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Tenho de ir buscar o Dr. Sousa aos corredores da Universidade. Ele era então uma figurilha de pescoço taurino, vestindo uns casacões fora de moda, que já tinham conhecido outro dono; havia nele uma maturidade precoce e engelhada, que nem o fazia rapaz nem adulto - a maturidade dos anões de circo. Dedicávamos-lhe uma simpatia feita de lástima: se a sua estupidez nos divertia, confrangia-nos também a farsa em que se transformara a miséria inconfessada de toda a família. O pai era uma personagem que se escapulira de um museu: usava ainda chapéu de coco, bigodaças de conselheiro, meias verdes (pormenor que nunca chegáramos a entender) e, viúvo, acompanhava sempre uma irmã tão insólita quanto ele; às vezes iam ambos esperar o Sousa à saída das aulas, trajando como se tivessem combinado uma pantomina, e escapavam-se depois, muito solenes, até um jardim ou uma pastelaria, onde se sentavam numa postura que parecia aguardar um daqueles escrupulosos fotógrafos dos nossos avós. Os três, em suma, dir-se-iam enxertados abusivamente numa época que não era a deles. As tais meias foram mais tarde herdadas pelo filho, completando umas calças de fantasia. A sua cor verde era um cartaz berrante e servira-nos, por algum tempo, para crismar o Sousa com a alcunha de o Repolho. Ele não se melindrou. Nunca o poupámos a gracejos, às vezes cruéis, mas o Sousa, ou não os compreendia ou, então, era bem mais arguto do que poderíamos supor, sabendo reconhecer, por detrás da nossa mordacidade, uma atmosfera afectuosa.
O Sousa, como já vos dei a perceber, era tão manei-rinho de estatura e a sua expressão gasta e franzida destoava de tal modo num corpo que se esquecera de crescer, que, certa feita, ao assistirmos a uma briga de futebol entre a Académica e o seu façanhudo rival - o União Sport -, o Sousa teve um dissabor que logo redundou numa das boas larachas do meio estudantil. Nesse tempo, íamos para o campo de jogos acautelados com porretes, mocas e pistolas, não fosse a competição desportiva descambar numa batalha, pois o ardor dos apaniguados de um e outro grupo tinha raiva nos gestos e nas palavras e propagava-se, como lume, dentro e fora da arena. Aconteceu ficar à nossa ilharga um sujeito tranquilo, de meia-idade, decerto um forasteiro que se enganara na porta. Ele aparara os gritos assanhados do Sousa com um olhar de gelo. O entusiasmo do Sousa naquelas andanças era já de tradição: talvez elas lhe servissem para descarregar emoções represadas. O certo é que dir-se-ia possesso - dava pontapés em falso sempre que um académico desperdiçava uma oportunidade, atiçava freneticamente os mais expeditos, o cachaço tornava-se-lhe rubro de apoplexia. O espectador indiferente, a dada altura, medindo o Sousa da cabeça aos pés, perguntou-nos:
- Quem é esta criança rabugenta? Já andará no liceu?
O Sousa, cantos da boca pegajosos de baba e tabaco, enfrentou o intrometido e despejou-lhe a ira numa réplica genial:
- Esta criança é um doutor. Poderia servi-lo, se fosse veterinário.
Foi a única tirada de mão-cheia que o Sousa teve na sua vida. Mereceu que o levássemos em triunfo.
Mas não: ele era menos tolo do que fazíamos crer. Assim no-lo provou quando as ocasiões lhe roçaram pelos dentes: filou-as com a gula ágil de uma doninha. E já em estudante tinha o necessário bom senso para não se iludir quanto a predicados intelectuais: estudava por tabela dobrada. Ia aos exames amparado por alguma batota com que poderíamos beneficiá-lo e de sebenta decorada página por página. E como os mestres faziam exames no tom de grafonola, o Sousa defendia-se sem alardes, mas também sem vexame.
No quinto ano do curso, herdou um imponente chapéu paterno; serviu-nos para várias coisas vergonhosas. E, além disso, alguma tia afastada presenteou-o, a destempo, com um mobiliário de consultório. O Sousa fez-se, enfim, mais emproado. Parecia levar muito a sério o chapéu, a mobília e os colarinhos empertigada-mente engomados, onde, às vezes, inscrevíamos versos de um humor implacável que ele era o primeiro a aplaudir. E conquanto desse erros de ortografia em cada prescrição e estivesse ainda longe de acertar o diagnóstico de uma gripe, víamo-lo já a prestar uns vagos serviços clínicos à vizinhança mais sensível à sua majestosa aparência de bacharel. Invulnerável à chacota, fiel a um objectivo, ia assim preparando as raízes do seu futuro consultório de bairro.
Então, alguma coisa que havia escapado à nossa observação, revelou-se-nos de súbito, já amadurecida. O Sousa afagara certas relações, chegando-se à aristocracia fútil mas ainda poderosa da cidade, e, num dos últimos exames, o mestre, em público, honrou-o com o apodo de «um dos alunos mais conscienciosos e inteligentes do curso». O espanto deixava-nos sem voz para reduzir a história a dimensões de uma grotesca farsa.
O Sousa passara-nos adiante. Libertara-se da nossa protecção, escorregando-nos dos dedos; sentíamo-lo progressivamente distante, ambíguo, enfático.
Depois, cada um de nós, já médico, seguiu o seu caminho. Os fios que nos tinham apertado num mesmo novelo de fraternidade iam-se deslaçando, descosendo. Entrávamos no redemoinho da vida. As armas, agora, eram tremendamente individuais. Quando se encontrava, a maioria das vezes por acaso, um antigo companheiro, no seu rosto deformado por novos interesses, por novos ambientes, debalde tentávamos recuperar as feições que nos diziam respeito. A vida, por outro lado, não perdera tempo a fazer a sua escolha: erguera uns ao galarim de vencedores, afinara-lhes a gula e o faro por certos privilégios de casta, enquanto deixara cair os outros na vala comum da mediocridade, onde a luta se reduzia ao pobre instinto de sobrevivência. O tempo não parava e, na sua marcha, era um cilindro a triturar-nos a espontaneidade confiada e generosa dos anos da Faculdade. Em vão nos esforçávamos por sustê-lo, por recuar. Quantos de nós saberiam ainda fazer um apelo ao convívio saudável desses anos, quantos se amarguravam ainda de que a outra face da vida fosse tão degenerada? A competição em alarme, a ânsia de chegar depressa, o contágio dos que nos impunham sujas regras do jogo vestiam-se de desconfiança. Éramos, quase todos, destroços de um sonho traído.
De um modo geral, na corrida para o triunfo, partiam à frente os que iam ocupar situações já apadrinhadas, os ricos, os de famílias influentes; na sua esteira ou, quando calhava, ultrapassando-os, alguns que, entre os mais dotados, sabiam desbravar, com fulgor e pertinácia, a selva das oportunidades. Havia surpresas: nem sempre os que os mestres tinham distinguido confirmavam, na vida prática, a vocação. Por detrás de cada profissional estava o homem. E, neles, era o homem que falhara.
Mas não se poderia falar em surpresas sem que o nome do Sousa nos saltasse à ponta da língua. Essa fora retumbante! O Sousa, meses depois de terminado o curso, aparecera-nos assistente na Faculdade! Dir-se-ia uma mascarada. Ele tinha melhorado o guarda-roupa, sujeitara-se a incómodos hábitos higiénicos que dantes o molestavam (as unhas de luto do Sousa eram celebradas). Reproduzia fielmente as sebentas nas aulas práticas que lhe haviam distribuído, escolhia as amizades, transpunha os portões da Universidade ao lado dos lentes, cruzando as mãos enluvadas, numa atitude de peru, na capoeira. Era inacreditável mesmo para os que, como nós, conheciam os podres da engrenagem.
O escândalo, porém, durou pouco. A incapacidade do Sousa era uma brecha tão larga que nem as maquinações a poderiam disfarçar. Já dantes, sempre que os mestres o incitavam a desvendar um caso clínico das enfermarias, o Sousa caía sobre o doente com um questionário de esbirro, exigindo que o pobre diabo confessasse ali, sem faltar uma vírgula, os sintomas descritos nas patologias.
- Mas você tem de sentir isto! Está na sebenta!
- Não sinto, senhor doutor. Estou a dizer a verdade.
Esgotada a briga com o doente, o Sousa vinha para nós de colarinho afogueado e untuoso a gotejar um suor de esforço mal compreendido.
- O que aquele tipo sente não vem nos livros. Se calhar é doença nova.
E, de bom humor, lá íamos rasgar uma vereda na floresta das suas perplexidades.
Pois o Sousa, no hospital da Faculdade, fez umas asneiras clamorosas que reboaram pelos cafés, obrigando os professores a tomar uma decisão. Certo dia, por exemplo, achando que a cirurgia não era mais do que um cenário de espertalhões, teimou em operar um caso de apendicite. Meia hora depois, embrulhado em tripas, sangue e ignorância, fugiu para o corredor, a bradar por auxílio. De outra vez, tentando, em vão, extrair umas gotas de sangue das veias de uma criança, e como já percebesse umas risadinhas do círculo de enfermeiros, desculpou-se:
- Veias encordoadas, vejam! As veias deste garoto não têm sangue.
Foi discretamente posto na rua. Mas, em todos nós, persistiu o assombro de o Sousa ter conseguido, mesmo com a duração de uma lufada numa sesta de Estio, voar tão alto!
Respondeu a essa humilhação com um consultório no centro da cidade, desafiando os consagrados. Deram-se mais umas trapalhadas e o Sousa desistiu. Desapareceu. Nada soubemos dele durante uns anos.
O passado ia-se distanciando. Se voltávamos a Coimbra, a cidade despedia-nos como se nos desconhecesse: caras novas, que nos pareciam intrusas, bairros desmantelados, onde ao procurarmos localizar uma rua, um tecto, que nos falasse da adolescência perdida, que tivesse conservado o molde das lembranças para no-lo entregar, íntegro, em qualquer momento - apenas encontrávamos ruínas, por entre as quais brotava uma nova cidade, uma cidade estrangeira. Um vendaval passara por ali. Ou por nós.
Os laços velhos substituíam-se, gradualmente, por convívios de circunstância, tardios e falsos, em que um melindroso pudor estava sempre de permeio. Mas Coimbra era ainda uma raiz, e íamos buscá-la noutros lugares, quando o acaso nos fazia tropeçar com um companheiro da véspera, um rosto que reavivasse uma reminiscência morta. Então, todo o passado refluía - e era agora que lhe achávamos uma justa medida. Estávamos sempre à espreita de reaver o sonho, de fazer perdurar uma época, ou o que ela significava, não através de um palco que já não podia ser o mesmo, mas pelo reencontro com solidariedades ávidas de ressuscitarem.
Acontecia-nos seguir alvoroçadamente, pelos jornais, a senda de alguns familiares do tempo de Coimbra. Mas aquele reclamado Dr. Sousa, reformador de hospitais, técnico de ministros e por eles celebrado publicamente, não me alertava a memória. Por onde esse afoito homem do governo passava, garantiam-nos as gazetas, não havia velharia que ficasse de pé: planos irreverentes, centros de assistência a granel que iam levar a saúde aos recantos até aí desdenhados pelos politiqueiros da capital. O verdadeiro Sousa, o das meias verdes, fazia-o nalgum esconderijo do sertão, refugiando ali os seus malogros. Um dia, porém, entrou-me pelo consultório um dos fiéis amigos de Coimbra, agora enrodilhado em negociatas turvas de volfrâmio, que me visitava sempre que um golpe rocambolesco lhe fornia o bolso de notas. Isolados na província desconfiada e matreira, reuníamo-nos todas as vezes que havia justificação para se festejar um lance mais afortunado. Mas dessa ocasião o Belarmino não trazia notas nem o rescaldo de alguma aventura arrepiante. Vinha para me dizer:
- Tu sabes quem anda por aí a mandar nos caciques?
- Estou longe desses antros.
O Belarmino estava sôfrego de ir ao fim e nem soube alongar a expectativa.
- O Sousa!
- Qual Sousa?
- O Sousa porcalhão, o que foi teu colega.
- O das...
- Esse!
- Não pode ser!
- Isso é o que pensas, meu conformado e pelintra joão-semana! Vi-o com estes olhos, a passear com o Dr. Castro e o Dr. Providência, um de cada lado, como aias. Eles de chapéu na mão, às reverências; e o Sousa, olímpico, de coco enterrado no pescoço, a fumar charuto.
- Não poder ser, Belarmino. Aí há engano. A que título o Sousa seria cortejado por essa pandilha?
- É ele, já te disse. Fez-me até um sinalzinho amigável. Os outros viram-se mesmo obrigados a fingir intimidade comigo.
- Vamos lá ver isso. Tenho de desmascará-lo.
- Fala por ti a dor de cotovelo de joão-semana falhado. O que vais é depor a seus pés a tua fidelíssima vassalagem, como os outros, que ainda ontem pareciam os donos desta piolheira. Pois tu ainda não percebeste quem é o Sousa? O braço direito, se é que também não é o esquerdo, do ministro?
E fomos. Caçámo-lo à hora do jantar, no melhor restaurante da cidade, tendo à ilharga um trintanário que lhe lambia os gestos e as palavras. O Sousa levantou-se da mesa aos berros e, com os seus abraços, caiu sobre mim a inveja dos provincianos babosos da presença de um homem célebre.
Eu vinha disposto a arrasá-lo. E não o poupei, apesar de quebrado pela segurança e poder que dele irradiavam. Daí a minutos, o servo que o acompanhava apreciava-nos, com um olhar que, de surpreso, se tornou interrogativo; deglutia, estonteado, as minhas ironias, por certo procurando ajustá-las ao que ele próprio já teria farejado no suserano. Na minha acintosa denúncia havia ressentimento e talvez ainda cobardia: ao morder em público na prosperidade do Sousa vingava-me dos azares da vida que não soubera vencer e me deixaram soterrado em dois palmos de frustração. Ele, lívido, só sabia dizer para o comparsa, que me apresentara como colega, seu adjunto nas tais revolucionárias reformas:
- Este meu amigo é um brincalhão! Foi sempre assim... Não leva nada a sério.
E indo mais longe, anulou-me a peçonha com uma generosidade oportuna:
- Já me constara que estavas por estes sítios, pensava escrever-te. Chegou a altura de apareceres à frente no lugar que mereces. Vais ser um dos organizadores da assistência do distrito.
- Ó Sousa, eu... - atalhei numa voz atordoada, como quem acaba de receber um soco e não sabe ainda se deve enfurecer-se ou desmaiar.
- Insisto, meu velho. Já tomei a decisão. Tinha-me enganado. Eu e todos. O Sousa guardara todas as suas ignoradas virtudes para as revelar no momento propício. Com aquele golpe rudimentar, lançara-me ao tapete. Amarrara-me ao seu mundo de cortesãos.
E ali fiquei vencido e mudo o resto da noite.
Durante uma semana esquadrinhei todas as surpresas da nossa conversa. Fiz repetir, cena por cena, a retrospectiva de um Sousa burlesco, talhado para a mediocridade; acrescentei-lhe depois a reportagem ainda quente dos seus êxitos espectaculares. Não encaixava. Havia um erro do nosso ou do seu lado. Havia um erro indecoroso nas profecias ou nos que tinham sido cúmplices do Sousa em virá-los do avesso. Acabei por arrumar as minhas azedas especulações, colando as promessas do triunfador, tão sólidas, a um projecto de um centro infantil de assistência, sonho de há muito prisioneiro nalguma gaveta de burocratas, e que, inicialmente afagado pelos caciques da terra, eles próprios, depois, apunhalando-me pelas costas, tinham sido os seus coveiros. Lá lhes parecera que a iniciativa, a ir por diante, me salientaria aos olhos crédulos da gente do povo. E o povo era deles. O burgo era deles. A saúde, a doença ou a morte, fantoches dos seus caprichos, pertenciam-lhes também.
Estava aí o Sousa para me valer! Que me devia importar se ele merecia ou não o triunfo?
O Sousa, porém, já havia largado da cidade. Prosseguia, como um furacão, a sua devassa do distrito. Fui-lhe na peugada, disposto a lutar, com garras de tigre, pelos meus projectos; e assim, prevenindo-o da minha viagem, desembaracei-me de umas urgências e tomei o comboio que me levaria pelas faldas vermelhas da serra, uma paisagem rancorosa, como se mãos vândalas a tivessem despido e ensanguentado e só lhe restasse a altivez do seu rancor. Tão longe a luxúria verde, rindo ao sol, das lezírias da minha terra!
Contava topar o Sousa na estação, democraticamente à minha espera. Ingenuidade de quem não estava afeito às distâncias que as pessoas importantes interpõem entre si e a escumalha. Deu-me um trabalhão encontrá-lo: ali toda a gente conhecia já o Sousa e um enxame de pessoas tinha-o visto, nesse dia, no hotel, na Câmara, na Misericórdia, na creche; mas como segurá-lo em algum lado? Descobri-o, por fim, num desses hospitais de província, enxertados em conventos, em cujo bafo gelado parece acumular-se a desconfortável austeridade de muitos séculos. Recebeu-me de bata branca, fonendoscópio descaído sobre o peito, num desdém enfatuado e pueril daqueles rapazelhos recém-formados, manequins com que esbarramos nas clínicas da cidade. Por detrás dele, uns colegas embaraçados tinham interrompido a consulta sob a vigilância paternal do Sousa. Eram, na maioria, idosos - e no seu ar aterrado deram-me a ideia de galos decrépitos que um frango assomadiço viesse expulsar da capoeira.
Foi o próprio Sousa a dar razão ao meu pasmo.
- Agora não te posso atender. Como vês, estou aqui a orientar a consulta externa. É preciso actualizar esta medicina de província.
Esperei que os galos decrépitos, que observavam mais casos num só dia do que o Sousa em anos de to-leima, fossem reagir. Mas não: todos eles estendiam a sua dignidade aos pés do Sousa, nele bajulando o Poder.
Almoçámos juntos. Expus-lhe o meu plano. O Sousa viu tudo espantosamente fácil.
- Deixa-os comigo.
E como se o caso, tacitamente resolvido, não merecesse mais desperdício de tempo, preencheu o encontro a falar-me de si. Ia casar com uma aristocrata, filha de um deputado.
- Agora o que preciso é de umas massas graúdas. Tê-las-ia, claro: uma firma holandesa de produtos químicos oferecera-lhe, havia pouco, a representação em Portugal. Dinheiro, êxitos. Tinha entre mãos um programa de assistência hospitalar, para terras africanas, que assombrava o ministro. Mostrou-me alguns dados, plantas, orçamentos, trazia-os à boca da algibeira para todas as ocasiões.
- Ó Sousa, a ideia é grandiosa, na verdade. Mas tu nada sabes de África, aquilo deve ter problemas específicos. É preciso ir lá.
- Estudei. Disponho hoje da melhor biblioteca de assuntos ultramarinos que há por aí.
O Sousa convencia-me. As minhas prevenções derretiam-se como bolhas de água ao cair no fogo. Ele era um exemplo do milagre do trabalho e da perseverança. A inesperada situação que ocupava não era, afinal, abusiva.
O tempo correu e o Sousa provavelmente esquecera-me. As promessas feitas tinham sido lançadas ao lixo da vertigem em que vivia. Que era o meu projectozinho caseiro ao lado das suas tarefas majestosas? Mas, como sempre gostei de levar as coisas até ao fim, resolvi, uma vez mais, colocar o Sousa sob a coacção da minha presença. E parti para Lisboa. Soube lá que ele acabara de inaugurar uma casa de saúde, de parceria com um cirurgião famoso, e que os seus dias eram de facto tão azafamados que dificilmente poderia ser amarrado a uma entrevista. No entanto, fui duas vezes a sua casa, à noite, calculando que ele, como qualquer mortal, precisasse de ter um poiso onde jantar e ceder às imposições da fadiga. Debalde. O Sousa dispensava o sono. Desanimado e furioso, dei umas voltas boémias; que elas, ao menos, me justificassem a estada na capital. Num bar, encontrei o Meneres - mais um dos nossos companheiros do curso. Dos mais capazes. Escavacado, amarelento, era um granito de sensatez. Nessa noite, porém, estava bêbado, ele, que sempre fora um modelo de sobriedade, e estranhei a imprevista modéstia do seu trajo.
- Então onde tens parado, Meneres?
- Por aí...
Um gesto vago, de ressentido desalento.
- Nalgum poleiro, não?
- Poleiro? Que é isso? Sou um manga-de-alpaca, que assina o ponto ao lado dos contínuos. Trabalho nessas coisas da assistência.
- Ora ainda bem. Talvez me possas dizer onde conseguirei filar o Sousa.
- O Sousa?
- Vim a Lisboa caçá-lo. Preciso dele.
- Dá uma volta pelas embaixadas. A pista não é má.
Perplexo, encostei o queixo às mãos entrelaçadas.
- O que eu não percebo, Meneres, é como esse tipo tem tempo para embaixadas, clínicas, o raio, e ainda para desovar hospitais do Norte ao Sul do País.
O Meneres emborcou à pressa um copo de conhaque; a bebida, ao atravessar-lhe o pescoço magro e encaroçado, parecia balas progredindo através do cano transparente de uma espingarda.
- Pagas-me outro? Quanto ao Sousa... Enfim, mistérios. Já nós, que nada valemos, em que ninguém repara, somos um livro aberto. Não é estupendo?
O Meneres bebeu desalmadamente o resto da noite. E no fim:
- O melhor será pagares a conta. Espero que te seja possível. A mim, não é.
No último dancing em que entrámos, o Meneres teve uma fúria; quis despir-se ali mesmo. E de súbito, com as covas da face esverdinhadas, despejou o estômago. Quando ia a ampará-lo, arredou-me: - Deixa, isto facilita a digestão.
Arrastei-o, à força, para o ar da noite, que aliás lhe provocou umas tossicadelas de mau agoiro. Na testa borbulhava-lhe um suor de náusea. Depois de um breve passeio, quase recomposto e agora de uma tristeza soturna, que lhe arreganhava a expressão, abriu-se:
- Uma porcaria de vida.
- E desconfio que a repetes todos os dias...
- Sempre.
À denúncia dos candeeiros, vi-lhe o rosto fundo, a febre escura dos olhos. O Meneres era uma surpresa mais. Tão excessiva como a do Sousa. Todos imaginávamos, justificadamente, o Meneres a trepar os flancos do prestígio e da fortuna. E, no fim de contas, encontrava-o no monturo da cidade, um trapo, na mesma cidade em que o Sousa fascinava os ministros. Na intenção de o levar a umas confidências, espevitei-o:
- Não te apetece às vezes voltar ao ponto de partida, começando tudo de novo? Tu prometias ser um higienista a valer...
- Há quem diga que o sou.
- Fiscalizas a sanidade dos cabarés...
- Corrijo os erros dos outros, enxerto células cinzentas em quem não as tem.
- Que queres dizer com isso?
- Não vieste a Lisboa procurar o Sousa? Pois sou uma espécie de mulher-a-dias desse portento. Faço os projectos e ele dá-lhes a paternidade.
- Que queres dizer, gaita!?
- Que sou um procriador ilegal.
- Não jogues com palavras! - gritei, um rolho de suspeita a entupir-me as goelas.
O Meneres pôs-se sério. A sua face mortificava-se como um papel a enrugar à chama.
- Vendi-me ao Sousa, eis tudo. Bebo com as esmolas que ele me dá. E fica sabendo que lhe estou grato: se soubessem que os projectos me pertenciam, alguém lhes daria atenção?
- Consentes nessa pulhice?
- Pulhice?... Divertes-me com essa angelical fúria provinciana! Não sei se sabes que corri mundo para chegar a umas ideias novas sobre essas trapalhadas da assistência. Mas ninguém lia o que escrevia, ninguém me ouvia. Leu o Sousa. Aquilo apresentado por ele já tinha outro interesse. Sou-lhe devedor.
O Meneres morreu dois anos depois, num sanatório. Mas esse acontecimento, que passou ignorado, nada teve que ver com a saída precipitada do Sousa do Ministério. Havia acontecido por lá qualquer coisa suja. Das que rebentam os postigos. Falava-se em documentos falsificados e, além disso, as algibeiras do Sousa não estariam bem calafetadas: por elas se esgueiravam grossas fatias do bolo orçamental. No entanto, a solidariedade dos poderosos é um sentimento nobre: não se ia deixar ao relento um servidor da estirpe do Sousa.
E, por isso, embora transferido para responsabilidades mais modestas, o nosso companheiro das meias verdes ainda é hoje o expoente do curso. Quando os jornais falam dele, dizem sempre: o Dr. Sousa, um valor. E a gente acredita.
Depois dos dias cálidos a anunciarem o Verão da charneca, ao fim de uma tarde, de improviso, a atmosfera afogueada rompeu-se numa chuva furiosa, precedida de trovoadas secas, brutais, que nos estalavam nos sentidos como chicotadas. Foi numa dessas tardes de um cinzento opressivo que me chamaram para uma das fazendas mais distantes, onde um rapaz tuberculoso se desfazia em hemoptises. O macadame, assente nas terras fofas, abria-se em trilhos pegajosos que prendiam os pneus do automóvel atolando-os irremediavelmente na moleza do barro. O motorista, a bufar por todos os lados, deixou-me a meio caminho, ainda a uns oito quilómetros do doente. Continuei a pé até ao monte mais próximo, atravessando alqueives ensopados das enxurradas. Era noite quando lá cheguei. O lavrador confortou-me com uma rija aguardente de figo e dispôs-se a ceder-me a carroça de trabalho, que foi guiada pelo maioral das parelhas. Uma das velas das lanternas consumiu-se logo no começo da viagem; do vidro partido escapava-se um fumozinho acre, tal como às vezes acontece nos velórios. A marcha fez-se daí em diante quase pelo instinto das bestas e do seu condutor. As veredas cruzavam-se, repartidas pelas muitas courelas daquela área, onde se escondera, meio século antes, uma comunidade gentia, cuja origem nunca se apurara ao certo. De quando em quando, as rodas estacavam nos penedos saídos das moitas, mas, através dessa confusão, que a noite adensava, só uma vez torcemos o caminho.
Fomos conversando. O camponês falava-me das suas dores. Como toda a gente, lá lhe parecia que era esse o tema que mais me seria agradável. No café, no clube, numa viagem, todos aproveitam o ensejo para uma consulta amável e clandestina. É uma maneira encapotada de nos surripiarem alguns momentos de pausa em que apeteceria esquecer a profissão.
O maioral, no entanto, tinha as suas razões: sujeito a noitadas, aos temporais sem abrigo, nele o reumatismo era inevitável e periódico como as luas - e eu, com esta jornada a desoras, ia contribuir para o renovo dos seus padecimentos. Esgotadas as queixas, nas quais se enfiava um timbre de censura, falou-me da irmã, acusada de ter roubado uns lavradores.
- Uma vergonha, senhor doutor. A minha família foi sempre pobre, sim, mas limpa. Não me sai isto da ideia. Até fujo das pessoas.
Como eu a tratara recentemente («de umas maleitas, lembra-se?»), era sabedor, como poucos, do quanto a sua vida era um atoleiro de misérias, pois a infeliz não conseguira dinheiro para o avio da receita. Daí, e na sua lógica, pedia-me agora que eu me prestasse a servir-lhe de testemunha de defesa.
- São capazes de a prender. Só o senhor doutor a pode salvar.
- Veremos isso - respondi, entredentes, amuado pelo facto de o maioral se aproveitar tão manhosamente das circunstâncias.
Dois cães de guarda bradaram a nossa chegada ao monte do doente. Tinha vindo pessoal de outras courelas assistir ao espectáculo da consulta. Essa ronda voraz de curiosidade estoirava-me os nervos; sentia-me bloqueado por abutres. Eles, ao cheiro da morte, apertavam o cerco, engrossavam; o adejar era lento, paciente, mas o seu olhar de vigilância febril e aquosa só esperava pelo instante de eu lhes largar a presa. Apenas o maioral ficou lá fora, ao relento, esquivando-se a lerias.
- Então, senhor doutor? - perguntou ele, quando voltei para junto da carroça.
- Creio que chegámos a tempo.
- Mais vale assim.
No regresso, encontrámos a noite menos fechada. Estrelas, rasgões de lividez por entre nuvens estagnadas e uma brisa morna e calma. Falei ao maioral das características herdades do seu patrão, a primeira, naqueles sítios, a ser refrescada por uma albufeira; e, daí, palestrámos de lavoura - com o entusiasmo de duas pessoas que sentiam as raízes mergulhadas na terra.
À despedida, para retribuir o favor do homem, lembrei o seus achaques e ofereci-me para o observar na vila.
- E quanto à minha irmã? Posso contar com a sua ajuda?
- A minha ajuda não servirá de muito.
- Não me diga isso, senhor doutor.
E ficou-se, distraído, encostado aos varais.
Apareceu-me no domingo seguinte. Visto à luz do dia, confirmava o seu aspecto possante e viril, mas era agora um campónio tímido, acobardado pelo ambiente do consultório. Mais do que isso: notava-lhe uma expressão fixa, de uma estranha obstinação, e no embaraço dos seus modos havia alguma coisa de incoerente que eu não sabia definir. Dores, sim o Manuel Serrano tinha as juntas um tanto emperradas, mas também uma borbulhagem esquisita a salpicar-lhe o corpo.
Extraí-lhe um pouco de sangue para análise, o que pareceu assustá-lo.
- O meu sangue é tão negro! Será por isso que eu tenho estas esfoladelas nos braços? Terei as veias envenenadas?
Tranquilizei-o:
- O senhor é um homem rijo, descanse. Daqui a dias já poderemos saber porque tem a pele assanhada.
Chamei ainda à conversa a história da irmã, mas o maioral não me respondeu. Ficou o resto do tempo em silêncio e de olhos baixos.
Dias depois, inesperadamente, voltou a procurar-me.
Entrava na vila por um dos becos menos concorridos, batia-me à porta das traseiras, a evitar encontros. Desta vez, não era o reumático nem qualquer doença íntima que mo traziam. Vinha como sinistrado. Ao descarregar um carro de estrume, o vento abalara-lhe com o chapéu e uma das bestas, espantada, sacudira-o para o chão. Tinha sido um acidente desprezível, apenas umas ligeiras escoriações e o tronco quase nada molestado, mas o patrão, a prevenir surpresas, teimara em mandá-lo ao hospital.
- O pior não é isso, senhor doutor. À noite, escorreguei para o lume e a cinza espalhou-se à roda. Dizem as velhas que não é bom sinal. Alguma coisa vai suceder.
- Oh, homem, nem parece seu!
O Serrano acenou ambiguamente com a cabeça. Desconfio que troçava da minha incredulidade.
- Ainda não sei se a minha irmã vai presa. São vergonhas que não se apagam.
- Não pense mais nisso, maioral, e vá à sua vida. Amanhã já pode trabalhar.
Enganei-me. Todo o caso do Serrano foi, aliás, um ninho de alçapões: nunca se sabia onde a pisada seria firme.
Inda a semana não findara, ei-lo de novo à porta do quintal. De pés inexplicavelmente inchados, luzidios, como os dos velhos de coração esgotado. E murcho, tristonho, tinha o ar de quem pressagia calamidades.
Gracejei com os seus terrores, que eu fingia supor apenas ligados à doença, embora ele se furtasse a defini-los, mas o Manuel Serrano ouvia sem agrado as minhas ironias.
Depois disso, as desventuras tragicamente absurdas do maioral desenrolaram-se em vertigem: topei-o algumas horas mais tarde à esquina do hospital, de cabeça apoiada nos joelhos, lastimoso. Tinham-no transportado num carro de mulas. A metade inferior do corpo do Serrano era um bicho soprado, um odre burlesco. E nada acontecera que pudesse justificá-lo, nada havia no maioral que os meus sentidos pudessem aperceber de morboso. Ele farejava a minha perplexidade. Alarmado de não achar em mim apoio seguro, carpia-se:
- Então que será isto, senhor doutor? Dói-me o corpo todo, tenho a bexiga parada! Esta é a da morte. - Rosnou não sei que mais, anotando numa voz para se ouvir: - Mas não pense que me rala morrer. Assim como assim, logo que a terra nos come, ninguém fala mais da gente.
- Deixe-se de tolices. O inchaço ainda hoje desaparece.
Era o que eu julgava. No entanto, o estranho edema só veio a definhar dois dias mais tarde. E os imprevistos não ficaram por aí. Mal eu entrava na enfermaria (um salão com seis camas quase sempre desocupadas, onde em tempos se exibiam os teatrelhos ambulantes e que um ricaço legara à Misericórdia local), o Serrano contraía o rosto desmaiado e tinha sempre um queixume novo a acrescentar ao meu embaraço: cólicas difusas que não correspondiam a uma patologia concreta, um desassossego esparvoado que, subitamente, em rajadas de alucinação, o fazia raspar com as unhas a caliça da parede ou passear a enfermaria, para cá e para lá, balanceando os braços como um macaco enjaulado. Durante umas horas, o estômago distendeu-se-lhe, mas bastou um vómito para o aliviar. Se eu ou a enfermeira (não propriamente enfermeira: Sr.a Marta, avental branco para me ajudar em certas manobras), se eu ou a Sr.a Marta nos mostrávamos enfastiados, sentava-se no catre, recusava o saco de gelo, pedia esta ou aquela botica popular que lá lhe parecia mais indicada, bolçava no chão, ostensivamente, em lugar de utilizar a bacia ao lado da cama e, acima dessa hostilidade, o seu olhar tinha delírio, um ressentimento esgazeado.
O Serrano tornou-se o nosso pesadelo e a iguaria dos comentários da vila. Os seus gritos, rogando ou exigindo a sonda e a injecção de morfina, faziam juntar no largo do hospital cardumes de mulherio.
O povo simplificara a sua doença como loucura e esse rumor sensacional acabou por chegar à herdade. Veio o patrão pedir-me contas da boataria. Veio a mãe, negro pássaro sem voz. E veio a irmã. O maioral nada lhes disse enquanto estive presente. Fixava a irmã, numj olhar de vidro, como se fixa um espaço vazio, e resmungava sem coerência:
- Malandros...
Deixei-os sós. O pássaro decrépito, daí a instantes, também se escapou da enfermaria. Nunca soubemos o que, naqueles minutos, se passou entre os irmãos. Talvez nada. Talvez qualquer coisa de significação misteriosa para o meu entendimento de civilizado.
Nos dias que se seguiram, o Manuel Serrano mergulhou numa abulia de mau agoiro. Cessara temporariamente de clamar. Até as suas vísceras pareciam adormecidas. Não conseguíamos espevitá-las a uma regularidade de funções que nos evitasse alguns sustos. O caso do Serrano desinquietara-me o sono: também eu trazia já os nervos tensos, correndo a toda a hora para o hospital, buscando, com irritação, qualquer chave que me abrisse o enigma daquelas disparatadas complicações. De uma ocasião em que estive ausente da vila durante umas horas, ele berrou de novo como um possesso que o deixavam morrer sem um médico à cabeceira. A Sr.a Marta azedava-se e chegámos a discutir junto do doente. O Serrano sentou-se à beira da cama, cruzou as mãos sobre o rebordo do colchão e, numa tranquilidade inesperada, disse:
- Não os apoquento por muito tempo. Não vale a pena zangarem-se. - E repetiu: - Esta é a da morte.
A mãe voltou mais uma vez. Simpatizava-se com ela, pobre velhinha de plumagem baça, murcha dos anos e das canseiras, a refugiar-se na sombra do corredor, temendo que lhe descobríssemos a presença. Pássaro medroso e friorento. Mas, dessa ocasião, atreveu-se a tocar-me no casaco.
- Ele é tão bom, senhor doutor. Tem sido o pai das minhas filhas e o meu amparo também. Desculpe-o, que não sabe o que faz. - Disse ainda, após um silêncio de rugas: - E anime-o, que bem precisa.
- Com a ajuda de todos, é isso que pretendemos conseguir.
Palavras sem alma, as minhas. Ela, como os bichos que-farejam o medo ou a indiferença no suor das pessoas, bem lhes pressentia a aridez e por isso, ao despedir-se, que as lidas esperavam-na, repisou:
- Ele é bom... - e chorava e encarquilhava a boca num arremedo de sorriso.
O maioral teve umas convulsões, rolou no pavimento como endemoinhado e, de súbito, vomitou fezes. Não esperei mais: olhei com raiva a sua língua e o seu ventre desesperadamente normais e enfiei-o no meu carro, para o levar a Évora nessa mesma tarde. Queria antecipar-me à hipótese de uma intervenção cirúrgica de urgência.
Entardecia. As trovoadas vinham todos os dias com ° crepúsculo. Para os lados de Montemor as faíscas abriam estrias de fogo no céu soturno. Pedi a um lavrador que me acompanhasse na viagem. Poucos quilómetros além, no infindável descampado da charneca, o maioral teve um espasmo que lhe repuxou os músculos da face. Arroxeado, a espumar, com os membros convulsos, nesse cenário de trovões e solidão - metia medo. O meu companheiro, sem alma para tais andanças, quase desmaiou. De gestos atabalhoados, parei o automóvel. E agora, que já nem podia contar com a marcha, com os nervos ocupados na vertigem da velocidade, para usufruir o alívio daquela espécie de fuga, agora, que todos parecíamos cativos, sem remédio, da opressão da atmosfera, o nosso desamparo era tão evidente que dir-se-ia ter o volume, o cheiro e a forma de um objecto. E, ainda por cima, a minha fragilidade súbita tinha de se dividir pelo Serrano, de fúria a explodir, e pela lividez gelada do lavrador.
Aquilo durou uns momentos. E deu-se a explosão: o maioral esgadanhou a cara e os braços, que ficaram riscados de sangue. Custou a segurá-lo na jaula que era o automóvel. Se o deixássemos escapar-se para a estrada, não teríamos conseguido apanhá-lo mais.
Depois, ao longe, entre uns azinhos, alertado pela nossa gritaria, apareceu um camponês de machado nas mãos. Correu para junto de nós esperando deparar-se-lhe uma cena de violência.
- Cuidei que fossem ladrões a assaltar aqui o senhor doutor. Conheci o carro, ouvi a berraria e preparei o machado para o que desse e viesse.
Aprontou-se para nos acompanhar também.
Repassado em suor, exausto, o Serrano acalmara por fim. Apesar disso, fiz o resto da viagem atormentado pelo receio de que ele saltasse repentinamente sobre mim, não me dando tempo para dominar o volante.
Chegámos a Évora pela meia-noite. A trovoada havia sido muito dura. Toda a cidade, silenciosa e em trevas, me deu a estranha sugestão de velar um cadáver.
As redes telefónica e eléctrica não funcionavam e o hospital estava iluminado por círios que tinham ido buscar à capela. Enfermeiros, doentes e médicos esperavam, mal-humorados, nem se sabia quê. Um campó-nio do Baixo Alentejo agonizava de hora a hora com uma peritonite: não havia luz para operá-lo. Surgiram no átrio dois bombeiros com um homem que fora atropelado e um deles alvitrou que talvez as baterias e os holofotes do quartel pudessem substituir a energia eléctrica para algum caso mais urgente. Ninguém lhe deu resposta.
O Serrano foi observado nesse ambiente de irritada expectativa. Nenhum dos médicos compreendeu também o seu estado. Ficámos por ali, a fumaçar, um tanto sonolentos, jogando com hipóteses, como quem pega nas cartas e faz paciências para escoar o tempo. Eu sentia-me, porém, aliviado. Nessa noite, já poderia dormir em paz, livre do pesadelo. E então, de chofre, as lâmpadas jorraram o milagre da luz. Escapei-me, no meio da azáfama de cortiço revolvido, antes de alguém me dizer o que iria decidir-se quanto ao Serrano. Ele já não me pertencia.
Não era bem assim: pouco tardou que os nervos me levassem de novo a Évora para saber o que acontecera ao maioral. A operação tinha sido evitada, confirmando a suspeita de que todos os seus achaques eclodiam e desapareciam por motivos emocionais. No entanto, a prostração do Serrano era a de um organismo gradualmente corroído. Impressionava. A sua voz parecia colada à laringe, sumida e rouca, e na tristeza dos olhos apagara-se o último clarão de rebeldia. Pediu-me que o levasse dali. Para o hospital da vila ou para a herdade. Morrer, sim, mas num lugar onde sentisse a presença das coisas que tinham feito parte da sua vida.
- Qual morrer!
- O senhor doutor bem o sabe. Disse-lho desde o princípio.
O resto foi-me contado pelos companheiros de enfermaria. Gatinhava debaixo das camas, gemia longas horas, até se encrespar de súbito, aos berros, para logo cair numa modorra que parecia definitiva. De qualquer dos modos, insubordinara a enfermaria. Fui procurar o cirurgião. Também para ele a doença do maioral era um enigma disparatado e enervante.
- Não há casos de desarranjo mental na família deste tipo? Não estará ele intoxicado com qualquer be-berragem?
Essa frase incendiou-me a imaginação. Mas, depois, arredei-a, ao rever todos os acontecimentos desde a noite em que o Serrano me guiara por caminhos de lama.
No dia seguinte, o cirurgião telefonou-me: a administração do hospital não tolerava mais o doente. O patrão do maioral viu-se obrigado a ir buscá-lo e, no regresso, fizeram uma paragem no meu consultório. Ele vinha em braços, incapaz de qualquer esforço muscular. Parecia sedento e esfomeado: engoliu sofregamente um jarro de leite e, com a insaciável satisfação de uma criança que descobre uma fabulosa guloseima, devorou as bananas que a Sr.a Marta lhe veio oferecer. Prometi ir vê-lo e animá-lo no domingo seguinte. Mas tive de ir lá antes: o Serrano fazia de novo uma descabida retenção de urinas. Esperava encontrá-lo impaciente das dores. Enganava-me uma vez mais: imóvel, silencioso, recusando os alimentos, já nada lhe sacudia a indiferença por todos e por si próprio.
Toda a família acampara no quarto sombrio e afogueado: as irmãs, os cunhados, a velhinha engelhada e insignificante. As mulheres discutiam as tarefas que não lhes permitiam continuar ali por muito tempo, e quando eu falei em que alguém deveria acompanhar-me à farmácia logo todos se escusaram à despesa, as divergências azedaram-se. Entre as irmãs e o doente havia um surdo mal-estar que talvez já fosse tarde para explodir. O dono da herdade contou-me que o maioral teimava com a obsessão:
« -Malandros... malandros.«
Morreu nessa mesma noite.
E a história desconexa do Serrano poderia terminar aqui. Quando muito, acrescentar-lhe-ia este epílogo soturno: o maioral atravessou a charneca, pela última vez, no cimo de um esquife, ao sol rubro do Estio e à gula dos moscardos, conduzido por camponeses que tinham aproveitado o acontecimento para se embriagarem nas bodegas da vila. Foi atirado à cova como um cachorro, e, minutos depois, a colina do cemitério era de novo um ermo. Não: ficara sentada fora dos muros uma velhinha negra e sem choro. Mas nem por isso o ermo era menos desolado.
Meditando na incoerente tragédia do meu doente, poder-se-ia filosofar: tão pouco é o valor de uma vida, sobretudo quando ela se quer destruir! Um grão de areia - mas qual? - bastara para a murchar e menos ainda bastara para que todos reparassem em que a morte do maioral não perturbara o ritmo das outras vidas. A odisseia do Serrano contra a doença enfastiara toda a gente. Mas agora, oferecido à voracidade da terra, excitava a nossa cobiça. E é por isso que a história continua.
Doze dias depois de a sua morte ter gasto, de um momento para o outro, a fantasia das pessoas da vila, chegou uma ordem do tribunal para que procedêssemos a uma autópsia, pois o seguro arreganhara os dentes. Era preciso fazer do caso ambíguo do Serrano uma investigação com todas as regras.
Isso aconteceu numa manhã esbraseada. Os guardas cercaram o cemitério, emparedando os curiosos no adro da igreja; as moscas, porém, acudiam de todos os lados, o faro trouxera-as de léguas de distância, prevendo o macabro festim.
Enquanto o coveiro devassava a sepultura, nós, os médicos e os representantes da Justiça, disfarçávamos a náusea com comentários anedóticos sobre os mistérios da morte do Serrano. A brisa espalhou o odor podre do cadáver, levando-o lá fora aos curiosos que, ávidos e perseverantes, não arredavam pé. Alguns rostos empalideceram e um de nós vomitou. Preparámos então as máscaras; e o coveiro, mais afeito a mortos legais do que a exumações pestilentas, teve de ir refrescar-se com uma bilha de água.
O cheiro penetrava e confundia-se na atmosfera pasmada. Estavam ali alguns dos guardas que me haviam escoltado, um ano antes, a uma ribeira onde se afogara um mendigo. Falámos nisso para abalar maisi ainda os circunstantes. O corpo do mendigo - lembrava agora um dos guardas - debruçava-se sobre o fundo das águas, na posição de uma rã que fosse saltar, e os peixes já lhe tinham abocanhado pedaços de pele, os olhos e as sobrancelhas. A fetidez saturava uma área de centenas de metros. Quando lhe abrimos o ventre, redondo como um balão, os gases romperam com o fragor de bombas. Crime ou suicídio? - perguntara a lei. E eu eo meu colega que me acompanhava nessa obediência aos rigores da Justiça tentámos abreviar a autópsia, mas o delegado, lá de longe do cimo de um penedo batido pelo vento, lenço perfumado a rolhar o nariz, teimava sempre:
- Continuem! Continuem!
Essas evocações, que inutilmente se esforçavam por ser jocosas, não chegavam, porém, para iludir a presença nauseabunda do que restava do Serrano. O corpo do maioral estava estendido numas tábuas e sobre o peito desmaiavam ainda as flores artificiais, vermelhas e azuis, que mãos saudosas lhe haviam atirado para a cova.
E desse conjunto incongruente destacava-se o rosto negro, ressequido, hediondo do Serrano. O que ali resistia ainda eram as pobres e horríveis flores.
A pele do maioral despegava-se, liquefeita, e já não foi possível encontrar sinais do ferimento na mão. Abrimos o corpo, esfaqueámo-lo com uma espécie de tardia raiva. Mas esse cadáver, de cérebro desfeito em lodo, dentes sobressaindo da boca repuxada, já nada me dizia do meu companheiro de uma noite escura e longínqua. Era apenas uma abjecta podridão. Nada tinha que ver com o maioral das parelhas, homem grave e tristonho da charneca, ou com o quezilento enfermo do hospital. Desse, sim, não me esqueceria tão cedo, apesar do misto de piedade e irritação que dele iria reter - e por isso mais absurda me parecia esta imagem corrompida.
O coveiro servia de ajudante. Como tivesse de dissimular o enjoo com novos e repetidos golos de água, pegando na bilha com os dedos lambuzados da sero-sidade da carne morta, esse espectáculo público da sua fragilidade esporeava-lhe um secreto escarnecimento contra o cadáver, e daí os seus gestos violentos, de açougueiro impaciente por satisfazer a clientela. Enquanto durou o nosso trabalho, um motorista da vila perseguia a moscaria com a ramagem dos arbustos.
Chegámos ao fim, surpresos, defraudados, a ruminar no litro de sangue que encontrámos na cavidade torácica do Serrano. De que morrera ele?
- Este homem queria morrer. É tudo - deduzia com desalento, o mais idoso dos meus colegas.
- E isso basta para que alguém morra?
- Meu amigo: há certas perguntas que não se fazem nem aos médicos nem aos padres velhos. Nós e eles, a partir de certa altura, deixamos de crer nas convenções mais firmes.
Para mim, no entanto, talvez já não houvesse interesse pessoal na resposta. O que desejava guardar na memória era um Serrano vivo - falando-me de coisas belas e objectivas, da terra, da seara, dos homens, coisas cumprindo um harmonioso destino, para as quais a morte era um intermédio de que brotariam outras vidas e outras coisas sempre belas e poderosas.
- E o relatório?
- Iremos confessar a nossa ignorância. Pode estar certo de que alguém inventará, por nós, uma solução.
O corpo estropiado do maioral voltou à cova - que ia ser definitivamente fechada sobre as flores desbotadas na treva. Ouviram-se no adro as primeiras pa-zadas de terra caindo sobre a podridão. E nós, lá dentro, ouvimos simultaneamente o súbito alarido. Gritos, uma berraria histérica, que o silêncio precedente tornava mais aguda. Clamavam por nós, pediam urgência de um médico. A irmã do maioral, até aí isolada num turvo mutismo, tentara ou fingira decepar uma das mãos. A faca traçara-lhe um risco vermelho, por onde escorria um fio de sangue quente. No seu fraseado tonto, a mulher repetia que não a impedissem de lançar também na cova aquela mão, a mão ladra - para que a alma do Serrano pudesse, enfim, serenar.
Embora o título o não dê a perceber, o herói do que se segue é um automóvel; e, para completar a advertência, direi também, desde já, que o seu dono é um médico; e, enfim, para nada guardar na manga do casaco, que o médico sou eu. Gosto de jogo limpo. Mas outras personagens entram nesta narrativa, visto que, cá pelos sítios, um médico faz parte da vida de uma porção de pessoas, como uma porção de pessoas faz parte da vida de um médico. Por outras palavras - e ditas num tom decisivo: um médico pertence a meio mundo, incluindo o citado automóvel, quando ele tem manias de gente, menos a si próprio. Mas isso já os senhores, assim o creio, estão fartos de saber.
