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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RESTAURA-ME
RESTAURA-ME

 

 

                                                                                                                                                 

 

 

 

 

Ao longo da vida, sofri de ansiedades ocasionais, mas geralmente conseguia administrar o problema. No passado, minhas experiências sempre foram associadas a esse trabalho. A meu pai. Mas conforme fui ficando mais velho também fui me tornando menos impotente, e encontrei maneiras de administrar os desencadeadores da ansiedade; encontrei locais seguros em minha mente; informei-me sobre terapia cognitivo-comportamental; e, com o tempo, aprendi a superar. A ansiedade passou a surgir com menor intensidade e frequência. Muito raramente, porém, ela se transforma em outra coisa. Alguma coisa que foge completamente do meu controle.

E dessa vez não sei o que fazer para salvar a mim mesmo.

Não sei se sou forte o bastante para combatê-la, não agora que nem sei mais pelo que estou lutando. E acabei de cair de costas no chão, minha mão pressionada contra a dor no peito, quando, de repente, a porta se abre.

Sinto o coração pegar no tranco.

Ergo a cabeça um centímetro e espero. A esperança nas alturas.

– Ei, cara, que merda, onde você está?

Bufo ao soltar a cabeça. Tinha que ser justamente ele...

– Olá? – Passos. – Sei que está aí. E por que esse quarto está esta zona? Por que tem caixas e lençóis espalhados para todo lado?

Silêncio.

– Cadê você, irmão? Acabei de encontrar Juliette e ela estava surtando, mas não me contou o motivo. Sei que você está se escondendo aqui como um...

E pronto, aqui está ele.

O coturno bem ao lado da minha cabeça.

Encarando-me.

– Oi – cumprimento. É tudo o que consigo dizer nesse momento.

Kenji baixa o olhar na minha direção, embasbacado. – Que porra está fazendo aí no chão? E por que não está vestido? – E, em seguida: – Espere um pouco... Estava chorando?

Fecho os olhos, rezo para morrer.

– O que está acontecendo? – De repente, a voz dele chega mais perto do que eu a percebi antes, e me dou conta de que Kenji deve estar agachado ao meu lado. – Qual é o problema, cara?

– Não consigo respirar – sussurro.

– Que história é essa de não conseguir respirar? Ela atirou em você de novo?

Essa lembrança me atravessa. Mais uma dor excruciante.

Meu Deus, como odeio esse cara.

Engulo em seco, forte.

– Por favor. Vá embora.

– É, não. – Ouço o barulho de seus movimentos quando ele se senta ao meu lado. – O que é isso? – pergunta, apontando para o meu corpo. – O que está acontecendo com você agora?

Enfim, desisto. Abro os olhos.

– Estou tendo um ataque de pânico, seu cuzão sem consideração. – Tento respirar. – E gostaria de ter um pouco de privacidade.

Kenji arqueia as sobrancelhas.

– Você está tendo um o quê?

– Ataque... – Ofego. – De pânico.

– Que merda é essa?

– Tem remédios. No banheiro. Por favor.

Ele me olha de um jeito estranho, mas faz o que peço. Volta em um instante com o frasco certo, e me sinto aliviado.

– É este?

Balanço a cabeça em um gesto afirmativo. Na verdade, nunca tomei esse medicamento antes, mas o guardei a pedido do meu médico. Para situações de emergência.

– Quer água para engolir o remédio?

Balanço a cabeça. Com mãos trêmulas, arranco o frasco dele. Não me lembro qual é a dosagem, mas, como muito raramente tenho um ataque tão grave assim, faço uma suposição. Enfio três comprimidos na boca e os mastigo com violência, sentindo o gosto amargo e horrível na língua.

Apenas alguns poucos minutos depois, quando o remédio começa a fazer efeito, o caminhão metafórico enfim é arrancado do meu peito. Minhas costelas magicamente se reajustam. Os pulmões se lembram de fazer seu trabalho.

E então me sinto mole. Exausto.

Lento.

Forço-me a ficar de pé.

– Será que agora pode me contar o que está acontecendo aqui? – Kenji continua me encarando, braços cruzados na altura do peito. – Ou devo ir em frente e partir do pressuposto de que você fez alguma coisa horrível e lhe dar umas boas porradas?

De uma hora para a outra, sinto-me tão cansado.

Uma risada brota em meu peito, mas não sei de onde vem. Consigo evitá-la, mas não consigo esconder um sorriso idiota e inexplicável quando digo:

– Você deveria simplesmente me espancar.

E percebo que falei merda.

A expressão de Kenji muda. Seus olhos me estudam, sinceramente preocupados, e acho que falei demais. Esse remédio está me deixando lento, entorpecendo meus sentidos. Levo a mão aos lábios, imploro para que fiquem fechados. Espero não ter exagerado no remédio.

– Ei – Kenji fala com cuidado. – O que aconteceu?

Faço que não com a cabeça. Fecho os olhos.

– O que aconteceu? – repito as palavras dele, agora realmente rindo. – O que aconteceu, o que aconteceu... – Abro os olhos tempo suficiente para dizer: – Juliette terminou comigo.

– O quê?

– Isto é, acho que terminou. – Fico em silêncio. Franzo a testa. Bato o dedo no queixo. – Imagino que seja por isso que ela saiu daqui correndo e gritando.

– Mas... Por que Juliette terminaria com você? Por que ela estava chorando?

Ao ouvir suas palavras, volto a rir.

– Por que eu – aponto para mim mesmo – sou um monstro.

Kenji parece confuso.

– E qual é a novidade nisso?

Dou risada. Ele é engraçado, eu acho. Cara engraçado.

– Onde eu deixei a camisa? – Tateio, de repente sentindo uma letargia que me é completamente nova. Cruzo os braços. Fecho os olhos. – Hum, você viu minha camisa por aí?

– Você está bêbado, irmão?

– O quê? – Dou um tapa no ar. Caio na risada. – Acho que não. Meu pai é alcoólatra, sabia? Eu não chego nem perto de álcool. Não, espere aí... – Ergo um dedo. – Era alcoólatra. Meu pai era alcoólatra. Agora ele está morto. Mortinho.

E então ouço Kenji ofegando. Ofegando alta e estranhamente antes de sussurrar:

– Puta merda. – E suas palavras são o bastante para aguçar meus sentidos por um instante.

Dou meia-volta para encará-lo.

Ele parece aterrorizado.

– O que aconteceu com as suas costas?

– Ah. – Desvio o olhar, agora irritado. – Isto... – As muitas cicatrizes que desfiguram as minhas costas. Respiro fundo. Solto o ar. – São só... você sabe, presentes de aniversário do meu velho pai.

– Presentes de aniversário do seu pai? – Kenji pisca, rápido. Olha em volta, fala com o ar: – Em que tipo de novela eu acabei de me enfiar? – Passa a mão nos cabelos e diz: – Por que é que sempre acabo envolvido nas merdas pessoais dos outros? Por que não consigo cuidar da minha própria vida? Por que não consigo ficar de boca fechada?

– Sabe... – respondo, inclinando ligeiramente a cabeça. – Sempre me perguntei a mesma coisa.

– Cale a boca.

Abro um sorriso enorme. Iluminado como uma lâmpada.

Kenji fica de olhos arregalados, surpreso, e em seguida dá risada. Assente ao ver meu rosto e fala:

– Que fofo, você tem covinhas. Eu não sabia. Que gracinha.

– Cale a boca! – Franzo a testa. – Vá embora.

Ele ri mais intensamente.

– Acho que você exagerou nesses remédios aí. – Recolhe o frasco que deixei no chão. Lê o rótulo. – Aqui diz que você deve tomar um a cada três horas. – Ri outra vez, agora mais alto. – Porra, cara, se eu não soubesse que você está sofrendo para valer, filmaria esta cena.

– Estou muito cansado. Por favor, vá direto para o inferno.

– Nem ferrando, sua aberração. Não vou perder esta cena por nada. – Apoia o corpo na parede. – E mais: não vou a lugar algum até sua versão entorpecida me dizer por que vocês dois terminaram.

Nego com a cabeça. Finalmente consigo encontrar a camisa e vesti-la.

– Isso mesmo, vista isso aí – Kenji fala.

Lanço um olhar fulminante a ele e caio na cama. Fecho os olhos.

– Então? – Ele se senta bem ao meu lado. – Posso buscar a pipoca? O que está rolando?

– Informação sigilosa.

Kenji emite um barulho que deixa clara sua descrença.

– O que é sigiloso? O motivo do término é sigiloso? Ou vocês terminaram por alguma informação sigilosa?

– Sim.

– Dê alguma pista, cara.

– Nós terminamos – respondo, puxando um travesseiro sobre os olhos – por causa de uma informação que compartilhei com ela... Uma informação, como eu disse, sigilosa.

– O quê? Por quê? Não faz o menor sentido. – Um instante de silêncio. – A não ser que...

– Ah, ótimo. Posso praticamente ouvir as engrenagens minúsculas do seu cérebro minúsculo trabalhando.

– Você contou alguma mentira a ela? Alguma coisa que devesse ter contado antes? Alguma coisa sigilosa... envolvendo ela?

Aceno com a mão para nada em particular.

– Que cara mais genial! – ironizo.

– Ah, merda!

– Sim – concordo. – Uma merda enorme, mesmo.

Ele expira demorada e duramente.

– A situação me parece bem séria.

– Eu sou um idiota.

Ele pigarreia.

– Então quer dizer que dessa vez você ferrou mesmo as coisas?

– Bem por aí, imagino.

Silêncio.

– Espere um pouco, explique outra vez por que esses lençóis estão todos no chão.

Ao ouvir isso, afasto o travesseiro do rosto.

– Por que você acha que estão no chão?

Um segundo de hesitação e:

– Ah, espere aí... qual é, cara, que droga. – Kenji pula para fora da cama, parecendo enojado. – Por que me deixou sentar aqui? – Caminha a passos largos até o outro lado do quarto. – Vocês dois são... Puta merda! Isso não é nada legal...

– Cresça, cara.

– Eu já sou adulto. – Ele fecha a cara para mim. – Mas Juliette é tipo minha irmã, cara. Não quero pensar nessa porra...

– Olha, não se preocupe. Tenho certeza de que não vai voltar a acontecer.

– Está bem, está bem, rainha do drama, acalme-se. E me fale mais sobre esse negócio sigiloso.


Juliette

Corra, falei a mim mesma.

Corra até seus pulmões entrarem em colapso, até o vento chicotear e rasgar suas roupas já surradas, até se tornar uma mancha que se mistura com o fundo.

Corra, Juliette, corra mais rápido, corra até seus ossos fraturarem e sua canela quebrar e seus músculos atrofiarem e seu coração desfalecer porque ele sempre foi grande demais para o seu peito e bate rápido demais por tempo demais e corra.

Corra corra corra até não ouvir os pés deles batendo atrás de você. Corra até eles baixarem os punhos e seus gritos se dissolverem no ar. Corra de olhos abertos e boca fechada e represe o rio que corre por trás de seus olhos. Corra, Juliette.

Corra até cair morta.

Certifique-se de que seu coração pare antes de eles a alcançarem. Antes que consigam tocar em você.

Corra, eu falei.

– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO

Meus pés batem contra o chão duro e batido, cada passada firme enviando choques de dor elétrica perna acima. Meus pulmões queimam, a respiração é rápida e intensa, mas eu me esforço para superar a exaustão, os músculos trabalhando mais assiduamente do que há muito tempo, e continuo em movimento. Nunca fui boa nisso. Sempre tive dificuldade para respirar. Mas passei a fazer bastante cardio e musculação desde que me mudei para a base, e fiquei muito mais forte.

Hoje, colho os resultados desses treinos.

Já percorri pelo menos alguns quilômetros, pânico e raiva me impulsionando a seguir em frente, mas agora tenho que ir além da minha resistência para manter o embalo. Não posso parar. Não vou parar.

Ainda não estou pronta para começar a pensar.

Hoje é um dia perturbadoramente lindo; o sol brilha alto e forte; os pássaros, que eu pensava nem existirem mais, cantam felizes nas árvores que já florescem, batem as asas no céu azul e vasto. Estou usando uma blusa de algodão fino. Calça jeans escura. Outro par de tênis. Meus cabelos, soltos e longos, formam ondas atrás de mim, envolvidos em uma batalha contra o vento. Sinto o sol aquecer meu rosto; sinto gotas de suor escorrendo por minhas costas.

Será que tudo isso é real? – pergunto-me.

Alguém atirou em mim de propósito com aquelas balas envenenadas? Para tentar me comunicar alguma coisa?

Ou minhas alucinações nada têm a ver com isso?

Fecho os olhos e empurro as pernas com mais força, insistindo para que me levem mais rápido. Ainda não quero pensar. Não quero parar de me movimentar.

Se eu parar, minha mente pode me matar.

Um golpe repentino de vento atinge meu rosto. Abro novamente os olhos, lembro-me de respirar. Estou outra vez no território não regulamentado, meus poderes totalmente ligados, a energia zumbindo em meu interior mesmo agora, em movimento constante. As ruas do antigo mundo são pavimentadas, mas também pontuadas por buracos e poças d’água. Os prédios estão abandonados, altos e frios; fios elétricos se espalham no horizonte como a partitura de uma composição não concluída, balançando levemente sob a luz da tarde. Corro por debaixo de uma ponte decadente e por uma escada de concreto ladeada por palmeiras malcuidadas e postes com lâmpadas queimadas. O corrimão de ferro forjado se mostra desgastado, a tinta já descascando. Entro e saio de algumas ruas laterais e então estou cercada, por todos os lados, pelo esqueleto de uma antiga rodovia de 12 pistas, com uma enorme estrutura de metal parcialmente em colapso ali no meio. Aproximo-me e conto três igualmente impressionantes placas verdes, sendo que apenas duas continuam penduradas. Leio as palavras...

405 SOUTH LONG BEACH

... e paro.

Dobro o corpo para a frente, cotovelos nos joelhos, mãos unidas atrás da cabeça, e enfrento a necessidade de cair no chão.

Inspiro.

Expiro.

Várias e várias vezes.

Ergo o olhar, analiso o que há à minha volta.

Avisto um velho ônibus não muito longe de onde estou, suas rodas atoladas em uma poça enorme de água parada, apodrecendo, enferrujando, como uma criança abandonada pisando em sua própria sujeira. Placas de trânsito, vidros estilhaçados, borracha em farrapos e um para-choque esquecido emporcalham o que restou do asfalto destruído.

O sol me encontra e brilha na minha direção, um holofote para a garota cansada parada no meio do nada, e sou capturada por seus raios de calor concentrados, derretendo lentamente de dentro para fora, entrando em colapso enquanto minha mente tenta acompanhar o ritmo do corpo, como um asteroide caindo na Terra.

E então me dou conta...

Os lembretes são como reverberações

As memórias são como mãos se fechando ao redor da minha garganta

Lá está

Lá está ela

outra vez estilhaçada.

Curvo o corpo, encostando-o contra a parte traseira do ônibus imundo, e deixo a mão tapar a boca para calar meus gritos, mas suas tentativas desesperadas de escapar por meus lábios enfrentam uma maré de lágrimas não derramadas que não posso deixar escorrerem e...

respire

Meu corpo treme com a emoção represada. O vômito sobe pelo esôfago.

Vá embora, sussurro, mas só na minha cabeça

vá embora, digo

Por favor, morra

Eu acorrentei a menininha aterrorizada do meu passado em alguma masmorra desconhecida dentro de mim, onde ela e seus medos foram cuidadosamente mantidos, isolados do mundo.

Suas lembranças, sufocadas.

Sua raiva, ignorada.

Não converso com ela. Não me atrevo a olhar para ela. Eu a odeio.

Mas, nesse exato momento, eu a ouço chorar.

Nesse momento, posso vê-la, essa outra versão de mim mesma. Posso vê-la esfregando as unhas sujas nas câmaras do meu coração, arrancando sangue. E se eu pudesse alcançar meu interior e extirpá-la de mim usando minhas próprias mãos, faria justamente isso.

Arrebentaria seu corpinho no meio.

Arremessaria seus membros mutilados no mar.

Eu me livraria completamente dela, apagaria suas marcas da minha alma para sempre. Mas ela se recusa a morrer. Continua dentro de mim, um eco. Assombra os corredores do meu coração e da minha mente, e embora eu ficasse feliz em matá-la em busca de uma chance de ser livre, não consigo. É como tentar sufocar um fantasma.

Então, fecho os olhos e imploro a mim mesma para ser corajosa. Respiro fundo, várias vezes. Não posso deixar a menina alquebrada que existe dentro de mim absorver tudo o que me tornei. Não vou me estilhaçar, não outra vez, no rastro de um terremoto emocional.

Mas por onde posso começar?

Como faço para encarar tudo o que está acontecendo? As últimas semanas já foram demais para mim; demais para enfrentar; demais para lidar. Tem sido complicado admitir que não sou qualificada, que estou envolvida demais em uma situação difícil, mas cheguei lá. Estava disposta a reconhecer que tudo isso – essa nova vida, esse novo mundo – requereria tempo e experiência. Estava disposta a me dedicar horas a confiar em minha equipe, a ser diplomática. Mas agora, à luz de tudo isso...

Toda a minha vida foi um experimento.

Tenho uma irmã. Uma irmã. E pai e mãe diferentes, pais biológicos, que não me trataram diferente dos adotivos, que doaram meu corpo para pesquisas como se eu não fosse nada além de uma experiência científica.

Anderson e os outros comandantes supremos sempre souberam quem eu era. Castle sempre soube a verdade a meu respeito. Warner sabia que eu fora adotada.

E agora, reconhecer que aqueles em quem mais confiei mentiram para mim, me manipularam...

Que todo mundo estava me usando...

Rasgando meus pulmões, sai o grito repentino. Liberta-se do meu peito sem aviso, sem permissão, e é um grito tão alto, tão duro e violento, que me deixa de joelhos. Minhas mãos empurram o asfalto, a cabeça inclinada entre as pernas. O barulho da minha agonia se perde no vento, é levado pelas nuvens.

Mas aqui, entre meus pés, o chão se abriu.

Surpresa, levanto-me com um salto e olho para baixo, giro. De repente não consigo mais me lembrar se essa rachadura já estava ou não aqui.

A força da minha frustração e confusão me leva de volta ao ônibus, onde solto a respiração e me apoio na porta traseira, na esperança de encontrar um lugar para descansar a cabeça. Mas minhas mãos e minha cabeça rasgam as paredes do veículo como se fossem feitas de papel de seda, e caio no chão imundo, mãos e joelhos batendo direto no metal.

Por algum motivo, isso me deixa ainda mais furiosa.

Meu poder está descontrolado, alimentado por minha mente descuidada, por meus pensamentos ferozes. Não consigo focar minha energia como Kenji me ensinou e ela se espalha por todos os lugares, por toda a minha volta, dentro e fora de mim, e o problema é que a essa altura não estou mais nem aí.

Não me importo, não neste momento.

