saque?

A compostura atenta da jovem não se deixou abalar, mas os olhos abriram-se-lhe mais e brilharam.

- Disseram a meu pai que ele tinha ficado para trás com uns outros que se afogaram perto da fronteira - disse -, mas nenhum deles sabia o que lhe tinha acontecido. Isso é verdade? Ele está vivo? É prisioneiro?

- Podeis tranquilizar-vos - disse Cadfael -, pois ele também o está. Não lhe aconteceu nada de mal na batalha junto do rio e é muito fácil comprar-lhe a liberdade para poder voltar para junto de vós e vir a ser, segundo espero, um bom marido.

"Bem podes lançar o isco", pensou para consigo próprio, enquanto observava o rosto da rapariga, que era ao mesmo tempo eloquente e impenetrável, como se ela pensasse numa língua estranha. "Nestas águas não apanhas peixe nenhum. Esta tem os seus segredos e a sua própria maneira de lançar mão dos acontecimentos. Aquilo que pretende guardar para si nunca vais conseguir arrancar-lhe." E a rapariga olhou-o bem nos olhos e disse:

-Eliud vai ficar satisfeito. Também vos falou dele?-Mas a resposta já a conhecia.

- Fez menção de um certo Eliud - admitiu Cadfael, cauteloso, sentindo que o piso era escorregadio. - É um primo, pelo que julgo ter percebido, mas foram criados como irmãos.

- Mais do que irmãos - disse a rapariga. - Posso ir dar-lhe a novidade? Ou devo esperar até que tenhais jantado com o meu pai e transmitido a vossa mensagem?

- Eliud está aqui?

- Neste momento, não, encontra-se com o príncipe algures a norte, perto da fronteira. Mas voltarão ao cair da noite. Estão alojados aqui e as tropas de Owain têm o acampamento perto.

- Óptimo, pois a minha mensagem destina-se ao príncipe e diz respeito à troca de Elis ap Cynan por alguém de valor semelhante para nós, feito prisioneiro, segundo cremos, pelo príncipe Cadwaladr em Lincoln. Se isso é uma novidade tão aprazível para Eliud quanto para si, seria próprio de um espírito cristão tranquilizá-lo em relação ao primo o mais depressa possível.

Ela manteve uma expressão impenetrável e tranquila ao responder:

-Dir-lhe-ei logo que ele saltar do cavalo. Seria na verdade grande pena ver um tal amor fraterno ofuscado um momento mais que o estritamente necessário. - Mas havia qualquer coisa de acre nessa doçura e o olhar dela queimava. Despediu-se cortezmente e deixou-o entregue às suas abluções antes da refeição da noite. Cadfael ficou a vê-la afastar-se, de cabeça erguida e num passo impetuoso, mas sem fazer qualquer ruído, como um gato que andasse a caçar.

Portanto, era assim que as coisas se passavam naquele canto do País de Gales! Uma rapariga prometida em casamento e com o olhar vivo e jovem posto nos seus direitos e privilégios, enquanto o rapaz andava por lá, assobiando, obtuso, criança junto da sua feminilidade, e com o braço em volta do pescoço do outro, inseparáveis desde a infância, com mais assiduidade do que aquela com que dirigia um galanteio à esposa prometida. E ela revoltava-se, com todas as suas notáveis capacidades de espírito e de coração, contra o amor que fazia dela apenas uma terceira e nem sempre bem-vinda.

Não havia aqui razão para desgosto, se ao menos ela pudesse entender. Uma rapariga é mulher muito antes de um rapaz ser homem, se pusermos de lado a simples maturidade das armas. Tudo o que ela precisa fazer é esperar um pouco e servir-se das suas próprias artes, para deixar de ser o terceiro personagem que cai no esquecimento. Mas a jovem era orgulhosa e dotada de um espírito fogoso e não estava disposta a esperar.

Cadfael tornou-se apresentável e dirigiu-se para a mesa abundante mas simples de Tudur ap Rhys. Archotes brilhavam à entrada na luz do anoitecer e, estendendo-se pelo vale, vindo do norte, da direcção de Llansantffraid, ouvia-se a aproximação rápida dos cavaleiros que regressavam da sua patrulha. Dentro da vasta sala, as mesas estavam postas e o fogo, ao centro, ardia com fulgor, lançando para o tecto escurecido o fumo odorífero da madeira, quando Owain Gwynedd, senhor do Norte do País de Gales e de muito território ao lado, se aproximou, contente e com fome, do seu lugar à mesa principal.

Cadfael já o vira uma vez, alguns anos antes, e ele não era um homem fácil de esquecer, sem fazer alarde do seu estado e posição, a herança de realeza era bem evidente na sua pessoa. Ainda mal completara os trinta e sete anos de idade e estava no apogeu do seu vigor: era alto para galês, e louro como a avó, Ragnhild do reino dinamarquês de Dublin, e a mãe, Angharad, conhecida entre as mulheres morenas do sul pelos seus cabelos cor de palha. Os jovens que o acompanhavam, reflectindo uma sólida autoconfiança, avançaram com uma jactância da qual o seu príncipe não tinha necessidade. Cadfael perguntava a si mesmo qual daqueles rapazes fogosos seria Eliud ap Grifnth e se Cristina já lhe teria dito que o primo sobrevivera e em que termos, com aquela amargura nascida do ciúme de ser apenas uma intrusa mal tolerada no meio daquela união selada por juramento.

- E aqui está o irmão Cadfael dos Beneditinos de Shrewsbury - disse Tudur calorosamente, instalando o frade na mesa principal -, com uma embaixada para vós, meu senhor, daquela cidade e condado.

Owain pesou e mediu com o olhar azul e astuto a figura atarracada e o rosto castigado pela intempérie, ao mesmo tempo que afagava a barba dourada que usava cortada curta.

- O irmão Cadfael é bem-vindo, assim como qualquer gesto de amizade vindo desses lados, onde me favorece encontrar uma paz garantida.

- Alguns dos vossos conterrâneos e meus também - disse Cadfael abertamente -, fizeram recentemente uma visita às fronteira de Shropshir, com poucos sentimentos de amizade e deixando a nossa paz bem menos garantida ainda do que já se poderia dizer depois de Lincoln. É possível que tenhais ouvido falar. O príncipe vosso irmão não fez a incursão pessoalmente, pode até mesmo ser que nunca tenhais sancionado tal desmando. Mas deixou alguns homens afogados num dos nossos riachos que levava grande caudal e os quais nós enterrámos decentemente. Além de um outro - continuou -, que as boas irmãs tiraram da água com vida e que vossa senhoria pode desejar libertar, pois, segundo ele próprio conta, é vosso parente.

- Que dizeis! - Os olhos azuis tinham-se alargado, ganhando maior brilho. - Não estive tão ocupado a repelir o conde de Chester que não tivesse discutido esses assuntos com o meu irmão. Houve mais que uma brincadeira dessas no regresso de Lincoln e cada uma delas uma loucura que me vai custar algum trabalho a reparar. Ponde um nome a esse prisioneiro.

- O seu nome - disse Cadfael - é Elis ap Cynan.

- Ah! - disse Owain com um longo suspiro de satisfação e pousando sonoramente a taça. - Com que então esse rapaz louco ainda está vivo para contar a sua história, não é verdade? Pico bem satisfeito por saber issso e agradeço a Deus o alívio e a vós, irmão, a notícia. Não havia um único homem na companhia do meu irmão capaz de jurar como é que ele se tinha perdido ou o que lhe acontecera.

- Iam a correr depressa de mais para poderem olhar por cima do ombro - disse Cadfael com suavidade.

-Vindo de um homem do nosso próprio sangue-replicou Owain com um sorriso irónico -, aceito tais palavras sem segundos sentidos. Portanto, Elis está vivo e prisioneiro! Aconteceu-lhe alguma coisa de grave?

- Mal sofreu um arranhão! E ao mesmo tempo é possível que se tenha tornado mais sensato. Está são como um pêro, isso vo-lo garanto, e a missão que me traz aqui é propor-vos uma troca, caso vosso irmão tenha entre os seus prisioneiros alguém tão valioso para nós como Elis o é para vós. Quem me envia - acrescentou Cadfael -, é Hugh Beringar de Maesbury, que fala em nome de Shropshire, para vos pedir que entregueis o seu chefe e senhor, Gilbert Prestcote. Com todas as saudações e cumprimentos devidos a Vossa Senhoria e a garantia das nossas intenções de manter a paz convosco daqui por diante.

- Os tempos estão propícios a isso-concordou Owain secamente -, e é vantajoso para ambos, no estado actual das coisas. Onde está Elis neste momento?

- No castelo de Shrewsbury, onde tem liberdade de andar por toda a parte.

- E quereis ver-vos livres dele?

- Quanto a isso não há pressa - disse Cadfael. - A nossa opinião a seu respeito é suficientemente boa para que estejamos dispostos a tê-lo connosco mais algum tempo. Mas queremos o nosso chefe, caso esteja vivo e o tiverdes em vosso poder. Hugh procurou-o depois da batalha sem ter encontrado vestígios e foram os galeses de vosso irmão que assolaram o sítio onde ele lutou.

- Demorai-vos aqui uma ou duas noites - disse o príncipe -, e eu mandarei um emissário a Cadwaladr, para saber se ele tem o vosso homem. Se for esse o caso, tê-lo-eis.

Houve música de harpa depois do jantar e cantos e bebeu-se bom vinho, muito depois de o mensageiro do príncipe já ter partido para a primeira etapa da sua longa jornada até Aberystwyth. Houve também lutas amigáveis e troca de gracejos entre os jovens franganotes de Owain e os homens da escolta de Cadfael, embora Hugh tivesse tido o cuidado de escolher alguns que se fizessem recomendar pela sua ascendência galesa, o que não era difícil de conseguir em Shrews-bury, fosse em que altura fosse.

- Qual, entre todos estes - perguntou Cadfael, analisando a sala, que entretanto se enchera de fumo, do lume e dos archotes, e onde ressoava o barulho das vozes -, é Eliud ap Griffith?

- Vejo que Elis se pôs a tagarelar convosco como é seu costume - disse Owain sorrindo -, prisioneiro ou não. O seu primo e irmão de criação encontra-se neste momento à cabeceira da mesa mais próxima e não desprega os olhos de vós, aguardando uma oportunidade de falar convosco logo que eu me retire. É o rapaz alto de casaco azul.

Não havia hipótese de alguém o confundir, depois de o ter visto uma vez, embora não pudesse ter sido mais diferente do primo do que na realidade era. Tinha os olhos fixos no rosto de Cadfael com uma determinação e uma ansiedade implacáveis, o corpo imóvel mas tenso, à espera do mais ligeiro encorajamento para acorrer à chamada. Owain, fazendo-lhe a vontade, levantou um dedo, acenando-lhe, e ele avançou como uma flecha, tremendo. Era um jovem alto, magro e enérgico, de olhos brilhantes cor de avelã, num rosto sério e oval, com as feições suficientemente delicadas para poderem pertencer a uma mulher, mas ao mesmo tempo com os ossos salientes. Havia nele uma ansiedade dedicada, que naquele momento devia ser dirigida a Elis ap Cynan, mas que noutra ocasião poderia ser pelo País de Gales, pelo seu príncipe e um dia, sem dúvida, por uma mulher, mas, fosse qual fosse o objecto, ela estaria sempre presente. Para esse, nunca haveria sossego completo.

Ajoelhou, impaciente, diante de Owain e este bateu-lhe amigavelmente no ombro, dizendo:

- Sentai-vos aqui com o irmão Cadfael e fazei que ele vos diga tudo o que quereis saber. Embora o melhor já o sabeis. O vosso outro eu está vivo e pode ser trazido de volta por um certo preço. - E, com estas palavras, deixou-os para ir conferenciar com Tudur.

Eliud sentou-se de boa vontade e apoiou os cotovelos sobre a madeira, para aproximar o rosto ardente:

- Irmão, o que Cristina me disse é verdade? Elis está são e salvo em Shrewsbury? Voltaram sem ele... Mandei perguntar, mas ninguém me soube dizer onde se perdera ou como. Tenho procurado e perguntado por toda a parte e o príncipe também, embora finja que não está preocupado. Elis é filho de criação do meu pai. Vós também sois galês, portanto, sabeis como é. Crescemos juntos desde tenra idade e não há irmãos mais ligados, de ambas as partes...

- Eu sei - concordou Cadfael -, e repito, tal como Cristina vos disse, ele está em segurança, são e salvo, como novo.

-Havei-lo visto? Falastes com ele? Tendes a certeza que se trata de Elis e não de outro? Qualquer jovem bem-parecido da sua companhia - explicou Eliud, como que a desculpar-se -, se se encontrasse prisioneiro, poderia apresentar-se sob um nome que lhe desse mais vantagem que o seu próprio...

Cadfael descreveu pacientemente o seu homem e repetiu toda a história do salvamento da corrente e a obstinação de Elis em se refugiar na língua galesa, até que um galês o tinha enfrentado. Eliud escutou-o, com os lábios entreabertos e o olhar atento, sendo visível o alívio que lhe vinha da convicção.

-E ele foi assim tão indelicado com essas damas que o salvaram? Ah, sim, agora reconheço-o como Elis, ele havia de se sentir tão envergonhado ao voltar a si entre as mãos delas como um bebé a quem tivessem que bater para o fazer respirar!-Não havia engano, aquele jovem tão sério sabia rir-se, e o riso iluminou-lhe o rosto grave, acendeu-lhe o brilho do olhar. Não era um amor cego o que sentia pelo gémeo que não era gémeo, conhecia-o por dentro e por fora, repreendia-o, criticava-o, lutava com ele e não o amava menos por isso. Cristina tinha diante dela uma luta árdua. -Vós havei-lo tirado das mãos das freiras. E ele não tinha qualquer ferimento, quando foi retirado das águas?

- Não mais que um rasgão na perna, feito por uma pedra aguçada no fundo do rio, quando estava a afogar-se. E isso foi tratado e curado. O seu maior problema era pensar que vós devíeis estar a chorar a sua morte, mas a minha vinda aqui aliviou-o dessa ansiedade, como também vos alivia a vós. Não precisais preocupar-vos com Elis ap Cynan. Embora esteja agora num castelo inglês, não tardará a voltar para casa.

- Há-de voltar - concordou Eliud no tom suave e pensativo de uma afeição tolerante. - Sempre assim foi e há-de ser. Ele tem esse dom. Mas usa-o tão livremente que às vezes me dá preocupações!

"Sempre, não às vezes", pensou Cadfael depois de o jovem o ter deixado e quando a sala se preparava para a noite, em volta do fogo coberto de turfa e tranquilo. Mesmo naquele momento, já convencido da segurança e bem-estar do amigo, satisfeito para além de qualquer dúvida ou medida, mesmo então, estava de sobrolho franzido e olhar distante. Teve uma visão perturbada daquelas três jovens criaturas ligadas por uma disputa inevitável, os dois rapazes unidos desde a infância, presos ainda mais fortemente pela gravidade de um e pela imptuosidade inocente do outro, e a rapariga prometida na infância a uma das metades daquele par inseparável. Dos três, o prisioneiro de Shrewsbury parecia-lhe de longe o mais feliz, pois vivia o dia-a-dia, aquecendo-se à luz do seu próprio sol, abrigando-se das tempestades do momento e, em todas as situações, encontrando por instinto o canto agradável e a distracção aprazível. Os outros dois ardiam como velas, consumindo a sua própria substância e espalhando uma luz descontente e vulnerável.

Antes de adormecer, rezou pelos três e acordou a meio da noite com o pensamento pouco tranquilizador de que, algures num lugar ainda sombrio, poderia haver um quarto personagem a considerar e a lembrar nas suas orações.

O dia seguinte apresentou-se claro e límpido, com uma leve camada de geada que perdeu o brilho polvorento logo que o Sol o aflorou; e era na verdade um prazer poder passar todo o dia no seu próprio País de Gales, com a consciência tranquila e em boa companhia. Owain Gwynedd partiu de novo para Leste, para uma patrulha, com meia dúzia dos seus jovens soldados, e regressou ao fim do dia, cheio de satisfação. Parecia que Ranulf de Chester estava tranquilo de momento, a digerir os seus ganhos.

Quanto a Cadfael, como não seria de esperar que viesse qualquer resposta de Aberystwyth antes do dia seguinte, aceitou alegremente o convite do príncipe para que os acompanhasse e visse por si próprio o perfeito estado de alerta das aldeias fronteiriças que vigiavam a Inglaterra. Regressaram ao pátio da propriedade de Tudur ao anoitecer e, por detrás da agitação e da actividade alvoroçada dos criados e dos moços de estrebaria, via-se a porta da sala de jantar aberta para trás e, de encontro à luz do lume e dos archotes, recortava-se, nítida e escura, a figura pequena, erecta, de Cristina, que aguardava a chegada dos convidados, para pôr tudo em movimento para a refeição da noite. Desapareceu no interior por alguns momentos apenas e depois voltou, para os ver descer das montadas, com o pai ao lado.

Não era o príncipe que Cristina observava. Cadfael passou perto dela, ao entrar, e viu à luz dos archotes como tinha o rosto crispado, os lábios cerrados, sem a sombra de um sorriso, e como tinha o olhar fixo, com grande intensidade, em Eliud, enquanto este saltava do cavalo e o entregava ao moço de estrebaria. A centelha de vermelho-escuro que ardia no negrume dos cabelos e dos olhos dela parecia, sob a luz que a circundava, ter-se avivado, pondo a claro a profundidade da sua raiva e indignação.

O que não foi menos notório, quando Cadfael olhou para trás num simples movimento de curiosidade humana, foi a maneira como Eliud, ao aproximar-se da porta, passou diante da rapariga de rosto fechado e com uma saudação breve, antes de continuar o seu caminho de rosto voltado. Pois não era a jovem um espinho que trazia cravado no coração, tal como ele o era para ela?

Quanto mais cedo fosse o casamento, menor o prejuízo e melhores as perspectivas de cura, pensou Cadfael, a caminho das Vésperas, e imediatamente começou a pensar se não estaria a tornar demasiado simples aquele tumulto entre três pessoas, das quais só uma podia ser considerada simples.

O mensageiro do príncipe voltou ao fim da tarde do dia seguinte e prestou contas da incumbência ao seu senhor que, por sua vez, chamou Cadfael imediatamente para o pôr ao corrente dos resultados.

- O meu homem informa-me que Gilbert Prestcote está realmente nas mãos do meu irmão e pode ser e vai ser trocado por Elis. Pode haver uma certa demora, pois parece que ficou bastante ferido na luta em Lincoln e a recuperação tem sido lenta. Mas se tratardes directamente comigo, trá-lo-ei logo que esteja em estado de viajar e fá-lo-ei chegar por etapas a Shrewsbury. Instalá-lo-emos em Mont-ford na última noite, no sítio onde os príncipes galeses e os condes ingleses costumavam reunir-se para conferenciar. Nessa altura, mandaremos prevenir Hugh Beringar para que venha até à cidade. Aí, a vossa guarnição poderá fazer a entrega de Elis, em troca.

- Estou muito contente, de verdade! - disse Cadfael com entusiasmo. - E Hugh Beringar também ficará contente.

- Vou precisar de garantias - disse Owain -, e estou disposto a dá-las igualmente.

-Quanto à vossa boa-fé, ela não é posta em causa em ponto algum desta terra do País de Gales ou da minha terra adoptiva, a Inglaterra. Mas o meu senhor, vós não o conheceis e ele terá muito gosto em deixar convosco um refém, para que seja a sua garantia enquanto Elis não estiver de novo a salvo em vossas mãos. Da vossa parte, ele não precisa de garantia alguma. Enviai-lhe Gilbert Prestcote e podereis ter Elis ap Cynan e devolver-lhe o refém quando vos aprouver.

-Mas - disse Owain com firmeza -, se eu peço a garantia de um homem, também a darei. Deixai o vosso homem aqui, agora se o desejardes e se ele já tiver as suas ordens e estiver pronto e disposto, e quando os meus homens trouxerem Gilbert Prestcote enviarei com ele Eliud, para que fique convosco como garantia da honra do primo e da minha, até que façamos a troca dos reféns a meio caminho, digamos, no dique junto da fronteira, em Oswestry, se eu ainda estiver nestas paragens, concluindo assim este acordo. Há virtude por vezes no respeitar das formalidades. E, além disso, gostaria de conhecer o vosso Hugh Beringar, pois ambos temos em comum a necessidade de estar vigilantes contra... bem sabeis quem.

-O mesmo pensamento tem estado presente no espírito de Hugh Beringar - concordou fervorosamente Cadfael -, e depois, acreditai que ele terá todo o prazer em vir ao vosso encontro no local que for mais adequado na altura. Ele trar-vos-á de novo Eliud e vós entregar-lhe-eis um jovem que ainda é seu primo pelo lado da mãe, John Marchmain. Haveis reparado nele esta manhã, é o mais alto de nós todos, John veio comigo pronto e disposto a ficar, se tudo corresse bem.

- Receberá tratamento condigno - replicou Owain.

- Podeis crer que está desejoso disso, embora o seu conhecimento de galês seja limitado. E, uma vez que estamos de acordo - disse Cadfael -, providenciarei para que seja esclarecido dos seus deveres ainda esta noite e tornarei o caminho de Shrewsbury às primeiras horas da manhã, com o resto da minha companhia.

Antes de ir dormir nessa noite, deixou o calor e a fumarada da grande sala para ir ver o tempo. O ar era macio mas fresco e a aragem não fazia mexer uma folha. O céu estava límpido e estrelado, mas sem o brilho e a nitidez de um frio extremo. Podia dizer-se que era uma bela noite e, mesmo sem a capa, sentiu-se tentado a ir até ao extremo da propriedade, onde um matagal de arbustos e árvores abrigava o portão. Sorveu plenamente o ar frio, com perfume a madeira e a noite e com o sabor adocicado da turfa e das folhas adormecidas, mas não mortas, e expeliu pelo nariz os restos da fumarada do interior.

Preparava-se para voltar para trás e concentrar o espírito nas orações da noite, quando sentiu que a escuridão luminosa à sua volta ganhava vida e duas pessoas saíram dos edifícios sombrios dos estábulos em direcção à casa principal, com passo leve e rápido, mas entrecortado por pausas abruptas que abalavam os ares mais do que o seu movimento. Falavam enquanto caminhavam, num tom ligeiramente acima do sibilar revelador do murmúrio e o seu dialogar tinha um vigor e uma premência que o fez estacar onde estava, a coberto do vulto e das sombras das árvores. Quando se apercebeu de tal presença, já se encontravam entre ele e o seu couto e, quando se aproximaram mais, não pôde evitar de os ouvir. Mas, sendo a natureza humana como é, não pudemos garantir que tivesse feito de outra forma, mesmo que pudesse.

- ... não quereis prejudicar-me! - sussurrou uma das vozes, branda e cheia de amargura. - E não é verdade que me prejudicais, que me roubais aquilo que é meu por direito com o próprio ar que respirais? E agora ides ter com ele, logo que esse inglês possa ser transportado...

- E isso depende de mim? - protestou o outro. - Quando é o príncipe que me envia? Além disso, ele é meu irmão de criação, não podeis mudar esse facto. Por que não deixais que o que está bem fique em bem?

-Mas isso não está bem, está muito mal! É o príncipe que vos envia! - sibilou a voz da rapariga, carregada de malícia. - Ah! Vós é que seríeis capaz de matar quem tentasse ir no vosso lugar e sabeis bem que assim é. E eu fico aqui à espera! Enquanto os dois se vão juntar de novo, ele com o braço em volta do vosso pescoço e sem sequer ter um pensamento para mim!

As duas sombras recortaram-se de encontro ao brilho suave do lume que começava a apagar-se no interior, negras na moldura da porta. A voz de Eliud ergueu-se ameaçadora. A sombra mais alta, com os ombros e a cabeça acima do outro vulto, afastou-se bruscamente.

- Pelo amor de Deus, mulher, não podeis calar-vos e deixar-me como estou!?

E desapareceu, afastando-a com brusquidão e desaparecendo no meio do murmúrio abafado da sala populosa. Cristina pegou nas saias com um gesto irado e entrou também, lentamente, retirando-se para os seus aposentos.

E o mesmo fez Cadfael, logo que se certificou que ninguém iria ficar constrangido com o seu aparecimento. Acabavam de se afastar dois vencidos daquela batalha submersa. Se é que havia um vencedor, ele dormia com o abandono de uma criança, como parecia ser seu apanágio, numa cela de pedra que não era uma prisão, no castelo de Shrewsbury. Um que sempre havia de cair de pé. Dois que provavelmente tinham o hábito de cair de bruços, por olharem em frente com demasiada intensidade, sem verem onde punham os pés.

Contudo, não rezou por eles nessa noite. Em vez disso, deixou-se ficar largo tempo absorto nos seus pensamentos, meditando em como poderia ser desfeito um nó tão complexo.

Ao romper do dia, ele e o que restava dos seus acompanhantes montaram e partiram. Não o surpreendeu que o dedicado primo e irmão de criação estivesse ali para o ver partir e enviar por seu intermédio todas as mensagens possíveis para o amigo cativo, para o amparar até ao momento da libertação. Perfeitamente natural que o mais velho e mais sensato fosse empossado para libertar o mais jovem e mais imprudente. Se é que a sensatez se pode medir dessa forma!

- Eu fui pouco inteligente - admitiu Eliud pesaroso, segurando o estribo de Cadfael enquanto este montava e inclinando-se sobre a omoplata quente do cavalo, depois de ele ter subido. - Empolei demasiado a questão de que ele não devia ir com Cadwaladr. Acho que acabei por o ajudar a firmar ainda mais a sua resolução. Mas eu sabia que era loucura!

- Tendes de lhe dar o direito de cometer uma grande loucura - disse Cadfael com serenidade. - Agora já passou por ela e sabe tão bem como vós que foi insensatez. De futuro, não se sentirá tão ávido de acção. Além disso - acrescentou, observando atento o rosto oval e sério -, segundo creio ele vai ter outras razões para se tornar sensato quando voltar para casa. Ele deve casar em breve, não é verdade?

Eliud fitou-o um momento com os grandes olhos cor de avelã a brilharem como dois lampiões. Depois disse um "Sim!" breve e desabrido e voltou a cabeça para o outro lado.

 

A notícia espalhou-se emShrewsbury-abadia, castelo e cidade - quase antes de Cadfael ter prestado contas da sua incumbência ao abade Radulfus e relatado o seu sucesso a Hugh. O senhor de Shrewsbury estava vivo e o seu regresso era iminente, em troca pelo galês aprisionado em Godric's Ford. Nos seus aposentos no alto da torre do castelo, Lady Prestcote alegrou-se e o alívio deixou-a com maior animação. Hugh regozijou-se, não apenas por ter encontrado e recuperado o seu chefe, mas também com a perspectiva de uma aliança mais estreita com Owain Gwynedd, cujo auxilio no norte do condado, caso alguma vez Ranulf de Chester decidisse atacar, poderia muito bem modificar o ritmo das coisas. O preboste e todos os membros das guildas, de uma maneira geral, ficaram muito satisfeitos. Prestcote era um homem que não encorajava grandes amizades, mas Shrewsbury encontrara nele um funcionário da coroa justo e bem intencionado, ainda que desastrado por vezes, e todos tinham consciência de que se poderiam ter dado muito pior. Contudo, nem toda a gente sentia o mesmo prazer simples. Até os homens justos fazem inimigos.

Cadfael retomou satisfeito os seus deveres e depois de ter inspeccionado o trabalho do irmão Oswin no jardim de ervas e de ter encontrado tudo em boa ordem, a sua próxima incumbência era visitar a enfermaria e reabastecer o armário dos medicamentos.

- Nenhum doente novo desde que me fui embora?

- Nenhum. E dois tiveram alta, voltaram ao dormitório, o irmão Adam e o irmão Everard. Ambos têm constituições fortes, apesar da idade, e o que tinham não passava de um resfriado que se curou sem complicações. Vinde ver como estão os outros. Se ao menos pudéssemos dar alta ao irmão Maurice com a mesma satisfação que aos outros dois - disse tristemente o irmão Edmund. - Ele é oito anos mais novo, forte e capaz e mal completou os sessenta anos. Se ao menos fosse tão são de espírito como de corpo! Mas duvido que alguma vez ousemos deixá-lo entregue a si mesmo. A tal ponto chegou a sua loucura. É uma pena que depois de uma vida irrepreensível de devoção, ele só consiga recordar os seus rancores e pareça destituído de amor por todos os homens. Uma idade avançada não é nenhuma bênção, Cad-fael, quando a força do corpo sobrevive à do espírito.

- Como é que os outros reagem em relação a ele? - perguntou Cadfael com compaixão.

- Com paciência cristã! E bem precisam dela. Agora meteu-se-lhe na ideia que todos andam a tramar qualquer coisa contra ele. E di-lo, abertamente, além de quaisquer males reais e antigos que guardou bem vivos na memória.

Entraram na grande sala nua com as camas alinhadas e acesso fácil à capela particular, onde os enfermos se podiam recolher para os ofícios divinos. Aqueles que podiam levantar-se para saborear a luz do dia sentavam-se junto de um grande fogo de lenha, aquecendo os ossos envelhecidos e falando de vez em quando, enquanto aguardavam a refeição seguinte, o ofício seguinte ou a próxima diversão. Apenas o irmão Rhys estava confinado ao leito, embora a maior parte dos pacientes, já idosos, passassem muito tempo deitados. Uma geração de frades admitidos com o esplêndido entusiasmo da fundação de uma abadia chegam igualmente juntos à fase de senilidade, cedendo o lugar ao postulantes mais jovens, admitidos isoladamente ou aos pares depois da onda criadora. "Nunca mais", pensou Cadfael, "todo um capítulo da história da abadia se deslocaria desta forma para a inoperância e a decadência." A partir daquele momento, viriam um por um e todos teriam na sua vez um leito de morte devidamente assistido, por si só, numa dignidade solitária. Aqui estavam quatro ou cinco que iriam partir quase ao mesmo tempo, deixando os próprios irmãos que os assistiam extremamente cansados e o mundo indiferente.

O irmão Maurice estava instalado junto do fogo: um velho alto, magro, com o rosto branco de cera alongado, patrício e de ar irrascível. Vinha de uma família nobre, oblato desde a juventude, e fora transferido para ali havia uns dois anos quando, depois de uma alteração trivial, desafiara de repente o padre Roberto para um duelo de morte, recusando-se terminantemente a deixar-se demover ou a reconciliar-se. Nos seus momentos mais calmos, era afável, paciente e cortês, mas se lhe tocassem no seu orgulho quanto à família ou à honra, transformava-se num inimigo implacável. Ali, na sua velhice, fazia reviver do passado, conservando vívidas como no momento em que se tinham verificado, todas as afrontas deste tipo, todas as demandas movidas contra eles, recuando até à data do seu próprio nascimento e mesmo antes, e martirizando-se a pensar em cada uma que ficara sem vingança.

Era um erro talvez, perguntar-lhe como estava, mas a sua altivez habitual parecia exigi-lo. Ergueu o nariz estreito de falcão e comprimiu os lábios azulados.

-Nada melhor depois daquilo que ouvi, caso seja verdade. Dizem que Gilbert Prestcote está vivo e que vai voltar em breve. Isso é verdade?

- É - replicou Cadfael. - Owain Gwynedd vai mandá-lo para cá em troca de um galês capturado em Long Forest há uns tempos. E por que razão não vos sentis melhor com as boas notícias sobre um bom e decente cristão?

-Pensava que se tivesse feito justiça - disse Maurice com ar altivo -, ainda que depois de tanto tempo. Mas, por muito que demore, a justiça divina não devia falhar. Mas mais uma vez ela olhou para o lado e poupou o malfeitor.-O brilho do seu olhar era cinzento como o aço.

- Será melhor que deixeis a justiça divina cuidar dos seus assuntos - disse suavemente Cadfael -, ela não precisa de ajuda da nossa parte. E eu pergunteis-vos a vós como tendes passado, meu amigo, não desvieis a resposta para outras coisas. Como é que vai esse vosso peito, com este tempo invernoso? Precisais que vos traga um cordinal para vos aquecer?

Não era muito difícil distraí-lo, pois embora não tivesse o hábito de se queixar da saúde, reagia à lisonja da preocupação dos outros e gostava de ser mimado. A conversa deixou-o tranquilo e complacente e saiu para o terraço, pensativo.

- Eu já sabia que ele tinha as sua manias - disse Cadfael quando a porta se fechou -, mas nunca pensei que a da família Prestcote fosse tão violenta. Que tem ele contra Gilbert Prestcote?

Edmund encolheu os ombros e suspirou, resignado.

- Foi no tempo do pai, Maurice era ainda um recém-nascido! Houve uma demanda por causa de um pedaço de terra, as discussões foram longas de parte a parte e as coisas correram favoravelmente para Prestcote. Tanto quanto sei, o caso foi julgado com toda a justiça, Maurice estava no berço e o pai de Gilbert, santo Deus, pouco mais era que um rapazito, mas o pobre velho desenterrou tudo isso, como se tivesse sido ferido de morte. E essa é apenas uma de uma boa dezena de histórias que ele tem vivas na memória e pelas quais quer fazer correr sangue. Talvez não acrediteis, mas ele nunca pôs os olhos em Gilbert Prestcote. Será possível odiar um homem que nunca se viu ou com quem nunca se falou, só porque o avô dele ganhou ao pai numa demanda? Por que é que a idade havia de ter apagado tudo, excepto o omnipresente mal?

Era uma pergunta difícil, mas a verdade é que, por vezes, as coisas funcionavam de maneira oposta, mantendo presente o bem e apagando a malícia e o rancor. Por que motivo um ancião havia de ser visitado por tal graça e outro por uma praga tão pesada, era coisa que Cadfael não sabia explicar. Sem dúvida que o equilíbrio devia ser estabelecido algures.

- Nem todas as pessoas que eu conheço - disse Cadfael em tom pesaroso -, estimam Gilbert Prestcote. Os homens justos conseguem arranjar inimigos tão fiéis como os prédios. E a maneira como ele aplica a lei nem sempre tem sido leve ou piedosa, embora nunca tenha sido corrupto nem cruel.

- Há alguém aqui que tem mais razões que Maurice para lhe guardar rancor - disse Edmund. - Estou certo que conheceis tão bem como eu a história de Anion. Ele anda de muletas, como provavelmente viste antes de partir nesta viagem, mas tem melhorado bastante e nós gostamos que saia um pouco, quando não há gelo e o chão está firme e seco, no entanto ainda está aqui connosco, internado, ali dentro. Anion não diz nada, enquanto que Maurice fala de mais, mas vós sois galês e sabeis como os galeses são reservados. E uma pessoa como Anion, meio galês, meio inglês, como é que a interpreta?

- O melhor possível - concordou Cadfael. - Sem esquecer que ambos os lados são humanos.

Ele conhecia Anion, embora nunca tivesse estado directamente em contacto com ele, pois Anion era um criado leigo que se ocupava do gado e tinha sido trazido para a enfermaria no fim do Outono, vindo de uma das granjas da abadia, com uma perna partida que tardava em ligar. Não era novo na região de Shrewsbury, fruto de uma união breve entre um negociante de lã galês e uma criada inglesa. E como muitos outros da sua espécie, ele tinha mantido contacto com a família através da fronteira do País de Gales, onde o pai tinha uma mulher legítima, a quem dera um filho legítimo, não muito depois de Anion ter sido concebido.

-Já me lembro-disse Cadfael, esclarecido -, havia dois jovens que vieram vender lã e beberam de mais e meteram-se numa briga.

Um dos guardas da ponte foi morto. Prestcote mandou-os enforcar por causa disso. Nessa altura, ouvi contar que um deles tinha um meio-irmão deste lado da fronteira.

- Griffi ap griffi, era esse o nome do jovem. Anion acabara por o conhecer, quando ele vinha à cidade, e mantinham boas relações. Ele estava no norte a tomar conta dos carneiros quando isso aconteceu, caso contrário poderia ter evitado que o irmão se metesse em sarilhos. Um bom trabalhador e honesto, esse Anion, mas um indivíduo sorumbático e calado, que nunca esquece um benefício ou uma injúria.

Cadfael suspirou, pois já tinha visto ao longo dos tempos uma longa fila de homens decentes apagaram-se na violência, em resultado de mortes dessas. A vendeta podia tornar-se um dever sagrado no País de Gales.

- Bom, é de esperar que o lado inglês lhe consiga equilibrar as recordações. Isso já deve ter acontecido há uns dois anos. Não há ninguém que consiga guardar eternamente o rancor.

Na capela estreita e gélida do castelo, à luz fraca da lâmpada do altar, Elis esperava na melancolia do fim de tarde, enrolado na sua capa, no canto mais escuro, acossado pelo frio exterior e consumido pelo fogo que ardia dentro dele. Aquele era um lugar seguro para um encontro entre duas pessoas que de outra forma nunca poderiam estar a sós. O capelão do castelo era devoto, mas dentro dos seus limites, e preferia o calor do refeitório e os confortos da mesa, uma vez terminadas as Vésperas, àquele sítio gelado e cheio de correntes de ar.

Melicent aproximou-se da porta, sem fazer barulho, mas Elis ouviu-a e voltou-se, ansioso, para a arrastar para dentro com ambas as mãos e empurrar a pesada porta, fechando lá fora o resto do mundo.

-Já sabeis? - disse ela, apressada, em voz baixa.-Encontram-no e vão trazê-lo de volta. Owain Gwynedd prometeu...

-Eu sei! - disse Elis e puxou-a para si, enrolando a capa em torno de ambos, tanto para afirmar a sua unidade como para a proteger do frio e do vento penetrante. Apesar disso, sentia-a fugir-lhe como uma visão incorpórea. - Estou contente por saber que ides ter vosso pai de volta. - Mas não conseguiu pôr alegria na voz, por mais corajosamente que mentisse. - Sabíamos que teria de ser assim se ele estivesse vivo... -A voz falhou-lhe, tentando não parecer que desejava a morte do pai dela, um obstáculo a menos no caminho de ambos e ele ainda prisioneiro e sem resgate. Prisioneiro dela, por tanto tempo quanto fosse possível, o tempo necessário para alcançar o milagre necessário, romper um laço e tornar possível um outro, que lhe parecia agora bem fora do seu alcance.

- Quando ele voltar-disse Melicent, com a fronte gelada apoiada à face dele -, tereis de partir. Como é que havemos de suportar uma coisa dessas?

- Eu bem sei! E não penso noutra coisa. Tudo terá sido em vão e não voltarei a ver-vos. Não, não posso aceitar isso. Tem de haver maneira...

- Se partirdes - disse ela -, morrerei.

- Mas eu tenho de ir, ambos o sabemos. Senão, como poderei ao menos fazer isto por vós, comprar o regresso de vosso pai? -Mas ele também não conseguia suportar o sofrimento da situação. Se a deixasse agora, estaria perdido para sempre, nenhuma outra poderia tomar o lugar dela. A criaturinha morena lá no País de Gales, tão apagada do seu espírito que nem conseguia recordar-lhe as feições, não representava nada, não tinha qualquer direito sobre ele. Antes uma vida de eremita, se não pudesse ter Melicent. - Não quereis o seu regressso?

- Sim!-replicou com veemência, dividida e tremente, e imediatamente retirou o que dissera. -Não, não se para isso tiver que vos perder! Oh, meu Deus, será que eu sei aquilo que quero? Quero-vos a ambos... mas quero-vos mais a vós! Eu amo o meu pai, sim, mas como pai. Tenho de o amar, deve haver amor entre nós, mas... Oh, Elis, eu mal o conheço, ele nunca esteve suficientemente perto para ser amado. Sempre o dever e os negócios a levá-lo para longe e a minha mãe e eu sozinhas e depois a minha mãe morta... Ele nunca foi insensível, sempre cuidadoso comigo, mas sempre tão longe. É uma forma de amor, mas não como isto... não como o amor que sinto por vós! Não é uma troca justa...

Ela não disse: "Se ele tivesse morrido...", mas as palavras estavam lá, nítidas no fundo do seu espírito, deixando-a horrorizada. Se não tivessem conseguido encontrá-lo ou se o tivessem encontrado morto, tê-lo-ia chorado, sim, mas a madrasta não se teria importado muito com aquele que escolhesse para casa. O que mais importaria a Sybilla era que o filho herdasse tudo e que a filha do marido se contentasse com um modesto dote. E ela também teria ficado contente, sim, mesmo sem dote.

- Mas não pode ser o fim! - declarou Elis ferozmente. - Por que havemos de nos submeter? Não vou desistir de vós, não posso, não aceito a nossa separação.

- Oh, loucura! - exclamou ela, deixando as lágrimas correrem de encontro à face dele. - A escolta que o trouxer de volta vai levar-vos daqui. Há um acordo firmado, nada se pode fazer. Tendes de ir e eu tenho de ficar e será o fim. Oh, se ao menos ele nunca chegasse... -Aterrorizava-a o som da própria voz ao proferir tais palavras e escondeu os lábios na curva do ombro dele para abafar as palavras imperdoáveis.

-Não, escutai-me, meu coração, minha vida! Por que não hei-de ir ter com ele e pedir-vos em casamento? Por que não há-de ele entender-me? Sou de estirpe nobre, tenho terras, sou seu igual, por que me recusaria a vossa mão? Posso dar-vos um bom dote e não há homem algum que pudesse amar-vos mais.

Nunca lhe falara a ela, como fizera tão despreocupadamente com o irmão Cadfael, da rapariga do País de Gales, sua noiva desde a infância. Mas esse acordo tinha sido feito passando por cima de ambos, com o consentimento de outros e, com paciência e boa vontade, poderia ser honrosamente dissolvido com o consentimento de todos. Um tal retrocesso podia ser coisa rara em Gwynedd, mas não era um caso singular. Ele não prejudicara em nada Cristina, não era tarde de mais para recuar.

-Terna e inocente loucura! - disse ela, entre o riso e a ira. - Não o conheceis! Cada um dos seus domínios fica em terreno fronteiriço, já teve de suar e batalhar muito para conservar o que tem. Não vedes que, a seguir à imperatriz, o seu inimigo é o País de Gales? E nunca houve ninguém mais convicto nos seus ódios! Preferiria casar a filha com um leproso cego de St. Giles do que com um galês, nem que fosse o próprio príncipe de Gwynedd. Não vos aproximeis dele, só serviria para lhe endurecer ainda mais o coração, ele despedaçar-vos-ia. Oh, acreditai em mim, por esse lado não há esperança.

- Mesmo assim, não vou separar-me de vós - prometeu Elis, com a boca encostada à nuvem de cabelos claros que se movia e roçava pela cara dele com uma vida própria, em carícias nervosas e suaves como penas. - Seja como for, seja como for, juro que ficarei convosco, farei tudo para vos conservar, lutarei contra quem for preciso para abrir caminho para a vossa passagem. Hei-de matar quem quer que se atravesse no nosso caminho, meu amor, minha vida...

- Oh, calai-vos! - repreendeu ela. - Não deveis falar assim.

Não vos compete dizer essas coisas. Tem, tem de haver uma saída para nós...

Mas ela não via nenhuma. Estavam enleados num processo inexorável que havia de trazer Gilbert Prestcote de volta e levar Elis ap Cynan para longe.

- Ainda temos algum tempo - sussurrou Melicent, fazendo um esforço para ganhar coragem. - Disseram que ele não estava bem, que os ferimentos ainda não estão completamente curados. Vai demorar ainda uma ou duas semanas.

- E vós continuareis a vir? Todos os dias? Como é que eu havia de aguentar se deixasse de vos poder ver?

-Eu venho, sim-replicou -, estes momentos são toda a minha vida, também. Quem sabe, ainda pode acontecer alguma coisa para nos salvar.

- Oh, meu Deus, se ao menos pudéssemos parar o tempo! Se pudéssemos parar os dias, fazer que a viagem durasse eternamente e que ele nunca, nunca chegasse a Shrewsbury!

Passaram-se dez dias, antes que voltassem a ter notícias de Owain Gwynedd. Um estafeta apresentou-se a pé, armado com a devida autorização de Einon ap Ithel, o primeiro a seguir ao penteulu do próprio Owain, o capitão da sua guarda pessoal.

O mensageiro foi levado à presença de Hugh, na sala da guarda do castelo, ao princípio da tarde: era um homem da fronteira, com negócios em Inglaterra e bem familiarizado com a língua.

- Meu senhor, trago-vos saudações de Owain Gwynedd pela boca do seu capitão, Einon ap Ithel. Tenho a comunicar-vos que a comitiva passará a noite em Montford e amanhã trar-vos-emos aquele que confiaram à nossa guarda, o vosso senhor, Gilbert de Prestcote. Mas há mais. O conde Gilbert está ainda muito fraco dos ferimentos e de todas as dificuldades e durante a maior parte do caminho transportámo-lo numa liteira. Tudo correu bastante bem até esta manhã, quando esperávamos chegar à cidade e desobrigar-nos da nossa incumbência num só dia. Para isso, Lorde Gilbert faria a cavalo os últimos quilómetros, para não ser transportado como um doente até à sua própria cidade.

Os galeses compreenderiam e aprovariam essa situação e nada fariam para o deter. O porte de um homem vale tanto como a sua armadura e Prestcote estava pronto a enfrentar qualquer perigo ou desconforto para entrar em Shrewsbury bem direito na sua sela, senhor de si, mesmo no cativeiro.

- É bem típico dele e só lhe faz honra - disse Hugh, pressentindo o que viria a seguir. - E assim abusou das próprias forças. Que aconteceu, então?

-Logo ao primeiro quilómetro, desmaiou e caiu do cavalo. Não foi uma grande queda, mas um ferimento lateral que já tinha sarado voltou a abrir e fê-lo perder algum sangue. Pode acontecer que tivesse sido acometido por uma espécie de ataque, mais do que o simples cansaço, pois quando o levantámos e começámos a tratar, ele estava muito pálido e frio. Agasalhámo-lo bem, Einon ap Ithel ainda o embrulhou depois na sua própria capa, e voltámos a estendê-lo na liteira, onde o transportámos de novo para Montford.