Se me permitem, irei então iniciar a minha historie-ta, que afinal não é história nenhuma, mas apenas um dia, ao acaso, de um médico de aldeia e dos seus comparsas já referidos e outros, confesso ainda por referir: o automóvel, as pessoas que necessitam do médico, ou o utilizam (há uma certa distinção), a família (que às vezes se enxerta nas pessoas), os sapatos que figuram no título, o circo e... Lá ia eu a dizer o resto. Ora mesmo num jogo limpo, é lícito deixar um pequeno trunfo de reserva. Aliás, se surripio este último protagonista, é para que eu próprio saboreie a ideia de que escondo uma surpresa. O pior é se ela me rebenta no calor das mãos, antes de, no devido tempo, lhe deitar a mecha! Bem, é altura de pegar nisto por qualquer dos lados. E só para vos contrariar as previsões, apetece-me que a meada se desdobre precisamente por uma coisa que ainda aqui não apareceu: a Feira de S. João. A feira, lá na cidade, em Évora, que é sempre um acontecimento extraordinário, atravessando as recordações de um ano inteiro de solidão e marasmo. (De resto, aos olhos de um aldeão, o que acontece na cidade é sempre extraordinário.) Ora ia eu a dizer que, havia um par de semanas, a Feira de S. João, com os seus toiros, barracas, circos, cavalos, um mar de gente e de pó, era a obsessão dos meus familiares, como o era de todo o burgo. Sem pôr de lado, anote-se a beatona da D. Matilde, de casa para a igreja, da igreja para casa, e defendendo-se das ciladas do trajecto com uma saraivada de ladainhas. Também ela já tinha, havia dois dias, a sua caleche escovada para a longa mas excitante jornada. E o farnel meio pronto, claro, pois a D. Matilde achava que os anjos, sempre bem nutridos, davam um exemplo de saudável apetite às almas abençoadas. Do meu lado, o alvoroço não era menor, embora não gostasse de toiros, poeira e cavalos: tinha adquirido um velho automóvel, tão asmático como a pileca do almocreve meu vizinho, e seria esta a primeira grande viagem que lhe confiava. Nada menos de cem quilómetros, contando, evidentemente, com o regresso. A viatura em questão, já o dei a perceber, era um destes tarimbeiros estafados por caminhos do diabo, resmungando e gemendo sem glória, à espera de uma reforma que tardava, e decerto os tais cem quilómetros de estrada de macadame deveriam significar uma provação excessiva, e na velhice, dizia-me a prática profissional, todas as experiências novas são de recear. Comprara-o (explicava eu aos ricaços do burgo, a iludir a ridícula escassez das minhas posses)
por se prestar, como as almanjarras que o cansaço faz dóceis, à minha aprendizagem de automobilista incipiente, mas recordo ainda que, na manhã em que um rufia da vila mo impingiu, quando o calhambeque desembocou debaixo das minhas janelas, com os seus achaques evidentemente camuflados, lustroso, de cera e cuspo, o olhámos enternecidos, orgulhosos e com uma langorosa sensação de prosperidade. O pior foi que, logo no primeiro ensaio pela aldeia, lhe partimos uma das molas e quando o lançámos na vertigem do macadame a bateria caiu-lhe aos pés, protestando contra a insólita comodidade de tal piso. Disseram-me então, tardiamente, já se vê, que o meu Willys correra uma boa dúzia de donos, entre eles um ébrio folião, que empilhava os amigalhaços nos assentos e ainda alguns sobrantes no tejadilho, passeando-os por todas as romarias do distrito. E, pelo menos no Verão, as romarias não tinham parança. Essa legenda de aventura e até de libertinagem que o velho andarilho me sugeria, depois de ouvidas tais histórias, parecia-me mesmo confirmada em certas nódoas que se viam por vários lados e num odor quase lúbrico que se lhe impregnara. O dito dono havia sido um femeeiro incorrigível, exibindo a sua devassidão como um espectáculo, onde quer que calhasse, até nos cafés das vilas, onde, a horas íntimas, chegava a despir em público as maganas que o acompanhavam, e findara, num romantismo coerente, mas talvez desmentido, com um tiro na cabeça, no dia em que verificou que não lhe restava um chavo para nova paródia.
Pois na manhã da Feira de S. João levantámo-nos todos muito cedo, irritadiços, alvoreados, começando imediatamente os preparativos da jornada. O meu ra-paz fez-se esquecido da escola e ninguém reparou nisso; e a minha garota, a propósito, evocou-me as maravilhas de um circo miserável que por aqui passou, mas a que não faltara o mais importante: o palhaço de botas desmanteladas e um burro tão sábio que ela, excitada, acabara por saltar à pista (foi o número mais aplaudido da noite) para lhe sacudir o rabo. A minha filha deslumbrava-se já com a perspectiva de um circo maior, a valer, com vários palhaços à compita e, em vez de um, dúzias de burros sábios. E todos falávamos da merenda no campo, mais pitoresca e mais económica (mas era no pitoresco que insistíamos) do que um almoço na balbúrdia de um restaurante, das compras nas barracas (a única perspectiva que não me entusiasmava), da viagem temerária (o risco era do automóvel - mas foi aí que nos enganámos) por entre trigais maduros e alterosos ninhos de cegonhas alcandoradas, com soberbia, nos salgueiros das margens da estrada.
Alguém, entretanto, bateu furiosamente à porta. Uma chamada urgente. (Abro aqui um parêntesis para esclarecer o leitor não só de que um médico nunca pode afiançar um projecto, visto que os doentes têm o faro apurado para lhe espreitar as fugas e as horas de lazer, mas também de que, nas aldeias, todas as chamadas são urgentes e a maioria dos queixadiços ficarão em perigo de vida se não largarmos tudo para os atender. A doença, sobretudo nestes lugares onde a vida é murcha, sacode o torpor como lufada agreste mas estimuladora, e ninguém está pelos ajustes de desperdiçar o acontecimento só porque o médico se lembra de usufruir, como qualquer mortal, uma hora de sono ou de distracção.)
Tratava-se da Sr.a Joana, uma das clientes mais pegadiças e melosas do meu rol de empalamados crónicos. Não se deitara em toda a noite, garantiram-me. Embora tivesse serenado um pouco de manhã, a sufocação dos brônquios, que silvavam como cobras enraivadas, persistia ainda.
A Sr.a Joana foi das minhas primeiras doentes. E tem sido das mais fiéis. Às vezes, faz-me anunciar as suas crises enviando-me a casa uma sóbria fatia do muito que me deve. E exacerba então o sofrimento com manifesta vocação histriónica, de modo a evidenciar dramaticamente que a minha desinteressada ajuda se impõe e que o momento não é apropriado para se lembrarem contas em atraso. O marido, nessas ocasiões, está sempre ausente. A sua presença seria embaraçosa para todos: ele, decerto, ver-se-ia obrigado a acompanhar-me à saída e a desculpar-se da sua desmazelada dívida para comigo; e eu também me sinto desoprimido com essa ausência: embora o dinheiro me não seja indiferente (até porque necessito de comprar, qualquer dia, outro automóvel mais respeitável), não me agrada nada discutir o preço dos meus serviços, ou avivá-los às memórias relapsas, como esses afinadores de máquinas que entram aqui na aldeia a apregoar a valia das suas geringonças, enquanto ameaçam os caloteiros que se esqueceram da última prestação.
A Sr.a Joana, era de prever, estava escoltada pelas vizinhas fúnebres e solícitas, destas que olham sempre o médico como um cúmplice de desgraças. Todas me expõem o que já fizeram pela enferma, certas do meu aplauso, e alguém que as ouvisse teria julgado que elas salvaram a Sr.a Joana de um perigo iminente. Além das vizinhas, costumam rodeá-la, em jeito de protecção, alguns parentes. Desta feita, porém, a enfermeira é uma filha que vive na cidade. Veste com pretensões, tem uma pronúncia retocada, modos expeditos, fala e age sem timidez. Identifico-a por um retrato da parede que, já de outras vezes, me chamara a atenção. Ela é bonita e airosa. Enquanto observo a enferma, insinuo:
- A senhora hoje tem uma companhia nova...
- É a minha filha. A que está casada em Eivas.
- Ah... - exclamo, num tom aprovativo.
Os olhos brumosos da Sr.a Joana, a face e até os Seus brônquios têm um súbito alívio. É bom que eu saiba que aquela linda moça, aperaltada como gente de haveres, é sua filha. E a rapariga logo me desfia descrições despropositadas da sua vida burguesa, enquanto a mãe se delicia por me ver atento e reverencioso.
Saio, por fim, magicando se as melhoras provisórias da Sr.a Joana foram da injecção apaziguadora ou do ensejo de exibir a filha a mim e à vizinhança, por certo reticente quanto à ascensão social da rapariga. Casada em Eivas. Imagino o que terá acontecido. Qualquer dia, aparece por aí, gasta, usada, depois de o dom-joão profissional que a tirou da servidão se ter fartado de lhe pagar os vestidos.
O caso da Sr.a Joana estava, pois, arrumado. Restava-me despachar os doentes da consulta, que, ao cheiro da feira, não deveriam ser muitos. Antes, porém, não resisti a fazer uma visita amorosa ao meu automóvel. Não me tinha sido fácil conseguir uma garagem para o defender das borrascas: todas as casas com portões estavam ocupadas por mulas ou cavalos e, por outro lado, tornava-se aconselhável, se não imperioso, que a minha pesquisa visasse em particular um palheiro situado numa rua com um desnível mais ou menos acentuado. Seria esse o único expediente para vencer a lesmice do motor, que só pegava depois de muito embalado numa descida. Embora eu pudesse orgulhar-me de que se tratava de um motor valente, galgando montanhas em quarta velocidade, essa resistência prévia ao esforço pu nha-me os nervos aflitos. Acabara, enfim, por descobrir-lhe um belo telhado, numa rua longa e íngreme, embora em promiscuidade com carros de parelha, sacos e pipas desconjuntadas. Mercê risonha de um lavrador.
Acenei a um garoto que me fosse buscar a chave do portão e logo apareceu também o Elias, meu ajudante de motorista, um destes desocupados prestáveis que nunca falham no elenco dos pequenos burgos. São moços de recados de toda a gente, censurados pelos senhores de respeito que gostam de ver as pessoas com uma tarefa definida, embora esses galdérios trabalhem, afinal, tanto como os outros, apenas com a diferença de não serem retribuídos ou de ficarem sempre na posição de quem recebeu uma esmola. Eu nomeara-o meu trin-tanário com uma certa manha: em tempos, vendera-lhe uns sapatos em meio uso e não cheguei, obviamente, a recolher o dinheiro da transacção; tratara-o depois de várias moléstias secretas, registando metodicamente as consultas, conquanto soubesse que seria bem melhor esquecer esses serviços; e agora eis uma bela ocasião para fazermos um intercâmbio de préstimos sem complicações de contabilidade.
Enchi o depósito da água, reparando, pela primeira vez, que o tampão, mordido de ferrugem, estava preso por um fio. E na minha inexperiência de noviço, e com a anuência do Elias, que era bem mais entendido em bestas do que em motores, achei o objecto inútil e deitei-o fora. (Pormenor importante, como adiante se verá.) Verifiquei os pneus, tão ressequidos como a pele da Ti Aninhas, a gasolina, e marquei ao Elias a hora da partida. Reparei que ele ostentava, envaidecido, uma das minhas gravatas. Bem a merecia. Tudo afinado para a grande aventura!
Encontrei a sala de espera do consultório cheia como uma dorna em dia de vindima. De nada me valera o dia festivo, a convidar as pessoas a adiarem as mazelas. Era sempre assim! E não o digo por vaidade. Todos os médicos da área, bons ou medíocres, não têm mãos a medir, embora a comarca não seja varrida por ares enfermiços. Mas sucede que esta gente, à parte as doenças que merecem tal nome, rala-se se um compadre frequentar regularmente, com manifesto desdém pelas despesas, boticas e consultórios. Cá pelos sítios, avaliasse a hierarquia social, a abastança como a pelintrice, por certas expressões singulares: a susceptibilidade à doença, por exemplo. Dizem-me, aliás, que na cidade também as pessoas procuram ser muito vistas em lugares afreguesados, como no dentista.
Entrei à pressa no gabinete de consulta, atravessando, esbaforido, o animado colóquio dos padecentes como quem previne desde logo que o tempo não lhe sobra. Cada minuto gasto com aqueles medricas ou empalamados (assim a minha impaciência os classificava) era acintosamente roubado à feira.
A primeira cliente foi uma das parteiras da região. Nariz de corvo, asas de corvo naquele xaile de franjas negras adejando nas noites aflitas, uns beiços sorvidos de aspereza e sabedoria. Tem-se num alto conceito e gaba-se de despachar, sem apelo aos médicos, qualquer encrenca da sua especialidade. Apesar dessa suficiência, raramente beliscada pela sua clientela, encontrámo-nos certa vez à beira da mesma parturiente. Nenhum de nós estava à vontade: ela, porque tinham duvidado das suas virtudes, sujeitando-a à humilhação da minha presença, um fedelho que não deveria ter acesso ao mundo privativo das mulheres; eu, porque me sentia ali como dentro da bocarra de um tigre: um gesto em falso e seria estracinhado. No entanto, enfrentámo-nos com cortesia e as nossas relações não ficaram, de todo, azedas: quando o parto se resolveu, ofereci-lhe um quinhão do triunfo. Tempos depois, constou-me que ela própria tomara a iniciativa de impedir que uma sua filha levasse uma gravidez por diante. A vida da rapariga estivera por um fio; via-a, ainda exangue, esbandalhada, passeando uma vil tristeza pelas ruas do burgo. Talvez a mãe pretendesse evidenciar-nos, com essa exibição, que a história que se contava era uma monstruosa calúnia.
A Sr.a Marta, minha colaboradora do consultório, como já sabem (limpa-me os ferros, ferve as seringas, resguarda o pudor das enfermas com um lençol desdobrado a todo o tamanho e, é claro, aproveita-se dos vinte e cinco tostões de gorjeta com que um ou outro cliente pretende atestar-me o seu reconhecimento), anunciou-me que a parteira já vinha com o diagnóstico de casa: a sua doença é toda por fora, da pele, dos sítios que o sol e os olhares podem livremente coscuvilhar. Receou, decerto, que eu procurasse induzi-la a padecer de males interiores. Se não fosse eu ter o pensamento dividido pelo meu automóvel e pela viagem à cidade, talvez não resistisse a impor-lhe a observação que ela teme, mesmo sob a discrição do lençol da Sr.a Marta. Ajustaremos contas noutra oportunidade: desta vez, deixo-me burlar e confirmo docilmente que algum bicho nocturno lhe semeou aquela brotoeja.
Veio depois a Sr.a Palmira. É uma velhota afável, de boas cores, mas o seu braço lento, esquecido, previne-me de que há ali um coração exausto, a pedir que não lhe prolonguem a tarefa. A Sr.a Palmira, tal como a parteira, tal como a minha outra gente da aldeia, também não gosta de médicos, mas, no meu caso, descobriu atenuantes que me legitimam a profissão: não só porque, há tempos, numa crise que a abalou muito, a ponto de consentir na minha abusiva interferência, lhe dei algum conforto, mas sobretudo porque nos identificamos na mesma devoção pelas flores. Desde aí, visita-me sempre que se julga ameaçada, tal como visitasse um amigo por coincidência entendido em mezinhas. No entanto, paga-me de bom modo as suas contas (acabou agora mesmo de me entregar, nesta consulta, um restito em atraso), e eu, antes de assentar o disco do auscultador sobre o corpete, falo-lhe de goivos e de dálias, do seu jardim exilado numas areias requeimadas, lá perto do meu beco, resistindo com bravura ao sol mourisco. São relações que progridem, visto que sou homem que aprecio um canteiro bem tratado e, no burgo, não há muita gente que desperdice folgas e carinho com tais friolei-ras. Há tempos a sua filha Gracinda mandou-me a casa
um cabaz com jeropiga e passas do Algarve. Suponho que foi a primeira atenção que elas tiveram com um médico.
Chega a vez das crianças. Enterite. Choram um choro que tem o desespero ou a raiva dos adultos. São feias, assim, nos seus rostos amarelentos e engelhados, onde os olhos devoram todo o espaço. A doença sorve-lhes a carne, sobejando uma pele sem viço e transparente a cobrir os ossos. Só o ventre se empina, caricato, um balão soprado à espera que uma agulha o faça rebentar. As pobres crianças das aldeias! São elas as vítimas predilectas da sabença das comadres, da miséria e do desleixo. Comem guisados aos três meses e as suas diarreias curam-se com beberragens imundas dos charlatães. Só nos aparecem quando os seus olhos doces e tristes começam a turvar-se e o choro se transforma num vagido. A nossa mágoa é tão grande como a revolta; tão grande que a revolta fica quase sempre emudecida.
Uma das crianças nasceu na cadeia e veio há semanas para aqui, na caravana das ceifas. A mãe andou pela cidade (tal como a outra, «a que está casada em Eivas») e de baldão em baldão acabou num cárcere, onde encontrou o pai desta criança que me entregam para salvar. Salvar de quê? Os pais vieram à ceifa, a mãe secou o peito magro e, como o trabalho a prende até ao anoitecer, é uma velha alta e empedernida que vai agora colaborar comigo na luta contra a doença. Quando a criança entra no consultório, perseguem-na bandos de moscas, que teimam em sugar a agonia desses lábios desmaiados ou o choro das pestanas remelosas. Ao preparar-me para injectar o soro, a velha afasta os olhos hostis para a porta e deixa a garota nas mãos sábias e indiferentes da Sr.a Marta, que resmunga ao verificar que o alvo lençol da marquesa foi copiosamente urinado.
Vêm depois os sinistrados. É uma malta esfarrapada, com uns trapos enrolados aos pés, o rosto curtido de sóis e relentos. Alguns ostentam já mutilações em que ninguém repara: um dedo a menos, um olho vazado, cicatrizes na face e nos membros. E todos com um jeito brigão e farronqueiro. O acidente é neles outra profissão: conhecem várias técnicas de burlar o seguro, arrastando os males durante semanas de moinice. Como diabo é que a ferida aparece hoje arreganhada? - É do sangue ruim, senhor doutor. Não se rale com isso. Aves de arribação. «Passageiros», chama-lhes o povo. Vão de estrada em estrada, sempre na direcção do Sul, ao faro de empreitadas nas barragens ou em outras obras em que não se indague donde um homem partiu. Trazem às vezes família, mulheres, ganapos, e dormem nos montados. Este que veio à frente tem um braço tatuado. É um desenho prolixo, com uma sereia mamalhuda, cobras, navios, mãos solitárias que se buscam e corações atravessados por farpas. Pergunto se aquele adorno lhe doeu muito. Diz-me que não. Ele é um moço espadaúdo, com o sorriso malicioso de quem viu mundo. Um dos companheiros, mais comedido nos modos e nas palavras, apresenta-me três dedos esmagados. Com uma naturalidade que me arrepia. Outro ainda, que tem a mão direita cheia de pústulas, foi agora colhido, no dorso, por uma escavadora. É um homem ponderado e soturno. Preocupa-o que a família esteja longe e sem dinheiro. Mas a companhia de seguros não pode pensar nessas coisas. E ele repete-me que não poderá ir no fim-de-semana à cidade, enquanto não receber a féria, pois a família não o espera a ele, mas sim ao dinheiro que lhe levaria.
Uma gente estranha. Mas dou-me bem com eles. Às vezes cuido-lhes dos filhos, por correspondência, ouço-lhes histórias e, se os encontro na estrada, interrompo a jornada para fumarmos um matacão holandês.
Nessa legião excêntrica de ambulantes veio também, até mim, uma espanhola. Será a última a ser atendida nesta consulta feita de olhos postos no relógio, pois o seu tratamento é demorado. Desde a fronteira até aos campos de Beja, desde Beja até aos planaltos serranos, ela tem seguido o rasto de um outro maltês, cabouqueiro, que há dias desaguou na vila. Ela e três filhotes. Um deles tem um belo cabelo selvagem, farto e loiro como o trigo da planície, e uns olhos verdes esquivos. Guardo sempre na gaveta uma reserva de rebuçados só para o cativar.
A «espanhola» - como dizem por aí - é o caso mais impressionante de sífilis que até hoje me chegou às mãos. Quando aqui arribou, já não podia arrastar-se um passo mais. O companheiro não tinha um chavo. E o tratamento exigia que ele tivesse milhares deles. A Sr.a Marta, que nos viagiava serenamente a conversa, fazia-me laboriosos sinais de precaução. Ela sabe quanto eu sou vulnerável a certa espécie de tragédias ou de artimanhas; que nem sempre tenho sido afortunado em confiar nos outros. Quando o doente me percebe a abrir a carteira para lhe calar as vicissitudes tão chorosamente desnudadas, ambos, eu e ela, o vemos de rosto todo avivado de honradez, ambos o ouvimos asseverar, num fervor que nos humilha, de que serei reembolsado em oito dias; acontece, porém, que esses propósitos se esgueiram, se esfarelam, logo que a doença parece bem encaminhada, e uma semana depois já ele passa de largo, nariz abespinhado, fazendo um rodeio para evitar o encontro. Por fim, sei que tenho ali um inimigo. Não há senão que não me descubram. Até o de explorador. Mas, apesar das prevenções da minha ajudante, joguei uma vez mais na pieguice. Deixe, senhora Marta, alguém teria de o fazer. - Faça quem pode. A Sr.a Marta sabe o que diz. (Faço notar que, embora tenha adquirido o automóvel a pronto, toma lá dá cá, o meu orçamento não permite as tais liberdades que a minha ajudante condena. O automóvel, conquanto me proporcione umas festanças, representa, acima de tudo, uma necessidade. Faz corpo com a minha vida profissional.)
A espanhola faltou-me uns dias ao consultório. Andou fugida por essas herdades, acossada pela guarda. É que, tempos antes, outra bilhostre também havia sido presa e despachada sem demora para a fronteira. Mas esta, a minha doente, quando a filaram, exibiu sem grande convicção uma certidão de casamento do tamanho do meu diploma de médico, e acho que isso convenceu a autoridade de que ela tem o direito a pisar terra-pátria do seu homem. Agora, porém, ainda sob o pavor da perseguição, já não quer ser espanhola, apesar de a sua língua de trapos a marcar, à força, para o resto da vida. Do que se passou é ela a primeira a concluir: Se não tivesse levado as injecções, dom Fernando, os guardas tinham-me apanhado à esquina da praça. Assim, fi-los suar.
Tenho hoje duas doentes do «campo», como por aqui se diz. Vieram dos limites da freguesia, dum povo encravado entre quatro concelhos e dois distritos. Cerca de duas mil almas espalhadas por courelas e «montes», a esmo, sem que ninguém procure aproximar a casa da de um vizinho, olhando-se suspeitosamente como morfeicos em quarentena, e sem uma estrada que lhes acene o mundo. Em tempos aquilo foi baldio, depois foral, mas sempre uma África de matos e bichos, onde se acoitavam os foragidos da lei. O povo cresceu, plantou-se na terra ao lado das árvores firmes, e casinhas brancas e malhadas de gado começaram a trepar as colinas. Desde alguns decénios que é um agregado humano com uma personalidade de tribo. De Inverno, quando os charcos engolem as veredas e não há besta que se afoite à jornada até à vila - mais isolados ficam. E é por isso, talvez, que já ali se vêem uma padaria, um ferrador e, recentemente, uma lojeca onde há surrobecos, barros, foices, vinho e até um bilhar! Gostaria de saber que negociante do diabo teve artes de uma tal transacção. Mas há ali gente que nunca atravessou as herdades para alcançar a estrada que desagua na vila - onde começa o mundo. Gente grave e espantadiça. Dantes, desciam à comarca apenas para enterrar os mortos num sítio legal. Vinham com o esquife às costas, quilómetros e quilómetros, por montados e coutadas. Depois da cerimónia, embebedavam-se com uma solenidade que dir-se-ia pertencer ainda ao ritual fúnebre.
É difícil ser médico destes gentios. Vive com eles um «virtuoso», tipo seco e alto, que eu, um dia, lobriguei de raspão. Receita-lhes, de um modo ambíguo, mezinhas tradicionais, não se banalizando com lerias. Aquilo fica entre a botânica e o mistério. Quando o virtuoso não lhes basta e se vêem forçados a arriscar-se às violências da medicina, gemem, clamam pelos parentes, rezam em coro e, depois, ficam muito pasmados de ter suportado, por exemplo, a picada da injecção. Mas regressam a casa ainda temerosos de que as consequências se revelem mais tarde. Os médicos envenenam as pessoas.
Um dia, veio um padre novo para a freguesia e resolveu missionar esse povo selvagem. Foi de monte em monte, acompanhado de um lavrador piedoso. Ao chegarem à primeira courela, o reverendo apresentou-se, deu conselhos, esmiuçou todo um programa da reconciliação com a Santa Madre Igreja, enquanto a dona da casa o olhava muito atenta. O lavrador, à ilharga, fazia a mesma expressão severa de quando ia com outros caciques arrebanhar votos para a governança. Por fim, a mulher, apreciando uma vez mais aquele rapagão vermelho, vestido de luto, bem-falante, perguntou:
- Atão vossemecê é o padre... E bem novo, benza-o Deus. Está cá há muito na freguesia?
Que não: tinha chegado havia um mês.
- E vive sozinho?
- Quase. Com uma velha serviçal, como Deus manda.
- Atão, se não é casado - replicou ela, remirando aquela sotaina de viúvo -, está mal, digo-lhe eu. Um homem, nestas terras, não se governa sem uma mulher e filhos.
Conto isto só para que avaliem quanto a consulta das duas mulheres do «campo» teria sido mais laboriosa do que eu, naquela manhã, desejaria. Custa arrancar-lhes qualquer coisa de jeito. Depois delas, cito ainda o mestre Hipólito. Vem aqui, de ano a ano, para que eu lhe esvazie as «partes». Tem, além disso, uma farfalheira que sibila e ronca, das cigarradas ininterruptas, e sequelas de um entorpecimento vascular que lhe deixou uma pálpebra frouxa e os membros de um dos lados meio tolhidos. Vive solitário numa cabana, entre dois palmos de vinha e hortejos. Os seus melões têm fama. Só me procura quando o escroto aparenta ter lá dentro um dos gigantes frutos do meloal. Lá lhe parece que é tarde para dedicar grandes atenções ao seu corpo gasto. O dinheiro que esconde nas palhas da enxerga tem outro caminho: uma amásia sabida, que já sugou alguns pés-de-meia do concelho. Os herdeiros moem-se, tentam-no, mas em vão: mestre Hipólito (mestre porque foi cordoeiro) acha que a voz do sangue não vale a companhia ao serão da mulher que lhe prepara os torresmos e lhe acena ainda, embora por troça, com umas brejeirices.
Ele paga-me os honorários sempre de mau modo: vai deixando cair sobre a mesa reles moedas de dez ou vinte e cinco tostões, para que a grandeza do monte me enfie pelos olhos a minha concupiscência, e conta-as depois duas vezes antes de arrumarmos o assunto. Desta feita, ainda pergunta se eu me terei enganado na conta; desconfia que, o ano passado, eu lhe fizera um abatimento de cinco escudos. Se não fiz, paciência. É uma cerveja a menos.
Pronto, acabou-se a consulta. Receoso de qualquer retardatário, escapo-me sem uma palavra à Sr.a Marta. Comprar-lhe-ei na feira uma lembrança. Quando vim para casa, fui ainda à quelha afagar o lombo azul do automóvel, inspeccionando de novo o óleo, a água e o carburador. Tinha um maligno pressentimento de que poderia haver uma ruptura. Mas o chão estava seco.
O meu rapaz e a irmã repreenderam-me pela demora, e a garota dos recados, com um flamejante vestido de seda vermelha adaptado talvez de qualquer velharia, fazia-lhes tolas inquisições sobre a viagem. É a vez de falar desta importante personagem e deixar-me de mistérios. Ela tem dez anos e chama-se Rosinda. Dez anos serôdios e broncos. Nunca saiu dos muros da freguesia. O mundo, para ela, é este mar de trigo e azinhos, e os ganhões, as ceifas, as tabernas do crepúsculo. Como suprema e inquietante maravilha, o comboio que passa a uma légua, ronceiro e aflito, soprando um hálito sujo que requeima as hastes das searas. Os meus filhos, assim, poderão inventar-lhe seja o que for. Mesmo a verdade terá para ela uma amplitude terrível de sonho. Saciando aqueles olhos donde escorre uma fome assombrada, dizem-lhe que Arraiolos é uma terra assente em três moinhos, que Évora é uma cidade macabra, com as paredes das igrejas atapetadas de caveiras. Ela só reage com resmungos de dúvida e de pasmo. Reparo melhor na garota: há nela qualquer discordância que me molesta. Ah, os pés descalços. É preciso descobrir uns sapatos para a Rosinda. Explicam-me que não há no sótão calçado que se ajuste àquelas patorras, que nunca conheceram prisão.
- Em Évora, compro-te uns sapatos.
Ela só soube erguer as duas mãos juntas, como numa prece.
Previnem-me agora de que o farnel ainda espera por umas empadas. De facto, não as dispenso. Este atraso tem, porém, a vantagem de poder visitar mais uns doentes. O automóvel pôr-me-á lá em dois tempos. O meu trintanário empurra-o com perícia, dando-lhe um vigoroso safanão inicial. O piso é que é danado: tem pedras bicudas como punhais que não só ferem os pneus melindrosos, mas também o meu coração de proprietário. O Elias impeliu-o com gana, é certo, mas apesar disso os êmbolos só dão sinal de vida cem metros mais abaixo. Acelero com raiva, durante uns minutos, atiçando toda a canzoada da rua, antes de principiar a marcha. Hei-de aquecê-lo à força. Desta vez, se o motor se lembra de resfolegar, não tenho mais descidas que me valham e a viagem ficará provavelmente lograda. Mas nada disso acontecerá: por fim, o motor, em ritmo pausado, dócil e certinho, parece aguardar que eu me desembarace da doente, como quem diz: avia-te lá com isso e confia em mim.
Trata-se de Felismina, mulheraça apática, corpo balofo que dir-se-ia arrastar gorduras que não lhe pertencem. Tem glândulas a precisar de conserto. Dedico-lhe duas breves recomendações, com o ouvido alerta ao que se passa lá fora. A respiração do Willys continua impecável. Hei-de dar um nome cristão a este carro. Talvez isso o estimule a ser-me leal.
Bem, tenho a ideia de já ter verificado a reserva de gasolina. Mas nada de dúvidas: desde que há dias me aconteceu ficar na estrada sem uma gota no depósito, a sete quilómetros da povoação mais próxima e dentro da noite cerrada, nenhuma precaução será excessiva. Este carro não gasta gasolina: devora-a.
E foi pensando nisso que cometi o primeiro erro desse dia: confiado na perseverança do motor, que continuava sem uma falha, e legitimamente esperançado em que ele pegasse pelos seus meios, fechei a ignição durante a visita ao segundo doente, no intento de poupar gasolina. Quando voltei, o motor negou-se. Veio então em meu auxílio uma das pessoas com quem, na altura, estava de relações frias e justamente por um motivo que tinha o automóvel como peguilha. Aceitei, comovido, a largueza de alma deste gesto, prenúncio de uma reconciliação, mas não foi possível convencer o calhambeque de que não se deve resistir à manivela, como todos os tratados de mecânica aconselham. Outros amigos prestáveis, e também risonhos (eu sei que os meus vizinhos troçam desta carripana cheia de vícios, embora se considerassem felizes com a sua posse), vieram colaborar na briga contra a teimosia do motor, até que ele, enfim, cedeu.
Quero agora supor que se acabaram os atrasos e os contratempos. As empadas estão prontas. A minha família, atropelando-se, procura um ninho dentro do carro - as preferências por este ou aquele lugar não se resolvem às primeiras -, mas enquanto cada qual se lembre de uma coisa esquecida, e sempre absolutamente necessária, e sobem e descem e voltam a subir, aparece ainda a mãe de uma doente. A feira está decididamente embruxada.
Este caso, porém, justifica que eu modere os nervos e suspenda uma vez mais a narrativa. A filha (a doente) chegou-me ao consultório depois de desenganada por médicos e virtuosos. «Maleitas», diziam. Daquelas maleitas que se pegam ao corpo como ostras. Entretanto haviam-se enxerido outras mazelas, a última uma pleurisia. Os pais trouxeram-me então a rapariga, como sempre para que eu a curasse em dois dias. A doença, porém, não me ajudou e, ao fim de uma semana, percebi que, de novo, a levariam a outras mãos. Cá por estas bandas (ou em toda a parte...), o médico não presta se não reduz todos os achaques a um incidente breve e concreto. Usei de toda a minha persuasão, que não é
muita, pois o caso clínico interessava-me e gostaria que me dessem a oportunidade de deslindá-lo. Começava a ter desconfianças sobre o tal diagnóstico das maleitas. Havia ali uma razão mais esquiva e inusitada. Mas como era preciso fundamentar, com um elemento objectivo e impressionante, as demoras na evolução da moléstia, servi-me do recurso mais ao alcance de um médico de aldeia: radiografá-la. Uma radiografia, coisa misteriosa (vê-se a gente por dentro), ainda impõe respeito aos meus campónios e custa dinheiro. Tenho conhecido aqueles enfermos que mudam de médico como de peúgas e acabam por fixar-se justamente naquele que lhes arruinou a carteira, mesmo que nada tenha justificado a orgia de análises e outras niquices. Contudo, desta vez, de pouco me valeu o documento fotográfico, onde eu localizava, com um dedo bruxo, os males da doente, apenas para defendê-la da obstinada bronquice dos pais. Ná, calafrios assim eram maleitas. E a minha pertinácia esfrangalhava-se de encontro àquelas faces de pedra. Sabia que ma levariam, que não voltaria a tê-la aqui comigo - e tudo se passava dentro de mim, como se ela fosse minha e não deles e ma quisessem extorquir. Pertencia-me, essa garota de ossos esguios, garça e tristonha, que me aparecia nos sonhos inquietos a clamar por mim, que estava ao meu lado, confiante e crédula, nas horas em que, obcecadamente, eu insistia em decifrar-lhe o sofrimento nas páginas sumptuosas e desumanas dos livros de estudo.
Por fim, como desesperado recurso, dei voz à minha suspeita - pondo-os de caras perante um diagnóstico que, pela experiência do povo, eles já sabiam ser terrível. Mas por um destes caprichos com que a morte troça dos vivos, a garota melhorou inesperadamente, ganhando cores - e eles sempre ma levaram. Meses de-pois, soou-me que tinha piorado, mais esverdelhada agora do que dantes, e, ao prosseguirem na via-sacra de consultórios, num deles repetiu-se o meu diagnóstico. Nem por isso se lembraram de mim; foi uma velha da família, com um conceito de dedicação de outros tempos, que, encontrando-me numa herdade, me interpelou: «O senhor disse tudo certo e ninguém o ouviu. Agora vai ser tarde. Mas nas suas mãos é que ela se há-de salvar ou morrer. Uma avó ainda manda alguma coisa.»
E mandou. Cá a tenho de novo, definhando como uma haste que a seca não deixou amadurar, e desta vez bravia e chorona - sem a docilidade e o fervor na cura que lhe conheci. Atendi-as entre a porta e a rua e depois juntou-se-nos a avó, que surgiu, corcovada e de guedelhas soltas, quando já as convencera de que deveriam escolher melhor oportunidade para a observação. Entramos no automóvel como desertores e o grupo das três mulheres permanece isolado e expectante no meio da rua. As três vestem de escuro. Por que motivo me sugerem três árvores antigas, mirradas, sobrando do tempo, que os séculos tivessem enegrecido? Um desses troncos milenários - a velha - faz-me um aceno, mas um aceno áspero e tímido. Pode ser uma despedida - ou uma censura.
Tudo isso serão coisas para ruminar e esclarecer mais tarde. Agora vamos a caminho de Arraiolos! (Devia ter trazido o Elias, e ele tanto o desejava! Mas ferrei-me teimosamente à ideia de que esta viajata há-de ter um cunho familiar.) A criadita sentou-se de esguelha, receosa e atarantada, e assim continuará, pois quando o meu rapaz troçou impiedosamente, como sempre, Olha, pai, ela não sabe sentar-se!, e a minha filha fez eco: Há lugares para todos, cachopa!, a Rosinda ainda mais confusa e desajeitada se mostrou. Esta experiência é para ela excessiva. Os seus olhos querem prender todas as árvores e searas que fogem a nosso lado, o seu cérebro entontecido em vão procura confinar cada deslumbramento que a sobressalta. Há nesses olhos uma alegria aflita. Quanto aos meus filhos, só atentam na copa dos plátanos mais espigados, onde as cegonhas fazem ninho. Pelo que me diz respeito, vou triunfante, em mangas de camisa, fazendo rodar o volante mais do que seria necessário, só para sentir o gozo de me ver obedecido - um reizinho que domina uma máquina tão poderosa e instável como um automóvel. Imagino-me um pouco dentro da pele do borguista que fez deste carro um aventureiro. Ultrapassamos carroças, parelhas, largando um nojo de poeira aos que, vexados, ficam para trás, somos um tufão que não concede um encontro contemplativo com as coisas serenas e imutáveis como aquela carroça, aquela parelha, aquelas mulas e os homens lentos e ternos que as conduzem. Descortinámos, de chofre, o morro redondo do castelo. E as casas silenciosas e azuis da encosta, onde a vila se refugiou.
- Olha, Arraiolos!
E ao grito do meu rapaz, reparo na Rosinda: ela ficou séria e, ao que parece, desapontada. Arraiolos, a vila? Afinal são casas, são campos como ela já conhecia.
Nisto, o meu pé, que vinha excitado com a anuência do acelerador, deixa de encontrar resistência. E as explosões das velas tornam-se sincopadas, hesitantes, como se o meu bravo motor, na ânsia crescente de se mostrar jovem e veloz, se tivesse engasgado. Suspendo a marcha e acelero um pedaço. Não percebo muito bem o que terá acontecido, mas imagino um esófago obstruído com um osso que é necessário empurrar até ao estômago. E acelero sempre, empurro o osso. Minha mulher fita-me de um modo que equivale a uma acusação de cumplicidade com o Willys. Efectivamente, até hoje, ainda não fizemos uma viagem limpa. Isto é: de uma vez, quase que era limpa. Tínhamos ido a Évora à noite, ao cinema, levando como convidada a filha de um lavrador. No regresso, ao entrarmos no empedrado do burgo, digo: Natércia, daqui em diante tem de vir connosco sempre que sairmos nesta chocolateira. É a primeira vez que não me acontece um azar. Mal eu terminara a frase, metros adiante, pum!, um furo que me deixou um pneu esbarrondado.
Ao longe, um moleiro que, desdenhosamente, largámos para trás, aproxima-se com lentidão, como quem, certo de que a vida é longa, também está certo de chegar ao seu destino. Tento de novo a marcha, antes que o moleiro nos alcance, e parece que a sufocação passou. Que alívio! Aí vai o nosso Willys! Respondo à minha mulher com um sorriso sobranceiro. Mas além, na subida, ei-lo, de novo, a gaguejar. Experimento as várias velocidades e todas se negam: não é, pois, questão de força, e sim de brônquios ou esófagos entupidos. O que nos vale é Arraiolos estar tão próximo: em último caso vou lá buscar qualquer tipo que se pareça com um mecânico. Enervo-me, porém, ainda indeciso, e a desorientação é sobretudo da responsabilidade da minha família, que me interroga cruelmente: Que se passa, afinal? - Porque não saímos daqui! A verdade é que ninguém deve confiar a perspectiva de uma feira a uma carripana indecente. Que raio de ideia a minha, a de levar a família à feira! Em casa é que eu estaria bem, a regalar-me com um bom livro. A Rosinda, percebendo a atmosfera turva, a anunciar um perigo informe e próximo, mostra-se tão aflita de se ver longe do seu mundo sólido, tão desamparada, que chego a recear que ela nos fuja estrada fora. O moleiro passa por nós, balanceando o corpo ao ritmo sonolento da carroça, e farejo-lhe um risinho de gozo. Tento uma vez mais espicaçar os brios do Willys: e ele, enfim, aos esticões, gorgolejando, decide levar-nos até ao largo da vila. O largo, como habitualmente, está atulhado de pessoas que gostam de andar bem informadas. Sempre que atravesso este burgo, encontro as ruas vigiadas por sombras furtivas, que se agitam num nervosismo de formigas espavoridas logo que nos vêem de costas, e os postigos discretamente entreabertos, onde se escondem olhos de furões à espera, também, de uma oportunidade clandestina de nos sorver. É uma gente que tem um nariz que começa à entrada da vila e acompanha o visitante até ele desaparecer além das muralhas. Entretanto, nada ficou por averiguar, nada escapou a um olfacto tão voraz. De uma das vezes em que passei ali com um doente, enquanto aguardávamos por uma automaca que nos levasse ao cirurgião (o homem tinha furado o fígado, de lado a lado, com a vareta de uma espingarda), o povo cercou o carro, deu conselhos, dispôs de mim e do motorista - e não pude evitar uma briga com um sabi-chão de samarra cinzenta. Depois, refugiando-me na garagem que albergava a automaca, e onde se esperava não sei porquê, topei outro mestre de sentenças que me confundiu com novas e preciosas ordens. Semanas mais tarde, esse intrometido julgou-se com tanto direito à minha familiaridade que me saudou desta maneira: Ah, doutor de uma cana! Embora eu nunca tivesse dado importância à fraseologia hierárquica e não me sinta com grande porte de médico, quando passo na vila rói-me sempre um azedume danado por viver ali o rufia que me chamou «doutor de uma cana» como se eu fosse um amigalhaço de taberna.
O largo, daí a nada, preparava-se para um suculento manjar de bisbilhotice; dos olhos daquele pessoal escorria um suco glutão. O caso não era para menos: quando desembocámos, já ali jazia, por coincidência, outro automóvel com dois pneus rebentados, e eu, ao dar a curva, de nervos ao rubro por ser forçado a romper uma espessa cortina de basbaques, esbarrei numa camioneta de passageiros. Fui logo deglutido por uma matilha de ganapos e de vários especialistas de desastres.
Temi encarar a família, mas apercebia-se que, dentro do meu calhambeque, a atmosfera se cortava à faca, enquanto o motorista da camioneta apreciava, com ares vagarosos e lúgubres, o raspão da pintura. Anotou-me a matrícula do carro, rosnou ameaças, bem apoiado por outro traste, que afiançava a minha aselhice como condutor.
Depois de sanhudos debates, empurraram-me o Willys até a oficina. Minha mulher, amuada, decidira ficar mesmo no centro da arena, quer dizer, na praça, mal prevendo que, em lugar do automóvel, seriam ela e os pequenos a iguaria para aqueles esfomeados. Havíamos projectado ir ao circo da cidade; pois o circo, afinal, era ali, todo o espectáculo à nossa custa, bem afreguesado, e sem que para isso tivesse sido necessário anunciá-lo ao respeitável público. De uma janela, alguém comentava o facto de a Rosinda vir descalça:
- Não deve ser filha, não. Vem tão desprezadinha...
Só o meu rapaz se tinha escapado ao sorvedoiro. Encontrara logo um bom camarada que o convidou a jogar ao berlinde.
Entretanto, fui ouvindo diagnósticos sobre a atonia do meu carro. O mecânico da terra estava ausente, tinha ido a uma herdade desencravar um tractor, e, por isso, acabei por ceder às razões de um dos sequazes que me rodeavam, entregando-lhe o mísero objecto do debate. Era, afinal, um tipo merecedor da minha confiança, pois logo acertou na mazela: acontecera que o tal tampão do radiador, que eu deitara fora com displicência, deveria estar ali, naquele lugar, justamente para impedir que a água, afogueada, saltasse do depósito como a lava de um vulcão e encharcasse as ligações eléctricas e as demais mixordices necessárias para que um motor funcione. Enxutos os fios, os cobres, as velas, e depois de preparada uma rolha de cortiça, a viatura pegou instantaneamente, com orgulhosa eficiência, para desprazer dos cépticos assistentes.
O caminho de Arraiolos a Évora não teve história. Vimos três ninhos de cegonha. Aliás, numa estrada plana e asfaltada, não há grande ensejo para acontecimentos. Diga-se, porém, que o entusiasmo da família se gastara um tanto com as peripécias anteriores. Iam todos demasiado tranquilos, embora, lá por dentro, digerissem dúvidas como esta confessada pelo meu rapaz:
- Oh, pai! E se tu tivesses preparado duas rolhas de cortiça?
O meu filho dava assim voz a certo cansaço da minha gente para suportar com desportivismo novas encrencas.
Ena, como a cidade era um mundo de gente! Todo o distrito desaguara, em aludes, no imenso rossio da feira. Belo espectáculo. Mas eu tinha, entretanto, e por isso mesmo, outras inconfessadas ralações: não me seria fácil descobrir uns metros de ladeira disponíveis para a minha viatura. (Vamos dar-lhe definitivamente um nome, já que teremos de interpelá-la amiudadas vezes nesta narrativa. Ramiro, talvez não? Seja Ramiro.) Daí, despejei a família em frente da primeira sapataria e fui até ao ponto mais cimeiro da cidade, já longe do burburinho, onde, decerto, nenhum forasteiro me cobiçaria o lugar. Não me enganei: ali estava livre de competidores. Numa das vielas, a pique sobre a planura, ei-la, a boa pista para o Ramiro, que, das colunas de Diana até às muralhas, teria ao seu dispor um bom quilómetro de vertente. Nem gelado, o Ramiro poderia recusar-se a espevitar os pistões. (Ramiro era o nome de um velho músico da minha terra. Às vezes, fazia-se escarlate de tanto soprar pela bocarra do instrumento, mas, sabe-se lá porquê, só deitava cuspo. Não saía uma nota. Chegava a imaginar que o instrumento, cujos anéis metálicos se lhe enrolavam ao pescoço, era uma serpente a esganá-lo e que, portanto, aquela apoplexia de esforço gorado traduzia, afinal, uma horrível sufocação.)
Fui encontrar a criadita ainda a experimentar sapatos. A escolha demorava porque havia conveniência em deixá-los folgados. Teriam de lhe acompanhar o crescimento dos pés, e era sobre o acerto dessa antecipação que sobravam dúvidas. Naqueles, que ela tinha calçado momentos antes de eu entrar na loja, os pés chocalhavam. Mas a Rosinda não se ralava com isso e não parecia nada disposta a largá-los. Dir-se-ia temer que o lojista, em lhos apanhando fora dos pés, já não os substituísse por outros.
- Estes estão muito bem, minha senhora! Deixe-me ficar com estes!
E o apelo era tão lacrimejado que receei que ela fosse chorar. A Rosinda sentia aqueles sapatos já como seus. Trocá-los seria uma violência. A sua expressão, porém, logo mudara, mesmo antes de ouvir a resposta: apreciava-se mais uma vez ao espelho alto que havia em frente, tão alto que ia do chão à prateleira, nele cabia um corpo inteiro, e nessas ocasiões tinha gestos de alarmada ou mesmo agressiva desconfiança, inspeccionando-se atentamente, ou antes: inspeccionando a garota que estava do lado de lá e que ela ainda não se sentia muito certa de que fosse um decalque de si própria. Por isso, armava umas ciladas a essa imagem equívoca e suspeita que tão bem a imitava, voltando a cabeça de supetão, fazendo-lhe caretas, desafiando-a a um duelo de gestos acintosos. Finalmente, convencida de que não havia fraude, que o espelho tamanhão era mesmo um espelho, apenas insólito nas dimensões, concentrou-se nos sapatos. Dessem-lhe aqueles, repetiu de olhos enevoados. Estavam já nos seus pés, sentia-os como fabricados especialmente para si. Largos?, estreitos? Que importava, se eram os seus sapatos - uns sapatos da cidade! E, meu Deus, que grande era essa cidade! Tantas casas de vários andares, tantas arcadas, tantas lojas, ruas enfiadas noutras ruas - e sempre um rodopio de gente! Onde havia ruas para tal fornada de pessoas e pessoas, para tão emaranhado casario? Mesmo ali no refúgio do lojista andava-lhe a cabeça à roda, entontecida pelo redemoinho de vozes, passos, buzinas.
O empregado tinha um trabalhão dos diabos para que ela não fosse além do quadrado de papel onde se procedia à experiência. A vontade da Rosinda era ir com os sapatos até à porta, ver as senhoritas e as carrinhas fidalgas que passavam lá fora, precedidas de um som excitante de guizos e trote de cavalos. Decididas, por fim, duas polegadas de folga à frente dos dedos, discutida a qualidade do cabedal, o negócio arrumou-se com alívio geral. Rosinda foi-nos acompanhando, praça fora, com certa dificuldade. Tinha de arrastar os pés para que estes não se escapassem dos sapatos, mas nem por isso deixava de sentir-se a mais bem calçada das feirantes. Os seus olhos estonteados dividiam-se pelas nobres sacadas de ferro forjado, pelos cafés em sobressalto, pelas montras, pelo tufão humano que, certas vezes, parecia prestes a sugar-nos. Em duas ocasiões quase foi colhida, à beira do passeio, por uns filhotes de maiorais que rompiam a turba densa com os seus automóveis afuselados. O meu rapaz apura os olhos para esses flamejantes torpedos, símbolos de fúria e mando, mas eu odeio-os: instintivamente todo eu me encrespo quando os vejo passar, ou porque me lembram a decrepitude do meu Ramiro ou porque tem vindo a crescer em mim o ressentimento pelos maiorais.
Já que as chancas da Rosinda lhe fazem perder a agilidade, o melhor é emparedá-la de encontro às casas. Ali, ao menos, tudo o que lhe pode acontecer é um encontrão, ou uma pisadela, coisa aliás de que ela bem se defende, pois reparo que a Rosinda inclina todo o corPo para a frente, oferecendo-o ao atropelo dos passeantes, em vez de arriscar os sapatos.
Évora tinha nesse dia o aspecto de um grande arraial provinciano. Tal como nas festanças da minha aldeia, mas em ponto grande. A gente da cidade e os maiorais das vilas refrescavam-se nas esplanadas, à espera da brisa do entardecer; os camponeses, de jalecas curtas e alforges com a merenda, andavam por ali como um rebanho atordoado.
Acabámos num café. A Rosinda associou-se com a minha filha na posse de uma cadeira e a sua atenção continuava solicitada por duas atracções: os sapatos e o mundo caótico de pessoas, criados, risadas, conversas e esquisitas bebidas que se tomavam em certas mesas. Tinha medo da sua voz. Apenas, uma vez por outra, perante um acontecimento mais raro, orientava os olhos da minha filha com uma furtiva cotovelada. Acompanhou-a depois ao lavabo, sem saber para onde ia, e vi-a regressar de lá de boca aberta. Se lhe dissessem que voltaríamos sem mais demoras para casa, desistindo do circo e de outras maravilhas, estou certo de que se teria sentido aliviada.
A feira era um aranzel de barracas, poeira, luzes, pregões, engodos de vária linguagem. Chamava-nos de longe, neste apelo ambíguo e lascivo de quem promete coisas inconfessáveis. Mas antes de nos deixarmos envolver pelo turbilhão, fomos à visita habitual aos dois cisnes do jardim. O calor atabafava e depressa nos enfadámos. Seria bem melhor passarmos a calma da tarde em casa de um amigo - sugeriu minha mulher, apesar dos protestos dos garotos. Ela, porém, atalhou a revolta com uns puxões de orelhas.
A ideia, verificámos depois, não tinha sido, afinal, muito certeira. Logo à entrada, tive de observar o filho doente e brigão do nosso amigo, que acabou por desconfiar dessa brincadeira de apalpões na barriga e me insultou com a liberalidade habitual; seguidamente, mordeu o meu rapaz num dos braços.
Em toda a parte, mesmo ali, na casa conventual de paredes espessas e tectos de abobadilha, havia um calor acabrunhante. Alterámos, por isso, o projecto de merenda no campo, onde a atmosfera deveria sufocar, e abrimos os cabazes na sala menos afogueada da casa. Entretanto, a criada dos nossos amigos começou a esguichar sangue das narinas e o alarme propagou-se de tal modo entre as pessoas da casa (a Rosinda teve no acontecimento um ensejo de, gritando, vazar o seu reprimido caudal de emoções) que dir-se-ia estarmos na iminência de uma tragédia. Rolhei furiosamente essas fossas nasais, como se as culpasse de todos os imprevistos desse dia, tranquilizei o alvoroço das senhoras, no meu papel de profissional que chega a propósito, mas não me agradou nada reparar mais tarde, no espelho da casa de banho, em três ou quatro salpicos de sangue na camisa. Foi a vez de a nossa hospedeira me valer, esfregando as nódoas com uma mistela de efeitos garantidos, mas que, no fim de contas, só fez alastrar a mancha por metade do colarinho.