Sem pensar, estendo a mão e arranco um dos bancos do ônibus e o lanço com força no para-brisa. Vejo vidro voar por todos os lados; um enorme caco me atinge no olho e vários outros voam em minha boca aberta e nervosa. Ergo a mão e encontro cacos na manga da blusa, cacos que brilham como minúsculos pingentes de gelo. Cuspo os pedaços que estão na minha boca. Tiro outros da blusa. E então puxo um fragmento de vidro de três centímetros de dentro da pálpebra e o jogo fora. Ele cai com um leve tinido no chão.

Meu peito lateja.

Enquanto arranco mais um banco, penso: o que eu faço agora? Jogo-o direto em uma janela, estilhaçando mais um vidro e rasgando mais uma parte metálica do ônibus. Meu instinto força meu braço a se erguer para proteger os olhos dos cacos voando, mas não consigo nem tremer. Estou furiosa demais para me importar. Nesse momento, sou poderosa demais para sentir dor. O vidro bate em meu corpo e ricocheteia. Fiapos de aço parecidos com lâminas batem contra minha pele e caem no chão. Quase tenho vontade de sentir alguma coisa. Qualquer coisa.

O que eu faço?

Soco a parede e não encontro alívio no gesto; minha mão passa direto pelo metal. Chuto um banco e não me sinto mais reconfortada; meu pé atravessa o estofamento barato. Volto a gritar, em parte furiosa, em parte magoada, e dessa vez observo uma longa e perigosa fenda se abrir no teto.

Isso é novidade para mim.

E mal tive tempo de pensar quando o ônibus dá um chacoalhão inesperado, escancarando-se com um tremor repentino e se partindo ao meio.

As duas metades desmoronam, uma de cada lado, fazendo-me tropeçar para trás. Caio em uma pilha de metal e vidro molhado e sujo e, perplexa, forço-me a ficar de pé.

Não sei o que acabou de acontecer.

Eu sabia que era capaz de projetar minhas habilidades – minha força, essa sim eu sabia –, porém, não sabia que podia projetar força com a minha voz. Velhos impulsos me fazem desejar ter alguém com quem debater sobre esse assunto. Mas não tenho mais ninguém com quem conversar.

Warner, fora de questão.

Castle é cúmplice.

E Kenji... o que pensar de Kenji? Será que também sabia da existência de meus pais, da minha irmã? Castle certamente contou a ele, não?

O problema é que não posso mais ter certeza de nada.

Não resta ninguém em quem confiar.

Mas essas palavras – esse simples pensamento – de repente trazem à tona uma lembrança. É algo nebuloso, que tenho de buscar na memória. Agarro-a e puxo-a. Uma voz? Uma voz feminina, agora lembro. Dizendo-me para...

Fico boquiaberta.

Era Nazeera. Ontem à noite. Na ala médica. Era ela. Agora me recordo de sua voz... Lembro-me de estender minha mão e tocar a dela, lembro-me de ter sentido o metal que ela sempre usa nos nós dos dedos, lembro-me de ouvi-la dizendo para mim que...

... as pessoas em quem você confia estão mentindo para você... e os outros comandantes supremos só querem matá-la...

Viro-me rápido demais, buscando alguma coisa que sou incapaz de nomear.

Nazeera estava tentando me alertar. Ontem à noite... Ela mal me conhecia e ainda assim estava tentando me contar a verdade muito antes de qualquer um dos outros...

Mas por quê?

E então, alguma coisa dura e barulhenta pousa pesadamente na estrutura de concreto parcialmente destruída que bloqueia a estrada. As velhas placas da rodovia tremem e balançam.

Mantenho o olhar focado no que está acontecendo. Acompanho em tempo real, cena a cena e, mesmo assim, fico tão impressionada com o que vejo que esqueço de falar.

É Nazeera, a 15 metros do chão, calmamente sentada sobre a placa que anuncia...

10 EAST LOS ANGELES

... e ela está acenando para mim. Usa um capuz de couro marrom folgado na cabeça, preso a um coldre que passa por seu ombro. O capuz de couro cobre os cabelos e esconde os olhos, de modo que apenas a parte inferior de seu rosto está visível de onde estou. O piercing de diamante abaixo do lábio inferior parece se incendiar ao receber a luz do sol.

Ela parece uma visão saída de uma época desconhecida.

Naturalmente, não sofre do mesmo problema que eu.

– Já se sente pronta para conversar? – me pergunta.

– Como... como foi que você...

– Sim?

– Como veio parar aqui? – Olho à minha volta, analisando meus arredores. Como ela sabia que eu estava aqui? Estão me seguindo?

– Voando.

Viro-me para encará-la.

– Onde está sua aeronave?

Ela ri e salta da placa. É uma queda longa e arriscada, que feriria qualquer pessoa normal.

– Espero realmente que esteja brincando – responde e, então, me segura pela cintura e salta, subindo aos céus.


Warner

Já vi muitas coisas estranhas na vida, mas nunca pensei que teria o prazer de ver Kishimoto calar a boca por mais do que cinco muitos. E aqui estamos nós. Em outra situação, talvez eu apreciasse um momento como esse. Infelizmente, porém, agora sou incapaz de desfrutar até mesmo desse pequeno prazer.

Seu silêncio é enervante.

Já se passaram cinco minutos desde que terminei de dividir com Kenji os mesmos detalhes que compartilhei com Juliette mais cedo, e ele não disse uma palavra sequer. Está sentado num canto, em silêncio, a cabeça encostada à parede, cenho franzido e se recusando a falar. Só encara o nada, olhos estreitados, focados em algum ponto invisível do outro lado do quarto.

De vez em quando, suspira.

Estamos aqui há quase duas horas, só nós dois. Conversando. E, de todas as coisas que eu previ para hoje, certamente não imaginei que elas envolveriam Juliette correndo para longe de mim ou eu me tornando amigo desse idiota.

Ah, para que servem os planos, não é mesmo?

Finalmente, depois do que parece ter sido uma enorme quantidade de tempo, ele se pronuncia:

– Não consigo acreditar que Castle não me contou – é a primeira coisa que diz.

– Todos nós temos nossos segredos.

Ele ergue o rosto e me olha nos olhos. Com ares nada agradáveis.

– Você tem mais algum segredo que eu deva saber?

– Nada que deva saber, não.

Ele ri, mas seu riso soa triste.

– Você nem se dá conta do que está fazendo, não é?

– Me dar conta de quê?

– De que está se enfiando em toda uma vida de dor, irmão. Não pode continuar vivendo assim. – Ele aponta para meu rosto antes de prosseguir: – Aquele... aquele você de antigamente? Aquele cara confuso que nunca se expressa e nunca sorri e nunca diz nada positivo e nunca deixa ninguém conhecê-lo de verdade... Você não pode ser esse cara se quiser manter qualquer tipo de relacionamento.

Arqueio uma sobrancelha.

Ele balança a cabeça.

– Não pode, cara, não dá. Não pode estar com alguém e guardar tantos segredos dela.

– Isso nunca me impediu de estar com alguém antes.

Nesse momento, Kenji hesita. Seus olhos ficam ligeiramente mais abertos.

– Que história é essa de “antes”?

– Antes – reitero. – Em outros relacionamentos.

– Então, hum, você teve outros relacionamentos? Antes de Juliette?

Inclino a cabeça para ele.

– Para você, é difícil acreditar.

– Ainda estou tentando processar o fato de que você tem sentimentos, então, sim, para mim é difícil acreditar.

Pigarreio muito discretamente. Desvio o olhar.

– Então, hum... você... é... – Ele ri com nervosismo. – Desculpe, mas tipo, Juliette sabe que você teve outros relacionamentos? Porque ela nunca comentou nada a respeito e acho que algo desse tipo seria, não sei... relevante?

Viro-me para encará-lo.

– Não.

– Não o quê?

– Não, ela não sabe.

– Por que não?

– Por que nunca perguntou.

Boquiaberto, Kenji me encara.

– Desculpe, mas você... Quer dizer, você realmente é tão idiota quanto parece? Ou só está me zoando?

– Tenho quase vinte anos – respondo, irritado. – Acha mesmo tão estranho assim eu já ter me envolvido com outras mulheres?

– Não. Pessoalmente, estou cagando e andando para quantas mulheres você já teve. O que acho estranho é você nunca ter contado à sua namorada que já se envolveu com outras mulheres. E, para ser totalmente sincero, isso me faz questionar se o relacionamento de vocês já não estava indo para o inferno.

– Você não tem a menor ideia do que está falando. – Meus olhos se fecham. – Eu a amo. Jamais faria qualquer coisa para magoá-la.

– Então, por que mentiria para ela?

– Por que você fica insistindo nisso? Quem se importa se já tive ou não outras mulheres? Elas não significaram nada para mim...

– Cara, você está com algum problema na cabeça.

Fecho os olhos, de repente me sentindo exausto.

– De tudo o que compartilhei com você hoje, essa é a questão que você mais quer discutir?

– Só acho que seja importante, sabe, se você e J querem reparar esse dano. Você precisa dar um jeito na sua vida.

– O que quer dizer com reparar esse dano? – indago, abrindo os olhos num ímpeto. – Eu já perdi Juliette. O dano já está feito.

Ao ouvir minhas palavras, Kenji parece surpreso.

– Então é isso? Você vai simplesmente sair andando com o rabo entre as pernas? Toda essa conversa de “eu amo Juliette blá-blá-blá” para isso?

– Ela não quer ficar comigo. Não vou tentar convencê-la de que está errada.

Kenji começa a rir.

– Caramba! – exclama. – Acho que você precisa apertar uns parafusos aí nessa sua cabeça.

– Perdão?

Ele se levanta.

– Que se dane, irmão. A vida é sua, o problema é seu. Eu gostava mais de você quando estava chapadão de remédio.

– Diga-me uma coisa, Kishimoto...

– O quê?

– O que me levaria a aceitar os seus conselhos de relacionamento? O que sabe sobre relacionamentos além do fato de que nunca teve um?

Um músculo se repuxa em seu maxilar.

– Nossa! – Assente, depois desvia o olhar. – Quer saber? – Ergue o dedo do meio para mim. – Não venha fingindo que sabe da minha vida, cara. Você não sabe merda nenhuma a meu respeito.

– Você também não me conhece.

– Mas sei que é um idiota.

De repente, inexplicavelmente, eu me toco.

Meu rosto fica pálido. Sinto-me instável. Não tenho mais força para brigar e nem interesse em me defender. Sou mesmo um idiota. Sei quem sou. As coisas terríveis que fiz. Sou indefensável.

– Você está certo – respondo, mas falando baixinho. – E também tenho certeza de que está certo quando diz que tem muita coisa que não sei a seu respeito.

Kenji parece relaxar um pouco.

Seus olhos demonstram compaixão quando ele diz:

– Realmente, não acho que tenha que perdê-la. Não assim. Não por causa disso. O que você fez foi... Sim, foi mais do que horrível. Torturar a irmã dela? Tipo... Sim... Claro... Assim, são dez em dez as chances de você ir para o inferno por causa do que fez.

Encolho-me.

– Mas isso aconteceu antes de você conhecê-la, não foi? Antes de tudo isso... – ele diz, agitando a mão no ar –, você sabe, antes de acontecer o que quer que tenha acontecido entre vocês. E eu conheço Juliette, sei o que ela sente por você. Pode ser que consigam salvar esta relação. Eu não perderia as esperanças ainda.

Quase abro um sorriso. Quase dou risada.

Mas não faço nem uma coisa nem outra.

Apenas falo:

– Lembro-me de Juliette ter me contado que você falou algo parecido a Kent pouco depois que eles terminaram. Que se colocou expressamente contra o que ela queria. Disse a Kent que ela ainda o amava, que queria voltar com ele... E disse exatamente o oposto do que ela sentia. Ela ficou furiosa.

– Era outra situação. – Kenji franze o cenho. – Era, tipo... você sabe... eu só estava... tentando ajudar? Porque a situação era muito complicada, logisticamente falando.

– Obrigado por tentar me ajudar, mas não vou implorar para ela voltar comigo. Não se não é isso o que ela quer. – Desvio o olhar. – Enfim, ela sempre mereceu alguém melhor. Talvez essa seja a chance dela.

– Ah, não. – Kenji arqueia uma sobrancelha. – Então se, tipo, amanhã ela resolver ficar com algum outro cara por aí, você vai simplesmente dar de ombros e tipo... sei lá. Trocar um aperto de mãos com o cara? Levar o casalzinho feliz para jantar? Sério?

É só uma ideia.

Um cenário hipotético.

Mas a possibilidade acende minha mente: Juliette se divertindo, rindo com outro homem...

E ainda pior: as mãos dele no corpo dela, ela com os olhos entreabertos e cheia de desejo...

De repente, sinto como se tivesse levado um soco no estômago.

Fecho os olhos. Tento me manter calmo.

Mas agora não consigo parar de imaginar a cena: outro homem conhecendo-a do jeito que a conheci, no escuro, nas horas silenciosas antes da alvorada – os beijos doces dela, os gemidos de prazer...

Não posso. Não consigo.

Estou sem ar.

– Ei, sinto muito... Foi só uma pergunta...

– Acho melhor você ir embora – peço, sussurrando as palavras. – Melhor você ir.

– Sim... Quer saber? Certíssimo. Excelente ideia. – Ele assente várias vezes. – Sem problema. – Mas não se mexe.

– O que foi? – esbravejo.

– Eu só... é... – De pé, ele balança para um lado e para o outro. – Eu estava me perguntando se você... se queria mais daqueles remedinhos. Antes de eu dar o fora daqui.

– Caia. Fora.

– Está bem, cara, sem problemas. É, eu só vou...

De repente, alguém começa a bater na porta do meu quarto.

Olho para cima. Olho em volta.

– Quer que eu... – Kenji me encara com um ponto de interrogação nos olhos. – Quer que eu atenda?

Lanço um olhar fulminante para ele.

– Está bem, eu atendo. – E corre em direção à porta.

É Delalieu, parece em pânico.

Preciso fazer um esforço hercúleo, mas consigo me recompor.

– Não podia ter ligado, tenente? Os telefones não servem para isso?

– Eu tentei, senhor. Faz mais de uma hora que estou tentando, mas ninguém atende, senhor...

Viro o pescoço e suspiro, alongando os músculos, mesmo enquanto eles voltam a ficar tensos.

Culpa minha.

Desliguei o telefone ontem à noite. Não queria distrações enquanto analisava os arquivos de meu pai e, com toda a loucura de hoje de manhã, esqueci de religar a linha. Já começava mesmo a me perguntar por que tinha passado tanto tempo sem ninguém me incomodar.

– Tudo bem – respondo, interrompendo-o. – Qual é o problema?

– Senhor... – Engole em seco. – Tentei entrar em contato com o senhor e com a Senhora Suprema, mas os dois passaram o dia todo sem poder atender e...

– O que foi, tenente?

– A comandante suprema da Europa enviou sua filha, senhor. Ela apareceu sem avisar há algumas horas, e me parece que está dando um escândalo, alegando que foi ignorada e eu não sabia ao certo o que fa-fazer...

– Bem, diga a ela para sentar aquele rabo e esperar – Kenji responde, irritado. – Que história é essa de fazer escândalo? Nós temos muita merda para resolver aqui.

Mas eu fiquei inesperadamente sólido. Como se o sangue em minhas veias tivesse coagulado.

– Certo? – Kenji continua, usando o braço para me cutucar. – Qual é o problema, cara? Delalieu... – ele chama, ignorando-me –, diga a ela que relaxe. Nós já descemos. Este cara aqui precisa tomar um banho e se vestir direito. Ofereça almoço ou alguma coisa para ela comer, está bem? Nós já vamos.

– Sim, senhor – Delalieu responde discretamente. Está falando com Kenji, mas lança um olhar de preocupação para mim.

Não respondo. Não sei o que dizer.

As coisas estão acontecendo rápido demais. Fissão e fusão em todos os lugares errados, tudo ao mesmo tempo.

Somente quando Delalieu já se foi e a porta está fechada é que Kenji finalmente fala:

– O que foi? Por que parece tão assustado?

Então, descongelo. Meus membros lentamente retomam as sensações.

Viro-me para encará-lo.

– Você acha mesmo que preciso contar a Juliette sobre as outras mulheres com quem estive? – pergunto com cuidado.

– Ah, sim. Mas o que isso tem a ver com...

Encaro-o.

Ele me encara em resposta. Fica boquiaberto.

– Você quer dizer que... com essa garota... que está lá embaixo?

– As filhas dos comandantes supremos... – tento explicar, apertando os olhos enquanto falo. – Nós... nós basicamente crescemos juntos. Conheço a maioria dessas meninas desde muito novo. – Observo-o, enquanto tento parecer tranquilo. – Era inevitável, de verdade. Não deve ser nenhuma surpresa.

Mas as sobrancelhas de Kenji já estão lá no alto. Ele tenta evitar um sorriso enquanto me dá um tapa, forte demais, nas costas.

– Prepare-se para enfrentar um mundo de sofrimento, irmão. Um mundo. De. Sofrimento.

Nego com a cabeça.

– Não é necessário fazer tanto drama assim. Juliette não precisa saber. Ela não está nem falando comigo agora.

Kenji ri. Olha para mim com algo que parece ser comiseração.

– Você não sabe nada sobre mulheres, sabe? – Não respondo, o que o faz prosseguir: – Acredite em mim, cara, posso apostar qualquer coisa que, onde quer que esteja agora, em qualquer lugar por aí, ela já sabe. E se não souber ainda, não vai demorar a descobrir. As garotas conversam sobre tudo.

– Como isso é possível?

Ele dá de ombros.

Eu suspiro. Passo a mão pelos cabelos antes de dizer:

– Bem, que importância tem isso? Será que não temos assuntos mais relevantes a tratar do que os detalhes dos meus relacionamentos anteriores?

– Em uma situação de normalidade? Sim. Mas se a comandante suprema da América do Norte é sua ex-namorada, e considerando que já está bastante estressada porque você andou mentindo para ela? E então, de repente, sua outra ex-namorada aparece e Juliette nem sabe a respeito dela? E ela percebe que, tipo, você também mentiu sobre outras mil coisas...

– Eu nunca menti para ela sobre isso – interrompo-o. – Ela nunca perguntou...

– ...e então, nossa comandante suprema poderosa pra caralho fica, tipo, super, superputa da vida? – Kenji dá de ombros. – Não sei não, cara, mas não vejo essa situação terminando bem.

Solto a cabeça nas mãos. Fecho os olhos.

– Preciso tomar banho.

– E... hum... essa é a minha deixa para ir embora.

De repente, ergo o olhar e pergunto:

– Tem algo mais que eu possa fazer para evitar que essa situação piore ainda mais?

– Ah, então agora você resolveu ouvir meus conselhos de relacionamento?

Engulo o impulso de revirar os olhos.

– Na verdade, não sei, cara – Kenji continua, e suspira. – Acho que dessa vez você vai ter de enfrentar as consequências da sua própria burrice.

Desvio o olhar, contenho uma risada e assinto várias vezes enquanto digo:

– Kishimoto, vá para o inferno.

– Estou logo atrás de você, irmão. – Ele pisca com um olho para mim. Só uma vez.

E vai embora.


Juliette

Há algo fervendo dentro de mim.

