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TERCEIRA PARTE
Que aquele de vós que está livre de pecado lhe lance a primeira pedra.
Jo 8, 7.
Capítulo 1
A leva de degredados da qual fazia parte a Maslova tinha percorrido mais de cinco mil verstas. Até Perm a viagem fizera-se em comboio ou em barco e a Maslova acompanhara sempre com os condenados comuns. Em Perm, Nekludov conseguiu obter-lhe a transferência para junto dos condenados políticos. Fora Vera Bogodouchovska que lhe sugerira esta ideia.
Até Perm a viagem tinha sido penosíssima para a Maslova, tanto sob o ponto de vista físico como moral. Fisicamente sofrera a falta de ar, porcaria, o mau cheiro e a perseguição de toda a casta de parasitas, que não a deixavam; moralmente sofrera talvez ainda mais a perseguição dos homens, não menos repugnantes do que os insetos e que também não a largavam. Em todas as paragens tivera de repelir ignóbeis propostas, que não lhe deixavam um momento de descanso, e cuja lembrança lhe causava náuseas.
Entre prisioneiros e prisioneiras, soldados da escolta e até oficiais, reinavam relações de um cinismo tão descarado, como era hábito, que qualquer mulher, principalmente se era nova, tinha de conservar-se dia e noite precavida, se não quisesse nivelar-se com a corrupção geral e tirar partido dela.
Para a Maslova nada havia mais fatigante do que este contínuo sobressalto e alarme, pois mais do que qualquer outra estava exposta às propostas galantes de presos e soldados, não só pela sedução exterior do seu corpo, como também pelo que se sabia da sua vida passada.
Recusando obstinadamente aceder a tais propostas, o que fora considerado como uma afronta, criara em redor de si uma surda malevolência, que dia a dia aumentava. Esta situação ter-se-ia tornado intolerável se lhe faltasse para a animar a companhia da boa Fedósia e de Tarass seu marido, que tendo sabido em Nijni-Novgorod o perigo que sua mulher corria, renunciara à sua liberdade e, para melhor a proteger, pedira licença de acompanhar as prisioneiras.
A situação de Maslova melhorara sob todos os pontos de vista, quando Nekludov lhe conseguiu passagem para a secção dos condenados políticos. Com efeito, estes estavam não só muito melhor alojados, mas eram até muito melhor alimentados, e a Maslova descobriu nos seus novos companheiros muito menos grosseria e rudeza, e ausência de perseguições amorosas, o que lhe permitira principiar a esquecer um passado que, até então, todos se esforçavam por lhe relembrar. E ainda não era tudo.
A sua mudança dera-lhe ocasião de conhecer certas individualidades, que deviam exercer sobre ela uma decisiva influência, de que tiraria precioso proveito.
O favor que Nekludov solicitara para ela consistia simplesmente em habitar, durante as paragens, com os condenados políticos; o caminho continuaria a ser feito a pé, como sucedia com o resto dos condenados. A partir de Tomsk principiara, pois, a caminhar a pé, acompanhada por uma presa política, Maria Pavlovna Chétinin, a formosa rapariga de olhos azuis que Nekludov vira na prisão quando visitara Vera, e por um preso conhecido pelo nome de Simonson, homem de feições muito queimadas e profundos e encovados olhos. Maria Pavlovna vinha a pé porque cedera o seu lugar no carro a uma condenada que andava grávida, e Simonson porque considerava injusto aproveitar-se de um privilégio baseado numa distinção de classes sociais. Estes três levantavam-se primeiro que os outros e partiam logo, para reunir-se aos condenados comuns. E desta forma foram viajando até uma paragem, onde um outro oficial devia assumir o comando da leva.
Essa manhã de setembro estava húmida e fria. Caíam alternadamente chuva e neve e por intervalos soprava uma aragem gélida. Todos os prisioneiros que faziam a jornada a pé, quatrocentos homens e cinquenta mulheres, aglomeravam-se no centro do recinto onde haviam estacionado, uns rodeando o comandante da escolta que presidia à distribuição da ração diária de pão, outros comprando géneros a certos negociantes que tinham sido autorizados a entrar no recinto. Elevava-se desta massa humana um zumbido constante originado pelas vozes dos prisioneiros, contando dinheiro, palrando, questionando entre si e com os negociantes.
A Maslova e Maria Pavlovna, ambas vestindo curtas peliças e calçando botas altas, a cabeça coberta por lenços, saíram da sala onde haviam passado a noite e dirigiram-se para o lado onde os negociantes, abrigados do vento, expunham as suas mercadorias: havia pão fresco, peixe, pastéis, ovos, leite e um oferecia até um leitão assado.
Simonson com um traje de cauchu e calçando galochas, pois na sua qualidade de vegetariano não se utilizava nem da carne, nem do couro dos animais, estava também pronto, esperando a ordem de partir. Junto da porta da saída, tomava nota na sua carteira de uma reflexão que o assaltara. Eis o que escrevia: «Se um micróbio pudesse observar e estudar uma unha humana, chegaria à conclusão de que essa unha era parte de um conjunto inorgânico; assim raciocinamos nós, homens, quando estudamos a crosta externa do nosso planeta e afirmamos que é um ser inorgânico».
A Maslova e Maria Pavlovna tinham comprado ovos, pão e peixe, e enquanto uma dispunha as provisões no fundo de um saco, a outra fazia contas com o negociante. Já os soldados se alinhavam e um certo movimento se observava, como prenúncio das formalidades que, todas as manhãs, precediam a partida.
Como de costume contaram-se os prisioneiros; verificou-se o estado em que se encontravam os grilhões e aqueles que caminhavam dois a dois foram algemados. Súbito, ouviu-se um grito colérico soltado pelo comandante da escolta que veio destruir a monotonia das formalidades que executavam, e a que respondeu o choro de uma criança. Seguiu-se um profundo silêncio, logo quebrado por um confuso murmúrio que se elevava da multidão. A Maslova e Maria Pavlovna correram a informar-se do que se passava.
Capítulo 2
Logo que se aproximaram do grupo donde partia o murmúrio, eis o que elas viram: um oficial muito nutrido e com grandes bigodes louros limpava com a mão esquerda o pulso direito, vermelho de sangue e com rosto furibundo injuriava incessantemente um prisioneiro que, na sua frente, tapava com uma das mãos o rosto contundido e ensanguentado e com a outra sustinha ao colo, aconchegada ao peito, uma criancinha embrulhada num chale, que chorava e berrava quanto podia. O prisioneiro era um homem magro e alto, a cabeça meia rapada, vestindo blusa muito curta e umas calças que lhe deixavam os tornozelos à vista.
— Eu ensino-te a discutir! — dizia o oficial, acompanhando cada frase de novas injúrias. — Vamos! Larga a criança e prepara-te para as algemas!
Este homem, um deportado pela sua comuna, desde Tomsk que carregava com a filhita, porque a mulher morrera naquela cidade com um tifo. O novo comandante ordenara que lhe pusessem as algemas e como ele protestasse dizendo que lhe não era possível conduzir a criança, esmurrara-o num momento de irritação violenta.
Um alentado prisioneiro de barba negra, só algemado numa das mãos, ficara em frente do que fora esmurrado, olhando tristemente ora para o seu companheiro, ora para o oficial.
Este insistia sempre nas suas ordens para que algemassem o prisioneiro e levassem a criança. Então elevou-se da multidão um murmúrio crescente.
— Desde Tomsk que vem com as mãos soltas! — disse uma grosseira voz das últimas fileiras. — Não é um cachorro, é uma criancinha!
— Ela morre, pela certa! — disse outra voz. — Isto não é segundo a lei.
— O que?... o quê... — gritou o oficial, voltando-se como se fosse mordido por uma víbora. — Espera que eu mostro-te a lei! Quem falou aí? Foste tu? Foste tu?
— Todos nós falamos, porque... — disse um da primeira fila.
— Foste tu então? — E o oficial desandou a distribuir pancada ao acaso. — Ah! sim! Temos revolta? Eu vos mostrarei como elas se fazem! Faço-vos fuzilar como cães e os meus superiores ainda me agradecerão por me haver desembaraçado de tal companhia! Vamos, levem dali a criança!
Fez-se silêncio na multidão. Um guarda agarrou na criança que berrava incessantemente e um outro algemou o prisioneiro, com as mãos humildemente estendidas.
— A criança que seja entregue às mulheres! — disse o comandante para o guarda, sem achar outro destino que o desembaraçasse de tão incomodativo encargo.
A criancinha debatia-se furiosamente, tentando retirar as mãozitas de sob o chale que a envolvia, as feições injetadas de sangue e lavadas em lágrimas. Maria Pavlovna, de repente, abriu caminho por entre as fileiras compactas e aproximou-se do comandante.
— Dá-me licença que me encarregue da criança? — disse-lhe.
— Quem és tu? — perguntou-lhe o comandante.
— Uma condenada política.
O lindo rosto de Maria Pavlovna, olhos azuis e cabelo preto, impressionou evidentemente o comandante, que já a tinha notado quando fora da contagem. Fitou-a durante um momento e desviou em seguida o olhar um pouco perturbado.
— Para mim é indiferente; se quer encarregar-se dela pode levá-la! Como têm facilidade em mostrar compaixão por estes miseráveis! Queria-os no meu lugar para ver quem dava conta dele, se fugisse!
— Mas quem é que vai fugir com uma criança ao colo? — perguntou Maria Pavlovna.
— Eu não discuto com ninguém! Se quer levar a criança leve-a e toca a marchar!
— Entrego-a? — perguntou o soldado.
— Sim e depressa!
— Vem a mim! — disse Maria Pavlovna, afagando a criança enquanto a tirava dos braços do soldado.
A pequerrucha, porém, só queria os braços do pai e continuava debatendo-se e berrando.
— Espera, Maria! Ela conhece-me e talvez venha a mim! — disse a Maslova, procurando no saco um bocado de pão.
Efetivamente a criança reconheceu a Maslova, deixou de chorar e sossegou nos seus braços.
Reinou de novo silêncio. As portas abriram-se e o cortejo, enfileirando-se, principiou a sair. Ainda mais uma vez os prisioneiros foram contados e a Maslova com a criança nos braços trocou algumas palavras com Fedósia, que caminhava numa das filas dianteiras.
De repente, Simonson que assistira, sem dizer palavra, a toda a cena anterior, dirigiu-se em passo firme para o comandante que já se instalara na sua carruagem.
— O senhor procedeu muito mal! — disse-lhe.
— Já para as fileiras! Não tem nada com isso!
— Tenho de lhe dizer que procedeu muito mal porque é a verdade! — repetiu Simonson fixando o comandante insistentemente, através das suas espessas e negras sobrancelhas.
— Está tudo pronto! Ordinário! Marche! — gritou o comandante, voltando as costas, desdenhosamente, a Simonson.
O cortejo agitou-se e principiou a andar pela estrada lamacenta, ladeada de ambos os lados por valetas trasbordantes de água.
Capítulo 3
Depois de oito anos de vida corrupta e vergonhosa, primeiramente em companhia de prostitutas e depois na de criminosos, Maslova não podia deixar de achar agradáveis as atuais condições da sua vida com os condenados políticos, apesar de todas as durezas que ainda a rodeavam.
As grandes caminhadas de vinte verstas diárias, os frequentes descansos, pois ao fim de dois dias de marcha descansava-se no terceiro, o bom alimento e uma boa cama para repouso, tudo isto fazia-lhe recuperar forças, rejuvenescendo-a, enquanto a convivência com os seus novos companheiros lhe revelava origens de interesse e prazer de que até então nem sequer suspeitara a existência.
E, com efeito, não só nunca conhecera gente tão «extraordinária» (segundo a sua expressão) como esses revolucionários cuja vida agora partilhava, mas até duvidara, que existisse semelhante gente. A princípio estranhara os motivos íntimos que os impulsionavam, mas bem depressa os compreendera e, como aldeã que era, calorosamente admirara-os. Sentia que eles eram pelo povo contra as classes superiores, e como sabia que os seus companheiros de agora tinham pertencido a essas classes superiores, como autoridades, a ideia de que por amor do povo tinham sacrificado os seus privilégios, a sua liberdade e a sua vida, tornava-lhe a admiração que lhes votava ainda mais intensa.
Maslova admirava todos os seus companheiros, mas acima de todos punha Maria Pavlovna. Por esta tinha mais do que admiração: era uma afeição intensa e entusiástica que seria verdadeira paixão se não fora respeitosa em extremo. Maravilhara-a desde princípio, ver uma rapariga formosa, rica, instruída e nobre, única filha de um general, nivelar-se no aspeto exterior com uma simples aldeã, distribuindo pelos outros o dinheiro e roupas que seu pai lhe mandava e trajando não só sem luxo, mas até de modo que a sua beleza natural não desse tanto na vista.
Com o decorrer do tempo, quando Maria Pavlovna se tornara mais íntima da Maslova, nenhuma das suas qualidades a maravilhavam tanto como a total ausência de toleima. Não que Maria Pavlovna ignorasse a sua beleza; tinha plena consciência dela, e Maslova julgou adivinhar que isso lhe dava um secreto prazer; longe, porém, de regozijar-se com a impressão que a sua beleza causava nos homens, temia-a, sentindo verdadeira repulsão por tudo que fosse galantear.
Os seus companheiros não o ignoravam e mesmo aqueles que se sentiam atraídos pela sua presença, procuravam escondê-lo. Tacitamente, todos, nas suas relações com ela, tratavam-na não como a encantadora rapariga que era, mas como um homem, um outro companheiro; mas, fora daqui, frequentes vezes era apoquentada por galanterias masculinas, que a obrigavam a ter de servir-se dos seus músculos para se proteger.
— Uma vez — contava ela à Maslova, rindo do caso — um homem seguiu-me pela rua fora e num certo ponto agarrou-me no braço, sem querer largar-me. Dei-lhe tal safanão que ele assustou-se e desatou a fugir.
A Maslova soube dela também o que a obrigara a ser revolucionária.
Desde criança que sentia pouca inclinação pela vida dos ricos, preferindo a das classes mais humildes: sofrera muito maus tratos e ouvira ralhar muito por passar o seu tempo na sala das criadas, na cozinha e na cavalariça, em vez de estar no salão.
— Quanto me divertia com a cozinheira, quanto me aborrecia com as fidalgas! Não havia dia nenhum que uma nova descoberta não me mostrasse quanto era estúpida a vida a que me queriam sujeitar! Minha mãe morreu quando eu era ainda muito criança, de maneira que era meu pai quem cuidava de mim. Mas fazia-o de tal forma que, aos dezanove anos, fugi de casa com uma amiga minha e principiámos a nossa vida como operárias numa fábrica.
Pouco tempo, porém, tinham aí trabalhado, porque Maria Pavlovna quisera partir para a aldeia. Mais tarde regressara à cidade, entregara-se a trabalhos de propaganda, terminando por ser presa e condenada a trabalhos forçados.
Maria Pavlovna não lhe contou, mas Maslova depressa o soube, que a condenação aos trabalhos forçados fora a resultante de se ter declarado autora de um assassínio que na realidade não cometera.
Maria Pavlovna só pensava na forma como poderia ser útil aos outros, sem nunca cuidar de si, fossem quais fossem as condições do seu viver. Um dos revolucionários que seguiam na leva, chamado Novodvorov, dizia dela, gracejando, que se havia dedicado ao «desporto da beneficência». E era verdade. Assim como a única preocupação de um caçador é arranjar caça, assim também o fim da vida daquela rapariga era achar ocasião de tornar-se útil. E este desporto volvera-se num hábito que era o fundo da sua natureza. E praticava-o tão simplesmente que todos que a conheciam já não se admiravam, e limitavam-se a aproveitar-lhe os serviços como a coisa mais natural do mundo.
Quando a Maslova apareceu entre o grupo dos condenados políticos, Maria Pavlovna sentiu certa repulsão. Maslova notou-o, assim como notou que ela se esforçava por se vencer, prodigalizando-lhe ainda mais cuidados do que aos outros. E os cuidados que lhe testemunhava uma criatura, aos seus olhos superior, e aqueles que para o bem dos demais empregava, tinham comovido tão profundamente a Maslova que desde então entregara-se-lhe de corpo e alma, adotando cegamente as suas ideias e sem o reconhecer, apenas desejando assemelhar-se-lhe.
Maria Pavlovna sentira-se comovida, compreendendo tão apaixonada afeição, e sentira despontar em si uma forte amizade pela Maslova.
Um outro sentimento comum acabou por estreitar a sua mútua e nascente amizade; ambas sentiam a mesma repulsão pelo amor sexual, com a diferença de que uma, a Maslova, sentia-lhe aversão porque lhe experimentara todos os horrores, enquanto a outra, Maria Pavlovna, a sentia porque o considerava incompreensível e repugnante, e ainda que o desconhecesse, entrevia-o como um obstáculo para a realização do alto ideal a que se dedicara.
Capítulo 4
A profunda influência que Maria Pavlovna exercia na Maslova provinha da afeição que esta lhe votava. Outra influência operava na Maslova ao mesmo tempo: a de Simonson. E por sua vez, esta provinha de Simonson estar apaixonado por ela.
Todos os homens vivera e procedem, era parte segundo as suas próprias ideias, em parte segundo as dos outros. E uma das principais diferenças entre os homens, consiste no grau de inspiração das ideias próprias e das ideias alheias. Uns limitam-se, o mais das vezes, a servir-se das ideias próprias como num jogo mental e empregara a sua razão como se fizesse parte de um maquinismo que se faz girar depois de o desligar da correia que o une ao motor, e nas crises graves da vida e ainda mesmo nas mínimas ações diárias, entregam-se ao pensamento alheio que se batiza por «o uso», «a tradição», «as conveniências» ou «a lei». Outros, pelo contrário, em menor número, consideram o seu pensamento como o principal guia da sua conduta e esforçam-se, no limite das suas forças, por proceder segundo a inspiração da sua razão.
Simonson pertencia a esta segunda categoria de homens. Nunca pedia conselhos senão à sua cabeça e aquilo que decidisse fazer, fazia-o.
Quando ainda colegial a sua razão afirmara-lhe que a fortuna de que seu pai, um rico magistrado, era possuidor, fora adquirida injustamente e logo lhe declarara que devia restituir ao povo. Como seu pai, em vez de o atender o repreendesse, abandonara o lar paterno, renunciando a disfrutar as regalias da sua posição. Tomando sempre a sua razão por inspiradora, chegara à conclusão de que a principal causa do mal que existia na Rússia, era a ignorância do povo.
Apenas, pois, saído da Universidade, obtivera uma nomeação como professor primário para uma aldeia, e começara a explicar aos discípulos e aos aldeões o que pensava que eles deviam saber. Foi preso e julgado.
Na audiência, convencera-se que nenhum direito assistia aos juízes de o sentenciarem e sem delongas, dissera-lho. Muito naturalmente os juízes não lhe deram atenção e continuaram a julgá-lo; Simonson tomou o partido de não lhes responder e até ao fim da audiência não disse mais palavra. Dado como criminoso fora condenado à deportação para uma cidadezinha do governo de Archangel.
Aqui arquitetara uma doutrina religiosa que desde então lhe governava a existência. Admitia nessa doutrina que tudo no universo vive, que a morte não existe e que os objetos que nos parecem inanimados não são senão partes de um grande conjunto orgânico; a resultante era o dever que contraia todo o ser humano de contribuir para a manutenção deste grande organismo em todas as suas partes.
Daqui tirava a conclusão que era um crime atentar contra a vida, sob qualquer forma que se apresentasse, não admitindo nem guerras, nem cárceres, nem morte de animais.
Construirá também uma teoria sobre o casamento e relações sexuais. Estas, considerava-as como uma manifestação inferior, insistindo que a preocupação de fazer meninos (a isto se limitavam essas funções, dizia), distraía-nos de um fim útil e digno dos nossos esforços, qual o de socorrer os seus já existentes, aperfeiçoando a vida universal. Os homens superiores, na sua teoria, evitando as relações sexuais, assemelhavam-se aos glóbulos sanguíneos cujas funções consistem em auxiliar as partes fracas e doentes do organismo. Depois de imaginar e aceitar esta teoria aplicara-a à vida prática, posto que a sua mocidade tivesse sido dissoluta.
O amor que agora sentia pela Maslova não o punha em desacordo com as suas teorias, porque era baseado em princípios fraternais, o que o obrigava a dizer que a sua missão de benfeitor da humanidade não era prejudicada por ele, mas até era ativada.
E não era só sobre questões teóricas que confiava absolutamente na sua razão; quando se tratava de questões práticas igualmente não consultava ninguém. Tinha teorias suas sobre o número de horas que devia consagrar ao trabalho e ao repouso, sobre a maneira de se alimentar, de se vestir ou sobre o melhor processo de iluminação e aquecimento.
Além destas particularidades, Simonson era ainda de uma excessiva e natural timidez. Nunca procurava dar nas vistas ou impor-se, obrigando os outros a partilharem as suas opiniões. Quando, porém, decidia fazer uma determinada ação, ninguém no mundo podia impedi-lo.
Tal era o homem que se apaixonara calorosamente pela Maslova. Esta, com o instinto feminino, adivinhara a existência desse sentimento e a ideia que tinha podido inspirar amor a um homem tão «extraordinário» reabilitava-a no seu conceito íntimo. Quando Nekludov se oferecera para casar com ela, compreendera bem que era por grandeza de alma e para reparar o erro cometido; agora, porém, Simonson amava-a tal como ela era e amava-a simplesmente porque a amava.
Se Simonson a amava era porque devia considerá-la como uma mulher diferente das demais, com qualidades morais que não existiam nas outras, dizia consigo Maslova. Quais fossem essas qualidades que ele lhe reconhecia, ela não conseguia adivinhá-las, mas a fim de que a elevada opinião que ele formava dela não fosse amesquinhada, esforçava-se por possuir os melhores sentimentos que podia imaginar; assim, sob a influência de Simonson, ansiava pela perfeição compatível com o seu temperamento.
E isto datava de há muito tempo. Já na prisão Maslova notara a insistência com que a fixavam os bons e ingénuos olhos do prisioneiro vestido de cauchu e compreendera que o homem que a fixava tão bizarramente devia ser um indivíduo também bizarro. Notara igualmente o extraordinário contraste desse rosto de sobrancelhas franzidas, exprimindo severidade, com a doçura infantil do seu olhar.
Depois, em Tomsk, quando fora transferida para junto dos condenados políticos, tornara a encontrar o seu estranho apaixonado. E, posto que nem uma só palavra fosse trocada por eles, bastara o modo como se tinham olhado, para os unir com uma especial amizade. Nos dias seguintes também nenhuma conversa íntima teve lugar entre eles, mas a Maslova percebia que quando Simonson falava, era a ela que se dirigia e que era por causa dela que falava lentamente e tão claramente quanto lhe era possível.
Capítulo 5
Durante todo o trajeto, desde a prisão até Perm, Nekludov apenas conseguira ver a Maslova duas vezes: a primeira no parlatório da prisão de Nijni-Novgorod através de um gradeamento, e a segunda vez igualmente no parlatório da prisão de Perm. Em ambas as entrevistas achara-a reservada e pouco expansiva. Perguntando-lhe se tinha necessidade de alguma coisa, ela respondera-lhe secamente e de um modo afetado, que lhe recordara a forma hostil como a princípio o tinha recebido na prisão. E Nekludov incomodara-se por encontrá-la em tal disposição, não sabendo que a sua origem provinha da irritação criada pelos contínuos vexames a que, prisioneiros e soldados, a sujeitavam.
Receava vê-la regressar ao antigo estado de desânimo, dadas as condições degradantes do meio em que se encontrava, que lhe faziam renascer o seu antigo ódio contra ele e contra todos. Temia que viesse ainda a detestá-lo, procurando o esquecimento no tabaco e no álcool. E era-lhe impossível auxiliá-la, pois os comandantes opunham-se a que a visitasse! Só quando lhe pôde obter a transferência para o grupo dos condenados políticos, reconheceu quão infundados eram os seus temores. Logo na primeira entrevista em Tomsk, achara-a tal como a deixara nas suas derradeiras visitas na prisão. Maslova quando o viu não se sentiu perturbada nem o recebeu constrangida ou dissimuladamente, antes o acolheu com sincera alegria, agradecendo-lhe calorosamente tudo o que fazia por ela, principalmente o tê-la mudado de companhia.
Nekludov observou até que a transformação que se operava nela principiava a refletir-se no seu aspeto exterior. Ao fim dos dois meses de marcha emagrecera, a epiderme tostara-se-lhe, as rugas nas fontes e em redor da boca tinham-se acentuado; nem no vestuário nem no penteado, nem nas maneiras, existia o menor vestígio de garridice. E esta transformação alegrara em extremo Nekludov.
