SENTIA-SE pequena, delgada, pouco vestida apesar das peles e do capuz. Um vento gelado de este varria o boulevard Saint-Michel, arrastando e empurrando os transeuntes.
Mas eram quase todos tão novos! Aquilo divertia-os.
Mas não divertia Isabel Morlainville. Ela não gostava do vento, nem do frio, de nada com que fosse preciso lutar. No entanto, vivia num tempo em que os homens apenas pensavam nisso, em lutar. Não conseguira ainda adaptar-se ao ritmo daqueles anos 40.
Assim caminhava, silenciosa e rápida, entre as passadas barulhentas das solas de pau, adoptadas pelos estudantes. Ia sozinha, enquanto outros passeavam em grupos alegres e outros ainda aos pares, um rapaz e uma rapariga, tendo no rosto o mesmo reflexo de inteligência.
Sim, ia sozinha. O rapaz ao lado de quem gostaria de caminhar nessa tarde, conversando baixinho, estava longe!, meu Deus, tão longe! Um prisioneiro de guerra.
- "Deve ter tanto frio - pensava. -Querido Florêncio..."
Pensava nele sem cessar e as neves da Pomerânia caíam no seu coração.
- Viva! -gritou uma voz alegre. - Isabel, Isabel!
Reconheceu a voz de Noelle Morot-Léandre, a mais velha das quatro irmãs do noivo. Noelle apoiava-se no braço dum rapaz alto, de rosto magro e expressão espiritualizada. Melhor, era ele quem se apoiava naquele braço de mulher. Ela era linda, ele era feio, mas ambos agradavam.
- Por muito que te escondas nesse teu adorável capuz, - disse Noelle, que passeava com o cabelo ao vento-os amigos ainda conseguem ver-te. Que bem que te fica essa pele castanha forrada de cor-de-rosa, não achas, Roland?
- Acho - respondeu ele com uma sinceridade simples. - Fica-lhe muito bem, Isabel. Teve notícias recentes de Florêncio?
- A última carta vinha datada de há dois meses, por isso não estou descansada.
O noivo de Noelle fitou na futura cunhada um olhar observador através das grossas lentes. "O seu olhar clínico", como dizia Noelle, que também estudava Medicina. Ele pensou: "Pobre rapariga. Sufoca de desgosto e de tédio."
Então propôs gentilmente:
- Venha tomar qualquer coisa connosco. Com este frio... Chocolate, hoje, precisamente, é dia de chocolate. Olhe, aqui nesta cervejaria costuma ser muito bom.
Sucederam-se os três através da porta giratória. Estava quente. Via-se bem. Isabel tirou o pesado casaco e sorriu já à vontade.
- Que sorte ter-vos encontrado! Que tal o vosso trabalho?
- A Noelle teve outra vez melhores notas do que eu. Para o amor-próprio masculino, que chuveiro!
Mas ria. Entre ambos não existiam nuvens, tudo lhes era comum, estudos, êxitos, malogros, projectos do futuro, sonhos de vida moral e social. Ele amava-a simples, alegremente, a sua grande Noelle, linda e forte. Noelle amava Roland com menos simplicidade, porque o coração duma rapariga nunca esquece completamente o primeiro amor e ela, outrora, chorava ao ver morrer o seu.
Isabel repetia, contente:
- Está-se tão bem aqui!
- Em sua casa não há lareira?
- Oh! Claro que não. O aquecimento central já não trabalha. Mas não era a isso que eu me referia. Acho que se está bem aqui, porque estamos
entre gente nova e nos sentimos viver. Compreende, Roland? É maravilhoso!
Libertou do capuz os caracóis escuros e, sacudindo-os:
- Não estou muito despenteada, Noelle?
- O teu cabelo está sempre bem... Mas diz-me cá... ninguém te vê. Que fazes tu o dia inteiro? A nossa velha Rua da Torre não é assim tão longe da tua Avenida Vítor Hugo.
O rosto fresco entristeceu.
- Sabes muito bem o que faço. Trato da casa e da mãezinha.
- Então desistiu de ser assistente social? perguntou Roland. - É pena. Não falta trabalho.
Ela suspirou:
- Não desisti. Espero, Não pude colocar-me este ano, porque a mãe precisou de mim.
- Ora! precisou! -repetiu Noelle. - Não exageremos. É claro que a tua mãe não está em estado de passar todo o dia sozinha. Mas por que razão há-de exigir a tua presença? Em suma, tu afinal és apenas sua enteada. Uma enfermeira fazia o mesmo serviço. Lembras-te do que aconteceu, Roland? A senhora Morlainville, que partira com o João-Lucas de automóvel, no momento da evacuação, foi gravemente ferida: fractura do fémur, várias lesões, desequilíbrio nervoso. Anda com dificuldade, envelheceu muito, o que deve ser terrível para uma mulher tão bonita e tão frívola. Acreditava ingenuamente que seria toda a vida "a linda senhora Morlainville". Enganou-se... Agora não passa de uma neurasténica.
- Coitadinha da Isabel! - disse Roland.- Não há nada pior.
- E, sob o pretexto de que a Isabel tem muito jeito para tratar, uma bonita voz para ler e, sobretudo, uma paciência de anjo para ouvir queixas e recriminações, aí a temos nós encerrada num quarto de doente, numa ocasião em que há tanto trabalho interessante para uma assistente tão fantástica como ela. Isto é vida para uma rapariga? Eu acho que o teu pai não devia consentir. Mas para o senhor Morlainvile
é um ídolo, a bela Jeanine. E depois acho que as tuas irmãs também deviam dedicar-se. A Teresa e a Estefânia é que são filhas. Tu, não.
- A Teresa foi substituir-me hoje. Mas a mãezinha não suporta a presença dos netos, por isso é sempre preciso arranjar alguém que tome conta do Domingos e do Francisco, o que não é fácil.
- E a Fani? A Fani que tem uma nurse? Isabel hesitou:
- A mãezinha nem sempre gosta de estar com a Estefânia. A Fani é muito mundana. Faz-lhe saudades, compreendes.
Roland murmurou, sarcástico:
- Mundana, quando toda a Europa ou se bate ou estoura de fome! É incrível!
- Sim, - concordou Isabel - quando a gente pensa nos prisioneiros...
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Mas era amiga de Fani e defendeu-a:
- Que quer! O marido ganha muito dinheiro, e gosta que a mulher seja linda, elegante e faça vida de sociedade.
- Faz-me rir! Sociedade! Há ainda uma sociedade? Sei perfeitamente. Tenho colegas que dançam, bebem, levam vida despreocupada. Eu, teria vergonha. Trabalhar. Construir a França de amanhã, sofrermos todos o mesmo, ter a mesma ração de pão, de carvão, que os outros, fazer tudo com esforço e duramente, é este o nosso dever de gente nova. E a Noelle vê as coisas do mesmo modo.
Evolava-se das chávenas um perfume quente de chocolate. Isabel, envolvendo a sua com as mãos para as aquecer, respondeu lentamente, porque procurava as palavras:
- Acho-o muito severo. Não se deve criticar assim toda a gente. Sofre-se, sem dúvida, e devemos aceitar a nossa parte do sofrimento, mas a vida continua, Roland. Você não o pode impedir. E somos levados fatalmente a procurar uma pequena parte de compensações. Olhe, este chocolate... Você não devia tocar em chocolate, homem austero!
- Ora! É feito de cascas de cacau - respondeu.
E riram todos três. Mas Noelle admirava a terna caridade que incitava Isabel a desculpar sempre os outros.
"É boa. O Florêncio há-de ser feliz com ela. E eu, saberei tornar feliz o Roland, eu, que sou tão dura, tão exigente? Agora ainda mais do que antes, à força de lutar pelo meu curso. A Isabel é mais feminina do que eu. Que bonita e que fina que ela é! Aquele cabelo, aquela pele clara, aquele olhar azul, aquele sorriso de criança, aquela figurinha... Ao pé dela parece que fui feita a martelo."
Mas Noelle era bela na sua força. Era por isso que Roland a amava. Não quereria para companheira uma rapariga frágil como aquela Isabel, a quem o noivo chamava "Liseron.
- Quem tem talões de racionamento de pão?
- perguntou ele-Tenho uma fome danada!
Puseram-se então a contar os papelinhos. Sim, podiam comer três torradas e doce. Que regalo! Iam despertar invejas, o que aborrecia Isabel. Era raro o estudante que comia alguma coisa a acompanhar o chocolate. E tinham as faces encovadas... Isabel pensou num certo rosto magro e ardente: Solange, a terceira Morot-Léandre.
- Noelle, que fazem as tuas irmãs?
- As minhas irmãs? A Catarina estuda desde manhã até à noite a mesma rapsódia de Brahms: é a peça do concurso. Felizmente que eu não paro em casa, senão parece-me que a atirava a ela e ao piano pela janela fora. Creio que durante a noite compõe uma ópera. Como disposição: ri e canta, ou então toma um ar trágico. Estes artistas nunca são normais. Quanto à Solange, ninguém a vê. Com o pretexto de seguir os seus múltiplos cursos, desaparece do horizonte familiar e a mãezinha, por mais que faça, não lhe arranca nada. A Denise, a miúda, ou está no colégio, ou está em casa a estudar com uma fúria que me admira; ela é preguiçosa por natureza. Quer fazer-se chique, mas não consegue. Está em plena idade ingrata. Faz de donzela, quando está no salão, e brinca com as bonecas no sótão. Vem lanchar connosco no domingo. Encontras-nos a todas. A mãezinha há-de arranjar alguma coisa que se coma. A mãezinha é única: desembaraçada, moderna, sempre bem disposta-até quando vem da bicha. Não sei como serás quando fores também uma senhora Morot-Léandre. Desejo que sejas parecida com a senhora minha mãe... Pede-lhe lições.
- Admitindo - disse Roland - que as lições dos mais velhos sejam escutadas pelos novos. Acho que o melhor é sermos nós próprios a criar o nosso bom-senso, a nossa sabedoria. Você o que é que pensa, Isabel?
- É essa a opinião do meu pai - respondeu Isabel, sonhadora. - Ainda ontem me dizia: "Quanto tempo não é preciso para que um ser humano adquira a verdadeira sabedoria! Talvez lhe seja mais fácil conseguir ser santo."
Aquelas palavras sabedoria, santidade, diziam tanto, que se calaram. À sua volta conversava-se; ria-se pouco. O fumo azul de alguns raros cigarros subia das mesas sem bolos.
Mas ter-se-á necessidade de bolos, de cigarros, bebidas gostosas e caras, quando se tem dentro de si essa força maravilhosa: a juventude?
SALVE, mana do meu coração! - exclamou João-Lucas, abrindo a porta a Isabel. Tendo avistado da janela a tua elegante figurinha, quis evitar-te o incómodo de tocares. Assim a mãezinha não ficou sabendo que já chegaste.
- Ela ainda não me chamou?
- Já, já começou a irritar-se. Mas a Teresa ainda lá está. Ao pé dela tudo é calmo, fácil. Anda lanchar.
- Já lanchei. Imagina que fui tomar chocolate.
- Chocolate? Verdadeiro? Admira-me isso da tua parte.
- Encontrei a Noelle e o noivo no boulevard Saint-Michel. Foram eles que me levaram. Foi óptimo. Larga-me, João-Lucas, quero ir ver se a mãezinha precisa de mim.
- O teu irmão precisa de ti. Apanhei uma gripe levada do diabo. Estou cheio de frio.
Apetecia-me beber uma chávena de chá a ferver, ou. qualquer coisa que se parecesse com chá. Mas a criada saiu e eu não encontro nada que se coma. Faz o meu chá, Isabel.
Foram para a cozinha. Era bonita, toda branca, Mas Isabel nunca ali entrava sem que sentisse saudades da outra, na sua antiga casa, onde Marieta, a querida e velha criada, vivera tantos anos no meio das suas caçarolas.
Mudar-se, deixar a Rua Nicolo que ela achava "provinciana", habitar uma casa moderna, esse sonho da senhora Morlainville, finalmente realizado, fizera verter muitas lágrimas a Isabel. É que havia tanta recordação, triste ou alegre, impregnada na atmosfera da velha casa: a infância, a partida para o Sanatório, o regresso em plena adolescência, a descoberta da desavença entre os pais, os seus esforços para os levar à reconciliação, o talento do pai, o amor de Florêncio, a morte da Marieta, o noivado, os estudos entusiastas para fazer um belo trabalho social, enquanto Florêncio entrava em Saint-Cyr, a declaração de guerra, a separação, a derrocada de Junho de 1940, o cativeiro de Florêncio, o regresso com a mãe doente exigindo uma dedicação total...
Depois os homens da mudança tinham chegado, deslocando com mãos rudes as coisas que amava, para as levar para longe. As coisas tentavam readquirir vida. Ainda o não tinham conseguido. Consegui-lo-iam? A "casa", para ela, será sempre o mesmo andar do velho Passy, enquanto espera o momento de fundar "a sua" casa com Florêncio.
As recordações vinham-lhe à memória enquanto fazia o chá para o rapazinho que, muito contente, levou para a casa de jantar um tabuleiro preparado com maior elegância do que fartura, nesse Inverno de restrições.
- "Devia ter-lhe dado uma parte do meu pão - disse consigo Isabel. - Ele está com tanta fome".
Então a sombra de Marieta ergueu-se daquele mundo misterioso do Além, onde os nossos mortos estão simultaneamente, longe e perto:
- "Meu amor, não te prives assim. Tens que ser forte, se queres casar em breve e ter muitos filhos."
Era estranho: Marieta, invisível, velava de tal modo pela criança que educara, que Isabel se sentia muita vez aconselhada pelo seu bom-senso e pelo seu grande amor.
Não havia fogo na cozinha, nem no resto da casa. Isabel murmurou:
- Marieta querida, como havias de sofrer com este frio! Vês, fizeste bem em partir antes desta guerra que tanto receavas. Daí de cima proteges o meu Florêncio, não é verdade? O seu corpo, a sua alma...
E depois, notando que Georgina, a criadita que sucedera a tantas outras, não areava bem as caçarolas, continuou a falar a Marieta:
- Tu que as punhas como espelhos onde eu me via, quando era pequena...
Sorriu. Para Marieta. E foi ter com a mãe.
Quarto luxuoso e sem alma. Jeanine Morlainville suprimira tudo o que pertencia ao passado, dizendo: "Isto são móveis de burguesinhos." Mas não soubera, tão diminuída estava a sua vitalidade, dar uma nota especial àquele.quarto onde sofria pesadamente, sem nada espiritualizar.
Junto da sua poltrona, coberta por uma manta de pele, uma mulher nova e simples tricotava.
- Teresa, não trouxeste os tesouros?
Um rosto redondo e fresco, onde brilhavam uns olhos cor de folha, sorriu.
- Os tesouros cansam a mãe. Pu-los em casa duma vizinha; amanhã tomo eu conta dos meus e dos dela. Ajudamo-nos muito em Montmartre.
- Essa vizinha não é do nosso meio - disse Jeanine com os seus grandes ares. - Os teus filhos vão tornar-se vulgares. Desagradas-me muito, Teresa.
Ela pôs-se a rir:
- Não te aflijas, mãezinha. Havemos de ensinar-lhes lindas maneiras. De resto, os vizinhos são gente muito bem educada e os petizes têm muito mais juízo do que os meus demónios, que têm a alcunha de tesouros.
- Vais tornar-te povo, lá nesse teu Montmartre. - declarou Jeanine com desdém.-Podes voltar para lá, visto que a Isabel se decidiu a voltar para casa. O que é que fizeste durante esse tempo todo? Não faço a mínima ideia. Onde é que foste?
Isabel cerrou os lábios. Gostava da sua independência e custava-lhe suportar perguntas. Mas a mãe tornou a interrogá-la secamente. Então decidiu-se a responder:
- Fui comprar livros. Sim, livros. O Florêncio pediu que lhos mandasse no próximo correio.
A esse nome de Florêncio, a senhora Morlainville teve um gesto de impaciência. Nunca aprovara o noivado de Isabel com o "petiz Morot-Léandre" e, secretamente, desejava que aquele longo exílio o fizesse esquecer e que ela se decidisse finalmente a casar com um certo Hugo Lesoir que a amava. Isabel reparou no movimento de contrariedade da madrasta e acrescentou para desviar o assunto:
- Encontrei a Noelle e o Roland e fomos tomar chocolate ao boulevard Saint-Michel. Confesso que não me apressei muito, A Teresa tinha-me dito: "Volta à hora que quiseres, eu fico com a mãe."
Jeanine, que não era má, prosseguiu num tom mais terno:
- Tens razão, eu podia dispensar-te. Atua vida não é alegre, minha pobre Isabel. Que, a falar verdade, não seria mais interessante lá nessas tuas célebres obras sociais. Aqui tens por que razão não tenho remorsos. O primeiro dever é cuidar das pessoas de família, não é assim, Teresa?
Teresa arrumava o trabalho, um casaquinho cor-de-rosa destinado ao corpo roliço do seu tesouro número dois. Respondeu corajosamente:
- Sim, mãe. Mas nesta idade todas gostamos de conviver com gente nova. Acho que um pouco de actividade fora de casa lhe seria muito útil.
- "Querida Teresa - pensou Isabel. - Mas perde o seu tempo."
Com efeito, Jeanine mudou logo de conversa.
- Quando a tua irmã se for embora, Isabel, vais ler um bocadinho para mim. A Teresa trouxe-me um romance muito divertido. A Teresa, sim, procura livros para a mãe, antes de pensar nos estranhos.
Isabel corou violentamente. Florêncio um estranho? O rapaz que lhe colocara no dedo aquele anel? Que sofria lá longe? Que lhe escrevia: "Meu amor, trabalho dia após dia para me tornar mais digno de si"?
Mas calou-se. Também ela aprendera a calar-se. Juntou o seu silêncio ao do prisioneiro e na sua voz bonita e leve principiou a ler o romance "muito divertido", que lhe parecia tão pouco de acordo com a sonoridade grave desse Inverno em que o mundo sofria. Mas Jeanine procurava esquecer o sofrimento do mundo. E queria também esquecer o seu.
Esquecer... Quando se tem uma alma frívola, quando se amou durante toda a vida o prazer, as homenagens, é insuportável ver que os cabelos embranquecem, que a pele se cava de pequeninas rugas, que o corpo perde o lindo contorno arredondado; insuportável coxear sobre umas pernas deformadas. Procura-se então um derivativo nos romances. Às vezes, aquilo chega a fazer chorar... porque a heroína é loura, alegre e amada como se foi... Então grita-se: " João!" E junto da poltrona ajoelha-se o homem de cabelo grisalho, para quem continua a ser a mulher amada. João tem os mesmos gestos que outrora para soerguer o rosto que, apesar de tudo, ainda tem beleza. João tem a mesma voz para murmurar palavras de amor. João, poeta, sabe até renová-las. Dir-se-ia que ama ainda mais esta mulher ferida. E é maravilhoso pousar a cabeça no ombro dele e supor que se é ainda a linda, a deslumbrante Jeanine.
Somente, noutros dias, as palavras dele são mais elevadas. Fala - e a sua voz torna-se grave, e ela sente que o seu ombro é magro - fala de aceitação, de paciência, de oração. Não é isso que ela quer ouvir. Grita-lhe: "Vai-te embora", e põe-se a chorar.
Naquela noite a leitura da enteadazita embala-a agradavelmente. Recorda os seus êxitos mundanos e os de João como dramaturgo. Oh! As aclamações, os aplausos que colhem cada peça de Romain Villanel, nome literário que escondera por muito tempo a personalidade de um simples funcionário de ministério. Era uma rainha então. Apontavam-na nas lojas. Admiravam-na. Os jornais falavam dela... Aquele vestido de veludo que lhe faziam os ombros tão brancos...
Sorri. Já não presta atenção ao livro. A voz de Isabel é uma música. Uma canção de embalar. A mulher envelhecida adormece julgando-se nova.
Então Isabel fecha o livro, vê naquelas faces, em redor dos olhos, no pescoço, os estragos do tempo. Sente dó. O sofrimento humano que sonha erguer nos seus braços de rapariga, a dor humana, está ali como nos hospitais, nas prisões, nos tugúrios, para onde a sua vocação a atrai. Pobre Jeanine, que se recusa a compreender o mistério da cruz que Florêncio compreendeu e aceitou aos vinte anos. Esse, carrega, de facto, a sua cruz.
- Mas tu, serás sempre uma menininha murmura Isabel beijando suavemente a mão abandonada sobre as peles. Mão ociosa e cuidada que continua bonita. Aviva o fogo e vai para o seu quarto. Oh! Estar finalmente só!
Lá dentro não há fogo, e o quarto, que deveria ser aquecido por uma quantidade de radiações, está gelado. Frémito de ombros sob o chale de lã. Frémito de sensibilidade, ainda mais acentuado porque o frio atinge a alma. Todavia aquele quarto é a única divisão da casa - com o gabinete do pai - onde se sente bem.
Senta-se diante da mesinha que pertenceu a sua mãe, a sua verdadeira mãe, a pequenina Colette que morrera tão nova e tão triste deixando o seu lugar a Jeanine. Contempla a fotografia em que Florêncio, de uniforme, tem um ar tão forte, tão grave. E segura um maço de cartas, pobres cartas de dez linhas apenas, traçadas em papel gelado e grosseiro. Mensagens de Florêncio: tesouros. Florêncio soubera sempre dizer muito em poucas palavras. Quanta força espiritual comprimida naquelas dez linhas! Sabe de cor todos os textos. Mas, mesmo assim, gostava de rever as palavras escritas em caracteres direitos, voluntariosos.
"A moral é elevada entre nós. Aceitamos o presente, pensando no futuro. Ontem, Pentecostes. Pedi ao Espírito Santo que nos vivifique e inspire. Passa algo de grande nos campos de concentração. Pequenina querida, preparo-me para ser um homem novo. Tu, sê santa: tu podes".
Oh! Florêncio, companheiro dos dias felizes. Florêncio tão novo, tão independente, tornou-se naquilo, cujo nome parecia reservado aos criminosos, num prisioneiro de guerra... Florêncio que ama, privado de afeição! Tão alegre e privado de alegria! Esfomeado! Florêncio detido no limiar da vida, da sua vida, e reduzido à inacção, sujeito a uma estreita vigilância. Florêncio: um pássaro enclausurado! Despedaçará as asas contra as grades? Despedaçar-se-ão as suas asas? Ou será que ganham maior força enquanto esperam o grande vento dos espaços livres?
Isabel afastou as cartas remetidas por aquele número 1540. Sonha.
Pega na caneta. Traça uma linha, outra: versos. Filha de poeta, escreve versos em segredo. Em segredo, porque certamente lhe diriam: "Estás a perder tempo". Versos que a impedem de sufocar, brotando duma sensibilidade dolorosa.
O ritmo apodera-se dela; esquece tudo, o frio, o tédio, a dependência, A inspiração empolga-a, martiriza-a. E talvez que a filha do poeta Romain Villanel escreva versos mais belos do que os que foram assinados por Romain Villanel. Porque do seu coração sobe qualquer coisa de novo, de imprevisto, estranhamente de acordo com o tempo presente, enquanto o pai vive preso ao passado.
Mas uma campainhada brusca interrompeu-a.
- "A mãezinha chama-me. Queira Deus que se não tenha apagado o fogo".
Correu. Sim, extinguira-se o fogo. E Jeanine, descontente, queixava-se de a terem deixado só.
- Que estavas tu a fazer no teu quarto? Não podes escrever todos os dias ao Florêncio. Então? Olha, não passas duma egoistazinha.
Isabel, ajoelhada diante da chaminé, aceitava,
sem protestar, a torrente de recriminações. Sentia-se culpada. E, todavia, que pena ter cortado a inspiração! Não é coisa que se possa deixar para mais tarde. Chorava. Que importava? Se Jeanine visse as lágrimas, diria: "É do fumo." Juntou a lenha com o cuidado inteligente que o capricho do fogo exige. Quando se levantou de novo a chama clara, pôs-se de pé e, recortando-se muito alta e delgada sobre o fundo de púrpura, desculpou-se gentilmente:
- Desculpa-me. Adormeceste e eu julguei que o fogo se manteria.
- Tu julgas sempre que as coisas se vão passar segundo a tua vontade.
- Dantes, muitas vezes, passavam-se assim. Agora já não - respondeu com tristeza.
E, depois, julgando-se cobarde, acrescentou:
- Quer dizer, é preciso mais trabalho, mas, querendo, tudo se consegue. O fogo pegou, vês tu.
Jeanine olhava-a invejosa da linha pura desse corpo de rapariga, desenhado diante da chama. E a inveja inspirou-lhe uma palavra cruel:
- Estás magra. Toma cuidado. Olha que tu tens tendência para o género esquelético. Na tua idade a Fani estava mais desenvolvida. É verdade que nesse tempo nos alimentávamos melhor. E, sobretudo, a Fani era mais razoável.
Ela pôs-se a rir:
- Razoável, mãezinha? Achas possível levar uma vida mais sossegada do que a minha?
- A tua cabeça é que não é sossegada. Sempre a sonhar, a imaginar coisas... Ah! ÉS bem filha do teu pai. Não fiques para aí de pé. Enervas-me! Mexe-te, faz qualquer coisa. Não, não me apetece ouvir ler. Vai ver se o teu pai já chegou.
Quando ele abriu a porta, Jeanine estendeu-lhe os braços:
- Estou tão aborrecida, João, tão aborrecida. E sentindo-se sempre amada por aquele homem de perfil severo, de olhos patéticos, encontrou de novo o seu antigo sorriso. Encostada ao ombro de João, Jeanine estava linda.
COM a sainha rodada formando balão em volta dela, Denise Morot-Léandre correu ao jardim ao encontro de Isabel.
- O João-Lucas vem cá ter? Não? Oh! Porquê?
E subiu lentamente as escadas, reparando de súbito que aquele domingo de Fevereiro estava feio, enevoado e frio.
Isabel sentiu-o e, dando o braço à petiza:
- Foi ao teatro. Talvez venha às seis horas, mas não tenho a certeza.
- Oh! Já sei que não vem. Quando se diz "talvez", significa que não se tem interesse nenhum. Só pensa no teatro, em mais nada. E podíamos ir jogar ao pingue-pongue. É uma peste, o teu irmão. Detesto-o.
E, para esconder a sua desilusão, fugiu soltando gritos estridentes:
- Está cá a Isabel.
Duas cortinas se levantaram. Uma, lá em cima, onde Noelle estabeleceu o seu laboratório. E a outra no primeiro andar, na janela onde dantes aparecia o perfil correcto de Florêncio. O coração de Isabel bateu com mais força. O quarto dele!
Denise já voltava:
- A Noelle está a estudar e não quer que a incomodem por enquanto. A Solange gritou: "Traz para aqui a Isabel e desaparece até à hora do lanche." "Aqui", quer dizer o quarto do Florêncio. A Solange declarou: "Fico aqui até que ele volte." A mãezinha não queria; compreendes, é o quarto do Florêncio, é sagrado. Mas a menina Solange queria. Portanto...
Não era preciso dizer mais. Isabel fora muitas vezes testemunha das pegas causadas pelo mau carácter de Solange, o número três das raparigas Morot-Léandre.
- Sabes o caminho - acrescentou Denise.- E a minha peste de irmã não me quer lá. Vai tu sozinha. Eu chamo-te para o lanche. Escuta... sempre é melhor pôr de lado a parte do João-Lucas... Se ele vier...
Isabel beijou-a.
- Põe de lado. Se não vier, comes tu a parte dele.
- Não, - protestou a petiza batendo o pé levas para casa, para ele comer quando chegar. Sabes muito bem que o João-Lucas anda sempre esfomeado.
Isabel pensa: "Como ela o ama! E estou convencida de que ele não lhe liga nenhuma. Pobre Denise, como há-de sofrer"!
Mas Denise cantava: ocupar-se da felicidade de João-Lucas era uma alegria. Isabel compreendeu e suspirou:
- Se também pudéssemos pôr de lado a parte do Florêncio!
Então, o canto da pequenina Denise quebrou. O nome de Florêncio, que, dantes, era sinónimo de alegria, de força, de brincadeiras leais e de belas disputas, evocava agora coisas tão misteriosas, tão pesadas!
À porta do quarto esperava-a uma rapariga penteada e vestida com chique. Beijaram-se.
- Tens a cara muito fria, Isabel. E não será aqui que a aqueces. Se te apetece muito ir para o pé do fogo, vamos para a casa de jantar. Mas, sabes, está lá toda a gente, tudo à volta do fogo, como selvagens. Nem se pode conversar.
- Oh! Eu gosto mais de estar aqui. Este quarto...
- Apetece-te chorar? Não te retraias, Isabel, chora. Compreendo que te faça impressão ver o quarto do Florêncio, sem Florêncio. Pensas que procedi como uma egoísta, uma insensível, vindo para aqui... Catarina fez um drama. A mãezinha chorou e a Denise também. Mas o pai disse: "Visto que a Catarina e a Solange não podem viver em harmonia, estando no mesmo quarto, que se separem. Solange, muda-te para o quarto de teu irmão. Estou farto das zaragatas destas duas damas". Então a Catarina tomou uma pose teatral para declarar: "Se partes a mínima coisa de que o Florêncio gostava, se mexeres nas gavetas, serás uma má francesa, uma traidora". Só, e mais nada.
- Solange, eu sei perfeitamente que não queres estragar as coisas dele - murmurou Isabel com os olhos cheios de lágrimas.
- Pelo contrário, mantenho-as vivas. Um quarto desabitado morre. Mas as outras são cretinas de mais para o compreenderem.
- Cretinas? Como podes achar as tuas irmãs cretinas?
- Porque o são. A Noelle faz vista como estudante de Medicina, e a Catarina como artista. Mas isso não impede que tenham ideias feitas, ideias que engoliram com o biberão. As minhas irmãs? Não pensam por si próprias. A Noelle estuda, a Catarina sente. Não é pensar. Eu ri-te se quiseres - eu penso. Tenho a certeza de que penso. Há qualquer coisa que se estende, que se alarga no meu cérebro. Faço descobertas. É apaixonante, sabes? Somente, morro de pasmo, aqui. Gostava de ir para longe, longe...
- Eu então quero ficar aqui e desenvolver tudo o que conheci e amei. Por que é que tu contas tudo isso a Isabel, muito mais embiocada do que as tuas irmãs? À Isabel é que tu devias chamar cretina.
Solange, estendida sobre o divã, soergueu-se para fixar na amiga um olhar inteligente e directo.
- Não. Porque a Isabel sofreu muito e compreende a vida. Para mim, é como se tivesse dado a volta ao mundo. E, no entanto, és delicada, chique, bonita, tipo "menina bem educada". Afinal... a tal menina bem educada seria capaz de apertar contra o coração os sujos, os miseráveis, os réprobos que se arrastassem à beira do seu caminho. É por isso que a gente gosta de ti.
- Não és infeliz, nem te arrastas à beira do meu caminho - murmurou Isabel esforçando-se por rir.
- Olha que sou... Neste momento, nada possuo. Reneguei as ideias e os hábitos antigos, e não sou livre para adoptar outros. E, mesmo que o fosse, saberia escolher? Ah! É dura a juventude. Dura...
- Não, é bela.
- Deixa-me rir. Tu, que fazes tu da tua juventude?
Isabel estendeu a mão onde brilhava a safira do noivado:
- Preparo-me para a vida.
- Ao lado da tua madrasta? Sem fazeres nada que valha a pena?
Isabel ergueu para a rapariga, que asperamente a interrogava, os seus olhos azuis cheios de paz:
- Não é preciso fazer coisas... Basta que trabalhemos a nossa alma.
Um silêncio. Longo silêncio. Estavam ali todos os objectos queridos ao pequeno Florêncio de outrora. Os livros que lera, todos sãos, o gramofone cujos discos eram escolhidos com a colaboração de Catarina, a raqueta de ténis com que ganhara tanta vez... O perfume cuir de Russie, da água-de-colónia ambarada, de tabaco, flutuava ainda. Isabel sentia-o presente. Também ele, "sem fazer coisas", trabalhava a sua alma. Seria menos generosa em sofrer, em dar? Os sonhos, os belos sonhos de acção, de felicidade, de amor, são como uma semente em terreno fértil. E talvez que as vidas mais nobres venham precisamente das juventudes adubadas pela dor. A verdadeira França não seria lá longe, nos Oflags e Stelags onde centenas de milhares sofriam a provação?