- E ele voltou a si? Disse alguma coisa? - perguntou Hugh ansiosamente.

- Mostrou-se perfeitamente são de espírito logo que abriu os olhos e fala com toda a clareza. Pela nossa parte, estaríamos dispostos a deixá-lo mais algum tempo em Montford, caso fosse necessário, mas ele está impaciente por voltar a Shrewsbury, agora que está tão perto. Pode fazer-lhe pior continuar lá, contrariado, do que ser trazido para cá amanhã, como é seu desejo.

Hugh era da mesma opinião e deixou-se ficar uns momentos, com os nós dos dedos encostados à boca, ponderando qual o melhor caminho.

- Achais que esta recaída possa ser perigosa para ele? Mesmo mortal?

O outro sacudiu energicamente a cabeça.

- Meu senhor, embora o encontreis sem dúvida doente e caído, até mesmo envelhecido, acho que tudo o que ele precisa é descanso e tempo, e cuidados apropriados, para voltar a ser o mesmo. Só que não vai ser rápido nem fácil.

- Então é melhor que seja aqui, onde ele deseja estar - decidiu Hugh -, mas não nestes aposentos gélidos e austeros. Estaria pronto e levá-lo para minha própria casa, mas o melhor tratamento recebê-lo-á sem dúvida na abadia, para onde o podeis transportar sem mais dificuldade do que para aqui, poupando-lhe a ele o ter de ser transportado, como um inútil, pelo meio da cidade. Vou pedir que lhe reservem lá uma cama na enfermaria e instalar a mulher e os filhos nos aposentos destinados aos hóspedes, para que fiquem perto dele. Agora, podeis voltar para junto de Einon ap Ithel, levando-lhe as minhas saudações e agradecimentos, e pedir-lhe que o leve directamente para a abadia. Eu, pela minha parte, vou falar com o irmão Edmund e o irmão Cadfael para que se preparem para o receber e certificar-me de que tudo está a postos para o seu repouso. A que horas poderemos contar com a vossa chegada? O abade Radulfus vai querer que os vossos capitães aceitem a sua hospitalidade, antes de partirem de novo.

- Antes do meio-dia - disse o mensageiro -, contamos chegar à abadia.

- Óptimo! Haverá lugares à mesa para todos para a refeição do meio-dia, antes que se façam novamente ao caminho com Elis ap Cynan, em troca do conde Gilbert.

Hugh levou a notícia aos aposentos da torre, a Lady Prestcote, que a recebeu com alívio e satisfação, ainda que temperada com uma certa inquietação ao ouvir relatar o colapso do esposo. Apressou-se a chamar o filho e a criada e a preparar a mudança para o conforto dos aposentos dos hóspedes da abadia, pronta para a chegada do seu senhor. Hugh conduziu-os até lá, indo seguidamente conferenciar com o abade sobre a visita do dia seguinte. E, se por acaso notou uma presença silenciosa e pálida, de olhar brilhante, não só por causa das lágrimas, mas de ansiedade, não deu muita atenção ao facto naquela altura. A filha do primeiro matrimónio, relegada para segundo plano pelo filho do segundo, podia muito bem ser a pessoa que mais sentia a falta do pai e que desgastara a tal ponto a própria coragem com o desgosto da espera que ainda não conseguia transformar a exaustão em alegria.

Entretanto, havia vozear e azáfama no grande pátio. O abade Radulfus dava ordens e tomava disposições para prover a sua mesa como convinha para receber os representantes do príncipe de Gwynedd. O prior Robert consultou os cozinheiros para saber se havia provisões suficientemente abundantes para o resto da escolta e o espaço necessário nos estábulos para que os seus cavalos pudessem descansar e ser tratados. O irmão Edmundo preparou o quarto individual mais sossegado da enfermaria, mandando vir cobertas leves e quentes e uma brazeira para temperar o ar, enquanto o irmão Cadfael passava em revista o seu pequeno laboratório, tendo em mente o ferimento que voltara a abrir e a possibilidade de algo mais que um desmaio. A abadia já tinha recebido grupos muito maiores, até mesmo realeza, mas este era o regresso de alguém que lhes pertencia e os galeses, que tinham demonstrado grande cortesia e escrúpulo ao dar-lhe a liberdade e o necessário salvo-conduto, deviam receber honras de príncipes, pois na realidade representavam um príncipe. Na sua cela, no castelo, Elis ap Cynan estava deitado com a cara para baixo no seu catre, sentindo o coração dentro do peito tão oprimido como uma pedra pesada e quente. Vira-a ir-se embora mas, escondido, sem pretender causar-lhe o mesmo sofrimento e desespero que ele sentia. Era melhor que fosse sem uma última recordação, preparada, pelo menos, para tentar concentrar no pai todos os seus pensamentos e afastar deles o seu apaixonado. Ele seguira-a com o olhar até não a ver mais, até ela desaparecer ao longo da rampa que levava ao portão, sendo a prata dourada dos seus cabelos enrolados, o único brilho naquele dia cinzento. Ela partira e a pedra que lhe ocupara o lugar do coração dizia-lhe que o mais que poderia esperar agora era um vislumbre rápido da sua pessoa no dia seguinte, quando o libertassem do castelo e o conduzissem à abadia, para ser entregue a Einon ap Ithel, pois a partir daí, a menos que houvesse um milagre, era bem possível que não voltasse a vê-la.

 

O irmão Cadfael estava pronto, juntamente com o irmão Edmund, à entrada da enfermaria, para os ver chegar, como realmente aconteceu, logo a seguir à missa cantada. O capitão da confiança de Owain vinha à frente com Eliud ap Griffith, de rosto muito solene, logo atrás dele como um escudeiro, e dois oficiais mais velhos a seguir, depois a liteira, cuidadosamente suspensa entre dois fortes póneis da montanha e acompanhada por homens a pé, de um lado e outro, para estabilizar o transporte. O vulto comprido que seguia na liteira estava tão almofadado e embrulhado que parecia volumoso, mas os póneis avançavam com passo leve e seguro, como se o peso não fosse muito grande.

Einon ab Ithel era um homem alto e musculado, de uns quarenta anos, com barba, bigode comprido e cabelos castanhos e abundantes. A sua roupagem e os arreios do belo cavalo que montava anunciavam a sua riqueza e importância. Eliud saltou do cavalo para segurar a montada do seu senhor e encaminhou o cavalo para o lado, enquanto Hugh Beringar saía a saudar os recém-chegados e, atrás dele, com uma dignidade acolhedora, o próprio abade Radulfus. Haveria uma refeição lenta e cerimoniosa na residência do abade para Einon e para os oficiais mais velhos da sua comitiva, à qual assistiriam Lady Prestcote, a filha e o próprio Hugh, como competia quando dois poderes se reuniam num acordo civilizado. Mas o assunto mais urgente ficou a cargo do irmão Edmund e dos seus ajudantes.

A liteira foi arreada e transportada imediatamente para a enfermaria, para o quarto que já se encontrava preparado e aquecido para receber o doente. Edmund fechou a porta, mesmo a Lady Prestcote, que por felicidade ficou detida nas formalidades de cortesia, até terem desembrulhado, despido e instalado o inválido e conseguirem fazer uma ideia do seu estado.

Soltaram da gola, alta e bem apertada, da capa de pele de carneiro tosquiada, que era o seu abrigo exterior, um alfinete comprido com uma grande cabeça cinzelada, preso com uma fina corrente de ouro. Todos sabiam que o ouro era trabalhado em Gwynedd, este provavelmente vinha das terras do próprio Einon, pois aquela devia ser a sua capa, usada para conforto e protecção do precioso viajante. Edmund pô-la de lado, dobrada, sobre uma arca baixa, ao lado da cama, com o alfinete bem à vista, não fosse alguém picar-se se ele ficasse escondido. Ajudando-se mutuamente, libertaram Gilbert Prestcote das cobertas em que estava enfaixado e, enquanto o faziam, os olhos dele abriram-se lânguidos e o seu corpo, comprido e magro, esboçou alguns movimentos fracos para os ajudar. Estava muito despido de carnes e apresentava várias cicatrizes, que tinham sarado mas continuavam inflamadas, além da ferida húmida que voltara a abrira com a queda. Cadfael tratou-a cuidadosamente e cobriu-a com um penso. O simples facto de terem de lhe mexer deixou o doente exausto. Quando finalmente o transferiram para o leito aquecido e o taparam, os olhos tinham-se-lhe fechado de novo. Até àquele momento ainda não tentara falar.

Era extraordinário como tinha conseguido cavalgar, mesmo um só quilómetro, antes de ter soçobrado, pensou Cadfael, olhando para a figura estendida por baixo das cobertas e para o rosto magro e lívido, todo ele marcado por covas azuladas e com os ossos espetados, brancos. Os cabelos escuros da cabeça e da barba estavam fortemente semeados de cinzento e caíam, finos, sem vida. Apenas a sua vontade de ferro, intolerante para qualquer fraqueza, especialmente as próprias, o segurara direito na sela e, quando até isso lhe falhou, ficara completamente perdido.

Naquele momento, encheu o peito de ar. Tinha-se mexido para ver como conseguia controlar o próprio corpo, ainda que sem forças, e mais uma vez abriu os olhos encovados e sem brilho e fitou o rosto de Cadfael. Os lábios cor de cinza desenharam uma pergunta, apenas audível: "O meu filho?" Não: "A minha mulher?", nem: "A minha filha?", pensou Cadfael pesaroso mas compreensivo e inclinou-se para o tranquilizar:

- O pequeno Gilbert está aqui e encontra-se bem.

O doente volveu o olhar para Edmund que lhe fez um sinal de assentimento:

- Vou trazê-lo até vós.

Os rapazitos da idade de Gilbert são muito exuberantes, por essa razão Edmund disse algumas palavras, tanto a recomendar cuidado como a tranquilizar os espíritos, ao mesmo tempo para a mãe e para a criança, antes de os levar à enfermaria e, uma vez no quarto, retirou-se para o lado, deixando-os à vontade junto da cama. Hugh entrou com eles. Os primeiros pensamentos de Prestcote tinham sido, naturalmente, para o filho, os segundos, não menos naturalmente, seriam para o seu condado. E o condado, bem vistas as coisas, era um bom motivo para o encorajar a viver, curar-se e ocupar-se novamente dele.

Sybilla chorava, mas em silêncio. O rapazito olhou com certo espanto para o pai, que mal reconhecia, mas deixou-se arrastar por uma mão magra e fria, ao mesmo tempo que o contemplavam, famintos, dois olhos encovados como cavernas iluminadas pelo fogo. A mãe inclinou-se e sussurrou-lhe qualquer coisa e ele, obedientemente, inclinou a face redonda e corada e beijou um rosto ossudo. Mostrou-se uma criança dócil, espantada mas obediente, e nem por sombras assustado. Os olhos de Prestcote aventuraram-se mais além e encontraram Hugh Beringar.

- Sossegai satisfeito - disse Hugh, inclinando-se e respondendo à pergunta que não precisava ser feita -, as vossas fronteiras estão intactas e bem guardadas. A única infiltração trouxe-nos o vosso resgate e mesmo aí, a vitória foi nossa. E Owain Gwynedd é nosso aliado. Tudo o que vos pertence está em boa ordem.

O olhar baço desapareceu por baixo das pálpebras descaídas e não chegou a alcançar a rapariga que se mantinha rígida e imóvel, na sombra, junto da porta. Cadfael tinha-a observado, do lugar para onde se retirara, e viu a luz da brazeira e do candeeiro brilhar nas lágrimas que lhe corriam, livremente e em silêncio, ao longo das faces. Não fazia qualquer som, mal respirava. Tinha os olhos grandes fitos no rosto alterado e envelhecido do pai, num olhar sofredor e desesperado.

O conde tinha compreendido e aceitado o que Hugh lhe dissera. A fronte e o queixo moveram-se ligeiramente num aceno satisfeito. Mexeu os lábios, pronunciando quase com clareza:

- Óptimo! -E depois para o rapazito, atemorizado mas curioso, que se inclinava sobre ele: - Cuida... da tua mãe...

Soltou um suspiro não muito profundo e os olhos fecharam-se-lhe. Ficaram algum tempo em silêncio, olhando e escutando o ondear das cobertas sobre o peito encovado e a respiração acelerada e áspera, até que o irmão Edmund avançou de mansinho e disse, num murmúrio cauteloso:

- Está a dormir. Deixemo-lo sossegar. Não há nada de melhor ou de mais necessário que qualquer pessoa possa fazer por ele.

Hugh tocou no braço de Sybilla, ela levantou-se obedientemente e puxou o filho para o seu lado.

- Vedes como ele está em boas mãos - disse com suavidade. - Vinde jantar e deixai-o dormir.

A rapariga já tinha os olhos secos e o rosto pálido, mas calmo, quando os seguiu até ao pátio principal e depois ao longo do caminho que levava à residência do abade, para se mostrar devidamente graciosa e agradecida aos convidados galeses, antes de estes partirem de novo para Montford e Oswestry.

Durante a refeição do meio-dia, que foi servida antes de os irmãos irem comer, no refeitório, os habitantes da enfermaria puseram a funcionar as cabeças idosas mas cheias de curiosidade, interrogando-se mutuamente sobre o que estaria a causar aquele movimento inusitado nos seus recatados domínios. A disciplina do silêncio não tinha que ser rigorosamente observada entre os velhos e os doentes, o que era uma boa medida, pois a ausência de outra ocupação activa tendia a fazer deles uns palradores incorrigíveis.

O irmão Rhys, que estava acamado e já tinha uma idade muito avançada, mas o espírito e o ouvido bastante aguçados, embora a vista estivesse velada, tinha uma cama ao lado do corredor, em frente do quarto retirado para onde um recém-chegado tinha sido levado naquela manhã, com aparato e cerimónia invulgares. Dava-lhe prazer ser o membro que sabia o que se estava a passar. Entre os poucos prazeres que lhe restavam, este era o principal e usava-o escrupulosamente. Ficava deitado, à escuta. Aqueles que costumavam sentar-se à mesa, como antigamente no refeitório, e que podiam andar pela enfermaria e às vezes pelo pátio, quando o tempo o permitia, eram mesmo assim frequentemente obrigados a vir junto dele para que os esclarecesse.

- Que outro poderia ser - disse com ar importante o irmão Rhys -, senão o próprio conde que trouxeram de volta, depois de ter estado prisioneiro no País de Gales?

- Prestcote? - disse o irmão Maurice, recuando a cabeça sobre o pescoço descarnado como um ganso preparando-se para a luta. - Aqui? Na nossa enfermaria? Por que o haviam de trazer para aqui?

- Por ele estar doente, que outra razão poderia haver? Ele foi ferido na batalha e não está em estado de se mexer sozinho ou com a ajuda de qualquer um. Ouvi as vozes deles lá dentro: Edmund, Cadfael e Hugh Beringar e Lady Prestcote também, e o filho. Trata-se de Gilbert Prestcote, dou-vos a minha palavra.

- A justiça existe - disse Maurice com uma satisfação ponderada e o brilho da vingança no olhar -, mesmo que tarde muito. Prestcote está finalmente em baixo, vizinho dos desafortunados. O mal feito à minha linhagem encontra finalmente o equilíbrio. Penitencio-me de alguma vez ter duvidado.

Ouviram-no condescendentes, habituados há muito às suas obsessões. Trocaram murmúrios entre si em que a maior parte dizia, e com certa razão, que o condado não se dera mal nas mãos de Prestcote, embora alguns tivessem rancores antigos e uma certa reserva em relação aos funcionários da coroa em geral, aquele não era, de forma alguma, o pior da sua espécie. De uma maneira geral, queriam-lhe bem. Mas o irmão Maurice não estava disposto a deixar-se apaziguar.

- Foi cometida uma injustiça - disse implacável -, que mesmo agora ainda não está completamente remediada. Que o falso queixoso pague pelo mal que causou e até à última gota.

O tratador de gado, Anion, à cabeceira da mesa, não disse palavra, mas manteve-se com os olhos postos no prato, comprimindo o quadril de encontro à muleta que estava prestes a pôr de lado, como se necessitasse de um contacto firme com a realidade do seu estado e da segurança de ter uma arma à mão na presença inesperada do inimigo. O jovem Griffith tinha morto, sim, mas em estado de embriaguês, com o sangue a subir-lhe à cabeça e numa luta leal, homem contra homem. Ele tinha morrido uma morte pior, atirado para o lado com maior indiferença do que se estivessem a torcer o pescoço a uma galinha. E o homem que acabara com ele com tanta despreocupação jazia agora a uns escassos vinte metros de distância e a simples menção do seu nome fez vir ao de cima todo o sangue galês de Anion, gritando-lhe o dever sagrado de galanas, a vingança da morte do irmão.

Eliud conduziu o cavalo de Einon e o seu através do pátio principal até junto das estrebarias e os homens da escolta seguiram-no com as suas montadas e os póneis da montanha, de pêlo comprido, que tinham transportado a liteira. Esses dois iriam ter uma viagem bem descansada no regresso a Montford. Einon ab Ithel, ao representar o seu príncipe em ocasiões de cerimónia, necessitava da assistência de um escudeiro e Eliud encarregou-se pessoalmente de tratar do seu cavalo baio. Não tardaria a trocar de posição com Elis e a ser deixado ali com o seu tédio, enquanto o primo tomava o caminho da liberdade e do País de Gales. Em silêncio, ergueu a pesada sela, puxou para o lade os arreios ornamentados e colocou o xairel por cima do braço. O baio sacudiu a cabeça, satisfeito por se sentir livre, soltando grandes lufadas de ar húmido pelas narinas. Eliud acariciou-o dis-traidamente, ainda não tinha o espírito totalmente concentrado naquilo que estava a fazer e os companheiros achavam-no invulgarmente silencioso e distante naquele dia. Observavam-no cautelosos e sem o importunarem. Ninguém se surpreendeu quando ele de repente deu meia volta e saiu com passo firme do pátio das estrebarias, dirigindo-se para o pátio principal.

- Foi ver se já há sinais do primo - disse com ar tolerante o homem que estava ao lado dele, continuando a limpar o pêlo a um dos póneis. - Parece que ficou mutilado e sem norte desde que o outro foi para Lincoln. Ainda lhe custa a acreditar que ele vá aparecer de um momento para o outro e sem um arranhão.

- Ele já devia conhecer melhor o primo - resmungou um outro. Eliud esteve ausente talvez uns dez minutos, o suficiente para ter ido até ao portão e espreitado ansiosamente em direcção à cidade, mas regressou num mutismo obstinado, pôs de lado o xairel que ainda trazia no braço e continuou a trabalhar sem dizer uma palavra.

- Ainda não vem? - perguntou o vizinho, cauteloso e afável.

- Não - disse Eliud secamente e continuou a esfregar vigorosamente o pêlo luzidio do baio.

- O castelo fica do outro lado da cidade, com certeza não o deixaram sair de lá enquanto não tiveram a certeza da chegada do nosso homem. Eles vão trazê-lo. Há-de vir comer connosco.

Eliud não disse nada. Aquela hora os monges estavam a comer no refeitório e os convidados do abade estavam com ele à mesa na sua residência. Era a hora mais tranquila do dia, mesmo as idas e vindas na sala dos hóspedes eram raras naquela época do ano, embora com a chegada da Primavera a região não tardasse a ganhar vida de novo.

-Não deveis mostrar-lhe um rosto tão taciturno-disse o galês, rindo -, embora tendo que ficar aqui em seu lugar. Uns dez dias, mais ou menos, e já Owain e este jovem conde estarão na fronteira a apertar-se as mãos e vós ireis a caminho de casa para vos juntardes a ele.

Eliud murmurou algumas palavras vagas de concordância e voltou o ombro, cortando a conversa. Já o cavalo de Einon estava no estábulo, brilhante e desdentado, quando o irmão Denis, o hospitaleiro, veio chamá-los para o refeitório, onde a mesa tinha sido preparada de novo para eles, terminada a refeição dos monges que entretanto tinham dispersado, para gozar o seu breve repouso antes de começarem os trabalhos da tarde. Os recursos da casa estavam à sua disposição, água quente foi trazida para o lavatório, ao lado do qual foram colocadas toalhas limpas, e a mesa, quando entraram no refeitório, apresentava maior variedade de pratos do que os servidos aos frades. E ali, à espera, um pouco como um anfitrião nervoso, estava Elis ap Cynan, todo preparado para a ocasião e com o seu ar mais formal.

A admiração perante a troca, o sentir-se a causa insensata da mesma e, dentro de certa medida, já a receber a censura pela sua leviandade ou qualquer outro sentimento com o mesmo peso, tinham tido o seu efeito sobre Elis, pois ele apresentava-se com porte comedido e rosto muito sombrio, quando era mais conhecido pela sua alegria espontânea em todas as ocasiões. Sem dúvida que os seus olhos brilharam ao ver entrar Eliud e avançou de braços abertos para o estreitar, mas libertou-se logo em seguida. O aperto da sua mão tinha uma tensão inexplicável e, embora se sentasse à mesa ao lado do primo, a conversa permaneceu generalizada e retraída. O facto causou uma certa estranheza nos seus companheiros. Ali estavam aqueles dois seres inseparáveis, juntos de novo depois de uma longa separação ansiosa, e ambos mudos como pedras e tão pálidos e de rostos tão sérios como dois homens condenados para o resto da vida.

As coisas foram diferentes quando a refeição terminou, depois de dita a acção de graças, e puderam finalmente sair para o pátio. Elis tomou o primo pelo braço e encaminhou-o para o claustro, para se refugiarem num dos pequenos gabinetes onde não havia nenhum monge a ler ou a trabalhar e onde se estenderam no chão como raposas acossadas, ombro contra ombro para se aquecerem um ao outro, como quando eram crianças e corriam a esconder-se, depois de alguma traquinice já descoberta. E, naquele momento, Eliud reconheceu o irmão de criação como ele sempre fora, como sempre havia de ser, interrogando-se afectuosamente sobre qual seria a falta ou infortúnio que tinha para lhe contar naquele momento, naquele sítio onde se mantivera tão altivo na sua dignidade.

- Oh, Eliud! - exclamou Elis, estreitando-o de novo nos braços que não tinham perdido o seu vigor descuidado. - Pelo amor de Deus, que é que hei-de fazer? Como é que vos hei-de contar! Não posso voltar para o País de Gales! Se o fizer, perco tudo. Oh, Eliud, ela tem de ser minha! Se a perco, morrerei! Não a vistes? A filha de Prestcote?

- A filha dele? - murmurou Eliud, totalmente perplexo. - Havia uma dama, com uma jovem já crescida e um rapazinho... Quase nem os vi.

- Pelo amor de Deus, como é possível não a ver? Marfim e rosas, o cabelo de um louro muito claro, como prata fiada... Eu amo-a! - proclamou Elis, febril. -E ela também me ama, juro, e prometemos ser um do outro. Oh, Eliud, se me vou embora, ela nunca será minha. Se a deixo agora, estou perdido. E ele é nosso inimigo, ela preveniu-me, odeia os galeses. Não vos aproximeis dele, disse-me...

Eliud, que se sentara, atordoado e perdido, ergueu-se, para agarrar o amigo pelos ombros e sacudi-lo furiosamente até que ele se calou, sem fôlego, fitando-o espantado.

-Que é que me estais a dizer? Que tendes uma rapariga aqui? Estais apaixonado por ela? Quereis quebrar o acordo com Cristina? É isso que me estais a dizer?

-E não ouvistes as minhas palavras? Não foi exactamente o que vos disse? - Elis, sem se deixar subjugar ou acalmar, libertou-se e segurou-o por sua vez. - Ouvi, dexai que vos explique tudo. Que promessas fiz eu alguma vez a Cristina? E culpa dela ou minha se nos amarraram como se fôssemos duas cabeças de gado? Ela não me tem amor, nem eu a amo. Podia agir como seu irmão, dançar no casamento dela, beijá-la e desejar-lhe toda a felicidade do mundo. Mas isto... isto é outra coisa! Oh, Eliud, calai-vos e escutai-me!

E toda a história, desde a primeira vez que a entrevira, donzela de prata junto da porta, de olhos azuis, mágica, brotou como música. Quantos bardos tinham nascido da estirpe a que Elis pertencia, ele tinha ao mesmo tempo o dom das palavras e a melodia eloquente. Eliud deixou-se ficar sentado, acometido de mutismo, olhando-o boquiaberto, lívido de espanto e com um estranho consternamento, as mãos apertadas, torcendo-se entre as mãos persuasivas de Elis.

- E eu que estava desesperado por vossa causa! - disse com voz branda e devagar, quase como se falasse consigo próprio.-Se ao menos eu soubesse...

-Mas, Eliud, ele está aqui!-Elis segurava-o pelos braços, prescrutando-lhe ansiosamente o rosto. - Ele está aqui! Vós é que o haveis trazido, deveis sabê-lo. Ela diz-me que não o procure, mas como posso eu perder esta oportunidade? Sou nobre, ofereço-lhe todo o meu coração, todos os meus bens e as minhas terras, onde poderá ele arranjar-lhe um casamento melhor? Ela não está prometida... Tenho de o conquistar, fazer com que me oiça... e por que não há-de ouvir? - Varreu com o olhar brilhante o pátio vazio. - Eles ainda não estão prontos, não nos chamaram. Eliud, vós sabeis onde ele está. Vou ter com ele, tenho de ir! Mostrai-me esse lugar!

-Levaram-no para a enfermaria. - Eliud contemplava-o de boca aberta, traduzindo com o olhar todo o seu espanto. - Mas vós não podeis, não deveis... ele está doente e cansado, não podeis ir perturbá-lo agora.

- Serei manso e humilde. Vou ajoelhar-me diante dele. Porei a minha vida nas suas mãos. A enfermaria, onde fica? Nunca estive dentro destas paredes até agora. Qual é a porta?-Agarrou Eliud pelo braço e arrastou-o até ao arco que deitava para o pátio. -Mostrai-me, depressa!

-Não! Não deveis ir! Deixai-o estar! Não fica bem ir perturbar-lhe o descanso...

- Qual é a porta? - Elis sacudiu-o ferozmente. - Viestes com ele, tendes de saber onde é!

- Além! É o edifício que está recuado até ao muro do recinto, à direita da guarita do porteiro. Mas não deveis fazer isso! Certamente ela conhece melhor o próprio pai. Esperai, não o importuneis agora, um homem velho e doente!

- E pensais que eu seria capaz de causar algum desconforto ao pai dela ? A única coisa que quero é abrir-lhe o meu coração, dizer-lhe que a filha também me quer. Se ele me amaldiçoar, suportá-lo-ei. Mas tenho de tentar. Que outra oportunidade poderei vir a ter? - Tentou libertar-se e Eliud agarrou-o convulsivãmente, depois saltou um grande suspiro e largou-o.

- Ide, então, tentai a vossa sorte! Não posso impedir-vos. Elis partiu, sem a menor precaução ou disfarce, saiu para o pátio que atravessou a direito, como uma seta, em direcção à porta da enfermaria. Eliud deixou-se ficar na sombra, vendo-o desaparecer no interior, depois encostou a fronte à pedra e esperou alguns momentos, com os olhos fechados, antes de olhar de novo.

Os convidados do abade saíam naquele instante da porta da residência deste. O jovem, que era agora virtualmente o senhor de Shrewsbury, encaminhou-se com a dama e a filha desta para a entrada da sala de jantar das visitas. Einon ap Ithel deteve-se a falar com o abade, enquanto os seus dois companheiros, menos versados no inglês, esperavam com toda a cortesia a um dos lados. Não tardaria a ordenar que selassem os cavalos, seguindo-se a despedida cerimoniosa.

Da porta da enfermaria emergiram duas figuras: Elis primeiro, muito hirto, e atrás dele um dos irmãos. Chegados ao cimo dos degraus de pedra, o monge parou e ficou a ver Elis atravessar o pátio principal, tenso com a ofensa, sufocado pelo desespero, como o nosso primeiro antepassado ao ser expulso do paraíso.

- Está a dormir - disse, avançando com ar abatido. - Não consegui falar com ele, o enfermeiro mandou-me embora.

Já não tardaria meia hora antes que se fizessem ao caminho de regresso a Montford, para passarem aí a primeira noite da sua jornada até ao País de Gales. Nos estábulos, Eliud trouxe para fora o baio de Einon, que selou devidamente, antes de voltar as atenções para o cavalo que ele próprio montara e que serviria agora para Elis, enquanto ele ficava no seu lugar.

Os frades tinham terminado o seu repouso habitual e andavam outra vez pelo pátio, a caminho dos trabalhos que lhes estavam destinados. Decorridos já alguns dias do mês de Março, havia trabalho a fazer nos campos e no jardim, além dos artífices que tinham as suas oficinas nos claustros e no escritório. O irmão Cadfael, atravessando calmamente em direcção ao jardim de ervas medicinais, foi subitamente interpelado por Eliud, que procurava visivelmente alguém que o orientasse e se mostrou satisfeito por ver uma pessoa que já conhecia.

- Irmão, se permitis que vos incomode, negligenciei os meus deveres, há uma coisa que eu tinha esquecido. O senhor Einon deixou a capa na liteira, para servir de coberta a lord Gilbert. Em pele de carneiro tosquiada, deveis tê-la visto. Preciso reavê-la, mas não quero incomodar o conde Gilbert. Se me pudésseis levar até lá e entregar-ma...

- Da melhor vontade - ripostou Cadfael e acompanhou-o com passo vivo. Observou disfarçadamente o jovem, enquanto caminhavam. O rosto ardente e enérgico mostrava-se fechado e impenetrável, mas os olhos revelavam preocupação. Ele havia de carregar eternamente metade do peso daquele meio-irmão que caminhava pelo mundo com tanta ligeireza. E uma nova serparação eminente, depois de um encontro tão breve; e aquele casamento à espera, para tornar a separação inevitável e para o resto da vida.

- Ides ver o sítio onde ele está, mas não o seu quarto. Estava profundamente adormecido quando saímos do pé dele. Espero que ainda esteja. Um sono reparador na sua própria terra, com a família perto e entregue em boas mãos é tudo o que ele precisa.

- O seu estado não era fatal então? - perguntou Eliud, em voz baixa.

- Nada que o tempo não possa curar. Já cá estamos. Vinde comigo. Lembro-em da capa. Vi o irmão Edmund dobrá-la e pô-la em cima de um baú.

A porta do quarto estreito tinha ficado entreaberta, para evitar o barulho da tranqueta de ferro, mas rangeu ao ser afastada o suficiente para permitir a entrada no aposento. Cadfael esgueirou-se de lado para o interior e parou, olhando atentamente para a figura comprida e imóvel estendida na cama, mas ela permaneceu imóvel e indiferente. O brazeiro era como um pequeno olho dourado e sem fumo na escuridão interior. Tranquilo, Cadfael aproximou-se do baú e pegou na capa que estava dobrada em cima dele. Sem dúvida que era a mesma que Eliud procurava e, apesar de tudo, já naquele momento, Cadfael teve a noção estranha de que ela não correspondia exactamente à forma como a recordava, embora não se demorasse a tentar identificar o que era que estava mudado. Dirigia-se de novo à porta, onde Eliud, meio dentro meio fora, espreitava ansiosamente, quando o jovem, dando um passo para o lado para o deixar passar primeiro, fez tombar o banquinho que estava ao canto. Este caiu com um pancada seca e rolou. Eliud inclinou-se para o fazer parar e erguê-lo do chão de ladrilhos e Cadfael, acennando-lhe furiosamente com a mão a pedir silêncio, rodou sobre si mesmo para ver se o ruído teria despertado o doente.

Nem um movimento, nem uma respiração mais forte, nem um suspiro. O corpo comprido, cujo volume mal se apercebia sob as cobertas, continuava imóvel como antes. Demasiado até. Cadfael aproximou-se e baixou a mão para afastar o pano que cobria a barba grisalha e escondia a boca. As pálpebras azuladas, dentro das órbitas encovadas, pareciam os olhos esculpidos de uma estátua tumular. Os lábios estavam afastados e um pouco recuados sobre os dentes unidos, parecendo traduzir um sofrimento constante e habitual. O peito magro não tinha qualquer movimento. Barulho algum poderia voltar a perturbar o sono de Gilbert Prestcote.

- Que é? - sussurrou Eliud, aproximando-se para ver.

- Pegai nisto - ordenou Cadfael e atirou-lhe para as mãos a capa dobrada. - Vinde comigo ao vosso senhor e a Hugh Beringar e queira Deus que as mulheres estejam dentro de casa.

Não precisava de se preocupar de imediato com as mulheres, foi o que constatou ao sair para o pátio, com Eliud mudo e a tremer a seu lado. Lá fora fazia frio e competia agora aos homens fazer que as cerimónias de despedida se desenrolassem como competia, por isso Lady Prestcote já se retirara com Melicent para os aposentos dos hóspedes. O grupo galês esperava tranquilamente com Hugh Beringar, junto do portão principal, prontos para montar e partir, e os cavalos, já selados, calcavam o empedrado com pequenos sons metálicos. Elis, dócil e correcto, encontrava-se junto do estribo de Einon, embora não parecesse muito contente por iniciar a viagem de regresso. O seu rosto mostrava-se nublado como o céu. Ao ouvir aproximarem-se os passos apressados de Cadfael e ao ver a expressão dele, todos os olhos se pregaram no recém-chegado.

- Trago-vos más notícias - disse Cadfael sem rodeios -, meu senhor, os vossos esforços foram em vão e receio que a vossa partida tenha que ser um pouco retardada. Acabamos de sair da enfermaria; Gilbert Prestcote está morto.

 

Foram ambos com ele, Hugh Beringar e Einon ab Ithel, conjuntamente responsáveis por aquela troca de prisioneiros que repentinamente escapara ao seu controlo. Ficaram de pé ao lado da cama, no quarto obscurecido e silencioso, com o pequeno candeeiro a brilhar como um olho amarelo-pálido, a um lado, e a brazeira de um vermelho-vivo, do outro. Olharam e tocaram, aproximaram uma lâmina pulida da boca e do nariz e não obtiveram qualquer sinal de respiração. O corpo estava quente e flexível, a morte não ocorrera há muito, mas era morte, sem dúvida.

- Ferido, fraco e exausto da viagem - disse Hugh, desesperado. - Não é culpa vossa se ele já se afundara demasiado para poder voltar a subir.

- Mesmo assim, eu tinha uma missão - disse Einon. - E essa missão consistia em vos trazer um homem e receber de vós outro em troca. Esta parte já não poderá ser completada.

- Sim, haveis trazido esse homem, vivo, e vivo o entregastes. A morte ocorreu depois de ele estar nas nossas mãos. Não há qualquer impedimento a que leveis o vosso homem e regresseis com ele, conforme o acordo feito. A vossa parte foi cumprida e bem.

- Mas não de forma satisfatória. O homem está morto. O meu príncipe não aceita a troca de um homem morto por um vivo - acrescentou Einon com altivez. -Não quero fazer concessões nem pretendo que as façam a meu favor. Nem Owain Gwynedd o deseja. O que vos trouxemos, ainda que inocentemente, foi um homem morto. Não levarei em troca um vivo. A troca não pode efectuar-se, tornou-se vazia e nula.

O irmão Cadfael, embora com o ouvido alerta, atento a esta meticulosa troca de palavras, que não eram mais nem menos do que ele esperara, pegara no pequeno candeeiro, protegendo-se das correntes de ar com a mão que tinha livre e aproximou-se do rosto sem vida. Estando ele profundamente adormecido e num estado de extrema fraqueza, não era tarefa difícil introduzir alguém pela porta entreaberta. A menos que o patamar estivesse engordurado ou estivesse alguma pedra solta. O rosto mudo e imóvel, que se ia tornando cor de cinza à medida que olhava para ele, fora-lhe familiar ao longo de vários anos, por muito alterado e envelhecido que estivesse. Prescrutou-o atentamente, deslocando o candeeiro para iluminar os diferentes planos e todas as reentrâncias cavernosas. Os sítios encovados tinham as suas sombras azuladas, mas os lábios grossos, ligeiramente repuxados, não deveriam apresentar o mesmo tom lívido, nem deixar ver os dentes grandes e fortes, assim como as narinas hirtas não deveriam estar tão abertas e com a mesma cor magoada.

- Fareis o que vos parecer certo - dizia Hugh por detrás dele - , mas eu, pela minha parte, pretendo deixar bem claro que sois livre de partir acompanhado como vieste ou de levar os dois jovens de volta. Enviai-me o homem que deixei convosco e declararei o acordo fielmente cumprido. Ou se Owain Gwyned ainda quiser chegar à fala comigo, tanto melhor, irei ao seu encontro junto da fronteira, onde ele indicar, e aí receberei o meu refém.

- Owain dirá de sua justiça-replicou Einon -, depois de eu lhe relatar o sucedido. Mas sem ordens suas, tenho de deixar Elis ap Cynan e levar Eliud de volta comigo. O preço devido por Elis não foi pago, pelo menos com inteira satisfação da minha parte. Ele terá de ficar.

- Receio - disse Cadfael, afastando-se abruptamente da cama -, que Elis não seja o único a ter de ficar aqui. - E enquanto os outros dois fitavam nele os olhares admirados e interrogados, continuou. - A situação é mais complicada do que pensais. Hugh disse bem, não havia nele mal de morte, a única coisa de que precisava era tempo, descanso e paz de espírito e ter-se-ia recomposto. Velho antes do seu tempo, talvez, mas ter-se-ia recomposto. Este homem não se afundou simplesmente na sua própria fraqueza e cansaço. Houve uma mão que o obrigou a ficar lá no fundo.

- Quereis dizer - comentou Hugh, após um silêncio gelado de espanto e dúvida -, que se trata de um crime?

- É o que estou a dizer, sim. Os sinais são claros.

- Mostrai-nos - disse Hugh.

Ele mostrou-lhes. Um rosto atento inclinou-se de cada lado do leito para seguir os movimentos do dedo do frade.

- Não seria necessária uma grande pressão e certamente não houve o que se pudesse chamar luta. Mas vede os sinais. Estas marcas em volta do nariz e da boca, ainda que pouco perceptíveis, são contusões que ele não tinha quando o pusemos na cama. Tem os lábios nitidamente magoados e, se olhardes de perto, vereis a forma dos dentes desenhados no lábio superior. Alguém lhe estampou a mão sobre a cara para o impedir de respirar. Duvido que tenha chegado a acordar. Profundamente adormecido, como estava, e no seu estado de debilidade física, não deve ter levado muito tempo.

Einon olhou para as roupas da cama e perguntou em voz baixa:

- Que é que foi usado para abafar o nariz e a boca? Estas cobertas?

-Por enquanto não temos maneira de saber. Preciso de mais luz e do tempo suficiente, mas, tão certo como Deus estar a ver-nos, este homem foi assassinado.

Nenhum deles fez mais perguntas. Einon tinha experiência de muitas espécies de mortes e Hugh sentia uma confiança implícita nas opiniões do irmão Cadfael. Olharam um para o outro, longamente, sem dizer palavra, num silêncio carregado de pensamento.

- O irmão tem razão - disse por fim Einon. - Não posso levar daqui nenhum dos meus homens que podem muito bem, embora seja uma hipótese remota, estar de alguma forma implicados neste crime. Enquanto a verdade não for posta à luz do dia, eles não podem voltar para casa.

- De toda a vossa comitiva - disse Hugh -, vós e os vossos dois capitães estais ilibados de qualquer dúvida. Vós não tínheis entrado na enfermaria até este momento, eles nunca chegaram a entrar e qualquer dos três tem estado na minha companhia e na do abade em cada minuto desta visita e isso sem contarmos o testemunho das mulheres. Ninguém pode deter-vos e deveis mesmo voltar para junto de Owain Gwynedd, para o informar do que aconteceu aqui. Na esperança de que a verdade seja conhecida em breve e postos em liberdade todos os que não têm culpas.

- Regressarei, portanto, e eles comigo. Mas quanto aos restantes... -E ficaram ambos em suspenso, lembrando-se de como o grupo se tinha separado e tomado rumos diferentes, os convidados do abade na companhia deste até à sua residência, os outros em direcção aos estábulos para tratar dos cavalos, ficando livres para andar por onde quisessem e falar com quem lhes aprouvesse, até que os chamassem para o refeitório, para comerem. E, nessa meia hora antes da refeição, o pátio tinha ficado praticamente vazio.

- Não há ninguém além de nós que não tivesse tido a possibilidade de entrar na enfermaria. Seis homens dos meus e Eliud. A menos que alguns deles estivessem na companhia de pessoas desta casa ou à sua vista, durante todo esse tempo. Duvido, mas é um facto a analisar.

-Há também a considerar todas as outras pessoas que estão aqui dentro. De todos nós, certamente que os seus galeses tinham menos razões para desejar vê-lo morto, depois de o terem transportado e tratado durante toda a jornada. É loucura pensar nisso. Temos aqui os irmãos, os viandantes que eles acolhem dentro do recinto, os criados laicos, eu próprio, embora eu tenha estado na vossa companhia durante todo este tempo, os meus homens, que trouxeram Elis do castelo... o próprio Elis...

-Elis foi directamente para o refeitório - disse Einon. - No entanto, ele seria sempre o primeiro a ficar. Melhor será que tentemos ver se algum dos meus homens tem alguém que possa responder por ele e se assim for partirá imediatamente comigo, pois quanto mais cedo Owain Gwynedd souber o que se passa, melhor.

- E eu - disse Hugh, em tom sombrio -, tenho de ir dar a notícia à viúva e à filha e informar o Sr. Abade, o que vai ser uma tarefa bem triste. Um crime no seu próprio território!

O abade Radulfus apareceu, numa pose sombria, olhou demorada e tristemente para o rosto sem vida, ouviu o que Cadfael tinha para lhe dizer e cobriu o rosto hirto com um pano de linho. O prior Roberto veio depois, arrancado à sua calma aristocrática e sacudindo a cabeça prateada perante a iniquidade do mundo e a violação de lugares sagrados. Teria de haver cerimónias de reconsagração para que tudo ficasse puro de novo e isso não poderia ser feito enquanto a verdade não fosse descoberta e a justiça vingada. O irmão Edmund apresentou-se, angustiado de uma forma indescritível pelo facto de tal acontecimento se ter produzido no seu território e sob o seu governo, delicado e atento, como se a culpa do sucedido lhe sujasse as próprias mãos e deixasse uma enorme mancha negra a denegrir-lhe a alma. Era difícil reconfortá-lo. Lamentou-se repetidas vezes de não ter deixado um guarda permanente junto ao leito do conde, mas como podia alguém pensar que isso seria necessário? Por duas vezes tinha vindo espreitá-lo, encontrara tudo sossegado e assim o deixara. Sossego e tranquilidade, tempo e repouso, era o que o doente mais necessitava. Aporta fora deixada entreaberta, qualquer irmão, ao passar, poderia ter ouvido, se o paciente acordasse e precisasse de algum pequeno serviço.

- Sossegai agora!-disse Cadfael com um suspiro. -Não tomeis sobre os vossos ombros mais que o que é razoável e que bem pouco é. Não há ninguém que se preocupe mais com o seu semelhante e vós bem o sabeis. Conservai o vosso equilíbrio, pois ambos temos de interrogar todos os que estão aqui dentro, para saber se viram ou ouviram alguma coisa de anormal.

Entretanto, Einon ab Ithel já se fizera ao caminho, apenas com os seus dois capitães por companhia e os póneis da montanha à arreata, de rregresso a Montford, onde pernoitaria para regressar depois, o mais depressa que lhe fosse possível, para o sítio onde Owain Gwy-nedd tinha agora o seu posto de vigilância da fronteira, a norte. Não havia um só dos seus homens que fosse capaz de dar contas do que fizera em cada momento do seu tempo e apresentar testemunhas que pudessem prová-lo. Tinham de ficar para trás, ali ou na ala mais próxima do castelo, até que o assassino de Prestcot fosse encontrado e revelado. Hugh fôra suficientemente sensato para ir primeiro procurar o abade e só depois de ter apressado a partida dos galeses é que empreendeu a tarefa mais difícil de todas.

Edmund e Cadfael retiraram-se de junto do leito quando as duas mulheres entraram apressadas e lavadas em lágrimas, vindas dos aposentos dos hóspedes: Sybilla tropeçando às cegas, pelo braço de Hugh. O rapazinho tinham conseguido deixá-lo numa ignorância feliz, com a criada de Sybilla. Haveria outra ocasião, melhor do que esta, para lhe dizer que ficara sem pai.

Atrás dele, enquanto fechava a porta silenciosamente, Cadfael ouviu a viúva romper num choro convulsivo e doloroso que foi imediatamente abafado nas cobertas do leito do marido. A rapariga não soltou um som. Entrara no quarto muito direita, o rosto pálido e gelado e o olhar vazio com o choque.

No pátio principal, o pequeno grupo de galeses, muito juntos e constrangidos, permanecia sob a vigilância dos guardas de Hugh, discretos mas atentos, espalhados por todos os lados e em especial entre eles e o portão fechado. Elis e Eliud, mudos e desalentados no meio daquela catástrofe, estavam um pouco mais ao lado, sem se tocarem e sem olharem um para o outro. Agora, pela primeira vez, Cadfael notou em ambos a semelhança do parentesco, tão leve que em tempo normais passaria despercebida, quando um se apresentava com ar solene e ponderado e o outro alegre e ligeiro como um pássaro. Naquele momento, ambos tinham o mesmo rosto chocado, cada um tão perdido como o outro, e quase poderiam ser tomados por gémeos.