Sentia agora por ela um sentimento cuja existência ignorava. Não tinha nada de comum com o seu primeiro entusiasmo juvenil, nem com o desejo sexual que mais tarde o dominara, nem ainda com o sentimento, ao mesmo tempo nobre e egoísta, que experimentara quando, encontrando Katucha no tribunal, resolvera reparar o seu erro casando com ela. Era um misto de piedade e ternura que por várias vezes sentira na prisão: agora, porém, este sentimento diferia do de então porque era natural e permanente, quando até aí tinha sido fragmentário. Pensasse no que pensasse, fizesse o que fizesse, o seu coração trasbordava de ternura e piedade pela Maslova.
E, como nos tempos do seu primeiro idílio, este sentimento fizera brotar na alma de Nekludov caudais de amor e de piedade que a natureza aí depositara e que durante muitos anos não tinha achado saída.
Efetivamente Nekludov sentia-se desde o princípio da viagem, seguindo a leva, num estado de exaltação sentimental que o forçava, algumas vezes contrariado, a interessar-se pelos pensamentos e emoções de todos a quem via, desde os cocheiros e soldados até aos comandantes e diretores das prisões.
A transferência da Maslova para o grupo dos condenados políticos dera ocasião a Nekludov de travar conhecimento com a maioria deles e principalmente com cinco homens e quatro mulheres que acompanhavam a Maslova. E desde então Nekludov modificara a opinião que fazia do partido revolucionário russo em geral.
Desde o princípio do movimento revolucionário na Rússia, Nekludov experimentara pelos representantes desse movimento uma pronunciada e desprezível aversão. Mais do que tudo detestara a crueldade e a dissimulação dos meios empregados na sua luta contra as autoridades, conspirações e atentados criminosos; indignava-o também o conhecimento que tinha dos traços característicos da maioria dos revolucionários: a jactância, a vaidade e ilimitada confiança nas suas pessoas. Quando, porém, os conheceu mais intimamente e quando soube o modo como eram tratados pelas autoridades, compreendeu que não podiam ser outra coisa senão o que eram.
Por mais horrorosas e insensatas que fossem as torturas a que eram condenados os prisioneiros vulgares, tais castigos, antes como depois do julgamento, conservavam uma aparência de legalidade; mas aqui, com os condenados políticos, até essa aparência de legalidade desaparecia.
Nekludov, porém, já disto tivera um exemplo em S. Petersburgo com o caso de Choustova, só com a diferença que agora ouvia as narrações dos companheiros de Katucha.
Escutando essas narrações comparava a forma como eram tratados esses infelizes com a que se emprega para pescar peixe à rede; depois de se puxar por ela esvazia-se de todo o peixe que agarrou, guardando só o graúdo e abandonando a miudagem, que se deixa morrer na areia. Assim se procedia na pesca dos revolucionários; encarceravam se, ao acaso, centenas de pessoas, a maioria gente inocente que não podia ser hostil às autoridades e deixavam-se ficar, às vezes durante anos, nas prisões, onde contraiam a tísica, onde enlouqueciam ou se suicidavam e isto simplesmente porque não convinha soltá-las em virtude desta ou daquela informação que poderiam fornecer.
A sorte destas criaturas, inocentes mesmo no ponto de vista legal, dependia do capricho, do ócio ou do temperamento de um empregado policial qualquer, de um juiz, de um governador ou de um ministro. Tudo dependia que um desses funcionários quisesse viver tranquilo ou aparentar zelo rigoroso; neste caso tinham lugar as detenções em massa de gente moça, suspeita de se ocupar de política, e uma vez presos, só os governadores ou ministros decidiam a sua sorte. Então, eram uns, desterrados para o fim do mundo, outros enterrados vivos em células, outros condenados a trabalhos forçados ou à morte, só obtendo a liberdade quando uma senhora elegante se dignava interessar-se por eles.
Procedia-se com estes desgraçados como com o inimigo em tempo de guerra; e eles, então, retribuíam a luta empregando os mesmos processos que empregavam contra eles. E da mesma forma que no tempo de guerra oficiais e soldados se sentem autorizados pela opinião geral a cometer atos que em tempo de paz, são considerados criminosos, os revolucionários, na sua luta consideravam-se apoiados peia opinião dos seus correligionários, deixando as suas ações de ser cruéis, para serem nobres e morais, pois por elas sacrificavam a liberdade e a vida, aquilo que os homens consideram como mais precioso.
Era o que explicava a Nekludov o fenómeno extraordinário que consistia em gente excelente, incapaz não só de causar qualquer sofrimento, mas até de o presenciar, planear tranquilamente o assassínio e a violência, professando a santidade de tais ações, considerando-as como meios de defesa ou como um útil instrumento para auxiliar a realização de um elevado ideal de felicidade para a humanidade. A alta ideia de que os revolucionários tinham da sua causa e de si próprios, provinha naturalmente da importância que os seus adversários lhe atribuíam e da excecional crueldade com que os combatiam; além do que, eram forçados a formar uma elevada ideia de si próprios, pois contribuía para lhes dar alento com que suportassem a vida de sofrimentos em que se debatiam.
Nekludov, quando os conheceu mais intimamente, convenceu-se que nem eram malfeitores excecionais como certas personagens julgavam, nem heróis perfeitos como outras os imaginavam, mas sim homens vulgares, entre os quais havia, como em toda a parte, uns bons, outros maus e uma maioria de medíocres.
Uns tinham-se feito revolucionários porque, na sua sinceridade, julgavam-se destinados a lutar contra o mal; havia outros que tinham sido impulsionados por motivos egoístas, ambição ou vaidade, e a maioria fizera-se revolucionária impelida por um sentimento que Nekludov conhecia muito bem e que experimentara na guerra contra os turcos.
Era o sentimento que leva a mocidade a procurar o perigo, expondo-se e arriscando-se, para quebrar a monotonia da vida, com um jogo efervescente.
A diferença principal que Nekludov descobriu entre os condenados políticos e o vulgar dos homens, consistia na regra moral, tal como era compreendida pelos condenados, ser mais elevada que a desses outros homens.
Com efeito, para tal gente o dever não só prescrevia a resistência às fadigas e às privações, a franqueza e o desinteresse, mas também o sacrifício de todos os bens e o da própria vida, logo que assim fosse exigido pela obra comum.
Provinha daí que aqueles revolucionários, naturalmente superiores ao nível médio, representavam tipos notáveis de elevação moral; aqueles que eram inferiores em natureza ao mesmo nível médio, tornavam-se notáveis pelo contraste com o ideal moral que professavam. Por isto, Nekludov afeiçoara-se sinceramente a alguns desterrados que seguiam a pé acompanhando a Maslova, enquanto por outros sentia apenas um misto de indiferença e antipatia.
Capítulo 6
I
De todos os condenados com quem Nekludov simpatizava, nenhum lhe agradava tanto como um rapaz tísico chamado Kriltzov. Nekludov conhecera-o em Ekaterinembourg e desde então tivera frequentes ocasiões de conversar com ele. Uma vez, durante uma alta do cortejo, Nekludov passara todo o dia na sua companhia e Kriltzov, que estava falador, contara-lhe toda a sua história, que, até ao momento da sua detenção, era curta.
Ainda muito novo perdera o pai, proprietário rico dos arredores de Kiev e a sua educação fora conduzida por sua mãe, de quem era o único filho. No colégio e na Universidade fizera brilhantes estudos, sendo sempre o primeiro em todos os concursos, e desde os vinte anos fora tido por um matemático de raro merecimento. Os seus professores na Universidade aconselharam-no a habilitar-se a um curso no estrangeiro e depois a concorrer a uma cadeira naquela faculdade. Kriltzov, porém, hesitara. Amava uma menina, sua vizinha no campo, e já arquitetara casar-se ficando a viver nas suas propriedades. Quando, perplexo, pensava no que devia fazer, os seus condiscípulos solicitaram dele um auxílio monetário para uma «obra comum», como lhe chamavam.
Kriltzov não ignorava que a tal «obra comum» era uma obra revolucionária, mas, sem outro interesse, dera o dinheiro por camaradagem e para que se não dissesse que tinha medo. A polícia interviera; o dinheiro fora apreendido e o nome de Kriltzov fora encontrado numa carta, da qual se depreendia ter sido ele o fornecedor de fundos. Pouco depois era preso e encarcerado.
E tudo isto foi por ele narrado a Nekludov, estando sentado num alto catre, uma manta deitada nos joelhos, e fixando no vácuo os seus grandes olhos negros e febris.
— O regime da prisão onde fui encerrado — disse ele — era relativamente pouco severo. Não só nos correspondíamos por sinais, mas até nos encontrávamos nos corredores, e conversávamos, trocando provisões e tabaco, e à noite cantávamos em coro. Eu tinha boa voz e as canções noturnas agradavam-me imenso. Se não fora a recordação do desgosto que minha mãe sofrera, considerar-me-ia perfeitamente feliz. Tinha travado conhecimento com várias individualidades interessantes, principalmente com o célebre Petrov, que mais tarde se suicidou cortando as veias com um caco de garrafa. Contudo eu ainda não era um revolucionário, nem me sentia disposto a sê-lo. Um dia deram entrada na prisão dois rapazes desterrados para a Sibéria por distribuírem proclamações polacas e que no caminho tinham tentado fugir; foram ocupar um quarto junto do meu. Um era polaco, Lozinski; o outro chamava-se Rosemberg e era judeu. Rosemberg era uma verdadeira criança; dizia ter dezassete anos mas adivinhava-se que não tinha mais de quinze. Era baixinho, magro, com olhos pretos muito vivos, inquieto, palrador e, como todos os judeus, excelente músico. Posto que a voz estivesse mal formada, era um regalo ouvi-lo cantar. Alguns dias em seguida à sua chegada foram julgados; pela manhã conduziram-nos ao tribunal e, quando, à tarde, regressaram, disseram-me terem sido condenados à morte. Ninguém esperava tal. É verdade que tinham oposto resistência quando de novo foram agarrados, mas não tinha havido ferimentos. Além disso nunca nos tinha passado pela cabeça que se condenasse à morte uma criança como Rosemberg. A opinião dominante na prisão foi que a condenação tivera unicamente por fim aterrá-los e que nunca se executaria. Bem depressa, pois, a emoção que este incidente tinha produzido foi-se acalmando e a vida continuou seguindo como no passado. Um dia, porém, um carcereiro aproximou-se de mim e, misteriosamente, informou-me de que tinham chegado os operários para levantar a forca. A princípio não compreendi. A forca? Para quê? Fitando o velho carcereiro, vi-o tão perturbado que, num instante, compreendi tudo! Quis prevenir os meus companheiros, fazendo-lhes sinais, mas receava que eles, os meus vizinhos, me entendessem. E depressa compreendi que os meus camaradas também já deviam saber de tudo, pelo mortal silêncio que, repentinamente, reinara nos corredores e quartos. À tarde, ninguém se lembrou de cantar nem sequer conversar. Aí pelas dez horas o velho carcereiro chegou outra vez ao meu quarto e disse-me que o carrasco de Moscovo estava a chegar. Como se preparasse para se afastar logo que me deu aquela notícia, chamei o novamente para lhe pedir informações mais detalhadas, quando ouvi a voz de Rosemberg dizer-me do seu quarto: «Que há de novo? Que quereis?» Respondi-lhe que era para obter tabaco, mas Rosemberg ficou desconfiado, porque me perguntou com voz inquieta qual o motivo que impedira que se cantasse e até que se conversasse naquela tarde. Já não me recordo o que lhe respondi, mas o certo é que fingi dormir para pôr ponto na conversa. Durante toda a noite, porém, não pude dormir! Oh! que noite horrorosa. Nunca a poderei esquecer! Durante todo o tempo permaneci imóvel, estendido no meu leito, espiando o menor ruído, como se fosse eu que tivesse de ser enforcado. De madrugada ouvi abrirem-se as portas e o ruído de várias pessoas andando na nossa direção. Ergui-me e precipitei-me para a abertura da porta do meu quarto. O corredor estava frouxamente alumiado por um pequeno candeeiro. O primeiro que vi passar foi o diretor da prisão, homem nutrido, sempre satisfeito de si próprio, e andando de cabeça erguida; então ia pálido, triste, o olhar fixo no solo. Seguiam-no um chefe de polícia e dois subordinados. Os quatro passaram em frente da minha porta e pararam um pouco mais ao lado. E então ouvi o chefe de polícia dizer com voz estranha: «Lozinski, levante-se e vista camisa lavada!» Fez-se profundo silêncio; pouco depois ouvi uma porta abrir-se e senti Lozinski sair do quarto. Pelo orifício da minha porta eu não via mais que o diretor conservando-se pálido e abatido, cofiando o bigode, sem erguer a cabeça. De repente vi-o recuar, alucinado. Era Lozinski que passara na sua frente em direção ao meu quarto. Que belo tipo de homem este Lozinski! Era um puro representante desse encantador tipo polaco: testa ampla e reta, cabelos louros finíssimos, saindo-lhe de sob o boné e belos olhos azuis, de criança. Um rapaz trasbordando de vida e saúde, verdadeira flor humana! Parou em frente do orifício da minha porta, de forma que eu distinguia-lhe as feições por completo. Oh! Mas que terrível de ver era esse rosto, meio sorridente, meio sombrio! «Kriltzov, tem cigarros?» Ia-lhos passar quando o diretor, com febril solicitude, se antecipou puxando pela cigarreira e apresentando-lha. Lozinski serviu-se de um cigarro e, depois de havê-lo acendido ao lume que o chefe da polícia lhe oferecera, principiou a fumar, pensativamente. De repente, erguendo a cabeça, como se lhe lembrasse qualquer coisa, exclamou: «É injusto! Não fiz mal nenhum! Eu...» Vi um estremecimento agitar-lhe o pescoço muito branco, do qual não podia despegar o meu olhar, e notei que se calava. Neste momento ouvi Rosemberg gritar no quarto com voz aguda, de verdadeiro judeu. Lozinski deitou fora o cigarro e afastou-se de junto da minha porta. E, por sua vez, Rosemberg retomou-lhe o lugar. As suas feições de criança, onde brilhavam uns pequenos olhos negros, estavam cor de púrpura e escorrendo suor; também vestira camisa lavada e, como as calças fossem muito largas, puxava-as incessantemente com ambas as mãos, o corpo agitado por constantes estremecimentos. Quando me viu, colocou o rosto na abertura da porta, fitando-me alucinado: «Anatole Petrovich, não é verdade que o médico me receitou xarope? Não estou nada bem e preciso tomar mais!» Ninguém lhe respondeu e o seu olhar implorante fixava-se, ora em mim ora no diretor. Nunca ninguém soube o que ele queria dizer com o seu xarope. De repente, o chefe de polícia tornara-se severo: «Vamos, nada de gracejos, marche!» Rosemberg, contudo, já não compreendia o que lhe ordenavam; desatou a correr pelo corredor fora e depois ouvi-lhe soluços estrangulados; afinal, parou e, por entre súplicas ardentes, percebi que chorava. O ruído dos pés, andando gradualmente, desvaneceu-se; fechou-se a porta do corredor e só de longe a longe ouvia os gritos desesperados de Rosemberg. E foram enforcados. Um carcereiro que assistira a tudo contou-me que Lozinski portara-se com coragem, mas que Rosemberg lutara e debatera-se durante muito tempo, sendo preciso levá-lo para o cadafalso e passar-lhe à força o nó corredio. O carcereiro era um homenzinho embrutecido pelo álcool. Tinham-me dito que era terrível assistir àquilo! Qual história! Nem nada. O nó passa-se à volta do pescoço, empurra-se o corpo e... dois movimentos com os ombros, mais nada. O carrasco aperta o nó e pronto. Quem é que diz que é terrível? Nada, afirmo-lho, mesmo nada!
Kriltzov, por muito tempo, conservou-se silencioso depois de terminar a narração. Nekludov notou que as mãos tremiam-lhe e que custosamente reprimia os soluços.
— Desde então tornei-me revolucionário! — declarou, depois de estar mais sossegado.
E em mais algumas palavras contou o fim da sua história.
Filiara-se no partido Narodovoltzy e dirigia um grupo que se propunha aterrar o Governo pela violência, para obrigá-lo a renunciar ao poder, apelando então para o povo. Como representante do seu grupo estivera em S. Petersburgo, viajara no estrangeiro, voltara a Kiev, depois a Odessa, sempre trabalhando sem ser importunado. Um companheiro em quem depositava a máxima confiança, denunciara o; fora preso, encerrado na prisão durante dois anos e, por fim, sentenciado à morte, e num perdão geral, comutada a pena em trabalhos forçados por toda a vida.
Na prisão contraíra a tísica e, nas atuais condições de vida, mal lhe restariam alguns meses para viver. Sabia isto perfeitamente e dizia a Nekludov que, se lhe fora dada uma segunda vida, empregá-la-ia semelhantemente, trabalhando para destruir uma ordem trasbordante de injustiças e crueldades.
E a história deste infeliz e a sua intimidade com ele, explicaram a Nekludov muitas coisas que até então lhe tinham permanecido incompreensíveis.
II
Na mesma manhã em que tinha tido lugar a disputa entre o comandante da escolta e o pai da rapariguita, Nekludov, que se tinha alojado na hospedaria da aldeia, acordou mais tarde que o habitual e, depois de se ter levantado, respondeu a uma numerosa correspondência, de maneira que partira muito tarde para poder alcançar a leva, como nos dias anteriores fizera. Começava a escurecer quando chegou à aldeia onde pernoitavam os degredados.
O seu primeiro cuidado foi dirigir-se para a hospedaria a fim de mudar de roupa, pois o nevoeiro atravessara-o até aos ossos. E, mais reconfortado, sentou-se na grande sala, muito limpa e agradável, com as paredes ornadas de imagens piedosas e retratos da família imperial, bebendo chávenas de chá umas atrás das outras e aturando complacentemente a palradora hospedeira, viúva muito nutrida com um pescoço roliço e branco. Quando bebeu o chá saiu para ver se conseguia do comandante da leva licença para falar com a Maslova.
Havia seis dias que lha negavam. Durante eles apenas trocara algumas palavras com ela e com os seus companheiros, na estrada, e nem uma só vez conseguira entrar no acampamento. Tal severidade provinha de se esperar de um momento para outro a visita de um inspetor das prisões, alto funcionário.
Efetivamente o inspetor chegou, ou antes, passou, pois nem se dignou parar e inspecionar a leva.
Nekludov tinha agora a esperança que o novo comandante autorizá-lo-ia, como os seus antecessores o haviam feito, a ter entrada nos alojamentos dos condenados políticos.
A hospedeira tinha-se oferecido para lhe arranjar um carro que o conduzisse até ao acampamento, situado na outra extremidade da aldeia, mas Nekludov preferiu ir a pé, acompanhado por um rapaz de ombros quadrados, calçando grandes botas untadas de breu fresco, que, na qualidade de criado da hospedaria, foi encarregado de o guiar. A noite estava escura e o nevoeiro era tão denso que Nekludov não distinguia o seu guia, posto que ele caminhasse a pequena distância: só lhe ouvia o chapinhar das botas, enterrando-se na lama pegajosa e profunda. Logo que terminou a grande rua da aldeia, e que deixaram de brilhar, aqui e ali, as janelas iluminadas, a escuridão tornou-se mais completa. Depressa, porém, Nekludov distinguiu a luz dos lampiões colocados à entrada do acampamento e, quanto mais se aproximava, mais nitidamente esses focos vermelhos se mostravam, até que por fim tornaram-se visíveis as estacas do recinto, a guarita da sentinela e até a sombria silhueta desta, em pé, junto da entrada, com a espingarda ao ombro,
Por entre a escuridão ouviu-se um «Quem vem lá?» que a sentinela lançou, seguido logo pela prevenção de que não era permitido o estacionamento junto da estacaria a pessoas estranhas. Contudo, o guia de Nekludov não se assustou com tamanha severidade:
— Que papão para meninos — disse. — Olá! chama pelo cabo enquanto esperamos aqui!
O soldado voltou-se e chamou para dentro por alguém; depois recomeçou a andar de um para outro lado, examinando o guia de Nekludov, que à luz de um dos lampiões, lhe limpava com um punhado de folhas verdes as botas carregadas de lama.
Por entre a paliçada ouvia-se um confuso murmúrio de vozes e risos.
Ao fim de três minutos Nekludov viu abrir-se a porta e um velho soldado, vivamente iluminado pelo reflexo dos candeeiros interiores, surgiu, perguntando o que desejavam dele. Nekludov entregou-lhe um bilhete de visita que tinha preparado e pediu-lhe que dissesse ao comandante que desejava falar-lhe em assuntos particulares.
Este velho soldado não era tão severo como o seu subordinado, mas era excessivamente curioso. Quis saber para que é que Nekludov desejava falar com o comandante, de onde vinha e de onde era, pressentindo que em troca da sua condescendência receberia uma boa gorjeta. E só depois de ter obtido de Nekludov a promessa de uma boa recompensa, é que se decidiu a ir entregar o bilhete, e empregar os esforços para que o comandante o recebesse. Assim, acenando com a cabeça, partiu a correr.
Entretanto, a porta abriu-se novamente e um rancho de mulheres com cestos, sacos, bilhas e garrafas, principiou a sair.
Falavam todas ao mesmo tempo, muito depressa, sem intervalos e com um pronunciado acento siberiano. Vestiam curtas peliças que lhe davam antes o aspeto de burguesas do que de aldeãs, a cabeça tapada por um lenço e as saias muito erguidas, deixando ver a perna até ao joelho. Ao sair examinavam, à luz dos lampiões, curiosamente Nekludov e o guia; e uma delas reconheceu este, e encantada de o encontrar, saudou-o com uma familiar saraivada de insultos, à moda siberiana.
— Diabos te levem, meu grande porco! Que fazes tu aqui?
— Vim acompanhar este estrangeiro. E vocês que vieram fazer?
— Vender queijo; amanhã hei de cá voltar.
— Então ninguém te ofereceu cama para partilhar? — perguntou-lhe o guia maliciosamente.
— O demo carregue contigo, cabeça de porco! — respondeu-lha a rapariga rindo. — Vem para a aldeia connosco; faz-nos companhia!
O guia ainda respondeu qualquer coisa que não só fez rir as mulheres como até o próprio soldado que tão severo era, e em seguida dirigiu-se a Nekludov.
— Poderá regressar sem mim? Não se perderá?
— Não, está tranquilo.
— Quando passar a igreja, é a terceira porta à direita depois da casa grande de dois andares. E aqui lhe deixo o meu bordão!
E entregando a Nekludov um delgado pau que tinha nas mãos, seguiu na escuridão o rancho das mulheres, chapinhando na lama com as suas grandes botas.
Nekludov quedara-se a escutar os risos e as vozes femininas quando o velho soldado, sorrindo complacentemente, lhe participou que o comandante acedia ao seu pedido, recebendo-o.
Capítulo 7
O acampamento dos degredados assemelhava-se em tudo aos demais acampamentos das levas que atravessam a Sibéria; três edifícios de um só andar tinham sido construídos no centro de um recinto resguardado e defendido do exterior por uma forte paliçada de estacas pontiagudas.
No maior dos edifícios, aquele cujas janelas eram gradeadas, habitavam os prisioneiros; o outro destinava-se ao pessoal e no terceiro estavam instaladas as secretarias. Neste, habitava ainda o comandante da escolta.
Todas as janelas dos três edifícios estavam naquela noite vivamente iluminadas, e quem as visse do exterior seria assaltado pela ideia de que no interior devia reinar conforto tranquilo e boa temperatura. Às entradas das portas estavam fixados candeeiros acesos e no pátio ardiam também mais cinco candeeiros.
O velho soldado que guiava Nekludov conduziu-o por uma estreita passagem, feita de tábuas enterradas na lama, até à entrada do mais pequeno dos três edifícios. Para entrar neste, foi necessário subir três degraus e Nekludov achou-se numa saleta, cuja atmosfera se tornara irrespirável com o fumo e cheiro do carvão de um samovar, a que um soldado em mangas de camisa de pano grosso, soprava, curvado em dois, junto do fogão. Quando deu pela presença de Nekludov, endireitou-se e dirigiu-se, correndo, para a porta mais próxima.
— Excelência! Ei-lo que chega!
— Manda entrar! — respondeu uma voz irritada.
— Queira entrar! — disse o soldado a Nekludov, recomeçando em seguida a soprar ao samovar.
Nekludov entrou para uma grande sala de jantar, iluminada por um candeeiro suspenso no teto, na qual o comandante da escolta estava sentado em frente de uma mesa meia desguarnecida.