Finalmente, Solange disse:
- És uma original. Mas sentimo-nos bem ao pé de ti. Compreendo que a senhora Morlainville te monopolize. Dás-nos paz sem mesmo abrires a boca. Porque tu és tu. Ao contrário de ti, há pessoas que a tiram, também assim, sem falar. Conheço algumas...
- Porque é que te dás com elas? - perguntou baixinho Isabel.
- Porque me interessa, a tal perturbação, Tu sabes que não são "pessoas" com quem me dou nestas condições. É alguém. É o suficiente.
- Não andas a fazer tolices, pois não?
- Não. Tranquiliza-te, jóia. Tenho dignidade e quero manter-me pura. Somente, há um rapaz com quem me dou muito e que, certamente, não casará comigo. Além disso, eu não quero casar. Quero ser livre, livre...
Mas escondeu o rosto nas mãos. Não queria que a amiga a visse chorar. Por fim, levantou a cabeça, assoou-se, dizendo-se constipada. Pôs-se de pé:
- Há dez minutos que a Denise nos está a chamar. Vamos para baixo, minha vendedeira de paz.
Desceu a escada a cantar. Estava frio e húmido. Mas a casa de jantar abria-se rosada e tépida. Já nada tinha da casa de jantar burguesa: era a sala onde se vivia, Isabel correu para a mãezinha do seu Florêncio. Uma mãezinha tão nova ainda, tão forte, ao mesmo tempo que sorridente e terna! Ambas, no seu coração de mulher, sofriam pelo mesmo rapaz. Como era bom, meu Deus, sentir-se amada e compreendida! E que mistério emocionante a semelhança de traços da mãe e do filho!
- Tira as tuas peles, urso polar - disse Denise alegremente. - Aqui, ao pé da lareira está quente e eu queria ver o teu vestido. É um vestido novo, feito de pano velho, não é? Mãezinha, podias arranjar-me assim o vestido vermelho que a Solange já não quer usar.
- Oh! É tão bonito, Solange! Fica-te tão bem!
- Estou farta - declarou Solange - de andar igual à Catarina. Acabou o tempo das quatro Morot-Léandre vestidas de uniforme. Lembras-te dos nossos vestidos escoceses? No colégio até nos chamavam "as escocesas". Acabou-se o uniforme. Cada uma veste-se segundo a sua personalidade e o seu tipo. Achas que me pareço com a Catarina? A propósito, ela ainda não chegou?
A senhora Morot-Léandre respondeu:
- Foi convidada para um festival de Berlioz. A Catarina troca tudo por Berlioz. Desculpe-a, Isabel. Esperamos pelo seu irmão?
- Oh! Não, minha senhora. Ele foi ao teatro. O João-Lucas troca tudo pelo teatro.
Todos riram, excepto a Denise. A mãe disse-lhe:
- Vou buscar a Noelle ao laboratório. Instalaram-se, mais à vontade do que dantes,
em torno da grande mesa familiar. Como era triste o lugar vazio onde Florêncio se sentava sempre estendendo a grande mão para a pilha de torradas! Naturalmente, Isabel perguntou:
- Tem tido notícias? Espero que ainda não tenha mandado a encomenda, porque sempre consegui encontrar o livro que ele tanto queria.
Solange, que lia muito, perguntou o título do livro e admirou-se:
- É isso que o diverte?
Queria dar a sua opinião e provocar zaragata. Mas nem a mãe nem a noiva tinham interesse em discutir. E depois Noelle entrou, contente, risonha, faladora, depois de tantas horas de estudo. Era ela a mais feliz, ela que se dava livremente ao trabalho que escolhera, apoiando-se no companheiro da sua vida futura. Assim, resplandecia de juventude e vivacidade.
- Tenho fome! Quem mais tem fome?
- Toda a gente - respondeu Denise. -Mas guarda-se o quinhão de João-Lucas, não é verdade, mãezinha?
Puseram-se lealmente de parte duas torradas, uma maçã e uma fatia de bolo caseiro.
De tempos a tempos, Isabel fechava os olhos e imaginava que o seu grande Florêncio estava ali sentado como antigamente, que iria arreliar as irmãs, falar-lhe ternamente e, depois, contar anedotas. Mas não estava lá o Florêncio. E ele que gostava tanto daquela compota de laranja!
- Tem que lhe mandar - disse ela.
A senhora Morot-Léandre compreendeu logo.
- Sim, minha filha. Em todos os correios lhe mando um boião.
Denise contemplou a amiga com inveja: ao menos a Isabel tinha o direito de amimar o Florêncio. O João-Lucas, esse, não queria deixar-se amimar pela Denise. E se viesse buscar as torradas, a maçã e o bolo, diria pela certa: "Muito obrigada, minha senhora", e não: "Obrigado, Denise". E no entanto ..
Mas ei-lo que entra! Os cabelos empoados de neve. Bonito rapaz, um nadinha pedante. Vira uma peça que não era má, mas fora mal representada. Ah! Aquele papel interpretá-lo-ia de modo totalmente diferente. Sem deixar de comer, expôs a sua maneira de ver, gesticulou, declamou. Denise pensava, com os cotovelos sobre a mesa, onde já nada havia para comer:
- "Ele é maravilhoso! Que bem que fala. Compreendo lindamente que me ache parvinha. Ora aí está: "Muito obrigado, minha senhora. Que bondade a sua ter guardado a minha parte". Se não fosse eu, sempre queria ver o que ele comia! Uma maçã... Enfim, lanchou bem, é o que importa. Mas, com certeza, ainda tem fome. Se lhe déssemos a parte da Catarina, que nunca mais aparece"?
Pede baixinho à mãe, que recusa:
- A Catarina tem que encontrar alguma coisa quando vier. Senão pensaria que nos tínhamos esquecido dela.
Que complicações, a vida dos grandes! A Catarina viria lanchar? Não viria? Ah! Um passo apressado no jardim, uma voz que canta, uma porta que se abre bruscamente, uma rapariga risonha, sacudindo o cabelo negro cintilante. Catarina beija a mãe, Isabel, declara que está a morrer de fome, que o concerto foi um assombro. Que chama no seu olhar! A música embriaga-a, é verdade, mas Isabel adivinha mais alguma coisa. O rosto expressivo da Cigana mudou, como mudam os rostos das raparigas que amam e são amadas.
Era de esperar, na sua idade. Então, porque é que a senhora Morot-Léandre olha inquieta para a filha? Catarina é tão direita, tão sincera, tão franca: impossível que tomasse, como Solange, caminhos de sombra. ; Noelle, Catarina, Solange, Denise: um dia serão irmãs de Isabel e àquela mãe chamará mãezinha ". Que bom chamar assim a uma ver; dadeira mãezinha! E que disparate não contar tudo a uma mãe como aquela. Isabel, que está sentada ao lado da senhora Morot-Léandre, chega-se mais para ela, sorri e encosta a cabeça naquele ombro já um pouco curvado.
- A minha irmã está a brincar aos bebés diz João-Lucas, que adora a sua mãe e, embora reconheça os seus defeitos, não gosta de ver Isabel preferir a futura sogra.
Solange adivinha o e, por espírito de contradição, declara a pobre Isabel sobrecarregada, cheia de preocupações e responsabilidades.
- Bem bastavam as senhas de racionamento, meu amigo!
- Não se ponham a discutir, por favor suplica Isabel sem coragem para abandonar o ombro onde se sente tão bem. - Há guerras de mais pelo mundo, não vale a pena acrescentar-lhes outra.
Mas Catarina, com os olhos a brilhar, excita-os. Uma discussão, ela acha isso tão divertido!
ISABEL dormia pouco e dum sono leve. Levantava-se cedo. Adorava aquelas primeiras horas da manhã, as únicas que lhe pertenciam, visto que Jeanine acordava tarde.
Pode-se fazer tanta coisa de manhãzinha, quando o pensamento está em toda a sua frescura e a juventude do corpo renovada! Todavia eram sombrios prolongamentos da noite, aquelas manhãs em que o relógio estava adiantado duas horas. E tinha-se frio nessas casas sem fogo, enquanto, lá fora, a neve caía sobre o silêncio de Paris.
Silêncio, sim. Silêncio e solidão. Isabel, bem agasalhada, meditava, escrevia, refazendo as forças de que se iria servir no decorrer do seu dia de dedicação, de domínio e de dependência. Às vezes, dizia consigo:
- "Só vivo verdadeiramente até às dez horas da manhã."
Uma das alegrias quotidianas: o primeiro almoço a sós com o pai. Naquele dia ele demorava-se mais do que de costume. Quando finalmente apareceu, a filha, enrolada num xaile tricotado outrora por Marieta, acolheu-o com aquele sorriso de lábios e de olhos que lhe dava tanto encanto:
- A mãezinha dormiu bem?
- Não. A neve enerva as pessoas cansadas. Mas agora, felizmente, adormeceu. Vamos almoçar os dois. Pões sempre a mesa com tanta arte. Há casas onde se despreza tudo, por causa desta nossa meia-miséria. Tu, minha querida, sabes manter uma aparência de felicidade.
- Que seria de nós, se começássemos a não nos importarmos com nada, paizinho? Eu acho que é valentia manter, como disseste, uma aparência de felicidade.
- Tens razão. Nós, os mais velhos, estamos cansados. É preciso que a vossa juventude resista.
Servido pela filha, o medíocre almoço parecia bem melhor a João. Melhor era-o de facto, pois ela preparava-o com tanto jeito... E que quente intimidade durante essa refeição a dois: Ele sentia-se verdadeiramente pai, missão que por vezes o fazia negligenciar os seus sentimentos de marido apaixonado e de homem de letras muito em moda.
Naquela manhã, Isabel parecia preocupada. Tirou uma carta da algibeira do avental:
- Olha o que ontem recebi, paizinho. Imagina tu que me oferecem um lugar muito interessante e nem por isso muito absorvente. Olha, lê.
João leu o texto dactilografado, breve e explícito. Tornou a ler e calava-se.
- " Que estará a pensar? - disse consigo Isabel. - Intimida-me quando está assim com o rosto imóvel e o olhar parado ".
Por fim, o olhar animou-se pousando nela. Ao ver-lhe as faces avermelhadas de emoção, perguntou com bondade:
- Filhinha, o que é que pensaste desta proposta, realmente interessante?
- Pensei que seria uma boa ocasião de utilizar o que aprendi no curso; assim, sem praticar, acabo por esquecer tudo. Pensei também que seria bom para mim ocupar-me de adolescentes, por ser essa a idade que mais particularmente me interessa. Pensei que, em suma, só estaria ocupada de tarde e poderia dedicar as manhãs à mãezinha. Finalmente, pensei que... adorava esse trabalho. E tu, paizinho, qual é a tua opinião?
Com os cotovelos fincados na mesa, ela esperava ansiosa. João passou a mão pela testa, no gesto que lhe era habitual e a que Jeanine chamava irritada: "o teu tic". Depois respondeu:
- Compreendo-te perfeitamente. Eu sei, riquinha, que não tens uma vida nada interessante. E para uma personalidade viva e tão tonalizada como a tua, esta dedicação obscura deve afigurar-se-te muito penosa. Mas, raciocinemos: tu és uma mulher com quem se pode raciocinar. Achas que podemos deixar a mãezinha só, enquanto a criada faz as compras e equilibra o racionamento? Poderemos, mesmo, confiá-la tranquilamente a esta criada, que não está habituada a lidar com doentes? E que não tem paciência nenhuma?
- Paizinho, eu tinha pensado se não seria possível tomar uma enfermeira...
Ele teve um sobressalto:
- Uma enfermeira? Mas, Isabel, a tua mãe julgar-se-ia completamente perdida, e tu sabes que devemos evitar-lhe qualquer receio nesse sentido. É preciso que ela readquira confiança, que consigamos convencê-la das suas possibilidades de cura completa e de rejuvenescimento. Todos os médicos mo têm repetido. Se a formos entregar a uma enfermeira profissional, pensará: "Estou perdida". E, quando se diz isto, nunca mais se volta a ser o que se foi.
- No entanto, uma enfermeira habituada a nervosos poderia, muito melhor do que eu, exercer sobre a sua sensibilidade uma influência vivificante e fortalecer-lhe a vontade.
Ele contemplou a filha:
- Não. Ninguém faria isso melhor do que tu. Porque tu tens uma alma fresca, fresca como um regato onde nos lavamos, onde matamos a sede.
- Oh! Aí estás tu a falar como poeta, em vez de raciocinares.
- Todavia, raciocino. A tua pobre mãezinha nem sempre é meiga, dirige-te repreensões que não mereces. Mas se ela reclama continuamente a tua presença, é porque ela, só por si, lhe comunica uma certa paz.
- Paz... No outro dia a Solange disse-me o mesmo. É esquisito, não compreendo porquê...
Ele continuou, muito ternamente:
- Se pudéssemos interrogar o Florêncio, não diria também: "A Isabel dá-me paz"?
Ela então lembrou com melancolia - recordação já longínqua - aquele laço de veludo azul que se lhe desprendera dos cabelos, numa tarde de Primavera. Desde então, Florêncio trazia-o sempre consigo: olhava-o, beijava-o quando sentia a cólera subir. Segredo de ambos! Onde estaria agora o laço de veludo azul? Certamente o prisioneiro já não o possuía para o acalmar nas horas de violência. Suspirou, e João supôs que era pelo trabalho, que ela tanto desejava aceitar.
- ÉS absolutamente livre de decidir como te parecer melhor. Não me acho no direito de te impor uma dedicação obscura, a ti, que és nova e ardente. Mas reflecte, filhinha. Abandonar a nossa querida doente a uma estranha, não é possível. Se saíres todas as tardes, serei forçado a pedir uma licença ou... a reforma. Já tenho pensado nisso, mas tu sabes que a vida está cara, que a nossa nova casa aumenta terrivelmente a minha despesa, o teu irmão ainda não está educado, a literatura encontra-se ameaçada devido a crise económica... Achas razoável acrescentar mais uma preocupação a tantas outras?
Pensava: "Ela vai chorar."
Mas, fortalecida por tantos choques que suportara, Isabel aprendera a "engolir as lágrimas", como diziam as Morot-Léandre, muito exercitadas na arte e empenhadas em aperfeiçoar-se cada vez mais. Porque, chorar em casa dos Morot-Léandre, "isso não se fazia."
Seus lábios tremiam um pouco como os duma criança, quando respondeu:
- Paizinho, deixa-me reflectir até amanhã. Gostaria tanto de aceitar... Mas tu sabes melhor do que eu. É, certamente, egoísmo da minha parte.
- Egoísta, tu? Tu que estás sempre preocupada em tornar felizes os que te rodeiam? Não, Lili. Tu és uma almazita inteiramente dada aos outros. Toma a decisão que quiseres. Respeitá-la-ei. Não tenho o direito de exigir que sacrifiques tudo a uma pessoa que não é tua mãe e - acrescentou com esforço que nem sempre te tornou tão feliz como uma verdadeira mãe.
- É muito minha amiga, paizinho. Tem sido
sempre boa. Não nos parecemos nada uma com a outra. Não é sua a culpa... nem minha completou tentando rir. - Queres mais café? Não é grande coisa, pois não? Tu que eras doido por café, pobre paizinho. Olha, aí vem o João-Lucas.
Um turbilhão:
- Depressa, Isabel. Depressa. Põe-me manteiga numa torrada... se há manteiga. Só tenho cinco minutos para engolir tudo.
- Porque é que te levantas à última hora?
- Porque a cama é o único sítio em que se está quente. Sabes isso melhor do que ninguém, tu que degelas as mãos na cafeteira. Não compreendo porque é que te levantas tão cedo.
- Quem é que tratava de vocês? A criada também acha que a cama é "o único sítio onde se está quente". Não comas o açúcar todo, infame! Senão, quando chegarmos ao fim do mês, não temos nenhum.
Mas o "infame" previa, e com razão, que Isabel se privaria da sua parte de açúcar. É tão cómodo, numa família, deixar que alguém se dedique!
Partiu, barulhento, implicante, e todavia tão engraçado que o pai e a irmã se puseram a rir.
- Já está um homenzinho! - disse João.- E bem bonito rapaz.
- Cada dia se parece mais com a mãezinha. Mas, às vezes, tem o teu olhar profundo.
É quando mais gosto dele. Paizinho, pergunto a mim própria que será dele, mais tarde? Acho-o tão no ar, num momento em que precisamos de rapazes sólidos.
- Sim, precisamos de rapazes sólidos - murmurou o poeta. - Está entregue a esta geração o ressurgir da França.
- O ressurgir? Paizinho, como tu dizes isso! Isabel levou dentro de si esta palavra quando
entrou na grande paz branca do seu quarto. Porque quisera que fosse branco o quarto onde terminaria a sua vida de rapariga. E o fino artista que era o seu cunhado Sílvio ajudara-a a escolher os tecidos sedosos, os fofos tapetes de lã e de pele, os tules, a iluminação de um branco de sonho. Destacavam-se os móveis de madeira de tons quentes, que guardara por terem pertencido a sua mãe e porque Marieta os fizera brilhar. Assim, o quarto possuía a graça do lírio da casa nova e as recordações emocionantes do antigo lar. Era, de facto, um quarto de rapariga, mas de uma rapariga diferente de todas as outras. Ali, os sonhos nasciam por si próprios, traduzindo-se ora em versos, ora em acções, mas mantendo-se, a maioria das vezes, em estado de forças latentes, para as quais o futuro apelaria.
Naquela manhã, apoiou os cotovelos, com o rosto entre as mãos, na secretária onde Colette, a mãezinha, escondera o seu diário. Procurava discernir o caminho do dever. E tinha medo, oh! tanto medo, de ser obrigada a dizer a si própria: aquele".
Aquele? Aquele onde estava Jeanine com os seus caprichos de velha criança amimada, suas exigências, lágrimas, futilidades. Oh! "preparar o ressurgir", como dissera João, Ir junto da infância, apressar o desenvolvimento daquelas forças novas, em lugar de vigiar, para o tornar mais demorado, o declínio duma mulher que já tivera a sua parte na vida. Empregar elementos de ciência médica, social, psicológica, adquiridos no decorrer do curso que seguira com tanto ardor! Aumentar a sua iniciativa, exercer a arte de dirigir os mais novos. Ajudar, tomar parte no renovar da França que espera que a sua juventude lhe assegure o futuro. Não seriam desejos legítimos? E até mesmo santos? Não seria o ressurgir?
-"Sim-respondia-lhe a consciência - Mas há um dever mais próximo, marcado por aquele selo misterioso que é para nós o dever providencial. Lá fora poderá substituir-se Isabel Morlainville. Aqui, não. Havia na Châtaigneraie uma árvore linda que morria aos poucos. O jardineiro explicava: "Já não tem seiva". Jeanine também já não a tem em dose suficiente é. É preciso que eu lha dê. De outro modo, tornar-se-á velha, triste, doente; o paizinho verá apagar-se aos poucos a mulher que ama, e João-Lucas a sua mãezinha A felicidade... é fugaz. O paizinho é poeta, o João-Lucas um rapazinho hesitante: têm necessidade de amar Jeanine; e através do grande vazio escoar-se-ia a vitalidade de ambos".
Então pôs-se de pé. O dia - um dia amarelo - filtrava-se através das cortinas. Afastou-as, abriu a janela de dois batentes. Paris continuava silencioso sob a neve.
- "Dir-se-ia que tudo morreu - murmurou a rapariga. - Mas tudo há-de reflorir. E o Florêncio há-de voltar. Será a nossa Primavera. Juntos, faremos o ressurgir, como diz o paizinho".
Florêncio continuava a fazer parte de tudo. Olhou ao longe, a este, e uniu o seu sacrifício ao sacrifício que, cada dia, o exilado renovava.
- "Nunca faz o que quer. Ele, tão ardente, tão autoritário, tão vivo, está fechado, preso. Nunca pode escolher. E eu, iria escolher? Não. Ficarei em casa. Sufoco aqui, mas ele sufoca ainda mais, lá longe".
Voltou-se. Batiam à porta. Georgina, meio a dormir, resmungou:
- Vinha perguntar à menina o que se há-de fazer para o almoço. Já não há batatas.
-Faça macarrão-respondeu Isabel, como, à mesma hora, tantas mulheres que acabavam de esgotar a sua reserva de batatas.
E acrescentou gentilmente:
- Vou ensinar-lhe uma receita esplêndida. Porque queria pôr um pouco de felicidade
nas mais pequeninas coisas.
QUANDO é que a Isabel vai ver o sobrinho?
- perguntou Estefânia de visita a sua mãe.-Está um amor. Sabes? já gatinha.
- Devias tê-lo trazido - disse Isabel- E a Edite também.
- No metropolitano? Nunca. Ah? Se ainda tivesse o meu automóvel... Não posso habituar-me a este contacto com gente suja e miserável. Não sou como a Teresa, que acha aquilo pitoresco. Uma original, a minha irmã. Agora ainda mais desde que vive lá no seu Montmartre e naquele mundo de artistas.
- Tens razão, ela está a tomar um género péssimo - declarou Jeanine mais animada do
que de costume. De facto, ela exagera a sua
célebre simplicidade. Ah! Vocês não se parecem nada. Tens um chapéu muito bonito, Fani. De onde é?
Puseram-se a falar de modas. A conversa não aborrecia Isabel, mas chocava-a que se ligasse uma tal importância aos veludos, num momento em que tanta gente sofria. Lutava, com um pequenino heroísmo secreto e belo, contra a atracção das coisas fúteis, que nunca se tornam tão desejadas como quando falta até o necessário. Vaidade, gulodice, prazeres fáceis, defendia-se do seu apelo, desligando por momentos o rádio quando transmitia uma canção ligeira. Mas quantas vezes pensava que a frivolidade era um repouso! E censurava-se por causa do Florêncio, por causa da França. Dois pensamentos que sempre se encontravam.
Jeanine dizia com um prazer infantil:
- Fani, tira o chapéu para eu o provar.
E a rapariga, sacudindo a cabeleira, apareceu muito loira e bonita.
- " Embelezou - notou Isabel. - Foi desde o nascimento do Guy. Ela é doida por ele. Nunca a julguei capaz de gostar tanto do filho. Mas não faz caso nenhum da Edite, coitadinha. Felizmente que o Paulo tem uma paixão por ela. Não há nada mais cómico do que ver aquela damazinha loira, a saltar ao lado daquele grande senhor de cabelos brancos ".
- Notícias do querido noivo? - inquiriu Estefânia. - Podes enviar-lhe encomendas? A propósito, veio-me uma ideia: tenho convites a retribuir, chás, festas, almoços fora, etc.
- Sais assim tanto? - admirou-se a mãe.
A Isabel este Inverno não tem recebido convites nenhuns.
- Ela é que te não tem falado nisso. Sei perfeitamente que não quer ir a festas. Para ficar contigo? Por fidelidade ao noivo? Porque julga, no seu juvenil bom-senso, que o mundanismo não está de acordo com o momento presente? Devemos deixar que a petiza siga as suas ideias. Mas também não há razão para me censurarem. O Paulo quer que eu seja chique e que frequente a sociedade. Ele tem orgulho na mulher - acrescentou com um sorriso vaidoso. - E diz que, neste meio de negociantes, é forçoso ser-se mundano. Compreendes que a mim não me desagrada...
- Ah! Compreendo, - suspirou Jeanine - e invejo-te.
- Pobre mãezinha, em breve estarás pronta a retomar a tua actividade. Já estás melhor e queria distrair-te. Já podes ir a nossa casa. O Paulo sempre há-de arranjar algum carro. Porque, imagina que estou com vontade de dar uma festa de caridade, em benefício dos prisioneiros e respectivas famílias. Há imensos prisioneiros entre os operários da fábrica de Paulo. E não é fácil ajudá-los a todos.
Isabel pensou: "Oh! Fani, todas as tuas despesas inúteis..."
Mas Fani, animada, falava alto e depressa:
- Uma comédia, representa-se uma comédia: O paizinho, num instante, compõe uma maravilhosa.
Porque eu quero uma inédita. Quem representa? Amadores, com a colaboração de Cláudio Ariel que nada recusará ao pai. Tu podias entrar, Isabel. Dizes tão bem.
- Isso não - declarou a rapariga. - Sem cá estar o Florêncio, nunca.
- É pena. Imagino-te muito bem em ingénua, contracenando com o grande Ariel. As irmãs do Florêncio serão menos escrupulosas?
- A Noelle dirá: "Não, não tenho tempo". A Solange dirá: "Sim", e ela representa fantasticamente bem. Quanto à Catarina, não faço ideia se lhe agradará ou não.
- Encarrega-te de lho perguntar. Eu, é claro, represento. E o João-Lucas, que tem um jeitão. Mas, então, tu, Isabel, o que é que fazes?
- Eu vendo os programas que o Sílvio pintar. Mas, ouve cá, também é preciso um papel para a Teresa. Ela tem muita graça, sabes.
- Faz de velha ridícula - disse Fani com desdém.
- Oh! És muito má. Porque é que hás-de pôr a Maçã a ridículo?
Quando o senhor Morlainville entrou, Fani fez-se lisonjeira para apresentar o seu pedido:
- Estás a ver, um inédito de Romain Villanel é o suficiente para atrair Paris em peso.
- Julgas que se pode criar uma peça por encomenda? A gente que escreve é caprichosa.
- Mas tu fazes isso pelos prisioneiros, paizinho. Por mim... - acrescentou mais baixo.
Por mim... Ele olhou a loira Fani. Entre as suas almas, tão diferentes, havia um laço misterioso. Por ela, retirara da cena a peça que seria talvez a obra-prima de Romain Villanel, mas que teria encorajado Fani a deixar o marido. E Fani, diante de um tal sacrifício, tinha simples e generosamente retomado o seu lugar junto de Paulo. Seria capaz de recusar-lhe agora alguma coisa?
Sob o seu olhar perspicaz e bondoso, ela perturbava-se. Aquele Romain Villanel, tão hábil na análise das almas femininas, que leria na sua? Certamente, ainda lá havia muita miséria. Mas havia, também, algumas tentativas de vida grande. Fazia por tornar Paulo feliz, a seu modo. E fazia por ser boa mãe. Sobretudo depois do nascimento do Guy.
João compreendeu: a maternidade trouxera, simultaneamente com o filho tão desejado e lindo, a possibilidade do bem, como Fani o concebia. Então disse ternamente:
- Sim, para ti, Fani, escreverei qualquer coisa.
- Oh! És uma jóia... E consegues que o Cláudio Ariel represente?
- O Cláudio Ariel... Queres dar-lhe um papel? Mas quem contracena com ele? Profissionais ou amadores?
Hesitava, pensando em Isabel, que agradava demasiado ao actor. Mas ela apressou-se a declarar:
- Eu é que não. Na ausência de Florêncio, nada feito. Estivemos a falar nisso há bocado e pensamos que o João-Lucas, a Solange, a Catarina e a Fani se sairiam muito bem. E a Teresa? Arranjas um papel engraçado para a Teresa, não é verdade? Só a figura dela trará alegria ao auditório.
- Achas que a Teresa tem tempo de ensaiar? Com os petizes...
- Ora! Leva-os para minha casa - solucionou Estefânia- A nurse toma conta dos quatro. E se estiver mau tempo para trazer o Francisco e o Domingos, deixa-os em casa de uma vizinha" como acontece de tempos a tempos. Então vais meter-te ao trabalho, grande homem? A mãezinha vai, pensa nisto! Que alegria para ela!
João sentou-se no braço da poltrona de Jeanine, envolveu com um dos braços os ombros cobertos de veludo e atraiu para si aquela mulher que ele achava sempre linda. Ah! Também daquele coração o psicólogo conhecia as insuficiências. Mas amava-a.
- Visto que assistes - murmurou - vamos fazer alguma coisa de jeito.
E ela sentia-se feliz.
Houve grande agitação em casa dos Morot-Léandre, quando o projecto lhes foi submetido. Entusiasmo geral. Lágrimas de Denise-a única chorona da família - por lhe terem dito: "Tu és muito pequena". Murmúrio de Isabel ao
ouvido da petiza:
- Eu peço ao paizinho um papel para ti. Olha, uma criada. Queres fazer de criada? Há sempre uma criadita jeitosa, no teatro, com um avental de renda.
Hesitação da senhora Morot-Léandre, recusando dar o seu consentimento:
- O vosso pai decidirá. Nem sempre lhes fazia as vontades, o pai. Catarina e Solange consultaram-se e, finalmente, confiaram a Denise, a menina mimada, a missão de suplicar a autorização do chefe da família.
- Pois é, e se eu não representar? Não estou para ir buscar lenha para me queimar.
- Representas, sim, meu tesouro - exclamou Catarina. Um papel emocionante. Vai-se pedir ao autor, que é uma pessoa bem mais compreensiva do que o paizinho. O que é que queres interpretar? Uma princesa? Uma espia? Uma mulher fatal? Escolhe. Todas as ambições te serão permitidas.
- Quero fazer de rapariga grande - respondeu dignamente aquela migalhinha da Denise. Riram, o que a envergonhou. E depois beijaram-se:
- Lembra-te de que a nossa causa está nas tuas mãos.
Era sempre a Denise que apresentava ao senhor Morot-Léandre as causas difíceis. As mais velhas, independentes, barulhentas, não sabiam encontrar o caminho do seu coração, como aquela loirinha de olhos cândidos.
Preparou as pantufas do pai, pô-las a aquecer junto do fogão, espiou o seu regresso. E, depois, arranjou maneira de estar sozinha com ele, no momento em que as suas atenções fossem agradecidas. Então, tomou aquele arzinho triste a que o pai não resistia.
- Paizinho, queria dizer-te uma coisa... Vai-se fazer uma coisa... uma coisa tão bonita! Mas a mãezinha não sabe se tu deixas. E nós gostaríamos tanto, tanto! Olha... não te zangas? Não fazes aquela voz grossa que te faz parecer o locutor do rádio? Escuta: os Bastien queriam dar uma festa.
- Não me espanta, da parte deles. Uma festa! Em guerra e com tanta gente a passar fome! Uma festa!
- É precisamente para impedir que se passe fome. O senhor Bastien tem muitos prisioneiros entre o pessoal da fábrica. Para lhes mandar encomendas, para ajudar as famílias, é preciso muito dinheiro, compreendes.
- Ganha-o bastante, o velho Paulo.
- Paizinho, lá estás tu a fazer voz grossa... A Fani tinha vontade, para se fazer ainda mais dinheiro, de representar uma comédia em casa dela. Os convidados pagariam os seus lugares.
- Eu pago os vossos lugares. Embora não me agrade que vão a festas, neste momento.
- És um amor, paizinho. Mas não precisas de pagar porque a gente também entra: a Solange, a Catarina e eu.
- As minhas filhas representarem? Com o irmão prisioneiro? E que peça? Com quem? Não, Denise, não quero. Pede-me a Lua, se for esse o teu capricho, mas isso não.
Denise olhou para ele, viu que estava zangado e foi tristemente dizer às outras:
- Ele não quer.
- Minha idiota! - exclamaram em uníssono Catarina e Solange. - Não tens préstimo para nada!
Ela pôs-se a chorar. Noelle, atraída pelo barulho, veio tomar a defesa da "idiotazinha". Houve grande zaragata, uma zaragata como aquelas em que, dantes, se via aparecer o Florêncio, traquina e malicioso, espicaçando as irmãs, pelo prazer de ouvir cada uma apresentar em termos coloridos as suas reivindicações.
Já lá não estava o Florêncio. De súbito, Solange lembrou se dele, que nunca deixava de exclamar, com uma gargalhada sonora: "Oh! Estas raparigas"! E foi uma agravante para o seu desgosto. Fechando-se no quarto que fora dele, abandonou-se ao desespero.
Seria sempre privada do que lhe dava prazer? Oh! Representar, fugir à insuportável realidade, poder dizer, num tom diferente, coisas diferentes...
- "O pai é um tirano, a mãezinha sua escrava, as minhas irmãs umas idiotas, o mundo em que vivemos estreito, sufocante. Gostaria de partir, partir, ir para longe".
Pegou na caneta:
"Querido Gil", escreveu.
Gil era um camarada, irmão duma das suas amigas, que a incitava a libertar-se do jugo familiar. Amá-la-ia? Duvidava. Amá-lo-ia? Acreditava-o ; todavia, nunca o teria definido como "um rapaz às direitas".
Naquela noite escreveu-lhe longamente, demasiado longamente. Ele leria as primeiras linhas e meteria a carta no bolso, comentando:
- Quatro páginas é um exagero!