Ainda se encontravam no mesmo sítio, à espera que fizessem alguma coisa com eles, quando Hugh surgiu do outro lado do pátio com as duas mulheres. Sybilla tinha recuperado um controlo desolado, mas prático sobre as lágrimas e mostrava maior firmeza do que Cadfael, entre outros, teria esperado. O mais provável era que já ti vesse concentrado uma parte do seu espírito e energia na análise da nova situação e daquilo que significava para o filho, que era agora senhor de seis valiosos domínios, mas todos eles naquela vulnerável região fronteiriça. Ele iria precisar de um administrador muito hábil ou de um padrasto forte e bem intencionado. O seu senhor estava morto, o senhor do seu senhor, o rei, prisioneiro, não havia ninguém que pudesse forçá-la a casar-se contra vontade. Era muitos anos mais nova que o falecido marido, tinha o seu próprio dote e era suficientemente bonita para ser um partido desejável. Havia de viver e de se sair bastante bem.

A rapariga era outra questão. Por detrás da sua calma glacial, um fogo ligeiro começara de novo a arder e as centelhas espreitavam-lhe no fundo dos olhos secos. Deitou um olhar imprescrutável na direcção de Elis e depois olhou de novo em frente.

Hugh deteve-se um momento para pôr os galeses sob a escolta dos seus sargentos, que os conduziriam para a segurança o castelo com a cortesia devida, pois todos eles podiam estar totalmente inocentes, mas mantendo-os sob uma guarda atenta e vigilante. Era sua intenção acompanhar em seguida as duas mulheres aos seus aposentos, antes de tentar continuar com as investigações, mas Melicent pousou-lhe repentinamente a mão no braço.

- Meu senhor, uma vez que o irmão Edmund se encontra presente, posso fazer-lhe uma pergunta antes de deixarmos tudo nas vossas mãos? - Mostrava-se muito calma, mas o fogo que ardia dentro dela começava a vir à superfície e a sua palidez adquirira um brilho de aço. - Irmão Edmund, vós conheceis melhor que ninguém os vossos domínios e sei que os vigiais com o maior cuidado. Nada vos pode ser censurado. Mas dizei-nos, quem, se é que alguém, entrou no quarto de meu pai depois que o deixaram lá, a dormir?

- Não estive constantemente perto dele - disse Edmund, infeliz. - Deus me perdoe, mas não suspeitei que houvesse necessidade disso. Qualquer pessoa se poderia ter aproximado dele.

- Mas sabeis de alguém que com certeza tenha entrado? Sybilla segurara a enteada pela manga, perturbada e reprovadora, mas Melicent sacudiu-a sem querer olhar para ela.

- Uma pessoa? - disse em tom incisivo.

- Que eu saiba, sim - concordou Edmund, sem compreender -, mas nada aconteceu de mal. Foi pouco depois de todos haverdes regressado da residência do senhor abade. Tive tempo de dar uma volta e vi a porta do quarto de vosso pai um pouco mais aberta. Encontrei um jovem ao lado da cama, que me parecia decidido a perturbar-lhe o sono. Eu não podia permitir tal coisa, por isso pus-lhe a mão no ombro, fi-lo voltar sobre si mesmo e apontei-lhe a saída do quarto. Ele saiu obedientemente e sem protestar. Não dissemos palavras e não aconteceu nada de mal. O paciente não tinha acordado.

- Não - disse Melicent, com a voz abalada, libertando-se finalmente da sua calma glacial -, não acordou, não voltou a acordar e nunca mais acordará. Dizei-me o nome dessa pessoa.

E Edmund, que nem sequer sabia o nome do rapaz, de tal forma sem significado fora o seu encontro, ergueu uma mão hesitante e apontou para Elis.

- Era o nosso prisioneiro galês.

Melicent soltou um brado de raiva, estranho e doloroso, cheio de culpa e de dor e rodou na direcção de Elis. A sua brancura de mármore tornara-se incandescente e o azul dos olhos era como o brilho ofus-cante que a luz do sol arranca de um pedaço de gelo.

- Sim, vós! Nenhum outro a não ser vós. Ninguém a não ser vós entrou naquele quarto. Oh, meu Deus, que foi que nós ambos fizemos! E eu, louca, louca que fui, nunca acreditei que fosse realmente verdade, quando me haveis dito, tantas vezes, que por mim seríeis capaz de matar, de matar qualquer pessoa que se atravessasse entre ambos. Oh meu Deus, e eu amei-vos! Posso até ter-vos convidado, ter-vos impelido para esse acto. Eu nunca compreendi. Qualquer coisa, disseste, qualquer coisa que impedisse que vos mandasse embora para o País de Gales. Qualquer coisa! Haveis dito que seríeis capaz de matar e agora já o fizeste, meu Deus! E eu sou tão culpada como vós!

Elis estava diante dela, pobre rapaz bafejado pela sorte, de repente mais infeliz e desamparado que uma criancinha. Ficou a olhá-la boquiaberto, em sobressalto, com o espanto e terror estampados no rosto, sem conseguir falar ou pensar, preparado para qualquer ataque. Sacudiu a cabeça violentamente, de um lado para o outro, como alguém que no meio de um pesadelo insuportável usa os próprios dedos para forçar as pálpebras a abrirem-se e interromper o sono. Mas não conseguiu pronunciar qualquer palavra ou som.

- Retiro toda e qualquer prova de amor - atirou-lhe Melicent, numa voz que era como um grito de dor. - Odeio-vos, detesto-vos... Odeio-me a mim própria por alguma vez vos ter amado. Tão mal compreendesteis que haveis assassinado o meu pai.

Elis conseguiu finalmente arrancar-se ao seu torpor e fez um movimento brusco em direcção a ela.

- Melicent! Pelo amor de Deus, que dizeis?

A rapariga recucou violentamente, afastando-se dele.

- Não, não me toqueis, não vos aproximeis de mim. Assassino!

-Basta-disse Hugh e, tomando-a pelos ombros, impeliu-a para os braços de Sybilla. - Era minha intenção poupar-vos hoje a mais emoções, mas como vedes não podemos esperar. Trazei-a! Sargento, leve-os a ambos para a portaria, onde poderemos falar à vontade. Edmund e Cadfael, vinde connosco, podemos precisar de vós.

- Ora bem - disse Hugh, depois de os ter reunido a todos, acusado, acusadora e testemunhas, na antecâmara da portaria, longe do frio e dos olhares de todos -, vamos a saber exactamente o que se passou. Irmão Edmund, dizeis haver encontrado este homem no quarto do conde, de pé junto da cama. Como haveis interpretado tal facto? Dir-se-ia, a julgar pelas aparências, que estava ali havia um certo tempo? Ou, pelo contrário, que acabava de chegar?

- Pensei que ele se se introduzira no quarto naquele instante - disse Edmund -, estava junto dos pés da cama, um pouco inclinado, com ar de quem perguntava a si próprio se deveria acordar o paciente.

-Mas também era possível que já lá estivesse há momentos? Podia estar inclinado sobre um homem que acabava de sufocar, para ver se o tinha conseguido plenamente?

- Talvez se pudesse fazer essa interpretação - concordou Edmund, muito duvidoso -, mas não me ocorreu tal pensamento. Se houvesse qualquer coisa de tão sinistro na sua presença, não era natural que se tivesse evidenciado? É verdade que se sobressaltou quando lhe toquei e que me olhou com ar culpado, mas mais como um rapazito apanhado a fazer uma maldade, nada que me causasse suspeitas. E quando saiu, por eu lho ter ordenado, fê-lo como uma criança obediente.

-Haveis olhado novamente para a cama depois de ele ter saído?

- Tudo estava em ordem e em sossego como quando o deixamos a dormir. Mas não fui ver de perto - disse Edmund tristemente -, prouvera a Deus que o tivesse feito.

-Tanto quanto era do vosso conhecimento, não havia razões para isso e a melhor cura era deixá-lo dormir descansado. Mais uma pergunta: Elis tinha alguma coisa nas mãos?

- Não, nada. Como também não tinha a capa que traz agora no braço. -A capa era de um tecido vermelho-escuro, macio e de trama apertada.

- Muito bem. E não tendes conhecimento de mais ninguém que se possa ter introduzido no quarto?

-Não, não faço ideia. Mas era possível alguém entrar a qualquer momento. Podem muito bem lá ter estado outros. Melicent disse com amargura:

- Um foi o bastante! E esse sabemos quem foi. - Sacudiu a mão que Sybilla lhe pusera no braço, recusando deixar-se constrager pelos seus. - Senhor de Beringar, escutai-me. Repito-vos que ele matou o meu pai. Não posso dizer outra coisa.

- Dizei de vossa justiça - replicou Hugh brevemente.

-Meu senhor, deveis saber que Elis e eu nos conhecemos no vosso castelo, onde ele se encontrava prisioneiro mas com liberdade de percorrer todo o recinto e eu, em companhia de minha mãe e irmão, nos aposentos de meu pai, aguardando notícias deste. Vimo-nos e tocámos-nos, sou forçada a dizer com amargo desgosto que nos amámos. Não foi culpa nossa, aconteceu-nos sem que o pudéssemos evitar. Ficámos tomados de pânico quando o meu pai voltou, obrigando-nos à separação, pois nessa altura Elis tinha de partir no lugar dele. E vós, meu senhor, que conheceis o meu pai melhor do que ninguém, sabeis que ele nunca aceitaria uma união com um galês. Muitas vezes falámos nisso, muitas vezes nos afundámos no desespero. E ele disse, juro que o disse e ele não ousará negá-lo, que mataria por mim se necessário fosse, que mataria qualquer pessoa que se atravessasse no nosso caminho. Seria capaz de tudo, disse, para que pudéssemos ficar juntos, até de matar. O amor faz os homens dizer loucuras. Nunca pensei que daí pudesse vir qualquer mal e, no entanto, também sou culpada, pois estava tão desesperadamente apaixonada como ele. E agora ele cumpriu a ameaça, não há dúvida que matou o meu pai.

Elis encheu o peito de ar, saindo do seu torpor, feito de espanto e infelicidade, e quase soltou no ar.

-Eu não o matei! Juro-vos que nem sequer lhe toquei, nunca lhe disse uma palavra. Nunca por nada deste mundo seria capaz de matar vosso pai, mesmo que ele vos afastasse de mim. Teria voltado junto de vós de alguma forma, tinha de haver uma solução... sois terrivelmente injusta comigo!

-Mas entraste no quarto onde ele estava?-recordou-lhe Hugh. - Porquê?

-Para me dar a conhecer, para lhe suplicar que me ajudasse, que outra coisa podia eu fazer? Era a única esperança que me restava de momento, não podia deixar que me escapasse entre os dedos. Queria dizer-lhe que amo Melicent, que sou um homem com terras e honra e nada mais desejo senão servi-la com todos os meus bens e posses. Ele talvez me tivesse escutado! Eu sabia, Melicent dissera-me, que o conde era inimigo declarado dos galeses, eu sabia que as minhas esperanças eram fracas, mas era a única esperança que me restava. Não cheguei a poder falar-lhe. Estava profundamente adormecido e, antes que eu ousasse perturbá-lo, este irmão entrou e expulsou-me de lá. Esta é a verdade e estou pronto a jurá-lo sobre o altar.

- É verdade, sim! - exclamou Eliud com veemência, defendendo o amigo. Ficara perto deste, uma vez que Elis recusara sentar-se, com o ombro encostado ao de Elis, para lhe dar conforto e segurança. Estava tão pálido como se a acusação lhe fosse dirigida e a sua voz era baixa e roufenha. - Ele esteve comigo no claustro, falou-me do seu amor e disse que iria procurar o conde Gilbert e falar-lhe de homem para homem. A ideia parece-me insensata, mas ele insistiu. Apenas passaram alguns minutos e vi-o sair de novo, enquanto o irmão enfermeiro ficava a olhar, para ter a certeza de que se afastava. E não houve nada de escondido na sua actuação-insistiu Eliud com firmeza -, Elis atravessou o pátio a direito e em passo rápido, sem se importar que alguém o visse entrar.

- Isso pode muito bem ser verdade - concordou Hugh, pensativo -, mas apesar de tudo, mesmo que ele tenha entrado sem qualquer intenção reprovável e sem grandes esperanças, uma vez que se encontrou ao lado da cama pode muito bem ter-lhe ocorrido como seria fácil e definitivo afastar o obstáculo, um homem adormecido e já muito abalado.

- Ele nunda pensaria uma coisa dessas! - gritou Eliud. - Não está de acordo com a sua maneira de ser.

-Eu não o matei-disse Elis e olhou desesperado para Melicent que o fitava impassível e sem lhe prestar qualquer ajuda. - Pelo amor de Deus, acreditai em mim! Eu acho que não teria sido capaz de lhe tocar ou de o acordar, mesmo que não aparecesse ninguém para me mandar embora. Ver um homem tão altivo e forte assim... assim indefeso...

-Ninguém lá dentro entrou a não serdes vós - atalhou Melicent impediosa.

- Isso não se pode provarl-lançou-lhe Eliud como uma flecha. - O irmão enfermeiro disse que o caminho estava aberto, que qualquer pessoa podia ter entrado.

- Como também não se pode provar que alguém tivesse entrado a não ser ele - insistiu Melicent com dolorosa amargura.

- Mas eu acho que pode - disse o irmão Cadfael.

Num instante, todos os olhos se voltaram para ele. Durante todo aquele tempo, uma parte da sua memória concentrara-se, preocupada, na falha que não conseguia identificar completamente. Tinha pegado na capa de pele de carneiro que estava dobrada em cima do baú e encontrara-lhe qualquer coisa diferente, embora não conseguisse lembrar-se do que era. Depois, o encontro com a morte tinha empurrado essa questão para outro plano, onde ficara alojada a partir daí, como um resíduo de comida mal mastigada. E, de repente, achou. A capa já se tinha ido embora, levada por Einon ab Ithel a caminho do País de Gales, mas Edmund estava presente para confirmar o que tinha a dizer. E estava também Eliud, que devia conhecer os pertences do seu senhor.

- Quando tirámos as roupas a Gilbert Prestcote e o deitámos - disse -, a capa que o envolvia e que pertencia a Einon ab Ithel, foi dobrada e posta de lado, o irmão Edmund deve lembrar-se disso, mas de forma a deixar visível na gola o grande alfinete de ouro que a fechava. Quando Eliud, aqui presente, me pediu que o acompanhasse ao quarto e lhe entregasse a capa do seu senhor, o que eu fiz, a capa estava dobrada como antes, mas o alfinete tinha desaparecido. Não admira que a questão ficasse esquecida perante aquilo que encontrámos. Mas eu sabia que havia qualquer coisa em que deveria ter reparado e agora lembrei-me do que era.

- É verdade! - gritou Eliud, cujo rosto se iluminou, ansioso. - Não pensei nisso! E deixei que o meu senhor se fosse embora sem o alfinete e sem lhe dizer nada a esse respeito. Eu próprio prendi a gola da capa com ele quando o deitámos na liteira, porque o vento soprava, gelado. Mas com todo este distúrbio nunca mais pensei em o procurar. Aqui está Elis, que nunca deixou de estar à vista de alguém desde que saiu da enfermaria. Perguntai a todos aqui presentes! Se foi ele que o tirou, tem de o ter consigo. Se não, alguém terá de ter estado lá dentro antes e tê-lo levado. O meu irmão de criação não é ladrão, nem assassino... mas se tiverem dúvidas podem investigar.

-Aquilo que Cadfael diz é verdade - anunciou Edmund.-O alfinete estava bem visível. Se desapareceu é porque alguém lá entrou e o tirou da capa.

Elis vira no rosto de Melicent uma centelha de esperança desesperada, apesar da amargura e do desgosto que permanecia inalterável.

- Dispa-me - pediu fugosamente. - Procurem no meu corpo! Não suporto que pensem que sou ao mesmo tempo ladrão e assassino.

Por uma questão de justiça para com ele, mais do que porque tivesse quaisquer dúvidas, Hugh tomou à letra as suas palavras, mas só Cadfael e Edmund foram autorizados a testemunhar a busca, juntamente com ele, no pequeno compartimento onde Elis, com gestos largos, arrogantes e ofendidos, arrancou o fato, que deixou cair no chão à sua volta, até ficar nu, com os pés e de braços abertos, e deixou correr os dedos com um ar desprezo doloroso pela moita espessa de cabelos encaracolados, ao mesmo tempo que sacudia violentamente a cabeça para provar que não tinha aí nada escondido. Agora que estava livre do olhar fixo e amargo de Melicent, as lágrimas que tinha reprimido subiram-lhe traiçoeiramente aos olhos, fazendo-o pestanejar e sacudir a cabeça orgulhosamente.

Hugh deixou-o acalmar, pouco a pouco, e manteve um silêncio atencioso.

-Estais satisfeitos?-perguntou o rapaz friamente quando conseguiu controlar bem a voz.

- E vós? - perguntou Hugh e sorriu.

Houve um silêncio breve e quase consolador. Depois, Hugh disse com brandura:

- Vesti-vos, então. Sem pressa, - E, enquanto Elis se vestia, agora com as mãos a tremer da reacção, acrescentou: - Estou certo que compreendeis que sou obrigado a manter-vos sob estreita vigilância, vós, o vosso irmão de criação e os outros. Neste momento, não recaem sobre vós maiores suspeitas do que sobre muitos dos de cá e que não terão autorização de sair enquanto eu não souber onde passaram cada momento da manhã e da hora do meio-dia. Isto é apenas o começo e vós apenas um de muitos.

- Eu compreendo - disse Elis e fez uma pausa, hesitando em pedir um favor. - É necessário que fique separado de Eliud?

- Tereis Eliud convosco - disse Hugh.

Quando saíram de novo para ir ao encontro daqueles que ainda aguardavam na antecâmara, as duas mulheres estavam de pé e nitidamente desejosas de se retirarem. Sybilla só tinha uma parte si própria ali presente para apoiar a enteada, a parte melhor estava com o filho e, se era verdade que tinha sido uma esposa fiel e delicada para aquele esposo mais idoso, cuja morte lamentava sinceramente, à sua maneira, amor era uma palavra demasiado grande para aquilo que sentira por ele, mas que mal chegava para descrever o que sentia pelo filho que ele lhe dera. Os pensamentos de Sybilla estavam voltados para o futuro, não para o passado.

-Sabeis onde podeis encontrar-nos nos dias mais próximos. Permiti que me retire agora com a minha filha, há coisas a que temos de atender.

- Como desejardes, senhora - disse Hugh. - Não sereis importunado para além do estritamente necessário. - E acrescentou apenas: - Devo informar-vos que a questão do alfinete desaparecido continua em aberto. Houve mais de uma pessoa a invadir a privacidade de vosso esposo. Não vos esqueçais disso.

- Tenho muito gosto em deixar a questão inteiramente nas vossas mãos - disse Sybilla com fervor. E saiu, guiando Melicent com uma mão imperativa a pegar-lhe no cotovelo. Passaram junto de Elis, à porta, e o olhar faminto do rapaz ficou pregado no rosto de Melicent. Ela passou sem sequer um olhar e chegou mesmo a desviar a saia com medo que roçasse por ele ao sair. Elis era demasiado jovem, demasiado aberto e simples para poder compreender que mais de metade do ódio e repulsa que demonstrara eram dirigidos mais contra ela própria, pelo receio que tinha de ter ido de mais no sentido de desejar aquela morte, que agora lamentava tão desesperadamente.

 

No quarto do morto, com a porta bem fechada, Hugh Beringar e o irmão Cadfael, aproximaram-se do corpo de Gilbert Prestcote e puxaram para cima do peito encovado o pano que lhe cobria o rosto e o lençol. Tinham levado consigo duas palmatórias que colocaram perto do leito, num sítio onde dessem uma chama regular e iluminasse bem o rosto sem vida. Cadfael pegou na palmatória mais pequena e foi-a deslocando devagar sobre as narinas e a boca e depois sobre a barba grisalha, de forma a observar vários ângulos de visão e apanhar quaisquer vestígios de poeira ou fios.

- Por muito fraco, por muito profundamente adormecido que alguém esteja, nunca deixa de lutar o melhor que puder para conseguir respirar e, seja o que for que lhe tenham colado ao rosto, a menos que seja tão duro e maleável que se ajuste perfeitamente, há inalação. Como houve neste caso. As narinas dilatadas tinham cabelos finos no interior que não deixariam de fixar pequenas partículas de tecido. Vedes alguma cor aí dentro?

Numa corrente de ar quase imperceptível, um fragmento de tecido fino estremeceu ao de leve, reflectindo a luz.

- Azul - disse Hugh, aproximando-se mais e,a sua respiração fez dançar os fios.-Azul é uma tinta difícil e cara. É uma cor que não existe nestas cobertas.

- Tiremo-lo para fora - disse Cadfael, estendendo a pequena pinça que utilizava para tirar espinhos e falhas de madeira dos dedos de algum trabalhador mais descuidado, e apanhando um filamento, tão fino que era quase invisível. No entanto, quando saiu, trazia outros agarrados, duas ou três fibras delicadas com a elasticidade de lã.

-Temos de suster a respiração-disse Cadfael -, enquanto lhes ponho uma tampa em cima, para que não os sopremos sem querer. - Tinha consigo um dos recipientes em que guardava os comprimidos e pastilhas depois de moldados e secos, uma caixinhas de madeira polida, de cor quase negra, e de encontro à superfície escura e brilhante, o fio de lã evidenciou bem o seu tom azul-forte. Cadfael tapou cuidadosamente a caixa e procurou de novo com a pinça. Hugh mudou a posição da vela para que a luz se projectasse noutro ângulo, fazendo ver um vislumbre momentâneo de vermelho, o vermelho-pálido e suave das rosas do fim do Verão, quando começam a perder a frescura. Cintilou e desapareceu. Hugh deslocou a luz para voltar a encontrá-lo. Apenas dois filamentos frágeis e encaracolados dos muitos que deviam formar a lã com que fora fiado o tecido, mas a lã segura bem as cores.

- Azul e rosa. Duas cores preciosas de mais para serem usadas em roupas de cama. - Cadfael apanhou o vestígio fugidio depois de duas ou três tentativas e aprisionou-o juntamente com o azul. A luz, cuidadosamente manobrada, não revelou outros vestígios nas narinas dilatadas.

- Bom, não esqueçamos a barba. Vamos ver se há alguma coisa! Havia um fio azul-claro a palpitar na barba grisalha. Cadfael extraiu-o e esquadrinhou os fios embraquecidos, à procura de mais vestígios. Quando sacudiu e varreu com a mão a poeira e os cabelos que tinham ficado no pente, de forma a fazê-los cair para dentro da caixa, dois ou três pontos luminosos brilharam e desapareceram, como partículas de poeira iluminadas pelo sol. Tombou a caixa de um lado para o outro, na tentativa de os tornar a ver, pois a obscuridade tornava-os invisíveis e apenas uma faísca dourada premiou os seus esforços. Descobriu aquilo que procurava preso nos dentes cerrados. Um fio tinha-se desfiado, com o tempo ou o uso, e o espasmo da morte dilacerara-o, ficando com ele agarrado. Cadfael puxou-o e exibiu-o à luz, com a pinça. Tinha o comprimento da primeira articulação de um dedo, era frágil e brilhante e reluzia à luz da vela, o fio dourado do qual se tinham desprendido as partículas invisíveis e cintilantes.

- Caro na verdade! - disse Cadfael, fechando-o cuidadosamente na sua caixa. - Uma morte de príncipe, ser sufocado debaixo de um tecido de lã fina, bordado a fios de ouro. Tapeçaria? Pano de altar? Vestido de brocado de alguma dama? Pedaço de uma veste usada? Decerto nada que exista aqui na enfermaria, Hugh. Fosse o que fosse, alguém o deve ter trazido consigo.

- É o que parece - concordou Hugh pensativo.

Não encontraram mais nada, mas aquilo que tinham era suficientemente intrigante.

- Onde estará o pano que o sufocou? - perguntava a si mesmo Cadfael, preocupado. -E onde estará o alfinete de ouro que fechava a capa de Einon ab Ithel?

- Procurai vós o tecido, pois deve ser de uma riqueza que é bem possível encontrar no interior dos muros da abadia. Eu, pela minha parte, procurarei o alfinete. Ainda tenho os seis galeses da escolta e Eliud para interrogar e revistar e, se isso falhar, abriremos caminho por todo o território conforme pudermos. Se estiver aqui, havemos de o encontrar.

E puseram-se à procura. Cadfael de um tecido, qualquer tecido que apresentasse a coloração rica e o fio de ouro que ele procurava, Hugh do alfinete de ouro. Com a autorização do abade e a ajuda do padre Robert, que tinha o conhecimento mais completo das riquezas da casa e exibia com orgulho os seus tesouros, Cadfael examinou todos os reposteiros, tapeçarias e panos de altar que a abadia possuía, mas nenhuma dessas peças correspondia aos fragmentos flexíveis que ele levara para serem comparados. As tonalidades eram exactas e consistentes. Aquele rosa e aquele azul não tinham qualquer correspondente ali.

Hugh, por sua vez, revistou minuciosamente as roupas e armaduras de todos os galeses feitos prisioneiros na sequência daquela morte, e o padre Robert, embora contra vontade, sancionou a extensão da busca às celas dos irmãos e noviços e mesmo aos objectos pessoais dos mais jovens, pois as crianças podem deixar-se tentar por um objecto brilhante, sem compreenderem a gravidade daquilo que fazem. Mas em parte alguma encontraram vestígios do alfinete, antigo e massiço, que tinha fechado a gola da capa de Eion ab Ithel para que o frio não importunasse Gilbert Prestcote durante a sua viagem.

Entretanto, o dia chegara ao fim e a noite aproximava-se, mas depois das Vésperas e da refeição da noite, Cadfael recomeçou a busca. Os ocupantes da enfermaria mostraram-se dispostos a falar, havia muito tempo que não tinham um assunto tão suculento para debater. No entanto, nem Cadfael, nem Edmund, conseguiram deles muitas informações. O que quer que fosse que tinha acontecido tivera lugar durante a meia hora ou mais em que os irmãos estavam a almoçar no refeitório e, nessa altura, a enfermaria, depois da refeição, estava geralmente a dormir. Havia um, contudo, que estava acamado, dormia muito a horas desencontradas e era bem capaz de ficar desperto se alguma coisa de mais interessante que o habitual se estivesse a passar.

- No que diz respeito a ver alguma coisa - disse o irmão Rhys pesaroso -, sirvo de tão pouco para vós como para mim próprio. Sei quando algum companheiro passa junto de mim e sei distinguir quem é, e distingo a luz da escuridão, mas pouco mais. Quanto aos meus ouvidos, isso posso jurar-vos, têm-se tornado mais agudos à medida que a visão diminui. Ouvi a porta do quarto em frente, onde estava o conde, abrir-se duas vezes, agora que me pedis para esquadrinhar a memória. Como sabeis, a porta range, mas só ao abrir. Quando é fechada não produz qualquer som.

-Portanto, alguém entrou ou pelo menos abriu a porta. Que mais ouviste? Alguém falou?

- Não, mas ouvi o som de uma bengala - muito ao de leve -, e depois a porta rangeu. Penso que deve ter sido o irmão Wilfred que ajuda aqui quando necessário, já que é o único que anda de bengala, pois é coxo desde novo.

- E ele entrou?

- Isso é uma coisa que deveis perguntar-lhe a ele. Eu não o sei dizer. Tudo ficou em silêncio durante alguns momentos e depois ouvi de novo a bengala no corredor, a caminho da porta da saída. É possível que se tenha limitado a empurrar a porta para olhar e ficar à escuta, para ver se tudo estava em ordem.

- E deve ter puxado a porta de novo antes de se ir embora - disse Cadfael -, senão não a teríeis ouvido ranger pela segunda vez. Quando foi que o irmão Wilfred fez a sua visita?

Mas Rhys foi vago quanto às horas. Sacudiu a cabeça e ficou a pensar.

- Depois de comer dormi um bocado. Não sei por quanto tempo. Mas ainda devem ter ficado no refeitório mais algum tempo, pois só um bocado mais tarde é o que o irmão Edmund voltou.

- E a segunda vez?

- Deve ter sido pouco depois, talvez um quarto de hora. A porta rangeu de novo. Quem quer que fosse tinha um passo leve, mal ouvi pisar o patamar e depois mais nada. Com a porta sem fazer barulho, encostada, não sei quanto tempo ele se demorou, mas imagino que tenha entrado. O irmão Wilfred é natural que só tenha querido espreitar, para ver se tudo estava bem, mas este não.

- Quanto tempo pode ter estado lá dentro? Ouviste-lo sair?

- Estive outra vez a dormitar - admitiu Rhys, pesaroso. - Não sei dizer. Além disso, tinha o passo muito leve, era o andar de um homem novo.

Portanto, o segundo podia ter sido Elis, pois não houvera troca de palavras quando Edmund o seguira e expulsara do quarto e Edmund, depois de passar tanto tempo no meio dos doentes, tinha o passo leve como o de um gato. Ou podia ter sido qualquer outra pessoa, alguém desconhecido, entrando e saindo sem ser perturbado na sua missão mortífera, antes mesmo de Elis se apresentar com os seus intuitos reconhecidamente inofensivos.

Entretanto, podia investigar se o irmão Wilfred tinha realmente ficado na enfermaria a vigiar, pois a verdade é que Cadfael não tomara nota dos irmãos que estavam presentes no refeitório, nem notara se alguém tinha estado ausente. Teve outra ideia.

-Alguém saiu desta sala durante esse tempo? O irmão Maurice, por exemplo, raramente dorme durante o dia e, enquanto os outros dormem, pode muito bem ficar desassossegado, à procura de companhia.

- Nenhum deles passou por mim em direcção à porta, enquanto estive acordado - disse Rhys com convicção. - Além disso, não dormi tão profundamente que não tivesse acordado se alguém o fizesse.

O que podia muito bem ser verdade, mas também não podia ser tomado como coisa certa. Mas, daquilo que ouvira, o irmão Rhys estava muito seguro. A porta rangera duas vezes ao abrir-se para deixar alguém entrar.

O irmão Maurice dissera de sua justiça, mesmo sem ninguém lhe ter perguntado nada, logo que a morte do conde foi referida, tal como havia de acontecer todos os dias até que a verdade fosse conhecida e a sensação se apagasse no esquecimento. O irmão Edmund relatou o facto a Cadfael depois do ofício da noite, durante a meia hora de repouso que antecedia a hora de deitar.

- Fiz rezar algumas orações por sua alma e disse-lhes que amanhã diríamos uma missa por ele, um honrado funcionário da coroa que morreu aqui entre nós e que fora um bom patrono da nossa casa. Eis que Maurice se levanta e diz sem rodeios que fará devidamente as suas orações pela salvação desse homem, pois agora as suas dívidas estão pagas na íntegra e a justiça divina foi cumprida. Vendo que ele sabia tanto sobre o assunto, perguntei-lhe qual tinha sido a mão justiceira - disse Edmund com um azedume fora do habitual, mas com uma resignação ainda maior-, e ele censurou-me por duvidar que tivesse sido a mão de Deus. Às vezes, pergunto a mim mesmo se a doença que lhe aflige o espírito é padecimento ou astúcia. Mas cada vez que tentamos encostá-lo à parede, ele escapa-se por entre os dedos. Do que não restam dúvidas é que ele está muito satisfeito com esta morte. Que Deus nos perdoe a todos as nossas faltas e especialmente aquelas em que caímos sem querer.

- Ámen! - disse Cadfael com fervor. - E ele é um homem forte e capaz e sempre no bom caminho, mesmo quando se trata de um crime. Mas onde é que poderia ter arranjado um pano como esse que tenho na ideia? - Seguidamente perguntou: - Haveis encarregado o irmão Wilfred de vigiar as coisas aqui, quando vos ausentastes para o refeitório?

- Quem me dera ter pensado nisso! - admitiu Edmund tristemente. -Talvez este acto não tivesse sido cometido. Não, Wilfred esteve à mesa connosco, não o haveis visto? Lamento de todo o meu coração não ter deixado alguém de vigia. Mas agora é tarde de mais. Quem é que havia pensar que se ia dar um crime que nos deixaria neste caos? Nada o indicava.

-Nada-concordou Cadfael, pensativo. - Portanto, Wilfred está fora de questão. Quem mais entre nós anda de bengala? Ninguém que eu saiba.

- Anion continua a usar a muleta - disse Edmund -, embora esteja prestes a pô-la de lado. Praticamente, já correu com ela, mas de momento acho que se tornou um hábito, depois daquela fractura renitente. Mas por que procurais um homem que ande apoiado?

"Ora bem", pensou Cadfael, fatigado, ao meter-se finalmente na cama, "aí temos uma coisa estranha. O irmão Rhys, ao ouvir as pancadas de uma bengala, procura o utente exclusivamente entre os irmãos; e eu, ao dar a volta à enfermaria, não penso em mais inguém a não ser nos irmãos e fico cego e surdo àquilo que qualquer outro possa fazer, mesmo na minha presença. Só naquele momento lhe ocorrera que, quando ele e o irmão Edmund entraram na sala comprida, já a mergulhar na tranquilidade da noite, um ser mais jovem e activo se tinha levantado do canto onde se encontrava e saíra silenciosamente pela porta que dava para a capela, batendo tão levemente na pedra com a ponta da sua muleta, forrada a couro, que nem parecia necessitar do seu apoio e só devia tê-la levado, como dissera Edmund, por uma questão de hábito ou para que não reparassem nela.

Bom, Anion ia ter de esperar pelo dia seguinte. Era tarde de mais para ir perturbar o repouso dos doentes idosos.

Numa cela do castelo, por detrás de uma porta fechada à chave, Elis e Eliud partilhavam um leito que não era mais duro do que muitos que tinham partilhado antes e onde haviam dormido como duas crianças gémeas e sem cuidados. Mas, naquele momento, os seus cuidados não eram poucos. Elis estava deitado, de rosto voltado para baixo, com a certeza de que a sua vida estava acabada, que nunca mais voltaria a amar, que nada mais lhe restava, mesmo que escapasse com vida daquela situação, a não ser juntar-se a uma Cruzada ou entrar para um convento ou partir descalço em peregrinação para a Terra Santa, de onde certamente nunca mais voltaria. Eliud, paciente e com a alma em agonia, jazia de costas, com um braço em volta dos ombros renitentes, procurando conforto onde ele próprio não tinha nenhum. Aquele seu primo-irmão vivia com demasiada veemência para morrer de amor ou para sucumbir ao desgosto de ser acusado de uma infâmia que não cometera. Mas a sua dor, ainda que curável, era extrema enquanto durava.

-Ela nunca me teve amor-lamentava-se Elis, tenso e a tremer sob o braço que o enlaçava. - Se tivesse, confiaria em mim, conhecer-me-ia melhor. Se alguma vez ela me tivesse amado, como poderia acreditar que eu seria capaz de me transformar num assassino? - Com a mesma indignação como se nunca, na sua exaltação, tivesse jurado que o faria! Isso ou o que quer que fosse!

- Ela está muito ferida por causa do pai - acudiu Eliud, convicto -, como podeis pedir-lhe que seja compreensiva convosco? Esperai, dai-lhe tempo. Se alguma vez vos amou, continua a amar. Pobre donzela, não pode evitá-lo. Deveis antes ter pena dela. É a si própria que culpa por esta morte, foste vós quem o disse. Vós nada fizeste de mal e isso há-de provar-se.

- Não, perdi-a, ela nunca mais vai permitir que me aproxime dela, não acreditará numa única palavra que eu diga.

- Acreditará, sim, pois há-de provar-se que estais inocente. Juro-vos que sim. A verdade tem de ser conhecida, há-de ser conhecida.

- Se não conseguir reconquistá-la - declarou Elis, com a voz abafada nos braços que o estreitavam -, morrerei.

- Não, não morrereis e haveis de reconquistá-la - prometeu Eliud, desesperado. - Calai-vos, calai-vos e dormi! - Estendeu a mão e apagou a chama incerta da vela que ardia numa pequena panela palmatória. Conhecia as tensões e o abandono daquele corpo ao lado do qual dormia desde a infância e sabia que o sono já começara a pesar nas pálpebras ardentes de Elis. Há aqueles que nascem como novos para o novo dia e têm de redescobrir o sofrimento. Não era assim Eliud. Ao longo da noite sem sono, acalentou as suas mágoas, com a maior de todas elas afundada sob o seu braço protector.

 

Anion, o tratador do gado, à falta de vitelo ou cordeiro de que se ocupar no recinto da abadia, habituara-se a passar uma boa parte do seu tempo nos estábulos, onde pelo menos havia cavalos para tratar e apreciar. Em breve estaria em forma para voltar para a granja onde servia, mas não antes que o irmão Edmund lho permitisse. Anion tinha uma boa mão para os animais e os moços da estrebaria mantinham uma relação mistosa com ele.

O Irmão Cadfael aproximou-se dele casualmente, sem querer assustá-lo ou atemorizá-lo antes de tempo. Não foi difícil. Os cavalos e as mulas tinham as suas doenças e outros males, exactamente como os homens, e precisavam muitas vezes de medicamentos vindos do suprimento de Cadfael. Um dos póneis que os criados laicos usavam como animal de carga aparecera coxo e precisava de um dos linimentos de Cadfael para tratar a distensão e ele resolveu levar pessoalmente o frasco ao pátio das cavalariças, certo de que iria encontrar Anion nesse local. Não foi difícil instigar o tratador de gado, experiente, a encarregar-se da massagem e ficar a ver e admirar o seu trabalho enquanto os dedos grossos, mas ágeis, actuavam sobre os músculos doridos. O pónei deixava-se ficar imóvel como uma estátua, totalmente confiante no homem. Esse facto só por si era já bastante eloquente.

- Passais agora cada vez menos tempo na enfermaria - disse Cadfael, estudando o perfil moreno e severo sob os cabelos negros e lisos. - A continuar assim não tardais a deixar-nos. Sois tão rápido com essa muleta como muitos de nós com duas pernas em bom estado e que nunca sofreram uma fractura. Não me custa a acreditar que poderíeis dispensá-la em qualquer altura.

- Disseram-me que esperasse - atalhou Anion abruptamente.

- Aqui só faço o que me dizem. É o destino dos homens, irmão, receber ordens.

- Então, haveis de ficar contente por regressar para junto do vosso gado. Aí, para variar, são eles que vos obedecem.

- Trato-os e cuido deles, só quero o seu bem - replicou Anion -, e eles sabem-no.

- A mesma coisa faz Edmund em relação a vós, certamente que o sabeis. - Cadfael sentou-se sobre a sela, ao lado do homem curvado, para ficar ao mesmo nível que ele e olhá-lo em pé de igualdade. Anion não assumuiu qualquer pose, talvez até os lábios que cerrava com firmeza tivessem sido tocados pela sombra de um sorriso. Não se podia dizer que não fosse um indivíduo bem-parecido e certamente não teria mais de 27 ou 28 anos. - Sabeis o que aconteceu lá na enfermaria - disse Cadfael.-Acredito que deveis ter sido o indivíduo mais activo que por lá se encontrava àquela hora. Duvido mesmo que tenhais ficado por lá muito tempo, depois de acabardes de comer. Sois demasiado jovem para permanecer muito tempo fechado com todos aqueles velhos doentes. Perguntei a todos se tinham visto ou ouvido entrar alguém, furtivamente ou de qualquer outra maneira, mas eles adormeceram depois de comer. Isso é para os velhos, não para vós. Certamente andáveis bem desperto enquanto eles dormitavam.

- Deixei-os a ressonar - disse Anion, pousando directamente o olhar sobre Cadfael. Pegou num trapo para limpar as mãos e levantou-se com bastante agilidade, arrastando um pouco a perna ainda magoada.

- Antes de sairmos todos do refeitório? E de os jovens galeses serem conduzidos à mesa?

- Enquanto estava tudo sossegado. Acho que os irmãos ainda estavam a meio da refeição. Por quê? - perguntou sem mais rodeios.

-Porque talvez pudésseis ser uma boa testemunha, por que é que havia ser? Sabeis de alguém que tenha entrado na enfermaria na altura em que saíste de lá? Haveis notado alguma coisa que vos chamasse a atenção? Algum indivíduo à espreita que não devesse estar ali? O conde tinha os seus inimigos, como qualquer outro mortal, e um deles era inimigo de morte. Fossem quais fossem as suas dívidas, agora já as pagou ou não tardará a pagá-las. Que Deus permita que nenhum de nós tenha de pagar uma conta maior.

- Amen! - retorquiu Anion. - Quando saí da enfermaria, irmão, não encontrei ninguém, não vi ninguém, amigo ou inimigo, nas proximidades daquela porta.

-E para onde íeis? Para estes lados, para ver os cavalos galeses? Se assim foi - explicou Cadfael com naturalidade, aparando o olhar agudo que Anion lhe dirigiu -, podereis servir de testemunha, caso algum desses jovens se tenha afastado dos seus companheiros por volta dessa hora.

Anion encolheu os ombros com desdém.

- Não me aproximei dos estábulos a essa hora. Atravessei o jardim e fui até ao riacho. Quando o vento sopra de oeste, sente-se o cheiro das colinas lá em baixo - disse Anion. - Acabo por ficar enjoado com o cheiro daqueles velhos, cansados, fechados ali dentro, e com as suas conversas, sempre à volta do mesmo.

- Como as minhas-replicou Cadfael, tolerante, ao mesmo tempo que se levantava da sela. O olhar demorou-se-lhe um pouco sobre a muleta, encostada, descuidadamente, à porta aberta de uma das baias, a uns cinquenta passos de onde o seu proprietário se encontrava a trabalhar. - É verdade, vejo que estais pronto a dispensar a muleta. Mas ontem ainda vos serviste dela, a menos que o irmão Rhys se tenha enganado. Ele ouviu-lhe as pancadas quando saíste para o jardim ou pelo menos pensou ouvi-las.

- É bem possível - disse Anion, sacudindo para trás os espessos cabelos negros que lhe caíam sobre a fronte morena e arredondada. - Tornou-se um hábito depois de tanto tempo, mesmo já não sendo precisa. Mas, quando há um animal para tratar, esqueço-me dela e deixo-a em qualquer lado.

Voltou-se deliberadamente, passou um braço em volta do pescoço do pónei e fê-lo devagar sobre o empedrado, para lhe observar o passo. Assim, terminou o colóquio.

O irmão Cadfael passou o resto do dia ocupado com os seus afazeres habituais, mas isso não o impediu de pensar bastante na questão da morte de Gilbert Prestcote. Já há muito que o conde pedira que lhe reservassem espaço para o túmulo na igreja da abadia, da qual fora benfeitor regular, e o dia seguinte ia ser o da sua deposição nesse local, para o descanso eterno. No entanto, a forma como tinha morrido não permitia qualquer descanso aos que deixaria para trás. Desde a família desolada aos infelizes suspeitos e prisioneiros galeses, que se encontravam no castelo, não havia ninguém que não achasse que a sua própria vida tinha sido interrompida e modificada pela morte deste homem.

A notícia espalhava-se entretanto pela região, de aldeia em aldeia, de propriedade em propriedade, em todos os cantos do condado e não tardou que os homens e as mulheres nas ruas de Shrewsbury se afadigassem a atribuir as culpas a este ou àquele, sendo Elis ap Cynan o seu vilão favorito. Mas nenhum deles tinha visto os fragmentos minúsculos e coloridos que Cadfael guardava ciosamente na sua caixinha, nem tinha procurado em vão por todo o recinto um tecido que apresentasse coloração igual e o mesmo fio dourado e retorcido. Assim como nada sabiam do alfinete de ouro massiço que desaparecera do quarto onde tinha morrido Gilbert Prestcote, sem que ninguém conseguisse encontrá-lo dentro da abadia.

Cadfael avistara ocasionalmente Lady Prestcote no pátio, no caminho entre os aposentos dos hóspedes e a igreja onde o marido jazia na cama mortuária, já envolta nas roupagens que havia de usar no funeral. Mas a filha não a vira uma única vez. O jovem Gilbert, um pouco confuso mas longe de tomar consciência da desgraça, brincava com os pequenos oblatos e os dois jovens alunos e era ternamente acompanhado pelo irmão Paul, o mestre das crianças. Aos 7 anos de idade, encarava com uma tolerância imperturbável as excentridades dos adultos e conseguia sentir-se à vontade em qualquer sítio onde a mãe inesperadamente o colocasse. A seguir ao funeral do pai, ela levá-lo-ia certamente para longe dali, para a sua preferida entre todas as casas do marido, onde a vida do rapazinho retomaria o seu curso tranquilo, que a perda não afectaria.

Algumas das relações mais próximas do conde tinham começado a chegar e a instalar-se, aguardando a cerimónia do dia seguinte. Cadfael ficava a observá-los e a tentar pôr nomes nos rostos sombrios. Estava ocupado com esse pensamentos, no seu caminho para o jardim, quando notou a chegada de um rosto inesperado mas bem-vindo. A irmã Madalena, a pé e sozinha, atravessou vivamente o portão e olhou em volta, à procura de um rosto conhecido. A julgar pelo brilho dos seus olhos e pela reacção imediata, sentiu-se satisfeita que esse rosto ser precisamente o de Cadfael.

- Ora bem! - exclamou Cadfael, indo ao seu encontro com igual satisfação. - Não contávamos voltar a ver-nos em tão curto espaço de tempo. Está tudo bem lá na floresta? Não houve mais incursões?

-Até aqui, não - disse a irmã Madalena, cuidadosa -, mas não duvido que possam tentar outra vez, se apanharem Hugh Beringar distraído. Madog ap Meredith deve ter grande dificuldade em aceitar essa derrota que lhe infligiram os aldeões e os homens da floresta e pode muito bem procurar a desforra, quando a ocasião lhe parecer segura para isso. Mas os homens estão de sentinela. Ao que parece, não somos nós que estamos com problemas neste momento. Que notícia é essa que me chegou aos ouvidos logo que entrei na cidade? Gil-bert Prestcote morto e esse jovem galês que vos enviei acusado de o ter feito?

- Então, haveis estado na cidade? E desta vez sem uma escolta de homens fortes?