Ao entardecer, correu pela cidade um soprozinho de frescura. As cortinas da sala estremeceram furtivamente. Parece que todos esperávamos por esse sinal de que terminara a sesta tropical para espreguiçar os músculos e o cérebro amolecidos. O meu rapaz tocou o seu clarim:
- Então mas a feira ainda não começou?
- És parvo, pá! - retorquiu gentilmente o filho do nosso anfitrião. - A feira começou há uma data de tempo; a gente é que está prà qui a fazer não sei o quê.
Èra verdade. E por isso, em gestos síncronos, preparámo-nos para o grande momento de descer ao rossio das diversões.
No poente ainda permanecia um clarão, mas algumas luzes da feira já tinham sido acesas. À medida que o céu escurecia, esse delírio de fogachos de várias cores tornava-se fantasmagórico. E excitava como um vinho quente. Obrigava-nos a mergulhar os sentidos na fascinação. As vozes dos pregoeiros, dos mágicos, dos vendilhões, ecoavam com um timbre mais agudo sempre que o pessoal engrossava nas ruas afluentes do imenso largo. A Rosinda já conhecera outras feiras, havia uma lá na aldeia em todos os Junhos, mas esta era uma feira da cidade. Nenhum termo de comparação. Por isso, agarrara-se ao vestido de minha mulher, precavendo-se com uma protecção que poderia tornar-se urgente. Em vez das melancólicas barraquitas de chineses, expondo, num silêncio desesperançado, quinquilharias a granel, e do carrocei de cavalinhos, e dos pipos de vinho, aqui era uma verbena de luzes, vozes, cores, espalhafato. E que assombros! A barraca com a mulher vestida de cabelos, longos como crinas, esverdeados como algas, tapando-a tal as folhas cobrem a nudez de uma árvore, a ser esfaqueada em todos os milímetros do corpo; a casa volante que nos emparvecia só de olhá-la; os automóveis anões debatendo-se fragorosamente uns de encontro aos outros e soltando chispas eléctricas em cada fricção da batalha; e as serpentes e os chimpanzés e os poços da morte e os túneis infernais e ainda o milagre de Fátima. Rosinda esgazeou os olhos: ali via-se o milagre!, afiançado por dois fantoches que, a uma das janelas, convidavam os basbaques à atracção, e por uma afrodisíaca dama, mamalhuda, que a todo o comprimento das lonas do cartaz se preparava para uma sesta vigiada por dois anjos bem nutridos. À aparição não faltariam os três pastorinhos. E tudo por dez tostões. Rosinda não compreendeu o nosso desinteresse. Espantou-se que tivéssemos passado à frente. E tão presa ficou à sedução que esbarrou num camponês que se lhe atravessara no caminho. O filho do meu amigo, que já tinha reparado em certos modos da rapariga, interpretou mal o acidente:
- Esta parva só olha para os sapatos! Que raio de importância têm uns sapatos?
Tinham, e muita, embora ele não pudesse perceber porquê, mas daquela distracção os sapatos não eram os responsáveis.
As senhoras levaram-nos à rifa dos esmaltes. Para elas aquilo é tão irresistível como a roleta para os jogadores. Vêem aquelas cordilheiras de panelas, os três discos rolantes, e ficam logo certas de que irão rechear a cozinha por quinze tostões. E os animadores do engodo, cordas vocais resistentes à poeira, ao esforço e aos relentos, convencem-nas facilmente de que serão eles os intrujados.
Quando chegámos ao circo, era de prever com a história dos esmaltes, já o espectáculo ia no número da transmissão de pensamento. Este circo foi célebre e faustoso nos meus tempos de estudante, quando eu espreitava à entrada os compinchas endinheirados que me poderiam abonar o necessário para uma geral. Agora está decadente, deprime-nos com uma desolada sugestão de ruína.
O régisseur é um homem que cospe ao falar e que não tem goelas nem pulmões. Ninguém o consegue ouvir; por isso, a assistência urra, protestando. Nada mais feroz que a multidão. De um passado de elefantes e cavalos às dezenas, focas, leões, restam estes dois cavali-coques atormentados por um sujeito duro, cujos olhos parecem breves e cruéis borrões. No momento em que os chimpanzés, ao colo de uma magrizela, são convidados a saltar para o lombo dos potros e se negam, o homem ameaça-os sorrindo, mas eu sei bem o que tal sorriso esconde. Estes prodígios de animais amestrados causam-me horror desde que li a História de Um Cão, de Jack London. Não me mostrem bichos dóceis. Têm sempre um reverso: a bestialidade dos domadores. E eu, como espectador, sinto-me conivente dessas torturas.
E seguem-se outros números inevitáveis: os ciclistas, apresentados por uma vampe fanada; o malabarista, o rapaz que engole chumaços em labareda. E, precedendo-os ou complicando-os, as troupes de palhaços, sem graça e sem tragédia, arrebanhados nas vésperas entre os vagabundos a quem o instinto marcou encontro no arraial da feira. Mas as suas tolices alvares e os seus fatos grotescos fazem rir sempre a pequenada. Foi a tempo que segurei o meu rapaz, e logo depois o filho do nosso amigo, dispostos a associarem-se à pancadaria que teve por alvo um pobre anão, submerso numa vaga de garotos.
O número das equilibristas não começa mal. Pelo menos, as raparigas são jeitosas. Uma delas, sobretudo. Sabe-se depois que está ali pouco mais do que para nos regalar com o seu esbelto corpo, pois é a mãe, músculos encordoados sob uma pele velha e enxuta, e a irmã, bem menos atraente, que nos pretendem sangrar os nervos, suspensas lá em cima, no trapézio, sobre a pista ou sobre a morte. Quando a mãe se lançou, ao desamparo, para outro trapézio, um grito único partiu das gargantas apavoradas. Rosinda pôs-se a chorar. O filho do meu amigo tranquilizou-a a seu modo:
- É fita. Nunca viste disto?
Foi então que dei pelo olhar acerado de minha mulher. Ela vigiava-me desde que eu mudara de posição na cadeira, assim que a trapezista do corpo bonito descera o corredor dos artistas, tão graciosa que me fez lembrar as mulheres na praia quando correm ao encontro do mar. Pelos vistos, a partir daí, eu seguira com muito mais atenção os seus ondulados gestos sem finalidade do que as acrobacias arrepiantes dos outros membros da família.
- Agrada-te?
- O quê? - disse eu, à toa, procurando esgueirar-me da armadilha.
- Ela.
- A mãe ou a filha? - estrebuchei, desviando os cinco sentidos para o trapézio.
- A outra.
Tinha sido um diálogo em surdina, mas expressivo. Os nossos amigos fungaram, divertidos, e não lhes percebi nenhuma intenção apaziguadora.
Ferrei os olhos no chão, amuado, mas essa renúncia, afinal, só confirmou o meu sôfrego interesse anterior.
- Aproveita enquanto é tempo. Admira-a bem, antes que o número termine.
Num repelão, levantei-me da cadeira e saí do circo. Sentia-me vexado, embora os nossos amigos tivessem já experiência de arrufos semelhantes. Alcançaram-me a uns metros da saída.
- Espere aí, homem! Você afina com pouco! - censurou-me o amigo, decerto porque estava ainda mais interessado do que eu nas bonitas pernas da trapezista.
Todos me olhavam como um desertor. O meu rapaz puxava-me pela aba do casaco, a Rosinda torcia o pescoço lá para trás, para todos os apelos desperdiçados. Mantive-me, porém, invulnerável. Iríamos regressar. E foi assim que acabou a feira.
Acabou a feira, mas não a viagem. E, com o Ramiro, muita coisa podia ainda acontecer. Quando chegámos junto dele, no escuro e na solidão da viela, parecia-me um vagabundo adormecido. Percebi nitidamente que os meus filhos se aproximavam receosos; como se fosse de esperar que nesse corpo negro e embuçado nos espreitasse uma cilada. Só a Rosinda estava longe desses alarmes. Sentíamo-la indiferente e exausta. Exausta de emoções, da caminhada e dos sapatos, que lhe tinham massacrado os pés virgens. Cedera, sem dificuldade, à ideia de vir descalça do circo ao automóvel.
O Ramiro, sempre caprichoso, como tinha uma longa descida ao seu dispor, decidiu pegar meia dúzia de metros adiante. O motor, macio e conformado, ronronava no cálido silêncio da noite. Essa espécie de submissão lembrou-me, nem sei porquê, os burricos que eu conhecera nas fragas da Beira. Palmilhavam quilómetros, sem um espirro de protesto, num ofegar ritmado com a passada, fosse montanha ou várzea o seu destino, orientando-se por instinto, aceitando a tarefa como um fardo sem redenção.
Ninguém falava dentro do Willys, talvez porque todos estivéssemos ensonados ou ressentidos, pois o rescaldo do que acontecera no circo não esmorecera de todo. Os garotos, assim que passámos as muralhas, começaram a dormitar. Os subúrbios da cidade estavam desertos. O refluxo dos feirantes seria mais tarde, já muito pela noite dentro. Árvores vinham ao encontro dos faróis, curiosas e ameaçadoras. E depois, de chofre, a planície nua. Léguas de planície, ondulada como um ventre de mulher, que a luz do carro ia despertando e afagando com luxúria. O mistério escondia-se nas sombras encobertas dos restolhos. Ainda alcançámos dois rebanhos que regressavam, decerto, do mercado. Os olhos de algumas reses faiscaram num brilho súbito e cruel. E, mais adiante, cavalos e ciganos. Eles pareciam sonâmbulos, cabeças balanceando sobre o dorso das montadas.
De novo a noite e a charneca. Nisto, o Ramiro começou a torcer para o lado esquerdo. Ainda experimentei largar o volante, a verificar até onde ia o capricho, e ele quase se me atravessou na estrada. Um furo, evidentemente, para não fugir ao ritual do costume. Mas logo naquele momento, Ramiro, de noite, num descampado e com toda a gente a desejar uma cama! Bem, paciência. Aliás, estávamos já mais ou menos exercitados em resolver o contratempo em duas penadas.
Mas como aquela engrenagem chamada «macaco» estava puída no topo, pareceu-me de bom aviso que todos descessem do carro, aliviando-o no peso, ao mesmo tempo que poderiam prestar-me a colaboração possível. O mau é que arrelias destas põem-me logo agitado, sôfrego por fazer muitas coisas ao mesmo tempo, mas de tantos gestos nervosos pouco se aproveita. Por fim, lá consegui levantar uma das espáduas do Ramiro, enquanto o pneu de reserva estava já a postos. Tinha despido o casaco, o relento colava-se-me nas costas à mistura com o suor do esforço colérico, e decerto a camisa estaria já tão suja de óleo e terra que necessitaria de uma barrela. Rosinda, sempre bisbilhoteira, tinha a cabeça quase enfiada nas vísceras secretas do Ramiro, e foi nessa altura que tudo desabou. As molas haviam deslizado sobre a testa redonda e gasta do tal objecto chamado «macaco» e, num repente, o flanco da carri-pana assentou no chão. Olhei aquele traste rancorosamente, mas vi-o, depois, como um mostrengo infortunado a quem tivessem cortado uma perna e se preparasse para caminhar o resto da vida arrastando-se de esguelha. A Rosinda gania: um dos seus ombros fora maltratado, mas ninguém reparava nisso.
Que fazer?, era o que todos me perguntavam com os olhos perplexos e assustados. Que fazer?, repetia eu para mim. Levantar a braços a ilharga do Ramiro seria empresa desmedida. A família, porém (os azares tinham-nos reconciliado), ainda se prestou à tentativa. Mas em vão. Um por um, investigámos em volta à espera de topar uma solução inesperada.
- E se eu... - esboçou infantilmente o meu rapaz.
Se eu nada. Bastou encarar-me para saber que era bem melhor estar calado. Um pouco à toa, só para me conservar activo, fiz rebolar um pedregulho até junto daquele cangalho e assentei-o por debaixo do semieixo. E depois, que adiantava eu com isso? Minha mulher completou a iniciativa, procurando uma pernada ou qualquer outra coisa que servisse de alavanca. Nada. Havia apenas uns reles gravetos. E ainda se achássemos, por milagre, uma boa alavanca de ferro, das autênticas, onde estariam os braços para suster o corpo do Ramiro, enquanto o calçasse com a pedra? A verdade é que só nos restava aguardar que algum camião ou automóvel tresnoitados passassem por ali e nos ajudassem. Mas, àquelas horas, as possibilidades de trânsito numa estrada da charneca eram bem escassas. E havia ainda aquela história dos assaltos. Nos últimos tempos, tinham aparecido uns bandos, ora aqui, ora ali, fazendo esperas. Chegavam a empilhar ramos de árvores na estrada ou a simular acidentes. Não matavam, é certo, mas quando o roubo não se afigurava compensador, iam até à violência. Provavelmente essas histórias eram exacerbadas pela boca do povo, mas, pelo sim pelo não, os motoristas acautelavam-se, a guarda patrulhava o trajecto percorrido pelo senhor governador a caminho da herdade e eu próprio tinha comprado uma pistola, embora não soubesse fazer muito uso dela. Nada disto lembrei à família, bem entendido, mas disse-lhes que se acomodassem dentro do Ramiro, enquanto eu ia vigiando a estrada. O Ramiro, porém, metia-lhes certo pavor. Bem o percebi, ao observar como se empurravam, a ver quem primeiro deveria subir. Apaguei os faróis, no receio de esgotar a bateria, deixando apenas acesos os olhitos dos farolins, e sentei-me no pedregulho. Com a escuridão agora a toda a roda, o nosso desamparo foi maior.
As noites do Alentejo são imprevistas. Ao bafo sufocante do crepúsculo pode suceder, em curtas horas, a neblina. E assim aconteceu naquele serão. A distância começou a encurtar-se, devorada, gradualmente, por uma poalha húmida. Um cerco que, aos poucos, nos fosse estrangulando num isolamento definitivo. Mais desanimados nos sentimos. Ia-me martirizando com a ideia de que nenhum carro passaria por ali antes do amanhecer e, então, só nos restaria a camioneta que partia da vila muito cedo. Uma noite inteira na estrada, sem um agasalho, sem uma esperança que merecesse esse nome, sob aquela bruma fria e traiçoeira, dentro da qual nos poderia surgir, de surpresa, uma quadrilha de meliantes. Ao Inferno o Ramiro e mais as suas mazelas! Seria esta a última viagem. Em chegando à vila, daí a horas ou daí a uma eternidade, não perderia um segundo em vendê-lo. Por qualquer preço. Dado, se necessário fosse. Posto de patas para o ar, no fundo da ribeira, se ninguém o quisesse receber em herança. Estava farto, embora ele fosse para nós qualquer coisa como um bicho doméstico, um membro bastardo da tribo, talvez mais estimado justamente pelos seus defeitos.
Uma coruja espanejou as asas sobre o restolho, mudando de poiso, e logo o coração se me franziu. Lá dentro do Ramiro uma das crianças deu um breve grito.
- Foi um pássaro - disse eu, e a minha voz en-rouquecida amedrontou-as ainda mais. Também a mim me pareceu estranha e temível.
Por fim, dois focos de luz, olhos de um monstro nocturno, aproximaram-se de nós. Pus-me ao lado do Ramiro, de braço levantado. Quando o carro chegou a umas dezenas de metros, sem abrandar a velocidade, acenei com desespero e gritei depois: Alto! Alto! Tinha percebido, ou pressentido, que eles não iriam parar. O meu braço ainda ficou suspenso no apelo de um auxílio quando os tipos passaram por nós ainda mais velozes do que antes de nos terem avistado. Malandros! Nem respondi a uma pergunta que veio de dentro do Ramiro. Aquela tinha sido, quem sabe, a última oportunidade de irmos dormir a casa. Malandros. Minha mulher veio até junto de mim e disse:
- Para a outra vez, será melhor que eu desça do carro e faça sinal. Para ficarem certos de que é uma senhora.
- Talvez não haja outra vez - redargui. - E mesmo que se repita...
Não foi preciso dizer mais. Tínhamo-nos compreendido. Também ela pensara já nos assaltos. Em emboscadas. O carro passara por nós sem se comover com as nossas aflições decerto no receio de que pertencêssemos a um bando de ratoneiros. Mas talvez minha mulher não soubesse que um dos saques, ao que se propalava, havia sido encabeçado por uns meliantes vestidos de frades e outro, ainda, por uma mulher. Disse-lho.
- Como vês, as saias já não convencerão ninguém. Reparei que a Rosinda nos ouvia. Tinha descido do
Willys, olhar um tanto desvairado, e o seu queixo recuara ainda mais do que era hábito, tremendo de susto. As histórias dos roubos eram do seu voraz conhecimento, pois nenhuma novidade lhe poderia escapar; talvez as tivesse já transmitido e adulterado à minha filha, quando as duas, no pátio da nossa casa, conversavam ao entardecer, num diálogo secreto, sobre coisas horrendas ou fabulosas.
- Volta para o carro, rapariga.
- Deixe-me ficar aqui ao pé da senhora - rogou, numa voz choramingada. - Não tenho sono.
Eu e minha mulher havíamo-nos calado, a sondar a névoa. Rosinda, manhosa, a fingir-se desatenta, mas de ouvido alerta, acamara meia dúzia de seixos, atirando-os, um a um, para o restolho. E depois uma pedra maior. Então, uma coruja alvoreada, escapou-se do restolho e fugiu para mais longe. O rumor do voo assustadiço pareceu-nos que era o próprio o silêncio a sacudir as suas asas de bruma. Rosinda correra a cingir a cintura de minha mulher e assim ficou uns momentos com a cabeça apoiada nesse refúgio.
- Que medocho é esse, cachopa? - disse eu. - Não vês que era um pássaro?
- Era, minha senhora?
- Pois claro.
A garota ficou de olhos baixos, um dedo na boca. Depois, de súbito, inquiriu:
- Eles roubam tudo?
- Quem?
- Os ladrões...
- Se são ladrões, roubam, pois... É o seu ofício - confirmei num tom de gracejo.
Ela pôs-se a meditar, agachando-se de novo, à cata de pedrinhas. E uns momentos mais tarde, sem nos apercebermos disso, desapareceu por detrás de umas penedias. Quando dei pela sua ausência e não a descobri dentro do Ramiro, passou-me tudo pela cabeça, uma fuga, por exemplo: nunca se sabia o que um bicho bravio, como a Rosinda, poderia decidir.
- Rosinda!
Não gostei de ouvir o meu brado, que ressoou, desabrigado, dentro da enigmática neblina. Deu-me a sensação de que esse berro poderia atiçar uma ameaça por enquanto adormecida. Os meus filhos tinham despertado. Rosinda, porém, não demorou a aparecer.
- Onde foste?
- Ali. Fazer uma coisa.
- Eu sei o que ela foi fazer... - insinuou o meu rapaz, atormentando-a. - Foste mijar.
- O menino tem coisas - agastou-se a Rosinda, procurando uma oportuna censura no rosto da minha mulher.
Mas o rapaz enganara-se. Rosinda vinha descalça. Nem sei como, naquela atmosfera de desalento e apreensão, reparei no pormenor. Mas nada lhe disse. A cachopa fora esconder os sapatos, a pobre! Os ladrões, se viessem, não a esbulhariam da única coisa que para ela, naquele dia singular, tinha realmente valor. Os seus sapatos! E pus-me a pensar, enternecido, na relatividade das coisas.
A expectativa ia-se tornando mais densa e impaciente. Já não me ralaria nada se me levassem o que quer que fosse, mesmo o Ramiro, desde que, em troca, me oferecessem uma cama. Desde que me deixassem em casa, tranquilo, esquecido desta noitada. E, provavelmente, se não tivesse sido a ridícula cena do circo, os nossos amigos da cidade teriam insistido por que passássemos a noite com eles. E imaginava o regresso pela manhã, a estrada habitada por pessoas nítidas e honradas, a oferecerem-nos o seu risonho préstimo a cada engasgadela do Ramiro. A Rosinda, decerto, pensava de outro modo: ela suportaria o relento, a ansiedade, a vigília, desde que chegasse ao distante novo dia com os seus sapatos incólumes. E ainda que viessem salteadores, aceitaria que eles a despissem de alto a baixo, e até que lhe arrancassem os brincos, dois pingos de lata amarela, mercados a um gandarês - menos que lhe levassem os seus primeiros sapatos.
Um cão ladrou, lá ao longe. Quem sabe se por ali havia uma malhada, gados, um pastor? Fiquei indeciso se deveria vasculhar as redondezas ou permanecer junto da família, amparando-a com a minha presença. Em todo o caso, induzi:
- Talvez more gente aqui perto. Minha mulher atalhou, peremptória:
- Passaremos muito bem a noite dentro do carro. E pode ser que ainda apareça alguma camioneta das que fazem fretes a desoras.
Ela começava, bem se percebia, a ficar irritadiça.
Uma lufada de vento, solitária e furtiva, arrastou-se, como uma cobra, entre os arbustos, repercutindo, dentro de nós, num arrepio de alarme. Minha mulher ciciou-me:
- Tens muito dinheiro contigo?
- Bem sabes que fizemos despesas... - disse eu, perplexo e cauteloso.
- Tens ou não tens ?
- Tenho algum.
- Vais prometer-me que... se aparecer... alguém darás logo tudo o que tiveres. Dizem que, se lhes entregam alguma coisa de jeito, eles deixam as pessoas em paz.
A conversa humilhava os meus brios de macho. Diabo, então não tinha ali uma pistola? Não fiz, porém, comentários, conquanto ficasse a meditar no bom senso da ideia. Sim, bem vistas as coisas, só o dinheiro lhes interessava. Nada mais tínhamos connosco que lhes fartasse a gula. Mas para que falar em larápios? Embora o rescaldo da feira significasse um chamariz, não era absolutamente necessário que os malfeitores escolhessem aquela estrada e logo o sítio onde o Ramiro decidira amuar. O faro dos tipos não seria assim tão apurado.
A ruminar nessas coisas, alternando o optimismo com as perspectivas negras, não reparei que a Rosinda se afastara de novo. Dessa vez, o meu filho teria razão: o terror descomandara-lhe a bexiga e ela, decerto, fora aliviar-se por detrás de uma azinheira.
Ei-la de regresso. E para meu espanto, trazia os sapatos apertados de encontro ao peito. Não devia, afinal, considerá-los seguros longe dos seus olhos e das suas mãos. Fitou-me devagar, a medir-me, e depois inspeccionou minha mulher. Penso que hesitava a qual de nós se dirigir. Foi a mim que, por fim, elegeu.
- Pronto, senhor doutor. Dê-lhos.
- O quê, rapariga?
- Os sapatos. Dê-lhes os meus sapatos. Não quero eles façam mal aos meninos e aos meus patrões. E foi assim com esse heróico sacrifício, desfazendo-se de um tesoiro, que a Rosinda julgou calar os salteadores.
Mas eles não vieram. Ao alvorecer, a ilharga do Ra-miro foi erguida pelos braços peludos do motorista de uma bisarma. Eram braços que sugeriam força e segurança: grossos como duas pernadas de sobro, cabeludos como o dorso de um ouriço. Dormimos, depois, o dia inteiro, a Rosinda, suspeito, com os sapatos dentro da enxerga. Pois até ao coração das vilas chegam os ladrões.
Naquela cidade de província havia lavradores poderosos, e entre eles o Sr. Acácio. Lá para cima, nas Beiras, não nos sentimos muito amesquinhados em frente de um sujeito, quase sempre boçal, que tenha um bom par de hectares de lameiros e pinhais; quando muito, pela força de um sarro hereditário, cumprimentamo-lo com mais ênfase. Mas nestas bandas, no Sul, existe uma aristocracia severa de senhores da terra. O mundo está feito para os servir. E se um de nós, médicos, advogados, comerciantes, chega aqui com a espontaneidade e a candura de quem supõe que uma conta no banco ou uma vara de porcos não impedem um convívio limpo de servidões, acaba cedo por acertar a nuca pela sujeição do ambiente, gaguejando uma humildade domesticada, ou se isola, envenenado de ressentimento ou orgulho. Orgulho estéril, grotesco - num meio onde um pelintra, por mais capaz que se julgue, sabe também que não vale um pataco falso. Ora se um homem, neste Sul, se mede pelo tamanho da sua bolsa ou da sua herdade, não nos resta, pois, outra saída: fica-se um bicho ou um impostor.
A história que vai seguir-se aconteceu, porém, muito antes de eu chegar a tão azedas deduções. Por essa altura, ainda vivia o deslumbramento que nos oferece todo o ambiente novo, exótico, desde a paisagem solene e inviolada ao contacto humano, que é uma aventura. Mesmo que o ambiente nos vigie com precaução ou desconfiança e nos deixe a sós no fervor de nos confundirmos na terra estranha.
Tudo começou numa noite em que um desconhecido encapotado me bateu à porta. Eu tinha já perdido a noite anterior e acordei estonteado. Ainda tacteei o caso com duas palavras, ardilosas e ensonadas, ditas da janela:
- Mas foi de repente? Não será coisa...
Muitas vezes chamavam-me a horas indesejáveis para qualquer golpezinho acontecido dois e três dias antes e, daí, já lhes ensarilhava as pressas com um prévio e cauteloso inquérito, aliás, inútil em face da manha cam-pónia, mas dessa vez o homem cortou-me as dúvidas servindo-se de um argumento de peso:
- Venho da parte do senhor Acácio.
Aquilo foi dito como se eu fosse obrigado a conhecer o Sr. Acácio mesmo que tivesse arribado à cidade na véspera. E quando entrei nesse casarão gelado, com folgadas cavalariças, pátios súbitos e enigmáticos, grades de ferro, chaves e portões, numa sugestão de fortim árabe - foi a vez do dono da casa me fazer sentir a minha insignificância, rouquejando do cimo da escadaria, numa voz que logo me insinuou uma pança farta:
- Queira subir por aqui, doutor.
Eu habituara-me a um «senhor doutor» afável ou reverencioso, e não gostei de tal familiaridade. Mais tarde, verifiquei que o ricaço do Sul aproveita estas coisas singelas para traçar o abismo que há entre o servidor e o que é servido. Ainda que a maior parte deles dobrasse a língua no trato íntimo, sempre que estava presente uma testemunha do seu poderio não desprezavam a circunstância para eliminar o «senhor». «Olhe lá, doutor...», como quem encosta um cotovelo enfadado nos ombros de um vilão, perante a assistência derreada.
Fui conduzido por corredores sucessivos até a um quarto interior. A menina Bia adoecera. A dona da casa, que me fez um cumprimento discreto, tinha-a nos braços, olhitos pisados, malhas roxas, a um passo da morte. Não escondi a minha preocupação. E porque o caso era sombrio e se tratava do Sr. Acácio, soberano das vidas e das grades daquele feudo, tentei dividir as responsabilidades com outro colega. Ainda não me tinha libertado, como pária que era, dessa mísera sensação de culpa em face dos incómodos dos suseranos.
A dona da casa devorava a minha expressão e as palavras gesticuladas e dúbias que eu ia proferindo. Quando entendeu, as suas mãos apertaram com desespero a pequenita, a defendê-la de um perigo oculto, e beijou-a furiosamente. Chegou a afastá-la de mim. Impressionou-me essa dor que não tinha uma lágrima, um grito, toda ela fechada nas entranhas.
O Sr. Acácio não respondeu logo às minhas reticências. Levou-me para uma varanda envidraçada e disse, numa intenção que se me escapou no momento:
- A Bia é... uma protegida nossa... Não temos filhos.
- Não sabia - e, cá por dentro, cresceu o meu respeito pela amargura da pobre senhora. Não havia dúvida de que a doentinha era ali a filha que o destino lhes negara; não a tinham comprado por dinheiro, mas com afecto. Mais me senti cúmplice da ameaça escura que sobre todos se adensava e que eu não tinha armas para dominar. Preparei-me para acolher com fraternidade os desabafos do Sr. Acácio e insisti: - Podíamos levá-la a uma boa clínica. Em duas horas estamos em Lisboa. Lá dispõem de outros recursos.
O lavrador teve um olhar rasteiro.
- Não exageremos, doutor. Antes de o chamarmos já não tínhamos ilusões. Quisemos apenas livrar responsabilidades. Os senhores não podem fazer milagres.
- Ele deve ter reparado que estava a desiludir-me, pois emendou: - Mas, bem entendido, faço o possível. A minha mulher prendeu-se à garota, vai ter para aí um desgosto danado. Não olhe a despesas!
Quando lá voltei no dia seguinte, a Sr.a D. Antónia mostrava bem o que fora, para ela, a vigília: encovada, cabelos soltos, e uma palidez feia, que nos transmitia fosse o que fosse de desagradável. Tinha ainda a garota no regaço. Convenci-me de que não a largara durante toda a noite.
- Ela não fala, senhor doutor. Nunca mais falou. Assim tão murcha, é já um corpinho morto. Minha pobre Bia!
Enquanto eu observava a doente, chamou uma criada.
- O senhor já veio?
- Ainda não, minha senhora.
- Fica então aí - acrescentou em voz baixa. Mesmo perturbada, a Sr.a D. Antónia não descuidava os seus deveres de esposa pudica. Senti-me, porém, vexado.
O Sr. Acácio entrou pouco depois, de botins enlameados, à vontade. Os seus olhos, à luz do dia, tinham certa argúcia e eram mais claros. Fez um sorriso amistoso e, encarando o rosto descomposto da mulher, ralhou:
- Põe mão nesses nervos. Estás arrasada. Parecia, de súbito, enfastiado. A criada, entretanto, cumprida a sua missão, retirava-se quase sem darmos por isso. O Sr. Acácio fez-me provar um cálice de uma bagaceira especial.
- A pequena não dura muito, não é verdade? Tolices que se fazem, trabalhos que nos caem em casa. Imagine que a minha mulher se pegou a uma estranha como talvez nunca se tivesse pegado a um filho. Tem sido o diabo às vezes, quando a mãe da garota se lembra de recuperar os seus direitos. Gosta da pinga? Vai outro cálice?
Ia para confessar-lhe a minha surpresa pelo facto de a pequena ter mãe, não sei porquê imaginara-a órfã, mas o lavrador reatou as suas confidências:
- O povo é mal agradecido. Nesse ponto, dou razão a minha mulher, que sempre se indignou com a ingratidão da mãe. A criança está muito melhor em nossa casa do que a passar fome na companhia da mãe, mas que quer? O mundo é assim. Repare que é uma cachaça que tem dez anos. Faz bem melhor do que os seus tónicos, doutor... Esta doença agora é que nos traz certas responsabilidades. Há-de haver muita língua a roer-nos nas costas.
O Sr. Acácio pôs-se a sacudir as calças, enquanto eu meditava em que, com toda a sua suficiência, estes ricos temem sempre o juízo alheio. Isso leva-os a uma insegurança mesquinha, a uma teia de espias, de pavores, de mexericos. Depois o dono da casa bateu com os tacões num degrau e disparou-me, bruscamente:
- Sabe andar a cavalo ?
- Fui alferes de cavalaria - respondi, num alvoroçado gracejo, pressentindo que a minha réplica lhe seria agradável.
- Nesse caso, havemos de dar uma volta por aí, numa destas manhãs. Vou mostrar-lhe uma quintarola que tenho nos arrabaldes.
- Nem sempre tenho as manhãs livres.
A minha observação molestou-o. Como se não admitisse que eu pudesse pôr objecções à desusada generosidade do seu convite. Talvez por isso, teimou:
- Vamos amanhã, por exemplo.
Acedi. Quando voltámos, a Sr.a D. Antónia parecia melindrada de eu não ter ficado todo aquele tempo junto da enferma.
- Mas é preciso fazermos alguma coisa, senhor doutor.
- Fazemos o possível. (Tal como anotara o Sr. Acácio, pensava eu, ao repetir-lhe a frase, mordido por uma secreta e mal definida sensação de conivência.) Mas o possível, neste caso, é bem pouco.
Ela ia soluçar quando o marido a interpelou.
- Sê razoável. É preciso encararmos as coisas como elas são. Tolice foi não termos entregado a garota à mãe, assim que...
A mulher atirou-lhe um olhar desvairado e também rancoroso, que logo se escondeu, ao tomar consciência da minha presença.
- É certo que a pequena é simpática, foi aqui criada - temperou o dono da casa. - E todos nós a estimamos muito. - Fez uma pausa, esperando que eu o encorajasse e, desistindo do apoio que estupidamente lhe negavam, falou por mim: - Foi um gesto bonito, esse da minha mulher. Toda a gente a tem elogiado.
- Decerto - anuí, sem a necessária convicção.
- Não fales nisso agora, por favor Acácio! O que me interessa é salvá-la!
- Todos o desejamos, minha senhora.
- No entanto, será bom prepararmo-nos para o pior, querida. Tu levas as coisas muito a peito: Não, achas que deveríamos chamar a mãe? Se a garota morre sem a mãe junto dela (os olhos da Sr.a D. Antónia fuzilaram de novo), até hão-de dizer que nos descuidámos, que lhe fizemos mal, sei lá! - Voltou-se uma vez mais para mim: - Como já lhe disse, a pequena tem mãe. Foi nossa criada, em tempos, e teve para aí uma falta. Vimo-nos forçados a despedi-la, bem vê, não era decente termos uma pessoa dessas debaixo do nosso tecto, mas também nos custava que a criança fosse levar uma vida de miséria. E aí ficou. A minha vida é lá por fora, a garota fazia companhia a minha mulher. Não acha também que a mãe deve ser avisada?
- Creio que tem razão.
- Pois claro. Vou mandar-lhe um recado.
Ia a deixar-nos sós, mas corrigiu a distracção com um convite enfático:
- Venha comigo, doutor. Logo que gosta de cavalos, vou mostrar-lhe a cavalariça. Tenho agora duas éguas de mão-cheia.
Essa reserva do lavrador em evitar que um estranho, mesmo que fosse médico, ficasse a sós com a esposa, já não devia ofender-me. Eu tinha reparado, desde o primeiro dia, que a cidade dir-se-ia desabitada de senhoras. Era um aspecto do ambiente que nos entrava pelos olhos dentro assim que ali chegávamos por qualquer lado da planície. No entanto, não podíamos chamar-lhe com propriedade uma cidade de homens (vestidos de escuro, de gabão ou samarra, e um largo chapeirão a embuçar-lhe a sôfrega curiosidade), pois viam-se mulheres tanto nos largos como nos becos, mas todas da arraia-miúda: empregadas do comércio, aldeãs, forasteiras, alguma ou outra da pequena burguesia. Senhoras, não. Essas não se aventuravam a sair dos seus redutos, nus e frios como claustros, a baldearem-se com gente ordinária. Estavam em casa, permaneciam em casa, estimadas, dóceis, prolongando, séculos depois, a clausura das moiras nobres, suas antepassadas. Visitavam-se cerimoniosamente, sempre que o melindre social não antepunha obstáculos, e, uma vez por outra, arejavam-se numa fuga a Lisboa ou às termas bem frequentadas, quando os maridos decidiam que elas compartilhassem dos seus recreios. Então, aí, formavam-se grupos pal-radores de homens e mulheres do bom sangue, elas estonteadas como pássaros libertos da gaiola, cada grupo do seu sexo, sem misturas, para acautelar mal-enten-didos. Os homens eram excelentes guardiões da honra das esposas. Talvez por isso, o pecado, a ansiedade, o escândalo, infiltravam-se na atmosfera, nos objectos, na respiração, envenenavam os pensamentos. Eram um pesadelo. A todo o instante, ele aflorava na avidez insegura desses medievos, no pavor de que uma língua peçonhenta inventasse um enredo ou um ardil. Daí, uma senhora devia mesmo evitar ser vista repetidas vezes na companhia do marido, não fosse alguém supor que ele a colava a si por recear tê-la muito tempo afastada da sua vigilância.
A reserva do Sr. Acácio e da esposa nas suas relações para comigo, feita, aliás, com a naturalidade dos hábitos estabelecidos, era, pois, normal, e não podia beliscar-me.
Visitámos as cavalariças. Durante a conversa, o Sr. Acácio precisou, como por acaso, o número das suas cabeças de gado. Mas nessa época já eu não me assombrava de alguém possuir mil suínos de engorda e outros tantos bois, cavalos, borregos, usufruidores dos ferazes pastos que cresciam ao lado de quinhentos moios de trigo, enquanto um mundo de vassalos, nascidos na mesma terra e também filhos do Deus com que os ameaçavam aos domingos, nas igrejas de oiro e damascos, nem tinham de seu a choça onde dormiam; nesses momentos, em que qualquer lavrador procurava arrasar-me com o seu poderio, reduzindo a nada as minhas fumaças de doutoreco, lembrava apenas, com lástima, os chamados ricaços da minha terra, ridículos na vaidade das suas cinquenta fanegas de milho.
No entanto, o Sr. Acácio conhecia-me da véspera; e como eu, certamente, iria demorar-me na cidade, ele não podia desperdiçar o ensejo de ostentar a sua riqueza e, daí, os seus direitos à minha humildade. De futuro, eu deveria servir o Sr. Acácio não como a um qualquer que necessita da mezinha do médico, mas como a um senhor que pesa, além do mais, um milhar de porcos. Era essa a sua intenção: espezinhar, ou talvez domar a minha pelintrice com o grosso tacão do seu jardineiro.
- Amanhã vou escolher-lhe um cavalo jeitoso
Gosta deste, doutor? Ultimamente, está um pouco gordo, mas tem um nervo dos diabos.
Procurei libertar-me do anfitrião pretextando os meus doentes. Ele empertigou-se e, sem que viesse a propósito, levou a mão a uma das algibeiras das calças, dizendo:
- Deseja receber agora o dinheiro destas visitas? Respondi de cara fechada:
- Temos tempo, suponho.
- Veja lá. Se quiser... A não ser que este dinheiro não chegue - acrescentou com ironia. - Não me lembro bem quanto costumava dar ao seu colega. São coisas em que não reparo.
Aquele dar chibatou-me os nervos. O Sr. Acácio que não pensasse que eu lhe aceitaria o dinheiro como provavelmente o aceitavam os seus ganhões: em jeito de esmola. E, por isso, modulei a frase da réplica de modo que ele me entendesse de uma vez para sempre.
- Não costumo fazer-me pagar antes de terminar o meu trabalho. A não ser que me dispensem.
- Que ideia!
Ele não percebera. No entanto, esta gente era arguta. Uma argúcia que não vinha da inteligência, da subtileza, mas sim de um alarme mórbido que os fazia joeirar as palavras dos outros através de um crivo de atenta desconfiança. Ou então, ainda, o Sr. Acácio, pela força do hábito, não poderia compreender que alguém gozasse o seu dinheiro por outro motivo que não fosse um rasgo da sua magnanimidade.
Doze horas depois, a doentinha tinha o olhar menos mortiço. Consentiu mesmo numas colheradas de leite e choramingou com doçura. Havia talvez esperanças! A Sr.a D. Antónia, excitada, pôs de lado a compostura habitual e veio dar-me a notícia à porta da rua.
- Teremos mulher, senhor doutor?
- Se ela nos der tempo, se resistir um dia mais...
Confiemos em que os medicamentos possam chegar a actuar.
- Ah, oxalá! - e espremia as mãos como a dar calor e veracidade à sua ânsia de que assim acontecesse.
No quarto, por detrás da cama, para lá da zona iluminada pela luz do corredor, por detrás de tudo que tinha uma realidade concreta, estava agora uma terceira personagem: uma rapariga à roda dos trinta anos, que a sombra não impedia inteiramente de parecer muito anémica. Este tipo de anemia terrosa da gente do campo. Era ali uma presença mais pressentida do que real. Dir-se-ia que escolhera a atitude e os gestos que pudessem ser menos notados. Mas quando me preparei para observar a doente, saiu do seu refúgio e ousou pôr-se ao lado da dona da casa. Os gestos deixaram logo de ser passivos. Desvendada pela luz e naquele ambiente farto, chocava a pobreza do seu vestuário. Talvez ainda mais do que a pobreza: desleixo, abandono. Os seus lábios repetiam, ávidos e em silêncio, a mímica dos meus, embora a sua angústia não tivesse uma expressão livre. Refreava-a, escondia-a, envergonhada.
- Não parece mesmo que ela quer falar? - perguntou a Sr.a D. Antónia.
A terceira personagem esperou a minha resposta. Como eu acenasse levemente com a cabeça, de um modo ambíguo, ela atreveu-se a estender os dedos grosseiros, destapando o rosto da criança. Sorriu, comovida, os seus olhos cobriram-se de névoa. Mas, após esse impulso, recolheu, assustada, para o reduto escuro da sala. Eu esquecera-a por momentos, preocupado em explorar os reflexos da doente, quando a ouvi dizer:
- A senhora deve estar cansada. Deixe-ma ter um bocadinho ao colo.
Tinha uma voz humilde e ansiosa. A dona da casa| fez uma expressão azeda. Mas não recusou. O Sr. Acácio, finalmente, cochichou-me:
- A rapariga é a mãe. Já percebeu isso, não é verdade?
Respondi com uma secura despremeditada:
- Desde o começo.
- A que horas poderei contar consigo amanhã? Gosto de ver nascer o Sol.
- Pode ser a qualquer hora. Sou madrugador.
- Bravo.
Fomos indo para o corredor, enquanto ferviam as seringas.
- Ali onde a vê, a rapariga já foi um belo traço, sabe? Não lhe parece que quem lhe fez a filha não era nada tolo?...
- Ah, a mãe...
O lavrador recuou habilmente:
- Quando ouço falar em mãe, chego a ficar perplexo, doutor. Pois, em boa verdade, ambas merecem esse nome. Duas mães e um só rebento. Não deixa de ter a sua piada... - Como eu não lhe apoiasse a boa disposição, inquiriu formalizado: - A pequena sempre se salva?
- Receio que não.
- Mas a minha mulher acha que ela, hoje, é outra.
- É compreensível que ela se iluda.
- Diabo, se ele é isso, teremos de resolver certos problemas. Não me sai da cabeça este sarilho de nos arriscarmos a que a pequena morra debaixo do nosso tecto. Ná, é preciso entregá-la à mãe quanto antes. Não é verdade? Hoje de manhã, falei com minha mulher, discutimos. Veja o senhor que ela chega a pensar em... - O Sr. Acácio interrompeu-se, mirando-me como a um espia e, por fim, prosseguiu numa voz mais discreta:
Ela teima em me exigir que, no caso de a garota falecer, a abriguemos no nosso jazigo, no jazigo de família. É forte, hem? A minha mulher é uma pessoa boa, caridosa em extremo, mas às vezes exagera.
- Cada um se cumpre à sua maneira.
Ele, por momentos, pareceu desorientado, a decifrar o possível veneno das minhas palavras. As sobrancelhas uniram-se, quase, numa ruga severa.
- Sim, ela é uma espécie de... Enfim, boa. De bom coração. Temos aí um criado que passa os dias a levar cestadas aos pobres. Eu acho isso muito bem, proteger a pobreza, é mesmo a maneira de calar alguns tipos de más ideias que já vão aparecendo nestas bandas, mas tudo dentro dos seus limites, que diabo! Não vá essa gentalha supor que é obrigação.
O Sr. Acácio era falador. Talvez o único homem falador que conheci nessa cidade de pessoas mudas, lentas, expectantes. Mais tarde, porém, reparei que era dado a grandes temporadas de silêncio, a vagas de neura, e que, se tinha estas fases de loquacidade, era pelo gosto de se escutar, de se convencer da sua esperteza e, ainda, de levar a água ao seu moinho em alguma coisa que, por motivos ocultos, lhe punha o orgulho em jogo. O correr do tempo deu-me a conhecer muitos aspectos singulares deste ambiente: via por exemplo o Sr. Acácio numa roda de café, cercado de lavradores remediados que o ouviam com unção e, mais além, outro grupo rival, do mesmo modo com um soberano e respectivos cortesãos - todas essas camarilhas com o seu poiso certo, tendo entre si uma terra-de-ninguém de olhares oblíquos, fuzilando discórdias pequeninas que existiam ou se inventavam para cimentar o ódio tribal. Tais senhores precisavam de ser apoiados, de ter a sua mesa rodeada de fiéis aduladores; e a maneira mais segura, mais acessível, de as suas razões não serem discutidas por algum adversário que, pela largueza das suas herdades, não temia dar voz a uma discordância, antes a proclamava em desafio, era estabelecer uma roda de amigalhaços pelintras e, por consequência, inofensivos. Ali, pois, numa espécie de monólogo avivado pelo eco dócil dos parceiros, se inventariavam os problemas da província, do País, do mundo, relacionando-os apenas com o interesse directo desses lavradores. O País, o mundo, eram para eles a cidade onde reinavam ou, mais concretamente, a sua herdade de estimação. O preço do trigo baixara e o azeite segurara-se na tabela? Ai do ministro ignaro, que ia pôr o País de rastos! E a gente, ao ouvi-los, nédios e majestosos como suínos das engordas, admirava-se, de facto, de o ministro não ter vindo ali escutar-lhes o parecer. Todos nos sentíamos acabrunhadamente solidários com essa ofensa e também, de um modo absurdo, responsáveis por ela.
Fomos ao passeio na madrugada do dia seguinte. Não lhe apareci de bom humor. Custava-me ir por aí fora em ar de recreio, alma leve, enquanto justamente em casa do meu companheiro alguém esperava a morte. Ele, porém, em boa verdade, é que deveria sentir-se mais vendido do que eu. Disse-lho.
- A senhora dona Antónia há-de reparar que fôssemos escolher um dia destes para...
- Que mal tem?
- Bom, embora a nossa presença não seja de grande préstimo, há-de chocá-la parecermos tão indiferentes à doença da garotinha.
- Sim, não deixa de ter razão. - O semblante turvou-se-lhe de uma longínqua amargura, logo embuçada por uma expressão astuciosa. - Mas só nós dois sabemos disto. Nós e minha mulher. Suponho que o senhor não falou a ninguém do nosso passeio...
- Eu referia-me apenas à senhora dona Antónia. Os outros não devem interessar - retorqui com azedume. - E pensei também na mãe da pequenita. Se, entretanto, uma delas, aflita, procura saber de nós... A agonia pode vir de um momento para o outro e, nessas ocasiões, todos nos sentimos desamparados.
- Com o choro delas posso eu bem, doutor. Não se preocupe.
Prosseguimos. Talvez o Sr. Acácio não quisesse perder a oportunidade de me levar consigo a essa romagem ao seu feudo. Morta a garota, ele não teria outro pretexto de me filar e, daí, não iria desperdiçá-la por um vago sentimentalismo. Sendo eu novato na cidade, à mercê de outras tentações, era a boa altura de, deslumbrando-me, me incluir entre os seus apaniguados - para no dia seguinte lhe ser mais fácil desprezar-me. A hospitalidade cativante desta gente era assim: mostrarem-se largos, encherem-nos a casa de presentes, esmagarem-nos com a sua grandeza. Depois de nos perceberem amarrotados, punham-nos de lado ou dispunham então, à vontade, como donos, da nossa humilde e grata fidelidade.
Fomos ao encontro do sol no cimo de uma rampa que ladeava o rio, onde o halo vermelho da manhã se reflectia, tão imóvel que as águas pareciam de vidro. Começavam ali os montados. Era uma terra escura, delgada; nas vertentes a sua magreza deixava os ossos à flor do solo, as raízes das árvores procuravam, esfaimadas, um palmo de húmus onde se fixar. Os azinhos só mais adiante atingiam uma copa que se visse: deitados sobre as fragas, escondiam a sua debilidade numa cor cediça, de bichos arrepiados com a proximidade de alguém. Atravessámos quilómetros de planície sem um abrigo, sem uma erva fecunda. O Sr. Acácio ia indicando os limites do seu reino. A herdade fazia extrema com três freguesias. E ei-la, agora, nas lombas fartas, vestindo-se de trigais e centeios. Cabeleiras ondeadas, a perder de vista, sobros altos com pernadas mais grossas do que o tronco de um homem. Quando eu deixava escapar alguma pergunta ou algum comentário que traduziam a minha pequenez de beirão perante esse mundo sem medida, o lavrador ficava calado, saboreando o gozo, ou esporeava o cavalo para que, mais além, fossem oferecidos novos estímulos ao meu assombro.
- Que diriam, em face disto, os ricos da minha terra?
Ele tinha um sorriso benigno e esticava o pescoço para soprar o fumo do cigarro. Mas não podia saber que na minha exclamação havia um timbre pessoal. Por agora era um desforço. O pasmo não me pertencia, a bem dizer, mas sim aos proprietários da minha região, unhas de fome, caricatos nas suas farronquices de meia dúzia de alqueives: os meus olhos, naquele momento, viam por eles, cobiçavam e vexavam-se por eles. Havia humilhações nas minhas lembranças de infância: os velhos sem pão, os vagabundos que corriam os burgos com um alforge de esmolas, as mulheres encharcadas nos arrozais. E eles impantes, caciques, distribuindo o mando e o bolo pelos afilhados. Viessem aqui. Era esta a única linguagem que eles entenderiam: um alfinete que lhes faria rebentar o ovo da sua prepotência. Viessem aqui! E estes, os donos da charneca? Talvez lhes chegasse também o dia da revelação. A sua riqueza era tão efémera como a obediência da corte que, no café, os bajulava. O poderio deles tinha as mesmas raízes magras dos azinhos. Um dia reconheceriam, com pavor e surpresa, que a justiça era uma força apenas adiada. Havia séculos que ela engrossava, como o caudal irresistível de um rio vingador.
Foi a meditar coisas assim, absorto, ausente, a léguas de distância do meu anfitrião e mesmo da garota moribunda, que dei connosco junto do «monte». Ao cimo, uma casa agachada, térrea, no centro de vários alpendres e malhadas. Era a residência do ganhão. Este esperou-nos a meio caminho da vereda. O seu cumprimento não foi mais que um grunhido e mal levou dois dedos ao chapéu. Os seus olhitos matreiros encararam-me por um segundo. Depois disso, desinteressou-se.
Via-se logo que eu, homem da cidade, era um ocioso, alheio às tarefas do campo. Disse o que tinha a dizer em duas palavras, sem erguer a cabeça.
Eu gostava do povo do Sul. Um povo altivo. A miséria não os rojava pelo chão, como nas Beiras. Mais tarde, conheci-os melhor, retoquei algumas deslumbradas impressões - mas o meu respeito pela sua dignidade ainda hoje é firme.
Dali, demos outra galopada até ao alfeire de porcos. Desta vez, o diálogo com o pastor foi longo. Nem foi bem diálogo: patrão e criado diziam qualquer coisa i breve, mole e ficavam depois especados um em frente do outro, a meditar. Eram demorados em explicar-se, em resolver. Essa lentidão de cérebro e nervos esquentava-me, apetecia-me aguilhoá-los como a um boi indolente. O estranho, porém, é que nem por isso as fainas deixavam de ser cumpridas.