Mas o escrever aliviou Solange. Colou o envelope e timbrou-o. Depois, erguendo os olhos, não pôde impedir-se de fixar o crucifixo de Florêncio.
E soltou um soluço sem lágrimas, porque alguma coisa a levava a ajoelhar-se, e Solange nunca mais queria ajoelhar.
A SENHORA Morot-Léandre, esperando a sua vez à porta da salsicharia, não tinha a expressão serena que lhe era habitual. Com efeito, só a assaltavam pensamentos sombrios.
- "As minhas filhas andam insuportáveis. Tirando a Noelle: essa ocupa-se do seu trabalho e do seu noivo. Mas as outras três!"
Estava escuro, frio, e a salsicharia não abria a porta: tudo isto junto não leva ao optimismo...
- "Desde que o pai as proibiu de representarem em casa dos Bastiens, que a vida se tornou impossível lá em casa: a Catarina com os seus grandes ares trágicos, a Solange insolente e a Denise sempre a choramingar. E o meu marido, aborrecido por desapontar as pequenas, irrita-se sempre que alguma coisa não lhe corre à medida dos seus desejos. Deus sabe se é possível fazer que tudo corra bem! Este racionamento... O que é que me irá dar o salsicheiro?
Ninguém gosta de morcela; com certeza que me vai dar morcela. Olha, a Isabel. Que bonitinha que fica com aquele capuz a Isabel!
Isabel sorriu à mãezinha de Florêncio e uma réstea de Primavera iluminou o Inverno.
- Estou no fim da bicha - disse ela. - Por causa do João-Lucas que não conseguia encontrar nada do que precisava, esta manhã. Como estão as minhas amigas?
- De disposição não pode ser pior. Tenho que lhe falar sobre isto.
- Estou à espera que me dêem uma resposta definitiva a respeito da peça. Mas ninguém lhes põe a vista em cima! O paizinho já está a trabalhar. A ideia é óptima, estou convencida que vai ser lindo.
- Querida, vá para o seu lugar. Quando eu já tiver recebido a minha ração de morcela
- ah! também faz careta! - dou mais umas voltas e depois venho buscá-la. Conversaremos pelo caminho. Que frio que está!
Leve o meu regalo - ofereceu Isabel, sempre pronta a despojar-se-As minhas luvas são muito quentinhas.
- Deixe-se estar com o seu regalo. Ainda é mais friorenta do que eu, minha jóia.
E cada uma ocupou o seu lugar naquela fila de mulheres tiritantes, ainda mais empalidecidas pela luz baça da manhã de Inverno que apenas começava.
"O Florêncio ainda tem mais frio do que eu", pensava a mãe. E a noiva. E outras mais, nas filas apertadas, pensavam nalgum rapaz cativo que era para elas mais do que a própria vida. E esse amor dava-lhes força para suportarem a queimadura da neve no rosto, nas mãos e nos pés. De vez em quando um suspiro: "Já não sinto os dedos", um bater de solas no pavimento gelado. Mas mantinham-se ali, de pé, resignadas a tudo desde que obtivessem alimento, grosseiro que fosse.
A senhora Morot-Léandre sai da loja.
- Há salsichas! - anunciou toda contente.- As pequenas vão ficar radiantes.
Isabel compreende esta alegria, na aparência tão material: alimentar a família naquele tempo de escassez, era assegurar a saúde, a felicidade. Exclama:
- Ainda bem!
Tão sinceramente, que a senhora Morot-Léandre vai fazer as outras compras com o coração mais alegre. E sai-se melhor.
Quando voltou para junto de Isabel, ela recuara muito para ceder o seu lugar a uma velha parecida com a inesquecível Marieta e que tossia. Deveria censurá-la por ter dito: "Minha senhora, venha para o meu lugar"?
Pobre Isabelinha, tão delicada, sujeita a estar ali de pé, entre gente tão pouco limpa, e cansada! A senhora Morot-Léandre teve vontade de lhe ralhar, mas não o fez: merece tanto respeito a generosidade dos novos! Mas apertou com força o braço da petizinha contra o seu, quando Isabel, pálida de tanto esperar, saiu finalmente da loja com o saco mais pesado.
- Vamos depressa para aquecer. Eu levo-a a casa. Pelo caminho vá-me dando notícias da mãe.
- Melhorou, imagine, desde que sabe que assistirá à festa de caridade da Fani. A propósito, minha senhora, o paizinho pode contar com as minhas amigas? Mesmo com a Denise?
- Filhinha, tenho uma triste notícia a dar-lhe. O pai não as deixa representar.
- Porquê? Oh! É impossível! Todos contam com elas. Assim, temos tudo perdido. A Fani vai ficar furiosa, o paizinho aborrecido, e a mãe desanimada. E ficamos sem dinheiro para os prisioneiros.
A senhora Morot-Léandre pormenorizou as razões da recusa.
Isabel escutou, reflectiu e, levantando a cabeça:
- Bem, compreendo. Mesmo assim, diga à Catarina e à Solange que não percam a alegria.
- Estão horríveis, confesso. Que mau humor!
- Coitadas das raparigas! É claro que foi uma grande decepção. A Catarina é tão profundamente artista e a Solange precisa tanto de se distrair um pouco! Elas que não percam as esperanças. Eu vou falar com o senhor Morot-Léandre. Isto, digo eu... mas acha que ele me receberá? Me ouvirá? O que é que acha?
Isabel tinha um bocadinho de medo do pai autoritário que era o senhor Morot-Léandre. Mas sabia ter influência naquele homem provido de três filhas de personalidade independente e viva. E a senhora Morot-Léandre sabia-o ainda melhor, se bem que nunca o tivesse dito. Opusera-se tanto ao noivado do filho: "O Florêncio é muito novo. Não gosto da família Morlainville..." Mas como resistir à graça de Liseron?
- Vá lá esta noite. Advogue a sua causa, minha terna.
- Eu não vou enternecê-lo. Vou apresentar argumentos muito razoáveis e muito sólidos. Vale bem mais, não é verdade?
"Isso é o que falta provar"-pensou a mulher que conhecia o coração dos homens. Mas não o disse. Isabel beijou-a em plena rua, como uma filha beija a mãe, e foram ambas ao seu dever doméstico, mais duro para a petiza, porque não estava certa de ser aquele o seu dever.
Entrou no quarto de Jeanine, que se agitava, na grande cama baixa.
- Chegaste, finalmente! É incrível o tempo que passas lá fora! Não é possível que se tenha de esperar tanto tempo nas lojas. Estiveste mas foi a conversar com quem quer que fosse, pobres, garotos que te parecem dignos de piedade, ou então estiveste a rezar orações intermináveis na capela... Não te importas comigo para nada! Estou aborrecida, quero levantar-me.
O quê? Nem sequer puseste pó de arroz esta manhã? Tens o nariz vermelho, o cabelo espigado. Estás horrível!
Nada afligia tanto Isabel como aquelas palavras: "Estás horrível"! É que era esta a sua fraqueza, gostava que a achassem bonita. E se negligenciara os cuidados devidos à sua pessoa, nessa manhã, de quem era a culpa? De João -Lucas, do racionamento. Teve um gesto de impaciência que não escapou a Jeanine, que a repreendeu pelo seu " mau carácter ", e a rapariga sentia uma luta áspera dentro de si própria, porque a sua sensibilidade se revoltava perante a injustiça. Todavia, nada respondeu. Lá longe, Florêncio certamente nada respondia quando o interpelavam rudemente. Juntar este pequenino sacrifício ao dele, tão grande, que união de amor! Juntas, as almas de ambos tornavam-se mais dignas de um futuro em que ninguém teria o direito de continuar medíocre.
Avivou o fogo. Vestiu Jeanine, penteou o lindo cabelo, pintado à medida que o seu ouro se extinguia, pôs-lhe ao lado um ramo de mimosas que comprara na rua a um desses "garotos que lhe pareciam dignos de piedade ", e também uma revista de modas. E beijando-a:
- És a beleza das belezas. Que bem que te fica esse veludo de esmeralda.
- Melhor do que o azul? - perguntou a eterna coquete.
- Sim, melhor. O Sílvio já te disse que o verde faz realçar o castanho dos teus olhos. Agora, posso deixar-te só? Tenho de ir ver o que é que a Georgina está a fazer.
- Nada de bom, pela certa. Vê lá se consegues fazer um prato que saia um bocadinho do vulgar. Herdaste as receitas da tua querida Marieta. Ah! Essa, sim, sabia fazer coisas boas!
- Coitadinha! Agora sem ovos e sem manteiga, como é que havia de conseguir fazer coisas boas? Parece que a estou a ouvir, trágica: "Tinha vergonha, eu, de servir uma aguada destas."
- Mas tu tens tanta imaginação, Isabel. Inventa.
O bom humor voltara, desde que o espelho mostrara a Jeanine que a sua beleza podia ser reparada. Então Isabel deixou o quarto tépido para ir para a cozinha gelada. Deveria resignar-se a ter os dedos inchados das frieiras? O anel de noivado já custava a entrar.
Pô-lo, no entanto, à noite, para ir a casa dos Morot-Léandre. Levava as cartas de Florêncio na carteira, cartas que lia e relia tantas vezes que já as sabia de cor.
A senhora Morot-Léandre não anunciara a visita a ninguém. Quando ela se desenhou, alta e elegante, à porta do gabinete do senhor Morot-Léandre, ele, encantado, dirigiu-se à futura nora:
- Que prazer vê-la, pequenina Isabel. Vou chamar as minhas filhas.
- Agora, já, não. Foi por si que vim. Queria falar consigo, sozinha.
- Com muito gosto. De que se trata?
Ela deitara para trás o capuz e ele pensou na Princesa Pele de Burro, deslumbrante de frescura.
- Trata-se de uma coisa... de uma coisa...
- Parece que está com medo.
- E é verdade - confessou a sorrir.
- Sou assim tão mau?
- Severo. Estou com medo que se zangue.
- Não me zango, prometo. Fale.
- Bem... Não as deixa representar?
- Isso, não. Não gosto de brincadeiras em tempo de guerra. Não acho bem que as minhas filhas se apresentem assim em público, quando têm um irmão prisioneiro. Você também representa, você, a noiva?
- Ah! Não! - exclamou-Não me sentiria feliz.
- O mesmo deve suceder com as minhas filhas.
- E se perguntássemos ao Florêncio a sua opinião?
Ele teve um gesto impaciente.
- Não seja tolinha, filha. Então ela abriu a carteira e leu: "Minha Liseron." Interrompeu-se:
- É um segredo, este nome, um segredo entre nós dois. Vê, estou a ler-lhe tudo.
Ele não disse: "Eu conheço o vosso nome de amor". Não, não disse. Para quê roubar-lhe a alegria de ter um segredo? Ela era tão criança...
Continuou:
"Minha Liseron, quero dizer-lhe uma coisa. Causar-me-ia desgosto que se divertisse sem mim: dançar, representar, patinar, remar... Não sei se isto ainda se faz, mas peço-lhe que o não faça sem mim. Visto que é minha, só minha. Mas não quero que as minhas irmãs tenham uma juventude triste por minha causa. Diga isto aos pais. Quero que as deixem expandir-se. Bem basta que se aborreça um na família. Você, querida, seja-me fiel a este ponto. Amo-a tanto!"
A sua voz tremia. Tinha lágrimas nos olhos. Continha-as, porque chorar não era de bom tom naquela casa. Mas às lágrimas de uma mulher poucos homens resistem. E aquela era tão mulher! Que juventude... Que frescura de amor... E o eco que lhe trazia, dum campo de concentração, a voz do seu filho único, comovia-o.
Levantou-se, caminhou dum lado para outro com nervosismo e, por fim, aproximando-se de Isabel, beijou-a na testa:
- Minha filha, minha querida filha, o Florêncio e você, ambos pedem a mesma coisa. É belo o que ele escreveu... pobre rapaz... Concedido! As minhas filhas tomam parte nessa representação, que continuo a censurar.
- Que bom! -exclamou Isabel. - É um verdadeiro paizinho. Oh! Gosto tanto de si!
Ele olhava-a com atenção, a noivazita do filho. E esquecia-se de representar o papel de pai severo. Todavia, impôs-se:
- Dou licença, mas com uma condição...
- Oh! Adivinho-a - respondeu ela, corada de alegria. - Tem que ser uma peça muito "rapariga". Esteja descansado. O paizinho disse-me logo: "Escrevê-la-ei pensando em ti". E prometo-lhe que será uma peçazita tão inofensiva como bonita.
- Sim, - murmurou o senhor Morot-Léandre - Romain Villanel provou saber como se faz e desfaz um país como a França. Admirei o sacrifício que fez, retirando da cena uma peça em vésperas de estreia e de êxito. O escritor que faz uma coisa dessas é alguém. Não apenas como homem de letras, mas como homem. Confio nele. E empresto-lhe as minhas filhas. Vá dar a notícia às suas amigas. E jante connosco. Telefona-se para a Avenida Vítor Hugo.
Ela hesitou. Gostava tanto daquela casa; mas pensou em Jeanine.
- A mãezinha ficará aborrecida, se eu não for para casa - disse suspirando. - E, depois, queria fazer um prato que a criada estraga sempre... Onde é que elas estão? Posso chamá-las?
Catarina! Solange! Denise! Os três nomes ressoaram na escada sombria. Uma cabeça aqui, aparecendo pela frincha de uma porta cor-de-rosa... Outra além, recortando-se sobre um fundo amarelo... Segreda-se... Desconfia-se...
Olha, é a Isabel. Será melhor descer? Ou manter posição? No fundo, a festa da Fani nada lhes interessa. Pelo menos, é isto o que tem de mostrar.
- Uma grande notícia! - grita a rapariga. -O Florêncio foi liberto?
Não, infelizmente! A alegria cai.
- Fui estúpida em ter gritado assim. É uma grande notícia, muito mais pequena. Mas, mesmo assim, hão-de gostar. Ouçam bem: vocês vão representar! Sim, Catarina, Solange, Denise, as três. O vosso pai dá licença. A peça chama-se "Conto azul".
Silêncio. É difícil acreditar na alegria, depois de uma semana de neura. Finalmente, a voz clara de Denise exclama:
- Isabel, então tu és fada?
Todos desatam a rir, até mesmo o pai que está à escuta, lá no fundo da escada.
- O ogre era eu - murmura.
E as garotas sobem e descem cantarolando, correndo, beijando-se sob a claridade azul das lâmpadas camufladas.
Na verdade, lembrava um conto de fadas...
O INVERNO ia tão pesado, tão insípido! A data escolhida para a festa de Estefânia destacava-se, luminosa, no calendário de dias sempre iguais: "Nesse dia, pensavam os novos, far-se-á qualquer coisa!" Enfim!
Com excepção de Fani, todos tinham veia artística, e os ensaios, a escolha do guarda-roupa, o cenário, tudo era ocasião de pequenos prazeres delicados. Ria-se. Ousava-se rir.
Mas havia Fani, a dona da casa, a organizadora da festa, E Fani representava horrivelmente mal. Como haviam de lho fazer compreender? De resto, ela não se importava de representar sem arte. Contanto que a achassem bonita e à casa elegante, o resto era-lhe completamente indiferente. Mas os outros ferviam:
- Oh! Menina, - disse Catarina, certa vez em que as duas irmãs se vestiam perto do fogo
- que voz tão parva que tem aquela Fani! Olha, parece uma miúda a recitar um cumprimento na distribuição dos prémios.
- Mas Sua Excelência guardou para si o melhor papel - notava Solange. - Os nossos são ocos, ocos...
- Ocos? Não os compreendeste, minha filha. Frescos e espirituosos como Musset. Ninon e Ninette não dizem coisas mais bonitas do que nós.
- Não sou Ninon nem quero sê-lo. Acho estúpido armar em ingénua. Ah! O papel da Fani convinha-me muito mais. É uma cretina, a Fani.
- Talvez não seja... Mas para ti todos são cretinos. Excepto...
- Excepto muita gente. Ninguém do nosso meio, é claro.
- Então conheces outro meio? Conta... Solange, que escovava o cabelo ondulado, fechou os olhos como a esconder o pensamento. E depois, abrindo-os, trocista:
- Costumas contar-me os teus negòciozinhos de coração, minha querida?
Catarina soltou uma gargalhada, uma linda gargalhada de felicidade:
- Não tenho mistérios. Estudo música com um homem que admiro e de quem gosto.
- Gostar como?
- Gostar... de amor. Não o escondo.
- Mas, Catarina, não vais casar com o Estêvão Magloire que é trinta anos mais velho do que tu...
- Trinta e dois. Isso não impede que o ame. Como músico, tem génio. E como homem, é tão profundo, tão poeta... De resto, julgo que ele não tem vontade de casar. De tornar a casar. É viúvo, sabes.
- É completo.
- O que é que isso tem? Haverá muitas mulheres que possam dizer: "Sou a primeira que ele ama"?
- Há a Isabel.
- Uns miúdos, a Isabel e o Florêncio! Eu não era capaz de gostar de um rapaz da minha idade. Um homem que tenha vivido, que tenha visto uma quantidade de países, de pessoas, de coisas, que tenha sido pobre, que tenha sofrido... se soubesses a riqueza de personalidade que isso representa! Dizes-me que não caso com ele. Paciência! Vê-lo de tempos a tempos, estudar com ele, ser a sua confidente, a sua irmãzita, a sua inspiradora, será o bastante para encher de felicidade a minha vida.
Solange enrolou o cabelo com arte:
- Tu imaginas, minha pobre Cigana, que até ao fim da tua vida te bastará ser, de longe, a irmãzita, a inspiradora? Desconfia dele e de ti própria.
- Oh! Estás a insultar-me.
- Não. Tenho sido, às vezes, uma peste; hoje não. Queria poupar-te a um grande desgosto. Chamar-se-á decepção, remorso? Não sei. Tu és uma rapariga às direitas, ele é, provavelmente, um homem seriíssimo. Mas é perigoso, como tudo, o vosso jogo. Acredita-me, minha pobre Cigana. Pretendes ler no coração dos outros, nem mesmo lês no teu. Conheço melhor a vida do que tu. Ser mais nova não quer dizer nada... Catarina sentiu que a irmã dizia a verdade e, senti-lo, magoou-a estranhamente.
- Como é que conheces tão bem a vida? Gostas de alguém?
- Sim, se a isto se chama gostar... Oh! Não te assustes, não fiz nenhuma tolice grave. Somente... já não sou precisamente uma Morot-Léandre.
- Como tu dizes isso... Eu não poderia ajudar-te? Asseguro-te que compreendia. Somos novas num tempo tão esquisito: somos atraídas para o bem e para o mal. Mas tu não és feita para o mal, Solange. Deixa-me ajudar-te... Não digo a ninguém.
- Não podes fazer nada, Catarina, nada. A Isabel tentou puxar-me para o bem, precisamente. A sr.a D. Inês também. Mas eu sou orgulhosa demais. Não quero submeter-me a tudo o que aqui é regra. Quando tiver vinte e um anos, partirei...
- Sozinha? Ou... com ele?
Sem responder, Solange carregou violentamente o vermelho dos lábios.
- A mãezinha não gosta disso - disse Catarina para dizer alguma coisa.
Solange fez um trejeito com aquela boca que o excesso de pintura tornava provocante e repetiu:
- A mãezinha não gosta disto... Tudo o que faço desagrada aos pais. O que é que hei-de fazer?
- Mas o que é que te fez mudar assim? Solange hesitou:
- Oh! Primeiro a Ghislaine, no Instituto. Mas não foi só ela. Escuta: por que é que há países sempre prontos para a revolução e outros que guardam indefinidamente as suas velhas tradições? Sou um país de revolução, aqui tens.
- Há revoluções belas, magníficas. Por que não a tua?
- Porque eu quero gozar, viver... Mas já debatemos suficientemente o assunto. É claro que não vais dizer a ninguém o que ouviste...
- O que é que tu julgas? Cá em casa ninguém repete o que ouve. Mas fiquei aparvalhada, minha velha.
- Podes contar à Isabel, se te apetecer. Ela sabe. Porque não é uma rapariga como as outras e porque é branca, branca, e pode ouvir tudo que continua branca. Vai-te ao teu piano, agora. Aliviar-te-á. Eu, vou para o meu curso. Que beleza, sair deste velho Passy. Cria-se bafio neste bairro.
- Estou bafienta? - perguntou a outra, deslumbrante de frescura.
Era a própria juventude, aquela Catarina de caracóis negros, de rosto expressivo e ardente. Solange disse para si, com tristeza:
- "Compreendo que o velho a ame. Eu, já estou murcha".
E era verdade: uma flor que pende antes de abrir.
Os ensaios do "Conto Azul" faziam-se em casa da Fani por causa do aquecimento que só ela podia proporcionar aos actores, e porque aquele vaivém a divertia. Isabel nunca assistia, porque tinha que ficar junto de Jeanine.
Uma noite estava ajoelhada junto do fogo no gabinete do pai. Um fogo de lenha verde que dificilmente pegava.
- "Pareço a gata borralheira" - pensou. Com o abano na mão, esforçava-se por atear a chama. Finalmente, um clarão subiu, vermelho, dançante. E a rapariga apoiou a testa ao bordo da chaminé, para melhor contemplar o elemento misterioso que é o fogo. Estremeceu, quando uma voz de homem pronunciou o seu nome.
- Oh! Não tinha ouvido tocar.
Era Cláudio Ariel, o actor. Ele pousou-lhe a mão no ombro:
- Deixe-se estar. O fundo é maravilhoso. Você é encantadora, Isabel.
- Aqueça-se - disse ela sempre ajoelhada.- Faz muito frio, lá fora?
- Oito graus abaixo de zero. Em casa da sua irmã parece Agosto. Onde diabo arranjam eles tanto carvão?
- O meu cunhado tem facilidade de o conseguir pela fábrica. Diga-me cá, que tal vão os ensaios?
Ele instalou-se num cadeirão, perto dela.
- Permite que me aproxime do fogo e de si? Do fogo, sim. De mim, não.
- Oh! Cruel! Isabel, está diante dum homem exasperado, furioso. Vai falhar, o "Conto Azul". Sim, vai falhar. Todavia, é maravilhoso. O seu pai ultrapassou-se, embora seja dificílimo escrever uma peça para meninas exemplares. Mas... há a senhora Bastien. Estraga tudo. Uma voz afectada, gestos compassados, nada espontânea. Contracenar com aquela boneca falante, põe-me fora de mim. Concluindo, estou com vontade de mandar tudo passear. Vim dizer isto a Romain Villanel.
- Não vai fazer uma coisa dessas... Pense que representa para os prisioneiros.
Sempre de joelhos, ela voltara-se para ele, o rosto e o corpo perfilando-se sobre a claridade púrpura. Cláudio Ariel sempre admirara Isabel. Admirava-a agora ainda mais. E, excitando habilmente a sua emoção:
- Representar nestas condições, é-me impossível. Para um artista, o sacrifício é demasiado. Ouvir aquela mulher, que não sente nada, dizer que me ama, não! Respondo-lhe no mesmo tom idiota e vou estragar a minha reputação. Vale mais que me retire. Mando-lhes um dos meus colegas.
- Sem si, a peça vai falhar. Peço-lhe que evite esse desgosto ao meu pai.
- Se tivesse ouvido a senhora Bastien a dar a réplica na cena II do terceiro acto, a mais bonita... Conhece a cena?
- Certamente, como toda a peça.
- Então vai compreender. Eu dizia isto... e a sua irmã respondia-me aquilo, naquele tom de menininha a recitar a lição.
Começou no seu tom magnífico, respondendo depois à maneira de Fani. Era engraçado. Isabel riu-se com gosto. Ele recomeçou. Mas interrompeu-se.
- Já que conhece a peça, seja boazinha e responda-me.
Ela fê-lo com a sua voz tão doce. E chegaram ao fim da cena, uma cena de amor. Então ele inclinou-se para ela e a chama da arte tornava-o belo:
- Isabel, há um meio de arranjar as coisas. Fique você com o papel de Susana. Você tem qualquer coisa que me encanta. Isabel, esqueceu-o? Sempre a admirei. E agora mais do que nunca. Ao pé de si as outras raparigas parecem dálias junto de uma rosa. Represente para os pobres, para os prisioneiros, para o seu pai. Não ouso dizer para Cláudio Ariel. Infelizmente, sei que está noiva. Na ausência desse feliz...
- Feliz, um prisioneiro!
- Sim, mas você ama-o. É feliz. Na sua ausência, deixe que um velho amigo lhe diga, baixo, respeitosamente: "Amo-a. Adoro-a, pequenina Isabel."
Ele já não lhe via o rosto apoiado contra o mármore. Então, ajoelhou-se também, beijou-lhe as mãos. E repetiu:
- Amo-a.
Oh! Loucura de escutar! Crime, enquanto o noivo, lá longe, punha nela a sua confiança. Pôs-se de pé:
- Cale-se! Proíbo-lhe que repita essas palavras.
- Não repetirei. Perdoe, estava louco. Mas será a Susana?
- Nem Susana, nem ninguém.
- Porquê?
- Porque o meu noivo o não permitiria respondeu, altiva. - Nem eu queria - acrescentou, presa dum desses acessos de cólera estranhos numa rapariga tão meiga.
Saiu atirando com a porta. Mas Cláudio, habituado às cóleras femininas, pôs-se a rir:
- Ouviu-me, apesar de tudo. Não desespero.
ROÇAVA pelo trágico o descontentamento causado pela nulidade de Fani. O autor do "Conto Azul" enervava-se. Cláudio Ariel representava de qualquer maneira. Os pequenos, decepcionados, recitavam os respectivos papéis sem lhes porem nada de característico, eles, que tinham todos uma personalidade tão vincada. Um dia, Cláudio Ariel declarou:
-Visto a senhora Bastien cá não estar, tomo a liberdade de vos dizer aquilo que já todos sabemos: ela representa muitíssimo mal. Se for ela a Susana, eu, Valentim, desapareço. Querido mestre, - acrescentou, voltando-se para João Morlainville - lamento infinitamente corresponder tão mal à sua confiança. Mas há-de compreender e perdoar-me.
João passou a mão pela testa onde se cavara uma ruga de contrariedade:
- Meu amigo, sei perfeitamente que, para um artista como você, é uma honra que faz aos pequenos, interpretar com eles esta peça. Contracenar com uma parceira tão medíocre, torna-se um sacrifício. Mas, meu caro Ariel, não haverá nenhum modo de arranjar as coisas? Ariel suspirou:
- Oh! Se a menina Morlainville consentisse em representar, tudo seria diferente. Essa tem temperamento de artista e depois, aqui para nós, este papel pede uma intérprete mais nova do que a senhora Bastien, por muito encantadora que seja.
Teresa, que acabava de chegar, gritou:
- Não peçam uma coisa dessas à Isabel. Entrar numa festa com o noivo prisioneiro, é inadmissível. De resto, ela não era capaz de sujeitar a Fani à humilhação dessa troca. É demasiado delicada para isso.
Teresa, vermelha de indignação, pensava no seu Sílvio. Certamente, se aquele que ela amava estivesse prisioneiro, não iria para ali representar.
- Bom!-respondeu Cláudio Ariel, nervoso.
- Vou telefonar ao Jerónimo, sabem, aquele principiante que representa com tanta personalidade. Substituir-me-á com entusiasmo. Ficará lançado, o rapaz. E aceitará que a Susana fale ao Valentim com voz estudada. Eu, não posso.
Já se ia embora, quando a Catarina saltou:
- Está tudo doido! Ouçam cá. Vocês sabem, eu sou cigana.
Sorriso gaiato. Ariel detém-se. Que iria dizer aquela original que tocava diabòlicamente bem?
- Deixem a Isabel sossegada. Ela tem muita razão. E não tirem à senhora Bastien, que nos recebe sempre tão amavelmente, a honra de aparecer em cena. Porque não havemos de fazer uma troca? Dá-se o papel dela à Solange, que é capaz de representar fantasticamente e que é nova, não acha, senhor Cláudio Ariel? E o papel de Solange à senhora Bastien. Há-de aceitá-lo de bom grado, demais a mais ele permite efeitos de toilete maravilhosos. Enquanto que Susana, pff!, sempre o mesmo vestido simples!
Entreolharam-se. Não fora mal pensado.
- Há só uma coisa - disse João-Lucas A Fani é preguiçosa. Com certeza que não está para decorar outro papel.
Catarina pôs-se a rir:
- É pequenino, o papel de Solange. E como vocês notaram, a Fani não sabia lá muito bem o dela.
- A quem o diz - exclamou o autor.
- Sim, todos estamos com pena de si. A Solange, pelo contrário, tem boa memória, muito jeito e um ar novinho e desembaraçado que há-de fazer dela uma Susana estupenda.
Ariel ainda estava amuado. Mas Catarina ordenou:
- Vamos, recitem a grande cena. Tenho a certeza de que a Solange a sabe de cor.
Entre dentes o outro murmurou:
- Há mais quem a saiba.
Mas como resistir àquele demónio da Catarina? Decidiu-se num tom arrastado. Então Solange, em quem dormia um mundo de paixões, avançou a rir: era preciso rir naquele momento. E o riso de Fani era tão artificial! Enquanto que o riso de Solange, fresco e sonoro, fez vibrar o artista que era Cláudio Ariel. E, quando falou aquela petiza, as palavras pareciam pensadas directamente, formadas com espontaneidade. Não representou: viveu.
- Seria um ás no teatro - disse-lhe Cláudio Ariel, com a voz embargada pela comoção. Temos que representar os dois.
- Quem iria adivinhar um talento destes?
- exclamou João-Lucas estupefacto. - Esta Solange...
- Eu! - proclamou triunfalmente Catarina.
- Eu, a Cigana. Conheço as reservas escondidas lá no fundo...
Solange beijou-a, o que admirou Denise.
- Minha querida Solange, - disse o senhor Morlainville - deixe que Romain Villanel a felicite calorosamente. Representou uma Susana que ultrapassa o que imaginei. Está então decidido fica sendo este o seu papel.
Uma voz se elevou, a da Teresa:
- E a Fani, se ela não quiser?
Era verdade, tinham esquecido a Fani.
- Encarrego-me disso - declarou Catarina, sacudindo os caracóis de anjo negro. -Dir-lhe-ei: "Ficará muito mais em destaque no papel de Yolanda, que é uma elegante e não precisará de estudar tanto." É preciso apanhar as pessoas pelo seu lado fraco. Tu, Solange, não te importas de aparecer sempre com o mesmo vestido, pois não?
- Nem que seja de avental - exclamou Solange. - Desde que faça eu a Susana.
Os olhos brilhavam-lhe, e, pela primeira vez, João-Lucas achou-a bonita.
Assim, tudo se arranjou, graças à Cigana, que soube lisonjear a vaidade e a preguiça de Estefânia. De resto esta era suficientemente esperta para ver que não seria capaz de interpretar um papel difícil e que produziria melhor efeito como menina elegante, que não diz grande coisa, mas que muda muito de vestido. Pôs-se portanto a estudar os figurinos.
E Solange a estudar o seu papel. Ah! Como estudou! Afigurava-se-lhe que ia finalmente viver sem constrangimento.
Isabel não deixou de falar do "Conto Azul" ao Florêncio.
"Espero que não critique esta festazinha. Vocês também têm representado, não é verdade? Um pouco de arte ajuda a viver, e todo o dinheiro irá para os Stalags. Como a sua mãe lhe disse, eu não quis representar. Quero ser a sua Isabel, que leva uma vida sombria e dependente. Assim, querido, estou mais unida ao seu cativeiro. Amo-o cada dia mais."
Mas Cláudio Ariel não desistia de tomar lugar naquele terno coração isolado. Há muito que lhe descobrira o ponto fraco: gostava de agradar e de ser amada. Tinha a certeza absoluta: conhecia bem o coração das mulheres... Pena era que estivesse noiva do petiz Morot-Léandre. Imaginava-se bem, ele, Cláudio Ariel, nascido de uma família humilde, elevando-se na escala social graças ao seu casamento com a filha dum escritor em voga. E demais a mais bonita, com um bom dote. Gostaria assim tanto do Morot-Léandre? Amá-lo-ia o bastante para esperar enquanto durasse a guerra, cujo fim ninguém sabia prever? Quantos prisioneiros não tinham perdido para sempre a mulher amada! Não era que achasse isso justo, evidentemente. Mas eles próprios, pobres pássaros engaiolados,não voltariam mudados de corpo e de alma a ponto de a mulher dizer consigo: "Não encontro nele o homem que amava"? Os que regressam, regressam misteriosamente marcados...