-Dois - replicou -, mas deixei-os no Wyle, onde passaremos a noite. Se é verdade que o conde é enterrado amanhã, tenho de ficar para lhe prestar homenagem juntamente com os outros. Não fazia ideia de tal coisa, quando me pus a caminho esta manhã. Vim por um motivo completamente diferente. Há uma sobrinha-neta da madre Mariana, filha de um mercador de tecidos aqui de Shrewsbury, que vem juntar-se a nós para tomar ordens. Não deve nada à beleza, também não é muito esperta, mas tem boa-vontade e sabe que há poucas esperanças de que venha a fazer um casamento do seu agrado. Estará melhor entre nós do que vendida como uma cria pouco promissora ao primeiro que fizer uma oferta miserável por ela. Deixei os meus homens e os meus cavalos no pátio da casa deles e foi aí que ouvi contar o que aconteceu na abadia. Gostaria de ouvir o relato da vossa boca, pois correm por aí muitas versões.

- Se pudeis dispor de uma hora - disse Cadfael com entusiasmo -, vinde partilhar uma garrafa de vinho feito por mim e contar-vos-ei toda a verdade, tanto quanto um homem pode saber qual é a verdade. Quem sabe, talvez possais descobrir em tudo isto um fio condutor que me tenha escapado a mim.

Na semiobscuridade da oficina a rescender a madeiras, ele contou-lhe, desacansadamente e em pormenor, tudo aquilo que sabia ou conseguira apurar com respeito à morte de Gilbert Prestcote, tudo aquilo que observara ou pensara sobre Elis ap Cynan. Ela escutou-o, sentada com os joelhos afastados e as costas muito direitas sobre o banco encostado à parede, enquanto segurava a taça com as duas mãos para a aquecer, pois o vinho era tinto e encorpado. Deixara de se preocupar com a graciosidade das atitudes, se é que alguma vez o fizera, mas a sua compostura, ainda que cheia de lentidão, tinha uma graça própria que chamava a atenção.

-Eu não digo que esse rapaz não pudesse matar alguém - disse, depois de ter ouvido tudo. - Agem antes de pensar e quando se arrependem já é tarde de mais. Mas não creio que ele matasse o pai da rapariga de quem gostava. Era coisa fácil, dizeis e eu acredito, afastar esse homem deste mundo, de tal forma que mesmo alguém que não tencionasse cometer um crime podia fazê-lo antes de se aperceber disso. Sim, mas aqueles que um homem mata sem esforço são em geral pessoas que não conhece. Quase não os vê como pessoas. Mas este tinha a couraça de uma identidade: era o pai dela, nem mais nem menos, o homem que lhe deu o ser. E no entanto-admitiu, sacudindo a cabeça -, posso estar enganada a seu respeito. Pode ser um daqueles que faz o que os outros como ele não fazem. Há sempre um.

- A rapariga acredita absolutamente que ele é o culpado - disse Cadfael, pensativo -, talvez porque tenha bem consciência daquilo que considera a sua própria culpa. O progenitor regressa e os amantes vão ter de se separar, daí a sonhar com a possibilidade de ele não regressar é apenas um passo e na mesma sequência, a morte apresenta-se como a causa final e completa dessa possibilidade. Mas tudo isso não passou de sonhos, nunca sequer desejados como realidade. O rapaz pisa um terreno mais firme ao jurar que se aproximou para tentar ganhar a benevolência do pai para a sua causa. A verdade é que se alguma vez se me deparou um jovem naturalmente iluminado e sustentado pela esperança, esse jovem é Elis ap Cynan.

- E a rapariga? - ponderou a irmã Madalena, fazendo rodar a taça de vinho entre as mãos que a seguravam.-Se a idade for igual, ela deve ganhar-lhe alguns anos em maturidade. É o costume! Será possível que ela...!

- Não - ripostou Cadfael com segurança. - Ela estava com a mãe, Hugh e os nobres galeses, durante todo o tempo. Sei que deixou o pai com vida e não voltou a aproximar-se dele senão quando já estava morto e mesmo assim na companhia de Hugh. Não, ela atormenta-se em vão. Se estivéssemos com ela, não tardaríeis a descobrir como é uma criança simples e imatura.

A irmã Madalena afirmava filosoficamente: "Não creio que me venha a surgir essa oportunidade", quando se ouviu uma pancada na porta. Um som tão leve e hesitante e, no entanto, tão persistentemente repetido, que ambos ficaram silenciosos e imóveis para terem a certeza de que o ouviam.

Cadfael levantou-se para ir abrir e espreitar por uma fenda o mais estreita possível, convencido que não era niguém, mas ela ali estava, com a mão erguida para bater de novo, pálida, infeliz e resoluta, mais alta que ele alguns centímetros, a criança simples e imatura da sua descrição, com um fundo de aço de nobreza normanda que a obrigava a transcender-se a si própria. Precipitadamente, abriu a porta para trás.

- Entrai e saí do frio. Em que posso servi-vos?

- O porteiro disse-me - explicou Melicent -, que a irmã de Godric's Ford tinha chegado há momentos e que talvez tivesse vindo aqui pedir-vos alguns remédios. Gostaria de lhe falar.

- A irmã Madalena está aqui - disse Cadfael. - Entrai e sentai-vos à brazeira. Vou deixar-vos falar em particular.

Ela entrou, meio receosa, como se aquele lugar acanhado e desconhecido contivesse segredos aterradores. Caminhava com uma delicadeza meticulosa, quase centímetro por centímetro e, no entanto, com uma determinação que não a deixaria voltar para trás. Olhou para a irmã Madalena, olhos nos olhos, fascinada, conhecendo já sem dúvida a sua história tanto antiga como recente, e com certa dificuldade em conciliar as duas.

- Irmã - disse Melicent, indo direita ao assunto -, quando voltardes para Godric's Ford, estareis disposta a levar-me convosco?

Cadfael, fiel à sua palavra, retirou-se suavemente e sem hesitar, puxando a porta atrás dele, mas não tão depressa que não ouvisse a irmã Madalena replicar com simplicidade e espírito prático:

- Por quê?

Nunca fazia ou dizia exactamente aquilo que esperavam dela e era na realidade uma boa pergunta. Deixara Melicent na ilusão de que aquela mulher formidável que tinha diante de si pouco ou nada sabia a seu respeito e necessitava que lhe narrassem na totalidade a história desastrosa e, ao contá-la, talvez os factos retomassem uma proporção mais verdadeira, permitindo à jovem reconquistar a sua posição com uma permência menos desesperada. Pelo menos, assim o esperava o irmão Cadfael ao afastar-se através do jardim para ir passar uma agradável meia hora com o irmão Anselm, o chantre, no seu gabinete do claustro, onde estaria certamente a compilar uma sequência musical para o funeral de Gilbert Prestcote.

-Tenciono tomar o véu-disse Melicent, num tom bastante solene, por causa do choque que lhe causara a pergunta directa que lhe fora dirigida -, e gostaria de ficar entre as irmãs beneditas de Pole-sworth.

-Sentai-vos aqui ao pé de mim-disse confortavelmente a irmã Madalena -, e contai-me o que vos leva a retirar-vos assim e se a vossa família está ao corrente e aprova a vossa escolha. Sois ainda muito jovem e tendes o mundo à vossa frente...

- O mundo para mim acabou - disse Melicent.

-Minha filha, enquanto viverdes e respirardes o mundo não terá acabado para vós. Nós, dentro do covento, vivemos no mesmo mundo que todas as pobres almas que se encontram cá fora. Vamos, deveis ter as vossas razões para desejar entrar na vida conventual. Sentai-vos e contai-me tudo, deixai que vos oiça. Sois jovem e bela e de nobre nascimento. Desejais abandonar casamento, filhos, posição, honras, tudo... Por quê?

Melicent, cedendo, deixou-se cair ao lado dela no banco, cruzou os braços sobre a figura esbelta diante do calor da brazeira e deixou cair todas as barreiras da sua amargura, soltando a torrente. Aquilo que confiara aos ouvidos preocupados de Sybilla não era mais do que a teia que sustinha esta confissão. Todo o sonho impetuoso das histórias de amor dos menestréis brotou dos seus lábios.

- Mesmo que tenhais razões para rejeitar um homem - disse brandamente Madalena -, podeis estar a cometer grande injustiça em os rejeitar a todos. E isso pondo de lado a hipótese de estardes enganada quanto ao próprio Elis ap Cynan. Pois até que se prove que ele está a mentir, não podeis esquecer que ele talvez esteja a falar a verdade.

- Ele disse que seria capaz de matar por mim - insistiu Melicent, renitente -, e entrou no quarto onde meu pai estava deitado e agora o meu pai está morto. Não se sabe de mais ninguém que tenha estado perto dele. Pela minha parte, não tenho dúvidas. Quem me dera nunca lhe ter visto o rosto e só desejo não o voltar a ver.

-E não pretendeis esperar até estardes em paz com uma traição e mostrardes o vosso rosto àqueles que não atraiçoam?

- Pelo menos há uma coisa que eu sei - replicou Melicent com amargura -, que Deus não atraiçoa. E não quero mais nada com os homens.

- Filha - disse a irmã Madalena, suspirando -, até ao dia da vossa morte não estareis livre de ter de enfrentar outros homens. Os bispos, abades, confessores, padres, todos eles são homens, irmãos de sangue dos mais comuns dos mortais pecadores. Enquanto viverdes, não podereis escapar ao vosso quinhão de humanidade.

- Então, não quero mais nada com o amor - disse Melicent, com uma veemência tanto mais acentuada quanto um pedacinho do seu coração lhe gritava que estava a mentir.

- Oh, alma cara, o amor é precisamente o que nunca deveis pôr de lado. Sem amor, de que podeis servir-nos a nós ou a qualquer outra pessoa? Certo que há maneiras diferentes de amar-disse a monja, tardiamente iniciada no celibato, recordando-se daquilo que na altura dificilmente reconhecia como mercedor de tal título, mas que sabia agora ser uma forma de amor -, no entanto, para tudo é necessário calor e se essa chama se apagar não há forma de a reacender. Bom - acrescentou, reconsiderando -, se a vossa madrasta concordar em que me acompanheis, podeis vir e sereis bem-vinda. Ficai tranquilamente connosco por algum tempo e depois veremos.

-Vireis então comigo até junto da minha mãe, para me ouvirdes pedir-lhe licença para partir?

- Vou - respondeu a irmã Madalena, levantando-se e compondo o hábito, pronta para sair.

Quando assistia às Vésperas, antes de voltar para casa do mercador de tecidos, na cidade, contou ao irmão Cadfael, em linhas gerais, a conversa que tivera.

- Ela está melhor longe daqui, longe do rapaz, e guardando consigo a imagem que tem gravada dentro dela. Tempo e verdade é aquilo de que os dois mais precisam. Pela minha parte, encarregar-me-ei de evitar que ela faça os votos, enquanto este assunto não estiver resolvido. O rapaz ficará bem junto de vós, se tiverdes a possibilidade de o vigiar.

- Não pensais - disse Cadfael em tom seguro -, que ele possa ter exercido violência contra o conde?

- Como é que eu posso saber? Há algum homem ou mulher que não fosse capaz de matar perante uma necessidade imperiosa? Mas admito que se trata de um jovem correcto, honesto, desassombrado, franco-acrescentou a irmã Madalena, que nunca se arrependera de nada do que fizera -, um jovem que me poderia ter agradado, nos meus tempos.

Cadfael jantou no refeitório e depois assistiu às leituras na sala do Capítulo, cerimónia a que faltava muitas vezes, quando tinha alguma preparação vulnerável em curso na sua oficina. Ao pensar nos progressos ínfimos que fizera na sua busca da verdade e que não tinham levado a nada, sentia que era bom pôr tudo isso de lado e escutar com o coração aberto os relatos das vidas dos santos, que tinham posto de lado as preocupações deste mundo para se voltarem para as promessas de uma outra vida e que consideravam a justiça deste mundo como um fútil jogo de sombras, a obscurecer a justiça definitiva dos céus, pela qual nenhum homem precisa de esperar mais do que o tempo breve da sua vida de mortal.

Já tinham passado S. Gregório e aproximava-se S.to Eduardo, o Confessor, e o próprio S. Benedito - estava-se em meados de Março aproximavam-se as tarefas abençoadas do princípio da Primavera, em que tudo era esperança e desabrochar. Uma boa época. Cadfael passara as horas que antecederam a chegada da irmã Madalena a cavar e a limpar o seu canteiro de hortelã-pimenta, para lhe arranjar espaço para proliferar, nova, tenra e verde, liberta de tudo o que fosse velho e debilitado. Emergiu da sala do Capítulo sentindo-se renovado e a princípio surgiu-lhe como uma vaga surpresa o facto de o irmão Edmund o vir procurar antes do último serviço da noite, com um ar quase episcopal e brandindo numa das mãos aquilo que à primeira vista podia ser um báculo, mas que uma vez pousado no chão não lhe passava da axila e na realidade era apenas uma muleta.

- Encontrei-a atirada para um canto, no estábulo. É do Anion! Cadfael, esta noite ele não comparecera ao jantar e não se encontra em parte alguma na enfermaria, nem na sala comum, nem na cama ou na capela. Havei-lo visto hoje em alguma parte?

- Só esta manhã - disse Cadfael, fazendo um esforço para sair da beatitude da sala do Capítulo. - Ele não esteve no refeitório ao meio-dia?

- Sim, esteve, mas não encontro ninguém que o tenha visto depois disso. Procurei-o por toda a parte, perguntei a toda a gente e dele só encontrei isto, posto de lado. Anion foi-se embora! Oh, Cadfael, receio que ele tenha fugido do seu crime de morte. Que outra razão haveria para nos deixar assim?

Passava bastante da hora do último serviço religioso, quando Hugh Beringar entrou na sua residência, de mãos vazias e perplexo com as suas investigações junto dos galeses, indo encontrar o irmão Cadfael, que o esperava sentado junto do fogo, na companhia de Aline e de semblante carregado.

-Que vos traz aqui a esta hora?-perguntou Hugh. - Saíste outra vez sem licença? - Não era a primeira vez que isso acontecia e a recordação de uma dessas expedições, antes dos tempos austeros do abade Radulfus, era uma velha piada secreta entre ambos.

- Nada disso - disse Cadfael com firmeza. - Há uma notícia inesperada que o próprio prior Robert achou que devia chegar aos vossos ouvidos o mais depressa possível. Tínhamos na nossa enfermaria, a tratar-se de uma perna partida e já praticamente em estado de se ir embora, um indivíduo chamado Anion. Duvido que este nome tenha qualquer significado para vós, pois nada tiveste a ver com o seu irmão. Mas lembrais-vos talvez de uma rixa na cidade, faz agora dois anos, em que um dos guardas da ponte foi esfaqueado? Prestcote mandou enforcar o culpado, um galês. Bom, se ele era o culpado ou não, e naturalmente ele afirmava que não, ninguém sabe, mas o homem estava perdido de bêbado na altura e provavelmente nem sabia bem como as coisas se tinham passado... De qualquer forma, foi enforcado. Um jovem que costumava negociar em peles de ovelha no mercado da cidade, vindo dos lados de Mechain. Bom, este Anion é irmão dele, nascido de uma ligação extra-matrimonial, quando o pai vinha fazer os seus negócios, e não havia qualquer má vontade entre eles. Tinham acabado por se conhecer e estimavam-se.

-Se alguma vez cheguei a saber disso-disse Hugh, aproximando-se do fogo -, já o tinha esquecido.

- O mesmo não aconteceu com Anion. Não falava muito, mas sabe-se que guardava o seu rancor e há nele suficiente sangue galês para o fazer olhar a vingança como um dever, se alguma vez tivesse oportunidade para isso.

- E que é feito dele agora? - Hugh estudava atentamente o rosto do amigo, prevendo o que vinha a seguir. - Estais a querer dizer-me que esse indivíduo se encontrava agora dentro da abadia quando o conde foi levado para lá, indefeso?

- É verdade e apenas uma porta entreaberta o separava do seu inimigo, se é que era assim que o considerava, a julgar pelos boatos que corriam. Mas também não era o único a guardar rancores, portanto, isso não prova nada, a não ser que a oportunidade estava ali. Mas esta noite surgiu mais um facto contra ele. O homem desapareceu. Não compareceu ao jantar, não está na cama e ninguém o viu depois da hora do almoço. Edmund deu por falta dele e procurou-o, mas em vão. E a muleta que usava, mais por hábito que por necessidade, estava abandonada no pátio das cavalariças. Anion fugiu. E a culpa, se é que existe culpa - disse Cadfael francamente -, é toda minha. Edmund e eu temos interrogado todos os homens na enfermaria para saber se viram ou ouviram alguma coisa de anormal perto do quarto do conde, alguém a entrar ou a sair. Anion também foi interrogado e a verdade é que fui mais cauteloso com ele do que com qualquer outro, quando falámos esta manhã nos estábulos. E a verdade é que acabei por o assustar.

- O que não é necessariamente uma prova de culpabilidade, assustar-se e fugir - contrapôs Hugh, razoável. - Homens sem privilégios têm tendência para supor que serão culpados por qualquer coisa de mal que aconteça. Há a certeza de que ele se tenha ido embora? Um homem que acaba de se curar de uma perna partida? Levou algum cavalo ou mula? Roubou alguma coisa?

- Nada. Mas há mais. O irmão Rhys, cuja cama está situada junto da porta, na direcção do quarto onde se encontrava o conde, ouviu a porta ranger duas vezes e, da primeira vez, diz que alguém entrou ou pelo menos empurrou a porta, alguém que andava com uma bengala. A segunda vez foi mais tarde e pode ter sido quando o jovem galês lá esteve. Rhys não tem bem a noção da hora, pois estava a dormitar, mas ambos os visitantes vieram quando não se ouvia nada no pátio, segundo ele diz, quando nós estávamos no refeitório. E com tudo isso, agora que ele fugiu, até o próprio Edmund está convencido de que Anion é o assassino. De manhã já estarão a proclamar aos quatro ventos, na cidade, que ele é o culpado.

- Mas vós não estais tão certo assim?! - disse Hugh, olhando-o fixadamente.

-Qualquer coisa havia no seu espírito, certamente, qualquer coisa que ele via como culpa ou que sabia que os outros apontariam de culpa, senão não teria fugido. Mas assassinato...? Hugh, tenho nessa caixinha de comprimidos a prova certa dos fios de lã coloridos e dourados que pertenciam ao pano usado para matar. A prova certa, enquanto que a fuga é uma prova incerta de alguma coisa pior que o medo. Vós sabeis tão bem como eu que não havia nenhum tecido assim naquele quarto, nem na enfermaria, nem em todo o recinto, tanto quanto nos foi dado ver. Quem quer que se serviu dele levou-o consigo. Onde é que Anion podia ter arranjado um pano de tal riqueza? Em toda a sua vida nunca deve ter tocado nada mais fino que os materiais grosseiros tecidos em casa e linhos não branqueados. Tudo isso lança grandes dúvidas sobre a sua culpabilidade, embora não a afaste inteiramente. Foi por isso que não insisti demasiado com ele ou pelo menos pensava que não o tinha feito!-acrescentou pesaroso. Hugh acenou numa concordância comedida e registou a questão no seu espírito.

- Mesmo assim, logo que romper o dia, tenho que mandar procurá-lo daqui até ao País de Gales, pois é esse o caminho que terá tomado. O seu primeiro pensamento há-de ser o de pôr uma fronteira entre ele e os seus receios. Hei-de conseguir apanhá-lo. Então, poderemos arrancar-lhe aquilo que ele sabe. Um homem coxo não pode ter ido muito longe.

- Mas não esqueçais o pano. Esses fios não mentem, embora o mesmo não se possa dizer de qualquer mortal, culpado ou inocente. O instrumento da morte é o que temos de encontrar.

A perseguição iniciou-se ao amanhecer, em pequenos grupos, inflitrando-se por todos os caminhos que levavam mais directamente ao País de Gales, mas voltaram ao escurecer, de mãos vazias. Apesar de coxo, Anion conseguira desaparecer no espaço de meio-dia.

Entretanto, já a história se espalhara pela cidade e arredores, estava em todas as lojas e era conhecida de todos os clientes, nas cervejarias era avidamente discutida e a opinião geral era que nem Hugh Beringar nem qualquer outro homem precisava procurar noutro sítio para encontrar o assassino do conde. O tratador de gado sorumbático, com os seus rancores, tinha sido ouvido entrar a sair do quarto do crime e, ao ser interrogado, fugira. Não havia nada de mais simples.

E esse foi o dia em que enterraram Gilbert Prestcote, no túmulo feito expressamente para ele no transepto da igreja da abadia. Metade da nobreza do condado compareceu para prestar as suas honras, tal como Hugh Beringar com uma escolta dos seus oficiais e o prefeito de Shrewsbury, Geoffrey Corviser, com seu filho Philip e a mulher deste, Emma, e todos os principais mercadores da guilda da cidade. A viúva do conde apresentou-se coberta de luto, levando pela mão o filho, atemorizado e de olhos muito abertos. A música e a cerimónia, a imensidão da cripta, as velas e os archotes, tudo isso o encantava e fascinava, deixando-o paralisado durante toda a cerimónia.

E por muitos inimigos que Gilbert Prestcote pudesse ter arranjado, não deixara mesmo assim de ter sido um chefe justo e bem-querido, de uma maneira geral, e os príncipes e mercadores tinham bem consciência da segurança e justiça relativas que tinham encontrado sob a sua autoridade, numa altura em que a maior parte da Inglaterra sofria um destino bastante pior.

Portanto, ao terminar a sua passagem por este mundo, Gilbert Prestcote teve as honras que lhe eram devidas, bem como a intercessão, valiosa e merecida, daquele povo, junto de Deus, a seu favor.

- Não - disse Hugh, que aguardava Cadfael quando os irmãos saíram das Vésperas nessa tarde. -Ainda não há nada. Aleijado ou não, parece que o jovem Anion conseguiu fugir. Mandei vigiar a fronteira, caso ele esteja escondido deste lado à espera que termine a busca, mas receio bem que já tenha passado a barreira. E saber se devemos estar contentes ou pesarosos com esse facto, é uma coisa que me ultrapassa. Tenho galeses na minha própria casa, Cadfael, conheço as suas motivações e a lei que os vinga nos casos em que a nossa os condena. Toda a minha vida fui um homem da fronteira, dividido entre os dois lados.

- Mas tendes de continuar - disse Cadfael, cheio de compreensão -,,não vos resta outro caminho.

- E verdade, não. Gilbert era o meu senhor - disse Hugh -, e tinha toda a minha lealdade. Pouca coisa tínhamos em comum, não me parece sequer que gostasse muito dele. Mas respeito, sim, esse existia. A viúva dele vai levar o filho para o castelo esta noite, juntamente com o pouco que trouxe quando veio para aqui. Estou à espera para a acompanhar. - A enteada já tinha partido, entretanto, para a solidão de Godric's Ford com a irmã Madalena e a filha do mercador de tecidos. - Ele vai sentir a falta da irmã - disse Hugh, sentindo-se pesaroso pelo rapazito.

- Há mais alguém que a vai sentir - disse Cadfael -, quando souber da partida dela. Nem a notícia da fuga de Anion a fez mudar atitude?

-Não, está firme como uma rocha. Condenou-a definitivamente. Censurai-me, se quiserdes-disse Hugh com um sorriso de través -, mas já fiz que lhe chegasse aos ouvidos que a rapariga se retirou para estudar a vida religiosa. Deixá-lo sofrer um bocado. Entretanto, aceitei a palavra dele, dele e do outro jovem, Eliud. Qualquer deles se responsabilizou por si próprio e pelo primo, em como não poriam o pé fora da barbacã, nem tentariam a fuga. Eu, pela minha parte, deixo-os circular em linha no recinto do castelo. Penhoram o pescoço um pelo outro. Não que eu tencione torcer qualquer deles, estão muito bem como estão, bem direitos, mas não há mal nenhum em aceitar os seus penhores.

- E eu não tenho dúvidas - disse Cadfael, olhando-o atentamente -, de que haveis postado uma guarda bem vigilante junto dos portões e uma sentinela alerta nas vossas muralhas, para ver se algum dos dois ou qual dos dois tenta fugir.

- Teria de me envergonhar do meu posto - replicou Hugh com candura -, se o não fizesse.

- E, entretanto, eles já sabem que um vaqueiro galês e bastardo ao serviço da abadia jogou fora a sua muleta e se pôs em fuga?

-Sabem, sim. E qual é a sua opinião? Ambos dizem que uma criatura tão humilde e ainda por cima galês, sem parentes ou prerrogativas aqui em Inglaterra, não podia deixar de se pôr em fuga logo que sentisse que as atenções se voltavam para ele, na certeza de que seria inculpado, a menos que tivesse maneira de provar que estava a milhas do local na hora fatídica. E podeis dizer que não têm razão? Foram essas também as minhas palavras quando me pusestes ao corrente.

- Assim é - disse Cadfael, pensativo. - Dos suspeitos para o suspeito, uma grande generosidade.

 

Owain Gwynedd enviou a sua resposta aos acontecimentos de Shrewsbury no dia a seguir ao da fuga de Anion, pela boca de um jovem, John Marchmain, que ficara no País de Gales para servir de garantia a Gilbert Prestcote na troca de prisioneiros. A meia dúzia de galeses que o tinham escoltado chegaram apenas até às portas da cidade, fizeram as saudações e retiraram-se de novo para o seu país.

John, filho da irmã mais nova da mãe de Hugh, um jovem magrizela de dezanove anos, dirigiu-se para o castelo, emproado com a dignidade da embaixada que lhe fora confiada e apresentou-se cerimoniosamente a Hugh.

- Owain Gwynedd encarregou-me de vos dizer que, no caso de uma morte ocorrida desta forma, está em causa a sua próprio honra e ordena aos seus homens que aqui se encontram que sejam pacientes e dêem toda a colaboração possível até que a verdade seja conhecida, o assassino descoberto e eles próprios vingados e livres de regressar. Manda-me a mim de volta, livre, liberado pelo destino. Diz que não tem nenhum outro prisioneiro para trocar por Elis ap Cynan e não fará qualquer gesto para o libertar, enquanto não se conhecer o culpado e o inocente.

Hugh, que o conhecia desde a infância, ergueu as sobrancelhas de espanto, soltou um assobio e riu-se.

- Podeis baixar à terra agora, voais demasiado alto para mim.

- Estou a falar em nome de um falcão de voos bem altos - disse John, expirando longamente e descontraindo-se num sorriso, ao mesmo tempo que se encostava à parede da sala da guarda. - Bom, havei-lo compreendido. Esse é o teor mais elevado. A ideia é, conservá-los aqui e descobrir quem foi. Mas há mais. Quais foram as notícias mais recentes que vos chegaram do sul? Acho que Owain tem os olhos e os ouvidos bem atentos a todas as fronteiras, em sítios onde as vossas ordens não conseguem chegar. Diz ele que é provável que a imperatriz leve a sua avante e seja coroada rainha, pois o bispo Henry já a deixou entrar na catedral de Winchester, onde estão guardados a coroa e o tesouro, e o arcebispo de Canterbury está a empatar, dizendo-lhe que não pode reconhecê-la enquanto não falar com o rei. E foi isso mesmo que ele fez. Foi a Bristol, com um séquito de bispos, e falou com Stephen na prisão.

- E o que diz o rei Stephen? - inquiriu Hugh.

- Disse-lhes, com aquela sua maneira ampla, que se guiassem pela sua consciência e que tinham que fazer o que lhes parecesse melhor. E é isso mesmo que eles vão fazer, diz Owain, aquilo que lhes parecer melhor para salvarem a pele. Hão-de curvar o pescoço e seguir o vencedor. Mas aqui está o que importa e aquilo que Owain tem na ideia. Ranulf de Chester está ao corrente de tudo isto e sabe também que Gilbert Prestcote está morto e que este condado, segundo pensa, está em confusão. O resultado é que ele tenciona avançar para o Sul, em direcção a Shropshire e daí para o País de Gales, pondo grandes quantidades de homens nas suas linhas de frente e avançando gradualmente.

- E que é que Owain pretende de nós? - interrogou Hugh, com um interesse renovado.

- Owain diz que se fordes para norte com um exército razoável, mostrando a vossa força em toda a fronteira de Cheshire e reforçardes Oswestry e Whitchurch e todas as outras fortalezas nessa região, estareis a prestar um bom serviço a vós mesmo e a ele, e Owain, por sua vez, fará o mesmo por vós contra o inimigo comum. Diz ainda que virá à fronteira de Rhyd-y-Croesau, perto de Oswestry, daqui a dois dias, ao sol-posto, se estiverdes disposto a encontrar-vos com ele para falarem.

- Firmemente disposto! - exclamou Hugh com entusiasmo e levantou-se, pôs o braço em volta dos ombros do primo, radiante, e encaminhou-se para fora, para ir tratar da questão do encontro com Owain e da resposta ao repto deste, com um exército o mais forte possível, saído daquele condado cercado.

O facto de Owain lhe ter dado apenas dois dias e meio para reunir um exército, providenciar a segurança da cidade e do castelo com uma guarnição desfalcada e partir com as suas hostes para o Norte do condado, a tempo do encontro na fronteira, era mais um sinal da facilidade e rapidez com que Owain conseguia movimentar-se nas suas terras montanhosas do que uma prova da urgência da sua vigilância mútua. Hugh passou o resto do dia a tomar as suas disposições em Shrewsbury e a enviar o seu chamamento àqueles que lhe deviam serviços. Ao alvorecer do dia seguinte, as suas tropas de vanguarda pôr-se-iam em marcha e ele próprio seguiria com o corpo principal pelo meio-dia. Havia muito que fazer numa simples questão de horas.

Lady Prestcote estava também a reunir os seus criados e pertences nos apartamentos da torre alta e austera, pronta para partir na manhã seguinte para o mais oriental e mais pacífico dos seus domínios. Já fizera partir à frente uma fila de póneis com carga e três dos seus criados. Mas, enquanto estava na cidade, seria aconselhável que adquirisse os vários artigos que sabia escassearem no sítio para onde ia, e entre outras coisas pedira que lhe arranjassem uma porção de ervas secas das provisões de Cadfael. O seu senhor podia estar morto e já no túmulo, mas ela ainda tinha uma honra a administrar, e pelo filho, tinha todas as intenções de se mostrar capaz de o fazer. Os homens podiam morrer, mas as carnes necessárias à alimentação dos vivos continuavam a precisar de conservantes, sais e especiarias para as manter em bom estado e com sabor agradável. Além disso, o rapazito era propenso a uma tosse infantil por alturas da Primavera, por isso precisava ainda de um boião do preparado de ervas de Cadfael para lhe friccionar o peito. Entre os cuidados necessários ao jovem Gilbert Prestcote e as obrigações domésticas, a lacuna que já começava a preencher-se e que fora deixada pelo desaparecimento do velho Gilbert Prestcote não tardaria a desaparecer.

Não era propriamente necessário que fosse Cadfael a entregar pessoalmente as ervas e os medicamentos, mas este aproveitou a oportunidade, simultaneamente para satisfazer a sua curiosidade e para saborear o passeio e o ar puro naquela manhã de Março, soalheira ainda que tumultuosa. Dirigiu-se à Porta Exterior, atravessou a ponte sob a qual corria um Severn túrgido e lamacento por causa do degelo das montanhas, franqueou as portas da cidade, subiu a curva íngreme e longa do Wyle e fez depois a descida suave da Cruz Alta até às portas do castelo, sempre com os olhos e os ouvidos bem abertos, parando muitas vezes para trocar saudações e cumprimentos. E, por toda a parte, as pessoas falavam na fuga de Anion e discutiam se ele iria conseguir fugir ou ser trazido de volta, amarrado, antes do cair da noite.

O exército de Hugh ainda não era tema de conversa na cidade, embora ao princípio da noite sem dúvida o viesse a ser. Mas, logo que Cadfael entrou no recinto do castelo, tornou-se-lhe evidente, pela actividade determinada que se via por toda a parte, que estava em curso alguma coisa importante. O ferreiro e os fazedores de flechas estavam embrenhados nas suas tarefas, o mesmo se passando com os tratadores dos cavalos. Carros eram carregados para seguirem, impassíveis, os cavaleiros e peões, mais lentos na sua avançada. Cadfael entregou as ervas à criada que se apresentou para as receber e foi à procura de Hugh. Encontrou-o a dirigir as manobras de instalação dos cavalos escolhidos nos estábulos.

- Ides partir, não é verdade? Para o Norte? - disse Cadfael, olhando tudo aquilo sem surpresa. - E com todo o aparato, pelo que vejo.

- Com um bocado de sorte, vai ser só aparato - replicou Hugh, que saiu um pouco da sua concentração para dirigir ao amigo um sorriso cordial.

- É Chester que está a dar-vos que fazer? Hugh riu-se e respondeu:

- Com Owain de um lado da fronteira e eu próprio do outro, ele deve mas é pensar duas vezes. Está só a ver até onde pode chegar. Já deve saber o que aconteceu a Gilbert, mas de mim nada sabe. Por enquanto!

- E também já é tempo de ele começar a conhecer Owain - comentou Cadfael. -Homens de bom senso já lhe mediram o valor, imagino. E Ranulf não é nenhum tolo, embora eu não vá ao ponto de dizer que ele não seja capaz de alguma tolice, da maneira como está embriagado com os seus êxitos. O homem mais sensato, depois de beber de mais, pode sempre dar um passo em falso e estatelar-se no chão. - E em seguida perguntou, atento aos sons que o rodeavam e a todas as sombras que se desenhavam no empedrado - E os nossos dois galeses, já sabem para onde ides, porquê e quem vos mandou tal mensagem?

Tinha baixado a voz para fazer a pergunta e Hugh, sem procurar a razão, fez o mesmo.

- Por mim não, não tive tempo para visitas de cortesia. Mas eles andam por aí à vontade. Por quê?-Não voltou a cabeça, mas notou para onde se dirigia o olhar de Cadfael.

- Porque eles estão a vir para cá, atrelados um ao outro e com ar ansioso.

Hugh facilitou-lhes a aproximação, deixando nas mãos do tratador o animal corpulento que estivera a observar e voltando-se com naturalidade para sair dos estábulos, como quem abandona um trabalho que, de momento, considera concluído. E deu de caras com eles, Elis e Eliud, ombro contra ombro, como se tivessem nascido ligados, que se aproximavam dele com as sobrancelhas franzidas e o olhar inquieto.

- Meu senhor... - Foi Eliud quem tomou a palavra, o mais calmo, solene e sério dos dois. - Ides partir para a fronteira? Há alguma ameaça de guerra? É com o País de Gales?

- Vou de facto para a fronteira - disse tranquilamente Hugh -, para me encontrar com o príncipe de Gwynedd. O mesmo que vos ordenou a vós e aos vossos companheiros que revestísseis as vossas almas de paciência e trabalhásseis comigo para que se faça justiça na questão que sabeis. Não, não deveis preocupar-vos! Owain Gwynedd informa-me de que eu e ele próprio temos um interesse comum no norte deste condado e um inimigo comum que pretende tentar a sorte nessas paragens. O País de Gales nada tem a recear da minha parte e o meu condado, estou certo disso, nada tem a recear do País de Gales. Pelo menos - acrescentou, reconsiderando rapidamente -, no que diz respeito a Gwynedd.

Os dois primos entreolharam-se, medindo os respectivos pensamentos. Elis disse abruptamente:

-Meu senhor, não percais de vista Powys. Eles... nós - corrigiu com um trejeito de repulsa -, nós fomos para Lincoln sob o estandarte de Chester. Assim que fizerdes qualquer movimento para norte, eles sabê-lo-ão em Caus. Podem pensar que é a altura... pensar que é seguro... Essas damas lá em Godric's Ford...

- Um bando de mulheres tolas - disse Cadfael, como se falasse com o própio hábito de monge, mas ainda assim de forma audível - , e ainda por cima velhas e feias.

O rosto redondo e ingénuo ruborizou-se desde o pescoço à fronte, sob a massa de caracóis negros, mas não baixou os olhos nem perdeu a sua intensidade.

- Já me confessei e recebi a absolvição por todas as loucuras - disse Elis impassível -, incluindo essa. Mas suplico-vos que não os percais de vista. Falo a sério! Se não o fizerdes pode haver sarilho, é bem possível que eles tentem outra vez.

- Já tinha pensado nisso - disse Hugh pacientemente. - Não tenho qualquer intenção de desguarnecer esta fronteira.

O rubor apagou-se do rosto do rapaz para se acender de novo.

- Peço-vos perdão! - disse. - É o vosso território. Só que eu sei... O malogro não está esquecido.

Eliud puxou o primo pelo braço, fazendo-o recuar. Ambos deram alguns passos para trás, sem desviar o olhar gémeo e perturbado. À saída dos estábulos voltaram-se, com um último olhar por cima do ombro e afastaram-se, ainda unidos, como uma única criatura afundada no seu desconsolo.

- Santo Deus! - exclamou Hugh com um suspiro, seguindo-os com o olhar. - Eu com menos homens do que seria minha vontade, isso é que é um facto, e aquela criança incauta a prevenir-me! Como se eu não soubesse que estou a correr riscos cada vez que respiro ou que mudo um arqueiro de um lado para outro. Será que devo perguntar-lhe como é que se conseguia distribuir metade de uma companhia num território com três vezes a área correspondente a uma companhia inteira?

-Ah, mas ele por sua parte faria colocar todos os vossos homens entre Godric's Ford e até os seus próprios compatriotas - disse Cad-fael tolerante. - É aí que se encontra a donzela dos seus sonhos. Duvido que ele se preocupe muito com o que possa acontecer a Oswes-try ou a Whitchurch, desde que Long Forest seja deixada em paz. Nenhum dos dois vos causou qualquer problema?

- Dois santos! Nem sequer mexeram um pé na direcção da saída. -A afirmação foi feita com uma certeza cheia de naturalidade e Cad-fael tirou as suas próprias conclusões. Hugh tinha encarregue alguém de vigiar todos os movimentos dos dois prisioneiros e sabia tudo o que eles faziam, embora não tudo o que diziam, desde a aurora ao anoitecer, e se alguma vez qualquer deles se aventurasse a pôr um pé fora da porta, esse pé seria rápida e eficazmente amarrado. A menos, claro, que fosse mais importante segui-lo e descobrir qual a intenção com que havia quebrado a sua palavra. Mas, quando Hugh estivesse no norte, quem é que podia garantir que o seu substituto conseguiria manter a mesma vigilância discreta?

- Em quem pretendeis delegar, enquanto estiverdes ausente?

- No jovem Alan Herbard. Mas Will Wardan dar-lhe-á apoio. Porquê? Sois da opinião que vão tentar alguma coisa logo que eu voltar as costas? - A julgar pelo tom da voz, Hugh não estava muito preocupado a esse respeito. -A verdade é que não se podem ter certezas absolutas sobre ninguém, mas esses dois foram treinados sob a orientação de Owain e têm-no como modelo, portanto, resumindo, acho que vou aceitar a palavra deles.

Cadfael era da mesma opinião. E, no entanto, é uma verdade que na vida de qualquer homem pode surgir o momento extremo em que ele volta as costas à sua própria natureza e segue o caminho contrário. Cadfael viu mais uma vez de relance os dois primos, quando já ia a caminho da abadia e atrevessava o pátio exterior. Estavam sobre o passeio da guarda, no muro que ligava dois baluartes, inclinados, lado a lado, numa das largas canhoneiras, olhando para além dos pátios fervilhantes do castelo, para a distância brumosa do outro lado da cidade, para a estrada que levava ao País de Gales. Eliud pusera o braço em volta dos ombros de Elis, para caberem mais à vontade na abertura, e os dois rostos estavam muito próximos e igualmente atentos e reticentes. Cadfael atravessou de novo a cidade com aquela dupla semelhança bem presente no seu espírito, curiosamente notória e profundamente inquietante. Mais do que nunca lhe faziam lembrar uma imagem num espelho, em que a esquerda e a direita são permutáveis, o lado luminoso e o lado sombrio do mesmo ser.

Sybilla Prestcote fez-se ao caminho, com o filho ao lado, montado no seu robusto pónei castanho, e o séquito de criados e cavalos de carga a revolverem o lamaçal de Março que os recentes ventos de leste começavam a secar, transformando-o numa poeira fina. A força de vanguarda de Hugh partira ao alvorecer, Hugh e o seu corpo principal de arqueiros e soldados seguiram ao meio-dia, enquanto os carros de abastecimentos rangiam ao longo da estrada do norte, entre os dois grupos, não tardando a ser ultrapassados e deixados para trás no caminho para Oswestry. No castelo, um Alan Herbard um tanto nervoso, na sua qualidade de filho de cavaleiro e ansioso por ser posto à prova, montava uma guarda escrupulosa, passando duas vezes em revista todas as suas responsabilidades, com medo que lhe tivesse escapado alguma coisa da primeira vez. Era um jovem atlético, bastante versado no uso das armas, mas pouco experiente ainda e perfeitamente consciente de que qualquer dos sargentos que Hugh deixara para trás estava mais bem equipado para aquela tarefa do que ele próprio. Eles também o sabiam, mas poupavam-no à demonstração demasiado óbvia de tal facto.

Uma quietude curiosa desceu sobre a cidade e a abadia após a partida de metade da guarnição, como se nada pudesse acontecer ali agora. Os prisioneiros galeses ficaram condenados ao tédio do cativeiro. A busca do assassino de Gilbert sofreu um interregno e não havia mais nada a fazer senão prosseguir a rotina diária de trabalho e descanso, oração e espera.

E pensar, uma vez que a acção estava suspensa. Cadfael deu consigo a pensar com uma insistência e uma profundidade ainda maiores nas duas peças que lhe faltavam e que serviam de suporte a todo opuzzle. O alfinete de ouro de Einon ab Ithel, que recordava com toda a nitidez, e o tecido misterioso que ele nunca vira, mas que tinha servido para sufocar um homem, apressando-lhe a partida deste mundo.

Mas seria assim tão certo que ele nunca o tivesse visto? Conscientemente não, mas no entanto ele estivera ali, dentro da área da abadia, dentro da enfermaria e dentro daquele quarto. Tinha estado, mas agora já não estava. E a busca começara no mesmo dia, com os portões fechados para que ninguém tentasse sair, a partir do momento em que o crime fora descoberto. E que intervalo ficava antes disso? Entre a ida dos irmãos para o refeitório e a descoberta do corpo de Gilbert, qualquer um podia ter saído pelos portões sem que ninguém o incomodasse. Um espaço de quase duas horas. Era uma possibilidade.

A segunda possibilidade, pensou Cadfael com veracidade, era que tanto o pano como o alfinete ainda se encontrassem algures no mosteiro, mas tão bem escondidos que até ali todas as buscas se tinham revelado incapazes de os encontrar.

E a terceira - começara a revolvê-la no seu espírito ao longo daquele dia, pondo-a de parte por diversas vezes como uma aberração sem sentido, mas não sem que ela voltasse insistentemente, como uma saída possível. Sim, Hugh colocara um guarda no portão, a partir do momento em que fora descoberto o crime, mas três pessoas tinham tido autorização para sair, apesar de tudo, as três pessoas que não podiam ter cometido o assassinato, visto que tinham ficado permanentemente na companhia de Hugh e do abade. Einon ab Ithel e os seus dois capitães haviam partido ao encontro de Owain Gwynedd. Não tinham levado consigo o peso de qualquer culpa e, no entanto, podiam, inadvertidamente, ter levado qualquer prova.

Três possibilidades e sem dúvida que podia valer a pena examiná-las, mesmo a terceira, que era também a mais ténue. Havia dias que as outras duas o acompanhavam, perscrutara-as constantemente e tudo em vão. E para esses seus conterrâneos confinados no castelo, para o abade e o prior e todos os irmãos, assim como para a família do falecido, não era possível uma paz de espírito completa enquanto a verdade não fosse conhecida.

Antes do último ofício do dia, Cadfael levou as suas preocupações, como já fizera tantas vezes, ao abade Radulfus.

-Ou o pano se encontra ainda aqui connosco, mas tão bem escondido que todas as nossas buscas foram inúteis para o encontrar, ou então foi levado para fora dos nossos muros por alguém que saiu no curto espaço de tempo entre a hora da refeição e a descoberta da morte do conde, ou ainda por alguém que saiu, abertamente e com permissão, após tal descoberta. Desde aí, Hugh Beringar tem vigiado todos os que saem da nossa casa. Quanto àqueles que terão atravessado os portões antes da morte ser conhecida, não creio que sejam muitos, pois o tempo foi breve e o porteiro nomeou três pessoas, todos eles boa gente da Porta Exterior, que se ocupavam de assuntos da paróquia. Todos eles foram visitados e estão nitidamente ilibados. Que tenha havido outros estou pronto a admitir, mas ele não se recorda de mais ninguém.

-Nós sabemos-disse o abade, pensativo -, de três pessoas que partiram nessa mesma tarde para regressar ao País de Gales, por estarem isentos de qualquer suspeita. Há também outro, Anion, que fugiu depois de ter sido interrogado. É do vosso conhecimento, tal como é do meu, que para a maior parte dos homens a culpabilidade de Anion está provada pela sua fuga. Não é essa a vossa opinião?

- Não, Sr. abade, pelo menos no que diz respeito a esse pecado mortal. Ele deve saber de alguma coisa e tem medo. Talvez até tenha razões para ter medo. Mas não essa. Passou várias semanas na nossa enfermaria, todos aqueles que estão lá dentro conhecem bem os seus pertences e a lista não demora muito a fazer e, se alguma vez ele tivesse tido em sua posse um tecido como aquele que procuro, ter-se-ia feito notar e as pessoas não deixariam de querer saber de onde vinha.

Radulfus acenou com a cabeça, em sinal de concordância. -No entanto, não haveis mencionado o outro objecto que desapareceu, o alfinete de ouro da capa de Einon ab Ithel.

- Isso - disse Cadfael compreendendo a alusão -, já é possível. E explicaria a fuga. Anion foi procurado e continua a sê-lo. Mas, se por um lado ele levou uma das coisas, a verdade é que não trouxe a outra. A menos que tivesse na mão um pano como aquele que já vos descrevi, Anion não é o assassino. E o pouco que ele tinha, muitos homens aqui viram e ficaram a conhecer. E assim como também, tanto quanto nos é dado descobrir, nunca esta casa teve entre os seus tesouros um tal tecido que pudesse ter sido roubado e usado para maus fins.