Era o mesmo nutrido e apoplético homem, com grandes bigodes louros que pela manhã deitara abaixo com um murro à cara do forçado. Pusera-se à vontade, com o dólman de alamares desabotoado, e camisa aberta deixando ver o pescoço e o peito. A sala, excessivamente quente, estava cheia de fumo de tabaco e vapores de aguardente.
Quando Nekludov entrou, o comandante ergueu-se da cadeira.
— Que deseja de mim? — perguntou-lhe. — E, sem esperar pela resposta bradou para a sala de entrada:
— Bernov! Então esse samovar vem hoje?
— Vai já, excelência!
— Espera um pouco que eu dou-te o vai já!
— Pronto, excelência — disse humildemente o soldado, trazendo o samovar.
O comandante deitou as folhas do chá no samovar, abriu um armário de onde tirou uma garrafa de conhaque e uma caixa de biscoitos. Então dirigiu-se novamente a Nekludov:
— Em que posso servi-lo?
— Queria obter autorização para falar com uma prisioneira — disse Nekludov, conservando-se de pé.
— Da secção política? Proibido por lei! — informou o comandante.
— Não se trata de nenhuma condenada política — disse Nekludov.
— Mas, queira sentar-se, peço-lho!
Nekludov sentou-se.
— Não é uma condenada política — repetiu — apenas, a meu pedido a autoridade superior permitiu-lhe partilhar a vida dos «políticos».
— Sei quem é! — disse o comandante. — Uma morena, pequenita? Bem galante, palavra! Sim, pode falar-lhe. Quer fumar?
E ofereceu-lhe o maço dos cigarros e um copo com chá.
— Obrigado! Queria...
— A noite é grande e terá muito tempo! Vou mandá-la chamar.
— Em vez disto não poderia vê-la nos seus aposentos? — perguntou Nekludov.
— Na secção política! Mas é expressamente proibido!
— Mas, por várias vezes deixaram-me entrar! Se receiam que traga qualquer objeto proibido, podem revistar-me. verão que nada trago.
— Está bem, acredito! — disse o comandante enchendo o cálice de conhaque para Nekludov. — Quer conhaque? Não? Como queira! Quem vive nesta Sibéria maldita tem verdadeiro prazer em encontrar gente civilizada. Depois, os deveres são duros. E para cúmulo de infelicidade, o comandante de uma escolta, como eu, é para a maioria da gente um indivíduo grosseiro, mal educado e ignorante. Ninguém pensa que pode haver homens de nascimento distinto!
O rosto apoplético do comandante, o hálito de alcoólico, os seus grandes anéis e mais do que tudo o seu desagradável riso, predispuseram Nekludov de mau humor.
Hoje, porém, como durante todo o tempo da viagem, dominava-o uma concentrada e séria disposição de espírito que não lhe permitia julgar levianamente fosse quem fosse e que o obrigava apenas a falar com o seu interlocutor o essencial. Quando o comandante terminou com as suas lamentações, Nekludov disse-lhe com toda a gravidade:
— Ainda bem que nas durezas do seu cargo, pode achar consolação, procurando suavizar os sofrimentos dos prisioneiros.
— Que sofrimentos? Bem se vê que não conhece esta gente!
— São então diferentes dos demais? — perguntou-lhe Nekludov. — Acho-os bem nossos semelhantes; além disso muitos estão condenados injustamente.
— Indubitavelmente há-os de todas as qualidades; eu sou o primeiro a lastimá-los, creia-me! Muitos no meu lugar não lhes perdoam nada, enquanto eu procuro suavizar-lhes a sorte. O mais das vezes prefiro sofrer para os poupar! Quer mais chá? — perguntou, servindo-se novamente. — Quem é a tal mulher que deseja ver?
— Uma infeliz criatura. Foi condenada injustamente por assassínio quando tem em si o germe das mais preciosas qualidades!
O comandante acenou com a cabeça.
— Sim, isso acontece; em Kazan, deixe-me dizer-lhe, conheci a gentil Ema, natural da Hungria, mas que tinha olhos de persa — e a esta recordação sorriu — e que era tão chique como uma verdadeira condessa...
Nekludov interrompeu-o, recomeçando a falar no outro assunto.
— Bem pode avaliar quanto lhe será fácil suavizar a situação destes infelizes. Tenho a convicção que acharia aí um manancial de alegrias.
O comandante fitava Nekludov com olhar animado, esperando impacientemente o fim do sermão para voltar com a história da húngara de olhos de persa.
— Sim, tem razão, assim é. Lastimo-os de todo o coração — disse. — Voltando a Ema, sabe o que ela fez?
— Não, nem desejo sabê-lo! — respondeu Nekludov desabridamente. —Confesso-lhe francamente que tendo outrora vivido essa imoral vida de aventuras galantes, sinto hoje verdadeiro horror por ela!
O comandante fixou Nekludov com estranheza.
— Então decididamente não toma chá?
— Muito obrigado, não quero.
— Bernov! — gritou o comandante, conduz este senhor e diz a Vakoulov que o deixe entrar no compartimento dos «políticos». Pode ficar lá até ao recolher!
Capítulo 8
I
Nekludov, acompanhado pelo soldado, depressa se encontrou no sombrio pátio iluminado aqui e ali pelas luzes vermelhas dos lampiões.
— Para onde vais? — perguntou um carcereiro que se encontrava à entrada do corpo central do edifício.
— Para a quinta sala — respondeu o soldado.
— Por aqui não se pode passar. É necessário ir de volta.
— E porquê?
— Porque o chefe saiu, fechou a porta e levou a chave.
— Bom, então vamos de volta. Por aqui, faz favor?
E o soldado guiou Nekludov para outra entrada através de um pântano de lama. Cã fora percebia-se o mesmo contínuo ruído de vozes e risos vindos do interior. E apenas entrado, Nekludov distinguiu o tinido dos grilhões que se arrastavam, enquanto um pesado cheiro lhe atacava as narinas.
Desde que principiara a viver com os forçados, essas duas sensações, o tinido dos grilhões e mau cheiro tornara-se-lhe familiares, mas hoje, como no primeiro dia, influenciavam-no de uma maneira irresistível, dando lhe uma estranha impressão de aniquilamento físico e moral.
Logo à entrada, no corredor do corpo central, Nekludov encontrou uma mulher com as saias levantadas, sentada no balde das dejeções. Sem o menor acanhamento conversava com um homem que estava na sua frente com a cabeça rapada e grilhões nos tornozelos. O forçado, quando viu Nekludov, piscou os olhos e disse:
— O próprio Tzar, quando tem vontade, não pode deixar de fazer o mesmo!
A mulher ergueu-se e tranquilamente compôs o vestuário.
Era para este corredor que davam as portas das salas que os condenados habitavam.
A primeira era a da sala habitada pelos condenados acompanhados de família; seguia-se-lhe a dos celibatários e, por fim, na extremidade do corredor, ficavam as pequenas salas dos condenados políticos.
O acampamento todo, construído para ser habitado por cento e cinquenta pessoas, alojava naquela noite quase quatrocentas. Os prisioneiros estavam tão apertados que já enchiam os corredores. Uns estavam sentados, outros deitados no chão e outros ainda andavam de um para outro lado com chávenas de chá nas mãos.
Tarass, o marido de Fedósia, era deste número. Saiu ao encontro de Nekludov e cumprimentou-o afetuosamente. As suas feições tão simpáticas, estavam cheias de nódoas negras e uma tira de pano cobria-lhe um dos olhos.
— Que te aconteceu? — perguntou-lhe Nekludov.
— Tive uma questiúncula! — disse Tarass, sorrindo.
— Foi por causa da mulher! — informou um prisioneiro que passava na ocasião. — Ainda foste feliz em ficar com um dos olhos! — acrescentou.
— E como vai Fedósia? — perguntou Nekludov.
— Muito bem; até agora nenhum mal a perseguiu. Esta chávena de chá é para ela! — disse Tarass, passando para a outra sala.
Nekludov pela porta entreaberta espreitou para esta sala.
Por todas as partes, sobre as camas, noa intervalos destas e no soalho, viam-se homens e mulheres deitados ou em pé; mas, a sala imediata, a dos celibatários, ainda estava mais pejada, a ponto que na mesma cama estavam deitados vários forçados. No meio da sala um grupo rodeava um velho que parecia distribuir qualquer coisa. O carcereiro explicou a Nekludov que era o decano da sala, procedendo à distribuição entre os prisioneiros do dinheiro ganho por estes ao jogo.
Efetivamente, à aproximação do carcereiro, as vozes emudeceram, as mãos baixaram-se e em todos os olhares apareceu uma expressão de receio e malquerença.
Nekludov reconheceu no grupo o forçado Fedorov, que no tempo das suas visitas à prisão o tinha interessado; Fedorov estava com o braço passado em redor do pescoço de um rapaz louro e imberbe, um ser repugnante e vicioso, em companhia de quem sempre andava. Perto estava outro forçado, calvo, desnarigado e com cicatrizes de varíola, que fora apresentado a Nekludov como uma das notabilidades da leva; dizia-se que, fugido das galés com um companheiro, matara-o para o comer. O miserável fitava Nekludov zombeteira e atrevidamente, sem o cumprimentar, como fazia a maioria dos prisioneiros.
Por muito familiarizado que Nekludov estivesse com tais espetáculos, pois há três meses que via estes 400 condenados em diferentes circunstâncias — envoltos em nuvens de pó nas marchas durante os dias de calor abrasador arrastando os grilhões, nos acampamentos, ou ainda nas noites de calma, assistindo ao desenrolar das mais torpes cenas de deboche — não lhe era possível deixar de sentir, sempre que com eles se encontrava em contacto, como nessa noite, cruel sentimento de vergonha, quase que remorsos da sua culpabilidade para com aqueles desgraçados.
E esses remorsos e essa vergonha eram tanto mais cruéis que se faziam acompanhar de um invencível sentimento de horror e repulsão. Sabia que nas condições onde, desde a sua infância, esses desgraçados se achavam, tinham fatalmente de vir a ser o que eram; mas, apesar disso, não podia dominar o desprezo, o ódio e a profunda aversão que lhes votava.
— Ali vão umas algibeiras onde seria útil dar uma busca! — disse uma grosseira voz, quando Nekludov tinha já passado e se aproximava da sala pegada.
E a multidão dos condenados estalou numa uníssona gargalhada.
II
Em frente da porta da sala dos condenados políticos, o carcereiro que acompanhara Nekludov deixou-o, prometendo vir buscá-lo à hora do recolher. Mal ele se tinha afastado, Nekludov viu um forçado dirigir-se-lhe tão rapidamente quando lho permitiam os grilhões que arrastava nos tornozelos, dizendo-lhe curvado sobre a sua orelha misteriosamente:
— Fidalgo, intervenha a favor do rapaz! Está agarrado numa medonha armadilha! Embebedaram-no. Já hoje à chamada se apresentou com o nome de Karmanov. É o único que o pode salvar. Pela nossa parte, se o tentássemos, seríamos mortos!
E depois de ter murmurado rapidamente estas palavras, olhando para todos os lados assustadamente, desapareceu, confundindo-se com os demais forçados que vagueavam nos corredores.
O caso consistia no seguinte: um forçado chamado Karmanov convencera um outro rapaz ainda novo, que se parecia com ele, a mudar de nome, de modo que o forçado apenas seria desterrado por dois anos enquanto o outro substitui-lo-ia por toda a vida.
Já na semana transata Nekludov fora prevenido por este mesmo forçado dos preparativos da substituição, pedindo-lhe que interviesse para impedir crime tão monstruoso.
Era uma das mais interessantes individualidades de toda a leva, a deste forçado. Nekludov conhecera-o em Tomsk, dando-lhe na vista esse forte e robusto aldeão, de pouco mais de trinta anos; com um nariz deprimido e olhos pequenos; fora condenado a trabalhos forçados por tentativa de roubo e assassínio. Macário Dicokin, era como ele se chamava, contara a Nekludov que fora condenado por um crime real, mas que não fora cometido por ele: o crime fora perpetrado por alguém que Macário designava por «Ele» e que evidentemente era o diabo em pessoa.
Um dia um viajante alugara por dois rublos em casa dos pais de Macário um trenó para o conduzir a uma aldeia distante quarenta verstas, Macário fora encarregado de guiar o trenó, e, depois de atrelar os cavalos, vestira-se e pusera-se em marcha. A meio caminho tinham parado numa estalagem e tomado chá para aquecerem. Então Macário soube do viajante que ele ia casar-se à aldeia vizinha e que levava consigo toda a sua fortuna, uns quinhentos rublos.
Macário mal soube disto foi ao pátio da estalagem e agarrou num machado que escondeu no fundo do trenó.
— Tão verdade como creio em Deus, fidalgo, que não sei para que é que peguei no machado. Foi ele que me disse: agarra no machado! E eu agarrei. Subimos para o trenó e partimos: tudo corria sem novidade. Eu já nem pensava no machado. A aldeia só distava seis verstas; restava uma subida grande por entre a floresta. Eu desci para aliviar o cavalo, e eis que «O» ouço segredar-me ao ouvido: «Então em que pensas? Lá em acima, no fim da encosta, começa a aldeia e há gente; e tu deixa-lo ir com o seu dinheiro! Vamos, não percas tempo, é a ocasião!» Inclino-me para o trenó para compor a palha e o machado salta-me para as mãos! Nesta ocasião o viajante voltou-se: «Que estás tu a fazer?» perguntou-me. Então ergui o machado; ele, porém, saltou à estrada e como verdadeiro valente que era agarrou-me nos pulsos. «Miserável, que fazes?» Eu não opus resistência e deixei-o agir. Atou-me as mãos com um lenço, obrigou-me a entrar para o trenó e levou me a casa do comissário. Fui preso e julgado. A aldeia toda testemunhou o meu bom comportamento anterior, livre de censuras. O patrão onde eu trabalhava também afirmou a minha boa conduta, mas como não tive advogado fui condenado a quatro anos de trabalhos forçados.
E era este mesmo homem que, para salvar um companheiro, por duas vezes viera revelar a Nekludov um segredo que lhe pesava na consciência, expondo-se a uma morte certa, pois sabia que os seus companheiros estrangulá-lo-iam infalivelmente se descobrissem a sua indiscrição.
III
Os condenados políticos ocupavam duas pequenas salas, precedidas de uma outra que comunicava com o corredor. A primeira pessoa que Nekludov viu quando entrou foi Simonson, agachado em frente do fogão, com uma acha de pinho na mão, ocupado em acender o lume.
Quando viu Nekludov largou a acha para lhe estender a mão, sem contudo, mudar de posição.
— Ainda bem que veio; necessito falar-lhe! — disse, com grave expressão no rosto e olhando fixamente para Nekludov.
— Então que há? — perguntou este.
— Fica para mais logo. Agora estou muito ocupado.
E Simonson pegou novamente na acha e recomeçou a olhar pelo lume que se encarregara de acender, segundo um método racional de sua invenção.
Quando Nekludov ia a entrar para a sala imediata, viu sair da outra a Maslova, trazendo num apanhador um grande monte de pó e lixo que ia deitar ao lume. Vestia blusa branca e calçava tamancos, e envolvia a cabeça num lenço branco que lhe encobria parte do rosto; para poder varrer mais à vontade enfaixara as saias muito altas. Mal viu Nekludov corou; pousou o apanhador e limpando as mãos à saia, dirigiu-se-lhe muito excitada.
— Trata-se de fazer limpeza? — inquiriu Nekludov, apertando-lhe a mão.
— Retomei as minhas antigas funções — respondeu, sorrindo — mal pode imaginar a porcaria que aqui há. Há mais de uma hora que andamos a varrer! Está seco o cobertor, Simonson?
— Quase — respondeu este, fitando a Maslova de um modo que surpreendeu Nekludov.
— Então volto já buscá-lo e trago outras coisas para secar. Está tudo reunido ali — disse ainda para Nekludov, apontando-lhe a porta do outro quarto.
Nekludov encaminhou-se para ele, abriu a porta e entrou.
Um candeeiro de metal iluminava a pequena sala oblonga onde, ao contrário das outras, reinava bastante frio. No ar pairava o pó levantado pela limpeza a que se misturava o cheiro do tabaco e umidade. O centro da sala estava vivamente iluminado pelo candeeiro, mas os catres dispostos junto das paredes ficavam na penumbra e com dificuldade se distinguiam os condenados que se sentavam neles.
Todos os condenados estavam reunidos nesta sala com exceção de Simonson e de mais dois a cargo de quem estava a distribuição dos alimentos e que tinham ido buscar a ceia.
Lá estava Vera Bogodouchovska, ainda mais magra e mais pálida do que na prisão, os olhos alucinados e a mesma veia frontal muito pronunciada. Vestida de cinzento, estava sentada com um jornal desdobrado na sua frente, e com uma porção de tabaco fazia cigarros.
Nekludov encontrou também uma outra condenada a quem votava sincera estima. Era Emília Rantzev, a cargo de quem estava a direção e organização doméstica daquele grupo e de cujo encargo ela se desempenhava a contento de todos, procurando fazer com que sempre predominasse particular encanto, e intimidade em todas as relações, ainda as mais difíceis.
Sentava-se sob o candeeiro, e, de mangas arregaçadas, limpava e lavava com as suas mãos delicadas e finas as chávenas e os pires. Posto fosse nova, não era bonita, mas o seu rosto, inteligente e bom, transfigurava-se quando sorria, deixando transparecer uma expressão animada e corajosa, verdadeiramente bela.
Foi com um destes amáveis sorrisos que acolheu Nekludov.
— Julgávamos que tivesse regressado à Rússia! — disse-lhe.
Nekludov reparou também em Maria Pavlovna que, sentada num canto, se ocupava de uma criancinha loura que tinha sentada nos joelhos e que papagueava incoerências com a sua doce voz infantil.
— Quanto estimo que tivesse vindo! Já viu Kátia? — perguntou Maria Pavlovna a Nekludov. — A nossa família conta mais esta alminha! — acrescentou, mostrando-lhe a criancinha.
O magro e pálido Anatole Kriltzov estava sentado no catre com as pernas cruzadas e as mãos encobertas pelas mangas da peliça, fitando Nekludov com os seus grandes olhos febris de tísico.
Nekludov ia a dirigir-se-lhe quando cruzou no caminho com um rapaz de cabelo ruivo encaracolado que, remexendo num saco, conversava com uma linda prisioneira. Era Novodvorov, o célebre revolucionário. Nekludov deu-se pressa em cumprimentá-lo, não porque lhe votasse especial afeição, mas, pelo contrário, porque era o único condenado político que lhe era profunda e invencivelmente antipático; procurava, pois, cumprir a formalidade de o cumprimentar o mais depressa possível, para se desembaraçar desse penoso dever. Novodvorov fitou-o através das lunetas com os seus olhos pequeninos e estendeu-lhe a mão estreita e comprida.
— Então, sempre satisfeito com a viagem? — perguntou com leve tom irónico.
— Decerto! Há interesse bastante para isso! — respondeu Nekludov fingindo não ter notado a intenção magoada da pergunta de Novodvorov. E, sem se demorar, dirigiu-se para Kriltzov.
Nekludov procurava aparentar indiferença, mas a verdade é que as palavras de Novodvorov encobrindo o evidente desejo de lhe ser desagradável, tinham destruído bruscamente e disposição otimista em que se sentia havia dias.
Sentia-se triste, indisposto e quase que se surpreendeu a lastimar se de ter vindo.
— Como tem passado? — perguntou a Kriltzov enquanto lhe apertava a mão gelada e tremente de febre.
— Obrigado, vou andando. Molhei-me, porém, e não posso aquecer — disse Kriltzov, apressadamente retirando a mão para a manga da peliça. — Além disso, nesta sala faz um frio diabólico; há dois vidros partidos, mas ninguém cuida em substitui-los!
E com um dedo mostrava a Nekludov os vidros que faltavam na janela gradeada.
— Então porque não tem vindo nestes últimos dias? Não está bem?
— Não; não me deixaram. Só hoje é que um novo comandante foi mais humano.
— Humano? Sim, lá para consigo. Pergunte, porém, a Macha o que ele fez esta manhã!
Maria Pavlovna, sem se levantar do seu canto, descreveu, a Nekludov a cena que tivera lugar pela manhã, a propósito da pequenita.
— Sou de opinião que devemos assinar um protesto coletivo — exclamou Vera em voz decidida, fitando os companheiros todos, com olhar desvairado.
— Vladimir Simonson protestou, mas um protesto isolado de nada vale.
— E de que serve protestar? — perguntou Kriltzov, parecendo aborrecido e rabugento. Percebia-se que a falta de simplicidade de Vera o excitava, produzindo-lhe verdadeiro sofrimento nervoso.
— Está a procurar Kátia? — continuou, dirigindo-se a Nekludov. — Está sempre a trabalhar! Acabou de limpar-nos toda a roupa e agora principiou com a das mulheres. Só nunca conseguirá livrar-nos das pulgas! E elas, as infames, dão cabo de nós, sem piedade! E Macha, que está a fazer lá no canto? — perguntou, tentando levantar-se para olhar para Maria Pavlovna.
— Está a pentear a pequenita — disse Emília Rantzev.
— Que tenha cuidado em não nos trazer os piolhos que lhe catar! — replicou Kriltzov.
— Não tenhas receio, pois faço tudo conscienciosamente — disse de lá Maria Pavlovna. — E, pronto, ela cá está bem limpinha. Emília, toma conta dela, enquanto vou ajudar Kátia.
A Rantzev pegou na criança, sentou-a nos joelhos com solicitude maternal e deu-lhe uma pedra de açúcar.
Maria Pavlovna saiu, e, na mesma ocasião, reentraram os condenados que tinham ido buscar a ceia.
Um deles era um homem ainda novo, baixo e magro, vestindo peliça curta e calçando botas de cano. Caminhava com passo leve e rápido, trazendo em cada mão uma grande chaleira trasbordando de água a ferver e um pão embrulhado num guardanapo, preso sob cada braço.
— Ora ainda bem que o nosso príncipe tornou a aparecer! — disse, enquanto colocava as chaleiras perto das chávenas cuidadosamente preparadas pela Rantzev. — Comprámos coisas extraordinárias! — continuou, depois de se ter desembaraçado da peliça que lançou por cima das cabeças para o lugar onde ficava o seu catre. — Markel traz ovos e leite. Um magnífico petisco! E Emília vai nos arranjar tudo isto, adornando-o com a sua estética limpeza! — E ao dizer estas palavras sorria para a Rantzev.
Todo o aspeto deste homem, desde os seus movimentos e o metal da voz, até aos seus olhares, exprimia um conjunto de alegria e coragem. E, a contrastar com ele, ressaltava a tristeza e o desalento que o seu companheiro aparentava. Era como o outro, de estatura meã, porém ossudo, de maxilas proeminentes, lábios finos e belos olhos cinzentos, muito distantes um do outro. Trazia uma capa usada enchumaçada e oleados por cima das botas altas.
IV
Depois de haver largado o cesto e as latas com o leite, cumprimentou friamente Nekludov, abaixando-lhe a cabeça e fitando-o com seus grandes olhos.
Eram filhos do povo estes dois condenados. O primeiro, Nabatov, nascera no campo, e o outro Markel, na cidade, e como tal fora operário numa fábrica. Mas, enquanto Markel só se fizera revolucionário aos trinta e cinco anos, Nabatov quase que o fora desde a sua mocidade. Devido a sua excecional inteligência, logo que deixara de frequentar a escola da aldeia, entrara para o Liceu, sustentando-se a lecionar os condiscípulos e, conseguira receber uma medalha de ouro. Não quis, contudo, passar para a Universidade, resolvendo voltar para o meio onde fora criado, a fim de partilhar com seus obscuros e ignorantes irmãos aquilo que aprendera. E tendo conseguido nomeação oficial para uma grande aldeia, principiara a emprestar e a ler aos mujiques toda a qualidade de livros, passando depois a cuidar da organização de uma sociedade de socorros mútuos e não tardara a ser preso.
Restituído à liberdade, depois de oito meses de cárcere, transferira-se para outro governo, e ainda que vigiado pela polícia, fora nomeado mestre-escola noutra aldeia e recomeçara com o seu apostolado. Preso novamente, fora condenado a dois anos de prisão, durante os quais as suas convicções se enraizaram ainda mais.
No fim do segundo ano de detenção fora desterrado para o governo de Perm. Como passados sete meses exigissem dele o juramento de fidelidade ao novo imperador, recusara-se a prestá-lo, fora novamente encarcerado e desterrado para Yrkoutsk, na extremidade da Sibéria.
Bem podia dizer que metade da vida se lhe esgotara nas prisões e no exílio. Porém todas estas rudes provas não tinham conseguido azedá-lo, aumentando-lhe até o entusiasmo e a energia.