Algo em que jamais ousei tocar, algo que sinto medo de reconhecer. Parte de mim se arrasta para se libertar da jaula na qual a prendi, bate às portas do meu coração enquanto implora para sair.

Implora para se desprender.

Todo dia sinto que estou revivendo o mesmo pesadelo. Abro a boca para gritar, para lutar, para sacudir os punhos, mas minhas cordas vocais foram cortadas, meus braços parecem pesados, presos em cimento úmido, e estou gritando, mas ninguém me ouve, ninguém me alcança, e me sinto presa. E essa situação está me matando.

Sempre tive de me colocar no papel de submissa, subserviente, retorcida como um esfregão suplicante e passivo só para deixar todos os outros se sentirem seguros e à vontade. Minha existência se transformou em uma luta para provar que sou inofensiva, que não sou uma ameaça, que sou capaz de viver em meio a outros seres humanos sem feri-los.

E estou tão cansada estou tão cansada estou tão cansada e às vezes fico tão furiosa

Não sei o que está acontecendo comigo.

– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO

Pousamos em uma árvore.

Não tenho ideia de onde estamos – nem sei se já estive em algum lugar tão alto assim ou tão próximo da natureza –, mas Nazeera simplesmente parece não se importar.

Respiro bruscamente enquanto me viro para encará-la, adrenalina e descrença colidindo, mas ela não está olhando para mim. Parece calma, até mesmo feliz, enquanto observa o céu, um pé apoiado em um galho e o outro pendurado, balançando para a frente e para trás na brisa fresca. Seu braço esquerdo descansa no joelho e a mão permanece relaxada, quase casual demais, enquanto segura e solta alguma coisa que não consigo ver. Inclino a cabeça, separo os lábios para fazer uma pergunta, mas ela logo me interrompe.

– Sabe de uma coisa? – ela de repente arrisca. – Eu nunca, nunca mesmo, tinha mostrado para ninguém o que era capaz de fazer.

Sou pega de surpresa.

– Ninguém? Nunca? – pergunto, espantada.

Nazeera nega com a cabeça.

– Por que não? – indago.

Ela passa um instante em silêncio antes de dizer:

– A resposta para essa pergunta é um dos motivos pelos quais eu queria conversar com você. – Leva uma mão distraída ao piercing de diamante no lábio, bate a ponta do dedo na pedra brilhante. – Então, você sabe de algo verdadeiro sobre o seu passado?

E a dor chega num átimo, como aço gelado, como facadas no peito. Lembretes dolorosos das revelações de hoje.

– Sei de algumas coisas – enfim respondo. – Para ser sincera, descobri a maioria delas hoje de manhã.

Nazeera assente.

– E foi por isso que saiu correndo daquele jeito?

Viro-me para encará-la.

– Você estava me espionando?

– Estava de olho em você, sim.

– Por quê?

Nazeera sorri, mas demonstra cansaço.

– Você realmente não lembra, não é?

Confusa, eu a encaro.

Ela suspira. Balança as duas pernas e olha para o horizonte.

– Deixe para lá – conclui.

– Não, espere aí... O que quer dizer com isso? Era para eu me lembrar de você?

Ela faz um gesto negativo com a cabeça.

– Não estou entendendo – digo.

– Esqueça – insiste. – Não é nada. Você só tem uma aparência muito familiar e, por uma fração de segundo, pensei que já tivéssemos nos conhecido antes.

– Ah – respondo. – Está bem.

Mas Nazeera se recusa a olhar para mim. Tenho a estranha sensação de que está escondendo alguma coisa.

Mesmo assim, continua sem dizer nada.

Parece perdida em pensamentos, mordisca o lábio enquanto fita o horizonte, e não fala nada durante um bom tempo.

– Hum, com licença? Você me colocou em uma árvore – enfim, digo. – Que diabos estou fazendo aqui? O que você quer?

Ela se vira para me encarar. É então que percebo que o objeto que segura é, na verdade, um saquinho de doces. Estende a mão, indicando com a cabeça que eu deveria aceitar um.

Porém, não confio em Nazeera.

– Não, obrigada – recuso.

Ela dá de ombros. Desembrulha um dos doces coloridos e o leva à boca.

– Então... o que Warner contou a você hoje?

– Por que quer saber?

– Ele contou que você tem uma irmã?

Sinto um nó de raiva se formando em meu peito. Não respondo.

– Vou entender essa reação como uma afirmativa – conclui. Morde o docinho duro. Mastiga baixinho ao meu lado. – Ele contou mais alguma coisa?

– O que você quer comigo? – exijo saber. – Quem é você?

– O que ele contou sobre seus pais? – Nazeera continua, ignorando-me mesmo enquanto me observa de canto de olho. – Contou que você foi adotada? Que seus pais biológicos ainda estão vivos?

Apenas a encaro.

Ela inclina a cabeça e me analisa.

– Warner contou qual é o nome deles?

Meus olhos ficam automaticamente arregalados.

Nazeera sorri, e o movimento ilumina seu rosto.

– Aí está – continua, acenando triunfantemente com a cabeça. Desembrulha outro doce e o leva à boca. – Hum.

– Aí está o quê?

– O momento em que a raiva termina e a curiosidade começa – responde.

Irritada, suspiro.

– Você sabe o nome dos meus pais?

– Eu nunca disse que sabia.

De repente, sinto-me exausta. Impotente.

– Será que todo mundo sabe mais do que eu mesma a respeito da minha vida?

Ela me encara. Desvia o olhar.

– Nem todo mundo. Aqueles de nós que temos posições altas no Restabelecimento sabemos muito, de fato. É nossa tarefa saber. Especialmente nós. – Olha-me nos olhos por um segundo. – Quero dizer, nós, os filhos. Nossos pais esperam que assumamos o poder um dia. Mas não, nem todo mundo sabe de tudo. – Ela sorri para alguma piada interna compartilhada apenas consigo mesma e prossegue: – Para dizer a verdade, a maioria das pessoas não sabe de merda nenhuma. – E franze a testa antes de concluir: – Mas me parece que Warner sabe mais do que pensei que soubesse.

– Então você conhece Warner há muito tempo?

Nazeera empurra o capuz um pouco para trás, de modo que eu possa ver seu rosto. Encosta em um galho e suspira.

– Ouça... – fala baixinho. – Eu só sei o que meu pai nos contou sobre vocês. Mas agora sou inteligente o bastante para sair atrás de informações, e acabei descobrindo que a maioria das coisas que ouvi eram bobagens. Enfim...

Ela hesita. Morde o lábio e hesita.

– Diga logo – peço, balançando a cabeça. – Eu já ouvi tantas pessoas me chamarem de louca por ter me apaixonado por ele. Você não seria a primeira.

– O quê? Não. Não acho que seja louca. Quero dizer, entendo por que as pessoas podem pensar que Warner seja sinônimo de problema, mas ele é parte do meu povo, entende? Conheci seus pais. Para ser sincera, Anderson fazia meu pai parecer um cara legal. Nós todos somos problemáticos, isso é verdade, mas Warner não é uma pessoa ruim. Só está tentando encontrar uma maneira de sobreviver a essa loucura, como o restante de nós.

– Ah! – exclamo, surpresa.

– Enfim – ela prossegue, dando de ombros. – Sério, eu entendo por que gosta dele. Mesmo se não entendesse... Quer dizer, não sou cega. – Ergue uma sobrancelha para mim, indicando que realmente compreende. – Entendo seus motivos, garota.

Continuo impressionada. Essa talvez seja a primeira vez que ouço uma pessoa defender Warner. Nazeera prossegue:

– Veja, estou tentando dizer que acho que pode ser um bom momento para você se concentrar um pouco em si mesma. Dar uma respirada. Além disso, Lena vai chegar a qualquer momento, então é melhor você ficar longe dessa situação pelo máximo de tempo que puder. – Lança outro olhar compreensivo para mim. – Não me parece que precise de mais drama na sua vida, e toda essa... – gesticula no ar – coisa está fadada a, você entende, ficar muito feia.

– O quê? – Franzo a testa. – Que coisa? Que situação? Quem é Lena?

A surpresa de Nazeera é tão repentina e tão sincera que não consigo deixar de me preocupar imediatamente. Meu pulso acelera quando ela se vira decidida para mim e diz, muito, muito lentamente:

– Lena. Lena Mishkin. É a filha da comandante suprema da Europa.

Encaro-a. Balanço a cabeça.

Nazeera fica de olhos arregalados.

– Você está de brincadeira, garota?

– O quê? – pergunto, agora assustada. – Quem ela é?

– Quem ela é? Está falando sério? É a ex-namorada de Warner.

Quase caio da árvore.

Engraçado, pensei que sentiria mais do que isso.

A Juliette de antigamente teria chorado. A Juliette submissa teria rachado no meio com o impacto repentino das muitas revelações de partir o coração, com o tamanho das mentiras de Warner, com a dor de se sentir tão profundamente traída. Porém, essa nova versão minha se recusa a reagir; em vez disso, meu corpo se desliga.

Sinto os braços se afrouxarem enquanto Nazeera me apresenta detalhes do antigo relacionamento de Warner – detalhes que quero e não quero ouvir. Ela diz que Lena e Warner eram muito importantes para o mundo do Restabelecimento, e de repente três dedos na minha mão direita começam a se repuxar sem a minha permissão. Nazeera conta que a mãe de Lena e o pai de Warner ficaram animados com uma aliança entre as famílias, com um laço que só deixaria o regime mais forte, e sinto correntes elétricas percorrerem minhas pernas, dando choque e me paralisando ao mesmo tempo.

Nazeera conta que Lena se apaixonou por Warner – realmente se apaixonou por ele –, mas que Warner partiu seu coração, que nunca a tratou com nenhuma afeição real, que ela passou a odiá-lo por isso, que “Lena teve ataques de raiva depois de ouvir que ele se apaixonou por você, especialmente porque você, supostamente, teria acabado de sair de um hospício, e parece que isso foi um golpe pesadíssimo no ego dela”, e ouvir isso não me ajuda em nada a me acalmar. Na verdade, faz com que me sinta estranha e diferente, como um espécime em um tanque, como se minha vida nunca tivesse sido minha, como se eu não passasse de uma atriz em uma peça dirigida por desconhecidos, e sinto um golpe de ar polar no peito, uma brisa amarga envolve meu coração e fecho meus olhos enquanto os golpes frios aliviam a dor, o ar gelado se fechando ao redor das feridas em minha carne.

Só então

Só então finalmente respiro, desfrutando do desligamento gerado por essa dor.

Ergo o rosto, sentindo-me abatida e novinha em folha, olhos frios e inexpressivos enquanto pisco lentamente e digo:

– Como você sabe de tudo isso?

Nazeera puxa uma folha de um galho ao seu lado e a dobra entre os dedos. Dá de ombros.

– Vivemos em um círculo minúsculo e incestuoso. Conheço Lena desde sempre. Ela e eu nunca fomos exatamente próximas, mas vivemos no mesmo mundo. – Dá de ombros outra vez. – Ela realmente ficou louca por causa dele. Só sabia falar disso. E conversava com qualquer pessoa sobre esse assunto.

– Quanto tempo eles passaram juntos?

– Dois anos.

Dois anos.

A resposta é tão inesperadamente dolorosa que perfura minhas recém-adquiridas defesas.

Dois anos? Dois anos com outra garota e ele não me contou nada. Dois anos com outra. E quantas outras? Um choque de dor tenta se apossar de mim, tenta envolver meu coração gelado, mas consigo combatê-lo. Mesmo assim, algo quente e horrível se enterra em meu peito.

Não é ciúme.

Inferioridade. Inexperiência. Ingenuidade.

Quantas coisas mais vou descobrir sobre ele? Quantas outras coisas Warner escondeu de mim? Como posso voltar a confiar nele?

Fecho os olhos e sinto o peso da perda e da resignação se instalarem profundamente em meu interior. Meus ossos se mexem, se rearranjam para abrir espaço para essas novas dores.

Espaço para essa nova onda de raiva.

– Quando eles terminaram? – indago.

– Acho que... há uns oito meses?

Dessa vez paro de fazer perguntas.

Quero me transformar em uma árvore. Em um fiapo de grama. Quero me transformar em terra ou ar ou nada. Nada. Isso. Quero me transformar em nada.

Sinto-me uma total idiota.

– Não entendo por que Warner nunca contou a você – Nazeera continua falando, mas quase não consigo ouvi-la. – Não faz sentido. Foi uma notícia bombástica em nosso mundo.

– Por que você tem me seguido?

Mudo de assunto sem a menor sutileza. Meus olhos estão entreabertos; os punhos, fechados. Não quero mais falar sobre Warner. Nunca mais. Quero arrancar meu coração do peito e jogá-lo em nosso mar sujo de urina por tudo que me causou.

Não quero sentir mais nada.

Surpresa, Nazeera se endireita.

– Há muita coisa acontecendo agora. Há muita coisa que você não sabe, tantos absurdos que só agora está descobrindo. Quero dizer... nossa! Alguém tentou matá-la ainda ontem. – Balança a cabeça. – Só fiquei preocupada com você.

– Você nem me conhece. Por que se preocupa comigo?

Dessa vez, Nazeera não responde. Só me encara. Lentamente, desembrulha outro doce. Leva-o à boca e desvia o rosto.

– Meu pai me forçou a vir aqui – revela baixinho. – Eu não queria ser parte de nada disso. Nunca quis. Odeio tudo que o Restabelecimento representa. Mas disse a mim mesma que, se eu tivesse de vir para cá, cuidaria de você. Então, é isso que estou fazendo agora. Estou cuidando de você.

– Bem, não desperdice seu tempo – retruco, sentindo-me indiferente. – Não preciso de sua pena ou sua proteção.

Nazeera fica em silêncio. Por fim, suspira.

– Ouça, eu realmente sinto muito. Pensei que você soubesse sobre Lena, de verdade.

– Não estou nem aí para Lena – minto. – Tenho coisas mais importantes com as quais me preocupar.

– Certo – ela responde. Pigarreia. – Eu sei. Mesmo assim, peço desculpas.

Não digo nada.

– Ei – ela me chama. – Sério, não queria chatear você. Só quero que saiba que não estou aqui para causar nenhum mal. Estou tentando cuidar de você.

– Não preciso que cuide de mim. Estou me saindo bem.

Ela revira os olhos.

– Eu não acabei de salvar sua vida?

Resmungo alguma besteira bem baixinho.

Nazeera nega com a cabeça.

– Você precisa se recompor, garota, ou não vai sair dessa com vida. Não tem ideia do que está acontecendo nos bastidores ou do que os outros comandantes estão reservando para você. – Não respondo, o que a faz prosseguir: – Lena não vai ser a última de nós a chegar, sabia? E ninguém está vindo aqui para fazer papel de bonzinho.

Ergo o rosto em sua direção. Meus olhos não transmitem nenhum sentimento.

– Ótimo – retruco. – Que venham.

Ela ri, mas é uma risada sem vida.

– Então você e Warner brigaram e agora você não se importa com mais nada? Quanta maturidade!

Uma chama se acende em mim. Sinto meus olhos se intensificarem.

– Se estou chateada agora é porque acabo de descobrir que todas as pessoas mais próximas andam mentindo para mim! – exclamo, furiosa. – Meus pais continuam vivos, e aparentemente não são nem um pouco melhores que os monstros abusivos que me adotaram. Tenho uma irmã sendo ativamente torturada pelo Restabelecimento. E eu nunca sequer soube que ela existia. Estou tentando aceitar o fato de que nada vai ser como era antes para mim, nunca mais, e não sei em quem confiar ou quem devo deixar no passado. Então, sim... – Agora estou quase gritando. – Neste momento, não me importo com nada. Porque não sei mais o que estou combatendo. E não sei quem são meus amigos. Neste momento, todos são meus inimigos, inclusive você.

Nazeera não se abala.

– Você pode lutar pela sua irmã – propõe.

– Eu nem sei quem ela é.

Olha-me de soslaio, tomada pela descrença.

– O fato de sua irmã ser uma garota inocente sendo torturada não é o bastante? Pensei que estivesse lutando por um bem maior.

Dou de ombros. Viro o rosto.

– Quer saber? Você não precisa se importar – ela continua. – Mas eu me importo. Eu me importo com o que o Restabelecimento fez e ainda faz com pessoas inocentes. Eu me importo com o fato de que nossos pais são todos uns psicopatas. Eu me importo muito com o que o Restabelecimento fez, em especial com aqueles de nós que têm habilidades especiais. E, para responder à pergunta que você fez um pouco antes: eu nunca contei a ninguém sobre meus poderes porque vi o que eles fizeram com pessoas como eu. Vi que as trancafiaram, torturaram, abusaram. – Olha-me nos olhos. – E não quero ser o próximo experimento.

Alguma coisa dentro de mim fica oca. Derrete para fora. De repente, sinto-me vazia e triste.

– Eu me importo – enfim, retruco. – Provavelmente me importo demais. – E a raiva de Nazeera diminui. Ela suspira. – Warner falou que o Restabelecimento quer me levar de volta – relato.

Ela assente.

– É provável que seja verdade.

– Para onde querem me levar?

– Isso eu não sei. – Dá de ombros. – Pode ser que queiram simplesmente matá-la.

– Obrigada pelas palavras de incentivo.

– Ou então... – continua, abrindo um leve sorriso. – Podem levá-la a outro continente. Novo codinome. Nova instalação.

– Outro continente? – pergunto, curiosa, mesmo contra minha vontade. – Eu nunca na vida pisei em um avião.

Por algum motivo, falei a coisa errada.

Nazeera parece quase arrasada por um segundo. A dor vem e vai no brilho de seus olhos e ela desvia o olhar. Pigarreia. Mas quando volta a me estudar, seu rosto carrega outra vez uma expressão neutra.

– É... Bem, você não está perdendo muita coisa.

– Você viaja muito? – pergunto.

– Viajo.

– De onde você é?

– Setor 2. Continente asiático. – E então me olha nos olhos. – Mas nasci em Bagdá.

– Bagdá – repito. O nome me soa familiar; tento me lembrar, tento localizar onde fica no mapa, até que ela esclarece

– Iraque.

– Ah! Nossa! – exclamo.

– Muita informação para absorver, não é?

– Sim – concordo baixinho. E então, odiando-me ainda mais por pronunciar essas palavras, não consigo deixar de perguntar: – De onde Lena é?

Nazeera ri.

– Pensei tê-la ouvido dizer que não se importava com Lena.

Fecho os olhos. Morrendo de vergonha, faço que não com a cabeça.

– Ela nasceu em Peterhof, no subúrbio de São Petersburgo.

– Rússia – afirmo, aliviada por finalmente conhecer uma dessas cidades. – Guerra e Paz.

– Excelente livro – Nazeera elogia. – Uma pena que continue na lista das obras para queimar.

– Lista das obras para queimar?

– Obras que devem ser destruídas – esclarece. – O Restabelecimento tem um plano ambicioso de recriar a língua, a literatura e a cultura. Querem formar um novo tipo de... – faz um gesto aleatório com a mão – humanidade universal.