- No entanto, se esse pano entrou e saiu daqui nesse mesmo dia - disse Radulfus -, quereis insinuar que ele tenha sido levado pelos nobres galeses? É do nosso conhecimento que eles não podem ter feito nada de mal. Se, ao regressar, tivessem razões para pensar que alguma coisa do que levavam na sua bagagem tinha qualquer relação com este caso, não vos parece que nos teriam feito chegar a notícia?

- Não havia razão para isso, Sr. Abade, pois não seriam capazes de desconfiar que tais peças eram importantes para nós. Só depois de se terem ido embora é que reuni os pequenos filamentos que vos mostrei. Como poderiam saber que procurávamos tal coisa? Como também não tivemos qualquer notícia deles, apenas a mensagem de Owain Gwynedd para Hugh Beringar. Se Einon ab Ithel tinha estimação na sua jóia e deu por falta dela, não lhe passou pela cabeça que a possa ter perdido aqui.

- E vós achais - disse o abade, pensativo -, que seria boa ideia falar com Einon e os seus oficiais e examinar essa questão?

-Apenas se for da vossa vontade - disse Cadfael. - Não há maneira de sabermos se isso nos levará a adquirir mais conhecimentos do que os que temos agora. Só que é possível! E há tantas almas que precisam, para seu descanso, ver este assunto resolvido! Até o próprio culpado.

- Esse mais que os outros! - disse Radulfus e deixou-se ficar algum tempo sentado, em silêncio. No locutório, a luz começava a obscurecer-se, embora num dia enevoado isso pudesse ter acontecido mais cedo. Por volta daquela hora, talvez um pouco antes, Hugh deveria estar junto do grande canal de Rhyd-y-Croesau, perto de Oswestry, à espera de Owain Gwynedd. A menos, claro, que Owain tivesse o mesmo hábito de chegar adiantado aos encontros. Esses dois iam entender-se sem necessidade de muitas palavras.

-Vamos, são horas do ofício da noite - disse o abade, mexendo-se -, vamos rezar para que sejamos esclarecidos. Amanhã, depois do serviço da manhã, voltaremos a falar.

Os galeses de Powys tinham-se dado bem com a sua incursão a Lincoln, empreendida mais com vistas à pilhagem do que para apoiar o conde de Chester, que afinal era mais um inimigo que um aliado. Madog ap Meredith estava perfeitamente disposto a agir uma vez mais em conjunto com Chester, desde que isso trouxesse qualquer lucro a Madog e a notícia das incursões de Ranulf às fronteiras de Gwynedd e Shropshire alertou-o para possibilidades que lhe agradavam. Havia alguns anos que os homens de Powys tinham capturado e queimado parcialmente o castelo de Caus, a seguir à morte de William Corbett e na ausência do seu irmão e herdeiro, e desde então tinham mantido aquele posto avançado que constituía uma base muito conveniente para outras incursões. Com Hugh Beringar a caminho do norte e metade da guarnição de Shrewsbury juntamente com ele, o momento parecia maduro para a acção.

A primeira coisa que aconteceu foi uma incursão relâmpago vinda de Caus, ao longo do vale, em direcção a Minsterley, queimando uma fazenda isolada e levando algum gado. Os incursores afastaram-se tão velozmente como tinham aparecido quando os homens de Minsterley se reuniram contra eles e desapareceram no interior de Caus e através das montanhas em direcção ao País de Gales, com o seu espólio. Mas o sucedido era indicação suficiente de que podiam contar com o seu regresso, ainda com mais força, uma vez que a primeira tentativa se desenrolara com tanta facilidade e sem baixas. Alan Herbard suou, dispensou alguns homens para irem reforçar Minsterley e aguardou o pior.

As novas desta tentativa de incursão chegaram à abadia e à cidade na manhã seguinte. A calma enganadora que se seguiu era boa de mais para ser verdadeira, mas os homens da fronteira, habituados à insegurança como a um lugar-comum das suas vidas, recolheram impávidos todos os destroços e deixaram ficar os seus podões e forquilhas à mão de semear.

- No entanto, quer-me parecer - disse o abade Radulfus, analisando a situação sem surpresa nem alarmes, mas com preocupação por um condado ameaçado em duas frentes -, que esta conferência a norte estaria mais bem informada, duma parte e doutra, se soubessem desta incursão. Há um interesse mútuo. Por pouco duradoiro que seja - acrescentou secamente e sorriu. Desconhecedor do espírito dos galeses, aprendera bastante desde a sua nomeação para Shrewsbury. - Gwynedd é vizinho próximo de Chester, o que não acontece com Powys, e os seus interesses são muito diferentes. Além disso, parece que pode ser considerado ao mesmo tempo um homem de honra e sensatez. O outro não, não o classificaria de sensato ou estável, segundo os nossos padrões. Não quero que estas nossas gentes do oeste sejam atormentadas e pilhadas, Cadfael. Tenho estado a pensar naquilo que dissemos ontem. Se voltardes uma vez mais ao País de Gales, para conferenciar com esses senhores que nos visitaram, estareis bem próximo do sítio onde Hugh Beringar foi conferenciar com o príncipe.

- Sem dúvida - disse Cadfael. - Einon ab Ithel é o primeiro a seguir do penteulu de Owain, como capitão da sua própria guarda. Estão juntos, com certeza.

- Então, quero que partais como meu enviado ao encontro de Einon. Seria conveniente que informásseis o jovem substituto de Hugh Beringar da jornada que tencionais empreender e que podeis levar-lhe qualquer mensagem que ele deseje enviar. Estou certo que sabereis fazer esse contacto com toda a discrição - disse Radulfus com o seu sorriso sombrio. - Esse jovem é novo no seu posto.

-De qualquer forma-disse Cadfael com brandura -, tenho que passar pela cidade e devo informar as autoridades do castelo desta minha missão, pedindo-lhes autorização para passar. É uma boa oportunidade, numa altura em que os homens são escassos e tão necessários.

-É verdade-concordou Radulfus, pensando como era bem possível que dentro de pouco tempo todos os homens fossem poucos para a região fronteiriça. - Muito bem! Escolhei um cavalo que vos agrade. Tendes autorização para agir como vos parecer melhor. Quero esta morte esclarecida e resgatada, quero a paz de Deus na minha enfermaria e dentro das minhas paredes e a dívida paga. Ide, fazei o que puderdes.

Não houve qualquer dificuldade no castelo. Bastou a Herbard saber que um enviado do abade se dirigia para Oswestry e mais além, para que lhe confiasse uma mensagem para o seu senhor. Por muito verde e pouco à vontade que ele estivesse, tinha sido preparado e reforçado para enfrentar tudo o que pudesse vir, mas era mais uma segurança ter informado o seu senhor. Estava assustado, mas resoluto. Cadfael pensou que era o indivíduo indicado e que ainda podia vir a ser muito útil a Hugh, depois do baptismo de sangue que provavelmente estava próximo.

- Dai a saber ao senhor de Beringar - disse Herbard -, que tenciono fazer uma vigilância cerrada à fronteira do lado de Caus. Mas desejo que ele saiba que os homens de Powys entraram em acção. E, se houver mais incursões, informá-lo-ei.

-Ele sabê-lo-á-disse Cadfael e dali atravessou de novo a cidade, da Cruz Alta desceu para a ponte galesa e tomou o rumo de noroeste, em direcção a Oswestry.

Foi dois dias depois que se deu a avançada. Madog ap Meredith ficara satisfeito com a sua primeira tentativa e trouxe mais homens para as fileiras, antes de lançar um ataque em força. Devastaram tudo desde o vale de Rea a Minsterley, queimando e saqueando, entraram em Minsterley por ambos os lados e seguiram como uma avalanche para Pontesbury.

No castelo de Shrewsbury, ouvidos galeses e ingleses abriram-se e estremeceram perante o alvoroço e a febre dos boatos.

- Eles já andam por aí! - disse Elis, tenso e sem dormir, ao lado do primo, durante a noite. - Oh, meu Deus, e Madog com a sua derrota a vingar! E ela está lá! Melicent está em Godric's Ford. Oh, Eliud, se ele resolve tirar a desforra!

- Preocupais-vos sem razão! - insistiu Eliud acaloradamente. - Eles aqui sabem o que estão a fazer, estão vigilantes, não vão deixar que aconteça nada de mal às freiras. Além disso, Madog não se dirige para lá, mas sim para o vale, onde o saque é mais compensador. E vós próprio haveis visto do que são capazes os homens da floresta. Por que é que ele havia de tentar pela segunda vez? Nem sequer foi ele o derrotado nessa incursão, vós sabeis quem a dirigiu. Que despojos pode encontrar em Godric's Ford um homem como Madog, comparado com as ricas fazendas do vale de Minsterley? Não, não há dúvida que ela ali está em segurança.

- Em segurança? Como podeis dizer uma coisa dessas? Onde é que há segurança? Nunca deviam tê-la deixado ir. - Elis apoiou os punhos raivosos no colchão de palha, que sussurrou sob o seu gesto e ergueu-se na cama. - Oh, Eliud, se ao menos eu estivesse fora daqui e livre...

- Mas não estais livre - disse Eliud, com a aspereza exasperada de alguém que se sentia torturado pela mesma dor -, assim como eu também não estou. Estamos detidos e nada podemos contra isso. Pelo amor de Deus, temos de fazer justiça a estes ingleses, eles não são loucos nem covardes, hão-de proteger a sua cidade e o seu território e tomar conta das suas mulheres, sem precisarem da vossa ou da minha ajuda. Que direito tendes de duvidar deles? Agora falais dessa forma, esquecendo-vos que fizestes vós próprio a última incursão?

Elis deixou-se cair com um suspiro de derrota e um sorriso amargo.

- E paguei por isso! Por que é que eu havia de ter acompanhado Cadwaladr? Deus sabe quantas vezes, e com que amargura, me arrependi de o ter feito.

- Não quisestes ouvir o que vos disseram - replicou Eliud tristemente, envergonhando por ter posto sal na ferida -, mas ela está em segurança, nenhum mal lhe há-de acontecer, nenhum mal há-de acontecer às freiras de Godric's Ford. Confiemos que os ingleses saberão tomar conta da sua gente. Tem de ser! Nada mais podemos fazer.

- Se eu estivesse livre - agonizou Elis, desesperado -, arrancá-la-ia de lá, levava-a para qualquer sítio, longe do perigo...

-Ela nunca vos acompanharia-recordou-lhe Eliud sombrio. - Avós, nunca! Oh, meu Deus, como é que nós nos metemos neste pantanal e como é que havemos de sair dele?

- Se conseguisse chegar perto dela, seria capaz de a persuadir. Acabaria por me escutar. Entretanto, já deve ter uma melhor recordação da minha pessoa, já deve saber que foi injusta comigo. Tenho a certeza que me acompanharia. Se ao menos eu pudesse chegar perto dela...

- Mas estais aqui como refém, tal como eu - disse Eliud. - Demos a nossa palavra e aceitámos livremente a situação. Nem eu nem vós podemos arredar pé do castelo sem mancharmos a nossa honra.

- Não - concordou Elis tristemente e deixou-se ficar imóvel e silencioso, olhando fixamente a escuridão da abóbada baixa por cima das suas cabeças.

 

O irmão Cadfael chegou a Oswestry ao fim do dia e encontrou a cidade e o castelo em estado de alerta e em grande actividade, mas Hugh Beringar já tinha partido. Seguira para leste depois do seu encontro com Owain Gwynedd, foi o que lhe disseram, em direcção a Whittington e Ellesmere, para aumentar a vigilância em toda a fronteira norte e recrutar reforços em toda a região. Por sua vez, Owain deslocara-se para a fronteira norte, para se avistar com o condestável de Chirk e fazer que aquele recanto da confederação ficasse bem guardado e bem guarnecido de homens. Tinha havido algumas ligeiras escaramuças com grupos de batedores de Cheshire, mas tão de fugida que se tornava evidente que Ranulf estava a avançar com todas as cautelas, ao mesmo tempo que tentava certificar-se até que ponto a oposição estava bem organizada. Até ali, tinha recuado ao primeiro recontro. Auferira grandes lucros em Lincoln e agora não tinha intenções de os pôr em perigo, apenas um desejo bastante humano de os aumentar, caso encontrasse os seus oponentes desprevenidos.

- O que não será o caso - disse o sargento efusivo que recebeu Cadfael no castelo e se ocupou de mandar tratar convenientemente do cavalo e receber o cavaleiro como era devido. - O conde não é tão louco que vá meter a mão num ninho de vespas. Se lhe deixarmos um ponto fraco por onde ele possa furar, ele não deixa de entrar, mas isso é que nós não faremos. Ele pensou que ia conseguir governar-se, ao saber da morte de Prestcote. Julgava que o nosso jovem ainda estava verde e seria fácil levar-lhe a melhor. Mas está a aprender que a situação é bem diferente! E se esses galeses de Powys têm o ouvido à escuta para estes lados, também não deixarão de reconhecer os presságios. Mas quem pode prever o que farão os gauleses? Já este Owain é um tipo único! Louro como um saxão e grande! Que é que está um homem desses a fazer no País de Gales? - Ele esteve aqui? - perguntou Cadfael, sentindo o seu sangue câmbrico agitar-se numa saudação de boas-vindas.

- A noite passada, veio cear com Beringar e partiu para Chirk ao amanhecer. Ingleses e galeses vão guarnecer a fortaleza, em vez de lutarem pela sua posse. Aí está um facto espantoso!

Cadfael ponderou na finalidade da sua mensagem e considerou o tempo.

- Onde ficará Hugh Beringar esta noite, fazeis ideia?

- Em Ellesmere, é o mais provável. E amanhã em Whitchurch. No dia seguinte estará de volta aqui. Tenciona encontrar-se de novo com Owain e depois seguirá para a fronteira, se tudo correr bem aqui.

- E se Owain ficar em Chirk esta noite, qual o seu destino amanhã?

-Owain ainda mantém o acampamento em Tregeiriog, com o seu amigo Tudur ap Rhys. É para lá que deve voltar, sejam quais forem os reforços que conseguir para a fronteira.

Portanto, tinha de estar sempre em contacto com o acampamento, para enviar as suas forças para onde fossem mais necessárias. E se era aí que tencionava voltar na noite seguinte, o mesmo aconteceria com Einon ab Ithel.

-Vou passar a noite aqui-disse Cadfael -, e amanhã sigo também para Tregeiriog. Conheço a casa senhorial e o seu senhor. Vou esperar aí por Owain. E vós informai Hugh Beringar que os galeses de Powys estão outra vez em campo, tal como vos disse. Até agora não houve nada de muito grave, se as coisas piorarem, Herbard dará notícias. Mas se esta fronteira se aguentar e quebrar o nariz de Chester onde quer que ele se aventure a metê-lo, Madog ap Meredith também aprenderá a ter juízo.

O castelo, no extremo fronteiriço de Oswestry, com a sua cidade, pertencia ao rei, mas a casa senhorial de Maesbury, da qual se tornara ponto de comando, era o local onde nascera Hugh e onde não havia ninguém que não estivesse com ele e não lhe desse a sua confiança. Cadfael sentia a firme segurança do nome de Hugh à sua volta e uma guarnição duplamente leal - a Stephen e a Hugh. Era uma sensação bastante agradável, sobretudo agora que Owain Gwynedd estendia a sombra benigna da sua própria mão sobre uma fronteira que pertencia, por posição, a Powys. Depois de ter assistido ao ofício da noite na capela do castelo, Cadfael, dormiu tranquilamente, acordou cedo, comeu e bebeu, e atravessou a grande represa para entrar no País de Gales.

Só tinha dezassete quilómetros a percorrer até Tregeiriog, num caminho que serpenteava entre as colinas circundantes, sempre com encostas arborizadas de um ou de ambos os lados e entrevendo aqui e além os cumes carecas cobertos de erva e um céu velado, sereno e pacífico. Não era um país montanhoso, não se viam as rochas de um azul de aço características do noroeste, mas a paisagem era permanentemente ondulada, limitando a vista com encostas arborizadas e vales fechados, que se abriam apenas no último momento para permitir uma visão resguardada. Antes de se aproximar de Tregeiriog, os piquetes, já esperados, surgiram da vegetação baixa para o deter, indentificar e deixar passar. A sua língua galesa foi o primeiro sal-vo-conduto e prestou-lhe um bom serviço.

Todas as cores tinham mudado desde a última vez que descera a colina inclinada que levava a Tregeiriog. Em volta do calor castanho, a cheirar a madeira, da fazenda e da aldeia ao lado do rio, as árvores começavam a suavizar o negrume do seu esqueleto com uma nuvem verde clara de rebentos e, ao longe, nos cumes altos e arrendondados, a neve tinha desaparecido e a palidez desbotada da erva do ano anterior exibia o mesmo tom ilusório de vida a desabrochar. No meio dos fetos já castanhos e meio podres, as primeiras folhas novas começavam a desenrolar. Alija era Primavera.

Ao portão da propriedade de Tudur, reconheceram-no e vieram prontamente dar-lhe entrada e tomar-lhe conta do cavalo. Não o próprio Tudur, mas o seu intendente, veio dar as boas-vindas ao recém-chegado e fazer as honras da casa. Tudur estava com o príncipe, àquela hora sem dúvida regressando de Chirk. Na parte baixa junto do afluente, por detrás da propriedade, as fogueiras de erva seca dos destacamentos da fronteira libertavam tufos de fumo azul no ar tranquilo. Ao fim do dia, a mansão seria de novo a corte de Owain e todos os seus principais capitães estariam reunidos à volta da mesa.

Cadfael foi conduzido a um pequeno quarto, no interior da casa, e foi-lhe oferecida a água cerimonial para lavar dos pés da poeira da viagem. Desta vez foi uma criada que o serviu, mas quando saiu para o pátio viu Cristina avançar em direcção a ele, vinda das cozinhas, num torvelinho de saias a esvoaçar e cabelos ao vento.

- Irmão Cadfael... sois vós! - Estacou diante dele, sem fôlego, ansiosa. - Disseram-me que havia um monge que tinha vindo de Shrewsbury, e eu esperava que fosseis vós. Vós conhecei-los, podeis dizer-me a verdade... sobre Elis e Eliud...

-Que foi que já vos contaram?-perguntou Cadfael.-Vinde para dentro, para onde possamos ficar sossegados, e aquilo que eu souber dizer-vos, di-lo-ei, pois calculo que deveis ter vivido numa ansiedade cheia de amargura. - Apesar de tudo, pensou pesaroso, enquanto ela se voltava, obediente, e se encaminhava para dentro de casa, se fizesse o que estava a dizer e lhe contasse tudo o que sabia, pouco iria contribuir para o conforto da jovem. O seu prometido, por quem ela lutava tão ferozmente contra um rival tão poderoso, estava não só separado dela até que se provasse a sua inocência perante o crime, como também desastrosamente apaixonado por outra rapariga, como nunca estivera por ela. Que palavras se podiam dizer a uma donzela tão pouco afortunada? No entanto, seria infame mentir-lhe, da mesma forma que seria cruel atacá-la com a verdade nua e crua. Tinha de encontrar um caminho entre as duas coisas.

Ela arrastou-o para um canto da grande sala, afastado e sombrio àquela hora em que a maior parte dos homens andavam ocupados com os seus trabalhos, e aí se sentaram lado a lado, encostados às tapeçarias enegrecidas pelo fumo, ela a tocar-lhe o ombro com os cabelos negros, enquanto despejava tudo o que sabia e suplicava que lhe fosse revelado aquilo que precisava de saber.

- O conde inglês morreu, isso já eu sei, antes mesmo que Einon ab Ithel estivesse pronto para partir e diz-se que não foi uma morte natural causada pelos ferimentos, e todos aqueles cuja inocência não foi provada têm de ficar lá como prisioneiros e suspeitos, até que se prove a culpabilidade de outro homem, inglês ou galês, laico ou religioso, quem sabe? E nós aqui também temos de esperar. Mas que é que está à ser feito para lhes dar a liberdade? Como é que hão-de encontrar o culpado? Tudo isto é verdade? Sei que Einon regressou e falou com Owain Gwynedd e sei que o príncipe não receberá os seus homens de volta enquanto não estiverem ilibados de qualquer suspeita. Diz que vos enviou um homem morto e que um homem morto não pode comprar um vivo. E diz ainda que o resgate do homem morto tem de ser uma vida, a vida do seu assassino. Acreditais que algum dos nossos homens seja responsável por tal dívida?

- Não ouso afirmar que qualquer homem não seja capaz de matar, perante uma necessidade monstruosa, instante-disse Cadfael, abertamente.

- Ou qualquer mulher - disse com um suspiro impetuoso e desesperado. -Mas não tendes ainda nenhuma ideia sobre quem possa ter sido? Não há nenhum dedo apontado? Ainda não?

Não, claro, ela não sabia de nada. Einon partira antes de Melicent ter bradado o seu amor e o seu ódio, ao acusar Elis. Essas notícias ainda não tinham chegado àquelas paragens. Mesmo que Hugh tivesse agora falado desse assunto com o príncipe, tal questão ainda não podia ser conhecida em Tregeiriog. Mas certamente isso iria acontecer, quando Owain voltasse. Ela ia acabar por saber como o seu prometido se tinha perdido de amores por outra mulher, que depois o acusara da morte do próprio pai, assassínio por amor que pusera fim ao amor. E onde é que tudo isso deixava Cristina? Esquecida, eclipsada, mas mesmo assim com a posse ténue de um noivo que não a queria nem podia ter a noiva que desejava! Que meada obscura envolvia aquelas quatro infelizes crianças!

- Já houve dedos apontados em mais de uma direcção - disse Cadfael -, mas as provas não são mais concludentes num caso que no outro. Ninguém está ainda em perigo de perder a vida, e todos estão de saúde e recebendo bom tratamento, embora tenham de permanecer detidos. Não há outro caminho a não ser esperar e acreditar na justiça.

- Acreditar na justiça nem sempre é fácil - disse a jovem com azedume. - Dizeis-me que estão bem? E estão juntos, Elis e Eliud?

- Sim, estão. Pelo menos têm esse conforto. E dentro do castelo têm toda a liberdade. Deram a sua palavra em como não tentariam fugir e essa palavra foi aceite. Estão bastante bem, podeis crer-me.

- Mas não podeis dar-me qualquer esperança, marcar um prazo para a sua vinda? - Olhava Cadfael com os grandes olhos fixos e tinha os dedos no regaço, entrelaçados com tal força que as articulações brilhavam com uma brancura de ossos descobertos. - Nem mesmo se ele poderá regressar, vivo e ilibado? - disse.

- Sobre isso não sei mais do que vós mesma - admitiu Cadfael, contrafeito.-Mas farei tudo o que puder para apressar as coisas. Esta espera é difícil para vós, eu sei.-Mas quão mais difícil seria o regresso, se alguma vez Elis voltasse ilibado, apenas para levar por diante o seu caso com Melicent e libertar-se do seu noivado galês. Talvez fosse melhor dar-lho a entender desde já, antes que a realidade se abatesse sobre ela. Cadfael ponderava no que seria melhor para ela, meio distraído daquilo que ouvia.

- Pelo menos limpei a alma - dizia Cristina, em parte falando para si própria -, sempre tive a certeza do amor dele por mim, se ao menos não amasse o primo tanto ou mais do que a mim... Os irmãos de criação são assim mesmo, vós sois galês, sabeis como é. Mas se ele não tinha forças para desfazer o que fora mal feito, eu fi-lo por ele. Cansei-me de guardar silêncio. Por que havíamos de sangrar sem um queixume? Fiz o que tinha de ser feito. Falei com o meu pai e com o pai dele. No fim hei-de conseguir o que quero.

E levantou-se, dirigindo-lhe um sorriso pálido, mas resoluto.

- Havemos de voltar a falar, irmão, antes que nos deixeis. Agora, tenho de ir ver como estão as coisas na cozinha, eles vão chegar ao fim do dia.

Cadfael despediu-se, abstracto, e ficou a vê-la atravessar a grande sala com as suas passadas soltas, de rapaz, e o porte direito e altivo. Só depois de ela ter chegado à porta é que compreendeu o significado daquilo que ouvira.

- Cristina! - chamou, sobressaltado com o que acabava de descobrir, mas a porta já se fechara e a rapariga tinha desaparecido.

Não havia possibilidade de erro, tinha ouvido bem. Cristina sempre tivera a certeza do amor dele, se ao menos não amasse oprimo tanto ou mais do que ela, à maneira dos irmãos de criação! Sim, tudo isso já ele sabia antes, vira-o bem patente, vira-o nas suas atitudes hostis, mas fizera uma leitura totalmente errada. Como um homem se pode deixar enganar, quando todas as palavras, todas as aparências confirmam a sua cegueira! Nem uma única mentira dita ou intencionada, e no entanto, o somatório final uma perfeita mentira.

Cristina falara com o pai dela... e com o dele!

Cadfael ouviu no fundo da sua memória a voz alegre de Elis ap Cynan, falando de si próprio quando da sua chegada a Shrewsbury. Owain Gwynedd era o seu tutor e sempre tomara conta dele, mesmo depois de entregue às pessoas que o tinham criado depois da morte do pai...! Em casa de meu tio Griffith ap Meilyr, onde cresci com meu primo Eliud, como dois irmãos...

Dois jovens, ligados como dois gémeos, demasiado ligados para que houvesse espaço para a noiva destinada a um deles. Sim, e ela lutando com todas as suas forças por aquilo que considerava seu de direito e sabendo que havia um amor suficientemente profundo e suficientemente forte para corresponder ao seu, se ao menos... se ao menos um laço erradamente atado na infância pudesse ser honrosamente desfeito. Se ao menos aqueles dois pudessem ser separados, aquela criatura dupla como uma imagem num espelho, o lado direito e o lado esquerdo e qual deles a imagem real? Como pode um estranho dizê-lo?

Mas agora ele sabia. A jovem não usara a palavra em vão, o nome do parente que os criara a ambos. Não, ela sabia o que estava a dizer. Um tio pode ser ao mesmo tempo pai de criação, mas só um pai natural é pai.

Regressaram, como da vez anterior, ao escurecer. Cadfael estava ainda como que entorpecido quando os ouviu chegar e forçou-se a sair, para presenciar a azáfama do pátio, à luz dos archotes, o brilho da pelagem dos cavalos, o tilintar dos arreios, freios e esporas, o som alegre e decidido das vozes entrecruzadas, o sibilar e murmurar dos tratadores, as ferraduras a calcarem o chão e a neblina ténue da respiração quente no ar frio mas não gelado. Um jogo forte e grandioso de luzes e sombras e a porta aberta da grande sala brilhando num calor de boas-vindas.

Tudur ap Rhys foi o primeiro a descer da sela e apressou-se a ir segurar ele próprio o estribo do príncipe. Os cabelos louros de Owain Gwynedd brilharam descobertos à luz avermelhada dos archotes quando saltou da montada, ficando com a cabeça acima da do seu anfitrião. Foram chegando, homem após homem, capitão a seguir a capitão, os nobres dos domínios mais próximos de Gwynedd, os vizinhos da Inglaterra. Cadfael ficou a observar cada um que desmontava e deixou-se estar até todos se apearem e os seus acompanhantes terem dispersado pelos acampamentos, do outro lado da propriedade. Mas não viu entre eles Einon ab Ithel, aquele que procurava.

- Einon? - repetiu Tudur quando interrogado. - Vem aí, embora possa chegar tarde à mesa. Tinha uma visita a fazer em Llansa-ntffraid, onde tem uma filha casada, e o seu primeiro neto acaba de vir ao mundo. Antes de a noite terminar, estará connosco. Sois cordialmente bem-vindo uma vez mais a minha casa, irmão, ainda mais se trazeis novas que agradarão aos ouvidos do príncipe. Foi muito desagradável o que aconteceu convosco e ele sente-o como uma mancha triste numa relação límpida.

-O que eu posso dizer é que venho procurar esclarecimento e não trazê-lo - confessou Cadfael. - Mas estou certo que o mau procedimento de um único homem não pode perturbar estes encontros entre o vosso príncipe e o nosso conde. A boa vontade de Owain Gwynedd é preciosa como o ouro para nós em Shropshire, tanto mais agora que Madog ap Meredith deitou outra vez as garras de fora.

- Quereis dizer-me que foi isso que aconteceu? Owain vai querer saber o que se passa, mas a altura mais indicada é depois da ceia. Vou arranjar-vos um lugar na mesa principal.

Uma vez que tinha de esperar pelo regresso de Einon, Cadfael instalou-se no seu lugar para estudar e apreciar a reunião na grande sala de Tudur, para a ceia: o calor do fogo, os archotes, o vinho, e a música de harpa. Um homem com a posição de Tudur tinha o privilégio de possuir uma harpa e de manter o seu próprio tocador, além da sua obrigação de ser um patrono generoso para os menestréis em viagem. E com o príncipe ali presente para louvar e ser louvado, houve um despique de cantores que se prolongou por toda a refeição. Continuava a haver um enorme vaivém no pátio, com a chegada de alguns cavaleiros mais atrasados, os oficiais dos acampamentos a patrulharem os seus limites e a mudarem os piquetes e as mulheres a transportarem as coisas de um lado para o outro e a demorarem-se a falar com os arqueiros e os soldados. De momento, era ali a corte de Gwynedd, onde acorriam os que tinham alguma coisa a pedir e os que traziam ofertas, os jovens que procuravam um posto ou um favor.

As travessas já tinham sido retiradas e o hidromel e o vinho circulavam livremente, quando o intendente de Tudur entrou e se dirigiu à mesa principal.

- Meu senhor, está aqui alguém que pede autorização para vos apresentar o seu filho natural, que reconheceu e admitiu no seio da sua família há apenas dois dias. Griffri ap Llywarch, dos lados de Meifod. Estareis disposto a ouvi-lo?

- De boa vontade - disse Owain, erguendo a cabeça com os seus cabelos dourados para olhar com uma certa curiosidade através da fumarada e das sombras da grande sala. - Que Griffri ap Llywarch entre e seja bem-vindo.

Cadfael não prestara muita atenção ao nome e de qualquer forma não era natural que o tivesse reconhecido, como também não era natural que reconhecesse um homem que nunca tinha visto. O recém-chegado seguiu o intendente para o interior da sala e atravessou as mesas até junto da mesa do príncipe. Era um homem magro e vigoroso, talvez de uns cinquenta anos de idade, já um pouco careca e de barba, com o andar de um montanhês, o rosto marcado pelas intempéries e o olhar enrugado e distante de pastor. A roupa que trazia era simples e castanha, mas de um bom tecido de fabrico caseiro. Foi direito ao estrado e saudou o príncipe com uma reverência rápida e sem servilismo.

-Meu senhor, trouxe-vos o meu filho, para que o conheçais e aceiteis, pois o único filho que tive do matrimónio morreu há mais de dois anos e eu fiquei sem descendência, até que este filho que tive de outra mulher me procurou, declarando o seu nascimento e comprovando-o. E eu reconheci-o como meu e trouxe-o para a minha família e ele é aceite como meu. Agora, peço-vos também a vossa aprovação.

Apresentava-se cheio de orgulho, satisfeito daquilo que tinha para dizer e do jovem que tinha de apresentar, e Cadfael não teria tido olhos nem ouvidos para nenhum outro homem ali presente, se não fosse o silêncio respeitoso que o acompanhara através da sala e o único som bem nítido que acompanhou esse silêncio. As sombras e o fumo velavam a figura que seguia respeitosamente alguns metros mais atrás, mas o som dos seus passos era bem audível, avançando a coxear, mais leve e rápido sobre um dos pés. Os olhos de Cadfael pousaram-se no filho quando ele surgiu, hesitante, à luz do archote que iluminava a mesa do príncipe. Conhecia aquele homem, embora os cabelos negros estivessem cortados e orgulhosamente atirados para trás, revelando um rosto que deixara de ser sorumbático e fechado, mas sim aberto, esperançoso e ávido, e já não havia nenhuma muleta debaixo da axila inclinada.

Cadfael desviou novamente o olhar de Anion ap Griffri para Grif-fri ap Llywarch a cuja meia-idade, árida e sem descendentes, aquele filho não procurado trouxera de repente o calor da esperança e da satisfação. A capa de tecido caseiro que caía solta dos ombros de Griffri exibia nas suas pregas um alfinete comprido com a cabeça em ouro cinzelado presa com uma fina corrente também de ouro. E também isso já Cadfael vira antes e conhecia bem de mais.

Tal como o conhecia outra testemunha ali presente. Einon ab Ithel entrara entretanto, como uma pessoa conhecida da casa e não desejando causar reboliço, pela porta interior, indo emergir atrás da mesa do príncipe sem ser notado. O homem em quem convergiam todas as atenções atraiu naturalmente a sua. A luz avermelhada do archote refulgiu no ornamento usado com orgulho e sem disfarce. O seu legítimo dono tinha todas as razões para saber que não podia haver dois alfinetes iguais, pelo menos com o mesmo tamanho e peso e com a mesma ornamentação.

- Santo nome de Deus! - exclamou Einon ab Ithel num imenso brado de espanto e indignação. - Que espécie de ladrão temos nós aqui, que se apresenta diante dos meus próprios olhos usando o meu ouro?

Fez-se um silêncio tão ameaçador como o trovão e todas as cabeças se voltaram do príncipe e do interlocutor para fixarem aquele que pronunciara bem alto uma tal acusação. Einon deu a volta à mesa em passos largos e saltou do estrado, de maneira a ficar tão próximo que Griffri recuou alarmado, ao mesmo tempo que tocava com o dedo moreno bem esticado no alfinete que brilhava na capa grosseira.

- Meu senhor, isto pertence-me! Ouro das minhas terras que mandei extrair, assim como mandei fazer este alfinete especialmente para mim, não há outro igual nem nesta terra, nem em nenhuma outra. Quando regressei de Shrewsbury, na missão que vós conheceis, ele não estava na gola da minha capa, nem voltei a vê-lo desde esse dia. Pensei que tivesse caído em qualquer lado na estrada e não pensei mais nisso. O que é o ouro, para merecer a nossa preocupação! Agora volto a vê-lo e sinto-me espantado. Meu senhor, deixo o caso em vossas mãos. Perguntai a este homem por que razão ele está a usar aquilo que me pertence.

Metade das pessoas que se encontravam na sala já estavam de pé, fazendo ouvir um sussurrar ribombante e cheio de ameaças, pois o roubo, sem circunstâncias atenuantes, era o pior crime que conheciam e o ladrão apanhado em flagrante podia ser morto no local pelo espoliado. Griffri quedou-se mudo, com o olhar fixo e desorientado. Anion avançou com os braços estendidos e colocou-se entre o pai e Einon.

-Meu senhor, meu senhor, fui eu que o dei, comprei-o para o meu pai. Eu não roubei... Paguei um preço! O meu pai está livre de culpa, se culpa existe ela é só minha...

O terror fazia-o transpirar, grandes pingos surgiram repentinamente na fronte do jovem e desapareceram nas sobrancelhas espessas. E se é verdade que sabia um pouco de galês, naquele momento de aflição não lhe servia de nada, e tudo o que disse saiu-lhe em inglês. Esse facto causou a todos alguns momentos de surpresa. E Owain, agitando a mão na direcção da sala, impôs silêncio.

Murmuraram, mas obedeceram. Aproveitando esse momento, o irmão Cadfael levantou-se discretamente e, dando a volta à mesa, desceu do estrado. Os seus movimentos, ainda que cautelosos, chamaram a atenção do príncipe.

- Meu senhor - disse Cadfael num tom suplicante -, eu venho de Shrewsbury, conheço Anion ap Griffri e sou conhecido dele. Ele foi criado em Inglaterra, como inglês, não admira que se exprima nessa língua. Se for preciso um intérprete, eu posso fazer esse serviço, para que todos aqui presentes o possam compreender.

- Uma oferta justa - disse Owain, olhando-o com ar pensativo -, e vós, irmão, estais também em posição de falar em nome de Shrewsbury, pois parece que esta acusação nos faz reverter àquela cidade e ao assunto do qual temos conhecimento. E, sendo assim, falais pelo condado e pela cidade ou pela abadia?

- Aqui, neste mesmo momento - disse Cadfael com ousadia - , falarei por ambos. E se vierdes a encontrar alguma coisa de menos correcta, que a responsabilidade recaia sobre mim.

-A vossa presença aqui, penso - disse Owain -, prende-se com este mesmo assunto.

- É verdade. Em parte vim à procura dessa jóia. A verdade é que ela desapareceu do quarto de Gilbert Prestcote, na nossa enfermaria, no dia em que ele morreu. A capa, que fora reunida aos agasalhos do doente na liteira que o transportou, foi devolvida a Einon ab Ithel sem o alfinete. Só depois de ele se ter ido embora é que nos lembrámos desse adorno e o procurámos. E só agora voltei a vê-lo.

- Do quarto onde um homem morreu assassinado - replicou Einon -, irmão. Vós haveis encontrado mais do que o simples ouro. Podeis enviar os nossos homens de volta para nós.

Anion deixou-se ficar, amedrontado mas firme, entre o pai e a fixidez acusadora de todos os olhos ali presentes. Estava branco como a cal, mas de um branco-transparente, como se todo o sangue lhe tivesse desaparecido das veias.

- Eu não matei - disse com voz rouca e arquejou como que para conseguir o fôlego necessário para poder falar.-Meu senhor, eu não sabia... Eu julgava que o alfinete era dele, de Prestcote. É verdade que fui eu que o tirei da capa...

- Depois de o terdes morto - acrescentou Einon com aspereza.

- Não! Juro que não! Eu nunca lhe toquei. - Voltou-se para Owain num apelo desesperado. O príncipe assistia a tudo, sereno, sentado à mesa, com os dedos a envolverem levemente o pé da sua taça de vinho, mas o olhar era vivo e atento.-Meu senhor, só peço que me escuteis! E que o meu pai fique ilibado de qualquer acusação, pois tudo o que ele sabe é aquilo que lhe contei e o mesmo que vos vou agora contar a vós é tão verdade como Deus estar a ouvir-me, não vou dizer qualquer mentira.

- Entregai-me esse alfinete que usais - disse Owain. E, enquanto Griffri se apressava a soltá-lo, com os dedos a tremer, estendendo depois o braço para o colocar na mão do príncipe, este acrescentou. - É verdade! Conheço esta jóia há muito tempo e vi-a ser usada tantas vezes que não me resta qualquer dúvida sobre a pessoa a quem pertence. Por vós, irmão, assim como por Einon aqui presente, fiquei a saber como ela se encontrava ao alcance de qualquer pessoa, junto da cama do conde. Agora, podeis contar-me Anion, como ela vos foi parar às mãos. A língua inglesa compreendo-a bastante bem, não tendes que recear ser mal interpretado. E o irmão Cadfael porá em galês aquilo que disserdes, para que todos aqui presentes vos possam compreender.

Anion sorveu o ar e sentiu que a voz, desafinada, lhe contraía a garganta, mas as palavras que saíram em catadupa fizeram desaparecer o constrangimento.

-Meu senhor, até há poucos dias, eu nunca tinha visto o meu pai, nem ele a mim, mas eu tinha um irmão, tal como ele já disse, e por um acaso fiquei a conhecê-lo quando veio a Shrewsbury, com lã para vender. Tínhamos um ano de diferença, sendo eu o mais velho. Ele era meu parente e eu estimava-o. E uma vez, quando ele visitou a cidade e não estando eu junto dele, houve uma briga, um homem foi morto e as culpas recaíram sobre o meu irmão. Gilbert Prestcote mandou-o enforcar.

Owain deitou um olhar de soslaio a Cadfael e esperou que as palavras de Anion fossem traduzidas para os galeses. Depois perguntou:

- Conheceis este caso? A decisão foi justa?

- Quem pode saber qual foi a mão que causou a morte? - disse Cadfael. - Foi uma briga de rua, os rapazes estavam embriagados. Gilbert Prestcote era apressado por natureza, mas justo. Mas uma coisa é verdade, aqui no País de Gales o jovem não teria sido enforcado por causa disso. Um preço de sangue teria servido para o resgatar.

- Continuai - disse Owain.

- Guardei esse rancor no meu coração a partir desse dia - disse Anion, arranjando coragem na sua velha amargura.-Mas quando é que eu tinha a possibilidade de me aproximar do conde? Nunca, até à data em que os vossos homens o trouxeram para Shrewsbury, ferido, e o albergaram na enfermaria. Eu também lá estava, com a minha perna partida mas já curada e esse homem a vinte passos de mim, apenas uma parede a separar-nos, o meu inimigo à minha mercê. Enquanto tudo estava sossegado e os irmãos reunidos à mesa, entrei no quarto onde ele se encontrava. Ele devia uma vida à minha casa, embora eu fosse um bastardo, senti-me galês nessa altura e era minha intenção tirar a devida desforra: tencionava matá-lo! O único irmão que tive em toda a minha vida, e ele era alegre e bem-parecido, foi enforcado por causa de um golpe infeliz quando estava cheio de cerveja! Entrei naquele quarto para matar. Mas não consegui fazê-lo! Quando vi o meu inimigo num estado tão miserável, quase sem sangue nas veias, nem ar nos pulmões, tão velho e cansado... Deixei-me ficar ao pé dele, a olhar, e a única coisa que senti foi tristeza. Pareceu-me que não havia ali lugar para vingança, tudo estava já vingado. Por isso pensei numa outra maneira. Não havia ali nenhum tribunal que fixasse o preço de sangue ou que obrigasse ao pagamento, mas havia um alfinete de ouro na capa ao lado dele. Pensei que lhe pertencesse. Como é que eu podia saber? Por isso tirei-o como galanas, para resgatar a dívida e o rancor. Ao fim do dia, soube, todos nós sabíamos, que Prestcote estava morto e que morrera assassinado, e quando começaram a fazer perguntas a todos, até mesmo a mim, percebi que se alguma vez se soubesse o que eu tinha feito, diriam que era eu que o tinha morto. Por isso fugi. De qualquer forma, tencionava vir um dia procurar meu pai e dizer-lhe que a morte do meu irmão tinha sido paga, mas como estava com medo tive de me apressar.

-E é verdade que ele veio ter comigo - disse Griffri muito sério, com a mão no ombro do filho -, e mostrou-me, como prova, a pedra amarela que eu dei à mãe dele, faz muito tempo. Mas eu reconheci-o logo que o vi, pois é muito parecido com o irmão que perdeu. E ele deu-me isso que tendes na vossa mão, meu senhor, dizendo-me que a morte do jovem Griffri tinha sido vingada e que este era o preço simbólico, que o rancor estava enterrado, pois o nosso inimigo morrera. Eu não compreendi lá muito bem nessa altura e disse-lhe que se ele tinha acabado com o assassino de Griffri então não tinha direito a tirar nada dele. Mas Anion fez uma jura sagrada em como não era ele que o tinha morto e eu acreditei. E julgai se eu não estou contente por ter encontrado de novo, na meia-idade, um filho que me ampare na velhice. Pelo amor de Deus, meu senhor, não mo tireis agora!

No meio do silêncio pesado e meditativo que se seguiu, Cadfael completou a tradução das palavras de Anion e fê-lo compassadamente, para poder estudar o rosto impassível do príncipe. No final, o silêncio prolongou-se por mais um bom minuto, pois ninguém tinha o direito de falar até que Owain o permitisse. Este também não se apressou. Olhou para o pai e para o filho, muito juntos abaixo do estrado, numa solidariedade apreensiva, olhou para Einon, cujo rosto era tão impenetrável como o seu próprio, e finalmente para Cadfael.

- Irmão, vós sabeis mais do que se passou na abadia de Shrews-bury do que qualquer de nós aqui presentes. Conheceis este homem. Que dizeis? Acreditais na sua história?

- Sim - disse Cadfael, com uma gratidão sincera e cheia de gravidade. -Acredito. Condiz com tudo o que sei. Mas gostaria de fazer uma pergunta a Einon.

- Fazei-a.

- Estivestes junto do leito, olhastes para a figura adormecida. Tendes a certeza de que estava vivo nesse momento?

- Sim, tenho a certeza - disse Anion, pensativo. - Respirava, gemeu enquanto dormia. Vi-o e ouvi-o. Sei que estava vivo.

- Meu senhor - disse Cadfael, observando o olhar perscrutador de Owain -, houve quem ouvisse uma outra pessoa a entrar e sair daquele quarto, um pouco mais tarde, alguém que se movia não com um passo claudicante como o de Anion, mas em passadas leves. Alguém que não tirou nada do quarto a não ser provavelmente uma vida. Além disso, acredito naquilo que Anion nos contou porque ainda há uma outra coisa que tenho de encontrar antes de descobrir o assassino de Gilbert Prestcote.

Owain fez um aceno de compreensão e ficou mais uns momentos em silêncio, a meditar. Depois, pegou no alfinete de ouro com um movimento brusco e estendeu-o a Einon.

- Que dizeis? Tratou-se de um roubo?

- Estou satisfeito - disse Einon e riu-se, aliviando a tensão que reinava na sala. No meio do movimento e do murmúrio que acompanhou a descontracção geral, o príncipe voltou-se para o seu anfitrião.

- Arranjai um lugar aí em baixo, Tudur, para Griffri ap Llywarch e seu filho Anion.

 

E foi assim que o principal suspeito de Shrewsbury, o homem que o falatório geral já tinha enforcado e enterrado, atravessou a sala atrás do pai, um tanto vacilante e estonteado como um homem que vivesse um sonho, mas começando a brilhar como se um archote se tivesse acendido dentro dele. Seguiu o pai até ao lugar que lhes indicaram numa das mesas, onde se sentou igual entre iguais. De filho bastardo de uma criada, sem propriedades ou privilégios, tornara-se de repente um homem livre, com um lugar de direito numa família, herdeiro de um progenitor respeitado e aceite pelo seu príncipe. A ameaça que o obrigara a fugir transformara-se na maior bênção de toda a sua vida e encaminhara-o para o único lugar que lhe pertencia de direito pela lei galesa, filho verdadeiro de um pai que o reconhecia com orgulho. Ali, Anion não era um filho bastardo.