Era um homem de pouco vulgar resistência, trasbordante de saúde física e moral.
Em qualquer parte que estivesse era sempre ativo, valoroso e alegre. Nunca tinha saudades do passado nem procurava sondar o futuro; todos os recursos da sua inteligência, da sua habilidade, do seu tino prático, aplicava-os ao momento presente. Quando gozava liberdade, obstinava-se em trabalhar para o fim a que votara a sua vida — a instrução do povo. Quando o privavam dessa liberdade, procurava aperfeiçoar, tanto quanto podia, as condições da sua vida e a daqueles com quem privava.
Nele, viver para os outros era uma necessidade orgânica. Não tendo necessidades próprias, podia passar dias sem comer e sem dormir e instintivamente era em favor dos outros que empregava a sua robusta atividade de aldeão. E em muitas coisas ficara sempre um verdadeiro aldeão: desembaraçado, hábil, infatigável, honrado sem procurar sê-lo, e sempre solícito com os sentimentos e pensamentos dos outros.
Sua mãe, uma velha aldeã analfabeta e supersticiosa, ainda vivia e Nabatov, sempre que readquiria a liberdade, corria a vê la. Então auxiliava-a em todos os seus afazeres domésticos, reatava relações com os antigos condiscípulos da aldeia, com quem agora ia à taberna, distribuía e fumava com eles cigarros, tomando também parte nas suas pelejas a murro, nos intervalos das quais lhes explicava como, graças à ignorância em que eles viviam, eram explorados por proprietários e pelo Estado.
A revolução que esperava ver realizada a favor do povo não destruiria todo o existente nem procuraria fazer do povo qualquer coisa diferente do que atualmente ele era, nem modificaria as condições das suas vidas; queria só que a revolução desse aos aldeões a posse da terra, desembaraçando-os dos proprietários e funcionários. A revolução, tal como a queria — e nisto diferia radicalmente da opinião de Novodvorov — não devia quebrar definitivamente com o passado, renovando por completo costumes e hábitos, mas somente procuraria dividir com equidade o venerável e precioso tesouro das tradições nacionais.
Até na religião se reconhecia a sua natureza aldeã. Nunca o inquietaram os problemas metafísicos, as causas primárias ou a vida futura. Muitas vezes lhe ouviam dizer que para ele, assim como para Laplace, Deus era uma hipótese a que não reconhecia utilidade. A forma como se criara o universo, deixava-o indiferente e a teoria darwiniana que preocupava seriamente os seus companheiros, era quanto a ele uma fantasia tão imaginativa como a da criação do mundo em seis dias.
Na vida futura nem sequer pensava; porém, no íntimo da alma trazia depositada uma crença que herdara de seus pais e que é comum a todos os homens que vivem em contacto com a terra. Acreditava que, assim como no mundo vegetal e animal nada morre e tudo se transforma, da mesma forma não morre o homem, mas sim muda de vida,
Era esta a crença que o fazia fitar a morte sem receio nem cólera. E, contudo, nem gostava de refletir sobre esta crença, nem falava dela. Só o trabalho lhe agradava e procurando ocupar-se sempre com assuntos práticos, esforçava-se para que os seus companheiros lhe imitassem o exemplo.
Markel, o operário, era um homem muito diferente. Entrado para uma fábrica aos quinze anos principiara logo a fumar e a beber, para abafar o sentimento de humilhação que sentia dentro de si. Foi numa noite de Natal que ele se lhe originara, durante a festa para que a mulher do mestre da sua oficina tinha convidado os filhos dos operários. Markel e os seus companheiros tinham recebido como presente, este um assobio, aquele uma maçã ou marmelada, enquanto os filhos do chefe da oficina tinham sido mimoseados com brinquedos admiráveis, cujo custo devia exceder 50 rublos cada um.
Markel porém, continuara durante vinte anos a vida usual dos operários. Tinha trinta e cinco quando travou conhecimento com uma estudante revolucionária que entrara para a fábrica assalariada como operária, para fazer propaganda. Foi ela que lhe emprestou livros e brochuras e que, discutindo com ele, lhe abriu os olhos sobre a sua posição, a sua causa e seus remédios.
Quando Markel percebeu que podia libertar-se e libertar os outros da cruel opressão que sobre eles pesava desde a infância, a injustiça de tal opressão pareceu-lhe mais viva e mais criminosa, e à ilimitada ânsia de liberdade juntou-se um profundo desejo de vingar-se daqueles que até então o tinham oprimido.
E como a estudante lhe afirmara que a ciência o poderia libertar da sua escravidão, Markel esforçou-se a todo o transe por adquirir essa ciência, à qual já devia a revelação da injustiça da posição que ocupava. Era, pois, evidente que só por ele cessaria o reinado da injustiça. Além disso, a ciência tinha mais a seus olhos o valor de o levantar acima do nível comum dos homens, o que sempre tinha sido a sua secreta ambição. Abandonara, pois, o fumar e o beber para consagrar todos os momentos de ócio ao estudo. A revolucionária dava-lhe lições, admirando cada vez mais, o extraordinário ardor com que ele assimilava os conhecimentos mais diversos.
Em dois anos Markel aprendera geometria, álgebra e história; lera inúmeras obras de crítica e de filosofia, dando notável preferência porém à literatura socialista contemporânea.
Nestas alturas, a revolucionária fora presa, e, sendo-lhe apreendidas cartas de Markel a prisão estendeu-se a este. Desterrado para o governo de Vologda, travara então conhecimento com Novodvorov, continuara a ler inúmeros livros, aprendendo milhares de coisas que gradualmente ia esquecendo e sempre permanecendo um ardente partidário do socialismo. Ainda exilado pôs-se à frente de uma greve que terminou com o incêndio da fábrica e com o assassínio do diretor; preso, julgado e condenado, partira para a Sibéria por toda a vida.
Em assuntos religiosos tornara-se tão avançado como em economia política.
Tendo-se convencido da falsidade das crenças em que tinha sido educado e conseguido libertar-se delas, a princípio com receio depois com entusiasmo, mordera-o o desejo de se vingar de todos os que o haviam conservado em erro. Assim, falava sempre dos padres com ódio, e zombava ferozmente dos dogmas religiosos.
Os seus hábitos tornaram-se ascéticos; como todos os que são habituados ao trabalho desde a infância, era hábil em trabalhos manuais e infatigável em exercícios físicos, desprezando-os, ao contrário de Nabatov. Hoje, o que mais lhe agradava eram os momentos de repouso nos acampamentos que lhe permitiam continuar a estudar e a instruir-se, a única ocupação útil e honrosa que julgava digna de si. Andava estudando agora o primeiro volume do Capital de Karl Marx e ocultando-o no fundo do seu saco, vigiava-o como o mais precioso dos tesouros. Com exceção de Novodvorov, a quem era sinceramente afeiçoado, Markel mostrava-se indiferente e reservado para com os seus outros companheiros, só aceitando a opinião do seu amigo íntimo, em todos os assuntos, como a essência da verdade.
Pelas mulheres sentia desprezo absoluto; considerava-as como o principal obstáculo da emancipação social e do livre desenvolvimento da inteligência. Excetuava contudo, a Maslova, que considerava um exemplar típico da exploração das classes inferiores pelas superiores, e, sempre que podia, testemunhava-lhe consideração. Por esse mesmo motivo aproveitava todas as ocasiões para manifestar a Nekludov a antipatia que sentia por ele.
Capítulo 9
Afinal o fogão sempre se acendeu, aquecendo a sala, o chá fumegou nas chávenas e nas taças e para junto delas vieram as iguarias da ceia: pão alvo e de centeio, ovos, manteiga, cabeça e pés de vitela.
Toda a sociedade se reuniu em volta do catre que servia de mesa, comendo, bebendo e palrando. A Rantzev, sentada num caixote, desempenhava-se do seu papel de dona de casa, distribuindo chá a este e àquele.
Só Kriltzov não se reunira ao grupo: tirara a peliça molhada, envolvendo-se num cobertor seco que lhe trouxeram, e estirado no catre, conversava amigavelmente com Nekludov.
Depois do frio e da umidade da estrada, da porcaria e da desordem que reinavam à chegada e depois do trabalho porque tinham todos passado para pôr tudo em ordem e preparar a ceia, esta, o chá quente e a bela temperatura da sala, introduziam nos condenados uma benevolente e alegre disposição.
Para fortalecer ainda mais esta agradável sensação de bem estar e intimidade, ouviam-se, através da parede, gritos, injúrias e os insultos dos condenados comuns.
Era como se estivessem isolados numa ilha, no meio do oceano; a exaltação causada por esta impressão, produzia-lhes uma embriaguez intelectual particular, com a qual esqueciam os horrores da sua situação para se entregarem livremente aos seus sonhos.
E, como sempre acontece, quando rapazes e raparigas são obrigados a viverem em comum, depressa se formaram várias espécies de inclinações sentimentais, conscientes ou inconscientes, declaradas ou ocultas. Todos, ou pelo menos quase todos, estavam apaixonados. Novodvorov estava-o pela linda e sorridente Grabetz, uma estudante muito jovem, irrefletida e totalmente indiferente aos problemas revolucionários. Cedera, porém, à influência da sua época, comprometera-se num certo plano e fora condenada a desterro. E, exatamente como na Universidade, onde a sua preocupação principal consistia em galantear com os estudantes, também aqui de mais nada se preocupara, depois de presa. No atual momento considerava-se felicíssima por Novodvorov estar apaixonado por ela e por se sentir também apaixonada por ele.
Vera Bogodouchovska, sempre muito sentimental, tendo passado toda a vida a amar sem esperança, inclinava-se secretamente umas vezes para Nabatov, outras para Novodvorov. Kriltzov sentia uma inclinação semelhante por Maria Pavlovna, ou antes amava-a realmente, da maneira como os homens amam as mulheres, mas conhecendo lhe as opiniões sobre o amor, procurava ocultar o seu sentimento sob a capa de amizade e reconhecimento.
Nabatov também andava apaixonado. Entre ele e Emília Rantzev tinha-se formado uma ligação não vulgar e contudo inocente, pois assim como Maria Pavlovna era em todo o seu ser o tipo da donzela, da mesma maneira Rantzev era o modelo das mães e das esposas.
A Rantzev, quando ainda no colégio, apaixonara-se pelo que, mais tarde, três anos passados, lhe deu o nome. Ele era estudante na universidade de S. Petersburgo e por ter tomado parte em motins escolares foi desterrado. Ela imediatamente interrompeu os seus estudos de medicina para o seguir, e como ele se fizesse revolucionário ela não hesitou e tornou-se também revolucionária. Se não tivesse considerado seu marido como o mais belo, inteligente e o melhor de todos os homens, achava monstruoso conceber a vida diferentemente de seu marido.
A princípio parecera-lhe a ele que a deveriam consagrar ao estudo. Logo ela considerava o estudo como um ideal e principiara a estudar medicina. Mais tarde seu marido fizera-se revolucionário e ela seguira-lhe o exemplo. Estava tão habilitada como qualquer dos seus companheiros a explicar porque é que o atual estado social é injusto e porque é que todos os homens devem lutar para o destruir e substituir por um novo regime, onde o indivíduo se possa desenvolver livremente, etc. Acreditava sinceramente que eram estes pensamentos e sentimentos exclusivamente seus, quando, na realidade, pensava no que seu marido julgava também ser verdade, pois o seu único sonho e exclusivo prazer era identificar-se em espirito com seu marido.
Mais tarde, depois de novas desordens em que tomou parte, separaram-na do marido e do filho e por mais cruel que fosse essa separação, suportava-o valorosamente, sabendo que sofria por seu marido e por aqueles ideais que mereciam tais sacrifícios, de outro modo seu marido não teria ligado a eles o destino.
A ele, pois, voavam todos os seus pensamentos; como nunca amara ninguém antes dele, da mesma forma não amaria no futuro um outro que não fosse ele.
Porém a afeição pura e dedicada de Nabatov comovia-a e causava-lhe certo prazer. E ainda que ele, homem essencialmente moral, habituado a dominar os desejos, se esforçasse em tratar Emília como uma irmã, deixava transparecer na sua convivência com ela alguma coisa mais, que os inquietava e que ao mesmo tempo lhes causava um secreto prazer.
Assim, ninguém no grupo estava desprendido de preocupações amorosas, com exceção de Maria Pavlovna e do operário Markel.
Capítulo 10
I
Como sempre sucedia, quando passava as noites nos acampamentos, Nekludov aguardava que finalizasse a ceia para poder conversar livremente com Katucha e entretanto conversava com Kriltzov ao lado de quem se sentara. Entre outras cousas, contou-lhe o modo como o forçado Macário o tinha procurado, narrando-lhe também o que sabia da história desse desgraçado. Kriltzov escutou-o atentamente, fixando-o obstinadamente com os seus grandes olhos brilhantes.
— Sim, assim é! — disse de repente. — Muitas vezes penso como é estranha a nossa situação, marchando para a Sibéria em companhia dessa gente, que é, afinal, aquela por causa de quem aqui nos encontramos. E, contudo, não só os não conhecemos, mas até nem procuramos conhecê-los. E eles, pela sua parte, detestam-nos e odeiam-nos como seus inimigos. É ou não terrível?
— Não vejo nada que seja terrível! — disse Novodvorov que se aproximara do catre de Kriltzov. — A multidão é grosseira e inculta e nunca respeitará senão a força — continuou em voz sonora. — Hoje é o governo que dispõe da força e as massas anónimas respeitam o governo e detestam-nos. Se amanhã estivermos no poder, seremos nós os respeitados.
Nesta ocasião ouviram-se na sala contígua gritos, uivos, o tinido dos grilhões e pancadas dadas nas paredes.
Espancava-se alguém que bradava por socorro.
— Ouve os animais ferozes? Como quer que entre eles e nós se estabeleçam relações? — perguntou Novodvorov tranquilamente.
— Chamas-lhes animais ferozes? Escuta então o que Nekludov acaba de me contar de um deles.
E Kriltzov repetiu irritadamente o que Nekludov contara do forçado Macário, que tinha arriscado a vida para salvar a de um seu companheiro.
— É este o procedimento de um animal feroz? — perguntou ao concluir.
— Sentimentalidade! — respondeu Novodvorov sorrindo ironicamente. — Imaginas então que podemos compreender os sentimentos e as ações dessa gente? O que te parece heroísmo não é talvez mais do que o ódio por um outro forçado.
— É porque tu não queres ver nenhuma manifestação do bem em ninguém! — exclamou Maria Pavlovna, segundo o seu costume tratando todos por tu.
— Como é que hei de ver o que não existe?
— Então não devemos admirar um homem que voluntariamente se expõe a uma morte horrorosa?
— O que devemos — afirmou secamente Novodvorov — se queremos fazer progredir os nossos fins é não nos deixarmos embalar por sonhos, mas ver as coisas como elas são.
Markel que estava a ler à luz de um candeeiro, fechou o livro e veio escutar religiosamente as palavras daquele que escolhera para guia. Novodvorov, entretanto, continuava a falar resoluta e solenemente como se estivesse a fazer uma conferência.
— O nosso dever — dizia — é trabalhar pelo povo mas sem esperar recompensas da sua parte. A massa popular nunca poderá colaborar na nossa obra, pelo menos enquanto permanecer no atual grau de inércia, e posto que ela seja o fim da nossa atividade. Nada mais ilusório do que contar com o concurso do povo, até que ele passe por uma evolução intelectual, para o qual o estamos ajudando.
— Mas que evolução é essa? — perguntou Kriltzov erguendo-se no catre. — Nós afirmámos lutar contra o despotismo; mas não é isso um despotismo tão revoltante como o que queremos destruir?
— Então onde é que vês o despotismo? — respondeu Novodvorov sem a menor comoção. — O que digo é que sabendo a direção que o povo deve tomar para se desenvolver, posso indicar-lha.
— Mas porque é que há de ser essa direção a verdadeira? Em nome desses princípios funcionou a Inquisição! E os crimes da Revolução Francesa não foram praticados em nome dos mesmos princípios? Também então se imaginava ter-se encontrado na ciência a única condutora na vida, boa a seguir.
— Pelo facto dos outros se terem enganado não se segue que eu me engane também. De resto não há analogia possível entre as tolices dos idealistas e os dados positivos da ciência económica...
E a forte voz de Novodvorov troava por toda a sala. Ninguém se atrevia a interrompê-lo.
— Mas de que serve questionar? — perguntou Maria Pavlovna.
— Qual é a sua opinião? — perguntou-lhe Nekludov.
— Estou de acordo com Anatole em que não temos o direito de impor as nossas ideias ao povo.
— É uma singular maneira de compreender o nosso papel! — disse Novodvorov acendendo um cigarro e afastando-se zangadamente.
— Está acima das minhas forças conversar com ele sem me encolerizar! — murmurou Kriltzov ao ouvido de Nekludov.
E Nekludov confessou a si mesmo que experimentava um semelhante sentimento.
II
Apesar da consideração em que Novodvorov era tido por todos os seus companheiros, e apesar da alta opinião que formava de si próprio e dos conhecimentos científicos de que se gabava, Nekludov classificava-o como o tipo dos revolucionários cujo nível moral era inferior ao médio, e que, por consequência, perdia em se encontrar naquele meio. Reconhecia que sob o ponto de vista intelectual Novodvorov era melhor dotado que a maioria dos revolucionários, mas percebia que a excessiva vaidade e egoísmo que as circunstâncias da vida tinham criado nele, haviam-lhe esterilizado a inteligência.
Toda a atividade revolucionária de Novodvorov, ainda que este a soubesse justificar com eloquência, atribuindo-lhe os mais admiráveis motivos, não era, quanto a Nekludov, senão fundada na ambição e no desejo de dominar e de supremacia. Dotado de uma extraordinária aptidão para assimilar e exprimir claramente as ideias dos outros, Novodvorov impusera-se logo em princípio e sem muito trabalho, nos meios onde essa aptidão era mais apreciada. No Liceu e na Universidade, mestres e condiscípulos tinham prestado homenagem à sua superioridade, com o que ele se sentira perfeitamente satisfeito.
Quando, porém, terminados os estudos, terminara esta situação, Novodvorov não pudera resignar-se a renunciar a ela, e para de novo dominar, ainda que noutra esfera, mudara bruscamente de opinião, tornando-se de liberal moderado que era, em revolucionário ardente.
Uma completa ausência dessas qualidades morais e estéticas que fazem nascer a dúvida e a hesitação, depressa lhe havia dado o lugar de chefe do partido revolucionário, que cobiçava mais do que nenhum outro. Quando tomava uma resolução nunca duvidava nem hesitava, certo como estava de não se enganar. Tudo lhe parecia simples, claro, incontestável, e com tal estreiteza de vistas as suas ideias eram efetivamente simples e claras, pois, como gostava de repetir, bastava ser lógico para distinguir infalivelmente o verdadeiro do falso.
A confiança em si próprio era tão grande que ninguém se aproximava dele que não se submetesse ao seu domínio ou que não tivesse de lhe resistir. E como principalmente lidava com gente moça que tomava essa confiança em si próprio por madureza de pensamento, a maioria dos seus companheiros submetia-se ao seu império, de forma que dentro em pouco tempo obteve uma enorme popularidade nos círculos revolucionários.
Insistiu sempre na necessidade de preparar por todos os meios uma revolução que o elevasse ao poder para então convocar uma assembleia Constituinte.
Apresentaria então a esta o programa das reformas que já redigira, e tinha a convicção plena de que esse programa resolvia todas as questões e que nada se poderia opor à sua realização.
Os seus companheiros temiam-no, admiravam o seu arrojo e ativa decisão, mas não o estimavam. E ele, pela sua parte, também não estimava ninguém. Todo o seu semelhante dotado com qualquer qualidade pessoal era logo tido como um rival e de boa vontade espoliaria todos os homens das qualidades com que eram dotados, só para impedir que a atenção pública fosse desviada da sua pessoa.
Só era condescendente para os que se curvavam na sua frente e durante todo o longo trajeto só mostrou boa cara a Markel, que adotara cegamente as suas ideias, e às duas mulheres que percebeu andarem apaixonadas por si: Vera e a linda Grabetz.
Novodvorov era partidário, teoricamente, da emancipação da mulher; considerava, porém, todas as mulheres como seres estúpidos e ridículos, excetuando sempre aquelas por quem se apaixonava, que eram então tidas como seres extraordinários, cuja perfeição só ele podia avaliar.
Alternativamente amara já um grande número de mulheres, chegando mesmo a viver, por duas vezes, com amantes em casa montada. De ambas as vezes as abandonara, reconhecendo que o que sentia por elas não era o verdadeiro amor. Procurava agora contrair nova união com a Grabetz.
Desprezava Nekludov porque este, segundo a sua expressão, «fazia partes» com a Maslova; na realidade, porém, desprezava-o e odiava-o porque ele não só não partilhava o seu modo de pensar sobre a forma de aperfeiçoar a sociedade, como até tinha ideias suas resolvendo a questão social, «como príncipe», isto é, como um tolo.
Nekludov, que notava os sentimentos com que ele o acolhia, reconhecia, pesaroso, que apesar das benevolentes disposições em que se encontrava nessa ocasião, nada havia no mundo que o impedisse de lhe corresponder com desprezo e antipatia.
III
Em seguida à ceia, quando Nekludov se aprontava para conversar com a Maslova, fez-se ouvir na sala contígua a voz do chefe dos carcereiros. Na sala e nos corredores estabeleceu-se profundo silêncio e, pouco depois, entrou o chefe dos carcereiros acompanhado por dois subordinados para proceder à chamada noturna. Os condenados, depois de chamados, foram contados um a um, ao tempo que um dos carcereiros os tocava com um dedo.
Concluída a contagem, o carcereiro dirigiu-se respeitosa e familiarmente a Nekludov.
— Príncipe, são horas de se retirar. Não é permitido ficar aqui depois da inspeção.
Nekludov, porém, que sabia o que queriam dizer aquelas palavras, levantou-se, aproximou-se dele e introduziu-lhe na mão uma nota de três rublos que já tinha preparado.
— É impossível ser-se rigoroso! Deixe se estar mais um momento.
O chefe ia já a retirar-se quando entrou na sala um outro carcereiro acompanhando um prisioneiro alto e magro com um círculo arroxeado por baixo de um dos olhos.
— Vinha buscar a pequerrucha — disse.
— Papá! — exclamou a fresca voz da criança enquanto a sua cabeça loura emergia de entre o grupo formado pela Rantzev, Maria Pavlovna e Katucha, as três que trabalhavam num vestido novo para a pequenita, feito de uma saia da Rantzev!
— Anda, pequena, anda dormir! — dizia docemente o forçado.
— Ela está aqui tão bem! — respondeu-lhe Maria Pavlovna, examinando com sincera piedade o rosto pisado do forçado. — Deixe-a cá ficar!
— As senhoras estão a fazer-me um lindo vestido vermelho, todo novo! — disse a criança mostrando ao pai o trabalho da Rantzev.
— Queres dormir connosco? — perguntou-lhe esta, acariciando-a.
— Quero, mas quero que o papá também durma.
A Rantzev sorriu bondosamente, aformoseada por instantes com essa expressão.
— O papá tem de ir dormir a outra sala, mas deixa-te ficar connosco; queres? — disse ela dirigindo se ao pai.
— Arranjem-se como quiserem — disse o carcereiro-chefe, saindo acompanhado pelos seus subordinados.
Apenas os carcereiros se retiraram, Nabatov dirigiu-se ao pai da pequenita e, colocando a sua pesada mão no ombro deste, disse-lhe:
— Com que então, irmão, Karmanov quer trocar o nome com um desterrado?
O sereno rosto do forçado assombreou-se e, baixando o olhar, respondeu:
— Não sei de nada, nem ouvi falar em nada. Sabe Deus as mentiras que se inventam! Annitka, podes ficar com as senhoras! — acrescentou, sem erguer o olhar e retirando-se precipitadamente.
— Este homem sabe tudo; o que Macário lhe disse é a verdade! — exclamou Nabatov dirigindo se a Nekludov.
E seguidamente fez-se silêncio, como se todos receassem ver renascer as disputas.
Simonson, que durante toda a noite não dissera palavra e estivera estendido no catre, levantou-se repentinamente e, abrindo caminho por entre os diversos grupos, aproximou-se de Nekludov.
— Concede-me agora dois minutos de atenção?
— Com todo o gosto! — respondeu Nekludov levantando se e seguindo-o.
A Maslova quando viu Nekludov levantar se corou voltando a cabeça para outro lado.
— Eis do que se trata! — principiou Simonson logo que se encontrou na pequena sala contígua.