Devo confessar que o Sr. Acácio foi amável em todo o passeio e, segundo me palpitou, as nossas relações saíram dali bem forjadas. Se no dia seguinte encontrasse o lavrador no café ou no clube, certamente nos aproximaríamos com uma espontânea intimidade. Enganava-me, porém. Adiante se verá.
Quando regressei ao consultório, a mãe, a verdadeira mãe da doentinha, esperava-me. Volveu-me uns olhos assustados. Atendi-a imediatamente, farejando qualquer coisa que, não sendo de todo inesperada para mim, nem por isso deixava de ser difusa, a legitimar-me uns vagos receios.
- Sente-se.
Ela não deu pela minha deferência.
- Diga-me a verdade. Diga-me só a mim. Quero a minha filha.
Já não havia susto nem o estorvo da sua humildade. Percebi-lhe mesmo uma irada expectativa.
- Quem pode garantir onde está a verdade, minha senhora? Só posso dizer que já tive mais esperanças.
A sua palidez fez-se acobreada.
- Foi vê-la hoje, senhor doutor?
Senti um soco no estômago. Desviei, acobardado:
- As crianças, às vezes, dão-nos surpresas. A gente julga-as muito prostradas e afinal...
- Não me engana, não. A mãe sou eu, senhor doutor, e as mães nunca se enganam. Sabia que eu era a mãe?
- Reconheci-a logo que a vi lá fora. O senhor Acácio tinha-me dito.
- O senhor Acácio?.... - O eco da pergunta correu-lhe o rosto como uma chama breve. - Pois. A mãe sou eu.
Queria repetir-me os seus direitos; queria gravá-los em si própria. Dobrava e desdobrava as pontas do xaile, e depois, fitando-me sem medo, embora as lágrimas lhe toldassem a vista, inquiriu:
- Acha que eles têm o direito de ma roubar?
Desenhei qualquer coisa, ao acaso, no bloco de receitas. Adiava a resposta, que, fosse qual fosse, seria sempre melindrosa.
- Eles não lha roubaram. Parece-me que a têm consigo porque gostam dela, porque lhe querem bem. Se tivermos a sorte de a salvar, a sua filha poderá ter um bom futuro. Creio ser essa a intenção dos seus antigos patrões. Tem de pensar nisso.
- Tenho, tenho pensado nisso. Em que há-de um pobre pensar quando sabe que vida espera os seus filhos? Se assim não fosse, se não olhasse ao interesse da menina, há muito que...
A rapariga baixou os olhos, como se a confissão a envergonhasse.
- Avalio o seu sacrifício.
Ela teve uma expressão branda, quase animada, de rafeiro a quem atiram uma carícia. Logo, porém, se encrespou:
- Mas ela é minha filha! E eles põem e dispõem como se a minha filha só a eles pertencesse! Fui eu que a pari.
Rabisquei outra folha branca do bloco, aprestando-me ao risco de uma pergunta que desde o início me borbulhava.
- Eles ficaram com a criança assim que nasceu?
- Foi. Foi mais ou menos dessa maneira. Quer dizer, quando eu apareci grávida...
- Mandaram-na embora, não?
- Levaram-me para um monte. A senhora é que queria despedir-me logo. O senhor Acácio, às escondidas, mandou-me para uma herdade. A senhora só o soube quando lhe foram dizer que eu tinha tido uma bonita criança. A minha filha é bonita desde que nasceu! - Indecisa, pôs-se de novo a destraçar as dobras do xaile, até que, numa súbita determinação, foi ao encontro do meu olhar curioso, e prosseguiu: - Como o senhor Acácio tivesse negado, ela, um dia, apareceu lá de surpresa. Diziam também umas coisas. Nessa altura andava tudo cheio.
- O senhor Acácio...
A rapariga acenou que sim. Senti um punho fechado sobre o peito. E nessa manhã o Sr. Acácio passeara comigo, descuidado, enquanto a filha, filha dele, se apagava, hora a hora, lá em casa! Talvez o Sr. Acácio andasse alvoroçado, falador, precisamente porque as circunstâncias o iriam desanuviar de um pesadelo. Qual tinha sido o plano de D. Antónia em tudo isto? Que frustrações, amor ou ódio a seguravam à vida da garota? Que castigo impusera ao marido devasso?
- Como eu andava adoentada, a senhora mandou buscar a minha filha, dizendo que queria aliviar-me desse trabalho, enquanto eu não melhorasse. Mas, dias depois, mandaram-me sair do monte. E foram-se desculpando, adiando...
Tudo aquilo, quase inverosímil, me perturbava e oprimia. Faltava-me o ar. Sobretudo a atitude da D. Antónia era singularmente perturbante. Por certo ela não retinha a criança para mortificar a mãe. Enfim, uma história insólita. Não valia a pena enfiar a mão nas suas obscuri-dades. Senti-me, de repente, cansado. Disse apenas:
- Talvez eu consiga que lhe entreguem a sua filha.
- Nunca farão isso. Eu sei-o.
- Talvez... - e, ao animá-la com essas reticências, apoiava-me em certas palavras do lavrador, temeroso de a garota lhe morrer em casa.
- Eles até se envergonhavam de eu aparecer como mãe quando havia gente de fora. Habituaram a minha filha a chamar-me madrinha. Ensinavam-na a ver em mim uma estranha. Nunca ma darão.
Havia muito que ela precisava de um ouvinte e, agora, não acabaria mais o seu desabafo. Eu era, finalmente, esse ouvinte. A voz ia subindo de tom e nervosismo.
- Não vale a pena afligir-se com essas coisas. O que interessa...
Ela discordava com a cabeça mesmo sem ouvir o resto.
- ...Foram-na roubando aos poucos. E a minha filha já olhava com nojo para as minhas roupas, fugia de mim, aborrecida, assim que lá me demorasse uns minutos. Muitas vezes as criadas despachavam-me com uma desculpa: «A senhora e a menina saíram.»
Os médicos têm às vezes um pronto recurso para se desembaraçarem das confissões fastidiosas dos seus clientes. Usei-o, por fim. E, naquela ocasião, mais para me arredar de um assunto que eu receava que fosse interessar-me em demasia do que por outros motivos. Levantei-me, pois, da cadeira, assentei as mãos nos ombros da rapariga e travei-a definitivamente com o ódio do costume:
- Tudo há-de correr bem.
E, a despedi-la, fui caminhando até à porta. Quando a vi lá fora, porém, senti-me em dívida comigo.
Nessa tarde, depois da consulta, apeteceu-me ir por aí fora, sozinho; não queria confessar que esse isolamento se me tornava necessário para arrumar as reacções confusas desse dia, mas não era outro o meu objectivo. Fui de automóvel, ao acaso, ora pelo macadame, ora pelos caminhos de poeira que serviam as parelhas das herdades e nos quais os rins ficavam esfacelados. Estive não sei quanto tempo sob a copa alta de uma sobreira, a estontear um formigueiro. Era já noite quando regressei à cidade. Deu-me então para descarregar os nervos no acelerador. A velocidade crescente oferecia-me uma embriaguez que adormecia o cérebro. Mas um carro apareceu ali ao lado, com negaças, avançando e recuando, a atiçar-me a um despique. Eu não podia competir com a genica do motor que me arranhava os brios, mas aceitei o desafio. Fui ridicularizado. O outro repetia a manobra do começo: abrandava a marcha, soltando-me as rédeas para depois, em breves segundos, me ultrapassar numa rajada. Quando eu desisti daquilo que nem chegava a ser uma competição, o outro quase parou, forçando-me, de má vontade a prolongar-lhe o gozo. Nessa altura, gritei-lhe, ou ao vento:
- Filho da mãe! - e, de tal modo irritado, creio ter conseguido transmitir ao pedal tão forte dose de humilhação que o meu carro inventou não sei que forças para ser o primeiro a chegar à cidade. Ou, então, foi o outro que levou o seu requinte a uma generosidade mais humilhante ainda.
No café, mais tarde, encontrei as pessoas habituais. Ia a escolher uma mesa recolhida, evitando conversas, quando o Sr. Acácio, de pé, a um canto, me fez um aceno risonho. Senti-me estranhamente atraído pela presença do lavrador, pela sua companhia, e acorri sem demora; ou talvez estivesse já tão domesticado pelo ambiente que não resistia a lamber a mão protectora que me estendiam. De qualquer dos modos, pus de lado as disposições de solidão e achei-me, sôfrego, à beira do Sr. Acácio.
- Precisa de arranjar um carro que não o deixe ficar mal, doutor. Aquilo é uma carroça: um sopro de gasolina a mais do meu Overland e o seu xaveco perde-se de vista.
Tinha sido então ele o engraçado! O desconhecido que estava junto de nós, também de pé, tinha os olhos húmidos de desfrute.
- Ah, era o senhor!...
Ele acenou que sim, mas já voltado para o outro, aprontando-se para reatar qualquer conversa interrompida. O remate, porém, tinha de ser meu. E, daí, ferroei-o:
- Mas, senhor Acácio, acho que não ia ninguém à minha frente quando entrei na cidade.
Ele encarou-me, surpreendido. Não bem uma surpresa das palavras, mas da minha presença. Uma sensação complexa: eu, para o Sr. Acácio, deveria ter desaparecido logo após ter-lhe ouvido a graçola. E, com efeito, despachou-me com um gesto, como se enxota uma coisa.
- Pronto, doutor, havemos de falar nisso qualquer dia.
Saí do café, cego de raiva. Pus a imaginação a vingar-me daquele insulto. Talvez, quem sabe, ele fosse oportuno, para que eu nunca deixasse de ter presente que vivia num reduto feudal, para que, em todas as oportunidades, lhes fizesse ver, a eles, os senhores, que de modo nenhum me servia o capuz de bobo dos seus caprichos. Fui vagueando pelas ruas acanhadas e quase desertas, um ácido e odiado sol a queimar-me os olhos, enquanto desfibrava não já vinganças, mas certas particularidades do burgo que, embora antes me tivessem molestado, só agora, enfim, se apresentavam com outra nitidez. A maneira, por exemplo, como a clínica se distribuía pelos médicos da área. Um ricaço da estirpe do Sr. Acácio escolhia o seu médico entre dois ou três já aceites pela aristocracia da cidade. Escolha severa: dela se afastavam os que, ao lado da profissão, não possuíam também uns quilómetros da planície ou cujos pais não pertencessem à casta das velhas famílias da região. (Esses não eram «de boa gente».) Os novatos e estrangeiros, como eu, eram admitidos para uma meticulosa sondagem, mais ou menos afável consoante o seu aparente trem de vida, e, enquanto os antecedentes pessoais e familiares não fossem suficientemente vasculhados, gozavam de uma espécie de tréguas, doseadas com precaução. O importante, pois, é que o recém-chegado não cheirasse, desde logo, a miséria. Nem o povo lhe perdoaria. Lembrava-me da minha entrada, anos atrás, numa aldeola mais ao norte: a casita barata, a governanta a discutir o preço das couves, o porte modesto. Dias depois, ao passar na rua, a voz de um madraço: «Vêm prà qui estes tipos em carrapato e somos nós que temos de vesti-los!» Mas eu aportara à cidade de automóvel, enroupara-me com três fatos diferentes na mesma semana. E, assim sem esperarem pelo resultado do inquérito, vi-me convidado para umas reuniões consideradas inacessíveis, em casa de um lavrador com certo lustro intelectual. (Herdara a biblioteca de um tio bispo.) Alguns convivas punham-me de lado ao saberem que eu era apenas um medicastro que tinha vindo de longe, como os galegos das ceifas, para granjear a côdea do dia-a-dia; outros, porém, encostavam-se ao verniz das minhas leituras, toleravam-me pelo desembaraço pitoresco das minhas opiniões. Isso envaidecia-me, embora tivesse sido mais atinado deixar-me ficar em casa, recusando a complacência dos maiorais. Certo dia soube-se que um laboratório estrangeiro me havia concedido um prémio e me ofereciam uma viagem a um centro médico, algures, num lugar apetecível da Europa. A notícia foi lida nos jornais, o barómetro da minha clientela trepou a um grau invejável. Nem sabia como aquilo acontecera: eu anotara a minha experiência com uma droga ainda em estudo, enviara o trabalho num impulso ousado e o triunfo, de tão imprevisto, ardia-me nas mãos. Bom: uma das senhoras que me honrou com uma jantarada por esse motivo tivera de replicar ao comentário de uma sua amiga que censurava que eu fosse abandonar os doentes só para usufruir uma viajata; e a réplica foi esta:
- Deixem ir o rapaz divertir-se. Quem não tem uma bolsa farta não pode desprezar uma ocasião de passear de graça.
Essa frase, dita assim de caras, cortou de vez as minhas relações com o mundanismo ambiente.
Nisso tudo eu pensava, pois, esmoendo os nervos por becos e ruelas, enlatado entre paredes brancas, alheias, hostis, com a espessura de fortins. E, Céus!, onde a perrice me tinha levado! Quando dei por mim estava já fora das muralhas que cingiam a cidade num presídio de séculos, longe do consultório e sobretudo das tarefas que, havia horas, me esperavam. Prestara muito mais importância ao desdém do Sr. Acácio do que, por exemplo, à doença da filha. Da filha! Ao ponderar, de novo, nessa surpresa da história, sentia um osso atravessado na garganta. E não fui capaz de lá ir saber da enferma.
Na manhã seguinte, ainda me durava o amuo. E como eu tardasse em aparecer em casa do lavrador, fui chamado pela Sr.a D. Antónia.
- Para a outra vez ficamos a saber que é preciso lembrar-lhe os seus doentes.
O ralhete foi do dono da casa, e bem percebi que não era dirigido ao médico, tido agora como relapso, mas ao tal condutor de um automóvel que se atrevera a dar-se por vitorioso num despique com o Sr. Acácio.
- Todos nós precisamos que nos lembrem certas coisas.
A partir daí, as nossas posições ficariam definidas e também inconciliáveis.
A doentinha viveu apenas mais uma hora. Minutos antes do fim, alguém correu a buscar a mãe. Embora a Sr.a D. Antónia estivesse muito abalada, os olhos estonteados à procura de alguém a quem acusar ou pedir consolação, o marido não a poupava com os seus reparos:
- Eu bem te disse. Eu bem disse que deveriam tê-la entregue à mãe, enquanto era tempo. Agora aguentem as complicações. E deixa-me, Antónia, com essa parvoíce de quereres a garota no nosso jazigo! Não faltava os enredos. Não te chegou o que inventaram da outra vez?...
- Inventar?!... - mordeu a senhora, de voz rouca, numa indignação a que o desgosto dava uma feroz dignidade.
Fui arrumando o estojo de urgência, tossindo uma, duas vezes, não só em ar de despedida, mas sobretudo para que eles recuperassem a consciência da minha presença.
O Sr. Acácio quis logo regular as nossas contas. O dinheiro saiu-lhe, ao acaso, de um dos bolsos. Tendo eu sido testemunha daquelas bulhas domésticas, ficava certo de que não me solicitariam tão cedo para casa do lavrador. Aliás, ele era dos tais que confiavam nos médicos dali apenas para as mazelas ou em alguma aflição que não desse tempo para um salto a Lisboa. Não se podia admitir que um médico de campónios pusesse as mãos em vísceras fidalgas.
Só talvez um mês depois o topei na rua. Enfiei os olhos num jornal, a evitá-lo sem ostentação, mas ele laçou-me, num berro imprevistamente familiar:
- Como vai essa saúde, doutor?
- Isso é uma pergunta mais própria na minha boca, que sou médico...
Ele não achou graça. Pensava noutra coisa. Assentou uma das mãos no meu ombro e, esforçando-se por parecer jovial, inquiriu:
- Então o senhor já sabe? Já se sabe como terminou aquele enredo?
- Não o entendo.
- Da garota, da sua doente.
- Sei que morreu. Estava presente.
- Pois, bem sei que estava presente. - A sua mão desceu-me até ao antebraço. Olhou à volta e arrastou-me, numa passada larga, para um beco solitário, sempre com o braço enfiado no meu. - A verdade é que o senhor tem direito a conhecer o resto - e acrescentou com uma inflexão de dúvida: - ...já que ninguém lhe falou do caso.
- Direito, não.
- Está bem, seja. Dê-lhe o nome que quiser. Mas eu confessei-lhe várias vezes quanto receava as consequências daquela situação. E não foram poucas. Confiei em que o senhor me ajudasse a convencer a D. Antónia, que não é fácil de levar, como o senhor deve ter reparado. - O lavrador especou de repente no meio da rua bem de frente para mim. - Não sabe então o que aconteceu?
A curiosidade esquentou-me com tal insistência da parte do lavrador.
- Acredite que não sei.
- O raio da rapariga roubou-nos a pequena. Só isto. - Mediu o meu assombro e reforçou: - Depois de morta, veja! Eu tive de andar por aí, durante uns tempos, a sondar as línguas, mas creio que, efectivamente, o escândalo não passou de minha casa. Ai do criado que badalasse! Ninguém soube, enfim. Nem o senhor, pelo que vejo.
- Para lhe ser franco, esse gesto da mãe não me espanta muito.
- Não o espanta, ora essa! Então é porque sempre lhe foram contar a cena dos diabos que houve lá em casa, quando a mãe, prevenida da morte da criança, entrou por ali dentro como uma fúria!
- Nem isso me contaram.
- Ninguém lhe contou e confessa que não se espanta com a novidade que lhe dei?! É forte, doutor.
- Julgue o que quiser.
E dei um passo para me afastar. Mas o Sr. Acácio não ia permitir que o deixasse, pela segunda vez, de garganta entupida. E, por isso, segurou-me o braço com firmeza.
- O senhor é de vidro. Não gosto de pessoas que não aguentam uma beliscadura. Belisque-me também, se lhe der gosto, mas não fique com esse ar embezerrado.
O lavrador tinha sido arguto. Acertara-me em cheio. Pus-me a rir e ele, sôfrego, propôs:
- Que diz a um galope até às várzeas? Conto-lhe o resto pelo caminho. Aqui, no meio da rua, parece que estamos a conspirar.
- Quando?
- Agora. Agora mesmo, se não vir inconveniente. Está livre?
Distávamos apenas cem metros da casa do lavrador. Mas nem entrámos. O criado trouxe-nos as montadas até ao largo.
Os cascos faziam saltar estrelas do empedrado da rua. Dava-nos uma sensação de domínio o ressoar das ferraduras pelas calçadas medievais. Do alto do lombo do cavalo, muito acima dos plebeus que levavam os dedos ao chapéu à nossa passagem, sentia-me reconciliado com o Sr. Acácio. Que veneno era esse? Tinha de reagir. De contrário, estaria perdido. Daquela vez, o lavrador, como prometera, conduzia-me às várzeas, onde os senhores abrigavam as quintarolas mimosas, oásis verdejantes na secura da campina. O viço das águas fecundava tudo o que os maiorais desejavam à sua mesa. E havia, ainda, as flores da minha terra, as heras, as trepadeiras, os muros sobre os quais os lilases vinham espreitar o deserto.
- Bonita quinta.
- E a força da água, doutor. A água faz milagres. Esta horta tem uma história.
Não era essa história, porém, que eu desejava ouvir. Por isso, lembrei:
- E então que mais sucedeu, naquele dia, depois de eu ter saído de sua casa?
- Diga-me agora que não é curioso, hem?... Passe por aqui. Deixe-me só verificar como o meu caseiro tratou dos morangueiros.
- Morangueiros?
- Aqui há de tudo. Mas foi preciso defender os meus direitos. Sabe que, houve tempo, tive aqui uma coutada das melhores do distrito? Até veados. A nascente vazava para a rua, fora dos muros, e hoje um, amanhã outro, essa gentalha cercou-me a propriedade de casinhotos. Eu projectava transformar este baldio na horta que hoje vê e a vizinhança não me agradava. Então, pensei: sem água, estes tipos mudam de poiso. E, vai daí, mandei entupir a levada, rasguei-lhe, a dinamite, um vazadoiro para dentro. Repare como ela corre por aí, uma bênção de Deus! Eles ainda teimaram, saltavam-me os muros para se abastecer na fonte, mas a guarda pô-los com dono. Por fim, convenceram-me de que seria melhor armar outro arraial mais longe. Para tudo é preciso manha, doutor.
O Sr. Acácio esperou que eu o aplaudisse. Oferecia-me a sua esperteza numa bandeja cúmplice e ladina.
- E a água não chegaria para todos?
- Talvez, a nascente é forte. A vizinhança é que" não convinha. Bem, os morangueiros não estão nada mal. Experimente um destes, doutor - e o Sr. Acácio estendia-me o maço de cigarros. Talvez o cigarro fosse o prelúdio para o resto da narrativa.
Sentámo-nos num muredo, entre duas valas. O caseiro lobrigara-nos, enfim, e vinha de passo azafamado para junto de nós. O lavrador travou-o com um aceno,, a afastá-lo. O homem pareceu indeciso e o novo gesto do Sr. Acácio foi então explícito, como que a insistir: «Não preciso de ti.»
- Pois a rapariga roubou-nos a Bia. Entrou pelo corredor, mesmo na altura em que eu intimava a D. Antónia a não pensar mais na chinesice do jazigo. Ela ouviu a discussão, escondeu-se em qualquer parte e, quando voltámos ao quarto, já a criança tinha desaparecido. Um criado, porém, viu-a no pátio a correr, com aquele volume todo escondido no xaile, e teve um pressentimento. Filou-a. Ela esgadanhou-o, ia cegando o homem; parecia doida. Foram precisas três pessoas para a dominar. Por esta não esperava o senhor, hem? Ah, é verdade, já me tinha dito que o caso não o espanta...
E o lavrador renovou aquele tom de ofensa e censura. Os seus olhos, por instantes, vadiaram pelo céu menos limpo que anteriormente, e, como eu permanecesse de cabeça descaída, a ruminar-lhe as palavras, disse ainda:
- Mas nem assim a minha mulher se convenceu, veja lá o senhor! Pelo contrário: aquilo ainda mais a acirrou. A pequena tinha de ficar no jazigo, no nosso jazigo! Isto de mulheres, doutor, é melhor a gente desistir de percebê-las... Antes a rapariga tivesse escapado com a filha.
- Ainda o apoquenta a ideia de ela estar no... seu jazigo?
- Mas ela não está no jazigo.
Pisei o cigarro com o tacão do sapato e acendi outro de seguida. Mordia-me uma pergunta, mas não a fiz: o lavrador já não deixaria o relato em meio. No entanto, ele bem percebia que eu estava sobre brasas e demorou em prosseguir.
- O tempo vai mudar.
Segui-lhe os olhos, apreciei a fuga de uma nuvem escura, logo perseguida por um bando de outras, mais delgadas, que iam aparecendo por detrás da colina.
- Parece-me bem que sim.
O Sr. Acácio, então, de súbito, riu com gosto.
- Com esta novidade, finalmente, deixei-o de cara à banda!... A garota não está no jazigo, não, porque a mãe foi lá de noite e arrombou-me as grades da porta. E não era um qualquer que teria ganas para tanto! A verdade é que ela teve sempre boa pinta, posso afirmar-lhe... Uma égua de raça. Deve ter-se servido de uma alavanca de ferro ou coisa assim. A dona Antónia desistiu, não havia outro remédio. Entre as duas, ganhou a mãe; talvez esteja certo. - O lavrador deu uma fungadela, apreciando-me de esguelha, e mudou de voz: - Aqui para nós, fui eu até a ajeitar as coisas com o guarda do cemitério; ele fez de conta que levaram o caixão directamente de minha casa para debaixo da terra. Eu imagino o que se teria passado nessa noite: a mãe...
- Não precisa de me contar mais - atalhei corajosamente.
- Ah, afinal sempre lhe constou...
- Adivinho, apenas.
- Mas então...
- Não precisa de dizer mais. Também eu posso imaginar o que se passou nessa noite.
E não era difícil. A mãe a transpor a cerca alta do cemitério, os uivos da noite, o fecho das grades do jazigo torcido pela raiva alucinada da rapariga. A cova pequenina, mas sua, aberta com as mãos ensanguentadas, na terra anónima dos servos da campina. E a dor que gerava as forças e a loucura para levar a tarefa até ao fim.
Ao reconstituir toda essa bárbara tragédia, nem sei bem como me sentia. Pelo menos, longe dali. Longe do Sr. Acácio. Foi, pois, de muito longe que me vieram as suas palavras:
- A minha mulher é que não resistiu ao abalo. Esteve de cama, durante um mês, com umas febres cerebrais. Ainda hoje está por metade. Não o chamámos porque...
Eu ouvia-o de olhos enfurecidos ou vazios.
- O senhor não tem de me dar justificações.
Ele gaguejou, desprevenido. Depois, prendeu os lábios nos dedos, encarou-me com a mesma expressão matreira que eu vira no ganhão da sua herdade e disse:
- O senhor sempre me saiu um espertalhão! Já agora confesso-lhe que comecei esta conversa apenas para me certificar se o senhor sabia do caso. E deixei-me levar como um cordeiro! Como tínhamos sabido, por acaso, que a rapariga o procurara antes de a filha morrer, julgámos... Enfim, águas passadas. Até me sinto aliviado. Agora o doutor tem-me nas mãos.
- Mãos pequenas, senhor Acácio. Como aquelas que abriram uma cova clandestina no cemitério. Mãos pequenas para segurar uma pessoa tão poderosa como o senhor. Não as tema.
Ele ficou, uma vez mais, de boca extasiada. Mas soube conter-se.
- O senhor é um finório, é o que lhe digo... Nada tolo, doutor! - Fingiu-se de novo muito preocupado com as nuvens a fim de dar naturalidade à despedida:
- Raspemo-nos, antes que venham prà i uns chuviscos. O vento do noroeste é traiçoeiro.
Não se tratava apenas de uma desculpa: na planície, que nascera para ser queimada viva, o frescor do noroeste, era, de facto, traiçoeiro.
Embora toda a vida médico de lugarejos, o Dr. Passos teria feito carreira em qualquer outro ambiente. De uma lhaneza desprevenida e sagaz, dedicando a um desmaio ou a um tifo o mesmo pressuroso brio, era o tipo de médico diligente que desejamos ver à nossa beira numa hora aflita e que noutras ocasiões, seja num casebre ou num salão, jamais se mostra deslocado. Afável ou rude nos momentos em que se torna oportuno ser uma dessas coisas, perseguindo a doença com uma pertinácia bem-humorada de caçador que gosta do seu ofício, confiante sem afectação - sentíamos que, nele, inteligência, nervos, bom senso para humanizar e simplificar os mistérios, se fundiam no cumprimento escrupuloso de uma tarefa. Mesmo fora dela se comportava como um profissional astuto que sabe quanto as suas relações com a clientela não têm fronteiras definidas - e, assim, tanto nos poderia fornecer uma indicação certeira sobre o paladar do nosso vinho como sopesar judiciosamente um problema íntimo que sujeitássemos ao seu experiente critério. Médicos como o Dr. Passos pertencem a todas as famílias do burgo - e pomos nisso um orgulhoso empenho. É o nosso médico. Ao puxarmos a al-draba da sua porta, pelas noites de agoiro, ou durante as sestas molengonas, não é apenas ao mezinheiro que fazemos um apelo: recorremos também ao amigo que mistura na doença a ansiedade que nos desvaira, o sofrimento do paciente, as agruras domésticas que em tudo isso se acobertam, e que, na sua terapêutica, por actos e palavras, protege todos esses sentimentos. Sempre que ele transponha aquele risco ténue que separa a sua vida da nossa, podemos estar certos de uma adesão eficiente e sem cálculo.
Conheci o Dr. Passos nos dias cinzentos da sua velhice. Vivia então na quinta de uma das filhas, à espera da morte, já que a vida lhe sobrara desde que as juntas tolhidas por Invernos ásperos o tinham amarrado uma reforma odiada. Não me consentia drogas especiosas: aplicasse-lhe ventosas ou sinapismos, coisas do seu tempo, coisas sem disfarce - e o resto, a verdadeira botica, eram os colóquios, feitos de anedotas e saudade, que prolongávamos, com talhadas de melancia, pelas tardes de Verão. Neles aprendi muito recanto ignorado da ciência da vida, dos homens, do povo, da arte de me realizar em comunhão com as vicissitudes alheias. Pelo Natal, ofereceu-me um porco. E, perante o meu protesto comovido, replicou, um canino a rir-se na boca desdentada:
- Não vê que o meu presente foi um desafio? Ponha-me em condições de ir comer-lhe as febras, pelo meu pé, e só assim me demonstrará que o mereceu! Uma das evocações preferidas do Dr. Passos era a história que o fizera médico ainda aluno da Faculdade, ao substituir, durante os meses de Estio, um colega enfadado do seu partido. O Dr. Passos (na altura, rigorosamente, apenas o estudante João Baptista Passos) passaria as férias nessa aldeia a tomar o primeiro contacto a valer com as mazelas «que não são muitas, meu caro; todos os achaques cabem à larga em quatro ou cinco diagnósticos, o resto é conversa!», assegurava o colega enfastiado dos saloios, ao mesmo tempo que lhe prometia segurar o lugar até que terminasse o curso. Era uma oferta tentadora, mesmo tratando-se de saloios, para quem, como o jovem João Baptista, ia devorando na Faculdade os restos de umas courelas que os pais amanhavam nas magras serranias da Beira. Desse modo, poderia granjear para si e para os seus, sem mais demora, um desafogo económico que, nessa época, era toda a sua aspiração. O estudante, pois, sem saber como transmitir aos amigos a alvoroçada responsabilidade que lhe caíra sobre os ombros, e que o deixava tão es-fuziante como aterrado, vestiu a sobrecasaca dos domingos (notemos que esta aventura se passava havia uns bons cinquenta anos), já com um esverdinhado brilho de velhice, aceitou o empréstimo de umas botas galantes, e partiu. Chegou à estação do burgo, enxovalhada e deserta, num comboio da madrugada. O tal colega faminto de horizontes citadinos esperava-o com a sua carrinha de cavalos.
A meio caminho - dali ao povoado ainda eram duas léguas de cerros escalvados -, e enquanto o estudante se sentia no dever de fomentar um diálogo cortês, o outro inesperadamente, travando a impaciência dos baios, perguntou:
- O colega traz algum dinheiro consigo?
O Dr. Passos, embuchado, tacteou instintivamente as algibeiras sem lastro.
- Pouco... talvez sete vinténs.
- Ó diabo! Então deve pedir umas reservas a alguém.
- Reservas, senhor doutor? Vim para ganhar dinheiro e não para o pedir - retorquiu com azedume, ante a imprevista advertência.
- Pois é, meu amigo, você tem razão» O pior é o resto.
- Mas então o partido não dá?
- Não dá nada. É meu dever preveni-lo. Nem dá para comer. Então porque supõe que eu esteja morto por fugir desta pasmaceira? Era tempo de lhe ser franco.
O Dr. Passos olhou as urzes à volta, a planície tenra que, ao longe, era um aceno a ludibriar os incautos, e sentiu-se desamparado. Mais desamparo do que desilusão.
- Se ele é isso, parece-me bem voltarmos para trás. O dinheiro ainda me chega para o regresso.
- Não, meu caro colega, tem de vir! Parto daqui a horas para o Algarve e preciso de um substituto. Tenho a sua palavra. Além de que o partido é seu, a bem dizer. Já não é pouco fazer-lhe o frete mais um ano.
As razões não seriam de todo convincentes, de modo nenhum desfaziam o logro, mas a fadiga da viagem quebrara-lhe o ímpeto para uma decisão mais viril. Deixou que o outro espevitasse de novo os cavalos e, como única expressão do seu ressentimento, não disse uma palavra mais até chegarem ao povoado. Aí, o médico largou-o ao desembocarem na primeira rua, trespassando-o ao farmacêutico, um homenzinho redondo e solícito, que se oferecera para lhe tornar menos perturbante o embate com a saloiada. O homem convidou-o desde logo para jantar.
O novo médico olhou com acerbo desânimo o casario de telha vã, onde rostos vorazes se escondiam a meio postigo, e seguiu, murcho, o anfitrião.
- O senhor doutor tem aqui um quarto em minha casa. Rogo-lhe que disponha dele sem pensar em incómodos. E cedo-lhe também uma sala para consulta. Contaremos consigo todas as noites para uma chávena de chá e pão com manteiga. Além da partida de gamão, claro está. Amanhã, vamos falar com um homem daí, o Freitas, para lhe fornecer a comidinha. Não costuma tratar mal.
Um tal programa, assim particularizado sem roupagens, de pão com manteiga à noite, à parte o chá e o gamão, aligeirou os receios do Dr. Passos: avaliando, com sentido prático de campónio, as perspectivas daí deduzidas, considerou que, se o rendimento das consultas fosse, como se receava, escasso, o reforço do chá abastado poderia substituir o gasto de uma das refeições na hospedaria do Freitas.
O Sr. Oliveira apresentou-o à mulher e à cunhada, surdas-mudas, e o médico, embora confuso e impressionado com tão copioso feixe de surpresas, depressa verificou que as boas senhoras compensavam o defeito com uma inteligência viva e uma contagiosa simpatia.
No dia seguinte, foram conferenciar com o Freitas, proprietário de uma estalagem de dois andares para burros e almocreves, que cercara um amplo pátio, dedicado aos bebedouros das bestas. O homem manifestou um tanto ambiguamente o quanto se honrava em alimentar um hóspede de qualidade. Mas não fez logo preço.
- Depende da maneira como o senhor doutor quiser que o tratemos: sujeitando-se à comida da casa, é uma tabela. Se...
O Dr. Passos atalhou-o prontamente:
- Estou habituado a comida simples: hortaliça, feijões... Não se preocupe.
- Assim é que é falar. Dá gosto ouvir um doutor sem imposturas! E deseja vinho?
- Quanto me custa com vinho?
- Seis vinténs e meio. Sem vinho, um tostão.
- Isso foi só por perguntar. Nunca bebo. O estalajadeiro encarou-o, com desapreço.
- É melhor beber uns decilitros, senhor doutor, desculpe o conselho. O senhor é novo e o vinho dá força. E por trinta réis...
- Estou proibido. É esse o motivo. Tenho dieta por causa do fígado.
- Se assim é... O meu também às vezes me dá umas ferroadas, mas embucho-o logo com um copázio. - E acotovelando o farmacêutico: - Cada um tem a sua botica, pois não é, amigo senhor Oliveira.
Nessa mesma noite, a meio do chá, vieram chamar o médico para um lavrador ricaço que vivia num isolamento de monge, no ermo da charneca; o Dr. Passos, esgueirando-se do olhar expectante dos presentes, como se o tivessem surpreendido num delito, ou no auge de uma impostura, largou atabalhoadamente a torrada e seguiu o criado que o iria guiar através do negrume dos caminhos. Ainda bem que a égua era mansarrona, deixando-o meditar sem sobressaltos. O seu primeiro doente! E, àquela hora, devia tratar-se, por certo, de mazela grave. De coração transido, foi revendo de memória a terapêutica dos casos urgentes - cólica?, hemorragia?, acidente? - e rogando à sorte que lhe não fosse madrasta.
O lavrador, plantado num cadeirão que, perdido na sala imensa e bafienta, parecia um trono sem corte, não se ergueu à sua chegada.
- Sente-se.
Era uma voz de mando, a voz de dono para o seu lacaio. O Dr. Passos bem percebeu a devassa zombeteira e cruel daqueles olhos papudos. O lavrador, antes de mais lerias, ainda pegou no relógio, consultando-o demoradamente.
- Já vejo que sabe acudir a uma aflição.
- Como se tratava de uma urgência, vim o mais ligeiro que a égua permitiu.
As frases soavam-lhe, a si próprio, desembaraçadas e oportunas, e sentiu-se seguro.
- Quem lhe disse que era de urgência? Tenho apenas varizes. - Estendeu as pernas túrgidas, dois tropeços, onde as veias pareciam perfuradas por uma toupeira assustada. - Mas isto um dia poderá rebentar.
Preciso de saber se tenho ou não quem me valha numa pressa.
O Dr. Passos, embora perturbado com tão excêntrica recepção, aprontou-se para observar o doente. Mais uma vez as suas raízes de camponês o deixaram farejar naquele cliente extravagante uma fonte de rendimento apreciável. Cada visita ao monte, ia calculando, poderia cobrir três almoços no Freitas.
- Não, não vale a pena incomodar-se. Essas pernas já não têm conserto. O que não quero é que elas acabem comigo à traição. Aqui tem o que lhe devo; não lhe pergunto quanto é porque conheço a tabela. E agora passe bem; pode vir visitar-me duas vezes por mês.
Era um bom começo. No entanto, dias depois, de consultório vazio, reconhecia que poucos mais clientes deveria esperar, embora o Sr. Oliveira, sem avios na farmácia, bem se esforçasse em reclamá-lo. E os raros empalamados que lhe acudiam tinham nos modos uma tal agressiva desconfiança que chegava a ser preferível baterem a outra porta. As suas respostas ao questionário do médico novato eram ásperas e arrogantes.
- Dói-me é aqui, senhor doutor. Não tenho mais nada.
O Dr. Passos, contudo, rilhava os dentes ao esmo-recimento, ao desengano, e encarava cada um daqueles obstinados como um inimigo que fosse preciso vergar a todo o custo. E, com paciência e igual obstinação, conseguia-o quase sempre. Alguns, usando de uma velha velhacaria de primários, deliberadamente lhe escondiam os sintomas que poderiam sugerir o diagnóstico. Se era um fedelho com anginas, a mão crespa e poderosa dos pais amarrava-o, calado, à cadeira e lançavam o desafio:
- Diga-nos que doença tem o menino. - Mas de que se queixa ele?
- Se a gente conhecesse o mal, não vínhamos aqui gastar o dinheiro.
O médico flanqueava essa estúpida animosidade, desarmando-a à força do zelo, de bom humor, e, dia a dia, como um regato que vai engrossando se faz rio, acabou por se tornar popular. Agora, ao passar nas ruelas da aldeia, pressentia nos comentários, nos bons-dias joviais, no alvoroço da garotada que lhe acudia ao caminho, uma atmosfera de respeitosa afabilidade. Quando a inexperiência o deixava atarantado junto das obscuras patologias, ou o pavor de erros cometidos lhe subia, em labareda, às faces imberbes, nunca chegava a desorientar-se: descobria sempre uma palavra, uma atitude, pelos quais os outros lhe interpretavam a hesitação como solidariedade pelo sofrimento alheio. Bem cedo percebera que, acima de tudo, o que importava era satisfazer o egoísmo das famílias. Mais do que a eficácia das suas prescrições, mediam-lhe o tempo que ele se demorava a contar anedotas ao enfermo.
Um mês depois, o rendimento do consultório já tinha assegurado, à larga, a hospedagem do Freitas para todo o Verão. O Sr. Oliveira, agora afadigado com o movimento de hóstias e tisanas, uma prosperidade impossível de confrontar pelos míseros tempos antigos, dizia sem rodeio que o povo não deveria consentir que algum peralta cobiçasse o partido; punha as meças os fastios do outro médico, mais interessado no fabrico de queijos, em cavalos e toiros, do que nos achaques da clientela. E o chá da noite, reflexo destas disposições, ia encorpando: as briosas surdas-mudas acrescentavam-lhe, entre outros mimos, uns bolinhos de mel de sua invenção.
O Dr. Passos, já confiante, achou que era tempo de abandonar a dieta. Ao almoço, tinindo com a faca no jarro de vinho do Freitas, disse:
- Afinal de contas, sempre me resolvo a experimentar o clarete. O fígado vai indo melhor e talvez aguente as provas.
- Grande ideia, senhor doutor! Até nos custava beber na frente de Vossa Senhoria. Ora empurre-me o seu copo e diga-me o que pensa desta pinga!
Para consagração, só restava a D. Engrácia - que sempre fora de esquisitices nisto de deixar que qualquer esculápio lhe pusesse as mãos no corpo. Dama grada do burgo, esposa de um almocreve que fizera fortuna a transportar repolhos a Vila Franca, decidiu por fim inscrever-se também como doente do celebrado Dr. Passos. Padecimentos secretos faziam dela uma figura de cera, o que, de certo modo, lhe serviria para aristocratizar os traços grosseiros da sua origem. O novo médico, safando-se airosamente do severo vexame, passou a ser chamado diariamente a sua casa, e tal acontecimento significava uma intimidação para as demais famílias abastadas que ainda ousassem a umas reticências. Em breve, os dois curandeiros, o José Maria da Rabaceira e o Abílio da Asseiceira, por alcunha o Curão, este não só entendia em moléstias de filhos de Deus, mas também nas dos cavalos, se alarmaram com a competição desse doutor rapazelho ainda. Eles tinham o monopólio da clínica da área e sentiam-se lesados. O Curão, dos dois o mais agastado, decidiu investigar pessoalmente os dotes do intruso, levando-lhe à consulta uma das filhas. O Dr. Passos, depois de farejar a raparigota, enfiou-lhe o termómetro numa axila, esperando em silêncio, sem pressas, o resultado: e repetiu a leitura do tubinho duas ou três vezes, como se duvidasse ainda ou como se esse pormenor enigmático tivesse uma importância decisiva. O Curão acabou por se sentir contagiado pela magia da operação, que, ao que se afigurava, exigia uma devota meticulosidade. E ao sair da consulta era mais um infiel convertido. Pelos vistos, o segredo daquele médico sem barba na cara estava no uso do termómetro!
Matutando no que observara, dias depois abriu-se com o doutor:
- Vossa Senhoria já deve saber que eu... às vezes... dou por aí umas ajudas. Vossas Senhorias vivem nas vilas e, em certas ocasiões, é preciso acudir sem demora aos doentes do campo, enquanto não chegam outras providências...
- Muito bem, senhor Abílio, aprecio a sua franqueza. Os colegas nunca são de mais.
- Agradecido a Vossa Senhoria. Pode Vossa Senhoria contar com um servidor na minha pessoa. Mas... - e o homem coçava os cabelos já ralos - tenho estado a pensar que me fazia jeito um termómetro. Já ouvira falar desse traste. Vossa Senhoria podia emprestar-me um dos seus.
- Eu gostaria de lhe valer, senhor Abílio. Mas não me é possível. Um médico não pode dispensar o termómetro. Tenho aí outro, é facto, mas está inutilizado.
- Não faz mal: qualquer me serve.
- Este não serve para nada. Tem um defeito, marca sempre 39 graus de febre.
- Ora isso é que me convém!
O Dr. Passos, divertido, cedeu. E o Curão levou o termómetro, aterrando a clientela com a ameaça dos 39, subindo uns furos no conceito dos partidários. Mostrou-se, porém, suficientemente justo e grato para fazer constar que devia alguns progressos ao novo médico um homem que não fazia segredo do modo como usa os seus méritos. E assim, quando um certo Manuel do Pavorais, negociante de gado e influente político, adoeceu com uma pneumonia, o Curão viu o caso feio e garantiu que poderiam confiar no Dr. Passos.
O negociante já não reconhecia nenhum dos amigos quando o médico lhe chegou à cabeceira. Este diagnosticou um catarral maligno, ao uso da região, e receitou umas ampolas de estricnina. Nesse tempo, não havia ainda injecções manipuladas por firmas industriais: no raros casos em que o médico não dispensava uma droga que actuasse com decisão, mandava preparar as ampolas na botica local, e o acontecimento extraordinário era logo propalado. No momento de aplicar a injecção, do-seada cautelosamente, para evitar surpresas, reuniram-se ali os barbeiros, tão solenes que pareciam assistir a um ofício, e toda a parentela do enfermo. Pouco tempo depois, um emissário espavorido foi buscar o médico.
- Depressa, senhor doutor, volte lá outra vez! O homem está inteiriçado como uma lebre.
E era! O dos Pavorais, teso como um espeto, mandíbulas cerradas, parecia feito de madeira. A intervalos paroxísticos, vagas de fúria corriam-lhe pelos braços e estes estendiam-se para os mirones, numa ânsia de satisfazer, com violência, os nervos eriçados.
O médico, aflito, voou à farmácia.
- Senhor Oliveira! tem aí a receita das ampolas?
- Houve novidade?
- Só isto: um engano de dose na estricnina que vai matar o dos Pavorais. E o engano não é meu, de certeza.
O Oliveira, enfiado, soletrou a receita várias vezes e teve de reconhecer o seu descuido. Mas o Dr. Passos, mesmo naquele momento de indignação, sentiu-se entalado entre a sua legítima cólera e a lembrança dos favores do farmacêutico, até aí seu patrono dedicado. Refreou-se, pois, conquanto, ao escolher nas prateleiras alguns recursos para a urgência do acidente, não deixasse de acentuar:
- O homem não escapa, senhor Oliveira.
O outro não tinha voz. O beiço tremia-lhe, os gestos alvoroçados derrubavam a frasearia do balcão.
Depois de alguns mergulhos em água tépida, de o médico vigiar o doente horas a fio, ao serão a expectativa embrandeceu, o homem acalmou. Alguns dias e considerou-se curado. A sua primeira visita foi para o Dr. Passos, que, olheirento dessas noites dormidas em sobressalto, ainda não se sentia refeito do susto.
- Devo-lhe a vida, senhor doutor! E fique sabendo que o que me salvou foi aquela injecção.
- Talvez, talvez... Cá tinha as minhas razões quando lha dei.
- Não tenha dúvidas. Eu nem me podia mexer, sentia a morte com negaças, a pedir-me sossego, e vem aquela injecção, senhor doutor, e foi o que se viu! Só me apetecia dar pulos. O senhor é um doutor de boticas rijas!
Por todas as estradas do partido, até ao coração do concelho, podia-se ouvir o badalo do negociante:
- ...Catarrais? É irem ao doutor das Mercês. Tem lá uma injecção, um segredo!...
Em curto tempo, pois, o Dr. Passos fizera de um partido desmantelado, com os doentes a fugirem cada um para seu curandeiro, uma clínica rendosa e fiel.
E até a linfática esposa do almocreve melhorava a olhos vistos. Umas pitadas de ferro coloriram-lhe docemente a tristeza das faces, e as hemorragias e as cólicas, que dantes traziam em suspenso as amigas, tinham apaziguado. Ei-la a caminho da missa, num passo expedito que era a viva demonstração das milagrosas medicinas do jovem joão-semana.
O Estio, porém, chegava ao fim. O povo lamentava-se de ter de esperar um longo ano pelo regresso daquele que já consideravam o «seu médico». Que empecilho detinha os lentes em lhe anteciparem o tão merecido canudo? Mas, demorasse a formatura ainda um ano ou muitos mais, ninguém admitiria que outro viesse usurpar-lhe o lugar.
A reputação do Dr. Passos era assim um assunto arrumado e tal segurança permitir-lhe-ia pagar-se bem das bastas visitas a casa do almocreve. Foi esse o receio da senhora. Dos tempos antigos, em que cada vintém era regateado como sangue das entranhas, ficara-lhe um amor atormentado ao dinheiro; quando se tornava forçoso dividi-lo com os outros, sentia-se cruelmente expoliada. Daí, a senhora resolveu confessar as suas preocupações ao boticário:
- Quero falar-lhe do senhor doutor. Vai fazer-nos falta.
- Lá isso vai, minha senhora, a quem o diz...
- Um rapaz atilado. Acertou com todos os meus males. E olhe que eram vários, senhor Oliveira. Reconheço que o macei bastante. Agora o que temo é que ele, como direi, carrege um bocadinho na conta. Dizem-me que estes médicos novos, quando pressentem um pouco mais de dinheiro... Enfim: vinha pedir o seu conselho. Eu até me lembrei de oferecer ao doutor Passos um bom jantar. Talvez ele se mostre reconhecido com essa pequena atenção e... o senhor compreende a minha intenção... Acha que ele aceitará?
O médico aceitou. Lampreias e leitões, um estendal de doçaria, e, na altura em que seria de prever que o doutor se sentisse coagido pela magnificência do banquete, a dona da casa, numa voz repartida por todos os convidados, forçando-os a servirem de juizes, disse-lhe:
- Isto não é para lhe pagar, senhor doutor. Sei bem o trabalhão que teve comigo. É apenas para lhe testemunhar o meu reconhecimento.
O Dr. Passos fez-se rubro como um lagostim, à mercê daquela boa dúzia de olhares matreiros e inquisi-tivos. E quando, num intervalo da sueca, lhe pediram capciosamente a conta, adiou, com não menos sagacidade, o momento melindroso.
- Temos tempo, minha senhora. Só consultando a minha agenda saberei o número de visitas. E, como deve supor, não a trouxe comigo.
A dona da casa levantou o papo, um tanto ofendida com a resistência do homenageado, que se esgueirou Para um canto, levando consigo o boticário.
- Dê-me uma ajuda, senhor Oliveira.
E adiantou ele próprio, a medo, uma quantia.
- É curto, senhor doutor. Pise-lhe os calos, a essa velhaca! Quer pagar-lhe com uns guisados!
O argumento da jantarada, porém, não era tão desvalioso como isso, além de que o Dr. Passos ainda não se escapara daquela fase em que o médico se sente tímido perante a bolsa dos clientes e em que todo o esforço lhe parece enxovalhado pela remuneração.
A conta foi apresentada dias depois e a dama achou-a comedida, gabando-se junto das confidentes:
- O jantar deu um resultadão!
No regresso à Universidade, o Dr. Passos foi a um bom alfaiate e ainda a um armazém de instrumentos cirúrgicos, e quando, de sobrecasaca nova e apetrechos luzidios, reapareceu aos condiscípulos pasmados, instruiu-os nesta legenda de saudável optimismo: não há causas antecipadamente perdidas.
Aliás, ao ouvir-lhe intermináveis histórias durante os serões da charneca, pelas quais fui revigorando a minha confiança nos homens, pareceu-me que o Dr. Passos foi dos que melhor souberam manter-se fiéis à legenda.
Estou há uns anos na cidade e ainda me sinto um aldeão atarantado. Não sei que se passa comigo ou que gente é esta. Chegaremos algum dia a conhecer-nos, eu e a cidade? Já é tempo de duvidar. Mesmo os amigos de raiz, esses que vêm de longe, se os reencontro nestas bandas, inspeccionamo-nos com frieza, ou cerimónia ou ainda precaução. E, se a alegria resiste, se a amizade resiste, mesmo assim, os gestos quedam postiços. Não nos pertencem, fazemos parte de uma pantomima. Fosse o que fosse nos deformou. Os gestos não nos pertencem de tanto desejarmos que eles pareçam os antigos? É a deliberação que os torna falsos.
Ia a dizer: permaneço o aldeão que aventurosamente desceu ao grande povoado. Olho estas mulheres bonitas, que deixam, ao passar, um rabo de perfume, como seres fabulosos que só pertencem àqueles sonhos clandestinos das sestas de Verão. Estonteio-me com o tráfego. Ponho-me mais frenético do que este formigueiro sem parança. Mas, neles, o frenesi está certo: em mim, é doença. Às vezes, quando me sento na tertúlia de médicos, que se reúne ao fim da tarde numa pastelaria dos Restauradores, ao ouvi-los, ao vê-los, ao imitá-los com a desajeitada e estéril melancolia de um exilado, imagino-me um navio dentro da cidade. Só um cataclismo que empurre as águas do rio, avenidas e ruas acima conseguirá pô-lo a flutuar para que então deixem de fitá-lo com surpresa, e dúvida, e alarme, e rancor, porque um navio, é certo, não se fez para estar encalhado embaraçando o trânsito de uma cidade. Um navio pertence ao mar. De contrário, navio e cidade encaram-se sem estima.