Cadfael viu-os avançar para os seus lugares e sentiu-se satisfeito ao constatar que, pelo menos, alguma coisa de bom tinha saído do mal. Onde é que esse jovem teria arranjado coragem para procurar o pai, distante, falando outra língua, se o medo o não tivesse impelido, facilitando-lhe o salto para o outro lado da fronteira? O final valia bem todo o terror que sentira antes. Agora, podia esquecer Anion. As mãos dele estavam limpas.

- Pelo menos, haveis-me mandado um homem - comentou Owain, olhando pensativo, enquanto pai e filho chegavam aos seus lugares -, em troca dos oito que continuam cativos. E não se pode dizer que não faça boa figura. Mas duvido que tenha algum treino no manejo das armas.

- É um excelente criador de gado - disse Cadfael. - Tem um entendimento especial com todos os animais. Podeis sem receio confiar-lhe os vossos cavalos.

- E vós perdeis segundo creio o vosso principal candidato à forca. Não vos restam quaisquer dúvidas a seu respeito?

-Nenhuma. Tenho a certeza que tudo se passou como ele diz. Ele sonhava vingar-se num homem forte e poderoso e o que encontrou foi um verdadeiro destroço que apenas conseguiu suscitar-lhe piedade. -Não se pode dizer que a história tenha acabado mal-concluiu Owain -, e agora acho que podemos retirar-nos para um sítio mais sossegado, para que nos conteis o que tendes a contar e nos façais as perguntas que desejardes.

Nos aposentos do príncipe, sentaram-se em volta da brazeira pequena, com a sua guarda de ferro, Owain, Tudur, Einon ab Ithel e Cadfael. Cadfael trouxera com ele a pequena caixa na qual guardara as fibras de lã e o fio dourado. Aqueles tons precisos de azul-escuro e rosa-suave não eram fáceis de conservar na memória com exactidão, sendo necessário tê-los constantemente à mão para os confrontar com qualquer tecido que fosse descoberto. Tinha a caixa na pequena bolsa do cinto e evitava abri-la onde houvesse a mais ligeira corrente de ar, com receio que os fragmentos minúsculos pudessem desaparecer. Um sopro leve vindo de uma fenda podia pôr fora do seu alcance aqueles tesouros agourentos.

Debatera consigo próprio até que ponto devia revelar o que sabia, mas perante a revelação de Cristina e uma vez que o pai dela se encontrava presente, contou todos os detalhes, como Elis durante o cativeiro se apaixonara desesperadamente pela filha de Prestcote e como os dois não viam qualquer esperança de conseguir a aprovação do conde para a sua união, o que constituía razão bastante para que Elis tivesse tentado perturbar o sono do doente - quer para afastar, provocando-lhe a morte, o obstáculo surgido entre ele e o seu amor, quer para advogar a sua causa desesperada, como o afirmava o próprio Elis.

- Então foi assim que as coisas se passaram - disse Owain e trocou um olhar directo, incisivo, com Tudur, que não mostrou surpresa e se absteve de revelar compreensão ou repúdio. Tudur mantinha uma estreita relação de amizade com o seu príncipe e sem dúvida falara com ele sobre as confidências de Cristina. Aqui estava agora o reverso da medalha. - E isso foi depois da partida de Einon?

-Foi. Veio a saber-se que o rapaz tentara falar com Gilbert e fora mandado retirar pelo irmão Edmund. Quando a rapariga soube desse facto, repudiou-o como assassino.

- Mas vós não aceitais essa versão. Como parece que Beringar também a não aceitou.

- Não há qualquer prova a não ser da sua presença no quarto, ao lado da cama, quando Edmund entrou e o expulsou de lá. Tanto podia ter sido pelas razões que ele apresentou, como por um motivo pior. E depois, como deveis compreender, havia a questão do alfinete de ouro. Não nos apercebemos da sua falta até ao momento em que vós, meu senhor, já havíeis partido de Shrewsbury. Mas a verdade é que Elis nem o tinha com ele, nem tivera qualquer oportunidade de o esconder antes de ser revistado. Portanto, mais alguém tinha estado naquele quarto e levado consigo o alfinete.

- Mas agora que sabemos o que aconteceu em relação ao alfinete - disse Einon -, e que admitimos que Anion não matou o conde, não vos parece que isso deixa novamente esse jovem em perigo de ser acusado da morte de um homem enfermo e adormecido? Embora isso não se coadune de forma alguma - acrescentou -, com aquilo que conheço dele.

- Qual a pessoa - disse Owain em tom sombrio -, que nunca foi culpada de qualquer indignidade que pouco se coaduna com aquilo que os amigos conhecem a seu respeito? Mesmo com tudo o que conhecemos ou julgamos conhecer de nós próprios! Não excluo homem nenhum da possibilidade alguma uma vez na vida cometer uma tremenda infâmia. - Levantou os olhos para Cadfael. - Irmão, recordo-me de vos ouvir dizer, lá dentro na sala, que havia mais uma coisa que tínheis de descobrir, antes de encontrardes o assassino de Prestcote. De que se trata?

- Do pano que foi usado para sufocar Gilbert. Pelos vestígios deixados, pode ser reconhecido, uma vez encontrado. Esse pano foi comprimido sobre o nariz e a boca da vítima que o aspirou para dentro das narinas e dos dentes, tendo-lhe nós encontrado também um ou dois fios na barba. Não se trata de um pano ordinário. Elis não tinha esse pano, nem qualquer outra coisa nas mãos quando saiu da enfermaria. Depois de eu ter encontrado e guardado tais filamentos, procurámos por toda a abadia, pois podia tratar-se de algum reposteiro ou pano de altar, mas não encontrámos nada de semelhante. Até sabermos o que era ou o que foi feito desse pano, não poderemos saber quem matou Gilbert Prestcote.

-Tendes a certeza disso? Haveis recolhido esses fios das narinas e da boca do morto? Estais certo de que reconhecereis, quando o encontrardes, o pano usado para o sufocar?

- Acho que sim, pois a cores são nítidas e não se trata de uma coloração vulgar. Tenho a caixa comigo. Mas abri-a com cuidado. O que se encontra lá dentro é fino e leve como uma teia de aranha. - Cadfael estendeu-lhe a pequena caixa por cima da brazeira. - Mas aqui não. A deslocação do ar quente poderia fazer voar esses fios.

Owain afastou-se para o lado com a caixa e segurou-a por baixo de um dos candeeiros, onde receberam a luz em cheio. Os filamentos minúsculos estremeceram ao de leve e ficaram de novo imóveis.

- Temos aqui um fio de ouro, com os filamentos torcidos. O resto vejo que é lã, pelos numerosos pêlos e pela textura flexível. Uma cor mais escura e outra mais clara. - Analisou-os com atenção, mas por fim sacudiu a cabeça. - Não saberia dizer quais os matizes empregados, apenas que o tecido tinha um bom fio de ouro incorporado. Imagino também que se tratasse de um pano grosso e pesado, a julgar pela forma como a lã está torcida e encaracolada. Devem ter sido utilizados muitos fios como este para produzir uma fibra semelhante.

- Deixai-me ver-entrepôs Einon, semicerrando os olhos na direcção da caixa. - Vejo bem o ouro, mas as cores... Não, não significam nada para mim.

Tudur olhou e sacudiu a cabeça.

-Não temos luz suficiente para isto, meu senhor. A luz do dia seria muito diferente.

Era verdade, à luz mortiça dos candeeiros de petróleo os próprios cabelos do príncipe tinham um tom carregado de trigo maduro, quase castanho. À luz do dia era de um amarelo igual ao das prímulas. Cadfael concordou.

- Seria talvez melhor deixarmos esta questão para amanhã de manhã. Mesmo que a luz fosse melhor, o que poderíamos nós fazer a estas horas?

- Esta luz perturba a visão - disse Owain. Fechou a tampa sobre os filamentos finíssimos. - O que vos levou a pensar que poderíeis encontrar aqui o que procurais?

- Porque não o encontrámos dentro dos muros da abadia. O capitão Einon e os dois outros capitães já nos tinham deixado quando recuperámos estes fios e havia uma possibilidade, ainda que ténue, de que, inadvertidamente, o pano tivesse sido trazido com eles. À luz do dia, as cores mostrar-se-ão tal qual são. É possível que vos recordeis então de ter visto um pano assim.

Cadfael pegou novamente na caixa. Não passara de uma esperança fraca, na melhor das hipóteses, mas ainda lhes restava o dia seguinte. A vida de um homem, a paz de espírito de um homem, estava entrelaçada naqueles filamentos levíssimos e era ele o seu guardião.

- Amanhã - disse o príncipe em tom enfático -, veremos o que a luz de Deus nos pode mostrar, uma vez que a nossa é demasiada fraca.

A meio dessa noite, Elis acordou na cela escura da ala exterior do castelo de Shrewsbury e ficou deitado, de ouvido alerta, tentando libertar-se do embotamento do sono e perguntando a si mesmo o que seria que o arrancara ao seu dormir profundo. Já se habituara a todos os sons diurnos típicos do local e ao habitual silêncio ininterrupto da noite. Mas aquela noite era diferente, senão ele não teria sido tão bruscamente arrancado ao único refúgio que tinha para as tristezas do dia. Alguma coisa não estava como deveria ter estado, alguém se movera numa altura em que havia sempre silêncio e quietude. O ar vibrava com movimentos suaves e vozes distantes.

A porta do quarto não estava fechada à chave, tinham aceitado a sua palavra sem hesitação, como garantia suficiente para os segurar. Elis soergueu-se cuidadosamente sobre um cotovelo e inclinou-se para escutar a respiração de Eliud, deitado a seu lado. Profundamente adormecido, embora não totalmente em paz. Mexeu-se e voltou-se sem acordar, a respiração alterou-se, inquieta, tornando-se por vezes mais rápida e superficial, para recair depois num ritmo mais prolongado que deixava prever um melhor repouso. Elis não quis perturbá-lo. Se Eliud estava a seu lado, prisioneiro, a culpa era toda sua, por causa daquela loucura obstinada em se juntar a Cadwaladr. Não podia ser arrastado ainda mais para a dúvida e o perigo, acontecesse o que acontecesse a Elis.

Era certo que se ouviam vozes, a pouca distância, mas abafadas e parecendo infinitamente mais distantes por causa das espessas paredes de pedra. E, embora àquela distância não fosse possível distinguir as palavras, havia no entanto uma agitação indefinível no diálogo, uma agitação de pânico no ar. Elis deslizou cauteloso para fora da cama, parou um momento, contendo a respiração para ter a certeza de que Eliud não se mexera, e procurou o casaco às apalpadelas, contente por dormir de calças e camisa e não ter de se vestir às escuras. Com todo o desgosto e ansiedade que o acompanhavam noite e dia, tinha de descobrir a razão daquele novo alarme inesperado. Qualquer divergência do habitual constituía uma ameaça.

A porta era pesada, mas estava bem suspensa e rodou silenciosa. Lá fora, a noite sem lua era clara, a luz fraca das estrelas desenhava o contorno dos muros e das torres de encontro ao céu, formando uma concha de escuridão total. Fechou a porta atrás dele e empurrou cuidadosamente o trinco pesado. Agora, o murmúrio das vozes ganhava volume e direcção, vinha da casa da guarda, junto dos portões. E aquele tilintar vivo e rápido que arrancava do chão um faiscar oculto eram as ferraduras de um cavalo. Um cavaleiro àquelas horas?

Avançou na direcção do som, espalmando-se de encontro à parede a cada esquina, para escutar de novo. O cavalo mexia-se e soprava. As sombras começaram a tomar forma no meio da escuridão densa, as torres gémeas da barbacã mostraram os seus dentes contra o céu ligeiramente mais claro e a superfície plana do portão, cá em baixo, tinha uma fenda de claridade estreita e esguia, com a altura de um homem a cavalo e suficientemente larga para que um cavalo apressado a atravessasse. O portão do cavaleiro estava aberto. Aberto porque alguém entrara com uma notícia urgente, havia poucos minutos, e ninguém pensara ainda em o fechar.

Elis aproximou-se mais, no seu andar cauteloso. A porta da sala da guarda estava entreaberta, a luz dos archotes, vinda de dentro, punha uma mancha alongada e tiritante sobre o empedrado escuro. As vozes emergiam entrecortadas, erguendo-se e baixando de novo, mas ele apanhou algumas palavras com nitidez.

-... queimaram uma fazenda a oeste de Pontesbury - relatava um mensageiro, ainda sem fôlego da corrida -, e não retiraram... Estão acampados para passar a noite... e outro grupo rodeia Minster-ley para se juntar a eles.

Outra voz, incisiva e nítida, provavelmente um dos sargentos experientes:

- Quantos?

- Ao todo... se se reunirem... disseram-me que poderiam perfazer cento e cinquenta...

-Arqueiros? Lanceiros? A pé ou a cavalo?-Aquela não era a voz do sargento, mas uma voz jovem, ligeiramente mais aguda, de alarme e tensão. Tinham feito Alan Herbard sair da cama. Era assunto grave.

- Meu senhor, a maioria vem a pé. São lanceiros e arqueiros. Podem tentar cercar Pontesbury... sabem que Hugh Beringar está para o norte...

- A meio caminho de Shrewsbury! - disse a voz de Herbard, tensa e zelosa do seu primeiro comando.

- Eles não vão tentar uma coisa dessas - disse o sargento. - A finalidade é a pilhagem. As fazendas do vale... com borregos novos...

-Madog ap Meredith tem umas contas a ajustar-lançou o mensageiro, ainda sem fôlego -, por causa dessa incursão de Fevereiro. Estão lá perto... mas o saque é mais pequeno, lá na floresta... Duvido...

A meio caminho de Shrewsbury era mais de meio caminho até ao vau, no meio da floresta, onde havia contas a ajustar. E o saque... Elis voltou a fronte para a pedra gelada à qual estava encostado e engoliu o seu terror. Um bando de mulheres! Já tinha mais do que a sua conta pela proeza impensada, tendo lá a mulher que amava por quem dar o seu sangue, jovem, bela, loura como o trigo, esbelta como o salgueiro. Os homens escuros e atarracados de Powys lutariam por ela, matar-se-iam uns aos outros por causa dela e, quando acabassem, matá-la-iam também.

Saíra do seu esconderijo junto da muralha, antes mesmo de saber o que iria fazer. O cavalo paciente e inclinado poderia ter dado o alarme, mas não havia nenhum moço a segurá-lo e ele deixou-se ficar, silencioso e impassível, quando o rapaz passou furtivamente, erguendo uma mão para o acariciar e pedir aceitação. Não ousou montá-lo, o barulho tê-los-ia feito sair como vespas assustadas, mas pelo menos o animal deixou-o passar sem ser notado. O corpo enorme fumegava suavemente, apalpou-lhe o coração. A cabeça cansada voltou-se e o focinho tocou-lhe na mão. Retirou os dedos com uma suavidade furtiva e deslizou em direcção ao portão alongado, que lhe oferecia uma saída para a noite.

Estava do outro lado, à direita tinha a descida que levava à Porta Exterior do castelo, ele que dera a sua palavra que não atravessaria o limiar dos portões, ele que a partir daquele momento era um perjuro, traidor da própria palavra, um proscrito. Nem o próprio Eliud ergueria a voz por ele, quando soubesse.

As portas da cidade só abririam ao amanhecer. Elis voltou à esquerda, para a cidade, e avançou às apalpadelas, por caminhos e passagens desconhecidas, àprocura de um canto onde pudesse esconder-se até de manhã. Não tinha a certeza de qual seria a melhor saída, nem parou para pensar se conseguiria passar despercebido. A única coisa que sabia era que tinha de chegar a Godric's Ford antes que os seus conterrâneos o fizessem. Orientou-se instintivamente, dirigindo-se precipitadamente e às cegas para o portão leste. No cemitério de Santa Maria, embora sem o reconhecer como tal, abrigou-se do vento gelado debaixo de um alpendre. Deixara a capa na cela que desonrara, oferecendo-se meio nu à vergonha e à noite, mas estava livre e ia a caminho de a salvar. O que era a sua honra, ou a sua vida, comparadas com a segurança dela.

A cidade despertou cedo. Negociantes e viajantes levantaram-se e dirigiram-se para as suas portas, antes que alvorecesse completamente, para começarem a tratar dos seus assuntos a boas horas. O mesmo fez Elis ap Cynan, descendo a Wyle discretamente no meio deles, sem capa, sem armas, desesperado, heróico e absurdo, para salvar a sua Melicent.

Eliud estendeu o braço, antes de estar completamente acordado, à procura do primo, e sentou-se num sobressalto repentino, ao aperceber-se de que aquele lado da cama estava vazio e gelado. Mas a capa vermelho-escura continuava dobrada sobre os pés da cama e a sensação de perda que acometeu Eliud era totalmente irracional. Por que não havia Elis de se levantar mais cedo e sair para o recinto do castelo antes de o seu companheiro acordar? Sem a capa não podia ter ido longe. Mas apesar de tudo e por muito breve que fosse a separação, ela perturbou Eliud como um mal-estar físico. Ali, no seu cativeiro, quase não tinham passado um momento longe da companhia um do outro, como se para cada um deles a confiança no desfecho feliz dependesse da presença do outro.

Eliud levantou-se, vestiu-se e dirigiu-se ao pequeno tanque que ficava junto do poço para se lavar, acordando-se ao mesmo tempo com o choque da água fria. Havia um movimento fora do habitual do lado das estrebarias e do depósito de armas, mas não viu Elis em nenhum desses sítios, nem tão pouco o encontrou sobre a muralha, sorumbático, com o rosto voltado na direcção do País de Gales. A falta dele começou a doer-lhe como uma amputação.

Costumavam tomar as refeições na grande sala com os ingleses de igual posição, mas naquela manhã límpida Elis não apareceu a quebrar o jejum. E, entretanto, já outros tinham notado a sua ausência.

Um dos sargentos da guarnição deteve Eliud quando este saía da sala.

- Onde está o vosso primo? Encontra-se doente?

- Não sei mais do que vós - replicou Eliud. - Tenho andado à procura dele. Já tinha saído quando acordei e não o vi depois disso. - E acrescentou com uma pressa cheia de ansiedade, vendo que o outro franzia a testa e lhe deitava um primeiro olhar carregado de suspeitas - Mas não pode ter ido longe. A capa dele está na cela. Há tanto movimento hoje por aqui, pensei que talvez se tivesse levantado cedo para ver o que se estava a passar.

- Ele comprometeu-se a não pôr o pé fora dos portões - disse o sargento.-Mas dizeis-me que não apareceu para comer? Deveis saber mais do que pretendeis dar a entender.

-Não! Mas ele está cá dentro, tem de estar. Ele não ia faltar à sua palavra, garanto-vos.

O homem olhou-o com dureza e virou-se repentinamente, em direcção à casa da guarda, para interrogar os guardas. Eliud segurou-o pela manga, implorativo.

- Que é que se está a passar? Veio alguma notícia? Há tanta actividade no depósito de armas e os arqueiros estão a armar-se de setas... Que foi que aconteceu durante a noite?

-Que foi que aconteceu? Os vossos compatriotas juntaram-se em força no vale de Minsterley, se quereis saber, queimando fazendas e avançando para Pontesbury. Há três dias eram apenas um punhado de homens, agora já são mais de cem. - Deu de repente um passo para trás para perguntar: - Ouvistes alguma coisa durante a noite? Foi isso? E esse vosso primo fugiu para se ir juntar a esses vândalos e ajudá-los na mortandade? Não lhe chegou o conde?

- Não! - gritou Eliud - Ele não faria isso! É impossível!

- Foi assim que lhe deitámos a mão no princípio, no meio de uma incursão de sangue e pilhagem como esta. Nessa altura não era impossível e agora veio-lhe mesmo a calhar. Com o pescoço metido no laço e os amigos bem perto dele para o safarem.

-Não podeis dizer uma coisa dessas! Ainda não sabeis se ele não está aqui dentro, fiel à sua palavra.

-Não, mas também não tardaremos a saber - replicou o sargento num tom sombrio e segurou Eliud firmemente pelo braço. - Ide para a cela e aguardai. Alan Herbard tem de saber disto.

Afastou-se, rápido, e Eliud, numa obediência desolada, regressou à sua cela e sentou-se em cima da cama, tendo por única companhia a capa de Elis. Nessa altura já ele tinha a certeza de qual seria o resultado de todas as buscas. Havia apenas uma hora ou duas de luz do dia e eram inúmeros os lugares onde poderia estar um homem que não sentisse apetite, quer pela comida quer pela companhia dos outros homens, e, no entanto, o castelo parecia vazio de Elis, tão frio e estranho como se ele nunca lá tivesse estado. E, ao que parecia, um correio tinha chegado durante a noite, trazendo notícias de grupos ainda mais fortes, dos lados de Powys, que andavam a pilhar perto de Shrewsbury e mais perto ainda da granja florestal da abadia de Polesworth em Godric's Ford. O mesmo sítio onde aquele pesado fardo tinha começado e onde talvez tivesse de acabar. Se Elis tinha ouvido a chegada nocturna e saído da cela para lhe descobrir a causa - sim, nessa altura era bem possível que no seu desespero tivesse esquecido o juramento e a honra e tudo o mais. Eliud esperou, desolado, que Alan Herbard aparecesse, acompanhado por dois sargentos. Fora uma longa espera. Já tinham tido tempo de esquadrinhar cada recanto do castelo. Pelos seus rostos sombrios, era evidente que não tinham encontrado Elis.

Eliud pôs-se de pé, ficando de frente para eles. Naquele momento, precisava de toda a sua força e de toda a sua dignidade para conseguir falar por Elis. Aquele Alan Herbard devia ter apenas um ou dois anos a mais que ele e fora submetido às mesmas provas.

- Se sabeis como foi que vosso primo fugiu - disse Herbard sem rodeios -, faríeis bem em falar. Haveis partilhado este pequeno espaço. Se ele se levantou durante a noite, sem dúvida que destes por isso. Digo-vos abertamente que ele não está aqui. Fugiu. Durante a noite o portão foi aberto para dar entrada a um homem. Agora já não é segredo para ninguém que deu também saída a um renegado, proscrito, assassino confesso. Por que outra razão se teria aproveitado desta oportunidade?

- Não! - disse Eliud. - Estais a acusá-lo injustamente e no fim provar-se-á que as vossas palavras são injustas. Ele não é nenhum assassino. Se fugiu, não foi por essa razão.

- Não há nenhum se. Ele desapareceu. Não sabeis nada a esse respeito? Dormíeis enquanto fugiu?

-Dei por falta dele quando acordei - replicou Eliud. - Nada sei sobre a maneira como foi ou quando. Mas a ele conheço-o bem. Se se levantou a meio da noite por ter ouvido a chegada do vosso homem e se ouviu dizer nessa altura, é esse o caso, que os galeses de Powys se estão a aproximar de mais e que o seu número inspira receio, então posso jurar-vos que só fugiu por recear pela filha de Gilbert Prestcote. Ela encontra-se junto das religiosas de Godric's Ford e Elis está apaixonado por essa jovem. Quer ela o tenha repudiado ou não, ele nunca deixou de a amar e, se corre perigo, arriscará a sua vida, sim, a própria honra, para a pôr em segurança. E depois de o ter conseguido - disse Eliud com paixão -, não deixará de voltar para aqui, para sofrer o destino que lhe estiver reservado. Elis não é um renegado! Apenas quebrou o seu juramento por causa de Melicent. Vai voltar e entregar-se. Empenho a minha honra por ele! A minha própria vida!

- Gostaria de vos lembrar - disse Herbard sombrio -, que já o fizestes. Cada um de vós deu a sua palavra por ambos. Neste momento estais completamente desacreditado por causa da sua traição. Podia mandar-vos enforcar que tal decisão estaria plenamente justificada.

- Fazei-o! - disse Eliud, pálido até aos próprios lábios, com os olhos dilatados e de um verde-flamejante. - Aqui me tendes, continuo a ser o seu garante. Digo-vos que este pescoço vos pertence, se se provar que houve falsidade por parte de Elis. Podeis dispor dele livremente. Estais a reunir as vossas tropas, apercebi-me disso. Ides partir ao encontro desses galeses de Powys. Levai-me convosco! Dai-me um cavalo e uma arma e eu lutarei por vós e podeis colocar um arqueiro atrás de mim, para me matar, se eu der algum passo em falso e pôr-me uma corda em volta do pescoço, pronta para a árvore mais próxima, depois de batidos os homens de Powys, se Elis não vos provar a verdade de cada uma das minhas palavras.

Tremia no seu fervor, tenso como a corda de um arco. Herbard abriu muito os olhos perante uma tal paixão e estudou-o longamente, tomado de um surpresa cautelosa.

- Seja! - disse abruptamente e voltou-se para os seus homens.

- Tratem disso, dêem-lhe um cavalo e uma espada e que o melhor atirador o siga de perto, pronto para o trespassar se fizer jogo falso. Ele diz que é um homem de palavra, que mesmo esse infractor, seu companheiro, também o é. Muito bem, aceitaremos a sua palavra.

Já da porta olhou para trás. Eliud pegara na capa vermelha de Elis e segurava-a nos braços.

- Se o vosso primo tivesse metade da vossa dignidade de homem - disse Herbard -, a vossa vida não correria perigo.

Eliud rodou sobre si mesmo, apertando de encontro a si a capa dobrada, como quem aplica um bálsamo a uma dor insuportável.

- Continuais a não compreender? Ele é melhor do que eu, mil vezes melhor!

 

Também em Tregeiriog se levantaram ao alvorecer, umas escassas duas horas depois da fuga de Elis através do portão em Shrewsbury. Hugh Beringar cavalgara durante quase toda a noite e chegara à hora a que um silêncio acinzentado anuncia a aurora. Os moços sonolentos ergueram-se com o olhar turvo, para segurar os cavalos dos seus hóspedes ingleses, uma companhia de vinte homens. Os restantes, Hugh deixara-os distribuídos pelo norte do condado, bem armados, bem abastecidos e, até ali, capazes de resistirem às poucas tentativas a que tinham sido submetidos.

O irmão Cadfael, tão sensível às chegadas nocturnas como Elis, fora arrancado do sono logo que sentira no ar os movimentos e murmúrios. Muito haveria a dizer a favor do costume de dormir vestido, à excepção apenas do escapulário, pois um homem podia levantar-se e meter-se imediatamente ao caminho, descalço ou depois de enfiar as sandálias, tão completo e armado como em pleno dia. Sem dúvida que essa disciplina tivera a sua origem nos sítios onde as casas monásticas estavam situadas em locais de perigo constante e o tempo conferira-lhe a benção da tradição. Cadfael já ia na rua e a meio caminho dos estábulos, quando encontrou Hugh, que vinha de lá, atravessando o crepúsculo nacarado, e Tudur, igualmente desperto e alerta ao lado do seu hóspede.

- Que vos traz tão cedo? - perguntou Cadfael. - Há notícias frescas?

- Frescas para mim, mas tanto quanto sei já velhas em Shrewsbury. -Hugh tomou-o pelo braço e fê-lo voltar para seguir com eles em direcção a casa. - Tenho de apresentar o meu relatório ao príncipe e depois seguimos para a fronteira pelo caminho mais curto. O castelão de Madog em Caus está a mandar mais homens para o vale de Minsterley. Havia um mensageiro à minha espera, quando chegámos a Oswestry, caso contrário era minha intenção passar lá a noite.

- Herbard mandou a informação de Shrewsbury? - perguntou Cadfael. - Não passavam de um bando de atacantes quando de lá saí, há dois dias.

- Agora é uma força de guerra de uma centena ou mais. Ainda não tinha passado de Minsterley quando Herbard foi informado da concentração, mas se fizeram sair uma força tão numerosa, é porque tencionam fazer coisa pior. E vós conhecei-los melhor do que eu: não perdem tempo. Já podem estar a avançar hoje mesmo de madrugada.

- Ides precisar de cavalos repousados - disse Tudur com o seu espírito prático.

- Temos algumas montadas em Oswestry, que vão estar em forma para o resto do caminho. Mas terei muito gosto em vos pedir emprestados para os outros e agradeço-vos do coração. Deixei tudo sossegado e todas as guarnições em estado de alerta a norte. Ranulf parece ter chamado a sua vanguarda para Wrexham. Fez um ataque simulado a Whitchurch e quebrou o nariz, por isso creio que encolheu as garras por agora. Quer seja assim quer não, tenho de me fazer ao caminho por causa de Madog.

-Não precisais de vos preocupar com Chirk - afirmou Tudur. - Isso fica connosco. Fazei entrar os vossos homens, para comerem alguma coisa, pelo menos, e deixarem os cavalos descansar um bocado. Vou fazer as mulheres saírem da cama para vos darem de comer e pedir a Einon que acorde Owain, se é que ele ainda não se levantou.

- Que pensais fazer? - perguntou Cadfael. - Qual a direcção que ides tomar?

- Para Llansilin e para sul ao longo da fronteira. Passaremos para leste dos Breiddens e desceremos por Westbury até Minsterley, para tentar cortar-lhes o caminho, impedindo-os de regressar à sua base de Caus. Já estou cansado de ter homens de Powys naquele castelo -disse Hugh cerrando os dentes.-Temos de o tomar novamente e torná-lo habitável, para mantermos lá uma guarnição.

- Sereis poucos para tal empreendimento - disse Cadfael. - Por que não ir primeiro a Shrewsbury para arranjar mais homens e depois para oeste, ao encontro deles?

-O tempo é curto. E além disso, acredito que Alan Herbard tenha bom senso e nervo suficiente para organizar uma boa força que defenda a cidade. Se formos rápidos, podemos apanhá-los entre dois fogos e esmagá-los como uma noz.

Tinham chegado à casa principal. A notícia já se espalhara, lá dentro os sonos eram interrompidos apressadamente, os criados punham as mesas e as mulheres traziam pão fresco da casa do forno e grandes jarros com cerveja.

- Se conseguir concluir o que me trouxe aqui - disse Cadfael, tentado -, acompanho-vos, caso seja do vosso agrado.

- Com o maior prazer.

-Então, será melhor que me ocupe do que ficou por fazer logo que Owain Gwynedd estiver livre. Enquanto conferenciais com ele, vou tratar de mandar preparar o meu cavalo para a jornada.

Estava tão preocupado a pensar no reencontro que se avizinhava e naquilo que já poderia estar a acontecer em Shrewsbury, que tomou a direcção dos estábulos sem se aperceber do passo ligeiro que o perseguia vindo dos lados das cozinhas, até que uma mão lhe agarrou na manga e, ao voltar-se, deparou-se-lhe Cristina, de pé diante dele, espiando-lhe o rosto atentamente com os olhos negros muito abertos.

-Irmão Cadfael, é verdade aquilo que o meu pai diz? Segundo ele não preciso de me preocupar mais porque Elis conheceu uma rapariga em Shrewsbury e a coisa que mais deseja agora é ver-se livre de mim. Diz que tudo pode ser resolvido com boa vontade de ambas as partes. Que eu estou livre e Eliud é livre! Isto é verdade? - Mostrava-se muito séria e ao mesmo tempo radiosa. A deserção de Elis representava esperança e ajuda para ela. O nó podia ser desfeito por mútuo acordo e sem rancores.

- É verdade - disse Cadfael. - Mas não façais projectos precipitados por enquanto, pois não há qualquer certeza de que ele consiga a dama que deseja. Tudur também vos contou que ela acusa Elis de ter sido o assassino do pai? Não é uma maneira muito auspiciosa de combinar um casamento.

- Mas ele toma o caso a sério? Ele ama a jovem? Nesse caso não vai voltar para mim, quer consiga ficar com ela quer não. Ele nunca me quis. Eu teria sido uma boa esposa para ele - disse, erguendo os ombros eloquentes e esboçando um sorriso tolerante -, tal como qualquer outra rapariga com a mesma idade e posição que ele, no entanto, aquilo que sempre viu em mim foi a criança junto de quem cresceu e a que estimava, de certa maneira. Agora-disse com sentimento -, ele já sabe o que é querer alguém. Deus sabe que lhe desejo a mesma felicidade que espero para mim.

-Vindo comigo até aos estábulos - disse Cadfael -, e fazei-me companhia nos poucos minutos que nos restam, pois vou partir com Hugh Beringar logo que os seus homens tenham quebrado o jejum e descansado os cavalos, e depois de eu ter falado mais uma vez com Owain Gwynedd e Einon ab Ithel. Vinde e contai-me exactamente em que pé estão as coisas entre vós e Eliud, pois quando vos vi antes fiz uma ideia totalmente errada.

Ela acompanhou-o alegremente, com o rosto claro e puro a tornar-se rosado sob a luz cor de pérola. A voz era calma quando disse:

- Eu já amava Eliud antes mesmo de saber o que era o amor. A única coisa que sabia era que me doía tanto que não podia suportar estar longe dele, seguia-o e procurava estar a seu lado, mas ele não me via, não queria falar comigo, afastava-me com rudeza cada vez que me colava a ele. Eu já estava prometida a Elis e Elis era mais que metade do mundo de Eliud, por nada neste mundo ele seria capaz de tocar ou desejar qualquer coisa que pertencesse ao irmão de criação. Nessa altura, eu era demasiado jovem para saber que a medida da sua rejeição em relação à minha pessoa era a medida de quanto me queria. Mas, quando compreendi finalmente o que era que me torturava, então compreendi que Eliud suportava diariamente o mesmo sofrimento.

- Estais muito segura em relação a ele - disse Cadfael, afirmativamente e sem qualquer tom de dúvida.

-Estou sim. A partir do momento em que compreendi, tenho tentado fazê-lo reconhecer aquilo que eu sei e que ele também sabe que é verdade. Quanto mais eu insisto e suplico mais ele se afasta e se recusa a falar ou a escutar. Mas cada vez me quer mais. Digo-vos a verdade, quando Elis partiu e foi feito prisioneiro, eu comecei a acreditar que quase tinha conquistado Eliud, quase o levei a admitir o seu amor e ajuntar-se a mim para romper essa ameaça de casamento e ser ele a pedir a minha mão. Depois, ele foi enviado como garantia nessa troca fatal e tudo ficou em nada. E agora é Elis que desfaz o nó e nos liberta a todos.

- Ainda é muito cedo para falar em libertação - advertiu Cadfael com seriedade -, nenhum dos dois está ainda fora de perigo, nenhum de nós está, até que a questão da morte do conde encontre um fim justo.

- Eu sei esperar - disse Cristina.

Era inútil, pensou Cadfael, tentar lançar qualquer dúvida sobre aquele seu novo esplendor. Vivera tempo de mais na sombra para se deixar intimidar. O que era para ela um crime por resolver? Duvidava que as palavras culpado ou inocente fizessem alguma diferença para ela. A sua finalidade era uma só e ninguém a desviaria daí. Desde a infância que compreendera os seus companheiros de brincadeiras, compreendera qual era o que tinha em si a dor tenaz de a amar sabendo-a prometida ao meio-irmão, que amava apenas um pouco menos. Talvez nem o amasse menos, até começar a sentir o sofrimento da idade viril. As raparigas têm sempre maior maturidade que os seus irmãos da mesma idade em anos e vêem as coisas com maior exactidão e ciúme.

- Uma vez que ides regressar - disse Cristina, olhando com entusiasmo a actividade nos estábulos -, voltareis a vê-lo. Dizei-lhe que agora estou livre ou que em breve o estarei e me posso entregar a quem eu quiser. E que não me entregarei a ninguém senão a ele.

- Dir-lho-ei - replicou Cadfael.

O pátio estava cheio de actividade, com homens a cavalo, arreios e armaduras suspensos em cada prego e suporte ao longo das baias. A luz da manhã erguia-se clara e suave sobre as construções de madeira e os verdes da floresta estavam salpicados com o verde mais claro dos rebentos novos, como véus delicados por entre a escuridão dos abetos. Soprava um vento ligeiro, o suficiente para refrescar sem incomodar. Um excelente dia para montar a cavalo.

- Qual destes cavalos é o vosso? - perguntou ela.

Cadfael fê-lo sair para o mostrar e depois entregou-o ao moço que se apresentou imediatamente.

- É aquele animal cinzento, grande e ossudo? Nunca o tinha visto. Deve andar bem, mesmo com um cavaleiro de armadura.

- Esse é o favorito de Hugh Beringar - disse Cadfael, reconhecendo com prazer o cavalo pintalgado.-E não se pode dizer que seja um animal que se comporte bem com qualquer outro cavaleiro. Hugh deve tê-lo deixado a descansar em Oswestry, senão não o teria trazido agora.

-Vejo que também estão a preparar a montada de Einon ab Ithel - disse a rapariga. - Imagino que tencione ir para Chirk, para vigiar a fronteira norte de Beringar, enquanto este estiver ocupado noutro sítio.

Um moço de estrebaria tinha-se-lhes atravessado no caminho com um pano num braço e um xairel no outro, atirando-os depois para cima de um varão, enquanto ia buscar o cavalo que devia usá-los. Um animal muito elegante, um baio alto e de pelagem clara que Cadfael se lembrava de ter visto no pátio principal em Shrewsbury. Observou-lhe com agrado o passo vivo, enquanto o tratador pegava no xairel e o lançava sobre o dorso largo e brilhante, tão absorto na contemplação do cavalo que mal reparou na qualidade do arnês.

Franjas adornavam as rédeas de couro fino e macio e a cabeçada era trabalhada com pequenos cravos de ouro. Havia ouro nas terras de Einon, lembrou-se. E o próprio xairel...

Ficou a olhar fixamente um momento, sem se mexer, contendo a respiração. Um pano espesso e macio, feito de lãs tingidas, tecido com fios grossos a formar um desenho com ramos entrelaçados e floridos, rosas vermelhas esbatidas, a que o desbotar da cor emprestava aquele tom suave, e lírios azul-escuros. Por entre as flores e em volta da bainha viam-se grossos fios de ouro. O pano não era novo, já servira bastante, a lã formara borbotos aqui e além, alguns fios tinham esgarçado, deixando à vista pequenos filamentos, muito finos e vibrantes.

Era desnecessário puxar da pequena caixinha onde guardava os fios capturados, para comparar. Agora que vira finalmente as cores, não lhe restava qualquer dúvida. Estava a olhar para aquilo mesmo que procurava, demasiado conhecido ali, visto vezes de mais sem ser olhado para que pudesse encontrar eco na memória de qualquer homem.

Compreendeu além disso, instantaneamente e de maneira infalível, o significado daquilo que estava a ver.

Não disse uma palavra a Cristina do que sabia, enquanto caminhavam juntos, de regresso a casa. Que poderia dizer? Mais valia guardar tudo para si, até que o caminho se lhe tornasse claro, até saber o que tinha que fazer. Não disse palavra a ninguém, excepto a Owain Gwynedd, quando se despediu.

- Meu senhor - disse nessa altura -, foi-me contado como sendo palavras vossas, a respeito da morte de Gilbert Prestcote, que o único resgate para um homem assassinado é a vida do assassino. Será o relato fiel? Será necessário que haja outra morte? A lei galesa prevê o pagamento de um preço de sangue, para impedir que uma desavença se prolongue em carnificina. Não posso acreditar que tenhais trocado a lei galesa pela normanda.

- Gilbert Prestcote não viveu segundo a lei galesa - disse Owain, olhando-o atentamente. - Não lhe posso pedir que morra segundo ela. Que valor pode ter um pagamento em géneros ou gado para a sua viúva e filhos?

- Mesmo assim, penso que existe outra moeda para pagar galanas -disse Cadfael.-Penitência, desgosto e vergonha são um preço tão alto como qualquer outro alguma vez fixado por um juiz. Que achais?

- Eu não sou padre - replicou Owain -, nem confessor de nenhum homem. A penitência e a absolvição não estão dentro das minhas atribuições. A justiça sim.

- E a clemência também - disse Cadfael.

- Deus me livre de alguma vez ordenar uma morte arbitrariamente. As mortes expiadas por meio de bens ou do desgosto, peregrinação ou encaramento são de longe preferíveis ao prolongamento e multiplicação das mortes. É meu propósito manter com vida todos aqueles que têm valor para este mundo e para aqueles que vivem lado a lado com eles neste mundo. O resto pertence a Deus. - O príncipe inclinou-se para a frente e a luz da manhã que atravessava a seteira brilhou-lhe nos cabelos cor de palha. - Irmão - disse com suavidade -, não tínheis em vosso poder qualquer coisa que deveríamos contemplar de novo esta manhã, com melhor luz? Falámos nisso a noite passada.

-Agora pouco importa-ripostou o irmão Cadfael -, se consentirdes em deixar isso nas minhas mãos por mais um tempo. Prestar-vos-ei contas.

- De boa vontade - disse Owain e sorriu de repente, enchendo a sala com o encanto da sua presença.-Mas, por mim, e por outros, sem dúvida, tende cuidado.

 

Elis foi suficientemente sensato para não se precipitar correndo para a cerca das irmãs Beneditinas, exausto e cheio de lama depois da corrida que acabava de fazer, e quando a aurora ainda mal despontava. Tão poucos quilómetros de Shrewsbury até ali e no entanto um caminho tão só e desprotegido! Porquê, perguntava a si mesmo, furiosamente, enquanto corria, por que haviam aquelas mulheres decidido instalar a sua pequena capela e ojardim num local tão perigoso? Era uma provocação! A abadessa de Polesworth devia ser levada a reconhecer o erro e mandar retirar aquelas irmãs ameaçadas. O perigo que corriam naquele momento podia repetir-se indefinidamente, ali tão perto de uma fronteira tão turbulenta.

Dirigiu-se para a azenha que ficava junto do ribeiro, mais acima, onde tinha sido feito prisioneiro sob a guarda de um gigante musculado chamado John, durante aqueles poucos dias de Fevereiro. Observou o ribeiro, cheio de espanto, estava tão baixo e tão calmo, apesar do seu leito tortuoso e cheio de pedras, que nada tinha a ver com o caudal que encontrara antes. Se eles viessem, sem dúvida pensariam em atravessar alegremente no sítio em que o leito oferecia uma passagem suave e onde não teriam de se molhar mais do que até ao joelho. Essa parte, pelo menos, podia ser escavada e semeada com espigões de ferro ou estrepes. E, pelo menos, as margens arborizadas ofereciam boa cobertura aos arqueiros.

John Miller, que andava a talhar estacas do lado de fora da azenha, deixou cair o machado e pegou na forquilha, quando ouviu os passos apressados e irregulares sobre as tábuas. Rodopiou com uma rapidez e uma prontidão espantosas para um homem da sua envergadura e ficou a olhar de boca aberta, ao ver o seu antigo prisioneiro avançar para ele, resoluto e de mãos vazias, e ao ser saudado num inglês sonoro e nítido por alguém que ostentara uma total ignorância desse idioma, havia apenas algumas semanas.

- Os galeses de Powys, um exército atacante a menos de duas horas de caminho! Elas já sabem disso? Ainda podíamos levá-las para a cidade, lá devem estar a armar-se, mas tarde...

- Calma, calma! - disse o moleiro, deixando cair a sua arma e agarrando na pilha de estacas aguçadas e mortíferas. - Ao que parece haveis recuperado a língua bem depressa! E de que lado estais desta vez e quem foi que vos deixou andar por aí? Carregai isto, se é que viestes com a intenção de serdes útil.

-É preciso tirar as mulheres daqui-insistiu Elis, febril. - Ainda não é tarde de mais, se forem imediatamente... Arranjai-me autorização para falar com elas, certamente me hão-de escutar. Com elas a salvo, nós poderíamos fazer frente mesmo a um exército. Vim para as prevenir...

- Ah, mas elas já sabem. Desde a última vez que temos mantido uma vigilância constante. E não há nada que as faça sair daqui, por isso escusais de vos cansar com palavreado para serdes antes um homem a mais e bem-vindo - disse o moleiro -, se for essa a vossa intenção. Madre Mariana é de opinião que seria falta de fé saírem de onde estão, a irmã Madalena acha que pode ser mais útil no sítio onde está e a maior parte da gente aqui à roda dirá que é a pura da verdade. Vinde, vamos espetar isto, o vau já está.

Elis deu consigo a correr ao lado do grandalhão, com os braços cheios. A parte mais plana do ribeiro era a que contornava a parede da capela da granja e ele apercebeu-se, enquanto ia passando as estacas ao moleiro à medida que ele lhas pedia, que havia uma certa actividade no meio dos arbustos e do matagal, de ambos os lados do curso de água. Os homens da floresta estavam todos ao corrente da ameaça e tinham feito os seus preparativos e, a julgar pelo que sucedera antes, a irmã Madalena devia estar também a preparar-se para a batalha. Contar com a fé de madre Mariana na protecção divina é bom, no entanto, é ainda melhor se apoiada pela assistência prática que o céu tem o direito de esperar do senso comum dos mortais. Mas um exército atacante de cem homens ou mais... e com uma derrota vergonhosa a vingar! Seria que tinham consciência do que iam encontrar pela frente?

- Preciso de uma arma - disse Elis, de pé na parte mais alta da margem, com os pés vigorosamente afastados e a cabeça escura voltada para noroeste, a direcção de onde devia vir a ameaça.-Sei usar espada, lança, arco, seja o que for que houver... Aquele vosso machado, com um cabo comprido... - Acontecia que ele dispunha de uma outra arma própria, ocorreu-lhe naquele preciso momento. Se conseguisse detectá-los a tempo e ser o primeiro a defrontá-los quando chegassem, poderia dirigir-se-lhes em galês, quando eles estariam preparados apenas para um inglês amedrontado e tinha a fluência trovadoresca, todas as farpas da surpresa, da ingúria e do escárnio mordaz, para despejar em torrente sobre os cobardes paladinos que se propunham atacar aquelas santas mulheres. Uma língua comparável a um chicote! Seria melhor talvez se estivesse ébrio, para atingir o verdadeiro apogeu da invectiva escaldante mas, mesmo assim, naquele estado de sobriedade desesperada, ainda podia servir-lhe para desconcertar e atrasar.