Mas, Nekludov não ouvia nada, ensurdecido pelo barulho medonho que faziam na sala vizinha os condenados comuns. Simonson porém não notava nada.
— Sabendo quais as relações que o ligam à Catarina Mikailovna — continuou fixando nos olhos de Nekludov os seus olhos ovais, cheios de bondade — julgo-me obrigado...
Neste ponto teve de se interromper, porque se levantou uma questão, mesmo junto da porta.
— Já te disse que não fui eu, grande porco! — gritava uma voz.
— Dás-mo ou não, animal? — bradava outra.
— Nesta ocasião Maria Pavlovna apareceu no lumiar da porta.
— Mas que falta de senso vir conversar para aqui! É melhor irem para o nosso quarto; creio que está vazio.
E guiou Simonson e Nekludov para a pequena sala quadrada que servia de dormitório às presas.
Uma cama, porém, estava ocupada: era Vera que se conservava deitada com a cabeça voltada para a parede.
— Doía-lhe a cabeça e veio deitar-se; adormeceu, não os ouvirá! Eu retiro-me — disse Maria Pavlovna.
— Mas não, terei prazer em que fiques — disse Simonson. — Não tenho segredos para ninguém e muito menos para ti.
— Se assim o queres! — respondeu Maria Pavlovna sentando-se num dos catres, com um movimento cheio de graça infantil e preparando-se para ouvir a conversa entre os dois.
— Eis no que consiste aquilo que tenho a dizer-lhe — repetiu Simonson. — Estando ao facto das relações que o unem a Catarina Mikailovna, julgo-me obrigado a dar-lhe a conhecer as que mantenho com ela.
— Que quer dizer? — perguntou Nekludov desassossegadamente.
— Desejava casar com Catarina Mikailovna...
— Falas verdade? — exclamou Maria Pavlovna, fitando Simonson com os seus belos olhos azuis.
— E venho perguntar-lhe se ela consentirá em ser minha mulher — concluiu Simonson.
— Nada posso responder, isso é lá com ela — respondeu secamente Nekludov.
— Bem sei, mas sei também que ela não responderá sem a sua permissão.
— E porquê?
— Porque enquanto não estiver resolvida a questão das suas relações para com ela, Catarina Mikailovna, não quererá tomar nenhuma resolução.
— Pelo que me diz respeito, essa questão está já resolvida — disse Nekludov. — Procurei cumprir o meu dever, suavizando-lhe quanto possível a sorte. Porém, por nada deste mundo quero impor-me, nem constrangê-la nas suas decisões.
— Ela contudo não aceita o seu sacrifício.
— Mas eu não faço sacrifício algum!
— E insiste inabalavelmente neste ponto.
— Mas então para que serve esta conversa? — perguntou Nekludov.
— É que queríamos vê-lo renunciar a ocupar-se dela!
— Mas como posso eu renunciar ao que considero ser o meu dever? Só o que posso dizer-lhe é que ainda que eu não me considere livre, ela o está.
Simonson não respondeu durante alguns minutos.
— Pois bem, seja! — disse afinal. — Dir-lhe-ei isso. Mas não vá imaginar que estou apaixonado por ela! Estimo-a como uma irmã, como uma amiga, que tendo sofrido muito, desejaria consolar. Nada desejo dela que não seja o ajudá-la e suavizar-lhe a posição.
E Nekludov, apesar de dominado por forte emoção, percebeu que a voz de Simonson tremia ao pronunciar aquelas palavras.
— Suavizar-lhe a posição — repetiu Simonson. — Ela não aceita o seu auxílio, mas talvez consinta em aceitar o meu. Se assim for, pedirei para ser transferido para a cidade onde ela esteja a cumprir a sentença, e quatro anos depressa passam. Vivendo junto dela talvez consiga tornar-lhe a vida menos dura.
E novamente se interrompeu abafado pelos soluços.
— Que lhe hei de dizer? — exclamou Nekludov. — Que me sinto feliz em saber que ela tem em si um desvelado protetor.
— Era o que eu queria saber! — disse Simonson. — Queria saber se quando estivesse conhecedor dos sentimentos que tenho por Catarina Mikailovna e sabendo também quanto desejo vê-la feliz, consideraria este casamento um bem para ela?
— Sim, porque não! — respondeu Nekludov resolutamente.
— Só penso nela! Quanto desejo que aquela alma sofredora ache um pouco de sossego! — disse Simonson fitando em Nekludov um olhar tão humilde, tão suplicante e tão infantil que ninguém esperaria encontrá-lo num homem cujo aspeto vulgar era tão sombrio e reservado.
De repente, Simonson aproximou-se de Nekludov, apertou-lhe a mão, sorriu timidamente e beijou-o nas faces.
— Vou dizer-lho, vou dizer-lho! — exclamou, saindo da sala.
Capítulo 11
I
— Que lhe parece? — disse Maria Pavlovna quando Simonson saiu. — Está apaixonado, apaixonadíssimo! Quem pensaria que Simonson se apaixonaria como o colegial mais simples? É assombroso! Quase que devia zangar-me! — acrescentou semisseriamente.
— Mas Katucha? Que imagina, que pensa de tudo isto? — perguntou Nekludov.
— Ela? — E Maria Pavlovna deteve-se a refletir por momentos, como se quisesse responder tão claramente quanto possível. — Ela? Bem sabe que apesar de seu passado, possui uma das naturezas mais retas que eu conheço. Os seus sentimentos são mais delicados do que os de qualquer de nós. Além disso, ama-o e ama-a muito e considerar-se-ia feliz se pudesse prestar-lhe um serviço negativo, inabilitando-o de se preocupar com ela. Casar consigo seria uma queda horrorosa, pior do que todo o passado, o que me convence que nunca consentiria em dar tal passo. A sua presença aqui é para ela um continuo motivo de perturbação.
— Então que me aconselha? Que desapareça? — perguntou Nekludov.
Maria Pavlovna sorriu bondosamente.
— Sim, em parte!
— Mas como desaparecer em parte?
— Responderei primeiro à sua outra pergunta — retorquiu ela procurando desviar a conversa. — Queria dizer-lhe que Katucha deve ter notado a paixão exaltada de Simonson, ainda que este nada lhe tenha dito. Como sabe, não compreendo muito destes assuntos, mas parece-me que apesar dos falsos adornos com que se encobre, este sentimento é como qualquer outra afeição. Simonson afirma ser um amor platónico que lhe serve só para excitar a energia em vez de a rebaixar. No fundo, porém, lá está a atração física tal qual como a que atrai Novodvorov para a Grabetz...
E Maria Pavlovna preparava-se para discorrer sobre o assunto que lhe era mais favorito quando Nekludov a interrompeu.
— Mas então que me aconselha que faça? — perguntou.
— Antes de mais nada falar com Katucha e explicarem-se. É o que é melhor. Expliquem-se. Quer que lha mande cá?
— Pois sim, faz favor! — respondeu Nekludov.
Maria Pavlovna saiu.
Enquanto permaneceu só na pequena sala onde Vera dormia respirando normalmente e até onde chegava distintamente o alarido ensurdecedor dos condenados comuns, perturbadores sentimentos agitaram a alma de Nekludov. A declaração que Simonson lhe fizera libertava-o da obrigação contraída e que muitas vezes, principalmente nos últimos tempos, lhe parecera aterradora e pesada. E, contudo, não só recebera essa declaração desagradavelmente, mas até se incomodara, como até então nunca lhe sucedera. Mil coisas diversas concorriam para esse sofrimento.
Em primeiro lugar a proposta de Simonson destruíra o caráter excecional que até aí a sua conduta com Katucha tivera, aos seus olhos e aos do mundo. Um homem, um homem daquela têmpera sem obrigação nem laços que o unissem àquela criatura, consentia em ligar o seu destino ao dela! Mas então esse sacrifício a que ele, Nekludov, se curvava, nada tinha de heroico!
Depois vinha também o ciúme. Habituara-se tanto ao pensamento de ser amado por Katucha que a possibilidade que ela amasse outro homem torturava-o como uma deceção.
A destruição de todos os seus projetos e planos era outro motivo de sofrimento: há muito que planeara a forma como viveria com Katucha, fazendo-lhe companhia e defendendo-a enquanto não expiasse a sentença.
Se ela casasse com Simonson, Nekludov tornar-se-ia um inútil, e ver-se-ia obrigado a procurar uma nova direção à sua vida.
Todos estes tristes pensamentos atropelavam-se-lhe na mente quando a porta se abriu deixando passar Katucha. Na sala próxima o ruído era cada vez mais ensurdecedor, deixando prever qualquer anormalidade.
Katucha dirigiu-se a Nekludov com passo rápido e sem erguer o olhar.
— Maria Pavlovna disse-me que queria falar-me! — murmurou constrangidamente.
— Sim Katucha; desejo falar-te. Senta-te. Vladimir Ivanovitch acaba de me falar a teu respeito.
Katucha sentara-se colocando as mãos sobre os joelhos, parecendo tranquila; porém, quando Nekludov falou em Simonson, estremeceu e corou.
— E que lhe disse? — perguntou.
— Que desejava casar contigo.
As feições dela contraíram-se como sob o efeito de doloroso sofrimento. Contudo, nada disse, limitando-se a baixar o olhar.
— Pediu o meu consentimento, ou antes a minha opinião — continuou Nekludov. — Disse-lhe que tudo dependia de ti, que eras tu quem devia decidir.
— Mas que quer dizer isso? — exclamou ela fixando em Nekludov o penetrante olhar dos seus olhos levemente estrábicos, que sempre lhe causara uma profunda impressão.
E durante um minuto ambos se fixaram penetrantemente, dizendo um ao outro coisas que até aí as palavras não tinham traduzido.
— Que és tu quem deve decidir! — replicou Nekludov.
— Mas o que é que eu devo decidir? — exclamou. — Há muito que tudo está resolvido.
— Mas, Katucha, deves decidir se aceitas a proposta de Vladimir Ivanovitch.
— Pois posso eu, pássaro das galés, casar com alguém? Para que arruinaria a vida de Vladimir Ivanovitch? — disse Katucha com voz trémula.
— Porém, se o amas! — disse Nekludov.
— Deixe-me! É melhor não falarmos mais! — respondeu levantando-se e abandonando a sala.
II
Quando Nekludov regressou à sala geral, depois da entrevista com Katucha, encontrou toda a gente muito comovida e agitada. Fora Nabatov que remexendo em tudo, observando tudo, e informando-se de tudo, fizera uma descoberta extremamente interessante para todos os seus companheiros.
Descobrira numa parede uma inscrição assinada pelo revolucionário Petline, condenado, dois anos antes, a trabalhos forçados por toda a vida. Imaginava-se que Petline estivesse há muito na Sibéria e pela data da inscrição via-se que passara por ali muito recentemente.
Eis os termos em que estava redigida a inscrição:
No dia de 17 de agosto de 18... passei aqui fazendo parte de uma leva de condenados comuns. Nevierov, que me acompanhava, enforcou-se em Kasan, num acesso de loucura. Pelo que me respeita estou em magnifica disposição física e moral, e confiante no futuro da nossa causa
Petline.
Faziam se conjeturas sobre a causa da demora na partida de Petline e sobre os motivos do suicídio de Nevierov. O único que não falava era Kriltzov que, com aspeto concentrado, fixava no vácuo o olhar febril.
— Já meu marido me tinha dito que quando esteve na fortaleza com Nevierov, este afirmava ver fantasmas! — disse a Rantzev.
— Era um poeta, um idealista! É gente que não suporta o regime da solidão! — afirmou Novodvorov desprezivelmente. — Quando fui encerrado na prisão, em regime celular, impus à minha imaginação proibição absoluta de trabalhar! Arranjei a distribuir o tempo que tinha, de forma a executar as minhas ocupações pontualmente e consegui suportar perfeitamente o encarceramento.
— Suportar o encarceramento?! Não merece que ninguém se orgulhe de tal facto! Eu só me sinto feliz quando estou preso! — exclamou Nabatov sorrindo bondosamente e procurando introduzir alegria e expulsar a atmosfera de tristeza que via acumular em volta de si. — Quando se está em liberdade, tudo inquieta, é constante o receio de comprometer a própria individualidade ou qualquer outra ou então trair a causa; uma vez preso lá se vão os cuidados e as responsabilidades. Respira-se desafogadamente e o que há a fazer é fumar e descansar.
— Conheceste intimamente Nevierov? — perguntou Maria Pavlovna a Kriltzov, cujo rosto se contraíra em seguida às palavras de Novodvorov, enquanto as mãos lhe recomeçavam a tremer.
— Então Nevierov era um idealista? — disse Kriltzov elevando a voz rouca tanto quanto podia. — Nevierov sabes tu o que era? Era um homem como não há muitos na terra! Era admirável e quase que diáfano no que respeita a franqueza, e não só incapaz de mentir como até de ocultar o mínimo pensamento! Tinha a epiderme tão delicada que a menor arranhadura feria-o até ao íntimo da alma. E igualmente os nervos eram impressionáveis em extremo... Sim, era um temperamento rico, delicado e não comum! Não se assemelhava a estes... Mas de que serve falar?
E calou-se, posto se conhecesse que uma crescente irritação se ia acumulando no seu íntimo.
— Os homens da têmpera de Nevierov — recomeçou com entoação áspera e malévola — interrogam-se, transbordantes de ânsia, sobre qual é preferível: instruir primeiro o povo para depois lhe transformar as condições da vida, ou transformar-lhe as condições da vida para proceder em seguida à instrução: conjeturam sobre o meio que devem empregar na luta, se a propaganda pacífica ou o terrorismo. É por isso que os alcunham de «idealistas!» Aqueles, porém, que assim os alcunham não querem saber de nada, nada discutem, nem se inquietam em saber se a ação que vão praticar, tira ou não a vida a dezenas, centenas ou até milhares de homens, e que homens! Pois se o seu desejo é que os melhores de entre eles desapareçam! E efetivamente são os melhores, os que desaparecem!
Herzen disse que o desterro dos Dezembristas tivera como resultado o abaixamento do nível social da Rússia de então. Pouco depois eram banidos o próprio Herzen e os do seu tempo e agora cabe a vez a Nevierov de ser excomungado.
— Nem todos podem ser suprimidos! — disse Nevierov. — há de haver alguém no ajuste de contas!
— Não, nem um só ficará, enquanto aquela gente continuar — exclamou Kriltzov cada vez mais excitado. — Emília, dá-me um cigarro!
— Peço-te que não fumes agora! — disse-lhe Maria Pavlovna. — Não estás bem disposto!
— Deixa-me! — retorquiu ele colericamente, acendendo um cigarro. À primeira baforada, porém faltou-lhe o ar e assaltou-o a tosse. Depois de descansar um momento, animou-se outra vez: — Não foi assim, não, que concebemos o nosso plano: Seguíamos um raciocínio, e guiávamo-nos pelos melhores métodos enquanto...
— Porém eles são homens como os mais! — disse a Rantzev intervindo.
— Homens não pensam nem procedem daquela maneira. Era necessário exterminá-los como os percevejos! Sim, despedaçá-los... É o que deviam... porque...
E não pôde concluir porque as feições coraram-se-lhe e um terrível ataque de tosse prostrou-o sobre o travesseiro. Em seguida uma golfada de sangue jorrou-lhe dos lábios.
Nabatov precipitou-se no corredor à procura de gelo. Maria Pavlovna apressou-se a desrolhar um frasco com valeriana que Kriltzov repeliu com a mão descarnada. E durante muito tempo permaneceu imóvel sem regularizar a respiração, até que o gelo e as compressas da água fria o reanimaram.
Nekludov ajudou a despi-lo e a metê-lo na cama e, despedindo-se, saiu para o corredor, onde o carcereiro o esperava havia muito.
Cessara o ensurdecedor barulho na sala dos condenados comuns, que na sua maioria dormiam, por cima e por baixo dos catres, no soalho e encostados às portas; muitos, não tendo arranjado lugar no interior, tinham-se deitado nos corredores, nus, com os sacos a servir-lhes de lençóis e cobertores.
Ecoavam por toda a parte roncos. Estendidos ao comprido no soalho, curiosos tipos humanos ocultavam-se com os largos mantos e apenas num canto do corredor, alguns forçados alumiados por uma candeia, jogavam as cartas. Nekludov viu ainda um outro preso que não dormia, um homem velho, sentado junto do lampião, catando os piolhos nas roupas. E em comparação com o fétido insuportável deste corredor a atmosfera da sala dos condenados políticos pareceu-lhe puríssima.
Caminhando com precaução para não pisar os dorminhocos que impediam a passagem, Nekludov conseguiu afinal chegar à extremidade do corredor.
Aqui, alguns forçados que não tinham conseguido lugar noutra parte, haviam-se deitado em frente da porta, junto do balde das dejeções. Entre eles estava um idiota que Nekludov encontrara mais do que uma vez, e um rapazito de dez anos que dormia com as mãos sob a face como as crianças; do balde das dejeções escorria um líquido que já o alcançava.
Uma vez chegado ao pátio exterior, Nekludov deteve-se, respirando com delicia o ar gélido da noite.
Capítulo 12
O firmamento, que duas horas antes estava negro, mostrava se agora semeado de estrelas; em quase todos os sítios as poças de lama tinham gelado e Nekludov regressou à hospedaria sem muito custo. Quando chegou bateu na janela e o criado dos ombros largos veio abrir-lhe a porta.
Ao entrar, Nekludov ouviu num quarto interior que ficava à sua direita o ronco sonoro dos cocheiros e mais para a frente no pátio, distinguiu o triturar dos cavalos comendo aveia. Na grande sala da esquerda ardia uma lâmpada em frente de uma imagem e um duplo cheiro de aguardente e transpiração exalava-se do interior.
Nekludov entrou no seu quarto, desembaraçou se da capa e estendeu-se nuta sofá com a cabeça apoiada ao seu travesseiro de viagem. Embrulhando-se no cobertor repassou na mente os diversos espetáculos a que assistira. E o que se lhe revelava com extraordinária intensidade era o rapazito a dormir com as mãos sob o rosto enquanto do balde das dejeções escorria o líquido que já o molhava.
Perturbava o ainda a conversa com Simonson e Katucha: compreendia que se produzira na sua vida um acontecimento imprevisto e de extrema gravidade. E exatamente por compreender quanto era grave e quanto tinha sido imprevisto, é que reconhecia que não podia ainda pensar nele a sangue frio. Para isso esforçava-se por não pensar no assunto, expulsando da imaginação tudo que pudesse referir-se à sua situação e à da Maslova. Então com redobrada intensidade tornava a ver os prisioneiros a dormirem no corredor infeto, e principalmente o rapazito estendido entre os dois forçados.
Uma coisa é saber-se que numa parte qualquer, ao longe, existem certos homens ocupados em torturar outros infligindo-lhes toda a espécie de sofrimentos e humilhações e outra é presenciar diariamente, durante três meses o espetáculo dessa tortura. Era o que Nekludov percebia só agora. Durante esses três meses se interrogara: «Enlouqueci e vejo o que os mais não veem ou são aqueles que executam e toleram as obras que eu presencio que estão loucos?» Mas, todos os homens eram unânimes não só em tolerar aquilo que espantava Nekludov como também em considera-lo importante e necessário, de modo que não se podia admitir que todos estivessem tolos; por outro lado era-lhe impossível confessar-se louco, porque as suas ideias eram lúcidas e claramente deduzidas. Oscilava pois, entre as duas soluções sem saber por qual se resolver.
O que, porém, conseguira já, fora abraçar nitidamente no seu conjunto, a significação geral de tudo que vira durante esses três meses e que classificava assim:
Primeiro, compreendera que a magistratura e a polícia escolhia entre os homens que viviam em liberdade os mais ardentes, mais impressionáveis, em suma os mais inteligentes e ao mesmo tempo os menos prudentes e menos astuciosos, para encerrá-los nas prisões, nas levas, nas galés, ainda que não fossem nem mais culpados nem mais perigosos do que os demais que ficavam em liberdade sustentando-os durante anos na ociosidade, desprendidos da natureza, da família, do trabalho, isto é, de todas as condições normais da vida humana.
Em segundo lugar percebera que se os condenados estavam sujeitos nas prisões e nos acampamentos a uma série de humilhações — algemas, cabeças rapadas, uniformes da prisão — tinha isso só por fim aniquilar os principais motivos da vida moral da grande maioria dos homens, isto é, consideração pela opinião pública, vergonha e consciência de dignidade humana.
Em terceiro lugar, Nekludov adquirira a convicção de que colocando esses homens em frente de um perigo constante de doença ou morte criava-se-lhes disposição de espirito em tudo semelhantes à de um homem, o mais bem dotado e com melhores prodígios de moralidade, que por instinto de conservação é arrastado, a cometer e a justificar as ações mais cruéis e imorais.
Por último era-lhe também evidente que forçar estes indivíduos a viver dia e noite na companhia de seres profundamente depravados — assassinos, ladrões e incendiários — era o mesmo que obrigá-los a sofrer o contágio da depravação.
E Nekludov via bem que, procedendo com esses homens como se procedia, pondo em execução toda a qualidade de medidas monstruosas, separando filhos dos pais, maridos das mulheres, dando prémios à denúncia, etc., era o mesmo que querer provar a esses homens que toda a espécie de violência, de crueldade e de bestialidade só não era proibida mas até era empregada pela lei quando desse resultado. Resultava que estes processos eram particularmente permitidos aos destituídos de liberdade e falhos de recursos.
«Dir-se-ia, na verdade, que este conjunto de medidas foi inventado propositadamente, com o fim de propagar, da maneira mais certa, a depravação e o vício entre os homens mais bem dotados de toda a nação para depois se infiltrar no organismo inteiro da nação», dizia consigo Nekludov. «Todos os anos são assim pervertidos milhares de seres humanos, destituídos dos seus sentimentos naturais e constrangidos a praticar as mais monstruosas ações; e quando o trabalho de os perverter está terminado, são então postos em liberdade para propagarem por toda a nação os germes perturbadores que lhes foram inoculados.»
Logo na prisão onde encontrara Katucha e mais tarde no trajeto da leva, em Perm, Ekaternnehourg, Tomsk ou em qualquer acampamento, Nekludov presenciara sempre modos de proceder que não se podiam considerar senão como fazendo parte de um vasto piano de desmoralização nacional. Vira naturezas simples, penetradas das tradicionais noções morais do aldeão cristão, despegarem se gradualmente delas, para adquirir por troca outra noções baseadas na legitimidade da violência e da desonra.
Presenciando o espetáculo das punições a que os prisioneiros estavam sujeitos, essas naturezas tinham de reconhecer como mentirosos todos os princípios de justiça e caridade que a sua religião lhes ensinara, concluindo que podiam deixar de seguir esses preceitos.
Os característicos de tal depravação observara-os num grande número de prisioneiros que seguiam na leva; era Fedorov, era Macário, era até o próprio Tarass, qua ao fim de dois meses de convivência com os forçados adquiriam muitos dos seus hábitos e da sua maneira de sentir e de se exprimirem. Nekludov ouvira principalmente falar com admiração do velho forçado que se gabava de ter assassinado e comido o seu companheiro de fuga. Esse regime, a que era sujeito o aldeão russo produziu nalguns meses, o mesmo estado de perversão a que tinham chegado depois de alguns séculos de podridão moral, os intelectuais glorificadores e apóstolos das doutrinas de Nietzsche.
E Nekludov lia nos livros que tal conjunto de medidas, cujas consequências estava presenciando, eram justificadas pela necessidade de expurgar da sociedade certos indivíduos perigosos, quer afastando-os, quer corrigindo-os.
Na realidade, porém, dava-se o contrário. Em vez de afastar da sociedade esses membros perigosos, apenas se propagava a depravação. Em vez de os atemorizar, apenas os incitavam com exemplos de crueldade e imoralidade, garantindo-lhes uma vida de preguiça e deboche, suficientemente agradável ao seu paladar, visto enxames de vagabundos solicitarem o favor de serem encarcerados. E por último, em vez de os corrigirem, apenas os contaminavam de todos os vícios.
«Mas então para que se faz tudo isto?» interrogava-se Nekludov, sem achar resposta satisfatória.