Estes colegas encaram-me sem estima? Vejamos: enquanto eles me falam, contam coisas, enquanto entram e saem as mulheres bonitas que deixam um rabo de perfume que chega a agoniar-me, eu olho-os bem nos olhos, e eles também me procuram ousadamente o fundo das pupilas, um olhar mútuo que não vacila, que parece desprevenido e sincero, mas a verdade é que me dá a ideia que essa franqueza e sinceridade não são o que parecem, que essa dádiva é feita para julgarmos que o é. Tal como os gestos postiços, falsos por desejarem ser autênticos. Tudo isto é muito importante para mim e já que vou contar coisas da cidade, onde talvez se reflictam tais desacertos e suspeitas, é bom que fiquem prevenidos.
Reuníamo-nos à tarde, na pastelaria. A tertúlia era sempre frequentada pelas mesmas pessoas, todos médicos, embora de diferentes especialidades, o que poderia significar uma espécie de acordo tácito, evitando que os despeitos viessem desmantelá-la. Os criados já nos serviam exactamente o que desejávamos. Erguia-se um dedo e isso bastava. E a atmosfera da sala tinha uma brandura tépida, repousante, às vezes com o seu quê de clandestinidade, sempre que entravam os parzinhos que, daí a pouco, se apertariam as mãos debaixo das mesas. Eu fora admitido na tertúlia por um destes nadas pitorescos que podem decidir das relações humanas: estávamos no hospital, nesse tempo éramos estagiários no mesmo serviço, e rodeávamos um campónio portador de uma esquisita lesão da boca, por sua vez responsável por um inchaço quase monstruoso e não menos enigmático. O caso ia passando de mão em mão, mais impenetrável à medida que o director e os estagiários deglutiam, de mau modo, a sua perplexidade; até que eu, que viera das serras e planícies gentias com o meu embaraço de médico de cataplasmas de linhaça, balbuciei uma hipótese, confessada quase ao ouvido do parceiro que me parecia um pouco menos convencido de si próprio:
- Eu diria que talvez fosse carbúnculo.
- Carbúnculo?! - arrepiou-se o colega. E mil olhos ofendidos me vararam.
Mas era carbúnculo. E, pela primeira vez, levaram -me, melhor dizendo, escoltaram-me até ao bar do hospital, onde se dignaram oferecer-me uma xícara de café. Uma honra - e eu bem o sabia. Dois desses companheiros pertenciam à tertúlia, e nesse mesmo dia fui nela admitido. O meu reservatório de histórias provincianas, onde pululavam micróbios tão exóticos como o do carbúnculo, era, aliás, uma atracção valiosa.
Foi nessa pastelaria que ouvi falar de Dasy. Sempre que havia uma referência brejeira a certo meio de vida fácil, lá vinha o nome de Dasy. E era curioso reparar que, embora a evocação dessa Dasy, fabulosa e mundana, no-la fizesse imaginar uma heroína de vícios, dela ressoava também uma inflexão de simpatia. Talvez porque os homens são, por via de regra, indulgentes para com as cortesãs.
E foi também na pastelaria que eu a conheci. Conheci-a, é um modo de dizer: apontaram-ma. «Olhe, aí tem, em carne e osso, a famosa Dasy.» Um frio correu-me a nuca. Céus, seria possível? Claro que, ao longo desses meses, eu já arquitectara uma Dasy, tipo da libertina fantasiada por um labrego guloso de espreitar, pelo buraco da fechadura, a luxúria das metrópoles. Para mais, Dasy era uma estrangeira refugiada da guerra, mulher, portanto, cujo passado nunca ficaria limpo das nossas suspeições. E foi essa Dasy que os meus olhos se apressaram em reconhecer, certos de que o retrato inventado tinha de ser fiel. Nada disso. A mulher que entrara era igual a tantíssimas outras que habitavam as duas horas do fim da tarde no salão de chá da nossa tertúlia. Talvez mais discreta do que a maioria. Pus-me a dissecar essa fraude: magrota, afinal, rosto espalmado, apenas aquele lábio inferior sumarento e uma guedelha desbotada a esconder-se, como uma cobra felina, por entre a densa cabeleira castanha, a poderiam fazer notada. Custou habituar-me à ideia de que, na realidade, a Dasy era aquela. Quando a aceitei como tal, alguma coisa estranha se passou comigo: sentia-me irritado pelo modo equívoco, reles, com que ela, até aí, me fora insinuada pelos amigos.
Acompanhava-a um escritor oficializado, vedeta das gazetas bem comportadas, que fazia vogar por nós, hereges, um olhar de delfim enjoado. Herege sentia-o eu junto da Dasy. Efectivamente, aquele cinquentão atento a requintes amaneirados, desde o modo de fumar ao de pegar na chávena, sem um dedal de virilidade, parecia-me um insulto à Dasy de quem se contavam amores turbulentos e romanescos, que vira a morte não sei quantas vezes por essas fronteiras eriçadas de baionetas; à Dasy que viera assanhar os brios dos dom-joões desta Lisboa máscula. Talvez aquele encontro na pastelaria tivesse razões fortuitas. O tipo presidia a um organismo cultural sob a bênção dos poderes públicos e Dasy teria necessitado de uma recomendação, de um esclarecimento... No entanto, um dos da tertúlia deu logo uma explicação grosseira:
- Parece que chegou a vez deste impotente. Mas o preço deve ser alto.
E outro:
- Isso não lhe rói a bolsa. Será pago pelos fundos secretos, a bem da cultura pátria...
E insistiu o primeiro, baboso:
- Ainda a veremos a secretariar uma repartição oficial. As prostitutas acabam sempre por se tornar respeitáveis. E uma tentação.
É por isso que eu não entendo esta gente: enterram o punhal em qualquer pessoa, com ou sem fundamento, sem o sentirem na própria carne. Em mim, não: sangram-me as feridas alheias. Eu e a cidade, está visto, nunca chegaremos a dar-nos bem. Refilei:
- Mas, afinal, que sabem vocês da rapariga para a enxovalharem desse modo?
Os companheiros avaliaram-me com espanto reprovativo.
- Que «rapariga»?
- Essa Dasy que não vos sai da boca.
- Rapariga... rapariga... será demasiada elegância de estilo. Atira-lhe antes com trinta e muitos anos...
De acordo. Mas nestas citadinas vistosas, cuja juventude amadurecida começa e acaba não se sabe quando, era-me sempre difícil acertar com um cálculo.
Também o outro me pegou no deslize:
- Perguntas então que sabemos nós da tua «rapariga»...
E as reticências eram já de si uma saliva peçonhenta.
Pois, que sabiam eles? No fim de contas, enredos sem consistência. Ou, então, era eu a interpretá-los como tal. Filha de um magnate francês e de uma suíça, a guerra, o pânico, tinham-na baldeado juntamente com os pais por essas estradas do êxodo. Lisboa era o porto de abrigo, a pausa, o reacender de projectos e cobiças. Fora um pouco de tudo isso que fixara o francês no Es-toril. Como os magros haveres salvos da enxurrada se tinham escoado na fuga, era nessa filha apetitosa e decidida que o magnate ia apostar a sua última cédula. O meio era propício: meio farto, de basbaques que co-Piavam nesses estrangeiros de arribação um verniz de rnundanismo sem freios.
Ela, Dasy, cumprira o seu papel com perfeição. Soubera escolher. Interessava-lhe, nessa ancoragem decisiva, um marido rico, sem dúvida, mas dócil para os apetites da família. A presa havia sido o filho único de um tal banqueiro Arnaldo Seixas e o casamento obedeceu a todas as regras do programa: dinheiro, prestígio social, novas oportunidades de o pai de Dasy tecer as suas manobras de recuperação financeira; e, sobretudo, um marido de vontade frágil, que foi aceitando os caprichos e, pouco depois, as sucessivas leviandades da mulher. Dizia-se que, por essa altura, um facto ainda secreto destrambelhara os nervos de Dasy. Fora justamente a partir daí que o seu nome descera à rua, que os seus destemperos correram, como lendas, as tertúlias de café. Nesse colorido excessivo havia já uma pincelada romântica: parece que uma doença misteriosa a não deixava dormir. A qualquer hora da noite os amigos vinham preencher-lhe a insónia com paródias memoráveis, ou então era ela a ir despertá-los, de casa em casa, eufórica e meio louca, fazendo terminar as suas vigílias nos lugares menos esperados. Também por essa altura tinham começado as brigas com o marido. Este, de uma vez, lançara-a escada abaixo, a pontapé. Parece que Dasy, brutalmente traumatizada, golfara sangue: que a sua voz um pouco surda, enrouquecida, era a ressaca dessa cena desvairada.
Nada faria prever que o marido morreria meses mais tarde, fulminado por uma crise cardíaca. Era de novo o pânico. O pai de Dasy ainda não encontrara ambiente para as suas especulações, o velho Arnaldo Seixas fechara a bolsa à nora impudica e odiada. No entanto, também por motivos que os estranhos à família não tinham sabido apurar, essa bolsa não se fechara assim tão abruptamente, pois Dasy reatava, em breve, aí suas folias, estonteando-se, gastando-se, como se tivesse se pavor dos instantes serenos, e, numa daquelas excentricidades ousadas tão do seu agrado, surgia como dona e animadora de um bar. Dinheiro do sogro ou de algum amante? De qualquer dos modos, um acontecimento excessivo, mesmo para a sua roda de pândegos livres de jugos convencionais. Daí, um deserto súbito à sua volta. Esses amigos fugiam de ser respingados com o enxovalho e, numa vingançazinha pérfida, fizeram mesmo constar: o bar tinha ao lado, como anexo, uma casa de passe.
Mas talvez Dasy nem tivesse sido beliscada pela deserção da sua troupe, pois, ainda o bar lhe satisfazia toda a febre de anestesiar o tempo, já ela se deixava seduzir pelo besunto parisiense de um pintor boliviano que desembocara em Lisboa entre duas estadas meteóricas na Europa. Ele entrara no bar, por acaso, aspergindo à roda um delicioso fedor a roupa ensebada e a suor tropical, e Dasy aspirou até às entranhas famintas esse apelo erótico de vidas e lugares da sua juventude. Para mais, o pintor não fizera a barba nesse dia, o que o tornava ainda mais atraente. Foi ela a atendê-lo, a falar com ele baralhando línguas, como se cada frase fosse uma viagem de retorno a um país diferente, numa mistura mais inebriante do que a dos aperitivos que lhe servia. Seguiu-o para a América do Sul dois dias mais tarde, como donzela fascinada. O regresso foi breve e discreto. O bar, decadente, era-lhe de novo entregue das mãos fiéis da empregada, sua antiga serviçal, a quem ela, um pouco por diversão, industriara em vários segredos de parecer uma senhora ou uma astuta meretriz, consoante as circunstâncias e o homem que se tem na frente.
Foi este o relato dos meus colegas. Não o ouvi, porrém, de uma assentada. Tive, pois, de o elaborar através de palavras soltas de retalhos anedóticos que nem importa reproduzir, naquela tarde em que Dasy esteve na pastelaria, tão alheia ao nosso grupo que nem uma única vez o seu olhar raspou pelo meu, e em outras tardes que se seguiram. Parecia-me sensato não mostrar aos outros uma curiosidade impaciente difícil de explicar. Eles não compreenderiam que me sentira defraudado com esta Dasy real, «em carne e osso», e que precisara de a rectificar na minha imaginação. Nessa altura estava bem longe de prever que as andanças de médico me levariam à intimidade de Dasy, talvez da verdadeira Dasy, ainda hoje o não sei ao certo. Pois foi isso que aconteceu.
E, afinal, tão pouco sabíamos dela!
A vivenda ficava a meio da encosta. Como todas as outras daquela área cosmopolita, havia sido edificada no pinhal que segurava a terra inconsistente escorrendo para as dunas; o que a distinguia, além de certa severidade arquitectónica, era ter ficado mais recolhida da estrada e não lhe terem imposto um daqueles jardin-zinhos, tão sem graça e sem viço como animais amestrados, que sobreviviam à força de transfusões de estrume, no chão arenoso. Dentro do possível, haviam conservado os pinheiros tal como o vento ou a mão descuidada do semeador os distribuíra, numa desordem autêntica, que sugeria ar puro e liberdade. Dois deles, na verdade os mais belos e corpulentos, encostavam-se mesmo à parede do sul e decerto algumas ramagens teriam de ser pacientemente afastadas quando os moradores quisessem cerrar as largas portadas de vidro, através das quais o estuário, ao longe, não perdia beleza nem amplidão.) Uma paisagem um tanto açucarada, mas que nunca chegaria a ser monótona. Por isso, os ricos haviam cha- Ji mado a si o monopólio de transformar este pinhal melancólico, onde o mato crescia medroso do sopro salgado do mar, num cortiço de moradias requintadas.
Um cliente dali era, pois, um cliente abastado. Coubera-me numa espécie de lotaria. O director do nosso serviço hospitalar, que não tinha mãos a medir, via-se por vezes obrigado a deixar aos assistentes uns restos da sua lauta mesa. Levantava um dedo por cima de nós num gesto caprichoso, de gozo obsceno, e, enquanto lhe seguíamos a indecisão, uma expectativa humilhante de súbito indicava o eleito: «Tenho um biscate para si.»
Era, pois, um «biscate» do director de serviço que me trazia à vivenda. Recomendações minuciosas: devia tomar o comboio até à estação mais próxima (uns breves quinze minutos de paisagem costeira) e daí um táxi que me levasse à Vila das Cegonhas. Todos os táxis sabiam localizar a Vila, «o senhor Arnaldo Seixas é bem conhecido». Quanto ao caso clínico: «nada de especial, o velhote tem um neto idiota, mais ou menos sequestrado, você avaliará por si. De quando em quando precisa que lhe garantam o bom funcionamento das vísceras do pobre tolo, empanturradas de guloseimas. O neto é glutão... Ah, não esqueça: é melhor não falar deste caso a ninguém».
Aquele recuo da vivenda para o esconderijo dos pinheiros e o eco das palavras do meu director associaram-se numa sensação de intranquilidade quando, ao transpor o portão exterior, me aproximei da entrada. Recebeu-me uma servente. Não dei atenção ao primeiro capacho, acima dos degraus, mas antes de atravessar o átrio logo outro me foi insistentemente assinalado pelo olhar ríspido da criada; acabou ela mesmo por limpar os pés, para que, finalmente, eu lhe compreendesse o exemplo. De solas limpas, eis-me no salão. Era enorme e, talvez pela sua configuração, lembrava um estúdio. Plantas de braços grossos, carnívoros, subiam por duas colunas revestidas de madeira. Móveis desirmanados. Nichos com imagens toscas. A lareira, avançando até ao meio da sala, isolava o recanto que servia de biblioteca, onde o meu doente, muito quieto no sofá, lembraria um bonzo à espera dos adoradores. Era, efectivamente, um anormal. Crânio e fácies de mongolis-mo. Sobre os pómulos salientes, as órbitas oblíquas, de tão inexpressivas, pareciam, a distância, vazias. Tinha a cabeça descaída sobre o roupão, que, muito atufado à frente, dir-se-ia ocultar um furto. Foram, porém, as mãos que mais me impressionaram. Eram pequenas, de falanges muito curtas e afastadas, mãos de sapo. Arrepiou-me a ideia de que um dia as poderia sentir sobre mim.
A criada deixou-nos sós e eu não soube que dizer ou fazer. Balbuciei um «boas tardes» comprometido, com a hesitação de quem saúda um espantalho ou uma criança. Os lábios grossos de bonzo - que poderia ter várias idades, o meu director chamara-lhe «rapaz» - arremedaram um sorriso pelo qual se soltou uma língua rugosa e acolchoada. Talvez ele não fosse bem um idiota, mas apenas débil mental. E enquanto esperava que outra pessoa surgisse de qualquer lado, fui pensando: eis o que pode acontecer a um casal de velhos esgotados. Tiveram um filho tarde de mais. Mas de súbito lembrei-me que o dono da casa era o avô e que, portanto, os pais do monstrozinho não eram tão idosos como isso. A explicação deveria estar numa hereditariedade corrupta: sífilis, tuberculose, nevropatias, eu sei lá! Ou quem sabe se nada disso... Fugia dos olhos parados do meu silencioso conviva, embora eles me seguissem tenazmente como os olhos de um retrato, e ia cogitando na demora de um interlocutor válido, até que, de uma portinha lateral surgiu o que deveria ser, por certo, o tal Sr. Seixas.
- Queira sentar-se, doutor. O professor Caldeira falou-me de si com muito apreço. Seja bem-vindo.
Modos corteses, mas austeros. A cadeira que ele me indicara ficava junto do sofá do doente, e as mãos deste logo se agitaram. O roupão abrira-se, mostrando um esterno afilado como a quilha de um barco. Devia tê-lo suposto: era esse o furto que o vestuário escondia. O avô observava-nos. A sua atenção repartia-se entre mim e o neto, mais demorada nas reacções deste. Era de novo um silêncio incómodo. Por isso o quebrei, dizendo por dizer:
- Tem uma bonita casa. Bem situada.
- É, de facto. Aqui passo os dias, com o pequeno. Esta varanda oferece-me o rio e o mar; a outra, repare, a serra. E quanto à cidade, ouço-a perto, respondendo ao mugido dos barcos a entrar na barra... Deste modo, gozo a paz da solidão e nunca me convenço muito dela a ponto de neurastenizar.
Sorri, um pouco tolamente. «Passo os dias com o pequeno.» Viviam, então, ali os dois, provavelmente afastados de outros membros da família, se os houvesse. Remexi-me na cadeira, acudi a um fervilhar na asa do nariz e adiantei:
- O seu neto sentiu-se mal, não?
- Não é bem isso. Creio que o seu fígado, ou a vesícula, ou qualquer coisa lá por esses sítios..., não tem regulado bem.
O cretino, aprovando, sacudia a cabeça, que parecia ter sido espalmada por duas mãos demoníacas. Era nítida a sua satisfação por ser alvo da nossa conversa e por nela participar.
- Onde te dói, Pedrinho?
Os seus olhos alagaram-se de júbilo. Quase fulgurou neles a inteligência. Mas a excitação, em demasia, obrigou-os a resvalar e as pupilas deslocaram-se, quase desaparecendo sob as pálpebras superiores.
- Qui... - e arreganhou um sorriso. Os cantos da boca tinham começado a babar-se, como um rafeiro a quem mostram, fora do alcance dos dentes, uma fatia de carne.
Foi com repugnância que desapertei o roupão do anormal. Quando os seus dedos me roçaram a pele (o primeiro reflexo dele tinha sido de pavor, todo o seu corpo se encolheu), contraí as maxilas para não recuar também. Essa reacção, em mim, era indomável. Tudo o que, num ser vivo, fosse imperfeito, anomalia, chaga, aleijão, me eriçava os nervos. Desde sempre, por mais que os anos me calejassem. Auscultei-o de olhos fechados, prolongando o exame, a tecer um modo de abreviar ou dispensar o instante em que, enojado, deveria palpar-lhe o abdómen. Tinha de ser, porém. Tinha de ser.
O sofá, graças a uma articulação bem engendrada, permitia que o corpo do rapaz se estendesse quase como sobre uma cama. Supus, por isso, que o doente não andasse pelo seu pé. Mas não me atrevi à pergunta. Bem entendia o significado da ternura líquida que suavizava as pupilas duras e vigilantes do velho. Devia evitar embaraçá-lo, logo na minha primeira visita, com um questionário avivador das minúcias daquele drama. Aliás, podia acontecer que não voltassem a chamar-me ou que a roda da sorte escolhesse na próxima vez outro dos assistentes do director. E talvez eu preferisse que assim fosse.
Quando me debrucei sobre esse corpo meio despido, de uma brancura leitosa, um corpo que não poderia comparar-se ao de uma criança, mas à miniatura de um adulto, o rosto dele ficou tão perto do meu que voltei a fechar as pálpebras para banir a náusea. Mas, ao furtar-me, via-o ainda mais grotesco e flácido - mais perto; de mim.
Fui dizendo como se recitasse: - Nada de particular... Apenas uma discreta defesa muscular sobre o cólon direito... Muito discreta. - E, retirando as mãos, encarei o Sr. Seixas: - Suponho que o seu neto tem refeições ligeiras. Nesta imobilidade, é, evidentemente, de aconselhar.
O velho endireitou a cabeça com altivez. Era cabeça; nobre, mas também desdenhosa.
- A imobilidade não é tanta como julga. Todas as manhãs damos um passeio pelo pinhal.
Havia um tom ofendido nessa réplica. Não percebi porquê. Teria ele deduzido que eu julgava o doente totalmente inválido? Era essa suspeita um insulto? O Pedro, que devorava cada palavra do avô, teve um risinho cacarejado de galinha ao descobrir um verme e repetiu:
- Pinhal... pinhal...
O velho fitou-o num silêncio complacente e tristonho.
- Sossega, Pedro, não te excites. O senhor doutor vai pôr-te bom.
- Bom... pinhal...
E as falanges, distendendo-se como as patas de uma rã, aproximaram-se, puxaram-me pelo casaco. Não consegui reprimir um movimento brusco de defesa, que não escapou ao avô.
- Pinhal...
Mas a hospitalidade um tanto condescendente do dono da casa tinha desaparecido. E a reacção que lhe apercebi não era a de um avô beliscado na sua melindrosa afeição ao neto, mas de uma loba vigiando a cria.
- O senhor doutor não tem vagar para passeios. Vá, serena, Pedro. Doutor, queira transmitir-me as suas indicações.
Era uma despedida. E, nem sei bem porquê, ela feriu-me. Gostaria de permanecer mais tempo. Gostaria, até, de ir ao encontro de algum desejo do doente, por exemplo acompanhá-lo ao pinhal, estar com ele mais de perto, vencida a surpresa, vencida a repulsa, redimi-lo, por um afecto sem lástima, da sua condição de anormal. Era tarde, porém, para eu próprio me redimir. O Sr. Seixas devolveu-me à criada, cuja expressão, ao orientar-me no caminho da saída, era ainda tão severa que, por reflexo, voltei a sacudir os sapatos no mesmo capacho.
Nesse momento aconteceu qualquer coisa imprevista: ouviu-se o ruído abelhudo de um destes pequenos automóveis de corrida a desembocar na última curva. O carro travou subitamente em frente da vivenda. Percebi sem dificuldade pelo rosto da criada que a dama que fazia um espectaculoso aceno do carro não era só familiar às pessoas da casa, mas, sobretudo, indesejada. Cruzei-me com a visitante já à beira do portão. Eu conhecia-a de vista, um tanto remotamente, é certo - mas donde?, em que circunstâncias? o táxi, prevenido, esperava por mim. Embalou imediatamente na descida, aturdindo-me, não deixando que eu sedimentasse as recordações. Foi quase ao terminar a ladeira, ainda obsidiado pela estranha atmosfera donde acabara de sair, que me lembrei que o motorista, muito provavelmente, poderia satisfazer a minha curiosidade.
- Conhece o senhor Arnaldo Seixas, é claro...
- Os ricos são sempre conhecidos. Até quando morrem, arrotam grosso. Estão mortos e ainda temos de saber que é com eles que tratamos: coroas às dúzias, um rancho de gatos-pingados. É por isso que eu desconto todos os meses para um subsídio de funeral. Ao menos, quando morrer, quero que toda esta rufiagem me conheça: vai ali o João Vinhas... Pagou o enterro em vida... Hão-de tirar o chapéu, garanto ao senhor.
Cortei a verborreia:
- Ele é então muito rico?
- Podre de bago. Mas, no fim de contas, leva uma vida chata como um labrego. Engatou-se ali com o neto. Parece ter medo que lhe roubem a prenda...
Chocado pela ordinarice brutal daquelas palavras, não adiantei. No entanto, quando ele me despejou a dois passos da gare, ainda lhe disse:
- Esteve para perder este frete. Eu podia ter esperado pelo regresso daquela senhora que entrou quando eu sai. Reparou?
- Ah, a louraça?... Aí estava uma boleia de primeira categoria...
- Que iria ela fazer lá a casa?...
- Então não a conhece? É a nora do Seixas. Chupa o velho, dizem. É pra que elas servem.
- Nora?!
- Isso é um enredo que dava um folhetim da rádio. O comboio ia partir. Tive de saltar para uma das carruagens em andamento, por pouco não me estatelei no empedrado do cais.
De repente, identifiquei-a: a «louraça» era Dasy! A cada instante, a cada evocação, a suspeita confirmava-se. Era ela, sem dúvida. Aquele lábio carnudo não enganava. O mesmo jeito de boca a descair um pouco nos cantos, amarga quando não sorria por hábito ou atitude. Dasy, pois. A descoberta pôs-me desordem nos gestos. Que havia nela de diferente para não a ter reconhecido no primeiro momento? O cabelo. Era o cabelo. A tal madeixa branca, como a crista de uma onda, desaparecera. Os cabelos afeavam-na numa nova cor, uniforme e abusiva, e apetecia dizer isso mesmo a esta Dasy estouvada, que não tinha a compostura da outra que eu vira na pastelaria - há quanto tempo?
Nora do Sr. Seixas. E a crónica de Dasy, que dantes me desafiara o espanto provinciano, refluía agora num gosto ácido. Inventara-lhe, já sob um ângulo menos indulgente, os pormenores. Ao fazê-lo, havia até em mim uma gélida dureza. Que fadiga me dera a cidade? Que desconfiança? Que receio de ser burlada e ferido na minha faminta adesão? Que era feito da nossa alegria? Éramos tantas vidas, na cidade, tão diferentes e tumultuosas, tão juntas - e tão sozinhas! Pois que explicação me podem dar para isto de cada um sair a porta de sua casa e encontrar no mesmo elevador o vizinho que mora em frente, três passos mais e entra-se no seu lar, o vizinho que tem uma cara macilenta, que sofre, talvez, ou precisa de uma palavra, ou não precisa de coisa alguma, mas apenas de se sentir vivo atrás do convívio dos outros, do amor dos outros - e descerem no elevador lado a lado, olhos a esquivarem-se como floretes num duelo, e depois cada um afastar-se, rua acima ou rua abaixo, como gente que nunca se viu antes nem se verá em todos os dias seguintes?
Era em Dasy e na cidade, no velho e no rapaz, embrulhando-os na mesma súbita melancolia, que eu ia meditando enquanto olhava vagamente o friso de palmeiras que se afilavam, como modelos num palco rolante, à passagem do comboio. Voltei a cabeça para o outro lado e, pela primeira vez, pus-me a reflectir sobre o motivo daquela designação: Vila das Cegonhas. Uma crisma deslocada, ridícula. Ou talvez um daqueles pinheiros tivesse sido o ninho eleito dessas aves. E desci do comboio ainda a repetir em pensamento: «As cegonhas gostam dos ninhos altos. É de lá que vêem a planície.» Mas tão longe eu e as cegonhas estávamos da planície!
Tão longe. Nesse momento, atravessava eu o Rossio. O coração da cidade que não entendia. E a bulha à roda e as tarefas que me esperavam depressa me varreram os traços daquela insólita visita.
Iria avivá-los no dia seguinte no primeiro encontro com o director de serviço.
- Então, que tal o neto do velho Seixas?
- Mais ou menos o que o senhor esperava.
- Pois: alguma pancada de chocolates. Obra das criadas, que julgam que somos uns sádicos ao refrear a gulodice do menino.
Entre as várias perguntas que desejaria fazer, escapou-me esta:
- Que idade tem ele?
- Quem, o rapaz? Ao certo... Ora deixe ver, a guerra acabou em 45. A mãe apareceu antes, claro, com o grosso dos refugiados... Estamos em 59... É muito provável que o rapaz ande à volta dos treze, catorze anos. Conhece a mãe? Olhe que já não é criança, embora ponha muita virgem a um canto...
- A mãe?...
E, de chofre, percebia: a nora do Sr. Seixas, Dasy, a Dasy era também a mãe do pobre anormal. Uma dedução que entrava pelos olhos dentro. Porque resistira eu, até aí, a essa evidência? E que se passava comigo ao associar agora a lembrança de Dasy a um sentimento de horror? Estava certo de que poderíamos descobrir nela os estigmas da fealdade pungente do filho, descobrir em Dasy as sementes da monstruosidade.
Prossegui numa voz de desapreço:
- Era então a mãe a senhora com quem me cruzei ao portão da vivenda... Loira. Apareceu num automóvel.
- Era ela. Loira é uma metamorfose recente...
- Já a tinha visto, há tempos, uma ou duas vezes...
- Sim, meu caro, ela é muito vista - mordeu o director, num destes sorrisos de adulto que concede em dialogar com um adolescente sobre coisas apimentadas. Mas logo emendou: - Enfim, são assuntos que não nos interessam. O garoto ficou bem, não é verdade?
Pareceu-me que ele não estaria muito disposto a ir além, mesmo que o espevitasse, pois, acima de tudo, não desejaria embrulhos com um cliente rendoso. Na cidade, mesmo os náufragos de bofes já sufocados ainda levantam a bolsa acima das águas. Defendem-na com insegurança, terror e ferocidade. Se necessário for, contra si próprios. Daí, cauteloso, o director afagou-me as costas e assim se despediu. Fez de conta que ia no encalço do chefe do laboratório de análises, que nos saudara do extremo do corredor.
Aconteceu topá-lo meia hora depois, e, então, entalado com novas perguntas, disse-me que Dasy era também uma doente. E que o marido tivera nisso certas responsabilidades. Pormenorizou-me, ainda, uma tortura a que ele a sujeitava: não a deixar dormir.
À tarde, fui sentar-me no tal salão de chá dos Restauradores - um bom pedaço antes da hora da tertúlia. Queria estar só. Escolhi uma das mesas que habitualmente não era do nosso agrado, mas que tinha uma localização estratégica. Para quê estratégica? Que vinha eu ali fazer solitário, em vez de ir tomar a «bica bem quente» num verdadeiro café? Bastaria atravessar a rua... Eu poderia responder: os detectives, como os culpados, farejam o local do crime. Que crime? O caso de Dasy. Tinha-o enrolado na garganta e tanto mais quanto, ocasionalmente, roçara por ele, tanto mais quanto o enigma se adensara. Ora fora naquela mesa que eu vira Dasy havia um ror de tempo; seria, pois, no mesmo lugar que eu, com maior autenticidade, me deixaria possuir por uma atmosfera provocada ou evocada pela presença de Dasy. Talvez ela frequentasse a pastelaria a uma hora diferente da nossa; se, por coincidência, ali aparecesse, estou certo de que me teria apresentado como o médico do seu filho, numa espécie de desafio, só para lhe medir a reacção. Que teria ela para me dizer? Que havia de terrível ou de vulgar nessas três vidas, avô, mãe, filho, acorrentadas por um vínculo de sangue que, no fim de contas, poderia nada representar? E porque escamoteavam esse vínculo?
Às sete horas, desisti da minha emboscada pueril. Fui para casa, fazendo batota com a impaciência, encarando o telefone como se tivesse ficado aprazada uma ligação e esta, inexplicavelmente, tardasse. Acabei por percorrer a lista e marcar um número. Hesitei por várias vezes, julgando ter-me enganado, poisando o auscultador antes de discar o último algarismo.
- É o senhor doutor? - responderam de lá. Sim, o menino Pedro está bem... Melhorou. Um momento...
Vou dizer ao senhor Seixas que... Tenho de dizer! O senhor Seixas ficaria aborrecido se não informasse. Só um momento, senhor doutor...
Metera-me parvamente à cara do Sr. Seixas! E agora que tinha levado por diante esse disparate, sem um real de justificação, que iria dizer ao Sr. Seixas se ele viesse ao telefone? Que me estava nas tintas para a doença do neto, que apenas me interessava bisbilhotar as mazelas morais da família - ou que estava morto por lhe sugar os honorários de uma outra visita assim tão grosseiramente metida à força? O Diabo que escolhesse. Estive à beira de desligar o telefone.
- Sim, sou eu. Como está, senhor Arnaldo Seixas? A criada já me disse que tudo corre bem. Não, não me parece necessário! De modo nenhum. Telefonei não porque estivesse preocupado, mas apenas para... se o meu director me pedisse notícias sobre o andamento da doença... Isto é, gostaria de estar elucidado... Pois. Mas não, senhor Seixas! Insisto em dizer que não me parece necessário. Bem, se assim o deseja... Mas repito que... De acordo; estarei em sua casa um pouco antes da hora de jantar.
Quando poisei o telefone, senti as faces rubras, como se uma caterva de pessoas tivesse sido testemunha do meu enleio. Que fazer para rectificar o deslize? Mas talvez o Sr. Seixas tivesse ficado realmente convencido de que não houvera uma intenção mercantil no telefonema. De qualquer dos modos, portara-me, mais uma vez, sem aquele à-vontade que se impõe mesmo a gente suficiente como o tal Seixas. E, provavelmente, depois de dezenas de anos de província, era já tarde para vestir outra pele. Acendi um cigarro com nervosismo e perguntei-me de que maneira iria preencher a visita à Vila das Cegonhas depois de saber que o rapaz estava mais uma vez apto a ser empanturrado.
Não avistei o táxi da véspera à saída da gare e nem sei porque, durante a viagem de comboio, estivera tão certo de o encontrar. Chamei outro, e embora o motorista, do mesmo modo, mostrasse conhecer bem a vivenda e, portanto, os seus moradores, não lhe fiz perguntas. Infantilmente, tive ainda o vago palpite de que, ao virarmos a última curva da ladeira, nos esperaria o moscardo vermelho da nora do senhor Seixas. Claro que também nem isso aconteceu.
A mesma criada, os mesmos capachos (dessa vez limpei os pés logo ao primeiro), o salão, as flores, o Pedro sorrindo-me cretinamente do seu altar de manipanso condenado a adoração perpétua. Até os olhos se lhe riram.
- Olá, Pedro...
Ele, enervado, flectiu as mãos, dobrou-as para dentro, como fazem as galinhas quando se vão espojar. Senti o que quer que fosse de enternecimento por me aperceber de que a minha visita lhe era agradável. A visita de um íntimo e não de um estranho - embora fosse a segunda vez que o via. Mas de que outro modo poderia reagir aquele pobre tolo, enclausurado numa casa e num pinhal, sempre com as mesmas pessoas em redor de si? Ele fez o gesto de bater as palmas, rindo, excitadamente, à medida que me aproximei. E repetiu como um papagaio:
- Olá.
E eu estimulei-o, embora com esta sensação de que poderia estar a dirigir-me a um adulto usando de uma linguagem infantil:
- Olá.
A minha atenção, porém, esquivou-se para o entardecer rubro, que parecia colado a toda a largura da vidraça. O rapaz seguira-me os olhos e talvez os pensamentos, apontando lá para fora:
- Pinhal... pinhal...
- O Pedro está sempre pronto a um passeio.
Era o dono da casa. Tal como na véspera, aparecia de improviso - não sei ao certo se por atitude. De qualquer dos modos, essa entrada em jeito de emboscada tinha-me sido desagradável. Respondi-lhe como se estivéssemos, eu e ele, a recitar um papel:
- E far-lhe-á muito bem.
Foram estas as nossas saudações. No entanto, havia na atmosfera uma outra familiaridade. O velho esteve a fitar o neto por momentos e depois disse:
- Ele associou a sua chegada a um passeio ao pinhal. Não acontecem coisas dessas com toda a gente. Para lhe ser franco, já ontem me parecera que o senhor doutor conquistara as simpatias do nosso Pedro...
- Fico satisfeito por sabê-lo. A réplica foi seca:
- E eu mais do que o senhor.
Ele era, sem dúvida, um homem duro. Um homem cicatrizado. Eu gostava, porém, de pessoas que dissessem o que tinham para dizer. Entendia-me bem com elas. Olhei-o com segurança e compreensão, tal como ele me olhou a mim. O rio, ao longe, reflectindo o crepúsculo, era feito de lava.
- A situação desta casa é, de facto, excepcional!
- Uma compensação para os que se dão ao incómodo de nos visitar... A propósito, senhor doutor: espero que não tenha alterado o programa das suas tarefas com esta deslocação inesperada...
- Já que necessitou dos meus serviços... estou aqui também a cumprir uma tarefa.
Voltou a apreciar-me, dessa vez através de uma espécie de afectuosa zombaria. Mas depois dela ficou apenas um olhar sonâmbulo.
- Posso oferecer-lhe uma bebida?...
A inquietação do rapaz exacerbou-se, ele quis erguer-se do sofá.
- Pinhal... pinhal.
A repelente espuma branca golfou-lhe da boca la-muriosa.
- Espera um momento, Pedro. - Era uma voz de quem está habituado a fazer-se obedecer. Empurrou-me familiarmente para o outro extremo do salão, onde estava o bar, e disse: - Não sei se reparou na impaciência do meu neto quando o convidei a uma bebida. Extraordinário, sabe? O meu oferecimento foi, para ele, a certeza de que estarei de acordo em que o senhor o acompanhe ao pinhal. Todos nós, eu e a criadagem, captamos, sem dificuldade, o significado das suas reacções. Que são por vezes de uma argúcia espantosa!
O velho dissimulou a emoção numa golada de whisky e, de sobrancelhas unidas, bruscamente azedado, inquiriu:
- Que pode acontecer a uma criança destas se lhe faltar o amparo de quem o estime? O dinheiro de pouco lhe servirá. - Eu baixei a cabeça, pondo-me a alisar, com o sapato, uma dobra do tapete. - Não é ao senhor que faço a pergunta, bem entendido. É a mim próprio. Dou voz aos meus pensamentos.
Perguntas, era eu que tinha a fazê-las, e cada vez mais aguçadas. Mas não me atrevia. Não tinha o direito, sobretudo agora, que o velho Seixas me oferecia, de instante para instante, a sua confiança.
Observei, enfim, o rapaz, seguindo, distraidamente, as normas da rotina - «tudo normal», garanti -, mais para justificar a minha presença, e depois saímos ao pinhal. O Pedro dispensou, um tanto desabridamente, a minha ajuda.
- Ele quer mostrar-lhe do que é capaz... - explicou o avô, e via-se quanto me exibia o triunfo daquela aberração caminhar pelo seu pé, e mesmo tentar correr movimentando-se como um boneco de corda.
O velho sorria, numa suavidade experiente, deixando-se ficar para trás. Foi então que já não pude refrear-me e lancei a isca:
- O seu neto é expressivo, sem dúvida. Há nos seus gestos uma ávida comunicabilidade.
- Isso mesmo.
- ...E é naturalíssimo que seja mais expressivo para quem lhe tenha mais afecto. O senhor acima de qualquer outra pessoa, é evidente. O senhor e, decerto, a mãe...
Aquilo foi um tiro certeiro e à falsa fé. A testa do dono da casa crispou-se, correu-lhe fogo pela cara.
- Eu não lhe falei da mãe. - E logo se dirigiu ao neto: - Está fresco, Pedro, voltamos para casa.
Pus-me a olhar significativamente o relógio de pulso, sentindo que o brusco amuo que eu provocara seria, por certo, definitivo. Foram momentos longos, esses, até reentrarmos no salão. E quando peguei no meu estojo de médico, em jeito de largada, ele, finalmente, disse:
- Está com pressa?
Havia no seu semblante, erradio, o capricho de quem estrangula um sentimento ainda vivo, mas que se torna necessário sacrificar.
- Creio que já fiz prolongar para além das conveniências a minha visita de médico...
O dono da casa ignorou completamente as minhas palavras. Isso era nítido na sua expressão, ainda absorta e também desdenhosa.
- Ouça, doutor: tem algum compromisso para jantar? - E antes que eu reflectisse no inesperado convite, acrescentou: - Sou um homem de outra época, ainda me prendo à ideia de que um médico é também um amigo a quem pedimos que se sente à nossa mesa.
- Aceito com prazer.
As reacções do Sr. Arnaldo Seixas revelavam-se, de facto, contraditórias. Era visível que o isolamento não lhe estava no sangue, a ele fora obrigado fosse porque fosse, que desejava convívio, que as doenças, reais ou imaginárias, lhe serviam de pretexto para se assegurar de um interlocutor durante umas horas - e também se ficava a saber que um nada o poderia beliscar.
Jantámos numa saleta contígua. Suspeitei que não era esse o seu hábito, pois desculpou-se para o neto: «Hoje, Pedro, não te faço companhia ao jantar. Eu e o senhor doutor estaremos de volta daqui a pouco.» O cretino protestou com a cabeça, fez uns gestos hediondos e, por instantes, pareceu-me que o avô ia ceder. Surgiu-me, então, uma ideia: abri o estojo do fo-nendoscópio e deixei-o, como fabuloso brinquedo, no regaço do rapaz. Ele ficou rubro de prazer.
- Não há dúvida de que o senhor sabe lidar com as crianças...
- Na aldeia, eram os meus companheiros preferidos.
- Não é de cá? - inquiriu, num timbre de aprovação e alívio.
- Sou provinciano e fiz na província quase toda a minha vida de médico.
- Já o devia ter suspeitado. De resto, em Lisboa não há lisboetas, mas sim provincianos emigrados.
- Devo tomar as suas palavras como um elogio ou uma censura?...
Ele riu. A rir, era um homem sedutor. Foi a meio do jantar, até aí quase silencioso, um silêncio com certo odor de ameaça, que ele desfechou:
- Conhece a mãe?
Fiz uma pausa como se ela me fosse necessária para decifrar a pergunta.
- Conheço.
O Sr. Seixas traçou um vinco na toalha.
- Que sabe de nós?
- Tão pouco que nem suspeitava que ela fosse parente do senhor. Disseram-mo hoje.
- Não é minha parente.
Da sua voz parecia chover um desprezo frio.
- É a mãe do Pedro - retorqui com firmeza.
- Mãe! Também o senhor lhe chama mãe! Pois é a ela que o meu neto deve a sua infelicidade. E, ainda por cima, odeia-o.
- Não pode ser.
- Um ódio das entranhas injuriadas. - O velho rodou o copo entre as mãos, espremeu-o, como se fosse estilhaçá-lo, como se fosse rasgar-se nas arestas, a lutar ainda, decerto, com a urgência em se abrir comigo, e prosseguiu: - O senhor doutor já perguntou a si próprio a razão de o meu neto ter nascido tal... como é? O pai era um homem escorreito, a mulher que o pariu dizem que é bela. Onde está a explicação? - Despejou o copo vagarosamente. - Vou eu dar-lha.
A curiosidade, em mim, gastara-se de súbito. Não sei porquê, de um momento para o outro, passei a temer as revelações do dono da casa. Sentia os músculos pesados, os nervos lassos. Apetecia-me gritar-lhe: «Não fale, não quero ouvir.» Por outro lado, não me parecia decente que ele consentisse na presença da criada. Ou o velho financeiro desprezava de tal modo os servos que os considerava objectos, sem olhos nem ouvidos, ou, de há muito, os fizera cúmplices desse enxovalho à mãe de Pedro. Creio que a segunda hipótese era a verdadeira.
- Vou eu dar-lha - repetiu ele com um breve sobressalto de exaltação. - O meu neto foi gerado contra a vontade de todos. Até da minha, confesso. Foi o ódio que o gerou. Essa mulher a quem o meu filho deu o seu nome nunca pensou ou desejou ser mãe, a gravidez era uma ameaça ao seu encanto físico. Assim, logo que se viu um nada deformada, encharcou-se em drogas. Não esqueço uma frase do professor Caldeira dita por essa altura: «A sua nora, meu amigo, toma brutalmente tiroidinas. Isso não dará bom resultado.» Ele, ao dizer isto, pensava nos seus nervos de louca, mas o resultado trágico foi outro: este filho. Ninguém me convence do contrário.
A excitação crescente do velho Seixas não se mostrava bem pelo tom das palavras, mas, antes, pelo en-cordoamento das veias do pescoço. Poder-se-ia recear, a todo o momento, que uma delas se rompesse.
Tentei apaziguá-lo, desviando-o para um campo menos irritadiço.
- Decerto que o seu neto tem sido observado por especialistas...
O velho fungou de escárnio.
- Pedro nasceu e ninguém quis saber dele, embora só algum tempo depois se tivesse percebido que não era uma criança... como as outras.
- É penoso para o senhor estarmos a falar deste assunto.
O olhar tornou-se-lhe fixo e escuro, enquanto a fronte murada de agravos se desenrugava. Palpitou-me que ele teria desejado voltar atrás e destruir o que dissera com a mesma raiva que o havia instigado ao desabafo. Mas não o mostrou.
- Fui eu que o provoquei. Aliás, é preciso falar disto de vez em quando, embora se escolham os ouvintes, bem entendido. Se não, somos tentados a fraquejar... Beba um pouco mais deste conhaque, doutor. Não repare que eu não o acompanhe. Tenho a minha medida.
A criada, sem esperar pela minha anuência, serviu-me distraidamente de mais vinho, em vez de conhaque, e, depois, retirou-se da sala. O dono da casa, agora de expressão ausente, não deu pelo engano, nem eu tentei rectificá-lo. Era indiferente vinho ou conhaque. Todo o meu desejo seria partir.
Ficava-me, porém, pelo desejo. Na cidade as pessoas viviam constrangidas. Suponhamos que eu estava na aldeia: já teria dito muito naturalmente ao Sr. Seixas:
«Vou-me embora.» Ou porque me chamavam outros compromissos ou apenas porque me apetecia. Aqui, não. Aqui, nem o professor Caldeira, com toda a sua suficiência, poderia fazê-lo. O médico tinha de ser ao mesmo tempo um cortesão. Ou estaria eu a ser injusto com a cidade? Quantos constrangimentos tivera eu de suportar na aldeia? Às vezes receava que este meu jeito esquivo, ressentido, perante os ambientes, cidade ou província, fosse a rebeldia gratuita de um inadaptado. Essa inadaptação, feita de debilidade, traduzia-se, entre outros aspectos, por uma ânsia de fuga. Eu só sabia fugir. Fugir em vez de lutar - em vez de ser capaz, por exemplo, de dizer a este ex-banqueiro: «Não me apetece estar mais tempo consigo. Já sei tudo o que desejava saber de Dasy.» E sair pela porta gozando a minha coragem de homem livre. Dasy? Mas que tinha Dasy que ver com o meu súbito fastio?
- Onde estávamos, doutor?... - Afastara-me para tão longe que a voz do dono da casa me violentou odiosamente. Todo eu estremeci. - Ah, nos especialistas. Sim, corri a via-sacra dos avós que têm de substituir o amor dos pais. O pequeno esteve em várias clínicas estrangeiras, pus mesmo de parte os negócios a fim de o acompanhar. Inútil. Foi tudo inútil. Entretanto, os pais divertiam-se, creio até que só muito remotamente se apercebiam de que tinham um filho. Admira-se? O pai, tenho de confessá-lo, era um pobre de espírito, talvez por minha culpa, que, atolado em conselhos de administração, em estratégias financeiras, nunca reparei muito na família. Até que um dia se descobre, com espanto, que na vida há apenas duas ou três coisas permanentes: uma delas, justamente, a família. - E o velho apontou-me um dedo enervado. - Note, porém, que, de família, só reconheço o meu neto. Mesmo o meu filho, se fosse vivo... Enfim, não quero dizer heresias. Ele só tinha olhos para essa aventureira que o enxovalhou.
Quanto a ela... escondia de todos a vergonha de ter um filho anormal. Tinha vergonha do filho! Cocei as têmporas antes de me arriscar a dizer:
- Mas, ainda ontem... Permita-me uma observação: ainda ontem vi a mãe do Pedro entrar para aqui, decerto para visitá-lo...
Umas das pálpebras do Sr. Seixas tremelicou.
- Chantagem.
A refeição havia terminado, o dono da casa ergueu-se do lugar, esperou uns instantes que o imitasse e, depois, deu uns passos até à janela, mãos enfiadas nos bolsos, que eram talhados de um modo pouco usual: obliquamente, perto da cintura, deixando de fora os polegares. Quem o visse de longe diria que ele tinha os dedos metidos numa cartucheira.
Apoiou-se de costas na janela, acendeu uma cigarrilha.
- Chocou-se de eu ter empregado a palavra «chantagem»?
- Choquei-me, sim senhor - anuí com rigidez.
- Pois julgo que o dicionário não me indicará outro meio mais exacto para definir o que se tem passado. Pago para ter o meu neto comigo. Pago para o proteger da mãe.
Eu sentia as vísceras contraídas, tal como se fosse vomitar. Tinha bebido um pouco mais do que habitualmente, o fumo da cigarrilha era enjoativo. O Sr. Seixas teria por hábito contar aquilo a toda a gente? Ou havia sido eu a arrastá-lo, sem querer, à exaltação, ao lembrar-lhe a visita de Dasy?
O homem deu mais umas passadas e, bruscamente, plantou uma das mãos no meu ombro.
- Perguntava então o senhor que vinha essa mulher aqui fazer?... Vem lembrar-me que é ela a dona do pobre Pedro, um filão donde extrai todo o oiro que deseja. O professor Caldeira não lho disse?
- Ninguém me disse coisa alguma. Mas seu filho, quando morreu...
- Estavam casados com separação de bens. A essa mulher apenas resta o infeliz que a sua depravação concebeu. Ameaça-me com levá-lo todas as vezes que resisto às suas imposições.
- Tudo isto é perturbante para um estranho, talvez horroroso...
- Vê o senhor como também sabe encontrar as palavras exactas?... - Repuxou-lhe a boca um esgar que parecia um arremedo de riso, contido por orgulho ou decoro. - Sim, vivemos, eu, ela e o meu neto, num charco de horror.
Se eu estivesse na aldeia, teria dito seguramente naquela altura: «Vou-me embora porque não posso ouvi-lo mais.» Não passaria daquela altura. Mas eu estava na cidade, ancorado absurdamente na cidade, e o Sr. Arnaldo Seixas era um cliente do meu director de serviço. Esfreguei os olhos, a testa, as sobrancelhas, como era meu hábito nos momentos de decisões estranguladas. «Vou-me embora», repetia eu cá por dentro, num jeito de birra ou lamúria. «Vou-me embora, já sei tudo sobre Dasy, tudo o que não desejaria saber.»
Não tinha sido o vinho a atordoar-me, mas sim o desabafo maligno do dono da casa. Era preciso pôr-lhe cobro. Nesse momento, porém, tocou o telefone. Foi estranha a minha reacção: a mesma de um sequestrado numa cabana isolada que ouve o retinir imprevisto do telefone no momento preciso em que se rende aos raptores. O telefone é o sinal de que nem tudo está perdido. Que o local da clausura foi descoberto. Que alguém virá libertá-lo.
Também o velho Seixas pareceu surpreendido e ficou expectante. A criada veio explicar:
- A senhora dona Dasy está ao telefone. Já a informei de que o menino está melhor.
- E então?! - inquiriu, secamente, o dono da casa.