Horrorizada, assinto. Eu já sabia disso. O primeiro a me contar foi Adam, logo depois que foi designado como meu companheiro de cela no hospício. E a ideia de destruir a arte, a cultura, tudo o que faz os seres humanos serem diversos e lindos...

Isso me dá náuseas.

– Enfim – ela prossegue –, obviamente é um experimento grotesco e asqueroso, mas temos que seguir o protocolo. Recebemos listas de livros para analisar e os lemos, fazemos relatórios, decidimos o que manter e o que jogar fora. – Suspira. – Finalmente terminei de ler a maioria dos clássicos há alguns meses, mas, no começo do ano passado, fomos forçados a ler Guerra e Paz em cinco línguas porque queriam analisar como a cultura exerce um papel na manipulação das traduções de um mesmo texto. – Hesita, lembrando. – Sem dúvida, a versão mais divertida de ler foi a francesa. Mas me pareceu que a melhor de todas é a russa. Em todas as traduções, em especial nas de língua inglesa, fica faltando aquela... toska necessária. Entende?

Fico ligeiramente boquiaberta.

É o jeito como ela fala – como se não fosse nada de mais, como se estivesse falando de algo perfeitamente corriqueiro, como se qualquer um pudesse ler Tolstói em cinco línguas diferentes e guardar os livros no fim da tarde. É sua confiança tranquila e natural que faz meu coração murchar. Precisei de um mês para ler Guerra e Paz. Em inglês.

– Certo – digo, virando o rosto. – É... Que... hum, interessante.

Está se tornando familiar demais, essa sensação de inferioridade. Poderosa demais. Toda vez que penso que fiz algum avanço na vida, algo parece me fazer lembrar do quanto ainda tenho que progredir. Mas não acho que seja culpa de Nazeera o fato de ela e os outros filhos terem sido criados para se tornarem gênios violentos.

– Então – ela fala, unindo as mãos –, há algo mais que queira saber?

– Sim – respondo. – Qual é a do seu irmão?

Nazeera parece surpresa.

– Haider? – Ela hesita. – O que quer saber a respeito dele?

– Quer dizer... – Franzo o cenho. – Ele é leal a seu pai? Ao Restabelecimento? É digno de confiança?

– Não sei se o chamaria de digno de confiança – responde, parecendo pensativa. – Mas acho que todos nós temos uma relação complicada com o Restabelecimento. Haider quer fazer parte de tudo isso tanto quanto eu quero.

– Sério?

Nazeera assente.

– Warner provavelmente não considera nenhum de nós seus amigos, mas Haider sim. Sabe, meu irmão passou por um período muito sombrio no ano passado. – Nazeera fica em silêncio. Puxa outra folha de um galho próximo. Dobra-a e a redobra entre os dedos enquanto diz: – Meu pai o vinha pressionando demais, forçando-o a passar por um treinamento realmente intensivo, cujos detalhes Haider ainda não se sente pronto para dividir comigo. Algumas semanas depois, ele entrou em uma espiral. Começou a demonstrar tendências suicidas. Automutilação. E eu fiquei com muito medo. Procurei Warner porque sabia que Haider o ouviria. – Balança a cabeça. – Warner não disse uma única palavra. Apenas embarcou em um avião e passou algumas semanas conosco. Não sei o que ele disse a Haider. Não sei o que ou como fez para ajudar meu irmão. – Olha para o horizonte, dá de ombros. – É difícil esquecer algo assim. E tudo isso enquanto nossos pais trabalhavam para nos colocar uns contra os outros. Eles querem evitar que nos tornemos sentimentais demais. – Nazeera ri. – Mas isso é uma bobagem gigantesca.

Impressionada, sinto o mundo à minha volta girar.

Há tanto a desvendar aqui e nem sei por onde começar. Não sei se quero começar. Todos os comentários de Nazeera sobre Warner parecem perfurar meu coração. E me fazem sentir saudade dele.

E me fazem querer perdoá-lo.

Mas não posso deixar as emoções me controlarem. Não agora. Nem nunca. Então, forço esses sentimentos a se calarem, a abandonarem minha cabeça, e apenas digo:

– Nossa, e eu pensando que Haider era um idiota...

Nazeera sorri. Acena distraidamente com a mão.

– Ele está trabalhando para melhorar.

– Haider tem alguma... habilidade sobrenatural?

– Nenhuma que eu conheça.

– Ah.

– Sim.

– Mas você pode voar – comento.

Nazeera assente.

– Que interessante.

Ela abre um sorriso enorme e se vira para me encarar. Seus olhos são enormes, brilham lindamente sob a luz filtrada pelos galhos e folhas. Sua animação é tão pura que faz alguma coisa em meu interior se recolher e morrer.

– Voar é tão mais do que apenas interessante – declara.

E é então que sinto uma pontada de algo novo:

Ciúme.

Inveja.

Indignação.

Minhas habilidades sempre foram uma maldição, uma fonte de dores e conflitos infinitos. Tudo em mim é projetado para matar e destruir, e essa é uma verdade que nunca fui capaz de aceitar plenamente.

– Deve ser legal – concordo.

Ela vira o rosto outra vez, sorrindo para o vento.

– E a melhor parte? É que também posso fazer isso...

De repente, Nazeera fica invisível.

Eu me afasto bruscamente.

E então ela volta, com um sorriso enorme estampado no rosto.

– Não é incrível? – diz, os olhos brilhando de animação. – Nunca pude compartilhar isso com ninguém.

– Ah... sim. – Rio, mas é um riso que soa falso, alto demais. – Muito legal. – E acrescento mais baixo: – Kenji vai ficar irritadíssimo.

Nazeera para de sorrir.

– O que ele tem a ver com isso?

– Bem... – Olho na direção dela. – Quer dizer, isso que você acabou de fazer? É uma coisa do Kenji, e ele não costuma gostar de dividir os holofotes.

– Eu não sabia que existia outra pessoa com o mesmo poder – diz, visivelmente decepcionada. – Como isso é possível?

– Não sei – respondo, de repente sentindo uma vontade enorme de rir. Nazeera se mostra tão determinada a não gostar de Kenji que já começo a me perguntar o motivo por trás disso. E então, imediatamente me lembro das revelações horríveis de hoje e o sorriso se desfaz em meu rosto. – Sabe... – apresso-me em dizer. – Devemos voltar para a base? Ainda tenho muitas coisas a descobrir, inclusive como lidar com esse simpósio ridículo que acontecerá amanhã. Não sei se dar cano ou...

– Não dê cano – ela me interrompe. – Se você não for, eles podem pensar que você sabe de alguma coisa. Não deixe as pessoas saberem sobre você. Ainda não. Apenas siga os protocolos até conseguir concluir seus planos.

Encaro-a. Estudo-a. Enfim, digo:

– Está bem.

– E, quando decidir o que quer fazer, converse comigo. Sempre posso ajudar a evacuar as pessoas, cuidar das coisas. Lutar. O que for preciso. Apenas fale comigo.

– O quê? – Franzo o cenho. – Evacuar pessoas? Do que está falando?

Ela sorri enquanto me oferece um aperto de mão.

– Garota, você ainda não entendeu, não é? Por que acha que estamos aqui? O Restabelecimento planeja destruir o Setor 45. – Olha com seriedade para mim. – E isso inclui todas as pessoas dentro do setor.


Warner

Não tenho nem tempo de descer.

Mal tive um segundo para vestir a camisa quando ouço alguém bater à minha porta.

– Foi mal, mesmo, irmão – ouço Kenji gritar. – Mas ela se recusa a me ouvir...

E então...

– Abra a porta, Warner. Eu juro que só vai doer um pouquinho.

Sua voz continua a mesma. Suave. Enganosamente macia. Mas sempre com um toque áspero.

– Lena – digo. – Que bom ter notícias suas.

– Abra a porta, seu idiota.

– Você nunca segurou os elogios.

– Eu mandei abrir a porta...

Com muito cuidado, eu a abro.

Em seguida, fecho os olhos.

Lena me dá um tapa na cara tão forte que sinto os ouvidos zumbindo. Kenji grita, mas é um grito rápido, e eu respiro fundo para me estabilizar. Ergo o olhar na direção dela, mas sem levantar a cabeça.

– Terminou?

Lena fica de olhos arregalados, enfurecida e ofendida, e então percebo que a provoquei demais. Ela golpeia sem pensar; mesmo assim, o soco é perfeitamente executado. O impacto poderia, no mínimo, quebrar meu nariz, mas não posso mais sustentar suas ilusões de me causar dor física. Meus reflexos são mais ágeis que os dela – sempre foram – e consigo segurar seu punho poucos instantes antes do impacto. Seu braço vibra com a intensidade da energia contida e ela salta para trás, gritando para se libertar.

– Seu filho de uma puta! – exclama, arfando.

– Não posso deixar que me dê um soco na cara, Lena.

– Eu faria coisa pior com você.

– E ainda pergunta por que nossa relação não deu certo.

– Sempre tão frio – retruca, e sua voz falha quando diz isso. – Sempre tão cruel.

Esfrego a mão atrás da cabeça e sorrio, infeliz, para a parede.

– Por que veio ao meu quarto? Por que apareceu em meu ambiente privado? Sabe que tenho pouca coisa a lhe dizer.

– Você nunca disse nada para mim – berra, de repente. Seu peito pulsa quando ela continua: – Dois anos! Dois anos e você deixou uma mensagem com a minha mãe pedindo para ela me avisar que nosso relacionamento tinha acabado!

– Você não estava em casa – retruco, fechando os olhos bem apertados. – Pensei que assim seria mais eficiente...

– Você é um monstro...

– Sim – confirmo. – Sim, eu sou. E queria que você me esquecesse.

Em um instante seus olhos ficam marejados, pesados com as lágrimas não derramadas. Sinto-me culpado por não sentir nada. Só consigo encará-la, cansado demais para brigar. Ocupado demais cuidando das minhas próprias feridas.

Sua voz é, ao mesmo tempo, furiosa e triste quando ela diz:

– Cadê sua namorada nova? Estou morrendo de vontade de conhecê-la.

Desvio o olhar enquanto sinto o coração se partindo no peito.

– É melhor você se acalmar – advirto. – Nazeera e Haider também estão aqui, em algum lugar. Vocês certamente terão muito o que conversar.

– Warner...

– Por favor, Lena – peço, agora me sentindo realmente exausto. – Você está chateada, eu entendo. Mas não é culpa minha que se sinta assim. Não amo você. Nunca amei. E nunca a fiz pensar que a amava.

Ela fica tanto tempo em silêncio que finalmente a encaro, percebendo tarde demais que, de alguma maneira, consegui piorar a situação. Outra vez. Lena parece paralisada, os olhos redondos, lábios separados, mãos ligeiramente trêmulas na lateral do corpo.

Suspiro.

– Tenho que ir – falo, baixinho. – Kenji vai mostrar o prédio a você.

Olho para Kenji, que assente. Só uma vez. Seu rosto parece inesperadamente austero.

Lena continua sem dizer nada.

Dou um passo para trás, pronto para fechar a porta, quando ela avança na minha direção com um grito repentino, as mãos se fechando na minha garganta tão inesperadamente que quase me derruba. Está gritando bem diante do meu rosto, empurrando-me para trás, e tento ao máximo me manter calmo. Às vezes, meus instintos são aguçados demais. Para mim, é difícil não reagir a ameaças físicas. Ainda assim, forço-me a me movimentar quase em câmera lenta enquanto afasto as mãos dela do meu pescoço. Lena continua se debatendo, dando vários chutes em minhas canelas até que, finalmente, consigo conter seus braços e puxá-la mais para perto de mim.

De súbito, ela para.

Aproximo os lábios de seu ouvido e pronuncio seu nome uma vez, muito docemente.

Lena engole em seco ao me olhar nos olhos, toda fogo e fúria. Mesmo assim, sinto sua esperança. Seu desespero. Consigo senti-la se perguntando se mudei de ideia.

– Lena – falo outra vez, agora com ainda mais doçura. – Sério, você precisa entender que suas ações não me levam a gostar mais de você.

Ela enrijece o corpo.

– Por favor, vá embora – insisto, e rapidamente fecho a porta.

Solto o corpo na cama novamente, tenso enquanto ela chuta a porta do quarto com violência. Apoio a cabeça nas mãos. Tenho de suprimir um impulso repentino e inexplicável de quebrar alguma coisa. Meu cérebro parece prestes a sair do crânio.

Como foi que vim parar aqui?

Desamparado. Desgrenhado e distraído.

Quando foi que isso aconteceu comigo?

Não tenho foco, não tenho controle. Sou mesmo toda a decepção, todo o fracasso, toda a inutilidade que meu pai sempre afirmou que eu era. Sou um fraco. Um covarde. Deixo minhas emoções vencerem com muita facilidade, e agora... Agora perdi tudo. Tudo está se desfazendo. Juliette está em perigo. Agora, mais do que nunca, eu e ela precisávamos estar juntos. Preciso conversar com ela. Preciso alertá-la. Preciso protegê-la... Mas ela foi embora. Juliette me despreza outra vez.

E aqui estou eu de novo.

No abismo.

Lentamente me dissolvendo no ácido das emoções.


Juliette

A solidão é uma coisa estranha.

Ela se arrasta por você silenciosa e calma, senta-se ao seu lado na escuridão, acaricia seus cabelos enquanto você dorme. Envolve seus ossos, apertando-os com tanta força que quase o impede de respirar, quase o impede de ouvir o pulsar do sangue que corre sob sua pele. Toca desde seus lábios até a penugem da nuca. Deixa mentiras em seu coração, está bem ao seu lado à noite, apaga todas as luzes imagináveis. É uma companhia constante, aperta sua mão só para empurrá-la para baixo quando você tenta se levantar, pega suas lágrimas só para forçá-las garganta abaixo. Assusta simplesmente por estar ao seu lado.

Você acorda de manhã e se pergunta quem é. Você não consegue dormir e sua pele estremece. Você tem dúvidas tem dúvidas tem dúvidas

vou

não vou

devo

por que não

E mesmo quando você está pronto para se desprender. Quando está pronto para se libertar. Quando está pronto para ser uma pessoa nova. A solidão é uma velha amiga, parada ao seu lado no espelho, olhando-o nos olhos, desafiando-o a viver sem ela. Você não consegue encontrar palavras para lutar contra si mesmo, para combater as palavras que gritam que você não é suficiente nunca é suficiente jamais é suficiente.

A solidão é uma companhia amarga e vil.

Às vezes, ela simplesmente não vai embora.

– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO

A primeira coisa que faço ao retornar à base é pedir a Delalieu que leve todas as minhas coisas para os antigos aposentos de Anderson. Ainda não pensei em como vou lidar ao ver Warner o tempo todo. Ainda não refleti sobre como agir perto de sua ex-namorada. Não tenho ideia de como as coisas serão e, nesse momento, não posso me dar ao luxo de me preocupar com isso.

Estou furiosa demais.

Se eu puder acreditar nas palavras de Nazeera, tudo o que tentamos fazer aqui – todos os nossos esforços para ser gentis, diplomáticos, realizar uma conferência internacional de líderes – foram em vão. Tudo o que fizemos até agora vai direto para a lata do lixo. Ela diz que eles planejam destruir todo o Setor 45. Todas as pessoas. Não só aquelas que vivem em nosso quartel. Não apenas os soldados que permaneceram ao nosso lado. Mas também todos os civis. Mulheres, crianças – todo mundo.

Vão fazer o Setor 45 desaparecer.

De repente, começo a sentir que estou perdendo o controle.

Os antigos aposentos de Anderson são enormes – em comparação, fazem o quarto de Warner parecer ridículo –, e depois que Delalieu me deixou sozinha, fico livre para aproveitar os muitos privilégios que meu falso papel de comandante suprema do Restabelecimento tem a oferecer. Dois escritórios. Duas salas de reuniões. Uma cozinha ampla e equipada. Uma suíte-máster. Três banheiros. Dois quartos de hóspedes. Quatro closets totalmente lotados – tal pai, tal filho, percebo – e inúmeros outros detalhes. Nunca antes passei muito tempo em uma dessas áreas; a dimensão é vasta demais. Só preciso de um escritório e, de modo geral, é lá que passo a maior parte do tempo.

Mas hoje reservo alguns momentos para observar, e o espaço que atrai mais meu interesse é um que nunca notei antes. É aquele mais próximo do banheiro: um cômodo inteiro dedicado à coleção de bebidas alcoólicas de Anderson.

Não sei muito sobre álcool.

Nunca passei por nenhum tipo de experiência adolescente tradicional; nunca tive festas para ir; nunca estive sujeita à pressão dos colegas, como leio nos romances. Ninguém jamais me ofereceu drogas ou uma bebida mais forte, provavelmente porque tinham um bom motivo para isso. Mesmo assim, fico impressionada com a miríade de garrafas perfeitamente dispostas em prateleiras de vidro instaladas nas paredes escuras desse cômodo. Não há nenhum móvel além de duas enormes cadeiras de couro marrom e da mesinha de café fortemente envernizada entre elas. Sobre a mesa há uma... uma moringa? ... cheia de um líquido âmbar e um solitário copo a seu lado. Tudo aqui é escuro, um bocado deprimente, e cheira a madeira e alguma coisa antiga, almiscarada – velha.

Estendo a mão, passo os dedos pelos painéis de madeira e conto. Das quatro paredes, três são dedicadas a abrigar várias garrafas antigas – 637 no total –, sendo a maioria cheia com o mesmo líquido âmbar. Apenas algumas trazem um líquido claro. Aproximo-me um pouco mais para inspecionar os rótulos e descobrir que as garrafas claras são de vodca – uma bebida da qual já ouvi falar. Porém, as garrafas âmbares possuem nomes diferentes. Em muitas delas aparece escrita a palavra Scotch. Há sete garrafas de tequila, mas a maior parte do que Anderson mantinha em seu quarto se chama Bourbon – 523 garrafas no total –, uma substância sobre a qual nada sei. Para ser sincera, só ouvi falar que algumas pessoas bebem vinho e cerveja e margaritas – mas aqui não tem nenhuma dessas bebidas. A única parede que abriga outra coisa além de álcool guarda várias caixas de charuto e mais desses copos pequenos e detalhadamente lapidados. Pego um deles e quase o derrubo; é muito mais pesado do que parece. Fico me perguntando se essas peças são de cristal verdadeiro.

Pego-me questionando as motivações de Anderson ao criar um espaço como esse. É uma ideia tão estranha dedicar todo um cômodo à exposição de garrafas de álcool. Por que não guardá-las em um armário? Ou em uma geladeira?

Sento-me em uma das cadeiras e ergo o rosto, distraída pelo enorme lustre pendurado no teto.

Por que me senti atraída por esse cômodo? Não sei dizer. Mas aqui sei que estou realmente sozinha. Isolada de todo o barulho e confusão do dia. Sinto-me de fato isolada em meio a essas garrafas, de um jeito que me acalma. E, pela primeira vez hoje, sinto-me relaxar. Sinto-me deixando tudo para trás. Em um retiro. Fugindo para algum canto escuro de minha mente.

Há uma sensação estranha de liberdade em desistir.