E o que ainda mais o admirava era que nada disto se fazia com caráter provisório, em consequência de um equívoco, mas sim de um modo contínuo e pensado, como instituição secular, só com a diferença que antigamente arrancavam-se os narizes e as orelhas dos prisioneiros, levando-os depois para as jangadas, e agora algemavam-nos, estalavam-lhes os olhos a murros e transportavam-nos em navios a vapor. Alguns autores procuravam demonstrar que a indignação provocada por tal conjunto de medidas provinha apenas da inferioridade das prisões e de uma má organização, que tendia a desaparecer. Essa explicação, porém, não satisfazia Nekludov; sabia bem que o mal que o revoltava não provinha só da inferioridade ou insuficiência do número das prisões ou de um defeito de organização. Toda a sua experiência provava-lhe que o mal aumentava de ano para ano, apesar dos soi-disant progressos da civilização. Não ignorava que há cinquenta anos as levas de degredados não exibiam, a um tal grau, o espetáculo de embrutecimento e depravação das de hoje, ainda que então não existissem nem caminhos de ferro, nem navios para os transportarem através da Rússia. E não podia ler sem repulsão e inquietação as descrições das prisões modelos idealizadas pelos sociólogos, em que os condenados seriara iluminados, aquecidos, alimentados, vergastados e executados pela eletricidade.
E Nekludov sentia nascer em si torrentes de indignação, lembrando-se que existiam juízes e funcionários recebendo anualmente gordos rendimentos, pagos pelo povo, unicamente para lerem nos livros escritos por outros juízes e outros funcionários a forma de desterrarem para regiões longínquas certos homens a fim de se desembaraçarem deles durante algum tempo e de forma a fazê-los perecer, senão fisicamente, com certeza moralmente.
E Nekludov quanto mais estudava, de visu, as prisões e os acampamentos, mais se compenetrava de que os vícios espalhados entre os prisioneiros, embriaguez, jogo, violência e impudicícia, não eram manifestações de um pretendido «tipo criminal» invenção de uma ciência oficial, mas sim a consequência direta da monstruosa aberração em virtude da qual certos homens se arrogam o direito de julgar e castigar os seus semelhantes. Nekludov compreendia que o canibalismo do velho forçado não fora originado nas galés, nem no deserto, mas sim nos ministérios, nas comissões e nas chancelarias.
Compreendia também que as ações que se desenrolavam nas galés eram a resultante das ordens emanadas das esferas superiores e que homens como seu cunhado nada se importavam com a justiça nem com o bem da nação, que se orgulhavam servir, preocupando-se somente em receber os rublos que lhes destinavam para se desempenharem de tão desprezível ocupação, e da qual resultava tanto sofrimento e desmoralização.
«Na verdade, não será tudo isto a consequência de um equívoco? Não seria possível garantir a todos esses funcionários os seus ordenados, gratificando-os até, com a condição de no futuro se absterem de desempenhar as nefastas ocupações que, para ganharem dinheiro, julgam ser seu dever executar?»
Assim meditava Nekludov até que o sono o venceu, aí pela madrugada, apesar dos percevejos que, como formigas, corriam para cima dele.
Capítulo 13
No dia seguinte, quando Nekludov acordou, aí pelas nove horas, a corpulenta estalajadeira mandou-lhe entregar uma carta que um soldado do acampamento da leva tinha trazido havia duas horas.
Era Maria Pavlovna que lhe escrevia, participando-lhe que o acidente sobrevindo na véspera a Kriltzov era muito mais grave do que a princípio tinham imaginado. «Pensámos em fazê-lo descansar aqui um ou dois dias, ficando eu com ele; isto, porém, não nos foi permitido. Assim, sempre com receio pela sua existência, tivemos de o levar connosco e venho pedir-lhe que trate de indagar se uma de nós poderá ficar era S... (era o nome do acampamento seguinte), caso o seu estado de saúde assim o exija. Se de novo essa autorização nos for recusada e se casando com Kriltzov puder obtê-la, escusado será dizer-lhe que estou pronta a consentir em tal formalidade».
Nekludov mandou preparar a sua carruagem e apressou-se em arranjar a mala. Ainda não tinha bebido a segunda chávena de chá e já no solo gelado da rua se ouviam os cascos dos cavalos e o rodar da carruagem. Pagou a conta e ao subir para o veículo disse ao cocheiro para ir o mais depressa possível a fim de alcançar rapidamente a leva.
E, efetivamente, ao fim de uma hora de bom trotar distinguiu-se no limite do horizonte uma fila escura de carretas com as bagagens, com os prisioneiros doentes e por fim os condenados políticos. O comandante marchava na frente vigiando os peões, e na cauda, rodeando as carretas, caminhavam soldados, alegres e satisfeitos, como quem tinha bebido bem, antes de partir.
Eram, pelo menos, vinte carretas. Nas últimas, as que Nekludov primeiro encontrou, apinhavam-se aos seis em cada uma, os condenados vulgares; os políticos tinham-se distribuído aos três em cada carro, exceto no da frente, onde Nekludov encontrou Kriltzov estendido numa pouca de palha, a cabeça levantada por travesseiros. Na banqueta ao lado sentava-se Maria Pavlovna.
Dos outros, Novodvorov ia na companhia de Markel e da Grabetz e a Rantzev com Nabatov acompanhavam a mulher grávida a quem Maria Pavlovna cedera o lugar.
Nekludov mandou parara carruagem, desceu e aproximou-se do carro onde ia Kriltzov. Os soldados que acompanhavam o carro fizeram-lhe sinais para se afastar, mas Nekludov já se habituara a não fazer caso de tais avisos e depois de alguns protestos, deixaram-no caminhar junto da carreta, enquanto quis.
Kriltzov, muito embrulhado na peliça, com um gorro de peles a cobrir-lhe a cabeça e um lenço atado em redor da boca, emagrecera extraordinariamente. Os olhos animados de um brilho desusado, pareciam ter crescido desmedidamente. Os solavancos do veículo sacudiam-no de um para o outro lado e um vivo sofrimento lia-se-lhe no olhar; quando Nekludov lhe perguntou como estava, limitou-se a cerrar por momentos os olhos, e a voltar a cabeça, irritadamente. Percebia-se que concentrava toda a energia que lhe restava para suportar os abalos do veículo.
Maria Pavlovna mal viu Nekludov, dirigiu-lhe um olhar que exprimia toda a sua inquietação; quando, porém, principiou a falar-lhe, fê-lo em tom tranquilo e alegre.
— Boas noticias! — exclamou em voz suficientemente alta para dominar o barulho das rodas. — Imagine que o comandante teve, afinal, vergonha e mandou desalgemar o pai da criancinha, permitindo-lhe desde pela manhã que a levasse. Eu aqui vou no lugar que me cedeu Vera! Ela, coitada, lá vai a pé com Simonson e Kátia, enquanto eu vou aqui.
Em seguida reinou silêncio durante alguns minutos; de repente Kriltzov repeliu o lenço que lhe tapava a boca e murmurou algumas palavras que nem Maria Pavlovna nem Nekludov conseguiram entender.
O doente fitou-os impacientemente e cerrando de novo os olhos, esforçou-se por não tossir. Maria Pavlovna inclinou-se, com o ouvido atento; Kriltzov, erguendo-se murmurou:
— Agora estou muito melhor! Se não apanhar frio ainda escapo desta! — E sorrindo tristemente dirigiu-se a Nekludov: — Então achou a solução do problema dos três corpos?
Nekludov fitou-o com ansiedade, sem compreender ao que ele se referia; foi necessário que Maria Pavlovna lhe explicasse que era assim como os sábios chamavam a um problema sobre as relações astronómicas do sol, da terra e da lua e que Kriltzov na véspera comparara, gracejando, ao das relações entre Nekludov, Simonson e a Maslova. Kriltzov, com um aceno da cabeça confirmou a explicação da sua companheira.
— A solução não depende de mim! — disse Nekludov.
— Recebeu a minha carta? Interessar-se-á pelo que lhe pedi? — perguntou Maria Pavlovna.
— Conte comigo — respondeu Nekludov.
E imaginando ver no rosto de Kriltzov indícios de pesar por não poder tomar parte na conversa, afastou-se, subindo novamente para a carruagem.
A alusão de Kriltzov relembrara-lhe a sua situação, que desde a véspera fizera por esquecer. Assaltou-o o desejo de ir ter com Katucha, o mais depressa possível, para ter com ela uma entrevista decisiva. Mandou novamente largar, e ao fim de duas ou três verstas de caminho, confrangia-se-lhe o coração ao ver o lenço azul da Maslova. Esta, caminhava junto de Vera e de Simonson, que parecia querer explicar-lhes qualquer coisa, gesticulando com os magros e compridos braços.
Quando Nekludov os alcançou, as duas mulheres cumprimentaram-no sorrindo e Simonson descobriu-se com solicitude particular. Nekludov, porém, vendo-os reunidos não sentiu ânimo de lhes falar. Quando a carruagem ia parar, mudou de intenção e mandou seguir, depressa ultrapassando a leva, que se agitava pela estrada fora com o acompanhamento vulgar de gritos, risos e tinidos de cadeias.
A estrada embrenhava-se numa sombria floresta de pinheiros e vidoeiros estes ainda não despidos das suas folhas amarelecidas; a seguir desenrolavam-se para ambos os lados campos imensos e no limite do horizonte Nekludov distinguiu as cúpulas e as cruzes douradas de um convento.
Bruscamente o tempo limpara; as nuvens dispersaram-se na atmosfera e o sol brilhava por cima dos campos. A geada, a lama gelada da estrada e as cruzes longínquas brilhavam docemente, enquanto a planície redobrava de extensão até ser detida no horizonte pela linha azulada das montanhas.
A carruagem chegou por fim a uma grande aldeia, pronuncio e arrabalde da cidade próxima para onde se dirigia Nekludov.
A única rua da aldeia transbordava de concorrência, russos e estrangeiros, numa promiscuidade extraordinária de trajes e penteados. Formavam-se grupos para discutir, questionar ou rir, às portas dos estabelecimentos, das hospedarias ou das tabernas.
As carroças cruzavam-se lentamente ou paravam no meio da rua; tudo anunciava a vizinhança da cidade.
Endireitando-se na almofada para fazer realçar a sua pessoa, o cocheiro castigou os cavalos e conseguiu fazê-los trotar a todo o comprimento da rua, apesar da multidão que a enchia. Só se detiveram junto da margem do rio, que era necessário atravessar em jangada para alcançar a cidade.
A jangada tinha largado a outra margem e vinha a meio do rio em direção ao sítio onde umas vinte carroças a esperavam. Os barqueiros, porém, fizeram sinal ao cocheiro de Nekludov para entrar primeiro, e logo que a jangada se encheu, retiraram a ponte que a unia à terra firme, sem se importarem com os protestos e queixas dos que não tinham podido obter lugar.
E lentamente, sem mais ruído que o das vagas chapinhando no costado da jangada, ou o dos cascos dos cavalos escarvando o chão, o enorme barco deslizou pela superfície da água.
Capítulo 14
I
Nekludov conservava-se de pé encostado ao rebordo da jangada, com o olhar fixo na límpida e rápida corrente do rio. E duas imagens erguiam-se lhe na imaginação: a de Kriltzov, agonizante na palha da carreta e fixando-o irritadamente, e a de Katucha, caminhando com andar vigoroso, era companhia de Simonson.
E se a imagem de Kriltzov, morrendo sem resignação, era aterradora e lamentável, a outra, a de Katucha, acompanhada pelo homem que a amava e trilhando o caminho do bem tão valorosamente como seguia pela estrada, era animadora e alegre. E contudo, qualquer destas imagens era para Nekludov igualmente cruel, e sem conseguir expulsá-las do seu espírito percebia que se confundiam, para produzirem uma completa impressão de mortal tristeza.
O vibrante som de um sino, convidando para qualquer ato do culto, fez-se ouvir na jangada, transportado pelo vento que soprava. Todos os passageiros se descobriram, persignando-se. Só um velho esfarrapado não se desbarretou, conservando-se imóvel com as mãos cruzadas nas costas.
— Olá, meu velho, então não rezas? — perguntou lhe o cocheiro de Nekludov, mal se cobriu. — Não és batizado?
— Rezar? E a quem? — respondeu o velho esfarrapado, fixando o cocheiro e caminhando para ele.
— Que pergunta! Então não acreditas em Deus?
— Conhece-lo? Sabes onde está?
As feições do velho tornaram-se tão sérias e a expressão do seu olhar tão dura, que o cocheiro sentiu-se um pouco intimidado. Porém, como em redor dos dois se tivesse formado um círculo de passageiros, ele quis continuar a sustentar a conversa, sem se dar por vencido.
— Onde está Deus? Mas, imbecil, toda a gente sabe que no céu!
— Viste-o? Já lá estiveste?
— Não, nunca lá estive. Mas todos sabemos que é a Deus que devemos orar.
— Nunca ninguém viu Deus! Disse-o o seu Filho Único — replicou o velho em voz severa, sobrancelhas carregadas.
— Visto isso não és cristão? És ateu? — perguntou-lhe o cocheiro voltando-se e escarrando desprezivelmente.
— Qual é a tua religião, paizinho? — perguntou um condutor de carroças que segurava nos cavalos, ali perto.
— Não tenho religião. A única pessoa em quem creio é em mim — respondeu o velho de olhar irritado.
— Mas como é possível só crer em si próprio? — perguntou-lhe Nekludov, cada vez mais intrigado com tão estranha personagem.
— É a única maneira de nunca nos enganarmos!
— Como se explica então que haja tantas religiões?
— É o resultado de acreditarem uns nos outros. Também eu acreditei nos outros e transviei-me como numa floresta, de tal forma que pensei que nunca mais encontraria o caminho. São velhos e novos crentes, sabatistas, popovistas e não popovistas, skoptzv, molokamos, etc.! Há religiões de todas as espécies e todas pretendem ser a legítima.
— As religiões são muitas mas o Espirito é só um. É tão igual em mim, como em ti, como neles. O que quer dizer que todos devemos crer no Espirito que vive dentro de nós e que só assim o mundo poderá fraternizar!
E o velho erguia cada vez mais a voz, espraiando o olhar em redor, como se quisesse fazer-se ouvir pelo maior número possível de pessoas.
— Há muito que assim pregas? — perguntou-lhe Nekludov.
— Eu? Oh! sim, há muito. Há vinte e três anos que sou perseguido!
— Perseguido? Porquê? Como?
— Como o Cristo foi perseguido, eu o sou também! Prendem-me, levam-me à frente dos juízes, dos padres, dos escribas e dos fariseus e até me mandaram já para um hospital de doidos. Mas nada conseguem porque eu sou livre. Imaginam eles que tenho um nome; mas há muito que renunciei a tudo, a ele inclusive; não tenho nome, nem pátria, nem família, não tenho nada senão a minha pessoa. Perguntam-me: «Como te chamas?» Um homem! «Que idade tens?» Eu não tenho idade, respondo-lhes, porque o Espírito que vive em mim é eterno! «Quem são teus pais? «Não tenho outros que não sejam Deus e a terra minha mãe.» «Então não obedeces ao tzar?», perguntam-me. «Porque não? Ele reina no seu império, eu no meu!» «É impossível falar contigo, assim.» «Mas eu não peço que falem comigo.» Então submetem-me aos martírios.
— E agora para onde vais? — perguntou-lhe Nekludov.
— Para onde Deus me levar. Trabalho e quando não tenho em quê, mendigo — respondeu o velho espraiando em volta um olhar triunfante.
A jangada tocava na outra margem. Nekludov puxou da carteira e quis dar ao velho uma moeda de prata.
— Nunca recebi dinheiro — disse este. — Contento-me com pão.
— Então desculpe-me.
— Não tenho de quê. Não me ofendeste! E de resto ninguém pode ofender-me! — disse o velho erguendo o saco que estava junto dos seus pés.
Na jangada a multidão agitava-se; desembarcavam as carruagens e os cavalos.
— É muita condescendência, fidalgo! Ir conversar com tal gentalha! — disse a Nekludov o seu cocheiro, quando desembarcavam. — São uns maltrapilhos vagabundos a quem não se deve ligar importância!
II
Logo que no cais a carruagem foi engatada, o cocheiro dirigiu-se novamente a Nekludov:
— Para que hotel vai?
— Não sei! Qual é o melhor?
— O melhor é o Siberiano, mas em casa de Dukov também se passa bem.
— Leva-me para onde quiseres!
O cocheiro fustigou os cavalos e a carruagem embrenhou-se pelas ruas da cidade. Esta era em tudo semelhante às demais cidades: as mesmas casas de tetos baixos, a mesma grande igreja, os mesmos estabelecimentos elegantes na rua principal, os mesmos transeuntes e polícias. A única diferença consistia na maioria das casas serem construídas de madeira e as ruas não serem empedradas.
Na rua mais animada o cocheiro parou em frente de um edifício. Era um hotel, mas estava cheio, de modo que foi necessário seguir à procura de outro.
Enfim, Nekludov achou-se alojado. Pela primeira vez, ao fim de dois meses, reencontrou os seus antigos hábitos de limpeza e comodidade sem que por isso os seus aposentos fossem luxuosos, mas somente habitáveis, comparados com as espeluncas que tinha percorrido nas noites anteriores.
Em primeiro lugar e sem pensar em mais nada, tratou de se ver livre dos piolhos que o tinham perseguido com extraordinária tenacidade de acampamento para acampamento. Mal colocou no quarto as suas malas, passou para a sua casa de banho, onde gastou mais de uma hora em limpar-se.
De regresso aos seus aposentos vestiu camisa engomada, calça cinzenta, sobrecasaca e sobretudo, a fim de ir procurar o governador.
O porteiro do hotel chamou um carro e graças ao vigor do pequeno cavalo kirgiz, de trote largo, Nekludov depressa chegou ao pátio de um grande e belo palácio, com duas sentinelas e vários polícias de guarda.
Rodeava o palácio um jardim onde, por entre os troncos nus dos vidoeiros e dos álamos, aparecia a escura verdura dos pinheiros.
O general governador andava adoentado e não recebia, mas Nekludov mandou-lhe entregar um bilhete de visita e pouco depois o lacaio, todo sorridente, participava-lhe que sua excelência o convidava a entrar.
O palácio com o seu vestíbulo, grande escadaria, salões de parquet encerado, assemelhava-se a uma casa de S. Petersburgo, somente mais imponente e menos limpa.
Nekludov mal se tinha sentado quando foi convidado a passar para os aposentos do governador.
Este funcionário vestia robe-de-chambre verde e, com um cigarro na mão entretinha-se a tomar chá por uma chávena com rebordos de prata. Era um homem nutrido, sanguíneo, calvo, de nariz rubicundo e veias tumefactas na fronte.
— Queira desculpar-me o recebê-lo em robe-de chambre, príncipe, mas é preferível recebê-lo assim a não o receber! — disse sorrindo e enterrando-se mais na grande cadeira que ocupava. — Tenho andado adoentado e não posso sair daqui. O que o traz a estas longínquas paragens?
— Acompanho uma leva de degredados entre os quais está um a quem me encontro muito ligado — respondeu Nekludov. — Um dos dois pedidos que desejo fazer a V. Exa. refere-se a essa pessoa.
O governador estirou as pernas, bebeu uma golada de chá, sacudiu a cinza do cigarro no cinzeiro e olhando para Nekludov com os seus olhitos húmidos e brilhantes, pôs-se a escutá-lo com atenção concentrada. Só o interrompeu duas vezes para lhe oferecer chá e convidá-lo a fumar.
O general pertencia à categoria dos funcionários inteligentes que por natureza se sentem inclinados a introduzir na sua profissão uma parte de humanidade e tolerância.
Mas, como a natureza o dotara também com um grande fundo de bondade e circunspeção, depressa reconhecera a vaidade dos esforços empregados nesse sentido: para fugir, pois, à consciência da contradição íntima em que se debatia, principiara a entregar-se ao hábito de beber aguardente. E o hábito enraizara-se-lhe tão fortemente que, ao fim de trinta e cinco anos de serviço civil e militar, era o que os médicos chamam um alcoólico. Estava tão saturado de aguardente que bastava um cálice dela ou de vinho para o embriagar. E como não podia deixar de beber, todos os dias, à tarde, estava embriagado.
Contudo, adaptara-se tão bem a esta situação, que nunca ninguém o via titubear, nem nunca o ouviam dizer incoerências, posto que a elevada posição que ocupava lhe permitisse dizê-las sem que alguém as notasse. Mas só pela manhã, à hora que Nekludov o procurara, é que se assemelhava a um homem sensato capaz de compreender o que lhe diziam.
As autoridades superiores de quem ele dependia, não ignoravam os seus hábitos de intemperança, mas também sabiam que era mais inteligente e mais ilustrado, posto que a sua educação tivesse estacionado quando começou a entregar-se à bebida, do que a maioria dos seus colegas; reconheciam que era corajoso, hábil, imponente e que mesmo embriagado era incapaz de se desmanchar. Por tudo isso fora subindo de posto em posto até àquele que, ao presente, ocupava.
Capítulo 15
I
Nekludov contou ao governador como a prisioneira por quem se interessava fora condenada injustamente, e informou-o de que, antes de partir, dirigira uma petição ao imperador.
— Muito bem! — disse o governador depois de o ter ouvido cuidadosamente. — E que mais?
— Prometeram-me que o despacho a essa petição seria dado no mais breve prazo e que a decisão régia alcançar-nos-ia aqui por todo este mês.
O governador, sempre com os olhos fixos em Nekludov, estendeu para a mesa a sua mão nutrida e carregou no botão de uma campainha, continuando em seguida a ouvir em silêncio.
— Queria, pois, pedir a V. Exa., caso fosse possível, que me arranjasse maneira da prisioneira se conservar aqui até ser conhecida a decisão do último recurso.
Um criado de grande uniforme entrou, interrompendo Nekludov.
— Pergunta a Ana Vassillevna se já está a pé — disse-lhe o governador — e traz mais chá.
E dirigindo-se a Nekludov.
— E que mais?
— O outro pedido — continuou Nekludov — diz respeito a um condenado político que faz também parte desta leva.
— É isso mau! — disse o governador acenando com a cabeça significativamente.
— Trata-se de um desgraçado perigosamente doente, quase moribundo, que com certeza tem de ficar no hospital daqui. Uma condenada política, sua companheira, desejava obter licença para ficar cuidando dele.
— Têm algum parentesco entre si?
— Não, mas está pronta a casar-se, se assim puder obter autorização para o fim que deseja.
O governador não respondeu, continuando a fitar Nekludov, como se o quisesse intimidar pela força do seu olhar.
Logo que Nekludov se calou à espera de resposta, o governador ergueu-se da poltrona, dirigiu-se a uma estante com livros, tirou um e folheando-o rapidamente, deteve-se alguns minutos a ler um parágrafo que ia seguindo com o dedo.
— A que pena foi condenada essa mulher? — perguntou afinal, erguendo o olhar.
— A trabalhos forçados.
— Nesse caso a situação do condenado em nada seria modificada pelo seu casamento.
— Mas é que...
— Perdão! Se ela casasse com um homem livre tinha de continuar a sofrer a condenação. Aqui, temos de saber qual dos dois foi condenado a pena maior.
— São ambos condenados a trabalhos forçados por toda a vida.
— Então é um negócio decidido! — disse o governador sorrindo. — O casamento nada lhes alteraria a situação. Se ele está efetivamente doente, poderá ficar aqui e serão empregados todos os meios para o restabelecer; ela é que ainda que se casasse teria de continuar a caminhar com a leva...
— A generala está a pé e vai almoçar! — veio anunciar um lacaio.
O governador acenou com a cabeça e continuou:
— Contudo, pensarei no caso. Como se chamam os condenados? Faz favor, sim, deixa-me aqui os seus nomes?
Nekludov escreveu-os num papel.
— Também não lhe posso permitir isso! — respondeu o general a Nekludov quando este lhe pedia autorização para poder ver o doente. — Não vá pensar que desconfio de si! — continuou. — É que vejo e sei o que são estas coisas. No seu desejo de prestar serviços a essa gente, torna-se perigoso por poder dispor de dinheiro. Ora entre nós tudo se vende! Eu ouço dizer muitas vezes: mas porque não tenta desenraizar a venalidade? Mas como é possível desenraizá-la quando desde cima a baixo tudo e todos se vendem? Por outro lado é lá possível exercer vigilância nos funcionários numa extensão de 5000 verstas? Todos eles são uns pequenos Tzars, como eu o sou aqui! — disse o governador rindo fortemente. — Eu bem sei como são estas coisas! Durante todo o trajeto, graças às gorjetas e gratificações, deixaram-no sempre comunicar com os condenados, não é verdade?
— É verdade!
— E compreendo que se tenha servido desses meios! Fez o que devia fazer. Queria ver um condenado político, empregava os meios de que dispunha para o conseguir. O oficial ou o carcereiro a quem os seus pequenos vencimentos não chegam para sustento das suas famílias, recebiam a gorjeta e deixavam-no passar. Também tinham razão: eu no seu lugar ou no deles teria feito o mesmo. Mas como ocupo outro lugar não consinto a mais pequena infração ao regulamento, tanto mais que por natureza sinto-me inclinado à indulgência. Encarregaram-me de uma missão sob determinadas condições; tenho de justificar a confiança que depositaram em mim. E é o que tenho a dizer-lhe! Agora, porém, conte-me o que há de novo lá pela Europa, em S. Petersburgo ou em Moscovo?