A criada não estava à vontade. Foi numa atitude comprometida, de quem esconde uma culpa, que acrescentou:
- É que a senhora ainda continua ao telefone. Eu disse-lhe que o senhor doutor tinha vindo cá... que estava cá... e a senhora julga que lhe menti, que o menino piorou. Quer vir certificar-se.
O velho empalidecera. Pareceu-me que, agora, era ele o comprometido. Medindo-me de esguelha, intimou:
- Vá, dize-lhe que não precisa de vir.
Reparei que ele roçava as polpas dos dedos umas pelas outras, com nervosismo. Foi então que tive uma súbita e corajosa ideia: dei um passo para o corredor e propus:
- Creio que será preferível ir eu tranquilizá-la. Sendo eu a dizê-lo, ela acreditará. Onde é o telefone?
Não lhe dei tempo de repontar. O velho ainda levou o braço adiante, como a estorvar-me ou a dizer-me «Aonde vai o senhor?», mas já eu ia a caminho do átrio, donde, pouco antes, ouvira a criada a atender a chamada. Falei directamente com Dasy. Que importância teve isso para mim ou de que modo avivou a minha perplexidade perante aquelas personagens de uma história onde nunca se chegava bem ao fundo do asco, da verdade ou da fraude - ainda hoje não o sei. Tudo, nesses momentos, se passou numa nebulosa irreflexão, propósitos e palavras. Do que me lembro com nitidez é do timbre da voz de Dasy: enevoado, lento, de quem fala de muito longe ou para ninguém. Da parte dela, nem um estremecimento de ansiedade.
Reentrei na sala em passos miúdos. No dono da casa havia só sarcasmo. Isso: quase um bom humor sarcástico. E disse-me:
- A minha nora não necessita que a tranquilizem...
Basta-se perfeitamente a si própria. Mas, pelo meu lado, agradeço-lhe o favor: a sua intervenção impediu certamente que eu tivesse o desprazer de a ter hoje aqui.
Ele vencia. Vencia o que em mim poderia ainda haver de incredulidade. Talvez por isso, apeteceu-me, naquele momento, confessar-lhe que eu tinha na mão um dado perturbante: Dasy sofria de insónias e fora o marido o responsável, ao queimar-lhe, semanas seguidas, os olhos adormecidos, num requinte de malvadez, com uma lâmpada que tinha o brilho e o fogo do Inferno. A voz enevoada de Dasy, retida nos ouvidos, vinha lembrar-mo. Uma voz longínqua e irreal. Não se sabia o que pretendia exprimir ou a quem era dirigida. Mas, teimava eu, rebelando-me contra o Sr. Seixas, nessa voz coada havia um apelo à compreensão. Um brado exausto de socorro.
A gente, na cidade, não segura o tempo. Ele passa, corre - traiçoeiramente; passa ou corre, como alta nuvem, sem nos dar atenção - até ao momento em que reparamos, assombrados, que ele se distanciou. E as coisas que com ele passaram vemo-las então ao longe, já descoradas ou alheias. No entanto, em certas horas vazias da tarde, no café ou pelas ruas, eu ainda fazia por sentir próximas as recordações desse trio singular: Dasy, o velho, o garoto que não era garoto, nem adulto, nem criança, mas um bonzo que, sob expressões opostas, tinha duas vidas sacrificadas ao seu culto. Seria assim? Mesmo com essas evocações sedimentadas pelo tempo eu continuava a não compreender. Mas permanecia intrigado.
E ao falar de mim e das pessoas, vou falando sempre da cidade. Quem disse que nela a vida é cheia de surpresas, de ritmo voraz, a todos os instantes preenchida de novas emoções, de novos enredos - que implacavelmente põem de lado o que aconteceu na véspera? Quem disse que, renovada em cada dia, tem de ser feita de esquecimento? Não é assim. Ao contrário: a vida na cidade é excessivamente regular e fastidiosa, a sua vivacidade é apenas frenesi. O tempo passa sem nos chamar à consciência de que fazemos parte da sua marcha, corre como alta nuvem, mas por entre esta fátua vertigem vai-se processando a lenta elaboração da nossa interferência nos factos. Talvez por isso eu não conseguira arredar da memória as duas visitas ocasionais ao Sr. Seixas, o bonzo feliz ou infeliz, o telefonema a Da-sy. Agora, porém, se a minha curiosidade continuava acesa, já não poderia satisfazê-la. Provavelmente, o velho banqueiro escolhera outro médico mais discreto do que eu. No entanto, embora sem finalidade, passava de quando em quando pela avenida verde, a montra ao lado com discos, malhas, vestidos e uma falsa indicação - Boutique da Sara - pintada na vidraça. Boutique!
E um dia desci a escada estreita até à cave. Não eram sítios onde eu me sentisse à vontade, embora aquilo fosse um bar como tantos outros. O balcão cortado em ziguezagues, os rapazes de cabelo curto que se sentavam de esguelha nos bancos altos e falavam do modo como se faziam obedecer pelos seus fogosos automóveis, as mesinhas recatadas com um pequeno candeeiro ao centro, projectando um cone de luz, ímpia como um segredo, sobre mãos que se tocavam, mãos, ei-las, aí as tinha perto de mim, unhas prateadas que riscavam eroticamente os dedos nodosos do companheiro. A música velada e assim por diante. A clientela era reduzida e durante meia hora que ali estive não consegui descortinar a heroína das minhas espionagens.
Encontrei-a na segunda vez que lá tornei. Estava numa das mesas, como qualquer cliente, e acompanhada. Ele era moreno, quase amulatado, e tinha um riso carnívoro, que indispunha quem o observasse. De súbito, porém, a sua boca fechava-se num mutismo duro, e então punha-se a percutir no cinzeiro, ao ritmo da música, servindo-se da colher do açúcar. A sala estava ainda mais vazia do que anteriormente. Donde vinha essa música? De algures. Não o sabíamos. E era bom que assim fosse. Dasy olhava repetidamente para as escadas, talvez à espera que a sala se enchesse, se agitasse, e depois mordia, absorta, o lábio papudo. Ia mudando de posição, ficara toda voltada para mim, as pernas um pouco finas para o meu gosto, não se ralando nada que a saia tivesse ficado num desleixo provocante. Sacudiu novo cigarro no tampo do móvel, esperou que o isqueiro do mulato se decidisse a acender-lho. Deu-me bem a ideia de uma pessoa dentro de sua casa, a despeito de um nervosismo que era em Dasy uma íntima trepidação. Eu sabia que era assim, que para ela era fácil ser assim. Todos os gestos, todas as situações, e as palavras necessárias para as preencher, eram tão simples, nela, como em mim respirar. Essa gente que eu, provinciano, colocava noutro mundo que nunca poderia ser o meu, o mundo de Dasy, quer fossem apenas donos de um bar suspeito ou daqueles iates que balouçavam sonolentos, lembrando gaivotas a dormitar, nos molhes dos clubes náuticos, da gente que seroava nos dancings da beira-rio e ia tostar a pele nos campos de ténis ou nas praias mundanas, da gente que passeava a tristeza às gargalhadas, que em toda a parte podia sentir-se em sua casa, exibindo com igual naturalidade a candura e a podridão, porque em toda a parte eram eles os senhores e nós os vilões - essa gente, eu bem o sabia e lembrava Dasy, os gestos de Dasy, as pernas delgadas de Dasy oferecidas com desdém à minha cobiça, essa gente podia ser espontânea, arrogante, despreocupada, ter réplicas fáceis e sedutoras que nos deixavam embuchados, podia dispensar a vergonha, a timidez e até aquele tipo de remorso com que eu descera as escadas do bar e ali abancara tão inseguro como um colegial. Essa gente pertencia ao mundo do outro lado, temido e fabuloso, temido e desprezado, mas fazendo parte dos sonhos violentos de quem o desprezava. Essa gente podia ser Dasy, fazendo chantagem com um filho hediondo. Que objectivo me levara a procurá-la no seu antro? E que havia já de diferente, nela ou em mim, desde o primeiro dia em que a vira na pastelaria dos Restauradores ? Uma prevenção enojada, talvez, um desejo absurdo de ir junto dela e dizer: «Sou eu o médico que lhe telefonou, há tempos, sobre a doença do seu filho» e feri-la, acusá-la, apenas para não me sentir vexado com a sua impudica serenidade. E para quê?
As pernas de Dasy não tinham parança: aninhavam-se, estendiam-se, cruzavam-se. No resto, uma expressão progressivamente indolente, vazia. A boca descaía-lhe, avelhada, quando fitava o companheiro. Aquele lábio era, de facto, um gomo sumarento. Apetecia espremê-lo. A gente olhava-lhe a face opaca, sem viço, a espaços inquieta, e tudo que nela se acumulara, insónia, fadiga, tédio, e em chegando ao lábio esquecíamos tudo isso. Ali se refugiara o que nela havia de malicioso, de jovem. Pena que ela não usasse o cabelo como dantes, revolvido pela crista branca. De súbito, levantou-se. Fixou o mulato e disse-lhe, num jeito rebuscado de perrice:
- Não és muito falador.
O facto de a frase ter chegado a mim tão nítida pôs-me desassossegado. Como se eu tivesse estado ali à espreita, de sentidos assestados num acontecimento previsto, e a minha vigilância acabasse naquele momento de ser recompensada. Ergui-me também, aproximei-me sub-repticiamente. O mulato - que não era mulato, apenas tão berbere como eu - permaneceu indiferente. Ou talvez houvesse nele um nervosismo altivo, sufocado.
Pegou na mão de Dasy, não a deixou afastar-se. Ela apreciava-o agora de outro modo: com tolerância, com desprezo, com bonomia. E sentenciou:
- Comigo, já sabes, não vale a pena desconversar.
- Sei. Sei isso de há muito.
- Então, se sabes, diz-me coisas horríveis, pergunta-me coisas horríveis, mas sê franco. - E voltou a sentar-se. Ficava-me agora de costas. Não me mexi para que eles continuassem alheios à minha espionagem. - Porque é que as pessoas não hão-de ser francas?
A minha agitação acentuou-se. Reconhecia, só agora, e nessa última frase, a voz de Dasy. A voz do telefone. A voz da fadiga, de penumbra, de névoa. A voz, enfim, que justificava a minha presença naquele lugar. Era essa mesma Dasy que falava ainda, enquanto o berbere ferrava os olhos no chão:
- ...os tímidos são quase sempre velhacos, é a sua vingança, e os Portugueses são tímidos.
O fumo do cigarro provocara-me um brusco acesso de tosse, que denunciou a minha bisbilhotice. À toa, pus-me à cata de um cinzeiro, o braço parvamente estendido, imitando o tactear de um cego. Dasy indicou-me, ali ao lado, sobre a mesa, uma tacinha escarlate.
- Pode deitar a cinza em qualquer lado. Aqui, por exemplo.
A sua ironia repassava-me.
- Oh, obrigado, desculpe.
E saí, envergonhado, logo depois. Os tímidos... dissera ela. Que «velhacaria» havia então na minha insistência em prender ou dissociar esta Dasy, meio real, meio inventada por mim, ao pobre tolo engaiolado na vivenda do pinhal? Em encontrar-lhes uma odiosa coerência?
Não voltei ao bar. Aliás, pelo que parecia, ele durou pouco mais tempo. Reparei que a portinha verde se cerrava pelas manhãs. E depois também pelas tardes.
Até que fechou de vez. Retiraram os discos, os vestidos, os disfarces e um homem veio ofuscar os vidros com uma tinta branca que arremedava espuma de sabão.
Bem, na cidade, afinal, a gente sempre esquece. Fui-me desagregando, fui cedendo, o navio deslocou-se. Comecei a viver, mais a sós, a minha própria aventura, sem esperar que fossem os outros a empurrar-me. Os outros não tinham tempo de sobra e eu acabei por aceitar que assim acontecesse. Mas quantas raízes torcidas, quantos gritos dentro de mim e, depois, que silêncio coalhado! E quando até o nome de Dasy se me varrera, isto é, quando já tinha de fazer algum esforço para o lembrar, recebi uma chamada directamente da parte do Sr. Seixas. O doente era ele e não o glutão do neto.
Nada de intencional na minha eleição: o professor Caldeira estava ausente, no estrangeiro, e, enfim, eu já era conhecido da casa. Isto foi-me explicado sem rodeios e quase sem simpatia, enquanto me preparava para avaliar o endurecimento das artérias do meu caprichoso e esporádico cliente.
O tempo fizera os seus estragos: o ex-banqueiro era outro homem. Tinha uma cor de mármore embaciado e chocava-me particularmente a flacidez engelhada daquele rosto, já sem tonicidade para se mostrar severo. Ele ainda tentou erguer a cabeça acima dos almofadões, num protesto de falaz e tardia insubmissão. Um quarto, um leito, a doença, não eram cárcere que se lhe ajustasse.
Não falámos muito. Aliás, ele parecia apenas interessado em que discutíssemos as probabilidades de um acidente cerebral que fizesse dele um inválido. «Um morto-vivo», no seu dizer.
- Não vejo motivo para tais receios, tanto mais que o senhor faz uma vida tranquila.
- Em demasia, talvez.
Havia, de facto, muita coisa diferente no Sr. Seixas, ia eu reparando. Não só a velhice mais flagrante: também certo alarme, certos modos assustados de quem, por exemplo, perdeu um motivo para inventar energias e tenacidade.
Perguntei então:
- E o Pedro ? Pensei logo nele quando me participaram a sua chamada. Confesso-lhe que dificilmente imaginaria o senhor Seixas enfermo...
- Porquê? - riu ele com gosto.
- O senhor sugere-me as velhas rochas. Ou umas árvores do meu tempo de aldeia. Tinham o tronco roído, oco, e ainda floriam.
- Ah, lá está o doutor a lembrar-nos que não é citadino... Não haverá nisso um pedaço de astúcia?...
O comentário, acertando em cheio, varou-me de lado a lado. Corei. O dono da casa animava-se como das outras escassas vezes que eu ali viera. Tive um sorriso mole e insisti:
- Ainda não me falou do seu neto...
- Pedro está bem. Tem tido saúde.
Era uma frase de quem se escusa, não me espevitava a ir mais longe.
- Pois um dia destes passarei de novo por aqui, mas sem a minha maleta de médico.
A promessa não o alvoroçou. No mesmo tom, retorquiu:
- Para me falar das árvores carunchosas que ainda florescem?... Acha então que, por agora...
- ...ainda não entrou o caruncho. Vai melhorar dentro em breve.
O quarto tinha uma janela orientada para o lado oposto ao mar. Através do reposteiro corrido, apenas a densidade dos pinheiros, arroxeada àquela hora pelo halo do crepúsculo. Quando me aproximei da janela, dando a volta à cama para me retirar, pareceu-me que havia um grupo lá fora, no pinhal, junto de uma pequena cisterna. Mas não me quedei a espiolhar. Levei, porém, esse intento quando saí da vivenda, pois certamente uma das pessoas do grupo era Pedro e eu gostaria de revê-lo e ainda de averiguar por que razão o avô se tinha escapado a que falássemos dele. Disse, portanto, à criada, demorando-me na despedida:
- Deviam abrir uns canteiros junto do muro e da cisterna e plantar hortênsias. Dava alegria ao pinhal.
Não pensava nada daquilo que estava a dizer, mas o pretexto servia-me para ir avançando na direcção das traseiras da casa. Ela, de resto, não me estorvou. Já não me considerava um estranho.
E, dobrada a esquina... Dasy e o filho. Outra Dasy. Talvez uma nova Dasy. Senti um punho sobre o coração. Não teria sido capaz de fazer um gesto ou dizer uma palavra. Que espanto, que melindre eram os meus? Que pode acontecer às pessoas para se libertarem ou desviarem do presídio em que as fechamos? Uma outra Dasy... Não a do bar em ruína, meio deserto como a sua vida, nem a que se cruzara comigo, tempos antes, naquele mesmo lugar, saída do seu moscardo provocante. Esta Dasy dava-nos uma sugestão de serenidade e permanência. Estava ali para ficar. Parecia ter estado ali desde sempre. Vestia como uma colegial: uma espécie de bata cingida ao pescoço. Tinha uma expressão confiada e tranquila. Uma das mãos aconchegava a cabeça disforme de Pedro ao seu ombro, talvez a baba repugnante lho manchasse, e a outra ia passando vagarosamente as folhas de um álbum colorido. Ambos deram por mim. Nessa altura, no que reparei foi em que o poente se reflectia tão límpido nos olhos de Dasy como nos do filho. Eis a minha oportunidade de falar com Dasy, de a desvendar por inteiro, de lhe fazer aquelas «perguntas horríveis» que ela desejava que as pessoas sinceras não lhe evitassem. Era tarde, porém,
para as fazer. Era desnecessário. E ao vê-la, sorridente, pôr-se de pé, retrocedi com a pressa de um larápio surpreendido no seu mais vergonhoso delito. Talvez a criada lhe explicasse mais tarde: - O senhor doutor veio a este lado só para me dizer onde devíamos plantar hortênsias.
E não me admiro de que Dasy aceitasse a sugestão.
Esta é a história de Juanito. Poderia escolher outro herói para a minha narrativa, entre os muitos que povoaram as nossas peregrinações pela cidade, uma cidade que a maioria desconhece e nem deseja conhecer, mas eu gosto de crianças, não me canso de falar delas. E existe, ainda, talvez outro motivo para ter preferido Juanito, à parte o que houve de brutal no seu drama: penso que, ao percorrermos qualquer ambiente, citadino ou aldeão, será pelas crianças que saberemos onde está a alegria ou a tragédia. Pelas crianças e pelos velhos. Se me perguntassem um dia qual o meu ideal de felicidade, eu responderia: um mundo em que as crianças e os velhos se sentissem felizes. É neles que se espelha o uso que os homens fazem tanto da justiça como do amor.
Mas antes de falar de Juanito, tenho de falar de outra gente: da Maria Adélia, da Ti Eulália, da Signora Giuliana e de muitos mais, e ainda das fraudes e degradações que coabitam com esta profissão de ajudar a morrer os que nunca se sentiram vivos. Só dessa maneira, julgo eu, a história de Juanito terá o cenário justo. E nela acreditarei.
Os nossos dias começavam num cafezinho da Praça do Chile. Café, chamo-lhe eu agora, porque mal nos sentávamos na mesa junto ao balcão, e àquela hora era sempre fácil encontrá-la disponível, logo a Signora Giu-liana nos trazia a bandeja com as três chávenas fume-gantes e o prato recheado de pastéis de nata, da fornada dessa manhã, tostados e fofos, que nos dentes gulosos de Olinda crepitavam com o mesmo ruído de quando os pés esmagavam folhas secas. A comparação era certeira, pois meditei muito nela antes de a aprovar. Mas não se tratava propriamente de um café e sim de uma casa de gelados. A casa de gelatti da Signora Giuliana Tentori, que viera de Itália havia um bom par de anos, por alturas do fascismo, ela, o marido e aquele rancho bem nutrido de dois rapagões e uma bambina, todos barulhentos e activos. Os gelados da signora tinham fama. À meia tarde caía ali a gente nova do bairro. Ela, porém, não se zangava de optarmos pela chávena de café. E, sociável, exuberante, recebia-nos com um júbilo familiar, em cada dia mais gesticulado, ora apregoando as subtilezas do tricot que sempre lhe ornava a peitaça de mãe de família, ora concedendo umas receitas de cozinha à Olinda, receitas, evidentemente, privadas, temperando-lhe o pastel com mais uma dose de canela. Eu chegava a perguntar-me se as relações de afectuosa intimidade entre a italiana e as minhas duas colaboradoras, a Olinda e a Maria Adélia, não seriam justificadas por encontros lá fora, por qualquer laço mais perdurável do que esses breves minutos de léria, a espevitar a modorra que se recusava à monotonia quotidiana e que ia esperar-nos, manhã cedo, quando nos agrupávamos no hospital. Efectivamente, por hábito ou pelo que fosse, só nos sentíamos capazes de mais uma jornada pelos cortiços ignorados da cidade, depois dessa chávena de café bem negro e explosivo. Até aí, a Maria Adélia, rabugenta, sentava-se no Calcinhas (um Citroen de dois cavalos) a rosnar contra a lesmice da Olinda, que tardava sempre em descer do quarto e em preparar o estojo de urgências, e eu, esfregando os olhos, a testa, o nariz, uma e outra vez, não menos sonolento e irritadiço, mal trocava duas palavras de saudação. Mas após o café as coisas marchavam e já não me sentia tão vítima dos acasos que me tinham feito herdar a chefia daquela equipa de assistência ao domicílio. A Signora Giuliana (como, aliás, os doentes) é que não se reconciliara ainda com a mudança. Eu, caladão e sem gestos, não lhe agradara. Era nítido. Por isso, de um modo oblíquo, acintoso, inquiria diariamente da saúde e glórias do meu colega Aristides, agora nos sertões africanos, e também de sua mulher, que o substituíra por uns tempos, enquanto a gravidez, já adiantada, lho permitira; confessava-se ansiosa por vê-los de regresso ao lugar a que eu, abusivamente, deitara a mão. Dizia tudo isso de outra maneira, é certo, mas ao falar no assunto, sempre tricotando e olhando-me de esguelha, sem tolerância, não disfarçava o seu azedume. Quanto aos doentes, a minha timidez, que lhes parecia fastio e secura, era um orvalho de gelo sobre a tépida confiança que logo se estabelecia entre eles e as enfermeiras. Mas esta animosidade tinha as suas vantagens: se a doença progredia, a culpa era minha. Eu não prestava. E então podia acenar-lhes com o alívio e a cura para mais tarde, quando voltasse o Dr. Aristides, único verdadeiramente entendido em males de ruim quilate. As minhas colaboradoras é que, zelosas do meu orgulho, nem sempre se dispunham a esta cumplicidade.
Éramos, pois, três samaritanos, a maioria das vezes envergonhados do seu ofício - correndo a via-sacra dos doentes pobres da cidade, cujo estado nem lhes consentia que nos procurassem no hospital. Uma ronda por locais de miséria e sofrimento. Em certos bairros, tornáramo-nos populares. As pessoas acenavam, fraternalmente, à nossa passagem ou nem interrompiam as rixas bem salgadas de palavrões, o que exprimia outra forma de nos considerarem gente sem prosápias, da sua eleição. Sabiam-nos o nome, perguntavam-nos notícias dos nossos familiares, que eles nunca chegariam a conhecer, e até os sinaleiros, ao aperceberem-se de quem conduzia o desengonçado dois cavalos, logo desafogavam o trânsito, com espalhafato, para que a Maria Adélia, expedita, se enfiasse por entre o denso formigueiro de eléctricos, carroças, viaturas e não aparecesse esmagada do outro lado da rua. Nunca consegui descobrir como nos identificavam: as enfermeiras nem sequer vestiam o blazer que, noutras circunstâncias, era usado com proa, e o Calcinhas, cinzento, anónimo e folião como milhares, não podia ser um denunciante. De mim, do meu ar desmanchado impróprio de um doutor, nem é bom falar. A verdade, porém, é que éramos apontados a dedo. Às vezes, ao fim dessas manhãs aturdidas, atravessada a cidade de cabo a rabo, dava-me a sensação de ter pertencido, por algumas horas, a uma gigantesca comunidade onde todos fossem parentes e solidários. Cada lar era a continuação de outro e em todos nos recebiam efusivamente. Desmembrada a nossa turma, porém, a cidade depressa fazia pesar sobre nós (ou sobre mim, pelo menos) as suas toneladas de solidão. Até a frase da Maria Adélia, à despedida, mudava de tom. Cerimoniosa e fria:
- Onde devo deixá-lo, senhor doutor? Instantes depois, no meio da rua, desapoiado,
pessoas, à minha volta, eram apenas desconhecidos E nenhuma delas dava por mim.
- Ah, Roma mia!
A Signora Giuliana mostrava-nos, pela vigésima ve e sob uma dramática orquestração de suspiros, o ma recente álbum da sua cidade natal, a «mia Roma» dor de os esbirros de Mussolini a haviam expulsado, pagávamos a conta, equitativamente, sem falsas mesuras, e nosso dia começava. O café e os grotescos suspiros da italiana eram um rastilho.
íamos, ali perto, à Ti Gracinda, que vivia numa água-furtada. Tínhamos de trepar quatro velhos andares, às apalpadelas no corrimão, que escorria humidade sebosa, até chegarmos lá acima, à única sala de tecto bosselado, que dir-se-ia um poleiro sobre a cidade. A sala era repartida em vários recantos por cortinas de fustão, e em cada um deles havia uma cama: a do pai, que rondava os noventa anos e deixava que o tempo envelhecesse por ele, a da sobrinha sempre ausente àquela hora, trabalhando a dias na vizinhança, e, por último, a de um casal meio aldeão, a quem a Ti Gracinda, já depois de inválida, subarrendara aqueles dois palmos de tecto. A camponesa servia-lhe de enfermeira e de companhia. Era uma boa e corajosa mulher, sem nojos, que não voltava o rosto, como eu, quando a Maria Adélia lançava no balde os pensos imundos e o cancro da Ti Gracinda, uma hedionda chaga de pus do tamanho de um seio, aspergia uma fetidez que, num repente, nos encharcava as narinas e o estômago, revoltando-os. A Ti Gracinda mordia a boca para não gritar, de cada vez que a Maria Adélia, trauteando um fado, lhe enxugava o suor da pústula, e eu afastava-me para a janela, os maxilares contraídos, tendo, ao longe, o rio azul, onde os sentidos se purificavam.
A doente não conseguia refrear um gemido mais agudo, a camponesa passava-lhe os dedos arrepiados e tímidos pela fronte desmaiada, e a Maria Adélia, além do fado, ia-a atordoando com frases assim:
- Isto tem de doer para curar. Nunca ouviu dizer que o que arde cura? Ora vê?... Consigo é a mesma coisa.
Posta a ligadura, aconchegada a roupa, a Ti Gracinda já conseguia sorrir das graças da enfermeira. Enquanto a Olinda arrumava o instrumental num dos sacos da nossa tralha, a Maria Adélia fazia uma devassa à mesinha-de-cabeceira. Faltavam os supositórios.
- Então a «chucha»? Já os gastou?
- Mais que fossem, senhora enfermeira. As dores não me largam e só com eles passo uma horita pelo sono. Não deixo descansar as pessoas. Ainda esta noite o homem desta minha vizinha ficou à rasca da cabeça. Não foi o que ele te disse, Celeste? Dos tais comprimidos, os que amargam, é que ainda há muitos. Parece que estão sempre a crescer no frasco.
- Bem, vou deixar-lhe novo reforço da «chucha». Mas nada de abusos... - E cedendo-me um pouco de autoridade, que eu, aliás, nunca fazia por ser lembrada, dirigiu-se-me afectadamente: - Concorda, senhor doutor?
Eu estava a apreciar um calendário de parede, que reproduzia o Grupo do Leão, e anuí de um modo distraído. Lá pareceu à Ti Gracinda que eu me ensarilhara na interpretação dos retratos, e, por isso, avisou:
- Está escrito por debaixo o nome deles... - E explicando às enfermeiras: - É tudo gente antiga... do tempo das paródias.
A Maria Adélia destapara-lhe o corpo: as pernas, luzidias do inchaço, eram dois tropeços. Afoguei a ponta dos dedos, aqui e ali, nessa carne fofa e martirizada. A Maria Adélia chalaceou:
- Gordinha, hem?
- É de estar aqui metida na cama, com as veias a soprar por dentro. E que pernas andarilhas foram as minhas, credo! Aqui onde me vê, menina, tenho trinta anos de varina! Mas olhe que o fastio, agora, vai sendo muito.
- Tome um chazinho de macela... se o senhor doutor aprovar a receita... Faz bem ao apetite. Então a sua Isabelinha? Está a lavar?
- Já lavou tudo esta manhã. Foi ao Automóvel Clube entregar as roupinhas das senhoras.
- E o traste do seu pai?
- Oh, esse despede-se logo pela manhã e vai para a taberna petiscar.
- E bebe, não?
- Se bebe!... Toda a vida foi assim. - E numa voz mais discreta, confidenciou-me: - Pagam-lhe tudo o que ele quer, sabe? Gostam dele. É um velho reinadio. Depois vem para casa, deita-se e já não se levanta senão no dia seguinte.
A Maria Adélia tinha ido segredar umas recomendações à camponesa. A enferma, alerta, estava de ouvido apurado no que se dizia para lá da cortina. Ergueu as sobrancelhas, numa mímica de quem já se resignou a não protestar. A Olinda tentou desviar-lhe as desconfianças, naquele seu modo sedoso e plácido:
- Então que almoçamos hoje? Bacalhau com batatas, como de costume?
A ex-varina sorriu, enquanto ajeitava o cabelo desbastado em farripas, confrontando-o com o da enfermeira.
- Acertou, sim senhor. Tem um dedo que adivinha! Ainda é o que fica mais barato. - Mas as suas pupilas continuavam errantes e inquietas: - Que está para ali a outra menina a bichanar?
- São duas bisbilhoteiras; então não as conhece?... Sabe, cada vez lhe fica melhor esse penteado!
A enferma grunhiu de contentamento. Tempos atrás, assanhada uma moléstia da cabeça, tivera de sacrificar a sua farta e ondulada cabeleira. Nas primeiras semanas, escondera a vergonhosa mutilação com um lenço atado à barba, mas a Olinda, por essa altura, aparecera também de corte de cabelo meio arrapazado, e isso bastara para que se conformasse definitivamente. Para esses doentes, os gostos das minhas colaboradoras eram lei.
De súbito, na expressão da Ti Gracinda correu uma lembrança que lhe deu um fugaz rubor.
- Hoje devem aparecer aí duas visitas...
- Ah, é então por isso que tem este bordado sobre a mesa-de-cabeceira...
A Maria Adélia, que terminara o surdo colóquio, ainda interveio, aprontando-se para sair:
- Pois o que é preciso é boa cara para as receber. Quando descemos o primeiro degrau das escadas, a
camponesa, que nos acompanhara, tinha um ar grave e absorto. Não valia a pena inquirir o que se passara entre ela e a enfermeira. A Ti Gracinda ia morrer.
O doente seguinte não era longe. Maria Adélia, que parecia excitada, propôs que fôssemos a pé.
- Preciso de dar uso a estas pernas. Estou a ficar pesadona, senhor doutor. Já reparou?
- É do aromazinho dos pastéis de nata. A Olinda saboreia-os e você tira-lhes o proveito...
- Se me garante que é assim, proponho uma troca. Estarias de acordo, Olinda?
Fui eu a responder:
- Julgo bem que não...
Frases vazias. Os três pensávamos noutra coisa.
A casa tinha uma fachada burguesa. Mas isso nada queria dizer. Às vezes, quem nos visse entrar num daqueles palacetes da Graça, aristocráticos da cabeça aos pés, que, soberbos, pareciam despedir a ralé que deles se abeirasse, não poderia imaginar a colmeia de gente miserável que lá se acoitava, uma família em cada quarto, dormindo três e mais enfeixados na mesma cama. Gravara-se-me, como um pesadelo, o exemplo bárbaro de uma antiga rameira: a doença abrira-lhe uma cloaca horrenda onde tinha sido um ventre desejado, e compartilhando dessa agonia, feita de aviltamento e de escárnio, dormia, ou estrebuchava, ou gania desesperada-mente a criança que era sua neta, enquanto a filha andava lá por fora na má-vida, regressando de madrugada com o dinheiro de que as três teriam de sobreviver,
regressando para ser mais um corpo misturado nessa abjecção. Tudo isto num prédio solarengo, de sacadas arrogantes sobre o dédalo pobretão de Alfa-ma. Nesse dia apetecera-me socar as paredes orgulhosas, desvendar-lhes os antros, para que a cidade fosse obrigada a exibir a sua desonra.
Quem nos recebia agora era aquele homem de gestos de sacristão. Ele é que parecia o doente: olhar rasteiro, sonso, beiços lamuriemos, as mãos a afagarem-se como cúmplices de um vício ilícito. As suas faces dessoradas tinham esquecido que, lá fora, havia sol. Ou talvez o temessem.
O filho adoecera depois da morte da mãe, semanas antes. Ela havia sido uma das nossas condenadas, sentía-mo-nos na obrigação de cuidar do garoto. Este adoptara a expressão dissimulada do pai. Sem nos fitar, ia mascando pedacinhos de pão, sem pressas, sem gosto, como se nos concedesse um favor. Enquanto o auscultava, fui reparando, uma vez mais, nos vários emblemas do Benfica, encaixilhados, como santos de devoção, por cima da cama e dos outros móveis. Cada trofeu era um altar. Num dos quadros, os retratos dos jogadores tinham sido colados, engenhosamente, sobre a bandeira do clube. Era esse o altar-mor. O dono da casa, tal como das outras vezes, seguia-me, atento, a curiosidade. Havia nele não bem orgulho, mas enternecimento, como se eu lhe admirasse um álbum de família.
Numa das visitas anteriores, dissera-me:
- Aqui o meu filho também é sócio. Inscrevi-o no mesmo dia em que o baptizei.
O garoto ia ficar bom dentro de dias. Não me atrevi, porém, a dizê-lo com modos prazenteiros. Havia de permeio, ainda tão recente, a morte de alguém. -O viúvo, aliás, ia lembrar-nos isso mesmo, naquele papel já impresso que distribuiu, num silêncio austero, a cada um de nós:
- A participação da minha mulher. Ainda não lhes tinha mostrado.
Afastei dos olhos o papelucho tarjado de negro para decifrar melhor os caracteres rendilhados. Já então a Maria Adélia coçava o nariz para sofrear não sei que despropositada vontade de rir. Mas logo percebi porquê. O papel dizia:
Miquelina Alves dos Santos
Narciso dos Santos participa a extinção da sua unidade adâmica, por a metade feminina sua mulher haver terminado a missão cármica determinada por Deus, e que o seu corpo sairá hoje, às dezoito horas, da rua dos Heróis de Quionga, número trezentos e vinte, segundo andar direito, para ser entregue à mãe Eva, no cemitério do Alto de S. João. Também o participam seu filho, irmãos, cunhadas e mais família.
O homem, de mãos enervadas, esperava um comentário. A Olinda, mais sisuda, falou por nós:
- Foi uma bonita homenagem.
O dono da casa, porém, não era de vaidades, nem as suas crenças lho permitiam. Assim nos quis frisar, depreciando-se:
- Ela bem o merecia. Fiz apenas o meu dever. Quando a Olinda ia a devolver o papel, disse:
- Gostaria que ficassem com esta recordação. Ambas tinham o seu museu de «recordações». As
mais imprevistas e ingénuas - ou disparatadas. Mas para elas, para quem dava e recebia, não eram ridículas. Valiam tesoiras de fraternidade. A Ti Sarameca, que vivia numa toca dos Olivais (pintada a cor-de-rosa), oferecera à Olinda uma caixa de pó-de-arroz, já encetada nos seus tempos de rapariga; era tudo o que lhe restava da juventude e dos sonhos de um tempo que nem parecia ter existido. «Só a usei nos domingos de bailarico, menina. Estime-a bem.» Pois, seria estimada. E em cada visita, espiolhava as faces empoadas da Olinda, para se assegurar de que a dádiva não fora desdenhada. Outra enferma, a Sr.a Marília, tivera um amante, criado de café. Ele, que conseguia equilibrar sobre dois dedos uma tralha de copos e chávenas, conquistara, em despique com uma chusma de galegos, esse prémio de destreza - um par de anjos doirados segurando um vaso de flores. Os anjos eram um galardão sem preço - relíquia de amor, de perícia, relíquia de um passado que a memória não deixa morrer. Mas, por isso mesmo, a Sr.a Marília quisera que eles pertencessem à Olinda. E assim por diante. A Maria Adélia, com as suas brusqui-dões, era menos contemplada; eu sabia, porém, quanto essas pobres oferendas, linguagem de gratidão e afecto, a emocionavam.
À porta da rua, a Maria Adélia esvaziou o riso sufocado. A história da «unidade adâmica» fizera-lhe cócegas na garganta. Mas a Olinda, que sofria de um misticismo muito heterogéneo, achava que não havia motivos para galhofas. E mostrou-se abespinhada.
A verdade é que, talvez por esse rescaldo, não conversámos muito durante as restantes visitas.
Voltámos ao Calcinhas. A Maria Adélia, em dia de destrambelhos, fê-lo arriscar-se a pique, numa ladeira que parecia um funil, após deixar para trás uma bicha de abantesmas de carga. Nunca prevíamos aonde iríamos parar tendo a Maria Adélia ao volante. Em certos lances, a Olinda fechava os olhos e eu ia jurar que ela fazia batota em dois padre-nossos de emergência, a terminá-los de qualquer maneira antes que fosse tarde. Embrenhámo-nos nas ruelas da Mouraria e depois, mais longe, nos sítios da Feira da Ladra. A Maria Adélia lembrava, de raspão, os bons tempos em que não era preciso muita ladinice para descobrir naquele estendal de cacos uma preciosidade. Agora esses negociantes obesos e matreiros, que franziam um olho sonolento à clientela enquanto o outro lhe media a quanto montava o interesse pela mercadoria, sabiam muito bem o que vendiam. As pechinchas tinham acabado.
A morada onde fomos bater era-me desconhecida. Não nos abririam a porta de ânimo leve. Puxava-se cá em baixo por um cordel e a campainha, num eco de chocalhos, transmitia o chamado ao primeiro andar. Passos na escada, um largo tempo de espera, um rosto esquivo assomando na fenda de vidro que servia de janela. Por fim, averiguada a identidade dos intrusos, o trinco da porta soltou-se, num ruído de gatilho com ferrugem, manejado lá de cima.
Quem tomara essas precauções era um homem da minha idade. Óculos de míope, o rosto flectido sobre o peito, uma expressão de menino que tem birras. Calçava pantufas, e o fato, com muito uso, havia sido reforçado nos cotovelos e no debrum das lapelas. Ao chegarmos ao patamar, furtou-se, de súbito, à esboçada saudação, enfiando-se no recanto que servia de cozinha. Pôs-se, atarefado, a limpar os pratos. Era uma surpresa grotesca. Troquei um olhar de censura com a Maria Adélia, que ela bem entendeu deste modo: «Que vem a ser isto? Porque não me preveniu?»
A doente estava no compartimento imediato. Uma saleta pobre, mas limpa. Sentada à beira da janela, ia erguer-se, mas a Olinda travou-lhe a cerimónia:
- Está assim muito bem. - E apresentou-me: - Vem connosco outro senhor doutor. Como tem passado?
- Muito mal.
- Ora, tem lá!...
- Eu é que sei, minha filha. - E elucidando-me, para que fizesse logo uma ideia dos seus tormentos:
- Com esta coisa da perna, há um ano que não vou à rua. E o frio que sinto!... Passo aqui o dia à espera do solzinho quente. Desde que tenho esta doença nunca mais aqueci.
A Maria Adélia destapara a lesão. Dir-se-ia que um cogumelo hediondo, voraz, havia sido enxertado na perna. Arrepiava-me saber que o mesmo sangue que lhe nutria o horror corria, purificado, nas faces ainda bonitas da enferma, nos dedos que eram macios e que eu apertara sem hesitação ou repugnância. Pareceu-me, de súbito, haver por toda a casa um cheiro a porão de navio.
- Isto tem dado muita comichão, minha filha.
- É sinal de que está a sarar.
- É?! Então quando poderei...
- Lá mais para o Verão. Estas feridas querem tempo seco; não é verdade, senhor doutor?
Acenei que sim, coagido. Não me sentia com feitio para tais comédias. Talvez esses doentes me julgassem um tipo frouxo e insípido. Mas não me seria fácil corrigir esse juízo.
O homem que nos recebera momentos antes avançara, em passinhos fofos, até à porta. Talvez já ali estivesse há algum tempo a observar-nos. A sua presença, com esse ar furtivo ou misterioso, dava-me uma sensação de desconforto. Instintivamente, mudei de posição para o ter de frente. Qualquer coisa nele me intrigava, para além da estranheza dos seus modos. Achei-me ainda mais inquieto ou inseguro por me saber próximo da chave da minha curiosidade, sem, no entanto, a atingir com precisão. Esse rosto dizia-me fosse o que fosse, fazia-me recuar no tempo, emaranhava-se na teia de uma enevoada memória. Até onde me fazia recuar? Porquê? Foi então que os olhos resvalaram do homem para o retrato dependurado por cima da máquina de costura. Era um retrato de um estudante, sobraçando uma pasta de finalista, ornada de fitas de duas cores. Eu conhecera esse estudante. Agora já não tinha dúvidas: ele fora meu contemporâneo na Universidade e era o mesmo que, naquele momento e naquelas circunstâncias inauditas, estava ali encostado à ombreira da porta. O mesmo - depois do desgaste dos anos ou de coisas mais terríveis que fazem de alguém uma sátira ou uma ruína. Que perguntas me apetecia fazer-lhe! Mas temia-as. Temia as respostas. Pus-me a andar à toa pela saleta, ausente, parando às vezes junto da fotografia. A doente, por fim, terminada a tarefa da enfermeira, foi ao encontro da minha agitação.
- Está a ver a fotografia do meu filho?
- Admiro-me de que as fitas sejam de duas cores, azul e vermelho...
O homem desfez imediatamente a sua postura de quem prepara uma armadilha.
- É assim mesmo. Fui, no mesmo ano, quintanista de Direito e de Letras.
Até àquele instante, julgara-o capaz de falar ou, pelo menos, de dizer uma frase coerente. Tive mesmo espanto, ou o mesmo arrepio, de quando, de chofre, se escuta alguém que se julgara mudo. Calei a tentação de lhe confessar que o vira amiúde nesses tempos da Universidade. A mãe afastou-o da sala:
- Vai lá dentro à cozinha, Luís.
Ele obedeceu, mas de má vontade. Desde que me dera aquela explicação, o seu rosto mudara, havia nele uma remota chama, de febre e orgulho, e até as mãos já dispensavam o esconderijo dos bolsos. Segundos depois, a mãe desabafou:
- É tal qual um menino. Estas senhoras sabem. O que o meu marido trabalhou, e o que eu trabalhei também!, para lhe dar um arrimo bonito! O meu marido é operário da fábrica do Beato. De descanso é que ele precisava, coitado! Isto quando a pouca sorte entra numa casa...
- Mas o seu filho terminou o curso ?
- Quase. Estava a poucos meses da formatura e teve de desistir por doença. Dão-lhe aquelas crises. Espoja-se no chão, deita espuma pela boca. Já foi benzido uma data de vezes. Depois ficou assim como vê. Um simples. Um menino. É ele que me toma conta da casa, que me faz companhia enquanto o pai está na fábrica.
Não resisti a dizer-lhe:
- Lembro-me dele na Universidade.
- Ai lembra?! - Era quase um grito. - Ouviram, senhoras enfermeiras? O senhor doutor lembra-se do meu filho! Pois há pessoas que duvidam de ele ter sido o que foi! - E pôs-se muito exaltada, a alegria a rir-se na bruma húmida dos olhos. - Luís!, podes vir para aqui.
Ele correu da cozinha, no alvoroço de criança que vem participar de um divertimento de adultos.
- Este senhor doutor lembra-se de ti. E tu, lembras-te dele? Repara bem, Luís!
Ele queria lembrar-se. As veias, forçadas, pulsavam-lhe na testa, que se congestionara. Queria lembrar-se, ou então, a repelir o despertar de uma lucidez que o assustava, fechava-se, de súbito, dentro dos muros do turvo presente. Ao sentir todas as atenções centradas sobre si, recuou refugiando de novo as mãos nos bolsos. Já não havia riso, nem expectativa, nos olhos da mãe.
- O meu filho não se lembra.
A Maria Adélia apontou para os nardos que balanceavam lá fora, no terraço, junto à vidraça.
- São bonitos, os seus nardos.
- Eu chamo-lhes outro nome, jacintos. Também tenho lá fora uma buganvília. Trouxeram-na do Algarve. Com a janela aberta, vêem-se melhor, mas os caixilhos estão empenados. O meu Luís, às vezes, dá-lhe um esticão e consegue abri-la. Luís dá cá uma ajuda.
Dirigia-se ao filho num tom de voz diferente, quase agreste.
- Deixe, senhora, não vale a pena abrir a janela.
- É que tenho lá outras flores. Mas se não quiserem fica para a outra vez.
Despedimo-nos. Havia sempre constrangimento ou frustração nessas despedidas. Parecia-nos, de parte a parte, que deixávamos desacertos por remediar. A doente ainda inquiriu de quando lhe seria possível dar uns passos no quintal.
- Nada de folias, minha santa. Roma e Pavia não se fizeram num dia.
Para que não fosse aquela a última frase, a Maria Adélia tentou espevitar o pássaro da gaiola que, durante aquele tempo, estivera murcho, o bico enfiado debaixo de uma asa.
- O passaroco, hoje, está murcho.
- É do tempo, minha filha. Há dias em que estamos todos tristes.
O homem puxou o cordel do trinco da porta e apercebi-lhe uma espécie de cumplicidade ou de gratidão. Mas não nos disse coisa alguma.
Já na rua, a Maria Adélia lançou o desafio que eu previa desde que, no café da Signora Giuliana, a vira de gestos sacudidos:
- E agora? Valerá a pena irmos a casa da Matilde? Aquele «valerá a pena» era o fio de uma navalha.
A Matilde precisava de ser internada, é certo, nem que fosse para dar uma barrela ao nicho fétido, o vão de uma escada, onde ela esperava o fim - mas o hospital não era um asilo. Não podia ser um asilo. A Olinda e a Maria Adélia bem o sabiam, sabiam que havia regras a cumprir de nervos a sangrar, como nesse caso da Matilde, moribunda e sem família, esperando o fim no vão de uma escada, algures, no deserto da cidade, que nunca lhe ouviria o seu brado de socorro, algures num
catre onde mal lhe cabia o corpo injuriado. O nicho cheirava às furdas e era ainda um rapazola mecânico, que faltava horas na oficina apenas porque alguém, mesmo estranho como ele, devia lavar os trapos da doente, alimentá-la do seu farnel, amaciar-lhe o coração que, solitário, ia ficando árido e petrificado, era o mecânico que vinha ali dar uma arrumação aflita e desajeitada, impedir que a senhoria do prédio desse ouvidos aos que se enojavam com tal espectáculo de podridão e desmazelo. O mecânico rogava-nos: «Quatro dias que fossem, senhoras enfermeiras, só para dar uma limpeza a esta piolheira», e corria esbaforido da oficina às horas em que lhe palpitava que fazíamos a ronda. «É sua parente?» «Não me é nada, senhor doutor.» E dizia-o como se confessasse um delito. Ele ajudava-nos a acreditar em muita coisa empeçonhada pela crueza do quotidiano.
Mas não: o hospital não podia ser um asilo. E eu teria de lembrá-lo mais uma vez à obstinação da Maria Adélia, que tinha o preço da minha revoltada amargura.
- Bem sabe que é impossível. Não nos admitiriam a doente no hospital.
O diálogo não iria mais longe. Os agravos da Maria Adélia passavam, quase sem transição, da agressividade à melancolia. Não me falaria mais da Matilde ou do mecânico. Pelo menos, nesse dia. Nem a mim, aliás, apeteceriam mais palavras. Há dias em que estamos todos tristes.
Eram assim as nossas deambulações pela cidade. Quando as terminávamos, havia, entre nós, um equívoco azedume. A Olinda, no último quarto de hora, falava de acepipes, tecia previsões sobre o que iria comer ao almoço sempre tardio, e a Maria Adélia aprontava-se para um resto de dia encasulado no quarto, a fumar, a ler ou, muito simplesmente, a dormir, já que não nascera homem para lhe ser permitido atordoar as neuras em pândegas extravagantes. Havia certo bar de rufias, a caminho do hospital, que era das suas mais fiéis tentações. Dizíamos e desejávamos, os três, coisas disparatadas. Ou deliberadamente odiosas.
Ora foi numa dessas andanças que conheci Juanito. (Nós é que lhe tínhamos abastardado o nome, ajustando-o à sua pele cigana, ao cabelo emaranhado e muito negro, sempre a precisar de uma boa tosquia. «Como te chamas, miúdo?» «João dos Santos Cristino.» Assim muito bem explicado, sem faltar um apelido. «Pois tens cara de Juanito», decretara a Maria Adélia. E mesmo sem lhe ouvirmos o consentimento, a crisma tornou-se definitiva: Juanito. Logo os outros garotos da pandilha a perfilharam com entusiasmo e velhacaria.)
O Juanito teria os seus oito anos na altura em que o descobrimos, de mistura com uma malta brava de fedelhos, num dos bairros limítrofes que escarnecem e documentam a cidade. Depois disso, passaram-se muitas coisas: o Juanito esteve numa casa de correcção, vestiu o uniforme dos relapsos e transviados, foi, por esmola, moço de recados, fugindo com uns dinheiros ilegítimos, e quem sabe se é hoje um desses vadios que, desafiando muito particularmente o meu ressentimento, me arrombam com regularidade o automóvel apenas para saquearem um guarda-chuva esquecido.
Recordo-me bem que, nessa manhã do nosso encontro com o Juanito, a Signora Giuliana teve o capricho de, pela primeira vez, ser amável para comigo. E por um motivo que não é alheio à escolha de Juanito para esta narrativa: o ela ter descoberto que eu gostava de bambinos. Entráramos na casa de gelados e, em lugar do habitual tricot, vimos a signora a terminar a manga de um casaquinho de bebé. Devia ser trabalho perfeito a dar fé nas exclamações das enfermeiras. Como tais dedos gordalhufos, embaraçados de pregas, conseguiam ser tão ágeis!
- Temos então enxoval... - insinuou Olinda. - Desconfio que a família Tentori vai ser aumentada.
- Eh, magaril Que pode fazer um romano nas noites de Inverno, signorina Bambinos, claro.
A Olinda, que punha recato em conversas desse tom, faz um trejeito severo, mas ao sondar não sei que pieguice na minha expressão, denunciou-me:
- Olhem o embevecimento do senhor doutor ao ouvir falar de crianças!
E foi assim que, explicado o comentário, a Signora Giuliana me disse, num timbre afectuoso:
- Estas signorinas são muito maldosas, dottore! Não lhes dê atenção. Venha o senhor dottore um dia destes ter comigo una conversazione particolare sobre bambinos.
E nesse dia, sem uma referência ao meu antecessor, veio até à porta para me incluir na sua saudação:
- Ciao, signorinas! Ciao, dottore!
Juanito vivia para os lados da Charneca. Saíamos da cidade por umas azinhagas e, de repente, era o campo virgem, a província. Não havia os arrabaldes de transição, híbridos e feios, que, para as bandas do mar, nos despediam da cidade quase sem darmos por isso. Terminava uma rua, a última paragem do autocarro, e começavam as oliveiras solitárias. Só mais além, defendidas da erosão das terras magras por um cerco de verdura, surgiam, austeras, velhas mansões. Pareciam, na sua maioria, desabitadas. Numa das lombas nuas, um moinho. Já sem velas, sem tecto, sem braços. Sempre que passávamos por ali, a Maria Adélia, de apetites extremos, tinha de nos dizer:
- Vocês já imaginaram o que seriam os meus fins-de-semana neste refúgio?