Há uma liberdade em sentir raiva. Em viver sozinha. E o mais estranho de tudo: aqui, entre as paredes do antigo refúgio de Anderson, sinto que finalmente o entendo. Finalmente entendo como foi capaz de viver do jeito que viveu. Ele nunca se permitia sentir, nunca se permitia se magoar, nunca acolhia emoções em sua vida. Não tinha obrigações com ninguém além de si mesmo. E isso o libertava.

Seu egoísmo o libertava.

Levo a mão à moringa de líquido âmbar, retiro a tampa e encho o copo de cristal ao lado. Passo algum tempo observando o copo, que me encara de volta.

Por fim, eu o apanho.

Um gole e quase cuspo o líquido, tusso violentamente quando alcança a garganta. A bebida preferida de Anderson é asquerosa. Como morte e fogo e óleo e fumaça. Forço-me a tomar um rápido gole do líquido horrível antes de baixar outra vez o copo, meus olhos lacrimejando enquanto o álcool escorre para dentro de mim. Nem sei por que fiz isso – por que quis experimentar ou o que espero que esse líquido faça por mim. Não tenho expectativa de nada.

Só me sinto curiosa.

Só me sinto descuidada.

E os segundos passam, meus olhos se abrem e fecham no tão bem-vindo silêncio, e arrasto o dedo pelos lábios, conto as muitas garrafas outra vez, e já começo a pensar que o sabor terrível da bebida não era tão ruim assim quando lentamente, alegremente, um toque de calor surge dentro de mim e libera seus raios em minhas veias.

Ah, penso

ah

Minha boca se repuxa em um sorriso, mas parece um pouco desajeitada, e não me importo, não mesmo, nem com o fato de minha garganta parecer um pouco entorpecida. Seguro o copo ainda cheio e tomo outro enorme gole de fogo, e dessa vez vou sem medo. É agradável estar perdida nisso, sentir a cabeça tomada por nuvens e ventos e nada mais. Sinto-me solta e um pouco desajeitada ao me levantar, mas a sensação é boa mesmo assim, é gostosa, calorosa e agradável, e me pego vagando a caminho do banheiro e sorrindo enquanto procuro alguma coisa nas gavetas

alguma coisa

onde está

Por fim a encontro, um cortador de cabelo elétrico, e decido que chegou a hora de cortar meus cabelos. Estão me incomodando há muito tempo. São longos demais, longos demais, uma lembrança, uma recordação do meu tempo no hospício, longos demais por causa de todos esses anos que fiquei esquecida e deixada para apodrecer no inferno, pesados demais, sufocantes demais, demais, demais isso, demais aquilo, irritantes demais.

Meus dedos tateiam em busca do botão até conseguirem ligar o aparelho. Sinto-o zumbindo em minha mão e penso que talvez devesse tirar as roupas antes, não quero ter cabelo pra todo lado, não é mesmo? Devo tirar as roupas primeiro, sem dúvida.

E então estou em pé, vestindo apenas a roupa de baixo, pensando em quantas vezes secretamente desejei fazer isso, como pensei que seria tão bom, tão libertador...

Passo a lâmina na cabeça em um movimento ligeiramente irregular.

Uma vez.

Duas vezes.

Várias e várias vezes, e estou rindo enquanto o cabelo cai no chão, um mar de ondas castanhas longas demais se curvando a meus pés e nunca me senti tão leve, tão boba boba feliz

Solto a máquina ainda zumbindo na pia e dou um passo para trás, admirando meu trabalho no espelho enquanto toco os fios recém-raspados. Agora tenho o mesmo corte de cabelo de Warner. Os mesmos poucos centímetros de penugem, com a diferença de que meus fios são escuros enquanto os dele são claros. De uma hora para a outra pareço bem mais velha. Mais durona. Séria. Consigo ver minhas maçãs do rosto. A linha do maxilar. Pareço furiosa, bastante assustadora. Meus olhos brilham enormes no rosto, o centro da atenção, enormes e intensos e penetrantes e os adoro.

Adoro.

Continuo rindo enquanto atravesso o corredor, vagando de roupa íntima pelos aposentos de Anderson, sentindo-me mais livre do que em anos. Solto o corpo na enorme cadeira de couro e termino o copo em dois rápidos goles.

Anos, séculos, vidas inteiras se passam, e lá longe ouço algumas pancadas.

Ignoro-as.

Agora estou de lado na cadeira, as pernas penduradas no braço do móvel, relaxando enquanto o lustre gira...

Estava girando antes?

... mas logo meu devaneio é interrompido, num instante ouço vozes apressadas que reconheço vagamente, mas não me levanto, apenas contraio o corpo e, giro a cabeça na direção do barulho.

– Puta merda, J...

Kenji de repente entra no quarto e fica paralisado ao deparar comigo. De repente, lembro-me vagamente de que estou de roupa íntima e de que uma antiga versão minha preferiria que Kenji não me visse assim... Mas isso não é o bastante para me fazer agir. Kenji, por sua vez, parece muito preocupado.

– Ah merda merda merda...

Kenji e Warner estão parados à minha frente, os dois me encarando, horrorizados, como se eu tivesse feito alguma coisa muito errada que os deixou furiosos.

– O que foi? – pergunto, irritada. – Deem o fora daqui!

– Juliette... meu amor... o que foi que você fez...

E então, Warner está ajoelhado ao meu lado. Tento olhar para ele, mas de repente fica difícil focar a vista, difícil enxergar. Minha visão embaça e tenho que pensar várias vezes para fazer o rosto dele parar de se movimentar, mas então estou olhando para ele, realmente olhando para ele, e alguma coisa dentro de mim tenta se lembrar de que estamos furiosas com Warner, de que não falamos mais com ele e de que não queremos mais vê-lo ou falar com ele, mas então ele toca meu rosto...

e eu suspiro

Descanso a bochecha na palma de sua mão e me recordo de alguma coisa linda, alguma coisa doce, enquanto uma enxurrada de sentimentos se espalha por mim

– Oi – cumprimento-o.

E ele parece tão triste tão triste e está prestes a responder, mas Kenji fala:

– Irmão, acho que ela está bem bêbada, tipo, não sei, deve ter tomado uma garrafa inteira dessa coisa. Talvez meia caneca? E para alguém com o peso dela? – Pragueja baixinho. – Uma quantidade dessas de uísque acabaria comigo.

Warner fecha os olhos. Fico fascinada com seu pomo de adão subindo e descendo na garganta, e estendo a mão para passar os dedos por seu pescoço.

– Querida... – ele sussurra, ainda de olhos fechados. – Por que você...

– Sabe quanto te amo? – interrompo-o. – Eu amo... amava tanto você. Tanto.

Quando Warner volta a abrir os olhos, eles estão iluminados. Brilhando. Não diz nada para mim.

– Kishimoto – chama, baixinho. – Por favor, ligue o chuveiro.

– Pode deixar.

E Kenji sai.

Warner continua sem me dizer nada.

Toco seus lábios. Levo meu corpo mais para a frente.

– Você tem uma boca tão linda – sussurro.

Ele tenta sorrir. Parece triste.

– Gostou dos meus cabelos? – pergunto.

Ele assente.

– Sério?

– Você está linda – ele garante, mas quase não consegue pronunciar as palavras. Sua voz falha ao prosseguir: – Por que fez isso, meu amor? Estava tentando se ferir?

Tento responder, mas de repente sinto náuseas. Minha cabeça gira. Fecho os olhos para apaziguar a sensação, mas ela não vai embora.

– Chuveiro pronto – ouço Kenji gritar. E, de repente, sua voz está mais próxima: – Você dá conta, irmão? Ou quer que eu assuma?

– Não. – Uma pausa. – Não, pode ir. Vou cuidar para que ela fique bem. Por favor, diga aos outros que não estou me sentindo bem agora à noite. Transmita meu pedido de desculpas.

– Pode deixar. Mais alguma coisa?

– Café. Várias garrafas de água. Duas aspirinas.

– Deixa comigo.

– Obrigado.

– Não por isso, irmão.

E então estou em movimento, tudo está em movimento, tudo está de lado e abro os olhos e rapidamente os fecho e o mundo é um borrão à minha frente. Warner está me levando em seus braços e eu enterro o rosto em seu pescoço. Seu cheiro é tão familiar.

Segurança.

Quero falar, mas me sinto tão letárgica. Como se meus lábios demorassem toda uma vida para se mexer, como se tudo estivesse em câmera lenta; quando enfim se mexem, é como se as palavras se comprimissem todas juntas quando as pronuncio, várias e várias vezes.

– Já estava com saudade de você – sussurro contra a pele dele. – Sinto saudade disso, de você, tanta saudade de você...

Então ele me coloca no chão, me ajuda a me equilibrar e a entrar debaixo do chuveiro.

Quase grito quando a água entra em contato com meu corpo.

Meus olhos se abrem violentamente, minha mente fica parcialmente sóbria um instante depois, enquanto a água desce por meu corpo. Pisco rapidamente, respiro fundo enquanto me apoio na parede do chuveiro, olhando ferozmente para Warner do outro lado do vidro. A água continua escorrendo por minha pele, minha boca se abre. Meus ombros tremem menos à medida que o corpo se acostuma à temperatura, conforme os minutos passam, nós dois olhando um para o outro, mas sem dizer nada. Minha mente se acalma, mas não fica limpa. Ainda há uma névoa pairando sobre mim, mesmo quando estendo a mão para aquecer a água em muitos graus.

Consigo ver seu rosto – lindo, mesmo distorcido pelo vidro que nos separa – quando ele diz:

– Você está bem? Está se sentindo melhor?

Dou um passo adiante, estudando-o silenciosamente, e não digo nada enquanto solto o sutiã, deixando-o cair no chão. Não recebo nenhuma resposta dele, exceto seus olhos ligeiramente mais abertos, o leve movimento em seu peito. Então, tiro a calcinha, chutando-a para trás, e ele pisca várias vezes e dá um passo para trás, desvia o olhar, olha outra vez para mim.

Abro a porta de vidro.

– Entre aqui – convido-o.

Mas Warner não olha para mim.

– Aaron...

– Você não está se sentindo bem – é sua resposta.

– Estou ótima.

– Meu amor, por favor, você acabou de beber praticamente seu peso em uísque.

– Só quero tocar em você – insisto. – Venha aqui.

Ele enfim vira o rosto para me encarar, seus olhos subindo lentamente por meu corpo, e eu vejo, vejo acontecer quando alguma coisa dentro dele parece se romper. Parece sentir dor e estar vulnerável e engole em seco enquanto dá um passo na minha direção, o vapor agora preenchendo o banheiro, gotas de água quente caindo sobre meus quadris nus, e seus lábios se entreabrem quando olha para mim, quando estende a mão, e acho que talvez ele entre aqui quando

em vez disso

ele fecha a porta entre nós e anuncia:

– Espero você na sala de estar, meu amor.


Warner

Juliette está dormindo.

Saiu do chuveiro, subiu no meu colo e quase imediatamente caiu no sono, encostada em meu pescoço; durante todo o tempo, murmurou coisas das quais tenho certeza de que se arrependerá ao amanhecer. Uso cada gota do meu autocontrole para separar seu corpo suave e quente do meu. De alguma forma, consigo. Ajeitei-a na cama e saí. A dor de me sentir distante dela não é diferente do que imaginei, é como arrancar a pele do meu próprio corpo. Juliette me implorou para ficar, mas fingi não ouvir. Falou que me amava e não consegui responder.

Ela chorou, mesmo de olhos fechados.

Mas não posso confiar que Juliette saiba o que está fazendo ou dizendo nesse estado alterado de consciência; não, sei que é melhor não. Juliette não tem experiência com álcool, mas só posso imaginar que, quando seu bom senso voltar, pela manhã, ela não vai querer ver a minha cara. Não vai querer saber que se mostrou tão vulnerável para mim. Aliás, a essa altura me pergunto se vai sequer se lembrar do que aconteceu.

Quanto a mim, sou um caso perdido.

Já passam das três da manhã e sinto como se não dormisse há dias. Mal suporto fechar os olhos; não consigo ficar sozinho com minha mente ou minhas muitas fragilidades. Sinto-me estilhaçado, preso nesse corpo apenas por necessidade.

Já tentei, em vão, articular a bagunça de emoções se empilhando em minha mente – tentei articular para Kenji, que quis saber o que aconteceu depois que ele foi embora; para Castle, que me encurralou há menos de três horas, exigindo saber o que eu havia dito a ela; até mesmo para Kent, que conseguiu parecer só um pouco contente ao descobrir que meu relacionamento recente com Juliette já havia implodido.

Quero me afundar na terra.

Não posso voltar ao nosso quarto – ao meu quarto –, onde a prova da existência de Juliette ainda está fresca demais, viva demais; e não posso mais escapar para as câmaras de simulação, pois os soldados continuam instalados lá.

Não tenho como fugir das consequências de minhas ações.

Não tenho onde encostar a cabeça por mais do que um instante antes de ser encontrado e devidamente castigado.

Lena, rindo alto bem na minha cara quando passei por ela no corredor.

Nazeera, balançando a cabeça enquanto eu dava boa-noite ao seu irmão.

Sonya e Sara, lançando olhares pesarosos para mim após me encontrarem agachado em um canto da ala médica que ainda não está pronta. Brendan, Winston, Lily, Alia e Ian, passando a cabeça pela porta de seus novos quartos, parando-me enquanto eu tentava ir embora, fazendo tantas perguntas – tão altas e forçosas que até mesmo um James sonolento veio atrás de mim, puxando-me pela camisa e perguntando várias e várias vezes se Juliette estava ou não estava bem.

De onde veio essa vida?

Quem são essas pessoas com as quais de repente me vejo em dívida?

Todos andam tão justificadamente preocupados com Juliette – com o bem-estar de nossa comandante suprema –, que eu, por ser cúmplice de seu sofrimento, não estou protegido em lugar algum dos olhares à espreita, das expressões questionadoras, dos semblantes de pena. É alarmante ver tantas pessoas preocupadas com minha vida privada. Quando as coisas iam bem entre nós, eu precisava responder menos perguntas; estava sujeito a menos interesse. Juliette era quem mantinha essas relações; eles não se preocupavam comigo. Nunca quis nada disso. Não queria essa responsabilidade. Não me importo com a responsabilidade ligada a amizades. Eu só queria Juliette. Queria seu amor, seu coração, seus braços me envolvendo. E isso era parte do preço que eu pagava por sua afeição: essas pessoas. Suas perguntas. Seu claro escárnio por minha existência.

Portanto, tornei-me um fantasma.

Ando por esses corredores silenciosos. Fico pelos cantos e me mantenho parado na penumbra, esperando alguma coisa. O quê? Isso não sei.

Perigo.

Esquecimento.

Qualquer coisa que guie meus próximos passos.

Quero um novo propósito, um trabalho a executar. Então, imediatamente me lembro de que sou o comandante-chefe e regente do Setor 45, que tenho um número infinito de coisas para cuidar e negociar – e, por algum motivo, isso não funciona mais para mim. Minhas tarefas cotidianas não bastam para distrair a mente; minha rotina profundamente regimentada foi desmantelada; Delalieu se empenha para manter o ritmo sob o peso da minha erosão emocional e não consigo não pensar em meu pai repetidas e repetidas vezes...

Em como estava certo no que dizia a meu respeito.

Sempre esteve certo.

As emoções me arruinaram, várias vezes. Foram elas que me levaram a aceitar qualquer trabalho – a qualquer custo – para ficar perto da minha mãe. Foram elas que me levaram a encontrar Juliette, a encontrá-la na busca de uma cura para minha mãe. Foram elas que me levaram a me apaixonar, a levar um tiro e perder a cabeça, a me tornar outra vez um garoto abalado – um menino que cai de joelhos e implora a um pai indigno e monstruoso para poupar a garota que ele ama. Foram as emoções, minhas frágeis emoções, que me custaram tudo.

Não tenho paz. Não tenho propósito.

Quem me dera ter arrancado esse coração do peito há muito tempo.

Mesmo assim, há trabalho a ser feito.

O simpósio está agora a menos de doze horas e em momento algum tive a oportunidade de cuidar dos detalhes ao lado de Juliette. Não previ que as coisas tomariam esse rumo. Jamais imaginei que os negócios continuariam como de costume depois da morte de meu pai. Pensei que uma guerra maior fosse iminente; pensei que os outros comandantes supremos certamente viriam atrás de nós antes de sequer termos a chance de fingir estarmos no controle do Setor 45. Não me ocorreu que tinham em mente planos mais sinistros. Não me ocorreu a ideia de passar mais tempo preparando Juliette para as tediosas formalidades – aquelas rotinas monótonas – que envolvem a estrutura do Restabelecimento. Mas eu devia ter imaginado. Devia ter esperado. Eu podia ter evitado isso.

Pensei que o Restabelecimento fosse desmoronar.

Mas estava errado.

Nossa comandante suprema tem poucas horas para se preparar antes de se dirigir a uma sala com 554 outros regentes e comandantes-chefes na América no Norte. Espera-se que ela se mostre uma líder. Que negocie os muitos detalhes da diplomacia doméstica e internacional. Haider, Nazeera e Lena estarão todos ansiosos por transmitir notícias a seus pais assassinos. E devo estar ao lado de Juliette, ajudando-a e guiando-a e protegendo-a. Contudo, não tenho ideia de qual Juliette vai sair dos aposentos de meu pai ao amanhecer. Não tenho ideia do que esperar dela, de como vai me tratar ou de onde sua cabeça estará.

Não tenho a menor ideia do que está prestes a acontecer.

E não posso culpar ninguém senão eu mesmo.


Juliette

Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca. Eu não sou louca.
Eu não sou louca. Eu não sou louca.

– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO

Quando abro os olhos, tudo ressurge outra vez.

As evidências estão aqui, nessa dor de cabeça forte e latejante, nesse gosto amargo na boca e no estômago, nessa sede insuportável, como se todas as células do meu corpo estivessem desidratadas. É a mais estranha das sensações. É horrível.

Mas o pior, pior que tudo isso, são as lembranças. São distantes, mas permanecem intactas. Tomei o bourbon de Anderson; fiquei deitada de roupa íntima na frente de Kenji. E então, com uma arfada repentina e dolorosa...

Tirei a roupa no chuveiro. Chamei Warner para tomar banho comigo.

Fecho os olhos e uma onda de náuseas se apossa de mim, ameaça colocar para fora o pouco que tenho no estômago. A vergonha me invade com uma eficiência que quase me deixa sem fôlego, criando em mim uma sensação de ódio pleno por mim mesma. Sou incapaz de tremer. Por fim, relutante, abro novamente os olhos e percebo que alguém me deixou três garrafas de água e dois comprimidos pequenos.

Grata, engulo tudo.

Ainda está escuro no quarto, mas, por algum motivo, sei que já é dia. Sento-me rápido demais e meu cérebro chacoalha, balança no crânio como um pêndulo feroz. Pego-me cambaleando, mesmo enquanto permaneço parada, com as mãos afundando no colchão.

Nunca, penso. Nunca mais. Anderson era um idiota. Essa sensação é horrível. E é só quando consigo chegar ao banheiro que lembro, com uma clareza perfurante e repentina, que raspei a cabeça.