E o governador encheu Nekludov de perguntas, mais para lhe mostrar afabilidade do que por curiosidade.
— Para onde foi hospedar-se? No Dukov? Não se está mal, mas tinha ficado melhor no Siberiano.
Nekludov levantou-se para se despedir.
— Vem jantar comigo, não é assim? Às cinco. Fala inglês?
— Sim, falo.
— Tanto melhor! Janta connosco um viajante inglês que obteve licença em S. Petersburgo para visitar as prisões. Não falte, que teremos muito prazer na sua companhia! Reservo para então a resposta sobre o recurso da prisioneira e sobre o tal doente. hei de ver se será possível protege-los de qualquer maneira.
II
Depois de se ter despedido do governador, Nekludov dirigiu-se para o correio, tão bem disposto e tão cheio de atividade como já há muito tempo se não sentia.
O correio estava instalado numa grande, húmida e sombria sala abobadada. Sentados atrás do gradeamento divisório, uma dúzia de empregados ociosos conversava, enquanto no espaço reservado ao público se comprimia a multidão impaciente. Junto da porta um idoso empregado ocupava-se em carimbar os inumeráveis envelopes que um outro empregado lhe ia passando.
Contudo, Nekludov não esperou muito tempo. Aqui como em todas as partes o seu traje protegeu-o, tornando-se notado aos empregados palradores que inquiriram o que ele desejava.
Depois de ter entregado um cartão com o seu nome foi-lhe passado o volumoso correio que o aguardava na posta restante.
Eram cartas com valores declarados, cartas simples, livros, brochuras e jornais.
Para examinar de relance tudo isto Nekludov sentou-se num banco de pau, junto de um soldado que, com um registo na mão, esperava. De todas as cartas a que mais lhe chamou a atenção foi uma fechada por um grande envelope com um sinete majestoso. Rasgou o invólucro e procurou a assinatura: sentiu o sangue afluir-lhe ao rosto e o coração pulsar desordenadamente. A carta estava assinada por Sélenine, o seu antigo amigo, agora procurador régio do Senado, e junto vinha um papel selado. Era a resposta ao recurso da Maslova.
E essa resposta qual era? A confirmação da sentença? Nekludov estava impaciente por sabê-la e não se atrevia a ler a carta que lha revelaria! Por fim ganhou coragem para decifrar as poucas linhas que Sélenine lhe dirigia e suspirou aliviadamente! A Maslova fora atendida no seu pedido!
Sélenine escreveu-lhe o seguinte:
Meu caro: A nossa última entrevista impressionou-me profundamente. Tinhas razão no que afirmavas sobre a Maslova. Estudei o processo com mais vagar e convenci-me que a sua condenação resultava de um erro evidente. Infelizmente era impossível fazer anular a sentença; dirigi-me pois à comissão dos perdões e alegrei-me ao saber que já aí tinha dado entrada o requerimento da Maslova. Pude, graças a Deus, obter bom resultado e envio-te inclusa a cópia do decreto. A direção foi-me fornecida por tua tia a condessa Catarina. O decreto foi expedido à Maslova, para a cidade onde foi dada a sentença, mas creio que o enviarão à tua protegida para onde ela se encontre. Apresso-me pois em dar-te esta boa nova e abraço-te afetuosamente
Teu,
Sélenine.
O decreto cuja cópia Sélenine enviava era assim concebido:
Chancelaria de S. M. Imperial — Comissão dos perdões. Por ordem de S. M. Imperial participa-se a Catarina Maslova, que tendo S. M. tomado conhecimento da sua petição, dignou-se comutar a condenação de quatro anos de trabalhos forçados em quatro anos de desterro num governo qualquer da fronteira da Sibéria.
Feliz e bem vinda notícia! Tudo o que Nekludov aspirava ver realizado a favor de Katucha e de si próprio, estava concluído. Mas Nekludov percebeu logo que esta transformação na situação de Katucha lhe modificaria as suas relações para com ela. Enquanto condenada aos trabalhos forçados, o casamento que lhe propusera era uma união fictícia, que só serviria para lhe suavizar a dureza da sorte. Agora porém, o casamento tornava-se muito mais sério, pois não havia nada que os impedisse de viverem vida comum, como marido e mulher. E pensando nisto, Nekludov sentia-se dominado por um secreto terror. Perguntava a si mesmo, cheio de indecisão, se estaria preparado para uma vida em comum: e via-se obrigado a confessar que o não estava.
E a seguir vieram as recordações das relações entre Katucha e Simonson. O que significavam afinal as palavras que ela lhe dissera na véspera? E, ainda que consentisse em desposar Simonson, seria este enlace, para ela, a felicidade? Seria um bem para Nekludov?
Estas interrogações atropelavam-se-lhe no espirito sem poder responder-lhes, acabando por recorrer, mais uma vez, ao seu processo ordinário: «Amanhã, depois decidirei tudo isto! Agora tratemos de tornar a ver Katucha para lhe participar esta boa notícia e tratar das formalidades da sua libertação.» Para isso bastaria a cópia que lhe enviara Sélenine, pensava, enquanto não chegava o decreto oficial.
E Nekludov, deixando o correio, encaminhou-se para a prisão onde tinham sido alojados os prisioneiros que faziam parte da leva.
Capítulo 16
I
Ainda que o governador lhe tivesse formalmente proibido a entrada na prisão, Nekludov sabia por experiência que, o que se não pode obter das autoridades superiores, se obtém sem muito custo das autoridades inferiores.
Estava, pois esperançado em que o diretor da prisão lhe consentiria falar com a Maslova para lhe participar o despacho da sua petição, e esperava também poder obter informações, ao mesmo tempo, da saúde de Kriltzov e comunicar-lhe e a Maria Pavlovna o resultado da sua entrevista com o governador.
O diretor da prisão era um alto e gordo homem, de imponente aparência, com grandes bigodes e barba a unir-se-lhe nos cantos da boca. Recebeu Nekludov com toda a gravidade, declarando-lhe desde logo que só com autorização do governador é que era possível aos estranhos o falarem com os prisioneiros. E como Nekludov lhe objetasse que em todas as cidades e acampamentos lhe tinha sido facultada essa convivência, respondeu-lhe secamente:
— Creio e é possível; eu, porém, não consinto!
E o tom em que se exprimiu queria dizer: «Os senhores da capital imaginam que nos espantam e confundem! Enganam-se! Havemos de mostrar-lhes como nós cá na Sibéria também conhecemos os regulamentos e como os aplicamos se for preciso!»
Nekludov mostrou a cópia do decreto que perdoava à Maslova, mas nenhum efeito produziu naquele terrível homem. Não só recusou obstinadamente deixar Nekludov passar o limiar da porta da prisão, como nem lhe quis dizer se a leva já tinha chegado.
E como Nekludov lhe perguntasse ingenuamente se bastaria a cópia do decreto para libertar a Maslova, o diretor sorriu tão desprezivelmente que Nekludov se envergonhou da sua infantil pergunta. Como condescendência especial prometeu participar à Maslova o despacho da sua petição, acrescentando como obséquio não vulgar, que mal recebesse ordem dos seus superiores para a libertar não a reteria nem mais uma hora.
Nekludov, sem ter conseguido nada, regressou no seu carro para o hotel.
O cocheiro porém informou-o que a leva dos degredados tinha chegado havia uma hora e soube também qual a razão da inflexível severidade do diretor da prisão.
— É que a prisão estava atulhada! — dizia o cocheiro voltando-se na almofada. — Lá dentro há duas vezes mais prisioneiros do que devia haver. Por isso cada vez a coisa aumenta mais! Há dias em que morrem aos vinte!
II
O insucesso que coroara os passos de Nekludov junto do diretor da prisão, não tinha conseguido acalmar a atividade ardente de que se sentia dominado. Em vez de se recolher aos seus aposentos no hotel, como era sua intenção ao princípio, resolveu voltar ao palácio do governador, a fim de indagar nas secretarias se já teria chegado o decreto com o perdão da Maslova.
Desta vez foi a pé, satisfeito por ter encontrado um pretexto que o distraía dos pensamentos que o atormentavam e apesar de nas secretarias o informarem que não tinha chegado, sentiu-se feliz por poder passar quase uma hora a escrever cartas. Eram para sua tia, para Sélenine, para o advogado e em todas se queixava de uma demora que era naturalíssima.
Terminada a correspondência consultou o relógio e viu com satisfação que só tinha tempo para mudar de fato, se não quisesse chegar tarde a casa do governador.
Já na rua porém assaltou-o um importuno pensamento.
Como receberia Katucha a notícia da comutação da pena? Para onde iria residir? E Simonson que faria?
Que pensaria ela e que sentimentos prevaleceriam nela a seu respeito? Nekludov recordava a transformação que se operava nela, as suas visitas à prisão e aquele último sorriso que lhe dirigira através do gradeamento da carruagem do comboio, quando partira a leva.
«É preciso esquecer tudo, e extirpar todas estas recordações de dentro de mim!», dizia consigo procurando não pensar mais. «Cedo tornarei a vê-la e então tudo se decidirá!» E pôs-se a pensar na forma de obrigar o governador a conceder-lhe licença para frequentar a prisão.
O jantar do governador, organizado com o esplendor habitual nesta espécie de festins, causou prazer especial a Nekludov, há muitos meses privado não só do luxo como até das comodidades mais vulgares.
A esposa do governador, outrora dama da corte de Nicolau, era uma S. Petersburguesa dos velhos tempos, falando o francês corretamente e o russo muito perfeitamente.
Conservava-se muito direita, procurando nunca afastar, quando se movia, os cotovelos de junto do busto.
Percebia-se que tratava o marido com certa consideração, ao mesmo tempo altiva a desdenhosa; com os seus hóspedes porém, era de uma requintada amabilidade, distinguindo-os, segundo a respetiva posição de cada um, na partilha das suas finezas.
Nekludov foi acolhido como um membro da sociedade em que viviam e rodeado por insensíveis e finas homenagens, que mais uma vez, lhe incutiam no ânimo a crença na sua perfetibilidade e o deixavam plenamente satisfeito. Com a máxima discrição a generala deu-lhe a perceber que estava ao facto dos sentimentos, talvez extraordinários, mas nem por isso menos cavalheirescos, que o obrigavam a andar pela Sibéria e Nekludov percebeu que era tido por um ser excecional. E estas leves lisonjas juntas ao bem-estar e ao luxo do palácio do governador atuavam de tal forma em Nekludov que o obrigaram a deixar-se levar pelo prazer de comer um bom jantar, em companhia de gente amável e distinta.
Não pôde fugir à impressão de se encontrar de novo num meio que lhe era familiar, o seu verdadeiro meio, como se tudo o que vira em volta de si nos últimos meses não fosse mais do que um sonho de que agora, de repente acordasse.
Além do general, da esposa, do seu genro e sua filha, sentavam-se também à mesa um rico negociante, proprietário de minas de ouro, o diretor aposentado de uma secretaria e o viajante inglês em quem o governador já falara pela manhã a Nekludov.
E este ficou satisfeitíssimo por travar conhecimento com qualquer dos convivas.
O inglês, de aspeto arruivado e vendendo saúde, exprimia-se mal em francês, mas tornava-se eloquente sempre que falava na sua língua.
Sabia e vira muito; e Nekludov achava-lhe grande interesse ouvindo-o narrar recordações da América, da Índia, do Japão e da Sibéria.
Também o jovem e rico negociante possuidor das minas de ouro, filho de aldeões, mas vestindo à última moda, com botões de brilhantes no peito da camisa, saiu um companheiro adorável! Tinha a paixão dos livros, despendia quantias fabulosas em ações caritativas e estava cuidadosamente ao facto de todos os progressos das ideias liberais na Europa. Nekludov ficou satisfeitíssimo por travar conhecimento com ele, não só porque conversava muito agradavelmente, mas também porque era o exemplo de um fenómeno social novo e simpático: um enxerto da civilização europeia no vigoroso tronco da natureza russa.
O chefe da secretaria aposentado era um homenzinho de estatura média, barrigudo, cabelo raro e frisado, olhos azuis doces e sorriso de bondade. Falava pouco e com dificuldade de expressão, mas o governador considerava-o muito por saber que no exercício das suas funções fora sempre honrado; além disso era muito estimado pela esposa do governador, que na sua qualidade de pianista notável, o apreciava como excelente músico que era, com quem executava diversos trechos. E Nekludov estava numa tão benevolente disposição de espirito que até o conhecimento com o modesto chefe da secretaria aposentado, o encantou.
Porém, mais do que qualquer destes três convidados, produziu em Nekludov encantadora impressão o grupo da jovem filha do governador e do marido.
A jovem mãe não era formosa, mas o seu conjunto traduzia uma ingénua graça. Percebia-se que os seus pensamentos concentravam-se nos seus dois filhos.
O pai destes, que a desposara por amor, quase que contra vontade de sua família, era um aluno laureado pela Universidade de Moscovo. Sem ser desprovido de inteligência não havia ninguém tão competente no conhecimento das variações da população estrangeira na Sibéria, como ele.
Toda esta limitada sociedade recebeu Nekludov com a máxima deferência e delicadeza, encantados como estavam, também muito sinceramente, de travar conhecimento com ele, pois raras vezes sucedia aparecerem novas fisionomias.
O governador, exibindo o grande uniforme e a cruz branca no peito, mal viu Nekludov, dirigiu-se-lhe como se se tratasse de um velho amigo. Perguntou-lhe o que fizera desde pela manhã.
Nekludov não quis perder a ocasião, e informando-o da nova que soubera no correio, o perdão concedido à prisioneira por quem se interessava, e insistiu novamente em que lhe fosse concedida licença para visitá-la na prisão. O governador carregou as sobrancelhas e fingiu não o ouvir. Era evidente que não queria ouvir falar em assuntos de serviço enquanto jantava.
— Mais um copo de vinho! — disse em francês dirigindo-se ao viajante inglês.
Este passou o copo enquanto contava o que vira nesse dia: a catedral, algumas fábricas e para findar desejava visitar a grande prisão dos desterrados.
— Corre tudo às mil maravilhas — exclamou o governador dirigindo-se a Nekludov. — Irão ambos! Vou assinar um passaporte.
— Não deseja visitar a prisão hoje mesmo? — perguntou Nekludov ao inglês.
— Ia pedir-lhe agora autorização para realizar a visita ainda hoje! — disse o inglês ao governador. — Encontrarei os condenados nos seus aposentos e poderei ver a sua vida como é na realidade.
— Ah! Ah! O brejeiro quer ver a festa em todo o seu esplendor! — disse o governador, que até então dissimulara.
— Ah! Ah! Pois bem! há de vê-la! Já escrevi mais de vinte vezes para S. Petersburgo a reclamar e não me atendem! Talvez se resolvam a proceder quando lerem as mesmas reclamações na imprensa estrangeira!
Em seguida a conversação mudou de assunto. Falou-se da Índia, da expedição ao Tonkin, de que se ocupavam então os jornais, e da Sibéria. O governador citou então alguns exemplos da extraordinária e geral corrupção do funcionalismo siberiano.
Ao findar o jantar a conversa tornou-se mais arrastada ou pelo menos assim o pareceu a Nekludov.
Só quando foi servido o café numa sala próxima, e que a dona da casa interrogou o viajante a respeito de Gladstone, é que Nekludov teve a impressão que o inglês estava respondendo sensatamente.
Nekludov em seguida a ter comido um ótimo jantar, regado por bons vinhos, enterrara-se num confortável fauteuil e rodeado por aquela excelente companhia, cada vez se sentia mais bem disposto.
E quando a dona da casa se sentou ao piano, a pedido do inglês, executando com maestria incomparável a quinta sinfonia de Beethoven, com o acompanhamento do chefe da secretaria aposentado, um sentimento de satisfação e de contentamento de si próprio, como já há muito não sentira, invadira-o. Era como se reconhecesse de repente todo o seu valor.
O piano era excelente e Nekludov, familiarizado como estava com aquela sinfonia de Beethoven, confessou que raras vezes a ouvira tão bem interpretada,
Aí pelas alturas do andante teve de se esforçar por conter as lágrimas: enternecia-se por si, por Katucha e por Natália, sua irmã, que tanto amava.
Quando se preparava para agradecer à sua hospedeira o amável acolhimento e o prazer artístico que lhe proporcionara, e ao mesmo tempo para se despedir, a filha dos donos da casa dirigiu-se lhe e disse-lhe com o rosto afogueado:
— Há pouco pareceu-me que se interessava pelos meus filhos; quer vê-los?
— Ela imagina que toda a gente tem muito prazer em ver os seus filhos! — disse a mãe, sorrindo indulgentemente da falta de experiência da filha. — O príncipe não tem desejos de os ver!
— Ao contrário, minha senhora; terei imenso prazer! — disse Nekludov profundamente comovido por esta manifestação de amor maternal. — Imploro-lhe que mos deixe ver!
— Lá vai o príncipe com minha filha admirar os meus netos — exclamou rindo o governador, entretido no fundo do salão a jogar o vhist com seu genro e com o proprietário das minas de ouro. — Vamos, meu amigo, pague a sua entrada.
A jovem mãe, visivelmente perturbada na espectativa da opinião que os seus filhos provocariam, saiu do salão apressadamente, seguida por Nekludov. Era num amplo quarto todo decorado a branco e iluminado por um candeeiro com um abat jour escuro, para quebrar a intensidade da chama, que estavam colocados, um ao lado do outro, dois leitos de criança; sentada perto, estava a ama, uma siberiana forte e de saudável aspeto, que se embrulhara numa peliça branca.
Quando a senhora entrou, levantou-se e cumprimentou-a.
A jovem mãe mal entrou inclinou-se sobre uma das camas.
— Esta é a minha Kátia! — disse, afastando o cortinado para mostrar o rosto encantador de uma criança de dois anos, guarnecido por fartos cabelos, e que, de boca aberta, dormia tranquilamente. — É bonita, não é? Imagine que ainda não tem dois anos!
— Adorável!
— E aqui está o Vaska, como lhe chama o avô. É outra fisionomia! Um puro siberiano, não é verdade?
— É um belo rapaz! — respondeu Nekludov fitando a rechonchuda criança.
E a mãe, em pé junto deles, sorria docemente.
E, de súbito, Nekludov recordou-se dos grilhões, das cabeças rapadas, dos rostos esmurrados, de Kriltzov moribundo e de Katucha. E um horroroso sofrimento apoderou-se dele. E a aumentar-lhe ainda a intensidade do sofrimento contribuía o ver-se privado de um ideal de felicidade calmo e puro como o que presenciava!
Prodigalizando elogios à beleza das crianças, regressou, acompanhado pela mãe, ao salão onde o aguardava o inglês, para, como tinham combinado, principiar a visita à prisão.
Fizeram-se as despedidas, trocaram-se agradecimentos e ofertas e por fim Nekludov e o inglês deixaram a hospitaleira casa do governador.
Fora o tempo mudara. Caía, compactamente, neve que já atapetara o pátio, guarnecera as árvores e as garupas dos cavalos. Nekludov e o seu companheiro entraram para o carro e mandaram largar para a prisão.
Capítulo 17
Ainda que a neve tivesse enfeitado tudo, teto, pórtico e pátio, com uma deslumbrante e alva camada, a prisão com as suas lâmpadas a arderem em frente da entrada, onde também estava a sentinela, nada perdera do seu sinistro aspeto.
Os visitantes foram recebidos no limiar pelo diretor, de majestosa aparência, que à luz dos candeeiros leu cuidadosamente o passaporte que o governador dera a Nekludov; resignado a sofrer os caprichos do seu superior, encolheu os ombros e pediu aos visitantes que o acompanhassem até à secretaria. Aí chegados inquiriu deles o que desejavam ver.
Nekludov disse-lhe que em primeiro lugar queria ter uma entrevista com a Maslova e que o seu companheiro desejava pela sua parte conhecer qual era o regime da prisão para poder em seguida realizar com proveito a visita geral.
O diretor mandou um carcereiro buscar a Maslova e guiá-la para a secretaria.
— Quantas pessoas pode conter a prisão? — perguntou o inglês por intermédio de Nekludov. — Quantas contém na ocasião presente? Quantos homens? Quantas mulheres? Quantas crianças! Quantos forçados, desterrados ou voluntários? Quantos doentes?
E Nekludov ia traduzindo as perguntas do inglês e as respostas do diretor, incapaz, contudo, de lhes compreender a significação, perante a perspetiva da entrevista com Katucha, que o aniquilava.
E quando no meio de uma frase que ia traduzindo, ouviu passos no corredor e em seguida a porta se abriu e deixou passar Katucha, com o mesmo lenço branco na cabeça — repetição de uma cena que durante três meses fora frequente — sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias — porque talvez não a tornasse mais a ver.
«Quero viver, ter uma família, ter crianças; quero ter a minha parte de felicidade!», segredava-lhe uma voz que havia muito deixara de ouvir.
Ergueu-se e deu alguns passos em direção a Katucha.
Está, sem dizer nada, parecia excitada e com o rosto muito corado, fitava-o de tal maneira que Nekludov sentiu-se magoado. Era uma expressão nova no seu olhar, qualquer coisa como a de uma resolução firme ou paixão ardente.
E, ora corando, ora empalidecendo, enrolava e desenrolava os dedos nas extremidades da jaqueta, fitando Nekludov umas vezes rosto a rosto, outras então com o olhar timidamente velado pelas pálpebras.
— Já sabes a notícia? — perguntou Nekludov.
— Sim, já ma participaram. Eu porém já tinha decidido... Caso-me com Vladimir Ivanovitch...
E falava apressadamente sem se deter.
Percebia-se que estudara as frases que tinha de dizer.
— Como! Com Vladimir Ivanovitch? — exclamou Nekludov.
Katucha interrompeu-o:
— Então! Se ele quer que eu viva com ele?!
E deteve-se como que assustada. Depois continuou:
— Desde que ele quer que eu viva com ele, que melhor posso desejar? Talvez consiga tornar-me útil e alegrar-lhe a existência! Poderei porém...
Só duas razões explicavam esta resolução: ou uma súbita paixão por Simonson e nesse caso não precisava do sacrifício de Nekludov, ou, continuando a amar este, querer aliviá-lo do seu pesado encargo unindo a sua existência à de Simonson.
Nekludov sem dificuldade compreendeu a situação, envergonhou-se e enrubesceu.
— Se o amas...! — disse.
— Como não o estimar?! Se nunca conheci homens daquela espécie! E então Vladimir Ivanovitch que difere de todos os demais!
— Incontestavelmente — respondeu Nekludov em voz trémula. — É um excelente homem e creio...
Ela de novo o interrompeu como se receasse ouvir o que ia a dizer, ou quisesse ela própria dizer tudo.
— Não, não! Perdoe-me por não poder cumprir o seu desejo... — murmurou. — Sim, assim deve ser, porque também precisa de viver!
O que a si mesmo dissera, agora e em frente dos leitos das duas crianças em casa do governador, ela, a Katucha, vinha repetir-lho!
Porém, depressa afugentou estes pensamentos, que se desfizeram sem deixar traços. Outros sentimentos o agitavam: tinha vergonha, sentia-se medroso, e dominava-o estranha perturbação.
— Então entre nós tudo acabou? — perguntou.
— Sim, é de crer que sim! — respondeu ela, sorrindo constrangida.
— A minha felicidade seria poder ser-te útil...
— Nós, porém, de nada necessitamos!
(E quando pronunciou o nós, fitou Nekludov).
— Já lhe sou devedora de muito. Sem si que...
E quis dizer qualquer coisa, mas a voz atraiçoou-a.
Baixou a cabeça e não disse mais nada.
— De nós dois não sei qual é o maior devedor! Deus regulará essas contas! — respondeu Nekludov.
— Sim, assim é, Deus que nos vê! — murmurou ela.
— Are you ready? (Está pronto?) — perguntou o inglês.
— Vou já! — respondeu Nekludov; e procurando dominar-se, perguntou a Katucha como ia Kriltzov.
Katucha sossegara.
Respondeu quase tranquilamente o que sabia: que Kriltzov sofrera muito com a viagem e que mal tinha chegado fora enviado para a enfermaria.
Maria Pavlovna pedira licença de acompanhar, mas fora-lhe recusada.
— E agora volto para dentro! — disse, vendo que o inglês se impacientava.
— Ainda não me despeço definitivamente, havemos de tornar a ver-nos! — disse Nekludov, estendendo-lhe a mão.