De qualquer modo, Cláudio Ariel queria tentar. Sempre lhe agradara aquela Isabel Morlainville. E, depois, mesmo que ela quisesse manter a sua palavra, um pouco de flirt talvez não lhe desagradasse... Uma mulher aborrecida não é difícil de conquistar. Ah! Por que razão teria recusado fazer de Susana?
Susana... A falar verdade, ninguém interpretaria melhor o papel do que a miúda Morot-Léandre. Esquisita, aquela rapariga. Seria um temperamento de artista, ou um temperamento de amorosa que lhe permitia representar tão perfeitamente? Para pronunciar assim certas palavras é preciso tê-las pensado. Não existiria em Solange uma vida secreta, só sentimentalismo e paixão? Era tão diferente das irmãs, todas raparigas de olhar límpido! Evidentemente que seria fácil, um namoro com Solange. Não para casar, isso não! Uma família austera, numerosa. Mas, no entanto...
Cláudio Ariel, que pensava ao mesmo tempo que comia o almoço bastante medíocre num restaurante, chamou o criado e pediu uma bebida forte. Estava farto dos pratos e bebidas racionadas
- "Preciso de um estimulante para arquitectar o meu plano. Tenho uma ideia estupenda".
E ali, saboreando um líquido que nem de longe se parecia com os de antes, decidiu que um namoro com Solange poderia facilmente excitar o despeito de Isabel e levá-la a desejar ternas atenções.
- "Mas é preciso ir devagar, Ariel, meu velho. Com Solange não há dificuldades. Não será o primeiro namoro: conhece-se-lhe nos olhos. Mas com Isabel é preciso precaução. Agir bruscamente seria estúpido. Daqui até à festa ainda vai muito tempo. Aqui estão três mulheres bem diferentes: Estefania, Solange e Isabel. Só uma é capaz de embalar um homem: Isabel".
E o artista, inato nele, pôs-se a sonhar:
- "A minha primita Odília, que está prestes
a morrer, contou-me, há já tanto tempo, que encontrara no Sanatório uma rapariguinha delicada. Sim... Olhos azuis como a Loire, bochechinhas cor-de-rosa, caracóis brilhantes como a seda negra. E aquela elegância, aquela voz suave, aquelas mãos esguias, aquele sorriso... Ah! Tem sorte, o seu Florêncio".
Florêncio... Todavia aquele nome causou-lhe um arrepio de vergonha, porque não era mau rapaz e não podia pensar sem respeito e piedade nessa juventude prisioneira, enquanto ele continuava livre, indiferente à grande prova.
- "Pobre rapaz, apesar de tudo! Ter pai, mãe, quatro irmãs, uma avó - creio que tem uma avó no Limousin - e viver isolado, entre isolados neurasténicos... Não, não te roubo a noiva. Mas, enquanto esperas, posso bem tentar diverti-la um pouco. Quando tu voltares, ela que escolha".
Afastou-se, sonhador, pela rua onde a brisa corria. Ia descontente consigo próprio, descontente com o mundo inteiro, sem saber estabelecer ordem e paz na sua vida, pensando em roubar a Florêncio, esse pobre entre os mais pobres, o único bem que possuía: o amor da mulher amada.
A neve caía. Neve vinda de longe, onde tudo era branco desde há meses. Antes que a luz se extinguisse e principiasse a noite interminável, sobre as tábuas da rude tarimba, o tenente Morot-Léandre, número 1540, escrevia a Isabel Morlainville, na sua caligrafia miúda e recta, bem legível, de que era avaro: tão pouco espaço para dizer tanta coisa, que iria para longe, longe!
Cerrando os olhos, evocou a sua Isabel. A sua juventude vibrou. Escondeu o rosto nas mãos. "O Morot-Léandre está com a neura, pensaram os outros.
Mas a neura durava pouco naquele rapaz grande e forte. Pegou no lápis e escreveu lentamente: cada palavra era preciosa.
"Minha querida, estamos no Inverno: Inverno cujo rigor não lhe é possível imaginar. Mas o meu corpo resiste bem. A tristeza deste céu nórdico é o que mais me faz sofrer. Pensar em si, é como um raio de sol. A certeza de que o seu coração se não separará nunca do meu, dá-me força. Há aqui um rapaz abandonado pela noiva. Deixa-se arrastar para o desespero, a morte. Sou feliz por crer numa mulher como tu. Amo-te."
RECOMECE o andante - ordenou Estêvão Magloire batendo no piano. - Não é isso, não é nada disso.
Catarina, sentada diante do teclado, ergueu para o professor um olhar meigo e risonho.
- Não se zangue, Mestre. Sabe muito bem que detesto vê-lo zangado.
- E eu - replicou ele numa voz a custo suave - detesto ouvi-la tocar mal. Você pode, deve tornar-se uma grande artista.
- Sério? Sinceramente que pensa isso?
Ele pousou no ombro da rapariga a sua mão esguia de virtuose e, com os dentes cerrados, repetiu:
- Recomece o andante. E desta vez, ponha nele a sua alma, criança.
Ela tocou sem que ele a interrompesse. E, quando soou o último acorde:
- Tem erros de compasso. Mas a alegria, a divina alegria de Mozart, cantou, enfim.
- Certamente, Mestre. Eu tinha alegria... O senhor tinha-me dito que eu podia vir a ser uma grande artista.
- Deseja assim tanto o destino de artista? Com as suas penas, as suas falhas, os seus desânimos? As suas incertezas? E esta sede nunca apaziguada que dá a busca do belo?
- Sim - respondia sempre a voz de Catarina. E os seus grandes olhos pareciam maiores do que de costume.
Com um sorriso impreciso, entre malicioso e melancólico, ela acrescentou:
- É melhor ter essa sede, do que contentarmo-nos com a água morna dos prazeres mesquinhos. Causa me náuseas a felicidade de certas mulheres. E depois, o mundo novo há-de ter uma tal necessidade de beleza! Afigura-se-me que os artistas, os verdadeiros artistas, ajudarão, tanto quanto os sábios, a reconstrução da França. O meu irmão prisioneiro escrevia-nos, no outro dia: "Os pintores, os músicos, trabalham aqui na prisão. Dizem eles que precisamos tanto de ideal!"
Estêvão Magloire olhou-a, tão nova, ele cuja fronte alta já se coroava de cabelo branco.
- "Se tivesse trinta anos... - pensava - que companheira seria! Mas completei ontem os cinquenta e um..."
Tocou ainda duas peças. Ele criticou-a asperamente. Mas ela gostava das suas repreensões. Amava tudo vindo daquele homem. Porque era um grande artista. Porque sofrera sozinho, sem mulher e sem filhos. Porque sentia que a sua mocidade rejuvenescia nele a inspiração musical e o gosto pela vida. Ele era o seu mestre, o seu iniciador; ela era a sua alegria e a sua inspiradora. Chamava-lhe sempre "criança", como se, para ele, ela não tivesse outro nome.
Quando a lição terminou, ela levantou-se, e, mais alta nos seus dezoito anos do que aquele homem de costas curvadas:
- Tenho uma coisa a pedir-lhe, Mestre. Duas coisas, até.
Ele era louco pelo seu sorriso. Não pôde impedir-se de sorrir também. E esse sorriso longínquo era belo.
- Diga já que sim. Senão, não posso pôr a alegria de Mozart neste andante e tornar-me-ei uma menina cheia de juízo, que vem dar lição de piano com o mesmo espírito com que passa já a roupa. É "sim"? Então oiça: sabe que estamos a preparar uma festa em benefício dos prisioneiros e respectivas famílias? Vamos representar um pequenino "Conto Azul", maravilhoso, escrito por Romain Villanel, quer dizer, o senhor Morlainville, futuro sogro do meu irmão. Precisamos duma ária de violino, doce e triste, nos bastidores. Dê-me um violinista.
Ele reflectiu.
- Joel Saint-Yvy. Mando-lhe o Joel Saint-Yvy. Tem um violino triste e doce, é um admirador de Romain Villanel e gosto muito do rapaz, que é meu afilhado.
- Muito obrigada. Agora tenho um pedido mais grave a fazer-lhe. Mas lembre-se que já disse que sim... Mestre, queria que o senhor, o senhor, Estêvão Magloire, consentisse também em tocar qualquer coisa: uma valsa de Chopin, por exemplo.
- Sabe bem o que está a pedir? Ela soltou uma gargalhada de cristal:
Oh! sei perfeitamente. Um mestre, como o senhor, não se digna, em geral, honrar com a sua presença uma festa mundana. Mas é para os prisioneiros... A minha amiga Isabel ficaria radiante; e dar-lhe prazer, para mim, é como se o desse ao nosso Florêncio... E, depois, a comédia é deliciosa. Cláudio Ariel, que é um bom actor, não se importou de representar connosco. Enfim, Mestre, a Cigana ficaria tão satisfeita...
- Então... a resposta é sim. E, agora, ponha-se a andar.
Ela desceu a escada a cantar. Como rapariga bem educada que era, pensou: "Não é correcto cantar na escada." Mas sentia-se tão feliz!
Ele atirou com a porta. Aquela criança embriagava-o.
- "Envelheceste depressa - murmurou. Cabelo grisalho, costas arqueadas... mas um coração de vinte anos. Ah! Miséria, miséria, ser assim marcado pelo tempo."
Chegada a casa, Catarina correu para "o quente", como designavam a sala onde crepitava o único fogo. Atirou as luvas para um lado, o chapéu para outro e pôs-se a dançar.
- Mãezinha! Mãezinha! O Estêvão Magloire vai tocar em casa da Estefânia. A casa vai-se encher de gente. Oh! Que sucesso!
A senhora Morot-Léandre tricotava perto do fogo. Emagrecera, mas a sua serenidade de alma protegia a beleza do rosto. Indicou à filha uma poltrona junto da sua: "
- Senta-te aqui, minha tolinha. Aquece-te. Mas Catarina foi buscar uma almofada.
- Sentada no chão aqueço mais e estou mais perto de ti, mãezinha. Ouve...
Catarina contava sempre tudo.
- Tive um dia óptimo. O Estêvão Magloire disse-me que eu podia vir a ser uma grande artista. E que pusera no meu andante a alegria, a divina alegria de Mozart. Estou tão contente!
A senhora Morot-Léandre acariciou-lhe o cabelo forte e lustroso, murmurando:
- Ainda bem, minha querida.
Achava que uma mãe devia favorecer a expansão da personalidade dos filhos, em lugar de a sufocar. Um dia advogara a causa de Florêncio: Saint-Cyr e Isabel. Diante da vocação médica da grande Noelle, fizera ceder a oposição do marido, que queria guardar as filhas em casa. Via com orgulho o desenvolver do talento musical de Catarina. Aprovava os múltiplos cursos de Solange. Mas tinha medo quando pensava nos seus corações jovens. Catarina continuou:
- Outra grande notícia: ele vai tocar a casa de Fani. Sim, minha senhora, ele próprio. Prometeu-me.
- Como é que te atreveste a pedir-lhe isso? Um mestre daqueles...
- Ora! Um mestre é um homem como os outros. O Magloire é tão simpático para quem o sabe levar! Disse que sim, mesmo antes de saber o que eu lhe queria pedir. Toca uma valsa de Chopin. Talvez esta...
Pôs-se a cantar. Os olhos da mãe encheram-se de lágrimas.
- O Florêncio adorava essa valsa... Lembras-te? Tinha-a num disco e escutava-a vezes seguidas.
- Lembro-me, quando era maior o desejo de casar com a Isabel. Coitadinho do Florêncio... Nunca podia passar sem o gramofone.
Com a cabeça encostada à saia da mãe, evocou o perfil voluntarioso e recto desse Florêncio insuportável e encantador ao mesmo tempo.
- Pobre rapaz...-repetia.-A casa era mais alegre no tempo dele. Não estranhas as tuas filhas? A Noelle ainda passa. Embora o seu esqueleto, lá em cima, me horrorize. Mas a Solange, e mesmo a Denise...
- A Denise também?-perguntou a senhora Morot-Léandre, que conhecia a perspicácia de Catarina.
- Sim, a Denise. Julgamo-la um bebé e ela já pensa como rapariga. Nunca reparaste que morre de amores pelo João-Lucas Morlainville, que não faz caso nenhum dela?
- Tão novinha? É uma loucura.
-Sim, mãezinha. É uma loucura, mas é assim mesmo. Nós começamos a viver cedo. Ainda bem que a miúda gosta de estudar. De resto, se trabalha tanto é para maravilhar o João-Lucas com os seus progressos. O ingrato nem sequer dá por isso. Oh! os homens, os homens... Felizmente que a sr.a D. Inês a ajuda a atravessar a crise. Tu, mãezinha... Vou dizer-te uma coisa: não te zangas?
Querida rapariguinha ardente e sagaz.
- Vou dizer-te: o racionamento absorve-te muito; já não és a mesma mãezinha. Oh! a culpa não é tua... As cartas, as inscrições, as bichas: tudo isso te devora o tempo e te cansa. Graças a Deus que há pessoas que não casaram, como a sr.a D. Inês - tu sabes, aquela professora do Instituto que todos tratam por Cristal -, também comem, mas não têm a preocupação de alimentar uma alcateia esfomeada, como as mães. É por isso que podem observar garotinhas sentimentais e ajudá-las. Estou convencida que a Cristal tem ajudado muito a Denise.
- Ainda bem - exclamou a senhora Morot-
-Léandre, cujo coração desconhecia o ciúme.
Pobre pequenita! E a Solange?
Catarina abanou a cabeça.
- Não te posso contar nada, mãezinha. Tu ensinaste-nos a detestar os "ouve aqui, conta ali". Mas ela não é feliz, sabes...
Um silêncio. Lá fora, o silêncio desse Paris camuflado. A mãezinha pensava nas três filhas cujos estudos as retinham fora de casa. Seria sempre uma aula o que fazia Solange entrar tão tarde?
Suavidade. Calma de sentir no seu corpo de mãe o peso da cabeça da sua filhita grande.
- a ti, querida, - perguntou - a alegria de Mozart basta-te?
Catarina espreguiçou-se:
- Não sei. A música é tão maravilhosa, que a seu lado tudo parece miséria. Pergunto a mim própria se algum dia me decidirei a casar. Fazes ideia, mãezinha, casar com um pedante, como há tantos, ou com um bucha, sempre a dormir. Olha, este ou aquele, era como quem me condenasse a comer massa cozida todos os dias até ao fim da minha vida... Espero que não seja esse o jantar. É que, sabes, já estamos fartos de massa... Voltando ao problema coração, dir-te-ei que quero amar e ser amada como o Flô e a Isabel. Senão, Catarina solteirona. Professora de piano? Ah! Não, não é o meu género. Hei-de tocar nos concertos, no rádio. E olha, se queres que te diga, o romance Isabel-Florêncio não é ainda o meu sonho. O Florêncio ainda não deu a sua medida. Amar um homem na plenitude do seu valor e que precise de uma ternura jovem, vivificante, deve ser maravilhoso, mãezinha.
Não disse mais. A mãe, com o coração apertado, perguntava a si própria se o homem "na plenitude do seu valor" se chamaria Estêvão Magloire. Ambas se calaram contemplando o fogo.
Denise chegou, friorenta. Baixinha, tinha sempre uma aparência de criança. E o rosto não conseguia libertar-se do seu tipo "idade ingrata".
- "Na verdade, pensou a senhora Morot-Léandre, o João-Lucas não pode tomar a sério esta garotinha."
Ela instalou-se no meio de dicionários. Queria tornar-se aquilo a que se chama "uma rapariga culta."
Noelle chegou depois, rápida, satisfeita com o seu dia no hospital e afirmando que não estava frio nenhum.
- O frio é uma questão de vontade. Oh! Denise, fazes-me pena com tantas camisolas, camisolinhas e camisolões. Diz como eu: está um tempo lindo, a vida é bela!
Pôs-se a devorar uma torrada transparente, de fina que era.
Solange foi a última a chegar. Subiu direita ao quarto. As outras chamaram-na.
- O que é? Que foi? - perguntou de mau modo.
-Vem dar-me um beijo - respondeu a mãe.
- Aquece-te um pouco. E conta-nos o que fizeste, o que viste.
Ela ajoelhou-se diante do fogo, estendeu as mãos para a chama que punha um reflexo duro no seu rosto torturado.
- Estás com má cara - fez notar a senhora Morot-Léandre. - Já lanchaste?
- Já... Uns bolos de trigo.
Falava pouco, atenta somente à chama onde tantos sonhos se fazem e desfazem. Por fim, voltou-se para o que a cercava e, trocista:
- O círculo de família... é tocante!
- Sim, - gritou Catarina - é belo. Não há nada de melhor. Hera, quando a Noelle e o Roland cá trouxerem um rancho de filhos, ficas toda contente, mãezinha?
A mãe sorriu.
.... Toda contente. E vê lá tu quando forem os do Florêncio e da Isabel, os da Catarina, da Solange, da Denise...
Noelle ria. Queria ter muitos filhos. Não seria muito cómodo para uma médica, mas tudo se havia de arranjar.
- A mãezinha ajuda-me a educar os meus.
- A mãe? Ainda não tem cara de avó declarou Solange - Pobre mãezinha... Se estás com muita esperança no casamento do Florêncio... Daqui até que ele venha...
- Não falta muito - gritou Denise. - A paz será assinada na Primavera.
- Na Primavera esperamos o Outono. E no Outono, a Primavera. Quem sabe lá se durante todo esse tempo a Isabel se manterá ligada ao Florêncio?
- Estás doida? - exclamaram as outras.
- Não. Vejo as coisas... Desperta interesse, a Isabel, e isso não lhe desagrada.
-Nunca sai, coitada da rapariga. Nem sequer quis entrar no "Conto Azul".
- Bem, admitamos que estou enganada. Com que então, mãezinha, já vês todas as tuas filhas casadas? Pois eu estou convencida que de nós três nenhuma casa. Por mim não me ralo. Pode-se ser feliz na mesma.
Levantou-se. Foi buscar uma maçã acima da arca, mordeu-a e foi-se embora.
- Denise, - disse Catarina-não tomes esse ar infeliz. Casas-te, afirmo-te eu, a Cigana. És absolutamente o género da mulher que adora o marido, mesmo que ele lhe bata.
- Por que é que me há-de bater? - perguntou a petiza.
- Porque és estúpida. Admiras de boca aberta o mínimo gesto dum certo rapaz. Isso torna-os vaidosos, detestáveis. Conclusão: uma vez casados, hão-de fazer rabiar as esposas.
E encostou a cabeça à da mãe.
- Oh! Mãezinha, como é que uma mãe tão sensata pôde ter filhas tão estouvadas? É talvez culpa do tempo em que vivemos. Um tempo virado do avesso.
- Mas que será belo se voltar ao direito - disse Noelle. - Será essa a nossa tarefa, voltá-lo ao direito. Vamos, Catarina, vai tocar as tuas escalas. Denise, escrevinha a tua versão. Eu vou para o meu laboratório. Pensar que é disto que depende o futuro do País...
- O futuro do País? - Denise olhou para a irmã mais velha e o seu coraçãozito dilatou-se de esperança. Às vezes a Noelle dizia coisas que entravam...
E no coração de Catarina cantou um adágio...
ALGUÉM tocou à porta.
- Uma visita! - exclamou Denise.- Deixa-me fugir; estou de pantufas.
- Toda a gente está de pantufas, minha tola
- respondeu Catarina. - Agora, o chique é estar quente. A bela dama que entrar dir-te-á: "Oh! Minha querida, que lindas pantufas escocesas!!!"
Mas, em lugar da bela dama, apareceu João-Lucas.
- Ainda é pior - murmurou Denise.- E estou tão mal penteada...
Catarina divertia-se vendo a atrapalhação da irmãzita:
- João-Lucas, - disse - aproxima-te do senhor fogo e contempla-o com respeito. Quantos fogos, lá em vossa casa?
- Dois. Um para a mãezinha, constantemente. Outro para o pai quando chega.
- E para vocês, os cadáveres dos radiadores eléctricos? Somos companheiros de infortúnio - Resmunga-se lá pela vossa Avenida Vítor Hugo?
- Não, senhora. A mim, o fogo não me faz falta. E a minha irmã nunca resmunga. Estou convencido de que ela acha que resmungar a faz feia.
- Monstro de irmão! É por virtude que se mostra assim paciente o teu amor de irmã.
- Talvez. Só a criada, que não tem virtude de espécie nenhuma, é que resmunga. É por isso que a Isabel faz a maior parte do serviço dela.
- Lá isso é verdade, faz de enfermeira, leitora, dama de companhia, criada de quarto, cozinheira... E tudo sem resmungar. Santa Isabel, orai por nós!
- Como irmã, não há dúvida que há algo de pio; A propósito, vim perguntar à Solange se se iimporta de passar por lá amanhã, para um ensaio suplementar. A cena entre Susana e Valentim tem uma importância capital, segundo Cláudio Ariel, que reclama a parceira.
- Vou chamá-la.
Solange apareceu, artisticamente enrolada em xailes de várias cores.
-Estás com frio - observou a mãe. - Devias vir estudar para aqui. Ninguém falaria, afianço-to.
- Onde quer que esteja a Catarina, há barulho. Viva, João-Lucas!
- Viva! Vi-te ontem no boulevard Montparnasse.
Ela fez-se vermelha e Catarina notou-o.
- Que bom vento te traz?
- Vim por tua causa, minha amiga. O Cláudio Ariel reclama a tua presença.
Ela admirou-se, intimamente satisfeita, mas fazendo-se difícil. Falta de tempo...
- Previno-te que se gela, lá em casa - anunciou João-Lucas. - Se puderes levar tudo o que tens em cima, não te arrependerás.
- Talvez possa ir de pantufas - disse Catarina com malícia. -? Já reparaste nas magníficas pantufas da Denise? Ela bem as esconde debaixo do tapete, mas eu acho aquelas maravilhas
dignas de serem apreciadas.
-Má - murmurou Denise quase a chorar. Mas João-Lucas parecia admirar de facto os ditos objectos, mais confortáveis do que elegantes. Interessou-se gentilmente pelo seu problema de geometria. Breve o sorriso voltou ao rosto vermelho da petiza. Achava João-Lucas tão elegante, tão bonito, tão inteligente! Aquele risco bem traçado entre madeixas de cabelo louro sedoso, aqueles grandes olhos castanhos, aquela pele de rapariga, aquele ar moderno... E aquele jeito de falar como se soubesse tudo! Denise acreditava que, de facto, sabia tudo, aquele João-Lucas de dezasseis anos!
-Não costumam ensaiar em vossa casa - fez notar a senhora Morot-Léandre.
- Há bridge em casa da Fani.
-A que vem esse sorriso trocista?
- É que acho cómica a importância que a Fani dá a estas recepções. Vão lá três ou quatro senhores carecas e ociosos, outras tantas mulheres pedantes, joga-se o bridge mal e porcamente, fala-se da política, e Deus sabe as asneiras que dali saem: "Minha querida, tenho informações de fonte segura... Soube isto pelo irmão do sobrinho do embaixador... vai-se dar tal acontecimento... A guerra acaba da seguinte maneira..." Depois engole-se uma semelhança de chá com bolos do mercado negro, lamenta-se um pouco a sorte dos que passam fome... Por último, volta-se ao jogo. E a Fani julga-se boa francesa porque prepara uma festa com o rótulo "prisioneiros".
Um silêncio. Todos pensam no Florêncio. E, de súbito, Catarina exclamou:
- Tens razão, João-Lucas. É horrível esse género mundano. Sim, sei muito bem que vos espanta ouvir-me falar assim. Julgam que só penso na música. Não é verdade. Quando vejo, no Bairro Latino, rapazes e raparigas com fome e todavia alegres, chiques, sinto horror por isso a que chamam "sociedade". Queria... queria dar tudo o que tenho para que este sofrimento horrível acabasse.
Solange escutava, pronta a troçar. Mas as palavras de Catarina entravam-lhe no coração"Queria dar tudo o que tenho..." Tentou ironizar.
- Dar tudo o que tens... Belo presente! Tu não tens nada, minha filha.
- Tenho a minha juventude. Mais tarde, a minha arte... Tenho-me a mim, Solange. Então tu não compreendes nada? Não sentes nada?
-Não, eu não tenho coração. Já o devias saber. E subiu de novo para o quarto, enrolada nos
xailes. Subiu a assobiar, o que a mãe detestava.
E abriu a porta do quarto que fora de Florêncio. Um crucifixo dominava tudo, um crucifixo
cujo ramo bento fora renovado pela própria Isabel. Solange olhou-o como se olha para alguém. - Ah! Sou uma miserável! JL Disse-o. Mas não se ajoelhou. Tinha medo de ser vencida pela força d'Aquele que a chamava pelo seu nome, dali, daquela cruz, e a Quem resistia porque tinha a ânsia da liberdade. E do prazer. Liberdade que a oprimia e prazer que a queimava. Não conseguia desligar-se da infância e o Deus da sua primeira comunhão surgia-lhe sempre a meio de caminhos tortuosos. Naquela noite, as palavras de Catarina provocaram o encontro temido.
- Basta! Oh! Basta!
Estendeu-se no divã de Florêncio. Sonhou. Amanhã, Cláudio Ariel, aquele rapaz de perfil de medalhão, representaria o jogo do amor, Evolava-se dele um fluido que a perturbava. E o seu talento prendia-a. Parecia nervoso quando em presença de Isabel. Ah! Se a Isabel tivesse flirt com ele, era porque era uma hipócrita detestável. Mas, afinal, será possível passar sem amor depois de o haver experimentado? Não devia ser divertido ter o noivo prisioneiro. E a Isabel levava uma vida digna de dó. Não era de admirar que procurasse distrair-se um pouco. Apesar disso...
- " Pois bem! Não, não quero - murmurou a rapariga. - Tudo para ela, então? É bonita, rica, está noiva dum rapaz estupendo. Que deixe alguma coisa para os outros. Cláudio Ariel, Cláudio Ariel... Que lindo tom de cabelo, uma mistura de negro e cobre... E aquele olhar móbil, inquieto, terno, por momentos. Adoro representar com ele. Quando me diz: "Susana, amo-a", imagino que sou a Susana. O Gil, um rapaz que me agradava, não passa de um enfatuado comparado com um artista daqueles. Gostava de esquecer o Gil e que o Cláudio Ariel gostasse de mim."
No dia seguinte pintou-se cuidadosamente para ir a casa dos Morlainville.
- "De facto, - disse a si própria, olhando no espelho o rosto embelezado-a caixeirinha querida da Isabel tem gosto. É absolutamente o que me convém, este tom de pó de arroz e de batom. Tenho que ir ver a Rosa Martin antes da festa. A Isabel disse que ela nos ia arranjar antes de entrarmos em cena; talvez que me ensine algum segredo... A Isabel julga-a uma santinha. Eu não acredito. A Isabel vê o bem em toda a parte."
Isabel... Isabel... O nome vinha-lhe continuamente à memória. Acabou por irritar-se. Começava a ter ciúmes da futura cunhada, que todos adoravam.
Em frente da bela casa habitada agora pelos Morlainville, encontrou Cláudio Ariel:
- Que pontualidade, encantadora Susana disse ele.
Como o seu olhar era directo! Não desviou o seu, o que ele achou ousado.
- "É inútil fazer cerimónia com ela. Fiz bem em convidá-la a vir aqui. Isabel, a desdenhosa, vai ver-se desdenhada"!
Isabel recebeu-os com o seu mais lindo sorriso.
- Nunca pude ir aos ensaios. Que sorte ir ouvir os dois!
Também para ela, ele teve um olhar directo. Também ela não desviou o seu. Mas, ao contrário de Solange, o seu olhar era puro.
Jeaniine chegou, vestida com um lindo roupão cheio de reflexos. O marido amparava-a.
- Que honra e que prazer vê-la, querida senhora! - exclamou Cláudio Ariel, beijando-lhe a mão. - Vem então assistir ao nosso ensaio?
- Sim - respondeu Jeanine, rindo como outrora. - O meu marido acha que sou eu o seu melhor crítico.
- "Ilusão conjugal", pensou o actor, que conhecia a frivolidade daquela mulher.
E, todavia, era um facto: quando se tratava de pôr em cena uma obra de João, -incapaz de compreender a peça a fundo, sabia apreciar à maravilha a interpretação dos actores. Porque a ela o exterior impressionava-a mais do que o interior.
Isabel instalou-se junto da madrasta. Pela primeira vez, também, assistia a um ensaio do "Conto Azul", esse "Conto Azul" que sabia de cor e cuja poesia tornara sua. Ah! Como gostaria de interpretar aquela Susana com Florêncio em Valentim!
Susana, risonha, encantadora, apareceu.
- "Ela é, realmente, bonita", pensou Isabel.
- "Pintada de mais...", murmurou João.
- "É bela, a juventude", suspirou Jeanine na sua poltrona.
E para aquela juventude avançou Valentim. Encantador, também. Era um par tão igual! O ar, o gesto, o tom, tudo se harmonizava sem esforço. Dir-se-ia que ambos viviam a cena, e que o amor-ficção fazia bater na realidade os seus corações.
Quando terminaram, todos deram a sua opinião. Com grande surpresa de Cláudio Ariel, Jeanine, embora louvando a interpretação tão pessoal de Solange, criticou com justiça certas entonações.
- Não acho bastante jovem, bastante rapariga, minha filha.
Então, João arriscou-se a insinuar:
- A Susana tão nova, tão simples, não deveria pintar-se.
- Oh! Fico horrível no palco, sem pintura exclamou Solange.
- Escuta, paizinho-disse Isabel.-Manda-se vir a Rosa Martin para pintar as actrizes. Com ela podes estar descansado: todas ficarão bonitas, e nenhuma terá ar pintado.
- Quem é a Rosa Martin? - perguntou o actor.
- Uma das minhas amigas.
- Uma das amigas dela! - exclamou Jeanine
fora de si. Que dizes, Isabel? A pequena não
é tua amiga. Trata-se, Ariel, duma rapariga caixeira numa perfumaria de que sou cliente. Conhecemo-la de miúda na praia. Filha de um pescador de bacalhau desaparecido, era uma miserável que vendia mexilhão. Depois passou a vender artigos de praia num bazar. E, por fim, veio para Paris tentar a sorte. Tem gosto, é bonita rapariga - uma normanda alta e loura honesta, assim julgo. Mas, como vê, não se trata precisamente duma amiga de Isabel.
- É, sim, mãezinha. A amizade não tem nada que ver com todas essas histórias do meio social. A Rosa é das raparigas de quem mais gosto.
- E tens razão - disse João. - A Rosa é uma grande alma.
Jeanine encolheu os ombros. E Ariel, que se divertia com a discussão, pensou:
- "Olha, olha, a Isabel corou. Não é tão dócil como parece, a petiza Morlainville. E defende como um leão as pessoas de quem gosta."
De súbito, uma ideia acudiu-lhe ao espírito.
- A propósito de amigos, queria dizer â Isabel que a minha primita Odília, que também honrava com o nome de amiga, está a morrer... em casa dos pais, para onde a trouxeram. É uma religiosa quem a está a tratar. Parece que o fim está próximo. Pediu para a ver. Mas naquele estado...
- Não vais - declarou Jeanine. - Uma tuberculosa em último grau...
- Aproximei-me de muitas outras, no hospital- respondeu Isabel. - Esteja sossegada, hei-de tomar todas as precauções necessárias. Pobre Odília... Ela sabe que está a morrer?
- Sabe. E, ao que, parece tem muita coragem. Tornou-se devota, veja lá!
João pegou-lhe na palavra:
- Ariel, é grande ser devoto; porquê ironizar? Inclinemo-nos diante da santificação tardia duma criança que tanto tem sofrido.
E Solange admirou-o; porque dissera aquilo tão simplesmente...
UM lugar sentado, um livro: graças a isto, pode-se viajar por muito tempo entre as paredes sempre iguais do metropolitano. Isabel abriu o livro, Era um novo romance, muito gabado por Roland e Noelle, grandes conhecedores. Pensou, contente: "Até que enfim que vou ler à minha vontade".
Mas reparou, ao cabo de algumas páginas, que lhe era indiferente o que acontecia às diversas personagens. Gente fictícia. Enquanto à sua volta pululavam verdadeiras vidas.
A multidão. Multidão em que se apertavam, desconhecidos uns dos outros, corpos magros e corpos robustos, vestidos à moda ou andrajosos. E de que se evolava, quente, o cheiro triste de corpos mal lavados.