Elis meteu-se à água e escolheu o sítio para uma das suas estacas, escondido no meio dos juncos, com a ponta fortemente inclinada para trespassar alguém que atravessasse numa pressa desprevenida. Pela maneira cuidadosa como John Miller avançava, o vau já devia estar bem provido de estacas a meio da corrente. Se os atacantes viessem a cavalo, uma pata metida num dos buracos podia deixar o animal coxo e fazer que o cavaleiro fosse atirado para cima das estacas. Se viessem a pé, alguns pelo menos podiam ir de encontro às estacas, fazendo cair outros com eles, numa confusão bastante vulnerável para os arqueiros.

O moleiro, metido na corrente com a água até aos joelhos, ficou a olhar com ar crítico, enquanto Elis enterrava a sua estaca mortífera e a cravava firmemente através do tapete resistente dos juncos, introduzindo-a no solo.

- Bom trabalho! - disse num tom levemente apreciativo. - Vamos procurar uma lança ou talvez os lenhadores vos arranjem um machado. Não haveis de ficar desarmado se as vossas intenções são boas.

A irmã Madalena, como o resto das pessoas da casa, estava a pé desde o alvorecer, reunindo todos os panos, tesouras, facas, loções, unguentos e bebidas soporíferas, que poderiam vir a ser necessários apenas no espaço de algumas horas, especulando ao mesmo tempo sobre quantas camas poderiam ser tornadas disponíveis, sem esquecer o decoro, caso alguns dos homens do seu exército florestal ficasse ferido com demasiada gravidade para ser transportado para outro lado. Madalena considerara seriamente a possibilidade de mandar as duas jovens postulantes para Beistan, mas depois decidira não o fazer, convencida que, ao fim e ao cabo, estariam mais seguras onde estavam. O ataque podia não chegar a verificar-se. Mas se viesse, pelo menos ali tudo estava a postos e havia o número suficiente de corajosos homens da floresta para garantir uma boa defesa. Se, pelo contrário, os assaltantes se encaminhassem para Shrewsbury e encontrassem uma força à qual não podiam fazer frente, voltariam para trás, dispersando para bater em retirada, e duas raparigas viajando para leste através dos bosques podiam muito bem cair-lhes nas mãos a qualquer altura. Não, era melhor continuarem ali, juntas. De qualquer forma, um simples olhar ao rosto excitado e cheio de indignação de Melicent bastara para lhe dar a entender que pelo menos aquela não partiria, mesmo que lho ordenassem.

- Não tenho medo - dissera Melicent com desdém.

- Não vos louvo por isso - disse simplesmente a irmã Madalena. - A menos que estejais a mentir... Quem é que não sente medo, ao ser confrontado com ele? São gerações de gente com medo e com razões para isso que nos levaram a conceber estas defesas.

Já tomara todas as suas disposições no interior. Subiu os degraus de madeira que levavam à minúscula torre do sino e olhou para a extensão de rio visível dali e para a margem que subia do outro lado, acompanhada por uma massa de arbustos densos e continuando numa colina que em tempos fora arborizada, mas agora era apenas coberta por uma vegetação selvagem. "A gente do campo, que tem que trabalhar de sol a sol para sobreviver, não pode, ainda por cima, manter por muito tempo uma vigilância de dia e de noite. Eles que venham hoje, se é que vêm de todo", pensou a irmã Madalena. "Agora que estamos no auge da resolução e com tudo preparado, já não podemos fazer mais nada e a espera só servirá para nos amolecer."

Desviando o olhar da margem oposta, fixou-o no próprio ribeiro, cujo leito fundo e rochoso se suavizava debaixo das suas janelas, alargando depois no vau. E aí avistou John Miller, que avançava cauteloso em direcção à margem, com a água a encrespar-se à sua passagem, e uma outra pessoa, um jovem de cabelos escuros e encaracolados, que se inclinava sobre a última estaca, firmando-a com os braços e os ombros vigorosos, mais baixa que a margem e escondida pelos juncos. Quando se endireitou e mostrou o rosto congestionado, a irmã Madalena reconheceu-o.

Desceu para a capela muito pensativa. Melicent estava ocupada a guardar num baú fixado à parede e reforçado com tiras de ferro, os poucos ornamentos de valor pertencentes à capela e à casa. Pelo menos, a pilhagem daquela igreja modesta tornar-se-ia o mais difícil possível.

- Não olhastes para fora para ver como vai o trabalho dos homens? - disse a irmã Madalena com voz branda. - Parece que temos mais um aliado do que esperávamos. Um jovem galês vosso conhecido, e meu também, está a trabalhar ao lado de John Miller. Mudou de aliados, mas, a julgar pelo ar dele, esta causa agrada-lhe mais do que quando aqui esteve anteriormente.

Melicent voltou-se, com os olhos muito abertos e uma expressão cheia de solenidade.

- Ele? - disse numa voz insegura e baixa. - Estava prisioneiro no castelo. Como pode estar agora aqui?

- É evidente que se escapou. E que atravessou um ou dois lamaçais para chegar aqui - replicou placidamente a irmã Madalena -, para trazer as botas e as calças naquele estado. E acho que deve ter caído pelo menos num deles, da maneira como tem a cara suja.

- Mas porquê vir até aqui? Se se escapou... que é que está a fazer para estes lados? - inquiriu Melicent, febril.

- Tudo indica que se prepara para lutar contra os seus próprios conterrâneos. E como duvido que sinta por mim uma afeição suficientemente forte para fugir da prisão e vir lutar por mim - disse a irmã Madalena com um sorriso leve e cheio de reminiscências -, presumo que aquilo que o preocupa seja a vossa segurança. Mas podeis perguntar-lho, inclinando-vos sobre a vedação.

- Não! - exclamou Melicent recuando violentamente e fechando a tampa do baú com uma pancada forte. - Não tenho nada a dizer-lhe. - E cruzou os braços apertando-os de encontro ao corpo, como se estivesse com frio, como se alguma parte traiçoeira de si própria pudesse fugir-lhe e escapar-se furtiva para o jardim.

-Nesse caso, se mo permitis-disse serenamente a irmã Madalena -, eu tenho. - E saiu, pelo meio dos canteiros recém-cavados e dos primeiros viveiros de saladas, para subir ao bloco de pedra que a tornava suficientemente alta para olhar para o outro lado da vedação. E, de repente, surgiu-lhe, quase nariz com nariz, Elis ap Cynan, esticando-se para olhar ansiosamente lá para dentro. Sujo, nervoso e desesperadamente sério, tinha um ar tão jovem que ela, que nunca tivera filhos, se sentiu não apenas maternal mas como uma autêntica avó. O rapaz recuou, sobressaltado, e pestanejou ao reconhecê-la. Corou por baixo da sujidade esverdeada que o pântano lhe deixara nas faces e na fronte e estendeu a mão suplicante para o alto da vedação que os separava.

- Irmã, ela... Melicent está aí dentro?

- Está, bem e em segurança - disse a irmã Madalena -, e com a ajuda de Deus e a vossa e com a ajuda de todas as outras almas corajosas como vós que se estão ocupando da nossa defesa, há-de continuar em segurança. Não vou perguntar-vos como viestes aqui parar, mas quer vos tenham deixado partir quer a vossa situação seja a de um fugitivo, sois bem-vindo.

- Permitisse Deus - disse Elis com fervor -, que ela estivesse neste momento em Shrewsbury.

- Sou da mesma opinião, mas sempre está melhor onde está do que perdida por esses caminhos. Além disso, ela recusa-se a sair.

- E sabe - perguntou o jovem com humildade -, que eu estou aqui?

- Sabe e também sabe ao que viestes.

- E não quer... não seríeis capaz de a persuadir a falar comigo?

- Isso recusa-se a fazer. Mas ainda pode vir a pensar melhor - replicou a irmã Madalena, encorajadora.-No vosso lugar, deixava-a em paz para que possa pensar. Melicent sabe que estais aqui para lutar a nosso favor, isso já dá que pensar. Agora, faríeis melhor em procurar abrigo e ficar por lá. Ocupai-vos a afiar a lâmina que vos arranjarem e cuidai que nada vos aconteça. Estas escaramuças nunca duram muito tempo - acrescentou, resignada e tolerante -, mas o que vem depois dura uma vida, a vossa e a dela. Tomai conta de Elis ap Cynan que eu tomo conta de Melicent.

Hugh e os seus vinte homens tinham contornado as colinas de Breidden antes das primeiras horas do dia, deixando as suas silhuetas grandiosas e encurvadas à direita, enquanto seguiam na direcção de Westbury. Conseguiram mudar alguns cavalos, mas não em número suficiente para substituir todos os animais fatigados. Por essa mesma razão, Hugh mantivera um trote razoável e tinha feito uma paragem para dar aos homens e aos cavalos tempo para respirarem. Foi a primeira oportunidade que tiveram até para trocar uma palavra e, agora que a tinham, ninguém encontrava grande coisa para dizer. Enquanto a questão que os fizera meter-se a caminho não tivesse sido enfrentada e terminada, as línguas não voltariam a mover-se livremente. O próprio Hugh, estendido de costas, para as aliviar, ao lado de Cadfael, debaixo das árvores cobertas de rebentos novos, não lhe fez perguntas sobre o assunto que o levara ao País de Gales.

- Partirei convosco, se conseguir terminar o que me trouxe aqui - dissera Cadfael. Hugh não lhe tinha perguntado nada nessa altura, como também não perguntou naquele momento. Talvez porque o seu espírito estava totalmente absorvido naquilo que era preciso fazer para repelir novamente os galeses de Powys para Caus e para mais longe ainda. Talvez por considerar que o outro assunto tinha sobretudo a ver com Cadfael e estivesse disposto a esperar até que os esclarecimentos fossem prestados livremente, tal como não deixaria de acontecer no momento certo.

Cadfael encostou as costas doridas ao tronco de um carvalho no qual começavam a surgir os primeiros rebentos, aliviou os pés esfolados dentro das botas e sentiu os seus sessenta e um anos. Achava-se tanto mais velho porquanto todas aquelas criaturas perturbadas, arremessadas de um lado para o outro naquela teia de amor, culpa e ansiedade, eram tão jovens e vulneráveis. Todas excepto a vítima, Gilbert Prestcote, morto no desamparo da sua fraqueza, e por quem Hugh tiraria a sua vingança, porque tinha de o fazer. Não podia haver clemência, não havia lugar para ela. O senhor de Hugh tinha sido empurrado para a morte e Hugh exigiria o pagamento correspondente. Era o seu dever, não podia escolher.

- De pé! - disse Hugh, inclinando-se sobre ele e sorrindo com o sorriso abstracto mas afectuoso que brilhava como um reflexo que lhe viesse da superfície do espírito, quando as suas preocupações mais profundas estavam noutro lugar. - Abri os olhos! Vamos partir. - E estendeu a mão para agarrar o pulso de Cadfael e ajudá-lo a levantar, mas com tal suavidade e cuidado que Cadfael teve vontade de se mostrar ofendido. Não era tão velho como isso, nem tão trôpego! Mas esqueceu o agravo sem importância quando Hugh lhe disse: - Um pastor de Pontesbury trouxe a notícia. Já levantaram o acampamento da noite e estão a preparar-se para avançar.

Cadfael acordou instantaneamente. - Que tencionais fazer?

-Alcançar a estrada que fica entre eles e Shrewsbury e fazê-los voltar para trás. Alan deve estar de pé e atento, é natural que o encontremos pelo caminho.

- Ousarão tentar a cidade? - inquiriu Cafael, espantado.

- Quem sabe? Estão inchados com o sucesso e convencidos que eu ando longe. E o nosso homem diz que eles evitaram Minsterley, mas que puseram lá homens durante a noite. Parece que talvez tencionem levar a cabo o saque nos arredores, mesmo que retirem a seguir. Também gostariam de pilhar a cidade. Mas nós vamos ser mais rápidos e dirigir-nos para Hanwood ou suas proximidades e interceptá-los.

Hugh ergueu Cadfael para cima da sela, numa brincadeira bem humorada, mas Cadfael tomou a dianteira nos dois quilómetros seguintes, arrufado com o tratamento de homem de idade. Sessenta e um não era ser velho, talvez um pouco além do apogeu da idade, só isso. Afinal, ele tinha era feito uma longa e dura cavalgada nos últimos dias, tinha o direito de se sentir cansado e dorido.

Transpuseram uma pequena colina e avistaram a estrada de Shrewsbury, deparando-se-lhes no ar por cima das árvores distantes, do outro lado, uma vaga coluna de fumo, transparente e lânguida.

- Das fogueiras que eles apagaram - disse Hugh, refreando a montada. - E há um cheiro a queimado mais antigo. Perto da orla da floresta, houve celeiros consumidos pelas chamas.

- Há já mais de um dia e o fumo desapareceu entretanto - disse Cadfael, cheirando o ar. - É melhor irmos direitos a eles enquanto sabemos onde estão, pois não há maneira de descobrirmos onde irão atacar a seguir.

Hugh conduziu os homens até à estrada e atravessou-a para um sítio onde pudessem desdobrar-se na orla do bosque, avançando rápidos mas silenciosamente no meio da erva abundante. Durante algum tempo, não perderam a estrada de vista, mas dos incursores galeses nem sinais. Começava a parecer-lhes que afinal a presente arremetida não visava a cidade nem os subúrbios e Hugh conduziu os homens mais para o interior da floresta, seguindo directamente para o acampamento abandonado. Para além da área calcada, havia vestígios suficientes para olhos habituados a ler os arbustos e a erva. Um número considerável de homens tinha passado por ali a pé, não havia muito tempo, levando com eles alguns póneis que deixaram os seus dejectos e arrancaram os rebentos novos dos ramos mais tenros. Os restos calcinados e enegrecidos de uma casita de campo com os seus anexos eram visíveis no sítio onde a sua última vítima perdera casa, subsistência e tudo, se é que não perdera a própria vida e havia sangue seco infiltrado no chão, onde tinham morto um porco. Correram céleres ao longo da pista deixada pelos galeses, convictos agora da direcção que haviam tomado, pois o caminho mergulhava nas terras altas a norte de Long Forest e eram apenas uns três quilómetros dali ao convento de Godric's Ford.

A derrota ignominiosa às mãos da irmã Madalena e do seu exército rústico deixara-os exasperados. Os homens de Caus não tinham qualquer relutância em dispersar algum gado e queimar uma ou duas fazendas pelo caminho, mas aquilo que queriam, antes de mais, aquilo que tinham vindo ali buscar, era a vingança.

Hugh esporeou o cavalo e lançou-se a galope pelo bosque. Atrás dele toda a companhia esporeou apressadamente os cavalos. Tinham avançado talvez uns dois quilómetros quando ouviram diante deles, distante e indefinida, uma voz bem alta, vomitando provocações.

Eram quase horas da Missa Solene, quando Alan Herbard saiu com as suas tropas dos muros do castelo. Embaraçava-o não ter qualquer indicação clara quanto à direcção que os incursores tencionavam tomar e de pouco valia avançar à toa pela fronteira oeste tentando alcançá-los. À falta de indicações, tinha de se fiar no seu raciocínio. Quando a companhia saiu da cidade, tomou o rumo de Pontes-bury, preparados para flectir quer para norte para interceptar o caminho entre os incursores e Shrewsbury, quer para sudoeste na direcção de Godric's Ford, conforme as informações que recebessem pelo caminho dos batedores enviados antes do amanhecer. No primeiro quilómetro e meio correram velozes, até que um camponês esbaforido saiu do meio dos arbustos para lhes interceptar a passagem, mal tinham passado o lugarejo de Beistan.

- Meu senhor, eles saíram da estrada. De Pontesbury estão a dirigir-se para leste, entrando pela floresta em direcção às terras altas. Voltaram as costas à cidade, procuram presa diferente. Virai para sul na encruzilhada.

- Quantos? - perguntou Herbard, fazendo virar o cavalo apressadamente.

-Uma centena, pelo menos. Seguem todos juntos, não deixaram nenhum velhaco para trás. Esperam que haja luta.

- E vão tê-la! - prometeu Herbard e encaminhou os seus homens para sul, galopando sempre que o caminho o permitia.

Eliud seguia na dianteira e, mesmo esse andamento, lhe parecia demasiado lento. Tinha bem patentes todas as marcas da desconfiança e da vergonha que ele próprio solicitara, a corda que o poderia enforcar enrolava-se-lhe à volta do pescoço, à vista de todos, o arqueiro que o trespassaria se ele tentasse fugir seguia-o de perto, mas também ele levava uma espada emprestada sobre o quadril, ia montado num cavalo e avançava com os outros. Ia inquieto e febril, apesar da frialdade daquela manhã de Março. Ali, Elis gozava pelo menos da vantagem de já ter percorrido aqueles caminhos e penetrado antes naqueles bosques. Eliud nunca estivera a sul de Shrewsbury e, embora a velocidade a que seguiam parecesse ao seu coração ansioso tristemente inadequada, nada ganharia em tentar adiantar-se, pois não sabia exactamente onde ficava Godric's Ford. O arqueiro que o seguia, por muito boa pontaria que tivesse, não era grande cavaleiro, talvez tivesse sido possível ganhar velocidade e esquivar-se-lhe, mas de que serviria? Mesmo que conseguisse ganhar tempo, acabaria por o desperdiçar perdendo-se no meio dos bosques. Não tinha outra hipótese senão deixar que o levassem até lá ou, pelo menos, suficientemente perto do local para poder calcular a direcção com a ajuda da vista ou do ouvido. Tinha de haver qualquer sinal. Apurava o ouvido, tentando captar algum som revelador enquanto galopava, mas não ouvia nada a não ser o abanar e o ranger dos ramos que roçavam e o próprio rolar das ferraduras sobre a erva alta, de vez em quando o piar de uma ave, indiferente àquela invasão, bravio e surpreendentemente nítido.

Já não deviam estar muito longe. Atravessavam velozes os montes cobertos de urze, embrenhando-se depois novamente no arvoredo denso e nas clareiras húmidas. Todo aquele caminho, Elis devia tê-lo percorrido a pé durante a noite, patinhando nas covas de verdura estagnada e atirando-se de encontro aos massiços de urze e carrascos e às saliências rochosas.

Herbard estacou de repente em campo aberto, fazendo-lhes sinal para que guardassem silêncio.

- Escutai! À nossa frente, sobre a direita, homens em movimento.

Ficaram de ouvido atento, contendo a respiração. Apenas um suave e contínuo murmúrio de sons, composto pelo fustigar e roçar dos ramos, o farfalhar das últimas folhas do Outono debaixo de muitos pés, o estalido de um tronco morto, o interpelar breve e velado das vozes, um pássaro assustado que se erguia do solo com um brado de alarme e indignação. Sinais inequívocos de um numeroso bando de homens que avançava pelos bosques de modo quase furtivo, sem barulho nem pressa.

- Do outro lado do ribeiro e muito perto do vau - disse Herbard

categoricamente. Sacudiu as rédeas, esporeou a montada e lançou-se em frente, seguido de perto pelos seus homens. Diante deles, abria-se um caminho estreito por entre árvores de grande porte, uma perspectiva alongada deixando entrever, ao fundo, algumas construções baixas, em madeira, que a acção do tempo tornara de um ncastanho-escuro, e mais além um arrendado repentino e luminoso, por entre as árvores, no sítio onde passava o ribeiro.

Iam a meio caminho, quando o murmúrio efervescente de homens excitados expondo-se para o ataque subiu em turbilhão da margem invisível e, depois, mais alta e nítida, uma só voz bradando em desafio e, ainda mais estranho, um momento de absoluto silêncio a seguir ao som.

O desafio não significara nada para Herbard. Mas significou tudo para Eliud, pois as palavras eram em galês e a voz era a de Elis, sonora e imperiosa, incisiva no seu desespero, apelando aos seus compatriotas:

- Parai e ide-vos! Que vergonha para vossos pais virdes aqui aguçar os dentes contra estas santas mulheres! Voltai para o sítio de onde viestes e procurai uma luta que vos faça honra! - E depois em tom ainda mais alto e mais peremptório: - O primeiro que chegar aqui atravesso-o com esta lança, galês ou não, não é da minha raça!

E isto para um bando de homens em pé de guerra, excitados e felizes e prontos para matar!

-Elis! - gritou Eliud, num grande uivo de raiva e espanto, e deitou-se para a frente sobre o pescoço do cavalo, enterrando-lhe os calcanhares e sacudindo furiosamente as rédeas. Ouviu o arqueiro por detrás dele gritar-lhe uma ordem para o fazer parar, ouviu e sentiu o zumbido vibrante da flecha que lhe rasou o ombro direito, arrancando um pedaço de tecido, e se foi enterrar, estremecendo, na vegetação diante dele. Sem prestar atenção, mergulhou impetuosamente em frente, ao longo do caminho verde e inclinado, até à margem do ribeiro.

Tinham vindo pela parte mais arborizada, um pouco mais adiante, para chegarem à granja e ao vau antes de serem detectados, anulando assim a defesa de quem estivesse de sentinela na azenha, onde o terreno era mais favorável para manobrar o arco. A pequena ponte de madeira ainda não tinha sido reparada, mas com um caudal tão reduzido em relação ao do Inverno passado, não eram necessárias pontes. Era fácil saltar de pedra em pedra em dois ou três sítios, mas os atacantes preferiam o vau, pois aí um bom número de homens podia atravessar lado a lado, levando de uma só vez um aríete, com que avançariam pela outra margem. Os arqueiros da floresta estavam deitados no meio dos juncos e dos arbustos, dispersos ao longo da margem, mas uma tal ponta de lança, com armas e peso suficiente atrás dela, podia furar a barreira, atravessá-la e entrar no recinto num momento.

Estavam enganados se julgavam que os homens da floresta não tinham detectado a sua aproximação, mas não houve indícios de qualquer movimento quando os atacantes abriram caminho silenciosamente por entre as árvores, concentrando-se para atravessar rapidamente o ribeiro. Uns vinte camponeses e lenhadores das fazendas laboriosas da floresta encontravam-se escondidos para fazer frente a mais de cem galeses e cada um desses vinte estava a postos, sabendo quão tremenda era a ameaça que defrontavam. Sabiam como manter-se quietos até ao momento exacto em que teriam de entrar em acção. Mas, quando os homens que avançavam pelo meio das árvores fizeram sinal às suas fileiras, meio escondidas, e se juntaram num ímpeto repentino, a descoberto, na orla do vau, um homem ergueu-se no meio dos arbustos do outro lado e atravessou a superfície relvada da margem, brandindo uma lança comprida, com duas pontas, amarrada a uma vara com dois metros e varrendo as águas com ela à altura do peito.

Isso foi o suficiente para provocar uma pausa momentânea, num movimento de pura surpresa. Mas o que os fez parar a meio caminho e ficar parados foi o brado galês cheio de indignação que atroou os ares:

- Parai e ide-vos! Que vergonha para os vossos pais virdes aqui aguçar os dentes contra estas santas mulheres!

Mas não ficou por aí, havia mais, brotando-lhe da língua inspirada, temeroso de fazer uma pausa, ou com tal precipitação que lhe era impossível parar.

- Cobardes de Powys, receosos de ir para o norte e de vos defrontardes com homens! Hão-de cantar-vos em Gwynedd por este nobre feito: como haveis atravessado um ribeiro e mostrado a vossa heroicidade contra mulheres mais velhas que as vossas mães e infinitamente mais honestas. Mesmos as vossas fêmeas impudicas vos hão-de repudiar por isto. Vós e a vossa linhagem bastarda ficará conhecida para sempre pelas canções que faremos...

Eles tinham começado a despertar do seu espanto, ripostando e rindo. E os arqueiros escondidos nos arbustos continuavam imóveis, dispostos a aguardar os acontecimentos, embora as flechas estivessem em posição e os arcos meio esticados, prontos a disparar. Se, por milagre, o perigo se viesse a dissolver na retirada e na conciliação, para quê perder flechas ou estragar as lâminas?

- Sois vós, na verdade? - gritou desdenhoso um galês. - O cachorrinho de Cynan, que deixámos para trás a cuspir água e a ser reanimado pelas freiras. Ele a pretender interceptar-nos! Transformado em bajulador dos ingleses!

-E capaz de vos fazer frente!-replicou Elis impetuoso, fazendo rodar a lança na direcção da voz. - Suficientemente grato para deixar as freiras em paz e para se sentir reconhecido por terem salvo uma vida que bem podiam ter deixado ao sabor da corrente, depois do que viera aqui fazer. Que procurais? Que despojos esperais encontrar junto daquelas que escolheram voluntariamente a pobreza? E, pelo amor de Deus e pelos vossos pais, que glória?

Tinha feito tudo o que podia, ganho talvez alguns minutos, mas pouco mais iria conseguir e aquilo não bastava. Ele sabia-o. Viu mesmo o arqueiro à beira das árvores, do outro lado, colocar a seta sem pressa e esticar o arco com firmeza, deliberadamente. Viu-o pelo canto do olho, continuando a enfrentar as lanças erguidas em direcção a ele, mas não havia nada que pudesse fazer para o desviar ou evitar, era obrigado a deixar-se ficar e aguentá-los tanto quanto pudesse, sem mexer os pés nem o olhar.

Atrás dele ouviu-se um galopar precipitado, afundando-se na erva alta, e alguém se atirou, soluçando, da sela, em voo, para cair sobre a margem relvada acima da água, no momento em que os arqueiros da floresta lançavam as suas primeiras setas, cada homem por si, e o arqueiro na outra margem completava a sua manobra tranquila, atirando em cheio contra o peito de Elis. Galeses de Powys atacando friamente galeses de Gwynedd. Eliud soltou um grito de raiva e desafio e lançou-se de permeio, apertando o peito de Elis de encontro ao seu e cobrindo-o com o próprio corpo, num ímpeto que os fez rolar a ambos para trás, de encontro à vedação do jardim das freiras. A lança de cabo comprido saltou das mãos de Elis e foi bater na superfície das águas, fazendo-as saltar em leque. A ponta da flecha do galês foi sair por baixo da omoplata direita de Eliud, trespassando-lhe o corpo, e atravessou a parte inferior do braço de Elis, unindo-os inseparavelmente. Eles deslizaram ao longo da vedação e ficaram estendidos na relva, abraçados um ao outro, e o seu sangue misturou-se e tornou-se um só, numa ligação ainda maior que a da adopção.

E os galeses atravessaram e chegaram ao outro lado, debantendo-se nos desníveis do vau, dilacerados pelas estacas escondidas entre os juncos, pisando os dois corpos caídos, e a batalha começou ao longo das margens do ribeiro.

Quase no mesmo instante, Alan Herbard espalhou os seus homens ao longo da margem leste e meteu-se à água em direcção à luta, Hugh Beringar saiu de entre as árvores, na margem oeste, e arrastou-se a vanguarda dos galeses para o vau revolto e lamacento.

O bater do martelo na bigorna, com eles entalados no meio, desmoralizou os galeses de Powys e a batalha de Godric's Ford não durou muito tempo. O barulho e a fúria estavam fora de proporção com o estrago causado, quando finalmente tiveram tempo para o avaliar. Os galeses estavam na margem, quando os seus inimigos atacaram de ambos os lados. Tiveram de lutar com força e maldade para se livrarem da armadilha e, um por um, porem-se a coberto, como os pequenos predadores da floresta cuja proximidade com a terra e estreito conhecimento da mesma eles partilhavam. Beringar, depois de ter dispersado a retaguarda dos incursores, tocou-os como um rebanho de carneiros, mas absteve-se de fazer mortes desnecessárias logo que viu que eles tinham fugido e começavam a retirar. Alan Herbard, mais jovem e menos experiente, rangeu os dentes e lançou-se em frente com todo o seu peso, determinado a transformar num êxito o seu primeiro comando e é possível que tenha efectuado maior extermínio que o necessário, por uma questão de mera ansiedade.

Fosse como fosse, no espaço de meia hora estava tudo terminado.

Aquilo que o irmão Cadfael registou com maior entusiasmo, no meio de todo aquele entrechocar de armas, foi a aparição de uma rapariga alta, saindo da cerca da granja, com o hábito negro apanhado nas duas mãos, a touca arrancada da cabeça e os cabelos loiros esvoaçando prateados à luz repentina do sol, ao mesmo tempo que um grito prolongado e aguerrido lhe brotava dos lábios entreabertos, como uma flâmula, e se esquivava de uma mão galesa que tentava agarrá-la, para se atirar de joelhos para junto dos corpos espezinhados, feridos e a sangrar de Elis e Eliud, ainda presos nos braços um do outro, de encontro à vedação ensanguentada.

 

Estava terminado, eles tinham-se ido embora, desaparecendo rapidamente e em silêncio, e deixando atrás de si apenas o roçagar dos arbustos daquele lado da margem, para se dirigirem a um sítio distante, onde pudessem atravessar sem serem vistos ou perseguidos. Na outra margem, para onde fugira a maior parte deles, o clamor da fuga foi-se apagando a pouco e pouco nas profundezas do matagal abandonado, enquanto procuravam cobertura mais densa onde pudessem refugiar-se e daí desaparecer. Hugh não tinha pressa, deixou-os pegar nos feridos e levá-los consigo, alguns talvez já mortos. Devia haver cortes, arranhadelas e ferimentos suficientes entre os defensores, os galeses que tratassem e enterrassem os seus. Mas ele espalhou os seus homens e uma dezena dos de Herbard, como batedores atrás da caça, para enxotar metodicamente os galeses para o seu próprio território. Não tinha a menor vontade de se lançar numa luta de morte com Madog ap Meredith, desde que este aprendesse bem a sua lição.

Os defensores da granja saíram dos seus esconderijos e as freiras da sua capela, todos um pouco estonteados, tanto pela acalmia repentina como pela violência que se verificara antes. Aqueles que tinham escapado ilesos deixaram cair os arcos e as forquilhas e machados e voltaram-se para ajudar os que estavam feridos. E o irmão Cadfael virou as costas ao vau lamacento e às estacas ensanguentadas e ajoelhou ao lado de Melicent sobre a erva.

- Eu estava na torre do sino - disse ela num murmúrio sumido. -Vi quão esplêndido... Ele por nós e o amigo por ele. Hão-de viver, têm de viver, os dois... não podemos perdê-los. Dizei-me o que tenho de fazer.

Ela já fizera bem, sem lágrimas, nem tremores, nem gritos, depois do primeiro brado que a levara através das fileiras galesas como a passagem de uma lança. Tinha passado um braço cuidadosamente sob os ombros de Elis para o erguer e impedir que o peso dos dois se abatesse sobre a cabeça da flecha que os pregara um ao outro. Isso poupava-lhes pelo menos a pior agonia e o agravar do ferimento que os trespassava. E enrolara o pano da touca em volta da haste da flecha, por baixo do braço de Elis, para tentar estancar o sangue.

- O ferro atravessou-o de lado a lado - disse -, posso levantá-lo mais se conseguirdes agarrar a haste.

A irmã Madalena viera colocar-se entretanto ao lado de Cadfael, forte e prática como sempre, mas depois de deitar um olhar perspicaz ao rosto atento e resoluto de Melicent, deixou a jovem no lugar que ela própria escolhera e afastou-se placidamente para socorrer outros. Seria loucura incomodar quer Melicent quer os dois jovens que ela segurava com o braço e o joelho esticado, uma vez que mudá-los só serviria para lhes causar maior sofrimento. Foi antes buscar uma pequena serra e a faca mais afiada que encontrou e um bocado de pano suficientemente grande para estancar as primeiras lufadas de sangue quando o ferro fosse retirado. Foi Melicent quem susteve nos braços Elis e Eliud, enquanto Cadfael tacteava a ponta da flecha, enterrava a serra na madeira e depois colocava ambas as mãos de forma a arrancar a cabeça sem movimentos desnecessários. Conseguiu tirá-la, com ligeiras mossas por ter atravessado a carne e o osso, e deixou-a cair em cima da ervas.

- Deitai-os agora, assim! É melhor deixá-los quietos uns momentos. - O terreno firme, atapetado de relva, recebeu suavemente o peso dos dois corpos, quando Melicent pousou o seu fardo. - Muito bem - disse Cadfael. Ela tinha feito uma bola com a touca manchada de sangue, segurando-a por baixo do ferimento, quando se desviou para o lado para aliviar o braço tenso e dorido. - E agora descansai também. Um tem a carne do braço lacerada e perdeu bastante sangue, mas o seu corpo é forte e não corre perigo de vida. O outro, não há como negá-lo, está em estado grave.

- Eu sei - replicou Melicent, olhando para os dois corpos entrelaçados, que permaneciam fortemente unidos no seu abraço. -Usou o corpo como um escudo. Tão forte era o amor que lhe tinha!

E tão forte era o amor que ela lhe tinha, pensou Cadfael, que a fizera saltar correndo do seu abrigo, num ímpeto semelhante, gritando repúdio e ira. Em defesa do assassino do pai? Ou seria que há muito pusera de parte essa convicção, por muito que as circunstâncias se apresentassem contra ela? Teria ela simplesmente esquecido tudo o mais ao ouvir Elis bradar o seu desafio solitário? Tudo o mais excepto o perigo a que ele se expunha e a angústia que sentia por ele?

Não era necessário que visse e ouvisse o pior momento de todos.

- Ide buscar a minha caixa que está além na sela - disse Cad-fael -, e trazei mais pano e bastantes compressas e ligaduras, que vamos precisar delas.

A jovem demorou-se o tempo suficiente para ele agarrar com mão firme a haste que os trespassava, liberta agora da ponta aguçada, e arrancá-la da ferida num movimento rápido e decidido, ao mesmo tempo que apoiava a mão aberta nas costas de Eliud. Mesmo assim, ouviu-se um gemido de agonia, forte e dolorido, que felizmente cessou depois de retirada a haste da flecha. A lufada de sangue que se seguiu não tardou a escoar-se: a ferida não passava de um simples corte e a carne saudável fecha facilmente sobre uma lesão estreita, mas não havia qualquer certeza quanto à destruição causada internamente. Cadfael afastou cuidadosamente o corpo de Eliud para um dos lados, de modo que ambos pudessem respirar livremente, embora os braços entrelaçados se separassem com relutância. Abriu mais o rasgão que a seta fizera na roupa, comprimiu um pano limpo de encontro à ferida e voltou-o suavemente de costas. Entretanto, Melicent estava de volta com tudo o que lhe tinham pedido: uma figura bravia e suja, com uma palidez mortal no rosto decidido. Havia sangue meio seco nas suas mãos e pulsos, a parte inferior do hábito apresentava uma crosta escura e rija à altura do joelho e a touca jazia sobre a erva, uma bola vermelha e manchada. Pouca importância tinha. Ela nunca mais ia querer usar aquela touca ou outra semelhante.

- Agora, seria melhor levá-los para dentro, para eu poder pôr os ferimentos a descoberto e lavá-los devidamente - disse Cadfael, quando teve a certeza que a hemorragia estava controlada. - Ide perguntar à irmã Madalena onde os podemos deitar, enquanto eu peço ajuda a alguns homens fortes para os transportarmos.

A irmã Madalena encarregara-se de mandar despejar mais de uma cela no interior da granja e madre Mariana e as outras monjas estavam preparadas para ir buscar o que fosse necessário, aquecer água e fazer pensos nos ferimentos mais ligeiros, cheias de boa vontade, agora que estavam livres do medo da afronta. Transportaram Elis e Eliud para dentro de casa e instalaram-nos em celas contíguas, pois o espaço era demasiado exíguo para que Cadfael e os seus ajudantes se pudessem mexer à vontade, se ambos os leitos fossem colocados ao pé um do outro. Tanto mais que John Miller, que escapara do recontro sem um arranhão, fazia parte do grupo. O gigante bondoso não só era capaz de erguer jovens bem constituídos como se fossem simples bebés, tinha também um toque hábil e reconfortante para tratar ferimentos.

Entre os dois, despiram Eliud, rasgando-lhe o fato em tiras para evitar sacudi-lo e provocar-lhe maior sofrimento, lavaram e trataram as feridas do peito e das costas e estenderam-no na cama estreita com o braço direito almofadado e imobilizado em talas. Tinha sido pisado pelos galeses na sua avançada precipitada para a margem e os sítios magoados começavam a mostrar as suas manchas negras, mas ferimentos não tinha mais nenhum e parecia que os pés que o calcaram não tinham partido nenhum osso. A ponta da flecha saíra bastante à direita, através do ombro, indo espetar-se no braço de Elis. Cadfael considerou a trajectória e sacudiu a cabeça duvidoso, mas não sem esperança, quanto às possibilidades de vida ou de morte. Junto daquele iria ficar, passando o resto do dia à sua cabeceira, e a noite também se fosse preciso, à espera que recuperasse os sentidos e a razão. Havia coisas que tinham de dizer um ao outro, quer o jovem vivesse, quer morresse.

Elis era diferente. Sabia que ele ia viver, que o braço se havia de curar, a sua honra seria vingada, voltaria a ter um nome limpo e não havia razão para que não tivesse também a sua Melicent. Já não havia pai que lha negasse, nem tutor que reivindicasse os seus direitos quanto ao casamento da jovem e Lady Prestcote não iria pôr qualquer entrave. E se Melicent correra para o lado dele antes mesmo que se desvancessem as dúvidas a seu respeito, bem maior seria a sua alegria em o aceitar quando ele emergisse, banhado de sol dos pés à cabeça. Feliz inocente a quem não restavam maiores cuidados que um braço dorido, uma certa fraqueza causada pela perda de sangue, uma luxação no joelho que lhe doía quando fazia algum movimento menos cauteloso e uma costela partida por ter sido pisado. Problemas que podiam impedi-lo de montar a cavalo durante algum tempo, mas nada de grave na verdade, agora que abrira os olhos escuros e nublados para a visão inesperada de um rosto pálido e radioso, inclinado muito perto do seu, e ouviu uma voz bem lembrada, uma voz fria e dura como o gelo que lhe dizia suavemente e cheia de ternura:

- Elis... calai-vos e ficai tranquilo! Eu estou aqui e não vou deixar-vos.

Passou-se mais de uma hora antes que Eliud abrisse os olhos, turvos e febris, brilhando verdes à luz da palmatória colocada ao lado da cama, pois a cela estava bastante escura. Mesmo nessa altura, a sua aflição era tão evidente que Cadfael o aliviou de novo com um trago de xarope de papoila e ficou a ver as contracções dolorosas desaparecerem gradualmente do rosto magro e enérgico, ao mesmo tempo que as pálpebras se fechavam de novo sobre o olhar perturbado. Não valia a pena aumentar o sofrimento de alguém tão magoado no corpo e na alma. Quando ele recuperasse o suficiente para chegar a si o manto da sua própria dignidade, então seria a altura.

Outros se aproximaram para o olhar por momentos, retirando-se em seguida sem fazer barulho. A irmã Madalena trouxe a Cadfael alimento e cerveja e ficou alguns instantes a observar o arquejar breve e doloroso do peito de Eliud e o estremecer das narinas numa respiração sibilante. O seu exército de defensores voluntários já se dispersara para atender às obrigações familiares, os ferimentos e contusões estavam tratados, as estacas tinham sido desenterradas do vau, o leito escavado endireitado de novo, o trabalho do dia fora bem feito. Se existia nela algum cansaço não o demonstrava. No dia seguinte, havia alguns feridos para visitar, mas nenhum em estado grave e também não houvera mortes. Até àquele momento, pelo menos. A não ser que aquele jovem se lhes escapasse por entre os dedos.

Hugh voltou ao fim do dia e procurou Cadfael na cela silenciosa.

- Vou voltar para a cidade - disse ao ouvido de Cadfael. - Seguimo-los até mais de meio caminho na direcção de Gales, não vão aparecer mais por aqui. Tencionais ficar?

Cadfael fez sinal que sim, acenando com a cabeça na direcção da cama.

- Sim... que pena! Deixo-vos alguns homens, mandai-os providenciar tudo o que for necessário. E depois disto-acrescentou Hugh em tom carregado -, vamos correr com eles de Caus. Hão-de ficar a saber que o condado ainda tem um chefe. - Virou-se para a cama e ficou a olhar melancólico para a figura adormecida. -Vi o que ele fez. É uma pena... -As roupas sujas e rasgadas de Eliud já tinham sido levadas, não lhe restava nada a não ser o corpo com que viera a este mundo e o instrumento através do qual pedira que o afastassem dele, se se provasse que Elis faltara à palavra dada. A corda estava enrolada e pendia sobre a consola que sustinha a palmatória.

- Que é isto? - perguntou Hugh ao pousar o olhar na corda, mas compreendendo quase instantaneamente. - Ah! Alan contou-me.

Vou levá-la comigo, ele compreenderá o que quero dizer. Esta corda não vai ser necessária. Dizei-lho quando acordar.

-Deus o queira! - murmurou Cadfael, tão baixo que nem o próprio Hugh o ouviu.

E Melicent veio da cela onde Elis jazia, dorido por causa dos pés que o tinham pisado, mas cheio a transbordar de uma felicidade inesperada. Veio a pedido dele, mas com a maior boa vontade, como Cadfael constatou com os seus próprios olhos enquanto dormitava no seu banquinho encostado à parede, fez o sinal da cruz sobre o corpo inerte de Eliud e inclinou-se num movimento repentino para beijar a fronte enrugada e a face encovada e magra, antes de se retirar silenciosa para continuar a vigília que ela própria escolhera.

O irmão Cadfael abriu um olho pensativo para a ver puxar a porta suavemente atrás dela e não se sentiu reconfortado. Mas continuava a esperar e a rezar com todo o seu coração para que Deus estivesse de vigília com ele.

Aos primeiros alvores pálidos que antecedem o amanhecer, Eliud mexeu-se e estremeceu, as pálpebras começaram a bater-lhe com esforço, como se estivesse a tentar abri-las e enfrentar o dia, mas ainda sem forças para isso. Cadfael aproximou o banquinho, inclinando-se para limpar a fronte sulcada e os lábios inquietos e deitando um olhar ao jarro que tinha ali mesmo à mão, para quando o corpo atormentado precisasse. Mas não era esse o mal-estar que abalava Eliud naquele momento, fazendo-o sair do seu repouso nocturno. Os olhos abriram-se-lhe muito, fixos no tecto de madeira da cela e mais além ainda, e só os aproximou quando Cadfael se inclinou sobre ele, preparado para falar, vendo o desespero consciente no olhar cor de avelã e guardando madura, dentro de si, uma coisa que tinha de ser dita.

Mas não precisou de a dizer. Foi-lhe tirada da boca.

-Já tenho a minha morte - disse o fio de voz que saiu dos lábios ressequidos de Eliud -, trazei-me um padre. Eu pequei... tenho de libertar todos os que estão sob o peso da dúvida...

Não era a sua própria libertação, essa não estava em primeiro lugar, apenas a daqueles que estavam a penar sob a mesma suspeita.

Cadfael inclinou-se mais. Os olhos de um verde-dourado estavam focados muito longe, não o tinham reconhecido. Reconheceram-no agora e detiveram-se, admirados.

- Sois o irmão que foi a Tregeiriog. Galês? - Qualquer coisa de semelhante a um sorriso de tristeza, suavizou-lhe o desespero do rosto. - Eu lembro-me. Haveis trazido notícias dele... Irmão, tenho a minha própria morte nos meus lábios, quer ele me tire agora desta aflição ou me guarde para outra pior... Uma dívida... Empenhei... - Tentou por um instante erguer a mão direita, guiado pelo hábito da sua destreza, mas desistiu, com uma inspiração dolorosa, perante a dor que lhe provocou e voltou-se sem piedade para a esquerda, tac-teando o pescoço no sítio onde deveria estar a corda enrolada. Cad-fael pôs a mão sobre o pulso erguido e encostou-o de novo, suavemente, às cobertas da cama.

- Silêncio, deixai-vos ficar sossegado. Eu estou aqui para tomar conta de tudo, não há pressa. Descansai, pensai, perguntai-me o que quiserdes, pedi-me o que vos aprouver. Eu estou aqui e não vou deixar-vos.

Fez-se acreditar. O corpo magro sob as cobertas pareceu afundar-se e relaxar num grande suspiro. Houve um pequeno silêncio. Os olhos cor de avelã estavam presos a ele com uma grande carga de confiança e desgosto, mas sem medo. Cadfael ofereceu-lhe um trago de vinho com mel, mas a cabeça que se erguera desviou-se para o lado.

- Quero confessar-me - disse Eliud, em voz fraca mas nítida -, quero confessar o meu pecado mortal. Escutai-me!

- Eu não sou padre - retorquiu Cadfael. - Esperai que vos tragam um sacerdote.

-Não posso esperar. Como posso saber o tempo que tenho? Se viver - disse com simplicidade -, repeti-lo-ei constantemente, tanto quanto for necessário, não quero esconder mais nada.

Nenhum dos dois se apercebera de que a porta de cela se abria lentamente, num movimento suave e tímido, impelida por alguém a quem as vozes matinais tinham despertado, mas que estava tão hesitante em perturbar aquele que poderiam desejar não ser incomodado como receosa de não prestar assistência a quem precisasse dela. No meio da sua própria felicidade, ainda não racionalizada ou posta em causa, Melicent movia-se como alguém impelido por uma inspiração angélica, exaltada e humilhada, desejosa de servir. Despira o hábito ensanguentado e trazia um vestido seu, simples, de lã. Deixou-se ficar junto da porta entreaberta, receosa de avançar ou de se retirar, parada e silenciosa, porque a voz que vinha do leito era tão premente e sem conforto.

-Eu matei - disse Eliu claramente. - Deus sabe como o lamento! Tinha cavalgado com ele, cuidado dele, vi-o sossobrar e insisti para que descansasse... E se ele chegasse a casa com vida, então Elis seria libertado... podia voltar para junto de Cristina, casar-se... - Um forte estremecimento percorreu-lhe o corpo da cabeça aos pés e arrancou-lhe um gemido de dor. - Cristina... amei-a desde sempre... desde o tempo em que éramos crianças, mas nunca, nunca falei nisso... Ela estava-lhe prometida a ele, antes mesmo de eu a conhecer, desde o berço. Como é que eu podia tocar, como poderia cobiçar aquilo que era dele?