— Não, adeus, adeus! — respondeu Katucha resolutamente.
E num segundo os seus olhares cruzaram-se; e nos olhos levemente estrábicos de Katucha, no seu resignado sorriso, na forma como pronunciou a palavra adeus, Nekludov percebeu claramente que das duas explicações aceitáveis do seu procedimento, era a segunda verdadeira.
Compreendeu que ela o amava, exatamente como na noite em que o abraçara à saída da igreja, de todo o seu coração, e compreendeu também que se casava porque dizia a si mesma que de outra forma teria de sacrificá-lo e a toda a sua vida.
O casamento com Simonson era a liberdade.
E apertando a mão que ele lhe estendera, voltou-se e saiu precipitadamente.
O inglês estava desejoso por principiar a visita, mas percebendo a emoção que agitava Nekludov, teve escrúpulos e fingiu tomar apontamentos na carteira.
Nekludov sentara-se num banco, um pouco afastado. O coração trasbordava-lhe de vergonha e desespero e assim se conservou, sem pensamentos, durante minutos.
— Então, senhores, querem começar a percorrer as salas? — perguntou o diretor.
Nekludov ergueu-se sobressaltadamente. O inglês fechou a carteira e principiou a marcha.
Capítulo 18
I
Depois de terem atravessado um sombrio e mal cheiroso corredor no qual se acumulavam dejeções no próprio soalho, Nekludov e o inglês, guiados pelo diretor, entraram na primeira sala ocupada pelos condenados a trabalhos forçados.
A maioria dos presos, cujo número aproximado era de setenta, estava já deitada nos catres que haviam sido unidos, de maneira a dormirem todos encostados uns aos outros.
À chegada dos visitantes ergueram-se bruscamente, com grande tinido de grilhões; Nekludov notou o brilho peculiar de todos os crânios, recém-barbeados.
Dois deles, porém, não se levantaram.
Eram um rapaz congestionado e tremente de febre, e outro mais velho, que gemia incessantemente.
O inglês quis saber se o rapaz estava doente há muito tempo.
Que não, somente desde a manhã — responderam-lhe. — O outro é que sofria há muito do estômago e esperava-se que houvesse um lugar vazio na enfermaria para ir ocupá-lo.
Depois, o inglês pediu a Nekludov para lhe traduzir algumas palavras que queria dizer aos prisioneiros, e nessa ocasião informou-o que ao mesmo tempo que viajava na Sibéria para estudar o regime de deportação, aproveitava o privilégio de entrar em certos lugares para fazer propaganda evangélica.
— Eu queria dizer-lhes que o Cristo morreu para os salvar. Basta que creiam nele e serão salvos! Eis aqui os livros onde isto está escrito!
E enquanto pedia a Nekludov para lhe traduzir este pequeno discurso, tirava dos bolsos exemplares do Novo Testamento encadernados em cartão de diversas cores. Imediatamente estenderam-se na sua direção umas vinte mãos grosseiras, de unhas sujas, repelindo-se umas às outras. Feita a distribuição do folheto, passaram a outra sala.
Aqui deram-se as mesmas peripécias. Havia a mesma falta de ar, o mesmo cheiro, a mesma imagem dependurada entre as janelas com o balde das dejeções em frente.
Mais de sessenta prisioneiros estavam também já deitados, uns ao lado dos outros, e quando os visitantes entraram ergueram-se sobressaltadamente. Aqui, porém, havia três homens que não puderam erguer-se. Dois ainda se levantaram um pouco mas o terceiro nem olhou para os visitantes.
O inglês repetiu o discurso. Nekludov traduziu-o e distribuíram-se alguns exemplares dos Evangelhos.
Na sala imediata havia também três doentes. O inglês perguntou ao diretor porque é que não reuniam todos os doentes num só aposento. O diretor respondeu que os doentes não queriam e que as suas doenças não eram contagiosas.
Diariamente eram visitados por um enfermeiro que lhes prestava todos os cuidados.
— Há duas semanas que ninguém lhe põe a vista em cima! — murmurou uma voz.
O diretor não respondeu e passou para outra sala. E nesta, como nas anteriores e nas seguintes, oferecia-se aos visitantes o mesmo espetáculo e tinham lugar as mesmas cenas, quer fossem desterrados ou condenados ao encarceramento.
Nekludov e o seu companheiro só viram homens esfomeados, ociosos, doentes inexpressivos ou astutos e corrompidos, mais semelhantes a animais do que a seres humanos.
Ao fim de meia hora o inglês tinha esgotado a sua provisão de Evangelho e cessou de fazer traduzir a sua alocução.
Sentia-se também com a energia deprimida pelo horror de tudo que presenciara e pelo fétido que empestava a atmosfera. Contentava se em atravessar maquinalmente as salas murmurando All right, em resposta às informações que lhe fornecia o diretor sobre o número de presos e qualidade dos castigos.
Nekludov caminhava como um sonâmbulo, sem ver nada, sem nada ouvir, sem forças para ficar ou sair, sentindo-se de minuto para minuto mais cheio de vergonha e desespero.
II
Numa das últimas salas que visitaram, Nekludov foi despertado do seu torpor por um curioso encontro. Era o velhinho que, pela manhã fora seu companheiro na travessia do rio na jangada.
Agora estava sentado no soalho, coberto com uma camisa esfarrapada e com calças ainda mais esfarrapadas, fitando os visitantes com olhar severo.
O seu enrugado rosto ainda parecia mais concentrado e mais animado do que na jangada, e ao contrário dos demais prisioneiros que se tinham levantado quando o diretor entrou, deixou-se ficar sentado.
O olhar fuzilava-lhe e as sobrancelhas contraíram-se-lhe de cólera.
— A pé! — bradou-lhe o diretor.
O velho sorriu desdenhosamente e encolheu os ombros.
— Os teus lacaios é que se levantam à tua passagem! Eu, porém, não sou teu lacaio! Tu estás marcado na testa!... — continuou o velho, exaltadamente.
— O quê! — perguntou o diretor ameaçadoramente.
— Eu sei quem é este homem — apressou-se Nekludov a intervir. — É um original! Porque é que o prenderam?
— Foi-nos enviado como vagabundo pela polícia. Bem lhe pedimos que não nos mandem ninguém, mas fazem ouvidos de mercador! — informou o diretor.
— Então pelo que vejo também fazes parte do exército do Anticristo? — disse o velho, dirigindo-se a Nekludov.
— Não, aqui apenas sou um visitante! — respondeu Nekludov.
— Então vieste ver como o Anticristo tortura os homens? Pois bem, olha! Agarra-os, mete-os nas gaiolas e aqui está todo um exército! E como o dever dos homens é ganhar o pão com o suor do seu rosto, o Anticristo conserva-os encerrados, alimenta-os sem trabalharem, como se fossem porcos, ou para criar porcos.
— Que está ele a dizer? — perguntou o inglês.
Nekludov respondeu que o velho acusava o diretor e os seus superiores de conservarem prisioneiros encarcerados contra toda a justiça.
— Pergunte-lhe qual a maneira, segundo o seu modo de ver, de proceder para com os que não cumprem a lei? — disse o inglês sorrindo.
Nekludov traduziu a pergunta.
O velho desatou a rir mostrando a boca onde abundavam os dentes podres e quebrados.
— A lei — exclamou desprezivelmente. — Tu é que podes falar! A terra foi toda açambarcada por ele, e despojando os homens de todas as suas riquezas, desfez-se dos que lhe resistiam. Escreveu então a lei dizendo que não se deve matar ou roubar! Afirmo-te que antes disso não a teria redigido.
Nekludov traduziu esta imprevista resposta e o inglês sorriu novamente.
— Pergunte-lhe como, afinal, se deve proceder, nesta época, para com os ladrões e assassinos.
— Responde-lhe — disse o velho a Nekludov, que lhe transmitira a pergunta —, responde-lhe que o essencial é fazer desaparecer da fronte a marca do Anticristo e aquele que o conseguir terá bastante ocupação para deixar os assassinos e ladrões! Traduz-lhe isto lá para a língua dele.
— É um original que diverte! — disse o inglês ao ouvir a resposta; e sorrindo novamente, abandonou a sala.
Nekludov ficou um pouco mais para trás escutando o que o velho lhe dizia.
— Cumpre o teu dever e não te importes com os outros. Só Deus castiga e recompensa. Nós nada sabemos!
E como se renunciasse fazer a conversão de Nekludov, continuou:
— Não — exclamou — nada tenho a dizer-te. Vai, vai, segue o teu caminho. Já viste como os servos do Anticristo alimentam os piolhos com criaturas humanas. Vai, vai divertir-te para outra parte.
III
Quando Nekludov se reuniu de novo aos seus companheiros, encontrou o inglês parado em frente de uma porta do corredor que comunicava com um quarto pouco claro, perguntando ao diretor para que o utilizavam. O diretor respondeu-lhe que se destinava a depósito mortuário.
— Na verdade? — exclamou o inglês quando Nekludov lhe traduziu a resposta. — Gostaria de poder entrar!
O diretor mandou buscar um lampião e conduziu o visitante ao quarto mortuário. Era uma vasta sala muito semelhante às demais. Num canto amontoava-se sacaria e num outro pilhas de lenha; no centro, estirados em catres, quatro cadáveres.
O primeiro tinha uma camisa e um par de calças vestidos, a barba em bico, aparada, e meia cabeça rapada. O frio enregelara-lhe já os membros; as mãos, que tinham sido unidas sobre o peito, separavam-se e os pés, nus, da mesma forma tinham-se desunido, em forqueta. A seu lado estava estendida uma velha de blusa e saias brancas, rosto enrugado, cabelo raro e nariz chato. O terceiro cadáver era o de um homem com o pescoço envolto num lenço azul. Nekludov julgou reconhecer o lenço, que vira em qualquer parte.
Aproximou-se e examinou o cadáver de perto. A barba era negra e um pouco encaracolada, o nariz aquilino e firme, a testa ampla e branca, o cabelo anelado e raro no alto da cabeça: Nekludov reconheceu estes traços bem seus conhecidos e não queria acreditar no que via.
Na véspera ainda essas feições estavam animadas pela paixão e contraíam-se com o sofrimento: agora via-as imóveis e serenas, terrivelmente belas.
Sim, era Kriltzov, ou antes, os despojos da sua vida corporal!
«Porque sofreu? Porque viveu? Alcançaria, por fim, o conhecimento da verdade?», interrogava-se Nekludov, examinando o cadáver.
E respondia a si mesmo, dizendo que a verdade não existia e que só a morte era positiva.
E surpreendeu-se a invejar Kriltzov que cessara de sofrer.
Sem procurar despedir-se do inglês, que continuava a examinar o quarto com interesse particular, Nekludov apressou-se em sair da prisão, para no seu quarto poder meditar com sossego em tudo que tinha acontecido durante essa tarde.
Capítulo 19
Chegado aos seus aposentos, Nekludov principiou a andar de um para outro lado, agitadamente. Reconhecia que entre ele e Katucha estava tudo acabado e que nunca mais lhe poderia ser útil; e a este pensamento sentia-se penetrado de tristeza e de vergonha. Mas confessando que esses pensamentos não podiam preocupá-lo mais no futuro, dizia consigo que um outro assunto se lhe impunha para resolver, impelido por uma força imperiosa.
Estava na presença de qualquer coisa aterradoramente má, que lhe competia destruir, e que, contudo, não sabia como resolver. Era essa má força que o conduzira à perdição, que desgraçara Katucha e que ainda agora derribara o admirável e querido Kriltzov, como que adormecido na prisão, com o lenço azul a resguardar-lhe o pescoço.
E Nekludov tornou a ver essas centenas de homens, encerrados em atmosferas pestilenciais por governadores, procuradores ou diretores de prisões, gente indiferente. E de novo evocou os olhares irritados do velhinho que desafiava «os servos do Anticristo». Mais uma vez também, apareceu-lhe no quarto mortuário o belo rosto cor da cera de Kriltzov. E isto tudo rodeando-o como uma parcela da vida, causava-lhe terríveis pesadelos. E mais uma vez perguntou a si próprio se seria ele Nekludov, que teria endoidecido ou se aqueles tidos por sábios e que toleravam tal vida é que o estavam.
Cansado de andar atirou-se para cima do sofá: maquinalmente abriu um dos pequenos evangelhos que o inglês lhe dera e que ao esvaziar os bolsos da peliça colocara em cima da mesa.
«Há quem pretenda encontrar aqui resposta para tudo», pensou, abrindo ao acaso o livrito.
Leu. Abrira num capítulo do evangelho de S. Mateus:
1. Naquela hora chegaram-se a Jesus os seus discípulos dizendo: Quem julgas tu que é maior no reino dos céus?
2. E chamando Jesus a um menino pô-lo no meio deles e disse:
3. Na verdade vos digo que se vos não fizerdes como meninos, não haveis de entrar no Reino dos Céus.
4. Todo aquele, pois, que se fizer pequeno como este menino, esse será o maior no Reino dos Céus.
— Sim, assim é! — confessou consigo Nekludov, recordando como só quando se fizera pequeno como uma criança disfrutara a paz e a alegria de viver.
E em seguida leu:
5. E o que receber em meu nome um menino tal como este, a mim é que recebe.
6. O que escandalizar porém, a um destes pequeninos, que creem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma mó de atafona, e que o lançassem ao fundo do mar.
Nekludov interrompeu a leitura.
«Que quererá dizer ‘o que receber?’ e também ‘em meu nome?’», interrogava-se, percebendo que tais palavras não tinham para ele significação alguma. «E quem vem cá fazer esta ‘mó de atafona’ atada ao pescoço para o lançar ‘ao fundo do mar’? Não, nada disto se refere a mim! Não é inteligível, nem forma sentido!»
E recordou-se que no decorrer da sua vida por várias vezes tentara penetrar nos evangelhos e que sempre fora repelido pela falta de clareza de certas passagens.
Retomou, contudo, o livro e leu os quatro versículos seguintes. Jesus falava de «escândalos», da condenação de certos homens ao «fogo eterno» de anjos pertencentes a certas crenças e que veem «a face do Pai no Céu».
«É pena que tudo isto seja tão pouco claro e tão mal redigido!», dizia para si, «porque percebe-se que há aqui qualquer coisa bela que seria preferível compreender melhor». E de novo continuou a ler:
11 Porque o filho do Homem veio a salvar o que havia perecido.
12. Que vos -parece? Se tiver alguém cem ovelhas e se se desgarrar uma delas, porventura não deixa as noventa e nove no monte e vai buscar a que se extraviou?
13. E se acontecer achá-la, digo-vos em verdade, que maior contentamento recebe ele por esta, do que pelas noventa e nove que não se extraviaram.
14. Assim não é vontade de vosso Pai que está nos Céus, que pereça um destes pequeninos.
«Sim, não resta dúvida que a vontade do Pai é que não morram! O que não impede que morram centenas, milhares até! E nenhum meio de os salvar!», pensava Nekludov.
E leu mais os seguintes versículos:
21. Então chegando-se Pedro a ele perguntou: Senhor, quantas vezes poderá pecar meu irmão contra mim, que eu lhe perdoe? Será até sete vezes?
22. Respondeu-lhe Jesus: Não te digo que até sete vezes, mas que até setenta vezes sete vezes.
23. Por isso o Reino dos Céus é comparado a um rei que quis tomar contas aos seus servos.
24. E tendo começado a tomar as contas apresentou-se-lhe um que lhe devia dez mil talentos.
25. E como não tivesse com que pagar mandou o seu senhor que o vendessem a ele e a sua mulher e a seus filhos e a tudo que tinha, para ficar pago da dívida.
26. Porém, o tal servo lançando-se-lhe aos pés lhe fazia esta súplica, dizendo: Tem paciência comigo que eu te pagarei tudo.
27. Então o senhor, compadecido daquele servo, deixou-o ir livre e perdoou-lhe a dívida.
28. E tendo saído este servo encontrou um dos seus companheiros que lhe devia cem dinheiros. E lançando-lhe a mão o afogava dizendo: Paga-me o que me deves.
29. E o companheiro lançando-se lhe aos pés o rogava dizendo: Tem paciência comigo que eu te satisfarei tudo.
30. Porém, ele não quis: mas retirou-se e fez que o metessem na cadeia até pagar a dívida.
31. Porém os outros servos seus companheiros, vendo o que se passava, sentiram-no fortemente; e foram dar parte a seu senhor de tudo o que tinha acontecido.
32. Então o fez vir seu senhor, e lhe disse: Servo mau, eu perdoei-te a dívida toda porque me vieste rogar para isso.
33. Não devias tu logo compadecer-te igualmente do teu companheiro, assim como também eu me compadeci de ti?
— Será então isto? — exclamou de repente Nekludov, depois de ter lido estas palavras. — Será esta então a resposta que eu procuro?
E a voz íntima de todo o seu ser respondia-lhe: Sim, é isto, nada mais do que isto!
Produziu-se em Nekludov um fenómeno que muitas vezes se produz nas pessoas habituadas à vida espiritual.
Um pensamento que a princípio parece estranho, paradoxal, fantasista, torna-se numa verdade, evidente, simples e clara, quando exemplificado pela nossa experiência, até então inconsciente. Assim adquiriu raízes na convicção de Nekludov o pensamento que o único remédio para males de que sofriam os homens consistia no conhecimento por parte deles de uma dívida para com Deus e por consequência na privação do direito de julgar e de castigar os seus semelhantes.
Compreendeu então, de repente, que o terrível mal que presenciara nas prisões e nos acampamentos, bem como a tranquila segurança dos que o motivavam ou toleravam, provinha unicamente de uma causa muito simples. Tudo isso provinha de que os homens tinham empreendido uma tarefa impossível; maus por natureza tinham empreendido corrigir o mal. A humanidade viciosa empreendia corrigir os homens viciosos. Ora como viciosos só podiam propagar o vício em vez de o restringir, corruptos só podiam espalhar a própria corrupção. A resposta que Nekludov procurara com ânsia sem a encontrar era a que Jesus dera a Pedro: que se devia perdoar sempre não sete vezes mas setenta vezes sete vezes.
— Mas não! É impossível admitir que seja tudo tão simples! — dizia Nekludov. Contudo, sabia desde então com absoluta evidência, que não só era a única resposta sob o ponto de vista teórico, como também sob o ponto de vista prático e imediato.
Capítulo 20
Parecia-lhe ainda tudo estranho e incrível, de habituado que estava a opiniões opostas, mas sentia e compreendia que não havia duvidas possíveis.
A vulgar objeção que consiste em perguntar o que se deve fazer dos ladrões e dos assassinos, perdera, para ele, toda a significação, Com efeito, tal objeção só seria racional se os castigos contribuíssem para diminuir o número de crimes ou se corrigissem os criminosos; a experiência, porém, provara a Nekludov que era o contrário que sucedia.
Ao fim de tantos séculos de encarniçada perseguição ao crime, conseguira-se suprimi-lo ou atenuá-lo? Longe de o suprimir, longe mesmo de o atenuar só se contribuíra ativamente para o seu desenvolvimento, quer depravando os prisioneiros com as condenações, quer acrescentando aos crimes desses prisioneiros — crimes de ladrões e assassinos — os outros, os dos criminosos que se chamam conselheiros do Supremo, procuradores régios, carrascos, juízes de instrução, polícias e carcereiros.
E, de súbito, Nekludov compreendeu que não podia deixar de ser assim. Compreendeu que se a sociedade e a ordem social continuavam a existir não era devido aos magistrados e à sua crueldade, mas sim porque apesar deles, os homens continuavam a amar-se uns aos outros e a apiedarem-se da mesma forma.
O Evangelho despertara, afinal, o coração de Nekludov, revelando-se-lhe, como a todo aquele que se resolve a estudá-lo. E Nekludov quis ainda ler, nesse dia, mais algumas páginas.
Abriu-o no Discurso da Montanha, que sempre o comovera imenso. Agora, porém no decorrer da leitura percebeu que esse discurso não era apenas um repositório de pensamentos nobres e imagens comoventes, expondo um ideal moral quase irrealizável.
Só então percebeu que esse Discurso se limitava a expor preceitos perfeitamente claros, simples, práticos e fáceis de aplicar, e cuja aplicação teria como consequência fundar uma sociedade humana absolutamente nova, suprimindo a violência e a injustiça e no limite da fraqueza humana, inaugurar na terra o Reino dos Céus. E esses preceitos eram cinco:
O primeiro consiste em dizer que não só o homem não deve matar o seu semelhante, como até não deve irritar-se com ele, não o acusar nem desprezar, e que se houver questionado com outro, deve reconciliar-se, antes de fazer ofertas a Deus, isto é, unir-se a Deus pela oração.
O segundo consiste em dizer que o homem não se deve entregar à sensualidade, nem profanar a beleza da mulher fazendo dela um instrumento de prazer, mas que deve, sendo casado, considerar-se ligado a ela para sempre.
O terceiro consiste em dizer que o homem não deve jurar, por não ser senhor de si nem de ninguém.
O quarto consiste em dizer que não só o homem não deve exigir olho por olho, mas que deve, quando esbofeteado na face direita, oferecer a esquerda. Que deve suportar as ofensas com resignação, não se recusando a nada que os demais homens exijam dele.
E quinto consiste em dizer que o homem não só não deve odiar os seus inimigos, nem lutar contra eles, antes deve amá-los, ajudá-los e servi-los.
Nekludov estendeu-se num sofá e pôs-se a refletir. Recordando a miséria e a hediondez da atual vida humana, imaginou o que ela seria se os homens lhe aplicassem os mandamentos que lera. E o seu desânimo desapareceu, sentindo a alma transbordante de entusiasmo. Ao fim de uma vida de sofrimento por entre as trevas, alcançara por fim a doce, tranquilizante e acalentadora luz.
Nessa noite não dormiu. Dominado pela alegria da descoberta que realizara, leu os Evangelhos do princípio ao fim. E, como acontece a todos a quem o sentido geral dos Evangelhos se revela, espantava-se durante a leitura, de compreender, claramente, a significação das palavras que muitas vezes lera como simples imagens, sem nunca lhes ligar importância. Como uma esponja lançada num vaso se embebe de toda a água que pode obter, assim ele aspirava tudo o que nesse livro existe de útil, importante e grave. E parecia-lhe que há muito lhe eram familiares os princípios que agora recebia, porque lhe confirmavam e explicavam muitas coisas que pressentia serem verdadeiras, mas que não ousava reconhecer como tal.
Agora, porém, reconhecia as como verdadeiras e acreditava nelas. Acreditava que seguindo os preceitos do Evangelho, os homens podem elevar se ao mais alto grau de felicidade de que são suscetíveis, e acreditava também que era mais preferível para qualquer não fazer nada, do que deixar de aplicar esses preceitos. Reconhecia que só eles explicavam a razão de ser da vida humana e que os homens, afastando-se deles, cometiam um crime que lhes acarretava logo o castigo.
Era esta a conclusão que Nekludov tirava da leitura de todo o livro e que a parábola dos vindimadores exprimia melhor que todo ele.
Os vindimadores tinham imaginado que a vinha que cultivavam lhes pertencia e não ao amo, e que tudo que ela continha também era deles e que a sua única obrigação consistia em aproveitá-la para seu gozo pessoal. O amo fora esquecido e os seus emissários assassinados.
«É o que nós fazemos», pensava Nekludov. «Vivemos na crença que somos senhores da nossa vida e que dela devemos extrair todo o prazer. Tal crença é insensata. O homem não veio ao mundo por sua vontade; alguém o enviou e por algum motivo. Nós, porém, decidimos esquecer esta verdade, imaginando que só devemos viver para nosso prazer. Espantamo-nos, pois, quando sofremos e nos sentimos mal dispostos, como se não fora essa a consequência fatal da nossa posição de operários que recusam obedecer às ordens do Senhor. E a vontade do nosso mestre está expressa naquele livrinho: Procurai o Reino de Deus e o mais ser-vos-á dado em excesso. E é esse excesso que nós procuramos, admirando-nos de o não poder achar! Sim, tal foi a minha vida! Agora, porém, essa acabou e principia uma outra!»
E, com efeito, desde essa noite começou para Nekludov uma vida nova; nova não só porque cessando de pensar em si, se esforçava em viver para servir os outros, mas também porque tudo que depois dessa noite lhe aconteceu, tudo o que viu e tudo o que fez, tinha aos seus olhos uma significação diferente da do passado. E o futuro mostrará qual será o fim deste novo período da sua existência.
1 Seita religiosa.
2 Célebre pintor russo.
3 Administração rural.
4 Associação operária.
5 Calçado especial dos russos feito de casca de árvores.
6 Os filiados nos partidos avançados, na Rússia, usam o cabelo cortado rente.
Leâo Tolstoi
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