Esses rostos, todos esses rostos de Paris magros, ossudos, torturados na sua maior parte quem os transformara assim? A fome? Desgosto pessoal? A recordação da derrota? Cansaço provocado pela doença? Ou pelo pecado?
Isabel olhava-os um por um, demorando-se no dos novos, mais redondos, nem sempre mais serenos. Quereria conhecer a preocupação secreta de cada um, dizer a essa multidão que o carro levava para... para onde? Para o trabalho ou para o prazer? Felicidade ou dor? Quereria dizer-lhes: "Pedem talvez à vida coisas que lhes não pode dar. E não lhe pedem o que ela vos quer dar".
Tantas raparigas que procuram o amor onde o não podem encontrar. Tantas mulheres que recusam a maternidade. Tantos homens que se deixam levar pelo desespero. E tão poucos os trabalhadores, tão poucos os que fazem o seu trabalho com cuidado, com consciência! Aprendera a conhecer as misérias da sociedade, no seu curso. E tinha piedade. Quereria, devolver, a essa gente de semblante apático, o sentimento da sua dignidade humana e cristã, uma esperança alegre nas suas possibilidades. Mas nada, nada fazia do belo trabalho social para que se preparara. Não casara, também. Ser-lhe-ia tudo recusado?
- "Oh! Nunca imaginei passar assim a minha juventude... Nem o Florêncio. Sonhávamos realizar grandes coisas, ambos, realizá-las os dois. E, afinal... estamos separados e oprimidos".
Fechou os olhos, porque se vê melhor o pensamento quando não se vêem as coisas. E reconheceu em si a aceitação livre e quase alegre daquilo que a oprimia: a dependência. E esperou que os seus grandes desejos opressos se transformassem em forças vivas. Esperava-o, sem certeza: a juventude não sabe o grande valor da provação. Lá longe, Florêncio aprendia mais depressa a ter a certeza. Porque raciocinava, ela, sentia... E o sofrimento fortalecia-a mais visivelmente.
Quando abriu os olhos, todos os companheiros de viagem tinham sido substituídos, excepto uma velhinha que movia os lábios. Entre os seus dedos rolavam as contas pretas dum terço. Indiferente ao vaivém, ao barulho, rezava. Sentindo-se observada, olhou também. Isabel, elegante e fresca, sorriu-lhe. Uma e outra, nessa multidão de corpos cansados, viviam pelo espírito.
Porta de Itália... Outrora, Marieta - que dizia "Barreira de Itália" - pronunciava com desdém o nome desse bairro, que ela achava indigno da sua Isabel. Pelo contrário, Isabel pronunciava-o como um convite à viagem. Porta de Itália... Veria alguma vez abrir-se diante dela a porta de Itália?
De momento, é para blocos de alvenaria que caminha ao sair dos subterrâneos. Casas iguais, à beira da grande Paris.
"Escada F, oitavo acima da sobreloja, segunda porta à esquerda": recordava-se de todas as indicações
Há prédios que envelhecem, Aquele, construído à pressa, parecia já murcho, sem que tivesse adquirido a nobreza das casas antigas. No ascensor saltitante, Isabel pensou:
"A Odília, dantes, chamava à casa dos pais "o bazar Flaviot". E, no entanto, é lá que vai morrer."
Uma religiosa, toda de branco, abriu-lhe a porta:
- Ela não pode receber. Está muito cansada.
- Minha Irmã, sou amiga dela, a sua única amiga. E sou assistente social. Ela quer ver-me... não a vou cansar.
Num relance, a Irmã julgou a visita:
- Então, entre.
E a rapariga penetrou na grande sala que, no dizer da Odília trocista de outrora, servia de salão, de casa de jantar, de quarto, de sala de fumo, de sala de resmungar, e onde a filha da casa se sentira sempre a mais. Mas a Irmãzita passara, e uma paz branca, um asseio repousante, faziam do caos de antes um verdadeiro e suave quarto de doente.
Ao avistar sobre o travesseiro aquele rosto pontiagudo e magro, muito amarelo, Isabel sentiu um aperto de mágoa. Mas o rostozinho sorriu-lhe:
- A Liseron... Oh! Não se aproxime; sou contagiosa. Vejo-a bem, daqui. Sempre bonita e chique. Pode chorar, se lhe apetece. Eu, querida, não sinto vontade de chorar.
Um silêncio. Isabel chora, não pode conter-se. Odília contempla essas lágrimas caídas antecipadamente sobre a sua própria morte. E, por fim:
- Liseron, tire o lenço da carteira. Acabou-se a choraminguice. Vou-lhe dizer umas coisas...
Tossiu.
- Lembra-se? No sanatório proibiam-nos de tossir. Agora, ninguém me proíbe nada: a doença rói-me por toda a parte. Mas são todos tão simpáticos comigo! A mãezinha não quis deixar-me morrer no hospital. Foi fantástica, não acha?
E, de súbito, começou a tratá-la por tu:
- Liseron, vou morrer. E imagina tu, vejo nisto beleza. A Irmã explicou-me... Nunca fiz nada de bom, fui uma peste, um animal, mesmo. Mas, agora, tenho paz e ofereço tudo. As dores sinto-me tão mal, tão mal... As noites sem dormir, com pesadelos; autênticas feras que me perseguem... A ausência da mãezinha que está a filmar e não pode ficar ao pé de mim a dar-me a mão. Ofereço também... aquilo que dantes me revoltava: tu sabes, gostar do Cláudio sem que ele gostasse de mim... E, acima de tudo, acima de tudo, ofereço a minha morte. Como o Pedro Jacquelin. Lembras-te do Pedro Jacquelin, Liseron? Ele disse-me qualquer coisa para ti... Mas o quê? Ah! Sim... Se vir a Liseron, diga-lhe que continue o que é, que continue um "liseron", E és sempre a mesma Liseron... E, todavia, nunca me desprezaste, nunca me abandonaste, a mim, uma revoltada. E voltaste ainda, antes que eu morresse. Obrigada.
Isabel queria ir-se embora. E tratou-a também por tu.
- Odília, sempre fui muito tua amiga.
- Não me deixes já. Escuta... Vou morrer. É a primeira coisa que vou fazer bem feita. Ofereci tudo, a minha vida, a minha morte. Morrer, custa, sabes? Dei a minha vida em sacrifício a Deus, no dia em que recebi o Viático. Dei-Lha. Pela França. Era só o que tinha. Tu, tens todo o futuro. Hão-de viver, vocês... Façam-na "ressurgir", como dizem agora. Adoro esta palavra. Há quem tenha feito tanto mal à França! Vocês... far-lhe-ão bem... Mesmo agora, há gente nova repugnante. Capazes de vender a alma. Vocês... sejam santos. Tu, o Florêncio, os vossos filhos...
A voz estrangulou-se-lhe. Fechou os olhos. E o hábito branco da enfermeira apareceu à porta.
- A visita terminou, minha senhora.
Mas a voz de Odília murmurou, entrecortada pela tosse:
- Não é uma senhora. É uma Liseron...
- Oh! É a Liseron! disse a Irmã. - A Odília falou-me tanto de si...
- Certamente, se não fosse ela, tinha-me matado. Ou tinha-me tornado... ainda pior do que fui. Bastava-me pensar nela. E foi sempre tão boa que eu não pude deixar de crer que existia um Deus todo bondade. Adeus, Liseron, pequenina e pura. Hei-de falar de ti, brevemente, com o Pedro Jacquelin.
Regresso. Regresso através do mesmo caminho. Mas tudo mudou. Isabel já não olha as coisas. Leva dentro de si a palavra de ordem de Odília: "Fá-la ressurgir". E o seu exemplo empolga-a: oferecer o que se possui, vida ou morte. Isabel, no banquinho de madeira do metropolitano que corre, apita, pára, volta a partir e corre e apita de novo sem que ela dê por isso, Isabel oferece o que possui: o seu sofrimento, a sua dependência. Disso, como de acções brilhantes, disso, com certeza, é feita a oferenda dos Franceses, de todos os Franceses, como a hóstia das missas é feita de grãos de trigo, de tantos grãos pequeninos. Nada é mesquinho. Salvo as almas, quando o consentem. E Isabel não torna a consentir.
- E, então, viste-a, minha teimosa? - pergunta lhe a mãe. - Bela ideia, ir fechar-se no quarto duma tuberculosa em último grau. Já te desinfectaste? Conta-me o que se passa por lá. Muito me espanta que a trouxessem para casa.
A mãe não quis que ela morresse no hospital. É mais amiga dela do que parece.
- Apesar disso, não a trata.
- Não lhe é possível. Está a filmar. Jeanine encolheu os ombros:
- Dás-te com uma gente impossível.
O dia corre, igual a tantos outros. Mas somente pelos gestos e pelas palavras. Os pensamentos pertencem a uma ordem diferente, Isabel quer música que lhe estimule o sonho, mas o rádio apenas envia mediocridade. Jeanine pede que lhe leia. O romance é leve e banal. Divertido, talvez, mas Isabel não sente vontade de se divertir. E tem medo de que toda aquela poeira abafe a chama que, junto de Odília, ganhara força...
- Levas o vestido de veludo azul, quando fores vender os programas a casa da Fani? perguntou Jeanine. - Ou o de tafetá escocês?
- O azul - respondeu Isabel, que se lembra como o Florêncio gostava de a ver de azul.
- Ah! Esquecia-me de te dizer que o Sílvio telefonou. Quer falar contigo, justamente por causa dos programas. Escolham uma coisinha gentil, alegre. O Silvio é espirituoso, quando quer. Não achas que umas cenazínhas humorísticas agradariam?
Inútil discutir a questão com Jeanine. Não compreende nada, mas mesmo nada. Isabel diz: "Vamos ver", num tom indiferente, e continua a leitura do romance. Tem a sua ideia.
E eis que chega o Sílvio, alto e magro: sempre o mesmo fantoche desengonçado e encantador. Mas o rosto adquiriu uma tranquilidade feliz e repousante: Teresa, o amor de Teresa... Sílvio diverte alguns instantes a sogra com intrigas do atelier. Tem espírito, é certo, enquanto Paulo Bastien, o seu outro genro, fala sempre no mesmo tom fastidioso. Pena que o jovem marido da Teresa não seja rico como o velho marido da Estefânia! Enfim, não se pode ter tudo...
-Isabel -disse por fim o Sílvio-não esqueçamos que vim para trabalhar. Tem alguma ideia? A Teresa não faz senão dizer que os programas não hão-de estar prontos a tempo. No entanto, já não é novidade para ela que consiga sempre mais no último momento.
- Tenho ideias, sim, senhor. Vamos ao gabinete do pai. Tenho lá uns desenhos. Dás licença, mãezinha?
Não espera pela resposta e leva o Sílvio. Uma vez fora, ambos desatam a rir.
- Compreende.- disse Isabel - a mãezinha ia arranjar confusões. Está convencida que os seus programas serão género "gentil".
Sílvio, sentado à beira da secretária, balança as pernas compridas e ri de gosto.
- Gentil... gentil... Faço ideia. Ah! Não tem nada de artista, esta querida Jeanine! E nem mesmo sei se realizará o tempo em que vive.
- Não realiza, não pode, Sílvio. E não devemos censurá-la: há pessoas assim, que são crianças até aos cem anos. Ainda tem esperança de readquirir a sua juventude e voltar a ser, ainda e sempre, a bela senhora Morlainville".
- E é essa a mulher que um homem como Romain Villanel adora! É espantoso!... Voltemos
aos nossos programas. Que propõe, irmãzita poetisa?
- Antes de mais nada, fugir ao "gentil". E já que a nossa festa -tão mundana, infelizmente!
- tem por fim socorrer os prisioneiros, se os evocássemos, a eles? Olhe, Sílvio, que pensaria de pequeninas aguarelas, representando santos ou heróis prisioneiros?
- Houve assim tantos?
- Com certeza: S. João Baptista, S. Paulo, S. Luís, S. Vicente de Paulo, por exemplo. Joana d'Arc. E reis: João, o Bom, Francisco I...
- A ideia é esplêndida, Isabel. Mas... para a realizar é preciso uma certa cultura... sobre certos assuntos... Acho que não sou capaz.
- É claro que é capaz, Sílvio. Trabalhe... Ele continuava empoleirado na mesa, com ar
amuado. Mas Isabel murmurou o nome mágico:
- A Teresa, a Teresa ajuda-o.
Então ele espreguiçou-se e, alegremente:
- Tem razão. Trabalharei. Vê, no fundo, ainda sou o mesmo preguiçoso. Se tivesse casado com uma Jeanine ou com uma Fani, não faria nada, absolutamente nada.
- Mas com a Teresa tem-se coragem. Achamos tudo bom e fácil, não é?
- Sim, - murmurou - é maravilhoso ter uma mulher como ela... Fez muito para que eu o compreendesse, Isabel, numa altura em que fui suficientemente estúpido para procurar a felicidade noutro lado. Sim, sim, sei bem o que lhe devo. Mas a sua vez há-de chegar, irmãzita...
- Ainda falta tanto tempo! - disse num soluço. - Tanto tempo! Se ao menos fosse mulher dele...
- Mulher dele? Escuta, pequenita, acho que ainda sofreriam mais. Quando somos casados e nos amamos, a ausência torna-se intolerável.
- Mas talvez eu tivesse um filho. Pense bem, um filho que se parecesse com ele, em lugar de estar para aqui de mãos vazias, os braços a abanar.
Sílvio deixou-se escorregar para o chão e, com um lindo sorriso:
- Às vezes, a Teresa diz assim: "A Isabel é uma criaturinha engraçada. Em toda a parte a amam e faz bem mesmo sem dar por isso." Vamos, irmãzita, parece-me que não tem as mãos vazias quem assim soergue toda a miséria do mundo ao passar.
HÁ dias cor-de-rosa em Fevereiro. Este é um deles. Tremula no ar qualquer coisa que já lembra a Primavera. Oh! muito vagamente: ainda há neve. Mas o Sol erguera-se, redondo e belo, nesse domingo,
- Tivemos sorte - dizem as crianças. Porque são crianças, hoje, todos os intérpretes do "Conto Azul". Diverte-os tanto, mascararem-se, serem outros, por um dia!
As Morot-Léandre estão agitadas: foi-lhes recomendado que chegassem com duas horas de antecedência. Vestirem-se, pintarem-se... Porque vão pintar-se, está decidido. Mas pela mão de Rosa Martin: cláusula imposta pelos pais.
Catarina não encontra nenhuma das suas coisas:
- As minhas luvas? o meu lenço? Roubaste-mos, Solange?
Não, Solange não roubou nada. Sonha, enquanto calça os sapatos.
- Lembras-te dos quadros vivos que fazíamos na Châtaigneraie, nos dias de chuva?
- Se me lembro! Descobria-se cada coisa, lá no sótão da avòzinha! Coisas que ela nem sequer conhecia. Zangava-se um bocadinho. E o Florêncio, então, contava-lhe uma peta qualquer com meiguice, com graça. E ela punha-se a rir, chamando-nos ladrões...
- Coitadinha da avó! - suspira Denise
Divertir-se-ia hoje. Dizer que há dois anos que a não vemos...
Todos os ausentes... Entristecem, por um momento. Também Florêncio se divertiria. Dantes, quando se ia a festas, ia-se com o irmão mais velho, traquina e encantador.
- Olha! O teu lenço - gritou Solange - no pescoço da Diana de bronze. Parece-me que estás maluca!
- Oh! Não fui eu quem lá o pôs. Se o Florêncio cá estivesse, ia jurar que era ele. Isto só pode ser uma ideia de rapaz.
- O João-Lucas veio cá... - disse Denise com o olhar brilhante de malícia.
- Há-de pagar-mas. Estão prontas? Não vale a pena besuntarem-se assim, minhas filhas. Está lá a Rosa que vende beleza. Ponho outras luvas, tanto pior. Partamos. Até logo, mãezinha. Não chegues tarde.
O pai aparece. Recusou ir a casa da Fani. Mas quer beijar as actrizes.
- E a mim, ninguém me diz adeus? Tenham juízo, minhas pintainhas.
..O que é ter juízo? Nenhuma se sente muito sensata. Catarina pensa em Magloire; Solange, em Cláudio Ariel; Denise, em João-Lucas. Mas o pai ainda as julga garotinhas. Roubar-lhas-ão sempre cedo de mais, as suas miúdas. Tem medo, medo do amor para aqueles corações frágeis.
..Três raparigas na rua. Os saltos batem. Uma diz:
- Brr! Está um frio de rachar!
- Mesmo nada; está um tempo delicioso responde outra.
A terceira pretende que amanhã há-de nevar. De qualquer modo, há frio no metropolitano.
Isabel espera-as em casa da Fani, onde se dá a representação.
- Estás um amor - diz Catarina. O veludo do teu vestido é da cor dos teus olhos.
- "Bonita de mais - pensou Solange. É insuportável!"
E diz, cinicamente:
- No teu lugar teria posto o vestido de tafetá escocês. Tem muito mais chique.
- O Florêncio gosta mais deste.
Então, todas as pálpebras descem: Florêncio, pobre irmão mais velho! Não podem crer que ele não esteja ali no meio delas.
- Despachem-se, se querem que as ajude a vestirem-se - disse Isabel. - Daqui a pouco tenho de ir buscar a mãezinha a casa. O velho Paulo sempre conseguiu um carro.
- Um automóvel?
- Estás a sonhar... Uma tipóia, minha querida, com um cavalo dos tempos idos e cocheiro de cartola.
- Parece que estamos em 1900.
O quarto dos vestidos-porque para guardar os vestidos da Fani é preciso um quarto - foi cedido às artistas e suas aias, quer dizer, Isabel e Noelle, que não representam, Rosa Martin e a estilizada criada particular de Estefânia, que intimida toda a gente, excepto a Cigana, que não tem medo de nada nem de ninguém, e imediatamente lhe dá ordens tratando-a por Angela como se sempre a tivesse conhecido. A Angela gosta e propõe arranjar-lhe o cabelo.
- A mademoiselle tem uma cabeça linda! Dá gosto ouvir gabar um cabelo que na
família é considerado uma crina de selvagem. Catarina está toda vaidosa.
- Eu não quero que a Angela me penteie - segreda Denise.
- Parva-responde Solange-julgas que ela se ia ocupar dum mosquito como tu? De resto, a seguir à Catarina sou eu.
Mosquito... Mosquito... Oh! Num dia daqueles, ver-se reduzida à pequenez de um mosquito! A Denise queria tanto ter uma aparência de rapariga! Perdida, desolada, abraçou-se a Isabel. Aquele veludo é tão macio, tão leve a mão que acaricia aquele cabelo cor de café com leite, em desordem! Mas já readquirira confiança. Isabel compreende tudo. Na sua linda voz cantante, propõe:
- Escuta, querida: tens que ficar bonita como as outras. Não sou má cabeleireira, sabes? Sou sempre eu quem penteia a mãezinha. Vou ondular-to, e depois a Rosa arranja-te a pele: estás pàlidazita. A tua mãe deu licença.
- Oh! És tão boazinha, Bebel! Um amor! A carinha pálida corou de alegria. Mas a cor depressa se foi. Instalam-se a um canto, porque as grandes e a Angela açambarcaram o toucador. Isabel aquece o ferro de frisar, tacteia-o, agita-o como se também tivesse aprendido o ofício. Pega no pente, alisa a seda castanha clara, põe-lhe o ferro. E aparecem ondas, caracóis: a seda brilha, torna-se ouro pálido, forma uma linda coroa sobre o rostozinho infantil. E a criança fica espantada, não se reconhece. Queria beijar Isabel, abraçá-la até a sufocar, mas escangalhavam-se os caracóis... Então, Isabel, a rir, beija-lhe as bochechinhas.
- Rosa, - chama - agora é a sua vez. Aqui tem a cliente.
Rosa Martin é tão grande, tão bonita! Quando se aproxima, na sua bata azul e sedosa, Denise pensa intimidada: "Sou pequena de mais". Rosa leva-a para perto duma lâmpada eléctrica, olha com atenção a pele pouco cetinosa. O coração da pequenina Denise bate. Mas eis que um sorriso... um sorriso lindo, amplo, bom, alegre, terno, aparece no rosto de Rosa. Dir-se-ia uma mãezinha.
- Não tenha medo - murmura Rosa. Sorria para que a fique a conhecer bem. Compreende, querida, não se pinta toda a gente da mesma maneira.
- "Chamou-me "querida"... toma-me a sério... Oh! Se eu ousasse"...
- Que há? - perguntou ternamente Rosa. Tem um ar infeliz.
- Sabe...-respondeu a petiza-queria tanto estar um bocadinho bonita, hoje, e ter assim um ar de rapariga, como as grandes...
Rosa interessa-se, já não pela pele, mas pelos olhos. E não é já a vendedora de produtos de beleza que se inclina, mas a vendedora de felicidade. Tenta ler no coraçãozito. Adivinha. Compreende. Tem piedade. Tão cedo em busca do amor humano que quase sempre decepciona? Já... Aos catorze anos... Pequenina Denise, pequenina Denise de gestos de criança, já não és criança na alma? Mas não se volta atrás. Rosa emociona-se diante dessa florzinha de amor. E, maternal:
- Já está bem penteada. Agora, vá pôr o vestido; depois, venha cá que eu ponho a bonita.
O vestido é um autêntico vestido de rapariga. Não é novo, claro; agora não se compra nada.
Mas Isabel, que tem uma quantidade de vestidos, deu-lhe este, alegre, fresco, florido, Rosa não pôde impedir-se de sorrir, ao ver o corpo franzino da adolescente ganhar graça naquele vestido sabiamente cortado. E, mergulhando naquele olhar inquieto o seu olhar cheio de paz:
- Sabe, querida, não a pinto senão um bocadinho, muito pouco...
- E os lábios, Rosa? Tenho uns lábios tão feios, cinzentos.
Rosa tem vontade de dizer: "Não, são cor-de-rosa e fininhos como os duma criança, os dum bebé que tem uma gotinha de leite ao canto da boca." Mas Denise não compreenderia. Denise detesta a sua infância. Rosa realça os lábios pueris com carmim. Empoa-lhe delicadamente as faces redondas, a fronte lisa; um toque cor-de-rosa nas bochechinhas; alonga um pouco as sobrancelhas... Finalmente, leva-a ao espelho:
- Sou eu? - murmura Denise. - Mesmo eu? Pareço uma rapariga! Tenho os olhos maiores!
Rosa, de mãos cruzadas, contemplava Denise ao espelho. Rezava...
Depois, foi buscar Isabel, que também se emocionou com a metamorfose da belezinha que sonhava com o príncipe encantado.
- Estás tão jeitozinha - disse Liseron - que o Florêncio nem te reconheceria. Agora senta-te aí com muito juízo e não te mexas mais. Queres um livro?
Denise disse que sim. Mas leu apenas três linhas. Era tão divertido ver as outras vestirem-se! Vestidos leves sobre poltronas, como corpos sem rostos... Gotas de brilhantina... Cabelos em ondas leves... Perfume suave, suave...
- Rosa, Rosa, não me pôs perfume.
Rosa hesita, mas Denise vive, talvez, o seu mais lindo dia. Perfumar a sua felicidade, é deixar-lhe mais uma recordação, e tão tenaz, tão profunda! Esquecemos muita coisa, nunca esquecemos certos perfumes... Pega no vaporizador e envia uma nuvem deliciosa à cabecinha encaracolada, ao vestido de flores...
- Cheira bem - disse Denise, franzindo o nariz.
E como fazia uma carinha de gato pequenino e não de mulher, Isabel e Rosa puseram-se a rir, tranquilizadas.
- Rosa, - suplicou Catarina, que vinha das mãos de Angela - pinte-me a mim também. Mas não género rosinha de toucar, como a Denise. Eu sou a Cigana. Acentue o meu tipo. Vou-me divertir tanto! Estou bem penteada, não acha? A Solange decidiu pintar-se sozinha. Para carregar muito, de mais... Mostre-me cá as suas caixinhas. Que lindos nomes... "Aurora boreal"... "Fascinação"... "Cinza de rosas"... Olhe: gosto deste pó-de-arroz ocre, deste batom lustroso. Mas... mas o que é isto que estamos a ouvir? Violino? Ah! É verdade, há uma ária de violino nos bastidores. O Estêvão Magloire mandou cá o Joel Saint-Yvy. Deixe-me ouvir. Adoro esta música! Olhe, quero ir ouvir de perto. Onde é que ele está a tocar? Pinto-me depois. Deixa-me passar, Isabel. Como é que queres que me deixe estar a pôr pó-de-arroz na ponta do nariz, quando alguém toca assim, aqui a dois passos?
Desapareceu. Rosa ofereceu os seus serviços a Solange, que recusou secamente:
- Muito obrigada. Sei o que me fica bem. Trate de Isabel.
- A Isabel acha-se bem como está -respondeu Isabel. - Não vou para o palco... Mas olhe, Rosa, a senhora Bastien...
- Tenho de esperar a volta da menina Catarina - respondeu Rosa a rir - senão, nunca mais a apanho.
- Ainda estão a tocar... Vamos ouvir para o corredor. Que maravilha, Rosa! Que bem que ele toca...
O violino cantava. Chorava. Encostadas à parede, as duas raparigas sustinham a respiração. Quando a música cessou, Isabel disse à amiga:
- O Joel Saint-Yvy pediu para tocar só para o paizinho, mas com certeza que o demónio da Catarina se meteu no meio. Nunca mais aparece...
Sim, apareceu, finalmente. Devagar, olhar perdido num sonho.
- Nunca ouvi tocar violino tão bem na minha vida. E que trecho! Foi ele quem o compôs, segundo indicações do teu pai. Não ficou lá muito satisfeito, o teu pai, quando me viu entrar. Mas o violinista não parecia importar-se. Por isso, fiquei, escondida a um canto.
- Já conhecias o Saint-Yvy?
- Não. É afilhado do Magloire. É loiro, com olhos azuis de arcanjo. E muito novo. Nada mais sei deste personagem com nome bretão... Sempre é preciso que me pinte? Agora, acho isso tão estúpido. Acho tudo estúpido, comparado com a música.
- Os perfumes parecem-se com a música disse Isabel, fechando os olhos sob uma doce nuvem de gotinhas Este, por exemplo... é um "alegro", Catarina.
As outras duas, que amavam a beleza, compreenderam. E Catarina, com uma chama no olhar, abandonou-se aos dedos delicados de Rosa, satisfeita por acentuar o lindo tom quente e as pálpebras sombrias da Cigana.
E Isabel foi buscar Jeanine, que a esperava, impaciente por acabar de se arranjar.
- O chapéu fica-me bem? Gostas do corte do meu vestido?
Isabel, enquanto lhe alisava o cabelo - sempre louro - achava-a fútil, a essa mãe, a essa avòzinha. Mas deveria extinguir as últimas chamas de juventude duma alma, incapaz de suportar o peso dum pensamento grave? Fora tãodespojada, a pobre Jeanine!
- Estás linda, e o teu chapéu é um encanto - disse Isabel, recuando três passos.
A madrasta ficou contente. E preocupou-se também com a graça da sua quase filhita.
- Põe o teu colar. Fica bem sobre o veludo.
- Não - respondeu a petiza-O meu anel, só o meu anel.
Jeanine encolheu os ombros. Sempre a ideia fixa do noivado!
- Contraria-me tanto que não tenhas aceitado um papel, como as tuas amigas. Vender programas é bom para uma petiza, ou para uma idiota. Gostava de te ver no palco.
Isabel hesitou, fez-se vermelha. Nunca gostava de fazer confidências a Jeanine. No entanto, não seria dar-lhe um pouco de felicidade, dizer-lhe certa coisa? Decidiu-se:
- Mãezinha, vê lá tu que também vou subir ao palco. É segredo, um grande segredo. Não contes a ninguém. Promete, promete...
- Desempenhas um papel no "Conto Azul"?
- Não. Apareço sozinha. Falo sozinha. O paizinho também sabe. Agora, fica sendo um segredo entre nós três.
Um segredo entre nós três... O rosto de Jeanine iluminou-se com um sorriso, aquele sorriso lindo, alegria, amor e juventude de João. Então Isabel passou-lhe os braços à volta do pescoço e falou baixinho, baixinho, como se houvesse algum indiscreto à escuta.
- Que boa ideia -exclamou Jeanine - O teu pai vai ficar satisfeito. E eu também - acrescentou.- Sou muito tua amiga, sabes? Às vezes, aborreço-te, mas eu sou uma doente. E, depois, somos tão diferentes. É esquisito, porque, afinal, fui eu quem te educou.
- "Oh! Nem por isso-pensou Isabel.-Marieta... Pedro Jacquelin... Cristal... Os Morot-Léandre... Foram esses que me educaram".
Mas não o disse. Rectificou uma onda dos cabelos de ouro, e ambas, descendo a escadaria sumptuosa, avistaram o delicado fiacre 1900, cujo velho cocheiro e velho cavalo as esperavam com a paciência de então.
ESTEFÂNIA Bastien gabava-se de conhecer "uma imensidade de gente". Assim, muitos dos convidados viam Isabel pela primeira vez. Olhavam-na muito, a essa rapariga vestida de veludo azul, cuja única jóia era a safira de um anel de noivado. Agradava a todos. E os seus programas iam-se vendendo por bom preço. Andava contente: seria uma bela receita para os prisioneiros e um belo reclamo para o artista, que compusera cada uma dessas aguarelas de tons frescos.
Decifravam a assinatura: "Sílvio Delorme". Fani nunca falava do casal boémio e simples, formado pela sua irmã Teresa e por Sílvio. Os amigos íntimos eram os únicos a saber que Silvio Delorme era cunhado da dona da casa. Apressam-se a informar os vizinhos:
- Muito talento! - dizem os entendidos.
Ainda bem! De hoje em diante a Fani poderá apresentar "meu cunhado, pintor".
Isabel correu para os bastidores a anunciar a Teresa o sucesso de Sílvio. Teresa, em combinação cor-de-rosa, estava fresca como uma maçã. Riu, orgulhosa, do seu marido.
- Outra das tuas boas ideias, Isabel, a história dos programas. Não há dúvida que tens um certo jeito para pôr os amigos em destaque.
- Se assim não fosse, não valia a pena ser amiga. Olha: houve um senhor que pagou cem francos pelo programa!
- Por qual deles? S. Luís entre os muçulmanos? É o mais bonito! Cem francos! Os prisioneiros hão-de receber bastante dinheiro.
Coração simples, nem sequer pensava que era com custo que Sílvio Delorme na sua vida profissional ganhava cem francos. Enfiou o vestido a cantar e preparou-se para interpretar uma velhinha, uma velhinha cheia de graça e encanto: sabia tão bem sorrir e rir, num papel alegre, aquela rapariga a quem os seus petizes pediam incansavelmente: "Mãezinha, conta uma história." E que a contava com tanto espírito que o marido, criança-grande, deixava tudo para se sentar junto deles e recolher a sua parte de alegria e de sonho.
Isabel voltou aos seus programas. Olha... os Lesoir... Por que razão os convidara a Fani? Faustina declarou-se encantada por a tornar a ver. Hugo, que emagreceu - as restrições! - perdeu um pouco do seu tipo imperador romano. Evocam-se recordações anteriores à guerra. Hugo julgava ter esquecido Isabel. Mas não; prendia-o aquela rapariga. E a safira que traz no dedo exaspera-o.
- Para os prisioneiros - dizia a voz que se tornava suplicante.
E a assistência, aparentemente mundana, sente como que uma ferida: o sofrimento desse milhão de homens que espera... É por eles que estão reunidos. Sem dúvida, a atracção duma récita exerce-se, num tempo em que os divertimentos são raros. Mas, mesmo assim, sentem a necessidade de se apertarem uns contra os outros para pensar neles, os ausentes.
O grande salão da Fani está cheio. Paulo Bastien faz as honras:
- A minha mulher entra na festa... Queiram desculpá-la.
E Jeanine, rejuvenescida pelo prazer, recolhe as homenagens no lugar da filha.
- "O que a mãezinha gosta deste mundanismo!" - diz consigo Isabel.
Mas não a censura. Apenas a aborrece que Jeanine a chame tantas vezes para a apresentar aos convidados. Recolhe fragmentos de conversas, rolando sempre sobre os mesmos temas. Uma prende-lhe a atenção:
- Ah! A sua filha vai casar? Então, o noivo foi liberto?