- Não é difícil imaginá-los. Sem vizinhos expostos ao perigo, não havia necessidade de te vestir um colete-de-forças.
Da suave Olinda vinham, por vezes, dessas ferroadas.
Depois, contornando o ângulo do alto muro de uma quinta, deparava-se-nos uma praça. O povoado era apenas esse grande largo, duas árvores estarrecidas ao centro, e as casas em redor, dispostas como cortiços a receber o afago do sol. Nesse dia, havia ali, já armada, a barraca de uma troupe de saltimbancos.
O bairro de Juanito era mais adiante. Demarcava-o aquela soberba armação de ferro, pintada a zarcão, que, de braços flectidos, como um lutador de circo a empolar os bícepes, segurava os cabos da energia eléctrica. Era um símbolo de força e prosperidade. Dava-nos a ideia de que as suas pernas, alargadas, se apoiavam na terra como sobre um corpo vencido e domesticado. Talvez por isso, era mais áspero o contraste com o aglomerado de pocilgas onde habitava a gente imunda, saída não sei de que tempos bárbaros, que nos iria receber. Visto a cem metros, parecia um cemitério de entulhos, onde rompiam olhos que eram postigos e se aprumavam paredes que eram ripas e latas. Choças não para bichos, mas para homens, e que imitavam um lar.
Um garoto, no seu papel fortuito de sentinela, anunciou-nos num bater de palmas de festa e acontecimento. Tanto bastou para que se lhe juntasse um bando que, daqui e dali, se engrossou num abrir e fechar de olhos. Empoleiravam-se na carrinha, trepavam ao tejadilho, enquanto outros nos guiavam, uns passos à frente do motor, indiferentes ao buzinar, impaciente ou divertido, da Maria Adélia.
- Eh, rafeirosos do Diabo, despeguem daí!
Era inútil. Aliás, eles sabiam que as minhas ajudantes traziam guloseimas. Foi necessário iniciar a distribuição antes de descermos do carro, pois, de contrário, enfiando-se pelas janelas, os mais sôfregos ter-nos-iam saltado para as pernas. Um deles, tão feloso que parecia uma miniatura, ficou logo de cara de palhaço, do chocolate esparrinhado no queixo e na ponta do nariz.
- Aonde vai agora vossemecê? à da Ti Eulália? - perguntavam-me.
Havia ali um certo respeito pela Ti Eulália. Ela fizera vida de cortesã e conservava ainda uns restos do garbo, da garridice e até do requinte de mundana caprichosa que sabe as regras do jogo, no qual os homens devem sentir-se sedutores e não seduzidos. O requinte estava, por exemplo, na farpela interior que, mesmo sem precisar de barrela e de sol, tinha sempre exposta no logradoiro da comunidade: pijamas de seda, soutiens e outras miudezas íntimas e provocantes, tudo já no fio e sem préstimo, que apenas serviam para exibição. Os homens, ao ver esse estendal de roupa secreta, não pensavam na Ti Eulália, um cangalho, mas no mundo libertino, de fabuloso erotismo, que ele lhes sugeria.
A Ti Eulália tinha um buraco na garganta, por ele respirava. Para nos falar, obstruía-o com os dedos. Ficávamos sem saber ao certo donde partia essa voz gutural, emergindo das entranhas, que era um gorgulhar de papagaio enrouquecido. O medo ou a curiosidade pelo que havia de surpreendente na velha faziam que o rapazio estivesse sempre pronto a servi-la. Foi assim que, ladeira acima, se nos deparou um garoto escuro a trazer-lhe dois baldes de água. Dependurara-os nas extremidades de um fueiro, e o peso, bem se percebia, era excessivo para o seu ombro enfezado. Vi-o fazer uma paragem, assentar os baldes no chão. Mas depois, refeito da canseira, já lhe foi difícil enganchar os baldes no seu lugar. Tentou a manobra uma e outra vez, muito sisudo, alheio à nossa presença. Era Juanito.
Quando me aproximei para ajudá-lo, sob a bisbilhotice solerte da malta, ele não se voltou para mim, mas para o sítio donde a velha, no terreiro junto à palhota, lhe apreciava, com severidade, os esforços desastrados.
Resignou-se, por fim, a aceitar-me o auxílio, enquanto repuxava as calças num modo entediado.
- Como te chamas, miúdo?
Ele subiu o olhar, com lentidão, para o rosto travesso de Maria Adélia. Mas quando o baixou já deduzira que éramos gente que valia uma resposta.
- João dos Santos Cristino.
- E eu, Mário! Mário Costa! - informou logo outro que nos escoltara.
- E eu sou Paulo!
- E eu, Abílio!
Todos bradaram os nomes, cada qual impondo o seu, num berro sempre mais alto, aos que se tinham feito ouvir primeiro.
- Basta, basta! Eu sei os nomes de todos! Só não sabia o deste - acudiu a Maria Adélia. - Quem és tu? Não te conhecia por aqui.
Houve algo de intrigante no inesperado silêncio que se abriu em redor, que o garoto dos baldes aproveitou para repor no ombro a sua carga. A Maria Adélia afagava-lhe os cabelos enroscados e negros e disse-lhe:
- Pois tens cara de Juanito. Gostas deste nome?
- Ena, Juanito, que luxo! Ora o vaidosão! - lançou um dos da pandilha.
A Ti Eulália elucidou-nos, sem simpatia, que o ga-napo viera para ali nos últimos meses, na companhia do pai, um bebedolas, e de uma irmãzita ainda de colo. A mãe falecera tempos antes. A criança rebentava de choro, horas e horas seguidas, até que alguma vizinha lhe viesse calar a fome. Juanito, porém, era um rafeiro para quem se condoesse da irmã. Por isso mesmo, porque a Ti Eulália a agasalhara com uns abafos e umas rendas, o ganapo ia lá ao fundo, à ribeira, buscar-lhe a água de que precisasse. Ele trazia a criança nos braços com o jeito de uma mulher. Quanto ao moinante do pai, havia semanas inteiras que ninguém lhe punha a vista em cima. E nada se perdia com essas ausências, pois o bruto, de vinho quente, ameaçava espatifar meio mundo se as coisas não lhe corressem de feição. No filho, ia sempre além das ameaças: o corpo do miúdo era um rodilho nas suas mãos. E até a criança apanhava o seu sopapo.
A Ti Eulália, arquejante do esforço de se fazer entender, azedou-se num gesto de quem dava o depoimento por terminado. Interessava-lhe muito mais lembrar-nos de que já nada tinha que comer, pois as senhoras do Serviço Social, umas fiteiras, haviam-na esquecido desde o mês passado. Andavam pelas casas de chá, nas poucas-vergonhas, ela bem sabia o que era essa gente. Uma porcaria de vida, uma porcaria de gente.
- Não seja má-língua, Ti Eulália - repreendeu a Olinda, por quem a velha tinha o seu fraco. - Elas vêm sempre que podem. A cidade é grande e há muitas a precisar como vossemecê. E essa barriga, como se tem portado?
- As minhas tripas, se refilam é para que lhes dê comida. Não é outra a minha doença.
Não resistimos a coscuvilhar o tugúrio do Juanito. Havia uma enxerga, uma lareira armada em pedra solta e um caixote que servia de berço, sobre o qual escorria a baba amarela de um sol agoniado. Rimas de ferro-velho. Era dos raros casinhotos do bairro onde não se via o inevitável relógio de pulso dependurado de um prego, ingénuo arremedo da burguesia, ou as estampas coloridas forrando as paredes, ou as engenhocas de obscura serventia, ou aqueles nadas, um fogareiro, uma planta, um gato, que nos faziam sentir a recusa à abdicação. Apenas as tábuas nuas, o sol amarelo.
A criança dormia. Era feia, o rosto baço e engelhado. As pálpebras fundas tinham uma transparência azulada e, por debaixo, os olhos inquietos moviam-se como lagartas dentro de um casulo. Não agradou a Juanito que a observássemos com essa insistência de quem aprecia uma excentricidade. Bem lho percebi.
- Não ficaste zangado de te chamarmos Juanito?
- Tanto se me dá.
- Da próxima vez, havemos de trazer leite à tua irmã. Leite em pó.
- E um casaquinho de lã - ajuntou a Olinda.
- Ensinar-te-emos a preparar o leite.
- Eu já sei. - E, sem me fitar, pôs-se a roer as unhas.
Gostaria que ele me dissesse outras coisas que a Ti Eulália tivesse esquecido, ou a que não se referira por malícia e egoísmo, mas não me atrevi. A reserva de Juanito não estimulava ao diálogo. Devia, primeiro, cativá-lo, se é que ele não amealhara já boas razões para desconfiar de intrometidos como nós.
Enquanto fomos entrando e saindo de outros casebres, ele espreitava-nos da sua toca. Se os nossos olhares se cruzavam, voltava-se logo para o outro lado, encrespando a testa. Era um ganapo rebelde, arisco, sem dúvida. Armara-se entretanto uma sarilhada, um bando de mulheres que espremia as evasivas de um malandrim, suspeito de qualquer patifaria, e ele fora o único a alhear-se do alarido. «Não há cabrão nenhum que possa dizer que fui eu!», garantia o traste. E uma delas, à aproximação das enfermeiras, acautelara: «Não fale mal, Ti Ernesto!» «Qual fale mal! Uma pessoa, quando tem razão, é assim mesmo.» E logo embravecido: «Olhe que eu sou muito grosso para vossemecê me comer! Viu um gajo a fugir esta noite, mas não era eu! O que é verdade, diga-se.»
A cena ia continuar. Juanito dera uma volta pela rua detrás para, disfarçadamente, assistir à invasão da palhota do Ti Caramelo. Não devia ter percebido ainda porque violávamos a intimidade de cada um.
O Ti Caramelo, de emoções à flor da pele, choramingava de cada vez que lhe dizíamos uma frase macia.
- Um homem não chora, Ti Caramelo!
- Então já sabem a minha alcunha?... Isto não é chorar, é sentir-me bem com as meninas. - E erguendo um dedo sentencioso, justificava-se: - Na minha terra, menina vale mais do que senhora ou do que dona. Sabiam, meninas? É por isso que eu lhes chamo assim.
- Donde é vossemecê?
- Lá de cima, do Norte.
E, de palavra soluçada, tinha novo acesso de pieguice. Sim, era a tosse que o esgotava. Tosse, sempre tosse. Abria-lhe a tábua do peito. Mas íamos prometer-lhe que não havia tosse que se risse daquele novo remédio.
- Cuidado aí fora com o cão, meninas.
A advertência era oportuna. Com efeito, lá fora, o malandrim, acuado, defendia-se com uma saraivada de palavrões e o cão exaltara-se.
Para nos desviarmos da bulha, tivemos de passar rente a um cortiço de que sempre tentávamos fugir. À porta, uma estátua de acusação ou de abulia, vestida de farrapos, a mulher que, esgrouviada, nos perseguira, tempos antes, colina acima, porque o penso que escondia a meia face roída do marido se despegara, se desnudara - e, de repente, ela já não tinha ali o seu marido, mas um monstro repulsivo que lhe provocava terror. Um monstro que não podia ser o marido. Uma vizinha desmaiara só de o mirar de relance. Que o tapassem, que o escondessem, que lho levássemos - antes que os seus olhos o vissem sempre desfigurado, mesmo depois de o perder. Era essa alucinação que se colara aos olhos turvos e longínquos da mulher, ali sentada como uma dor de pedra, dias e noites, a arredar de si, baldada-mente, o medo e o asco que tinham vindo destruir-lhe o amor.
Essa visão, que me punha os nervos trémulos como juncos, foi-me arredada por aquele garoto que corria para nós, a mostrar-nos o seu velho chapéu enfeitado com um friso garrido de malmequeres. Juanito afastara-se um tanto do seu posto, a meia distância da nossa mútua e velada atracção, mas não o suficiente para que pudéssemos interpelá-lo. Foi o único, porém, que se desinteressou de nos acompanhar até ao carro.
Quando chegámos à cidade, já não eram horas decentes para almoçar. Enfiei-me num cinema e só no fim da sessão, ao rever o reclamo do átrio, soube o título do filme. Tudo à minha volta me pareceu obsceno e absurdo, o filme, o título, as pessoas que faziam parte daquele bulício anónimo e enervado, como absurdas eram as recordações das promessas feitas ao moreno Juanito. Em que mundo estaria eu verdadeiramente, neste ou no dele, tão distante e incrível?
E foi assim que o casaquinho de malha que a Signora Giuliana tão enlevadamente destinara ao neto que ia nascer teve outro rumo: a irmã de Juanito. O casaquinho de malha e uma lata de bolachas, das que serviam para temperar os gelados; tivemos, mesmo, de arrefecer o ímpeto solidário da italiana, pois nada lhe parecia bastante para serenar a sua comoção. A Maria Adélia, aliás, soubera contar a história, ou melhor: soubera enfiá-la na conversa sem que parecesse haver nisso qualquer propósito. Provavelmente, usara da mesma táctica no hospital, pois o saco, quando entráramos no café, ia já repleto.
- Poveretto! Poveretto! - lamuriava a signora, o rosto bolachudo, comunicativo, a banhar-se ora de sofrimento ora de ternura.
Quando íamos a sair, deixou em suspenso o «Ciao signorinas! Ciao, dottore!» para, num tardio impulso, nos trazer ainda um par de calções. Eram azuis, como os dos atletas. Juanito ia gostar.
Porém, de cada vez que deixávamos o leite, os trapos, o pão, a fruta, no casebre do garoto, acanhava-me uma espécie de culpa de quem vai restituir um furto. Juanito, no entanto, que reagia à nossa fácil generosidade com um desinteresse acintoso, poupava-me, desse modo, a sentimentos mais vergonhosos. Enquanto estávamos presentes, não tocava em nada do que arrumávamos sobre o catre do pai. Mal nos falava. Havia, não obstante, um subtil progresso nas nossas relações: em vez de nos espreitar, como dantes, da sua porta ou empoleirado numa figueira soturna, cujos braços nus, aflitos, serviam de baloiço à garotada, já nos seguia de covil em covil, e uma ou outra vez, sabedor de como ordenávamos a peregrinação, antecipava-se à nossa chegada junto de um doente mais da sua estima.
Junto do Raul, por exemplo. Tinha-lhe sido amputada uma perna, mas nem assim se decepara a fúria do mal. A mão do mesmo lado era agora a pata de um sapo. Parecia inacreditável que bracito tão delgado, um vime flácido, lhe pudesse com o peso. A doença propagara-se numa sementeira de nódulos, que se palpavam como seixos facetados. Todo o bairro lhe trazia presentes, e também Juanito. Os presentes de Juanito eram algum cigarro surripiado e os jornais desportivos, que o doente lia em voz alta ao companheiro. Ambos se mostravam entendidos nessa especialidade. Em tais momentos havia certa paz no Raul, e então a mãe acusava-o de um modo acerbo.
- O senhor doutor pergunta-lhe pelas dores, dá-lhe essas medicinas todas para não lhe ouvirmos a gritaria, mas quando ele se põe a ler essas merdices já não há apoquentação que lhe chegue.
O Raul ficava de narinas afogueadas.
- Deixem-na falar, a esse corisco! Vossemecê é uma saloia! - E enquanto escolhia outras injúrias das que se pudessem ouvir, a mão válida queria segurar-nos à borda da cama, para que não lhe recusássemos a morfina, para que viéssemos confortá-lo mais vezes. - Se não, estoiro prà qui como uma cigarra!
O seu apelo era reforçado nos olhos suplicantes de Juanito.
O enfermo, depois, soerguia-se no leito, cerrando os dentes, e voltava-se para uma imagem tosca da parede:
- Queres ou não queres que eu estoire? Tens coragem de me ver estoirar ao pé de ti?
E o repto exasperado era agora dirigido a esse Cristo humildoso, veraz como um homem que tem fraquezas e culpas, cujos pés ossudos se apoiavam num bacio de barro com flores artificiais, que não o deixava escapar-se daquelas heresias: um Cristo com quem o rapaz mantinha certas desavenças, de tu cá, tu lá, mas que nunca terminavam num rompimento.
A mãe pedia-nos desculpa da língua depravada do filho, corria a enxotar as galinhas que saltavam para dentro de casa, a debicar os restos de comida. Era esse um dos pretextos de se escapulir dali, da nossa presença ou das imprecações do doente.
Sentíamo-nos melhor com ela ausente. O Raul esperara que ela se fosse para, já desanuviado, nos indicar uma coisa bonita a que, levianamente, não tínhamos atendido: as molduras, feitas de papel prateado dos maços de cigarros, que alindavam as fotografias de artistas de cinema da sua invejada colecção.
- Estão uma beleza, Raul!
- Foi ele. Foi o João.
- Qual João?
- Esse.
Ah, pois, o João era Juanito.
Mas aquilo, acentuava o Raul, pouco dizia das artes do amigo: que víssemos uma engrenagem de cordéis e sinetas com que Juanito resolvera as refregas de um casal de surdos, que moravam mais abaixo. Bastava que um deles sacudisse a ponta de um cordel para que repicassem badalos de vário timbre, que furavam os tímpanos mais encardidos.
Disparei uma pergunta:
- Porque não fazes dessas coisas para a tua casa? Juanito mastigou uma explicação, que, por fim, foi dada da maneira mais curta:
- Porque não me apetece.
Esse bairro era a nossa dor de cabeça. Em toda a parte a doença era doença, mas ali tinha outra expressão. Todo o fundo do charco golfava à superfície. Daí que as minhas colaboradoras reagissem de modo diferente ao doente do hospital, um número, uma ficha, uma fardeta branca, do que ao enfermo lá de fora, um ser vivo surpreendido em toda a sua dimensão. Pelo dia adiante, pela noite adiante, permaneciam comigo esses olhos opacos, vidas cansadas de viver que eram apenas estômagos famintos, e a melopeia ulcerada do vento sobre as chapas que serviam de tecto, sobre o torpor dos corpos - um pesadelo confuso, desumano, fétido, companheiro também das neuras de domingo da Maria Adélia. E nesses charcos, nesse pesadelo, espigavam, riam, murchavam crianças.
Em nenhum lado, como ali, nos sentíamos tão inúteis. A Ti Eulália tinha razão: o melhor que podíamos fazer seria trazer-lhes comida. Por isso, da parte dela pelo menos, havia já ciumeira dos mimos que reservámos para a cabana de Juanito.
- Pensam que ele precisa? Tem o dinheiro que quer, fiquem sabendo. Fuma por aí como um danado. Não lhes falta nada. O patife do pai põe essa escumalha a roubar para ele, tampões de automóvel, ferramenta, o que calha, e depois é cada pândega de vinho e chouriça-das que até aqui me chega o cheiro.
Era capaz de ser verdade. A Ti Eulália, de resto, devia chamar a si um quinhão dessa fartura, pois já a tinhamos surpreendido com algumas das latas que destináramos ao Juanito. Ao aperceber-se da nossa surpresa, e antes que a Maria Adélia lhe dissesse das suas, conseguira engasgar a voz, tornando-a dramática e indecifrável.
Manhas que a Maria Adélia não perdoava. Ela divergia da tolerância que a Olinda tinha pela velha, desde que esta, certo dia em que estavam sós, e apenas para receber uma injecção, desabotoara ostensivamente a bata de alto a baixo, aparecendo-lhe nua. Uma nudez de destroços e de reles impudor. Mas, com a Olinda, a Ti Eulália, acertando nas cordas sensíveis da enfermeira, só falava das moças a quem ela desviara dos maus caminhos.
Certa manhã, finalmente, vimos o pai de Juanito. Quando atravessámos a colina do poste da energia eléctrica, iam ambos, ele e o garoto, um pouco adiante, cada um levando aos ombros um objecto que não pudemos identificar. Ele era um homem esgalgado, e mais alto me parecia, vestido de camisa escura, inflada por fora das calças, assim de vulto recortado sobre a lividez do amanhecer. Nenhum deles nos deu importância. A passada de Juanito imitava a do pai, a mesma cadência, a mesma sobrançaria de movimentos. Eles ali iam a encher o horizonte! E não sei que altivez, que majestade eles me transmitiram! Não fui o único, decerto, a reagir desse modo, pois o amuo da Maria Adélia, ao verificar que o ganapo lhe não respondia ao aceno («Olha o finório! Parece que vai ao lado de um rei!»), teve para mim um significado idêntico.
Concordámos em barrar-lhes o caminho à entrada do bairro, e, então, o pai de Juanito ver-se-ia forçado a dialogar connosco. Havia muitas coisas a dizer, e, mais do que isso, a nossa curiosidade, martirizada nesses meses, bem merecia que o ensejo não fosse desperdiçado.
Mas nada decorreu como prevíamos. Eles deviam ter prosseguido a sua jornada, ou tê-la-iam desviado para se furtarem à nossa coscuvilhice, pois quando voltámos a encontrar o Juanito já o pai ia longe. «Foi caçar arrebelas», disse o catraio. E bem notámos que mentia. Ainda hoje o que recordo do homem esgalgado é essa imagem fugaz de grandeza, a força da sua solidão ou do seu desdém, presas à minha memória como uma revelação, e não posso ajustá-lo ao que depois aconteceu.
O reencontro com Juanito, nessa manhã, deu-se em circunstâncias que muito decidiram das nossas intenções a seu respeito: uma criança chorou numa das barracas, alguém, lá dentro, a castigava do berreiro, embora o castigo apenas servisse para que o choro fosse mais bravo; e em certo momento, ouvida a perrice da criança por toda a colina, Juanito correu, desvairado, donde se ocultara, e ei-lo a procurar a irmã nas choças que mais vezes a abrigavam. No seu rosto houve ferocidade, pânico e, depois de tranquilizado («Não era ela! Não era ela!»), uma alegria sôfrega, convulsiva. Nunca o vira tão sociável e expansivo. Aceitou, radiante, uma guloseima e, arredando com malícia as inquirições sobre o paradeiro do pai, disse-me abruptamente:
- Tenho aqui cigarros dos seus. Vou dar-lhe dois. Com o modo mais sisudo de que fui capaz, averiguei:
- Mas não te fazem falta? Sacudiu a cabeça com veemência.
- Ná, não fazem.
- Gostava de falar com o teu pai - insisti.
- O meu pai?... - E depois de ter soletrado a pergunta, ferrou os olhos no chão. - Foi caçar arrebelas.
Tive pena de lhe esfriar o entusiasmo e, por isso, tentei desoprimi-lo da mentira:
- Como sabias que eu fumo destes cigarros?
- Reparei uma data de vezes. E, hoje, arranjei-os numa troquilha.
- Que deste em troca?...
- A roda de uma bicicleta. Mas já não prestava. Nesse regresso à cidade, cada um de nós magicava,
mais ainda do que até aí, numa solução para o caso de Juanito. As informações da Ti Eulália, embora premeditadas, eram seguras: o pai, um selvagem, fazia vida de larápio e o filho parecia um bom aprendiz. Ficaríamos perturbados, decerto, se alguém nos pedisse contas de ser Juanito, e não um dos muitos ganapos do sítio, tão expostos à miséria e à corrupção como ele, a justificar as nossas preocupações, mas logo encontraríamos um argumento que, provavelmente, seria o menos válido. Juanito num asilo de rapazes, a irmã numa creche. Teríamos de bater a muita porta até conseguir uma e outra coisa, mas eu e a Maria Adélia éramos da cepa dos obstinados: ela, sobretudo, não se dobrava às dificuldades. A perspectiva do asilo, no entanto, não me seduzia por aí além: tinha-me afeiçoado à ideia de ver Juanito com uma farda de paquete; não era pela farda, bem entendido, mas pelo ar travesso e espertalhão que têm os paquetes.
A Maria Adélia, porém, amadurava outros planos. Farejei a conspiração dias depois, no café, quando a Signora Giuliana me disse, com muitos «porca miséria» à mistura, que lhe faltava ali um ragazzino para os recados e para as limpezas mais grosseiras. Deixara de ter mão nos filhos, uns peraltas que já olhavam para a sombra: do que precisava era de alguém dócil, estranho à família, que soubesse respeitar o mando.
- Ecco, dottore. Uno ragazzino a quem agradem os gelatti...
Olhei, numa súbita inspiração, para as duas enfermeiras, que pareciam muito ao largo das agruras da italiana, e logo se me aclarou a manobra. A Maria Adélia fumava, naquele seu modo tão irritantemente desprendido (enquanto a Olinda, quando punha o cigarro na boca, tinha o ar ou os gestos de quem experimenta um deleite proibido), e não disse palavra. Elas ofereciam-me o gosto de ser eu a propor Juanito? Muito bem. Iria, então, trazer-lhe o garoto: escovado, já se vê, e depois de o barbeiro lhe desbastar a trunfa com umas rijas tesouradas. Nessa altura, esquecêramos a irmã e, afinal, seria por aí que, prudentemente, deveríamos ter começado.
Logo demos pelo erro quando Juanito, à má cara, nos esfriou o alvoroço com um único gesto. Um gesto que dizia não e tinha o peso de uma pedra. Sentado num cepo, nas proximidades da figueira, acurvara o tronco sobre os joelhos, no jeito de bicho a enrolar-se, como lhe era habitual. Aquele dedo a esgaravatar a terra esfarelada queria sugerir-nos que o assunto não merecia conversas. Ou que não era com ele. Tentei esmurrar esse insolente mutismo, ir ao encontro das suas dúvidas:
- Mas não gostarias de ter um emprego? Se estás a pensar na tua irmã, fica sabendo que a levaremos para uma creche.
Os olhos dele luziram, uma faúlha breve, mas talvez o tivesse espicaçado muito mais o tom da minha voz, que tinha endurecido.
- Que é isso de creche?
- Um sítio onde tratam das crianças.
- Longe?
- Na cidade.
Também já não me apetecia dizer mais. O dedo do Juanito voltou a rabiscar coisas várias, de um modo sacudido e incoerente. Um dos desenhos, no entanto, fazia lembrar a figueira de braços estéreis e rancorosos, ali testemunhas dos nossos desencontros, e que ainda hoje me vem sempre à frente das imagens desse mundo de pesadelo.
Inesperadamente, ouvi-o dizer:
- Nunca fui à cidade.
Filei-o por essa confissão. Iria estonteá-lo com a perspectiva de o levar connosco; aproveitaria essa fenda na sua teimosia, nas suas hesitações, antes que o seu não de pedra já não tivesse apelo. Na minha insistência havia já amor-próprio, e a Maria Adélia, num olhar severo, perscrutador, bem mo fez sentir.
- E vou no automóvel?
Pois, de automóvel. Na carrinha que molejava como uma atracção de circo. A muita velocidade. Ele poderia, mesmo, buzinar de vez em quando. Tanta maravilha que ele, no regresso, viria contar aos ami-galhaços cobiçosos!... Nesse programa havia, é claro, um pormenor de reserva: a visita à casa de gelados da Signora Giuliana.
Ele ia render-se. Sorria a uma ou a outra das tentações, ao mesmo tempo que, num último estertor da sua resistência, se pôs a inventariar a tralha que lhe enfolava os bolsos: berlindes, parafusos, um sortido prodigioso de refugos.
- Vá, agora trata de vestir os teus calções azuis.
Quanto à irmã, durante essas horas seria resguardada pela Ti Eulália. De bom ou mau humor, era um préstimo que ela não nos podia negar, embora talvez nem em todas as contingências o pudesse cumprir.
O garoto ergueu-se molengão, o nariz sardento a auscultar os ventos. Desfibrava ainda as nossas promessas. Depois encaminhou-se para a cabana, dando tempo a que visitássemos dois doentes que se aproveitavam da nossa presença, e, quando reapareceu, foi acomodar-se nos bancos traseiros do automóvel. Tudo nele fazia crer que se prestava a um sacrifício ou a uma violência. Ao vê-lo assim, não sei que me decidiu a adiar para outra ocasião o tal pormenor de reserva: não seria daquela vez que o apresentaria à Signora Giuliana.
O crime deu-se no mesmo dia. Ao entardecer, quando o poste rubro se agiganta sobre a paisagem fascinada. Tínhamo-lo largado no alto da colina, meio aturdido ainda, acenando-nos num adeus sem fim. Li o crime nos jornais, embora todas as fantasias ou obscuridades do relato me tivessem sido esclarecidas, em sôfregas e sempre mais negras versões, por algumas pessoas do bairro que foram, de propósito, ao hospital. Mas o modo como as coisas se passaram só Juanito, ao certo, no-lo poderia dizer; e, a esse, ninguém arrancara uma palavra. Alguém fora encontrá-lo na pocilga, aninhado a um canto, olhos esbraseados que fitavam sem ver, os ombros sacudidos por um choro seco. O pai, junto do berço, tinha o crânio esfacelado. Estava morto. Na garganta da criança, ainda viva, viam-se os regos sanguíneos do canivete cego, ébrio, malvado, que a retalhara.
Pelo que se deduzira, Juanito, ao regressar a casa, já ali encontrara o pai. Ele soube-o antes de abrir a porta, ouvindo aqueles resmungos tontos de quando a bebedeira fazia que o bruto imaginasse adversários conflituosos. Mas também apercebera o lamento da irmã, gemendo como um pássaro na agonia. Entrou bruscamente, de coração mirrado. O pai comprazia-se a traçar sulcos vermelhos na garganta enrugada da menina, enquanto lhe domava o protesto, já afrouxo, dos bracitos. Estavam ali as pedras da lareira; a pocilga era um antro de ódio, de fúria e espantos, de clarões vermelhos. A pocilga era sangue e alucinação. E uma das pedras achou-se nas mãos de Juanito, na fúria e no espanto das mãos de Juanito, e bateu, e bateu, mesmo depois de o crânio do ébrio ser já uma pasta de ossos esmagados.
Era um homem encorpado, escuro, cabelo em redemoinhos e um negro bigode de arrogância fadista, desenhado inspiradamente pelo barbeiro lá do bairro. Sentara-se com ar fanfarrão num dos bancos da sala, empurrando as humildes camponesas que tinham atravessado os cerros e as planícies do País para nos ouvir, a nós, magos da cidade, senhores da misteriosa sabedoria, apenas porque vivíamos numa terra em que tudo é excepcional, desde o burburinho grandioso das ruas até à suficiência e mediocridade. Àquela hora, o imenso átrio onde se apinhavam os doentes estava repleto. Era um aterrorizado e submisso rebanho de gentes ansiosas, nas quais a dor e a expectativa se traduziam por uma estranha solenidade. Entre eles, uma mulher corria a todo o momento para a porta, à espera de alguém ou de um acontecimento, e, depois de cada um desses alarmes frustrados, voltava para o seu lugar repetindo:
- Estou a ouvir o meu filho! Vocês não o ouvem?
Alguém esclareceu que a mulher tinha um filho no hospital, cego por um cancro, e que iriam operá-lo nesse dia. A notícia tornou o ambiente ainda mais denso e silencioso. Nessa tensão emocional todos procuravam um meio ingénuo, às vezes desastrado, de serem prestáveis uns aos outros, como se essa solidariedade os defendesse de um perigo informe que ali os ameaçava.
No entanto, o homem escuro, na sua ilha de dureza, mantinha-se numa indiferença provocante. Não se misturava. E como tardasse a vez de ser atendido, questionou com a enfermeira. Ela transmitiu-nos com tanta revolta a má-criação do sujeito e as suas exigências que decidimos castigá-lo, deixando-o para o fim da consulta. Parece que o fadista, enfurecido, se levantou do banco e passeou durante algum tempo no corredor, protestando, insultando, sem que qualquer dos empregados tivesse coragem para lhe enfrentar a incendiada insolência.
Mais tarde, vim cá fora. Vi-o, sem precisar que ninguém mo identificasse, de tal modo a sua presença agressiva se salientava no meio dos que, tendo perdido o sentido da fadiga e do tempo, se alinhavam como num velório. A mãe do garoto canceroso ergueu-se do lugar e, cansada das palavras e das lamúrias, cruzou as mãos aflitas sobre o peito. Esse gesto foi a voz do seu desespero e pareceu-me que todos os outros doentes o imitaram. Encaravam-me de um modo ao mesmo tempo implorativo e reprovador, como se o alívio para a angústia da pobre mulher ou o que nesse momento se passava na sala de operações apenas dependessem de mim.
- Digam-me! Digam-me o que aconteceu ao meu filho!
Embaraçado, fugi com os olhos para os concentrar no fadista.
Era ele, sem dúvida, tipo de brigão e de rufia. Mas já não o encontrei impaciente: o homem abrira um caderno, assentara-o nos joelhos e, mais uma vez alheio à amargura que o rodeava, relia para si, murmurando como se rezasse, as palavras que lá estavam escritas. Aproveitava o seu tempo. Durante os minutos em que estive a observá-lo não mudou de página. Imaginei-o cobrador de uma casa comercial, agente de vendas, traficante - mesteres que em certas circunstâncias poderiam ser valorizados pela grosseria -, a rever notas sobre o seu trabalho para, assim, iludir a espera e a truculência dos nervos. Eu teria preferido supô-lo sem profissão, coerente com o seu aspecto de herói de tabernas. Mas, vadio ou homem com ofício, certamente nenhuma ocupação seria capaz de humanizar esse bruto, emprestar-lhe simpatia e ternura.
Quando voltei à consulta, tinha-o esquecido. O que enchia os sentidos era ainda o apelo da mãe da criança cega. Não fora há muito que um colega, sabedor dos meus nervos frágeis, me levara à sala de pensos da enfermaria para, numa surpresa brutal, me colocar, de chofre, perante o espectáculo daquele túnel vermelho, hediondo, que, desde o que havia sido um dos olhos, parecia furar de lado a lado o cérebro do doente monstruoso. Sentei-me à secretária, a fumar desalmadamente e pouco atento ao que se passava em redor, sob o pesadelo de que, naquele preciso momento, estariam, do mesmo modo, a escavar o crânio do garoto.
Saí do hospital quando outro colega chegou para me substituir. Já não encontrei o brigão na sala de espera. Provavelmente tinha atingido os limites do enfado e calculei o repertório de insultos de que se servira para definir a nossa atitude. Foi então que, ao atravessar o parque do hospital, dei com ele sentado junto ao lago, entre goivos e arbustos floridos. As andorinhas vinham roçar a superfície plácida das águas, num voo capcioso e furtivo, alvoroçando os peixes vermelhos que se escondiam nos limos verdes.
O homem continuava estranhamente embevecido na leitura do caderno. Fiquei intrigado. Ele soletrava, meditava, e desta vez servia-se de um lápis encastoado num cabo de metal para fazer breves anotações ou para coçar o bigodinho crespo. Quando me aproximei, recebeu-me com um olhar feroz, mas nem por isso interrompeu a leitura. Debrucei-me sobre o lago, a enxaguar as mãos, à falta de outro pretexto que permitisse chegar tão perto dele que pudesse ler-lhe os misteriosos apontamentos. O caderno era um livro de sonetos, escritos numa letra generosa e floreada, e o rufia corrigia-lhes amorosa e infatigavelmente as rimas e a métrica, reforçando uma exclamação, desenhando delicadamente o rabo das maiúsculas. Eram sonetos, versos!
O espanto nem me deixou esconder mais a curiosidade. Foi quase de rosto junto do seu, e já sem pensar que ele poderia afastar-me com um murro, que li esses versos que falavam em harpas, bosques, crianças, que falavam de um amor lírico e desesperançado. Era um amor capaz de se imolar pelos homens e pelas coisas subtis que todos nós, pessoas sensíveis e corteses, desperdiçávamos através das nossas mãos esburacadas.
Tenho no meu consultório, num frasco de vidro, ao lado de bugigangas de estimação, um osso de carneiro. Mas não se trata de uma bizantinice ou de um absurdo trofeu. Está ali para me recordar o caso da rapariga que engolia alfinetes.
Foi nesta mesma sala que, há anos, a rapariga me procurou para dizer isso mesmo: que tinha um alfinete-de-ama, atravessado na garganta. Ela, miudinha e frenética, embora a sua presença fosse graciosa, não vinha só: escoltava-a uma tia que nem parecia do mesmo sangue, tesa e maciça, lembrando um granadeiro em dia de parada. A sobrinha nem em bicos de pés lhe chegaria à barbela. Sob a coacção insistente de um cotovelo da mulheraça, a rapariga confessou, numa secura ríspida, de quem já se cansou de falatórios inúteis:
- A minha doença é aqui. - E os dedos localizavam-na sem hesitação, quase de um modo provocante:
- Tenho um alfinete-de-ama espetado na garganta. Não podia ser. Mas o difícil estaria em convencê-la,
pobre nevrótica, de que é impossível que alguém tenha um alfinete-de-ama espetado na garganta. Nem ela vinha ali para a desmentirem. E quando insinuei cautelosamente as minhas dúvidas, usando palavras embuçadas, o queixo emproou-se-lhe, num ar de afronta, e também os olhos da tia, duas ranhuras metálicas a cortarem as pálpebras fofas, logo se cerraram, esquivando-se à heresia. Teria, enfim, de lutar com ambas. Foi a tia que, mais demolidora na sua recusa em me aceitarem argumentos, mo fez sentir, sob o peso do seu garbo:
- Isso é o que o senhor doutor imagina. Outros médicos já disseram o mesmo à minha sobrinha, ainda não houve um que não se tivesse enganado. Um deles chegou a mandá-la tirar uma radiografia, para nos provar que nada apareceria na chapa.
- E apareceu?
- Disseram eles que não. Vêem as coisas à ligeira. Mas o alfinete está ali. Ela bem o sente.
O caso iria sangrar-me a paciência. Mas, pela sua invulgaridade, eu dispunha-me à sangria. Tinha de averiguar até que ponto os nervos e o psiquismo da rapariga estariam perturbados, qual o papel da tia, autoritária e boçal, no apego àquela cisma. Porém, toda a observação, que elas, flagrantemente, consideraram supérflua e abusiva, me deixou desarmado. A rapariga era saudável, as suas reacções respondiam normalmente às minhas artimanhas.
- Muito bem - disse eu, mudando de pista. - E como é que a senhora engoliu o alfinete?
Ela, que me fazia lembrar um pássaro que debica o lixo enquanto está atento a uma possível ratoeira, consultou a tia antes de responder. O consentimento foi-lhe dado num sinal discreto.
- Gosto muito de café e bebo sempre uma grande chávena todas as manhãs. Bebo-o mesmo quente, às goladas. Ora temos uns hóspedes em casa e...
- Mas gente de respeito, nada de galdeirices - anotou a mulheraça.
- Menos aquele, tia! Foi por nos termos iludido que isto aconteceu.
Os olhos do granadeiro piscaram, contrariados.
- Vá, conta ao senhor doutor.
- Tivemos um hóspede que era um mandrião, um chulo. Passava o dia na cama, fazia versos para as cantadeiras de fado, diziam que vivia à custa delas. - O pigarro da tia foi um travão nas confidências. A rapariga, porém, não o soube interpretar; apenas adoçou o azedume: - Mas lá tocar guitarra era com ele! Uma perfeição. Dava gosto ouvi-lo. Ora o velhaco fez-se atrevido comigo e daí começaram umas zaragatas. Para não incomodar minha tia, que sofre do reumático e do coração, escondi-lhe o que se passava.
- Fizeste muito mal, já to tenho dito. Tu bem sabias o que nos pode acontecer se temos portas adentro pessoas que nos desejam desgostos. Eu poderia ter evitado a patifaria.
A última frase modulara-se numa ênfase ambígua, que me alertou os ouvidos.
- E depois?
- Depois ele, sabendo que eu tomo o café às goladas, mesmo que esteja a ferver, pôs-me o alfinete no fundo da chávena. Ele tinha a certeza de que eu engoliria tudo sem reparar. E foi assim. Posso dizer o sítio exacto onde está a ponta e a cabeça do alfinete. Faço qualquer movimento, engulo, tusso, e sinto-o a raspar-me a carne. Aqui.
- Mas um alfinete-de-ama tem de se ver, de se palpar. E nem eu, nem, ao que diz, os meus colegas, conseguimos vê-lo ou palpá-lo. Por vezes, julgamos sentir coisas que não correspondem à realidade. Uma dor, por exemplo, nem sempre significa que está lesado o órgão onde a sentimos. Percebe?
A mulheraça achou oportuno intervir, para anular os malefícios da minha astúcia. Eu, de manha em manha, tornara a sobrinha loquaz, talvez mais crédula, pois bem se lhe notava o desafogo de ter esvaziado coisas íntimas, e ela não ma trouxera para tais revelações, mas sim para lhe extrair o alfinete. Levantou-se da cadeira, no jeito de pavão a enfunar as asas, e sentenciou:
- Os espíritos podem muito, senhor doutor. Se a minha sobrinha engoliu o alfinete e ele não se vê, é porque houve feitiço. O alfinete está lá. A minha sobrinha nunca foi parva nem mentirosa.
A ambiguidade de tal frase tornou-se-me mais presente. Pois: as raízes daquela obsessão, reforçada pelo convencimento supersticioso e solene do granadeiro, já que não havia destrambelho que as explicasse, deveriam ser pesquisadas numa atmosfera familiar de espessa crendice. E pus-me a imaginar a mulheraça num dos bairros da pequena burguesia, vestida de roupão de fazenda estampada, nos pés varicosos umas chinelas de quarto, talvez cor-de-rosa, ornadas com uma borla da mesma cor, indo à porta despedir os vendilhões e ficando-se meia hora a tagarelar com a vizinha do lado sobre mistérios, defuntos e mulheres de virtude, e a ir ao domingo de manhã à missa e à tarde a uma sessão de espiritismo num primeiro andar da Rua das Chagas, conjugando assim os seus deveres para com os deuses e os enigmas. Mas a sobrinha tinha vinte e poucos anos, umas narinas de cio, e as rezas e as benzilhices apenas serviam para lhe distorcer o apelo dos sentidos.
Talvez eu devesse tentar qualquer manobra espectacular, que as impressionasse mais ainda do que as piruetas aterradoras de uma mesa de pé-de-galo. Mas como? Ná, a mim competia-me sacudi-las, vergá-las com argumentos objectivos.
- Vou provar-lhes que um alfinete-de-ama, mesmo com todos os feitiços, não pode escapar a um exame ra-dioscópico. Sabem o que isso é?
Sabiam. E a tia, a meu rogo, enfiou a mão no poço dos saiotes, enquanto se voltava recatadamente para o lado da janela, e apresentou-me um alfinete. Prendi-o, com adesivo ao pescoço da rapariga. Ah, ela chamava-se Natália e a tia Maria Cândida. D. Cândida. Arrastei-as para o gabinete contíguo, onde, varando o negrume, espiava o olho vermelho de uma lâmpada ferina. Sempre num silêncio expectante, quase místico, cortado pelo estalar seco dos botões e dos pedais que eu manejava como instrumentos de magia, convidei a D. Cândida a associar-se-me na devassa. Ah, como pulsava o coração! Que assustadora fraude era esse mundo, a um tempo frágil e poderoso, de uma pessoa vista por dentro! Os ossos, o ofegar das sombras difusas e, mais acima, o alfinete. Não havia dúvida. Era ele.
- Está a vê-lo, não é verdade?
- É claro que vejo. A minha sobrinha tinha razão. Sem um comentário, desliguei o aparelho, acendi as luzes. Deixei que ambas se refizessem daqueles momentos opressivos. Ou que se julgassem refeitas. Depois, num golpe traiçoeiro sobre um adversário que afrouxou a guarda, contrariei:
- Não, não tinha razão. O alfinete que a senhora viu é este, o que eu prendi com adesivo ao pescoço da sua sobrinha. Vou tirá-lo. Aqui o tem. - E para a rapariga: - Quer ter o incómodo de se colocar outra vez no aparelho?
De novo a escuridão e o mistério. Uma pessoa vista por dentro. Mas agora já não havia alfinete. A tia, abalada, teve de confessá-lo, embora enfiasse ainda, de um modo inseguro, a tal versão do bruxedo. Fiquei certo de que as suas convicções já não eram tão firmes. Era o começo da vitória. A sobrinha, porém, é que não cedia: na sua garganta havia um alfinete. Ela bem o sentia. E que nos deixássemos de palavrório.
É para coisas destas que se fizeram os calmantes. Sobretudo para comodidade dos médicos que os receitam. E foi com eles que despedi as minhas desiludidas clientes.
Ao fim da tarde, numa roda de amigos, chalaceando sobre o caso, um deles censurou-me a inépcia com que eu conduzira a consulta. O fulcro da história era a cisma da rapariga, que teria de lhe ser extirpada como um dente pela raiz. Ela imaginara uma vingança do guitarrista, estruturando a suspeita num jogo de verosimilhanças, dera-se, enfim, uma gravação psíquica do objecto; em vez de contrariar a rapariga, deveria, antes, comportar-me como se nela acreditasse. Havia um ror de exemplos desses na literatura médica. Que mandasse a atmosfera doméstica para o Diabo, pois não estaria na minha mão corrigi-la.
- Se ela voltar a aparecer-te, trá-la ao meu serviço. Armamos um cenário apropriado e depois será fácil convencê-la de que lhe extraímos um alfinete.
Mas não me pareceu que a tia, e muito menos a sobrinha, tivessem ficado afreguesadas ao meu consultório. Esquecia-me, porém, daquele pormenor de a mu-lheraça ter investigado, como comparsa, as entranhas da rapariga. A D. Cândida iria falar disso por muito tempo e sempre que se gabava dessa experiência o meu nome seria refrescado na sua memória. Creio que foi esse o motivo por que me chamou semanas depois. Dessa vez, a doente era ela. O reumatismo cravara-lhe as garras, atufara-lhe o coração. Não podia dar um passo.
Foi num dia húmido e fastiento, em que as árvores, sob a morrinha, lembram velhas desmazeladas, esquecidas de se pentearem, que recebi o seu chamado. Um dia mau para os reumáticos. Mas, pelo caminho, no que eu pensava, de curiosidade excitada, era no caso dos alfinetes.
Os palpites não me falharam nas suas linhas gerais: uma rua meio popular, meio burguesa, casas no estilo feião do pós-guerra, com varandas que fingiam torreões, e as tais donas de casa que, afanosamente, sacudiam tapetes à janela, um olho guloso sobre a rua, outro filado na vizinhança. Ambulantes ruidosos às portas, usando vários espécimes de transporte, com predominância dos burricos saloios. Uma rua que era uma aldeia transplantada na cidade, pequeno clã de primos e comadres que jogavam o bilhar ou a bisca ao serão e eram sócios do mesmo clube.
Também acertara noutras minúcias: a D. Cândida, embora desfalecida, de juntas ferrugentas que eram agulhas de dor, em lugar de me receber na cama, estava recostada num sofá e vestia o previsto roupão. Roupão todo ramalhudo e debruado de cetim azul. Dava-lhe imponência. Só os chinelos e a borla falharam, ocultos os pés sob o resguardo de uma manta felpuda. A sobrinha, que se mostrou afável, um tudo-nada maliciosa, conduziu-me da porta, corredor fora, até à saleta onde nos esperava a enferma. De passagem, fechou desabridamente um quarto cujo interior, em desleixo, lhe crispou a ruga entre os olhos. Era, por certo, o quarto de um hóspede.
Na saleta, lá estavam as imagens piedosas, a Ceia de Cristo em relevo, as floreiras, o galgo de gesso com a língua ofegante pintada de carmim e um vago odor a incenso. Em cima de todos os móveis e em vários tamanhos, fotografias da Natália. Na sua maioria, em fato de banho. Pequenina, sim, mas ninguém diria que tinha essas coxas tão reboludas. O que estranhei foi a insistência nas fotos reveladoras de tais seduções. O tocador de guitarra havia sido, provavelmente, uma vítima dessa armadilha, reservada para um hóspede merecedor da bênção do granadeiro.
A D. Cândida, sempre de barbela emproada, confidenciou-me ter pouca fé em avios de farmácia, quer dizer, nas artes da medicina, dando mais crédito às terapêuticas naturais, às ervas e florinhas geradas pela vontade divina que se vendiam nos ervanários, mas, nos últimos tempos, fora abalada por alguns desenganos.
Uma ervanária de Campolide impingira-lhe uma mistela que sabia aos Infernos e lhe revolvera os intestinos numa diarreia de sangue. Por isso, e mesmo antes de se poder deslocar ao meu consultório para que eu lhe visse o coração esfalfado tal como ela vira o da sobrinha, estava disposta ao risco de boticas artificiais. As dores eram insofríveis.
- Então nunca tomou remédios receitados pelos médicos?
A D. Cândida desceu a pesada cortina dos olhos, a boca fez-se dura. Depois, aconchegando o roupão aos joelhos, decidiu que eu lhe merecia jogo franco.
Tomara remédios, sim senhor, mas em circunstâncias especiais. Receitara-lhos um lente dos velhos tempos, um homem sábio que já não era deste mundo, com uma estátua no Largo do Patriarcado. Contam-se pelos dedos os médicos que têm estátua. Esses poucos ainda merecem crédito. A consulta fizera-se por intermédio de um médium que estava nas boas graças do ilustre finado.
- Repare o senhor doutor que todos os dias se vêem ramos de flores aos pés da estátua. São de pessoas que lhe devem a saúde. O senhor doutor não acredita? Desconfio bem que não!
Fiquei entalado pela severa expectativa da tia e da sobrinha e não tive coragem de confirmar tão reprovável cepticismo.
- Pois se não acredita, o mal é do senhor. O espírito daquele médico nem tem sossego lá no outro mundo com tanta gente a pedir-lhe conselho. Mas eu, que não sou de abusos, acho que só devemos incomodar os espíritos quando em perigo de vida.
Assim se explicava, deduzi, que a Natália não estivesse sob a guarda da ciência de além-túmulo. Mas para lá do reumatismo e do mostruário de crenças da D. Cândida, o que me fervilhava era a impaciência por fazer perguntas sobre o alfinete. Ela ainda o sentiria? A rapariga parecia-me mais tranquila, à parte a garridice nos modos. Lá veio um momento em que, a sós, pude averiguar:
- E então o alfinete na garganta da sua sobrinha?
- Deixe-me cá com tal bruxedo! Ela teima, teima e eu já não sei que pensar.
Era uma ocasião azada a que eu emendasse o meu erro. E se o colega o dissera, um colega expedito, que fizera a sua carreira na cidade, não sendo, como eu, um aldeão imigrado, tolhido de vacilações, devia seguir-lhe os conselhos. Por isso, reforcei:
- Nem eu, minha senhora, para dizer a verdade. Acho melhor, um dia destes, quando lhe for possível, levar-ma ao hospital. Tenho lá um amigo especialista da garganta que prometeu examiná-la como deve ser. E desinteressadamente...
A mulheraça não me agradeceu de ânimo leve. Joeirava essa descabida generosidade. Mas, por fim, impressionada com o apuro da observação que lhe fiz, prometeu levar-me a rapariga.
- Ela já se envergonha de falar no caso, mas quem sofre sujeita-se a tudo. E acha que vai pôr-me em condições de a acompanhar?