Fico parada na frente do espelho, os restos dos fios longos e castanhos continuam no chão. Olho meu reflexo e fico impressionada. Horrorizada. Fascinada.

Acendo a luz e tremo quando as lâmpadas fluorescentes desencadeiam uma reação dolorosa em meu cérebro, preciso de vários minutos para me ajustar à luminosidade. Ligo o chuveiro, espero a água esquentar enquanto analiso minha nova imagem.

Com cautela, toco o pouco de cabelo que ficou. Com o passar dos segundos, vou ganhando coragem até me posicionar tão perto do espelho que meu nariz toca o vidro. É tão estranho, é muito estranho, mas logo minha apreensão vai ficando para trás. Não importa quanto tempo eu passe me olhando, sou incapaz de alimentar qualquer sensação de arrependimento. Choque, sim, mas...

Não sei.

Gostei muito, muito mesmo, do resultado.

Meus olhos sempre foram grandes e verde-azulados, miniaturas do globo que habitamos. Mas até então não os tinha achado particularmente interessantes. Agora, porém, pela primeira vez acho meu rosto interessante. Como se eu tivesse deixado para trás as sombras de meu próprio ser; como se, finalmente, a cortina que eu usava para me esconder tivesse sido aberta.

Estou aqui. Bem aqui.

Olhe para mim, pareço gritar em silêncio.

O vapor invade o banheiro em expirações lentas e cuidadosas que embaçam meu reflexo e por fim sou forçada a virar o rosto. Mas, quando noto, estou sorrindo.

Porque, pela primeira vez na vida, realmente gosto da minha aparência.

Ontem, pedi a Delalieu que trouxesse meu guarda-roupa para os aposentos de Anderson antes que eu chegasse – e agora me pego diante do armário, examinando-o com novos olhos. São as mesmas roupas que vejo todas as vezes que abro essas portas; mas, de repente, eu as vejo de modo diferente.

Mas também estou me sentindo diferente.

Antes, roupas me deixavam perplexa. Nunca consegui entender como criar um visual da maneira que Warner faz. Pensei se tratar de uma ciência que eu jamais conseguiria dominar; uma habilidade fora do meu alcance. Mas agora estou me dando conta de que o problema era eu não saber quem eu realmente era. Eu não sabia vestir a impostora que vivia dentro da minha pele.

Do que eu gostava?

Como queria ser percebida?

Por anos, meu objetivo foi me diminuir – dobrar-me e desdobrar-me em um polígono de nada, ser insignificante demais para ser lembrada. Eu queria parecer inocente. Queria ser vista como discreta e inofensiva; sempre me preocupei com a maneira como a minha existência aterrorizava as pessoas e fiz tudo o que estava ao meu alcance para me diminuir, diminuir minha luz, minha alma. Eu queria desesperadamente parecer ignorante. Queria muito agradar aos filhos da puta que me julgavam sem me conhecer, e acabei me perdendo nesse processo.

Mas agora?

Agora eu rio. Alto.

Agora estou pouco me fodendo.


Warner

Quando Juliette nos encontra de manhã, está quase irreconhecível.

Fui forçado, apesar de todas as inclinações de me enterrar em outras tarefas, a me reunir com nosso grupo hoje por conta do que agora parece ter sido a chegada inevitável de nossos três últimos convidados. Os gêmeos do comandante supremo da América do Sul e o filho do comandante supremo da África. A comandante suprema da Oceania não tem filhos, então, suponho que esses sejam os últimos visitantes a comparecer. E todos chegaram a tempo de nos acompanhar ao simpósio. Muito conveniente.

Eu devia ter imaginado.

Eu tinha acabado de apresentar os três recém-chegados a Castle e a Kenji, que vieram cumprimentá-los, quando Juliette fez sua aparição pública do dia. Menos de trinta segundos se passaram desde que ela chegou e ainda estou tentando, sem sucesso, deixar de olhá-la.

Está deslumbrante.

Usa um suéter simples e preto, bem ajustado ao corpo; jeans apertados cinza-escuros e botas negras sem salto, com cano na altura dos tornozelos. Os cabelos parecem ao mesmo tempo ausentes e presentes; são como uma coroa macia e escura que combina com Juliette de uma maneira que eu jamais esperaria. Sem a distração dos fios longos, meus olhos não conseguem pousar em nenhum lugar que não seja diretamente em seu rosto. E essa garota tem o rosto mais incrível do mundo – com olhos grandes, hipnotizantes – e uma estrutura óssea que nunca se mostrou mais pronunciada.

Está impressionantemente diferente.

Forte.

Ainda linda, mas mais firme. Mais durona. Deixou de ser a menininha com rabo de cavalo e suéter rosa. Parece muito mais a garota jovem que assassinou meu pai e depois bebeu quatro dedos de seu bourbon mais caro.

Olha para mim e para a expressão atordoada de Kenji e de Castle antes de se concentrar na aparência confusa de nossos três convidados recém-chegados, e todos parecemos incapazes de articular uma única palavra.

– Bom dia – Juliette enfim cumprimenta, mas não sorri ao falar. Não há calor ou meiguice em seus olhos quando ela analisa os arredores, o que me leva a vacilar.

– Nossa, princesa, é mesmo você?

Juliette estuda Kenji rapidamente, mas não responde.

– Quem são vocês três? – pergunta, fazendo um gesto de cabeça aos recém-chegados. Eles se levantam lentamente. Inseguros.

– Esses são nossos novos convidados – respondo, mas não consigo me forçar a olhar para ela. A encará-la. – Estava ainda agora apresentando-os a Castle e Kishimo...

– E não ia me incluir na lista? – anuncia uma voz que acaba de chegar. – Também quero conhecer a nova comandante suprema.

Viro-me e encontro Lena parada no vão da porta, a menos de um metro de Juliette, deslizando o olhar pela sala como se nunca tivesse se sentido mais satisfeita em toda sua vida. Sinto meu coração ganhar velocidade, a mente acelerar. Ainda não faço ideia se Juliette sabe quem Lena é – ou do que tivemos juntos.

E os olhos de Lena se iluminam, se iluminam demais; seu sorriso é enorme e feliz.

Meu sangue gela.

Com as duas paradas tão perto uma da outra, não consigo deixar de notar quão óbvias são as diferenças entre elas. Juliette é pequena; Lena é alta. Juliette tem cabelos escuros e olhos intensos; Lena é pálida de todas as maneiras possíveis. Seus cabelos são quase brancos, os olhos têm o mais leve tom de azul, a pele é quase transparente, à exceção das sardas que se espalham pelo nariz e pelas bochechas. Mas ela compensa essa carência de pigmentação com o peso de sua presença. Sempre foi espalhafatosa, agressiva, excessivamente impulsiva. Juliette, em comparação, hoje está muda – quase a um nível extremo. Não entrega nenhuma emoção, nem o menor sinal de raiva ou ciúme. Fica parada e quieta, analisando silenciosamente a situação. Sua energia permanece recolhida. Pronta para saltar.

E quando Lena se vira para encará-la, sinto que todos os presentes ficam tensos.

– Oi – Lena cumprimenta bem alto. A felicidade falsa desfigura seu sorriso, transformando-a em algo cruel. Ela estende a mão e diz: – É um prazer, enfim, conhecer a namorada de Warner. – E, em seguida: – Ah, espere... Perdão. Eu quis dizer ex-namorada.

Estou segurando a respiração enquanto Juliette a analisa de cima a baixo. Leva o tempo que lhe é necessário, inclinando a cabeça conforme devora Lena com os olhos, e consigo perceber que a mão estendida de Lena já começa a mostrar sinais de cansaço, os dedos abertos começando a tremer.

Juliette não parece impressionada.

– Pode se dirigir a mim como comandante suprema da América do Norte – responde.

E sai andando.

Sinto uma risada quase histérica ganhando força em meu peito. Tenho que olhar para baixo, forçar-me a manter uma expressão inabalada. E recupero-me imediatamente ao me lembrar de que Juliette não é mais minha. Não é mais minha, não posso mais amá-la, adorá-la. Nunca, em todo o tempo que a conheço, me senti mais atraído por essa garota, e não há nada, nada mesmo, que eu possa fazer para resolver isso. Meu coração bate mais rápido quando ela entra de vez na sala – deixando uma Lena boquiaberta pelo caminho. Sou tomado pelo arrependimento.

Não consigo acreditar que consegui perdê-la. Duas vezes.

Que ela me amou. Uma vez.

– Por favor, identifiquem-se – ela exige de nossos três convidados.

Stephan é o primeiro a falar:

– Sou Stephan Feruzi Omondi – ele se apresenta, estendendo o braço para oferecer um aperto de mãos. – Estou aqui como representante do comandante supremo da África.

Stephan é alto e pomposo e extremamente formal e, embora tenha nascido e sido criado no que no passado fora Nairóbi, estudou inglês no exterior e se expressa com um sotaque britânico. Percebo que o olhar de Juliette se detém por algum tempo no rosto dele, que ela gosta da imagem à sua frente.

Alguma coisa se aperta em meu peito.

– Seus pais também o enviaram para me espionar, Stephan? – ela indaga, ainda encarando-o.

Ele responde com um sorriso – um movimento que anima todo o seu rosto – e de repente passo a odiá-lo.

– Viemos só para oferecer os cumprimentos. Só para uma reunião amigável.

– Aham. E vocês dois? – Juliette se volta para os gêmeos. – A mesma coisa?

Nicolás, o gêmeo que chegou ao mundo primeiro, apenas sorri para Juliette. Parece alegre.

– Sou Nicolás Castillo – apresenta-se –, filho de Santiago e Martina Castillo, e esta é minha irmã Valentina...

– Irmã? – Lena se intromete. Ela acaba de encontrar outra oportunidade para ser cruel, e eu nunca a odiei tanto. – Vocês continuam fazendo isso?

– Lena – chamo-a, com um tom de advertência na voz.

– O que foi? – Ela me encara. – Por que todo mundo continua fingindo que agir assim é normal? Um dia o filho de Santiago acorda e decide que quer ser menina e todos nós simplesmente... fingimos que não tem nada acontecendo?

– Vá à merda, Lena – é a primeira coisa que Valentina diz durante toda a manhã. – Eu devia ter cortado suas orelhas quando tive a oportunidade.

Juliette fica de olhos arregalados.

– Ah, perdão... – Kenji inclina a cabeça para o lado, usa a mão para acenar. – Estou perdendo alguma coisa?

– Valentina gosta de fingir – Lena retruca.

– Cállate la boca, cabrona – Nicolás esbraveja com ela.

– Não, quer saber? – Valentina diz, apoiando a mão no ombro de seu irmão. – Está tudo bem. Deixe-a falar. Lena acha que eu gosto de fingir, pero não vou fingir cuando cuelge su cuerpo muerto en mi cuarto.

Lena apenas revira os olhos.

– Valentina, não ligue para o que ela diz – aconselho. – Ella no tiene ninguna idea de lo que está hablando. Tenemos mucho que hacer y no debemos...

– Porra, cara! – Kenji me interrompe. – Você também fala espanhol, é? – Passa a mão pelos cabelos. – Vou ter que me acostumar a isso.

– Todos nós falamos muitas línguas – esclarece Nicolás, com um toque de irritação permeando a voz. – Temos que conseguir nos comuni...

– Ouçam, pessoal, estou pouco me lixando para seus dramas pessoais – Juliette anuncia de repente, pressionando a ponte do nariz. – Sinto uma dor de cabeça terrível e tenho um milhão de coisas para resolver, então quero começar logo.

– Por supuesto, señorita. – Nicolás faz uma pequena reverência com a cabeça.

– O quê? – ela pergunta, piscando para ele. – Não sei o que significa isso.

Nicolás apenas sorri.

– Entonces deberías aprender a hablar español.

Quase rio, mesmo enquanto balanço a cabeça. Nicolás está dificultando a situação, e de propósito.

– Basta ya – censuro-o. – Dejala sola. Sabes que ella no habla español.

– O que vocês dois estão falando? – Juliette exige saber.

O sorriso de Nicolás só cresce no rosto, seus olhos azuis brilhando em deleite.

– Nada que tenha muita importância, Senhora Suprema. Só que é um prazer conhecê-la.

– Tenho a informação de que todos participarão do simpósio hoje, certo? – ela pergunta.

Mais uma leve reverência.

– Claro que sí.

– Ele disse que sim – traduzo para ela.

– Que outras línguas você fala? – Juliette se mostra curiosa ao se virar para me encarar, e fico tão surpreso por ela se dirigir a mim em público que me esqueço de responder.

É Stephan quem diz:

– Nós aprendemos muitas línguas desde muito novos. É fundamental que os comandantes e todos de suas famílias saibam se comunicar uns com os outros.

– Mas eu pensei que o Restabelecimento quisesse se livrar de todas as línguas – ela comenta. – Pensei que estivessem trabalhando para criar uma única língua universal...

– Sí, Senhora Suprema – Valentina assevera, concordando discretamente com a cabeça. – É verdade. Mas primeiro precisávamos ser capazes de conversar uns com os outros, não?

Juliette parece fascinada. Esqueceu sua raiva tempo suficiente para ficar mais uma vez impressionada com a vastidão do mundo; posso ver em seus olhos. Posso sentir seu desejo de fugir.

– De onde vocês são? – quer saber, seu tom de voz repleto de inocência, admiração. Alguma coisa se parte em meu coração. – Antes de o mundo ser reorganizado, qual era o nome de seus países?

– Nascemos na Argentina – Nicolás e Valentina falam ao mesmo tempo.

– Minha família é do Quênia – responde Stephan.

– E vocês já visitaram uns aos outros? – ela indaga, virando-se para analisar nossos rostos. – Vocês viajam uns aos continentes dos outros?

Confirmamos com um gesto.

– Nossa! – exclama baixinho, mais pra si mesma do que para o restante da sala. – Deve ser incrível!

– Também deve ir nos visitar, Senhora Suprema – convida um Stephan sorridente. – Adoraríamos recebê-la. Afinal, agora é uma de nós.

O sorriso de Juliette desaparece. Cedo demais também se vai seu olhar distante, reflexivo. Ela não diz nada, mas posso sentir a raiva e a tristeza fervendo em seu interior.

De repente, chama:

– Warner, Castle, Kenji?

– Sim?

– Sim, senhorita Ferrars?

Eu só a encaro.

– Se tivermos terminado aqui, eu gostaria de conversar a sós com vocês três, por favor.


Juliette

Fico pensando que preciso permanecer calma, que tudo isso é coisa da minha cabeça, que vai dar tudo certo e alguém vai abrir essa porta, alguém vai me tirar daqui. Fico pensando que isso vai acontecer. Fico pensando que alguma coisa desse tipo tem de acontecer, porque coisas assim simplesmente não acontecem. Isso não acontece. As pessoas não são esquecidas assim. Não são abandonadas assim.

Isso simplesmente não acontece.

Meu rosto está sujo de sangue de quando me jogaram no chão, e minhas mãos continuam trêmulas, mesmo enquanto escrevo estas palavras. Essa caneta é minha única válvula de escape, minha única voz, porque não tenho ninguém mais com quem conversar, nenhum pensamento além dos meus para me afogar, e todos os botes salva-vidas estão tomados e todos os coletes salva-vidas destruídos e não sei nadar e não consigo nadar e não posso nadar e está ficando tão difícil. Está ficando tão difícil. É como se houvesse um milhão de gritos presos em meu peito, mas tenho de mantê-los todos aqui porque para que gritar se você nunca vai ser ouvida e ninguém nunca vai me ouvir aqui. Ninguém nunca mais vai me ouvir.

Aprendi a ficar olhando para as coisas.

Para as paredes. Minhas mãos. As rachaduras nas paredes. As linhas em meus dedos. Os tons de cinza do concreto. O formato das minhas unhas. Escolho uma coisa e a analiso pelo que parecem ser horas. Tenho noção do tempo porque conto mentalmente os segundos. Tenho noção dos dias porque os anoto. Hoje é o dia 2. Hoje é o segundo dia. Hoje é 1 dia.

Hoje.

Está muito frio. Está muito frio, muito frio.

Por favor por favor por favor.

– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO

Continuo encarando os três, esperando uma confirmação quando, de repente, um Kenji espantado responde:

– Ah, sim... É... sem problemas.

– Claro – concorda Castle.

Mas Warner não fala nada. Apenas me analisa como se enxergasse meu interior e, por um instante, só consigo me lembrar da minha imagem nua, implorando para que tomasse banho comigo; meu corpo em seus braços, chorando enquanto eu afirmava sentir saudades; meus lábios tocando os seus.

Sinto tanta vergonha que chego a tremer. Um antigo impulso toma conta do meu corpo, fazendo-me enrubescer.

Fecho os olhos, desvio o rosto, dou meia-volta duramente e saio da sala sem dizer uma palavra mais.

– Juliette, meu amor...

Já estou na metade do corredor quando sua mão toca minhas costas e enrijeço, o coração acelerando em um instante. Assim que me viro para ele, percebo a mudança em seu rosto, sua expressão indo do medo à surpresa em uma fração de segundo, e fico tão furiosa por ele ter essa habilidade, esse dom de ser capaz de sentir as emoções das outras pessoas, porque sempre sou tão transparente para ele, tão completamente vulnerável e isso é revoltante, revoltante.

– O quê? – retruco.

Tento falar com dureza, mas dá tudo errado. Minha voz sai esbaforida. Constrangedora.

– Eu só... – Mas suas mãos pendem nas laterais do corpo. Seus olhos capturam os meus e de repente me pego congelada no tempo. – Eu queria dizer a você que...

– O quê? – E agora minha voz sai baixa e nervosa e aterrorizada, tudo ao mesmo tempo. Dou um passo para trás para salvar minha própria vida e percebo Castle e Kenji se aproximando muito lentamente. Os dois mantêm distância de propósito, para nos oferecer espaço para conversar. – O que você quer dizer?

Mas agora os olhos de Warner estão se movimentando e me estudando. Analisam-me com tanta intensidade que me pergunto se ele tem noção do que está fazendo. Fico curiosa para saber se Warner se dá conta de que, quando me olha desse jeito, sinto tão fortemente quanto se sua pele nua estivesse pressionada à minha. Quero saber se ele tem ideia de que me provoca coisas ao me olhar assim, que me deixa louca porque odeio não conseguir controlar isso, odeio que esse laço entre nós não se desfaça, e ele enfim fala com doçura

alguma coisa

alguma coisa que não ouço

porque estou olhando para seus lábios e sentindo minha pele queimar com lembranças dele e ainda ontem, ainda ontem ele era meu, senti sua boca em meu corpo, pude senti-lo dentro de mim...

– O quê? – consigo dizer, piscando para o teto.

– Eu disse que gostei muito do que fez com seu cabelo.

Odeio Warner, odeio porque faz isso com meu coração, odeio meu corpo por ser tão fraco, por desejá-lo, por sentir sua falta apesar de tudo, e não sei se devo chorar ou beijá-lo ou lhe dar um chute nos dentes, então escolho falar, sem olhá-lo nos olhos:

– Quando ia me contar sobre Lena?