- Não... isto é... Olhe, a Josete prendeu-se muito de repente, no momento em que rebentou a guerra. O pobre rapaz foi feito prisioneiro. Infelizmente, os sentimentos mudam, durante uma tão longa ausência... A Josete encontrou um rapaz muito... muito bem e que se apaixonou por ela. Portanto... quebrou o compromisso. Depois de muito hesitar, pobre pequena! Mas foi melhor assim do que arrepender-se mais tarde, não é verdade?
Oh! Aquela Josete, aquela Josete! Como Isabel se envergonha por ela! Pobre rapaz que perdeu a sua esperança! Meu Deus, como deve sentir frio, nos membros e no coração! E Jeanine que parecia aprovar! Meu Florêncio, meu Florêncio!
João, extremamente pálido como sempre que se representa uma obra sua, vem colocar-se ao lado de Jeanine. Aplausos. E o "Conto Azul" principia.
Versos leves, frescos como a juventude. É uma história de amor em que todos têm menos de trinta anos, excepto Teresa, empoada de branco, no seu papel de avó.
Como são gráceis todos, a Cigana, a Solange, a Denise, João-Lucas... Fani já está um poucochinho murcha. E sobre todos os "amadores", adeja o talento áspero e forte de Cláudio Ariel. Esse Valentim, com que arte prende o coração de Susana! Isabel admira. Esquece que assiste a uma peça. Julga viver uma história verdadeira. Eles são todos tão reais.
Noelle, que não representa, aproximou-se de Isabel. Roland virá ter com ela dentro em pouco. Noelle não é artista, é estudiosa: observa e a testa enruga-se-lhe, como no laboratório.
- A Denise está deliciosa-diz-lhe Isabel que sabe bem quanto a mais velha gosta da petiza.
- Muito velha. Para quê fazê-la já mulher? É verdade: com aquele vestido cor-de-rosa
de rapariga, aquela leve pintura, aquele penteado... o bebé desapareceu.
Solange representa realmente bem. Entre ela e Cláudio Ariel, as réplicas caem, justas, emocionantes. Isabel fá-lo notar à amiga, mas esta responde rapidamente e com dureza:
- Cala-te.
Tem o ar de quem procura a solução dum problema. Isabel cala-se. De resto, acabou o primeiro acto e o coração de Isabel bate com mais força. Aproxima-se o momento em que o seu segredo será conhecido por todos. Tem medo. Sai com o pai da sala. Mas há gente em toda a parte. Entram no quarto das crianças. Talvez tenham saído? Não, Edite e Guy brincam sob a vigilância da nurse. Tudo é cor-de-rosa e sereno, enternecedoramente infantil. Os dois petizes pedem beijos à tiazinha que adoram. Não é ainda ali que poderão falar. Resta apenas o quarto reservado à secretária de Paulo e à sua máquina de escrever. Nada tem de poético o cenário... Tanto pior. Isabel ergue para o pai um olhar de angústia:
- Paizinho, tens a certeza de que não vão achar estúpido? Tens a certeza de que não me vou atrapalhar? Chorar?
Ele tomou entre as mãos o rosto torturado:
- Os teus versos são belos. Dizê-los é um dever, para que esta gente frívola sofra durante alguns instantes... nobremente. É um dever de amor para com o teu prisioneiro. Para com todos os prisioneiros. Esquece-te. Fortalece a tua vontade. Vamos rezar os dois, queres, filhinha? O Espírito, que um dia tomou a forma de uma pomba, abre sempre as asas sobre os que o chamam...
E as asas abriram-se. Isabel e João voltaram à sala. Fez-se um silêncio. Porque João, subindo ao palco, anunciou que a sua filha tinha, também ela, alguma coisa a dizer, a dizer em verso, "visto que é filha dum poeta".
- A fazer caixinha este tempo todo! - murmuraram as Morot-Léandre, assim como Teresa e Fani.
E correram à sala nos seus lindos vestidos. Cláudio também veio, uma ruga trocista nos lábios:
- "Com que então, quer pôr-se em destaque, a virtuosa Isabel, a noiva exemplar?"
Hugo Lesoir disse a Faustina, num tom mordaz:
- Não admira que faça versos.
Mas estava impressionado, o que o irritava.
E Jeanine, satisfeita por ter sabido o segredo,
julgava-se um pouco a autora dos versos de Isabel, como se julgava sempre um pouco a autora dos versos de Romain Villanel.
A rapariguinha, vestida de veludo azul, veio diante do pano. Era alta, esguia, simples de linha. Tinha uma bonita cabeça coroada de caracóis escuros, muito curtos. Nas suas mãos postas brilhava a safira. Disse uma palavra, o título, e, depois, fez por esquecer o auditório. O título era: "Expectativa", e todos sabiam que o seu coração esperava, que todos os corações esperavam.
Os seus versos falavam deles. Bem mais da sua grandeza do que da sua angústia. Mostrava-os misteriosamente escolhidos para expiar os pecados de todos, guardados para a obra da ressurreição. E pediu, ela, a noiva tão fortemente unida a um prisioneiro, que todos os corações vivessem na expectativa do seu regresso e fizessem por se tornarem dignos deles.
João conhecia-os, os versos da filha. Fora até ele quem a ensinara a dizê-los. E sabia que apenas um verdadeiro poeta poderia encontrar palavras tão exactas, tão ternas, tão belas. Mas, naquele momento, afigurava-se-lhe que essas palavras vinham da sua própria alma.
Diante de Jeanine, Isabel engrandecia. Aquela petiza que, por vezes, julgava insignificante e que tinha a seu serviço, como qualquer criada de quarto, era alguém. Os olhos da mulher egoísta enchiam-se de lágrimas. Em Isabel, também ela reconhecia Romain Villanel.
E Cláudio, rosto crispado, punhos cerrados, fazia por proteger-se contra o encanto. Impossível! Era demasiado artista.
- "É um poema, esta Isabel, um poema. Enlouquece-me."
Hugo Lesoir não ia tão longe. Melancólico, dizia consigo:
- "Muito deve ela gostar do tal gaiato, seu noivo. Agora ainda mais, com esta auréola de prisioneiro. Nada a esperar. Tenho de resignar-me ao casamento "razoável", tão gabado por Faustina."
Mas alguém sofria terrivelmente: Solange. Como lutar com uma rapariga daquelas? Do seu coração subia a tempestade. Quereria gritar a Isabel: "Cala-te. Mas, por amor de Deus, cala-te." E esbofeteá-la.
Enquanto uma outra, que escutava atrás da cortina, quisera beijar com respeito a mão que escrevera tais coisas. Para Rosa Martin, Isabel era já a mais bonita e a melhor rapariga do mundo inteiro. E eis que, subitamente, descobria, ainda, nela, uma poetisa. Rosa, pouco instruída, tinha uma sensibilidade tão afinada e um sentido tão profundo das realidades espirituais, que a beleza daqueles versos a maravilhava. Certamente, não aparecia na sala, com a sua bata de trabalho. Mas contemplava, por uma fresta do pano, a sua querida Isabel, e era orgulho... era alegria...
Aplausos. Aclamações. As lágrimas correm.
Isabel foge para os bastidores, onde Rosa lhe estende os braços, porque quase quebra, a "liseron". Mas a Rosa é grande, forte; repousa-se, naquele ombro. E é maravilhoso ouvir murmurar: "Queridinha, queridinha..." Simplesmente.
Será que electrizou os actores? O "Conto Azul" continua sob um novo ritmo. Era uma peça, há pouco, uma peça encantadora. Agora, é paixão. Todos têm os olhos brilhantes, gestos eloquentes, vozes em acordo com o vigor da idade. Até Denise, a pequenina Denise. Mas não por causa dos versos de Isabel. João-Lucas disse-lhe, antes de entrarem em cena:
- Estás estupenda! Nem te reconhecia. De facto, estás linda, assim penteada. E esse vestido dá-te um chique...
Alegria. Obrigada, Rosa! Denise, que deve rir nesse momento, solta uma gargalhada tão fresca, tão espontânea, que uma salva de palmas lhe responde. Ah! pode bem rir, quem escutou precisamente as palavras que o coraçãozito inquieto desejava.
Quanto a Solange e Ariel, espiam-se, provocam-se. Solange é uma Susana patética. Ariel, um Valentim que, com toda a sua alma, diz palavras de amor. E as palavras de amor dirigindo-se a Susana vão bem mais longe, até Isabel poetisa, que o atrai como a água fresca atrai o animal sequioso.
E, quando termina esse segundo acto emocionante, nem mesmo há tempo de voltar à terra.
Fani, chamada ao palco com os outros, embora não mereça os aplausos, anuncia que o mestre Estêvão Magloire quis colaborar nessa festa de caridade, e se vai sentar ao piano.
- Não, meus filhos, - declarou Catarina por nada deste mundo deixo de o ir ouvir. Mudem vocês de vestido e pintem-se tanto quanto queiram. Nada disso me interessa.
E caminha para o seu mestre, sorrindo com os lábios e com os olhos, porque sabe que ele tocará ainda melhor se tiver o sorriso da sua Cigana. Ele contempla-a. Meu Deus, como é nova! Por detrás de Magloire, esconde-se um louro de olhos claros.
- Catarina, ainda não lhe apresentei o meu afilhado, Joel Saint-Yvy, que vai ouvir no terceiro acto. É tímido, mas um artista. E bom rapaz.
- Ouvi-o tocar há bocado. Divinamente.
- Espero tocar melhor ainda, encorajado por si - diz ele, corando diante dessa rapariga de olhar apaixonado.
Magloire senta-se ao piano.
Meu Deus, como aquele homem sabe exprimir o inexprimível! Os prisioneiros, a sua melancolia, o seu tédio, seus voos de ideal, suas quedas pesadas, tudo foi posto em música por Chopin? Ou será Magloire quem faz surgir sobre o teclado o próprio canto duma humanidade dolorosa?
Catarina, escondida no vão duma janela, tapa o rosto com as mãos. Não quer ver nada, não quer ouvir nada. Oh! suspiros, oh! lágrimas de Chopin!...
Terceiro acto. Noelle guarda a mesma expressão. Roland, o noivo, está a seu lado. Trocam palavras em voz baixa. A senhora Morot-Léandre parece triste, o que não admira ninguém. é mãezinha de prisioneiro. Jeanine refrescada pelo prazer e pela emoção, está linda; sente-se boa.
Nada alegre, afinal, o "Conto Azul". Susana e Valentim amam-se, mas ferem-se mutuamente. Não poderá haver acordo entre as suas almas? Os seus debates multiplicam-se, tomam uma aspereza dolorosa. É aterrorizante: Solange representa como viveria. Já não é "a petiza Morot-Léandre", como as irmãs. É uma mulher apaixonada. E Romain Villanel, que a admira, pensa com espanto e melancolia: "Mudou, a minha Susana." Não, ele não sabia que Susana se podia tornar aquilo. E respira ofegante. Tem medo de ver despedaçada diante de si a sua Susana...
Valentim e Susana desaparecem. Entra em cena Catarina, isto é, Regina, que também ama Valentim. Senta-se num banco do parque. Não tem nada a dizer. Sonha, sofre.
Um silêncio, no teatro, tem sempre uma significação pesada. Este apavora os corações, já emocionados. E eis que alguma coisa se lhe mistura sem o destruir: o canto invisível dum violino.
Oh! Catarina não sabia que Saint-Yvy tocaria naquele momento. Julgava que a sua execução seria para toda a gente. Mas, não, está sozinha... e a música. Sozinha? Ou será uma alma que vem ao encontro da sua? Deviam tê-la prevenido... Não aguenta. Julgam que, por uma rapariga ser alegre, só sabe rir? Esse violino, esse violino... Meu Deus, não é à gente dos campos de concentração que ele se dirige. Não; é a Catarina. Sozinha num jardim, à beira da vida, e que, de súbito, tem medo.
E, simplesmente, Catarina chora lágrimas reais.
E Romain Villanel, que não previra até onde iriam as suas pequeninas actrizes de um dia, Romain Villanel, o poeta de cabelo grisalho, teve a revelação brusca da renovação que poderia operar, num mundo cheio de poeira e de cicatrizes, aquela juventude: se soubesse, se quisesse, se ousasse...
ISABEL, rapariguinha de Paris, amava Paris. Era para ela um prazer caminhar através
da sua cidade. Amava tudo: as velhas pedras e os jardins, a paz silenciosa das ruas solitárias, a vida barulhenta dos bairros comerciais, a graça das montras. Nesses anos de racionamento, as lojas tinham pouco que mostrar: todavia, com uma jóia, um lenço, uma flor, pequenos nadas agrupados com espírito, conseguiam realizar um conjunto maravilhoso. E a petiza Morlainville era demasiado artista, para que pudesse passar indiferente diante de uma loja de modas, de flores ou de antiguidades.
Nessa tarde, decidira tomar ar, enquanto Fani a substituía junto da mãe. Quando passava diante de estatuetas, fatos, objectos desportivos destinados a homens, sentia um aperto de dor. Florêncio escolheria, talvez, esta gravata, este isqueiro, esta raqueta. Mas Florêncio já não escolhia... Florêncio nada tinha. Florêncio fora mais despojado do que esse pobre velho que lhe estendia as mãos, pedindo, em voz rouca, uma senha de pão.
- "E eu estou presa a tanta coisa - disse consigo. - Continuo medíocre. Que diferença entre nós e aqueles rapazes! Há tempos, escrevia-me o Florêncio: "Quando voltarmos, encontraremos o que precisamos para fazer desabrochar o futuro que vive dentro de nós?" Serei digna dele? Capaz de o ajudar a realizar esse futuro?"
Inquietou-se. E, depois, ganhou confiança. O futuro... também vivia dentro de si. Sentia-o vibrar, como a mãe sente vibrar o filho que vai nascer.
Era um dia cinzento. O Inverno não se ia embora. O nevoeiro esfumava a vasta perspectiva dos Campos-Elísios, por onde seguia agora. As lojas haviam sido substituídas pelas árvores, o espírito podia sonhar. Respirava-se ali não sei que histórico perfume. O passado estimulava a esperança no futuro.
Paz. Silêncio dum parque que as crianças abandonaram há pouco. Um melro que saltitava na alameda ergueu voo diante da rapariga. Isabel ficou contente por ver um passarinho em pleno Inverno. Recordando o jardim que se estendia sob a sua janela de outrora, como um vaso de verdura, suspirou:
- "Não se pode ser feliz sem jardim."
E também já atravessara os Campos-Elísios, ultrapassando o lago privado da alegria que antes brotava dos seus quatro jactos de água; encontrou-se na avenida, no meio de prédios altos. Outra vez lojas. Mas as montras já não lhe interessavam: caminhava para o Arco do Triunfo perdido na bruma; pensava no soldado desconhecido.
Seguia sem se deter, sem olhar, atravessando uma a uma as ruas que vinham, afluentes de largo rio, desembocar na ampla avenida, onde rolava a multidão de transeuntes.
De súbito, reconheceu um feltrozinho claro, picado duma grande pena cor de fogo: o chapéu de Solange. Sorria já, satisfeita por encontrar uma amiga entre tantos desconhecidos. Mas o sorriso desvaneceu-se: Solange não ia só. Cláudio Ariel dava-lhe o braço.
Dirigiam-se para a porta envidraçada dum bar em moda, donde se filtrava uma vaga claridade sobre a avenida que escurecia.
Solange a entrar num bar com Cláudio Ariel! Que pensaria Florêncio? Isabel correu para a amiga:
- Viva, Solange!
O rosto de Solange fez-se vermelho, o de Ariel endureceu.
- Vens comigo? - perguntou Isabel, depois de terem trocado as palavras banais usadas em tais casos. - Eu vou para casa. E tu, também?
- Não - declarou Solange- Lancho aqui com ele. Boa tarde.
- "A insolente!", pensou o actor. E interveio:
- Se a menina Morlainville quiser dar-nos o prazer da sua companhia...
Coisa espantosa, Isabel respondeu:
- Com muito gosto. A minha irmã ficou a substituir-me em casa.
Entraram os três. Estava quente e agradável. Uma luz difusa iluminava o branco leitoso do tecto e das paredes, o vermelho vivo dos estofos e dos pilares. O conjunto alegrava a vista, cansada do nevoeiro.
-Onde é que nos sentamos?-perguntou Cláudio.-Muito perto da orquestra, não... Aqui? Ali?
- Pouco importa - respondeu Solange, amuada. Está-se mal em qualquer parte. Bem vê que as mesas são de dois e não de três.
E deixou-se cair sobre os estofos luxuosos duma poltrona de couro vermelho.
Estava muito pintada; Isabel, elegante. Cláudio Ariel era um conhecido actor de teatro e cinema. Assim, todos os olhavam. Murmurava-se o nome do actor em voga. E ele, satisfeito por acompanhar duas raparigas bonitas, exibia o sorriso semi-trocista, semi-terno, que apavorava Isabel. Perguntou:
- Chá? Sumo de frutas? Sorvete?
- Sorvete - disse Isabel, que pensava: "Que expressão tão esquisita que tem a Solange."
E Solange, que pensava: "Esta rapariga é detestável com a mania de se amarrar a nós", Solange entregou-se ao prazer de ser má:
- Julgava que a santa" Isabel nunca deixava a mamã... Julgava que os bons patriotas não se permitiam entrar num bar, no momento presente. Julgava que uma menina bem educada só saía com o papá.
Isabel sentiu-se vexada, porque Cláudio ouvia com ar trocista as impertinências da amiga.
- Fazes-me passar por uma patinha tonta.
- Oh! Muito branca. É bonita, não acha, Cláudio, uma patinha branca? Vimos aqui muita vez, minha querida. Olha, é ali que nos costumamos sentar, naquela salinha. Está-se tão à vontade! Pode-se fumar, conversar...
- "Que descaramento! -pensou Cláudio nunca a levei à tal salinha."
Solange continuou:
- Tu, que nunca vais a parte nenhuma, com certeza preferes ver e ouvir os músicos. A menina prefere as belas-artes: música, poesia... Enfim, é uma autêntica musa! Não sei se esta música te agrada, minha querida. Não é nada o teu género sentimental rococó.
- "Jurou que me havia de tornar ridícula! - disse consigo Isabel.
E Ariel, habituado a captar as mínimas cambiantes duma fisionomia, divertia-se observando a guerrazinha entre as duas raparigas. Mas gostaria muito de saber por que motivo Isabel aceitara o seu convite: ciúme? desejo de romper um aparte que a chocava? Tinha uma certa esperança que tivesse sido por ciúme.
Então fez o seu grande jogo, doseando as ironias, as atenções que dirigia a uma e a outra. Solange, que estava cheia de fome, não ousava, diante de Isabel, aceitar muitos dos bolos que passavam. Mais bonitos do que gostosos, mas bolos, de qualquer modo... E, finalmente, explodiu, quando Cláudio tirou dois ramos da bandeja da florista e ofereceu a Isabel como lhe oferecera a ela. Por muito que a Liseron recusasse, as violetas foram colocadas a seu lado. E Solange fez notar, com cinismo:
- Uma noiva aceitar flores dum rapaz... Isabel sentiu-se profundamente ferida. E o rosto alterou-se-lhe. Florêncio, o seu Florêncio...
Solange por despique começou a fumar. Fumava com o chique que herdara do irmão. Isabel recusava os cigarros que lhe ofereciam. Ariel observou:
- Solange, você tem um lindo modo de fumar, para mulher.
Tratava-a por Solange? Assim, diante de toda a gente. Oh! Que haveria entre os dois?
Sobre o estrado, os músicos, de branco, tocavam. Era estranho: pretendendo alegrar o ambiente, aquilo aumentava o desejo de chorar. Um vocalista cantou, em notas altas, uma ária nostálgica.
- Não gostas do género, certamente - insinuou Solange. - Eu adoro. É moderno, directo..
Não era verdade, não podia gostar daquilo, a irmã duma Catarina que enchia a casa de grande música.
Cláudio, pelo prazer de contrariar, declarou que a orquestra era horrível. Então Solange quis ser da sua opinião, atrapalhou-se, disse tolices que ele ridicularizou.
Isabel deixou-os discutir. Sentia uma tristeza imensa. Estar ali, numa sala luxuosa, a comer guloseimas ao som duma música leve, e Florêncio prisioneiro... Não, já não podia suportar aquela orquestra, aquele cheiro a tabaco, a violetas, perfumes femininos, aquele ruído de colherzinhas contra o cristal dos copos, aquela atmosfera de indolência elegante... E, todavia, a sua vontade retinha-a no bar: não sairia sem Solange.
Suplício. Suplício, esta batalha entre dois deveres. A amizade quebrando as regras impostas pelo amor. Aquela sensação de estar a ser espreitada por Cláudio, como o caçador espreita o animalzinho que persegue. Ter a convicção de que ele a ama - a seu modo, é claro, mas ardentemente - e não ama Solange.
Mas por que razão queria atrair aquela irmãzita de Florêncio? Para a perder? Como terminaria aquilo? Solange detestava-a, o que era torturante para um coração como o de Isabel, só amor.
O vocalista calara-se... Um violino substituia-o.
- Não toca tão bem como o Joel Saint-Yvydisse Isabel.
-Ah! Sim,-troçou Cláudio - aquele homem grande, loiro, que fez chorar a linda Catarina. Que triunfo! É verdade que eu, homem experiente, quase chorei ao escutar certa poetisa dizer versos seus...
- Vocês têm todos a lágrima fácil - declarou Solange, enviando a Isabel o fumo do seu cigarro.
- Eu, meu amigo, não sei que seria preciso para me fazer chorar.
Ariel olhou-a. E o seu olhar era profundo:
- Você, Solange? No dia em que chorar, chora ainda mais do que os outros.
Ela encolheu os ombros. Mas Isabel viu tremer a mão sem anéis, essa mão de rapariga que sabia agarrar um cigarro com tanta elegância.
E pôs-se a falar de teatro. Falava bem, embora o seu pensamento estivesse longe com o querido rapaz, que nessa mesma hora contemplava mais uma noite caindo sobre um dia vazio.
Vazio? Ou cheio, a transbordar? Não se sabe. O valor da vida não se mede pela extensão, mas em profundidade. E ela recordava um pensamento maravilhoso da última carta de Florêncio: "Faremos bem apenas na medida em que formos santos." Não escolhemos o nosso caminho de santidade, não é assim? Se Deus fizera dele esse número 1540, é que as suas possibilidades de santidade estavam ali...
Cláudio Ariel viu um clarão de ternura nos olhos da rapariga. E desejou que fosse por si.
Não se pode ficar indefinidamente diante de chávenas vazias. Isabel decidiu-se a dizer:
- Vamos agora, Solange?
Ariel compreendeu que, por uma razão ou outra, ela lhe roubava Solange. Então, falou também em partir, e Solange, desolada, viu-se obrigada a ir-se embora com a amiga.
Mas, chegadas à praça de Étoile, a petiza Morot-Léandre parou e, duramente:
- Vai-te embora. Vai sozinha. Conseguiste o que querias. Detesto-te, Isabel. És uma hipócrita; escondes a leviandade sob a aparência de virtude. Precisas das homenagens de todos os rapazes: o Florêncio, o Lesoir, o Ariel. Ah! Coitado do Florêncio, coitado do Florêncio! Olha, seria melhor para ele que dormisse ali, sob uma pedra, como o soldado desconhecido, do que vir a ser o marido de Isabel Morlainville. Vou escrever-lhe. Dir-lhe-ei que namoras na sua ausência. Vai ter um desgosto: mais cedo ou mais tarde... Vai-te embora. Oh! É inútil tomar esse ar trágico, de virtude ofendida. Descobri o que na verdade sempre foste. E a tua hipocrisia enoja-me. Que lindo "liseron" branco, não há dúvida.
Desapareceu no nevoeiro. E Isabel começou a andar depressa, julgando fugir à sua dor, mas arrastando-a consigo. Finalmente, finalmente uma igreja. Caiu de joelhos. Não sabe o que vale a sua alma, o que vale a sua vida. Falsidade? Ciúme? Não, não é possível que haja isso dentro de si. Há miséria, oh! certamente, mas miséria que reconhece, de que se arrepende, que combate. "Tu sabe-lo, meu Deus, não é assim? Nunca sofri como esta tarde. Porque nunca me tinham detestado. Queima, corta, meu Deus, sentirmo-nos odiados... Também Tu o sentiste. Respondeste, amando. Vou tentar, meu Deus! A Solange ainda sofre mais do que eu."
Acalmava-se. Mas um pensamento atroz atravessou-lhe o espírito:
- Irá, de facto, dizer ao Florêncio que o esqueci?
Então um soluço a sacudiu:
- Eu quero sofrer, sofrer mais ainda. Mas ele não! Ele, não! Se deixar de crer em mim, perderá a coragem, a esperança, tudo... A Solange será capaz? Uma Morot-Léandre... A quem pedir conselho? A Jeanine não é uma mãezinha. E a um pai é impossível contar certas coisas.
Lágrimas, lágrimas de noiva que se sente só. Lágrimas de rapariga caluniada. Lágrimas de criança sem mãe.
E é preciso ir embora. Enxuga os olhos, lança um último olhar ao tabernáculo.
- "Ninguém é tão mãe como Deus." Onde lera essa frase? Impõe-se à sua memória. Traz-lhe suavidade, paz. E diz uma, e outra, e outra vez: "Tenho confiança em Ti." E vai para casa.
Fani lá está, gentil e medíocre. Isabel trouxe a sua pena trágica para junto das suas preocupaçõezitas e dos seus prazeres. O conjunto não se harmonizava. Ah! Se a Marieta vivesse!... Teria pousado a cabeça na sua velha blusa de lã e voltaria a ser criança.
Já não era criança e não era ainda mulher. Oh! Esse noivado sem noivo, que difícil período!
Dantes, Florêncio chamava-lhe: "rapariguinha do meu coração". Se ainda o pudesse ouvir pronunciar aquelas palavras! Mas iriam talvez macular a imagem dessa rapariguinha do seu coração.
Não, não, isso não. Escreveria primeiro...
Escrever? Infelizmente não tinha carta que lhe permitisse escrever para lá. Entre ambos, que separação!
- Em que pensas, Isabel? - perguntou-lhe a mãe. - Tens um ar cansado, riquinha. Nem sequer me deste um beijo quando entraste...
Então, pegou numa cadeira baixa e sentou-se junto dela. E, apesar de tudo, fez-lhe bem dizer "mãezinha".
Odília, adeus
É a menina Morlainville? Aqui, Tenho uma triste notícia a dar-lhe: a Odilia morreu, pobrezita. Tinha a sua voz trágica. Talvez estivesse triste, embora sempre tivesse oposto indiferença ao amor apaixonado da prima.
"Odília morreu": faz um mal horrível escutar estas palavras vindas do outro lado do fio. Palavras definitivas.
Isabel correu para Jeanine:
- A Odília morreu, mãezinha.
Jeanine apiedou-se alguns instantes, depois disse o que era verdade:
- Um alívio... que queres!
Sim, sim, pode sempre raciocinar-se desta maneira. Mas era ainda tão nova, a Odilia! E morrera, como Marieta.
Isabel foi ter com o pai:
- A Odília morreu, paizinho.
A cabeça dele inclinou-se, o seu olhar foi longe.
- Ei-la finalmente na verdadeira vida.
Ah! Compreendera. Dissera precisamente as palavras que iluminam a cortina negra, a terrível cortina negra que a morte estende entre os que partem e os que ficam.
Cortina negra... Não houve cortinas negras no funeral.
- Quero que tudo seja branco - declarou a senhora Flaviot que descobrira, tarde de mais, que era bom ter uma filha. Chorava muito. E quisera prestar homenagem a essa petiza que se alcunhara a si própria com amargura: "a rapariguinha a mais".
Assim, tudo foi branco. Mereceria Odília esse símbolo de angélica pureza? Cláudio perguntava-o a si mesmo, no decorrer da cerimónia, e julgava aquela alvura uma falsidade. Isabel perguntava-o também - rapariga em face doutra rapariga. Mas se a sua razão humana respondia "não", recordando certas confidências um tanto pesadas, a sua fé respondia: "por que não"? A santidade dos últimos dias não teria podido devolver todo o esplendor à sua veste baptismal? Era-lhe doce saber que aquela alma inquieta se fixara, enfim.
Os pais, Isabel e Cláudio Ariel foram os únicos que acompanharam o caixão estreito até ao cemitério. Quando a deixaram em meio de flores brancas que depressa murchariam sob a terra gelada, estavam longe, nos arrabaldes, E foi preciso que Isabel aceitasse a companhia de Cláudio para regressar a Paris.
Falaram de Odília. Não com as palavras convencionais que se murmuram à saída dos cemitérios: ambos as desdenhavam.
Isabel soube que Odília tinha um culto por ela.
- Sim, um culto - repetiu Ariel. - De resto, foi a sua amizade que a susteve. Porque a Isabel sabe que ela foi longe...
- Sei. Não é estranho que os tuberculosos sintam uma espécie de frenesi de viver... É o que os leva mais depressa.
Hesitou e, depois, decidiu-se a dizer, também ela, o que tinha para dizer.
- O desgosto também a cansou: a sua primita tinha um tal amor por si!
- Palavra? Pobre miúda! E eu sempre a arreliá-la! Foi ela quem lho confiou?
- Sim, mas muito simplesmente. E antes de me dizer adeus, tornou a falar-me de si. Era um grande amor.
- Oh! Por que razão é sempre a mulher que não amamos a que nos ama?
Isabel fez-se desentendida. O vestido preto dava-lhe uma aparência mais velha e os olhos que haviam chorado tinham uma expressão patética. O actor acha-a linda. Oh! Ser amado por aquela! Mas não, não, foi Odília que o amou. E Solange ama-o. Ele não. Ela atrai-o e diverte-o, eis tudo. E talvez lhe sirva para fazer ciúmes à rapariga que caminha a seu lado. Suspira. Depois, tenta desanuviar:
- Vamos. O lar Flaviot vai readquirir o seu aspecto boémio. "O bazar Flaviot", como dizia a pobre garota. A mãe teve desgosto, mas depressa esquecerá. Esquecem-se depressa, os mortos.
- Eu nunca esqueço os meus murmurou Isabel que pensava em sua mãe, em Pedro Jacquelin, em Marieta- Acho que estão infinitamente perto... Que até nos falam.
Por que razão se pôs Cláudio a falar da avó que o criara e que o seu coração adorava em segredo? Nunca falara a ninguém da "Voíca", das compotas que ela tão bem sabia fazer, das canções que cantava numa engraçada vòzinha trémula, quando o adormecia, das meias que tricotava sem olhar para os dedos. Isabel escuta, escuta maravilhosamente, a boca um pouco entreaberta, os olhos sonhadores, sente-se que revive a sua infância. Meu Deus, que bom seria passar a vida inteira ao pé dela! Tornar-se-ia outro homem. Ela dá-lhe desejos de ser puro, de ser bom... Deixa-se levar pela sua história, talvez a embeleze um pouco. Está tão habituado a representar, que não distingue a realidade da ficção. "Voíca", Isabel Morlainville...
Mas o metropolitano separa-os:
- Adeus, Isabel.
Ela não se admira da supressão do protocolar "menina Morlainville". Não, hoje não há protocolo. A morte tudo simplificou.
Ele juntou-se ao burburinho humano que enche a carruagem. Vai para o seu teatro. Leva consigo a imagem duma rapariga alta, vestida de luto, ao lado da qual se perfila, já vaga, a imagem de Odília de rosto pontiagudo que apaixonadamente o amou.
- "Como a vida é estúpida" - resmunga. E para esquecer que a vida é estúpida, desdobrou o seu jornal.
Várias cabeças se inclinam sobre a folha impressa para terem notícias sem despesa. Ele, que não é paciente, nem sequer pensa em zangar-se. O jornal de cada um pertence um pouco a toda a gente. Toda a gente é pobre.
Isabel, noutra carruagem do metropolitano, pergunta a si própria, com angústia:
- "Ter-lhe-ia dado esperanças"?
Oh! Aquela dúvida, aquela dúvida... Não se atreve a ter a certeza de si mesma, porque sabe que gosta de agradar e porque sabe que agrada a Cláudio Ariel. Mas, se ela lhe agrada, porque fingirá amar Solange? Não compreende. Tem medo, medo que Solange escreva primeiro do que ela ao Florêncio.