Garanti que sim. Ainda que as minhas drogas violentassem as leis da natureza.
Cumprimos ambos a promessa: eu, de lhe espevitar as juntas emperradas; ela, de me trazer a Natália ao serviço do solícito especialista.
Reparei logo numa estranha metamorfose: a rapariga, que em casa me parecera serena e fagueira, capaz de filar um «hóspede de respeito» que a apreciasse com boas intenções, era de novo a mesma espantadiça que, tempos antes, sob o mando despótico da tia, me entrara no consultório. Sentíamo-la frágil e abespinhada.
O meu colega, porém, tinha calo em papéis dessa feição. Inspeccionou e interrogou como se, efectivamente, alguém pudesse ter um alfinete-de-ama atravessado na garganta. Surpreendeu-nos, no entanto, que as goelas da Natália fossem tão dóceis e insensíveis. Quase não havia reacções reflexas. Vasculhava-se por ali à vontade como dentro de um funil de cortiça. Mas para que a nossa comédia tivesse uma réstia de legalidade, lá apareciam umas calcificações nas cartilagens.
Todo esse prelúdio durou o suficiente para ser tomado a sério, após o qual o meu colega opinou, de so-brecenho carregado:
- Creio que a senhora tem razão. Há aí qualquer coisa. Vamos operá-la.
- Operar-me?... Acha então que eu preciso que me façam isso... Mas quando?
- Pode ser agora mesmo. Já padeceu tempo bastante.
A rapariga assestou-me dois olhos fuzilantes. O seu triunfo, porém, logo se sombreou de uma névoa de susto. Tudo aquilo era repentino de mais. Hesitava. Mas a tia estava ali para decidir e ser obedecida. E arrumou-lhe as dúvidas:
- Pois há-de ser hoje e quanto mais depressa melhor.
O espectáculo cirúrgico foi encenado segundo as regras mais verazes: máscaras, uma breve anestesia, só pela rama, que a deixasse meio entorpecida, laringoscó-pio, tesouras e pinças reluzentes, e duas enfermeiras perfiladas, testemunhas desse jogo desleal entre a vida e a morte. De parte, para intervir no momento propício, um alfinete muito usado a que os coágulos de sangue davam uma crua autenticidade.
Permitimos que a D. Cândida estivesse presente no suave despertar da sobrinha. E foi ainda na sala de operações, nesse palco de batas brancas, pensos a atestar hemorragias e lancetas de vário porte, que a tranquilizámos :
- Tudo acabado. Está finalmente livre do alfinete. Aqui o tem. Parecia um caranguejo agarrado à sua garganta.
A rapariga afastou o lençol, palpando o rosto e os braços, a desfazer-se do quebranto da irrealidade.
- Eu bem dizia, eu bem dizia!
Amparada pela tia, deu uns passos pela sala. Mas depressa os seus gestos se tornaram ágeis. Teve depois uma expansão que nos obrigou a reprimir custosamente o riso:
- Já não sinto nada no pescoço! Posso levar o alfinete?
- Claro que pode. É seu. Tem todo o direito a conservá-lo.
Durante uns dias, a anedota do alfinete foi responsável pelo nosso bom humor no hospital. No entanto, esperavam-nos alguns contratempos. A D. Cândida não podia aceitar que a sagacidade do meu colega e, por aproximação, também o empenho que eu pusera no caso da sobrinha não tivessem o prémio ajustado: um agradecimento público, em letras gordas, na segunda página das gazetas.
- O seu colega é um médico a valer, não desfazendo. Radiografias e tudo o mais que o senhor sabe, e ninguém acreditava! Pois bastou ele pôr-lhe as mãos... O nome dos dois há-de ir para os jornais.
Tinha já um compadre a redigir esse tão merecido testemunho de gratidão. Entretanto, insinuava-me, ia encaminhando os vizinhos para o meu consultório. Aliás, lá no bairro, a nossa proeza era um falatório pegado. E, nas suas orações, bem como nas tertúlias com os espíritos, eu e o meu amigo especialista tínhamos um lugar à parte. Faltava o anúncio. - Não podemos consentir, minha senhora.
- Não podem consentir?! - E a montanha redonda do seu peito crescia, indignada e ameaçadora, sobre a minha pequenez.
- Sabe, temos cá uma maneira de encarar essas coisas.
- É por sermos gente humilde, senhor doutor? Não temos o mesmo direito que os outros? Pois nem o senhor doutor nos poderá impedir de o fazer.
Enfim, a mulher forçava-me a contar a verdade. A operação tinha sido fictícia, embora na mais pura das intenções. E expliquei os motivos que nos tinham levado a tentar esse recurso. Ela devia compreender que, nessas circunstâncias, o agradecimento nos jornais ia expor-nos ao ridículo.
A D. Cândida não reagiu muito bem, saindo do consultório como uma perua degolada. Talvez nunca mais nos perdoasse a aleivosia.
Uma vez por outra, o meu colega perguntava-me:
- Então a do alfinete?
- Nunca mais a vi.
- Pois eu bem gostava de saber se a mania se lhe varreu completamente. Não terias facilidade em averiguar?
- Duvido. Perdi a confiança da tia. Ou melhor: perdemo-la ambos...
No entanto, certa manhã, tivemos uma surpresa. Na sala de espera do hospital, tia e sobrinha aguardavam uma oportunidade de filar o meu colega. Este foi chamar-me intrigado:
- Elas voltaram. Que diabo terá acontecido? Vem daí assistir à conversa.
A D. Cândida, comprometida, embora lhe sobrassem uns restos da galhardia do nosso primeiro encontro, falou mais uma vez em nome da sobrinha:
- ...Ela andou bem uns tempos, mas depois deu em entristecer, em entristecer... Dantes, falava muito do alfinete, as outras pessoas perguntavam-lhe se ia melhor, se ia pior, e assim por diante, mas depois que os senhores doutores lho... tiraram - e aqui a voz teve um ressalto brusco, os olhos afiaram-se -, depois as pessoas deixaram de se ralar com isso. As coisas são mesmo assim. Ninguém pode continuar a falar do que já passou. E então...
- Não é disso que se trata, porque é que a tia está com essas lerias? - A rapariga, que se refreara, a custo, durante o prelúdio da tia, mostrava uma decisão que lhe desconhecíamos. - Eu é que vou contar. Estava um dia destes a comer um guisado de carneiro e engoli um osso. Um osso nada pequeno, que me ficou na garganta. Tal como da outra vez.
Eu e o meu colega não acertámos numa reacção definida. Cada um de nós aspirou uma grossa fumaça do cigarro, a ganhar tempo. Quem não dissimulou o espanto, por nos ver perplexos, foi a rapariga, que logo acrescentou:
- Vinha agora para mo tirarem. - E repetiu: - Como da outra vez.
O meu colega deu uma volta à secretária, ainda a arrumar ideias, e retorquiu secamente:
- A senhora não pode ter um osso na garganta. Lá um alfinete, vá lá, mas osso... É de mais, tenha paciência.
Reparei que a tia nos fazia sinais aflitos. Ela tinha o que quer que fosse de secreto para nos dizer. Por isso, e arriscando-me à flagrante desaprovação do meu colega, tomei a iniciativa:
- Em todo o caso, parece-me justo que a observemos. Faça favor de passar para o gabinete do lado, que, daqui a nada, lá iremos ter consigo.
E fi-la acompanhar da enfermeira. A D. Cândida, em ânsias de desabafar, já não era o granadeiro, mas sim uma pobre mulher lamurienta:
- Pelas vossas almas, senhores doutores, façam-lhe o mesmo que da outra vez. Ela põe-me doida. Não sei que se passa com aquela rapariga.
Enquanto eu me reduzira ao papel de espectador, o meu colega, mais afoito em dizer as coisas pelo seu nome, desiludiu-a:
- Seria inútil. Dentro de algum tempo, ela inventaria outra mania. Case-a, case-a, minha senhora.
A insinuação esteve a ponto de arrebitar a crista da mulheraça, que estremeceu de dignidade injuriada, mas o peso das suas ralações devia ser de tal vulto que ela se sofreou. Vimo-la retirar do bolso um pacotinho enigmático e desembrulhá-lo com ar ladino, de quem previra a nossa recusa e conhecia as verdadeiras razões que a poderiam justificar.
- Eu até já vinha preparada para o caso de não haver aqui um ossinho a jeito.
- Preparada?
- Pois. Trago aqui um osso de carneiro. E era. Legítimo.
Mas nem essa vaza inesperada subornou o meu colega. E creio que a D. Cândida, embora pesarosa, concordou, por fim, em que talvez a sobrinha necessitasse de outras terapêuticas mais radicais: um psiquiatra ou um hóspede de respeito.
O osso ficou em meu poder. Ei-lo. Está ali. Um dia, porém, acabo por lançá-lo fora, pois sempre que alguém pergunta para que guardo eu tão reles peça anatómica força-me a contar a história. E isso já aconteceu muitas vezes.
Há dias em que a melancolia chove dentro de nós como num pátio interior, atapetado de jornais velhos. Não se ouve, não se sente - mas rebrilha na sujidade densa. Eu estava num desses dias quando afastei a cortina e olhei pela janela a tarde que se ofuscara de repente, com pressa de se evadir da atmosfera enfastiada e, sobretudo, de um cenário sem alegria: as traseiras cinzentas dos prédios altos, engalanadas de roupa que fora lavada nos cacifos, os gatos, bandos de gatos de todas as raças, moles, brigões ou esquivos, o céu brumoso da cor do zinco que forrava as águas-furtadas, e o vento, também cinzento, despovoado, erradio, que, uma vez por outra, se divertia a embrulhar e a desembrulhar a roupa estendida. Mas em fechando a cortina tudo isso desaparecia: eis-me de novo isolado no gabinete fofo, de paredes que, a partir de certo momento, me davam a sensação irrespirável de uma espessura acolchoada onde tudo ficava retido: a fadiga, o silêncio, o rumor das queixas e das ansiedades dos doentes, os desejos sem contorno que nem chegava a saber se eram os deles ou se eram os meus.
Boas horas de sair dali, para o espaço verde e fictício da Avenida, de ir jantar a casa ou, se me desse na gana, de comer uma sanduíche numa esplanada, ao ar livre, olhando e enxame espavorido, ao faro da tempestade, que é uma cidade a recolher ao cortiço. Toquei a campainha e a empregada, ao ver-me despir a bata, antecipou-se:
- Ainda tem um cliente para atender.
Um cliente é coisa nenhuma. Depende da impaciência que sentimos por descer à Avenida e procurar a esplanada mais do nosso agrado. Mas aconteceu que, acima da impaciência, estava a singularidade do que ia seguir-se; e assim, foi mais tarde que, nesse dia, apesar do tédio e dos nervos lassos, por fim me vi na rua. Já então me não apetecia nem a sanduíche nem a esplanada. Por estranho que pareça, teria preferido estar lá em baixo, entre os gatos rufias, atiçando-lhes as bulhas, ouvindo os pingos da tristeza sobre o lixo revolvido. Longe das pessoas para melhor as entender.
As coisas passaram-se deste modo: quem vinha à frente eram um rapazelho meio homem meio criança, pele de jaspe que lhe desfigurava a idade, numa atitude solene e enfermiça, mão segurando um chapéu de feltro, nele despropositado, cabeça inclinada sobre um dos ombros, olhar de uma doença traiçoeira de quem aguarda um momento vulnerável para investir contra a nossa simpatia, e a mãe empurrava-o com suavidade para junto de mim, num estímulo assustado. Ela era jovem ainda, apesar dos fios brancos nos cabelos muito lisos, a boca fina e larga, onde o afecto se misturava com a amargura. Mas tanto o afecto como a amargura pareciam já um hábito.
Foi a mãe a começar a história da doença; fê-lo com as indecisões de quem a conta pela primeira vez, mas eu logo percebi, pela ironia ou espanto irritado do filho, que ela apenas tentava dar uma versão nova, mais eficaz, de uma odisseia já repetida a outros, a muitos, e sempre em circunstâncias fracassadas.
- Sabes bem que o princípio não foi assim - e o rapaz endireitou, enfim, o rosto. Os dedos que seguravam o chapéu absurdo enervaram-se. Porém, logo corrigiu a censura, enquanto recompunha essa austeridade de adulto precoce que me molestara desde o primeiro instante: - Mas tanto faz que contes de uma maneira como de outra - e olhou-me, então, com malícia e desafio.
- Tu prometeste... - arriscou a mãe.
Foi a minha vez de os medir, a ambos, sem tolerância. Tinha a Avenida à minha espera. Não poderia suportar-lhes que me desperdiçassem as horas de desafogo a que tinha direito. Rudemente, pu-lo à prova:
- Se assim é, vai o menino dizer-me o que se passou.
O «menino» era, bem o sabia, uma ofensa. Ele teria, por certo, uns dezasseis anos, mas o seu arzinho cínico, de quem se julga maduro e já incrédulo, defendido das loas dos mais velhos, valia por muito mais. Abriu a boca, previ-lhe o protesto nas mãos embravecidas e esfriei-o com um súbito parêntesis:
- Que idade tem?
Eu preparava a ficha clínica onde ia anotar os elementos de identificação e fingi não lhe perceber o melindre. Foi a mãe a responder:
- Quinze anos... Não tenho mais filhos; este nasceu, e pouco tempo depois... O pai morreu, sim... Não creio que haja doenças na família. O pai morreu num desastre.
Ela, ao pormenorizar aquilo, afilava a cabeça como um pássaro curioso, os olhos brandos, e sempre húmidos, prendiam-se, muito atentos, ao movimento da caneta, às linhas minúsculas que preenchiam o rectângulo da ficha, enquanto a boca procurava, em vão, sorrir. Eram frases simples, mas receosas, como se por detrás da sua vulgaridade se escondesse um ninho de lembranças inconfessáveis, que um pacto, entre os dois, obrigasse a represar. Quando as minhas mãos se suspenderam, cruzando-se sobre o tampo da secretária, reatou sem demora a história da doença do filho como se se interpusessem às palavras impulsivas que eu ou ele poderíamos dizer. Defendia-se, ou defendia-nos, de uma desconfiança mútua e irreparável.
Havia nesse relato vários acidentes febris. Desde criança que ele adoecia por tudo e por nada, mazelas que eclodiam sem aviso e sem motivo para se dissimularem no dia seguinte, deixando-lhe, porém, um modo ressentido de as aceitar, de se submeter aos seus caprichos. A doença fazia parte do que a vida esconde, quotidianamente, atrás da porta. Ele habituara-se a esse ardil, até lhe conhecer as ratoeiras. Por isso era assim: matreiro, incrédulo e rebelde.
- ...Aos dez anos esteve mais uma vez de cama, durante semanas... Chamámos então outro médico.
- ...que não foi o primeiro a errar - acentuou o rapaz, numa zombaria que lhe fulgurava nas pupilas agudas.
- ...e que diagnosticou gânglios - prosseguiu a mãe aflita, ruborizando-se.
Fiz de conta que o petit monsieur de chapéu e laci-nho empertigados não nos interrompera. Que não estava presente. Mais tarde, pensava eu, ajustaríamos contas da incorrecção. No entanto, à medida que a mãe ia avolumando a série de episódios, de surpresas, de tormentos que haviam feito daquele adolescente um ser delgado, grácil e agressivo, no qual afloravam, tinha de concordar, algumas leviandades dos médicos que o foram seguindo, começava a desculpá-lo. Aquele cepticismo de navalha afiada estava justificado. Não era ele que poderia atenuar a responsabilidade de uns e outros, iludidos por uma evolução feita de emboscadas. Talvez alguns, por fim, captando a verdade, a tivessem encoberto apenas por humanitarismo. Do que ele precisava era
de ajuda, de tolerância, de um apoio viril. Como manifestá-los? - ia eu meditando. Nunca através de uma solicitude convencional e vazia. O garoto tinha feito vários surtos reumatismais, os músculos definhavam, chegara a ficar preso a uma cadeira, tolhido de dores e ainda do pavor de as avivar. Eu perguntava a mim mesmo que azarentas circunstâncias se haviam concertado para que nenhum dos meus colegas se decidisse, a tempo, por uma terapêutica que, provavelmente, o teria salvo da situação actual: uma lesão cardíaca que se lhe estampava na cara, no ofegar das narinas azedas, que nos entrava pelos olhos dentro. Seria tarde para corrigir o que estava feito. Os últimos médicos que o tinham observado já haviam desistido, sem dúvida, de lhe acenar com esperanças gratuitas. O meu alvo teria de ser outro.
- E agora, senhor doutor - deduzia a mãe, de voz gasta, mas sempre branda -, agora viemos aqui ouvir a sua opinião.
- E agora - emendou o rapazola - aqui estou para mais uma experiência.
- Dispa-se, por favor - retorqui.
As palavras seriam inúteis. Que podia ser eu para aquele homenzinho verruminoso? Mais um - apenas um dos muitos que o tinham burlado ou reduzido à descrença e a um mundo ressabiado de inibições. Seria inútil tentar redimir, a seus olhos, a medicina. O que importava era ele, e não eu, descobrir-lhe forças ainda intactas, que nele esperavam ser reveladas, já que os outros lhas haviam desperdiçado. Encontrar um meio de convivermos confiadamente após essa meia hora de sondagem mútua.
Enquanto ele se despia, perguntei:
- Como te chamas? (Tratava-o por tu, premeditadamente, mas com uma naturalidade que o desarmou.) Ainda não me disseste o teu nome.
- Disse-lho a minha mãe. O senhor escreveu-o naquele papel.
Havia um triunfo pueril na sua voz, no olhar que saltou sobre mim à procura dos olhos inquietos da mãe.
- Tens razão. Chamas-te Jorge. Mas queria saber se és bom observador. É uma marca que não falha nos homens com quem podemos contar.
Ele entreabriu os lábios arroxeados. Depois pareceu muito absorvido em desabotoar o último botão da camisa.
Bastava a inspecção para se saber quanto essas cavidades cardíacas estavam dilatadas e arquejantes. Cada fluxo de sangue as enfartava, e que esforço para dele se desembaraçarem antes que o novo fluxo as sufocasse! Em cada instante, esse coração, essa vida precária onde a inteligência e a sensibilidade se tinham afuçado como um nervo desnudo à flor da pele, dir-se-iam reanimar e ceder pela última vez. Em cada instante sobreviviam. Sem que, ao menos, lhes dessem uma pausa para conhecer o sabor da agonia ou da ressurreição. Eu ia-o auscultando, palpando, por hábito, por rotina, sem surpresas, e sempre com a molesta sensação de estar também a ser avaliado em cada prenúncio das minhas reacções. Essa vigilância perseverante quase me acobardou. Por isso demorava a observação, adiando o momento de me sujeitar ao confronto com o que, até aí, mãe e filho teriam ouvido na sua romagem por vários consultórios.
Enrolei os cordões do auscultador, devagar, sobre os joelhos. A minha aparente hesitação fazia exultar o rapazola. Bem lho percebi. E, por isso, deixei-o tomar a iniciativa do repto:
- Então que é que o senhor doutor tem para nos dizer?...
Respondi com uma serenidade fria:
- Depende de ti. Posso tratar-te por tu, não é verdade, Jorge?
- Se isso lhe dá satisfação.
- Pode, sim, claro que pode, senhor doutor. Até lhe agradecemos - confirmou a mãe, apaziguadora, naquele tom monocórdico que era quase uma prece ou o rufiar nocturno de uma asa.
- Bem, Jorge, antes de te dizer o que penso necessito de ficar certo de uma coisa. Mas essa certeza só tu ma podes dar.
- Diga-
- Necessito de saber se desejas ouvir a verdade ou a mentira. Que preferes: que eu diga o que penso ou o que gostarias de ouvir?
Tudo nele, rosto e mãos, procurara um refúgio ou uma arma para se defender. As faces empalideceram, coloriram-se, voltaram a descorar; as mãos, rígidas, fincaram-se nas costas da cadeira onde a mãe permanecera sentada. Mas o pavor dela era ainda maior.
- Estou a falar-te como nunca falei a um doente. Envaidece-te que eu assim proceda para contigo?
Estas palavras afrouxaram-lhe a tensão. Foi no seu primeiro sorriso que retorquiu:
- Talvez. - Mas logo me ferroou: - E o senhor também se julga diferente dos outros?
- De quem?
- Dos seus colegas. De todos os que me deixaram neste estado.
- Tens de começar por te convencer que ninguém te «deixou nesse estado». - Ele engoliu o início de uma nova censura, que ficou suspensa na dureza com que o encarei. - Todos nos podemos iludir ou ser iludidos. O que vem a dar no mesmo.
Afastei-me da secretária, fiz várias tentativas, antecipadamente frustradas, de acender o isqueiro. Obriguei-o a enervar-se com a expectativa. Ele palpava os bolsos impaciente, à procura de uma caixa de fósforos. Depois, de súbito, reatei o meu jogo:
- Repara, Jorge, que te falo de homem para homem. É assim que nos podemos entender. Queres então a verdade?
Ele ainda se negava. Era visível que uma rendição à minha proposta o vexava mais, talvez, do que o assustava, embora, simultaneamente, lhe fosse grata a sua soberba de gabarola. Esquecêramos a mãe. Insisti:
- Se pensas manter essa atitude de desconfiança, nada feito. Ou as nossas relações se apoiam noutra base, ou vais consultar quem esteja disposto a aturar-te. As drogas de nada valem se o doente não se dispõe a acreditar nelas.
- Está bem, senhor doutor, venha então essa verdade.
Na frase, no seu tom de renovada provocação, que ele mantinha por decoro ou arrogância, havia, porém, um estremecimento de insegurança, e também uma espécie de pressa em terminar com aquilo para ir recon-sertar, a sós consigo, os estilhaços de qualquer coisa que se quebrara. Olhei-o bem nos olhos até lhe dobrar a interrogação irónica que ora me ofendia ora me estimulava.
- A verdade é esta, Jorge: tens uma situação cardíaca crónica que necessita, portanto, de vigilância permanente. Mas isso nunca foi razão para que as pessoas de fibra se entreguem sem luta e exijam dos outros uma solicitude feita de lástima. Uma coisa é cultivar o derrotismo, que foi o caminho fácil que escolheste até hoje - ele mordeu os lábios, roçou o polegar pelos outros dedos como se esboroasse migalhas de pão -, e outra é cultivar o que, em nós, existe de vontade em vencer a doença.
Não podia evitar um travo de retórica nas palavras. Fui tentando desfigurá-la com um tom ríspido que feria mais a mãe do que o filho.
- ...Que duvides ou não do que eu te digo, a saúde permanece sempre em algum recanto, por muito que um organismo esteja desgastado. É preciso descobri-la e animá-la. Se estás disposto a isso...
A mãe pôs-se sentada à beirinha da cadeira, num equilíbrio precário. Toda a sua expectativa era essa posição deliberadamente incómoda, mas isso bastava para eu recear que o seu nervosismo explodisse de um momento para o outro numa ridícula crise de choro. De boca entreaberta, luzidia de tanto a humedecer, parecia desejar responder pelo filho. Era uma reacção que, na sua linguagem reprimida, começava a amedrontar-me. No meu empenho em vencer a incredulidade e a obstinação do rapaz, transferindo-as para uma coragem aguilhoada, mesmo que apenas o brio fosse a carne onde eu espetasse esse aguilhão, talvez me tivesse excedido. Entre o cepticismo e o brio estava o espectáculo da minha segurança e, se necessário também da minha coragem, e eu não soubera por certo doseá-lo.
- Então, Jorge? - sussurrou a mãe, numa voz esfacelada.
- Não te metas nisto - foi a réplica brutal. Voltou-se logo para mim e vi-o como um lutador que contorce as espáduas num último esforço antes de as vergar às mãos do adversário. - Eu tinha essas tais lesões cardíacas, cansava-me, respirava mal, mas ainda era capaz de subir escadas ou correr. Veio outro médico e disse-me então que eu tinha de ser operado às amígdalas e que, depois disso, deixaria de sofrer. Operou-me e...
A mãe bateu com as palmas das mãos na carteira, a impedi-lo, decerto, de ir mais longe. Eu ia pensando: «Onde aprendeu este garotelho um tal gelo de ironia e desdém na intonação das palavras?» Só a espaços se percebia nele a criança. Ei-lo, de novo, a atirar-me a raiva surda que lhe abria, de gozo, as narinas afogueadas:
- Operou-me. Eu parecia um porco a sangrar. Não foi assim, mãe?
Já não estava abalado. Não se deixaria subjugar. Sentimo-lo ambos.
A mãe rodou o fecho da carteira, olhos acossados, entre dois fogos. Confirmou:
- Foi assim, foi. Ele, senhor doutor, ficou com tanto medo do sangue! Quando se constipa, chega a evitar assoar-se para que...
O rapaz empalidecera. Por instantes julguei que iria desmaiar. A cabeça oscilava-lhe, tonta. Mas reagiu:
- Isso não é para aqui chamado. Tenho medo das hemorragias, sim, e depois? Bem sabes que eu ia morrendo. E desde então nunca mais fui gente.
Intervim:
- Não vamos ficar os dois, ou os três, a lamentar o facto. Para lamúrias, não contes comigo. A minha ajuda, se a quiseres, terá de ser combativa, e não a das carpideiras. O que passou, passou.
- É bom de dizer.
Comecei a escrever a receita com uma sensação de malogro. E também de fastio. A derrota, por agora, era minha. Só me lembrei de novo dos gatos, da sanduíche, da esplanada. Estava saturado. A sugestão da rua, de terminar aquele incrível diálogo, tornou-se-me urgente. Ao fechar a porta, daí a momentos, sobre o rapazelho e a sua mãe silenciosa e passiva, devia expulsá-los do meu cérebro, aos poucos entorpecido; devia esquecê-los, se possível, pelo menos durante umas horas ou uma noite.
- Então vou agora tomar os remédios e depois...
- Voltarás aqui passados quinze dias. Mas se precisares de um esclarecimento, de me dares uma boa ou má notícia, telefona-me a qualquer hora.
- A qualquer hora?
- Se te parecer justificado.
Ele deu umas voltas ao chapéu e rematou:
-Bem.
Ao sair, já no corredor, voltou-se para dizer:
i - Gostei que me tratasse por tu.
Afinal, não me apetecia a sanduíche. Fui para casa, bebi um copo de água açucarada e adormeci, muito tarde, deixando o candeeiro aceso sobre o livro que me escorregara das mãos.
Na véspera da data em que combináramos a nova consulta, perguntei à empregada os nomes dos doentes marcados para o dia seguinte. Depois pedi-lhe a agenda, duvidoso. Li a página duas vezes: Jorge, ou a mãe, haviam esquecido o nosso acordo. Não era provável que se apresentassem, nesse tal décimo quinto dia, sem prevenirem com antecedência. Mas também podia aceitar-se que tivessem interpretado a minha frase «voltarás passados quinze dias» como coisa assente. Estive vai não vai para inquirir da empregada o que ela pensava a esse respeito. Não deixei, porém, de recomendar:
- Quanto àquele doente, o rapaz cardíaco, se vier amanhã, inscreva-o no fim da consulta. Provavelmente a conversa será demorada.
- Tanto como da outra vez? - censurou a rapariga.
Mas ninguém apareceu. Foi `à meia tarde que o telefone retiniu. Era a mãe do Jorge a pedir-me que passasse lá por casa.
- Aconteceu algum contratempo?
- Nada, não aconteceu nada, senhor doutor, mas o meu filho gostaria que o observasse, de preferência aqui. Se fosse possível, bem entendido... Tem de desculpá-lo, senhor doutor... Ele cansa-se... ele... teimou em ficar de cama.
- Irei, minha senhora.
A consulta prolongou-se por mais tempo do que eu previra. Só me desembaracei de alguns doentes retardados muito perto das dez da noite. Doía-me terrivelmente a cabeça. Dor e náusea. Passava das dez e meia quando premi a campainha da porta do meu caprichoso cliente. Uma casa pombalina, sólida, numa rua sossegada. Tinha um quintal nas traseiras. Os arbustos floridos assomavam a uma das paredes laterais, aspergindo, até à rua, um odor forte e enjoativo. De que viviam e como viviam mãe e filho? Essa curiosidade beliscava-me pela primeira vez. E enquanto esperava que alguém abrisse a porta, achei-me a rever certos pormenores que, na altura, me haviam sido indiferentes: o casaco da mãe, de um azul encardido, os seus dedos finos, talvez macios, mas com umas ranhuras nas polpas, de quem os usava, diariamente, nas tarefas caseiras. Sobretudo o casaco: o feitio era de uma simplicidade quase desleixada. Tudo isso significaria alguma coisa? E que interpretação desejava eu dar-lhe?
Ei-la a sorrir-me, agora mais familiarizada. Era bonita. Uma beleza tímida, serena. E os olhos amendoados, muito intensos, quase aflitos, davam ao rosto uma chama esquiva, que se acendia quando os obrigávamos a revelar-nos o que neles se refugiava.
- Desculpe ter-lhe dado este incómodo.
- Ele piorou?
- Penso que não. Mas, bem sabe, é um rapazinho difícil...
- Vamos vê-lo.
- Por aqui, senhor doutor.
A passadeira do corredor esfiara-se onde os pés a tinham usado mais, via-se que fora habilmente reparada. Apenas um móvel no átrio, sem utilidade e de mau gosto. A casa devia ser espaçosa, mas todo esse espaço, despido, se tornava desconfortável. Mesmo que não ma tivessem indicado, eu saberia qual a porta do quarto de Jorge. Vinha dali o cheiro das salas velhas onde o sol não tem licença de entrar e a atmosfera nunca chega a ser renovada.
O rapaz tinha os lençóis esticados até ao queixo, as mãos apareciam, friorentas, como ganchos a segurá-los à altura dos ombros. Saudou-me deste modo:
- Então logo pela primeira vez o senhor doutor ia-se esquecendo de mim.
- Esquecer? Vim directamente do consultório para tua casa.
O seu olhar, agudo e arisco, teve um sobressalto de espanto. Ou de dúvida. Depois pareceu-me que o irritava a ideia de que a sua dúvida fosse, afinal, injusta.
- Quer convencer-me de que não foi jantar primeiro?
- Estou apenas a dizer-te o que se passou, sem pretender convencer-te de coisa nenhuma. Vim assim que atendi o último doente.
Sentei-me na borda da cama e nesse momento, numa tardia solicitude, a mãe aproximou-me uma cadeira. Preferi continuar como estava. Ele soergueu-se para que eu me sentasse mais à vontade, embora mantivesse os lençóis a cobrir-lhe o peito. Perguntei-lhe:
- Porque não te levantaste? Esperava por ti no consultório. Era o que tínhamos combinado.
Ele esticou o pescoço, fixando as manchas fuscas do tecto, numa reacção de amuo.
- De noite não me apetece dormir. Ando por aí, pela casa, e só lá pelas cinco da manhã é que me deito. E, por isso, às vezes durmo até tarde.
- É um mau hábito.
- Ele, quando tenta adormecer de noite, tem um sono agitado - desculpou a mãe. - Chega a acordar aos gritos.
- Não gosto da escuridão.
- Tens medo?
Os seus olhos tinham descido do tecto para a mãe, a repreendê-la, e depois, mais enfurecidos, poisaram sobre mim. Pareceu-me que escolhia entre várias respostas.
- Afinal, o senhor doutor fala de tudo menos da minha doença.
- Falemos então da tua doença. É isso que te dá prazer?
- Se veio ver-me, foi para saber como estou. - E sem me dar tempo para um protesto, disse, tranquilamente, no jeito de quem faz uma concessão: - Creio que estou a melhorar.
- Óptimo - e fiz o gesto de me aprontar a observá-lo.
- ...Mas os comprimidos que me receitou são os mesmos que eu tomava dantes.
As têmporas latejaram-me. Lembrei-me, de súbito, que uma dor de cabeça me acompanhara ali.
- Pois são. Tu é que tens de ser diferente. - Cada palavra, agora, martelava-me o cérebro. Sentia uma espécie de esvaimento. Era preciso que ele não desse por nada. Cerrei os queixos para reagir. - Daqui em diante, Jorge, para começar, irás para a cama à mesma hora das outras pessoas. E vais esquecer esse andar arrastado, de velhinho de juntas presas, com que me procuraste no outro dia. Quanto a este quarto, minha senhora, janelas abertas toda a manhã.
- Eu bem tento, mas ele...
- Lá está sempre a mãe com os sermões!
- ...E, durante o dia, passeias, divertes-te com os teus amigos.
- Os meus amigos? Deixe-me rir! O senhor doutor, ainda por cima, está a troçar. Eles não querem aleijados na sua companhia.
- Não te considero aleijado. Podes fazer quase tudo o que eles fazem.
Ele arredou a minha prédica com um gesto de enjoo.
- Quer que lhe seja franco?
- Já sabes que me dou bem com a franqueza.
A cabeça doía-me, a voz do rapaz antecipava-me uma cilada, mas eu viera ali com um propósito definido e não tinha o direito de desertar. Ele perfurou-me mais dentro:
- É isso que me falta saber.
- Não te percebo.
Jorge arredara os lençóis, finalmente, num gesto desabrido.
- Olha, mãe, o senhor doutor diz que ainda não jantou. Talvez queira tomar alguma coisa.
Ele não sugeria: impunha. A mãe levantou-se, numa prontidão atabalhoada, e a sua cabeça, expectante, já não era a de um pássaro: antes a daqueles bonecos que as velhas mercadejam nas ruas e têm um pescoço de arame que oscila para trás e para diante quando as mãos trémulas e secas das velhas os fazem deslocar.
- Obrigado, não se incomode. Não tomo nada. Ela, com a mesma obediência acobardada, sentou-se de novo. Bonita, sim, quase uma estátua doce e grave naquela penumbra enigmática. E pensei: eu teria amado uma mulher assim. Pelos seus gestos brandos, pelo que nela havia de ternura frágil, espavorida, e até por esse modo de vestir de quem põe qualquer coisa sobre o corpo apenas para lhe cobrir a nudez. E pensei logo a seguir: estou a deixar-me levar pelas aparências. Ela era tão equívoca como a penumbra, tão insondável como esta teia densa, dúbia, que se pressentia nas relações entre mãe e filho.
- Vá, Jorge, não faças perder tempo ao senhor doutor.
Um bom pretexto para que eu me decidisse a correr o fecho do meu estojo profissional. Ia a ajustar nos ouvidos as olivas do auscultador e o rapaz teve um risinho frio, sem ruído. Ao mesmo tempo, ouviu-se ladrar das bandas do quintal. O risinho fechou-se-lhe bruscamente. Toda a sua expressão mudara. De olhos muito abertos, preocupados, recomendou:
- Prenda o cão, mãe. E sem esperar que ela fosse cumprir a recomendação, bradou lá para dentro: - Maria, prenda o Tejo no quintal!
As veias incharam-lhe do berro, o peito descia e subia como um fole. O cão, porém, ladrou de novo, agora mais próximo, e o seu ladrar cavo e rouquejante sugeria logo um animal corpulento. Alheado do que se passara, assentei o disco de metal sobre o doente, que estremeceu ao contacto.
- Tens frio?
- Foi só às primeiras impressões...
Ele estava mais calmo, embora o sentisse de ouvido alerta. Quando lhe pareceu que já poderia fazer um comentário, disse:
- Agora o senhor doutor vai decerto garantir-me que eu fiz progressos em quinze dias de tratamento...
- Estive quase a supor que sim, mas enganei-me. A tua mãe tem razão: perco tempo contigo.
As mãos da mãe agitaram-se, tentando escapar de uma tal conivência na minha censura, enquanto o rapaz fermentava uma reacção, mescla de protesto e apatia. Venceu a indiferença, o tédio. Mas reparei que batia com os punhos nos joelhos.
- Há pedaço queria perguntar-lhe se o senhor doutor é sempre tão seguro de si como quando está comigo.
- Sempre que acredito no brio dos meus doentes.
- Ah... Essa ainda eu não tinha ouvido...
Acontecera qualquer coisa lá dentro. O cão rosnava, bravio, ameaçando ou repontando. Pelo abrir e fechar de portas, pelo rumor chocalhado de correntes, era quase certo que a criada não conseguira sustê-lo no quintal. Depois, outra vez o ladrar enfurecido.
Repetiu-se o desassossego no rapaz, que estendeu um braço acusador para a mãe.
- Vês? A Maria é uma parva. Vai lá tu fechar o Tejo. - E associando-me, enfim, à sua inquietação: - Se não, ele vem para aqui e morde no senhor doutor.
A mãe saiu, demorou-se menos do que seria de prever, e entretanto eu e o Jorge fomo-nos vigiando, em silêncio. Eu sentia um aperto no estômago, de fome, embora a cabeça estivesse mais desanuviada. Ia aceitar uma bebida. Comecei a compor mentalmente a frase mais apropriada para lembrar a oferta de há pouco, mas no que eu efectivamente pensava era nessa história de o cão ter sido encarcerado por minha causa, no escárnio com que isso me fora dito.
- Antes de mais, que cão é esse para justificar tais precauções?
Com a pergunta, deitei fogo a um rastilho. O rapaz firmou-se nos cotovelos, desempenando-se, e os seus músculos foram percorridos por uma onda de imprevisto vigor.
- É um serra-da-estrela deste tamanho.
Deste tamanho: à altura dos meus quadris. Mas nem foi bem a mão direita do rapaz, firme de orgulho, que me sugeriu um tal corpanzil: a voz grossa, máscula, é que teve uma ressonância de poderio.
A mãe regressara, de tranquilidade recuperada.
- Pronto, Jorge, já podes estar descansado. O Tejo ficou preso.
- O senhor doutor perguntava-me que cão era o meu... Não é verdade que já foste chamada à polícia, uma data de vezes, para pagar as calças de quem ele apanha a jeito, quando vai à rua? Não é verdade que ele espatifou quantos cãozecos havia na vizinhança? - A mãe acenava afirmativamente, sem gosto, esquivando os olhos velados de submissão. - É o mais forte de todos. Mais selvagem que um lobo.
Pôs-se ofegante. Interrompeu-se uns momentos, narinas cheias, por certo humilhado de ser tão vulnerável ao cansaço, agora que ao falar do seu Tejo, grado e feroz, era como se falasse de si, da coragem que ele desejaria possuir e a doença lhe negara, de uma pujança que, não podendo ser dele, era, porém, do seu cão. Os médicos tinham permitido que o seu organismo fosse esta coisa débil, corroída, que a sua personalidade se desagregasse em caprichos, dúvidas, rancor, mas o que nele era autêntico, audaz, vital, e ninguém lhe subjugaria, estava ali, a dois passos, obediente ao seu chamado, uma força bruta da natureza que ele domava como senhor.
Eis a minha oportunidade. A minha e a dele. Mesmo através da surpresa, da emoção, eu soube que era assim. Iria jogar essa oportunidade num risco sem cálculo, numa decisão instintiva, como um jogador lança ao pano verde a ficha que lhe resta, a última, que ele encontrou por acaso no bolso vazio, e cerra os dentes para que não ouçam o terror e a súplica que gritam dentro dele.
- O cão gosta muito do pequeno. A ele obedece em tudo. Passa dias inteiros aqui no quarto, aos pés da cama. Eu teria preferido...
- Uma gata aluada... - zombou o rapaz. Ela escondeu logo a sua presença sedosa.
- Sabes, Jorge - disse eu -, eu também tenho um cão.
Ele varou-me, perplexo, a defender-se de uma irreprimível curiosidade. Prossegui, no mesmo tom pausado e evasivo:
- Um boxer. Conheces os boxers?
- Conheço.
- São cães de respeito. Grandalhões e, sobretudo, têm uma força dos diabos.
- Bem sei.
- Mas o meu cão é forte sem deixar de ser manso. Qualquer pessoa tem licença de o afagar. Nunca precisei de ir à polícia: ele não rasga as calças de ninguém.
- E que tem isso? O meu Tejo também não me morde.
- Morde aos outros, traiçoeiramente, não foi o que disseste? Morder não significa valentia.
- Seja como for, o meu...
Interrompi-o asperamente, de propósito, e disse:
- Espera aí. Tenho a boca seca e sempre vou aceitar que a tua mãe me dê uma bebida.
Ele dividiu-se entre o prazer de eu anuir à sua lembrança de há pouco, de me ser prestável, e o vexame da interrupção.
- Whisky?... Assenti:
- Boa ideia.
Ele estava sôfrego de completar a frase e retomou-a sem demora:
- Seja como for, o meu cão, sei que é valente. É um serra-da-estrela.
- E o meu é um boxer. E quando um boxer fila alguém, é inútil pensar em escapar-se-lhe dos dentes. Pior do que um serra-da-estrela.
- Mas o meu cão vencia o seu!
Sorvi uma golada, retorquindo sem o olhar:
- Duvido.
Ele exaltava-se, a ira refervia-lhe nas narinas. Sentia o pulsar das suas veias entumecidas. Mas eu tinha de levar a manobra até ao fim. Por necessidade. Para bem dele. Oxalá que a mãe, ao menos, tivesse um pressentimento do meu objectivo, que não fosse intervir desastradamente. O seu nervosismo, mesmo domesticado, respirava-se naquele ar denso de bafio e mistério. Mas tanto ela como ele não deviam perceber a minha ansiosa expectativa.
Deixei que ele meditasse um pouco, em busca de um argumento mais poderoso.
- Então acha que um boxer tem mais força que um cão da serra?
- Depende. Da corpulência, dos hábitos, das circunstâncias. Depende de muita coisa. O meu tem sido educado em ser um bom companheiro para toda a gente. Já te disse que é dócil e meigo, sem ser cobarde. Os boxers não são cobardes.
- Quer dizer que o meu é cobarde?
- Mas o Tejo, senhor doutor, é de uma fidelidade ao pequeno!... - interpôs-se a dona da casa, tentando, por certo, suavizar o exaspero do filho. - Compreendem-se de tal maneira que... Se eu lhe contasse, talvez me acreditasse.
- Que histórias vais tu impingir? - inquiriu o rapaz, numa grosseria que não lhe ocultava o sobressalto.
- Porque não havia eu de acreditar? Conte, minha senhora.
Ela plantou as mãos sobre o rebordo das coxas, alisando o vestido, acariciando-o. O rubor, a ternura frustrada, fazia-a ainda mais bonita.
- O Jorge teve, há dois anos, uma broncopneumonia...
- Isso não interessa para nada. O senhor doutor já sabe de todas as minhas doenças.
- Não interrompas a tua mãe.
O meu apoio irritado não a estimulou o suficiente. Estava agora indecisa. Parecia esperar o consentimento do filho para ir até ao fim. Jorge deixou-se escorregar por debaixo dos lençóis, cerrando os olhos. Aquilo devia significar, entre ambos, que ele concedia, embora de má vontade.
- ...De repente, sangrou do nariz. - Sondou ainda o filho, à espera de um encorajamento mais evidente. - Isso abalou-o muito. Pois o cão, quando viu ou sentiu o Jorge um tanto... preocupado... pôs-se também a sangrar. O cão estava ao fundo da cama, estava ali havia três ou quatro dias, recusando comida e... Levei-o ao veterinário e ninguém soube explicar o motivo da hemorragia.
Um frio agudo correu-me os braços e as pernas. Parecia o contacto acerado de uma lâmina. Jorge, emboscado no seu mutismo, captava o efeito que a história produzira sobre mim. Os seus dedos arrepanhavam o rebordo da cama.
- Agora já compreendo melhor que tenhas orgulho no teu cão.
- E há mais coisas! - gritou ele, ávido. - Para que alguém o pudesse levar à rua, das vezes em que eu estou de cama, habituei-o a dois dos meus amigos. «Tejo Estes são meus amigos. Vais fazer de conta que eles também pertencem à família.» E levei a mão de cada um deles, juntamente com a minha, ao focinho do bicho. Não foi preciso mais.
- Como vês, o teu cão não é tão mau como isso. Não era o que Jorge desejara ouvir. Por isso, ei-lo a reavivar, num sorriso de desfrute, a sua ameaça:
- É que ainda o não conhece! Se eu não tivesse mandado prendê-lo, a estas horas, o senhor doutor estava aí de garganta rasgada...
Pus-me de pé, bruscamente.
- A senhora pode fazer-me o favor de mandar soltar o cão?
Um e outro se entreolharam, naquela espécie de cumplicidade turva, agora feita de espanto, de consulta apreensiva, que estava por detrás do que, aparentemente, os desunia.
- Mas o que ele disse é verdade! O cão atira-se às pessoas.
- Insisto, minha senhora. Peço-lhe que mande soltar o cão e trazê-lo aqui.
- Aqui?!
Ela afogou a exclamação com os dedos alarmados. Depois levou-os aos cabelos, reflectindo numa pausa solitária, e a modorra do gesto sugeria desalento, uma irremediável e melancólica impotência. Lentamente, foi-se esgueirando para a porta. Entretanto Jorge empinara-se no leito. Reparei que a sua testa borbulhava, as melenas suadas lembravam serpentes negras, luzidias. De segundo a segundo o suor ia-lhe rebentando por todo o corpo. Rebrilhava no pescoço, ensopando-o, no tronco agora desnudo, nos antebraços tão delgados como os de uma criança enfezada, à medida que a angústia se trespassava de célula por célula. Os instantes, nesse silêncio claro e espesso, eram longos como horas. E essa garra nas minhas entranhas.
Que se passava no rapaz? O pavor de que o seu Tejo, selvagem como um lobo, me agredisse. Eu estava certo de que ele não queria que isso acontecesse. Mas também lhe era necessário provar-me a ferocidade do cão. Era o seu orgulho, a sua íntima bravura, a razão de ser da sua rebeldia para comigo e os outros, que estavam em causa.
O Tejo rosnava, com um ou outro latido cavernoso à mistura, junto da porta dos fundos. Havia ruídos precipitados, uma briga confusa e violenta. Alguém, decerto, o impedia ainda de correr, à bruta, para o quarto do dono. Assim era, de facto. A mãe do rapaz vinha aí tentear uma última advertência. Nem uma gota de sangue na sua face de mármore.
- Senhor doutor, eu rogo-lhe...
- Deixe o cão em liberdade - obtemperei com rudeza. - Depois lhe explicarei porquê.
Sentara-me de novo à beira de Jorge, mas do lado oposto à porta. Sem um estremecimento. De músculos retesos. Finalmente, precedido de uma rajada de fúria, que reboou pelo corredor atufando-nos os sentidos, o cão surgiu no quarto, olhos de carvão, meio cegos, e deu um salto doido sobre a cama, estacando, fauces abertas e frementes, a um palmo do meu rosto. Repetiu-se-me a sensação de frio metálico ou de qualquer coisa mais dilacerante que me tivesse coagulado as veias. O animal quedou ainda uns momentos na pose de ir ou não esfacelar-me e, por fim, roncando, de raiva arrefecida, a baba a escorrer-lhe fumegante, deitou-se aos pés do dono.
Só então desfitei o molosso para observar o rapaz. O seu olhar coruscante, de desafogo e humilhação, varava-me de pasmo odiento. De chofre, pôs-se a soluçar, escondendo o rosto na almofada. Todo o seu corpo era sacudido por esse choro de rendição. Os dentes mordiam a roupa, trituravam as palavras:
- Mas o meu cão é valente! Juro-lhe que o meu cão não tem medo de ninguém!
Ainda hoje, quando volto ao cimo daquele monstruoso penhasco, onde o homem desafiou as leis que o limitam para construir um ninho de águias e dele abranger o céu, a distância, a ambição e as vertigens - ainda hoje prolongo o meu olhar pela planície e recordo as tardes em que a percorri sobre o lombo paciente de um cavalo, meu companheiro de filosofia e canseiras, ao apelo de camponeses bisonhos para quem a doença é acontecimento de solenidades e misérias. Lá no fundo, reparem, quando a campina se esforça por trepar às vertentes da raia, como ondas que, apesar de fatigadas, ainda têm alma para surpreender as falésias, esconde-se um dos muitos casais que polvilham a árida solidão da charneca e que, com a sua presença triste, parece que tornam a solidão maior ainda. Conseguireis distinguir as pobres casas daquela monotonia de terra parda, de xisto, de árvores que um Outono infindável condenou a uma nudez também perpétua? Serão casas?, perguntareis. Dizem que sim. Pelo menos, vivem lá homens. E anseios e desilusões e doenças - e sobretudo uma tenacidade que já não tem mérito porque se tornou um hábito ou talvez uma condenação.
Num dos Estios que por lá passei, uma epidemia de tifo correu a planície de lés a lés. Sem nada que a travasse, obrigou cada família a pagar-lhe um pesado tributo e em algumas casas fui encontrar dois ou três corpos estendidos sobre esteiras, alinhados, gemebundos, como se estivessem ali apenas à espera que alguém os lançasse numa vala. O tifo pressentia-se a distância. Começava por ser um odor até o sentirmos como uma presença. E depois de observar, por hábito, sem convicção, deformado pela rotina, esses ventres escavados, esses rostos onde a febre já nada mais tinha para devorar do que a ansiedade ardente dos olhos, sentei-me num cepo, ao ar livre, para que a largueza da atmosfera varresse de mim, das minhas mãos e do meu cérebro, o contágio informe e repulsivo. Mas o tifo insinuara-se na terra, no vento, nas árvores. Era como se todos, na campina, estivéssemos mergulhados no lodo. Que podia eu fazer de verdadeiramente útil àquela pobre comunidade de doentes? Donde viera a doença? Quem a alimentava? Que frágeis éramos todos! Em redor havia apenas céu e planície. E, lá ao fundo, montanhas. A que distância ficava o mundo, a saúde, os remédios e a força que sacudisse a podridão das pessoas e da terra para longe? A minha inutilidade, o desespero de me saber inútil, de ser tão débil como qualquer daqueles camponeses que me seguiram até à rua - sabiam-me agora a uma traição. Eles eram frágeis e não o ocultavam. Mas eu, que mascarava a minha incapacidade com uma suficiência que os iludira, essa suficiência que os arrastava até mim para que eu lhes oferecesse uma palavra ou uma atitude de apoio - eu, que terrível farsa estaria ali a representar?
A minha angústia não lhes suportava a presença. Desejava que todos se fossem dali juntar-se aos moribundos. Que todos se fossem - para que, deixando-me só, me fizessem saber que também eles tinham compreendido que eu lhes insultara a sua credulidade.
Mas nada disso acontecia: os poucos homens e mulheres válidos do povoado avolumavam de instante para instante o cerco de expectativa estabelecido à minha volta. Eu era aquele de quem se esperava a palavra prodigiosa. Se me negasse a ludibriá-los, o desamparo deles acabaria por ser definitivo. Ia então mentir-lhes. Ia acrescentar mais um disfarce aos muitos que até aí haviam mascarado a minha incapacidade.
E quando, enfim, os entorpeci com as esperanças, os conselhos, a solidariedade que de nada lhes valia, uma velhinha suja tirou do abismo da suas saias uma laranja e ofereceu-ma. Era a única coisa que eles possuíam para me traduzirem o seu reconhecimento. Apenas uma laranja - e tinha a significação de um tesoiro. Um tesoiro para compensar uma mentira.
Fernando Namora
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