Warner fica parado, totalmente paralisado por um instante.

– Ah... – Ele pigarreia. – Não sabia que você já tinha ouvido falar de Lena.

Estreito os olhos para ele, incapaz de confiar em mim mesma para dizer qualquer coisa. Ainda estou decidindo o melhor curso de ação quando ele prossegue:

– Kenji estava certo. – Mas ele sussurra as palavras, como se falasse consigo mesmo.

– Como é?

Ergue o rosto.

– Desculpe – fala baixinho. – Eu devia ter contado antes. Agora entendo.

– Então, por que não falou nada?

– Ela e eu... Nós... Aquilo não foi nada. Foi um relacionamento por conveniência e companhia básica. Não significou nada para mim. De verdade... Você precisa saber... Se eu nunca falei nada sobre ela, foi porque nunca pensei nela tempo suficiente para sequer considerar contar.

– Mas vocês passaram dois anos juntos...

Warner nega com a cabeça antes de responder:

– Não foi bem assim. Não foram dois anos sérios. Aliás, não foram sequer dois anos de comunicação contínua. – Suspira. – Ela vive na Europa, meu amor. Nós nos víamos por períodos breves e pouco frequentes. Era puramente físico. Não era uma relação de verdade...

– Puramente físico... – ecoo, chocada. Cambaleio para trás, quase tropeço em meus próprios pés e sinto suas palavras rasgarem minha carne com uma dor física lancinante e inesperada. – Nossa. Nossa...

Agora não consigo pensar em nada além de seu corpo junto ao dela, os dois entrelaçados, os dois anos que Warner passou nu nos braços daquela garota...

– Não, por favor – ele pede. A urgência em sua voz me força a voltar ao presente. – Não foi isso que eu quis dizer. Eu só... Eu estou... Não sei explicar – continua, frustrado como nunca o vi antes. Nega fortemente com a cabeça. – Antes de conhecer você, tudo era diferente na minha vida. Estava perdido e totalmente solitário. Nunca me importei com ninguém. Nunca quis me aproximar de ninguém. Eu nunca... Você foi a primeira pessoa que...

– Pare – ordeno, balançando a cabeça em um gesto negativo. – Pare com isso, está bem? Estou muito cansada. Minha cabeça está me matando e não tenho energia para continuar ouvindo essas coisas.

– Juliette...

– Quantos segredos mais você guarda? – pergunto. – Quantas coisas mais vou descobrir sobre você? Sobre mim? Minha família? Minha história? Sobre o Restabelecimento e os detalhes da minha verdadeira vida?

– Juro que nunca quis magoá-la assim – afirma. – Não quero esconder nada de você, mas tudo isso é muito novo para mim, meu amor. Esse tipo de relacionamento é muito novo para mim e eu não... Eu não sei como...

– Você já manteve muita coisa escondida de mim – retruco, sentindo minha força falhar, sentindo o peso dessa terrível dor de cabeça desmontar minha armadura, sentindo demais, coisas demais de uma única vez quando prossigo: – Há tanto que não sei a seu respeito. Há tanto que não sei sobre seu passado. Ou sobre nosso presente. Não sei mais em que posso acreditar.

– Pergunte o que quiser. Eu respondo qualquer coisa que você queira saber.

– Qualquer coisa, menos a verdade a meu respeito? A respeito dos meus pais?

Warner, de repente, fica pálido.

– Você ia manter essas informações escondidas de mim para sempre – afirmo. – Não planejava me contar verdade nenhuma. Que fui adotada. Ou planejava?

Seus olhos ficam desvairados, iluminados pelos sentimentos.

– Responda à pergunta – insisto. – Só me responda isso. – Dou um passo adiante, fico tão próxima de Warner que consigo sentir sua respiração em meu rosto; tão próxima que quase consigo ouvir seu coração acelerar no peito. – Ia me contar?

– Não sei.

– Diga a verdade.

– Estou sendo sincero, meu amor – ele responde, balançando a cabeça. – É muito provável que sim. – De repente, suspira. A ação parece deixá-lo exausto. – Não sei o que fazer para convencê-la de que pensei estar poupando-a da dor dessa verdade em particular. De fato, pensei que seus pais biológicos estivessem mortos. Agora vejo que esconder as informações de você não foi a coisa certa a fazer, mas eu nem sempre faço a coisa certa – admite baixinho. – Mesmo assim, você precisa acreditar que nunca tive a intenção de magoá-la. Nunca quis mentir para você ou esconder informações. Acho que, com o tempo, eu teria lhe contado o que sabia ser verdade. Eu só estava tentando encontrar a hora certa.

De repente, não sei o que sentir.

Encaro-o, vejo-o cabisbaixo, vejo o momento em que sua garganta engole um nó de emoções. E alguma coisa se rompe dentro de mim. Alguma medida de resistência começa a desmoronar.

Warner parece tão vulnerável. Tão jovem.

Respiro fundo e deixo o ar escapar lentamente antes de erguer o rosto, olhá-lo nos olhos mais uma vez. E então percebo. Percebo o momento em que ele sente a mudança em meus sentimentos. Alguma coisa ganha vida em seus olhos. Dá um passo adiante e agora estamos tão próximos que sinto medo de falar. Meu coração bate forte demais no peito e não preciso fazer nada para ser lembrada de tudo, de cada momento, de cada toque que compartilhamos. Seu cheiro está em toda parte à minha volta. Seu calor. Seus suspiros. Seus cílios dourados e olhos verdes. Toco seu rosto quase sem querer, com cuidado, como se ele pudesse ser um fantasma, como se tudo pudesse não passar de um sonho, e as pontas dos meus dedos roçam sua bochecha, deslizam pela linha de seu maxilar e paro quando ele prende a respiração, quando seu corpo treme quase imperceptivelmente

e nos aproximamos como se estivéssemos em uma lembrança

olhos se fechando

lábios se tocando

– Me dê mais uma chance – sussurra, encostando sua cabeça à minha.

Meu coração dói, bate violentamente no peito.

– Por favor – implora suavemente, e de alguma maneira Warner fica ainda mais próximo, seus lábios tocam os meus enquanto fala e me sinto presa pelas emoções, incapaz de me mover enquanto ele pronuncia as palavras contra minha boca, suas mãos leves e hesitantes envolvendo meu rosto, e ele diz: – Juro pela minha vida que não vou decepcioná-la

e me beija

Ele me beija

bem ali, no meio de tudo, na frente de todos, e sou inundada, tomada por sentimentos, a cabeça girando enquanto ele me puxa contra o contorno firme de seu corpo, e não consigo me salvar de mim mesma, não consigo conter o ruído que emito quando ele separa meus lábios e me vejo perdida, perdida em seu sabor, perdida em seu calor, envolvida por seus braços e

preciso me afastar

afasto-me tão rapidamente que quase tropeço. Estou ofegando forte demais, meu rosto vermelho, meus sentimentos em pânico

E ele só consegue me olhar, seu peito subindo e descendo com tamanha intensidade que chego a sentir daqui, a mais de meio metro de distância, e não consigo pensar em nada certo ou racional para dizer sobre o que aconteceu ou o que estou sentindo exceto

– Isso não é justo – sussurro, enquanto as lágrimas ameaçam e pinicam meus olhos. – Não é justo.

Não espero para ouvir sua resposta antes de sair desesperada pelo corredor, correndo o restante do caminho até meus aposentos.


Warner

– Problemas no paraíso, senhor Warner?

Em segundos, já o agarrei pela garganta. A surpresa desfigura seu semblante quando empurro seu corpo contra a parede.

– Você... – começo furioso. – Você me forçou a entrar nesta posição impossível. Por quê?

Castle tenta engolir a saliva em sua boca, mas não consegue. Seus olhos se mantêm arregalados, mas não demonstram medo. Quando volta a falar, suas palavras saem roucas, sufocadas.

– Você tinha de fazer o que fez – arfa. – Tinha que acontecer. Ela precisava ser avisada, e tinha que vir de você.

– Não acredito em suas palavras – grito, empurrando-o com mais força contra a parede. – Aliás, não sei por que cheguei a acreditar em você.

– Por favor, garoto, coloque-me no chão.

Solto-o só um pouco e ele dá várias lufadas de ar antes de prosseguir:

– Eu não menti para você, senhor Warner. Ela precisava ouvir a verdade. E se tivesse ouvido da boca de qualquer outra pessoa, jamais o perdoaria. Pelo menos agora... – Tosse. – Com o tempo, pode ser que o perdoe. É sua única chance de ser feliz.

– Como é que é? – Baixo a mão. Solto-o de vez. – Desde quando se importa com a minha felicidade?

Ele passa tempo demais em silêncio, massageando a garganta enquanto me encara. Por fim, retruca:

– Acha que não sei o que seu pai fez com você? O que ele o fez passar?

E agora dou um passo para trás. Castle prossegue:

– Você acha que não conheço sua história, garoto? Acha que o deixaria entrar no meu mundo, que lhe ofereceria um santuário entre meu povo, se realmente acreditasse que nos causaria mal?

Respiro dificultosamente. De repente, estou confuso. Sinto-me exposto.

– Você não sabe nada a meu respeito – respondo, sentindo a mentira enquanto ainda a pronuncio.

Castle sorri, mas noto um tom de dor em seu rosto.

– Você é só um garoto – fala baixinho. – Tem apenas dezenove anos, senhor Warner. E acho que sempre se esquece disso. Não tem perspectiva, não tem ideia de que só viveu pouquíssimo tempo. Ainda tem muita vida pela frente. – Suspira. – Tento dizer a mesma coisa a Kenji, mas ele é como você. Teimoso, muito teimoso.

– Kenji e eu não somos parecidos em nada.

– Sabia que você é um ano mais novo que ele?

– A idade é um fator irrelevante. Quase todos os meus soldados são mais velhos que eu.

Castle tosse.

– Todos vocês, jovens... – responde, negando com a cabeça. – Vocês sofrem demais. Carregam essas histórias horríveis e trágicas. Personalidades voláteis. Eu sempre quis ajudar. Sempre quis corrigir isso, fazer deste mundo um lugar melhor para vocês, os jovens.

– Bem, pode ir salvar o mundo em outro lugar – retruco. – E fique à vontade para fazer o papel de babá de Kishimoto sempre que quiser. Mas eu não sou responsabilidade sua. Não preciso que sinta pena de mim.

Castle apenas inclina a cabeça para mim.

– Nunca poderá escapar da minha pena, senhor Warner.

Meu maxilar se contrai. Ele prossegue:

– Vocês, garotos... – Seus olhos parecem distraídos por um momento. – Vocês me fazem lembrar tanto dos meus filhos...

Fico em silêncio por um instante.

– Você tem filhos?

– Sim. – Sinto a onda de dor repentina e sufocante apoderando-se dele quando esclarece: – Eu tinha.

Dou vários passos para trás sem nem me dar conta, afastando-me de suas emoções. Só consigo encará-lo. Surpreso. Curioso.

Lamentando.

– Olá.

Ao ouvir a voz de Nazeera, viro-me, assustado. Está acompanhada de Haider, os dois com uma expressão muito séria no rosto.

– O que foi? – questiono.

– Precisamos conversar. – Nazeera olha para Castle. – Seu nome é Castle, certo?

Ele assente.

– Sim, sei que você sabe muito sobre um assunto, Castle, então vou precisar da sua ajuda para também entender. – Nazeera ergue o dedo no ar para traçar um círculo entre nós quatro. – Precisamos conversar. Agora.


Juliette

Isso de não conhecer a paz é muito estranho. Isso de saber que, não importa aonde você vá, não existe nenhum santuário à espera. Que a ameaça da dor se encontra sempre a um sussurro de distância. Não estou segura trancafiada em meio a essas quatro paredes. Nunca estive segura ao sair de casa e tampouco senti qualquer segurança nos 14 anos que vivi em casa. O hospício mata as pessoas dia após dia, o mundo já aprendeu a ter medo de mim e minha casa é o mesmo lugar onde meu pai me trancava no quarto toda noite e minha mãe gritava comigo porque eu era a abominação que ela fora forçada a criar.

Dizia que era meu rosto.

Havia algo no meu rosto, alegava, que ela não suportava. Algo em meus olhos, no jeito como eu a olhava, no fato de eu simplesmente existir. Sempre me dizia para parar de olhar pra ela. Sempre gritava isso. Como se eu pudesse atacá-la. Pare de olhar para mim, gritava. Pare já de olhar para mim, gritava.

Certa vez, colocou minha mão no fogo.

Só para ver se queimava, explicou. Só para ter certeza de que era uma mão normal, insistiu.

Eu tinha 6 anos quando isso aconteceu.

Lembro porque foi no dia do meu aniversário.

– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO

– Esquece – é tudo o que digo quando Kenji aparece à porta dos meus aposentos.

– Esquece o quê? – Ele estica a perna para segurar a porta, que já está se fechando. Então, consegue passar. – O que está acontecendo?

– Deixa pra lá, não quero conversar com nenhum de vocês. Por favor, vão embora. Ou talvez possam ir direto para o inferno. Para ser sincera, não estou nem aí.

Kenji parece chocado, como se eu tivesse lhe dado um tapa na cara.

– Você está... Espere aí... está falando sério?

– Nazeera e eu vamos sair para o simpósio em uma hora. Preciso me arrumar.

– O quê? O que está acontecendo, J? Qual é o seu problema?

Viro-me para encará-lo.

– O que está acontecendo comigo? Ah, claro. Como se você não soubesse!

Kenji passa a mão pelos cabelos.

– Bem, eu soube o que aconteceu com Warner, é verdade, mas tenho certeza de que vi vocês dois dando uns amassos no corredor, então fiquei, hum... Fiquei muito confuso.

– Ele mentiu para mim, Kenji. Mentiu para mim esse tempo todo. Mentiu sobre tantas coisas. Castle também. E você também...

– Espere, como é que é? – Kenji agarra meu braço quando olho para o outro lado. – Espere. Não menti para você sobre merda nenhuma. Não me envolva nesse rolo. Eu não tive nada a ver com o que aconteceu. Droga, até agora não sei o que dizer a Castle. Não acredito que ele manteve tudo isso escondido de mim.

De repente, fico paralisada, meus punhos se fechando, agarrando-se a uma esperança repentina conforme a raiva vai ganhando força.

– Você não fez parte de tudo isso com Castle? – indago.

– Não. Nem ferrando. Eu não tinha ideia dessa loucura toda até ontem, quando Warner me contou.

Hesito.

Kenji revira os olhos.

– Bem, e por que eu deveria acreditar em você? – pergunto, minha voz aguda como a de uma criança. – Todo mundo andou mentindo para mim...

– J... – chama, negando com a cabeça. – Qual é? Você me conhece. Sabe que não curto essas besteiras. Não é meu estilo.

Engulo em seco, de repente me sentindo pequena. De repente, sentindo meu interior se desfazer. Meus olhos ardem enquanto tento sufocar o impulso das lágrimas.

– Você jura?

– Ei! – fala baixinho. – Venha cá, mocinha.

Discretamente dou um passo à frente e ele me abraça, caloroso e forte e seguro e nunca me senti tão grata por essa amizade, pela existência constante dele em minha vida.

– Vai ficar tudo bem – sussurra. – Eu juro.

– Mentiroso – fungo.

– Ué, tem cinquenta por cento de chance de eu estar certo.

– Kenji?

– Sim?

– Se eu descobrir que está mentindo para mim sobre qualquer coisa em tudo isso, juro por Deus que vou arrebentar cada ossinho do seu corpo.

Ele dá uma risada rápida.

– Sim, tudo bem.

– Estou falando muito sério.

– Claro. – E dá tapinhas de leve na minha cabeça.

– Vou mesmo.

– Eu sei, princesa. Eu sei.

Alguns segundos mais de silêncio.

E então

– Kenji – chamo-o, baixinho.

– Sim?

– Eles vão destruir o Setor 45.

– Quem vai?

– Todo mundo.

Kenji empurra o corpo para trás. Arqueia uma sobrancelha.

– Todo mundo quem?

– Todos os comandantes supremos – respondo. – Nazeera me contou tudo.

O rosto de Kenji é inesperadamente estampado por um sorriso enorme.

– Ah, então Nazeera é do time do bem, é? Ela está do nosso lado? Tentando ajudar?

– Ah, meu Deus, Kenji, por favor, foco...

– Só estou dizendo... – começa, erguendo a mão. – A garota é o máximo, é só isso que estou dizendo.

Reviro os olhos. Tento não rir enquanto seco as lágrimas errantes.

– Então... – Ele acena com a cabeça para mim. – O que está rolando? Preciso de detalhes. Quem está vindo? Quando? Como? O que mais?

– Não sei – respondo. – Nazeera ainda está tentando descobrir. Ela acha que devem chegar na próxima semana, mais ou menos. Os filhos estão aqui para me monitorar e transmitir informações a seus pais, mas compareceram ao simpósio especificamente porque parece que os comandantes querem saber como os outros líderes dos setores vão reagir ao me verem. Nazeera comentou que acha que as informações que eles vão enviar podem servir para ajudar a planejar os próximos passos. Ao que me parece, pode ser uma questão de dias.

Em pânico, Kenji fica de olhos arregalados.

– Puta merda!

– Pois é, mas além de acabar com o Setor 45, eles também planejam me levar como prisioneira. O Restabelecimento quer me prender outra vez, ao que tudo indica. Seja lá o que isso significa.

– Prender você outra vez? – Kenji franze a testa. – Por qual motivo? Para mais testes? Tortura? Fazer o que querem com você?

Balanço a cabeça de um lado para o outro.

– Não sei. Não tenho ideia de quem sejam essas pessoas. Minha irmã... – Ainda sinto estranheza ao pronunciar essas palavras. – Ela parece ainda estar sendo vítima de testes e sendo torturada em algum lugar por aí. Tenho certeza de que não vão me levar para um grande reencontro de família, entende?

– Uau! – Kenji esfrega a mão na testa. – Isso é um drama que alcança todo um novo patamar.

– Pois é.

– Mas... o que vamos fazer?

Hesito.

– Não sei, Kenji. Eles virão matar todo mundo do Setor 45. Não acho que eu tenha escolha.

– O que quer dizer com isso?

Ergo o olhar.

– Quero dizer que tenho certeza de que terei de matá-los primeiro.


Warner

Meu coração bate frenético no peito. Minhas mãos estão úmidas, instáveis. Mas não tenho tempo de enfrentar minha mente. As confissões de Nazeera podem custar minha sanidade. Só posso torcer para que esteja errada. Só posso ter esperança de que o tempo provará que ela está desesperada e terrivelmente errada e não há tempo, tempo nenhum, para lidar com nada disso. Não tenho como criar espaço no meu dia para essas emoções humanas frágeis e incertas.

Preciso viver no aqui e no agora.

Em minha própria solidão.

Se for necessário, hoje serei apenas um soldado, um robô perfeito, de espinha ereta, olhos que não entregam nenhuma emoção, enquanto nossa comandante suprema Juliette Ferrars sobe ao palco.