A quem confiar-se? Os pais, Morlainville ou Morot-Léandre, raciocinarão como pais. E ela queria que o assunto fosse julgado por alguém novo e sensato, ou por alguém muito velho e experiente. Ah! Se a avòzinha Honorat, a avó de Florêncio, lá estivesse, contar-lhe-ia tudo. Mas entre ambas estendia-se a linha". Falar à Teresa? Teresa é demasiado amiga da irmãzita, indignar-se-ia e perderia a ponderação precisa num caso difícil como aquele.
E se fosse ter com Noelle? Essa era nova e inteligente. Sofrera com a partida de Gerardo Fleurville. E poderia impedir que Solange se apoderasse da carta destinada ao prisioneiro. Noelle! Noelle! Foi certamente Odília quem, como dom de boas-vindas ao reino eterno, enviara essa inspiração a Isabel. Agora o importante era apanhar a amiga fora da casa Morot-Léandre, onde havia raparigas por toda a parte.
No dia seguinte foi esperá-la à saída do hospital.
- Queria falar-te. Mas não em vossa casa. Nem na rua.
- É coisa grave? Tens uma carinha que faz pena. Eu vou a tua casa, esta noite, depois do jantar. Não, eu não tenho medo de andar na rua às escuras.
Apareceu com um grande capuz e uma lâmpada eléctrica camuflada na mão.
- Que beleza de luar! Nem sei para que vim com a lâmpada. Está-se bem, lá fora. A Lua muito azul, escorre dos telhados... Agora conta depressa. Trata-se de Solange, não é verdade?
Foi muito simples, contar. Noelle censurou o género que a irmã tomara e há muito que se inquietava devido ao seu namoro com Cláudio Ariel.
-A mãe também, coitadinha. Desde o "Conto Azul" que não dorme... Tu não compreendes nada disso, não é? Pois eu compreendo. Ou melhor, foi o Roland que me fez analisar as coisas. Sabes, o tal olho clínico... Há-de ter um diagnóstico, aquele rapaz! Sabes o que me disse no dia seguinte à récita? "A Solange caiu na rede, pobre rapariga. O Ariel não quer saber dela para nada, é da Isabel que gosta. À sua maneira, é claro, não muito elevada, mas gosta, e desde há muito tempo. E não lhe desagradaria, o vantajoso enlace... Há só uma coisa: ela gosta doutro. Que fazer? Como não é tolo, descobriu que a Isabel não detesta que a achem simpática"...
Isabel pôs-se a chorar:
- Vês, vês, sou uma doida.
- Não, riquinha, gostas que gostem de ti, eis tudo. És assim. Não chores. Ainda não acabei de te citar a explicação do Roland. Ouve o resto: "O Cláudio Ariel, para conquistar o coração da Isabel, escolheu um processo digno de teatro: fazê-la ciumenta. Decidiu, portanto, fingir que amava a Solange para que a Isabel lhe sentisse a falta e o começasse a amar. Consegui-lo-á? Não sei, acrescentou o Roland, o certo é que a pobre Solange, que no fundo é uma ingénua, caiu como um pato. Se se compromete com o comediante, que com certeza não casa com ela, que drama para os Morot-Léandre"! Aqui tens o que ele me disse: é claro como a água.
- Noelle, acho isso horrível! A Solange vai ao encontro dum sofrimento que talvez não seja capaz de suportar! Tu sabes que ela já não reza. Perdeu a fé.
- Julga que a perdeu. Perdê-la-ia de facto? Na nossa família a fé resiste sempre. Tem raízes. E podes estar certa de que o Florêncio, lá longe, reza com todo o seu coração pelas "raparigas", como ele dizia. Evidentemente, a Solange vai sofrer. Não podemos evitá-lo. Mas tu sabes que há dores que trazem a cura: por exemplo, uma intervenção cirúrgica... Julga-se tudo perdido e, no entanto, revive-se.
- Mas quem é que há-de fazer a operação, Noelle?
Noelle não hesitou:
-Eu.
Era linda a sua expressão ao tomar, tão simplesmente, uma decisão grave. Isabel, encostada à secretàriazinha de pau-rosa que fora de sua mãe, admirava-a:
- És tão forte! Mas há ainda a carta, Noelle... Como é que havemos de impedir que a Solange escreva ao Florêncio?
Noelle pôs-se de pé; alta e forte, a sua silhueta dominava a decoração branca daquele quarto de rapariga; disse com altivez:
- Achas que uma Morot-Léandre seria capaz dum acto tão vil? Não há perigo, descansa.
Escreve tu ao Florêncio, logo que recebas bilhete dele. Faz que ele se sinta mais amado do que nunca. Nós, há já uma quantidade de tempo que não temos bilhete, para que lhe possamos responder.
Há já uma quantidade de tempo? Na gaveta de Solange, bem fechada à chave, estava escondida a última mensagem vinda da Alemanha. E todos os dias a contemplava, devorada pelo desejo de vingança. Oh! Que luta, que luta! Despedaçava-a. Escrevia então a Ariel cartas simultaneamente razoáveis e ternas, e o actor admirava-lhes o movimento e o estilo, embora pensasse:
- "A Isabel ainda diria melhor."
E quando se encontrava com essa petiza que, sem lhe inspirar amor, o interessava e atraía, decepcionava-a sempre: é que ela sentia que o seu coração procurava outro, para além dela. E quanto mais sardónico, enigmático, ele se mostrava, mais ela o amava e mais odiava Isabel.
Noelle, uma rapariga às direitas, mantinha sempre as suas promessas. "Eu previno a Solange", dissera. Sim, preveniu-a. Uma noite, quando todos dormiam, dirigiu-se em pantufasao quarto que para toda a família era ainda o"quarto de Florêncio". Solange, sentada à secretária, fingia ler. Noelle aproximou-se rapidamente.
- Ainda a trabalhar? Oh! A letra do Florêncio!
Solange deu um salto para se apoderar da carta que Noelle tinha nas mãos.
- Dá-ma imediatamente.
- Por que razão? Não há segredos. Todos lemos as cartas do Florêncio.
- Dá-ma.
E arrancou-a das mãos da irmã. Mas esta, num relance, decifrara a data e as primeiras linhas.
- Solange, os pais ainda não viram essa carta. Por que é que a escondeste? Responde... Era para lhe escreveres, sem que o soubéssemos? O que é que lhe querias dizer?
- Oh! - replicou ela. - Oh! Noelle, sou um monstro. Pega na carta, leva-a. Tenho medo de mim própria. Se tu soubesses...
- Parece-me que sei. E sei ainda outra coisa. Escuta-me. Tudo o que vamos dizer ficará entre nós. E eu vou ajudar-te, Solange, juro-te.
Como a sentia forte e serena, a essa Noelle. Solange repetia, escondendo o rosto vermelho nas mãos:
- Sou um monstro.
Então Noelle envolveu-a nos braços, fê-la sentar a seu lado no divã, e, ali, com a delicadeza e precisão de golpe dum cirurgião, fez um corte no coração doente.
- O Cláudio Ariel não te ama. E é um ambicioso. Nunca casaria com uma Morot-Léandre. Gosta de Isabel, mas, garanto-te, ela nada fez para o encorajar. Adora o Florêncio, a pobre rapariga. O Ariel divertiu-se à tua custa, minha Solange. É duro de ouvir, mas vale mais que saibas a verdade. Fingiu que gostava de ti para a fazer ciumenta e para a afastar do nosso Florêncio.
- Tens a certeza?
- Sim, a certeza. E o Roland, tão perspicaz, viu claro primeiro do que eu. Sabes, um homem compreende melhor o jogo de outro homem. Liberta-te, Solange. No tempo em que vivemos, uma rapariga como tu não tem o direito de viver sem nobreza.
Solange, pálida e sem lágrimas, repetia:
- Tens a certeza?
- Sim - respondia de novo, ternamente, a irmã. - Tu sofres como eu sofri, naquele Verão... Isso ajuda-me a compreender o teu sofrimento, irmãzita. Foi-me difícil reagir. E nunca esquecerei o Gerardo, tão fresco, tão sonhador. Mas, depois, encontrei o meu verdadeiro caminho. Também tu encontrarás o teu, Solange. Eu tenho confiança em ti.
- Não sabes tudo. Esta carta...
- Esta carta? Eu já sei, não digas nada. Há certas tentações a que devemos voltar costas sem mesmo lhes conceder um olhar. Fosse qual fosse a tua tentação, não cedeste. Foi a tua primeira vitória. Desde que demos um passo em frente, estamos salvos.
Então, no ombro daquela irmã serena e forte, que sabia e não condenava e que até mesmo falava em esperança, Solange chorou enfim.
Odília Flaviot, que ardentemente amara Cláudio, Odília, oferecendo a sua vida, oferecendo a sua morte, teria preparado o ressurgir daquela alma?
ESTEFÂNIA tomara o seu ar gentil, como todos fazemos quando há alguma coisa a pedir.
- Vai casar-se uma prima do Paulo, em Nova-Orleães e, imaginem, quer que eu vá com ele. Deixar os miúdos sozinhos com a nurse, aborrece-me. Por isso, pensei que... a Isabel poderia dormir lá em casa. Assim, ficaria absolutamente descansada. Eu já sei que ela não se importa; adora os sobrinhos. Mas a ti, mãezinha, a sua ausência vai aborrecer-te... contrariar-te...
Desde o "Conto Azul" que Jeanine tiranizava muito menos Isabel. Sorriu:
- Olha só para ela! Está mortinha por ir. Vai para casa da tua irmã, Isabel. Cá nos arranjaremos sem ti.
Isabel dançou de alegria.
E foi uma noite de felicidade. Jantar com a Edite e o Guy, tão faladores, tão engraçados, dar-lhes banho, rezar junto da sua inocência, beijar-lhes as bochechinhas redondas e frescas, ver aqueles bracitos estendidos a reclamar mais beijos: uma mãezinha conhece bem tudo isto. Isabel, que sonhava ser mãe, imaginava que os filhos da irmã eram seus. Secretamente, preferia Edite, mais sensível, e que lhe pertencera no período das loucuras de Fani. Mas o lindo Guy - amor orgulhoso da mãe - não imaginava sequer que a tia Bebel preferia Edite. Ela sabia bem quanto sofre uma criança que se não sente amada.
Estava bom tempo-em Paris. Já a Primavera rondava. Quando os sobrinhos adormeceram, Isabel envolveu-se no seu casaco de pele, e foi para o terraço. Um grande pedaço de céu estendia-se, transparente e leitoso. Paris emudecia sob o luar, um luar igual ao dos dias felizes. Isabel escutou o silêncio.
- "Dantes ouvia-se Paris respirar durante a noite. Agora tudo se esconde, tudo emudece. O céu tem um aspecto sereno, mas está cercado de ameaças. O que é que eu fazia se houvesse um alerta? Os Bastien nunca levam os pequenos para o abrigo. Oh! Não há-de haver alerta nenhum. Vou para a cama. Que lindo luar!"
Olhou, uma última vez, a paisagem de telhados romantizada pelo luar. Um beijo enviado para Este. Deitou-se. Adormeceu pensando na enxerga dura de Florêncio.
E, bruscamente, foi arrancada ao sono pelo grito lúgubre das sereias. Já se ouvia o rumor da artilharia. Celina, a nurse, acorreu espavorida.
- Menina! eu queria ir para a cave como os outros. A cozinheira já foi para baixo. Mas não posso deixar os meninos.
- Desça-respondeu Isabel.-Se eles a vêem nesse estado de nervos, ficam também cheios de medo. Vá-se embora.
Solidão. Os tiros ecoam. A casa estremece. Os vidros são sacudidos. Edite acorda. Compreende logo o que se passa, garotinha dum tempo infeliz, e chama pela mãe.
Não é a mãe, é a madrinha quem se inclina; sorri, tira-a da cama, enrola-a num cobertor e aperta-a contra si. O casaco da tia é macio, cheira bem, pode-se encostar a cara... Mas aqueles tiros!
- A casa vai cair.
- Não vai, é sólida. Vamos rezar, queres? Os caracóis louros misturam-se com os negros
e as duas cabeças fazem apenas uma.
- É preciso acordar o Guy, madrinha.
- Oh! Porquê? Está a dormir tão bem. Olha que bonito que ele é, o teu irmãozito... A boquinha muito pequenina, o narizito tão engraçado, as bochechinhas cor-de-rosa... as pestanas muito grandes, os cabelos dourados... Está um anjo a tomar conta dele.
- Tu também tens um anjo?
- Sim. Converso com ele muita vez.
- O teu Florêncio tem um anjo?
- Certamente, está junto dele, no campo de concentração. É o seu anjo que o há-de trazer, um dia. Queres que te conte uma história de anjos?
Tiros formidáveis que parecem tão próximos! É a dor, é a morte que avança sobre Paris. Por que razão os homens, que se deveriam amar, se odeiam? Por que razão a França, já ferida, é de novo espancada? Isabel recorda ter dito outrora: "Se houvesse guerra, parece-me que o meu coração se partia". Não se partiu, mas como sofre! É terrível o que um coração pode sofrer sem se partir! Meu Deus, tende piedade dos agonizantes, abri as portas aos mortos!
Edite enrosca-se mais:
- A história, a história do anjo.
E ela começa: "Havia um homem chamado Tobias..." E é tão linda, tão linda, aquela história! Edite tem medo, aperta-se mais contra a madrinha, mas não chora; segue o jovem Tobias e Rafael, o anjo da alegria, através das estradas do passado.
- Sabes contar histórias, tu - diz quando termina. Conta outra vez. E não te esqueças de nada.
Mas um abalo pavoroso faz que Edite solte um grito. Guy acorda e põe-se a chorar. Meu Deus, se acontecesse alguma coisa! Isabel sente com uma acuidade dolorosa o seu isolamento.
"Eu, que era protegida pelo Florêncio, pela Marieta, eu, a quem eles chamavam Liseron ou jóia, tenho agora a responsabilidade destas duas vidas". Dá uma estranha paz, sentir-se responsável. Enrola também o Guy num cobertor: se tiverem que morrer, que morram todos juntos.
E recomeça a história de Tobias até que o combate aéreo termina e, sob as asas do anjo, Edite e Guy adormecem.
Volta para a cama, entreabre a janela. Ao longe, sobe um clarão vermelho: um incêndio.
E, durante toda a noite, essa noite bela e trágica, em que a morte avançava sob um céu de Primavera, ela perguntou a si própria se nenhum ser amado se contaria entre as vítimas. Oh! Miséria dum tempo em que os homens sobem tão alto para lançar fogo à terra! Seria para isso que Deus lhes dera asas?
Recordações dum passado ainda próximo, mas que é já tão cruelmente passado: Florêncio reclamando voar e casar com a Isabel... A sua cólera, as suas lágrimas no dia em que o senhor Morot-Léandre declarara: "Nada de aviação". E depois a chegada da Teresa e do Sílvio no avião de Guy Duvivier, o ás dos pilotos. O primeiro voo, depois do qual Florêncio, radiante, exclamara beijando a sua Liseron: "É o dia mais feliz da minha juventude"! O mais belo dia: pobre rapazinho, a sua juventude nunca mais teve outro dia feliz...
- "Oh! Quando tu voltares, como te farei feliz! Toda a minha vida será tua, Florêncio.
Hei-de tornar-te tão feliz que esquecerás os anos de exílio... Mas, é possível esquecer? Não o creio. É-se feliz doutro modo, dum modo mais elevado, talvez".
No dia seguinte, Celina declara com admiração:
- A menina é valente.
Não, não era valente. Mas sabia querer. E assim, pouco a pouco, a sua fraqueza tornava-se força.
Apressou-se a ir à avenida Vítor Hugo, onde Jeanine, muito abalada, a monopolizou toda a tarde. Foi apenas pelo telefone que soube como os Morot-Léandre tinham passado a noite. Dum modo trágico, porque Roland estava de vela precisamente no hospital do arrabalde atacado. Noelle, pálida, rígida, saíra e ainda não tinham recebido notícias. Catarina, que atendia o telefone, já não tinha a sua voz cantante, mas uma pobre voz que escondia um soluço. Acabou por dizer a Isabel:
- Deixo-te para telefonar ao Magloire. O afilhado, sabes, Joel Saint Yvy, mora em Bolonha. E o Magloire é tão amigo dele!
No dia seguinte, Isabel foi de novo detida por Jeanine. Não podendo conter-se mais, pediu a João-Lucas:
- Vai à Rua da Torre. Ao telefone fica-se sem se saber nada.
E, fremente de actividade contida, pegou no tricô. Oh! Tricotar, tricotar luvas chiques quando há feridos a tratar, crianças a consolar, gente sem casa, enlouquecida, que é preciso dirigir, e quando se escolheu, por amor, essa missão na Terra! O seu desejo atraía-a para as casas demolidas. Mas não, era preciso ficar ali a fazer luvas, malha ao avesso, malha ao direito... Chorava, a Isabel.
- "Nunca na minha vida hei-de usar estas luvas."
Finalmente, João-Lucas chegou, barulhento, encantador:
- Ainda não lanchaste, querido? -perguntou a mãe, que o admirava.
- Não te aflijas. Há sempre coisas boas e sem senhas, em casa dos Morot-Léandre.
- E então como os achaste depois do bombardeamento?
- Achei-os doidos. Sim, doidos do primeiro ao último.
Jeanine adorava as histórias do filho. É que ele as sabia contar...
- Peço-te, diz-nos depressa o que se passa.
- O Roland? - acrescentou Isabel.
- O Roland? Não tem uma arranhadura. O tipo passou a noite e o dia a tratar dos feridos. Viu coisas terríveis. Conclusão: a menina Noelle Morot-Léandre declarou a seus pais: "Temos de casar. Não suporto senti-lo assim exposto ao perigo sem ser sua mulher. Uma vez casados, ainda trabalharemos melhor." Mas o papá Morot-Léandre é, por princípio, contra o casamento antes dos vinte e cinco anos - tu sabes alguma coisa a este respeito, hem, Isabel? Portanto, disse que não. Ela teimou. E ele acabou por ceder. Vão casar-se.
- Em breve? - perguntou Isabel, apaixonada pela história.
- O mais depressa possível, segundo a Denise, que foi quem me contou tudo. Mas um casamentozinho a correr. Sem vestido branco, nem cortejo. Querem outra? A Catarina voltou da lição de piano transtornada. Não quer dizer porquê. A família julgou que o Saint-Yvy morrera: nada disso. Não se compreende. Passa os dias a tocar a Sinfonia incompleta". Passemos à terceira loucura: sabem como é que a Solange passou o bombardeamento? Na varanda. Súplicas da mãe, ordens do pai, lágrimas das irmãs, - porque a Denise é claro que chorou - tudo foi inútil. Respondia invariavelmente: "Quero ver. Se morrer, melhor." Quanto à Denise, a sua atitude foi menos heróica: "Tive medo, tanto medo que meti a cabeça debaixo do travesseiro."
Isabel largara o trabalho para melhor escutar. Oh! Aquelas Morot-Léandre, como viviam! Sempre reacções imprevistas. Amava antecipadamente, como irmãs, Noelle, Catarina, Solange e Denise... Noelle ia então casar-se...
- Que feliz que é, aquela Noelle!
Então Jeanine pôs-se a demonstrar-lhe o absurdo dum casamento entre estudantes. De que viveriam? Como poderiam trabalhar? E 184
se tivessem um filho? É preciso ser razoável, Isabel.
- Razoável?! - exclamou a rapariga. - Para quem se ama, o que conta a razão? Se me tivessem deixado casar com o Florêncio quando o pedimos, na declaração de guerra, seria hoje sua mulher, usaria o seu nome e... talvez até tivesse um filho.
- Endoideceste também - disse Jeanine encolhendo os ombros.
Mas João-Lucas, empoleirado no braço da poltrona da mãe, murmurou, balouçando as pernas compridas:
- Palavra de honra, compreendo esta loucura...
E João chegou, com notícias. Notícias dolorosas. Ainda não fora possível calcular o número de vítimas do bombardeamento inglês. O arrabalde parisiense chorava os seus mortos. Estava pálido e belo. A filha pensou:
-"Tenho a certeza de que compôs um poema. Felizes os homens! Não são obrigados a fazer luvas enquanto se passam coisas grandes e terríveis. "
E, como ele se pusesse a louvar o socorro aos feridos feito por grupos de assistência social, o seu sofrimento aumentou, aumentou demasiado. Lançando o novelo e as agulhas para cima da mesa, saiu e atirou com a porta. Era um espectáculo raro, uma cólera de Isabel. João entristeceu: sofria, a sua petiza.
Sem responder a Jeanine que gritava: "Que feitio!", ficou ainda por instantes junto da mulher. Depois, fazendo sinal a João-Lucas para que o substituísse, foi ter com Isabel ao quarto branco. Como esperava, ela estava a chorar. Chorava diante da fotografia de Florêncio. Quando o avistou, à porta, com o seu belo olhar profundo, correu para ele:
- Paizinho!
Ele não lhe perguntou: "O que é que tens?" Mas embalou-a em seus braços, e depois falou em voz baixa, toda cambiantes.
- Sim, é duro ver os outros ocupados em soerguer a miséria humana, enquanto nós andamos nas bichas e fazemos malha. É duro, ouvir falar em casamento quando estamos separadas do rapaz que amamos por uma barreira intransponível. É duro ter vinte anos, a idade da felicidade, no meio da desgraça...
- Como tu adivinhas, paizinho...
- Isabel, não foste tu que escolheste isto. Foi escolhido para ti. Seria sem razão? Tu sabes bem, almazita cheia de fé, que há uma Sabedoria e um Amor que nos guia. Diz o teu "sim", um belo sim pleno, àquilo que tu não compreendes.
Ela já não chorava. Ele quis que ela sorrisse:
- Lembras-te, riquinha, das asas de fada que a pequenina Isabel trazia numa noite de baile em Petites-Dalles? Deves guardar as tuas asas durante toda a tua vida. Mesmo presa à terra por coisas mesquinhas, trabalhos fastidiosos, deveres pesados, mantém-te uma alma de paz, de alegria, de confiança. Escuta: hoje escrevi versos.
- Adivinhei! E foi isso que me irritou. Eu, estive a fazer luvas, umas estúpidas luvas.
Ele pôs-se a rir e, acariciando a cabeça encaracolada que lhe pousava no ombro:
- Sabes de que falavam os meus versos? Da minha filha, noiva dum prisioneiro e tornando, pelo esquecimento de si mesma, magníficos os anos de espera. Impões-te um sacrifício pesado, retendo-te aqui. Mas o teu sacrifício teve fruto: a nossa doente está melhor, muito melhor. Disse-me ontem o médico.
- Verdade? Oh! Paizinho, que contente que deves estar!
- Contente e orgulhoso. Orgulhoso da minha filha. Porque o médico afirma que, se a cura vem a caminho, é graças aos cuidados inteligentes que a mãezinha recebeu e ao clima moral em que, graças a ti, ela passou o Inverno. Vês tu, minha querida, ajudar a reflorir uma vida que declina, é também preparar o ressurgir. Aqui tens o que eu cantava nos meus versos. Feliz o homem que viverá junto de Isabel.
Então-o segredo sufocava-a-ousou falar-lhe de Cláudio Ariel. E também de Solange. Ele suspirou:
- Ah! Não é bom para vocês, rapariguinhas, darem-se com gente de teatro. Não julgues o
Ariel com demasiada dureza: é simultaneamente um desiludido e um sensível. Quanto à Solange, é uma alma que precisa de voltar a aprender tudo por si própria. Há almas assim. Até onde irá, antes de encontrar a verdade? Não sei, mas acredito que a há-de encontrar. Reza pela tua amiga. Não rezamos o suficiente pelos outros. É por isso que nos sentimos estreitos. Alarga-te.
Isabel já não chorava. Sentia-se a tal ponto filha desse homem!
É LINDO, isso que estás a tocar - disse a senhora Morot-Léandre, aproximando-se do piano. A Cigana deu meia volta sobre o banco:
- Sério? Achas bonito? Sou eu a autora, sabes?
Não parecia feliz, aquela Catarina que sempre compunha na alegria. A mãe disse-lho:
- O que é que tens, minha Cigana?
Oh! Para uma mãe, sentir esta estranha barreira que a impede de ir em socorro de seu filho! Catarina adora-a, tem confiança no seu bom-senso e na sua bondade. Todavia, guarda um segredo doloroso que não ousa, não quer libertar.
- Mãezinha, - murmura - mãezinha...
Depois a sua mão desliza sobre o teclado, aflorando as teclas donde se erguem notas unidas por um fio melodioso, suave e triste. Talvez que, ajudada pela música, Catarina fale.
- Mãezita, - continua em voz surda - o Estêvão Magloire... vai-se embora.
Aquele nome era esperado, temido. No entanto, Estêvão Magloire é um grande homem e um homem de bem. Nada como o tal Ariel...
- Para onde vai, minha querida?
- Para Marrocos. Marrocos... É longe. Funda-se lá qualquer coisa, um instituto musical. E ele vai... Oh! Não é para sempre, com certeza. Mas por muito tempo. Qualquer tempo nos parece muito, quando as pessoas se vão... O Florêncio, por exemplo, mãezinha...
- É um grande choque na tua vida, Catarina. Mas ele há-de recomendar-te a outro mestre. Continuas a estudar, como até aqui.
- Mas não será ele. Tu não sabes o que ele é para mim.
Arpejos, arpejos... O velho piano chora.
Deverá mostrar-lhe que compreendeu tudo? Não seria revelar-lhe imprudentemente aquilo que, talvez, o seu próprio coração ignore? Mas Catarina pertence a uma geração lúcida e valente. Com simplicidade, declara:
- Eu gosto dele, mãezinha. Gosto com amor.
- Ele podia ser teu pai, riquinha.
- O que é que isso tem? Então não compreendes que amar um homem assim, bom, inteligente... genial, torna a vida maravilhosa? Julgas que eu tolerava, eu, uma felicidade burguesinha e estúpida? Quero ser em plenitude o que, em parte, sou já: a alegria, a inspiradora dum grande homem. A sua Primavera. Eu era-o... e ele vai-se embora... sem mim... Mãezinha, eu queria casar com ele antes que partisse. Mas ele não quer. E eu sofro loucamente. É horrível, sabes, sofrer desta maneira aos dezanove anos.
Não chora, é uma Morot-Léandre. A mãe preferia que chorasse. Mas não. Com palavras breves, os dentes brancos mordendo os lábios vermelhos e grossos, desabafa a sua dor, a sua dor de mulher:
- Tu, mãezinha, achas estúpido que o ame?
- Estúpido? Não. Oh! Não. Amar como tu amas, nunca pode ser estúpido. Admiro o teu amor, tão puro, tão simples, tão generoso, minha Cigana. E sofro contigo, por ti. Mas quando o teu mestre recusa o dom maravilhoso que lhe queres fazer, mostra que, também ele, tem um grande coração. Tu dizes: "Sou a sua Primavera." Sim... mas, em breve, ele entrará no Inverno. Ciganita querida, repara no que a senhora Morlainville se tornou ao primeiro contacto com a velhice. O Estêvão Magloire pode, de repente, envelhecer dez, vinte anos. Â tua juventude junto do seu declínio? Tu sabes bem como sofre a Isabel...
- Oh! Mãezinha, não compares a senhora Morlainville a um artista como o Magloire. Quando se é grande, é-se mesmo, qualquer que seja a idade.
- Nem sempre... Queridinha, já que me confiaste tudo, vou reflectir, rezar. Não continues fechada no teu sofrimento. A tua mãe compreende-te.
-Não,-responde lenta, tristemente, a Cigana - ninguém compreende inteiramente os outros. Está-se sempre só. Excepto no amor.
Sobre o piano estava um ramo de violetas que já lembrava a Primavera. Poisou-lhe os lábios. E, depois, voltou a tocar, murmurando:
- A música! A música! Se não existisse música, com certeza que morria.
Tinham acabado as confidências. A senhora Morot-Léandre beijou a filha e afastou-se para cumprir o seu dever de aprovisionamento. Mas Catarina, inclinando-se para trás, chamou-a:
- Mãezinha! Não digas nada ao pai. Bem basta a história da Noelle. E a Solange...
- A Solange? O que há a respeito da Solange?
- Não posso dizer-to. Não seria decente, compreendes. De resto, ela não me contou nada. Fechada à chave, aquela! No entanto... Bem, obrigada, mãezinha. Foste tão boa!
E Catarina, de novo, tentou pôr em música a sua tristeza. Porque somente a música impede que sufoquemos de desgosto. Meu Deus, que bem que cheiravam as violetas...
À tarde, voltou a casa de Estêvão Magloire. O sol inundava a sala. Esperou. E, ao vê-lo, pensou:
- "Não é nada velho. Os olhos dão-lhe um ar tão novo!"
Sem falar na partida, ele submeteu-lhe um projecto:
- Queria habituá-la à orquestra, Catarina. Portanto, vou compor um quarteto: violino, violoncelo, flauta e piano.
Ela pensou:
- "Então não se vai embora." E, radiante:
- Que boa ideia! O piano, sou eu? O violino, Saint-Yvy?
- Sim, - respondeu lentamente - Saint-Yvy. Visto que o projecto lhe agrada, reunir-se-ão aqui, a partir de amanhã. Aqui tem o trecho a estudar.
- Assiste, mestre? De contrário... Ele teve um largo sorriso triste:
- E se não assistisse?
- O piano não teria alma.
Ele encolheu os ombros e a lição principiou. Lição em que a personalidade do aluno se servia ardentemente de tudo o que podia emocionar o mestre. Ele pensava, ouvido atento às mínimas cambiantes: "Que artista será!" Mas pensava também: "Que mulher seria!"
Depois que ele severamente criticou as mais pequenas faltas de partitura ou de interpretação, ela voltou-se para ele e, o rosto erguido, as mãos juntas:
- Mestre, não vai partir, pois não?
- Parto, Catarina. Já assinei o contrato. Um silêncio.
- Mestre, leve-me.
- É louca? A que título a levaria?
- Ora, é muito simples: como sua mulher. Estou a pedi-lo em casamento, Mestre! Não gosta da Cigana?
Ela sorria com os lábios e os olhos. A sua pele mate adquiria um tom róseo. Como ela era nova! As mãos de Estêvão Magloire crisparam-se na madeira do piano. É que aquelas mãos estavam prestes a estenderem-se para esse rosto querido, a aproximá-lo, a fim de poder beijar aquela fronte alta e lisa, aquelas pálpebras de grandes pestanas reviradas. Magloire suspirou, e era quase um soluço, esse suspiro. Depois, tentou ironizar:
- Desde quando as raparigas fazem pedidos de casamento? Desde quando as miúdas se casam com velhotes? Rapariguinha romanesca, fuja já para casa. Que diriam os seus pais se a ouvissem?
- Contei tudo à mãe. E ela não me ralhou. Perguntei-lhe: "Achas estúpido?" Respondeu-me: "Não", e era verdade. Lá em casa ninguém mente.
- Mas acrescentou: "Não se pode unir a Primavera ao Inverno."
Ela deu um salto.
- Como é que sabe o que a mãezinha disse?
- Não podia ter dito outra coisa. Bem, tenho outro aluno à espera. Vá-se embora. E estude a sonata para o quarteto de amanhã. Venha às quatro horas.
Ela levantou-se. Era alta e bonita, como sua irmã Noelle, como seu irmão Florêncio. Mas Noelle era noiva de Roland, Florêncio de Isabel: a Primavera com a Primavera. E Magloire sabia-se semicalvo, grisalho, curvado pelo reumatismo.
- Vá-se embora - repetiu em voz áspera.
Doutro modo tê-la-ia beijado.
Ah! A escada, a rua, o metropolitano, a gente feia e desconhecida com quem chocava. A casa para onde é preciso voltar, para estudar, comer junto das outras, para dormir. A casa donde Florêncio desapareceu, a casa onde Noelle passeia o seu arzito feliz, Solange o seu rosto magro e desesperado. A casa onde, agora que a mãezinha sabe, será preciso contar o resto... E a mãezinha zanga-se se souber que Catarina pediu Magloire em casamento. Isto nunca se faz. Deus queira que nada tenha dito ao pai, o pai que não gosta que as filhas casem e tanto deseja que procedam sempre como verdadeiras raparigas. Onde haverá música? Mergulhar, mergulhar o seu desgosto nessas ondas que a levam a um oceano. Sofrer em música. Esperar em música, porque se pode esperar enquanto ele não partir... Fugir das pessoas, fechar os olhos, deixar-se levar pela sinfonia. Há quem vá ao cinema distrair-se. Não, não, é sempre amor que passa na tela. No concerto, não será nada e será tudo. A essência que nenhuma palavra pode exprimir, nenhuma imagem representar, encontramo-la ali; sentimo-nos cheios. Alimentamos ardentemente o nosso sonho ou a nossa dor.