- Ela também amava - disse Cadfael, encorajando-o. - E deu-vo-lo a saber...

- Mas eu não quis ouvir, não ousei, não tinha o direito... E ela sempre tão afectuosa, era-me insuportável. E depois, quando eles voltaram sem o Elis, pensámos que ele estivesse perdido... Oh, meu Deus, conseguis imaginar o meu tormento, por um lado a rezar pelo seu regresso, são e salvo, por outro lado a desejar que estivesse morto, apesar do muito que o amava, para que eu pudesse finalmente falar sem desonra e pedir a mão daquela que amava... E, então, já o sabeis, fostes vós quem trouxe a notícia... E enviaram-me para cá, obrigando-me a fechar a boca quando estava tão cheia de palavras. E durante todo o caminho, eu pensava, não podia deixar de pensar, o velho conde está tão doente, tão frágil. Se ele morrer não haverá mais ninguém para entregar em troca de Elis... Se ele morrer, eu poderei voltar e Elis continuará aqui... Mesmo que fosse por pouco tempo, eu poderia falar... A única coisa que precisava era de algum tempo, agora estava decidido. E, no último dia, quando ele desfaleceu... fiz tudo o que podia para o manter com vida e entretanto havia uma voz que não parava de bradar dentro de mim, deixa-o morrer! Não o fiz, trouxemo-lo ainda com vida...

Ficou um minuto em silêncio para respirar e Cadfael limpou-lhe os cantos da boca que lutava contra a exaustão para aliviar o pior dos fardos do coração e da consciência.

- Descansai um pouco. Exigis demasiado de vós mesmo.

- Não, deixai-em terminar... Eu amava-o, mas amava mais Cristina. E ele tê-la-ia desposado e ficado satisfeito, mas ela... ele não conhecia a febre que nós sentíamos. Conhece-a agora. Eu nunca quis que fosse assim... não planeei aquilo que fiz. Apenas me lembrei da capa do meu senhor, Einon, e fui, tal como estava, para a ir buscar. Tinha no braço o xairel dele.-Fechou os olhos à imagem que guardava com demasiada clareza e as lágrimas brotaram-lhe debaixo das pálpebras magoadas, escorrendo depois pelas duas faces. - Ele estava tão quieto, mal respirava, tão semelhante à morte. E dentro de uma hora Elis iria a caminho de casa, enquanto eu ficava para trás no seu lugar. Seria tão fácil! E foi nessa altura que fiz aquilo que preferia ter cortado as duas mãos a tê-lo feito, comprimi-lhe o xairel de encontro ao rosto. A partir daí não houve um único momento em que eu não desejasse poder desfazer o que estava feito - sussurrou Eliud -, mas desfazer não é tão fácil como fazer. Logo que compreendi a minha própria maldade, retirei precipitadamente as mãos, mas ele já estava morto. E eu senti um medo cobarde e deixei ficar a capa, pois se a tivesse levado saber-se-ia que eu lá estivera. E isso foi na hora em que tudo estava em sossego e ninguém me viu entrar ou sair.

Esperou de novo, tentando arranjar forças, com uma paciência enorme e cheia de seriedade, para continuar até ao fim.

- E tudo para nada, para nada! Tornei-me um assassino para nada. Elis veio ter comigo e contou-me que amava a filha do conde Gilbert e que desejava anular o compromisso com Cristina, tanto quanto ela o desejava e eu também. E que estava disposto a dar-se a conhecer ao pai dela... Tentei detê-lo... Precisava que alguém entrasse no quarto e encontrasse a minha vítima e o gritasse bem alto, mas Elis não, ah, Elis não! Mas ele insistiu. E mesmo nessa altura pensaram que o conde Gilbert estava vivo, apenas adormecido. E eu tinha de ir buscar a capa, se ninguém desse o alarme, mas não sozinho... uma testemunha que descobrisse o sucedido. Eu continuava a pensar que Elis iria ser obrigado a ficar e que eu devia partir. Ele desejava ficar e eu queria partir... Este nó foi um demónio que o atou - suspirou Eliud -, e só eu o merecia. Tudo aquilo que os três estão a sofrer por minha causa. E vós, irmão, portei-me ignominiosamente para convosco...

- Escolhendo-me para vossa testemunha? - disse Cadfael com suavidade. - E, mesmo nessa altura, fostes obrigado a fazer cair o banco para eu olhar com mais atenção. O vosso demónio ainda vos tinha pela mão, pois se tivésseis escolhido outro, talvez não tivesse sido dado o alarme do crime que vos pôs a ambos na situação de prisioneiros.

- Nessa altura foi o meu anjo, não foi nenhum demónio. A verdade é que estou contente por me ter libertado de todas as mentiras e por me dar a conhecer tal como sou. Eu nunca teria deixado que as culpas recaíssem sobre Elis ou sobre qualquer outro homem. Mas sou humano e conheço o medo - continuou, inflexível -, e esperava ser libertado. Agora está tudo resolvido. De uma maneira ou de outra, darei uma vida em troca de outra vida. Não teria deixado que Elis acarretasse com isso... Dizei-lho a ela!

Não era necessário, ela já o sabia. Mas a cabeceira da cama estava voltada para a porta e Eliud apenas viu a abóbada irregular do tecto e o rosto inclinado de Cadfael. A luz do candeeiro não vacilara, como também não vacilou naquele momento, quando Melicent se afastou da entrada, suavemente, e com todo o cuidado, puxando a porta, milímetro a milímetro atrás dela.

- Tiraram-me a corda - disse Eliud, varrendo languidamente com o olhar o quartinho exíguo e nu. -Vão ter de me arranjar outra.

Quando tudo estava dito, ele deixou-se ficar, vazio, muito fraco e totalmente dócil, isento de esperança e grato pela contrição. Deixou-se tratar para a cura, embora o seu sorriso melancólico dissesse a Cadfael que estava a desperdiçar esforços num homem morto. Fez todo o possível por ajudar no tratamento e suportou a dor sem um murmúrio quando as feridas foram esquadrinhadas, limpas e o curativo feito de novo. Tentou engolir as poções que lhe chegaram aos lábios e mostrou-se agradecido pelo mais ínfimo serviço. Quando mergulhou num sono inquieto, Cadfael foi procurar os dois homens que Hugh deixara às suas ordens e enviou um deles a cavalo até Shrews-bury com a notícia que traria Hugh imediatamente de volta. Quando regressou, Melicent aguardava-o à porta. A jovem leu-lhe no rosto a mistura de desalento e resignação que sentia por ter de repetir o que já antes fora uma provação ter de escutar e dirigiu-lhe prontamente palavras de consolação.

- Eu sei. Ouvi tudo. Ouvi-os falar, e a voz dele... Pensei que talvez precisásseis da ajuda de alguém e vim saber. Ouvi tudo o que Eliud disse. Que é que se pode fazer agora? - Apesar da calma que aparentava, sentia-se confusa e perdida entre o pai assassinado e o amante salvo, e a revelação do afecto violento que os dois irmãos de criação sentiam um pelo outro e por todos os lados só havia destruição e todas as saídas estavam cortadas. - Contei a Elis - disse. - E melhor que todos saibamos no que estamos metidos, mas só Deus sabe como estou confusa, duvido que neste momento consiga distinguir o bem do mal. Vinde comigo até junto de Elis. Ele está preocupado com Eliud.

Cadfael foi com Melicent, tão cheio de perplexidade como ele. Assassinato é assassinato, mas uma vida pode pagar o débito de outra vida e ali estava Elis para acertar as contas. Seria que era necessária mais uma vida? Haveria justificação para outra morte? Sentou-se com ela ao lado da cama, defrontando um Elis bem acordado e de posse de todos os seus sentidos, hesitando à beira de um estado febril.

- Melicent contou-me tudo - disse Elis, agarrando, agitado, a manga de Cadfael -, mas será que é verdade? Não o conheceis tão bem como eu! Tendes a certeza que ele não inventou esta história por recear que eu ainda possa ser acusado? Não estará ele convencido de que fui eu? Eliud seria bem capaz de chamar a si a responsabilidade para me ilibar. Fê-lo nos velhos tempos, quando éramos crianças, podia bem fazê-lo agora. Vistes com os vossos próprios olhos o que ele fez por mim! Estaria eu agora aqui em vida se não fosse Eliud? Não posso acreditar tão facilmente...

Cadfael fê-lo calar da maneira mais prática, examinando-lhe a compressa do braço, que estava seca, sem manchas e não lhe causava dores, não precisando de momento de novos cuidados. A ligadura que lhe comprimia a costela partida causava-lhe algum desconforto, afectando-lhe a respiração, e podia ser aliviada para o deixar mais à vontade. E qualquer poção que lhe apresentassem bebia-a distrai-damente, sem desviar os olhos do rosto de Cadfael, solicitando resposta às suas perguntas desesperadas. E a verdade pouco conforto lhe daria.

-Filho - disse Cadfael -, não há virtude em lutar contra a verdade. A narrativa de Eliud é perfeitamente consistente e é a verdade. Por mais que me custe dizê-lo, é a verdade. Afastai todas as dúvidas do vosso espírito.

Receberam estas palavras com a mesma calma límpida e não apresentaram mais protestos. Depois de um longo silêncio, Melicent disse:

- Acho que já o sabíeis antes.

-Sabia-o, desde o momento em que pus os olhos no xairel de brocado de Einon ab Ithel. Só isso e nenhuma outra coisa podia ter morto Gilbert e era a Eliud que incumbia tratar do cavalo e dos arreios de Einon. Sim, eu sabia. Mas ele fez a sua confissão voluntariamente, cheio de ansiedade, antes que eu pudesse interrogá-lo ou fazer-lhe qualquer acusação. Isso é uma virtude da sua parte e conta a seu favor.

- Só Deus sabe - disse Melicent, escondendo com força o rosto pálido nas próprias mãos, como que a tentar manter a lucidez -, a favor de quem ousarei falar, eu que estou tão dividida. Tudo o que sei é que Eliud não pode, não lhe compete arcar com todas as culpas. Neste caso, qual de nós está inocente?

- Vós estais - disse Elis impetuosamente. - Em que falhastes? Mas se eu tivesse parado um pouco para ver como se passavam as coisas entre ele e Cristina... Comigo era tudo demasiado fácil, demasiado superficial, gostava de mais de mim mesmo para tomar atenção. Nunca eu sonhara que existisse tal amor, não sabia... Tinha tudo a aprender. - A lição não tinha sido fácil, mas agora sabia-a de cor.

- Se ao menos eu tivesse tido mais confiança em mim mesma e no meu pai - disse Melicent -, podíamos ter informado francamente o meu pai no País de Gales, e o próprio Owain Gwynedd, de que nós dois nos amávamos e pedíamos licença para nos casarmos...

- Se ao menos eu tivesse sido tão rápido em perceber o que atormentava Eliud como ele o era sempre para afastar de mim todas as dificuldades...

- Se todos nós fôssemos mais capazes e nunca nos desviássemos do caminho - disse Cadfael tristemente -, tudo seria bom e bonito neste mundo admirável, mas nós tropeçamos e caímos, todos nós. Temos de nos contentar com o que temos. Ele fê-lo e todos nós temos de partilhar o fel.

Saindo de um silêncio amargo, Elis perguntou:

- Que vai ser dele? Haverá clemência? Com certeza, não vai ter de morrer?!

- Isso é com a lei e, no que diz respeito à lei, eu não tenho qualquer peso.

- Melicent apiedou-se de mim - disse Elis -, antes mesmo de saber que eu estava inocente da morte do pai...

- Ah, mas eu sabia! - atalhou ela rapidamente. - O meu espírito sofria só por alguma vez ter duvidado.

- E eu amei-a ainda mais por isso. E Eliud confessou, sem ter sido acusado por ninguém e isso deve contar a favor da sua virtude e, como dizeis, conta a seu favor.

-Isso e tudo o mais conta a seu favor-prometeu Cadfael em tom fervoroso -, será mencionado em sua defesa, eu próprio me encarregarei disso.

- Mas não tendes esperança - disse Elis com tristeza, observando-o com um olhar agudo.

Gostaria de o negar, mas para quê, quando o próprio Eliud aceitara e abraçara, com resignação e humildade, a morte inevitável. Cadfael ofereceu todo o conforto que lhe foi possível, sem mentir, e deixou-os na companhia um do outro. A última visão que teve, ao fechar a porta, foi a de dois rostos tensos e cautelosos, seguindo a sua retirada com um olhar fixo e velado, os espíritos fechados e secretos. Só a aliança fogosa da mão a apertar outra mão, sobre a coberta da cama, os traía.

Hugh de Beringar veio no dia seguinte, apressado, escutou num silêncio sombrio enquanto Eliud labutava mais uma vez, com uma paciência desolada, através da sua história, como já fizera antes para o padre idoso que celebrava missa para as irmãs. Enquanto a alma de Eliud encarava humildemente a retirada deste mundo, Cadfael notou que o seu corpo maltratado começava a sarar e a encontrar conforto, muito lentamente, mas sem qualquer sombra de dúvida. O seu espírito consentia em morrer, mas o corpo decidia-se pela vida. Os ferimentos estavam limpos, a sua excelente juventude e boa condição física lutavam arduamente, quer isso fosse a seu favor quer contra ele, quem poderia dizer?

-Bom, estou a ouvir-disse Hugh, um tanto cansado, percorrendo a pé a margem do riacho com Cadfael a seu lado. -Dizei o que tendes para dizer. - Mas Cadfael nunca lhe vira uma expressão tão sombria.

- Ele fez uma confissão completa e de livre vontade - disse Cadfael -, antes que alguém lhe apontasse um dedo que fosse, logo que se apercebeu de que poderia estar às portas da morte. Sentia uma pressa desesperada em fazer justiça a todos, não apenas a Elis, todos os que pudessem estar sob a sombra da dúvida por causa dele. Conheceis-me e eu conheço-vos. Digo-vos francamente que estava preparado para lhe dizer que sabia que ele tinha morto. Juro que ele me tirou as palavras da boca. Ele queria a confissão, penitência e absolvição. Acima de tudo, queria afastar a ameaça de Elis e de qualquer outro que pudesse estar sob suspeita.

- Aceito totalmente a vossa palavra - disse Hugh -, e isso já é alguma coisa. Mas será o suficiente? O que sucedeu não foi uma alteração acesa, nascida de um momento para o outro, antes que ele tivesse tempo de pensar: era um velho, ferido e doente, que dormia na sua cama.

- Mas não foi um acto planeado. Ele entrou ali para ir buscar a capa do seu senhor. Tenho a certeza de que isso é verdade. Mas, se pensais que o sangue estava frio, santo Deus, como vos enganais! O rapaz estava meio louco com o sangrar prolongado do seu amor sem esperança, acabou por chegar ao ponto da rebelião e o fio ténue de uma vida, que ele cuidara como um dever, separava-o do adiamento que a sua coragem repentina necessitava. Que Deus lhe perdoe, mas ele tivera esperança de que Gilbert morresse! Ele próprio o disse francamente. O acaso mostrou-lhe esse fio tão frágil que um sopro o poderia cortar e, antes mesmo de ter tido tempo de pensar, ele soprou! Diz que se arrependeu do que fez em cada momento que passou desde aí e eu acredito-o. Vós mesmo, Hugh, nunca cometestes um acto indigno sob o impulso do momento, que vos tenha desgostado e envergonhado depois?

- Não ao ponto de matar um velho na sua própria cama - replicou Hugh sem piedade.

-Não! Nem nada que se lhe possa comparar-disse Cadfael com um suspiro e um sorriso breve. - Perdoai-me, Hugh! Eu sou galês e vós sois inglês. Nós galeses admitimos os graus. O roubo, roubo absoluto, sem uma desculpa, é a nossa pior ofensa, e portanto limitamo-lo com graus, coisas que não constituem roubo absoluto: tomar abertamente pela força; tomar na ignorância; tomar sem permissão desde que o transgressor o admita; e tomar para preservar a vida, no caso em que um pedinte não come há três dias. No País de Gales ninguém é enforcado nestas situações. Mesmo na morte, mesmo no crime, reconhecemos os graus. Fazemos uma distinção entre homicídio e assassinato e mesmo os piores podem por vezes ser liquidados por um preço mais baixo que o enforcamento.

-Assim eu pudesse fazer tais distinções - disse Hugh, pensativo, olhando para o vau tranquilo. - Mas tratava-se do meu senhor, cujo lugar ocupo neste momento, na falta do meu rei para dar as ordens. Não posso dizer que fôssemos amigos, mas ele sempre foi justo comigo e sabia escutar, embora eu não me sentisse muito feliz com alguns dos seus juizes mais austeros. Ele era um homem honesto e cumpriu o seu dever para com este meu condado o melhor que sabia, a sua morte deixa-me agrilhoado.

Cadfael manteve um silêncio respeitoso. Era uma disciplina que estava agora afastada da sua, mas em tempos existira esse laço, essa vassalagem e lembrava-se bem dela, não estavam assim tão distantes.

- Deus me livre - disse Hugh -, de mandar para fora deste mundo alguém a não ser aqueles a quem, de tão vis, não deve ser permitido que vivam nele. E não é de nenhum monstro desses que estamos a falar. Um erro fatal, uma única vileza e uma criatura que mal completou, que idade tem ele, vinte e um? E fortemente posto à prova, mas também qual de nós o não é? Ele terá o seu julgamento e eu farei o que tiver que fazer - disse Hugh com severidade. - Mas, prouvera a Deus, que isso me fosse tirado das mãos!

 

Nessa tarde, antes de se ir embora, tornou clara a sua vontade perante os outros.

- Owain pode ver-se em dificuldades se Chester fizer nova avançada, ele vai querer os seus homens.

Já lhe mandei dizer que, todos os que estão ilibados neste momento, partirão daqui depois de amanhã. Tenho em Shrewsbury seis bons soldados que lhe pertencem. Esses homens estão livres e eu vou equipá-los devidamente para a jornada de regresso. Depois de amanhã, o mais cedo possível, às primeiras horas da alvorada, estarão aqui para levar consigo Elis ap Cynan de volta para Tregeiriog.

- Impossível - disse redondamente Cadfael -, ele ainda não está em estado de cavalgar. Tem uma luxação no joelho e uma costela partida, além do ferimento no braço, embora tudo esteja a correr bem. Não pode sentir-se confortável em cima de um cavalo, senão daqui a três ou quatro semanas. E não poderá cavalgar a sério nem entrar num combate durante mais algum tempo ainda.

- Nem precisa - disse Hugh secamente. - Esqueceis-vos que temos os cavalos emprestados por Tudur ap Rhys, folgados e prontos para trabalhar. Elis pode viajar numa liteira, tal como fez Gilbert e em muito pior estado. Quero todos os homens de Gwynedd em segurança fora daqui antes de me lançar contra Powys, como é minha intenção. Convém que ponhamos ponto final num problema antes de enfrentarmos outro.

Portanto, estava decidido e não havia nada a fazer. Cadfael esperara que a ordem fosse recebida por Elis com consternação, tanto por causa de Eliud como por si próprio, mas depois de uma breve exclamação de desalento, subitamente controlada, houve uma pausa mais longa para pensar, enquanto punha de lado a questão da sua própria partida, não sem um olhar severo e meditativo, tendo-se voltado apenas para confirmar que não havia qualquer possibilidade de Eliud escapar a ser julgado por crime de morte e poucas ou praticamente nenhumas de que lhe viesse a ser dada outra sentença a não ser a morte. Era difícil aceitar, mas afinal não parecia que Elis tivesse outra alternativa. Uma calma estranha e vigilante apossara-se dos dois amantes, tinham uma maneira de olhar um para o outro como se partilhassem pensamentos que não precisavam de palavras para serem comunicados, a troca fazia-se num código silencioso que mais ninguém conseguia ler. A não ser, talvez, a irmã Madalena. Ela própria andava por ali num silêncio meditativo e com o olhar penetrante pousado em ambos.

-Portanto, vêm buscar-me de manhã cedo, depois de amanhã- disse Elis. Deitou um olhar breve a Melicent e ela a ele. - Bom, posso e vou mandar o meu pedido formal de Gwynedd, tudo deve ser feito abertamente e com veracidade quando eu ficar noivo de Melicent. E há assuntos que tenho de tratar em Tregeiriog, antes de ficar livre. -Não fez menção do nome de Cristina, mas o pensamento estava ali, desolado e opressivo, no quarto com eles. Ter ganho a sua batalha e acabar por ver a vitória transformar-se em cinzas e escapar-lhe por entre os dedos! - Eu tenho um sono muito pesado - disse Elis com um sorriso sombrio -, pode acontecer que tenham de me enrolar nos cobertores e carregar-me ainda a dormir, se vierem muito cedo. - E terminou com uma gravidade repentina: - Perguntai, por favor, a Hugh Beringar se posso mandar levar a minha cama para a cela de Eliud por estas duas noites. Não será pedir muito.

- Pergunto - disse Cadfael após uma pausa breve para lhe perceber a intenção, pois fazia sentido de várias maneiras. E apressou-se a ir transmitir o pedido. Hugh já se preparava para saltar para o cavalo e regressar à cidade e a irmã Madalena estava no pátio para o ver partir. Sem dúvida que lhe apresentara entretanto, à sua maneira, todos os argumentos de clemência que Cadfael já tinha usado antes e talvez outros em que ele não pensara. Era duvidoso que houvesse alguma colheita, mesmo com a semente que ela lançara com a sua habilidade, mas quem não semeia não colhe.

- Deixai que fiquem juntos, claro - disse Hugh, encolhendo os ombros melancolicamente -, se isso lhes dá algum conforto. Logo que o outro estiver em estado de se mexer, tirá-lo-ei dos vossos cuidados, mas entretanto deixai-o descansar. Quem sabe, aquela seta galesa talvez ainda nos faça um favor, se Deus se apiedar dele.

A irmã Madalena seguiu-o com o olhar até que o último homem da escolta desapareceu no caminho arborizado.

- Pelo menos - disse nessa altura -, não sente prazer algum com tudo isto. É uma pena prosseguir, quando ninguém tem nada a ganhar e todos sofrem.

- Uma grande pena! Ele próprio disse - relatou Cadfael, igualmente pensativo -, que desejaria que fosse a vontade de Deus que lhe tirassem isso das mãos. - E, olhando por cima do ombro para a irmã Madalena, deu com ela a olhá-lo, com o mesmo ar de inocência. Sentiu uma ilusão breve e carregada de surpresa de estarem a começar a parecer-se uns com os outros e a trocar olhares silenciosos e tão eloquentes como os de Elis e Melicent.

- Ah, disse? - comentou a irmã Madalena num tom inocentemente compreensivo. - Isso merecia algumas orações, amanhã vou recomendar que seja mencionado na capela em todos os ofícios divinos. Quem nada pede, nada merece.

Entraram juntos e tão forte era aquele sentimento de pleno acordo entre ambos, ainda que se tratasse de um acordo que seria melhor não pôr em palavras, que ele chegou ao ponto de lhe pedir conselho sobre uma questão que o preocupava. No meio do tumulto da batalha e dos esforços para socorrer os feridos, não tivera a oportunidade de transmitir a mensagem que Cristina lhe confiara, e depois da confissão de Eliud ficara dividido no seu espírito sobre se seria uma boa acção fazê-lo ou o golpe mais cruel que poderia desferir.

- Aquela rapariga que ele deixou em Tregeiriog, a mesma por quem andava de cabeça perdida, encarregou-me de uma mensagem para ele e eu prometi que lha entregaria. Mas agora, com o destino que o espera... Será justo dar-lhe todas as razões para viver, quando talvez já não haja vida para ele? Será que devemos tornar o mundo, caso ele tenha que o deixar, mil vezes mais desejável? Que espécie de caridade seria essa?

E repetiu-lhe, palavra por palavra, o conteúdo da mensagem. Ela ficou a pensar, mas não por muito tempo.

- Não tendes muito por onde escolher, se prometestes à rapariga. E a verdade nunca deve ser olhada com receio. Além disso, pelo que vejo, ele está disposto a morrer, embora o seu corpo esteja determinado a viver e, sem qualquer forma de incentivo, ele pode ganhar a batalha contra o próprio corpo, voltar a cara para a parede e apagar-se. O que talvez não fosse pior, se a única alternativa estiver na forca. Mas se, e eu digo se, os tempos cederem, deixando-o viver, nesse caso seria uma pena não lhe fornecer todos os escudos e todas as armas que o ajudem a sobreviver para escutar a boa notícia. - Voltou a cabeça e olhou para ele mais uma vez, com aquela expressão profunda e pensativa que já lhe vira antes. Depois sorriu. - Valia a pena apostar - disse.

-Também começo a pensar que sim-replicou Cadfael e foi para dentro para ver lançar a aposta.

Ainda não tinham mudado Elis e a sua cama para a cela vizinha, Eliud continuava deitado, sozinho. Por vezes, estudado o percurso da flecha no ombro direito do jovem, mas um pouco abaixo, Cadfael duvidava que ele alguma vez fosse capaz de manejar novamente o arco, mesmo que num futuro mais ou menos distante viesse a conseguir puxar da espada. Mas, naquele momento, esse era o menor dos perigos que o ameaçavam. Mais valia oferecer-lhe, para contrabalançar, o melhor dos bens prometidos.

Cadfael sentou-se ao lado da cama e contou como Elis pedira autorização para ir para junto dele e como a mesma lhe fora concedida. Isso trouxe uma alegria estranha e desesperada ao rosto magro e vulnerável de Eliud. Cadfael conteve-se para não falar na partida eminente de Elis, ao mesmo tempo que perguntava de passagem a si próprio porque preferia manter o silêncio sobre esse facto, para compreender precipitadamente que era melhor nem pensar nisso e muito menos fazer perguntas. A inocência é uma coisa infinitamente frágil e o pensamento pode às vezes prejudicá-la ou mesmo destruí-la.

- Há ainda uma mensagem que eu prometi trazer-vos e não tive, até este momento, ocasião para isso. É de Cristina, quando saí de Tre-geiriog. - O nome dela fez que todos os traços do rosto de Eliud se contraíssem numa palidez fechada e cautelosa, enquanto os olhos se dilatavam repentinamente num verde-brilhante como o sol, no meio da tempestade, por entre as folhas de Junho. - Cristina manda dizer-vos, por meu intermédio, que falou com o pai dela e com o vosso e que em breve terá o consentimento necessário para dispor da sua pessoa e entregar-se a quem desejar. E que ela não se entregará a ninguém a não ser a vós.

Uma enxurrada repentina e violenta afogou o verde e fez faiscar a luz do sol nas fontes repentinas. A mão esquerda de Eliud, que nada sofrera, tacteou desajeitadamente, à procura de alguma coisa de humano que pudesse agarrar para se reconfortar e acabou por se fechar, sequiosa, sobre a mão que Cadfael lhe ofereceu, arrastando-a primeiro de encontro à face palpitante e depois, mais abaixo, sobre o coração que palpitava freneticamente. Cadfael deixou-o ficar assim alguns momentos, até a tempestade passar. Quando o jovem ficou novamente sossegado, retirou a mão com suavidade.

- Mas ela não sabe - sussurrou Eliud desesperadamente -, aquilo que eu sou... o que fiz...

-Aquilo que ela sabe sobre vós é tudo o que precisa saber, que vos ama tal como vós a amais e que não há nem nunca poderá haver outro. Não creio que a culpa ou a inocência, o bem ou o mal possam modificar os sentimentos de Cristina para convosco. Meu filho, segundo os padrões normais dos homens, tendes pelo menos trinta anos de vida diante de vós, o que é espaço suficiente para o casamento, para ter filhos, alcançar a fama, a reconciliação, a santidade. O que está feito está feito, mas o mais importante é o que ainda há a fazer. Cristina tem a verdade dentro dela. Quando souber tudo ficará entristecida, mas não mudada.

- O tempo com que eu posso contar - disse Eliud com voz fraca através das cobertas que lhe escondiam o rosto desolado -, são algumas semanas, meses no máximo. Não são trinta anos.

- Deus é que fixa os prazos - disse Cadfael -, não são os homens, nem os reis, nem os juizes. Um homem deve estar preparado para enfrentar a vida, tal como a morte, não há maneira de escapar a nenhuma delas. Quem sabe a duração da penitência ou a magnitude da reparação que podem vir a ser exigidas de vós?

Nesse momento levantou-se do sítio onde estava, pois John Mil-ler e mais alguns vizinhos, apresentando as pequenas cicatrizes da batalha recente, entraram trazendo Elis, com a cama e tudo, do quarto ao lado, e instalaram-na ao lado da de Eliud. Era uma boa altura para se ir embora, o rapaz já tinha viva dentro dele a centelha do futuro, embora a resignação o instigasse fortemente a apagá-la, e agora esta reunião com a outra metade do seu ser surgia na altura própria. Cadfael deixou-se ficar um momento para os ver instalados e observar John Miller, enquanto este puxava para baixo as cobertas de Eliud para o levantar e mudar de posição, com a mesma leveza como se se tratasse de uma criança e com uma perícia só comparável à de uma mãe. John passara algum tempo com Elis e Melicent e desenvolvera uma grande estima pelo jovem, considerando-o um rapazinho corajoso e prometedor entre os da sua raça. Um homem útil, com a sua força imensa e equilibrada, capaz de erguer um homem doente no meio do sono, desde que gostasse suficientemente do homem, e tirá-la dali sem lhe perturbar o descanso. E dedicado à irmã Madalena, cujas ordens eram respeitadas como as de um rei.

Sim, um aliado útil.

Bom...

O dia seguinte passou-se numa espécie de silêncio deliberado, como se cada homem e cada mulher caminhasse delicadamente, com a respiração suspensa, respeitando o ritual da casa com especial respeito e reverência para evitar todo e qualquer deslize. Nunca o horário da ordem fora mais escrupulosamente observado em Godric's Ford. Madre Mariana, pequenina, mirrada e idosa, presidia a uma irmandade de uma devoção tão exemplar que desarmava o próprio destino. E os seus hóspedes forçados, nos dois leitos gémeos, colocados lado a lado na mesma cela, foram deixados tranquilos e a vontade na companhia um do outro. A própria Melicent, que era agora uma hóspede leiga da casa e não uma postulante, ocupava-se dos trabalhos do dia com um rosto puro e tranquilo, deixando os dois jovens entregues aos seus assuntos.

O irmão Cadfael compareceu aos ofícios, fez algumas orações fervorosas por sua conta e acompanhou a irmã Madalena quando esta foi tratar os feridos das vizinhanças, que ainda precisavam da sua atenção.

-Estais esgotado-disse a irmã Madalena, solícita, quando voltavam para comer qualquer coisa, já fora de horas, e assistir ao ofício da noite. - Amanhã, faríeis melhor em dormir até à hora das Matinas, praticamente há três dias que não descansais. Despedi-vos de Elis esta noite, pois devem vir buscá-lo logo ao alvorecer. Estava agora a pensar que me fazia jeito mais um frasco daquele vosso xarope de papoilas, o meu já se gastou e amanhã tenho de ir visitar um doente a quem as dores não deixam dormir. Seríeis capaz de me encher o frasco se eu vo-lo trouxer?

- De boa vontade - replicou Cadfael e foi buscar a garrafa que o irmão Oswin lhe mandara de Shrewsbury, depois da batalha. A irmã Madalena trouxe-lhe um grande frasco de vidro verde e ele encheu-o, sem mais comentários.

Também não se levantou cedo na manhã seguinte, embora já estivesse acordado. Era tão bom como qualquer outro a interpretar um pequeno toque com o cotovelo. Ouviu chegar os cavaleiros, bem como a voz da porteira e outras vozes, tanto galeses como ingleses, e entr elas, sem dúvida, a voz de John Miller. Mas não se levantou para ir lá fora vê-los partir.

Quando se apresentou ao ofício divino, os viajantes, segundo os seus cálculos, já deviam levar duas horas de caminho em direcção ao País de Gales, armados com o salvo-conduto de Hugh para a primeira parte da jornada, bem montados e com mantimentos suficientes. A irmã porteira conduzira-os à cela onde aquele que vinham buscar, Elis ap Cynan, se encontrava na cama junto da entrada e John Miller transportara-o nos braços, bem coberto e agasalhado, e estendera-o na liteira que devia transportá-lo até casa. Madre Mariana em pessoa viera testemunhar a partida e dar-lhes a sua bênção.

Depois do serviço religioso, Cadfael foi ocupar-se do paciente que ficara para trás. Mais valia continuar a fazer tudo como nos dias anteriores. Duas boas horas já era um avanço considerável e alguém ia ter de ser o primeiro a entrar, não, o primeiro não, pois Melicent certamente já lá estivera antes dele, mas o primeiro dos outros, dos potenciais inimigos, os não iniciados.

Abriu a porta da cela e estacou no limiar. Iluminados pela semi-obscuridade do quarto, dois rostos erguidos e pálidos defrontavam o seu, quase colados um ao outro. Melicent estava sentada à beira da cama, segurando nos braços o seu ocupante, pois este tinha-se erguido, com uma capa enrolada em volta dos ombros nus, para enfrentar erecto aquele momento. A ligadura que lhe envolvia a costela partida acompanhava os batimentos do coração, acelerados e apreensivos, e os olhos que se fixaram em Cadfael não eram de uma cor de avelã-esverdeada, mas quase tão escuros como a massa dos caracóis negros.

- Quereis ter a bondade de informar o conde Beringar - disse Elis ap Cynan -, que fiz partir o meu irmão de criação e que estou aqui para responder por todas as acusações que possam ser-lhe feitas. Por mim, ele pôs uma corda em volta do pescoço, e eu faço-o agora por ele. Seja o que for que a lei exija, pode ser executado em mim no lugar dele.

Estava dito. Respirou fundo e estremeceu com o esforço, mas a dura expectativa do rosto suavizou-se, agora que o primeiro passo tinha sido dado e já não havia mais nada a esconder.

- Lamento ter tido de enganar a madre Mariana - acrescentou. - Dizei-lhe que imploro o seu perdão, mas não havia outra maneira que fosse justa para todos. Não queria que mais ninguém fosse inculpado por aquilo que fiz. - E continuou, com uma simplicidade repentina e impulsiva. - Estou contente por terdes sido vós a vir aqui. Enviai rapidamente um mensageiro à cidade, pois estou desejoso que tudo isto termine. E Eliud já deve estar em segurança.

-Encarregar-me-ei da vossa incumbência - disse Cadfael com ar grave -, de ambas as incumbências. Sem perguntas.-Nem mesmo perguntou se Eliud estava ao corrente do plano, pois já conhecia a resposta. No meio de todos os que tinham sentido necessidade de não usar os olhos, nem os ouvidos, Eliud destacava-se como uma figura à parte na sua inocência desesperada, no seu lamentável sentimento de culpa. Alguém entre aqueles que o transportavam na estrada para o País de Gales ia ver-se, logo que terminasse o sono profundo e longo, com um inválido nas mãos e num estado de angústia que tocava o desespero. Mas no fim daquela fuga imposta, fossem quais fossem as medidas que Owain Gwynedd resolvesse tomar, havia Cristina à sua espera.

- Fiz tudo o que podia - disse Elis muito sério. - Eles vão mandar alguém à frente para que ela venha ao seu encontro. É um caminho difícil, mas é o caminho da vida.

Elis ap Cynan parecia ter crescido bastante desde que acompanhara a primeira incursão a Godric's Ford. Este não era o mesmo rapaz que vingara o seu medo nervoso perante o cativeiro atirando insultos em galês, com uma expressão inocente contra os seus captores, nem ela era a mesma rapariga que acalentara a ideia romântica de tomar o véu, antes de saber o que significava casamento ou vocação.

- A questão parece ter sido bem orientada - disse Cadfael com imparcialidade. - Muito bem, vou dar a notícia, aqui e em Shrews-bury.

Já quase tinha fechado a porta, quando Elis o chamou:

- Em seguida, seríeis capaz de vir ajudar-me a vestir? Quero apresentar-me decente e pelo meu pé quando falar com Hugh Beringar.

E foi isso que fez, quando Hugh apareceu, à tarde, com ar sombrio e a fronte carregada, para se certificar da perda do seu criminoso. No locutório minúsculo de madre Mariana, forrado a madeira escura e desguarnecido, Elis e Melicent encontravam-se à sua espera, de pé, lado a lado. Cadfael enfiara-lhe as calças, a camisa e o casaco e Melicent penteara-lhe o cabelo, uma vez que ele não conseguia fazê-lo sem sofrimento. A irmã Madalena, depois de um olhar crítico quando deu os primeiros passos inseguros, arranjara-lhe uma bengala para reforçar o joelho traiçoeiro que ainda não se aguentava na sua posição normal, ameaçando vergar e deixá-lo cair. Depois de pronto, ficou com um ar muito jovem, cuidado e solene, e compreensivelmente assustado. Estava um pouco torcido para o lado, para aliviar a costela que o obrigava a respirar em inspirações breves. Melicent estava atenta, com uma das mãos junto do braço dele, mas sem lhe tocar.

- Enviei Eliud para o País de Gales no meu lugar - disse Elis, com a postura rígida que lhe vinha tanto das suas apreensões como da firmeza da decisão -, já que lhe devo a vida. Mas aqui me tendes às vossas ordens e à vossa disposição, para aquilo que vos parecer mais adequado. Seja o que for que achais que ele deve, exigi-me a mim o pagamento.

- Pelo amor de Deus, sentai-vos! - disse Hugh em tom breve e de forma desconcertante. - Recuso-me a ser o alvo do sofrimento que decidistes infligir a vós próprio. Se me estais a oferecer o pescoço, basta. Não preciso para nada das vossas angústias presentes. Não estou interessado em heróis.

Elis corou, estremeceu e sentou-se, obediente, mas não desviou os olhos do rosto sombrio de Hugh.

- Quem vos ajudou? - perguntou Hugh com uma calma glacial.

- Ninguém. Concebi o plano sozinho. Os homens de Oswain fizeram aquilo que lhes mandei. - Isso podia ser dito abertamente, já iam bem longe e no seu próprio país.

- Nós concebemos o plano - disse Melicent com firmeza. Hugh ignorou-a ou pareceu insistente.

- Ninguém. Melicent sabia, mas não participou. Eu sou o único responsável. Acusai-me a mim!

- Então, sozinho, conseguistes transferir vosso primo para a outra cama. É extraordinário para um homem aleijado e que não consegue andar, conseguir levantar o peso de outro homem. E, segundo me disseram, um certo moleiro aqui destas paragens transportou Eliud ap Griffith para a liteira.

- Fazia escuro cá dentro e lá fora quase não se via nada - disse Elis com firmeza -, e eu...

- Nós - corrigiu Melicent.

- Eu já tinha Eliud bem embrulhado, pouco se via da sua pessoa.

John não fez mais do que emprestar os braços fortes, por caridade para comigo.

- Eliud teve conhecimento da troca?

- Não! - exclamaram ao mesmo tempo, em voz alta e agreste.

- Não! - repetiu Elis, com a voz a tremer com o fervor da negativa. -Ele não sabia de nada. Dei-lhe, com a sua última bebida, uma boa porção do xarope de papoilas que o irmão Cadfael usou para nos aliviar as dores no primeiro dia. Provoca um sono profundo. Eliud nunca acordou e não se apercebeu de nada! Ele nunca teria consentido.

-E como é que vós, preso ao leito, conseguistes arranjar o xarope?

- Fui eu que roubei o frasco à irmã Madalena - disse Melicent. - Perguntai-lhe! Ela vos dirá a dose enorme que foi tirada de lá. - Diria sem dúvida, com toda a gravidade e preocupação. Hugh não duvidava, nem tencionava pô-la na situação de ter de lhe responder. E Cadfael também não. Ambos se tinham ausentado avisadamente daquele julgamento, juiz e culpados tinham a questão inteiramente nas suas mãos.

Fez-se um silêncio breve e pesado que se abateu penosamente sobre Elis, enquanto Hugh os olhava a ambos de sobrolho carregado, acabando por se fixar em Melicent numa atenção pesada.

- Vós, entre todas as pessoas - disse -, tínheis o maior dos direitos de exigir o pagamento por parte de Eliud. Haveis perdoado tão depressa? Quem ousará então opor-se?

- Nem tenho bem a certeza - disse Melicent devagar -, se sei o que é o perdão. Apenas me parece uma triste perca que, tudo o que há de bom num homem, não chegue para apagar um só pecado, por pior que tenha sido. E o mundo que perde. E eu não queria mais mortes. Uma já trouxe bastante sofrimento, a segunda não conseguiria apagá-lo.

Outro silêncio, mais prologado que o primeiro. Elis ardia, tremendo, ansioso de ouvir a sua sentença, fosse ela qual fosse, para conhecer o melhor e o pior. Estremeceu, quando Hugh se levantou abruptamente.

-Elis ap Cynan, não tenho qualquer acusação a fazer contra vós, segundo a lei. Não vos exijo qualquer preço. Seria melhor que ficásseis aqui mais algum tempo a descansar. O vosso cavalo continua nos estábulos da abadia. Quando vos sentirdes capaz de enfrentar a viagem, podeis ir juntar-vos ao vosso irmão de criação. - E, antes que eles conseguissem dizer uma palavra, Hugh saíra do quarto e a porta tinha-se fechado sobre ele.

O irmão Cadfael caminhou algum tempo ao lado do amigo, quando Hugh iniciou a jornada de regresso a Shrewsbury, ao fim da tarde. Nos últimos dias o tempo estivera ameno e ao longo do caminho verde os ramos das árvores vestiam-se com o véu delicado dos primeiros rebentos da Primavera. Também o canto das aves começou a palpitar com a excitação habitual e a inquietação que antecedia o acasalamento, o fazer dos ninhos e a criação dos filhos. Uma época para toda a espécie de nascimentos e princípios e para afastar a ideia da morte.

- Que outra coisa podia eu ter feito? - disse Hugh. - Este não cometeu nenhum crime, nunca me deveu aquele pescoço gracioso que insiste em me oferecer. E, se eu o tivesse enforcado, estaria a enforcá-los a ambos, pois só Deus sabe como é que mesmo uma rapariga tão decidida como Melicent ou como aquela de que me falastes lá em Tregeiriog, vai alguma vez conseguir separar as duas metades daquele par. Duas vidas por uma não é um acordo justo. - Olhou para baixo do alto da sela do cavalo cinzento e ossudo que era a sua montada favorita e sorriu para Cadfael; era a primeira vez, havia vários dias, que alguém o via sorrir abertamente, sem ironia nem reserva. - Até que ponto estáveis ao corrente?

-Não estava ao corrente de nada-replicou Cadfael com simplicidade. - Desconfiei de muita coisa, mas posso dizer com sinceridade que não sabia de nada e nunca levantei um dedo. - No seu silêncio, surdez e cegueira fora conivente, mas não precisava dizê-lo, Hugh devia saber. Hugh que não podia ser conivente. Como também não era necessário que Hugh alguma vez dissesse com que secreta gratidão renunciara ao julgamento que, por sua vontade, nunca teria levado por diante.

-Que irá acontecer a todos eles?-disse Hugh pensativo. - Elis vai voltar para o País de Gales logo que esteja em estado disso, estou convencido, e daí enviará o seu pedido de casamento formal. Ela não tem nenhum parente varão a quem fazer o pedido, a não ser o irmão da mãe, mas esse está bem longe, com a rainha, em Kent e não há forma de chegar a ele. Imagino que a irmã Madalena aconselhará a jovem a voltar para junto da madrasta enquanto espera, para que tudo se faça como é devido, e ela tem o bom senso suficiente para ouvir um conselho e a paciência necessária para esperar por aquilo que quer, agora que tem a certeza que acabará por o conseguir. Mas os outros dois?

Eliud e os seus companheiros já deviam ir longe, no País de Gales, e não precisavam de se apressar, cansando demasiadamente o doente. A poção de esquecimento que lhe tinha sido ministrada iria talvez embotar-lhe um pouco os sentidos nos primeiros momentos depois do acordar e os outros fariam todo o possível por lhe aliviar o remorso e o desgosto e os seus receios em relação a Elis. Mas aquele espírito inquieto e apaixonado nunca conheceria uma tranquilidade completa.

- Que irá Owain fazer com ele?

-Não o vai destruir, nem perdê-lo-disse Cadfael -, desde que abdiqueis dos vossos direitos sobre ele. Há-de viver, há-de casar com a sua Cristina, não vai haver sossego para príncipe, padre ou pai enquanto ela não tiver o que deseje. Quanto à punição, ele tem-na dentro de si, há-de acompanhá-lo toda a vida. Não há nada a não ser a própria morte, que vós ou qualquer outro homem pudésseis fazer cair sobre a sua cabeça que ele não faça cair sobre si mesmo. Mas se Deus quiser, não terá de suportar isso sozinho. Não há crime, nem falta que possa afastar Cristina dele.

Separaram-se ao cimo do caminho. Sob as árvores havia uma penumbra prematura, mas ainda as aves continuavam a cantar com a extrema e violenta alegria que parecia suficientemente ruidosa para reduzir a pó instrumentos tão frágeis ou para lhes fazer rebentar os corações dentro do peito. As anémonas estremeciam no meio da erva.

-Parto mais aliviado do que vim-disse Hugh, refreando por um momento o cavalo, antes de tomar o caminho do regresso.

- Logo que vir esse jovem a andar direito e a respirar livremente, sigo também. E contente por voltar para casa. - Cadfael olhou para trás, para os telhados baixos de madeira da granja da madre Helena, onde a luz prateada através do rendilhado dos ramos reflectia o movimento incessante do ribeiro. - Espero que tenhamos, entre todos, levado a bom termo um grande mal, e quem poderia fazer mais? Lembro-me de, em tempos, o Sr. Abade ter dito que a nossa finalidade é a justiça e que o privilégio da clemência pertence a Deus. Mas até o próprio Deus, quando se inclina para a clemência, precisa de instrumentos para ela.

 

                                                                                Ellis Peters  

 

                      

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