Hoje estamos todos aqui, um pequeno batalhão posicionado atrás dela como sua própria guarda pessoal: eu, Delalieu, Castle, Kenji, Ian, Alia, Lily, Brendan e Winston. Até mesmo Nazeera e Haider, Lena, Stephan, Valentina e Nicolás permanecem atrás de nós, fingindo demonstrar apoio quando Juliette dá início a seu discurso. Só faltam Sonya, Sara, Kent e James, que ficaram para trás, na base. Nos últimos tempos, Kent não se importa muito com quase nada além de manter James longe de perigo, e não tenho como culpá-lo. Às vezes também sinto vontade de poder deixar essa vida de lado.

Aperto os olhos com força. Endireito o corpo.

Só quero que isso acabe logo.

O local do simpósio bianual é de acesso relativamente fácil, mas em reconhecimento à nossa comandante suprema, o evento foi transferido para o Setor 45, um esforço possibilitado exclusivamente por Delalieu.

Posso sentir todo o nosso grupo pulsar com diferentes tipos e níveis de energia, mas tudo está tão misturado que sequer consigo diferenciar medo de apatia. Então, concentro-me no público e em nossa líder, já que suas reações são o ponto mais importante. E de todos os muitos eventos e simpósios em que já estive ao longo dos anos, nunca senti uma carga tão elétrica vinda da multidão quanto sinto agora.

Quinhentos e cinquenta e quatro de meus colegas comandantes-chefes e regentes estão na plateia, assim como seus esposos ou esposas e vários membros de sua equipe mais próxima. É algo sem precedentes: todos os convites foram aceitos. Ninguém queria perder a oportunidade de conhecer a nova líder adolescente da América do Norte. Estão fascinados. Famintos. Lobos em pele humana, ansiosos por rasgar a carne da jovem garota que já subestimaram.

Se os poderes de Juliette não conferissem a seu corpo um certo grau de invencibilidade funcional, eu estaria extremamente preocupado ao vê-la parada ali sozinha, desprotegida, diante de todos os seus inimigos. Os civis deste setor podem estar torcendo por ela, mas o restante do continente não tem o menor interesse no tipo de perturbação que ela trouxe a essas terras ou na ameaça que ela significa às posições deles no Restabelecimento. Os homens e as mulheres diante dela hoje são pagos para serem leais a outro grupo. Não têm nenhuma simpatia por sua causa, por sua luta pelas pessoas comuns.

Não faço ideia de quanto tempo vão deixá-la falar antes de a atacarem.

Mas não tenho que esperar muito.

Juliette mal deu início a seu discurso – apenas começou a expor as muitas falhas do Restabelecimento e a necessidade de um novo começo – e a multidão de repente fica agitada. As pessoas se levantam, erguem os punhos, e minha mente se desliga quando gritam com ela, os eventos se desenrolando diante dos meus olhos como se acontecessem em câmera lenta. Ela não reage.

Uma, duas, dezesseis pessoas estão em pé agora, e ela continua falando.

Metade da sala começa a vociferar palavras furiosas em sua direção e, agora, consigo sentir Juliette ficando cada vez mais furiosa, sua frustração ganhando força, mas de alguma maneira ela se controla. Quanto mais protestam, mais ela ergue a voz, está falando tão alto que praticamente berra. Olho rápido para o espaço entre ela e a multidão, minha mente trabalhando desesperadamente para decidir o que fazer. Kenji me encara e nós dois compreendemos um ao outro sem precisar pronunciar uma única palavra.

Temos de intervir.

Juliette agora está denunciando os planos do Restabelecimento de extinguir as línguas e a literatura; está explicando suas esperanças de levar os civis para fora dos galpões; acaba de começar a abordar a questão do clima quando ouvimos um tiro na sala.

E então, sobrevém um momento de perfeito silêncio antes de... Juliette puxar a bala entortada de sua testa. Jogá-la no chão. O leve tintilar do metal no mármore reverbera pelo espaço.

Caos em massa.

Centenas e centenas de pessoas de repente estão de pé, todas gritando com ela, ameaçando-a, apontando suas armas para ela, e consigo sentir, consigo sentir a situação fugindo do controle.

Mais tiros ecoam e o segundo de que precisamos para formular um plano já é tempo demais. Brendan cai no chão com uma arfada repentina e horrível. Winston grita, segura o corpo do colega.

E é isso.

De repente, Juliette fica paralisada; e minha mente fica lenta.

Consigo sentir antes de acontecer: sinto a mudança, a estática no ar. O calor em volta dela, as ondas de poder emanando de seu corpo como raios prestes a cair e não tenho tempo para fazer nada além de segurar a respiração quando, de repente...

Juliette dá um grito.

Demorado. Alto. Violento.

O mundo parece se tornar uma mancha por um segundo – por apenas um momento tudo cessa, congela: corpos contorcidos; rostos furiosos e distorcidos; tudo congelado no tempo.

As placas que formam o chão se levantam e se estilhaçam. Estouram como trovões ao atingirem as paredes. As luminárias balançam precariamente antes de caírem no chão.

E então, todo mundo.

Cada uma das pessoas em seu campo de visão. Quinhentas e cinquenta e quatro pessoas e todos os seus convidados. Seus rostos, seus corpos, os assentos que ocupam, tudo dilacerado como se fossem peixes frescos. Sua carne é rasgada para fora, amontoando-se lentamente enquanto uma contínua torrente de sangue acumula-se em poças em volta de seus pés.

Todos caem mortos.


Juliette

Hoje comecei a gritar.

– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO

Você estava feliz

Você estava triste

Você estava com medo

Você estava com raiva

quando gritou pela primeira vez?

Você estava lutando por sua vida sua decência sua dignidade sua humanidade

Quando alguém a toca agora, você grita?

Quando alguém sorri para você, você retribui o sorriso?

Ele pediu para você não gritar ele te bateu quando você chorou?

Ele tinha um nariz dois olhos dois lábios duas bochechas duas orelhas duas sobrancelhas?

Era ele um humano parecido com você?

Cor, sua personalidade.

Formas e tamanhos são variedades.

Seu coração é uma anomalia.

Suas ações

são

os

únicos

traços

que você

deixa

para trás.

– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO

Às vezes acho que as sombras se movimentam.

Às vezes acho que alguém pode estar observando.

Às vezes essa ideia me assusta e às vezes essa ideia me torna tão absurdamente feliz que não consigo parar de chorar. E então às vezes acho que não tenho a menor ideia de quando comecei a perder a sanidade aqui. Nada mais parece real e não sei dizer se estou gritando ou se só grito em minha cabeça.

Não há ninguém para me ouvir aqui.

Para me dizer que não estou morta.

– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO

Não sei quando começou.

Não sei por que começou.

Não sei nada de nada, exceto pelos gritos.

Minha mãe gritando quando percebeu que não podia mais me tocar. Meu pai gritando quando se deu conta do que eu tinha feito com minha mãe. Meus pais gritando quando me trancavam em um quarto e me diziam que eu devia ser grata. Por me darem comida. Pelo tratamento humanitário dispensado a essa coisa que não tinha como ser filha deles. Pelo metro que usavam para medir a distância necessária para me manter longe.

Eu arruinei a vida deles, é o que me diziam.

Roubei sua felicidade. Destruí a esperança de minha mãe ter outro filho.

Eu não conseguia ver o que tinha feito? é o que me perguntavam. Não conseguia ver que tinha estragado tudo?

Tentei tanto arrumar o que tinha estragado. Tentava ser todos os dias o que eles queriam. Tentava o tempo todo ser melhor, mas nunca realmente soube como.

Só agora sei que os cientistas estão errados.

O mundo é plano.

Sei porque fui jogada da beira do abismo e tento me segurar há dezessete anos. Venho tentando escalar de volta há dezessete anos, mas é quase impossível vencer a gravidade quando ninguém está disposto a lhe dar a mão.

Quando ninguém quer correr o risco de tocar em você.

– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO

Já estou louca?

Será que já aconteceu?

Como vou saber?

– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO

Há um instante de silêncio puro e perfeito antes de tudo, tudo explodir. Em um primeiro momento, nem me dou conta do que fiz. Não entendo o que acabou de acontecer. Eu não queria matar essas pessoas...

E então, de repente

Sou acometida por isso

A repentina percepção de que acabei de assassinar seiscentas pessoas em uma sala.

Parece impossível. Parece falso. Não ouvi balas. Não houve excesso de força nem violência. Só um grito longo e furioso.

– Parem com isso – gritei. Fechei os olhos com força e gritei, raiva e mágoa e exaustão e uma devastação esmagadora enchendo meus pulmões. O peso das últimas semanas, a dor de todos esses anos, o constrangimento das falsas esperanças criadas em meu coração, a traição, a perda...

Adam. Warner. Castle.

Meus pais, reais e imaginados.

Uma irmã que eu talvez jamais conheça.

As mentiras que compõem minha vida. As ameaças contra os inocentes do Setor 45. A morte certa que me aguarda. A frustração de ter tanto poder, tanto poder, e me sentir tão completamente impotente.

– Por favor – gritei. – Por favor, parem...

E agora...

Agora isso.

Meus membros ficaram paralisados de descrença. Meus ouvidos parecem cheios de vento; a mente, desligada do corpo. Eu não poderia ter matado tantas pessoas, penso, não poderia ter simplesmente matado todas essas pessoas, isso é impossível, penso, não é possível não é possível que abri a boca e aconteceu isso

Kenji está tentando me dizer alguma coisa, alguma coisa como temos que sair daqui, temos que ir embora agora...

Mas estou entorpecida, estou fraca, incapaz de colocar um pé na frente do outro e alguém está me puxando e me forçando a me mexer e ouço explosões

E de repente minha mente funciona.

Arfo e me viro, procurando Kenji, mas ele não está mais aqui. Com a camisa ensopada de sangue, está sendo arrastado para longe, olhos apenas entreabertos e

Warner está de joelhos, com as mãos para trás, algemadas

Castle está inconsciente no chão, sangue escorrendo livremente de seu peito

Winston continua gritando, mesmo enquanto alguém o arrasta para longe

Brendan está morto

Lily, Ian, Alia, mortos

E ainda estou tentando religar minha mente, tentando vencer o choque que se apossou do meu corpo e minha cabeça está girando, girando, e vejo Nazeera de canto de olho, ela está com a cabeça apoiada nas mãos, e alguém me toca e eu pulo

Eu me viro

– O que está acontecendo? – pergunto a ninguém em particular. – O que está havendo?

– Você fez um trabalho maravilhoso aqui, minha querida. Realmente nos deixou orgulhosos. O Restabelecimento agradece muito os sacrifícios que fez.

– Quem é você? – questiono, enquanto procuro a voz desconhecida.

E então os vejo, um homem e uma mulher ajoelhados diante de mim, e só então me dou conta de que estou deitada no chão, paralisada. Meus braços e pernas estão presos com fios elétricos que pulsam. Tento lutar contra eles, mas não consigo.

Meus poderes foram desligados.

Ergo o rosto na direção dos estranho, meus olhos estão arregalados e aterrorizados.

– Quem são vocês? – insisto, ainda me rebelando contra os fios que me mantêm presa. – O que querem de mim?

– Sou a comandante suprema da Oceania – a mulher se apresenta, sorrindo. – Seu pai e eu viemos aqui para levá-la para casa.

Por que você não se mata de uma vez? alguém certa vez me perguntou na escola.

Acho que era uma dessas perguntas que têm como objetivo ser cruel, mas foi a primeira vez que contemplei a possibilidade. Fiquei sem saber o que dizer. Talvez eu fosse louca por considerar a ideia, mas sempre tive a esperança de que se fosse uma menina boa o bastante – se fizesse tudo certo, se dissesse as coisas certas ou simplesmente não dissesse nada –, talvez meus pais mudassem de ideia. Pensei que pudessem finalmente me ouvir quando eu tentasse conversar. Pensei que pudessem me dar uma chance. Pensei que pudessem finalmente me amar.

Sempre tive essa esperança ridícula.

– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO

Quando abro os olhos, vejo estrelas.

Dezenas delas. Estrelinhas de plástico grudadas no teto. Brilham fraquinhas com a leve luminosidade, então me sento, cabeça latejando, e tento me orientar. Há uma janela à minha direita, uma cortina transparente filtrando os tons alaranjados e azuis do pôr do sol, forçando a luz a entrar em ângulos estranhos no quarto. Estou sentada em uma cama pequena. Ergo o rosto, olho em volta.

Tudo é rosa.

Cobertor rosa, travesseiros rosa. Tapete rosa no chão.

Confusa, tento me levantar e me viro, e então descubro que existe outra cama idêntica aqui, mas com os lençóis roxos. E travesseiros roxos.

O quarto é dividido por uma linha imaginária, cada metade igual à outra. Duas escrivaninhas: uma rosa, uma roxa. Duas cadeiras: uma rosa, uma roxa. Duas cômodas, dois espelhos. Rosa, roxo. Flores pintadas nas paredes. Uma mesinha e cadeiras de um lado. Uma arara com vestidos felpudos. Uma caixa de tiaras no chão. Um cavalete com lousa no canto. Um cesto debaixo da janela, cheio até a borda com bichos de pelúcia.

Isso é um quarto de criança.

Sinto meu coração acelerar. Minha pele esquenta e esfria.

Ainda sinto uma perda dentro de mim – uma percepção inerente de que meus poderes não estão funcionando – e só então me dou conta de que há algemas elétricas, brilhando, presas em meus punhos e tornozelos. Tento puxá-las, uso todas as minhas forças para abri-las, mas elas não saem do lugar.

Sinto o pânico crescer a cada instante.

Corro na direção da janela, desesperada por conseguir me localizar – por alguma explicação de onde estou, por alguma prova de que isso tudo não passa de uma alucinação –, mas me decepciono. A visão que tenho da janela só me deixa ainda mais confusa. É uma vista impressionante. Colinas infinitas, montanhas ao longe. Um lago enorme e reluzente, refletindo as cores do pôr do sol. É lindo.

Dou um passo para trás, sentindo-me subitamente mais aterrorizada.

Meus olhos apontam para a mesa e para a cadeira rosa, analisam a superfície em busca de alguma pista. Só vejo pilhas de cadernos coloridos. Uma caneca de porcelana repleta de canetinhas glitter e hidrocor. Várias páginas de adesivos fluorescentes.

Minhas mãos tremem ao abrir a gaveta.

Ali dentro, encontro pilhas de cartas e fotos antigas.

Num primeiro momento, só consigo ficar olhando para elas. Meus batimentos cardíacos ecoam na cabeça, tão fortes que quase os sinto na garganta. Minha respiração é rápida e curta. Sinto a cabeça girar e pisco uma vez, duas vezes, forçando-me a me manter firme. A ser corajosa.

Lentamente, muito lentamente, pego a pilha de cartas.

Só preciso olhar para os endereços para saber que elas são de antes do Restabelecimento. Todas foram enviadas aos cuidados de Evie e Maximillian Sommers. A uma rua em Glenorchy, Nova Zelândia.

Nova Zelândia.

Então me recordo, arfando bruscamente, do rosto do homem e da mulher que me carregaram para fora do simpósio.

Sou a comandante suprema da Oceania, ela disse. Seu pai e eu viemos aqui para levá-la para casa.

Fecho os olhos e estrelas explodem na escuridão por trás de minhas pálpebras, deixando-me fraca. Sem ar. Abro os olhos. Meus dedos parecem frouxos, desajeitados enquanto abrem a carta no topo da pilha.

É uma nota breve, datada de doze anos atrás.

M & E,

Tudo está bem. Encontramos para ela uma família adequada. Ainda nenhum sinal de poderes, mas ficaremos de olho nela. Todavia, devo adverti-los para que a esqueçam. Ela e Emmaline tiveram suas memórias apagadas. Não perguntam mais de vocês. Esta será minha última atualização.

P. Anderson

P. Anderson.

Paris Anderson. O pai de Warner.

Analiso o quarto com novos olhos, sentindo um frio terrível se arrastar por minha espinha conforme as informações absurdas sobre essa loucura recém-descoberta se reúnem em minha mente.

O vômito ameaça subir. Engulo-o outra vez.

Agora estou olhando para a pilha de fotos intocadas dentro da gaveta aberta. Acho que perdi as sensações em algumas partes do rosto. Mesmo assim, forço-me a segurar as fotografias.

A primeira é uma imagem de duas garotinhas com vestidos amarelos iguais. As duas têm cabelos castanhos e são um pouco magras; estão de mãos dadas na trilha de um jardim. Uma olha para a câmera; a outra, para os pés.

Viro a fotografia.

Primeiro dia de Ella na escola.

A pilha de fotos cai de minhas mãos trêmulas, espalhando-se por toda parte. Todos os meus instintos gritam comigo, soam seus alarmes, imploram-me para correr.

Saia, tento gritar para mim mesma. Saia já daqui.

Mas minha curiosidade não me permite.

Algumas das fotografias caíram viradas para cima sobre a mesa. Não consigo parar de olhá-las, o coração batendo forte nos ouvidos. Com cuidado, recolho-as.

Três garotinhas de cabelos castanhos estão paradas ao lado de bicicletas um pouco grandes demais para elas. Olham umas para as outras, rindo de alguma coisa.

Viro a fotografia.

Ella, Emmaline e Nazeera. Sem rodinhas para ajudar.

Arfo e o barulho me sufoca ao escapar do peito. Sinto meus pulmões se comprimirem e estendo a mão, agarrando a mesa para me equilibrar. Sinto-me flutuando, transtornada.

Presa em um pesadelo.

Passo as fotografias, agora desesperada, minha mente trabalhando mais rápido que as mãos conforme as manuseio, tentando e fracassando em minha tentativa de interpretar o que estou vendo.

A imagem seguinte mostra uma menininha de mãos dadas com um homem mais velho.

Emmaline e Papa, diz no verso.

Outra foto, essa das meninas subindo em uma árvore.

O dia em que Ella torceu o tornozelo

E outra, com rostos embaçados, bolo e velas...

Aniversário de 5 anos de Emmaline

E mais uma, dessa vez a imagem de um belo casal...

Paris e Leila, vindo para o Natal

E congelo

chocada

sinto o ar deixando meu corpo.

Agora seguro apenas uma foto e sinto a necessidade de me forçar, de implorar a mim mesma para olhar para a foto em minha mão trêmula.

É a imagem de um menininho ao lado de uma menininha. Ela está sentada em uma escada. Ele a observa enquanto ela come um pedaço de belo.

Viro a foto.

Aaron e Ella

é tudo o que diz.

Tropeço para trás, cambaleando, e caio no chão. Todo o meu corpo está sofrendo um ataque, tremendo de terror, de confusão, de impossibilidade.

De repente, como se fosse uma deixa, alguém bate à porta. Uma mulher – a mulher de antes, uma versão mais velha da mulher nas fotografias – enfia a cabeça pela entrada do quarto, sorri para mim e diz:

– Ella, querida, não quer sair um pouco? Seu jantar já está esfriando.

E tenho certeza de que vou vomitar.

O quarto pende ao meu redor.

Vejo borrões

sinto-me cambaleando

e então...

de repente

O mundo é tomado pela escuridão.

                                                                                                    Tahereh Mafi

 

 

 

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