Havia uma sala ali próxima. Entrou. Catarina Morot-Léandre abriu a alma ferida para que uma corrente de beleza a penetrasse. E quando voltou a casa, evitou encontrar-se a sós com a mãe. Queria sofrer sozinha.
A mãe compreendeu e nada perguntou.
- "Meu Deus", - murmura - "trazer filhos ao mundo não é o mais difícil. Vê-los sofrer, assim, sozinhos, despedaça ainda mais."
À noite, Estêvão Magloire telefonou ao afilhado:
- Vem jantar comigo. Estou a organizar uma coisa.
E falou-lhe do quarteto. Ao nome de Catarina Morot-Léandre, Saint-Yvy teve um sobressalto que Magloire já esperava.
- Uma boa rapariga, não é verdade? Meu filho, nada de segredos entre o teu velho padrinho e tu. Adora-la, não é assim?
- Por que razão me força a confessá-lo?
- Tonto, julgas que não se vê? Desde o famoso "Conto Azul", em que o teu violino fez chorar uma rapariga que nunca chora, que só pensas nela. Escuta: vou partir, sabes, por longos meses. Talvez anos...
- Anos? Que será de nós sem si? Os seus alunos, eu... ela?
- Ninguém é insubstituível, meu filho. Na minha ausência quero que este quarteto viva. Fica à tua responsabilidade. Dá-lhe tudo o que podes dar.
- Mas, padrinho... é terrível encontrá-la constantemente.
- Terrível, ou... maravilhoso?
- Está a troçar de mim. Mas se eu a amo sem esperança. Compreende que vou sofrer...
- Porquê sem esperança?
- Porque sou um violinista sem nome.
- Podes tornar-te um grande artista, acredita-me.
- Porque sou um provinciano tímido, bretão da minha Bretanha.
- Como ela há-de amar o teu solar bretão! E a tua mãe de olhos cor do mar!
- Porque não tenho fortuna. Nem relações. Nem distinção.
- És alguém. E tens a tua juventude. Não sabes o que representa esta palavra juventude?
Joel Saint-Yvy tomou a cabeça entre as mãos.
- É tolice falar-me assim. Parece-me sonhar. Escute... A Catarina... tenho a certeza de que ama. O amor reconhece-se no rosto duma rapariga. E como esta é uma rapariga recta, pura, só pode tratar-se de um grande amor. Portanto...
- Sim, ama-murmurou Magloire. - Confiou tudo à mãe. Mas é um sentimento destinado a morrer em breve... E o seu coração ficará vazio e alterado; ferido e ardente. Abençoado, então, o amor que souber, duma Catarina infeliz, fazer uma Catarina feliz. Desejo que seja o teu. Porque conheço a qualidade da tua alma. E porque o teu violino já a fez chorar.
QUANDO chegava a casa dos Morot-Léandre uma encomenda da Châtaigneraie, trazia sempre alguma coisa para os Morlainville. A avòzinha distante era tão amiga da noiva de Florêncio!
- Precisa de comer ovos, a pequena! Nesse dia - um lindo dia de Março em que os botões abriam ao sol - Isabel foi buscar os seus ovos à Rua da Torre. Encontrou ovos, lindos ovos brancos, mas não as amigas. Apenas a mãe estava em casa. Isabel pensou: "Envelheceu." E não ficou admirada ao ver-lhe o rosto mais pálido e fino. Como sempre, perguntou se tinha notícias de Florêncio. Notícias que nunca eram recentes. Notícias breves.
- Ainda têm neve... A encomenda chegou bem... Pede bolas de pinguepongue... Quer que eu vá tirar o retrato.
Depois falou-se das irmãs. Mas pouco. No receio de dizer demasiado. Referiram-se, sobretudo, ao casamento de Noelle, que se faria simplesmente, em trajo de passeio.
- Evidentemente, é muito razoável - disse Isabel-Mas... mas eu quero o meu vestido branco.
- Compreendo - respondeu a mulher de quarenta anos com um sorriso de vinte.
- Não tenho razão? Sabe, já comprei a seda. Como nos casamos assim que o Florêncio volte... Imagine que não consigo impedir-me de abrir, de tempos a tempos, a caixa onde dorme o meu querido cetim branco. É tolice, não acha?
- Também fiz o mesmo quando tinha a sua idade.
- Sério? Ainda bem! Então não faz troça de mim. A Fani achou estúpido que eu comprasse já. "E se a moda mudar?" Eu quero lá saber da moda! O branco é sempre bonito, não é, mãezinha?
Quando estavam sós, Isabel gostava de lhe chamar "mãezinha". E isso era doce ao coração daquela mãe que rezava e sofria por todos os filhos.
Eram frágeis e leves, os ovos. Isabel afastava-se depressa. A pequena caixa entre as mãos, recordava a capoeira da Châtaigneraie, onde a pequenina Denise se divertia tanto entre galinhas e pintos. Oh! Dias felizes! Como todos eram novos, um pouco malucos! Mas graves também, em certas horas. No último dia daquele célebre Verão, Florêncio e ela tinham falado tão intimamente, tão seriamente! Ela dissera:
- "Tenho a impressão de que nós desempenhamos um papel na história do mundo."
E ele respondera:
- "O mundo? Pede a sua ressurreição. Já começa. Não sente o rumor? Os novos pensam, trabalham, desejam coisas belas. Será difícil transformar o mundo. Teremos que sofrer, morrer, até, se preciso for... Mas lembre-se da palavra de Guynemer: "Quando não se deu tudo, nada se deu."
Tinham repetido aquela frase, lenta, respeitosamente, enquanto o vento da tarde fazia vibrar as margaridas do prado. E, desde então, Isabel guardava essas palavras no mais fundo de si própria.
Para as dizer uma vez mais e renovar o seu "sim" à dedicação obscura que lhe era imposta, entrou na capela branca onde religiosas rezam dia e noite diante do sacrário. Amava aquela atmosfera e aquelas flores que, em todas as estações, festejam o Senhor. Ela própria, muitas vezes, trouxera o seu ramo. Hoje trazia apenas a sua oração. Uma oração que sabia ultrapassar o pedido, e se demorava a abençoar e a agradecer, antes de murmurar: "dai-me". Era o perfume da sua alma que subia. E era tal o bem-estar que sentia nesse lugar de silêncio ardente, que se demorava sem reparar.
Erguendo o rosto para um último olhar ao sacrário,avistou uma pluma cor de fogo: Solange, com a cabeça entre as mãos, parecia rezar intensamente. Solange, que já rezava... Isabel estremeceu de alegria e, esquecendo tudo o resto, rezou com Solange.
- "Vede, meu Deus... Vede as suas necessidades... E tende piedade dela. Conto convosco. Espero em Vós, que Vos inclineis sobre as rapariguinhas perturbadas. Eu tenho confiança em Vós."
Solange ergueu-se, enfim, e, depois duma genuflexão que era, só por si, uma prece, dirigiu-se para a porta. Encontrou Isabel. Então, disse com vivacidade:
- Tu? Oh! Não contes às outras que me viste.
- Venho de lá e vou para casa. Não vou dizer nada.
- Ah! Foste buscar os ovos.
- Sim, os ovos da Châtaigneraie, e pensava como fomos felizes lá. Mas só reconhecemos a felicidade quando ela passa.
- Para ti, ainda virão dias felizes, Isabel.
- Para ti também, minha querida. Lembra-te que ainda não tens dezanove anos.
- Parece-me já ter cem... Isabel, imagina que estava na capela a tentar lembrar-me exactamente daquela divisa de Guynemer que o Florêncio adorava... Sim, sei que ele gostava, eu era tão indiscreta. Metia o nariz em toda a parte. "Quando não se deu tudo, nada se deu." É assim, não é?
Isabel deu-lhe o braço:
- É... Vamos dar uma voltinha. Ninguém te vê, Solange...
- Tenho andado escondida como um animal doente. Ainda bem que te encontro a sós. Queria pedir-te perdão: feri-te tanto naquele dia! Não pensava o que dizia, mas torturei-te, pobre Liseron do Florêncio... Queres perdoar-me? Preciso que me perdoes, antes de te dizer outra coisa.
- É claro que perdoo. Estavas a sofrer brutalmente e eu, sem querer, agravei o teu desgosto.
- Sabes, eu não escrevi a tal carta.
- Serias incapaz de a escrever, querida. Não pensemos mais nisso, e diz lá a outra coisa.
- É difícil... Terrivelmente difícil... Não sei se serei capaz... Vês tu, és a primeira pessoa a quem o digo, porque tu, Isabel, acreditas no bem. Não condenas, não fazes troça, ouves e estendes as mãos. Os outros rir-se-iam se eu lhes dissesse que...
- ..Que queres ser religiosa.
- Oh! Isabel, adivinhaste! Como e quando soubeste?
- Sempre desconfiei que Deus te buscava, e desde há muito tempo...
- Desde sempre - murmurou Solange. - Puxava-me. E eu puxava para outro lado. Foi terrível.
- Há bocado, quando te vi rezar, tive a certeza.
- Então, não ris? Não encolhes os ombros? Não dizes: "Mais uma das dela"?
- Não, querida. Admiro-te, regozijo-me, creio em ti. Vira-te para cá... Já tens um olhar diferente!
Com efeito, uma doce paz envolvia o rostozinho magro, devolvendo-lhe a sua Primavera.
- Estar aqui ao teu lado e sentir que me compreendes, é maravilhoso, sabes. Isabel, vou contar-te tudo. Sempre me aborreci lá em casa. Todavia, temos uns pais fantásticos e que nos tornam felizes, aos cinco. Mas, mesmo miúda, já desejava outra coisa. E, no dia da minha primeira comunhão, aceitei, baixinho, o convento que, todavia, me inspirava terror... Depois, tornei-me detestável! Uma amiga contou-me certas coisas, emprestou-me livros que me revolucionaram. E, como era dura, egoísta, ávida de prazeres, por temperamento, teimosa - tu conheces os Morot-Léandre - escolhi o mau caminho. Ah! Desce-se depressa. Flirts vários. Um, principalmente, que nada tinha de belo. E, depois... o Cláudio Ariel. Esse, amei-o. E ele também parecia amar-me. Detestei-te porque ele te admirava. Tens tanto encanto que ninguém vale nada ao pé de ti. Mas eu, ainda tinha esperanças... Até que a Noelle me disse, como ela sabe dizer as coisas, forte e ternamente, que ele não gostava de mim, que fingia gostar para te fazer ciumenta. Que eu, para ele, era apenas um passatempo. Oh! o horror que senti. Pensei em suicidar-me. E, se passei a noite do bombardeamento à janela, foi na esperança de ser atingida. Não fui. Mas, enquanto o céu se riscava de clarões, as bombas rebentavam, passou-se em mim qualquer coisa de indizível. Deus chamava-me, Isabel, ali daquela janela, a mim, burguesinha inútil, enfrentando uma batalha de gigantes, escolhia-me para sua apóstola! Sim, estou certa de que mo pediu. Portanto, tenho que ir.
- Ir para onde, querida?
- Para longe, longe. Sempre quis ir para longe... É a França de África que me atrai. A grande França... Quando a guerra acabar serão precisas missionárias. Sabes, aquelas de hábito branco... Oh! Estás a chorar, Liseron. Deixa-me chamar-te Liseron, só hoje. É que és tão pura...
Apertadas uma contra a outra, caminhavam lentamente. Estava-se bem, ao sol.
- Liseron, queria dizer-te ainda outra coisa, a ti, que vais ser Morot-Léandre. Recordo-me de que, depois da morte de Odília, a tua irmã Fani criticou o funeral branco por se tratar duma rapariga que tivera uma vida muito livre. Tu, tu defendeste-a... Eu não valho nada, sei-o bem. Mas quero dizer-te uma coisa: o vestido branco que desejo não será uma mentira. Detive-me a tempo. Fui, por milagre, preservada duma infelicidade de que nunca me consolaria... Quero que o saibas, tu, irmãzita branca. Os outros... pois bem, acusar-me-ão. Eu mereci que me desprezem. Será um modo de expiar.
Como ia longe na humildade! Isabel murmurou:
- Ninguém te acusará. És uma Morot-Léandre. Toda a gente sabe que os Morot-Léandre são incapazes dum certo número de coisas. Vês, eu nunca acreditei que mandasses a carta. Não serias capaz disso.
- Tu és fantástica! Obrigada... Pelo pai, pela mãezinha, pelas minhas irmãs... e pelo Florêncio, queria que as minhas loucuras me não tivessem comprometido. Diante de Deus, sei que não sou nada. Um nada. E não consigo compreender que esse nada seja chamado a servir. É esquisito, não achas? A Solange, freira...
- Quando é que dizes à família?
- Não sei. As manas julgarão que se trata duma brincadeira de mau gosto. Os pais, duma loucura passageira. Acho que devo, primeiro, provar-lhes que estou diferente. Mas a gente não se torna meiga, dócil, complacente, num dia... Um aborrecimento, Isabel...
- Então, vale mais dizer já. Porque é que hás-de pensar que não te compreendem, meu bebé? São teus amigos. E são cristãos a um ponto tal!
Um belo riso lhe respondeu:
- Tens razão, menina sensata. Começarei pela mãezinha, que dirá ao pai. E digo à Noelle, que dirá às outras. Se fizerem troça, paciência.
E, juntas, essas garotinhas parisienses dum tempo doloroso, dirigiram-se ao Parque de Bolonha, onde, entre verdura tenra e cantos de aves, falaram dos vestidos brancos, os vestidos brancos por que a sua juventude ardente ansiava.
COMO se enche depressa, a caixa cinzenta destinada a um prisioneiro! Que pouco é preciso para que a balança marque cinco quilos! Um corpo forte de vinte anos não pode ser satisfeito com aquela pequenina porção de comida...
João-Lucas encontra a irmã no vestíbulo:
- É dia de encomendas?
- Como é que sabes?
- A minha mana está de avental, toda despenteada. E apetece-lhe rir e chorar.
- És um idiota. Ouve lá... Não tens uns macitos de cigarros?
Ele olha-a traquina:
- Não tenho direito... Aos dezasseis anos...
- Ora, eu sei perfeitamente que, apesar disso, andas sempre a fumar. João-Lucas, sê decente, dá-me cigarros para o Florêncio.
- E tu, que me dás em troca?
- Tudo o que quiseres, senhor Mercado Negro.
- Vais ajudar-me a fazer a minha dissertação francesa?
- Sim. Despacha-te. Só me faltam os cigarros.
- O que é que mandas na encomenda?
- Um pouco de tudo, como sempre. Açúcarele é doido por açúcar - chocolate, roubado às reservas da família, conservas, biscoitos. E um bolo estupendo feito com os ovos da Châtaigneraie.
- Aquele bolo que ele adorava? Coitado! Bem, toma lá os cigarros. Sabes quem mos deu?
- Uma menina, pela certa.
- Precisamente, a Denise.
- A Denise? Onde é que ela os arranjou?
- No colégio; as alunas fazem trocas. A Denise trocou o chocolate que tinha para o lanche por estes cigarros.
- E tu? O que é que lhe deste?
- Eu? Eu, nada.
- Oh! Os rapazes... Vais fazer-me o favor de lhe comprares, no domingo, meia dúzia de bolos sem senhas. Ali, na pastelaria da esquina. Há lá umas tortas óptimas.
Isabel arrumou os cigarros entre os outros pacotes que iriam dar tanta alegria a Florêncio. Faltava-lhe ainda uma coisa: uma caixinha. Ergueu-lhe a tampa: preso a um papel sedoso estava um caracol, um caracol do seu cabelo...
No domingo anterior, Rosa visitara-a. Diante da linda loira, Isabel inclinou a cabeça morena e encaracolada:
- Corte um bonito, Rosa. Compreende, não posso pedir uma coisa destas ao cabeleireiro.
- Com certeza - respondeu docemente a amiga. - Não são coisas para eles. Agora, o que é pior é eu não saber do ofício. Não queria estragar-lhe o cabelo...
Com os dedos compridos e ágeis soerguia os caracóis negros e lustrosos, que emolduravam a carinha fresca. Depois, pegou na tesoura. Por que razão lhe viera à ideia a cerimónia da tomada de hábito em que a noviça apresenta o cabelo para ser cortado? Gesto simbólico de oferenda, gesto de amor.
- Aqui tem - disse, estendendo um anel vivo e perfumado. - Não se dá pela falta. E é bem bonito!
Isabel atou-o com uma fita azul e, sonhando:
- Um dia, Rosinha, um dia hão-de nascer fios brancos entre os cabelos negros. Oiça cá, nascem cedo, os cabelos brancos?
-Eu acho que sim-respondeu Rosa.- Acho que tudo chega depressa... A velhice, a morte...
- Envelhecer, envelhecer... deve ser horrível!
- Por que razão? Vai-se tudo, mas Deus vem. Há velhos com almas tão novas! A Marieta... A senhora Honorat...
- Como a vida passa...-suspirou Isabel.- Recordo muitas vezes aquele 31 de Dezembro em que, pela primeira vez, passei o fim do ano em casa dos Morot-Léandre. Estavam eles cinco e nós dois na sala. Cada um formulava os seus votos para o novo ano. Era engraçado! Noelle queria entrar na Faculdade, ir a um verdadeiro baile e tirar a carta de motorista... A Catarina reclamava um cruzeiro no Japão e um pijama de cetim preto... A Solange... é verdade, a Solange, não disse nada: eram tão contraditórios os seus desejos! O Florêncio disse: "Quereria envelhecer cinco anos duma vez."
- Se ele soubesse...
- É verdade... Os cinco anos passaram: que fizeram dele? Desejava, segundo a fórmula que tanto repetia: "Um avião e a Isabel." Cinco anos depois, está preso. Sem ninguém a quem amar. Gostava de saber, Rosa, se ele se lembra daquela noite e do seu voto de tontinho.
- Oh! Ele há-de lembrar-se de tudo a que a Isabel estiver ligada.
- É verdade. Escreve-me coisas tão fantásticas. Por exemplo: "Tu estás sempre comigo. Ora corro ao teu encontro, aí... ora te envolvo na minha vida de prisioneiro; és invisível para os outros, mas andas sempre comigo e conversamos ternamente os dois."
- É maravilhoso ser assim amada!
- Rosa... não sente a falta... do amor? O lindo rosto de Rosa iluminou-se.
- Como a poderia sentir? Eu também possuo o Amor.
- Pensa entrar para o convento depois da guerra?
- Não. Porquê? Quero ficar no meio das outras. Hei-de ser sempre a Rosa da perfumaria". Às vezes, imagino - vai-se rir, Isabel imagino... que, também ao Senhor, eu ofereço perfumes.
Compreendiam-se tão bem, que se calaram. E o silêncio de ambas dizia tanto, tanto...
..E aquele caracol, aquele caracol de Isabel foi-se, rumo a um campo de concentração, na Alemanha.
Atravessou a Europa inteira, onde a Primavera fundia as neves, iluminava os ribeiros, floria os prados, trazia as andorinhas. Chegou lá num dia de tédio, em que o cativeiro sufocava a esperança.
Florêncio levou para a sua barraca a caixa vinda de Paris, a sua cidade, arrumada por Isabel, a sua noiva. Como um avarento, contou, pesou, cheirou os pacotes. Ficou contente ao encontrar os cigarros que o ajudavam a pensar. O bolo caseiro comoveu-o! Oh! estes pratos semeados de miosótis que apareciam sempre nas merendas em casa de Isabel... A faca com cabo de marfim de que ela sempre se servia para cortar o bolo, espiada pelo olhar traquina dos amigos... este perfume... este fofo que sentia na boca. Comiam-no depressa outrora, porque tinham fome e era bom; depressa de mais. Mas serviam-se outra e outra vez... Isabel, Isabel!...
Enfim, descobre a caixinha. Uma surpresa! Com gestos lentos, para prolongar o prazer já lá vai o tempo em que se corria para a felicidade...- abriu-a. E ali, oh! meu Deus! não seria a sua noiva, ela mesma, que vinha? Chorou, sentado à borda do catre. Como um idiota. Mas os camaradas eram idiotas também. Cada um se afastara, o advogado, o arquitecto, o comerciante, o lavrador, o padre, para que Morot-Léandre pudesse chorar à vontade, com os punhos nos olhos, pensando numa rapariga de França.
Mas, no dia seguinte, viram-no, barbeado de fresco, juntar-se aos companheiros de caserna:
- Oiçam lá, se recomeçássemos o ciclo de estudos? Não vamos viver nesta apatia. Tenho uma quantidade de ideias. E vocês? Falem. Temos que fazer bom trabalho.
E Liseron, dois meses mais tarde, recebia estas linhas de ternura ardente:
"Nunca olho o seu caracol que não sinta a mesma onda de emoção que suscita uma presença real."
Presença que lhe permitia voltar a ser ele próprio. E ultrapassar-se a si próprio.
UM prado onde doira a glória moça dos trigais. Um campanário. A estrada segue, negligente, entre as macieiras copadas. Um galo canta. A manhã é azul.
É uma aldeia de França, uma aldeia como as outras, com uma mercearia e uma padaria, a velha fonte e o monumento aos mortos. Em volta, apenas a beleza da linha pura da paisagem e do frescor dos prados. Tudo é justo, preciso, docemente iluminado por um céu onde perpassam nuvens brancas e leves. Muito França. Exactamente o necessário para se ser feliz.
O que é ser feliz?
Para aquelas vinte garotas que dançam em roda, é respirar o perfume da erva, é correr, rir, comer, esquecendo Paris, as bichas, os alertas, as preocupações das pessoas grandes, as bofetadas recebidas injustamente.
E para as três raparigas que as vigiam?
É, talvez, ver brincar as garotinhas, apenas isso, visto que as três sorriem. Mas quem o poderá saber ao certo?
Uma criança pode ser feliz. Uma rapariga? No fundo, raramente o é. Repartida entre a infância e a idade adulta, perde-se entre a saudade e o desejo. A esperança é, por vezes, como que uma ferida em seu coração.
Das três, uma era feliz. Plenamente feliz: a mais pobre, aquela que nada possuía, nem família, nem dinheiro, nem casa. Nada. Chamava-se Rosa Martin e consagrava as suas curtas férias a vigiar uma colónia infantil. O seu rosto irradiava sob a coroa de cabelos de oiro. Não esperava nenhuma alegria humana, porque preferira, a todas, a alegria divina. E possuía-a. Era a mais alta, a mais forte, a mais loira, uma robusta filha de pescadores normandos.
Admirava as outras. Principalmente uma que, sob o véu de assistente social, era fresca como a flor duma roseira brava. E ninguém julgaria que, tão terna, ela soubesse mandar. Todavia, o grupo da petizada nunca resistia à "menina Isabel". Evolava-se dela uma paz. Uma paz um tanto melancólica. Quantas vezes a surpreendiam a olhar ao longe...
E a terceira, a mais nova, a mais pequena, quisera também ser garota e obedecer. Porque estava cansada de procurar o caminho da liberdade através do mato. Sonhava com o dia em que lhe diriam "minha irmã, faça isto, faça aquilo", em lugar de "menina Solange, o que é que vamos fazer?"
Três raparigas. Crianças a cantar. Um nada; tão pouca coisa! É o dia presente que prepara o ressurgir das mulheres do futuro.
- Aí vem o carteiro! - exclama uma pequenita que sai da roda soltando gritos de andorinha. Num passo dançante, entrega as cartas à menina Isabel:
- Há muitas, muitas! Algumas perguntam:
- Escreveram, de minha casa?
Não todas: há crianças, ali, a quem ninguém ama, a quem ninguém escreve: essas, apertam-se mais contra as três raparigas a quem quereriam chamar mãezinha.
Ouvem-se gritos de alegria:
- É de minha casa!... Uma carta da mãezinha!... A letra do meu irmão!...
Há uma carta para Solange. Nada para Rosa. Rosa nunca tem nada. De resto, não escreve lá muito bem, a linda normanda, que é delicada e fina por instinto. Aprender a escrever é mais difícil. Não tentou muito. O bem que tem a fazer, no seu meio de trabalho, não se faz com papel e lápis, mas com coração e exemplo. Isso, ela fá-lo perfeitamente.
Isabel tem duas cartas. E um bilhete. A querida e dolorosa mensagem do seu noivo prisioneiro. Cora de emoção, sob o véu. Lerá depois. Tudo desaparece nas algibeiras das raparigas, enquanto em voz aguda as garotas espalham as notícias da "minha casa" e a sua alegria.
Para ler as cartas, Isabel e Solange esperaram a hora da sesta. Finalmente... tudo dorme, na casa de persianas fechadas e nos campos esmagados pelo calor. Ouvem-se apenas os grilos.
Está-se bem, no banco verde, à sombra das tílias.
- Deixe-se estar, Rosa-diz Isabel. -Queremos que oiça as notícias. Estás a rir, Solange; quem é que te escreveu?
- A Denise. Uma carta cheia de erros de ortografia, mas em cada duas linhas repete o mesmo nome. Adivinham qual?
- João-Lucas! - respondem ambas risonhas.
- O João-Lucas é desembaraçado, o João-Lucas anda a ceifar... o João-Lucas come como um lobo... o João-Lucas nada como um peixe. Diz que a Teresa, como dona de casa, o acusa de devorar tudo quanto há. Os manos brigam, e a Denise fornece, às escondidas, o esfomeado: "Apesar disso, engordei de mais. Estou com medo de me tornar redonda e de que o João-Lucas faça troça de mim."
- E os tesouros? Não diz nada dos tesouros?
- É claro que diz, especificando que quer ter doze, mais tarde. O número está fixado desde o"s seis anos da Denise. Quanto à Catarina - que não se digna a escrever - ninguém a vê senão às refeições. Passa o dia inteiro - diz a Denise
- sozinha nos bosques. Se alguém lhe pergunta porquê: "porque me apetece." Ao princípio chorava, lá nos seus passeios. Notavam-no quando voltava. Agora nunca mais chorou. Solange interrompeu a leitura:
- Catarina Morot-Léandre a chorar... É preciso que o ame, mas de que maneira! Eu compreendo-a. Magloire é alguém. Saint-Yvy... estou convencida de que acabará por se fazer amar pela minha romântica mana. Saint-Yvy pode vir a ser alguém. Enfim, sabe-se lá?
Isabel tinha o olhar longínquo. Murmurou lentamente:
- Acho mais belo "tornarmo-nos alguém", os dois juntos. A Catarina, como a Teresa, fará dum rapaz hesitante um grande artista. E o mundo inteiro precisa de artistas. Tanto como de sábios, de engenheiros. A França precisa de beleza para reviver.
- Sim - disse Rosa, as mãos postas sobre a saia de linho. - De contrário a gente continuará pesada e triste.
- E a Noelle? Que é feito da Noelle?
- A senhora D. Noelle e o respectivo esposo estão em férias. Ninguém sabe onde. Foram-se, de mochila às costas, o que enche de inveja a Teresa que, a rir, acusa os tesouros de a não deixarem fazer tudo o que lhe apetece. Foi muito simpática, a Teresa, em convidar o João-Lucas, a Catarina e a Denise! Se não fosse ela, onde é que os havíamos de meter?
- A Tereza? É um amor.
Solange voltou à carta:
- "Quanto ao pai e à mãezinha, sozinhos na Rua da Torre. Que bem arrumada deve andar a casa! O paizinho sente a falta das filhas, embora as declare insuportáveis. A mãe faz compotas."
- Sem açúcar? - perguntou Isabel.
- Pois claro. Que remédio! E a tua família, Isabel?
- Excelentes notícias. As águas de Bagnoles estão a fazer bem à mãezinha que, além disso, se vai divertindo imenso. A Fani também. E o paizinho... bem, o paizinho passeia pelos campos da Normandia, e medita numa nova peça. O "Conto Azul" pô-lo em disposição para escrever. Diz-me assim: "Tinha-me tornado um velho preguiçoso. A vossa juventude despertou o poeta adormecido no bosque. A vossa juventude por cujo despertar a França anseia."
- O ressurgir-murmurou Solange - o ressurgir.
E àquela palavra fez-se um belo silêncio pensativo. Solange foi a primeira a libertar-se:
- Não esqueçamos o relógio. Acabou a sesta. Se Isabel era o coração da pequena colónia,
Solange - sem o suspeitar - era a sua cabeça. Procurava apagar-se, mas a sua personalidade evidenciava-se. Ao ver Isabel pàlidazita e um pouco curvada, declarou:
- Tens um ar extenuado. Não é de admirar: passaste a manhã a fazer contas. Vai descansar.
Não, minha filha, não vais tirar o fio ao feijão. A Rosa e eu presidiremos.
- Há imenso a debulhar.
- Mas há vinte e dois pares de mãos. As miúdas têm que aprender. Acabou-se o tempo em que as meninas mimadas deixavam todo o trabalho às mães.
E acrescentou com humildade e graça:
- Acabou-se o tempo em que certa delambida chamada Solange declarava: "Eu? Sujar as mãos a descascar legumes? Nem pensem nisso."
- Enquanto trabalham, conta-lhes uma história - disse Isabel. - Contas, sim, minha querida. Se não, perdem o fôlego. Será mais uma história de pretos?
- Certamente! Estou sempre a pensar nos meus queridos escurinhos! Estas miúdas parecem-me tão insípidas! Os cabelos cor de café com leite, a pele de nabo...
E pôs-se a rir à gargalhada, como a Solange de antes. Voltava-lhe a sua alegria.
Isabel, que queria trabalhar como as outras, acabou por ceder às súplicas de Rosa. E, enquanto as petizas se instalavam alegremente em torno do saco do feijão verde, seguiu através do prado e sentou-se entre erva alta e flores campestres.
Só, finalmente só para pensar. As costas apoiadas a uma macieira que estendia sobre ela o guarda-sol irrequieto da sua folhagem salpicada de frutos avermelhados, suspirou: mais um Verão sem Florêncio.
Florêncio... Sem dúvida, gostava de dirigir aquele grupo de crianças, nem ricas nem felizes; gostava de velar pelos seus corpos e pelas suas almas mal formadas; estava contente por poder finalmente exercer a sua profissão de assistente. Mas isso não era tudo, não era o essencial. Acima de tudo, seria mulher, seria mãe. Seria mulher do Florêncio.
Sua mulher! Instruída e experimentada pela vida, já não confundia o casamento com aquilo a que chamam a felicidade. Sabia que nada é perfeito, nem as pessoas, nem as coisas. Florêncio tinha defeitos. E a sua casa, criá-la-iam num tempo rude.
Mas seriam dois, formando apenas um. "Onde tu fores Caius, eu serei Caia": admirável fórmula do casamento latino. Era esse o seu sonho: formar apenas um. Enquanto que, actualmente, meia Europa os separava e que, amando-se, viviam, envelheciam - porque era já envelhecer - separadamente.
Releu o bilhete que acabava de chegar:
"Aqui discute-se muito e a propósito de tudo. Sou tido como grande defensor do casamento e da felicidade no casamento, donde concluem que sou um homem feliz. Faço-lhe a honra desta reputação merecida. E agradeço a Deus, minha noiva pequenina, por ma ter dado corajosa e terna, fiel como as mulheres lendárias. Quando de novo nos encontrarmos, a certeza de vivermos um para o outro até ao fim da vida assegurar-nos-á a felicidade estável e radiosa dos esposos que apenas têm uma alma em dois corpos."
Isabel fechou os olhos. As mulheres lendárias... Recomeça sempre, a lenda. As mais belas páginas da história ainda não foram vividas. Esperam que aqui, além, no mundo inteiro, os novos ergam as pedras demolidas e reconstruam, apesar da ferramenta jazer despedaçada.
- Sim, nós outros faremos o ressurgir-murmurou, como se alguém, dentre esses "nós outros", a escutasse e aquiescesse.
Abria os olhos que o sol deslumbrava. O campo carregado de trigo e frutos estava tão moço, tão belo depois desse Inverno rude, que o céu e a terra raiavam de esperança...
E, lá longe, sob um céu mais pálido, um rapaz de rosto esculpido pelo áspero cinzel dos anos 40, contemplava uma madeixa de cabelo escuro e brilhante, atado por um laço azul emurchecido.
- Tu, meu amor, tu... - diziam baixinho os seus lábios.
E depois, endireitando-se e voltando o rosto a oeste, escutou em sua alma o apelo do futuro.
Berthe Bernage
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